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3.

O pensamento de Edgar Morin: a reforma do pensamento, a solidariedade


como responsabilidade ético-política, a sustentabilidade e a esperança

Carvalho (2007), analisando a obra Terra-Pátria de Edgar Morin publicada


em 1993, questiona se, naquele ano (2007), a esperança seria realizável ou seria
mera utopia ante uma realidade biopolítica de intolerâncias, desigualdades, ódios e
fundamentalismos. Haveria esperança na comunidade do destino terrestre?
Para Morin (2002), aquilo que chamamos de Tempos Modernos deveria ser
chamado de Era Planetária, inaugurada e desenvolvida sob a égide da violência, da
exploração feroz, da destruição – da natureza e das civilizações. Segundo o autor,
estaríamos ainda na idade de ferro planetária que, por sua vez, é marcada pelo
desenvolvimento do imperialismo europeu e consequente dominação bélica de
diversas culturas.
Criticando a ideologia de superioridade da civilização europeia, Morin
assevera que, apesar da pretendida unidade e fraternidade humana, as guerras
eclodem em função dos interesses imperialistas, nacionalistas e todas as forças
técnicas e ideológicas que causarão efeitos devastadores na comunidade planetária,
elegendo a morte como primeiro grande denominador comum da humanidade.
Com o fim do Nazismo, nascem as solidariedades, observa Morin (2002). No
entanto, a Guerra Fria as sufocará, mergulhando a comunidade humana no terror da
ameaça ecológica e do perigo nuclear, do desenvolvimento econômico que
escancara em escala global as desigualdades, os subdesenvolvimentos, as
disparidades.
Nesse contexto, uma espécie de consciência planetária vai ser forjada, para
Morin (2002), sob a égide da globalização, o que favorece as ambivalências e
contradições ante o sentimento de pertença à comunidade de destino.
Embora Morin (2002) reconheça o valor dos saberes científicos acumulados
historicamente pela humanidade, ele os questiona filosoficamente, considerando-os,
apesar de valorosos e inestimáveis, insuficientes para responder às questões
fundamentais tais como qual o sentido da vida, do universo, qual o nosso destino.
Morin (2002) discute a dialógica inerente à formação do Universo e
formadora da complexidade do mundo: entre ordem e desordem, entre desastre e
organização, entre integração e desintegração. Morin diz que a Terra “é um grão de
poeira cósmica”, um mundo que contém em si, holograficamente, todo o universo,
um planeta dependente do Sol, porém auto-eco-organizador, singular e solitário no
sistema solar. Analisando o surgimento da vida, Morin assevera que esta é derivada
de uma complexificação organizacional não linear, resultante de encontros
aleatórios, “misto de acaso e necessidade”, cuja explicação ainda não alcançamos.
Daí porque Morin questiona a casualidade, a necessidade ou a probabilidade na
gênese da vida no planeta Terra. No sentido da probabilidade, Morin chega à
hipótese de que é possível haver milhões de planetas iguais a Terra o que torna
provável a existência de seres vivos em outras regiões do cosmos. No sentido da
improbabilidade, Morin considera o acaso da vida como exclusividade terrestre e,
ainda, numa terceira hipótese, Morin lembra a possibilidade de existência de
organizações muito mais complexas no universo, inacessíveis à nossa percepção e
ao nosso entendimento. “Seja como for”, assevera Morin, “a vida emerge ao mesmo
tempo como emanação e criação da Terra” e as descobertas biológicas levam à
descoberta da solidariedade ecológica. Num passeio pela construção epistemológica
da unidade biológica do ser humano, pelas concepções filosóficas racionalistas,
românticas, humanistas que ora defendem a unidade, ora defendem a diversidade
humanas, Morin resgata a identidade biológica do homem, sua animalidade, apesar
de sua cultura, que o torna, portanto, estatutariamente duplo: cultural e biológico. O
homem moriniano é um super-primata e sua organização comporta uma pluri-
identidade cósmica da qual não pode escapar. Assim, para Morin, “o princípio da
identidade humana é unitas multiplex, a unidade múltipla, tanto do ponto de vista
biológico quanto cultural e individual”. Essa identidade, no entanto, não é
devidamente reconhecida pelo homem, que parece tê-la perdido com a
incompreensão dessa complexidade promovida pela compartimentalização dos
saberes. Diante dessa condição, o homem nega a igualdade (unitas) e potencializa
as diferenças (multiplex) para justificar as investidas contra o outro homem. A
humanidade é negada ao que lhe parece diferente. Para Morin, somente a reforma
do pensamento – que resgatará a complexidade dos saberes – e a reforma moral
serão capazes de promover-realizar o encontro do homem com sua identidade
unitas multiplex. Esse reconhecimento é essencial, diz Morin, para que possamos
dar conta de uma consciência terrestre, que reconhece a pátria terrestre e nos torna
solidariamente uma comunidade do destino terrestre.
Segundo Morin, a economia mundial é auto-eco-organizadora, logo,
autônoma e dependente daquilo que dela depende. Contudo, a economia não é
tratada/percebida com a complexidade que lhe é própria. Encarcerada na
matematização, torna-se incapaz de prever suas perturbações. As ordens e
desordens, próprias de um sistema auto-eco-organizador, parecem ter provocado
crises descontroladas, posto que o culto ao mercado mundial e a aceleração do
desenvolvimento econômico a qualquer preço estabeleceram desregramentos
sociais e político-culturais sem monta. Tudo é sacrificado em nome da competição
econômica. Além disso, o aumento demográfico em países pobres, apesar das
contenções por diversas formas, ameaça a capacidade de sustentabilidade do
planeta. Por sua vez, o perigo ecológico, anunciado desde 1969, derivado dos
abusos imputados à natureza pelo homem, desde 1980 ecoa pelo planeta,
materializa-se nas catástrofes locais, nos problemas ambientais mais gerais e nos
problemas ecológicos globais como, por exemplo, o efeito estufa. Tais crises
encontram-se com a crise do desenvolvimento – qual o preço a pagar pelo
desenvolvimento?
Como problemas de segunda, porém interdependente, evidência, Morin
apresenta a balcanização do planeta, a incerteza do futuro, o mal estar
generalizado, derivado dos abusos cometidos em nome do desenvolvimento, a
apologia da razão, da técnica, da ciência. Para Morin, a generalização do Estado-
nação no século XX fez-se acompanhar por graves e profundos conflitos
nacionalistas, étnicos e religiosos, frutos de antagonismos virulentos que se
misturam aos interesses político-econômicos das grandes potências. São Estados-
nações que reivindicam soberania, mas que, contudo, não dão conta dos grandes
problemas transnacionais e assim, a balcanização generalizada constitui nova
ameaça ao planeta. Além disso, a fé no progresso, ideologia democrático-capitalista
ocidental e as promessas socialistas de prosperidade e felicidade entram em crise.
Nem a tríade ciência/técnica/indústria nem a tal esperada revolução socialista
colocaram fim aos problemas sociais que, antes, aumentam consideravelmente:
totalitarismos, fome, desemprego, guerras assolam o planeta. Nem o progresso para
todos, nem a revolução foram promessas cumpridas pela história. O mito do
desenvolvimento segundo o qual tudo, absolutamente tudo deveria ser sacrificado
em seu nome, espalhou destruição, eliminou culturas, degradou a natureza,
justificou ditaduras e crueldades, gerou mal estar em toda a civilização. Apesar das
benesses, o desenvolvimento mostrou sua face negra: individualismo, consumismo,
solidões, doenças psicossomáticas, anonimização e atomização do homem. “A
tecno-ciência”, diz Morin, “conduz há um século o mundo” e lhe impõe a
maquinização do homem. A lógica da máquina artificial é invertida e o homem torna-
se um apêndice da máquina. “A extensão da lógica da máquina artificial em todos os
domínios da vida humana produz o pensamento mecanista parcelar que adquire
forma tecnocrática e econocrática”, assevera Morin. A razão adquire, nesse
contexto, o caráter lógico delirante da racionalização e torna-se cega à
complexidade do real. Os avanços da civilização são também avanços de uma nova
barbárie tecno-científico-burocrática, afirma Morin. A possibilidade de efetuar a
mutação tecnológica/econômica/social é neutralizada pela deficiência do
pensamento dominante tecno-econômico e pela debilidade do pensamento político.
O Homo sapiens faber continua a correr cega e descontroladamente.
Assim, para Morin, o planeta está em crise em virtude das incertezas em
todos os domínios e da diversidade dos futuros possíveis, das rupturas de
regulações, das ambivalências do desenvolvimento, dos perigos fatais para a
humanidade. A crise, na verdade, é uma policrise: “não há um único problema vital,
mas vários problemas vitais, e é essa inter-solidariedade complexa dos problemas,
antagonismos, crises, processo descontrolado, crise geral do planeta, que constitui o
problema vital número um’, diz Morin.
Morin não nega a hipótese de que esse estado de policrise seja componente
de destruição do sistema auto-eco-organizador que é o mundo. Contudo ele
considera também a possibilidade de não ser, de que a humanidade tenha
ultrapassado o limite e que isso nos levaria à autodestruição. Para Morin, repensar
esse processo é uma questão de sobrevivência, já que pesam sobre a humanidade
a ameaça da bomba atômica, a ameaça ecológica, a ameaça das doenças como a
AIDS, a ameaça da violência, a ameaça das drogas associadas à aliança das
barbáries: a formas antigas e novas. Para Morin, a humanidade agoniza em meio a
essa policrise, em meio a outras crises e em meio a novos problemas ainda sem
solução. A agonia da humanidade é a incapacidade de se tornar humanidade.
Para alcançar a condição de humanidade, Morin considera que é imperioso
que tomemos consciência de nossas raízes terrestres e do nosso destino planetário.
Nesse sentido, é preciso, pois, conservar e revolucionar. Conservar preservando a
vida – das diversas culturas, da natureza, da humanidade e revolucionar criando
condições para que a humanidade se realize como uma sociedade/comunidade de
nações. Nesse contexto, é preciso também resistir e progredir. Resistir ao retorno e
manifestações da barbárie – antiga e atual – para permitir um progresso da
hominização. Tal hominização, para Morin, seria um novo nascimento do homem.
Para Morin, o homem ainda está na pré-história espiritual humana. A hominização
seria, portanto, “o desenvolvimento de nossas potencialidades psíquicas, espirituais,
éticas, culturais e sociais”. Tal noção de desenvolvimento, explica Morin, é
antropologicamente concebida e mais rica que a noção meramente econômica. “O
verdadeiro desenvolvimento é o desenvolvimento humano”, diz Morin. No entanto,
Morin pretende uma noção multidimensional do desenvolvimento que extrapole os
esquemas econômico, civilizacional e cultural do ocidente e torne-se incerto e
impermanente, necessitando ser constantemente regenerado.
Morin critica a hiper-especialização, a fragmentação, a hiper-abstração, a
compartimentalização do conhecimento que rompe arbitrariamente com a
sistemicidade e a multidimensionalidade dos fenômenos, com a contextualização.
Para Morin, a economia é um emblema dessa condição epistemológica, haja vista
sua pretensão em abstrair-se das condições sociais, históricas, políticas,
psicológicas e ecológicas que, a rigor, são inseparáveis das atividades econômicas.
Reside aí, analisa Morin, a incompetência dos especialistas em interpretar as causas
e as consequências das crises financeiras. Para Morin, o conhecimento exige a
contextualização para se tornar compreensível e a era planetária exige uma
contextualização planetária e ainda o conhecimento contextualizado dos problemas
do mundo implica numa reforma do pensamento. Para Morin, a grande questão
posta pela especialização é o isolamento do saber/fazer: a lógica do conhecimento
tecnocrata impõe os mecanismos inumanos da máquina artificial, determinista,
mecanista, quantitativa e formalista às relações humanas, porque é incapaz de
conceber o global e a complexidade dos fenômenos.
Morin critica os intelectuais, cientistas e filósofos, a formação
acadêmica porque são fechados em si mesmo, disciplinarmente organizados,
resistentes ao pensamento transdisciplinar e prepotente e pretensamente julgam-se
donos do saber, negando aos cidadãos comuns a capacidade de entendimento das
coisas do mundo.
Para Morin viemos do nada e ao nada retornaremos. A rigor, portanto, não
há um sentido existencial para a vida. O que há, segundo Morin, são emergências e
organizações que tomam consistência e adquirem valor de realidade para nós. Mas
nada escapará à morte e, embora o amor, a consciência, a compaixão e a
compreensão sejam emergências que devam ser tomadas como normas
planetárias, também morrerão. Para Morin, não há salvação nem religiosa nem
terrestre possível assim como também não há o infinito das potencialidades
humanas ou da natureza. A finitude é uma propriedade humana que deve ser
assumida ao lado de uma irremediável ignorância e inconsciência humanas. Morin
reafirma a incerteza do devir histórico e sugere que se reconheça o preço a pagar
pela alegria e pela existência. Reiterando a idéia de itinerância da vida planetária,
Morin diz que, apesar do acaso, podemos assumir “idéias-guias, valores eleitos,
uma estratégia que se enriquece ao modificar-se”. Para Morin, não há recompensa
final, não há o “mais-além” no sentido religioso que as religiões pregam, mas há o
mais além da miséria e da infelicidade e o mais além da aventura terrestre
desconhecida. Devemos nos contentar com a boa-má nova: se estamos perdidos no
universo e destinados ao nada, pelo menos temos uma pátria – a Terra – e, por isso,
devemos nos fraternizar, nos solidarizar – todas as raças, etnias, nações, classes –
para viver a comunidade terrestre, planetária. Devemos superar egocentrismos,
inimizades, etnocentrismos, o xenofobismo, a crueldade e rejuntar a condição
simultaneamente prosaica e poética do homem na Terra, a fim de que possamos
viver por viver, sugere Morin.
Quanto à questão da religião em si, religião como instituição humana,
Morin se declara cético. Para ele não há deuses nem um Deus supremo. Morin
assume, no entanto, a religião num sentido antropológico, isto é, como uma ligação,
ou religação, entre os humanos entre si, não entre os humanos e um Deus ou uns
deuses. A essa religião ele dá o nome de evangelho da perdição, que teria em
comum com as demais religiões a idéia de fraternidade universal e que teria uma
missão racional, “a de salvar o planeta, civilizar a Terra, realizar a unidade humana e
salvaguardar a diversidade”. Tal religião extrapolaria o racional na medida em que
propõe a assunção da caridade e da compaixão e à idéia de deus substituiria a idéia
de um onipresente mistério. Sem verdades e sem revelações, sem proposições
existencialistas e sem imortalidades, o evangelho da perdição, religião proposta por
Morin, estaria calcada no abismo, na dúvida, na incerteza, no sofrimento e na morte.
A salvação, nessa religião, corresponde ao evitar o pior, a destruição prematura da
Terra, fazer do planeta um mundo melhor.
Morin reafirma nossa identidade terrestre cada vez mais ampliada e
nossa cidadania planetária quando diz que atingimos a possibilidade de atingir a
consciência telúrica, ecológica, antropológica, do estatuto antro-bio-físico do homem,
da ignorância existencial, da era planetária, da ameaça damocleana, de nossa
mortalidade inexorável, de nosso destino terrestre. Dadas essas possibilidades,
Morin diz que por essa razão, estamos abertos à antropo-ética, aos valores
humanistas alardeados pelos movimentos religiosos, científicos, éticos desde
sempre na história da humanidade. Daí porque Morin reafirma também a
necessidade do homem admitir seus limites, principalmente os técnicos e admitir
que não consegue, por mais que tente, escravizar ou dominar a natureza e que, por
isso, deverá dialogar, negociar com ela, “elaborar a co-regulação da biosfera
terrestre”. Assim, para Morin, a agonia planetária seria uma gestação para um novo
nascimento – o da humanidade – uma luta inicial para permitir tempo ao homem de
superar sua pré-história espiritual, para permitir a humanidade a superar a idade de
ferro planetária. Mas isso é só uma possibilidade.

Machado (2007) assevera que “a solidariedade das culturas planetárias implica três
princípios: sustentabilidade, responsabilidade e esperança”

Em Terra-Pátria, ensaio publicado em 1993, Edgar Morin (1993) enfatizava a


necessidade de uma reforma do pensamento capaz de conceber as coisas em seu
contexto e definir a comunidade de destino terrestre.

A recuperação da vida só se efetivará se conseguirmos exercitar a solidariedade.


Para redescobri-la é preciso consumar e manter o diálogo ativo e permanente. Para
dialogar, é necessário que as partes envolvidas suspendam, mesmo que
temporariamente, suas crenças, pressupostos e preconceitos, para que a
comunicação e o fluxo das idéias se efetive e se movimente. Ao observarmos nosso
cotidiano escolar, familiar, político, amoroso, constatamos que perdemos essa
condição ética. Vivenciamos, sim, um diálogo de surdos, em que uma parte quer
fazer valer, a qualquer custo, seus pontos de vista, quaisquer que sejam eles.
Um efetivo diálogo de solidariedades deve, portanto, fazer comunicar, pôr
em movimento e em simbiose todos os componentes da sociedade-mundo
planetária: ricos e pobres, excluídos e incluídos, alfabetizados e analfabetos,
homens e mulheres, heteros e homossexuais, cientistas e poetas. O objetivo mais
amplo dessa rede implica a transformação das estruturas de dominação, exploração,
desigualdade e exclusão, hoje dominantes no comando da Terra.

Apesar da visibilidade de injustiças, intolerâncias e ódios, o caráter da revolta


permanece homeopático e bem-comportado demais. A solidariedade de que falo
aqui diz respeito a nossa responsabilidade ético-política diante da violência do
capitalismo global e do caráter abjeto de seus efeitos sobre milhões de pessoas a
quem subjuga sem distinção de latitude ou longitude, norte ou sul. Slavoj Zizek
(2003), filósofo, esloveno, pensador radical defende a idéia de que a política deve
ser sempre “politicamente incorreta”, ou seja, concentrar-se na crítica dos princípios
organizatórios do capitalismo liberal global. A violência político-discursiva do capital
é de tal monta que os “estarrecidos do planeta”, expressão de Jan Patocha (1998)
que designa o sentimento de impotência dos cidadãos diante do mal-estar
planetário, devem procurar subverter excessos ingovernáveis e investir na busca de
um universalismo político capaz de dialogizar igualdade e liberdade.

Como ponto de partida, três princípios, ou bases para o diálogo precisam ser
construídos e assumidos por todos: sustentabilidade, responsabilidade e esperança.
Constituem idéias-guia cuja função é impregnar o cenário planetário, superar o
sentimento de impotência, deflagrar uma ecologia da ação voltada para a
regeneração biocultural.

Afirma-se que uma sociedade é sustentável quando as gerações presentes


empenham-se em garantir para as futuras a satisfação de necessidades básicas e
níveis de vida íntegros e dignos. Esse pressuposto implica o entendimento da Terra
como um sistema autoregulador que mantém o equilíbrio necessário para a
continuidade e preservação dos organismos vivos. Em conseqüência, seria estranho
que um mundo voltado para a sustentabilidade elegesse como prioritários o
crescimento econômico e a dominação da natureza.

O primeiro passo a ser dado para enfrentar esse desafio reside na alfabetização
ecológica em todos os níveis da educação, do ensino fundamental à universidade.
Tal iniciativa requer uma mutação na compreensão da cultura. Conceito-armadilha
para Edgar Morin, a cultura é o centro nervoso da vida, práxis cognitiva planetária
cuja origem remonta à filogênese e à ontogênese da espécie. Essa pedagogia
complexa articula modalidades lógico-racionais a expressões míticoimaginárias.

Em outras palavras, razão, determinação, repetição e objetividade não sobrevivem


sem sensibilidade, incerteza, criatividade e subjetividade.

O sujeito nunca permanece inerte, transcendente, diante do objeto; em decorrência


disso, nas práticas do dia-a-dia, modalidades arlequinadas de subjetivação
articulam-se a múltiplas topologias de objetivação regidas por relações de oposição
e complementaridade.

Seres humanos que somos, estamos sempre prontos, e aptos, a desenvolver, recriar
e reorganizar modalidades existenciais diante de um mundo real cada vez mais
plural, globalizado, efêmero.

“O mundo precisa ser mais feminino”, slogan muito repetido em reuniões de


ecologistas, não é uma palavra de ordem inútil, panfletária, mas algo apropriado
para fundamentar a idéia de um mundo menos androcêntrico e arrogante. Ser
alfabetizado ecologicamente implica preservar nosso lar-terra de qualquer tipo de
agressão, venha de onde vier. Todos os componentes desse lar, como se fossem os
de nossa própria casa, encontram-se inter-relacionados, cada parte se junta com a
outra. Constituem, portanto, um sistema, mesmo instável, caótico e indeterminado.
Assumir que ecossistemas naturais e culturais regem-se por princípios de
organização semelhantes, implica entendê-los como elementos de uma rede
solidária, plural, complexa. No mundo vivo nada se perde. O que sobra e se
desorganiza de um lado, reaparece e se reorganiza do outro. Essa é a marca
indelével da evolução de todos os organismos vivos. Vida e morte não se negam,
sempre se complementam, onde quer que nos encontremos, no plano material ou
espiritual, físico ou metafísico. Se podemos acreditar, com certo grau de certeza,
que o início da vida ocorreu há três bilhões de anos, a continuidade que hoje
presenciamos foi, certamente, produto de uma ampla cooperação entre espécies
naturais e humanas. Por isso, a imagem da competição sangrenta pela
sobrevivência deve ser substituída pela parceria pacífica em prol da continuidade, da
preservação, da construção de valores éticos e universais.
Responsável por uma visão da criação que não fica nada a dever às pretensões
científicas, os ensinamentos da sabedoria tibetana (1988) tornam-se fundamentais
para uma reflexão aberta desprovida de ressentimentos. A terra, narra um conto
apócrifo, emergiu como uma montanha, e ao redor de seus picos o vento sussurrava
incansável, formando uma nuvem atrás da outra. Das nuvens caiu mais chuva, mas,
desta vez, mais forte ainda e carregada de sal; daí se originaram os grandes
oceanos do universo. O centro do universo é uma montanha de quatro caras, feita
de pedras preciosas e cheia de coisas maravilhosa com muitas espécies de árvores,
frutos e plantas. A montanha é também a morada dos deuses e dos semideuses.

As conexões entre natureza e cultura são mais do que evidentes na narrativa acima
resumida. Transpô-las para o plano da sustentabilidade planetária requer a eleição
de prioridades. É quase certo que o desenvolvimento e a velocidade da tecnologia
terão de ser repensados, sem que isso envolva qualquer tipo de retorno à idade da
pedra. O caráter prometéico da ciência precisa ser criticado, relativizado mesmo,
para que a sustentabilidade deixe de ser um mero discurso oportunista de estados
cínicos e passe a governar sentimentos e ações de todos. Todos sabemos o preço
que o titã Prometeu pagou por ter roubado o fogo do Olimpo e ensinado aos homens
a empregá-lo.

Algumas perguntas dirigidas a todas as sociedades poderiam representar um bom


ponto de partida para que nos conscientizássemos dessa necessidade histórica.
Todos os humanos poderiam retorquir se o excesso da tecnociência, a velocidade
da comunicação, a estimulação do consumo propiciam estilos de vida mais
integrativos, cooperativos e felizes para as atuais e futuras gerações.

Formulado por Hans Jonas (1979), o princípio-responsabilidade é prioritário e


inadiável. A responsabilidade deve impregnar não apenas indivíduos e nações.
Organismos internacionais, instituições públicas e privadas poderiam, por exemplo,
empenhar-se na construção de uma harmonia planetária que respeite
simultaneamente a diversidade e a unidade dos processos civilizatórios sem
esquecer que humanidade e animalidade constituem patrimônios histórico-culturais
a serem preservados a qualquer custo.
Tornar-se responsável envolve necessariamente a visão de um futuro
pacífico, a combinação de fatos com idéias, de palavras com coisas, de estratégias
com ações, a proposição de uma cidadania planetária comum a todos. Mais que
isso, exige educação ecológica constante, para que as novas gerações sejam
alertadas dos perigos que as esperam e tomem consciência disso, mudando seus
pontos de vista perante a vida pessoal e coletiva. Afinal de contas, a vida se constitui
sempre de uma pluralidade de planos, vínculos, perspectivas, utopias.

Pode-se afirmar que a responsabilidade começou desde que o primeiro humano


apareceu no planeta. Por vezes, exige que nos revoltemos e, simplesmente,
deixemos de nos submeter ao que não achamos justo e prudente. Por outras,
admite conciliações e, mesmo recuos, desde que não se perca de vista que nossa
comunidade de destino, nossa Terra-pátria é algo inegociável. A responsabilidade se
efetiva com a liberdade de fazer escolhas e tomar decisões que propiciem o bem-
comum, a salvaguarda do equilíbrio dos sistemas naturais, a fraternidade de todos
os povos e culturas.

Em seus Ensaios publicados em 1580, na cidade de Bordeaux, França, Montaigne


(1533-1592) soube definir com precisão esse objetivo quando afirmou ser preferível
ter uma cabeça bem-feita, ou seja, aquela capaz de religar e contextualizar, do que
uma cabeça cheia, a que apenas amontoa conteúdos dispersos, que nunca se
comunicam (Montaigne, 1987).

De nada adianta insistir no modelo da educação fragmentada, cujo marcador


epigenético reside nas estruturas da repetição, mas, isso sim, buscar nas potências
da criatividade, o exercício da autonomia incondicional do sujeito, a aceitação de
que nossa qualidade de humanos, demasiado humanos talvez, nos faz responsáveis
diante de nossos atos. Por onde começa a criatividade? Algumas iniciativas tentam
reverter modelos institucionais de educação direcionando-os para objetivos
complexos e sistêmicos. Mesmo que sua implantação seja sempre obstaculizada
pelo sistema de crenças vigente, algumas delas merecem atenção. Ao topar
coordenar o projeto da reforma do ensino médio francês nos estertores do finado
século XX, que acabou por não se efetivar, assim como as iniciativas deflagradoras
da Universidade do Mundo Real em Hermosillo, México, nesses anos iniciais do XXI,
Edgar Morin deixa claro que a religação dos saberes e a reconstrução de meta
pontos de vista sobre a vida, a terra, o cosmo, a humanidade, as culturas
adolescentes e o próprio conhecimento constituem pontos de partida irrevogáveis
para políticas acadêmicas da dita sociedade do conhecimento que nos aguarda
(Morin, 1999).

Naquela ocasião, mais precisamente em 1997, perguntaram ao poeta Yves


Bonnefoy porque considerava fundamental o ensino da poesia nas escolas numa
eventual reforma das condições do ensino fundamental. Sua resposta foi direta e
incisiva. Disse ele que a poesia propiciava a prática da liberdade para com as
palavras e a vivência da responsabilidade com um mundo melhor, com o sentido da
vida.

Para o pensamento bom, encarnado, transparente e nômade, poesia e literatura


constroem imagens amplificadoras, criam uma fantástica reserva de emoções,
abrem janelas para o mundo, acionam níveis de realidade não percebidos pela
linguagem monocórdica dos conceitos. Da mesma forma que o conceito de pássaro
se explicita mais na modulação do canto, na riqueza das plumagens, nos mistérios
do acasalamento do que em seu mero enquadramento numa ordem classificatória
formal, quando se aprende um poema de cor, ou se lê um romance pela décima vez,
essas narrativas permanecem para sempre em nossa mente como reserva de
memória, fiéis companheiras que nos convidam a encarar a miséria do mundo de
modo menos pessimista e a seguir em frente diante da irreversibilidade do tempo.

Ciência e imaginação, ciência e arte nunca se excluem, mas se complementam,


empenhadas que estão em decifrar o sentido e o significado da vida. Não é mais
possível que o século XXI mantenha a separação entre a cultura científica e a
cultura das humanidades. Devemos, sim, navegar livre e democraticamente por
todos os saberes que a cultura é capaz de colocar a nosso dispor, para que seja
possível acessar a grande narrativa de todos os sistemas vivos. Pelas injunções da
historialidade, nos tornamos seres esquecidiços – homo sapiens obliviosus –, ou
seja, nos esquecemos de tudo e de todos, embora palavras, acontecimentos,
mutações constituam marcas indeléveis da narrativa da vida (Serres, 2005).
A recuperação dos mitos é crucial para retroalimentar o real, algo que só se
efetivará pela transgressão das normatividades institucionais e pela potência da
descoberta presente no imaginário radical. E por quê? Porque os mitos são
auxiliares cognitivos que decifram sentidos ocultos recalcados, relembram tempos
pretéritos, arcaicos, em que natureza e cultura viviam em simbiose, adiantam
tempos futuros nos quais a felicidade, uma nova idade de ouro, voltará a reinar
sobre a face da Terra. Resolvem contradições que a ordem vivida não sabe
confrontar e, muito menos, solucionar. São operadores simbólicos que ampliam a
criatividade, magmas complexos que rejeitam o caráter linear do tempo e do espaço.
É conveniente que mitologias antigas e modernas jamais sejam esquecidas
e deletadas de nossa mente. Ao escutá-las no recôndito da alma, a resignação
diante óbvio e do efêmero passa a ser questionada. Distraídos pela informação e
pelo mercado, esses dois paradigmas que regem o mundo das palavras e das
coisas, vivemos de modo prosaico como se fôssemos adultos replicantes, damos as
costas para as narrativas míticas, passando a entendê-las como elocubrações
descerebradas de um mundo sem história, primitivo, outro.
Integrantes do sistema-mundo, perdemos a identidade da terra-pátria,
esquecemos o caráter transcendente de nossas temporalidades, mergulhados na
mediocridade de um cotidiano cada vez mais pobre em significações cosmopolitas.
Para reverter esse quadro adverso e garantir uma possibilidade
hominescente, um diferencial no processo de hominização, é necessário impor
limites à racionalidade e à racionalização, à objetividade da verdade plena, assumir
que o acesso ao conhecimento pode-se dar por múltiplas vias. Essa biopedagogia é
essencial para a construção da responsabilidade intercultural e para a consolidação
da esperança, terceira e última idéia-guia a ser explicitada.
Se, como vimos, responsabilidade e liberdade encontram-se intimamente
ligadas, esperança e solidariedade constituem um par inseparável. Para se ter
esperança é preciso colocar a mão na massa, cair na real sem se despregar do real-
imaginário, ter vontade de mudar o status quo, não se deixar contaminar pelo
sentimento de resignação, apatia e, muito menos, de passividade.
Em primeiro lugar, é preciso acionar as comportas da revolta, canalizando-a
para os objetivos éticos da solidariedade. A constatação de quantos somos no
planeta torna-se crucial: é fato irrevogável que já somos mais de seis bilhões de
humanos, cifra que aumentará nas próximas décadas. Projeções estatísticas
apontam que, em 2015, a população da Terra será superior a 7 bilhões de pessoas.
Na época atual, cerca de 1,2 bilhões de pessoas sobrevivem com menos de um
dólar/dia e outros 1,5 bilhões com menos de dois dólares. 80% do PIB mundial
provêem de 1 bilhão de pessoas que vivem nos países ricos. Os 20% restantes são
divididos entre 5 bilhões de indivíduos que vivem nos países em desenvolvimento.
Sensibilizar-nos com essas cifras é um bom começo. Diante delas, a única
esperança que resta a intelectuais exílicos consiste na tentativa de reverter esse
quadro com argumentos comunicativos cujo conteúdo não pode ser objeto da
censura prévia de quem quer seja, o que exige uma revolta programada dirigida aos
detentores do poder. É conveniente não esquecer que a palavra revolta pode
significar interrogação, renovação, renascimento. Se meditássemos profundamente
sobre esses três significados, poderíamos começar a gritar nas ruas, praças, em
nossas casas e escolas: “Eu me revolto, logo nós somos”, dístico criado em 1951
por Albert Camus (1913-1960) (Gay-Crosier, 2002). A revolta é, simultaneamente,
um sentimento individual e um anseio coletivo, algo que liberta nossa mente para ter
esperanças de que nem tudo está perdido, de que somos capazes de pôr em
movimento ações e atitudes cotidianas homininescentes, por mínimas que sejam,
acionar armas de uma Guerra civil pacífica contra desigualdades e exclusões. A vida
simples e o pensamento autônomo não são horizontes intransponíveis, vazios,
inalcançáveis. Basta olhar nosso entorno para nele identificar um sintoma do mal-
estar, uma imagem crepuscular, uma projeção deformada de nós mesmos e, diante
disso, partir para o confronto.

Originalmente formulado por Ernst Bloch (1959) o princípio esperança é otimista e


pessimista ao mesmo tempo. Otimista porque tem como horizonte um planeta em
que as culturas passem a conviver e colaborar numa espécie de troca generalizada
de seus modos de fazer, interagir, imaginar; pessimista, porque se sente impotente
diante das condições e contradições da modernidade liquida, como se não soubesse
por onde começar, ou mesmo contra quem se revoltar. É Da perdição à esperança:
exatamente esse caráter ambivalente da esperança que anima todos os que situam
na contracorrente dos dominadores, ao lado dos quatro bilhões de humanos que não
usufruem dos benefícios mínimos da mundialização.
Por incrível que pareça, o Brasil, que sempre ocupa baixas classificações no que se
refere ao desenvolvimento humano, não se sai tão mal no tocante à preservação de
suas áreas verdes, anunciada em fóruns econômicos e sociais. Em dados de 2005,
o Brasil passou a ocupar o 11º lugar no índice de sustentabilidade ambiental – ISA –,
medido pela combinação de 21 indicadores, dentre eles biodiversidade, qualidade
do ar e da água, iniciativas para a redução de poluição, saúde e governança
ambiental e participação em esforços internacionais colaborativos. Uma análise mais
detida do ISA constata que são exatamente os países desenvolvidos que não
contribuem adequadamente para a preservação e sustentabilidade da
biodiversidade planetária. Abaixo de nós brasileiros figuram a França, os EUA, o
Japão, os Emirados Árabes Unidos.
No sobe-e-desce dos índices, permanecemos num medíocre 72º lugar no tocante à
escolaridade, de acordo com dados da Unesco em 2006, melhoramos ligeiramente
na preservação da natureza. Não nos animemos demais com cifras positivas, pois o
Brasil conseguiu, nos últimos anos, destruir 70 mil km2 da floresta amazônica, sem
falar da biopirataria, contrabandos de espécies animais e vegetais, concessões de
zonas florestais pelo prazo de 30 anos a empresas privadas para exploração de
terras, tudo isso sob o olhar complacente e conivente de governos, partidos e
intelectuais.
Ao nos depararmos com o mapa do mundo, verificamos, com grande
desapontamento, que as apregoadas metas do milênio previstas pela ONU estão
longe de serem cumpridas. O acesso à água potável, à educação primária, a
superação das mortalidades infantil e maternal, a extinção de pandemias como a
AIDS, a elevação do nível de vida (só na África subsaariana 44% de pessoas vivem
com menos de um dólar por dia) não se efetivaram. Os objetivos do
desenvolvimento do milênio, – é sempre bom lembrar a sigla ODM – subscritos por
189 chefes de estado do mundo inteiro, prescrevem o tempo-limite – 2015 - para a
superação desses dados assustadores e vergonhosos. Uma mutação antropológica,
não mais uma revolução histórica, é urgente para que a opulência e o liberalismo
não se assenhoreiem do mundo da vida e conduzam todos a uma fase terminal
irreversível.
É verdade que pensadores independentes e transdisciplinares ousam dizer a
verdade aos poderes instituídos, tentam mostrar-lhes que a utopia de um mundo
novo não constitui tema exclusivo de poetas, romancistas e cineastas. Se só
dispomos de palavras para prescrever nossas opiniões, nunca é tarde para reiterar
que sustentabilidade, responsabilidade e esperança constituem um sistema aberto,
abarrotado de brechas, bifurcações, desvios, dissipações. Um princípio não existe
nem se efetiva sem o outro. Ancorados na trindade indivíduo-sociedade-espécie,
inserem-se na tetralógica ordemdesordem- interação-organização. Constituem,
também, formas de ação coletiva voltadas para a reciprocidade e a solidariedade
planetárias, a conscientização da humanidade comum, da Terra-mãe, pátria e
morada de todos nós.
A criação da UNESCO, em 4 de novembro de 1946, considerava prioritária a eleição
de prioridades acautelatórias capazes de minorar o sentimento de mal-estar e a
arquitetura da destruição decorrentes da segunda guerra. Naquele momento, o
espectro do mal, a comoção mundial, a dor de Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de
agosto de 1845 punham de sobreaviso todos os humanos. Naquele momento trágico
e dolorido, o extermínio de nós mesmos tornara-se visível, palpável.
Por um estranho paradoxo, sentimentos que favoreciam a compreensão dos povos,
a colaboração das culturas, passaram a germinar por toda parte, algo que os anos
posteriores parecem ter esquecido para sempre. Sim, é possível concordar com a
posição de Eric Hobsbawn de que a queda do muro de Berlim foi o ato terminal do
século XX e que algo precisa ser feito aqui e agora.
A cultura do ódio bate cotidianamente à nossa porta. Medéia converte-se em nosso
símbolo máximo. Ela, a banida, – assim como nós – expulsa dos muros da cidade,
preferiu refugiar-se no infinito com sua carruagem alada e lá, talvez, voltar a ser
alegre de novo. Como ela, a toda hora, rogamos por uma cidadania digna sem que
os muros de nossas cidades, continentes e regiões nos expulsem para sempre de
seu convívio. Seres da falta e do excesso, nosso mundo é aqui mesmo. Somos
objetos pequenos que sempre aguardam uma realização futura, sujeitos éticos com
uma impressionante capacidade de suportar não apenas o sofrimento e a violência
mimética, mas também de potencializar a resiliência, dar a volta por cima,
redirecionar o sentido da vida, apesar dos pesares. Por isso mesmo, nossa memória
pode tomar de assalto a máquina do tempo e sintonizar as palavras ditas por Julian
Huxley (1887-1975). Suas posições foram consideradas controvertidas, criticadas
como conservadoras e até mesmo reacionárias. Especialista em genética e
evolução, contrário a qualquer forma de racismo, árduo defensor do controle
populacional e do planejamento familiar, soube definir com precisão os objetivos da
UNESCO. A ela caberia contribuir pela paz e zelar pela regeneração do homem.
Valores universais inquestionáveis, precisam apenas impregnar e reeducar a mente
de todos os habitantes do sistema Terra. Fundado em representações coletivas,
nosso mundo precisa impregná-los com a percepção real da experiência,
estabelecer uma forte conexão entre representação de imagens e apresentação do
mundo vivido. Como os indivíduos são agentes criadores da vida, nossos circuitos
cognitivos de autocrítica e autopercepção têm de ser reativados, para que corpo e
mente dialoguem de forma mais coerente.
Estar junto, compartilhar, participar, solidarizar são pressupostos que fornecem
sentido à recuperação da natureza e à utopia realizável de uma antropoética que
religa pensamentos, intelectos e afetividades a dimensões individuais, coletivas,
democráticas, cósmicas. O verdadeiro democrata, Mahatma Gandhi afirmou, é
aquele que, com meios puramente não violentos, é capaz de defender não apenas a
sua liberdade, mas a de seu país e de toda a humanidade.
Como viver? Como ser feliz? Perguntas constantes que a todo momento devastam
nossas mentes, obsessões que afligem nosso dia-a-dia pauperizado pela violência
do capital que joga homens contrahomens. Por isso, a revolta contra a inumanidade
da história e dos males totalitários, fundada na ética da justiça perene constitui ponto
de partida para deter o avanço crescente do individualismo, o declínio da moral, a
sacralidade do estado. Apenas a liberdade da compreensão intercultural pode trazer
a paz. Diante disso, resta saber como definir nosso ser-no-mundo, como articular
identidades individuais e identidades coletivas.
A identidade em si não é garantia de nada. Cria espaços topológicos endogâmicos
que só reconhecem a si próprios, diferenças de diferenças e nada mais. A
identidade pode matar desenfreamente como afirma recentemente Amartya Sen,
nobel de economia de 1988. (Sen, 2007) A produção da identidade é algo que exige
a complementaridade crítica e não o antagonismo excludente. Esse último sempre
mostra sua cara para além das fronteiras da tribo, da cidade, da nação, como
considerou Claude Lévi-Strauss. O entendimento definitivo entre natureza e cultura
exige auto-ética e auto-reflexão para que a vida se reencante e o agir e o diálogo
comunicativos se efetivem, sócio-ética para que os outros não sejam meros
artefatos da diferença, antropoética para que o anthropos contamine a todos. Até
quando o conhecimento continuará a não reconhecer que a distinção entre
animalidade e humanidade precisa ser superada? Os animais pensam? Possuem
razão? Desenvolvem cultura? Explicitam sensibilidades? Como enfatiza Fontenay
(1998) o amor e o respeito pelos animais não conduzem à misantropia, ao racismo,
à barbárie. Se a industrialização da sociedade faz com que a domesticação seja
considerada necessária para garantir a sobrevivência dos humanos, hoje esses
“campos de concentração” viram as costas para qualquer tipo de precaução que
possa ser tomada para com o sofrimento alheio. O princípio da precaução, que exige
medidas acauletárias a respeito de inovações tecnológicas, não rejeita os
progressos da tecnociência; contém um conjunto de preceitos normativos bioéticos
que, a cada dia, ganham visibilidade diante da inumanidade do conhecimento dito
operacional, voltado exclusivamente para as leis do mercado. A utilização de
primatas em experimentos, cujos resultados nem sempre são pautados pelo
“respeito a todas as espécies vivas” é exemplo disso. A sociedade do espetáculo
sempre aplaude esses prometeus pós-modernos locupletados com polpudas verbas
de pesquisa que apregoam, a quatro ventos, soluções para a pobreza do mundo.
Adeus qualquer resquício de humanismo! O que importa agora é a metafísica
predadora que acomete animais e homens.
Mesmo quando fala da animalidade, a Filosofia não nos ensina nada sobre ela. E
isso porque há um déficit de conceitos para tal. Para a filosofia, criaturas animais
são não-homens, não-humanidade, nãovida. Superar esse estado de coisas requer
pontos de partida inegociáveis. Um deles diz respeito ao antropocentrismo, e isso
porque,sabemos, desde Copérnico, Darwin e Freud, que a Terra não é o centro do
universo, o homem não é o centro dele mesmo, porque resultante de extenso
processo evolutivo; além desse duplo descentramento, somos atravessados pela
linguagem do inconsciente que, a todo momento, nos projeta para horizontes
impensados. Feridos narcisicamente, não conseguimos fechar nossas chagas e
permanecemos tributários de uma arrogância impune. Reassumir a universalidade
da natureza e da cultura implica a redefinição do globallocal, glocal para alguns, que
nada mais é do que uma marchetaria construída por nossa pequena família mundial
em meio a guerras, violências, consentimentos, dominações e alguns poucos
momentos de paz. Os animais e a natureza de modo geral nos são úteis para
corroborar esse ponto de vista, ainda não assimilado em todas as suas
conseqüências nos frios corredores da fragmentação dos saberes. A identificação
continuada dos estados naturais tornará possível à condição humana pensar e
refletir sobre ela mesma? A pergunta exige explicitações. Se os animais servem
para alimentar nossas projeções psíquicas, ao afirmarmos, por exemplo, fulano é um
asno, beltrano é astuto como uma raposa, escorregadio como uma cobra ou
dissimulado como um sapo, como será que eles – os animais – nos vêem? Se é
impossível que respondam a essa pergunta por serem destituídos de linguagem
articulada, é forçoso reconhecer que sempre compartilham da vida dos humanos,
mesmo depois que a domesticação e as experimentações laboratoriais impuseram-
lhes sofrimentos descabidos.
Como acredita Cyrulnik (1998), uma Antropologia naturalista indica uma nova atitude
do homem ante a linguagem e os demais seres vivos. Talvez essa Antropologia
desempenhe as funções de uma fabulação viva, uma reordenação da convivência
entre seres vivos que envolve ajuda-mútua, respeito, piedade, altruísmo,
benevolência e, claro, muita prática democrática.
Desafio de nosso tempo, a nova desordem mundial produzida pelo capitalismo
liberal global salta a nossos olhos nesses sete anos inaugurais do terceiro milênio.
Exige a superação da guerra perpétua de todos contra todos, incita a extinção dos
desmandos e intolerâncias da idade de ferro planetária, requer a luta indômita em
prol de uma identidade futura baseada na sinergia entre plantas, animais e homens.
Teremos que nos posicionar para além da natureza e da cultura (Descola, 2005),
sem deixar de interrogar e entender suas especificidades, para, sem voluntarismos
proféticos, efetivar a colaboração das culturas, trilhar o caminho de coletividades
complementares e multidimensionais, transmitir o patrimônio biocultural àqueles que
virão depois de nós.
Não resta dúvida que a recuperação da natureza representa um bom começo para a
efetivação desse horizonte incandescente, para que o tempo de nossas vidas não se
perca para sempre nas brumas do passado, nos lamentos do presente, nas
fugacidades do futuro. A noção de tempo, assumida em todas as dimensões por
Marcel Proust (1871- 1922) nos sete volumes de Em busca do tempo perdido
(Proust, 2002) deve adquirir valor cardeal, transmutar-se em fundamento da
existência de todos, indivíduos, governos, instituições. Afinal de contas, sempre é
tempo de recomeçar e encarar a vida como algo digno de ser realmente vivido,
desfrutado, gozado.
Extremamente atuais, as conclusões de Edgar Morin em Terrapátria recuperam a
dialogia entre estado prosaico e estado poético, comportam uma missão racional e
supra-racional cujos objetivos seriam salvar o planeta, civilizar a Terra, restaurar a
unidade humana, salvaguardar a diversidade. Nossa salvação pessoal, afirma ele,
reside no amor e na fraternidade, nossa salvação coletiva consiste em evitar o
desastre de uma morte prematura da humanidade, fazer da Terra que se encontra
perdida no cosmo, nosso único porto de salvação (Morin, 1993).

Bibliografia
BLOCH, Ernst (1959). Le principe espérance. Três volumes. Trad. de Françoise
Wuilmart. Paris: Gallimard, 1976.
__________ (2005). O princípio esperança. Trad. de Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: Contraponto.
CONTOS populares do Tibete (1988). Tradução Lenis Gemignani de Almeida. São
Paulo: Editora Princípio.
CYRULNIK, Boris (1998). Si les lions pouvaient parler. Essai sur la condition
animale. Paris: Gallimard/Quarto.
DESCOLA, Philippe (2005). Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard.
FONTENAY, Elisabeth de (1998). Le silence des bêtes. La philosophie à l’epreuve
de l’animalité. Paris: Fayard.
GAY-CROSIER, Raymond (2002). L’homme revolté, 50 ans après. Paris: Minard.
JONAS, Hans (1995). Le principe responsabilité. Une éthique pour la civilisation
techonologique. [1979]. Trad. de Jean Greisch. Paris: Flammarion.
MONTAIGNE, Michel Eyquem de (1987). Ensaios. Três volumes. Trad. de Sergio
Milliet, precedido de Montaigne – o homem e a obra, de Pierre Moreau. Brasília:
Editora da UNB.
MORIN, Edgar (1993). Terre-patrie. Paris: Seuil.
__________ (1999). Relier les connaissances. Le défi du XXe. siècle. Journées
thématiques conçues e animés para Edgar Morin. Paris: Seuil.
__________ (2001). Jornadas temáticas. A religação dos saberes: o desafio do
século XXI/ idealizadas e dirigidas por Edgar Morin. Trad. de Flávia Nascimento. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil.
PATOCHA, Jan (1990). Liberté et sacrifice. Écrits politiques. Trad. de Erika Abrams.
Grenoble: J. Millon.
PROUST, Marcel (2002). Em busca do tempo perdido. Trad. de Fernando Py. São
Paulo: Ediouro.
SEN, Amartya (2007). La identidad pude matar. El País, 10 de jun. 2007.
ZIZEK, Slavoj (2003). Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de
setembro e das relacionadas. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo
editorial.

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