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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PROJETO DE PESQUISA

PERCURSOS FORMATIVOS E IDENTIDADES LABORAIS:


O professor de Sociologia do Ensino Médio

SANTA MARIA – RS
2017
1

Nome: Dionas Ávila Pompeu

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo central estudar a formação da identidade
profissional do professor de Sociologia do Ensino Médio, tendo como recorte os que lecionam
nas escolas públicas estaduais da cidade de Santa Maria/RS. Como a perspectiva analítica
adotada nessa investigação não desvincula identidade profissional das relações concretas que os
indivíduos estabelecem em seu trabalho, outro objetivo que se desdobra aqui é o de conhecer as
condições específicas de sua atividade laboral. Entendemos que essas características singulares se
encontram no interior de um movimento mais amplo no mundo do trabalho, tal qual se modifica
de forma mais intensa a partir da reestruturação produtiva na década de 1990 no Brasil. Na busca
por analisar essas duas esferas de forma consistente e interligadas, adotaremos enquanto
fundamento teórico-epistemológico o conhecimento praxiológico proposto por Pierre Bourdieu.
Concebemos a posição do professor enquanto um trabalhador, o que significa dizer que
compartilha dilemas vividos pelo coletivo dos trabalhadores. No âmbito da identidade nos
referenciamos em Mokhtar Kaddouri e seu conceito de dinâmicas identitárias. Este termo
concebe elementos para análise das possíveis “crises” de identidade, o que desdobraria em um
outro interesse nosso, a saber, a forma como os professores lidam com as mesmas. No que toca
os fundamentos dessa crise, nos apoiaremos em Claude Dubar e no conteúdo que o mesmo
concebe para tal termo, enquanto que para analisarmos seus aspectos, assim como da própria
formação da identidade profissional desse trabalhador no campo subjetivo, utilizaremos a
reflexão metodológica de trajetórias também proposta por esse autor. O tema que versa sobre a
importância da Sociologia no Ensino Médio será tratado por meio de obras e também por
documentados elaborados e emitidos tanto pelo Governo Federal quanto Estadual.

Justificativa: Procurar conhecer os trabalhadores da cidade, especialmente os professores que


lecionam Sociologia no Ensino Médio das escolas estaduais, é também compreender parte da
realidade do trabalho no Brasil. Nesse caso buscamos contribuir com o conjunto das pesquisas
sobre o tema. Além disto, no tocante o esforço em explorar analiticamente a construção das
identidades profissionais, para o qual levamos em consideração os aspectos objetivos e subjetivos
2

dessa trajetória, consideramos histórias de vida desses trabalhadores, sonhos, frustrações, enfim,
pretendendo conhecer os elementos de subjetividade dessas experiências.
Ademais, outro ponto que merece destaque é o que se refere ao ensino de Sociologia na
educação básica. A disciplina, que historicamente registra um caráter de intermitência nos
currículos das escolas no Brasil, novamente se encontra fragilizada. A reforma educacional do
governo Michel Temer, que alterou a educação básica através da Lei n° 13.415/2017 1 - originária
da Medida Provisória nº 746/20162 -, ocasionou na retirada da Sociologia, junto de outras
disciplinas, enquanto disciplina obrigatória dos currículos das escolas de Ensino Médio 3 – status
que fora adquirido em 2008 pela lei 11.684. Assim, ao tratarmos da importância da Sociologia
nas escolas, estaremos, ao mesmo tempo, contemplando e oferecendo à sociedade uma pesquisa
de relevância pública no que toca às acareações pela permanência da Sociologia enquanto
disciplina obrigatória nos currículos escolares.

Apresentação: O presente trabalho pretende discutir enquanto problema de pesquisa a


conformação da identidade profissional do trabalhador da área da educação. Dito de outra
maneira, investigar a construção da “identidade para si” e da “identidade relacional” por meio da
atividade de trabalho (Dubar, 2005). Enquanto recorte específico, tem-se como objeto os
professores do ensino médio das escolas públicas estaduais da cidade de Santa Maria/RS, mais
notadamente aqueles que ministram a disciplina de Sociologia. Apoiamo-nos enquanto um dos
estímulos para essa pesquisa o fato de que há pouco tempo esses professores não tinham
formação específica na área4 (Brum; Perurena; Oliveira, 2013). Nesse sentido, uma de nossas
hipóteses é a de que por esse quadro permanecer atual, apesar do período de 9 anos desde a
implementação obrigatória da disciplina no ensino médio, tanto o ensino de sociologia como a
educação em geral sofrem considerável impacto no seu quesito qualidade. Isto porque muitos
professores possuem jornada de trabalho intensificada, lecionando, muitas vezes, em duas ou

1
Cf. em sítio oficial da Presidência da República. Disponível em: <https://goo.gl/oiYpFo>. Acesso em: 03/12/2017
2
Cf. Diário Oficial do dia 22 de setembro de 2016. Disponível em: <http://migre.me/vf0Ci>. Acesso em:
07/10/2016.
3
Sociologia, juntamente com Filosofia, Artes e Educação Física, será ministrada não mais como obrigatória, mas sim
enquanto estudos e práticas, ou seja, será diluída em meio a outras disciplinas. Cf. em Estadão. Disponível em:
<https://goo.gl/5U14nC>. Acesso em 03/12/2017. Cf. também na própria lei que se encontra na primeira nota de
rodapé deste projeto.
4
Cleber do Nascimento. Ensino de Sociologia: formação dos docentes e o ensino nas escolas estaduais de Santa
Maria/RS. Publicado em Universidade Federal de Santa Maria. Disponível em: <https://goo.gl/TZKttd>
3

mais disciplinas, seja na mesma ou em outra escola 5. Concebemos que essa conjuntura põe em
risco tanto o manejo do material didático quanto o método de ensino adotado. Portanto, a falta de
formação somada à precariedade das condições de trabalho, pode ser um grande obstáculo para a
formação de uma comunidade disciplinar consistente. Essa, por sua vez, pode ser elemento que
contribua para gerar uma fragilização do sentimento de coletividade desses trabalhadores ou até
mesmo impactar na institucionalização da disciplina.
Apesar do nosso foco ser a (formação da) identidade profissional do docente, acreditamos
– e por isso adotamos enquanto pressuposto – que não é possível analisá-la isoladamente, isto é,
levando em consideração somente aquilo que estes agentes sociais dizem sobre si. Em nosso
entendimento é necessário levar em consideração seu caráter relacional com outras instâncias da
vida prática e concreta, ou seja, o sistema de relações mais estrutural que fazem com que os
sujeitos digam tais coisas acerca de si. Dito de maneira mais clara, conforme Claude Dubar
(2005: 151), “para realizar a construção biográfica de uma identidade profissional e portanto
social, os indivíduos devem entrar em relações de trabalho, participar de alguma forma das
atividades coletivas em organizações, intervir de uma maneira ou de outra em representações”.
Dada essa constatação, entendemos que para compreender essas “relações de trabalho” é preciso
conhecer a dinâmica do mundo do trabalho no qual esse sujeito se localiza. Face a isso, temos por
eixo nessa pesquisa pensar a relação identidade profissional e mundo do trabalho. Para tal,
adotaremos na qualidade de referencial teórico-metodológico e epistemológico, a reflexão da
praxiologia proposta por Pierre Bourdieu (1983; 2004; 2009).
O conhecimento praxiológico é uma tentativa de superação da dicotomia entre agência e
estrutura que teve origem nos clássicos das Ciências Sociais. De acordo com o autor é necessário
“que se submete a uma objetivação crítica as condições epistemológicas e sociais que tornam
possíveis tanto o retorno reflexivo sobre a experiência subjetiva do mundo social quanto a
objetivação das condições objetivas dessa experiência” (BOURDIEU, 2009: 43). Segundo
Bourdieu, esses dois momentos se encontram numa “relação dialética e que [...] mesmo se o
momento subjetivista parece muito próximo quando o tomamos isoladamente, [...] ele está
separado do momento objetivista por uma diferença radical”, a saber, “os pontos de vista são
apreendidos enquanto tal e relacionados a posições dos respectivos agentes na estrutura” (2004:

5
O caso desses profissionais que atendem mais de uma escola no Rio Grande do Sul supera a média nacional. Cf. em
Zero Hora. Em jornadas triplas, professores se dividem entre escolas para melhorar o salário. Disponível em:
<https://goo.gl/PJBYGL>. Acesso em 10/12/2017.
4

152). Nesse sentido que o “conhecimento praxiológico não anula as aquisições do conhecimento
objetivista, mas conserva-as e as ultrapassa, integrando o que esse conhecimento teve que excluir
para obtê-las” (idem, 1983: 48), ou seja, o alcance do conhecimento fenomenológico, aquele que
busca “refletir sobre uma experiência que [...] não se reflete, [...] a relação primeira de
familiaridade com o entorno familiar” (idem, 2009: 44).
Com vistas a buscar o objetivo proposto de modo, considerado por nós, mais qualificado,
trataremos o profissional-professor enquanto trabalhador, isto é, como parte da “classe-que-vive-
do-trabalho” (Antunes, 1999: 101), e que por essa razão compartilha dilemas comuns ao coletivo
dos trabalhadores. Conforme Antunes e Alves (2004), essa classe “compreende a totalidade dos
assalariados, homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho, não se
restringindo aos trabalhadores manuais diretos”, mas “incorporando também a totalidade do
trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força de trabalho como
mercadoria em troca de salário” (Antunes; Alves, 2004: 342). Essa localização é necessária pois
não é dado natural, visto que há formulações que consideram o professor enquanto pertencente a
uma classe média apartada da categoria de trabalhador, ainda que assalariado (Hiro, 2013).
A opção por tratar o professor enquanto trabalhador implica consequências substanciais
para nosso trabalho. Uma das mais significativas delas é o reconhecimento de que o “movimento
contemporâneo de reorganização produtiva que afeta os modos de gestão e a divisão social e
técnica do trabalho” intervém diretamente nas condições de trabalho e vida dos professores
(Jinkings, 2009: 02). Oliveira (2004) constata que a partir da reestruturação produtiva dos anos
90 no Brasil, o professor passou a se defrontar com novas exigências advindas do campo escolar
como um todo. De acordo com a autora, essas mudanças ocasionaram em intensificação e
precarização do trabalho docente, entendido o acréscimo de funções que o professor passa a
adotar, o que resultou em maiores degradações e descontentamento face sua profissão. Conforme
Jinkings (2009: 05), os estudos e pesquisas na área do trabalho docente “tem apontado para um
processo de pauperização dos professores, submetidos à baixa remuneração, a longas jornadas
laborais, ao multiemprego e ao subemprego, a precárias condições formativas e de trabalho”.
Posto isso, a relação que esse indivíduo tem com o Estado é imprescindível para esse trabalho,
em razão de que tal profissional, sendo funcionário dessa instituição, se encontra constantemente
regulado e submetido às suas transformações, seja em via de reformas educacionais ou tipo de
vínculo empregatício (Marcello, 2015).
5

Em vista disso, pressupõe-se que os professores de Sociologia das escolas defrontam-se


com essas mesmas situações. Entretanto, assumir essa matéria traz consigo implicações e
desafios específicos para a realização de seu ensino. Podemos citar o fato dos professores terem
de “lidar com uma disciplina pouco conhecida, sem uma tradição pedagógica consolidada”
(Jinkings, 2009: 05). Esse fato, decorrente do caráter intermitente da disciplina nos currículos
escolares, contribui para o “desconhecimento sobre o sentido e a finalidade” da mesma na “grade
curricular”, como também para sua “desvalorização, tanto pelas direções das escolas e pelo seu
coletivo de professores, tal como pelos alunos”, obstaculizando, assim, a “criação e a
consolidação de espaços de reflexão sociológica que promovam mediações significativas entre os
estudantes e o conhecimento científico da vida social” (Jinkings, 2007: 126). Em síntese, para a
autora, levando em consideração as determinações “mais gerais dos processos de ensino e
aprendizagem”, professores “sobrecarregados de trabalho, muitas vezes sem a formação
adequada para o ensino das ciências sociais e ministrando diferentes disciplinas”, são encontrados
nas salas de aula das escolas, gerando um contexto propício para que os sujeitos desenvolvam
“experiências pedagógicas descontextualizadas e fragmentadas, que não permitam uma
compreensão totalizante do mundo social contemporâneo” (Idem). Entende-se que essas
condições, assim como a questão dos contratos empregatícios e da instabilidade da disciplina,
impactam na identidade desses professores, tendo por base o fato de que esta se constrói na
dialética entre os processos objetivos e subjetivos (Bourdieu, 1983; 2004; 2009).
Como o presente projeto tem por objetivo abordar os trabalhadores que lecionam
Sociologia no ensino médio, é fundamental tocarmos na importância da disciplina nesse nível de
ensino. Para tal utilizaremos como base a obra das sociólogas Maria Bridi, Silvia Araújo e
Benilde Motim (2010), a qual contém um debate amplo e relevante sobre o ensinar e aprender
Sociologia. De acordo com as autoras, o Ensino Médio é um estágio privilegiado para fornecer
aos alunos condições para compreenderem e analisarem os “fenômenos sociais, apreender a
relação homem-natureza, as relações indivíduo e sociedade e suas instituições” do mesmo modo
que “a estrutura social, a produção e reprodução das desigualdades, as dinâmicas do Estado, da
cultura e da ideologia, num processo de desnaturalização desses fenômenos” (2010: 12, grifo das
autoras). Ademais, trataremos tanto dos Parâmetros Curriculares Nacionais + Ensino Médio 6,

6
Cf. Parâmetros Curriculares Nacionais + Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Disponível em: <http://migre.me/vfHox>. Acesso em: 10/10/2016.
6

assim como do Referencial Curricular para as escolas estaduais do Rio Grande do Sul 7, dada sua
importância essencial na orientação do professor em sua prática cotidiana.
No que se refere à esfera da subjetividade, ao reconhecermos que a identidade nunca se
encontra por acabada, optamos por utilizar o conceito dinâmicas identitárias proposto por
Mokhatar Kaddouri (2009). O termo tem por objetivos “deslocar o foco habitual sobre a
identidade enquanto resultado (sob o risco de reificá-la) e a analisá-la como processo em
perpétua construção, desconstrução, reconstrução”, assim como destacar a “dinâmica
identitária como uma totalidade constituída de componentes indissociavelmente complementares
e interativamente conflituosos” (2009: 24, grifo nosso).
Entre esses componentes, o autor destaca três, a saber, as identidades herdadas, isto é, “as
quais herdamos de nossas origens sócio-familiares”; as identidades adquiridas, ou seja, aquelas
que “construímos relativamente a nossas posições e pertencimentos sócio-profissionais, bem
como através dos papéis sociais que assumimos”; e, por último, o binômio “projeto de Si para Si
(projeto identitário pretendido) – projeto de Si para o Outro (projeto identitário prescrito)”
(Kaddouri, 2009: 24-26).
O projeto de Si para Si visa diminuir a distância que “separa seu Si atual (o que ele é) de
seu Si futuro (o que ele gostaria de ser)”, assim como a “distância entre o projeto que ele tem
para si mesmo (o projeto de Si para Si) e o [...] projeto de Si para o Outro”. Este último se trata
“de um projeto desejado para o sujeito por outra pessoa que não ele próprio” (Idem). Por
exemplo, na esfera profissional dos professores – que é de nosso especial interesse para esse
trabalho –, o Outro pode ser o Estado, materializado através de agentes públicos da administração
escolar, que se utilizam desse projeto (de Si para o Outro) “para significar a seu destinatário um
número de condutas institucionalmente valorizadas às quais ele tem que se conformar”
(Kaddouri, 2009: 27), ou até mesmo para delegá-lo a responsabilidade de ministrar uma
disciplina que não se encontra em sua área de domínio.
Compreendemos que esses três componentes não atuam de forma harmônica entre si, mas
sim de maneira constantemente conflituosa, pesando alcançar níveis mais extremos de tensão.
Por esse ângulo, concebemos algumas perguntas de pesquisa: de que maneira os professores que
não possuem formação específica em Sociologia, mas mesmo assim ensinam-na enquanto
disciplina para o Ensino Médio, vivenciam seus percursos? Quais desenhos identitários que se
7
Cf. Referencial Curricular. Lições do Rio Grande do Sul: Ciências Humanas e suas Tecnologias. Sociologia, p. 89-
114. Volume 5. Disponível em: <http://migre.me/vfIez>. Acesso em: 10/10/2016
7

configuram? Faz-se possível falar numa crise identitária mais acentuada nesses casos? Quais são
as estratégias para enfrentamento/superação dos dramas trazidos por trajetórias inconstantes?
Posto isso, o termo crise mencionado é entendido por nós a partir de Dubar (2009: 20)
como “uma ruptura de equilíbrio entre diversos componentes”, ou melhor, “como perturbações
de relações relativamente estabilizadas entre os elementos estruturantes da atividade”. Para
melhor observarmos essas possíveis crises e as formas dramáticas e/ou criativas de lidar com as
mesmas, assim como outros elementos da formação de sua identidade profissional, optamos pelo
referencial teórico centrado na trajetória de vida dos sujeitos (Dubar, 2005). O termo trajetória
diz respeito a uma junção entre o contexto histórico-social-cultural no qual o indivíduo se
localiza, e o quadro da trama individual onde o sujeito interpreta e reconstrói sua história pessoal
marcada pelas heranças do primeiro contexto. Nesse sentido, a “incorporação da identidade pelos
próprios indivíduos”, afirma Dubar (2005: 139, grifo nosso), “só pode ser analisada no interior
das trajetórias sociais pelas e nas quais os indivíduos constroem identidades para si que nada
mais são que a história que eles se contam sobre o que são”.
Entende-se que esse projeto tem por uma das finalidades estipular hipóteses e registrar
algumas perguntas que nos servirão de guia para o futuro trabalho. Para além das já expressas nas
linhas acima, podemos questionar ainda: de que modo a fragilidade da disciplina é
estimulada/provocada pelas decisões do Estado? Que relações possíveis podem ser observadas
entre a posição precária da disciplina e os problemas da educação em geral? De que maneira os
trabalhadores lidam com a falta de formação na área? E com jornada de trabalho? Busca-se
requalificação profissional? Ou melhor, tem-se tempo “livre” para a formação continuada? O que
leva os professores a assumirem diversas disciplinas? Qual a espécie do vínculo empregatício?
Quais as exigências dos concursos? E dos contratos temporários?
Enfim, compreende-se que na busca por responder essas questões, isto é, no interior do
próprio desenvolvimento da pesquisa, é muito viável que novas interrogações e “conceitos”
surjam e venham a se somar às nossas inquietações, as quais terão como fio condutor a reflexão
acerca das diferentes interfaces que compõem o tema das identidades laborais.

Método de Investigação:
Carlsen olhou para baixo, para as florestas a apenas trinta metros do avião. [...] Eram
pequenos lagos escuros, aos quais o reflexo do céu dava a aparência de vidro manchado.
A uns oitocentos metros de distância, no granito escarpado, uma cascata produzia uma
nuvem de névoa branca. Carlsen podia ouvir seu barulho encobrindo o do aparelho. A
8

oeste, o céu estava passando de dourado a vermelho. Havia alguma coisa de onírico e
sobrenatural naquela paisagem. [...] Naquela terra, era fácil acreditar em fantasmas e
demônios.

A intenção em trazer – enquanto analogia – esta passagem literária do livro Vampiros do


Espaço (1976) do novelista e escritor inglês Colin Henry Wilson é justamente para corroborar
com a ideia de que estamos imersos dos pés à cabeça na posição social que ocupamos no mundo
social no qual vivemos. Equivale dizer que a apreensão da realidade ocorre conforme a percepção
que os agentes sociais possuem “segundo o ponto de vista que adotam” e este, por sua vez, é
“visto a partir de um ponto” (BOURDIEU; WACQUANT, 2005: 155-156). Levando para o
campo acadêmico, Bourdieu (2015) afirmou, se utilizando de Saussure, que o objeto é criado pelo
nosso ponto de vista. Sendo assim, como produzir um conhecimento social (puxando a discussão
para a área das Ciências Sociais) objetivamente válido? A tentativa de uma resposta vem logo a
seguir.
Pode-se afirmar – de maneira objetiva – que em O Ofício de Sociólogo (2015) a proposta
elaborada por Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron foi de explicar
aquilo que chamaram de um “sistema de hábitos intelectuais” que tem por destino “levar em
consideração todas as ferramentas conceituais ou técnicas que permitem dar todo o seu vigor e
toda a sua força à verificação experimental” (p.10). Isto significa “ensinar os atos mais práticos
da prática sociológica” (p.12), i.é., o habitus da profissão de sociólogo, que nada mais é que a
“interiorização dos princípios da teoria do conhecimento sociológico” (p.14).
É com este quadro geral que os autores irão defender como fundamental à pesquisa
sociológica o princípio da vigilância epistemológica. De maneira um tanto quanto genérica,
atentamos que a epistemologia possui enquanto seu objeto o processo da elaboração dos
conhecimentos científicos. Nas Ciências Sociais, por obviedade deste ponto de vista, não seria
diferente, sendo, portanto, a reflexão epistemológica essencial em todos os momentos do
processo de construção da pesquisa social. A vigilância epistemológica nesse sentido é,
“subordinando a utilização das técnicas e conceitos a uma interrogação sobre as condições e
limites de sua validade” (idem), a proibição das “facilidades de uma aplicação automática de
procedimentos já experimentados” e o ensino de que “toda operação [...] deve ser repensada”
(idem), por mais repetida que seja. Trata-se, então, de se criar as condições para o pesquisador
9

tomar as rédeas por si próprio de sua pesquisa, caminhando com rigor epistêmico e metodológico
a uma maior cientificidade.
Operando em conluio com Gaston Bachelard uma nova “ordem epistemológica das
razões” (p.21), os autores defenderam que o “fato científico é conquistado, construído e
constatado” (p.22, grifos meus). Dito isto, graças a “natureza” do objeto nas Ciências Sociais –
ou seja, o universo das relações entre indivíduos e instituições, por assim dizer –, o fato é
conquistado justamente “contra a ilusão do saber imediato” (p.23), i.é., o intuicionismo
espontâneo do real surge aqui enquanto o primeiro entrave epistemológico a ser retirado do
caminho. Nesse sentido que os autores defenderam algumas técnicas de objetivação para realizar
essa ruptura com o senso comum.
Sem mais delongas, adentramos na questão propriamente dita. Dentre as técnicas
apresentadas pelos autores, pretendemos lançar mão de algumas delas, a saber, “a crítica lógica e
lexicológica da linguagem comum [...] para a elaboração controlada das noções científicas”
(p.24); ainda há a pretensão de realizarmos a pesquisa com dados quantitativos para ser mais
preciso do ponto de vista macrossociológico e ainda tecer, como ponderam os autores, a
construção de novas relações entre as teorias e o objeto; por último, mas não menos relevante, a
contestação decisória e metódica das aparências, baseada na “pertinência e coerência do sistema
de indagações que [se] coloca em questão” (p.25). Isto buscando gerar uma definição prévia do
objeto como construção teórica provisória destinada a constituir uma primeira noção científica 8
Além do mais, outras formas de vigilância epistemológica podem ser enumeradas, a
saber, o princípio da não consciência; contra os essencialismos e naturalismos; crítica a
sociologia espontânea; combate a tentação do profetismo; distinção entre teoria e tradição
teórica; e por último a estabelecimento da diferença entre teoria do conhecimento sociológico e
teoria do sistema social.
A ideia de discorrer sobre aspectos gerais de ordem epistemológica é em decorrência da
noção que o debate epistêmico é a priori e fundamental para o maior controle das metodologias e
instrumentos de análise9 (BOURDIEU et al., 2015). Criticando os metodólogos, Bourdieu et

8
Esta questão também aparece no texto Análise de conteúdo: considerações gerais, relações com a pergunta de
pesquisa, possibilidades e limitações do método (2014). Quando na discussão acerca da formulação da pergunta de
pesquisa, os autores Ricardo Cavalcante, Pedro Calixto e Marta Pinheiro destacaram que a “verdadeira pergunta
possui um pré-saber e um não saber que fazem parte do mesmo universo imaginário” e que é a partir “desta interação
entre ambas [...] nasce a resposta possível que pode ser norteada pelo conhecimento prévio” (idem: 15).
9
Isto diz respeito, no nosso caso em específico, à própria construção e realização de entrevistas. Conforme Bourdieu
et al., “o sociólogo que não submete suas próprias interrogações à interrogação sociológica não estaria em condições
10

caterva expõem suas preocupações em relação aqueles que buscam a perfeição metodológica,
que segundo eles essa obsessão poderia desabar naquilo que definiram como “deslocamento
epistemológico” (idem: 19). Este deslocamento nada mais é que o esquecer do questionamento
“sobre o objeto da medição e [...] se ele merece ser medido”; e que ao invés de pôr em questão
“as técnicas de medição e de nos interrogarmos sobre o grau de precisão desejável e legítimo, [...]
ou até mesmo de examinarmos [...] se os instrumentos medem o que se pretende medir” (idem),
podemos ser levados a “perseguir, com a obsessão das decimais, o ideal contraditório de uma
precisão intrinsecamente definível” (idem: 19-20). Este agarramento fixista à mecânica lógica
acaba sendo anticientífico, uma “ars probandi” em contraposição a uma “ars inveniendi”10 (idem:
14); e que “essa utilização legítima dos instrumentos lógicos serve, frequentemente, de caução à
paixão perversa por exercícios metodológicos que têm como única finalidade discernível permitir
a exibição do arsenal dos meios disponíveis” (idem: 18).
Tendo isto em vista e já sido feita a discussão acerca dos pressupostos epistemológicos,
coadunamos com Hartmut Günther (2006: 201, grifos nossos) de que o “método escolhido deve
se adequar à pergunta de uma determinada pesquisa”. Conforme o autor “o que une os mais
diversos métodos e técnicas incluídos nestas três grandes famílias de abordagem 11 é o fato de
todos partirem de perguntas essencialmente qualitativas” (idem, grifo do original). Nesse sentido,
para este estudo, dada a natureza da problemática apresentada, a saber, a formação da identidade
profissional das professoras e professores que ministram a disciplina de Sociologia no Ensino
Médio das escolas públicas e estaduais da cidade de Santa Maria, optou-se, na qualidade de
método, pela pesquisa qualitativa.
No tocante a esta perspectiva, entendemos que ela satisfaça demandas um tanto quanto
específicas. Levando em consideração Günther se apoiando em Flick, von Kardoff e Steinke
(2000), as bases teóricas da pesquisa qualitativa são que “a) a realidade social é vista como
construção e atribuição social de significados; b) a ênfase no caráter processual e na reflexão; c)
de fazer uma análise sociológica verdadeiramente neutra das respostas que elas suscitam”, i.e., “o questionador que,
por falta de uma teoria do questionário, não se interroga sobre a significação específica de suas perguntas, corre o
risco de encontrar facilmente uma garantia do realismo de suas perguntas na realidade das respostas recebidas”
(2015: 55-56).
10
“A obediência incondicional a um organon de regras lógicas tende a produzir um efeito de ‘fechamento
prematuro’, fazendo desaparecer, para falar como Freud, ‘a elasticidade nas definições’, ou, como diz Carl Hempel,
‘a disponibilidade semântica dos conceitos” que, pelo menos em certas fases da história de uma ciência ou do
desenrolar de uma pesquisa, constituem uma das condições da invenção” (idem: 18, grifo do original)
11
Günther está se referindo à observação participante; a criação de circunstâncias artificiais para observar o
comportamento humano; e o questionamento “às pessoas sobre o seu comportamento, o que fazem e fizeram e sobre
os seus estados subjetivos, o que, por exemplo, pensam e pensaram” (2006: 201).
11

as condições ‘objetivas’ de vida tornam-se relevantes por meio de significados subjetivos”; e por
último, mas não menos importante, que o “d) caráter comunicativo da realidade social permite
que o refazer do processo de construção das realidades sociais torne-se ponto de partida da
pesquisa” (idem: 202, grifo do original). Sendo assim, a pesquisa qualitativa se envolve, “nas
Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado”
(MINAYO, 2009: 21).
Haguette (2010: 59) apontou três conjunturas nas quais se priorizam ênfase a índices
qualitativos, a saber, “situações nas quais a evidência qualitativa substitui a simples informação
estatística relacionada a épocas passadas”; contextos em que a “evidência qualitativa é usada para
captar dados psicológicos que são reprimidos ou não facilmente articulados como atitudes,
motivos, pressupostos, quadros de referência”, etc.; e finalmente as circunstâncias nas quais
“simples observações qualitativas são usadas como indicadores do funcionamento complexo de
estruturas e organizações complexas que são difíceis de submeter à observações direta”.
Já no que diz respeito a coleta de dados, Günther (idem: 203) afirmou que “o fato de se
levar em conta mais explicitamente os valores e os demais atributos do pesquisador requer, por
parte da pesquisa qualitativa, maior detalhamento dos pressupostos teóricos subjacentes, bem
como do contexto da pesquisa”. Logo, a discussão teórico-metodológica proposta aqui nesta
pesquisa irá se fundamentar por meio da pesquisa bibliográfica na literatura especializada dos
temas. Para tal decidiu-se por livro, capítulos de livros, dissertações, revistas científicas, entre
outros (DESLANDES, 2009: 50-51).
Elementos de ordem estrutural interessa à pesquisa, questões vinculadas ao Estado como,
por exemplo, políticas educacionais, além do apoio em fontes já mencionadas acima, escolhemos
também por pesquisar em documentos oficiais elaborados e/ou emitidos por este órgão (idem).
Relativamente a investigação das trajetórias laborais que se encontram no interior das histórias de
vida contadas pelas e pelos profissionais investigados, elegemos como técnica a entrevista
semiestruturada, a partir da qual é permitido combinar “perguntas abertas e fechadas, onde o
informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto” (BONI; QUARESMA, 2005,
75) “sem se prender à indagação formulada” (MINAYO, idem: 64). Uma das vantagens é que as
pessoas tendem mais a falar do que responder por escrito – por exemplo oposição aos
questionários (BONI; QUARESMA, idem). Outra vantagem é a possibilidade de correção dos
enganos informados pelos agentes sociais entrevistados. Entre outros pontos positivos, atentamos
12

como fundamental no que diz respeito “a sua elasticidade quanto à duração, permitindo uma
cobertura mais profunda sobre determinados assuntos” (idem: 75).
Esta técnica foi escolhida conscientemente não somente levando em consideração seus
benefícios, mas também suas limitações. De acordo com Valdete Boni e Sílvia Quaresma, estas
se encontram muito mais nas delimitações do “próprio pesquisador, como por exemplo: a
escassez de recursos financeiros e o dispêndio de tempo” (idem: 76). Já do lado do entrevistado
“há insegurança em relação ao seu anonimato e por causa disto muitas vezes o entrevistado retém
informações importantes” (idem). Nesse sentido entendo de antemão que “não é possível
apreender fidedignamente as práticas dos sujeitos”, mas sim as narrativas de acordo com a visão
desses indivíduos, ainda mais sob o risco de influências que os entrevistados possam vir a sofrer
(DESLANDES, 2009: 49).
É importante destacar – novamente – certos elementos do “estatuto epistemológico da
produção do conhecimento”, i.e., que a “subjetividade e reciprocidade são valores a serem
considerados em um desenho de pesquisa com técnicas qualitativas de levantamento de dados”
(DINIZ; GUERRIERO, (2008: 291). Equivalente a dizer que a pesquisa social é também uma
relação social12 (idem; BOURDIEU, 2011). Conforme pontuou Debora Diniz e Iara Guerriero
(idem), a produção deste tipo de conhecimento se dá por meio “do encontro entre o pesquisador e
o mundo social”. Assim sendo, cabem certos cuidados nessa relação. Cremos que aqui é de total
relevância a menção a nossa autonomia enquanto pesquisadores de interpretar os dados coletados.
Nesse caso tomamos como uma forma de vigilância epistemológica a não-compra do discurso do
pesquisado13, visto que é da “representação mais ou menos consciente que o investigado fará da

12
Isto também quer dizer que não devemos naturalizar a relação entre o investigador e o investigado, posto que estes
se encontram em certas posições sociais que na maioria das vezes nem se aproximam. Caberia discorrer, enquanto
exercício de exorcismo do objeto, um relato que envolveria as questões de ordem subjetiva que nos aproximam dos
nossos pesquisados, ou seja, nos desenhar também enquanto um agente social conformado e conformador de uma
determinada posição na estrutura social.
13
O sociólogo “não pode re-produzir o ponto de vista de seu objeto, e constituí-lo como tal, re-situando-o no espaço
social, senão a partir deste ponto de vista muito singular (e, num sentido, muito privilegiado) onde deve se colocar
para estar pronto a assumir (em pensamento) todos os pontos de vista possíveis” (BOURDIEU, 2011: 713). O
mesmo Bourdieu também disserta sobre essa questão e suas limitações no Ofício de Sociólogo, sendo que para ele “a
maldição das ciências humanas talvez seja o fato de abordarem um objeto que fala. Com efeito, quando o sociólogo
pretende tirar dos fatos a problemática e os conceitos teóricos que lhe permitam construir e analisar tais fatos, corre
sempre o risco de se limitar ao que é afirmado por seus informadores. Não basta que o sociólogo esteja à escuta dos
sujeitos, faça a gravação fiel das informações e razões fornecidas por estes, para justificar a conduta deles e, até
mesmo, as razões que propõem: ao proceder dessa forma, corre o risco de substituir pura e simplesmente suas
próprias prénoções pelas prénoções dos que ele estuda, ou por um misto falsamente erudito e falsamente objetivo da
sociologia espontânea do ‘cientista’ e da sociologia espontânea de seu objeto” (2015: 50, primeiro grifo do original,
restantes nosso).
13

situação de investigação, em função de sua experiência direta ou mediata de situações


equivalentes, [...] que orientará todo o seu esforço de representação de si, ou melhor, de
produção de si” (BOURDIEU, 2006: 189). Sendo assim, a hierarquia entre pesquisador e
pesquisado não ocorre somente na hora de se iniciar ou de estabelecer as regras do jogo
(BOURDIEU, 2011: 695), mas também quando o investigador passa a decodificar e interpretar os
dados (idem: 711).
Dado o exposto, no que se refere a coleta dos dados, para além das questões teóricas pelas
quais já adentramos em campo, confessamos que houve a realização de duas entrevistas até o
momento, que podem ser consideradas como testes ou entrevistas-piloto 14. Apesar de reconhecer
que não foi possível abordar certos elementos de nosso interesse, admitimos que elas foram
bastante profundas, onde o/a entrevistado/a pareceu-nos bem à vontade para falar de questões até
polêmicas – em certa medida. Por outro lado, constatamos as limitações em momentos em que
houve menção a não possibilidade de fala “porque estava sendo gravado”. De maneira mais
velada também percebemos as reticências sobre certos temas.
Como a entrevista não é somente o momento em que ela está ocorrendo, acreditamos ser
relevante também mencionar sobre nossa inserção no campo. Como nada está planando no ar,
percebemos que o momento histórico15 não nos facilitou para o acesso às e aos entrevistados.
Aqui estou me referindo ao momento de greve que o estado do Rio Grande do Sul andou
vivenciando por parte do funcionalismo público em decorrência do parcelamento de salários do
Executivo16. Afirmamos isto tanto por causa da greve em que algumas professoras e professores
se envolvem diretamente, o que tem por consequência um dispêndio de tempo para isso e que
acreditamos não ser prioridade participar de pesquisas acadêmicas 17, assim como a própria
questão objetiva do parcelamento, visto que muitos precisam “se virar de qualquer jeito” 18 para
preencher essa lacuna. Por outro lado, percebemos também uma falta de habilidade enquanto
pesquisadores nessa conjuntura, o que abriu a possibilidade de repensarmos nosso método.

14
Uma semiestruturada e outra não estruturada.
15
Como encontrada em algumas leituras prévias sobre o tema e já também mencionada na questão na questão 1
sobre ética, de modo geral há uma dificuldade em ter contato com parte dessas e desses profissionais.
16
G1. Governo do Rio Grande do Sul pagará R$350 aos servidores nesta quinta. Disponível em:
<https://goo.gl/4W88QP>. Acesso em: 28/10/2017.
17
Já “perdi” uma entrevista porque o professor foi viajar para uma assembleia geral em Porto Alegre. Mas também
pode-se pensar que o momento também fosse propício para os professores “desabafarem” sobre o contexto.
18
Termo que uma professora utilizou para mim ao desmarcar a entrevista por causa da questão salarial.
14

A partir dos fatos elencados acima percebemos a necessidade de maior envolvimento com
o campo, o que significa para nós observarmos diretamente os agentes sociais pelos quais nos
interessamos. Outra questão interessante é o aprofundamento da pesquisa no que diz respeito a
uma das próprias limitações da entrevista, a saber, que ela não possa captar fidedignamente as
práticas dos sujeitos. Já a descrição densa, por exemplo, mencionada por Geertz (1989), se
propõe a captar as coisas enquanto estão se processando no interior das teias de significados
construídas pelos próprios indivíduos. E aqui entendemos como a etnografia pode ser um avanço
para nossa pesquisa.
Conforme Mariza Peirano (2014), uma boa etnografia deve cumprir três requisitos. O
primeiro trata de considerar “a comunicação no contexto da situação”; o segundo é transformar,
“de maneira feliz, para a linguagem escrita o que foi vivo e intenso na pesquisa de campo,
transformando experiência em texto”; e finalmente detectar “a eficácia social das ações de forma
analítica” (idem: 386, grifos do original). Puxando para os estudos do tipo etnográfico 19 da prática
escolar, para além das duas características elencadas na nota de rodapé número dezenove,
gostaríamos de destacar o recorte pelo qual iremos operar com nossos instrumentos e métodos.
A primeira dimensão é a “institucional ou organizacional”, que relaciona-se com as
“formas de organização do trabalho pedagógico, estruturas de poder, níveis de participação dos
seus agentes, disponibilidade de recursos humanos e materiais”, ou seja, “toda rede de relações
que se forma e transforma no acontecer diário da vida escolar. A segunda extensão é a
“instrucional ou pedagógica”, abrangendo as “situações de ensino nas quais se dá o encontro
professor-aluno-conhecimento”. Este contexto é marcado pelos “objetivos e conteúdos do ensino,
as atividades e o material didático, a linguagem e outros meios de comunicação entre professores
e alunos e as formas de avaliar o ensino e a aprendizagem”. O último enfoque será na dimensão
“sociopolítica/cultural”, a qual tem relação com os “determinantes macroestruturais da prática
educativa”, i.e., refletir acerca do “momento histórico, sobre as forças políticas e sociais e sobre
as concepções e os valores presentes na sociedade” (ANDRÉ, 2012: 42-44). As três dimensões
aqui citadas serão analisadas por meio da observação direta, entrevistas, questionários e análises
de documentos. Relevante frisar ainda junto da Marli André (idem: 44) que reconhecemos a

19
Conforme Marli Eliza D.A. de André, em Etnografia da prática escolar (2012), “o que se tem feito [...] é uma
adaptação da etnografia à educação”, levando a autora a concluir que o que se realiza são “estudos do tipo
etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito”. Isso significa que por um lado se encontram a utilização das
técnicas, a saber, “a observação participante, a entrevista intensiva e a análise de documentos” (idem: 28) e por outro,
“o pesquisador [enquanto] instrumento principal na coleta e na análise de dados” (idem).
15

existência de outras dimensões no mundo escolar, porém adotamos essas a priori como forma de
organização da pesquisa. Conforme a autora, essas dimensões elencadas dizem respeito a
questões básicas e fundamentais da “prática pedagógica cotidiana” que não podem ser esquecidas
na análise (idem: 44) e que ainda correspondem a “um nível mais profundo de explicação da
prática escola que leva em conta sua totalidade e suas múltiplas determinações, a qual não pode
ser feita nem abstrata nem isoladamente, mas com base nas situações do cotidiano escolar”
(idem), confrontado a teoria com esses elementos de ordem empírica20 (BOURDIEU, 2007)
Como bem destacou Marli André, “o pesquisador faz uso de uma grande quantidade de
dados descritivos: situações, pessoas, ambientes, depoimentos, diálogos, que são por ele
reconstruídos em forma de palavras ou transcrições literais” (idem: 29). Gostaríamos de registrar
a forma como pretendemos organizar essa “grande quantidade de dados”. Trata-se do RQDA,
“um pacote do aplicativo R para Análise de Dados Qualitativos”21.
Enfim, depois do discorrido aqui, concluo essa discussão com algo que considero
fundamental para o percurso da investigação. Günther afirmou que “enquanto participante do
processo de construção do conhecimento, idealmente, o pesquisador não deveria escolher entre
um método ou outro, mas utilizar as várias abordagens, qualitativas e quantitativas que se
adequam à sua questão de pesquisa”. Já “do ponto de vista prático existem razões de ordens
diversas que podem induzir um pesquisador a escolher uma abordagem, ou outra” (idem: 207,
grifos meu). A pretensão é incorporar a prática científica como uma atividade aberta e nunca
pronta de antemão, geradora de possibilidades de mudanças no transcorrer de seu caminho,
cabendo ao pesquisador compreender esses momentos para desenvolver sua pesquisa de forma
mais “completa” possível.

20
“Diferente da teoria teórica – discurso profético ou programático que tem em si mesmo o seu próprio fim e que
nasce e vive da defrontação com outras teorias –, a teoria científica apresenta-se como um programa de percepção e
de acção só revelado no trabalho empírico em que se realiza” (2007: 59).
21
Para mais informações conferir em sítio brasileiro sobre o pacote. Disponível em: <https://goo.gl/NWYzLF>.
Acesso em: 11/12/2017.
16

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