Você está na página 1de 9

Formação da consciência moral: um problema de

liberdade.
Francesco Botturi

1. Crise da ideia de formação.

A renúncia à educação moral parece um dado adquirido, no contexto da cultura contemporânea: as


propostas éticas prevalecentes apresentam, em sua maioria, sobretudo um discurso de ética pública,
que tem como critério a procedimentalidade das regras ou o pertencimento às tradições culturais.
No primeiro caso, prescinde-se do tema do bem e são ressaltadas as regras de justiça
(neoliberalismo), segundo procedimentos compartilhados que visam garantir a convivência pública
dos plúrimos projetos de vida privada. No segundo caso, a moralidade é, ao inverso, conformidade
a tradições particulares das quais o sujeito traz a sua identidade reconhecível (comunitarismo).
Tanto em um como no outro caso, a ética é a priori identificada como ética social. Falta, em geral, o
espaço lógico para colocar-se o problema da formação do sujeito, e de como torná-lo um indivíduo
adulto capaz de relacionar-se.
Sintomática é a questão do pluralismo cultural, que se torna o critério principal da própria formação
ética (que se reduz à formação para a convivência pluralística) e a objeção preventiva contra toda
formação unívoca. Por consequência, a orientação integral da existência e a pergunta sobre a “vida
boa” são deixados À opção individual e privada. Por este modo, legitima-se uma concepção difusa
do tipo “vícios privados, virtudes públicas”, quer dizer, há uma certa justaposição de individualismo
libertário e de garantismo jurídico-institucional, um permissivismo privado e um rigorismo público.
Por um lado, deseja-se intransigência quanto à moralidade pública e ao respeito às regras da vida
coletiva, mas por outro se reivindica o máximo de subjetivismo e de arbitrarismo no âmbito do que
se considera privado.
Tudo isto demonstra claramente o fato de que a crise da formação moral está unida com a crise do
sujeito. Se não há a admissão de uma subjetividade auto-consistente, de fato não se pode
sensatamente falar de um processo formativo para ela. É necessário reconhecer uma verdade do
sujeito, pela qual faça sentido um caminho teleológico para a sua realização. A negação de uma
identidade, que em alguma medida transcenda ontologicamente e oriente axiologicamente toda a
sua operação, torna impossível a própria ideia de “formação” da subjetividade e da “história” do
sujeito.
Mas é, realmente, o niilismo antropológico, seja na sua versão nietzschiana-hermenêutica, seja na
versão analítico-fisicalista, que é o dado cultural prioritário, hoje.

2. A aporia da formação.

É necessário reconhecer, no entanto, que, mesmo onde se aceita a ideia de uma consistência
ontológica do sujeito, pode não haver um reconhecimento imediato da possibilidade de sua
formação moral. Se, de fato, há um significado para formação moral, não poderia significar outra
coisa senão a formação da liberdade. Mas há, precisamente, sentido em formar a liberdade? Não é
ela própria a regra pressuposta de todas as ações, de tal modo que o agir humano nem seria possível
sem que houvesse, em ato, a liberdade? Assim, não parece possível regular aquilo que é a regra por
excelência (transcendental) do agir humano. Mas, se as coisas fossem assim, seria necessariamente
verdade que não é possível uma educação moral; ao menos no sentido tradicional, segundo o qual a
relação educativa é essencialmente, além disso, relação intersubjetiva, que contempla, como sua
condição, a figura do outro. A única alternativa se constituiria numa concepção de liberdade como
autonomia radical, com relação à qual a única abordagem legítima de educação poderia ser,
somente, a do autodidata, como um processo em cujo interior a liberdade toma posse de si mesma e
pouco a pouco toma consciência da regra que é para si mesma.
Parece, portanto, em síntese, que entre liberdade e formação instituir-se-ia uma aporia: como
iniciativa autônoma, a liberdade não poderia receber formação (que implicaria heteronomia); por
outro lado, a simples formação autodidata da liberdade pressupõe uma autossuficiência e uma
perfeição que não parece corresponder à condição existencial da liberdade, porque não se dá conta
da experiência do perdimento real da liberdade. A pura autonomia – como ensina Fichte – é, de fato,
de natureza divina.

3. Liberdade plural.

A aporia da formação moral tem sua pedra angular na concepção de liberdade.


A primeira constatação, neste caso, é a tendência difusa a identificá-la univocamente com o livre
arbítrio; ou melhor, com o poder de escolha. No entanto – como tentaremos demonstrar – seria
necessário fazer um discurso antropologicamente mais plausível, que renunciasse a uma
significação unívoca da liberdade em favor de uma pluralidade de significados consistentes e
interconexos. A nossa tese é que a liberdade seja um organismo unitário e complexo cuja identidade
plúrima estrutura-se segundo uma dialética interna à sua própria multidimensionalidade. A
liberdade, de fato, tem muitos significados, e cada um deles se refere ao outro como sua realização e
ao mesmo tempo como seu pressuposto, segundo uma circularidade unificante, que é a única
maneira pela qual a liberdade encontra sua integridade fisiológica e, na ausência da qual a surgem
as fontes das patologias da liberdade; na qual, ainda, a liberdade tem o seu fascínio e seu mistério e,
ao revés, sem a qual a liberdade surge como um epifenômeno banal.

4. Liberdade como autodeterminação.

Certamente, o significado mais evidente da liberdade constitui-se do livre arbítrio. Aqui não é o
lugar para entrar no problema fundamental da capacidade de livre escolha. Basta ter em mente que,
se o homem é verdadeiramente capaz de escolha, então o sujeito é sempre, ainda que parcialmente,
“dominus sui”. É, assim, capaz de ser senhor sobre seus atos, em relação aos quais vive, até certo
ponto, na distância de uma "indiferença dominante", como se expressa J. Maritain.
Neste nível, a essência da liberdade parece consistir no exercício daquele poder que se constitui no
escolher: embora escolher seja necessário, como Sartre o evidenciou, somos, no entanto, livres para
escolhermos o que quisermos; a liberdade consiste exatamente em exercitar o poder de escolher e,
portanto, de escolher sem vinculação alguma.
Se pararmos nestas considerações do fenômeno da liberdade, será inevitável concluir que o poder
da liberdade expressa-se na medida em que pode dispor dos atos do sujeito, sem ter que medir seu
valor em outra coisa que não ela mesma. Se a liberdade se identifica com o poder de
autodeterminação, então seria verdade que submeter a liberdade a uma ordem de valores qualquer
contradiria sua natureza. A autodeterminação solitária exige a perfeita autonomia e, então, a
liberdade seria plena se for, ao mesmo tempo, capacidade de criar os próprios valores, isto é,
aqueles próprios de cada liberdade.
A profundidade existencial desta concepção evidencia-se no fato de que, por ela, o sujeito afirma a
si próprio de certo modo como absoluto. A capacidade de autodeterminação é a característica
segundo a qual a subjetividade surge com sua identidade irreduzível: a autodeterminação é o
princípio dinâmico do processo de identificação do eu. Já se faz claro, então, que, em qualquer caso,
a formação moral não poderá deixar de apelar à experiência de identificação interna pela capacidade
de autodeterminação.
A insuficiência desta dimensão está, no entanto, no fato de que, no sujeito humano, não há somente
o poder de escolher, mas ainda a necessidade de fazê-lo. Ou melhor, o poder se confronta,
necessariamente, com a necessidade: a escolha, portanto, se dá frente às ineludíveis necessidades de
várias naturezas. O homem não é um deus que tem à sua disposição a sua existência, mas é um ser
limitado, cujo poder também está “a serviço de” e, portanto, é “vinculado a” necessidades a serem
satisfeitas.
O homem não pode escolher por escolher, mas deve sempre escolher para alcançar, se possível,
bens, realidades que lhe sejam convenientes, das quais precisamente tenha necessidade. É um
romantismo irracionalístico e esteticista o amar por amar, ou o desejar por desejar, porque estes são
movimentos da alma que não trazem satisfação por si mesmos, mas são estruturalmente orientados
a uma satisfação que provém da relação com outro; as coisas são assim também para o escolher1.

5. Liberdade como autorrealização.

A escolha tem um fim e um sentido além dela mesma: em outras palavras, a autodeterminação é
para o bem, para os fins oportunos, convenientes, válidos, em síntese: felicitantes para o sujeito. A
escolha racional, em suma, é função de realização para o agente. É este um segundo significado
para a liberdade, mais difícil de alcançar do que o precedente, mas de igual modo fundamental,
porque é aquilo em relação ao qual o livre-arbítrio também adquire sentido completo. A liberdade,
então, não é somente capacidade de escolha e autodeterminação, mas é também autorrealização.
Antes de mais nada, cabe perguntar-se em que sentido essa funcionalidade também leva o nome de
liberdade. Que a liberdade signifique o caminho até o/um completar-se do agente, leva, portanto, ao
sentido de liberação da pobreza e da escravidão da imperfeição, da incompletude, etc. Que, então,
liberdade signifique adesão ao bem, realização e liberação do sujeito; assim como se diz que toda
ação satisfatória dá uma sensação de liberdade, porque dá uma experiência de libertação.
Neste nível, porém, encontra-se um paradoxo significativo, aquele da conjunção entre necessidade
e liberdade: movemo-nos em direção ao bem que é objeto da escolha livre, por uma certa
necessidade, para nós, deste bem; mas, por sua vez, a obtenção desse bem necessário nos liberta.
O exemplo mais eloquente é aquele do amor; quão mais profundo é um amor, quanto mais ele
empenha o íntimo da pessoa, tão mais é gratuito e necessário ao mesmo tempo. Livre (no sentido de
escolha), porque, se não o fosse, não seria amor humano, mas só atração determinística; mas
1 Certamente pode-se decidir colocar (narcisisticamente) o poder de escolha como critério de si mesmo. Mas deste
modo a existência cai num estado de abstração que a conduz inexoravelmente a contradizer-se. Pode-se escolher
por escolher, mas a existência se vinga: sair pela porta ou pela janela, comer um alimento adequado ou um prato de
pregos não é a mesma coisa, nem traz a mesma consequência para a existência. em cada caso a escolha tem a ver
com vinculações que a precedem e condicionam o seu poder do ponto de vista do seu conteúdo. A independência
pura existe somente no nível formal (isto é, no abstrato): se uma escolha é livre, nesta medida não depende dos
antecedentes e das condicionantes; mas isto não significa que o seu conteúdo não esteja vinculado a um significado
contextual. A livre escolha, para ser razoável, deve conceber-se sobretudo como resposta às necessidades e
expectativas, às vocações e provocações que a precedem e vêm de fora.
necessário, seja porque o amor responde a um apelo que não está à sua disposição, mas se impõe a
ele; seja porque o amor, por sua natureza, deve amar, deve querer o bem do amado; mas, enfim,
livre mesmo assim (no sentido de liberador) porque o amor, uma vez que se conforma à natureza do
agente, vem a realizá-lo, libera suas potencialidades, faz com que ele seja mais ele mesmo. É,
assim, uma trama de necessidade e liberdade: o amor surge como atração e apelo em cujo confronto
não posso simplesmente deixar de me posicionar, mas a resposta é livremente escolhida e, (se
válida), é liberadora2.
A liberdade, como adesão ao fim liberador, põe, no entanto, o problema da identificação da
realidade que corresponde ao bem do sujeito. Se o sujeito deve reconhecer que a sua liberdade -
libertação está vinculada à escolha do bem verdadeiro, não aparente, quais são, ou qual é, o bem
cujo atingimento faz com que o sujeito alcance a si mesmo? É claro que a formação moral não pode
deixar de empenhar-se com esta questão, da qual a liberdade do sujeito recebe uma interpelação
decisiva para sair do sempre possível narcisismo interno da auto-relação intrínseca com a
capacidade de escolha. Ao assumir o problema do bem verdadeiro, isto é, do bem efetivamente
capaz de produzir a felicidade, inaugura-se, de fato, o acesso do sujeito à esfera da moralidade.
É certo que se poderia objetar que o bem que o sujeito vai buscando não é outra coisa, em última
instância, que ele mesmo; o fim dos fins seria precisamente sua realização pessoal, seu próprio bem.
A liberdade como autorrealização seria então o significado último e abrangente da liberdade.
Mas o limite desta resposta não tarda a se revelar. Ela pressupõe, de fato, uma condição solipsista
do sujeito, que é de todo irreal, e portanto contraditória. Se o sujeito fosse fim para si mesmo, isto
significaria que todas as coisas deveriam ser postas a seu serviço, incluídos os outros sujeitos; mas
cada um dos sujeitos poderia lançar esta pretensão, e o problema colocado seria insolúvel.
Prosseguir por esta estrada significaria cair no beco sem saída de uma liberdade essencialmente
conflituosa, que só poderia ser remediada pela hipótese de um aparato externo à própria liberdade,
delegado o seu controle (segundo o modelo de Hobbes e o neocontratualismo contemporâneo). Pelo
contrário, precisamente porque todo sujeito humano tende à sua realização, ninguém pode ser um
fim perfeito em si mesmo.

6. Liberdade como relação.

A liberdade não é somente autodeterminação e autorrealização; ela é, ademais, desde o seu início,
relação com outro, e mais precisamente com outra liberdade.
Não somente a liberdade deve levar em conta a outra liberdade, mas, mais profundamente, a
liberdade é uma necessidade constitutiva do outro como liberdade.
O homem vem à luz num outro ser humano; nesta metáfora se entrelaçam um significado físico (a
geração biológica) e um metafísico (a geração da identidade e da capacidade operativa do sujeito
como tal). O ser humano não é um produto social, nem a sua personalidade é a simples resultante
das influências ambientais (se fosse assim, o sujeito estaria à mercê da sociedade, de direito e de
fato); porém, o homem é, em certa medida, sempre entregue a si mesmo pelas relações primárias
em que está inserido. Pode-se dizer que o sujeito é auto-consistente na medida que é constituído em

2 Essa estrutura é o que faz Agostinho, e depois dele Tomás, dizerem que o homem aspira livremente à felicidade,
precisamente na medida em que necessariamente aspira a ela: o homem tende necessariamente para a sua liberdade.
Tomás de Aquino escreve, nas suas “Quaestiones de Potentia”: “a necessidade natural, segundo a qual se diz que a
vontade necessariamente quer algo, como a felicidade, não entra em conflito com a liberdade da vontade. De fato, a
liberdade se opõe à violência e à coação, e não há compulsão naquilo que move algo de acordo com a estrutura de
sua natureza; mas há violência e compulsão, de fato, quando o movimento natural é impedido. Ali onde a vontade
livremente deseja a felicidade, ela assim a deseja necessariamente. (q. 10, a. 2).
si mesmo, mas que é constituído na sua subjetividade pelos outros. Mais concretamente, o ser
humano e-xiste por força do reconhecimento que recebe; isto é evidente na relação parental, na qual
a privação de um reconhecimento adequado provoca défices e distúrbios de personalidade.
O ser humano tem necessidade de reconhecimento, não para ser pessoa, mas para existir como
pessoa, ou seja, para ativar plenamente as próprias capacidades afetivas e intelectuais, e para atingir
um sentido intenso e estável da própria identidade: se não se sente afetuosamente acolhido, não
consegue se acolher; se não se acolhe, não tem carga afetiva suficiente para realizar suas
habilidades fundamentais; quem é incapaz de exercer sua humanidade inteligente e desejante não
pode chegar a formular uma clara identificação autoconsciente.
Não é casualidade que a dinâmica do reconhecimento é que tece a trama fundamental da sociedade
humana, estendendo-se a toda a micro e macro ritualidade dos reconhecimentos que definem os
papéis e a identidade intersubjetiva e pública.
Estes dados irrefutáveis têm uma razão profunda, que se liga ao modo de ser do sujeito humano: o
ser humano precisa de reconhecimento, porque é um ser precário e sabe-se assim; o reconhecimento
serve de confirmação na existência, para um sujeito que, literalmente, não possui a perfeita
segurança do existir. Mais precisamente, a espera do reconhecimento coincide com a solicitação de
confirmação na existência que um sujeito como tal requer de outro sujeito como tal. Um sujeito, de
fato, é constituído de tal maneira, por sua ilimitada capacidade intencional ou transcendental, que a
interação e o suporte das coisas não é suficiente, mas há uma necessidade profunda de outros
sujeitos. O sujeito, sendo constituído originariamente no compartilhamento do horizonte
transcendental do pensamento e da vontade, constitui-se originariamente na intersubjetividade. A
abertura transcendental ilimitada não pode ser saciada, de fato, pela determinação categorial das
coisas, mas tem, como medida adequada de referênci6, uma outra intencionalidade igualmente
aberta3. Por outro lado, a riqueza transcendental do sujeito convive, nele, com a pobreza da sua
existência biopsíquica precária. O sujeito tem uma abertura que está inteiramente marcada pela
contingência do seu devir, e como tal tem necessidade contínua de atestar (antes de tudo a si
mesmo) a própria existência. O reconhecimento o reconhecimento torna-se assim a relação por
meio da qual o sujeito se identifica e confirma a si mesmo.
Mas, se o reconhecimento tem a ver com a constituição da existência, então também tem a ver com
a liberdade do sujeito, ou seja, com a formulação de sua capacidade de autodeterminação e com o
processo de sua autorrealização/libertação.
A relação de reconhecimento tem uma dramaticidade histórica: todos têm necessidade dela, mas
nem todos do mesmo modo ou sob a mesma perspectiva. Na falta de simetria, pode-se infiltrar – e
de fato se infiltra – a tentação de sobrecarga e, correlativamente, a suspeita de instrumentalização. A
relação de reconhecimento transforma-se assim no conflito entre um servo e um patrão, como
vislumbraram Hegel e Sartre, que viram a luta pela dominação, após as antecipações de Hobbes e
Nicole [Maquiavel], como o verdadeiro destino para as relações entre os homens. Daí o drama da
liberdade, no que diz respeito à possibilidade de encontrar no outro a satisfação de sua expectativa4.

3 Cf, sobre isto C. Vigna, La Verità del desiderio come fondazione della norma morale, in AAVV. Problemi di etica:
fondazione, norme, orientamenti, a cura de E. Berti, Fondazione Lanza – Gregoriana Lib. Ed. Padova, 1990, pp. 69-
135 e, mais recentemente, Il Desiderio e il suo altro, in AAVV., L’enigma del desiderio, San Paolo, Cinisello
Balsamo 1999, pp. 47-80.
4 Com muita profundidade, deve-se notar que a simples assimetria gera a ocasião para a violência. O verdadeiro
drama das relações humanas é determinado pela simetria basilar dos sujeitos, segundo a qual todos estão na
condição ontológica de ter necessidade de reconhecimento e, propriamente por isto, ninguém é capaz de satisfazer
plenamente o requisito do pleno acolhimento do outro. Daí a aporia das relações inter-humanas que não chegam, a
satisfazer a ulterior aceitação transcendente. A aceitação mútua é, portanto, para o sujeito não marcado pela
necessidade do outro (mas possivelmente constituído apenas pelo desejo-de-outros) a condição última de
Tal situação difícil, no entanto, não contradiz o significado originariamente positivo do
reconhecimento, mas faz compreender melhor que a expectativa gerada pela necessidade de
reconhecimento é vivenciar a liberdade do outro como benefício para si. Na sua profundidade, a
necessidade de reconhecimento vive a espera de ser chamada por outra liberdade para um encontro
benéfico, isto é, é o apelo a uma liberdade que não tem segundas intenções, mas tem o único
propósito de encontrar a outra liberdade como tal: em suma, é a espera de que uma liberdade venha
a chamar a outra liberdade como tal, e chamá-la na gratuidade.
Assim, a necessidade de solicitação por parte de outra liberdade, que a necessidade de
reconhecimento contém, e a gratuidade que essa relação exige ensina algo fundamentalmente sobre
a natureza da liberdade: a liberdade é uma relação necessária com a graça de outra liberdade.
Daí a necessária implicação do outro em qualquer projeto de formação moral.

7. Organismo dialético da liberdade.

Mas também a liberdade como relação gratuita porta em si a sua superação, porque a gratuidade do
reconhecimento dado e recebido se dispersaria na inutilidade (estética ou sentimentalista) se não
existisse, por sua vez, em função de ativar a capacidade de escolha. De fato, olhando mais de perto,
a capacidade de escolha e de reconhecimento se referem e se condicionam, como se fossem a forma
e o conteúdo da experiência elementar da liberdade: é o reconhecimento (originariamente parental)
que ativa a capacidade de escolha, por meio da experiência de ser objeto de eleição da parte de
outra liberdade: enquanto, por sua vez, a livre escolha tem, como seu primeiro conteúdo, o
reconhecimento a ser exercido e retribuído, como primeira e arquetípica figura e experiência de/do
bem. O livre arbítrio e o reconhecimento constituem, assim, solidamente, a estrutura dinâmica
fundamental da liberdade, orientada à busca dos bens e do bem que o sujeito possa realizar.
É claro, por consequência, que não há verdade nem numa concepção solipsista do livre arbítrio,
nem numa dissolução da liberdade no reconhecimento social. É verdade, no entanto, que a
autodeterminação sempre toma forma a partir de uma relação intersubjetiva de reconhecimento e
que isto toma seu sentido autêntico ao suscitar sempre, ainda que em diversos graus e diversos
níveis, a energia da escolha. A correlação forte entre as duas formas de liberdade capacita o sujeito a
abrir-se à procura do seu bem, cujo paradigma está, porém, já na relação de reconhecimento vivida
na origem, na qual ele se experimentou como bem para outro, e encontrou no outro um bem para si.
Disto se pode compreender a gravidade do dano recebido por quem teve a experiência negativa dos
outros na relação primária de reconhecimento: a experiência dos outros como experiência originária
do bem apresenta-se como experiência originária do mal!
Portanto, três são os significados da liberdade, na dialética da conexão circular. Nenhum deles pode
estar isolado, nenhum pode reclamar para si todo o sentido do ser livre, porque cada um traz em si
um limite de insuficiência que exige uma superação no outro. Se, portanto, for possível dar uma
noção sintética de liberdade, ela poderia estar na dúplice ideia da autopossessão dependente e da
fidelidade deliberada: isto é, naquela ideia de uma autonomia que se aceita na dependência do outro
e do bem, e na ideia de escolha, que se atualiza como fidelidade a uma outra liberdade e junto
àquilo que é capaz de levar ao bem do sujeito.

8. Necessidade de formação moral.

possibilidade. Sobre esta ampla problemática, cf. Botturi, l’intrinseca dimensione religiosa eell’essere humano
(impresso em um volume sobre o problema do ensino da religião em "Vita e Pensiero")
8. Necessidade da formação moral.

Somente se a liberdade não é pura iniciativa e autonomia exclusiva é que há sentido em falar de
“formação moral”. De fato, o que há de comum entre os três significados da liberdade é a
coexistência, nela, de atividade e de passividade. Em cada momento da existência livre, encontra-se
ínsito, em conjunto com um elemento de iniciativa, um elemento receptivo. Com Pareyson,
podemos dizer que a liberdade humana é, em todos os seus aspectos, sempre uma “iniciativa
iniciada”. E, com Simone Weil, é necessário reconhecer que a liberdade nunca existe sem mistura
com a necessidade: livres para escolher e necessitados da escolha; orientados ao bem e vinculados à
sua conveniência; abertos aos outros e dependente deles.
A formação moral toma sentido desta situação mista. A ação formativa, de fato, encontra espaço no
âmbito da passividade do sujeito, e em função da sua iniciativa. Ela intervém como elemento ativo
externo que não fere a dignidade autônoma do sujeito, porque não participa da “necessidade” no
sentido de sua realização. Poderíamos falar, a propósito, de uma “ortopatia”, ou seja, da formação
moral como formação do “justo sentir”, do dar-se conta e assumir a dimensão da própria
passividade ontológica e das suas implicações, em função da capacidade ativa5.
Consequentemente, o processo formativo exige o respeito à lógica ditada pela dialética interna da
própria liberdade, porque, descuidando-a, o empreendimento educativo torna-se abstrata e fadada ao
insucesso. O que é fundamental, de fato, na lógica viva da liberdade não é a sua capacidade de
autodeterminação, como às vezes somos levados a pensar por um vício intelectualístico (o que leva,
por exemplo, a tratar a criança como uma criatura totalmente dominus sui, a quem se deveria
submeter todo o leque de escolhas pelo modo o mais neutro possível: uma maneira segura de torná-
lo um neurótico!). O que está em primeiro lugar é, no entanto, o vínculo de reconhecimento. Isto
significa que a base do processo formativo é a experiência da liberdade do outro como benefício.
Sem esta confiança de base, a liberdade não encontra o espaço para a sua expansão: para a criança –
assim nos diz a psicologia do profundo – a onipotência imaginada dos seus genitores (que está
disponível a ela) é a condição fundamental para lançar-se ao mundo externo com a sua exploração e
a sua iniciativa. Analogamente, será sempre verdade que sujeito é capaz de assumir a tarefa da sua
liberdade na medida em que tiver a certeza de um reconhecimento que tenha acolhido previamente
sua própria liberdade.
Vale insistir sobre este momento da questão, porque é talvez o aspecto mais problemático para a
consciência educativa contemporânea. No contexto antropológico, de fato, há muita atenção à
dimensão intersubjetiva, mas também há uma preocupação prevalecente com a definição da
polaridade lógico-linguística, em vez de compreender as interações relacionais. Deste modo, torna-
se difícil pensar o fenômeno – educativamente incontornável – da autoridade. A interação do
reconhecimento, de fato, traz consigo esta experiência fundamental: quem concede o
reconhecimento torna-se, em todos os casos e necessariamente, uma autoridade; e tão mais quanto a
relação se dá em condição de assimetria (genitor/filho, professor/estudante…; em geral,
superior/inferior). A subestimação da importância primária da relação de reconhecimento e
confiança deriva provavelmente do embaraço criado pela figura de autoridade: a sua superioridade é
espontaneamente identificada quase como violência. Prefere-se centrar-se imediatamente na
liberdade de escolha do outro, talvez sem perceber que assim o próprio processo de formação é
interrompido. Certamente, o exercício da função de autoridade é exercício de poder; mas este

5 Cf. F. Imoda, Sviluppo umano. Psicologia e mistero. Piemme, Casale Monferrato, 1993.
exercício é inevitável no jogo da liberdade. No entanto, é verdade que mesmo esse poder requer
regulação moral; a autoridade carrega dentro de si a obrigação de ser benéfica.
Na realidade, a experiência positiva do reconhecimento já é, em si mesma, - como já foi dito – a
primeira experiência do bem. A liberdade como realização benéfica com uma outra liberdade é a
forma fundamental de autorrealização: o outro que acolhe é o primeiro lugar de expansão do sujeito
em formação, de tal modo que a relação parental se constitui como a primeira (arriscada)
configuração, concreta em seu conteúdo e no empenho afetivo, do bem a ser realizado.
Assim, somente em seu termo a formação moral leva ao momento da livre escolha. Não porque esta
não seja uma capacidade originária do sujeito (já que, se não o fosse, ninguém poderia provê-la),
mas porque o livre arbítrio, para poder operar efetivamente, precisa de uma ativação relacional
afetiva e de uma regulação com base num conteúdo paradigmático.
Por tudo isto, a formação moral não poderá significar tanto a formação da consciência moral,
entendida como um adestramento a uma certa conduta, quanto, em vez disso, uma formação para
ser moralmente consciente, compreendendo-se isto como uma educação para a verdade da liberdade
e do seu desejo. O que a formação pode legitimamente retomar não é um substituir ou heterodirigir
o aluno, mas constituir-se em um elemento integrador de sua realização, que permanece, portanto,
essencialmente autorrealização. Aquilo que objetiva uma correta educação moral não é, assim, uma
moral de leis, mas uma moral da completude ou, segundo a expressão de R. Spaemann, - da “vida
consumada6”.

9. Destino ético da liberdade e ontologia da geração.

É, assim, o próprio organismo dialético da liberdade que solicita uma ação formativa que lhe
capacite a operar. A liberdade, de fato, é uma estrutura aberta, entremeada pela exigência de uma
integração que a permita perseguir o seu destino ético.
A liberdade, como já foi visto, orienta-se ao “bem próprio com outro”, isto é, na projeção da sua
alteridade vinculante ela encontra o seu próprio ser e o seu devir. O que se impõe é ainda a estrutura
de passividade-atividade da liberdade: a liberdade é capacidade originária (ativa) do sujeito, mas
tem necessidade (passivo) da alteridade do bem e do outro sujeito para atualizar-se. Em termos mais
dinâmicos, podemos dizer que no coração da liberdade está uma ontologia da geração, no sentido
de que a liberdade é geradora de iniciativa somente se, ao mesmo tempo, é também gerada; que a
liberdade é um poder gerador só se reconhece do fato de que ela não provém só de si. Geração
significa, de fato, proveniência e transmissão. Assim, a liberdade provém da alteridade do bem e do
bem do outro e é, com relação a isto, capaz de agir de modo benéfico.
O destino moral da liberdade está contido na sua própria constituição. Se a liberdade é
simultaneamente gerada e geradora, sua moral consiste em tomar conta de si mesma e de sua
condição, isto é, de exercer-se como livre, acima de tudo, em relação a si mesma. A primeira
dimensão moral da liberdade está no reconhecimento da sua “proveniência”, na aceitação do seu
ser instituída a partir da relação com os outros e com o outro. A segunda dimensão, inseparável da
primeira, é a admissão da própria inevitável projetabilidade, isto é, da própria capacidade
generativa formativa. Em síntese – como já se acenava – a moralidade é a deliberação de assumir, e
portanto exercer a responsabilidade, do movimento (necessário) da autorrealização.
Consequentemente, a formação moral é sinônimo de saída do narcisismo, fenômeno antropológico
fundamental do nosso momento cultural: a liberdade não toma forma enquanto não sai do auto-

6 Cf R. Spaemann, Felicidade e Benevolência. São Paulo, Edições Loyola. 1989.


enamoramento (que a cultura contemporânea parece querer induzir de todo modo e a todo custo,
não obstante a evidência de suas consequências desastrosas), e é sinônimo, ao inverso, de entrada
no exercício maduro e relacional da própria liberdade.
A formação moral alcança plenamente a sua meta pela ativação da capacidade do sujeito de ser, por
sua vez, um gerador de formas morais. O sujeito moralmente formado é aquele que está em
condições de reproduzir autonomamente a lógica do seu próprio processo formativo: empenha a sua
capacidade de decisão com formas que são, ao mesmo tempo, descobertas e inventadas, que exigem
obediência e são simultaneamente elaboradas, que se impõem pelo próprio poder formante e são,
contemporaneamente, formadas. A formação moral, uma vez que surge por causa da dupla condição
de passividade e atividade da liberdade humana, dá, assim, origem a um compromisso moral que é,
a um tempo, reconhecimento e elaboração do valor.
Tudo isso pode ser resumido em uma figura capaz de compor os extremos de nosso discurso: a
passividade e a atividade da liberdade, a objetividade e a subjetividade dos valores. De fato, o
processo de formação moral pode ser descrito – com a terminologia de P. Ricoeur – como geração
de uma identidade narrativa. A formação moral é obra de um sujeito com a identidade já instituída
(embora sempre in fieri), que a transmite de modo axiológico; antes de tudo por meio da narração
(não só e não principalmente verbal) de si e da própria experiência. Como disse Aristóteles, o
critério fundamental de valor é constituído pelo próprio homem moralmente sábio, e São Bento
escreveu que o Abade deve ser a “regra vivente” para aquele lugar de formação (também) moral que
é o Monastério. Mas, tendo sido antes receptor, a regra viva é tal pela inscrição da própria narrativa
naquela, mais ampla e superior, das grandes figuras da tradição que as gerou: a educação moral é
impossível – dizia A. N. Whitehead – sem a visão constante da “grandeza”. Narrar a grandeza, ou
seja, as grandezas de uma tradição de costumes, é condição indispensável do processo de formação
moral7. Para isto, a imaginação axiológica e metafísica tem uma importância essencial no processo
de formação, que, de outro modo, se vê ameaçado - como na cultura atual da imagem - pela
prevalência de uma imaginação sensualista e emocionalista.
De modo definitivo, o êxito da formação moral está na constituição de uma identidade narrativa que
saiba dar forma a figuras de experiência em que o valor encontra mediação nova e peculiar. Falando
em termos mais tradicionalmente éticos, deveríamos dizer que o fruto da formação moral é dar
espaço àquelas formas narrativas que se chamam de “virtudes”.

7 Cf. A. N. Whitehead, The Aims of Education and Others Essays, New York, 1957.

Você também pode gostar