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Trabalho e Transtornos
Mentais Graves:
Breve Histórico e Questões
Contemporâneas
Work and mental Illness:
Brief historical review and contemporary questions
Paulo César
Zambroni -de-
Souza
Universidade do
Federal de Itajubá
Experiência
mas uma estrutura semijurídica destinada a No entanto, esse modelo acabou por fracassar,
abrigar os pobres, os miseráveis, os estando quase que totalmente extinto em toda
1
vagabundos (op. cit., p. 63), onde os loucos a Europa no início do século XIX. Se, por um
eram trancados. O autor transcreve um lado, visava abrigar os desempregados nos
fragmento do Édito Real de 1656, que criava ateliês obrigatórios custeados pelo Estado, por
o Hospital Geral em Paris: outro, acabava estabelecendo uma
concorrência que diminuía as vendas e
“Fazemos expressa proibição a todas as aumentava o desemprego junto aos outros
pessoas de todos os sexos, lugares e idades, produtores. Além disso, o Hospital Geral tinha
de toda qualidade de nascimento e seja qual um custo de manutenção muito alto.
for sua condição, válidos ou inválidos, doentes
ou convalescentes, curáveis ou incuráveis, de Esse mecanismo, porém, teve um papel
mendigar na cidade e nos subúrbios de Paris, fundamental para estabelecer uma
ou em suas igrejas e em suas portas, às portas determinada consciência ética: o valor do
das casas ou nas ruas, nem em nenhum lugar trabalho como eixo regulador da sociedade.
público, nem em segredo, de dia ou de noite Em tempos de transformação social e
afirmação do poder da burguesia, a ociosidade
(...) sob pena de chicoteamento para os
passou a ser considerada uma afronta a Deus,
transgressores na primeira vez, e, pela
e o trabalho passou a ser uma exigência
segunda vez, as galeras para os homens e
irrefutável (Foucault, 1987, pp. 71-2).
meninos e banimento para as mulheres e
meninas”(op. cit., p. 65).
Castel (1978,p. 28) mostra que, mesmo no
Hospital Geral, não havia indiferenciação
A Europa passava por uma crise econômica,
absoluta entre normais e loucos. No entanto,
com desemprego, baixos salários, moeda
essa indiferenciação trazia conseqüências
escassa. Um forte conteúdo moral atribuía
1 Utilizamos a expressão apenas administrativas, isto é, de distribuição
“louco” conforme os essa situação aos pobres com suposta
autores que estou
dos internos, não gerando um olhar médico
tendência à vagabundagem, conforme ilustra
tomando inicialmente sobre a loucura.
como referência principal o texto atribuído a Dekker e transcrito por
(Foucault, Castel).
Foucault: “(...) impelem seus pobres e os
Quando começar a falar
das reformas
Surge o alienismo
psiquiátricas, passarei a operários válidos que não querem trabalhar
utilizar a expressão (...) a mendigar, trapacear ou roubar para
“pessoas com transtornos No contexto do Hospital Geral, o louco
mentais”. Faço essa viver, de modo que o país se vê distinguia-se por sua resistência em subordinar-
escolha sabendo dos
riscos que ela comporta, miseravelmente infestado por eles” (op. cit., se ao imperativo do trabalho como ele ali era
uma vez que “transtorno”
remete à terminologia da
p. 66). Para limpar a sociedade dessa que se organizado:
CID 10 da Organização julgava uma infestação, estabeleceu-se o
Mundial de Saúde, com
toda sua tendência a uma Hospital Geral. Naquele momento, o “(...) o momento em que a loucura é percebida
visão por demais médica.
A maneira mais executivo e o judiciário tinham o poder de no horizonte social da pobreza, da
adequada de nomear os
fenômenos de que trato
baixar ordens de reclusão (Castel, 1978, p. incapacidade para o trabalho, da
neste artigo remete a uma 29), de modo que uma pessoa poderia ser impossibilidade de integrar-se no grupo; o
discussão complexa
frente à qual Basaglia, enviada para o Hospital Geral por ordem de momento em que começa a inserir-se no
por exemplo, propôs o
termo “existência- qualquer um desses poderes, embora os atos contexto dos problemas da cidade. As novas
sofrimento do sujeito em do executivo fossem utilizados com maior significações atribuídas à pobreza, a
relação com o corpo
social”. Como não é freqüência por serem os processos na Justiça importância dada à obrigação do trabalho e de
intenção deste artigo
entrar nessa discussão , mais morosos e exporem mais as famílias ao todos os valores éticos a ele ligados,
optei por escolher aquelas
a que me referi.
olhar crítico da sociedade (op. cit.,p. 49). determinam a experiência que se faz da loucura
e modificam-lhe o sentido”(Foucault, 1987, que passou também pela luta para ter sua voz
p. 78). ouvida e seus direitos garantidos. Encontramos
ainda exemplos dessa luta no movimento dos
Esse novo sentido atribuído a aqueles trabalhadores, como os operários franceses,
considerados incapazes de viver conforme os anos mais tarde, na década de 1940,
cânones sociais justificam o nascimento do reivindicando uma Medicina do trabalho que
asilo de alienados. Com a contínua ascensão não estivesse apenas a serviço da empresa,
da burguesia, os limites da liberdade como mostra Billiard (2001, p.55), ou ainda
transformam-se, de modo que não poderia com os próprios operários buscando ocupar
mais ser suprimido sem garantias jurídicas, o um lugar de importância na detecção e
que acabou por favorecer o fim dos hospitais controle da nocividade no trabalho,
gerais. No entanto, a subordinação da loucura evidenciando seu papel na construção dos
“(...) em quase
ao saber médico autorizou seu confinamento conhecimentos sobre sua própria saúde no
todas as artes
em um novo espaço de reclusão: o asilo. trabalho, no que ficou conhecido como mecânicas, a
Retomando Kant, a menoridade, vista aqui Movimento Operário Italiano de Luta pela ciência que
estuda a ação dos
como insanidade ou alienação da razão, Saúde (Oddone, 1981). Essas conquistas
trabalhadores é
autoriza o nascimento do alienismo, que, vieram contrariar a visão de incapacidade (ou tão vasta e
posteriormente, será batizado de psiquiatria, da falta de necessidade) de pensar do operário complicada que o
operário ainda
no mesmo ato que faz surgir o asilo de que, aliás, é um dos sustentáculos do
mais competente
alienados. A incapacidade de guiar-se nos taylorismo, onde se considerava que “(...) em é incapaz de
limites estabelecidos pela moral emergente quase todas as artes mecânicas, a ciência que compreender essa
ciência (...)”
coloca o louco no lugar de quem precisa estuda a ação dos trabalhadores é tão vasta e
receber cuidados e proteção, ao mesmo complicada que o operário ainda mais Taylor
tempo em que a sociedade também sente a competente é incapaz de compreender essa
necessidade de ser protegida de seus ciência (...)” (Taylor, 1990, p.34).
desviantes.
Tomado como doente e incapaz, o louco pôde
É interessante notar que o julgamento de ser mantido isolado para receber o tratamento
incapacidade de trabalhar do louco coincide moral (Desviat, 1999, p. 17). No asilo, Pinel
com um momento histórico em que se julgava constituía “(...) a clínica médica como
também que os trabalhadores fossem observação e análise sistemática dos
incapazes de conduzir suas próprias vidas, de fenômenos perceptivos da doença; o resultado
pensar por si mesmos, como mostra Castel disso foi sua nosografia” (Bercherie, 1989, p.
(2001, p.305). De uma certa forma, então, 34). A ciência, através da Medicina, apropriou-
pesava sobre o operário e sobre o louco um se da loucura. O alienado que não se
julgamento de incapacidade. No entanto, encaixasse nas normas que a burguesia vinha
como havia a necessidade de acumulação e estabelecendo seria isolado para receber a
reprodução ampliada de capital através da cura através do tratamento moral. Desviat
produção, como salientamos, aos operários foi transcreve um trecho do grande alienista
possível viver, e freqüentemente morrer, nessa Esquirol, para quem o paciente deveria ficar
“liberdade” que instituía a sociedade isolado para que se pudesse atuar “(...)
capitalista, enquanto o louco foi trancado no diretamente sobre o cérebro e se
2
hospício, não podendo sequer reivindicar a [condenaria] esse órgão ao repouso,
entrada na produção. afastando-o das impressões irritantes,
reprimindo a vividez e a mobilidade das 2 Os colchetes na
palavra ‘condenaria’
Para os operários se libertarem daquele impressões e moderando a exaltação das encontram-se no texto de
julgamento, foi necessário um longo processo, idéias” (Esquirol apud Desviat, 1999, p. 17). Desviat.
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Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas
A loucura passa a ter o hospital, o asilo, como diminuição, através da obediência, dessa
espaço de tratamento médico e isolamento. mesma força enquanto poder político de
transformação. Nas palavras de Foucault, trata-
Estabelecido como lugar de reclusão do louco, se da “(...) observação minuciosa do detalhe,
onde receberia tratamento médico, o asilo se ao mesmo tempo um enfoque político dessas
organiza como “(...) lugar de diagnóstico e de pequenas coisas, para controle e utilização dos
classificação, retângulo botânico onde as homens (...)” (op. cit., p. 130). Essa anatomia
espécies de doenças são divididas em do detalhe servirá para organizar os processos
“(...) observação
compartimentos cuja disposição parece uma de produção nas fábricas, onde os operários
minuciosa do
detalhe, ao horta” (op. cit., p. 122). A Medicina, então, passam a ter seu tempo, sua distribuição
mesmo tempo um justificaria o isolamento com seu saber espacial e seus gestos absolutamente
enfoque político
supostamente objetivo (Foucault, 1987, p. controlados, cujo auge encontramos no século
dessas pequenas
coisas, para 498). Isso, por um lado, constituiu o XX, com o taylorismo e o fordismo.
controle e nascimento das possibilidades de tratamento
utilização dos
de que dispomos hoje, depois de uma história Note-se que estamos nos referindo a uma
homens (...)”
de continuidades e rupturas. Por outro lado, Europa que passava pela perda significativa de
Foucault manteve confinados nos muros os loucos de poder do soberano, conforme o Antigo
quem Pinel havia anunciado a libertação. Regime, e pela ascensão da burguesia. Com
isso, o trabalho, a produção de riquezas e o
O asilo como estrutura respeito à propriedade privada adquirem
valores centrais, de modo que, no bojo desse
disciplinar
processo, se dá o incremento da disciplina.
Nesse momento, a prisão passa a adquirir uma
Foucault (1979) mostra que a fundação do
importância que não tinha até então:
alienismo se prestou à dominação do poder
do louco, neutralizando outros poderes que
“A forma geral de uma aparelhagem para tornar
poderiam recair sobre ele, submetendo-o a
os indivíduos dóceis e úteis, através de um
um poder terapêutico e de adestramento.
trabalho preciso sobre seu corpo, criou a
Mostra também que essa tentativa de
instituição-prisão, antes que a lei a definisse
dominação se inscreve em um amplo
como pena por excelência. No fim do século
movimento social de valorização da disciplina.
“Os mecanismos disciplinares são, portanto, XVIII e princípio do século XIX, dá-se a
antigos, mas existiam em estado isolado até passagem a uma penalidade da detenção, é
os séculos XVII e XVIII, quando o poder verdade, e era coisa nova” (op. cit., p. 207).
disciplinar foi aperfeiçoado como uma técnica
de gestão dos homens” (op. cit., p. 106). Entretanto, no momento em que a sociedade
se torna contratual, sem decisões determinadas
Foucault (1983) define a disciplina da seguinte por um soberano, e a legalidade passa a
forma: “Esses métodos que permitem o estabelecer a privação da liberdade como uma
controle minucioso das operações do corpo, pena para os que rompem as novas regras
que realizam a sujeição constante de suas forças estabelecidas, o louco coloca um problema
e lhes impõem uma relação de docilidade, são de difícil solução. Se, por um lado, poderia
o que podemos chamar de “disciplinas” (p. ser perigoso e representar um risco à
126). sociedade, por outro lado, perdera o que há
de mais precioso no homem: a razão. Não
Com a disciplina, visava-se o máximo de poderia, por isso, ser responsabilizado por seus
utilização da força de um corpo dócil, atos, do modo que a figura que se adequaria a
enquanto capacidade de produção, e a essa situação seria a da tutela: “(...) substitutivo
as sociedades ocidentais passaram a utilizar da disciplina para o controle: não serão mais
menos um controle disciplinar através da os muros que afastarão o louco, mas ele, solto
reclusão para utilizar mais um controle flexível na sociedade, continuará isolado. Com as
que se vale de uma vigilância rarefeita e virtual: novas formas de controle, poderá agora ficar
“Depois da Segunda Grande Guerra, a forma- “livre”, mas sem grupos, sem trabalho, sem
fábrica, como modelo emblemático das dinheiro, sem lazer e sem um elemento chave
sociedades disciplinares, começa a ser nesses novos tempos: informação.
substituída por um novo modelo: a forma-
empresa. O confinamento e os dispositivos Deleuze (1992) resume as diferenças entre
disciplinares que caracterizavam até então a os modelos da disciplina e de controle: “Os
Sociedade Moderna já dão sinais de escassez. confinamentos são moldes, distintas
(...) A idéia de controle a nortear uma leitura moldagens, mas os controles são uma
das sociedades contemporâneas (...). As modulação, como uma moldagem
sociedades disciplinares são essencialmente autodeformante que mudasse continuamente,
arquiteturais: a casa da família, o prédio da a cada instante, ou como uma peneira cujas
escola, o edifício do quartel, o galpão da malhas mudassem de um ponto a outro”.
fábrica. Por sua vez, as sociedades de controle Assim, se nas sociedades disciplinares
apontam uma espécie de anti- predominam os muros para isolar os
arquitetura”(Vasconcelos, 2000, p. 41). indesejáveis, nas sociedades de controle, esses
indesejáveis podem, muitas vezes, ficar soltos:
Essa passagem não significa abolição absoluta mas apenas se estão sob os cuidados dos
do modelo antigo, tanto que “(...) a prisão, saberes psi, agora nos CAPS, no caso brasileiro.
que é o meio de confinamento por Caso contrário, serão devolvidos ao manicômio
excelência” (Deleuze, 1992), continua com ou – caso não consigam receber um
grande força, com recorrentes demandas da diagnóstico que os coloque sob a proteção da
sociedade por mais vagas nas celas. No caso Medicina mental – encarcerados nas prisões.
do manicômio, entretanto, talvez pelo fato No entanto, mesmo fora dos muros,
de o louco não ser considerado um criminoso, continuarão isolados, pois não são capazes de
mas, sim, alguém que pode ser neutralizado se adequar à modulação, à rigidez da regra
e “docilizado” pelos saberes psi, em que exige, paradoxalmente, mudança
sociedades onde o modelo disciplinar entra permanente: constantes investimentos em
em declínio, surgem, com grande força, as formação, busca incessante de aprimoramento,
críticas ao manicômio. Com a perda de espaço utilização correta da linguagem de grupos com
pelo manicômio – o que não significa sua relativo poder social, consumo de mercadorias
extinção, visto existir ainda hoje milhares de que oferecem status.
pessoas trancadas nele, em vários países – o
Não participando do grupo dos que possuem
louco passa a ter mais oportunidade de viver
os códigos que acessam informações que
em sociedade do que havia quando o hospício
permitem “trocas flutuantes” (op. cit.), isto é,
não era questionado. Na verdade, tais críticas
ao asilo já existiam desde, pelo menos, 1844 trabalhar em empresas, freqüentar grupos de
(Castel, 1978, p. 266), mas somente após a clubes sociais, estudar em determinadas
Segunda Guerra Mundial estas se escolas, dentre outros, e, nesses espaços,
acompanharão por práticas sólidas que o farão interagir conforme as regras desses lugares, o
sentir o golpe, dando mostras de que poderá louco faz parte do grupo que não está
extinguir-se. Entendemos que as condições encarcerado, mas continua isolado: “É verdade
históricas construídas para isso passam que o capitalismo manteve como constante a
exatamente para a mudança do predomínio extrema miséria de três quartos da
humanidade, pobres demais para a dívida, Há, então, diferenças fundamentais entre as
numerosos demais para o confinamento: o diversas reformas psiquiátricas. No entanto,
controle não só terá que enfrentar a dissipação vemos que há uma valorização, para alguns,
das fronteiras mas também a explosão dos parcial, e, para outros, absoluta, do lado de
guetos e favelas” (op. cit.). fora do hospício, isto é, da vida em sociedade.
No entanto, adverte-nos Castel (1980, p.256):
Entendemos, assim, que não é possível, “O ‘lado de fora’ que envolve a ordem asilar
portanto, dissociar as transformações ocorridas pode ser também a ordem social e os
no seio da psiquiatria das mudanças sociais: mecanismos de uma sociedade liberal que deu
origem à instituição totalitária como uma
“(...) essas modificações (...) traduzem, ao resposta aos problemas postos por um novo
mesmo tempo, a mudança de suas relações modo de integração dos indivíduos a novas
com outras instâncias de poder e, mais que normas de produtividade e de controle social.”
isso, com o conjunto das práticas de controle
e de normalização. Uma mudança na Seguindo Castel, podemos perguntar se, com
o declínio ou extinção do hospício, a pessoa
problemática da Medicinal mental se realiza
com transtorno mental grave continuará
na confluência entre essas duas séries de
isolada, mesmo que vivendo em sociedade,
transformações ‘internas’ e ‘externas’”
ou seja, vivendo do lado de fora do hospício.
(Castel, 1978, pp. 269-70).
Conforme expusemos, reconhecemos que
esse processo de reforma psiquiátrica que tem
Depois de mais de cem anos das propostas
ocorrido nas últimas décadas se insere em um
de Pinel de construir o asilo como lugar de
processo de transformação social mais amplo,
isolamento e terapêutica da loucura, os
nos quais os dispositivos institucionais se
psiquiatras propõem formas de tratamento que
tornaram mais sutis, menos evidentes, de
contam com o lado de fora do asilo. Alguns
psiquiatras propuseram que o manicômio fosse modo mais sofisticado que nos modelos
reformado para que cumprisse função não mais disciplinares, com as novas tecnologias sendo
de tortura e de isolamento, mas de utilizadas para a realização do controle. Desse
tratamento. Os que compartilhavam desse modo, sabemos que as transformações da
ponto de vista consideravam necessária uma assistência, da visão social e da luta dos direitos
política que abrisse mais o hospital para o da pessoa com transtorno mental grave, são
exterior, de modo a amenizar a cisão hospital fruto de um processo ocorrido dentro e fora
psiquiátrico / mundo exterior. Outros da psiquiatria. No entanto, reconhecemos que
propuseram que o hospício fosse sempre lugar essas transformações são favoráveis à pessoa
de produção não de cura, mas de doença, com transtorno mental grave, isto é, que o
reclusão e sofrimento, de modo que seria declínio do hospício torna as pessoas menos
necessário acabar com ele e utilizar apenas sujeitas a serem trancadas e a sofrerem as
estruturas não hospitalares (Castel, 1978, pp. violências que, freqüentemente, ocorrem
153-4). Os que compõem esse grupo dentro do manicômio e que, além disto,
sustentam que é necessário não só extinguir abrem-se possibilidades para elas poderem
os hospícios como desmascarar os conceitos orientar suas próprias vidas, tornando-se cada
e as práticas psiquiátricas enquanto vez mais autônomas. Nesse sentido, podemos
cumpridores de mandato social de exclusão procurar saber de que maneira pode ser
da pessoa com transtorno mental grave, possível a essas pessoas, não mais internadas
conforme as palavras de Rotelli (1990, p. 89): no manicômio, viverem nessa sociedade
“(...) a instituição que colocamos em questão segregatória sem serem isoladas. Pensamos
nos últimos vinte anos não foi o manicômio, que isso pode ser possível através de sua
mas a loucura”. inserção no mundo do trabalho.
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Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas
Mudanças nos sistemas que o mercado está cada vez mais desfavorável
produtivos: há lugar para ao humano. O problema, então, não é do
trabalho, mas do mercado, das regras do jogo
quem? do capital. No entanto, sabemos que
precisamos pensar o trabalho considerando o
Sabemos que, nas últimas décadas, ocorreram
mercado, já que estamos lidando com sujeitos
grandes mudanças nos sistemas produtivos que
humanos nessa conjuntura. Como podemos,
levaram a uma automatização e substituição
nesse contexto, pensar em trabalho para
do trabalho humano por máquinas robotizadas
pessoas que estão em desvantagem desde
devido ao fato de as empresas buscarem maior
antes da entrada na colocação no trabalho,
competitividade. Além disso, o Estado, em
como as pessoas com transtorno mental grave?
muitos países do Ocidente, deixou de ter a
Pensamos ser essa uma questão que devemos
função de garantir proteção a seus cidadãos,
enfrentar, isto é, se as condições estão difíceis
trazendo um período de perda de muitos
e desfavoráveis, é exatamente nesse momento
direitos. No Brasil, onde o Estado nunca
que se tornam urgentes soluções para tais
exerceu verdadeiramente a função de proteger
questões.
seus cidadãos, isso pode ser observado pela
perda de direitos previdenciários, crescimento
Conforme apontamos anteriormente, as diversas
nos índices de desemprego, privatização
iniciativas de reformas psiquiátricas têm
crescente de educação e saúde, entre outras
procurado possibilitar a oportunidade de
coisas. Esses fenômenos, somados, levaram a
trabalho para aqueles que historicamente foram
uma crise das condições de trabalho e de
trancados no hospício. De fato, encontramos
empregabilidade, como nos indica Castel
nas experiências das comunidades terapêuticas
(1998, p.514): “Mas o desemprego é apenas
e da psicoterapia institucional, influenciadas pela
a manifestação mais visível de uma
ergoterapia, de Hermann Simon, o trabalho
transformação profunda da conjuntura do
como elemento importante nas organizações
emprego. A precarização de trabalho constitui-
de estruturas de tratamento em psiquiatria
lhe uma outra característica, menos
(Desviat, 1999, pp. 30-4). Posteriormente, a
espetacular, porém ainda mais importante,
experiência de reforma na Itália trouxe a
sem dúvida.”
valorização das cooperativas de trabalho dos
pacientes, levando ao surgimento das empresas
Acrescentamos a afirmação de Antunes (2000,
sociais (Rotelli, 2000, pp. 301-6).
pp. 159-160):
No Brasil, várias experiências têm se realizado
“Em verdade, o sistema de metabolismo social
no sentido de criar condições de trabalho nesse
do capital necessita cada vez menos do
sentido. Em recente tese de doutoramento,
trabalho estável e cada vez mais das
Telles (2002), em uma pesquisa desenvolvida
diversificadas formas de trabalho parcial ou
a partir de uma experiência de trabalho na
part-time, terceirizado (...), que se encontram
em explosiva expansão em todo o mundo Cooperativa da Praia Vermelha, onde trabalham
produtivo e de serviços.” pessoas que se tratam em serviços públicos
de saúde mental no Município do Rio de
Observamos, com isso, que, mesmo para o Janeiro, mostra como, em situações de
trabalhador que não apresenta previamente trabalho, essas pessoas conseguem
nenhuma alteração mental importante, as desenvolver-se e como ali elas encontram
condições parecem estar cada vez menos condições de levar uma vida melhor. Os relatos
favoráveis. Pensamos que o trabalho não dos membros desse tipo de cooperativa
deixou de ser central na vida das pessoas, mas mostram que, para eles, apesar de
reconhecerem, por vezes, alguma dificuldade possível conseguir um local adequado para
no aprendizado do processo de produção, e produção e venda, de modo que tudo
de ter que lidar com dificuldades próprias de acontecia no próprio CAPS, o que acabava,
seu funcionamento devido ao seu processo por vezes, não contribuindo para o
de adoecimento e de seus companheiros (pp. crescimento do Bazarte. De fato, Leonardis,
84-85), o trabalho na Cooperativa traz, Mauri & Rotelli (1994) pontuam que as
inicialmente, o benefício de levar a uma iniciativas de trabalho para pessoas com
ocupação fora de casa, já que ficar em casa transtorno mental grave devem acontecer
freqüentemente traz aumento de tensão com preferencialmente fora do espaço reservado
familiares e vizinhos (p. 81). para assistência. Havia ainda questões ligadas
ao INSS, já que as pessoas que tinham
De 1992 até o início de 2002, o autor deste benefícios da Previdência ou eram aposentadas
artigo trabalhou em unidades de tratamento tinham receio de trabalhar devido ao risco de
em saúde mental, tanto em hospital geral serem descobertos pela fiscalização
quanto em ambulatório ou ainda em centro previdenciária e perderem seus direitos.
de atenção psicossocial, exercendo a função
de psicólogo ou de coordenador de unidade. Essas pessoas mostram também que, em casa,
Nesse período, os usuários verbalizaram por seu trabalho freqüentemente não é
diversas vezes a vontade de exercer atividades reconhecido e que, nas cooperativas, elas
de trabalho, mostrando-se insatisfeitos de ficar encontram esse reconhecimento. Sabemos
sem trabalhar, queixando-se de ficar em casa, hoje, a partir das proposições de autores como
dizendo sentir-se entediados. Uma vez tendo Dejours (1998b), que o reconhecimento e a
conseguido realizar esse desejo e colocar-se valorização social do trabalho é elemento
em situação de trabalho, que possibilidades fundamental para a produção de prazer e
se abrem para suas vidas a partir disso? saúde para qualquer pessoa. Nas cooperativas,
existe também a possibilidade de ganhar
Em Volta Redonda, cidade situada ao sul do dinheiro, abrindo a perspectiva de poder, um
Estado do Rio de Janeiro, em função do desejo dia, prescindir do chamado benefício do INSS
expresso pelos usuários de trabalhar, realizamos que, para a pessoa poder receber, tem que
uma experiência de produção e venda de estar alimentando constantemente uma
artesanatos em um centro de atenção incapacidade.
psicossocial que coordenamos até março de
2002. Batizada pelos usuários de “Bazarte”, a O texto de Telles traz o relato dos membros da
idéia era que pessoas que estavam com pouca Cooperativa, mostrando que o trabalho ali
oportunidade de trabalho que não fosse o aumenta sua capacidade de compreender
trabalho doméstico pudessem exercer melhor a si mesmo a aos outros, desenvolvendo
atividade de trabalho remunerada. Surgiram significativamente sua habilidade de
dificuldades ligadas à estruturação da comunicação (op. cit., p. 85), o que vai de
produção, no que diz respeito, sobretudo, à encontro à afirmação de Zarifian (2001, pp.
inconstância no fornecimento de matéria 45-48), que mostra que as transformações
prima, já que a venda dos materiais era recentes nos sistemas produtivos exigem, cada
insuficiente para manter o abastecimento, vez mais, a capacidade do trabalhador de
sendo necessário o envio dos materiais pela comunicar-se e de entender as necessidades
Secretaria Municipal de Saúde, tendo, assim, dos outros trabalhadores e dos clientes.
que atender à Lei n.8666, que regula as
compras pelo serviço público e torna lentos Telles mostra também que o trabalho naquela
os processos de compra. Além disso, não foi cooperativa permite aos seus membros ter a
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Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas
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