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As Oficinas na Saúde Mental:


Relato de uma Experiência na
Internação

Mental health workshops:


Report of an experience in hospital admission

Teresa Cristina
Paulino
de Mendonça

Pontifícia
Universidade Católica
de Minas Gerais
Experiência

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (4), 626-635


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Resumo: O presente artigo trata da atividade 12345678
das oficinas na internação psiquiátrica. Parte de uma
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breve explanação sobre a reforma psiquiátrica12345678
e discute a mudança no lugar social do psicótico, de
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excluído a cidadão. As oficinas terapêuticas, como
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12345678parte das novas modalidades de atendimento
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no tratamento desses sujeitos, têm a função psicossocial
12345678 aliada à clínica. Sua proposta é a expressão
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da singularidade e subjetividade dos sujeitos12345678
psicóticos, num espaço de convivência, criação e
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reinvenção do cotidiano na enfermaria psiquiátrica.
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12345678O posicionamento do coordenador de oficinas
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será também aqui abordado, considerando-se as características da psicose e as peculiaridades no
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seu manejo. Serão relatadas as experiências das 12345678
oficinas de letras e de salão de beleza, realizadas
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no Hospital Raul Soares, de Belo Horizonte. 12345678
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Palavras-chave: saúde mental, enfermaria psiquiátrica,
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oficina terapêutica.
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Abstract: This present article deals with the12345678
workshop activities at the psychiatric entering. It
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starts with a brief explanation about psychiatric12345678
reform and tells about the changing of the psychotic
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in the social place, from a socially excluded12345678
12345678 into a citizen. The therapeutic workshops
person
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along with the new modalities of attendance in12345678
the treatment of these citizens have both psychosocial
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and clinical roles. Their purpose is the expression of the singularity and subjectivity of the psychotic
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citizens, in a place of creation and reinvention12345678
of the daily routine at the psychiatric infirmary. This
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article will also deal with the positioning of the workshops coordinator, taking into consideration
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the characteristics of psychosis and the peculiarities
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in its handling. The experiences in the text
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and beauty parlor workshops, held at the Raul 12345678
Soares
12345678 Hospital, in Belo Horizonte, will be described.
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Key words: mental health, psychiatric infirmary, therapeutic workshop.
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A reforma psiquiátrica, que completa vinte Grupo Galpão, do FIT (Festival Internacional
anos, propôs a desconstrução e a de Teatro, que acontece de 2 em 2 anos em
desinstitucionalização das práticas hospitalares, Belo Horizonte), no HRS (Hospital Raul
paralelamente à formulação de novos modelos Soares). Tal discurso possibilita dissociar do
de assistência ao portador de transtorno imaginário social a idéia de que a loucura está
mental. O modelo asilar dos hospitais ligada a periculosidade, a deficiência, a
psiquiátricos veio sendo gradualmente deterioração, ao isolamento e ao sentido de
substituído pelo tratamento em sistema aberto incapacidade e imprevisibilidade.
ou extra-hospitalar. Os NAPS¹, CAPS²,
CERSAMs³, centros de convivência e As ações de promoção da cidadania para os
hospitais-dia testemunham esse processo. pacientes portadores de transtornos psíquicos
Pretende-se, então, desmontar a lógica da demonstram como a clínica e a política se
exclusão, da contenção e do enclausuramento articulam. Tais programas representam uma
à qual o hospital psiquiátrico era jungido com possibilidade de resgate da cidadania dos
a introdução de novas modalidades de portadores de transtorno mental.
intervenção no tratamento do paciente
psicótico. Breve reconstituiçâo histórica
O discurso da cidadania entende o paciente 1NAPS – Núcleo de
psicótico como um cidadão capaz de interagir Primeiramente, por um discurso moral, o Assistência Psicossocial

com a sociedade e de circular em seus paciente psicótico foi alijado da sociedade junto 2CAPS – Centro de
Atenção Psicossocial
espaços, nos quais a comunidade também a outros excluídos, contraventores, leprosos,
circula. Pode-se mencionar, a título de ladrões, prostitutas. Internava-se sem vocação 3 CERSAMs – Centros de
Referência em Saúde
ilustração, a apresentação do espetáculo do médica, simplesmente para excluir os Mental
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As Oficinas na Saúde Mental: Relato de uma Experiência na Internação

desviados e desregrados. Posteriormente, com recebem o cidadão em seu momento de crise,


o advento da psiquiatria, a loucura é tomada surto psicótico, tentativa de auto-extermínio,
como doença, apropriada pelo discurso e homicídio, etc., quando este precisa da
instituição médicos; esse paciente é então, contenção para tratamento urgente e
isolado em manicômios. intervenção adequada. Temos, porém, de
considerar ainda, na internação, os pacientes
Introduziram-se atividades com fins que permanecem por longos períodos nas
terapêuticos na instituição psiquiátrica. Estas instituições psiquiátricas por não terem
foram, inicialmente, ligadas ao trabalho condições sociais, afetivas e/ou financeiras de
(colônias agrárias, laborterapia, ergoterapia e manter-se na sociedade. Para esses, um novo
outras) e serviam ao propósito de disciplinar projeto de tratamento vem sendo proposto.
e reabilitar o doente mental e adequá-lo à Trata-se da passagem gradual de uma tutela
ordem vigente dos manicômios. completa para uma tutela parcial ou uma
autonomia assistida, nos novos programas de
No pós-guerra, com a ascensão dos direitos assistência.
humanos, começou-se a pensar o doente
mental como cidadão, sujeito de direitos e As oficinas
deveres, num processo de desconstrução/
reconstrução da lógica assistencial e dos As oficinas procuram caminhar no sentido de
fundamentos teóricos acerca da loucura. permitir ao sujeito estabelecer laços de cuidado
consigo mesmo, de trabalho e de afetividade
No Brasil, na década de 40, Nise da Silveira, com os outros, determinando a finalidade
“Nos novos
dispositivos da psiquiatra de formação junguiana e herdeira político-social associada à clínica.
rede de atenção, da experiência bem-sucedida da terapia
a ênfase na “Nos novos dispositivos da rede de atenção, a
ocupacional, introduz, no Rio de Janeiro, a
particularidade de
cada caso, o arte-terapia. Para tanto, aplica técnicas ênfase na particularidade de cada caso, o
trabalho elaboradas de fortalecimento e expressão do trabalho multiprofissional, a escuta e o respeito
multiprofissional, a ao louco e a invenção de novas estratégias de
eu, concebidas a partir da descoberta
escuta e o respeito
ao louco e a psicanalítica do inconsciente, em oficinas de intervenção sobre o campo social e clínico
invenção de novas expressão como pintura, escultura, música, deram ensejo à recuperação do uso da atividade
estratégias de como um valioso recurso no tratamento clínico
dança e trabalhos manuais, e em atividades
intervenção sobre
o campo social e recreativas - jogos, passeios, festas. e na reabilitação psicossocial” (Guerra, 2004,
clínico deram p.24).
ensejo à Hoje, as oficinas constituem-se em novas
recuperação do
práticas, propostas de inserção social nos A atividade artística enfatiza o processo
uso da atividade
como um valioso hospitais psiquiátricos, num espaço de construtivo e a criação do novo através da
recurso no convivência, criação e reinvenção do cotidiano produção de acontecimentos, experiências,
tratamento clínico
nessas instituições, pois, além do tratamento ações, objetos; “reinventa” o homem e o
e na reabilitação
psicossocial” clínico indispensável, o sujeito psicótico mundo. Sob essa perspectiva, as atividades das
necessita ter reconstituído seu direito de criar, oficinas em saúde mental passam a ser vistas
Guerra
opinar, escolher, relacionar-se. como instrumento de enriquecimento dos
sujeitos, de valorização da expressão, de
Mesmo tendo a reforma psiquiátrica proposto descoberta e ampliação de possibilidades
o fim dos manicômios, sabe-se que, para as individuais e de acesso aos bens culturais.
crises agudas dos pacientes psiquiátricos, A loucura traz a marca de uma diferença
entretanto, a internação faz-se necessária. São quanto à forma de organização subjetiva que
os serviços substitutivos de emergência que permitiria ao paciente psicótico fazer um laço

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simbólico com a ordem social. Mesmo inserido A internação


na cultura, na linguagem e no cotidiano, o
psicótico não está inserido na norma simbólica Nossas oficinas realizam-se no interior do
que permite a equivalência e a inscrição num Hospital Raul Soares, no Centro Cultural Arthur
registro sexual que estabelece o circuito de Bispo do Rosário e na enfermaria feminina
troca social. (salão de beleza). Os pacientes internos são
diariamente convidados a participar das oficinas
Na concepção de Guerra (2004), o que e sua adesão é espontânea.
diferencia e particulariza a atividade das
oficinas na saúde mental das demais O mundo do internado é o espaço
intervenções, coletivas ou não, é o fato de o institucional, em que o paciente mora, dorme,
paciente psicótico trabalhar com o objeto se alimenta, vive seus prazeres, afazeres,
concreto, o que a autora define por criações, relações..., onde, enfim, todos os
“materialidade do produto.” aspectos de sua vida se desenvolvem sob uma
“A oficina vincula-
única autoridade. A internação modifica se mais
“A oficina vincula-se mais estreitamente à brutalmente a vida do paciente, já que o estreitamente à
questão do estatuto do objeto do que ao da questão do
controle de suas necessidades humanas passa
estatuto do objeto
própria fala, posto que o seu funcionamento, a ser feito pela organização burocrática do que ao da
seja qual for a tendência da oficina (trabalho, institucional. A tutela hospitalar, muitas vezes, própria fala, posto
arte, convivência, subjetividade), sempre que o seu
demove o paciente de cuidar do próprio corpo
funcionamento,
referencia um produto, uma produção material” e de seus objetos, e leva-o a perder a seja qual for a
(Guerra,2004, p.40). referência de privacidade e de seu direito a tendência da
oficina (trabalho,
ela.
As oficinas produzem efeitos subjetivos e arte, convivência,
subjetividade),
socializantes por operarem sobre uma “O internado, ao chegar à instituição, traz sempre referencia
superfície material concreta, que permite uma consigo uma concepção de si mesmo que se um produto, uma
circunscrição do gozo fora do corpo do sujeito. produção
tornou possível por algumas disposições sociais material”
As oficinas estariam, portanto, segundo estáveis no seu mundo doméstico.
Guerra, num campo inédito, numa interseção Guerra
entre o lugar da clínica especificamente, de Ao entrar, é imediatamente despido do apoio
um lado, e o lugar das atividades coletivas, de dado por tais disposições. Começa a passar por
cunho eminentemente sociopolítico, de outro. algumas mudanças radicais em sua carreira
As oficinas estariam, de fato, no campo do moral, uma carreira composta pelas progressivas
tratamento possível da psicose, da clínica mudanças que ocorrem nas crenças que tem a
ampliada, que une política e clínica. seu respeito e a respeito dos outros que são
significativos para ele” (Goffman,1974, p.24).
Em conivência com os ideais de
ressocialização, mais que o desenvolvimento O internado passa, então, por um
de habilidades, as oficinas prestam-se a “desculturamento”, tendo seus hábitos
introduzir, na cultura, a diferença que a loucura particulares de vida transformados, o que dá
representa, convidando o portador de
início a uma série de rebaixamentos,
transtornos mentais a
degradações, humilhações e profanações do
eu. O seu eu é mortificado sistematicamente,
“inserir-se em alguma forma de liame social,
embora muitas vezes não intencionalmente.
ou seja, participar de um conjunto de signos
que o inscrevam enquanto ser social e político As oficinas oferecem, como espaço que
à medida que lhe for possível” possibilita a expressão criativa individual na
(Guerra, 2004, p.38). coletividade da instituição psiquiátrica, uma
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alternativa de modificação do cotidiano e Desde que não ofereça riscos para o paciente
algum enodamento possível desse eu, onde e para os outros, as famílias são parceiras no
o sujeito psicótico cria soluções que enlaçam tratamento e convidadas a participar, até
real e simbólico na produção de um objeto mesmo adentrar o espaço institucional e suas
imaginário. atividades. Da mesma forma, para o paciente,
conforme o caso, a internação não é rígida e
“È na densidade de um objeto criado que a pode constituir-se numa ponte entre a vida
possibilidade de construção e circunscrição de privada e a social.
um certo excedente libidinal se dá. A tarefa
dos oficineiros é retornar esse excedente, esse Nas oficinas, os pacientes podem apropriar-se
mais de gozo, enquanto trabalho do próprio do ambiente do hospital e incrementar as
psicótico” (Guerra, 2004, p.55). trocas relacionais. O pátio, os jardins, o centro
cultural, o salão de beleza, a biblioteca, lugares
A vida nos manicômios é organizada a partir do hospital que os pacientes não usam com
de uma funcionalidade em que até mesmo a freqüência são ocupados. Oferecem-se
ocupação física dos espaços é regida por uma atividades socioculturais, como cinema,
lei que busca banir o imprevisto e o acidente música, teatro, partida de futebol entre
a fim de manter a ordem. instituições, festas comemorativas e outros
eventos. Recentemente, realizou-se o desfile
A ênfase no Todos os aspectos da vida desenvolvem-se no “Moda Primavera-Verão do HRS”. Para exibir
espaço relacional mesmo lugar, em contato com grande número
e na reinvenção as novas roupas dos pacientes internos do
do cotidiano do de pessoas, e são regulados por regras hospital, confeccionadas pela divisão de
hospital, no poder explícitas e formais; não há possibilidade de costura da instituição, foi produzido um desfile
de decisão sobre existência do próprio, do particular, do singular.
suas atividades e dos pacientes.
no uso do direito O imprevisto e o incidente são banidos ou
de ir e vir abafados, no hospital, através da contenção A ênfase no espaço relacional e na reinvenção
fundamenta a dos técnicos e da instituição, através de uma
nova prática de
do cotidiano do hospital, no poder de decisão
reabilitação do burocracia autoritária e de regras coercitivas. sobre suas atividades e no uso do direito de ir
paciente “As instituições hospitalares têm um ritmo de e vir fundamenta a nova prática de reabilitação
psiquiátrico na vida estanque, ao passo que é no imprevisto e
instituição.
do paciente psiquiátrico na instituição. A
no incidente que pode haver lugar para o possibilidade desses sujeitos de se expressar,
sujeito. É na dialética entre a rotina e o de explorar as relações e de circular como
imprevisto que o sujeito aparece, dando suas cidadãos é retomada, no seu sentido literal e
soluções e fazendo suas escolhas de vida” simbólico, como rede subjetiva que sustenta
(Marcos, 2004, p.11). a inserção social.

A prática das oficinas, na internação, propõe- “As práticas rotineiras são um processo constante
se a ser esse espaço da diversidade, da prática de apropriação do tempo e do espaço. Sendo
por muitos, da reinvenção do cotidiano assim, a regulação e o funcionamento do
(conceito desenvolvido em Marcos, 2004) cotidiano transformam-se em um recurso
que, dada a complexidade e a diversidade de terapêutico a mais na reabilitação psicossocial
manifestações da psicose, se torna um lugar do paciente, na recuperação do uso do próprio
de ampliação e acolhimento de vários corpo, do espaço e do tempo. O cotidiano pode,
discursos: o estético, o clínico e o político. então, funcionar como suplência à ordem
simbólica e como espaço de construção e
Nas novas abordagens do tratamento na saúde presentificação de um Outro menos invasivo
mental, o espaço da internação é flexibilizado. (Marcos, 2004, p.6).

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Numa oficina de jornal no HRS, propôs-se, que há ali um sujeito com algo a dizer e a
certa vez, uma discussão entre os pacientes fazer, interessando-se por esse algo e
após a leitura de notícia sobre o tratamento esforçando-se por buscar um sentido nesse
de saúde na rede pública. Tal iniciativa fazer.
exemplifica a consciência e a argumentação
dos pacientes sobre sua cidadania. Eis parte O papel do coordenador
do que se escutou:
Tem-se combatido, nas novas abordagens do
_ “Aqui tem boa comida, mas a vida não se tratamento da loucura, o excesso dos discursos
resume só no dormir, tomar remédio e comer. psi (psiquiatria e Psicologia) e defendido o
Queremos mais atividades. Isso aqui parece trabalho das atividades nas instituições, nas
uma prisão”. oficinas, por exemplo, por profissionais de
outras áreas. É o caso das oficinas nos centros
Na interlocução, outro paciente comentou: de convivência coordenadas por artistas, por
_ “Fora dessas paredes, eu só sou um 22.” exemplo. Contudo, na internação, faz-se
A estagiária de Psicologia então perguntou: necessário, para um bom desempenho do
_ “O que é 22”? trabalho, que se compreendam as
particularidades da psicose e seu manejo.
Ao que o outro respondeu:
_ “22 é louco. Aí fora eu sou considerado A psicanálise é tomada, aqui, como a referência
louco”. teórica que melhor se aplica ao conhecimento
dos laços que o psicótico estabelece com o
E o que reivindicou mais atividade na Outro e sobre a dimensão clínica que abarca
internação disse: a prática exercida por muitos no tratamento
da psicose.
_ “Louco, não. Você é um incompreendido!”
As oficinas possibilitam uma apropriação da Coordenar uma oficina é estar à escuta de
história de vida desses sujeitos. Ao produzirem uma linguagem muitas vezes sem palavras, a
um texto, ao lerem ou recitarem um poema, partir da qual essas produções podem instituir
os pacientes muitas vezes se remetem ao seu canais de troca e encontro e criar novos
universos existenciais. As atividades devem ser
passado, compartilhando com os colegas sua
pensadas, planejadas e orientadas por
história de vida, histórias que sustentam
parâmetros éticos e estéticos e por uma
vivências de dor e sofrimento, de profunda
equipe interdisciplinar, conciliadora dos
angústia e desumanização. Por vezes
diversos discursos.
emocionam-se e fazem circular suas
lembranças, motivando, no outro também, a
Portanto, ser coordenador de oficinas com
expressão de relatos pessoais. Cada encontro psicóticos internados exige uma especificidade
é inusitado, e, no imprevisto, pode na mediação com o paciente. Entre a
proporcionar aprendizagem, produção, atividade, o que ela pode representar para o
intercâmbio, ampliação das relações e paciente no seu cotidiano e o próprio paciente,
mergulho no universo cultural, permitindo ao coloca-se o coordenador, que deve estar ciente
sujeito escapar à imposição do que é de seu papel. Neste, incluem-se o manejo da
massificado em sua rotina, ao mesmo tempo relação com o psicótico e a consciência dos
oferecendo resistência ao que é singular e efeitos da oficina para o paciente. É a teoria
próprio desse sujeito. O trabalho de que medeia a relação entre o coordenador e
coordenador das oficinas é o de acolher os o paciente, seu conhecimento sobre a psicose
sons, as falas, as formas, os atos, afirmando e o lugar que a oficina ocupa na internação.
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As Oficinas na Saúde Mental: Relato de uma Experiência na Internação

A dimensão da clínica está presente no medida que o paciente é escutado como


cotidiano das oficinas, em um olhar e uma sujeito e que ele mesmo pode apropriar-se
escuta atentos ao sujeito. Sabe-se que o que desse espaço e da criação, estabelecendo, na
orienta a condução do tratamento e a relação com o fazer, suas próprias regras e
reabilitação do paciente portador de limites.
transtornos mentais são suas produções
sintomáticas e seus arranjos subjetivos, ou seja, “Em outras palavras, ao extrair da própria
o discurso do sujeito e não o discurso ideal realidade um produto concreto inédito, o
político da autonomia. psicótico produziria um esvaziamento desse
Outro absoluto que o aterroriza, podendo deixar
Pode-se perguntar, então: as oficinas, apesar o lugar de objeto do seu gozo para ocupar o
de não se constituírem no espaço clínico, na lugar de um autor, produtor de um objeto com
internação, podem produzir efeitos clínicos consistência simbólica” (Guerra, 2004, p.51).
que, necessariamente, não acontecem no
espaço do tratamento? Quais seriam esses “A oficina funcionará para um participante se,
“Em outras efeitos? As atividades da oficina funcionam de alguma maneira, produzir através da
palavras, ao extrair substancialidade do material disponibilizado ou
da própria
como o que se poderia chamar de uma
realidade um “extensão” da clínica, onde o efeito do objeto criado, um elemento com densidade
produto concreto terapêutico, além de ser de cunho sobre o qual o psicótico possa localizar o gozo
inédito, o psicótico invasivo que assoberba sua economia libidinal,
produziria um
psicossocial, de acordo com a intervenção do
esvaziamento coordenador, pode ser o de se possibilitar o fazendo laço com a linguagem ao significar essa
desse Outro posicionamento do psicótico como sujeito, e produção a partir da lógica particular com a
absoluto que o qual lida com a realidade” (Guerra, 2004, p.55).
aterroriza,
não como objeto de gozo do Outro.
podendo deixar o As oficinas funcionam para os sujeitos que
lugar de objeto do As oficinas, na internação, como intervenção, permitem o estabelecimento do enlaçamento
seu gozo para pretendem ser facilitadoras da comunicação de sua singularidade com o universal da
ocupar o lugar de
um autor, produtor entre os pacientes. Por isso, no seu manejo, linguagem, da cultura; por isso mesmo, não
de um objeto com o coordenador não deve visar meramente à há exigência a ser seguida numa oficina.
consistência realização da atividade proposta, mas, pautado
simbólica”
por uma lógica clínica, deve considerar os A ética possível das oficinas é a de possibilitar
Guerra modos de sustentação do sujeito na lida com a produção de uma subjetividade que
cada um. enriqueça, de modo contínuo, a relação do
psicótico com o mundo.
A psicanálise é a mediação teórica que
entende a necessidade de apaziguamento do Relato de experiência
gozo que invade o psicótico, através de um
cálculo estratégico do oficineiro na internação, A oficina de letras e jornal
sustentando o saber de que, segundo Greco
(2004), As oficinas de letras e jornal são desafiantes
no que diz respeito ao manejo do grupo. Os
“a cada vez, deve-se operar um recuo que evite, pacientes internos são convidados a participar
ao mesmo tempo, a encarnação do perseguidor da oficina, tratando-se, na maioria das vezes,
e o desabamento da crença” (Greco, 2004, p.89). de pessoas diferentes a cada encontro. A
particularidade estrutural dos freqüentadores
Na relação com outros pacientes nas oficinas da oficina recomenda, além de prudência,
e com o coordenador, pode-se barrar esse certo saber sobre a psicose, de forma que o
imperativo do gozo do Outro da psicose, à coordenador evite uma postura de professor

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ou educador, de pai ou de médico. O A psicose é produtora de certos efeitos de


inesperado manifesta-se e a imprevisibilidade linguagem. O psicótico redige um texto
é marca da psicose. fragmentado, com partição de significantes e
empilhamento de substantivos, o que
Para se dirigir uma oficina com psicóticos, tem- caracteriza a metáfora delirante. A
se de estar atento ao tipo muito particular e transformação da metáfora delirante em um
maciço de transferência que o vínculo com o texto, um escrito, é a função clínica desse tipo
psicótico propicia. É importante montar de trabalho com o psicótico, que torna possível
manobras e recuos estratégicos para lidar com abrir uma via secundária para um sujeito para
tal particularidade. quem faltou a via principal. A metáfora
delirante, que não cessa de funcionar como
Nas palavras de Greco (2004): tamponagem, substituição do que falta, não
significa que não possa funcionar como
“As oficinas com psicóticos agrupam produção de sentido e, muitas vezes, de efeito
singularidades tão explícitas que só nos resta poético. A criação nas oficinas de letras e jornal
escutar uma a uma. São muitas idéias, poemas, pretende, mesmo que não atinja o objetivo
recitações circulantes em meio aos delírios e
“literário”, atuar de forma diversa na cadeia
alucinações. São pacientes medicados, outros
discursiva do sujeito psicótico.
em quadros agudos, dispersos, querelantes,
sem limite. Trata-se de fazer conviver diferenças, Como coordenadores de uma oficina com
singularidades absolutas, inibições absurdas e psicóticos, deparamo-nos, por um lado, com
certezas plenas, em um espaço em que o laço a realidade do intratável da psicose, e, do
social é mais uma meta que pré- condição de outro, com as lições que podemos tirar da
trabalho”(Greco, 2004, p.85).
lógica das “soluções” ou das invenções da
psicose. É a posição de sujeito que supõe não
O oficineiro não é passivo. Pelo contrário, deve
saber.
implicar-se no processo criativo que
desencadeia, estar atento aos imprevistos e
A oficina de salão de beleza
tentar sustentar a proposta de uma atividade
do começo ao fim. Essa oficina consiste na apropriação de um
“salão de beleza” montado dentro da
A oficina de letras e jornal é um espaço de
instituição, na enfermaria feminina, com
convívio, criação e transformação, para o qual
material de doações. Nela, os estagiários
convergem experiências, descobertas e
realizam o cuidado da aparência das pacientes:
questionamentos no campo da palavra falada
fazem suas unhas, lavam e penteiam seu
e escrita. Não visa, portanto, a atingir uma
cabelo, etc. Em geral, as pacientes gostam
produção literária nem um produto final.
desse universo feminino e identificam-se com
ele, com batons, esmaltes, espelhos, escovas
Em seu livro “Coisa de Louco” (1998), Lúcia
e secadores de cabelo, maquiagem...
Castelo Branco aborda uma oficina de poesias
com psicóticos e afirma que loucura e a poesia
A atividade do salão de beleza faz com que o
se tangenciam. A mais nítida fronteira que se
coordenador tenha uma função próxima à de
estabelece entre o poeta e o psicótico é que
cuidador, já que deve estar aberto ao contato
o psicótico permanece, de certo modo,
corporal com a paciente. Tem um sentido
assujeitado a esse mundo de palavras, que
estético, de higienização, de convívio, de fazer
parece falar através dele, diferentemente do
borda na corporalidade do psicótico, tão
poeta, que pode fazer-se sujeito em meio à
maltratada na psicose. Tanto pode ser um
linguagem que o cerca.
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As Oficinas na Saúde Mental: Relato de uma Experiência na Internação

momento de prazer e bem-estar com o corpo relação afetiva que o psicótico estabelece com
quanto suscitar angústia e dificultar o manejo o outro é desestabilizada, imprevisível,
com a paciente. A concretude do corpo, sua despolarizada, apaixonada. Assim, ao mesmo
deflagração de realidade, sua marca inscrita tempo em que se mostra dotado de uma
no simbólico não se constituem na psicose. afeição quase pueril, pode fazer-se hostil.
O sujeito objetifica seu corpo, que, para ele, Ao passo que nos despimos de nossos
passa a ser lugar de inscrição do desejo do preconceitos, que, com a experiência,
outro, nesse imperativo de gozo próprio da desmitificamos a psicose, vamos aperfeiçoando
psicose. a forma de manejo com esses pacientes. È
justamente aqui que se situa o
Nessa deficiência, imprecisão de limite entre incompreendido, o intratável da psicose, é no
o próprio corpo e o corpo do outro, através ponto em que o enigma se faz na falta de
da oficina, a paciente pode experimentar a sentido, que a nossa lógica não alcança. Fica-
sensação corporal como um elemento nos claro que é o medo inconsciente da nossa
constitutivo de sua imagem corporal, própria “loucura” que nos ameaça.
identificadora, que limita, contém, contorna,
separa. No lugar de serem cuidadas, as Aprendemos, com a loucura alheia, a
pacientes passam a se cuidar e a cuidar umas precariedade de nossos pensamentos, a
das outras, estimuladas pelo ambiente do salão transitoriedade de nossas percepções e
de beleza. identidades, a intensidade como experiência
e a vivência de ruína.
Não devemos, enquanto oficineiros, lidar com
a “corporalidade” do psicótico Mais que respostas, essa experiência suscita
desavisadamente. A atenção e o várias perguntas: como legitimarmos a
conhecimento da psicose são indispensáveis. experiência das oficinas para que realmente
À medida que trabalhamos com psicóticos, se constituam em espaço de cidadania para
vemos que a loucura não é só sofrimento: é os sujeitos? Qual a postura ética do
uma solução, um modo de existência próprio, coordenador das oficinas?
que faz suplência ao insuportável. Por isso, a

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (4), 626-635


635
Teresa Cristina Paulino de Mendonça PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (4), 626-635

Teresa Cristina Paulino de Mendonça

Formanda de Psicologia – PUC – São Gabriel – 10º período


Rua Santa Helena, 115 apt 103 - Bairro Serra
E-mail: teresamendonca25@yahoo.com.br
30220-240 Belo Horizonte/MG

Recebido 11/04/05 Reformulado 03/10/05 Aprovado 28/11/05

Referências
BRANCO, L.C. Coisa de Louco. Belo Horizonte: Mazza, 1998. GUERRA, A. M. C. Oficinas em Saúde Mental: Percurso de uma
História, Fundamentos de uma Prática. In Oficinas Terapêuticas
GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: em Saúde Mental - Sujeito, Produção e Cidadania. Rio de Janeiro:
Perspectiva, 1974. Contracapa, 2004.

GRECO, M.G. Oficina: uma Questão de Lugar? In Oficinas MARCOS, C. M. A Reinvenção do Cotidiano e a Clínica Possível
Terapêuticas em Saúde Mental - Sujeito, Produção e Cidadania.
nos Serviços Residenciais Terapêuticos (não editado) 2004.
Rio de Janeiro: Contracapa, 2004.

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