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DIVERSIDADE E APRENDIZAGENS EM

CONTEXTO ESCOLAR DE BILINGUISMO


(PORTUGUÊS - MEBÊNGÔKRE)
DIVERSITY AND LEARNING IN A BILINGUAL SCHOOL 176
CONTEXT (PORTUGUESE - MEBÊNGÔKRE)

Michelly Silva Machado1


Enviado em: 03/11/2020
Aceito em: 28/03/2022

RESUMO: O presente artigo visa refletir sobre a importância de novas propostas metodológicas, com
ênfase nas práticas de letramento, em contexto de bilinguismo (português - Mebêngôkre). Esta pesquisa
parte de observações do cotidiano de escolas públicas de ensino fundamental, realizada por meio de acom-
panhamento dos alunos do curso de Língua Portuguesa (LP) de uma instituição pública federal, na cidade
de São Félix do Xingu-PA, de 2017 a 2019. No estudo verificou-se uma situação educacional específica, o
caso de bilinguismo de alunos indígenas, em um contexto escolar desafiador tanto para os alunos como para
os professores. Essa situação tem nos instigado a pensar alternativas pedagógicas para atender o público
xinguense e tornar as aulas de LP mais didáticas e significativas aos discentes, sob uma perspectiva dialógica
e interativa da linguagem, com respeito à diversidade sociocultural, conforme a Lei 11.645/2008 e a sua
obrigatoriedade nas instituições de ensino.
Palavras-chave: Diversidade. Aprendizagem. Bilinguismo. Português-Mebêngôkre.

ABSTRACT: This article aims to reflect on the importance of new methodological proposals, with empha-
sis on literacy practices, in the context of bilingualism (Portuguese - Mebêngôkre). This research is based
on observations of the daily life of public elementary schools, carried out through the accompaniment of
students of the Portuguese Language (LP) course of a federal public institution, in the city of São Félix do
Xingu-PA, from 2017 to 2019. In the study, there was a specific educational situation, the case of bilingual-
ism of indigenous students, in a challenging school context for both students and teachers. This situation
has encouraged us to think about pedagogical alternatives to serve the Xingu public and make LP classes
more didactic and meaningful to students, from a dialogical and interactive perspective of language, with
respect to sociocultural diversity, according to Law 11.645/2008 and its obligation in educational institu-
tions.
Keywords: Diversity; Learning; Bilingualism; Portuguese-Mebêngôkre.

1 Introdução

Desde o final do século XX existe no Brasil a preocupação em melhorar a qualidade do


ensino em suas diversas modalidades. “Educar para diversidade” tem sido o lema das inúmeras leis
e orientações pedagógicas nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio, públicos e
privados, em todo o país. Esse olhar para a diversidade sociocultural, quando inserido adequada-
mente nas aprendizagens, permite a formação intelectual e reflexiva das crianças e jovens, além da
preservação e valorização dos diferentes coletivos étnicos que fazem parte da sociedade brasileira.
No entanto, apesar das novas propostas curriculares nacionais, como a Lei nº 11.645, de
10 de março de 2008, torna-se obrigatório o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena

1 Doutoranda em Antropologia (PPGA-UFPA). Mestre em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA). Discente do


programa de Pós-graduação em Diversidade Sociocultural (MPEG). Professora de redação do Colégio Dom Pedro
II - Sede Xinguara-PA. E-mail: mih.machado@gmail.com.

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nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, a Resolução nº 4, de 13 de julho de
2010, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica e a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que se tem observado na prática, são currí-
culos homogeneizados com grandes disparidades entre as regiões brasileiras. Nesse sen-
tido, as instituições públicas vêm tentando adequar suas atividades às dinâmicas sociocul-
turais mesmo com todas as precariedades estruturais do sistema público, a saber: falta de 177
internet, equipamentos técnicos de suporte aos professores e materiais didáticos contextualizados.
Hoje, o quadro das escolas públicas é preocupante, sobretudo com as mudanças no ensino
em decorrência do Sars-CoV-2 (o vírus que causa a doença covid-19). Nas regiões Norte e Nor-
deste, como já apontava o Censo Escolar da Educação Básica (2017-2019), elaborado pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e divulgado pelo Ministério
da Educação (MEC), muitos já eram os desafios a serem superados com referência à qualidade dos
sistemas educacionais brasileiros.
Sobre a região Norte, em especial no Xingu/PA, inúmeros fatores ocasionam o déficit
educacional, tornando a docência na educação básica um desafio constante à comunidade escolar,
pelos seguintes motivos: (i) o negligenciamento histórico do Estado no investimento de políticas
públicas e de qualidade para escolas; (ii) infraestrutura precária (abastecimento de água, energia e
saneamento) nas escolas; (iii) falta de valorização dos profissionais da educação; (iv) equipe técnica
com pouca ou nenhuma qualificação continuada; (v) falta de ferramentas de aprendizagem para
além do livro didático; (vi) inexistência ou condições precárias da biblioteca, sala de leitura e labo-
ratório de informática; (vii) falta de contextualização curricular à diversidade local, entre outros.
A educação em caráter regional passa por grandes entraves, contudo as atividades escolares
seguem seus fluxos em busca de uma gestão escolar democrática. No que compete à gestão demo-
crática, as novas orientações da BNCC, do Ministério da Educação, estabelecem as competências
e habilidades a serem cumpridas nos diferentes componentes curriculares. Do mesmo modo, tam-
bém mencionam a importância do repertório sociocultural do aluno, em comunhão com a Lei
11.645/2008, no âmbito da História e da Cultura Afro-Brasileira e Indígena (BRASIL, 2008).
Com base nessas formulações, cabe à disciplina de Língua Portuguesa (LP) trabalhar com
a perspectiva dialógica e interativa da linguagem, além do desenvolvimento das habilidades de ora-
lidade, leitura, interpretação e escrita dos discentes. Essas orientações seguem em nível nacional,
todavia é importante considerar as especificidades de cada localidade (BRASIL, 1998).
Para ilustrar essas singularidades, nos remetemos ao caso de bilinguismo em algumas esco-
las municipais da cidade de São Félix do Xingu2 (PA), onde encontramos alunos Mebêngôkre-
Kayapó que dominam dois códigos linguísticos, em menor e maior grau (Português - Mebêngôkre).
O referido município apresenta um contexto sociolinguístico híbrido, pelo histórico de seu pro-
cesso de formação.
As reflexões apresentadas partiram do acompanhamento que realizei dos discentes do curso
de Licenciatura em Letras, de uma universidade federal, às escolas de ensino fundamental e médio
do Xingu/PA. As pesquisas foram realizadas durante as disciplinas de estágio supervisionado, no
ensino fundamental e médio, de 2017 a 2019. A disciplina proporcionou aos alunos da graduação
vivenciarem as situações reais da sua profissão. Foi a partir dessas experiências que passamos a
problematizar os desafios do processo de ensino e aprendizagem em contexto de bilinguismo, des-
tacando a necessidade de metodologias mais significativas para atender às novas demandas educa-
cionais.
Destarte, apresentamos uma alternativa de aprendizagem, com foco na diversidade socio-
cultural, nas aulas de LP. Para isso, partimos da premissa que “atender o alunado é acolhê-lo no

2 São Félix do Xingu é um município brasileiro do estado do Pará. Localiza-se a 1050 quilômetros da capital Belém.
Sua população é de aproximadamente 124 806 hab. (IBGE/2017). A base da economia é a pecuária de corte, com o
maior rebanho bovino do Brasil. Além da Produção agrícola, banana, cacau, lavouras de milho, feijão e mandioca. Já
no aspecto industrial, tem a extração de níquel e cobalto e na mineração (garimpo legal e ilegal) na extração do ouro.

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espaço escolar”, reconhecendo suas identidades e experiências múltiplas. Trata-se de uma
“educação para alteridade”, amparada nas práticas de letramentos e multimodalidades,
como uso de gêneros discursivos para exemplificar as situações comunicativas, nas aulas
de LP.

2 O contexto de bilinguismo e o lugar da diversidade 178


Como se sabe o Brasil é formado por diferentes populações (indígenas, quilombolas, cam-
ponesas, comunidades tradicionais ou coletivos, ribeirinhos, caboclos, entre outras). Esses sujeitos
formam o mosaico das identidades brasileiras e configuram a heterogeneidade do ser amazônico.
Contudo, convém realçar que historicamente esses povos passaram por um processo de “silencia-
mento” nos currículos, suas histórias foram tratadas de maneira superficial e dependente da história
ocidental, sem estudos prévios da sua pré-história e importância social.
Na disciplina de LP, as políticas linguísticas ainda priorizaram o ensino normativo, com
ênfase nas habilidades da escrita e gramática. As diferentes línguas e idioletos ficaram restritos ao
contexto da fala e ignorados no currículo. Desse sistema foram exclusas as informações das inú-
meras famílias linguísticas dos povos originários, bem como as transformações externas/internas
dessas línguas e o desaparecimento físico de seus falantes (genocídio). A esse respeito podemos
citar as dissensões da implementação da Lei nº. 571/2019, que cooficializou a língua Mebêngôkre
no município de São Félix do Xingu/PA. Apesar de representar avanços nas políticas linguísticas
locais, por ser a primeira língua indígena cooficializada no estado do Pará, no contexto escolar fora
das aldeias, a Lei tem representado apenas ações incipientes rumo à educação bilíngue na cidade.
Em linhas gerais, é importante frisar que a educação indígena nas aldeias Kayapó segue
com constantes atualizações e letramentos nas escolas das séries iniciais e no fundamental menor.
A maioria dos docentes que atuam nas áreas indígenas participam de formações continuadas sobre
a língua, cultura e história dos Kayapó, além disso os professores indígenas também atuam nas
salas de aula e ambos contribuem para a produção de material didático bilingue (Português-Me-
bêngôkre). Outro fator importante é que muitos desses profissionais têm cursado especializações,
mestrado e doutorado e grande parte de seus estudos são voltados para o contexto dos povos
originários, tecendo pesquisas ativas/colaborativas que ao chegarem à sua fase final retornam para
as aldeias.
Na contramão das ações da educação indígena, o currículo educacional das escolas públicas
na cidade, mesmo com alunos indígenas matriculados, permanece nos protocolos da recomenda-
ção e não da inserção obrigatória das temáticas afro-brasileira e indígena no ensino, apesar das
urgências políticas-curriculares “à preparação para o exercício da cidadania e à qualificação para o
trabalho, na vivência e convivência em ambiente educativo”, de acordo com a Resolução nº 4, de
13 de julho de 2010 (BRASIL, 2010).
Nos componentes curriculares das diferentes áreas do conhecimento, parte da história lin-
guística brasileira segue em temas transversais, feiras culturais, datas comemorativas ou restritas aos
ambientes de graduação e pós-graduação. O diálogo entre o saber tradicional e a ciência necessitam
fazer parte do cotidiano das escolas, por isso esses conhecimentos precisam sair das bibliotecas,
periódicos e pesquisas acadêmicas e chegar à educação básica, que é um dos berços da formação
do cidadão brasileiro. Quanto antes os alunos (re)conhecerem a diversidade poderão valorizá-la e
lutar pelos seus direitos, do contrário, preconceitos continuarão existindo pelo desconhecimento
ou falta de consciência crítica da sua história.
Como se sabe, os povos autóctones conseguiram resistir às políticas de homogeneização e
atualmente passaram a se mobilizar em ações de (re)ativação e sobrevivência de sua língua e cultura.
Como arquétipo dessas reações, os Kayapó apresentam um caso emblemático, pois ao longo dos
anos passaram por longas diásporas, até chegar no Território Indígena (TI) atualmente habitado.

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Do Cerrado ao Pará, os grupos passaram por cisões e se conectam hoje pela nação de
autorreconhecimento Kayapó.
Os Kayapó estão localizados nos territórios ao Sul do Estado do Pará e ao Norte
do Estado do Mato Grosso. Na região que compreende o Sudeste do Pará, somam uma
população de aproximadamente 5.279 indígenas, distribuídos nos municípios de Cumarú
do Norte, Ourilândia do Norte, Pau D’arco, Redenção e São Félix do Xingu (MACHADO, 179
2020). Conforme Salanova (2012) a língua Mebêngôkre pertence ao grupo Jê setentrional da Ama-
zônia oriental. A referida língua pertence à família Jê, agrupamento Macro-Jê. Portanto, além de
código linguístico, ela representa os sentimentos, bens simbólicos e tradições de seus falantes.
A luta pela valorização da língua Mebêngôkre tem sido uma das ações e políticas linguísticas
de seu povo, como o projeto de cooficialização da língua indígena, com a Lei nº. 571/2019, de 13
de novembro de 2019, que dispõe sobre a cooficialização da língua Mebêngôkre (Kayapó) no mu-
nicípio de São Félix do Xingu/PA e o incentivo de estudo da língua no currículo escolar, nas escolas
em que predominam a população descendente no município.
A cooficialização trouxe novas aspirações para algumas lideranças indígenas e para a comu-
nidade de fala que viu a possibilidade de ter seus direitos de livre expressão cosmológica assegura-
dos por Lei. Essa iniciativa partiu de alguns professores e discentes de mestrado da Universidade
Federal do Rio de Janeiro –UFRJ, que atuam nas aldeias da Terra Indígena (TI) Kayapó, e de
lideranças Kayapó.

Imagem 1 - Campanha de cooficialização da língua Mebêngôkre

Fonte: CBN, São Félix do Xingu Notícias (2019).

Conforme Machado (2020), a cooficialização da língua Mebêngôkre é um marco histórico


nas políticas indígenas e indigenistas no Pará, pois essas ações desvelam uma ruptura com um
sistema monolíngue e nacionalista brasileiro. Deste modo, é evidente a agência dos Kayapó pela
valorização de seu patrimônio material e imaterial, cabendo às escolas xinguenses contemplar essa
diversidade linguística e usá-la em sala de aula para atender a realidade de seu alunado.
Como já previamente informado, este estudo volta-se para a busca de métodos adequados
e inter/transdisciplinares para se trabalhar a diversidade sociocultural nas aulas de LP. Outro as-
pecto, tomamos o fenômeno de bilinguismo de São Felix do Xingu como fundamental para essa
discussão. Todavia, é importante distinguir contexto educacional bilíngue de escolas bilíngues.
As escolas bilíngues são instituições teórica e metodologicamente fundamentadas com o
ensino de uma língua nacional e uma língua transnacional (inglês, francês, espanhol, alemão, etc.).
O contexto educacional de bilinguismo refere-se a um espaço de aprendizagem onde os alunos
dominam duas línguas e a escola não necessariamente oferta os dois códigos na práxis metodoló-
gica.

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O contexto aqui tratado reflete as escolas públicas que atendem alunos falantes do
português e do Mebêngôkre. Conforme Machado (2020) a língua Mebêngôkre é aprendida
pelos Kayapó ainda na infância, no seio familiar. A incorporação do português acontece
normalmente no ensino fundamental I e II, no contexto da educação intercultural indígena
ou no sistema regular de ensino.
As crianças/adolescentes dominam a língua materna e alguns aspectos do portu- 180
guês, dependendo do grau de contato com a segunda língua. Nos últimos anos, os Mebêngôkre
têm saído das aldeias e ingressado em escolas públicas do Xingu/PA. Esses alunos são vinculados
a um modelo de ensino que se distancia da pluralidade cultural. É importante mencionar que não
buscamos culpados pela situação, mas apenas mostrar as mazelas de um sistema educacional his-
toricamente construído.
Nesse contexto, relatos de preconceito e bullying com “o outro”3 são recorrentes nas es-
colas, sendo imprescindíveis novas ações, encontros e conferências para se amenizar e extinguir os
estigmas e reducionismos culturais. A Lei 11.645/08 foi criada justamente para combater esses
casos. Assim, a escola deve atuar como um espaço de encontro entre diferentes culturas e identi-
dades que interagem em torno de conteúdos múltiplos.
Com base nessas formulações, a perspectiva teórica do letramento sociocultural é um meio
eficaz de aprendizagem para o contexto escolar de bilinguismo, pois essa abordagem considera o
letramento como uma prática social, sendo construída ao longo de múltiplas experiências, espaços
e tempos (STREET, 2003). Essa abordagem caminha ao encontro do chamado terceiro paradigma
de Duranti, no qual os estudos da linguagem se movem em direção a pontes conceituais sobre
gênero, identidade, performatividade, narrativa, temporalidade, ideologia, identidade linguística e
interação, podendo encontrar nos detalhes textuais dos encontros cotidianos, a chamada conexão
entre línguas, histórias e sociedade (DURANTI, 2003, p.19).

3 Em busca de práticas contextuais de letramento

Atualmente, muitos pesquisadores têm se dedicado ao estudo da educação intercultural in-


dígena, porém pouco se tem estudado sobre os discentes indígenas matriculados no ensino regular,
além dos desafios tanto dos docentes e discentes no processo de ensino e aprendizagem. Essas
implicações submergem a lacunas e problemas históricos que têm levado à evasão escolar de alunos
indígenas ou à falta de projeção para o futuro da sua educação.
Diante disso, acredita-se que as teorias e práticas de letramento podem contribuir para o
processo de ensino e aprendizagem, rompendo com as barreiras homogeneizadoras do ensino tra-
dicional e valorizando os saberes ancestrais dos povos originários por meio de metodologias dife-
renciadas. É, portanto, uma alternativa pedagógica para aqueles que desejam valorizar a biodiver-
sidade cultural e linguística na educação.

3.1 Práticas de Letramento com gêneros discursivos

Desde as últimas décadas existe no Brasil a preocupação em melhorar a qualidade do ensino


de Língua Portuguesa (LP), principalmente no que concerne à leitura e a escrita. Nesse contexto,
novas propostas metodológicas vêm sendo apresentadas a fim de ultrapassar o ensino tradicional
e mecânico das aulas, com o uso excessivo de regras da gramática normativa, cujo objetivo consiste
em identificar e classificar termos e orações.
As práticas de aprendizagem precisam ser contextualizadas a atual compreensão da lingua-
gem, bem como à compreensão da função social da língua no ensino e aprendizagem de LP. Por-
tanto, cabe ao professor e à comunidade escolar planejar, desenvolver e reformular estratégias para
educar na vida e para vida. Desse modo, inserir práticas de letramento que agreguem textos de
3 Aquele diferente de mim.

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diferentes gêneros discursivos, como em Mebêngôkre e em português por exemplo, ultra-
passam os limites estreitos das práticas exclusivamente normativas ao conhecer e compar-
tilhar a heterogeneidade discursiva e linguística dos alunos-leitores (ROJO, 2012).
Como se sabe, cada pessoa possui múltiplas experiências que fazem parte da sua
história, memória e herança simbólica, essas vivências deixam suas marcas nas produções
textuais e ao estudá-las estamos diante de diferentes universos culturais. Esses universos 181
sociolinguísticos devem ser valorizados, conforme prevê o SIL International (2012, p.02), pois “a
língua materna é fundamental para a identidade da pessoa, para o seu senso de comunidade e para
o seu valor pessoal”. Então, se queremos uma educação diferenciada pautada no desenvolvimento
das múltiplas habilidades dos alunos, precisamos valorizar primeiramente suas experiências pesso-
ais e contextualizá-las no currículo escolar.
Partindo da concepção interacionista e dialógica da língua, os alunos devem ser vistos como
agentes e protagonistas da sua história, que dialogicamente se constroem e são construídos no
texto, no espaço escolar. Para isso, a valorização de cada pessoa pode ser “reafirmada mediante o
desenvolvimento do potencial linguístico de cada um” (SIL, 2012 p. 02-03).
Os Kayapó possuem duas ortografias da língua Mebêngôkre e a partir delas têm produzido
diferentes gêneros discursivos para o fortalecimento e resistência da sua língua materna, tais como:
músicas, narrativas, cartilhas bilíngues e o hino nacional Kayapó, escrita por Mokuká Kayapó, com
traduções para o português. Essas produções ressaltam o que os povos originários escrevem ou
falam sobre as suas próprias histórias e memórias, destacando, do mesmo modo, a importância das
línguas originárias para a biodiversidade sociocultural brasileira.
Daí destacamos a proposta de se trabalhar materiais didáticos ou textos produzidos pelo
próprio povo Mebêngôkre. Levar esses materiais para a sala de aula do ensino regular é uma prática
pertinente para a análise dos usos sociais e cognitivos da linguagem, além de também contemplar
o princípio da alteridade. Uma vez que, as escolas de São Félix do Xingu atendem alunos das co-
munidades ou coletivos rurais e alunos de diferentes localidades da região do Xingu/PA.
Por isso, apresentamos as Cartilhas Me Banhõ Pi´ôk, publicada em três volumes distintos,
produzidos pelos professores indígenas em parceria com a Fundação Nacional do Índio - FUNAI,
SIL International e pela Missão Cristã Evangélica do Brasil - MICEB (FIMA, 2018, p.30). O livro
Mẽprῖre kute Mẽbêngôkre kabẽn mari kadjy ã’piôk neja, por exemplo, faz parte dessas publicações4 e
permite aos professores trabalharem elementos semiológicos, dando-lhes peculiaridades funcionais
conforme os objetivos do plano de aula.

Imagem 2 - Cartilha Mẽprῖre kute Mẽbêngôkre kabẽn mari kadjy ã’piôk neja

Fonte: Floresta Protegida (2012, p.01).

4 Foi pensado para a alfabetização na língua Mebêngôkre, produzido pela Associação Floresta Protegida e organizado
por Maria Cristina Troncarelli, em novembro de 2012.

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Esses textos são importantes e se contextualizados de maneira correta podem fun-
cionar como excelentes recursos nos processos de letramentos e desenvolvimento de ha-
bilidades orais e escritas para os alunos. Do mesmo modo, o livro ultrapassa o foco dos
recursos linguísticos por agregar valores da diversidade sociocultural, de um contexto edu-
cacional híbrido e rico em pluralidades. A cartilha apresenta narrativas, histórias das aldeias
Kayapó, ortografia Mebêngôkre, atividades com traduções para português, imagens do co- 182
tidiano indígena, diferentes vocabulários na língua e desenhos produzidos pelos próprios Kayapó.
Ao analisar esses textos refletimos sobre diferentes possibilidades com gêneros discursivos
que podem ser trabalhadas em sala de aula. Trata-se de alternativas que não se restringem à língua
Mebêngôkre, mas ao contexto bilíngue. A esse respeito apresentamos uma atividade na perspectiva
do letramento sociocultural, que tem como objetivo: destacar as práticas identitárias e linguísticas
presentes em diferentes gêneros discursivos (Mebêngôkre-Português), como veremos a seguir.
Essa atividade deve ser realizada de forma sequencial e requer um ambiente de aprendiza-
gem, investigação e pesquisa, pois o professor deverá selecionar diferentes gêneros discursivos,
como: narrativas, músicas e imagens presentes em textos bilíngues, sem esquecer dos códigos e
habilidades da BNCC. Antes da aula recomenda-se que as carteiras estejam em forma de círculo,
isso irá contribuir para as interações e ajudará na contextualização das temáticas, considerando que
as aldeias Kayapó são organizadas em formato circular. No início da atividade o professor pode
problematizar o tema, perguntando o que os alunos estão lendo ou vendo nos textos. Com a ajuda
dos alunos Kayapó, a turma pode construir um glossário de léxicos (Mebêngôkre-Português) e
conforme o andamento das aulas, é possível falar sobre a relação dos seres humanos com a natu-
reza, as diferentes linguagens e manifestações culturais. No final da atividade o professor pode
solicitar que os discentes registrem suas impressões sobre o material trabalhado.
Apesar da escrita da língua Mebêngôkre ser uma modalidade recente, vários textos e mate-
riais já foram produzidos tanto por professores Kayapó como professores que atuam no intercul-
tural indígena. Na internet e no Youtube é possível encontrar essas produções. Logo, a leitura de
texto é uma atividade interativa na produção de sentidos, pois é possível encontrar diferentes sa-
beres e registros do código linguístico (morfossintaxe) e do conhecimento universal (enciclopédico)
dos alunos.
Nessa perspectiva as práticas de letramento devem considerar o uso da língua na interação
social e num determinado contexto ou funcionalismo linguístico. Então, se na instituição da apren-
dizagem os alunos possuem duas línguas, estas devem ser trabalhadas considerando a afirmação
das identidades étnicas e a valorização das línguas em uso. Conforme os Parâmetros Curriculares
Nacionais da Língua Portuguesa (1998):

[...] é necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não
apenas em função de sua relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes
a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas. A compreensão oral e escrita, bem
como a produção oral e escrita de textos pertencentes a diversos gêneros, supõe o desenvol-
vimento de diversas capacidades que devem ser enfocadas nas situações de ensino (BRASIL,
1998, p.23-24).

Na gestão escolar a coordenação pedagógica ao lado dos professores tem o desafio de bus-
car novos sentidos para sua prática metodológica. Contudo, nem sempre tais aspectos são contem-
plados nos currículos de formação profissional ou cursos de licenciatura, sendo um dos principais
desafios dos graduandos e professores de LP buscarem uma qualificação continuada, como obser-
vamos em socializações com os discentes do curso de Licenciatura em Letras, de uma universidade
federal.
Ao trabalhar com textos bilíngues vários aspectos multiculturais e elementos textuais serão
acionados, como: (i) Coerência - o que faz com que o texto faça sentido para os usuários ou o
princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de comunicação e o

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conhecimento de mundo dos alunos; (ii) Coesão - a conexão, a ligação ou a relação que se
estabelecem entre os elementos que constituem a superfície textual (KOCH, 2014).
Para isso, compreende-se o texto como a materialização máxima da língua, perme-
ado por um viés transdisciplinar: pragmático, semântico, morfológico, lexical, entre outros.
Diante do exposto, para a mudança de atitudes dos professores de língua em contexto de
bilinguismo, é necessário mergulhar no universo das línguas dos povos originários, conhe- 183
cendo inicialmente o seu léxico, por meio de um levantamento de vocábulos em português e na
língua Mebêngôkre. Para tal, os profissionais da educação devem estar atentos às questões dos
povos originários e afro-brasileiros para transformar o currículo escolar em saberes contextualiza-
dos, interativos e dinâmicos.
O ensino de LP deve ampliar as possibilidades de usos da língua, desvelando os seus co-
nhecimentos de forma funcional. Além disso, é imprescindível considerar nas aulas “o caráter di-
nâmico da linguagem no meio social em que atua”, daí a importância da utilização contextualizada
de diferentes gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016).
Para ultrapassar o ensino normativo ou prescritivo, conforme os estudos de Rojo e Moura
(2012) e Kleiman (2001, 2006) a gramática não deve possuir como meta servir de meio para que se
escreva melhor. Ela deve sim instrumentalizar o aluno a conhecer o mundo da linguagem e a sua
fascinante abrangência, considerando a língua culturalmente organizada e em uso, à luz do prota-
gonismo de seus falantes.

Considerações finais

Acreditamos que se o processo de letramento for pensado e reelaborado para o contexto


de bilinguismo pode contribuir para a afirmação das identidades étnicas e a valorização das línguas
e dos diferentes saberes por meio de uma metodologia diferenciada e específica a realidade dos
alunos.
Com a Lei 11.645/2008, foi estabelecida a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”, nos currículos e estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
públicos e privados, em todo o país (BRASIL, 2008). A referida lei trouxe para o currículo as
temáticas que fazem parte da formação da história da nação brasileira, que durante muitos anos
ficaram à margem do ensino.
Para isso, é importante lembrar a urgência de garantir os direitos dos povos originários de
preservarem suas culturas, línguas e tradições, utilizando a educação como principal instrumento
de fortalecimento sociolinguístico. Sobre a valorização linguístico-cultura, destacamos o papel fun-
damental da escola e dos professores, bem como as novas práticas metodológicas para a valoriza-
ção e o fortalecimento da cultura, da língua e do acesso pleno ao ensino de qualidade.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2016.
BRASIL. Lei nº. 11.645/2008, de 10 de marco de 2008. Dispõe sobre a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em:
15 de out. de 2015.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Bá-
sica. Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocu-
ments/rceb004_10.pdf >. Acesso em: 12 jan. de 2021.

https://periodicos.unifap.br/index.php/letras
Macapá, v. 12, n. 1, 1º sem., 2022
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua
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