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ANTROPOLOGIA

TEOLÓGICA E
DIREITOS
HUMANOS

Enir Cigognini
Humanismo cristão
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Definir os desafios da justiça nos campos técnico-científico, social e


político.
 Identificar os compromissos sociais da doutrina social da Igreja.
 Conceituar bem comum como princípio do humanismo cristão.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar a definição de justiça para a tradição cristã
católica, a partir de um ramo da teologia denominado moral social. Com
isso, vai ser capaz de definir os desafios nos campos técnico-científico,
social e político. Você vai, ainda, identificar os compromissos sociais assu-
midos pela Doutrina Social da Igreja e, por fim, conceituar um princípio
bastante caro ao humanismo cristão: o bem comum.

Desafios à justiça
É comum que as pessoas clamem por justiça. Dificilmente algum cidadão
pediria que a injustiça fosse instaurada. Entretanto, se você perguntar às
pessoas que pedem que a justiça seja feita o que é justiça, corre o risco de
ficar um pouco assustado com tamanha diversidade de perspectivas. Antes
de definirmos os desafios enfrentados pela justiça, é importante verificar o
que a Doutrina Social da Igreja define como justiça.
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O Compêndio de Doutrina Social da Igreja (CDSI) coloca a justiça como


um dos valores fundamentais da vida social. Junto à verdade, à liberdade e
ao amor, está a justiça. Dessa maneira, já é possível perceber a importância
dada à justiça. Sobre ela, o CDSI afirma o seguinte:

A justiça é um valor, [...] Segundo a sua formulação mais clássica, “ela consiste
na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido”. Do
ponto de vista subjetivo a justiça se traduz na atitude determinada pela vontade
de reconhecer o outro como pessoa, ao passo que, do ponto de vista objetivo,
essa constitui o critério determinante da moralidade no âmbito intersubjetivo e
social (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004, documento on-line).

Como você pode perceber, a ideia de valor por si só já fundamentaria a


importância daquilo que é justo. A definição amplia a ideia de valor a partir,
especialmente, do conceito de alteridade. Na verdade, trata-se de um duplo
conceito de alteridade, que, em um sentido geral, leva ao reconhecimento e à
valorização de toda pessoa humana e, em um sentido estrito, corresponde a
uma alteridade absoluta, no tácito reconhecimento da divindade.
Outro aspecto sumamente importante é dar a cada alteridade o que lhe é
devido. Aqui, é essencial perceber que não se trata de uma questão de merito-
cracia nem de autonegação em vista do outro. A cada um é devido o respeito
pela dignidade, o reconhecimento da liberdade e a corresponsabilidade.
De posse dessas definições, você pode começar a perceber quais seriam os
desafios que se apresentam à justiça. Aqui, vamos estudar alguns, mas você pode
encontrar muitos outros. O primeiro e mais latente desafio à justiça é o egoísmo;
isso porque ele anula justamente o aspecto de alteridade, tão necessário à ideia de
justiça. Indivíduos que pensam apenas em si criam obstáculos à capacidade social
que a humanidade possui e dificultam a construção de uma sociedade melhor
para todos. Um sinal visível disso é o abismo econômico que separa uma minoria,
possuidora de quase tudo, de uma maioria, que reparte o quase nada que sobra.

Outro aspecto que pode ser um risco à justiça pode ser verificado no uso dos dados
pela sociedade em rede. Nos tempos atuais, com o uso das novas tecnologias, é
praticamente impossível ter algum nível de privacidade. Não que a tecnologia seja
má; ela é uma ferramenta. Uma ferramenta nem boa, nem má em si mesma, mas que
depende do uso que dela a humanidade faz.
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O individualismo egolátrico pode ser observado em vários campos. No


campo técnico-científico, por exemplo, é muito comum vermos nos noticiários
casos de pessoas que morrem por procedimentos estéticos, ou largos inves-
timentos em pesquisas para melhoramento estético, ao passo que algumas
doenças comuns carecem de cura por falta de recursos para pesquisas na
área. No campo social, você já deve ter percebido situações nas quais muitas
pessoas se preocupam apenas com o seu bem-estar, independentemente do
bem-estar dos demais, ou mesmo das futuras gerações. Muitas vezes, isso gera,
por exemplo, a degradação ambiental. No campo político, apenas para citar
um dos inúmeros exemplos, vemos a partidarização e a consequente busca de
interesses próprios pelos políticos, que esquecem da real missão que lhes cabe.
A questão ambiental é um aspecto marcante dessa reflexão. O esgota-
mento das reservas disponíveis coloca em risco a sobrevivência das próximas
gerações. Não se trata apenas de uma preocupação genérica e externa com
a questão. Trata-se de um compromisso antropológico com os demais seres
humanos. Não raro, observa-se a preocupação apenas com os lucros oriundos
da exploração do ambiente, ainda que isso inviabilize a vida humana para o
futuro. Nesse sentido, muito se investe em pesquisas e viagens interplanetárias,
quando o próprio planeta sofre com a falta de cuidados que só o ser humano
pode oferecer.
Outro grande desafio à justiça, de certa forma ligado à ganância humana,
é o elevado nível de corrupção. A corrupção, mais do que um ato externo,
é um ato interno, que corrompe a própria pessoa humana, desfigurando sua
dignidade. É claro que a corrupção pública e política é muito mais escandalosa
e de consequências terríveis para todos, entretanto, é importante notar que ela
é reflexo de atitudes que, muitas vezes, no quotidiano, são tomadas por muitas
pessoas. Uma coisa é não devolver o troco que é entregue a mais por erro de
alguém, e outra, obviamente, é o desvio de milhões de reais; entretanto, o que
muda é o valor, porque a atitude interna de se dar bem em detrimento dos
demais é a mesma. Atualmente, a corrupção é um dos maiores desafios à justiça.
Por fim, o relativismo também se mostra como um desafio à justiça. Aqui
falamos da relativização da dignidade da pessoa humana, com a consequente
banalização da violência, do tráfico de pessoas, e, em especial, da intolerância.
São situações que, com toda certeza, você percebe na sociedade atual e, sem
sombra de dúvidas, são obstáculos à justiça.
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A desigualdade econômica é um desafio à justiça, como você pode perceber. Para


saber mais sobre o tema, pode comparar dados sobre a concentração de riqueza no
Brasil a partir de três notícias postadas em veículos de imprensa, duas delas do ano
de 2017, do site G1 e do site El País, e outra de 2018, do site UOL:

https://goo.gl/9YyTib

https://goo.gl/REWN2w

https://goo.gl/fbDVom

Compromissos sociais da Doutrina Social da Igreja


Diante da necessidade de construir a paz como fruto da justiça, a Igreja
assume a postura de Mãe e Mestra. Ela não apenas acolhe seus filhos, mas,
também, na sua larga experiência acumulada, educa os indivíduos nessa
construção. Para tanto, ela assume, na sua Doutrina Social, alguns com-
promissos sociais. Segundo a própria Igreja entende, são compromissos
emanados do ser cristão, não se tratando de qualquer posição contrária à
adesão a Jesus Cristo.

É tarefa de todas as pessoas que professam a fé cristã anunciar Jesus Cristo, caminho,
verdade e vida (BÍBLIA, 2003, Jo 14, 6). Essa atividade não se dá única e exclusivamente
pelo anúncio explícito da mensagem cristã. Ela é realizada por todos que, com as suas
atitudes, testemunham a novidade do evangelho.

Os compromissos que a Igreja convida a assumir são entendidos como servi-


ços. Não se trata de dominar o mundo, assumindo todos os poderes disponíveis.
Assumir o poder político pode ser tarefa da autonomia de cristãos, entretanto,
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não é um projeto eclesial. O Reino de Deus, como Jesus Cristo anunciou, não
é deste mundo. No mundo, há sinais do reinado divino, entretanto, não pode
haver confusão entre o Reino de Deus e o poder político das nações.
Com relação aos serviços que os cristãos devem prestar, o CDSI destaca que
eles fazem parte da espiritualidade própria do cristão leigo. “A presença do fiel
leigo no campo social é caracterizada pelo serviço, sinal e expressão da caridade
que se manifesta na vida familiar, cultural, profissional, econômica, política,
segundo perfis específicos” (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004,
documento on-line). Desse modo, aqui estão indicados os âmbitos de serviço que
os cristãos podem oferecer como testemunho da sua fidelidade a Jesus Cristo.
O primeiro compromisso em destaque no CDSI é o serviço à pessoa
humana. Dessa maneira, o documento entende que “[...] a promoção da dig-
nidade de toda pessoa, o bem mais precioso que o homem possui, é a tarefa
essencial, antes, em certo sentido é ‘a tarefa central e unificadora do serviço
que a Igreja, e nela os fiéis leigos, são chamados a prestar à família dos
homens’” (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004, documento
on-line). Essa posição faz recordar Santo Irineu, bispo de Lião, que afirmou,
no século II, ser o homem vivo a glória de Deus.
Em seguida, destaca-se o compromisso entendido como serviço à cultura,
pois esse é “[...]um campo particular de empenho dos fiéis leigos” (PONTIFÍ-
CIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004, documento on-line). Ele deve ser
entendido como “[...] o cultivo de uma cultura social e política inspirada no
Evangelho” (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004, documento
on-line). É claro que, ao falar de serviço à cultura, é importante dizer a que
exatamente o CDSI se refere. Assim o documento se expressa:

A perfeição integral da pessoa e o bem de toda a sociedade são os fins essen-


ciais da cultura: a dimensão ética da cultura é portanto uma prioridade na
ação social e política dos fiéis leigos. A desatenção a tal dimensão transforma
facilmente a cultura em um instrumento de empobrecimento da humanidade
(PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004, documento on-line).

A própria cultura deve favorecer a conduta ética, a valorização do ser


humano e o bem de todos. Assim sendo, o serviço pode assumir tarefas,
muitas vezes, de denúncia de sistemas culturais injustos, antiéticos e desu-
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manizadores. Daí a importância de o conteúdo da cultura ser verídico, e que


sejam valorizados a religiosidade e os meios de comunicação (PONTIFÍCIO
CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004).
Outro compromisso se refere ao serviço à economia. Nesse campo:

O empenho do cristão traduzir-se-á também no esforço de reflexão cultural


voltada sobretudo para um discernimento concernente aos atuais modelos de
desenvolvimento econômico-social. A redução da questão do desenvolvimento
a um problema exclusivamente técnico produziria um esvaziamento de seu
verdadeiro conteúdo que, na verdade, diz respeito à dignidade do homem e dos
povos (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004, documento on-line).

Não é suficiente qualquer ideia de desenvolvimento. É preciso que este


considere o ser humano em sua integralidade. Por isso, são incentivadas, a
partir da inspiração cristã, as “[...] associações de trabalhadores, de empre-
endedores e de economistas” (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ,
2004, documento on-line).
Por fim, o quarto compromisso se apresenta como serviço à política. A
atividade política é entendida pelo CDSI como arte de servir aos outros. Não
é carreira, ou mesmo promoção pessoal. Resgata-se o significado clássico da
atividade política, um tipo de arte em prol do bem comum. Para tanto, há um
horizonte bem delineado no campo político:

A persecução do bem comum em um espírito de serviço; o desenvolvimento


da justiça com uma atenção particular para com as situações de pobreza e
sofrimento; o respeito pela autonomia das realidades terrenas; o princípio
de subsidiariedade; a promoção do diálogo e da paz no horizonte da soli-
dariedade; são estas as orientações que os cristãos leigos devem inspirar
a sua ação política (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2004,
documento on-line).

Assim, o compromisso com a atividade política pode gerar o bem comum


e o desenvolvimento econômico e cultural.
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Não deixe de ler a instigante entrevista produzida pela BBC com Martin Hilbert sobre
coleta e uso de dados, privacidade e a relação dessas questões com a democracia,
disponível no link a seguir.

https://goo.gl/s23nhG

Acompanhe uma reflexão a partir do humanismo integral de Jacques Maritain e das


crises da cidadania, que pode ser conferida no link abaixo.

https://goo.gl/KSCQ5p

O vídeo disponível no link a seguir apresenta o resultado de um esforço coletivo que


já dura setenta anos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

https://goo.gl/3m8VD8

O filósofo francês Jacques Maritain (1882–1973) abraçou a fé católica já adulto, junta-


mente com sua esposa. Como pensador, defendeu um processo de educação que
forme a pessoa humana. Foi um árduo defensor da democracia e dos valores do
cristianismo. Por fim, foi um pensador humanista, defensor da dignidade humana, da
liberdade e do desenvolvimento da comunidade política.

Bem comum: princípio do humanismo cristão


A Doutrina Social da Igreja possui alguns princípios permanentes:

 a dignidade da pessoa humana, a partir da qual os demais princípios


encontram a sua razão de ser;
 o bem comum;
 a subsidiariedade;
 a solidariedade.
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Vinculado à dimensão da dignidade da pessoa humana, criada à imagem e


semelhança de Deus e convidada a participar da obra da criação e da redenção,
encontra-se o princípio do bem comum. A busca pelo bem comum não é uma
busca solitária: ela sempre diz respeito à coletividade. A Carta de Barnabé,
nos primeiros séculos do cristianismo, já exortava que os cristãos buscassem
juntos o que fosse interesse comum.
O Catecismo da Igreja Católica (CAIC) assim define bem comum: “[...] o
conjunto daquelas condições da vida social que permitem aos grupos e a cada
um de seus membros atingirem de maneira mais completa e desembaraça-
damente a própria perfeição” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS
DO BRASIL, 1998, p. 1906). É verdade que não se trata de tarefa simplista ou
individual — é necessário o envolvimento de cada um em torno de objetivos
comuns. Pensado desse modo, o bem comum possui, de acordo com o CAIC,
três elementos considerados essenciais:

 o respeito à pessoa;
 a exigência do bem-estar social e do desenvolvimento coletivo;
 a paz.

Tanto a sociedade como os poderes públicos são obrigados a respeitar os


valores inalienáveis da pessoa humana. É necessário permitir que todos possam
realizar o chamado que Deus faz a cada um. Isso implica a liberdade de agir de
acordo com a reta consciência, o direito à proteção da vida e, ainda, a liberdade
religiosa (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 1998).
Quanto ao bem-estar social e ao desenvolvimento, estão aqui implicadas duas
tarefas. A primeira é a tarefa das autoridades de arbitrar a multiplicidade dos
interesses particulares, tendo como foco o bem comum. A segunda é a tarefa da
sociedade de tornar acessível a cada indivíduo o que lhe é necessário para que
leve uma vida autenticamente humana, como: “[...] alimentação, vestuário, saúde,
trabalho, educação e cultura, informação conveniente, direito de fundar um lar
[...]” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 1998, p. 1908).
A paz é a condição de possibilidade de uma ordem justa e segura que seja
duradoura. Isso implica que as autoridades que governam assegurem aos cida-
dãos, com meios honestos, a segurança de todos e de cada um em particular e
fundamentem o direito à legítima defesa coletiva e pessoal (CATECISMO..., 1998).
É na comunidade política que o ser humano se realiza mais completamente.
Por isso, é responsabilidade do “[...] Estado defender e promover o bem co-
mum da sociedade civil” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO
BRASIL, 1998, p. 1910). Como o progresso das pessoas se coaduna com o
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progresso da sociedade, o bem comum é a finalidade última da existência da


vida em sociedade.

No link a seguir, consulte a reflexão do Papa Francisco sobre a necessidade de cuidado


para com o planeta.

https://goo.gl/kfJ39N

BÍBLIA. Bíblia de jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.


CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catecismo da igreja católica. São
Paulo: Editora Vozes: Paulinas: Edições Loyola: Ave Maria, 1998.
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da doutrina social da igreja. 2004.
Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/
documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html#O%20
servi%C3%A7o%20%C3%A0%20pessoa%20humana. Acesso em: 31 jan. 2019.

Leituras recomendadas
BEDOUELLE, G. Humanismo cristão. In: LACOSTE, J, Y. et al. Dicionário crítico de teologia.
São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Compêndio do catecismo da igreja
católica. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2005.
JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica: centesimus annus. 1991. Disponível em: http://
w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_
centesimus-annus.pdf. Acesso em: 31 jan. 2019.
JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica: sollicitudo rei socialis. 1987. Disponível em: http://
w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30121987_
sollicitudo-rei-socialis.pdf. Acesso em: 31 jan. 2019.

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