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Filosofia Contemporânea 2020/2021

Maurizio Lazzarato, O Governo do Homem Endividado (Renda lucro


e imposto – três aparelhos de captura) - Relação com a obra de Nietzsche, A
Genealogia da Moral e com a obra de Slorterdijk, Tens de mudar de vida.

Pretende este estudo apresentar alguns aspetos fundamentais da economia da dívida e do homem
devedor a partir do Segundo Ensaio da Genealogia da Moral de Nietzsche, considerando perspetivas
de Lazzarato, Schopenhauer, Sloterdijk e Foucault na condução de comportamentos e sobre o
controlo das partes económicas.

“O que acontece ao homem individuado na crise? Qual a sua principal atividade? A resposta
é muito simples: ele paga. Ele deve expiar sua falta – a dívida – pagando sem cessar impostos,
porém não apenas com impostos”1.

As crises financeiras recorrentes levam-nos a questionar a figura do homem endividado,


devedor, culpado do seu destino, que toma sobre si os encargos da crise económica e financeira e
que interioriza um papel em função do que lhe é transmitido pelas empresas e pelo estado.
Lazzarato2 parece reforçar esta ideia de existência de luta entre classes na Europa em torno da
política da dívida, que se verifica na condução de comportamentos pela relação entre credor-
devedor, em que todos são devedores da dívida publica, dívida esta paga em impostos por dever,
sendo por isso considerada um mecanismo de exploração dos cidadãos.

Desde 2008, com a queda do muro de Berlim e com o Neoliberalismo por toda a parte se
acentuaram divisões e surgiu a crise da dívida em termos globais. Com a crise de 2018, verifica-se na
Europa uma sucessão de divisões materializadas em campanhas contra refugiados e emigrantes, em
partidos de extrema direita e em separações como foi o caso da Inglaterra da Europa. Note-se que é
apontado que as sucessivas crises têm a sua origem na corrupção de elites que consequentemente
levam os salários aos mínimos, privatizam o que é possível e cortam nos serviços sociais. Contudo,
questões mais profundas se levantam sobre como é que o individuo se estabelece numa relação
intersubjetiva com os outros, sobretudo a partir da fenomenologia. Verifica-se que com a politica da
dívida surgiram novos problemas com a divisão do mundo em classes, ordens, géneros e raças em
1
Maurizio Lazzarato, O Governo do Homem Endividado p. 27.
2
Maurizio Lazzarato, O Governo do Homem Endividado p. 35.

1
torno da moeda, do crédito e da dívida. Questiona-se, cada vez mais, a relação entre a volatilidade
dos preços das ações de grupos de empresas e os cidadãos e como é possível que esta afete
funcionários precários e desempregados e que pelo simples facto de existirmos já sejamos colocados
na condição de devedores3. Tornou-se, por isso, urgente analisar a economia da dívida e o que é
produzido pelo homem devedor num mundo de intersubjetividade, bem como qual o seu papel nas
continuadas e recorrentes crises que se têm vindo a manifestar, principalmente naquelas assentes
em não relações entre dominantes e dominados.

Destacam-se a questão que Nietzsche coloca sobre como surgiu a experiência do dever e a ideia
de que existe um conjunto de regras que cada um de nós tem que respeitar para se tornar um ser
moral que sabe prometer e cumprir o que promete. De forma semelhante e como que diria Kant 4 o
sujeito moral é aquele que age segundo o dever. Contudo e de acordo com Nietzsche 5, porque
ninguém espontaneamente promete o que quer que seja para alguém o fazer é preciso ser
ensinado, sendo para isso necessário exercer sobre este um ato de crueldade. Assim, ainda de
acordo com o autor, só prometemos aquilo que alguém nos obriga a prometer, e para aceitarmos
essa condição de prometedores, somos sujeitos a atos de crueldade, por nos terem impregnado o
sentimento de dívida. Fica assim gravado na carne do homem a necessidade de prometer que o
eleva ao estatuto de quem sabe prometer pela instauração em si de uma dívida, ficando assim a
condição humana definida na figura da promessa e dever de gratidão. É apontado como hipóteses o
paradigma social não ser definido pela troca mas pelo crédito ou a dívida ser produzida pelo sujeito
devedor e associada à sua moralidade, como se economia e ética funcionassem conjuntamente.

Contudo, se o bem não é condicionado, quem refere o dever de gratidão é também, junto com
quem é instaurado, condicionado e, por conseguinte, não libertador mas instaurador do poder de
gratidão para com a própria vida, tornando os outros escravos e não livres e conscientes, como de
facto são. Outra possibilidade é a necessidade de se prometer ocorrer nos seres por ter sido
instaurada por eles próprios na sua própria carne a condição de devedores não porque receberam
algo de facto mas porque assim julgam ter recebido.

O tema da dívida permite pensar sobre o que é estar com os outros e o que é estar aberto ao
mundo da intersubjetividade e em termos mais objetivos, permite questionar o que é e como se
estabelece uma relação entre duas pessoas. Tendo em conta que o ser humano é um ser social num
mundo em que as consciências partilham significados e pensamentos, as experiências tornaram

3
Peter Sloterdijk, Repensar o Imposto.
4
Kant, Crítica da Razao Prática.
5
Frederich Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação.

2
possível o cuidar do outro de forma vulnerável e com essa abertura e interligação ir construindo a
uma singularidade. Relacionando esta questão com a economia da dívida entra-se assim no âmbito
das relações primordiais entre seres humanos, onde a relação que as pessoas estabelecem entre si
tem origem numa experiência da dívida que pode assumir diversas figuras pelo fato de se constituir
uma vida autónoma.

Lazzarato vai inspirar-se na tese de Nietzsche de que toda a relação politica na sua raiz é uma
relação de poder, de domínio, de apropriação. No âmbito da filosofia da dívida questiona a origem
da moral e das normas, reconhece que usamos a palavra dever no sentido puramente moral e que
cada um de nós tem deveres e obrigações por fazer parte de uma comunidade que nos permitem
elevar à condição de sujeito moral por respeitarmos e cumprirmos esses deveres:

“Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse mundo de conceitos
morais está o foco de origem desse mundo de conceitos morais: “culpa”, “consciência”, “dever”,
“sacralidade do dever” – o seu início, como o início de tudo grande na terra, foi largamente
banhado de sangue”6.

Assim, percebe-se que no conceito de dever está o conceito da dívida e que na origem da moral
está a culpa, sendo esta a descoberta de um sentimento originário de uma culpa por nos
descobrirmos culpados.

Seja como for é possível, de acordo com a tradição contratualista, um contrato social que parte
do princípio que as relações fundadoras das comunidades humanas são de troca de bens
equivalentes e de partilha, contrato este que poderá até estar na origem de todas as comunidades:

“By now, of course, the government provides all sorts of things. All of this is said to go back
to some sort of original "social contract" that everyone somehow agreed on...” 7.

Contudo, segundo a visão de Lazzarato8 há que se romper com esta tradição sociológica e pensar
o fundamento de uma comunidade politica não a partir da troca e partilha:

“Governments use taxes to create money, and they are able to do so because they have
become the guardians of the debt that all citizens have to one another. This debt is the essence
of society itself. It exists long before money and markets, and money and markets themselves
are simply ways of chopping pieces of it up”9.

6
Frederich Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação p. 55.
7
David Grammer, Debt p. 55.
8
Maurizio Lazzarato, Fabrica do Homem Endividado.
9
David Grammer, Debt p. 56.

3
Nesta perspetiva, a relação com outros não é relação de troca em harmonia, de solidariedade e
partilha mas antes um olhar diante do outro que é a própria condição de ser culpado por ser um
devedor e de estar a dever. A dívida originária é, segundo Nietzsche, primeiramente um gesto de
apropriação de um grupo dominante que por ter mais força, se apropria dos bens de outro através
de um gesto de crueldade que ao mesmo tempo impõe uma dívida por esta expropriação. Neste
sentido muda-se, por um lado, a raiz de grande parte das concepções sobre a origem de todas as
comunidades que passam a estar num gesto político de subjugação e subordinação. Por outro lado,
estas experiências de domínio, de subjugação, de crueldade, que se verificam em todas as
comunidades humanas não são apenas desvios esporádicos da harmonia inicial que é quebrada mas
tem a dívida como ponto fundador, constatando-se que há assimetrias entre as pessoas.

Eis que Nietzsche, ao tentar analisar a origem do sentimento de dívida, é conduzido ao


sentimento de culpa e estabelece uma relação na medida em que ambos podem ter o mesmo
significado. Assim, a culpa é um sentimento de se estar a dever que pressupõe uma consciência de
culpa, a má consciência, porque alguém instaurou em nós uma culpa em relação a uma ação que
não se consegue realizar mas a que se estava obrigado. Ou ainda, um olhar com remorso para um
passado e um perceber que já estamos condenados a sofrer as consequências. Nesta perspetiva,
apesar de ser possível em cada momento viver como se se quisesse viver o instante um número
infinito de vezes para toda a eternidade, nem toda a consciência culpada fixada no passado o
consegue fazer.

Nietzsche põe em jogo o conceito fundamental de promessa, na medida em que abandonamos a


nossa condição de simples animais e nos elevamos à condição de seres humanos a partir do
momento em que fazemos promessas:

“Criar um animal que pode fazer promessas - não é esta a tarefa paradoxal que a
natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do
homem?... O facto de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer
ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo
contrario, a do esquecimento”10.

Um elemento fundamental da capacidade de fazer promessas prende-se com a capacidade


de esquecer o que nos aconteceu antes, o que nos rodeia e as nossas circunstâncias presentes, de
forma a ser possível uma orientação da consciência para o futuro. Contudo, não se trata apenas de
um esquecimento por distração, mas sim uma faculdade, uma força inibidora ativa graças à qual o
que é por nós experimentado, em nós acolhido não penetra na nossa consciência. Permite-nos,

10
Frederich Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação.

4
assim, fechar temporariamente as portas ao mundo para que a nossa consciência fique inteiramente
orientada para o ato de fazer promessas. Para além da ideia de promessa a proposta de Nietzsche
constitui uma moral afirmativa alternativa, na sua formulação, à moral do dever de Kant e à moral
de empatia de Schopenhauer na medida em que vai tornar explicito que o mecanismo de construção
de regras para cada um de nós não se baseia em mandamentos divinos nem em leis traduzidas pelo
governo, mas sim no ato de prometer com as faculdades esquecimento ativo e memória da vontade.
Conforme a dimensão psicológica da teoria da promessa é necessário desenvolver uma faculdade
oposta ao esquecimento que é uma segunda memória, não do passado mas uma memória do
futuro com cujo auxilio o esquecimento ativo é suspenso, nos casos em que se deve prometer. É
uma verdadeira memória da vontade na medida em que é um prosseguir querendo aquilo que já se
quis, de modo a que o querer não é apenas o ter querido mas uma cadeia continua do ato de
vontade que resulta no cumprimento da promessa. A compreensão disto mostra que o homem
autónomo é o homem que sabe fazer promessas, desenvolve a memória da vontade e mantém sem
que se rompa, essa longa cadeia do querer, transformando-se a si próprio num ser necessário e
confiável, através de anos de antropotecnia 11, de cuidar de si. Com efeito, de acordo com Nietzsche,
sabermos a cada momento o que é casual e o que é necessário, ao mesmo tempo que pensamos de
maneira causal e sabemos que aquilo que fazemos produz efeitos, é uma longa aprendizagem. Neste
sentido, agir sempre a pensar no efeito da ação e a antecipar o distante como se fosse presente,
estabelecendo com segurança os fins e os meios e aprendendo a calcular, a confiar, a contar e a
fazer promessas, implica envolver na memória da vontade outras pessoas e a aprender a confiar nas
com quem se estabelecerem vínculos para o futuro.

Compreende-se, neste sentido um plano coletivo em que uns indivíduos podem transformar
outos em seres iguais entre iguais, necessários, constantes e portanto confiáveis, atuando uns sobre
os outros. Assim, com a ajuda da moralidade do costume, o homem foi tornando-se confiável desde
a pré-história da Humanidade, pelo que houve todo um trabalho da moralidade das regras, práticas
e partilhas por uma comunidade, bem como das camisas de força especiais que condicionam
comportamentos. Por outro lado, houve desde a pré-história tirania, dureza e estupidez, mas sem as
quais, segundo Nietzsche não seria possível encontrar o individuo soberano, igual apenas a si
mesmo, novamente liberto da moralidade do costume, autónomo, supramoral, homem de vontade
própria, duradoura e independente, que pode fazer promessas.

11
Peter Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida.

5
“- e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do
que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e
liberdade, um sentimento de realização”12.

Neste trecho note-se que o homem soberano se elevou à capacidade do livre arbítrio ao qual é
permitido prometer, não está portanto determinado, sabe o que vai acontecer e da sua
superioridade sobre todos aqueles que não podem prometer e responder por si, despertando por
isso reverência, confiança e temor. Contudo, há uma pré-história de milhares de anos em que se
foram criando condições para que alguns façam upgrades nesse processo de criar os homens que
sabem prometer até que seja quase instintiva e outros que ficam passivos dessas imposições cruéis
por sempre obrigados a prometer por estarem envolvidos em dívidas.

Consequentemente, não é possível criar-se em nós próprios o poder de prometer sem um


conjunto de atos de crueldade, não existindo nada de mais terrível e de mais inquietante na pré-
história do homem do que a sua antropotecnia. Atravessa milhares de anos em que se grava a fogo o
que não cessa de causar dor, desde as mais repugnantes mutilações, castrações e cruéis rituais,
tendo como origem o instinto que tem na dor o mais poderoso auxiliar da memória e que inclui o
ascetismo como meio para livrar ideias fixas da concorrência de todas as demais, tornando-as
inesquecíveis.

Verifica-se que quanto pior a memória da humanidade tanto mais terrível é o aspeto dos seus
costumes, em especial a dureza das suas leis penais, dando-nos uma medida do esforço que custou
vencer o esquecimento. Os sistemas penais, a legislação e a sua história são formas de crueldade
para imprimir no corpo do homem a memória das leis, daquilo que ele tem que prometer sem
vontade e cumprir obrigado13. Com efeito, só nos tornamos racionais como consequência de muita
crueldade, não sendo por isso, a racionalidade uma faculdade que nasça com o homem e o orienta
para o bem. O domínio sobre os afetos, o sangue e o horror que há no fundo de todas as coisas boas
do homem, são o seu alto preço.

Esta tese célebre fez de Nietzsche um pensador de referência para todo o século XX. Trata de
contrariar terrivelmente toda a tradição de bem da história da filosofia, uma vez que não há
bondade e os homens bons não são os que praticam a bondade mas aqueles que já se elevaram à tal
soberania, à autonomia e que se sentem no direito de se chamar a si próprios bons por oposição aos
homens maus, que têm vontades fracas e que mentem no ato de prometer. Por outro lado, assenta
na necessidade de fazer sofrer os homens que devido às relações de dívida estabelecidas se vêm
12
Frederich Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda Dissertação, p. 49.
13
Michel Foucault, Vigiar e Punir.

6
numa relação de devedor com obrigação de pagar por obrigação os seus bens, sendo assim sujeitos
a um conjunto de experiências de crueldade em nome da figura da divida.

Atualmente é possível relacionar a dívida com a destruição das economias devido à falência em
cascata de bancos e companhias de seguros, que tiveram que ser intervencionadas pelos
orçamentos públicos, e que consequentemente levaram o estado a aumentar os impostos dos
cidadãos para os injetar nessas entidades. Como resultado do surgimento da dívida e das
denominadas crises das dívidas soberanas é possível verificar-se desinvestimentos nos sistemas de
educação e nos sistemas de asúde, trazendo assim consequências nos serviços prestados, muitas
vezes não restituídos e que estão na origem das más circunstâncias em que economias europeias se
encontram. O desconforto que estamos a perceber todos os dias com a pandemia que estamos a
viver no mundo tem em grande parte a ver com o facto das economias europeias estarem nas piores
circunstâncias para a enfrentar, algumas completamente em caos depois do horror que foi a lógica
de uma dívida infinita que tínhamos que pagar a bancos em insolvência.

Nesta perspetiva, é possível que o poder soberano nunca tenha desaparecido e a história de que
passamos de uma sociedade de guerra para uma sociedade de governamentalidade pode não ser
verdadeira. Por outro lado, tendo em conta que as práticas de governação não é para a
sobrevivência de um soberano, mas tendo vista a sobrevivência de uma população (necessidade
biológica), o poder exerce-se ao nível da vida, ao nível da espécie, ao nível da raça e dos fenômenos
massivos da população. Assim, se hoje há genocídios e mortes sistemáticas de enormes conjuntos de
populações pode bem ser porque se governa em nome da população, em nome das vidas das
populações que se querem proteger e não porque não se não se respeitam as populações.

Todavia, já antes da crise da dívida soberana os seres humanos se tornavam devedores e


contraiam dívidas por serem obrigados a isso, sendo colocados cruelmente contra sua vontade na
obrigação de cumprir promessas de pagar. Por outro lado, a política da dívida alarga-se a outros
aspetos da vida do homem com deveres políticos quando muitas vezes a dívida é puramente
abstrata e em substância instaurada no individuo pelo sentimento de este estar a dever alguma
coisa a quem o obrigou aquela condição de estar a dever. Continuando, com o objeto de se perceber
como é que a política se transformou numa simples gestão da saúde dos cidadãos, tornou-se
novamente essencial analisar o que é o neoliberalismo, para se perceber e enquadrar o fenómeno
da dívida. Sendo a vida um ministério e nós sabendo que se saí dela sem atingir a fímbria do
mistério, parece-me ser legítimo respeitar a vida enquanto privilégio por sermos mortais. Contudo,
sendo a governação e o regime da governamentalidade uma forma de exercer o controlo sobre os

7
indivíduos em nome da proteção das suas vidas e de critérios sanitários, pode questionar-se sobre a
sua legitimidade.

Elaborado por:
- Tânia Jesus
- Nº 156455
Filosofia Contemporânea 2020/2021

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