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CORONELISMO
CORONELISMO
1920 e 1930
Introdução
Mestre em História pela Universidade de Brasília. Ex-bolsista CNPq.
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Maria Isaura Pereira de Queiroz aponta para o caso de São Paulo uma incipiente urbanização, expresso
pelo surgimento de vários municípios durante a virada do século XIX para o século XX. (QUEIROZ,
1976:200-212). Um fenômeno semelhante foi observado em nossas pesquisas pelo interior do Ceará na
década de 1920 (ARRUDA, 2013b:121-141).
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É importante afirmar que o sistema coronelista, iniciado durante a Primeira República, não suplantou
completamente as áreas de incidência do mandonismo local, que ainda sobreviviam nos lugares mais
remotos do Brasil, sobrevindo inclusive nos dias de hoje (2017), em algumas regiões isoladas.
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Situada entre o sertão e o sopé da serra que lhe é homônima, Baturité continha
uma disposição social tanto baseada nas grandes extensões de fazendas de gado, onde
também se plantava algodão (atividade exercida também por pequenos posseiros e
sitiantes), quanto pelas atividades policultoras da serra, dentre as quais ganhava
destaque o café, que batia recordes internos de exportação em fins do século XIX:
desde o século XIX, em virtude das riquezas trazidas pelo café – ganhava ares cada vez
mais urbanos, principalmente a partir da formação de um grupo de trabalhadores
urbanos, que se concentravam em um antigo distrito, que aos poucos tonava-se um
bairro: o Putiú. (ARRUDA, 2013b)
A incipiente proletarização desse distrito começara a se processar durante a seca
de 1877-1878, quando as obras da Estrada de Ferro de Baturité chegavam ao município
– custeadas pelo Governo Imperial como medida de socorro aos flagelados. Foi
utilizada a mão de obra barata de uma multidão de pessoas, que pela primeira vez, tinha
contato com um trabalho do tipo cronometrado e assalariado. A estação da estrada de
ferro era inaugurada no distrito do Putiú em 1882, possibilitando uma dinamização da
incipiente urbanização, que ganhava fôlego inclusive pelas crescentes atividades do
ramo comercial. A seca de 1888-1889, em se tratando de calamidades sociais, traria
efeitos ainda mais catastróficos que a antecessora – mais uma vez milhares de retirantes
assomavam-se em frentes de trabalho no prolongamento da ferrovia, que se estendia de
Baturité para o Sertão Central, inclusive chegando a deflagrar uma greve em 1892:
que logo contribuía para uma qualitativa urbanização de alguns espaços rurais, inclusive
dos distritos serranos, que até a década de 1920, passaram por um processo de
emancipação de Baturité.
A década de 1920 foi o momento em que os processos descritos acima
pareceram ter delineações mais nítidas, quando, em meio à vigência do sistema
coronelista, constituía-se uma cultura política baseada na reivindicação por direitos.
Como mostra uma nota publicada por um jornal local sobre uma reclamação dos
moradores do distrito-bairro do Putiú à administração do prefeito coronel Alfredo
Dutra:
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A Verdade, 11 maio 1919, p. 2
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Até 1921, os prefeitos municipais ainda eram sob indicação do executivo estadual.
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A Verdade, 15 fev. 1920, p. 3.
6
Idem.
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conjuntura, surgiria em 1923 uma terceira banda de música na cidade, ligada à Igreja
Católica local. Esta, fundada justamente pelo sapateiro Evaristo Lucena, significou
simbolicamente, em Baturité, uma atitude ingressante da Igreja local no mundo das
disputas políticas7, que ganharia vigor ainda maior durante a década de 1930 – reflexos
de uma aproximação do Estado Varguista com sua liturgia católica e ideais do
catolicismo social, traduzidos na criação do Ministério do Trabalho e na legislação
trabalhista8. Esta banda passaria a integrar o Círculo Operário Católico a partir de sua
fundação, em 1924, apresentando um momento de confluência entre os trabalhadores
urbanos que se formavam e os ideias do catolicismo social, crescentes na cidade,
servindo principalmente como um anteparo aos ideais comunistas, que começavam a
crescer, sobretudo a partir da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
No início da década de 1930, ampliava-se a malha urbana de Baturité,
principalmente pela necessidade de uma reforma urbana no Centro (distrito sede). De
acordo com as memórias de Miguel Edgy Távora Arruda:
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Isso devido à grande incidência de políticos republicanos ligados à doutrina positivista e à maçonaria
nas décadas posteriores à Proclamação da República e aos reveses sofridos com a separação Igreja-
Estado, a Igreja Católica manteve uma relativa distância do mundo político no início da Primeira
República. Tal postura era reafirmada amiúde nas notas do jornal católico de Baturité. A partir da década
de 1920, a atitude passiva da Igreja frente ao estado laico mudaria, principalmente após a Fundação do
Centro Dom Vital e a revista A Ordem, presidida por Jackson de Figueiredo e posteriormente por Alceu
Amoroso Lima. Baseando-se na doutrina do catolicismo social, a Igreja Católica ingressaria no mundo
político, considerando-se portadora de uma nova “modernidade” (SOUZA, 2002)
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Quanto a isso, o ministro do trabalho Lindolfo Collor enxergaria a Revolução de 30 como um novo
momento em que se veio “substituir o antigo conceito de luta de classes, pelo conceito novo orgânico e
construtor, humano e justo, de cooperação entre as classes” (COLLOR, 1981, apud BORGES, 1998:161).
Já um membro do Clube 3 de outubro escrevia a Vargas apontando apenas duas saídas para a crise social
advinda do capitalismo liberal, sedo enfático ao afirmar que “a questão social (...) pode ter duas soluções:
uma materialista, defluente das teorias de Karl Marx e Engels; outra, a cristã, deduzida da Encíclica
Rerum Novarum – de Leão (XIII)” (BUYS, 1981, apud Idem:161, parênteses nossos).
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ARRUDA, Miguel Edgy Távora. Relembranças: lampejos de minhas memórias. Cap. 6, fita 3, lado B,
p. 38.
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A LEC foi uma associação política que atuou nacionalmente, apoiando os partidos e programas de
governo que dessem suporte às reivindicações mínimas da Igreja, no que tange o ensino religioso, os
sindicatos confessionais e a lei do divórcio. Pelo Brasil, apoiou as principais chapas situacionistas nas
eleições para a assembleia constituinte. No caso do nordeste, ofereceu apoio ao Partido Social
Democrático em Pernambuco de Lima Cavalcanti, na Bahia, do interventor Juracy Magalhães, militar
identificado com os tenentes revolucionários de 30. No Ceará, no entanto, e sob os reclames de Juarez
Távora, a LEC passou a ter uma atuação independente, fazendo oposição ao PSD dos tenentes, gerando
uma atuação sui generis no Ceará.
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líderes integralistas do Ceará (o então padre Hélder Câmara e o tenente Jeová Mota) a
sede do COC de Baturité para servir de locus da fundação do núcleo a ser fundado na
cidade, o que foi negado na última hora pelo sapateiro Evaristo Lucena, em março de
1935:
Essa negativa fez com que (...) Helder Câmara fundasse o núcleo na praça
pública debaixo de umas árvores que havia lá na Praça da Matriz e nos
discursos inflamados que foram feitos na hora, eles chegaram a dizer que o
prédio tinha sido negado, mas eles estavam muito melhor situados porque
tinham a abóbada celeste a cobri-los e não o simples telhado que cobria a
sede do Círculo Operário.11
11
ARRUDA, Miguel Edgy Távora. Op. Cit. Cap. 7, fita 4, lado A, p. 44.
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destes desumannos (...) infames do crédulo verde, à maior parte dos que
dizem meus irmãos Catholicos, alguns eram chefes que não se fixaram,
verdadeiros hipochritas, assim continuando sutilmente a perseguir-me...12
12
LUCENA, Evaristo Xavier de. Carta manuscrita. Arquivo Particular. 1944.
13
ARRUDA, Miguel Edgy Távora. Op. Cit. Cap. 1, fita 1, lado A, p. 13 (parênteses nossos).
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apoio que seria dado a Plínio Salgado anos antes). No entanto, num gesto astuto, o
sapateiro aproveitou-se do ensejo para, desobedecendo as ordens do prefeito, tocar com
sua banda de música, atraindo uma multidão de populares. No comício, proferiram
críticas ao clero local e ao prefeito, sendo imediatamente reprimido pelas forças de
repressão pessoal do prefeito Ananias Arruda, na figura do sargento Sebastião.
Comparando o desenvolvimento urbano e reivindicativo de Baturité, percebemos
significativas diferenças entre o final do século XIX, período de utilização do trabalho
dos flagelados das secas na construção da ferrovia da Estrada de Ferro de Baturité e das
estradas de rodagem, para o período de atuação do Círculo Operário Católico, e
finalmente passando às agitações políticas pós 35, que envolviam membros das elites
decaídas da Revolução de 30, poucos comunistas e uma camada de trabalhadores
urbanos, liderados por Evaristo Lucena. O golpe do Estado Novo, deflagrado um mês
após o tumultuado comício, apenas completava a tarefa de silenciamento dos membros
das camadas populares mais altivos e confirmava a tendência autoritária que se seguia,
silenciando esse sapateiro e outros atores sociais definitivamente. Era o freio imposto à
gradual ampliação do aprendizado político de milhares de “Evaristos Lucenas” pelas
cidades interioranas do Brasil, onde se processavam um movimento incipiente de
urbanização suplantando as áreas e incidência do mandonismo local.
Conclusão
emblematicamente ao vermos as disputas políticas que se deram entre LEC e PSD, que
embora fossem ferrenhas e contundentes, não chegaram ao ponto da violência física ou
do uso de milícias particulares.
Evaristo Lucena não foi expulso à força do COC: o que houve foi um boicote
institucional da elite católica sobre ele dentro da associação operária católica. O mesmo
ocorreu frente às oposições políticas ao prefeito municipal na década de 1930. Os
conflitos não foram resolvidos envolvidos milícias de jagunços particulares, mas por
meios burocráticos e políticos, mesmo que envolvesse a repressão policial oficial. Eis a
diferença entre o mandonismo local e o sistema coronelista, que embora estivesse em
crise na região Sudeste (dando lugar ao clientelismo urbano ou ao populismo), ganhava
cada vez mais fôlego nos principais meios rurais que viviam um mínimo de urbanização
no Nordeste.
Outra conclusão a que se pode chegar é quanto à função silenciadora e tolhedora
do Estado Novo frente a um aprendizado político vivido por milhões de trabalhadores
brasileiros e que fora interrompido a partir de 1937. A burocracia do Estado Novo
incorporava-se ao sistema coronelista dos potentados locais já estabelecidos (ao menos
na região Nordeste) e solapava uma cultura política associativa vivida até então por
milhões de brasileiros.
Nesse sentido, Edson André, filho de Francisco Andrade (um dos ativistas do
COC junto a Evaristo Lucena) lamenta a falta de uma cultura associativa na cidade, que
outrora fora vivida e experimentada por milhões de trabalhadores. Da mesma forma,
Roberto Lucena, neto de Evaristo Lucena, lamenta o boicote sofrido por seu avô por
uma elite católica, que embora o respeitasse e o considerasse uma das figuras mais
significativas da cidade, havia um problema de “ser negro”.14
São questões que o cruzamento de diversos tipos de fontes (entre escritas e orais)
proporcionam e nos convidam à reflexão sobre a formação e vicissitudes de nossa
cidadania, junto um processo de modernização, que abria margem para participações
políticas populares, tolhidas pelas forças conservadoras das elites, expressadas ao longo
da história republicana brasileira.
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Em entrevistas realizadas a 26 jul 2011 (Roberto Lucena) e 01 nov 2012 (Edson André)
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Bibliografia
BORGES. Vavy Pacheco. Anos trinta e política: história e historiografia. In. FREITAS,
Marcos Cezar, (org). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto,
1998, pp.159-182.
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Os trilhos do Progresso: episódios das lutas
operárias da estrada de ferro de Baturité. In. Trajetos, Trabalho e migrações. V. 1, nº 2.
2002, pp. 83-101.
_____________. O Trem da Seca. Coleção Outras Histórias. Fortaleza: Museu do
Ceará. 2005.
LIMA, Pedro Airton de Queiroz. À sombra das ingazeiras: O café na serra de Baturité.
1850-1900. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado, 2000.
MONTENGRO, Abelardo F. História dos partidos políticos cearenses. Fortaleza:
Instituto Cearense de Ciência Política, 1965.
SALES, Francisco Levi Jucá. Pacoti. História e Memória. Fortaleza: Premius, 2014.
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SOUZA, Jessie Jane Viera de. Círculos operários: a igreja católica e o mundo do
trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2002.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Mandonismo local na vida política brasileira e
outros ensaios. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
Fontes
ARRUDA, Miguel Edgy Távora. Relembranças: lampejos de minhas memórias. Depoimentos orais em
11 fitas cassete. Fortaleza, 1991-1992.
LUCENA, Evaristo Xavier de. Carta manuscrita. Arquivo Particular de Roberto Lucena. 1944.
ANDRADE, Edson André; MENDES JÚNIOR, Mário . Entrevista realizada em 01 nov 2012, Baturité.