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Para Triz.

Que me fez voltar a ver o bom em mim.


Sem você, novas histórias nunca teriam acontecido.
Algumas histórias de amor não são romances épicos.
São contos. Mas isso não as deixa menos repletas de amor.
(Sex and the City)
“Bruno Campos e Ivan Nikolaev se enfrentam antes de treino;
Suas equipes afirmam que o clima de competição aumentou desde a
última temporada”
“Campos afirma ‘Não tenho absolutamente nada a dizer sobre
Nikolaev, não me dou ao trabalho’, e diz que está confiante para a
próxima corrida”
“Ivan Nikolaev perde a paciência durante coletiva e exclama:
‘Outras equipes e outros pilotos nunca me assustaram, não vejo por
que me assustaria com o maldito brasileiro’”
Bruno sabia que não seria um bom dia. Ele disse a si mesmo
na segunda-feira que não seria uma boa semana.
Era sábado, e seus pensamentos apenas se provaram
certeiramente corretos. E estava nervoso pelo domingo — há anos o
domingo havia deixado de ser o primeiro dia da semana para ele.
O caminho até a entrada dos autódromos sempre era
sufocante, mas naquele sábado em especial, as coisas pioraram. Um
grupo de quinze ou vinte jornalistas esportivos se aproximou,
jogando todo o seu espaço pessoal para o lixo.
Maldito seja, Ivanoskolixo. O Brasileiro abriu um sorriso quase
receptivo demais para a sua verdadeira vontade interna de pedir não
tão educadamente que todos se afastassem, porque tinha uma
classificatória para ganhar.
— Campos, Ivan o procurou para tirar satisfações depois da
batida entre seus carros?
Não havia sido uma batida. A culpa de Bruno diminuía
significativamente sempre que alguém chamava de contato
potencialmente perigoso. Porque se era apenas potencialmente, não
era completamente. Fazia sentido na sua cabeça.
Embora soubesse que provavelmente funcionava de forma
diferente na visão de Ivan. Apesar de estarem sempre competindo
pelos mesmos lugares, havia um cuidado para não alimentar os
boatos de que eles queriam matar um ao outro. Porque não queriam.
No máximo, Bruno aceitaria dar alguns chutes naquela bunda dura
para ver se o russo tomava algum juízo sempre que fazia uma curva
quase o jogando para fora da pista. Na maioria das vezes em que
um acidente quase acontecia, a culpa era dele — mesmo que
Campos já estivesse acostumado o bastante para saber quando
tinha que mandar o orgulho para o inferno e desacelerar para evitar
algo pior.
Na semana anterior, porém, o contato potencialmente
perigoso havia sido sua culpa.
— Não tive qualquer contato com ele após aquela corrida. —
Isso era mentira, ter que passar a noite inteira no hospital apenas por
precaução, e o russo e sua equipe já estavam longe quando o
liberaram.
Mas Ivan havia lhe mandado mensagens.
— E você pretende se vingar?
Respire, Bruno. Respire. O brasileiro tocou um ombro, para se
afastar. E continuar o seu caminho.
— A colisão aconteceu por minha culpa e fui penalizado por
ela, não vejo por que haveria qualquer necessidade de uma vingança
da minha parte. — Ele parou em frente à entrada do autódromo, mas
virou novamente na direção dos jornalistas. — Agora, alguém tem
alguma pergunta de verdade para me fazer? Porque eu tenho uma
classificatória e odiaria me atrasar.
Todos se calaram. Típico. Ele acenou levemente com a
cabeça antes de entrar no que significaria alguns segundos de paz.
Apenas alguns, porque logo se juntaria à sua equipe.
Em um dos corredores, ele viu o russo vindo na direção
oposta, acompanhado por seu parceiro de equipe. Ele já vestia parte
do traje de segurança e lhe lançou um olhar por um milésimo de
segundo quando o viu ali, mas logo o desviou para voltar a
conversar. Em russo. Aquele saco de batatas internacional poderia
perfeitamente estar o xingando e jamais saberia.
Bruno manteve o olhar no mais alto — irritantemente seis
centímetros mais alto —, e estreitou os olhos ainda mais quando
percebeu que Nikolaev realmente parecia disposto a não lhe
devolver o olhar.
Ele era… algo. Nunca haveria palavras que pudesse
descrever o que diabos Ivan lhe causava.
Babaca. Nenhum “olá, Bruno”? Ou “olá, maldito brasileiro”.
“Olá, cara que perdeu completamente o controle do próprio carro na
semana passada e me fez perder a corrida inteira.”
Nada. Ivan passou por ele como se nem mesmo existisse. E
Campos ainda tinha que se acostumar que aquilo deveria ser normal.
Afinal, eles se odiavam. Tinha a certeza absoluta de que se
odiavam até a morte, e deveria ser assim.
Ele estava impaciente, nervoso e avoado o suficiente para que
o dia passasse como uma flecha. Nada demais aconteceu nas
classificatórias — ele largaria em primeiro, com o russo logo em
seguida —, assim como nada demais aconteceu na reunião com sua
equipe. Nada nunca acontecia nas reuniões além de comentários
sobre o quanto iam bem nas paradas para trocas de pneus e
manutenção, o que tornava aqueles momentos a oportunidade
perfeita para que Bruno cochilasse ao invés de prestar atenção no
que já lhe era óbvio. Pedro, seu parceiro de equipe espanhol, já
havia desistido de lhe socar o ombro sempre que acontecia.
Porque, pelo resto dos dias de sábado, ele pertencia
unicamente e exclusivamente ao seu pai. O que era extremamente
mais exaustivo que qualquer treino, classificatória ou corrida. Não
que não precisasse lidar com o Campos mais velho no dia a dia.
Afinal, seu pai era o engenheiro chefe de sua equipe.
Para qualquer pessoa isso seria um bom privilégio. E seria
para Bruno se seu pai sequer o quisesse na equipe ou competindo
naquele meio.
Eles almoçaram em uma churrascaria — péssima escolha de
seu pai, já que o filho era vegetariano e teve que se contentar com
um almoço reduzido a folhas — e conversaram sobre estratégias
para a equipe. Trabalho, trabalho e mais trabalho. Bruno já tinha
aceitado que aquelas supostas tardes de lazer eram apenas mais
uma extensão do que ele já fazia durante todos os finais de semana.
— Você precisa parar de ter medo de acelerar quando o russo
tenta te ultrapassar. — Ricardo grunhiu, impaciente com o que quer
que estivesse passando em sua cabeça, enquanto cortava um bife
de forma mais ignorante do que era necessário. Bruno mal podia
esperar pelo momento em que o prato se partiria ao meio por causa
daquilo. — Ele te coloca em risco todos os finais de semana, e
tivemos um prejuízo fodido na corrida passada.
— A corrida passada foi minha culpa, eu já disse. — Bruno
suspirou, terminando de beber o resto do que havia sobrado do seu
suco de laranja. — A ultrapassagem seria minha e eu calculei mal,
mas ainda tivemos sorte que não aconteceu nada com ele. O
problema seria maior do nosso lado se ferrássemos um piloto que é
bem mais experiente que eu.
E do lado de Ivan, também.
— Foda-se o russo! E é bom que assuma a culpa diante das
câmeras, faz com que pareça… eu não sei, humilde? Mas quero que
tenha consciência de que o errado não é você.
Por Deus, Bruno não queria parecer humilde. Ele nem mesmo
sabia se poderia ser chamado dessa forma por aquela situação.
— O que eu quero dizer, filho, é que não deve ter medo de ser
julgado pela mídia. Aquele maldito piloto vive fazendo merda em
todos os cantos, e todos o amam.
— Estou bem da forma como estou, não ligo.
— É claro que não, sou eu que faço a sua imagem.
Campos mordeu a língua para não deixar escapar que, na
verdade, quem fazia a sua imagem era a sua assessoria, não o seu
engenheiro barra pai em meio período. Mas estava prestes a
completar vinte e sete anos — o quão cruel era a data cair
exatamente no domingo da corrida seguinte? — e brigar com o pai
que só lhe dirigia a palavra para falar sobre trabalho não estava em
sua lista imensa de prioridades.
— Como está a sua namorada? — Ricardo insistiu em um
assunto. — Ouvi dizer que terminaram.
Há três anos. Ricardo achava mesmo que fazia a imagem do
filho quando nem mesmo sabia um dos maiores tópicos sobre ele
depois do drama raivoso com o piloto russo?
— No Brasil. — Ele fingiu uma tosse, antes de se levantar. —
Vou pagar a conta e ir para a casa de Pedro, foi um dia cansativo.
— Achei que iríamos visitar os museus daqui. Você sempre
quis visitar Barcelona, é uma boa oportunidade ao invés de perder a
tarde na cama.
Ele quase fazia soar como se importasse.
— Eu realmente não deveria me cansar demais na véspera de
uma corrida, você sabe. Posso vir para Barcelona em outro
momento.
— Posso vir para Barcelona em outro momento. — Seu pai
repetiu, e Bruno revirou os olhos ao perceber o discurso que viria a
seguir. — Você fala como um garotinho rico.
— Por favor, não vamos discutir sobre o que eu faço com o
dinheiro que passei a ganhar com o meu trabalho.
— Só acho que deveria se preocupar em guardar um pouco
também. — Ricardo insistiu no assunto, mesmo na pequena fila para
o caixa. — Você sabe, estão sempre tentando acabar com a sua
carreira.
Porque um brasileiro como ele em uma posição como a sua
parecia incomodar. Seu pai costumava dizer que só estava ali porque
sua pele escura ainda era clara demais para se preocuparem com a
impressão que ele poderia causar.
Não que Bruno sequer fosse o primeiro naquela posição, mas
era um dos primeiros, poderia ser considerado o segundo. Um
caminho de merda havia sido construído para ele até aquele
momento, mas não era um paraíso — ainda. Precisava lidar com
falas ridículas direcionadas para terceiros que poderiam facilmente
ser aplicadas a ele caso também o enxergassem como o que
realmente era. Precisava lidar com os pedidos de silêncio quando se
colocava em posicionamento contra ou a favor de algo que ele queria
defender até a sua morte.
Restavam-lhe os protestos discretos. Camisetas usadas no
caminho para autódromos, legendas em publicações de redes
sociais, pequenas falas em coletivas de imprensa. Porque ele não
poderia se arriscar em seu maior local de visibilidade semanal.
Era ridículo. Fazia com que quisesse desistir nos momentos
em que se tornava algo pior.
Como se não bastassem os momentos em que ele mesmo
questionava a si sobre o que era.
— Não, não quero falar sobre isso. Não agora, não hoje. —
Ele o interrompeu antes que o pai pudesse continuar. — E eu guardo
meu dinheiro. Não me lembro de qualquer situação onde me viu
gastando com coisas das quais eu não precisava. Você sabe bem
como eu sou.
Era a verdade. Considerando que sua equipe era tida como a
melhor do momento — no mínimo a segunda, competindo
fervorosamente com a de Ivan —, e ainda levasse em conta os
trabalhos publicitários, tinha uma remuneração admirável. Mas sabia
que isso poderia acabar ou diminuir a qualquer momento. Por isso,
parte ia para sua mãe no Brasil, e parte para uma poupança dividida
com ela. Tinha certeza de que já tinham o suficiente para alimentar
até sua próxima geração, mas era a forma como ele podia se manter
tranquilo para qualquer ocasião inesperada.
— Foi só um comentário. — Ricardo se defendeu com um
grunhido, enquanto o filho falava com a atendente do restaurante em
um espanhol que ele sabia que poderia ser considerado vergonhoso,
mas era o básico que tinha aprendido com o passar dos anos. Talvez
devesse dedicar seu tempo apenas ao inglês que já era admirável.
E ao russo. Assim, poderia saber o que infernos Ivan dizia
quando passava por perto.
Tinha certeza que envolvia algo como “fedorento”, “uma dor
na bunda” ou “ridículo”.
Antes que seu pai pudesse dizer qualquer coisa, Bruno fez
questão de pegar o celular e chamar um carro para ele. Sim, para ele
apenas. Porque poderia perfeitamente voltar para onde ficaria
hospedado sozinho, andando. Seria até mesmo melhor. Afinal, era a
casa de seu parceiro de equipe.
Perdeu alguns minutos enviando algumas mensagens depois
que o pai se foi, antes de checar mais uma vez o endereço para sair
do lugar. Foi parado três ou quatro vezes, mas apenas por fãs.
Nesses casos, Bruno amava parar e conversar, poderia fazê-lo por
horas.
Ele chegou à casa de Pedro mais tarde do que pretendia, mas
um tanto melhor.
Diferentemente de Campos, Perez parecia gostar de gastar, e
sua casa demostrava bem isso. Bruno não estaria exagerando se
dissesse que a mansão do amigo era maior do que todos os
minúsculos apartamentos que morou no Brasil. Pedro era ótimo, um
amigo incrível, muito melhor do que Bruno poderia esperar para
alguém com quem estava competindo, de qualquer forma.
Algo que Bruno amava quase tanto quanto a comida de
Pedro: o banheiro da casa de Pedro. Não era tão grande quanto o
quarto, mas era espaçoso. Bastante. Era quase uma crueldade ter
que escolher entre uma banheira com hidromassagem e um chuveiro
que parecia valer mais que o seu carro.
Isso porque a suíte do maldito tinha uma sauna. Ridículo.
Campos também queria uma.
— Boa noite, Bruno! — Pedro gritou da cozinha, imitando o
maldito meme que Campos se arrependeria de ter mostrado para o
colega pelo resto de sua vida. Poderia ser cinco horas da manhã, e
Perez ainda o cumprimentaria com um “boa noite, Bruno!” mais
animado do que era realmente necessário.
— Vai se foder. — Campos se aproximou da bancada da
cozinha. — O que o meu chef favorito vai me dar para o jantar?
— Você realmente me vê como o seu cozinheiro pessoal, sí?
— O mais alto lhe estendeu uma colher para que experimentasse o
que quer que estivesse fazendo, algo que o brasileiro aceitou sem
nem mesmo olhar. O talento de Pedro na cozinha era indiscutível. —
Se chama Fideuá. É bem comum por aqui. Fiz um pouco sem o
camarão pra você, é claro.
— Minha mãe te amaria… — Foi tudo o que Bruno conseguiu
dizer, enquanto se inclinava para tentar pegar mais. Perez acertou a
sua testa com o pano que estava pendurado em seu ombro. — Argh,
talvez nem tanto assim.
— Sim, ela me amaria. Já conversamos em chamada de
vídeo, lembra-se?
Sim, ele lembrava. Não teria como esquecer as vezes em que
serviu como tradutor para que os dois pudessem conversar como se
não fosse claramente próximo de ambos.
— Você começou a preparar tudo bem cedo, teremos visitas?
— Ah, sim. Minha noiva, e alguns amigos. — Pedro desviou o
olhar para suas queridas panelas, e Bruno aproveitou para tirar uma
foto dele e colocar em seu Twitter. Adoravam quando postavam fotos
um do outro no tempo fora das corridas. — Algum problema? Você
pode dormir mais cedo. Sei que gosta de descansar antes das
corridas.
— Ah, não. Eu não perderia a chance de participar de um
jantar tão especial. — Ele se levantou, e suspirou longamente. —
Vou tomar banho, estou com a energia de Ricardo Campos sobre
mim.
— Ele é seu chefe, pirralho.
— E meu pai, tenho passe livre pra falar mal! — Bruno se
defendeu, já no meio do corredor. Era incrível como em apenas cinco
segundos havia se transformado em uma conversa de gritos. — Qual
é o meu quarto, porra? Tem dezenas só nesse corredor.
— São só cinco, payaso, e o seu é o último da direita!
Bruno riu baixo, e começou a abrir os botões da camisa que
usava enquanto a mão livre mexia pelas redes sociais.
Mas ele parou na metade do quarto ao ver alguém deitado em
sua cama.
Não um alguém qualquer. Ivan.
— Ah, oi. Como você entrou aqui? — Bruno sabia que
acabaria falando com Ivan em um momento ou outro, mas não
esperava de forma alguma que ele fosse aparecer ali, na casa de
Pedro.
— Invadi a casa do seu amigo, entrei pela janela. — Nikolaev
não fez questão de esconder a ironia em seu tom de voz enquanto
escrevia algo de forma entediada no celular. Era ainda mais
perceptível em seu sotaque russo. — Por Deus, Campos. Ele me
chamou e me deixou entrar. Pelos fundos, mas eu não sou tão
estrelinha a ponto de exigir entrar pela porta da frente.
— Você é um babaca.
— O Twitter está enlouquecendo com a foto que você postou
agora. — Ele ignorou a suposta ofensa, e ainda nem mesmo tinha
dirigido o olhar para Bruno. — Me diz, qual é o sentido que algumas
pessoas enxergam em dizer que você e Pedro tem um
relacionamento secreto? Ele vai se casar, puta merda.
— Devo enxergar isso como ciúmes ou é apenas um
comentário? — Bruno deixou o celular sob a mesinha do quarto, e
terminou de tirar a camisa antes de se abaixar para mexer na mala
que estava no chão.
— Dá um tempo, Campos. O Perez é um velho.
— Ele só é quatro anos mais velho que você.
— Está me chamando de velho? — Pela primeira vez, Ivan o
olhou. Bruno ainda estava pegando a roupa que usaria depois do
banho, embora seu olhar parecesse mais perdido do que realmente
olhando a mala. — Dia ruim?
— Semana ruim. — Campos admitiu. — Desculpa, eu gostaria
de te receber melhor. Você saiu do hotel pra me ver. Não é nada
pessoal, é…
— O velho encheu o seu saco outra vez?
— É um bom jeito de resumir. É.
— Mande ele para o inferno.
Bruno riu, e passou as mãos pelos cabelos ao respirar fundo.
— Vou tomar um banho, você vai ficar mais?
— Posso ficar pela noite, mas vou embora cedo. Reunião de
equipe antes da corrida, sabe como é. — Nikolaev se levantou e se
aproximou do brasileiro, segurando o seu rosto com as duas mãos.
— Você tá com uma cara de merda.
— Você é um porre, sabia?
— Eu sei, e você me ama. — O russo piscou um olho na sua
direção.
— Eu não poderia pensar em um castigo pior. — O brasileiro
empurrou o seu ombro.
Mas não antes de beijar o rosto dele.
Ele não fez questão de ser rápido no banho, e agradeceu por
Ivan lhe dar o espaço pessoal. Ele era ótimo nisso.
Na verdade, Ivan parecia ser ótimo em todos os aspectos
possíveis.
Estavam naquilo há alguns meses, desde a temporada
passada. Estava bem longe de ter sido algo sequer planejado,
apenas aconteceu.
Afinal, Bruno Campos e Ivan Nikolaev nunca se odiaram. Não
de verdade, mas a mídia parecia obcecada demais em ver algo
inexistente para enxergar que nunca tinham sequer se tocado em
público. Alguns olhares e palavras fora de contexto e pronto. O boato
estava circulando como nunca.
Não se odiavam, mas também não conversavam. A distância
entre as equipes por serem as maiores rivais não colaborava para
isso.
Mudou em uma das festas que eventualmente aconteciam,
organizadas pelos próprios pilotos. Pedro fez questão de arrastá-lo,
porque de acordo com o espanhol, precisava parar de ser um chato
antissocial e perder o medo de interagir com concorrentes.
Não era medo. Bruno apenas ainda achava estranho se ver
em meio de tantas pessoas que cresceram de forma tão diferente da
dele. O dinheiro que a maioria ganhava ali não era nada novo. O
caminho para eles havia sido fácil, no mínimo um tanto puxado, mas
nada como comparado ao de Campos. Ter o pai entre uma das
equipes não havia sido uma vantagem de forma alguma, ao contrário
do que todos achavam.
Naquela noite, ele e Ivan ficaram pela primeira vez — o que
estava claramente bem longe do conceito de Pedro de interação,
mas ninguém poderia reclamar se não contassem para ninguém.
Afinal, não passou de alguns amassos embriagados no banheiro,
algo que Bruno achava não daria em lugar algum. Já foi uma
surpresa completa descobrir que pelo menos uma pessoa entre
todos aqueles caras não era hétero.
Bruno via-se como bissexual há anos, mas era apenas mais
uma das coisas das quais ele não podia abrir a boca para falar. Sua
mãe sabia, seus amigos mais próximos sabiam, mas a Federação
descobrir seria um pesadelo.
Na semana seguinte, aconteceu outra vez. Ivan era uma
pessoa de poucas palavras, e eles mal conversavam entre si
virtualmente, mesmo tendo o número um do outro. Ainda assim,
bastou uma troca de olhares para que Bruno o encontrasse na
primeira sala vazia de um autódromo que viu.
Bruno imaginou que daí viesse as conversas sobre se
odiarem. Aparentemente, o famoso olhar de ódio que todos falavam
era o típico olhar de Ivan que queria dizer “me encontre em cinco
minutos, sem roupa”.
Quando os encontros rápidos em escritórios vazios deixou de
ser o suficiente, eles passaram a dar um jeito de acabarem se
hospedando nos mesmos hotéis e fingirem que era apenas uma
coincidência cruel para dois inimigos supostamente declarados. Isso
aumentou a conversa da mídia sobre eles, mas, sinceramente, não
importava. Suas assessorias gostaram, e eles definitivamente
também.
Foram nessas situações — invasões da madrugada ao quarto
um do outro — que começaram a realmente conversar. A rivalidade
era algo natural entre todos os pilotos, mas ao contrário do que todos
pareciam achar, era algo que existia apenas durante as corridas.
Fora delas, eram quase como uma grande família. Aos poucos, com
a ajuda de Pedro e a discreta participação de Ivan, que também era
alguns anos mais experiente, Bruno conseguiu se inserir também.
Fora no mínimo interessante ver Ivan Nikolaev ir do homem
quieto, profissional e sério para alguém com quem Campos gostava
de conversar sobre os assuntos mais idiotas possíveis.
Ele estava definitivamente apaixonado, e já sabia disso há
algumas semanas. Soube com certeza após o final da temporada do
ano anterior, quando finalmente ficou de férias, mas isso significou
ficar longe de Nikolaev por meses. É claro, conversando por
mensagens, mas ainda era algo completamente diferente.
O russo era mais ocupado que ele, mesmo durante a pausa
entre uma temporada de corridas e outra. Ivan precisava lidar com os
projetos dos quais era representante, uma empresa da família e
viagens para gravação de entrevistas e até comerciais.
Bruno mudava de canal toda vez que seu fodido ficante
aparecia em uma propaganda de carros, tênis e até mesmo
shampoo. Era um saco. Sua mãe o olhava atravessado sempre que
o fazia, mas ao menos poderia usar a tal rivalidade falsa para algo.
— Ele parece ser um bom garoto… — Dona Maria disse, uma
vez.
Bom saber que gosta do seu pretendente a genro, ele mordeu
a língua. Campos se limitou a dizer que Ivan tinha quase trinta e
cinco anos, e não poderia mais ser considerado um garoto, e que a
cara fechada dele era um saco por si só.
Não era bem uma mentira. Bruno vivia com a vontade de
arrancar aquela expressão de tédio eterna do rosto do russo. Talvez
fosse por isso que gostasse tanto de cada vez que ele apresentava
um mínimo sorriso quando estavam juntos.
Conviver com Ivan Nikolaev era um saco. Um saco por Bruno
não saber o que infernos ele sentia na presença do homem. Tinha
quase vinte e sete anos, e se sentia um maldito adolescente. Achou
que aquela fase tivesse passado quando se apaixonou pela primeira
vez no ensino médio, mas não. Era quase como se estivesse
revivendo tudo aquilo.
Meses depois, com o início da nova temporada e também a
volta de seus encontros secretos, isso apenas piorou.
Piorou ou melhorou? Era um questionamento que ele fazia a
si mesmo todos os dias. Se seu coração seria completamente
despedaçado por um cara como aquele, talvez devesse se sentir
honrado.
Bruno deixou a banheira antes que começasse a se sentir
deprimido demais — mais do que já estava. Não se preocupou em
arrumar demais os cabelos escuros e voltou para o quarto. Já podia
ouvir as vozes vindas da sala de estar, e imaginou que as visitas de
Pedro já estivessem por lá. Assim como ele, a noiva de Perez
também sabia do caso entre os dois pilotos, mas não poderia arriscar
deixar que mais pessoas descobrissem ou desconfiassem.
Ivan pareceu perceber para onde estava indo com os
pensamentos rapidamente.
Fato número um sobre Ivan Nikolaev: era quase impossível
esconder, omitir e mentir para o russo. O maldito era
excepcionalmente bom em ler, ou o que quer que fosse, o olhar e a
mente das pessoas. Com Bruno não era diferente.
— Você pode ir jantar com Pedro, eu comi antes de vir pra cá.
— Não seja ridículo, eu posso muito bem trazer a comida pra
cá.
— É falta de educação em Barcelona. Ou em toda a Espanha,
algo assim.
Fato número dois: ele era irritantemente inteligente quando
tratava-se de culturas e costumes que não lhe pertenciam. Talvez por
já ter viajado o mundo inteiro para correr mais vezes do que Bruno
poderia contar, mas não importava. Era apenas mais uma entre
várias características admiráveis do russo.
— Para a nossa sorte, não sou da Espanha e muito menos
ficarei aqui por mais do que três dias. — O brasileiro jogou a toalha
sobre uma cadeira, e deitou ao lado de Ivan, que pulava de canal em
canal na televisão. A cara entediada fez Bruno revirar os olhos.
Nikolaev suspirou de forma frustrada, antes de desligar a
televisão e virar para olhar o homem ao seu lado. Por um momento,
eles apenas se olharam, antes que o mais velho o chamasse com a
mão.
— Vem cá. — Sua voz soou calma, e Campos se aproximou
para deitar com a cabeça no seu ombro. Ivan parecia diferente, um
tanto mais solto e também aberto na sua presença. Via isso há
algum tempo, mas parecia cada vez mais evidente. Quer dizer,
estavam abraçados na cama, e não após o sexo. O russo costumava
ser mais contido que isso às pequenas demonstrações mais abertas
de afeto. — Quer assistir algo?
— Se você quiser, mas eu posso acabar dormindo no meio do
filme.
— Como se isso já não acontecesse normalmente.
— Você é um saco. — Bruno bocejou demoradamente,
arrumando-se sob o cobertor enquanto Ivan tornava a mexer no
celular. Estava prestes a se desculpar outra vez por não estar com a
mínima energia que normalmente tinha, mas mudou de ideia quando
percebeu a expressão irritada do outro. — Estão te procurando? A
sua assessoria.
— Tanto faz, vou dizer que estou no hotel e quero paz. Acho
que eles têm medo de que eu suma para passar a noite em uma
boate ou algo assim, como se não fosse só algo inventado pela
mídia.
O brasileiro deixou escapar um suspiro quase irritado. Porque
ainda não gostava da ideia do russo largar a rotina com a qual tinha
se acostumado apenas para vê-lo. Quando se hospedavam no
mesmo hotel era uma coisa, bastavam alguns passos de um
corredor ou andar até o outro. Mas ele tinha deixado o próprio hotel
para estar ali.
— Ivan.
— Não, não vem com esse “Ivan” como se estivesse prestes a
me dar uma bronca. Sei o que eu estou fazendo.
— Você não pode…
— Calado.
—… sair como se não tivesse nada a fazer e…
Bruno teria continuado, se não fosse pela boca de Ivan o
interrompendo. Maldito. O russo o calou com um beijo calmo, mas
intenso. Durou tão pouco que ele ainda se inclinou na sua direção
quando Ivan se afastou, procurando por mais.
— Não posso, mas já estou aqui. E sair agora não é uma
opção. Você pode parar de ser um saco agora. — Ele passou os
dedos longos entre o cabelo loiro, respirando fundo antes de desligar
o celular e jogá-lo como se não fosse nada na mesinha ao lado da
cama. — Além disso, eu não te vejo desde o acidente e, puta merda,
você quase me matou com aquilo.
O brasileiro suspirou, assentindo levemente.
— Eu sei, consegui não fazer tanta merda quando desviei de
você.
— Não, Bruno, eu não estou falando de mim. Não sei como
consegui continuar aquela corrida sabendo que você tinha ficado
machucado com a batida. Tive que gritar no ouvido da minha equipe
pelo rádio até que me dessem a certeza absoluta de que você estava
bem. — Aquilo definitivamente o pegou de surpresa. É claro que
sabia que ele tinha ficado preocupado. Afinal, seu celular estava
cheio de mensagens dele no outro dia. Mas não pensou que tivesse
sido daquela forma. — Acho até que a maioria possa desconfiar que
não nos odiamos tanto assim agora, mas não importa. Eu só queria
ver se você estava bem.
— Você me viu ontem e hoje no autódromo.
— De longe.
— Bom, até onde eu sei, estou bem vivo. Só uma dor chata no
pé, mas minha médica disse que não é nada demais.
— Bom saber.
— É.
Ivan ficou ali, olhando como se quisesse ter certeza de que
não começaria a sangrar a qualquer momento. Bruno estava sendo
sincero, não tinha se machucado demais e a noite no hospital foi
apenas uma precaução. Sua mãe também o fez voltar para o Brasil
no dia seguinte ao acidente para vê-lo de cima a baixo. Até o levou
para o médico da família apenas para ter certeza de que não estava
prestes a perder o filho.
Foi… engraçado. Se ignorasse que foi um saco no primeiro
momento.
— Para de me olhar assim. — Ele pediu, por fim.
— Assim como?
— Parece a minha mãe. Eu não vou morrer, foi só um susto.
Ivan revirou os olhos, e em seguida sorriu. Foi um sorriso
curto e discreto, assim como tudo o que ele fazia. Mas ainda era um
sorriso.
— Aprendi uma nova. Hiraeth.
Fato número três, e um dos que Bruno mais gostava: Nikolaev
tinha uma estranha e interessante fixação com palavras que existiam
em apenas um idioma e eram quase intraduzíveis. Em momentos
aleatórios, casualmente, ele poderia soltar uma palavra
completamente estranha para definir o que ele via ou sentia. Não
havia um motivo para isso, ou uma explicação. Ele apenas gostava.
O brasileiro descobriu isso em uma noite que estavam juntos em seu
quarto, no meio de uma ligação com sua mãe, e Ivan pareceu
subitamente interessado quando disse “cafuné”.
— O que essa significa?
— Galês, é sentir falta de um lar, que não é realmente um lar,
ou um lugar. Me lembra de você.
Um lar. Ivan havia acabado de insinuar que Bruno era algo
como um lar, e que estava com saudades dele.
— Bom, e eu tenho outra para você. — Respondeu, quando o
primeiro choque passou. Ivan assentiu, o incentivando a continuar. —
Saudade. É em português.
— Prossiga.
— Sentir falta de algo, ou alguém. Me lembra de você.
— Ainda vou precisar de um caderno para anotar tudo que é
em português. Isso é bonito. — Ele esticou o braço para alcançar o
celular, e Bruno sabia que ele estava anotando a palavra em suas
notas. — Ainda quero visitar, um dia. Espero que você seja meu
guia.
— Sabe que seria estranho se nos vissem no mesmo lugar.
— A menos que eu aparecesse acidentalmente no mesmo
lugar que você, um belo e inesperado acontecimento. Vai ser uma
desculpa para você me chamar de… cabra da peste outra vez.
Bruno riu. E percebeu que apenas aqueles poucos minutos
em que estava com o russo fizeram toda a péssima semana valer a
pena.
Ele se perguntou se existia alguma palavra para aquilo.
A semana seguinte passou voando. Talvez fosse pelo Grande
Prêmio da semana ser no Japão, e visitar o Japão sempre parecera
algo grande para Bruno. Não apenas para ele, mas também para a
mãe, que exigiu que ele levasse uma lembrança sequer do lugar
para ela. Fez questão de dizer ao pai que não poderia passar a tarde
com ele exclusivamente para dedicar um tempo a isso — e,
sinceramente, também a si mesmo, porque raras eram as vezes em
que se livrava dele.
Ivan passou a semana inteira praticamente indisponível.
Depois de ganhar a corrida da semana anterior — Bruno o xingou
carinhosamente por isso até que ele aparecesse novamente na casa
de Pedro para compensar —, sua agenda se tornou cheia
novamente. Tudo apontava que ele ganharia mais uma vez o
mundial, e o brasileiro estava apenas alguns pontos atrás dele.
Não era o suficiente para abalar o que quer que havia entre
eles, mas era para deixar Campos um tanto frustrado consigo
mesmo. Parecia ridículo ter feito a promessa interior de que ganharia
a corrida do dia do seu aniversário quando o russo parecia sempre
um passo a frente — ou quilômetro, o que quer que colocasse a
situação em termos automobilísticos.
Na sexta de treino, eles não se viram. Houve um momento em
que Ivan o puxou para uma sala vazia, mas não durou muito, porque
quase foram pegos.
— Não consegue esperar até mais tarde, idiota?
— Tenho uma festa essa noite. — Ivan suspirou, e Bruno
quase sentiu seus ombros caírem. — Bom, não é uma festa. É um
encontro com uns caras importantes que patrocinam a equipe.
Desculpa.
Bruno lhe respondeu que ele não lhe devia desculpas.
No sábado de classificatórias, então, mal tiveram tempo de trocar
um olhar. Era quase desanimador. Pelo menos conseguiu a posição
para largar em primeiro lugar. Não era uma vitória garantida no dia
seguinte, mas parecia um bom jeito de começar o seu aniversário.
O desafio da tarde seria encontrar um lugar com algo que sua
mãe pudesse gostar. Bruno andou demais, e nada. O fato de estar
chovendo não era de ajuda alguma, também, e tinha a certeza de
que não encontraria alguém na rua que falasse inglês para ajudá-lo
tão facilmente.
Um toque no ombro interrompeu a sua sessão mental de
xingamentos.
— Se perdeu?
Ivan estava debaixo do seu guarda-chuva, e usava óculos
escuros mesmo que o sol já parecesse inexistente naquele lugar. O
cabelo loiro estava penteado para trás — do jeito que ele odiava, o
que fez Bruno pensar que havia acabado de sair de algum dos
milhares de compromissos que ele odiava igualmente.
Precisou conter a si mesmo para não estender a mão e
bagunçar os fios dourados.
— Preciso comprar um presente pra minha mãe.
— Posso ajudar se quiser.
— E se nos virem?
— Acredite, Bruno, nós somos a última preocupação das
pessoas daqui. Adoro esse lugar. E é uma oportunidade para
ficarmos juntos. Também tenho um presente a comprar para alguém.
Por um segundo, ele se questiona se Ivan sabe ou não que
seu aniversário é no dia seguinte. Provavelmente não, pois nunca
chegaram a falar sobre o assunto para que dissesse. Não importava,
de qualquer maneira.
Ivan está tão lindo que é simplesmente impossível negar a
sua companhia.
E é deprimente que, mesmo que ele diga que não existe
problema em estarem juntos ali, não possa beijá-lo.
Se limitou a assentir, e segui-lo pelas ruas abarrotadas de
gente. Aparentemente, ele conhecia bem o lugar, pois o levou nas
melhores lojas da categoria "presente para mães". Olharam roupas,
acessórios e utensílios de casa. Por fim, acabou escolhendo um
porta-jóias com ilustrações coloridas e delicadas, um pequeno
cenário japonês. Para a sua surpresa, Ivan também comprou algo
para ela.
— É, acho que ela vai gostar. — Comentou, enquanto Ivan
fazia o pagamento. Não se surpreendeu nem um pouco ao descobrir
que o desgraçado também falava japonês. — Você é inacreditável.
— Isso é um elogio ou uma ofensa? — O loiro perguntou,
antes de dizer algumas palavras indecifráveis para a atendente, que
começou a embrulhar o presente.
— Não sei. Você só é.
— Entendo. — Ele respondeu, no mesmo tom que indicava
que ele não entendia coisa nenhuma. — Estou até comprando
presentes para a sua mãe, quando eu vou conhecê-la?
A pergunta o pegou desprevenido. Talvez Ivan não tivesse
perguntado com maiores intenções, mas ainda era o cara de quem
gostava insinuando que gostaria de conhecer a sua mãe. Apresentar
Pedro para ela era uma coisa, e Ivan… outra.
— Ah, bom. Preciso ter uma conversa com ela antes sobre o
meu inimigo declarado não ser um inimigo tanto assim, mas
podemos organizar uma chamada de vídeo. Ou apresento vocês
quando chegar a corrida no Brasil. — Primeiro ele dizia que queria
visitar o país na sua companhia, e agora isso.
Bruno odiava se iludir, mas lá estava ele, imaginando que o
russo poderia, talvez, querer algo de verdade. Não necessariamente
público, mas de verdade.
— Me parece bom. — Ele disse, apenas, como se o brasileiro
ao seu lado não estivesse a um passo de colapsar.
— Você disse que tinha que comprar algo para alguém, não
gostou de nada no caminho?
— Não sei, você gostou?
— Como eu vou decidir um presente por você, imbecil?
Ivan parou na calçada, bem na sua frente. Havia um sorriso
divertido em seu rosto.
Era uma situação incomum o bastante para que ele
entendesse o que Ivan queria dizer.
— Ah, o presente é para mim.
— Sim, imbecil. Eu imagino que não vá querer nada das lojas
de mãe, mas sou igualmente horrível em presentes. Quero que você
escolha.
— Como sabe o meu aniversário?
— Você é mais pesquisado no Google do que imagina,
aparentemente.
— Você pesquisou? Por que não me perguntou?
Ivan deu de ombros.
— O plano era fazer alguma surpresa, mas não consegui
pensar em nada. Nem mesmo Pedro conseguiu me dar uma ideia.
O pensamento de que Ivan chegou a pesquisar o seu
aniversário na Internet e ainda procurou por Pedro por ideias para
um presente era… algo.
Algo. Algo. Algo. O russo não parecia se cansar de deixá-lo
sem palavras. Era um ótimo momento para que ele viesse com mais
uma de suas palavras intraduzíveis para momentos indescritíveis.
Por enquanto, era apenas algo.
— Não precisa me dar presente algum. Podemos jantar juntos
no meu quarto do hotel, e está de bom tamanho.
— Você acha mesmo que eu deixaria o seu aniversário passar
sem um presente?
— Sei lá, você me parabeniza quando eu venço um Grande
Prêmio com boquetes.
Ivan revirou os olhos, e abriu novamente o guarda-chuva entre
eles. Ainda estavam na calçada, e não caía a chuva sobre eles, mas
Bruno percebeu que era uma ótima oportunidade de mascarar seus
rostos quando o russo se aproximava demais.
Perfeito. Se vazasse algo sobre eles, pelo menos não veriam
a incrível e grandiosa cara de panaca no seu rosto.
— Bom, é diferente. Aprecio aniversários, e… aprecio você.
Eu o conheço de verdade há quase um ano, e gostaria de
demonstrar de alguma forma o quanto você é bom para mim.
— Ainda acho que um boquete está de bom tamanho.
— Bruno. — Em qualquer outra situação, ele amaria ver o
próprio nome saindo da boca do russo. Seu foco quase se perdeu de
forma definitiva ao pensar nisso. Lembranças dos momentos em que
estavam sozinhos e Ivan o fazia baixinho. A única coisa que manteve
sua mente no lugar foi a expressão dele enquanto esperava por uma
resposta.
— Argh, o “Bruno” impaciente. — O brasileiro suspirou, e
desviou o olhar. — Não sei o que espera que eu diga.
— Não espero nada. Estou tentando dizer que quando eu digo
que gosto de você, não estou falando apenas do que nós temos. É
legal, sim. Eu adoro. Mas me interessei por você.
— Foi bem do nada, aliás. Achei que você me odiasse de
verdade até descobrir que era só a sua cara de merda integral. —
Bruno o interrompeu antes mesmo de perceber que tinha o feito, e
comprimiu os lábios assim que viu o olhar impaciente do russo. —
Estou nervoso. Continue.
Para a sua surpresa, antes de continuar, Ivan o beijou. Foi
rápido e carinhoso.
— Não foi do nada, Campos. Você é novato entre a turma,
mas todos sabem quem você é.
— Um cara extremamente bonito e gostoso?
— Isso apenas eu acho, espero. — Ele apertou levemente o
seu nariz, o que lhe rendeu um leve tapa na mão. — Não, todos
sabem que você também lutou pra estar aqui. Eu sei que você pensa
que todos acham que você chegou onde está por causa do seu pai,
mas… acredite, todo mundo sabe que ele é uma dor na bunda. E é
legal como você ainda fala sobre o quanto queria que todos no seu
país tivessem a mesma oportunidade de fazer parte disso.
— Fofo. Sempre quis que alguém falasse mal do meu pai
durante uma declaração.
Era impossível simplesmente calar a boca e ouvir. Estava
nervoso demais para isso. Era bom que Ivan se acostumasse.
— O ponto é, sempre te observei de longe. Você sempre foi
tão gentil com todos, e a maioria chega se sentindo no direito de se
achar maior que outros que ficaram atrás. Você não. É bom demais,
na pista e fora dela.
— Olha quem fala.
— Para alguém que começou no ano passado, você tem uma
imagem muito boa.
— Metade da minha fama veio por sua causa, obrigado por
supostamente me odiar.
— Cala a boca. — Mais uma vez, ele o beijou rapidamente.
Talvez tivesse realmente percebido que era a melhor tática para
fazê-lo se calar. — Não importa. Não importa porque independente
de onde tenha vindo a atenção que você recebe, você a merece, e
ainda merece mais.
— Estou tentando entender por que você está tendo esse tipo
de conversa comigo no meio de uma rua lotada no Japão, achando
que esse guarda-chuva realmente impediria algum jornalista de nos
reconhecer?
— Porque as chances de você fugir do assunto quando não
tem pra onde correr são menores.
— Isso faz… muito sentido. Obrigado. Mas ainda não entendo
o motivo para que você esteja falando tudo isso.
— É claro que não, você é uma lesma.
— Seboso. — Ele rebateu, em português. O russo fez uma
expressão de confusão diante da palavra desconhecida, mas apenas
balançou a cabeça e suspirou. Bruno limpou a garganta, e se
aproximou para ficar mais perto dele.
— O que eu quero dizer é que você é bem mais do que um
ficante qualquer pra mim, não que eu ficasse com muitos antes, e eu
gosto de você muito mais do que gosto do que temos, se é que isso
faz algum sentido. — Ele murmurou algo, e Bruno não precisava
perguntar para saber que era algum palavrão russo. Era a primeira
vez que via Ivan parecer nervoso, o que parecia realmente adorável.
— E eu gostaria que fosse mais do que os nossos encontros no
hotel. Bom, não que possamos revelar, de qualquer modo… Mas
entre nós.
Houve um momento de silêncio. Bruno continuou o
encarando, esperando que ele dissesse qualquer coisa que
indicasse que era apenas uma brincadeira e que tinha caído
direitinho.
Não aconteceu. Na verdade, o silêncio apenas pareceu deixar
o russo mais nervoso. Ainda era estranho perceber que era o motivo
para que ele estivesse daquele jeito. Ivan Nikolaev, sempre tão
intocável, nervoso por achar que estava prestes a levar um fora de
alguém.
— É claro que vou entender completamente se você não
quiser. Ter um relacionamento em segredo é realmente um porre,
mas…
— Mas eu quero. Só não achei que você quisesse.
— Ah, eu quero. Como pode ver, da mesma forma que você
não é bom em deixar os outros falarem, eu não sou bom com
palavras.
— Eu até te xingaria por isso, mas ainda estou surpreso com
a situação.
Ivan sorriu — sorriu de verdade, era provavelmente o sorriso
mais largo que Bruno já tinha visto no rosto do russo —, e o puxou
para mais um beijo. Um demorado dessa vez, exatamente como os
que tinham no quarto quando estavam sozinhos. Ivan deslizou os
dedos entre os cachos do seu cabelo, os puxando levemente
enquanto o beijo era intensificado.
Ainda era… algo. Em todas as vezes que ele esteve com
alguém, nunca se sentira dessa forma.
Nem mesmo colocar seu carro na velocidade máxima lhe
causava um sentimento tão grande.
Tão…
Algo.
O loiro o olhou ao interromper o beijo, e passou
carinhosamente os dedos pelo seu rosto, antes de beijar a sua testa.
— Não pense que eu esqueci do seu presente de aniversário.
Me aguarde.
Ivan era… algo. E ele nunca decepcionava.
Já faziam três anos desde o momento em que o russo e
Bruno decidiram que seriam algo mais.
Há dois, o brasileiro ganhou o primeiro mundial.
Há um, Ivan Nikolaev se aposentou — apesar de que ele
odiava falar dessa forma, porque Bruno sempre aproveitava para
fazer alguma piada sobre seus humildes trinta e sete anos. Para ele,
o termo "tempo para focar em outras atividades sem previsão de
volta" se encaixava melhor. As outras atividades, no caso, era
trabalhar na equipe de Bruno, porque ele não tinha a menor
vergonha na cara e era bom com a mecânica dos carros. Seu pai
adorava o mais velho — era cômico se considerassem que Ivan o
odiava silenciosamente — então não foi algo difícil de conseguir.
Bruno continuava fazendo piadas com a sua idade
constantemente. Principalmente quando ele reclamava de dor nas
costas depois de arrumar o seu motor. Na frente de todos. A sessão
de xingamentos em russo que acompanhava em seguida também
era feita na frente do resto da equipe. Ele sabia que qualquer um
acabaria perdendo a paciência uma hora ou outra, mas Nikolaev não
parecia pessoalmente ligar para aquilo, então ele continuava o
enchendo até que finalmente pudessem ficar sozinhos para que ele o
calasse com um beijo. Dois. Três. Por vezes, mais que beijos.
Era bom. Não havia nada melhor do que um relacionamento
que era apenas seu em todos os sentidos possíveis. É claro, havia
sua mãe, que passou a falar mais com o genro do que com o próprio
filho quando ligava em momentos em que estavam juntos, mais um
bico de tradutor que Campos pessoalmente adorava fazer, porque
era incrível ver o quanto eles se davam bem. Ivan até mesmo fez
questão de aprender o básico de português para falar melhor com
ela. Havia Pedro e sua noiva. Havia parte da família de Ivan, o que
não foi tão bom por não serem tão agradáveis assim.
Mas era deles. Não havia ninguém os vigiando — com o
tempo, a mídia pareceu cansar de procurar por vestígios de ódio
entre os dois pilotos —, ninguém dizendo se pareciam estar felizes
como casal ou se um término era uma possibilidade. Pareciam
apenas colegas de equipe.
Que continuavam invadindo o quarto um do outro durante a
madrugada.
Daquela vez, porém, era o primeiro Grande Prêmio do Brasil
em que estariam na mesma equipe.
Assim como seria a primeira vez que Ivan dormiria na sua
casa. É claro que ele já tinha encontrado sua mãe anteriormente,
mas apenas dentro do autódromo brasileiro. Foram quase quarenta
minutos de Dona Maria apertando seu rosto, o abraçando e dizendo
o quanto ele era lindo, e Ivan se comunicando em um português
horrível — finalmente poderia dizer que ele era ruim em algo! Bruno
passou o resto do dia sentindo a mandíbula doer de tanto sorrir.
De vez em quando, Bruno pensava que havia sim uma
palavra para definir Ivan e, definir o que sentia e definir o que havia
entre eles. Amor. Mas ainda isso parecia pouco perto do quanto seu
peito ficava perto de explodir toda vez que o loiro o beijava, o tocava
e dizia coisas bonitas que ele nunca achou que o russo com a cara
fechada diria.
Daquela vez eles dormiriam juntos em uma de suas casas.
Poderia não parecer algo grande, mas era.
Ivan chegou de seu vôo de madrugada, o que facilitou o
processo de irem para seu apartamento sem serem notados. Era
uma quarta, e ele havia arranjado uma desculpa qualquer para fazer
a viagem antes do resto da equipe.
Ele dormiu até as dez da manhã, o que também era incomum
para a sua rotina.
Eles não deixaram o quarto até as cinco da tarde.
— Você está me tornando um idiota preguiçoso, assim como
você. — O russo murmurou, enquanto esperava pelo café que
estava sendo preparado por Bruno.
— Você gosta.
— Descobriu agora o meu gosto por idiotas?
Bruno lhe mostrou o dedo do meio ao colocar a xícara na sua
frente.
— Tenho uma surpresa para você, aliás. — Ivan bebeu um
pouco, e se levantou. — Vai se trocar, eu cuido da louça.
— Nós vamos sair?
— Não vamos se você não calar a boca e se arrumar. — O
russo deu um peteleco na sua testa. — Vaza daqui.
Bruno pensou em rebater, mas a curiosidade o venceu e ele
se afastou para vestir algo. Não havia nenhuma possibilidade em sua
cabeça de algo que Ivan poderia ter arrumado em um país que ele
nunca visitou e conheceu, e enquanto se preparava, ele notou que o
russo parecia mais animado que o habitual, então era o suficiente
para deixá-lo ansioso.
Ivan saiu de sua casa coberto demais para o calor de São
Paulo, mas era como ele fazia para não ser tão notado ao saírem
juntos.
— E como nós vamos? — Bruno o encarou, enquanto ele
mexia tediosamente no celular.
— Chamei um carro.
— Eu tenho um carro. Você poderia ter me dito o endereço.
— Cacete, você não sabe lidar com surpresas, não é? — O
loiro levantou os óculos escuros para ajeitá-lo sobre os cabelos loiros
que já precisavam de um corte, revirando os olhos. — Se você ficar
calado até chegarmos lá, eu pago o jantar no restaurante que você
quiser.
Não que Bruno não tivesse o próprio dinheiro, mas jantar fora
em seu país com Ivan parecia uma programação incrível. Ele não
precisou de muito para realmente se calar.
Mesmo que, enquanto isso, tenha se pendurado no pescoço
do loiro para beijar e suspirar contra a sua pele. O suficiente para
que Ivan nem mesmo chegasse a pensar que estavam no meio da
rua.
E não durou muito. Assim que entraram no carro, Bruno
disparou a falar e tentar adivinhar para onde estavam indo. Sobrou
para o pobre motorista, porque nem Ivan saberia explicar o lugar se
não fosse pelo endereço enviado para o seu celular pela mãe de seu
namorado. Dona Maria tinha uma participação naquilo, mas Campos
ainda não precisava saber.
Ivan quase riu da sua expressão confusa e quase
decepcionada quando o carro parou em frente à uma grande
construção abandonada.
Bom, nunca tinha dito que seria um presente completo e
imediato.
— Que porra é essa, Nikolaev?
— Quanta agressividade…
— O que você tem pra me mostrar aqui? É, tipo… um prédio
caindo aos pedaços com mato em volta. Aliás, nem de mato dá pra
chamar isso. É grama.
— Por enquanto. — O russo ergueu um dedo no ar, e tirou
alguns papéis do casaco. Um a um, colocou nas mãos de Bruno. —
Contratos, algumas autorizações, listas de materiais de construção,
funcionários… Ah, certo. A autorização para uma obra.
O brasileiro analisou os papéis por um tempo, antes de tornar
a olhar para o namorado.
— Não entendi.
— Você é o dono desse prédio. Não apenas do prédio, mas
do terreno ao redor.
Os olhos dele se arregalaram, o que foi o suficiente para fazer
Ivan sorrir ainda mais.
— Eu… ainda não entendo.
Não era uma surpresa. A ideia do que estava acontecendo
naquele momento era algo que estava distante na mente de Bruno.
Ivan imaginou que ele sequer fosse desconfiar.
— Vem, eu vou te mostrar. — Ele estendeu a mão, esperando
que o brasileiro a pegasse. — Essa pode ser a entrada principal.
Teremos algumas exposições sobre a sua trajetória, painéis com
fotografias, naquelas salas podem ficar os escritórios para atender os
novatos. No andar de cima, podemos fazer algumas salas para
passar a parte teórica.
— Ivan…
— A área de trás é o suficiente para fazer algumas pistas.
Kart, principalmente. Mas é assim que todos começam.
— Isso é…
— Gosto de pensar que vai se chamar Instituto Campos. É. —
O russo o olhou. — Você disse que queria que houvessem mais
oportunidades aqui. Esse lugar pode ser o início disso. Eu consegui
todas as autorizações para que ensine aqui os cursos obrigatórios.
Alguns professores também, e a maioria tem um português
admirável. Eu posso ajudar na medida do possível nos cursos,
também. De acordo com a empresa de obras, deve ficar pronto em
cinco ou seis meses.
Bruno não costumava ficar em silêncio. Nunca. Por isso o
silêncio sempre parecia algo tão estranho para o russo. Era incomum
demais.
O brasileiro olhou ao redor, boquiaberto.
— Nem… fodendo.
Ivan sorriu ainda mais, se é que era possível.
— Quanto dinheiro você deu nisso? Quanto dinheiro você
ainda vai dar? Cacete, Ivan. Isso vai custar pra caralho, e se levar
em conta que você é um fresco e só vai contratar os melhores pra
isso…
— Não me importo. É o seu sonho, e eu sei que um dia você
faria isso. Estou adiantando o processo porque também é algo que
eu gostaria de fazer.
Bruno o encarou ainda mais, antes de pular no seu pescoço
para um abraço.
Talvez devesse parar de procurar por qualquer palavra que
definisse todo o universo de coisas que Ivan lhe causava, porque
estava começando a duvidar que isso sequer poderia existir.
Isso parecia bom. Nem tudo que é bom demais precisa ser
limitado a uma única palavra.
Especialmente algo que não pertencia a mais ninguém além
deles.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, como na dedicatória, agradeço Triz, que
acompanhou todos os meus surtos não apenas sobre esse livro, mas
sobre tudo o que tem acontecido na minha vida nos últimos... dois
meses. Essa história realmente não teria acontecido sem o seu
apoio.
Em segundo, agradeço o grupo "Crio e Falculista", que me xingaram
todas as vezes que eu quis desistir do "conto que não é um conto".
Laís, que fez essa capa incrível. Vocês podem conferir mais do
trabalho dela em seu Instagram, @malleficarumdsg.
Para Clara, que também me xinga quando penso em desistir, mas
carinhosamente.
Para Englantine, que tem todos os créditos por esse título. Sem ela,
eu provavelmente teria escolhido o pior possível.
Saturno e Archer, que só me xingaram mesmo. Amo vocês.
Para todo mundo que me apoiou no Twitter.
Onde me encontrar
Twitter(devilscheck)
Instagram(chromawrite)

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