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Sumário

Notas da Autora
Dedicatória

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Agradecimentos
Notas da Autora

Olá! Se você está aqui, provavelmente já leu todas as obras do


Coraverso. Caso contrário, eu realmente recomendo que as leia
antes de prosseguir. Essa é a única obra — até o momento — que
pede pela leitura das anteriores, mas ainda sem uma ordem definida.
Amigo Secreto é um conto especial de Natal sem muita história
a se contar além de algumas coisas que aconteceram no Coraverso
após o fim de cada obra anterior. Um agradecimento para todes que
me acompanharam durante o ano incrível de 2021, e que
continuarão aqui para 2022 (espero).
E, talvez, uma abertura para novas histórias...
Boa leitura :)
"Eu sei contra o que vocês têm lutado. Todos nós estamos
lutando contra alguma coisa, então é melhor você organizar sua
cabeça, porque, até você ter culhões para me olhar nos olhos e
me dizer que isso é tudo o que você merece, eu não vou deixá-
lo falhar. Mesmo que para isso eu tenha que ir até sua casa toda
noite até você terminar o trabalho. Eu vejo quem você é,
entendeu? Eu posso ver você. E você não está falhando.”
— Escritores da Liberdade
...
...
Um.

Ivan acordou no horário de sempre. Quatro e meia da manhã no


Brasil — o que seria cinco e meia da manhã nos Estados Unidos,
então ele não estava acordando tão cedo assim, certo? Seu relógio
biológico estava com dificuldades para se acostumar daquela vez,
mesmo estando há anos na rotina de viajar entre os mais variados
fusos-horários possíveis.
Exceto que, daquela vez, ele não estava viajando. Era a primeira
ocasião em muito tempo que não estava preso entre viagens,
mesmo após o fim da temporada de corridas. Bruno foi muito claro
ao dizer que, naquele ano, eles iriam sentar a bunda em um avião
sem passagem de volta agendada e passar o fim de ano no Brasil.
Nada de viagens de trabalho para resolver questões da equipe, para
entrevistas ou ensaios fotográficos para revistas. Não, eles estavam
de férias — e foda-se quem quiser mudar isso, nas palavras do
próprio Campos.
Ivan não discutiu. Na verdade, ele estava mais do que feliz em
seguir as ordens de seu marido.
Veja bem, eles tinham… novas questões a se considerar
daquela vez.
Bruno não acordaria no horário certo por si só nem se os dois
tivessem uma corrida para comparecer, então Ivan apenas beijou
suavemente o seu ombro antes de se pôr de pé. Bruno cheirava a
hidratante de morango e shampoo de limão, o que parecia ser a pior
combinação possível, mas fazia Ivan querer enfiar o rosto no
pescoço dele e respirá-lo como se fosse algo necessário para
continuar vivendo.
Se Campos não precisasse descansar, Ivan talvez o fizesse.
O russo vestiu suas roupas de academia antes de sair do quarto
com o celular em mãos. Havia algumas mensagens de seus
familiares, porque aquela data parecia ser a única em que se
dignavam a fingir que lembravam de sua existência com algum
mínimo respeito. Ivan as ignorou, mas algumas respondeu com um
emoji de joinha. Era o suficiente. Ele respondeu outras, de colegas
de trabalho e amigos, mas deixou a maioria para mais tarde.
Ele preparou o café com o máximo de cuidado para não fazer
muito barulho antes de sair para correr. Bruno podia implicar com a
sua rotina, mas nem as férias eram o suficiente para fazê-lo parar
com os exercícios.
Ivan conseguiu correr, tomar um banho, arrumar a bagunça de
brinquedos e jogos que havia ficado na sala da noite anterior e
comer antes que Bruno finalmente acordasse. O russo se inclinou na
cama para beijar o ombro dele quando Bruno enfiou o rosto no
travesseiro.
— Bom dia, moye solntse.
— Por que eu tenho a impressão de que você já viveu o dia
inteiro enquanto eu ainda dormia? — ele resmungou, e Ivan quase
teve dificuldade para entender as palavras abafadas contra o
travesseiro. Já usavam o português para se comunicar entre si há
tempos, mas não era como se Ivan sempre entendesse ou falasse
com perfeição.
— Fuso-horário — Ivan explicou, tocando as costas nuas do
marido com a ponta dos dedos. Bruno deixou um suspiro sonolento
escapar, o que foi o suficiente para fazê-lo sorrir. — Não consigo
dormir mais depois que acordo, você sabe.
— Tudo bem, só acabou com todos os meus planos de te trazer
café na cama. — Bruno ergueu o tronco, apenas para que pudesse
se inclinar e capturar sua boca em um beijo suave. — Feliz
aniversário. E véspera de Natal.
Ivan achava que Bruno ainda precisaria de alguns minutos
depois de acordar para voltar ao próprio corpo e se lembrar que,
muito além de véspera de Natal, também era o dia do seu
aniversário. Era engraçado que não fosse o caso, porque só
confirmava que ele realmente planejava preparar o café se ele não
tivesse acordado antes.
Ele o beijou mais uma vez, e outra, e outra, até que Bruno
estivesse acomodado sobre o seu corpo, descendo a boca pelo seu
pescoço.
Ali, sim, começava o seu dia.
— Sabe, mesmo que esteja perto da terceira idade, você
continua muito bonito e gostoso — Bruno comentou, levantando o
rosto para beijá-lo outra vez. Suas mãos, por outro lado, estavam
descendo cada vez mais. — Não precisa se preocupar.
— Eu não estou na terceira idade — devolveu, prendendo o
lábio inferior do marido entre os dentes. O suspiro que arrancou de
Bruno foi o suficiente para deixar uma risada em sua garganta. Uma
risada que teria saído se não fosse pelo toque da mão do brasileiro.
Deus, que mãos. — E muito menos preocupado.
— Ouvi dizer que o primeiro estágio é a negação.
Ivan revirou os olhos. Se pela piada sobre a sua idade ou
porque Bruno estava descendo a boca pelo seu peito, ele não sabia.
Os dois, talvez. Não era como se conseguisse pensar com muita
clareza sempre que o piloto o tocava. Anos de relacionamento muito
provavelmente não eram capazes de mudar a forma como reagia a
ele.
Meia hora depois, Ivan sentia como se toda a energia que tinha
em seu corpo antes tivesse se transformado em pó. Ao contrário de
Bruno, que se levantou com um sorriso largo e relaxado no rosto
como se tivesse acabado de despertar.
Ivan estava um pouco hipnotizado por esse sorriso, como
sempre. Não era por acaso que chamava o marido de moye solntse.
Meu sol. Bruno era o sol que iluminava qualquer ambiente em que
estivesse com um sorriso.
Quando Ivan seria capaz de imaginar que, um dia, encontraria
um homem com quem sentisse que poderia ser feliz? E, além disso,
se casar com ele. Ter uma vida.
Ter uma família.
Deveria saber que Bruno iria mudar completamente a sua vida
no instante em que se beijaram pela primeira vez. Mesmo que o beijo
tivesse sido horrível. Estavam embriagados o suficiente para mal se
lembrarem de algo, além da sensação de se perder entre algo do
qual Ivan não poderia fugir.
E, sinceramente, nem queria. Se havia alguém no mundo que
Ivan admirava e queria acompanhar de perto para sempre, esse
alguém era Bruno Campos. O piloto com a língua esperta e o melhor
humor que alguém poderia ter, apesar de obstáculos e problemas.
Campeão mundial, ele era a porra do seu maior orgulho.
— Você tá me olhando com uma cara estranha. — Bruno o fitou
do outro lado do quarto, separando uma roupa do closet. — É a crise
da terceira idade te atingindo?
— Vou acabar com você se fizer mais uma piada sobre o meu
aniversário.
— Por favor.
Ivan soltou uma risada abafada, balançando a cabeça.
— Nada. Eu amo você.
— Fofo. — Bruno balançou a cabeça, jogando uma toalha na
sua direção. — Definitivamente é a crise da terceira idade.
Ivan engoliu um xingamento quando seu marido se aproximou
outra vez, mas com uma caixa de presente em mãos. Ele ergueu
uma sobrancelha.
— É um presente?
— É seu aniversário, não?
— Achei que tivesse sido…
— Porra, nos já transamos a semana inteira. Eu não seria
babaca de fazer com que isso fosse o seu presente de aniversário.
Aliás, estou um pouco ofendido que pense que eu realmente sou tão
sem graça — Bruno resmungou, esperando que o russo se sentasse
melhor na cama para começar a abrir o presente. — E eu não queria
te dar esse junto com os de Natal. São duas coisas diferentes.
— E eu mal costumava receber um presente sequer nessa
época do ano — Ivan murmurou, distraidamente. Mesmo olhando
para a caixa muito bem embrulhada em suas mãos, ele pôde sentir a
dose extra de atenção sobre si. Raramente falava qualquer coisa
sobre sua família ou sobre a Rússia, então Bruno talvez pensasse
estar pisando em um lugar delicado. Não, não estava. Ivan
provavelmente nunca esteve tão feliz em sua vida.
— Por quê?
— Comemoramos o Natal em janeiro, e os aniversários…
Quando se nasce em uma família como a que eu nasci, aniversários
também não carregam o mesmo valor. Se é que posso dizer assim
— Ivan parou, olhando para Bruno. — Comemoramos em agosto,
porque é o dia de São Ivan, e meu nome vem dele. Meu pai é
ortodoxo, então era como comemorar o aniversário de outra pessoa
e agradecer por, ocasionalmente, eu estar ali. Acho que eu só
descobri o que era comemorar um aniversário quando saí do país
para participar da academia de pilotos. Não que eu tivesse muitos
amigos pra comemorar comigo mal sabendo dizer uma frase
completa em inglês.
Bruno fez uma careta, cruzando as pernas ao seu lado. Ele
estava começando a se perguntar se não era ele quem estava
ganhando um presente, tendo a oportunidade de conhecer mais de
onde Ivan tinha vindo. As poucas informações que tinha não eram
um incômodo, porque o russo estava ao seu lado e sempre parecera
entregar tanto de si que o passado não era nem um pouco
importante.
Mas, de qualquer modo, Ivan falar sobre isso ainda parecia um
gesto do caralho. Ele estava um pouco sem reação.
Maldita crise da terceira idade.
— Parece sem graça.
Ivan riu, assentindo.
— Pelo menos tinha comida. E eu comemorava o meu
aniversário junto de todos os Ivans da igreja.
— Já providenciei a parte da comida e não tenho nenhum outro
Ivan, então sou o melhor. Abra o seu presente, São Ivan.
— Sem piadas religiosas com o meu nome — Ivan avisou,
revirando os olhos. Ele terminou de abrir a caixa e precisou de um
momento para processar o que estava ali.
— Uma vez você comentou que é fã dos musicais da Broadway,
principalmente Aladdin. O que, na minha opinião, é a coisa menos
gay sobre você — Campos murmurou, vendo o marido pegar os
ingressos da caixa. — Mas as sessões especiais sempre aconteciam
em época de corrida, então… eu meio que consegui esses ingressos
pra janeiro antecipadamente. E vai ser na semana anterior ao início
da temporada. Passatempo em família. Gostou?
— Se você não tivesse acabado de gozar, eu te chuparia outra
vez em agradecimento. — Ivan analisou os ingressos, não
conseguindo conter um sorriso largo. — Isso é incrível. Obrigado.
— Tudo bem, isso compensa a cota hétero que é gostar do
Aladdin da Broadway. — Bruno se inclinou, beijando-o rapidamente
antes de levantar. — Vem, amor.
Ivan agradeceu pelo presente. Não com palavras, mas da forma
que ele mais gostava. Com o toque. Sob o chuveiro quente, ele
beijou a boca, o rosto, os ombros e as costas de seu marido. Lavou
os cachos escuros que Bruno já parecia ter esquecido de cortar há
tempos. Talvez fosse o seu aniversário, mas ele passaria facilmente
aquele dia, e o resto de sua vida, agradando o piloto brasileiro.
Seu rosto já estava dolorido de tanto sorrir quando finalmente
saíram do quarto. Apenas para encontrar uma bagunça completa na
cozinha.
— Meu Deus, passou um furacão por aqui? — Bruno se
aproximou da bancada coberta de leite derramado, pedaços de fruta
e pó de café. Na ponta dela, Camilla tinha o rosto coberto de
chocolate. Como aquele caos tinha acontecido, Ivan não fazia a
menor ideia. Mas era a cena mais adorável que já tinha visto. —
Milla, amor, o que é isso?
Camilla Campos, a menina de oito anos que chamavam de filha.
Milla só estava com eles há pouco mais de sete meses, mas fora
quase como se já se conhecessem desde sempre. Quando
decidiram que aumentariam a família adotando uma criança,
acharam que seria algo um tanto… complicado. Especialmente se
considerassem a rotina de viagens e trabalho. Mas Milla pareceu
amar cada segundo ao lado deles desde o primeiro momento e vice-
versa. Ivan não sabia que era possível amar e se apegar tanto a
alguém até conhecer aquela criança. Com o apoio de tantas pessoas
ao seu redor, como a mãe de Bruno e até do piloto mais jovem da
equipe, Alexandre, que viera também de um lar adotivo do meio
automobilístico, as coisas pareceram muito mais fáceis.
Sua filha. Com Bruno, seu marido.
Certo, talvez Ivan estivesse em uma crise da terceira idade.
— Você disse que ia acordar pra fazer café de aniversário pro
papai, mas não levantou — a garotinha disse, despreocupada. — Aí
eu resolvi fazer sozinha.
Bruno a pegou no colo para limpar o rosto dela com um pano
úmido, ignorando a risada de Ivan. Campos prendeu o cabelo
cacheado de Camilla e tirou o avental três vezes maior que ela,
murmurando algo sobre ela ter acordado cedo demais. Se Milla se
importou, não pareceu demonstrar, porque estava ocupada demais
tentando imitar a careta de Bruno.
Não que fosse tão difícil, porque eles eram absurdamente
parecidos. Da pele negra até o formato do rosto, os cachos do
cabelo e expressões, Ivan quase poderia jurar que eram a mesma
pessoa.
— E o que você fez, krasivaya? — O russo se inclinou sobre a
bancada, pegando um morango cortado. Ou melhor, destruído,
porque Milla parecia ter usado qualquer coisa que não fosse uma
faca para preparar o café da manhã. Boa garota.
— Fecha os olhos! — Milla ordenou, e Ivan assentiu ao
obedecer. Ele ouviu os passinhos apressados da menina pela
cozinha enquanto arrumava algo na sua frente. — Não abre!
— Não vou abrir — Ivan riu, sentindo os braços de Bruno o
abraçarem por trás. — Boa sorte em superar o presente do seu pai.
— Qual deles? — Bruno sussurrou, recebendo uma cotovelada
leve em resposta. — Qual é, eu sei que você gostou mais do
primeiro.
— Calado.
— Pode abrir! — Milla exclamou, animada.
Quando Ivan abriu os olhos, o café da manhã estava em uma
bandeja — frutas despedaçadas com chocolate e café com leite — e
um desenho pintado com giz de cera. Ele chutou discretamente um
dos pés de Bruno aos risos quando percebeu que, no desenho,
estava fantasiado de Papai Noel.
Para completar, a menina jogou uma quantidade generosa de
papel cortado em forma de corações na sua direção.
Porque, é claro, era o pacote de festa completo.
— Surpresa!
Camilla soltou um gritinho quando o pai a abraçou, levantando-a
no colo.
— Obrigado, krasivaya. — Ivan beijou o rosto da menina,
abraçando-a um pouco mais forte. Milla fez o mesmo, colocando os
bracinhos em volta de seu pescoço. Ele não se importou em ter o
rosto sujo do pouco de chocolate que tinha ficado na bochecha da
garota.
— Olha atrás do desenho!
Ivan a deixou sobre a bancada da cozinha para pegar o papel,
não contendo um sorriso ainda maior ao ver um “feliz aniversário”
escrito em russo.
Ou, pelo menos, a versão rabiscada do Google Tradutor, e um
pouco errada, disso. Mas ainda era a melhor coisa que ele poderia
receber de sua família.
Porque aquela, sim, era a sua família.
— Obrigado — ele tornou a dizer, apertando levemente a ponta
do nariz de Camilla. — Eu te amo, pequena.
— Meu presente foi melhor? — Camilla balançou os pés, e Ivan
demorou alguns segundos para entender que ela estava
perguntando entre o seu presente e o de Bruno.
— Eu amei os dois igualmente. — Apesar disso, ele direcionou
uma piscadela na direção da menina, que conteve uma risadinha.
— Eu vi isso. — Bruno fingiu bufar, roubando o café da sua
bandeja. — E quem vai arrumar toda essa bagunça?
— Eu sou o aniversariante — Ivan se apressou em dizer,
balançando a cabeça.
— E eu tenho mãos pequenas! — Camilla levantou as
mãozinhas no ar. Aquela costumava ser a sua desculpa para
absolutamente tudo, eles já tinham percebido.
Costumava funcionar. E não seria diferente daquela vez.
— Mas as suas mãos pequenas fizeram uma bagunça gigante,
furacãozinho. — Bruno ergueu uma sobrancelha, não se
surpreendendo quando Milla o imitou quase perfeitamente. — Tudo
bem, eu arrumo. Mas só porque é o aniversário do seu pai.
— Ele também arrumaria se não fosse — Ivan sussurrou,
estendendo um morango na direção da criança, que riu baixinho. —
Adivinha quem vai passar o dia aqui?
— A vovó?
— A vovó vem para o almoço de amanhã, amor. — Bruno
balançou a cabeça. — Outra pessoa.
— O vovô?
Bruno pareceu endurecer com a pergunta. Porque, sim, tinham
convidado o pai dele para comparecer ao jantar.
Ele sequer tinha respondido à mensagem. Não que fosse uma
surpresa, porque o pai de Bruno sempre fora difícil de lidar e isso
havia se intensificado com os anos — lê-se, com a aproximação e
relacionamento com Ivan. Se viam todos os finais de semana,
porque ele trabalhava para uma das equipes do Grid, mas só. Mal
conversavam. Vez ou outra, Camilla ainda o encurralava para dizer
um “oi”. Era difícil que ela entendesse toda a tensão entre eles, e
mais difícil ainda para Bruno encontrar uma forma de tentar explicar.
Era algo que o incomodava profundamente, Ivan sabia. Talvez
até machucasse. Não por ele, porque Bruno estava acostumado com
a distância do que deveria ser sua figura paterna desde a
adolescência.
Ivan perdera a conta de quantas vezes precisou segurar Bruno
para impedi-lo de ir atrás do pai para dizer que ele devia algum tipo
de atenção para a garota, no mínimo. No mínimo.
Ivan estava acostumado com uma distância familiar desde
criança. Bruno, não. E Camilla não precisava ser, então eles
desviavam ao máximo do tópico vovô.
— Não. Ele está ocupado com o trabalho — Ivan respondeu,
economizando o trabalho de Campos de pensar em uma desculpa.
Não era uma mentira, mas também não era toda a verdade.
— Ah, eu fiz um desenho pra ele também. — Camilla pegou um
garfo para dividir as frutas com chocolate com o pai. Ivan observou
Bruno pelo canto do olho, sabendo que ele provavelmente precisava
do seu pequeno tempo de silêncio. — Quem vem?
Antes que Ivan pudesse responder, a porta da entrada foi
aberta.
— Cheguei, família — Alex anunciou, jogando a mochila no
chão. — Apesar de ser o grande campeão da temporada, eu ainda
tenho tempo pra vocês.
Camilla pulou da bancada para correr até o piloto mais novo,
que a pegou no colo para um abraço apertado. Alex beijou a sua
testa com um estalo propositalmente alto que arrancou uma risada
da menina.
— Sabe, você anda insuportável — Bruno resmungou,
terminando de limpar a sujeira deixada por Camilla. — Achei que
ficaria livre de você até o fim do ano, pelo menos.
— Insuportável por te deixar em segundo lugar? — Alex
provocou, ainda com Milla entre os braços. — Relaxa, Bruno. Tá na
hora de dar o lugar pra quem conhece a modernidade da coisa.
— Onde você passou a semana mesmo? — Ivan ergueu a
sobrancelha na direção dele, antes que Bruno começasse um
discurso sobre respeito aos mais experientes da equipe.
— França. E tô morrendo de fome.
— França outra vez?
— Gosto da França — Alex rebateu, em um tom defensivo até
demais. — Nicole morava lá antes de me adotar, eu sempre quis
conhecer.
— Nicole morou no mundo inteiro antes de te adotar, Alexandre
— Bruno devolveu, fazendo o mais novo dar de ombros. A família de
Alexandre era uma velha conhecida de Ivan, principalmente. Seu pai
adotivo, Ângelo, trabalhou por anos como o fisioterapeuta de sua
antiga equipe. Nicole, sua esposa, era… dona de um currículo
extenso, dos trabalhos como modelo de grandes nomes do mundo
da moda até assistente social. Era a melhor família que alguém
como Alexandre, apaixonado por carros desde que nascera, poderia
encontrar.
Nem Ivan nem Bruno sabiam muito sobre a vida de Alexandre
Duarte antes da adoção, mas não importava. Não era algo que
pudesse mudar o quanto ele era incrível nas pistas e fora dela. O
Garoto de Ouro da temporada impressionava em todos os sentidos.
— Enfim, vamos ao que é importante.
— Meu presente de Natal? — Camilla chutou, balançando os
pés animadamente.
— Só mais tarde, gatinha. — Alexandre a soltou antes de se
aproximar de Ivan para um abraço. Ivan notou como ele parecia
estar deixando os fios castanhos crescerem, e já precisavam ser
arrumados para não cair sobre seus olhos. Ele parecia cada dia mais
maduro, e poderia culpar a última temporada por isso. Havia sido um
período intenso para toda a equipe. — Feliz aniversário, velho.
— Me chame assim mais uma vez e eu contrato aquele
espanhol pegar seu lugar na equipe.
— Rá! Você não pode, ele já fechou com a equipe do
Beauchene — Alex devolveu.
O que ele não deveria ter feito, porque engoliu em seco logo em
seguida. Beauchene, o mesmo francês insuportável que estava
enchendo a paciência deles há tempos.
— Como você sabe?
— Sabe, fofocas correm por aí. Achei que vocês soubessem.
— Não esse tipo de fofoca.
— Certo, tenho minhas fontes. Mas não comentei nada porque
não vou me aproveitar pra, sei lá, beneficiar a minha equipe. — Ele
deu de ombros, indo até a geladeira para pegar o leite e os
suplementos de vitamina que tomava diariamente e, por isso, sempre
tinha um pote a mais na casa de Bruno e Ivan. — Vocês sabem
como funciona.
Tudo bem, Ivan sabia.
Não que deixasse de ser estranho que Alex soubesse de algo
sobre a equipe rival, especialmente sobre seus novos contratos.
Alexandre se aproximou da máquina de café, chutando
levemente a perna de Bruno para conseguir algum espaço. A relação
entre os dois pilotos não poderia ser mais engraçada, especialmente
se considerasse o quanto Campos havia se apegado ao mais novo
nos últimos tempos — mesmo que fingisse que ainda não o
suportava.
Quer dizer, Alex tinha a chave da casa deles e roupas no quarto
de hóspedes. Não dava nem pra realmente fingir que ele não era
uma parte da família.
— Vocês combinaram algum horário específico com o pessoal?
— Alex perguntou, mastigando uma de suas vitaminas.
Irritantemente saudável, até mesmo para Ivan.
— Eles devem chegar pela noite. — Bruno deixou o pano sujo
na bancada na pia, suspirando. — Você chamou aquele seu amigo?
— O Vinícius? Chamei, e ele deve trazer a namorada também —
Alexandre assentiu e, no instante seguinte, fez uma careta. —
Realmente vou ser o único solteiro?
— Eu também não namoro! — Camilla levantou a mão.
— É isso aí, gatinha. — O piloto fez um high-five com a menina.
— Perda de tempo, se mantenha assim pelos próximos… dez anos.
Ou mais, pela saúde do coração do seu pai. Ele já é velho.
Ivan e Bruno se entreolharam, antes do brasileiro suspirar.
Foi o suficiente para fazer Alexandre erguer uma sobrancelha.
— Ah, o suspiro do discurso do Bruno. Esse é raro — Alex
brincou, apesar de ter ficado subitamente tenso. Ainda com Camilla
entre os braços, ele sentou em uma das cadeiras da bancada. — O
que tá pegando? Porque se vocês resolveram mesmo me substituir
na equipe, eu agradeceria se me dissessem logo. Aí eu posso
procurar uma nova. Apesar de que todas já devem ter os contratos
fechados, e…
— Ninguém vai te substituir, Alex — Ivan o cortou, porque ele
pareceu realmente achar que aquilo poderia estar acontecendo.
Por Deus, Alex era o melhor piloto das últimas duas temporadas
e praticamente uma parte da família. Para que algo o tirasse de suas
mãos, o garoto precisava cometer um crime de estado.
— Ah, bom. — Ele pareceu relaxar, e virou o rosto para Bruno.
— O que é então? Não gosto quando o Bruno me olha assim.
— Não é nada demais, Alexandre. Só queremos saber se você
tá bem. — Quando Alex fez outra careta, ainda mais confusa, Bruno
continuou: — Você anda um pouco distraído e tem viajado muito
sozinho. E nem aqueles encontros casuais que você costumava ter
acontecem mais. Some a semana inteira, e… É, sei lá. Sabemos
como é a pressão e como ela pode nos atrapalhar, e você está no
auge da sua carreira, se é que ela ainda não vai crescer ainda mais.
De qualquer modo, só queremos que saiba que estamos aqui para
qualquer coisa, como amigos ou colegas. Temos a psicóloga da
equipe e, se você não quiser misturar com a sua vida profissional,
seus pais também podem ajudar.
Alexandre continuou os fitando por um tempo e, por um
segundo, Ivan quase achou que ele tivesse algo a dizer. Algo que foi
rapidamente engolido mesmo assim.
— Eu tô bem. De verdade, acho que eu nunca estive melhor. —
Ele balançou a cabeça, passando os dedos pelos fios castanhos
para arrumar os cachos para trás. Ivan agradeceu mentalmente por
ele estar falando do assunto seriamente também. — Gosto de viajar
sozinho e colocar as ideias no lugar, me ajuda a focar. Mas não me
sinto pressionado. Nunca me senti, na verdade. A equipe é ótima
com isso. Me desculpa se eu já passei a impressão de que não
queria vocês por perto ou…
— Não é sobre nós — Ivan interrompeu. — Foi uma
possibilidade que conversamos, mas ficamos felizes que esteja tudo
bem.
— A preocupação de vocês significa muito pra mim. — Alex
sorriu levemente, apoiando o queixo sobre a cabeça de Camilla. —
Mas vou ficar por perto até o Ano-Novo, antes de viajar para visitar
Nicole. Ela vai começar com o drama de que esqueci da minha mãe
se eu não for.
— Tudo bem, acho que consigo fingir que gosto da sua
presença até a virada de ano. — Bruno fingiu um sorriso falso que
tirou uma risada do mais jovem e se aproximando de Ivan para
abraçá-lo pelas costas novamente. — E aí, aniversariante. Qual é a
programação do dia?
— Não pensei em nada, na verdade. Achei que só teríamos o
jantar de Natal — Ivan disse, inclinando o rosto para beijar a lateral
de Bruno. — Mas podemos sair.
— Cinema! — Milla exclamou, animada. Sair para locais
públicos sempre era uma decisão a ser pensada com cuidado desde
que a menina pisou pela primeira vez naquela casa.
Normalmente, era abordado por fãs do automobilismo — ou
odiadores, mas costumava deixar essa possibilidade de lado — não
o incomodava. Bom, consequências de sua escolha de carreira. Mas
é diferente quando se tem uma criança ao lado. Ivan se perguntava
se todos os pais se sentiam assim, constantemente vigilantes. Ou se
ele só estava sendo um pouco coruja demais. De qualquer modo, a
ideia de expor Camilla, ou estar com ela durante qualquer ataque,
físico ou verbal, ainda não estava entre as opções de programa em
família.
Ainda assim, prender demais a menina estava longe de ser sua
intenção.
— É véspera de feriado, não acho que o cinema vá estar tão
movimentado — Bruno murmurou, sentindo a tensão do marido. Ele
beijou o seu ombro, passando a ponta dos dedos pelo seu cabelo
loiro. — Não acho uma ideia ruim.
— Vamos almoçar fora e ir para o cinema depois — assentiu,
por fim.
— Eu pago o almoço. — Alex levantou a mão. — Leve como um
presente de aniversário. Vem gatinha, você tá me devendo de
mostrar seus brinquedos novos.
Eles observaram o piloto se afastar com Camilla, bagunçando
carinhosamente o cabelo da menina. Ela riu, agarrando a perna dele.
— Já pensou na possibilidade dele estar namorando? — Bruno
murmurou assim que Alexandre virou no corredor.
— Nah, ele não esconderia algo assim. — Ivan se levantou,
deixando a xícara vazia sobre a pia. — Alex sempre foi aberto sobre
os relacionamentos dele, mesmo que só com a gente. Acho que ele
só tá naquele período de foco que todo piloto tem quando as coisas
estão dando certo demais. O medo de pôr tudo a perder.
Bruno fez uma careta.
— Eu já tive essa fase?
— No nosso segundo ano de namoro, você tinha acabado de
ser o campeão mundial.
O brasileiro pareceu pensar um pouco antes de assentir.
— É, eu definitivamente tive essa fase.
— Você ficou um saco — Ivan provocou. — Tem sorte que eu te
amo o suficiente pra não ter te dado um pé na bunda.
— Que grande honra a minha — devolveu, revirando os olhos.
Mas não afastou Ivan quando ele se aproximou novamente para
aspirar suavemente o seu pescoço. Droga, Bruno sequer tentou. Ele
notou como Ivan parecia mais alegre e disposto que o normal
naquele dia. Foi impossível não notar também durante o almoço e a
sessão de cinema com Camilla e Alexandre. Quando voltaram, foram
se arrumar, pois o jantar aconteceria na casa de Mariana e Daniel,
porque todos haviam resolvido que passar o aniversário de Ivan e a
virada de Natal juntos seria uma programação incrível.
Ivan havia dito que o Natal não funcionava da mesma forma e
aniversários não significavam a mesma coisa na Rússia, mas Bruno
sabia que o marido enxergava as datas de forma diferente. Eram
como um lembrete de que ele não estava sozinho nas datas
consideradas as mais importantes do ano para qualquer pessoa. Um
lembrete de que havia conquistado algo muito, muito bom e precioso.
E Ivan queria aproveitar mais e mais disso.
Quando mais novo, Ivan costumava acreditar que o Natal
sempre trazia consigo a melhor fase da vida das pessoas.
Felicidade, leveza, amor. Segurança.
Era simplesmente estonteante perceber que tudo o que ele
pensava era o que já tinha diariamente. Era o que teria para o resto
de sua vida.
***
Dois.

— Aí, você lembra do Isac? Aquele garoto que joga com a


gente a semana inteira. A irmã dele reapareceu do nada, acho que
morava no Canadá com a mãe, e ele tá todo tenso porque a relação
deles é bem merda desde que ele resolveu ficar no Brasil quando ela
se mudou. Aí…
— Você acha que a Mari tá brava comigo? — Fernando o
interrompeu. Não por mal, longe disso. Fofocar com Paulo, por mais
vergonhoso que fosse de admitir, era a melhor parte do seu dia
sempre que o buscava depois dos treinos.
Mas ele simplesmente não conseguia focar. De modo algum.
— O quê?! — Paulo franziu o cenho, observando o namorado
tamborilar nervosamente os dedos ao redor do volante do carro.
Fernando estava inquieto desde o dia anterior, mas talvez fosse algo
sobre a sua clínica. Desde que ele finalmente tirou do papel toda a
ideia ao comprar um lugar onde teria o próprio negócio, havia
momentos em que a preocupação se tornava… maior.
Paulo sempre estava ali para conter os danos, mas não era
como se pedisse por informações a cada segundo. Se Fernando
quisesse o seu apoio e ajuda, diria.
O ruivo ficava feliz em fingir que não notava e distrai-lo o quanto
pudesse.
Mas o motivo mais recente não era quanto à clínica,
aparentemente.
— Você acha que a Mari tá brava comigo? — ele repetiu,
usando o sinal vermelho para passar as mãos pelos fios novamente
pretos.
— Fer, por que você sequer consideraria isso uma
possibilidade?
— Eu… — Ele fez uma careta. — Sei lá, ela não tá falando
direito comigo.
Paulo se inclinou no banco do passageiro, balançando a cabeça.
— Ela acabou de ficar de férias, deve estar cansada e
arrumando as coisas pro jantar. Não aconteceu nada, então você
não precisa se preocupar.
— É, acho que não. — Fernando respirou profundamente, mas
ainda soava preocupado. — Deve ser impressão minha.
— Além disso, o Will comentou comigo que ela passou um
pouco mal ontem. Nada grave, sabe. Mas derrubou um pouco. Pode
ser isso.
Fernando assentiu, ainda inseguro. Ele se manteve em silêncio
durante todo o percurso. Paulo aproveitou para mandar uma
mensagem para Daniel.
“meu namorado ta tendo um colapso interno pq a sua esposa
nao ta falando direito com ele, me sinto uma mãe falando pro filho
que amizades de escola sao assim mesmo”.
“péssima comparação” Will respondeu, alguns segundos depois.
“sla, ela me parecia de boas antes de passar mal. ainda tá
dormindo”.
“n chame meu namorado de paranoico”.
“vc sabe que ele tá sendo paranoico”.
“mas so eu posso dizer isso”.
Daniel mandou um emoji de dedo do meio. Paulo responderia,
mas precisou guardar o celular quando Fernando estacionou o carro
na garagem do prédio.
— E se ela estiver chateada porque eu não consegui um horário
pro Nico na quinta-feira passada? — Fernando chutou, quando Paulo
deixou a mochila na mesa ao lado da porta de entrada. Xavier, que
estava confortavelmente deitado sobre o sofá, se espreguiçou com
demora antes de se pôr de pé para ir até onde sua comida
costumava ficar. Praticamente pedindo para que a tigelinha colorida
fosse preenchida.
Paulo suspirou.
— Até parece que você nem conhece a Mari pra achar que ela
realmente ficaria chateada com algo assim. — O ruivo pôs a comida
para o gato, que agradeceu com um miado impaciente. Bruto. Em
seguida, se aproximou do namorado, passando os braços pelo seu
pescoço. — Fefo, vocês se conhecem desde a adolescência e nunca
brigaram. Eu nem sabia que amizades assim existiam até conhecer
vocês. Não precisa se culpar por algo que você nem sabe se tá
rolando ou é coisa da sua cabeça, tudo bem? Nós vamos aproveitar
o tempo livre de hoje pra usar aquelas máscaras pro rosto que a
Jade indicou e colocar algum filme ruim só pra ter uma desculpa pra
nos agarrarmos no sofá. Aí, de noite, nós vamos pra casa deles e
você vai ver que a sua melhor amiga ainda é a sua melhor amiga, só
com um marido chato no pacote.
— Gosto como você fala mal do William pra tentar me animar.
— Tudo por você — Paulo finalizou, beijando a ponta do nariz
dele. — Preciso de um banho antes que o Xavier reclame do meu
cheiro de praia. Você vem?
É claro que Fernando iria.
Ele pareceu ficar mais tranquilo depois das palavras de Paulo, o
que tranquilizava ao ruivo automaticamente. Se não pudesse dizer
que era por sua causa, talvez pudesse culpar a máscara de abacate
que deixou seus rostos verdes.
— Eu nem sei por que estamos com isso.
— Não seja convencido. Mesmo que a sua pele seja perfeita,
não quer dizer que não precisa cuidar dela. — Paulo gesticulou para
o seu rosto, antes de pegar a correspondência que estava em cima
da mesa. Havia anúncios de eventos esportivos que deveria ir,
convites para festas de Ano Novo que pretendia ignorar porque a sua
única vontade para aquela virada era estar com o seu namorado.
Talvez as pessoas mais próximas, como a família dele ou Mariana e
Daniel.
(Além disso, quem ainda mandava convites pelos Correios?)
Paulo precisava admitir, ainda era uma surpresa que seu
relacionamento estivesse durando… tanto. Não que esperasse algo
ruim de Fernando, muito pelo contrário. Pra alguém que o aguentou
como algo não-oficial por meses, Fernando se mostrou ótimo em lhe
dar o seu espaço — o que, pessoalmente, era algo importante
demais para Paulo — e entender todas as suas necessidades. Por
mais estranhas que parecessem. Paulo até desconfiou de tão boa
que toda a situação parecia até perceber que, talvez, estivesse se
baseando demais em seus breves e ridículos relacionamentos
passados.
Fernando dava o mundo inteiro sem esperar uma galáxia em
troca.
Talvez devesse ter percebido que já estava envolvido demais no
instante em que Fernando passou a ter a sua própria gaveta de
roupas no seu quarto.
Não no quarto de hóspedes. No seu quarto.
— O que era? — Fernando se inclinou quando Paulo jogou um
envelope dourado no lixo, praguejando baixinho. Até Xavier, que
estava no colo de Assis, pareceu ficar subitamente curioso.
Fofoqueiros. — Parecia importante.
— Convite pra comemoração de Ano Novo do meu pai.
— Ah, você vai?
— Ele só mandou um convite. — Paulo balançou o papel no ar,
antes de jogá-lo no lixo também. — Se minha presença é tão
importante, ele vai mandar um pra você também.
Fernando se manteve em silêncio por alguns segundos.
— Tem certeza?
— Tenho, Fer. Nunca fiz questão de ir nessas frescuras dele. Só
tem gente velha. Espírito de união no Natal é o caralho.
O moreno riu, deslizando os dedos entre as orelhas de Xavier.
Aparentemente, o efeito de derretimento causado por Fernando
Assis não era exclusivo para Paulo.
— Podemos tirar essa coisa do rosto? — O veterinário
perguntou, apontando para a máscara facial, e não era a primeira
vez.
— Mais cinco minutos.
— Eu faço aquela pizza caseira se você me deixar tirar agora.
— Direto para o chuveiro, bonitão. — Paulo apontou, arrancando
outra risada do namorado.
— Você não vem junto?
— Vou respeitar meus cinco minutos restantes.
— É um convite…
Paulo o fitou, estreitando os olhos.
— Resolveu jogar sujo hoje, Assis? — Fernando fingiu uma
expressão inocente. — Tudo bem, mas não é porque eu gostaria que
você fizesse uma massagem em mim no banho.
— Certamente não é.
— Ou porque quero que você me empurre na parede e…
— Não vou fazer isso — Fernando interrompeu, embora o
sorriso em seu rosto indicasse tudo, menos que ele não o faria. —
Não até você tirar essa coisa verde do rosto, pelo menos.
— Perfeito. Quem precisa de cinco minutos a mais? Meu rosto
definitivamente não precisa.
Paulo tinha a certeza absoluta de que nunca, jamais se cansaria
daquelas mãos. Se soubesse que estar com Fernando traria
massagens — e mais — no pacote, teria dado um jeito de conhecê-
lo antes. Muito antes.
— Ei, eu tava pensando — Paulo disse, observando Fernando
se inclinar para alcançar a toalha depois de desligar o chuveiro. — Já
que estamos tendo um dia muito bom, você podia me dizer quem
tirou no Amigo Secreto…
— Não. — Fernando sequer hesitou. Argh. — Desiste, lindo.
— Por favor, Fefo…
— Não vai adiantar me chamar assim. — Ele se inclinou para
beijar o seu rosto antes de entregar sua toalha. — Não vou estragar
a brincadeira.
— Eu te conto quem é o meu!
— Não.
— E eu te conto quem é o da Mari! — Estava blefando. Paulo
não tinha a menor ideia de quem Mariana tinha tirado no sorteio.
— Não.
— Você me odeia?
Fernando o encarou enquanto vestia a calça cinza de moletom,
erguendo uma sobrancelha.
— Tá, eu sei que não. — Paulo bufou, jogando a toalha na sua
direção. O babaca simplesmente a pegou no ar como se não fosse
nada. — Mas provaria o seu amor me contando quem é.
— Pena, vou ter que te dar a dor da dúvida.
— Você é tão filho da mãe.
— Estou profundamente ofendido — Fernando ironizou,
lançando uma piscadela na sua direção antes de sair do banheiro.
Paulo estava tão, tão, tão apaixonado que ainda era uma
surpresa que não quisesse sair correndo do seu próprio apartamento
a cada segundo perto do outro rapaz. Na sua cabeça, por algum
motivo que nunca fez muito sentido, qualquer pessoa com quem se
relacionasse traria esse sentimento.
Não era assim.
Quando parava para pensar demais, como naquele momento,
era quase difícil acreditar.
O ruivo secou o cabelo e vestiu uma roupa confortável antes de
voltar para a sala, onde Fernando estava acomodado no sofá,
parecendo procurar por algo para assistirem — ou era a primeira
parte do plano de escolher qualquer coisa ruim com segundas
intenções. Xavier parecia muito confortável entre os seus pés.
Paulo aproveitou para deitar ao seu lado. O sofá definitivamente
não deveria comportar dois homens adultos deitados, mas sempre
deram um jeito. A proximidade definitivamente não era um problema
ali.
— O que você quer assistir? — Fernando passou o braço ao seu
redor, beijando o seu ombro.
— Você acha que eu digo pouco que te amo?
Mesmo de costas para o moreno, Paulo podia quase ver a
expressão confusa do namorado.
— Boa tarde? — ele respondeu, em um claro tom de
questionamento.
— Isso não me responde muito bem.
Fernando se ajeitou, levantando parcialmente o corpo sobre o
cotovelo. Paulo nem teria como desviar o olhar dele. Merda.
— Eu não acho que você sequer precise de uma resposta.
— Por favor, não venha com seus discursos filosóficos. É uma
pergunta de sim ou não.
— Mas é muito do nada. Por que a pergunta?
— Sei lá, talvez seja o meu complexo de inferioridade e bloqueio
emocional um pouco mais animados pro Natal.
O moreno ergueu uma sobrancelha.
— Você acha que diz pouco que me ama?
— Acho que é uma possibilidade que você não esteja satisfeito
com a minha frequência.
Fernando parecia tão chocado com aquela conversa que Paulo
quase achou que poderia ter dito que estava se mudando para outro
continente por engano.
— Eu pareço insatisfeito? — perguntou.
— Bom, não…
— De onde surgiu isso?
— Sei lá, é que você tá sempre falando, e eu não. Talvez faça
falta pra você e eu gostaria de saber.
— Eu falo porque… sei lá, Paulo. É o meu jeito, não é como se
fosse algo programado. Assim como é o seu jeito não falar. Isso não
quer dizer que eu sinta menos e, porra, eu achei que fosse algo
óbvio. Se eu não me sinto bem em um relacionamento,
principalmente se eu sinto que a pessoa em questão não sente o
mesmo por mim, eu caio fora. Mas eu tô aqui, não tô?
— A menos que eu esteja tendo alucinações, parece estar.
Fernando sorriu.
— Você é o melhor namorado que eu já tive.
— Você não vai contar isso pro próximo, vai? — Paulo brincou, e
o moreno ergueu uma sobrancelha. — Foi mal, eu nunca sei reagir
legal a esse tipo de coisa. Não vai ter próximo, já entendi.
— Você é tão besta. E eu amo você.
— Que bom. Meus sentimentos de admiração e carinho pra
você, também. E amor, essas coisas.
Fernando se inclinou, raspando os lábios na lateral do seu rosto.
Deus, aquele homem ainda o mataria o um dia.
— Obrigado por ser você, Paulo. É a melhor coisa que você
poderia oferecer para alguém.
Paulo se encolheu, anestesiado pelo combo imenso e
inesperado de sensações que não apenas o toque de seu namorado
lhe causava, mas suas palavras e ações. Era o tipo de momento em
que entendia o que ele queria dizer quando afirmava que não
precisava de palavras para saber que Paulo o amava. Podia ver tudo
até nos mais simples movimentos.
— Acho que vou perguntar se sou suficiente mais vezes, se isso
for me render mais beijos no pescoço — murmurou, quase trêmulo.
A risada nasal quente de Fernando atingiu a sua nuca, os dedos
longos entre o cabelo ruivo. — Também amo você, Fefo. Espírito de
amor natalino e tal.
Despreocupadamente, Xavier se desenrolou dos pés de
Fernando para se aproximar. O gato preto pisou cuidadosamente no
espaço entre eles para se acomodar ali, no espaço que já era
mínimo.
— Você foi um garoto mau, não ganha presente. — Paulo
murmurou.
— O que ele fez pra você? — Fernando soou como um
advogado saindo em defesa de um cliente. Nenhuma surpresa,
Paulo precisava admitir.
— Me arranhou. Inúmeras vezes.
— Foi sem querer, ele só tava brincando.
— Fez xixi no nosso quarto.
— Ele tava apertado!
— Comeu o meu cereal.
— É gostoso, ele não tem culpa.
Como se quisesse reforçar a imagem inocente e angelical feita
por Fernando, Xavier se inclinou para lamber delicadamente o seu
queixo.
— Você é falso, Xavier Bragança Assis.
— Imagina odiar o seu gato a ponto de colocar três sobrenomes
para ser o nome dele. — Fernando deslizou os dedos entre as
orelhas do gato, que quase se desmanchou ali mesmo.
— Ninguém te contou que ser pai não significa passar pano pra
tudo que seu filho faz?
Fernando fez uma careta, beliscando o seu nariz.
— Não passo pano pra quem não faz nada de errado.
— Claro, claro. Diga isso quando ele arranhar a sua cara
perfeita. — Paulo fingiu pensar por um segundo. — Ah, é. Ele não
faz isso com você. Ele te ama.
— Ele também te ama, Paulo.
Xavier bateu levemente com a pata no seu peito.
Cínico. Paulo fez uma careta na direção do gato.
— Aposto que ele já descobriu sobre a caminha nova que eu
comprei. Ele sempre dá um jeito de descobrir.
— Fofo. Você adora mimar ele.
Paulo pensou em negar, mas seria uma mentira grande demais
até para ele. Afinal, como não mimaria aquele gato? Era como
quando Fernando reclamava casualmente que suas chuteiras
estavam ruins, ou quando simplesmente comentava sobre uma
camisa bonita que tinha visto em algum lugar. O ruivo fazia questão
de ir atrás do mundo inteiro para resolver o problema ou garantir a tal
camisa para o namorado. Parecia o mínimo.
Talvez aquela fosse a sua forma de demonstrar o quanto
gostava de alguém, afinal. Presentear com algo que poderia ser útil
ou importante. O que não era menos que a forma que Fer tinha na
ponta da língua todos os dias.
O pensamento pareceu tirar um peso dos seus ombros.
**
Três.

Daniel virou o rosto na direção de Mariana quando a sentiu se


mover na cama. Por um segundo, ficou preocupado que ela pudesse
ainda estar se sentindo mal da noite anterior — porque,
aparentemente, algo que comeram no jantar de um restaurante
vegetariano que havia aberto ao lado de seu novo apartamento não
havia caído bem —, mas assim que ela percebeu que ele estava a
encarando, fez uma careta, então Daniel resolveu concluir que
estava tudo bem.
— Boa tarde. — Ele se inclinou para beijar o ombro dela antes
de se pôr de pé. — Precisa de alguma coisa?
— Um estômago novo — Mariana resmungou, enfiando o rosto
no travesseiro.
Ele fez um gesto exageradamente teatral, como se estivesse
arrancando algo do próprio corpo.
— Toma. — Daniel estendeu a mão na direção dela. — É seu.
Já te dei meu coração, não vai fazer falta.
Mesmo ao som da risada claramente cansada de Mariana,
Daniel se permitiu relaxar. Só ele sabia o quão mal dormiu depois de
vê-la vomitar e queimar de febre durante a madrugada.
Trazia lembranças demais e era como estar do outro lado de
uma situação que já havia vivido. Em circunstâncias diferentes, mas
mesmo assim. Ainda se tornava pior por ser… bom, Mariana. Era
ela. Daniel não achava que precisava de mais explicações sobre o
porquê era tão desesperador vê-la minimamente doente.
— Mas falando sério. — O ex-jogador se aproximou, sentando-
se novamente na beirada da cama para tocar o rosto de Mariana. —
Você se sente melhor? Se não, nós cancelamos o jantar com o
pessoal e…
— O quê?! Não, Dan. — Mariana levantou o tronco, sentando-se
no colchão. Seu rosto ainda parecia cansado, ele notou, mas melhor
que antes. — Eu tô bem, não acho que vá sentir algo mais agora
que… sabe, já coloquei tudo pra fora.
— Acha que tinha alguma coisa na comida de ontem?
— Se tivesse, acho que você também passaria mal. Comemos a
mesma coisa. — Ela se inclinou para pousar a cabeça no ombro
dele, e Daniel passou os braços ao seu redor. — Não, deve só ter
sido algo que meu corpo não gostou. Acho que é normal depois de
um tempo na dieta dos treinos. Vou mandar uma mensagem pra
minha nutricionista depois do Natal.
— Se você diz…
— E eu estou com fome, isso deve indicar que estou bem —
completou, beijando a curva do seu pescoço. — Você é um fofo
quando tá preocupado, sabia?
— Ah, achei que fosse um fofo o tempo inteiro. — Daniel deixou
um beijo na sua cabeça antes de se pôr de pé. — Vou arrumar o
almoço, já que você acabou com a nossa rotina de sono e mal deixa
tempo pro café da manhã.
— Estou de férias, ninguém pode me culpar.
— Exceto eu.
— Não, nem você.
— Uhum — ele concordou falsamente, empurrando o ombro da
goleira. — Te amo, não demore.
— Também te amo. — Mariana suspirou, prendendo o cabelo
cacheado em um rabo de cavalo desajeitado.
No instante em que Daniel abriu a porta do quarto, um Nicolas
em um misto de animação e preocupação entrou no cômodo. O
labrador correu saltitante ao redor da cama antes de parar do lado
em que Mariana estava.
— Seu guarda-costas chegou — Daniel cantarolou, já no
corredor.
Ele ouviu Mariana conversar com Nico alegremente no quarto e
quando ela entrou no banheiro. Vez ou outra, o cão ainda parecia
responder com um latido.
Daniel analisou o que tinham nos armários e na geladeira,
procurando por algo que não fosse pesado demais para alguém que
havia passado mal há menos de vinte e quatro horas. Sorte a dele
que, nos últimos tempos, havia se tornado infinitamente mais fácil —
e parte da sua rotina — pensar pelo lado vegetariano da coisa.
Obrigado, Mari.
— Posso fazer salada de macarrão — ele disse, no instante em
que ela apareceu do corredor. Nico ainda estava ao seu lado, atento
a cada passo dado por Mariana. — Ou você prefere pedir alguma
coisa que chegue mais rápido?
— Não, acho que consigo esperar. — Mariana balançou a
cabeça. — Não precisa fazer muito, também.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Você tá mesmo bem?
— Perfeitamente — disse, tranquila. — Só um mal estar normal
depois de ontem, Dan.
Ele pensou em rebater e insistir para que fossem até um
médico, apenas para ter certeza de que não era nada demais. Mas
Mariana estava organizando aquele jantar com seus amigos há
semanas, e Daniel duvidava que qualquer coisa pudesse fazê-la
mudar seus planos.
Mas, talvez, só estivesse exageradamente preocupado mesmo.
— Eu vou fazer o pudim enquanto isso, então não precisa se
apressar — Mariana continuou, por fim. Como se quisesse
tranquilizá-lo ainda mais, ela se inclinou para beijar sua mandíbula.
— Amo você.
— Aliás, pensou em um lugar pra passarmos o Ano-Novo?
Mariana ficou em silêncio por um momento antes de responder.
— Pensei em ficarmos por aqui mesmo, na verdade. Quer dizer,
podemos organizar algo, mas sem viagens.
Ele a fitou.
— Por quê?
— Porque, sei lá, seria legal passar as férias um pouco mais
tranquila. — Ela deu de ombros, virando o olhar para ele quando
terminou de pegar os ingredientes para o pudim. — Mas podemos
ver algo se você quiser, é só uma sugestão.
— Não, não faço questão. Só fiquei surpreso.
— Tem certeza?
Daniel jogou o macarrão na panela, assentindo ao voltar a olhar
para Mariana.
— Eu juro. Podemos chamar Paulo e Fernando pra sair, vai ser
legal.
— Vai, sim — ela assentiu, embora ainda parecesse tensa com
o assunto. Ou talvez só fosse o desconforto da noite mal dormida,
ele já não sabia. Onde estava o curso de como ler a sua esposa
quando algo parece fora do lugar?
Ele observou Mariana preparar o pudim em silêncio, ajudando-a
aqui e ali, alcançando uma prateleira mais alta, mexendo a panela
onde o açúcar estava sendo derretido. Quando o macarrão para o
almoço ficou pronto, ele terminou a salada.
Eles almoçaram no meio da tarde, mas tudo bem. Estavam de
férias, e seguir a rotina de sempre seria um desrespeito.
Mariana realmente não comeu muito, ele notou.
Quando ela se sentou ao seu lado no sofá, havia um sorriso
divertido em seu rosto.
— Para de me olhar assim.
— Ainda acho que você deveria procurar um médico.
— Por ser muito bonita?
— Engraçadinha — ele resmungou, e Mariana se inclinou para
selar seus lábios no instante em que ele abriu a boca para falar mais.
Um suspiro abafado ameaçou escapar com a sensação dos dedos
de Dias entre o seu cabelo, a proximidade quando ela passou uma
perna para o outro lado, acomodando-se no seu colo.
— Não tenho motivos para procurar um médico — ela disse,
quando a cabeça dele ainda estava distraída o suficiente para mal
conseguir formular uma resposta contrária. Daniel se sentia distante
o suficiente da Terra quando o labrador preto se aproximou, subindo
no sofá. Mariana riu baixinho. — Nico concorda comigo.
— Ele sempre concorda com você.
— Ele tem consciência de classe. — Mariana esticou a mão
para acariciar a cabeça do cão, sabendo que Daniel ainda a
analisava atentamente. A mão dele percorrendo suas costas sob o
tecido da camiseta enquanto ainda estava sentada no seu colo não
tinha qualquer indicação de segundas intenções, mas de carinho.
Proteção. — Parece até que você nunca passou mal depois de
comer algo, Dan.
— Me surpreendo com você passando mal, nunca vi ninguém
com uma saúde tão boa — ele rebateu. — Vai me dizer se sentir
mais alguma coisa?
— Prometo — Mariana assentiu, beijando a sua testa antes de
voltar o olhar para o cachorro ao seu lado. — Você pode olhar o
pudim pra mim?
Daniel o fez, mesmo que o olhar continuasse preso na goleira
abraçada a Nico no sofá. O apartamento era aconchegante, e tinha
cheiro de casa desde o primeiro dia. Desde o momento em que
resolveram voltar para o Brasil após o casamento. Cheirava a
tranquilidade e estabilidade. Um porto seguro que encontraram entre
a rotina de trabalho e treinos.
O toque de seu celular o tira do transe momentâneo, um sorriso
crescendo em seu rosto ao ver as diversas mensagens de pessoas
conhecidas. Havia o grupo dos garotos do time que estava
patrocinando, as mensagens de sua mãe e da tia — que queria
saber o que infernos ele daria para ela de presente de Natal, muito
delicada.
Daniel respondeu com um emoji, sabendo que aquilo só a
deixaria mais curiosa. Podia lidar com os xingamentos.
— O pudim tá na geladeira — ele disse, por fim. Mariana
murmurou um agradecimento sorridente.
Ela parecia bem. Daniel estava começando a acreditar e relaxar
sobre o ocorrido na noite anterior.
— Seu pai mandou notícias? — perguntou. Marcos havia viajado
na semana anterior com a nova esposa, sua primeira viagem em
muito tempo. Ele merecia. Especialmente depois do último ano cheio
de visitas a médicos.
— Só uma foto na piscina do hotel, ele parece até uma criança.
— Mariana cruzou as pernas, a cabeça de Nicolas em seu colo.
Daniel poderia jurar: aqueles dois eram inseparáveis. — Ele parecia
animado — completou, aproximando-se da mulher outra vez. — Jade
disse se vai conseguir aparecer no jantar?
— Ela disse que só vai precisar buscar o Vinícius no aeroporto
antes, ele tá voltando de uma competição — ela assentiu. — Ele
também é amigo do Alex, aliás. O mundo é mesmo minúsculo.
— Não é minúsculo. Alexandre é que conhece o mundo inteiro,
não consigo pensar em um evento em que ele não apareça.
Mariana riu, concordando.
— Ele é popular, especialmente depois do último ano. Com
razão.
Daniel se sentou ao lado dela, inclinando-se o suficiente para
beijar seu ombro.
— Você tá linda, sabia?
Mariana o fitou, erguendo uma sobrancelha.
— Eu tô normal.
— Exatamente.
— O que você quer?
— Eu não posso te elogiar por vontade própria? — Daniel soltou
uma risada, fingindo uma expressão ofendida. — Isso machuca,
sabia?
— Só foi do nada. — Ela deu de ombros, contendo um sorriso.
— Merda, não posso elogiar a minha esposa. Como um homem
apaixonado pode sobreviver assim?
Desta vez, Mariana não conteve uma risada. Daniel, de novo,
percebeu que era sortudo pra caralho. Desde que ficaram juntos pela
primeira vez, ele era atingido repetidamente por essa súbita
realização. E que não havia absolutamente nada que quisesse mais
do que passar o resto de sua vida com essa mesma certeza.
**
*
Quatro.

Jade balançou os pés, sentada sobre o capô do carro vermelho.


Se estivesse correta, ele apareceria em alguns minutos. Vinícius
havia dito, antes de embarcar, que o voo estava dentro do horário e
pouco provavelmente atrasaria.
Ela esperava que ele estivesse certo. Depois de três semanas
longe de seu namorado — provavelmente o maior período que já
haviam passado separados desde o momento em que passaram a
morar juntos —, tudo o que queria era abraçá-lo e não deixá-lo ir por
um dia inteiro.
Jade passou a ponta dos dedos pela franja feita na semana
anterior, tentando ajeitá-la mesmo que não houvesse um fio sequer
fora do lugar. Fez o mesmo com a roupa, mesmo que o vestido não
apresentasse qualquer dobra.
Talvez estivesse um pouco nervosa. Ou só inquieta.
A vida com Vinícius se mostrou mais fácil do que já esperava
que fosse. Não havia aborrecimentos ou estranhamentos, muito pelo
contrário. Jade, que achava que nunca mais conseguiria ter um
relacionamento estável em sua vida, se viu em um onde a
segurança, a confiança e o amor eram os principais pilares.
Vinícius não era bom e cuidadoso em todos os aspectos
possíveis por causa do seu passado, mas porque ele a amava. Jade
tinha certeza absoluta de que ele seria igualmente incrível com
qualquer pessoa que estivesse ao seu lado.
Mas ele era incrível com ela.
O pensamento a fez sorrir quando o viu sair pela passagem
principal do aeroporto. Era impossível não reconhecer o aglomerado
de tatuagens e cachos escuros. Vinícius parecia estar deixando o
cabelo crescer, porque o volume dos cachos escuros estava maior
que o normal, os fios caindo por sua testa. Dulcineia IX — ou já era a
XI? — estava presa à mochila em suas costas. Enquanto ele digitava
algo no celular, Jade não conseguia conter um sorriso.
Ela sabia para quem ele estava digitando, e a mensagem
chegou no seu celular no instante seguinte.
“cheguei, vou pegar o uber. amo vc”.
“desnecessário, acho que vc tem carona”, ela respondeu antes
que o skatista realmente chamasse um carro pelo aplicativo.
Vinícius franziu o cenho, claramente confuso. Quando ergueu o
olhar na direção do estacionamento e a viu ali, a confusão pareceu
apenas aumentar. Ele definitivamente não esperava por isso, e Jade
não conteve uma risada com a expressão do garoto.
Ele abriu a boca uma, duas, três vezes sem falar absolutamente
nada antes de finalmente sair de onde estava para se aproximar.
— Eu tenho muito a dizer — Vinícius anunciou, ainda
caminhando na sua direção. — Um, tu tá mesmo aqui? Dois, Jade, tu
pegou o meu carro e veio dirigindo? Três, você tá em cima do meu
carro e eu te odeio por isso. Quatro, puta merda, tu tá linda pra
caralho.
Jade riu, inclinando a cabeça em um gesto falsamente curioso.
— Mais alguma coisa?
— Nada que não possa esperar até depois do que é realmente
importante — ele murmurou, soltando a alça da mala para se
aproximar e colar os lábios nos dela.
Jade não conseguia pensar em nenhum aspecto de sua vida em
conjunto onde Vinícius fosse exigente. Nenhum, exceto pelos seus
beijos. Vinícius beijava como se toda a sua vida dependesse disso
por um momento, como se nada além importasse.
Começava lento e cuidadoso, até que ele estivesse com a mão
na sua nuca e os dedos entre o seu cabelo para que estivessem
ainda mais próximos. Se é que ainda seria possível. Jade sentiu o
corpo amolecer ao ter de volta a sensação inebriante de beijar
Vinícius Carvalho.
Ela ficava satisfeita em entregar tudo o que ele quisesse nessas
ocasiões. Vinícius não precisava pedir, ele tomava. Tomava o seu ar,
seus sentidos e seus pensamentos, porque não parecia haver nada
no mundo para Jade além dele.
Tomaria seu coração, se já não o pertencesse.
Era um dos pontos que imaginava que iria desaparecer com o
tempo, um detalhe do início de um relacionamento que logo deixaria
de surpreendê-la e deixá-la sem fôlego, mas não. Ainda lhe causava
o mesmo sentimento da noite em que se beijaram pela primeira vez,
e também da noite em que tiveram a chance de colocar todas as
peças no lugar, quatro anos depois. Ainda era demais, e ainda era
tudo.
Com uma perna em cada lado do corpo de Vinícius, Jade
prendeu os dedos em punho na gola de sua camisa e o puxou para
mais perto ainda.
— Sei que não estamos na cama, mas ainda é um
estacionamento público — ele sussurrou contra os seus lábios. Jade
demorou um segundo para entender a piada, mas quando o fez,
empurrou levemente o ombro de Vinícius.
— Cala a boca — resmungou, embora tivesse um sorriso em
seu rosto corado. Era uma piada interna aparentemente.
Sobre a sua mania de, supostamente — e involuntariamente, ela
jurava —, evitar a cama para os momentos mais íntimos. Vinícius
notou o padrão com menos de um mês de relacionamento e, mesmo
assim, ainda insistia em brincar sobre.
— Certo, só um momento. Preciso focar. — O skatista apoiou as
mãos no carro, ainda posicionado entre as pernas de Jade. Ele
pareceu respirar fundo, mas seu olhar ainda estava preso no rosto
de sua namorada, no seu pescoço e abaixo disso. Ele parou quando
ela riu de sua expressão. — Acho que preciso aprender a existir
perto de ti outra vez. Porra, três semanas?!
— Olhando pelo lado bom, você ganhou. Não que seja uma
surpresa — Jade disse, passando os braços ao redor do seu
pescoço. — Também senti sua falta.
— Podemos cancelar o jantar com o pessoal e passar a noite
em casa… — A voz de Vinícius soou como um fio, porque ele já
estava se inclinando para selar os seus lábios mais uma vez. —
Tenho direito a passar uma noite sozinho com a minha garota depois
de tanto tempo.
— Não.
Ele resmungou em resposta. Como se isso devesse bastar, ele a
beijou mais uma vez. Um golpe baixo, porque Jade poderia jurar que
os beijos de Vinícius a convenceriam de qualquer coisa.
Quando a mão do skatista tocou a parte da sua coxa visível pela
saia levemente levantada, ela segurou o seu queixo.
— Para, Vin. Seria vacilo.
— “Vacilo” me lembra que tu pegou o meu carro e, Jesus, ruiva,
tá sentada em cima dele. Esqueceu dos modos?
— Nosso carro — ela corrigiu, inclinando-se um pouco mais no
carro vermelho. Havia sido a primeira grande aquisição de Vinícius
desde que se mudaram para São Paulo. E era o seu maior xodó
depois de seu skate, aparentemente. — O que é seu, é meu.
— Tanto faz. Tu odeia dirigir, por que veio?
— Eu queria fazer uma surpresa. — Ela deu de ombros,
traçando a tatuagem de rosa em seu pescoço com a ponta dos
dedos. — E eu preciso praticar, de qualquer modo. Não vou te
prender como meu motorista pra sempre e deixar a minha habilitação
pegar poeira.
— Só não pratique quando estiver sozinha, por favor — Vinícius
pediu, e ela podia ver que ele estava falando realmente sério. Não
porque era o seu carro, mas por pura preocupação. Jade sabia que,
em dias de muito movimento, mal conseguia dirigir sem usar a
marcha errada ou deixar o carro morrer por acidente. — Teu cabelo
ficou muito, muito, muito bom. Combinou demais contigo.
— Achei que você já tivesse visto — murmurou, sacudindo
levemente a cabeça para ajustar os fios que caíam pela testa. Como
se não fosse capaz de resistir, e talvez realmente não fosse, Vinícius
a beijou rapidamente mais uma vez.
— Por fotos. Olha, pra quem te esperou por anos, essas três
semanas pareceram demorar milênios pra passar.
Jade balançou a cabeça, falhando miseravelmente em esconder
o rubor que se espalhou pelo seu rosto. Assim como em todas as
vezes que Vin dizia algo que fazia com que se sentisse única.
Aquela sensação algum dia passaria? Ela duvidava muito.
— E você, tá deixando o seu crescer? — A ginasta estendeu a
mão para passar os dedos entre os cachos escuros.
— Não, tava esperando voltar pra casa pra cortar com a minha
cabeleireira favorita. — Ele pegou a sua mão, entrelaçando seus
dedos. — Vamos pra casa, ruiva.
Ela o beijou com um sorriso no rosto e entregou a chave do
carro para ele.
Vinícius soltou um suspiro relaxado no instante em que
finalmente pisaram no apartamento. Jade o ajudou com as malas e,
no banheiro, aparou as pontas que sobravam do seu cabelo. Nunca
foi tão difícil focar em uma única coisa, especialmente com Vinícius
tocando seu corpo sempre que possível. Uma mão na sua coxa, na
sua cintura, um beijo na sua palma. Jade precisou se esforçar para
que conseguisse fingir não se importar.
Estar em casa era muito mais do que estar ali, naquele
apartamento. Era estar ao lado de Jade, sua namorada. Vê-la
cuidando das plantas, incluindo o pequeno espaço onde tinham uma
variedade impressionante de temperos. Vinicius particularmente
adorava aquela parte.
— Se você estiver muito cansado da viagem, podemos ficar em
casa — ela disse, vendo-o sair do banho. — Todo mundo vai
entender.
Vinícius balançou a cabeça, indo até o guarda-roupa para
procurar por uma roupa. Não que ele fosse muito exigente com essa
parte.
— Relaxa, eu dormi bem antes do voo. — Ele a observou subir
um vestido pelo corpo e se aproximou para ajudá-la com o zíper nas
costas. Mesmo que Jade tivesse uma facilidade quase assustadora
para alcançá-lo. — Você fica bem de vermelho.
— Tenho certeza que você diz a mesma coisa sobre todas as
outras cores. — Ela o olhou por cima do ombro, erguendo uma
sobrancelha.
— É que tu fica bem em tudo.
— Clichê — ironizou, selando rapidamente seus lábios quando
ele se inclinou para mais perto dela. — Preciso terminar de me
arrumar. E você também, Vin.
— Eu visto a minha roupa em cinco minutos. — Ele apontou
para a calça jeans e a camisa estendidas sobre a cama. Jade
estreitou os olhos, mas não argumentou. Quando Vinícius pegou o
celular para ligar para a mãe para dizer que já estava em casa, a
ginasta voltou para o banheiro.
Ela escovou a franja e fez a maquiagem, soltando um suspiro
satisfeito ao se olhar no espelho.
Vinícius a fitou no instante em que saiu do banheiro. Em um
primeiro momento, ele não disse palavra alguma.
— Só um segundo, eu tô tentando achar um jeito não clichê de
te elogiar — ele soltou, por fim. Após mais alguns segundos de
silêncio, exceto pela risada de Jade enquanto arrumava a bolsa, ele
finalmente continuou: — Chega, estou sem palavras.
— Esse foi um jeito não clichê de me elogiar, parabéns. — Jade
colocou uma mecha do cabelo ruivo atrás da orelha. — Pronto?
— Quase. — Ele ergueu um dedo no ar, indo até a mala de
viagem para tirar um embrulho de lá. — Eu sei que, na prática, o
Natal é só amanhã. Mas eu não consigo fazer surpresas, então…
Jade fitou o embrulho, atônita. Não era uma caixa grande
demais, mas não tão pequena. Sua mente passou pelas
possibilidades infinitas de coisas que ele poderia escolher, mesmo
sabendo que Vinícius sempre a surpreendia.
— Espera — ela disse, comprimindo os lábios. — Eu… meio
que não comprei nada pra você.
— Tudo bem, ruiva.
— Não, é que… — Jade mudou o peso do corpo de um pé para
o outro. — Eu meio que tirei você como meu Amigo Secreto. Meu
presente ficou pra brincadeira. Não quero que pense que não quis te
dar um presente.
Um sorriso cresceu no rosto de Vinícius. Um sorriso divertido.
Ele se aproximou para alcançar a testa dela com os lábios em um
beijo leve.
— Você meio que estragou a minha surpresa na brincadeira com
isso.
— Desculpa, eu me sentiria culpada em abrir isso e não te
entregar nada agora.
— Realmente não me importaria se não tivesse um presente —
ele repetiu, passando a ponta dos dedos pela mecha de cabelo ruivo
que Jade arrumou atrás da orelha. — Você vai abrir o seu?
Jade o encarou como se esperasse por qualquer indicativo de
que ele estava mentindo, mas não o encontraria de qualquer forma.
Ela desviou o olhar para retirar com cuidado o embrulho da
caixa, erguendo uma sobrancelha ao identificar o nome de uma de
suas lojas favoritas. Ou, pelo menos, uma que ela admirava o
suficiente para suspirar toda vez que passavam na frente da vitrine
ou via uma foto graças ao trabalho. Jade havia sido convidada para
trabalhar com a estilista da marca no mês anterior e passara quase
uma semana inteira falando sobre como eles eram incríveis.
E sobre um vestido azul em específico. O mesmo que Jade tirou
da caixa com os olhos arregalados.
A fenda lateral, o corte que ficaria nas suas coxas e o decote em
V, tudo exatamente como havia descrito para Vinícius semanas
antes. Como ele conseguira encontrar exatamente a peça da qual
falou por um dia inteiro sem parar, ela não sabia.
Mas, como sempre, ele a surpreendeu.
— Eu achei que estivesse esgotado… — ela murmurou,
baixinho.
— Só no Brasil.
Antes que ele pudesse processar, Jade pulou na sua direção em
um abraço.
— É perfeito, perfeito demais — ela sussurrou, beijando o seu
rosto antes de se afastar para admirar a peça de roupa. — Vou usar
no Ano-Novo.
— Bom saber que já fez planos com a sua roupa nova.
— Se eu pudesse, usaria até pra fazer compras. — Jade dobrou
o vestido de forma cuidadosa demais, deixando-o sobre a mesa de
jantar. — Vamos? É véspera de Natal e eu não quero me atrasar.
***
Cinco.

Alex não tinha o costume de comemorar o Natal. Desde


pequeno, sua vida havia sido caótica o suficiente para a tradição
passar em branco, talvez até mesmo para ser esquecida. Não
significava muita coisa, mesmo que ele soubesse que deveria
significar, religiosamente ou não.
Era apenas uma data naturalmente importante para todos, mas
não para ele. Era o dia de passar a noite em um quarto de hotel,
enchendo a cara de comida industrializada — pois, já que evitava
todo tipo de gordura ruim por um ano inteiro, o feriado deveria servir
para algo, mesmo que apenas para comer minimamente mal —,
assistir filmes ruins, mas nunca os temáticos, e ignorar o celular sem
culpa. Não te respondi porque estava aproveitando o Natal, era a
escusa perfeita.
Seus pais estariam viajando em algum lugar do mundo, seus
amigos externos do mundo das pistas estariam longe demais para
que pudesse pegar um voo para visitá-los ou ocupados com suas
respectivas famílias. Porque, é claro, o Natal era uma data familiar
ao extremo. Ninguém passava a data em festas carregadas de
música eletrônica e bebida. Suor e calor humano. Não, nada disso.
Alexandre estaria deprimentemente sozinho.
Naquele ano, porém, lá estava ele a caminho da casa de quem
havia se tornado uma de suas melhores amigas, ao lado de seu
chefe e de seu companheiro de equipe que, àquela altura, já eram
muito mais do que uma parte do trabalho. Planejaram a comida que
levariam e até uma brincadeira de Amigo Secreto — Alex estava
particularmente ansioso para entregar seu presente para Bruno, a
quem tinha tirado no sorteio.
Mas a maior novidade era perceber que, pela primeira vez, sua
mente não estava na data comemorativa, muito menos no lugar para
o qual estavam indo. Estava, sim, em outro continente, em outro
país.
— Quando você comprou esse carro? — Ele se inclinou para
frente, observando o volante do Acura controlado por Ivan. Discreto,
mas elegante.
O carro, não Ivan.
— Ano passado. — O russo aproveitou o sinal vermelho para
olhar para o piloto mais jovem. Camilla brincava distraidamente com
um carro de brinquedo ao seu lado. — Ainda é o meu único.
— Espera, você trocou aquele carro por esse? — Alex o
encarou, incrédulo. — Você sabe que o 5-Series é muito mais
potente que um Acura TLX, né?
— Ah, meu Deus. Estou preso em um cubículo com um nerdola
de carros — Bruno resmungou, aumentando o volume da música.
Não que tenha durado muito tempo, porque logo Ivan a desligou.
— Não que eu queira potência em um carro de passeio. Já
tenho demais disso no meu trabalho — Ivan explicou, empurrando o
seu ombro para que se sentasse de maneira correta no banco
traseiro novamente. — E eu sei que um 5-Series tem mais potência
que um TLX, Alex. É óbvio.
— Eu casei com um nerdola de carros — Bruno murmurou,
falsamente choroso. — Eu não mereço isso.
— Veja pelo lado bom, amor. Pelo menos eu não coleciono
carros.
— Ei! — Alex exclamou. — Não fale como se fosse estranho.
— Alexandre Duarte, quantas pessoas no mundo tem sete
carros no estacionamento? — Bruno ergueu uma sobrancelha. —
Isso é coisa de jovem, mesmo. Você mal usa eles. Isso deveria ser
crime.
— Você acabou de se chamar de velho — Ivan provocou,
beliscando a perna do marido.
— Quieto.
Alex engoliu um suspiro, voltando o olhar para o celular.
Foi um esforço imenso ignorar a primeira mensagem que
apareceu na sua janela de notificações. Não precisava de mais um
motivo para se sentir deprimido quando aquela deveria ser uma noite
incrível.
Uma noite em família. Alexandre gostava de perceber que as
pessoas com quem passaria aquele Natal eram sua família na
mesma medida em que seus pais eram.
O piloto mais jovem pegou Camilla nos braços quando saiu do
carro, sentindo os bracinhos rodearem o seu pescoço.
— Você nunca me mostrou seus carros — Milla resmungou, as
sobrancelhas franzidas. Ela estava chateada.
Que desastre. Era como ver o próprio Bruno o encarando.
— Você nunca me visitou, gatinha — devolveu, imitando a
expressão dela. — Como eu vou te mostrar meus carros se você
nunca foi na minha casa?
— Onde você mora?
Boa pergunta, Camilla. Onde eu moro?
Alexandre costumava passar os dias livres na casa de sua mãe,
Nicole, na Austrália. Era onde boa parte da sua vida estava —
incluindo seus carros. Mas não era sua. A casa de Nicole ainda era
como uma colônia de férias. Com a rotina de trabalho e viagens,
passar a semana em hotéis e aproveitando pontos turísticos do
mundo inteiro havia se tornado um hábito. Alexandre estava sempre
em movimento, sempre em um lugar diferente. Era excitante e
animador, ele se sentia incansável.
Ultimamente, havia um único lugar onde queria estar.
Alex balançou a cabeça, afastando o pensamento. Jesus, já
chega.
— Na Austrália — respondeu, por fim. — Junto dos meus pais,
sabia?
— Você já viu cangurus? — Camilla perguntou distraidamente,
porque parecia deslumbrada demais pelo condomínio onde Mariana
e Daniel moravam.
— Tem um que sempre aparece na minha casa — mentiu, só
para rir da expressão atônita da menina. — Não, gatinha. Nunca vi.
Eles não aparecem assim no nosso quintal.
— Que sem graça. — Camilla balançou os pés, obrigando Alex
a encontrar um jeito de segurá-la sem a derrubar. — Eu sempre quis
ver um canguru.
Alexandre não conteve um sorriso, porque tinha a certeza de
que o “sempre” de Milla era a mesma coisa que “os últimos cinco
segundos”, mas ela era assim. Mesmo sendo um membro recente da
família de Bruno e Ivan, ele ainda sentia como se tivesse visto a
menina nascer. Ela era extrovertida, expressiva e carinhosa, além de
muito criativa. Alex a adorava e ficava sempre contando os dias para
o momento em que a veria novamente.
Havia sido uma decisão mútua de Bruno e Ivan não expor
excessivamente a criança ao ambiente das corridas, não quando
ainda não era um ambiente cem por cento seguro para eles. Melhor
que anos atrás, sim. Mas não o suficiente para deixar que uma
criança participasse efetivamente. Por isso, Camilla Campos
comparecia durante os finais de semana entre uma corrida ou outra,
sempre eram dias ainda mais animados.
Ela era adorável. Perfeita.
Alexandre a deixou no chão quando pararam em frente à porta
de Mariana e Daniel — que abriu a porta. O ex-jogador de futebol
cumprimentou Bruno e Ivan com um abraço prolongado e se abaixou
para pegar Camilla no colo e encher o rostinho da menina de beijos.
— E aí, cara — disse, cumprimentando Alexandre. Era
engraçado: por mais que fosse extremamente próximo de Mariana,
Alex ainda não tinha trocado mais do que dez palavras com o marido
dela.
Sabia que William tinha conhecimento sobre o beijo no
casamento de seus companheiros de equipe, mas também sabia —
graças à Mariana, que fez questão de deixar isso muito claro — que
não havia qualquer tipo de ressentimento por parte dele. Afinal, não
estavam juntos quando aconteceu, e qualquer um poderia perceber
que sua relação com a goleira não passava de uma grande amizade.
Alex não podia deixar de agradecer internamente por William ser tão
tranquilo com isso, porque odiaria ter que lidar com um cara
excessivamente ciumento na sua cola.
Ainda assim, era estranho que mal soubessem como agir perto
um do outro.
— Oi — o piloto respondeu, erguendo o punho para um
soquinho… amigável. — Valeu por me convidarem.
— Você nunca ficaria de fora. — Daniel deu de ombros,
fechando a porta atrás de si com o pé, já que seus braços estavam
ocupados demais com Camilla. — A Mari tá arrumando a mesa.
— Valeu — Alex agradeceu novamente, passando os dedos
pelos cabelos em uma tentativa de arrumar os fios ondulados.
Mariana não escondeu o sorriso largo ao vê-lo, correndo para
um abraço.
— Ai, meu Deus. Você tá ainda mais diferente pessoalmente! —
Mariana se afastou apenas o suficiente para olhá-lo melhor. —
Pintou o cabelo outra vez?
O piloto deu de ombros. Depois de viajar entre o preto, o loiro e
o castanho, ele estava surpreso que os fios ainda estivessem ali.
— Acho que fico enjoado rápido — explicou, rindo baixo quando
Dias o abraçou mais uma vez. — Para, você me vê no Instagram
todos os dias.
— Não é a mesma coisa. — Ela revirou os olhos, dando um
tapinha no seu braço antes de voltar a atenção para a mesa. — Você
some, e sabe o que eu quero dizer.
— Acho que sei. A temporada foi estressante.
— Alex, nós dois sabemos que a temporada não foi a única
coisa que roubou sua atenção esse ano — Mariana provocou, rindo
quando ele fez uma careta e se inclinou para alcançar o vinho que
estava sobre a mesa. — Tudo bem, entendi. Assunto proibido.
— Você tá animada — observou, enchendo a taça de vinho. —
Algum motivo específico ou o meu espírito natalino que é uma merda
mesmo?
— Seu espírito natalino é uma merda. — Mariana balançou a
cabeça quando o piloto estendeu o vinho na sua direção, negando
silenciosamente. — Mas também estou animada pro Amigo Secreto.
Sempre gosto de brincar disso. Ah, o Vinícius já chegou, ele tá na
varanda com o resto.
— Você não quer ajuda com a mesa?
— Já estou terminando, mas obrigada. — Ela balançou os
talheres no ar, mostrando que era a última coisa que faltava. — Vai
lá, Alex. Você é convidado.
— Tudo bem, mas me chame se precisar de algo. — O piloto
beliscou levemente o seu braço antes de se afastar.
Ele cumprimentou Fernando, Paulo, Vinícius e Jade — a quem
estava vendo pela primeira vez — um a um, ocupando o lugar vago
ao lado de Ivan na varanda.
— Você precisa me chamar pra sua próxima competição —
disse, chutando levemente o pé de Vinícius. — Há anos eu não vou
em uma.
— A próxima é mês que vem, eu te mando tudo — o skatista
assentiu. — Vai ser na França.
É claro que seria na França. Por que Alex estava surpreso?
A roda entrou em uma conversa animada em pouquíssimo
tempo. Afinal, todos ali já se conheciam de alguma forma. Paulo
falou sobre a viagem que faria, enquanto Fernando estava
terminando de montar a sua própria clínica veterinária.
Aos poucos, Alex se sentiu relaxado. Não parecia ser um grande
encontro, com grandes significados. Era um momento bom com
pessoas incríveis.
Aquilo era o Natal, então?
Parecia melhor que a sua programação habitual de se esconder
em um quarto de hotel.
Muito mais gostoso, também. Além dos pratos levados por cada
um, Daniel e Mariana preparam bruschettas e uma torta que
Alexandre poderia jurar que era a coisa mais saborosa que já tinha
provado na vida.
— Tem sobremesa? — Camilla se inclinou na sua direção, em
um sussurro baixo.
— Por que você não pergunta pra Mari?
— Ela é muito bonita, eu tenho vergonha…
Alex soltou uma risada, bebendo um gole do vinho branco para
disfarçar antes de se virar na direção de Mariana.
— A pirralha quer saber se teremos sobremesa — disse,
inclinando-se na direção dela.
— Só pra quem comer tudo. — Mariana apontou para o prato
ainda cheio de comida da criança, direcionando uma piscadela para
ela. — Você gosta de pavê?
— É pavê… — Bruno começou, mas Ivan estreitou os olhos e o
encarou. — Sem piadas de tiozão?
— Por favor, não.
— Agora que você é um pai, esse cargo precisa ficar com outra
pessoa — Paulo soltou. — Mas vou esperar a Mari servir pra fazer.
— Vocês são piores que o meu pai. — Mariana fez uma careta,
balançando a cabeça quando Bruno estendeu o vinho na sua
direção.
Era a terceira vez que ela negava a bebida desde que
chegaram, e Alex estava atento a isso.
E se…
— Alex, você vai passar a virada de ano por aqui? — Vinícius
chamou a sua atenção, e ele balançou a cabeça.
— Vou visitar Nicole, antes que ela resolva fazer um cruzeiro
pela Europa outra vez. — Deu de ombros. — É impossível encontrar
a mulher em casa, então vou aproveitar. Vou direto de lá pra sua
competição.
— Por favor, aproveitem por mim — Jade apoiou o queixo sobre
a mão, sorrindo na direção do namorado. — Vou estar trabalhando.
Mas não aproveitem demais.
— Por incrível que pareça, eu sou o mais responsável entre nós
dois — Vinícius interviu.
— Eu não diria isso. — Alex se recostou na cadeira, erguendo
uma sobrancelha. — Preciso lembrar da vez que fomos naquela
pista de madrugada e você…
— Não, não precisa — o skatista interrompeu, engasgando uma
risada. — Qualquer noite que termine com um braço quebrado não
precisa ser relembrada, obrigado.
— E você se machucando é novidade? — Fernando ergueu uma
sobrancelha, ajudando Mariana a recolher os pratos e talheres. —
Seria uma surpresa se você saísse inteiro.
— Sabe, isso é uma piada antiga. Vocês precisam inovar. —
Vinícius passou um braço pelos ombros de Jade distraidamente. —
Precisamos falar sobre o Alexandre perdendo o controle do carro a
cada duas curvas.
— E isso seria uma novidade? — Bruno franziu o cenho. —
Preciso ouvir o Ivan gritando pra ele ir devagar todos os finais de
semana. E estamos falando sobre Fórmula 1. Quem é que precisa
pedir pra ir devagar?
— Bom, eu nunca ferrei o carro — Alex se defendeu.
— Os seus pneus não diriam o mesmo — Ivan contradisse,
tranquilamente.
— Ninguém ganha mundiais indo devagar.
— Foi uma indireta? — Bruno estreitou os olhos.
O sorriso travesso de Alex deixava a resposta em aberto. Era o
suficiente para irritar Bruno, o que era exatamente o seu intuito. Não
seria um jantar em família sem que provocasse o piloto mais velho.
— Achei que me livraria dessas crianças nas férias — Ivan
suspirou, roubando uma tortinha de brócolis do prato do marido.
— Eu pego a sobremesa. — Daniel se pôs de pé, tocando
levemente o cotovelo de Mariana antes de ir para a cozinha.
— Que amor, o que você quer? — ironizou, erguendo uma
sobrancelha. O loiro se limitou a responder com um dedo do meio,
fora do campo de visão de Camilla. — Fofo.
— Te amo — Daniel disse, antes de desaparecer na cozinha.
Ele voltou com pratos e talheres limpos e, depois, com uma
travessa com pavê de chocolate.
Alex ergueu uma sobrancelha quando Camilla cutucou o seu
braço.
— Pega um pedaço pra mim?
— Mas você vai ganhar sobremesa, gatinha.
— Mas eu quero o seu pedaço também — rebateu, baixinho. Ele
se inclinou na direção da menina, como se fosse dizer um segredo.
— Você vai ficar com dor de barriga — sussurrou.
— Não vou! — Camilla exclamou alto demais, chamando a
atenção de Bruno. Ela devolveu o olhar curioso para o pai até que
ele desviasse o rosto, apenas fingindo não prestar atenção na
conversa.
— Se você passar mal, não pode contar pros seus pais que eu
te dei outro pedaço.
— Prometo.
Alex conteve uma risada, dando um high-five com a menina
antes de se endireitar na cadeira. Assim que Daniel serviu uma fatia
do doce no seu prato, o piloto o empurrou discretamente — ou nem
tanto, porque qualquer um poderia ver — para Camilla.
— Vou fingir que não vi — Ivan murmurou. — Mas quando ela
não conseguir dormir por causa do açúcar, vou te obrigar a jogar no
simulador de corrida com ela.
— Não vejo como um castigo — Alexandre devolveu, roubando
uma nova fatia do pavê para si mesmo.
— Experimente jogar até às quatro da manhã.
Alex ignorou, usando a boca cheia de doce como uma desculpa
para não responder o mais velho.
Camilla ainda conseguiu convencer Fernando a lhe entregar
mais uma fatia antes que Mariana se levantasse, claramente mais
animada que antes.
— Hora do Amigo Secreto.
***
Seis.

— Quem começa? — Mariana perguntou, sentando-se ao


lado de Daniel na roda formada na sala de estar.
— Eu! — Camilla levantou a mão, empolgada. Ela jogaria junto
de Bruno e já estava sentada no colo do pai, usando uma bolinha
para brincar com Nico.
— Finalmente, só eu sei a luta que foi pra manter essa garota
quieta sobre a surpresa — o piloto murmurou, pegando o embrulho e
entregando para a menina. — Vai, amor.
Se em algum momento o intuito da brincadeira fora dar
presentes ruins propositalmente, Camilla havia resolvido ignorar
completamente isso. Principalmente quando soube que havia tirado
Jade, a quem ainda não conhecia pessoalmente mas já tinha visto
na televisão.
Com a ajuda de Alex e Vinícius, ela e Bruno compraram um kit
colorido de jardinagem — que Jade pareceu genuinamente amar.
— Certo, eu nem tenho como esconder muito porque acabei
contando pro Vini que eu tinha tirado ele mais cedo — a ruiva
confessou, sem jeito, pegando o embrulho que tinha separado e o
entregando para o namorado. — Não sirvo pra brincar disso, foi mal.
— Tudo bem, ninguém esperava que você realmente guardasse
o segredo até o final — Vinícius brincou, o que lhe rendeu um
beliscão de Jade.
E, assim, a brincadeira seguiu. Um a um, os amigos secretos
foram sendo revelados e os presentes, entregues. Bruno quase
pulou sobre Alexandre ao ganhar um par de meias estampadas com
o rosto do mais novo junto das palavras “campeão mundial”,
enquanto Fernando pareceu muito feliz em ganhar um jaleco novo.
Quando a vez de Mariana chegou, ela se endireitou no sofá
limpando a garganta.
— Certo, meu amigo secreto é, facilmente, a pessoa mais
insuportável e…
— Sou eu — Daniel se inclinou, estendendo a mão.
Mariana piscou, atônita.
— Oi?
— Você tá claramente falando de mim, princesa. Sinto o amor
nas suas palavras.
— Eu te odeio.
— Viu?! Muito amor. — Daniel acenou com a mão, dando de
ombros. — E aí? O que é?
A goleira abriu a boca para dizer algo mas, subitamente,
pareceu ficar mais nervosa que antes. Mariana ajeitou os cachos
atrás das orelhas antes de se virar para pegar um embrulho que não
parecia muito maior do que um porta-joias pequeno.
Mariana notou Alex erguer uma sobrancelha na sua direção,
como se já tivesse adivinhado o que era antes mesmo que Daniel
começasse a abrir o embrulho. Alexandre era bom em pegar os
mínimos detalhes, ela já tinha percebido. A amizade que se formou
entre os dois mesmo depois da breve (e falha) tentativa de
envolvimento lhe ensinara isso. Ela sorriu, discreta, voltando a
atenção para o marido.
— Pela sua cara, deve ser algo horrível. Você não comprou um
daqueles hidratantes matinais pra pele que eu odeio o cheiro, não é?
— Daniel tirou uma mecha de cabelo do rosto antes de começar a
rasgar o papel de presente verde. — Nada contra, sabe. Mas eu
definitivamente vou jogar fora ou…
Ele parou ao abrir a caixa. Se havia qualquer raciocínio sendo
elaborado pela sua cabeça, Daniel claramente havia se esquecido de
como completá-lo.
Porque, dentro da caixa, havia um par de sapatos infantis. De
bebê. Pequeno, branco e delicado. Não existia qualquer
interpretação para aquilo além da mais óbvia.
E todos os presentes na sala sabiam disso. Os únicos que não
pareciam nem um pouco surpresos eram Bruno e Ivan — porque
nem mesmo Fernando sabia da novidade.
— Eu odeio tanto quando você faz esse silêncio — Mariana
resmungou, a voz baixa. Apesar do sorriso desajeitado, o
nervosismo estava tão visível quanto antes. Mesmo que tentasse
disfarçar.
Não era como se ela e Daniel nunca tivessem conversado sobre
a possibilidade de ter filhos. Conversaram — e muito. Mas nunca
sobre quando pretendiam colocar os planos em prática.
Bom, não era um imprevisto total. Mas também não era como se
estivesse na sua agenda engravidar.
Daniel se virou na direção dela, o par de sapatos em suas mãos.
Ele ainda parecia surpreso demais para esboçar qualquer reação
que Mariana soubesse interpretar.
Tudo bem, ela ainda ficava sem reação de vez em quando. E já
sabia há algumas semanas.
— É sério?
Ela assentiu, não conseguindo conter algumas lágrimas que
insistiam em escapar. Merda, ela havia prometido para si mesma que
não choraria. Passou as últimas semanas se preparando para o
momento. Sabia que Daniel jamais a deixaria sozinha, e havia
menos que uma chance em trilhões que ele ficasse decepcionado
com a notícia.
Não era como a primeira vez em que ele achou que enfrentaria
a paternidade, com uma pessoa que não amava e completamente
fora de qualquer plano, em um momento em que definitivamente não
se sentia pronto para esse tipo de responsabilidade. Mariana sabia
que era uma vontade dele, e uma vontade sua.
Ainda assim, lá estava ela, chorando ao contar que estava
grávida para o pai da criança. Já podia culpar os hormônios com um
mês de gravidez.
Era o medo de não ser suficiente, de fazer tudo errado mesmo
com o homem mais incrível do mundo ao seu lado. De acordo com
sua ginecologista e com o Google, esse sentimento era normal.
Foda-se a maquiagem que lhe custara quase uma hora.
— Ei, amor. — Daniel deixou a caixa e os sapatos de lado
cuidadosamente, inclinando-se para segurar o rosto dela com as
duas mãos. Ele usou os polegares para limpar as lágrimas, mesmo
que seus próprios olhos estivessem claramente marejados. — O que
foi?
— Hormônios — murmurou, fechando os olhos ao sentir a testa
do loiro tocando a sua. — São uma merda, pode acreditar. O enjôo
também, e eu passei a última semana prestes a matar alguém por
uma torta de chocolate daquela padaria que fica perto do
apartamento do meu pai, mas eu não podia pedir assim do nada
porque não queria que você desconfiasse do meu desejo de grávida,
e…
Daniel riu, afastando-se apenas o suficiente para beijar
suavemente o nariz da mulher.
— Posso lidar com uns hormônios a mais.
— E com um bebê.
— Vai ser moleza. O Nico também vai ajudar.
Mariana soltou uma risada chorosa, relaxando no abraço de
Daniel.
Se havia uma coisa que ela sentia naquele abraço, era
segurança. Sim, definitivamente seria moleza.
— Posso? — Daniel esticou a mão até a sua barriga ainda
imperceptível. Mariana pensou em responder ironicamente que não,
ele não podia encostar na barriga da esposa que carregava a sua
criança, mas se limitou a assentir.
Só porque ele parecia tão incrivelmente maravilhado que ela
própria estava hipnotizada pela sua expressão.
Daniel tocou a região com cuidado. Mesmo sem qualquer
mudança muito visível em seu corpo — mas ela poderia jurar que
seus seios estavam maiores, e Mariana definitivamente notaria esse
crescimento súbito — ou a possibilidade de um movimento de um
feto tão minúsculo, ele a tocou como se sentisse em todas as suas
mínimas nuances quem existia ali.
Mariana já entendia bem esse sentimento. Muito, muito bem.
Era surreal de início, incrível o tempo inteiro. Ela havia pegado a si
mesma conversando com sua criança quando Daniel não estava por
perto inúmeras vezes.
— Amo vocês — ele sussurrou, levantando o olhar para selar os
lábios com Mariana delicadamente. — Eu amo muito vocês.
O latido ao lado chamou a atenção de ambos. Nicolas estava
próximo de Daniel, chamando a sua atenção.
— Você incluso, Nico. — Ele riu, acariciando a cabeça do cão.
— Cara, eu não acredito que você saiu comigo na última quinta
e não falou nada — Fernando resmungou, apesar de estar
visivelmente feliz. Mariana levantou-se em um pulo para abraçá-lo.
Fez o mesmo com Paulo, Alex, Vinícius, Jade, Bruno e Ivan.
Daniel ainda parecia um tanto anestesiado, com um sorriso largo
no rosto ao receber as felicitações dos amigos.
— Em minha defesa, Bruno e Ivan sabiam porque eles
organizaram o Amigo Secreto e eu precisava tirar o Dan — Mariana
explicou, tornando a sentar-se ao lado do loiro. — Eu queria que
fosse uma surpresa pra maioria. Se eu ficasse muito perto de você,
ia acabar contando.
— Bom, pelo menos você sabe quem vão ser os padrinhos… —
Bruno disse, fingindo ser discreto.
— Perdão? Eu conheço ela desde a adolescência — Fernando
rebateu.
— E que comecem os jogos… — Daniel brincou, se inclinando
para aspirar suavemente o pescoço da esposa. — Seu pai sabe?
Mariana negou.
— Eu pensei em contar com você.
— Merda, eu vou olhar na cara dele e dizer que te engravidei?
— ele brincou.
— A esse ponto, acho que ele imagina que eu não sou virgem,
Dan.
Bruno e Fernando pareceram dedicados ao debate de quem
merecia a posição de padrinho por mais quinze minutos antes que a
noite — madrugada, a tal altura — fosse considerada encerrada.
— Fora da cozinha — Daniel ordenou, no instante em que
fecharam a porta, depois que Fernando e Paulo foram embora. — Eu
cuido da louça.
— Nem tem muita coisa, eu só preciso…
— Pro quarto, Mari. Deixa comigo.
— Não é porque eu estou grávida de um mês que não posso
lavar alguns pratos, Dan!
— Olha, princesa, eu vou te explicar uma coisa. — Ele se
aproximou, beijando o seu rosto. Mariana sabia que uma das pérolas
de Daniel (que fazia com que quisesse beijar e socar a cara dele ao
mesmo tempo) estava por vir. — Pelos próximos oito meses, você
tem o dever e a obrigação de usar os privilégios da gestação pra
fazer com que todos façam tudo por você. Não desperdice isso.
Portanto, vá para o quarto, tome um banho quente e se prepare
porque eu vou fazer a melhor massagem nos pés que você já teve
na sua vida quando terminar por aqui.
Mariana pensou em rebater, mas a oferta da massagem era boa
demais para recusar. Além disso, já estava suficientemente
acostumada a ser chutada pra fora da cozinha quando Daniel queria
estar lá.
— Vem, Nico — chamou, vendo o labrador aproximar-se
animadamente. — Ele não quer a gente por perto.
— Quinze minutos! — Daniel gritou da cozinha.
Ele foi pontual. Quinze minutos e o homem estava no quarto.
Mariana estava cansada o suficiente para já se sentir sonolenta, mas
não o suficiente para dormir antes que Daniel se deitasse também.
— Vou tomar um banho — ele disse, acariciando a parte de trás
da orelha de Nico antes de pegar uma roupa limpa no closet. — Não
precisa me esperar.
— Eu vou. — Balançou a cabeça, pegando o celular.
Daniel pareceu economizar o tempo no chuveiro, porque
também não demorou nem um pouco no banheiro. Ele vestiu uma
calça larga de moletom, deixando a roupa anterior no cesto ao lado
da porta ao sair.
— Alguém além do Bruno e do Ivan sabe? — ele perguntou,
ajeitando-se ao lado dela. Daniel passou um braço ao redor da sua
cintura, puxando-a para mais perto.
— Sua mãe e a sua tia…
— Sério?! E elas conseguiram esconder de mim?
— Eu pensei em contar com você mas, sei lá, eu acho que
precisei da voz de alguém que entendesse isso quando descobri —
explicou, não contendo um suspiro com a mão de Daniel acariciando
a sua pele.
— Ei, tudo bem. — Ele se inclinou, beijando a sua testa. — Você
sabe que eu amo como vocês são próximas. Só sinto muito que a
minha tia esteja no pacote da casa.
Mariana riu, balançando a cabeça.
— Na verdade, ela me advertiu sobre todos os perigos de ter
uma criança com seus genes.
— Claro, a maior parte dos genes ruins também estão nela —
ele devolveu, lhe arrancando outra risada. — Você vai ser a melhor
mãe do mundo. Sabe disso, né? Parece clichê, mas é a realidade.
— Cala a boca, eu vou chorar outra vez.
— Vou aproveitar muito enquanto você estiver sensível —
completou, apertando-a suavemente no abraço. — Você pretende
deixar isso público?
Mariana se ajeitou, um pouco desconfortável com o
pensamento.
— Acho que prefiro deixar entre as pessoas mais próximas
pelas primeiras semanas. Minha médica disse que é mais seguro e
eu quero evitar estresses.
— Perfeito. Só pessoas mais próximas.
— Daniel, nosso bebê provavelmente vai ser virginiano.
Ele conteve uma risada, fingindo uma careta.
— Deveríamos ter planejado isso melhor. — O ex-jogador se
inclinou para beijar Mariana suavemente.
— E o parto vai ser normal.
— Guerreira, é por isso que eu te amo.
— E eu quero você comigo na hora.
— Sem desmaiar? Podemos negociar esses termos — brincou,
mas assentiu em seguida. — É claro que eu vou estar lá, Mari.
— Bom saber. — Mariana suspirou, pegando a sua mão. — E
você também vai ser o melhor pai do mundo.
— E o Nico vai ser a melhor babá do mundo.
Como se tivesse escutado, Nicolas latiu em concordância do
outro lado do quarto.
— Dan — Mariana chamou, inclinando-se para arrastar
superficialmente a ponta do nariz na curva do seu pescoço. — Você
quer ser pai?
— Acho que não é mais uma questão de opção, Mari — ele
brincou.
— Vai se foder.
Daniel riu. Ele riu, de uma maneira tão leve que até surpreendeu
Mariana. Ele não parecia estar achando graça ou brincando com a
sua cara.
Daniel só estava feliz. É fácil rir quando tudo o que há dentro de
si é felicidade. Mariana poderia jurar que todo o seu corpo — que já
parecia bem sensível nos últimos dias — estava prestes a se
desintegrar completamente.
— Eu vou confessar que sempre pensei em nunca ter filhos.
Parecia uma responsabilidade grande demais para alguém que
nunca teve uma figura paterna realmente presente. — Daniel enrolou
uma mecha dos cachos escuros em um dedo, parecendo pensativo.
— Essas coisas de pensar que eu seria a mesma coisa que ele,
sabe? Aí a possibilidade disso acontecer de uma forma tão
inesperada com alguém que eu mal conhecia me aterrorizou muito,
sim. Acho que nunca quis tanto que fosse possível sumir. Cheguei à
conclusão de que até poderia querer, mas precisava me planejar
com alguns meses de antecedência. E, quando eu vi aqueles
sapatinhos na caixa que você me entregou, por um momento eu
achei que sentiria o mesmo da última vez.
Mariana sentiu o corpo enrijecer com a informação. E Daniel
provavelmente percebeu, porque se inclinou para trás. Ele tocou o
seu queixo, erguendo uma sobrancelha.
— Eu não senti, Mari. Não quando eu estou com você, entende?
Quer dizer, eu estou com medo, porque é uma gravidez, uma criança
que eu já amo com a minha vida e eu quero que seja tudo perfeito.
Mas não é como se eu sentisse que estou sozinho. Eu tenho você, e
nós temos pessoas incríveis por perto. E vamos ter uma criança.
Como eu poderia não querer isso?
— Você vai acabar comigo — Mariana murmurou, sentindo os
dedos de Daniel limparem o seu rosto. — Acho que nunca chorei
tanto em um único dia.
— Vou fazer o máximo pra bater esse recorde. — O loiro pegou
a sua mão, tocando a aliança no seu dedo anelar. — Isso aqui meio
que me prende a você. Tô sem saída.
— Eu te odeio.
Daniel sorriu.
— Eu sei. Também te amo pra cacete.
— Acho que vamos ter que mudar o vocabulário daqui oito
meses.
— Definitivamente. Te amo pra carambolas.
Mariana não conteve uma risada, se inclinando para aproximar-
se de Daniel outra vez. Era sempre fácil cair no sono depois de suas
conversas com seu marido.
Era como um lembrete de que teria alguém incrível ao seu lado
quando acordasse, e era incrível.
— Agora, você está cansada e precisa dormir. — Daniel
acariciou o seu cabelo. — Feliz Natal, princesa.
Mariana fechou os olhos, aproveitando a sensação inebriante
que era estar plenamente feliz junto de Daniel, com quem era casada
e teria uma criança.
Era o melhor Natal que poderia pedir. E, ela sabia, apenas o
início de suas vidas.
FIM
Agradecimentos

Bom, é isso.
2021 foi o ano mais movimentado da minha vida. Sério, eu
nunca imaginei que poderia se tornar tão grande assim — eu, meus
livros, toda a minha visão sobre o mercado editorial e mundo literário.
É até engraçado, porque eu mesma não me valorizava a ponto de
enxergar a minha escrita como um trabalho. Isso me rendeu alguns
erros iniciantes mas, principalmente, bons e grandes aprendizados.
Obrigada a todas as pessoas que fizeram parte disso. De
amizades, betas, revisores, parcerias, principalmente, leitores. Eu
não seria o que sou e não teria chegado onde estou se não fosse por
vocês.
(Nota-se que sou horrível para agradecimentos.)
Enfim, eu também escrevi esse pequeno conto como um
agradecimento. Uma lembrança. E também um aviso: o Coraverso
ainda não acabou.
Em especial, o grupo “No Off”. Vocês melhoraram vários dos
meus dias mais caóticos.
Milla e Kay, eu não tenho palavras para explicar o quanto vocês
foram importantes para o meu ano. Me ajudaram a conhecer mais de
mim mesma, do que eu amo e do que eu quero para mim. Se eu me
valorizo um pouco mais do que valorizava no início do ano, é por
culpa de vocês. Obrigada.
Alycia, meu maior apoio quando eu estou a um passo de surtar
sobre todo o mundo da escrita. Não sei como você ainda me
aguenta, mas esse ano foi um pouco — muito — menos caótico
graças a você.
Sabs, que começou como minha social media, minha designer.
Hoje é uma das minhas maiores amizades.
Lara, Íris, Lua, Pedro, Bibi, Geo — o Ivan não é Verstappete!
Todas as pessoas que me auxiliaram desde que entrei nesse mundo.
Foram, ainda serão pessoas muito importantes para mim.
Obrigada por me permitirem passar um pouco de mim em cada
um dos meus livros. Eu nunca serei capaz de agradecer dignamente,
mas posso tentar.
Agora, se me permitem, estou entrando de férias. Feliz Natal.
Até 2022.

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