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Por que imposto é roubo

Por Lacombi Lauss

Introdução

Talvez a frase de efeito mais famosa dentre os libertários é: “Imposto é roubo.”


Apesar de ser uma verdade, que implica, em particular, a ilegitimidade do estado
— visto que roubo é um crime, independentemente se praticado por cidadãos
ou se por governos —, o fato é que vejo poucas pessoas que sabem dar uma
justificativa correta a essa afirmação. Isto se deve em parte à fácil intuição
gerada por ela, pois qualquer um sabe que, se uma pessoa não pagar impostos
e resistir às intimidações do estado, ela será sequestrada pelo governo, como
ocorreu com o famoso ativista anti-imposto Irvin Schiff, que em 2015 faleceu na
cadeia por defender a ilegalidade do imposto de renda nos EUA [1]. Porém, essa
constatação da ameaça implícita por trás dos impostos não é suficiente para
determinar que o imposto é de fato um crime, embora seja obviamente uma
condição necessária. Sendo mais preciso, poderíamos ter duas, e apenas duas,
situações onde o imposto poderia ser visto como como algo legítimo, caso fosse:
1) um pagamento previsto em um contrato implícito, chamado “contrato social”,
onde, no passado, as pessoas, legitimamente possuidoras de suas propriedades,
abriram mão de certos direitos para um governo ou outra autoridade a fim de
obter as vantagens da ordem social; e/ou 2) uma taxa forçada feita pelo estado
a fim de pagar suas despesas de manutenção, caso análogo a um condomínio,
onde a posse territorial do estado seria legítima. Esses dois casos resumem
todos os principais argumentos pró-imposto dos estatistas, de modo que para
demonstrar que o imposto está fora da lei, é suficiente refutar ambos os casos,
mostrando que o contrato social, caso exista como contrato implícito, não pode
ser legalmente executável e que o território do estado não é legitimamente
apropriado. Daí seguirá nossa famosa tese que imposto é de fato um assalto a
mão armada.

Antes, porém, é importante ressaltar que questões sobre o estado ser necessário
(e não é) para prover bens públicos [2] ou de seu surgimento ser ou não
inevitável [3] dentro de uma sociedade livre são irrelevantes para determinarmos
a justiça do imposto, pois estão em diferentes categorias epistemológicas:
“imposto é roubo” é uma afirmação dentro do âmbito da Ética, das questões
prescritivas, i.e., que tratam do dever, enquanto que as demais questões
relativas ao estado são meramente descritivas. E como David Hume
observou, [4] um dever nunca deve seguir de um ser, i.e., é
epistemologicamente equivocado derivar verbos no imperativo de outros no
indicativo – no nosso caso, derivar “você deve pagar impostos” de “o estado é
necessário para manter a ordem” ou “o estado é inevitável”. Nesse artigo, vamos
nos focar nas disciplinas da Ética e do Direito.

O Contrato Social é Uma Ficção Supérflua


Geralmente argumenta-se que o estado, tendo ou não posses legítimas, pode
cobrar impostos, pois existe algum tipo de consenso implícito em torno desse
arranjo social — a legitimidade se origina então da anuência dos cidadãos. A
esse corpo de ideias que postulam um contratualismo implícito em sociedade
feito para manter a ordem e instaurando, para isso, um regime político específico,
se dá o nome geral de teorias do Contrato Social.

Antes de mais nada, é bom deixar claro que o Contrato Social jamais pode ser
um contrato executável por lei, ou seja, um acordo cuja quebra pode resultar em
retaliação legal. Primeiro porque — como os próprios teóricos contratualistas
assumem — ele é implícito, não tendo uma expressão objetiva de consentimento.
E, de fato, é deveras óbvio para qualquer um que ninguém foi consultado sobre
a aderência ao arranjo político democrático que vivemos hoje. Nunca os estados
modernos fizeram consultas entre as populações dominadas para que
questionassem suas legitimidades e perguntassem sobre a possibilidade de elas
gerirem suas propriedades por si mesmas, sem o estado como decisor último de
instâncias. O ônus da prova desse consentimento recai todo sobre os
contratualistas, que até agora não forneceram nenhuma evidência nesse sentido.
E sequer poderiam. É um fato histórico que em geral os estados
modernos surgiram não de um acordo voluntário em sociedade a fim de criar
uma administração com a função de centralizar o poder público, mas sim pela
conquista militar e ameaça de força física. Isto deveria ser deveras óbvio, pois é
completamente irrealista que, dentro de um grupo de pessoas sempre alertas à
possibilidade do surgimento de conflitos, alguém proponha, como solução a este
problema, que ele próprio se torne o arbitrador supremo e monopolista de todos
os casos de conflitos, inclusive daqueles em que ele mesmo esteja envolvido.
Seria uma proposta no mínimo risível, por maior que seja a reputação que esse
membro destacado tivesse.

Em segundo lugar, mesmo que tenha havido consenso no passado — e não


temos registro algum disso, mas ao contrário, como veremos abaixo —, o
Contrato Social é uma relação de subordinação individual e portanto precisa ter
uma cláusula de rescisão, haja vista que a vontade humana é inalienável. Sob a
ausência de tal cláusula, ele se torna um acordo tão absurdo como um contrato
de “escravidão voluntária”, não tendo sentido legal algum. Com efeito, um
consentimento sem rescisão prevista em contrato é uma mera promessa, de
modo que a iniciação de força para fazer cumprir tal contrato tem o mesmo efeito
legal de agredir pessoas em virtude de discursos. Vejamos o caso clássico de
“contratos de escravidão” em mais detalhes. Suponhamos então que A promete
(ou realiza contratos, ou concorda; a terminologia não é importante) em ser
escravo de B, sendo assim uma tentativa de consentir agora para forçar ações
no futuro. Se A depois muda de ideia e tenta fugir, pode B usar força contra A?
Esta é a pergunta crucial. Se a resposta for sim, isso significa que A não tem o
direito de se opor e alienou eficazmente os seus direitos. No entanto, isso não
poderia acontecer simplesmente porque não há nenhuma razão para que A não
possa retirar o seu consentimento. Assim, não é inconsistente para A, mais tarde,
se opor ao uso de força. Tudo o que A fez anteriormente foi proferir palavras
para B, tais como, “eu concordo em ser seu escravo.” Mas isso não agride B em
qualquer sentido subjetivo tanto quanto não há agressão ao proferir o seguinte
insulto: “Você é feio”. As palavras por si só não podem agredir, isso é – inclusive
– uma das razões as quais justificam o direito à liberdade de expressão. Em
poucas palavras, um proprietário de escravos deveria ter o direito de usar a força
contra o escravo para que a escravidão seja mantida e que os direitos sejam
dessa forma alienados, entretanto o escravo não teria previamente iniciado força
contra o proprietário de escravos. Logo, o proprietário de escravos não tem o
direito de usar a força contra o escravo e, assim, nenhum direito de fato foi
alienado. O mesmo vale para o contrato social, que pode ser pensado como um
caso particular do aqui exposto.

Em terceiro e último lugar, se existiu um contrato social para legitimar a


espoliação moderna do estado, então ele certamente diz respeito às gerações
passadas e não às nossas. E da mesma forma que crimes não podem passar
de pais para filhos, visto que a pena é sempre individual, promessas de
cumprimento contratual também não. Assim, um consentimento — implícito ou
não — no passado não pode ser herdado hoje pelas gerações que não
participaram direta ou indiretamente desse processo.

Tendo derrubado as teorias do Contrato Social sob o prisma jurídico, resta dele
apenas mera formalidade, um conceito abstrato para ilustrar uma suposta
necessidade do estado. Este foi o caso de Thomas Hobbes, que sustentou que,
em estado natural, as pessoas iriam reivindicar cada vez mais direitos, ao invés
de menos, levando a conflitos incessantes e cada vez maiores. Urge então a
necessidade de um arbitrador soberano, acima e exterior à sociedade civil. A
ideia jurídica por trás disso é clara: acordos requerem um fiscal externo que os
torne vinculantes. O estado não pode portanto seguir daí, pois quem iria tornar
esse mesmo acordo vinculante, se não há árbitros fora do estado? De duas,
uma: ou será necessária a instauração de outro estado (caindo em regressão
infinita) ou o próprio estado hobbesiano está, por si só, em estado de anarquia
dentro de si mesmo. Na prática, nos encontramos no segundo caso, onde o
estado não está vinculado a nenhum fiscal externo. Não há contratos fora do
estado de modo que todos os conflitos envolvendo-o (seja dele com cidadãos
privados, seja entre ele e seus parasitas) será sempre resolvido dentro de seus
próprios mecanismos jurídicos, com suas próprias autoimpostas regras, i.e, com
as restrições que ele mesmo, e apenas ele, se impõe a si. Em relação a si próprio,
o estado ainda está no estado natural de anarquia caracterizada pela
autofiscalização e pelo autocontrole, da mesma forma que a sociedade em
“estado natural”. Só que pior: dado que o homem é como ele é, e dado que o
estado é formado por homens, ele tem uma tendência natural a mediar seus
conflitos em seu próprio benefício, em detrimento dos cidadãos privados. O
totalitarismo é seu destino inevitável.

Outro teórico do Contrato Social foi John Locke, que assim como Hobbes inicia
sua teoria focando num estado de natureza [5], que, através do contrato social,
vai se tornar o estado civil. Porém, ao contrário de Hobbes, Locke vê a relação
da sociedade com o Contrato Social não como uma subordinação, mas sim como
um consentimento. E uma vez que o consentimento é dado, o governo, segundo
Locke, tem o dever de retribui-lo garantindo a liberdade individual de duas formas
básicas: fazendo valer o direito à propriedade para o homem conseguir seu
sustento e sua busca à felicidade; e assegurando a estabilidade jurídica para
que os homens possam resolver seus conflitos e assim assegurar a paz.

Um importante ponto do contratualismo lockeano é que a delegação de poder ao


governante não retira dos indivíduos o direito de removê-la se eles julgarem que
o governante traiu a confiança nele depositada:

“Pois todo poder concedido em confiança para se alcançar um determinado


fim, estando limitado por este mesmo fim, sempre que este fim é
manifestamente negligenciado, ou contrariado, a confiança deve
necessariamente ser confiscada (forfeited) e o poder devolvido às mãos
daqueles que o concederam, que podem depositá-lo de novo onde quer que
julguem ser melhor para sua garantia e segurança.” [6]

Assim, o governante que quebra a confiança nele depositada está, segundo


Locke, em estado de guerra com a sociedade, pois agiu de modo contrário ao
direito, do mesmo modo que o indivíduo que viola a lei natural.

Apesar do significativo avanço do contratualismo lockeano frente ao de Hobbes


no que diz respeito às liberdades individuais, dada sua ênfase na manutenção
do direito natural à propriedade [7] e no consenso dos cidadãos, ele peca em
ser demasiadamente ingênuo do ponto de vista político. O ponto de Locke a favor
de um governo “voluntário” que tem legitimidade enquanto cumprir suas funções
delegadas pela sociedade civil pode parecer razoável à primeira vista, mas,
afinal, o estado é uma instituição de natureza definitiva, e as ações esperadas
disso são determinadas pela sua natureza e não pelos nossos desejos e
fantasias. Então, a verdadeira questão é se é realista esperar este tipo de
operação automática e imparcial de um monopólio centralizado. E de fato, não
é. O poder corrompe, porque atrai o corruptível. E o sistema de incentivos de um
monopólio estatal é verdadeiramente perverso. A história está aí para mostrar
que, como tendência geral, a liberdade humana é cada vez mais sufocada pela
ameaça estatista e pouco ou nada pode-se fazer para deter isso dentro do
âmbito político [8].

A experiência histórica da Revolução Americana foi profundamente influenciada


por John Locke e ilustra muito bem o caráter utópico das ideias lockeanas de
governo limitado e consensual. A famosa frase “Governos são instituídos entre
os Homens, derivando seus justos Poderes do Consentimento dos Governados”
foi proferida quando os revolucionários norte-americanos justificaram sua
secessão do Império Britânico, dando um marco inicial à primeira república
fundada por um ideário genuinamente liberal. A constituição americana foi
redigida no propósito de limitar as funções do governo para os propósitos
lockeanos e assim, em tese, proibia cabalmente o exercício de políticas
esquerdistas (bem-estar social) e direitistas (belicismo). E é claro também que o
significado geral da constituição não dá margens para dúvidas: o princípio
dominante de que tudo que o Governo Federal não está autorizado a fazer está
proibido de fazer. A décima emenda, por exemplo, proíbe o Governo Federal de
exercer quaisquer poderes não especificamente atribuídos a ele pela
constituição. Isso por si só invalidaria o estado de bem-estar social e, de fato,
praticamente toda a legislação progressista. Mas quem se importa? Até mesmo
o famoso jurista constitucional Robert Bork considerou a Décima Emenda
politicamente inexequível.

A constituição americana já pode ser considerada morta desde a Guerra Civil,


quando o direito de secessão foi negado aos estados do Sul. Ora, mas isso não
era constitucional? Os estados federados não poderiam retirar-se da União?
Lincoln, através dos resultados estabelecimentos após a Guerra Civil, declarou
que a União era “indissolúvel”, a menos que todos os estados federados
concordassem em dissolvê-la. É sempre o próprio estado que irá decidir, pela
força, o que a constituição “significa” firmemente decidindo a seu próprio favor e
aumentando seu próprio poder em prol dos caprichos pessoais da casta política.
Isto é verdade a priori, e a história americana apenas ilustrou isso. Assim, as
pessoas são obrigadas a obedecer ao governo, mesmo quando os governantes
traem seu juramento perante Deus de defender a constituição.

Daí em diante, as portas para o socialismo estavam escancaradas e o New Deal


de Roosevelt foi a prova final desse fato. A América olhou calada a mais uma
grave usurpação de poder, dessa vez de viés esquerdista, um claro golpe
inconstitucional. Roosevelt e seus asseclas da Suprema Corte interpretaram a
Cláusula do Comércio de forma tão abrangente de modo a autorizar
praticamente qualquer reivindicação federal, e a Décima Emenda de forma tão
restrita de forma a privá-la de qualquer força para frear tais reivindicações. Hoje,
essas heresias são tão firmemente arraigadas que o Congresso raramente ainda
se pergunta se uma proposta de lei é autorizada ou proibida pela constituição.

O estado não possui legitimamente propriedades

Ainda que não haja nenhum consenso em torno da estrutura política em que
vivemos, o imposto para sustentá-la ainda poderia ser justificado caso o estado
fosse considerado uma espécie de condomínio. Esse seria o caso se, e somente
se, ele possuísse posses legítimas, pois daí seu território configuraria
propriedade e o indivíduo que não estiver satisfeito com o retorno do imposto e
se rejeitar a pagá-lo teria apenas a opção de deixar o “país” — do contrário, o
uso de força por parte dos agentes do estado estaria justificada. Essa geralmente
é a visão das ditaduras e dos regimes nacionalistas totalitários, onde o chavão
“ame seu país, ou deixe-o” é muito comum e aparece em diversas versões nas
propagandas governistas.

Veremos contudo que esse não é o caso e que a história do surgimento dos
estados e de suas evoluções territoriais está profundamente marcada por
guerras e injustiças nas delimitações de seus títulos de “propriedade”.

Dado que estamos analisando a justiça dos atos do próprio estado, precisamos
de uma teoria legal consistente e independente do mesmo. Mais
especificamente, precisamos de uma norma universal e atemporal acerca da
justiça de delimitação de títulos de propriedade que nos forneça um critério
preciso e objetivo de quando determinada posse é justa, i.e., quando ela
configura a propriedade, entendida aqui como o direito legal de controle
exclusivo de um bem escasso.

Comecemos então do início, respondendo à mais básica das perguntas do


Direito: para que precisamos de leis? A chave para resolvê-la reside no conceito
de escassez, que é o caracteriza nossa realidade econômica na Terra. Com
efeito, se considerarmos um mundo de completa abundância, onde todos os
recursos teriam replicabilidade infinita, sem danos às cópias originais, então
nenhuma lei de delimitação de propriedades seria necessária e tampouco a ideia
de “roubo” faria sentido. É apenas em virtude da finitude dos recursos disponíveis
para o homem agir que necessitamos de uma regra universal para especificar
quem tem o direito de controlar o quê. Na própria ação humana, o conceito de
escassez já está subentendido, pois ao agir, o homem está fazendo escolhas
específicas de como usar seu próprio corpo (também um recurso escasso) e os
bens que o circundam. E escolher, i.e., preferir um estado de coisas a outro,
implica que nem tudo, nem todos os prazeres ou satisfações possíveis podem
ser obtidos de uma só vez e ao mesmo tempo. Ocorre na verdade o exato
oposto: a ação humana implica que algo considerado menos valioso tem de ser
declinado de forma a que se possa ater-se a qualquer outra coisa considerada
mais valiosa. Assim, escolher também implica sempre a avaliação de custos:
adiar possíveis prazeres porque os meios necessários para consegui-los são
escassos e são ligados a algum uso alternativo que promete retornos mais
valiosos que as oportunidades preteridas.

Assim sendo, a escassez combinada com o convívio do homem em sociedade


produz conflitos que dizem respeito ao controle de um mesmo bem (i.e., um
mesmo meio) para atingir fins distintos. Enquanto mais de uma pessoa existir,
as amplitudes de suas ações se interceptarem, e enquanto não existir nenhuma
harmonia e sincronização de interesses pré-estabelecidos entre essas pessoas,
os conflitos sobre o uso do próprio corpo delas e dos recursos escassos em geral
serão inevitáveis. É para resolver tais conflitos que as leis se fazem necessárias.

Uma vez que uma regra universal acerca do uso e controle de recursos escassos
tenha sido estabelecida, e todos passarem a segui-la, então naturalmente os
conflitos cessarão, pois as distinções entre o que é meu e seu estarão definidas
por via dessa regra. As próximas perguntas que se seguem, que são inevitáveis
nesse ponto, são: existe uma tal regra? E se existe, ela é única? Ou será que
existe uma infinidade delas, sendo nossa escolha essencialmente arbitrária? A
resposta é que existe apenas uma e sua escolha é uma necessidade lógica,
dados os propósitos da lei. Pode-se concluir isto usando a exigência da
universalidade e analisando a importante distinção entre posse e propriedade. A
intuição aqui é bastante simples, pois se uma pessoa invade minha casa e toma
meu carro, ela terá a posse dele, mas a propriedade do carro continua sendo
minha, desde que, é claro, eu não tenha tomado esse carro de ninguém.
Passemos a ser mais precisos.
Queremos determinar a justiça sobre a posse de um determinado bem
X. [9] Vamos também exigir que o bem X seja de fato escasso, pois do contrário
a própria noção legal de posse passa a não fazer sentido, já que bens não
escassos, como as ideias por exemplo, podem estar em posse de uma infinidade
de pessoas sem danos ou alterações ao bem original. Assim sendo, o bem X só
pode ser controlado simultaneamente por um número limitado de pessoas.
Suponhamos que ele esteja sobre a posse de um grupo de pessoas, que
denotaremos por A e que outro grupo, digamos, B, reivindique essa posse. Quem
tem direito ao controle exclusivo de X? Uma hipótese já pode ser descartada de
antemão, a saber, se B reivindica X apenas por declaração verbal sem nunca ter
tido um elo objetivo com X, pois se pudéssemos ter propriedades apenas por
decretos, então jamais iríamos resolver conflitos, mas sim perpetuá-los,
sistematizando-os legalmente no convívio em sociedade. Uma norma de
delimitação por decreto verbal não atende ao propósito último da lei que é o de
eliminar os conflitos.

Suponhamos então que a reivindicação de B se dá argumentando que, ao


contrário de um mero decreto, ele teve um elo objetivo com X, assim como A o
tem. O que deve ser feito a fim de determinar a propriedade de X? Novamente,
precisamos nos ater à questão dos conflitos e distinguir quem é que teve o
primeiro uso do bem X. Uma norma que visa resolver conflitos não pode ser
consistente com as éticas retardatárias, dando privilégios de uso a quem tomou
posse dos bens depois do usuário original. Com efeito, qualquer regra que
fizesse com os que vieram depois, ou seja, aqueles que de fato não fizeram algo
com os bens escassos, tivessem tanto ou mais direito quanto os que chegaram
por primeiro, isto é, aqueles que fizeram algo com os bens escassos, então
literalmente ninguém teria a permissão de fazer nada com nada, já que teriam
de esperar pelo consentimento de todos os que ainda estivessem por vir antes
de fazer o que quisessem. Se B fez uso posterior a A do bem X, sem o
consentimento de A, então ele não pode ser proprietário de X, uma vez que uma
tal regra, se universalizada, impossibilitaria o uso de X, também instaurando o
conflito em sociedade. Em outras palavras, B, neste caso, seria classificado
como um ladrão.

Resta-nos a última possibilidade de B ter feito o uso de X antes de A. Se assim


for, então os papéis se invertem e A passa a ser um possuidor ilegítimo de X.
Isto contudo não é suficiente para declararmos que B tem uma justa
reivindicação a X, mas apenas que a reivindicação de B é mais justa que A. Pode
ocorrer que outro indivíduo, ou grupo de pessoas, digamos, C, reivindique o bem
X de B, mostrando, assim como B fez com A, que teve um elo objetivo mais
antigo que o de B. Neste caso, C teria uma reivindicação melhor, mas que por si
só não garante uma posse justa, pois com efeito, pode ainda surgir outro grupo
D comprovando uma apropriação anterior a de C, e assim por diante.
Obviamente, esse raciocínio para em um, e apenas um, dos dois seguintes
momentos: 1) quando ninguém mais além do possuidor reivindica o bem X; ou
2) quando o bem X foi apropriado originalmente, i.e., retirado de seu estado
natural. Em ambos os casos obtemos uma situação isenta de conflitos. E
considerando, por abuso de linguagem, um bem abandonado, cujos
possuidores anteriores não mais reivindicam sua propriedade, como um bem em
“estado natural”, podemos — sem perda de generalidade para fins legais —
unificar as análises dos casos 1) e 2) em uma só. Assim sendo, vemos da
discussão acima que a posse de um bem escasso X só pode ocorrer isenta de
conflitos se ela remonta a uma apropriação original, ou seja, no caso em que ela
foi obtida por trocas contratuais voluntárias que formam uma cadeia que tem
início em um possessor que retirou o bem o X de seu estado natural para o uso.
E dado que a lei visa resolver conflitos, esta é a única posse do bem X legalmente
justificável.

Obtemos então a famosa lei da apropriação natural, ou homesteading, que pode


ser enunciada afirmando-se que todo homem tem o direito à posse exclusiva de
qualquer bem escasso que ele remova do estado que a natureza tem
proporcionado e deixado, fazendo para isso uso intencional de seu trabalho. Em
poucas palavras, o homesteading diz que a primeira posse determinada a
propriedade, i.e., o direito de excluir a posse terceiros ao bem apropriado.
Nas palavras do filósofo libertário Hans-Hermann Hoppe:

“Para evitar conflitos desde o início, é necessário que a propriedade privada


seja fundada a partir de atos de apropriação original. A propriedade deve ser
estabelecida por meio de atos (em vez de meras palavras, decretos ou
declarações), porque somente através da ação, que ocorre no tempo e espaço,
um elo objetivo (verificável intersubjetivamente) pode ser estabelecido entre
uma pessoa específica e uma coisa específica. E somente o primeiro
apropriador de uma coisa anteriormente não-apropriada pode adquirir essa
coisa e sua propriedade sem conflito, dado que, por definição, como primeiro
apropriador, ele não pode ter incorrido em conflito com alguém ao se apropriar
do bem em questão, uma vez que todos os outros apareceram em cena
apenas posteriormente.”

Estamos agora em posição de determinar a justiça (ou a ausência dela) das


posses estatais. São elas legitímas? A resposta é um claro e sonoro “não” e já
foi analisada por diversos antropólogos e sociólogos. Exemplos de origens
violentas de estados abundam na história antiga. O antropólogo alemão Franz
Oppenheimer resumiu o que chamamos de origem exógena do estado pela
típica história de um clã de famílias que, pressionado pela escassez de bens e
pela queda no padrão de vida, resultante da superpopulação absoluta, resolveu
por uma opção pacífica: não guerrear com outras tribos vizinhas e passar a
produzir controlando a terra. E graças ao processo de produzir bens – ao invés
de simplesmente consumi-los – eles passaram a poupar e estocar bens para o
consumo posterior. Contudo, sendo que a natureza do homem é como ela é,
outras tribos bárbaras passaram a cobiçar os bens acumulados desse clã e
iniciou-se aí uma temporada de ataques violentos: mortes, sequestros e grandes
assaltos. O clã voltou à condição inicial de pobreza e com menos capital humano
demorou a se restabelecer para conseguir produzir excedentes novamente. Os
bárbaros saqueadores se deram conta de que seus roubos seriam mais longos,
seguros e confortáveis se eles permitissem que o clã continuasse produzindo
mas com a condição de que agora os conquistadores se tornariam governantes,
exigindo um tributo periódico sobre o uso dos bens de capital e monopolizando
a terra para o controle de migrações. E é por esse processo de conquista e
dominação que Oppenheimer definiu seu conceito sociológico de estado:

“O que é, então, o estado como conceito sociológico? O estado, na sua


verdadeira gênese, é uma instituição social forçada por um grupo de homens
vitoriosos sobre um grupo vencido, com o propósito singular de domínio do
grupo vencido pelo grupo de homens que os venceram, assegurando-se contra
a revolta interna e de ataques externos. Teleologicamente, este domínio não
possuía qualquer outro propósito senão o da exploração econômica dos
vencidos pelos vencedores.” [10]

Alguns exemplos bastante ilustrativos disso foram dados pelos arqueólogos


Charles Stanish e Abigail Levine da universidade de Chicago.
Em artigo publicado em 2011 pela Proceedings of the National Academy of
Sciences (PNAS), os autores descreveram processos de dominação
sucessivas de algumas aldeias que precederam o Império Inca na América do
Sul. Os primeiros sinais de guerra remontam a pelo menos a 500 a.C. e, com o
aumento populacional, os conflitos foram se intensificando. Já no primeiro ano
d.C. a aldeia de Taraco foi invadida, provavelmente por forças de Pukara, outro
centro regional da área. Pukara, por sua vez, teve seu status como estado
primitivo até cerca de 500 d.C., quando foi absorvido pela Tiwanaku, o estado
principal do outro lado da bacia do Lago Titicaca.

Um processo muito similar de um estado inicial surgindo de


decorrentes chiefdoms beligerantes foi identificado no vale de Oaxaca do México
por um estudo de Kent V. Flannery e Joyce Marcus, dois arqueólogos da
Universidade de Michigan, também publicado no PNAS. Por 4.500 anos atrás,
havia cerca de 80 aldeias do vale. Com o aumento populacional, um período de
guerra intensa se instaurou a partir de 2.450 a 2.000 anos atrás, que culminou
com a vitória de uma cidade sobre todas as demais no vale e finalmente com a
formação do estado Zapotec.

Dr. Stanish acredita que a guerra era a parteira dos primeiros estados que
surgiram em muitas regiões do mundo, incluindo a Mesopotâmia e a China, bem
como as Américas. Os primeiros estados, em sua opinião, não foram
impulsionados por forças além do controle humano, como clima e geografia,
como alguns historiadores têm suposto. Em vez disso, eles foram moldados pela
escolha humana como pessoas procuraram novas formas de dominação e
novas instituições para as sociedades mais complexas que estavam se
desenvolvendo. O comércio era uma dessas instituições de cooperação para a
consolidação de grupos mais organizados. Depois veio a guerra que serviu como
força de conquista para a formação de grupos maiores, que vieram a ser os
protoestados.

Apesar de ser o caso mais frequente, nem só de guerra os estados adquiriram a


forma que têm hoje. Com o crescimento de seus territórios, novas formas mais
complexas de anexação de territórios foram surgindo. Ao longo da história
moderna, abundam exemplos de pactos feitos pelos estados europeus para
aquisição de territórios por decreto verbal. Um famoso exemplo é o Tratado de
Tordesilhas assinado entre Portugal e Espanha para declarar divisão de posse
de terras ainda não exploradas ao longo da América Sul e assim resolver os
conflitos de terras após a descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo.
Mais precisamente, o Tratado estabelecia a divisão das áreas de influência dos
países ibéricos, cabendo a Portugal as terras “descobertas e por descobrir”
situadas antes da linha imaginária que demarcava 1.770 km a oeste das ilhas de
Cabo Verde, e à Espanha as terras que ficassem além dessa linha. Outro
exemplo de conquista territorial por decreto é o Tratado da Antártida, um
documento assinado em 1 de dezembro de 1959 pelos países que reclamavam
a posse de partes continentais da Antártida. Embora sem definir partes da
Antártida como território dos países signatários, mas sim como “patrimônio de
toda a Humanidade” — um termo que nada significa —, o fato é que o continente
foi repartido para posses — ainda que parciais e temporárias [11] — desses
países perante uma clara ausência de elo objetivo. Exemplos recentes no
Oriente Médio, por exemplo, Israel, também ilustram aquisição territorial por
parte de decretos.

No geral, a história territorial dos estados está majoritariamente marcada por


aquisições fora da lei. Isto já basta para decretarmos os territórios que eles
reivindicam como ilegítimos e os próprios estados como foras da lei. De fato, a
apropriação por decreto tem o efeito de privar os indivíduos de se apropriar de
terras virgens, o que obviamente configura um crime, visto que a apropriação
original é um direito natural. Quem tem o costume de viajar por vias rodoviárias
entre cidades ou até estados já deve ter notado a enorme quantidade de terra
não trabalhada e não ocupada que está na posse de governos, conhecidas por
terras devolutas.

No Brasil há também o famoso exemplo da Amazônia, uma valiosa terra de


ninguém que o governo brasileiro reivindica para si de forma completamente
arbitrária. Já a apropriação por conquista militar é um roubo, um assalto a mão
armada em escala geográfica, sendo obviamente também uma ilegitimidade.

O fato é que a imensa maioria do território sob controle dos estados foi na
verdade apropriado originalmente pelos seus súditos, que hoje, além de terem
apenas um controle parcial da propriedade sobre seus nomes, ainda estão sob
constante ameaça armada do estado para darem a ele significativas parcelas
dos frutos de seus rendimentos (imposto). E ainda que asseclas do estado
tenham também se apropriado por trabalho de terras a mando dos governantes,
isso não dá ao estado a propriedade delas pois, como visto acima, o estado está
em débito jurídico com seus súditos. Ao contrário do que ocorre hoje, é o estado
quem deve ter o uso de suas posses conquistadas legitimamente restringido e
aos seus súditos deve ser dado o pleno direito de usufruto de todas propriedades
sob seus nomes, até que alguém mostre juridicamente que elas não são
legítimas. Vale sempre a máxima do Direito que diz que o ônus da prova é
sempre de quem afirma. Em outras palavras, todos os cidadãos pacíficos devem
ter o direito inalienável à autodeterminação e, portanto, à secessão individual,
desvinculando todas suas propriedades dos monopólios jurídicos estatais. Em
particular, ninguém deve ser obrigado a pagar qualquer tipo de taxa não
contratual ao estado e imposto é roubo.

Notas

[1] Visto que originalmente, a constituição americana não concedia ao governo


federal o poder de cobrar imposto de renda, ainda hoje há um amplo debate nos
EUA sobre a legitimidade da coleta do Imposto de Renda. Foi apenas com a 16ª
emenda que esse poder foi concedido ao estado americano, mas tal emenda
nunca foi adequadamente ratificada. Segundo o economista Peter Schiff, filho de
Irwin, no seu artigo em protesto pela morte de seu pai encarcerado:

“meu pai sempre foi mais conhecido por sua inflexível oposição à legalidade do
Imposto de Renda, postura essa que levou o governo federal a rotulá-lo como
um “manifestante tributário”. Meu pai não era anarquista e, sendo assim,
admitia uma tributação moderada e objetiva. Ele acreditava que o governo
tinha uma função importante, porém limitada, em uma economia de
mercado. Ele, no entanto, se opunha à ilegal e inconstitucional imposição de
um confisco da renda pelo governo federal, no forma do Imposto de Renda.”

Por sua cruzada anti-imposto de renda, Irwin Schiff faleceu na condição de


prisioneiro político americano no dia 16 de outubro de 2015, aos 87 anos de
idade, cego e algemado a uma cama de hospital dentro de um quarto de UTI
vigiado por agentes armados do estado.

[2] Para mais detalhes sobre isso, veja meu artigo “Da Natureza do Estado à
Cooperação Pacífica Por Segurança e Ordem”. Lá são fornecidos exemplos
de arranjos privados de ordem e justiça na história, além de uma análise
econômica de sistemas de produção privada de segurança.

[3] Para argumentos no sentido oposto, ou seja, da possibilidade de uma


sociedade sem estado poder prosperar e se defender do surgimento de máfias
governantes, veja esse texto de Robert Murphy.

[4] Na parte I do livro III da sua obra Tratado da Natureza Humana, Hume
escreveu:

“Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor
segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a
existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos,
quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas
proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que
não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é
imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve
expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e
explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo
que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser
deduzida de outras inteiramente diferentes.”

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowiski.


Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo, Editora UNESP, 2000, p. 509

[5] Há, contudo, algumas diferenças importantes na teoria de ambos do estado


de natureza. Nesse sentido, Locke se opõe a Hobbes e Filmer, que julgavam
que o estado de natureza é a-social e pré-moral, pois nele os homens não
estariam submetidos a lei alguma. Para Locke, não apenas a sociabilidade é
natural aos homens (não há, segundo ele, existência humana que não seja
social) mas também existe uma lei que limita as ações no estado de natureza e
cada indivíduo exerce um poder de julgá-la e executá-la com respeito aos demais.

[6] LOCKE, John. 1993a [1690]. Two Treatises of Government. Ed. Peter Laslett.
Cambridge: Cambridge Univ. Press. Trad. de Júlio Fisher: Dois Tratados sobre
o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. xiii.149; trad. modificada.

[7] Note contudo a flagrante contradição lógica nisto: um monopólio forçado da


segurança e da justiça jamais poderá garantir a propriedade privada, pois,
barrando a entrada de concorrentes, ele vai arbitrar unilateralmente e sem
restrições o preço de seus serviços que terão que ser obrigatoriamente pagos.
Isso significa que ele, por definição mesmo, já inicia todo o processo roubando
os cidadãos. Assim, um protetor monopolista é sempre um expropriador, uma
contradição em termos. Nas palavras de Walter Block, em “National Defense
and the Theory of Externalities, Public Goods, and Clubs”:

“Argumentar que um governo cobrador de impostos pode legitimamente


proteger seus cidadãos contra agressão é cair em contradição, uma vez que tal
entidade inicia todo o processo fazendo exatamente o oposto de proteger
aqueles sob seu controle.”

[8] No artigo “Por que devemos rejeitar a política” eu discuto o fracasso e a


imoralidade da política partidária e dos meios políticos em geral.

[9] Para uma outra abordagem para a justificação do homesteading, utilizando o


conceito de Ética da Argumentação, veja o meu artigo “A ética argumentativa
hoppeana”.

[10] Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press, 1926) p. 15.

[11] As posses previstas no Tratado Antártico se limitam a fins pacíficos, com


ênfase na atividade científica, sendo vedada a realização de explosões
nucleares e o depósito de resíduos radioativos. O Tratado determinou que até
1991 a Antártida não pertenceria a nenhum país em especial, embora todos
tivessem o direito de instalar ali bases de estudos científicos. Na reunião
internacional de 1991 os países signatários do Tratado resolveram prorrogá-lo
até 2041.

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