Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1, 2022
SINAL de MENOS
ISNN 1984-8730
#15, v.1
Edição: Contribuições:
[-]
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
EDITORIAL
“DEMOCRACIA E AMOR” 36
Um mergulho no espetáculo à brasileira
Diogo Dias
UM PAÍS ENTRE 41
Uma crítica curta de um curta-metragem
Francisco Bosco
INSÔNIA 169
A “Coleção de Encrencas” de Graciliano
Cláudio R. Duarte
1
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Editorial
Difícil encontrar uma reflexão que resuma de maneira mais justa e perfeita o estado
atual do mundo e o tema principal desta edição de Sinal de Menos do que esta passagem d’O
capital de Marx:
O capital, que tem tão “boas razões” para negar os sofrimentos das gerações de trabalhadores
que o circundam, é, em seu movimento prático, tão pouco determinado pela perspectiva do
apodrecimento futuro da humanidade e seu inexorável despovoamento final quanto pela
possível queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer fraude no mercado de ações, todos sabem
que um dia a tempestade deve cair, mas todos esperam que o raio atinja a cabeça do próximo,
após ele próprio ter colhido a chuva de ouro e o guardado em segurança. “Après moi le
déluge!” é o lema de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a
mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado
pela sociedade a ter essa consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte
prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele
que aumenta nosso gozo (o lucro)? De modo geral, no entanto, isso tampouco depende da boa
ou má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe ao capitalista individual,
como leis externas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista.
Depois de mim, o dilúvio! – é esta frase atroz quase convertida em automatismo mental
que segundo Marx compele o sujeito capitalista a agir da maneira mais cínica, indiferente,
como se não houvesse amanhã. É isso que converte o mundo em mero recurso, como se tudo
tivesse de estar livre e disponível para servir a essa lógica sacrificial de trabalho e acumulação
infinita. A pandemia da Covid-19 e a situação de guerra na Ucrânia vêm explicitando tais
pressupostos de modo cristalino.
O bolsonarismo parece dar uma torção nessa reflexão quando acelera de modo
voluntário esse processo de libertação de todo potencial destrutivo da abstração capitalista.
Ele leva o “gozo” a outro patamar promovendo o extermínio em massa: para garantir que a
economia não parasse, ou que a acumulação pelo menos empatasse com o supostamente
acumulado. Ele armou o cadafalso das mil, duas, e por que não, três e quatro mil mortes diárias
(pico de Abril de 2021). Estabeleceu a normalidade do genocídio e do ecocídio. Qual era sua
meta original: quinhentos mil, um, dois milhões de mortos? E tudo ocorrendo como um
processo “natural” inevitável? Razão ou insanidade? Seja como for, o Brasil dos atuais 660 mil
mortos e 29,8 milhões de infectados (sem somar o total de subnotificação e outras falcatruas)
pôs-se na vanguarda do morticínio, superando o número de vítimas da guerra ao terror dos
EUA, estimada precisamente em 600 mil. Para piorar essa situação irracional, uma parte da
crítica de "esquerda" (brasileira e estrangeira, especialmente alemã) tem participado do
obnubilamento geral como que fazendo coro com o negacionismo antivax, caindo por vias
diretas ou indiretas numa crítica regressiva, que corta as mediações particulares e concretas
dos problemas, supostamente para abrir espaço para uma crítica “radical” das estruturas
gerais do valor, do patriarcado, da ciência e da tecnologia, mais ou menos colocados em linha
2
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
reta de continuidades arbitrárias e identidade total entre forma social e realidade material. Às
vezes, essa iconoclastia resvala, contudo, numa crítica indeterminada e arrasadora contra a
própria ciência e a razão, numa versão anti-aufklärer muito próxima do tradicionalismo
religioso e do romantismo, de Heidegger e do pós-modernismo, dos novos animistas e
primitivistas antimodernos a la John Zerzan. É surpreendente que essa iconoclastia abstrata
conviva com a constante asserção sobre a crise climática - um alerta e um diagnóstico feitos
pelas ciências naturais matematizadas.
A guerra preventiva da Rússia contra a Ucrânia de certo modo completa esse quadro
de irracionalidades tocado pelo estado de exceção mundial em que as contradições do capital
não são “superadas” mas explodem a estruturação “pacífica” da política, da diplomacia e do
“doce comércio” mundial, quando os dois blocos de poder nuclearizado finalmente
concretizam suas ameaças longamente cultivadas, afirmando-se como “nações
autodeterminadas” na crise falimentar da globalização e sua concorrência mortífera. Nesses
meses ficamos mais próximos do “apodrecimento final da humanidade e do despovoamento
final” do planeta sob um grande sol artificial, desconhecido dos tempos de Marx: as várias
frentes da guerra precipitam uma crise mundial de proporções ainda desconhecidas, em que
não está descartada a possibilidade de uma guerra total, com o uso de armas químicas,
biológicas e nucleares (o chamado eufemicamente "uso tático”).
Uma posição firme contra a invasão da Ucrânia não deveria, a nosso ver, ser
confundida com um apoio à OTAN ou aos batalhões neonazistas instalados no país, enquanto
se posiciona também contra a esquerda belicista dita “anti-imperialista”, cujos argumentos
defendem, por meio de falácias (“tu quoque” e “whataboutism”), o mesmo poder arbitrário e
ilegal das intervenções dos EUA e da OTAN em países periféricos como Iraque, Afeganistão e
Líbia, enfiando-se de cabeça em sua cachaça politicista, esquecendo todas as consequências
materiais catastróficas da guerra, a destruição do país e das populações, a nova crise de
refugiados, o aumento do custo de vida e o empobrecimento geral dos mais vulneráveis em
nível local e mesmo global. Essa esquerda sonhadora enxerga na indústria bélica e nos
gasodutos russos, tanto quanto na nova rota da seda chinesa e na suposta desvinculação do
dólar como moeda mundial, a reconstrução imaginária de um novo bloco “comunista” sino-
soviético.
3
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Este então o panorama de fundo deste novo número de Sinal de Menos, que procura
abordar de modo variado e especificado a “crítica do sujeito burguês ou moderno”, criando
uma espécie de dossiê temático. Panorama que se inicia, por isso mesmo, com a ENTREVISTA
com o psicanalista Tales Ab’Sáber, que conversa sobre assuntos variados de sua trajetória
plural, das temáticas abordadas em seus livros e de sua interpretação do lulismo e do
bolsonarismo. Gostaríamos muito de agradecer ao autor o aceite do convite, o rigor das
respostas longas e meditadas… e a sua paciência de aguardar a publicação depois de um longo
intervalo.
O volume 1 deste número 15 da revista termina com duas resenhas de Felipe Silva
Terto: a primeira sobre livros de autores vinculados estreitamente à crítica do valor-
5
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
A capa desta edição em dois volumes foi criada por Felipe Drago baseando-se na obra
de Vhils, que é um jovem artista plástico português muito talentoso. A obra trabalha com as
marcas e as ruínas do tempo histórico acumuladas na paisagem. Assim, nessa composição
Felipe utilizou uma obra feita a partir do descascamento da parede de uma casa de uma pessoa
que foi removida no morro da Providência no Rio de Janeiro para dar lugar a um teleférico na
época das obras da Copa do Mundo do Brasil. O trabalho artístico de construção a partir desse
descascamento e figuração é capaz de expressar formalmente esse processo contraditório de
construção e demolição, bem como a resistência dos indivíduos a partir da memória
coletiva. Além disso, o tema da dissolução e da destruição atravessa tudo. O trabalho de
destruição expresso na foto expõe os rastros da história, o trabalho morto e da morte, os
mortos, suas motivações e destinos, sugerindo a guerra e as ruínas acumuladas pelo capital,
que parece de fato se encaminhar para o fim do mundo.
Apesar do longo intervalo, por motivos de força maior e outros superiores à nossa
capacidade de trabalho e organização afinal limitada, esperamos que os dois volumes sejam
bastante lidos e discutidos pelos nossos leitores, seja ao vivo, no lançamento, seja na seção de
discussão dos textos aqui publicados.
Março de 2022.
6
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Agradeço a leitura ampla e consequente dos meus escritos. De fato, como psicanalista clínico
e teórico me interessei muito pela radicalidade de uma teoria dos limites. Mas limites
determinados em uma certa direção da história da psicanálise em seu primeiro século de
existência: limites do que torna um sujeito um sonhador de tipo freudiano, capaz de articular
contensão civilizatória e desejo em uma lógica produtiva do símbolo, ou os limites daquilo que,
ao avesso da tradição psicanalítica original, o põe para fora da sua própria capacidade de
sonhar. Toda esta teorização, ainda pouco considerada, se constituiu em analistas clínicos
radicais que após os impasses históricos com a crise do sonhar na Europa da Primeira Guerra
Mundial – a suspensão e a ruptura da continuidade do sono e do sonho dos retornados da
guerra, que configurou o modo próprio aos psicanalistas de observarem a grande crise da
experiência e o fim do adensamento ético da narrativa, como Walter Benjamin escreveu sobre
esta mesma questão – passaram a pensar na forma do encontro humano que teria a potência
7
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
8
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
9
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
todos, em um ciclo de produção técnica da morte que foi de 1914 a 1945, com a consequente
emergência do nazi-fascismo e mais de cem milhões de mortos no coração da Europa. Não por
acaso os analistas que começaram a dar contorno para o enigma dos sujeitos “não
sonhadores”, e seus excessos e delírios, estiveram ambos presentes, ainda muito jovens, como
soldados naquela guerra que, nas palavras de Freud, “se continuasse nos mataria a todos”:
Winnicott embarcado como médico em um couraçado inglês e Bion em um tanque de guerra
primitivo e infernal, imagine só, nos campos de morte em massa de jovens ingleses, alemães e
franceses da Bélgica. Há quem diga que a força particular de Bion de se por analiticamente
diante da alucinação psicótica veio mesmo de lá... Em termos culturais mais amplos, o mundo
dos desejos e dos sintomas sociais que dividiam o sujeito em contradições objetivas, que se
tornam subjetivas na neurose – o mundo de Balzac, de Flaubert, de Maupassant ou
Dostoiévski, mas também de Marx e de Freud... – foi plenamente ultrapassado pelo mundo
em que a técnica se autonomizava como controle da morte em massa, sem perspectiva, em que
a racionalidade exclusiva do indivíduo não tem correspondência com sua sociedade em mais
nada, de modo que a unidade subjetiva se torna louca pela unidade objetiva técnica social que
a nega na raiz da própria vida, de Kafka por exemplo... ou então dos arruinados, vagabundo e
suspensos de todo sentido partilhado de sonho e cultura de Beckett, um escritor que, não por
acaso, figurou mesmo a alucinação que tomava conta de seus personagens, sem por que nem
para onde – que teve algum tipo de experiência em algo parecido com um setting analítico
com o jovem Bion em meados da década de 1940... Aqui se põe o tipo de entendimento, entre
a metafísica a-histórica da ciência do inconsciente da psicanálise, e a historicidade de
processos de poder, cultura e técnica que necessariamente provocam tal ciência, a afetam e a
alteram. Do mesmo modo que o ponto de singularidade psico-histórica da guerra universal
explodiu as cabeças dos homens, arruinando o seu sonhar e a sua capacidade de dizer de si
mesmos em uma nova ordem de excessos não antes imaginada, da guerra universal da
metralhadora, do tanque, do avião bombardeiro e da trincheira, também o século XIX urbano
europeu, da universalização da indústria, dos mecanismos de repressão policial ativos da
racionalidade socialista e da emergência da vida da venda de trabalho pelo preço do dia, e da
compra encantada de mercadorias como modo de ser, também subjetivava massas e
indivíduos, entre a repressão e o gozo ilimitado. Desde que este gozo se realizasse e se
projetasse eternamente como forma mercadoria, e sua onipotência, para uma experiência da
modernidade também nunca antes vista. Como vocês observaram, a união da psicanálise da
contenção do terror com a crítica ao andamento técnico do mundo do capital e sua cultura
totalizante, permitiu que, muito mais tarde eu me interessasse pelos modos tecnológicos
presentes dos novos dispositivos de subjetivação para o gozo, para a atuação e para a
10
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
11
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
psicanálise, que orienta minhas tentativas de crítica cultural e política. E isso se produziu com
a experiência intelectual do Brasil, não por acaso tão em baixa nestes novos tempos de nova
direita demente em busca de um porrete simbólico qualquer, para nos calar a todos. É este
fundo de uma construção teórica, entre a psicanálise que me parecia a mais historicamente
pertinente, e as irônicas, trágicas e mortíferas respostas brasileiras ao processo geral da
ideologia da modernidade que dão os parâmetros das coisas que tento pensar. É este projeto
da teoria crítica do Brasil, desde a psicanálise e a cultura, tão materiais quanto a história e a
economia – que muitos que leem minhas coisas desconhecem nos seus termos de fundo – que
organiza e liga minhas tentativas de contribuir, em um mundo que dispensa amplamente a
crítica e o desejo de diferença histórica efetiva. É essa construção, de um psicanalista dialético
desde o Brasil, por assim dizer, que põe em contato e relaciona livros tão diferentes como são
O sonhar restaurado, Lulismo e carisma pop e A música do tempo infinito. Gostaria que eles
estivessem marcados pela ideia de uma psicanálise radical, que por radical encontra a matéria
histórica como parte de seus problemas; tornada dialética por uma experiência histórica ainda
outra, que a problematiza novamente, e a abre. De resto, é deste quadro de ciência do
inconsciente tornada instável pelas marcas da história que parto quando digo e penso que o
neofascismo bolsonarista no Brasil unifica neoliberalismo central voraz, sem peias coletivas,
com o autoritarismo periférico de ódio e distinção, com liberalização da morte e da violência
como método de gestão, da recusa e da negação de uma população ainda agora entendida
como escrava. O nosso mal-entendido radical para a democracia, como dizia bem Sergio
Buarque de Holanda, diz respeito a isso: uma elite nacional que jamais desejou superar de
fato os gozos da escravidão original nacional. E essa excitação sádica extremada brasileira,
que dispensa vida e força social popular e coletiva, tanto quanto qualquer ordem de cultura
consequente, não tem correspondência com nenhum outro tipo de fascismo nacional, de tipo
identitário xenófobo e racista europeu. Aqui uma parte significativa da população – incluindo
grandes financistas internacionais e policiais em busca de impunidade, caminhoneiros
autoritários e devastadores da Amazônia do agronegócio, jovens conservadores ridículos
repetindo olavismos desclassificados de clube militar e classe média aterrorizada com o
próprio andamento da vida sob o capital, que são incapazes de conceber, com brancos, pretos,
mulheres e gays presentes entre todos eles – se reúne para celebrar a ficção de um líder
sacrificial de qualquer coisa, de nada de específico e de tudo o que existe, o que é enunciado
como o anticomunismo universal do nada dessa gente, em um show de internet barato
permanente do horror e da mentira. Contra a própria sociedade, a existência de qualquer um,
e até mesmo, a própria vida do bolsonarista que toma cloroquina para enfrentar um vírus e
morre em um hospital sem sedativos. O ódio pelo Outro brasileiro, na origem um corpo negro
12
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
sequestrado para trabalhar até a morte e não exigir nada da sociedade que o escraviza e mata,
que é a nossa própria vida social e coletiva, não me parece ter paralelo, nem mesmo em outras
formações neofascistas nacionais contemporâneas. Nossa tecnologia de fascismo de extração
histórica colonial é original e profunda, e podemos lembrar que nosso golpe de 2016, que
liberou o bolsonarismo mais desgraçado nas ruas e na política, se deu antes da eleição tão
comentada mundialmente do neofascista Trump para a presidência dos Estados Unidos, que
teria sido o marco deste tempo. Mas não para nós. De resto, voltando ao meu ponto inicial,
quando muitos psicanalistas passaram a finalmente se interessar pela história – com cerca de
cem anos de atraso em relação àquela marca da singularidade psico-política de 1918 a que me
referi – por que leram um livro de uma jornalista comunista que demonstrava a presença da
vida social e política nos sonhos dos alemães durante a ditadura nazista, e vão rapidamente
atrás da mesma ideia de Charlote Berard para o mundo de agora, perguntando com que
sonham as pessoas durante a pandemia e o ciclo neoautoritário triste do Brasil, eu, com meus
analistas do excesso, da dissolução e do não sonho, prefiro me perguntar com que sonham os
neofascistas bolsonaristas brasileiros? Ora, desde a intepretação de Freud da dissolução do
eu no desejo do líder das massas que projetam uma saída mágica e messiânica, e observando
a degradação ética, psíquica e cognitiva de toda a vida do bolsonarismo, que quer governar o
Brasil nestas condições, podemos concluir que o estado psíquico de exceção, gozo sádico e
política generalizada da mentira própria da vida fascista deve implicar fortes deformações e
anulações da vida do sonho. A política fascista altera as condições do sujeito sonhador e do
desejo simbolizado, porque ali onde o neurótico “democrático” precisa adiar os seus gozos
destrutivos o fascista demenciado pelo texto do líder pode fantasiar a sua atuação direta.
Onde nós precisamos nos conter, para suportar a longa e absurda jornada da democracia
liberal, o fascista é convidado todos os dias a projetar todos os seus fantasmas e falácias no
ódio permanente ativado como política, por redes tecnológicas de comunicação ilegais, que
são o seu sonho e o seu gozo, contra o comunista que mora ao lado. Projeção, gozo com a
mentira, desejo de violência e horizonte de morte, sadismo estampado nos rostos, liberado
pelo líder da identificação maciça, cujo continente sonho comum é ação na internet, querem
dizer que o fascista sonha menos... do mesmo jeito que lê menos, diria Walter Benjamin. Se é
que sonha e que lê alguma coisa. O fascista foi subjetivado para passar ao ato e desejar o gesto
sacrificial real, primitivo e magicamente restaurador. E foi reduzido imensamente ao
significante fixado e único, o comunista, conceito nenhum, trama de verdade alguma, que
significa apenas tudo aquilo que ele não gosta, ou deve não gostar, para viver. Como dizia
Freud, gansos sonham com milho... e bolsonaristas sonham com Bolsonaro: a morte de
alguém ou de uma sociedade. Escrevi sobre esta dimensão de transfiguração do espaço sonho,
13
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
como política e como história, no livro sobre o golpe de 2016 e o fascismo comum brasileiro.
Peço desculpas pelo longo arrazoado, mas acho que a oportunidade e o trabalho cuidadoso de
vocês com minhas coisas justifica a fundamentação.
14
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
formação prévia colonial de 300 anos; precisamos ainda lembrar, na mesma direção dos
problemas do país para si mesmo e no mundo, que nosso século XX da aceleração espetacular
do crescimento e da industrialização tardia foi marcado por modos próprios de falsificação e
evitação da vida concreta de uma democracia de massas, recusa constante da efetivação de
direitos e reconhecimento e, principalmente, recusa do aumento da renda social disponível
para os mais pobres. Também durante o século XX brasileiro tivemos três grandes blocos
históricos de coordenação autoritária do crescimento para o alto e de evitação simultânea de
inclusão social pela renda, e pelo trabalho da democracia, na arcana tradição antissocial que
nos é tão própria. Três grandes momentos com seus eixos técnicos e simbólicos de
modernização conservadora, que evitavam sempre o investimento e a inclusão efetiva das
massas de miseráveis do país, produto de longa duração de nossa história da escravidão
ocidental: a República Velha oligárquica de fazendeiros paulistas e mineiros, cujos pais ainda
eram senhores de escravos saquaremas do Império..., o Estado Novo getulista, meio fascista,
modernizante e autoritário a um tempo e o projeto de desenvolvimento acelerado
subordinado, imensamente autoritário e antissocial, muito corrupto e acrítico de raiz, da
ditadura civil-militar de 1964-1984; um universo político cujos efeitos de fato se encerraram
somente em 1993, se formos um pouco condescendentes, com a eleição do neo grã-fino, com
espírito de Joaquim Nabuco, mas sem o seu abolicionismo, Fernando Henrique Cardoso. Ao
todo estamos falando de sessenta ou setenta anos em cem de governos autoritários, elitistas,
de pouco interesse pela integração social de massas, até mesmo em uma ordem de consumo
de tipo americano, com suas policias de exceção e de intervenção muito ativas na própria vida
da sociedade civil. Governos elitistas e governos racistas, governos policiais e restritivos de
cultura, podemos dizer, de isolamento dos ricos da vida coletiva, certamente, e de polícia
sempre ativa na repressão social. O Brasil tanto se desenvolveu economicamente quanto
manteve espetacular concentração, gestão social sem traço de solidariedade, e direito ativo à
violência de Estado contra os pobres e também os críticos. Se os pobres foram mortos sempre
com relativa facilidade pelo Estado, homens como Paulo Emílio, Graciliano Ramos, Darcy
Ribeiro, Celso Furtado, entre tantos outros, ou até mesmo artistas moderninhos como Caetano
Veloso e Gilberto Gil, ou Glauber Rocha, tiveram que, em um momento ou outro, se haver com
a polícia de Estado no Brasil do século XX... Considerando que mesmo no período de nossa
redemocratização mais consequente, do início do século XXI, o país passou a conviver bem
com algo entre 50 e 60 mil assassinatos por ano..., com as polícias matando algo entre 5 a 10
mil brasileiros também todo ano, sempre pobres e na maioria negros, na maior chacina de
Estado contra a própria população de um país que se tem notícia no mundo contemporâneo,
podemos então rever pela raiz o sentido e a ilusão do que se chamou progresso e do que se
15
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
chamou nação por aqui, nas origens e até agora. Progresso, esse termo antigo e pesado,
transformado hoje apenas em acesso ao shopping mundial, conjuminado com neofascismo
espetacular excitado de todos os matizes, para quem? E nação em que termos, quando
pensamos nos critérios verdadeiros de uma democracia social integrada de massas? Podemos
intuir o caráter radical e novo de nosso profundo e original reacionarismo moderno, o nosso
exacerbado reacionarismo burguês como dizia sobre o assunto Florestan Fernandes, gestão
necropolítica de massas bem brasileirinha, de muito longa tradição. E de profundo
enraizamento no processo de formação colonial mercantil do próprio capitalismo – aquilo
que alguns historiadores econômicos de hoje vem chamando de “nova história do capitalismo”
–. Para nós a história mesmo da nação como pura base de exploração, local e global, elites
irresponsáveis forjadas no ódio antipopular e desprezo instrumental, do chicote e do corpo
máquina do escravizado trabalhando para a morte – e os racismos são consequência de
princípio da exploração – em conjunto com o desprezo pelo alto da própria ideia de cultura,
crítica e democracia, ou seja, contra a ideia moderna ampla de sociedade. Retornando ao nosso
ponto, o período lulista, de dez anos em duzentos, de seriedade com o jogo democrático liberal,
bem corrupto como ele é, com sistemáticas inversões de mínima renda para os muito pobres
completou o tempo da redemocratização desde 1984, e até 2014..., nos dando alguma ilusão
concreta mais forte de que o Brasil ganhava finalmente uma dinâmica econômica, política e
social aceleradas que levaria à gradual e residual superação do lastro de arcaísmo e violências
antidemocráticas que sempre nos definiu. Aquelas políticas focalizadas de investimento de
Estado na miséria nacional tiveram impacto social imenso no quadro de globalização e
internacionalização da produção industrial de bens de consumo, de uma China que tanto nos
comprou o que produzíamos desde a terra quanto nos vendeu todo tipo de quinquilharia
barata, para a alegria alegria de nossos pobres, que se tornavam, assim, cidadãos do consumo
do conforto mundial da mercadoria, e ponto final. Bem, o complexo político social e de uso da
técnica contemporânea para a configuração de uma nova ordem de ação política de tipo
neofascista, da crise do impeachment, golpe, de Dilma Rousseff, de 2015 e 2016, com a
criminalização exclusiva do PT para o afastamento farsesco de Lula em 2018, e a eleição
impensável, em termos de uma democracia decente e a favor da vida, de Jair Bolsonaro,
repuseram espetacularmente na ordem do dia aquela nossa longa tradição antissocial e de
autonomia autoritária da política a que me referi. Agora, para apresentar alguma novidade,
nosso fundamento antidemocrático se ancorava em uma ordem de massas, populares e de
classe média, em uma nova e surpreendente aliança falsa, e burra sobre a própria condição e
lugar, com os interesses do grande capital no Brasil, que visava suspender na raiz os termos
da própria democracia, legitimando todo tipo de ataque do significante vazio fascista por
16
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
17
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
excitado, meme orientado, tudo ao mesmo tempo. A descoberta fascista contemporânea foi a
descoberta da nova ordem de agenciamento da tecnologia disponível, acelerada, vulgar
brilhante, rixosa baixo sádica, controlada por gabinetes de propaganda dissiminados pelo país,
e agora de Estado, os gabinetes do ódio que gerem milhões de investimento político ilegal na
rede, e terceirizando na própria massa produtora consumidora o produssomo espetacular
fascista na internet. Foi essa dinâmica que o documentário espinhoso, cuja percepção foi
recusada por muitos de nosso próprio campo de esquerda, Intervenção, amor não quer dizer
grande coisa (Rewald e Ab´Sáber, 2017) feito com material dos chats fascistas da internet dos
anos de 2015 e 2016, demonstrava: há uma nova ordem de tecno-política e de tecno-sujeito,
que conjugou o direito à mentira com formas psíquicas arcaicas, e novas formas de ocupação
veloz e memética – a realidade como chiste, imagem, politicamente incorreta, que se sabe de
massas desde a raiz da enunciação e que voa rápido para que a próxima imagem excite
novamente o seu tipo de sujeito –. O primeiro robô de reprodução automática na rede
bolsonarista que se tem notícia foi registrado no ano de 2011. Muito antes de o Exército abrir
as portas de seus quarteis para a demagogia autoritária de Bolsonaro fazer a sua convocação...
Em 2015 e 2016 a máquina linguareira afetiva paranoica mentirosa fascista estava em pleno
voo, produzindo consumindo em todos os níveis na internet, mostra o filme que apontou para
esta dimensão de produção do fascismo à brasileira... porém, quinze dias antes da eleição de
2018 Fernando Haddad, tratado por pedófilo, reclamava para jornalistas do massacre de
propaganda ilegal e mentirosa que ele era vítima nas redes neofacistas e de WhatsApp
familiares. Com pelo menos sete anos de atraso o PT descobria que tiro foi esse. Depois,
passou-se a explicar, sem dados, análise e entendimento, sem acompanhar o processo político
popular tecnológico real, tudo aquilo com fórmulas históricas prévias e datadas, que pouco
tinham a ver com o caso: ouvi análises petistas dizendo que tudo foi feito pela Globo... claro
anacronismo... outras dizendo que o Golpe de 2016 foi um ato do Exército... parcialidade e
compulsão à repetição do juízo... e outras ainda explicando o massacre e a criação das cadeias
nacionais fascistas na rede como uma ação importada tardia, de Stevie Bannon, na internet...
fantásticas, simplórias e a-históricas explicações, de quem nunca quis ver a tomada real das
massas à direita do espaço público, das ruas, e das redes, desde 2013, com patamares cada vez
mais alavancados, orgânicos e eficazes conquistados em 2014, e 2015 e 2016. E, finalmente,
em 2018.
18
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
19
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
dúvida de que o que ocorreu no país foi um pacto renovado e redesenhado pelo tempo técnico
de agora, com muitas forças sociais participando do jogo, de um neofascismo à brasileira com
neoliberalismo grosseiro, e retardatário em relação à nova ordem do mundo. De resto, mais
uma velha novidade, como todos sabemos, se lembrarmos que a ditadura pró-americana
assassina de 100 mil chilenos de Pinochet em 1973, grande referência de Bolsonaro e de seu
trickster da economia, Paulo Guedes, não foi outra coisa se não isso mesmo: ação política
decorosa familiar fascista, latino-americana, de terror de Estado para o sacrifício real de parte
da população nacional, tudo ligado ao primeiro grande assalto feroz neoliberal que se tem
notícia, bem antes de Reagan e de Thatcher, à qualquer contrato social democrático reparador
do terror universal da vida de mercado, que iam avançados no Chile. O resultado, vimos bem
antes da pandemia, é que ainda 50 anos depois daquela ditadura o país está parado, social e
vitalmente, em um real Estado de choque, praticamente inviável para a vida. Apenas não é
mais possível viver sobre aquela ordenação extrema do corte capitalista, da ditadura fascista
neoliberal e seus exércitos de milicianos e assassinos militares antissociais. O debate bastante
insólito, rebaixado diante da tarefa histórica, atravessado de auto-ressentimento sobre a
falência das perspectivas de até então, sobre se se poderia ou não evocar o termo fascismo para
se referir à nova ordenação da direita no Brasil que se concentrava finalmente, em 2018, na
figura de Jair Bolsonaro, debate um tanto travado dos contendores que falavam sempre de si
quando queriam dizer do mundo em choque, que queriam mais ou menos entender, se dividiu
mais ou menos em dois grandes campos, na melhor das hipóteses dois entendimentos
diferentes sobre o assunto, para não imaginarmos a terceira via, a do entendimento algum.
Um que via a ideia de fascismo como algo ligado necessariamente aos modos históricos bem
estruturados do problema, à configuração das estratégias e dos instrumentos de poder
próprios dos anos 1920 e 1930, ou seja, com a presença de, ao menos, um líder autoritário
totalizante, um partido de massas organizado junto à vida social degradada, nacionalismo
belicista e imperialista exacerbado e desprezo radical pela forma democracia liberal, com
aberta política ditatorial sustentada pela unidade imaginada e imposta do líder com a nação,
sempre em busca de guerra. Para falarmos em fascismo, em uma referência que teria
correspondência com os estudos históricos clássicos de Michael Mann, Hannah Arendt, João
Bernardo, e outros, teríamos que ter uma nomeação fascista explícita que evocasse aqueles
elementos históricos, fixados agora de modo a-histórico... Desta perspectiva, a referência ao
nome que o movimento da história do passado deu a si próprio, a ascensão e o sentido do
fascismo de Estado do século XX, apenas obturaria a consciência fria e analítica necessária ao
presente, uma consciência que me parecia apenas distante do contato com a energia social em
jogo..., nos desviando do verdadeiro entendimento do caso. “Mais de 50% do povo brasileiro
20
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
não se tornou fascista de repente”, dizia o mantra desta posição, em um desvio retórico do
ponto histórico que de fato interessava: como mais de 50% do povo brasileiro, que não era
fascista, votou de fato em um fascista? E qual as consequências dessa ampla conversão
política em que um real fascista passava agora por legítimo democrata? Curiosamente tal
medo em reconhecer-se diante do fascista adiava em 2017 e 2018 a nomeação do fenômeno,
cujos estragos se davam aqui e agora, para um futuro indeterminado, de fato hoje, quando,
agora, em 2021, proliferam nas universidades os núcleos de estudo do fascismo
contemporâneo..., agora.., que Inês é morta. Algo nesta postura – não falemos tão mal assim
do adversário, falar de fascismo de agora é hipostasiação simples, não nos confundamos com
a natureza de sua violência, que é de fato retórica mas não ato, sejamos sóbrios ainda neste
quadro de corrosão do caráter político da vida nacional, algo quase como o narrador decoroso
de Machado de Assis diante do senhorio de escravos brasileiro e seu chicote e seus contratos
internacionais, sem registro moral ou político na modernidade central..., e não toquemos no
termo fascismo para o nosso presente, pois ele simplifica em demasia as coisas – era bastante
semelhante ao maior jornal de extração burguesa do país simplesmente proibindo seus
jornalistas de nomear na eleição de 2018 Jair Bolsonaro como um político de extrema direita.
Esse dado formal escandaloso tem o valor de escancarar a natureza da sintomática do decoro,
bem brasileiro, diante do fato histórico de real violência, mas que se prefere, como nos é
próprio nestas horas, não nomear, não dar nome aos bois. Assim, desde liberais cafajestes
vorazes brasileiros que se tinham por homens da paz cosmopolita mundial dos mercados de
investimento da Avenida Faria Lima, até o seu jornal, a Folha de S. Paulo, até o intelectual
adversativo, que sempre comparecia com um mas para fugir da responsabilidade do próprio
terror em curso, apontada por Paulo Roberto Pires e até grandes intelectuais de esquerda,
havia um curioso e mal resolvido esforço em não chamar o transbordamento do mal na política
do Brasil, para muitos evidente, de fascismo, neofascismo. A questão de fato era essa, a política
explicita da violência sem mediação, o complexo desrecalque contemporâneo, produto de
técnica, da política como mal e como crime social. Passados dois anos e meio, alguém ainda
tem alguma dúvida sobre o ponto? Para mim, me desculpem, aquelas ressalvas sem conteúdo
à altura do tempo deixavam tudo bem parecido com a chamada inutilidade da inteligência, de
Adorno e de Horkheimer, conceito adiantado ao final de Dialética do iluminismo que dizia
exatamente isso: o esforço da comunidade da inteligência liberal alemã, inclusive de judeus
laicos bem postos na vida, em negar ativamente a realidade do sentido da chegada de Hitler
ao poder de Estado. Era um limite, mais psíquico do que racional..., diziam os filósofos meio
psicanalistas, das formas da inteligência do tempo e seu compromisso desejante com
realidades que não vinham ao caso histórico, que simplesmente se recusavam, na raiz das
21
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
próprias condições, em reconhecer que Hitler e o seu nazismo no poder eram o que eram... E
aqui o ponto e o vínculo existente entre política e psicanálise se estreita e se aproxima
novamente. Não era nada acaso que aqueles filósofos radicais anticapitalistas pensassem ao
mesmo tempo com Marx e com Freud, ambos teóricos críticos e materialistas em esferas
diferentes da existências moderna, eles diziam articulando-os, para perceber o vínculo de
ideologia, recusa da realidade – categoria produtiva de sujeito freudiana – e ascensão do
fascismo. Podemos dizer, com base naqueles fatos psico-políticos e sociais do passado do
fascismo europeu, e com a nossa própria confusão ideológica sintomática sobre o nosso
próprio mal histórico de agora, que a ascensão de fascismos está relacionada aos modos de se
recusar o que está na cara. Posição de alucinose, que só vai se alterar, acordar do próprio mal
sonho, quando, em algum momento, o fascismo bater na cara. A política do limite da recusa
do conceito é uma política de fuga, que pode perfeitamente colocar o fascista na frente da
história, até o limite do conceito chegar à vida como um golpe, para então todos ficarem se
perguntando como não vimos? Por isso fizemos aquele documentário, em 2016, para que o
fascismo batesse na cara já então, e não depois que o degradado e irresponsável capitão
gângster miliciano brasileiro, nosso fascista íntimo, estivesse no poder. Esperança na
interpretação do fato histórico evidente e política de tipo hegeliana, de despertar para o
sentido e se reaprumar para a história? Certamente. Mas ao menos tocando a coisa nos seus
termos relevantes... Pouco adiantou. De fato nada. A segunda tradição teórica evocada para
dar nome à coisa da ameaça constante de terror político hoje no Brasil também é bem
conhecida de todos. Ela diz respeito ao vínculo formal mutuamente estruturante entre
fascismo e subjetivação, raízes afetivas e fantasísticas do sujeito e política. Muitos
contribuíram nesta esfera, por uma vida não fascista, ou seja, por uma crítica das condições
formais da produção do fascismo como forma de vir a ser, estruturação do desejo e do eu,
conversão psico-política operando condições, posições, como dizem os psicanalistas
kleinianos, da adesão consentida e voluntária, em estado de guerra, organização política da
paranoia e idealização extremada do poder. O mundo entre o sujeito e o poder destes autores
e sua crítica ao fascismo é muito conhecido, porém supreendentemente, na hora do vamos ver
histórico, da convocação fascista primitiva avançada que congrega notórios arcaísmos
psíquicos com tecnologia da propaganda atual, tantos de nós simplesmente esqueceram esta
experiência de crítica ocidental. Que não era uma tradição qualquer: Freud, Reich, Kafka,
Benjamin, Adorno e Horkheimer – como já vimos – Primo Levi, Marcuse, Erich Fromm,
Pasolini, e até os pós-estruturalistas Deleuze e Guattari, não deixaram dúvida sobre o vínculo
de fascismo, regressão conceitual, a ser determinada nos seus valores, força do desejo e
práticas de política de guerra, aplicadas à própria vida social do fascista. Deste ponto de vista
22
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
23
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
seita cujos membros estão dispostos a seguir seu líder incondicionalmente, até a morte. Esse
culto à morte está se tornando cada vez mais evidente nas manifestações dos bolsonaristas.
Um caixão é carregado alegremente, no meio de uma pandemia, expõe-se a si mesmo e a
outros ao perigo de um contato e se grita: ‘A covdi-19 pode vir. Estamos prontos a morrer pelo
capitão.’ Como todos os movimentos fanáticos o instinto de auto-destruição é inerente ao
bolsonarismo. Assim como Hitler acreditava que a Alemanha merecia ser devastada se não
conseguisse vencer a guerra, o bolsonarismo gostaria de destruir tudo. Não há outra explicação
para a sabotagem do presidente e seus apoiadores contra as autoridades do setor de saúde
pública.” A autodestruição conjugada ao impulso destrutivo fascista chegaria mesmo, mais
cedo ou mais tarde ao paroxismo que chegou no Brasil. Há uma importante teorização
psicanalítica, bastante desconhecida de cientistas políticos convencionais e da grande
estruturação lacaniana sobre o laço social, que domina a discussão da relação entre psicanálise
e política entre nós, que articula e faz derivar a ideia freudiana de pulsão de morte ao ódio à
realidade, e o ódio à realidade à produção ativa de sistemas delirantes e alucinados... Além
disso, nesse esvaziamento odioso do eu e do mundo, Freud lembrou o apego automático e de
servidão voluntária ao líder hierárquico, sem mais nenhum pensamento operando... Alguma
correspondência com os fatos? Novamente são as más notícias do eixo teórico Freud, Klein,
Bion que, tidos como produtores alienados de saber humano para a esfera do consultório
burguês e sua doença íntima, tem instrumentos teóricos para sentir e desenhar as formas
mais radicais da política, exatamente o fascismo quando ele evoca as estruturas morte e
delírio como o sentido da vida social. No entanto, meu trabalho e meus escritos se interessam
agora por outra ordem de paradoxo das coisas da política e do pensamento. De como a recusa
em dizer do fascismo é um duplo articulado da nomeação pan-comunista de tudo e de todos
por parte do fascista. O fascista nomeia tudo como seu inimigo, enquanto o campo antifascista
é incapaz de nomear o adversário como fascista... Há convergência política, em certa direção,
destas duas posições psico-políticas. Se o fascista nomeia tudo como inimigo e passível de ser
atacado e destruído, um certo campo liberal mantém vazia a ideia de que o fascismo é a única
posição a ser destruída em uma democracia. Juntas tais posições subjetivas para a política
levam aonde chegamos.
24
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
25
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
que se tornou mundial, com a própria ascensão do país no mundo mais amplo da vida da
mercadoria, fazia fortemente parte do sucesso de sua política, ou seja, conceber o povo
brasileiro como consumidor e festejar os ganhos marginais de transferência de renda das
políticas públicas, que passavam a ser importantes e suficientes exatamente porque vinham
da mão de Lula, e não de um burguês antipetista qualquer. A máquina do sucesso de uma
maquiagem, profunda?, ou superficial?, de desenvolvimento democrático capitalista do Brasil
lulista, de tipo americano, em que o cidadão é definitivamente o consumidor, se completava
no amor industrial pop, internacional diga-se de passagem, pelo grande propagandista da
coisa toda, o político espetacular Luiz Inácio Lula da Silva. Sem o valor de produto e fetiche
do equivalente universal do capitalismo local, ou seja, Lula, a coisa não ficaria de pé e não
rodaria. No entanto, voltando atrás um pouco na conversa, quando a direita armou o golpe da
sua prisão farsesca – e sempre foi evidente que Lula seria preso, porque era esse o único modo
de quebrar a força do poder histórico e carismático conquistado, era necessário que, de mago
do capitalismo periférico em ascensão, ele se transformasse em bandido sem direitos legais
nem humanos do Brasil – e disparou a incrível cultura fraturada do anticomunismo do nada,
retomando parâmetros de guerra fria de 1960 totalmente falsos para o caso, ninguém no
campo petista, nem mesmo Lula que apenas se concentrou na luta pessoal com Sérgio Moro,
pode vir a público e pode dizer simplesmente: “nós fizemos o governo de expansão capitalista
da vida nacional mais eficaz e produtivo que já existiu. É simplesmente ridículo nos tratarem
por comunistas e todos os dados econômicos e políticos históricos demonstram isso. Somos o
partido real do capitalismo periférico.” Por que a esquerda entrou em um beco sem saída
simbólico em que ela sequer podia falar o que ela própria era? Como as fantasias de
emancipação transcendente democráticas socialistas do campo se resolveram como produção
de sujeitos de consumo mundial, pacto com a forma mercadoria, carisma propagandístico pop
– que agora Bolsonaro, com estilo muito diferente, também investe para o seu curral de 30%
de fanáticos... –, e ordenação produtiva entre as classes lulistas, do povo do bolsa família ao
grande banqueiro? Tudo de modo a deixar de fora a discussão sobre a concentração de renda
brasileira, o massacre fascistóide de 60 mil brasileiros mortos por ano, com 6 mil mortos pelas
polícias..., e o abandono do avanço democrático das exigências de direitos dos trabalhadores
que não fosse viver no e para o shopping. Sem poder de nenhum modo pensar, por exemplo,
a efetivação dos direitos humanos no Brasil, creches em todo país para as mulheres
trabalhadoras, educação fundamental de grande qualidade para os pobres, representação nas
esferas decisivas das empresas e multiplicação dos fóruns populares de reflexão sobre as vidas,
os bairros e as cidades. O amor pela mercadoria e pelo líder fetichista petista engoliu todas as
possibilidades da democracia contemporânea, que não fossem o envio de massas à lógica
26
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
comum do mercado. Vocês perguntam, lendo os ensaios, poderia ser diferente? Certamente
nada na história poderia ser diferente, apenas na esfera da razão crítica as coisas podem ser
diferentes. Razão que foi mantida bem longe dos pactos efetivados do governo a favor de todos
da esquerda de espetáculo lulista. Escrevi aqueles livros para dar definição mais precisa para
o caso e as decisões políticas de Lula. E depois para a crise do lulismo com Dilma, e mais a
degradação neofascista que comprovava a insolidez de todo o processo, com o golpe e a
chegada ao poder do anti-Lula, Michel Temer, antessala do bolsonarismo que avançava sem
que a esquerda do amor ao líder e do povo como figurante de propaganda de shopping sequer
percebesse. A conclusão final era que a corrosão do caráter político das massas viciadas em
mercadorias, mais sua lógica excitada de indústria cultural para a vida, já era anti-intelectual,
acrítica e apolítica na época, bem como a esquerda que se resolvia como culto ao líder amado
e genial era provavelmente uma prática regressiva. Tudo isso poderia, eu pensava,
rigorosamente ser deslocado e apropriado pela direita, como elogio fundamental da ordem e
da vida capitalista comum, denunciando os limites e as contradições do manejo petista da
política tradicional brasileira. Em um caso de crise econômica, tal farra biopolítica da
construção de cidadãos cujo sentido da vida era o gosto de uma TV de plasma com conversor
digital, não implicava um compromisso com a democracia e uma consciência de classe
suficiente para o caso do Brasil. Ou seja, o lulismo constituía uma massa feliz de consumidores
que flutuavam sem dialética nem exigências maiores sobre a lógica geral do fetichismo da
mercadoria, cidadãos políticos bons para a direita. A adesão de milhões, da noite para o dia,
ao neofascismo em ascensão e ao desejo neoliberal do senhorio brasileiro, me parece, deixou
isso claro. Quando as burguesias nacionais se alinharam, bateram na mesa e disseram
sozinhas que Lula era apenas um bandido comum da política brasileira, e o espetáculo geral
da política mudou de sinal, os mesmos animados consumidores lulistas de ontem passaram a
olhar para o ódio neofascista, de amantes do capitalismo sem mercado, mas de extermínio
brasileiro, a velha ordem pré-petista do país, como a nova onda de seus desejos, legitimada
por seus senhores amados do dinheiro. O trabalho da crítica é entender e definir ao máximo o
sentido das contradições do capitalismo em um determinado quadro de historicidades. No
nosso caso o tempo do lulismo foi o sucesso da inserção de massas no mercado interno, dado
o atraso e a voracidade do povo brasileiro a este respeito, e a confirmação de uma anulação
mais profunda da produção de uma subjetividade política exigente. A solução brasileira de
então punha em destaque o impasse mundial das esquerdas adaptadas à ordem global das
determinações do capitalismo contemporâneo, das democracias de massa liberais e da posição
de gerir do melhor modo possível o capitalismo local, produzindo ganhos marginais e não
estruturais para os pobres, somando a isso a política industrial do carisma. Enquanto o mundo
27
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
se destrói em todos os horizontes e prepara a nova rodada fasciscizante de recolha dos fundos
públicos pelo capital mundial, para o qual as boas esquerdas com sua social-democracia de
espetáculo, nada tem a dizer.
28
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
é. Ao mesmo tempo que, como farsa macabra de massas sem nenhum limite, pedem AI5 para
que ele possa matar-nos com maior facilidade. Daí o risco constante e real de golpe
bolsonarista, na cara de todos, enquanto olhamos bestificados as estratégias fascistas sem
controle, o grito de guerra gozoso assumido nas ruas ao longo de todo o governo. O grito de
todo poder ao mito, que funciona como ameaça visando tutelar a política e como horizonte de
agregação das forças policiais criminosas do país, que o líder deseja que sejam simplesmente
suas, como diz todos os dias. Não há nenhum critério sobre verdade ou mentira, sobre direito
ou garantias civis e até mesmo sobre ciência e o direito à vida. E tudo isso é apenas a efetivação
do óbvio. Não há surpresa. Bolsonaro de fato sempre foi isso, ou alguém se esforçou muito
para esquecer? Tudo se dá apenas como a política da farsa da comunicação massiva
bolsonarista, para a acumulação vazia de poder na imagem do líder, como única meta,
abertamente contra a democracia existente. Nada vale absolutamente nada para essa gente.
Gozo do poder e rebaixamento da consciência são tão evidentes que é constrangedora a
tentativa de supor alguma inteligência política ao grupo. Não há inteligência, apenas excitação
em busca de uma norma qualquer autoritária, funcionando nos fins dos tempos do capitalismo
periférico. E a caricatura conceitual coincide inteiramente com a coisa. Como se sabe, se
dispensa qualquer valor que não a falácia, o sofisma e a mentira. Que não a inteligência da
propaganda fascista de fantasia, contando com a dissociação psíquica radical e certa de seu
público. Mas, olhemos tudo isso por um outro ponto de vista. A importância das conversões
fascistas é nos lembrar que nossa cultura civilizada moderna não realizou de nenhum modo
suas promessas. Não apenas por um futuro da confirmação do paraíso na terra do progresso
industrial, com a manutenção da acumulação infinita, mas também pela força íntegra de um
passado, aflorado em um instante de ruptura sem transformação, como uma camada
geológica muito primitiva emergente no presente, um território de agências antigas – como
dizem mesmo ao seu modo “conservador” vazio os próprios fascistas – que valem agora para
a crise dos horizontes de possibilidades da história, subjetivação paleo-política, que de um
modo ou de outro também nunca passa, ou ainda não passou. O problema, na frente da luta
de narrativas, guerra cultural, é o da filosofia da história: da medida daquilo que importa como
marcação de acordo entre os homens como digno de ser lembrado e a favor de que tipo de
vida, ou porque se conta a história?, como dizia Walter Benjamin, versus a anulação primeva,
arcaica, dos parâmetros das coisas sociais, tudo a favor do tipo de abjeção, e seu pacto com a
morte como vimos ocorrer no Brasil do golpe e do bolsonarismo. Freud disse precisamente
desse mal estar político destrutivo contra a cultura. Sabemos que o problema do sistema da
consciência humana, com suas funções de sociabilidade e razões de construção de mundos
culturais, compreendidas em um campo mais amplo como sendo uma máquina de memória,
29
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
que manteria o presente vivo em permanente tensão com os termos formais de um passado
outro, sempre presente como sintoma, em vias de se presentificar como passagem ao ato, é
um grande modelo freudiano para compreender a força de arrasto do particular e da violência
na cultura. Dessa perspectiva, a ideia, refutada por muitos filósofos políticos, e afirmada por
tantos outros marcados pela lógica freudiana da história da regressão política, cultural ou
civilizacional, como se queira, ganha a sua significação mais precisa: não se trata de recusa
em perceber a natureza ideológica e falsa da linha do progresso, como se houvesse algum
progresso algum dia na ordem de destruição e ruína constante dos sacrificados do dia histórico
do Capital, porque dizemos regressão; mas da emergência no espaço de referências históricas
do presente de uma lógica automática de redução da política e da vida a um cálculo simples
e imediato de ganho pela violência. O que, deste ponto de vista que venho lembrando, significa
a agência mais forte da pré-história na história. Sabemos que também Marx era sensível ao
núcleo arcaico da vida moderna como natureza, pelo fato do risco permanentemente reposto
de ruína e de morte cotidianas, sacrifício mediado, mas hiper-real, da destruição do outro ou
a própria, que a ordem liberal capitalista sempre manteve. Para ele o capital e sua classe
senhoril burguesa eram tão espetacularmente criativos quanto selvagemente destrutivos. Daí
a sua ideia crítica de que ainda não acedemos à história, leia-se à cultura como projeção da
plena liberdade mediada das potenciais técnicas humanas. Para Marx, como para Freud, o
passado também espreitava como um tigre – se usarmos a metáfora que pensava a coisa, ao
contrário, de Walter Benjamin – e vivia não superado no presente, arque-vida, como forma
de ser direta da violência entre os homens garantida por lei geral. Embora ele acreditasse, mais
do que nós, na inexorável marcha da humanidade rumo à história, a própria libertação como
trans-formação dos homens do arcaísmo e da violência, da irracionalidade como sociedade.
Assim, história e pré-história, consciência de uma razão prática da vida social e desejo político
de submissão e sadismo como ordem do vínculo social, sempre coexistiram para algumas das
consciências mais exigentes da modernidade. Foi por entender a história assim, com a
percepção da inércia do arcaico no mundo da história, que Adorno pode convencer os
milionários judeus americanos à financiar pesquisas críticas, sociológicas e psicológicas sobre
a presença do fascismo em plena sociedade liberal de consumo de massas industrial,
sociedade satisfeita na unidimensionalidade dizia o seu amigo Marcuse, e como se sabe, para
os contendores, o termo que ele usou então, na década de 1950 da criação do american way
of life para exportação global como dominação cultural, foi exatamente este, fascismo.
Podemos imaginar a natureza política dos intelectuais americanos que então diriam, mas não
há fascismo nos Estados Unidos... impedindo o estudo original da radicação antissocial do
poder no homem da classe média americana. Adorno estava às voltas, dez anos antes,
30
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
claramente com a estrutura social desejante da banalidade administrada do mal, a mesma que
Hannah Arendt descobriria mais tarde no algoz banal nazista, tão comum quanto qualquer
homem que abdica de pensar, ou seja, os homens produzidos em massa na ordem de produção
e consumo de mercado... Daí a sua real escala F, como se sabe, de fascismo... de percepção da
subjetivação autoritária exatamente operando no homem comum e médio americano – a ideia
está longe de ser minha. Daí o seu interesse, altamente político e profilático, crítica como
terapêutica social, de investigar os modos e as práticas da propaganda fascista
permanentemente existente na vida democrática, e seu estudo de formas da patologia de tipo
freudiana da convocação de massas fascista subjacente à cultura. E, daí, já na Alemanha, nos
anos de 1960, a sua denúncia aberta das formas latentes do fascismo incrustadas na estrutura
mesma da democracia liberal constitucional, pela via da violência consentida permanente da
vida ao modo de mercado total, a cultura como natureza, de Marx... A mesma dimensão da
subjetivação para a violência no mundo livre arcaico do fetichismo da mercadoria e da
submissão corrosiva do caráter do trabalho à sua gestão sem pressupor sujeito, que ele
também investigou em si mesmo, como real risco de regressão, perda do corte crítico e do
pensamento em busca da verdade, como o risco de incorporação inconsciente da violência
das formas da vida e do mundo, na sua autoanálise político filosófica de Minima moralia.
Isso é tentar alcançar as raízes pulsionais da violência em si próprio, o fascismo como
momento pulsional e fantasístico do próprio eu, sem descuidar que elas estão
simultaneamente inscritas nas formas sociais, ainda natureza, prontas à produção social do
sintoma político; o fascismo da própria estrutura mais comum da reprodução do capitalismo
avançado. Por tudo isso, o livro da análise do vínculo razão, sujeito, inconsciente, história e
fascismo, foi de fato Dialética do esclarecimento, e, como se lê ali, o problema – já dito ao seu
próprio modo romântico elitista por Nietzsche, por Marx de modo hiper-moderno e com
esperança no fato concreto iluminista, e por Freud, como temos visto, já na fronteira de sua
dialética – é o de como a razão histórica e na história, articulada à totalidade da forma
Capital como seu próprio destino, carrega a sua sombra de terror, violência e medo sem que
nunca ela mesma possa dar conta de tal ordem mítica de sua estruturação. Por isso, para esses
pensadores, a análise da política e da vida cultural sobre o capitalismo necessariamente
precisava tornar-se análise entre o conceito e o sonho suspenso da história, como dizia
Benjamin, ou seja, entre a estabilidade das entidades críticas históricas com que pensamos o
mundo visível, e a percepção da analítica dos sonhos, das formas originárias e desejantes da
violência, próprias de cada um e do todo, que marcam a vida visível com projeção de terror e
reduzem a razão à mero mediador quantitativo do poder. Tarefa muito ampla política e
humana de civilização e de crítica, à qual temos nos furtado e faltado amplamente. Os
31
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
psicanalistas sempre insistem: não há crítica do fascismo que não seja crítica das equações
destrutivas que habitam o eu. Mas, por outro lado, diferente dos filósofos influenciados por
Freud que venho citando, eles têm grande imprecisão e indefinição na percepção das formas
sociais e históricas concretas da coisa. Por isso, estabeleci para mim próprio que um plano de
trabalho clínico, na psicanálise pública democrática do desejo dos psicanalistas de hoje, da
Clínica Aberta de Psicanálise na casa do Povo em São Paulo, é tanto um cuidado com a crítica
interior dos vínculos desejantes com a realidade social perversa, de cada um de nós, de tipo
mínima morália, poderíamos dizer, quanto também um cuidado de tipo interpretação dos
sonhos – trabalho crítico originário freudiano onde podemos verificar o vínculo dialético, em
busca de esclarecimento, entre o sujeito do desejo e a história. Chamei isso da dimensão de
self cultural, ou dialético, do inconsciente. Porém, hoje sabemos, toda esta tradição crítica
europeia e central, que se constituiu como problema e como tessitura de conceitos em corpo a
corpo direto com a experiência histórica do fascismo, presente e no horizonte, que muito
determinou as formas e os limites daquele mesmo pensamento, quando entendida do ponto
de vista do lugar do Brasil no mundo ganha luz e definição nova. Isso porque a ordenação
histórica da periferia do capitalismo, constituída na exploração direta e aberta do colonialismo
e na máquina mundial da escravidão moderna da acumulação original central, diz ainda mais
coisas sobre o vínculo entre modernidade, realização da globalização técnica imanente à forma
capital e assassinato, genocídio e etnocídio, de realidades continentais inteiras, para o bom
resultado da concentração de valores mundiais. Como país gestado na escravidão colonial
ocidental na mesma medida que os termos culturais políticos de toda aquela realidade, as suas
realizações ou ilusões políticas e ideológicas centrais, que pouco diziam respeito aos fatos de
uma sociedade escravocrata, inclinada a apenas se nomear como liberal, nossa formação
subjetiva, institucional e técnica com a escravidão ilegal de nosso século XIX nos punha em
profunda linha de continuidade com o real da ordem do genocídio colonial ocidental. Nossa
ordem nacional, de Estado, de elite e antidemocrática por princípio, se ligava a toda a explosão
dos sentidos da diáspora moderna continental africana, para criar nossos reais campos de
morte nacionais, campo de tortura em massa dos escravizados, campo de desprezo humano e
social sem mediação pela vida do trabalho e pela marcação racial no Brasil. Se a Europa do
século XX redescobriu a sua regressão como forma de teoria e conceito para tentar explicar a
sua realização final, interior ao continente geopolítico das ilusões do progresso técnico
universal, no fascismo e na guerra de todos contra todos, nós, por nosso lugar de fronteira
colonial do mundo, sempre estivemos comprometidos com o genocídio, a violência direta
como sociabilidade e a subjetivação autoritária dos seus ganhos, efetividade do sadismo
social. Ou estruturalmente cínica, quando uma elite brascubiana qualquer ainda se dava o
32
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
6. Agora que o “fascismo comum” parece ter vindo ao seu conceito com o atual
governo, você planeja outro livro que dê conta do bolsonarismo como o fascismo
comum? Que projetos de escrita tem em mente agora?
de um viajante, Carl Schlichthorst, que esteve por aqui no tempo das origens, entre 1824 e
1826 – o momento da afirmação da Constituição outorgada de Pedro I – e que encontra a
civilização luso brasileira escravista plenamente instalada nas ruas e na vida da cidade do Rio
de Janeiro, tive, e temos, acesso às produções da vida e da existência negra na indústria caseira
dos serviços da escravaria de ganho na então chamada Corte do Brasil. O alemão reconheceu
modos de produção de vida e existência, biopolitica escravizada brasileira, que deram e dão o
que pensar ainda hoje. E, ainda mais, ele realizou uma forma literária rica junto àquela vida
popular do Império americano. Uma forma fascinante, que nos põe em contato com as forças
latentes e desejantes da história expressas nos próprios corpos negros escravizados
trabalhando, o que contrastava absolutamente com a literatura à reboque e muito ruim
própria dos brasileiros daquela quadra histórica, praticamente inexistente ou totalmente
alienada para o valor do caso histórico. Uma “literatura” que, podemos dizer, com Antonio
Candido, José Veríssimo e Silvio Romero, foi a grande ausência simbólica brasileira realizada
ao menos até meados da década de 1850. Não é acaso de nenhum modo que a literatura
brasileira só venha a existir de fato com alguma força e relevância após a decisão, de 1850...,
em reafirmar definitivamente a lei nacional da proibição do tráfico atlântico de escravos. Até
então não dissemos praticamente nada sobre nós mesmos na ordem do registro literário,
duradouro e comprometido. Trinta anos de silêncio geral e de mimese arruinada, ausente da
própria produção da vida social, em uma situação que denotava pouca habilidade com as
produções essenciais da modernidade, da reflexividade social de base universalista,
iluminista, do interesse pelo vínculo entre povo e nação e da emergência histórica da própria
forma romance – ligada tanto a ideia da jornada livre do indivíduo no tempo quanto à
experimentação crítica encarnada das suas contradições, como disse Lukács. Como sabemos
desde 1970, mas também 1950 e 1930... ideias fora do lugar. A boa literatura de um viajante
alemão que esteve por aqui por dois anos, integrando as tropas estrangeiras do Exército
Imperial, bem no começo de tudo, que publicou um livro a nosso respeito em 1827 em
Hannover, O Rio de Janeiro como é, em seus momentos altos nos lembra muito o Machado
de Assis de somente 60 anos depois, ou até a literatura modernista do século XX sobre o povo
brasileiro, um enigma social e cultural que ele nos apresenta já formado, na forma dança,
samba e erotismo do lugar da mulher negra, a mulher brasileira no mundo brasileiro, e no
mundo. E a presença histórica, esquecida por nós, destas formas fortes que falam no livro do
alemão explica muito sobre o nosso próprio esforço em não representar, não formar
contradições nem conceitos pela forma literária e não considerar pensável a própria vida
social de produção de vida escrava no Brasil. O soldado alemão, ao nos dar um retrato histórico
vivo e exclusivo da complexidade da vida brasileira junto e com a experiência negra,
34
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
35
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
“DEMOCRACIA E AMOR”:
Um mergulho no espetáculo à brasileira1
Diogo Dias2
Quando Paulo Emílio Sales Gomes observou com olhar clínico o estado de
subdesenvolvimento do cinema brasileiro a seu tempo, ele demonstrou que isso não se devia
exclusivamente a um atraso técnico, industrial, mas que, além da situação de periferia e
1
Este texto foi publicado originalmente no site da revista Cult no 02 dezembro de 2020:
https://revistacult.uol.com.br/home/democracia-e-amor-um-mergulho-no-espetaculo-a-brasileira/
2
Diogo Dias é bacharel em Filosofia e professor e educador popular da Uneafro Brasil. No Programa de Pós-
graduação de Filosofia da UNIFESP, prepara trabalho sobre Walter Benjamin e o cinema
36
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
37
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de
nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”.
O dilaceramento causado pela falta de cultura original e pela ocupação cultural técnica
ocidental de europeus e de estadunidenses nos jogou no turbilhão de imagens fetichizadas
criadas pelo capitalismo imperialista, do outro sobre nós e, também, de nós mesmos sobre
nós. Como, então, o imaginário coletivo brasileiro se identificaria sem essa ocupação?
Seria Democracia e amor o trabalho de elaboração onírica que canaliza os desejos fetichizados
da memória brasileira ao juntar uma constelação múltipla de imagens retiradas da cultura de
massas como encobridoras dos conflitos que a sociedade que as produziu abriga? Seria o sonho
do sujeito Brasil aquele que se formou assim?
Os procedimentos técnicos do filme, como destacou Tiago Ferro, provocam
estranhamento e identificação, distanciamento e aproximação. Provoca algo que toca no
inconsciente das gerações que viveram sob o signo da esperança de “um país melhor”, um
Brasil que foi “projetado, esboçado na Constituição de 1988”, que precisa ser urgentemente
resgatado. A montagem que sonha é a que tenta sinalizar para o despertar. A associação de
imagens, palavras ditas pelos narradores e as músicas que abrem e fecham o filme se ligam
contiguamente por elementos que surpreendem, estão imantados em seu conteúdo manifesto.
À primeira vista seriam até absurdas, mas elas guardam sempre sua lógica nos múltiplos
pensamentos latentes que evocam. Lula, multidão, protesto. Carregariam essas imagens a
ideia de democracia? Belchior, Rivelino, Hortência e Paula e Beatriz Nascimento garantiriam
alguma espécie de amor?
Mas a coisa não seria um sonho se tais significados fossem límpidos. Ao voltarmos
nossa atenção distraída de espectadores um instante para o presente histórico vivido, vemos
que não temos nada disso – embora tenhamos tudo isso, em imagem. Vemos que as
manifestações de superfície, da indústria cultural brasileira e da política espetacular não foram
suficientes para saciar nosso desejo civilizatório de nos tornar um país de “primeiro mundo”,
ou “uma nação de fato”, como diz o filme. Isso porque, tão superficiais quanto o regime
daquelas imagens, foram os avanços históricos brasileiros.
Mais do que o sabor fugaz da mercadoria que a breve demonstração histórica de estado
de bem-estar social deixou na boca dos brasileiros, seria preciso resgatar e enfrentar os
traumas que pipocam em sintomas como o genocídio da juventude negra, os números
aterradores de violência doméstica e da deliberada e criminosa exclusão da massa uberizada
pelo golpismo de 2016, em franco alinhamento com o neoliberalismo mundial. E estas
imagens também estão todas lá, na mesma linha do tempo do sonho, agora traumático.
Democracia? Amor? Ainda somos um país? Já fomos um país? Há para nós um lugar no
38
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
mundo? Rodrigo Janke Lucheta, pensado o filme, nos sacode e lembra que sim: “Viemos de
algum lugar, iremos para algum outro. O não-lugar é uma invenção de que nos convenceram,
o pântano mental em que nos afundaram.”
O contraste das imagens selecionadas, tendentes ao infinito, indica também como é
sonhar na era da explosão digital. No filme surge uma sucessão de fotografias, algumas
livremente manipuladas sabe-se lá por quem, documentos históricos importantes, peças de
propaganda comercial e ideológica, memes, retratos que sofrem um nivelamento falsificador.
Silvio Santos e Antonio Candido como impressões semelhantes, enquanto mera imagem
disponível, não se diferenciam em relação à intensidade que suas impressões provocam no
decorrer do curta-metragem. Uma miragem, pois nem Silvio Santos é uma imagem trivial,
nem Antonio Candido é apenas uma imagem. Essa aplanação da atividade cultural brasileira
que se mostra em um filme que aposta na sobreposição de imagens “entremeadas por
silêncios” sonoros e visuais, como bem reparou Marcos Lacerda, é também uma consequência
do nivelamento empregado pelos meios de comunicação de massa.
No continuum vertiginoso do filme que mimetiza esse Brasil que sonha pelo
imaginário da sociedade eletrônica, o encontro com a verdade possível se dá na sua
interrupção, em algum ato possível no entre, em que Francisco Bosco intuiu estar o “valor de
verdade” do filme: “entre as imagens, entre as imagens e as palavras, entre as canções e as
imagens, entre tudo isso e o silêncio. Se alguém soubesse decifrar esse entre, compreenderia
subitamente o Brasil, como um aleph”.
Um país cuja cultura vem sendo o receptáculo de resquícios das tradições mutiladas
dos ocupados e das energias permanentes do fluxo das mercadorias dos ocupantes, só pode se
encontrar nesses frames vazios, nas pausas do narrador, nos milésimos de segundo
disponíveis para pensar. O tempo entremeado da diferença, como vazio, aquém ou além do
choque de tudo, a imagem massiva do mais ou menos o mesmo. É mais ou menos o que
acontece na disputa pelo imaginário cultural e político do Brasil pandêmico. Sob os torrenciais
tuítes mentirosos do líder e sua claque, tomados pelos fanáticos como equivalentes à verdade
da ciência e replicados sem parar por humanos e robôs, é preciso procurar o silêncio para se
pensar e lembrar do que verdadeiramente importa.
39
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
40
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
UM PAÍS ENTRE
(Uma crítica curta de um curta-metragem)
Francisco Bosco
41
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
O LABIRINTO FASCISTA E A
MONSTRUOSA COLEÇÃO
DE MERCADORIAS1
Tiago Ferro2
1
Texto publicado originalmente no blog da boitempo: https://blogdaboitempo.com.br/2020/09/15/o-labirinto-
fascista-e-a-monstruosa-colecao-de-
mercadorias/?fbclid=IwAR0ZapxHNGFFNxk6hnJ_EAGbDip2sEagNzACOaKz-UmFgfWoc-RI9ZO-Spg
2
Tiago Ferro é crítico e romancista.
42
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
pura abstração teórica, nos mostra que essa esfera de cultura burguesa fechada tem certa
porosidade.
Schwarz escreve em 1994: “Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja
crítica do fetichismo da mercadoria”. A frase serve de epígrafe ao livro de 2011 Lulismo,
carisma pop e cultura anticrítica, de Tales Ab’Sáber. No texto o autor vai encontrar realizado
no Brasil lulista a universalização do homem unidimensional e com isso o desaparecimento da
possibilidade da dialética cultura afirmativa-negativa encontrada por Schwarz em 1970.
Afirma Ab’Sáber: “Lula conseguiu ao redor de seu talento pessoal para ceder e convencer,
unificar o país em uma nova textura de experiência histórica ao redor da ideia real de mercado,
ou seja, um mercado que possibilitasse acesso real às suas benesses”.
O filme Intervenção – amor não quer dizer grande coisa, de 2017, dirigido por Tales
Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda, é inteiramente construído a partir da montagem
de trechos de vídeos coletados nas redes sociais de canais da extrema-direita. Os diretores nos
arremessam num labirinto aparentemente sem saída de violência e rebaixamento cultural e
cognitivo. Terminamos a sessão com a violência do neofascismo brasileiro impressa em nossos
corpos.
43
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que parece
não ter fim”. O filme, ao descer ao chão histórico, prova o contrário.
Vale citar a passagem final quando o protagonista, após rodar em falso durante todo o
romance, estranhando tudo e todos, finalmente encontra algo familiar:
Reconheço o sujeito magro de camisa quadriculada no ponto de ônibus que desce a serra.
Avistá-lo ali, não sei por que, enche-me de um sentimento semelhante a uma gratidão. Sigo
correndo ao seu encontro, de braços abertos, mas ele me interpreta mal; encolhe os ombros e
puxa uma faca de dentro da calça. […] Estou a um palmo daquele rosto comprido, sua boca
escancarada, e já não tenho certeza de conhecê-lo. […] Recebo a lâmina inteira na minha
carne, e quase peço ao sujeito para deixá-la onde está; adivinho que à saída ela me magoará
bem mais que quando entrou.
A mesma facada está na canção de Nuno Ramos e Romulo Fróes que fecha o
curta Democracia e amor: “Qual a faca que fica no fim?/ De que aço, acho o gosto ruim…”. As
44
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
doze facadas pelas costas que mataram o “moço lindo do Badauê”, o Moa do Katendê, por um
eleitor enlouquecido de Bolsonaro com a vitória no segundo turno.
O filme, portanto, nos congela. Como podemos nos mover nessa realidade
fantasmagórica e ameaçadora? De que forma a crítica engolfada pela indústria cultural ainda
pode ser negativa e reagir ao labirinto do fascismo?
Resgatemos dos escombros a mensagem na garrafa lançada para nós por Marcuse ao
citar Walter Benjamin no final d’O homem unidimensional como motor para a continuação
do esforço de pensamento crítico brasileiro neste momento tão adverso: “É só por causa dos
que não têm esperança que nos é dada esperança”.
45
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Cláudio R. Duarte
1 Adorno e Horkheimer, [1947] 1981, p. 79-80; citado em geral conforme a excelente tradução de Guido A. de
reduzido em sua parte crítica a duas teses: o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à
mitologia. Nos dois excursos, essas teses são desenvolvidas a propósito de objetos específicos. O primeiro
acompanha a dialética do mito e do esclarecimento na Odisseia como um dos mais precoces e representativos
testemunhos da civilização burguesa ocidental. No centro estão os conceitos de sacrifício e renúncia, nos quais se
revelam tanto a diferença quanto a unidade da natureza mítica e do domínio esclarecido da natureza” (Idem, 1981,
p. 16; Trad. 1985, p.16, grifos meus).
46
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
3 Cf. o esquema da apresentação da História do Marx da maturidade, em Fausto (1987), cujo motor é a distinção
entre pressuposição, posição e determinação, extraída da Lógica da Essência de Hegel.
4 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 43 e 45.
5 Ibidem, p. 61.
6 Adorno e Horkheimer, Trad.: 1985, p. 61. Os respectivos termos em alemão são: “selbstherrlichen Intellekt” e
“selbstherrliche Subjekt”, Idem, 1981, p. 53 e 16; Trad.: 1985, p. 47 e 16.
7 Sobre a “economia antiga” e o oikos do período da Grécia arcaica, ver: Vernant, 1973; Finley [1965] 1982, Capítulo
3; Finley, 1999, Capítulos I e III; Finley, 1989, Capítulos 13 e 14; Mossé, 1984, Cap I, 3; Austin e Vidal-Naquet, 1986,
parte I, Cap. 2, Parte II, Cap. 2; Weber, 2015, v.1, p. 263; Weber, 1964, p. 57-8, 118-124.
8 Cf. Adorno e Horkheimer, 1985, p. 162, 166, 185 e 189.
9 “O princípio de troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato de tempo de trabalho médio,
tem um protoparentesco [urverwandt] com o princípio de identificação. Ele tem o seu modelo social na troca, e
47
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
ela nada seria sem ele; por meio da troca, entes singulares e desempenhos não idênticos se tornam comensuráveis,
idênticos. A difusão do princípio transforma o mundo todo em algo idêntico, em totalidade. Não obstante, se o
princípio fosse abstratamente negado; se fosse proclamado como ideal que, para honrar o irredutivelmente
qualitativo, não mais deveria proceder-se por relações igualitárias [nach gleich und gleich zugehen = de igual para
igual =], então isso constituiria uma excusa para retornar à antiga injustiça.” (Adorno, 1986, p. 149-150; Trad.:
2009, p. 128, trad. emendada, grifos nossos). Assim, só tendo por base substantiva certas relações sociais
igualitárias a troca pode ser de fato transcendida e superada: “Se simplesmente se anulasse a categoria de medida
da comparabilidade, no lugar da racionalidade que reside em verdade ideologicamente, mas também enquanto
promessa, no princípio de troca, apareceriam a apropriação imediata, a violência, e, hoje em dia: o privilégio nu e
cru dos monopólios e das cliques. A crítica ao princípio de troca enquanto princípio identificador do pensamento
quer a realização do ideal de uma troca livre e justa que até os nossos dias não foi senão mero pretexto. Somente
isso seria capaz de transcender a troca” (ibidem., grifo nosso). Está claro que a troca superada, que poria a
igualdade e a liberdade para todos, já não pressuporia a totalidade da mediação pelo trabalho e a troca reificada,
mas formas novas de relação social, que podem ser pensadas como “intercâmbio” entre pessoas, lugares e
metabolismo entre a sociedade e a natureza. Ou ainda: “A experiência dessa objetividade preordenada ao indivíduo
e à sua consciência é a experiência da unidade da sociedade totalmente socializada. A ideia filosófica da identidade
absoluta possui uma relação íntima com essa experiência, na medida em que ela não tolera nada fora de si mesma.
(…) Por um lado, a sociedade burguesa desenvolvida - e já o mais antigo pensamento da unidade era urbano,
burguês de maneira rudimentar - compõe-se a partir de incontáveis espontaneidades particulares dos indivíduos
que perseguem a sua autoconservação e nela se acham remetidos uns aos outros. Por outro lado, não reina de
maneira alguma entre a unidade e os indivíduos esse equilíbrio que os teoremas justificadores tomam por
estabelecidos. A não-identidade entre a unidade e os indivíduos, contudo, assume a forma de um primado do uno,
enquanto identidade do sistema que não deixa escapar nada” (Ibidem, p. 309; trad., p. 261-2).
10 “O burguês nas figuras sucessivas do senhor de escravos, do empresário livre e do administrador é o sujeito
lógico do esclarecimento”. Adorno e Horkheimer, 1981, p. 102; Trad.: 1985, p. 83, grifos meus. Ou ainda: “A
limitação do pensamento à organização e à administração, praticada pelos governantes, desde o astucioso Odisseu
até os ingênuos diretores-gerais, inclui também a limitação que acomete os grandes enquanto não se trate mais
apenas da manipulação dos pequenos. O espírito torna-se de fato o aparelho da dominação e do autodomínio como
sempre o havia confundido erroneamente a filosofia burguesa” (Idem, 1985, p. 47, grifos meus, trad. emendada).
Uma série de especificações histórico-sociais e de classe que os críticos em geral passam batido.
48
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
e assim “na ingenuidade épica vive a crítica da razão burguesa”, pois “ela se agarra àquela
possibilidade de experiência que foi destruída pela razão burguesa, pretensamente fundada
por essa própria experiência”11. O esforço narrativo cada vez mais intenso e desafiador na
passagem do realismo ao modernismo, digamos de Goethe a Stifter, de Flaubert e Machado a
Proust e Joyce, até Kafka e Beckett, leva essa impossibilidade quase a priori de narrar o que é
único no mundo da fungibilidade universal “ao limite da loucura”12. A obra de arte autêntica
converte esse impulso mimético mais ou menos ingênuo e obstinado em espírito reflexivo: em
construção astuciosa, em crítica da “mentira da representação” e do “próprio narrador”, de
sua “inevitável perspectiva”, dando expressão ao não-idêntico oprimido contra a dominação
do conceito imposto13. Nada mais espiritualizado e antipositivista, a um só tempo construído
e mimético, então, do que a arte negativa desse tempo, cuja “astúcia” será unificar o particular
difuso e dissonante, numa espécie de “astúcia da não-razão”14 da totalidade cega, homogênea,
hierarquizada e fragmentada pelo capital.
É bom lembrar de saída que toda essa reflexão filosófica nos remete à nota introdutória
de Marx à sua crítica da economia política:
Uma “aparência estética” que entretanto tem sua razão de ser. Se as “pequenas e
grandes robinsonadas” da filosofia e da economia política clássica16 não eram para ele uma
simples miragem é porque o indivíduo isolado tinha sua função na economia triunfante,
mediatizada pelo “princípio do eu” como proprietário privado, livre trocador e usina de energia
de trabalho social abstrato – como um suporte (Träger) do capital, portanto sempre prestes a
ser subsumido e abstraído no processo de acumulação. Além de ser mero agente da lei do valor,
no desenvolvimento da grande indústria o “trabalho imediato” vai sendo reduzido a um fator
mínimo na produção de riqueza material, substituído pela maquinaria e demais forças
produtivas objetivas17. Como sublinharão Adorno e Horkheimer, esse indivíduo é cada vez
mais forçado à autoalienação até formar-se de corpo e alma para o novo aparato técnico de
extorsão de trabalho vivo, exatamente quando a produção se automatiza e passa a criar um
gigantesco exército industrial de reserva de massas simplesmente supérfluas, que são
administradas por todo o aparato do poder18. Ao mesmo tempo, emerge o potencial de
negação precisamente junto à formação negativa desse sujeito proletarizado descartável.
Assim, a razão objetificada no mundo das mercadorias não desaparece, mas, formalizada até
o osso, é “abandonada” pela classe dirigente para fins de conservação da ordem:
simples e transparentes que até o Sr. M. Wirth deveria entendê-las, sem extraordinário esforço intelectual. E,
todavia, já contêm todas as determinações essenciais do valor” (Marx, 1988, L. I, t. 1, p. 74). As determinações estão
num nível lógico quase todas lá na “cabeça” de Robinson ilhado, mas não sua posição histórico-social, que depende
da troca reificada de produtos do trabalho abstrato, posto como substância social fundamental. Na ilha não há troca
reificada. Com Sexta-Feira e seus outros servos, ele exibirá uma relação de dominação direta. Na segunda parte da
obra, o valor é plenamente posto, confirmando o início de suas aventuras, quando ele passara pelo escravismo na
África e na América luso-brasileira.
16 Em Rousseau, a individualização trazia consigo um mal-estar da miséria da alienação e da massificação social:
“Que se poderá pensar de um comércio no qual a razão de cada particular lhe dita máximas diferentemente
contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de
outrem?” (Rousseau, [1754] 1973b, p. 297). “(…) reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e
enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde (…). Não se ousa mais parecer tal como
se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias,
farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem.” (Rousseau, [1750] 1973a, p. 344).
17 Marx, 2011, p. 229-230, 582-594. “O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido de
processo dominado pelo trabalho como unidade que o governa” (ibid., p. 581) - o que já confere um papel de mero
“apêndice” ao proletário singular, que “é posto como trabalho individual abolido, i.e., como trabalho social”, vale
dizer, um “sujeito sem objetividade” que é ultrapassado pelo poder da “inteligência social” capitalizada como força
produtiva principal – e que no limite dissolve também o valor e a substância do trabalho abstrato.
18 “O trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu [Prinzip des Selbst] na economia
burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um trabalho excedente [Mehrarbeit].
Mas quanto mais o processo de autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele
força a autoalienação dos indivíduos [die Selbstentäußerung der Individuen], que têm que se formar no corpo e na
alma segundo a aparelhagem técnica”. Adorno e Horkheimer, [1947] 1981, p. 46-7; trad.: 1985, p. 41.
50
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Ora, segundo o argumento central do livro, ao mesmo tempo essa mímese seria
momento de uma razão crítica (próxima à verständlich Vernunft, de Hegel), que em seu
impulso de se perder no meio externo, em vez de se impôr ativamente, permitiria lembrar o
horror e o sofrimento histórico dos homens animalizados e da natureza arruinada. Do mesmo
modo, a astúcia teria uma origem arcaica no universo da mitologia e da epopeia – daí o recuo
da investigação a documentos da civilização arcaica, dentre outros, os mitos e a Odisseia. É
claro para Adorno e Horkheimer que a Grécia arcaica não é a Inglaterra industrial, tanto
quanto a epopeia jônica não é o romance burguês de Defoe – eles são na verdade opostos – o
que não impedirá a busca de sua unidade antagônica, ou seja, dos traços embrionários do
processo de individuação e a forma da racionalidade nascente na poesia épica de um mundo
ainda embaraçado ao mito, tanto quanto os traços épicos do romance moderno, especialmente
o romance de aventuras, que então passam a formar uma constelação histórica à qual
pertenceriam, segundo Adorno, a “robinsonada total”21 de Kafka e os seres exilados e terminais
de Beckett, cujo tema fundamental é a “crítica do solipsismo”22.
**
Adorno, esse traço mimético do “trabalho social” é um dos momentos arcaicos de formação da
identidade do espírito, mas também de negação da identidade lógica e psíquica enrijecidas26.
levaria “somente o seu fim à realização”. Um “conceito concreto” que estaria assim “subtraído do tornar-se
determinado externo do mecanismo” (cf. Hegel, 1995, § 204-212 e Hegel, 2018, p. 216 e 227). Tudo se passa como
se a produção imediata não estivesse inserida numa totalidade determinada que Marx denomina modo de produção
e, mais precisamente, em nosso caso, subsumida ao conceito de Capital (“sujeito automático”). Na Lógica do
Conceito, Hegel tenta apagar o rastro da violência contido nessa astúcia. A violência do instrumento sobre a matéria
seria aparência suprimida através desse processo de subtração – a astúcia da razão consistindo exatamente nessa
“relação mediada” com o objeto exterior, que implica, como insiste o filósofo idealista, uma subjetividade operando
de modo imanente, por conceitos concretos, através da determinação objetiva das coisas – “não precisa de
nenhuma violência ou de outra afirmação contra o objeto para torná-lo meio senão a afirmação do próprio objeto;
a abertura, a resolução, essa determinação de si mesmo é a exterioridade somente posta do objeto” – pondo-se
como finalidade executada e conservando-se nos meios externos através dessa exterioridade espiritualizada. Para
uma crítica do aspecto violento e espoliador da astúcia da razão em Hegel, que refletiria ideologicamente a forma
da tecnologia capitalista, ver Bloch (2006, p. 223-5). Seja como for, pode-se divisar sob esse processo especulativo
do Geist uma estrutura social efetiva, uma espécie de razão imanente aos indivíduos que surge não apenas no
distanciamento mas na afinidade mimética com o mundo material, diluindo os limites rígidos entre sujeito e
objeto, dando assim um estofo prático-sensível à razão como certa libertação espiritual e potência crítica de toda
dominação.
26 Assim, há uma “aparência de identidade intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura. Pensar significa
identificar”. Mas, “em contrapartida”, dirá Adorno na Dialética negativa, “a equiparação hegeliana da negatividade
com o pensamento, que segundo ele protegeu a filosofia da positividade da ciência tanto quanto da contingência
diletante, possui o seu conteúdo de experiência. Pensar é, já em si, antes de todo e qualquer conteúdo particular,
negar, é resistir ao que lhe é imposto; o pensamento herdou esse traço da relação do trabalho com seu material,
com seu modelo originário [Urbild]. Se hoje mais do que nunca a ideologia incita o pensamento à positividade (…)
O esforço que está implícito no conceito do próprio pensamento, como contraparte à intuição passiva, já é negativo,
uma rebelião contra a pretensão de todo elemento imediato de que é preciso se curvar a ele”. Assim, é através do
mergulho na particularidade que “o que é” torna-se “mais do que ele é”, pois o particular sempre é “o seu outro e
está ligado a um outro”. “A partir de um certo ponto de vista, a lógica dialética é mais positivista que o positivismo
que a despreza: ela respeita, enquanto pensar, aquilo que há para ser pensado, o pensamento, mesmo lá onde ele
não consente com as regras do pensar. Sua análise tangencia as regras do pensar. O pensar não precisa deixar de
se ater à sua própria legalidade; ele consegue pensar contra si mesmo, sem abdicar de si; se uma definição de
dialética fosse possível, seria preciso sugerir uma desse gênero. (...) A dialética é, enquanto modo de procedimento
filosófico, a tentativa de destrinçar os nós do paradoxo com o meio antiquíssimo do esclarecimento, a astúcia. Não
é por acaso que o paradoxo foi, desde Kierkegaard, a forma decadente da dialética. A razão dialética segue o impulso
de transcender a conexão natural e sua ofuscação que prossegue na compulsão subjetiva das regras lógicas, sem lhe
impor sua dominação: sem vítima ou vingança” (Adorno, 2009, p. 12-3, 25, 140, 123-4, grifos nossos). Ora, essa
transcendência da conexão natural é feita pela autorreflexão crítica, que tem um momento fundamental na
afinidade mimética de sujeito e objeto. Daí então: “A autorreflexão do esclarecimento não significa a sua revogação:
é em nome do status quo atual que ela é corrompida até se tornar uma tal revogação. (…) É preciso reverter a
tendência dos atos sintetizantes, obrigando-os a refletir sobre aquilo que fazem ao múltiplo. Somente a unidade é
capaz de transcender a unidade. Nela, a afinidade que foi repelida pela unidade progressiva e que hibernou nessa
unidade, secularizada até se tornar irreconhecível, encontra o seu direito à vida. As sínteses do sujeito, tal como
Platão o sabia muito bem, imitam de maneira mediada, com o conceito, aquilo que essa síntese quer por si mesma”.
Mas essa afinidade mimética não pode ser posta imediatamente, de maneira positiva, mas apenas mediada pelo
seu oposto, tornando-se enfim a busca do dessemelhante ao sujeito: “A ideia de uma filosofia transformada seria a
ideia de se aperceber daquilo que lhe é dessemelhante, determinando-o como aquilo que lhe é dessemelhante”
(Ibid., 137 e 131).
27 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 20.
28 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 11; Trad., 1985, p. 11.
53
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Odisseu e Robinson carregam consigo as nuances dessa história natural e deveriam ser
tomados então como imagens históricas e dialéticas, isto é, ambivalentes, imbricadas em mitos
arcaicos e modernos31, mas também em formas constitutivas de uma lógica narrativa do
ocidente32, internalizadas e intensamente reconfiguradas por algumas obras-galeria da
catástrofe de nosso tempo, em cujos pilares encontraríamos o Ulysses (1914-22) de Joyce (com
reflexos em Faulkner, Döblin, Dos Passos) e A terra devastada (1922) de Eliot, até o pleno
insulamento kafkiano de Karl Rossmann, Joseph K. ou K., em Amérika/O desaparecido (1912-
1914), O processo (1920) e O castelo (1922), e a trilogia beckettiana de Molloy, Malone morre
(1948-1951) e O Inominável (1949-1954), além de suas grandes peças dos anos 1950
(Esperando Godot e Fim de partida), cuja “personagem” central vai sendo desdobrada,
subtraída de seu entorno e de si mesma, desmembrada e reduzida ao cogito de uma voz
impessoal que mimetiza situações de extrema exploração e calamidade da nova sociedade
industrial administrada – sem esquecer, aqui, no escopo deste ensaio, sua prefiguração já pós-
realista no narrador caprichoso e pseudomorto de Brás Cubas (1881) e Esaú e Jacob (1904),
29 Da “magia simpatética” de Frazer (1956, p. 72), que teria em si muito de “impostura” e “aguda astúcia” por parte
de feiticeiros dotados de poder sobre a comunidade, até o “mana” da teoria da magia de Mauss e Hubert (2003a,
p. 142-55, 159-60, 176-7) como operador sintético da relação causa e efeito, funcionando qual um juízo sintético a
priori das crenças coletivas unânimes, cujo centro também é a ideia de força e poder mágico, até a lógica
classificatória concreta da natureza elaborada pelo “pensamento selvagem” conforme Lévi-Strauss (1989).
Voltaremos ao tema através da discussão da relação entre formas de troca, dom e sacrifício. Sobre o estatuto da
mímesis em Adorno, ver Schultz, 1990.
30 Adorno, 2002, p. 11, 15, e 117.
31 Sobre Robinson Crusoé como mito moderno, ver as análises de Watt (1996 e 2010) e Eagleton (2005, p.22-
40).
32 Aqui no sentido da gênese buscada por Auerbach (1996).
54
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Quanto mais essas obras modernas fazem a internalização das relações sociais
abstratas34, mais elas se tornam capazes de tornar sensível a crise do indivíduo, da experiência
e da representação realista do mundo, tocando no avesso do romance de formação burguês,
cujo fim sempre foi a integração harmoniosa do jovem de classe média na/da ordem social
ascendente com base em valores aristocráticos e liberais35. Num giro reflexivo adicional sobre
si próprias, essas obras suspendem/conservam o “abstrato” para tornar tangível o poder-saber
capitalista e sua forma prevalecente de individuação através do trabalho, do valor e suas
dissociações, colocando-os radicalmente em questão, incluindo as técnicas realistas da escrita,
o rol de formas herdadas e a função da produção artística. Assim, se na Odisseia e no Robinson
Crusoé temos esboços literários dos primeiros passos da formação do indivíduo moderno
ocidental, em cujos embaraços e regressões poderíamos já discernir traços da alienação
contemporânea e da perspectiva de sua negação histórica, então suas formas celulares
desdobradas no romance pós-realista constituem o desencanto da alienação do romance
contemporâneo, tingindo-o com marcas de uma “epopeia negativa”:
33 Ver as obras de Schwarz, 1990; 2000; 2012; 1999 e 2019; Duarte, 2020b; 2018 e 2011.
34 Adorno, 2002, p. 31; Adorno, 2003a, p. 270-1.
35 Cf. Moretti, [1987] 2020; Idem, 2014.
36 Adorno, 2003b, p. 58 e 62, grifos nossos.
55
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Mas é enfim neste sentido que tais obras expressam ao mesmo tempo uma “subjetividade
liberada” ao justamente insistirem no processo traumático e dissolvente da individuação -
exatamente quando a grande categoria efetiva do mundo liberal deixa de ser o indivíduo ou o
sujeito para tornar-se a Massa. A “debilidade objetiva” dos indivíduos massificados atuais
reflete-se na sua “fragilidade subjetiva”, na “debilidade do eu”, que os predispõem à
capitulação e à adesão ao lixo da indústria cultural.37 E é por isso que Kafka e Beckett lidam
com o refugo social inadaptado, inútil e excluído do trabalho massificado, sempre ameaçados
de prisão e morte. Aqui o negativo emerge muito além da superfície cotidiana. No “Esquema
da cultura de massas” (1942), Adorno aponta que a aparência estética autônoma entrava em
dissolução com a sua assimilação à “vida prática” através de uma “poesia nutrida pelo éthos
do trabalho”, “o domínio do prosaico e até mesmo do banal”38. Assim,
“sob o manto da aventura, eles [poetas como Eyths e Freitag] contrabandeiam
a utilidade, convencendo seus leitores de que não precisam desistir de seus
sonhos caso se tornem engenheiros ou assistentes do comércio – sonhos esses
que, na sociedade de classes, estão em conflito com o mundo das coisas, e que
nas crianças de antigamente levavam ao sonho de ser condutor de locomotiva
ou doceiro, antes mesmo que esses sonhos fossem soterrados por toneladas
de literatura infantil”39.
E algo disso Adorno capta já no modelo do romance realista: “Talvez o fantástico Robinson
Crusoé nunca tenha sido algo mais que um modelo de homo oeconomicus, apartado do sistema
social burguês em virtude de um feliz naufrágio somente para reproduzi-lo ‘por suas próprias
forças’, como se diz nas adaptações juvenis do famoso romance”40. Como veremos, esse
insulamento artificial se desfaz no final da primeira parte e na continuação da obra de Defoe:
não como liberdade, mas como libertação do sujeito autocrático contido na ilha41, dando
legitimação explícita ao absolutismo, ao mercantilismo e ao colonialismo europeus. Nesse
sentido, o que o liberal Defoe poetiza seria ainda uma pequena robinsonada, uma primeira
robinsonada de formação e adaptação de indivíduos ao sistema concorrencial nascente.
Eis o programa que tentamos minimamente perseguir neste ensaio, passando do
exame pontual da Odisseia e do Robinson Crusoé pelas lentes de Adorno e a teoria crítica para
37 Cf. Adorno e Horkheimer, [1956] 1973, os artigos “Indivíduo” e “A massa” (p. 52-3 e 87); Adorno, 1993, §88;
97; 147.
38 Adorno, [1942] 2020, p. 155.
39 Ibidem, p. 156-7.
40 Ibidem, p. 157. Como dirá o texto na sequência: “Tudo, inclusive a guerra, tem lá sua poesia, seja ela a lírica de
Eyths ou a poesia proletária. Com canções e bandeiras, essa poesia conduz mens sana et corpore sano à expansão
colonial e aos sindicatos” (Ibidem.).
41 Tendo seus companheiros animais como “súditos”, Robinson revela as virtualidades despóticas do homem
liberal: “Lá estava minha majestade, Príncipe e Senhor de toda a ilha, com as vidas de todos os súditos à minha
absoluta disposição. Eu podia condená-los à forca ou esquartejá-los, conceder ou retirar sua liberdade, e sem
rebeliões por parte de todos os meus súditos” (Defoe, 2007, parte 1, p. 125; trad. 2005, p. 149, modif.).
56
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
traços essenciais em Machado, Kafka e Beckett. O salto é grande e incerto, para não dizer
duvidoso, resultando num esquema geral extraído da análise cerrada dessa matéria literária
descontínua. Um esquema que precisa ser preenchido sempre por muitas mediações sociais,
sendo as estruturas objetivas do processo um resultado histórico muito complexo e variado,
jamais redutível à imagem idealista do Espírito ou do Homem como “sujeito” oculto da
história. Antes de ir à análise, vejamos ainda algumas palavras esclarecedoras de Adorno sobre
essa mesma relação, que a meu ver sempre ligaram seu pensamento. Assim, temos aqui
testemunhos temporais variados da formação sempre estreita e limitada do indivíduo
nascente e por fim de uma formação deformada e supressiva do “indivíduo livre” na era liberal,
que encerra ao mesmo tempo a pergunta pelo sujeito e a emancipação possível. Pois como
Adorno completa à sua maneira dialética característica:
Olhando de mais perto essa ambiguidade constitutiva das obras estudadas, ela nos
parece determinada por essa síntese mediadora de extremos que capta a desintegração desse
mundo caduco, mas totalmente esclarecido, em que dissonância e abandono são a cifra tanto
do horror da integração capitalista como da promessa de algo outro. Pois certamente não
poderia haver emancipação social sem a superação de formas históricas correlatas “trabalho”,
“indivíduo” e “racionalidade” burguesa da autoconservação. Recaída na barbárie porque
presente e passado arcaico coexistem numa situação objetiva que liquida o indivíduo sem sua
superação efetiva. Porém, contra as leituras idealistas, antropológicas, ontologizantes e
derrotistas hoje em voga, montadas a partir de confusões conceituais e desatinos criados pelas
guerrilhas culturais pós-modernas contra o “sujeito” que apagam as linhas histórico-dialéticas
contidas nos textos da velha teoria crítica (que desde o início se sustenta no potencial crítico
do conceito de uma razão esclarecida43), trata-se de reconhecer que é sempre pela negatividade
Em todo caso, esse ponto decisivo, chave de uma negação determinada, i.e, de
contragolpe e retorno da razão para si, depende da unidade subjetiva forjada na ação da
própria práxis de autoconservação, tornando-se irredutível à mera tecnologia ou à dominação,
ao discurso ideológico e à conservação do existente. Sem essa chave negativa as obras se
fecham numa reedição da fatalidade mítica. Daí por que em Kafka também podemos
reconhecer, segundo Adorno (como em Beckett, diríamos nós, a despeito das interpretações
qualquer outro sistema. Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos sempre lhe censuraram: o
método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo
está decidido de antemão” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 13 e 37), ou seja, “o horror mítico” de “toda manifestação
humana que não se situe no quadro teleológico da autoconservação” (ibid., p. 41) – que é uma espécie de nome
cifrado do “trabalho abstrato” (cf. ibid., p. 189 e 193). Mas simultaneamente: “Toda união mística permanece um
logro, o vestígio impotentemente introvertido da revolução malbaratada. (…) Todo progresso da civilização tem
renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento. (…) a concretização dessa
perspectiva depende do conceito. Pois ele é não somente, enquanto ciência, um instrumento que serve para
distanciar os homens da natureza, mas é também, enquanto tomada de consciência do próprio pensamento que,
sob a forma da ciência, permanece preso à evolução cega da economia, um instrumento que permite medir a
distância perpetuadora da injustiça. Graças a essa consciência da natureza no sujeito, que encerra a verdade
ignorada de toda cultura, o esclarecimento se opõe à dominação em geral, e o apelo a pôr fim ao esclarecimento
também ressoou nos tempos de Vanini, menos por medo da ciência exata do que por ódio ao pensamento
indisciplinado, que escapa à órbita da natureza confessando-se como o próprio temor da natureza diante de si
mesma” (ibid., 50, grifos nossos). Não se trata, assim de uma simples e abstrata “crítica da razão instrumental”,
pois toda razão é também analítica e instrumental, mas sim de uma crítica racional e autorreflexiva sobre a relação
entre meios e fins na sociedade dominada pela lógica do capital.
44 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 97; trad.: 1985, p. 78-79. Aqui vale uma nota sobre o conceito de sujeito. Segundo
o seu conceito dialético, este se torna por definição o que salta da substância: negando-se, se determinando e
emergindo do conteúdo substancial através de um “freio interior”, um “contragolpe” interno e uma “reversão” à
consciência, o que Hegel costuma descrever também como uma “razão astuciosa” que “se subtrai” do agir pois seria
“idêntica” à atividade do “Si imanente do conteúdo”, “dissolvendo-se e se fazendo um momento do todo”. Cf. Hegel,
[1807] 2003, §§ 25, 54, 60 e 87; Hegel, 2018, p.66, 85-9 etc.; Adorno, [1966] 2009; Zizek, [1999] 2016; Duarte,
2020. Na dialética negativa adorniana, esse automovimento do espírito como sujeito-objeto idêntico é parcial e
negativo, contendo traços arcaicos de uma “metafísica do espírito” cujo núcleo místico seria a lógica histórico-
natural da autoconservação absolutizada através da “mediação radical” do trabalho abstrato moderno (Adorno,
2013, p. 98-104). O movimento ascendente da essência ao conceito (Aufhebung como negação da negação) torna-
se por assim dizer suspeito, mas não amputado. Contra o postulado hegeliano especulativo de que “a substância é
essencialmente sujeito”, ou seja, em si e para si uma “substância espiritual” já reconciliada, trata-se de pensar um
materialismo crítico em que não se percam as determinações negativas de cada objeto específico subsumido a esse
suposto automovimento do espírito (resistência dos materiais e contragolpe do objeto ou do entendimento, cf.
Adorno, 1993, §§45, 46, 127, 152), ou seja, a “astúcia do saber” que tanto o reconhece sob a forma de uma totalidade
social cega, como algo socialmente constituído por relações capitalistas, quanto se subtrai da substância, negando
sua identidade com essa falsa totalidade, que costuma se passar pelo Universal do “Espírito do Mundo” ou da
“Ideia”.
58
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
restritivas do próprio autor), aquele “comportamento mais testado e indicado contra o mito:
a astúcia”.45
É preciso compreender então os vários modos de ser dessa astúcia e sua relação com a
mímese. Para o último Adorno, como vimos, a astúcia da unidade racional constituída através
da mediação da mimese do múltiplo, do difuso e do amorfo é uma determinação fundamental
não só da razão mas da arte que objetiva uma subjetividade social e um reino dos fins que
ainda permite a autorreflexão crítica46. A astúcia mimética suprassumida ganha direito de
cidade num conceito crítico e ampliado de razão e subjetividade.47
45 Adorno, 1998, p. 268, trad. modificada. Uma percepção partilhada com Benjamin ([1934] 1987, p.134), que
aponta como Kafka relê a Odisseia em “O silêncio das sereias”: “A razão e a astúcia introduziram estratagemas nos
mitos; por isso os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses
poderes”. Já o grande ensaio adorniano sobre Beckett (sobre Fin de partie), de 1961, traz as marcas do tempo
histórico (o auge da guerra fria) e se mostra carente às vezes dos desenvolvimentos feitos posteriormente na
Dialética negativa (2009 [1966]) e na Teoria estética (2002 [1969/70]).
46 Adorno, 2002, p. 186-7 e 223.
47 Uma das linhas de força que perpassam a Teoria estética de Adorno (2002, p. 6, 167-8, 222-225 etc.). Assim,
numa de suas conclusões: “Em nome da reconciliação, obras de arte autênticas devem apagar cada traço de
lembrança da reconciliação. Contudo, a unidade, da qual mesmo o dissociativo não escapa, nada seria sem a antiga
reconciliação. (…) Elas têm a possibilidade de sobreviver porque o seu esforço para a síntese é também o do
irreconciliável. Sem a síntese, que confronta a realidade como uma obra autônoma, nada existiria fora do encanto
de tal realidade; o princípio de separação do espírito, que espalha o encanto em torno de si, é também o princípio
que o quebra ao determiná-lo.” (Adorno, 2002, p. 234-5). É nesse sentido mais radical que as formas estéticas
tornam-se o “conteúdo sedimentado” do processo social. A razão totalmente formalizada e vazia de critérios
valorativos própria à economia de mercado termina por destroçar a razão e a autorreflexão sobre os fins. Os meios
e a mediação social principal, o trabalho abstrato, convertem-se em fins autonomizados, não obstante estejam em
crise fundamental e percam legitimidade face ao nível de socialização alcançado e da riqueza concreta globalmente
produzida. Destaque-se aqui portanto a base social de todo esse processo: integração – subsunção formal e real do
trabalho ao capital, mundo administrado (Estado keynesiano e de exceção permanente, indústria cultural etc.);
desintegração – cujo fundamento último é a crise do trabalho e da forma-valor, o que se verifica no nível da
particularidade das relações sociais, do espaço social, das lutas sociais, das formas artísticas autênticas, da ciência
crítica, mas também no interior da subjetividade social. E é por isso que se trata de encetar uma crítica imanente
desse sujeito supostamente fundado e fundante – não apenas como um suporte de relações sociais, mas um fundo
objetivo, mudo, opaco, intempestivo cuja resistência dinâmica, de caráter corporal e pulsional, seria capaz de gerar
talvez uma autocrítica reflexiva da vontade e da ação do mero suporte. No material estético, isso frequentemente
realiza-se menos nas intenções dos autores ou de suas personagens do que na dialética da sua forma total, quando
esta expõe as interversões desse intelecto autocrático tal como forjado na modernidade como “única autoridade
irrestrita e vazia”, cindindo-se da natureza e do mundo convertidos em mero “objeto”, para fins de dominação. Na
típica inversão capitalista de sujeito e objeto, esse poder torna-se impotência, o sentido sem-sentido, e muito da
violência e do sofrimento da esfera da produção e da vida cotidiana dissociada irrompem em seu conceito,
desmentindo seu brilho ideológico, bem como sua mera repetição mecânica, automática, fetichista.
48 “Homero limitou, diminuiu o âmbito do assunto, mas deixou espontaneamente crescer e aumentou as cenas
individuais.” (Nietzsche, [1880] 2008, §113.)
59
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
no horizonte dessa Grécia arcaica a ideia do indivíduo – o indivíduo no sentido antigo clássico,
espécie de ser destacado mas ainda “enraizado”49, num mundo político-religioso que
desconhece não apenas o homem isolado e o mercado autonomizado, mas o ser como unidade
autônoma apreensível sob conceitos modernos seculares como espírito, alma e corpo50.
Odisseu é um herói que pensa e deseja, age e comanda, mas tem um desenvolvimento
basicamente de fora para dentro, sempre guiado pela intervenção divina de Atenas, Hermes,
Poseidon, Éolo, Circe, e assim movido por causas sobrenaturais e motivos coletivos ou
impessoais, isto é, não fundados num eu pessoal ou reflexivo.51 Noutros termos, como notam
Adorno e Horkheimer, aqui “ainda é fraca a forma de organização interna da individualidade”
e “o sujeito ainda não está configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos, seu ânimo e
seu coração excitam-se independentemente dele”52. É por isso que se trata de determinar
Odisseu pela negação determinada em relação ao indivíduo moderno – mas recuperando o
momento em que algo se nega e cruza limites em direção ao sujeito reflexivo dito “sem
substância” e à sua abstração cadavérica – o homo oeconomicus.
49 Polanyi, 2021, p. 102 e 116. Contudo, o esquema de Polanyi parte de uma base histórica enxuta tomada de
comunidades tradicionais, em especial de Malinowski ([1922] 1984): uma completa ausência do homo economicus,
mas não de uma economia natural ou doméstica baseada na reciprocidade da troca de dádivas (kula).
50 “Toda vez que o homem faz ou diz algo a mais do que dele se poderia esperar, Homero, para explicar o fato,
atribui-o à intervenção de um deus. E é o verdadeiro e autêntico ato da decisão humana que Homero ignora; daí
porque, mesmo nas cenas em que o homem reflete, a intervenção dos deuses sempre tem uma parte importante. A
crença nesta ação do divino é, portanto, um complemento necessário às representações homéricas do espírito e da
alma humana. Os órgãos espirituais θυµος e νόος [thymós e nóos] não passam de simples órgãos, tanto que neles
não se pode ver a origem de nenhuma emoção. A alma entendida no sentido de πρῶτον κινοῦν, de primeiro
movente, tal como a concebe Aristóteles, ainda é estranha a Homero. As ações do espírito e da alma desenvolvem-
se por obra das forças agentes do exterior, e o homem está sujeito a múltiplas forças que a ele se impõem e
conseguem penetrá-lo.” (Snell, [1955]/2001, p. 20-21).
51 “O que chamamos de pessoa não é central na religião grega. O problema não é o da relação do indivíduo com
um deus que é ele mesmo pessoal, a religião está centrada de outra forma. Mas é verdade também que existe um
indivíduo desde a época arcaica: Aquiles, por exemplo, é um indivíduo. Assim sendo, a noção de indivíduo se
destaca nitidamente das instituições da cidade, do direito, da tragédia. Em toda uma série de planos, percebemos
que as instituições sociais atribuem ao indivíduo um lugar cada vez maior. Ao indivíduo, mas talvez não ao eu ou à
pessoa. É preciso distinguir essas diferentes noções e, com uma análise, mostrar o que é relativo ao indivíduo – que
será expresso pela biografia – e o que é relativo ao que chamo de sujeito – quando o indivíduo enuncia a si mesmo
na primeira pessoa, quando diz ‘eu’ para, em um discurso, comunicar ao outro determinados aspectos de sua
própria individualidade, que podem ser muito diversos. O sujeito não é uma categoria única. (…) . A organização
mental e psíquica do grego é tal que ele desconhece totalmente a introspecção, ele está inteiramente orientado para
o exterior. (…) O indivíduo busca a si mesmo e se encontra no outro, nesses espelhos que são para ele todos aqueles
que constituem a seus olhos seu alter ego: parentes, filhos, amigos. O indivíduo situa também a si mesmo nas
operações que o realizam, que o efetuam ‘em ato’, enérgeia, e que nunca estão em sua consciência. Não existe
introspecção. O sujeito é extrovertido. Ele se olha de fora. Sua consciência de si não é reflexiva, ela não é uma volta
sobre si mesmo, um trabalho sobre si mesmo, a elaboração de um mundo interior, íntimo, complexo e secreto, o
mundo do Eu.” (Vernant, [1996] 2002, p. 69-70 e 84).
52 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 65; trad. 1985, p. 56 e 243.
53 Hegel, 1999, p. 197-8; Lukács, 2009, p. 196.
60
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
54 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 30; trad.: 1985, p. 28. Aqui, trata-se de uma determinação do “trabalho” como
condição social e histórica de classe ou estamento. Marx aponta que “o trabalho parece uma categoria muito
simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga.
Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as
relações que geram essa simples abstração”. Mas com isso, ele não pretende anular essa determinação simples e
comum, mas busca salientar a passagem dessa determinação à sua posição específica moderna, ou seja, a passagem
dos trabalhos concretos produtores de riqueza material ainda ligados a um todo orgânico ao trabalho abstrato
produtor de mercadorias, o “trabalho em geral” ou “trabalho sans phrase”: “Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação,
deixou de estar ligado aos indivíduos em sua particularidade” (Marx, 2011, p. 57-8).
55 “No quadro da técnica e da economia antigas, o trabalho só aparece ainda sob seu aspecto concreto. (…) não se
encontra uma grande função humana, o trabalho, cobrindo todas as profissões (…). A profissão apresenta-se, pois,
como um fator de diferenciação e de separação entre os cidadãos. Se eles se sentem unidos em uma única cidade,
não é em função de seu trabalho profissional, mas apesar dele e fora dele. O elo social se estabelece além da
profissão, no único plano em que os cidadãos podem amar-se reciprocamente, porque todos se comportam de
maneira idêntica e não se sentem diferentes uns dos outros: o das atividades não profissionais especializadas, que
compõem a vida política e religiosa da cidade. Não sendo apreendido em sua unidade abstrata, o trabalho, em sua
forma de profissão, não se manifesta ainda como troca de atividade social, como função social de base.” Vernant,
1973, p. 238-9 (cf. também p.228-9). Para a economia da Grécia antiga, ver Finley, 1982; 1989; 1999; para a Índia
(do rigveda ao bramanismo), ver Dumont (1997 e 1993); para a discussão do campo religioso como esfera separada
posterior, Bourdieu (1974).
56 Sobre esse sistema em sociedades tribais, ver as instituições do “plotatch” (Mauss e Hubert, 2003) e do “kula”
(Malinowski, 1983).
61
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
aristocráticos absolutos.57 Assim também Odisseia já é uma obra que incorpora formalmente
elementos de secularização do mito: a distância no tempo e no espaço, a clareza da linguagem,
a própria mimese irônica em relação ao heroísmo épico da Ilíada58. Há assim um método nas
especulações de Adorno, evitando identificações grosseiras, mas sem abdicar das
aproximações históricas que salientam as diferenças radicais de tempo. Citando o historiador
G. Glotz, ele lembra como “um proprietário como Odisseu ‘dirige a distância um pessoal
numeroso, meticulosamente organizado, composto de servidores e pastores de bois, de
ovelhas e porcos’”59 - sugerindo aí como o herói sempre esteve atado às tarefas da
administração do oikos doméstico e da guerra – o que explica o caráter totalmente secundário,
além de irracional, da ideia de “aventura” (ou de “colonialismo”) que nós poderíamos atribuir
falsamente à epopeia homérica, cujo tema central é um relato dos Nostoi, a viagem de retorno
de Odisseu a Ítaca60, e cuja mola fundamental será enfim o conflito entre esse desejo do heroi
e a vingança implacável de Poseidon, em que se desdobra o conteúdo de uma aprendizagem
do freio e domínio de si e dos companheiros, passando entre os dons ou a proteção divina e a
violência individual, a medida e a desmedida61. Na grande épica, assim, o indivíduo heroico
momentaneamente desgarrado permanece vinculado ao clã e à cidade natal. Ele pode agir e
mostrar sua “presunção criadora e subjugadora da vida”, como dirá o jovem Lukács,
comungando ou colidindo com outros homens, mas apenas como elemento pertencente à
comunidade guerreira e religiosa erigida contra inimigos externos (e suas forças divinas) em
57 Sobre esse ponto, ver o Homo hierarchicus de Louis Dumont (1997, especialmente o Apêndice B -“A renúncia
nas religiões da Índia”). Mesmo no sistema das castas na Índia tradicional, Dumont observa a constituição de
“indivíduos fora do mundo”, a figura do “renunciante” (geralmente de origem brâmane ou nobre-kshatryia) que
procura sua “liberação” através dum severo ascetismo purificador e da “transmigração”, contrapondo-se aos valores
absolutos da religião (dharma, artha e kãma), agindo como gérmen de novas “ideias” e mesmo de “inovações” e
“questionamentos radicais” no seio dessa ordem hierárquica, cuja similitude o autor encontra no estoicismo, no
epicurismo e nos pensadores ocidentais, bem como nos cristãos europeus, em especial na ética puritana, seguindo
passos de Weber (2004). Ver também, Dumont, 1993. Aqui poderíamos agregar outras figuras desse indivíduo em
germe no ocidente medieval como o cavaleiro andante, o folião medieval, o aristocrata cortês (especialmente os
conselheiros reais), em que o espírito ambivalente do duplo, da mimese e da ironia antecipa a experiência
reflexionante moderna (cf. Figueiredo, 1995, p. 99-109). Hegel analisa a figura do conselheiro na corte real na
Fenomenologia (2003, Cap. VI, B). Sem dúvida, são figuras nascentes também na paródia dos romances de
cavalaria como o Dom Quixote, no riso foliônico da obra de Rabelais ou, para darmos um salto para o nosso tempo
e para dentro da obra do mestre da ironia, no conselheiro Ayres de Machado; todos mais ou menos remetem
objetivamente ao mundo helênico e à tradição luciânica.
58 Cf. Vidal-Naquet, 2002, p. 116-20. Sobre a “ordenação lógica da linguagem” e a clareza quase realista da
Odisseia, ver Auerbach, 1996, p. 11-2 etc.
59 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 30; trad. 1985, p. 28. Ver o relato de Eumeu sobre a enorme riqueza acumulada
por seu senhor com criações e plantações, tal como a rotina de pilhagem feita por inimigos, cf. Odisseia, XIV, 79-
108.
60 Cf. Finley (1982); Pucci (1997 e 1987); Malkin (1998); Hartog (2004), Hall (2008).
61 Tal como de passagem aparece no conselho dado por Tirésias para a travessia dos domínios de Hélio na ilha
Trinácia: “Ainda assim podereis regressar, embora muitos males sofrendo, / se refreares o teu espírito e o dos
companheiros” (Odisseia, Canto XI, 104-105). Odisseu é quem afirma, após bater Iro: “Outrora também eu estava
para ser ditoso entre os homens;/ mas cometi más ações, cedendo à violência e à força,/ confiado no meu pai e nos
meus irmãos./ Por isso, que nenhum homem seja alguma vez injusto!/ Que resguarde em silêncio aquilo que os
deuses lhe concederem” (Odisseia, XVIII, 138-143). Ao longo do texto cotejei esta tradução citada, feita por
Frederico Lourenço (2018), com as de Carlos Alberto Nunes (2001) e Christian Werner (2013).
62
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
ações sempre sujeitas ao Destino inexorável, que restabelece a totalidade plena de sentido e
converte a ação individual em “humildade, em contemplação e admiração muda perante o
sentido de clara fulgência que se tornou visível a ele, homem comum da existência cotidiana”.62
Assim sendo, “o herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo”, mas a comunidade como
agente:
“Desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é
um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com razão, pois a perfeição
e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um
todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão
isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de
descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade”.63
Em contraste, no romance moderno – a forma da “epopeia burguesa” segundo Hegel – o
indivíduo isolado destaca-se do todo hostil em busca do sentido perdido. Para o jovem Lukács,
ele torna-se problemático, solitário, polêmico, errante, demoníaco, evadido da substância ética
tradicional, a qual se enrijece como lei em contraposição a ele como uma “segunda natureza”
arbitrária alienada; a prosa moderna então se dispersa pela contradição, em figurações
reflexivas, irônicas, estados de ânimo instáveis, ações prosaicas e dramáticas etc.64 A vida
prosaica contudo é seu projeto e sua conquista individual, mesmo quando frustrada do pleno
sentido da totalidade.
nesse mundo regido por um código guerreiro-aristocrático, i.e., heroico. Entre os feácios, no
palácio de Alcínoo, um jovem aristocrata (Euríalo) provoca Odisseu a uma competição atlética,
confundindo-o com um “comandante de marinheiros que são eles próprios mercadores:/
alguém que só pensa na carga e está sempre muito atento/ aos lucros do regateio. De atleta de
facto não tens nada”72. O que é recebido por ele como um insulto, algo que o encoleriza e o faz
não só aceitar o desafio como vencer o torneio do disco, recebendo o reconhecimento da glória
do rei e dos nobres de seu palácio73. Na vida que gira em torno do oikos, a troca exterior aparece
como algo marginal: todos os bens produzidos o eram em nome da casa, cujo chefe então os
controlava e distribuía. Assim, como ver em Odisseu um primo distante de Robinson Crusoé?
Apesar da essência fundamentalmente diversa, essa aproximação ganha sentido, pelo menos
aos olhos dos autores, noutras passagens. Assim, quando eles estabelecem os componentes do
imperativo da autoconservação em jogo na reprodução social: a relação entre astúcia, logro e
princípio de troca, que nessa altura ainda não gira em torno do comércio, mas dos ritos
sacrificiais e da troca de dádivas, em que a aventura forçada do herói se converte em algo
similar à guerra, pilhagem e pirataria modernas, ou seja, vizinha à exploração colonial:
famílias, gerando expedições armadas de guerra e pilhagem – cuja consequência a longo prazo
foi a organização interna e externa de um sistema de dádivas e contra-dádivas, em que
“ninguém dá alguma coisa (…) sem uma justa compensação, real ou desejada, imediata ou
adiada, para si ou para seus parentes”, bem como de um comércio regular pacífico que excluía
em geral ideias de lucro ou especialização do oikos em exportação mercantil etc., sendo feito
com base em taxas de troca convencionais ou costumeiras75. Esse é o pressuposto dupla ou
triplamente oculto que autoriza os frankfurtianos a realizarem a aproximação propositalmente
exagerada e quase disparatada, ou seja, feita cum grano salis, de Odisseu, Robinson e o homo
oeconomicus: “A Odisseia já é uma robinsonada”. Aqui na verdade procura-se encaixar uma
tese especulativa: a troca burguesa deve ser vista sobretudo pelo seu lado oposto, não como
explicação do passado pelo presente, mas ao contrário, ou seja, como uma espécie de
“secularização do sacrifício” (ou antes, a secularização desse meio-termo híbrido entre o
sacrifício e a troca de dádivas) e do resultado irracional e destrutivo das guerras e pilhagens,
em que as trocas comerciais estavam imersas76; tanto quanto, agora inversamente, “o próprio
sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional, uma cerimônia organizada
pelos homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exatamente pelo sistema
de veneração de que são objetos”77.
Com efeito, toda troca em geral pressupõe certa paz e igualdade entre os trocadores78,
mas historicamente sempre esteve sujeita também à coerção, ao logro e à irrupção da
violência. No relato mentiroso dado ao porqueiro Eumeu em seu retorno, p. ex., o próprio
Odisseu disfarçado de mendigo diz que, numa expedição para o Egito, o trato com os
habitantes desemboca em guerra, matança e pilhagem… mas, ao morar entre os egípcios por
sete anos, acumulara “infinitas riquezas” em presentes, terminando por se associar a um
comerciante fenício, “sabido em toda arte de embustes”, homem “enganador” e “maldoso” que
tencionava vendê-lo como escravo na Líbia, “para obter muito lucro”79. E, de fato, a enorme
riqueza em presentes oferecida pelos feácios a Odisseu é celebrada como uma espécie de
75 Finley, 1982, p. 61-3 e 65. O comércio regular de bens (especialmente metais) ainda era “raro e periférico no
mundo homérico”, mas não as “trocas”, que, pelo contrário, “eram frequentes e indispensáveis” sob a forma da
troca de dádivas, dotes de casamento ou presentes de hospitalidade. Finley, 1989, p. 258. Sobre a lógica da troca
de dávidas, da coerção social de prestação e contraprestação, ver Mauss e Hubert, [1925] 2003b.
76 “Ao princípio [na Antiguidade] o comércio marítimo [estrangeiro] foi em todas as partes, ao mesmo tempo,
pirataria; inicialmente não cabe fazer distinção entre barco de guerra, corsário e barco mercante” (Weber, 1964, p.
179).
77 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 66-67; Trad.: 1985, p 57.
78 Cf. Graeber, 2016.
79 Odisseia, XIV, 240-309 (trad. C. A. Nunes)– esse relato é muito similar ao da trajetória de Robinson Crusoé
(Parte I). Aqui vemos o poder dissolvente do dinheiro e do comércio sobre as comunidades antigas (Marx, 2011, p.
166, 407, 446 etc.). Uma dissolução histórica da comunidade que, no entanto, é insuficiente para se passar
diretamente do acúmulo de “fortuna em dinheiro” ao capital, ou seja, gerar uma “dissolução em capital” e “trabalho
livre” (ibid., p. 416).
66
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
premiação das aventuras e/ou compensação por seus sofrimentos; e a primeira coisa que vem
à mente do herói quando aporta em Ítaca é escondê-la dos inimigos com o auxílio de Atena80.
É nesse sentido que o mundo da troca, do lucro e de certa riqueza concreta acumulável não
estão de todo ausentes: na verdade, ele já cerca o universo imaginário da epopeia, ameaçando
dissolver as hierarquias sagradas e a dinamizar o solo histórico da comunidade natural.
Algo dessa verdade prática é sugerida por Odisseu no relato do episódio com o ciclope
Polifemo: um ser estulto e incrédulo mas por isso mesmo capaz de decifrar as evidências
empíricas ocultas quando suspeita que os estrangeiros que invadem sua caverna (e que sem
sua presença comeram seus queijos e sacrificaram uma parte aos deuses) seriam marinheiros
com algum “interesse” em negócios, ou “piratas” em busca de saques: “É com fito certo, ou
vagueais à deriva pelo mar/ como piratas, que põem suas vidas em risco / e trazem desgraças
para os homens de outras terras?”81. O coração do herói treme diante da figura monstruosa do
gigante, evitando responder à sua pergunta diretamente, apenas afirmando que eles estão ali
de passagem para o retorno à pátria, e que lhe pedem os “dons de hospitalidade” devidos por
costume aos suplicantes em viagem abençoados por Zeus. Ora, eis o que o ciclope filho de
Poseidon não teme e não pratica – sobretudo em favor de quem invade e pilha sua casa (com
fome, eles comem a vontade na caverna). Odisseu pede os presentes a Polifemo não sem antes
notar seu ambiente como estranhamente “ermo” e “anárquico”, descrevendo a ilha dos
ciclopes como um lugar selvagem, alheio às regras da civilização fundada na dominação do
“trabalho” alheio (sem agricultura, apesar da abundância em trigo, cevada e rebanhos; sem
leis de civilidade e hospitalidade; sem assembleia/ágora pública; sem navios nem carpinteiros
capazes de construí-los a fim de suprir suas necessidades e permitir cruzar os mares para
visitar e trocar dádivas com outros homens, como é o costume etc.82). Assim, diante dessa
interação ambígua e permeada por estranhamentos ele se identifica humildemente como
“Ninguém” (Outeis), imitando em espelho, segundo Adorno e Horkheimer, o próprio Polifemo
e seu ambiente vazio e inóspito83. Esboça-se aqui então uma figura ambivalente de Odisseu
como senhor autocrático e indivíduo astucioso, isto é, já parcialmente “livre” e “irreverente”
em relação ao universo mítico substancial. Após vazar o olho do ciclope e fugir da caverna, ele
escapa das pedras lançadas contra a nau negra finalmente se identificando como “saqueador
de cidades” – gritando seu verdadeiro nome: “Ó Ciclope, se algum homem mortal te
perguntar/ quem foi que vergonhosamente te cegou o olho, / diz que foi Odisseu, Saqueador
de Cidades,/ filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio.”84 E não fora já exatamente essa
identificação positiva de guerreiro e saqueador dos mares que Odisseu afirmara ao relatar o
primeiro episódio da viagem a Alcínoo, ao passarem pela terra dos Cícones: “De Ílion fui
levado pelo vento até aos Cícones,/ até Ísmaro: aí saqueei a cidade e chacinei os homens./ Da
cidade levamos as mulheres e muitos tesouros, que dividimos para que por mim ninguém visse
sonegada a parte que lhe cabia”?85 Para além do herói multiversátil, assim, outro dos célebres
epítetos heroicos de Odisseu deve ser aqui destacado: o de “saqueador de cidades” (ou, o
“eversor de cidades” e o “arrasa-urbe”)86 - tal é a “fama sem par” que adere ao pai de Telêmaco,
e que retorna à mesma prática no final.87 A identificação formal como “Ninguém” vale como
uma espécie de “imitação mimética do amorfo” da natureza88. Mas assim, aqui como noutras
partes, ele cairá “no ciclo compulsivo da necessidade natural ao qual tentava escapar pela
assimilação”, sucumbindo à hybris da dominação ao forjar um caráter duro e viril89, tal como
o do ciclope. O medo de perder a identidade destaca-se na fúria vingativa final de recuperação
do próprio nome, quando confirma seu caráter guerreiro substancial atrelado ainda
fortemente ao universo do mito – não por acaso a lei divina aqui será invocada como o castigo
infalível por atos nefastos: “‘Não deverias, ó Ciclope, ter comido de um fraco/ os companheiros
na côncava gruta, abusando da força./ Teus atos ímpios, ó monstro! Haveriam de um dia
voltar-se/ contra ti mesmo, por teres o arrojo de em casa teus hóspedes –/ monstro! – comer.
Zeus e os outros deuses fizeram recair sobre ti a sua vingança.”90
de grande riqueza em presentes e despojos de guerra91, isso nunca será contabilizável como
“lucro”, pois aqui o processo jamais cria qualquer “mania de enriquecimento universal” ou
“laboriosidade universal”, estando muito mais próximo do que Marx chamou “riqueza de
gozo”92; o que corresponde a uma objetividade de um caráter social marcado pelo destino
mítico, sem nenhum “desenvolvimento livre e pleno, nem do indivíduo nem da sociedade”93.
Nesse mundo substancial, a lógica do lucro e do comércio, descrita na epopeia como modo de
vida dos fenícios, é uma ideia presente mas tão rebaixada e ignominiosa quanto a pirataria,
associada à fraude, ao roubo e à violência (mas não à pilhagem resultante da guerra)94. Assim,
como ficamos? A estratégia interpretativa de Adorno e Horkheimer consiste em ler um todo
em devir e transição: da racionalidade mítica do sacrifício, fundado numa lógica de
substituição coisificada (vítimas e oferendas) com as forças divinas95, que se desdobraria
internamente na troca de dádivas e favores, fundada em relações comunitárias em que se
estabelece a dominação tradicional e, mais tarde, através da rupturas e descontinuidades
históricas profundas, como troca burguesa de equivalentes, fundada no trabalho abstrato
moderno. Esse terceiro nível, é claro, jamais aparece configurado nas peripécias de Odisseu,
embora as ideias de domínio pela guerra e a pilhagem tal como o domínio sobre o trabalho
servil subordinado e a “substituibilidade” do senhor nas funções materiais já estejam lá
inteiramente determinadas e postas96. Desse modo, ainda, uma forma de pensamento formal
por equivalentes já desponta, tanto quanto mais ela suscita uma razão desencantadora dos
rituais sacrificiais. Em todas essas formas de troca surge uma aparência de igualdade e/ou de
reciprocidade mais ou menos clara, que coexistem com relações abertamente hierárquicas,
desiguais e instrumentais resultantes de uma coerção sociossimbólica, dando num complexo
intrincado de logro e desmitologização, dominação exercida contra o outro e contra si mesmo,
os quais transparecem de modo claro nas aventuras mais perigosas, como a da terra dos
ciclopes, de Circe e Calipso. “Na inverdade da astúcia” – note-se a marcação textual do traço
de subjetivação através de uma aprendizagem mimética – “a fraude presente no sacrifício
91 Cf. trechos das histórias fictícias do mendigo cretense contadas para Eumeu (Odisseia, XIV, 214-228) e Penélope
(Odisseia, XIX, 284-6). O que nos impede de ver nessas histórias falsas um suposto Odisseu como “superb profit
maker” (Malkin, 1998, p. 88). Sobre o papel estruturante da guerra na Grécia antiga, ver a coletânea de Vernant
(org., 1999), em especial o texto de Geoffrey Kirk sobre “La guerre et le guerrier dans les poèmes homériques”.
92 Ou “riqueza desfrutável”, Marx, 2011, p. 210 e 399-400. E é assim que Eumeu refere-se à riqueza de seu senhor:
Odisseia, XIV, 90-109.
93 Marx, 2011, p. 167 e 399.
94 Finley, 1982; Finley, 1989, p. 258. Sobre a lógica da troca de dávidas, da coerção social de prestação e
contraprestação, ver Mauss e Hubert, [1925] 2003b.
95 O que parece ter lastro na moderna antropologia. O ritual sacrificial visa obter a graça das divindades através
da destruição de uma vítima expiatória (Mauss e Hubert [1899] 2001); um “objeto intermediário” é assim pensado
sob uma lógica de equivalência e contiguidade, sendo o “princípio de substituição” o cerne do “sistema do
sacrifício”, segundo Lévi-Strauss ([1962]/1989, p. 249-254)–, para assim reproduzir a natureza cíclica etc.
96 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 45-6.
69
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
torna-se um elemento do caráter, uma mutilação do herói astuto arrojado pelo mar e cuja
fisionomia está marcada pelos golpes que desferiu contra si mesmo a fim de se conservar”97.
(Daí o seu veneno poético, segundo Finley, dentro da paideia grega, as queixas de Platão
contra a poesia etc.).
Na medida em que não pode escapar ao círculo da troca sacrificial, contudo, o logro
dos deuses é o (ma)logro de si mesmo e dos seres sacrificados sob seu poder. Noutros termos,
“a substituição do sacrifício pela racionalidade autoconservadora” consiste em internalizar
certa lógica da troca – da identidade formal à substituibilidade sacrificial do próprio eu: “a
superação do sacrifício volta imediatamente a ser um ritual sacrificial duro, petrificado, que o
homem se celebra para si mesmo opondo sua consciência ao contexto da natureza”98. A
substituição sacrificial aqui é desdobrada conforme duas teorias clássicas da antropologia:
primeiramente em “dádiva” e “homenagem” aos deuses, seguidas pelo ato contínuo irracional
daquilo que os autores chamarão a “introversão do sacrifício” (seguindo a “teoria da
abnegação” e da “renúncia” de si de Tylor99) – com o que então o objeto expiado se confunde
com o próprio sujeito e seus subordinados100.
Ao mesmo tempo, é essa afirmação de identidade como guerreiro solerte que muito já
o separa do mito e o assemelha, enquanto ser civilizado, ao brutal ciclope, ganhando a
identidade vazia de “Ninguém”, numa espécie de “imitação mimética do amorfo”. Mas assim
ele cairá “no ciclo compulsivo da necessidade natural ao qual tentava escapar pela
assimilação”, sucumbindo à hybris da dominação ao forjar um caráter duro e viril105. Esse
esvaziamento limitado do eu de sua substância mítica e natural é crucial no entanto para a
formação de uma nova identidade reflexiva em gestação, capaz de negar sua má
particularidade nesse contragolpe dentro de si mesma. Aqui não tocamos o elo que o liga às
figuras sem identidade fixa do romance moderno, de Ulysses a O Inominável? De todo modo,
é essa alienação impulsionada pela aventura – exteriorização de si e retorno a si para se
conservar – que engendra a individualização heroica e sua eloquência compulsiva106,
permitindo aos autores afirmarem de modo dialético que tais percalços constituem uma
primeira robinsonada. Lançado aos mares desconhecidos, Odisseu lida com forças superiores
às suas, com quem se trata de pactuar, enganar e derrubar mesmo sendo o mais fraco. Assim,
numa das passagens centrais dessa dialética formativa, dizem os autores:
“Mas as aventuras contemplam cada lugar com seu nome, e é a partir delas
que se pode ter uma visão de conjunto e racional do espaço. O náufrago
trêmulo antecipa o trabalho da bússola. Sua impotência, para a qual nenhum
lugar do mar permanece desconhecido, visa ao mesmo tempo a destituição
das potências. Mas a simples inverdade dos mitos — a saber, que o mar e a
terra na verdade não são povoados de demônios, efeitos do embuste mágico
e da difusão da religião popular tradicional — toma-se aos olhos do
emancipado um ‘erro’ ou ‘desvio’ comparado à univocidade do fim que visa
em seu esforço de autoconservação: o retomo à pátria e aos bens sólidos. As
aventuras de que Odisseu sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que
desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução,
experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido
por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente
os seus papéis. ‘Mas onde há perigo, cresce também o que salva’ [Hölderlin]:
o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira
sua substância da experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que
dissolve, e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais
audaciosamente à ameaça da morte, na qual se toma duro e forte para a vida.
Eis aí o segredo do processo entre a epopeia e o mito: o eu não constitui o
oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em sua rigidez através
dessa oposição, unidade que é tão-somente na multiplicidade de tudo aquilo
que é negado por essa unidade”107.
**
d) ao mesmo tempo, essa dominação mediada pela astúcia significa multiplicação dos saberes
e das forças produtivas humanas como possibilidade de “abolição do sacrifício”: “sua renúncia
senhorial é, enquanto luta com o mito, representativa de uma sociedade que não precisa mais
da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si, não para fazer violência a si mesma
e aos outros, mas para a reconciliação”119.
“Do ponto de vista das sociedades de troca desenvolvidas e dos indivíduos que
as compõem, as aventuras de Odisseu nada mais são do que a descrição dos
riscos que constituem o caminho para o sucesso. Odisseu vive segundo o
princípio primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa. A escolha
era entre lograr ou arruinar-se. O logro era a marca da ratio, traindo sua
particularidade. Por isso, a socialização universal, esboçada na história de
Odisseu, o navegante do mundo, e na de Robinson, o fabricante solitário, já
implica desde a origem a solidão absoluta, que se torna manifesta ao fim da
era burguesa. Socialização radical significa alienação radical. Odisseu e
Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele a percorre, este a produz.
Ambos só a realizam em total separação de todos os demais homens. Estes só
vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como
pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas.”120
Há diferença entre percorrer e realizar: apenas Robinson produz a totalidade do novo
mundo enfeitiçado. Algo desse caráter de totalidade alienada subjaz no próprio título da obra:
A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé, marujo de York
(1719). Temos assim o primeiro Robinson, o jovem que abandona a casa paterna e as
perspectivas seguras da classe média em troca da adventure lucrativa casual pelos mares121,
mas onde aprende a obedecer ordens nos navios e a trabalhar metodicamente, tal como se
exercitará em sua ilha; mas também – e aqui começa o segundo Robinson, bem menos
comentado e glamouroso – o que transforma esta presumida paixão de correr mundo em
compulsão pelo lucro através do trabalho próprio e da espoliação do trabalho de outros, que
negocia e comanda trabalho escravo e servil, passando pelo tráfico negreiro, uma plantation
no Brasil, o domínio de sua ilha como propriedade colonial particular, e na segunda parte (The
Further Adventures of Robinson Crusoe), por uma série de novas aventuras entre navios
mercantes, traficantes e piratas, esquadrinhando os mares da África e Ásia. Uma obra que
revela já da maneira mais complexa (mas ainda hoje subestimada) os primórdios da
subjetivação autocrática do indivíduo isolado como um sujeito burguês duplamente
determinado pelo novo espírito do protestantismo e pelas relações mercantilizadas e
colonialistas. Isso que se reverterá na forma do relato realista, que agora cabe analisar com
algum nível de detalhe.
Esta forma é então determinada pela experiência desse duplo Robinson. Desdobrando-
se através dos moldes românticos e realistas, esse modelo teve certamente suas várias
refrações e correções de rota, em especial no romance de formação e sua representação do
indivíduo maduro e experiente, de personalidade talentosa e bem integrada como em Goethe,
às vezes napoleônica e arrivista como em Stendhal e Balzac – apenas desajustada na medida
para afirmar-se e conquistar um lugar ao sol da competição selvagem, a qual Robinson, Moll
Flanders e o Coronel Jack, guiados pela luz da Providência foram os primeiros a vencer, não
por acaso no solo do novo mundo americano, sem jamais conseguir formar uma personalidade
bem integrada122. A ilusão de poder e autonomia desse sujeito é aqui sempre abalada durante
sua provação espiritual. E sempre também pode cair na condição de proletário “livre”: “em
sentido duplo, livre, em primeiro lugar, das relações de clientela ou de dependência e das
relações de serviço e, em segundo lugar, livre de toda propriedade; destinada à venda de sua
capacidade de trabalho ou à mendicância, vagabundagem e roubo como única fonte de renda”,
como analisa Marx123. Esse movimento de queda e dissolução do indivíduo numa das classes
e subclasses fundamentais tornou-se de certa maneira a especialidade da prosa naturalista e
pós-realista, mas já está bem estabelecido nos romances de Defoe. Aqui emerge a verdade
verdadeiramente seus impulsos irracionais nem repudiar o predador que outrora costumava ser. Por ser não apenas
o início de uma nova era, mas também um início em que se patenteia uma contradição estrutural que jamais será
superada, a história disforme de Defoe continua sendo o grande clássico da literatura burguesa” (Ibidem, p. 43).
122 O final feliz de Moll Flanders como proprietária na Virgínia é precedido pela pobreza e o abandono, a absoluta
solidão e o “terror” de ser “jogada pela porta no vasto mundo”, uma série de procuras de casamento vantajoso,
fraudes, imposturas, atos criminosos e prisão, enfim, sua identificação à forma pura do dinheiro: “quando uma
mulher está assim abandonada e sem conselho, é semelhante a um saco de dinheiro ou a uma joia abandonada no
caminho, que se tornam presas do primeiro que passa” (Defoe, [1722] 1981, p. 25, 95, 140, 344-5).
123 Marx, 2011, p. 417.
76
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
É o que põe em dúvida se lidamos com homens ou com puros suportes do dinheiro.
Nos primórdios do romance europeu, o capital já aparece como um modo de produção e de
representação do dinheiro autônomo e suas viravoltas imprevisíveis: uma espécie de religião
fetichista difusa dotada de todos os seus poderes de inversão entre sujeito e objeto. De fato, é
isso que se revela na longa experiência de Robinson Crusoé: o abandono do lar e da pátria aos
dezenove anos, segundo o despertar da “invencível paixão de correr mundo”, converte-o
primeiramente numa espécie de aprendiz de marinheiro semi-proletarizado, em seguida num
pária que se perde no Atlântico em meio ao tráfico negreiro, sofrendo tempestades e
naufrágios sucessivos até tornar-se ele mesmo um escravo de um corsário mouro no
Marrocos. Escravizado, ele dará o troco ao fugir desse corsário, vendendo o bote roubado e o
próprio companheiro fiel, o negro Xury que o havia ajudado a escapar do cativeiro, a um
“bondoso” capitão dum navio português, que o salva em alto-mar. Ao se livrar do cativeiro,
assim, sua posição se inverte e ele já se torna novamente o branco mercador e senhor de
escravos. A ética protestante e a paixão pela adventure são, assim, a fachada moral do
turbilhão capitalista desatado no século XVI e XVII. É o que se mostra melhor ainda então em
sua passagem pela colônia brasileira, ocasião em que logo se livra de toda moral de trabalho
regular ao atingir um primeiro degrau da aristocracia local através da exploração duma
plantation escravista de cana e tabaco. Aqui ele fica dois anos para se arremessar novamente
ao mar – em busca do comércio de escravos (aliás, clandestino) na costa da Guiné – até o
naufrágio que o leva até sua famosa ilha caribenha125. Não há qualquer “aventura”
individualista sem luta, troca vantajosa, logro, saque, contabilidade, objetificação e exploração
de trabalho alheio e uma ponta de vingança – recobertos pelo estilo religioso que se humilha
e se arrepende, invocando a Divina Providência a três por dois. Instalado em sua “Ilha do
124 Cf. a crítica de linha materialista: Watt [1957] 2010, p. 120-3; Hymer [1971] 1981; Eagleton, 2005; Moretti,
2014.
125 Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 31-36; Trad. 2005, p. 40-8.
77
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Desespero”, o trabalho torna-se metódico e ininterrupto: o estilo da prosa torna-se aqui mais
sóbrio, neutro e contínuo, quase plano e descritivo (sobretudo nos capítulos sob forma de
diário)126, em contraste com o início meio errático e descontínuo em que a unidade e a
coerência de propósitos do narrador-protagonista se desfazem praticamente a cada parágrafo
sob o ritmo de seus caprichos e fantasias ou eventos naturais desastrosos. Isolado na ilha, o
homo oeconomicus tem de provar que, além de desejar, também sabe trabalhar concretamente
para si e que merece a propriedade e a salvação por seu próprio esforço, poupança e
previdência – realizando com perfeição o mito do individualismo econômico –, embora essa
independência e conservação na ilha por décadas, aliás implausível, só foi possível, como ele
mesmo infere, por se apoiar no trabalho social acumulado nos instrumentos retirados do
porão do navio naufragado (machados, tesouras, armas de fogo etc.)127. Aqui chega a desprezar
o ouro e o dinheiro, afinal sem serventia numa ilha desabitada – embora guarde-os muito bem
para futuras aventuras. No limite dessa consciência social, a economia e o trabalho excedente
saem negados por uma ética do ócio com timbres cristãos e patriarcais do antigo regime:
“Eu não tinha nem a cobiça da carne, nem a cobiça dos olhos, ou a soberba
da vida [1 João, 2: 16]. Não tinha nada a cobiçar. Pois eu tinha tudo o que era
agora capaz de gozar: eu era o Senhor de todo o lugar; ou se quisesse, poderia
me arvorar em Rei ou Imperador sobre todo o território que possuía. Não
havia rivais ou concorrentes, ninguém para disputar a soberania ou o
comando comigo”.
Assim, chega a considerar as determinações sociais de sua condição: “poderia juntar
grandes provisões de cereais para encher navios, mas não tinha utilidade para isso; então
semeava só necessário para meu sustento”128. Uma série de reflexões que esse primeiro
Robinson, de espírito pragmático e utilitarista, arremata da seguinte maneira:
“(…) só era valioso para mim aquilo que eu poderia usar. Eu possuía o
suficiente para comer e satisfazer minhas necessidades. De que me serviria
mais do que isso? (…) Em uma palavra, a natureza e a experiência das coisas
convenceram-me de que todas as coisas boas deste mundo deixam de ser boas
para nós quando não nos são mais úteis; e que tudo o que podemos acumular
e legar aos outros, só desfrutamos na medida em que podemos usar, e não
mais do que isso”.129
Assim, quanto à forma, o estilo sóbrio e incolor tende a imitar esse espírito puritano
e austero do trabalho frente às necessidades artificialmente reduzidas na ilha, que ganha certo
aspecto diferente da pura lógica do trabalho capitalista. Mas aqui também seu espírito está
tomado pela lógica da contabilidade e da repressão sexual130. Já o estilo mais colorido da
aventura e da fantasia, cheio de encontros, desencontros e peripécias, imprime certo ritmo
compulsivo e descontínuo à narrativa, moldado pela busca do enriquecimento ilimitado (e no
limite ilícito) disfarçado pela ideia fixa inocente de um “desejo insaciável de correr mundo” ou
“mania ingênita de ver terras”131. Mas “Robinson Crusoé não é, como Autólico, um comerciante
que tem raízes numa localidade conhecida; também não é, como Ulisses, um viajante forçado
que tenta voltar para a família e a pátria: o lucro é toda a sua vocação e o mundo inteiro, seu
território”132. No fundo, uma ideologia esquisita, que contém uma espécie de “double-think”,
como diz Eagleton, que gira em torno do claro conflito entre “práticas amorais de uma cultura
em que o que realmente importa é o dinheiro e o interesse privado e os ideais morais
altissonantes reivindicados”. Como no mundo machadiano posterior, poderíamos dizer que
“estas narrativas sem remorsos e sem enfeites não tanto retiram o véu do decoro ideológico”
do que “simplesmente olham através dele”. Elas tornam-se “explosivas” pela exibição de
assuntos coloniais por meio de um cru realismo não sentimental, num tom “colonialista de
cabeça fria”: “não são polêmicas, mas simplesmente cândidas”133.
130 “Em Crusoé, a contabilidade supera outros pensamentos e emoções (…) Não surpreende, pois, que o amor
tenha um papel pequeno na vida de Crusoé (…) Quando retorna à civilização, o sexo continua subordinado aos
negócios. (…) Outros relacionamentos pessoais de Crusoé revelam a mesma depreciação de fatores não econômicos.
Ele os trata em termos de mercadoria. O caso mais óbvio é o de Xury (...)” (Watt, 2010, p. 67 e 72).
131 Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 155; trad. 2005, p. 442.
132 Watt, 2010, p. 71.
133 Eagleton, 2005, p. 27-28.
134 Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 169; trad. 2005, p. 185-6 (modif.).
135 Ibidem, p. 176; trad., p. 189-90 (modif.).
79
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
ex-prisioneiro espanhol) e em breve mais uma dezena que, em sua imaginação desvairada, ele
passa a considerar, tal como anteriormente seus animais, como seus “súditos”:
mas o velho “demônio das errâncias” (“wandering spirit”) o empurrará rumo à Ásia. Assim,
esse sujeito autocrático descumpre a “promessa” de trazer seus colonos de volta para a
Europa140. Um trajeto coerente afinal com seus caprichos e sua incoerência fundamental, tal
como anunciada em sua experiência brasileira: aqui, sua ética puritana não era páreo para o
seu contraditório “ateísmo prático”141 e esse pendor irracional de viajar e traficar. Em toda
linha, assim, uma convergência de razão empresarial e desejo recalcado por poder e dinheiro
no interior de um Eu possuído por tal wandering spirit – mas como suportes do trabalho
social abstrato em formação e suas tendências assassinas. É assim que esse andarilho rico e
ocioso, tão errante como “um navio sem um piloto”, inútil e irresponsável, mas educado na
dura escola do trabalho e acostumado à atividade, confessa às vezes sua profunda aversão à
preguiça, aos ociosos e aos inúteis142.
Depois da fuga da ilha e o primeiro retorno milagroso à Inglaterra, ele mesmo descobre
que ficou rico à custa do trabalho alheio de seus sócios, criados e escravos espalhados por
Lisboa e Bahia. Aqui, como no final do segundo tomo, o risco e o autossacrifício justificam o
milionário self made man asselvajado pelo sistema, que finaliza a vida na espera da “benção
de terminar seus dias em paz”143. Ele mesmo percebeu contudo que não pode ser idêntico a si,
mas é sempre um outro, passa em um outro, que retorna à árida identidade: um rapaz que se
torna escravo, um escravo que se torna proprietário de escravos, depois homem isolado e
finalmente dono de uma ilha em que dispõe de trabalhadores servilizados, que ele abandona
talvez porque representam o contraponto de classe ao ímpeto nômade da abstração monetária
por ele encarnado144. Ele mesmo se projeta e renasce acrescido como trabalho e mais tarde
como dinheiro investido pelo mundo, configurando o que viria a ser o puro sujeito automático
no ciclo infinito da valorização do valor (D-M-D’ ou D-D’). Por isso sua narrativa não tem
fim145. Cada desafio real (tempestades e mar revolto, feras e tribos canibais etc.) equivale
simbolicamente a uma morte e uma ressurreição simbólica, que ele atribui à Providência, mas
cuja substância oculta é o valor real e simbólico auferido por quem se sacrificou e se lançou
cegamente na natureza selvagem do processo de acumulação colonial.
Num conto como Só!” (1885), no entanto, o contraste com Robinson Crusoé se torna
explícito. Bonifácio e Tobias, dois parentes da elite proprietária fluminense se encontram na
situação “um pouco estranha mas agradável” do total isolamento, na “espécie de Robinson”.146
Tobias é descrito como um “filósofo” com fama de “maluco”, pois “costuma ele desaparecer da
cidade durante um ou dous meses; metia-se em casa, com o único preto que possuía, e a quem
dava ordem de lhe não dizer nada.”147 Querendo imitar essa robinsonada, Bonifácio pergunta-
lhe pelas razões desse costume que o parente diz ser “o maior regalo do mundo”. Respondendo
ao parente, o filósofo Tobias aponta os motivos de uma alienação radical, que conjuga razão e
loucura:
Um tipo de dedutivismo demencial que dá, aqui em chave satírica, a magnitude dos
horrores e perversões que o narrador machadiano da segunda fase será capaz de fazer. Uma
dessas ideias de Tobias era simples e brutal, uma “máxima social dos cães” feita para justificar
a perseguição e a violência de cães furiosos da rua: “-Quem persegue ou morde, tem sempre
razão, - ou, em relação à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do
perseguido. Já reparou? Repare e verá”149. Quanto a Bonifácio, seu exílio do mundo burguês
durará só dois dias pois sua “alma interior” escorrega e naufraga pelas lembranças da “vida
exterior, figuras e incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas,
uma conservação, um enredo, um boato”150 – desfilando as aparências de um mundo alienado
da cultura, feito de máscaras de bacharel, jantares finos, whist e vida granfa em Petrópolis,
bilhetes esquecidos e amores falhados, tempestades de cabelo e parvoíces tais que só a cifrada
linguagem da dilaceração machadiana é capaz de condensar satiricamente, mesmo num conto
menor. Surge o quadro de um espírito volúvel, enfim, que salta de galho em galho, voraz e
impaciente, mas termina esmagado nessa impossível solidão reflexiva, tal qual aliás o solitário
Jacobina de O espelho, reduzido à posição do escravo pelas “paredes de um cárcere
misterioso”151. Bem mais aliás do que a vida do poor Robinson original (ou a do observador do
“Homem das Multidões”, de Poe, também invocado como comparação no texto152), sua vida
aliena-se no automatismo dos negócios (de outros) e no ritual do consumo de vaidades. Seu
“eu” é um tal vazio que, Tobias, ao final, lhe dá a seguinte recomendação, lembrando a
linguagem dos marinheiros: “você esqueceu-se de levar o principal da matalotagem, que são
justamente as ideias...”153. Na realidade, Tobias e Bonifácio têm ideias abstratas e uma vida
separada em última instância suportada pela escravidão, que são da mesma família
tresloucada das grandes personagens machadians: a volubilidade e a ideia fixa de Brás Cubas,
as parábolas alucinadas e criminosas de Quincas Borba e as alucinações imperiais de Rubião,
tanto quanto o delírio de ciúmes de Bento Santiago e a imaginação cínica e perversa do
conselheiro Ayres.
“Nada em cima de invisível”157 será também, com efeito máximo, uma das ideias
principais do narrador de Esaú e Jacob, o conselheiro Ayres, cuja estratégia cínica leva esse
esquema ao zênite da ironia (em sentido técnico: a ironia do primeiro romantismo alemão), a
saber: narrar a matéria do romance de maneira onisciente, supostamente objetiva e impessoal
(em terceira pessoa), combinando intrusões diretas em primeira pessoa e o registro pessoal do
conselheiro como personagem refletora, mas fingindo imparcialidade, afetada por um timbre
objetivista ao mesmo tempo naturalista, metafísico e religioso, mal camuflando tais
imposturas, distorções e mentiras como certezas factuais e verdades “puríssimas”, que
praticamente inventam o grosso de uma trama ao mesmo tempo real e fantástica, baseando-
158 Ver no romance, em especial, a “Advertência” e o capítulo XLVI (“Entre um ato e outro”), ibidem, p. 873
e 931.
159 Ibidem, p. 915, Cap. XXXII, “O aposentado”,
160 Schwarz, 1990, p. 167-8, 174-5 e 201.
161 Machado, 1959, vol. I, p. 980 (Cap. LXXXII, “Em S. Clemente”).
85
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
ignominioso, em que se infiltra ainda a franca atração sexual de Ayres pela bela moça
(traduzida por um discurso eufêmico como “amor” e “flor descorada e tardia de paternidade,
ou, mais propriamente, de saudade dela...”168), algo que ela parece claramente perceber em ato
nesta conversa e, mais adiante, nas sórdidas sugestões do conselheiro no episódio do desenho
dos gêmeos, resta-lhe a estratégia da recusa, da fuga e do silêncio169.
como tal e, mimeticamente entrelaçado aos seus materiais, se faz opaco ou resistente à palavra
definitiva: móvel e imóvel a um só tempo, ou todo estático em seu dinamismo171, tendente ao
minimalismo de forma e conteúdo da última fase beckettiana. É o que verterá tal mobilidade
emperrada, segundo as reflexões extraordinárias de Adorno, numa dialética de integração e
desintegração. Em vez do triunfo, a liquidação, ou – o que é diferente – a dissolução do
indivíduo na massa proletarizada e marginalizada, sujeitada e tornada cada vez mais
supérflua, e só assim móvel, não-idêntica e potencialmente antagônica ao sistema reticular
que tudo captura.
171 Algumas páginas da Teoria estética de Adorno aqui são elucidativas. “O princípio dinâmico, por meio do qual
a arte foi longa e insistentemente justificada na esperança de homeostasia entre o universal e o particular, é
rejeitado. (…) O caráter processual da arte foi ultrapassado [ereilt] pela crítica da aparência, e não apenas como a
crítica da universalidade estética, mas como a crítica do progresso em meio ao que é realmente o sempre-igual. O
processo tem sido desmascarado como repetição e, portanto, tornou-se uma vergonha para a arte.” (Adorno, 2002,
p. 224-5).
172 Adorno, 1998, p. 252.
88
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
obras, por sua vez, uma verdadeira totalidade antagonística. Pois esses “refugos” inúteis do
sistema tornam-se imagens da massa espoliada, cuspida e tornada supérflua para a máquina
capitalista. Esta última continua a girar e demandar simplesmente todos como sujeitos-
mercadoria – mas aqui mostra-se o seu avesso obsceno, a exploração e a dominação integral,
esbarrando-se em seus resultados mais negativos e utópicos. Vale dizer, a liberdade de fins
externos e alienados, quase que trazida a seu conceito:
173 Schwarz, 1978, p. 24, num ensaio excelente sobre o conto de Kafka, “Tribulação de um pai de família”.
174 Marx, 1988, I, 1, p. 125-126. Na sociedade atual “a exigência de laboriosidade, e, especialmente também de
poupança, de abstinência, é requerida não dos capitalistas, mas dos trabalhadores, e precisamente pelos
capitalistas” (Marx, 2011, p. 223.)
175 Rosenfeld, 1973, p. 236: “As orações se iniciam com afirmações esperançosas que, em seguida, são postas em
dúvida, desdobradas nas suas possibilidades, cada qual se ramificando em novas possibilidades. Pouco a pouco a
afirmação inicial é limitada por uma inundação de subjuntivos e condicionais, surgem os ‘embora‘, ‘de resto‘,
‘talvez‘, ‘é verdade que‘, ‘de um lado‘ e ‘de outro lado‘, até ao fim não sobrar nada e tudo ser anulado”.
89
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
enredo nos fragmentos que expõem sua estranha servidão a Brunelda, Delamarche e Robinson
e a fantasmagoria do Teatro natural de Oklahama.
179 Adorno, 1998, p. 248-251 e 259. No “Fragmento de uma teoria do criminoso”, Adorno e Horkheimer ressaltam
os riscos da dissolução de limites entre o mesmo e o outro, sujeito e objeto, no processo mimético de regressão
fascista então em curso: “A absoluta solidão, o retorno forçado ao próprio eu, cujo ser se reduz à elaboração de um
material no ritmo monótono do trabalho, delineiam como um espectro horrível a existência do homem no mundo
moderno. O isolamento radical e a redução radical ao mesmo nada sem esperança são idênticos. O homem na
penitenciária é a imagem virtual do burguês em que ele deve se transformar na realidade. (…) Quando os limites
entre o banditismo respeitável e o banditismo ilegal são objetivamente fluidos, como acontece hoje em dia, os tipos
psicológicos também se confundem. (…) O fascismo absorve os dois. A concentração do comando sobre a produção
inteira traz de volta a sociedade ao nível da dominação direta. Com o desaparecimento da necessidade de fazer um
rodeio pelo mercado no interior das nações, desaparecem também as mediações espirituais, entre elas o direito. O
pensamento que se desenvolvera na transação, como resultado do egoísmo forçado a negociar, se reduz ao
planejamento da apropriação violenta” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 211-212). Sem dúvida, este é o processo
moderno mais fundo representado nessa literatura, de Baudelaire a Machado, de Kafka a Beckett, assumindo
criticamente essa “mimese da reificação” como sua “methexis nas trevas” (Adorno, 2002, p. 135).
180 Adorno, 1998, p. 242-243.
181 Cf. após as intervenções antimetafísicas e avessas ao puro formalismo, por parte de Adorno (1984, p.200-238)
e Anders (2011, p. 209-224), ver a busca do teor histórico e político específico condensado pela forma beckettiana
em Eagleton (2006), Morin (2017 ), Zizek (2019) e Champanhet (2020).
91
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
182 Como dirá Bloch, n’O Princípio Esperança: “sem a força de um eu ou nós por detrás, até mesmo o ato de
esperar se torna insípido. Na esperança consciente-ciente não há debilidade, mas uma vontade que determina:
assim deve ser, isso tem que devir. (…) A autoconsciência estoica e, bem mais próximo de nós, o idealismo alemão
indicam o ponto singular – ainda que totalmente prejudicado pela abstração – a partir do qual o sujeito se reserva
a liberdade de um contragolpe contraditório no existente ruim [die Freiheit eines widersprechenden Gegenzugs
gegen das schlecht Vorhandene]. (...) O fator subjetivo – adversário de toda abstração e da espontaneidade
ilimitada de consciência que lhe corresponde - buscou de forma igualmente real a mediação do fator objetivo da
tendência social, do possível-real. (…). É impossível, portanto, prescindir do fator subjetivo, e é igualmente
impossível escamotear a dimensão profunda desse fator, exatamente a do contragolpe na má existência, como
mobilização das contradições que ocorrem na própria má existência visando ao seu total solapamento, à sua
derrocada. A dimensão profunda do fator subjetivo, porém, está no seu contragolpe justamente porque este não é
apenas negativo, mas igualmente contém em si a urgência [das Andrängen = o impulso, a pressão, a afluência] de
um êxito antecipável e representa essa urgência na função utópica”. Bloch, [1959] 1976, Bd. I, p. 167-9; trad.,
2005, vol. 1, p. 146-8 (trad. modif.).
183 Beckett, “Entrevista com Israel Schenker em 05.05.1956”, traduzido por Fábio de Souza Andrade, 2001,
p. 186.
184 Cf. Brod, 1959; Birkenhauer, 1971; Deleuze e Guattari, 1975; Webb, 2012; Andrade, 2001; Champanhet,
2020.
185 Beckett, [1953]/2009a, p. 42 e 55 etc.
92
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
exteriorizar-se e relatar histórias de outros seres oprimidos, independente dos juízos morais
individualistas.
**
Temas que então se explicitam principalmente a partir da recepção fria de Karl pelo tio
Jakob, um empresário milionário dos transportes de carga, e do seu encontro com dois
operários desempregados na estrada para Ramsés, Delamarche e Robinson (aqui a referência
explícita ao romance de Defoe), além de uma grande massa de trabalhadores espoliados que
tudo suportam e carregam para cima e para baixo como animais de carga (desde o Foguista
até a secretária Therese, a cozinheira-mor, os ascensoristas e porteiros no “Hotel occidental”,
até os operários amontoados no subúrbio de Nova York que suportam nos ombros candidatos
políticos e, por fim, a cantora Brunelda, que também se faz carregar pelos jovens protagonistas
etc.)188. Assim que Karl é abandonado pelo tio capitalista, que está disponível apenas para
“grandes cartéis industriais e para os cartéis entre si”189, inicia-se sua fuga pelo país adentro:
a fuga da casa de campo nos arredores de Nova York, após seu desentendimento com Klara e
uma certa elite emigrada, imprime o ritmo da desaparição ao relato. A cidade cubista de
arquitetura monstruosa e homens fungíveis predomina sobre o sentido da busca de Karl
(tornar-se engenheiro e recomeçar a vida na América), substituindo a mera subjetividade por
uma objetividade social fantasmagórica, à qual o herói tem de se adaptar através do trabalho
(Hotel occidental, depois na casa de Brunelda). No otimismo inabalável de Karl, sempre
fascinado pelo espetáculo industrial americano, tal como contado por um narrador que
praticamente adere à sua visão através do discurso indireto livre, temos um protagonista
sempre em apuros, perdendo-se num mundo estranho que lhe promete a vida pelo esforço do
trabalho, da renúncia e do sacrifício. Sua “linha de fuga” traçada a esmo e seu “devir-animal”
sob o mando dos mais fortes nada têm de liberdade, mas equivale a um desaparecimento no
puro espaço abstrato do capital190. Formado pela descontinuidade temporal e espacial típica
do romance de aventuras, o texto se fragmenta e dá forma perfeita à representação dessa vida
desperdiçada e espalhada, criando novas tensões sem resolver as antigas, terminando em
esboços e capítulos não terminados. Em Delamarche, Karl enxerga “apenas um vagabundo
arruinado pelo azar mas com quem era possível conviver”191. O trabalho é o que daria o ritmo
da continuidade e do decoro à sua vida burguesa; trabalhando como ascensorista no Hotel, ele
jamais corre a cidade em suas “folgas noturnas”, pois se dedica ao estudo de “correspondência
comercial”192. O que não impede de ser confundido, pelo camareiro-mor e o porteiro-mor, com
um vagabundo tal qual Robinson, e que seja demitido da maneira mais agressiva e estúpida.
Nos diálogos de Karl e Robinson a palavra-chave sagrada e maldita do trabalho faz oscilar a
mente das duas personagens entre a resistência indignada e a submissão ao existente. Assim,
num trecho exemplar:
188 Kafka dará especial ênfase aos equívocos da consciência reificada através da exposição irônica de situações as
mais insólitas de maneira a “propagar o falso” e o “monstruoso” da maneira mais “natural” e “literal”, levando o
leitor a desconfiar de toda transparência do relato e ater-se aos “detalhes incomensuráveis e
intransparentes”(Adorno, 1998, p. 242-243). Aqui, o gesto se contrapõe à palavra, a ação à sua enunciação. Assim,
temos no primeiro plano da enunciação a a falta de cooperação e organização dos trabalhadores proletarizados,
tutelados pelos interesses empresariais e estatais, a esterilidade do mero discurso partidário e sindical, as
autoilusões de consciência e liberdade através do trabalho de Karl Rossmann etc. No segundo plano, dos gestos e
ações, temos a solidariedade de Karl com “as vítimas sofredoras dessa sociedade”: o foguista, a cozinheira-mor e
Therese (e sua mãe) no Hotel, o estudante-trabalhador, os habitantes do bairro popular que não simpatizam com
autoridades policiais, em suma, uma viva sensibilidade humana e certo espanto (atenuado ao longo do relato)
diante de desaforos e coisas absurdas (cf. Löwy, 2005, p. 73).
189 Kafka, 2007, p. 48; trad. 2003, p. 49.
190 Para usar os termos estilizados de Deleuze e Guattari (1975) em sua interpretação global de Kafka.
191 Kafka, 2003, p. 137.
192 Ibidem, p. 153.
94
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
“– É – disse Karl –, mas o que vale para você não obrigatoriamente vale para
mim. E em geral uma coisa dessas só vale para quem a aceita.
– Mas – exclamou Robinson – por que não deveria valer para você também?
É evidente que também vale para você. Espere tranquilamente aqui comigo
até que toque a campainha. E então vai poder ver se consegue ir embora. (…)
por pior que eu me sinta, não vou dizer nada para Delamarche nem para
Brunelda, vou trabalhar enquanto for possível e até mesmo quando não for
mais possível, e então me deitarei para morrer e só depois – tarde demais –
eles verão que eu estava doente e que, mesmo assim, continuarei
trabalhando, trabalhando e trabalhando, e que trabalhei a seu serviço até
morrer. (...)
– Ande, Robinson – disse Karl – você só chora o tempo todo. Não acredito
que esteja tão doente. Está com uma aparência bastante saudável, mas como
fica sempre deitado na sacada, fica imaginando coisas.”193
No fim do capítulo, Karl acaba com uma “ideia tranquilizadora” na cabeça: “de que ele
era jovem e que Delamarche um dia iria libertá-lo; aquela estrutura doméstica realmente não
parecia feita para durar uma eternidade”. Sua ideia fixa é se integrar num escritório comercial,
ao qual “pretendia dedicar até mesmo as noites”, pois de início “pretendia pensar apenas nos
interesses da empresa à qual devia prestar serviço, assumindo para si todas as tarefas, mesmo
aquelas que outros funcionários do escritório recusassem indignas de sua pessoa”. Aqui ele
como se funde à cabeça “do futuro chefe”, como se suas “boas intenções” pudessem ser lidas
por aquele “ao olhar para o seu rosto”.194 De passagens como estas chega-se à razão do título
O desaparecido: todos são absorvidos até desaparecerem nesse mundo-empresa, cujo ápice
será o “Teatro de Oklahama”.
Na versão de Max Brod, o capítulo final sobre esse “teatro natural” dava a sugestão
ambivalente de um sonho de reconciliação miraculoso– ou de uma espécie de alucinação
celestial após a morte do jovem herói195. Mas aqui está pressuposta menos uma reconciliação
do que a desintegração final do romance. Pois, como reflete Adorno, “o humor de Kafka deseja
reconciliar o mito através de uma espécie de mímica. Também nisto ele segue aquela tradição
do Iluminismo que começa no mito homérico e vai até Hegel e Marx, nos quais o ato
espontâneo, o ato da liberdade, se confunde com a realização da tendência objetiva”196. Trata-
se de uma operação dialética negativa: “o encanto da reificação deve ser quebrado, na medida
em que o próprio sujeito se reifica. O sujeito deve executar aquilo de que padece”, livrando-se
de sua consciência burguesa:
Assim como “todos pertencem ao Tribunal” (em O processo), ou tal como o castelo e a
aldeia são indistintos (em O castelo), aqui temos o “maior teatro do mundo” que alguns
asseguram que “é quase sem limites” e pode “aproveitar a todos, cada um em seu lugar!”:
“‘Quem pensa no futuro nos pertence! Todos são bem-vindos!’”. Aqui, o que parece sonho
torna-se um verdadeiro pesadelo do Capital, que repete o ritual sacrificial do trabalho. Aqui o
inferno proletário transfigura-se ironicamente em imagem paradisíaca. Alegoricamente esta
imagem teatral inverossímil diz o seu outro – e não por acaso os anjos femininos tocam
trombetas por duas horas até serem substituídas por “homens vestidos de diabo” tocando
“tambores” (de guerra?)200. Qual réplicas da estátua da liberdade, desde o início fomos
avisados que a tocha seria substituída pela espada. O Teatro natural não consiste numa utopia
do tempo livre, da identificação de trabalho e jogo, da indisponibilidade fundamental do
homem201, mas a utopia capitalista do pleno emprego e a naturalização da troca fetichista. Na
estação de trem, Rossmann descobre seus parceiros de classe em dissolução: “ninguém levava
bagagem”... “quanta gente despossuída e suspeita estava ali agrupada, e era tão bem recebida,
tão bem tratada! E o chefe do transporte parecia se importar de coração com eles”202. Uma
multidão de desempregados recrutada para representar profissões e atividades nesse céu
simulado de uma outra Amerika mais ou menos bem conhecida na história do novo mundo:
um “vagão inteiro” de desaparecidos, sem promessa de pagamento tal como os antigos negros
escravizados na época colonial, quando muito apenas servidos por uma refeição e ludibriados
pela importância do próprio nome e da família lançados num letreiro sujo no hipódromo, até
sumirem de vez, na página final, absorvidos pela segunda natureza selvagem da paisagem do
continente.
**
200 Ibidem, p. 262 e 267; trad. 2003, p. 247e 252. Para uma leitura complementar ver, Duarte, 2011 e 2010.
201Cf. Emrich, 1985, p. 212-3. Logo que assume a função de operário técnico, Karl pensa em “disciplina” e nova
integração no sistema em vez de autonomia, livre indisponibilidade, “justiça” ou “unidade livre de trabalho e jogo”.
202 Idem, p. 283; trad., p. 266.
203 Ao contrário do que pensam comentadores como L. Janvier (1988, p. 148-9), o riso beckettiano não vem
propriamente de Sírius (tal como também em Machado de Assis), mas da imanência do sofrimento e da derrisão
dos de baixo, podendo revelar-se como uma voz de escárnio socialmente situada, contendo marcas da dominação
de classe, sendo às vezes internalizada pelos próprios oprimidos, metamorfoseando-se ainda no alívio e na
conciliação imaginária com a própria derrota. O riso de Hamm em Fim de partida (“Tudo isso é muito divertido. E
se a gente desse umas boas gargalhadas juntos?”) ou de Nell (“Nada é mais engraçado que a infelicidade, com
certeza.”, Beckett, 2002: 62 e 117) é o mesmo ensinado pelo gentleman Mr. Hackett a Watt: “o riso dos risos, o risus
purus, o riso que ri do riso, a contemplação, a saudação da piada mais alta, o riso que ri – silêncio, por favor – do
que é infeliz” (Beckett, 2009, p. 40). Clov, o clown martelado por Hamm, não ri mais. Seu jogo/simulação ganha a
forma corrosiva do riso irônico forçado e proposital, que expõe a ficção e fura a encenação teatral: “A coisa está
esquentando. (Sobe na escada, dirige a luneta para o exterior, ela escapa-lhe das mãos, cai. Pausa). Fiz de propósito.
(Desce, pega a luneta, examina-a, dirige-a para a plateia) Vejo… uma multidão… delirando de alegria. (Pausa)
Isso é que eu chamo de lentes de aumento. (Abaixa a luneta, volta-se para Hamm). E então? A gente não ri?”
(Beckett, 2002, p.76; cf. orig.: 2006, p. 106).
204 Adorno, 2002, p. 242; Adorno, 1984, p. 206.
97
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
tempo que resta. Retomando a exposição de Adorno anteriormente referida sobre a dialética
de integração e desintegração:
Desde sua primeira prosa dos anos 30 e 40, trata-se da recusa do trabalho e das
coerções da sociedade da mercadoria por esses sujeitos “cartesianos” malogrados e sem
dinheiro, ainda capazes de frieza analítica de situações sem saída – “Eles me vestiram e me
deram dinheiro. Eu sabia para que o dinheiro devia servir, devia servir para me fazer sair do
lugar. Quando eu o tivesse gastado deveria arranjar mais, se quisesse continuar”208 –, tanto
quanto buscam o escape ou um abrigo que os amparasse contra a mobilização forçada do
sistema. Um abrigo que se sabe como parte da realidade histórica da dominação do trabalho e
do estado de exceção, e se converte no pesadelo real (mesmo que projetado de modo
imaginário-fictício por seus narradores) de casas-prisões e hospitais psiquiátricos (como em
Molloy e em Malone morre), quando não formas de uso e espoliação em condições extremas,
como no restaurante imaginado no limbo numa cidade inóspita (como n’O Inominável), de
missões de perseguição, recrutamento militar, ocupação colonial e treinamentos de técnicas
de tortura (em Como é), ou um bunker após o apocalipse nuclear (como em Fim de Partida).
Dominação que não cessa então de coagir e performar os pensamentos, as fantasias e os
comportamentos alienados, terminando por invadir e ocupar toda a trama ruinosa das
histórias criadas por esses “narradores narrados”. Reflexão da pura forma construída
mediante personagens que pouco terão do sujeito burguês tipicamente autônomo, reflexivo e
integrado ao mercado. Uma certa crueldade sadomasoquista trespassa tais caracteres, e é só
em seu completo fiasco que tornam a situação universal da dominação e do sofrimento algo
consciente, enquanto matéria de reflexão exterior ao plano do enunciado e da consciência dos
narradores. Para fechar, assim, vamos repassar esse percurso com algum nível de
detalhamento.
O que aparece como “positivo” aqui é essa negação da negação, que reitera as coordenadas do
sistema. A “não-identidade” latente, ao contrário, ainda busca sua posição determinada. Mas
a sensação é de que “alguma coisa segue o seu curso”, como dirá Clov210. De modo que a grande
robinsonada – com a clara recuperação de traços da literatura picaresca, do romance de
aventuras e relatos policiais já presentes em Kafka – torna-se um passo adiante de sua própria
negação: na liberdade negativa que define suas personagens como marginais,
desempregadas, desprovidas de objeto e de si mesmas, até de um corpo funcional – não
obstante forçadas ao emprego, ou administradas e vigiadas por agentes de um sistema de
poderes obscuros – é nessa “liberdade” abstrata negativa que reside a alta tensão contida por
sua prosa. É exatamente esta tensão social que suprime a ideia de personagens meramente
solipsistas e fechadas em si. É o que aparece desde as primeiras linhas de Molloy:
“Estou no quarto de minha mãe. Sou eu que mora lá agora. Não sei como
cheguei lá. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente. Me
ajudaram. Sozinho não teria chegado. Esse homem que vem toda semana, é
graças a ele talvez que estou aqui. Ele diz que não. Ele me dá um pouco de
dinheiro e leva as folhas. Tantas folhas, tanto dinheiro. Sim, trabalho agora,
um pouco como antigamente, só que não sei mais trabalhar. Isso não tem
importância, ao que parece. Eu, eu gostaria agora de falar das coisas que me
restam, me despedir, terminar de morrer. Eles não querem. Sim, eles são
muitos, ao que parece. Mas é sempre o mesmo que vem. (..) Quando não faço
nada, não me dá nada, me repreende. No entanto, não trabalho por dinheiro.
Por que então? Não sei. Não sei grande coisa, francamente”.211
Molloy dirá estar à procura da mãe, da qual ele pouco sabe e que talvez já faleceu. Com
o que só lhe restará a errância pela ilha e a cidade, a praia, os campos e florestas, até descambar
numa vala e lá ficar, bem como posteriormente o registro autoficcional precário dessa aventura
que ele descreverá como uma “viagem” perigosa. Sim, ele “trabalha” agora, um pouco como
costumava fazer, mas “I don’t know how to work any more”212. Aventura que ele associa então
explicitamente à “nave negra de Ulisses”: o confronto com policiais, assistentes sociais,
enfermeiros do Exército da Salvação, possíveis linchadores de maltrapilhos das ruas como ele
(os “justos”, “justiceiros” e “vigilantes”213), além da Circe sedutora como Lousse e os “mólis”
entorpecentes por ela manipulados para aprisioná-lo numa espécie de casa-sanatório214. Ele
mesmo contudo mata o cachorro de Lousse num estranho encontro-colisão na rua, foge desse
sanatório velado e bate (e talvez mata) com um bastão um outro andarilho desconhecido com
que cruza no campo. Figuras que se combinam em sua mente desordenada, assim, como
potenciais perseguidores ou agentes de controle e repressão. Dentre eles a personagem de
Moran que é revelada na segunda parte da obra (que está sendo contada e escrita por Molloy,
afinal?) como um outro narrador em primeira pessoa (“autodiegético”) como um agente que
tem a missão de se “ocupar de Molloy”215 a mando do mensageiro Gaber, cujo chefe é Youdi216.
Tudo se passa como se Molloy fosse o duplo secreto de Moran, ou melhor, um estágio mais
decrépito e avançado de Moran, cuja história ele representasse como sua face oculta meio real,
meio fantasiosa, cuja história enfim tem um maior nível de coerência, coesão e armação lógica
– mas a lógica do típico intelecto autocrático de um agente secreto que, mais tarde decaído e
transfigurado em Molloy, parece expor a sua própria posição autoritária. Moran dá várias
mostras de sofrer o efeito da super-integração como desintegração social, mental e corporal.
Molloy aparece assim como uma espécie de libertação relativa e ambivalente desse Outro
perverso, obcecado como não poderia deixar de ser pela Ordem da religião, do trabalho e do
patriarcado, descobrindo seu avesso na desagregação desse mundo. “O fato é, parece, que tudo
o que se pode esperar é ser um pouco menos, no fim, aquele que se era no começo, e na
continuação”217. Assim, Molloy passa a identificar-se às vítimas sofredoras, aos trabalhadores,
aos párias, aos animais nos matadouros que infestam campos e cidades218. Uma história
repleta de afirmações e desmentidos, enfim, como se tivesse sendo escrita ad hoc para esses
muitos agentes/perseguidores que o coagem no quarto atual em troca de abrigo, comida e “um
pouco de dinheiro”. Muito longe do comum, o livro exibe então uma estrutura complexa
construída a partir dessa duplicidade especular fundamental carregada de tensões e
ambivalências219.
214 Cf. Phillips, 1984. Na Odisseia (Canto X, 302-306), Hermes fornece um “móli” a Odisseu como contraveneno
mágico para enfrentar o encanto de Circe. No romance, os “mólis” são entorpecentes ou remédios psiquiátricos
administrados por Lousse (que faz assim o papel de Circe). (Beckett, [1947-1951]/1963, p. 66 e 71; Trad.: 1965, p.
51 e 54; 2007, p. 78 e 82).
215 Ibidem, 1963, p. 123; trad., 2007, p. 131.
216 Ibidem, 2007, p. 151.
217 Ibidem, p. 55.
218 Assim, por exemplo, a certa altura Molloy se identificará às ovelhas, ao balido do rebanho, que pode estar indo
ao campo ou aos matadouros na cidade, que estão “em toda parte, no campo também, qualquer açougueiro tem seu
matadouro e o direito de matar, segundo suas necessidades” (…) “o que fez despertar em mim despertar em mim
auma perplexidade de fôlego, com relação ao destino daquelas ovelhas” (Beckett, 2007, p. 50-1). Esse duplo
referente dos animais e do matadouro atravessa a trilogia, associando os homens ao trabalho fabril de massas e aos
animais in-sacrificáveis cujo paradigma seriam, segundo Agamben, os campos de concentração.
219 Note-se que esse irrisório móli venenoso remete como significante alegórico à mãe de Molloy (que Moran troca
às vezes por “Mollose”), que teria o mesmo nome do filho, o puro significante que mobiliza então Molloy e Moran,
duplicando-se parcialmente em Lousse, que aprisiona Molloy numa espécie de casa-sanatório, a qual guarda certo
101
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
ar de semelhança com o quarto em que Molloy está morando e, finalmente, com o campo prisional ou hospital
psiquiátrico habitado por Malone e recriado por este para representar o destino de Saposcat/Macmann, cujo avatar
final serão as figuras mutiladas e reduzidas à pura voz de um cogito impessoal alienado do Inominável
(Basile/Mahood e Worm).
220 Morin, 2017, p. 232-35.
221 Beckett, [1961]/2003a , p. 18.
222 Ibidem, p. 84, 97-8. A sugestão do universo da Odisseia e de Robinson parece clara. Em letra minúscula,
certamente para rebaixar, “homero” é citado, abrindo um parágrafo: “homero luz malva do anoitecer (…)”, fazendo
eco ao anterior, que dizia algo sobre arrastar-se de joelhos no “fim do mundo”, “de joelhos subindo os passadiços
entre conveses como os emigrantes” (Ibidem, p. 102).
223 Ibidem, p. 19.
224 Assim, “minha vida em cima o que fiz na minha vida em cima um pouco de tudo tentei de tudo então desisti
não pior sempre um buraco uma ruína sempre uma crosta nunca bom para nada nem feito para aquela farragem
complicado demais arrastar-se pelos cantos e dormir tudo que eu queria consegui nada restou só ir para o céu”
(Ibidem, p. 90).
225 Ibidem, p. 17 e 19.
102
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
mergulhados nessa lama imperial. Aqui ele apresenta seus “treinamentos” como “lições” sobre
técnicas de tortura, que incluem unhadas no sovaco, porradas no crânio e no rim, estocadas
do abridor de latas no ânus226, e mesmo uma tatuagem continuamente gravada “nas costas de
Pim intactas no princípio da esquerda para a direita e de cima para baixo como em nossa
civilização gravo minhas maiúsculas romanas”227. É o triunfo da “orgia do falso ser vida em
comum vergonhas breves”228 e de um “sadismo puro e simples não já que não devo gritar”.229
Desse modo, segundo esse narrador ensimesmado e sem limites, Pim tem a “voz extorquida”
ou nada diz, apenas grita, engole lama ou “canta” após os tormentos, como um “babaca”, uma
canção “estrangeira”, “oriental” e “totalmente fora de propósito”230.
Segmentos aleatórios mas precisos deixam entrever, contudo, que sempre há “algo
errado aí”231, principalmente na passagem do tempo, pois o relógio parado não pode eliminar
o registro de algum “progresso” no curso dessa história natural da dominação, “quatrocentos
anos que insurreições”232; ou que a canção de Pim é cantada não no passado, mas “se eleva no
presente lá vai de novo no presente”233. Claro prenúncio inicial da ruína e da desgraça já
pressagiada no início e na segunda parte, onde já colocara em dúvida a doutrina puritana da
“graça”234. A terceira parte, “depois de Pim”, tal como anunciado na introdução, alude aos
“bocados e sobras” dessa memória traumática de terrorismo de estado, ”trabalho” e fracasso
lá na vida em cima, um “vasto passado próximo e distante”, mas sem nenhum remorso. Pois
como dirá a voz cristalina: “Ao invés de terminar abandonado termino como torturador”235. O
texto parece tornar-se ainda mais elíptico e truncado a fim de expor o recalque histórico da
dominação neocolonial e a decadência social e psíquica; o narrador divide-se entre a “paixão
irresistível” da velha brutalidade perdida, i.e., a fantasia de repetição do gozo absoluto do
último segundo: “Mais um último segundo. Só um. O tempo de aspirar esse vazio. Conhecer a
felicidade”242.
Ora, uma tal doutrina de freio e fidelidade ética do olhar a um objeto específico,
pressuposta na subtração crítica do sujeito ao mundo funcional, prossegue em Worstward Ho
[Pioravante, marche!] (1983): a negatividade autodeterminada do discurso é assumida como
ponto de vista corporalmente fundado, que permitiria dizer o objeto determinado em sua não-
identidade real com expressões de um sujeito reificado em declínio ou conceitos e ideias
surrados e hipostasiados. Não um discurso puro, coerente e ideal, mas ao contrário um
discurso impuro, que dá lugar ao negativo e à contradição. Aqui o tema de O Inominável ganha
rigor máximo. Assumir os riscos de um discurso “mal dito”, que bloqueia a má infinidade da
tagarelice e supera tanto a dispersão do olhar como a falsa clareza e o discurso sobre o discurso.
Como diz o incipit da obra, trata-se de ir:
“Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até que de
nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante [Said nohow on].
Dizer por ser dito. Dito mal. Desde agora dizer por ser dito mal.
Dizer um corpo. Onde nenhum. Nenhuma mente. Onde nenhuma. Isso pelo
menos. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar nele. (…) Tentar de
novo. Falhar de novo. Falhar melhor”.243
É assim que Beckett reata as duas pontas de sua obra, que iniciara questionando as noções de
Experiência, Hábito e Memória tal como refletidas pelo romance de Proust: como transformar
o “tédio de viver” pelo “sofrimento de ser: isto é, o livre jogo de todas as faculdades”, tornando-
se uma escrita potente para determinar a não-identidade de um “objeto que resiste às
proposições de seu esquadrão de sínteses”244. E não será exatamente esse livre “sofrimento de
ser” que se desenvolve nas três personagens mais interessantes de Beckett: Malone, o
Inominável e Clov?
Assim, em Malone morre (1947/1951) o que parece estar na cama à beira da morte é
uma certa versão de Molloy (e de Moran), ou mesmo das personagens de seus textos
anteriores, por certo num estágio de paralisia corporal ainda mais severo, mas sem a paralisia
da mente e do sentimento do tempo de criação ficcional, ao contrário: um olhar de “artista”
capaz de transcender fatos da superfície e fantasiar o “como é” da coisa social. As páginas
iniciais do romance deixam claro o programa narrativo de Malone, de cunho alegórico, que
pretende coincidir em seu desfecho com um dia de glória: o dia de São João, a Páscoa ou a
Queda da Bastilha, “a festa da liberdade”245. Exatamente como Molloy, Malone sente-se
“abusado” por agentes sinistros para os quais escreve em troca de alimento e cuidados básicos.
Como um virtuose da falha, ele tem o maior cuidado em parodiar e desmontar as estruturas
do romance burguês, tornando o texto falsamente cômico ou trágico, às vezes árido e tedioso,
às vezes lírico. Nas histórias de fracasso que cria (e se projeta), o mundo de camponeses e da
pequena burguesia perde seu chão e declina na proletarização: assim com o drama da família
Saposcat, da vida “cheia de axiomas”, da mãe e do filho (Sapo) sujeitados e brutalizados pelo
pai autoritário e impotente, que sonhava apenas em “assalariar” ou tornar o filho mais
“útil”246; o que se repete com a família camponesa vizinha dos Louis (que parece aludir ao
Louis Lambert de Balzac, à fantasia de autocastração) e finalmente se transfere para a grande
cidade em sua última figuração desse mesmo sujeito abstrato sem dinheiro - “Macmann”247. A
continuidade do relato, entrecortada por flashes da situação atual de Malone sobrevivendo na
casa sitiada, num sugestivo cenário de aviões em voos rasantes típicos da segunda guerra248,
converge gradualmente para o hospício ou campo prisional (“São João de Deus”) que aprisiona
Macmann (todos vestidos de “capa listrada de azul e branco como nos açougues”249) e funciona
como emblema alegórico do destino social de todas essas personagens excluídas e largadas à
própria sorte. Aqui, em seu plano ficcional Malone encontra-se com os seus “materiais”, com
o clochard sentado no banco (Macmann), os trabalhadores e os “justiceiros” protofascistas da
massa: “por toda parte é a multidão dos de saco cheio, pegando as passagens, carregando as
malas, eternamente lá no lugar errado na hora errada.”250 O fim contudo não é a prisão ou a
morte de Malone/Macmann. É o esquema alegórico de uma fuga após uma viravolta no
manicômio-prisão em meio a um passeio numa ilha, em que Macmann se une aos prisioneiros
245“Estarei em breve apesar de tudo completamente morto enfim. Talvez no mês que vem. Será então o mês de
abril ou de maio. Pois o ano avançou pouco, mil pequenos indícios me dizem isso. Pode ser que me engane e que
passe do São João e até do Quatorze de Julho, festa da liberdade” (Beckett, 1965, p. 179, ; trad. bras., 2014, p. 21).
Malone fala nesse programa adiante (ibidem, 2014, p. 142).
246 Ibidem, p. 31-2.
247 Ibidem, p. 78 e ss.
248 ‘Ibidem, p. 143.
249 Ibidem, p. 140.
250 Ibidem, 2014, p. 79.
106
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
e ao carcereiro Lemuel (uma possível fusão de nomes: Lenin+Samuel). De modo que a rica
filantropa “Madame Pédal” é abandonada na ilha após os soldados-vigias serem assassinados
por Lemuel – num momento singular em que os prisioneiros agem em conjunto para um
motim, pela primeira vez deixando de ser mônadas isoladas. Malone parece desfalecer e
interrompe o texto, mas antes Macmann sobrevive com os companheiros no barco tomado:
“Este emaranhado de corpos cinzentos são eles. Não são mais, na noite, que um só amontoado,
silencioso, a custo visível, agarrando-se talvez uns aos outros, as cabeças cegas dentro das
capas. Estão longe da baía, Lemuel não rema mais, os remos se arrastam na água”. E se lermos
com cuidado as últimas linhas, veremos que Lemuel ergue de novo seu “machado” – que se
converte simbolicamente no pequeno lápis “Vênus” de Malone – já “não é para bater em
ninguém, não baterá mais em ninguém, não tocará nunca mais em ninguém (…) nem com ele
nem com seu martelo nem com seu bastão (…) nem com seu lápis nem com seu bastão nem/
nem luzes luzes quero dizer” (…) porque se trata de negar toda a semente da violência social:
“ele não tocará nunca/ aí nunca/ aí está aí está/ nunca mais [plus rien/ any more]”251. Os
enjambements no final introduzem uma ordem lírica que interrompe a prosa do mundo.
Nunca mais – este também o sentido oblíquo do título em inglês, que desintegrado expressa
que Man Alone Dies.
inconsciente do princípio do trabalho abstrato e sua sentença de morte contra os inúteis, por
outro lado, ele deseja a imobilidade, o silêncio e o descanso, a superação da colonização geral
da vida por tal princípio: “me queria eu, queria a minha terra, me queria na minha terra, um
momentinho, não queria morrer como estrangeiro, entre estrangeiros, estrangeiro em minha
terra, no meio de invasores (…)”264. Mas é preciso achar uma saída, “dizer palavras (...) é
preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho
pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham dito”. Pois no fundo
não pode haver uma fala ”pura” ou “própria”, individual e solipsista, sem estar mediada por
significantes sociais. De modo que a estrutura formal encontrada pelo narrador, seu “como
fazer”, foi instalar-se na contradição, dramatizá-la, pois essas palavras “talvez já tenham me
levado até o limiar de minha história, isso me surpreenderia”. Daí o mote fundamental: “no
silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar”265.
“Clov: (Olhar fixo, voz neutra) Acabou, está acabando, quase acabando, deve
estar quase acabando. (Pausa) Os grãos se acumulam, um a um, e um dia, de
repente, lá está um monte, um amontoado, o monte impossível. (Pausa) Não
podem mais me punir. Vou para a minha cozinha, três por três metros por
três metros, esperar até que ele apite. É um bom tamanho. Vou me encostar
na mesa e olhar a parede, esperando que ele apite.”266
E mais adiante:
“Hamm: Em ordem!
Clov: (endireitando-se) Eu amo a ordem. É o meu sonho. Um mundo onde
tudo estivesse silencioso e imóvel, e cada coisa em seu lugar final, sob a
poeira final.”267
Para ele parece que há de se continuar jogando e esperando até que esse “monte
impossível” surja de repente no horizonte. O nome ambíguo da peça alude a esse jogo de
espera e acumulação de restos, que afinal inesperadamente chega. O seu célebre final
ambivalente, em que Clov, vestido para viagem, olha fixamente e fica imobilizado diante de
Hamm marca a mudança de sua postura sempre servil (simbolizada pelo cão de pelúcia de
Hamm, feito em pedaços), e que agora declara a ruptura pelo silêncio e a imobilidade diante
de seu despótico dépeupleur. A conversa sem sentido e a crueldade do tratamento entre as
264 Ibidem, p. 163. Como aponta Eagleton (2006, p.71), para além da paisagem estagnada pós-Auschwitz, a obra
de Beckett reflete também, na estrutura e no detalhe concreto, a questão colonial irlandesa e a história paralisada
de Joyce: “uma memória subliminar da Irlanda faminta, com sua cultura colonial monótona e puída, suas massas
desamparadas passivamente à espera de uma libertação Messiânica que nunca chega realmente”.
265 Ibidem, p. 184-5.
266 Beckett, [1956] 2002, p. 38-9.
267 Ibidem, p. 112.
109
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
personagens, especialmente por parte de Hamm, esconde às vezes falas que dão o sentido
material da subordinação de Clov: “Hamm: Por que você não me mata? / Clov: não sei a
combinação da despensa”268. E Clov se pergunta também “por que obedeço sempre”...269. Fora
do refúgio ou abrigo, Hamm tenta nos convencer, “é a morte”270. Ora, tudo parece esgotado
também no interior do abrigo: tudo já é ali a morte em vida e sem futuro (a comida acabou,
Clov passa fome, Nell desfalece no latão, sem que Clov precise esperar por um futuro em que
restaria sozinho “como um pedregulho na estepe” (…), em que seria como Hamm “só que não
teria ninguém, porque você não terá se apiedado de ninguém e não haverá mais ninguém de
quem ter pena”271 etc.). Lá fora ninguém sabe praticamente o que há – e a parábola do homem
louco contada por Hamm pode ser lida como a sua própria história:
“Hamm: Conheci um homem louco que pensava que o fim do mundo tinha
chegado. Ele pintava. Eu gostava muito dele. Ia vê-lo no hospício. Eu o tomava
pela mão e o arrastava até a janela. Olhe! Ali! O trigo começa a brotar! E ali!
Olhe! As velas dos pesqueiros! (…) Ele me fazia soltar sua mão, bruscamente,
e voltava para o seu canto. Apavorado. Tinha visto apenas cinzas. (Pausa)
Apenas ele tinha sido poupado. (Pausa) Esquecido. (Pausa) Parece que o caso
não é… não era… tão… tão raro”272.
Hamm projeta cinza sobre cinza. O verdadeiro fim vem quando Clov detecta pela
luneta uma criança totalmente improvável no exterior do refúgio273. Hamm imediatamente
pensa em matá-lo, ou como ocupá-lo como trabalhador potencial, justamente por que talvez
eles não ignoram a ”vida” possível que ainda talvez reste lá fora após a catástrofe social e
ambiental acontecida274. Clov apenas espicaça-o com a interrogação irônica de que talvez seja
“Hamm: (…) “Como era véspera de Natal, não havia nisso nada de…
excepcional. (…) (Tom narrativo) Vamos, vamos, apresenta tua súplica, o
tempo urge. (…) Foi então que ele criou coragem. É o meu filho, disse. Ai ai
ai, uma criança, que transtorno! (…)” “Em resumo, acabei compreendendo
que ele queria pão para seu filho. Pão! Mais um pedinte!” (…) Mas qual é a
sua esperança afinal? Que a terra renasça com a primavera? Que os peixes
voltem aos mares e rios? Que ainda haja maná no céu para os imbecis como
você? (Pausa). Aos poucos fui me acalmando, pelo menos o suficiente para
perguntar-lhe quanto tempo levara para vir. Três dias inteiros. Em que estado
tinha deixado a criança. Caída no sono. (Com violência) Sono! Que tipo de
sono? (Pausa) Em resumo, propus que trabalhasse para mim”.
Na lógica cínica de Hamm tudo não passa de trabalho e meio de sua aparente
dominação absolutista, até a última gota:
“Ele tinha me comovido. E depois eu imaginava que não teria mais muito
tempo neste mundo. (Ri. Pausa) E então? (Pausa) Como é? (Pausa) Aqui,
quem se cuidasse poderia morrer tranquilamente, uma confortável morte
natural. (Pausa) Se eu consentiria em recolher também a criança – caso ela
ainda estivesse viva. Era o momento que eu esperava. (Pausa). Se eu
consentiria em também recolher a criança. (Pausa) Ainda posso vê-lo de
joelhos, as mãos apoiadas no chão, me olhando fixamente com os olhos
dementes apesar da minha proposta.”277
E no último destaque, quando Hamm diz fazer “a oferta de uma vaga de jardineiro” ao
pai rastejante, ele completa: “Antes de aceitar com gratidão, ele me pergunta se pode trazer o
menino com ele”. Quando Clov diz que o garoto “subiria nas árvores”, Hamm esclarece que de
fato seria trabalho infantil: “Faria todo tipo de trabalho leve”.278
ideais! / Clov: Então ela não nos esqueceu./ Hamm: Mas você disse que não existe mais natureza. / Clov: (triste)
Nunca ninguém pensou de modo tão tortuoso como nós” (ibid., p. 51-2). O que foi dito não significa portanto, como
se costuma ler essa passagem, a constatação de uma catástrofe final e o fim da natureza “primeira” no mundo, mas
a perda do vigor corporal (nas cercanias do abrigo) e dos “ideais” face à realidade da dominação mantida como
natural por Hamm.
275 Ibidem, p. 113.
276 Ibidem, passim, especialmente, p. 97, 106-118.
277 Ibidem, p. 106-108.
278 Ibidem, p. 118.
111
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Essa história (que evidentemente resume de modo alegórico a de Clov) mais o encontro
inesperado da nova criança fora do bunker equivalem então a um despertar de uma memória
involuntária para Clov. Algo que dissolve hábitos cristalizados, tal como aprendemos com a
leitura beckettiana de Proust: um aprendizado do “sofrimento de ser” que desintegra o sentido
reificado de conceitos tal como funcionam sob o domínio de Hamm (que Clov trata aliás de
enumerar: amor, amizade, esplendor, ordem). Assim, após declamar ironicamente seu poema
de despedida como uma espécie de “pássaro encantado”, “vivo, mas putrefeito”, equivalente à
afirmação de uma morte simbólica, portanto, Clov dirá:
“Clov: (como antes) Às vezes digo a mim mesmo, Clov, você precisa aprender
a sofrer melhor, se quiser que parem de te punir algum dia. (…) Mas me sinto
velho demais, e longe demais, para criar novos hábitos. (…) Bom, isso nunca
acabará, nunca vou partir. (Pausa) E então, um dia, de repente, acaba, muda,
não entendo nada, morre, ou morro eu, também não entendo. Pergunto às
palavras que sobraram: sono, despertar, noite, manhã. Elas não tem nada a
dizer. (Pausa) Abro a porta da cela e vou. Estou tão curvado que só vejo meus
pés se abro os olhos, e entre minhas pernas um punhado de poeira escura. Me
digo que a terra está apagada, ainda que nunca tenha visto acesa. É assim
mesmo. Quando eu cair, chorarei de felicidade.
Pausa. Vai até a porta.
Hamm: Clov! (Clov pára, sem se virar. Pausa) Nada. (Clov continua). Clov!
Clov pára, sem se virar.
Clov: É o que se chama sair de cena”279.
“Sair de cena”: é esta a chave, o motivo oculto, o fim de partida: a
desintegração social e psíquica em curso escancara a necessidade do freio de
emergência e do contragolpe – nada menos que a supressão do trabalho. Fiquemos
com a ideia chave de Adorno que nos guiou até aqui:
279 Ibidem, p. 144-6, grifos nossos. Na versão em inglês (Endgame), não temos esse poema de Clov (Beckett,
2006a, p. 131).
280 Adorno, 2002, p. 224-5, grifo meu.
112
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Referências
ANDERS, Günther. [1979, 4ª ed.] 2011. “Ser sin tiempo. Sobre la obra de Beckett, Esperando
Godot.” in:__. Anders, G. La obsolescencia del hombre. Vol. 1 – Sobre la alma en la época
de la segunda revolución industrial. Trad. J. M. Pérez. Valencia: Pré-Textos.
ANDRADE, Fábio Souza. 2001. Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia: Ateliê.
ARRIGHI, Giovanni. [1994] 1996. O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso
tempo. (Trad.: Vera Ribeiro). São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. Unesp / Contraponto.
AUERBACH, Erich. [1942] 1996. “La cicatriz de Ulisses” in: __. Mimesis. La representación
de la realidad en la literatura occidental. México: Fondo de Cultura Económica.
AUSTIN, Michel M.; VIDAL-NAQUET, P. [1972] 1986. Economic and Social History of
Ancient Greece: an introduction. London: Batsford Academic and Educational Ltd.
BALANDIER, Georges. [1992] 1994. El poder en escenas. De la representación del
poder a lo poder de la representación. Trad. Manuel Ruiz. Barcelona: Paidós.
BECKETT, Samuel. [1948-51] 2014. Malone morre. Trad: Ana Helena Souza. São Paulo:
Globo.
__________. [1938] 2013. Murphy. Trad. Fábio S. Andrade. São Paulo: Cosac Naify.
__________. 2012. Companhia e outros textos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo:
Globo.
__________. [1949/1953] 2009a. O Inominável. Trad: Ana H. Souza. São Paulo: Globo.
__________. [1953] 2009b. Watt. (Ed. C. J. Ackerley). London: Faber and Faber.
__________. 2008. O despovoador (1968-1970)/ Mal visto mal dito (1979-1981). Trad.
Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes.
__________. [1948/51] 2007. Molloy. Trad: Ana H. Souza. São Paulo: Globo.
__________. 2006a. The Complete Dramatic Works. London: Faber and Faber.
__________. [1955] 2006b. Novelas. Trad. Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes.
__________. [1961] 2003a. Como é. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Iluminuras.
__________. [1931] 2003b. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify.
__________. [1956] 2002. Fim de partida. Trad. Fábio de S. Andrade. São Paulo: Cosac e
Naify.
__________. 1991. Nohow on. (Company. Ill seen ill said. Worstward Ho). London:
John Calder.
__________. 1965. Three Novels by Samuel Beckett: Molloy, Malone Dies, The
Unnamable. New York: Grove Press.
__________. [1948/51] 1963. Molloy. Paris: Minuit/UGE (Col. 10-18).
BENJAMIN, Walter. [1934] 1985. “Franz Kafka – A propósito do décimo aniversário de sua
morte”. In: Obras escolhidas vol. 1. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
114
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
BIRKENHAUER, Klaus. [1971] 1976. Samuel Beckett. Trad. F. Latorre. Madrid: Alianza.
BLOCH, Ernst. [1959] 1976. Das Prinzip Hoffnung. Band I. 3ª ed. Frankfurt am Maim:
Suhrkamp.
__________. [1959] 2005. O Princípio Esperança. Vol. 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: Contraponto/Eduerj.
BOURDIEU, Pierre. [1971] 1974. “Gênese e estrutura do campo religioso” in: __. A economia
das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva.
BROD, Max. 1959. Verzweiflung und Erlösung im Werk Franz Kafkas. Frankfurt am
Maim: Fischer.
CHAMPANHET, Lucas. 2020. Samuel Beckett: sujet, objet, et solipsisme. Proses et
essais de 1929 à 1950. Lyon: Mémoire de Master Lettres de l’Université Jean Moulin – Lyon
3. Spécialité Lettres Modernes.
DEFOE, Daniel. [1719] 2007. Robinson Crusoe. (Edited with an Introduction by Thomas
Keymer and Notes by Thomas Keymer and James Kelly). [Parte 1]. New York: Oxford
University Press/Oxford World’s Classics.
__________. [1719] 2005. As aventuras de Robinson Crusoé. [Partes 1 e 2]. São Paulo:
Companhia Editora Nacional.
__________. [1719] 2000. The Further Adventures of Robinson Crusoe. [Parte 2].
Pennsylvania: The Penssylvania State University: A Penn State Electronic Classics Series.
__________. [1722] 1981. Moll Flanders. (Venturas e desventuras de Moll Flanders).
Trad. A. A. Cury. São Paulo: Abril Cultural.
__________. [1720] 1902. Serious Reflections during the Life and Surpising
Adventures of Robinson Crusoe (with his Vision of the Angelick World written by
Himself). [Parte 3] London: Aitiken.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. 1975. Kafka: pour une littérature mineure. Paris:
Minuit.
DÉTIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre. [1974] 2008. Métis: as astúcias da
inteligência. São Paulo: Odysseus.
DUARTE, Cláudio R. 2020a. “Contragolpes da dialética. Notas difusas sobre viragens
dialéticas em Hegel, Marx e Adorno.” Sinal de Menos, ano 11, nº14, v. 2.
_________. 2020b. “As aventuras do dinheiro e o narrador impostor: às últimas com o
fetichismo no Esaú e Jacó, de Machado de Assis”. Margem Esquerda, nº 35, 2º sem.
__________. 2018. “Nada em cima de invisível: Esaú e Jacob, de Machado de Assis. As
aventuras do dinheiro na transição do Império à República”. São Paulo, DTLLC-FFLCH, Tese
de doutorado.
115
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
116
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
117
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
LUKÁCS, Georg. 2009. “O romance como epopeia burguesa” in:__. Arte e sociedade.
Escritos estéticos 1932-1967. (Organização, introdução e tradução de C. N. Coutinho e J.
Paulo Netto). Rio de Janeiro: Editora Ufrj.
__________. 2000. A teoria do romance. (Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas
da grande épica). São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. 1959. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 3 v.
MARX, Karl. 2011. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. (Esboços da
crítica da economia política). São Paulo: Boitempo.
__________. 1988. O Capital. (Crítica da economia política. O processo global da
produção capitalista), Livro I, tomos 1 e 2. (Trad.: Regis Barbosa e Flávio Kothe). São
Paulo: Nova Cultural.
MALINOWSKI, Bronislaw. [1922] 1984. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São
Paulo: Abril Cultural.
MALKIN, Irad. 1998. The Returns of Odysseus. Colonialism and Ethnicity. Berkeley:
University of California Press.
MAUSS, Marcel. [1929] 2001a. “A alma, o nome e a pessoa” [1929] in:__. Ensaios de
Sociologia. Trad.: João L. Gaio e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva.
__________. [1921] 2001b. “Mentalidade arcaica e categorias de pensamento” in:__.
Ensaios de Sociologia. Trad.: João L. Gaio e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva.
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. [1925] 2003a. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da
troca nas sociedades arcaicas” in: Mauss, M. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo
Neves. São Paulo: Cosac & Naify.
__________. [1904] 2003b. “Esboço de uma teoria geral da magia” in: Mauss, M.
Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify.
__________. [1899] 2001. “Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício” in:__. Ensaios
de Sociologia. Trad.: João L. Gaio e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva.
MCNALLY, David. 2020. Blood and Money. (War, Slavery, Finance, and Empire). Chicago:
Haymarket Books.
MORETTI, Franco. [1987] 2020. O romance de formação. (Trad.: Natalia B. Palmeira).
São Paulo: Todavia.
__________. 2014. O burguês: entre a literatura e a história. São Paulo: Três Estrelas.
MORIN, Emilie. 2017. Beckett’s Political Imagination. Cambridge: Cambridge University
Press.
118
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
MOSSÉ, Claude. 1984. La Grèce archaïque d’Homère à Eschyle: VIIIe-VIe siècles av.
J.C. Paris: Seuil.
NIETZSCHE, Friedrich. [1880]/2008. “O andarilho e sua sombra” in: __. Humano
demasiado humano II. São Paulo: Companhia das Letras.
POLANYI, Karl. [1957] 2021. A grande transformação. (As origens políticas e econômicas
de nossa época). Rio de Janeiro: Contraponto.
PHILLIPS, K. J. 1984. “Beckett's Molloy and The Odyssey”. The International Fiction
Review, 11, Nº 1.
PUCCI, Pietro. 1997. The Song of the Sirens. Essays on Homer. Lanham/Oxford: Rowman
& Littlefield Publishers.
__________. 1987. Odysseus Polutropos. Intertextual readings in The Odyssey and The
Iliad. Ithaca/London: Cornell University Press.
ROSENFELD, Anatol. 1973. “Kafka e os kafkianos” in:__. Texto/Contexto. São Paulo:
Perspectiva.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. [1750] 1973a. “Discurso sobre as ciências e as artes” in: Jean-
Jacques Rousseau. (Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural.
__________. [1754] 1973b. “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens” in: Jean-Jacques Rousseau. (Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural.
SCHULTZ, Karla L. 1990. Mimesis on the Move. Theodor W. Adorno’s Concept of
Imitation. Berne: Peter Lang.
SCHWARZ, Roberto. 2019. Seja como for. (Entrevistas, retratos e documentos). São Paulo:
Ed. 34/Duas Cidades.
__________. 2012. “A viravolta machadiana” in:__. Martinha versus Lucrécia. São
Paulo: Companhia das Letras.
__________. 2009. “A dialética da formação” in: Pucci, B., Almeida, J. e Lastória, L. (orgs.).
Experiência formativa e emancipação. São Paulo: Nankin.
__________. 1999. Sequências brasileiras. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
__________. 1990. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis.
São Paulo: Duas Cidades.
__________. 1978. “Tribulação de um Pai de Família” [1966] in: __. O pai de família e
outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
__________. [1977] 2000. Ao vencedor as batatas. (Forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro). São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.
SMITH, Frederik N. 2002. Beckett’s Eighteenth Century. Basingstoke/New York:
Palgrave.
119
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
SNELL, Bruno. [1955] 2001. “O homem na concepção de Homero” in:__. A cultura grega e
as origens do pensamento europeu. Trad.: Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva.
SOMBART, Werner. [1913] 1972. El burgués. Contribución a la historia espiritual del
hombre económico moderno. Trad.: María P. Lorenzo. Madrid: Alianza.
TILLY, Charles. 1996. Coerção, Capital e Estados Europeus, 990-1992. Trad. G. G. de
Souza. São Paulo: Edusp.
TYLOR, Edward B. 1871. “Chap. XVIII – Rites and Cerimonies” in:__. Primitive Culture.
Vol. II. London: John Murray.
VERNANT, Jean-Pierre. [1996] 2002. Entre mito e política. Trad.: C. Murachco. São
Paulo: Edusp.
__________. (dir.). 1999. Problèmes de la guerre en la Grèce ancienne. Paris:
Éditions de l'École des Hautes Études en Sciences Sociales.
__________. 1973. “O trabalho e o pensamento técnico” in: __. Mito e pensamento
entre os gregos. Estudos de psicologia histórica. Trad. H. Sarian. São Paulo: Difel.
VIDAL-NAQUET, Pierre. [2000] 2002. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia das
Letras.
WEBER, Max. 2015. Economia e sociedade. Trad.: R. Barbosa e K. E. Barbosa. Brasília:
Ed. UNB, 2 vols.
__________. 2004. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Edição de
Antonio F. Pierucci e Trad.: José M. Macedo. São Paulo: Companhia das Letras.
__________. 1964. Historia económica general. Trad. M. Sánchez Sarto.
México/Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
WATT, Ian. [1957] 2010. A ascensão do romance. (Estudos sobre Defoe, Richardson e
Fielding). São Paulo: Companhia de Bolso.
__________. 1996. Myths of Modern Individualism. (Faust, Don Quixote, Don Juan,
Robinson Crusoe). Cambridge: Cambridge University Press.
WEBB, Eugene. [1971] 2012. As peças de Samuel Beckett. Trad. Pedro Sette-Câmara. São
Paulo: É Realizações.
WOOD, Ellen M. [2005] 2014. Império do capital. São Paulo: Boitempo.
ŽIŽEK, Slavoj. 2019. “Hegel with Beckett: The Persistence of Abstraction”. International
Journal of Zizek Studies. Vol. 30, n. 1, p. 145-160.
__________. [1999] 2016. O sujeito incômodo. O centro ausente da ontologia política.
São Paulo: Boitempo.
120
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Mas interessa-nos partir de um outro modo de ler Borges, mais complexo e fecundo.
Essa outra maneira lida com o aparente paradoxo de atribuir certo caráter iconoclasta e
vanguardista a um escritor declaradamente conservador. Derivada sobretudo da filosofia, ela
tem sua melhor expressão nas primeiras linhas com que Foucault abre seu livro As palavras
e as coisas: “Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba
todas as familiaridades do pensamento [...] abalando todas as superfícies ordenadas e todos
os planos que tornam sensata para nós, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e
1
Doutorando no programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), mestre e graduado em letras pela mesma instituição. E-
mail: william.was@gmail.com
121
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Ainda que possa acabar resvalando em certo cinismo pós-modernista, essa perspectiva
tem razão em acentuar a herança crítica e contestadora que a obra de Borges legou às gerações
seguintes. Seu problema, porém, está em negligenciar os custos de tais conquistas, isto é,
deixar de fazer um balanço dialético do processo que conduziu a tais ganhos. Pois acredito que
os mais importantes méritos de Borges, sejam eles estéticos ou intelectuais, derivam de uma
situação no mínimo ambivalente e problemática, como tentarei esboçar a seguir.
Tendo que escolher um ponto de partida, eu não poderia deixar de apontar logo de
início a irreverência com que o autor faz gato-sapato das ideias de indivíduo e identidade,
colhendo das ruínas dessas noções o resultado dialético que confere a força criativa de sua
obra, num processo semelhante (acredito) ao que Benjamin já havia identificado no
Trauerspiel alemão. Um dos motivos mais recorrentes em seus contos é, de fato, a dissolução
do indivíduo. Em muitas dessas narrativas, o fundamento do enredo se resume a situações em
que o sujeito se identifica com o outro, um antagonista (ou às vezes até mesmo a totalidade do
universo), e termina por se anular. A figura fantástica do duplo, retirada de uma tradição que
o autor conhecia muito bem, passa aqui a ser utilizada com frequência na figuração dessa
dissolução do antagonismo. No geral, a constatação da identidade pela personagem se realiza
no desfecho e se confunde com a descoberta do próprio leitor. Com a retomada dos clássicos
expedientes da peripécia e do reconhecimento, impõe-se ao final da leitura a impactante
descoberta de que o outro é o mesmo. Dito de outra maneira: a autoidentidade do sujeito é
destruída pela identificação com o outro. Escritos com exímia habilidade, são memoráveis
contos como “Las ruinas circulares”, “La muerte y la brújula”, “Biografía de Tadeo Isidoro
Cruz”, “El evangelio según Marcos”, entre tantos outros.
2
FOUCAULT, Michel. [1966] 2007. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes p. IX.
3
Para citar duas obras interessantes nesse sentido, ver, por exemplo, MOLLOY, Sylvia. [1979] 1999. Las letras
de Borges y otros ensayos. Rosario: Beatriz Viterbo, e REST, Jaime. 1976. El laberinto del universo. Borges
y el pensamiento nominalista. Buenos Aires: Ediciones Librerías Fausto.
4
Cf. ANTUNES, Nara Maia. 1982. Jogo de espelhos: Borges e a teoria da literatura. Rio de Janeiro: J. Olympio.
122
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Essa obsessão pela identidade percorre a obra de Borges do começo ao fim. Mas é
sobretudo nos livros Ficciones e El Aleph que o autor mais explorou certa perspectiva panteísta
da realidade, em que se postula uma forma de identidade geral entre todos os entes do
universo. Certamente, esse aspecto não passou despercebido pela fortuna crítica do autor.
Muito já se disse, por exemplo, da estrutura especular de seus contos ou da coincidência entre
opostos como uma constante em sua construção.5 Comentadores munidos de completos
aparatos eruditos nos revelam determinados subtextos filosóficos ou literários presentes nos
argumentos de narrativas ou de ensaios do autor. Seguindo as mais variadas vertentes críticas,
alguns promovem aprofundadas investigações dos diálogos intertextuais presentes na obra
analisada, e outros se detêm na relação específica de Borges com algum filósofo em especial.
As abordagens de cunho estritamente formalista ou estruturalista, por sua vez, empreendem
engenhosas análises do rigor e da simetria de seus contos, revelando-nos a complexa estrutura
por trás de sua construção. De uma maneira geral, busca-se a elucidação temática ou estrutural
do fenômeno da identidade, mas, muitas vezes, sua interpretação crítica acaba negligenciada.
Exceto quando a crítica pós-modernista reconhece a dissolução do sujeito e a celebra, nenhum
sentido lhe é atribuído e o papel da crítica não vai além da mera descrição.
O fenômeno em questão já foi, portanto, observado em outras ocasiões. Não tenho aqui
a pretensão de apresentar um aspecto inteiramente novo, mas sim a de procurar olhar para o
problema de modo distinto. Sugiro que a questão seja abordada em seu aspecto problemático,
propondo um caminho diferente daquele que normalmente tem sido adotado pela maioria dos
comentadores do autor.
Com efeito, poucos têm sido aqueles a abordar a questão sem as indulgências
costumeiras. Como exemplo, poderíamos mencionar Cláudio Magris, que num duro porém
lúcido ensaio, notou como a literatura de Borges se baseia numa obsessão circular sobre a
identidade universal de todas as coisas, cujo fim é descobrir a presença do único e do sempre
igual, anunciando a indiferença da vida individual e a futilidade de todo juízo.6 “Esta
devaluación de lo múltiple, con su implícita indiferencia por la individualidad”, escreve
Magris, “es quizás el sello de toda concepción reaccionaria, que persigue el vacío en su entorno,
5
Cf. ALAZRAKI, Jaime. 1977. Versiones. Inversiones. Reversiones. El espejo como modelo estructural del
relato en los cuentos de Borges. Madrid: Gredos, e CÉDOLA, Estela. 1993. Borges o la coincidencia de los
opuestos. Buenos Aires: EUDEBA.
6
MAGRIS, Claudio. 1996. Dos aproximaciones a Borges. Cuadernos Hispanoamericanos, 548, p.61.
123
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Se a dureza de tais palavras nos faz tomá-las com certas reservas, poderíamos então
considerar a opinião de um leitor sem dúvida mais simpático. Não faz muito tempo, também
Ricardo Piglia, num ciclo de aulas dedicadas a Borges, demonstrou certo incômodo com esse
aspecto da obra do autor:
A mi lo que me molesta es algo que observó Margo Glantz… Me pareció muy bueno: está la
idea de que no puede ser que en el infinito sean la misma persona el judío torturado y el nazi.
Y ahí hay un punto serio en Borges, en el sentido de que… Es el punto más serio. Yo creo que
Borges no ve la diferencia… Solo ve la unidad, solo ve la unidad… Pero también en “Los
teólogos”… Como si él no viera la diferencia. Como si él solo viera el parecido… Eso si es un
pensamiento reaccionario… que todos somos iguales.8
É poderoso o efeito artístico de descobrir que aquele que narrou a infame história de
um delator é ele próprio o infame; pode não parecer nada mais do que engenhoso organizar
uma trama em que dois protagonistas rivais terminam por se confundirem no final aos olhos
do leitor. Também há algo de subversivo em revelar por trás do herói a imagem do traidor,
colocando a nu as manipulações e construções históricas, assim como o contrário,
possibilitando a reabilitação de figuras injustiçadas da história. Nesses e em outros casos em
que o antagonismo e a diferença acabam dissolvidos, aquele riso incômodo de que fala
Foucault nos assalta em cheio. Mas somos capazes de manter ainda esse sorriso quando a
dissolução entre opostos pretende postular uma igualdade entre o indígena americano e seu
exterminador europeu, como em “La escritura del dios”? Ou entre a vítima e o carrasco nazista
em “Deutsches Requiem”? A indiferença perversa expressa nesses exemplos nos mostra que a
destruição do indivíduo empreendida por Borges não é algo necessariamente progressista e
libertador, como querem alguns.
7
Ibidem, p.61.
8
PIGLIA, Ricardo. Borges, por Piglia - Clase 4 - 28-09-13 (3 de 4) disponível em:
<https://youtu.be/O0CsvnDaK_o?t=499>. Acesso em 19 jul 2019.
124
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
conto “El inmortal”, em que a ideia de identidade aparece disfarçada sob o tema da
imortalidade. O assassinato de César e o de um anônimo gaucho nos pampas argentinos 19
séculos depois (“La trama”) se equivalem, pois ambos são motivados por uma “mesma”
traição, aleivosia em qualquer ato e lugar, a-histórica, que prescinde de qualquer
determinação particular, “apenas para que se repita uma cena”: como se todas as diferenças
contextuais entre eles não importassem. O guerreiro lombardo do fim da idade clássica e a
inglesa feita cativa por índios na Argentina do século XIX (“Historia del guerrero y la cautiva”)
respondem a um mesmo e universal “ímpeto secreto, um ímpeto mais fundo do que a razão”,
cujo traço comum é a pura e simples deserção, não importando a contrariedade dos
movimentos ou a motivação que cada ação poderia ter em seu contexto primeiro. Agora
irrecuperáveis os destinos e a particularidades de cada um, cabe ao narrador apenas conjeturar
uma identidade entre eles, adotando um olhar que se eleva para além das particularidades
históricas e emula o absoluto: “Acaso las historias que he referido son una sola historia. El
anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales.”9
Jean Franco notou que a grande habilidade borgiana é de fato a abstração. Mais do que
simplesmente colocar em contexto a ficção do autor, o verdadeiro esforço crítico deveria se
voltar para a compreensão do fenômeno:
At best, left criticism has only bee capable of appealing for an approach to Borges which will
put the textual strategies back into a ‘context’. The disadvantage of this is that it denies the
very capability – the abstraction from concrete situations – which give the fictions their
power. Yet it is precisely mastery, and the abstraction mastery is based on, that demand
analysis.10
9
“Historia del guerrero y la cautiva”. In: El Aleph, O.C. I, p.861.
10
FRANCO, Jean. 1981. Utopia of a Tired Man: Jorge Luis Borges. Social Text, 4, v.2, p.53.
11
“Funes, el memorioso”. In: Ficciones, O.C. I, p. 786.
12
Cf. “Historia de la eternidad”. In: Historia de la eternidad, O.C. I, p.651.
125
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
como princípio fundamental da arte clássica e como paradigma a se seguir.13 Haveria ainda
muito mais a se dizer sobre a tematização da abstração em Borges. Numa crítica de cunho
dialético, importa, porém, verificar com a abstração se concretiza (valha o paradoxo) na forma
literária.
Num primeiro aspecto, ela se expressa na firme oposição do autor às formas e
categorias literárias tradicionalmente ligadas ao sujeito na cultura burguesa. Não é de outra
forma que seu desprezo pelo romance deve ser entendido. Por mais razoáveis que pareçam as
justificativas que apelam à economia de meios e ao rigor formal, é sobretudo uma decisão de
ordem ideológica a que justifica seu posicionamento frente ao romance. A questão pouco tem
a ver com se contar uma história passível de resumo em poucas ou muitas páginas, como
afirmou ele certa vez. O que se ataca, de fato, é a centralidade que o romance confere ao
indivíduo e à sua experiência singular como eixo estruturante da narração e todas suas
implicações ideológicas.14 Somado a isso, Borges não ignorava as dificuldades de ordem
histórica que começavam a se impor ao romance, de modo a tornar cada vez mais implausível
sustentar a postura realista do gênero tal como se fazia em suas origens. À “crise do romance”,
que já se fazia presente também na periferia, Borges não responde com a reinvenção do
gênero, como fizeram outros grandes autores do século, mas com sua recusa e a com a eleição
de outro gênero narrativo.
Como sabemos, a totalidade de sua produção ficcional em prosa é composta de
narrativas curtas. À exceção de seus ensaios ficcionais, seu principal modelo é o conto poeano.
Esse tipo de texto se caracteriza não apenas pela extensão curta, mas sobretudo pela
funcionalidade dos pormenores, economia de meios e rigoroso princípio de coerência interna.
Borges, levando ao limite esse modelo, compõe peças de engenho absoluto e propõe que se
conceba a coerência interna para além dos termos inicialmente propostos por Poe. Sua noção
de “causalidade mágica”, reconhecendo a motivação teleológica como o verdadeiro princípio
da narrativa, sugere um tipo de coerência baseado não na causalidade e na sucessão linear dos
acontecimentos, mas sim na identidade entre as partes e o todo.15 Trata-se de um princípio de
coerência em que os pormenores da narrativa, mais do que atuar em função de um
determinado desfecho, identificam-se com a totalidade de sentido da obra, de modo que, numa
dinâmica de autoespelhamento interno, a parte resulte em uma imagem do todo.
13
La postulación de la realidad”. In: Discusión, O.C. I, p. 497.
14
Conforme demonstrou WATT, Ian. [1957] 2010. A ascensão do romance: Estudos sobre Defoe, Richardson
e Fielding São Paulo: Companhia das Letras.
15
Analisei detidamente a poética do conto de Borges em Silva, William Augusto. 2017. Resistente, misteriosa,
visível: a forma e suas ficções na literatura de Jorge Luis Borges. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, especialmente no primeiro capítulo.
126
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
16
BORGES apud CALVINO, Ítalo. [1991] 2007. Jorge Luis Borges. In: Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia.
das Letras, p. 253.
127
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
interna ao próprio conto, e que surte efeito de verdade apenas para os seres do universo
ficcional (exceto para a protagonista).
A história falsa envolve uma caracterização verdadeira da personagem. Ela parte de
elementos reais de sua vida. A história do estupro só pode fazer sentindo porque a personagem
reúne em si as características necessárias para isso: é mulher, jovem, empregada, numa
posição subalterna que torna perfeitamente verossímil esse tipo de violência. Assim, a
personagem é dotada de determinações sócio-históricas bastante concretas e ligadas ao
contexto social em que se dá ação, a Argentina dos anos 1920. Mas, vistos retroativamente
pelo leitor que no final descobre a armação, esses fatores são ressignificados apenas como
detalhes circunstanciais, “pormenores lacônicos de longa projeção”17, que concorrem para a
elaboração da mentira. Sua virgindade, que propositalmente sacrifica deitando-se com um
desconhecido, sua timidez, a greve que lhe concederia o pretexto para encontrar seu patrão
num sábado: todos esses elementos se tornam fatores motivadores da verossimilhança da
história inventada.
É precisamente pela posição subalterna dessas duas condições – condição de gênero e
de classe – que o crime pode ser transformado numa história verossímil. Por outro lado, aos
olhos do leitor, elas terminam por perder a importância, já que os tomamos como simples
elementos farsescos. De fato, essa também é a perspectiva do narrador, que termina o conto
afirmando:
La historia era increíble, en efecto, pero se impuso a todos, porque sustancialmente era cierta.
Verdadero era el tono de Emma Zunz, verdadero el pudor, verdadero el odio. Verdadero
también era el ultraje que había padecido; sólo eran falsas las circunstancias, la hora y uno o
dos nombres propios.18
Comentando este conto, Piglia observou que o relato se constrói sobre a base de um
princípio de equivalência: “Um homem por outro: o texto trabalha sobre essa equivalência O
pai por Loewenthal (na fraude). Loewenthal pelo sueco (na violação). Loewenthal pelo pai (na
vingança). [...] Pôr um homem no lugar de outro. Esse procedimento metafórico, fundado na
semelhança e no deslocamento, é básico na construção dos relatos ‘criminais’ de Borges.”19
Ora, o que permite a troca observada por Piglia é justamente a abstração, que consiste em
tomar como meros detalhes (como sugere o advérbio “somente") toda a diferença existente
entre as circunstâncias, tempo e pessoas. A abstração admite a existência do detalhe, mas
apenas para em seguida negar-lhe a importância e, com isso, o direito a seu reconhecimento.
17
Cf. “La postulación de la realidad”. In: Discusión, O.C. I, p. 500.
18
“Emma Zunz”. In: El Aleph, O.C. I, p.869.
19
PIGLIA, Ricardo. [2000] 2003 “Notas sobre literatura em um Diário”. In: Formas breves. São Paulo:
Companhia das Letras, p.79.
128
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Mas é a partir de outra operação que a abstração borgiana se mostra em todo seu
virtuosismo, desvelando talvez seu sentido. Essa operação consiste na maneira como a história
foi contada. O conto poderia ter sido contado como uma simples reação a uma tentativa de
estupro, sem que a trama de Emma nos fosse revelada. Ela poderia ter sido mantida em
segredo para o leitor, de modo a apenas sugerir a verdade. No entanto, Borges optou por deixar
claro que Emma constrói uma história falsa. O autor assim nos coloca de frente a duas
perspectivas, uma das quais só é segredo para os personagens ficcionais.
Essa duplicidade se apresenta ao leitor sob a forma da oposição verdade versus falso.
É nesse fracionamento em dois modos de ver que o conto cifra seu sentido. Pois ao tematizar
o verdadeiro e o falso, o real e o ficcional, o narrador nos sugere que aquelas particularidades
concretas de Emma não constituem o real motivo de sua ação, mas apenas o aparente, e por
isso podem ser desconsiderados.
Aquilo que o conto nos apresenta como a real motivação da ação será elaborado
noutros termos. Não é a luta de classes nem o feminismo que levam Emma a matar seu patrão,
mas sim sua participação no conjunto de uma espécie de justiça cósmica. Tampouco a
protagonista é a portadora única de um sentimento privado e íntimo de vingança (a palavra
“justiça” aparece cinco vezes no conto, duas delas com inicial maiúscula, contra duas aparições
do verbo “vingar”), mas apenas uma função dentro de uma ordem maior que a supera, assim
como também o marinheiro com quem se deita não é ninguém especial: “El hombre, sueco o
finlandés, no hablaba español; fue una herramienta para Emma como esta lo fue para él, pero
ella sirvió para el goce y él para la justicia.”20 Trata-se pois de buscar a justificativa em algo
menos histórico e mais universal. A idéia de justiça que o conto nos apresenta é de ordem
metafísica ou mesmo mágico-religiosa. O corpo de Emma é um instrumento da “Justiça”: “No
por temor, sino por ser un instrumento de la Justicia, ella no quería ser castigada.”21 Ou ainda
uma oferenda dentro de um rito sacrificial: “pensó Emma Zunz una sola vez en el muerto que
motivaba el sacrificio?”22 Assim como o narrador abstrai os aspectos concretos da vida de
Emma, ela também deve abrir mão de seu corpo (sua virgindade) em função de algo
incorpóreo e etéreo, a Justiça Divina. O corpo da mulher, o corpo da jovem, o corpo da
trabalhadora: tudo isso será simples indício intercambiável para a verossimilhança da
“intrépida estratagema que permitiría a la Justicia de Dios triunfar de la justicia humana.”23
20
“Emma Zunz”. In: El Aleph, O.C. I, p.867.
21
Ibidem, p. 868.
22
Ibidem, p. 867.
23
Ibidem, p. 868.
129
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Como indício de uma história que pode parecer real, sem necessariamente ser, tal corpo perde
assim sua realidade e torna-se meramente potencial.
Aquela dualidade de perspectivas se confirma, afinal, também como uma dualidade de
motivação. À perspectiva da verdade é atribuída uma fundamentação abstrata, circunscrita ao
campo metafísico-religioso. Por sua vez, do lado da perspectiva falsa entram as
fundamentações do campo sócio-histórico. As condições de gênero e classe que caracterizam
a protagonista são apenas elementos que compõe a ficção inventada por Emma. Elas
pertencem ao âmbito da mentira aparente, a falsa história que se faz passar por verdade. Neste
conto, o fundamento histórico não apenas é abstraído, como também passa por um processo
de negação.
Qual o sentido dessa negação? O que ela nos revela? O ato de colocar em cena
determinados elementos – classe, gênero, nacionalidade – para depois rejeitá-los, ainda que
engenhosamente, talvez funcione como o mecanismo psicanalítico da denegação e nos indique
o ponto a se revolver. E se então tudo o que observamos aqui dissesse respeito não apenas ao
conto analisado, mas a um universo maior da obra borgiana?
Acredito que esses problemas podem ser pensados em paralelo a alguns dados
biográficos do autor, que por sua vez remetem ao âmbito maior da sociedade e da história.
Como se sabe, Borges pertencia a uma família de classe média originária das antigas elites
criollas argentinas, já em retrocesso econômico no início do século XX. Para o sustento seu e
de sua família, não podia prescindir do trabalho, realidade que evitou o quanto pode. Com a
deterioração do estado de saúde do pai, foi obrigado a buscar emprego. Sua ocupação inicial
como assalariado foi a de primeiro auxiliar na Biblioteca Municipal Miguel Cané. Os anos ali
passados seriam posteriormente narrados em seu Ensayo Autobiográfico:
Resisti na biblioteca por aproximadamente nove anos. Foram nove anos de contínua
infelicidade. Os funcionários só se interessavam por corridas de cavalos, jogos de futebol e
piadas obscenas. Certa vez uma das leitoras foi violentada no toalete das senhoras. Todos
disseram que isso tinha de acontecer, já que o banheiro de homens e o de senhoras ficavam
um ao lado do outro. [...] Embora pareça irônico, nessa época eu era um escritor bastante
conhecido, mas não na biblioteca. Uma vez um colega encontrou numa enciclopédia o nome
de um tal Jorge Luis Borges, fato que o surpreendeu pela coincidência de nossos nomes e
datas de nascimento. De vez em quando, nesses anos, nós, os funcionários municipais,
éramos recompensados com um pacote de um quilo de erva-mate. Às vezes, ao entardecer,
enquanto caminhava os dez quarteirões até a parada do bonde, meus olhos se enchiam de
lágrimas. Esses pequenos presentes vindos de cima sempre acentuavam o aspecto sombrio e
servil de minha existência.24
24
BORGES, Jorge Luis. [1970] 2009. Ensaio autobiográfico. São Paulo: Companhia das Letras, p.59-60.
130
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
25
“Vindicación del falso Basílides”. In Discusión, O.C. I, p.495.
26
Ensaio autobiográfico, p. 58.
27
Cf. MICELI, Sergio. 2012. “Jorge Luis Borges – História social de um escritor nato”. In: Vanguardas em
retrocesso. São Paulo: Companhia das Letras, p.72.
28
BENJAMIN, Walter. 1989. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, p.
52
131
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Tinha de saborear essa identificação com o gozo e o receio que lhe advinham do
pressentimento de seu próprio destino como classe.”29
Entretanto, Benjamin observa que o ser humano, ao vender sua força de trabalho, já é
ele próprio uma mercadoria. Para o trabalhador, não faz sentido se imaginar no lugar dela:
“Quanto mais consciente se faz do modo de existir que lhe impõe a ordem produtiva, isto é,
quanto mais se proletariza, tanto mais é traspassado pelo frio sopro da economia mercantil,
tanto menos se sente atraído a empatizar com a mercadoria”.30
Seguindo livremente a sugestão benjaminiana, caberia formular algumas hipóteses.
Em Borges, a identificação com a mercadoria, inevitável a todo trabalhador, inicialmente
sentida como algo desfavorável, recebe um tratamento complexo e dialético que opera em duas
direções opostas, mas complementares. Por um lado, sentindo os efeitos do “frio sopro da
economia mercantil”, o autor não recusa a empatia com a mercadoria. Antes, a aceita e, num
processo ideológico próprio (ou talvez coletivo), passa a sublimar tal condição. Tudo aquilo
que envolve a venda da força de trabalho, a diminuição do sujeito, a fungibilidade, enfim, todos
esses aspectos negativos da proletarização passam a ser elaborados em sua obra numa chave
positiva. A partir de sua experiência intelectual como leitor, a filosofia e a tradição literária lhe
fornecerão os termos em que a experiência do sujeito no mercado será transfigurada. Seja por
meio da mitologia, do duplo, da Vontade schopenhaueriana ou da monadologia de Leibniz,
encontraremos a tentativa de depurar a situação do sujeito de qualquer referência histórica.
E, mais do que isso, essa experiência será o manancial a partir do qual o autor retirará sua
originalidade. O questionamento da autoria, assim como do estatuto da “realidade”, a inversão
de perspectivas, a investigação da relação entre linguagem e mundo, a atenção ao papel da
leitura: esses e outros feitos borgianos podem ser entendidos como um resultado dialético
daquele extermínio do indivíduo que encontramos por toda parte em sua literatura.
Por outro lado, essa reinvenção do “aspecto sombrio e servil” da existência proletária
se limita aos efeitos da proletarização. Assim sendo, a figuração dessa será rejeitada ao
máximo pela obra do autor. A troca e o mecanismo de equivalência se depositariam na forma,
na estrutura profunda dos contos de Borges, enquanto princípio de composição; porém seriam
praticamente todos banidos do plano da figuração. Quando essas questões apenas ameaçam
se fazer visíveis no campo temático, elas são reelaboradas em termos fantásticos ou
metafísicos. É o caso do conto “El Zahir”, cujo objeto central é o dinheiro tratado numa chave
29
Ibidem, p. 55.
30
Ibidem, p. 54-55
132
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
31
Cf. Silva, William Augusto. 2017. Resistente, misteriosa, visível, cap. 4.
32
A visão negativa sobre o imigrante persistirá na obra de Borges. Num texto de 1974, ele resgatará a constante
oposição da cultura argentina entre civilização e barbárie, para preencher o lugar do bárbaro com o imigrante: “El
Facundo nos propone una disyuntiva — civilización o barbarie — que es aplicable, según juzgo, al entero proceso
de nuestra historia. Para Sarmiento, la barbarie era la llanura de las tribus aborígenes y del gaucho; la civilización,
las ciudades. El gaucho ha sido reemplazado por colonos y obreros; la barbarie no sólo está en el campo sino en
la plebe de las grandes ciudades y el demagogo cumple la función del antiguo caudillo, que era también un
demagogo. La disyuntiva no ha cambiado. Sub specie aeternitatis, el Facundo es aún la mejor historia argentina.”
(“Domingo F. Sarmiento: Facundo”. In: Prólogos, con un prólogo de prólogos. O.C, IV, p. 131, grifos meus)
133
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Referências
SILVA, William Augusto. 2017. Resistente, misteriosa, visível: a forma e suas ficções na
literatura de Jorge Luis Borges. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
WATT, Ian. [1957] 2010. A ascensão do romance: Estudos sobre Defoe, Richardson e
Fielding São Paulo: Companhia das Letras.
135
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Cláudio R. Duarte
Juan Carlos Onetti (1909-1994) não é um escritor de fácil apreciação. Sua prosa
refinada permanece quase uma ilustre subestimada mesmo após seu reconhecimento como
precursora pelos autores que se projetaram no chamado “boom latino-americano” dos anos
60, hoje todos “ultrapassados” pela última moda. Segundo um observador recente, isso se deve
a falhas de sua composição: as “digressões dentro das digressões, os narradores múltiplos que
compartem uma voz e a enervante obrigação de replicar a desordem da vida com a desordem
da ficção”, nesses romances que estariam “envelhecendo mal em um sentido formal e, o que é
pior, moral”.1
1
Arbolay, 2021. Sobre a figura de Onetti como suposto precursor do “boom”, ver Shaw, 1994.
136
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Mas, tirando a parte da redenção pelo ideal estético, isso sempre pareceu impossível
para a linha mais clássica e talvez ainda hegemônica das interpretações de sua obra: “o herói
de Onetti aparece como resignado, com um claro convencimento de que ‘não se pode fazer
nada’ ou, mais agravadamente, que ‘nada merece ser feito’”3. Resta assim o ponto de vista do
indivíduo supostamente “isolado”, impotente e inativo diante da sociedade e da vida amorosa,
que se evade pelo sonho destilando angústia, amor, ódio e crueldade, embora sem a muleta
de qualquer “filosofia substitutiva (como nos autores existencialistas) que pudesse servir de
instrumento apto para encarnar a vida tal qual se a entende e mudar os valores que se
consideram caducos por outros mais eficazes.”4 Mais ou menos pela mesma trilha vão os que
buscam enxergar aqui a prevalência de uma “poética de fundação”: a ruptura esteticista
moderna com a mimese e a história, a “suspensão temporal”, a “aventura da escrita” e “o
mundo dos espelhos confrontados”, enfim, a imersão num ponto de vista onírico, autofundado
e portanto autonomizado do indivíduo solitário, exausto, desolado, mascarado etc.5
Sem dúvida, essas leituras ressaltam vários elementos aparentes da obra de Onetti.
Contudo, se o que nos falta é a sobriedade moral ou a eficácia da norma burguesa, ou, por
outra, o que vale mesmo é a filosofia da “desgraça” e a criação esteticista de “mundos”, resta
saber por que Onetti insiste tanto no negativo dessas formações imaginárias, que procuram
substituir o real e a vida de trabalho – “a vida dupla, a pontual entrega de oito horas a um
mundo absurdo” (J: 169)6 – pelo capricho e a realidade psíquica de narradores e personagens,
2
Llosa, 2009, p. 160-165, 226, 230-1.
3
Aínsa, 1970, p. 24. Para uma boa compilação da crítica da obra de Onetti, ver o número especial de Cuadernos
Hispanoamericanos, 1974.
4
Assim, ele completa: “Poco o ningún atractivo tiene el mundo existencial en que se mueven los personajes de
Onetti. Hay algo de negación del impulso, hay una primacía de lo paralizante sobre lo activo, hay una irritante
claudicación, un síntoma de anti-vida y esa negación de la vida-vivida no deja de suponer, en última instancia (y
aunque él siempre lo negó, despectivamente), una postura típicamente intelectual: la de los hombres que
reflexionan demasiado para gozar abiertamente de la vida.” (Aínsa, 1970, p. 24-5). Apesar da negação do decalque
existencialista, esse intérprete alimenta a ideia de uma obra mítica e fatalista que teria por base uma filosofia
pessimista da resignação. As “trampas” de Onetti pegam suas personagens, mas só aquelas paralisadas na reflexão
paciente também podem superar o falso gozo da vida.
5
Verani, 2009, passim.
6
Sempre que possível, cito as obras de Onetti a partir de edições traduzidas em português conforme as abreviaturas,
seguida do número das páginas: VB (A vida breve) [1950]/2009a; E (O estaleiro) [1961]/2009b; J (Junta-
137
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
mas extraindo seu cerne do avesso obsceno da sobriedade e dessa norma social praticada,
numa espécie de imersão no coração dessa “vida dupla” sempre ativa e socialmente articulada
nos relatos, sem possibilidade de isolamento e fuga reais, buscando assim uma espécie de
“desrecalque social” aparentemente disparatado da marginália nas entranhas inconscientes
expostas do mundo liberal, racional, oficial. O “mundo louco” de Onetti é precisamente esta
circulação reflexiva entre os planos do real e do imaginário, da ordem e da desordem tendo
por estrutura as relações sociais modernas fundadas no capital e na vida do trabalho abstrato
e suas dissociações. Por mais que alguns de seus personagens sejam típicos sonhadores,
preguiçosos, fatalistas, presos à ruminação mental ou ao desejo morto e impossível, tal como
a personagem central de Juan Maria Brausen (o criador ficcional de Santa María), isso não os
impede de conviverem socialmente, se desdobrarem numa profusão de duplos e de projetarem
ações que querem consumar esses sonhos. E amiúde estes meramente expressam uma
experiência social através de sua ficção “autônoma”, que evidentemente assim não repete o
molde de uma identidade, antes põe a sua não-identidade, a sua contradição. Aqui, o interesse
de ler e reler essa obra fundamental. Assolado por fantasmas e a inércia de relações paralisadas
numa espécie de “tempo fóssil” dos “ciclos agrários”7, esse romance de espaço, tipicamente
urbano, também é tanto ou mais determinado por um tempo ruinoso do capital, um tempo de
crise: “que o tempo não existe por si só é demonstrável; é filho do movimento, e se este deixasse
de mover-se não teríamos tempo nem desgaste de princípios nem finais. Em literatura tempo
se escreve sempre com maiúscula” – ensina o narrador de “A morte e a menina” [1973] (C:
331).
Por outro lado, a questão essencial para Onetti nunca foi ostentar o brilho de um estilo
luxuoso e intrincado à parte de seus materiais, ou focalizar o submundo da marginalidade, do
gozo e da violência por si mesmos, considerados à maneira de Céline, Genet, Arlt ou dos
beatniks, por exemplo, uma realidade que nesse intervalo, aliás, ultrapassou todos os limites
imaginados por essas e outras obras. Nesse aspecto comparativo e mais superficial, os pacatos
e cruéis sonhadores, contistas e impostores de Onetti ficaram obsoletos, pois são quase
inocentes e românticos face ao que se tornou o esvaziamento subjetivo e a extrema violência
anômica que passa ao ato nas cidades devastadas pelo capital em fim de linha8.
Cadáveres)[1964]/2009c; P (O poço)[1939]/2009d e TsN (Para uma tumba sem nome) [1959]/2009d; C (47
contos de Juan Carlos Onetti) [1994]/2007). Os textos foram cotejados com as obras originais, também citadas na
bibliografia.
7
Como bem observa Molina (1994, em C: 14), o universo de Santa María “tem a morosidade do tempo fóssil das
cidades de província, o ritmo pesado em que transcorrem as águas turvas do rio e em que se sucedem as visitas de
lancha, a majestade solene e um pouco austera dos ciclos agrários”.
8
Cf. análises sobre o caráter narcisista dos novos tempos: Adorno (2015); Lasch (1986), Costa (1989) e Birman
(2009).
138
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Do prisma de nossa estrita atualidade, contudo, creio que é de se pensar como (e até
que ponto) esses materiais degradados e algo envelhecidos de Onetti – bastante
representativos de um mundo histórico antagônico e sem remédio, no qual todos se enredam
ativamente num contexto universal de culpa e cegueira – tornaram-se cada vez mais presentes
e interessantes como problemas artísticos tanto mais quanto o capitalismo passou a mostrar
todas as suas inércias estruturais e todas as suas facetas não-oficiais, escabrosas e violentas.
Não se lê Onetti chupando pirulito em busca de um mundo “onírico” escapista. Como Freud e
Lacan mais tarde, Onetti dá sinal de um profundo mal-estar na cultura, tendo muito vivas as
grandes guerras às suas costas, além da experiência histórica fundamental do Uruguai e da
Argentina como ex-colônias e partes da periferia do sistema. Isso é essencial em seu
modernismo e provoca mudanças radicais na tradição literária local. Condensando tais
processos sociais através desses enredos meio desgastados e sempre improváveis – o que pode
revelar a vida meio real meio fictícia da província de Santa María, por volta dos anos 50? –, o
autor conserva a potência crítica através de uma construção literária singular que jamais se
esgota numa representação imaginária a-histórica e que põe as contradições da modernização
sul-americana e suas promessas de prosperidade e liberdade. Pois é da realização
contraditória desses ideais modernos numa sociedade periférica, ex-colonial, patriarcal e
provinciana que se mercantiliza e se proletariza que ele tira sua luz reveladora. As questões de
forma e fundo devem ser constituídas a partir dessa base social antagônica, dessa escolha feita
de caso pensado desde os anos 30. A espessa camada de ideologia construída pela obra
onettiana, assim, a liberal tanto quanto as ilusões de escape individualista no prazer marginal,
coincide com uma realidade histórica fragmentada, desigual e em movimento – não com a
fachada do progresso homogêneo, mas com algo que os leitores de Machado de Assis
conhecemos a fundo: a mercantilização total das relações de origem patriarcal no continente,
seus entrelaçamentos ignorados e suas consequências formais. E como aprendemos com
Roberto Schwarz, o essencial é compreender a especificidade histórica dos dois momentos e
sua negação recíproca9.
É preciso apreender esse ritmo desigual da modernização e perguntar então por que
Onetti dedicou-se a personagens/narradores partícipes do engodo da reprodução,
constituindo uma cidade provinciana, religiosa e conservadora como Santa María, ao mesmo
tempo vivendo o ritmo metropolitano de Buenos Aires, Paris, Nova Iorque etc., fascinados pela
perda de si e a autodestruição simbólica nos bas-fonds do capital (como Brausen, Stein e
Larsen), o que aparece para a maioria dos intérpretes até hoje como mera doença psíquica ou
9
Ver as várias análises de Roberto Schwarz, {1977]/2000 e 1990, que fornecem nosso lastro teórico-metodológico.
139
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
formação discursiva. É preciso interrogar qual é então o lado sombrio do pequeno burguês
criollo ou imigrante que se proletariza, mas que se nega como trabalhador, submete mulheres
e dependentes à estrutura cindida e reificada do patriarcado moderno10, e que descansa à
margem da propriedade, no vício, na irregularidade e na promiscuidade entre o mesmo e
outro. Só assim será possível descobrir quais são as relações de classe e principalmente de
gênero implícitas que constituem a moldura dessa sociedade de base patriarcal latifundiária e
de cultura reflexa depois da mercantilização total da vida, incluindo a dos escritores e
intelectuais; um mundo conservador e liberal, obscurantista e esclarecido, machista e
“emancipado”, de resto exalando preconceito e racismo por cada poro etc., e que não se
constitui de maneira espontânea e natural, pois oscila e se contradiz. O que faz pensar enfim
no que resta do “sujeito” após a demolição dos indivíduos e de sua perspectiva de emancipação
como sujeitos. Pois se por um lado estes colaboram com essa dominação abandonando-se ao
conformismo, por outro também ajudam metaforicamente “a construir a fisionomia da
desordem”, na fala de Brausen (VB: 98), como seres fracassados que se fazem crer loucos como
Larsen "Junta-Cadáveres", que em seus atos agitava “um espesso, coincidente lodo de loucura”
(E: 62) no subproletariado posto à margem no bairro fantasma em volta de um estaleiro
fantasma de um capitalista falido. Este então o “mundo louco” (VB: 13) ouvido pela prostituta
Queca em seu apartamento desde a cena inicial de La vida breve e que inspira Brausen à
criação de Santa María: aqu-“Eles” (VB: 161, 325) que interessa escutar e traduzir. Pois só da
escuta da proletarização e seus fracassos pode surgir um ato de recusa dessa loucura objetiva.
10
Aqui, nossa referência central é Roswitha Scholz (1996 e 2013) e Robert Kurz (2004).
140
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Essa forma potencializa o conteúdo pois é a sua forma imanente, um longo trabalho de
mímese, construção e expressão socialmente mediado11. É estranho constatar como essa
solução formal materialista desaparece do horizonte dos melhores críticos anteriormente
citados.12 A realidade do poder e do fetiche do capital é para Onetti o núcleo interno de sua
cidade ficcional tanto quanto penetra no “umbigo” do sonho de suas criaturas alienadas –
como desponta com força máxima em La vida breve (1950) e se desenvolve quase à exaustão
no simulacro industrial vivido em El astillero (1961), sem dúvida o pico de sua produção,
seguida pela gênese histórica feita com recursos tragicômicos em Juntacadáveres (1964),
romance irregular com platôs de alta qualidade. As robinsonadas da crítica literária fundada
no ponto de vista liberal, do indivíduo isolado etc., cometem o equívoco quase como uma
imitação da fuga forçada da jovem garota anônima e seu irmão Bob no conto “A árvore” [1986].
Tais intérpretes gostariam de uma literatura edificante que joga com o imaginário abstraído
das cenas de... prisão, interrogatório e tortura “da casa e do horror” em que homens a serviço
da ditadura mais recente no cone sul agridem a empregada dessa família rica e liberal numa
11
Ver Sarlo, [1988]/2003, e o ensaio de William A. Silva, “Uma poética da abstração. Hipóteses sobre Jorge Luís
Borges”, 2021, nesta edição de Sinal de Menos.
12
Aqui vale uma nota digressiva sobre esse ponto. Para alguns tudo se passa como se a prosa difícil e enigmática
de Onetti, moderna em todos os seus efeitos, sem carregar nas tintas da cor local, propositalmente abstrata e
desnacionalizada, sem concessões comerciais ao entretenimento e desviando-se do automatismo abstrato da ética
do engagement tanto quanto do viés mágico ou telúrico de populações há muito despossuídas e sem chão social –
uma prosa nem exatamente realista nem fantástica –, e de fôlego porque feita de estruturas narrativas híbridas e
complexas através duma pluralidade de narradores e pontos de vista dissonantes, do manejo de uma galeria
completa de personagens de vários estratos sociais que se cruzam na saga de Santa María (e Lavanda nos últimos
romances) – enfim, uma construção ficcional elevada ao cubo através da reflexão irônica e metaficcional, ou da
ficção dentro da ficção – é como se esta prosa escolhesse para si materiais pobres, abstratos, menos promissores...
provincianos, hoje rebaixados à segunda e terceira classe, inócuos e moralmente ultrapassados. E como se isso
fosse mais ou menos indiferente e aleatório. Não seria justamente o contrário? Forma “avançada”, matéria
“atrasada”? A abstração construtiva (que podemos ligar de algum modo à mediação do trabalho social abstrato e
do patriarcado do valor, e que resultaram na moderna sociedade urbano-industrial latino-americana, embora
carregando suas heranças coloniais e periféricas) torna-se seu eixo central; mas a inércia das relações ex-coloniais,
mais tradicionais e a resistência própria dos materiais impede um cancelamento do momento mimético, ligado às
questões de verossimilhança histórica. No melhor modernismo a mímese foi preservada. Um mundo louco,
socialmente alienado e aparentemente baseado em meros indivíduos abstratos e sonhadores, sim, “imperturbáveis
diante da realidade, até diante da desgraça, do ridículo e da ruína” (como diz Molina, 1994 em C: 19) – o que para
alguns pouco teria a ver com a realização desigual e combinada do capitalismo na periferia, integrada ao mercado
mundial. De modo que o que parece a alguns ser o mais interessante na ficção onettiana, a saber, o aspecto
modernista da invenção formal e construtiva (Molina, Verani, Llosa, Arbolay) mais ou menos se destaca dessa base
histórica antagônica que estamos tentando determinar. Algo que o próprio escritor às vezes ironiza: “e preferimos
voltar aos velhos, provavelmente eternos temas de discussão em Santa María: as perspectivas das colheitas e de
seus preços, a política, os progressos da Colônia” (J: 158).
141
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Não é tanto pelo estilo retórico, ao final desmentido como ideologia e formalismo de
publicitários como Brausen e Stein – a semente da saga de Santa María é a encomenda, feita
por Stein a Brausen, de um “roteiro de cinema”... “que não seja bom demais. O suficiente para
que possam estropiá-lo” (VB: 15 e 24) – e de duplos de escritores/amadores como Linacero,
Díaz Grey, Jorge Malabia e Lanza (P, TsN, E, J) que algo se redime, salvando-se do desespero
objetivo de situações socialmente produzidas. Mas pelos silêncios e cortes dessa retórica
narrativa cínica que sugerem relações sociais pressupostas – um texto verdadeiramente
estropiado e entrecortado pela reflexão crítica, feita a contrapelo de seus narradores, como
veremos. Em vez do deleite e da vibração com um “herói” positivo, viril, isolado e
independente, sobra então apenas o asco e a tentativa de fuga nem sempre lograda, geralmente
paga com a morte: como na mulher “desaparecida” pela ditadura no conto “Presencia” [1978],
que liga-se à prisão e ao exílio vividos na pele pelo próprio Onetti (C: 373-79), mas que de
maneira extraordinariamente complexa põe em tela justamente Jorge Malabia como um
narrador liberal dissimulado e suspeito de gozar imaginariamente, em seu exílio em Madrid,
com os aspectos mais bárbaros da tortura e do abuso sexual de Maria José nos porões da
ditadura – o que ele transfigura na diversão imaginária de cenas de sexo fervoroso da
bibliotecária com um amante numa casa de swing em Madrid –, o que o transforma no lado
avesso da “tirania (…) selvagem” do General Cot em Santa María, que aliás fechou seu jornal
El liberal! São estas inversões críticas de ponto de vista, que envenenam toda a narrativa, que
intérpretes como Llosa ou Verani deixam de captar. Ou ainda como podemos ver enquadrado
142
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
***
Por enquanto fiquemos por mais impressões e efeitos dessa prosa a fim de atinar com
o seu princípio estrutural. Vemos que, mais ou menos como na experiência do leitor
machadiano, não se lê Onetti sem prender a respiração e sem fechar bruscamente o livro de
vez em quando, duplicando o gesto de fuga de suas personagens atingidas por uma voz falsa e
um olhar cínico e dissimulado. O suposto “charme” da prostituição e da violência masculina
que horroriza tanto quanto seduz os conservadores e reacionários pervertidos é, no final das
contas, nenhum. As cenas de nudez e sexo, álcool e drogas, crueldade e êxtase, quase sempre
sugeridas e muitas vezes suspensas, diminuídas e ridicularizadas com o selo de exploração e
dominação masculina gratuitas – a especialidade de Onetti é cair da tensão no anticlímax
desse absurdo –, afastam-se da banalidade da cultura massificada, sugerindo apenas uma
contemplação crítica do horror e seu encanto. Pois o horror ao final é essa “organização social
monstruosa” (VB: 134) que cinde, hierarquiza e classifica as pessoas, forçando-as à venda da
própria pele no mercado. E isso com a coparticipação desses indivíduos com sua pertença de
classe (e sua estrutura pulsional, que se diria mais que narcisista quase louca e
sadomasoquista). Pois essa lumpenburguesia rioplatense meio fantasmagórica que traçamos
necessita de um proletariado real-fantasmagórico sempre a postos – se o estaleiro fantasma
143
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
de Petrus “pára apenas uma hora”, reflete o dono, “que coisa vou poder estar defendendo nas
antessalas daqueles burocratas, aqueles piolhos ressuscitados”? (E: 124), ou necessita de uma
superpopulação relativa para realizar a produção agrícola, mantendo-se nos subempregos ou
na vala do desemprego, logo caindo na marginalidade em meio às crises do crescimento e da
acumulação argentina, que concentra a renda e logo entra em estagnação, “dependente” da
importação de insumos, tecnologias e da maior intervenção do Estado a partir de meados dos
anos 5013.
Essa leitura não tem nada de arbitrária. Ela permite encontrar um princípio estrutural,
no sentido de uma essência ou conceito maior da prosa onettiana. Para leitores
contemporâneos que aprenderam a fina ironia das construções de vanguarda de Kafka, Joyce,
Musil, Faulkner ou Beckett, bem como a lição de desconfiança da voz de todo e qualquer
narrador imperial tal como ensinada pela melhor literatura latino-americana desde Machado
e Borges, essa leitura ao contrário, feita a partir dos problemas de constituição imanente das
obras, passa do asco do fundamento ao onírico, e ao rebote da reflexão crítica. Sobretudo em
relação à matriz especificamente patriarcal ex-colonial desse mundo das mercadorias
periférico, assim, que triunfa cinicamente no primeiro plano, na desordem do discurso parcial,
dúbio e não confiável de um narrador de “estilo crapuloso”14 – mas cujo resto irredutível é a
aflição de criaturas sofridas singulares, principalmente mulheres e crianças que tendem ao
silêncio, ou mais, ao silenciamento e à objetificação sacrificial, tal como expresso quase a título
de programa na novela Para una tumba sin nombre (1959), na exploração sexual de Rita e seu
13
Furtado, 1970, p. 211-3.
14
Llosa, 2009, p. 116-7. Aqui, mais uma vez as semelhanças com Machado de Assis e Graciliano Ramos são
evidentes.
144
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
bode feita por Jorge Malabia (e outras personagens) e o dr. Díaz Grey (como narrador parcial
declarado). Isso que pulveriza qualquer adesão aos narradores e faz procurar a matéria
resistente nas entrelinhas dos grandes romances de Onetti. Mas aqui há um giro a mais no
parafuso: como em Quincas Borba e Esaú e Jacob15, a parcialidade e o engodo se revelam em
narradores oniscientes, “distanciados” e “objetivos”, ditos de “terceira pessoa” que na verdade
não o são, porque participam de uma mentira ficcional “esclarecida”, do embuste de
personagens-narradores impostores que evitam a primeira pessoa ou se projetam como meras
testemunhas anônimas para assim se demitirem da própria subjetividade, se livrarem da culpa
e da responsabilidade; e mesmo quando acentuam sua participação subjetiva isso serve anda
mais para normalizar a transgressão de limites entre o mesmo e o outro, o interior e o exterior,
a imaginação e a realidade, o moderno e o arcaísmo neocolonial, o decoro e a desfaçatez, a
ordem e a desordem, a norma e a exceção. Esta tensão entre momentos, que na verdade é uma
oscilação ou interversão contínua entre eles, torna-se então o princípio estrutural global da
obra de Onetti. Desdobraremos esse princípio em forma logo mais adiante.
15
Cf. meus estudos sobre esses romances: Duarte, 2011 e 2018.
145
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Para esta noche (1943), Onetti vislumbra a derrota de uma “geração perdida”16 e faz uma
“antecipação” do clima de terror e lutas intestinas do peronismo e dos golpes militares que se
sucederam na Argentina e o resto do continente17. É este contexto sociopolítico o centro oculto
da “vida breve” das classes médias e do proletariado argentino em formação, que de resto
cresceu como tema direto ou indireto da modernização nacional desde os anos 20 e 30 numa
série de narradores maiores e menores das fronteiras e de “las orillas” (Quiroga, Borges, Arlt18,
Mallea, Ponce, Castelnuovo, Tuñon etc.)19. Nesse sentido, Onetti submete a vanguarda
europeia à tradição literária-fantástica local e às questões latino-americanas, que não por
acaso passaram desde as origens pela figuração desse poder despótico nas propriedades rurais
até o seu ápice na série de “romance de ditadores”20. Assim, há uma inteligência crítica em
operação nessas narrativas que se avizinha como que fascinada pela abjeção do submundo
urbano e a liberação embriagada do grand monde europeu meramente simulado, mas que
remetem sempre a outra coisa, mais fundamental, difícil de nomear, que se formula muito
bem afinal como o desejo de “vida breve”: a tradução que imita/remeda esse “mundo louco”
normalizado de exploração, opressão e morte simbolicamente vivida em ato (VB: 13), mas
também traz à tona um certo desejo inconsciente de ruptura: “o afã raivoso de despojar-me”,
16
Monegal, 1966. O contexto imediato é um relato da guerra civil espanhola. Segundo Onetti conta em uma
Conferência no Instituto de Cultura Hispânica em 1974: “Más tarde escribí una novela llamada Para esta noche,
basada en un relato que me hicieron en un café dos anarquistas que habían logrado huir de España” (“Por culpa de
Fantomas”, em Onetti, 2013).
17
Davi Arrigucci Jr. também observa esse dado político fundamental: “Onetti é o primeiro romancista da cidade
grande, que ele capta na febre da transformação, nos anos caóticos das avalanches imigratórias e do crescimento
desequilibrado, da quebra do mundo feito à semelhança das capitais europeias, do mundo da burguesia liberal,
pela invasão das massas. Na verdade, um romancista das raízes do populismo, alvo para o qual se voltaria mais
tarde a ironia cortazariana, fazendo eco a esse primeiro testemunho, já desencantado, do escritor uruguaio”
(Arrigucci Jr., 1973, p. 164).
18
Há clara semelhança entre o “mundo loco” vivido ou inventado por Brausen/Arce em La vida breve e o universo
cristão totalmente delirante de Los siete locos (1929) e Los lanzallamas (1931), de Arlt, em que o “Deus vivo”
buscado é por fim o Capital, cultuado pela religião do “industrialismo”, de Ford e Rockefeller, ou Napoleão e Lenin,
ou do puro fetiche do dinheiro que se desdobra pelos desvarios tirânicos de poder desses “eus” que se dedicam,
qual empresários, a recrutar força humana abstrata para uma revolução imaginária trespassada pela farsa, a
crueldade, o militarismo, o crime e a sexualidade perversa. Na base, desde os primeiros passos de Erdosain, a
experiência da marginalidade no bas-fond é a do trabalho abstrato na cidade: “ele já não tinha nenhuma esperança,
e seu medo de viver tornava-se mais poderoso quando pensava que jamais teria ilusões quando (…) reconhecia que
lhe era indiferente trabalhar de lavrador de pratos num bar ou como empregado num prostíbulo (…). A casa negra!
Erdosain, conservava daqueles tempos uma lembrança abominável; tinha sensação de que vivera no interior de um
inferno, cujo conteúdo diabólico acompanha através dos dias” (Roberto Arlt, 2000, p. 86); ou seja, “a realidade
imunda dos milhares de empregados da cidade, dos homens que vivem de um soldo e que têm um chefe” (ib.: 334,
trad. modif.), ou como falará o Astrólogo: “Me agradam muito estas realidades… e o contato com ladrões, cafifas,
assassinos, loucos e prostitutas. Não quero lhe dizer que essa gente tenha um sentido verdadeiro da vida…. Não…
estão muito longe da verdade, mas me encanta neles o selvagem impulso inicial que os lança para a aventura” (ib.:
197). Para o papel central de Arlt nos anos 30 cf. Sarlo, 2003, p.50-62, e o relato do próprio Onetti (2013), no
“Prólogo a la edición italiana de «Los siete locos», de Roberto Arlt (1971)”. As semelhanças de conteúdo entre Arlt
e Onetti já foram observadas por críticos de primeira linha (Llosa, 2009: 44-51; Píglia, [2009], 2015), mas não por
esse fio materialista que estamos tentando puxar.
19
Cf. Sarlo, [1988]/2003 e Rama, 1976.
20
Cf. Rama, 2008, 1976 e 1982. Ver também Monegal, 1966.
146
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
como diz Jorge Malabia, “minha crença nas vidas breves e nos adeuses, no vigor hediondo das
apostasias” (J: 337) – que como mostramos pode resultar em gozos perversos.
Para logo apreender as diferenças decisivas do conteúdo e sua dialética com a forma,
basta pensar no que significam personagens androcêntricas e misóginas como Brausen e Stein
(publicitários boêmios, funcionários de MacLeod, diretor de uma agência de propaganda
estadunidense que lucra em Buenos Aires mas não vai bem das pernas), ou, no plano
imaginado da ficção em segundo grau: Jeremias Petrus (um falso self made man proprietário
de campos, casarões, fábricas, mulheres e até um estaleiro em ruínas); Larsen Junta-
Cadáveres (um pobre-diabo tornado gigolô e proxeneta, dono de um prostíbulo de mulheres
velhas numa província e administrador geral do estaleiro fantasma de Petrus); Marcos
Bergner (dono antissemita de uma fazenda colonial cheia de peões e empregadas, e que aos
poucos é transformada no “Falanstério”, uma espécie de comunidade primitiva cristã orgíaca,
uma espécie de casa de prostituição ou de swing particular sem fins lucrativos); Jorge Malabia
(um jovenzinho rico, herdeiro e editor de El liberal, que cai nesse mundo marginal iniciado
por Marcos Bergner e Junta, depois de aproveitar-se sexualmente da cunhada enlouquecida,
Julita Bergner); e o próprio médico Díaz Grey (principal personagem refletora da obra, o duplo
imediato de Brausen/Arce, com seu ar inteligente e cavalheiresco, mas um gozador apático e
voyeurístico, que colabora com os “sucessos” do prostíbulo em Santa María, mais tarde casado
com Angélica Inês, a filha “idiota” ou “louca” de Petrus).
Mas é preciso também pôr a oposição e a contradição – o que falta geral nas análises.
É esse também o submundo proletário ou em curso de proletarização desintegrada, vivido por
Eladio Linacero (P), que procura sua identidade nas classes populares; vivida por Stein e
basicamente por Brausen, recém-cortado da agência de publicidade norte-americana, que
atritam com o patrão MacLeod, ambos ex-membros de um Partido de esquerda, leitores de
Marx, psicanálise, com anseios políticos eludidos ou evocados à sombra da vida breve, em que
Santa María parece equivaler ao desejo inconsciente de fundação de uma cidade utópica (daí
o “falanstério” de Bergner, a casa celeste “perfeita” de Junta etc.) (VB e J); vivida por Larsen,
enfim, trabalhador de escritórios que larga um emprego de escrituração contábil em El liberal
e cai no lenocínio (J) para viver como “gerente geral” do estaleiro, mas visando no fundo
arrancar salários de Petrus e dar o golpe em Angélica Petrus (E); enfim, e aqui a boa
contradição clássica, vivida pelos operários e ex-trabalhadores das fábricas de conservas e do
estaleiro como Gálvez e Kunz, além de pescadores e camponeses do bairro fabril de Porto
Astillero (E), que se complementam no drama vivido pelas prostitutas como Queca (VB),
Maria Bonita, Nelly, Irene, Ana María, Rita (J), mas também pelas inúmeras mulheres
sofredoras como Gertrudis e Raquel, que refugam a “normalidade” da frieza e da opressão
147
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
machista (as cenas de separação definitiva entre Brausen e Gertrudis está entre os trechos
mais belos de Onetti em VB, como logo veremos), e que servem de lúcido contraponto ao
desvario do indivíduo monádico (elas possuem uma vida social, buscam o amor, a felicidade
etc.).
“Mas enquanto na realidade este colosso inconsciente que é o capitalismo sem sujeito leva a
cabo cegamente a destruição, o desvario do sujeito rebelde espera dessa destruição sua
realização e assim irradia para os homens tratados como coisas ao mesmo tempo sua frieza
glacial e o amor pervertido que, no mundo das coisas, tomou o lugar do amor espontâneo”
(Adorno e Horkheimer, 1947/1985)
Isso posto, temos a condição de unificar o movimento dessa matriz prática com o
princípio estrutural, a forma e o conteúdo das narrativas, deitando o olhar nas configurações
específicas e assim podendo desfazer alguns mitos de Onetti como autor digressivo,
envelhecido e anódino. A trama complexa de Santa María, criada a partir de La vida breve,
tem razões profundas e articula as partes a esse todo, em contos, novelas e romances que
desdobram essa origem e condensam os processos sociais de modernização em curso. Noutros
termos, é claro que seu referencial social maior não é qualquer doutrina da “desgraça” – ou,
pior, do “desespero” de um tal “Bispo” católico (VB: 236-40), via racionalizações importadas
do existencialismo – esta é sua matriz ideológica mais funda, que serve como justificação
metafísica às vezes para seus narradores e personagens –, mas a condição proletária, o
trabalho abstrato e suas esferas cindidas, o capital numa sociedade neocolonial, patriarcal e
periférica que então se industrializava. Aqui relampeja a verdade em seus romances e contos
a ser descoberta na ação e na objetividade das relações sociais travadas e menos no que é
cifrado pelos significantes “indecidíveis” da écriture ou a voz de seus narradores.
148
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
21
Genette, [1972]/2007, p. 201.
149
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
desencadearia mais tarde sua separação da esposa. Ao final, ele aparta a conversa sobre o
Carnaval levada no apartamento ao lado, comentando: “...E aqui estará Gertrudis meio morta
– pensei –, convalescendo, se tudo correr bem. Com essa besta asquerosa do outro lado de
uma parede que parece de papel.”(VB: 18, g.m.). Emerge aqui toda a ferocidade desse narrador
fino e educado, que já imagina na cirurgia da esposa a possível morte, transfigura a sua dor
em “dever” de piedade e obrigação de não a humilhar, e o seu corpo afinal como útil para
cumprir um exercício sexual: “Porque a única prova convincente, a única fonte de alegria e
confiança que posso dar a ela será levantar e recostar em plena luz, sobre o peito mutilado, um
rosto rejuvenescido pela luxúria, beijá-lo e enlouquecer ali” (VB: 18-9). A passagem brusca no
mesmo parágrafo da moral à luxúria mecânica, do tom delicado ao grosseiro ou mesmo
monstruoso (a imaginação da morte, o detalhe triste e desnecessário do peito mutilado etc.)
passa então para o todo da composição.
No limite, a transgressão será mais que ódio contido e agressão banalizada (e sabemos
como ele se acostumará a golpear Queca até tirar sangue de seu rosto): torna-se uma espécie
de violência generalizada, chegando às raias de uma violação geral da lógica e de toda
realidade, incluindo-se aí o furto geral de suas ideias “loucas”. Sirva-se como exemplo um
diálogo que busca caracterizar as vozes do “mundo louco” escutadas por Queca em que
Arce/Brausen praticamente “descobre” no outro (ou na verdade furta/utiliza) seu próprio
princípio de construção ficcional. Antes de chegar a ele temos de ordenar um pouco as peças
do quebra-cabeça onettiano.
Para começar, note-se que o bom publicitário sujeito-dinheiro Brausen não tem
“preconceito algum” em prontamente assumir-se como gigolô de uma prostituta "disponível"
no apartamento vizinho, e que ele sabe que ouve vozes, é vulnerável, destituída de defesas
subjetivas contra o Outro. Mas o narrador confessa que “precisava ficar sozinho no
apartamento” – que pertencia a Queca –, “para voltar a nascer (…) chegar a ser e a me
reconhecer” (VB: 223). A lógica narcísica, contudo, é de exclusão e luta de morte – pois, como
sabemos, “la vie est brève” (VB: 174). E assim ele já havia planejado a morte de Queca e Ernesto
(outro gigolô, parceiro da moça) (VB: 125 etc.), como provável vingança contra a sua “traição”
ou independência (afetiva, financeira) de mulher, sua separação de Gertrudis, sua demissão.
150
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Esse assassinato seria feito por Arce ou por um outro – e enquanto ele rumina em ritmo de
espera na verdade ele será feito por Ernesto. Mais tarde, após o crime cometido, Brausen
entrará numa espécie de “reunião” narcísica de traços homossexuais e delirantes com esse
jovem e másculo Ernesto – vale citar: “preciso saber, sem sombra de dúvida, que ele não passa
de uma parte de mim, doente, que pode matar-me e da qual é prudente cuidar. Sou o único
homem sobre a terra [!], sou a medida; posso acariciá-lo sem dó nem desdém nem ternura,
apenas com o sentimento de que está vivo. Posso dar-lhe palmadinhas, sussurrar-lhe uma
canção de ninar, comprovar que adormece e deixa de incomodar-me enquanto penso que é
mais bonito que eu, mais jovem, mais tolo, mais inocente”, VB: 274, grifos meus) – ou seja, o
assassino de Queca torna-se o seu parceiro-cúmplice, o seu duplo real sedutor/ameaçador, e
assim Brausen o protegerá da polícia até o fim (VB: 274), quando ele mesmo parece
definitivamente pirar, procurando migrar para dentro da sua ficção de Santa María,
misturando completamente os planos do real e da ficção22.
Ora, no capítulo examinado, talvez Brausen pudesse se ter como um “Eu” unificado,
“uma ponte entre Brausen e Arce”, se conseguisse eliminar Queca, ou seja, fazer o casamento
definitivo consigo mesmo, entre o seu lado normal, profissional e “ascético” (Brausen) e o seu
lado marginal/fora da lei (Arce). É isso que ele esperava. Como pano de fundo, temos sempre
sua questão central inesperada, a que atualiza socialmente um trauma de castração: “eu estava
aborrecido pensando nas consequências da perda do emprego” (VB: 175), que se replica na
mutilação do seio de Gertrudis e na sua separação da mulher, que aliás se lhe afigurava como
uma bela sedutora histérica quando jovem, sobretudo em seu primeiro encontro sexual (VB:
42) – esposa que ele mantém à distância suficiente no plano ficcional encarnada na quase
ascética Elena Sala (=Mami+Gertrudis+Raquel), como esposa de Lagos (=Stein) e parceira
sedutora de outros homens (o “Inglês” Owen). Mas aqui, em suma, Brausen ouve distanciado
os “monólogos” de Queca com seus outros imaginários (“Eles”), “conservando também o
abandono, a sensação, um pouco feminina e envergonhada, de que alguém tomava
providências por mim” (VB: 223). Daqui vem a sugestão final para a escritura de Santa María,
22
Vale dizer que o final genial e tresloucado de La vida breve não é o capítulo final sobre o baile de carnaval em
que Brausen parece se transfigurar em Díaz Grey e viver com figuras de Santa María (“Sr. Albano”), mas dá-se na
confusão de planos do capítulo anterior (“Thálassa”), em que ambos os fugitivos do apartamento de Queca após
são interpelados por homens de cinza (prováveis policiais) e um delegado invisível e só voz (a personagem de
Medina, mais tarde revelado em cena paralela em J: 337 ss.). O seu destino certo então parece ser a cadeia – ou a
fuga. Enquanto Brausen é identificado pelo delegado (“- Você é o outro – disse o homem. - Então, você é Brausen”),
Ernesto “esmurrou a cara do homem” (VB: 336-7), que cai imóvel no chão batido. Aqui a cena é suspensa – mas
restam os dois policiais que cercavam Ernesto no banco da praça… em Santa María. Assim, mais tarde, em
Juntacadáveres (1964), Ernesto se converte em Larsen, e Brausen, talvez, num misto de Díaz Grey e Jorge Malabia,
que assistiram à cena de expulsão de Larsen da cidade conduzida pelo delegado Medina e dois militares. Só mais
tarde Larsen volta à vida de Santa María, na verdade como proletário fracassado, para buscar sua vingança
imaginária n’O estaleiro (1961). Num conto estranho, Díaz Grey caracteriza sua vida e o universo de Santa María
como o “sonho de um infeliz paranoico” (C: 345).
151
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
que começara antes com sugestões esparsas daquele “jogo de dois” com Queca, com a
demanda de Stein por uma “argumento de cinema”, a própria imitação da “velha-guarda” e
da vida boêmia de Stein com Míriam/Mami (VB: 44, 66, 226 etc.). O abandono à posição
feminina e ao monólogo insensato da prostituta no apartamento, contudo, o faz suspeitar que
“eles”, os “objetos” do apartamento, “mutilavam, para me prejudicar, o ar do apartamento”
(VB, 223-4). Um apartamento que Arce toma agora como seu território patriarcal sem mais
disfarce, e começa a querê-lo campo deserto, sem Queca e sem ninguém, silencioso e ordenado
por objetos mágicos, "murmurantes", com o ”destino de fetiches” (VB: 217-8), uma pura
“natureza-morta” (como já adiantara no início, VB: 66-71). Assim reverbera o domínio rural
ex-colonial na mente metropolitana de um modesto publicitário em Buenos Aires. E aqui vai
o diálogo no apartamento, notando-se os travessões e outras marcações que o narrador faz
para cortar o pensamento de Queca e justapor seus comentários ácidos:
“- Mas como são eles? - insistia nos momentos amigáveis. - Se você fosse desenhá-
los, se os tivesse visto no cinema…
- Eles são; nunca vi nenhum – dizia ela; somente ao falar ‘deles’ se mostrou
inteligente em todos os meses em que estivemos juntos. - Eles são, e sinto que estão
ali; posso dizer que vejo e que escuto eles, mas é mentira. Não como vejo você ou
outra pessoa. (...) Falam e falam e às vezes com uma velocidade impossível, e,
mesmo assim, eu entendo tudo (...) Mas eu sempre escuto eles, sei o que inventam
para me chatear. Um começa pelo canto e logo todos estão se movimentando por
outra parte, me chamando e me ignorando (…)
- São pessoas que você conheceu, lembranças, aparições?
- Não são, você não entende? Eu sei que ninguém pode me entender. - Era incapaz
de mentir se falava ‘deles’, só então acreditava que a verdade era mais importante
do que as míseras fantasias com que ia disfarçando cada coisa que contava. (VB,
224, grifos meus).
Ela mente, se disfarça, fantasia, se prostitui, se degrada etc., mas não há equivalência
possível para o publicitário. Assim o pacato Brausen vai intercalando cada diálogo com
reflexões ambivalentes: educadas e machistas, ternas e rancorosas... até o corte rente à pele:
“Talvez ‘eles’ [e aqui Queca está inclusa] é que estivessem me separando de Arce, me negando
a totalidade do ar irresponsável, da atmosfera da vida breve” (VB: 225). Assim se define aqui
a vida breve: um desejo de poder ilimitado, irresponsável e violento, em que o outro deve ser
suprimido, não sem sugerir o motivo de que refletem ele mesmo no espelho. Mas aqui talvez
comece a imaginação do próprio romance como uma espécie de cura e reintegração de si
através de Santa María: “jogado numa e noutra cama (…) eu aguardava, às vezes me distraía
visualizando rostos e lembranças, pensando em Gertrudis, Raquel, Stein, meu irmão, ruas e
horas de Montevidéu, como se evocasse um passado distante, fantasmas condenados a
perseguir outro.” (VB: 225). Sem dúvida, algo dessa superação da desgraça, dessa
152
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Imaginário estilhaçado
Voltemos um pouco à gênese dessa problemática formal em outros bons textos.
Veremos aqui mais uma vez que não é projetando um positivo separado e exterior à
negatividade social que se pode apreender as belas movimentações da narrativa. Daí a
abstração procurada e o referencial social sempre achado desde as primeiras novelas como El
pozo (1939) e os primeiros contos clássicos de primeira qualidade – “El posible Baldi” (1936)
e “Bienvenido, Bob” (1944), por exemplo –, numa experimentação cada vez mais purificada
que daria numa prosa moderna “realista”, uma sorte de prosa híbrida, i.e. mesclada ao
conteúdo desse fracasso histórico.
(“a culpa é toda minha: não me interessa ganhar dinheiro nem ter uma casa confortável, com
rádio, geladeira, louça e um banheiro impecável. Acho o trabalho uma estupidez odiosa da
qual é difícil escapar”, P: 36); cético e machista, ele odeia as mulheres (em seus devaneios
impublicáveis ele “releva” o ato de assediadores e estupradores e elabora um desprezo amargo
pelas prostitutas), odeia de morte a pequena burguesia; niilista, ele odeia seu parceiro de
quarto Lázaro para quem deve um dinheiro, um operário comunista negro que tenta despertá-
lo para a causa mas lhe suscita pena e um ódio racial oblíquo (com uma apologia indireta e
ceticista da “besta loira” e da “nova mística alemã” de Hitler, P: 50) – embora no fundo de tudo
haja apenas o sofrimento social e o afeto ambíguo da compaixão. Nessa trama a la Dostoiévski
e Céline, Linacero distribui sua pena e seu desprezo por si e por todos, pela vida mesquinha
generalizada, pela ideia “apocalíptica” de revolução (que deu na burocracia stalinista P: 46),
embora saiba de cor as falácias da propaganda anticomunista nos jornais feitas pela ideologia
ianque, e tenha sincera afinidade com os “operários, pessoal dos frigoríficos, maltratado pela
vida”, “a gente do povo, a que é povo de maneira legítima, os pobres…”, os que parecem ter
algo de “não contaminado” (os que se elevam “sobre a própria miséria de suas vidas para
pensar e agir por todos os pobres do mundo”, P: 47-8) – tratando de escapar ele mesmo dessa
vida perseguida pela “desgraça implacável” portanto, não por uma ação política, mas através
do relato de sonhos violentos e da escrita literária inerme que sai da noite rancorosa como a
água escura de um poço (P: 58). Linacero não pode ser dito assim um “integrado”, nem um
revolucionário “apocalíptico” – mas um pequeno burguês “fracassado” e “desclassificado” (P:
45), indeciso e autoflagelado pela culpa, que ainda não tomou consciência de sua própria classe
mas teme no fundo a proletarização, sem quebrar o casulo do individualismo e sem se
identificar plenamente entre los de abajo, como diria Mariano Azuela.
No conto sobre Baldi, temos um pequeno advogado de vida normal e sensata que
devaneia a monstruosidade de ser um soldado caçador e exterminador de negros no regime
colonial no Transvaal sul-africano – como mero artifício de sedução de uma bela garota alta e
loira na rua, que se diria menos uma seduzida do que uma sedutora “compreensiva” e
parafascista (C: 42-3), como se ambos só assim pudessem deixar de caluniar a “vida”, “que é
outra coisa”: “é o que não se pode fazer em companhia de mulheres fiéis, nem de homens
sensatos” como “empregados, patrões, chefes de escritórios” (C: 42-3, 46). Pulsa aqui assim o
desejo de não-trabalho na “vida breve”. Mas o Baldi real é o que suporta o sistema de dívidas,
demandas e mais-trabalho... Em Bob, finalmente, temos o jovem sonhador que “planeja
enobrecer a vida dos homens construindo uma cidade de ofuscante beleza para cinco milhões
de habitantes, ao longo da costa do rio” ou o “Bob que proclamava a luta de jovens contra
velhos”, “o Bob dono do futuro e do mundo” – apresentado por um narrador anônimo mais
154
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
velho, solitário e desiludido da vida e dos ideais, que perde a chance do casamento com Inéz
(irmã de Bob), e passa a "amar" de maneira amargurada e toda vingativa o seu duplo
imaginário, o Roberto envelhecido aos trinta anos, que ele interpreta para todos os efeitos
como mais um homem fracassado e sem futuro como ele (um homem de “vida grotesca,
trabalhando em algum escritório hediondo, casado com uma mulher a quem chama de ‘minha
senhora’”, C: 114-5). Aqui, a realidade prevalece sobre o imaginário e o eu extrai prazer do
ódio.
A partir de La vida breve teríamos segundo Emír R. Monegal uma prosa urbana muito
rebuscada e realista, permeada pela “ambivalência” da realidade do imaginário, com seu
ponto mais alto em El astillero. Até aqui o seguimos, só que não até sua tentativa inexplicável
de dar um contorno mais “humano” e “vivo”, quase romântico e burguês à figura de Larsen,
vale dizer, uma “história de uma necessidade de amor e verdadeira comunicação que lhe estão
negadas[!]”23. Ora, nesse item Monegal escorrega feio na idealização: nessa versão positiva, o
típico cafetão latino-americano decadente desponta como uma das sínteses desse mundo dito
“onírico”, mas que é apenas uma nova “forma de loucura”(J: 106) fetichista do mundo das
mercadorias, isto é, o “filatelista de putas pobres” (J: 189), cujo grande feito é “o patronato das
putas pobres, velhas, consumidas, desdenhadas” (J: 252) através da fundação de um
prostíbulo juntando esses “cadáveres tutelados”, “disformes”, “grotescos”, “putrefatos” (J: 97),
atualizando empresarialmente a Mme. Tellier de Maupassant (e que aqui ganha o traço
indígena de “Tora”, uma concorrente estabelecida em Rosário, J: 99-101) – e isso através de
conluios políticos escandalosos com Barthé (que receberá a propina de quinhentos pesos por
mês, num acordo que prejudicará os trabalhadores do porto) e com a câmara municipal (não
sem a intermediação espúria de Díaz Grey). E ainda, para fechar a fatura do insulto e da
indecência de Junta-Larsen: sua decisão de abandonar sozinha num barraco numa vila-
miséria argentina a mulher de Gálvez em pleno trabalho de parto, sangrando uma hemorragia
(E: 245), que é uma releitura em chave negativa do final de Light in August, de Faulkner. Para
o nosso crítico, esse percurso pelo “horror de um mundo solipsista” de Larsen converte-se
adiante (por uma mágica do “mundo onírico”, de fato) na “cifra de toda a humanidade”[!]24. É
o erro das leituras intencionalistas e alegórico-intertextuais de Onetti, abstraídas da totalidade
e do contexto histórico: pois nos “impulsos vitais” do escritor Monegal quer apenas
reencontrar uma “alma terna e desgarrada” análoga a de seus protagonistas, o que para ele
“desmente a (aparente) negatividade e sordidez do assunto”25. Assim se suspende toda sua
23
Monegal, 1966, p. 255.
24
Ibidem, p. 254 e 259.
25
Ibidem, p. 260.
155
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
relação crucial com J. Petrus, M. Bergner e Jorge M., que como vimos descendem de
Brausen/Arce (“todos os homens que a habitavam tinham nascido de mim”, VB: 320-1). E no
entanto é o próprio Monegal que, buscando reconhecer nesse gigolô invulgar um “coração
romântico”, o “único ser vivo num mundo de cadáveres”, compreende bem a sua essência vital
como fuga narcisista da vida, escape defensivo da dura realidade e da potência do tempo26.
Ora, seria o caso de investigar melhor assim essa dinâmica temporal, quebrar a
ideologia e perceber o que se desintegra na radical discrepância entre a ordem das ideias e a
realidade. Ou entender melhor como essa discrepância, um pouco como no mundo das “ideias
fora do lugar”27 machadiano, é em parte dissolvida e em parte conservada, sem desmanchar o
todo e a situação ideológica peculiar dos países periféricos. Nos termos extraordinários de O
estaleiro: como Larsen estava “enfeitiçado e resolvido” (E: 46) a praticar a impostura – a
“comédia de trabalho, de empresa, de prosperidade” (E: 31) – até o final, culminando no
cortejo furado e no amor recusado, na verdade impossível, com a louca Angélica Petrus. A
moça cuja “marcha lenta” ou “passo processional” serve aliás para descrever o “desfile
religioso” (E: 152) do próprio Larsen e o ritmo circular-espacializado de todo livro: a
alternância dos capítulos entre Santa María, o Estaleiro (como uma espécie de igreja em
ruína), o Caramanchão e a Casa (o “céu ambicionado, prometido”), e a Casinha e o bar
Chamamé como o “inferno” proletário realmente vivido (E: 26, 178). Aqui o texto semeia
vários significantes do fetichismo capitalista (naturalização, alienação e inversão real das
relações sociais, automovimento do capital) nas andanças “religiosas” de Larsen:
* “A única coisa que resta fazer é justamente isso: qualquer coisa, fazer uma coisa atrás
da outra, sem interesse, sem sentido, como se outro (ou melhor, outros, um amo para cada
ato) pagasse alguém para fazê-las e esse alguém se limitasse a cumprir da melhor forma
possível, despreocupado do resultado final daquilo que faz. Uma coisa e outra e outra coisa,
alheias, sem que importe se vão sair bem ou mal, sem que importe o que querem dizer” (E:
84);
* “a gente faz as coisas, mas não pode fazer mais do que aquilo que faz” (E: 116);
* “(…) não acreditam, estou percebendo, nem sequer naquilo que tocam e fazem, nas
cifras de dinheiro, nos números… mas sobem todo dia a escada de ferro e vêm brincar as sete
horas de trabalho e sentem que o jogo é mais verdadeiro que as aranhas, as goteiras, os ratos,
a esponja das madeiras podres. E se eles estão loucos, é forçoso que eu esteja louco (…) mas se
26
Ibidem, p. 255-6.
27
Nossa referência aqui mais uma vez é Roberto Schwarz, 2000, 1990, 2012.
156
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
eles, outros, me acompanham, o jogo é a sério, se transforma no real. Aceitá-lo assim – eu, que
o jogava porque era jogo – é aceitar a loucura” (E: 66).
28
Segundo a doutrina calvinista da “predestinação” e da “graça” somente a vida racional metódica permeada por
um intenso trabalho profissional era o meio adequado para afastar as dúvidas e tentações diabólicas sobre a
salvação e assim garantir a certeza do “estado de graça” (Weber, 2004, p. 100-105).
29
Como já lembrava Weber, essa jaula não precisa mais de nenhum espírito ou ideologia: “Na opinião de Baxter, o
cuidado com os bens exteriores devia pesar sobre os ombros de seu santo apenas ‘qual leve manto de que se pudesse
despir a qualquer momento’. Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço {na célebre tradução
de Parsons: iron cage = jaula de ferro}. No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os
seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres
humanos como nunca antes na história. Hoje seu espírito — quem sabe definitivamente? — safou-se dessa crosta.
O capitalismo vitorioso, em todo caso, desde quando se apoia em bases mecânicas, não precisa mais desse arrimo.
Também a rósea galhardia de sua risonha herdeira, a Ilustração, parece definitivamente fadada a empalidecer, e a
ideia do “dever profissional” ronda nossa vida como um fantasma das crenças religiosas de outrora”. (Ibidem, p.
165).
157
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
na piada de sua união final30) – converte-se agora, em El astillero, numa discrepância diversa,
com a face da contradição efetiva moderna: por um lado, ela é dissolvida numa unidade real-
imaginária, ou seja, forçada, numa espécie de mentira socialmente organizada pelo reino da
produção de mercadorias ficcionalizado pelo capital fictício (E: 31), que no limite será paga
com a desintegração do próprio eu. Por um lado, Larsen encarna a função, indiferente a tudo
o que é vivo e concreto, a ratio do empresário que “recalca a mimese”, mas que se inverte em
falsa mimese: “a mimese do que está morto”31. Nesse tipo fantástico de simulacro de
acumulação capitalista, para Larsen o “jogo” tende a se transformar em algo mais que uma
convenção mascarada quando a máscara fetichista adere ao próprio rosto: uma espécie de
ritual religioso incrédulo, a princípio, mas tornado tão objetivado e irrefreável como trabalho
simulado que parece absorvê-lo por inteiro na gerência e empurrá-lo para a catástrofe, quase
cancelando toda lucidez e sensibilidade ainda mantida nos poros do relato, dissolvendo a
própria consciência de classe mais ou menos representada como consciência da desgraça
social (“a vanguarda do medo”, “a apostasia” desse mundo, E: 138), embora também sempre
rechaçada (o “populacho verdadeiramente imundo” menosprezado logo no início, tal como a
empregada Josefina é reconhecida antes de usada e dispensada, no desfecho: “nós os pobres”,
“uma mulher que era sua igual” que criava “a sensação de fraternidade, o vínculo profundo e
espesso”, E: 15, 242-3). Por outro lado, contudo, esse movimento contraditório de mimese do
sofrido e falsa mimese do trabalho morto nunca se supera, e o levará à morte.
Junta-Larsen cai assim numa espécie de morte simbólica ao viver a loucura objetivada
e simulada do capital: no limite, ele se autossuprime e se integra ao seu outro, fazendo-se
idêntico ao capitalista fraudulento e enlouquecido, como ele declara já quase sem ironia: “só
agia movido pela lealdade e por uma incontrolável, total identificação com Jeremias Petrus e
suas ambições” (E: 127). Sua perseguição de Gálvez em busca da vingança de morte, a
coisificação anímica e a indiferença geral em que passa a viver etc. só se desfazem quando ele
reencontra Petrus na prisão, com seu comportamento maníaco, cínico, ritual e dissimulado (e
por isso Larsen volta a pedir-lhe garantias de contrato formal de trabalho e o pagamento de
salários atrasados, E: 220-1) – um encontro que funciona como uma visão do seu duplo num
espelho quebrado, revelador da própria loucura do trabalho (E: 207 e ss.). O que se completa
30
Contudo, do ponto de vista estritamente liberal, o prostíbulo de Larsen realiza as ideias modernas do “livre
mercado” – chocando a Santa María liberal-conservadora. Onetti é sagaz no comentário: “Considerando o assunto
do ponto de vista psicológico, pode tratar-se da tão comum rivalidade vocacional que sempre caracterizou os
artistas. Agora, se aplicarmos um critério marxista, pode ser que a quizila tenha como origem o fato de que as três
mulheres da casinha não trabalham de graça, não são movidas, na cama, pelo nobre amor ao ofício. Tão diferentes
das que Marcos teve e conheceu no breve tempo idílico do inesquecível Falanstério” (J: 197). Para uma análise da
prostituição e a “psicologia de massa do estupro” sob vários pontos de vista (liberal, marxista e feminista), ver
Miguel, 2014, p. 139-145.
31
Adorno e Horkeimer, 1985, p. 62.
158
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
enfim quando olha à distância, já à beira da morte por pneumonia: “a ruína veloz do estaleiro,
o silencioso desabar de suas paredes (…) o sussurro do musgo crescendo nos montes de tijolos
e o da ferrugem devorando o ferro” (E: 246). São os últimos momentos de lucidez no engodo
que ajudou a construir: um autêntico desejo de fuga, desintegração e morte. Mas sabemos que
há muito Larsen perseguia um único objetivo na vida – “ganhar dinheiro” (J: 205-6). Daí a
necessidade de “derivar”: “depositar no mundo, visíveis para os demais, palpáveis, coisas,
cifras, satisfações” (J: 205). O que já tendia a cancelar sua própria subjetividade e “solidão” (J:
166) no “trabalho” que arrastaria os homens religiosos e hipócritas de Santa María ao “feitiço”
da comercialização dos corpos no “ritual” de sua casa celeste (J: 157). Aqui, o passo à frente de
Onetti é mostrar como os preconceitos tradicionais da massa liberal-conservadora de Santa
María (o Padre Bergner, a colônia suíça) é que estavam deslocados e obsoletos frente à
mercantilização geral do país e do mundo no novo século, que há muito ultrapassara o patético
meio religioso e aristocrático da “Pensão Tellier” ou da “Bola de Sebo” de Maupaussant. A
“religião” mudou de figura e endereço.
**
O tema desses contos, romances e novelas é assim uma certa formação social fetichista
e autoritária que permeia a formação de indivíduos problemáticos de novo tipo desde a
escalada fascista internacional, objetivando-se como homens de caráter “liberal” e
“esclarecido”, mas que escondem um núcleo autoritário, patriarcal, religioso e violento mais
ou menos embotado. Por trás dessas personagens pequeno-burguesas perdidas em devaneios
e desejos ilícitos, Onetti descobre o rolo compressor da integração na vida cotidiana contra um
surdo desejo de ruptura anarco-individualista enlaçado a afetos destrutivos, rodopiando sem
destino exato.
É isso que alimenta o gozo imaginário narcisista. Na base, sentem o conflito entre
sexualidade e civilização, ou, melhor dizendo, o anacronismo do “princípio de desempenho”
(e “mais-repressão”, como o denominara Marcuse), o tempo abstrato da economia separado
da vida privada, dos lazeres e da sociabilidade, a sua colonização pela indústria da cultura etc.
Pois originalmente, como lembra ainda Marcuse32, as pulsões não têm limitações temporais e
espaciais, a sexualidade é “polimorficamente perversa” (Freud). Mas isso que é recalcado, em
nível individual, é como que redobrado como repressão excedente em nível social (uma
“renúncia” que põe o “mais-gozar” segundo Lacan33), a título da “autoconservação” da
civilização. Nos anos 50 (e aqui Onetti é nosso testemunho), já se percebia mais ou menos o
32
Marcuse, [1955]/1981, p. 61.
33
Safatle, 2020, p. 73.
159
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
34
Marcuse, [1955]/1981, p. 59.
35
Ibidem, p. 61.
36
Ibidem, p. 95-7 e p. 197-8. Cf. as elaborações de Lacan, segundo Vladimir Safatle, 2020, Cap. 1 e 2.
37
Ibidem, p. 98; Adorno, 2015; Lasch, 1986; Safatle, 2020. Para uma análise clássica da gênese do narcisismo:
Laplanche, 1989 .
160
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
personagens como Stein, Brausen, Larsen e Linacero intuem a divergência entre o gozo
prometido e a vida mesquinha mantida à força pelo sistema. Mas se Brausen e Larsen rompem
o cerco desse eu sitiado, naufragam perversamente nos rios da pulsão de morte, mandando a
autoconservação, o orgulho próprio e a decência moral às favas. Contudo, na ação desses
indivíduos fracos, liquidados pela coerção do trabalho, ouve-se perfeitamente a negação do
patriarcado em ruínas tanto quanto o reclame do poder imaginário do macho e de seus
irmãos-duplos-rivais (Stein, Jorge M., Marcos B., Díaz Grey etc.), um poder que não deveria
declinar e até se reconstitui em determinadas figuras como Jeremias Petrus, Marcos Bergner
e Medina como um “pai primevo” (Freud) acima da lei e de toda restrição de gozo.
Num outro giro histórico, após os anos 60, o que cai em pedaços, estilhaçando esse
imaginário patriarcal nada maravilhoso, é o verdadeiro mundo cão posto pelo capitalismo
avançado, para agora desembocar no colapso do valor e do trabalho abstrato (Kurz/Scholz).
O mundo onettiano prefigura esteticamente essa crise no drama da proletarização
naufragada, do desemprego permanente, da solidão mortificadora de criaturas supérfluas e
descartáveis. O ângulo tinha de ser os de baixo, para além de Brausen, Díaz Grey ou Jorge
Malabia. Ele é ocupado por uma só personagem refletora: Gálvez, o trabalhador que ocupa a
“Gerência Administrativa” do estaleiro inexistente de Petrus, que mora com a esposa e os cães
numa casa de madeira improvisada na vila-miséria, que reconhecem como uma “timoneira de
barco, uma casinha de cachorro” (E: 95). Aliás, o romance de 43 (Para esta noche), em que o
protagonista do Partido Comunista é morto pela ditadura deveria se chamar El perro tendrá
su día. Mais tarde, torna-se o título de um conto homônimo (“O cão terá seu dia”, [1976] C:
363-72), em que o jovem Petrus manda assassinar um homem (provavelmente um dos
primeiros gerentes do estaleiro em construção nos anos 30) com o auxílio de peões e alguns
dobermans famintos, embora o pior cão da narrativa seja o policial Medina, que lhe arranca
uma noite de cama com sua empregada-prostituta Josephine em troca do acobertamento do
crime. O mesmo Comissário Medina que surge no final de El astillero dando conta de outro
morto, a saber, o operário Gálvez, que para manter as aparências provavelmente foi
“suicidado” por Petrus. O mesmo policial criminoso que, convertido em gigolô e suspeito de
outro assassinato (Frieda), narra um de seus últimos romances, Dejemos hablar al viento
(1979). Aqui, a destruição da aparência se completa: a vida breve torna-se a morte em breve.
Coberto e excitado pelas móveis camadas de ar úmido, tentei ser como o rumor
distante do vento (...) (VB: 211).
**
Para terminar, precisamos retomar o caso de resistência ativa de Gálvez. Ele entra
tarde em cena, num romance que dá os holofotes para o retorno e o fracasso de Larsen.
Perceba-se como seu nome já remete simbolicamente ao processo de galvanização de peças de
metal (cf. E: 79-80). Em Porto Astillero todos sabem da "loucura infecciosa do velho Petrus" e
do estaleiro em ruínas tão maravilhosamente descritas por Onetti. Mas os administradores
Larsen, Kunz e Gálvez fingem que ele funciona, fingem que trabalham, fingem que ganham
salários à primeira vista apenas para assegurar que Petrus consiga a recuperação judicial da
falência e o favor do Estado: “Petrus está louco, ou tenta continuar acreditando para não ficar
louco. Se liquidarem, ele vai receber cem mil pesos e eu sei que deve, ele, pessoalmente, mais
de um milhão. Mas, enquanto isso, pode continuar apresentando petições e visitando
ministérios” (E: 112). Aqui emerge então o verdadeiro “mundo louco” da prosa de Onetti,
como vimos: o mundo do fetiche do capital fictício e do poder clientelista.
Na realidade, sem receberem salários Gálvez e Kunz vivem da subtração dos materiais em
decomposição do estaleiro: vendem metais, peças, ferramentas, máquinas etc. para “os russos”
(E: 78-9, 153-8). Devolvem a espoliação ao espoliador, que os trouxe como imigrantes e os
abandonou na vila-miséria com a função de conservar o valor como valor. Mas como se sabe,
Gálvez tem uma prova concreta em mãos de que Petrus falsificou títulos acionários para
ampliar o capital, de modo que para Petrus manter “o funcionamento do estaleiro é a base de
tudo” (E: 219). Esta é a questão central do romance. Aqui Gálvez entra em conflito com os
interesses de Larsen que, iludido como Gerente Geral da massa falida, defende Petrus, sonha
em receber um dia salários de seis mil pesos, fingindo-se chefe de duas centenas de operários
fantasmas (que um dia o estaleiro de fato teve e voltaria a ter) e futuro dono de trabalho morto
convertido em carcaças enferrujadas (caso conseguisse casar com Angélica Petrus). Na
verdade Onetti deixa implícito: o Junta-Cadáveres tornou-se Junta-Carcaças. Este tenta
163
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
convencer a mulher de Gálvez a lhe dar o título fraudado. Mas Gálvez não cede e “comete a
loucura” (E: 166, 190) temida por Larsen: depois de nove meses de espera e aparente
indiferença em relação à situação da esposa grávida, Gálvez entrega o título falso à Justiça e
manda Petrus para a cadeia. Fica claro que isso, pelo menos em tese, significará a liquidação
do negócio e o fim de toda a farsa, inclusive do meio de vida arranjado por Kunz, Gálvez e
Larsen. Ora, na verdade há muito isso havia sido pensado por Gálvez: “-Se for preso perdemos
tudo, nos põem para fora em vinte e quatro horas. Não é por isso. É porque esse velho merece
acabar assim. O senhor não sabe.” (E: 79).
A esposa de Gálvez não entende esse gesto de rebelião que afinal se realiza, nunca
pensou que ele estaria “louco” ao simular o trabalho no estaleiro, mas intuía que “sua vontade
era de se suicidar” em breve; para ela, o homem não guardava o título falsificado apenas para
se vingar de Petrus, mas para “vingar-se, se sentir poderoso, capaz de mais infâmia que o
outro” (E: 170). Além disso, como observa Ricardo Piglia, a trama insinua “que a mulher de
Gálvez na realidade espera um filho de Petrus”38. Certamente, são motivos simbólicos, mas
que ultrapassam o indivíduo e os seus interesses materiais imediatos: é porque o velho
capitalista “merece acabar assim”. Isso é o que implode, no contexto desse romance, os valores
“racionais” dessa ordem social fetichista: a farsa moral do trabalho, a ação do indivíduo
moldada pelo interesse monetário e a escravidão assalariada, a dependência e o dever de
obediência a quem presta favores etc.
38
Piglia [2008]/ 2015.
164
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
- É assim, então – disse Larsen. - Bem, tenho que lhe dizer que o que Gálvez fez
significa o fim para todos nós. E teve a ideia de fazer essa loucura quando tudo está
a ponto de se ajeitar. Uma verdadeira pena para todos, senhora. (E: 193)
Referências
ADORNO, Theodor W. 2015. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo:
Ed. Unesp.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. [1947] 1985. Dialética do esclarecimento.
Fragmentos filosóficos. (Trad.: G. Almeida). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
39
Aqui pode-se traçar uma linha paralela entre o dito de Gálvez e o protagonista de Alfred Döblin em Berlin
Alexanderplatz, que dá sua mágica viravolta nas páginas finais do romance formando-se, como observa Raphael F.
Alvarenga, “enquanto sujeito de classe, em ruptura com a condição dada”. Questionando “o poder do falso coletivo
sobre o indivíduo, Franz Biberkopf passa por uma metamorfose, é dissecado, desmembrado e recomposto,
ganhando no fim uma nova identidade”, ou, numa apreensão mais lógico-conceitual, agora “está portanto solto no
mundo, por conta própria quiçá pela primeira vez na vida, e é a partir deste momento, quando se encontra esvaziado
de todo conteúdo substancial (…) que se constitui para ele o desejo e a possibilidade de ruptura com a ordem
vigente” (Alvarenga, 2012, p. 210-3),
165
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
AÍNSA, Fernando. 1970. Las trampas de Onetti. Montevideo: Alfa. (Disponível em:
http://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmc639p0 Acesso em 15.12.20).
ALVARENGA, Raphael F. 2012. “O velho mundo precisa sucumbir” in:__. Desejo de
ruptura. São Paulo: Scortecci.
ARBOLAY, Lizandro. 2021. “Del peor al mejor Onetti”. La santa crítica. 15 febrero.
(Disponível em: http://lasantacritica.com/barahunda/del-peor-al-mejor-
onetti/?fbclid=IwAR2gxdbRt9BRSbDqgMIzGJ_i4gfvPfO2KMC6mhrCGmTxalIKf7EI4JjEu
UI. Acesso em: 12/05/2021).
ARLT, Roberto. 2000. Os sete loucos & Os lança-chamas. (Trad.: Maria Paula G.
Ribeiro). São Paulo: Iluminuras.
ARRIGUCCI JR., Davi. 1973. O escorpião encalacrado. (A poética da destruição em Júlio
Cortázar). São Paulo: Perspectiva.
BIRMAN, Joel. 2009. Cadernos sobre o mal. Agressividade, violência e crueldade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
COSTA, Jurandyr Freire. 1989. “Narcisismo em tempos sombrios” in: Fernandes, Heloísa R.
(org.) Tempo do desejo. Sociologia e psicanálise. São Paulo: Brasiliense.
167
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
168
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
INSÔNIA:
A “coleção de encrencas” de Graciliano
Cláudio R. Duarte
À Gizelle Caparroz,
que abriu a trilha.
História enguiçada
Boas obras são resultados de experiências quase sempre tortuosas. É como na pintura:
para obter o quadro bem realizado, o artista experimenta, estuda modelos, descarta o
imperfeito, retém o que abre caminho. Os contos de Graciliano Ramos agrupados em Insônia
(de 1947, mas muitos deles publicados entre 1935 e 1940) têm o seu valor relativo como
experimentação de novos pontos de vista (narrador obsessivo, atordoado e descentrado,
técnicas de monólogo interior, retórica da repetição e novas perspectivas de caráter
psicanalítico) e uma série de novas figurações da estética do duplo na tradição da literatura
brasileira. O que não é pouco para uma literatura que ali ainda trilhava a rota neonaturalista
e regionalista e o ponto de vista excelso do narrador onisciente. As experimentações dessa
coletânea interessam ainda mais ao leitor se os textos forem pesados como uma preparação
para o salto formal que levou Graciliano além do patamar realista da maturidade, atingido em
São Bernardo (1934), ou seja, que o colocou no ponto mais alto de Angústia (1936) e Vidas
secas (1938), sem dúvida entre os melhores romances brasileiros da década, quiçá do século.
Este o interesse de Insônia. Segundo a visão rigorosa do autor, o livro seria apenas uma
“coleção de encrencas, algumas bem chinfrins” – tal como assinala na dedicatória ao exemplar
de Antonio Candido1. O fato é que apesar de “no geral”, segundo Candido, serem “medíocres”
- “constrangidos e dúbios, mais parecem fragmentos; falta-lhes capacidade de afundar-se
numa situação limitada, esquecendo possíveis desenvolvimentos”2 - nessa mediania também
sobressaem histórias que ganham relevo, importância e significado diferente quando lidas
realmente em conjunto. A obra se oferece então ao modo de um mosaico representativo de
uma situação específica, como um feixe de narrativas iluminadoras e apreciáveis que desperta
o leitor insone para a realidade brasileira em transição até sua consolidação no Estado Novo.
A questão formal do duplo, no contexto da rápida transição social do campo à cidade, colhida
talvez na melhor tradição de Gógol, Dostoiévski e Machado de Assis, gira aqui em torno de um
1
Candido, 1992, p. 10.
2
Candido, 1992, p. 44.
169
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos
espaçados – rolar de automóveis, um canto de bêbedo, lamentações dos outros
doentes – avultam as pancadas fanhosas do relógio. Som arrastado, encatarroado e
descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de
semelhante maneira. Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas
3
Prado Jr., 1979, p. 266-8.
4
“Vieram a encrenca do Rio Grande do Norte e o levante do 3º Regimento. A imprensa derramara abundantes
minúcias. E D. Aurora de repente se convertera. Pensando pouco, vendo inimigos em toda parte e desejando
eliminá-los, aderira ao Sigma com fervor e intransigência (…) Seria bom que as cadeias se enchessem e
abarrotassem, até não haver cá fora nenhuma semente ruim”. (Ramos, [1947] 1982, p. 93).
5
Pasta, 2010.
170
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida
quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a
arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O
relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e
a máquina decrépita vai descansar.6
No trecho destacado, um relógio num hospital de província parece parar e de repente
se metamorfoseia, na cabeça do narrador protagonista, na voz do avô “dono de escravos”.
Como nas lembranças (in)familiares do escravismo na fazenda do avô que cortam a
consciência de Luís da Silva em Angústia7, temos aqui um universo cheio de tensões,
obstáculos e algum dinamismo, sem dúvida, mas um dinamismo entrecortado por recalques e
inércias, repetições e impasses. O instrumento marcador do tempo do capital marca as horas
de uma história enguiçada, que recua na memória de uma infância rural que não descansa. O
tempo não avança, a narração entrecortada por vírgulas, pequenos apostos, palavras insólitas,
em frases curtas e um ritmo algo elíptico, volta sempre ao mesmo ponto de onde partiu, ou
apenas aprofunda a ferida dolorosa do corpo aberto, mortificado, e a obnubilação da mente
que narra atravessada por essas lembranças embaralhadas. Vale a pena notar melhor esse
ritmo, num dos trechos iniciais do conto:
(…) Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, tinir de ferros,
máscaras, curvadas sobre a mesa, o cheiro dos desinfetantes, mãos enluvadas e
rápidas, as minhas pernas imóveis, um traço na pele escura de iodo, nuvens de
algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda.
Uma reta na superfície. Considerava-me quase defunto, mas no começo da operação
esta ideia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras
geométricas no quadro negro.
Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia
seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado.
Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara
terrível que surgira pouco antes, na enfermaria dos indigentes.8
Apesar de não parecer, esse ritmo é novo no país de então, dando numa prosa composta
por meio de fragmentos introspectivos que deformam a integridade do real9 – certamente
influenciada pelos experimentos narrativos da vanguarda do entreguerras, mas dependente
do processo social local incorporado em sua substância formal, que o vivifica sem deixá-lo soar
artificial. Pois eles marcam também o ritmo de um atraso, ou antes, de um mundo arcaico e
infeliz que não passa. Não por falha moral ou subjetiva de personagens e narradores
patriarcais10, mas porque é o ritmo geral composto por história e fantasmagoria social
6
Ramos, [1947] 1982, p. 41-42.
7
Ramos, [1936] 1978, p. 11-2; 135-6.
8
Ramos, [1947] 1982, p. 37-8, Conto “Relógio do hospital”.
9
Candido, 1992, p. 84-5.
10
É interessante notar como nas memórias de Infância, o regime opressivo da família, da escola e do ambiente
social, o regime patriarcal e coronelista do abuso do poder, da pancada e do açoite cria também um senso de justiça,
revolta e inconformismo no menino que desafia a autoridade e se identifica com os mais vulneráveis, explorados e
desclassificados. Cf. os eventos de castigo físico brutal de “Um cinturão”, a cidade de coronéis impunes e o típico
171
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
reproduzido pela modernização. É o que talvez explique a resistência graciliana aos cacoetes
do primeiro modernismo paulista, muitas vezes empenhado em transfigurar o atraso em
superioridade nacional11, dependente da importação das maneiras estrangeiras às vezes de
modo acrítico ou algo ingênuo e gratuito, lá onde as veias abertas do Brasil regional-
oligárquico e da América subdesenvolvida resistiam à unidade de um estilo abstrato e a-
histórico com pretensões de universalismo imediato; veias ou raízes negativas, dificilmente
soterradas por meios formalistas e subjetivantes da vanguarda internacional, que aliás parece
em parte buscar novos equilíbrios na virada para os anos 30, recuando para formas reflexivas
mais bem temperadas (Mann, Musil, Gide) ou maneiras de remontar o romance realista sob
ângulos e recortes temporais mais interessantes (Faulkner, Fitzgerald, Hemingway, Malraux,
Camus). Logo após a publicação de Insônia, aliás, Graciliano traduziria La peste (1947), de
Camus. Aqui, o avanço da descoberta desse ritmo que notamos, limpando o texto de
obscuridades desnecessárias. Mas aqui também um certo recuo, em busca das raízes em
decomposição acima aludidas: a ferida aberta do país nessa cama do hospital. Sem retroagir
então à escrita tradicional dos acadêmicos neoparnasianos e naturalistas (ainda presente em
Caetés) por ele ultrapassada em São Bernardo, o autor de Angústia elabora aqui, a meu ver,
uma outra versão do que Candido chamou o “desrecalque localista” do primeiro
modernismo.12
patife violento e estuprador (“Fernando”), a prisão de “Venta-Romba”. (Ramos, [1945]/1995, p. 29-32; 205-9; 217-
224).
11
Candido, [1965] 2000, p. 110-1.
12
Candido, [1965] 2000, p. 112.
13
“Senhor dos recursos de descrição, diálogo e análise, emprega-os aqui num plano que transcende completamente
o naturalismo, pois o mundo e as pessoas são aqui uma espécie de realidade fantasmal, colorida pela disposição
mórbida do narrador (...). Constrói-se aos poucos, em fragmentos, num ritmo de vaivém entre a realidade presente,
descrita com saliência naturalista, a constante evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação
expressionista. Daí um tempo novelístico muito mais rico e, diríamos, tríplice, pois cada fato apresenta ao menos
três faces: a sua realidade objetiva, a sua referência a uma experiência passada, a sua deformação por uma crispada
visão subjetiva”. Candido, 1992, p. 80.
172
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
odiosos, rancor, a ideia de ter sido humilhado, muitos anos antes, por um sujeito que
se multiplicava.14
14
Ramos, [1947] 1982, p. 56 (Conto “Paulo”).
15
Ramos, [1947] 1982, p. 47.
173
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
A minha banda direita está perdida, não há meio de salvá-la. As pastas de algodão
ficam amarelas, sinto que me decomponho, que uma perda, um braço, metade da
cabeça, já não me pertencem, querem largar-me.”16
Do concreto ao abstrato, do abstrato à abstração no interior dos seres criados pela
ficção: esta é a forma moderna, talvez um pouco tímida, mas eficaz, de Graciliano retomar o
tema clássico do duplo, materializando a alienação da maquinaria capitalista ascendente em
sua marcha internacional para o fascismo. Esse sujeito abstrato recebe o nome “Paulo”, mas é
a figura genérica de um Outro hostil e persecutório que habita o próprio coração desses
homens divididos entre o passado e o presente, o interior e o exterior, arrastados pelas
demandas absurdas do poder e da ordem econômica vigente, que eles também encarnam
amiúde com a mesma brutalidade de Paulo Honório (São Bernardo)17, e que se multiplicam
na coletânea sob vários nomes e modos ao longo dos melhores contos:
● em “Insônia” [1939], a “pessoa invisível” que agarra e tira o sono do narrador-protagonista
anônimo, e que se transpõe interiormente numa questão obsessiva (“sim ou não?”), no
ritmo militar do relógio (“um, dois, um, dois”), marcando o texto pela repetição infernal
dessas frases a cada parágrafo, na fantasia da cadaverização do corpo durante a noite
insone, por fim, no próprio “sujeito feliz” que parece pegar novamente no sono e que vive
como um “bicho doméstico, um cidadão comum arrastado para aqui, para acolá, dizendo
frases convenientes”, “feliz e imóvel”, deixando o leitor com a pergunta se o pesadelo
acabou ou apenas começou.
● em “Um ladrão” [1939], o criminoso aventureiro atrapalhado, que invade e furta uma casa
mas fracassa por falta de frieza e contenção dos impulsos, abandonando-se ao prazer de
beijar a boca da moça num quarto escuro, e assim terminando preso e espancado, mas
sonhando na cadeia com uma “Colônia Correcional” e o trabalho de grandes “levas de
infelizes transportando vigas pesadas”;
● em “O relógio do hospital”, que vale agora ser desdobrado como enredo, os médicos e
enfermeiros que parecem hostis ao paciente de mente turvada na cama, o relógio
obsedante que se mistura à voz do avô escravista, como vimos, ou ainda se transmuta em
“monstros”, nas dores de uma “enfermaria de indigentes”, ou em “vagabundos miúdos
16
Ramos, [1947] 1982, p. 55.
17
Como revela Paulo Honório ao final: “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu
qualidades tão ruins. A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou.
Sou um aleijado” (Ramos, [1934] 1988, p. 187). Sem significar atraso, essa brutalidade é condição moderna, parte
da cultura e instrução cuja essência às vezes é “a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária”,
como em Paulo Honório (ib.: p. 182). Schwarz lembra que “o caráter irreal e o deslocamento da modernidade no
Brasil não decorrem da incultura das elites, mas da situação apartada e da falta de direito em que vivem os pobres.
Esta é a chave de quase todos os problemas políticos e estéticos do país. (...) Quem diria que um jogo britânico e
requintado como o andamento das Memórias póstumas está ligado às discricionariedades de uma sociedade
escravista e clientelista? Pois está. Com ajustes necessários, algo parecido vale para a rispidez de Graciliano, a
malemolência de Mário de Andrade, o modernismo de Oswald, o profetismo de Glauber etc.” (Schwarz, 1999, p.
225).
174
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele,
meio comidos pela verminose, as pernas tortas como paus de cangalhas”, “gargalhadas na
rua, barulho de automóvel, o pregão de um vendedor ambulante”, enfim, “rufos de
tambor, vozes de comando” e então num “professor” de meninos com “voz dura de
matraca”, ou no “político influente” que entrega-lhe uma “carta de recomendação”,
remetendo assim de roldão à lógica tradicional da dominação personalista, ao
clientelismo e ao favor – que retornam em registro objetivo em outros contos medianos
da coletânea (“Dois dedos” [1935] e “Um pobre-diabo” [1937]).
● em “Paulo”, espécie de continuação de “O relógio no hospital”, a figura do duplo
ameaçador que começa a se corporificar e se metamorfosear vertiginosamente na cabeça
doida e angustiada de um homem com a perna e a barriga feridos na cama do hospital;
são partes do corpo em decomposição que ele deseja eliminar de si, atribuindo todo o
comando de seu lado direito a uma personagem silenciosa chamado “Paulo”; figura
fantasmagórica que inicia sua tênue aparição sob a imagem do cuidado da esposa ou dos
médicos do hospital, passa pelas palavras incoerentes e autoritárias do próprio narrador-
protagonista não-confiável18), o olhar medonho e as almas invocadas pelo espírita João
Teodósio, converte-se nos “berros dos patrões, ordens, exigências, choradeira, gemidos,
pragas” de um discurso de transe e possessão, na “vida ocupada em trabalhos difíceis”,
enfim, no “punhal” manejado por Paulo que em seu delírio final termina por matá-lo.
● em “A prisão de J. Carmo Gomes” [1940] no qual o filho do Major Gomes, um jovem
escritor de esquerda, intelectual e independente (José Carmo Gomes) é delatado como
subversivo pela irmã (D. Aurora) à polícia do regime instituído pelo Estado Novo, após os
eventos da Intentona Comunista e se converter em integralista – o detalhe justo aqui
sendo que tal ordem repressiva a atemoriza desde a infância (o discurso “profético” do pai
militar que advertia o filho: “- Tu acabas na cadeia, José”19), constituindo seu caráter (um
caso que se diria próximo ao espectro da paranoia20).
Há assim um rodeio em que o duplo de cada conto como que se duplica e se desdobra
em novas personagens ao longo da obra. E uma pequena multidão vai formando a figura
18
“Receei endoidecer, mastiguei uns nomes que minha mulher não entendeu, queixei-me do médico e de Paulo.
Como ela não conhecia Paulo, impacientei-me, julguei-a estúpida, esforcei-me por me virar para o outro lado, o
que não consegui. (...) Peço que me deixe, balbucio súplicas nojentas. Não lhe quero mal, não o conheço. Mentira.
Sempre vivemos juntos. Desejo que me operem e me livrem dele”. Ramos, [1947] 1982, p. 56-57 e 60.
19
Ramos, [1947] 1982, p. 96-7.
20
“Esforçava-se por recordar de outras revoluções. O medo não lhe permitia relacionar as ideias. Precisava fugir,
não sabia para onde. Um dia trancara a porta, largara-se à toa, em busca de um refúgio. O irmão fora encontrá-la
muito longe de casa, quase a chorar. (…) No abandono e na inconsistência (…) percebera a vitória da sublevação.
Dificilmente emergira do torpor (…) mas conservava uma inquietação, o receio de que novas tempestades se
armavam, raiva a inimigos invisíveis que lhe haviam causado tanto susto” (Ramos, [1947] 1982, p. 90).
175
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
21
De certa maneira esse é o modelo normativo da leitura de Carlos Nelson Coutinho [1966], que deixa de captar
algo essencial nos romances de Graciliano ao lhes impor o referencial do romance europeu: indivíduo isolado,
moral burguesa da ascensão pelo mérito e a liberdade de iniciativa, narrativa épica tradicional fundada no ritmo
sério da continuidade e da busca de consequências, narrador realista onisciente, ritmo da superação social de
conflitos e desenlace feliz ou frustrado, mas sempre dando sinal de uma sociedade do trabalho dinâmica, tudo isso
podendo ser atualizado pelas técnicas modernas do monólogo interior, quebra temporal etc.). Ocorre que tal grade
de análise (de base lukácsiana) é aplicada numa matéria em que os sujeitos não se formam segundo esse modelo
de experiência histórica – como demonstra Schwarz ([1977] 2000 e 1990) –, ou antes são quebrados como meros
subordinados ao poder, e as narrativas são marcadas por uma sintaxe da elipse, do truncamento e da frustração,
como vimos, e terminam sempre muito mal, entre brutos ressentidos e loucos varridos, vencedores e vencidos,
estes últimos silenciados, possuídos pelo outro, presos e exterminados, quando não serrados ao meio, e muito
pouco sujeitos isolados e autônomos. De resto, uma matéria que o crítico reconhece ser trespassada pela visão da
ambivalência e da duplicidade de outro tipo, que ele vê como contraditória (“a contradição entre uma sociedade
semicolonial em decadência e o desenvolvimento de elementos capitalistas” (Coutinho, 1978, p. 104), com seus
problemas e soluções: “a exploração social, a solidão dos personagens, a consciência contraditória (entre
passividade e revolta) do camponês brasileiro, a frustração de suas mais ínfimas aspirações, as possibilidades
(concretas e abstratas) de transcender a situação de miséria etc.” (ib.: 106). A conclusão é inequívoca: “Graciliano
constrói um dos romances mais realistas da literatura brasileira [Angústia], cuja estrutura muito se aproxima das
dos romances dostoievskianos de heroi individualista (...)” (ib.: p. 103), mas contraditória: “a necessária tragédia
do individualismo burguês determina, em São Bernardo e Angústia, a recriação da clássica estrutura balzaco-
stendhaliana, como o 'herói problemático’ que busca a realização humana a partir da própria individualidade, sendo
derrotado no combate com o mundo alienado e prosaico e tomando consciência no final, da inutilidade de seus
esforços. Esta mesma problemática, intensificada ao ponto da dissolução interior do indivíduo, determina em
Angústia a absorção de recursos técnicos desenvolvidos pela vanguarda” (ib.: 112, grifo meu) – o que a rigor
modifica quase tudo, como é fato.
22
Andrade, [1941] 1972.
23
Paes, 1990. Em estudo paralelo ao de Paes, John Gledson (2003) desdobra essa mesma série de movimento,
crise e impasse dessa personagem típica: o pequeno burocrata herdeiro do latifúndio e politicamente indeciso,
analisando as proximidades entre obras como Brejo das Almas (Drummond), O Amanuense Belmiro (Cyro dos
176
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
exposição. As cavilações e fantasias do olhar escopofílico de Luís da Silva, seu ritmo truncado
e obsessivo, sua vontade de vingança acha seu móvel real às vezes na floração do texto,
escorrendo por associações fugazes: “A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo
qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem
emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança
perdida.”24
Não por acaso as estrelas distantes que despontam no céu desse universo ficcional
cinzento são poucas em Insônia: ou referem-se a personagens infantis, seus animais de criação
e seus sonhos de fuga (como nos contos “Luciana” e o seu perequito ferido “Minsk”) ou aos
escritores politicamente atuantes das camadas médias capazes de fazer a ponte com a massa
proletária e esbulhada em formação nas cidades (como o José de “A prisão de J. Carmo
Gomes”). Contudo, aqui ainda seu destino é... prisão e morte.
Anjos) e Angústia. Na origem da questão, é claro, encontramos o ensaio de Candido sobre o romance de Cyro dos
Anjos e o seu contorno negativo dado por Roberto Schwarz que logo depois de 64 começaria a identificar o
“fazendeiro do ar” como uma figura literária típica desse país bloqueado entre o arcaísmo colonial e a modernidade
capitalista, traumática e sem remédio (ver seus ensaios “Sobre “O Amanuense Belmiro” e “Cultura e política, 1964-
1969” em Schwarz, 1978). Salvo engano, um processo similar poderia ser encontrado no contexto latino-americano
na obra semeada pela lógica do duplo de Juan Carlos Onetti: em novelas como El pozo (1939) e em romances de
estrutura muito complexa como La vida breve (1950) e El astillero (1961), nos quais a pequena burguesia urbana
desfia um imaginário inflacionado de homem frustrado e desejos de aniquilação para escapar da condição periférica
de desemprego, dependência e proletarização – ou antes, da transformação social que não vem –, mas também
para descobrir no inconsciente o futuro esfarrapado de “lumpenproletariat”.
24
Ramos, [1936] 1978, p. 123. Aqui, a análise fundamental ainda é a de Candido (1992, p. 79-85).
177
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
A respeito desta pintura mural, Mario Pedrosa escreve algo que lembra muito tais
figuras duplas e duplicadas de Insônia:
O Garimpo é sem dúvida o quadro mais livre e mais audacioso. É este o ponto mais
avançado na evolução pictórica de Portinari. O contraste antinaturalista da
composição está em parecer que não existe. As figuras no entanto se arrumam em
cruz, ou em X, o que dá a todas elas uma unidade estrutural quase cósmica, e, ao
mesmo tempo, uma força desintegradora extraordinária, pois permite um
movimento de rotação que impele as figuras a se projetarem em todas as direções.
Do mesmo modo, poderosos acordes dissonantes dominam a cacofonia que ameaça
irromper do contraste do branco e do preto, do azul e do vermelho. (…) Numa
violação às leis de acorde perfeito, o artista restaura a verdade plástica do drama
representado – excitação diabólica das figuras possessas na cata do ouro. São
possessos metidos em xadrezes, imersos na grande doçura da atmosfera tão
diferente, tão estranha à vibração e excitação daqueles bonecos mecanizados,
duplamente escravos, do ouro e da sociedade”.26
– mas também se dissolvem, talvez visando uma espécie de perda da própria perda, no
relógio que volta a funcionar dentro da mente do país que grita, talvez sem se repetir:
28
“Vejo-a como uma espécie de hipertexto dos contos do livro, arquivo somente leitura de corte-cópia dos textos
que o compõem. A voz aterrorizadora bipolarizada “sim, não”, torturantemente repetida vinte e duas vezes no
conto, em diapasão com o ‘um, dois, um, dois’ da marcha militar, é o tique-taque do relógio do hospital, a bipartição
narrador/Paulo, a saída e o retorno do ladrão, os dois dedos unidos/desunidos do governador e o amigo de infância,
Luciana e dona Henriqueta da Boa-Vista, a vida e a morte do periquito, o escritor decadente e o escritor novo, o
pobre-diabo e o deputado, o marido e o Outro imaginário de Zulmira, o universitário e Silveira Pereira, a
testemunha que nada testemunha, o integralismo e o comunismo na prisão de Gomes. Essa hipertextualização pode
ser lida como alegoria dos conflitos e contradições político-culturais da década de 30, dos quais Graciliano foi
importante agenciador e agente.” (Malard, 2013).
179
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira luminosa das réstias, perder-me nos
gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancadas medonhas do relógio
velho.29
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. [1941] 1972. “Elegia de Abril” In:__. Aspectos da literatura
brasileira. São Paulo: Martins.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. 1991. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo:
Scritta.
BALBI, Marília. 2003. Portinari: o pintor do Brasil. São Paulo: Boitempo.
CANDIDO, Antonio. 1992. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo:
Ed. 34.
__________. [1965] 2000. Literatura e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz/Publifolha.
COUTINHO, Carlos Nelson. [1966] 1978. “Graciliano Ramos”. In: Brayner, S. (org.).
Graciliano Ramos. (Fortuna crítica, v.2) [publicado em Literatura e humanismo].
2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
GLEDSON, John. 2003. “O funcionário público como narrador: O amanuense Belmiro e
Angústia” In:__. Influências e impasses: Drummond e alguns
contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras.
MALARD, Letícia. 2013. “Posfácio”. In: Insônia. Rio de Janeiro: Record [ed. digital em
Epub].
PAES, José Paulo. 1990. “O pobre-diabo no romance brasileiro” In:__. A aventura
literária. (Ensaios sobre ficção e ficções). São Paulo: Companhia das Letras.
PASTA, José Antonio. 2010. “Volubilidade e idéia fixa (O outro no romance brasileiro)”. Sinal
de Menos, nº 4.
PEDROSA, Mário. [1942] 1981. “Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”. In:__.
Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva.
PRADO JR., Caio. 1979. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense.
RAMOS, Graciliano. [1947] 1982. Insônia. Rio de Janeiro: Record.
__________. Infância. [1945] 1995. Rio de Janeiro: Record.
__________. Angústia. [1936] 1978. Rio de Janeiro: Record.
__________. São Bernardo. [1934]. 1988. Rio de Janeiro: Record.
SCHWARZ, Roberto. 1999. Sequências brasileiras. Ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras.
29
Ramos, [1947] 1982, p. 49 (conto “Relógio no hospital”).
180
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
181
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
SOBRE OS DESCOMPASSOS
DE UM CADÁVER
Um diálogo entre o homem sem qualidades à espera de Godot e Crítica
ao feminismo liberal
Uma crítica do valor que tenha medo de empreender a última e decisiva ruptura com a
forma moderna do sujeito e com a sua autolegitimação esclarecida está, obrigatoriamente,
destinada a decair na ontologia burguesa
Robert Kurz
I
Se tem algo a se reconhecer como potencial crítico na experiência intelectual da
chamada crítica do valor é sua insistência na historicidade das categorias e sua consequente
radical iconoclastia. Desde os diagnósticos sobre o colapso da sociedade mercantil até o recorte
interno de Marx entre exotérico e esotérico vê-se que a proposta é, antes de tudo, a
compreensão crítica das bases que engendram a sociabilidade capitalista em tempos que
parecem girar em falso, não é por acaso serem autores “malditos”. Para resumir, enquanto a
ode à liberdade ocidental bradava sobre os ombros da paz perpétua kantiana, esses maus
afamados retomavam à Dialética do Esclarecimento (1985).
No Brasil, felizmente, há uma gama de leitores dos demônios de Nuremberg. Se
pudermos nos abster de comentários sobre a catástrofe pandêmica ainda em curso, podemos
dizer que 2020 houveram boas publicações que se relacionam com a crítica do valor, mas
iremos nos ater a duas:2 Crítica do feminismo liberal (2020), de Taylisi Leite, e O homem sem
1
Acadêmico de Comunicação e Multimeios – UEM; felipesilvaterto@gmail.com
2
Porém, antes, gostaríamos de ressaltar a profundidade crítica de textos como A condição periférica (2020), de
Thiago Canettieri, e A subjetividade sem valor (2020), de Fernando Gastal de Castro. Canettieri (2020) esmiúça
como a cisão centro-periferia que constitui o capitalismo como sistema-mundo produz uma inversão interna com
o colapso da modernização, isto é, se antes se exportava as mazelas do centro para o terceiro mundo, agora tem-se
o movimento ao contrário, a selvageria periférica passa a invadir o mundo dos civilizados do Norte, o que o autor
chama de devir-periferia do mundo. Já Castro (2020) procura fazer uma reconstrução histórica do processo de
modernização em sua tensão com a subjetividade, colonização e subjetividade como coisa, II Revolução Industrial
e subjetividade como objeto, fordismo e subjetividade como recurso e, ao final, acumulação flexível e subjetividade
sem valor.
182
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
qualidades à espera de Godot (2020), de Robson de Oliveira. É evidente que ambos tratam de
questões distintas, um sobre uma análise psicossocial e outro sobre incongruências de
pensamentos e movimentos sociais, o que nos obriga a certas simplificações neste texto, mas
há também de se notar os pontos em comum. Para além de serem frutos de teses de
doutoramento e possuírem capas brancas com detalhes em vermelho e preto, são livros que
buscam, pelas lentes da crítica do valor-dissociação, uma crítica radical da forma-sujeito
burguesa e sua clivagem constitutiva. Isto posto, se com Oliveira (2020) podemos
compreender o sujeito moderno, com Leite (2020) compreendemos sua dissociação.
II
Alfred Sohn-Rethel, em seu Para a abolição crítica do apriorismo (1997), propõe sua
leitura de que o sujeito transcendental kantiano não é algo a priori, mas sempre-já enredado
nas formas sociais que capitalismo engendra, por isso “[...] as formas de consciência, que
chamamos em sentido racional de formas do ‘conhecimento’, provêm da reificação presente
na troca de mercadorias” (SOHN-RETHEL, 1997, p. 129). Entendimento este que gerou
controvérsias no interior do Instituto de Pesquisa Social (Escola de Frankfurt), pois enquanto
Adorno hesitava chamar tal ideia de genial pela similitude com seu próprio pensamento,
Horkheimer já não via com bons olhos, pois segundo ele, o próprio Adorno estava “[...]
contaminado pela mania de Sohn-Rethel da identificação dialética, ou antes, não-dialética,
para ter ficado cego diante da enorme diferença entre seu modo de pensar e o dele”
(HORKHEIMER, apud. ALMEIDA, 1997, p. 120).
Isso nos anos 30, mas o que Adorno poderia objetar 30 anos depois é que, na verdade,
é o próprio capitalismo que possui o ímpeto da metafísica da identidade, daí a exigência do
momento negativo da dialética para desdar os nós coagulados da sociedade administrada –
sendo simplista e até reducionista, este é o cerne da Dialética Negativa (2009). O que
podemos notar é que isso não é de todo novo, pois Sohn-Rethel já havia compreendido que “A
identidade é a forma de vínculo entre produção e consumo, situados entre diversas pessoas,
de uma mesma mercadoria” (SOHN-RETHEL, 1997, p. 132).3
O importante aqui é notar que, se a própria noção de sujeito não é a-histórica e sim
produto das relações mercantis, sua crítica radical se faz necessária e não sua afirmação como
horizonte emancipatório.4 Se partirmos aqui à crítica do valor, devemos ter em mente que,
como afirma Regatieri (2010), “sujeito, conforme sua crítica, é a forma na qual vivem e agem
3
O que também poderia ser criticado pela crítica do valor, pois o enfoque na dimensão da circulação mistifica o da
produção do valor. Ver: KURZ, R. A substância do capital (2005).
4
Há um debate proposto por Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga, entre Zizek e Kurz, que busca tensionar
ambos em relação ao sujeito. Ver: Entre ruína e desespero: Negação e constituição do sujeito em Robert Kurz e
Slavoj Zizek (2013).
183
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
184
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
185
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
antemão, o livro de Leite (2020) é, antes de tudo, uma resposta às controvérsias que
circulam nos debates sobre movimentos sociais. Claramente não seria do feitio da autora
repetir dogmatismos e afirmar que tudo é identitarismo e que não presta ou qualquer coisa
que o valha, mas é uma crítica por meio de uma das lentes mais radicais do pensamento
contemporâneo, falo de Roswitha Scholz.
Como jurista e leitora de Pachukanis, Taylise começa expondo uma crítica do Estado e
do Direito enquanto formas sociais especificamente capitalistas, isto é, jungidas na valorização
do valor. Negando a compreensão do ente estatal como neutro, sua sobreposição frente à
sociedade civil é a aparência necessária para estruturar o bem-estar das trocas, não das
pessoas num geral, pois a forma-política e a forma-jurídica engendram o contrato social real
dos sujeitos atomizados trocadores de mercadorias. No fundo, Leite quer elucidar que o
Estado e o Direito não podem (e nem serão) o horizonte de emancipação, pois antes de serem
contrapostos, fazem parte da engrenagem fetichista moderna.
Já por meio da crítica do valor-dissociação, a autora busca levar às últimas
consequências das teses de Scholz e mostrar que as formas abstratas da modernidade, além
de serem históricas, não são neutras. No seu âmago, a neutralidade das formas velam um
androcentrismo congênito, pois o processo de modernização e sua metanarrativa correlata, o
Esclarecimento, forjam uma sociabilidade cindida em “homem” e “mulher” com seus
arquétipos respectivos. Antes de mera ideologia que fazem cada gênero comportar-se como
dizem para se comportar, a análise de Leite (2020) procura ser mais profunda e mostrar, pela
crítica da economia política, que é a própria produção social que é masculina.
A cisão interna do fetichismo moderno sutura ao Homem o encargo do espaço público
e suas atividades consequentes, como racionalidade, esperteza, dureza, frieza, virilidade etc.,
e à Mulher cabe o espaço privado e as consequências da feminilidade, o sentimentalismo, o
afago, cuidado, paixão, docilidade etc. Não se trata aqui de pessoas concretas, mas de
estruturas abstratas que designam que, para o Homem, seu mundo é o trabalho, e para a
Mulher, seu mundo é o cuidado domiciliar, mas que não é nada de pouco importante.
A questão é que o capitalismo é a sociedade do trabalho, da autotélica transformação
de energias e músculos em mais-dinheiro. Como buscamos mostrar pelo livro de Oliveira
(2020), a forma social capitalista engendra um sujeito específico, uma forma-sujeito correlata
às formas abstratas do capital, entretanto, ele possui um gênero específico, que é o masculino.
O sujeito burguês, dotado de autonomia da vontade e seus atributos esclarecidos, é
especificamente homem e branco, sua universalidade é falsa pois o que não se encaixa à sua
imagem e semelhança é negado de sua plenitude.
186
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
187
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
vez mais trabalho vivo da produção de valor e produzindo supérfluos, sujeitos monetários sem
dinheiro.
Isto posto, a crítica da forma-sujeito e de sua dissociação em meio a uma forma social
em decomposição revela que a liberdade consumista e sexual se revela como um imperativo,
sob os mandos e desmandos de um caduco sujeito automático que engendra os dotados de
autonomia da vontade em uma heteronomia. Sob o frenezi das mercadorias se movimentam
os narcísicos e malandros expostos na crítica de Robson de Oliveira (2020), e sob a aparente
emancipação das mulheres no interior da ordem se revelam as duplas ou triplas socializações
de uma forma social suturada por clivagens de gênero, em que à Mulher cabe o mundo do
trabalho (com menores salários, é claro) e dos estudos (em meio a necessidade de constantes
aprovações, evidentemente), mas sem nunca se livrar das atividades “femininas” dissociadas.
A crítica de Robson de Oliveira pode elucidar compreensões de processos que, presos
à ontologizações das categorias burguesas não ficam claros. Se um exemplo me for permitido,
Frantz Fanon certa vez afirmou que “A preguiça do colonizado é uma proteção [...] [pois] O
trabalho foi concebido nas colônias como trabalho forçado”, então não tinham a compreensão
de que “É preciso retomar o trabalho como humanização do ser humano. O ser humano,
quando se lança ao trabalho, fecunda a natureza, mas também se fecunda” (FANON, 2020, p.
291). Como produto de uma desumanização colonial, não compreendiam a “humanização” que
é própria do trabalho. Aqui estamos na tradicional compreensão ontológica da categoria.
A questão que Oliveira coloca, ao tratar do Brasil, é que não se pode compreender de
maneira a-histórica a categoria burguesa de trabalho. Com a abolição da escravatura
brasileira, autores como Celso Furtado haviam já notado que o negro recém libertado não se
dirigia ao mercado para vender sua força de trabalho, mas não porque não compreendia o
“papel humanizador” do trabalho, e sim porque “a ideia de acumulação de riqueza lhe é
estranha [...] podendo trabalhar somente 2 ou 3 dias para sua subsistência, o ex-escravo ia
para o ócio quando já tinha o bastante para viver” (OLIVEIRA, 2020, p. 321). Mesmo que seja
criticável o uso de “trabalhar para sua subsistência”, podendo ser alterado para “produzir” ou
algo do gênero, a questão que o autor coloca é que a subjetividade do ex-escravo não era
orientada para o futuro, não era uma forma-sujeito burguesa, logo, não poderia prosseguir o
modus operandi weberiano do trabalho.
Como também a crítica de Taylise Leite a grandes teóricas do feminismo, como Simone
de Beauvoir e Judith Butler, ou aos movimentos sociais num geral, dão corpo a uma
compreensão do objeto de maneira mais profunda, interna às formas abstratas da própria
reprodução do sistema mercantil. Não se trata de apontar o dedo e reduzir tudo a mero
“identitarismo”, mas de um aprofundamento na crítica aos fundamentos do moderno
188
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Referências
ADORNO, Theodor. [1966] 2009. Dialética Negativa. Trad. M. A. Casanova. São
Paulo: Jorge Zahar.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. [1944] 1985. Dialética do
esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. G. A. de Almeida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.
ALMEIDA, Jorge. M. B. 1997. Para a abolição crítica do apriorismo: apresentação.
In. praga - São Paulo, Brasil, n.4, (119 – 122).
CANETTIERI, Thiago. 2020. A condição periférica. Rio de Janeiro:
Consequência Editora.
CASTRO, Fernando. G. 2020. A subjetividade sem valor: trabalho e formas
subjetivas no tempo histórico capitalista. Curitiba: Appris.
FANON, Frantz. 2020. Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. Trad.
Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu Editora.
OLIVEIRA, Robson J. F. de. 2020. O homem sem qualidades à espera de
Godot: Molière, Musil, Beckett, Macunaíma e o devir vazio da modernidade. São
Paulo: Hedra.
REGATIERI, Ricardo. P. 2010. Introdução. In: KURZ, Robert. Razão sangrenta:
ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores
ocidentais. Trad. Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Hedra.
SOHN-RETHEL, Alfred. 1997. Para uma abolição crítica do apriorismo. In. praga
– São Paulo, Brasil, n.4, (123 – 136).
189
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
1
Acadêmico de Comunicação e Multimeios – UEM; felipesilvaterto@gmail.com
190
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
191
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
sua extensão, a cultura brasileira, precisamente onde mais liberal, estava ávida por um
Bolsonaro.
As considerações de que Hitler era louco, burro ou patológico não se furtavam, e por
isso velavam o cerne da questão, pois mesmo que o maldito fosse portador de distúrbios
psicológicos, “a desproporção que há entre essa frase e a catástrofe objetiva que se abate sobre
o mundo em nome daquele paranóico torna ridículo tal diagnóstico, através do qual quem
diagnostica quer apenas pavonear-se. Talvez Hitler seja ‘em si’ um caso patológico, mas com
toda certeza não ‘para ele’” (ibidem. p. 48). Evidentemente que identificações imediatas mais
ofuscam que elucidam, mas trocar “Hitler” por “Bolsonaro”, aqui, pode produzir conclusões
pertinentes.
Outra manifestação da impotência nos coloca em diálogo com Adorno, que é o tédio.
Aos que puderam ficar enclausurados em vossas casas, sem aqui sucumbir ao discurso do
privilégio quando se fala de direitos, a monotonia cotidiana se faz presente. A “boa dose de
fastio” (ibidem. p. 44), que Adorno pressupunha ao pensamento intransigente, é
experienciada por nós com uma estranha tensão entre tédio e ansiedade. O sujeito neoliberal,
rápido e orientado para o futuro, trancafiado em casa sem saber até quando vive uma espécie
de duplo estranhamento, no qual a falta do que fazer e dezenas de atividades, preguiça e
exigências de produtividade tensionam a experiência restrita à geografia doméstica e
expandida espaço-temporalmente por encontros online.
Em um aforisma chamado Só quinze minutinhos, Adorno descreve a insônia de
maneira parecida com a monotonia cotidiana pandêmica. Nessa tensão estranha com o tempo,
[...] o que se revela nessa contração das horas é a imagem inversa do tempo preenchido.
Enquanto neste último o poder da experiência quebra o sortilégio da duração e reúne o
passado e o futuro no presente, na agitação de uma noite de insônia a duração suscita um
horror insuportável. A vida humana transforma-se em um instante, não por suprimir a
duração, mas por sucumbir no nada, despertando para o que nela há de vão em face ela má
infinidade elo próprio tempo. No ruidoso tique-taque do relógio percebe-se o escárnio dos
anos-luz em relação à extensão da existência humana (ADORNO, 1993, p. 145)
No limite, o contrário da experiência do tempo cumulativo moderno que se reverte em
expectativas decrescentes e horizontes rebaixados por conta do colapso da modernização já é
algo conhecido aos leitores de Paulo Arantes, em cujas lives talvez sejam a espera possível em
meio a impotência neoliberal, esse oxímoro que se manifesta nas figuras da ansiedade e
depressão.
Há algo da crítica adorniana que nos parece interessante retomar 70 anos depois que,
de modo algum, foi de intenção do autor. Em um debate com o pensamento alemão de sua
época, em especial com Heidegger, Adorno faz uma crítica à noção de autenticidade como um
conceito sob o qual a moral burguesa se contrai após a não realização de suas máximas
iluministas. Na volta para a “identidade de cada indivíduo consigo mesmo” (ibidem. p. 134), o
192
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
2
Adorno tinha consciência dessa imbricação em seu tempo: “O tédio é um complemento do trabalho alienado
enquanto experiência do antitético ‘tempo livre’, quer porque este é o encarregado de reproduzir a força gasta, quer
porque sobre ele pesa como hipoteca a apropriação do trabalho alheio” (ADORNO, 2001, p. 166); “O próprio vazio
psicológico é apenas o resultado da falsa absorção social. O tédio de que os homens fogem reflecte unicamente o
processo de fuga a que, desde há muito, estão sujeitos” (ibidem. p. 131).
193
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022
Na verdade, “não é o inautêntico que se faz passar como tendo um teor de ser que
deveria ser confutado em sua mentira, mas o próprio autêntico torna-se uma mentira no
momento em que se torna de todo o autêntico, ou seja, na reflexão sobre si, ao pôr-se como
autêntico, quando já ultrapassava a identidade que ele ao mesmo tempo afirma” (ibidem.). Se
a afirmação da autenticidade se revela como inautenticidade, a reflexão que toma como ponto
a própria inautenticidade é que é verdadeiramente crítica.
Enfim, se “Até mesmo sua própria impossibilidade tem que ser por ele [o pensamento]
compreendida, a bem da possibilidade” (ibidem. 216), como diz Adorno nas últimas linhas de
seu livro, tomar a impotência como ponto de partida para a reflexão parece ser uma das poucas
formas de pensar algo sobre a desgraça real. Afinal, nada mais “bolsonarista” que uma
reprodução social em frangalhos que elimina milhares de imprestáveis sob o prisma da
normalidade. Se assim o for, talvez há algo que se possa extrair dos 153 aforismas de uma
possível “doutrina da vida reta” (ADORNO, 1993, p. 4) em uma sociedade amoral e associal
como a nossa. 70 anos depois e ainda não há vida correta na falsa.
Referências
ADORNO, Theodor. [1951] 1993. Minima moralia: reflexões a partir da vida
danificada. Trad. Luiz E. Bica. São Paulo: Ática.
194