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Curso de Extensão: Luto, Melancolia e Linguagem – IEL UNICAMP

Aluna: Kelly Cristina Garcia de Macêdo Alcantara Data: 11 de janeiro de 2023

Nunca mais

Um dia, uma garotinha perde sua mãe. São tempos


de guerra e ela está na casa da avó. Ela pergunta: "Diga,
vovó, o que é a morte?" Sua avó responde:
Pense em sua mãe e diga a você mesma que
você nâo a reverá mais, nunca mais, nunca, nunca
mais, até que essas palavras se esvaziem de sentido,
que você sinta o vazio e a vertigem em você
mesma, e então se dará conta de que não pode
imaginar a morte e compreenderá um pouco o que
ela é. A garotinha pensou "nunca mais, nunca mais, nunca
mais...", as palavras se esvaziaram de sentido. Ela sentiu
vertigem.
Radmila Zygouris

Em seu livro Ah! As Belas Lições, Radmila Zygouris (1995) nos diz sobre o brincar
como um dispositivo discursivo para a criança e que isso não é diferente sobre o tema da morte.
A criança brinca a morte: de si, do outro. Se coloca na cena com poder absoluto sobre o morrer
que se faz e se desfaz no lúdico, como Freud já havia nos contado na sua observação da
brincadeira do neto com seu carretel no jogo do Fort-Da, em que o Outro, naquela cena
representado pela mãe, se ausenta e retorna em presença. Lacan, em seu Seminário 6, vai nos
dizer que há um apelo ao Outro como presença, presença sobre fundo de ausência.(p.23)
Mas e quando esse outro, esperado pela criança em seu retorno, não retorna nunca mais?
Passei a me perguntar sobre isso quando meu marido, pai da minha filha, morreu há 1 ano e 4
meses, quando ela tinha 10 anos e ele, 48. Passei a me perguntar sobre o luto dela e das 40.800
crianças brasileiras que ficaram órfãs durantes os dois primeiros anos da pandemia de COVID-
19.
Ao ser noticiada por mim da morte do pai, repentina, apesar do histórico da doença que
o acompanhava, lembro de algumas coisas: o grito de “não, por favor diz que não é verdade,
que há alguma coisa que a gente pode fazer”, a frase “nenhuma criança de dez anos deveria
ficar sem o pai” e o choro. Depois disso, alternaram-se dias iniciais em que ela insistia em um
“faz-de-conta” de que tudo estava como antes e outros dias em que ela autorizava alguma
tristeza a aparecer.
Talvez seja pelo enigma do luto da minha filha que o enigma do luto da criança se tornou
uma questão para mim. Penso também em como os cuidadores com quem as crianças passaram
a viver lidam com as manifestações da falta pela criança. Se o silêncio ou o “faz-de-conta que
tudo está bem” intrigam, pois parecem colocar num campo de inacessibilidade a dor, as formas
pelas quais o sofrimento pode ser manifesto, podem ser insuportáveis para os adultos.
A criança, especialmente a criança pequena, se utiliza de recursos de linguagem em que
a palavra aparece menos e são mais presentes o choro, a agressividade, que custosamente
reprimimos para atender ao imperativo de que deve ser breve o tempo destinado ao luto. As
alterações do sono, do apetite, a diminuição do prazer de brincar também podem surgir.
Lembrei-me de um texto de Contardo Calligaris, chamado O direito à tristeza, no qual ele dizia:
“A criança triste é uma espécie de desertor; abandonou seu lugar na peça da vida dos adultos,
tirou sua fantasia de palhaço,” numa referência ao insuportável da tristeza da criança para nós
adultos.
Silenciamos o luto da criança pelo insuportável que ele representa sobre a nossa
incapacidade de fazê-la sorrir de novo? Ou haveria também particularidades da infância sobre
o luto que o faz diferente daquele visto nos adultos? Essas duas perguntas, certamente são
ingênuas e absurdamente insuficientes se considerarmos a singularidade do sujeito e também a
impossibilidade de pensar em uma única forma de infância como detentora da experiência da
criança. Assim como podemos afirmar que há infâncias, é possível também dizer que há lutos.
No texto Vida Precária, Vida Passível de luto (2020), Judith Butler trabalha a noção de
precariedade da vida, as condições que determinam essa precariedade e os efeitos dela sobre os
sujeitos, mas também que a precariedade é uma “condição compartilhada da vida humana”
(p.30). A partir do alto número de mortes daqueles que se encontram em condições de
precariedade, podemos nos perguntar, o que determina que uma vida deve ser ou não passível
de luto e, portanto, de proteção.
Assim como podemos dizer da singularidade do sujeito e das diferentes formas de viver
a infância, há também a História e os acontecimentos do nosso tempo em que essas mortes de
centenas de milhares de pais e mães estão inscritas. Há as formas de precariedade e desamparo,
que darão seus contornos às memórias dos nossos mortos e do luto das mais de 40.800 crianças
do nosso país, diante da vertigem dos seus nunca mais.
Sigo aqui, também com minha vertigem e o desejo de alguma suficiência das palavras.

Obrigada Lauro, Tyara, Elisa, Thales, Karine, queridos professores e professoras desse
curso, que com imensa competência e delicadeza, partilharam nas manhãs de sábado tanto
conhecimento e poesia. Senti saudades e já disse que certamente, foi um dos melhores cursos
que já fiz. Que sorte a minha! Um abraço muito apertado!

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