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Este capítulo apresenta um olhar diferenciado e mais amplo da saúde, que a situa no
cerne da agenda de desenvolvimento nacional. Seu objetivo central é, com base em variá-
veis da economia política, aprofundar a análise da dinâmica estabelecida entre os interesses
envolvidos no bojo do complexo econômico-industrial da saúde (Ceis). Busca, ademais,
superar falsas dicotomias entre os interesses sanitários e econômicos e, principalmente,
destacar a dinâmica que os inter-relaciona, além de apontar os principais desafios para uma
articulação virtuosa entre eles.
Note-se que a sustentabilidade estrutural do sistema de saúde brasileiro remete à
necessidade de se pensar o padrão de desenvolvimento do país em razão da maneira como
este se expressa e se reproduz no âmbito da saúde. Isto decorre não somente da dimensão
social da saúde, como direito garantido na Constituição Federal e elemento estruturante do
Estado de Bem-Estar, como também de sua dimensão econômica, evidenciada pelo fato de
que a base produtiva da saúde responde por parcela significativa do Produto Interno Bruto
(PIB) e da geração de empregos diretos e indiretos, mobilizando ainda parte significativa
do investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D).
O caráter estratégico da saúde também é enfatizado por ela se configurar como im-
portante catalisadora de inovação, o que a situa em posição de liderança no que tange ao
investimento em P&D para a geração de conhecimento, elemento essencial para a compe-
titividade na sociedade de conhecimento globalizada contemporânea.
Partindo-se, portanto, de um olhar mais abrangente das dimensões diversas da saú-
de, observa-se o estabelecimento de relações intrínsecas entre esta e ‘desenvolvimento’,
que podem ser definidas como “um processo dinâmico e virtuoso que combina, ao mesmo
tempo, crescimento econômico, mudanças fundamentais na estrutura produtiva e melhora
do padrão de vida da população” (Viana & Elias, 2007: 176).
Justamente por envolver interesses de atores diversos, que figuram no cenário político
com forças assimétricas, a análise da saúde nas suas várias dimensões é bastante complexa,
exigindo o uso da abordagem da economia política. Assim, parte-se desse arcabouço para
A saúde, nesse sentido, precisa ser considerada mediante uma abordagem estrutura-
lista que enfatiza os fatores histórico-estruturais característicos da sociedade brasileira, sua
inserção internacional, assim como sua relação com uma difusão extremamente assimétrica
e dissociada das necessidades locais do progresso técnico e do conhecimento (Fiocruz, 2012).
Setores
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
institucionais
Famílias 4,3 4,2 4,0 3,9 3,8 4,9 5,0 4,9 4,7 4,9
Administração
2,9 3,1 3,2 3,1 3,3 3,3 3,5 3,5 3,7 4,1
pública
Total 7,2 7,3 7,2 7,0 7,1 8,2 8,5 8,4 8,4 9,0
Fonte: WHO, 2011.
Inovação consiste em converter uma ideia ou invenção em uso prático, cabendo ao inovador
estabelecer instalações para a nova produção e trazer o novo produto ou processo ao mercado.
Frequentemente, a inovação implica descartar produtos e processos anteriores. A inovação é
um ato empresarial que vai além da simples administração da produção e envolve arregimentar
financiamento, arranjar detalhes complexos de engenharia e assumir riscos. As inovações podem
caracterizar-se em três categorias:
1. Inovações de processo – consistem em alterar as formas de produção de determinados produtos,
como novas formas de fundir metal ou embalar um produto;
2. Inovações de produtos – criam um novo bem para venda, podendo isto se efetuar sem qualquer
alteração no processo, como a criação do relógio digital substituindo o relógio de corda ou de
um novo modelo de automóvel;
3. Inovações organizacionais – envolvem mudanças ou melhorias na organização/administração
das empresas que resultem em melhor eficiência/produtividade, como técnicas de gestão da
produção (ex.: modelo fordista, just-in-time, qualidade total etc.).
Fonte: Kon, 1994.
e serviços nacionais que atendam às normas técnicas brasileiras. Essas margens serão definidas
levando em consideração a geração de emprego e renda e o desenvolvimento e a inovação tecno-
lógica realizados no país, e o dispositivo será usado também para fortalecer pequenos e médios
negócios em algumas áreas, dentre elas a saúde (Brasil, 2011a).
No que tange à política social, pela primeira vez na história foi incorporada a impor-
tância do desenvolvimento de sua base produtiva industrial e de inovação e foi reconhecida
a alta intensidade científica e tecnológica do Ceis e seu potencial de disseminação de conhe-
cimento e inovação para a matriz produtiva, fazendo com que o complexo da saúde passasse
a figurar como área estratégica no Mais Saúde, em 2007 (Brasil, 2007a).
Ultrapassando as fronteiras da política de saúde, o complexo foi considerado estraté-
gico também no âmbito do ‘PAC da Inovação’ (Brasil, 2007b), orientando o financiamento e
a atuação do Sistema Nacional de C&T e da Política de Desenvolvimento Produtivo (Brasil,
2008), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
De forma análoga, o Plano Brasil Maior (Brasil, 2011a), lançado em 2011, que dá con-
tinuidade tanto à Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) quanto à Política Industrial,
Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), também insere o complexo da saúde em um
de seus cinco blocos produtivos de dimensões setoriais relevantes.
Como consequências tangíveis dessa priorização nos últimos anos, vale destacar algu-
mas iniciativas que apontam para o aumento da disponibilidade de linhas de financiamento
específico para fomentar o desenvolvimento do Ceis, conforme enfatizam Gadelha e Costa
(no prelo).
De início, verifica-se a retomada, em 2009, de um arranjo institucional do governo
para internalizar a produção de fármacos no Brasil, mediante o estabelecimento de parcerias
público-privadas (PPP) entre as empresas farmoquímicas nacionais e os laboratórios oficiais
que possuem acesso ao mercado público. O marco desse processo é a produção nacional
do Efavirenz, que foi o primeiro licenciamento compulsório feito no país, enfatizando que
a saúde pública e o acesso podem e devem orientar a política nacional de inovação em
saúde. O caráter estratégico dessas parcerias fica evidente pelo fato de que em 2011, dois
anos apenas depois de sua institucionalização, foram realizadas 28 parcerias voltadas para
doenças de alto impacto.
As parcerias público-privadas (PPP) são arranjos em que o setor privado projeta, financia, executa
e opera uma determinada obra/serviço, objetivando o melhor atendimento de uma determina-
da demanda social. Historicamente, esse tipo de parceria existe há muito tempo, mas chega ao
Brasil estabelecendo uma relação entre investimento privado e infraestrutura pública, em áreas
de altíssima relevância social.
Como a própria sigla diz, é uma parceria entre a administração pública e a iniciativa privada,
com o objetivo de fornecer serviços de qualidade à população, por um largo período de tempo
(Parcerias, 2011). Na área da saúde, esse tipo de parceria está sendo introduzido no Brasil, de-
signado de ‘parcerias para o desenvolvimento produtivo’, com algumas características distintas
das parcerias público-privadas tradicionais, uma vez que se referem especificamente a processos
de transferência e internalização de tecnologias estratégicas para o SUS.
Vale enfatizar que a intensificação dessa ação estratégica aponta para um uso mais
abrangente do poder de compra do Estado para o desenvolvimento tecnológico em saúde.
Um segundo exemplo destacado refere-se à crescente articulação da política de as-
sistência farmacêutica para a transformação da base produtiva nacional de medicamentos.
Em decorrência de maior protagonismo, por parte do Ministério da Saúde, na compra de
medicamentos, observou-se uma significativa mudança no perfil dessa demanda, que, aliada
ao novo contexto de renascimento da política industrial para a área da saúde, teve como
impacto o aumento da participação do capital nacional na indústria farmacêutica.
Um terceiro reflexo da aproximação dos campos da saúde e do desenvolvimento pode
ser observado a partir do crescente apoio à inovação em produtores públicos de vacinas, rea-
gentes para diagnóstico e biofármacos (notadamente Fiocruz e Butantan). Tem-se associadas,
nesse caso, a estratégia de imunização à de desenvolvimento tecnológico local, utilizando-se
do poder de compra, inclusive para ter acesso a tecnologias de empresas líderes mundiais.
Como exemplos dessa estratégia, vale enfatizar o estabelecimento de acordos de transferência
de tecnologia para produção de vacinas contra pneumococo, gripe, meningite C, rotavírus,
gripe, tríplice viral, quádrupla bacteriana (DTP + Hib), pneumocócica 10-valente e me-
ningocócica C conjugada. Para os anos de 2011/2012, prevê-se ainda o desenvolvimento de
uma vacina pentavalente (DTP, Hib, Hep B).
Como quarto destaque, observou-se importante investimento nas instituições públicas
de produção e inovação em saúde. E há propostas concretas de montagem de infraestrutu-
ra de apoio tecnológico à inovação em saúde, destacando-se alguns projetos da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Vale destacar,
dentre estes, o Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde, o Centro Integrado de
Protótipos, Biofármacos e Reagentes para Diagnóstico e a infraestrutura tecnológica para
desenvolvimento da insulina, além da criação da Hemobrás, em Pernambuco, para atuar
no campo dos hemoderivados e produtos para biotecnologia.
O quinto destaque verifica-se no campo dos serviços de maior intensidade de conheci-
mentos, cabendo enfatizar vultosos investimentos no novo Instituto Nacional de Traumato-
logia e Ortopedia Jamil Haddad (Into) e no novo campus integrado do Instituto Nacional de
Câncer (Inca). Estes atuarão como coordenadores nacionais de redes assistenciais nacionais
e descentralizadas de inovação, com alto potencial de articulação com a indústria no sentido
de orientar a inovação em saúde.
Por fim, destaca-se a importante entrada de instituições da área econômica e de C&T
na priorização da produção e da inovação em saúde. Nesse sentido, vale mencionar a atuação
do BNDES, que dispõe de uma linha especial de apoio ao setor de fármacos e medicamentos,
o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma).
Em 2007, o BNDES anunciou sua renovação, tendo sido renomeado para Programa de
Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde, coloquialmente designado
de Profarma 2, e estendido aos demais segmentos do complexo, incluindo a indústria de
equipamentos e materiais médico-hospitalares e odontológicos. O objetivo do programa é
elevar a competitividade do Complexo Econômico-Industrial da Saúde por meio da dis-
seminação da atividade inovadora, aumento da produção e consequente inserção interna-
cional das empresas nacionais (BNDES, 2011). No campo de C&T, salienta-se a atuação do
MCTI, que aplicou 27% de seus recursos de fundos de subvenção em empresas inovadoras
em saúde (Brasil, 2011b).
A despeito dessas iniciativas, a fragilidade da base produtiva da saúde permanece
como um ponto de vulnerabilidade tanto para o setor quanto para a agenda mais ampla de
desenvolvimento nacional, reforçando a necessidade de se aprofundar o conhecimento do
complexo da saúde, na busca de problematizar os gargalos enfrentados por esses setores
produtivos, assim como orientar políticas voltadas para sua superação.
Para refletir
Discuta como a saúde se insere no contexto da política nacional de desenvolvimento.
Estado1
Complexo econômico-industrial
da saúde
População
1
Incorpora relações de poder, estrutura decisória e formulação e implementação de políticas implícitas e explícitas.
2
Desde as instituições formais de C&T e de educação, agências de fomento e órgãos de financiamento, por exemplo,
até as de normas de conduta institucionalizadas na sociedade.
E
S
T
A Setores industriais
D
O Indústria de base química e
Indústria de base mecânica,
= biotecnológica
eletrônica e de materiais
P • Medicamentos
R • Equipamentos mecânicos
• Fármacos
O • Equipamentos eletrônicos
• Vacinas
• Próteses e órteses
M • Hemoderivados
• Materiais
O • Reagentes para diagnóstico
Ç
Ã
O
+
R
E
G
Serviços em saúde
U
L
A Serviços de
Hospitais Ambulatórios
diagnóstico
Ç
Ã
O
A apresentação e a análise
Fonte: Gadelha, 2003. aprofundada de cada
um dos subsistemas do
Ceis encontram-se em
Para a caracterização do complexo da saúde, partiu-se da base de conhecimento e Gadelha e colaboradores
tecnológica de cada um dos elementos representados para se estabelecer uma segmentação (no prelo) e Fiocruz e co-
laboradores (2012).
mediante três subsistemas que, em conjunto, compõem o Ceis.
O subsistema de base química e biotecnológica impacta diretamente a capacidade
da prestação universal de serviços no Brasil, uma vez que é responsável pela produção de
medicamentos, fármacos, vacinas e soros, hemoderivados e reagentes para diagnóstico.
Caracteriza-se por sua relevância econômica e pelo domínio de tecnologias estratégicas para
o país, uma vez que mobiliza áreas críticas para a evolução da atenção à saúde – como, por
exemplo, a biotecnologia, a nanotecnologia e a química orgânica avançada.
O subsistema de base mecânica, eletrônica e de materiais exerce particular influência
na prestação de serviços de saúde, pois representa uma fonte contínua de mudanças nas
práticas assistenciais – fato decorrente da forte associação dos produtos às práticas médicas,
uma vez que estes influenciam tecnologias incorporadas nos procedimentos no que se refere
à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento de doenças.
O subsistema de serviços de saúde é entendido como “um serviço compreendido no
interior dos processos de produção, distribuição e consumo, inserido no setor terciário da
economia, dependendo de processos que perpassam os espaços do estado e do mercado”
(Paim, 2004, apud Viana & Machado, 2008: 659). Ao congregar os setores envolvidos na
prestação de serviços de saúde (unidades hospitalares, ambulatoriais e de serviços de diag-
nóstico e tratamento), o subsistema de serviços organiza a cadeia de suprimento dos produtos
industriais em saúde, constituindo-se como mercado final de produtos dos demais segmentos
do complexo produtivo e articulando o consumo por parte dos cidadãos.
Seguindo a taxonomia de organização industrial e de inovação, o setor de serviços se
caracteriza como uma atividade dominada por fornecedores, o que acaba por considerá-lo
coadjuvante no processo de inovação, uma vez que o progresso técnico seria incorporado,
em grande medida, nos produtos adquiridos pelo setor de serviços, como medicamentos,
equipamentos e novos materiais.
Entretanto, do ponto de vista das relações intersetoriais, são os serviços de saúde
que conferem organicidade ao Ceis, podendo-se dizer que representam a força motriz do
complexo como um todo. Assim, a expansão, a contração ou o direcionamento de suas
atividades exercem impactos determinantes na dinâmica de acumulação e inovação dos
demais segmentos produtivos.
Na busca de analisar tais relações, assim como apontar empecilhos para uma política
efetiva de fortalecimento da capacidade produtiva e inovativa em saúde, os próximos tópicos
procuram caracterizar as indústrias que compõem o complexo produtivo da saúde, assim
como o subsistema de serviços. A proposta é adensar o conhecimento sobre os segmentos
do Ceis, procurando entender os principais desafios que precisam ser enfrentados para o
seu desenvolvimento pautado em uma política de desenvolvimento nacional que seja capaz
de articular a vertente social à econômica.
Indústria farmacêutica
A indústria farmacêutica pode ser caracterizada como um oligopólio diferenciado, cuja
competição é baseada tanto nas atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) quanto
Vacinas
A indústria de vacinas vem sendo fortemente impactada pela moderna biotecnologia,
que possibilita o desenvolvimento de vacinas com maior eficiência, eficácia e menores riscos.
A emergência desse novo paradigma tem mudado a configuração desse mercado, devido
ao ressurgimento do interesse pelo setor de vacinas por parte de empresas farmacêuticas
líderes, cujo dinamismo em inovações associa-se à sua entrada no segmento de vacinas.
Em decorrência dessa intensificação nas inovações em vacinas, uma atividade que
durante um longo período havia se concentrado em instituições públicas, acadêmicas ou
privadas com caráter social passa a ser objeto de investimentos privados de grande magnitu-
de. Assim, no início deste século, quatro dos maiores grupos farmacêuticos mundiais (Glaxo
SmithKline, Merck, Aventis e American Home Products) detinham praticamente 80% do
mercado, estimado em US$ 6,9 bilhões (Temporão, 2002). Esse processo leva Temporão
(2002) e Gadelha (2002), dentre outros, a afirmarem que o segmento de vacinas está se
configurando como um segmento da indústria farmacêutica, considerando que as empresas
participantes exercem sua liderança em grupos específicos de produtos (classes terapêuticas
ou segmentos que possuem uma base tecnológica próxima). Assim, surge o desafio para as
empresas de menor porte e para os países menos desenvolvidos referente ao risco de as
assimetrias típicas da indústria farmacêutica se reproduzirem no segmento de vacinas, como
parece ser a tendência mundial.
No Brasil, a trajetória de desenvolvimento da indústria de vacinas é marcada pelo claro
predomínio da participação de laboratórios públicos, com destaque para Bio-Manguinhos/
Fiocruz e para o Butantan, voltados para o atendimento do mercado público brasileiro. A
entrada mais significativa do país na fabricação de produtos da moderna biotecnologia em
saúde tornou-se possível ao se associar um programa de investimento para o aumento da
capacidade de oferta interna e para melhoria da qualidade, com a consolidação da demanda
nacional, com o Programa Nacional de Imunizações (PNI), lançado em 1984. Sua impor-
tância foi tal que se atribui ao programa o mérito tanto da eliminação da febre amarela, da
varíola e do sarampo quanto da introdução de vacinas como a Haemophilus influenzae tipo B
(Hib), o rotavírus e a tríplice viral.
O PNI tornou-se um marco internacional, ao estruturar no país a maior capacidade de
produção de vacinas da América Latina e uma das maiores dos países menos desenvolvidos
(Gadelha & Temporão, 1999), sobretudo considerando as precárias e heterogêneas condi-
ções socioeconômicas das regiões brasileiras, a dimensão continental do país e o tamanho
de sua população.
Do ponto de vista industrial, o PNI configura uma importante demanda pública por
vacinas, o que vem estimulando o aumento da produção nacional que atende, atualmente,
o mercado público em praticamente sua totalidade, configurando-se como o segmento
mais desenvolvido do complexo industrial da saúde. Em 2007, as compras governamentais
de vacinas para uso humano se situavam em cerca de R$ 750 milhões, sendo que o Estado
era responsável por mais de 95% do número de doses produzidas, havendo uma evolução
muito expressiva do mercado.
Entretanto, apesar dos avanços na capacidade de produção nacional de vacinas e
soros e da existência de uma estratégia progressiva de autossuficiência, verifica-se ainda
Hemoderivados
Embora o segmento de hemoderivados, em temos internacionais, se aproxime muito
das diferentes classes terapêuticas ou segmentos de mercado da indústria farmacêutica, no
Brasil ele apresenta uma especificidade marcante. Fato decorrente de o setor inserir-se em
um contexto político e institucional muito peculiar, fruto, em grande medida, do dispositivo
constitucional (parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição) que proíbe a comercialização
do sangue e de seus derivados, colocando, na prática, a responsabilidade da produção e da
oferta sobre o setor público.
Atualmente, a formulação da política para o setor é do Ministério da Saúde, enquanto
a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem a seu cargo a regulação, o controle
e a fiscalização do sangue e dos hemoderivados. A meta do ministério é a promoção do pro-
cessamento de plasma no país, buscando a autossuficiência nacional. Essa meta, entretanto,
ainda não teve resultados concretos.
europeus e o Japão, por não possuírem a mesma capacidade tecnológica e industrial, desen-
volvem estratégias de especialização e de segmentação. A Alemanha, por exemplo, procurou
se especializar no segmento de diagnóstico por imagem e no de implantes, e o Japão, por
sua vez, se destaca principalmente em aparelhos de ultrassonografia, de eletrodiagnóstico
e instrumentos oftálmicos (Selan, Porto & Kannebley Júnior, 2007).
Em diversos países, como na França e nos países nórdicos, é possível observar uma
articulação virtuosa entre a política de saúde e a política industrial e tecnológica voltada ao
subsistema de equipamentos e materiais de saúde, aliando sistemas universais e competiti-
vidade empresarial. Nesses e em outros casos, o Estado exerce um papel central nessa arti-
culação, que reflete a possibilidade de convergência entre a lógica econômica e a sanitária,
havendo elevado rigor na regulação da incorporação de novas tecnologias. Ao mesmo tempo,
o Estado estimula claramente as empresas a melhorarem permanentemente seus produtos
e processos, fazendo com que eles superem as barreiras locais e estejam bem posicionados
na competição no mercado internacional.
Os países e as empresas menos capacitados e que não conseguem estabelecer esse vín-
culo entre as políticas de saúde e de desenvolvimento tecnológico-industrial ficam limitados
em suas estratégias competitivas e no seu potencial de atendimento às demandas locais. Assim,
a incorporação de novos equipamentos no processo de atenção à saúde, muitas vezes sem a
adequada avaliação, leva ao aumento de gastos. Por isso tal processo necessita ser regulado
pelo governo para promover sua racionalidade, de maneira que se torne adequado às ne-
cessidades de saúde da população e não a interesses meramente comerciais.
No Brasil, a indústria de equipamentos e materiais se estruturou no período 1950-
1980, tendo progressivamente passado a ofertar instrumentos médicos, materiais de con-
sumo e equipamentos eletrônicos de maior densidade tecnológica. Segundo informações
da Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos,
Hospitalares e de Laboratórios (Abimo), a indústria se expandiu significativamente a partir
da segunda metade da década de 1990, atingindo em 2009 um faturamento de US$ 4,28
bilhões, com exportações de US$ 541 milhões, sendo responsável pela geração de cerca de
105 mil empregos diretos e indiretos (Abimo, 2010).
De acordo com a Abimo (2010), o poder público representava 21,5% das compras
da indústria em 2009; todavia, como ressaltam Pieroni, Reis e Souza (2010), parte signi-
ficativa das compras de entidades privadas é reembolsada pelo sistema público de saúde,
o que, na prática, aponta para uma demanda próxima de 50% dos produtos vendidos
pela indústria.
Assim, considerando o peso da demanda pública nesse mercado, é possível estabelecer
uma relação entre a expansão da indústria e a própria estruturação do SUS, no sentido
da ampliação da oferta de serviços e de sua universalização e integralidade. Nessa mesma
direção, os programas de investimento do governo federal na rede assistencial têm respon-
dido por parte expressiva do dinamismo empresarial, a exemplo do programa ReforSUS
(já finalizado) e dos financiamentos do BNDES para a rede filantrópica, que viabilizaram a
incorporação de equipamentos no sistema.
Seguindo as características estruturais apresentadas, o setor comporta um conjunto
expressivo de empresas de porte diverso, sendo que as empresas nacionais, ao contrário
do que ocorre no setor farmacêutico, representam cerca de 90% do mercado, predomi-
nando agentes de pequeno e médio portes especializados nos segmentos de baixa e média
densidades tecnológicas (Iemi, 2010). Além disso, observa-se a existência de formatos
gerenciais inadequados para a competitividade (estrutura familiar e baixo grau de pro-
fissionalização da gestão), o que pode explicar um afastamento da indústria da fronteira
tecnológica no período recente em termos dos grupos de produtos, a despeito do processo
de expansão observado.
Em que pese o crescimento das vendas, as informações disponíveis mostram uma perda
de competitividade da indústria nacional nos segmentos mais dinâmicos – o que pode ser
observado pelo fato de a produção realizada por empresas situadas no território nacional
ainda depender fortemente da importação de insumos de maior conteúdo tecnológico,
chegando a atingir 50% das matérias-primas consumidas em alguns segmentos.
Ademais, ao se considerar a balança comercial como principal indicador da vulnerabili-
dade industrial, torna-se evidente a perda de competitividade dessa indústria, notadamente
no grupo mais afetado pelos novos paradigmas tecnológicos: os aparelhos e equipamentos
eletromédicos, odontológicos e laboratoriais, cujo processo produtivo vem sendo fortemente
impactado pela microeletrônica.
O déficit comercial saltou de um patamar de US$ 200 milhões, no final da década de
1980, para um valor em torno de US$ 800 milhões em meados de 1990 (Gadelha, 2007b).
No período recente, sobretudo a partir de 2005, esse déficit vem apresentando um cresci-
mento incessante situando-se em US$ 2 bilhões em 2010 (Alice Web, 2011).
Observou-se que, no âmbito do complexo industrial da saúde, esse foi um dos poucos
segmentos que apresentaram respostas favoráveis na presente década, com crescimento
do faturamento, do número de empresas, da geração de empregos e da ampliação das
exportações. Entretanto, a situação de dependência estrutural se manteve nos produtos de
maior densidade tecnológica, limitando a superação da vulnerabilidade nacional. Ou seja,
há uma indústria importante de fabricação instalada no Brasil e que deu boas respostas à
demanda local, mas no contexto da revolução microeletrônica e das condições cambiais, sua
capacidade competitiva no futuro continua ameaçada.
Deve-se ainda levar em consideração que, embora a indústria brasileira desse subsis-
tema ocupe a 17ª posição em termos do ranking mundial, esta é uma posição privilegiada
quando se considera que o Brasil é praticamente o único país na América Latina dotado de
uma indústria relativamente completa de fabricação de equipamentos e materiais médico-
hospitalares e odontológicos (Viana, Nunes & Silva, 2011).
Ademais, o atual dinamismo econômico do país em razão de suas taxas de crescimento,
associado à ampliação de seu sistema nacional de saúde, à extensão da cobertura das redes
de assistência e à expansão dos gastos públicos em saúde, entre outros aspectos, aponta para
perspectivas francamente positivas para essa indústria.
sistema de saúde mercantil, cujo peso do gasto privado é incompatível com a universalização
do acesso. Como consequência, constitui-se um sistema de saúde bastante afeto aos interes-
ses privados, que acaba por reforçar as já existentes desigualdades (de renda e regionais).
Partindo-se dessa premissa da universalização dos serviços, e considerando a crescente
pressão pelo controle de gastos em saúde, evidencia-se a necessária busca de tecnologias
assistenciais mais eficientes, com relações custo-benefício adequadas.
Vale enfatizar que o impacto da tecnologia em um sistema universal de saúde é um
tema relevante, uma vez que a área de serviços é profundamente influenciada pela inova-
ção e produção, como se observa pela crescente interdependência entre nanotecnologia,
biotecnologia e tecnologia da informação e comunicação (TIC) e os formatos de prestação
e organização dos sistemas de saúde.
Atualmente, a efetividade dos sistemas de saúde passa pela sua necessária reestrutu-
ração, de modo que atenda à necessidade de redução de custo e às alterações do perfil de
morbimortalidade da população, cada vez mais marcada por doenças crônicas, mentais e
aquelas decorrentes do estilo de vida. Em decorrência, tem se buscado a integração dos
serviços prestados no âmbito dos sistemas de saúde, assim como o deslocamento da porta
de entrada para a atenção primária.
O sistema integrado de saúde conforma-se mediante a incorporação de novas tecno-
logias, readequação interna do espaço físico e novas formas de prestação de cuidados, além
da busca de novos formatos e ferramentas gerenciais. Avanços científicos e tecnológicos,
anteriormente observados somente no interior dos hospitais, passaram a ser gradativamente
deslocados para outros ambientes, levando a inovações como hospital-dia, cirurgia ambu-
latorial, atendimento domiciliar, centros de enfermagem (Shortell, Gillies & Devers, 1995),
entre outros serviços (Gadelha et al., 2010).
Uma das consequências desse novo formato de atenção é a possibilidade de expandir
o acesso qualificado para regiões privadas da infraestrutura de média e alta complexidades.
Entretanto, enquanto não se articularem os interesses públicos e privados no bojo da agenda
de saúde e se compatibilizar o volume de financiamento com o de um sistema universal, não
há garantias de que o sistema e as tecnologias articuladas por ele se orientem pela ampliação
do acesso e pela atenção das necessidades sociais coletivas.
Para refletir
Caracterize o complexo industrial da saúde do ponto de vista conceitual e descritivo, identificando
as relações sistêmicas entre os subsistemas de base química e de biotecnologia, de base mecânica
e de materiais e de serviços.
No que tange mais especificamente aos serviços de saúde, um desafio que merece
destaque diz respeito ao subfinanciamento da saúde e à baixa participação do setor público
nesse financiamento, tornando o sistema de saúde nacional bastante afeto aos interesses
privados, dada a relevância do sistema suplementar privado no sistema como um todo.
Até o presente momento, não foi criada, no Brasil, uma base de financiamento com-
patível com o compromisso de conformação de um sistema universal no Brasil, e o acesso
permanece com limites expressivos em termos quantitativos, qualitativos e regionais. O
próprio fato de o debate sobre os recursos do SUS ter sido tratado predominantemente no
âmbito setorial da saúde reflete o fato de que o financiamento de um sistema universal não
adquiriu a centralidade no âmbito do Estado nacional.
No que se refere aos segmentos industriais da saúde, vale enfatizar que, a despeito dos
desdobramentos concretos do reconhecimento do caráter estratégico da saúde no âmbito
dos setores produtivos, a falta de uma base endógena de inovação ainda pontua sério risco
de reversão no processo de fortalecimento da base produtiva de saúde. Consequentemente,
o sistema permanece crescentemente dependente de importações, conforme se depreende
no Gráfico 1, levando ao aumento do custo para a provisão da saúde e provocando aumento
substantivo no déficit comercial brasileiro, que chegou a aproximadamente US$ 10 bilhões
em 2010 (Fiocruz et al., 2012).
15
10
0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
-5
-10
-15
Exportação Importação Déficit
* Valores em US$ bilhões, atualizados pelo Índices de Preços ao Consumidor dos EUA.
Fonte: Elaboração própria com base em dados de AliceWeb (2011).
Assim, vale notar a urgência da adequação de uma ainda jovem política de incorporação
tecnológica no Brasil, sem a qual medicamentos e equipamentos médicos sem efetividade
comprovada e, muitas vezes, incompatíveis com a carga de doença e que não refletem a
especificidade epidemiológica, geográfica ou socioeconômica brasileira (Vidotti, Castro &
Calil, 2008) seguirão sendo incorporados e subutilizados pelo SUS. Ademais, sem uma mu-
dança nesse aspecto, o Sistema Nacional de Saúde continuará sofrendo os efeitos de uma
crescente judicialização da saúde.
Adicionalmente, em razão de características da geração de inovação no âmbito das
políticas de C&T e de saúde, observam-se dificuldades específicas para a articulação entre a
agenda de inovação e os interesses sociais (Lehoux, 2008, apud Viana, Nunes & Silva, 2011).
Esta questão indica que a redefinição e o impulso ao desenvolvimento do sistema produtivo
da saúde dependem, por sua natureza, de uma política transversal, multidisciplinar, que
envolva todas as esferas de governo.
das dimensões social e econômica no âmbito das políticas públicas voltadas para o desen-
volvimento nacional.
Como reflexos desse protagonismo atribuído à saúde, iniciativas diversas se concre-
tizaram no sentido de fomentar a produção e inovação no âmbito do Ceis, assim como
orientá-las segundo as demandas sanitárias.
Entretanto, conforme reafirma o persistente déficit em conhecimento da saúde, tais
iniciativas ainda são insuficientes para mudar o quadro de vulnerabilidade em que hoje
se encontra o Sistema Nacional de Saúde, em especial ao se considerarem as tendências
demográficas e epidemiológicas, pontuando pressão insustentável nos custos de saúde.
Nota-se que a conjuntura atual, descrita neste capítulo, oportuniza a superação de uma falsa
dicotomia referente à incompatibilidade entre políticas de saúde universais e integrais e aquelas
direcionadas ao adensamento do Sistema Nacional de Inovação em Saúde (SNIS) e de sua
base produtiva, o Ceis.
Diante desse quadro, a orientação é justamente superar a atual desarticulação entre a
atenção à saúde e à dinâmica industrial e de inovação, que aponta para uma falsa e negativa
dicotomia entre saúde e desenvolvimento econômico. Para tanto, cabe aos Estados nacionais
mediar esses interesses, de natureza social e econômica, visando ao estabelecimento de uma
agenda virtuosa – tanto na geração e incorporação de inovação quanto na reestruturação
dos serviços em saúde – que seja condizente com os novos desafios impostos pela mudança
no perfil epidemiológico e demográfico da população.*
Para refletir
Escolha um dos segmentos do Ceis, preferencialmente relacionado à sua área de atuação, e analise
sua estruturação no Brasil, indicando as dificuldades e as possibilidades para o seu desenvolvi-
mento, articulando a dimensão econômica com a sanitária.
Leituras recomendadas
ALBUQUERQUE, E. M. & CASSIOLATO, J. E. As Especificidades do Sistema de Inovação do Setor Saúde:
uma resenha da literatura como introdução a uma discussão sobre o caso brasileiro. Belo Horizonte: Federação
de Sociedades de Biologia Experimental, 2000. (Estudos FeSBE, 1)
FIOCRUZ et al. A Saúde no Brasil em 2030: diretrizes para a prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro.
Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República, 2012. Disponível em: <www.fiocruz.br/editora/media/Saude_Brasil_2030.pdf>. Acesso
em: ago. 2012. (Parte VI – Desenvolvimento produtivo e complexo da saúde)
GADELHA, C. A. G. & COSTA, L. S. Saúde e desenvolvimento nacional: a gestão federal entre 2003
e 2010. In: MACHADO, C. V; BAPTISTA, T. W. F. & LIMA, L. D. (Orgs.) Políticas de Saúde no Brasil
nos Anos 2000: continuidades e mudanças. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, no prelo.
GADELHA, C. A. G. et al. O complexo econômico-industrial da saúde. Informe CEIS, GIS/Enps/VPPIS/
Fiocruz, 1(1), ago. 2010. Disponível em: <www.fiocruz.br/vppis/imagens/ceis/Boletim%20Complexo%20
Saude%20Vol%201%202010.pdf>. Acesso em: nov. 2011.
VIANA, A. L. D. & ELIAS, P. E. Saúde e desenvolvimento. Ciência & Saúde Coletiva, 12(supl.): 1.765-
1.776, 2007.
* Os autores agradecem a colaboração de Taís Borges, Paula Burd, Carlos Raffaeli e Diogo Carvalho dos Santos,
pesquisadores do Grupo de Inovação em Saúde da Fiocruz, pelas suas contribuições na sistematização final deste
capítulo.