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[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.

1, 2022

SINAL de MENOS

ISNN 1984-8730

#15, v.1

Edição: Contribuições:

Cláudio R. Duarte (São Paulo) A revista aceita contribuições e


Daniel Cunha (Binghamton) comentários críticos, que serão
Felipe Drago (Porto Alegre) avaliados quanto ao conteúdo,
Frederico Lyra (Lille) o estilo e a adequação à linha
Joelton Nascimento (Cuiabá) editorial. Os textos devem ser
Raphael F. Alvarenga (Leuven) encaminhados para:
Thiago Canettieri (Belo dcunha77@outlook.com
Horizonte)

Capa desta edição: por Felipe


Drago, a partir de obra de
Vhils.

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[-] Sumário #15, v.1

EDITORIAL

ENTREVISTA COM TALES AB’SÁBER 7

“DEMOCRACIA E AMOR” 36
Um mergulho no espetáculo à brasileira
Diogo Dias

UM PAÍS ENTRE 41
Uma crítica curta de um curta-metragem
Francisco Bosco

O LABIRINTO FASCISTA E A MONSTRUOSA 42


COLEÇÃO DE MERCADORIAS
Tiago Ferro

PEQUENAS E GRANDES ROBINSONADAS 46


Da pré-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático
Cláudio R. Duarte

UMA POÉTICA DA ABSTRAÇÃO 121


Hipóteses sobre Jorge Luis Borges
William Augusto Silva

JUAN CARLOS ONETTI – A PROSA DO MUNDO LOUCO 136


Ou, proletarização fracassada e subjetivação periférica
Cláudio R. Duarte

INSÔNIA 169
A “Coleção de Encrencas” de Graciliano
Cláudio R. Duarte

SOBRE OS DESCOMPASSOS DE UM CADÁVER 182


Um diálogo entre O homem sem qualidades à espera de Godot e
Crítica ao feminismo liberal
Felipe Silva Terto

“SABER QUE NÃO SE É NADA” 190


Ler Minima Moralia 70 anos depois
Felipe Silva Terto

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Editorial
Difícil encontrar uma reflexão que resuma de maneira mais justa e perfeita o estado
atual do mundo e o tema principal desta edição de Sinal de Menos do que esta passagem d’O
capital de Marx:
O capital, que tem tão “boas razões” para negar os sofrimentos das gerações de trabalhadores
que o circundam, é, em seu movimento prático, tão pouco determinado pela perspectiva do
apodrecimento futuro da humanidade e seu inexorável despovoamento final quanto pela
possível queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer fraude no mercado de ações, todos sabem
que um dia a tempestade deve cair, mas todos esperam que o raio atinja a cabeça do próximo,
após ele próprio ter colhido a chuva de ouro e o guardado em segurança. “Après moi le
déluge!” é o lema de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a
mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado
pela sociedade a ter essa consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte
prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele
que aumenta nosso gozo (o lucro)? De modo geral, no entanto, isso tampouco depende da boa
ou má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe ao capitalista individual,
como leis externas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista.

Depois de mim, o dilúvio! – é esta frase atroz quase convertida em automatismo mental
que segundo Marx compele o sujeito capitalista a agir da maneira mais cínica, indiferente,
como se não houvesse amanhã. É isso que converte o mundo em mero recurso, como se tudo
tivesse de estar livre e disponível para servir a essa lógica sacrificial de trabalho e acumulação
infinita. A pandemia da Covid-19 e a situação de guerra na Ucrânia vêm explicitando tais
pressupostos de modo cristalino.

O bolsonarismo parece dar uma torção nessa reflexão quando acelera de modo
voluntário esse processo de libertação de todo potencial destrutivo da abstração capitalista.
Ele leva o “gozo” a outro patamar promovendo o extermínio em massa: para garantir que a
economia não parasse, ou que a acumulação pelo menos empatasse com o supostamente
acumulado. Ele armou o cadafalso das mil, duas, e por que não, três e quatro mil mortes diárias
(pico de Abril de 2021). Estabeleceu a normalidade do genocídio e do ecocídio. Qual era sua
meta original: quinhentos mil, um, dois milhões de mortos? E tudo ocorrendo como um
processo “natural” inevitável? Razão ou insanidade? Seja como for, o Brasil dos atuais 660 mil
mortos e 29,8 milhões de infectados (sem somar o total de subnotificação e outras falcatruas)
pôs-se na vanguarda do morticínio, superando o número de vítimas da guerra ao terror dos
EUA, estimada precisamente em 600 mil. Para piorar essa situação irracional, uma parte da
crítica de "esquerda" (brasileira e estrangeira, especialmente alemã) tem participado do
obnubilamento geral como que fazendo coro com o negacionismo antivax, caindo por vias
diretas ou indiretas numa crítica regressiva, que corta as mediações particulares e concretas
dos problemas, supostamente para abrir espaço para uma crítica “radical” das estruturas
gerais do valor, do patriarcado, da ciência e da tecnologia, mais ou menos colocados em linha
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reta de continuidades arbitrárias e identidade total entre forma social e realidade material. Às
vezes, essa iconoclastia resvala, contudo, numa crítica indeterminada e arrasadora contra a
própria ciência e a razão, numa versão anti-aufklärer muito próxima do tradicionalismo
religioso e do romantismo, de Heidegger e do pós-modernismo, dos novos animistas e
primitivistas antimodernos a la John Zerzan. É surpreendente que essa iconoclastia abstrata
conviva com a constante asserção sobre a crise climática - um alerta e um diagnóstico feitos
pelas ciências naturais matematizadas.

A guerra preventiva da Rússia contra a Ucrânia de certo modo completa esse quadro
de irracionalidades tocado pelo estado de exceção mundial em que as contradições do capital
não são “superadas” mas explodem a estruturação “pacífica” da política, da diplomacia e do
“doce comércio” mundial, quando os dois blocos de poder nuclearizado finalmente
concretizam suas ameaças longamente cultivadas, afirmando-se como “nações
autodeterminadas” na crise falimentar da globalização e sua concorrência mortífera. Nesses
meses ficamos mais próximos do “apodrecimento final da humanidade e do despovoamento
final” do planeta sob um grande sol artificial, desconhecido dos tempos de Marx: as várias
frentes da guerra precipitam uma crise mundial de proporções ainda desconhecidas, em que
não está descartada a possibilidade de uma guerra total, com o uso de armas químicas,
biológicas e nucleares (o chamado eufemicamente "uso tático”).

Uma posição firme contra a invasão da Ucrânia não deveria, a nosso ver, ser
confundida com um apoio à OTAN ou aos batalhões neonazistas instalados no país, enquanto
se posiciona também contra a esquerda belicista dita “anti-imperialista”, cujos argumentos
defendem, por meio de falácias (“tu quoque” e “whataboutism”), o mesmo poder arbitrário e
ilegal das intervenções dos EUA e da OTAN em países periféricos como Iraque, Afeganistão e
Líbia, enfiando-se de cabeça em sua cachaça politicista, esquecendo todas as consequências
materiais catastróficas da guerra, a destruição do país e das populações, a nova crise de
refugiados, o aumento do custo de vida e o empobrecimento geral dos mais vulneráveis em
nível local e mesmo global. Essa esquerda sonhadora enxerga na indústria bélica e nos
gasodutos russos, tanto quanto na nova rota da seda chinesa e na suposta desvinculação do
dólar como moeda mundial, a reconstrução imaginária de um novo bloco “comunista” sino-
soviético.

Em ambos os casos, temos o terror mais ou menos oculto do Capital transformando-


se em formas claras de terrorismo de Estado. O capitalismo reafirma suas leis de concorrência
e espoliação selvagem, trazendo à tona a verdade brutal de seu processo civilizatório e da sua

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forma de sujeito autocrático. A destruição da culpa, a fuga acintosa de toda responsabilidade


ética pelas ações exterministas e ecocidas do governo Bolsonaro, significam um nível de gestão
autoritária, altamente militarizada e antipopular, e o cancelamento dos processos de
socialização e simbolização que formam sujeitos singulares, capazes de mudar o rumo dos
processos. É a condenação à morte dos sujeitos agora também no nível ético-político, na
acepção mais crítica do termo. Enquanto no processo de desnazificação na Alemanha
pensadores como Adorno, Sartre, Jaspers e outros procuram diagnosticar para combater suas
raízes históricas, diferenciando as culpas e como elas podem e não podem ser demandadas
dos agentes morais e políticos no continente arrasado, no Brasil temos um esforço gigantesco
de des-culpabilização. Noutro nível, as ameaças expansionistas recíprocas de OTAN e Rússia
tendem a funcionar como que no modo “piloto automático”, no plano de ações e reações
previstas desde o fim da guerra fria e a afirmação do mundo unipolar, com a singularidade de
estarem agora sob a cobertura ideológica de combater o “governo autocrático” e o “país de
oligarcas” associado à China, ou de “desnazificar” a Ucrânia e garantir seu espaço de influência
em todo o Leste Europeu e Europa. Gestores-carniceiros dão mostras de não ver nenhum
problema em decidir pela morte por mistanásia de três quartos dos quase 660 mil mortos pela
covid-19, tanto quanto na Europa alegam apenas seguir as determinações “objetivas” ou
autodeterminações “nacionais” e fazer aquilo que se espera de impérios decadentes mas
detentores de um arsenal nuclear que garante a “legitimidade” de qualquer tipo de ação
terrorista para manter seu poder. No fundo, confessam-se como “agentes” da Bomba. No
colapso social e ambiental divisado para este século, seus líderes terão sempre nela sua última
desculpa.

Este então o panorama de fundo deste novo número de Sinal de Menos, que procura
abordar de modo variado e especificado a “crítica do sujeito burguês ou moderno”, criando
uma espécie de dossiê temático. Panorama que se inicia, por isso mesmo, com a ENTREVISTA
com o psicanalista Tales Ab’Sáber, que conversa sobre assuntos variados de sua trajetória
plural, das temáticas abordadas em seus livros e de sua interpretação do lulismo e do
bolsonarismo. Gostaríamos muito de agradecer ao autor o aceite do convite, o rigor das
respostas longas e meditadas… e a sua paciência de aguardar a publicação depois de um longo
intervalo.

Os três textos que se seguem à entrevista – “DEMOCRACIA E AMOR”: um


mergulho no espetáculo à brasileira, de Diogo Dias; UM PAÍS ENTRE (uma crítica
curta de um curta-metragem), de Francisco Bosco; e O LABIRINTO FASCISTA E A
MONSTRUOSA COLEÇÃO DE MERCADORIAS, de Tiago Ferro – dialogam com os
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trabalhos e as perspectivas de Tales Ab’Sáber, lançando luzes sobre as formas de dominação


política típicas do “labirinto bolsonarista" e do nosso “espetáculo à brasileira”.

O dossiê sobre o sujeito e sua crítica especificada concretiza-se finalmente através da


investigação de materiais literários. Em PEQUENAS E GRANDES ROBINSONADAS
(Da proto-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático), Cláudio R.
Duarte busca realizar, por meio das pistas lançadas pelo Excurso I da Dialética do
Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, uma leitura cerrada de obras como a Odisseia, o
Robinson Crusoé, contos e romances de Machado de Assis e, enfim, a prosa literária de Kafka
e Beckett. A perspectiva genética do “sujeito autocrático” da modernidade, meramente
esboçado e prenunciado em Ulisses, completa-se na primeira robinsonada do livro de Defoe,
embora seja ultrapassada pelas figuras machadianas de um narrador volúvel e impostor que
converte tudo em objeto de sua manipulação e escárnio, e por fim desmontada pela
“robinsonada total”, como dirá Adorno, das personagens de Kafka e Beckett, em cuja errância
e resistência à mobilidade pode-se interpretar o processo de proletarização, marginalização e
dissolução do indivíduo isolado típico do romance burguês.

Em UMA POÉTICA DA ABSTRAÇÃO - Hipóteses sobre Jorge Luis Borges -


William Augusto Silva apresenta uma leitura crítica do escritor argentino mais exemplar,
buscando interpretar como a forma abstrata da prosa borgiana condensa em si processos
sociais atrelados às condições de urbanização, massificação e mercantilização geral da vida,
bem como à posição de classe singular de escritor periférico que se reconhece nesse lugar
ambíguo. Dando sequência a esses esforços na interpretação de um outro grande escritor
latino-americano, Cláudio R. Duarte estuda, em JUAN CARLOS ONETTI: A PROSA DO
“MUNDO LOCO”. Ou, proletarização e subjetivação na periferia capitalista, as
formas como o autor uruguaio Onetti tratou a questão da subjetivação da vida pobre, marginal
e periférica através da decadência dos setores médios nos anos de crescimento e rápido
declínio do cone sul na “desgraça” do subdesenvolvimento (de 1930 a 1960) em sua criação
ficcional da cidade de Santa María. Em INSÔNIA: A “COLEÇÃO DE ENCRENCAS” DE
GRACILIANO - o mesmo autor persegue uma hipótese semelhante para o caso brasileiro,
investigando na trama formal os rastros do processo de modernização conservadora,
decadência do patriarcado rural e da formação negativa ou bloqueada do sujeito numa
coletânea de contos de Graciliano Ramos.

O volume 1 deste número 15 da revista termina com duas resenhas de Felipe Silva
Terto: a primeira sobre livros de autores vinculados estreitamente à crítica do valor-

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dissociação (SOBRE OS DESCOMPASSOS DE UM CADÁVER - Um diálogo entre O


homem sem qualidades à espera de Godot e Crítica ao feminismo liberal); a
segunda sobre os 70 anos de uma obra maior de Adorno (“SABER QUE NADA SE É”. Ler
Minima Moralia 70 anos depois).

A capa desta edição em dois volumes foi criada por Felipe Drago baseando-se na obra
de Vhils, que é um jovem artista plástico português muito talentoso. A obra trabalha com as
marcas e as ruínas do tempo histórico acumuladas na paisagem. Assim, nessa composição
Felipe utilizou uma obra feita a partir do descascamento da parede de uma casa de uma pessoa
que foi removida no morro da Providência no Rio de Janeiro para dar lugar a um teleférico na
época das obras da Copa do Mundo do Brasil. O trabalho artístico de construção a partir desse
descascamento e figuração é capaz de expressar formalmente esse processo contraditório de
construção e demolição, bem como a resistência dos indivíduos a partir da memória
coletiva. Além disso, o tema da dissolução e da destruição atravessa tudo. O trabalho de
destruição expresso na foto expõe os rastros da história, o trabalho morto e da morte, os
mortos, suas motivações e destinos, sugerindo a guerra e as ruínas acumuladas pelo capital,
que parece de fato se encaminhar para o fim do mundo.

Apesar do longo intervalo, por motivos de força maior e outros superiores à nossa
capacidade de trabalho e organização afinal limitada, esperamos que os dois volumes sejam
bastante lidos e discutidos pelos nossos leitores, seja ao vivo, no lançamento, seja na seção de
discussão dos textos aqui publicados.

Março de 2022.

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ENTREVISTA COM TALES AB’SÁBER


1. Repassando um pouco de sua trajetória nesse início de conversa, notamos em
suas obras um interesse constante pelo que poderíamos denominar
“experiências do limite” na formação social contemporânea, nas quais a ideia de
sujeito, sua formação e/ou seu malogro, aparece em primeiro plano. Assim, por
um lado você pensa as condições do sonho e do sonhar como elemento
fundamental da clínica, com implicações para o debate crítico. Por outro lado,
parece-nos que você se deparou, na sequência, com as experiências políticas de
um país que tem entrado numa espécie de “sonho diurno” terrível, para não
dizer pesadelo ou transe. No seu livro sobre a música tecno e nos livros sobre os
governos Lula, Dilma e Temer muito do que ora vivemos como que é
prenunciado. Ou seja, o Brasil como um campo “vanguardista” de materialização
de fantasias ideológicas singulares, em que uma certa ordem social e discursiva
parece prender os sujeitos a certos objetos fixos, levando a gozos imediatos e
compulsivos, criando uma série de experiências alienantes, tal como você aponta
na música tecno, mas também no desejo que se enrijece e se perde em
identificações neofascistas, criando aquilo que você diagnostica, desde o golpe
de 2016, como o nosso “fascismo comum”. Nossa questão inicial é assim dupla:
qual seria a experiência subjetiva que permeia a construção do bolsonarismo?
Em seu estudo de 2010, a música tecno já prenunciava para você algo disso que
veio a se tornar o nosso “fascismo comum”? Como você lê essa sua obra hoje?

Agradeço a leitura ampla e consequente dos meus escritos. De fato, como psicanalista clínico
e teórico me interessei muito pela radicalidade de uma teoria dos limites. Mas limites
determinados em uma certa direção da história da psicanálise em seu primeiro século de
existência: limites do que torna um sujeito um sonhador de tipo freudiano, capaz de articular
contensão civilizatória e desejo em uma lógica produtiva do símbolo, ou os limites daquilo que,
ao avesso da tradição psicanalítica original, o põe para fora da sua própria capacidade de
sonhar. Toda esta teorização, ainda pouco considerada, se constituiu em analistas clínicos
radicais que após os impasses históricos com a crise do sonhar na Europa da Primeira Guerra
Mundial – a suspensão e a ruptura da continuidade do sono e do sonho dos retornados da
guerra, que configurou o modo próprio aos psicanalistas de observarem a grande crise da
experiência e o fim do adensamento ético da narrativa, como Walter Benjamin escreveu sobre
esta mesma questão – passaram a pensar na forma do encontro humano que teria a potência
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de produzir, ou restaurar, o movimento do sonho e do desejo, mais do que a sua interpretação


– que não cabia interpretar o que não existia – integrando o sonhar ao potencial humano do
sujeito. O que se observa então, quando o sonhar encontra modos de ser restaurado, é que o
espaço sonho e sua experiência é, no fundamento de seu acontecimento, sempre um fato
intersubjetivo especial e, portanto, de algum modo vital, também um fato social. Analistas
muito radicais de extração pós-freudiana e pós-kleiniana, como Donald Winnicott e Wilfred
Bion, observaram em seus trabalhos clínicos com psicóticos, com mães trabalhadoras muito
radicalmente alienadas do vínculo com seus bebês e com os próprios bebês já doentes da alma
ainda antes de tudo, uma série de dissociações, distorções e anulações do espaço sonho
original, aquele cuja percepção deu origem à psicanálise, com sua semiologia ontológica de
imagem movimento e de imagem tempo, como dizia Gilles Deleuze, de tipo formação do
inconsciente. A mesma formação que levou Lacan a importar um outro aparato teórico,
linguístico estruturalista, para o pensamento psicanalítico freudiano e dizer que o inconsciente
se estruturava como linguagem. Diferentemente deste enigma da forma sonho estruturada
como um sintoma, um dado significante discreto, que vai na frente, em busca de significação,
como insistem bastante os analistas que releram Freud por Lacan, aquela outra experiência
histórica e outro fundamento de epistemologia da psicanálise a que me refiro passou a lidar
diretamente com as produções humanas negativas, alucinatórias, ou de grande carga de
absurdo, que não se simbolizavam, que paralisavam ou arruinavam a própria experiência
psíquica, ou que propunham símbolos de outra natureza, paradoxais experiências de sentido
não imediatamente significantes. Eram os pensamentos impensáveis, que existiam no lugar
de um mundo sonho tornado ausente para uma pessoa, ou até mesmo em uma gigantesca crise
social histórica, como foi o choque total na ideologia do progresso positivo europeu da guerra
de 1914, a destruição do sonho como correlata da máquina de destruição humana sem limites
que se tornou o capitalismo imperialista moderno. Imensas intensidades de choque e de ruína
psíquica passaram a ser concebidas, que pensamos hoje como modalidades de pulsões de vida
sem nenhuma contenção, mas marcadas pelo terror, que é também social, apareciam como
exteriores a toda vida subjetiva, desligadas de qualquer ordem de estruturação do sentido,
desligadas do trabalho do Outro pelo sentido da vida de alguém. Essas intensidades produziam
suas próprias formas de sofrimento a-simbólicas por assim dizer: projeções maciças do espaço
psíquico deformado na realidade externa, sem a mediação do sonhar ou da graça infantil do
brincar, alucinoses misteriosas, em estado de dor de toda ordem, atuações compulsivas e
loucas, para a compreensão rudimentar do que se passaria em um sujeito perdido de si
próprio, vazio de interioridade ou qualidade de si mesmo, tudo acarretando profundas falhas
no senso de existir ou na própria percepção de se estar vivo. Todo o colorido original da

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angústia e das formações simbólicas desejantes do tempo de Freud, e dos primeiros


psicanalistas, se viu completamente alterada historicamente, de modo que a elaboração de
uma chave simbólica referida a uma memória de desejo infantil que retornava, como pensou
mesmo a dialética da primeira psicanálise, simplesmente caia por terra. O psiquismo do eu e
do desejo, do recalcado e do superego, caia por terra junto os corpos abatidos na guerra de
trincheiras. Ele absolutamente não alcançava a ordem de experiência emocional dos sujeitos
maus sonhadores ou não sonhadores que passaram a preencher a experiência ocidental
limite. Uma crise material, própria do capitalismo imperialista de técnica total de gestão de
massas, e seu poder de extermínio que se voltava sobre o humano, arruinava todo um
entendimento científico do que seria o humano, que a seu tempo foi a conquista original da
cifra dos sonhos para os sujeitos, e para a política do desejo. O interessante é que a emergência
deste campo de problemas teóricos e clínicos novos e difíceis, que ao meu ver revolucionou a
psicanálise ao encontrar sua nova teorização viva de fundo em primeiro lugar com Winnicott,
já a partir da década de 1940, em seguida, a partir do fim dos anos 1950, com Bion – já
anteriormente preconizado pelo grande analista dos casos difíceis Sandor Ferenczi, discípulo
brilhante que “brigou” com Freud exatamente por estes motivos – toda essa revolução
negativa da existência que implicou revisões de toda ordem de fundamento da psicanálise,
tem a sua marca histórica social externa bem definida, anotada mesmo por Freud e os seus
próprios primeiros esforços nesta direção. Uma marca histórica que se deu na ruína onírica,
humana, existencial e política da I Guerra Mundial. Tudo se revolucionou na psicanálise, que
deixava de ser a psicanálise da estabilidade semiológica do sintoma estruturado, o espetacular
e vivo sonho realização de desejo do Freud de 1900 – auge do tempo da cultura como
progresso ilimitado da civilização – e passava a ser a estranha psicanálise da ruína do
sonhador, do excesso humano de absurdo e da violência que não podia ser integrado e dos
efeitos desrealizadores da perda do contato vital com o sonho e com o outro. Temos a data
histórica e o acontecimento, a guerra moderna de destruição total, na origem de um problema
psíquico de raiz e de fundo, o que demonstra a historicidade do universo de sentidos do
inconsciente freudiano de modo mais forte do que os analistas do aparelho psíquico, da
mônada, ou da interioridade do indivíduo, burguês ou pequeno burguês, e sua clínica íntima
do profissional liberal no mercado da circulação do dinheiro gostam de admitir. A crise do
sonhar que marcou tão profundamente a psicanálise, abrindo a sua reflexão para além do
princípio do prazer – lembrando o primeiro mote de Freud sobre o assunto – significou o
marco do fim do mundo histórico liberal burguês clássico, com a paz europeia forçada do
equilíbrio das grandes nações do século XIX e a ilusão de alguma civilidade liberal possível
explodindo em mil pedaços com a guerra de extermínio e tecnologia do terror de todos contra

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todos, em um ciclo de produção técnica da morte que foi de 1914 a 1945, com a consequente
emergência do nazi-fascismo e mais de cem milhões de mortos no coração da Europa. Não por
acaso os analistas que começaram a dar contorno para o enigma dos sujeitos “não
sonhadores”, e seus excessos e delírios, estiveram ambos presentes, ainda muito jovens, como
soldados naquela guerra que, nas palavras de Freud, “se continuasse nos mataria a todos”:
Winnicott embarcado como médico em um couraçado inglês e Bion em um tanque de guerra
primitivo e infernal, imagine só, nos campos de morte em massa de jovens ingleses, alemães e
franceses da Bélgica. Há quem diga que a força particular de Bion de se por analiticamente
diante da alucinação psicótica veio mesmo de lá... Em termos culturais mais amplos, o mundo
dos desejos e dos sintomas sociais que dividiam o sujeito em contradições objetivas, que se
tornam subjetivas na neurose – o mundo de Balzac, de Flaubert, de Maupassant ou
Dostoiévski, mas também de Marx e de Freud... – foi plenamente ultrapassado pelo mundo
em que a técnica se autonomizava como controle da morte em massa, sem perspectiva, em que
a racionalidade exclusiva do indivíduo não tem correspondência com sua sociedade em mais
nada, de modo que a unidade subjetiva se torna louca pela unidade objetiva técnica social que
a nega na raiz da própria vida, de Kafka por exemplo... ou então dos arruinados, vagabundo e
suspensos de todo sentido partilhado de sonho e cultura de Beckett, um escritor que, não por
acaso, figurou mesmo a alucinação que tomava conta de seus personagens, sem por que nem
para onde – que teve algum tipo de experiência em algo parecido com um setting analítico
com o jovem Bion em meados da década de 1940... Aqui se põe o tipo de entendimento, entre
a metafísica a-histórica da ciência do inconsciente da psicanálise, e a historicidade de
processos de poder, cultura e técnica que necessariamente provocam tal ciência, a afetam e a
alteram. Do mesmo modo que o ponto de singularidade psico-histórica da guerra universal
explodiu as cabeças dos homens, arruinando o seu sonhar e a sua capacidade de dizer de si
mesmos em uma nova ordem de excessos não antes imaginada, da guerra universal da
metralhadora, do tanque, do avião bombardeiro e da trincheira, também o século XIX urbano
europeu, da universalização da indústria, dos mecanismos de repressão policial ativos da
racionalidade socialista e da emergência da vida da venda de trabalho pelo preço do dia, e da
compra encantada de mercadorias como modo de ser, também subjetivava massas e
indivíduos, entre a repressão e o gozo ilimitado. Desde que este gozo se realizasse e se
projetasse eternamente como forma mercadoria, e sua onipotência, para uma experiência da
modernidade também nunca antes vista. Como vocês observaram, a união da psicanálise da
contenção do terror com a crítica ao andamento técnico do mundo do capital e sua cultura
totalizante, permitiu que, muito mais tarde eu me interessasse pelos modos tecnológicos
presentes dos novos dispositivos de subjetivação para o gozo, para a atuação e para a

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suspensão da crítica, em um novo estado de performance compulsiva, que capturava, por


finalidade histórica, a vida conflitante jovem, que o próprio ocidente inventara. Vida jovem
que se resolvia então em uma dança a favor, nos dispositivos da boate, da música de dança
eletrônica e das drogas sintéticas recreativas consumidas em escala industrial. Entre o
sujeito convertido à ação social compulsiva, à celebração por mandato ideológico efetivo e à
engenharia química eletrônica que ordenava o seu gozo, do mundo das baladas sem fim e das
raves, e a psicanálise do irrepresentável e da suspensão do adiamento do desejo como forma
de ser no mundo, havia todo um campo de pesquisa político psíquica a ser notado e
investigado. Era a produção técnica social avançada, de capitalismo avançado, de eros e
thanatos e civilização. E, nestas encruzilhadas mundiais da ordem da produção da
modernidade, minhas pesquisas da subjetivação e da afetação histórica da modernidade
necessariamente foram ao encontro, ou de encontro se preferirem, do Brasil. Paralelamente a
esta leitura da psicanálise que unia a dissolução subjetiva da experiência do terror da
modernidade para si mesma com a teoria crítica que aquela própria realidade criava para dar
conta de um mundo de choque, que perdia já então o norte da vida e da história, e da
fantasmagoria das coisas sobre os homens e gestão de massas da violência, no ramerrão da
vida liberal e seu mundo shopping, simples e pobre, eu estudava o campo da teoria crítica
gerada no Brasil. Desde minhas primeiras pesquisas sobre o lugar do cinema brasileiro no
mundo – indicado de modo radicalmente crítico por Paulo Emílio – realizadas com Ismail
Xavier, me interessei demais pela percepção da singularidade e das condições psico-políticas
outras do lugar do Brasil naquele mundo moderno que caia aos pedaços e se unia na ordem
universal do fetiche das coisas da indústria, no qual a psicanálise de fato surgiu; um mundo
mais amplo das coisas da história que, se pautava o Brasil, não lhe correspondia de nenhum
modo. A tradição crítica a respeito da formação de nossa diferença, e das diferenças de nossas
formas históricas de nos subjetivarmos em relação ao sistema geral da ideologia do indivíduo
europeu, passou a ser central na minha vida de estudos. Sergio Buarque, Caio Prado, Antonio
Candido, Paulo Emílio e os mais recentes Roberto Schwarz, José Antonio Pasta, Luiz Felipe
de Alencastro, Paulo Arantes, entre outros, compunham campo de problemas unificados para
mim, da diferença, e da estruturação histórica de sua forma, da nossa formação moderna
colonial, com foros iliberais de beija mão de tipo ancién regime, com escravidão social e
econômica ativa e generalizada, em relação às fantasias centrais de autonomia e democracia
que, como disse, deram na guerra em que todos poderiam morrer, da cidadania liberada e
modulada exclusivamente para o sonho do mercado. É essa constelação teórica, que reúne
psicanálise clínica de fundo, pensamento crítico central e experiência paradoxal periférica, que
é e não é aquela mesma coisa dos fundamentos imaginários que organizam a própria

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psicanálise, que orienta minhas tentativas de crítica cultural e política. E isso se produziu com
a experiência intelectual do Brasil, não por acaso tão em baixa nestes novos tempos de nova
direita demente em busca de um porrete simbólico qualquer, para nos calar a todos. É este
fundo de uma construção teórica, entre a psicanálise que me parecia a mais historicamente
pertinente, e as irônicas, trágicas e mortíferas respostas brasileiras ao processo geral da
ideologia da modernidade que dão os parâmetros das coisas que tento pensar. É este projeto
da teoria crítica do Brasil, desde a psicanálise e a cultura, tão materiais quanto a história e a
economia – que muitos que leem minhas coisas desconhecem nos seus termos de fundo – que
organiza e liga minhas tentativas de contribuir, em um mundo que dispensa amplamente a
crítica e o desejo de diferença histórica efetiva. É essa construção, de um psicanalista dialético
desde o Brasil, por assim dizer, que põe em contato e relaciona livros tão diferentes como são
O sonhar restaurado, Lulismo e carisma pop e A música do tempo infinito. Gostaria que eles
estivessem marcados pela ideia de uma psicanálise radical, que por radical encontra a matéria
histórica como parte de seus problemas; tornada dialética por uma experiência histórica ainda
outra, que a problematiza novamente, e a abre. De resto, é deste quadro de ciência do
inconsciente tornada instável pelas marcas da história que parto quando digo e penso que o
neofascismo bolsonarista no Brasil unifica neoliberalismo central voraz, sem peias coletivas,
com o autoritarismo periférico de ódio e distinção, com liberalização da morte e da violência
como método de gestão, da recusa e da negação de uma população ainda agora entendida
como escrava. O nosso mal-entendido radical para a democracia, como dizia bem Sergio
Buarque de Holanda, diz respeito a isso: uma elite nacional que jamais desejou superar de
fato os gozos da escravidão original nacional. E essa excitação sádica extremada brasileira,
que dispensa vida e força social popular e coletiva, tanto quanto qualquer ordem de cultura
consequente, não tem correspondência com nenhum outro tipo de fascismo nacional, de tipo
identitário xenófobo e racista europeu. Aqui uma parte significativa da população – incluindo
grandes financistas internacionais e policiais em busca de impunidade, caminhoneiros
autoritários e devastadores da Amazônia do agronegócio, jovens conservadores ridículos
repetindo olavismos desclassificados de clube militar e classe média aterrorizada com o
próprio andamento da vida sob o capital, que são incapazes de conceber, com brancos, pretos,
mulheres e gays presentes entre todos eles – se reúne para celebrar a ficção de um líder
sacrificial de qualquer coisa, de nada de específico e de tudo o que existe, o que é enunciado
como o anticomunismo universal do nada dessa gente, em um show de internet barato
permanente do horror e da mentira. Contra a própria sociedade, a existência de qualquer um,
e até mesmo, a própria vida do bolsonarista que toma cloroquina para enfrentar um vírus e
morre em um hospital sem sedativos. O ódio pelo Outro brasileiro, na origem um corpo negro

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sequestrado para trabalhar até a morte e não exigir nada da sociedade que o escraviza e mata,
que é a nossa própria vida social e coletiva, não me parece ter paralelo, nem mesmo em outras
formações neofascistas nacionais contemporâneas. Nossa tecnologia de fascismo de extração
histórica colonial é original e profunda, e podemos lembrar que nosso golpe de 2016, que
liberou o bolsonarismo mais desgraçado nas ruas e na política, se deu antes da eleição tão
comentada mundialmente do neofascista Trump para a presidência dos Estados Unidos, que
teria sido o marco deste tempo. Mas não para nós. De resto, voltando ao meu ponto inicial,
quando muitos psicanalistas passaram a finalmente se interessar pela história – com cerca de
cem anos de atraso em relação àquela marca da singularidade psico-política de 1918 a que me
referi – por que leram um livro de uma jornalista comunista que demonstrava a presença da
vida social e política nos sonhos dos alemães durante a ditadura nazista, e vão rapidamente
atrás da mesma ideia de Charlote Berard para o mundo de agora, perguntando com que
sonham as pessoas durante a pandemia e o ciclo neoautoritário triste do Brasil, eu, com meus
analistas do excesso, da dissolução e do não sonho, prefiro me perguntar com que sonham os
neofascistas bolsonaristas brasileiros? Ora, desde a intepretação de Freud da dissolução do
eu no desejo do líder das massas que projetam uma saída mágica e messiânica, e observando
a degradação ética, psíquica e cognitiva de toda a vida do bolsonarismo, que quer governar o
Brasil nestas condições, podemos concluir que o estado psíquico de exceção, gozo sádico e
política generalizada da mentira própria da vida fascista deve implicar fortes deformações e
anulações da vida do sonho. A política fascista altera as condições do sujeito sonhador e do
desejo simbolizado, porque ali onde o neurótico “democrático” precisa adiar os seus gozos
destrutivos o fascista demenciado pelo texto do líder pode fantasiar a sua atuação direta.
Onde nós precisamos nos conter, para suportar a longa e absurda jornada da democracia
liberal, o fascista é convidado todos os dias a projetar todos os seus fantasmas e falácias no
ódio permanente ativado como política, por redes tecnológicas de comunicação ilegais, que
são o seu sonho e o seu gozo, contra o comunista que mora ao lado. Projeção, gozo com a
mentira, desejo de violência e horizonte de morte, sadismo estampado nos rostos, liberado
pelo líder da identificação maciça, cujo continente sonho comum é ação na internet, querem
dizer que o fascista sonha menos... do mesmo jeito que lê menos, diria Walter Benjamin. Se é
que sonha e que lê alguma coisa. O fascista foi subjetivado para passar ao ato e desejar o gesto
sacrificial real, primitivo e magicamente restaurador. E foi reduzido imensamente ao
significante fixado e único, o comunista, conceito nenhum, trama de verdade alguma, que
significa apenas tudo aquilo que ele não gosta, ou deve não gostar, para viver. Como dizia
Freud, gansos sonham com milho... e bolsonaristas sonham com Bolsonaro: a morte de
alguém ou de uma sociedade. Escrevi sobre esta dimensão de transfiguração do espaço sonho,

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como política e como história, no livro sobre o golpe de 2016 e o fascismo comum brasileiro.
Peço desculpas pelo longo arrazoado, mas acho que a oportunidade e o trabalho cuidadoso de
vocês com minhas coisas justifica a fundamentação.

2. Para muitos tem sido espantoso como o bolsonarismo consegue se recuperar


ou se blindar de todas as críticas, escorando-se na criação de uma espécie de
mundo imaginário de “pós-verdades”, que tem sido organizado desde a
campanha eleitoral. Ao mesmo tempo, parece-nos que a corrupção, a
transgressão e o crime são sempre o lado avesso do discurso moralizador deste
governo e do austericídio por ele praticado, como que trazendo à tona um desejo
inconsciente que cala fundo em grupos difusos. Será essa a nossa divisão ou
contradição fundamental como formação (ao nível de nação ou de classes ou de
certos grupos e indivíduos)? A direita tradicional nos anos 1960 a 1990 alcançava
esse nível paradoxal de criação de um “muro” ideológico narcísico diante da
realidade combinado ao desejo oculto de destruir tudo, ou esse fenômeno
sempre esteve aí e não percebíamos como tal?
Tenho a impressão de que o Brasil é uma grande máquina de ilusões frente às proposições
progressistas da modernidade, que ao mesmo tempo que busca e avança alguma espécie
restrita de desenvolvimento, mantém e radicaliza permanentemente os seus modos próprios
de ser para o mundo, modos de recusa radical do reconhecimento da vida social, da
concentração máxima do gozo do poder – o país continua objetivamente tendo a pior
concentração de renda do mundo economicamente relevante, como sempre, e tentando apagar
o sentido desta situação, como sempre... O país da degradação permanente e farsesca da ideia
de democracia, do direito ao extermínio cotidiano de parte da população, os outros dos
homens de bem. Para mim tudo isto diz respeito a uma ação psíquica comum que se dá a partir
de uma mentalidade constituída, o objeto histórico de longa duração de nossa situação de
sadismo social, imposição absoluta do desejo particular ao outro e direito à execução
extrajudicial e amoral: a projeção do escravizado de sempre sobre grande parte da sociedade.
Se o nosso século XIX foi um império monárquico e oligárquico escravista tardio, que corroeu
inteiramente não apenas a estruturação da vida econômica e do desenvolvimento capitalista
de mercado de qualquer tipo moderno por aqui, como dissolveu também o caráter social de
nossas parcas e muito medíocres classes médias, um extrato de agregados e flores de estufa
dependentes que usavam e abusavam igualmente dos corpos negros importados e
escravizados de modo ilegal para o seu próprio mundo de preguiça diante do trabalho e do
avanço científico, com gozo de sadismo no lugar da cultura, tudo advindo de uma boa

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formação prévia colonial de 300 anos; precisamos ainda lembrar, na mesma direção dos
problemas do país para si mesmo e no mundo, que nosso século XX da aceleração espetacular
do crescimento e da industrialização tardia foi marcado por modos próprios de falsificação e
evitação da vida concreta de uma democracia de massas, recusa constante da efetivação de
direitos e reconhecimento e, principalmente, recusa do aumento da renda social disponível
para os mais pobres. Também durante o século XX brasileiro tivemos três grandes blocos
históricos de coordenação autoritária do crescimento para o alto e de evitação simultânea de
inclusão social pela renda, e pelo trabalho da democracia, na arcana tradição antissocial que
nos é tão própria. Três grandes momentos com seus eixos técnicos e simbólicos de
modernização conservadora, que evitavam sempre o investimento e a inclusão efetiva das
massas de miseráveis do país, produto de longa duração de nossa história da escravidão
ocidental: a República Velha oligárquica de fazendeiros paulistas e mineiros, cujos pais ainda
eram senhores de escravos saquaremas do Império..., o Estado Novo getulista, meio fascista,
modernizante e autoritário a um tempo e o projeto de desenvolvimento acelerado
subordinado, imensamente autoritário e antissocial, muito corrupto e acrítico de raiz, da
ditadura civil-militar de 1964-1984; um universo político cujos efeitos de fato se encerraram
somente em 1993, se formos um pouco condescendentes, com a eleição do neo grã-fino, com
espírito de Joaquim Nabuco, mas sem o seu abolicionismo, Fernando Henrique Cardoso. Ao
todo estamos falando de sessenta ou setenta anos em cem de governos autoritários, elitistas,
de pouco interesse pela integração social de massas, até mesmo em uma ordem de consumo
de tipo americano, com suas policias de exceção e de intervenção muito ativas na própria vida
da sociedade civil. Governos elitistas e governos racistas, governos policiais e restritivos de
cultura, podemos dizer, de isolamento dos ricos da vida coletiva, certamente, e de polícia
sempre ativa na repressão social. O Brasil tanto se desenvolveu economicamente quanto
manteve espetacular concentração, gestão social sem traço de solidariedade, e direito ativo à
violência de Estado contra os pobres e também os críticos. Se os pobres foram mortos sempre
com relativa facilidade pelo Estado, homens como Paulo Emílio, Graciliano Ramos, Darcy
Ribeiro, Celso Furtado, entre tantos outros, ou até mesmo artistas moderninhos como Caetano
Veloso e Gilberto Gil, ou Glauber Rocha, tiveram que, em um momento ou outro, se haver com
a polícia de Estado no Brasil do século XX... Considerando que mesmo no período de nossa
redemocratização mais consequente, do início do século XXI, o país passou a conviver bem
com algo entre 50 e 60 mil assassinatos por ano..., com as polícias matando algo entre 5 a 10
mil brasileiros também todo ano, sempre pobres e na maioria negros, na maior chacina de
Estado contra a própria população de um país que se tem notícia no mundo contemporâneo,
podemos então rever pela raiz o sentido e a ilusão do que se chamou progresso e do que se

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chamou nação por aqui, nas origens e até agora. Progresso, esse termo antigo e pesado,
transformado hoje apenas em acesso ao shopping mundial, conjuminado com neofascismo
espetacular excitado de todos os matizes, para quem? E nação em que termos, quando
pensamos nos critérios verdadeiros de uma democracia social integrada de massas? Podemos
intuir o caráter radical e novo de nosso profundo e original reacionarismo moderno, o nosso
exacerbado reacionarismo burguês como dizia sobre o assunto Florestan Fernandes, gestão
necropolítica de massas bem brasileirinha, de muito longa tradição. E de profundo
enraizamento no processo de formação colonial mercantil do próprio capitalismo – aquilo
que alguns historiadores econômicos de hoje vem chamando de “nova história do capitalismo”
–. Para nós a história mesmo da nação como pura base de exploração, local e global, elites
irresponsáveis forjadas no ódio antipopular e desprezo instrumental, do chicote e do corpo
máquina do escravizado trabalhando para a morte – e os racismos são consequência de
princípio da exploração – em conjunto com o desprezo pelo alto da própria ideia de cultura,
crítica e democracia, ou seja, contra a ideia moderna ampla de sociedade. Retornando ao nosso
ponto, o período lulista, de dez anos em duzentos, de seriedade com o jogo democrático liberal,
bem corrupto como ele é, com sistemáticas inversões de mínima renda para os muito pobres
completou o tempo da redemocratização desde 1984, e até 2014..., nos dando alguma ilusão
concreta mais forte de que o Brasil ganhava finalmente uma dinâmica econômica, política e
social aceleradas que levaria à gradual e residual superação do lastro de arcaísmo e violências
antidemocráticas que sempre nos definiu. Aquelas políticas focalizadas de investimento de
Estado na miséria nacional tiveram impacto social imenso no quadro de globalização e
internacionalização da produção industrial de bens de consumo, de uma China que tanto nos
comprou o que produzíamos desde a terra quanto nos vendeu todo tipo de quinquilharia
barata, para a alegria alegria de nossos pobres, que se tornavam, assim, cidadãos do consumo
do conforto mundial da mercadoria, e ponto final. Bem, o complexo político social e de uso da
técnica contemporânea para a configuração de uma nova ordem de ação política de tipo
neofascista, da crise do impeachment, golpe, de Dilma Rousseff, de 2015 e 2016, com a
criminalização exclusiva do PT para o afastamento farsesco de Lula em 2018, e a eleição
impensável, em termos de uma democracia decente e a favor da vida, de Jair Bolsonaro,
repuseram espetacularmente na ordem do dia aquela nossa longa tradição antissocial e de
autonomia autoritária da política a que me referi. Agora, para apresentar alguma novidade,
nosso fundamento antidemocrático se ancorava em uma ordem de massas, populares e de
classe média, em uma nova e surpreendente aliança falsa, e burra sobre a própria condição e
lugar, com os interesses do grande capital no Brasil, que visava suspender na raiz os termos
da própria democracia, legitimando todo tipo de ataque do significante vazio fascista por

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excelência, o comunista imaginário, do anticomunismo do nada como gosto de dizer,


permanentemente reinventado e sem conceito, de fato apenas ataques novos à vida civil da
sociedade de contratos liberais e sociais constituídos nos últimos 40 anos. Por um lado a crise
de acesso ao poder político que desencadeou o golpe parlamentar midiático de 2016 era
simples voracidade, oportunismo comum e desejo de poder de PMDB e PSDB, de homens bons
e sérios como Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves e José Serra, vontade barata, de
republiqueta ad hoc para estes senhores, de chegar ao governo sem votos; por outro ela foi a
política espetacular do pacto melodramático excitado como novela de televisão, de Lava Jato,
TVs, rádios, jornais e revistas nacionais que se tornaram todos instrumentos de propaganda
da nova direita, fosse ela qual fosse; por fim as massas conservadoras nas ruas, que uniam pela
primeira vez os ricos entre si do Brasil com os mais baixos autoritários da vida popular –
senhores de escravos e capitães do mato..., por assim dizer, em uma imagem não tão distante
assim das coisas – criaram as condições para a dissolução das referências do sistema geral da
política existente até então, impedindo o último governo petista de governar, e quebrando a
fundo a economia, para derrubar o governo, em um processo que já durando cinco anos nunca
mais encontrou reparação. Apenas para lembrarmos as condições amplas e complexas, não
criadas por ele, que permitiram a eleição impensável do desqualificado, violento e antissocial,
Bolsonaro, um sub-ditador latino-americano, que pede todo dia a uma parcela social de
homens desqualificados para qualquer democracia imaginável o presente de um AI-5 prêt-à-
porter, por que ele quer...., um capitão expulso do exército em busca permanente de um
Estado de exceção para chamar de seu. Nestas condições históricas, que são fatos, eu diria que
o muro ideológico levantado pela nova direita ruinosa do Brasil não é um dado
contemporâneo, e nem sequer desconhecido da ordem política das violências brasileiras, e
suas falsas normatizações democráticas. Em Michel Temer e o fascismo comum conto a
história do sistema de notícias falsas, literais, baseadas em desejo de ditadura, que exatamente
transformavam um filme coletivo de demandas sociais por reforma agrária e garantia de
salários no campo, como Cabra marcado para morrer, por exemplo, no teatro imaginário
falso de uma guerrilha assassina cubana. Isso publicado com todas as letras em um grande
jornal de Recife. A diferença do bolsonarismo de agora em relação à tradição da vida política
brasileira não está na cisão autoritária da sociedade, no desprezo antissocial de um governo,
na apropriação privada tolerada e incensada como legítima do Estado. Ele está na mobilização
das formas tecnológicas do tempo, com nova ordem de eficácia e de desenho social das
relações, sua nova ordem de constituição de sujeitos tecno-fascistas, produtores da mensagem
industrial da imagem na internet, da gestão dos mercados e dos currais eletrônicos de
reprodução da propaganda fascista e dos consumidores do seu baixo espetáculo político

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excitado, meme orientado, tudo ao mesmo tempo. A descoberta fascista contemporânea foi a
descoberta da nova ordem de agenciamento da tecnologia disponível, acelerada, vulgar
brilhante, rixosa baixo sádica, controlada por gabinetes de propaganda dissiminados pelo país,
e agora de Estado, os gabinetes do ódio que gerem milhões de investimento político ilegal na
rede, e terceirizando na própria massa produtora consumidora o produssomo espetacular
fascista na internet. Foi essa dinâmica que o documentário espinhoso, cuja percepção foi
recusada por muitos de nosso próprio campo de esquerda, Intervenção, amor não quer dizer
grande coisa (Rewald e Ab´Sáber, 2017) feito com material dos chats fascistas da internet dos
anos de 2015 e 2016, demonstrava: há uma nova ordem de tecno-política e de tecno-sujeito,
que conjugou o direito à mentira com formas psíquicas arcaicas, e novas formas de ocupação
veloz e memética – a realidade como chiste, imagem, politicamente incorreta, que se sabe de
massas desde a raiz da enunciação e que voa rápido para que a próxima imagem excite
novamente o seu tipo de sujeito –. O primeiro robô de reprodução automática na rede
bolsonarista que se tem notícia foi registrado no ano de 2011. Muito antes de o Exército abrir
as portas de seus quarteis para a demagogia autoritária de Bolsonaro fazer a sua convocação...
Em 2015 e 2016 a máquina linguareira afetiva paranoica mentirosa fascista estava em pleno
voo, produzindo consumindo em todos os níveis na internet, mostra o filme que apontou para
esta dimensão de produção do fascismo à brasileira... porém, quinze dias antes da eleição de
2018 Fernando Haddad, tratado por pedófilo, reclamava para jornalistas do massacre de
propaganda ilegal e mentirosa que ele era vítima nas redes neofacistas e de WhatsApp
familiares. Com pelo menos sete anos de atraso o PT descobria que tiro foi esse. Depois,
passou-se a explicar, sem dados, análise e entendimento, sem acompanhar o processo político
popular tecnológico real, tudo aquilo com fórmulas históricas prévias e datadas, que pouco
tinham a ver com o caso: ouvi análises petistas dizendo que tudo foi feito pela Globo... claro
anacronismo... outras dizendo que o Golpe de 2016 foi um ato do Exército... parcialidade e
compulsão à repetição do juízo... e outras ainda explicando o massacre e a criação das cadeias
nacionais fascistas na rede como uma ação importada tardia, de Stevie Bannon, na internet...
fantásticas, simplórias e a-históricas explicações, de quem nunca quis ver a tomada real das
massas à direita do espaço público, das ruas, e das redes, desde 2013, com patamares cada vez
mais alavancados, orgânicos e eficazes conquistados em 2014, e 2015 e 2016. E, finalmente,
em 2018.

3. Você foi um dos primeiros a cantar a pedra da possibilidade (ou realidade) de


um “fascismo à brasileira”, coisa que às vésperas do segundo turno em 2018
muitos ainda achavam demasia ou anacronismo. No entanto, fica a dúvida se não

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estaríamos mobilizando um conceito histórico muito marcado, carregado de


pressupostos e de sentidos que aqui não encontram o mesmo lastro (por
exemplo, a inexistência de qualquer movimento radical ou ameaça de “revolução
socialista”, o pseudonacionalismo do bolsonarismo etc.). Qual a diferença
específica desse “neofascismo” brasileiro no mundo hoje, aliás num mundo cada
vez mais “brasilianizado”, mas também tendente à ressurgência de grupos e
movimentos de extrema direita? Será o “ódio político” ou esse “fascismo
comum” aprendidos no nível do discurso ideológico e inconsciente do Brasil pós-
golpe conceitos capazes de dar conta da universalidade e das particularidades
históricas? E nesse caso estamos invertendo a lógica tradicional das
determinações sociais, talvez extrapolando o campo da psicanálise, colocando-a
no centro de conceituação do processo social? Ou ao contrário, é o social mais
oculto que se revela por esse meio de análise?
Este é um ponto curioso e um tanto constrangedor do debate sobre a nova ordem política do
Brasil que emergiu com toda força a partir de 2016, mas que tem aquelas bases sociais,
imaginárias e de atuação técnica de massas na internet, funcionando a todo vapor ao menos
desde 2014 e 2015. Quando ninguém sabia bem, nem queria saber, a coisa estava lá,
produzindo sem parar. Uma das confusões do nosso campo crítico não unificado, não coerente
e cindido – entre petistas comprometidos com sua social democracia possível de mercado e
pensadores críticos radicais do capitalismo; entre nova esquerda jovem centrada em
problemas de representação e velha esquerda desenvolvimentista então instalada no Estado;
entre autonomistas demandando passe livre, maior socialização e alguma diferença na vida
dos pobres, e esquerda institucional do próprio espetáculo, entregando mais estádios de
futebol para a FIFA e a Odebrechet... – foi não ter nenhum acordo sobre como se nomear,
buscar a ordenação poético conceitual para a produção de energia política, se é que se
desejava nomear..., o sentido histórico muito evidente da ascensão ao poder do fascista
representante tolerado dos porões da ditadura militar de 1964, em um caso histórico
gravíssimo de má-conciliação chamado Brasil. Como éramos na prática política e social tantas
esquerdas, e também, na hora histórica, quase nenhuma, também tivemos muitas opiniões,
todas retardatárias e muitas vezes apenas esquemáticas, repetição simples dos traumas
significantes dos anos de 1960 e 1970, sobre a natureza do sujeito político e da política maior,
se é que se pode falar assim, de Jair Bolsonaro. Para mim todo o percurso do capitão da
arminha, dos currais eletrônicos ilegais e de ativismo de massas de extrema direita nas redes,
e suas afirmações práticas concretas na vida do país, as ações politicamente orientadas de
subjetivação das massas para o novo plano de direita reinventada no Brasil, não deixavam

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dúvida de que o que ocorreu no país foi um pacto renovado e redesenhado pelo tempo técnico
de agora, com muitas forças sociais participando do jogo, de um neofascismo à brasileira com
neoliberalismo grosseiro, e retardatário em relação à nova ordem do mundo. De resto, mais
uma velha novidade, como todos sabemos, se lembrarmos que a ditadura pró-americana
assassina de 100 mil chilenos de Pinochet em 1973, grande referência de Bolsonaro e de seu
trickster da economia, Paulo Guedes, não foi outra coisa se não isso mesmo: ação política
decorosa familiar fascista, latino-americana, de terror de Estado para o sacrifício real de parte
da população nacional, tudo ligado ao primeiro grande assalto feroz neoliberal que se tem
notícia, bem antes de Reagan e de Thatcher, à qualquer contrato social democrático reparador
do terror universal da vida de mercado, que iam avançados no Chile. O resultado, vimos bem
antes da pandemia, é que ainda 50 anos depois daquela ditadura o país está parado, social e
vitalmente, em um real Estado de choque, praticamente inviável para a vida. Apenas não é
mais possível viver sobre aquela ordenação extrema do corte capitalista, da ditadura fascista
neoliberal e seus exércitos de milicianos e assassinos militares antissociais. O debate bastante
insólito, rebaixado diante da tarefa histórica, atravessado de auto-ressentimento sobre a
falência das perspectivas de até então, sobre se se poderia ou não evocar o termo fascismo para
se referir à nova ordenação da direita no Brasil que se concentrava finalmente, em 2018, na
figura de Jair Bolsonaro, debate um tanto travado dos contendores que falavam sempre de si
quando queriam dizer do mundo em choque, que queriam mais ou menos entender, se dividiu
mais ou menos em dois grandes campos, na melhor das hipóteses dois entendimentos
diferentes sobre o assunto, para não imaginarmos a terceira via, a do entendimento algum.
Um que via a ideia de fascismo como algo ligado necessariamente aos modos históricos bem
estruturados do problema, à configuração das estratégias e dos instrumentos de poder
próprios dos anos 1920 e 1930, ou seja, com a presença de, ao menos, um líder autoritário
totalizante, um partido de massas organizado junto à vida social degradada, nacionalismo
belicista e imperialista exacerbado e desprezo radical pela forma democracia liberal, com
aberta política ditatorial sustentada pela unidade imaginada e imposta do líder com a nação,
sempre em busca de guerra. Para falarmos em fascismo, em uma referência que teria
correspondência com os estudos históricos clássicos de Michael Mann, Hannah Arendt, João
Bernardo, e outros, teríamos que ter uma nomeação fascista explícita que evocasse aqueles
elementos históricos, fixados agora de modo a-histórico... Desta perspectiva, a referência ao
nome que o movimento da história do passado deu a si próprio, a ascensão e o sentido do
fascismo de Estado do século XX, apenas obturaria a consciência fria e analítica necessária ao
presente, uma consciência que me parecia apenas distante do contato com a energia social em
jogo..., nos desviando do verdadeiro entendimento do caso. “Mais de 50% do povo brasileiro

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não se tornou fascista de repente”, dizia o mantra desta posição, em um desvio retórico do
ponto histórico que de fato interessava: como mais de 50% do povo brasileiro, que não era
fascista, votou de fato em um fascista? E qual as consequências dessa ampla conversão
política em que um real fascista passava agora por legítimo democrata? Curiosamente tal
medo em reconhecer-se diante do fascista adiava em 2017 e 2018 a nomeação do fenômeno,
cujos estragos se davam aqui e agora, para um futuro indeterminado, de fato hoje, quando,
agora, em 2021, proliferam nas universidades os núcleos de estudo do fascismo
contemporâneo..., agora.., que Inês é morta. Algo nesta postura – não falemos tão mal assim
do adversário, falar de fascismo de agora é hipostasiação simples, não nos confundamos com
a natureza de sua violência, que é de fato retórica mas não ato, sejamos sóbrios ainda neste
quadro de corrosão do caráter político da vida nacional, algo quase como o narrador decoroso
de Machado de Assis diante do senhorio de escravos brasileiro e seu chicote e seus contratos
internacionais, sem registro moral ou político na modernidade central..., e não toquemos no
termo fascismo para o nosso presente, pois ele simplifica em demasia as coisas – era bastante
semelhante ao maior jornal de extração burguesa do país simplesmente proibindo seus
jornalistas de nomear na eleição de 2018 Jair Bolsonaro como um político de extrema direita.
Esse dado formal escandaloso tem o valor de escancarar a natureza da sintomática do decoro,
bem brasileiro, diante do fato histórico de real violência, mas que se prefere, como nos é
próprio nestas horas, não nomear, não dar nome aos bois. Assim, desde liberais cafajestes
vorazes brasileiros que se tinham por homens da paz cosmopolita mundial dos mercados de
investimento da Avenida Faria Lima, até o seu jornal, a Folha de S. Paulo, até o intelectual
adversativo, que sempre comparecia com um mas para fugir da responsabilidade do próprio
terror em curso, apontada por Paulo Roberto Pires e até grandes intelectuais de esquerda,
havia um curioso e mal resolvido esforço em não chamar o transbordamento do mal na política
do Brasil, para muitos evidente, de fascismo, neofascismo. A questão de fato era essa, a política
explicita da violência sem mediação, o complexo desrecalque contemporâneo, produto de
técnica, da política como mal e como crime social. Passados dois anos e meio, alguém ainda
tem alguma dúvida sobre o ponto? Para mim, me desculpem, aquelas ressalvas sem conteúdo
à altura do tempo deixavam tudo bem parecido com a chamada inutilidade da inteligência, de
Adorno e de Horkheimer, conceito adiantado ao final de Dialética do iluminismo que dizia
exatamente isso: o esforço da comunidade da inteligência liberal alemã, inclusive de judeus
laicos bem postos na vida, em negar ativamente a realidade do sentido da chegada de Hitler
ao poder de Estado. Era um limite, mais psíquico do que racional..., diziam os filósofos meio
psicanalistas, das formas da inteligência do tempo e seu compromisso desejante com
realidades que não vinham ao caso histórico, que simplesmente se recusavam, na raiz das

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próprias condições, em reconhecer que Hitler e o seu nazismo no poder eram o que eram... E
aqui o ponto e o vínculo existente entre política e psicanálise se estreita e se aproxima
novamente. Não era nada acaso que aqueles filósofos radicais anticapitalistas pensassem ao
mesmo tempo com Marx e com Freud, ambos teóricos críticos e materialistas em esferas
diferentes da existências moderna, eles diziam articulando-os, para perceber o vínculo de
ideologia, recusa da realidade – categoria produtiva de sujeito freudiana – e ascensão do
fascismo. Podemos dizer, com base naqueles fatos psico-políticos e sociais do passado do
fascismo europeu, e com a nossa própria confusão ideológica sintomática sobre o nosso
próprio mal histórico de agora, que a ascensão de fascismos está relacionada aos modos de se
recusar o que está na cara. Posição de alucinose, que só vai se alterar, acordar do próprio mal
sonho, quando, em algum momento, o fascismo bater na cara. A política do limite da recusa
do conceito é uma política de fuga, que pode perfeitamente colocar o fascista na frente da
história, até o limite do conceito chegar à vida como um golpe, para então todos ficarem se
perguntando como não vimos? Por isso fizemos aquele documentário, em 2016, para que o
fascismo batesse na cara já então, e não depois que o degradado e irresponsável capitão
gângster miliciano brasileiro, nosso fascista íntimo, estivesse no poder. Esperança na
interpretação do fato histórico evidente e política de tipo hegeliana, de despertar para o
sentido e se reaprumar para a história? Certamente. Mas ao menos tocando a coisa nos seus
termos relevantes... Pouco adiantou. De fato nada. A segunda tradição teórica evocada para
dar nome à coisa da ameaça constante de terror político hoje no Brasil também é bem
conhecida de todos. Ela diz respeito ao vínculo formal mutuamente estruturante entre
fascismo e subjetivação, raízes afetivas e fantasísticas do sujeito e política. Muitos
contribuíram nesta esfera, por uma vida não fascista, ou seja, por uma crítica das condições
formais da produção do fascismo como forma de vir a ser, estruturação do desejo e do eu,
conversão psico-política operando condições, posições, como dizem os psicanalistas
kleinianos, da adesão consentida e voluntária, em estado de guerra, organização política da
paranoia e idealização extremada do poder. O mundo entre o sujeito e o poder destes autores
e sua crítica ao fascismo é muito conhecido, porém supreendentemente, na hora do vamos ver
histórico, da convocação fascista primitiva avançada que congrega notórios arcaísmos
psíquicos com tecnologia da propaganda atual, tantos de nós simplesmente esqueceram esta
experiência de crítica ocidental. Que não era uma tradição qualquer: Freud, Reich, Kafka,
Benjamin, Adorno e Horkheimer – como já vimos – Primo Levi, Marcuse, Erich Fromm,
Pasolini, e até os pós-estruturalistas Deleuze e Guattari, não deixaram dúvida sobre o vínculo
de fascismo, regressão conceitual, a ser determinada nos seus valores, força do desejo e
práticas de política de guerra, aplicadas à própria vida social do fascista. Deste ponto de vista

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destes muitos pesquisadores do fascismo que tiveram o maior conhecimento de causa


histórico, da propaganda fascista e teoria freudiana, para ficarmos na famosa anotação de
Adorno, o que interessa no fascismo é a congregação de desejo e subjetivação política para a
conversão imediata da política à violência como a verdade e a legitimidade das coisas
políticas. Foi assim que defini para mim mesmo esse campo, que não separa sujeito da política,
e se interessa mais radicalmente pela sujeição fascista, ato de poder de massas e seu líder,
cujas raízes mais profundas estão na fantasia sacrifical arcaica como modo de pacificar a
civilização contemporânea, que, sem referência histórica verdadeira para o fascista, se tornou
absolutamente incompreensível para ele. Daí a fúria conspiratória em busca de culpados para
a purificação do mal, sempre imediata, a ignorância e a recusa notória em conhecer algo ou
qualquer coisa que não a certeza alucinada da guerra imaginária ativada, o vazio da
personalidade, da razão e da responsabilidade do eu, e o valor totalizante do líder como
enunciador internalizado, em estado de identificação radical, de todos os motivos e desejos do
próprio adepto, membro da horda, gado ou crente. No entanto, para minha grande surpresa,
embora todos estes dados sejam evidentes e óbvios em nosso caso de ativação contemporânea
da psico-politica do fascismo em um país periférico em crise, muitos pensadores de esquerda
e teóricos da política entre nós deram testemunho estranho no processo de nunca terem
ouvido falar neste assunto pensado deste jeito. Muitos insistiam, contra todas essas evidencias
teóricas simplesmente reconhecíveis, que, sem um Mussolini e um partido fascista de um
Mussolini de 1920, não se poderia nomear a regressão brasileira feroz e sua ameaça constante
à vida e a tudo que o fascista viesse a não gostar, a universalidade vazia do anticomunismo do
nada olavista, como uma ordem contemporânea de fascismo. Passado, por agora e por
enquanto, o deslocamento da destrutividade fascista de um ataque ordenado e explícito aos
vínculos de direitos no Brasil para a liberdade tolerada e facilitada de extermínio em massa de
Estado, por economia e por arrogância anti-humanista, da gestão natural de uma pandemia
de peste global orientada contra a saúde pública nacional, para nossos 450 mil mortos até o
instante que escrevo, deixo aqui a voz de agora de um jornalista alemão sobre o assunto, para
os que tiveram tantas dúvidas ponderarem sobre como dar nome ao fenômeno. A coisa vai
avançada, não começou ontem e nos satisfizemos durante um bom tempo em relativamente
desconhecê-la. Nas palavras do dia de Phillip Lichterbeck, do Rio de Janeiro para o Deutsche
Welle: “A extensão da irracionalidade é aterrorizante e ameaça arrastar o Brasil para o abismo.
Para a sua disseminação há um motivo: o bolsonarismo. Esse nome se deve há um homem
cujo livro favorito foi escrito por um torturador. Por conseguinte, o bolsonarismo tem
correspondentes ideias para a sociedade: violentas, autoritárias, sem empatia, anti-
intelectuais e pseudo religiosas. O bolsonarismo assumiu agora todas as características de uma

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seita cujos membros estão dispostos a seguir seu líder incondicionalmente, até a morte. Esse
culto à morte está se tornando cada vez mais evidente nas manifestações dos bolsonaristas.
Um caixão é carregado alegremente, no meio de uma pandemia, expõe-se a si mesmo e a
outros ao perigo de um contato e se grita: ‘A covdi-19 pode vir. Estamos prontos a morrer pelo
capitão.’ Como todos os movimentos fanáticos o instinto de auto-destruição é inerente ao
bolsonarismo. Assim como Hitler acreditava que a Alemanha merecia ser devastada se não
conseguisse vencer a guerra, o bolsonarismo gostaria de destruir tudo. Não há outra explicação
para a sabotagem do presidente e seus apoiadores contra as autoridades do setor de saúde
pública.” A autodestruição conjugada ao impulso destrutivo fascista chegaria mesmo, mais
cedo ou mais tarde ao paroxismo que chegou no Brasil. Há uma importante teorização
psicanalítica, bastante desconhecida de cientistas políticos convencionais e da grande
estruturação lacaniana sobre o laço social, que domina a discussão da relação entre psicanálise
e política entre nós, que articula e faz derivar a ideia freudiana de pulsão de morte ao ódio à
realidade, e o ódio à realidade à produção ativa de sistemas delirantes e alucinados... Além
disso, nesse esvaziamento odioso do eu e do mundo, Freud lembrou o apego automático e de
servidão voluntária ao líder hierárquico, sem mais nenhum pensamento operando... Alguma
correspondência com os fatos? Novamente são as más notícias do eixo teórico Freud, Klein,
Bion que, tidos como produtores alienados de saber humano para a esfera do consultório
burguês e sua doença íntima, tem instrumentos teóricos para sentir e desenhar as formas
mais radicais da política, exatamente o fascismo quando ele evoca as estruturas morte e
delírio como o sentido da vida social. No entanto, meu trabalho e meus escritos se interessam
agora por outra ordem de paradoxo das coisas da política e do pensamento. De como a recusa
em dizer do fascismo é um duplo articulado da nomeação pan-comunista de tudo e de todos
por parte do fascista. O fascista nomeia tudo como seu inimigo, enquanto o campo antifascista
é incapaz de nomear o adversário como fascista... Há convergência política, em certa direção,
destas duas posições psico-políticas. Se o fascista nomeia tudo como inimigo e passível de ser
atacado e destruído, um certo campo liberal mantém vazia a ideia de que o fascismo é a única
posição a ser destruída em uma democracia. Juntas tais posições subjetivas para a política
levam aonde chegamos.

4. No seu livro sobre o reformismo lulista, há todo um desdobramento da figura


do partido de massas que chega ao poder pelas vias da conciliação, e do líder
popular cheio de carisma que transita por uma cultura popular que costuma se
inverter em adesão e mesmo “anticrítica” ao sistema de dominação do capital.
Ocorre que uma parte dessa equação política parece ter se tornado condição para

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se vencer uma eleição presidencial no Brasil. Os governos Dilma I e II parecem


provar como a coisa funciona e dá errado quando não se tem esse carisma e se
perde a adesão das massas, numa cultura de base patriarcal, hierárquica, racista
e muito fácil de ser manipulada. O que pensar desse obstáculo: como criar uma
esquerda crítica que supera a necessidade do líder conciliador e também certas
limitações e ilusões do velho populismo (nacionalismo, modelo
desenvolvimentista e aliança com uma classe burguesa “esclarecida” etc.)?
Essa é a questão que o ensaio sobre Lula esboçou, a da natureza cultural industrial do
agenciamento de seu carisma, que enquadrou o país e o petismo no período. Um governo de
esquerda abertamente de mercado, como escrevi no livro, um paradoxo contemporâneo que,
seja pela esquerda anticapitalista que vê o mundo arruinado a cada segundo da jornada do
anjo da história de semblantes congelado, seja pela esquerda oficial congregada e unida pelo
governo ao redor do PT, não foi elaborado como conceito político entre nós. Apesar do grande
sucesso social e político que estabeleceu a hegemonia petista de fato por quatro eleições
majoritárias seguidas, tudo era levado como pragmática de produção lulista, nada era pensado
em termos de conceito e contradição relevante pela própria esquerda. Tanto não o foi que,
quando a extrema direita farsesca incendiou a vida política nas ruas – e as ruas hoje são as
grandes vias de acesso coletivo controlado da internet... – com a mentira generalizada, um
verdadeiro mito de guerra, do comunismo petista e da esquerda em geral, Lula e o PT,
encalacrados com os processos policialescos do ataque lavajatista à corrupção nacional
centrada inteiramente no Partido, simplesmente não conseguiram dizer o que de fato foram e
o que de fato fizeram: a maior dinamização democrática do capitalismo de mercado interno
e de consumo que já se viu por aqui. Sem nenhuma dúvida. Noutras palavras, um governo de
grande efeito capitalista, que aumentou os ganhos do capitalismo industrial e de varejo
interno do país, incluindo massas em uma esfera de consumo ampla, a ampla cultura como
shopping petista, das empregadas domésticas que iam à Disney e do surto de compras de
tudo que é quinquilharia chinesa até os carros em massa da indústria brasileira, sem falar em
um arremedo de apartamentos periféricos um pouco melhores, talvez, do que as favelas da
classe C brasileira, do minha casa minha vida. E, como tentei deixar claro no livro, esta
expansão da subjetivação do consumo, com a constituição do cidadão mundial do consumo,
a grande política que finalmente transformou o Brasil em um país capitalista – como Lula
disse de modo auto-celebratório ao fim de seu governo... – se completava no poder de atração,
de convencimento, de negociação, da dança das cadeiras e das posições sociais, da capacidade
linguageira do corpo de Lula, a dimensão tradicional de dominação weberiana do carisma.
Noutras palavras, seu complexo carisma industrial, de mito político da esquerda nacional,

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que se tornou mundial, com a própria ascensão do país no mundo mais amplo da vida da
mercadoria, fazia fortemente parte do sucesso de sua política, ou seja, conceber o povo
brasileiro como consumidor e festejar os ganhos marginais de transferência de renda das
políticas públicas, que passavam a ser importantes e suficientes exatamente porque vinham
da mão de Lula, e não de um burguês antipetista qualquer. A máquina do sucesso de uma
maquiagem, profunda?, ou superficial?, de desenvolvimento democrático capitalista do Brasil
lulista, de tipo americano, em que o cidadão é definitivamente o consumidor, se completava
no amor industrial pop, internacional diga-se de passagem, pelo grande propagandista da
coisa toda, o político espetacular Luiz Inácio Lula da Silva. Sem o valor de produto e fetiche
do equivalente universal do capitalismo local, ou seja, Lula, a coisa não ficaria de pé e não
rodaria. No entanto, voltando atrás um pouco na conversa, quando a direita armou o golpe da
sua prisão farsesca – e sempre foi evidente que Lula seria preso, porque era esse o único modo
de quebrar a força do poder histórico e carismático conquistado, era necessário que, de mago
do capitalismo periférico em ascensão, ele se transformasse em bandido sem direitos legais
nem humanos do Brasil – e disparou a incrível cultura fraturada do anticomunismo do nada,
retomando parâmetros de guerra fria de 1960 totalmente falsos para o caso, ninguém no
campo petista, nem mesmo Lula que apenas se concentrou na luta pessoal com Sérgio Moro,
pode vir a público e pode dizer simplesmente: “nós fizemos o governo de expansão capitalista
da vida nacional mais eficaz e produtivo que já existiu. É simplesmente ridículo nos tratarem
por comunistas e todos os dados econômicos e políticos históricos demonstram isso. Somos o
partido real do capitalismo periférico.” Por que a esquerda entrou em um beco sem saída
simbólico em que ela sequer podia falar o que ela própria era? Como as fantasias de
emancipação transcendente democráticas socialistas do campo se resolveram como produção
de sujeitos de consumo mundial, pacto com a forma mercadoria, carisma propagandístico pop
– que agora Bolsonaro, com estilo muito diferente, também investe para o seu curral de 30%
de fanáticos... –, e ordenação produtiva entre as classes lulistas, do povo do bolsa família ao
grande banqueiro? Tudo de modo a deixar de fora a discussão sobre a concentração de renda
brasileira, o massacre fascistóide de 60 mil brasileiros mortos por ano, com 6 mil mortos pelas
polícias..., e o abandono do avanço democrático das exigências de direitos dos trabalhadores
que não fosse viver no e para o shopping. Sem poder de nenhum modo pensar, por exemplo,
a efetivação dos direitos humanos no Brasil, creches em todo país para as mulheres
trabalhadoras, educação fundamental de grande qualidade para os pobres, representação nas
esferas decisivas das empresas e multiplicação dos fóruns populares de reflexão sobre as vidas,
os bairros e as cidades. O amor pela mercadoria e pelo líder fetichista petista engoliu todas as
possibilidades da democracia contemporânea, que não fossem o envio de massas à lógica

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comum do mercado. Vocês perguntam, lendo os ensaios, poderia ser diferente? Certamente
nada na história poderia ser diferente, apenas na esfera da razão crítica as coisas podem ser
diferentes. Razão que foi mantida bem longe dos pactos efetivados do governo a favor de todos
da esquerda de espetáculo lulista. Escrevi aqueles livros para dar definição mais precisa para
o caso e as decisões políticas de Lula. E depois para a crise do lulismo com Dilma, e mais a
degradação neofascista que comprovava a insolidez de todo o processo, com o golpe e a
chegada ao poder do anti-Lula, Michel Temer, antessala do bolsonarismo que avançava sem
que a esquerda do amor ao líder e do povo como figurante de propaganda de shopping sequer
percebesse. A conclusão final era que a corrosão do caráter político das massas viciadas em
mercadorias, mais sua lógica excitada de indústria cultural para a vida, já era anti-intelectual,
acrítica e apolítica na época, bem como a esquerda que se resolvia como culto ao líder amado
e genial era provavelmente uma prática regressiva. Tudo isso poderia, eu pensava,
rigorosamente ser deslocado e apropriado pela direita, como elogio fundamental da ordem e
da vida capitalista comum, denunciando os limites e as contradições do manejo petista da
política tradicional brasileira. Em um caso de crise econômica, tal farra biopolítica da
construção de cidadãos cujo sentido da vida era o gosto de uma TV de plasma com conversor
digital, não implicava um compromisso com a democracia e uma consciência de classe
suficiente para o caso do Brasil. Ou seja, o lulismo constituía uma massa feliz de consumidores
que flutuavam sem dialética nem exigências maiores sobre a lógica geral do fetichismo da
mercadoria, cidadãos políticos bons para a direita. A adesão de milhões, da noite para o dia,
ao neofascismo em ascensão e ao desejo neoliberal do senhorio brasileiro, me parece, deixou
isso claro. Quando as burguesias nacionais se alinharam, bateram na mesa e disseram
sozinhas que Lula era apenas um bandido comum da política brasileira, e o espetáculo geral
da política mudou de sinal, os mesmos animados consumidores lulistas de ontem passaram a
olhar para o ódio neofascista, de amantes do capitalismo sem mercado, mas de extermínio
brasileiro, a velha ordem pré-petista do país, como a nova onda de seus desejos, legitimada
por seus senhores amados do dinheiro. O trabalho da crítica é entender e definir ao máximo o
sentido das contradições do capitalismo em um determinado quadro de historicidades. No
nosso caso o tempo do lulismo foi o sucesso da inserção de massas no mercado interno, dado
o atraso e a voracidade do povo brasileiro a este respeito, e a confirmação de uma anulação
mais profunda da produção de uma subjetividade política exigente. A solução brasileira de
então punha em destaque o impasse mundial das esquerdas adaptadas à ordem global das
determinações do capitalismo contemporâneo, das democracias de massa liberais e da posição
de gerir do melhor modo possível o capitalismo local, produzindo ganhos marginais e não
estruturais para os pobres, somando a isso a política industrial do carisma. Enquanto o mundo

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se destrói em todos os horizontes e prepara a nova rodada fasciscizante de recolha dos fundos
públicos pelo capital mundial, para o qual as boas esquerdas com sua social-democracia de
espetáculo, nada tem a dizer.

5. Supondo que a objetificação do gozo incitada pelo bolsonarismo é o seu ponto


mais forte, que parece torná-lo ainda mais carismático e resistente do que o
lulismo como fenômeno de massas embrutecidas pela violência, o desemprego e
a frustração, parece que teríamos que procurar como desmontar a máquina
repetitiva de fundo carismático. Há possibilidade de um líder não carismático
obter aprovação? Isso passa pela via do desejo e das promessas utópicas de
mediação? Mas como fazer essa mediação, que exige tempo e adia o gozo? Se por
condições objetivas da disputa política atual, Lula for o candidato das esquerdas,
o que pensar do seu discurso/programa padrão que apela para o consumo, a
retomada do desenvolvimento do país emergente etc.? Ou, por outra via, indo
mais diretamente ao ponto: se o pesadelo bolsonarista “realiza” por assim dizer
desejos narcisistas, perversos e autoritários de uma ampla parcela dessa
sociedade dividida então fica evidente que algo no campo do desejo precisa ser
intensamente trabalhado e transformado. Na sua experiência teórica e prática, a
sociedade se resume a isso? Que contraexemplos poderíamos apontar? Como a
sociedade poderia “despertar” desse sonho maligno ou pelo menos contrapor-se
criando um novo campo de mediações? Que experiências de identificação ou
desindentificação ficam por se fazer nessa altura do campeonato, se é que ainda
há tempo para fazer alguma coisa?
De fato o bolsonarismo, assim como outras ordens de fascismos, fundamentalismos,
reacionarismos antissociais, deixa claro o problema dos vínculos psíquicos e grupais fortes
com o desejo o mais amplo de violência e com o vazio do valor da razão, para não dizermos da
“verdade”, na história. Política de choque e de conquista vazia de posições, nietzschianismo de
milícias e oportunistas excitados por transformar política e sociedade em briga de gangue, a
degradação da cultura, da política e da vida deste movimento de psicologia de massas se torna
a sua própria cultura e seu modo de ganhar a vida. A irracionalidade politicamente orientada
não tem limite. Mentiras criminosas sobre remédios falsos ordenadas pelo líder fascista em
meio a 450 mil mortos no Brasil, por exemplo, não significam absolutamente nada para esta
gente. O fascismo comum há muito, e certamente ao menos desde a crise antipestista de 2015
e 2016, não trabalha com nenhuma verdade na história. Seu único foco é nos convencer que
Bolsonaro é honesto, capaz, democrata, legítimo e produtivo para o país. Tudo o que ele não

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é. Ao mesmo tempo que, como farsa macabra de massas sem nenhum limite, pedem AI5 para
que ele possa matar-nos com maior facilidade. Daí o risco constante e real de golpe
bolsonarista, na cara de todos, enquanto olhamos bestificados as estratégias fascistas sem
controle, o grito de guerra gozoso assumido nas ruas ao longo de todo o governo. O grito de
todo poder ao mito, que funciona como ameaça visando tutelar a política e como horizonte de
agregação das forças policiais criminosas do país, que o líder deseja que sejam simplesmente
suas, como diz todos os dias. Não há nenhum critério sobre verdade ou mentira, sobre direito
ou garantias civis e até mesmo sobre ciência e o direito à vida. E tudo isso é apenas a efetivação
do óbvio. Não há surpresa. Bolsonaro de fato sempre foi isso, ou alguém se esforçou muito
para esquecer? Tudo se dá apenas como a política da farsa da comunicação massiva
bolsonarista, para a acumulação vazia de poder na imagem do líder, como única meta,
abertamente contra a democracia existente. Nada vale absolutamente nada para essa gente.
Gozo do poder e rebaixamento da consciência são tão evidentes que é constrangedora a
tentativa de supor alguma inteligência política ao grupo. Não há inteligência, apenas excitação
em busca de uma norma qualquer autoritária, funcionando nos fins dos tempos do capitalismo
periférico. E a caricatura conceitual coincide inteiramente com a coisa. Como se sabe, se
dispensa qualquer valor que não a falácia, o sofisma e a mentira. Que não a inteligência da
propaganda fascista de fantasia, contando com a dissociação psíquica radical e certa de seu
público. Mas, olhemos tudo isso por um outro ponto de vista. A importância das conversões
fascistas é nos lembrar que nossa cultura civilizada moderna não realizou de nenhum modo
suas promessas. Não apenas por um futuro da confirmação do paraíso na terra do progresso
industrial, com a manutenção da acumulação infinita, mas também pela força íntegra de um
passado, aflorado em um instante de ruptura sem transformação, como uma camada
geológica muito primitiva emergente no presente, um território de agências antigas – como
dizem mesmo ao seu modo “conservador” vazio os próprios fascistas – que valem agora para
a crise dos horizontes de possibilidades da história, subjetivação paleo-política, que de um
modo ou de outro também nunca passa, ou ainda não passou. O problema, na frente da luta
de narrativas, guerra cultural, é o da filosofia da história: da medida daquilo que importa como
marcação de acordo entre os homens como digno de ser lembrado e a favor de que tipo de
vida, ou porque se conta a história?, como dizia Walter Benjamin, versus a anulação primeva,
arcaica, dos parâmetros das coisas sociais, tudo a favor do tipo de abjeção, e seu pacto com a
morte como vimos ocorrer no Brasil do golpe e do bolsonarismo. Freud disse precisamente
desse mal estar político destrutivo contra a cultura. Sabemos que o problema do sistema da
consciência humana, com suas funções de sociabilidade e razões de construção de mundos
culturais, compreendidas em um campo mais amplo como sendo uma máquina de memória,

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que manteria o presente vivo em permanente tensão com os termos formais de um passado
outro, sempre presente como sintoma, em vias de se presentificar como passagem ao ato, é
um grande modelo freudiano para compreender a força de arrasto do particular e da violência
na cultura. Dessa perspectiva, a ideia, refutada por muitos filósofos políticos, e afirmada por
tantos outros marcados pela lógica freudiana da história da regressão política, cultural ou
civilizacional, como se queira, ganha a sua significação mais precisa: não se trata de recusa
em perceber a natureza ideológica e falsa da linha do progresso, como se houvesse algum
progresso algum dia na ordem de destruição e ruína constante dos sacrificados do dia histórico
do Capital, porque dizemos regressão; mas da emergência no espaço de referências históricas
do presente de uma lógica automática de redução da política e da vida a um cálculo simples
e imediato de ganho pela violência. O que, deste ponto de vista que venho lembrando, significa
a agência mais forte da pré-história na história. Sabemos que também Marx era sensível ao
núcleo arcaico da vida moderna como natureza, pelo fato do risco permanentemente reposto
de ruína e de morte cotidianas, sacrifício mediado, mas hiper-real, da destruição do outro ou
a própria, que a ordem liberal capitalista sempre manteve. Para ele o capital e sua classe
senhoril burguesa eram tão espetacularmente criativos quanto selvagemente destrutivos. Daí
a sua ideia crítica de que ainda não acedemos à história, leia-se à cultura como projeção da
plena liberdade mediada das potenciais técnicas humanas. Para Marx, como para Freud, o
passado também espreitava como um tigre – se usarmos a metáfora que pensava a coisa, ao
contrário, de Walter Benjamin – e vivia não superado no presente, arque-vida, como forma
de ser direta da violência entre os homens garantida por lei geral. Embora ele acreditasse, mais
do que nós, na inexorável marcha da humanidade rumo à história, a própria libertação como
trans-formação dos homens do arcaísmo e da violência, da irracionalidade como sociedade.
Assim, história e pré-história, consciência de uma razão prática da vida social e desejo político
de submissão e sadismo como ordem do vínculo social, sempre coexistiram para algumas das
consciências mais exigentes da modernidade. Foi por entender a história assim, com a
percepção da inércia do arcaico no mundo da história, que Adorno pode convencer os
milionários judeus americanos à financiar pesquisas críticas, sociológicas e psicológicas sobre
a presença do fascismo em plena sociedade liberal de consumo de massas industrial,
sociedade satisfeita na unidimensionalidade dizia o seu amigo Marcuse, e como se sabe, para
os contendores, o termo que ele usou então, na década de 1950 da criação do american way
of life para exportação global como dominação cultural, foi exatamente este, fascismo.
Podemos imaginar a natureza política dos intelectuais americanos que então diriam, mas não
há fascismo nos Estados Unidos... impedindo o estudo original da radicação antissocial do
poder no homem da classe média americana. Adorno estava às voltas, dez anos antes,

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claramente com a estrutura social desejante da banalidade administrada do mal, a mesma que
Hannah Arendt descobriria mais tarde no algoz banal nazista, tão comum quanto qualquer
homem que abdica de pensar, ou seja, os homens produzidos em massa na ordem de produção
e consumo de mercado... Daí a sua real escala F, como se sabe, de fascismo... de percepção da
subjetivação autoritária exatamente operando no homem comum e médio americano – a ideia
está longe de ser minha. Daí o seu interesse, altamente político e profilático, crítica como
terapêutica social, de investigar os modos e as práticas da propaganda fascista
permanentemente existente na vida democrática, e seu estudo de formas da patologia de tipo
freudiana da convocação de massas fascista subjacente à cultura. E, daí, já na Alemanha, nos
anos de 1960, a sua denúncia aberta das formas latentes do fascismo incrustadas na estrutura
mesma da democracia liberal constitucional, pela via da violência consentida permanente da
vida ao modo de mercado total, a cultura como natureza, de Marx... A mesma dimensão da
subjetivação para a violência no mundo livre arcaico do fetichismo da mercadoria e da
submissão corrosiva do caráter do trabalho à sua gestão sem pressupor sujeito, que ele
também investigou em si mesmo, como real risco de regressão, perda do corte crítico e do
pensamento em busca da verdade, como o risco de incorporação inconsciente da violência
das formas da vida e do mundo, na sua autoanálise político filosófica de Minima moralia.
Isso é tentar alcançar as raízes pulsionais da violência em si próprio, o fascismo como
momento pulsional e fantasístico do próprio eu, sem descuidar que elas estão
simultaneamente inscritas nas formas sociais, ainda natureza, prontas à produção social do
sintoma político; o fascismo da própria estrutura mais comum da reprodução do capitalismo
avançado. Por tudo isso, o livro da análise do vínculo razão, sujeito, inconsciente, história e
fascismo, foi de fato Dialética do esclarecimento, e, como se lê ali, o problema – já dito ao seu
próprio modo romântico elitista por Nietzsche, por Marx de modo hiper-moderno e com
esperança no fato concreto iluminista, e por Freud, como temos visto, já na fronteira de sua
dialética – é o de como a razão histórica e na história, articulada à totalidade da forma
Capital como seu próprio destino, carrega a sua sombra de terror, violência e medo sem que
nunca ela mesma possa dar conta de tal ordem mítica de sua estruturação. Por isso, para esses
pensadores, a análise da política e da vida cultural sobre o capitalismo necessariamente
precisava tornar-se análise entre o conceito e o sonho suspenso da história, como dizia
Benjamin, ou seja, entre a estabilidade das entidades críticas históricas com que pensamos o
mundo visível, e a percepção da analítica dos sonhos, das formas originárias e desejantes da
violência, próprias de cada um e do todo, que marcam a vida visível com projeção de terror e
reduzem a razão à mero mediador quantitativo do poder. Tarefa muito ampla política e
humana de civilização e de crítica, à qual temos nos furtado e faltado amplamente. Os

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psicanalistas sempre insistem: não há crítica do fascismo que não seja crítica das equações
destrutivas que habitam o eu. Mas, por outro lado, diferente dos filósofos influenciados por
Freud que venho citando, eles têm grande imprecisão e indefinição na percepção das formas
sociais e históricas concretas da coisa. Por isso, estabeleci para mim próprio que um plano de
trabalho clínico, na psicanálise pública democrática do desejo dos psicanalistas de hoje, da
Clínica Aberta de Psicanálise na casa do Povo em São Paulo, é tanto um cuidado com a crítica
interior dos vínculos desejantes com a realidade social perversa, de cada um de nós, de tipo
mínima morália, poderíamos dizer, quanto também um cuidado de tipo interpretação dos
sonhos – trabalho crítico originário freudiano onde podemos verificar o vínculo dialético, em
busca de esclarecimento, entre o sujeito do desejo e a história. Chamei isso da dimensão de
self cultural, ou dialético, do inconsciente. Porém, hoje sabemos, toda esta tradição crítica
europeia e central, que se constituiu como problema e como tessitura de conceitos em corpo a
corpo direto com a experiência histórica do fascismo, presente e no horizonte, que muito
determinou as formas e os limites daquele mesmo pensamento, quando entendida do ponto
de vista do lugar do Brasil no mundo ganha luz e definição nova. Isso porque a ordenação
histórica da periferia do capitalismo, constituída na exploração direta e aberta do colonialismo
e na máquina mundial da escravidão moderna da acumulação original central, diz ainda mais
coisas sobre o vínculo entre modernidade, realização da globalização técnica imanente à forma
capital e assassinato, genocídio e etnocídio, de realidades continentais inteiras, para o bom
resultado da concentração de valores mundiais. Como país gestado na escravidão colonial
ocidental na mesma medida que os termos culturais políticos de toda aquela realidade, as suas
realizações ou ilusões políticas e ideológicas centrais, que pouco diziam respeito aos fatos de
uma sociedade escravocrata, inclinada a apenas se nomear como liberal, nossa formação
subjetiva, institucional e técnica com a escravidão ilegal de nosso século XIX nos punha em
profunda linha de continuidade com o real da ordem do genocídio colonial ocidental. Nossa
ordem nacional, de Estado, de elite e antidemocrática por princípio, se ligava a toda a explosão
dos sentidos da diáspora moderna continental africana, para criar nossos reais campos de
morte nacionais, campo de tortura em massa dos escravizados, campo de desprezo humano e
social sem mediação pela vida do trabalho e pela marcação racial no Brasil. Se a Europa do
século XX redescobriu a sua regressão como forma de teoria e conceito para tentar explicar a
sua realização final, interior ao continente geopolítico das ilusões do progresso técnico
universal, no fascismo e na guerra de todos contra todos, nós, por nosso lugar de fronteira
colonial do mundo, sempre estivemos comprometidos com o genocídio, a violência direta
como sociabilidade e a subjetivação autoritária dos seus ganhos, efetividade do sadismo
social. Ou estruturalmente cínica, quando uma elite brascubiana qualquer ainda se dava o

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direito privilegiado de se nomear liberal, progressista, e, pasmem, democrática, apenas


porque podia e queria... Nossa própria formação de grande escopo histórico da necropolítica
colonial europeia, que acontecia aqui e na África, o genocídio colonial, de Mike Davis, à
brasileira, sempre nos pôs em contato direto com a destrutividade produtiva humana, que aqui
se expressava nos campos de mortes das fazendas de açúcar e café e das minas de ouro do
Brasil, para a produção de excedentes que se davam em Lisboa, Londres, Amsterdã e Nova
Iorque. Não há dúvida que, se podemos pensar nosso fascismo comum brasileiro como força
ativa da regressão diante das exigências de trabalho da democracia, que entraram em
moratória pelo desfastio social do capital entre nós, também o podemos pensar como a tomada
do poder de uma velha tradição, de elite, mas também popular, vernácula entre nós. A do
direito feliz e ativo de se produzir capital e sociedade com exclusão social radical, lógica
punitivista e sádica e felicidade particular, autodenominada nobre e superior, sobre tudo o que
um dia se desejou pensar, e se nomeou, como o povo brasileiro. Aquele povo moderno que,
segundo Michelet, na Europa em um dia hipermoderno fez a revolução francesa e inventou a
história para si mesmo, mas que aqui nunca deixou de ser entendido como estorvo e parte
maldita, cindida da nação como direito, se reconfigurou historicamente hoje como matéria em
dissolução que reafirmava o desejo de cisão das elites como natureza das coisas do Brasil.
Elites que afinal apenas o compraram como propriedade e o utilizaram como escravo para o
ganho particular – e assim o líder fascista de agora manda mesmo todos trabalharem, sem
vacina, e que morram os que bem morrerem, mais ou menos como sempre. Se a Europa
descobria a regressão como o aflorar da sua própria destrutividade em seu território da
história moderna, nós, na origem da modernidade mais geral, nos formamos nos termos do
terror colonial, protofascismo ativo que um dia alemães, franceses e italianos descobririam
também como próprio deles, imaginando então a roda da história voltando para traz.

6. Agora que o “fascismo comum” parece ter vindo ao seu conceito com o atual
governo, você planeja outro livro que dê conta do bolsonarismo como o fascismo
comum? Que projetos de escrita tem em mente agora?

Escrevo um livro sobre as origens, as estratégias e os resultados do reacionarismo brasileiro


que se articulou e se formou em três dimensões políticas de grande duração: a lógica
colonialista escravista de 300 anos do espaço geopolítico original do pais, europeu americano
africano, a origem do Estado nacional por aqui, implantado por elites de mentalidade ancien
régime ibérico católico, em fuga reacionária da modernidade revolucionária europeia, e, a
mais importante, decisão original de produção de forma nação desconhecida, de elites isoladas
dos interesses populares e de mão de obra escrava, negra africana, importada. Através do guia
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de um viajante, Carl Schlichthorst, que esteve por aqui no tempo das origens, entre 1824 e
1826 – o momento da afirmação da Constituição outorgada de Pedro I – e que encontra a
civilização luso brasileira escravista plenamente instalada nas ruas e na vida da cidade do Rio
de Janeiro, tive, e temos, acesso às produções da vida e da existência negra na indústria caseira
dos serviços da escravaria de ganho na então chamada Corte do Brasil. O alemão reconheceu
modos de produção de vida e existência, biopolitica escravizada brasileira, que deram e dão o
que pensar ainda hoje. E, ainda mais, ele realizou uma forma literária rica junto àquela vida
popular do Império americano. Uma forma fascinante, que nos põe em contato com as forças
latentes e desejantes da história expressas nos próprios corpos negros escravizados
trabalhando, o que contrastava absolutamente com a literatura à reboque e muito ruim
própria dos brasileiros daquela quadra histórica, praticamente inexistente ou totalmente
alienada para o valor do caso histórico. Uma “literatura” que, podemos dizer, com Antonio
Candido, José Veríssimo e Silvio Romero, foi a grande ausência simbólica brasileira realizada
ao menos até meados da década de 1850. Não é acaso de nenhum modo que a literatura
brasileira só venha a existir de fato com alguma força e relevância após a decisão, de 1850...,
em reafirmar definitivamente a lei nacional da proibição do tráfico atlântico de escravos. Até
então não dissemos praticamente nada sobre nós mesmos na ordem do registro literário,
duradouro e comprometido. Trinta anos de silêncio geral e de mimese arruinada, ausente da
própria produção da vida social, em uma situação que denotava pouca habilidade com as
produções essenciais da modernidade, da reflexividade social de base universalista,
iluminista, do interesse pelo vínculo entre povo e nação e da emergência histórica da própria
forma romance – ligada tanto a ideia da jornada livre do indivíduo no tempo quanto à
experimentação crítica encarnada das suas contradições, como disse Lukács. Como sabemos
desde 1970, mas também 1950 e 1930... ideias fora do lugar. A boa literatura de um viajante
alemão que esteve por aqui por dois anos, integrando as tropas estrangeiras do Exército
Imperial, bem no começo de tudo, que publicou um livro a nosso respeito em 1827 em
Hannover, O Rio de Janeiro como é, em seus momentos altos nos lembra muito o Machado
de Assis de somente 60 anos depois, ou até a literatura modernista do século XX sobre o povo
brasileiro, um enigma social e cultural que ele nos apresenta já formado, na forma dança,
samba e erotismo do lugar da mulher negra, a mulher brasileira no mundo brasileiro, e no
mundo. E a presença histórica, esquecida por nós, destas formas fortes que falam no livro do
alemão explica muito sobre o nosso próprio esforço em não representar, não formar
contradições nem conceitos pela forma literária e não considerar pensável a própria vida
social de produção de vida escrava no Brasil. O soldado alemão, ao nos dar um retrato histórico
vivo e exclusivo da complexidade da vida brasileira junto e com a experiência negra,

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trabalhadora, africana em aculturação, e produtora, para nossa surpresa, de uma verdadeira


cultura moderna, enunciada mesmo pelos escravizados de 1820, nos dá a entender, por
contraste histórico negativo brutal, a ordem da recusa ao pensamento e à formulação da
própria realidade, com a evitação do vínculo crítico entre racionalidade social própria do
século XIX e forma literária no Brasil. Grande negativa em representar que nos é
consubstancial ao vínculo de origem de reacionarismo, anti-intelectualismo e autoritarismo,
da suspensão das exigências ou da relevância prática das ideias modernas pelo ato carregado
de desejo e de satisfação histórica de levantar o chicote como cultura. Noutras palavras, o
estudo do que existiu como vida moderna e crítica no Brasil das origens no espaço dos
escravizados, e dos modos como nossas elites elevadas de fidalgos em oposição ao andamento
da própria modernidade em expansão recusavam a própria representação, é um estudo da
natureza específica de nosso racismo e de nosso reacionarismo, que tem fundas linhas de
força históricas. E que se atualizou plenamente, com um celular na mão ao invés do chicote,
na vida política e social do presente. Esse é o livro, O soldado antropofágico, escravidão e não
pensamento no Brasil, e que é, de fato, um estudo sobre a reanimação da cultura antissocial
brasileira em 2016 e 2018.

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“DEMOCRACIA E AMOR”:
Um mergulho no espetáculo à brasileira1

Diogo Dias2

Quarenta e um anos depois da pergunta que mobilizou a curiosidade da massa


brasileira em torno do mistério sobre o assassinato do personagem Salomão Hayalla na
novela O astro, de Janete Clair, a organização sintática da dúvida organizando a vida do país
se repetiu. Agora com outra personagem, desta vez em situação histórica real. Hiper real. Os
tiros que tiraram a vida de uma liderança negra, lésbica e periférica que combatia as milícias
na cidade do Rio de Janeiro, em março de 2018, fizeram ressoar a curiosidade coletiva e o
sonho de justiça sobre a autoria de um crime, e inconscientemente, o coro da novela de 1977
foi parafraseado, como uma das chaves para a compreensão do presente: “Quem matou
Marielle Franco?".

Democracia e amor (2020), curta-metragem dirigido por Rubens Rewald e Tales


Ab'Sáber, recoloca em questão os efeitos profundos das superficialidades da indústria cultural
entre nós. Em um exercício cinematográfico que mimetiza as ligações inconscientes dos
múltiplos estímulos, é possível percebermos o poder dos produtos culturais na constituição de
uma ideia geral que se impregna na sociedade brasileira, quase sem mediações conscientes.
Como em uma linha de montagem industrial, instantâneos da cultura brasileira se encaixam
em um jogo de livre associação, deslocamento e condensação cinematográficas que
impressionam de modo enigmático. Como um sonho absurdo, o trabalho do filme torna
manifesto pensamentos latentes, muitos deles não menos absurdos, da sociedade brasileira.
Se algum dia a vida no Brasil pôde sonhar por si só, sem as violentas interferências dos
interesses colonialistas, é uma questão ainda sem respostas. Absurdo como forma, aliás, que
não cessa de se reproduzir no âmbito social e que emerge na cultura como uma identidade
possível para um país sem fundamentos.

Quando Paulo Emílio Sales Gomes observou com olhar clínico o estado de
subdesenvolvimento do cinema brasileiro a seu tempo, ele demonstrou que isso não se devia
exclusivamente a um atraso técnico, industrial, mas que, além da situação de periferia e

1
Este texto foi publicado originalmente no site da revista Cult no 02 dezembro de 2020:
https://revistacult.uol.com.br/home/democracia-e-amor-um-mergulho-no-espetaculo-a-brasileira/
2
Diogo Dias é bacharel em Filosofia e professor e educador popular da Uneafro Brasil. No Programa de Pós-
graduação de Filosofia da UNIFESP, prepara trabalho sobre Walter Benjamin e o cinema
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dependência no parque mundial do desenvolvimento das forças produtivas, havia um


verdadeiro abismo cravado na própria história cultural do Brasil. Seguindo a linha, Roberto
Schwarz viu no país um “abismo histórico real” entre o arcaísmo dos valores e a modernidade
dos meios; algo que também Glauber Rocha imaginou até como ocupação pelos colonos
portugueses em uma estranha modernidade voltada para outro lugar, impressa na imagem
de Terra em transe. No quadro amplo de nossos descentramentos e heteronomias, Paulo
Emílio fala de uma ocupação, diferente de uma dominação, como destaca Antonio
Cândido em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento (1980):
É sintomático que Paulo Emilio não tenha usado a distinção corrente: dominador e
dominado. Usando ocupante e ocupado, ele acentua o caráter de transplante (do que vem de
fora e ocupa). Ao mesmo tempo, abre uma perspectiva sobre o que se chama o caráter
nacional – traço próprio do ocupado. E deixa claro que por baixo da cultura do ocupante há
traços recalcados, que podem ou não aparecer nos produtos da cultura.
Diferentemente dos demais cinemas nacionais subdesenvolvidos, dizia Paulo Emílio, o Brasil
não teria um repertório cultural tradicional, que passasse de algum modo por genuíno, que
conflitasse em algum ponto com os valores estéticos ocidentais, pois a violência do processo
de colonização por aqui foi duplamente eficiente em se tratando de apagamento e dissolução
de qualquer tipo de identidade nacional baseada na vida dos habitantes originários. Se por um
lado, as culturas dos povos ocupados se esvaíram em um genocídio sangrento, por outro, seus
traços de memória sofreram com a diluição cultural imposta pela mestiçagem e pela força dos
meios modernos própria dos ocupantes.
Do sincretismo religioso às comemorações hipócritas, como o dia oficial do Índio, as
imagens tradicionais foram perdendo o fundamento material e antropológico, e, a partir do
momento que começaram a ser utilizadas pela comunicação de massa, transformaram-se em
elaboração superficial de uma cultura imaginada pelos ocupantes – que a essa altura também
não eram mais os ocidentais – que invadiram as terras americanas do Brasil, para eles vazias
de todo tipo de valor fora do comércio mundial. O turvamento dos marcadores culturais da
diferença entre ocupantes e ocupados fez com que o Brasil adentrasse na modernidade de
algum modo sem qualquer natureza de identidade, sem nenhum caráter, o que se via (e se vê)
era “dilaceramento cultural”.
Depois de uma malfadada tentativa de emplacar o discurso da democracia racial no
século 20, da harmoniosa mestiçagem entre as três etnias violentamente forçadas para o
interior deste espaço, o Brasil atual encara a explosão do conteúdo latente do que foi recalcado
pelas políticas unilaterais de construção estratégica da “identidade nacional”. Ocupantes e
ocupados, postos bem delineados para o olhar crítico, segundo Salles Gomes, assumem papeis
dialéticos no plano da superfície: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas

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destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de
nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”.
O dilaceramento causado pela falta de cultura original e pela ocupação cultural técnica
ocidental de europeus e de estadunidenses nos jogou no turbilhão de imagens fetichizadas
criadas pelo capitalismo imperialista, do outro sobre nós e, também, de nós mesmos sobre
nós. Como, então, o imaginário coletivo brasileiro se identificaria sem essa ocupação?
Seria Democracia e amor o trabalho de elaboração onírica que canaliza os desejos fetichizados
da memória brasileira ao juntar uma constelação múltipla de imagens retiradas da cultura de
massas como encobridoras dos conflitos que a sociedade que as produziu abriga? Seria o sonho
do sujeito Brasil aquele que se formou assim?
Os procedimentos técnicos do filme, como destacou Tiago Ferro, provocam
estranhamento e identificação, distanciamento e aproximação. Provoca algo que toca no
inconsciente das gerações que viveram sob o signo da esperança de “um país melhor”, um
Brasil que foi “projetado, esboçado na Constituição de 1988”, que precisa ser urgentemente
resgatado. A montagem que sonha é a que tenta sinalizar para o despertar. A associação de
imagens, palavras ditas pelos narradores e as músicas que abrem e fecham o filme se ligam
contiguamente por elementos que surpreendem, estão imantados em seu conteúdo manifesto.
À primeira vista seriam até absurdas, mas elas guardam sempre sua lógica nos múltiplos
pensamentos latentes que evocam. Lula, multidão, protesto. Carregariam essas imagens a
ideia de democracia? Belchior, Rivelino, Hortência e Paula e Beatriz Nascimento garantiriam
alguma espécie de amor?
Mas a coisa não seria um sonho se tais significados fossem límpidos. Ao voltarmos
nossa atenção distraída de espectadores um instante para o presente histórico vivido, vemos
que não temos nada disso – embora tenhamos tudo isso, em imagem. Vemos que as
manifestações de superfície, da indústria cultural brasileira e da política espetacular não foram
suficientes para saciar nosso desejo civilizatório de nos tornar um país de “primeiro mundo”,
ou “uma nação de fato”, como diz o filme. Isso porque, tão superficiais quanto o regime
daquelas imagens, foram os avanços históricos brasileiros.
Mais do que o sabor fugaz da mercadoria que a breve demonstração histórica de estado
de bem-estar social deixou na boca dos brasileiros, seria preciso resgatar e enfrentar os
traumas que pipocam em sintomas como o genocídio da juventude negra, os números
aterradores de violência doméstica e da deliberada e criminosa exclusão da massa uberizada
pelo golpismo de 2016, em franco alinhamento com o neoliberalismo mundial. E estas
imagens também estão todas lá, na mesma linha do tempo do sonho, agora traumático.
Democracia? Amor? Ainda somos um país? Já fomos um país? Há para nós um lugar no

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mundo? Rodrigo Janke Lucheta, pensado o filme, nos sacode e lembra que sim: “Viemos de
algum lugar, iremos para algum outro. O não-lugar é uma invenção de que nos convenceram,
o pântano mental em que nos afundaram.”
O contraste das imagens selecionadas, tendentes ao infinito, indica também como é
sonhar na era da explosão digital. No filme surge uma sucessão de fotografias, algumas
livremente manipuladas sabe-se lá por quem, documentos históricos importantes, peças de
propaganda comercial e ideológica, memes, retratos que sofrem um nivelamento falsificador.
Silvio Santos e Antonio Candido como impressões semelhantes, enquanto mera imagem
disponível, não se diferenciam em relação à intensidade que suas impressões provocam no
decorrer do curta-metragem. Uma miragem, pois nem Silvio Santos é uma imagem trivial,
nem Antonio Candido é apenas uma imagem. Essa aplanação da atividade cultural brasileira
que se mostra em um filme que aposta na sobreposição de imagens “entremeadas por
silêncios” sonoros e visuais, como bem reparou Marcos Lacerda, é também uma consequência
do nivelamento empregado pelos meios de comunicação de massa.

O filme evoca o modo


que o nosso mundo
reduz tudo ao seu
mesmo fluxo do
espetáculo.

No continuum vertiginoso do filme que mimetiza esse Brasil que sonha pelo
imaginário da sociedade eletrônica, o encontro com a verdade possível se dá na sua
interrupção, em algum ato possível no entre, em que Francisco Bosco intuiu estar o “valor de
verdade” do filme: “entre as imagens, entre as imagens e as palavras, entre as canções e as
imagens, entre tudo isso e o silêncio. Se alguém soubesse decifrar esse entre, compreenderia
subitamente o Brasil, como um aleph”.
Um país cuja cultura vem sendo o receptáculo de resquícios das tradições mutiladas
dos ocupados e das energias permanentes do fluxo das mercadorias dos ocupantes, só pode se
encontrar nesses frames vazios, nas pausas do narrador, nos milésimos de segundo
disponíveis para pensar. O tempo entremeado da diferença, como vazio, aquém ou além do
choque de tudo, a imagem massiva do mais ou menos o mesmo. É mais ou menos o que
acontece na disputa pelo imaginário cultural e político do Brasil pandêmico. Sob os torrenciais
tuítes mentirosos do líder e sua claque, tomados pelos fanáticos como equivalentes à verdade
da ciência e replicados sem parar por humanos e robôs, é preciso procurar o silêncio para se
pensar e lembrar do que verdadeiramente importa.
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Ao misturar o kitsch com manifestações autênticas e fortes da cultura brasileira na


sua timeline, Democracia e amor provoca o sentimento confuso que toca a verdade de nosso
abismo histórico real. Somos cordiais e somos violentos, somos libertários e somos
autoritários, somos carnaval e somos ditadura militar, somos o sujeito histórico que tateia a
concretude e que fala de democracia sobre as imagens ambíguas, somos o eu lírico que
declama o seu amor manifesto nas conversas cotidianas e nas palavras, somos Paulo Martins
tentando conciliar poesia e política numa Terra em transe, essa nossa, somos o povo que ele
cala, e o povo que se reorganiza da própria fragmentação para calá-lo. Somos profundas co(n)-
tradições.
Se a montagem de Rewald e Ab’Sáber é vertiginosa, não deixa também de ser lúcida, e
lúdica. Pois, apesar de tudo, capta as interpolações de um país que se fez sempre entre a vida
pulsante e a morte iminente. Assim como a abafada vivacidade sonhadora do pré-64 que foi
recalcada pela ditadura militar, nossas pequenas enormes conquistas democratizantes na
distribuição de renda, na expansão das universidades, no sistema universal de saúde, nas
políticas de moradia popular, infraestrutura no campo e expansão da produção cultural para
além da classe média intelectual, estão sendo novamente reprimidas pela reação.
Um outro negativo, diferente do pensamento, que não suporta que os desejos mais
profundos dos vencidos se materializem em um Brasil que enfrente o seu passado e construa
a sua subjetividade a partir da heterogeneidade que lhe coube abarcar. Sem isso, ficaremos
presos nas excitações provocadas pelos ocupantes, agora munidos de algoritmos, aguardando
a polêmica do dia nas redes sociais como política. Afinal, para além do espetáculo, queremos
realmente saber quem matou Marielle?

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UM PAÍS ENTRE
(Uma crítica curta de um curta-metragem)

Francisco Bosco

Que filme interessante é Democracia e amor (2020), do Tales Ab’Sáber e do Rubens


Rewald. Com poucos elementos eles foram capazes de produzir uma dinâmica formal
vertiginosa. Tudo nesse filme se passa entre: entre as imagens, entre as imagens e as palavras,
entre as canções e as imagens, entre tudo isso e o silêncio. Se alguém soubesse decifrar esse
entre, compreenderia subitamente o Brasil, como um aleph. Ninguém jamais o será, mas o
filme nos dá a convicção de que o segredo do todo está ali, disperso. E isso o torna
mesmerizante. Dá vontade de rever e rever, mesmo ciente do fracasso inevitável, na vã
esperança de que tudo se encaixe. Mas o verdadeiro segredo do filme é que não há segredo,
não há encaixe - e por isso o entre é o seu leitmotiv formal. A experiência brasileira é esse
choque benjaminiano sistemático, sem integração possível. Acho que eles fizeram uma
pequena joia meio precária, onde a própria precariedade brilha, revela, tem valor de verdade.

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O LABIRINTO FASCISTA E A
MONSTRUOSA COLEÇÃO
DE MERCADORIAS1

Tiago Ferro2

Não dá para acreditar no grau de domesticação que a mercadoria nos impôs.


Pepe Mujica

“Seu traço decisivo [da cultura afirmativa] é a asserção de um mundo universalmente


obrigatório, a ser incondicionalmente afirmado, um mundo eternamente melhor, mais
valioso, e que é essencialmente distinto do mundo factual da luta cotidiana pela existência,
mas que cada indivíduo, ‘a partir do seu próprio interior’, e sem transformar essa facticidade,
pode realizar para si mesmo”, afirma Marcuse, em Sobre o caráter afirmativo da cultura,
originalmente publicado em 1937.

Roberto Schwarz, em seu famoso ensaio Cultura e política 1964-1969, de 1970,


dialetiza a ideia de cultura afirmativa ao procurar seus efeitos específicos de transformação da
realidade no período estudado no texto. Ao identificar a cultura burguesa fechada em si
mesma, após terem sido cortados os fios que a ligavam às camadas populares que se
radicalizavam com o populismo pré-golpe civil militar de 64, e que davam tração ao mergulho
crítico e criativo dessa produção a partir do contato com as misérias do país, Schwarz não
produz simples instantâneo da realidade, mas a toma como devir histórico. Essa cultura
desconectada da classe trabalhadora, estranho fruto que amadurece fora de época,
radicalizada através de suas próprias investigações intelectuais e estéticas, funciona como um
dos gatilhos para a luta armada quando todos os canais de resistência e protesto são fechados
com o AI-5, em dezembro de 1968.

Se de acordo com Peter Bürger, lendo Marcuse, a cultura afirmativa “baniu os


chamados valores para uma esfera apartada da vida cotidiana”, Schwarz, ao deixar de lado a

1
Texto publicado originalmente no blog da boitempo: https://blogdaboitempo.com.br/2020/09/15/o-labirinto-
fascista-e-a-monstruosa-colecao-de-
mercadorias/?fbclid=IwAR0ZapxHNGFFNxk6hnJ_EAGbDip2sEagNzACOaKz-UmFgfWoc-RI9ZO-Spg
2
Tiago Ferro é crítico e romancista.
42
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pura abstração teórica, nos mostra que essa esfera de cultura burguesa fechada tem certa
porosidade.

Ainda com Marcuse, agora em O homem unidimensional: “Os produtos doutrinam e


manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua própria falsidade. E à medida
que esses produtos benéficos ficam disponíveis para mais indivíduos em mais classes sociais,
a doutrinação que encerram deixa de estar na publicidade; torna-se um modo de vida. É um
modo de vida muito bom – muito melhor que o de antes –, e sendo um bom modo de vida, ele
milita contra uma mudança qualitativa”.

Marcuse soma mais uma camada ao problema da relação cultura burguesa-sociedade.


Aqui importa menos o fechamento da cultura afirmativa e suas possíveis aberturas dialéticas.
Não há mais qualquer possibilidade de desalienação.

Schwarz escreve em 1994: “Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja
crítica do fetichismo da mercadoria”. A frase serve de epígrafe ao livro de 2011 Lulismo,
carisma pop e cultura anticrítica, de Tales Ab’Sáber. No texto o autor vai encontrar realizado
no Brasil lulista a universalização do homem unidimensional e com isso o desaparecimento da
possibilidade da dialética cultura afirmativa-negativa encontrada por Schwarz em 1970.
Afirma Ab’Sáber: “Lula conseguiu ao redor de seu talento pessoal para ceder e convencer,
unificar o país em uma nova textura de experiência histórica ao redor da ideia real de mercado,
ou seja, um mercado que possibilitasse acesso real às suas benesses”.

O filme Intervenção – amor não quer dizer grande coisa, de 2017, dirigido por Tales
Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda, é inteiramente construído a partir da montagem
de trechos de vídeos coletados nas redes sociais de canais da extrema-direita. Os diretores nos
arremessam num labirinto aparentemente sem saída de violência e rebaixamento cultural e
cognitivo. Terminamos a sessão com a violência do neofascismo brasileiro impressa em nossos
corpos.

Diferentemente do que afirmou Vladimir Safatle sobre a relação de Bolsonaro com


seus seguidores, o atual presidente eleito por cinquenta e sete milhões, setecentos e noventa e
seis mil e novecentos e oitenta e seis votos, não criou os fascistas à sua imagem, mas foi elevado
a mito por uma expressiva camada da sociedade brasileira que vinha cozinhando seu
ressentimento há anos nas redes mais atualizadas da era digital. Diz o professor de filosofia da
USP: “Freud não conheceu o Brasil, nem nunca ouviu falar de Jair Bolsonaro. Mas é certo que
os últimos dias mostraram com precisão sua tese de que o poder molda sujeitos, fazendo-os à
sua imagem e semelhança. Todos estão a perceber essa mutação na qual expressões de
desprezo, indiferença e violência antes inimagináveis de serem feitas a céu aberto e na frente

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[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022

de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que parece
não ter fim”. O filme, ao descer ao chão histórico, prova o contrário.

No curta metragem Democracia e amor, dirigido por Ab’Sáber e Rubens Rewald, de


2020, temos quase vinte minutos de montagem de fotos com narração over. Vinte minutos de
pensamento crítico de alta voltagem que problematiza e atualiza o que se discutiu até aqui.
“Bolsonaro é isso: capitão do mato a serviço do senhorzinho gringo”, diz o narrador, atando os
fios do nosso passado colonial violento com o, também violento, capital globalizado hoje.
Ressoa aqui outro frankfurtiano, Max Horkheimer, que às vésperas da Segunda Guerra
Mundial afirmava não ser possível discutir fascismo sem discutir capitalismo.

O efeito da montagem das fotos é um fluxo ininterrupto de aproximação e afastamento,


reconhecimento e estranhamento. Forma principal a organizar o conteúdo do filme. Antonio
Candido e Os Trapalhões, Tom Jobim e Faustão, Odete Roitman e Paolo Rossi. A vertigem da
montagem tem método e objetivo. Ao colocar toda a cultura brasileira na mesma gôndola, a
equivalência é perturbadora. O Brasil bom aparece não tão bom assim; e o ruim, ainda pior. E
mais, chegamos a ficar em dúvida sobre o sinal correto para algumas imagens. (Ainda há
correto? Há sinal?) O efeito é fatal: nós, críticos, também fazemos parte da “monstruosa
coleção de mercadorias”, para utilizar expressão de Marx no Livro I d’O capital. Somos
também homens e mulheres unidimensionais.

O jogo de reconhecimento e estranhamento nos remete a um livro que contou antes de


todos o desastre que nos aguardava com a entrada do Brasil sem mediações no mundo
neoliberal a partir da década de 1990: trata-se de Estorvo, de 1991, romance de estreia de
Chico Buarque. Seu caráter formal político explosivo foi decifrado no ano de seu lançamento
pelo próprio Roberto Schwarz, em resenha à revista Veja, ao deixar no ar a pergunta que o
passar do tempo tratou de responder com um inequívoco “sim”: “Estaríamos nos tornando
uma sociedade sem classes, sob o signo da delinquência?”.

Vale citar a passagem final quando o protagonista, após rodar em falso durante todo o
romance, estranhando tudo e todos, finalmente encontra algo familiar:
Reconheço o sujeito magro de camisa quadriculada no ponto de ônibus que desce a serra.
Avistá-lo ali, não sei por que, enche-me de um sentimento semelhante a uma gratidão. Sigo
correndo ao seu encontro, de braços abertos, mas ele me interpreta mal; encolhe os ombros e
puxa uma faca de dentro da calça. […] Estou a um palmo daquele rosto comprido, sua boca
escancarada, e já não tenho certeza de conhecê-lo. […] Recebo a lâmina inteira na minha
carne, e quase peço ao sujeito para deixá-la onde está; adivinho que à saída ela me magoará
bem mais que quando entrou.
A mesma facada está na canção de Nuno Ramos e Romulo Fróes que fecha o
curta Democracia e amor: “Qual a faca que fica no fim?/ De que aço, acho o gosto ruim…”. As

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doze facadas pelas costas que mataram o “moço lindo do Badauê”, o Moa do Katendê, por um
eleitor enlouquecido de Bolsonaro com a vitória no segundo turno.

O filme, portanto, nos congela. Como podemos nos mover nessa realidade
fantasmagórica e ameaçadora? De que forma a crítica engolfada pela indústria cultural ainda
pode ser negativa e reagir ao labirinto do fascismo?

Resgatemos dos escombros a mensagem na garrafa lançada para nós por Marcuse ao
citar Walter Benjamin no final d’O homem unidimensional como motor para a continuação
do esforço de pensamento crítico brasileiro neste momento tão adverso: “É só por causa dos
que não têm esperança que nos é dada esperança”.

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PEQUENAS E GRANDES ROBINSONADAS


Da pré-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático

Cláudio R. Duarte

I- O entrelaçamento de mito, dominação e trabalho

Num dos juízos especulativos desabusados do “Excurso I – Odisseu ou Mito e


Esclarecimento”, fragmento filosófico de um livro-esfinge que ainda hoje assombra os
desavisados de que estão lendo um ensaio de gênese histórico-natural da sociedade moderna,
Adorno e Horkheimer cravam a identidade entre o indivíduo moderno e o herói de Homero:

“O comportamento do aventureiro Odisseu lembra o comportamento do


trocador ocasional. Mesmo sob a figura patética do mendigo, o homem feudal
exibe os traços do comerciante oriental que retorna com riquezas inauditas,
porque, pela primeira vez e opondo-se à tradição, saiu do âmbito da
economia doméstica e ‘embarcou’. Do ponto de vista econômico, o elemento
aventureiro de seus empreendimentos nada mais é do que o aspecto
irracional de sua ratio em face da forma econômica tradicionalista ainda
predominante. Essa irracionalidade da ratio sedimentou-se na astúcia
enquanto assimilação da razão burguesa àquela irrazão que vem a seu
encontro como um poder ainda maior. O solitário astucioso já é o homo
oeconomicus, ao qual se assemelham todos os seres racionais: por isso a
Odisseia já é uma robinsonada”.1

À primeira vista temos aqui um simples disparate montado sobre um anacronismo


primário. As palavras destacadas, contudo, têm o cuidado de demarcar textualmente a
unidade e a diferença do mundo de Odisseu/Ulisses em relação ao mundo mercantilista
inglês, em que o modelo típico do homo oeconomicus começa a se realizar.2 Trata-se de
estabelecer um devir genético, regido muito mais por descontinuidades do que por simples
continuidades ou um desenvolvimento positivo de uma “essência” sempre dada; em vez de
disseminar a falsa ideia dum homo oeconomicus universal e trans-histórico, portanto, o trecho

1 Adorno e Horkheimer, [1947] 1981, p. 79-80; citado em geral conforme a excelente tradução de Guido A. de

Almeida, com algumas emendas e modificações: 1985, p. 66, grifos meus.


2 Como dito no Prefácio da obra: “Em linhas gerais, o primeiro estudo [“Conceito de esclarecimento”] pode ser

reduzido em sua parte crítica a duas teses: o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à
mitologia. Nos dois excursos, essas teses são desenvolvidas a propósito de objetos específicos. O primeiro
acompanha a dialética do mito e do esclarecimento na Odisseia como um dos mais precoces e representativos
testemunhos da civilização burguesa ocidental. No centro estão os conceitos de sacrifício e renúncia, nos quais se
revelam tanto a diferença quanto a unidade da natureza mítica e do domínio esclarecido da natureza” (Idem, 1981,
p. 16; Trad. 1985, p.16, grifos meus).
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citado visa determiná-lo pela negação e a diferenciação histórica dentro de um campo de


similitudes entre traços e comportamentos isolados, muitas vezes residuais, que, mirados à
distância, são interpretados ao nível das aparências estéticas da epopeia e do romance
moderno, assumidas como tendo certo nexo histórico com formações sociais particulares e
concretas3. O Excurso I desdobra a tese central da interversão de mito e esclarecimento, e mais
especificamente, a tese do “entrelaçamento de mito, dominação e trabalho” que permitiria ler
episódios da Odisseia como um “presságio alegórico” da dialética do esclarecimento4. Essa
gênese libera então duas ideias principais: não só a de um certa “proto-história da
subjetividade”5, mas também a de um “intelecto autocrático” arcaico que tende a se converter,
na história da modernidade, em “sujeito autocrático”6, em que pesa certa comparação de longo
alcance das formas dos princípios de troca e de individuação sob o fundo comum da “pré-
história da sociedade humana”(Marx). O que emerge sempre através do signo da negação
(determinada). Assim, no trecho acima citado temos traços do comportamento de trocador
fortuito de Odisseu, que exibe um simples comportamento aventureiro abstrato em
contraposição ao oikos patriarcal-escravista como forma econômico-social então
predominante7, o que representaria um aspecto irracional face a essa mesma ordem estática
de matriz político-religiosa; por outro lado, uma irrazão em devir socialmente posta pelo
capital e certo dinamismo do mundo burguês que atualiza um comportamento astucioso
mimético arcaico, através de suas ideologias individualistas, seu princípio de adaptação ao
trabalho e o sacrifício de si, a legitimação de si pela autoconservação ou autoafirmação
selvagem, o disfarce geral da “natureza rapinante do sistema econômico em geral”, que
estouram finalmente em suas guerras coloniais, em cujo modelo geral crescem seres que se
assemelham ao modelo do homo oeconomicus empresarial8 etc. Por isso também não se pode
deduzir sem mais a forma da identidade lógica ou as formas históricas do pensamento e da
subjetividade a partir da forma-mercadoria ou do princípio de troca, mas apenas tratar de seu
“protoparentesco”, em cuja promessa se encontram também ideias fundamentais de história
e razão crítica, igualdade e liberdade, para além do trabalho e da troca de equivalentes9.

3 Cf. o esquema da apresentação da História do Marx da maturidade, em Fausto (1987), cujo motor é a distinção
entre pressuposição, posição e determinação, extraída da Lógica da Essência de Hegel.
4 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 43 e 45.
5 Ibidem, p. 61.
6 Adorno e Horkheimer, Trad.: 1985, p. 61. Os respectivos termos em alemão são: “selbstherrlichen Intellekt” e
“selbstherrliche Subjekt”, Idem, 1981, p. 53 e 16; Trad.: 1985, p. 47 e 16.
7 Sobre a “economia antiga” e o oikos do período da Grécia arcaica, ver: Vernant, 1973; Finley [1965] 1982, Capítulo
3; Finley, 1999, Capítulos I e III; Finley, 1989, Capítulos 13 e 14; Mossé, 1984, Cap I, 3; Austin e Vidal-Naquet, 1986,
parte I, Cap. 2, Parte II, Cap. 2; Weber, 2015, v.1, p. 263; Weber, 1964, p. 57-8, 118-124.
8 Cf. Adorno e Horkheimer, 1985, p. 162, 166, 185 e 189.
9 “O princípio de troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato de tempo de trabalho médio,
tem um protoparentesco [urverwandt] com o princípio de identificação. Ele tem o seu modelo social na troca, e
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Assim, quem fala em dialética nesse processo de esclarecimento deseja pensar a


conexão entre a inteligência astuciosa de Odisseu e a negatividade na razão dialética, o
desenvolvimento do princípio de crítica imanente e a astúcia da razão contrapostos a toda
forma de mitologia, encantamento e fetichismo, ou ainda, a relação de (des)semelhança e não-
identidade entre os princípios da dominação e da subjetividade contemporâneos. A realização
cabal do sujeito autocrático – e é bom destacar desde logo que o “sujeito lógico do
esclarecimento”10 na verdade ganha para os autores a figura da personificação do capital e do
poder estatal – só se põe e se completa no processo antagônico de dominação capitalista de
uma natureza e uma objetividade cegas, em que a experiência do mundo sai mutilada, sendo
substituída pela visão empresarial e a ciência positivista, como meios imprescindíveis do
Capital. A razão que se torna dócil ao poder, indiferente aos fins e aparelho de dominação é a
mesma que se subtrai ao mito, oferecendo possibilidades de crítica e libertação da dominação.
Pois obviamente nada nunca impediu a autorreflexão crítica da consciência e essa
subjetividade que se forma no elemento de um mundo antagônico, cada vez mais histórico,
desencantado e mesmo desnaturalizado. Desde a ênfase de Homero na “objetividade”
particular de cada acontecimento, “no esforço iluminista e positivista de aderir fielmente e
sem distorção àquilo que uma vez aconteceu, exatamente do jeito que aconteceu”, segundo
Adorno, a épica se cinde do universo sempre-igual do mito: “o telos da narrativa é o diferente”,

ela nada seria sem ele; por meio da troca, entes singulares e desempenhos não idênticos se tornam comensuráveis,
idênticos. A difusão do princípio transforma o mundo todo em algo idêntico, em totalidade. Não obstante, se o
princípio fosse abstratamente negado; se fosse proclamado como ideal que, para honrar o irredutivelmente
qualitativo, não mais deveria proceder-se por relações igualitárias [nach gleich und gleich zugehen = de igual para
igual =], então isso constituiria uma excusa para retornar à antiga injustiça.” (Adorno, 1986, p. 149-150; Trad.:
2009, p. 128, trad. emendada, grifos nossos). Assim, só tendo por base substantiva certas relações sociais
igualitárias a troca pode ser de fato transcendida e superada: “Se simplesmente se anulasse a categoria de medida
da comparabilidade, no lugar da racionalidade que reside em verdade ideologicamente, mas também enquanto
promessa, no princípio de troca, apareceriam a apropriação imediata, a violência, e, hoje em dia: o privilégio nu e
cru dos monopólios e das cliques. A crítica ao princípio de troca enquanto princípio identificador do pensamento
quer a realização do ideal de uma troca livre e justa que até os nossos dias não foi senão mero pretexto. Somente
isso seria capaz de transcender a troca” (ibidem., grifo nosso). Está claro que a troca superada, que poria a
igualdade e a liberdade para todos, já não pressuporia a totalidade da mediação pelo trabalho e a troca reificada,
mas formas novas de relação social, que podem ser pensadas como “intercâmbio” entre pessoas, lugares e
metabolismo entre a sociedade e a natureza. Ou ainda: “A experiência dessa objetividade preordenada ao indivíduo
e à sua consciência é a experiência da unidade da sociedade totalmente socializada. A ideia filosófica da identidade
absoluta possui uma relação íntima com essa experiência, na medida em que ela não tolera nada fora de si mesma.
(…) Por um lado, a sociedade burguesa desenvolvida - e já o mais antigo pensamento da unidade era urbano,
burguês de maneira rudimentar - compõe-se a partir de incontáveis espontaneidades particulares dos indivíduos
que perseguem a sua autoconservação e nela se acham remetidos uns aos outros. Por outro lado, não reina de
maneira alguma entre a unidade e os indivíduos esse equilíbrio que os teoremas justificadores tomam por
estabelecidos. A não-identidade entre a unidade e os indivíduos, contudo, assume a forma de um primado do uno,
enquanto identidade do sistema que não deixa escapar nada” (Ibidem, p. 309; trad., p. 261-2).
10 “O burguês nas figuras sucessivas do senhor de escravos, do empresário livre e do administrador é o sujeito
lógico do esclarecimento”. Adorno e Horkheimer, 1981, p. 102; Trad.: 1985, p. 83, grifos meus. Ou ainda: “A
limitação do pensamento à organização e à administração, praticada pelos governantes, desde o astucioso Odisseu
até os ingênuos diretores-gerais, inclui também a limitação que acomete os grandes enquanto não se trate mais
apenas da manipulação dos pequenos. O espírito torna-se de fato o aparelho da dominação e do autodomínio como
sempre o havia confundido erroneamente a filosofia burguesa” (Idem, 1985, p. 47, grifos meus, trad. emendada).
Uma série de especificações histórico-sociais e de classe que os críticos em geral passam batido.
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e assim “na ingenuidade épica vive a crítica da razão burguesa”, pois “ela se agarra àquela
possibilidade de experiência que foi destruída pela razão burguesa, pretensamente fundada
por essa própria experiência”11. O esforço narrativo cada vez mais intenso e desafiador na
passagem do realismo ao modernismo, digamos de Goethe a Stifter, de Flaubert e Machado a
Proust e Joyce, até Kafka e Beckett, leva essa impossibilidade quase a priori de narrar o que é
único no mundo da fungibilidade universal “ao limite da loucura”12. A obra de arte autêntica
converte esse impulso mimético mais ou menos ingênuo e obstinado em espírito reflexivo: em
construção astuciosa, em crítica da “mentira da representação” e do “próprio narrador”, de
sua “inevitável perspectiva”, dando expressão ao não-idêntico oprimido contra a dominação
do conceito imposto13. Nada mais espiritualizado e antipositivista, a um só tempo construído
e mimético, então, do que a arte negativa desse tempo, cuja “astúcia” será unificar o particular
difuso e dissonante, numa espécie de “astúcia da não-razão”14 da totalidade cega, homogênea,
hierarquizada e fragmentada pelo capital.

É bom lembrar de saída que toda essa reflexão filosófica nos remete à nota introdutória
de Marx à sua crítica da economia política:

“O caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam


Smith e Ricardo, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das
robinsonadas do século XVIII, ilusões que de forma alguma
expressam, como imaginam os historiadores da cultura,
simplesmente uma reação ao excesso de refinamento e um retorno
a uma vida natural mal-entendida. Da mesma maneira que o
contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e
conexão sujeitos por natureza independentes, não está fundado em
tal naturalismo. Essa é a aparência, apenas a aparência estética das
pequenas e grandes robinsonadas. Trata-se, ao contrário, da
antecipação da ‘sociedade burguesa’, que se preparou desde o século
XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade.
Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece
desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas
anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano
determinado e limitado”.15

11 Adorno, 2003b, p. 48-50.


12 Ibidem, p. 51.
13 Ibidem, p. 60.
14 Adorno, 2002, p. 223. Vale lembrar que para Adorno “as obras de arte, não menos que a razão, têm sua astúcia.
Se o caráter difuso e os impulsos individuais das obras de arte fossem deixados por conta de sua própria imediatez,
para si mesmos, eles desapareceriam sem deixar rastros” (Ibidem, p. 187). Note-se que a questão chave da teoria
crítica – como a integração nasce da desintegração e do antagonismo social latentes?; ou, por que a libertação é
bloqueada mesmo quando surgem evidências do colapso do fundamento da valorização do valor? – é por isso
mesmo extraída em grande medida da análise de materiais artísticos e da razão divergente que nascem desse plano
de imanência contraditório. Sem essa ênfase dialética na contradição, que só a experiência estética permite
visualizar de modo radical, o conteúdo social desvelado tende a empobrecer como mera carcaça da abstração real
capitalista.
15 Marx, 2011, p. 39. Mas é no capítulo I de O Capital que Marx aproveita as robinsonadas da economia política
para zombar de seus anacronismos. Assim, ao expôr a diferença lógica e histórica contida na posição da forma-
valor: “Todas as relações de Robinson e as coisas que formam sua riqueza, por ele mesmo criada, são aqui tão
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Uma “aparência estética” que entretanto tem sua razão de ser. Se as “pequenas e
grandes robinsonadas” da filosofia e da economia política clássica16 não eram para ele uma
simples miragem é porque o indivíduo isolado tinha sua função na economia triunfante,
mediatizada pelo “princípio do eu” como proprietário privado, livre trocador e usina de energia
de trabalho social abstrato – como um suporte (Träger) do capital, portanto sempre prestes a
ser subsumido e abstraído no processo de acumulação. Além de ser mero agente da lei do valor,
no desenvolvimento da grande indústria o “trabalho imediato” vai sendo reduzido a um fator
mínimo na produção de riqueza material, substituído pela maquinaria e demais forças
produtivas objetivas17. Como sublinharão Adorno e Horkheimer, esse indivíduo é cada vez
mais forçado à autoalienação até formar-se de corpo e alma para o novo aparato técnico de
extorsão de trabalho vivo, exatamente quando a produção se automatiza e passa a criar um
gigantesco exército industrial de reserva de massas simplesmente supérfluas, que são
administradas por todo o aparato do poder18. Ao mesmo tempo, emerge o potencial de
negação precisamente junto à formação negativa desse sujeito proletarizado descartável.
Assim, a razão objetificada no mundo das mercadorias não desaparece, mas, formalizada até
o osso, é “abandonada” pela classe dirigente para fins de conservação da ordem:

“Nos momentos decisivos da civilização ocidental, da transição para a religião


olímpica ao renascimento, à reforma e ao ateísmo burguês, todas as vezes que
novos povos e camadas sociais recalcavam o mito, de maneira mais decidida,
o medo da natureza não compreendida e ameaçadora — consequência da sua
própria materialização e objetualização — era degradado em superstição
animista, e a dominação da natureza interna e externa tornava-se o fim

simples e transparentes que até o Sr. M. Wirth deveria entendê-las, sem extraordinário esforço intelectual. E,
todavia, já contêm todas as determinações essenciais do valor” (Marx, 1988, L. I, t. 1, p. 74). As determinações estão
num nível lógico quase todas lá na “cabeça” de Robinson ilhado, mas não sua posição histórico-social, que depende
da troca reificada de produtos do trabalho abstrato, posto como substância social fundamental. Na ilha não há troca
reificada. Com Sexta-Feira e seus outros servos, ele exibirá uma relação de dominação direta. Na segunda parte da
obra, o valor é plenamente posto, confirmando o início de suas aventuras, quando ele passara pelo escravismo na
África e na América luso-brasileira.
16 Em Rousseau, a individualização trazia consigo um mal-estar da miséria da alienação e da massificação social:
“Que se poderá pensar de um comércio no qual a razão de cada particular lhe dita máximas diferentemente
contrárias às que a razão pública prega ao corpo da sociedade e onde cada um encontra seu lucro na infelicidade de
outrem?” (Rousseau, [1754] 1973b, p. 297). “(…) reina entre nossos costumes uma uniformidade desprezível e
enganosa, e parece que todos os espíritos se fundiram num mesmo molde (…). Não se ousa mais parecer tal como
se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias,
farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem.” (Rousseau, [1750] 1973a, p. 344).
17 Marx, 2011, p. 229-230, 582-594. “O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido de
processo dominado pelo trabalho como unidade que o governa” (ibid., p. 581) - o que já confere um papel de mero
“apêndice” ao proletário singular, que “é posto como trabalho individual abolido, i.e., como trabalho social”, vale
dizer, um “sujeito sem objetividade” que é ultrapassado pelo poder da “inteligência social” capitalizada como força
produtiva principal – e que no limite dissolve também o valor e a substância do trabalho abstrato.
18 “O trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu [Prinzip des Selbst] na economia
burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um trabalho excedente [Mehrarbeit].
Mas quanto mais o processo de autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele
força a autoalienação dos indivíduos [die Selbstentäußerung der Individuen], que têm que se formar no corpo e na
alma segundo a aparelhagem técnica”. Adorno e Horkheimer, [1947] 1981, p. 46-7; trad.: 1985, p. 41.
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absoluto da vida. Quando afinal a autoconservação se automatiza, a razão é


abandonada por aqueles que assumiram a herança a título de organizadores
da produção e agora a temem nos deserdados. A essência do esclarecimento
é a alternativa que torna inevitável a dominação. (…) Forçado pela
dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando
a cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominação”.19
A “tendência anti-autoritária” do esclarecimento, dizem ainda os autores, derruba
todas as superstições, hierarquias e valores arbitrários, tornando-se hostil à aristocracia e à
burguesia, mas, no lugar da metafísica e da religião enfraquecida, seus portadores “pactuam
na prática com as potências que sua teoria condena”, erigindo como nova vaca sagrada a
“forma astuciosa da autoconservação” – ou seja, a dominação da natureza interna e externa
como “fim absoluto da vida” fundada no trabalho e no poder do capital global; com o fascismo,
essa forma torna-se para os dirigentes a luta pelo poder estatal abertamente fascista ou
aparentemente “liberal”; para os indivíduos submetidos essa forma social, isso tende a tornar-
se uma “adaptação a qualquer preço à injustiça”, ou seja, um campo aberto para a falsa
mimese20.

Ora, segundo o argumento central do livro, ao mesmo tempo essa mímese seria
momento de uma razão crítica (próxima à verständlich Vernunft, de Hegel), que em seu
impulso de se perder no meio externo, em vez de se impôr ativamente, permitiria lembrar o
horror e o sofrimento histórico dos homens animalizados e da natureza arruinada. Do mesmo
modo, a astúcia teria uma origem arcaica no universo da mitologia e da epopeia – daí o recuo
da investigação a documentos da civilização arcaica, dentre outros, os mitos e a Odisseia. É
claro para Adorno e Horkheimer que a Grécia arcaica não é a Inglaterra industrial, tanto
quanto a epopeia jônica não é o romance burguês de Defoe – eles são na verdade opostos – o
que não impedirá a busca de sua unidade antagônica, ou seja, dos traços embrionários do
processo de individuação e a forma da racionalidade nascente na poesia épica de um mundo

19 Ibidem, 1985, p. 43, grifo nosso.


20 Ibidem, p. 84 e 89. O significado profundo dessa adaptação em que se mesclam angústia e terror social,
repressão social e recalque individual, mimese e tabu mimético, além de um elemento ambivalente de astúcia e
impostura cínica do trickster e do sofista, reverbera nas técnicas de engodo das massas da indústria da cultura,
tornando-se ainda um elemento do antissemitismo e do racismo estrutural que compõem o sistema delirante do
nazifascismo, por eles explicado como uma espécie de paranoia coletiva através da “mimese da mimese” ou da
“manipulação organizada da mimese” que mitifica e esteticiza a política, operando uma espécie de projeção falsa
ou projeção patológica, cuja “normalidade” é encontrada nas variações liberais-democráticas de uma semiformação
generalizada e de uma personalidade autoritária. Um poder que desata, por assim dizer, uma “rebelião da natureza
reprimida contra essa dominação” do trabalho, criando o seu “bode expiatório” em figuras “exploradoras” que
vivem da circulação e da “corrupção” dos costumes tradicionais da pátria e da família como o judeu (comerciantes,
banqueiros, professores e artistas), o comunista, o vagabundo, o cigano, os negros e os párias em geral, enfim se
consolidando numa “semicultura” enquanto novo espírito objetivo até o predomínio político do “ticket thinking” e
de “charlatães provincianos da política” etc. (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 172-173). A chave psicanalítica é
abordada por Adorno em ensaios célebres como “A personalidade autoritária”, “Antissemitismo e a propaganda
fascista” e Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista” (cf. Adorno, 2015). Numa chave antropológica desse
mesmo tema, com interessantes cruzamentos, ver os trabalhos sobre o poder, o espetáculo e o trickster na obra de
Georges Balandier (1994).
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ainda embaraçado ao mito, tanto quanto os traços épicos do romance moderno, especialmente
o romance de aventuras, que então passam a formar uma constelação histórica à qual
pertenceriam, segundo Adorno, a “robinsonada total”21 de Kafka e os seres exilados e terminais
de Beckett, cujo tema fundamental é a “crítica do solipsismo”22.

**

A argumentação toda torna-se então muito complexa, pois essa literatura é


representação desse quadro de dominação e autodominação que passa pela cabeça dos sujeitos
e seus atos, ela mesma uma astuciosa “mímese da reificação” que expõe o que há de convenção
e fetichismo nesse quadro23. De Baudelaire a Flaubert, de Gógol a Dostoeivski até Conrad,
James e Machado de Assis, há muito esse conteúdo de alienação social e mental era anunciado,
mas é com Kafka e Beckett que, através da negação determinada ele passa a moldar
integralmente a própria forma literária: anti-romances que persistem narrando o que não se
deixa mais narrar, personagens sem identidade ou plena individualidade, seres errantes
sempre sujeitados ao trabalho etc. E nisso há um retorno e uma determinação recíproca. Com
efeito, em todas essas obras encontraremos em chave cada vez mais negativa e derrisória
várias alusões literárias à errância de Odisseu e de Robinson24. Como sugerido pelo texto
seminal também parte-se aqui de uma releitura crítica da “dialética de dominação e servidão”
da Fenomenologia do espírito25. Na arqueologia do “conceito de conceito” proposta por

21 Adorno, 1998, p. 264 (“Anotações sobre Kafka”).


22 Adorno, 2010, p. 172; além de seu ensaio sobre Fin de partie: Adorno, [1961] 2003a, p. 277 e 280; Adorno, 1984,
p. 207 e 210.
23 Adorno, 2002, p. 230.
24 Cf. p. ex., essas referências em Beckett nos textos de Phillips (1984) e Smith (2002).
25 Hegel, 2003, p. 142 e ss., §§ 178-196. Tal como anunciado no ponto fulcral do capítulo sobre o “Conceito do
Esclarecimento” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 27-28); mas também retomado nos Três estudos sobre Hegel
(Adorno, 2013). (Para uma releitura de Hegel, Marx e Adorno dessa perspectiva, ver o desenvolvido em: Duarte,
2020). Na Fenomenologia, a luta por reconhecimento torna-se “luta de vida ou morte” que resulta num
“reconhecimento unilateral e desigual”, em que o senhor sai reconhecido e goza a riqueza enquanto o escravo se
submete ao “trabalho” material, refreando o próprio desejo, aprendendo a “independência da coisa” junto ao poder
formador dessa atividade; o que era um “ser para outro”, uma “consciência e um agir inessenciais”, um “sentido
alheio”, torna-se “consciência de ser ele mesmo em si e para si” e um “sentido próprio” e “obstinado” (eingene Sinn
=Eingensinn) de uma atividade racional e “livre” que abala toda naturalidade – mas como “uma liberdade que
ainda permanece no interior da escravidão”. A contraface dessa dura formação desnaturalizadora erigida em
“liberdade” ideal, secretamente construída por Hegel como essência em devir – “a potência universal e a essência
objetiva em sua totalidade” (e que daria no equacionamento do Iluminismo como ascensão do materialismo
utilitarista, do espírito da crítica, da luta das luzes contra a religião etc., ou seja, como constituição da sociedade
burguesa do trabalho) – é segundo Adorno certa tradução metafísica problemática de “trabalho social” alienado
por “Espírito” (ibid.). Com o que “a grande filosofia literalmente transforma, de modo sub-reptício, a quintessência
da coerção em liberdade” (2013, p. 101-2). Esta libertação ideal fora tanto uma adaptação à violência real do
domínio senhorial quanto algo historicamente derivado, secundário, a partir de um eu constituído historicamente
nessa práxis (cf. estoicismo etc.), coagido pela necessidade da autoconservação – i.é, a “luta de vida ou morte”, o
“medo da morte” como “senhor absoluto”. Ora, a razão astuciosa que subjaz à operação teleológica do Conceito na
Lógica especulativa tem seu coração numa “atividade mediatizante” que realiza fins a partir da matéria natural:
atividade formadora que deixa “os objetos segundo sua natureza atuar uns sobre os outros, e desgastar-se uns nos
outros, contudo, sem se imiscuir nesse processo”, produzindo “a unidade posta do subjetivo e do objetivo” – com
o que a Razão supostamente “autodeterminada” por um “princípio de liberdade” em si e para si “infinito e absoluto”
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Adorno, esse traço mimético do “trabalho social” é um dos momentos arcaicos de formação da
identidade do espírito, mas também de negação da identidade lógica e psíquica enrijecidas26.

No limite de sua reificação, o poder-saber cristalizado na burocracia e na tecnologia


industrial não visa mais “conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas a utilização
do trabalho de outros, o capital”.27 Mas tal tendência de “autodestruição do esclarecimento”28
não é um processo inexorável. Como se pode acompanhar na Dialética do esclarecimento, essa
mimese astuciosa da realidade natural e social passa dos esquemas míticos e técnico-mágicos

levaria “somente o seu fim à realização”. Um “conceito concreto” que estaria assim “subtraído do tornar-se
determinado externo do mecanismo” (cf. Hegel, 1995, § 204-212 e Hegel, 2018, p. 216 e 227). Tudo se passa como
se a produção imediata não estivesse inserida numa totalidade determinada que Marx denomina modo de produção
e, mais precisamente, em nosso caso, subsumida ao conceito de Capital (“sujeito automático”). Na Lógica do
Conceito, Hegel tenta apagar o rastro da violência contido nessa astúcia. A violência do instrumento sobre a matéria
seria aparência suprimida através desse processo de subtração – a astúcia da razão consistindo exatamente nessa
“relação mediada” com o objeto exterior, que implica, como insiste o filósofo idealista, uma subjetividade operando
de modo imanente, por conceitos concretos, através da determinação objetiva das coisas – “não precisa de
nenhuma violência ou de outra afirmação contra o objeto para torná-lo meio senão a afirmação do próprio objeto;
a abertura, a resolução, essa determinação de si mesmo é a exterioridade somente posta do objeto” – pondo-se
como finalidade executada e conservando-se nos meios externos através dessa exterioridade espiritualizada. Para
uma crítica do aspecto violento e espoliador da astúcia da razão em Hegel, que refletiria ideologicamente a forma
da tecnologia capitalista, ver Bloch (2006, p. 223-5). Seja como for, pode-se divisar sob esse processo especulativo
do Geist uma estrutura social efetiva, uma espécie de razão imanente aos indivíduos que surge não apenas no
distanciamento mas na afinidade mimética com o mundo material, diluindo os limites rígidos entre sujeito e
objeto, dando assim um estofo prático-sensível à razão como certa libertação espiritual e potência crítica de toda
dominação.
26 Assim, há uma “aparência de identidade intrínseca ao próprio pensamento em sua forma pura. Pensar significa
identificar”. Mas, “em contrapartida”, dirá Adorno na Dialética negativa, “a equiparação hegeliana da negatividade
com o pensamento, que segundo ele protegeu a filosofia da positividade da ciência tanto quanto da contingência
diletante, possui o seu conteúdo de experiência. Pensar é, já em si, antes de todo e qualquer conteúdo particular,
negar, é resistir ao que lhe é imposto; o pensamento herdou esse traço da relação do trabalho com seu material,
com seu modelo originário [Urbild]. Se hoje mais do que nunca a ideologia incita o pensamento à positividade (…)
O esforço que está implícito no conceito do próprio pensamento, como contraparte à intuição passiva, já é negativo,
uma rebelião contra a pretensão de todo elemento imediato de que é preciso se curvar a ele”. Assim, é através do
mergulho na particularidade que “o que é” torna-se “mais do que ele é”, pois o particular sempre é “o seu outro e
está ligado a um outro”. “A partir de um certo ponto de vista, a lógica dialética é mais positivista que o positivismo
que a despreza: ela respeita, enquanto pensar, aquilo que há para ser pensado, o pensamento, mesmo lá onde ele
não consente com as regras do pensar. Sua análise tangencia as regras do pensar. O pensar não precisa deixar de
se ater à sua própria legalidade; ele consegue pensar contra si mesmo, sem abdicar de si; se uma definição de
dialética fosse possível, seria preciso sugerir uma desse gênero. (...) A dialética é, enquanto modo de procedimento
filosófico, a tentativa de destrinçar os nós do paradoxo com o meio antiquíssimo do esclarecimento, a astúcia. Não
é por acaso que o paradoxo foi, desde Kierkegaard, a forma decadente da dialética. A razão dialética segue o impulso
de transcender a conexão natural e sua ofuscação que prossegue na compulsão subjetiva das regras lógicas, sem lhe
impor sua dominação: sem vítima ou vingança” (Adorno, 2009, p. 12-3, 25, 140, 123-4, grifos nossos). Ora, essa
transcendência da conexão natural é feita pela autorreflexão crítica, que tem um momento fundamental na
afinidade mimética de sujeito e objeto. Daí então: “A autorreflexão do esclarecimento não significa a sua revogação:
é em nome do status quo atual que ela é corrompida até se tornar uma tal revogação. (…) É preciso reverter a
tendência dos atos sintetizantes, obrigando-os a refletir sobre aquilo que fazem ao múltiplo. Somente a unidade é
capaz de transcender a unidade. Nela, a afinidade que foi repelida pela unidade progressiva e que hibernou nessa
unidade, secularizada até se tornar irreconhecível, encontra o seu direito à vida. As sínteses do sujeito, tal como
Platão o sabia muito bem, imitam de maneira mediada, com o conceito, aquilo que essa síntese quer por si mesma”.
Mas essa afinidade mimética não pode ser posta imediatamente, de maneira positiva, mas apenas mediada pelo
seu oposto, tornando-se enfim a busca do dessemelhante ao sujeito: “A ideia de uma filosofia transformada seria a
ideia de se aperceber daquilo que lhe é dessemelhante, determinando-o como aquilo que lhe é dessemelhante”
(Ibid., 137 e 131).
27 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 20.
28 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 11; Trad., 1985, p. 11.
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mais arcaicos29 à metafísica e ao entendimento da ciência moderna, carregando consigo


ambivalências e paradoxos como que esculpidos à imagem da eterna antinomia kantiana de
necessidade e liberdade, valendo tanto como aprendizagem do caráter objetivo, dinâmico e
plural do real (a “independência da coisa”, diria Hegel), como ruptura de todo limite entre o
mesmo e o outro, tanto como imitação de sua fluidez e receptividade como de sua rigidez
destrutiva, bestialidade e imprevisibilidade ameaçadora, cristalizada como sistema de leis
positivas e convertida em legitimação de uma certa ordem dominante naturalizada. Essa
mimese ambivalente é assim parte da história concebida como “história natural”: tanto
momento parcial do desencantamento e da renúncia a um gozo absoluto, portanto passo na
constituição da subjetividade como “fragmento da objetividade” e reconhecimento do Outro e
da Coisa mesma enquanto tais, funcionando como livre expressão de forças da vida e da
produção social30, quanto assimilação de um caráter cíclico ou mecânico cego que parece
autonomizar-se como um Eu idêntico enregelado, capturado no ato perpétuo de domínio de si
e do outro para fins de autoconservação.

Odisseu e Robinson carregam consigo as nuances dessa história natural e deveriam ser
tomados então como imagens históricas e dialéticas, isto é, ambivalentes, imbricadas em mitos
arcaicos e modernos31, mas também em formas constitutivas de uma lógica narrativa do
ocidente32, internalizadas e intensamente reconfiguradas por algumas obras-galeria da
catástrofe de nosso tempo, em cujos pilares encontraríamos o Ulysses (1914-22) de Joyce (com
reflexos em Faulkner, Döblin, Dos Passos) e A terra devastada (1922) de Eliot, até o pleno
insulamento kafkiano de Karl Rossmann, Joseph K. ou K., em Amérika/O desaparecido (1912-
1914), O processo (1920) e O castelo (1922), e a trilogia beckettiana de Molloy, Malone morre
(1948-1951) e O Inominável (1949-1954), além de suas grandes peças dos anos 1950
(Esperando Godot e Fim de partida), cuja “personagem” central vai sendo desdobrada,
subtraída de seu entorno e de si mesma, desmembrada e reduzida ao cogito de uma voz
impessoal que mimetiza situações de extrema exploração e calamidade da nova sociedade
industrial administrada – sem esquecer, aqui, no escopo deste ensaio, sua prefiguração já pós-
realista no narrador caprichoso e pseudomorto de Brás Cubas (1881) e Esaú e Jacob (1904),

29 Da “magia simpatética” de Frazer (1956, p. 72), que teria em si muito de “impostura” e “aguda astúcia” por parte
de feiticeiros dotados de poder sobre a comunidade, até o “mana” da teoria da magia de Mauss e Hubert (2003a,
p. 142-55, 159-60, 176-7) como operador sintético da relação causa e efeito, funcionando qual um juízo sintético a
priori das crenças coletivas unânimes, cujo centro também é a ideia de força e poder mágico, até a lógica
classificatória concreta da natureza elaborada pelo “pensamento selvagem” conforme Lévi-Strauss (1989).
Voltaremos ao tema através da discussão da relação entre formas de troca, dom e sacrifício. Sobre o estatuto da
mímesis em Adorno, ver Schultz, 1990.
30 Adorno, 2002, p. 11, 15, e 117.
31 Sobre Robinson Crusoé como mito moderno, ver as análises de Watt (1996 e 2010) e Eagleton (2005, p.22-
40).
32 Aqui no sentido da gênese buscada por Auerbach (1996).
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de Machado de Assis, cuja volubilidade e estratégia quase programática de


instrumentalização, degradação e invisibilização do Outro contam algo dessa história natural
aparentemente sempre idêntica pelo ângulo de uma ex-colônia escravista em transição para a
ordem competitiva e o poder republicano oligárquico, já fortemente inserida nos fluxos do
capitalismo financeiro33.

Quanto mais essas obras modernas fazem a internalização das relações sociais
abstratas34, mais elas se tornam capazes de tornar sensível a crise do indivíduo, da experiência
e da representação realista do mundo, tocando no avesso do romance de formação burguês,
cujo fim sempre foi a integração harmoniosa do jovem de classe média na/da ordem social
ascendente com base em valores aristocráticos e liberais35. Num giro reflexivo adicional sobre
si próprias, essas obras suspendem/conservam o “abstrato” para tornar tangível o poder-saber
capitalista e sua forma prevalecente de individuação através do trabalho, do valor e suas
dissociações, colocando-os radicalmente em questão, incluindo as técnicas realistas da escrita,
o rol de formas herdadas e a função da produção artística. Assim, se na Odisseia e no Robinson
Crusoé temos esboços literários dos primeiros passos da formação do indivíduo moderno
ocidental, em cujos embaraços e regressões poderíamos já discernir traços da alienação
contemporânea e da perspectiva de sua negação histórica, então suas formas celulares
desdobradas no romance pós-realista constituem o desencanto da alienação do romance
contemporâneo, tingindo-o com marcas de uma “epopeia negativa”:

“O momento anti-realista do romance moderno, sua dimensão metafísica,


amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os
homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência
estética reflete-se o desencantamento do mundo. (…) É comum nos grandes
romancistas dessa época que a velha exigência romanesca do ‘é assim’,
pensada até o limite, desencadeie uma série de proto-imagens históricas,
tanto na memória involuntária de Proust, quanto nas parábolas de Kafka e
nos criptogramas de Joyce. O sujeito literário, quando se declara livre das
convenções da representação do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria
impotência, a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao
monólogo (…) De fato, os romances que hoje contam, aqueles em que a
subjetividade liberada é levada por sua própria força de gravidade a
converter-se em seu contrário, assemelham-se a epopeias negativas. São
testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si mesmo,
convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia
pareceu endossar o mundo pleno de sentido.”36

33 Ver as obras de Schwarz, 1990; 2000; 2012; 1999 e 2019; Duarte, 2020b; 2018 e 2011.
34 Adorno, 2002, p. 31; Adorno, 2003a, p. 270-1.
35 Cf. Moretti, [1987] 2020; Idem, 2014.
36 Adorno, 2003b, p. 58 e 62, grifos nossos.
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Mas é enfim neste sentido que tais obras expressam ao mesmo tempo uma “subjetividade
liberada” ao justamente insistirem no processo traumático e dissolvente da individuação -
exatamente quando a grande categoria efetiva do mundo liberal deixa de ser o indivíduo ou o
sujeito para tornar-se a Massa. A “debilidade objetiva” dos indivíduos massificados atuais
reflete-se na sua “fragilidade subjetiva”, na “debilidade do eu”, que os predispõem à
capitulação e à adesão ao lixo da indústria cultural.37 E é por isso que Kafka e Beckett lidam
com o refugo social inadaptado, inútil e excluído do trabalho massificado, sempre ameaçados
de prisão e morte. Aqui o negativo emerge muito além da superfície cotidiana. No “Esquema
da cultura de massas” (1942), Adorno aponta que a aparência estética autônoma entrava em
dissolução com a sua assimilação à “vida prática” através de uma “poesia nutrida pelo éthos
do trabalho”, “o domínio do prosaico e até mesmo do banal”38. Assim,
“sob o manto da aventura, eles [poetas como Eyths e Freitag] contrabandeiam
a utilidade, convencendo seus leitores de que não precisam desistir de seus
sonhos caso se tornem engenheiros ou assistentes do comércio – sonhos esses
que, na sociedade de classes, estão em conflito com o mundo das coisas, e que
nas crianças de antigamente levavam ao sonho de ser condutor de locomotiva
ou doceiro, antes mesmo que esses sonhos fossem soterrados por toneladas
de literatura infantil”39.

E algo disso Adorno capta já no modelo do romance realista: “Talvez o fantástico Robinson
Crusoé nunca tenha sido algo mais que um modelo de homo oeconomicus, apartado do sistema
social burguês em virtude de um feliz naufrágio somente para reproduzi-lo ‘por suas próprias
forças’, como se diz nas adaptações juvenis do famoso romance”40. Como veremos, esse
insulamento artificial se desfaz no final da primeira parte e na continuação da obra de Defoe:
não como liberdade, mas como libertação do sujeito autocrático contido na ilha41, dando
legitimação explícita ao absolutismo, ao mercantilismo e ao colonialismo europeus. Nesse
sentido, o que o liberal Defoe poetiza seria ainda uma pequena robinsonada, uma primeira
robinsonada de formação e adaptação de indivíduos ao sistema concorrencial nascente.
Eis o programa que tentamos minimamente perseguir neste ensaio, passando do
exame pontual da Odisseia e do Robinson Crusoé pelas lentes de Adorno e a teoria crítica para

37 Cf. Adorno e Horkheimer, [1956] 1973, os artigos “Indivíduo” e “A massa” (p. 52-3 e 87); Adorno, 1993, §88;
97; 147.
38 Adorno, [1942] 2020, p. 155.
39 Ibidem, p. 156-7.
40 Ibidem, p. 157. Como dirá o texto na sequência: “Tudo, inclusive a guerra, tem lá sua poesia, seja ela a lírica de
Eyths ou a poesia proletária. Com canções e bandeiras, essa poesia conduz mens sana et corpore sano à expansão
colonial e aos sindicatos” (Ibidem.).
41 Tendo seus companheiros animais como “súditos”, Robinson revela as virtualidades despóticas do homem
liberal: “Lá estava minha majestade, Príncipe e Senhor de toda a ilha, com as vidas de todos os súditos à minha
absoluta disposição. Eu podia condená-los à forca ou esquartejá-los, conceder ou retirar sua liberdade, e sem
rebeliões por parte de todos os meus súditos” (Defoe, 2007, parte 1, p. 125; trad. 2005, p. 149, modif.).
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traços essenciais em Machado, Kafka e Beckett. O salto é grande e incerto, para não dizer
duvidoso, resultando num esquema geral extraído da análise cerrada dessa matéria literária
descontínua. Um esquema que precisa ser preenchido sempre por muitas mediações sociais,
sendo as estruturas objetivas do processo um resultado histórico muito complexo e variado,
jamais redutível à imagem idealista do Espírito ou do Homem como “sujeito” oculto da
história. Antes de ir à análise, vejamos ainda algumas palavras esclarecedoras de Adorno sobre
essa mesma relação, que a meu ver sempre ligaram seu pensamento. Assim, temos aqui
testemunhos temporais variados da formação sempre estreita e limitada do indivíduo
nascente e por fim de uma formação deformada e supressiva do “indivíduo livre” na era liberal,
que encerra ao mesmo tempo a pergunta pelo sujeito e a emancipação possível. Pois como
Adorno completa à sua maneira dialética característica:

“Essas epopeias [negativas] compartilham com toda a arte contemporânea a


ambiguidade dos que não se dispõem a decidir se a tendência histórica que
registram é uma recaída na barbárie ou, pelo contrário, o caminho para a
realização da humanidade, e algumas se sentem à vontade demais no
barbarismo. Nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de
encontrar prazer na dissonância e no abandono. Mas, na medida em que
essas obras de arte encarnam sem compromisso justamente o horror,
remetendo toda a felicidade da contemplação à pureza de tal expressão, elas
servem à liberdade, da qual a produção média oferece apenas um indício,
porque não testemunha o que sucedeu ao indivíduo da era liberal”42.

Olhando de mais perto essa ambiguidade constitutiva das obras estudadas, ela nos
parece determinada por essa síntese mediadora de extremos que capta a desintegração desse
mundo caduco, mas totalmente esclarecido, em que dissonância e abandono são a cifra tanto
do horror da integração capitalista como da promessa de algo outro. Pois certamente não
poderia haver emancipação social sem a superação de formas históricas correlatas “trabalho”,
“indivíduo” e “racionalidade” burguesa da autoconservação. Recaída na barbárie porque
presente e passado arcaico coexistem numa situação objetiva que liquida o indivíduo sem sua
superação efetiva. Porém, contra as leituras idealistas, antropológicas, ontologizantes e
derrotistas hoje em voga, montadas a partir de confusões conceituais e desatinos criados pelas
guerrilhas culturais pós-modernas contra o “sujeito” que apagam as linhas histórico-dialéticas
contidas nos textos da velha teoria crítica (que desde o início se sustenta no potencial crítico
do conceito de uma razão esclarecida43), trata-se de reconhecer que é sempre pela negatividade

42 Adorno, [1942] 2020, p. 62-3.


43 Para colocar algumas peças no lugar, basta lembrar alguns pontos básicos: “Não alimentamos dúvida nenhuma
– e nisso reside nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor.
Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto
quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe
para a regressão que hoje tem lugar por toda parte”. Assim, por um lado, “o esclarecimento é totalitário como
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desenvolvida no objeto – certa forma da subjetividade pressuposta e em formação (que nada


tem de dado, ou de uma substância a priori), que haveria alguma chance de viravolta e escape.
E isso desde o modelo originário da epopeia: “É a saudade de casa que desfecha as aventuras
por meio das quais a subjetividade (cuja proto-história é narrada na Odisseia) escapa ao
mundo primitivo. (…) A terra natal [Heimat] é o estado de quem escapou”44. É verdade que
em Joyce, Musil, Kafka e Beckett (tal como já em Baudelaire e Machado) esse retorno ao lar e
à terra natal ganhará a forma negativa explícita de uma espécie de prisão no inferno da
irreconciliação – o que sugere a reconciliação possível como uma linha de fuga que tem de se
dar em outros espaços para além do lar burguês ou da comunidade nacional popular.

Em todo caso, esse ponto decisivo, chave de uma negação determinada, i.e, de
contragolpe e retorno da razão para si, depende da unidade subjetiva forjada na ação da
própria práxis de autoconservação, tornando-se irredutível à mera tecnologia ou à dominação,
ao discurso ideológico e à conservação do existente. Sem essa chave negativa as obras se
fecham numa reedição da fatalidade mítica. Daí por que em Kafka também podemos
reconhecer, segundo Adorno (como em Beckett, diríamos nós, a despeito das interpretações

qualquer outro sistema. Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos sempre lhe censuraram: o
método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo
está decidido de antemão” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 13 e 37), ou seja, “o horror mítico” de “toda manifestação
humana que não se situe no quadro teleológico da autoconservação” (ibid., p. 41) – que é uma espécie de nome
cifrado do “trabalho abstrato” (cf. ibid., p. 189 e 193). Mas simultaneamente: “Toda união mística permanece um
logro, o vestígio impotentemente introvertido da revolução malbaratada. (…) Todo progresso da civilização tem
renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento. (…) a concretização dessa
perspectiva depende do conceito. Pois ele é não somente, enquanto ciência, um instrumento que serve para
distanciar os homens da natureza, mas é também, enquanto tomada de consciência do próprio pensamento que,
sob a forma da ciência, permanece preso à evolução cega da economia, um instrumento que permite medir a
distância perpetuadora da injustiça. Graças a essa consciência da natureza no sujeito, que encerra a verdade
ignorada de toda cultura, o esclarecimento se opõe à dominação em geral, e o apelo a pôr fim ao esclarecimento
também ressoou nos tempos de Vanini, menos por medo da ciência exata do que por ódio ao pensamento
indisciplinado, que escapa à órbita da natureza confessando-se como o próprio temor da natureza diante de si
mesma” (ibid., 50, grifos nossos). Não se trata, assim de uma simples e abstrata “crítica da razão instrumental”,
pois toda razão é também analítica e instrumental, mas sim de uma crítica racional e autorreflexiva sobre a relação
entre meios e fins na sociedade dominada pela lógica do capital.
44 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 97; trad.: 1985, p. 78-79. Aqui vale uma nota sobre o conceito de sujeito. Segundo
o seu conceito dialético, este se torna por definição o que salta da substância: negando-se, se determinando e
emergindo do conteúdo substancial através de um “freio interior”, um “contragolpe” interno e uma “reversão” à
consciência, o que Hegel costuma descrever também como uma “razão astuciosa” que “se subtrai” do agir pois seria
“idêntica” à atividade do “Si imanente do conteúdo”, “dissolvendo-se e se fazendo um momento do todo”. Cf. Hegel,
[1807] 2003, §§ 25, 54, 60 e 87; Hegel, 2018, p.66, 85-9 etc.; Adorno, [1966] 2009; Zizek, [1999] 2016; Duarte,
2020. Na dialética negativa adorniana, esse automovimento do espírito como sujeito-objeto idêntico é parcial e
negativo, contendo traços arcaicos de uma “metafísica do espírito” cujo núcleo místico seria a lógica histórico-
natural da autoconservação absolutizada através da “mediação radical” do trabalho abstrato moderno (Adorno,
2013, p. 98-104). O movimento ascendente da essência ao conceito (Aufhebung como negação da negação) torna-
se por assim dizer suspeito, mas não amputado. Contra o postulado hegeliano especulativo de que “a substância é
essencialmente sujeito”, ou seja, em si e para si uma “substância espiritual” já reconciliada, trata-se de pensar um
materialismo crítico em que não se percam as determinações negativas de cada objeto específico subsumido a esse
suposto automovimento do espírito (resistência dos materiais e contragolpe do objeto ou do entendimento, cf.
Adorno, 1993, §§45, 46, 127, 152), ou seja, a “astúcia do saber” que tanto o reconhece sob a forma de uma totalidade
social cega, como algo socialmente constituído por relações capitalistas, quanto se subtrai da substância, negando
sua identidade com essa falsa totalidade, que costuma se passar pelo Universal do “Espírito do Mundo” ou da
“Ideia”.
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restritivas do próprio autor), aquele “comportamento mais testado e indicado contra o mito:
a astúcia”.45

É preciso compreender então os vários modos de ser dessa astúcia e sua relação com a
mímese. Para o último Adorno, como vimos, a astúcia da unidade racional constituída através
da mediação da mimese do múltiplo, do difuso e do amorfo é uma determinação fundamental
não só da razão mas da arte que objetiva uma subjetividade social e um reino dos fins que
ainda permite a autorreflexão crítica46. A astúcia mimética suprassumida ganha direito de
cidade num conceito crítico e ampliado de razão e subjetividade.47

II- Odisseu: aventura de um sujeito autocrático em devir ou mimese


antimitológica de um mundo sem substância natural?

Comparada à Ilíada, observa Nietzsche, a Odisseia tende a limitar o assunto e


aumentar a intensidade vivida das cenas, focalizando no destino do herói singular.48 Desponta

45 Adorno, 1998, p. 268, trad. modificada. Uma percepção partilhada com Benjamin ([1934] 1987, p.134), que
aponta como Kafka relê a Odisseia em “O silêncio das sereias”: “A razão e a astúcia introduziram estratagemas nos
mitos; por isso os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses
poderes”. Já o grande ensaio adorniano sobre Beckett (sobre Fin de partie), de 1961, traz as marcas do tempo
histórico (o auge da guerra fria) e se mostra carente às vezes dos desenvolvimentos feitos posteriormente na
Dialética negativa (2009 [1966]) e na Teoria estética (2002 [1969/70]).
46 Adorno, 2002, p. 186-7 e 223.
47 Uma das linhas de força que perpassam a Teoria estética de Adorno (2002, p. 6, 167-8, 222-225 etc.). Assim,
numa de suas conclusões: “Em nome da reconciliação, obras de arte autênticas devem apagar cada traço de
lembrança da reconciliação. Contudo, a unidade, da qual mesmo o dissociativo não escapa, nada seria sem a antiga
reconciliação. (…) Elas têm a possibilidade de sobreviver porque o seu esforço para a síntese é também o do
irreconciliável. Sem a síntese, que confronta a realidade como uma obra autônoma, nada existiria fora do encanto
de tal realidade; o princípio de separação do espírito, que espalha o encanto em torno de si, é também o princípio
que o quebra ao determiná-lo.” (Adorno, 2002, p. 234-5). É nesse sentido mais radical que as formas estéticas
tornam-se o “conteúdo sedimentado” do processo social. A razão totalmente formalizada e vazia de critérios
valorativos própria à economia de mercado termina por destroçar a razão e a autorreflexão sobre os fins. Os meios
e a mediação social principal, o trabalho abstrato, convertem-se em fins autonomizados, não obstante estejam em
crise fundamental e percam legitimidade face ao nível de socialização alcançado e da riqueza concreta globalmente
produzida. Destaque-se aqui portanto a base social de todo esse processo: integração – subsunção formal e real do
trabalho ao capital, mundo administrado (Estado keynesiano e de exceção permanente, indústria cultural etc.);
desintegração – cujo fundamento último é a crise do trabalho e da forma-valor, o que se verifica no nível da
particularidade das relações sociais, do espaço social, das lutas sociais, das formas artísticas autênticas, da ciência
crítica, mas também no interior da subjetividade social. E é por isso que se trata de encetar uma crítica imanente
desse sujeito supostamente fundado e fundante – não apenas como um suporte de relações sociais, mas um fundo
objetivo, mudo, opaco, intempestivo cuja resistência dinâmica, de caráter corporal e pulsional, seria capaz de gerar
talvez uma autocrítica reflexiva da vontade e da ação do mero suporte. No material estético, isso frequentemente
realiza-se menos nas intenções dos autores ou de suas personagens do que na dialética da sua forma total, quando
esta expõe as interversões desse intelecto autocrático tal como forjado na modernidade como “única autoridade
irrestrita e vazia”, cindindo-se da natureza e do mundo convertidos em mero “objeto”, para fins de dominação. Na
típica inversão capitalista de sujeito e objeto, esse poder torna-se impotência, o sentido sem-sentido, e muito da
violência e do sofrimento da esfera da produção e da vida cotidiana dissociada irrompem em seu conceito,
desmentindo seu brilho ideológico, bem como sua mera repetição mecânica, automática, fetichista.
48 “Homero limitou, diminuiu o âmbito do assunto, mas deixou espontaneamente crescer e aumentou as cenas
individuais.” (Nietzsche, [1880] 2008, §113.)
59
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no horizonte dessa Grécia arcaica a ideia do indivíduo – o indivíduo no sentido antigo clássico,
espécie de ser destacado mas ainda “enraizado”49, num mundo político-religioso que
desconhece não apenas o homem isolado e o mercado autonomizado, mas o ser como unidade
autônoma apreensível sob conceitos modernos seculares como espírito, alma e corpo50.
Odisseu é um herói que pensa e deseja, age e comanda, mas tem um desenvolvimento
basicamente de fora para dentro, sempre guiado pela intervenção divina de Atenas, Hermes,
Poseidon, Éolo, Circe, e assim movido por causas sobrenaturais e motivos coletivos ou
impessoais, isto é, não fundados num eu pessoal ou reflexivo.51 Noutros termos, como notam
Adorno e Horkheimer, aqui “ainda é fraca a forma de organização interna da individualidade”
e “o sujeito ainda não está configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos, seu ânimo e
seu coração excitam-se independentemente dele”52. É por isso que se trata de determinar
Odisseu pela negação determinada em relação ao indivíduo moderno – mas recuperando o
momento em que algo se nega e cruza limites em direção ao sujeito reflexivo dito “sem
substância” e à sua abstração cadavérica – o homo oeconomicus.

Para o pensamento dialético tradicional, o mundo da Grécia clássica já continha e


determinava indivíduos como inseparáveis da totalidade ético-religiosa a qual pertenciam,
tendo “consciência de si apenas enquanto em unidade substancial com esse todo”53. Rastos do

49 Polanyi, 2021, p. 102 e 116. Contudo, o esquema de Polanyi parte de uma base histórica enxuta tomada de
comunidades tradicionais, em especial de Malinowski ([1922] 1984): uma completa ausência do homo economicus,
mas não de uma economia natural ou doméstica baseada na reciprocidade da troca de dádivas (kula).
50 “Toda vez que o homem faz ou diz algo a mais do que dele se poderia esperar, Homero, para explicar o fato,
atribui-o à intervenção de um deus. E é o verdadeiro e autêntico ato da decisão humana que Homero ignora; daí
porque, mesmo nas cenas em que o homem reflete, a intervenção dos deuses sempre tem uma parte importante. A
crença nesta ação do divino é, portanto, um complemento necessário às representações homéricas do espírito e da
alma humana. Os órgãos espirituais θυµος e νόος [thymós e nóos] não passam de simples órgãos, tanto que neles
não se pode ver a origem de nenhuma emoção. A alma entendida no sentido de πρῶτον κινοῦν, de primeiro
movente, tal como a concebe Aristóteles, ainda é estranha a Homero. As ações do espírito e da alma desenvolvem-
se por obra das forças agentes do exterior, e o homem está sujeito a múltiplas forças que a ele se impõem e
conseguem penetrá-lo.” (Snell, [1955]/2001, p. 20-21).
51 “O que chamamos de pessoa não é central na religião grega. O problema não é o da relação do indivíduo com
um deus que é ele mesmo pessoal, a religião está centrada de outra forma. Mas é verdade também que existe um
indivíduo desde a época arcaica: Aquiles, por exemplo, é um indivíduo. Assim sendo, a noção de indivíduo se
destaca nitidamente das instituições da cidade, do direito, da tragédia. Em toda uma série de planos, percebemos
que as instituições sociais atribuem ao indivíduo um lugar cada vez maior. Ao indivíduo, mas talvez não ao eu ou à
pessoa. É preciso distinguir essas diferentes noções e, com uma análise, mostrar o que é relativo ao indivíduo – que
será expresso pela biografia – e o que é relativo ao que chamo de sujeito – quando o indivíduo enuncia a si mesmo
na primeira pessoa, quando diz ‘eu’ para, em um discurso, comunicar ao outro determinados aspectos de sua
própria individualidade, que podem ser muito diversos. O sujeito não é uma categoria única. (…) . A organização
mental e psíquica do grego é tal que ele desconhece totalmente a introspecção, ele está inteiramente orientado para
o exterior. (…) O indivíduo busca a si mesmo e se encontra no outro, nesses espelhos que são para ele todos aqueles
que constituem a seus olhos seu alter ego: parentes, filhos, amigos. O indivíduo situa também a si mesmo nas
operações que o realizam, que o efetuam ‘em ato’, enérgeia, e que nunca estão em sua consciência. Não existe
introspecção. O sujeito é extrovertido. Ele se olha de fora. Sua consciência de si não é reflexiva, ela não é uma volta
sobre si mesmo, um trabalho sobre si mesmo, a elaboração de um mundo interior, íntimo, complexo e secreto, o
mundo do Eu.” (Vernant, [1996] 2002, p. 69-70 e 84).
52 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 65; trad. 1985, p. 56 e 243.
53 Hegel, 1999, p. 197-8; Lukács, 2009, p. 196.
60
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sujeito autocrático moderno estariam aí já determinados mas ainda largamente implícitos,


incrustados num mundo em que a forma-mercadoria e mesmo a propriedade privada não se
generalizam. Um esboço primitivo desse processo dataria, para Adorno e Horkheimer, dos
cantos de Homero ou dos hinos do Rigveda, colhendo as implicações da dominação territorial
de uma massa de autóctones vencidos: “o deus supremo entre os deuses surgiu com esse
mundo civil, onde o rei, como chefe da nobreza armada, mantém os subjugados presos à terra,
enquanto os médicos, adivinhos, artesãos e comerciantes se ocupam do intercâmbio social.
Com o fim do nomadismo, a ordem social foi instaurada sobre a base da propriedade fixa.
Dominação e trabalho separam-se”.54 Se para muitos pensadores não teríamos aqui, a rigor,
nem indivíduo isolado muito menos a constituição de um “sujeito” (epistêmico, prático-moral,
psíquico, político etc.), certamente estamos muito além das transições originárias da natureza
à cultura, ou seja, numa época de transições do mito arcaico à mitologia e à religião organizada,
que consolidam uma divisão do trabalho e o comando do trabalho corporal, passando a
classificar e hierarquizar o corpo social segundo códigos simbólicos de valor e poder universais
(mesmo que o caso indiano fique alheio à noção moderna de propriedade e poder
econômico)55. É claro que o mercado embrionário, a produção submetida às necessidades
concretas e personalizadas do sistema religioso comunitário, baseado na interdependência e
na manutenção da ordem de prestações e contraprestações56, afasta essas formas tradicionais
da economia moderna, que está orientada para o lucro privado, a troca entre iguais, a
competição etc. E no entanto a mais alta posição na hierarquia ou as formas de exclusão e
marginalização social começam a desvincular individualidades dos valores religiosos e

54 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 30; trad.: 1985, p. 28. Aqui, trata-se de uma determinação do “trabalho” como
condição social e histórica de classe ou estamento. Marx aponta que “o trabalho parece uma categoria muito
simples. A representação do trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é muito antiga.
Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna quanto as
relações que geram essa simples abstração”. Mas com isso, ele não pretende anular essa determinação simples e
comum, mas busca salientar a passagem dessa determinação à sua posição específica moderna, ou seja, a passagem
dos trabalhos concretos produtores de riqueza material ainda ligados a um todo orgânico ao trabalho abstrato
produtor de mercadorias, o “trabalho em geral” ou “trabalho sans phrase”: “Nesse caso, o trabalho deveio, não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da riqueza em geral e, como determinação,
deixou de estar ligado aos indivíduos em sua particularidade” (Marx, 2011, p. 57-8).
55 “No quadro da técnica e da economia antigas, o trabalho só aparece ainda sob seu aspecto concreto. (…) não se
encontra uma grande função humana, o trabalho, cobrindo todas as profissões (…). A profissão apresenta-se, pois,
como um fator de diferenciação e de separação entre os cidadãos. Se eles se sentem unidos em uma única cidade,
não é em função de seu trabalho profissional, mas apesar dele e fora dele. O elo social se estabelece além da
profissão, no único plano em que os cidadãos podem amar-se reciprocamente, porque todos se comportam de
maneira idêntica e não se sentem diferentes uns dos outros: o das atividades não profissionais especializadas, que
compõem a vida política e religiosa da cidade. Não sendo apreendido em sua unidade abstrata, o trabalho, em sua
forma de profissão, não se manifesta ainda como troca de atividade social, como função social de base.” Vernant,
1973, p. 238-9 (cf. também p.228-9). Para a economia da Grécia antiga, ver Finley, 1982; 1989; 1999; para a Índia
(do rigveda ao bramanismo), ver Dumont (1997 e 1993); para a discussão do campo religioso como esfera separada
posterior, Bourdieu (1974).
56 Sobre esse sistema em sociedades tribais, ver as instituições do “plotatch” (Mauss e Hubert, 2003) e do “kula”
(Malinowski, 1983).
61
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aristocráticos absolutos.57 Assim também Odisseia já é uma obra que incorpora formalmente
elementos de secularização do mito: a distância no tempo e no espaço, a clareza da linguagem,
a própria mimese irônica em relação ao heroísmo épico da Ilíada58. Há assim um método nas
especulações de Adorno, evitando identificações grosseiras, mas sem abdicar das
aproximações históricas que salientam as diferenças radicais de tempo. Citando o historiador
G. Glotz, ele lembra como “um proprietário como Odisseu ‘dirige a distância um pessoal
numeroso, meticulosamente organizado, composto de servidores e pastores de bois, de
ovelhas e porcos’”59 - sugerindo aí como o herói sempre esteve atado às tarefas da
administração do oikos doméstico e da guerra – o que explica o caráter totalmente secundário,
além de irracional, da ideia de “aventura” (ou de “colonialismo”) que nós poderíamos atribuir
falsamente à epopeia homérica, cujo tema central é um relato dos Nostoi, a viagem de retorno
de Odisseu a Ítaca60, e cuja mola fundamental será enfim o conflito entre esse desejo do heroi
e a vingança implacável de Poseidon, em que se desdobra o conteúdo de uma aprendizagem
do freio e domínio de si e dos companheiros, passando entre os dons ou a proteção divina e a
violência individual, a medida e a desmedida61. Na grande épica, assim, o indivíduo heroico
momentaneamente desgarrado permanece vinculado ao clã e à cidade natal. Ele pode agir e
mostrar sua “presunção criadora e subjugadora da vida”, como dirá o jovem Lukács,
comungando ou colidindo com outros homens, mas apenas como elemento pertencente à
comunidade guerreira e religiosa erigida contra inimigos externos (e suas forças divinas) em

57 Sobre esse ponto, ver o Homo hierarchicus de Louis Dumont (1997, especialmente o Apêndice B -“A renúncia
nas religiões da Índia”). Mesmo no sistema das castas na Índia tradicional, Dumont observa a constituição de
“indivíduos fora do mundo”, a figura do “renunciante” (geralmente de origem brâmane ou nobre-kshatryia) que
procura sua “liberação” através dum severo ascetismo purificador e da “transmigração”, contrapondo-se aos valores
absolutos da religião (dharma, artha e kãma), agindo como gérmen de novas “ideias” e mesmo de “inovações” e
“questionamentos radicais” no seio dessa ordem hierárquica, cuja similitude o autor encontra no estoicismo, no
epicurismo e nos pensadores ocidentais, bem como nos cristãos europeus, em especial na ética puritana, seguindo
passos de Weber (2004). Ver também, Dumont, 1993. Aqui poderíamos agregar outras figuras desse indivíduo em
germe no ocidente medieval como o cavaleiro andante, o folião medieval, o aristocrata cortês (especialmente os
conselheiros reais), em que o espírito ambivalente do duplo, da mimese e da ironia antecipa a experiência
reflexionante moderna (cf. Figueiredo, 1995, p. 99-109). Hegel analisa a figura do conselheiro na corte real na
Fenomenologia (2003, Cap. VI, B). Sem dúvida, são figuras nascentes também na paródia dos romances de
cavalaria como o Dom Quixote, no riso foliônico da obra de Rabelais ou, para darmos um salto para o nosso tempo
e para dentro da obra do mestre da ironia, no conselheiro Ayres de Machado; todos mais ou menos remetem
objetivamente ao mundo helênico e à tradição luciânica.
58 Cf. Vidal-Naquet, 2002, p. 116-20. Sobre a “ordenação lógica da linguagem” e a clareza quase realista da
Odisseia, ver Auerbach, 1996, p. 11-2 etc.
59 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 30; trad. 1985, p. 28. Ver o relato de Eumeu sobre a enorme riqueza acumulada
por seu senhor com criações e plantações, tal como a rotina de pilhagem feita por inimigos, cf. Odisseia, XIV, 79-
108.
60 Cf. Finley (1982); Pucci (1997 e 1987); Malkin (1998); Hartog (2004), Hall (2008).
61 Tal como de passagem aparece no conselho dado por Tirésias para a travessia dos domínios de Hélio na ilha
Trinácia: “Ainda assim podereis regressar, embora muitos males sofrendo, / se refreares o teu espírito e o dos
companheiros” (Odisseia, Canto XI, 104-105). Odisseu é quem afirma, após bater Iro: “Outrora também eu estava
para ser ditoso entre os homens;/ mas cometi más ações, cedendo à violência e à força,/ confiado no meu pai e nos
meus irmãos./ Por isso, que nenhum homem seja alguma vez injusto!/ Que resguarde em silêncio aquilo que os
deuses lhe concederem” (Odisseia, XVIII, 138-143). Ao longo do texto cotejei esta tradução citada, feita por
Frederico Lourenço (2018), com as de Carlos Alberto Nunes (2001) e Christian Werner (2013).
62
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ações sempre sujeitas ao Destino inexorável, que restabelece a totalidade plena de sentido e
converte a ação individual em “humildade, em contemplação e admiração muda perante o
sentido de clara fulgência que se tornou visível a ele, homem comum da existência cotidiana”.62
Assim sendo, “o herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo”, mas a comunidade como
agente:

“Desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é
um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com razão, pois a perfeição
e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um
todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão
isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de
descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade”.63
Em contraste, no romance moderno – a forma da “epopeia burguesa” segundo Hegel – o
indivíduo isolado destaca-se do todo hostil em busca do sentido perdido. Para o jovem Lukács,
ele torna-se problemático, solitário, polêmico, errante, demoníaco, evadido da substância ética
tradicional, a qual se enrijece como lei em contraposição a ele como uma “segunda natureza”
arbitrária alienada; a prosa moderna então se dispersa pela contradição, em figurações
reflexivas, irônicas, estados de ânimo instáveis, ações prosaicas e dramáticas etc.64 A vida
prosaica contudo é seu projeto e sua conquista individual, mesmo quando frustrada do pleno
sentido da totalidade.

Contudo, algo já transcende o mundo fechado na própria epopeia. Segundo a leitura


de Adorno e Horkheimer, ao se apoderar dos mitos, ao organizá-los e expô-los na “linguagem
universal” “exotérica”, Homero se contrapõe a eles através das luzes da poesia épica, mesmo
quando glorifica a ordem hierárquica que eles fixam. Por certo o pleno de sentido da epopeia
é “o oposto histórico-filosófico do romance” – mas um âmbito no qual já surgem “traços que
a assemelham ao romance”, fazendo-a “obra da razão ordenadora, que destrói o mito graças
precisamente à ordem racional na qual ela o reflete”65. Dando um passo adiante em relação
aos historiadores clássicos, Hegel e o jovem Lukács, para Adorno e Horkheimer o ponto de
virada em direção ao indivíduo moderno está no discernimento da mentira e do embuste
mágico contido na esfera do mito e dos pactos sacrificiais com as potências divinas; potências
que já se reduziram drasticamente às margens das ilhas do Mediterrâneo civilizado e às
narrativas da religião popular. Um trançado de mito, legenda e espírito prático que tende a ser
absorvido e convertido mimeticamente na “consciência de si” versátil desse heroi fabuloso que
se tornou para nós o Odisseu “muitas-vias” (o termo grego é πολύτροπον, politropos, “muitas-

62 Lukács, 2000, p. 48.


63 Ibidem p. 67.
64 Ibidem, p. 29, 62-66; Lukács, 2009, p. 193-196.
65 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 53.
63
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voltas” ou “muitas-viradas”66), carregado da inteligência astuciosa da Métis constitutiva de


Zeus e Palas Atenas67. Para os autores, há assim uma astúcia absorvida de um confronto com
o ritual sacrificial: “Todas as ações sacrificiais humanas, executadas segundo um plano,
logram o deus ao qual são dirigidas: elas o subordinam ao primado dos fins humanos,
dissolvem seu poderio, e o logro de que ele é objeto se prolonga sem ruptura no logro que os
sacerdotes incrédulos praticam sobre a comunidade incrédula. A astúcia tem origem no culto.
O próprio Odisseu atua ao mesmo tempo como vítima e sacerdote”68. Mas essa inteligência
astuciosa de origem divina, sacrificial, é também, antes de mais nada, segundo mostram
Détienne e Vernant com perfeição, a habilidade prática do melhor artesão, caçador ou
marinheiro da Grécia antiga, tanto quanto a habilidade política e retórica dos melhores
cidadãos ou do mais nobres guerreiros quando precisam pôr à prova um saber prático, eficaz
e sem modelo, atuando com prudência, engenho, autodomínio, um senso aguçado para a
melhor tática e estratégia através da análise empírica de situações efetivas69. Aqui, então, as
técnicas da guerra, os fins da produção e da circulação de bens (sacrifício, dádiva, produtos
oriundos do oikos tradicional e de pilhagens da guerra ou comércio, em geral com extenso uso
de escravos etc.) se misturam ao complexo político-religioso como lógica material profunda
da antiguidade dos povos do Mediterrâneo. É esta astúcia da razão em ato, ou esta paciência
do conceito prático, extraídas e investidas de/em cada situação particular, que fundará menos
um logos formal do que um tipo de logos prático, consolidado em esquemas técnicos, tanto
quanto a ironia socrática, a sofística e a dialética dos antigos já são um ponto que unifica e
determina opostos e sua reversibilidade. É esta astúcia herdada e cultivada por Odisseu,
somada à saudade de Ítaca e o amor à família, que lhe permitirá vencer as forças mágicas e
terrenas descomunais, suportando os sofrimentos, desviando-se da sedução dos prazeres e
tentações da viagem, mantendo-se firme e prudente em sua meta de retorno.70

Note-se assim que o papel de “mercador” ou de mero “trabalhador” desvinculado de


um oikos (a figura do servo despossuído conhecido como thes71) é uma espécie de maldição

66 Odisseia, I, 1. Cf. Pucci, 1997.


67 Cf. Odisseia, XIII, 291-302.
68 Adorno e Horkheimer, 1981, p.68; Trad.: 1985, p. 58. No entanto, vale constatar que a religião no mundo
homérico não aparece como esfera racionalizada e autonomizada, não há Igreja nem Clero instituídos (Cf. Vernant,
2002, p. 173-8; Bourdieu, 1974, p. 36-8).
69 Détienne e Vernant, [1978] 2008. Para uma leitura de Adorno sob essa perspectiva que força o olhar para os
contrapontos dialéticos da negatividade e reconciliação através da astúcia de Ulisses, ver Gagnebin, [2006] 2014.
70 Como anunciado desde os versos iniciais do poema: “De muitos homens viu as cidades e a mente conheceu; /
e foram muitas no mar as dores que sofreu em seu coração/ para salvar a vida e o regresso dos companheiros. /Mas
nem os companheiros salvou, embora o quisesse. /Pereceram devido às suas próprias loucuras, / tolos, que o gado
de Hiperíon, o Sol,/comeram; e este lhes negou o dia do regresso.” (Odisseia, I, 4-9.)
71 No encontro de Odisseu com Aquiles no Hades (Odisseia, XI, 487-491) este último diz preferir ser um lavrador
servil pobre ou um thes (“homem sem herança e sem grande sustento”) do que reinar no reino dos mortos. Cf.
Finley, 1982, cap. 3, especialmente, p. 55.
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nesse mundo regido por um código guerreiro-aristocrático, i.e., heroico. Entre os feácios, no
palácio de Alcínoo, um jovem aristocrata (Euríalo) provoca Odisseu a uma competição atlética,
confundindo-o com um “comandante de marinheiros que são eles próprios mercadores:/
alguém que só pensa na carga e está sempre muito atento/ aos lucros do regateio. De atleta de
facto não tens nada”72. O que é recebido por ele como um insulto, algo que o encoleriza e o faz
não só aceitar o desafio como vencer o torneio do disco, recebendo o reconhecimento da glória
do rei e dos nobres de seu palácio73. Na vida que gira em torno do oikos, a troca exterior aparece
como algo marginal: todos os bens produzidos o eram em nome da casa, cujo chefe então os
controlava e distribuía. Assim, como ver em Odisseu um primo distante de Robinson Crusoé?
Apesar da essência fundamentalmente diversa, essa aproximação ganha sentido, pelo menos
aos olhos dos autores, noutras passagens. Assim, quando eles estabelecem os componentes do
imperativo da autoconservação em jogo na reprodução social: a relação entre astúcia, logro e
princípio de troca, que nessa altura ainda não gira em torno do comércio, mas dos ritos
sacrificiais e da troca de dádivas, em que a aventura forçada do herói se converte em algo
similar à guerra, pilhagem e pirataria modernas, ou seja, vizinha à exploração colonial:

“O órgão do eu [Selbst] para sair vencedor das aventuras: perder-se para se


conservar, é a astúcia. O navegador Odisseu logra as divindades da natureza,
como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes
contas de vidro coloridas em troca de marfim. É verdade que só às vezes ele
aparece como um trocador, a saber, quando se dão e se recebem os presentes
de hospitalidade. O presente de hospitalidade homérico está a meio caminho
entre a troca e o sacrifício. Como um ato sacrificial, ele deve pagar pelo sangue
incorrido, seja do estrangeiro, seja do residente vencido pelos piratas, e gerar
uma trégua. Mas, ao mesmo tempo, o presente anuncia o princípio do
equivalente: o hospedeiro recebe real ou simbolicamente o valor equivalente
de sua prestação, o hóspede um viático que, basicamente, deve capacitá-lo a
chegar em casa. Mesmo que o hospedeiro não receba nenhuma compensação
imediata, ele pode ter a certeza de que ele próprio ou seus parentes serão
recebidos da mesma maneira: como sacrifício às divindades elementares, o
presente é ao mesmo tempo um seguro rudimentar contra elas. A extensa mas
perigosa navegação na Grécia antiga é o pressuposto pragmático disto. O
próprio Poseidon, o inimigo elementar de Odisseu, pensa em termos de
equivalência, queixando-se de que aquele receba em todas as estações de sua
errática viagem mais presentes do que teria sido sua parte integral nos
despojos de Troia, caso Poseidon não lhe houvesse impedido transportá-la.
Em Homero, porém, é possível derivar semelhante racionalização dos atos
sacrificiais propriamente ditos. Pode-se contar com a benevolência das
divindades conforme a magnitude das hecatombes.”74
Essa passagem contém a chave de toda a interpretação. De fato, como mostra Finley,
as guerras e as pilhagens faziam a comunidade ultrapassar as fronteiras do oikos em busca de
metais (para confecção de armas e instrumentos de trabalho) e outros bens raros, associando

72 Odisseia, VIII, 162-164.


73 Odisseia, VIII, 178-193. Cf. Finley, 1982, p.67.
74 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 66-67; Trad.: 1985, p 57, grifo nosso.
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famílias, gerando expedições armadas de guerra e pilhagem – cuja consequência a longo prazo
foi a organização interna e externa de um sistema de dádivas e contra-dádivas, em que
“ninguém dá alguma coisa (…) sem uma justa compensação, real ou desejada, imediata ou
adiada, para si ou para seus parentes”, bem como de um comércio regular pacífico que excluía
em geral ideias de lucro ou especialização do oikos em exportação mercantil etc., sendo feito
com base em taxas de troca convencionais ou costumeiras75. Esse é o pressuposto dupla ou
triplamente oculto que autoriza os frankfurtianos a realizarem a aproximação propositalmente
exagerada e quase disparatada, ou seja, feita cum grano salis, de Odisseu, Robinson e o homo
oeconomicus: “A Odisseia já é uma robinsonada”. Aqui na verdade procura-se encaixar uma
tese especulativa: a troca burguesa deve ser vista sobretudo pelo seu lado oposto, não como
explicação do passado pelo presente, mas ao contrário, ou seja, como uma espécie de
“secularização do sacrifício” (ou antes, a secularização desse meio-termo híbrido entre o
sacrifício e a troca de dádivas) e do resultado irracional e destrutivo das guerras e pilhagens,
em que as trocas comerciais estavam imersas76; tanto quanto, agora inversamente, “o próprio
sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional, uma cerimônia organizada
pelos homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exatamente pelo sistema
de veneração de que são objetos”77.
Com efeito, toda troca em geral pressupõe certa paz e igualdade entre os trocadores78,
mas historicamente sempre esteve sujeita também à coerção, ao logro e à irrupção da
violência. No relato mentiroso dado ao porqueiro Eumeu em seu retorno, p. ex., o próprio
Odisseu disfarçado de mendigo diz que, numa expedição para o Egito, o trato com os
habitantes desemboca em guerra, matança e pilhagem… mas, ao morar entre os egípcios por
sete anos, acumulara “infinitas riquezas” em presentes, terminando por se associar a um
comerciante fenício, “sabido em toda arte de embustes”, homem “enganador” e “maldoso” que
tencionava vendê-lo como escravo na Líbia, “para obter muito lucro”79. E, de fato, a enorme
riqueza em presentes oferecida pelos feácios a Odisseu é celebrada como uma espécie de

75 Finley, 1982, p. 61-3 e 65. O comércio regular de bens (especialmente metais) ainda era “raro e periférico no
mundo homérico”, mas não as “trocas”, que, pelo contrário, “eram frequentes e indispensáveis” sob a forma da
troca de dádivas, dotes de casamento ou presentes de hospitalidade. Finley, 1989, p. 258. Sobre a lógica da troca
de dávidas, da coerção social de prestação e contraprestação, ver Mauss e Hubert, [1925] 2003b.
76 “Ao princípio [na Antiguidade] o comércio marítimo [estrangeiro] foi em todas as partes, ao mesmo tempo,
pirataria; inicialmente não cabe fazer distinção entre barco de guerra, corsário e barco mercante” (Weber, 1964, p.
179).
77 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 66-67; Trad.: 1985, p 57.
78 Cf. Graeber, 2016.
79 Odisseia, XIV, 240-309 (trad. C. A. Nunes)– esse relato é muito similar ao da trajetória de Robinson Crusoé
(Parte I). Aqui vemos o poder dissolvente do dinheiro e do comércio sobre as comunidades antigas (Marx, 2011, p.
166, 407, 446 etc.). Uma dissolução histórica da comunidade que, no entanto, é insuficiente para se passar
diretamente do acúmulo de “fortuna em dinheiro” ao capital, ou seja, gerar uma “dissolução em capital” e “trabalho
livre” (ibid., p. 416).
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premiação das aventuras e/ou compensação por seus sofrimentos; e a primeira coisa que vem
à mente do herói quando aporta em Ítaca é escondê-la dos inimigos com o auxílio de Atena80.
É nesse sentido que o mundo da troca, do lucro e de certa riqueza concreta acumulável não
estão de todo ausentes: na verdade, ele já cerca o universo imaginário da epopeia, ameaçando
dissolver as hierarquias sagradas e a dinamizar o solo histórico da comunidade natural.

Algo dessa verdade prática é sugerida por Odisseu no relato do episódio com o ciclope
Polifemo: um ser estulto e incrédulo mas por isso mesmo capaz de decifrar as evidências
empíricas ocultas quando suspeita que os estrangeiros que invadem sua caverna (e que sem
sua presença comeram seus queijos e sacrificaram uma parte aos deuses) seriam marinheiros
com algum “interesse” em negócios, ou “piratas” em busca de saques: “É com fito certo, ou
vagueais à deriva pelo mar/ como piratas, que põem suas vidas em risco / e trazem desgraças
para os homens de outras terras?”81. O coração do herói treme diante da figura monstruosa do
gigante, evitando responder à sua pergunta diretamente, apenas afirmando que eles estão ali
de passagem para o retorno à pátria, e que lhe pedem os “dons de hospitalidade” devidos por
costume aos suplicantes em viagem abençoados por Zeus. Ora, eis o que o ciclope filho de
Poseidon não teme e não pratica – sobretudo em favor de quem invade e pilha sua casa (com
fome, eles comem a vontade na caverna). Odisseu pede os presentes a Polifemo não sem antes
notar seu ambiente como estranhamente “ermo” e “anárquico”, descrevendo a ilha dos
ciclopes como um lugar selvagem, alheio às regras da civilização fundada na dominação do
“trabalho” alheio (sem agricultura, apesar da abundância em trigo, cevada e rebanhos; sem
leis de civilidade e hospitalidade; sem assembleia/ágora pública; sem navios nem carpinteiros
capazes de construí-los a fim de suprir suas necessidades e permitir cruzar os mares para
visitar e trocar dádivas com outros homens, como é o costume etc.82). Assim, diante dessa
interação ambígua e permeada por estranhamentos ele se identifica humildemente como
“Ninguém” (Outeis), imitando em espelho, segundo Adorno e Horkheimer, o próprio Polifemo
e seu ambiente vazio e inóspito83. Esboça-se aqui então uma figura ambivalente de Odisseu
como senhor autocrático e indivíduo astucioso, isto é, já parcialmente “livre” e “irreverente”
em relação ao universo mítico substancial. Após vazar o olho do ciclope e fugir da caverna, ele
escapa das pedras lançadas contra a nau negra finalmente se identificando como “saqueador
de cidades” – gritando seu verdadeiro nome: “Ó Ciclope, se algum homem mortal te
perguntar/ quem foi que vergonhosamente te cegou o olho, / diz que foi Odisseu, Saqueador

80 Odisseia, XIII, 200-208, 304 e 363-364.


81 Odisseia, IX, 253-255.
82 Odisseia, IX, 106-129.
83 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 70-71.
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de Cidades,/ filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio.”84 E não fora já exatamente essa
identificação positiva de guerreiro e saqueador dos mares que Odisseu afirmara ao relatar o
primeiro episódio da viagem a Alcínoo, ao passarem pela terra dos Cícones: “De Ílion fui
levado pelo vento até aos Cícones,/ até Ísmaro: aí saqueei a cidade e chacinei os homens./ Da
cidade levamos as mulheres e muitos tesouros, que dividimos para que por mim ninguém visse
sonegada a parte que lhe cabia”?85 Para além do herói multiversátil, assim, outro dos célebres
epítetos heroicos de Odisseu deve ser aqui destacado: o de “saqueador de cidades” (ou, o
“eversor de cidades” e o “arrasa-urbe”)86 - tal é a “fama sem par” que adere ao pai de Telêmaco,
e que retorna à mesma prática no final.87 A identificação formal como “Ninguém” vale como
uma espécie de “imitação mimética do amorfo” da natureza88. Mas assim, aqui como noutras
partes, ele cairá “no ciclo compulsivo da necessidade natural ao qual tentava escapar pela
assimilação”, sucumbindo à hybris da dominação ao forjar um caráter duro e viril89, tal como
o do ciclope. O medo de perder a identidade destaca-se na fúria vingativa final de recuperação
do próprio nome, quando confirma seu caráter guerreiro substancial atrelado ainda
fortemente ao universo do mito – não por acaso a lei divina aqui será invocada como o castigo
infalível por atos nefastos: “‘Não deverias, ó Ciclope, ter comido de um fraco/ os companheiros
na côncava gruta, abusando da força./ Teus atos ímpios, ó monstro! Haveriam de um dia
voltar-se/ contra ti mesmo, por teres o arrojo de em casa teus hóspedes –/ monstro! – comer.
Zeus e os outros deuses fizeram recair sobre ti a sua vingança.”90

Ocorre assim uma posição limitada do eu e um esvaziamento também ele limitado de


sua substância mítica e natural: Odisseu se mantém até o final nos limites sagrados da ética
guerreira, abençoado por Ares e Atenas – como se mostra exemplarmente nas histórias
mentirosas do mendigo disfarçado para testar o porqueiro Eumeu e Penélope, até a derradeira
matança dos pretendentes. Se calcula estratagemas para a autoconservação de si e o acúmulo

84 Odisseia, IX, 502-505.


85 Odisseia, IX, 39-42.
86 Odisseia, VIII, 3; IX, 504 e 530.
87 Odisseia, III, 83-85. No retorno à Ítaca, Odisseu promete a Penélope uma missão de pilhagem para repor o
consumido pelos pretendentes: “Quanto aos rebanhos que os arrogantes destruíram,/ muitos outros obterei com
despojos, e outros serão restituídos pelos Aqueus, até que me encham os redis” (Odisseia, XXIII, 356-358).
88 Aqui é preciso, a meu ver, distinguir isto do processo posterior de reificação do espírito como ratio burguesa
até o limite da ciência positivista: ao cindir-se da natureza para fins de dominação, a ratio “recalca a mimese”, ou
seja, torna-se mimese recalcada por um eu idêntico – e só aí, como “culto dos fatos” e “falsa projeção”, uma “mimese
do que está morto”. Aqui a “mimese genuína”, que é uma espécie de mimese astuciosa e pré-reflexiva, um fazer-se
semelhante ao Outro reconhecendo a sua (des)semelhança ao Si, é cortada do dinamismo vivo do real e se extravia.
O trajeto iconoclasta do esclarecimento será a “radicalização da angústia mítica” (Adorno e Horkheimer, 1985, p.
29) – uma expulsão da mimese, convertida em tabu, mas que retorna desrecalcada e irrefletida no caráter
sadomasoquista da dominação de massas militarizada e administrada dessa nossa era de extremos, no exato ponto
em que autoconservação é abrandada, senão já virtualmente superada.
89 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 44 e 71-72.
90 Odisseia, IX, 477-479 (aqui cito a versão de Carlos A. Nunes, ficando com o último verso da trad. de F.
Lourenço).
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de grande riqueza em presentes e despojos de guerra91, isso nunca será contabilizável como
“lucro”, pois aqui o processo jamais cria qualquer “mania de enriquecimento universal” ou
“laboriosidade universal”, estando muito mais próximo do que Marx chamou “riqueza de
gozo”92; o que corresponde a uma objetividade de um caráter social marcado pelo destino
mítico, sem nenhum “desenvolvimento livre e pleno, nem do indivíduo nem da sociedade”93.
Nesse mundo substancial, a lógica do lucro e do comércio, descrita na epopeia como modo de
vida dos fenícios, é uma ideia presente mas tão rebaixada e ignominiosa quanto a pirataria,
associada à fraude, ao roubo e à violência (mas não à pilhagem resultante da guerra)94. Assim,
como ficamos? A estratégia interpretativa de Adorno e Horkheimer consiste em ler um todo
em devir e transição: da racionalidade mítica do sacrifício, fundado numa lógica de
substituição coisificada (vítimas e oferendas) com as forças divinas95, que se desdobraria
internamente na troca de dádivas e favores, fundada em relações comunitárias em que se
estabelece a dominação tradicional e, mais tarde, através da rupturas e descontinuidades
históricas profundas, como troca burguesa de equivalentes, fundada no trabalho abstrato
moderno. Esse terceiro nível, é claro, jamais aparece configurado nas peripécias de Odisseu,
embora as ideias de domínio pela guerra e a pilhagem tal como o domínio sobre o trabalho
servil subordinado e a “substituibilidade” do senhor nas funções materiais já estejam lá
inteiramente determinadas e postas96. Desse modo, ainda, uma forma de pensamento formal
por equivalentes já desponta, tanto quanto mais ela suscita uma razão desencantadora dos
rituais sacrificiais. Em todas essas formas de troca surge uma aparência de igualdade e/ou de
reciprocidade mais ou menos clara, que coexistem com relações abertamente hierárquicas,
desiguais e instrumentais resultantes de uma coerção sociossimbólica, dando num complexo
intrincado de logro e desmitologização, dominação exercida contra o outro e contra si mesmo,
os quais transparecem de modo claro nas aventuras mais perigosas, como a da terra dos
ciclopes, de Circe e Calipso. “Na inverdade da astúcia” – note-se a marcação textual do traço
de subjetivação através de uma aprendizagem mimética – “a fraude presente no sacrifício

91 Cf. trechos das histórias fictícias do mendigo cretense contadas para Eumeu (Odisseia, XIV, 214-228) e Penélope
(Odisseia, XIX, 284-6). O que nos impede de ver nessas histórias falsas um suposto Odisseu como “superb profit
maker” (Malkin, 1998, p. 88). Sobre o papel estruturante da guerra na Grécia antiga, ver a coletânea de Vernant
(org., 1999), em especial o texto de Geoffrey Kirk sobre “La guerre et le guerrier dans les poèmes homériques”.
92 Ou “riqueza desfrutável”, Marx, 2011, p. 210 e 399-400. E é assim que Eumeu refere-se à riqueza de seu senhor:
Odisseia, XIV, 90-109.
93 Marx, 2011, p. 167 e 399.
94 Finley, 1982; Finley, 1989, p. 258. Sobre a lógica da troca de dávidas, da coerção social de prestação e
contraprestação, ver Mauss e Hubert, [1925] 2003b.
95 O que parece ter lastro na moderna antropologia. O ritual sacrificial visa obter a graça das divindades através
da destruição de uma vítima expiatória (Mauss e Hubert [1899] 2001); um “objeto intermediário” é assim pensado
sob uma lógica de equivalência e contiguidade, sendo o “princípio de substituição” o cerne do “sistema do
sacrifício”, segundo Lévi-Strauss ([1962]/1989, p. 249-254)–, para assim reproduzir a natureza cíclica etc.
96 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 45-6.
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torna-se um elemento do caráter, uma mutilação do herói astuto arrojado pelo mar e cuja
fisionomia está marcada pelos golpes que desferiu contra si mesmo a fim de se conservar”97.
(Daí o seu veneno poético, segundo Finley, dentro da paideia grega, as queixas de Platão
contra a poesia etc.).

Na medida em que não pode escapar ao círculo da troca sacrificial, contudo, o logro
dos deuses é o (ma)logro de si mesmo e dos seres sacrificados sob seu poder. Noutros termos,
“a substituição do sacrifício pela racionalidade autoconservadora” consiste em internalizar
certa lógica da troca – da identidade formal à substituibilidade sacrificial do próprio eu: “a
superação do sacrifício volta imediatamente a ser um ritual sacrificial duro, petrificado, que o
homem se celebra para si mesmo opondo sua consciência ao contexto da natureza”98. A
substituição sacrificial aqui é desdobrada conforme duas teorias clássicas da antropologia:
primeiramente em “dádiva” e “homenagem” aos deuses, seguidas pelo ato contínuo irracional
daquilo que os autores chamarão a “introversão do sacrifício” (seguindo a “teoria da
abnegação” e da “renúncia” de si de Tylor99) – com o que então o objeto expiado se confunde
com o próprio sujeito e seus subordinados100.

Esboça-se aqui então uma figura ambivalente de senhor autocrático e indivíduo


astucioso que prenuncia a figura do homem burguês, isto é, já parcialmente “livre” e
“irreverente” em relação ao universo mítico substancial. Odisseu pede dons de hospitalidade
a Polifemo não sem antes perceber seu ambiente como estranhamente “ermo” e “anárquico”,
descrevendo a ilha dos ciclopes como um lugar selvagem, alheio às regras da civilização

97 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 61 e 70-71.


98 Ibidem, p. 60.
99 Remetendo à obra pioneira de Tylor (1871, v. II, p. 340-1), Mauss e Hubert sintetizam: “O sacrifício é
originalmente um dom que o selvagem faz a seres sobrenaturais a quem precisa ligar-se. Depois, quando os deuses
se alçaram e se afastaram dos homens, a necessidade de continuar a transmitir-lhes este dom fez nascer os ritos
sacrificiais, destinados a fazer chegar até estes seres espirituais as coisas espiritualizadas. Ao dom sucedeu a
homenagem em que o fiel não exprime mais nenhuma esperança de retorno. Daí, para que o sacrifício se tornasse
abnegação e renúncia, não havia mais do que um passo; dessa forma, a evolução fez o rito passar dos presentes do
selvagem ao sacrifício de si. (...)É certo que os sacrifícios foram geralmente, em certo grau, dádivas que conferiam
ao fiel direitos sobre seu deus. Serviram assim para alimentar as divindades” (Mauss e Hubert, [1899] 2001, p. 141-
2, trad. corrigida). Edward Tylor explica melhor a teoria da abnegação quando diz: “Além desse desenvolvimento
do presente à homenagem, surge também uma doutrina de que a essência do sacrifício está mais no adorador que
dá algo precioso para si mesmo do que na divindade que recebe um benefício. Esta pode ser chamada teoria da
abnegação (…) Se a oferenda à divindade continuar na sobrevivência do cerimonial, apesar de uma convicção
crescente de que afinal a divindade não precisa e não pode se aproveitar dela, o sacrifício será assim mantido apesar
de ter se tornado praticamente irracional, e o adorador ainda pode continuar a medir sua eficácia pelo que lhe
custa.” (Tylor, 1871, v. II, p. 359-60). Eis aí o cerne irracional do que Adorno denomina “introversão do sacrifício”
(1985, p. 61) cujas fontes enviam também à crítica da moral cristã segundo Nietzsche e à ética puritana da graça e
do trabalho, segundo Weber (2004).
100 Euríloco, um dos “sócios” de Odisseu, afirma: “por culpa deste, somente, eles todos ali pereceram” (Odisseia,
X, 437). A questão primeira para os autores, contudo, não é o refreio de si, que sempre foi um processo socialmente
necessário (e o Adorno posterior continua a pensar, com Freud ou Lacan, que dificilmente pode haver alguma
sociedade sem algum nível de recalcamento originário e inconsciente); mas como daqui sairá legitimado e
racionalizado como natural, nessa relação com as potências sobrenaturais, o processo de dominação mediado por
essas formas compulsórias de troca e de trabalho (ou antes, divisão do trabalho).
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fundada na dominação do “trabalho” alheio (sem agricultura, apesar da abundância em trigo,


cevada e rebanhos; sem leis de civilidade e hospitalidade; sem assembleia/ágora pública; sem
navios nem carpinteiros capazes de construí-los a fim de suprir suas necessidades e permitir
cruzar os mares para visitar e trocar dádivas com outros homens, como é o costume etc.101).
Assim, diante dessa interação ambígua e perigosa ele se identifica humildemente como
“Ninguém” (Outeis), imitando em espelho, segundo Adorno e Horkheimer, o próprio Polifemo
e seu ambiente vazio e inóspito102. Após vazar seu olho e escapar das pedras lançadas contra a
nau negra, ele mesmo se identifica como “saqueador de cidades” – gritando seu verdadeiro
nome: “Ó Ciclope, se algum homem mortal te perguntar/ quem foi que vergonhosamente te
cegou o olho, / diz que foi Odisseu, Saqueador de Cidades,/ filho de Laertes, que em Ítaca tem
seu palácio.”103 Essa fúria vingativa, que confirma uma identidade guerreira substancial,
aparece mistificada, por outro lado, como um esquema arcaico de proteção divina da
civilização patriarcal-escravista, que molda um caráter estático soldado ao mito: a lei da justiça
divina aqui é o castigo infalível por atos ímpios e nefastos: “‘Ó Ciclope, parece que não eram
os amigos de um homem fraco/ que tinhas a intenção de devorar cruentamente na tua gruta
escavada./ Os teus atos nefandos tinham mesmo de se abater sobre ti,/ ó malvado, que não
hesitaste em comer os hóspedes em tua casa. / Zeus e os outros deuses fizeram recair sobre ti
a sua vingança.”104

Ao mesmo tempo, é essa afirmação de identidade como guerreiro solerte que muito já
o separa do mito e o assemelha, enquanto ser civilizado, ao brutal ciclope, ganhando a
identidade vazia de “Ninguém”, numa espécie de “imitação mimética do amorfo”. Mas assim
ele cairá “no ciclo compulsivo da necessidade natural ao qual tentava escapar pela
assimilação”, sucumbindo à hybris da dominação ao forjar um caráter duro e viril105. Esse
esvaziamento limitado do eu de sua substância mítica e natural é crucial no entanto para a
formação de uma nova identidade reflexiva em gestação, capaz de negar sua má
particularidade nesse contragolpe dentro de si mesma. Aqui não tocamos o elo que o liga às
figuras sem identidade fixa do romance moderno, de Ulysses a O Inominável? De todo modo,
é essa alienação impulsionada pela aventura – exteriorização de si e retorno a si para se
conservar – que engendra a individualização heroica e sua eloquência compulsiva106,
permitindo aos autores afirmarem de modo dialético que tais percalços constituem uma

101 Odisseia, Canto IX, 106-129.


102 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 70-71.
103 Odisseia, Canto IX, 502-505.
104 Odisseia, Canto IX, 475-479.
105 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 44 e 71-72.
106 Ibidem, p. 71-2.
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primeira robinsonada. Lançado aos mares desconhecidos, Odisseu lida com forças superiores
às suas, com quem se trata de pactuar, enganar e derrubar mesmo sendo o mais fraco. Assim,
numa das passagens centrais dessa dialética formativa, dizem os autores:

“Mas as aventuras contemplam cada lugar com seu nome, e é a partir delas
que se pode ter uma visão de conjunto e racional do espaço. O náufrago
trêmulo antecipa o trabalho da bússola. Sua impotência, para a qual nenhum
lugar do mar permanece desconhecido, visa ao mesmo tempo a destituição
das potências. Mas a simples inverdade dos mitos — a saber, que o mar e a
terra na verdade não são povoados de demônios, efeitos do embuste mágico
e da difusão da religião popular tradicional — toma-se aos olhos do
emancipado um ‘erro’ ou ‘desvio’ comparado à univocidade do fim que visa
em seu esforço de autoconservação: o retomo à pátria e aos bens sólidos. As
aventuras de que Odisseu sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que
desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução,
experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido
por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente
os seus papéis. ‘Mas onde há perigo, cresce também o que salva’ [Hölderlin]:
o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira
sua substância da experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que
dissolve, e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais
audaciosamente à ameaça da morte, na qual se toma duro e forte para a vida.
Eis aí o segredo do processo entre a epopeia e o mito: o eu não constitui o
oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em sua rigidez através
dessa oposição, unidade que é tão-somente na multiplicidade de tudo aquilo
que é negado por essa unidade”107.

É essa nova consciência de si que representa o novo: constituída na “práxis”, não


recebida apenas de fora para dentro pelas forças míticas ou por tradição, mas também lançada
contra as potências de dissolução, como uma consciência em parte já antimitológica. Um
duplo resultado da métis herdada de Palas Atena e do autodomínio da natureza intra-humana,
que Odisseu só pôde experimentar e consolidar em seu afastamento de Ítaca, na Guerra de
Troia e nas viravoltas acidentadas de seu longo retorno. Essa consciência transmuta-se enfim
numa nova forma de registro histórico: o relato épico, a meio caminho do mito, da tradição
oral dos aedos e da história legendária, ou seja, de um modo já um tanto claro, objetivo e rico
em particularidades, seja em terceira ou em primeira pessoa (nos Cantos de IX a XII, que dão
o verdadeiro contorno encantatório à obra), o que já se assemelha à narrativa burguesa de
aventuras de um herói individual.108

**

107 Ibidem, p. 56.


108 Ibidem, p. 55-6; Auerbach, 1996.
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Resumamos por fim o ponto exato de entrelaçamento de mito, dominação e trabalho,


mais especificamente aos últimos termos dessa relação e à tese do herói errante como um
“protótipo [Urbild] do indivíduo burguês”109. Em que sentido o guerreiro “saqueador de
cidades” mais se aproximaria da figura do “pacífico” homem burguês? O texto não responde
de maneira clara – mas essa aproximação é dialética, ou seja, vem sob a forma da inversão da
perspectiva: não, portanto, quanto mais Odisseu pacifica o espírito, recusando a hybris até
verter lágrimas pela desgraça de um retorno sempre adiado, mas, como vimos acima, quanto
mais o guerreiro e o dominador do trabalho servil se afirma enquanto tal, revelando o fundo
originário mais bélico e violento, espoliador e colonialista do capitalismo tal qual nós o
conhecemos110, tornando-se o fermento para uma possível reconciliação através da renúncia
necessária. Mais ou menos como Marx refletirá nos Grundrisse: as “relações de dominação e
servidão” são “reproduzidas no capital – de forma mediada – e, desse modo, constituem
igualmente o fermento de sua dissolução e são emblemas de sua estreiteza”111.

Adorno e Horkheimer assinalam assim as divisões no seio da suposta comunidade


dotada de pleno sentido. E mais do que isso, seu caráter necessário do ponto de vista de uma
“história natural”. A necessária renúncia ao gozo imediato, o domínio de si para
autoconservação, o relato da experiência como forma de unidade do eu fraco, o saber astucioso
adquirido na viagem não são a grande questão crítica em jogo (ao contrário do que pensa a
maior parte dos comentadores), mas antes a forma de racionalizar a dominação até a
destruição de si e do outro, a começar pelo trabalho de seus homens, cristalizando o intelecto
autocrático como ser heróico. Sublinhe-se como os episódios terminam em saque e violência
(Cícones, Lestrigões, Ciclopes) e/ou separação forçada de uma “felicidade total, universal e
indivisa”112, que no entanto sempre foram também uma promessa de reconciliação ilusória e
limitada e/ou um embuste mortífero (Lotófagos, Circe, Sereias e Calipso)113. O lendário canto
das sereias sintetiza, por fim, essa condição histórica do sofrimento de Odisseu e dos povos
que lutaram em Troia, bem como tudo o que se passa e passará no “dorso da terra fecunda”, e
não há como escutá-lo sem o duplo ardil criado por ele114. De certo modo, não há reconciliação
real nesse mundo de eterna repetição compulsiva de crime e castigo, vingança e perdição fatal,
o que os episódios de Cila e Caribde, dos bois de Hipérion, da matança dos pretendentes e do
enforcamento das servas de casa deixam ainda mais claros. Apenas detalhes formais da

109 Adorno e Horkheimer, 1981, p. 61; trad.: 1985, p. 53.


110 Cf. Marx, 1988; Kurz, 1997, 2010 e 2014; Jappe, 2019. McNally, 2020; Wood, 2014; Arrighi, 1996; Tilly,
1996; Sombart, 1972.
111 Marx, 2011, p. 411.
112 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 63.
113 Ibidem, p. 73 e 44.
114 Ibidem, p. 44. A referência a esse trecho enigmático do canto das sereias é: Odisseia, XII, 189-191.
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narração poética (certa “comicidade” pressuposta na cena do sacrifício expiatório para


Poseidon; certa suspensão abrupta da cena desse enforcamento) dariam sinais de uma
reconciliação possível, na mescla quase inextricável de mito, romance e conto de fadas, de
cultura e barbárie115. O retorno a Ítaca é tanto a reafirmação do amor por Penélope e Telêmaco
como reafirmação sacralizada do casamento monogâmico e da ordem da propriedade
patriarcal que dispõe da mulher e dos filhos, tal como dispõe da riqueza e do trabalho servil.
E é essa “viagem de erros” transfigurada numa moral de glória guerreira aristocrática, que até
fez Odisseu ser confundido com um deus no mundo antigo, que os autores ressaltarão ainda,
por analogia e nova extrapolação, como uma espécie de antecipação da moral puritana e
empresarial baseada no risco e na renúncia, como “perseguição do interesse atomístico”,
“justificação ideológica de sua supremacia social” e “justificação moral do lucro”116. Nessa linha
de reflexão alegórica e especulativa, assim, enquanto os sócios oprimidos do navio reproduzem
seus lugares como remadores na divisão do trabalho (e a sugestão foi de Circe), o herói já “não
consegue escapar a seu papel social” de opressor privilegiado, usufruindo do canto das sereias
qual fosse uma obra de arte contemporânea, ao mesmo tempo em que as mantêm “afastadas
da práxis”117.

Em resumo, os autores analisam a dialética dessa autoconservação como algo


resultante em alguns patamares histórico-conceituais da cultura ocidental desde a Grécia
arcaica ou micênica:

a) a dominação do outro pela força, a guerra, a pilhagem, a violência e a disciplina da produção


material impostos pela divisão social do trabalho na história.

b) uma dominação naturalizada mediada por códigos míticos e sociopolíticos: a “introversão


do sacrifício” (no sentido da “introversão da repressão [Unterdrückung]”118) implicada na
generalização do “princípio da troca” desenvolvido como forma de ordenação do tempo e do
espaço da vida cotidiana ao longo da história (com a transformação progressiva da troca
sacrificial e de dádivas nas sociedades tradicionais em troca de equivalentes na sociedade
moderna, universalizando-se através da expropriação originária e a conversão dos indivíduos
em mercadoria força de trabalho);

c) o esquema geral do pensamento ideológico – digamos do mito ao fetichismo capitalista e ao


que Adorno denominará “encanto” (Bann) –, implícito nessas divisões sociais e que irá se

115 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 78-80.


116 Ibidem, p. 66.
117 Ibidem, p. 44-45.
118 Ibidem, 1981, p. 89; Trad.: 1985, p. 73.
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desdobrar no interior do eu da autoconservação, aprendendo o comando, a ordem e/ou a


subordinação, formando a massa sujeitada ao trabalho, às ilusões jurídicas, à mistificação da
indústria da cultura etc.

d) ao mesmo tempo, essa dominação mediada pela astúcia significa multiplicação dos saberes
e das forças produtivas humanas como possibilidade de “abolição do sacrifício”: “sua renúncia
senhorial é, enquanto luta com o mito, representativa de uma sociedade que não precisa mais
da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si, não para fazer violência a si mesma
e aos outros, mas para a reconciliação”119.

III- As fantásticas aventuras do trabalho e do dinheiro: o duplo Robinson

Se em Odisseu temos apenas uma “protótipo do indivíduo burguês”, este floresce em


Robinson Crusoé. Assim o texto transita de um universo ao outro:

“Do ponto de vista das sociedades de troca desenvolvidas e dos indivíduos que
as compõem, as aventuras de Odisseu nada mais são do que a descrição dos
riscos que constituem o caminho para o sucesso. Odisseu vive segundo o
princípio primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa. A escolha
era entre lograr ou arruinar-se. O logro era a marca da ratio, traindo sua
particularidade. Por isso, a socialização universal, esboçada na história de
Odisseu, o navegante do mundo, e na de Robinson, o fabricante solitário, já
implica desde a origem a solidão absoluta, que se torna manifesta ao fim da
era burguesa. Socialização radical significa alienação radical. Odisseu e
Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele a percorre, este a produz.
Ambos só a realizam em total separação de todos os demais homens. Estes só
vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como
pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas.”120
Há diferença entre percorrer e realizar: apenas Robinson produz a totalidade do novo
mundo enfeitiçado. Algo desse caráter de totalidade alienada subjaz no próprio título da obra:
A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé, marujo de York
(1719). Temos assim o primeiro Robinson, o jovem que abandona a casa paterna e as
perspectivas seguras da classe média em troca da adventure lucrativa casual pelos mares121,

119 Ibidem, p. 61.


120 Adorno e Horkheimer, [1947] 1985, p. 66-7, grifos meus.
121 Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 5-7; trad.: 2005, p. 9-11. Franco Moretti (2014, p. 35-6) nota que “adventure”
era sinônimo de uma “forma de capital”, ou seja, de um comércio como “investimento de risco” em terras
estrangeiras, geralmente de “caráter irracional e especulativo, ou dirigido para aquisição pela força”. O autor decifra
um duplo Robinson (o aventureiro e o trabalhador), mas não percebe a sobreposição dos dois na mesma figura em
todo a obra, tanto na ilha como nos mares: o utilitarismo quase irracional do trabalho na ilha é seguido na segunda
parte pela empresa ao mesmo tempo racional e aventureira, seja na sua ilha-império, seja quando ele se lança
novamente pelos mares com navio próprio. De fato, ele constata que “a ilha oferece o primeiro vislumbre do senhor
industrioso dos tempos modernos. O mar, a África, o Brasil, Sexta-Feira e as demais aventuras dão voz às formas
de dominação capitalistas mais antigas, mas nunca descartadas integralmente. De um ponto de vista formal, essa
coexistência sem integração de registros opostos (…) é claramente um defeito do romance.” (ibid., p.42). Mas um
defeito relativo, como ele sugere, pois “contrariamente a Weber”, “o burguês racional jamais vai largar
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mas onde aprende a obedecer ordens nos navios e a trabalhar metodicamente, tal como se
exercitará em sua ilha; mas também – e aqui começa o segundo Robinson, bem menos
comentado e glamouroso – o que transforma esta presumida paixão de correr mundo em
compulsão pelo lucro através do trabalho próprio e da espoliação do trabalho de outros, que
negocia e comanda trabalho escravo e servil, passando pelo tráfico negreiro, uma plantation
no Brasil, o domínio de sua ilha como propriedade colonial particular, e na segunda parte (The
Further Adventures of Robinson Crusoe), por uma série de novas aventuras entre navios
mercantes, traficantes e piratas, esquadrinhando os mares da África e Ásia. Uma obra que
revela já da maneira mais complexa (mas ainda hoje subestimada) os primórdios da
subjetivação autocrática do indivíduo isolado como um sujeito burguês duplamente
determinado pelo novo espírito do protestantismo e pelas relações mercantilizadas e
colonialistas. Isso que se reverterá na forma do relato realista, que agora cabe analisar com
algum nível de detalhe.

Esta forma é então determinada pela experiência desse duplo Robinson. Desdobrando-
se através dos moldes românticos e realistas, esse modelo teve certamente suas várias
refrações e correções de rota, em especial no romance de formação e sua representação do
indivíduo maduro e experiente, de personalidade talentosa e bem integrada como em Goethe,
às vezes napoleônica e arrivista como em Stendhal e Balzac – apenas desajustada na medida
para afirmar-se e conquistar um lugar ao sol da competição selvagem, a qual Robinson, Moll
Flanders e o Coronel Jack, guiados pela luz da Providência foram os primeiros a vencer, não
por acaso no solo do novo mundo americano, sem jamais conseguir formar uma personalidade
bem integrada122. A ilusão de poder e autonomia desse sujeito é aqui sempre abalada durante
sua provação espiritual. E sempre também pode cair na condição de proletário “livre”: “em
sentido duplo, livre, em primeiro lugar, das relações de clientela ou de dependência e das
relações de serviço e, em segundo lugar, livre de toda propriedade; destinada à venda de sua
capacidade de trabalho ou à mendicância, vagabundagem e roubo como única fonte de renda”,
como analisa Marx123. Esse movimento de queda e dissolução do indivíduo numa das classes
e subclasses fundamentais tornou-se de certa maneira a especialidade da prosa naturalista e
pós-realista, mas já está bem estabelecido nos romances de Defoe. Aqui emerge a verdade

verdadeiramente seus impulsos irracionais nem repudiar o predador que outrora costumava ser. Por ser não apenas
o início de uma nova era, mas também um início em que se patenteia uma contradição estrutural que jamais será
superada, a história disforme de Defoe continua sendo o grande clássico da literatura burguesa” (Ibidem, p. 43).
122 O final feliz de Moll Flanders como proprietária na Virgínia é precedido pela pobreza e o abandono, a absoluta
solidão e o “terror” de ser “jogada pela porta no vasto mundo”, uma série de procuras de casamento vantajoso,
fraudes, imposturas, atos criminosos e prisão, enfim, sua identificação à forma pura do dinheiro: “quando uma
mulher está assim abandonada e sem conselho, é semelhante a um saco de dinheiro ou a uma joia abandonada no
caminho, que se tornam presas do primeiro que passa” (Defoe, [1722] 1981, p. 25, 95, 140, 344-5).
123 Marx, 2011, p. 417.
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rebarbativa do percurso calamitoso de Robinson e demais personagens do autor inglês. Como


já observou a melhor crítica124, todos eles são guiados por um espírito mercantil pragmático e
instrumental, às vezes levado ao extremo da solidão, do cálculo e da frieza, revirando-se em
busca do sucesso ou da mera sobrevivência, mediados tanto pelo trabalho como pelo favor, a
trapaça e o crime, tanto pela boa consciência cristã como pela indiferença ultraindividualista
e inimiga potencial de todo outro – embora sempre sejam salvos afinal pela graça da
Providência, que faz as vezes da mão invisível do mercado ou da metafísica da Razão astuciosa
hegeliana, pois entre paixões cegas e o interesse econômico mal ou bem conduzido o resultado
é sempre o êxito comercial legítimo e o progresso geral da civilização capitalista.

É o que põe em dúvida se lidamos com homens ou com puros suportes do dinheiro.
Nos primórdios do romance europeu, o capital já aparece como um modo de produção e de
representação do dinheiro autônomo e suas viravoltas imprevisíveis: uma espécie de religião
fetichista difusa dotada de todos os seus poderes de inversão entre sujeito e objeto. De fato, é
isso que se revela na longa experiência de Robinson Crusoé: o abandono do lar e da pátria aos
dezenove anos, segundo o despertar da “invencível paixão de correr mundo”, converte-o
primeiramente numa espécie de aprendiz de marinheiro semi-proletarizado, em seguida num
pária que se perde no Atlântico em meio ao tráfico negreiro, sofrendo tempestades e
naufrágios sucessivos até tornar-se ele mesmo um escravo de um corsário mouro no
Marrocos. Escravizado, ele dará o troco ao fugir desse corsário, vendendo o bote roubado e o
próprio companheiro fiel, o negro Xury que o havia ajudado a escapar do cativeiro, a um
“bondoso” capitão dum navio português, que o salva em alto-mar. Ao se livrar do cativeiro,
assim, sua posição se inverte e ele já se torna novamente o branco mercador e senhor de
escravos. A ética protestante e a paixão pela adventure são, assim, a fachada moral do
turbilhão capitalista desatado no século XVI e XVII. É o que se mostra melhor ainda então em
sua passagem pela colônia brasileira, ocasião em que logo se livra de toda moral de trabalho
regular ao atingir um primeiro degrau da aristocracia local através da exploração duma
plantation escravista de cana e tabaco. Aqui ele fica dois anos para se arremessar novamente
ao mar – em busca do comércio de escravos (aliás, clandestino) na costa da Guiné – até o
naufrágio que o leva até sua famosa ilha caribenha125. Não há qualquer “aventura”
individualista sem luta, troca vantajosa, logro, saque, contabilidade, objetificação e exploração
de trabalho alheio e uma ponta de vingança – recobertos pelo estilo religioso que se humilha
e se arrepende, invocando a Divina Providência a três por dois. Instalado em sua “Ilha do

124 Cf. a crítica de linha materialista: Watt [1957] 2010, p. 120-3; Hymer [1971] 1981; Eagleton, 2005; Moretti,
2014.
125 Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 31-36; Trad. 2005, p. 40-8.
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Desespero”, o trabalho torna-se metódico e ininterrupto: o estilo da prosa torna-se aqui mais
sóbrio, neutro e contínuo, quase plano e descritivo (sobretudo nos capítulos sob forma de
diário)126, em contraste com o início meio errático e descontínuo em que a unidade e a
coerência de propósitos do narrador-protagonista se desfazem praticamente a cada parágrafo
sob o ritmo de seus caprichos e fantasias ou eventos naturais desastrosos. Isolado na ilha, o
homo oeconomicus tem de provar que, além de desejar, também sabe trabalhar concretamente
para si e que merece a propriedade e a salvação por seu próprio esforço, poupança e
previdência – realizando com perfeição o mito do individualismo econômico –, embora essa
independência e conservação na ilha por décadas, aliás implausível, só foi possível, como ele
mesmo infere, por se apoiar no trabalho social acumulado nos instrumentos retirados do
porão do navio naufragado (machados, tesouras, armas de fogo etc.)127. Aqui chega a desprezar
o ouro e o dinheiro, afinal sem serventia numa ilha desabitada – embora guarde-os muito bem
para futuras aventuras. No limite dessa consciência social, a economia e o trabalho excedente
saem negados por uma ética do ócio com timbres cristãos e patriarcais do antigo regime:

“Eu não tinha nem a cobiça da carne, nem a cobiça dos olhos, ou a soberba
da vida [1 João, 2: 16]. Não tinha nada a cobiçar. Pois eu tinha tudo o que era
agora capaz de gozar: eu era o Senhor de todo o lugar; ou se quisesse, poderia
me arvorar em Rei ou Imperador sobre todo o território que possuía. Não
havia rivais ou concorrentes, ninguém para disputar a soberania ou o
comando comigo”.
Assim, chega a considerar as determinações sociais de sua condição: “poderia juntar
grandes provisões de cereais para encher navios, mas não tinha utilidade para isso; então
semeava só necessário para meu sustento”128. Uma série de reflexões que esse primeiro
Robinson, de espírito pragmático e utilitarista, arremata da seguinte maneira:

“(…) só era valioso para mim aquilo que eu poderia usar. Eu possuía o
suficiente para comer e satisfazer minhas necessidades. De que me serviria
mais do que isso? (…) Em uma palavra, a natureza e a experiência das coisas
convenceram-me de que todas as coisas boas deste mundo deixam de ser boas
para nós quando não nos são mais úteis; e que tudo o que podemos acumular
e legar aos outros, só desfrutamos na medida em que podemos usar, e não
mais do que isso”.129

126 Cf. Watt (2010); Moretti, 2014; Eagleton (2005, p. 28-31).


127 Defoe, 2007 [1719, parte 1], p. 111; Trad. 2005, p. 134.
128 Ibidem, p. 109; Trad. 2005, p. 132 (modif.).
129 Ibidem, p. 110; trad., p. 133 (modif.). “Contrariamente aos modelos correntes da teoria econômica,
Robinson Crusoé
– produzindo apenas para o uso e não para a troca – descobre que não há escassez e que o trabalho não tem nenhum
valor. A força motriz do capitalismo, o desejo de acumular, desaparecia no momento em que se achava só” (Hymer,
1981, p. 142).
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Assim, quanto à forma, o estilo sóbrio e incolor tende a imitar esse espírito puritano
e austero do trabalho frente às necessidades artificialmente reduzidas na ilha, que ganha certo
aspecto diferente da pura lógica do trabalho capitalista. Mas aqui também seu espírito está
tomado pela lógica da contabilidade e da repressão sexual130. Já o estilo mais colorido da
aventura e da fantasia, cheio de encontros, desencontros e peripécias, imprime certo ritmo
compulsivo e descontínuo à narrativa, moldado pela busca do enriquecimento ilimitado (e no
limite ilícito) disfarçado pela ideia fixa inocente de um “desejo insaciável de correr mundo” ou
“mania ingênita de ver terras”131. Mas “Robinson Crusoé não é, como Autólico, um comerciante
que tem raízes numa localidade conhecida; também não é, como Ulisses, um viajante forçado
que tenta voltar para a família e a pátria: o lucro é toda a sua vocação e o mundo inteiro, seu
território”132. No fundo, uma ideologia esquisita, que contém uma espécie de “double-think”,
como diz Eagleton, que gira em torno do claro conflito entre “práticas amorais de uma cultura
em que o que realmente importa é o dinheiro e o interesse privado e os ideais morais
altissonantes reivindicados”. Como no mundo machadiano posterior, poderíamos dizer que
“estas narrativas sem remorsos e sem enfeites não tanto retiram o véu do decoro ideológico”
do que “simplesmente olham através dele”. Elas tornam-se “explosivas” pela exibição de
assuntos coloniais por meio de um cru realismo não sentimental, num tom “colonialista de
cabeça fria”: “não são polêmicas, mas simplesmente cândidas”133.

O ritmo da sobriedade se reverte continuamente assim nesse outro, desviante e


caprichoso, muito afeito às fantasias de cunho absolutista, conforme o tempo passa e ele entra
em novas relações sociais. No encontro com o nativo Sexta-Feira o sonho e a realidade se
encontram – vale dizer, o sonho de obter um “escravo” (“um, não, dois ou três selvagens” pelo
menos134), a fim de administrar seu trabalho e conseguir escapar da ilha. Sexta-Feira funciona
como uma sorte de “formação de compromisso” freudiana: um canibal domesticado,
servilizado e feminilizado que termina por se tornar um escravo perfeito, o “mais fiel, amoroso
e sincero”, “obrigado e comprometido”, capaz de “sacrificar a vida” por seu amo135. De fato,
Robinson comandará três homens em seu reino agora concretizado (Sexta-Feira, seu pai, um

130 “Em Crusoé, a contabilidade supera outros pensamentos e emoções (…) Não surpreende, pois, que o amor
tenha um papel pequeno na vida de Crusoé (…) Quando retorna à civilização, o sexo continua subordinado aos
negócios. (…) Outros relacionamentos pessoais de Crusoé revelam a mesma depreciação de fatores não econômicos.
Ele os trata em termos de mercadoria. O caso mais óbvio é o de Xury (...)” (Watt, 2010, p. 67 e 72).
131 Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 155; trad. 2005, p. 442.
132 Watt, 2010, p. 71.
133 Eagleton, 2005, p. 27-28.
134 Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 169; trad. 2005, p. 185-6 (modif.).
135 Ibidem, p. 176; trad., p. 189-90 (modif.).
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ex-prisioneiro espanhol) e em breve mais uma dezena que, em sua imaginação desvairada, ele
passa a considerar, tal como anteriormente seus animais, como seus “súditos”:

“Minha ilha agora estava habitada, e me considerei muito rico em súditos; e


esta era uma reflexão bastante agradável, que eu fazia com frequência: como
eu parecia um Rei. Em primeiro lugar, eu era o proprietário de toda a ilha, já
que tinha sobre ela o direito inquestionável de domínio. Segundo, meu povo
era totalmente submisso a mim: eu era Senhor e Legislador absoluto
[absolute Lord and Law-giver], todos me deviam a própria vida, e estavam
prontos, caso fosse necessário, a abrir mão dela por mim. Era interessante
também o fato de que, entre meus três únicos súditos, haver três religiões
diferentes: meu homem Sexta-feira era um protestante; seu pai era pagão e
canibal; e o espanhol era católico. Entretanto, eu permitia liberdade de
consciência em todo o meu território”.136

O que se dava a montante, no Brasil escravista, agora segue a jusante até a


desembocadura, sobretudo na segunda parte. Aqui, o que se passa é descrito como uma “nova
variedade de loucuras, agruras e aventuras selvagens” na África e Ásia137, desde o abandono
do lar e dos filhos já sexagenário, após o falecimento da esposa na Europa, a organização do
trabalho dos colonos e indígenas servilizados em sua ilha, que ele logo abandonará à própria
sorte, o investimento no novo comércio colonial de arroz e especiarias no sudeste asiático, o
confronto com mais piratas, traficantes e flibusteiros, mais tormentas, incêndios e naufrágios,
a perseguição e a destruição de ídolos pagãos e um desfile repugnante de valores eurocêntricos,
patriarcais e racistas (sobretudo contra os chineses138), passando por uma fieira de combates,
crimes e assassinatos entre colonos espanhóis, índios e animais, todos a priori inferiores e
extermináveis. Lado a lado com a exploração e a violência, o fino trato com padres, mulheres
indefesas e trabalhadores ingleses domesticados para manter seu “reino” particular, que dela
tornam-se verdadeiros prisioneiros, não podendo deixar o lugar “sem o seu consentimento” e
aviso prévio, conforme regulamentos por ele firmados139.

O destino servil de Sexta-Feira aqui então se generaliza socialmente, embora não se


complete de todo, já que Robinson jamais realiza o projeto de uma colônia útil que, munida
de “canhões e munições, servos e agricultores”, poderia tornar-se rentável para a Inglaterra;
de fato, ele mesmo se sente um provedor da ilha abandonada, dotado de um “modo altivo e
majestático, como um velho monarca patriarcal”, um “pai de toda família e da plantation” –

136 Ibidem, p. 203; trad., p. 219 (modif.).


137 Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 136; Trad. 2005, p. 421 (modif.)
138 “(…) ouço contar coisas maravilhosas do poder, da glória, da magnificência e do comércio dos chineses, que,
afinal, tanto quanto eu vi, não passam de um rebanho desprezível, escravos ignorantes e sórdidos, submissos a um
governo qualificado para reger tal povo”, Ibidem, p. 181-2; trad., p. 474 (modif.).
139 Ibidem, p. 87; trad., p. 364.
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mas o velho “demônio das errâncias” (“wandering spirit”) o empurrará rumo à Ásia. Assim,
esse sujeito autocrático descumpre a “promessa” de trazer seus colonos de volta para a
Europa140. Um trajeto coerente afinal com seus caprichos e sua incoerência fundamental, tal
como anunciada em sua experiência brasileira: aqui, sua ética puritana não era páreo para o
seu contraditório “ateísmo prático”141 e esse pendor irracional de viajar e traficar. Em toda
linha, assim, uma convergência de razão empresarial e desejo recalcado por poder e dinheiro
no interior de um Eu possuído por tal wandering spirit – mas como suportes do trabalho
social abstrato em formação e suas tendências assassinas. É assim que esse andarilho rico e
ocioso, tão errante como “um navio sem um piloto”, inútil e irresponsável, mas educado na
dura escola do trabalho e acostumado à atividade, confessa às vezes sua profunda aversão à
preguiça, aos ociosos e aos inúteis142.

Depois da fuga da ilha e o primeiro retorno milagroso à Inglaterra, ele mesmo descobre
que ficou rico à custa do trabalho alheio de seus sócios, criados e escravos espalhados por
Lisboa e Bahia. Aqui, como no final do segundo tomo, o risco e o autossacrifício justificam o
milionário self made man asselvajado pelo sistema, que finaliza a vida na espera da “benção
de terminar seus dias em paz”143. Ele mesmo percebeu contudo que não pode ser idêntico a si,
mas é sempre um outro, passa em um outro, que retorna à árida identidade: um rapaz que se
torna escravo, um escravo que se torna proprietário de escravos, depois homem isolado e
finalmente dono de uma ilha em que dispõe de trabalhadores servilizados, que ele abandona
talvez porque representam o contraponto de classe ao ímpeto nômade da abstração monetária
por ele encarnado144. Ele mesmo se projeta e renasce acrescido como trabalho e mais tarde
como dinheiro investido pelo mundo, configurando o que viria a ser o puro sujeito automático
no ciclo infinito da valorização do valor (D-M-D’ ou D-D’). Por isso sua narrativa não tem
fim145. Cada desafio real (tempestades e mar revolto, feras e tribos canibais etc.) equivale
simbolicamente a uma morte e uma ressurreição simbólica, que ele atribui à Providência, mas

140 Ibidem, p. 135-6; trad. 2005, p. 420-1 (modif.).


141 Defoe, [1720, parte 3] 1902, p. 191; também citado por Watt, 2010, p. 85.
142 Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 8; trad. 2005, p. 282.
143 Defoe, [1719, parte 1], 2007, p. 255-7; trad. 2005, p. 272-3; Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 220; trad. p.
527 (modif.).
144 No início do segundo tomo, ele despreza os luxos e vícios da nobreza, tanto quanto o proletariado cuja vida se
resume a “viver para trabalhar e trabalhar para viver, como se o pão diário fosse o único fim da vida fatigante e uma
vida fatigante somente ocasião para o pão”. Defoe, [1719, parte 2] 2000, p.7-8; trad. 2005, p. 281 (modif.).
145“Não há um fim lógico para uma narrativa de Defoe, nenhum fecho natural. Simplesmente acumulam-se
narrativas assim como não se pode parar de acumular capital. Um pedaço da história, tal como um investimento
de capital, leva a outro. Nem bem Crusoé retorna para casa de sua ilha logo ele parte para suas novas viagens,
empilhando porém mais aventuras que ele promete escrever no futuro. O desejo de narrar é insaciável” (Eagleton,
2005, p. 30).
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cuja substância oculta é o valor real e simbólico auferido por quem se sacrificou e se lançou
cegamente na natureza selvagem do processo de acumulação colonial.

IV- Machado de Assis: as novas aventuras do dinheiro no coração do escravismo


neocolonial

Observando agora o coração dessa periferia ex-escravista, na obra de Machado as


aventuras do trabalho e do dinheiro como que se transformam numa versão formalmente
ainda mais purificada do homo oeconomicus em sua verdade negativa como sujeito
autocrático, justamente por ele aparecer mesclado, mais ainda do que Robinson Crusoé, como
proprietário à moda antiga, combinando três tipos de poder: o poder do dinheiro, o poder do
domínio direto sobre o trabalho escravo e/ou dependentes, o poder de narrador volúvel e
caprichoso, capaz de atropelar todas as regras sociais e convenções realistas, no limite
liquidando toda a esfera da alteridade. É o que indicaremos com breves incursões em
Memórias póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacob.

Num conto como Só!” (1885), no entanto, o contraste com Robinson Crusoé se torna
explícito. Bonifácio e Tobias, dois parentes da elite proprietária fluminense se encontram na
situação “um pouco estranha mas agradável” do total isolamento, na “espécie de Robinson”.146
Tobias é descrito como um “filósofo” com fama de “maluco”, pois “costuma ele desaparecer da
cidade durante um ou dous meses; metia-se em casa, com o único preto que possuía, e a quem
dava ordem de lhe não dizer nada.”147 Querendo imitar essa robinsonada, Bonifácio pergunta-
lhe pelas razões desse costume que o parente diz ser “o maior regalo do mundo”. Respondendo
ao parente, o filósofo Tobias aponta os motivos de uma alienação radical, que conjuga razão e
loucura:

“Trago um certo número de ideias; e, logo que fico só, divirto-me em


conversar com elas. Algumas vêm já grávidas de outras, e dão à luz cinco, dez,
vinte e todo esse povo salta, brinca, desce, sobe, às vezes lutam umas com as
outras, ferem-se e algumas morrem; e quando dou acordo de mim, lá se vão
muitas semanas”148.

Um tipo de dedutivismo demencial que dá, aqui em chave satírica, a magnitude dos
horrores e perversões que o narrador machadiano da segunda fase será capaz de fazer. Uma
dessas ideias de Tobias era simples e brutal, uma “máxima social dos cães” feita para justificar

146 Machado de Assis, 1959, vol. II, p. 1010.


147 Ibidem.
148 Ibidem.
82
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a perseguição e a violência de cães furiosos da rua: “-Quem persegue ou morde, tem sempre
razão, - ou, em relação à matéria da perseguição, ou, quando menos, em relação às pernas do
perseguido. Já reparou? Repare e verá”149. Quanto a Bonifácio, seu exílio do mundo burguês
durará só dois dias pois sua “alma interior” escorrega e naufraga pelas lembranças da “vida
exterior, figuras e incidentes, namoros de um, negócios de outro, diversões, brigas, anedotas,
uma conservação, um enredo, um boato”150 – desfilando as aparências de um mundo alienado
da cultura, feito de máscaras de bacharel, jantares finos, whist e vida granfa em Petrópolis,
bilhetes esquecidos e amores falhados, tempestades de cabelo e parvoíces tais que só a cifrada
linguagem da dilaceração machadiana é capaz de condensar satiricamente, mesmo num conto
menor. Surge o quadro de um espírito volúvel, enfim, que salta de galho em galho, voraz e
impaciente, mas termina esmagado nessa impossível solidão reflexiva, tal qual aliás o solitário
Jacobina de O espelho, reduzido à posição do escravo pelas “paredes de um cárcere
misterioso”151. Bem mais aliás do que a vida do poor Robinson original (ou a do observador do
“Homem das Multidões”, de Poe, também invocado como comparação no texto152), sua vida
aliena-se no automatismo dos negócios (de outros) e no ritual do consumo de vaidades. Seu
“eu” é um tal vazio que, Tobias, ao final, lhe dá a seguinte recomendação, lembrando a
linguagem dos marinheiros: “você esqueceu-se de levar o principal da matalotagem, que são
justamente as ideias...”153. Na realidade, Tobias e Bonifácio têm ideias abstratas e uma vida
separada em última instância suportada pela escravidão, que são da mesma família
tresloucada das grandes personagens machadians: a volubilidade e a ideia fixa de Brás Cubas,
as parábolas alucinadas e criminosas de Quincas Borba e as alucinações imperiais de Rubião,
tanto quanto o delírio de ciúmes de Bento Santiago e a imaginação cínica e perversa do
conselheiro Ayres.

A diferença em relação ao romance de Defoe é que este ponto de vista de classe


dominante, que unifica e torna compatível toda oposição (liberalismo e escravismo,
pensamento esclarecido e obscurantismo etc.), penetra ainda mais na forma total da prosa,
fazendo-se enredo, personagens, estilo da prosa e sobretudo foco narrativo. Eis o que Schwarz
bem resume numa passagem fundamental:

“A partir de 1880, a ousadia [machadiana] se torna abrangente e espetacular,


desacatando os pressupostos da ficção realista, ou seja, os andaimes da
normalidade burguesa. A novidade está no narrador, humorística e
agressivamente arbitrário, funcionando como um princípio formal, que
sujeita às personagens, a convenção literária e o próprio leitor, sem falar na

149 Ibidem, p. 1012.


150 Ibidem, p. 1013.
151 Ibidem, p. 1014.
152 Ibidem, p. 1009.
153 Ibidem, p. 1014.
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autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos. As intrusões vão da


impertinência ligeira à agressão desabrida. Muito deliberadas, as infrações
não desconhecem nem cancelam as normas que afrontam, as quais entretanto
são escarnecidas e designadas como inoperantes, relegadas a um estatuo de
meia vigência, que capta admiravelmente a posição da cultura moderna em
países periféricos. Necessárias a essa regra de composição, as transgressões
de toda sorte se repetem com a regularidade de uma lei universal. A
devastadora sensação de Nada que se forma em sua esteira merece a letra
maiúscula, pois é o resumo fiel de uma experiência, em antecipação das
demais regras ainda por atropelar”154.
Sirva-se de exemplo desse narrador caprichoso o episódio de D. Plácida nas Memórias
póstumas, segundo a esplêndida análise de Schwarz155. A vida da costureira, cozinheira e
alcoviteira de Brás e Virgília alterna “trabalhos insanos, as desgraças, doenças e frustrações”,
reunindo o pior dos dois mundos que constituem o país: “trabalho abstrato, mas sem direito
a reconhecimento social”, a “paga material incerta e mínima”, além de “nenhuma estima pelo
esforço”, tal qual corresponde ao universo escravista. Essa matéria é escarnecida pela forma
extremamente “cínica” em que o narrador a relata: reunindo uma variedade de estilos (a prosa
fria e fatalista do naturalismo, certo timbre cristão amalucado mesclado à brevidade do conto
filosófico setecentista da Auklärung), a análise serve à justificação dos privilégios e vantagens
materiais da classe de Brás Cubas, que assim delata a si mesma trazendo à tona uma vez mais
seu “horror aos pobres” e a existência aparentemente sempre “acima da lei”156. Como saldo,
contudo, não fica qualquer valorização ideológica do trabalho livre: “resta uma noção
radicalmente desideologizada do esforço, o qual é despido de mérito intrínseco”. Ou antes,
resta apenas o silêncio da mulher: um “ponto de vista [que] permanecerá inexpresso” – e
ignorado mesmo pelo socialismo produtivista de nosso tempo (mas decerto não de todo
inconsciente para D. Plácida)–, contrapondo-se assim à eloquência perversa de Brás Cubas.

“Nada em cima de invisível”157 será também, com efeito máximo, uma das ideias
principais do narrador de Esaú e Jacob, o conselheiro Ayres, cuja estratégia cínica leva esse
esquema ao zênite da ironia (em sentido técnico: a ironia do primeiro romantismo alemão), a
saber: narrar a matéria do romance de maneira onisciente, supostamente objetiva e impessoal
(em terceira pessoa), combinando intrusões diretas em primeira pessoa e o registro pessoal do
conselheiro como personagem refletora, mas fingindo imparcialidade, afetada por um timbre
objetivista ao mesmo tempo naturalista, metafísico e religioso, mal camuflando tais
imposturas, distorções e mentiras como certezas factuais e verdades “puríssimas”, que
praticamente inventam o grosso de uma trama ao mesmo tempo real e fantástica, baseando-

154 Schwarz, 2012, p. 248-9.


155 Schwarz, 1990, p. 98-105.
156 Ibidem, p. 125.
157 Machado de Assis, v. I, 1959, p. 904 (Cap. XXII, “Agora um salto”). Para uma análise detida, ver Duarte,
2018.
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se em deduções e adivinhações puramente subjetivas158. A máscara do diplomata ardiloso e


especioso cola-se em seu rosto: “[Ayres] não atribuía a esta [cidade do Rio de Janeiro] tantas
calamidades. A febre amarela, por exemplo, à força de a desmentir lá fora, perdeu-lhe a fé, e
cá dentro, quando via publicados alguns casos, estava já corrompido por aquele credo que
atribui toda as moléstias a uma variedade de nomes”159. Ocupando todos os cantos do relato
(narrador e personagem onipresentes através do foco onisciente, dos registros de seu diário e
dos diálogos com Flora e os membros das famílias Santos e Baptista), Ayres leva a volubilidade
de Brás e a paranoia de Bento ao seu ponto “último” (fazendo ressoar o lema nec plus ultra e
a “teoria dos ídolos” de Bacon), pois aqui ele tem o poder de fabricar o real em escala
verdadeiramente industrial, ficcionalizando a ficção de maneira a solapar toda objetividade do
relato e no limite eliminar toda a alteridade. Uma forma construída para espelhar não só o
estúpido intelecto autocrático e o poder inconteste da oligarquia, mas o dinheiro
autonomizado durante a febre especulativa do Encilhamento (D-D’), bem como as conciliações
e confusões entre o mesmo e o outro num país em transição (Império e República, escravismo
e trabalho livre, liberalismo e decretação de estados de sítio etc.) no contexto do domínio
imperialista do mundo. Desde o Spleen et Idéal baudelaireano, marcado pelo malogro da
revolução de 1848, tais criptogramas abissais da literatura anunciavam os potenciais negativos
e aniquiladores da forma capitalista; e a obra de Machado de Assis não fica atrás nessa tarefa
de representação, trazendo à tona o fundo perverso obsceno das elites ilustradas, sua
volubilidade e seu encapsulamento em “compensações imaginárias”, dando sinal da
“ilegalidade estrutural assumida” pela época imperialista160. Deixando entrever a própria
impostura narrativa, Ayres cria uma prosa suspensiva, como que em “estado de sítio”, que
invisibiliza e liquida, por fim, a situação social do negro excluído e abandonado à própria sorte
após a Abolição, tal como em via paralela destrói gratuitamente o moral da moça Flora (com
seus anseios de independência e reconhecimento individual), apoiando-se na ideia fixa do seu
suposto interesse por ambos os gêmeos (“quisera-os ambos naturalmente”161), herdeiros do
banqueiro Santos. Nada fica provado nesse suposto “caso embrulhado”, apenas uma relação
de amizade tênue seguida por um distanciamento por parte da moça, que demonstra, alheia a
qualquer afeto amoroso, certa aversão e mesmo repulsa face à infantilidade, à soberba e à
insipidez dos dois rapazes.

158 Ver no romance, em especial, a “Advertência” e o capítulo XLVI (“Entre um ato e outro”), ibidem, p. 873
e 931.
159 Ibidem, p. 915, Cap. XXXII, “O aposentado”,
160 Schwarz, 1990, p. 167-8, 174-5 e 201.
161 Machado, 1959, vol. I, p. 980 (Cap. LXXXII, “Em S. Clemente”).
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No plano político, a República representa para Ayres a ascensão da “multidão” – que


ele tem “horror”162, ou seja, o horror das ruas ocupadas pelos pobres, os trabalhadores, os
negros, as mulheres e toda esfera da subordinação, suportados pelos valores potencialmente
democráticos do novo regime competitivo em formação após a Abolição. Todo o enredo de
Esaú e Jacob, então, poderia ser interpretado como ressentimento de classe e vingança
machista do diplomata decadente contra a queda da Monarquia e seus valores hierárquicos,
mas estrilando alto o status de classe, raça e gênero inalterado pelo advento da República: a
dominação patriarcal dos plutocratas como fato inexorável sobre esse populacho desprezível
de amanuenses, cocheiros, confeiteiros, carroceiros, criados e uma série de marginalizados (os
potenciais “gatunos” ex-escravizados que tomam doravante as ruas), que logo engendrarão as
primeiras greves e rebeliões populares na passagem do século, que de alguma forma
condensam-se para ele na menina Flora, que cresce e resiste, “anárquica” e “alucinada” como
a música “fora do tempo e do espaço”, “idealidade pura”, alheia ao trabalho e ao dinheiro,
dispensando um casamento de ouro, em meio à família Baptista, a casa de políticos
oportunistas e corruptos163.

As referências simpáticas embora esvaziadas à Antiguidade clássica, à Bíblia,


Shakespeare etc., mescladas ao universo da prosa esclarecida altamente refinada por traços
impressionistas, condensam-se nos símbolos arcaicos escolhidos para caracterizar o
monarquista Pedro e o republicano Paulo: para o primeiro, o astuto (“velhaco”) Ulisses; para
o segundo, a cólera de Aquiles (“furioso”)164. O que se revela como caracterização do próprio
caráter perverso, despótico e projetivo de Ayres, que os têm como seus filhos postiços; ele
próprio, por fim, chega a se identificar com Ulisses, ou melhor, com as “obsessões” de contar
as mesmas coisas para o rei Alcinoos, obsessões que ele projeta no caráter de Flora165. Como
n’O Castelo de Kafka, o sonho alucinado de Ayres é destravar o poder patriarcal até o limite
em que suas regras já não valham e confirmem o vale-tudo da velha propriedade
escravagista166, sugerindo Flora como “republicana” anárquica e “mulher pública” (prostituta),
supostamente louca e delirante, aberta à posse sexual dos dois irmãos (como transparece em
sonho por ele imaginado e narrado na cena da “grande noite”167). Depois deste último lance

162 Ibidem, p. 924 (Cap. XXXIX, “Um gatuno”).


163Ibidem, p. 964-5 (Cap. LXIX, “Ao piano”). Para desdobramentos de Flora em associação intertextual explícita
com o “rouge idéal” de Baudelaire (L’Idéal), ver Duarte (2020b e 2018).
164 Ibidem, p. 930-1 (Cap. LXXXIII, “A grande noite”).
165 Ibidem, p. 1003 (Cap. CIII, “O quarto”).
166 “Diante dos poderosos [em O castelo, de Kafka], a família triunfa como um colaetivo arcaico sobre sua forma
posterior, individualizada. Homens e mulheres deveriam se encontrar sem a menor resistência, como animais que
se acasalam. (…) Na suspensão [Suspension] das regras da sociedade patriarcal, é desnudado o segredo dessa
sociedade, o da opressão imediata e bárbara. As mulheres são reificadas como meros meios para um fim: como
objetos sexuais, como conexões” (Adorno, 1998, p. 260-1).
167 Machado de Assis, v. I, 1959, p. 980-3
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ignominioso, em que se infiltra ainda a franca atração sexual de Ayres pela bela moça
(traduzida por um discurso eufêmico como “amor” e “flor descorada e tardia de paternidade,
ou, mais propriamente, de saudade dela...”168), algo que ela parece claramente perceber em ato
nesta conversa e, mais adiante, nas sórdidas sugestões do conselheiro no episódio do desenho
dos gêmeos, resta-lhe a estratégia da recusa, da fuga e do silêncio169.

V- Depois da robinsonada total: de Kafka a Beckett, a dialética de estática e


dinâmica desdobrada como dialética de integração e desintegração

Dos relatos do caixeiro-viajante Gregor Samsa ao imigrante estudante Karl Rossmann


nos Estados Unidos, do bancário Joseph K. ao agrimensor K., até os párias Molloy, Malone,
Inominável, o Hamm e Clov de Fim de Partida e as vozes descarnadas de Como é até a última
trilogia de Nohow on, encontramos uma população atomizada e cada vez mais confinada em
casas, aldeias, prisões, tribunais, hospitais psiquiátricos, campos e bunkers no fim do mundo,
em que todos confirmam o curso destrutivo de uma história natural que tende a isolar os
indivíduos e despachá-los para o inferno após uso. Em última instância, longe do hermetismo
simbólico-teológico ou alegórico dito “indecidível” da enxurrada semiótica pós-moderna,
funcionam como metáforas claras, quase lógicas, da ditadura do mundo da fábrica
capitalista e do estado de exceção generalizado.

O fundo já não é uma simples contraposição da sociedade alienada ao indivíduo isolado


“livre” e “demoníaco” indo ao encontro da mobilidade ascendente, conforme as atribuições do
romance burguês captadas pela Teoria do romance do primeiro Lukács, mas uma relação de
dominação abstrata que se torna rigorosa forma, estrutura e ponto de vista do relato. Isso que,
passando pelas diligências do trabalho como objetificação do tempo-espaço nas mercadorias
e dominação direta sobre os corpos, tende à implosão da narrativa como algo objetivo e
distanciado, isto é, onisciente, neutro e impessoal, ou na qual a representação do contexto, da
ação e da particularidade histórica e biográfica das personagens fosse algo simplesmente
“dado” como traço ontológico da arte, sem nenhuma dificuldade artística ou problematização
histórico-crítica. O seu “sentido” cresce na negação determinada do sentido, sem sacrificar sua
unidade, coerência e densidade (mesmo quando feito de fragmentos inacabados e de um ponto
de vista desnorteado), nem se render às simples técnicas de montagem170. O ponto de vista
limitado, abstrato, mas situado no novo contexto do capitalismo financeiro, se coloca sempre

168 Ibidem, p. 986 (Cap. LXXXVII, “Entre Aires e Flora”).


169 Ibidem, p. 1000-1 (Cap. C, “Duas cabeças”).
170 Adorno, 2002, p. 153-7.
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como tal e, mimeticamente entrelaçado aos seus materiais, se faz opaco ou resistente à palavra
definitiva: móvel e imóvel a um só tempo, ou todo estático em seu dinamismo171, tendente ao
minimalismo de forma e conteúdo da última fase beckettiana. É o que verterá tal mobilidade
emperrada, segundo as reflexões extraordinárias de Adorno, numa dialética de integração e
desintegração. Em vez do triunfo, a liquidação, ou – o que é diferente – a dissolução do
indivíduo na massa proletarizada e marginalizada, sujeitada e tornada cada vez mais
supérflua, e só assim móvel, não-idêntica e potencialmente antagônica ao sistema reticular
que tudo captura.

A sensação aqui, nesse contexto de auge do imperialismo até a guerra fria, é de


impotência e fechamento absolutos. Mas o fim de linha traçado em cada caso funciona
também, segundo as reflexões teóricas adornianas, como “criptogramas da fase final e
resplandecente do capitalismo, que Kafka exclui para determiná-la mais precisamente em sua
negatividade”172. Tal como tomamos Schwarz como guia para ler os avanços de Machado – um
ponto fora da curva que prenuncia nos desatinos de seu narrador uma lógica social híbrida
capaz de combinar escravismo e liberalismo –, tomemos as reflexões de Adorno sobre essa
lógica de desintegração em Kafka: aqui, “integração é desintegração, e nela se encontram o
encanto mítico e a racionalidade dominadora” – vale dizer, aqui, o mais racional aparece como
o completo desvario e absurdo, a moral como sordidez, a verdade como farsa, o necessário
como contingente e supérfluo, o mais histórico como algo arcaico e obsoleto, a realização social
como um sacrifício dos indivíduos eternamente repetido etc. Isso que tende a destruir toda
possibilidade de representação artística tradicional, naturalista ou realista fundada no sujeito
liberal. Assim, “não há sistema sem resíduo. Contemplando-o, Kafka profetiza o futuro”: “a
perfeita inverdade é a contradição de si mesma, por isso ninguém precisa contradizê-la
explicitamente. Kafka desmascara o monopolismo nos refugos da era liberal liquidada pelos
monopólios”. Ou seja, o capital concentrado na ditadura das grandes corporações e
superpotências capazes de destruir o mundo qual encarnassem metafisicamente o carro de
Juggernaut. Em Kafka, tal como mais tarde em Beckett, assim, é como se passássemos do nível
da subsunção formal para a subsunção real e total do trabalho ao capital, bem como da
ideologia ao predomínio da reificação e do fetichismo, sem mais nenhum “fora” ou “margem”
que não estivesse posto no e pelo sistema, unificando centro e periferia. O que torna suas

171 Algumas páginas da Teoria estética de Adorno aqui são elucidativas. “O princípio dinâmico, por meio do qual
a arte foi longa e insistentemente justificada na esperança de homeostasia entre o universal e o particular, é
rejeitado. (…) O caráter processual da arte foi ultrapassado [ereilt] pela crítica da aparência, e não apenas como a
crítica da universalidade estética, mas como a crítica do progresso em meio ao que é realmente o sempre-igual. O
processo tem sido desmascarado como repetição e, portanto, tornou-se uma vergonha para a arte.” (Adorno, 2002,
p. 224-5).
172 Adorno, 1998, p. 252.
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obras, por sua vez, uma verdadeira totalidade antagonística. Pois esses “refugos” inúteis do
sistema tornam-se imagens da massa espoliada, cuspida e tornada supérflua para a máquina
capitalista. Esta última continua a girar e demandar simplesmente todos como sujeitos-
mercadoria – mas aqui mostra-se o seu avesso obsceno, a exploração e a dominação integral,
esbarrando-se em seus resultados mais negativos e utópicos. Vale dizer, a liberdade de fins
externos e alienados, quase que trazida a seu conceito:

“Odradek não tem finalidade, i.e. finalidade externa, e é completo à sua


maneira, i.e., tem a sua finalidade em si mesmo, sem o que não há ser
completo. Odradek, portanto, é a construção lógica e estrita da negação da
vida burguesa. Não que ele esteja simplesmente em relação negativa com ela:
ela é o próprio esquema da sua negação, e este esquematismo é essencial à
qualidade literária do conto. (...) Em escala modesta, a existência utópica de
Odradek é subversiva, é a tentação do pai de família. A existência gratuita
catalisa as contradições do vocabulário burguês, que preza mas não preza a
liberdade. Compreende-se assim o misto de desprezo e inveja que Odradek
desperta, e portanto a tática difamatória do narrador (…) [daí] o seu lado (…)
anti-pecuniário. Odradek é feito de resíduos, de materiais desclassificados,
sem nome ou preço, eliminados pela circulação social. É a imagem extrema
da liberdade em meio à lida do decoro: a perfeição descuidada, mas
inteiramente a salvo, pois é feita de resto que ninguém quer:
‘lumpemproletariat’, sem fome e sem medo da polícia (…) O lugar social da
vida pacificada, no mapa burguês, é inconfessável; mas é o lixo.”173

Odradek torna-se assim um anti-Robinson, um esquema de negação da ordem


burguesa e sua forma de sujeito, que sem dúvida se refletirá em figuras beckettianas como
Molloy, Malone ou Clov. Segundo a compreensão de Marx, como já notamos, o sujeito burguês
aparece como algo pressuposto da forma social, como um suporte da racionalidade do capital,
ganhando plena “personalidade” na figura do capitalista “maníaco” da valorização, que tem de
instilar os valores dinâmicos do trabalho no “material humano” administrado174. De
Baudelaire e Flaubert a Machado de Assis, a forma estética sente o princípio dinâmico
moderno derivado do trabalho e da concorrência (as viravoltas da intriga, o princípio do
choque e da novidade etc.) como algo inepto e até mesmo supérfluo, construindo e dissolvendo
toda aparência de movimento, forma e harmonia simbólica. É essa “sintaxe da frustração”175,
na boa caracterização de Rosenfeld, que marcará profundamente a obra de Kafka, em especial
o percurso de Karl Rossmann em Amerika, cujo desfecho é precisamente a desintegração do

173 Schwarz, 1978, p. 24, num ensaio excelente sobre o conto de Kafka, “Tribulação de um pai de família”.
174 Marx, 1988, I, 1, p. 125-126. Na sociedade atual “a exigência de laboriosidade, e, especialmente também de
poupança, de abstinência, é requerida não dos capitalistas, mas dos trabalhadores, e precisamente pelos
capitalistas” (Marx, 2011, p. 223.)
175 Rosenfeld, 1973, p. 236: “As orações se iniciam com afirmações esperançosas que, em seguida, são postas em
dúvida, desdobradas nas suas possibilidades, cada qual se ramificando em novas possibilidades. Pouco a pouco a
afirmação inicial é limitada por uma inundação de subjuntivos e condicionais, surgem os ‘embora‘, ‘de resto‘,
‘talvez‘, ‘é verdade que‘, ‘de um lado‘ e ‘de outro lado‘, até ao fim não sobrar nada e tudo ser anulado”.
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enredo nos fragmentos que expõem sua estranha servidão a Brunelda, Delamarche e Robinson
e a fantasmagoria do Teatro natural de Oklahama.

A tematização dessa desintegração social leva à desintegração psíquica, que é um


modo essencial de construir a consciência crítica dessa aniquilação e da necessidade de
ruptura do individualismo e da desolação conformista, exatamente por meio do
desdobramento dessa “robinsonada total”, para voltar à expressão de Adorno, “a história de
um período em que cada um se torna o seu próprio Robinson, boiando numa jangada à deriva,
carregada de objetos reunidos às pressas”176. Ora, aqui o encontro de outros Robinsons
vivendo em igual situação de opressão e espoliação passa a ser um objeto explícito do relato:
“se a obra de Kafka conhece a esperança, ela está antes em seus extremos [Adorno cita Na
colônia penal, A metamorfose e O veredicto] do que nas fases mais moderadas: na capacidade
de resistir a uma situação extrema, transformando-a em linguagem” (…) “onde os homens
tomam consciência de que não são eles mesmos, são coisas”.177

Nesse sentido, a “robinsonada total” é o meio de conduzi-la à autonegação, ao seu devir


desintegrador – à “robinson-nada”. Compõem-se assim, conforme Adorno pensará mais tarde
o Innommable beckettiano, uma crítica dialética do solipsismo178. Sem dúvida, esse foi o
caminho intuído por Machado, como vimos, cuja especialidade foi colocar o narrador impostor
em xeque, cavando a distância crítica entre o seu discurso volúvel e tresloucado e seus
personagens/objetos usados e silenciados, mas resistentes à sua visão de mundo subjetivista,
que brotava de uma sociedade escravista e neocolonial. Como outros grandes de sua época
(Baudelaire, Flaubert, Dostoievski, Conrad, James, Mann), ele conduzia assim o traço
demoníaco das personagens burguesas, desde o Robinson de Defoe, a confessar sua demanda
de poder absoluto – tanto como seu desvario e seu fracasso. O modernismo capta as raízes
desse processo de abstração social e redução do todo a esse eu narcísico e alienado,
construindo-o como forma integral. A totalidade social falsa, antagônica e fragmentada impõe
aos artistas modernos uma forma quebrada e dissonante capaz de dar expressão à crise do
sentido e à desintegração social em curso, revelando, segundo Adorno, o “sujeito autárquico”
como “mitologia” e o poder como algo mistificado, dependente de certas relações sociais cegas.
Nesse nível, a personalidade substancial ou bem formada estilhaça-se e regride, trazendo à
tona o inconsciente e as pulsões recalcadas, bem como os custos desse recalque. No limite, a
perda da capacidade de distinção entre sujeito e objeto confronto traumático do eu com um
poder aniquilador, a dissolução de toda diferença e oposição, a ameaça da regressão no

176 Cf. Adorno, 1998, p. 261.


177 Ibidem, p. 250-1.
178 Adorno, 2010, p. 172.
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ambíguo e no amorfo, no reino do duplo, da cópia e do coisificado representados pelo princípio


hermético das configurações kafkianas, segundo o pensador alemão, contêm a “gênese social
da esquizofrenia”. Ou seja, a representação fiel da loucura objetiva que progride com a
adaptação de todos à irracionalidade e à barbárie capitalista. Esta consiste precisamente na
destruição de todas os limites entre o eu e o Outro179. Por um lado, esta cria o terreno fértil
para a falsa mímese, a projeção patológica, o protofascismo e o anti-humanismo, que
certamente inundam as situações ficcionais criadas por Kafka e Beckett – mas que não são de
modo algum idênticas a elas no plano da enunciação ou das sobras e contingências que
escapam de sua malha. Em vez de decaírem no puro solipsismo e no relativismo subjetivista,
o desmentido de toda afirmação pelo relato antes visa abrir a perspectiva da negação da
onipotência imaginária desse sujeito: o “é assim” realista aqui nada mais é sem o tratamento
formal de um “como é” e de um “como se” que reforça a objetividade monstruosa – daí o
“princípio da literalidade” e da “naturalização do monstruoso” em Kafka, que elimina desse
modo todo sonho e “tudo o que se assemelha ao sonho”180.

Em Beckett, a mesma operação de abstração de contextos específicos, de


naturalização do horror, de empobrecimento da linguagem (para se aproximar
mimeticamente do mundo burocratizado e socialmente miserável) seguidos pela subtração
minimalista do conteúdo está a serviço da apresentação lógica tanto do contexto de ascensão
do fascismo na Europa quanto da resistência à ocupação nazista, ou seja, a exposição da forma
antagônica intrínseca à sociedade do trabalho administrado181, que nada teria de negativo sem
os resíduos sociais de uma experiência íntima de choque e desintegração das palavras,
conceitos e comportamentos coagulados. Daí a sensação de vertigem dada pelo texto
beckettiano. Experiência que costuma ser apreendida pelo conceito de razão e por uma outra

179 Adorno, 1998, p. 248-251 e 259. No “Fragmento de uma teoria do criminoso”, Adorno e Horkheimer ressaltam
os riscos da dissolução de limites entre o mesmo e o outro, sujeito e objeto, no processo mimético de regressão
fascista então em curso: “A absoluta solidão, o retorno forçado ao próprio eu, cujo ser se reduz à elaboração de um
material no ritmo monótono do trabalho, delineiam como um espectro horrível a existência do homem no mundo
moderno. O isolamento radical e a redução radical ao mesmo nada sem esperança são idênticos. O homem na
penitenciária é a imagem virtual do burguês em que ele deve se transformar na realidade. (…) Quando os limites
entre o banditismo respeitável e o banditismo ilegal são objetivamente fluidos, como acontece hoje em dia, os tipos
psicológicos também se confundem. (…) O fascismo absorve os dois. A concentração do comando sobre a produção
inteira traz de volta a sociedade ao nível da dominação direta. Com o desaparecimento da necessidade de fazer um
rodeio pelo mercado no interior das nações, desaparecem também as mediações espirituais, entre elas o direito. O
pensamento que se desenvolvera na transação, como resultado do egoísmo forçado a negociar, se reduz ao
planejamento da apropriação violenta” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 211-212). Sem dúvida, este é o processo
moderno mais fundo representado nessa literatura, de Baudelaire a Machado, de Kafka a Beckett, assumindo
criticamente essa “mimese da reificação” como sua “methexis nas trevas” (Adorno, 2002, p. 135).
180 Adorno, 1998, p. 242-243.
181 Cf. após as intervenções antimetafísicas e avessas ao puro formalismo, por parte de Adorno (1984, p.200-238)
e Anders (2011, p. 209-224), ver a busca do teor histórico e político específico condensado pela forma beckettiana
em Eagleton (2006), Morin (2017 ), Zizek (2019) e Champanhet (2020).
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ideia de sujeito – como uma experiência de subjetivação e “contragolpe na existência ruim”182,


que só pode surgir através da ruína e da autodissolução do sujeito burguês e patriarcal, do
sujeito autocrático.

Do ponto de vista artístico-formal, contudo, a torção de Kafka feita por Beckett


consiste, segundo as palavras do próprio autor, numa “desintegração completa”, pois no
escritor tcheco poder-se-ia ter ainda “um herói” “com coerência de intenções. Ele está perdido,
mas não é espiritualmente precário, não está caindo aos pedaços”. Além disso, ele nota como
a “forma de Kafka é clássica, segue adiante como um rolo compressor, quase serena. Aparenta
estar sob ameaça o tempo todo, mas a consternação está na forma. Na minha obra, há
consternação por trás da forma, não na forma.”183 Essa consternação é geralmente esquecida
pelos intérpretes otimistas e positivos de Kafka e Beckett, que abrem as portas para as leituras
universalistas, teológicas, humanistas e existencialistas desses autores184. Neles não se acha
qualquer apologia da destruição do eu ou hybris pós-estruturalista de desdiferenciação de
sujeito e objeto. E e é por isso que o “cartesianismo” de Beckett não resvala no irracionalismo
nem cai no naturalismo cínico, ou na pura abjeção regressiva, mesmo quando cria um universo
extramoral inteiramente ocupado por tais espíritos precários, aqui um pouco como Ulisses,
mergulhados no isolamento forçado e na tarefa da autoconservação – porém, como Molloy,
Malone e O Inominável, apenas tendo tempo para contar a desgraça social da qual fazem parte.
Aqui, ainda, resta algo da ideia ulissiana irracional da aventura mediada por um “espírito” não
monetário185 fundado num corpo falível e numa situação social discernível, como veremos
adiante numa certa capacidade de mimetizar e se identificar aos seres que sofrem, de

182 Como dirá Bloch, n’O Princípio Esperança: “sem a força de um eu ou nós por detrás, até mesmo o ato de
esperar se torna insípido. Na esperança consciente-ciente não há debilidade, mas uma vontade que determina:
assim deve ser, isso tem que devir. (…) A autoconsciência estoica e, bem mais próximo de nós, o idealismo alemão
indicam o ponto singular – ainda que totalmente prejudicado pela abstração – a partir do qual o sujeito se reserva
a liberdade de um contragolpe contraditório no existente ruim [die Freiheit eines widersprechenden Gegenzugs
gegen das schlecht Vorhandene]. (...) O fator subjetivo – adversário de toda abstração e da espontaneidade
ilimitada de consciência que lhe corresponde - buscou de forma igualmente real a mediação do fator objetivo da
tendência social, do possível-real. (…). É impossível, portanto, prescindir do fator subjetivo, e é igualmente
impossível escamotear a dimensão profunda desse fator, exatamente a do contragolpe na má existência, como
mobilização das contradições que ocorrem na própria má existência visando ao seu total solapamento, à sua
derrocada. A dimensão profunda do fator subjetivo, porém, está no seu contragolpe justamente porque este não é
apenas negativo, mas igualmente contém em si a urgência [das Andrängen = o impulso, a pressão, a afluência] de
um êxito antecipável e representa essa urgência na função utópica”. Bloch, [1959] 1976, Bd. I, p. 167-9; trad.,
2005, vol. 1, p. 146-8 (trad. modif.).
183 Beckett, “Entrevista com Israel Schenker em 05.05.1956”, traduzido por Fábio de Souza Andrade, 2001,
p. 186.
184 Cf. Brod, 1959; Birkenhauer, 1971; Deleuze e Guattari, 1975; Webb, 2012; Andrade, 2001; Champanhet,
2020.
185 Beckett, [1953]/2009a, p. 42 e 55 etc.
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exteriorizar-se e relatar histórias de outros seres oprimidos, independente dos juízos morais
individualistas.

É essa dialética de integração e desintegração que procuraremos demonstrar melhor


nas duas notas que seguem: a primeira, uma curta análise estrutural de O desaparecido, ou
Amerika, de Kafka; a segunda com alguns apontamentos sobre obras de Beckett, em especial
os três romances do pós-guerra, Fim de partida e Como é.

**

Kafka: a outra Amerika

O romance de aventuras em que o “mundo das coisas” já predominava sobre o “sujeito


abstrato”, como vimos em Robinson e Moll Flanders, inverte-se na América de Karl
Rossmann, segundo as anotações de Adorno sobre Kafka, numa “história de sofrimento” em
que o sujeito “pula de uma situação desesperadora e sem saída para outra”, cujo “nexo
imanente se concretiza como uma fuga de prisões”186. Aqui temos o princípio estrutural
antagonístico desse romance inacabado: o movimento incessante e evanescente dos seres
compelidos pela lógica da concorrência como suportes da dominação social abstrata. É assim
então que em O desaparecido Kafka toma o nome de Karl Rossmann como metáfora literal
(Ross em alemão = cavalo), partindo das sugestões dos temas da emigração e da viagem pelos
Estados Unidos do início do século XX. A imagem distorcida da Estátua da Liberdade em
“Novawork” lida na primeira página, portando uma espada em vez da tocha187, é a prefiguração
do encadeamento alegórico de imagens de troca, circulação, tráfico e comércio, intermediação
e intercurso sexual, trânsito e comunicação (consubstanciados no verbo alemão muito
frequente: verkheren) – todas imagens destruídas por encontros malogrados e desfeitos,
muita empulhação e embaçamento, exploração e violência direta.

Temas que então se explicitam principalmente a partir da recepção fria de Karl pelo tio
Jakob, um empresário milionário dos transportes de carga, e do seu encontro com dois
operários desempregados na estrada para Ramsés, Delamarche e Robinson (aqui a referência
explícita ao romance de Defoe), além de uma grande massa de trabalhadores espoliados que
tudo suportam e carregam para cima e para baixo como animais de carga (desde o Foguista
até a secretária Therese, a cozinheira-mor, os ascensoristas e porteiros no “Hotel occidental”,
até os operários amontoados no subúrbio de Nova York que suportam nos ombros candidatos
políticos e, por fim, a cantora Brunelda, que também se faz carregar pelos jovens protagonistas

186 Ibidem, p. 263.


187 Kafka, 2007, p. 7 (Amerika, segundo a edição de Max Brod, de 1927); citado pela tradução de Susana Kampff
Lages, 2003, p. 13 [a partir da edição crítica de Der Verschollene, editado por Jost Schillemeit, 1983].
93
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etc.)188. Assim que Karl é abandonado pelo tio capitalista, que está disponível apenas para
“grandes cartéis industriais e para os cartéis entre si”189, inicia-se sua fuga pelo país adentro:
a fuga da casa de campo nos arredores de Nova York, após seu desentendimento com Klara e
uma certa elite emigrada, imprime o ritmo da desaparição ao relato. A cidade cubista de
arquitetura monstruosa e homens fungíveis predomina sobre o sentido da busca de Karl
(tornar-se engenheiro e recomeçar a vida na América), substituindo a mera subjetividade por
uma objetividade social fantasmagórica, à qual o herói tem de se adaptar através do trabalho
(Hotel occidental, depois na casa de Brunelda). No otimismo inabalável de Karl, sempre
fascinado pelo espetáculo industrial americano, tal como contado por um narrador que
praticamente adere à sua visão através do discurso indireto livre, temos um protagonista
sempre em apuros, perdendo-se num mundo estranho que lhe promete a vida pelo esforço do
trabalho, da renúncia e do sacrifício. Sua “linha de fuga” traçada a esmo e seu “devir-animal”
sob o mando dos mais fortes nada têm de liberdade, mas equivale a um desaparecimento no
puro espaço abstrato do capital190. Formado pela descontinuidade temporal e espacial típica
do romance de aventuras, o texto se fragmenta e dá forma perfeita à representação dessa vida
desperdiçada e espalhada, criando novas tensões sem resolver as antigas, terminando em
esboços e capítulos não terminados. Em Delamarche, Karl enxerga “apenas um vagabundo
arruinado pelo azar mas com quem era possível conviver”191. O trabalho é o que daria o ritmo
da continuidade e do decoro à sua vida burguesa; trabalhando como ascensorista no Hotel, ele
jamais corre a cidade em suas “folgas noturnas”, pois se dedica ao estudo de “correspondência
comercial”192. O que não impede de ser confundido, pelo camareiro-mor e o porteiro-mor, com
um vagabundo tal qual Robinson, e que seja demitido da maneira mais agressiva e estúpida.
Nos diálogos de Karl e Robinson a palavra-chave sagrada e maldita do trabalho faz oscilar a
mente das duas personagens entre a resistência indignada e a submissão ao existente. Assim,
num trecho exemplar:

188 Kafka dará especial ênfase aos equívocos da consciência reificada através da exposição irônica de situações as
mais insólitas de maneira a “propagar o falso” e o “monstruoso” da maneira mais “natural” e “literal”, levando o
leitor a desconfiar de toda transparência do relato e ater-se aos “detalhes incomensuráveis e
intransparentes”(Adorno, 1998, p. 242-243). Aqui, o gesto se contrapõe à palavra, a ação à sua enunciação. Assim,
temos no primeiro plano da enunciação a a falta de cooperação e organização dos trabalhadores proletarizados,
tutelados pelos interesses empresariais e estatais, a esterilidade do mero discurso partidário e sindical, as
autoilusões de consciência e liberdade através do trabalho de Karl Rossmann etc. No segundo plano, dos gestos e
ações, temos a solidariedade de Karl com “as vítimas sofredoras dessa sociedade”: o foguista, a cozinheira-mor e
Therese (e sua mãe) no Hotel, o estudante-trabalhador, os habitantes do bairro popular que não simpatizam com
autoridades policiais, em suma, uma viva sensibilidade humana e certo espanto (atenuado ao longo do relato)
diante de desaforos e coisas absurdas (cf. Löwy, 2005, p. 73).
189 Kafka, 2007, p. 48; trad. 2003, p. 49.
190 Para usar os termos estilizados de Deleuze e Guattari (1975) em sua interpretação global de Kafka.
191 Kafka, 2003, p. 137.
192 Ibidem, p. 153.
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“– É – disse Karl –, mas o que vale para você não obrigatoriamente vale para
mim. E em geral uma coisa dessas só vale para quem a aceita.
– Mas – exclamou Robinson – por que não deveria valer para você também?
É evidente que também vale para você. Espere tranquilamente aqui comigo
até que toque a campainha. E então vai poder ver se consegue ir embora. (…)
por pior que eu me sinta, não vou dizer nada para Delamarche nem para
Brunelda, vou trabalhar enquanto for possível e até mesmo quando não for
mais possível, e então me deitarei para morrer e só depois – tarde demais –
eles verão que eu estava doente e que, mesmo assim, continuarei
trabalhando, trabalhando e trabalhando, e que trabalhei a seu serviço até
morrer. (...)
– Ande, Robinson – disse Karl – você só chora o tempo todo. Não acredito
que esteja tão doente. Está com uma aparência bastante saudável, mas como
fica sempre deitado na sacada, fica imaginando coisas.”193
No fim do capítulo, Karl acaba com uma “ideia tranquilizadora” na cabeça: “de que ele
era jovem e que Delamarche um dia iria libertá-lo; aquela estrutura doméstica realmente não
parecia feita para durar uma eternidade”. Sua ideia fixa é se integrar num escritório comercial,
ao qual “pretendia dedicar até mesmo as noites”, pois de início “pretendia pensar apenas nos
interesses da empresa à qual devia prestar serviço, assumindo para si todas as tarefas, mesmo
aquelas que outros funcionários do escritório recusassem indignas de sua pessoa”. Aqui ele
como se funde à cabeça “do futuro chefe”, como se suas “boas intenções” pudessem ser lidas
por aquele “ao olhar para o seu rosto”.194 De passagens como estas chega-se à razão do título
O desaparecido: todos são absorvidos até desaparecerem nesse mundo-empresa, cujo ápice
será o “Teatro de Oklahama”.

Na versão de Max Brod, o capítulo final sobre esse “teatro natural” dava a sugestão
ambivalente de um sonho de reconciliação miraculoso– ou de uma espécie de alucinação
celestial após a morte do jovem herói195. Mas aqui está pressuposta menos uma reconciliação
do que a desintegração final do romance. Pois, como reflete Adorno, “o humor de Kafka deseja
reconciliar o mito através de uma espécie de mímica. Também nisto ele segue aquela tradição
do Iluminismo que começa no mito homérico e vai até Hegel e Marx, nos quais o ato
espontâneo, o ato da liberdade, se confunde com a realização da tendência objetiva”196. Trata-
se de uma operação dialética negativa: “o encanto da reificação deve ser quebrado, na medida

193 Ibidem, p. 196 e 202.


194 Ibidem, p. 261; trad., p. 225.
195 Em conversa com Max Brod, Kafka teria lhe dito que no capítulo final o seu “jovem herói encontraria, neste
‘teatro sem limites’, como que por um encanto paradisíaco, a sua profissão, a liberdade, o sustento, e até sua terra
natal e seus pais” (Brod, ‘Posfácio do editor’ in: Kafka, 2007, p. 307; Brod, 1959, p. 40). Nessa linha de interpretação
de Brod, então, “Rossmann foi realmente 'morto' pelo autor; o capítulo final é uma visão, cujo tempo (se ainda se
pode falar de tempo e espaço) é a intemporalidade, a eternidade, mas vista do ponto de vista da vida terrena; assim,
uma estranha vida num reino intermediário e além, na qual há verdadeiramente espaço para todos, ‘todos são
aproveitados’” (Brod,1959, p. 41).
196 Adorno, 1998, p. 247.
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em que o próprio sujeito se reifica. O sujeito deve executar aquilo de que padece”, livrando-se
de sua consciência burguesa:

“‘Pela última vez psicologia’ – os personagens de Kafka são recomendados a


deixar suas almas no guarda-roupa no instante da luta social, na qual a única
possibilidade do indivíduo burguês consiste na negação de sua própria
composição e da situação de classe que o condenou ao que ele é”.197
Por certo, a linha de Brod é uma interpretação válida, mas ganha-se em termos de crítica
quando se lê o episódio como uma fantasmagoria real que se desintegra, expondo a condição
proletária sujeita à mobilidade do trabalho abstrato, o desemprego e a miséria, aceitando se
tornar pau pra toda obra a fim de sobreviver. Karl se vê satisfeito por achar um job, repetindo
para si: “o que importava não era tanto o tipo de trabalho quanto o fato de encontrar nalguma
parte algo de estável”198. Como tudo no romance, o teatro segue o gigantismo do grande capital
e expõe o absurdo da dominação: o recrutamento ilimitado de desempregados num
“hipódromo” gigantesco, com “anjos” fantasiados em altos pedestais tocando trombetas, para
um emprego de “ator” sem salário, desqualificado e supérfluo, enfim para exercer um papel
qualquer num teatro a céu aberto em Oklahoma. Mas a máscara burguesa parece cair em seu
gesto de participação algo irônica nessa enrascada: na fila de inscrição, Karl assume a
identidade de “Negro” (e, em seguida, dão-lhe uma função que supostamente exerceria:
“Negro, operário técnico”)199.

Assim como “todos pertencem ao Tribunal” (em O processo), ou tal como o castelo e a
aldeia são indistintos (em O castelo), aqui temos o “maior teatro do mundo” que alguns
asseguram que “é quase sem limites” e pode “aproveitar a todos, cada um em seu lugar!”:
“‘Quem pensa no futuro nos pertence! Todos são bem-vindos!’”. Aqui, o que parece sonho
torna-se um verdadeiro pesadelo do Capital, que repete o ritual sacrificial do trabalho. Aqui o
inferno proletário transfigura-se ironicamente em imagem paradisíaca. Alegoricamente esta
imagem teatral inverossímil diz o seu outro – e não por acaso os anjos femininos tocam
trombetas por duas horas até serem substituídas por “homens vestidos de diabo” tocando

197 Ibidem, p. 268.


198 Kafka, 2007, p. 278; trad., 2003, p. 262.
199 “Havia tantos cartazes, ninguém mais acreditava em cartazes (…) Mas sobretudo havia nele um grande erro:
não havia nem uma palavra sobre o pagamento. (...) Diante da entrada do hipódromo tinha sido montado um longo
e gigantesco pódio, sobre o qual centenas de mulheres vestidas de anjos, com panos e grandes assas nas costas
tocavam longas trombetas douradas e brilhantes. (…) [Karl] tinha um certo temor de dizer seu nome para ser
registrado (…) Disse, portanto, já que no momento não lhe ocorria nenhum outro nome, apenas o nome pelo qual
vinha sendo chamado nos seus últimos locais de trabalho: -Negro. (…) -Queria ser engenheiro. (…)-Bem,
engenheiro não poderá ser de imediato, mas talvez (…) realizar algum tipo de trabalho técnico de nível inferior (…)
o que importava não era tanto o tipo de trabalho quanto o fato de encontrar nalguma parte algo de estável. (…)
Enquanto Karl descia, ergueram no painel de anúncios que ficava ao lado da escada a placa: “Negro, operário
técnico’” (Kafka, 2007, p.262-79; trad. 2003, p. 247-262).
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“tambores” (de guerra?)200. Qual réplicas da estátua da liberdade, desde o início fomos
avisados que a tocha seria substituída pela espada. O Teatro natural não consiste numa utopia
do tempo livre, da identificação de trabalho e jogo, da indisponibilidade fundamental do
homem201, mas a utopia capitalista do pleno emprego e a naturalização da troca fetichista. Na
estação de trem, Rossmann descobre seus parceiros de classe em dissolução: “ninguém levava
bagagem”... “quanta gente despossuída e suspeita estava ali agrupada, e era tão bem recebida,
tão bem tratada! E o chefe do transporte parecia se importar de coração com eles”202. Uma
multidão de desempregados recrutada para representar profissões e atividades nesse céu
simulado de uma outra Amerika mais ou menos bem conhecida na história do novo mundo:
um “vagão inteiro” de desaparecidos, sem promessa de pagamento tal como os antigos negros
escravizados na época colonial, quando muito apenas servidos por uma refeição e ludibriados
pela importância do próprio nome e da família lançados num letreiro sujo no hipódromo, até
sumirem de vez, na página final, absorvidos pela segunda natureza selvagem da paisagem do
continente.

**

Beckett: o falso dinamismo e a superfluidade do trabalho

Esse falso dinamismo da sociedade do trabalho se torna ainda mais evidente em


Beckett, que ri de todo riso sádico e escarnecedor203, visando chocar esse dinamismo com a
reificação dos homens e a potencial superfluidade do trabalho. Por certo, não para assistir ao
espetáculo da degradação e fechar-se na reificação como condition humaine de uma era
terminal204, mas para compreender a unidade contraditória de razão e mito, modernidade e
arcaísmo, indivíduo burguês e possibilidade de constituição de um sujeito emancipatório no

200 Ibidem, p. 262 e 267; trad. 2003, p. 247e 252. Para uma leitura complementar ver, Duarte, 2011 e 2010.
201Cf. Emrich, 1985, p. 212-3. Logo que assume a função de operário técnico, Karl pensa em “disciplina” e nova
integração no sistema em vez de autonomia, livre indisponibilidade, “justiça” ou “unidade livre de trabalho e jogo”.
202 Idem, p. 283; trad., p. 266.
203 Ao contrário do que pensam comentadores como L. Janvier (1988, p. 148-9), o riso beckettiano não vem
propriamente de Sírius (tal como também em Machado de Assis), mas da imanência do sofrimento e da derrisão
dos de baixo, podendo revelar-se como uma voz de escárnio socialmente situada, contendo marcas da dominação
de classe, sendo às vezes internalizada pelos próprios oprimidos, metamorfoseando-se ainda no alívio e na
conciliação imaginária com a própria derrota. O riso de Hamm em Fim de partida (“Tudo isso é muito divertido. E
se a gente desse umas boas gargalhadas juntos?”) ou de Nell (“Nada é mais engraçado que a infelicidade, com
certeza.”, Beckett, 2002: 62 e 117) é o mesmo ensinado pelo gentleman Mr. Hackett a Watt: “o riso dos risos, o risus
purus, o riso que ri do riso, a contemplação, a saudação da piada mais alta, o riso que ri – silêncio, por favor – do
que é infeliz” (Beckett, 2009, p. 40). Clov, o clown martelado por Hamm, não ri mais. Seu jogo/simulação ganha a
forma corrosiva do riso irônico forçado e proposital, que expõe a ficção e fura a encenação teatral: “A coisa está
esquentando. (Sobe na escada, dirige a luneta para o exterior, ela escapa-lhe das mãos, cai. Pausa). Fiz de propósito.
(Desce, pega a luneta, examina-a, dirige-a para a plateia) Vejo… uma multidão… delirando de alegria. (Pausa)
Isso é que eu chamo de lentes de aumento. (Abaixa a luneta, volta-se para Hamm). E então? A gente não ri?”
(Beckett, 2002, p.76; cf. orig.: 2006, p. 106).
204 Adorno, 2002, p. 242; Adorno, 1984, p. 206.
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tempo que resta. Retomando a exposição de Adorno anteriormente referida sobre a dialética
de integração e desintegração:

“O processo foi desmascarado como repetição; a arte deve se envergonhar


disso. Na arte moderna é cifrado o postulado de uma arte que não se curva à
disjunção de estática e dinâmica. Beckett, indiferente contra o clichê
dominante do desenvolvimento, vê sua tarefa como a de mover-se em um
espaço infinitamente pequeno, num ponto sem dimensão. Este princípio de
construção estética, como o princípio do Il faut continuer, vai além da
estática; e vai além da dinâmica, pois é, ao mesmo tempo, um princípio de
andar em falso, reconhecendo a sua futilidade. Em concordância com isso,
todas as tendências construtivistas tendem para a estática. O telos da
dinâmica do sempre-igual é apenas a desgraça [Unheil]; a poética de Beckett
olha-a nos olhos. A consciência percebe a limitação do progresso ilimitado
autossuficiente como uma ilusão do sujeito absoluto, e o trabalho social
zomba esteticamente do pathos burguês uma vez que a superfluidade do
trabalho realmente pode ser alcançada.”205

Se o trajeto das personagens kafkianas dava corpo à mobilidade frenética do


trabalhador abstrato que terminava por se reconhecer como refugo proletário, em Beckett
temos sua estação terminal numa espécie de fuga rumo ao abismo sem meias tintas, que
simbolicamente poderia ser lida como desejo de ruptura do tecido social e de sua lógica de
troca reificada. É fato porém que o texto beckettiano é resistente às leituras simbólicas.
Entretanto, como Schwarz decifra na figura de Odradek, aqui temos uma “construção lógica e
estrita da negação da vida burguesa”, um “esquema da sua negação”206, que se desprende de
contextos particulares construídos pela prosa, como veremos, p. ex., nos finais de Malone
morre e Fim de partida. Suas criaturas erram e se debatem incessantemente por territórios
ameaçadores, ruas, prisões e outros lugares confinados, às vezes encarceradas no éter de uma
consciência cartesiana turva que se imagina livre207, em geral habitando um corpo cindido,
claudicante e moribundo, cuja não-vida se resume, assim, às memórias traumáticas e à
narração ficcional de situações catastróficas, sempre à espera da morte, que nunca vem.
Nenhum solo positivo pode ser pisado, nenhuma saída real pode ser encontrada, nenhum
particular pode elevar-se a exemplo e símbolo universal – mas a recusa radical dessa não-vida
é aqui sugerida com toda a força alegórica acumulada pelo melhor modernismo.

Desde sua primeira prosa dos anos 30 e 40, trata-se da recusa do trabalho e das
coerções da sociedade da mercadoria por esses sujeitos “cartesianos” malogrados e sem

205 Adorno, 2002, p. 224, grifo meu.


206 Schwarz, 1978, p. 24.
207 “Murphy sentia-se partido em dois, de um lado o corpo, de outro o espírito. Aparentemente, comunicavam-se
entre si, caso contrário ele não teria descoberto que possuíam alguma coisa em comum. (…) “a sensação, cada vez
mais forte conforme Murphy envelhecia, de que seu espírito era um sistema fechado, livre de todo princípio de
mudança salvo o seu próprio, autossuficiente e impermeável às vicissitudes do corpo” (Beckett, [1938] 2013, p. 86-
7).
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dinheiro, ainda capazes de frieza analítica de situações sem saída – “Eles me vestiram e me
deram dinheiro. Eu sabia para que o dinheiro devia servir, devia servir para me fazer sair do
lugar. Quando eu o tivesse gastado deveria arranjar mais, se quisesse continuar”208 –, tanto
quanto buscam o escape ou um abrigo que os amparasse contra a mobilização forçada do
sistema. Um abrigo que se sabe como parte da realidade histórica da dominação do trabalho e
do estado de exceção, e se converte no pesadelo real (mesmo que projetado de modo
imaginário-fictício por seus narradores) de casas-prisões e hospitais psiquiátricos (como em
Molloy e em Malone morre), quando não formas de uso e espoliação em condições extremas,
como no restaurante imaginado no limbo numa cidade inóspita (como n’O Inominável), de
missões de perseguição, recrutamento militar, ocupação colonial e treinamentos de técnicas
de tortura (em Como é), ou um bunker após o apocalipse nuclear (como em Fim de Partida).
Dominação que não cessa então de coagir e performar os pensamentos, as fantasias e os
comportamentos alienados, terminando por invadir e ocupar toda a trama ruinosa das
histórias criadas por esses “narradores narrados”. Reflexão da pura forma construída
mediante personagens que pouco terão do sujeito burguês tipicamente autônomo, reflexivo e
integrado ao mercado. Uma certa crueldade sadomasoquista trespassa tais caracteres, e é só
em seu completo fiasco que tornam a situação universal da dominação e do sofrimento algo
consciente, enquanto matéria de reflexão exterior ao plano do enunciado e da consciência dos
narradores. Para fechar, assim, vamos repassar esse percurso com algum nível de
detalhamento.

Em Murphy (1934-36/1938), Watt (1943-45/1953) e nas Novelas (“O expulso”, “O


calmante” e “O fim”, 1946-47), Beckett logo encontra o lugar para uma crítica radical dessa
forma de ideologia do trabalho, cruzando fogo contra a pseudopráxis policialesca dos oradores
burocráticos, fascistas e stalinistas do seu tempo, percebidos como “fanáticos religiosos” por
um de seus primeiros vagabundos (depois de trapaceado e roubado pela gente boa, fria e
incrédula), identificado na multidão

“União… irmãos… Marx… capital… bife… amor. Eu não entendia nada. O


carro estava parado junto da calçada na minha frente, eu via o orador de
costas. De repente ele se virou e me pôs na berlinda. Olhem esse maltrapilho,
clamava, esse dejeto. Se não fica de quatro é porque tem medo da carrocinha.
Velho, piolhento, podre, pronto para o lixo. E existem mil como ele, piores do
que ele, dez mil, vinte mil. - Uma voz, Trinta mil. (…) O orador retomou,
Todos os dias vocês passam em frente e quando ganham nas corridas largam
suas migalhas. Vocês já pensaram? A voz, Não. Claro que não, continuou, faz
parte do cenário. Um pêni, dois pênis – A voz, Não, Três pênis. Não lhes passa

208 Beckett, [1946] 2006b, p. 53, (“O fim”).


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pela cabeça, continuou, que é a servidão, o embrutecimento, o assassinato


organizado, que vocês incentivam assim com suas dádivas criminosas.”209

O que aparece como “positivo” aqui é essa negação da negação, que reitera as coordenadas do
sistema. A “não-identidade” latente, ao contrário, ainda busca sua posição determinada. Mas
a sensação é de que “alguma coisa segue o seu curso”, como dirá Clov210. De modo que a grande
robinsonada – com a clara recuperação de traços da literatura picaresca, do romance de
aventuras e relatos policiais já presentes em Kafka – torna-se um passo adiante de sua própria
negação: na liberdade negativa que define suas personagens como marginais,
desempregadas, desprovidas de objeto e de si mesmas, até de um corpo funcional – não
obstante forçadas ao emprego, ou administradas e vigiadas por agentes de um sistema de
poderes obscuros – é nessa “liberdade” abstrata negativa que reside a alta tensão contida por
sua prosa. É exatamente esta tensão social que suprime a ideia de personagens meramente
solipsistas e fechadas em si. É o que aparece desde as primeiras linhas de Molloy:

“Estou no quarto de minha mãe. Sou eu que mora lá agora. Não sei como
cheguei lá. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente. Me
ajudaram. Sozinho não teria chegado. Esse homem que vem toda semana, é
graças a ele talvez que estou aqui. Ele diz que não. Ele me dá um pouco de
dinheiro e leva as folhas. Tantas folhas, tanto dinheiro. Sim, trabalho agora,
um pouco como antigamente, só que não sei mais trabalhar. Isso não tem
importância, ao que parece. Eu, eu gostaria agora de falar das coisas que me
restam, me despedir, terminar de morrer. Eles não querem. Sim, eles são
muitos, ao que parece. Mas é sempre o mesmo que vem. (..) Quando não faço
nada, não me dá nada, me repreende. No entanto, não trabalho por dinheiro.
Por que então? Não sei. Não sei grande coisa, francamente”.211

Molloy dirá estar à procura da mãe, da qual ele pouco sabe e que talvez já faleceu. Com
o que só lhe restará a errância pela ilha e a cidade, a praia, os campos e florestas, até descambar
numa vala e lá ficar, bem como posteriormente o registro autoficcional precário dessa aventura
que ele descreverá como uma “viagem” perigosa. Sim, ele “trabalha” agora, um pouco como
costumava fazer, mas “I don’t know how to work any more”212. Aventura que ele associa então
explicitamente à “nave negra de Ulisses”: o confronto com policiais, assistentes sociais,
enfermeiros do Exército da Salvação, possíveis linchadores de maltrapilhos das ruas como ele
(os “justos”, “justiceiros” e “vigilantes”213), além da Circe sedutora como Lousse e os “mólis”

209 Ibidem, p. 75-6.


210 Beckett, 2006a (“Engame”), p. 107; trad. brasileira, 2002, p.55.
211 Beckett, [1947/1951] 1963, p. 7; trad. 2007, p. 23 (trad. brasileira de A na H. Souza).
212 Beckett, 1965, p. 7, tradução para o inglês de P. Bowles e S. Beckett.
213 Ibidem, trad., 2007, p. 58, 96, 99.
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entorpecentes por ela manipulados para aprisioná-lo numa espécie de casa-sanatório214. Ele
mesmo contudo mata o cachorro de Lousse num estranho encontro-colisão na rua, foge desse
sanatório velado e bate (e talvez mata) com um bastão um outro andarilho desconhecido com
que cruza no campo. Figuras que se combinam em sua mente desordenada, assim, como
potenciais perseguidores ou agentes de controle e repressão. Dentre eles a personagem de
Moran que é revelada na segunda parte da obra (que está sendo contada e escrita por Molloy,
afinal?) como um outro narrador em primeira pessoa (“autodiegético”) como um agente que
tem a missão de se “ocupar de Molloy”215 a mando do mensageiro Gaber, cujo chefe é Youdi216.
Tudo se passa como se Molloy fosse o duplo secreto de Moran, ou melhor, um estágio mais
decrépito e avançado de Moran, cuja história ele representasse como sua face oculta meio real,
meio fantasiosa, cuja história enfim tem um maior nível de coerência, coesão e armação lógica
– mas a lógica do típico intelecto autocrático de um agente secreto que, mais tarde decaído e
transfigurado em Molloy, parece expor a sua própria posição autoritária. Moran dá várias
mostras de sofrer o efeito da super-integração como desintegração social, mental e corporal.
Molloy aparece assim como uma espécie de libertação relativa e ambivalente desse Outro
perverso, obcecado como não poderia deixar de ser pela Ordem da religião, do trabalho e do
patriarcado, descobrindo seu avesso na desagregação desse mundo. “O fato é, parece, que tudo
o que se pode esperar é ser um pouco menos, no fim, aquele que se era no começo, e na
continuação”217. Assim, Molloy passa a identificar-se às vítimas sofredoras, aos trabalhadores,
aos párias, aos animais nos matadouros que infestam campos e cidades218. Uma história
repleta de afirmações e desmentidos, enfim, como se tivesse sendo escrita ad hoc para esses
muitos agentes/perseguidores que o coagem no quarto atual em troca de abrigo, comida e “um
pouco de dinheiro”. Muito longe do comum, o livro exibe então uma estrutura complexa
construída a partir dessa duplicidade especular fundamental carregada de tensões e
ambivalências219.

214 Cf. Phillips, 1984. Na Odisseia (Canto X, 302-306), Hermes fornece um “móli” a Odisseu como contraveneno
mágico para enfrentar o encanto de Circe. No romance, os “mólis” são entorpecentes ou remédios psiquiátricos
administrados por Lousse (que faz assim o papel de Circe). (Beckett, [1947-1951]/1963, p. 66 e 71; Trad.: 1965, p.
51 e 54; 2007, p. 78 e 82).
215 Ibidem, 1963, p. 123; trad., 2007, p. 131.
216 Ibidem, 2007, p. 151.
217 Ibidem, p. 55.
218 Assim, por exemplo, a certa altura Molloy se identificará às ovelhas, ao balido do rebanho, que pode estar indo
ao campo ou aos matadouros na cidade, que estão “em toda parte, no campo também, qualquer açougueiro tem seu
matadouro e o direito de matar, segundo suas necessidades” (…) “o que fez despertar em mim despertar em mim
auma perplexidade de fôlego, com relação ao destino daquelas ovelhas” (Beckett, 2007, p. 50-1). Esse duplo
referente dos animais e do matadouro atravessa a trilogia, associando os homens ao trabalho fabril de massas e aos
animais in-sacrificáveis cujo paradigma seriam, segundo Agamben, os campos de concentração.
219 Note-se que esse irrisório móli venenoso remete como significante alegórico à mãe de Molloy (que Moran troca
às vezes por “Mollose”), que teria o mesmo nome do filho, o puro significante que mobiliza então Molloy e Moran,
duplicando-se parcialmente em Lousse, que aprisiona Molloy numa espécie de casa-sanatório, a qual guarda certo
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Antes de passarmos ao desfecho da primeira trilogia e a Fim de partida, o ponto alto


de sua produção, vejamos o que se dá a partir do fim dos anos 50. A partir desse ponto, essa
voz narrativa contraditória, atravessada pelo intelecto autocrático e sua afecção objetiva pela
experiência de um nós coletivo de massa proletarizada, dominada e disfuncional – portando
assim sua cor ambivalente e seu ritmo oscilante entre a sensibilidade face à alienação e o
sofrimento e a crueldade protofascista –, ganha pleno vigor em meio à sua procura da
“desintegração completa”.

O texto tortuoso de Como é (1958/1961) realiza uma internalização formal alegórica do


domínio neocolonial francês e da guerra de libertação da Argélia220, baseando-se
especialmente em relatórios sobre tortura e a vida dos colonos pied-noire (talvez seguindo os
passos de La peste, de Camus, e de vários livros da editora Minuit). Na primeira parte, o
narrador já dá sinais de ser um torturador do império (Pim será o nome da vítima): um
“monstro das solidões”221 em constante viagem por mar em “todas as latitudes todas as
longitudes”222, mas que agora, na atualidade, rasteja na pura lama misturada de merda, urina
e vômito (suas “grandes categorias do ser”223), carregado apenas de um saco de juta com latas
de conserva mofadas, um abridor, uma corda e um relógio. Chafurdando como um porco ou
um pato na lama, repleto de ressonâncias dantescas, deparamos logo com uma voz intrusiva
que lhe “dita” o texto e é denominada “quaqua”, que pode ser lida também como um corte
abrupto da voz humana, expressando sua alienação e animalização. Através dessa primeira
pessoa cindida e ambivalente, portanto, ele conta o que era o mundo “da luz” “antes de Pim”,
“a vida lá em cima” (i.e, a civilização europeia), apresentando sua vida burguesa marcada por
negócios fracassados e empregos de merda224, “no fim de alegrias passageiras e de tristezas de
impérios que nascem e morrem como se nada tivesse acontecido”225. Na segunda parte, o
torturador das profundezas escuras da lama entra em ação para além de suas grandes
categorias do ser, confundindo-se corporalmente ou mesmo atando-se a Pim, ambos

ar de semelhança com o quarto em que Molloy está morando e, finalmente, com o campo prisional ou hospital
psiquiátrico habitado por Malone e recriado por este para representar o destino de Saposcat/Macmann, cujo avatar
final serão as figuras mutiladas e reduzidas à pura voz de um cogito impessoal alienado do Inominável
(Basile/Mahood e Worm).
220 Morin, 2017, p. 232-35.
221 Beckett, [1961]/2003a , p. 18.
222 Ibidem, p. 84, 97-8. A sugestão do universo da Odisseia e de Robinson parece clara. Em letra minúscula,
certamente para rebaixar, “homero” é citado, abrindo um parágrafo: “homero luz malva do anoitecer (…)”, fazendo
eco ao anterior, que dizia algo sobre arrastar-se de joelhos no “fim do mundo”, “de joelhos subindo os passadiços
entre conveses como os emigrantes” (Ibidem, p. 102).
223 Ibidem, p. 19.
224 Assim, “minha vida em cima o que fiz na minha vida em cima um pouco de tudo tentei de tudo então desisti
não pior sempre um buraco uma ruína sempre uma crosta nunca bom para nada nem feito para aquela farragem
complicado demais arrastar-se pelos cantos e dormir tudo que eu queria consegui nada restou só ir para o céu”
(Ibidem, p. 90).
225 Ibidem, p. 17 e 19.
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mergulhados nessa lama imperial. Aqui ele apresenta seus “treinamentos” como “lições” sobre
técnicas de tortura, que incluem unhadas no sovaco, porradas no crânio e no rim, estocadas
do abridor de latas no ânus226, e mesmo uma tatuagem continuamente gravada “nas costas de
Pim intactas no princípio da esquerda para a direita e de cima para baixo como em nossa
civilização gravo minhas maiúsculas romanas”227. É o triunfo da “orgia do falso ser vida em
comum vergonhas breves”228 e de um “sadismo puro e simples não já que não devo gritar”.229
Desse modo, segundo esse narrador ensimesmado e sem limites, Pim tem a “voz extorquida”
ou nada diz, apenas grita, engole lama ou “canta” após os tormentos, como um “babaca”, uma
canção “estrangeira”, “oriental” e “totalmente fora de propósito”230.

Segmentos aleatórios mas precisos deixam entrever, contudo, que sempre há “algo
errado aí”231, principalmente na passagem do tempo, pois o relógio parado não pode eliminar
o registro de algum “progresso” no curso dessa história natural da dominação, “quatrocentos
anos que insurreições”232; ou que a canção de Pim é cantada não no passado, mas “se eleva no
presente lá vai de novo no presente”233. Claro prenúncio inicial da ruína e da desgraça já
pressagiada no início e na segunda parte, onde já colocara em dúvida a doutrina puritana da
“graça”234. A terceira parte, “depois de Pim”, tal como anunciado na introdução, alude aos
“bocados e sobras” dessa memória traumática de terrorismo de estado, ”trabalho” e fracasso
lá na vida em cima, um “vasto passado próximo e distante”, mas sem nenhum remorso. Pois
como dirá a voz cristalina: “Ao invés de terminar abandonado termino como torturador”235. O
texto parece tornar-se ainda mais elíptico e truncado a fim de expor o recalque histórico da
dominação neocolonial e a decadência social e psíquica; o narrador divide-se entre a “paixão
irresistível” da velha brutalidade perdida, i.e., a fantasia de repetição do gozo absoluto do

226 Ibidem, p. 67-80.


227 Ibidem, p. 81-3. As várias palavras e frases são tatuadas são grafadas a unha em maiúsculas. Num trecho, o
narrador se identifica pelas iniciais “BOM” (“ele pode me chamar de Bom para maior comodidade isso me agradaria
m no final e uma sílaba o resto indiferente/ BOM gravado pela minha unha transversal ao cu a vogal no buraco”,
que tem a vida de um “Bom senhor” (ibidem, p. 71).
228 Ibidem, p. 80.
229 Ibidem, p. 74.
230 Ibidem, p. 27, 66-8, 74, 76-8.
231Assim, para citar apenas duas pequenas passagens dessa dialética de desintegração do império: “bom um
semelhante mais ou menos mas homem mulher menina ou menino gritos não têm nem certos gritos sexo nem
idade tento virá-lo para cima não o lado direito ainda menos o esquerdo menos ainda minhas forças se esvaindo
bom bom nunca conhecerei Pim só de bruços (…) eu o digo como ouço e murmuro na lama que me iço se posso
dizer assim um pouco para frente para sentir o crânio é calvo não apagar o rosto é melhor uma massa de pêlos todos
brancos ao tato iso se confirma ele é um velhinho somos dois velhinhos algo errado aí”, Ibidem, p. 64. “Algo errado
aí” é um das frases randômicas do texto.
232 Ibidem, p. 28.
233 Ibidem, p. 74.
234 Como no trecho: “sacos que se esvaziam e arrebentam outros nunca será que é possível o velho negócio da
graça neste esgoto por que nos querer todos iguais alguns desaparecem outros nunca” (ibidem, p. 72).
235 Ibidem, p. 145.
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corpo escravo de Pim, e as alusões a um estágio de si/nós coletivo de “torturadores promovidos


vítimas passadas se isto jamais passa e por vir (...)”236 e a sua paródica entrada no céu. A
respiração sempre ofegante parece ser o resultado do esforço ininterrupto do rastejar e do
torturar, ou seja, da impunidade da tortura e dos torturadores (“na justiça e a salvaguarda de
nossas atividades essenciais”, “(...)punição talvez por seus recentes esforços mas efeito
também de nossa justiça”237), do terror que continua tal como era antes de Pim ou com Pim e
tal “Como é” agora depois de Pim. Na desordem e mistura geral dos tempos que se cruzam nas
três partes do texto temos a expressão formal do regime de exceção e da ruptura de todos os
limites entre o mesmo e o outro em geral, ou seja, entre o passado e o presente, a lei e a
exceção, o sujeito e o gozo absoluto. Por isso, quaqua é uma voz superegóica coletiva em
desmanche: “a ofegação pára e eu sou um instante este velho sempre se apoucando pouco que
eu acho que ouço de uma voz antiga quaqua por todos os lados a voz de todos nós todos tantos
quanto sejamos tantos quanto terminarmos se jamais terminarmos por ter sido algo errado
aí”.238 A ofegação torna-se o índice de um estado terminal do velho torturador que, no início
da terceira parte, vai “afundando rápido forte demais sem mais cabeça imaginação gasta sem
mais fôlego”239. Nas páginas finais, o que resta lá “em cima” é nenhum Bom, Bem, apenas um
farrapo de “eu” monológico e abstrato, reduzido a um ponto de extravasamento da mesma
pulsão destrutiva, uma pura ferida-cicatriz tatuada numa cabeça enlouquecida que apenas se
afirma: “só eu em todo caso sim sozinho sim na lama sim no escuro sim isto se sustenta sim”
(…). Mas ‘CADA VEZ PIOR” e “CADA VEZ MENOS sim”240.

Em Mal visto, mal dito (1979-1981), um outro narrador instala-se no “manicômio do


crânio” diante de um objeto resistente e enigmático: uma mulher velha vestida de preto,
vivendo solitária numa cabana no campo, onde “ela não precisa de nada”. Aparentemente
alheia à contrainte sociale, ela passa o dia a andar e olhar uma paisagem de pedras, ovelhas e
um túmulo distante. Uma personagem-objeto que se furta ao seu olhar devorador, repleto de
“carcaça e desatino”, mas que se invertendo parece se identificar e se confundir com o olhar
da própria mulher diante dos vestígios mortos da paisagem241. Tal narrador termina
observando seu suposto “colapso”, numa “queda abrupta” e “desabamento geral” na cabana,
restando enfim seu olhar aberto mas imóvel (“Olhar? Palavra parca demais”) diante da noite
escura, ausente de bens, vestígios e ilusões. Um olhar gozoso fundido à velha moribunda até o

236 Ibidem, p. 120.


237 Ibidem, p. 159-60.
238 Ibidem, p. 121.
239 Ibidem, p. 115.
240 Ibidem, p. 163-164.
241 Beckett, 2008, p. 42, 45-6. Com ressonâncias autobiográficas, o texto parece referir-se aos dias finais da mãe
de Beckett como viúva vivendo numa cabana isolada, segundo informa F. Souza Andrade (ibid., p. XVIII).
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último segundo: “Mais um último segundo. Só um. O tempo de aspirar esse vazio. Conhecer a
felicidade”242.

Ora, uma tal doutrina de freio e fidelidade ética do olhar a um objeto específico,
pressuposta na subtração crítica do sujeito ao mundo funcional, prossegue em Worstward Ho
[Pioravante, marche!] (1983): a negatividade autodeterminada do discurso é assumida como
ponto de vista corporalmente fundado, que permitiria dizer o objeto determinado em sua não-
identidade real com expressões de um sujeito reificado em declínio ou conceitos e ideias
surrados e hipostasiados. Não um discurso puro, coerente e ideal, mas ao contrário um
discurso impuro, que dá lugar ao negativo e à contradição. Aqui o tema de O Inominável ganha
rigor máximo. Assumir os riscos de um discurso “mal dito”, que bloqueia a má infinidade da
tagarelice e supera tanto a dispersão do olhar como a falsa clareza e o discurso sobre o discurso.
Como diz o incipit da obra, trata-se de ir:

“Adiante. Dizer adiante. Ser dito adiante. De algum modo adiante. Até que de
nenhum modo adiante. Dito de nenhum modo adiante [Said nohow on].
Dizer por ser dito. Dito mal. Desde agora dizer por ser dito mal.
Dizer um corpo. Onde nenhum. Nenhuma mente. Onde nenhuma. Isso pelo
menos. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar nele. (…) Tentar de
novo. Falhar de novo. Falhar melhor”.243
É assim que Beckett reata as duas pontas de sua obra, que iniciara questionando as noções de
Experiência, Hábito e Memória tal como refletidas pelo romance de Proust: como transformar
o “tédio de viver” pelo “sofrimento de ser: isto é, o livre jogo de todas as faculdades”, tornando-
se uma escrita potente para determinar a não-identidade de um “objeto que resiste às
proposições de seu esquadrão de sínteses”244. E não será exatamente esse livre “sofrimento de
ser” que se desenvolve nas três personagens mais interessantes de Beckett: Malone, o
Inominável e Clov?

242 Ibidem, p. 66-68.


243 Beckett, 1991, p. 101; Trad. 2012, p. 65, traduzido como “Pra frente o pior”.
244 A temática do ensaio de Beckett sobre Proust (1931) aproxima-se muito de todo o debate de Benjamin e Adorno
sobre o conceito de memória, vivência e experiência em Proust: “Porque a devoção perniciosa ao hábito paralisa
nossa atenção, anestesia todas as servas da percepção” (…), subjugando e reduzindo todo fenômeno estranho “à
condição de um conceito familiar e confortável”. O hábito torna-se segundo Proust “uma segunda natureza”, “que
nos conserva em ignorância da primeira e está livre de suas crueldades e de seus encantos”. O momento de
verdadeira experiência é o “da morte do Hábito e a breve suspensão de sua vigilância”, isto é, um instante de ruptura
introduzida pela memória involuntária: “Mas quando o objeto é percebido como particular e único e não como
simples membro de uma família, quando ele aparece independente de qualquer noção geral e desligado da sanidade
de uma causa, isolado e inexplicável à luz da ignorância, então e somente então poderá ser uma fonte de
encantamento”, ou seja, como um “objeto que resiste às proposições de seu esquadrão de sínteses”, capaz de revelar
a essência do objeto por trás da “névoa dos conceitos – dos preconceitos” (Beckett, [1931] 2003b, p. 18-23). É esse
choque do vivido que desata uma cadeia de lembranças que reaparece em momentos centrais da obra de Beckett,
como veremos adiante em Malone morre e Fim de Partida.
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Assim, em Malone morre (1947/1951) o que parece estar na cama à beira da morte é
uma certa versão de Molloy (e de Moran), ou mesmo das personagens de seus textos
anteriores, por certo num estágio de paralisia corporal ainda mais severo, mas sem a paralisia
da mente e do sentimento do tempo de criação ficcional, ao contrário: um olhar de “artista”
capaz de transcender fatos da superfície e fantasiar o “como é” da coisa social. As páginas
iniciais do romance deixam claro o programa narrativo de Malone, de cunho alegórico, que
pretende coincidir em seu desfecho com um dia de glória: o dia de São João, a Páscoa ou a
Queda da Bastilha, “a festa da liberdade”245. Exatamente como Molloy, Malone sente-se
“abusado” por agentes sinistros para os quais escreve em troca de alimento e cuidados básicos.
Como um virtuose da falha, ele tem o maior cuidado em parodiar e desmontar as estruturas
do romance burguês, tornando o texto falsamente cômico ou trágico, às vezes árido e tedioso,
às vezes lírico. Nas histórias de fracasso que cria (e se projeta), o mundo de camponeses e da
pequena burguesia perde seu chão e declina na proletarização: assim com o drama da família
Saposcat, da vida “cheia de axiomas”, da mãe e do filho (Sapo) sujeitados e brutalizados pelo
pai autoritário e impotente, que sonhava apenas em “assalariar” ou tornar o filho mais
“útil”246; o que se repete com a família camponesa vizinha dos Louis (que parece aludir ao
Louis Lambert de Balzac, à fantasia de autocastração) e finalmente se transfere para a grande
cidade em sua última figuração desse mesmo sujeito abstrato sem dinheiro - “Macmann”247. A
continuidade do relato, entrecortada por flashes da situação atual de Malone sobrevivendo na
casa sitiada, num sugestivo cenário de aviões em voos rasantes típicos da segunda guerra248,
converge gradualmente para o hospício ou campo prisional (“São João de Deus”) que aprisiona
Macmann (todos vestidos de “capa listrada de azul e branco como nos açougues”249) e funciona
como emblema alegórico do destino social de todas essas personagens excluídas e largadas à
própria sorte. Aqui, em seu plano ficcional Malone encontra-se com os seus “materiais”, com
o clochard sentado no banco (Macmann), os trabalhadores e os “justiceiros” protofascistas da
massa: “por toda parte é a multidão dos de saco cheio, pegando as passagens, carregando as
malas, eternamente lá no lugar errado na hora errada.”250 O fim contudo não é a prisão ou a
morte de Malone/Macmann. É o esquema alegórico de uma fuga após uma viravolta no
manicômio-prisão em meio a um passeio numa ilha, em que Macmann se une aos prisioneiros

245“Estarei em breve apesar de tudo completamente morto enfim. Talvez no mês que vem. Será então o mês de
abril ou de maio. Pois o ano avançou pouco, mil pequenos indícios me dizem isso. Pode ser que me engane e que
passe do São João e até do Quatorze de Julho, festa da liberdade” (Beckett, 1965, p. 179, ; trad. bras., 2014, p. 21).
Malone fala nesse programa adiante (ibidem, 2014, p. 142).
246 Ibidem, p. 31-2.
247 Ibidem, p. 78 e ss.
248 ‘Ibidem, p. 143.
249 Ibidem, p. 140.
250 Ibidem, 2014, p. 79.
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e ao carcereiro Lemuel (uma possível fusão de nomes: Lenin+Samuel). De modo que a rica
filantropa “Madame Pédal” é abandonada na ilha após os soldados-vigias serem assassinados
por Lemuel – num momento singular em que os prisioneiros agem em conjunto para um
motim, pela primeira vez deixando de ser mônadas isoladas. Malone parece desfalecer e
interrompe o texto, mas antes Macmann sobrevive com os companheiros no barco tomado:
“Este emaranhado de corpos cinzentos são eles. Não são mais, na noite, que um só amontoado,
silencioso, a custo visível, agarrando-se talvez uns aos outros, as cabeças cegas dentro das
capas. Estão longe da baía, Lemuel não rema mais, os remos se arrastam na água”. E se lermos
com cuidado as últimas linhas, veremos que Lemuel ergue de novo seu “machado” – que se
converte simbolicamente no pequeno lápis “Vênus” de Malone – já “não é para bater em
ninguém, não baterá mais em ninguém, não tocará nunca mais em ninguém (…) nem com ele
nem com seu martelo nem com seu bastão (…) nem com seu lápis nem com seu bastão nem/
nem luzes luzes quero dizer” (…) porque se trata de negar toda a semente da violência social:
“ele não tocará nunca/ aí nunca/ aí está aí está/ nunca mais [plus rien/ any more]”251. Os
enjambements no final introduzem uma ordem lírica que interrompe a prosa do mundo.
Nunca mais – este também o sentido oblíquo do título em inglês, que desintegrado expressa
que Man Alone Dies.

O “sentido” fragmentário de Mahood e Worm em O inominável (1949/1953) é


sintetizar, de modo similar aos textos anteriores, essa particularidade histórica de um
“sujeito” de classe em desintegração que não se pode mais nomear um indivíduo “autônomo”
e “isolado”: “nós todos não fazemos mais que um”252. De modo que as questões iniciais – “Onde
agora? Quando agora? Quem agora?” - são já meditações que põem abaixo a moldura do
romance individualista centrado na “ação” e no “fazer algo” burguês – um fazer sempre
codeterminado pelas leis do capital: “Não farei mais perguntas. Você só pensa em descansar,
para agir melhor depois, ou sem segundas intenções, e eis que em muito pouco tempo já se
está na impossibilidade de nunca mais fazer nada” (…). “Parece que falo, não sou eu, de mim,
não é de mim”253. O que imediatamente põe o problema da forma: “Como fazer? Como vou
fazer, que devo fazer, na situação em que estou, como proceder?’254.

Esse narrador inominável e impessoal cria assim personificações de si e um fiapo de


enredo errático, descontínuo, por vezes caótico – um “pensamento vagabundo”, “não somos
merceeiros”, não obstante ainda ter um “espírito de método, ao qual talvez eu esteja sujeito

251 Ibidem, 1965, p. 288; trad., 2014, p. 154-5, grifos meus.


252 Beckett, ]1953] 2009, p. 59.
253 Ibidem, p. 29.
254 Ibidem.
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um pouco demais”255 –, em que se discernem claramente, entretanto, os apuros de uma vida


sem eira nem beira, sempre em movimento de exteriorização e perda de si na alienação.
Enquanto Mahood, o Inominável se imagina materializado em um corpo só tronco, cabeça
ferida, com visão e audição debilitadas, enfiado até o crânio num jarro fundo como um
ramalhete de flores, portando luzes e enfeites e acorrentado a esse vaso, pois é coagido a
desempenhar a função de poste de propaganda e porta-cardápio de um pequeno restaurante
(“um ativo inegável”, “um pequeno capital”). A polícia o “tolera”, pois sabe que ele não terá
como aproveitar sua “situação para amotinar a população contra seus dirigentes, por meio de
discursos inflamados”256. Em frente ao abatedouro da cidade, sempre suplicando aos
transeuntes, ele estará “fadado ao descarte, mais cedo ou mais tarde”257 tal como os sacos de
lixo com os restos do prato do dia. Por vezes ele se sente então numa “ilha” como Molloy
(“estou na ilha, eu nunca deixei a ilha”), lembrando furtivamente seus “compatriotas,
contemporâneos, correligionários e companheiros de angústia [distress]”, invocando então
seus duplos, Murphy, Watt, Mercier, Malone e Molloy258. Mais à frente, a voz narrativa se
representa em Worm: um “monte informe” que ainda assim servirá de cobaia para observação
de especialistas259. Assim, se é dito aqui que “pouco importa o sujeito, não há um”, é porque
esse ser não se tornou ainda o homo economicus ou o bom cidadão do Estado moderno, mas
um “nós” inominável e resistente que tem a pura forma embrionária da vida não nascida (como
um espermatozoide ou um feto), sem consciência, voz, só um corpo e espaço diminutos:
“Quem, nós? Não falem todos ao mesmo tempo, isso também não adianta nada” (…) “chamam
isso de viver, a centelha está lá, para eles, precisa apenas inflamar-se”260. Mesmo aqui, neste
contexto histórico sitiado, sua única e pequena “esperança” é nascer e ter um “mestre” num
deserto: “ele irá sozinho, em direção ao seu mestre, e a sua longa sombra o seguirá através do
deserto (…) Worm verá a luz do dia no deserto”.261 De modo análogo, o Inominável está à
procura do “verdadeiro silêncio” onde poderia parar, voltar a si para simplesmente vir a ser,
pois “talvez tenha dito o que era preciso dizer, o que me dá direito de calar, de não mais escutar,
não mais ouvir, sem sabê-lo”262. Mas a aporia é exatamente esta, não poder parar por ser
atravessado pelas vozes alienadas, e ser punido “por ter se calado”: “impossível parar,
impossível continuar, mas devo continuar, então vou continuar”263. Se essa é a formulação

255 Ibidem, p. 130, 134 e 44, respectivamente.


256 Beckett, 1965, p. 326-7; trad. 2009, p. 74-77.
257 Ibidem, 2009, p. 133.
258 Beckett, 1965, p. 326-7; trad. 2009, p. 73-4.
259 Beckett, [1953] 2009, p. 112-3.
260 Ibidem, p. 117.
261 Ibidem, p. 124.
262 Ibidem, p. 159.
263 Ibidem, p. 160-1.
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inconsciente do princípio do trabalho abstrato e sua sentença de morte contra os inúteis, por
outro lado, ele deseja a imobilidade, o silêncio e o descanso, a superação da colonização geral
da vida por tal princípio: “me queria eu, queria a minha terra, me queria na minha terra, um
momentinho, não queria morrer como estrangeiro, entre estrangeiros, estrangeiro em minha
terra, no meio de invasores (…)”264. Mas é preciso achar uma saída, “dizer palavras (...) é
preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho
pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham dito”. Pois no fundo
não pode haver uma fala ”pura” ou “própria”, individual e solipsista, sem estar mediada por
significantes sociais. De modo que a estrutura formal encontrada pelo narrador, seu “como
fazer”, foi instalar-se na contradição, dramatizá-la, pois essas palavras “talvez já tenham me
levado até o limiar de minha história, isso me surpreenderia”. Daí o mote fundamental: “no
silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar”265.

Em Fim de partida (1954/56), é essa promessa de silêncio e ruptura em meio à


desintegração social já acontecida que se anuncia desde o início da peça, na fala de Clov:

“Clov: (Olhar fixo, voz neutra) Acabou, está acabando, quase acabando, deve
estar quase acabando. (Pausa) Os grãos se acumulam, um a um, e um dia, de
repente, lá está um monte, um amontoado, o monte impossível. (Pausa) Não
podem mais me punir. Vou para a minha cozinha, três por três metros por
três metros, esperar até que ele apite. É um bom tamanho. Vou me encostar
na mesa e olhar a parede, esperando que ele apite.”266
E mais adiante:

“Hamm: Em ordem!
Clov: (endireitando-se) Eu amo a ordem. É o meu sonho. Um mundo onde
tudo estivesse silencioso e imóvel, e cada coisa em seu lugar final, sob a
poeira final.”267
Para ele parece que há de se continuar jogando e esperando até que esse “monte
impossível” surja de repente no horizonte. O nome ambíguo da peça alude a esse jogo de
espera e acumulação de restos, que afinal inesperadamente chega. O seu célebre final
ambivalente, em que Clov, vestido para viagem, olha fixamente e fica imobilizado diante de
Hamm marca a mudança de sua postura sempre servil (simbolizada pelo cão de pelúcia de
Hamm, feito em pedaços), e que agora declara a ruptura pelo silêncio e a imobilidade diante
de seu despótico dépeupleur. A conversa sem sentido e a crueldade do tratamento entre as

264 Ibidem, p. 163. Como aponta Eagleton (2006, p.71), para além da paisagem estagnada pós-Auschwitz, a obra
de Beckett reflete também, na estrutura e no detalhe concreto, a questão colonial irlandesa e a história paralisada
de Joyce: “uma memória subliminar da Irlanda faminta, com sua cultura colonial monótona e puída, suas massas
desamparadas passivamente à espera de uma libertação Messiânica que nunca chega realmente”.
265 Ibidem, p. 184-5.
266 Beckett, [1956] 2002, p. 38-9.
267 Ibidem, p. 112.
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personagens, especialmente por parte de Hamm, esconde às vezes falas que dão o sentido
material da subordinação de Clov: “Hamm: Por que você não me mata? / Clov: não sei a
combinação da despensa”268. E Clov se pergunta também “por que obedeço sempre”...269. Fora
do refúgio ou abrigo, Hamm tenta nos convencer, “é a morte”270. Ora, tudo parece esgotado
também no interior do abrigo: tudo já é ali a morte em vida e sem futuro (a comida acabou,
Clov passa fome, Nell desfalece no latão, sem que Clov precise esperar por um futuro em que
restaria sozinho “como um pedregulho na estepe” (…), em que seria como Hamm “só que não
teria ninguém, porque você não terá se apiedado de ninguém e não haverá mais ninguém de
quem ter pena”271 etc.). Lá fora ninguém sabe praticamente o que há – e a parábola do homem
louco contada por Hamm pode ser lida como a sua própria história:

“Hamm: Conheci um homem louco que pensava que o fim do mundo tinha
chegado. Ele pintava. Eu gostava muito dele. Ia vê-lo no hospício. Eu o tomava
pela mão e o arrastava até a janela. Olhe! Ali! O trigo começa a brotar! E ali!
Olhe! As velas dos pesqueiros! (…) Ele me fazia soltar sua mão, bruscamente,
e voltava para o seu canto. Apavorado. Tinha visto apenas cinzas. (Pausa)
Apenas ele tinha sido poupado. (Pausa) Esquecido. (Pausa) Parece que o caso
não é… não era… tão… tão raro”272.
Hamm projeta cinza sobre cinza. O verdadeiro fim vem quando Clov detecta pela
luneta uma criança totalmente improvável no exterior do refúgio273. Hamm imediatamente
pensa em matá-lo, ou como ocupá-lo como trabalhador potencial, justamente por que talvez
eles não ignoram a ”vida” possível que ainda talvez reste lá fora após a catástrofe social e
ambiental acontecida274. Clov apenas espicaça-o com a interrogação irônica de que talvez seja

268 Ibidem, p. 46.


269 Ibidem, p. 137.
270 Ibidem, p. 48.
271 Ibidem, p. 86.
272 Ibidem,p. 97. Em nosso entender, a interpretação de Adorno aqui falha ao desconsiderar que essa percepção
do louco não coincide com a de Clov quando este olha pela janela (Adorno, 2003a, p. 285-6). Clov não vive nessa
falsa positividade defensiva, ou na “negação da negação” (ibidem). Mas este é o ponto de vista específico de Hamm:
um ponto de vista louco, um ponto de vista da morte, ou uma perspectiva similar à do sujeito automático do capital,
que molda aliás toda a peça. Hamm conta essa parábola como o modo de funcionamento de sua própria projeção
patológica que vê no vivo apenas a coisa, o vivo-morto ainda utilizável, como o único “ponto” sobrevivente com a
qual ele expressamente se identifica. Apesar de descrever a peça como a “história anulada” por uma “compulsão de
repetição” que “imita o comportamento regressivo do prisioneiro que não pára de recomeçar”, o filósofo alemão
não compreende que Clov é idêntico e não-idêntico a Hamm e ainda capaz, sim, de experienciar algo. O que traz
consequências para toda a sua interpretação, que tende ao bloqueio da contradição (“esse movimento, ou essa
ausência de movimento, eis a ação da peça”) e da própria desintegração final com a separação de Hamm e Clov: “O
escravo já não pode tomar as rédeas para abolir a escravidão. O homem mutilado dificilmente seria capaz disso, e,
de todo modo, como indica o relógio solar histórico-filosófico da peça, já é muito tarde para uma ação espontânea.
A Clov não resta mais que exilar-se no mundo não existente que os reclusos ignoram, com algumas chances de
perecer na tentativa” (ibidem, p. 302-303; Adorno 1984, p. 231-2). Para um confronto de posições nesse sentido,
veja as leituras de Webb (2012) e de Schwarz (2009, que não por acaso invoca ao fim a experiência literária e
política de Antonio Candido), com que temos maior acordo.
273 Beckett, 2002, p. 140 e ss.
274 Num trecho significativo, temos um comentário sobre o corpo envelhecido e vulnerável de todos no abrigo:
“Hamm: A natureza nos esqueceu. / Clov: Não existe mais natureza. / Hamm: Não existe mais! Que exagero! /
Clov: Nas redondezas. / Hamm: Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos os cabelos, os dentes! A juventude! Os
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um novo proletário à disposição (“Não vale a pena? Um procriador em potencial?”); recusando


essas questões, decide partir do abrigo em direção à criança. Pois o ator claudicante, que não
pode mais sentar, tem pés que parecem um “regimento de dragões”275. A cena final da peça
apenas representa o cínico lamento do dominador abandonado.

Note-se como essa criança é uma espécie de retorno do recalcado: a repetição da


história alegórica contada por Hamm ao longo da peça e que parece resumir a biografia de
Clov, sua relação primordial de servidão com Hamm depois de sua adoção e criação276. Essa
história de Hamm e Clov apresenta o contexto velado, o verdadeiro “como é” da peça, que aqui
resumimos num trecho mais significativo:

“Hamm: (…) “Como era véspera de Natal, não havia nisso nada de…
excepcional. (…) (Tom narrativo) Vamos, vamos, apresenta tua súplica, o
tempo urge. (…) Foi então que ele criou coragem. É o meu filho, disse. Ai ai
ai, uma criança, que transtorno! (…)” “Em resumo, acabei compreendendo
que ele queria pão para seu filho. Pão! Mais um pedinte!” (…) Mas qual é a
sua esperança afinal? Que a terra renasça com a primavera? Que os peixes
voltem aos mares e rios? Que ainda haja maná no céu para os imbecis como
você? (Pausa). Aos poucos fui me acalmando, pelo menos o suficiente para
perguntar-lhe quanto tempo levara para vir. Três dias inteiros. Em que estado
tinha deixado a criança. Caída no sono. (Com violência) Sono! Que tipo de
sono? (Pausa) Em resumo, propus que trabalhasse para mim”.

Na lógica cínica de Hamm tudo não passa de trabalho e meio de sua aparente
dominação absolutista, até a última gota:

“Ele tinha me comovido. E depois eu imaginava que não teria mais muito
tempo neste mundo. (Ri. Pausa) E então? (Pausa) Como é? (Pausa) Aqui,
quem se cuidasse poderia morrer tranquilamente, uma confortável morte
natural. (Pausa) Se eu consentiria em recolher também a criança – caso ela
ainda estivesse viva. Era o momento que eu esperava. (Pausa). Se eu
consentiria em também recolher a criança. (Pausa) Ainda posso vê-lo de
joelhos, as mãos apoiadas no chão, me olhando fixamente com os olhos
dementes apesar da minha proposta.”277

E no último destaque, quando Hamm diz fazer “a oferta de uma vaga de jardineiro” ao
pai rastejante, ele completa: “Antes de aceitar com gratidão, ele me pergunta se pode trazer o
menino com ele”. Quando Clov diz que o garoto “subiria nas árvores”, Hamm esclarece que de
fato seria trabalho infantil: “Faria todo tipo de trabalho leve”.278

ideais! / Clov: Então ela não nos esqueceu./ Hamm: Mas você disse que não existe mais natureza. / Clov: (triste)
Nunca ninguém pensou de modo tão tortuoso como nós” (ibid., p. 51-2). O que foi dito não significa portanto, como
se costuma ler essa passagem, a constatação de uma catástrofe final e o fim da natureza “primeira” no mundo, mas
a perda do vigor corporal (nas cercanias do abrigo) e dos “ideais” face à realidade da dominação mantida como
natural por Hamm.
275 Ibidem, p. 113.
276 Ibidem, passim, especialmente, p. 97, 106-118.
277 Ibidem, p. 106-108.
278 Ibidem, p. 118.
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Essa história (que evidentemente resume de modo alegórico a de Clov) mais o encontro
inesperado da nova criança fora do bunker equivalem então a um despertar de uma memória
involuntária para Clov. Algo que dissolve hábitos cristalizados, tal como aprendemos com a
leitura beckettiana de Proust: um aprendizado do “sofrimento de ser” que desintegra o sentido
reificado de conceitos tal como funcionam sob o domínio de Hamm (que Clov trata aliás de
enumerar: amor, amizade, esplendor, ordem). Assim, após declamar ironicamente seu poema
de despedida como uma espécie de “pássaro encantado”, “vivo, mas putrefeito”, equivalente à
afirmação de uma morte simbólica, portanto, Clov dirá:

“Clov: (como antes) Às vezes digo a mim mesmo, Clov, você precisa aprender
a sofrer melhor, se quiser que parem de te punir algum dia. (…) Mas me sinto
velho demais, e longe demais, para criar novos hábitos. (…) Bom, isso nunca
acabará, nunca vou partir. (Pausa) E então, um dia, de repente, acaba, muda,
não entendo nada, morre, ou morro eu, também não entendo. Pergunto às
palavras que sobraram: sono, despertar, noite, manhã. Elas não tem nada a
dizer. (Pausa) Abro a porta da cela e vou. Estou tão curvado que só vejo meus
pés se abro os olhos, e entre minhas pernas um punhado de poeira escura. Me
digo que a terra está apagada, ainda que nunca tenha visto acesa. É assim
mesmo. Quando eu cair, chorarei de felicidade.
Pausa. Vai até a porta.
Hamm: Clov! (Clov pára, sem se virar. Pausa) Nada. (Clov continua). Clov!
Clov pára, sem se virar.
Clov: É o que se chama sair de cena”279.
“Sair de cena”: é esta a chave, o motivo oculto, o fim de partida: a
desintegração social e psíquica em curso escancara a necessidade do freio de
emergência e do contragolpe – nada menos que a supressão do trabalho. Fiquemos
com a ideia chave de Adorno que nos guiou até aqui:

“Tanto a esperança da supressão do trabalho quanto a ameaça de morte


glacial refreiam a dinâmica das obras de arte; ambas se anunciam
objetivamente nelas, sem poder escolher por si mesmas. O potencial de
liberdade que se torna visível nas obras é ao mesmo tempo inibido pela ordem
social e, assim, também não é substancial na arte. Daí a ambivalência da
construção estética. A construção é tanto capaz de codificar a demissão do
sujeito enfraquecido e fazer da alienação absoluta o objeto da arte [absolute
Entfremdung zur Sache der Kunst zu machen], que desejava o contrário,
quanto antecipar a imago de um estado reconciliado, que estaria ele mesmo
para além da estática e da dinâmica”.280

[São Paulo, janeiro de 2020/abril de 2022]

279 Ibidem, p. 144-6, grifos nossos. Na versão em inglês (Endgame), não temos esse poema de Clov (Beckett,
2006a, p. 131).
280 Adorno, 2002, p. 224-5, grifo meu.
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UMA POÉTICA DA ABSTRAÇÃO


Hipóteses sobre Jorge Luis Borges

William Augusto Silva1

Atualmente, poucos contestariam o lugar de Jorge Luis Borges no chamado "cânone


ocidental". O processo de reconhecimento internacional de sua obra, iniciado nos anos 60,
encontra-se hoje perfeitamente acabado e lhe assegura o posto de um dos principais patronos
da literatura contemporânea. Menos pacífica, no entanto, talvez seja a compreensão dos
motivos que levaram o autor ao cânone. Para além da qualidade literária de seus escritos, seria
possível apontar ao menos dois importantes fatores que contribuíram para a consagração do
autor.

Um deles se deve ao reconhecimento, em Borges, de certos valores fundamentais à


ideologia do literário. Quero dizer: uma visão ideológica da noção de autonomia que nega as
relações entre obra e realidade histórica, afirmando a total independência da imaginação. O
que se valoriza aqui é sobretudo o aspecto fantástico da obra do autor, a destruição da mimese,
a autorreferencialidade, o predomínio do universo textual, ou o simples ceticismo frente ao
mundo. É inegável que esses valores, ainda hoje, continuam constituindo uma espécie de
senha para acesso ao cânone, e a prática dessa abordagem esteticista, ainda que com roupagem
pós-moderna, segue dispondo de considerável força entre a fortuna crítica borgiana.

Mas interessa-nos partir de um outro modo de ler Borges, mais complexo e fecundo.
Essa outra maneira lida com o aparente paradoxo de atribuir certo caráter iconoclasta e
vanguardista a um escritor declaradamente conservador. Derivada sobretudo da filosofia, ela
tem sua melhor expressão nas primeiras linhas com que Foucault abre seu livro As palavras
e as coisas: “Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba
todas as familiaridades do pensamento [...] abalando todas as superfícies ordenadas e todos
os planos que tornam sensata para nós, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e

1
Doutorando no programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), mestre e graduado em letras pela mesma instituição. E-
mail: william.was@gmail.com
121
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do Outro.”2 Com um ímpeto demolidor discreto e cheio de ironia, o autor desestabilizaria os


conceitos mais fundamentais de nosso pensamento. Nossas crenças mais indiscutíveis, a
noção de verdade, a confiança no conhecimento: tudo se torna passível de crítica, abrindo
novas perspectivas para a compreensão da realidade.3 Esfacela-se a identidade fixa dos seres
e das coisas, e o sentido passa a ser descentrado. Até mesmo a teoria literária acabaria por ser
renovada com a incorporação de muitas das brilhantes ideias do autor.4

Ainda que possa acabar resvalando em certo cinismo pós-modernista, essa perspectiva
tem razão em acentuar a herança crítica e contestadora que a obra de Borges legou às gerações
seguintes. Seu problema, porém, está em negligenciar os custos de tais conquistas, isto é,
deixar de fazer um balanço dialético do processo que conduziu a tais ganhos. Pois acredito que
os mais importantes méritos de Borges, sejam eles estéticos ou intelectuais, derivam de uma
situação no mínimo ambivalente e problemática, como tentarei esboçar a seguir.

Tendo que escolher um ponto de partida, eu não poderia deixar de apontar logo de
início a irreverência com que o autor faz gato-sapato das ideias de indivíduo e identidade,
colhendo das ruínas dessas noções o resultado dialético que confere a força criativa de sua
obra, num processo semelhante (acredito) ao que Benjamin já havia identificado no
Trauerspiel alemão. Um dos motivos mais recorrentes em seus contos é, de fato, a dissolução
do indivíduo. Em muitas dessas narrativas, o fundamento do enredo se resume a situações em
que o sujeito se identifica com o outro, um antagonista (ou às vezes até mesmo a totalidade do
universo), e termina por se anular. A figura fantástica do duplo, retirada de uma tradição que
o autor conhecia muito bem, passa aqui a ser utilizada com frequência na figuração dessa
dissolução do antagonismo. No geral, a constatação da identidade pela personagem se realiza
no desfecho e se confunde com a descoberta do próprio leitor. Com a retomada dos clássicos
expedientes da peripécia e do reconhecimento, impõe-se ao final da leitura a impactante
descoberta de que o outro é o mesmo. Dito de outra maneira: a autoidentidade do sujeito é
destruída pela identificação com o outro. Escritos com exímia habilidade, são memoráveis
contos como “Las ruinas circulares”, “La muerte y la brújula”, “Biografía de Tadeo Isidoro
Cruz”, “El evangelio según Marcos”, entre tantos outros.

2
FOUCAULT, Michel. [1966] 2007. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes p. IX.
3
Para citar duas obras interessantes nesse sentido, ver, por exemplo, MOLLOY, Sylvia. [1979] 1999. Las letras
de Borges y otros ensayos. Rosario: Beatriz Viterbo, e REST, Jaime. 1976. El laberinto del universo. Borges
y el pensamiento nominalista. Buenos Aires: Ediciones Librerías Fausto.
4
Cf. ANTUNES, Nara Maia. 1982. Jogo de espelhos: Borges e a teoria da literatura. Rio de Janeiro: J. Olympio.
122
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Essa obsessão pela identidade percorre a obra de Borges do começo ao fim. Mas é
sobretudo nos livros Ficciones e El Aleph que o autor mais explorou certa perspectiva panteísta
da realidade, em que se postula uma forma de identidade geral entre todos os entes do
universo. Certamente, esse aspecto não passou despercebido pela fortuna crítica do autor.
Muito já se disse, por exemplo, da estrutura especular de seus contos ou da coincidência entre
opostos como uma constante em sua construção.5 Comentadores munidos de completos
aparatos eruditos nos revelam determinados subtextos filosóficos ou literários presentes nos
argumentos de narrativas ou de ensaios do autor. Seguindo as mais variadas vertentes críticas,
alguns promovem aprofundadas investigações dos diálogos intertextuais presentes na obra
analisada, e outros se detêm na relação específica de Borges com algum filósofo em especial.
As abordagens de cunho estritamente formalista ou estruturalista, por sua vez, empreendem
engenhosas análises do rigor e da simetria de seus contos, revelando-nos a complexa estrutura
por trás de sua construção. De uma maneira geral, busca-se a elucidação temática ou estrutural
do fenômeno da identidade, mas, muitas vezes, sua interpretação crítica acaba negligenciada.
Exceto quando a crítica pós-modernista reconhece a dissolução do sujeito e a celebra, nenhum
sentido lhe é atribuído e o papel da crítica não vai além da mera descrição.

O fenômeno em questão já foi, portanto, observado em outras ocasiões. Não tenho aqui
a pretensão de apresentar um aspecto inteiramente novo, mas sim a de procurar olhar para o
problema de modo distinto. Sugiro que a questão seja abordada em seu aspecto problemático,
propondo um caminho diferente daquele que normalmente tem sido adotado pela maioria dos
comentadores do autor.

Com efeito, poucos têm sido aqueles a abordar a questão sem as indulgências
costumeiras. Como exemplo, poderíamos mencionar Cláudio Magris, que num duro porém
lúcido ensaio, notou como a literatura de Borges se baseia numa obsessão circular sobre a
identidade universal de todas as coisas, cujo fim é descobrir a presença do único e do sempre
igual, anunciando a indiferença da vida individual e a futilidade de todo juízo.6 “Esta
devaluación de lo múltiple, con su implícita indiferencia por la individualidad”, escreve
Magris, “es quizás el sello de toda concepción reaccionaria, que persigue el vacío en su entorno,

5
Cf. ALAZRAKI, Jaime. 1977. Versiones. Inversiones. Reversiones. El espejo como modelo estructural del
relato en los cuentos de Borges. Madrid: Gredos, e CÉDOLA, Estela. 1993. Borges o la coincidencia de los
opuestos. Buenos Aires: EUDEBA.
6
MAGRIS, Claudio. 1996. Dos aproximaciones a Borges. Cuadernos Hispanoamericanos, 548, p.61.
123
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el empobrecimiento de la vida y la negación del insuprimible valor que es cada existencia


singular.”7

Se a dureza de tais palavras nos faz tomá-las com certas reservas, poderíamos então
considerar a opinião de um leitor sem dúvida mais simpático. Não faz muito tempo, também
Ricardo Piglia, num ciclo de aulas dedicadas a Borges, demonstrou certo incômodo com esse
aspecto da obra do autor:

A mi lo que me molesta es algo que observó Margo Glantz… Me pareció muy bueno: está la
idea de que no puede ser que en el infinito sean la misma persona el judío torturado y el nazi.
Y ahí hay un punto serio en Borges, en el sentido de que… Es el punto más serio. Yo creo que
Borges no ve la diferencia… Solo ve la unidad, solo ve la unidad… Pero también en “Los
teólogos”… Como si él no viera la diferencia. Como si él solo viera el parecido… Eso si es un
pensamiento reaccionario… que todos somos iguales.8

É poderoso o efeito artístico de descobrir que aquele que narrou a infame história de
um delator é ele próprio o infame; pode não parecer nada mais do que engenhoso organizar
uma trama em que dois protagonistas rivais terminam por se confundirem no final aos olhos
do leitor. Também há algo de subversivo em revelar por trás do herói a imagem do traidor,
colocando a nu as manipulações e construções históricas, assim como o contrário,
possibilitando a reabilitação de figuras injustiçadas da história. Nesses e em outros casos em
que o antagonismo e a diferença acabam dissolvidos, aquele riso incômodo de que fala
Foucault nos assalta em cheio. Mas somos capazes de manter ainda esse sorriso quando a
dissolução entre opostos pretende postular uma igualdade entre o indígena americano e seu
exterminador europeu, como em “La escritura del dios”? Ou entre a vítima e o carrasco nazista
em “Deutsches Requiem”? A indiferença perversa expressa nesses exemplos nos mostra que a
destruição do indivíduo empreendida por Borges não é algo necessariamente progressista e
libertador, como querem alguns.

A radical desvalorização do indivíduo (não absoluta, é preciso dizê-lo) deve ser


entendida em conjunto com uma igualmente poderosa tendência à abstração que permeia
muitas ideias e argumentos literários de Borges. Essa mesma inclinação implica também, em
certa medida, a desvalorização da história e a indiferença pela experiência singular. O modo
como esse conjunto de problemas se expressa na literatura borgiana assume variadas formas,
nem sempre de maneira explícita. Sem prejuízo de outras questões, é essa indiferença que
vemos expressa na suposta “ética para imortais”, expressão com a qual Borges qualificou seu

7
Ibidem, p.61.
8
PIGLIA, Ricardo. Borges, por Piglia - Clase 4 - 28-09-13 (3 de 4) disponível em:
<https://youtu.be/O0CsvnDaK_o?t=499>. Acesso em 19 jul 2019.

124
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conto “El inmortal”, em que a ideia de identidade aparece disfarçada sob o tema da
imortalidade. O assassinato de César e o de um anônimo gaucho nos pampas argentinos 19
séculos depois (“La trama”) se equivalem, pois ambos são motivados por uma “mesma”
traição, aleivosia em qualquer ato e lugar, a-histórica, que prescinde de qualquer
determinação particular, “apenas para que se repita uma cena”: como se todas as diferenças
contextuais entre eles não importassem. O guerreiro lombardo do fim da idade clássica e a
inglesa feita cativa por índios na Argentina do século XIX (“Historia del guerrero y la cautiva”)
respondem a um mesmo e universal “ímpeto secreto, um ímpeto mais fundo do que a razão”,
cujo traço comum é a pura e simples deserção, não importando a contrariedade dos
movimentos ou a motivação que cada ação poderia ter em seu contexto primeiro. Agora
irrecuperáveis os destinos e a particularidades de cada um, cabe ao narrador apenas conjeturar
uma identidade entre eles, adotando um olhar que se eleva para além das particularidades
históricas e emula o absoluto: “Acaso las historias que he referido son una sola historia. El
anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales.”9

Jean Franco notou que a grande habilidade borgiana é de fato a abstração. Mais do que
simplesmente colocar em contexto a ficção do autor, o verdadeiro esforço crítico deveria se
voltar para a compreensão do fenômeno:

At best, left criticism has only bee capable of appealing for an approach to Borges which will
put the textual strategies back into a ‘context’. The disadvantage of this is that it denies the
very capability – the abstraction from concrete situations – which give the fictions their
power. Yet it is precisely mastery, and the abstraction mastery is based on, that demand
analysis.10

Poderíamos mapear como a ideia de abstração se apresenta teoricamente em muitos


textos do autor. “Funes, el memorioso” é uma fabulação sobre como a abstração está
necessariamente instalada no aparelho psíquico humano. Esquecer e simplificar são inerentes
e, mais do que isso, necessários ao pensamento: “Pensar es olvidar diferencias, es generalizar,
abstraer.”11 Já numa chave metafísica, sua ideia de eternidade – surgida a partir de uma
suposta experiência própria em que o autor se viu como um “percibidor abstracto del mundo”
– , nada mais é do que a anulação do tempo, e mais precisamente da sucessão temporal, pela
identidade entre diferentes momentos, o que pressupõe necessariamente a abstração de suas
diferenças.12 Seria possível mencionar ainda a sua defesa teórica de uma visão “generalizante”

9
“Historia del guerrero y la cautiva”. In: El Aleph, O.C. I, p.861.
10
FRANCO, Jean. 1981. Utopia of a Tired Man: Jorge Luis Borges. Social Text, 4, v.2, p.53.
11
“Funes, el memorioso”. In: Ficciones, O.C. I, p. 786.
12
Cf. “Historia de la eternidad”. In: Historia de la eternidad, O.C. I, p.651.
125
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como princípio fundamental da arte clássica e como paradigma a se seguir.13 Haveria ainda
muito mais a se dizer sobre a tematização da abstração em Borges. Numa crítica de cunho
dialético, importa, porém, verificar com a abstração se concretiza (valha o paradoxo) na forma
literária.
Num primeiro aspecto, ela se expressa na firme oposição do autor às formas e
categorias literárias tradicionalmente ligadas ao sujeito na cultura burguesa. Não é de outra
forma que seu desprezo pelo romance deve ser entendido. Por mais razoáveis que pareçam as
justificativas que apelam à economia de meios e ao rigor formal, é sobretudo uma decisão de
ordem ideológica a que justifica seu posicionamento frente ao romance. A questão pouco tem
a ver com se contar uma história passível de resumo em poucas ou muitas páginas, como
afirmou ele certa vez. O que se ataca, de fato, é a centralidade que o romance confere ao
indivíduo e à sua experiência singular como eixo estruturante da narração e todas suas
implicações ideológicas.14 Somado a isso, Borges não ignorava as dificuldades de ordem
histórica que começavam a se impor ao romance, de modo a tornar cada vez mais implausível
sustentar a postura realista do gênero tal como se fazia em suas origens. À “crise do romance”,
que já se fazia presente também na periferia, Borges não responde com a reinvenção do
gênero, como fizeram outros grandes autores do século, mas com sua recusa e a com a eleição
de outro gênero narrativo.
Como sabemos, a totalidade de sua produção ficcional em prosa é composta de
narrativas curtas. À exceção de seus ensaios ficcionais, seu principal modelo é o conto poeano.
Esse tipo de texto se caracteriza não apenas pela extensão curta, mas sobretudo pela
funcionalidade dos pormenores, economia de meios e rigoroso princípio de coerência interna.
Borges, levando ao limite esse modelo, compõe peças de engenho absoluto e propõe que se
conceba a coerência interna para além dos termos inicialmente propostos por Poe. Sua noção
de “causalidade mágica”, reconhecendo a motivação teleológica como o verdadeiro princípio
da narrativa, sugere um tipo de coerência baseado não na causalidade e na sucessão linear dos
acontecimentos, mas sim na identidade entre as partes e o todo.15 Trata-se de um princípio de
coerência em que os pormenores da narrativa, mais do que atuar em função de um
determinado desfecho, identificam-se com a totalidade de sentido da obra, de modo que, numa
dinâmica de autoespelhamento interno, a parte resulte em uma imagem do todo.

13
La postulación de la realidad”. In: Discusión, O.C. I, p. 497.
14
Conforme demonstrou WATT, Ian. [1957] 2010. A ascensão do romance: Estudos sobre Defoe, Richardson
e Fielding São Paulo: Companhia das Letras.
15
Analisei detidamente a poética do conto de Borges em Silva, William Augusto. 2017. Resistente, misteriosa,
visível: a forma e suas ficções na literatura de Jorge Luis Borges. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, especialmente no primeiro capítulo.
126
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Na estruturação formal dos contos compostos segundo esse princípio, os momentos


particulares têm seu direito de existência garantido dentro da obra apenas enquanto expressão
de uma unidade geral, universal. No subtexto todos se identificam e nenhum é dotado de
qualquer valor particular. Essa é a base formal do enredo em que o mesmo e o outro se
confundem nos contos do autor. Na medida em que o personagem não é nada mais do que um
conjunto de palavras, assim como Ugolino de Dante é apenas um “tecido verbal, que consiste
em cerca de trinta tercetos”16, a representação do indivíduo que se descobre uma ilusão
enquanto sujeito uno e singular encontra aqui sua correspondência na forma. O procedimento
formal da chamada “causalidade mágica” atua, assim, como a forma necessária que expressa
o tema da dissolução do sujeito, para além apenas do nível da representação.
Inscritas na forma do conto, a identidade e a abstração constituem um princípio
estrutural de significativa parcela da narrativa de Borges. Ele parece encontrar nesses
mecanismos sua forma específica de olhar a realidade e reformulá-la em termos artísticos. Não
será por acaso que também o foco narrativo apareça muitas vezes contaminado por essa
espécie de compulsão pela identidade. Em inúmeras ocasiões, o narrador borgiano (algumas
vezes assumindo o papel de “Borges”) constrói seus relatos de modo que se possa sempre
constatar, pela via do comentário, a identidade entre os contrários. O narrador aparece no
final (ou intervém na narrativa) como uma instância arbitrária pronta a assinalar ou a
“conjecturar” a identidade das personagens, coisas ou fenômenos. Trata-se de um olhar que,
mesmo assumindo sua precariedade e parcialidade, tenta emular um ponto de vista do divino,
para o qual as perspectivas humanas não fazem qualquer sentido. Veja-se, por exemplo, o já
citado final de “Historia del guerrero y la cautiva”, ou ainda os finais de “Los teólogos” e
“Everything and nothing”. É um olhar para o qual as particularidades dos seres e coisas afinal
terminam não importando.
Tratarei aqui de um caso particular em que isso ocorre. É o conto “Emma Zunz”. O
texto apresenta ao menos duas camadas narrativas. Ele é, essencialmente, aos olhos do
narrador, da protagonista e do leitor, a história do planejamento e execução de um assassinato.
Emma Zunz, ao tomar conhecimento do suicídio de seu pai, concebe e põe em prática uma
vingança contra Aaron Loewenthal, seu patrão. Este, que também fora patrão do senhor Maier
Zunz, teria sido o responsável pela infâmia que o levaria ao suicídio. Para realizar sua
vingança, Emma forja uma história falsa a fim de assumir e justificar legalmente o crime, mas
não a culpa. Inventará para isso a história de que agiu em legítima defesa, para se defender de
uma tentativa de estupro por seu patrão. Essa história falsa é a segunda camada narrativa,

16
BORGES apud CALVINO, Ítalo. [1991] 2007. Jorge Luis Borges. In: Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia.
das Letras, p. 253.
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interna ao próprio conto, e que surte efeito de verdade apenas para os seres do universo
ficcional (exceto para a protagonista).
A história falsa envolve uma caracterização verdadeira da personagem. Ela parte de
elementos reais de sua vida. A história do estupro só pode fazer sentindo porque a personagem
reúne em si as características necessárias para isso: é mulher, jovem, empregada, numa
posição subalterna que torna perfeitamente verossímil esse tipo de violência. Assim, a
personagem é dotada de determinações sócio-históricas bastante concretas e ligadas ao
contexto social em que se dá ação, a Argentina dos anos 1920. Mas, vistos retroativamente
pelo leitor que no final descobre a armação, esses fatores são ressignificados apenas como
detalhes circunstanciais, “pormenores lacônicos de longa projeção”17, que concorrem para a
elaboração da mentira. Sua virgindade, que propositalmente sacrifica deitando-se com um
desconhecido, sua timidez, a greve que lhe concederia o pretexto para encontrar seu patrão
num sábado: todos esses elementos se tornam fatores motivadores da verossimilhança da
história inventada.
É precisamente pela posição subalterna dessas duas condições – condição de gênero e
de classe – que o crime pode ser transformado numa história verossímil. Por outro lado, aos
olhos do leitor, elas terminam por perder a importância, já que os tomamos como simples
elementos farsescos. De fato, essa também é a perspectiva do narrador, que termina o conto
afirmando:

La historia era increíble, en efecto, pero se impuso a todos, porque sustancialmente era cierta.
Verdadero era el tono de Emma Zunz, verdadero el pudor, verdadero el odio. Verdadero
también era el ultraje que había padecido; sólo eran falsas las circunstancias, la hora y uno o
dos nombres propios.18

Comentando este conto, Piglia observou que o relato se constrói sobre a base de um
princípio de equivalência: “Um homem por outro: o texto trabalha sobre essa equivalência O
pai por Loewenthal (na fraude). Loewenthal pelo sueco (na violação). Loewenthal pelo pai (na
vingança). [...] Pôr um homem no lugar de outro. Esse procedimento metafórico, fundado na
semelhança e no deslocamento, é básico na construção dos relatos ‘criminais’ de Borges.”19
Ora, o que permite a troca observada por Piglia é justamente a abstração, que consiste em
tomar como meros detalhes (como sugere o advérbio “somente") toda a diferença existente
entre as circunstâncias, tempo e pessoas. A abstração admite a existência do detalhe, mas
apenas para em seguida negar-lhe a importância e, com isso, o direito a seu reconhecimento.

17
Cf. “La postulación de la realidad”. In: Discusión, O.C. I, p. 500.
18
“Emma Zunz”. In: El Aleph, O.C. I, p.869.
19
PIGLIA, Ricardo. [2000] 2003 “Notas sobre literatura em um Diário”. In: Formas breves. São Paulo:
Companhia das Letras, p.79.
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Mas é a partir de outra operação que a abstração borgiana se mostra em todo seu
virtuosismo, desvelando talvez seu sentido. Essa operação consiste na maneira como a história
foi contada. O conto poderia ter sido contado como uma simples reação a uma tentativa de
estupro, sem que a trama de Emma nos fosse revelada. Ela poderia ter sido mantida em
segredo para o leitor, de modo a apenas sugerir a verdade. No entanto, Borges optou por deixar
claro que Emma constrói uma história falsa. O autor assim nos coloca de frente a duas
perspectivas, uma das quais só é segredo para os personagens ficcionais.
Essa duplicidade se apresenta ao leitor sob a forma da oposição verdade versus falso.
É nesse fracionamento em dois modos de ver que o conto cifra seu sentido. Pois ao tematizar
o verdadeiro e o falso, o real e o ficcional, o narrador nos sugere que aquelas particularidades
concretas de Emma não constituem o real motivo de sua ação, mas apenas o aparente, e por
isso podem ser desconsiderados.
Aquilo que o conto nos apresenta como a real motivação da ação será elaborado
noutros termos. Não é a luta de classes nem o feminismo que levam Emma a matar seu patrão,
mas sim sua participação no conjunto de uma espécie de justiça cósmica. Tampouco a
protagonista é a portadora única de um sentimento privado e íntimo de vingança (a palavra
“justiça” aparece cinco vezes no conto, duas delas com inicial maiúscula, contra duas aparições
do verbo “vingar”), mas apenas uma função dentro de uma ordem maior que a supera, assim
como também o marinheiro com quem se deita não é ninguém especial: “El hombre, sueco o
finlandés, no hablaba español; fue una herramienta para Emma como esta lo fue para él, pero
ella sirvió para el goce y él para la justicia.”20 Trata-se pois de buscar a justificativa em algo
menos histórico e mais universal. A idéia de justiça que o conto nos apresenta é de ordem
metafísica ou mesmo mágico-religiosa. O corpo de Emma é um instrumento da “Justiça”: “No
por temor, sino por ser un instrumento de la Justicia, ella no quería ser castigada.”21 Ou ainda
uma oferenda dentro de um rito sacrificial: “pensó Emma Zunz una sola vez en el muerto que
motivaba el sacrificio?”22 Assim como o narrador abstrai os aspectos concretos da vida de
Emma, ela também deve abrir mão de seu corpo (sua virgindade) em função de algo
incorpóreo e etéreo, a Justiça Divina. O corpo da mulher, o corpo da jovem, o corpo da
trabalhadora: tudo isso será simples indício intercambiável para a verossimilhança da
“intrépida estratagema que permitiría a la Justicia de Dios triunfar de la justicia humana.”23

20
“Emma Zunz”. In: El Aleph, O.C. I, p.867.
21
Ibidem, p. 868.
22
Ibidem, p. 867.
23
Ibidem, p. 868.
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Como indício de uma história que pode parecer real, sem necessariamente ser, tal corpo perde
assim sua realidade e torna-se meramente potencial.
Aquela dualidade de perspectivas se confirma, afinal, também como uma dualidade de
motivação. À perspectiva da verdade é atribuída uma fundamentação abstrata, circunscrita ao
campo metafísico-religioso. Por sua vez, do lado da perspectiva falsa entram as
fundamentações do campo sócio-histórico. As condições de gênero e classe que caracterizam
a protagonista são apenas elementos que compõe a ficção inventada por Emma. Elas
pertencem ao âmbito da mentira aparente, a falsa história que se faz passar por verdade. Neste
conto, o fundamento histórico não apenas é abstraído, como também passa por um processo
de negação.
Qual o sentido dessa negação? O que ela nos revela? O ato de colocar em cena
determinados elementos – classe, gênero, nacionalidade – para depois rejeitá-los, ainda que
engenhosamente, talvez funcione como o mecanismo psicanalítico da denegação e nos indique
o ponto a se revolver. E se então tudo o que observamos aqui dissesse respeito não apenas ao
conto analisado, mas a um universo maior da obra borgiana?
Acredito que esses problemas podem ser pensados em paralelo a alguns dados
biográficos do autor, que por sua vez remetem ao âmbito maior da sociedade e da história.
Como se sabe, Borges pertencia a uma família de classe média originária das antigas elites
criollas argentinas, já em retrocesso econômico no início do século XX. Para o sustento seu e
de sua família, não podia prescindir do trabalho, realidade que evitou o quanto pode. Com a
deterioração do estado de saúde do pai, foi obrigado a buscar emprego. Sua ocupação inicial
como assalariado foi a de primeiro auxiliar na Biblioteca Municipal Miguel Cané. Os anos ali
passados seriam posteriormente narrados em seu Ensayo Autobiográfico:

Resisti na biblioteca por aproximadamente nove anos. Foram nove anos de contínua
infelicidade. Os funcionários só se interessavam por corridas de cavalos, jogos de futebol e
piadas obscenas. Certa vez uma das leitoras foi violentada no toalete das senhoras. Todos
disseram que isso tinha de acontecer, já que o banheiro de homens e o de senhoras ficavam
um ao lado do outro. [...] Embora pareça irônico, nessa época eu era um escritor bastante
conhecido, mas não na biblioteca. Uma vez um colega encontrou numa enciclopédia o nome
de um tal Jorge Luis Borges, fato que o surpreendeu pela coincidência de nossos nomes e
datas de nascimento. De vez em quando, nesses anos, nós, os funcionários municipais,
éramos recompensados com um pacote de um quilo de erva-mate. Às vezes, ao entardecer,
enquanto caminhava os dez quarteirões até a parada do bonde, meus olhos se enchiam de
lágrimas. Esses pequenos presentes vindos de cima sempre acentuavam o aspecto sombrio e
servil de minha existência.24

Indistinção, homogeneização, completo desaparecimento das singularidades do


indivíduo: não estamos mais tratando da literatura de Borges, mas sim da sociedade do
trabalho. A modesta Biblioteca Municipal Miguel Cané não tem as dimensões infinitas da

24
BORGES, Jorge Luis. [1970] 2009. Ensaio autobiográfico. São Paulo: Companhia das Letras, p.59-60.
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Biblioteca de Babel, mas em ambas o sentido desapareceu no trabalho alienado. Aquela


“central insignificância” que Borges descobre como o sentido da “vertiginosa torre de céus da
heresia basilidiana” em “Una vindicación del falso Basílides”25 é a verdadeira realidade da
divisão do trabalho: “Embora houvesse abaixo de mim um segundo e terceiro auxiliares, havia
também acima um diretor e um primeiro, segundo e terceiro oficiais.”26
Além desse efeito geral, comum a todos os membros da classe trabalhadora, havia
ainda outro problema ligado à origem aristocrática do autor. A experiência do trabalho
significava também uma aproximação indesejada com uma nova classe social que então
começava a despontar no contexto argentino. No curso da modernização econômica por que
passava o país no início do século passado, a expansão do mercado de trabalho dependeu
muito da presença dos imigrantes que começaram a chegar em grande número. A presença
maciça desses novos trabalhadores, com sua língua e cultura próprias, somada ao crescimento
urbano da capital, instaurava no campo cultural um conflito que era fundamentalmente de
classe. Nesse sentido, o movimento do criollismo, cujos membros integravam o círculo
familiar dos Borges, representou uma tentativa de demarcação de território pelas antigas elites
nacionais, que procuravam se distanciar do trabalhador imigrante. 27
Assim, talvez não seja fora de propósito pensar que realidade nada dignificante do
trabalho assalariado, juntamente com os anseios de distinção de classe, impusessem a Borges
uma situação que, não podendo ser modificada no campo da realidade, seria ressignificada no
plano imaginário. E para tanto, um possível caminho seria passar a se enxergar alguma virtude
em tal condição.
Como demonstrou Walter Benjamin a propósito do flâneur, para os pequeno-
burgueses da França de Baudelaire, a identificação com a mercadoria era uma espécie de
passatempo, que lhes permitia “gozar o inigualável privilégio de ser ele mesmo ou qualquer
outro” e, “como almas errantes”, “penetrar a personagem de qualquer um”28. Enquanto a
ameaça da proletarização pairava como um destino incerto sobre suas cabeças, o prazer e a
diversão – na falta do poder – era aquilo que lhes cabia: “Se nessa maneira de sentir prazer,
pretendesse chegar ao virtuosismo, não podia desdenhar a identificação com a mercadoria.

25
“Vindicación del falso Basílides”. In Discusión, O.C. I, p.495.
26
Ensaio autobiográfico, p. 58.
27
Cf. MICELI, Sergio. 2012. “Jorge Luis Borges – História social de um escritor nato”. In: Vanguardas em
retrocesso. São Paulo: Companhia das Letras, p.72.
28
BENJAMIN, Walter. 1989. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, p.
52
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Tinha de saborear essa identificação com o gozo e o receio que lhe advinham do
pressentimento de seu próprio destino como classe.”29
Entretanto, Benjamin observa que o ser humano, ao vender sua força de trabalho, já é
ele próprio uma mercadoria. Para o trabalhador, não faz sentido se imaginar no lugar dela:
“Quanto mais consciente se faz do modo de existir que lhe impõe a ordem produtiva, isto é,
quanto mais se proletariza, tanto mais é traspassado pelo frio sopro da economia mercantil,
tanto menos se sente atraído a empatizar com a mercadoria”.30
Seguindo livremente a sugestão benjaminiana, caberia formular algumas hipóteses.
Em Borges, a identificação com a mercadoria, inevitável a todo trabalhador, inicialmente
sentida como algo desfavorável, recebe um tratamento complexo e dialético que opera em duas
direções opostas, mas complementares. Por um lado, sentindo os efeitos do “frio sopro da
economia mercantil”, o autor não recusa a empatia com a mercadoria. Antes, a aceita e, num
processo ideológico próprio (ou talvez coletivo), passa a sublimar tal condição. Tudo aquilo
que envolve a venda da força de trabalho, a diminuição do sujeito, a fungibilidade, enfim, todos
esses aspectos negativos da proletarização passam a ser elaborados em sua obra numa chave
positiva. A partir de sua experiência intelectual como leitor, a filosofia e a tradição literária lhe
fornecerão os termos em que a experiência do sujeito no mercado será transfigurada. Seja por
meio da mitologia, do duplo, da Vontade schopenhaueriana ou da monadologia de Leibniz,
encontraremos a tentativa de depurar a situação do sujeito de qualquer referência histórica.
E, mais do que isso, essa experiência será o manancial a partir do qual o autor retirará sua
originalidade. O questionamento da autoria, assim como do estatuto da “realidade”, a inversão
de perspectivas, a investigação da relação entre linguagem e mundo, a atenção ao papel da
leitura: esses e outros feitos borgianos podem ser entendidos como um resultado dialético
daquele extermínio do indivíduo que encontramos por toda parte em sua literatura.
Por outro lado, essa reinvenção do “aspecto sombrio e servil” da existência proletária
se limita aos efeitos da proletarização. Assim sendo, a figuração dessa será rejeitada ao
máximo pela obra do autor. A troca e o mecanismo de equivalência se depositariam na forma,
na estrutura profunda dos contos de Borges, enquanto princípio de composição; porém seriam
praticamente todos banidos do plano da figuração. Quando essas questões apenas ameaçam
se fazer visíveis no campo temático, elas são reelaboradas em termos fantásticos ou
metafísicos. É o caso do conto “El Zahir”, cujo objeto central é o dinheiro tratado numa chave

29
Ibidem, p. 55.
30
Ibidem, p. 54-55
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fantástica31, ou de “Emma Zunz”, fundado nas relações de trabalho e de gênero, mas


recodificado em termos míticos, como aqui sugerido.
De modo geral, tudo o que diz respeito à figuração dessa realidade será
minuciosamente posto de lado. Daí pode-se compreender algumas das escolhas estéticas do
autor como o gênero fantástico ou a forma do conto. E mesmo aquele outro lado de sua obra,
que aparentemente se abre à figuração da história ou da “cor local”, em que figuram os
Pampas, o gaucho, o tema do culto à coragem, entre outros, respondem, segundo a hipótese
aqui levantada, a razões ideológicas. Por paradoxal que pareça, esse tratamento de matérias
locais, aparentemente mais arraigado na realidade nacional, cumpre efetivamente um papel
de suprimir algo do processo histórico da modernização argentina: a proletarização. Com esses
temas, o problema a se encobrir é o imigrante, que agora assume mais do que ninguém a mais
completa imagem do proletário e se confunde com a venda da força de trabalho, ou mesmo
com a barbárie.32
Parece, portanto, existir um complexo e elaborado sistema pelos quais a realidade do
trabalho se nega e ao mesmo tempo se mistifica na literatura borgiana. Existem várias
maneiras pelas quais, por um lado, os elementos históricos concretos são rechaçados da
figuração ou tematização, e por outro lado, seus efeitos são integrados à obra, porém
reinventados e lidos de outro modo (entenda-se idealizados ou sublimados). A obra de Borges
parece sistematicamente organizada a partir da ideologia que pretende ora negar, ora
sublimar, a condição social de seu autor. Nesse sentido, além da exclusão do imigrante e do
resgate idealizado do gaucho, isso ainda se verificaria, por exemplo, na sua inicial adesão ao
criollismo e na imaginação de uma cidade anterior à modernização, sobretudo pela imagem
dos arrabaldes aristocráticos e de ruas vazias, conforme vemos em seus primeiros poemas. Por
igual motivo, mas na direção contrária, encontramos aquela sua tão propagada
“universalidade” deslocando o foco de uma figuração local mais ostensiva para os mais
diversos tempos e espaços, em que os problemas da vida social argentina terminam quase por
desaparecer (mas sobrevivem como “detalhes”). Em todas essas situações o que se evita é a

31
Cf. Silva, William Augusto. 2017. Resistente, misteriosa, visível, cap. 4.
32
A visão negativa sobre o imigrante persistirá na obra de Borges. Num texto de 1974, ele resgatará a constante
oposição da cultura argentina entre civilização e barbárie, para preencher o lugar do bárbaro com o imigrante: “El
Facundo nos propone una disyuntiva — civilización o barbarie — que es aplicable, según juzgo, al entero proceso
de nuestra historia. Para Sarmiento, la barbarie era la llanura de las tribus aborígenes y del gaucho; la civilización,
las ciudades. El gaucho ha sido reemplazado por colonos y obreros; la barbarie no sólo está en el campo sino en
la plebe de las grandes ciudades y el demagogo cumple la función del antiguo caudillo, que era también un
demagogo. La disyuntiva no ha cambiado. Sub specie aeternitatis, el Facundo es aún la mejor historia argentina.”
(“Domingo F. Sarmiento: Facundo”. In: Prólogos, con un prólogo de prólogos. O.C, IV, p. 131, grifos meus)

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sociedade do trabalho. Essa, no entanto, permanece latente e significativa no substrato da


forma literária.

Referências

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estructural del relato en los cuentos de Borges. Madrid: Gredos.
ANTUNES, Nara Maia. 1982. Jogo de espelhos: Borges e a teoria da literatura. Rio de
Janeiro: J. Olympio.
BENJAMIN, Walter. 1989. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São
Paulo: Brasiliense.
BORGES, Jorge Luis. 2011. Obras completas de Jorge Luis Borges (4 volumes). Buenos
Aires: Sudamericana.
_________. [1970] 2009. Ensaio autobiográfico. São Paulo: Companhia das Letras.
CALVINO, Ítalo. [1991] 2007. Jorge Luis Borges. In: Por que ler os clássicos. São Paulo:
Cia. das Letras.
CÉDOLA, Estela. 1993. Borges o la coincidencia de los opuestos. Buenos Aires:
EUDEBA.
EAGLETON, Terry. [1991] 1997. Ideologia: uma introdução. São Paulo: UNESP/Boitempo.
FOUCAULT, Michel. [1966] 2007. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.
FRANCO, Jean. 1981. Utopia of a Tired Man: Jorge Luis Borges. Social Text, 4, v.2 (52-78).
MAGRIS, Claudio. 1996. Dos aproximaciones a Borges. Cuadernos
Hispanoamericanos, 548 (57-69).
MICELI, Sergio. 2012. “Jorge Luis Borges – História social de um escritor nato”. In:
Vanguardas em retrocesso. São Paulo: Companhia das Letras.
MOLLOY, Sylvia. [1979] 1999. Las letras de Borges y otros ensayos. Rosario: Beatriz
Viterbo.
PIGLIA, Ricardo. [2000] 2003 “Notas sobre literatura em um Diário”. In: Formas breves.
São Paulo: Companhia das Letras.
_________. “Borges, por Piglia - Clase 4 - 28-09-13 (3 de 4)” disponível em:
<https://youtu.be/O0CsvnDaK_o?t=499>. Acesso em 19 jul 2019.
REST, Jaime. 1976. El laberinto del universo. Borges y el pensamiento nominalista.
Buenos Aires: Ediciones Librerías Fausto.
SARLO, Beatriz. [1988] 2010. Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930. São
Paulo: Cosac Naify.
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SILVA, William Augusto. 2017. Resistente, misteriosa, visível: a forma e suas ficções na
literatura de Jorge Luis Borges. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
WATT, Ian. [1957] 2010. A ascensão do romance: Estudos sobre Defoe, Richardson e
Fielding São Paulo: Companhia das Letras.

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JUAN CARLOS ONETTI:


A PROSA DO “MUNDO LOCO”
Ou, proletarização fracassada e subjetivação periférica

Cláudio R. Duarte

“— Mundo loco — dijo una vez más la mujer,


como remedando, como si lo tradujese.”(...)
“¿Ves cómo me explotan?», le digo.
«¿No te das cuenta de que toda
esta organización social es monstruosa?”
(J. C. Onetti, La vida breve, 1950)

Uma “fisionomia da desordem”: a queda no “mundo louco”

Juan Carlos Onetti (1909-1994) não é um escritor de fácil apreciação. Sua prosa
refinada permanece quase uma ilustre subestimada mesmo após seu reconhecimento como
precursora pelos autores que se projetaram no chamado “boom latino-americano” dos anos
60, hoje todos “ultrapassados” pela última moda. Segundo um observador recente, isso se deve
a falhas de sua composição: as “digressões dentro das digressões, os narradores múltiplos que
compartem uma voz e a enervante obrigação de replicar a desordem da vida com a desordem
da ficção”, nesses romances que estariam “envelhecendo mal em um sentido formal e, o que é
pior, moral”.1

Para um outro crítico, insuspeito de ignorar o nível da forma, a riqueza literária


expressa na criação da cidade fictícia de Santa María é algo real e seminal na região, propondo
as mil variações do tema da “viagem à ficção”, buscando “fantasiar uma existência
infinitamente mais rica, bela e sensível que a rotina cotidiana”, como “um cerrar os olhos
frente à realidade tal como é e substituí-la por um mundo imaginário, fabricado como um

1
Arbolay, 2021. Sobre a figura de Onetti como suposto precursor do “boom”, ver Shaw, 1994.
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desagravo ou uma compensação”. Em suma, uma “fuga da realidade detestável em favor da


fantasia” individual, e que é “bem representativa da América Latina do fracasso e do
subdesenvolvimento”. Se acaso seus materiais envelheceram um pouco é porque teriam um
laço umbilical com esse atraso dos povos latino-americanos (sobretudo uma postura cultural
e mental segundo ele), o que no fundo deveria ensinar, por contraste (pedagógico, no caso),
uma postura pragmática e liberal ao jovem continente, eterno prisioneiro de fervores utópicos
e revolucionários anticapitalistas2.

Mas, tirando a parte da redenção pelo ideal estético, isso sempre pareceu impossível
para a linha mais clássica e talvez ainda hegemônica das interpretações de sua obra: “o herói
de Onetti aparece como resignado, com um claro convencimento de que ‘não se pode fazer
nada’ ou, mais agravadamente, que ‘nada merece ser feito’”3. Resta assim o ponto de vista do
indivíduo supostamente “isolado”, impotente e inativo diante da sociedade e da vida amorosa,
que se evade pelo sonho destilando angústia, amor, ódio e crueldade, embora sem a muleta
de qualquer “filosofia substitutiva (como nos autores existencialistas) que pudesse servir de
instrumento apto para encarnar a vida tal qual se a entende e mudar os valores que se
consideram caducos por outros mais eficazes.”4 Mais ou menos pela mesma trilha vão os que
buscam enxergar aqui a prevalência de uma “poética de fundação”: a ruptura esteticista
moderna com a mimese e a história, a “suspensão temporal”, a “aventura da escrita” e “o
mundo dos espelhos confrontados”, enfim, a imersão num ponto de vista onírico, autofundado
e portanto autonomizado do indivíduo solitário, exausto, desolado, mascarado etc.5

Sem dúvida, essas leituras ressaltam vários elementos aparentes da obra de Onetti.
Contudo, se o que nos falta é a sobriedade moral ou a eficácia da norma burguesa, ou, por
outra, o que vale mesmo é a filosofia da “desgraça” e a criação esteticista de “mundos”, resta
saber por que Onetti insiste tanto no negativo dessas formações imaginárias, que procuram
substituir o real e a vida de trabalho – “a vida dupla, a pontual entrega de oito horas a um
mundo absurdo” (J: 169)6 – pelo capricho e a realidade psíquica de narradores e personagens,

2
Llosa, 2009, p. 160-165, 226, 230-1.
3
Aínsa, 1970, p. 24. Para uma boa compilação da crítica da obra de Onetti, ver o número especial de Cuadernos
Hispanoamericanos, 1974.
4
Assim, ele completa: “Poco o ningún atractivo tiene el mundo existencial en que se mueven los personajes de
Onetti. Hay algo de negación del impulso, hay una primacía de lo paralizante sobre lo activo, hay una irritante
claudicación, un síntoma de anti-vida y esa negación de la vida-vivida no deja de suponer, en última instancia (y
aunque él siempre lo negó, despectivamente), una postura típicamente intelectual: la de los hombres que
reflexionan demasiado para gozar abiertamente de la vida.” (Aínsa, 1970, p. 24-5). Apesar da negação do decalque
existencialista, esse intérprete alimenta a ideia de uma obra mítica e fatalista que teria por base uma filosofia
pessimista da resignação. As “trampas” de Onetti pegam suas personagens, mas só aquelas paralisadas na reflexão
paciente também podem superar o falso gozo da vida.
5
Verani, 2009, passim.
6
Sempre que possível, cito as obras de Onetti a partir de edições traduzidas em português conforme as abreviaturas,
seguida do número das páginas: VB (A vida breve) [1950]/2009a; E (O estaleiro) [1961]/2009b; J (Junta-
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mas extraindo seu cerne do avesso obsceno da sobriedade e dessa norma social praticada,
numa espécie de imersão no coração dessa “vida dupla” sempre ativa e socialmente articulada
nos relatos, sem possibilidade de isolamento e fuga reais, buscando assim uma espécie de
“desrecalque social” aparentemente disparatado da marginália nas entranhas inconscientes
expostas do mundo liberal, racional, oficial. O “mundo louco” de Onetti é precisamente esta
circulação reflexiva entre os planos do real e do imaginário, da ordem e da desordem tendo
por estrutura as relações sociais modernas fundadas no capital e na vida do trabalho abstrato
e suas dissociações. Por mais que alguns de seus personagens sejam típicos sonhadores,
preguiçosos, fatalistas, presos à ruminação mental ou ao desejo morto e impossível, tal como
a personagem central de Juan Maria Brausen (o criador ficcional de Santa María), isso não os
impede de conviverem socialmente, se desdobrarem numa profusão de duplos e de projetarem
ações que querem consumar esses sonhos. E amiúde estes meramente expressam uma
experiência social através de sua ficção “autônoma”, que evidentemente assim não repete o
molde de uma identidade, antes põe a sua não-identidade, a sua contradição. Aqui, o interesse
de ler e reler essa obra fundamental. Assolado por fantasmas e a inércia de relações paralisadas
numa espécie de “tempo fóssil” dos “ciclos agrários”7, esse romance de espaço, tipicamente
urbano, também é tanto ou mais determinado por um tempo ruinoso do capital, um tempo de
crise: “que o tempo não existe por si só é demonstrável; é filho do movimento, e se este deixasse
de mover-se não teríamos tempo nem desgaste de princípios nem finais. Em literatura tempo
se escreve sempre com maiúscula” – ensina o narrador de “A morte e a menina” [1973] (C:
331).

Por outro lado, a questão essencial para Onetti nunca foi ostentar o brilho de um estilo
luxuoso e intrincado à parte de seus materiais, ou focalizar o submundo da marginalidade, do
gozo e da violência por si mesmos, considerados à maneira de Céline, Genet, Arlt ou dos
beatniks, por exemplo, uma realidade que nesse intervalo, aliás, ultrapassou todos os limites
imaginados por essas e outras obras. Nesse aspecto comparativo e mais superficial, os pacatos
e cruéis sonhadores, contistas e impostores de Onetti ficaram obsoletos, pois são quase
inocentes e românticos face ao que se tornou o esvaziamento subjetivo e a extrema violência
anômica que passa ao ato nas cidades devastadas pelo capital em fim de linha8.

Cadáveres)[1964]/2009c; P (O poço)[1939]/2009d e TsN (Para uma tumba sem nome) [1959]/2009d; C (47
contos de Juan Carlos Onetti) [1994]/2007). Os textos foram cotejados com as obras originais, também citadas na
bibliografia.
7
Como bem observa Molina (1994, em C: 14), o universo de Santa María “tem a morosidade do tempo fóssil das
cidades de província, o ritmo pesado em que transcorrem as águas turvas do rio e em que se sucedem as visitas de
lancha, a majestade solene e um pouco austera dos ciclos agrários”.
8
Cf. análises sobre o caráter narcisista dos novos tempos: Adorno (2015); Lasch (1986), Costa (1989) e Birman
(2009).
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Do prisma de nossa estrita atualidade, contudo, creio que é de se pensar como (e até
que ponto) esses materiais degradados e algo envelhecidos de Onetti – bastante
representativos de um mundo histórico antagônico e sem remédio, no qual todos se enredam
ativamente num contexto universal de culpa e cegueira – tornaram-se cada vez mais presentes
e interessantes como problemas artísticos tanto mais quanto o capitalismo passou a mostrar
todas as suas inércias estruturais e todas as suas facetas não-oficiais, escabrosas e violentas.
Não se lê Onetti chupando pirulito em busca de um mundo “onírico” escapista. Como Freud e
Lacan mais tarde, Onetti dá sinal de um profundo mal-estar na cultura, tendo muito vivas as
grandes guerras às suas costas, além da experiência histórica fundamental do Uruguai e da
Argentina como ex-colônias e partes da periferia do sistema. Isso é essencial em seu
modernismo e provoca mudanças radicais na tradição literária local. Condensando tais
processos sociais através desses enredos meio desgastados e sempre improváveis – o que pode
revelar a vida meio real meio fictícia da província de Santa María, por volta dos anos 50? –, o
autor conserva a potência crítica através de uma construção literária singular que jamais se
esgota numa representação imaginária a-histórica e que põe as contradições da modernização
sul-americana e suas promessas de prosperidade e liberdade. Pois é da realização
contraditória desses ideais modernos numa sociedade periférica, ex-colonial, patriarcal e
provinciana que se mercantiliza e se proletariza que ele tira sua luz reveladora. As questões de
forma e fundo devem ser constituídas a partir dessa base social antagônica, dessa escolha feita
de caso pensado desde os anos 30. A espessa camada de ideologia construída pela obra
onettiana, assim, a liberal tanto quanto as ilusões de escape individualista no prazer marginal,
coincide com uma realidade histórica fragmentada, desigual e em movimento – não com a
fachada do progresso homogêneo, mas com algo que os leitores de Machado de Assis
conhecemos a fundo: a mercantilização total das relações de origem patriarcal no continente,
seus entrelaçamentos ignorados e suas consequências formais. E como aprendemos com
Roberto Schwarz, o essencial é compreender a especificidade histórica dos dois momentos e
sua negação recíproca9.

É preciso apreender esse ritmo desigual da modernização e perguntar então por que
Onetti dedicou-se a personagens/narradores partícipes do engodo da reprodução,
constituindo uma cidade provinciana, religiosa e conservadora como Santa María, ao mesmo
tempo vivendo o ritmo metropolitano de Buenos Aires, Paris, Nova Iorque etc., fascinados pela
perda de si e a autodestruição simbólica nos bas-fonds do capital (como Brausen, Stein e
Larsen), o que aparece para a maioria dos intérpretes até hoje como mera doença psíquica ou

9
Ver as várias análises de Roberto Schwarz, {1977]/2000 e 1990, que fornecem nosso lastro teórico-metodológico.
139
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formação discursiva. É preciso interrogar qual é então o lado sombrio do pequeno burguês
criollo ou imigrante que se proletariza, mas que se nega como trabalhador, submete mulheres
e dependentes à estrutura cindida e reificada do patriarcado moderno10, e que descansa à
margem da propriedade, no vício, na irregularidade e na promiscuidade entre o mesmo e
outro. Só assim será possível descobrir quais são as relações de classe e principalmente de
gênero implícitas que constituem a moldura dessa sociedade de base patriarcal latifundiária e
de cultura reflexa depois da mercantilização total da vida, incluindo a dos escritores e
intelectuais; um mundo conservador e liberal, obscurantista e esclarecido, machista e
“emancipado”, de resto exalando preconceito e racismo por cada poro etc., e que não se
constitui de maneira espontânea e natural, pois oscila e se contradiz. O que faz pensar enfim
no que resta do “sujeito” após a demolição dos indivíduos e de sua perspectiva de emancipação
como sujeitos. Pois se por um lado estes colaboram com essa dominação abandonando-se ao
conformismo, por outro também ajudam metaforicamente “a construir a fisionomia da
desordem”, na fala de Brausen (VB: 98), como seres fracassados que se fazem crer loucos como
Larsen "Junta-Cadáveres", que em seus atos agitava “um espesso, coincidente lodo de loucura”
(E: 62) no subproletariado posto à margem no bairro fantasma em volta de um estaleiro
fantasma de um capitalista falido. Este então o “mundo louco” (VB: 13) ouvido pela prostituta
Queca em seu apartamento desde a cena inicial de La vida breve e que inspira Brausen à
criação de Santa María: aqu-“Eles” (VB: 161, 325) que interessa escutar e traduzir. Pois só da
escuta da proletarização e seus fracassos pode surgir um ato de recusa dessa loucura objetiva.

Linhas de tensão e princípio estrutural da narrativa onettiana


Na base da obra de Onetti há assim uma diferença de conteúdos desdobrável até a
contradição. De fato, o traço fino, o vocabulário e a sintaxe complexos, a forma especialista no
detalhe material cintilante em períodos longos e inesperados – até as frases tortuosas e
digressivas são parte da caracterização de narradores colocados em situação –, convergem e
contrastam com uma substância humana embrutecida, alienada, meio fora da realidade.
Substância subjetiva sofrida e humilhada, não fiapo esquelético de coisa alguma – mesmo
Larsen Junta-Cadáveres é capaz de certa reflexão sobre a própria reificação incontrolável em
que se perde (cf. E: 125-6, 130) –, que, se acaso escapa pelo ponto de fuga do imaginário, do
jogo e da impostura, é tão somente para reencontrar na ação a mesma realidade negativa de
jogo, impostura, desordem e falta de limites, paralisada na degradação da má infinidade (como
surge de maneira espetacular em El astillero), porém tensa e potencialmente explosiva. No

10
Aqui, nossa referência central é Roswitha Scholz (1996 e 2013) e Robert Kurz (2004).
140
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limite, um encontro da morte simbólica ou real nesse patriarcado do valor, dissociado,


embrutecido, proletarizado e em desordem, que confirma tanto quanto decifra e espedaça o
mito da “desgraça” – conceito chave de toda a obra onettiana (P: 47; VB: 56, 338; E: 83-4, 89;
J: 189; C: 198). Porque só no furo desse imaginário inflado há um tênue espaço de práxis, quiçá
de uma outra subjetividade, de um eu forte que se determina e se diferencia, separando-se da
cola da identidade com a desgraça e o desespero.

Essa forma potencializa o conteúdo pois é a sua forma imanente, um longo trabalho de
mímese, construção e expressão socialmente mediado11. É estranho constatar como essa
solução formal materialista desaparece do horizonte dos melhores críticos anteriormente
citados.12 A realidade do poder e do fetiche do capital é para Onetti o núcleo interno de sua
cidade ficcional tanto quanto penetra no “umbigo” do sonho de suas criaturas alienadas –
como desponta com força máxima em La vida breve (1950) e se desenvolve quase à exaustão
no simulacro industrial vivido em El astillero (1961), sem dúvida o pico de sua produção,
seguida pela gênese histórica feita com recursos tragicômicos em Juntacadáveres (1964),
romance irregular com platôs de alta qualidade. As robinsonadas da crítica literária fundada
no ponto de vista liberal, do indivíduo isolado etc., cometem o equívoco quase como uma
imitação da fuga forçada da jovem garota anônima e seu irmão Bob no conto “A árvore” [1986].
Tais intérpretes gostariam de uma literatura edificante que joga com o imaginário abstraído
das cenas de... prisão, interrogatório e tortura “da casa e do horror” em que homens a serviço
da ditadura mais recente no cone sul agridem a empregada dessa família rica e liberal numa

11
Ver Sarlo, [1988]/2003, e o ensaio de William A. Silva, “Uma poética da abstração. Hipóteses sobre Jorge Luís
Borges”, 2021, nesta edição de Sinal de Menos.
12
Aqui vale uma nota digressiva sobre esse ponto. Para alguns tudo se passa como se a prosa difícil e enigmática
de Onetti, moderna em todos os seus efeitos, sem carregar nas tintas da cor local, propositalmente abstrata e
desnacionalizada, sem concessões comerciais ao entretenimento e desviando-se do automatismo abstrato da ética
do engagement tanto quanto do viés mágico ou telúrico de populações há muito despossuídas e sem chão social –
uma prosa nem exatamente realista nem fantástica –, e de fôlego porque feita de estruturas narrativas híbridas e
complexas através duma pluralidade de narradores e pontos de vista dissonantes, do manejo de uma galeria
completa de personagens de vários estratos sociais que se cruzam na saga de Santa María (e Lavanda nos últimos
romances) – enfim, uma construção ficcional elevada ao cubo através da reflexão irônica e metaficcional, ou da
ficção dentro da ficção – é como se esta prosa escolhesse para si materiais pobres, abstratos, menos promissores...
provincianos, hoje rebaixados à segunda e terceira classe, inócuos e moralmente ultrapassados. E como se isso
fosse mais ou menos indiferente e aleatório. Não seria justamente o contrário? Forma “avançada”, matéria
“atrasada”? A abstração construtiva (que podemos ligar de algum modo à mediação do trabalho social abstrato e
do patriarcado do valor, e que resultaram na moderna sociedade urbano-industrial latino-americana, embora
carregando suas heranças coloniais e periféricas) torna-se seu eixo central; mas a inércia das relações ex-coloniais,
mais tradicionais e a resistência própria dos materiais impede um cancelamento do momento mimético, ligado às
questões de verossimilhança histórica. No melhor modernismo a mímese foi preservada. Um mundo louco,
socialmente alienado e aparentemente baseado em meros indivíduos abstratos e sonhadores, sim, “imperturbáveis
diante da realidade, até diante da desgraça, do ridículo e da ruína” (como diz Molina, 1994 em C: 19) – o que para
alguns pouco teria a ver com a realização desigual e combinada do capitalismo na periferia, integrada ao mercado
mundial. De modo que o que parece a alguns ser o mais interessante na ficção onettiana, a saber, o aspecto
modernista da invenção formal e construtiva (Molina, Verani, Llosa, Arbolay) mais ou menos se destaca dessa base
histórica antagônica que estamos tentando determinar. Algo que o próprio escritor às vezes ironiza: “e preferimos
voltar aos velhos, provavelmente eternos temas de discussão em Santa María: as perspectivas das colheitas e de
seus preços, a política, os progressos da Colônia” (J: 158).
141
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casa de campo, enquanto os pais e amigos da família talvez já constem da lista de


desaparecidos, ao passo que os dois jovens refugiam-se no quintal além da porta de vidro, e lá
permanecem num inocente jogo de bola ao pé da árvore no jardim: “pois se prolongasse, sem
descanso, o monótono jogo, os dois ficariam afastados do tempo, jamais tocados pela sujeira
do mundo” (C: 399).

Ao contrário do imaginário escapista e apolítico, portanto, a questão onettiana era bem


outra: encarar esse mundo sujo de frente para além de sua superfície ideológica e de seu cínico
discurso, o que vem à tona no desrecalque generalizado desses prepostos do capital, que
zombam de si e da própria pose como “pecinha[s] da engrenagem” com intuito de
“tranquilizar” a própria consciência, sabendo “que a sociedade capitalista está
monstruosamente organizada”, lá onde a “mais-valia continua sendo muito mais que uma
palavra” (como confessa cinicamente Stein, VB: 134-5), ou antes, ainda mais concretamente,
lá onde o capitalismo nem mesmo chega a se formar como plena “civilização” liberal e
democrática nos moldes dos países centrais mas nem por isso deixa de criar relações mediadas
pelo trabalho, o patriarcado do valor e suas cisões estruturais.

Não é tanto pelo estilo retórico, ao final desmentido como ideologia e formalismo de
publicitários como Brausen e Stein – a semente da saga de Santa María é a encomenda, feita
por Stein a Brausen, de um “roteiro de cinema”... “que não seja bom demais. O suficiente para
que possam estropiá-lo” (VB: 15 e 24) – e de duplos de escritores/amadores como Linacero,
Díaz Grey, Jorge Malabia e Lanza (P, TsN, E, J) que algo se redime, salvando-se do desespero
objetivo de situações socialmente produzidas. Mas pelos silêncios e cortes dessa retórica
narrativa cínica que sugerem relações sociais pressupostas – um texto verdadeiramente
estropiado e entrecortado pela reflexão crítica, feita a contrapelo de seus narradores, como
veremos. Em vez do deleite e da vibração com um “herói” positivo, viril, isolado e
independente, sobra então apenas o asco e a tentativa de fuga nem sempre lograda, geralmente
paga com a morte: como na mulher “desaparecida” pela ditadura no conto “Presencia” [1978],
que liga-se à prisão e ao exílio vividos na pele pelo próprio Onetti (C: 373-79), mas que de
maneira extraordinariamente complexa põe em tela justamente Jorge Malabia como um
narrador liberal dissimulado e suspeito de gozar imaginariamente, em seu exílio em Madrid,
com os aspectos mais bárbaros da tortura e do abuso sexual de Maria José nos porões da
ditadura – o que ele transfigura na diversão imaginária de cenas de sexo fervoroso da
bibliotecária com um amante numa casa de swing em Madrid –, o que o transforma no lado
avesso da “tirania (…) selvagem” do General Cot em Santa María, que aliás fechou seu jornal
El liberal! São estas inversões críticas de ponto de vista, que envenenam toda a narrativa, que
intérpretes como Llosa ou Verani deixam de captar. Ou ainda como podemos ver enquadrado
142
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022

em “Esbjerg, na costa” [1946], a obra mais exemplar sobre patriarcado e proletarização da


mulher imigrante na América do Sul – e seu desejo irrealizável de refúgio desse inferno:
A outra parte da história começou quando ela [Kirsten], tempos depois, habituou-se a ficar
fora de casa durante horas que nada tinha a ver com seu trabalho; atrasava-se quando
marcavam encontro e às vezes se levantava tarde da noite, vestia-se e saía sem uma palavra.
(...) Disse que sempre ia ao porto, a qualquer hora, para olhar os barcos que saem para a
Europa. (…) para ver como os barcos partem, para dar algum aceno ou simplesmente olhar
até cansar os olhos, quantas vezes pudesse. (C: 139-140).

– um desejo em fuga que esvazia o significado burguês de “retorno à Europa” e destitui


o sujeito empobrecido numa via mediada pela pulsão parcial: o olhar incansável para o que
não tem imagem nesse contexto de relações deterioriadas. Além disso, como lembra Antonio
M. Molina na sua ótima introdução aos Contos completos, essas “representações do inferno”
não deveriam fazer-nos esquecer as “rajadas de beleza” e a “linha melódica” que transcorre
quase oculta na obra: “em Onetti há uma permanente fúria moral, uma raiva indomável contra
a desrazão do tempo e a desonestidade e a covardia que degradam os homens, mas a seiva da
qual se alimenta essa fúria é o entusiasmo pelo não corrompido, o agradecimento pelos dons
que algumas vezes a vida nos concede” (C: 18). Veremos adiante como isso se dá também como
projetos de fuga, subtração e desintegração de relações danificadas, e não da mera adaptação,
resignação ou inação.

***

Por enquanto fiquemos por mais impressões e efeitos dessa prosa a fim de atinar com
o seu princípio estrutural. Vemos que, mais ou menos como na experiência do leitor
machadiano, não se lê Onetti sem prender a respiração e sem fechar bruscamente o livro de
vez em quando, duplicando o gesto de fuga de suas personagens atingidas por uma voz falsa e
um olhar cínico e dissimulado. O suposto “charme” da prostituição e da violência masculina
que horroriza tanto quanto seduz os conservadores e reacionários pervertidos é, no final das
contas, nenhum. As cenas de nudez e sexo, álcool e drogas, crueldade e êxtase, quase sempre
sugeridas e muitas vezes suspensas, diminuídas e ridicularizadas com o selo de exploração e
dominação masculina gratuitas – a especialidade de Onetti é cair da tensão no anticlímax
desse absurdo –, afastam-se da banalidade da cultura massificada, sugerindo apenas uma
contemplação crítica do horror e seu encanto. Pois o horror ao final é essa “organização social
monstruosa” (VB: 134) que cinde, hierarquiza e classifica as pessoas, forçando-as à venda da
própria pele no mercado. E isso com a coparticipação desses indivíduos com sua pertença de
classe (e sua estrutura pulsional, que se diria mais que narcisista quase louca e
sadomasoquista). Pois essa lumpenburguesia rioplatense meio fantasmagórica que traçamos
necessita de um proletariado real-fantasmagórico sempre a postos – se o estaleiro fantasma
143
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022

de Petrus “pára apenas uma hora”, reflete o dono, “que coisa vou poder estar defendendo nas
antessalas daqueles burocratas, aqueles piolhos ressuscitados”? (E: 124), ou necessita de uma
superpopulação relativa para realizar a produção agrícola, mantendo-se nos subempregos ou
na vala do desemprego, logo caindo na marginalidade em meio às crises do crescimento e da
acumulação argentina, que concentra a renda e logo entra em estagnação, “dependente” da
importação de insumos, tecnologias e da maior intervenção do Estado a partir de meados dos
anos 5013.

Num momento de lucidez Larsen perscruta a verdade histórica da “desgraça” – não na


“má sorte” eventual, mas no “fazer qualquer coisa” do trabalho abstrato “sem sentido” e
“despreocupado do resultado final” (E: 84). E, apesar de fugir dessa desgraça através do
“sonho da gerência” e dos “trinta milhões” de Petrus (ibid.), ele encontra-a por todos os lados
entre seus “seus pares” abandonados no bairro do estaleiro falido: “reconheceu a expressão
adormecida e gatuna dos mestiços, peões de chácaras ou pequenas fazendas atraídos até
Enduro por qualquer outra fantasia industrial do velho Petrus. As mulheres eram poucas,
gastas, espalhafatosas e baratas” (E: 133). A prostituta na obra de Onetti torna-se, então, a
imagem dialética última de uma proletarização e seus fracassos, a dominação liberal revelada
pelo lado oposto, sombrio e periférico do patriarcado do valor nas sociedades latino-
americanas. Sem essa chave histórica e materialista, a crítica literária patina no esteticismo de
formas e temas supostamente “míticos” ou do solipsismo do “indivíduo isolado”.

Essa leitura não tem nada de arbitrária. Ela permite encontrar um princípio estrutural,
no sentido de uma essência ou conceito maior da prosa onettiana. Para leitores
contemporâneos que aprenderam a fina ironia das construções de vanguarda de Kafka, Joyce,
Musil, Faulkner ou Beckett, bem como a lição de desconfiança da voz de todo e qualquer
narrador imperial tal como ensinada pela melhor literatura latino-americana desde Machado
e Borges, essa leitura ao contrário, feita a partir dos problemas de constituição imanente das
obras, passa do asco do fundamento ao onírico, e ao rebote da reflexão crítica. Sobretudo em
relação à matriz especificamente patriarcal ex-colonial desse mundo das mercadorias
periférico, assim, que triunfa cinicamente no primeiro plano, na desordem do discurso parcial,
dúbio e não confiável de um narrador de “estilo crapuloso”14 – mas cujo resto irredutível é a
aflição de criaturas sofridas singulares, principalmente mulheres e crianças que tendem ao
silêncio, ou mais, ao silenciamento e à objetificação sacrificial, tal como expresso quase a título
de programa na novela Para una tumba sin nombre (1959), na exploração sexual de Rita e seu

13
Furtado, 1970, p. 211-3.
14
Llosa, 2009, p. 116-7. Aqui, mais uma vez as semelhanças com Machado de Assis e Graciliano Ramos são
evidentes.
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[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022

bode feita por Jorge Malabia (e outras personagens) e o dr. Díaz Grey (como narrador parcial
declarado). Isso que pulveriza qualquer adesão aos narradores e faz procurar a matéria
resistente nas entrelinhas dos grandes romances de Onetti. Mas aqui há um giro a mais no
parafuso: como em Quincas Borba e Esaú e Jacob15, a parcialidade e o engodo se revelam em
narradores oniscientes, “distanciados” e “objetivos”, ditos de “terceira pessoa” que na verdade
não o são, porque participam de uma mentira ficcional “esclarecida”, do embuste de
personagens-narradores impostores que evitam a primeira pessoa ou se projetam como meras
testemunhas anônimas para assim se demitirem da própria subjetividade, se livrarem da culpa
e da responsabilidade; e mesmo quando acentuam sua participação subjetiva isso serve anda
mais para normalizar a transgressão de limites entre o mesmo e o outro, o interior e o exterior,
a imaginação e a realidade, o moderno e o arcaísmo neocolonial, o decoro e a desfaçatez, a
ordem e a desordem, a norma e a exceção. Esta tensão entre momentos, que na verdade é uma
oscilação ou interversão contínua entre eles, torna-se então o princípio estrutural global da
obra de Onetti. Desdobraremos esse princípio em forma logo mais adiante.

Linhas de tensão no plano do conteúdo: relações de classe e de gênero


Daqui se depreende que o tédio, a monotonia, a névoa, mesmo o delírio de certas
páginas preparam as quebras e as armadilhas que capturam seus personagens nas espirais da
alienação e da autoalienação, mas que ganham contornos muito práticos e são tudo menos
imaginação solipsista. Funcionam como índices da verdade histórica de todo um continente
perdido no fracasso, na desordem e na territorialização do capital e do caudilhismo – na
célebre estátua de “Brausen - Fundador” no centro de Santa María este aparece como um
gaucho ou caudillo a cavalo: vestido de “poncho do norte”, “botas espanholas”, “jaqueta
militar”, “cabeça cruel e sardônica”, em “eterno galope” (mas “inclinado” e “maturrango”=
inábil, mau cavaleiro) para o “Sul” rumo à conquista da “planície remota” (E: 209). Mais tarde,
como se sabe, Brausen será alçado ironicamente à posição de “Deus” do lugar, com poder de
vida e morte sobre suas personagens (C: 330, 349-50). Aqui, novamente, a estrutura ausente
da maior parte das leituras de Onetti.

Numa avaliação clássica do escritor uruguaio, Emir Rodríguez Monegal procura o


juste-milieu na relação entre forma e história social: desde a personagem-narrador
desgarrada, misógina e emparedada de Eladio Linacero em El pozo (1939), do “mundo sem
valores povoado por indiferentes morais” de Tierra de nadie (1941) até a cidade sitiada de

15
Cf. meus estudos sobre esses romances: Duarte, 2011 e 2018.
145
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Para esta noche (1943), Onetti vislumbra a derrota de uma “geração perdida”16 e faz uma
“antecipação” do clima de terror e lutas intestinas do peronismo e dos golpes militares que se
sucederam na Argentina e o resto do continente17. É este contexto sociopolítico o centro oculto
da “vida breve” das classes médias e do proletariado argentino em formação, que de resto
cresceu como tema direto ou indireto da modernização nacional desde os anos 20 e 30 numa
série de narradores maiores e menores das fronteiras e de “las orillas” (Quiroga, Borges, Arlt18,
Mallea, Ponce, Castelnuovo, Tuñon etc.)19. Nesse sentido, Onetti submete a vanguarda
europeia à tradição literária-fantástica local e às questões latino-americanas, que não por
acaso passaram desde as origens pela figuração desse poder despótico nas propriedades rurais
até o seu ápice na série de “romance de ditadores”20. Assim, há uma inteligência crítica em
operação nessas narrativas que se avizinha como que fascinada pela abjeção do submundo
urbano e a liberação embriagada do grand monde europeu meramente simulado, mas que
remetem sempre a outra coisa, mais fundamental, difícil de nomear, que se formula muito
bem afinal como o desejo de “vida breve”: a tradução que imita/remeda esse “mundo louco”
normalizado de exploração, opressão e morte simbolicamente vivida em ato (VB: 13), mas
também traz à tona um certo desejo inconsciente de ruptura: “o afã raivoso de despojar-me”,

16
Monegal, 1966. O contexto imediato é um relato da guerra civil espanhola. Segundo Onetti conta em uma
Conferência no Instituto de Cultura Hispânica em 1974: “Más tarde escribí una novela llamada Para esta noche,
basada en un relato que me hicieron en un café dos anarquistas que habían logrado huir de España” (“Por culpa de
Fantomas”, em Onetti, 2013).
17
Davi Arrigucci Jr. também observa esse dado político fundamental: “Onetti é o primeiro romancista da cidade
grande, que ele capta na febre da transformação, nos anos caóticos das avalanches imigratórias e do crescimento
desequilibrado, da quebra do mundo feito à semelhança das capitais europeias, do mundo da burguesia liberal,
pela invasão das massas. Na verdade, um romancista das raízes do populismo, alvo para o qual se voltaria mais
tarde a ironia cortazariana, fazendo eco a esse primeiro testemunho, já desencantado, do escritor uruguaio”
(Arrigucci Jr., 1973, p. 164).
18
Há clara semelhança entre o “mundo loco” vivido ou inventado por Brausen/Arce em La vida breve e o universo
cristão totalmente delirante de Los siete locos (1929) e Los lanzallamas (1931), de Arlt, em que o “Deus vivo”
buscado é por fim o Capital, cultuado pela religião do “industrialismo”, de Ford e Rockefeller, ou Napoleão e Lenin,
ou do puro fetiche do dinheiro que se desdobra pelos desvarios tirânicos de poder desses “eus” que se dedicam,
qual empresários, a recrutar força humana abstrata para uma revolução imaginária trespassada pela farsa, a
crueldade, o militarismo, o crime e a sexualidade perversa. Na base, desde os primeiros passos de Erdosain, a
experiência da marginalidade no bas-fond é a do trabalho abstrato na cidade: “ele já não tinha nenhuma esperança,
e seu medo de viver tornava-se mais poderoso quando pensava que jamais teria ilusões quando (…) reconhecia que
lhe era indiferente trabalhar de lavrador de pratos num bar ou como empregado num prostíbulo (…). A casa negra!
Erdosain, conservava daqueles tempos uma lembrança abominável; tinha sensação de que vivera no interior de um
inferno, cujo conteúdo diabólico acompanha através dos dias” (Roberto Arlt, 2000, p. 86); ou seja, “a realidade
imunda dos milhares de empregados da cidade, dos homens que vivem de um soldo e que têm um chefe” (ib.: 334,
trad. modif.), ou como falará o Astrólogo: “Me agradam muito estas realidades… e o contato com ladrões, cafifas,
assassinos, loucos e prostitutas. Não quero lhe dizer que essa gente tenha um sentido verdadeiro da vida…. Não…
estão muito longe da verdade, mas me encanta neles o selvagem impulso inicial que os lança para a aventura” (ib.:
197). Para o papel central de Arlt nos anos 30 cf. Sarlo, 2003, p.50-62, e o relato do próprio Onetti (2013), no
“Prólogo a la edición italiana de «Los siete locos», de Roberto Arlt (1971)”. As semelhanças de conteúdo entre Arlt
e Onetti já foram observadas por críticos de primeira linha (Llosa, 2009: 44-51; Píglia, [2009], 2015), mas não por
esse fio materialista que estamos tentando puxar.
19
Cf. Sarlo, [1988]/2003 e Rama, 1976.
20
Cf. Rama, 2008, 1976 e 1982. Ver também Monegal, 1966.
146
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como diz Jorge Malabia, “minha crença nas vidas breves e nos adeuses, no vigor hediondo das
apostasias” (J: 337) – que como mostramos pode resultar em gozos perversos.

Para logo apreender as diferenças decisivas do conteúdo e sua dialética com a forma,
basta pensar no que significam personagens androcêntricas e misóginas como Brausen e Stein
(publicitários boêmios, funcionários de MacLeod, diretor de uma agência de propaganda
estadunidense que lucra em Buenos Aires mas não vai bem das pernas), ou, no plano
imaginado da ficção em segundo grau: Jeremias Petrus (um falso self made man proprietário
de campos, casarões, fábricas, mulheres e até um estaleiro em ruínas); Larsen Junta-
Cadáveres (um pobre-diabo tornado gigolô e proxeneta, dono de um prostíbulo de mulheres
velhas numa província e administrador geral do estaleiro fantasma de Petrus); Marcos
Bergner (dono antissemita de uma fazenda colonial cheia de peões e empregadas, e que aos
poucos é transformada no “Falanstério”, uma espécie de comunidade primitiva cristã orgíaca,
uma espécie de casa de prostituição ou de swing particular sem fins lucrativos); Jorge Malabia
(um jovenzinho rico, herdeiro e editor de El liberal, que cai nesse mundo marginal iniciado
por Marcos Bergner e Junta, depois de aproveitar-se sexualmente da cunhada enlouquecida,
Julita Bergner); e o próprio médico Díaz Grey (principal personagem refletora da obra, o duplo
imediato de Brausen/Arce, com seu ar inteligente e cavalheiresco, mas um gozador apático e
voyeurístico, que colabora com os “sucessos” do prostíbulo em Santa María, mais tarde casado
com Angélica Inês, a filha “idiota” ou “louca” de Petrus).

Mas é preciso também pôr a oposição e a contradição – o que falta geral nas análises.
É esse também o submundo proletário ou em curso de proletarização desintegrada, vivido por
Eladio Linacero (P), que procura sua identidade nas classes populares; vivida por Stein e
basicamente por Brausen, recém-cortado da agência de publicidade norte-americana, que
atritam com o patrão MacLeod, ambos ex-membros de um Partido de esquerda, leitores de
Marx, psicanálise, com anseios políticos eludidos ou evocados à sombra da vida breve, em que
Santa María parece equivaler ao desejo inconsciente de fundação de uma cidade utópica (daí
o “falanstério” de Bergner, a casa celeste “perfeita” de Junta etc.) (VB e J); vivida por Larsen,
enfim, trabalhador de escritórios que larga um emprego de escrituração contábil em El liberal
e cai no lenocínio (J) para viver como “gerente geral” do estaleiro, mas visando no fundo
arrancar salários de Petrus e dar o golpe em Angélica Petrus (E); enfim, e aqui a boa
contradição clássica, vivida pelos operários e ex-trabalhadores das fábricas de conservas e do
estaleiro como Gálvez e Kunz, além de pescadores e camponeses do bairro fabril de Porto
Astillero (E), que se complementam no drama vivido pelas prostitutas como Queca (VB),
Maria Bonita, Nelly, Irene, Ana María, Rita (J), mas também pelas inúmeras mulheres
sofredoras como Gertrudis e Raquel, que refugam a “normalidade” da frieza e da opressão
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machista (as cenas de separação definitiva entre Brausen e Gertrudis está entre os trechos
mais belos de Onetti em VB, como logo veremos), e que servem de lúcido contraponto ao
desvario do indivíduo monádico (elas possuem uma vida social, buscam o amor, a felicidade
etc.).

Note-se finalmente que as mesmas personagens participam dos dois momentos


(mundo burguês/pequeno-burguês e submundo proletarizado em desmanche, agitado
politicamente pelo peronismo, governos conservadores e golpes e ditaduras militares, cf. J:
136 etc.), e que elas assim estão divididas pelo antagonismo e a contradição social interna
(classes, gêneros, subjetividades), constituindo desse modo as mediações e as oscilações
frenéticas da ficção de Santa María.

A matriz prática da “desgraça” transposta em forma da narrativa

“Mas enquanto na realidade este colosso inconsciente que é o capitalismo sem sujeito leva a
cabo cegamente a destruição, o desvario do sujeito rebelde espera dessa destruição sua
realização e assim irradia para os homens tratados como coisas ao mesmo tempo sua frieza
glacial e o amor pervertido que, no mundo das coisas, tomou o lugar do amor espontâneo”
(Adorno e Horkheimer, 1947/1985)
Isso posto, temos a condição de unificar o movimento dessa matriz prática com o
princípio estrutural, a forma e o conteúdo das narrativas, deitando o olhar nas configurações
específicas e assim podendo desfazer alguns mitos de Onetti como autor digressivo,
envelhecido e anódino. A trama complexa de Santa María, criada a partir de La vida breve,
tem razões profundas e articula as partes a esse todo, em contos, novelas e romances que
desdobram essa origem e condensam os processos sociais de modernização em curso. Noutros
termos, é claro que seu referencial social maior não é qualquer doutrina da “desgraça” – ou,
pior, do “desespero” de um tal “Bispo” católico (VB: 236-40), via racionalizações importadas
do existencialismo – esta é sua matriz ideológica mais funda, que serve como justificação
metafísica às vezes para seus narradores e personagens –, mas a condição proletária, o
trabalho abstrato e suas esferas cindidas, o capital numa sociedade neocolonial, patriarcal e
periférica que então se industrializava. Aqui relampeja a verdade em seus romances e contos
a ser descoberta na ação e na objetividade das relações sociais travadas e menos no que é
cifrado pelos significantes “indecidíveis” da écriture ou a voz de seus narradores.

Em termos de configuração formal particular de cada uma é claro que o princípio


estrutural acima apontado – o narrador enganoso, a oscilação ou a normalização da
transgressão de limites entre o mesmo e o outro, o interior e o exterior, a norma e a exceção
etc. – pode variar bastante, mas pode sempre ser flagrado em ponto pequeno no estilo

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onettiano de construção dos diálogos (principalmente em VB e E): a forma generalizada de


intercalar, justapor ou embutir nos enunciados ou nos diálogos (que se dão no domínio oficial
da ordem e do decoro) uma série de pensamentos implícitos, de teor espúrio, agressivo ou
crítico (dependendo do ângulo em que se avalie), separados por aspas, travessões, pontos-e-
vírgulas, parênteses ou parágrafos descontínuos. Um narrador onisciente que se faz às vezes
intrusivo ou que passa da focalização externa para a interna, dando informação sobre o que se
passa na mente de personagens, mesmo ocupando a posição de narrador
testemunha/homodiegético (o tipo de infração que Genette chama “paralepse”21). O mesmo
vale sem dúvida para a alternância de capítulos estilo Faulkner que se passam na realidade de
Buenos Aires e nos vários planos da ficção de Santa María (em VB, E, C), ou no confronto de
perspectivas de narradores e refletores (em J). Esse “jogo” entre o mesmo e o outro (uma
palavra fundamental do texto onettiano) se alimenta dessas transgressões e põe as
contradições. Ora, essas estratégias rompem a linearidade e embaralham os tempos, quebram
a ingenuidade épica, desdramatizam o drama (embora possam intensificá-lo para o leitor que
compreende todo o quebra-cabeça formado pela obra), servindo como digressões e apartes
reflexivos que desvelam o lado escuso e negativo que se move nos bastidores dessa ordem
compósita, violenta e no limite sacrificial. Para termos um exemplo forte embora mais ou
menos aleatório, veja-se como Brausen atravessa os limites entre ele e a vizinha Queca já nas
primeiras páginas de La vida breve:

- Mundo louco – disse outra vez a mulher, como se o arremedasse, como se o


traduzisse.
Eu a ouvia através da parede. Imaginei sua boca se movendo diante do bafio de gelo
e fermentação da geladeira ou da cortina de varetas crestadas que devia estar tesa
entre a tarde e o quarto, ensombrecendo a desordem dos móveis recém-chegados.
Escutei, distraído, as frases descontínuas da mulher, sem acreditar no que dizia.
(VB, 13, grifos meus).
Aqui Brausen ignora tudo sobre Queca, mas já a escuta com uma imaginação dilatada
e em breve desenfreada, i.e., já ultrapassando limites em busca de um suposto prazer e de uma
suposta desordem – enquanto Gertrudis (sua esposa) deve estar no hospital angustiada pela
cirurgia de ablação da mama; por certo, lhe interessa saber tudo a respeito do que Queca está
contando para Ricardo (- “Eu juro que nunca existiu loucura como a nossa – disse ela ao sair
da cozinha”(VB, 16), um caso de amor fervoroso com um outro homem, em sua fase terminal,
ou melhor, um caso que a moça está terminando. Enquanto isso, Brausen contrasta essa
separação com a mutilação e a nova cicatriz que Gertrudis iria ter no peito. Algo que logo iria
se tornar um trauma para ele – sem dúvida liberando fantasmas de castração – e que

21
Genette, [1972]/2007, p. 201.
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desencadearia mais tarde sua separação da esposa. Ao final, ele aparta a conversa sobre o
Carnaval levada no apartamento ao lado, comentando: “...E aqui estará Gertrudis meio morta
– pensei –, convalescendo, se tudo correr bem. Com essa besta asquerosa do outro lado de
uma parede que parece de papel.”(VB: 18, g.m.). Emerge aqui toda a ferocidade desse narrador
fino e educado, que já imagina na cirurgia da esposa a possível morte, transfigura a sua dor
em “dever” de piedade e obrigação de não a humilhar, e o seu corpo afinal como útil para
cumprir um exercício sexual: “Porque a única prova convincente, a única fonte de alegria e
confiança que posso dar a ela será levantar e recostar em plena luz, sobre o peito mutilado, um
rosto rejuvenescido pela luxúria, beijá-lo e enlouquecer ali” (VB: 18-9). A passagem brusca no
mesmo parágrafo da moral à luxúria mecânica, do tom delicado ao grosseiro ou mesmo
monstruoso (a imaginação da morte, o detalhe triste e desnecessário do peito mutilado etc.)
passa então para o todo da composição.

No limite, a transgressão será mais que ódio contido e agressão banalizada (e sabemos
como ele se acostumará a golpear Queca até tirar sangue de seu rosto): torna-se uma espécie
de violência generalizada, chegando às raias de uma violação geral da lógica e de toda
realidade, incluindo-se aí o furto geral de suas ideias “loucas”. Sirva-se como exemplo um
diálogo que busca caracterizar as vozes do “mundo louco” escutadas por Queca em que
Arce/Brausen praticamente “descobre” no outro (ou na verdade furta/utiliza) seu próprio
princípio de construção ficcional. Antes de chegar a ele temos de ordenar um pouco as peças
do quebra-cabeça onettiano.

O texto do capítulo (“Primeira parte da espera”), na segunda parte da obra, em que


Brausen já se dobrou e se metamorfoseou em Arce (e Díaz Grey), começa intrincado e
venenoso, como sempre: “Era tempo da espera, da esterilidade e do desconcerto; tudo estava
confuso, tudo tinha o mesmo valor, proporções idênticas, um significado equivalente, porque
tudo estava desprovido de importância e acontecia fora do tempo e da vida, agora sem um
Brausen que aquilatasse, ainda sem um Arce que impusesse ordem e sentido” (VB: 223).

Para começar, note-se que o bom publicitário sujeito-dinheiro Brausen não tem
“preconceito algum” em prontamente assumir-se como gigolô de uma prostituta "disponível"
no apartamento vizinho, e que ele sabe que ouve vozes, é vulnerável, destituída de defesas
subjetivas contra o Outro. Mas o narrador confessa que “precisava ficar sozinho no
apartamento” – que pertencia a Queca –, “para voltar a nascer (…) chegar a ser e a me
reconhecer” (VB: 223). A lógica narcísica, contudo, é de exclusão e luta de morte – pois, como
sabemos, “la vie est brève” (VB: 174). E assim ele já havia planejado a morte de Queca e Ernesto
(outro gigolô, parceiro da moça) (VB: 125 etc.), como provável vingança contra a sua “traição”
ou independência (afetiva, financeira) de mulher, sua separação de Gertrudis, sua demissão.
150
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Esse assassinato seria feito por Arce ou por um outro – e enquanto ele rumina em ritmo de
espera na verdade ele será feito por Ernesto. Mais tarde, após o crime cometido, Brausen
entrará numa espécie de “reunião” narcísica de traços homossexuais e delirantes com esse
jovem e másculo Ernesto – vale citar: “preciso saber, sem sombra de dúvida, que ele não passa
de uma parte de mim, doente, que pode matar-me e da qual é prudente cuidar. Sou o único
homem sobre a terra [!], sou a medida; posso acariciá-lo sem dó nem desdém nem ternura,
apenas com o sentimento de que está vivo. Posso dar-lhe palmadinhas, sussurrar-lhe uma
canção de ninar, comprovar que adormece e deixa de incomodar-me enquanto penso que é
mais bonito que eu, mais jovem, mais tolo, mais inocente”, VB: 274, grifos meus) – ou seja, o
assassino de Queca torna-se o seu parceiro-cúmplice, o seu duplo real sedutor/ameaçador, e
assim Brausen o protegerá da polícia até o fim (VB: 274), quando ele mesmo parece
definitivamente pirar, procurando migrar para dentro da sua ficção de Santa María,
misturando completamente os planos do real e da ficção22.

Ora, no capítulo examinado, talvez Brausen pudesse se ter como um “Eu” unificado,
“uma ponte entre Brausen e Arce”, se conseguisse eliminar Queca, ou seja, fazer o casamento
definitivo consigo mesmo, entre o seu lado normal, profissional e “ascético” (Brausen) e o seu
lado marginal/fora da lei (Arce). É isso que ele esperava. Como pano de fundo, temos sempre
sua questão central inesperada, a que atualiza socialmente um trauma de castração: “eu estava
aborrecido pensando nas consequências da perda do emprego” (VB: 175), que se replica na
mutilação do seio de Gertrudis e na sua separação da mulher, que aliás se lhe afigurava como
uma bela sedutora histérica quando jovem, sobretudo em seu primeiro encontro sexual (VB:
42) – esposa que ele mantém à distância suficiente no plano ficcional encarnada na quase
ascética Elena Sala (=Mami+Gertrudis+Raquel), como esposa de Lagos (=Stein) e parceira
sedutora de outros homens (o “Inglês” Owen). Mas aqui, em suma, Brausen ouve distanciado
os “monólogos” de Queca com seus outros imaginários (“Eles”), “conservando também o
abandono, a sensação, um pouco feminina e envergonhada, de que alguém tomava
providências por mim” (VB: 223). Daqui vem a sugestão final para a escritura de Santa María,

22
Vale dizer que o final genial e tresloucado de La vida breve não é o capítulo final sobre o baile de carnaval em
que Brausen parece se transfigurar em Díaz Grey e viver com figuras de Santa María (“Sr. Albano”), mas dá-se na
confusão de planos do capítulo anterior (“Thálassa”), em que ambos os fugitivos do apartamento de Queca após
são interpelados por homens de cinza (prováveis policiais) e um delegado invisível e só voz (a personagem de
Medina, mais tarde revelado em cena paralela em J: 337 ss.). O seu destino certo então parece ser a cadeia – ou a
fuga. Enquanto Brausen é identificado pelo delegado (“- Você é o outro – disse o homem. - Então, você é Brausen”),
Ernesto “esmurrou a cara do homem” (VB: 336-7), que cai imóvel no chão batido. Aqui a cena é suspensa – mas
restam os dois policiais que cercavam Ernesto no banco da praça… em Santa María. Assim, mais tarde, em
Juntacadáveres (1964), Ernesto se converte em Larsen, e Brausen, talvez, num misto de Díaz Grey e Jorge Malabia,
que assistiram à cena de expulsão de Larsen da cidade conduzida pelo delegado Medina e dois militares. Só mais
tarde Larsen volta à vida de Santa María, na verdade como proletário fracassado, para buscar sua vingança
imaginária n’O estaleiro (1961). Num conto estranho, Díaz Grey caracteriza sua vida e o universo de Santa María
como o “sonho de um infeliz paranoico” (C: 345).
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que começara antes com sugestões esparsas daquele “jogo de dois” com Queca, com a
demanda de Stein por uma “argumento de cinema”, a própria imitação da “velha-guarda” e
da vida boêmia de Stein com Míriam/Mami (VB: 44, 66, 226 etc.). O abandono à posição
feminina e ao monólogo insensato da prostituta no apartamento, contudo, o faz suspeitar que
“eles”, os “objetos” do apartamento, “mutilavam, para me prejudicar, o ar do apartamento”
(VB, 223-4). Um apartamento que Arce toma agora como seu território patriarcal sem mais
disfarce, e começa a querê-lo campo deserto, sem Queca e sem ninguém, silencioso e ordenado
por objetos mágicos, "murmurantes", com o ”destino de fetiches” (VB: 217-8), uma pura
“natureza-morta” (como já adiantara no início, VB: 66-71). Assim reverbera o domínio rural
ex-colonial na mente metropolitana de um modesto publicitário em Buenos Aires. E aqui vai
o diálogo no apartamento, notando-se os travessões e outras marcações que o narrador faz
para cortar o pensamento de Queca e justapor seus comentários ácidos:
“- Mas como são eles? - insistia nos momentos amigáveis. - Se você fosse desenhá-
los, se os tivesse visto no cinema…
- Eles são; nunca vi nenhum – dizia ela; somente ao falar ‘deles’ se mostrou
inteligente em todos os meses em que estivemos juntos. - Eles são, e sinto que estão
ali; posso dizer que vejo e que escuto eles, mas é mentira. Não como vejo você ou
outra pessoa. (...) Falam e falam e às vezes com uma velocidade impossível, e,
mesmo assim, eu entendo tudo (...) Mas eu sempre escuto eles, sei o que inventam
para me chatear. Um começa pelo canto e logo todos estão se movimentando por
outra parte, me chamando e me ignorando (…)
- São pessoas que você conheceu, lembranças, aparições?
- Não são, você não entende? Eu sei que ninguém pode me entender. - Era incapaz
de mentir se falava ‘deles’, só então acreditava que a verdade era mais importante
do que as míseras fantasias com que ia disfarçando cada coisa que contava. (VB,
224, grifos meus).

Ela mente, se disfarça, fantasia, se prostitui, se degrada etc., mas não há equivalência
possível para o publicitário. Assim o pacato Brausen vai intercalando cada diálogo com
reflexões ambivalentes: educadas e machistas, ternas e rancorosas... até o corte rente à pele:
“Talvez ‘eles’ [e aqui Queca está inclusa] é que estivessem me separando de Arce, me negando
a totalidade do ar irresponsável, da atmosfera da vida breve” (VB: 225). Assim se define aqui
a vida breve: um desejo de poder ilimitado, irresponsável e violento, em que o outro deve ser
suprimido, não sem sugerir o motivo de que refletem ele mesmo no espelho. Mas aqui talvez
comece a imaginação do próprio romance como uma espécie de cura e reintegração de si
através de Santa María: “jogado numa e noutra cama (…) eu aguardava, às vezes me distraía
visualizando rostos e lembranças, pensando em Gertrudis, Raquel, Stein, meu irmão, ruas e
horas de Montevidéu, como se evocasse um passado distante, fantasmas condenados a
perseguir outro.” (VB: 225). Sem dúvida, algo dessa superação da desgraça, dessa

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reconciliação ou reintegração utópica da personalidade e da própria vida de Brausen, vem à


tona no projeto de Santa María:
“(…) eu era capaz de fazê-los conceber o amor como um absoluto, fazê-los
reconhecer a si mesmos no ato de amor e aceitar para sempre essa imagem (…)
Imaginava-os ofegantes mas em paz, cercados pelo impulso contraditório de
arremeter e de reter que refletiam os semblantes úmidos dos parentes, cheios de
generosidade e humildes, sabendo, não obstante, que a vida somos nós mesmos e
que nós mesmos somos os outros. Se algum dos homens que eu havia feito não
conseguia – por alguma surpreendente perversão – reconhecer-se no amor, faria
isso na morte, saberia que cada instante vivido era ele mesmo, tão seu e
intransferível quanto seu corpo, renunciaria ao ajuste de contas e aos consolos
eficazes, à fé e à dúvida” (VB: 320-1).
Mas Onetti é realista demais para conceder os pontos a seu narrador paranóico-
caudilhesco preferido. Ele sabe que seus materiais lavrados resistem a esse imaginário utópico
de amor e sociabilidade ideal e perfeita. Que talvez no fundo seja idêntica à ideologia liberal e
autocrática de publicitário a qual ele tenta se opôr, ouvida aliás pela boca conselheira de seu
patrão Macleod ao demiti-lo: “se você não se esquecer de Brausen e se entregar por inteiro a
um negócio… É a única maneira de trabalhar, de fazer as coisas. (…) a arte está a serviço da
propaganda”, cujo conteúdo mundano efetivo é este: “o mundo poético, musical e plástico da
manhã, para nosso destino comum de mais automóveis, mais dentrifícios, mais laxantes, mais
toalhinhas, mais geladeiras, mais relógios, mais rádios; para o pálido, silencioso frenesi dos
vermes” (VB: 185).

A questão fundamental de Onetti é o malogro de uma geração derrotada, que escapa


pela vida breve porque a verdadeira revolução social foi suprimida. É preciso encarar assim a
rocha da alienação, do trabalho, da subjetividade dividida que escapa ao impasse dessa
instituição imaginária.

Imaginário estilhaçado
Voltemos um pouco à gênese dessa problemática formal em outros bons textos.
Veremos aqui mais uma vez que não é projetando um positivo separado e exterior à
negatividade social que se pode apreender as belas movimentações da narrativa. Daí a
abstração procurada e o referencial social sempre achado desde as primeiras novelas como El
pozo (1939) e os primeiros contos clássicos de primeira qualidade – “El posible Baldi” (1936)
e “Bienvenido, Bob” (1944), por exemplo –, numa experimentação cada vez mais purificada
que daria numa prosa moderna “realista”, uma sorte de prosa híbrida, i.e. mesclada ao
conteúdo desse fracasso histórico.

Em El pozo, o narrador protagonista é Eladio Linacero, um pequeno empregado de


jornal e um escritor malogrado e ressentido: solitário, ele odeia a socialização pelo trabalho
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(“a culpa é toda minha: não me interessa ganhar dinheiro nem ter uma casa confortável, com
rádio, geladeira, louça e um banheiro impecável. Acho o trabalho uma estupidez odiosa da
qual é difícil escapar”, P: 36); cético e machista, ele odeia as mulheres (em seus devaneios
impublicáveis ele “releva” o ato de assediadores e estupradores e elabora um desprezo amargo
pelas prostitutas), odeia de morte a pequena burguesia; niilista, ele odeia seu parceiro de
quarto Lázaro para quem deve um dinheiro, um operário comunista negro que tenta despertá-
lo para a causa mas lhe suscita pena e um ódio racial oblíquo (com uma apologia indireta e
ceticista da “besta loira” e da “nova mística alemã” de Hitler, P: 50) – embora no fundo de tudo
haja apenas o sofrimento social e o afeto ambíguo da compaixão. Nessa trama a la Dostoiévski
e Céline, Linacero distribui sua pena e seu desprezo por si e por todos, pela vida mesquinha
generalizada, pela ideia “apocalíptica” de revolução (que deu na burocracia stalinista P: 46),
embora saiba de cor as falácias da propaganda anticomunista nos jornais feitas pela ideologia
ianque, e tenha sincera afinidade com os “operários, pessoal dos frigoríficos, maltratado pela
vida”, “a gente do povo, a que é povo de maneira legítima, os pobres…”, os que parecem ter
algo de “não contaminado” (os que se elevam “sobre a própria miséria de suas vidas para
pensar e agir por todos os pobres do mundo”, P: 47-8) – tratando de escapar ele mesmo dessa
vida perseguida pela “desgraça implacável” portanto, não por uma ação política, mas através
do relato de sonhos violentos e da escrita literária inerme que sai da noite rancorosa como a
água escura de um poço (P: 58). Linacero não pode ser dito assim um “integrado”, nem um
revolucionário “apocalíptico” – mas um pequeno burguês “fracassado” e “desclassificado” (P:
45), indeciso e autoflagelado pela culpa, que ainda não tomou consciência de sua própria classe
mas teme no fundo a proletarização, sem quebrar o casulo do individualismo e sem se
identificar plenamente entre los de abajo, como diria Mariano Azuela.

No conto sobre Baldi, temos um pequeno advogado de vida normal e sensata que
devaneia a monstruosidade de ser um soldado caçador e exterminador de negros no regime
colonial no Transvaal sul-africano – como mero artifício de sedução de uma bela garota alta e
loira na rua, que se diria menos uma seduzida do que uma sedutora “compreensiva” e
parafascista (C: 42-3), como se ambos só assim pudessem deixar de caluniar a “vida”, “que é
outra coisa”: “é o que não se pode fazer em companhia de mulheres fiéis, nem de homens
sensatos” como “empregados, patrões, chefes de escritórios” (C: 42-3, 46). Pulsa aqui assim o
desejo de não-trabalho na “vida breve”. Mas o Baldi real é o que suporta o sistema de dívidas,
demandas e mais-trabalho... Em Bob, finalmente, temos o jovem sonhador que “planeja
enobrecer a vida dos homens construindo uma cidade de ofuscante beleza para cinco milhões
de habitantes, ao longo da costa do rio” ou o “Bob que proclamava a luta de jovens contra
velhos”, “o Bob dono do futuro e do mundo” – apresentado por um narrador anônimo mais
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velho, solitário e desiludido da vida e dos ideais, que perde a chance do casamento com Inéz
(irmã de Bob), e passa a "amar" de maneira amargurada e toda vingativa o seu duplo
imaginário, o Roberto envelhecido aos trinta anos, que ele interpreta para todos os efeitos
como mais um homem fracassado e sem futuro como ele (um homem de “vida grotesca,
trabalhando em algum escritório hediondo, casado com uma mulher a quem chama de ‘minha
senhora’”, C: 114-5). Aqui, a realidade prevalece sobre o imaginário e o eu extrai prazer do
ódio.

A partir de La vida breve teríamos segundo Emír R. Monegal uma prosa urbana muito
rebuscada e realista, permeada pela “ambivalência” da realidade do imaginário, com seu
ponto mais alto em El astillero. Até aqui o seguimos, só que não até sua tentativa inexplicável
de dar um contorno mais “humano” e “vivo”, quase romântico e burguês à figura de Larsen,
vale dizer, uma “história de uma necessidade de amor e verdadeira comunicação que lhe estão
negadas[!]”23. Ora, nesse item Monegal escorrega feio na idealização: nessa versão positiva, o
típico cafetão latino-americano decadente desponta como uma das sínteses desse mundo dito
“onírico”, mas que é apenas uma nova “forma de loucura”(J: 106) fetichista do mundo das
mercadorias, isto é, o “filatelista de putas pobres” (J: 189), cujo grande feito é “o patronato das
putas pobres, velhas, consumidas, desdenhadas” (J: 252) através da fundação de um
prostíbulo juntando esses “cadáveres tutelados”, “disformes”, “grotescos”, “putrefatos” (J: 97),
atualizando empresarialmente a Mme. Tellier de Maupassant (e que aqui ganha o traço
indígena de “Tora”, uma concorrente estabelecida em Rosário, J: 99-101) – e isso através de
conluios políticos escandalosos com Barthé (que receberá a propina de quinhentos pesos por
mês, num acordo que prejudicará os trabalhadores do porto) e com a câmara municipal (não
sem a intermediação espúria de Díaz Grey). E ainda, para fechar a fatura do insulto e da
indecência de Junta-Larsen: sua decisão de abandonar sozinha num barraco numa vila-
miséria argentina a mulher de Gálvez em pleno trabalho de parto, sangrando uma hemorragia
(E: 245), que é uma releitura em chave negativa do final de Light in August, de Faulkner. Para
o nosso crítico, esse percurso pelo “horror de um mundo solipsista” de Larsen converte-se
adiante (por uma mágica do “mundo onírico”, de fato) na “cifra de toda a humanidade”[!]24. É
o erro das leituras intencionalistas e alegórico-intertextuais de Onetti, abstraídas da totalidade
e do contexto histórico: pois nos “impulsos vitais” do escritor Monegal quer apenas
reencontrar uma “alma terna e desgarrada” análoga a de seus protagonistas, o que para ele
“desmente a (aparente) negatividade e sordidez do assunto”25. Assim se suspende toda sua

23
Monegal, 1966, p. 255.
24
Ibidem, p. 254 e 259.
25
Ibidem, p. 260.
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relação crucial com J. Petrus, M. Bergner e Jorge M., que como vimos descendem de
Brausen/Arce (“todos os homens que a habitavam tinham nascido de mim”, VB: 320-1). E no
entanto é o próprio Monegal que, buscando reconhecer nesse gigolô invulgar um “coração
romântico”, o “único ser vivo num mundo de cadáveres”, compreende bem a sua essência vital
como fuga narcisista da vida, escape defensivo da dura realidade e da potência do tempo26.

Ora, seria o caso de investigar melhor assim essa dinâmica temporal, quebrar a
ideologia e perceber o que se desintegra na radical discrepância entre a ordem das ideias e a
realidade. Ou entender melhor como essa discrepância, um pouco como no mundo das “ideias
fora do lugar”27 machadiano, é em parte dissolvida e em parte conservada, sem desmanchar o
todo e a situação ideológica peculiar dos países periféricos. Nos termos extraordinários de O
estaleiro: como Larsen estava “enfeitiçado e resolvido” (E: 46) a praticar a impostura – a
“comédia de trabalho, de empresa, de prosperidade” (E: 31) – até o final, culminando no
cortejo furado e no amor recusado, na verdade impossível, com a louca Angélica Petrus. A
moça cuja “marcha lenta” ou “passo processional” serve aliás para descrever o “desfile
religioso” (E: 152) do próprio Larsen e o ritmo circular-espacializado de todo livro: a
alternância dos capítulos entre Santa María, o Estaleiro (como uma espécie de igreja em
ruína), o Caramanchão e a Casa (o “céu ambicionado, prometido”), e a Casinha e o bar
Chamamé como o “inferno” proletário realmente vivido (E: 26, 178). Aqui o texto semeia
vários significantes do fetichismo capitalista (naturalização, alienação e inversão real das
relações sociais, automovimento do capital) nas andanças “religiosas” de Larsen:

* “o feitiço que suportava e cumpria, a necessidade de prolongá-lo” (E: 96);

* “A única coisa que resta fazer é justamente isso: qualquer coisa, fazer uma coisa atrás
da outra, sem interesse, sem sentido, como se outro (ou melhor, outros, um amo para cada
ato) pagasse alguém para fazê-las e esse alguém se limitasse a cumprir da melhor forma
possível, despreocupado do resultado final daquilo que faz. Uma coisa e outra e outra coisa,
alheias, sem que importe se vão sair bem ou mal, sem que importe o que querem dizer” (E:
84);

* “a gente faz as coisas, mas não pode fazer mais do que aquilo que faz” (E: 116);

* “(…) não acreditam, estou percebendo, nem sequer naquilo que tocam e fazem, nas
cifras de dinheiro, nos números… mas sobem todo dia a escada de ferro e vêm brincar as sete
horas de trabalho e sentem que o jogo é mais verdadeiro que as aranhas, as goteiras, os ratos,
a esponja das madeiras podres. E se eles estão loucos, é forçoso que eu esteja louco (…) mas se

26
Ibidem, p. 255-6.
27
Nossa referência aqui mais uma vez é Roberto Schwarz, 2000, 1990, 2012.
156
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eles, outros, me acompanham, o jogo é a sério, se transforma no real. Aceitá-lo assim – eu, que
o jogava porque era jogo – é aceitar a loucura” (E: 66).

Aqui, a desgraça profana revela-se de maneira paródica como o cerne da doutrina


puritana da “graça”28 difundida pelo “discurso imortal” de Petrus (E: 33), ou pelo Padre
Bergner a fim de regular a vida da colônia suíça e de toda Santa María: uma “racionalização
metódica da vida” pelo trabalho in majorem gloriam Dei, isto é, para a glória da “jaula de
aço”29 sem espírito do Capital que Larsen força-se a incorporar e a operacionalizar no estaleiro
com o “único propósito de dar-lhe um sentido e atribuir este sentido aos anos que lhe restavam
viver, e, em consequência, à totalidade de sua vida” (E: 45). Um “duplo jogo” de mentira e
realidade alimentado por uma “vontade desesperada” (E: 60) de sobreviver. Ao mesmo tempo,
nesse universo de faz de conta, assim, Larsen não está inserido de todo no universo da
impessoalidade e da objetividade do mercado moderno: ele depende do favor de “dom
Jeremias Petrus” (E: 85) para ser nomeado na função de Gerente Geral (tal como já dependera
de Barthé e da câmara para obter a licença para abrir o prostíbulo na cidade) – um patrão que
é um dublê de caudilho despótico que por sua vez depende de laços clientelistas com os
potentados do país (E: 124) e que gere seus negócios fracassados por cálculos caprichosos e
fantasistas de poder e glória, para além da estrita racionalidade burguesa. É o que Kunz e
Gálvez remedam abertamente assim que Larsen ali recebe o posto no estaleiro arruinado (“-O
grande velho do estaleiro. O homem que fez a si mesmo”, E: 32). Do mesmo modo aqui, na
periferia da periferia, a própria proletarização fracassa, gerando o submundo da
superfluidade, do improviso e da desclassificação social. Assim, o desencontro geral entre
ideias modernas e realidade local, seu rebaixamento recíproco tal como eram ainda vividos em
Junta-Cadáveres – vale lembrar que a “Santa Cruzada” de Marcos Bergner contra a
"imundície judaica” de Larsen termina numa “quizila” entre pares, no fiasco da acomodação e

28
Segundo a doutrina calvinista da “predestinação” e da “graça” somente a vida racional metódica permeada por
um intenso trabalho profissional era o meio adequado para afastar as dúvidas e tentações diabólicas sobre a
salvação e assim garantir a certeza do “estado de graça” (Weber, 2004, p. 100-105).
29
Como já lembrava Weber, essa jaula não precisa mais de nenhum espírito ou ideologia: “Na opinião de Baxter, o
cuidado com os bens exteriores devia pesar sobre os ombros de seu santo apenas ‘qual leve manto de que se pudesse
despir a qualquer momento’. Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço {na célebre tradução
de Parsons: iron cage = jaula de ferro}. No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os
seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres
humanos como nunca antes na história. Hoje seu espírito — quem sabe definitivamente? — safou-se dessa crosta.
O capitalismo vitorioso, em todo caso, desde quando se apoia em bases mecânicas, não precisa mais desse arrimo.
Também a rósea galhardia de sua risonha herdeira, a Ilustração, parece definitivamente fadada a empalidecer, e a
ideia do “dever profissional” ronda nossa vida como um fantasma das crenças religiosas de outrora”. (Ibidem, p.
165).
157
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na piada de sua união final30) – converte-se agora, em El astillero, numa discrepância diversa,
com a face da contradição efetiva moderna: por um lado, ela é dissolvida numa unidade real-
imaginária, ou seja, forçada, numa espécie de mentira socialmente organizada pelo reino da
produção de mercadorias ficcionalizado pelo capital fictício (E: 31), que no limite será paga
com a desintegração do próprio eu. Por um lado, Larsen encarna a função, indiferente a tudo
o que é vivo e concreto, a ratio do empresário que “recalca a mimese”, mas que se inverte em
falsa mimese: “a mimese do que está morto”31. Nesse tipo fantástico de simulacro de
acumulação capitalista, para Larsen o “jogo” tende a se transformar em algo mais que uma
convenção mascarada quando a máscara fetichista adere ao próprio rosto: uma espécie de
ritual religioso incrédulo, a princípio, mas tornado tão objetivado e irrefreável como trabalho
simulado que parece absorvê-lo por inteiro na gerência e empurrá-lo para a catástrofe, quase
cancelando toda lucidez e sensibilidade ainda mantida nos poros do relato, dissolvendo a
própria consciência de classe mais ou menos representada como consciência da desgraça
social (“a vanguarda do medo”, “a apostasia” desse mundo, E: 138), embora também sempre
rechaçada (o “populacho verdadeiramente imundo” menosprezado logo no início, tal como a
empregada Josefina é reconhecida antes de usada e dispensada, no desfecho: “nós os pobres”,
“uma mulher que era sua igual” que criava “a sensação de fraternidade, o vínculo profundo e
espesso”, E: 15, 242-3). Por outro lado, contudo, esse movimento contraditório de mimese do
sofrido e falsa mimese do trabalho morto nunca se supera, e o levará à morte.

Junta-Larsen cai assim numa espécie de morte simbólica ao viver a loucura objetivada
e simulada do capital: no limite, ele se autossuprime e se integra ao seu outro, fazendo-se
idêntico ao capitalista fraudulento e enlouquecido, como ele declara já quase sem ironia: “só
agia movido pela lealdade e por uma incontrolável, total identificação com Jeremias Petrus e
suas ambições” (E: 127). Sua perseguição de Gálvez em busca da vingança de morte, a
coisificação anímica e a indiferença geral em que passa a viver etc. só se desfazem quando ele
reencontra Petrus na prisão, com seu comportamento maníaco, cínico, ritual e dissimulado (e
por isso Larsen volta a pedir-lhe garantias de contrato formal de trabalho e o pagamento de
salários atrasados, E: 220-1) – um encontro que funciona como uma visão do seu duplo num
espelho quebrado, revelador da própria loucura do trabalho (E: 207 e ss.). O que se completa

30
Contudo, do ponto de vista estritamente liberal, o prostíbulo de Larsen realiza as ideias modernas do “livre
mercado” – chocando a Santa María liberal-conservadora. Onetti é sagaz no comentário: “Considerando o assunto
do ponto de vista psicológico, pode tratar-se da tão comum rivalidade vocacional que sempre caracterizou os
artistas. Agora, se aplicarmos um critério marxista, pode ser que a quizila tenha como origem o fato de que as três
mulheres da casinha não trabalham de graça, não são movidas, na cama, pelo nobre amor ao ofício. Tão diferentes
das que Marcos teve e conheceu no breve tempo idílico do inesquecível Falanstério” (J: 197). Para uma análise da
prostituição e a “psicologia de massa do estupro” sob vários pontos de vista (liberal, marxista e feminista), ver
Miguel, 2014, p. 139-145.
31
Adorno e Horkeimer, 1985, p. 62.
158
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enfim quando olha à distância, já à beira da morte por pneumonia: “a ruína veloz do estaleiro,
o silencioso desabar de suas paredes (…) o sussurro do musgo crescendo nos montes de tijolos
e o da ferrugem devorando o ferro” (E: 246). São os últimos momentos de lucidez no engodo
que ajudou a construir: um autêntico desejo de fuga, desintegração e morte. Mas sabemos que
há muito Larsen perseguia um único objetivo na vida – “ganhar dinheiro” (J: 205-6). Daí a
necessidade de “derivar”: “depositar no mundo, visíveis para os demais, palpáveis, coisas,
cifras, satisfações” (J: 205). O que já tendia a cancelar sua própria subjetividade e “solidão” (J:
166) no “trabalho” que arrastaria os homens religiosos e hipócritas de Santa María ao “feitiço”
da comercialização dos corpos no “ritual” de sua casa celeste (J: 157). Aqui, o passo à frente de
Onetti é mostrar como os preconceitos tradicionais da massa liberal-conservadora de Santa
María (o Padre Bergner, a colônia suíça) é que estavam deslocados e obsoletos frente à
mercantilização geral do país e do mundo no novo século, que há muito ultrapassara o patético
meio religioso e aristocrático da “Pensão Tellier” ou da “Bola de Sebo” de Maupaussant. A
“religião” mudou de figura e endereço.

**

O tema desses contos, romances e novelas é assim uma certa formação social fetichista
e autoritária que permeia a formação de indivíduos problemáticos de novo tipo desde a
escalada fascista internacional, objetivando-se como homens de caráter “liberal” e
“esclarecido”, mas que escondem um núcleo autoritário, patriarcal, religioso e violento mais
ou menos embotado. Por trás dessas personagens pequeno-burguesas perdidas em devaneios
e desejos ilícitos, Onetti descobre o rolo compressor da integração na vida cotidiana contra um
surdo desejo de ruptura anarco-individualista enlaçado a afetos destrutivos, rodopiando sem
destino exato.

É isso que alimenta o gozo imaginário narcisista. Na base, sentem o conflito entre
sexualidade e civilização, ou, melhor dizendo, o anacronismo do “princípio de desempenho”
(e “mais-repressão”, como o denominara Marcuse), o tempo abstrato da economia separado
da vida privada, dos lazeres e da sociabilidade, a sua colonização pela indústria da cultura etc.
Pois originalmente, como lembra ainda Marcuse32, as pulsões não têm limitações temporais e
espaciais, a sexualidade é “polimorficamente perversa” (Freud). Mas isso que é recalcado, em
nível individual, é como que redobrado como repressão excedente em nível social (uma
“renúncia” que põe o “mais-gozar” segundo Lacan33), a título da “autoconservação” da
civilização. Nos anos 50 (e aqui Onetti é nosso testemunho), já se percebia mais ou menos o

32
Marcuse, [1955]/1981, p. 61.
33
Safatle, 2020, p. 73.
159
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devir hedonista e multicultural do capitalismo, a espécie ilusória de realização da libido em


desempenhos consentidos e absurdos (incluindo trabalho, amor, lazer), ou como diz Marcuse:
“a repressão desaparece na esplêndida ordem objetiva das coisas, que recompensa mais ou
menos adequadamente os indivíduos cumpridores e obedientes”34.

O relaxamento moral dos interditos parecia colocar em pauta uma “promesse de


bonheur maior do que a sexualidade ‘normal’”, tal como previsto por Freud: “as perversões
expressam a rebelião contra a subjugação da sexualidade à ordem de procriação e contra as
instituições que garantem essa ordem”35. Aqui entram os anti-heróis de Céline, Arlt, Genet,
Bataille: soçobram num certo irrealismo inconsequente do sonho erotizado ou da passagem
ao ato, na tentação frenética de realizar fantasias perversas em busca de gozo imediato, que
Onetti (seguindo alguns lampejos de Arlt) foi um dos primeiros a observar criticamente como
podiam ser aproveitadas pelo poder e a destrutividade do sistema com fins de dominação da
natureza externa e interna. Suas personagens restam na negação indeterminada do trabalho,
gozam nas alturas da ficção e da autoficção mas imolam-se ao princípio de desempenho – por
MacLeod ou Petrus – mesmo que simulado.

Mas mudanças significativas davam-se na política, na moral e nos costumes em


meados do século. Sob o declínio da figura do pai, da religião e do patriarcado tradicional, um
novo Supereu impregnado pela pulsão de morte se constitui aqui visivelmente, em “secreta
aliança com o Id” (e a energia libidinal desligada portanto); um supereu com traços maternos
arcaicos que incita ao gozo e a transgressão de limites36, resultando num “eu sitiado”,
“contraído”, que talvez meramente sobrevive37, no masoquista que se volta sadicamente para
fora, liberando forças destrutivas inéditas. A relação arcaica de sedução, amor e ódio dos
homens onettianos com as mulheres liberadas (Gertrudis, Raquel), e especialmente as
prostitutas (Queca, Ester, Rita...), ganha aqui sua marca histórica, ainda mais se definirmos
seu contexto rioplatense e latino-americano em geral. É o que as personagens de El pozo, dos
romances e contos célebres acima examinados parecem tentar suprimir e/ou sublimar. Ainda
hoje, vale dizer, é o que o sistema tenta administrar para se reproduzir, liberando
controladamente pulsões anômicas e a destrutividade em novos conceitos liberais absurdos
de paz, felicidade, liberdade ou democracia (novas mercadorias e serviços, guerras civis e
coloniais, campos de concentração, ditaduras, neofascismo etc.). Trabalhando para esse
sistema de administração de necessidades e desejos (propaganda, imprensa, lazeres),

34
Marcuse, [1955]/1981, p. 59.
35
Ibidem, p. 61.
36
Ibidem, p. 95-7 e p. 197-8. Cf. as elaborações de Lacan, segundo Vladimir Safatle, 2020, Cap. 1 e 2.
37
Ibidem, p. 98; Adorno, 2015; Lasch, 1986; Safatle, 2020. Para uma análise clássica da gênese do narcisismo:
Laplanche, 1989 .
160
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personagens como Stein, Brausen, Larsen e Linacero intuem a divergência entre o gozo
prometido e a vida mesquinha mantida à força pelo sistema. Mas se Brausen e Larsen rompem
o cerco desse eu sitiado, naufragam perversamente nos rios da pulsão de morte, mandando a
autoconservação, o orgulho próprio e a decência moral às favas. Contudo, na ação desses
indivíduos fracos, liquidados pela coerção do trabalho, ouve-se perfeitamente a negação do
patriarcado em ruínas tanto quanto o reclame do poder imaginário do macho e de seus
irmãos-duplos-rivais (Stein, Jorge M., Marcos B., Díaz Grey etc.), um poder que não deveria
declinar e até se reconstitui em determinadas figuras como Jeremias Petrus, Marcos Bergner
e Medina como um “pai primevo” (Freud) acima da lei e de toda restrição de gozo.

Num outro giro histórico, após os anos 60, o que cai em pedaços, estilhaçando esse
imaginário patriarcal nada maravilhoso, é o verdadeiro mundo cão posto pelo capitalismo
avançado, para agora desembocar no colapso do valor e do trabalho abstrato (Kurz/Scholz).
O mundo onettiano prefigura esteticamente essa crise no drama da proletarização
naufragada, do desemprego permanente, da solidão mortificadora de criaturas supérfluas e
descartáveis. O ângulo tinha de ser os de baixo, para além de Brausen, Díaz Grey ou Jorge
Malabia. Ele é ocupado por uma só personagem refletora: Gálvez, o trabalhador que ocupa a
“Gerência Administrativa” do estaleiro inexistente de Petrus, que mora com a esposa e os cães
numa casa de madeira improvisada na vila-miséria, que reconhecem como uma “timoneira de
barco, uma casinha de cachorro” (E: 95). Aliás, o romance de 43 (Para esta noche), em que o
protagonista do Partido Comunista é morto pela ditadura deveria se chamar El perro tendrá
su día. Mais tarde, torna-se o título de um conto homônimo (“O cão terá seu dia”, [1976] C:
363-72), em que o jovem Petrus manda assassinar um homem (provavelmente um dos
primeiros gerentes do estaleiro em construção nos anos 30) com o auxílio de peões e alguns
dobermans famintos, embora o pior cão da narrativa seja o policial Medina, que lhe arranca
uma noite de cama com sua empregada-prostituta Josephine em troca do acobertamento do
crime. O mesmo Comissário Medina que surge no final de El astillero dando conta de outro
morto, a saber, o operário Gálvez, que para manter as aparências provavelmente foi
“suicidado” por Petrus. O mesmo policial criminoso que, convertido em gigolô e suspeito de
outro assassinato (Frieda), narra um de seus últimos romances, Dejemos hablar al viento
(1979). Aqui, a destruição da aparência se completa: a vida breve torna-se a morte em breve.

A desgraça como desencanto, resistência e movimento


«Quelle étrange folie a saisi la classe ouvrière
et qu’on appelle l’amour du travail ?»
(Paul Lafargue, Le droit à la paresse, 1883).
161
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Aqui enfim chegamos no ponto de viragem em que o “desespero” – “o desespero na


caça e na pesca” da velha prostituta Miriam/“Mami”, explorada por Julio Stein, ou a “máscara
de terror e decisão covarde” do rosto sofrido de Queca, a prostituta usada e abusada por
Brausen (VB: 70 e 116), ou ainda, o “medo interminável”, “a vontade de vomitar” e os “golpes”
provocados pela própria Ana Maria, que “significavam um final, uma pausa, um transformar
em nada”, a “substituição de si mesma, do mundo inteiro, pelo choro e a autocompaixão”, a
“curta liberdade do ódio” e o "sono terno" que apaziguava seu espancador Marcos Bergner (J:
129-130) – ganha contornos que dissolvem o imoralismo (e seu suposto gozo subjetivo) em
situações objetivas de dominação e proletarização que desencantam, senão desafiam, a
legitimação da norma capitalista.

O procedimento da crítica onettiana é imanente às formas literárias constituídas.


Levando a ironia ao ponto máximo, o galego Lanza tira as consequências dos princípios
burgueses contidos na prostituição organizada por Larsen/Junta-Cadáveres e as autoridades
da cidade (somem-se: a câmara de conservadores corrompida, o intermediário Díaz Grey e o
proprietário do jornal El liberal que aluga a casa para o prostíbulo) que realizam as suas
ideias: 00pois, segundo o ponto de vista liberal, tratou-se de “mais uma etapa da antiquíssima
luta entre o obscurantismo e as luzes”, em que “Larsen lutou pela liberdade, a civilização e o
honrado comércio. E agora [depois do combate do Padre Bergner e as ordens do Governador]
se preocupa com o devido respeito às instituições [já que Larsen tinha uma licença para o
funcionamento do prostíbulo]” (J: 339-40).

Nesse mesmo caminho a representação da mulher através dos estereótipos de gênero,


às vezes levados ao extremo pelos narradores (um ser da “natureza” e do “amor”, “passiva”,
“louca” e “histérica”, a bela e sexualmente atraente quando virgem-moça, decaída e
descartável como mulher madura etc.), convertem esses homens que detêm a palavra da razão
e do decoro, através da dialética vertiginosa de Onetti, em suportes ativos do valor-dissociação
enquanto seres pusilânimes embrutecidos pela loucura racional de “empresário”. Depois de
um diálogo tenso para o homem, a separação final de Brausen e Gertrudis (a “desgraça”
encarnada) será marcada pela clara recusa, o gesto corporal de afastamento e o silêncio fatal,
que o deixa qual folha ao vento:
- Vou apagar a luz, vou beijá-la – disse eu; seu rosto não se alterou; sorria,
adormecida, mostrava o sono sem disfarce. Levantei-me cercado pelo ruído do vento
e pelo próprio vento; senti o frescor da chuva na nuca. Apaguei a luz e esperei até
distinguir a forma de Gertrudis acocorada, balançando-se.
- Não se mova – disse-me, e nada se podia saber pela voz. - Está tudo bem. Mas não
desejo você. - Ajoelhei-me para beijá-la; ela fez surgir dentre os lábios, rígida, a
ponta da língua. - Não desejo você – repetiu, separando-se.
162
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Coberto e excitado pelas móveis camadas de ar úmido, tentei ser como o rumor
distante do vento (...) (VB: 211).

Um gesto semelhante de recusa encontra-se na cena em que a esposa de Gálvez, uma


mulher grávida, um tanto passiva e conformada com o destino (segundo o narrador), é pela
última vez assediada por Larsen:
“[Larsen] Apertou delicadamente sua barriga contra a da mulher, a beijou
segurando-a apenas pelos ombros, roçando o tecido áspero com as pontas dos
dedos. Ela se deixou beijar e abriu a boca; ficou imóvel e ofegante todo o tempo que
Larsen quis. Depois retrocedeu até tocar a mesa e lentamente, ostensivamente,
ergueu uma mão e bateu no rosto e na orelha de Larsen. O golpe o deixou mais feliz
que o beijo, mais capaz de esperança e salvação.” (E: 194)

**

Para terminar, precisamos retomar o caso de resistência ativa de Gálvez. Ele entra
tarde em cena, num romance que dá os holofotes para o retorno e o fracasso de Larsen.
Perceba-se como seu nome já remete simbolicamente ao processo de galvanização de peças de
metal (cf. E: 79-80). Em Porto Astillero todos sabem da "loucura infecciosa do velho Petrus" e
do estaleiro em ruínas tão maravilhosamente descritas por Onetti. Mas os administradores
Larsen, Kunz e Gálvez fingem que ele funciona, fingem que trabalham, fingem que ganham
salários à primeira vista apenas para assegurar que Petrus consiga a recuperação judicial da
falência e o favor do Estado: “Petrus está louco, ou tenta continuar acreditando para não ficar
louco. Se liquidarem, ele vai receber cem mil pesos e eu sei que deve, ele, pessoalmente, mais
de um milhão. Mas, enquanto isso, pode continuar apresentando petições e visitando
ministérios” (E: 112). Aqui emerge então o verdadeiro “mundo louco” da prosa de Onetti,
como vimos: o mundo do fetiche do capital fictício e do poder clientelista.

Na realidade, sem receberem salários Gálvez e Kunz vivem da subtração dos materiais em
decomposição do estaleiro: vendem metais, peças, ferramentas, máquinas etc. para “os russos”
(E: 78-9, 153-8). Devolvem a espoliação ao espoliador, que os trouxe como imigrantes e os
abandonou na vila-miséria com a função de conservar o valor como valor. Mas como se sabe,
Gálvez tem uma prova concreta em mãos de que Petrus falsificou títulos acionários para
ampliar o capital, de modo que para Petrus manter “o funcionamento do estaleiro é a base de
tudo” (E: 219). Esta é a questão central do romance. Aqui Gálvez entra em conflito com os
interesses de Larsen que, iludido como Gerente Geral da massa falida, defende Petrus, sonha
em receber um dia salários de seis mil pesos, fingindo-se chefe de duas centenas de operários
fantasmas (que um dia o estaleiro de fato teve e voltaria a ter) e futuro dono de trabalho morto
convertido em carcaças enferrujadas (caso conseguisse casar com Angélica Petrus). Na
verdade Onetti deixa implícito: o Junta-Cadáveres tornou-se Junta-Carcaças. Este tenta
163
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convencer a mulher de Gálvez a lhe dar o título fraudado. Mas Gálvez não cede e “comete a
loucura” (E: 166, 190) temida por Larsen: depois de nove meses de espera e aparente
indiferença em relação à situação da esposa grávida, Gálvez entrega o título falso à Justiça e
manda Petrus para a cadeia. Fica claro que isso, pelo menos em tese, significará a liquidação
do negócio e o fim de toda a farsa, inclusive do meio de vida arranjado por Kunz, Gálvez e
Larsen. Ora, na verdade há muito isso havia sido pensado por Gálvez: “-Se for preso perdemos
tudo, nos põem para fora em vinte e quatro horas. Não é por isso. É porque esse velho merece
acabar assim. O senhor não sabe.” (E: 79).

A esposa de Gálvez não entende esse gesto de rebelião que afinal se realiza, nunca
pensou que ele estaria “louco” ao simular o trabalho no estaleiro, mas intuía que “sua vontade
era de se suicidar” em breve; para ela, o homem não guardava o título falsificado apenas para
se vingar de Petrus, mas para “vingar-se, se sentir poderoso, capaz de mais infâmia que o
outro” (E: 170). Além disso, como observa Ricardo Piglia, a trama insinua “que a mulher de
Gálvez na realidade espera um filho de Petrus”38. Certamente, são motivos simbólicos, mas
que ultrapassam o indivíduo e os seus interesses materiais imediatos: é porque o velho
capitalista “merece acabar assim”. Isso é o que implode, no contexto desse romance, os valores
“racionais” dessa ordem social fetichista: a farsa moral do trabalho, a ação do indivíduo
moldada pelo interesse monetário e a escravidão assalariada, a dependência e o dever de
obediência a quem presta favores etc.

O ato “louco” e “infame” de Gálvez desvela a verdadeira loucura e infâmia do capital.


Destrói o encanto da desgraça. Calado, impassivo, afastado de casa, do estaleiro – “Por que
não vai para o inferno?” (E: 95) – respondia ele assim às trapaças de Larsen para fazê-lo voltar
ao “trabalho”. E ao invés de lamentar a desgraça, como Larsen, apropria-se de meios de
produção do capitalista que os domina e ironiza as atitudes parasitas e protocapitalistas de
Larsen ganhar a vida (sugerindo-lhe ironicamente mais estas: “- A pirataria ou o tráfico de
mulheres”, E: 87). Por isso sua morte por “suicídio” é suspeita – ainda mais investigada pelo
delegado Medina, um cliente serviçal de Petrus. A “prova” que Gálvez não se suicidou mas foi
liquidado está nas páginas que concluem o caso, em sua decisão de levar a denúncia à cidade,
onde ele mostra um viço, uma alegria, uma determinação que só o verdadeiro senso da luta
social e o amor à esposa e ao filho seriam capazes de inflamar. É hora de dar a voz original de
Onetti, que raramente se põe aliás como autor implícito e que aqui fala através da voz popular
da mulher:
Sucedió esta tarde y yo no pude hacer nada, suponiendo que hubiera algo que
quisiera haber hecho. Gálvez vino a eso de las tres del astillero y estuvo un rato

38
Piglia [2008]/ 2015.
164
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sentado, sin hablar, mirándome a escondidas. Le pregunté si necesitaba algo y me


dijo que no con la cabeza. Estaba ahí en la cama, sentado. Me asusté porque era la
primera vez en mucho tiempo que tenía aire de sentirse feliz. Me estaba mirando
como un muchacho. Me cansé de preguntarle y salí afuera para lavar; estaba
tendiendo cuando vino de atrás y me acarició la cara. Acababa de afeitarse y se había
puesto una camisa limpia sin pedírmela. «Ahora todo se va a arreglar», dijo; pero yo
supe que sólo pensaba en él. «¿Cómo?», le pregunté. No hizo más que reír y tocarme;
parecía, de veras, que todo se hubiera arreglado para él. Me emocionó verlo
contento; no volví a preguntarle nada, lo dejé acariciarme y besarme todo el tiempo
que quiso. Tal vez se estuviera despidiendo, pero tampoco eso le pregunté. Al rato
se fue, no para el astillero sino por el camino de atrás de los hangares. Me quedé
mirándolo porque parecía mucho más joven. Por la velocidad y el entusiasmo con
que caminaba. Y justo cuando estaba por desaparecer se detuvo y volvió. Lo esperé
sin moverme y a medida que se acercaba fui sabiendo que no se había arrepentido.
Me dijo que se iba a Santa María para entregar el título al juzgado, creo, y hacer la
denuncia. Me lo dijo como si a mí me importara mucho, como si lo hiciera por mí,
como si aquéllas fueran las frases más hermosas que pudiera decirme y yo estuviera
deseando oírlas. (E: 191-2)

“Ahora todo se va a arreglar” – o que é menos um “ajeitar” do que um consertar,


resolver: um desejo de reordenação do mundo como totalidade. Uma ação que se conecta
virtualmente assim a um sujeito de classe, negando o “maravilhoso futuro” (E: 201) inventado
por Larsen, como nos diz Gálvez em sua carta final. A subjetivação crítica se completa quando
a proletarização e a crítica da proletarização se completam. E como crítica do trabalho: um
tempo de desejo que se abre pois “esse velho merece acabar assim” – o “velho mundo precisa
acabar”39.

Mas é o lamento de Junta-Cadáveres, o especialista em fazer o “jogo” e que quer continuá-lo


eternamente, quem deve anunciar o fim do jogo:

- É assim, então – disse Larsen. - Bem, tenho que lhe dizer que o que Gálvez fez
significa o fim para todos nós. E teve a ideia de fazer essa loucura quando tudo está
a ponto de se ajeitar. Uma verdadeira pena para todos, senhora. (E: 193)

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39
Aqui pode-se traçar uma linha paralela entre o dito de Gálvez e o protagonista de Alfred Döblin em Berlin
Alexanderplatz, que dá sua mágica viravolta nas páginas finais do romance formando-se, como observa Raphael F.
Alvarenga, “enquanto sujeito de classe, em ruptura com a condição dada”. Questionando “o poder do falso coletivo
sobre o indivíduo, Franz Biberkopf passa por uma metamorfose, é dissecado, desmembrado e recomposto,
ganhando no fim uma nova identidade”, ou, numa apreensão mais lógico-conceitual, agora “está portanto solto no
mundo, por conta própria quiçá pela primeira vez na vida, e é a partir deste momento, quando se encontra esvaziado
de todo conteúdo substancial (…) que se constitui para ele o desejo e a possibilidade de ruptura com a ordem
vigente” (Alvarenga, 2012, p. 210-3),
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INSÔNIA:
A “coleção de encrencas” de Graciliano
Cláudio R. Duarte

À Gizelle Caparroz,
que abriu a trilha.

História enguiçada

Boas obras são resultados de experiências quase sempre tortuosas. É como na pintura:
para obter o quadro bem realizado, o artista experimenta, estuda modelos, descarta o
imperfeito, retém o que abre caminho. Os contos de Graciliano Ramos agrupados em Insônia
(de 1947, mas muitos deles publicados entre 1935 e 1940) têm o seu valor relativo como
experimentação de novos pontos de vista (narrador obsessivo, atordoado e descentrado,
técnicas de monólogo interior, retórica da repetição e novas perspectivas de caráter
psicanalítico) e uma série de novas figurações da estética do duplo na tradição da literatura
brasileira. O que não é pouco para uma literatura que ali ainda trilhava a rota neonaturalista
e regionalista e o ponto de vista excelso do narrador onisciente. As experimentações dessa
coletânea interessam ainda mais ao leitor se os textos forem pesados como uma preparação
para o salto formal que levou Graciliano além do patamar realista da maturidade, atingido em
São Bernardo (1934), ou seja, que o colocou no ponto mais alto de Angústia (1936) e Vidas
secas (1938), sem dúvida entre os melhores romances brasileiros da década, quiçá do século.

Este o interesse de Insônia. Segundo a visão rigorosa do autor, o livro seria apenas uma
“coleção de encrencas, algumas bem chinfrins” – tal como assinala na dedicatória ao exemplar
de Antonio Candido1. O fato é que apesar de “no geral”, segundo Candido, serem “medíocres”
- “constrangidos e dúbios, mais parecem fragmentos; falta-lhes capacidade de afundar-se
numa situação limitada, esquecendo possíveis desenvolvimentos”2 - nessa mediania também
sobressaem histórias que ganham relevo, importância e significado diferente quando lidas
realmente em conjunto. A obra se oferece então ao modo de um mosaico representativo de
uma situação específica, como um feixe de narrativas iluminadoras e apreciáveis que desperta
o leitor insone para a realidade brasileira em transição até sua consolidação no Estado Novo.
A questão formal do duplo, no contexto da rápida transição social do campo à cidade, colhida
talvez na melhor tradição de Gógol, Dostoiévski e Machado de Assis, gira aqui em torno de um

1
Candido, 1992, p. 10.
2
Candido, 1992, p. 44.
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mundo híbrido e encrencado produzido pelo velho sistema econômico colonial em


decomposição. Um sistema que na década de 30 aparecia ainda mais desestabilizado pela crise
de 29, a desvalorização da moeda nacional e dos produtos primários de exportação3, levando
ao árduo embate dos indivíduos com uma sociedade oligárquica e extremamente desigual,
dividida entre valores muito misturados e em disputa (conservadores, positivistas e religiosos,
por um lado, democráticos e socialistas, de outro), tudo sob a cobertura maior das ideologias
de modernização autoritária do período, que logo se cristalizaria num governo que propunha
a industrialização e a conciliação de interesses com o latifúndio e as classes médias e populares
pelo alto. Boa parte desses contos, aliás, foram pensados e/ou escritos por Graciliano no
cárcere, após sua prisão sem processo em Maceió (1936), de onde seguiu transferido para
Recife e Rio de Janeiro.
A agitação política desses anos transparece inclusive de modo quase direto em dois
desses contos: a burocratização quase kafkiana de um processo criminal em “A testemunha”
[1936]; enquanto que em “A prisão de J. Carmo Gomes” [1940] temos o conflito familiar entre
uma irmã reacionária e um irmão comunista na família do Major Carmo Gomes, no contexto
da Revolução de 1930 e da “Intentona Comunista” (1935), momento em que a irmã se converte
em integralista.4
Esse então o contexto histórico encrencado e internalizado explicitamente pelos contos
de Insônia, que, se pecam por uma certa construção dispersiva como apontou Candido, por
outro dão notícia de um processo social dessa mesma natureza justamente através dessa
técnica de construção, feita realmente aos solavancos, no nível de cada relato e no nível do
todo aqui reunido, que passa assim a contar uma história política repressiva e conturbada,
expressando talvez de um modo outro a lógica da “formação supressiva” ou “negativa”
identificada por José Antonio Pasta na literatura brasileira em seu ensaio seminal,
“Volubilidade e ideia fixa”5.

Em “Relógio do hospital” [1936-37], um dos contos principais de Insônia, Graciliano


expõe uma espécie de forma celular de subjetividade que aqui nos interessa desdobrar:

Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos
espaçados – rolar de automóveis, um canto de bêbedo, lamentações dos outros
doentes – avultam as pancadas fanhosas do relógio. Som arrastado, encatarroado e
descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de
semelhante maneira. Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas

3
Prado Jr., 1979, p. 266-8.
4
“Vieram a encrenca do Rio Grande do Norte e o levante do 3º Regimento. A imprensa derramara abundantes
minúcias. E D. Aurora de repente se convertera. Pensando pouco, vendo inimigos em toda parte e desejando
eliminá-los, aderira ao Sigma com fervor e intransigência (…) Seria bom que as cadeias se enchessem e
abarrotassem, até não haver cá fora nenhuma semente ruim”. (Ramos, [1947] 1982, p. 93).
5
Pasta, 2010.
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gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida
quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a
arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O
relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e
a máquina decrépita vai descansar.6
No trecho destacado, um relógio num hospital de província parece parar e de repente
se metamorfoseia, na cabeça do narrador protagonista, na voz do avô “dono de escravos”.
Como nas lembranças (in)familiares do escravismo na fazenda do avô que cortam a
consciência de Luís da Silva em Angústia7, temos aqui um universo cheio de tensões,
obstáculos e algum dinamismo, sem dúvida, mas um dinamismo entrecortado por recalques e
inércias, repetições e impasses. O instrumento marcador do tempo do capital marca as horas
de uma história enguiçada, que recua na memória de uma infância rural que não descansa. O
tempo não avança, a narração entrecortada por vírgulas, pequenos apostos, palavras insólitas,
em frases curtas e um ritmo algo elíptico, volta sempre ao mesmo ponto de onde partiu, ou
apenas aprofunda a ferida dolorosa do corpo aberto, mortificado, e a obnubilação da mente
que narra atravessada por essas lembranças embaralhadas. Vale a pena notar melhor esse
ritmo, num dos trechos iniciais do conto:
(…) Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, tinir de ferros,
máscaras, curvadas sobre a mesa, o cheiro dos desinfetantes, mãos enluvadas e
rápidas, as minhas pernas imóveis, um traço na pele escura de iodo, nuvens de
algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda.
Uma reta na superfície. Considerava-me quase defunto, mas no começo da operação
esta ideia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras
geométricas no quadro negro.
Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia
seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado.
Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara
terrível que surgira pouco antes, na enfermaria dos indigentes.8

Apesar de não parecer, esse ritmo é novo no país de então, dando numa prosa composta
por meio de fragmentos introspectivos que deformam a integridade do real9 – certamente
influenciada pelos experimentos narrativos da vanguarda do entreguerras, mas dependente
do processo social local incorporado em sua substância formal, que o vivifica sem deixá-lo soar
artificial. Pois eles marcam também o ritmo de um atraso, ou antes, de um mundo arcaico e
infeliz que não passa. Não por falha moral ou subjetiva de personagens e narradores
patriarcais10, mas porque é o ritmo geral composto por história e fantasmagoria social

6
Ramos, [1947] 1982, p. 41-42.
7
Ramos, [1936] 1978, p. 11-2; 135-6.
8
Ramos, [1947] 1982, p. 37-8, Conto “Relógio do hospital”.
9
Candido, 1992, p. 84-5.
10
É interessante notar como nas memórias de Infância, o regime opressivo da família, da escola e do ambiente
social, o regime patriarcal e coronelista do abuso do poder, da pancada e do açoite cria também um senso de justiça,
revolta e inconformismo no menino que desafia a autoridade e se identifica com os mais vulneráveis, explorados e
desclassificados. Cf. os eventos de castigo físico brutal de “Um cinturão”, a cidade de coronéis impunes e o típico
171
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reproduzido pela modernização. É o que talvez explique a resistência graciliana aos cacoetes
do primeiro modernismo paulista, muitas vezes empenhado em transfigurar o atraso em
superioridade nacional11, dependente da importação das maneiras estrangeiras às vezes de
modo acrítico ou algo ingênuo e gratuito, lá onde as veias abertas do Brasil regional-
oligárquico e da América subdesenvolvida resistiam à unidade de um estilo abstrato e a-
histórico com pretensões de universalismo imediato; veias ou raízes negativas, dificilmente
soterradas por meios formalistas e subjetivantes da vanguarda internacional, que aliás parece
em parte buscar novos equilíbrios na virada para os anos 30, recuando para formas reflexivas
mais bem temperadas (Mann, Musil, Gide) ou maneiras de remontar o romance realista sob
ângulos e recortes temporais mais interessantes (Faulkner, Fitzgerald, Hemingway, Malraux,
Camus). Logo após a publicação de Insônia, aliás, Graciliano traduziria La peste (1947), de
Camus. Aqui, o avanço da descoberta desse ritmo que notamos, limpando o texto de
obscuridades desnecessárias. Mas aqui também um certo recuo, em busca das raízes em
decomposição acima aludidas: a ferida aberta do país nessa cama do hospital. Sem retroagir
então à escrita tradicional dos acadêmicos neoparnasianos e naturalistas (ainda presente em
Caetés) por ele ultrapassada em São Bernardo, o autor de Angústia elabora aqui, a meu ver,
uma outra versão do que Candido chamou o “desrecalque localista” do primeiro
modernismo.12

Em alguns contos de Insônia isso se torna explícito, levando adiante as técnicas do


monólogo interior e da desordem cronológica, construindo um ponto de vista atordoado,
descentrado e oscilante, já típicos de Angústia13: o sujeito real, sujeito à história violenta do
país neocolonial, emerge sob as lentes da deformação expressionista em que se combinam
tempos e espaços vários, deixando entrever aqui as novas modalidades do trabalho
heterônomo na cidade grande, que aprisiona kafkianamente os homens: como nesse Eu
habitado por “Paulo” que jaz também numa cama, com a banda direita paralisada e prestes a
ser amputada, aparentemente desdobrando a situação do conto anterior:
Lá fora eu era um sujeito aperreado por trabalhos maçadores, andava para cima e para
baixo, como uma barata. Nunca estava em casa. Recolhia-me cedo, mas o pensamento
corria longe, fazia voltas em redor de negócios desagradáveis. Recordações de tipos

patife violento e estuprador (“Fernando”), a prisão de “Venta-Romba”. (Ramos, [1945]/1995, p. 29-32; 205-9; 217-
224).
11
Candido, [1965] 2000, p. 110-1.
12
Candido, [1965] 2000, p. 112.
13
“Senhor dos recursos de descrição, diálogo e análise, emprega-os aqui num plano que transcende completamente
o naturalismo, pois o mundo e as pessoas são aqui uma espécie de realidade fantasmal, colorida pela disposição
mórbida do narrador (...). Constrói-se aos poucos, em fragmentos, num ritmo de vaivém entre a realidade presente,
descrita com saliência naturalista, a constante evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação
expressionista. Daí um tempo novelístico muito mais rico e, diríamos, tríplice, pois cada fato apresenta ao menos
três faces: a sua realidade objetiva, a sua referência a uma experiência passada, a sua deformação por uma crispada
visão subjetiva”. Candido, 1992, p. 80.
172
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odiosos, rancor, a ideia de ter sido humilhado, muitos anos antes, por um sujeito que
se multiplicava.14

Xilogravura de Axl Leskoschek para o conto “Paulo” em Insônia (1947)


O duplo dentro e fora de si
O homem anônimo que apodrece e se sente virar máquina quebrada, para logo
desmontar como um relógio feito de “peças anatômicas”15 na cama do hospital, em “Paulo”
[1936] ganha uma nova figura dividida e muito mais angustiada:
A ferida torturava-me, uma ferida que muda de lugar e está em todo o lado direito.
Procuro convencer minha mulher de que o lado direito se inutilizou e é conveniente
suprimi-lo.
A enfermaria dos indigentes. (...)

14
Ramos, [1947] 1982, p. 56 (Conto “Paulo”).
15
Ramos, [1947] 1982, p. 47.
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A minha banda direita está perdida, não há meio de salvá-la. As pastas de algodão
ficam amarelas, sinto que me decomponho, que uma perda, um braço, metade da
cabeça, já não me pertencem, querem largar-me.”16
Do concreto ao abstrato, do abstrato à abstração no interior dos seres criados pela
ficção: esta é a forma moderna, talvez um pouco tímida, mas eficaz, de Graciliano retomar o
tema clássico do duplo, materializando a alienação da maquinaria capitalista ascendente em
sua marcha internacional para o fascismo. Esse sujeito abstrato recebe o nome “Paulo”, mas é
a figura genérica de um Outro hostil e persecutório que habita o próprio coração desses
homens divididos entre o passado e o presente, o interior e o exterior, arrastados pelas
demandas absurdas do poder e da ordem econômica vigente, que eles também encarnam
amiúde com a mesma brutalidade de Paulo Honório (São Bernardo)17, e que se multiplicam
na coletânea sob vários nomes e modos ao longo dos melhores contos:
● em “Insônia” [1939], a “pessoa invisível” que agarra e tira o sono do narrador-protagonista
anônimo, e que se transpõe interiormente numa questão obsessiva (“sim ou não?”), no
ritmo militar do relógio (“um, dois, um, dois”), marcando o texto pela repetição infernal
dessas frases a cada parágrafo, na fantasia da cadaverização do corpo durante a noite
insone, por fim, no próprio “sujeito feliz” que parece pegar novamente no sono e que vive
como um “bicho doméstico, um cidadão comum arrastado para aqui, para acolá, dizendo
frases convenientes”, “feliz e imóvel”, deixando o leitor com a pergunta se o pesadelo
acabou ou apenas começou.
● em “Um ladrão” [1939], o criminoso aventureiro atrapalhado, que invade e furta uma casa
mas fracassa por falta de frieza e contenção dos impulsos, abandonando-se ao prazer de
beijar a boca da moça num quarto escuro, e assim terminando preso e espancado, mas
sonhando na cadeia com uma “Colônia Correcional” e o trabalho de grandes “levas de
infelizes transportando vigas pesadas”;
● em “O relógio do hospital”, que vale agora ser desdobrado como enredo, os médicos e
enfermeiros que parecem hostis ao paciente de mente turvada na cama, o relógio
obsedante que se mistura à voz do avô escravista, como vimos, ou ainda se transmuta em
“monstros”, nas dores de uma “enfermaria de indigentes”, ou em “vagabundos miúdos

16
Ramos, [1947] 1982, p. 55.
17
Como revela Paulo Honório ao final: “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu
qualidades tão ruins. A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou.
Sou um aleijado” (Ramos, [1934] 1988, p. 187). Sem significar atraso, essa brutalidade é condição moderna, parte
da cultura e instrução cuja essência às vezes é “a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária”,
como em Paulo Honório (ib.: p. 182). Schwarz lembra que “o caráter irreal e o deslocamento da modernidade no
Brasil não decorrem da incultura das elites, mas da situação apartada e da falta de direito em que vivem os pobres.
Esta é a chave de quase todos os problemas políticos e estéticos do país. (...) Quem diria que um jogo britânico e
requintado como o andamento das Memórias póstumas está ligado às discricionariedades de uma sociedade
escravista e clientelista? Pois está. Com ajustes necessários, algo parecido vale para a rispidez de Graciliano, a
malemolência de Mário de Andrade, o modernismo de Oswald, o profetismo de Glauber etc.” (Schwarz, 1999, p.
225).
174
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022

que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele,
meio comidos pela verminose, as pernas tortas como paus de cangalhas”, “gargalhadas na
rua, barulho de automóvel, o pregão de um vendedor ambulante”, enfim, “rufos de
tambor, vozes de comando” e então num “professor” de meninos com “voz dura de
matraca”, ou no “político influente” que entrega-lhe uma “carta de recomendação”,
remetendo assim de roldão à lógica tradicional da dominação personalista, ao
clientelismo e ao favor – que retornam em registro objetivo em outros contos medianos
da coletânea (“Dois dedos” [1935] e “Um pobre-diabo” [1937]).
● em “Paulo”, espécie de continuação de “O relógio no hospital”, a figura do duplo
ameaçador que começa a se corporificar e se metamorfosear vertiginosamente na cabeça
doida e angustiada de um homem com a perna e a barriga feridos na cama do hospital;
são partes do corpo em decomposição que ele deseja eliminar de si, atribuindo todo o
comando de seu lado direito a uma personagem silenciosa chamado “Paulo”; figura
fantasmagórica que inicia sua tênue aparição sob a imagem do cuidado da esposa ou dos
médicos do hospital, passa pelas palavras incoerentes e autoritárias do próprio narrador-
protagonista não-confiável18), o olhar medonho e as almas invocadas pelo espírita João
Teodósio, converte-se nos “berros dos patrões, ordens, exigências, choradeira, gemidos,
pragas” de um discurso de transe e possessão, na “vida ocupada em trabalhos difíceis”,
enfim, no “punhal” manejado por Paulo que em seu delírio final termina por matá-lo.
● em “A prisão de J. Carmo Gomes” [1940] no qual o filho do Major Gomes, um jovem
escritor de esquerda, intelectual e independente (José Carmo Gomes) é delatado como
subversivo pela irmã (D. Aurora) à polícia do regime instituído pelo Estado Novo, após os
eventos da Intentona Comunista e se converter em integralista – o detalhe justo aqui
sendo que tal ordem repressiva a atemoriza desde a infância (o discurso “profético” do pai
militar que advertia o filho: “- Tu acabas na cadeia, José”19), constituindo seu caráter (um
caso que se diria próximo ao espectro da paranoia20).

Há assim um rodeio em que o duplo de cada conto como que se duplica e se desdobra
em novas personagens ao longo da obra. E uma pequena multidão vai formando a figura

18
“Receei endoidecer, mastiguei uns nomes que minha mulher não entendeu, queixei-me do médico e de Paulo.
Como ela não conhecia Paulo, impacientei-me, julguei-a estúpida, esforcei-me por me virar para o outro lado, o
que não consegui. (...) Peço que me deixe, balbucio súplicas nojentas. Não lhe quero mal, não o conheço. Mentira.
Sempre vivemos juntos. Desejo que me operem e me livrem dele”. Ramos, [1947] 1982, p. 56-57 e 60.
19
Ramos, [1947] 1982, p. 96-7.
20
“Esforçava-se por recordar de outras revoluções. O medo não lhe permitia relacionar as ideias. Precisava fugir,
não sabia para onde. Um dia trancara a porta, largara-se à toa, em busca de um refúgio. O irmão fora encontrá-la
muito longe de casa, quase a chorar. (…) No abandono e na inconsistência (…) percebera a vitória da sublevação.
Dificilmente emergira do torpor (…) mas conservava uma inquietação, o receio de que novas tempestades se
armavam, raiva a inimigos invisíveis que lhe haviam causado tanto susto” (Ramos, [1947] 1982, p. 90).
175
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sombria de um sujeito emparedado e coagido que se repete sob disfarces variados; o


pensamento que dá voltas, como vimos, e encontra os mesmos “tipos odiosos” – “um, dois,
um, dois” – “a ideia de ter sido humilhado, muitos anos antes, por um sujeito que se
multiplicava”. Esses contos funcionam para Graciliano como experimentos do foco narrativo
em primeira pessoa (narrador-protagonista), já usado nos dois primeiros romances, mas
agora atormentado pelo duplo dentro de si, que o angustia e na verdade o descentra de uma
consciência unitária dita “normal”, isto é, do indivíduo burguês segundo o molde europeu21. A
outra parte dos contos, em terceira pessoa (narrador onisciente) lida com figuras tênues
vivendo o duplo fora de si, sempre um outro que acolhe/ameaça a vida de “pobres-diabos”,
em geral funcionários públicos decadentes e dependentes do favor, destinando-os à
irresolução crítica, à conciliação ou à perda de si orientadas pelo fracasso coletivo de uma
nação deformada conhecida.
Mario de Andrade observou em “Elegia de Abril”22 a ascensão desse tipo de fracassado
no romance dos anos 30, destoando do otimismo ainda vigente na década anterior. Mais tarde
José Paulo Paes desenvolve-o, em artigo pioneiro, como uma teoria d’“O pobre diabo no
romance brasileiro”, cujos paradigmas seriam Aluísio de Azevedo (O coruja, 1887), Lima
Barreto (Recordações do escrivão Isaías Caminha, 1909), Dionélio Machado (Os ratos, 1935)
e Graciliano (Angústia, 1936)23. O fracasso no entanto ganha aqui um canal de saída e

21
De certa maneira esse é o modelo normativo da leitura de Carlos Nelson Coutinho [1966], que deixa de captar
algo essencial nos romances de Graciliano ao lhes impor o referencial do romance europeu: indivíduo isolado,
moral burguesa da ascensão pelo mérito e a liberdade de iniciativa, narrativa épica tradicional fundada no ritmo
sério da continuidade e da busca de consequências, narrador realista onisciente, ritmo da superação social de
conflitos e desenlace feliz ou frustrado, mas sempre dando sinal de uma sociedade do trabalho dinâmica, tudo isso
podendo ser atualizado pelas técnicas modernas do monólogo interior, quebra temporal etc.). Ocorre que tal grade
de análise (de base lukácsiana) é aplicada numa matéria em que os sujeitos não se formam segundo esse modelo
de experiência histórica – como demonstra Schwarz ([1977] 2000 e 1990) –, ou antes são quebrados como meros
subordinados ao poder, e as narrativas são marcadas por uma sintaxe da elipse, do truncamento e da frustração,
como vimos, e terminam sempre muito mal, entre brutos ressentidos e loucos varridos, vencedores e vencidos,
estes últimos silenciados, possuídos pelo outro, presos e exterminados, quando não serrados ao meio, e muito
pouco sujeitos isolados e autônomos. De resto, uma matéria que o crítico reconhece ser trespassada pela visão da
ambivalência e da duplicidade de outro tipo, que ele vê como contraditória (“a contradição entre uma sociedade
semicolonial em decadência e o desenvolvimento de elementos capitalistas” (Coutinho, 1978, p. 104), com seus
problemas e soluções: “a exploração social, a solidão dos personagens, a consciência contraditória (entre
passividade e revolta) do camponês brasileiro, a frustração de suas mais ínfimas aspirações, as possibilidades
(concretas e abstratas) de transcender a situação de miséria etc.” (ib.: 106). A conclusão é inequívoca: “Graciliano
constrói um dos romances mais realistas da literatura brasileira [Angústia], cuja estrutura muito se aproxima das
dos romances dostoievskianos de heroi individualista (...)” (ib.: p. 103), mas contraditória: “a necessária tragédia
do individualismo burguês determina, em São Bernardo e Angústia, a recriação da clássica estrutura balzaco-
stendhaliana, como o 'herói problemático’ que busca a realização humana a partir da própria individualidade, sendo
derrotado no combate com o mundo alienado e prosaico e tomando consciência no final, da inutilidade de seus
esforços. Esta mesma problemática, intensificada ao ponto da dissolução interior do indivíduo, determina em
Angústia a absorção de recursos técnicos desenvolvidos pela vanguarda” (ib.: 112, grifo meu) – o que a rigor
modifica quase tudo, como é fato.
22
Andrade, [1941] 1972.
23
Paes, 1990. Em estudo paralelo ao de Paes, John Gledson (2003) desdobra essa mesma série de movimento,
crise e impasse dessa personagem típica: o pequeno burocrata herdeiro do latifúndio e politicamente indeciso,
analisando as proximidades entre obras como Brejo das Almas (Drummond), O Amanuense Belmiro (Cyro dos
176
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exposição. As cavilações e fantasias do olhar escopofílico de Luís da Silva, seu ritmo truncado
e obsessivo, sua vontade de vingança acha seu móvel real às vezes na floração do texto,
escorrendo por associações fugazes: “A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo
qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem
emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança
perdida.”24
Não por acaso as estrelas distantes que despontam no céu desse universo ficcional
cinzento são poucas em Insônia: ou referem-se a personagens infantis, seus animais de criação
e seus sonhos de fuga (como nos contos “Luciana” e o seu perequito ferido “Minsk”) ou aos
escritores politicamente atuantes das camadas médias capazes de fazer a ponte com a massa
proletária e esbulhada em formação nas cidades (como o José de “A prisão de J. Carmo
Gomes”). Contudo, aqui ainda seu destino é... prisão e morte.

Expressão: do duplo à desintegração


Impensável seria também a obra de Graciliano sem as técnicas modernas de montagem
ou as artes plásticas da época, tal como firmadas no traço expressionista de Leskoschek,
Goeldi, Segall e Portinari. Com Graciliano Ramos, recuperou-se para o imaginário nacional
uma certa figura emblemática e estranhada do trabalhador nacional, cuja imagem dialética
espacializada vem a furo nos melhores quadros, tais como O Garimpo, de Portinari.

Anjos) e Angústia. Na origem da questão, é claro, encontramos o ensaio de Candido sobre o romance de Cyro dos
Anjos e o seu contorno negativo dado por Roberto Schwarz que logo depois de 64 começaria a identificar o
“fazendeiro do ar” como uma figura literária típica desse país bloqueado entre o arcaísmo colonial e a modernidade
capitalista, traumática e sem remédio (ver seus ensaios “Sobre “O Amanuense Belmiro” e “Cultura e política, 1964-
1969” em Schwarz, 1978). Salvo engano, um processo similar poderia ser encontrado no contexto latino-americano
na obra semeada pela lógica do duplo de Juan Carlos Onetti: em novelas como El pozo (1939) e em romances de
estrutura muito complexa como La vida breve (1950) e El astillero (1961), nos quais a pequena burguesia urbana
desfia um imaginário inflacionado de homem frustrado e desejos de aniquilação para escapar da condição periférica
de desemprego, dependência e proletarização – ou antes, da transformação social que não vem –, mas também
para descobrir no inconsciente o futuro esfarrapado de “lumpenproletariat”.
24
Ramos, [1936] 1978, p. 123. Aqui, a análise fundamental ainda é a de Candido (1992, p. 79-85).
177
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Portinari – O Garimpo (1938) – Mural do MEC (Ciclo Econômico)25

A respeito desta pintura mural, Mario Pedrosa escreve algo que lembra muito tais
figuras duplas e duplicadas de Insônia:
O Garimpo é sem dúvida o quadro mais livre e mais audacioso. É este o ponto mais
avançado na evolução pictórica de Portinari. O contraste antinaturalista da
composição está em parecer que não existe. As figuras no entanto se arrumam em
cruz, ou em X, o que dá a todas elas uma unidade estrutural quase cósmica, e, ao
mesmo tempo, uma força desintegradora extraordinária, pois permite um
movimento de rotação que impele as figuras a se projetarem em todas as direções.
Do mesmo modo, poderosos acordes dissonantes dominam a cacofonia que ameaça
irromper do contraste do branco e do preto, do azul e do vermelho. (…) Numa
violação às leis de acorde perfeito, o artista restaura a verdade plástica do drama
representado – excitação diabólica das figuras possessas na cata do ouro. São
possessos metidos em xadrezes, imersos na grande doçura da atmosfera tão
diferente, tão estranha à vibração e excitação daqueles bonecos mecanizados,
duplamente escravos, do ouro e da sociedade”.26

Observado à distância do tempo, a sobriedade de seu traço realista, a estratégia de


subtração do fervor localista e ufanista, a contenção verbal e estilística, a composição através
do fragmento bem colocado e refletido num movimento de “justaposição de ângulos parciais”,
rotação de figuras e desintegração (como surge da maneira mais perfeita em Vidas secas27), a
abertura do signo à interpretação plural, e isso através da limpidez de referências míticas,

25 Disponível no Projeto Portinari: http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1751 (Acesso em 26.05.21).


26
Pedrosa, [1942] 1981, p. 23-5 (texto corrigido). Cf. para essa aproximação entre Graciliano e a pintura da época:
Balbi, 2003, p. 50-1; Arantes, 1991, p. 19-29; Souza, 2005.
27
Candido, 1992, p. 85-7, 102-8.
178
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alegóricas ou simbólicas, destoam completamente da vontade de servir à positividade, às


ideologias do progresso e da identidade nacional, que funcionaram no país como simples
quimeras compensatórias, ou mera consciência amena e otimista do atraso, que mesmo
artistas como Portinari não escapam. A expressão é então contida dentro das paredes desses
pequenos quartos/quadros sufocantes. E por isso talvez, como observou Letícia Malard,
“Insônia” é o conto que, à sua maneira de “corte-cópia”, sintetiza a obra28.
O relógio do hospital-Brasil de Graciliano mede a inércia colonial entrelaçada à
moderna sociedade do trabalho em formação. Aqui, o palco para a individualidade que não
se forma, a subjetividade que se contorce numa vida prejudicada e a psicologia rudimentar
de forçado. Uma paralisia que parece levar sempre à pouca coisa, ou simplesmente a nada,
mesmo lá, como se vê no último conto muito interessante do livro – “Silveira Pereira” [1938]
–, em que o jovem que enfrenta a “indiferença ambiente”, para se “mostrar um homem”,
também se faz indiferente, duplicando tudo o que se passa: pretende se formar bacharel, ser
um “literato” ou um “intelectual”, melhor, contista e editor de um jornal – mas perde-se
mimeticamente na miséria do simples gesto e da mera intenção da cópia, nutrida pela
impotência, o ódio e a inveja, num monólogo narcisista e derrisório, enfim, no reflexo de uma
sombra de escritor de um suposto escritor numa pensão provinciana brasileira.
Em contraste, nos outros contos o verdadeiro diálogo aparecia expresso através do
monólogo interior desse narrador enfermo e descentrado, que se solidariza com as crianças
doentes e os infelizes na “enfermaria dos indigentes” no hospital, e todo o resto anônimo,
desindividualizado, precário, silencioso que habita esse universo desfigurado: os prisioneiros
da colônia penitenciária, os vagabundos e pobres-diabos das ruas, a natureza no céu e nas
árvores em que eles todos se identificam –
Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A
criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se
distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas.

– mas também se dissolvem, talvez visando uma espécie de perda da própria perda, no
relógio que volta a funcionar dentro da mente do país que grita, talvez sem se repetir:

28
“Vejo-a como uma espécie de hipertexto dos contos do livro, arquivo somente leitura de corte-cópia dos textos
que o compõem. A voz aterrorizadora bipolarizada “sim, não”, torturantemente repetida vinte e duas vezes no
conto, em diapasão com o ‘um, dois, um, dois’ da marcha militar, é o tique-taque do relógio do hospital, a bipartição
narrador/Paulo, a saída e o retorno do ladrão, os dois dedos unidos/desunidos do governador e o amigo de infância,
Luciana e dona Henriqueta da Boa-Vista, a vida e a morte do periquito, o escritor decadente e o escritor novo, o
pobre-diabo e o deputado, o marido e o Outro imaginário de Zulmira, o universitário e Silveira Pereira, a
testemunha que nada testemunha, o integralismo e o comunismo na prisão de Gomes. Essa hipertextualização pode
ser lida como alegoria dos conflitos e contradições político-culturais da década de 30, dos quais Graciliano foi
importante agenciador e agente.” (Malard, 2013).
179
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vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira luminosa das réstias, perder-me nos
gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancadas medonhas do relógio
velho.29

Referências bibliográficas
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brasileira. São Paulo: Martins.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. 1991. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo:
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SCHWARZ, Roberto. 1999. Sequências brasileiras. Ensaios. São Paulo: Companhia das
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29
Ramos, [1947] 1982, p. 49 (conto “Relógio no hospital”).
180
[-] www.sinaldemenos.net ano 12, nº15, v.1, 2022

_________. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São


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SOUZA, Gilda de Mello e. 2005. “Lasar Segall e o modernismo paulista”. In:__. A ideia e o
figurado. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades.

181
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SOBRE OS DESCOMPASSOS
DE UM CADÁVER
Um diálogo entre o homem sem qualidades à espera de Godot e Crítica
ao feminismo liberal

Felipe Silva Terto1

Uma crítica do valor que tenha medo de empreender a última e decisiva ruptura com a
forma moderna do sujeito e com a sua autolegitimação esclarecida está, obrigatoriamente,
destinada a decair na ontologia burguesa
Robert Kurz

I
Se tem algo a se reconhecer como potencial crítico na experiência intelectual da
chamada crítica do valor é sua insistência na historicidade das categorias e sua consequente
radical iconoclastia. Desde os diagnósticos sobre o colapso da sociedade mercantil até o recorte
interno de Marx entre exotérico e esotérico vê-se que a proposta é, antes de tudo, a
compreensão crítica das bases que engendram a sociabilidade capitalista em tempos que
parecem girar em falso, não é por acaso serem autores “malditos”. Para resumir, enquanto a
ode à liberdade ocidental bradava sobre os ombros da paz perpétua kantiana, esses maus
afamados retomavam à Dialética do Esclarecimento (1985).
No Brasil, felizmente, há uma gama de leitores dos demônios de Nuremberg. Se
pudermos nos abster de comentários sobre a catástrofe pandêmica ainda em curso, podemos
dizer que 2020 houveram boas publicações que se relacionam com a crítica do valor, mas
iremos nos ater a duas:2 Crítica do feminismo liberal (2020), de Taylisi Leite, e O homem sem

1
Acadêmico de Comunicação e Multimeios – UEM; felipesilvaterto@gmail.com
2
Porém, antes, gostaríamos de ressaltar a profundidade crítica de textos como A condição periférica (2020), de
Thiago Canettieri, e A subjetividade sem valor (2020), de Fernando Gastal de Castro. Canettieri (2020) esmiúça
como a cisão centro-periferia que constitui o capitalismo como sistema-mundo produz uma inversão interna com
o colapso da modernização, isto é, se antes se exportava as mazelas do centro para o terceiro mundo, agora tem-se
o movimento ao contrário, a selvageria periférica passa a invadir o mundo dos civilizados do Norte, o que o autor
chama de devir-periferia do mundo. Já Castro (2020) procura fazer uma reconstrução histórica do processo de
modernização em sua tensão com a subjetividade, colonização e subjetividade como coisa, II Revolução Industrial
e subjetividade como objeto, fordismo e subjetividade como recurso e, ao final, acumulação flexível e subjetividade
sem valor.
182
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qualidades à espera de Godot (2020), de Robson de Oliveira. É evidente que ambos tratam de
questões distintas, um sobre uma análise psicossocial e outro sobre incongruências de
pensamentos e movimentos sociais, o que nos obriga a certas simplificações neste texto, mas
há também de se notar os pontos em comum. Para além de serem frutos de teses de
doutoramento e possuírem capas brancas com detalhes em vermelho e preto, são livros que
buscam, pelas lentes da crítica do valor-dissociação, uma crítica radical da forma-sujeito
burguesa e sua clivagem constitutiva. Isto posto, se com Oliveira (2020) podemos
compreender o sujeito moderno, com Leite (2020) compreendemos sua dissociação.
II
Alfred Sohn-Rethel, em seu Para a abolição crítica do apriorismo (1997), propõe sua
leitura de que o sujeito transcendental kantiano não é algo a priori, mas sempre-já enredado
nas formas sociais que capitalismo engendra, por isso “[...] as formas de consciência, que
chamamos em sentido racional de formas do ‘conhecimento’, provêm da reificação presente
na troca de mercadorias” (SOHN-RETHEL, 1997, p. 129). Entendimento este que gerou
controvérsias no interior do Instituto de Pesquisa Social (Escola de Frankfurt), pois enquanto
Adorno hesitava chamar tal ideia de genial pela similitude com seu próprio pensamento,
Horkheimer já não via com bons olhos, pois segundo ele, o próprio Adorno estava “[...]
contaminado pela mania de Sohn-Rethel da identificação dialética, ou antes, não-dialética,
para ter ficado cego diante da enorme diferença entre seu modo de pensar e o dele”
(HORKHEIMER, apud. ALMEIDA, 1997, p. 120).
Isso nos anos 30, mas o que Adorno poderia objetar 30 anos depois é que, na verdade,
é o próprio capitalismo que possui o ímpeto da metafísica da identidade, daí a exigência do
momento negativo da dialética para desdar os nós coagulados da sociedade administrada –
sendo simplista e até reducionista, este é o cerne da Dialética Negativa (2009). O que
podemos notar é que isso não é de todo novo, pois Sohn-Rethel já havia compreendido que “A
identidade é a forma de vínculo entre produção e consumo, situados entre diversas pessoas,
de uma mesma mercadoria” (SOHN-RETHEL, 1997, p. 132).3
O importante aqui é notar que, se a própria noção de sujeito não é a-histórica e sim
produto das relações mercantis, sua crítica radical se faz necessária e não sua afirmação como
horizonte emancipatório.4 Se partirmos aqui à crítica do valor, devemos ter em mente que,
como afirma Regatieri (2010), “sujeito, conforme sua crítica, é a forma na qual vivem e agem

3
O que também poderia ser criticado pela crítica do valor, pois o enfoque na dimensão da circulação mistifica o da
produção do valor. Ver: KURZ, R. A substância do capital (2005).
4
Há um debate proposto por Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga, entre Zizek e Kurz, que busca tensionar
ambos em relação ao sujeito. Ver: Entre ruína e desespero: Negação e constituição do sujeito em Robert Kurz e
Slavoj Zizek (2013).
183
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os indivíduos na matriz da constituição de fetiche capitalista. [...] O indivíduo sob o fetichismo


do valor constitui a forma do sujeito moderno” (2010, p. 20). Não é ele próprio a priori com
suas categorias do entendimento, mas constituído pelo a priori axiológico da lei tautológica
do mais-dinheiro.
No mais, é desta percepção que parte Robson de Oliveira (2020). O sentido de seu livro
é expor, por meio de produções literárias e culturais, a constituição da forma-sujeito moderna
em meio ao seu tensionamento histórico com outras subjetividades constituídas em diferentes
formações sociais. Não que Molière havia previsto, no século XVII, que o que representava em
O burguês fidalgo era o conflito subjetivo de um sujeito mercantil e um indivíduo ligado às
raízes tradicionais, mas foi lendo-o a contrapelo que Oliveira pode extrair tal compreensão.
O autor desses comentários entende de literatura do senso comum para baixo, mas
esse não é o centro do livro de Oliveira, pois não se trata de uma crítica literária sobre seus
gêneros e construções de linguagens específicas, mas uma crítica da forma-sujeito que o
moderno sistema produtor de mercadorias engendra como seu reflexo necessário. Da forma-
mercadoria reflete-se a forma-sujeito, um sujeito mercantil em meio à dança das mercadorias.
Passando de Moliére à Musil, o autor destrincha o processo de modernização e
consolidação do capitalismo para em Beckett ter a exposição plena da forma-sujeito
contemporânea, narcísica e vazia, isto é, desenraizada das tradições e que restando apenas a
heteronomia no interior do sujeito automático (Marx). Se levarmos às últimas consequências,
o que Robson de Oliveira (2020) procura é uma crítica radical da forma-sujeito burguesa
contemporânea, desabrochada por completo e desenraizada do modus operandi
tradicionalista dos fetichismos anteriores, mas enredada no imperativo do hedonismo e do
consumo, cuja vacuidade desses processos levados ao extremo é a realização da forma-sujeito,
que coincide com sua autodestruição, pois os imperativos abstratos do capital fazem do
concreto mero momento de seu automovimento destrutivo.
O que também não poderia ser deixado de lado é a leitura do processo brasileiro de
constituição do capitalismo e sua respectiva forma-sujeito feita por Oliveira (2020). Longe da
leitura de que o período colonial no Brasil era uma espécie de feudalismo, o que já é algo
batido, o autor afasta-se também de que o que havia dentro do território brasileiro era o
automovimento das formas mercantis. Segundo Oliveira,
[...] há sempre um descompasso entre a forma-sujeito burguesa nos lugares onde a lógica da
mercadoria se estabelece como tendência à constituição de relações sociais, ou seja, como
tendência a englobar o conjunto da sociedade e tensionar no sentido de novas mentalidades,
e a forma-sujeito burguesa em lugares onde o que é chamado de mercadoria não são senão
produtos valorizados no mercado internacional,, cuja produção não engendra uma dinâmica
da qual possa germinar uma forma social ou subjetiva mercantil – que é o caso do Brasil
(OLIVEIRA, 2020, p. 246)

184
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Desse modo, toda sua reconstrução da historiografia brasileira se centra na leitura de


que o que havia aqui, antes da segunda metade do século XIX, era uma subjetividade ligada
a estruturas simbólicas religiosas, não mercantis, e que não poderiam desabrochar no sujeito
burguês por si só, se não entraríamos entre teleologias baratas. Na verdade, a forma-sujeito
moderna à brasileira foi imposta, importada, pois o processo produtivo e a formação das
formas sociais capitalistas no Brasil, especialmente a relação capital – trabalho assalariado, só
pôde se constituir com os imperativos do mercado internacional, destituição da mão de obra
escrava e o consequente processo de consolidação das produções de café.
Pulando o ponto a ponto historiográfico feito por Oliveira, é Macunaíma, de Mário de
Andrade, que entra como expressão literária, “uma alegoria ou metáfora da subjetividade
brasileira em confronto com a vida social burguesa” (OLIVEIRA, 2020, p. 338). Em
contraposição à síntese de indígena e sujeito burguês de José de Alencar, romântica e “virada
para o passado”, em Andrade “é revolucionário, virado para o futuro, é uma síntese mal-
acabada indígeno-burguesa” (ibidem. p. 339), mas também não menos problemática, pois, no
final das costas, o que o escritor brasileiro fez foi “quase um Homem sem qualidades
brasileiro” (ibidem. 353), nem índio e nem burguês, mas num limiar de indistinção entre
ambos.
Mas se “O capitalismo venceu a malandragem” (ibidem. p. 358), termo que já nos
remete a Antônio Candido, Robson de Oliveira quer expor que, na fase contemporânea e mais
desenvolvida da forma-sujeito burguesa, o imbricamento entre ordem e desordem da
Dialética da Malandragem de Candido se realiza de um jeito perverso. Na verdade, antes de
um aspecto que nos diferencia dos orientados para o futuro do primeiro mundo, “o malandro
aparece como o sujeito perfeito para uma inserção cheia de ginga nesse mundo ‘aberto’, mas
que vive ao mesmo tempo uma crise profunda cujo enfrentamento cotidiano só pode ser feito
com jogo de cintura, num virar-se perpétuo de eus em disputa” (OLIVEIRA, 2020, p. 365).
O livro de Oliveira, como já dito antes, é uma crítica da forma-sujeito contemporânea
em seu desabrochar máximo e desenraizado de estruturas simbólicas que atrasam o progresso,
mas que também coincide com seu movimento de autodestruição. Não só do sujeito, mas das
formas abstratas basilares que sustentam o moderno sistema produtor de mercadorias, que
em seu pleno desenvolvimento fetichista e totalizante de si sob globo é também o momento
que mina cada vez mais sua substância (trabalho abstrato), isto é, minando-se a si mesmo. No
limite, um livro cheio de polêmicas e, por infortúnio, bem fundamentadas.
III
Como dissemos outrora, se com Robson de Oliveira podemos explorar uma análise da
forma-sujeito, com o livro de Taylise Leite podemos aprofundar-nos em sua dissociação. De

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antemão, o livro de Leite (2020) é, antes de tudo, uma resposta às controvérsias que
circulam nos debates sobre movimentos sociais. Claramente não seria do feitio da autora
repetir dogmatismos e afirmar que tudo é identitarismo e que não presta ou qualquer coisa
que o valha, mas é uma crítica por meio de uma das lentes mais radicais do pensamento
contemporâneo, falo de Roswitha Scholz.
Como jurista e leitora de Pachukanis, Taylise começa expondo uma crítica do Estado e
do Direito enquanto formas sociais especificamente capitalistas, isto é, jungidas na valorização
do valor. Negando a compreensão do ente estatal como neutro, sua sobreposição frente à
sociedade civil é a aparência necessária para estruturar o bem-estar das trocas, não das
pessoas num geral, pois a forma-política e a forma-jurídica engendram o contrato social real
dos sujeitos atomizados trocadores de mercadorias. No fundo, Leite quer elucidar que o
Estado e o Direito não podem (e nem serão) o horizonte de emancipação, pois antes de serem
contrapostos, fazem parte da engrenagem fetichista moderna.
Já por meio da crítica do valor-dissociação, a autora busca levar às últimas
consequências das teses de Scholz e mostrar que as formas abstratas da modernidade, além
de serem históricas, não são neutras. No seu âmago, a neutralidade das formas velam um
androcentrismo congênito, pois o processo de modernização e sua metanarrativa correlata, o
Esclarecimento, forjam uma sociabilidade cindida em “homem” e “mulher” com seus
arquétipos respectivos. Antes de mera ideologia que fazem cada gênero comportar-se como
dizem para se comportar, a análise de Leite (2020) procura ser mais profunda e mostrar, pela
crítica da economia política, que é a própria produção social que é masculina.
A cisão interna do fetichismo moderno sutura ao Homem o encargo do espaço público
e suas atividades consequentes, como racionalidade, esperteza, dureza, frieza, virilidade etc.,
e à Mulher cabe o espaço privado e as consequências da feminilidade, o sentimentalismo, o
afago, cuidado, paixão, docilidade etc. Não se trata aqui de pessoas concretas, mas de
estruturas abstratas que designam que, para o Homem, seu mundo é o trabalho, e para a
Mulher, seu mundo é o cuidado domiciliar, mas que não é nada de pouco importante.
A questão é que o capitalismo é a sociedade do trabalho, da autotélica transformação
de energias e músculos em mais-dinheiro. Como buscamos mostrar pelo livro de Oliveira
(2020), a forma social capitalista engendra um sujeito específico, uma forma-sujeito correlata
às formas abstratas do capital, entretanto, ele possui um gênero específico, que é o masculino.
O sujeito burguês, dotado de autonomia da vontade e seus atributos esclarecidos, é
especificamente homem e branco, sua universalidade é falsa pois o que não se encaixa à sua
imagem e semelhança é negado de sua plenitude.

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Enquanto o Homem é o sujeito do mundo e da dança das mercadorias, a Mulher é


domesticada e do lar. Quando Taylise Leite afirma que “A mulher é ‘desvalorizada’ em todas
as acepções que este vocábulo pode assumir na língua portuguesa” (LEITE, 2020, p. 259-60)
a autora quer dizer que o sujeito do trabalho e da valorização é o homem e a mulher é a das
atividades ditas “femininas”, como cuidar da casa, dos filhos, dar proteção etc., aquelas não
incluídas na forma-valor, e por isso dissociadas. O teorema de Roswitha Scholz é a exposição
de que as atividades delegadas à mulher na modernidade não são incluídas diretamente no
processo de valorização do valor.
Veja, não estão incluídas “diretamente”, pois a dissociação como “sombra” do valor é
que, indiretamente, essas atividades são absolutamente necessárias para o próprio processo
de produção do valor, mesmo que aparentemente estejam excluídas. A crítica de Scholz e
de Leite é que não são somente trabalhos reprodutivos, como na interpretação corrente, mas
são atividades cindidas da forma-valor e que lhe são indispensáveis. O capital e suas formas
cinde em gêneros “valorizados” e “desvalorizados”, como diz o trocadilho de Taylise, os quais
são, respectivamente, Homem e Mulher. Dessa forma, a própria crítica ao metarrelato de si
mesma da sociedade burguesa se faz necessária, pois o sujeito que ela preconiza é
especificamente homem e branco.
No limite, o cerne do livro de Taylise Leite é levar às últimas consequências as teses de
Roswitha Scholz, pois se O valor é o homem, como diz o ensaio da autora alemã, Leite quer
mostrar que O Estado é o homem e que O Direito é o homem, isto é, se são formas perpassadas
no automovimento do sujeito automático, são todas marcadas pela clivagem constitutiva das
categorias basilares do “patriarcado racista produtor de mercadorias” (LEITE, 2020, p. 365).
Logo, pensá-las como campo da emancipação ou da superação do próprio patriarcado é
reduzir sua compreensão, pois, para a autora, “capitalismo é patriarcado” (ibidem. p. 249).
Não se supera um sem o outro.
IV
Como havia dito, é preciso encontrar seus pontos de toque. Ambos os livros se
encerram com críticas da forma-sujeito contemporânea, isto é, o sujeito moderno no colapso
da modernização. Não mais atrelados a uma identidade de classe como no período fordista,
livre das amarras tradicionais das estruturas simbólicas antecedentes e cada vez mais afogado
na “enorme coleção de mercadorias”. A questão que ambos se colocam é que o processo de
pulverização da produção causada pela reestruturação produtiva da década de 70 marca o
processo que Kurz diagnosticou desde o final do século, que é a incapacidade do capitalismo
se reproduzir para todo sempre pois ele começa a negar suas próprias bases, removendo cada

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vez mais trabalho vivo da produção de valor e produzindo supérfluos, sujeitos monetários sem
dinheiro.
Isto posto, a crítica da forma-sujeito e de sua dissociação em meio a uma forma social
em decomposição revela que a liberdade consumista e sexual se revela como um imperativo,
sob os mandos e desmandos de um caduco sujeito automático que engendra os dotados de
autonomia da vontade em uma heteronomia. Sob o frenezi das mercadorias se movimentam
os narcísicos e malandros expostos na crítica de Robson de Oliveira (2020), e sob a aparente
emancipação das mulheres no interior da ordem se revelam as duplas ou triplas socializações
de uma forma social suturada por clivagens de gênero, em que à Mulher cabe o mundo do
trabalho (com menores salários, é claro) e dos estudos (em meio a necessidade de constantes
aprovações, evidentemente), mas sem nunca se livrar das atividades “femininas” dissociadas.
A crítica de Robson de Oliveira pode elucidar compreensões de processos que, presos
à ontologizações das categorias burguesas não ficam claros. Se um exemplo me for permitido,
Frantz Fanon certa vez afirmou que “A preguiça do colonizado é uma proteção [...] [pois] O
trabalho foi concebido nas colônias como trabalho forçado”, então não tinham a compreensão
de que “É preciso retomar o trabalho como humanização do ser humano. O ser humano,
quando se lança ao trabalho, fecunda a natureza, mas também se fecunda” (FANON, 2020, p.
291). Como produto de uma desumanização colonial, não compreendiam a “humanização” que
é própria do trabalho. Aqui estamos na tradicional compreensão ontológica da categoria.
A questão que Oliveira coloca, ao tratar do Brasil, é que não se pode compreender de
maneira a-histórica a categoria burguesa de trabalho. Com a abolição da escravatura
brasileira, autores como Celso Furtado haviam já notado que o negro recém libertado não se
dirigia ao mercado para vender sua força de trabalho, mas não porque não compreendia o
“papel humanizador” do trabalho, e sim porque “a ideia de acumulação de riqueza lhe é
estranha [...] podendo trabalhar somente 2 ou 3 dias para sua subsistência, o ex-escravo ia
para o ócio quando já tinha o bastante para viver” (OLIVEIRA, 2020, p. 321). Mesmo que seja
criticável o uso de “trabalhar para sua subsistência”, podendo ser alterado para “produzir” ou
algo do gênero, a questão que o autor coloca é que a subjetividade do ex-escravo não era
orientada para o futuro, não era uma forma-sujeito burguesa, logo, não poderia prosseguir o
modus operandi weberiano do trabalho.
Como também a crítica de Taylise Leite a grandes teóricas do feminismo, como Simone
de Beauvoir e Judith Butler, ou aos movimentos sociais num geral, dão corpo a uma
compreensão do objeto de maneira mais profunda, interna às formas abstratas da própria
reprodução do sistema mercantil. Não se trata de apontar o dedo e reduzir tudo a mero
“identitarismo”, mas de um aprofundamento na crítica aos fundamentos do moderno

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patriarcado produtor de mercadorias na intenção de sua ruína. Aliás, a crítica do


androcentrismo da modernidade e de seus metarrelatos correlatos do Esclarecimento não é
somente uma postura moral para a autora, mas é exatamente a ausência desta compreensão
que ofusca o próprio objeto, o mistifica.
No limite, este pequeno diálogo é mais um convite para a leitura de ambos os textos,
os quais percorrem caminhos diferentes para elucidar a complexidade do objeto que se
propõem, mas se relacionam no mais importante: uma crítica radical das categorias basilares
do moderno patriarcado racista produtor de mercadorias, das quais a forma-sujeito em
tempos de uma dissolução da formação social toma uma “autonomia relativa” no interior dos
textos. A compreensão de que o sujeito moderno não é algo a priori e ahistórico, mas sempre-
já mediado pelas formas objetivas do movimento autotélico do dinheiro, possibilita-nos um
olhar atento para uma forma social que sobrevive feito zumbi com seus respectivos cadáveres
enredados.

Referências
ADORNO, Theodor. [1966] 2009. Dialética Negativa. Trad. M. A. Casanova. São
Paulo: Jorge Zahar.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. [1944] 1985. Dialética do
esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. G. A. de Almeida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.
ALMEIDA, Jorge. M. B. 1997. Para a abolição crítica do apriorismo: apresentação.
In. praga - São Paulo, Brasil, n.4, (119 – 122).
CANETTIERI, Thiago. 2020. A condição periférica. Rio de Janeiro:
Consequência Editora.
CASTRO, Fernando. G. 2020. A subjetividade sem valor: trabalho e formas
subjetivas no tempo histórico capitalista. Curitiba: Appris.
FANON, Frantz. 2020. Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. Trad.
Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu Editora.
OLIVEIRA, Robson J. F. de. 2020. O homem sem qualidades à espera de
Godot: Molière, Musil, Beckett, Macunaíma e o devir vazio da modernidade. São
Paulo: Hedra.
REGATIERI, Ricardo. P. 2010. Introdução. In: KURZ, Robert. Razão sangrenta:
ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores
ocidentais. Trad. Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Hedra.
SOHN-RETHEL, Alfred. 1997. Para uma abolição crítica do apriorismo. In. praga
– São Paulo, Brasil, n.4, (123 – 136).

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“SABER QUE NÃO SE É NADA”


Ler Minima Moralia 70 anos depois

Felipe Silva Terto1

Quem já não tem nenhuma pátria,


encontra no escrever sua habitação
Theodor Adorno

“Normal é a morte”, dizia Adorno (1993, p. 47) em um livro publicado há 70 anos. A


intenção de ler os truncados aforismas não sistemáticos contidos em Minima Moralia não é
somente para expor as potencialidades da experiência intelectual adorniana depois de mais de
meio século, afinal, isto já foi feito. A intenção aqui, na verdade, é que o “70 anos depois” talvez
seja mais central que o próprio “Ler Minima Moralia”, pois é a busca de apresentar o que
desse texto se põe como atual para a sétima década que o seguiu, em específico para ela, e que
na octogésima esperamos ser radicalmente diferente. Uma leitura em meio à possível “volta
ao normal” após a catástrofe, que aos tempos de Adorno era outra, mas a noção de
normalidade depois do desastre pandêmico reconfigura a crítica do filósofo alemão à idiotia
de quem pensava em reconstruir a civilização que se autodestruiu (ADORNO, 1993, p.47).
O caráter melancólico de uma espécie de uma filosofia moral pensada não por meio de
máximas imperativas, mas como mínimas cujo núcleo é desnudar a impotência do sujeito na
sociedade que se advoga como do sujeito autônomo e que o reverteu “como apêndice sem
autonomia e sem substância própria” (ibidem. p. 7) do processo de produção pode nos dizer
algo. Com seu claro caráter de desabafo de alguém que se encontrava exilado em um país cuja
cultura não supera o horizonte do dólar e da pistola, cuspir o entalado na garganta da
experiência individual em tensão com o geral é também a expressão da impotência.
A dinâmica impositiva dos ditames do sujeito automático (Marx) que subsume o
concreto no movimento de autovalorização do valor degrada a vida a uma “efêmera

1
Acadêmico de Comunicação e Multimeios – UEM; felipesilvaterto@gmail.com
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manifestação” (ibidem. p.4), revertendo a pretensa potência absoluta prometida pela


modernidade em impotência generalizada. A consciência da própria nulidade que as formas
de subjetivação do capitalismo tardio produzem é o que faz esta obra de Adorno ultrapassar
qualquer monadologia em sua reflexão, pois o sujeito como “reflexo antropológico das leis de
produção” (ibidem. p. 137) revela o núcleo vazio da própria subjetividade frente a dominação
abstrata das relações mercantis.
No limite, essa é uma possível leitura da polêmica reversão adorniana de Hegel, pela
qual o primeiro afirma que “O todo é o não-verdadeiro” (ibidem. p. 42). Mesmo se tratando de
um aforisma no qual cada parágrafo parece díspar em relação ao anterior, um pouco antes da
frase citada Adorno retoma a Fenomenologia do Espírito para expor a consciência burguesa
em seu tempo decadente, em que “os burgueses eram conscientes de si ao menos em seu
orgulho de possuírem riqueza” (ibidem. p. 42). A crítica aqui à pretensão de Hegel da formação
da consciência de si é a exposição da reversão que não revela a verdade como processo da
certeza sensível ao saber absoluto, mas que “self-conscious significa apenas a reflexão sobre o
Eu como embaraço, como dão-se conta da impotência: saber que não se é nada” (ibidem.). A
reflexão de Adorno é expor que não é pelo reconhecimento da autoconsciência esclarecida,
mas da impotência do próprio sujeito frente ao processo de produção que a verdade se revela,
ou melhor, que o todo se mostra falso. Por isso “O cisco em teu olho é a melhor lente de
aumento” (ibidem.).
Desse modo, a reflexão sobre a impotência do sujeito 70 anos depois requer algumas
diferenciações em relação a Adorno, pois nossa experiência de nulidade possui suas
especificidades. A impotência que 2020 e 2021 nos expôs é a de uma tensão entre falta de
perspectiva e imperativos de produtividade frente a uma desgraça invisível, um vírus que
ronda o mundo e que, à brasileira, caminha para os 400 mil mortos. A espera de que isso passe
e “volte ao normal” mostra-nos a dimensão associal em que se encontra o Brasil com suas
formas de mediações capitalistas em frangalhos, e a dúvida que fica é se “a quantidade de
vítimas não se converta em uma nova qualidade de sociedade”. Se assim o for, “a barbárie
estará perpetuada” (ibidem. p. 47).
Adorno dizia que “A afirmação de que Hitler destruiu a cultura alemã não passa de um
truque propagandístico daqueles que pretendem reconstruí-la a partir dos telefones de seus
escritórios” (ibidem. p. 49), pois nada mais cego em relação a si próprio que algo desse tipo.
Não se pode pensar a barbárie com o polo oposto da civilização, pois a própria civilização tem
seu caráter bárbaro e seus momentos extremados. Tal como nós, nada mais “cultura
brasileira” que um sujeito como Jair Bolsonaro. Parafraseando o filósofo alemão, em toda a

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sua extensão, a cultura brasileira, precisamente onde mais liberal, estava ávida por um
Bolsonaro.
As considerações de que Hitler era louco, burro ou patológico não se furtavam, e por
isso velavam o cerne da questão, pois mesmo que o maldito fosse portador de distúrbios
psicológicos, “a desproporção que há entre essa frase e a catástrofe objetiva que se abate sobre
o mundo em nome daquele paranóico torna ridículo tal diagnóstico, através do qual quem
diagnostica quer apenas pavonear-se. Talvez Hitler seja ‘em si’ um caso patológico, mas com
toda certeza não ‘para ele’” (ibidem. p. 48). Evidentemente que identificações imediatas mais
ofuscam que elucidam, mas trocar “Hitler” por “Bolsonaro”, aqui, pode produzir conclusões
pertinentes.
Outra manifestação da impotência nos coloca em diálogo com Adorno, que é o tédio.
Aos que puderam ficar enclausurados em vossas casas, sem aqui sucumbir ao discurso do
privilégio quando se fala de direitos, a monotonia cotidiana se faz presente. A “boa dose de
fastio” (ibidem. p. 44), que Adorno pressupunha ao pensamento intransigente, é
experienciada por nós com uma estranha tensão entre tédio e ansiedade. O sujeito neoliberal,
rápido e orientado para o futuro, trancafiado em casa sem saber até quando vive uma espécie
de duplo estranhamento, no qual a falta do que fazer e dezenas de atividades, preguiça e
exigências de produtividade tensionam a experiência restrita à geografia doméstica e
expandida espaço-temporalmente por encontros online.
Em um aforisma chamado Só quinze minutinhos, Adorno descreve a insônia de
maneira parecida com a monotonia cotidiana pandêmica. Nessa tensão estranha com o tempo,
[...] o que se revela nessa contração das horas é a imagem inversa do tempo preenchido.
Enquanto neste último o poder da experiência quebra o sortilégio da duração e reúne o
passado e o futuro no presente, na agitação de uma noite de insônia a duração suscita um
horror insuportável. A vida humana transforma-se em um instante, não por suprimir a
duração, mas por sucumbir no nada, despertando para o que nela há de vão em face ela má
infinidade elo próprio tempo. No ruidoso tique-taque do relógio percebe-se o escárnio dos
anos-luz em relação à extensão da existência humana (ADORNO, 1993, p. 145)
No limite, o contrário da experiência do tempo cumulativo moderno que se reverte em
expectativas decrescentes e horizontes rebaixados por conta do colapso da modernização já é
algo conhecido aos leitores de Paulo Arantes, em cujas lives talvez sejam a espera possível em
meio a impotência neoliberal, esse oxímoro que se manifesta nas figuras da ansiedade e
depressão.
Há algo da crítica adorniana que nos parece interessante retomar 70 anos depois que,
de modo algum, foi de intenção do autor. Em um debate com o pensamento alemão de sua
época, em especial com Heidegger, Adorno faz uma crítica à noção de autenticidade como um
conceito sob o qual a moral burguesa se contrai após a não realização de suas máximas
iluministas. Na volta para a “identidade de cada indivíduo consigo mesmo” (ibidem. p. 134), o
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postulado do conhecimento de si como um “saber esclarecido para a ética” se fazia presente,


pois com as normas religiosas e os universais burgueses dissolvidos, voltar para si mesmo era
o horizonte.
A questão é que, para Adorno,
A inverdade está alojada no substrato mesmo da autenticidade, no indivíduo. Se no
principium individuationis, como os antípodas Hegel e Schopenhauer em comum o
reconheciam, se esconde a lei do curso do mundo, então a intuição da substancialidade última
e absoluta elo Eu torna-se vítima ele uma aparência que protege a ordem subsistente quando
a essência desta já está em decadência (ADORNO, 1993, p. 134)
No voltar a si e conhecer a si mesmo esconde-se que o próprio Si é engendrado pelas
formas sociais. O que no discurso good vibes contemporâneo aparece como negação do
cotidiano darwinista do mundo do trabalho se revela como a contraparte necessária dos
processos de individuação extremada da subjetividade neoliberal.2 “O que se apresenta como
uma entidade original, como uma mônada, é apenas o resultado ele uma separação social do
processo social. Precisamente enquanto absoluto, o indivíduo é uma mera forma de reflexão
das relações ele propriedade” (ADORNO, 1993, p. 135).
Na espiritualidade hedonista contemporânea não se encontra o cerne do problema,
pois o próprio problema a engendra como momento, “Não apenas o Eu está enredado na
sociedade, mas também deve a ela sua existência no sentido mais literal. Todo seu conteúdo
provém dela ou da relação pura e simples com o objeto” (ibidem.). A busca do conhecer a si
mesmo por meio do isolamento é, na verdade, cegueira, “a insistência teimosa e impenitente
na forma monadológica que a opressão social imprime nos homens” (ibidem.). Não é por acaso
que Adorno afirma que quem “não deseja ressequir prefere assumir o estigma da inauticidade”
(ibidem. p. 35-6), pois assumir a impotência e a nulidade é mais produtivo e crítico que a ilusão
de onipotência individual ou os reconfortos espiritualistas e/ou astrológicos que o autor
analisa nas Teses contra o ocultismo.
“A impostura da autenticidade remonta ao obcecamento burguês em face do processo
de troca” (ibidem. p. 137), pois seu isolamento é parte necessária do todo. Por isso Adorno não
poupa palavras para essas práticas que já em seu contexto se manifestavam, mas que no nosso
tempo se exacerbam, pois
Com sua pretensão de desprezo pelo mundo, a filosofia ela interioridade, em seu todo, é a
última sublimação da brutalidade bárbara que afirma que quem chegou primeiro tem mais
direito, e a prioridade do Eu puro é tão falsa quanto a de todos os que se sentem em casa
consigo mesmos (ADORNO, 1993, p. 136)

2
Adorno tinha consciência dessa imbricação em seu tempo: “O tédio é um complemento do trabalho alienado
enquanto experiência do antitético ‘tempo livre’, quer porque este é o encarregado de reproduzir a força gasta, quer
porque sobre ele pesa como hipoteca a apropriação do trabalho alheio” (ADORNO, 2001, p. 166); “O próprio vazio
psicológico é apenas o resultado da falsa absorção social. O tédio de que os homens fogem reflecte unicamente o
processo de fuga a que, desde há muito, estão sujeitos” (ibidem. p. 131).
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Na verdade, “não é o inautêntico que se faz passar como tendo um teor de ser que
deveria ser confutado em sua mentira, mas o próprio autêntico torna-se uma mentira no
momento em que se torna de todo o autêntico, ou seja, na reflexão sobre si, ao pôr-se como
autêntico, quando já ultrapassava a identidade que ele ao mesmo tempo afirma” (ibidem.). Se
a afirmação da autenticidade se revela como inautenticidade, a reflexão que toma como ponto
a própria inautenticidade é que é verdadeiramente crítica.
Enfim, se “Até mesmo sua própria impossibilidade tem que ser por ele [o pensamento]
compreendida, a bem da possibilidade” (ibidem. 216), como diz Adorno nas últimas linhas de
seu livro, tomar a impotência como ponto de partida para a reflexão parece ser uma das poucas
formas de pensar algo sobre a desgraça real. Afinal, nada mais “bolsonarista” que uma
reprodução social em frangalhos que elimina milhares de imprestáveis sob o prisma da
normalidade. Se assim o for, talvez há algo que se possa extrair dos 153 aforismas de uma
possível “doutrina da vida reta” (ADORNO, 1993, p. 4) em uma sociedade amoral e associal
como a nossa. 70 anos depois e ainda não há vida correta na falsa.

Referências
ADORNO, Theodor. [1951] 1993. Minima moralia: reflexões a partir da vida
danificada. Trad. Luiz E. Bica. São Paulo: Ática.

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