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86020-908 — Londrina/PR Pe. Eduardo Hugon, OP


editorapadrepio.org
CAPA
Klaus Bento
A DOU TR INA TEOLÓGICA DIAGRAMAÇÃO
DE CR ISTO R EI Eduardo de Oliveira
DIR EÇÃO DE CR IAÇÃO
© Todos os direitos desta edição Luciano Higuchi
pertencem e estão reservados à
Editora Padre Pio. EDIÇÃO E R EVISÃO
Éverth Oliveira
Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil TRADUÇÃO
præponere debemus, quia nec ille quidquam nobis præposuit. Douglas Abreu

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hugon, Eduardo
A doutrina teológica de Cristo rei [livro
eletrônico] / Eduardo Hugon ; [tradução Douglas
Abreu]. – Londrina, PR : Instituto Padre Pio, 2023
PDF
Título original: Doctrina theologica de Christo rege
ISBN: 978-85-52993-13-1
1. Concílio Vaticano (2. : 1962-1965) 2. Deus
(Cristianismo) 3. Doutrina cristã 4. Liturgia –
Igreja Católica 5. Teologia católica I. Título
23-178921 CDD-231.72

Índices para catálogo sistemático:


1. Reino de Deus : Teologia : Cristianismo 231.7
SUMÁRIO

Nota Prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

I. Fundamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

II. O motivo da Encarnação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

III. As qualidades do reino de Cristo .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

IV. Razão e índole da Festa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31


Nota Prévia

Este opúsculo é uma tradução do artigo do Pe. Eduardo Hu-


gon, O.P., intitulado De Christo rege iuxta Encyclicam Pii PP. XI
“Quas Primas” et liturgiam novi Festi — literalmente, “Sobre
Cristo Rei segundo a Encíclica de Pio XI ‘Quas Primas’ e a li-
turgia da nova Festa”. O artigo foi publicado originalmente na
revista Angelicum, IV/1 (Roma, 1927), pp. 1–18.

No calendário atual, a solenidade de Cristo, Rei do Universo,


está situada no último domingo do ano litúrgico. Mas o desejo
original do Papa Pio XI, ao instituir a festa de Cristo Rei —
como se depreende da leitura do artigo em questão —, era cele-
brá-la no último domingo do mês de outubro, imediatamente
antes da festa de Todos os Santos, dando ênfase à dignidade
régia de Cristo enquanto Cabeça do Corpo místico de Cristo,
que é a Igreja.

A reforma litúrgica de Paulo VI não moveu simplesmente a


festa de uma data para outra, mas aboliu a festa de Pio XI e, no
lugar dela, instituiu outra com ênfase e textos litúrgicos bas-
tante diversos.

É o que se pode ler no próprio documento Calendarium Roma-


num, de 1969, p. 63:

No último Domingo do Tempo Comum se celebra a solenida-


de de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do universo, no lugar da
festa instituída pelo Papa Pio XI em 1925 e designada para o

5
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

último domingo de outubro. Assim se põe em maior relevo a


importância escatológica deste domingo.1

Seja como for, a doutrina aqui exposta permanece válida e


nunca foi tão atual como nos tempos que vivemos, em que tan-
tos buscam obscurecê-la. Daí a importância desta publicação.

1. Ultima dominica per annum fit sollemnitas D. N. I. C. universorum Regis,


loco festivitatis institutae a Pio Papa XI, a. 1925 et ultimae dominicae octobris
assignatae. Hac ratione, momentum quoque eschatologicum huius dominicae
meliore in luce ponitur.

6
A DOU TRINA
TEOLÓGICA DE
CRISTO REI
SEGUNDO A ENCÍCLICA DE PIO XI
‘QUAS PRIMAS’ E A LITURGIA DA NOVA FESTA

DOCTRINA THEOLOGICA
DE CHRISTO REGE

IUXTA ENCYCLICAM PII PP. XI “QUAS PRIMAS”


ET LITURGIAM NOVI FESTI.

Pe. Eduardo Hugon, OP


Introdução

Thomistis gaudium profecto Foi para os tomistas motivo de alegria a


attulit institutio “Festii de Iesu
instituição da Festa de Cristo Rei, sobretu-
Christo Rege”. Imprimis, quia
nova gloria Domini nostram do porque a nova glória do Senhor aumen-
auget felicitatem; et insuper ta a nossa felicidade e, além disso, porque o
quia pontificium documentum
iterum confirmat et corrobo- documento pontifício (cf. Encíclica “Quas
rat doctrinam nostri Angelici Primas”, de 11 dez. 1925) confirma e corro-
Præceptoris, qui regiam Christi
bora a doutrina do nosso Angélico Doutor,
dignitatem strenue iam vindi-
caverat. que já defendera com força a dignidade ré-
gia de Cristo.
Demonstrat Aquinas Christum Demonstra o Aquinate que Cristo é Rei
esse regem eo quod sedeat ad
dexteram Patris. “Unde sedere por estar sentado à direita do Pai: “Daí que
ad dexteram Patris nihil aliud o estar sentado à direita do Pai não é senão
est quam simul cum Patre ha-
ter com o Pai, ao mesmo tempo, a glória
bere gloriam divinitatis et bea-
titudinem et iudiciariam pote- da divindade, a bem-aventurança e o poder
statem et hoc immutabiliter et judicial, e isto imutável e regiamente (rega-
regaliter” (STh III 58, a. 2).
liter)” (STh III 58, 2).
Id quidem convenit Christo se- O qual convém a Cristo enquanto Deus;
cundum quod est Deus, imo,
si “secundum quod” designat
e se com isso se designa a unidade do su-
unitatem suppositi, sic etiam posto, então também enquanto homem
secundum quod homo sedet está sentado à direita do Pai e, por esse
ad dexteram Patris et idcirco
est rex secundum æqualitatem motivo, é Rei por igualdade de honra, isto
honoris, in quantum scilicet eo- é, na medida em que com a mesma honra
dem honore veneramur ipsum
Filium Dei cum natura assump-
adoramos ao Filho de Deus com a natu-
ta (Ibid., a. 3). Unde colligitur reza assunta (cf. STh III 58, 3). Donde se
Christum hominem esse regem segue que Cristo-Homem é Rei a título de
titulo unionis hypostaticæ.
união hipostática.

8
I n t ro d u ção

Sed iterum animadvertit Ange- No entanto, também observa o Angélico:


licus: “iudiciaria potestas conse-
quitur regiam dignitatem” (STh “O poder judiciário se segue à dignidade
III 59, a. 4, ad 1). Ergo, si Chri- régia” (STh III 59, 5 ad 1). Por conseguin-
stus est iudex, prout ipse asse-
te, se Cristo é juiz, como Ele mesmo afir-
rit: “Pater omne iudicium dedit
Filio” et iudex secundum quod ma: “O Pai entregou todo o julgamento ao
est homo: “quia Filius hominis Filho” (Jo 5, 22), e juiz enquanto homem:
est” (Jo 5, 22, 27), liquet eum
quoque ut hominem esse regem “Porque é o Filho do Homem” (Jo 5, 27),
a Patre constitutum. Atqui est é evidente que Ele, também como homem,
iudex duplici titulo: hæreditatis
foi constituído Rei pelo Pai. Ora, é juiz por
scilicet seu unionis hypostaticæ,
propter divinam personam, et duplo título: de herança ou união hipostá-
acquisitionis, seu redemptionis, tica, por causa da divina Pessoa, e de aqui-
ex merito passionis, ut egregie
exponit Angelicus (STh III 59, a. sição ou redenção, pelo mérito da paixão,
3). Hinc concluditur Christum, como muito bem expõe o Angélico. Daí se
in doctrina S. Thomæ, regem
conclui que Cristo, na doutrina de S. To-
esse illo duplici titulo seu fun-
damento. más (cf. STh III 59, 3), é Rei por esse duplo
título ou fundamento.
Eadem prorsus principia reco- Esses mesmos princípios, recordam-nos
lunt et Encyclica Pii XI et litur-
gia, nempe Officium et Missa, tanto a Encíclica de Pio XI como a Litur-
de Christo Rege. Quo efficacius gia, isto é, o Ofício e a Missa de Cristo Rei.
igitur exponatur tota doctrinca
Para apresentarmos do modo mais eficaz
theologica horum documen-
torum, hæc sunt nobis expen- toda a doutrina destes documentos, eis
denda: (I) Quænam sint funda- o que havemos de expôr: (I) quais são os
menta seu tituli regiæ potestatis
in Christo; (II) Utrum præfata fundamentos ou títulos da potestade régia
documenta theoriæ scotisticæ em Cristo; (II) se os mencionados docu-
an potius thomisticæ de moti-
mentos favorecem a doutrina escotista ou,
vo Incarnationis faveant; (III)
Quænam sint huius regni do- antes, a tomista sobre o motivo da Encar-
tes; (IV) Quænam sit ratio et nação; (III) quais são as qualidades des-
indoles novi festi.
te reino; (IV) qual é a razão e a índole da
nova Festa.

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I. <Fundamenta>. I. Fundamentos

— Liquet omnino Christum et É absolutamente evidente que Cristo,


Deum esse omnium dominum
et regem, sicut etiam omnia per
como Deus, é Senhor e Rei de todas as
ipsum facta sunt et in ipso con- coisas, assim como também todas as coi-
dita sunt universa, in cælo et in sas foram feitas por Ele e nele todas foram
terra, visibilia et invisibilia (Cl
1, 16); verum etiam ut hominem criadas, nos céus e na terra, as visíveis e as
habere imperium in res omnes invisíveis (cf. Cl 1, 16); além disso, que Ele
creatas firmiter asserit encycli-
ca: “Turpiter, ceteroquin, erret,
tenha, como homem, império sobre todas
qui a Christo homine rerum as coisas criadas, declara-o com firmeza a
civilium quarumlibet imperium Encíclica: “Fora todavia erro grosseiro de-
abiudicet, cum is a Patre ius
in res creatas absolutissimum negar a Cristo-Homem a soberania sobre
sic obtineat, ut omnia in suo as coisas temporais, sejam quais forem,
arbitrio sint posita (S. Cyrill.
Alexandr., In Ioan., P. G., 74,
pois do Pai recebeu o mais absoluto direito
622). Et superius exponit Papa sobre as criaturas, o que lhe permite dispor
duplici titulo seu fundamento delas todas como lhe aprouver” (n. 13). E
niti regiam Christi potestatem,
scilicet iure nativo, scilicet vi mais acima expõe o Papa que em um duplo
unionis hypostaticæ, et iure título ou fundamento se baseia a potestade
quæsito, scilicet redemptionis:
régia de Cristo, a saber: por direito de natu-
reza ou de união hipostática, e por direito
adquirido ou de redenção:
“Quo autem hæc Domini
nostri dignitas et potestas
fundamento consistat, O fundamento sobre o qual pousa esta
apte Cyrillus Alexandrinus dignidade e poder de Nosso Senhor, de-
animadvertit: omnium, ut
fine-o exatamente S. Cirilo de Alexan-
verbo dicam, creaturarum
dominatum obtinet: non per dria, quando escreve: “Numa palavra,
vim extortum, nec aliunde possui o domínio de todas as criaturas,
invectum, sed essentia sua não por tê-lo arrebatado com violência,
et natura (Act. Apost. Sedis,
17, 600); scilicet eius princi- mas em virtude de sua essência e natu-
patus illa nititur unione mi- reza” (In Lucam, 10: PG 74, 622). Esse

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I . F u n da m en t o s

rabili quam hypostaticam poder dimana daquela admirável união


appelant. Unde consequi-
tur, non modo ut Christus
que os teólogos chamam de hipostática.
ab angelis et hominibus Portanto, não só merece Cristo que anjos
Deus sit adorandus, sed e homens o adorem como a seu Deus,
etiam ut eius imperio Ho- senão que também devem homens e
minis angeli et homines pa-
reant et subiecti sint: nem- anjos prestar-lhe submissa obediência
pe ut vel solo hypostaticæ enquanto homem. E assim, só em força
unionis nomine Christus dessa união, a Cristo cabe o mais abso-
potestatem in universas
creaturas obtineat.
luto poder sobre todas as criaturas […].
At vero quid possit iu- Mas haverá, outrossim, pensamento
cundius nobis suaviusque mais suave do que refletir que Cristo é
ad cogitandum accidere,
quam Christum nobis iure
nosso Rei não só por direito de nature-
non tantum nativo sed za, mas também a título de Redentor?
etiam quæsito, scilicet re- Lembrem-se os homens esquecidos
demptionis imperare? Ser- do quanto custamos a nosso Salvador:
vatori enim nostro quanti
steterimus obliviosi utinam “Não fostes resgatados a preço de coi-
homines recolant omnes: sas perecíveis, prata e ouro, mas com
Non corruptibilibus auro vel o Sangue precioso de Cristo, como de
argento redempti estis… sed
pretioso sanguine quasi agni
Cordeiro sem mancha nem defeito”
immaculati Christi et incon- (1Pd 1, 18s). Já não nos pertencemos,
taminati (Pd 1, 18-19). “Iam pois que deu Cristo por nós “tão valioso
nostri non sumus, cum
Christus pretio magno nos
resgate” (1Cor 6, 20). Até nossos corpos
emerit, corpora ipsa nostra são “membros de Cristo” (1Cor 6, 15)
membra sunt Christi (1Cor (n. 10).
6, 20. — AAS, 17, 598-599).

Liturgia festi ambos titulos ef- A Liturgia da Festa refere ambos os títulos.
fert. Sive collecta sive præfat-
Tanto a coleta quanto o prefácio cantam o
io canunt universorum regem,
eodem nempe iure nativo, quo “Rei do universo”, pelo mesmo direito de
Paulus dicit hæredem univer- natureza por que S. Paulo o chama “herdei-
sorum (Hb 1, 2). In matutino
recolitur Rex qui est a Deo con- ro universal” (cf. Hb 1, 2). Nas Matinas, fa-
stitutus, qui gentes accipit ut la-se do Rei constituído por Deus, que re-
hæreditatem suam, quem ado-
rabunt omnes reges terræ, cui
cebeu os povos como sua herança, a quem
omnes populi et tribus et linguæ adorarão todos os reis da terra, a quem ser-
servient. virão todos os povos, tribos e línguas.

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A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

Lectiones secundi nocturni, ex As leituras do II Noturno, tiradas da Encí-


encyclica depromptæ, titulum
unionis hypostaticæ præsertim clica, exaltam-no sobretudo por referência
extollunt, et homilia, quæ est S. ao título de união hipostática, e a homilia,
Augustini, laudat Christum re-
que é de S. Agostinho, louva a Cristo, Rei
gem sæculorum, qui est rex ho-
minum omnium et Iudæorum et dos séculos, que é o Rei de todos os ho-
Gentium, eo quod Pater dixerit mens, tanto judeus quanto pagãos, porque
ipsi: Filius meus es tu, ego hodie
genui te; postula a me et dabo tibi a Ele disse o Pai: “Tu és meu Filho, eu hoje
gentes hæreditatem tuam. te gerei. Pede-me, e te darei por herança to-
das as nações” (Sl 2, 7s).
In missa autem, statim ab in- Na Missa, por sua vez, desde o intróito se
troitu, vindicatur ius acquisitio-
nis et redemptionis: Dignus est
ressalta o direito de aquisição ou redenção:
Agnus, qui occisus est, accipere “Digno é o Cordeiro, que foi imolado, de
virtutem, etc. At iterum recoli- receber o poder” etc. Também se recor-
tur ius hæreditatis tum in Epi-
stola, ubi asseritur regnum eius, da o direito de herança tanto na epístola,
qui est imago Dei invisibilis, onde se afirma o reinado daquele que é a
primogenitus omnis creaturæ,
tum in Evangelio, ubi Pilato in-
imagem de Deus invisível, primogênito de
terroganti respondet Christus se toda a criação, quanto no Evangelho, onde
regem esse, quasi nativo iure. Cristo, em resposta à pergunta de Pilatos,
diz ser Rei quase por direito de natureza.
Simul ambo tituli in liturgia fre- Ambos os títulos são frequentemente recor-
quentius commemorantur, sicut
in antiphona II vesp. ad Magni-
dados juntos na Liturgia, como na antífona
ficat, laudatur Rex regum et Do- do Magnificat das segundas Vésperas, em
minus dominantium, qui simul que se louva o Rei dos reis e o Senhor dos
habet vestimentum naturæ hu-
manæ et virtutem quæ naturæ senhores, revestido de natureza humana e
divinæ competit. da virtude que compete à natureza divina.

Ex his itaque documentis soluta À luz pois destes documentos, tem-se já


iam remanet quæstio quam olim resolvida a questão outrora discutida pelos
versabant theologi, utrum scili-
cet Christus ut homo habuerit teólogos, qual seja: se Cristo como homem
imperium temporale in totum teve império temporal sobre o universo
universum seu fuerit rex om-
nium regum et regnorum totius
inteiro, isto é, se foi Rei de todos os reis e
mundi, licet de facto usum et reinos do mundo todo, ainda que, de fac-
exercitium talis iuris non habue- to, tenha renunciado ao uso e exercício de
rit. Negarunt plures, ceterum
tal direito. Negaram-no muitos, entre eles

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I . F u n da m en t o s

doctissimi et piissimi viri, ut B. homens doutíssimos e piíssimos, como S.


Bellarminus (De Rom. Pontific.,
cap. 4 et 5), Toletus, Sylvius (in Roberto Belarmino (cf. De Rom. Pontif.,
III P., q. 59), Billuart (De iusti- cc. 4–5), De Toledo, Sylvius (cf. In III 59),
tia, dissert. 3, art. 6), dum com-
Billuart (cf. De iustitia, dissert. 3, a. 6), en-
munius alii affirmabant, cum S.
Thoma et S. Antonino. (De hoc quanto outros, seguindo a sentença mais
vid. Salmant., De Incarn., disp. comum, o afirmavam com S. Tomás e S.
32, dub. 2).
Antonino (cf. Salmanticenses, De Incarn.,
disp. 32, dub. 2).

Opinio negans videtur rem ni- A opinião negativa parece considerar o as-
mis restricte et imperfecte in- sunto de maneira demasiado restrita e im-
spexisse ac regnum temporale
cum regno mere mundano con- perfeita, além de confundir reino temporal
fundere; rationes quas afferebat com reino meramente mundano; as razões
evincunt tantum non habuisse
Christum exercitium et usum,
que aduz mostram apenas que Cristo não
at nullatenus ostendunt defuisse o usou e exerceu, mas não demonstram
ipsi verum ius regium. de modo algum que Ele não possuísse um
verdadeiro direito régio.
Encyclica altiori et universaliori A Encíclica considera e resolve a questão
respectu quæstionem considerat
et solvit, ostendendo Christum
de um ângulo mais alto e universal, mos-
totum, seu Salvatorem illum trando que Cristo todo, isto é, o Salvador
qui subsistit in utraque natura, que subsiste nas duas naturezas, divina e
divina et humana, esse regem
absolute in quovis ordine, tem- humana, é Rei absolutamente, em qual-
porali et spirituali, quia semper quer ordem, temporal e espiritual, porque
inspiciendum est quænam iura
et prærogativæ ex unione hypo-
sempre se devem considerar quais são os
statica toti Christo conveniant: direitos e prerrogativas que convêm a Cris-
“Nemo non videt nomen pote- to todo em virtude da união hipostática:
statemque regis, propria quidem
verbi significatione, Christo ho- “É manifesto que o nome e o poder de Rei,
mini vindicari oportere” (AAS no sentido próprio da palavra, competem a
loc. cit., 596).
Cristo em sua humanidade” (n. 5).

Ratio princeps huius asserti ex A razão principal dessa tese a partir da ín-
indole unionis hypostaticæ re-
dole da união hipostática se encontra no
petitur in præfato documento,
potestque in forma syllogisti- referido documento e pode assim ser pro-
ca sic proponi: vi hypostaticæ posta em forma silogística: (1) por força da
unionis Christus tantum me-
união hipostática, Cristo é digno de tanta

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A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

retur honorem, ut omnes ho- honra, que todos os homens, príncipes e an-
mines et principes et angeli,
omnia scilicet creata, debeant jos (ou seja, todas as coisas) devem adorá-lo
illum cum natura assumpta com a natureza assunta; (2) ora, quem está
adorare (Cf. S. Thom., STh III,
obrigado a venerar e adorar a Cristo está,
25, De adoratione Christi, aa.
1 et 2). Sed qui tenentur Chri- por isso mesmo, obrigado a sujeitar-se ao
stum colere et adorare eo ipso seu império; (3) logo, por força da mesma
tenentur eius imperio subiici.
Ergo, vi eiusdem unionis, tan- união, Cristo tem tamanho império, que to-
tum obtinet Christus imperium, dos, absolutamente, devem-lhe obediência
ut omnes creaturæ, etiam reges
e sujeição. Por isso, só pelo título de união
et angeli, debeant illi obedire et
subiici absolute. Quocirca, iam hipostática, Cristo, também na natureza as-
solo unionis hypostaticæ titulo sunta, tem poder e direito sobre todo o uni-
seu nomine, Christus etiam in
natura assumpta potestatem et verso, embora não tenha querido, enquanto
ius obtinet in totum universum, viveu neste mundo, exercer essa potestade
licet noluerit in terris degens
régia, como adverte a Encíclica:
hanc regiam exercere potesta-
tem, prout monet encyclica:
Contudo, enquanto viveu sobre a Terra,
“Attamen, quod in terris
vitam traduxit, ab eiusmo-
absteve-se totalmente de exercer este
di dominatu exercendo se domínio temporal, e desprezou a posse e
prorsus abstinuit, atque, regimento das coisas humanas, que dei-
ut humanarum rerum
possessionem procuratio-
xou e deixa ainda ao arbítrio e domínio
nemque olim contempsit, dos homens. Verdade graciosamente
ita eas possessoribus et expressa no conhecido verso: “Não arre-
tum permisit et hodie bata diademas terrestres, quem distribui
permittit. In quo perbelle
illud: Non eripit mortalia, coroas celestes” (Hino Crudelis Herodes,
qui regna dat cælestia”. no Ofício da Epifania) (n. 13).

Haud mediocri gaudio afficimur, Não é pequena a alegria que sentimos ao


dum comperimus S. Thomam
iam hæc omnia perspicue docu-
ver que S. Tomás já ensinara claramente
isse: “Christus autem, quamvis tudo isso: “Cristo, embora fosse Rei cons-
esset rex constitutus a Deo, non tituído por Deus, não quis administrar
tamen in terris terrenum regnum
temporaliter administrate voluit” temporalmente na terra um reino terreno”
(STh III, 59, a. 4, ad 1). (STh III 59, 4 ad 1).

Plura hic tradit S. Doctor: 1º) Muito mais ensina aqui o santo Doutor:
Christum quoad ius esse etiam 1.º) Cristo é por direito, também na ordem

14
I . F u n da m en t o s

in ordine temporali verum re- temporal, verdadeiro Rei, assim consti-


gem, a Deo ipso constitutum
et idcirco iure nativo seu titulo tuído pelo próprio Deus e, portanto, por
unionis hypostaticæ; 2º) non ta- direito de natureza ou a título de união
men habuisse terrenum regnum
hipostática; 2.º) contudo, não quis um rei-
quoad exercitium et temporalem
administrationem; 3º) ideo non no terreno quanto ao exercício nem admi-
administrasse, quia noluit sua nistração temporal; 3.º) por isso, não ad-
potestate seu suo iure uti.
ministrou porque não quis valer-se de seu
poder ou direito.
Statutis igitur veris fundamen- Lançados pois os verdadeiros fundamentos
tis, regiæ potestatis in Christo,
iam inspiciendum est utrum
da potestade régia em Cristo, deve-se con-
præfata documenta opinioni siderar agora se os referidos documentos
scotisticæ an potius thomisticæ favorecem mais a doutrina escotista ou a
faveant.
tomista.

15
II. <Motivum II. O motivo da Encarnação
Incarnationis>.

— Animadvertendum imprimis Deve-se levar em conta, em primeiro lugar,


est non intendisse encyclicam
opinionis theologorum dirime- que não foi intenção da Encíclica dirimir
re, sicut nec debet festum litur- opiniões de teólogos, assim como não deve
gicum controversis sententiis
niti; quapropter, sæculo XVIII,
uma festa litúrgica fundar-se em sentenças
approbatio cultus SS. Cordis controversas. Por isso, no séc. XVIII, foi
Iesu moras subiit, quia plures demorada a aprovação do culto ao S. Co-
illius devotionis fautores in-
consulto arguebant ex illo non ração de Jesus, já que muitos fautores dessa
sat inconcusso fundamento, devoção a defendiam, imprudentemente,
quod sit cor humanum sedes
affectuum seu passionum orga-
com base em um fundamento que não era
num. Quod itaque intendebant o bastante firme, a saber: que o coração hu-
illa documenta erat recolere mano seria a sede dos afetos ou o órgão das
solidam Scripturæ et traditionis
doctrinam; at dum hæc doctrina paixões. O que pretendiam pois aqueles
exponeretur, factum est, quasi documentos era coligir a sólida doutrina
sponte et naturaliter, ut affer-
rentur textus et rationes quæ
da Escritura e da Tradição; porém, no cur-
sententiam thomisticam potius so da exposição desta doutrina, aconteceu
iuvant. Nam sive encyclica sive de virem à luz, quase espontânea e natural-
liturgia simul iungunt, ut vidi-
mus, ambo regiæ dignitatis in mente, textos e razões bastante favoráveis
Christo fundamenta, nempe à sentença tomista. Pois tanto a Encíclica
unionem hypostaticam et re-
demptionem, quasi non conci-
quanto a Liturgia unem, como vimos, os
piatur, in præsenti divinæ Pro- dois fundamentos da dignidade régia em
videntiæ oeconomia, Incarnatio Cristo, isto é, a união hipostática e a re-
quæ non sit redemptio.
denção, como se não fôra concebível, na
presente economia da divina Providência,
uma Encarnação que não seja redentora.
Et quamquam dicitur solo E conquanto se diga que “só em força da
hypostaticæ unionis nomine
Christum esse regem, nihil união hipostática” Cristo é Rei, nada se se-
inde pro sententia scotistica gue daí que favoreça a sentença escotista.

16
I I . O m o t i vo da En ca r n ação

sequitur. Nos utique tenemus vi Nós, com efeito, defendemos que, em vir-
huius unionis Christum consti-
tui omnium regem et recipere tude dessa união, Cristo foi constituído Rei
gentes hæreditatem suam; at de todas as coisas e recebeu os povos como
probandum est Scotistis fore
sua herança; são os escotistas que devem
unionem independenter ab ho-
minis lapsu. provar que se daria a união <hipostática>
independentemente da Queda do homem.
Argumentum Scotistarum de- O argumento dos escotistas deveria ser
beret hoc modo proponi: Si fit
unio hypostatica, constituitur proposto dessa forma: (1) se se dá a união
Christus rex. Atqui foret unio hipostática, Cristo é constituído Rei; (2)
hypostatica etiam homine non
ora, dar-se-ia a união hipostática, mesmo
peccante. Ergo, etiam homine
non peccante, constitueretur que o homem não pecasse; (3) logo, ainda
Christus rex. que o homem não tivesse pecado, Cristo
seria constituído Rei.

Concedimus ultro, imo forti- Concedemos de bom grande — não só isso,


ter propugnamus, maiorem;
defendêmo-la com força — a <premissa>
at negamus minorem, et dici-
mus nihil posse ex encyclica maior, mas negamos a menor, e dizemos
et liturgia adduci quod minori que nada se pode encontrar na Encíclica e
faveat, sed potius præfata do-
cumenta ignorare prorsus illam na Liturgia que a favoreça; pelo contrário,
hypothesim, ac supponere In- os mencionados documentos ignoram por
carnationem ad redemptionem
completo essa hipótese e supõem que a En-
ordinari.
carnação se ordena à redenção.
Encyclica enim citat ex psalmis De fato, a Encíclica cita textos messiânicos
et prophetis textus messianicos,
qui prænuntiant regem redemp-
tirados de salmos e profetas que prenun-
torem, qui afferet humano gene- ciam um Rei redentor, que trará ao gênero
ri misero, læso, captivo, iustitam humano, miserável, ferido e cativo, justiça
et abundantiam pacis; qui na-
scetur parvulus, ut det nobis pa- e abundância de paz; que nascerá pequeni-
cem veram cuius non erit finis; no, para dar-nos a paz verdadeira, que não
quippe statuet regnum redemp-
tionis in iudicio et iustitia amo-
terá fim; que irá firmar um reino de reden-
do et usque in sempiternum; qui ção no juízo e na justiça, desde então e para
veniet filius hominis, ut regnum sempre; que virá como Filho do Homem,
iustitiæ condat et finem impo-
nat peccato, ut exponit Daniel para fundar um reino de justiça e pôr fim
(v. 2 et 4). ao pecado, como expõe Daniel (v. 2 e 4).

17
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

Hinc concludit encyclica Chri- Portanto, conclui a Encíclica que Cristo foi
stum esse constitutum a Patre
hæredem universorum, ut abo- constituído pelo Pai herdeiro universal, a
leat peccatum et regnum pec- fim de abolir o pecado e o reino dos pe-
catorum: “oportet autem ipsum
cadores: “Cumpre que reine até o fim dos
regnare donec, in exitio orbis
terrarum, ponat omnes inimi- tempos, quando arrojará todos os seus
cos sub pedibus Dei et Patris”. inimigos sob os pés de Deus e do Pai” (cf.
Non meminit Papa alicuius
regni quod non sit ad nostram 1Cor 15, 25). O Papa não fez menção a ne-
redemptionem et salutem ordi- nhum reino que não esteja ordenado à nos-
natum.
sa redenção e salvação.

Pariter liturgia canit Regem Sal- Outrossim, a Liturgia canta o Rei Salvador,
vatorem, cui dixit Pater: Ecce a quem disse o Pai: “Vou fazer de ti a luz
dedi te in lucem gentium, ut sis
salus mea usque ad extremum das nações, para propagar minha salvação
terræ; hymni celebrant Princi- até os confins do mundo” (Is 49, 6); e os hi-
pem qui debet: devios ovile in
unum ducere; quæ omnia reco-
nos celebram o Príncipe que deve “recon-
lunt lapsum. duzir os que erram a um só redil”, tudo o
qual se refere à Queda.
Obiici posset in liturgia efferri Poder-se-ia objetar que se aduzem na Li-
textus, Pauli qui dicunt Chri-
stum esse primogenitum omnis
turgia textos de Paulo que dizem ser Cristo
creaturæ, in quo condita sunt o primogênito “de toda a criação”, no qual
universa… ut sit in omnibus foram criadas todas as coisas, e por isso
ipse primatum tenens.
tem o primeiro lugar em todas as coisas (cf.
Col 1, 15.18).
Resp. 1: In hoc loco quædam Resposta 1: Nessa passagem, predicam-se
dici de Christi ratione naturæ
divinæ, ut sit conditor et con- algumas coisas de Cristo em razão da na-
servator omnium: “omnia per tureza divina, como o ser criador e con-
ipsum et in ipso creata sunt…
servador de tudo: “Tudo foi criado por
omnia in ipso constant”; qua-
edam vero ratione naturæ hu- ele e para ele […] e todas as coisas sub-
manæ, nempe ut sit caput cor- sistem nele” (Col 1, 16s); outras, porém,
poris Ecclesiæ, primogenitus
ex mortuis. Sophisma porro est em razão da natureza humana, como o ser
applicare Verbo ut incarnato Cabeça do Corpo, que é a Igreja, e o pri-
quæ competunt Verbo ut Deo.
mogênito dentre os mortos. É, portanto,
Asserit solum Paulus Verbum ut
Deum esse creatorem et finem um sofisma aplicar ao Verbo como encar-
omnium rerum, nullatenus vero nado o que compete ao Verbo como Deus.

18
I I . O m o t i vo da En ca r n ação

Christum ut Verbum incarna- O único que afirma Paulo é que o Verbo,


tum esse a Deo intentum ante
omnia independenter ab homi- como Deus, é o criador e o fim de todas
nis lapsu et reparatione. as coisas, mas de modo algum que Cristo,
como Verbo encarnado, foi predestina-
do (intentum) por Deus antes de todas as
coisas independentemente da Queda e da
reparação do homem.
Resp. 2: In nostra quoque sen- Resposta 2: Também a nossa sentença ex-
tentia recte explicatur Christum
habere primatum et esse om-
plica perfeitamente que Cristo tenha o pri-
nium terminum. Absque homi- meiro lugar e seja o fim de todas as coisas.
nis lapsu non fieret unio hypo- Com efeito, sem a Queda do homem, não
statica, non esset Christus; sed
iam statuto Christum esse ho- haveria a união hipostática, não nasceria
mine peccante, iam debet esse Cristo; mas, uma vez determinado que
Christus omnium caput; quia
homo est tantum finis cui, Chri-
Cristo nasceria, suposto o pecado do ho-
stus autem finis qui, seu finis mem, então deve Cristo ser a Cabeça de
cuius gratia omnia ordinantur. tudo; porque o homem é somente o fim cui,
Quo sensu dicimus Christum
esse primum in ordine intentio- ao passo que Cristo é o fim qui, isto é, o fim
nis, initiumque viarum Domini, em atenção ao qual são ordenadas todas as
Alpha et Omega.
coisas. Nesse sentido, dizemos ser Cristo o
primeiro na ordem da intenção e o início
das vias do Senhor, o Alfa e o Ômega.
Quam explicationem tradit Também o Cardeal Billot dá essa explica-
etiam cardinalis Billot: “Primo
et semel ferebatur decretum su- ção: “Desde a eternidade, lavrou-se o de-
pra totum ordinem qui nunc de creto sobre toda a ordem que agora de fac-
facto est: in quo foret peccatum,
et Christus ad reparandum pec-
to existe, na qual haveria o pecado, Cristo
catum, et subiectio omnium ad para reparar o pecado e a sujeição de todas
ipsum, quantumvis non existen- as coisas a Ele (o qual, porém, não existiria
tem nisi in suppositione peccati,
cælestium scilicet, terrestrium a não ser na suposição do pecado), isto é,
et infernorum” (Card. Billot, De das que estão na terra e nos infernos” (De
Verbo Incarnato, p. 44, not.; cf.
etiam nostrum opus De Verbo
Verbo Incarnato, p. 44, nota; cf. também a
Incarnato, q. 1, art. 3). nossa obra De Verbo Incarnato, q. 1, art. 3).

Verum liturgia positivas sugge- Ademais, a Liturgia sugere razões positivas


rit rationes pro thomistica sen- em favor da sentença tomista. Já a coleta,

19
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

tentia. Iam collecta, quæ recolit que recorda que Deus quis instaurar todas
Deum in dilecto Filio suo, uni-
versorum Rege, omnia instaurare as coisas em seu Filho amado, Rei do uni-
voluisse, quæque petit ut cunctæ verso, e pede que todos os povos, feridos e
familiæ gentium peccati vulnere
dispersos pelo pecado, se sujeitem ao seu
disgregatæ eius suavissimo sub-
dantur imperio, innuere videtur suavíssimo jugo, parece indicar que a En-
Incarnationem, qua constituitur carnação, pela qual é constituído Rei do
Rex universorum, ordinari ad
perficiendam omnium instaura- universo, se ordena à instauração de todas
tionem, quæ sane redemptionem as coisas (o implica, logo, a Redenção) e à
importat, et ad curandum pecca-
cura da ferida do pecado. Tudo isso expri-
ti vulnus; quæ omnia et lapsum
et reparationem exprimunt. me tanto a Queda quanto a reparação.

Sed inter omnia præstat Missæ Destaca-se sobretudo o prefácio da Missa,


Præfatio, quæ, sicut est poema que, além de ser um poema belíssimo, as-
pulcherrimum, ita doctrinam
magnificis celebrat præconiis: sim celebra a doutrina com magníficos pre-
“Vere dignum et iustum est, cônios: “É justo é necessário, é nosso dever
æquum et salutare, nos tibi
semper et ubique gratias agere:
e salvação dar-vos graças sempre e em todo
Domine sancte, Pater omnipo- lugar, Senhor Pai santo, Deus eterno e to-
tens, æterne Deus: qui unige- do-poderoso: que ao vosso Filho unigêni-
nitum Filium tuum Dominum
nostrum Iesum Christum, sa- to, Nosso Senhor Jesus Cristo, sacerdote
cerdotem æternum et univer- eterno e Rei do universo, ungistes com o
sorum Regem, oleo exultationis
unxisti; ut seipsum in ara crucis,
óleo da exultação; para que, oferecendo-se
hostiam immaculatam et pacifi- a si mesmo, hóstia imaculada e pacífica, no
cam offerens, redemptionis hu- altar da cruz, realizasse o mistério da re-
manæ sacramenta perageret; et
suo subiectis imperio omnibus denção humana; e, submetidas ao seu im-
creaturis, æternum et universale pério todas as criaturas, entregasse à vossa
regnum immensæ tuæ traderet
Maiestati: regnum veritatis et
imensa majestade um reino universal: rei-
vitæ; regnum sanctitatis et gra- no de verdade e de vida, reino de santidade
tiæ; regnum iustitiæ, amoris et e de graça, reino de justiça, de amor e de
pacis. Et ideo…”.
paz. Por isso…”.
Plura hic maximi momenti as- Muitas coisas importantíssimas são aqui
seruntur. Imprimis recolitur
unctio mirabilis, quæ est ipsa afirmadas. Em primeiro lugar, recorda-se
unio hypostatica, ut exponit a unção admirável que é a própria união
idem Pius XI in solemni allo-
cutione d. 28 decembris 1925:
hipostática, como expõe o mesmo Pio XI
“E’ unicamente perchè l’Omo- na solene alocução de 28 de dezembro de

20
I I . O m o t i vo da En ca r n ação

ousios di Nicea si è incarnato in 1925: “É unicamente porque o Homoou-


Gesù Cristo, Figlio di Maria e
Figlio di Dio vero e consostan- sios de Nicéia se encarnou em Jesus Cristo,
ziale, che si effuse e si effonde, Filho de Maria e Filho de Deus, verdadeiro
inesauribile ed infinita, in Gesù
e consubstancial, que se derrama e infun-
Cristo, quella che i teologi chia-
mano Unzione sostanziale della de, inexaurível ao infinito, em Jesus Cris-
Divinità, che lo consacrava sa- to aquela que os teólogos chamam unção
cerdote eterno secondo l’ordine
di Melchisedech” (Textus habe- substancial da divindade, que o consagra
tur in Bollettino per la comme- sacerdote eterno segundo a ordem de Mel-
morazione del Concilio di Nicea,
quisedec” (o texto se encontra em: Bolletti-
n. 6, p. 195). Iterum docetur
Christum simul unctum fuisse no per la commemorazione del Concilio di
sacerdotem et regem. Nicea, n. 6, p. 195). Mais uma vez se ensina
que Cristo foi ungido, ao mesmo tempo,
como sacerdote e Rei.

Licet in aliis sacerdotium et Ainda que em outros o sacerdócio e a dig-


regia dignitas separentur, in
nidade régia se deem separados, em Cris-
Christo tamen potestas sacer-
dotalis est etiam regalis, quia, to, todavia, o poder sacerdotal é também
iustificando et sanctificando real porque, justificando e santificando os
homines, ordinatur ad ætern-
um et universale regnum; po- homens, se ordena ao reino eterno e uni-
testas quoque regalis est sacer- versal; também o poder real é sacerdotal
dotalis, quia, sive ut legislativa,
porque, quer como legislativo, quer como
sive ut iudiciaria, sive ut execu-
tiva, tendit ad sanctificationem judiciário, quer como executivo, tende à
animarum, seu ad præstandam santificação das almas, isto é, à distribuição
illam gratiam et iustitiam cuius
ministerium sacerdotio com- daquela graça e justiça cujo ministério está
mittitur. reservado ao sacerdócio.

Si Christus esset sacerdos tan- Se Cristo fôra apenas sacerdote, não pode-
tum, non posset tradere Deo ria entregar a Deus um reino; se fôra ape-
regnum, si esset tantum rex,
non posset se ipsum hostiam nas Rei, não poderia imolar-se a si mesmo
immolare et sacrificium pretii como hóstia e oferecer o sacrifício do nosso
nostri offerre; at si est simul sa-
cerdos et rex, valet se victimam
preço; mas, se é ao mesmo tempo sacerdo-
pacificam offerendo redemp- te e Rei, pode, oferecendo-se como vítima
tionis humanæ sacramenta pe- pacífica, realizar o mistério da redenção
ragere et simul immensæ Patris
maiestati tradere universale re- humana e, a um tempo, entregar à imen-
gnum veritatis et vitæ, regnum sa majestade do Pai o reino universal da

21
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

sanctitatis et gratiæ amoris et verdade e da vida, o reino da santidade, da


pacis.
graça, do amor e da paz.
At præsertim dicitur Christum Ora, mais do que tudo, diz-se que Cristo,
Filium Dei esse incarnatum
propter redemptionem huma-
o Filho de Deus, se encarnou por causa
nam. Potest enim ex Præfatione da redenção humana. Pode-se, com efei-
hoc efficax argumentum confi- to, elaborar a partir do prefácio este eficaz
ci. Quum Christus sit sacerdos
et rex vi unionis hypostaticæ, argumento: (1) dado que Cristo é sacerdo-
propter eumdem finem fit unio te e Rei por força da união hipostática, a
hypostatica, seu Incarnatio,
propter quem Christus ungitur
união hipostática foi realizada pelo mesmo
sacerdos et rex. Atqui, iuxta fim pelo qual Cristo foi ungido sacerdote e
Præfationem, Christus ungitur Rei; (2) ora, segundo o prefácio, Cristo foi
et sacerdos et rex, ut seipsum
in ara crucis, hostiam immacu- ungido sacerdote e Rei para, oferecendo-se
latam et pacificam offerens, re- a si mesmo no altar da cruz como hóstia
demptionis humanæ sacramenta
peragat. Ergo fit unio hypostati-
imaculada e pacífica, realizar o mistério da
ca propter redemptionem, seu, redenção humana; (3) logo, a união hipos-
aliis verbis, finis et motivum tática foi realizada por causa da redenção
Incarnationis est humana re-
demptio. ou, em outras palavras, o fim e o motivo da
Encarnação são a redenção humana.
Quamquam non licet hoc te- Conquanto não se deva abusar deste teste-
stimonio abuti, inficiandum
non erit eo multum confirmari
munho, tampouco se deve perder de vista
thomisticam sententiam. Nam que, com ele, se confirma e muito a senten-
locutio: unxisti, ut redemp- ça tomista. Pois a expressão “ungiste”, as-
tionis sacramenta perageret,
hunc obvium reddit sensum: sim como “realizar o mistério da redenção”,
unctionem seu incarnationem tem este óbvio sentido: <Deus> operou a
operatus es ut haberetur re-
demptio, ac proinde redemp-
unção ou Encarnação para que houvesse a
tio est ratio et motivum cur redenção, e por isso a redenção é a razão e
facta fuerit Incarnatio seu un- o motivo pelo qual foi realizada a Encarna-
ctio substantialis.
ção ou unção substancial.

Quod etiam innuit nomen Iesu. Sugere-o também o nome de Jesus. Com
Nomen ab ipso Deo imposi-
efeito, um nome imposto por Deus deve
tum debet ipsam quidditatem
exprimere. Atqui nomen a Deo exprimir a própria quididade <da coisa
vi præsentis decreti imposi- nomeada>. Ora, o nome imposto por Deus
tum Christo est Iesus, quod in
a Cristo, em virtude do presente decreto, é

22
I I . O m o t i vo da En ca r n ação

præfatis documentis toties repe- Jesus, o que se repete várias vezes nos men-
titur. Ergo vi præsentis decreti,
quidditas Christi est ut sit Sal- cionados documentos. Logo, em virtude
vator, ac proinde Incarnatio vi do presente decreto, a quididade de Cristo
præsentis decreti est intenta ut
consiste em ser o Salvador, e por isso a En-
salus et redemptio, ita ut, nisi
esset redemptio, non fieret In- carnação, em virtude do presente decreto,
carnatio vi præsentis decreti. foi querida como salvação e redenção, de
tal modo que, se não houvesse redenção,
não haveria a Encarnação, em virtude do
presente decreto.

Nec absre erit indicare simile Nem será fora de lugar indicar um argu-
argumentum quod subministrat
mento semelhante, subministrado pela
bulla Ineffabilis Pii IX. Quum iu-
xta illam bullam B. Virgo Maria Bula Ineffabilis, de Pio IX: (1) dado, confor-
dicatur et sit proprie redempta, me a Bula, que a Bem-aventurada Virgem
non foret B. Virgo independen-
ter a redemptione. Sed Incarna- Maria se diz e foi, propriamente, redimida,
tio vi præsentis decreti non est não existiria a Bem-aventurada Virgem in-
independenter a B. Virgine Ma-
dependentemente da redenção; (2) ora, a
ria. Ergo Incarnatio vi præsentis
decreti non est independenter a Encarnação, em virtude do presente decre-
redemptione. to, não é independente da Bem-aventurada
Virgem Maria; (3) logo, a Encarnação, em
virtude do presente decreto, não é inde-
pendente da redenção.

Concludendum est tandem, in Deve-se concluir, por fim, que, na senten-


sententia S. Thomæ, Christum ça de S. Tomás, Cristo se diz mais propria-
magis proprie dici Regem no-
strum ac Dominum nostrum eo mente nosso Rei e nosso Senhor por ser Rei
quod sit rex propter nos homi- por nossa causa e pela nossa salvação. As-
nes et propter nostram salutem.
Hinc maxime excitatur pietas
sim são maximamente estimuladas a pie-
et devotio, prout animadvertit dade e a devoção, como bem notou S. Boa-
S. Bonaventura: “Plus excitat ventura: “Mais excita a devoção da alma fiel
devotionem animæ fidelis quod
Deus sit incarnatus ad delenda que Deus se tenha encarnado para apagar
scelera nostra quam propter nossos crimes do que para consumar sua
consummanda inchoata opera
sua” (S. Bonav., III Sent., dist. 1,
obra inacabada” (In III Sent., dist. 1, a. 3, q.
a. 3, q. 2). Et licet pro omnibus 2). E embora por todos tenha vindo Cristo
venerit Christus Rex, remanet Rei, a Encarnação é, sem embargo, um be-
tamen Incarnatio beneficium

23
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

pro singulis, quia reparando nefício para cada um em particular, já que,


malum quod singulos homines
afficit, immensum bonum sin- reparando o mal que a todos os homens
gulis affert. Quapropter monet afetava, fez a cada um bem imenso. Eis por
pie Toletus: “Quilibet debet
que adverte com piedade o Toledano: “To-
beneficium hoc reputare ac si
pro ipso solo factum esset; nam dos devem considerar esse benefício como
tantam habet obligationem” se fossem, cada um, os únicos beneficiá-
(Tolet In III P., q. 1, a. 4). Cum
liturgia itaque concludamus: rios, pois a tanta gratidão nos obriga” (In
“Dominus iudex noster, Do- STh III, q. 1, a. 4). Concluamos pois com a
minus legifer noster, Dominus
Liturgia: “O Senhor, nosso juiz; o Senhor,
Rex noster, ipse salvabit nos (I
Vesp., ant. 4). nosso legislador; o Senhor, nosso Rei, Ele
nos salvará” (I Vesp., ant. 4).

Simul ergo Salvator et Rex prop- Ao mesmo tempo, portanto, Salvador e


ter nos lapsos et reparandos. Rei, por nós, homens caídos e necessitados
de reparação.

24
III. <Christi regni III. As qualidades do
dotes>. reino de Cristo

— Pergit encyclica in declaran- Continua a Encíclica a declarar a força e a


do vim et naturam huius prin-
cipatus, quæ triplici potestate
natureza desse principado, a qual se con-
continetur, legislativa, iudicia- tém na tríplice potestade legislativa, judi-
ria, executiva. ciária e executiva:
“Atque est catholica fide
credendum Christum Ie- É artigo de fé católica: Cristo Jesus foi
sum hominibus datum esse
utique Redemptorem, cui
dado aos homens não só como Reden-
fidant, at una simul legislato- tor, que lhes merece toda confiança, mas
rem, cui obediant. Ipsum au- também como legislador, a quem deve-
tem evangelia non tam leges mos prestar obediência. E, com efeito,
condidisse narrant, quam
leges condentem inducunt: não dizem os Evangelhos tão só que
quæ quidem præcepta qui- promulgou leis, mas no-lo representam
cumque servaverint, iidem no ato de promulgar as leis. A quantos
a divino Magistro alias ali-
is verbis, et suam in eum
observarem os seus preceitos, declara o
caritatem probaturi et in divino Mestre, em várias ocasiões e de
dilectione eius mansuri di- diversos modos, que com isto mesmo
cuntur (Jo 14, 15; 15, 10).
Iudiciariam vero potestatem
lhe hão de provar o seu amor e perma-
sibi a Patre attributam ipse necer na sua caridade (cf. Jo 14, 15; 15,
Iesus Iudæis, de Sabbati re- 10). Quanto ao poder judicial, declara
quiete per mirabilem debilis o próprio Jesus havê-lo recebido de seu
hominis sanationem violata
criminantibus denuntiat: Pai, em resposta aos judeus, que o ha-
Neque enim Pater iudicat viam acusado de violar o descanso do
quemquam, sed omne iu- sábado, curando milagrosamente neste
dicium dedit Filio (Jo 5, 22.
— AAS 17, 599). In quo id
dia a um paralítico. “O Pai”, disse-lhes o
etiam comprehenditur — Salvador, “não julga a ninguém, mas deu
quoniam res a iudicio di- todo juízo ao Filho” (Jo 5, 22). Esse po-
siungi nequit — ut præmia
et poenas hominibus adhuc
der judicial igualmente inclui o direito,
viventibus iure suo deferat. que se não pode dele separar, de premiar

25
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

At præterea potestas illa e punir aos homens, mesmo durante a


quam executionis vocant,
Christo adiudicanda est,
vida. A Cristo compete o poder execu-
utpote cuius imperio para- tivo, porquanto devem todos sujeitar-se
re omnes necesse sit, et ea ao seu domínio, e quem for rebelde não
quidem denuntiata contu- poderá evitar a condenação e os suplí-
macibus irrogatione suppli-
ciorum, quæ nemo possit cios, que Jesus prenunciou (n. 11).
effugere (Cf. STh III 8)”.
Ora, o que mais se há de inculcar é ser o
At maxime inculcandum est
principatum Christi esse ab- principado de Cristo absoluto e universal,
solutum et universalem, qui a ponto de se estender também a toda a
etiam ad societatem universam
se extendat. Manifestum est ex
sociedade. É evidente, a partir da doutri-
doctrina S. Thomæ, Christum na de S. Tomás, que Cristo é rei de todos
esse regem omnium, in quos per <os homens>, nos quais influi pela graça
gratiam capitalem influit, ne in-
fidelibus quidem exceptis; nam capital, não excluídos nem mesmo os in-
et pagani et Iudæi et hæretici a fiéis; pois tanto os pagãos quanto os judeus
Iesu Christo influxum accipiunt,
ut constat ex propositione dam-
e os hereges recebem o influxo de Jesus
nata ab Alexandro VII, d. 7 dec. Cristo, como é coisa assente pela proposi-
1690 (Denz. 1225). ção condenada por Alexandre VII, no dia 7
dezembro de 1690 (cf. D 1225).
Quapropter Pius XI concludit Por esse motivo, Pio XI conclui com Leão
cum Leone XIII:
XIII:

“Videlicet imperium eius Seu império não abrange tão-só as na-


non est tantummodo in ções católicas ou os cristãos batizados,
gentes catholici nominis,
aut in eos solum qui, sacro que juridicamente pertencem à Igreja,
baptismate abluti, utique ainda quando dela separados por opi-
ad Ecclesiam, si specte- niões errôneas ou pelo cisma; estende-
tur ius, pertinent, quam-
vis vel error opinionum
-se igualmente e sem exceções aos ho-
devios agat, vel dissensio mens todos, mesmo alheios à fé cristã,
a caritate seiungat; sed de modo que o império de Cristo Jesus
complectitur etiam quo-
abarca, em todo rigor da verdade, o gê-
tquot numerantur chri-
stianæ fidei expertes, ita nero humano inteiro (Leão XIII, Encí-
ut verissime in potestate clica “Annum Sacrum”, de 25 mai. 1899)
Iesu Christi sit universitas (n. 14).
generis humani”.

26
I I I . A s q ua li da d es d o r ein o d e C r i s t o

Et quia, iuxta Angelicum, Chri- E porque, de acordo com o Angélico, Cristo


stus influit in hominem totum,
oportet illum in homine toto re- influi sobre o homem inteiro, é necessário
gnare: in anima, quam deificat; que Ele reine no homem inteiro: na alma,
in intellectu, ut de ipso recogitet
à qual deifica; no intelecto, para que dele
perpetim; in voluntate, ut ipsius
mandatis subiiciatur; in affectu, se lembre sempre; na vontade, para que se
ut Christus sit super omnia submeta aos seus mandamentos; no afeto,
dilectus; in corpore, ut exhi-
beamus corpora nostra arma para que Cristo seja amado acima de tudo;
iustitiæ Deo, ad eius gloriam et no corpo, para que ofereçamos nossos cor-
honorem.
pos como instrumentos de justiça a Deus,
para sua glória e honra (cf. Rm 6, 13).
Ut autem appareat Christi prin- Para que se veja, porém, que o principado
cipatum esse quoque ad univer-
sam societatem extendendum, de Cristo deve estender-se também a toda
sufficit hæc animadvertere: Ho- a sociedade, é suficiente notar o seguinte:
mines in societate adunati non
os homens, reunidos em sociedade, nem
idcirco e dominio Christi exeu-
nt, sed ipsi tota societas subest. por isso se subtraem ao domínio de Cristo,
Quod ita exponit Augustinus: senão que toda a sociedade lhe está sujeita.
“Non enim aliunde beata civitas,
aliunde homo; cum aliud civitas O que assim expõe Agostinho: “Não tem a
non sit quam concors hominum cidade feliz origem distinta da do homem,
multitudo” (S. Augus., Ad Mace-
pois que a cidade não é mais do que uma
don., c. 3, P. L. 33, 670).
concorde multidão de homens” (Ad Ma-
ced. 3: PL 33, 670).
Ex quo potest efformari argu- A partir do qual pode formular-se o argu-
mentum: <1> Is qui est princi-
pium beatitudinis pro civitate et
mento: (1) aquele que é princípio de felici-
societate esse debet quoque civi- dade para a cidade e a sociedade deve ser
tatis et societatis dominus et rex. também senhor e rei da cidade e da socie-
<2> Atqui Christus etiam homo
est principium beatitudinis pro dade; (2) ora, Cristo, também enquanto
civitate et societate, titulo qui- homem, é princípio de felicidade para a ci-
dem unionis hypostaticæ, et
titulo acquisitionis et beneficio-
dade e a sociedade, a título de união hipos-
rum, quatenus societati præstat tática e a título de aquisição e benefícios, na
illa subsidia spiritualia sine qu- medida em que proporciona à sociedade
ibus consistere nequit societas.
<3> Ergo Christus est rex civi- aqueles subsídios espirituais sem os quais
tatis et societatis. Vel, ali forma: ela não pode subsistir; (3) logo, Cristo é
<1> Gentes et societates debent
ut regem agnoscere et colere
Rei da cidade e da sociedade. Ou, sob ou-

27
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

illum sine quo nequeunt finem tra forma: (1) os povos e sociedades devem
attingere. <2> Atqui gentes et
societates accipiunt a Christo reconhecer e venerar como rei aquele sem
influxum sine quo nequeunt o qual não podem atingir seu fim; (2) ora,
finem attingere; quia non po-
os povos e sociedades recebem de Cristo o
test vita moralis et honesta in
societatibus constitui et servari influxo sem o qual não podem atingir seu
sine auxiliis quæ a Salvatore de- fim, porque não pode haver nem se con-
rivantur. <3> Ergo gentes et so-
cietates debent agnoscere Chri- servar uma vida moral e honesta nas so-
stum Regem, et hoc erit efficax ciedades sem os auxílios que derivam do
remedium contra pestem ætatis
Salvador; (3) logo, os povos e sociedades
nostræ: laicismum.
devem reconhecer a Cristo Rei, e isso será
um eficaz remédio contra a peste do nosso
tempo: o laicismo.
Triplex præsertim est forma São principalmente três as formas sob as
quæ se prodit ille nefarius error.
quais se manifesta este erro nefário.
<a> Imprimis contendit religio- a) Em primeiro lugar, defende que a reli-
nem esse ordinis mere privati
neque inter officia quæ socie- gião pertence à ordem meramente pri-
tatem externam spectant esse vada nem deve ser posta entre os deveres
reponendam. Si autem procla-
matur universale Christi im-
concernentes à sociedade externa. Ora, se
perium super omnes gentes et se proclama o império universal de Cris-
societates, iam vindicatur ius to sobre todos os povos e sociedades, já se
divinum et lucet veritas quam
exponebat Leo XIII: “Natura et reivindica o direito divino e resplandece
ratio quæ iubet singulos sancte a verdade que Leão XIII expunha: “A na-
religioseque Deum colere, quod
in eius potestate sumus et quod
tureza e a razão que mandam a cada um
ab eo profecti ad eundem reverti adorar santa e religiosamente a Deus, por
debemus, eadem lege adstringit estarmos em seu poder e devermos, tendo
civilem communitatem” (Leonis
XIII, Acta, V. 122). dele saído, a Ele voltar, obriga pela mesma
lei a comunidade civil” (Acta V, 122).
<b> Secundo, asserit laici- b) Em segundo lugar, afirma o laicismo: se
smus: si qua religio forte sit
amplectenda, liberum esse
houver, porventura, que abraçar alguma
unicuique, et præsertim socie- religião, deve cada um, e principalmente
tati, quam maluerit profiteri. a sociedade, ter a liberdade de professar
Proclamato autem Iesu Christo
omnium gentium et societatum aquela que preferir. Proclamado, porém,
rege et domino, constat eo ipso Jesus Cristo como Rei e Senhor de todos

28
I I I . A s q ua li da d es d o r ein o d e C r i s t o

unicam esse religionem quam os povos e sociedades, segue-se por isso


Christus mundo attulit. “Om-
ninoque debent eum in colendo mesmo que há uma única religião trazi-
numine morem usurpare mo- da por Cristo ao mundo. “Devem pois, ao
dumque quo coli se Deus ipse
adorarem a Deus, observar inteiramente as
demonstraverit se velle… liquet
eam esse unice veram quam Ie- formas e o modo com que Ele mesmo mos-
sus Christus constituit ipsemet trou querer ser adorado […]; é, portanto,
et Ecclesiæ suæ tuendam propa-
gandamque demandavit” (Ibid., evidente ser a única verdadeira aquela <re-
123, 124). ligião> que o próprio Jesus Cristo consti-
tuiu e cuja defesa e propagação confiou à
sua Igreja” (ibid., 123s).
<c> Tertio, laicismus maxime c) Em terceiro lugar, o laicismo detesta ma-
abhorret ab ordine supernatura-
li. Sicut enim diabolus ab initio
ximamente a ordem sobrenatural. Assim
peccavit reiiciendo finem super- como o diabo pecou desde o início rejei-
naturalem (STh I 63, aa. 2-3), sic tando o fim sobrenatural (cf. S. Tomás, STh
laicismo, qui diabolicum spiri-
tum redolet, proprium est odio I 63, 2 e 3), assim também é próprio do lai-
maximo habere omnibusque cismo, que cheira a espírito diabólico, ter
mediis insectari et impugna-
re supernaturale, ut de medio
ao sobrenatural o máximo ódio e buscar,
prorsus tollatur. Iam vero super- por todos os meios, persegui-lo e impug-
naturale in ipso Christo, Verbo ná-lo, a fim de o destruir por completo.
Dei pro nobis incarnato, exhibe-
tur et manifestatur, ac proinde, Pois bem, o sobrenatural se revela e ma-
dum agnoscitur Christus rex, nifesta no próprio Cristo, Verbo de Deus
etiam societatum, necessitas et
veritas ordinis supernaturalis
por nós encarnado, e por isso, quando se
asseritur, et dira lues laicismi reconhece a Cristo, Rei também das socie-
propulsatur, simulque divina dades, afirma-se a necessidade e a verdade
Ecclesiæ missio inculcatur.
da ordem sobrenatural, repele-se a mancha
detestável do laicismo e, ao mesmo tempo,
inculca-se a divina missão da Igreja.
Stabilito autem principatu Regis Uma vez estabelecido o principado univer-
universali super totum orbem,
firmatur pax universorum quæ sal do Rei sobre todo o orbe, firma-se a paz
dicitur ab Augustino tranquili- entre todas as coisas, que é por Agostinho
tas ordinis (De Civit. Dei, lib. 14,
chamada “tranquilidade na ordem” (De Ci-
c. 13; P. L. 41, 640).
vit. XIV 13: PL 41, 640).

29
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

Animadvertatur quam pulchra Note-se quão bela, bem construída e pro-


et eximia et profunda sit hæc
definitio. Pax quippe non est funda seja esta definição. A paz, com efeito,
tranquilitas tantum, eo quod não é apenas tranquilidade, porque pode
possit esse tranquilitas quædam
haver certa tranquilidade aparente, falsa,
apparens fucata, prava, sicut et
sunt mala mentis gaudia; nec perversa, como são os prazeres maus do co-
ordo tantum, eo quod possit ração; nem apenas ordem, porque a ordem
ordo lædi, sperni, violari; sed est
simul tranquilitas et ordo, seu pode ser ferida, desprezada, violada; mas
melius tranquilitas ordinis. é, simultaneamente, tranquilidade e ordem
ou, melhor, tranquilidade na ordem.
Quid vero sit ordo exponit ibi- Ora, o que seja ordem, expõe-no Agosti-
dem Augustinus: Parium dispa-
riumque rerum sua cuique loca
nho na mesma obra: “Disposição de coisas
tribuens dispositio. Ut ergo in- iguais e desiguais que dá a cada uma seu
stituatur pax, debent singula in lugar próprio”. Para que haja paz, portanto,
suo proprio loco recte consiste-
re. Sicut in homine pax requiri deve cada coisa estar retamente disposta
ut corpus subdatur animæ, ap- em seu próprio lugar. Assim como, no ho-
petitusque rationi et ratio Deo,
ita et in mundo universo pax
mem, a paz requer que o corpo se submeta
postulat ut cunctæ societates, à alma, os apetites à razão e a razão a Deus,
domestica, civilis, omnes gentes, assim também, no mundo todo, a paz exi-
subdantur Christo Regi; et idcir-
co agnito regno et imperio Chri- ge que todas as sociedades, doméstica e ci-
sti in universam societatem, pax vil, e todos os povos se submetam a Cristo
vera et quies fundabitur. Quæ
omnia optime exponit prima
Rei; dessa forma, reconhecidos o reino e o
encyclica Pii P. XI: “Ex his liquet império de Cristo sobre toda a sociedade,
nullam posse nos contendere lançar-se-ão os fundamentos da verdadeira
efficacius ad pacem constabi-
liendam, quam Christi regnum paz e tranquilidade. Tudo o qual está muito
instaurando” (AAS 14, 690). bem exposto na primeira Encíclica do Papa
Pio XI: “Do quanto dissemos se segue que
não há meio mais eficaz de trabalharmos
pela construção da paz do que instaurando
o reino de Cristo” (AAS 14, 690).
Inde quoque colligitur quæ sit Daí também se depreende qual seja a ra-
ratio et indoles novi Festi a Papa
instituti.
zão e a índole da nossa Festa instituída
pelo Papa.

30
IV. <Ratio et indoles IV. Razão e índole da Festa
novi festi>.

— Recolendum est populum Recorde-se que o povo é pouco receptivo


parum attendere spiritualibus,
si nuda ipsi præsententur. Que-
às coisas espirituais, se estas lhes forem
madmodum enim utitur homo apresentadas diretamente. Assim como o
sensibilibus sacramentis, quibus homem se serve dos sacramentos sensíveis
ducitur in rerum supernatura-
lium cognitionem (STh III 61), para ser conduzido ao conhecimento das
ita festiva solemnitate indiget, realidades sobrenaturais (cf. S. Tomás, STh
qua, dum sensus percelluntur,
spiritus et mens ad divina sur-
III 61), assim também necessita de uma so-
sum evehantur. lenidade festiva pela qual, enquanto se lhe
fascinam os sentidos, o espírito e a mente
se elevem às coisas divinas.

Rei de qua nunc agitur applicari À matéria ora vertente podem aplicar-se
possunt verba quibus concilium as palavras com que o Concílio de Trento
Tridentinum ostendit æquissim-
um esse sacros aliquos statutos mostra ser muitíssimo conveniente instituir
esse dies, cum christiani omnes determinados dias sagrados, nos quais to-
singulari ac rara quadam signi-
ficatione gratos et memores te-
dos os cristãos testemunhem seu reconheci-
stentur animos erga communem mento e gratidão ao Senhor e Redentor co-
Dominum et Redemptorem: mum, com singular e especial significação:

“Atque sic quidem opor- E assim se tornou conveniente que a ver-


tuit victricem veritatem
dade vitoriosa festeje seu triunfo sobre a
de mendacio et hæresi
triumphum agere, ut eius mentira e a heresia, para que seus adver-
adversarii in conspectu sários, postos diante de tanto esplendor
tanti splendoris et in tanta e em meio à tamanha alegria da Igreja
universæ Ecclesiæ lætit-
ia positi, vel debilitati et universal, debilitados e derrotados se
fracti tabescant, vel pu- desanimem, ou, movidos por vergonha
dore affecti et confusi ali- e confusão, algum dia se corrijam (13.ª
quando resipiscant” (Sess.
13, cap. 2).
sessão, cap. 2).

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A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

Sic quoque, nostra ætate, vi- Assim também, no nosso tempo, a verdade
ctrix fulgebit veritas, si speciale
ac solemnissimum in univer- brilhará vitoriosa se for celebrada na Igreja
sa Ecclesia festum celebretur, universal uma especial e soleníssima Festa,
quo etiam adversarii fracti et
graças à qual também os adversários surjam
confusi appareant. Illa quip-
pe festivitas, modo externo et debilitados e confusos. Tal Festa, com efeito,
hominibus accommodato, pro- de modo externo e acomodado aos homens,
clamabit Christum esse Regem,
cui debent gentes et societates irá proclamar que Cristo é Rei, a quem de-
subicere et intellectum et disci- vem os povos e sociedades submeter a inte-
plinam et mores et instituta et
ligência, a disciplina, os costumes, as insti-
totam vitam.
tuições e a vida inteira. Diz a Encíclica:
“Sane, ait recens encyclica
(AAS 17, 603), cum homo
animo et corpore constet, Composto de corpo e alma, precisa o
debet is exterioribus die- homem dos incitamentos exteriores das
rum festorum solemnibus festividades, para que, através da varie-
ita commoveri atque exci-
tari, ut divinas doctrinas
dade e beleza dos sagrados ritos, recolha
per sacrorum varietatem no ânimo a divina doutrina, e, transfor-
pulchritudinemque rituum mando-a em substância e sangue, tire
copiosius imbibat et, in suc-
cum ac sanguinem conver-
dela novos progressos em sua vida espi-
sas, sibi ad proficiendum in ritual (n. 19).
spirituali vita servire iubeat”.

Opponi potest festum speciale Pode-se objetar que uma festa especial é
institui quidem pro facto quo- instituída em razão de algum fato histórico
dam historico vel mysterio ex-
terno, quo recolitur vita, passio,
ou mistério externo, pela qual se faz me-
resurrectio, ascensio Christi, mória, <por exemplo>, da Paixão, Ressur-
vel descensus Spiritus Sancti in reição ou Ascensão de Cristo, ou da des-
Apostolos, non vero pro obiec-
to invisibili, ut est regia dignitas cida do Espírito Santo sobre os Apóstolos,
seu principatus Christi. mas não em razão de um objeto invisível,
como é o caso da dignidade régia ou prin-
cipado de Cristo.
Respondetur: Quum liturgia sit Resposta: Dado que a Liturgia é expressão
viva dogmatis expressio lexque
exterius orandi ostendat legem do dogma e que a lei externa de oração ex-
interius credendi, poterit con- prime a lei interna da fé, poderá instituir-
stitui visibile festum de invisibili
-se uma festa visível sobre um objeto invi-
obiecto, dummodo istud non
remaneat vagum et abstractum, sível, contanto que ele não permaneça vago

32
I V. R a z ão e í n d o le da F es ta

sed determinatum et aliqua ma- e abstrato, mas se manifeste como coisa


nifestatione se prodat, seu modo
quodam externo proferatur; sic- determinada, isto é, se celebre de algum
que potuit institui festum de SS. modo externo; foi assim que se pôde ins-
Trinitate vel sacerdotio Christi.
tituir a festa da SS. Trindade ou do sacer-
In præsenti autem obiectum est
omnino determinatum, cum dócio de Cristo. Ora, neste caso, o objeto é
agatur de Iesu Christo Rege uni- plenamente determinado, por se tratar de
versorum, cuius regia dignitas
in Scriptura et Traditione cer- Jesus Cristo Rei do universo, cuja dignida-
tissime asseritur; viget etiam de régia encontra-se afirmada com certeza
speciale motivum specialisque
na Escritura e na Tradição; há ainda um
finis, ut scilicet pessima laicismi
lues propulsetur, et iura divina motivo e um fim especiais, a saber: repelir
vindicentur, dum instauratur a terrível mancha do laicismo e reivindicar
pax Christi in regno Christi.
os direitos divinos, enquanto se restaura a
paz de Cristo no reino de Cristo.
Animadvertatur porro illud Do- Atente-se, ademais, para o fato de que o
mini nostri imperium non re-
manere absolute invisibile, sed
império de Nosso Senhor não permanece
exterius se prodere, non solum absolutamente invisível, mas se manifesta
in Epiphania et in die Palma- exteriormente, não apenas na Epifania e no
rum, sed in plerisque vitæ Chri-
sti mysteriis. Dia de Ramos, mas em vários mistérios da
vida de Cristo.
At iterum opponitur: si iam in Mas de novo se objeta: se já em outros mis-
aliis mysteriis illud revelatur,
potest in illis coli, atque idcirco
térios se revela <esse império>, pode ser
deest novi festi necessitas. neles festejado, e por isso não é necessária
a nova Festa.

Respondetur: Quamvis in diver- Resposta: Ainda que em diversos mistérios


sis mysteriis se prodat et idcirco
se manifeste e, portanto, não permaneça
non remaneat absolute invisi-
bile, in nullo tamen hucusque absolutamente invisível, em nenhuma fes-
festo sat expresse vindicatur, ta, até agora, se reivindicou suficientemen-
quumque speciale sit obiectum
et motivum, speciale requiritur te <esse império>, e por haver um especial
festum, ut per singula discur- objeto e motivo, requer-se uma Festa espe-
renti patebit.
cial, como ficará claro a quem ler o que se
segue.

33
A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

<a> In festis quidem Nativita- a) Na festa do Natal, por um lado, mani-


tis manifestatur Salvator, eius
apparet humanitas et benigni- festa-se o Salvador, aparece a sua humani-
tas, at nondum Rex cum suis dade e benignidade, mas não é ainda pro-
iuribus proclamatur.
clamado Rei com seus direitos.

<b> In festo Epiphaniæ revela- b) Na festa da Epifania, é revelado aos


tur quidem gentibus et a genti- povos como Senhor e é por eles assim re-
bus ut dominus agnoscitur, at
nondum regnat supra gentes conhecido, mas ainda não reina sobre os
ut sunt per modum societatum povos, enquanto constituídos ao modo de
constitutæ; ac proinde, licet sit
festum manifestationis Chri-
sociedades; e, por conseguinte, conquanto
sti, nondum est festum regni et seja a festa da manifestação de Cristo, não
imperii in ipsas societates, nec é ainda a festa do seu reino e império so-
dum Christus obtinuit perfecte
titulum acquisitionis et redemp- bre as mesmas sociedades, pois que Cristo
tionis, quæ solum in cruce com- não obteve ainda, perfeitamente, o título
pletur.
de aquisição e redenção, que só na cruz se
irá consumar.
<c> In solemnitate quidem SS. c) Na solenidade do S. Coração de Jesus,
Cordis Iesu adoratur Christus
ut Rex, sed obiectum non est
por outro lado, Cristo é adorado como
plene idem cum obiecto festi de Rei, mas o objeto não é exatamente o
quo nunc agitur. In cultu enim mesmo que o da festa de que aqui se trata.
SS. Cordis id quod præcipue at-
tenditur est amor, terminus vero Com efeito, no culto ao S. Coração, aqui-
est Iesus totus amans totosque lo a que principalmente nos voltamos é o
amandus, ideoque Rex amoris et
per amorem regnans; hic autem
amor, enquanto o termo <total> é Jesus
consideratur regia potestas in se inteiro, enquanto ama e deve por nós ser
ipsa terminusque est Iesus Rex totalmente amado e, por isso, enquanto é
absolute et super omnia, quem
oportet regnare omnino, etiam Rei do amor e que reina pelo amor; aqui,
ubi respuitur amor. Ergo, cum porém, o que se considera é a potestade
sit speciale obiectum et moti-
vum, speciale debet constitui
régia em si mesma, e o termo é Jesus Rei
festum. absolutamente e sobre todas as coisas, o
qual deve reinar inteiramente, mesmo
onde se despreza o amor. Logo, havendo
um especial objeto e motivo, deve insti-
tuir-se uma festa especial.
Quæ luculenter exponit encyclica: A Encíclica o expõe magistralmente:

34
I V. R a z ão e í n d o le da F es ta

“Quamquam in omnibus […] conquanto outras festas, já existen-


Domini nostri festis ma-
teriale obiectum, ut aiunt,
tes, enalteçam e de algum modo glorifi-
Christus est, obiectum ta- quem sua dignidade real, basta, contudo,
men formale a regia Chri- observar que, se todas as festas de Nosso
sti potestate et nomine se- Senhor têm a Cristo, segundo a lingua-
cernitur” (AAS, 17, 608).
gem dos teólogos, por “objeto material”,
de modo algum é o poder e apelativo de
Rei “objeto formal” das mesmas (n. 29).

Ceterum non debent cultores De resto, não devem os adoradores do S.


SS. Cordis timere ne festum Coração temer que essa nova Festa traga
istud novum afferat damnum
aut præiudicium devotioni algum dano ou prejuízo para a devoção
erga Cor sacratissimum: quin ao Sacratíssimo Coração; antes, pelo con-
imo, cultus ille promovebitur,
nam Rex amoris agnoscitur
trário, este culto será fomentado, já que o
dum Rex universalis procla- Rei do amor é reconhecido quando procla-
matur, et festum quod affirmat mado Rei universal, e a Festa que afirma
Christum regnare simpliciter et
absolute, poterit etiam indica- que Cristo reina irrestrita e absolutamente
re Christum regnare speciali- poderá indicar também que Cristo reina
ter per charitatem, atque ideo
modum efficacem celebrandi
especialmente pela caridade e, assim, que o
Christum Regem importare ut modo eficaz de celebrar a Cristo Rei impli-
omnes Cordi Iesu vere se de-
ca que todos se consagrem verdadeiramen-
dant. Hinc apposite dicit Papa:
“Præcipimus ut eo ipso die te ao Coração de Jesus. Daí dizer o Papa:
generis humani Sacratissimo “Prescrevemos igualmente que, cada ano,
Cordi Iesu dedicatio quotannis
renovetur” (Ibidem, 607). se renove nesse dia a consagração do gê-
nero humano ao Coração de Jesus” (n. 28).

Oportet autem ut festum istud a Cumpre que essa festa seja celebrada por
toto populo celebretur, et idcir- todo o povo e, portanto, num domingo,
co die dominica, ut possit fieri
omnium concursus et præclara para que haja a presença de todos e uma
solemnitas; atque, ut appareat preclara solenidade; e, para que se veja
distinctio a festo SS. Sacramenti
et a festo SS. Cordis, celebran-
a diferença entre <ela> e as festas do SS.
dum erit postea circa finem anni Sacramento e do S. Coração, deve essa ce-
liturgici, ante festum omnium lebrar-se mais tarde, por volta do fim do
Sanctorum, sicut ipsum regnum
Christi in regno Sanctorum ano litúrgico, antes da Festa de Todos os
completur et absolvitur. “Itaque, Santos, pois que o próprio reino de Cristo
concludit Pius XI, auctoritate

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A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

Nostra apostolica, festum D. N. se realiza e consuma no reino dos santos.


Iesu Christi Regis instituimus,
quotannis, postremo mensis oc- “Portanto”, conclui Pio XI, “em virtude de
tobris dominico die, qui scilicet Nossa autoridade apostólica, instituímos
omnium sanctorum celebrita-
a festa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei,
tem proxime antecedit, ubique
terrarum agendum” (Ibidem). mandando que seja celebrada cada ano,
no mundo inteiro, no último domingo de
outubro imediato à solenidade de Todos os
Santos” (ibid.).
Quoad titulum demum sufficit: Quanto ao título, é suficiente o de “Jesus
Festum Iesu Christi Regis, quia
is titulus nihil excludit et omnia
Cristo Rei”, porque esse título nada exclui e
includit; adiungere autem aliquid tudo inclui; acrescentar-lhe algo mais seria
aliud esset principatum restrin- restringir o principado. Ora, é coisa certa,
gere. At ex toto divino officio
consta Iesum esse Regem uni- por todo o divino Ofício, que Jesus é Rei
versalem gentium et societatum: universal dos povos e sociedades: dos povos,
gentium quidem, ut sic appare-
at eam esse regiam potestatem
para que se veja que essa potestade régia é
quam asserunt Scripturæ: dabo a que ensinam as Escrituras: “Dar-te-ei por
tibi gentes hæreditatem tuam; herança todas as nações”; e das sociedades,
societatem vero, ut exprimitur
Christum obtinere imperium in para exprimir que Cristo detém um império
civitates etiam prout sunt in for- sobre as cidades também enquanto consti-
mam societatum constitutæ.
tuídas em forma de sociedades.
Demum declarat encyclica uti-
Por fim, declara a Encíclica as utilidades
litates quæ ex hoc festo conse-
quentur. que advirão desta festa.

<a> Respectu Ecclesiæ. Hinc a) Com respeito à Igreja. — Assim se ma-


ostenditur Ecclesiam esse so- nifesta que a Igreja é uma sociedade per-
cietatem perfectam a Christo
Deo constitutam, atque proin- feita, constituída por Cristo Deus, e por
de nativo iure, quod abdicare isso titular por direito próprio, do qual não
nequit, plenam libertatem im-
munitatemque a civili potestate
pode abdicar, de plena liberdade e imuni-
exposcere. dade do poder civil.

<b> Respectu status religiosi. b) Com respeito ao estado religioso. — A


Doctrinam maximi momenti
Encíclica expõe uma doutrina de grande
tradit encyclica, nempe statum
religiosum constituere in Eccle- importância, qual seja: que o estado religio-
sia statum perfectionis (STh II-II, so constitui, na Igreja, um estado de perfei-

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I V. R a z ão e í n d o le da F es ta

184) ac per tria vota, quæ triplici ção (cf. S. Tomás, STh II-II 184) que, pelos
concupiscentiæ resistunt, pro-
vehere regnum Christi, et effice- três votos, que resistem à tríplice concupis-
re ut sanctitatis nota in Ecclesia cência, edificam o reino de Cristo e fazem
resplendeat. Inde colligitur sta-
resplandecer na Igreja a nota de santidade.
tum religiosum ad integritatem
Ecclesiæ quodam modo perti- Donde se segue que o estado religioso é, de
nere, ac proinde ius habere ad algum modo, parte da integridade da Igre-
illam libertatem quæ competit
Ecclesiæ. Citanda sunt hæc au- ja e, por isso, tem direito àquela liberdade
rea verba Summi Pontificis: que compete à Igreja. Devem ser citadas as
áureas palavras do Sumo Pontífice:
“Immo haud dissimilem
debet præterea respubli-
ca libertatem iis præstare […] idêntica liberdade deve o Estado
religiosorum utriusque conceder às ordens e congregações re-
sexus Ordinibus ac Soli- ligiosas de ambos os sexos, pois são os
dalitatibus, qui, cum adiu-
tores Ecclesiæ Pastoribus auxiliares mais firmes dos Pastores da
adsint validissimi, tum in Igreja, os que mais eficazmente se empe-
regno Christi provehen- nham em difundir e confirmar o reina-
do stabiliendove quam
maxime elaborant, sive
do de Cristo, primeiro debelando em si,
triplicem mundi concupi- com a profissão religiosa, o mundo e sua
scentiam sacrorum religio- tríplice concupiscência, e depois, pelo
ne votorum oppugnantes,
fato de haverem abraçado uma profissão
sive ipsa perfectioris vitæ
professione efficientes, ut de vida mais perfeita, fazendo resplan-
sanctitas illa quam divi- decer aos olhos de todos, com fulgor
nus Conditor insignitam contínuo e cada dia crescente, esta san-
Ecclesiæ notam esse iussit,
perpetuo auctoque in dies tidade de que o divino Fundador quis
splendore ante oculos om- fazer uma nota distinta de sua Igreja au-
nium emicet et colluceat”. têntica (n. 32).

Efficax sane Institutorum re-


ligiosorum apologia et enco- Grande apologia e encômio dos institutos
mium! religiosos!
<c> Respectu societatis civilis. c) Com respeito à sociedade civil. — Cum-
Oportet ut civitas regatur iuxta
ius quod promulgavit Christus
pre que a cidade seja regida em conformi-
Rex. Et hinc magistratus et gu- dade com o direito promulgado por Cristo.
bernatores ad divinum iudicium Daí que venham um dia a ser chamados
revocabuntur, qui illud con-
tempserint vel neglexerint, tum perante o Juízo divino os magistrados e go-
in legibus ferendis, tum in iure vernantes que o desprezarem ou negligen-

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A D O U T RI NA T E O LÓ G I CA D E C RI S TO REI

dicendo, tum etiam in adule- ciarem, quer na promulgação das leis, quer
scentium animis ad doctrinam
morum informandis. na administração da justiça, quer enfim na
formação do espírito dos jovens segundo
os bons costumes.
<d> Demum respectu directio- d) Em último lugar, com respeito à direção
nis animarum. Debet omnino
Christus in omnes nostras facul- das almas. — Deve Cristo exercer sobre
tates exercere imperium absque todas as nossas faculdades um império
limite: in mentes, ut doctrinæ
eius adhæreant; in voluntates, ut
sem limite: sobre as mentes, para assenti-
iussa Regis exequantur; in corda rem à sua doutrina; sobre as vontades, para
et corpora, ut sint sanctitatis et cumprirem as ordens do Rei; nos corações
iustitiæ instrumenta (“Arma iu-
stitiæ Deo” Rm 6, 13), prout iam e corpos, para serem instrumentos de san-
monuimus. “Quæ quidem om- tidade e justiça, como já dissemos. “Eis os
nia, ait Summus Pontifex, si chri-
stifidelibus penitus inspicienda
pensamentos”, diz o Sumo Pontífice, “que,
ac consideranda proponantur, propostos à reflexão dos fiéis e atentamen-
multo iidem facilius ad perfectis- te ponderados, hão de facilmente levá-los a
sima quæque traducentur”.
mais elevada perfeição” (n. 34).
Sicque vita vere christiana effi- E assim, a vida verdadeiramente cristã
ciet ut tandem Christus vincat,
regnet et imperet. fará, até que enfim, que Cristo vença, rei-
ne e impere!

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