Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nunca mais
Em seu livro Ah! As Belas Lições, Radmila Zygouris (1995) nos diz sobre o brincar
como um dispositivo discursivo para a criança e que isso não é diferente sobre o tema da morte.
A criança brinca a morte: de si, do outro. Se coloca na cena com poder absoluto sobre o morrer
que se faz e se desfaz no lúdico, como Freud já havia nos contado na sua observação da
brincadeira do neto com seu carretel no jogo do Fort-Da, em que o Outro, naquela cena
representado pela mãe, se ausenta e retorna em presença. Lacan, em seu Seminário 6, vai nos
dizer que há um apelo ao Outro como presença, presença sobre fundo de ausência.(p.23)
Mas e quando esse outro, esperado pela criança em seu retorno, não retorna nunca mais?
Passei a me perguntar sobre isso quando meu marido, pai da minha filha, morreu há 1 ano e 4
meses, quando ela tinha 10 anos e ele, 48. Passei a me perguntar sobre o luto dela e das 40.800
crianças brasileiras que ficaram órfãs durantes os dois primeiros anos da pandemia de COVID-
19.
Ao ser noticiada por mim da morte do pai, repentina, apesar do histórico da doença que
o acompanhava, lembro de algumas coisas: o grito de “não, por favor diz que não é verdade,
que há alguma coisa que a gente pode fazer”, a frase “nenhuma criança de dez anos deveria
ficar sem o pai” e o choro. Depois disso, alternaram-se dias iniciais em que ela insistia em um
“faz-de-conta” de que tudo estava como antes e outros dias em que ela autorizava alguma
tristeza a aparecer.
Talvez seja pelo enigma do luto da minha filha que o enigma do luto da criança se tornou
uma questão para mim. Penso também em como os cuidadores com quem as crianças passaram
a viver lidam com as manifestações da falta pela criança. Se o silêncio ou o “faz-de-conta que
tudo está bem” intrigam, pois parecem colocar num campo de inacessibilidade a dor, as formas
pelas quais o sofrimento pode ser manifesto, podem ser insuportáveis para os adultos.
A criança, especialmente a criança pequena, se utiliza de recursos de linguagem em que
a palavra aparece menos e são mais presentes o choro, a agressividade, que custosamente
reprimimos para atender ao imperativo de que deve ser breve o tempo destinado ao luto. As
alterações do sono, do apetite, a diminuição do prazer de brincar também podem surgir.
Lembrei-me de um texto de Contardo Calligaris, chamado O direito à tristeza, no qual ele dizia:
“A criança triste é uma espécie de desertor; abandonou seu lugar na peça da vida dos adultos,
tirou sua fantasia de palhaço,” numa referência ao insuportável da tristeza da criança para nós
adultos.
Silenciamos o luto da criança pelo insuportável que ele representa sobre a nossa
incapacidade de fazê-la sorrir de novo? Ou haveria também particularidades da infância sobre
o luto que o faz diferente daquele visto nos adultos? Essas duas perguntas, certamente são
ingênuas e absurdamente insuficientes se considerarmos a singularidade do sujeito e também a
impossibilidade de pensar em uma única forma de infância como detentora da experiência da
criança. Assim como podemos afirmar que há infâncias, é possível também dizer que há lutos.
No texto Vida Precária, Vida Passível de luto (2020), Judith Butler trabalha a noção de
precariedade da vida, as condições que determinam essa precariedade e os efeitos dela sobre os
sujeitos, mas também que a precariedade é uma “condição compartilhada da vida humana”
(p.30). A partir do alto número de mortes daqueles que se encontram em condições de
precariedade, podemos nos perguntar, o que determina que uma vida deve ser ou não passível
de luto e, portanto, de proteção.
Assim como podemos dizer da singularidade do sujeito e das diferentes formas de viver
a infância, há também a História e os acontecimentos do nosso tempo em que essas mortes de
centenas de milhares de pais e mães estão inscritas. Há as formas de precariedade e desamparo,
que darão seus contornos às memórias dos nossos mortos e do luto das mais de 40.800 crianças
do nosso país, diante da vertigem dos seus nunca mais.
Sigo aqui, também com minha vertigem e o desejo de alguma suficiência das palavras.
Obrigada Lauro, Tyara, Elisa, Thales, Karine, queridos professores e professoras desse
curso, que com imensa competência e delicadeza, partilharam nas manhãs de sábado tanto
conhecimento e poesia. Senti saudades e já disse que certamente, foi um dos melhores cursos
que já fiz. Que sorte a minha! Um abraço muito apertado!