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CORTESANIA, CIVILIDADE E DISSIMULAÇÃO.

O JOGO E O DESENVOLVIMENTO CORTESÃO:


CASTIGLIONE E A EUROPA
COURTESY, CIVILITY AND DISSIMULATION.
THE GAME AND THE COURT DEVELOPMENT:
CASTIGLIONE AND EUROPE

FABRICIO LAMOTHE VARGAS*

Resumo: O presente trabalho tem como ponto norteante o estudo e a análise do processo de
surgimento de uma nobreza cortesã e, consequentemente, de uma cultura de vida na corte,
ilustrada através da literatura e dos relatos de época – aqui exemplificado, principalmente, com a
obra de Castiglione, Il Gortegiano. Durante a primeira parte, tentaremos analisar as raízes do
chamado “bom comportamento” e o fenômeno da mudança de percepção do indivíduo sobre si
mesmo e sobre os outros – fenômeno característico de finais da Idade Média e início da Moderna,
desde os romances cavalheirescos até os tratados de Erasmo de Roterdã. Já a segunda parte tem
como principal objetivo a análise da formação de uma elite cortesã e de uma sociedade – e
cultura – de corte na Europa. A terceira e última parte do trabalho aprofunda-se nas
particularidades do caso português para entender suas características e peculiaridades na dita
“sociedade de corte” que vicejava na Europa moderna.

Palavras-chave: Castiglione, Europa, Antigo Regime.

Abstract: The present work aims to analyze the process of the emergence of a courtesan nobility
and, consequently, of a culture of courtesan lifestyle, illustrated through literature and writings
from that time - exemplified here, mainly, with the work by Castiglione, Il Gortegiano. During
the first part, we will analyze the roots of the so-called “good behavior” and the phenomenon of
the individual's change in perception about himself and about others - a phenomenon
characteristic of the late Middle Ages and the beginning of the Modern Age, from the chivalry
novels to Erasmus of Rotterdam and his Treaties. The second part, on the other hand, has as its
main objective the analysis of the formation of a courtesan elite and a court-based society - and
culture - in Europe. The third and last part of the work delves into the particularities of the
Portuguese case to understand its characteristics in the so-called “court society” that thrived in
modern Europe.

Keywords: Castiglione, Europe, Ancien Régime.

*
Graduado em História pela Universidade Fluminense, mestrando em História Moderna e dos Descobrimentos na
Universidade Nova de Lisboa (fabricio_lamothev@outlook.com).
1. A nova aristocracia e os bons costumes
Na Europa dos séculos XV e XVI, a cultura doutrinária imperava sobre a imprensa e
grande parte de sua produção. A partir deste predomínio, a Igreja tridentina formulava diversos
tratados religiosos, tendo como principal intuito difundir suas novas regras para as massas.
Entretanto, em meio a este controle, surgiriam também as obras denominadas manuais de
comportamento. Tais manuais, em grande parte do tempo, não se ativeram somente a questões
religiosas, abarcando e alcançando diversas práticas do cotidiano dos homens de sua época.
Nessas referidas obras, apareciam a construção e o debate acerca de um ideal masculino 1 do
cortesão, o homem da corte, sendo a primeira formulação atribuída por alguns pesquisadores a
Baldassare Castiglione, diplomata italiano e autor do afamado Il libro del cortegiano2.
Álcir Pécora relata, na introdução da versão traduzida ao português no Brasil de Il
cortegiano, que o argumento principal do livro de Castiglione seria o relato dos acontecimentos
ocorridos durante quatro noites, de três a sete de março, nos aposentos do palácio do duque de
Urbino, a quem Baldassare Castiglione servia como diplomata, militar e letrado. Pela
indisposição do duque causada pelos sintomas da gota, ficou reservada a sua esposa, Elisabetta
Gonzaga, a tarefa de entreter os gentis-homens e damas a seu entorno. Em uma dessas ocasiões
propôs-se ao grupo um jogo, no qual os interlocutores deviam explanar acerca de suas
considerações sobre o ideal cortesão 3. Peter Burke comunica que é proveitoso estudar o cortesão
em si ante a obra de Castiglione, visto que esta teria surgido de um “discurso” — que ela
também, futuramente, teria ajudado a formar — classificado por Burke como “um conjunto de
ideias ou proposições, mais do que um agrupamento aleatório, mas menos que um sistema
lógico”. Para o mesmo autor, O cortesão faria parte de uma sequência de codificações de
“valores”4 insignes encontrados nos escritos de pensadores ocidentais desde a Grécia antiga5.

1
Na maioria dos tratados de comportamento seiscentistas, as instruções para os comportamentos dos cortesãos mais
jovens eram, sobretudo, masculinas. As mulheres apareceriam apenas como alvo de comportamentos específicos. A
obra de Castiglione seria uma exceção à regra, reservando parte de um de seus livros para a descrição da mulher
cortesã ideal.
2
SILVA, Kalina Vanderlei. O Herói Virtuoso, Prudente e Dissimulado: O Cortesão como Ideal Masculino nas
Cortes Ibéricas dos séculos XVI e XVII. História (São Paulo), vol. 32, núm. 1, enero-junio, 2013. 234 p.
3
PÉCORA, Alcir. A cena da perfeição. In: CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. Tradução: Carlos Nilson
Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997. VII-XV pp.
4
“Valor” é aqui definido por Burke (1997) como um termo mais amplo do que “moral”, não sendo ele confinado a
regras as quais se atribui serem “moralmente unificadoras”, mas se estendendo também para regras sociais e questões
de gosto. Para ele, o diálogo de Castiglione seria, de fato, um guia de “estilo pessoal”.
5
BURKE, Peter. As fortunas do cortesão. São Paulo, Unesp, 1997. 18 p.
Embora a tradição primeiramente exprima o sentido de se transmitir algo, constante e
eventualmente, ao passar do tempo, alterações e transformações ocorrem durante a transmissão
de “conceitos, práticas e valores”. As tradições seriam, assim, continuamente assimiladas,
transformadas, reinterpretadas e reconstruídas6 (conscientemente ou não) para se adaptarem a
novos cenários espaciais e temporais. Para Burke tal apropriação, inevitável ante o tempo e o
espaço, não seria, apesar disso, aleatória. Ela possuiria uma lógica própria, diretamente
relacionada a um grupo social que a partilhava, denominado por este autor uma “comunidade
interpretativa”, na qual determinada obra (ou obras) seria(m) utilizada(s) como modelo de direção
para pensamentos e ações deste mesmo grupo. Ao mudar nosso foco do referido grupo para os
indivíduos, seguindo o feito de Burke, veríamos que esses escolhiam, com base na cultura que os
rodeava, qualquer coisa que consideravam atraente, relevante ou útil e, assim — conscientemente
ou não — assimilavam ao que já possuíam. Leitores, ouvintes, observadores e até mesmo
escritores seriam apropriadores e adaptadores ativos, e não meros receptores passivos, como se
poderia pensar7.
Durante a Idade Média, berço os romances cavalheirescos e sobretudo os valores da
cavalaria, esses últimos foram acrescidos por um conjunto de qualidades denominadas “boas
maneiras”, incluindo também a “cortesia”. Burke 8 nega, contudo, que a cortesia teria sido uma
invenção medieval, sendo na verdade uma adaptação. No espaço da corte, o vocabulário do dito
bom comportamento, com raízes na Roma antiga, teria sido adaptado a partir do século XII.
Desta forma, a “cortesia”, associada não só às boas maneiras como também ao amor, opunha-se à
“vilania” do rústico campesino. Ainda segundo este autor, a cortesia seria associada à “medida”,
caracterizada como um modo de discrição, no qual o indivíduo tenderia a evitar os excessos
buscando o meio-termo, algo fundamental no sistema cortesão. Além disso, ele deveria ser leal,
generoso, franco e – talvez um dos aspectos mais importantes – “letrado”. Algo bem expresso
nesta passagem do diálogo escrito por Castiglione na fala do conde Ludovico di Canossa:

Mas, além da bondade, penso que o verdadeiro e principal ornamento do espírito de cada
um são as letras [...] porque nada mais é, por natureza, tão desejável e adequado para os
homens que o saber; e grande loucura é dizer ou acreditar que não seja sempre bom 9.

6
Burke (1997) afirma que o processo constante de reinterpretação e recontextualização desgastaria, em um sentido, a
dita tradição. Contudo, este processo também a manteria ao garantir que ela continue a atender as diferentes
necessidades de diferentes grupos através do tempo e do espaço.
7
BURKE, Peter. Op. Cit. 14 p.
8
Idem. 25-26 pp.
Este ideal, contudo, não era igualmente partilhado por todas as elites europeias. Apesar de
difundido pelos romances de cavalaria e livros de cortesia, existia, ao mesmo tempo, uma
tradição eclesiástica de crítica à vida na corte e à mesma, por se tratar de um local de corrupção
moral dos indivíduos que a habitavam. Conforme Burke, apesar dessa condenação por parte da
Igreja e de seus teólogos, o ideal cortesão difundiu-se por boa parte da Europa pela poesia dos
trovadores e pelos “romances cortesãos”, gênero literário que representava uma fusão de
cavalaria com cortesia, mistura dos valores de campo de batalha com os de corte. Os tratados
surgidos deste meio também tinham algo a dizer sobre as chamadas urbanidade e civilidade. A
civilidade seria um termo com gênese urbana e/ou cívica que, num contexto político, teria
adquirido popularidade com Erasmo de Roterdã, autor cuja obra seria uma espécie de síntese dos
ideais medievais de disciplina e cortesia10.
A obra em questão era De civilitate morum puerilium, na qual Erasmo teria dado força a
uma remota palavra: civilitas. Tendo isso por intento ou não, Erasmo expressava nesta palavra
algo que atendia a uma necessidade social de sua época, como propõe Elias 11. Ante a difusão do
tratado, viu-se na Europa o aparecimento de palavras correspondentes em diversas línguas 12. O
livro de Erasmo, dedicado a um menino nobre, filho de um príncipe, escrito para a educação de
crianças, tratava do comportamento das pessoas em sociedade, sobretudo das “maneiras
corporais”. O chamado “comportamento externo”, ou seja, a postura, os gestos, o vestuário e as
feições faciais seriam abarcados pelo tratado, sendo uma manifestação direta do homem interior,
o homem por inteiro. Ainda conforme Elias, o tratado de Erasmo (bem como uma série de
trabalhos humanistas), em diversos pontos situava-se numa tradição medieval, com escritos
corteses ressurgidos em sua obra 13. Não obstante, De civilitate morum puerilium anunciava uma
nova concepção que faria o uso do conceito de cortesia diminuir gradativamente, dando espaço
ao de civilidade. Apesar do ressurgimento de conceitos medievais em sua obra, Erasmo não seria
um simpatizante da cavalaria, mas sim um humanista. E o valor fundamental dos seguidores
desta filosofia era, claro, a humanitas, entendida como uma qualidade que poderia ser ensinada,
9
CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. Tradução: Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes,
1997. 64-65 pp. Grifos meus.
10
BURKE, Peter. Op. Cit. 25-29 pp.
11
ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador – Volume 1: Uma História dos Costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor Ltda., 2011. 66-67 pp.
12
Nobert Elias (2001) afirma que o aparecimento (mais ou menos) súbito de palavras em alguma língua quase
sempre seria indício de mudanças no estilo de vida de um povo, especialmente quando estes novos conceitos
estariam destinados a se tornar fundamentais e de longa duração como o de “civilidade”.
13
ELIAS, Nobert. Op. Cit. 79 p.
passada de um indivíduo a outro através do exemplo, do aconselhamento, da leitura. A
“humanidade” dignificava o homem, tornando-o diferente dos animais, sem faculdade mental
para distinguir o certo do errado14.
Ao final da Idade Média a tradição do chamado “bom comportamento” era multifacetada
e nada tinha de rígida e indivisível, sendo reconstruída diversas vezes em conveniência de
diferentes grupos sociais, temporalidades e partes da Europa 15. O tratado de Erasmo teria surgido
numa época de reagrupamento social que, segundo Elias, enquadrava-se num período em que a
velha nobreza de cavaleiros feudais declinava, enquanto se formava a dita “aristocracia de corte”.
Nesse novo estágio da cortesia, o indivíduo ver-se-ia obrigado a observar: olhar ao redor e
enxergar pessoas e seus motivos – ocultos ou não. Esta nova tendência da observação cada vez
mais arguta gerava um novo caráter de comportamento: as pessoas passavam a moldar-se
conforme as outras, mais que na Idade Média. Aumentavam também a coação exercida por uma
pessoa sobre a outra, e a imposição do então reconhecido como “bom comportamento”. Algo
comprovado pela criação de trabalhos como O cortesão de Castiglione, Galateo de Della Casa ou
El héroe de Gracián16.
As novas ideias e trabalhos ajustavam-se ao objetivo de ensinar os leitores a viver no
mundo. Em El héroe, o escritor jesuíta Baltasar Gracián faz uso do caráter instrutivo e doutrinário
da obra para traçar a imagem do fidalgo ideal. O próprio autor afirmava construir uma imagem
idealizada com base nos “grandes mestres” que lhe antecediam, buscando construir um manual
que refletiria o dito “herói” como possuidor de uma “razão de estado de si mesmo”, um
autogoverno. O herói de Gracián seria um protótipo do fidalgo espanhol do século XVI,
compartilhando ideais humanistas, como o controle das paixões que o levava a ser discreto,
prudente e político. Ademais, deveria ser capaz de ocultar o que sabia e pretendia da sociedade,
sendo “dissimulado” para sobreviver ao “ambiente de enganos” criado na corte17.
Kalina Silva, ao citar o comandante militar espanhol D. Juan de Silva e o embaixador do
imperador Carlos V, D. Juan de Veja, afirma que os dois, mediante seus escritos, acreditavam
num ideal de nobre que não deveria jamais demonstrar excesso de entusiasmo, calculando sempre
suas ações para que delas emanasse uma naturalidade. Neste cálculo residiria o princípio vital do
cortesão discreto e dissimulador, que focava na teatralização de seus atos cotidianos como
14
BURKE, Peter. Op. Cit. 29 p.
15
Idem. 29 p.
16
ELIAS, Nobert. Op. Cit. 82-87 pp.
17
SILVA, Kalina. Op. Cit. 234-237 pp.
instrumento para a persuasão: a corte seria, então, um palco, e o público precisava estar
convencido para que se alcançasse o sucesso. O cortesão ideal deveria fazer com que suas ações
estivessem repletas da graça (termo que ganharia muita força com a obra de Castiglione) da
naturalidade; mesmo fazendo uso da “arte”, suas atitudes pareciam fáceis e espontâneas. O
objetivo final do cortesão seria mais “parecer” que realmente “ser”, pois o importante era
persuadir a corte e o rei de seus heroísmo e valor individual. De forma a garantir sua reputação e
prestígio num ambiente propenso a reviravoltas e alterações de humor, com uma política de corte
baseada amplamente na afetividade, o cortesão deveria possuir princípios do engenho, da
prudência e da “dissimulação honesta” 18. O que parece ir de encontro ao dito por D. Federico na
obra de Castiglione:

Mas seja o cortesão, quando for o caso, eloquente e, nos discursos políticos, prudente e
sábio, e tenha tanto juízo que saiba adaptar-se aos costumes da nação em que se
encontra; e também nas coisas mais simples seja agradável e discorra bem sobre
qualquer coisa [...]19.

Sobre o conhecimento da retórica, da poesia, da história e da filosofia antiga, também


importantes para o cortesão ideal imaginado por D. Juan de Silva e D. Juan de Veja, o conde
Ludovico afirma:

Pretendo que nas letras ele seja mais que medianamente erudito, pelo menos nestes
estudos que chamamos de humanidades, em não somente da língua latina, mas também
da grega tenha conhecimentos para as muitas e várias coisas que nelas estão divinamente
escritas. Seja versado nos poetas e não menos nos oradores e historiadores, e exercitado
também em escrever versos e prosa20.

Na época da escrita do diálogo de Castiglione, os ideais de urbanidade, cavalaria e


cortesia teriam influência nos âmbitos da cidade, do campo de batalha e da corte, não obstante as
suas tensões, presentes em O cortesão. Peter Burke acredita, entretanto, que não se deve apenas
analisar o conteúdo da obra, mas, também a sua forma. Castiglione poderia, como muitos de seus
antecessores e contemporâneos ter escrito um tratado de base doutrinária ou uma novela com
uma moral; contudo escolheu fazer o uso da forma literária conhecida como diálogo – chamada
por Burke de “conversação” congelada. Nesta forma diferentes vozes, proclamadas por diferentes
personagens, são ouvidas sem se chegar a uma conclusão definitiva. Com isso, o objetivo do

18
SILVA, Kalina Vanderlei. Op. Cit. 239-247 pp.
19
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit. 107 p.
20
Idem. 67 p.
autor seria alcançado: confrontar e mediar distintas perspectivas acerca do cortesão ideal,
evidenciando as tensões das diferentes tradições existentes 21. A obra “castiglionesca” divide-se
em quatro livros, desenvolvendo o diálogo entre questões ordenadas. Primeiramente discute-se a
questão da nobreza, quando D. Federico sustenta que o sangue nobre obrigaria os indivíduos a
temer a infâmia de seus atos22:

[...] porque a nobreza é como uma clara lâmpada, que manifesta e permite ver as obras
ruins, acende e estimula a virtude, tanto com o temor do opróbrio como com a esperança
de louvores [...] e aos nobres parece censurável não chegar pelo menos ao ponto que lhes
foi assinalado por seus ancestrais [...] os homens, que, se criados com bons costumes,
quase sempre são similares àqueles de quem procedem e muitas vezes melhoram; mas,
se falta quem cuide bem deles, tornam-se como selvagens e não amadurecem nunca 23.

Em seguida há o combate das armas versus letras, quando conde Ludovico parece propor
um meio termo ao cortesão ideal – com base nos seus antigos:

[...] as letras, que foram de fato concedidas por Deus aos homens como um dom
supremo, são úteis e necessárias à nossa vida e dignidade; não me faltariam exemplos de
tantos excelentes capitães antigos, os quais somaram o ornamento das letras à virtude
das armas24.

O quarto livro seria dedicado a abordar a relação entre o cortesão e o príncipe; nele
Ottaviano Fregoso argumenta que o cortesão deveria conquistar os favores de seu senhor de
forma a dar-lhe bons conselhos e, assim, influenciá-lo a seguir o “bom caminho” 25. Burke relata
que o tratamento do que Pierre Bourdieu viria a chamar habitus — ou seja, um comportamento
especial — na obra de Castiglione teria sido feito de forma mais sofisticada que com seus
antecessores e coevos. Nesta obra são encontrados termos empregados por autores clássicos,
medievais e da Renascença, comportando a presença de várias tradições. Por exemplo, cortesãos
homens e mulheres deveriam cultivar a gravitas – a dignidade silenciosa, seriedade apegada à
honra e ao dever valorizada na Roma de Cícero – junto a pietas e a iustitia. Os termos medievais
“cavalaria”, “cortês” e “gentil maneira” também são encontrados na obra. Ademais, a honra é
muito necessária, tanto as damas quanto os cavalheiros deviam ter um senso de vergonha e
modéstia26. A generosidade é louvada, a urbanidade recomendada, bem como a elegância e a
21
BURKE, Peter. Op. Cit. 31-42 pp.
22
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit. 27 p.
23
Idem. 28 p. Grifos meus.
24
Idem. 65-66 pp. Grifos meus.
25
Idem. 272-275 pp.
26
BURKE, Peter. Op. Cit. 40-41 pp.
virtude humanista – literalmente, o ser humano27. Apesar de toda essa herança cultural, Burke
demonstra que é possível encontrar n’O cortesão o comportamento descrito por palavras novas
como afável, amigável e agradável28. Alargando o conceito aristotélico de “prudência”, o cortesão
seria aconselhado a fazer uso de uma “dissimulação circunspecta”, evitando, porém, a ostentação
e a afetação, fazendo uso da modéstia:

Donde a mansuetude é admirável num fidalgo que seja valente e disposto nas armas, e,
como essa altivez parece maior se acompanhada da modéstia, assim a modéstia aumenta
e mais se evidencia com a altivez. Por isso, falar pouco, fazer bastante e não elogiar a si
próprio por obras louváveis, dissimulando-as com os bons modos, aumenta uma e outra
virtude em pessoas que discretamente saibam adotar tal proceder; e assim acontece com
todas as demais boas qualidades. Quero, pois, que nosso cortesão, naquilo que faz ou
diz, use algumas regras universais que considero contenham brevemente tudo aquilo que
me cabe dizer; como primeira e mais importante, evite [...] sobretudo a afetação 29

2. O cortesão e a sociedade de corte


Norbert Elias explana que, durante o século XVI e até mesmo no século XVII, uma
hierarquia social mais rígida começava a se estabelecer, formando assim uma classe superior: a
nova aristocracia. Para o autor este era o motivo de um comportamento uniforme tornar-se cada
vez mais necessário, ainda mais quando a nova estrutura da classe alta expunha seus membros a
pressões dos demais e do controle social. Neste contexto surgiriam trabalhos como o de
Castiglione, Della Casa e outros autores das boas maneiras. Forçados a viver de uma nova
maneira em sociedade, os indivíduos tornavam-se mais sensíveis a pressões externas, tornando o
código de comportamento mais rigoroso e aumentando o nível de acatamento esperado dos
outros. Ainda conforme Elias, os códigos de comportamento surgiriam como junção de diversos
elementos de várias origens sociais, sendo os tratados de boas maneiras do século XVI uma obra
direta da nova aristocracia de corte em formação30.
Este globo de normas e comportamentos sentenciados ou implícitos, a partir da
intensificação da tendência disciplinadora dos estados e das Igrejas protestante e católica, teria
sido textualmente idealizado, no sentido claro do que deveria ser e na suave advertência do que
era interdito. Em meados do século XVI, tais teorias repercutiriam em diversas localidades (como
Portugal e Espanha), onde existia um substrato social e ideológico propiciador para o
florescimento de sua tradução, adaptação e uso. Paula Fiadeiro vai de encontro aos escritos de
27
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit. p. 30 et seq.
28
BURKE, Peter. Op. Cit. pp. 42-43.
29
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit. 92 p.
30
ELIAS, Nobert. Op. Cit. 87-105 pp.
Elias, ao afirmar que, durante o século XVII — e prologando-se pelo século seguinte — o
processo de formação social predominante seria o da corte. A corte seria, para Fiadeiro, a
instituição social fundamental do Estado moderno, desde os principados feudais até às realezas
absolutistas. Ela seria habitada por uma leva de indivíduos denominados cortesãos, que por sua
vez seriam ligados entre si por uma ordem hierárquica e uma etiqueta acurada. Na Roma antiga, o
conceito de civilidade apareceria ligado a civitas (a cidade), o qual remeteria a civilis (o cidadão),
que teria a qualidade de civilitas (a afabilidade), qualidade primordial para a “cidade” funcionar.
Esta associação recorrente no discurso político entre o macro do Estado e o micro da família ou
do indivíduo, auxiliou um movimento de “personificação” (ou individualização) do conceito de
civilidade, sendo transferido do coletivo para a esfera particular onde, ainda assim, estaria
subentendida a ideia de governação: de uma nação, da família ou de si próprio. Este investimento
da literatura de civilidade na educação da elite estaria, assim, sendo tanto influenciado pela
aproximação do campo político com os valores pessoais, quanto pelo fato de que esta classe alta
estaria incumbida do governo dos outros, dos pertencentes às classes inferiores, cujo principal
papel político seria obedecer31.
O comportamento refinado e diferenciado seria, assim, uma prenda do nobre intricado
numa rede de interdependências, funcionando também como fonte de distinção social e/ou
símbolo do sentimento de pertença a um grupo, garantia da ordenação e da harmonia social 32.
Castiglione, em O cortesão, instruía o seu leitor a desempenhar um papel, ensinando-lhe — e
segundo Burke, de forma consciente — a “tornar-se outra pessoa” ou “colocar uma máscara
diferente” quando a ocasião exigisse 33. A cortesania e o papel do cortesão tornava-se algo
institucionalizado em uma arte ou disciplina, o que Castiglione chama de profissão. A palavra
“cortês” procederia de “corte”, entendida não somente como o espaço físico onde residia o rei ou
o senhor, mas também como a comitiva que o rodeava. O indivíduo, o homem cortês,
frequentaria tais cortes senhoriais e ficaria compelido a demonstrar um comportamento deferente.
Nesta sociedade de corte, o constrangimento imposto passava para o “constrangimento
interiorizado”, submetendo os indivíduos a uma racionalidade alcançada pelo autocontrole, na
“arte de observar os outros e de se observar a si próprio”. Nessa observação o cortesão deveria

31
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Ecos do Galateo: cortesania, comportamento e ética na literatura do Portugal
Moderno. 2007. Tese (Doutorado em Letras Portuguesas) - Departamento de Línguas e Culturas, Universidade de
Aveiro, Aveiro. 41-45 pp.
32
Idem. 44-45 pp.
33
BURKE, Peter. Op. Cit. 43-44 pp.
estar atento a manobras e afetividades, sendo perigoso revelar suas preferências 34. Como
Castiglione afirma: “[...] é necessário que nosso cortesão seja cauteloso em cada um de seus atos
e o que diz e faz seja sempre acompanhado de prudência [...]”35.
Na “sociedade de corte” descrita por Elias, um considerável número de pessoas reunia-se
para servir, aconselhar e acompanhar monarcas e senhores. O ganho de prestígio, a manutenção
na escala social, a ascensão ou decadência do cortesão estariam, de certa forma, dependentes da
vontade do rei, assim como à mercê de alianças e rivalidades familiares. A competição desses
homens por prestígio, poder e status seria, decerto, um fator determinante que obrigaria os
participantes a continuar reproduzindo os modos e cerimoniais dessa estrutura. A busca por
status e poder de um indivíduo mantinha os demais atentos, e pela dependência para com a figura
real, qualquer sinal de comportamento diferenciado do rei com algum indivíduo significaria uma
indicação palpável de seu lugar na sociedade de corte. A dependência moldava, assim, o
comportamento dos cortesãos entre si. Apesar do status individual dentro da sociedade de corte
depender, em primeiro lugar, do status e do título oficial de sua casa, estabelecia-se uma ordem
mais gradual subordinada ao favor do monarca e à importância de cada cortesão, em meio às
tensões da corte36.
Para o cortesão seria imprescindível ajustar frequentemente e com diligência seu
comportamento com relação a outros indivíduos da corte, pois o que se “parece” e o que se
“demonstra”, para si e outros observadores, seria uma indicação de seu status naquele momento.
O comportamento que demonstravam e a opinião entre pessoas ganhava, então, uma importância
notável37. Paula Fiadeiro afirma que se conseguia a distinção em relação aos semelhantes e a
inclusão num grupo de destaque, sobretudo, pela dependência política e simbólica para com o rei.
Este último, por sua vez, por sua sujeição à etiqueta cortesã asseguraria sua dominação e seu
distanciamento em relação aos membros de outras camadas. Essa preocupação com a reputação e
a aspiração pela boa vontade real criaria um cenário de competição social, no qual o papel da
civilidade seria de, acima de tudo, proteger e afirmar a “face do Eu”, sob ameaça pelas relações
interpessoais. Segundo esta autora, já em Cícero seriam encontrados elementos formadores de
uma “fenomenologia das relações sociais”: a arte da retórica seria pautada na convivência, sendo
de suma importância na aplicação do saber político e ético, vital para a vida na polis. A dialética
34
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 58-65 pp.
35
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit. 91 p.
36
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 61-107 pp.
37
Idem. 107-108 pp.
do ser e do parecer — no caso de Cícero, limitado ao estilo oratório — seria o palco do jogo, no
qual era necessária uma arte de aparentar ser, na qual o “parecer” seria oculto, possuindo uma
eficácia estendida ao campo das boas maneiras38.
A “honra” era a expressão final da participação em uma sociedade nobre. Possuir honra
era ser considerado membro daquela sociedade segundo a opinião pública. Ao perder honra, um
indivíduo perderia também sua condição de membro da “boa sociedade”, perdendo parte
importante de sua identidade pessoal. A opinião dos outros que cercavam o indivíduo decidia
“questões de vida ou morte” mediante a perda de status, exclusão ou boicote. O comportamento e
a opinião pública que este causava, sendo bom ou ruim, teria papel decisivo como ferramenta de
controle da dita “boa sociedade” baseada na concorrência por prestígio. Tudo o que
desempenhava uma função na relação entre os homens da corte convertia-se em prestígio: o nível
social, o cargo herdado dos antecessores, a antiguidade da casa nobre, os favores reais, as boas
maneiras e assim por diante39.
Valéria Paiva atesta que, desde a publicação dos estudos de Nobert Elias — hoje clássicos
— se firmaria na área das ciências humanas um interesse maior no ato de releitura dos tratados de
comportamento, não mais como simples manuais de etiqueta e modos idealizados, mas como
forma de compreender o modo de vida que vicejou durante a Época Moderna. No entanto, para a
autora o trabalho de Elias, conforme Paiva, não forneceria informações suficientes para entender
a importância da “dissimulação” para os indivíduos que teriam vivenciado o processo civilizador
na formação da sociedade moderna. Para a autora, em A sociedade de corte, Elias retrata a
dissimulação aliada a uma visão moralista, na qual seria feito o uso do “decoro” – o ajuste do
indivíduo prudente às circunstâncias. Essa dissimulação seria assim um estilo, uma forma estética
e moral pela qual “os saberes e virtudes eram atualizados em comportamentos socialmente
valorizados”40.
Todo esse cerimonial da corte, com suas artes, modos e etiquetas — de “estar”, de
“presenciar”, das “formas de tratamento” — visava, pelo protocolo, colocar o rei no centro das
atenções, o que também queria dizer no centro do poder. A corte era, afinal, o centro ao redor do
qual se organizaria o poder durante a Idade Moderna. O rei e os que lhe cercavam, como vimos,
dariam forma a um poder institucionalizado e a uma cultura própria. Essas seriam informações
38
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 68-126 pp.
39
ELIAS, Norbert. Op. Cit. 108-120 pp.
40
PAIVA, Valéria. A identidade como obra coletiva em O Cortesão, de Baldassare Castiglione. Tempo Social,
revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 21, n. 1, jun. 2009. 91-92 pp.
gerais muito calcadas na observação do caso francês, sobretudo após a construção do palácio em
Versalhes. No caso português, o espaço físico da corte na cidade de Lisboa limitar-se-ia, em
primeiro lugar, ao palácio que acolhia o rei e seus cortesãos – no paço da Ribeira, antes do
terremoto de 1755, e na Ajuda ao fim do século XVIII. Mas também a todos os outros palácios
que foram sendo construídos por nobres nas cercanias. Seria uma necessidade da realeza ter a sua
volta os que com ela partilhavam uma forma viver o “jogo da emulação”. Em princípio o rei seria
o primeiro cortesão. E o “submundo” representativo existia composto por seus familiares mais
diretos, e alargando-se a casa real a seus cortesãos – um misto de servidores da figura real,
familiares e ofícios de Estado, cujas vidas voltavam-se para servir e usufruir o prestígio
concedido pelos detentores do poder. Os cortesãos procediam em busca do favor da figura real,
realizando intrigas e outras formas para chegar ao centro da corte, a fim de desfrutar dos cargos e
benesses dados pelo rei e seus secretários de Estado41.
Paiva afirma que, diferente do ocorrente nos dias de hoje, o valor atribuído à destreza, à
competência e às virtudes nessas sociedades de corte dependia muito de sua representação para
um público que deveria reconhecê-la para validá-la. A visão instituía-se como órgão regulador do
comportamento; a admiração e o reconhecimento dos outros era a recompensa dos modos
refinados e do comportamento bem colocado. Tratava-se de uma organização social destituída de
uma esfera privada — ou onde esta estaria “reduzida a uma esfera pública”. Neste espaço
diferente dos demais foi criada também uma cultura característica 42. O fruto disto, para António
Gouveia, seria a literatura produzida para tratar da “civilidade cortesã”, no sentido de
acompanhar as inovações e para fixar o que já era considerado tradição – o saber prescrito ou
transmitido oralmente. A aprendizagem seria feita, contudo, por observação e comparação do
então realizado pelos outros cortesãos, e pelo prescrito e idealizado mediante os modelos ditados
na literatura. Essa aprendizagem intentava, sobretudo, a composição de um cortesão capaz de
suportar os rigores da corte. Deveria saber as regras de gesticulação e os modos de andar,
conhecer como havia de se dirigir aos superiores, iguais e inferiores, sabendo ter domínio sobre
suas emoções, e ser atento às circunstâncias que o circundavam 43. Assim diz também D. Federico
em O cortesão:

41
GOUVEIA, António Camões. Estratégias de interiorização da disciplina. In: HESPANHA, António Manuel
(Org.). História de Portugal - O Antigo Regime. 1. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. v. 4. 415-419 pp.
42
PAIVA, Valéria. Op. Cit. p. 92.
43
GOUVEIA, António Camões. Op. Cit. 419-420 pp.
[...] considere bem aquilo que faz ou diz, e o lugar onde faz, na presença de quem, em
que ocasião, a cause que o leva a fazê-lo, sua idade, a profissão, o fim para o qual tende
e os meios que àquilo podem levá-lo; e assim, com tais advertências, se disponha
discretamente a tudo aquilo que pretende fazer ou dizer44.

A literatura de comportamento social, bem como os romances de cavalaria, são produtos


da sociedade aristocrática, que se deleitava na contemplação de uma imagem idealizada de si
mesma. Com isso, fomentavam-se tais obras como uma ferramenta de perpetuação da ordem
social e política. Dessa forma O cortesão de Castiglione evocava uma sociedade que já sentia a
sua decadência. O objetivo último da obra seria dotar o cortesão da capacidade de servir o
príncipe, orientando-o dentre o que seria considerado bom e virtuoso. O conceito de cortesania
“castiglionesco” faria da vida do cortesão uma profissão como pedagogo e modelo para o
príncipe ao qual servia. Castiglione atribuía, assim, uma nova função à classe dirigente com
relação ao poder político45:

[...] creio que o objetivo do cortesão, do qual não se falou até aqui, é ganhar a tal ponto,
por meio dos atributos que lhe foram conferidos por estes senhores, a benevolência e o
espírito do príncipe a quem serve, que possa lhe dizer sempre a verdade sobre cada coisa
que lhe convenha saber, sem temor ou perigo e desagradar-lhe. E, sabendo a mente dele
inclinada a fazer coisas inconvenientes, se atreva a contradizê-lo e com maneiras gentis
valer-se da graça adquirida com suas boas qualidades para demovê-lo de qualquer
intenção equivocada e induzi-lo ao caminho da virtude [...]46.

Tendo como certo que o valor dado às maneiras é primeiramente estético, torna-se
fundamental ter em mente que este decoro estético também permitia a provação frente aos outros.
Este critério ligar-se-ia a uma “metafísica da ordem e da harmonia”, na qual o decoro seria
diretamente a expressão moderna da honestas romana. Além do decoro a mesura (o
comedimento) também seria uma das fontes da consciência ética – seria o agradar que traduz o
recebimento dos hábitos considerados, pela maioria dos indivíduos daquele espaço, bons e
agradáveis. Coincidente ao processo de “absolutização” do poder do príncipe, seria também o
processo de curialização do cortesão, essencial a afirmação daquele primeiro e dependente, para
sua própria sobrevivência, do seu sucesso na corte. A Europa vem, assim, a importar da Itália o
modelo “castiglionesco” do cortesão, dando início a uma tradição literária de tratados de corte 47.

44
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit 92 p.
45
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 137-159 pp.
46
CASTIGLIONE, Baldassare. Op. Cit. 272 p.
47
Idem. 205-227 pp.
O livro de Castiglione em especial permite compreender melhor essa dissimulação como
critério moral e estético, pois nele ela apareceria sem os mesmos controle e censura típicos dos
séculos posteriores, quando a incorporação dos ditos “hábitos civilizados” tornaria os
comportamentos socialmente construídos tão naturalizados que não se fará mais necessário falar
e escrever sobre eles. Esta referida censura encontraria sua cúspide no início da Reforma
protestante, mas teria um papel especial na crítica ao descomedimento dos chamados “artifícios”
no comportamento social nos últimos dois séculos. O fortalecimento das ditas “monarquias
absolutas”, juntamente com os movimentos da Reforma protestante e da Reforma católica,
sustentou a formulação de uma crítica moral, de cunho religioso, à dissimulação. No cenário da
Reforma protestante, presenciar-se-ia uma condenação da “cultura de representação”,
valorizando-se, por outro lado, a “cultura da sinceridade”. A reprovação da obra não viria
somente, contudo, por parte dos protestantes: em 1576, o filho de Baldassare Castiglione,
Camillo, teria sido informado pelos censores de Roma sobre a necessidade de “expurgar o livro”.
A versão “revisada” pelo teólogo Antonio Cicarelli continha uma dedicatória ao duque de Urbino
salientando que, apesar de Castiglione não o ter pretendido, sua obra poderia ter criado uma
brecha para que outros pudessem ser desrespeitosos para com a Igreja e, por isso o livro teria sido
“corrigido”48.
Não obstante, mesmo defronte às críticas, a sociedade de corte, em seu geral, mantém o
caráter cerimonial da civilidade e a adaptação das aparências como parte das normas sociais de
seu meio. Trata-se, assim, de um requisito essencial de uma sociedade baseada na busca por
possibilidades de prestígio e ganho de poder pela performance pública e a coabitação com os
olhares atentos dos iguais49:

[...] a adaptação às circunstâncias se põe para a sociabilidade renascentista não somente


como uma norma, a da conveniência, mas igualmente como um ideal: um ideal de
equilíbrio entre representação e apresentação, de um ornamento – ou condimento, para
usar o termo de Castiglione – usado com prudência e moderação sob o risco de cancelar
o efeito de verdade da representação e, com isso, pôr a perder as qualidades pelo modo
de apresentá-las, tornando pouco apreciável qualquer coisa que seja – por melhor que ela
seja50.

O “ideal do equilíbrio” poderia ser alcançado, como referido, através da dissimulação,


necessária para conseguir a performance oportuna da naturalidade sem aparentar qualquer traço
48
BURKE, Peter. Op. Cit. 117-118 pp.
49
PAIVA, Valéria. Op. Cit. 92-102 pp.
50
Idem. 107 p.
de afetação. Este seria, então, um intermédio entre a natureza e o artifício, apartando-se tanto da
esfera da verdade quanto da do fingimento. Valéria Paiva concebe o Renascimento como “um
momento de inflexão no processo civilizador”, quando os fundamentos desse processo viriam à
tona de forma clara e palpável, antes desta “natureza intermédia” ser incorporada e os agentes
sociais e ficarem, assim, invisíveis. Para esta autora, o livro de Castiglione seria um exemplo de
como, em certo momento deste processo, a dissimulação não seria somente um requisito, mas
também um valor para os integrantes da aristocracia em geral51.
Em sua época e nas décadas mais próximas e posteriores, o interesse do público por O
cortesão seria intenso na Itália e em outros lugares da Europa, como na Península Ibérica. Peter
Burke, ao analisar as leituras e interesses acerca da obra no caso português, afirma que o início
óbvio das ponderações seria na figura de Miguel da Silva, bispo de Viseu e amigo de Castiglione,
a quem o diálogo fora dedicado. Além disso, o Índice de Lisboa de 1620 discutiria uma edição
italiana do livro com “certo detalhe”, o que confirmava, de certa forma, que a obra seria bem
conhecida no Portugal da época. Já por volta de 1620 seria possível ler O cortesão não só no
original em italiano, mas também em traduções para espanhol, inglês, alemão, francês e latim e,
apesar de não se ter nenhuma tradução para o português, isso não seria um obstáculo para os
lusofônicos52.
Na Europa moderna os valores da nobreza eram (de certa forma, sempre foram)
inconstantes, sempre em movimento, com variações temporais e geográficas. Um bom exemplo
disso, no caso de Portugal, seria o livro Corte na aldeia e noites de inverno de Francisco
Rodrigues Lôbo, no qual Castiglione não só foi tomado como modelo, mas também adaptado às
particularidades locais. Lôbo seria um nobre pertencente ao círculo pessoal do duque de
Bragança que mais tarde se tornaria D. João IV de Portugal. O livro é composto por 16 diálogos,
característica considerada importante por Adriana Angelita da Conceição. Para a autora, o livro
formado por diálogos, assim como os romances epistolares, são obras literárias da Idade Moderna
atreladas à relação do eu com o outro. Estabelece-se um tipo de conversação entre o autor e seus
personagens, como também entre o autor e o leitor. Dessa forma a questão do diálogo, da retórica
e da imitatio definiriam a importância exercida por Corte na aldeia nas questões sociais
recorrentes na Idade Moderna portuguesa. Para Rodrigues Lobo, o esquecimento da corte e de
suas práticas poderia resultar num caos social, onde cada elemento já não saberia qual lugar
51
PAIVA, Valéria. Op. Cit. 107-110 pp.
52
BURKE, Peter. Op. Cit. 67-110 pp.
deveria ocupar. A obra de Lobo, assim como a de Castiglione, definiria o diálogo como um
gênero literário cortesão53. Sua obra adquiriu um cunho político, ao se imaginar a corte em uma
localidade bucólica em tempos que a Espanha exercia domínio sobre o território português. Na
obra, durante 16 noites, cinco personagens discutem diversos assuntos referentes à literatura e ao
meio social como a validade e os perigos dos romances de cavalaria, as formalidades das visitas e
dos modos de falar, a natureza da cortesia e assim por diante54:

O que Rodrigues Lôbo imitou com considerável sucesso não foram os detalhes
específicos n’O cortesão, e sim seu estilo, sua leveza e, especialmente, sua arte de
apresentar um caso sob a forma de uma discussão entre duas personagens opostas que
impressionam o leitor como indivíduos – Leonardo, o anfitrião e moderador, Lívio, o
erudito; o jocoso e crítico Solino, e assim por diante55.

Em meados do século XVII, a obra de Castiglione tornar-se-ia obsoleta. O motivo


deste acontecimento estaria diretamente relacionado à crítica emanada pelas Reformas católica e
protestante, prejudiciais à reputação de Castiglione e seu texto. O cortesão assim teria sido
encarado como uma composição “insuficientemente cristã”. Outro motivo a considerar seria o
declínio da influência cultural italiana, dando lugar, por volta do Setecentos, a modelos de
comportamento vindos da Espanha e da França. Por último, mas não menos importante, a forma
como o cortesão “castiglionesco” era instruído a se comportar de maneira graciosa pelo uso da
sprezzatura, em fazer o que era vontade do príncipe, passava a ser desafiada cada vez mais.
Livros acerca da vida cortesã passam, gradativamente, a aconselhar cada vez mais a prudentia,
em detrimento da “graça”56.

3. A corte portuguesa, a figura régia e a etiqueta


Retornando ao caso português, para analisar os preceitos de cunho social relativos à corte,
poder-se-ia voltar aos discursos do cerimonial, dos livros de protocolo e toda a produção jurídica,
contendo indícios de um influxo de uma cultura da literatura de boas maneiras. Paula Fiadeiro
evidencia o “livro de estilos” ordenado por D. Manuel I, com instruções acerca de tratamentos,

53
CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. Sentir, escrever e governar: A prática epistolar e as cartas de D. Luís de
Almeida, 2º marquês do Lavradio (1768-1779). Tese (Doutorado em História Social) – USP. São Paulo, p. 384.
2011. 80-88 pp.
54
Idem. 100-110 pp.
55
Idem. 109-110 pp.
56
Idem. 136-137 pp.
cerimônias e formulários de etiqueta. Outro exemplo seria o Livro vermelho de D. Afonso V, no
qual encontram-se esclarecimentos de como deveriam ser realizadas as designações em
correspondências epistolares, a ordem dos assentos na capela real e outras determinações
tangentes aos “moradores da Casa d’ElRey”. A literatura portuguesa sobre o comportamento teria
se adaptado às circunstâncias e realidades locais e de seu tempo. Entretanto, não se desviou das
influências absorvidas do restante da Europa, embebida pelo “humanismo cívico” que germinou
na Itália quatrocentista e quinhentista. Conforme a mesma autora, esta produção de obras acerca
do comportamento em Portugal teria de levar em conta a presença de uma sociedade de corte,
com as devidas ressalvas que esta afirmação possa suscitar — questão essa abarcada mais à
frente. Pois a estruturação do sistema monárquico, dependente das práticas rituais e festivas
associadas a determinado modo de agir, bem como toda a prática discursiva também reflexiva e
reguladora não era desunida da “produção tratadística comportamental e de boas maneiras”57.
Até meados do século XVI, a corte régia portuguesa estaria longe de ser um modelo para
os espaços de sociabilidade restantes. Apesar de ter certa capacidade de atração para os membros
das elites nobiliárquicas e administrativa, a corte lusa continuou a ser um local pouco central na
perspectiva social. Até metade dos Quinhentos, grande parte da nobreza continuava a manter suas
residências dispersas pelo reino, não compreendendo a morada do rei como um lugar de onde
deveriam, obrigatoriamente, se valer. O serviço à coroa não tinha, ainda, o peso que viria a ter
mais tarde no seu sistema patrimonial. De acordo com Pedro Cardim, a interação ocorrida entre a
família real e a primeira nobreza era pontual, sendo muitos dos que desempenhavam altos cargos
na corte provindos de nascimento modesto ou de famílias ligadas ao serviço à coroa, o que
contribuía para a ideia de que a corte real não se fazia como lugar central. Seria inegável, para o
mesmo autor, que a dinastia de Avis investiu no aparato cortesão, o que seria bem ilustrado pela
transferência da residência régia do castelo de Lisboa para o paço da Ribeira. Entretanto, a nova
residência real não se distinguia por ser uma construção que sobressaísse na paisagem urbana ou
um local com uma etiqueta rígida. Pelo contrário, relatos da época falariam de uma corte pouco
sofisticada e “marcada pela informalidade”. Esta situação só inclinar-se-ia a mudar a partir da
segunda metade do século XVI58.

57
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 267-282 pp.
58
CARDIM, Pedro. A corte régia e o alargamento da esfera privada. In: GONÇALO MONTEIRO, Nuno (Org.).
História da Vida Privada em Portugal - A Idade Moderna. 1. ed. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010. cap. 3. 162-
165 pp.
O início dos Seiscentos seria marcado pelos primeiros esforços na tentativa de
sistematizar as “cortesias”, ou seja, a conduta mais adequada ao espaço da corte. Esta data tardia
seria explicada porque, como já vimos, em Portugal o processo de afirmação da corte como
espaço central e modelador para com o resto da sociedade se deu de forma mais gradativa do que
em outros locais do ocidente europeu. Outro motivo da lenta formação de uma sociedade de corte
pode estar relacionado ao fato de Portugal ter deixado de contar com um rei residente em seu
território ao se tornar membro da monarquia espanhola. Apesar desta situação ter significado a
inexistência de uma corte régia e, portanto, a não existência de um processo de curialização,
acabou por colocar alguns membros da nobreza portuguesa em contato com um mundo palaciano
mais sofisticado do que aquele existente até então em terras lusitanas. Cardim não vê
coincidências entre este fato e o aparecimento, no meio português, de grandes exemplos de
literatura acerca das cortesias como os escritos de Francisco Rodrigues Lobo, de Martim Afonso
de Miranda e de Manuel de Faria e Sousa59.
Com a revolta de 1640 que desembocou na Restauração, Portugal, conquistando sua
independência, voltaria a ter um rei com residência permanente em seu território. Isto, ditaria
também o regresso da vida cortesã a terras portuguesas. Contudo, ainda segundo Cardim, as
primeiras décadas da dinastia Bragança seriam marcadas por uma corte austera e modesta, não só
porque os tempos de guerra revertiam grande parte dos recursos para fins marciais como também
devido ao sentimento rural e provinciano trazido pelos Braganças e sua trajetória nobiliárquica no
Alentejo. A isso somava-se um ambiente de “puritanismo católico” estabelecido em Portugal
desde o início do século XVI 60. Entretanto, um dos primeiros desafios enfrentados pela coroa
após a Restauração teria sido a questão da centralização do poder, num contexto de indisciplina e
desordem na corte, onde reinavam conspirações fazendo inadiável a reforma de uma nobreza
cortesã obediente e apta a cumprir suas funções61.
A coroa portuguesa deteria, desde cedo, um notável papel na modelação do grupo
aristocrático, reconfigurado continuadamente pelos séculos desde sua abertura nos séculos XV e
XVI até o início de seu gradativo endurecimento, com o ápice no século XVIII:

[...] o conjunto de dispositivos de ordenamento do espaço social da nobreza que os


monarcas portugueses foram aplicando a partir do século XV – Lei Mental, titulação,

59
CARDIM, Pedro. Idem. 165-166 p.
60
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 166 p.
61
Idem. 330 p.
foros de moradores da casa real sistema de tratamentos, início da curialização –, criou-
lhes condições para se instituírem em árbitros da classificação social oficial 62.

Os prósperos lucros e os novos recursos advindos das expansões atlântica e


oriental reforçariam a crescente centralidade da coroa como principal entidade doadora de mercês
e angariadora de serviços militares, administrativos e políticos. É válido ressaltar, entretanto, que
a coroa ainda não monopolizava a distribuição de cargos e mercês, pois grandes casas dispunham
ainda de recursos e poderes, podendo até mesmo concorrer com o monarca. Com a dinastia
brigantina, o espaço jurisdicional se restringiria aos mais próximos, e as relações entre coroa e
nobreza teriam maior solidez e gravidade pelos novos regimentos sobre o acesso as titularidades
superiores – algo ratificado pela monarquia e monopolizado pelo grupo dos titulares. O apoio das
casas fidalgas ao golpe de 1640 e a ascensão da família Bragança ao poder, alterariam, em parte,
o comportamento dessas primeiras. As grandes casas passariam a monopolizar os principais
ofícios da monarquia — governos militares e coloniais, presidências de tribunais, principais
dioceses eclesiásticas —, assim como as doações régias em honras e rendas. A alta nobreza passa
a casar apenas dentro do grupo, reforçando sua identidade e quase o completo monopólio das
mercês régias, tornadas naquele momento a principal fonte de novas rendas63.
Para Mafalda Soares da Cunha e Nuno Monteiro, esse processo de constituição da elite
titular na dinastia de Bragança teria coincidido com a transferência das suas residências para a
corte. No início do Oitocentos, todos os titulares e a maioria dos senhores de terras e
comendadores já residiam em Lisboa. No final do século XVII, beneficiando-se da iniciativa
régia, a nobreza já estaria definitivamente reestruturada e hierarquizada. A reforma da nobreza e
a abertura das vias de promoção, implicavam a reeducação dos novos cortesãos na vida palaciana
de Lisboa, numa época em que o abismo entre as nobrezas senhorial e a de corte aumentava cada
vez mais. Assim, o poder social da nobreza passava a ser crescentemente determinado por sua
presença na corte régia e pela prestação de serviços à coroa — o que também explicaria a
produção de obras sobre a sociabilidade e os costumes 64. Apesar do predomínio do modelo
discreto e austero na vida da corte brigantina, a atividade diplomática do reino, a movimentação
dos “estrangeirados” e a presença de D. Maria Francisca Isabel de Sabóia (esposa de D. Afonso

62
CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno G. Aristocracia, poder e família em Portugal, séculos XV-
XVIII. In: CUNHA, Mafalda Soares da; FRANCO, Juan Hernández (Org.). Sociedade, Família e Poder na
Península Ibérica - Elementos para uma História Comparativa. 1. ed. Évora: Edições Colibri, 2010. cap. 2. 48 p.
63
CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno G. Op. Cit. 48-58 pp.
64
Idem. 59 p.
VI e depois de D. Pedro II de Portugal) e suas damas francesas, abririam caminho para a
introdução em Portugal do modelo de sociabilidade francês ante a corte. Entretanto, a influência
francesa deter-se-ia nas modas, não alcançando as ideias. A nitidez dessa influência se
evidenciaria mais — ainda que superficialmente — no reinado de D. João V. Ao redor do
monarca viviam os grandes titulares que gozavam, entre outros privilégios, do foro de fidalgo “de
El-Rey”, desfrutando também dos privilégios da intimidade real65.
Até o século XVIII, não haveria diferença entre as estruturas domésticas do rei a dos
órgãos de administração do reino. Durante muito tempo, inclusive, não existiria grande distinção
entre os oficiais do serviço doméstico da casa real e os encarregados das tarefas governativas do
reino. Este fenômeno dava origem a um cenário onde a casa do rei e o dispositivo de
administração da coroa estavam imbricados. A partir de 1736 começaria a se delinear uma esfera
política mais separada do mundo doméstico do monarca. Contudo, até mesmo no final do século
XVIII continuava a ser de notável importância ter acesso à figura régia e com ela conviver para
se gozar de influência política. Neste ambiente, a comunicação direta com a realeza foi, de fato,
um elemento incontornável. A residência do rei foi, gradualmente, assumindo o papel de ponto
central da política e, consequentemente, como espaço de “máxima publicidade”. Por isso, durante
o Antigo Regime português, a ordem de desterro do paço equivalia à “morte política” de um
cortesão. O recato e o segredo tornavam-se as principais faces da política cortesã, que gerava uma
competição cada vez maior, na qual se assumia cada vez mais uma postura defensiva quanto aos
outros. Desse modo, as literaturas acerca da vida na corte comumente advertiam aos
frequentadores do palácio real para fazerem uso da “dissimulação honesta” face aos demais
cortesãos66.
Os cargos que lidavam com a intimidade régia, devido a sua proximidade para com a
pessoa real e seus familiares, acabavam por ser muito sensíveis e delicados. Por vezes a
substituição de servidores mais próximos ao rei ou à rainha fazia parte de estratégias para se
alcançar influência junto à família real, ou inversamente para os controlar 67. O rei e a elite
aristocrática estavam assim envolvidos numa rede de relações e obrigações recíprocas,
constituindo, seguindo o conceito de Nobert Elias, uma “configuração social”. Contudo, ao
contrário do que sugeriria este autor, não seria adequado, de acordo com Nuno Monteiro,

65
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 331-355 pp.
66
CARDIM, Pedro. Op. Cit. 194-198 pp.
67
Idem. 169 p.
identificar esta última como uma ferramenta de “domesticação da nobreza” e um caminho linear
da estadualização. Desde a Restauração até o pombalismo, seria legítimo pensar que, em diversos
momentos, os grandes teriam realmente controlado os rumos da monarquia. O jogo da corte
poderia muito bem ter muitos desfechos e influenciar esses destinos 68. O estatuto aristocrático era
atestado através dos privilégios, seja da riqueza ou da chamada “teatralidade do viver”. A posse
desta marca de distinção, assim como o saber viver propriamente cortesão nas circunstâncias e
situações da corte passam a importar cada vez mais a uma nobreza com aspirações sociais, que se
tornava funcionária e de quem se esperava uma submissão às hierarquias e aos costumes para
garantir sua aceitação na alta sociedade. No caso português, o modelo conversacional provindo
das maiores e mais influentes cortes europeias — majoritariamente italiano em seu começo —
teria encontrado “na ausência de uma vida cortesã lustrosa e central uma conjuntura propícia
(mas não necessária, convenhamos) à sua assimilação e adaptação” 69. Seriam estas, de forma
básica, as especificidades do caso português que culminariam na criação de uma corte lisboeta e
de uma nova aristocracia que viria a se tornar a mais curializada de toda a Europa.
Compreendemos assim o ambiente social da corte portuguesa na época analisada: um contexto no
qual Lisboa e corte já eram usados como sinônimos, onde cortesãos competiam pela proximidade
com o monarca e pelos prestígios e favores a serem obtidos.

Fonte Impressa:
CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. 1º. ed.
São Paulo: Martins Fontes Editora Ltda., 1997. 405 p.
Referências Bibliográficas:

68
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Portugal – Volume VIII: O Antigo Regime. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993. 91 p.
69
FIADEIRO, Paula Cristina Neves. Op. Cit. 355-441 pp.
BURKE, Peter. As fortunas do cortesão. São Paulo, Unesp, 1997. 237 p.
CARDIM, Pedro. A corte régia e o alargamento da esfera privada. In: GONÇALO MONTEIRO,
Nuno (Org.). História da Vida Privada em Portugal - A Idade Moderna. 1. ed. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2010. cap. 3, p. 160-201.
CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. Sentir, escrever e governar: A prática epistolar e as cartas
de D. Luís de Almeida, 2º marquês do Lavradio (1768-1779). Tese (Doutorado em História
Social) – USP. São Paulo, 2011. 384 p.
CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno G. Aristocracia, poder e família em Portugal,
séculos XV-XVIII. In: CUNHA, Mafalda Soares da; FRANCO, Juan Hernández (Org.).
Sociedade, Família e Poder na Península Ibérica - Elementos para uma História Comparativa.
1. ed. Évora: Edições Colibri, 2010. cap. 2, p. 47-76.
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Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2011. 262 p.
FIADEIRO, Paula Cristina N. Ecos do Galateo: cortesania, comportamento e ética na literatura
do Portugal Moderno. 2007. Tese (Doutorado em Letras Portuguesas) - Departamento de Línguas
e Culturas, Universidade de Aveiro, Aveiro. 788 f.
GOUVEIA, António Camões. Estratégias de interiorização da disciplina. In: HESPANHA,
António Manuel (Org.). História de Portugal - O Antigo Regime. 1. ed. Lisboa: Editorial
Estampa, 1997. v. 4. 415-447 pp.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In:
MATTOSO, J. (Dir.). História de Portugal – Volume VIII: O Antigo Regime. Lisboa, Círculo
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Tempo Social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 21, n. 1, jun. 2009. pp. 91-111.
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SILVA, Kalina Vanderlei. O Herói Virtuoso, Prudente e Dissimulado: O Cortesão como Ideal
Masculino nas Cortes Ibéricas dos séculos XVI e XVII. História (São Paulo), vol. 32, núm. 1,
enero-junio, 2013, 231-250 pp.

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