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Hierarquia e hibridismo
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função que exerce, incluindo aqui atribuições como emotiva, informativa, descritiva,
guia, temporal e retórica (WINGSTEDT, 2005).
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contudo conseguir estabelecer uma dominância sensorial que se sustente no
decorrer da obra (cf. LEITE, 2004). Nenhuma das duas modalidades descritas por
Chion, dessa maneira, seriam suficientes para definir um tipo de relação audiovisual
que é delimitada pela videomúsica. Não há, nesse caso, uma hierarquia sensorial
predefinida que orienta a recepção — situação na qual a audição visa confirmar a
informação fornecida pela visão ou vice-versa — mas uma conformação de uma
unidade audiovisual indivisível, criação multissensorial que pertence a todos os
sentidos, sem direcionar-se especificamente a nenhum. Posto isso, a ausência de
hierarquia sensorial pode ser tomado como um elemento individuante da
videomúsica, indicando um afastamento de uma expressão narrativa ou descritiva
que articula imagem e som em um primeiro plano de importância, tal como ocorre
em expressões audiovisuais como o cinema.
Essa relação simétrica de poder entre imagens visuais e sonoras é amparada pelo
hibridismo, que pode ser tomado como uma característica de coerência sintática que
reúne os materiais de natureza material heterogênea, tornando-os indissociáveis.
Nesse sentido, as imagens sonoras e visuais nascem de um mesmo gesto (PICHÉ,
2003), feito audiovisual, no qual a percepção de unicidade anula a hierarquia (cf.
GARRO, 2012, p. 110). O hibridismo ganha destaque no recorte proposto por Lima:
"vídeo-música é uma modalidade de produção audiovisual em que as imagens
visuais e sonoras se articulam em um processo contínuo e integrado, hibridizando-
se em uma obra na qual a experiência perceptiva é trans-sensorial" (LIMA, 2011, p.
8, grifo do autor).
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decodificado como tal em uma síntese cognitiva feita a partir de todos os dados
sensíveis disponíveis, como uma individuação das durações percebidas
anteriormente pelos sentidos integrados. O ritmo percebido não estaria ligado
especificamente ao visual ou ao sonoro, mas a um todo mais complexo resultante da
soma dos estímulos sensíveis. Além do ritmo, Chion aponta outros elementos com
potência transensorial, como textura, matéria e linguagem (CHION, 1993, p. 109).
Esse tipo de recepção ressalta uma heterogeneidade de maior interesse que diz
respeito à diferença entre o que se vê e o que se ouve, nos âmbitos das sensações
e das significações. Para Deleuze:
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porque não há jogo entre imagens sonoras e visuais, apenas estruturas visuais que
remetem a uma organização musical, sem contudo oferecer um contraponto
sensorial. Quais seriam os sons que poderiam emanar de um filme absoluto,
completamente mudo? As imagens em movimento, em um plano imanente de
velocidades e lentidões, não faz devir-música porque a expressão visual se basta
em termos materiais e não remete ao sonoro: daí a ambivalência dos filmes
absolutos que podem ser compreendidos como um plano de transcendência, de
estruturação musical; ou completo em suas características formais, exclusivamente
visuais que criam um plano de organização próprio. Para usufruir da experiência
musical transensorial da videomúsica é preciso que a imagem se associe ao som
num plano imanente. Essa associação ocorre a partir da apreensão dos constituintes
visuais pelas forças sonoras em uma síntese perceptiva de natureza gestáltica, que
agrupa os elementos da maneira mais lógica e econômica (Cf. BETHÔNICO, 2001,
p. 177). Bethônico coloca acerca da Gestalt:
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como “progredir morfologicamente na mesma velocidade perceptual, compartilhando
uma dinâmica direcional coerente" ou “desdobrar-se em em uma periodicidade
previsível ou como um padrão repetido singular” (BOUCHER e PICHÉ, 2020, p. 18,
tradução nossa170). A síncrese pode surgir a partir da sincronicidade entre os
elementos audiovisuais (síncrese direta), mas também a partir do corte, mudança
abrupta em ambos os canais (síncrese no corte) ou da evolução direcional percebida
em um único objeto audiovisual que compartilha as mesmas características cinéticas
e morfológicas, em que as formas visuais parecem ser a fonte sonora (síncrese
gestural) (idem, p. 22), entre outras tipificações elaboradas por Boucher e Piché
(2020).
170 "progress morphologically at the same perceptual speed with coherent shared
directional dynamics; or unfold at a predictable periodicity or as a singular repeated pattern."
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