Você está na página 1de 14

154

Trabalho e Transtornos
Mentais Graves:
Breve Histórico e Questões
Contemporâneas
Work and mental Illness:
Brief historical review and contemporary questions

Paulo César
Zambroni -de-
Souza

Universidade do
Federal de Itajubá
Experiência

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


155
PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167
12345
12345
12345
12345
12345
Resumo:Este artigo mostra que o nascimento 12345da psiquiatria se insere em um processo de
12345
12345
12345
disciplinamento da sociedade; por isso, o asilo, ou hospício, originalmente seu lugar de exercício
12345
12345
12345
por excelência, guarda muitas semelhanças com 12345
12345outras estruturas disciplinares, como a prisão.
12345
12345
Posteriormente, mostra como, a partir da Segunda 12345Guerra Mundial, houve uma transformação nas
12345
12345
12345
sociedades ocidentais, onde aquelas estruturas disciplinares entraram em declínio e formas de
12345
12345
12345
12345
controle social mais sutis ganharam força. Trabalha-se,
12345
12345
ao lado disso, um processo de questionamento
12345
da própria psiquiatria e das estruturas manicomiais,
12345 o que genericamente se denominou reforma
12345
12345
psiquiátrica, na qual o trabalho das pessoas com 12345transtorno mental foi tomado como elemento
12345
12345
12345
12345
essencial. Por fim, realiza-se uma breve contextualização
12345 das transformações recentes nos processos
12345
12345
de produção para perguntar de que maneira 12345 as pessoas com transtornos mentais graves podem
12345
12345
12345
colocar-se no mundo do trabalho. 12345
12345
12345
Palavras-chave: trabalho, disciplina, controle,12345
reforma psiquiátrica.
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345 beginning is inserted in a process of society
Abstract AThis article demonstrates that psychiatry
12345
12345
12345
disciplinary value. That’s why the asylum, or madhouse,
12345
12345 originally its place of exercise by excellence,
12345
12345
keeps many similarities with other disciplinary12345
structures, like prisons. Afterwards, it shows that
12345
12345
12345
from World War II there was a changing in the eastern
12345 societies, where those disciplinary structures
12345
12345
began to declive and more subtle social control ways gained strength. It shows, beside this, that
12345
12345
12345
12345
there was a process of questioning psychiatry and
12345
12345 madhouse structures, what generically was
12345
12345
called psychiatrical reform, in which the madman’s
12345
12345
work was taken as an essential element.
12345
Finally, it performs a brief contextualization of12345
the
12345 recent changings in the production process to
12345
12345
ask how madmen can join the labor force. 12345 12345
12345
12345 reform.
Key words: work, discipline, control, psychiatrical
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
Por ser intenção deste artigo pensar o trabalho de seu entendimento sem a direção de outro
em relação a pessoas que vivem com individuo” (Kant, 1783/1985, p. 100). Caberia,
transtornos mentais graves, cabe, de início, então, a cada um desenvolver a capacidade
apontar de que maneira a psiquiatria, desde de tomar suas próprias decisões, ser senhor
seu surgimento, contribuiu para o ponto de de seu destino, avaliar as alternativas que a
vista segundo o qual aquelas pessoas são vida apresenta e guiar-se por si mesmo, buscar
incapazes de conviver em sociedade e sua emancipação. No entanto, Kant desculpa
trabalhar. Pinel toma como fundamento, para aquela menoridade, se sua causa “(...) se
inaugurar esse campo de saber e de
encontra na falta de entendimento (...)” (op.
intervenção médica, a concepção segundo a
cit.). A psiquiatria surgiu exatamente por
qual algumas pessoas eram incapazes de se
entender que os loucos eram incapazes de
guiarem por sua própria razão, alienadas,
fazer uso da própria razão e, por isso, suas
portanto. Daí a primeira denominação que a
vidas deveriam ser guiadas por outrem.
psiquiatria recebeu: “alienismo”. Certamente
Pinel estava inserido em seu tempo, tanto que
Kant, em um texto de 1783, diz que cabe a O Hospital Geral
cada ser humano buscar o esclarecimento,
entendido como “(...) a saída do homem de Segundo Foucault (1987, p. 48), “(...) o século
sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. XVII criou vastas casas de internamento”. Essas
A menoridade é a incapacidade de fazer uso casas não eram estabelecimentos médicos,
156
Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas

mas uma estrutura semijurídica destinada a No entanto, esse modelo acabou por fracassar,
abrigar os pobres, os miseráveis, os estando quase que totalmente extinto em toda
1
vagabundos (op. cit., p. 63), onde os loucos a Europa no início do século XIX. Se, por um
eram trancados. O autor transcreve um lado, visava abrigar os desempregados nos
fragmento do Édito Real de 1656, que criava ateliês obrigatórios custeados pelo Estado, por
o Hospital Geral em Paris: outro, acabava estabelecendo uma
concorrência que diminuía as vendas e
“Fazemos expressa proibição a todas as aumentava o desemprego junto aos outros
pessoas de todos os sexos, lugares e idades, produtores. Além disso, o Hospital Geral tinha
de toda qualidade de nascimento e seja qual um custo de manutenção muito alto.
for sua condição, válidos ou inválidos, doentes
ou convalescentes, curáveis ou incuráveis, de Esse mecanismo, porém, teve um papel
mendigar na cidade e nos subúrbios de Paris, fundamental para estabelecer uma
ou em suas igrejas e em suas portas, às portas determinada consciência ética: o valor do
das casas ou nas ruas, nem em nenhum lugar trabalho como eixo regulador da sociedade.
público, nem em segredo, de dia ou de noite Em tempos de transformação social e
afirmação do poder da burguesia, a ociosidade
(...) sob pena de chicoteamento para os
passou a ser considerada uma afronta a Deus,
transgressores na primeira vez, e, pela
e o trabalho passou a ser uma exigência
segunda vez, as galeras para os homens e
irrefutável (Foucault, 1987, pp. 71-2).
meninos e banimento para as mulheres e
meninas”(op. cit., p. 65).
Castel (1978,p. 28) mostra que, mesmo no
Hospital Geral, não havia indiferenciação
A Europa passava por uma crise econômica,
absoluta entre normais e loucos. No entanto,
com desemprego, baixos salários, moeda
essa indiferenciação trazia conseqüências
escassa. Um forte conteúdo moral atribuía
1 Utilizamos a expressão apenas administrativas, isto é, de distribuição
“louco” conforme os essa situação aos pobres com suposta
autores que estou
dos internos, não gerando um olhar médico
tendência à vagabundagem, conforme ilustra
tomando inicialmente sobre a loucura.
como referência principal o texto atribuído a Dekker e transcrito por
(Foucault, Castel).
Foucault: “(...) impelem seus pobres e os
Quando começar a falar
das reformas
Surge o alienismo
psiquiátricas, passarei a operários válidos que não querem trabalhar
utilizar a expressão (...) a mendigar, trapacear ou roubar para
“pessoas com transtornos No contexto do Hospital Geral, o louco
mentais”. Faço essa viver, de modo que o país se vê distinguia-se por sua resistência em subordinar-
escolha sabendo dos
riscos que ela comporta, miseravelmente infestado por eles” (op. cit., se ao imperativo do trabalho como ele ali era
uma vez que “transtorno”
remete à terminologia da
p. 66). Para limpar a sociedade dessa que se organizado:
CID 10 da Organização julgava uma infestação, estabeleceu-se o
Mundial de Saúde, com
toda sua tendência a uma Hospital Geral. Naquele momento, o “(...) o momento em que a loucura é percebida
visão por demais médica.
A maneira mais executivo e o judiciário tinham o poder de no horizonte social da pobreza, da
adequada de nomear os
fenômenos de que trato
baixar ordens de reclusão (Castel, 1978, p. incapacidade para o trabalho, da
neste artigo remete a uma 29), de modo que uma pessoa poderia ser impossibilidade de integrar-se no grupo; o
discussão complexa
frente à qual Basaglia, enviada para o Hospital Geral por ordem de momento em que começa a inserir-se no
por exemplo, propôs o
termo “existência- qualquer um desses poderes, embora os atos contexto dos problemas da cidade. As novas
sofrimento do sujeito em do executivo fossem utilizados com maior significações atribuídas à pobreza, a
relação com o corpo
social”. Como não é freqüência por serem os processos na Justiça importância dada à obrigação do trabalho e de
intenção deste artigo
entrar nessa discussão , mais morosos e exporem mais as famílias ao todos os valores éticos a ele ligados,
optei por escolher aquelas
a que me referi.
olhar crítico da sociedade (op. cit.,p. 49). determinam a experiência que se faz da loucura

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


157
Paulo César Zambroni-de-Souza PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167

e modificam-lhe o sentido”(Foucault, 1987, que passou também pela luta para ter sua voz
p. 78). ouvida e seus direitos garantidos. Encontramos
ainda exemplos dessa luta no movimento dos
Esse novo sentido atribuído a aqueles trabalhadores, como os operários franceses,
considerados incapazes de viver conforme os anos mais tarde, na década de 1940,
cânones sociais justificam o nascimento do reivindicando uma Medicina do trabalho que
asilo de alienados. Com a contínua ascensão não estivesse apenas a serviço da empresa,
da burguesia, os limites da liberdade como mostra Billiard (2001, p.55), ou ainda
transformam-se, de modo que não poderia com os próprios operários buscando ocupar
mais ser suprimido sem garantias jurídicas, o um lugar de importância na detecção e
que acabou por favorecer o fim dos hospitais controle da nocividade no trabalho,
gerais. No entanto, a subordinação da loucura evidenciando seu papel na construção dos
“(...) em quase
ao saber médico autorizou seu confinamento conhecimentos sobre sua própria saúde no
todas as artes
em um novo espaço de reclusão: o asilo. trabalho, no que ficou conhecido como mecânicas, a
Retomando Kant, a menoridade, vista aqui Movimento Operário Italiano de Luta pela ciência que
estuda a ação dos
como insanidade ou alienação da razão, Saúde (Oddone, 1981). Essas conquistas
trabalhadores é
autoriza o nascimento do alienismo, que, vieram contrariar a visão de incapacidade (ou tão vasta e
posteriormente, será batizado de psiquiatria, da falta de necessidade) de pensar do operário complicada que o
operário ainda
no mesmo ato que faz surgir o asilo de que, aliás, é um dos sustentáculos do
mais competente
alienados. A incapacidade de guiar-se nos taylorismo, onde se considerava que “(...) em é incapaz de
limites estabelecidos pela moral emergente quase todas as artes mecânicas, a ciência que compreender essa
ciência (...)”
coloca o louco no lugar de quem precisa estuda a ação dos trabalhadores é tão vasta e
receber cuidados e proteção, ao mesmo complicada que o operário ainda mais Taylor
tempo em que a sociedade também sente a competente é incapaz de compreender essa
necessidade de ser protegida de seus ciência (...)” (Taylor, 1990, p.34).
desviantes.
Tomado como doente e incapaz, o louco pôde
É interessante notar que o julgamento de ser mantido isolado para receber o tratamento
incapacidade de trabalhar do louco coincide moral (Desviat, 1999, p. 17). No asilo, Pinel
com um momento histórico em que se julgava constituía “(...) a clínica médica como
também que os trabalhadores fossem observação e análise sistemática dos
incapazes de conduzir suas próprias vidas, de fenômenos perceptivos da doença; o resultado
pensar por si mesmos, como mostra Castel disso foi sua nosografia” (Bercherie, 1989, p.
(2001, p.305). De uma certa forma, então, 34). A ciência, através da Medicina, apropriou-
pesava sobre o operário e sobre o louco um se da loucura. O alienado que não se
julgamento de incapacidade. No entanto, encaixasse nas normas que a burguesia vinha
como havia a necessidade de acumulação e estabelecendo seria isolado para receber a
reprodução ampliada de capital através da cura através do tratamento moral. Desviat
produção, como salientamos, aos operários foi transcreve um trecho do grande alienista
possível viver, e freqüentemente morrer, nessa Esquirol, para quem o paciente deveria ficar
“liberdade” que instituía a sociedade isolado para que se pudesse atuar “(...)
capitalista, enquanto o louco foi trancado no diretamente sobre o cérebro e se
2
hospício, não podendo sequer reivindicar a [condenaria] esse órgão ao repouso,
entrada na produção. afastando-o das impressões irritantes,
reprimindo a vividez e a mobilidade das 2 Os colchetes na
palavra ‘condenaria’
Para os operários se libertarem daquele impressões e moderando a exaltação das encontram-se no texto de
julgamento, foi necessário um longo processo, idéias” (Esquirol apud Desviat, 1999, p. 17). Desviat.
158
Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas

A loucura passa a ter o hospital, o asilo, como diminuição, através da obediência, dessa
espaço de tratamento médico e isolamento. mesma força enquanto poder político de
transformação. Nas palavras de Foucault, trata-
Estabelecido como lugar de reclusão do louco, se da “(...) observação minuciosa do detalhe,
onde receberia tratamento médico, o asilo se ao mesmo tempo um enfoque político dessas
organiza como “(...) lugar de diagnóstico e de pequenas coisas, para controle e utilização dos
classificação, retângulo botânico onde as homens (...)” (op. cit., p. 130). Essa anatomia
espécies de doenças são divididas em do detalhe servirá para organizar os processos
“(...) observação
compartimentos cuja disposição parece uma de produção nas fábricas, onde os operários
minuciosa do
detalhe, ao horta” (op. cit., p. 122). A Medicina, então, passam a ter seu tempo, sua distribuição
mesmo tempo um justificaria o isolamento com seu saber espacial e seus gestos absolutamente
enfoque político
supostamente objetivo (Foucault, 1987, p. controlados, cujo auge encontramos no século
dessas pequenas
coisas, para 498). Isso, por um lado, constituiu o XX, com o taylorismo e o fordismo.
controle e nascimento das possibilidades de tratamento
utilização dos
de que dispomos hoje, depois de uma história Note-se que estamos nos referindo a uma
homens (...)”
de continuidades e rupturas. Por outro lado, Europa que passava pela perda significativa de
Foucault manteve confinados nos muros os loucos de poder do soberano, conforme o Antigo
quem Pinel havia anunciado a libertação. Regime, e pela ascensão da burguesia. Com
isso, o trabalho, a produção de riquezas e o
O asilo como estrutura respeito à propriedade privada adquirem
valores centrais, de modo que, no bojo desse
disciplinar
processo, se dá o incremento da disciplina.
Nesse momento, a prisão passa a adquirir uma
Foucault (1979) mostra que a fundação do
importância que não tinha até então:
alienismo se prestou à dominação do poder
do louco, neutralizando outros poderes que
“A forma geral de uma aparelhagem para tornar
poderiam recair sobre ele, submetendo-o a
os indivíduos dóceis e úteis, através de um
um poder terapêutico e de adestramento.
trabalho preciso sobre seu corpo, criou a
Mostra também que essa tentativa de
instituição-prisão, antes que a lei a definisse
dominação se inscreve em um amplo
como pena por excelência. No fim do século
movimento social de valorização da disciplina.
“Os mecanismos disciplinares são, portanto, XVIII e princípio do século XIX, dá-se a
antigos, mas existiam em estado isolado até passagem a uma penalidade da detenção, é
os séculos XVII e XVIII, quando o poder verdade, e era coisa nova” (op. cit., p. 207).
disciplinar foi aperfeiçoado como uma técnica
de gestão dos homens” (op. cit., p. 106). Entretanto, no momento em que a sociedade
se torna contratual, sem decisões determinadas
Foucault (1983) define a disciplina da seguinte por um soberano, e a legalidade passa a
forma: “Esses métodos que permitem o estabelecer a privação da liberdade como uma
controle minucioso das operações do corpo, pena para os que rompem as novas regras
que realizam a sujeição constante de suas forças estabelecidas, o louco coloca um problema
e lhes impõem uma relação de docilidade, são de difícil solução. Se, por um lado, poderia
o que podemos chamar de “disciplinas” (p. ser perigoso e representar um risco à
126). sociedade, por outro lado, perdera o que há
de mais precioso no homem: a razão. Não
Com a disciplina, visava-se o máximo de poderia, por isso, ser responsabilizado por seus
utilização da força de um corpo dócil, atos, do modo que a figura que se adequaria a
enquanto capacidade de produção, e a essa situação seria a da tutela: “(...) substitutivo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


159
Paulo César Zambroni-de-Souza PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167

da tutelarização em relação à contratualização” são controlados, os internados, e aqueles que


(Castel, 1978, p. 44). O louco não deveria supervisionam as atividades, a equipe dirigente
ser preso por não ser responsável por seus em seus diversos níveis (op. cit., p. 18). A
atos, mas, por não ser responsável por seus equipe dirigente cumpre uma determinada
atos, deveria colocar-se aos cuidados e à carga horária na instituição e depois vai embora
responsabilidade de outrem: para casa, enquanto os internados não podem
sair. Com isso, estes últimos têm a instituição
“O indivíduo é sujeito autônomo enquanto como único local para moradia, lazer e
for capaz de se dedicar a intercâmbios trabalho, onde as atividades são feitas sempre
racionais, ou então sua capacidade de entrar em uníssono com um grupo de internos,
num sistema de reciprocidade o isenta da independentemente da vontade de cada um.
responsabilidade e ele deve ser assistido. Os
fundamentos contratuais do liberalismo Quando uma pessoa chega a uma instituição
impõem a aproximação entre o louco e a total, ela traz consigo uma concepção de si
criança, a grande analogia pedagógica da mesma que foi construída durante sua estada
Medicina mental, no seio da qual toda sua em seu meio doméstico. O longo período na
história vai desenvolver-se” (op. cit., p. 46). instituição tende a fazer com que essa pessoa
perca a possibilidade de manter seus papéis
Estavam prontas as condições para o chamado sociais, de modo que vai, gradativamente,
à Medicina, que autorizaria a reclusão do louco, perdendo a identidade que trazia consigo antes
no mesmo ato que justificaria sua menoridade da internação (op. cit., p. 23). Desde sua
pela nosografia nascente, estabelecendo as chegada, esse processo vai ocorrendo através
condições científicas para o nascimento do de diversas operações como, por exemplo, a
alienismo. O asilo torna-se, assim, uma prisão retirada de todos os seus objetos pessoais.
com finalidade não exatamente punitiva, mas Desse modo, a essa pessoa não resta, senão,
curativa, embora a punição tenha estado na maioria das vezes, assumir apenas uma
presente desde o seu início. Prisão e asilo, identidade, a de interno.
então, no curso da História, guardam
Goffman mostra que os internos acabam
semelhanças marcantes.
utilizando técnicas de adaptação para tentar
sobreviver a essa situação: seja através do
O hospício enquanto
afastamento da situação, que se segue muitas
instituição total
vezes a um período de intransigência e que
pode levar, às vezes, a uma regressão
De fato, tanto as prisões quanto os hospícios
irreversível, seja através do que o autor chama
enquadram-se no conceito de instituição total,
de colonização, onde o interno parece preferir
conforme propõe Goffman (2001, p. 11):
a instituição ao mundo externo por este
“uma instituição total pode ser definida como apresentar muitas situações de perigo, seja
um local de residência e trabalho, onde um através da conversão, na qual, mais do que
grande número de indivíduos com situação aceitar as posições da instituição, o internado
semelhante, separados da sociedade mais assume uma posição moralista que defende a
ampla por considerável período de tempo, instituição a todo custo, seja através do que
levam uma vida fechada e formalmente alguns internos chamam de “se virar”, na qual
administrada.” tentam utilizar um misto de colonização,
conversão e lealdade ao grupo dos internos,
Nas instituições totais, existe uma de modo a evitar ao máximo que sofra
diferenciação bem marcada entre aqueles que violência física e psicológica. O autor relata
160
Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas

ainda que, em alguns poucos casos, há alguns cigarros, a possibilidade de usar o


situações em que, por um lado, o interno telefone, entre outros.
submete-se tão facilmente às pressões da
instituição que se torna desnecessário o uso Tal vivência de trabalho no hospício pode ser
de técnicas específicas de adaptação e que, grandemente nociva para os internos, pois o
“A utilidade do por outro lado, há aqueles que, por terem trabalho é elemento tão importante que até
trabalho penal? convicção política ou religiosa muito arraigada, mesmo do ponto de vista da constituição da
Não é um lucro; espécie foi fundamental para configurar o
nem mesmo a
conseguem manter-se relativamente imunes
formação de uma às pressões da instituição (op. cit., pp. 61-3). humano, já que podemos pensar que a
habilidade útil, mas Goffman descreve, nesse livro, diversas evolução passou por diversas formas de
a constituição de trabalhar, como na confecção de ferramentas
uma relação de
situações de violência em várias instituições,
poder, de uma como em presídios, como Foucault também pelo homo habilis entre dois ou cinco milhões
forma econômica relata em “Vigiar e Punir” (1983), e em de anos atrás, ou nas organizações sociais, no
vazia, de um neolítico, relacionadas com a produção agrícola
hospícios, como também Basaglia mostra em
esquema da
submissão “As Instituições da Violência” (1985). (Schwartz,1995). Essa experiência permitiu ao
individual e de seu humano o enfrentamento com os desafios que
ajustamento a um O trabalho dos internos nas instituições totais o meio colocava, de modo que nos permitiu
aparelho de
Na questão do trabalho dos internos, na prisão chegar ao estado em que estamos hoje. Do
produção.”
e no hospício, vamos encontrar semelhanças ponto de vista de cada pessoa, consideramos
Foucault fundamentais, assim como em outras que o trabalho marca cada uma a partir dos
instituições totais. sentidos que ela estabelece para as atividades
que realiza, participando de sua configuração,
Foucault (1983, p. 217) pontua: deixando marcas no corpo e na mente. Assim,
consideramo-lo fundamental para determinar
“A utilidade do trabalho penal? Não é um
que uma pessoa se (re)estruture, de uma
lucro; nem mesmo a formação de uma
maneira ou de outra, que ela (re)invente a si
habilidade útil, mas a constituição de uma
e ao mundo ao seu redor, se (re)construa,
relação de poder, de uma forma econômica
sendo, nesse sentido, marcante para a
vazia, de um esquema da submissão individual
e de seu ajustamento a um aparelho de configuração de cada humano em sua
produção.” singularidade. Defendemos a idéia de que as
pessoas com graves transtornos psíquicos são
Goffman também apresenta vários exemplos capazes de trabalhar, e que realizar trabalho,
de que o trabalho nas instituições totais se estarem impedidas de fazê-lo, ou ainda fazê-
estrutura de maneira a ter o sentido de lo segundo a lógica do hospício é algo que
submissão. Inicialmente, ele lembra que não não lhes é indiferente, ao contrário.
há, para o internado, uma cessação da
Por ser de tamanha importância para cada
autoridade do chefe, como há em situações
pessoa, consideramos que o trabalho tenha
de trabalho na vida em sociedade. Como fica
o tempo todo na instituição, ele está grande importância na produção da saúde, mas
constantemente submetido à autoridade da pode também ser grandemente nocivo.
equipe dirigente. Além disso, geralmente as Dejours (1998a, p. 164) afirma que “(...) o
tarefas que o internado realiza são poucas, trabalho nunca é neutro em relação à saúde,
de modo que a pessoa fica entediada e favorece, seja a doença, seja a saúde”. Em
(Goffman, 2001, p. 21). Soma-se a isso que função disso, perguntamos o que o trabalho
não há, via de regra, um pagamento formal a pode trazer para pessoas reconhecidas como
esse trabalho, mas, ao contrário, o pagamento portadoras de transtornos mentais graves,
se dá através de pequenos favores, como cuidando para que isso não se torne mais uma

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


161
Paulo César Zambroni-de-Souza PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167

tentativa de ‘integração’, de ‘adaptação’ a um e da psiquiatria, as reformas psiquiátricas


sistema social patogênico. O trabalho nas procuraram pensar o sentido e o lugar do
instituições totais – no caso que analisamos, o trabalho para pessoas com transtorno mental
hospício – coloca-se como tentativa de grave, valorizando sua capacidade produtiva.
adaptação, onde toda a diferença é submetida
a uma “(...) lógica da integração (...) como se As reformas psiquiátricas e as
todas as outras vidas fossem vidas sociedades de controle
potencialmente doentes, que, então, é preciso
reabilitá-las hoje” (Le Blanc, 2003). Durante e após a 2ª Guerra Mundial,
ocorreram diversas tentativas de transformar
Vemos, assim, que o trabalho dos internos na ou extinguir os hospícios. Os problemas
instituição total, incluindo aí o do louco no próprios da guerra haviam criado uma situação
hospício, tem um sentido de submissão e de grande penúria nos manicômios, como
inutilidade. Ali, então, o trabalho adquire uma encontramos neste relato a propósito dos
capacidade de produzir doença e de ir contra hospitais franceses:
o desenvolvimento pessoal do internado.
“De um modo geral, a duração e os eventos
da guerra transformaram o universo dos
Também Schwartz (1995, p. 142) afirma que
hospitais psiquiátricos. O racionamento de
podemos “(...) caracterizar todo trabalho
alimentos, assim como o rigor do inverno nas
como lugar de uma dramática singular onde
construções que não se podiam mais aquecer,
serão negociados, para cada protagonista, a
arrastaram à morte um terço dos doentes
articulação dos usos de si pelos ‘outros’ e ‘por
hospitalizados. Um certo número de
si’”. Aqui, o uso de si pelos outros seria o
psiquiatras denunciaram o que eles chamaram
colocar-se para que sua capacidade produtiva
de uma forma de ‘exterminação
seja usada para realizar uma atividade, ou seja,
doce’”(Billiard, 2001, p. 100).
produzir algo que se dirige a outrem. O uso
de si por si diz respeito ao fato de essa pessoa
Diante dessas dificuldades, os psiquiatras
utilizar seus recursos, suas capacidades,
começaram a operar, durante e no pós-guerra,
escolhendo uma determinada maneira para
transformações no interior dos hospícios, em
realizar a atividade e também os sentidos que movimentos que abrangeram vários países,
ela dá a um trabalho e suas conseqüências. como a psicoterapia institucional na França, as
Schwartz está dizendo, então, que, no comunidades terapêuticas na Inglaterra, a
trabalho, é a pessoa por inteiro que se coloca psiquiatria preventiva nos Estados Unidos e,
e que ali é lugar onde cada um pode mais tarde, a psiquiatria democrática italiana.
desenvolver-se, utilizando sua capacidade de Todos colocavam “(...) em questão a
produzir e de conviver, visto que as atividades organização e, às vezes, a própria existência
de trabalho têm um aspecto de coletivo e de de instâncias oficiais responsáveis pelos
coordenação. Desse modo, se, no hospício, doentes mentais.”(Castel, 1978, p. 149).
o trabalho tem o sentido de submissão e
inutilidade e não tende a desenvolver a É interessante notar que, assim como o
autonomia dos internos, a pessoa ali se coloca nascimento do asilo se situou em um
para acabar ocupando um lugar de inútil e movimento mais amplo de práticas de
submisso. confinamento, também o questionamento do
hospício enquanto ideal para o tratamento da
Percebendo o lugar central do trabalho na vida loucura se insere em um movimento mais
das pessoas e na estruturação do manicômio amplo. Referimo-nos ao momento em que
162
Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas

as sociedades ocidentais passaram a utilizar da disciplina para o controle: não serão mais
menos um controle disciplinar através da os muros que afastarão o louco, mas ele, solto
reclusão para utilizar mais um controle flexível na sociedade, continuará isolado. Com as
que se vale de uma vigilância rarefeita e virtual: novas formas de controle, poderá agora ficar
“Depois da Segunda Grande Guerra, a forma- “livre”, mas sem grupos, sem trabalho, sem
fábrica, como modelo emblemático das dinheiro, sem lazer e sem um elemento chave
sociedades disciplinares, começa a ser nesses novos tempos: informação.
substituída por um novo modelo: a forma-
empresa. O confinamento e os dispositivos Deleuze (1992) resume as diferenças entre
disciplinares que caracterizavam até então a os modelos da disciplina e de controle: “Os
Sociedade Moderna já dão sinais de escassez. confinamentos são moldes, distintas
(...) A idéia de controle a nortear uma leitura moldagens, mas os controles são uma
das sociedades contemporâneas (...). As modulação, como uma moldagem
sociedades disciplinares são essencialmente autodeformante que mudasse continuamente,
arquiteturais: a casa da família, o prédio da a cada instante, ou como uma peneira cujas
escola, o edifício do quartel, o galpão da malhas mudassem de um ponto a outro”.
fábrica. Por sua vez, as sociedades de controle Assim, se nas sociedades disciplinares
apontam uma espécie de anti- predominam os muros para isolar os
arquitetura”(Vasconcelos, 2000, p. 41). indesejáveis, nas sociedades de controle, esses
indesejáveis podem, muitas vezes, ficar soltos:
Essa passagem não significa abolição absoluta mas apenas se estão sob os cuidados dos
do modelo antigo, tanto que “(...) a prisão, saberes psi, agora nos CAPS, no caso brasileiro.
que é o meio de confinamento por Caso contrário, serão devolvidos ao manicômio
excelência” (Deleuze, 1992), continua com ou – caso não consigam receber um
grande força, com recorrentes demandas da diagnóstico que os coloque sob a proteção da
sociedade por mais vagas nas celas. No caso Medicina mental – encarcerados nas prisões.
do manicômio, entretanto, talvez pelo fato No entanto, mesmo fora dos muros,
de o louco não ser considerado um criminoso, continuarão isolados, pois não são capazes de
mas, sim, alguém que pode ser neutralizado se adequar à modulação, à rigidez da regra
e “docilizado” pelos saberes psi, em que exige, paradoxalmente, mudança
sociedades onde o modelo disciplinar entra permanente: constantes investimentos em
em declínio, surgem, com grande força, as formação, busca incessante de aprimoramento,
críticas ao manicômio. Com a perda de espaço utilização correta da linguagem de grupos com
pelo manicômio – o que não significa sua relativo poder social, consumo de mercadorias
extinção, visto existir ainda hoje milhares de que oferecem status.
pessoas trancadas nele, em vários países – o
Não participando do grupo dos que possuem
louco passa a ter mais oportunidade de viver
os códigos que acessam informações que
em sociedade do que havia quando o hospício
permitem “trocas flutuantes” (op. cit.), isto é,
não era questionado. Na verdade, tais críticas
ao asilo já existiam desde, pelo menos, 1844 trabalhar em empresas, freqüentar grupos de
(Castel, 1978, p. 266), mas somente após a clubes sociais, estudar em determinadas
Segunda Guerra Mundial estas se escolas, dentre outros, e, nesses espaços,
acompanharão por práticas sólidas que o farão interagir conforme as regras desses lugares, o
sentir o golpe, dando mostras de que poderá louco faz parte do grupo que não está
extinguir-se. Entendemos que as condições encarcerado, mas continua isolado: “É verdade
históricas construídas para isso passam que o capitalismo manteve como constante a
exatamente para a mudança do predomínio extrema miséria de três quartos da

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


163
Paulo César Zambroni-de-Souza PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167

humanidade, pobres demais para a dívida, Há, então, diferenças fundamentais entre as
numerosos demais para o confinamento: o diversas reformas psiquiátricas. No entanto,
controle não só terá que enfrentar a dissipação vemos que há uma valorização, para alguns,
das fronteiras mas também a explosão dos parcial, e, para outros, absoluta, do lado de
guetos e favelas” (op. cit.). fora do hospício, isto é, da vida em sociedade.
No entanto, adverte-nos Castel (1980, p.256):
Entendemos, assim, que não é possível, “O ‘lado de fora’ que envolve a ordem asilar
portanto, dissociar as transformações ocorridas pode ser também a ordem social e os
no seio da psiquiatria das mudanças sociais: mecanismos de uma sociedade liberal que deu
origem à instituição totalitária como uma
“(...) essas modificações (...) traduzem, ao resposta aos problemas postos por um novo
mesmo tempo, a mudança de suas relações modo de integração dos indivíduos a novas
com outras instâncias de poder e, mais que normas de produtividade e de controle social.”
isso, com o conjunto das práticas de controle
e de normalização. Uma mudança na Seguindo Castel, podemos perguntar se, com
o declínio ou extinção do hospício, a pessoa
problemática da Medicinal mental se realiza
com transtorno mental grave continuará
na confluência entre essas duas séries de
isolada, mesmo que vivendo em sociedade,
transformações ‘internas’ e ‘externas’”
ou seja, vivendo do lado de fora do hospício.
(Castel, 1978, pp. 269-70).
Conforme expusemos, reconhecemos que
esse processo de reforma psiquiátrica que tem
Depois de mais de cem anos das propostas
ocorrido nas últimas décadas se insere em um
de Pinel de construir o asilo como lugar de
processo de transformação social mais amplo,
isolamento e terapêutica da loucura, os
nos quais os dispositivos institucionais se
psiquiatras propõem formas de tratamento que
tornaram mais sutis, menos evidentes, de
contam com o lado de fora do asilo. Alguns
psiquiatras propuseram que o manicômio fosse modo mais sofisticado que nos modelos
reformado para que cumprisse função não mais disciplinares, com as novas tecnologias sendo
de tortura e de isolamento, mas de utilizadas para a realização do controle. Desse
tratamento. Os que compartilhavam desse modo, sabemos que as transformações da
ponto de vista consideravam necessária uma assistência, da visão social e da luta dos direitos
política que abrisse mais o hospital para o da pessoa com transtorno mental grave, são
exterior, de modo a amenizar a cisão hospital fruto de um processo ocorrido dentro e fora
psiquiátrico / mundo exterior. Outros da psiquiatria. No entanto, reconhecemos que
propuseram que o hospício fosse sempre lugar essas transformações são favoráveis à pessoa
de produção não de cura, mas de doença, com transtorno mental grave, isto é, que o
reclusão e sofrimento, de modo que seria declínio do hospício torna as pessoas menos
necessário acabar com ele e utilizar apenas sujeitas a serem trancadas e a sofrerem as
estruturas não hospitalares (Castel, 1978, pp. violências que, freqüentemente, ocorrem
153-4). Os que compõem esse grupo dentro do manicômio e que, além disto,
sustentam que é necessário não só extinguir abrem-se possibilidades para elas poderem
os hospícios como desmascarar os conceitos orientar suas próprias vidas, tornando-se cada
e as práticas psiquiátricas enquanto vez mais autônomas. Nesse sentido, podemos
cumpridores de mandato social de exclusão procurar saber de que maneira pode ser
da pessoa com transtorno mental grave, possível a essas pessoas, não mais internadas
conforme as palavras de Rotelli (1990, p. 89): no manicômio, viverem nessa sociedade
“(...) a instituição que colocamos em questão segregatória sem serem isoladas. Pensamos
nos últimos vinte anos não foi o manicômio, que isso pode ser possível através de sua
mas a loucura”. inserção no mundo do trabalho.
164
Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas

Mudanças nos sistemas que o mercado está cada vez mais desfavorável
produtivos: há lugar para ao humano. O problema, então, não é do
trabalho, mas do mercado, das regras do jogo
quem? do capital. No entanto, sabemos que
precisamos pensar o trabalho considerando o
Sabemos que, nas últimas décadas, ocorreram
mercado, já que estamos lidando com sujeitos
grandes mudanças nos sistemas produtivos que
humanos nessa conjuntura. Como podemos,
levaram a uma automatização e substituição
nesse contexto, pensar em trabalho para
do trabalho humano por máquinas robotizadas
pessoas que estão em desvantagem desde
devido ao fato de as empresas buscarem maior
antes da entrada na colocação no trabalho,
competitividade. Além disso, o Estado, em
como as pessoas com transtorno mental grave?
muitos países do Ocidente, deixou de ter a
Pensamos ser essa uma questão que devemos
função de garantir proteção a seus cidadãos,
enfrentar, isto é, se as condições estão difíceis
trazendo um período de perda de muitos
e desfavoráveis, é exatamente nesse momento
direitos. No Brasil, onde o Estado nunca
que se tornam urgentes soluções para tais
exerceu verdadeiramente a função de proteger
questões.
seus cidadãos, isso pode ser observado pela
perda de direitos previdenciários, crescimento
Conforme apontamos anteriormente, as diversas
nos índices de desemprego, privatização
iniciativas de reformas psiquiátricas têm
crescente de educação e saúde, entre outras
procurado possibilitar a oportunidade de
coisas. Esses fenômenos, somados, levaram a
trabalho para aqueles que historicamente foram
uma crise das condições de trabalho e de
trancados no hospício. De fato, encontramos
empregabilidade, como nos indica Castel
nas experiências das comunidades terapêuticas
(1998, p.514): “Mas o desemprego é apenas
e da psicoterapia institucional, influenciadas pela
a manifestação mais visível de uma
ergoterapia, de Hermann Simon, o trabalho
transformação profunda da conjuntura do
como elemento importante nas organizações
emprego. A precarização de trabalho constitui-
de estruturas de tratamento em psiquiatria
lhe uma outra característica, menos
(Desviat, 1999, pp. 30-4). Posteriormente, a
espetacular, porém ainda mais importante,
experiência de reforma na Itália trouxe a
sem dúvida.”
valorização das cooperativas de trabalho dos
pacientes, levando ao surgimento das empresas
Acrescentamos a afirmação de Antunes (2000,
sociais (Rotelli, 2000, pp. 301-6).
pp. 159-160):
No Brasil, várias experiências têm se realizado
“Em verdade, o sistema de metabolismo social
no sentido de criar condições de trabalho nesse
do capital necessita cada vez menos do
sentido. Em recente tese de doutoramento,
trabalho estável e cada vez mais das
Telles (2002), em uma pesquisa desenvolvida
diversificadas formas de trabalho parcial ou
a partir de uma experiência de trabalho na
part-time, terceirizado (...), que se encontram
em explosiva expansão em todo o mundo Cooperativa da Praia Vermelha, onde trabalham
produtivo e de serviços.” pessoas que se tratam em serviços públicos
de saúde mental no Município do Rio de
Observamos, com isso, que, mesmo para o Janeiro, mostra como, em situações de
trabalhador que não apresenta previamente trabalho, essas pessoas conseguem
nenhuma alteração mental importante, as desenvolver-se e como ali elas encontram
condições parecem estar cada vez menos condições de levar uma vida melhor. Os relatos
favoráveis. Pensamos que o trabalho não dos membros desse tipo de cooperativa
deixou de ser central na vida das pessoas, mas mostram que, para eles, apesar de

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


165
Paulo César Zambroni-de-Souza PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167

reconhecerem, por vezes, alguma dificuldade possível conseguir um local adequado para
no aprendizado do processo de produção, e produção e venda, de modo que tudo
de ter que lidar com dificuldades próprias de acontecia no próprio CAPS, o que acabava,
seu funcionamento devido ao seu processo por vezes, não contribuindo para o
de adoecimento e de seus companheiros (pp. crescimento do Bazarte. De fato, Leonardis,
84-85), o trabalho na Cooperativa traz, Mauri & Rotelli (1994) pontuam que as
inicialmente, o benefício de levar a uma iniciativas de trabalho para pessoas com
ocupação fora de casa, já que ficar em casa transtorno mental grave devem acontecer
freqüentemente traz aumento de tensão com preferencialmente fora do espaço reservado
familiares e vizinhos (p. 81). para assistência. Havia ainda questões ligadas
ao INSS, já que as pessoas que tinham
De 1992 até o início de 2002, o autor deste benefícios da Previdência ou eram aposentadas
artigo trabalhou em unidades de tratamento tinham receio de trabalhar devido ao risco de
em saúde mental, tanto em hospital geral serem descobertos pela fiscalização
quanto em ambulatório ou ainda em centro previdenciária e perderem seus direitos.
de atenção psicossocial, exercendo a função
de psicólogo ou de coordenador de unidade. Essas pessoas mostram também que, em casa,
Nesse período, os usuários verbalizaram por seu trabalho freqüentemente não é
diversas vezes a vontade de exercer atividades reconhecido e que, nas cooperativas, elas
de trabalho, mostrando-se insatisfeitos de ficar encontram esse reconhecimento. Sabemos
sem trabalhar, queixando-se de ficar em casa, hoje, a partir das proposições de autores como
dizendo sentir-se entediados. Uma vez tendo Dejours (1998b), que o reconhecimento e a
conseguido realizar esse desejo e colocar-se valorização social do trabalho é elemento
em situação de trabalho, que possibilidades fundamental para a produção de prazer e
se abrem para suas vidas a partir disso? saúde para qualquer pessoa. Nas cooperativas,
existe também a possibilidade de ganhar
Em Volta Redonda, cidade situada ao sul do dinheiro, abrindo a perspectiva de poder, um
Estado do Rio de Janeiro, em função do desejo dia, prescindir do chamado benefício do INSS
expresso pelos usuários de trabalhar, realizamos que, para a pessoa poder receber, tem que
uma experiência de produção e venda de estar alimentando constantemente uma
artesanatos em um centro de atenção incapacidade.
psicossocial que coordenamos até março de
2002. Batizada pelos usuários de “Bazarte”, a O texto de Telles traz o relato dos membros da
idéia era que pessoas que estavam com pouca Cooperativa, mostrando que o trabalho ali
oportunidade de trabalho que não fosse o aumenta sua capacidade de compreender
trabalho doméstico pudessem exercer melhor a si mesmo a aos outros, desenvolvendo
atividade de trabalho remunerada. Surgiram significativamente sua habilidade de
dificuldades ligadas à estruturação da comunicação (op. cit., p. 85), o que vai de
produção, no que diz respeito, sobretudo, à encontro à afirmação de Zarifian (2001, pp.
inconstância no fornecimento de matéria 45-48), que mostra que as transformações
prima, já que a venda dos materiais era recentes nos sistemas produtivos exigem, cada
insuficiente para manter o abastecimento, vez mais, a capacidade do trabalhador de
sendo necessário o envio dos materiais pela comunicar-se e de entender as necessidades
Secretaria Municipal de Saúde, tendo, assim, dos outros trabalhadores e dos clientes.
que atender à Lei n.8666, que regula as
compras pelo serviço público e torna lentos Telles mostra também que o trabalho naquela
os processos de compra. Além disso, não foi cooperativa permite aos seus membros ter a
166
Trabalho e Transtornos Mentais Graves: Breve Histórico e Questões Contemporâneas

perspectiva de voltar a trabalhar em sua psiquiátricas. Cabe, ainda, operar


profissão, que, muitas vezes, é abandonada transformações que possam garantir que a
por ocasião de uma crise. Experiências simples pessoa com transtorno mental grave possa viver
como a Cooperativa da Praia Vermelha ou o bem em sociedade, desfrutando de seus
Bazarte mostram como essas pessoas têm a prazeres. Para isso, sabemos que é
capacidade de desenvolver suas competências, fundamental que as pessoas tenham dinheiro
apesar do processo de adoecimento. e trabalho, sem precisar ficar dependendo das
misérias da previdência social. No entanto, essa
No entanto, há que se observar que essas parece ser uma conquista ainda distante.
iniciativas são ainda incipientes e pouquíssimo
lucrativas. Será possível que, nesta sociedade
discriminatória, essas pessoas poderão
Conclusão encontrar espaços fora do trabalho protegido
para que possam produzir e desenvolver-se?
Como dissemos, a queda da hegemonia do
Já não sabemos que muitas dessas pessoas,
modelo disciplinar, somada aos problemas
anonimamente e fora dos serviços de saúde,
enfrentados nos hospícios, deu margem ao
estão conseguindo fazer isso de maneira
surgimento de uma série de transformações
discreta? O desafio está colocado. Cabe-nos
na psiquiatria, as chamadas reformas
enfrentá-lo.
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167


167
Paulo César Zambroni-de-Souza PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2006, 26 (1), 154-167
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456 Paulo César Zambroni de Souza
123456
123456
123456
123456
Psicólogo.Professor Adjunto da Universidade Federal de Itajubá - UNIFEI
123456
123456
123456
Doutor em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
123456
123456 sob a orientação de Milton Athayde.
123456
123456
Mestre em 123456
Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
123456
123456
123456
123456
AV. BPS,123456
nº 1303, Bº Pinheirinho, Itajubá - MG, CEP 37500-903
123456
123456 Tel: (35) 3629 1150
123456
123456
123456 E-mail: paulozamsouza@yahoo.com.br
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
123456
Recebido 05/01/04 Reformulado 16/02/06 Aprovado 14/03/06
123456
123456

Referências
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 7ª ed. São
Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 2000. KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: que é “Esclarecimento”? In
Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1985.
BASAGLIA, Franco. As Instituições da Violência. In Basaglia, et al. A
Instituição Negada: Relato de um Hospital Psiquiátrico. Rio de LE BLANC, Guillaume. Les Maladies de l’Homme Normal. Passant n°
Janeiro: Graal, 1985. 45-46 [juin2003 – septembre 2003]. Disponível em: http://
www.passantordinaire.com/revue/prin.qsp ?id=558. Acessado em
BERCHERIE, Paul. Os Fundamentos da Clínica: História e Estrutura 10/10/2004.
do Saber Psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
LEONARDIS, Otta; MAURI, Diana; ROTELLI, Franco. La Empresa
BILLIARD, Isabelle. Santé Mentale et Travail: l’ Émergence de la Social. Buenos Aires: Nueva Visión, 1994.
Psychopathologie du Travail. Paris: La Disputel/Snédit, 2001.
ODDONE, Ivar. Redécouvrir l’Expérience Ouvrière. Paris: Sociales,
CASTEL, Robert. A Ordem Psiquiátrica: a Idade de Ouro do 1981.
Alienismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
ROTELLI, Franco. Empresa Social: Construindo Sujeitos e Direitos. In
_______________. A Instituição Psiquiátrica em Questão. In Figueira, Amarante, P. D. C. (org.). Ensaios: Subjetividade, Saúde Mental,
Sérvulo Augusto (coord.). Sociedade e Doença Mental. Rio de Sociedade. Fio de Janeiro: Fiocruz, 2000.
Janeiro: Campus, 1978.
_______________. A Instituição Inventada. In Rotelli, F.; Leonardis,
_______________. Rumo às Novas Fronteiras da Medicina Mental. O. de Mauri, D.; Risio, C. de. Desinstitucionalização. São Paulo:
In Figueira, Sérvulo Augusto. Psicanálise e Ciências Sociais. Rio Hucitec, 1990.
de Janeiro: Francisco Alves, 1980.
SCHWARTZ, Yves. Circulations, Dramatiques, Efficacités de l’ Activité
_______________. As Metamorfoses da Questão Social: uma Industrieuse. In Bidet, J., Texier, J. (orgs). La Crise du Travail. Paris:
Crônica do Salário. Petrópolis: Vozes, 1998. PUF, 1995.

DEJOURS, Cristophe. A Loucura do Trabalho: um Estudo de TAYLOR, Frederick. Princípios de Administração Científica. 8ª ed.
Psicopalogia do Trabalho. 5ª ed. São Paulo: Cortez-Oboré, 1998a. São Paulo: Atlas, 1990.

__________________. Souffrance en France. La Banalisation de TELLES, Ana Luíza Corrêa. Trabalhando como Loucos: em Busca de
l’Injustice Sociale. Paris: Le Seuil, 1998b. Novas Formas de Organização do Trabalho a Partir de um Estudo
da Cooperativa da Praia Vermelha. 129 f. Tese de Doutorado em
DELEUZE, Gilles. Post Scriptum sobre a Sociedade de Controle. Engenharia de Produção. Coordenação de Pós-graduação e Pesquisa
1992. Disponível em: http://geocities.yahoo.com.br/guaikuru0003/ em Engenharia / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
deleuze_pos_scriptum.html. Acessado em 15/01/2005. 2002.

DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, VASCONCELOS, Jorge. A Cidade Sob Controle: Subjetividades e
1999. Tecnologia do Virtual. Revista Logos. Faculdade de Comunicação,
o o
UERJ, Ano 7, n 12, 1 Semestre, 2000.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,
1979. ZARIFIAN, Philippe. Objetivo Competência: por uma Nova Lógica.
São Paulo: Atlas, 2001.
_________________. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1983.

_________________. História da Loucura na Idade Clássica. São


Paulo: Perspectiva, 1987.

Você também pode gostar