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Curso de Iniciação Cristã

Parte II – Os Mandamentos –
Aula 8 – Fundamentos da Moral Cristã

2022
Sumário
Parte II – A Vida em Cristo......................................................................................................... 2
Aula 8 – Fundamentos da Moral Cristã ...................................................................................... 2
Introdução ............................................................................................................................ 2
Percepção da moral cristã na atualidade ............................................................................... 2
A perspectiva da moral cristã ................................................................................................ 3
A metáfora do caminho......................................................................................................... 3
O caminho da Cruz ................................................................................................................ 4
Virtudes, Pecado e Graça ...................................................................................................... 4
Concluindo ............................................................................................................................ 5
Leitura Complementar: O Cristianismo é uma vida ................................................................ 6
Leitura Complementar II – Seguindo os Passos do Senhor ..................................................... 8

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Parte II – A Vida em Cristo

Aula 8 – Fundamentos da Moral Cristã


Introdução
Vimos na primeira parte de nosso curso a grandeza dos dons de Deus que foram derramados
em nós por meio da criação e, mais ainda, pela redenção e santificação. O que a fé professa, os
sacramentos celebram, como veremos na terceira parte. Com os sacramentos fomos feitos
filhos de Deus e participantes da natureza divina, o que exige de nós uma vida em conformidade
com tal dignidade. Essa vida digna de um cristão é o objeto de estudo desta segunda parte.
Começaremos estudando os fundamentos da moral cristã para depois analisarmos cada um dos
Mandamentos de Deus e perceber como todas nossas ações devem ser iluminadas pelo desejo
de identificarmo-nos com Cristo e cumprir a Vontade do Pai (cfr. CIC 1691-1698).

Percepção da moral cristã na atualidade


Os ensinamentos morais da Igreja são motivo de muitas críticas pela opinião pública e, muitas
vezes, pelos próprios católicos. Encara-se a Igreja como uma instituição que parece querer a
infelicidade da pessoa ao impor proibições, falar de pecado e de culpa e não ‘atualizar’ o seu
posicionamento moral de acordo com as ‘tendências do momento’. Podemos apontar dois
fatores principais por trás desse posicionamento preconceituoso e negativo com relação à moral
cristã: a apresentação legalista da moral, muitas vezes pela própria Igreja e uma mentalidade
relativista que defende a subjetividade por cima de qualquer ordenamento ético.

Em todo aprendizado, a pedagogia de ensino influi na compreensão e na assimilação do


conteúdo por parte dos que estão sendo ensinados. A moral cristã não foge a esta constatação:
seu aprendizado será tanto mais efetivo, quanto mais se conseguir traduzir os conceitos teóricos
em uma prática correspondente, uma vez que a moral ensina como devemos viver e orienta
nossa tomada de decisões. No entanto, a pedagogia que informou muitos dos esforços
educativos com relação à moral cristã nos últimos séculos, ainda presente hoje, é uma
pedagogia legalista, focada no ‘pode’ e no ‘não pode’, nas leis e nas suas sanções. Uma moral
legalista é opressora, pouco convidativa à sua prática. É vivida mais por medo das penalidades
do que por amor ao correto. Os manuais de moral com uma lista interminável de proibições para
cada um dos dez mandamentos, bem como o gosto pela casuística, ou seja, até onde se pode ir
sem cometer um pecado grave em determinada ação, são reflexos desse legalismo moral (cf.
Leitura Complementar 1 para uma análise mais aprofundada sobre este tema).

A mentalidade relativista, por sua vez, tem raízes mais complexas e influi mais decisivamente na
percepção do posicionamento moral da Igreja. Já comentamos como o Papa Bento XVI definiu
a ‘ditadura do relativismo’ como uma das grandes ameaças à fé nos tempos atuais. Em termos
morais, o relativismo defende a subjetividade do ‘eu’ de cada pessoa como critério de verdade,
negando a legitimidade de qualquer barreira ao comportamento humano, imposto por uma
ética que se fundamente fora do homem. Já não é contestação de um determinado ponto da
moral cristã, ou do rigor de um aspecto específico, mas da própria legitimidade de qualquer tipo
de moral. Como qualquer posicionamento que exalte o egocentrismo tem uma grande
probabilidade de se tornar popular, juntado ao fato de que no Ocidente perdeu-se a confiança
nos valores que informaram nossa sociedade, principalmente devido às tragédias humanitárias
do século XX, não é de se estranhar a relativização dos valores e da moral na atualidade.

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Estes dois fatores, portanto, forjaram uma visão limitada e preconceituosa da moral cristã
católica. Felizmente, muitos filósofos e o próprio magistério da Igreja se preocuparam em
apresentar o ensinamento perene da moral cristã numa ótica positiva, convidativa, que remonta
à moral clássica de Santo Tomás de Aquino. Pode-se encontrar na Encíclica Veritatis Splendor,
do Papa João Paulo II, um apanhado profundo dessa perspectiva moral fundada na dignidade da
pessoa humana e na sua orientação para Deus. O próprio Catecismo da Igreja Católica adota
essa perspectiva e, como já viemos fazendo, iremos acompanhar as grandes linhas apresentadas
no Catecismo também no âmbito da moral.

A perspectiva da moral cristã


A ética estuda os atos humanos deliberados. São os atos humanos voluntariamente realizados,
frutos de uma escolha, do uso da liberdade. Quando o homem atua dessa forma, busca com seu
atuar alcançar um fim, ou seja, por trás de uma escolha, sempre há um objetivo que se quer
obter. Muitos podem ser os objetivos imediatos, que apontam para outros mais genéricos. No
fim das contas, a finalidade buscada é a felicidade, a plena realização de si mesmo.

O desejo de felicidade no coração humano é de origem divina: Deus o colocou em nossos


corações para nos atrair a Si, único capaz de nos satisfazer (cfr. CIC 1718). O Papa João Paulo II
nos explica que: “O agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao
verdadeiro bem do homem e exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o
seu fim último, isto é, o próprio Deus: o bem supremo, no Qual o homem encontra a sua
felicidade plena e perfeita” (Veritatis Splendor, 72). Ter claro esse fim para o qual tendemos,
onde de fato nos realizamos, permite discernir qual o caminho a trilhar para chegarmos a essa
meta. A moral cristã justamente orienta o caminhar do homem para que em cada circunstância
de sua vida faça a escolha mais acertada, aquela que o fará felizes e o aproximará da bem-
aventurança do Céu.

A metáfora do caminho
A analogia com o ‘caminho’ e o ‘caminhar’ pode ser interessante para compreendermos alguns
importantes conceitos da moral cristã. O verbo ‘ir’, como bem sabemos, é um verbo transitivo:
quem vai, vai a algum lugar, ou seja, antes de começar a caminhar, precisa saber para onde está
indo. Depois, precisa pensar em qual o melhor caminho a seguir, que caminhos evitar para não
se perder. Por fim, precisa avaliar os meios que possui para empreender a viagem, se precisará
de alguma ajuda ou consegue chegar sozinho.

Nossa vida é esse caminhar. Muitas pessoas se encontram perdidas, caminham sem direção,
pois não sabem para onde ir. Buscam a felicidade em muitas coisas: riquezas, poder, prazeres...,
mas acabam percebendo a limitação dessas coisas e se frustram. O relativismo moral que
comentávamos anteriormente reflete essa generalizada desorientação: sem uma meta clara,
sem a orientação da verdade sobre o homem, qualquer caminho torna-se válido, ou melhor,
todos os caminhos são indiferentes.

A possibilidade de escolher entre diversos caminhos é o nosso livre-arbítrio. O Catecismo nos


diz que “pelo livre-arbítrio cada qual dispõe de si”. No entanto, apenas um caminho, aquele que
nos conduz à Deus, é o verdadeiro, ainda que haja muitas formas de o percorrer. O cristão sabe
que esse caminho passa por Jesus Cristo. Ele mesmo nos diz: “Eu Sou o Caminho, a Verdade e a
Vida, ninguém vem ao Pai senão por Mim” Jo 14, 6. Em Cristo, de fato, o problema moral humano
se resolve. Sendo Ele a Verdade, nos revela a nossa bem-aventurança e nos mostra, com seu
exemplo e suas palavras, o caminho que devemos seguir. Além disso, nos envia o Espírito e funda
a Igreja, que nos auxiliam a percorrer esse caminho, segundo nossa vocação particular.

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Se o livre-arbítrio é uma possibilidade de escolha, a liberdade cristã é a capacidade de percorrer
o caminho verdadeiro. A pessoa livre conhece a Vontade de Deus para sua vida e é capaz de
seguir essa Vontade. Muito se fala de liberdade hoje, mas não no sentido que estamos
apresentando. Fala-se de uma liberdade que é ‘fazer o que quiser’, seguindo os impulsos
pessoais, as paixões momentâneas, os gostos, muitas vezes balizado pelo desejo de prazer e
fuga da dor. Para a moral cristã isso não é liberdade, mas libertinagem. A liberdade está em ser
capaz de viver uma vida digna, pautada por valores e orientada para Deus e para o bem do
próximo. Cristo nos disse: “Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres” Jo 8, 32. De
fato, a liberdade cristã está intimamente ligada à verdade. É conhecendo a nossa vocação diante
de Deus, a verdade sobre nós mesmos, e cumprindo essa vontade que somos realmente livres.
A liberdade, portanto, não é algo dado, como o livre-arbítrio, mas algo conquistado e essa
conquista exige uma luta, como veremos a seguir.

O caminho da Cruz
Como comentamos, a vida de Cristo é um exemplo para nós e, assim como Ele teve que passar
pela Cruz, devemos nós também trilhar esse caminho. Isso significa que o caminhar do cristão
em direção à bem-aventurança não está isento de dificuldades.

Com a natureza ferida pelo pecado original, o homem encontra-se dividido em si mesmo:
conserva o desejo do bem, mas possui uma inclinação para o mal e está sujeito ao erro (cfr. CIC
1707). São Paulo expressou essa divisão interna de forma emblemática: “Vejo o bem que quero
e faço o mal que não quero: infeliz de mim, quem me livrará desse corpo de morte?” Rm 7, 19;
24. A plena realização moral constitui-se, portanto, numa luta. O caminho a seguir é um caminho
íngreme, que exige esforço. Também Jesus nos falou dessa exigência: “Entrei pela porta estreita,
pois larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição e numerosos são os que aí entram.
Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho da vida e raros são os que a encontram” Mt 7,
13-14. (cfr. Leitura complementar 2 sobre como a vida moral se identifica com o seguimento de
Jesus Cristo).

Virtudes, Pecado e Graça


Impulsionado pelo amor, uma pessoa é capaz de percorrer longos caminhos, ultrapassar muitos
obstáculos, para estar com a pessoa amada. Também o cristão no seu caminho em direção à
casa do Pai, que é a metáfora da nossa vida, precisa andar muito e vencer dificuldades, mas só
será capaz se tiver uma firme determinação interior, estiver bem treinado no caminho e,
principalmente, se estiver aberto às ajudas de Deus.

A determinação interior é imagem da fé, da esperança e da caridade que deve nos animar. Crer
e esperar em Deus, na sua providência, além de devotar-lhe nosso sincero amor será o impulso
que nos manterá no caminho, que nos ajudará a tirar sempre novas forças diante das
dificuldades. A vida de oração nos ajuda a aprofundar essas convicções interiores e a amar mais
a Deus, de modo a mantermo-nos firmes no caminho da santidade.

‘Estar bem treinado’ é uma imagem das virtudes humanas. Virtudes são hábitos adquiridos que
permitem realizar com perfeição os atos bons, que nos realizam e nos aproximam de Deus. É na
virtude que está o cumprimento da nossa liberdade, no sentido que falávamos acima. Treinar-
se na virtude significa insistir em querer e praticar o bem, buscar vencer os próprios defeitos e
más inclinações, abrir-se para o outro, vencendo o egoísmo com o amor. Uma pessoa virtuosa
atrai: é sincera, trabalhadora, gentil, decidida, confiável..., e tantas outras possíveis qualidades.
O contrário da virtude é o vício, algo que paralisa o caminhar, pois fecha a pessoa em si mesma.

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Leva em última análise à tristeza, à frustração, à busca de compensações para a mediocridade
das próprias escolhas pessoais. Os atos próprios do vício são as faltas e os pecados.

Quando nossa vontade se dirige para algo que vai contra nossa consciência, temos que a ação é
um pecado. É pelo juízo da consciência que avaliamos se um ato concreto é bom ou mal.
Contrariar o que nos dita a consciência significa agir contra a própria dignidade e, por
consequência, contra a Imagem e Vontade de Deus em nós. De fato, o Catecismo nos ensina:
“No mais profundo da consciência, o homem descobre uma lei que não se deu a si mesmo, mas
à qual deve obedecer e cuja voz ressoa, quando necessário, aos ouvidos do seu coração,
chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal [...]. De fato, o homem tem no coração
uma lei escrita pelo próprio Deus [...]. A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do
homem, no qual ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa na intimidade do seu ser”. CIC
1776. O pecado, nesse contexto, ergue-se contra o amor de Deus por nós e desvia dEle os nossos
corações: configura-se, portanto, numa ofensa, uma desobediência. O pecador despreza a Deus
e Seu querer para ele, querendo se colocar como ‘um deus’, conhecedor do bem e do mal (cfr.
CIC 1849). Santo Agostinho define o pecado como: ‘amor de si mesmo até o desprezo de Deus’.

Diante da realidade do pecado, devemo-nos ‘abrir à ajuda de Deus’, ou seja, acolher a Igreja
como Mãe educadora e buscar na graça dos sacramentos a força para não abandonar o caminho.
Como afirma São Paulo: ‘onde abundou o pecado, superabundou a graça’ Rm 5, 21. “A nossa
justificação vem da graça de Deus. A graça é o favor, o socorro gratuito que Deus nos dá a fim
de respondermos ao seu chamamento para nos tornarmos filhos de Deus, filhos adotivos
participantes da natureza divina e da vida eterna” CIC 1996. A graça é um dom do Espírito Santo
que nos justifica e santifica e nos é concedida principalmente nos sacramentos. Essa ajuda de
Deus nos é indispensável, tanto para evitar o pecado, como para viver uma vida de santidade.
Os atos de virtudes feitos por amor à Deus nos fazem crescer na sua graça e merecer o Céu. “A
caridade constitui em nós a fonte principal do mérito diante de Deus” CIC 2026.

Concluindo
Tendo, pois, delineado os elementos fundamentais da moral cristã, iremos nas próximas aulas
explicar o que são e quais são as implicações de cada um dos Dez Mandamentos para nossa vida.
A idéia central dessa primeira aula é que a moral cristã nos ensina a viver a plena liberdade na
verdade, sendo felizes na terra e encaminhando-nos para a plena felicidade em Deus, no Céu.

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Leitura Complementar: O Cristianismo é uma vida
Artigo do Professor Massimo Borghesi, da Universidade de Perugia, publicado em 2006 em ‘Eco
di Bergamo’.

Falando no encontro da diocese de Roma, em São João de Latrão, Bento XVI disse: "A fé e a ética
cristãs não querem sufocar, mas tornar sadio, forte e verdadeiramente livre o amor: é esse
justamente o sentido dos Dez Mandamentos, que não são uma série de nãos, mas um grande
sim ao amor e à vida".

Eis uma afirmação não meramente edificante, mas que vai ao ponto focal, controverso, da
relação entre cristianismo e modernidade. No curso dos últimos 150 anos, a acusação que a
cultura moderna faz ao cristianismo é do tipo "psicológico". A fé cristã é rejeitada não enquanto
doutrina falsa, mas como posição que torna doente, enfermo, o espírito humano. O cristianismo
seria uma doença espiritual, patologia que ataca um organismo originalmente sadio, uma
debilitação das energias, privadas de toda força.

Nietzsche, como se sabe, é o principal construtor dessa crítica, ao fazer dela o eixo de toda a sua
incansável demolição do cristianismo. A revolução cristã abateu os poderosos e ergueu os
humildes. Isso significa, na vulgata nietzschiana, que ele enfraqueceu os melhores, nivelou o
homem pelo degrau mais baixo, tirou o vigor das virtudes heróicas e viris dos pagãos. Ao inverter
os valores antigos, a doença triunfa sobre a saúde. "O cristianismo – escreve Nietzsche – tem a
necessidade da doença, mais ou menos como para os gregos era necessária uma saúde de ferro;
fabricar doentes é a verdadeira intenção de todo o sistema salvífico próprio da Igreja. [...] O
cristianismo se contrapõe também a toda bem resolvida estruturação intelectual – ele pode
utilizar somente a razão doentia, enquanto razão cristã; toma posição em prol de tudo o que é
idiota, pronuncia a sua maldição contra o ‘espírito’, contra a soberba do espírito sadio" (O
Anticristo, par. 51 e 52).

Complexo de Inferioridade

O cristão, tal como o príncipe Myskin, protagonista do romance de Dostoevski, é um "idiota".


Alguém que renuncia à vida, que chama de bom aquilo que nos torna doentes, e de mau o que
nos torna saudáveis. O cristianismo é uma posição inatural, contra a natureza, em antítese ao
naturalismo antigo, pagão e solar.

A acusação de Nietzsche, que se inscreve no filão do neoclassicismo alemão, de Goethe a Walter


Otto, não mereceria ser levada em conta se não evidenciasse o preconceito que há por trás de
grande parte da cultura "laica". O laicismo baseia-se, em larga medida, não tanto em sólidas
razões teóricas, e sim na convicção psicológica da não-adequação "humana" do cristianismo. A
posição cristã é percebida, por uma parte da cultura moderna, como "restritiva", opressiva. Ser
cristão não é um complemento de humanidade, mas uma sua diminuição. É essa convicção que
impede muitos jovens de se aproximarem da Igreja.

Podemos observar que convicção semelhante existe também, com certa frequência, até dentro
da Igreja. Para muitos cristãos, a impressão decepcionante de não estar adequado à
modernidade, de estar fora do leito das oportunidades, das modas, das ideologias correntes, se
traduz num "complexo de inferioridade" que prenuncia um desejo de legitimação: não ser
diferente dos outros, ser como os demais. Desejo que confirma, a seu modo, a interpretação de
Nietzsche.

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Cristianismo Moralista

Se os próprios cristãos se veem como não plenamente realizados no plano humano, então a
acusação do ateu moderno está justificada: o cristianismo não é a plenitude do homem, mas a
sua humilhação.

A afirmação de Bento XVI corrige essa perspectiva: a fé torna saudável, forte e livre o humano.
É uma afirmação que responde conscientemente a Nietzsche e ao ateísmo moderno. Ela
também responde àquelas posições que, presentes na Igreja, de certo modo tornam, se não
justificadas pelo menos compreensíveis, as reações laicas. Posições segundo as quais o
cristianismo acolhe essencialmente asserções negativas, numa ascese sem alegria, num
sobrenatural visto como inimigo da natureza. O cristianismo moralista dos últimos séculos é um
cristianismo "naturalista", reduzido à observância das "regras".

Por isso, escrevia Emmanuel Mounier em A Aventura Cristã: "o jovem cristão, em vez de ser
levado a mergulhar, desde o início, nas perspectivas completas do amor, recebe – em 80% dos
casos – uma injeção maciça de ‘moralina’, e a primeira palavra dessa tática moralista é a
desconfiança, a repressão: a desconfiança contra o instinto e a luta contra as paixões. O primeiro
sentimento que é inculcado naquele que deveria se tornar um exemplo de saúde moral e um
apaixonado pelo infinito é o medo da força que deve servir de fundamento para o seu impulso
individual". O resultado está aí: uma série de religiosos modernos que, em meio a significativas
exceções – como Filipe Néri e João Bosco –, são marcados não pela alegria, mas pela tristeza.
Assim, fica faltando alguma coisa.

A experiência da mudança

A vida cristã, desprovida de atrativo, torna-se um lugar de resistência, de "reatividade". É


determinada pelo negativo, não pela positividade. O cristianismo resvala assim para o declive
do ressentimento, da insatisfação. Torna-se solução para o ancião.

Para o jovem, fica a sensação de que, com o passar dos anos, desperdiçou oportunidades,
usufruiu menos da vida. No plano de um cristianismo moralista, não há outra alternativa. Nem
se pode pensar que a saída esteja numa religiosidade "hedonista", estética, pós-moderna. A
redução teatral da fé é simplesmente patética. O que torna verdadeiras as palavras do Papa é a
educação a um "afirmativo" que vem antes de tudo. Este afirmativo, Jesus Cristo, quando
reconhecido, é Aquele que permite valorizar a integralidade da existência, do espaço e do
tempo. Aquele que permite dar sentido aos fragmentos perdidos da vida, ao absurdo da morte.
O cristianismo torna-se a introdução na realidade total, princípio de uma experiência de
comprovação da correspondência entre o Mistério, encontrado em seu aspecto humano, e as
exigências mais profundas do próprio espírito. Nessa comprovação o homem pode medir o
incremento de humanidade, alegria, paciência, ternura, força, que lhe é dado. Um incremento
pelo qual o atrativo cristão é mais forte do que o do mundo, que motiva a afeição por Aquele
que é fonte da alegria. O amor cristão nasce da gratidão, não do dever. É um amor que surge da
experiência de mudança. Um cristianismo que parte do "não" não pode responder à provocação
moderna. Só a experiência do sobrenatural pode fazê-lo.

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Leitura Complementar II – Seguindo os Passos do Senhor
Trecho da homilia de São Josemaría Escrivá publicado no livro ‘Amigos de Deus’ pela Editora
Quadrante. Também disponível no site: www.escrivaworks.org.br

Ego sum via, veritas et vita, Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Com estas palavras
inequívocas, mostrou-nos o Senhor qual é a vereda autêntica que conduz à felicidade eterna.
Ego sum via: Ele é a única senda que liga o Céu à terra. Declara-o a todos os homens, mas
recorda-o especialmente àqueles que, como tu e como eu, lhe disseram que estão decididos a
tomar a sério a sua vocação de cristãos, de modo que Deus se ache sempre presente em seus
pensamentos, em seus lábios e em todas as suas ações, mesmo nas mais comuns e correntes.

Jesus é o caminho. Ele deixou sobre este mundo as pegadas límpidas dos seus passos, sinais
indeléveis que nem o desgaste dos anos nem a perfídia do inimigo conseguiram apagar. Iesus
Christus heri et hodie; ipse et in saecula. Quanto gosto de recordá-lo: Jesus Cristo, o mesmo que
foi ontem para os Apóstolos e para as multidões que o procuravam, vive hoje para nós e viverá
pelos séculos. Somos nós, os homens, quem às vezes não consegue descobrir o seu rosto,
perenemente atual, porque olhamos com olhos cansados ou turvos. Agora, ao começarmos
estes minutos de oração junto do Sacrário, pede-lhe como aquele cego do Evangelho: Domine,
ut videam!, Senhor, que eu veja!, que a minha inteligência se encha de luz e a palavra de Cristo
penetre na minha mente; que arraigue em minha alma a sua Vida, para que eu me transforme,
de olhos postos na Glória eterna.

Que transparentes são os ensinamentos de Cristo! Como de costume, abramos o Novo


Testamento, agora no capítulo XI de São Mateus: Aprendei de mim, que sou manso e humilde
de coração. Estamos vendo? Temos que aprender dEle, de Jesus, o nosso único modelo. Se
queres ir em frente, prevenindo tropeços e extravios, basta-te andar por onde Ele andou, pousar
as plantas dos pés na marca das suas pegadas, adentrar-te em seu Coração humilde e paciente,
beber do manancial dos seus preceitos e afetos; numa palavra, hás de identificar-te com Jesus
Cristo, hás de procurar converter-te de verdade em outro Cristo entre os teus irmãos, os
homens.

Para que ninguém se iluda, vamos ler outra citação de São Mateus. No capítulo XVI, o Senhor
precisa ainda mais a sua doutrina: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a
sua cruz e siga-me. O caminho de Deus é de renúncia, de mortificação, de entrega, mas não de
tristeza ou de apoucamento.

Repassa o exemplo de Cristo, desde o berço de Belém até o trono do Calvário. Considera a sua
abnegação, as suas privações: fome, sede, fadiga, calor, sono, maus tratos, incompreensões,
lágrimas...; e a sua alegria em salvar a humanidade inteira. Gostaria de gravar agora
profundamente na tua cabeça e no teu coração - para que o medites muitas vezes e o traduzas
em conseqüências práticas - as palavras com que São Paulo convidava os de Éfeso a seguir sem
hesitações os passos do Senhor: Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados, e andai
no amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós a Deus, em oferenda
e hóstia de suavíssimo odor.

Jesus entregou-se a si mesmo, feito holocausto por amor. E tu, discípulo de Cristo; tu, filho
predileto de Deus; tu, que foste comprado a preço de Cruz; tu também deves estar disposto a
negar-te a ti mesmo. Portanto, sejam quais forem as circunstâncias concretas por que passemos,
nem tu nem eu podemos ter uma conduta egoísta, aburguesada, comodista, dissipada... -
perdoa-me a minha sinceridade -, néscia! Se ambicionas a estima dos homens, e tens ânsias de

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ser considerado ou apreciado, e não procuras senão uma vida confortável, saíste do caminho...
Na cidade dos santos, só se permite a entrada - e que se descanse e se reine com o Rei pelos
séculos eternos - àqueles que passam pela via áspera, apertada e estreita das tribulações.

É necessário que te decidas voluntariamente a carregar a cruz. Senão, dirás com a língua que
imitas Cristo, mas as tuas obras o desmentirão; assim não conseguirás ter intimidade com o
Mestre nem o amarás de verdade. Urge que os cristãos se convençam bem desta realidade: não
caminhamos junto do Senhor quando não sabemos privar-nos espontaneamente de tantas
coisas que o capricho, a vaidade, a vida regalada, o interesse nos reclamam... Não deve passar
um só dia sem que o tenhas condimentado com a graça e o sal da mortificação. E rejeita a idéia
de que, nesse caso, estás condenado a ser um infeliz. Pobre felicidade será a tua se não aprendes
a vencer-te a ti mesmo, se te deixas esmagar e dominar pelas tuas paixões e veleidades, em vez
de tomares a cruz galhardamente.

Lembro-me agora - certamente algum de vós me terá ouvido este mesmo comentário em outras
meditações - daquele sonho de um escritor do século de ouro castelhano. Diante dele, abrem-
se dois caminhos. Um apresenta-se bem largo e transitável, fácil, pródigo em vendas e pousadas
e em outros lugares amenos e regalados. Por ali avança a gente a cavalo ou em carruagens, entre
músicas e risos: gargalhadas loucas; contempla-se uma multidão embriagada num deleite
aparente, efêmero, porque essa rota acaba num precipício sem fundo. É a senda dos mundanos,
dos eternos aburguesados: ostentam uma alegria que na realidade não têm; procuram
insaciavelmente toda a espécie de comodidades e prazeres...; horroriza-os a dor, a renúncia, o
sacrifício. Não querem saber nada da Cruz de Cristo; pensam que é coisa de malucos. Mas são
eles os dementes. Escravos da inveja, da gula, da sensualidade, acabam sofrendo mais, e tarde
caem na conta de que, por uma bagatela insípida, malbaratam a sua felicidade terrena e a
eterna. Assim o faz notar o Senhor: Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder
a sua vida por amor de mim, encontrá-la-á. Porque, de que serve ao homem ganhar o mundo
inteiro, se vier a perder a sua alma?

Por direção diferente discorre nesse sonho o outro caminho: tão estreito e empinado que não
é possível percorrê-lo a lombo de cavalgadura. Todos os que o empreendem avançam pelos seus
próprios pés, talvez em zigue-zague, de rosto sereno, pisando sobre abrolhos e ladeando
penhascos. Em determinados pontos, deixam em farrapos as suas vestes e até a sua carne. Mas,
no fim, espera-os um vergel, a felicidade para sempre, o Céu. É o caminho das almas santas que
se humilham, que por amor de Jesus Cristo se sacrificam com gosto pelos outros; a rota dos que
não temem subir encostas, carregando amorosamente a sua cruz, por muito que pese, porque
sabem que, se o peso os afunda, poderão levantar-se e continuar a ascensão: Cristo é a força
desses caminhantes.

Que importância tem tropeçar, se na dor da queda encontramos a energia que nos reergue e
nos impele a prosseguir com alento renovado? Não nos esqueçamos de que santo não é o que
não cai, mas o que se levanta sempre, com humildade e com santa teimosia. Se no livro dos
Provérbios se comenta que o justo cai sete vezes por dia, tu e eu - pobres criaturas - não
devemos admirar-nos nem desanimar com as nossas misérias pessoais, com os nossos tropeços,
porque continuaremos avante se procurarmos a fortaleza nAquele que nos prometeu: Vinde a
mim todos os que andais fatigados com trabalhos e cargas, e eu vos aliviarei. Obrigado, Senhor,
quia tu es, Deus, fortitudo mea, porque foste sempre Tu, e só Tu, meu Deus, a minha fortaleza,
o meu refúgio e o meu apoio.

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Se desejas verdadeiramente progredir na vida interior, sê humilde. Recorre com constância,
confiadamente, à ajuda do Senhor e de sua Mãe bendita, que é também tua Mãe. Com
serenidade, tranqüilo, por muito que doa a ferida ainda não cicatrizada do teu último resvalo,
abraça de novo a cruz e diz: Senhor, com o teu auxílio, lutarei para não me deter, responderei
fielmente aos teus apelos, sem temor às encostas empinadas, nem à aparente monotonia do
trabalho habitual, nem aos cardos e aos seixos do caminho. Sei que sou assistido pela tua
misericórdia e que, no fim, acharei a felicidade eterna, a alegria e o amor pelos séculos infinitos.

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