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Teresa Cristina
Paulino
de Mendonça
Pontifícia
Universidade Católica
de Minas Gerais
Experiência
com a sociedade e de circular em seus paciente psicótico foi alijado da sociedade junto 2CAPS – Centro de
Atenção Psicossocial
espaços, nos quais a comunidade também a outros excluídos, contraventores, leprosos,
circula. Pode-se mencionar, a título de ladrões, prostitutas. Internava-se sem vocação 3 CERSAMs – Centros de
Referência em Saúde
ilustração, a apresentação do espetáculo do médica, simplesmente para excluir os Mental
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As Oficinas na Saúde Mental: Relato de uma Experiência na Internação
alternativa de modificação do cotidiano e Desde que não ofereça riscos para o paciente
algum enodamento possível desse eu, onde e para os outros, as famílias são parceiras no
o sujeito psicótico cria soluções que enlaçam tratamento e convidadas a participar, até
real e simbólico na produção de um objeto mesmo adentrar o espaço institucional e suas
imaginário. atividades. Da mesma forma, para o paciente,
conforme o caso, a internação não é rígida e
“È na densidade de um objeto criado que a pode constituir-se numa ponte entre a vida
possibilidade de construção e circunscrição de privada e a social.
um certo excedente libidinal se dá. A tarefa
dos oficineiros é retornar esse excedente, esse Nas oficinas, os pacientes podem apropriar-se
mais de gozo, enquanto trabalho do próprio do ambiente do hospital e incrementar as
psicótico” (Guerra, 2004, p.55). trocas relacionais. O pátio, os jardins, o centro
cultural, o salão de beleza, a biblioteca, lugares
A vida nos manicômios é organizada a partir do hospital que os pacientes não usam com
de uma funcionalidade em que até mesmo a freqüência são ocupados. Oferecem-se
ocupação física dos espaços é regida por uma atividades socioculturais, como cinema,
lei que busca banir o imprevisto e o acidente música, teatro, partida de futebol entre
a fim de manter a ordem. instituições, festas comemorativas e outros
eventos. Recentemente, realizou-se o desfile
A ênfase no Todos os aspectos da vida desenvolvem-se no “Moda Primavera-Verão do HRS”. Para exibir
espaço relacional mesmo lugar, em contato com grande número
e na reinvenção as novas roupas dos pacientes internos do
do cotidiano do de pessoas, e são regulados por regras hospital, confeccionadas pela divisão de
hospital, no poder explícitas e formais; não há possibilidade de costura da instituição, foi produzido um desfile
de decisão sobre existência do próprio, do particular, do singular.
suas atividades e dos pacientes.
no uso do direito O imprevisto e o incidente são banidos ou
de ir e vir abafados, no hospital, através da contenção A ênfase no espaço relacional e na reinvenção
fundamenta a dos técnicos e da instituição, através de uma
nova prática de
do cotidiano do hospital, no poder de decisão
reabilitação do burocracia autoritária e de regras coercitivas. sobre suas atividades e no uso do direito de ir
paciente “As instituições hospitalares têm um ritmo de e vir fundamenta a nova prática de reabilitação
psiquiátrico na vida estanque, ao passo que é no imprevisto e
instituição.
do paciente psiquiátrico na instituição. A
no incidente que pode haver lugar para o possibilidade desses sujeitos de se expressar,
sujeito. É na dialética entre a rotina e o de explorar as relações e de circular como
imprevisto que o sujeito aparece, dando suas cidadãos é retomada, no seu sentido literal e
soluções e fazendo suas escolhas de vida” simbólico, como rede subjetiva que sustenta
(Marcos, 2004, p.11). a inserção social.
A prática das oficinas, na internação, propõe- “As práticas rotineiras são um processo constante
se a ser esse espaço da diversidade, da prática de apropriação do tempo e do espaço. Sendo
por muitos, da reinvenção do cotidiano assim, a regulação e o funcionamento do
(conceito desenvolvido em Marcos, 2004) cotidiano transformam-se em um recurso
que, dada a complexidade e a diversidade de terapêutico a mais na reabilitação psicossocial
manifestações da psicose, se torna um lugar do paciente, na recuperação do uso do próprio
de ampliação e acolhimento de vários corpo, do espaço e do tempo. O cotidiano pode,
discursos: o estético, o clínico e o político. então, funcionar como suplência à ordem
simbólica e como espaço de construção e
Nas novas abordagens do tratamento na saúde presentificação de um Outro menos invasivo
mental, o espaço da internação é flexibilizado. (Marcos, 2004, p.6).
Numa oficina de jornal no HRS, propôs-se, que há ali um sujeito com algo a dizer e a
certa vez, uma discussão entre os pacientes fazer, interessando-se por esse algo e
após a leitura de notícia sobre o tratamento esforçando-se por buscar um sentido nesse
de saúde na rede pública. Tal iniciativa fazer.
exemplifica a consciência e a argumentação
dos pacientes sobre sua cidadania. Eis parte O papel do coordenador
do que se escutou:
Tem-se combatido, nas novas abordagens do
_ “Aqui tem boa comida, mas a vida não se tratamento da loucura, o excesso dos discursos
resume só no dormir, tomar remédio e comer. psi (psiquiatria e Psicologia) e defendido o
Queremos mais atividades. Isso aqui parece trabalho das atividades nas instituições, nas
uma prisão”. oficinas, por exemplo, por profissionais de
outras áreas. É o caso das oficinas nos centros
Na interlocução, outro paciente comentou: de convivência coordenadas por artistas, por
_ “Fora dessas paredes, eu só sou um 22.” exemplo. Contudo, na internação, faz-se
A estagiária de Psicologia então perguntou: necessário, para um bom desempenho do
_ “O que é 22”? trabalho, que se compreendam as
particularidades da psicose e seu manejo.
Ao que o outro respondeu:
_ “22 é louco. Aí fora eu sou considerado A psicanálise é tomada, aqui, como a referência
louco”. teórica que melhor se aplica ao conhecimento
dos laços que o psicótico estabelece com o
E o que reivindicou mais atividade na Outro e sobre a dimensão clínica que abarca
internação disse: a prática exercida por muitos no tratamento
da psicose.
_ “Louco, não. Você é um incompreendido!”
As oficinas possibilitam uma apropriação da Coordenar uma oficina é estar à escuta de
história de vida desses sujeitos. Ao produzirem uma linguagem muitas vezes sem palavras, a
um texto, ao lerem ou recitarem um poema, partir da qual essas produções podem instituir
os pacientes muitas vezes se remetem ao seu canais de troca e encontro e criar novos
universos existenciais. As atividades devem ser
passado, compartilhando com os colegas sua
pensadas, planejadas e orientadas por
história de vida, histórias que sustentam
parâmetros éticos e estéticos e por uma
vivências de dor e sofrimento, de profunda
equipe interdisciplinar, conciliadora dos
angústia e desumanização. Por vezes
diversos discursos.
emocionam-se e fazem circular suas
lembranças, motivando, no outro também, a
Portanto, ser coordenador de oficinas com
expressão de relatos pessoais. Cada encontro psicóticos internados exige uma especificidade
é inusitado, e, no imprevisto, pode na mediação com o paciente. Entre a
proporcionar aprendizagem, produção, atividade, o que ela pode representar para o
intercâmbio, ampliação das relações e paciente no seu cotidiano e o próprio paciente,
mergulho no universo cultural, permitindo ao coloca-se o coordenador, que deve estar ciente
sujeito escapar à imposição do que é de seu papel. Neste, incluem-se o manejo da
massificado em sua rotina, ao mesmo tempo relação com o psicótico e a consciência dos
oferecendo resistência ao que é singular e efeitos da oficina para o paciente. É a teoria
próprio desse sujeito. O trabalho de que medeia a relação entre o coordenador e
coordenador das oficinas é o de acolher os o paciente, seu conhecimento sobre a psicose
sons, as falas, as formas, os atos, afirmando e o lugar que a oficina ocupa na internação.
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As Oficinas na Saúde Mental: Relato de uma Experiência na Internação
momento de prazer e bem-estar com o corpo relação afetiva que o psicótico estabelece com
quanto suscitar angústia e dificultar o manejo o outro é desestabilizada, imprevisível,
com a paciente. A concretude do corpo, sua despolarizada, apaixonada. Assim, ao mesmo
deflagração de realidade, sua marca inscrita tempo em que se mostra dotado de uma
no simbólico não se constituem na psicose. afeição quase pueril, pode fazer-se hostil.
O sujeito objetifica seu corpo, que, para ele, Ao passo que nos despimos de nossos
passa a ser lugar de inscrição do desejo do preconceitos, que, com a experiência,
outro, nesse imperativo de gozo próprio da desmitificamos a psicose, vamos aperfeiçoando
psicose. a forma de manejo com esses pacientes. È
justamente aqui que se situa o
Nessa deficiência, imprecisão de limite entre incompreendido, o intratável da psicose, é no
o próprio corpo e o corpo do outro, através ponto em que o enigma se faz na falta de
da oficina, a paciente pode experimentar a sentido, que a nossa lógica não alcança. Fica-
sensação corporal como um elemento nos claro que é o medo inconsciente da nossa
constitutivo de sua imagem corporal, própria “loucura” que nos ameaça.
identificadora, que limita, contém, contorna,
separa. No lugar de serem cuidadas, as Aprendemos, com a loucura alheia, a
pacientes passam a se cuidar e a cuidar umas precariedade de nossos pensamentos, a
das outras, estimuladas pelo ambiente do salão transitoriedade de nossas percepções e
de beleza. identidades, a intensidade como experiência
e a vivência de ruína.
Não devemos, enquanto oficineiros, lidar com
a “corporalidade” do psicótico Mais que respostas, essa experiência suscita
desavisadamente. A atenção e o várias perguntas: como legitimarmos a
conhecimento da psicose são indispensáveis. experiência das oficinas para que realmente
À medida que trabalhamos com psicóticos, se constituam em espaço de cidadania para
vemos que a loucura não é só sofrimento: é os sujeitos? Qual a postura ética do
uma solução, um modo de existência próprio, coordenador das oficinas?
que faz suplência ao insuportável. Por isso, a
Referências
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Terapêuticas em Saúde Mental - Sujeito, Produção e Cidadania.
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