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Curso: Relatividade 01/2018

Aula 1: 9 de abril
Profa. Raissa F. P. Mendes

You consider the transition to special relativity as the most essential thought of relativity, not the
transition to general relativity. I consider the reverse to be correct. I see the most essential thing in
the overcoming of the inertial system, a thing that acts upon all processes but undergoes no reaction.
This concept is, in principle, no better than that of the center of the universe in Aristotelian physics.
- Einstein para Georg Jaffe (1954)

1.1 Princı́pios da Relatividade Geral

Não é difı́cil ver que as equações de Newton para a gravitação,

d2 xi /dt2 = −∂Φ/∂xi

∇2 Φ = 4πGρ
não são invariantes por transformações de Lorentz. A presença do Laplaciano (em vez do d’Alamber-
tiano das equações de onda) implica que o campo gravitacional Φ precisa reagir instantaneamente
a mudanças na densidade ρ. O campo gravitacional se propaga com velocidade infinita. Existem
generalizações relativı́sticas mais ou menos óbvias dessas equações (como vocês podem ver nos
execı́cios 7.1, 7.2, 7.3 do Gravitation! ), mas todas elas têm suas limitações e, na melhor das
hipóteses, não concordam com as observações.

1.2 Princı́pio da equivalência

Um dos princı́pios que norteou Einstein na construção da Relatividade Geral foi o Princı́pio da
Equivalência. Existem várias formulações desse princı́pio. A formulação mais antiga, hoje conhe-
cida, como princı́pio da equivalência fraco, diz respeito à igualdade entre massa inercial e massa
gravitacional. Por um lado, a segunda lei de Newton contém um parâmetro relacionado à inércia
do corpo, que relaciona a aceleração de um objeto à força que atua sobre ele: F = mi a. Essa massa
inercial tem um caráter universal e é a mesma independente da força que atua sobre o objeto. Por
outro lado, a lei da gravitação afirma que a força gravitacional sobre um corpo é proporcional ao
gradiente de um campo escalar (o potencial gravitacional): FG = mg ∇Φ. Essa massa gravitaci-
onal cumpre o papel de uma “carga” do corpo com respeito à força gravitacional. Fisicamente,
mg e mi têm significados fı́sicos muito diferentes. Experimentalmente (como dito por Galileu e
verificado com alta precisão por experimentos modernos de balança de torção), elas são iguais (ou
extremamente próximas)!

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A igualdade entre a massa inercial e a massa gravitacional implica que todas as partı́culas sentem
um campo gravitacional da mesma forma, independentemente da sua constituição interna. Em
particular, isso implica que um observador realizando experimentos de Mecânica em um referencial
em queda livre não é capaz de detectar a presença de um campo gravitacional. Para ele, partı́culas
livres permanecem em repouso ou seguem movimentos retilı́neos e uniformes:
d2 x 2
y=y(x) d y
mi 2
= mg g −−−−−→ 2 = 0,
dt mi =mg dt

onde y = x − gt2 /2.


Einstein elevou essa observação a um princı́pio válido para qualquer experimento fı́sico, não só
mecânico, mas eletromagnético, etc. De acordo com o princı́pio da equivalência de Einstein “em
regiões suficientemente pequenas do espaço-tempo, as leis da Fı́sica se reduzem às leis da relati-
vidade especial”; o verso dessa afirmação é que é impossı́vel distinguir um campo gravitacional
uniforme de um referencial acelerado por meio de experimentos locais.

Figura 1.1: É impossı́vel distinguir localmente um referencial inercial de um referencial em queda


livre num campo gravitacional. Isso é possı́vel apenas se temos acesso a regiões maiores do espaço-
tempo, como veremos à frente.

Figura 1.2: É impossı́vel distinguir localmente um referencial acelerado de um campo gravitacional


(pois ele sempre parece localmente uniforme).

Em particular, podemos perguntar: o princı́pio da equivalência sugere então que a luz é afetada por
um campo gravitacional? Como? Vamos discutir isso a seguir. Historicamente, Einstein chegou à
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conclusão de que a luz deveria ser afetada por um campo gravitacional da forma descrita abaixo
por argumentos envolvendo conservação de energia (como exposto no Schutz, por exemplo). Isso
serviu para que ele ganhasse confiança de que o princı́pio da equivalência está correto. Por outro
lado, aqui vamos discutir esse exemplo como uma consequência do princı́pio da equivalência, que
está sujeita ao escrutı́nio experimental. O fato de que experimentos desse tipo têm sido feitos há
décadas e se conformam com as previsões teóricas baseadas no princı́pio da equivalência serve como
verificação experimental desse princı́pio. Além disso, a situação descrita abaixo começa a apontar
para as implicações do princı́pio da equivalência quanto à incompatibilidade entre gravitação e
Relatividade Restrita.

1.2.1 Desvio para o vermelho gravitacional

Para começarmos a entender as implicações do princı́pio da equivalência, vamos considerar uma


de suas previsões clássicas, que é o desvio para o vermelho (redshift) gravitacional. Considere o
experimento mental ilustrado abaixo. O Arthur (A) está localizado a uma altura h da Bianca (B)
em um campo gravitacional ~g (poderiam estar, por exemplo, na base e no topo de uma torre na
superfı́cie da Terra, ou dentro de um foguete, como mostra a figura). O Arthur emite sinais de
luz a intervalos iguais ∆τA como medido pelo seu relógio. Qual é o intervalo ∆τB entre os sinais
recebidos pela Bianca de acordo com o relógio dela?

Vamos analisar a situação usando o princı́pio da equivalência. O princı́pio da equivalência implica


que a resposta à nossa pergunta deveria ser a mesma se o experimento fosse realizado não na su-
perfı́cie da Terra, mas no espaço, se o foguete acelerasse com aceleração ~g . Por causa da aceleração,
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a Bianca iria receber os sinais mais rapidamente do que eles seriam emitidos. O princı́pio da equi-
valência implica que o mesmo valerá se o foguete estiver em repouso num campo gravitacional
uniforme.
Para ver isso quantitativamente, vamos analisar a situação levando em conta apenas termos de
primeira ordem em v/c e gh/c2 : desprezando termos de ordem v 2 /c2 , estamos ignorando, por
exemplo, os efeitos de dilatação temporal e contração espacial; assumindo que (gh/c2 )2 é desprezı́vel,
estamos imaginando que o foguete não acelera a velocidades relativı́sticas no tempo que demora
para a luz ir do topo à base. Com essas hipóteses, a situação pode ser analisada usando mecânica
Newtoniana.
A posição da Bianca em função do tempo é dada por zB (t) = gt2 /2. A posição do Arthur é dada
por zA (t) = h + gt2 /2. Considere a emissão de dois pulsos de luz sucessivos pelo Arthur: em t = 0 o
primeiro pulso é emitido, em ∆τA o segundo pulso é emitido; em t1 o primeiro pulso é recebido e em
t1 +∆τB o segundo pulso é recebido. A distância que o primeiro pulso percorre é zA (0)−zB (0) = ct1 .
A distância percorrida pelo segundo pulso é menor, e é dada por zA (∆τA ) − zB (t1 + ∆τB ) =
c(t1 + ∆τB − ∆τA ). Inserindo as expressões para zA (t) e zB (t) e mantendo apenas termos lineares
em ∆τA , ∆τB e gh/c2 , encontramos que

∆τB = ∆τA (1 − gh/c2 ).

O intervalo de tempo em que os pulsos são recebidos é menor por um fator (1−gh/c2 ) que o intervalo
em que são emitidos. O princı́pio da equivalência nos diz que o mesmo efeito deve acontecer num
campo gravitacional uniforme! Como gh é a diferença entre o potencial gravitacional de A e B,
temos que a taxa de recebimento dos sinais é (1 + (ΦA − ΦB )/c2 ) da taxa de emissão.
A primeira confirmação acurada desse efeito foi feita por Pound, Rebka e Snider em 1960 e 1965
e experimentos cada vez mais precisos vêm sendo feitos até hoje. Para mais informações, ver o
excelente artigo de revisão “The Confrontation between General Relativity and Experiment”, de
C. Will.
Observações:

• As cristas de uma onda podem ser pensadas como uma série de sinais emitidos numa taxa
dada pela frequência da onda. Nosso resultado, em termos da frequência, implica que ωB =
(1 + (ΦA − ΦB )/c2 )ωA : a frequência da luz aumenta (se desvia para o azul) na medida que
ela penetra num campo gravitacional, e diminui (se desvia para o vermelho) na medida em
que a luz escala o campo gravitacional.

• O nosso coração é uma espécie de relógio. Como medido por quem está no chão, o coração de
quem está no quarto andar bate mais vezes do que o coração que está no chão por um fator
(1 − gh/c2 )! :)

• Tanto o efeito de dilatação temporal quanto o efeito de desvio para o vermelho são relevantes
para o Sistema de Posicionamento Global (GPS). As correções devidas aos dois efeitos são da
mesma ordem!
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1.2.2 Implicações do princı́pio da equivalência

Um ingrediente importante em Relatividade Restrita é a existência de referenciais inerciais que


preenchem todo o espaço-tempo: todo o espaço-tempo pode ser escrito em um único referencial,
um conjunto de observadores que se mantêm em repouso em relação à origem e cujos relógios
batem na mesma taxa que o relógio de quem está na origem. Vamos argumentar que, num campo
gravitacional não uniforme, é impossı́vel construir um referencial inercial global.
Se a Relatividade Restrita fosse válida na presença de um campo gravitacional, poderı́amos imaginar
(a first guess! ) que o referencial do centro da Terra seria um referencial inercial. Considere o
experimento anterior, representado no diagrama espaço-temporal abaixo. O topo e a base do
foguete têm linhas de mundo verticais, já que estão em repouso. A luz é representada como uma
linha que pode ser torta, para acomodar a possibilidade de que a gravitação possa agir na luz de
uma forma ainda desconhecida. No entanto, não importa como a luz seja afetada pela gravitação,
ela deve ser afetada da mesma forma nas duas cristas, já que estamos assumindo que o campo
gravitacional não muda com o tempo. Portanto, os dois caminhos precisam ser congruentes, e isso
implica que ∆τA = ∆τB . Mas vimos que esse não é o caso! O referencial associado ao centro da
Terra não é um referencial inercial.

Existência de referenciais (localmente) inerciais: Isso significa que não existem referenciais
inerciais? Vamos argumentar que eles existem, mas num sentido limitado. O princı́pio da equi-
valência implica que, dada a mesma velocidade inicial, todos os corpos seguem a mesma trajetória
num campo gravitacional, independentemente da sua massa ou estrutura interna. Com todas as ou-
tras forças, alguns objetos sentem aquela força, outros não, de forma que é possı́vel usar a trajetória
de uma partı́cula não afetada pela força para determinar um referencial inercial. No entanto, como
a gravitação atua em todos os objetos (inclusive, como vimos, a luz!), não existe uma classe de
objetos “livres de gravitação”, que possa ser usada para definir um referencial inercial. A influência
da gravitação é universal. No entanto, o princı́pio da equivalência de Einstein sugere que existe
sim um referencial em que partı́culas mantêm a mesma velocidade: um referencial em queda livre!
Nas palavras dele:
E ali então me ocorreu o pensamento mais feliz da minha vida, da seguinte forma. O campo gra-
vitacional tem apenas uma existência relativa... Pois para um observador caindo livremente do
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telhado de uma casa não existe gravitação, pelo menos nas sua vizinhança imediata. De fato, se
o observador deixa cair alguns corpos, estes permanecem em repouso ou se movem com velocidade
constante em relação a ele, independentemente da sua natureza fı́sica ou quı́mica particular (des-
prezando, é claro, a resistência do ar). O observador tem o direito de interpretar seu estado como
sendo ‘de repouso’.
Isso sugere que podemos definir um referencial (localmente) inercial como um referencial em queda
livre num campo gravitacional. Vamos analisar o experimento descrito acima nesse referencial!
Considere a figura abaixo, que descreve o experimento do ponto de vista de um observador em
queda livre que coincide com o Arthur no instante t = 0.

t
B A

P4

~0.41

P2
P3

0.5

P1 y

Já vimos como observadores acelerados são descritos em Relatividade Restrita: sua linha de mundo
é dada por t = a−1 sinh(aτ ), x = a−1 cosh(aτ ). Para pequenas acelerações, temos simplesmente
t = a−1 (aτ + O(a3 τ 3 )) ≈ τ e x = a−1 [1 + a2 τ 2 /2 + O(a4 τ 4 )] ≈ a−1 + aτ 2 /2, que é o comportamento
Newtoniano. Temos, portanto, para o Arthur, yA (t) = at2 /2 e para a Bianca yB (t) = −h + at2 /2.
Agora vamos supor que a Relatividade Restrita vale nesse referencial e responder: se o Arthur emite
raios de luz a intervalos ∆τA , qual é o intervalo ∆τB em que a Bianca os recebe? As coordenadas
do evento P1 são (0, 0). Usando o fato de que o intervalo espaço-temporal entre P1 e P3 é tipo luz
(∆s13 = 0), encontramos que t3 ≈ h − at23 /2, ou seja, t3 ≈ h − h2 a/2 + · · · . As coordenadas de P2
são (∆tA , a∆t2A /2). Considerando agora que ∆s24 = 0, temos que t4 − t2 = −(−h + at24 /2 − at22 /2).
Calculando ∆tB = t4 − t3 e mantendo apenas os termos lineares na aceleração e em ∆tA , obtemos
que ∆tB = (1 − ha)∆tA , o mesmo resultado que tı́nhamos antes! A situação pode ser descrita
dentro do escopo da Relatividade Restrita se consideramos um referencial em queda livre como
sendo um referencial inercial.
Inexistência de referenciais inerciais globais: Será então que é só isso: na presença de gra-
vitação devemos considerar referenciais em queda livre como referenciais inerciais? Não é tão
simples assim. Devido às inomogeneidades do campo gravitacional, se começarmos numa trajetória
em queda livre e construirmos uma estrutura rı́gida de réguas e relógios, em algum ponto objetos
em queda livre parecerão estar acelerando com respeito a esse referencial. Na figura abaixo, o refe-
rencial está em queda livre em B, mas em A e C ele não acompanha a trajetória de uma partı́cula
em queda livre. Além disso, como a aceleração da gravidade muda com a altura, o referencial não
será inercial se estendido a uma distância vertical muito grande. Tudo isso é devido às inomogenei-
dades do campo gravitacional. Se elas pudessem ser desprezadas, então um referencial em queda
livre poderia ser considerado como inercial.

Agora, qualquer campo gravitacional pode ser considerado como uniforme numa região suficiente-
mente pequena do espaço-tempo, então sempre podemos considerar referenciais localmente inerciais
(análogos ao RMC dos fluidos). A solução é guardar a noção de referenciais inerciais, mas abando-
nar a ideia de que eles podem ser estendidos univocamente pelo espaço-tempo. De fato, dependendo
do campo gravitacional, esses referenciais localmente inerciais serão “colados” de formas distintas.
Veremos que essa “colagem” está diretamente associada à geometria e a noções como curvatura do
espaço-tempo!
O princı́pio da equivalência nos leva à ideia de que a gravitação não é uma “força”, já que força
é algo que gera aceleração e corpos sujeitos apenas à influência de um campo gravitacional são
aproximadamente inerciais. De fato, veremos que, ao contrário das outras interações fundamentais,
que envolvem certos campos que se propagam no espaço-tempo, o campo dinâmico que descreverá
a gravitação é o tensor métrico que descreve a estrutura do próprio espaço-tempo. A gravitação é
bastante especial!
Para ler: Capı́tulo 6 do Hartle; 5.1 do Schutz; 7 do MTW.

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