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Introdução
Antes, porém, é importante ressaltar que questões sobre o estado ser necessário
(e não é) para prover bens públicos [2] ou de seu surgimento ser ou não
inevitável [3] dentro de uma sociedade livre são irrelevantes para determinarmos
a justiça do imposto, pois estão em diferentes categorias epistemológicas:
“imposto é roubo” é uma afirmação dentro do âmbito da Ética, das questões
prescritivas, i.e., que tratam do dever, enquanto que as demais questões
relativas ao estado são meramente descritivas. E como David Hume
observou, [4] um dever nunca deve seguir de um ser, i.e., é
epistemologicamente equivocado derivar verbos no imperativo de outros no
indicativo – no nosso caso, derivar “você deve pagar impostos” de “o estado é
necessário para manter a ordem” ou “o estado é inevitável”. Nesse artigo, vamos
nos focar nas disciplinas da Ética e do Direito.
Antes de mais nada, é bom deixar claro que o Contrato Social jamais pode ser
um contrato executável por lei, ou seja, um acordo cuja quebra pode resultar em
retaliação legal. Primeiro porque — como os próprios teóricos contratualistas
assumem — ele é implícito, não tendo uma expressão objetiva de consentimento.
E, de fato, é deveras óbvio para qualquer um que ninguém foi consultado sobre
a aderência ao arranjo político democrático que vivemos hoje. Nunca os estados
modernos fizeram consultas entre as populações dominadas para que
questionassem suas legitimidades e perguntassem sobre a possibilidade de elas
gerirem suas propriedades por si mesmas, sem o estado como decisor último de
instâncias. O ônus da prova desse consentimento recai todo sobre os
contratualistas, que até agora não forneceram nenhuma evidência nesse sentido.
E sequer poderiam. É um fato histórico que em geral os estados
modernos surgiram não de um acordo voluntário em sociedade a fim de criar
uma administração com a função de centralizar o poder público, mas sim pela
conquista militar e ameaça de força física. Isto deveria ser deveras óbvio, pois é
completamente irrealista que, dentro de um grupo de pessoas sempre alertas à
possibilidade do surgimento de conflitos, alguém proponha, como solução a este
problema, que ele próprio se torne o arbitrador supremo e monopolista de todos
os casos de conflitos, inclusive daqueles em que ele mesmo esteja envolvido.
Seria uma proposta no mínimo risível, por maior que seja a reputação que esse
membro destacado tivesse.
Tendo derrubado as teorias do Contrato Social sob o prisma jurídico, resta dele
apenas mera formalidade, um conceito abstrato para ilustrar uma suposta
necessidade do estado. Este foi o caso de Thomas Hobbes, que sustentou que,
em estado natural, as pessoas iriam reivindicar cada vez mais direitos, ao invés
de menos, levando a conflitos incessantes e cada vez maiores. Urge então a
necessidade de um arbitrador soberano, acima e exterior à sociedade civil. A
ideia jurídica por trás disso é clara: acordos requerem um fiscal externo que os
torne vinculantes. O estado não pode portanto seguir daí, pois quem iria tornar
esse mesmo acordo vinculante, se não há árbitros fora do estado? De duas,
uma: ou será necessária a instauração de outro estado (caindo em regressão
infinita) ou o próprio estado hobbesiano está, por si só, em estado de anarquia
dentro de si mesmo. Na prática, nos encontramos no segundo caso, onde o
estado não está vinculado a nenhum fiscal externo. Não há contratos fora do
estado de modo que todos os conflitos envolvendo-o (seja dele com cidadãos
privados, seja entre ele e seus parasitas) será sempre resolvido dentro de seus
próprios mecanismos jurídicos, com suas próprias autoimpostas regras, i.e, com
as restrições que ele mesmo, e apenas ele, se impõe a si. Em relação a si próprio,
o estado ainda está no estado natural de anarquia caracterizada pela
autofiscalização e pelo autocontrole, da mesma forma que a sociedade em
“estado natural”. Só que pior: dado que o homem é como ele é, e dado que o
estado é formado por homens, ele tem uma tendência natural a mediar seus
conflitos em seu próprio benefício, em detrimento dos cidadãos privados. O
totalitarismo é seu destino inevitável.
Outro teórico do Contrato Social foi John Locke, que assim como Hobbes inicia
sua teoria focando num estado de natureza [5], que, através do contrato social,
vai se tornar o estado civil. Porém, ao contrário de Hobbes, Locke vê a relação
da sociedade com o Contrato Social não como uma subordinação, mas sim como
um consentimento. E uma vez que o consentimento é dado, o governo, segundo
Locke, tem o dever de retribui-lo garantindo a liberdade individual de duas formas
básicas: fazendo valer o direito à propriedade para o homem conseguir seu
sustento e sua busca à felicidade; e assegurando a estabilidade jurídica para
que os homens possam resolver seus conflitos e assim assegurar a paz.
Ainda que não haja nenhum consenso em torno da estrutura política em que
vivemos, o imposto para sustentá-la ainda poderia ser justificado caso o estado
fosse considerado uma espécie de condomínio. Esse seria o caso se, e somente
se, ele possuísse posses legítimas, pois daí seu território configuraria
propriedade e o indivíduo que não estiver satisfeito com o retorno do imposto e
se rejeitar a pagá-lo teria apenas a opção de deixar o “país” — do contrário, o
uso de força por parte dos agentes do estado estaria justificada. Essa geralmente
é a visão das ditaduras e dos regimes nacionalistas totalitários, onde o chavão
“ame seu país, ou deixe-o” é muito comum e aparece em diversas versões nas
propagandas governistas.
Veremos contudo que esse não é o caso e que a história do surgimento dos
estados e de suas evoluções territoriais está profundamente marcada por
guerras e injustiças nas delimitações de seus títulos de “propriedade”.
Dado que estamos analisando a justiça dos atos do próprio estado, precisamos
de uma teoria legal consistente e independente do mesmo. Mais
especificamente, precisamos de uma norma universal e atemporal acerca da
justiça de delimitação de títulos de propriedade que nos forneça um critério
preciso e objetivo de quando determinada posse é justa, i.e., quando ela
configura a propriedade, entendida aqui como o direito legal de controle
exclusivo de um bem escasso.
Uma vez que uma regra universal acerca do uso e controle de recursos escassos
tenha sido estabelecida, e todos passarem a segui-la, então naturalmente os
conflitos cessarão, pois as distinções entre o que é meu e seu estarão definidas
por via dessa regra. As próximas perguntas que se seguem, que são inevitáveis
nesse ponto, são: existe uma tal regra? E se existe, ela é única? Ou será que
existe uma infinidade delas, sendo nossa escolha essencialmente arbitrária? A
resposta é que existe apenas uma e sua escolha é uma necessidade lógica,
dados os propósitos da lei. Pode-se concluir isto usando a exigência da
universalidade e analisando a importante distinção entre posse e propriedade. A
intuição aqui é bastante simples, pois se uma pessoa invade minha casa e toma
meu carro, ela terá a posse dele, mas a propriedade do carro continua sendo
minha, desde que, é claro, eu não tenha tomado esse carro de ninguém.
Passemos a ser mais precisos.
Queremos determinar a justiça sobre a posse de um determinado bem
X. [9] Vamos também exigir que o bem X seja de fato escasso, pois do contrário
a própria noção legal de posse passa a não fazer sentido, já que bens não
escassos, como as ideias por exemplo, podem estar em posse de uma infinidade
de pessoas sem danos ou alterações ao bem original. Assim sendo, o bem X só
pode ser controlado simultaneamente por um número limitado de pessoas.
Suponhamos que ele esteja sobre a posse de um grupo de pessoas, que
denotaremos por A e que outro grupo, digamos, B, reivindique essa posse. Quem
tem direito ao controle exclusivo de X? Uma hipótese já pode ser descartada de
antemão, a saber, se B reivindica X apenas por declaração verbal sem nunca ter
tido um elo objetivo com X, pois se pudéssemos ter propriedades apenas por
decretos, então jamais iríamos resolver conflitos, mas sim perpetuá-los,
sistematizando-os legalmente no convívio em sociedade. Uma norma de
delimitação por decreto verbal não atende ao propósito último da lei que é o de
eliminar os conflitos.
Dr. Stanish acredita que a guerra era a parteira dos primeiros estados que
surgiram em muitas regiões do mundo, incluindo a Mesopotâmia e a China, bem
como as Américas. Os primeiros estados, em sua opinião, não foram
impulsionados por forças além do controle humano, como clima e geografia,
como alguns historiadores têm suposto. Em vez disso, eles foram moldados pela
escolha humana como pessoas procuraram novas formas de dominação e
novas instituições para as sociedades mais complexas que estavam se
desenvolvendo. O comércio era uma dessas instituições de cooperação para a
consolidação de grupos mais organizados. Depois veio a guerra que serviu como
força de conquista para a formação de grupos maiores, que vieram a ser os
protoestados.
O fato é que a imensa maioria do território sob controle dos estados foi na
verdade apropriado originalmente pelos seus súditos, que hoje, além de terem
apenas um controle parcial da propriedade sobre seus nomes, ainda estão sob
constante ameaça armada do estado para darem a ele significativas parcelas
dos frutos de seus rendimentos (imposto). E ainda que asseclas do estado
tenham também se apropriado por trabalho de terras a mando dos governantes,
isso não dá ao estado a propriedade delas pois, como visto acima, o estado está
em débito jurídico com seus súditos. Ao contrário do que ocorre hoje, é o estado
quem deve ter o uso de suas posses conquistadas legitimamente restringido e
aos seus súditos deve ser dado o pleno direito de usufruto de todas propriedades
sob seus nomes, até que alguém mostre juridicamente que elas não são
legítimas. Vale sempre a máxima do Direito que diz que o ônus da prova é
sempre de quem afirma. Em outras palavras, todos os cidadãos pacíficos devem
ter o direito inalienável à autodeterminação e, portanto, à secessão individual,
desvinculando todas suas propriedades dos monopólios jurídicos estatais. Em
particular, ninguém deve ser obrigado a pagar qualquer tipo de taxa não
contratual ao estado e imposto é roubo.
Notas
“meu pai sempre foi mais conhecido por sua inflexível oposição à legalidade do
Imposto de Renda, postura essa que levou o governo federal a rotulá-lo como
um “manifestante tributário”. Meu pai não era anarquista e, sendo assim,
admitia uma tributação moderada e objetiva. Ele acreditava que o governo
tinha uma função importante, porém limitada, em uma economia de
mercado. Ele, no entanto, se opunha à ilegal e inconstitucional imposição de
um confisco da renda pelo governo federal, no forma do Imposto de Renda.”
[2] Para mais detalhes sobre isso, veja meu artigo “Da Natureza do Estado à
Cooperação Pacífica Por Segurança e Ordem”. Lá são fornecidos exemplos
de arranjos privados de ordem e justiça na história, além de uma análise
econômica de sistemas de produção privada de segurança.
[4] Na parte I do livro III da sua obra Tratado da Natureza Humana, Hume
escreveu:
“Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor
segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a
existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos,
quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas
proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que
não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é
imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve
expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e
explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo
que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser
deduzida de outras inteiramente diferentes.”
[6] LOCKE, John. 1993a [1690]. Two Treatises of Government. Ed. Peter Laslett.
Cambridge: Cambridge Univ. Press. Trad. de Júlio Fisher: Dois Tratados sobre
o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. xiii.149; trad. modificada.
[10] Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press, 1926) p. 15.