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ESSENCIAL
Renato Dani
Coautora
Maria do Carmo Friche Passos
Quarta edição
a
GUANABARA
KOOGAN
Gastroenterologia
Essencial
O GEN |Grupo Editorial Nacional reúne as editoras Guanabara Koogan, Santos. LTC, Forense. Método
e Forense Universitária, que publicam nas áreas cientifica, técnica c profissional.
Essas empresas, respeitadas no mercado editorial, construíram catálogos inigualáveis, com obras que
têm sido decisivas na formação acadêmica e no aperfeiçoamento de várias gerações de profissionais
e de estudantes de Administração, Direito, Enfermagem, Engenharia, Fisioterapia, Medicina, Odon
tologia, Educação Física e muitas outras ciências, tendo se tornado sinônimo de seriedade e respeito.
Nossa missão é prover o melhor conteúdo científico e distribuí-lo de maneira flexível e conveniente,
a preços justos, gerando benefícios e servindo a autores, docentes, livreiros, funcionários, colabora
dores e acionistas.
Nosso comportamento ético incondicional e nossa responsabilidade social e ambiental são refor
çados pela natureza educacional de nossa atividade, sem comprometer o crescimento continuo e a
rentabilidade do grupo.
Gastroenterologia
Essencial
Renato Dani
Professor Aposentado do Departamento de Clínica Médica da FMUFMG.
Membro Flonorário da Academia Nacional de Medicina.
Titular da Academia Mineira de Medicina.
Coautora:
Quarta edição
O
GUANABARA
KOOGAN
Os autores deste livro e a EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. empenharam seus m elhores esforços
para assegurar que as informações c os procedimentos apresentados no texto estejam em acordo
com os padrões aceitos à época da publicação, e todos os dados foram atualizados pelos autores até
a data da entrega dos originais à editora. Entretanto, tendo em conta a evolução das ciências da
saúde, as mudanças regulamentares governamentais c o constante fluxo de novas informações sobre
terapêutica medicamentosa e reações adversas a fármacos, recomendamos enfaticamente que os leitores
consultem sempre outras fontes fidedignas, de modo a se certificarem de que as informações contidas
neste livro estão corretas c de que não houve alterações nas dosagens recomendadas ou na legislação
rcgulamcntadora. Adicionalmente, os leitores podem buscar por possíveis atualizações da obra em
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C IP-B R A SIL . C A T A L O G A Ç Ã O NA FO N T E
SIN D ICA TO N A C IO N A L D OS E D IT O R E S DE L IV R O S, R J
D184g
4.ed.
Dani, Renato
Gastrocntcrologia essencial / Renato Dani, Maria do Carmo Frichc Passos. - 4. ed. - Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2011.
Inclui índice
ISBN 978-85-277-1834-9
Dedico este livro a Lucia Soares de Albuquerque, verdadeira irmã mais velha, amiga em todos
os momentos, falecida dias antes de seu centenário, e a Célio Diniz Nogueira, grande mestre
de cirurgia, grande amigo.
R. Datti
Para meus mestres de iniciação na ciência e na arte de Hipócrates, nos exemplos luminosos de
José de Laurentys Medeiros e Luiz de Paula Castro, bússolas orientadoras que me conduziram
ao saber sábio e de prática aprendizagem com um Vaz Coelho.
Com especial reconhecimento ao professor Renato Dani, pelo generoso convite que me abre
as portas deste livro de referência para toda a gastroenterologia brasileira, por ele magistral
mente concebido.
Há muitos anos um árabe, homem importante entre os seus, palácios subterrâneos, tampouco aqueles que os precederam.
dirigiu a um arqueólogo inglês, de nome Austen Henry Layard, Então, eis que aparece um franco, de um país afastado muitos
as palavras de espanto e respeito que verão adiante. O que mo dias de viagem, vai ele diretamente ao lugar, pega um bastão e
tivou toda a emoção e admiração do xeique foram as descober traça uma linha para cá, uma linha para lá. Aqui, diz, está o
tas trazidas à luz do dia pelo arqueólogo. Esse inglês, nascido palácio, e acolá está o portão. E mostra-nos o que, durante toda
de família modesta e mais tarde nomeado Sir, desenterrou das a nossa vida, esteve sob os nossos pés, sem que nada soubésse
areias do deserto maravilhas de um passado remoto, testemu mos. Maravilhoso! Maravilhoso! Aprendeste isso pelos livros,
nhas palpitantes do esplendor da perdida civilização assíria. Ele por artes mágicas, ou pelos vossos profetas? Di-lo, ó Bei! Diz-me
é um bom exemplo de como um homem de poucos recursos
o segredo da sabedoria!"
materiais, mas determinado, transforma sonhos em realidade.
Layard continuou o trabalho do francês Paul-Émil Botta, pio Assim discursou o aturdido xeique Abd-Al-Rahman. Eu
neiro no campo da arqueologia mesopotâmica, com quem se também queria saber esse segredo e meu coração se aquece ao
encontrara e cujas conversas muito o influenciaram. O francês imaginar que — quem sabe? — vocês o descubram. É possível
era, também, um médico como o trisavô, o bisavô, o avô e a que o caminho para lá chegar inclua ter um espírito aberto e
avó de vocês, meus netos, o que não deixa de gerar um certo desarmado, inteligência, curiosidade, observação crítica e sim
ar de empatia... Botta constitui outro belo exemplo de como plicidade. Simplicidade de espírito para reconhecer que pouco
nada interfere entre um homem e seu sonho, se o espírito é se sabe e que sempre devemos buscar aprender mais; humildade
forte. Agora, fechem os olhos, imaginem-se sobre uma duna para perceber que a verdadeira sabedoria é mais que erudição,
no deserto do Iraque e ouçam o árabe: mas que, ao mesmo tempo, permita sentir cada alvorada como
um reinicio e cada dia como outro momento para se procurar
uMeu pai e o pai de meu pai, antes de mim, abriram aqui as
suas tendas... Há doze séculos que os verdadeiros crentes — Alá o que toda a vida esteve sob os nossos pés.
seja louvado, só eles possuem a verdadeira sabedoria! — se es
tabeleceram neste país, e nenhum deles jamais ouviu falar em Com o amor do Renato
Apresentação
O Brasil é um país suficientemente importante em Gastro-soube utilizar os meios de que dispunha, analisando prospec-
enterologia para ter, em língua portuguesa, um bom tratado de tivamente um material patológico enorme, em comum com o
doenças do aparelho digestivo, como, de fato, existe. Um destes seu amigo Célio Nogueira. Exploraram a anatomia patológica,
foi editado por Renato Dani e Luiz de Paula Castro, e conta com a epidemiologia, a clínica, a cirurgia, enfim, a patologia pan
várias edições. A presente obra, Gastroenterologia Essencial, é creática brasileira sob múltiplos aspectos, bem como seu papel
mais compacta que o livro anterior, uma atualização crítica, nosológico. Fizeram isso tão bem que permitiram conhecer as
motivada pelos mais recentes progressos em Gastroenterologia. doenças do pâncreas melhor do que em diversos outros países
Penso que Renato Dani é, realmente, a pessoa apropriada para mais equipados. Após sua iniciação, Renato Dani não se deixou
redigi-lo. Eu o conheço há mais de 40 anos. Foi um dos primei repousar. Ele compreendeu que métodos sofisticados de pes
ros colaboradores do meu Serviço de Gastroenterologia Clínica quisa, como a biologia molecular, não tornam inútil a pesquisa
e do Grupo de Pesquisas em Patologia Digestiva de Marselha, clínica, como muitos imaginam. De fato, não é raro observar
setor este muito orientado para o pâncreas. Rapidamente, me que trabalhos complexos e bem elaborados não se aplicam a
dei conta das qualidades que fazem dele um pesquisador inter nenhum problema preciso. Multiplicando as conferências no
Brasil e em numerosos países da América e da Europa, ele pode
nacionalmente conhecido: é detentor de uma inteligência viva,
ser considerado, sem favor, um dos responsáveis pela vitalidade
bastante cético para rejeitar, sem dar maior atenção, o inútil e
da pesquisa em Gastroenterologia no Brasil. Ninguém duvide
o falso, ainda que revestidos de uma roupagem que impressio
que este livro, que traz uma visão precisa sobre múltiplos as
na, assim como tem a capacidade de identificar o relevante — e
pectos da patologia do aparelho digestivo, se compare aos bons
apreendê-lo. Juntos, em meu laboratório, estudamos os efeitos
similares publicados na literatura internacional.
da refeição simulada sobre a secreção pancreática do homem,
o que tinha sido descrito apenas no cão, por Pavlov (fase cefá- Henri Sarles
lica da secreção pancreática). Voltando a Belo Horizonte, ele Marselha.
Prefácio à Quarta Edição
Esta quarta edição de Gastroenterologia Essencial apresenta diagnóstico. Um exemplo edificante desses fatos é o livro de Za-
algumas diferenças se comparada com a anterior. A primeira e chary Cope (1881 -1974), Early diagnosis o f the acute abdômen,
mais importante novidade é a inclusão da professora Maria do publicado a primeira vez em 1921, com inúmeras edições. Foi
Carmo Friche Passos como autora associada. A doutora Maria atualizado apenas em seus comentários sobre exames comple
do Carmo é Professora Doutora da Faculdade de Medicina da mentares modernos, por William Silen, professor de Cirurgia
UFMG. É um nome bastante conhecido da Gastroenterologia da Harvard School of Medicine. Este livro é uma obra-prima
nacional, sobretudo entre aqueles que se interessam pelas do de Medicina Clínica e continua tão atual e útil quanto o era em
enças funcionais do aparelho digestivo. A sua inclusão certa 1921, justamente por privilegiar a clínica. A última edição, a
mente valoriza o nosso livro e é muito bem-vinda. vigésima, é de 2000.
O texto foi todo revisto para ficar conforme as normas do Dois colegas faleceram durante os trabalhos de preparação
mais recente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A Edi do livro, e lamentamos profundamente essas mortes e a falta
tora Guanabara Koogan, por sua vez, utilizou um programa de que farão: o Professor Doutor Washington Luiz dos Santos
computador que padroniza os termos mais usados em Medi Vieira, falecido por ocasião da 3dedição, e o Professor Doutor
cina, para uniformizar a grafia dessas palavras nos livros que Augusto Paulino Netto, durante a feitura da quarta edição. Am
edita. Particularmente, estranhamos algumas poucas palavras, bos foram muito importantes em edições passadas e estão incluí
mas todas foram pesquisadas pela Editora e se encontram jus dos nesta. Manifestamos aqui a nossa saudade e respeito.
tificadas no vernáculo.
Finalmente, queremos, mais uma vez, agradecer aos co
Do ponto de vista científico, o livro foi revisado integralmen laboradores, nacionais e estrangeiros, pelo esplêndido tra
te. Dois capítulos foram excluídos, por não serem mais rele balho ao escrever os seus capítulos. Agradecemos, também,
vantes para a Gastroenterologia clínica ou por tratarem de um aos leitores, e estamos abertos para suas sugestões e críticas.
teste propedêutico já rotineiro; outros tiveram a colaboração de Não poderiamos deixar de agradecer à diretoria do GEN
novos autores ou, ainda, foram incluídos por versarem sobre | Grupo Editorial Nacional - do qual faz parte a Guanaba
conhecimentos recentes, como o caso do 113, Transplante de ra Koogan -, na pessoa de seu diretor-presidente, Sr. Mauro
Intestino e Multivisceral. Os capítulos que seguem essas normas Koogan Lorch, que sempre nos prestigiou e tratou com distin
são: 23, 25, 34, 35, 50, 76, 92, 105 e 113. O livro é fartamente ção. Agradecemos também ao pessoal técnico da área da saú
documentado com figuras em preto e branco e, em relação às de: Sérgio Pinto, Robson Domingues, Aluisio AfFonso, Juliana
edições anteriores, conta com mais ilustrações coloridas. Que Affonso, Maria Fernanda Dionysio e Beatriz Carneiro, dentre
remos insistir no fato de que, apesar dos avanços dos testes outros que trabalharam no livro. A todos que nos apoiaram e
diagnósticos, o exame clínico é fundamental. Devemos ouvir incentivaram, o nosso muito obrigado.
os doentes, interrogá-los e proceder ao exame físico cuidadoso.
Muitas vezes, o doente, ao contar a sua história, nos entrega o Os autores.
Prefácio à Terceira Edição
Esta terceira edição da Gastroenterologia Essencial pretende Em 2004 faleceu o professor Liberato João AfFonso Di Dio.
seguir a mesma orientação das edições precedentes: compac Foi uma grande perda para o ensino e a pesquisa, tanto no Bra
ta, informativa e atualizada. A boa acolhida das duas edições sil, quanto na América do Norte. Fui seu monitor de Anatomia
anteriores justifica a atual e constitui, para o autor e colabora Humana na Faculdade de Medicina da UFMG e quero dar-lhe
dores, motivo de muita satisfação. Algumas mudanças foram o meu adeus nestas páginas.
introduzidas visando atender leitores e tratar de matéria que
Ao Sr. Mauro Koogan Lorch, diretor da Guanabara Koogan,
foi menos ventilada na segunda edição. O livro aumentou um
um verdadeiro gentleman, minha gratidão por sua confiança
pouco, agora tem 112 capítulos. Como sempre, os colaborado
e muitas gentilezas.
res fizeram um belo serviço, sobretudo se considerarmos que é
muito mais difícil escrever compactamente do que sem limites. Ao Sr. Sérgio Alves Pinto, o meu muito obrigado por seus
Aproveito, portanto, para agradecer a todos que escreveram cuidados e dedicação para fazer o melhor possível editorial
para as três edições e dizer-lhes da minha admiração e gratidão. mente.
Sou particularmente reconhecido aos amigos Adávio de Oli Finalmente, expresso minha esperança de que o livro con
veira e Silva, Luiz Gonzaga Vaz Coelho, Lorete Maria da Silva tinue a ser útil a médicos e estudantes que se interessam pela
Kotze, Mounib Tacla e à “turma” de Juiz de Fora. O entusiasmo Gastroenterologia.
deles contagia e impulsiona. Não posso deixar de mencionar
os meus residentes, que, através dos anos, constituíram motivo Renato Dani
de orgulho e um estímulo continuado. Verão de 2006.
Prefácio à Primeira Edição
Este livro foi encomendado pelo Sr. Mauro Koogan Lorch, a minha formação profissional ao Prof. Sarles, a cuja escola
da Editora Guanabara Koogan. Ele desejava uma obra que fosse tenho a honra de pertencer, e, também, aos Professores Luigi
compacta, atualizada, de leitura amena, e que servisse a estu Bogliolo e, especialmente, João Galizzi; deste, fui assistente por
dantes, clínicos e especialistas. Na realidade, ele estava pro muitos anos, e não conheço quem lhe seja superior em decência,
pondo uma tarefa bastante difícil e, por isso, a minha primeira retidão e respeito a seus semelhantes; aquele introduziu-me na
resposta foi um assustado não. No Natal de 1996, o Sr. Mauro pesquisa experimental e ensinou-me a ser crítico.
renovou o convite e, com seus argumentos envolventes e sim
Durante a impressão do livro, perdemos Eduardo Botelho
páticos, acabou por obter a temerosa aquiescência deste escri-
de Carvalho, colaborador em nossos livros médicos e colega na
ba. Antes do sim definitivo, porém, procurei ouvir colegas que
Faculdade de Medicina da UFMG. Faleceu prematuramente,
poderiam me auxiliar a cumprir aquele contrato tão específico.
aos 44 anos, em plena efervescência de uma carreira em franca
Assim, expliquei ao Adávio de Oliveira e Silva de que se tratava,
ascensão. Realmente, lamentamos muito. Devo assinalar a pa
e perguntei-lhe o que achava. A resposta foi o que o Adávio é:
ciência do Sr. Sérgio Alves, ocasionalmente necessária, durante
uma explosão de dinâmico otimismo e entusiasmo. Com essa
a gestação da obra; é sua a responsabilidade por todo o trabalho
positiva injeção de ânimo, convidei, em seguida, colaborado
gráfico envolvido na feitura deste livro. Ao agradecer à Gua
res reconhecidamente respeitados por seus conhecimentos e
experiência, e entreguei a eles, e a seus grupos, algumas partes nabara Koogan a confiança em mim depositada, pergunto-me
do livro. Ao Pedro Gaburri, Aécio Meirelles e Adilton Orne- se o Sr. Mauro aceitou o trabalho terminado como aquilo que
las, encomendei a primeira seção do livro; ao Márcio Tolenti- imaginara, pois muito compacto o livro não ficou, afinal são
no, confiei doenças do esôfago; ao Luiz Gonzaga Vaz Coelho, 100 capítulos... Reconheço, ademais, que alguns destes acaba
o bloco do estômago; à Lorete Kotze, a patologia do intestino ram mais longos do que eu desejava, mas achei que estavam
delgado; ao Adávio, o fígado; ao Mounib Tacla, as alterações do tão informativos que não deveria podá-los. Sobretudo, tenho
intestino grosso; e, a outros colegas, capítulos isolados. Creio a esperança de que os colegas encontrem em suas páginas res
que os leitores concordarão em que todos os colaboradores, postas para as indagações do dia a dia, e até mesmo algumas
nacionais e internacionais, se saíram muito bem, como era de informações que serão parte rotineira da formidável medicina
se esperar, e agradeço a cada um o seu esforço e competência. que se prenuncia para o século XXI.
O meu amigo, Professor Henri Sarles, de Marselha, escreveu a Lembro que, apesar de muito cuidado com as informações
“Apresentação”. Fiz questão de convidá-lo porque tenho por relacionadas à terapêutica, esse é um território muito movediço,
ele o maior respeito e afeição. O Prof. Sarles é líder de uma e alterações podem aparecer a qualquer momento.
prestigiosa escola de Gastroenterologia, com discípulos atu
Gostaria de terminar esse prefácio citando o padre Antonio
antes por todo o mundo, muitos aqui no Brasil. A sua cultura
Vieira (Lisboa, 6/2/1608 — Salvador, Bahia, 18/7/1697), ao es
é algo de notável, não só médica, mas humanística, o que faz
dele um homem à altura das melhores tradições da escola fran crever sobre a arte de semear, num franco anunciar de Guima
cesa. É um homem que é quelqu’un et quelque chose. O atual rães Rosa: Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo sefa z por
comandante dessa Escola de Marselha é o Prof. José Sahel, de compasso, na arquitetura, tudo se fa z por regra, na aritmética
renome internacional, que também colabora neste livro, e que tudo se fa z por conta, na geometria tudo se fa z por medida. O
mantém a tradição de nossa escola. Os leitores notarão que o semear não é assim. Ê uma arte sem arte: caia onde cair.
Prof. Sarles usou, a meu respeito, palavras fraternas, exageradas,
tais como um amigo se refere a outro, mas que, não obstante, Renato Dani
me deixaram emocionado e grato. Reconheço que muito devo Belo Horizonte, verão de 1998.
Sumário
99 Abscessos Intra-abdominais, 1097 109 Dor Torácica não Cardíaca (de Origem
Renato Dani e Bruno Squárcio Fernandes Sanches Indeterminada), 1205
Joffre Rezende Filho e Joffre Marcondes de Rezende
100 Tumores Carcinoides do Trato
Gastrintestinal, 1111 110 Flora Gastrintestinal Indígena, 1211
Luciano Cézar Ribeiro Magalhães, Renato Dani, Dulciene Maria de Magalhães Queiroz, Luciana Diniz
Márcio Guimarães Moreira Dias Silva, Andreia Maria Camargos Rocha e Gifone Aguiar
Rocha
101 Esquistossomose Mansônica, 1124
Guilherme Santiago Mendes 111 Diagnóstico e Tratamento das Complicações em
Endoscopia Digestiva, 1216
102 Doenças do Peritônio, 1130
Walton Albuquerque, Luiz Cláudio Miranda da Rocha,
José de Laurentys Medeiros e Maria do Carmo Vitor Arantes e Alexandre Rodrigues Ferreira
Friche Passos
112 Abdome Agudo, 1244
103 Obesidade, 1138
Frederico Passos Marinho e Adriana Athayde Lima Stehling
José Dayrell de Lima Andrade e Renato Dani
113 Transplante de Intestino e Multivisceral, 1258
104 Terapêutica Endoscópica em Patologia
Rodrigo Vianna e Thiago Beduschi
Biliar, 1151
Glaciomar Machado índice Alfabético, 1263
Gastroenterologia
Essencial
PARTE I
Generalidades
Hemorragia Digestiva Aguda
Alta e Baixa
Laura Cotta Ornellas Halfeld, e
Adilton Toledo Ornellas
3
4 Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
----------------------------------------- ▼-----------------------------------------
Quadro 1.1 Avaliação da gravidade da hemorragia digestiva aguda
imediatamente e infusão rápida de solução cristaloide com o A aparência do sangramento é útil no esclarecimento de sua
objetivo de restaurar e manter os sinais vitais normais. Além origem, mas pode induzir a erros. Quando o sangue é vermelho
disso, está indicada suplementação de oxigênio, monitoramen vivo e reveste as fezes, sugere origem retal (hemorroidas e fis
to dos sinais vitais e do débito urinário. Pacientes com hema- suras, principalmente). Melena indica que o paciente sangrou
têmese significativa e contínua ou aqueles que podem não ser no mínimo 50 a 100 m^ de sangue há pelo menos 14 h e rela
capazes de proteger a via respiratória por alguma razão e estão ciona-se mais à HDAA, embora mesmo lesões do cólon direi
sob risco de aspiração devem ser considerados para intubação to, com trânsito lento, possam apresentar melena. A presença
endotraqueal. Os pacientes hemodinamicamente instáveis de hematoquezia é mais comum nas lesões do cólon, do reto
e/ou portadores de comorbidades graves necessitam de trans e do canal anal, e menos frequente em hemorragias profusas
ferência para unidade de terapia intensiva. do delgado ou proximais ao ligamento de Treitz, com trânsito
A transfusão de glóbulos vermelhos está geralmente indicada acelerado. Em uma série de 80 pacientes com hematoquezia de
em todos os pacientes com sinais vitais instáveis, sangramento vulto, 74% tinham lesões no cólon, 11% eram casos de HDAA,
contínuo ou sintomas de baixa oxigenação tecidual. O objeti 9% com lesões provavelmente originárias do intestino delgado e
vo deve ser a manutenção do hematócrito acima de 30% em 6% sem origem identificada. A hematêmese é mais sugestiva de
pacientes idosos ou portadores de enfermidades nos quais as HDAA, mas a peristalse reversa pode produzi-la em lesões da
perdas sanguíneas impliquem risco maior, como as coronario- parte alta do intestino delgado, distais ao ligamento de Treitz.
patias, ou acima de 20 a 25% nos pacientes jovens e saudáveis. Vômito com sangue vivo geralmente indica sangramento gas-
Nos pacientes com hipertensão portal, o hematócrito não deve trintestinal alto significativo, mesmo em pequena quantidade.
subir acima de 27 a 28%, para não elevar a pressão venosa por Pacientes com vômito em borra de café habitualmente não es
tão com sangramento ativo, mas é provável que tenham san
tal. Pode-se utilizar plasma fresco congelado ou concentrado
grado recentemente.
de plaquetas, ou ambos, nos casos de coagulopatias e que re
Falsas HD podem ocorrer em vômitos de estase, fezes aver
querem transfusão de mais de 10 unidades de glóbulos verme
melhadas pela ingestão de beterraba, fezes negras pelo uso de sais
lhos. Hematócritos seriados devem complementar a avaliação
de ferro ou de bismuto, alimentos contendo sangue animal, san
clínica dos pacientes. Quando as transfusões sanguíneas não
gramento originário na cavidade oral, epistaxe ou hemoptise.
forem mais necessárias, deve ser feita suplementação de ferro
O exame físico visa a estimar o volume perdido, através da
após avaliação diagnóstica.
repercussão hemodinâmica, verificando-se a frequência do pul
so e a pressão arterial com o paciente deitado, assentado e em
posição ortostática, se possível. Atenta-se para a cordas muco-
■ ANAMNESEE EXAME FÍSICO sas visíveis e a presença ou não de sudorese. Propicia também
meios para identificar sinais de hipertensão portal, insuficiência
Embora cerca de 80% das HD cessem espontaneamente, a hepática, malformações vasculares, vasculites e coagulopatias.
abordagem diagnóstica necessita ser dinâmica e associada a A detecção de dor à palpação abdominal, linfadenopatia, massa
cuidados terapêuticos, com o objetivo de preservar o equilíbrio abdominal e esplenomegalia também são importantes no diag
hemodinâmico e a vida. nóstico. Ruídos intestinais exacerbados sugerem HDAA. O to
A magnitude do sangramento nem sempre está relaciona que retal deve ser realizado de rotina durante o exame físico em
da com a etiologia, estando ligada principalmente à idade do todo caso suspeito de HDAB, pois permite identificar patologias
paciente, ao uso prévio de medicamentos capazes de lesar a anorretais e, com isso, evitar que exames mais complexos sejam
mucosa ou de alterar o estado da coagulação do sangue, ou, realizados. O exame físico pode fornecer importantes informa
ainda, à presença de enfermidades preexistentes. ções sobre a localização do sangramento, enquanto a história
Inicialmente, deve-se fazer uma anamnese bem orientada, clínica é mais útil na determinação da etiologia.
no sentido de confirmar a existência do sangramento e o uso dos Lavagem com sonda nasogástrica tem sido utilizada com
medicamentos citados anteriormente. Outros aspectos referem- a finalidade de diferenciar HDAA de HDAB, no entanto não
se à história de hemorragia anterior ou existência de sintomas esclarece a etiologia do sangramento, nem é confiável para de
ou condições que possam produzir lesões capazes de sangrar. terminar a atividade da hemorragia. Quando positiva, pode ser
Arguir sobre cirurgias prévias, radioterapia, etilismo, uso de decorrente de trauma pela sonda e, quando negativa, mesmo
tóxicos e procedência de áreas onde prevaleçam certas doen com um aspirado aparentemente colorido por bile, não exclui
ças, como a esquistossomose mansônica. Sinais e sintomas que HDAA. Portanto, o seu uso tem sido desestimulado e não afeta
podem auxiliar na determinação de hipóteses diagnósticas são: a evolução do paciente. A única exceção seria na presença de
dor abdominal, náuseas, vômitos, mudança do hábito intestinal, hematoquezia em paciente com instabilidade hemodinâmica
anorexia e perda de peso. e possibilidade de HDAA.
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 5
Como a anamnese e o exame físico são importantes, mas não Fístula a o r to e n té ric a
H e m o b ilia
esclarecem a etiologia do sangramento, são geralmente necessá H e m o s u c c u s p a n c re a t ic u s
rios exames complementares. Os principais exames disponíveis Doença d e C ro h n
para diagnóstico de HD são: endoscopia, exames radiológicos
com contraste baritado, cintigrafia e arteriografia. Alguns exa
mes também se enquadram na categoria de procedimentos te
rapêuticos, como endoscopia e arteriografia.
■ Gastropatia hem orrágica e erosiva
Consiste em hemorragia subepitelial e erosões, geralmente
restritas à mucosa, onde não existem vasos sanguíneos calibro-
■ TRATAMENTO sos e, portanto, não causam sangramento volumoso. São incluí
das neste grupo as lesões de estresse observadas em pacientes
Os objetivos principais do tratamento na HD são a parada
críticos, como ocorre na insuficiência respiratória aguda, na
do sangramento e a prevenção do ressangramento. As formas
de terapia disponíveis para atingir tais objetivos são: farmaco- insuficiência renal aguda, nos queimados com mais de 35%
lógica, endoscópica, angiográfica e cirúrgica. A conduta varia de área corporal atingida, nos processos expansivos cerebrais,
de acordo com a etiologia, as condições gerais do paciente, a nas septicemias, nos pós-operatórios de grandes cirurgias, bem
gravidade do sangramento e está em constante evolução com como as lesões que se desenvolvem associadas ao uso de áci
o desenvolvimento de novas técnicas. do acetilsalicílico, etanol e AINH. A HD é a mais importante
e mais temida complicação da gastropatia, com maior morta
lidade em pacientes hospitalizados do que naqueles casos ad
mitidos primariamente por sangramento digestivo, pois surge
■ HEMORRAGIA DIGESTIVA AGUDA ALTA como um agravante da doença básica que determinou a hospi
talização, embora, também, em cerca de 80% dos casos, cesse
■ Etiologia espontaneamente.
As causas de HDAA estão relacionadas no Quadro 1.2. As
doenças têm frequência variável conforme a região estudada e ■ Lesão de M allory-W eiss
o tipo de amostragem utilizado. Varizes esofagogástricas e gas- É diagnosticada em aproximadamente 5 a 15% dos pacientes
tropatia hipertensiva serão consideradas no Capítulo 62. com HDAA e está frequentemente relacionada com esforços de
vômitos ou tosse, caracterizando-se por uma laceração longitu
■ Úlcera péptica gastroduodenal dinal ou elíptica localizada na região da junção esofagogástrica,
É a causa mais frequente de HDAA (cerca de 50% dos ca podendo comprometer a mucosa gástrica e/ou esofágica (Fi
sos). Os fatores mais importantes que predispõem a úlcera pép guras 1.1 e 1.2). A hemorragia surge quando a lesão atinge um
tica e sangramento são: acidez gástrica, Helicobacter pylori e plexo venoso ou arterial. Tem pior prognóstico quando ocorre
uso de AINH. Embora tenha havido redução tanto de hospi em pacientes com hipertensão portal. Na maioria das vezes, a
talização quanto de mortalidade por doença ulcerosa péptica lesão cicatriza em 24 a 48 h.
na década de 1990, a mortalidade por HD causada pela doen
ça tem se mantido estável, provavelmente devido ao balanço ■ Fístula aortoentérica
entre aumento do uso de AINH e redução na prevalência do É de ocorrência rara, mas tem mortalidade elevada. Localiza-
Helicobacter pylori combinada a aumento do uso de redutores se com mais frequência no duodeno distai ou jejuno, podendo
da acidez. A incidência de sangramento por úlcera duodenal é estar além do alcance do endoscópio convencional. Resulta de
aproximadamente o dobro daquela por úlcera gástrica. O res comunicação direta entre a aorta e o trato digestivo, provocada
sangramento é mais intenso nas úlceras de maior diâmetro e por aneurisma, aortite sifilítica ou tuberculosa, pós-enxerto aór-
mais profundas, nos portadores de coagulopatias, quando há tico (de aparecimento precoce ou tardio - entre 4 e 10 semanas,
coexistência de outras enfermidades e, principalmente, quando até 14 anos), úlcera penetrante, invasão tumoral, traumatismo
se desenvolve durante uma hospitalização. abdominal e radioterapia. Causa HD maciça, que leva ao óbito
6 Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
Figura 1.1 Lesão de Mallory-Weiss. (Esta figura encontra-se reprodu Figura 1.3 Lesáo de Dieulafoy com sangramento em jato, localizada
zida em cores no Encarte.) na pequena curvatura do corpo gástrico. (Esta figura encontra-se re
produzida em cores no Encarte.)
■ Lesão de Dieulafoy
Ocorre quando uma artéria submucosa anormal calibrosa
fica exposta na superfície mucosa e depois se rompe, sem for
mação de úlcera no local. Localiza-se, em geral, na parte alta
da pequena curvatura do estômago, próximo à junção esofago-
gástrica, embora ocorra em outras áreas do trato digestivo. Sua
etiologia é desconhecida, mas pode ser atribuída à isquemia da
superfície mucosa. A HD é frequentemente maciça e recorren
te. A lesão pode ser de difícil identificação, exceto quando está
sangrando ativamente ou apresenta estigmas de sangramento
recente (Figura 1.3).
Figura 1.5 Arteriografia seletiva em caso de hemobilia secundária a Figura 1.6 Úlcera gástrica com sangramento ativo. (Cortesia do Dr.
ferimento por arma de fogo: pseudoaneurisma em ramo secundário Lincoln E.V.V.C. Ferreira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
da artéria hepática, tratado por embolizaçáo. no Encarte.)
8 Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
# •• .
■ Terapêutica endoscópica
É considerada como o método mais efetivo para controle
• ' da HD por úlcera. Está indicada para os casos em que os sinais
•
- endoscópicos são preditivos de recorrência do sangramento ou
de mau prognóstico (sangramento ativo, vaso visível e coágulo
\
aderido), com significativa melhora da evolução dos pacientes,
incluindo redução de ressangramento, transfusão sanguínea,
necessidade de cirurgia, tempo de hospitalização, custo e m or
Figura 1.7 Úlcera gástrica com vaso visível. (Esta figura encontra-se talidade. A hemostasia pode ser feita através de métodos tér
reproduzida em cores no Encarte.) micos (laser, heater probe, eletrocoagulação mono ou bipolar,
coagulação com plasma de argônio), mecânicos (colocação de
clipes metálicos, ligadura elástica, endoloops) e de injeção de
substâncias através de um cateter ao redor do ponto de san
cilita bastante o procedimento. Antes de iniciar a endoscopia, gramento e diretamente nele. As substâncias mais usadas para
devem ser preparados os materiais necessários para realização injeção são o álcool absoluto, que desidrata e provoca reação
de hemostasia. inflamatória imediata, e a solução de epinefrina 1:10.000, vi
sando à vasoconstrição e à formação de coágulo. São usados
■ Arteriografia seletiva também solução salina, água, dextrose, cola de fibrina, trombi-
Este exame só é conclusivo quando o sangramento é supe na, cianoacrilato, além de agentes esclerosantes (etanolamina,
rior a 0,5 m f/m in, sendo realizado através de um cateter in morruato de sódio, polidocanol). Estudos que compararam as
troduzido na artéria femoral, que alcança seletivamente a ar diversas modalidades de hemostasia endoscópica em pacientes
téria gástrica esquerda. Permite ainda atuar terapeuticamente com lesões ulcerosas de alto risco geralmente demonstraram
através da administração de substâncias vasoconstritoras ou que sua eficácia foi semelhante. Entretanto, a terapia de inje
da embolização vascular. ção e os métodos térmicos (eletrocoagulação bipolar e heater
probe) são mais utilizados na prática por serem mais fáceis de
■ Cintigrafia aplicar, e os endoscopistas apresentarem maior experiência com
Indicada nos casos de HD não elucidadas através das me eles. Publicações demonstraram que a combinação da injeção
didas anteriores, principalmente na HDAB e no sangramento de epinefrina com termocoagulação ou com métodos mecâni
gastrintestinal crônico, podendo detectar perdas sanguíneas cos, como terapêutica inicial, foi mais efetiva em conseguir a
tão baixas quanto 0,1 m^/min. São feitos mapeamentos abdo hemostasia e prevenir o ressangramento do que a utilização só
minais após a administração intravenosa geralmente de hemá- da epinefrina. Outra publicação, na qual 1.169 pacientes com
cias marcadas com tecnédo99. As pesquisas devem ser feitas 1 HDAA foram tratados endoscopicamente, mostrou 8,7% de
e 4 h após a injeção, bem como 24 h depois, sendo de grande recorrência do sangramento, dos quais 48 pacientes foram sub
utilidade nos sangramentos intermitentes. A desvantagem do metidos ao retratamento endoscópico combinado, como pro
método é sua acurácia, muito variável, pois o sangue extrava posto anteriormente, e 44 encaminhados para cirurgia. Embora
sado movimenta tanto no sentido peristáltico quanto no an- tenham ocorrido dois casos de perfuração visceral atribuída
tiperistáltico, podendo induzir a erros de localização, além de à termocoagulação, as complicações foram menores entre os
não identificar a etiologia. Entretanto, como tem grande sensi que repetiram a terapêutica endoscópica do que entre os en
bilidade, poderia ser usado previamente à arteriografia, porque caminhados para cirurgia. As complicações mais frequentes
pacientes com cintigrafia negativa provavelmente também não da terapêutica endoscópica são a reativação do sangramento
terão êxito com a arteriografia, que exige maior perda sanguí e a perfuração visceral. Todos os pacientes com úlcera péptica
nea por minuto. devem ser investigados para a presença do Helicobacterpylori.
No entanto, durante o episódio de sangramento ativo, o teste
■ Exames radiológicos com contraste baritado da urease tem sensibilidade reduzida. Os pacientes com teste
Estes exames só têm indicação diante de falha dos outros positivo devem ser tratados para erradicar a bactéria, pois está
meios diagnósticos para elucidar a origem da HD, principal- comprovado que a erradicação do Helicobacter pylori previne
mente pela sua impossibilidade de demonstrar o sangramen a recorrência da úlcera péptica e da HD.
to ativo.
■ Antagonistas dos receptores H2e bloqueadores da
bombaprotônica
■ Tratamento Estudos experimentais indicam que o pH ácido retarda a
Os portadores de HDAA maciça ou moderada, os que apre coagulação sanguínea e aumenta a dissolução do coágulo por
sentam estigmas preditivos de ressangramento, devem ser hos enzimas proteolíticas, como a pepsina. A elevação do pH intra-
pitalizados, e aqueles com repercussão hemodinâmica im por gástrico pode facilitar a agregação plaquetária. No entanto, o
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 9
efeito dos antagonistas dos receptores H2nas úlceras sangrantes cirúrgica deve levar em conta as condições locais de endosco
tem sido desapontador, provavelmente por não promoverem pia, cirurgia e terapia intensiva.
inibição ácida máxima, sendo o seu uso em tais casos desa
conselhado. Os bloqueadores de bomba protônica propiciam ■ Gastropatia hem orrágica e erosiva
maior redução da acidez intragástrica que os antagonistas dos A profilaxia da gastropatia e da HD é preocupação não só
receptores H2 e mostraram-se como os únicos agentes farma- de gastrenterologistas como de todo profissional médico. A
cológicos com evidência suficiente de eficácia na prevenção de profilaxia para as lesões de estresse pode ser feita em pacientes
ressangramento por úlcera em pacientes de alto risco, o que os de alto risco através da tentativa de elevar o pH intragástri-
torna preferenciais na escolha terapêutica. Como grande par co acima de 4, com a utilização de antiácidos, inibidores dos
te dos pacientes também é submetida a tratamento endoscó- receptores H2, bloqueadores da bomba protônica, embora a
pico, o efeito dos bloqueadores de bomba protônica deve ser prescrição destes últimos seja relacionada com o risco de pneu
considerado como somatório ao da terapêutica endoscópica. monia. Em face disso e de um melhor conhecimento da fisio-
Pode ser administrado omeprazol ou pantoprazol em bolus de patologia da doença, voltada principalmente para alterações
80 mg, ambos seguidos preferencialmente de infusão contí no metabolismo oxidativo da mucosa, as medidas profiláticas
nua de 8 mg/h durante 72 h, após a hemostasia endoscópica. têm se dirigido mais no sentido de manter uma ventilação pul
Depois de cessarem os vômitos e feita a realimentação, pode monar adequada e estabilização hemodinâmica dos pacientes
ser administrado, por via oral, o omeprazol, de 40 mg, a cada com risco previsível. Pode-se usar também o sucralfato (4 a
24 h. Ele pode ser substituído por lansoprazol, pantoprazol, ra- 6 g/24 h), por sua ação citoprotetora, com menor incidência
beprazol ou esomeprazol. Entretanto, ainda não se esclareceu de pneumonia nosocomial. Entretanto, as lesões associadas ao
qual o agente farmacológico, a via de administração, a dose ou uso de etanol, ácido acetilsalicílico e AINH têm sua prevenção
a duração do tratamento mais eficaz. Após o controle do san- dificultada, principalmente quando se leva em consideração a
gramento, o tratamento clínico deverá ser orientado conforme relação custo/benefício para manter, por períodos prolongados,
descrito no Capítulo 19. os inibidores dos receptores H2, os bloqueadores da bomba de
prótons ou o sucralfato. Os AINH com ação inibidora seletiva
■ Somatostatina eoctreotídio
da ciclo-oxigenase-2 também estão associados a HD por úlcera,
Atuam reduzindo a pressão venosa portal e o fluxo arterial mas em menor proporção que os demais AINH. No entanto,
para o estômago e o duodeno, enquanto preservam o fluxo ar
o seu uso foi reduzido devido à possibilidade de aumento do
terial renal. Metanálise que incluiu 1.829 pacientes com HDAA risco de doenças cardiovasculares.
não varicosa concluiu que tais medicamentos reduzem o risco
O tratamento clínico das HD por gastropatia inclui o uso dos
de sangramento contínuo e a necessidade de cirurgia, e que eles
inibidores dos receptores H2 ou dos bloqueadores da bomba
são mais eficazes em sangramento por úlcera péptica do que
de prótons, conforme descrito anteriormente para as úlceras
por outras causas. Podem ser considerados nos casos de HD
pépticas gastroduodenais. A somatostatina e o octreotídio po
de vulto antes da endoscopia e nos casos de fracasso do trata
dem ser prescritos com as mesmas restrições, indicações e doses
mento endoscópico ou na sua impossibilidade, ou ainda diante
citadas em relação à úlcera péptica gastroduodenal.
da impossibilidade cirúrgica. A somatostatina é administrada
por via intravenosa, na dose de 50 a 250 pg em bolus, seguida Durante o exame endoscópico, pouco se pode fazer para
de 3,5 jxg/kg/h, em solução salina, até 48 a 72 h após cessada a tratamento das lesões sangrantes, exceto quando um pequeno
hemorragia. O octreotídio tem vida média mais longa, menor número de erosões isoladas são a causa do sangramento. Nos
custo e maior resistência à degradação enzimática. Pode ser casos rebeldes, pode ser tentada a farmacoterapia angiográfi-
administrado por via intravenosa, inicialmente em bolus de ca, através do cateterismo seletivo da artéria gástrica esquerda,
100 jig, seguido de 25 |ig/h IV. A via subcutânea, com admi e a administração de vasopressina diluída em soro glicosado,
nistrações a cada 8 h, pode ser uma alternativa. na dose inicial de 0,2 m^/min nas primeiras 24 h, seguida de
0,1 m^/min nas 36 h seguintes. Esse procedimento pode desen
■ Tratamento angiográfíco cadear algumas complicações, como: retenção hídrica, hipona-
Embora seja raramente indicado em pacientes com úlcera tremia, hipertensão transitória, bradicardia, arritmias, edema
sangrante, pode ser útil naqueles que apresentam hemorragia agudo pulmonar e isquemia miocárdica.
intensa, persistente, em que a terapia endoscópica não é bem- Nos casos de HD persistente ou recorrente, a cirurgia deve
sucedida ou não está disponível, e a cirurgia é muito arriscada. ser indicada, desde que viável. A vagotomia seletiva, com pi-
Pode ser realizada aplicação intra-arterial de vasopressina ou loroplastia e sutura das lesões sangrantes, é uma das cirurgias
oclusão seletiva da artéria sangrante com agente embolizante. mais adequadas. Nos casos de HD incontrolável, a gastrecto-
Complicações do tratamento angiográfico são: isquemia, infar- mia total pode ser o último recurso eficaz em mãos experientes.
to, perfuração e abscesso em órgãos-alvo ou não. No entanto, o tratamento cirúrgico está associado à elevada
mortalidade.
■ Cirurgia
Está indicada quando o sangramento não responde ao tra ■ Ectasia vascular antral (estôm ago em m elanda)
tamento habitual. A decisão precisa ser individualizada, mas Nos casos raros de hemorragia maciça, a terapêutica endos
a cirurgia deve ser prontamente indicada quando sua protela cópica permite debelá-la e, na falha desta, a antrectomia é a op
ção represente risco de vida para o paciente. Recomenda-se ao ção definitiva. Coagulação com plasma de argônio, aplicado em
menos uma tentativa de retratamento endoscópico antes de várias sessões, reduz o risco de ressangramento e a necessidade
indicar cirurgia no caso de ressangramento após terapia inicial, de transfusões sanguíneas.
utilizando as mesmas técnicas ou métodos diferentes. Durante
a cirurgia, pode ser realizada apenas sutura da lesão sangrante ■ Lesão de M allory-W eiss
ou procedimento mais invasivo para redução da acidez, com Na grande maioria dos casos (80 a 90%), a HD cessa espon
o objetivo de prevenir recorrência. A decisão por intervenção taneamente, mas alguns são controlados com a terapia endos-
10 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
■ Lesão de Dieulafoy C h o q u e o u h ip o te n s ã o n a a d m is s ã o
■ Lesões vasculares
São causas importantes de HDAB a isquemia mesentérica
e a colite isquêmica. A isquemia visceral secundária a exercí
cios físicos prolongados é uma causa rara de HDAB em atletas.
Vasculites causadas por periarterite nodosa, granulomatose de
Wegener e artrite reumatoide podem causar sangramentos di
gestivos em consequência de ulcerações e processo necrótico,
algumas vezes precipitados pela terapêutica com imunossupres-
sores, que causa trombocitopenia. Fístulas aortocolônicas são
Figura 1.8 Lesão de Dieulafoy da Figura 1.3 após hemostasia endos mais raras que as já citadas para o duodeno, mas aneurismas
cópica com clipes metálicos e aplicação de coagulador de plasma de aórticos ou aortoilíacos, bem como aqueles resultantes de en
argônio. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) xerto aórtico, podem causar HDAB de vulto e fatais.
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 11
■ Doença diverticular
A doença diverticular dos cólons constitui a causa mais fre Figura 1.9 Divertículo colônico com coágulo aderido. (Esta figura
quente de HDAB (cerca de 40% dos casos), mas a sua verda encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
12 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
■ Angiodisplasias
São vasos ectasiados, vistos na mucosa ou submucosa do
trato gastrintestinal, com incidência no cólon entre 1 e 2%, à
colonoscopia ou à necropsia, predominando no cólon direito
e em idosos (Figura 1.10). Estudos histológicos têm mostrado
que há um fino revestimento mucoso ou presença de úlcera-
ções como possíveis explicações para a HD. São responsáveis
por aproximadamente 11% dos casos de HDAB. Têm sido des
critas em associação com insuficiência renal crônica, doença
arterioesclerótica cardiovascular, doença de von Willebrand,
doença pulmonar obstrutiva crônica e cirrose hepática. Quando
se suspeita da existência de angiodisplasia, deve-se evitar o uso
de opioides como sedativos para a colonoscopia, porque eles GIUEN(R)
reduzem o fluxo sanguíneo mucoso, mascarando sua detecção.
Grande avanço no diagnóstico dessa doença foi obtido com a Figura 1.11 Angiodisplasia de cólon ascendente demonstrada pela
introdução da cápsula endoscópica, conforme foi demonstra cápsula endoscópica. Paciente de 82 anos, que, no espaço de 1 ano,
teve quatro episódios de hemorragia digestiva. Colonoscopias descre
do na Figura 1.11.
veram apenas alguns divertículos de cólon esquerdo, sem sangramen
to. O exame pela cápsula endoscópica mostrou, além da lesào descrita,
■ Lesões anorreta is outra menor no jejuno. (Cortesia do Dr. Roberto Santoro - Serviço de
Embora nem sempre sejam relacionadas entre as causas de Gastrenterologia do Hospital Governador Israel Pinheiro Filho). (Esta
HDAB, as hemorroidas têm sido responsabilizadas por 5 e 10% figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
dos casos de HDAB por alguns autores e apresentam-se de
modo intermitente ou maciço, sendo o sangramento observa
do mais frequentemente durante a defecação. Como a doen
ça hemorroidária tem prevalência considerável na população, anos, estudos bem dirigidos comprovaram que podem produ
outras causas de sangramento devem ser excluídas antes de zir diversos tipos de colites (eosinofüica, pseudomembranosa e
responsabilizá-la pela HDAB. colagenosa), bem como exacerbação de doenças preexistentes,
como colite ulcerativa e doença de Crohn, além de estenoses e
■ M edicam entos anti-inflam atórios não horm onais (AINH) úlceras de delgado e de cólon, podendo resultar em HD agudas
Sabe-se, desde a década de 1930, que os AINH são capazes ou sangramentos crônicos. A ação lesiva dos AINH sobre a m u
de lesar a mucosa gastroduodenal. Entretanto, só nos últimos cosa do trato digestivo tem mecanismo incerto, mas a hipótese
central seria através de alterações na síntese das prostaglandi-
nas, acreditando-se ainda em uma ação pré-sistêmica ou tópica,
alterando a integridade da mucosa. A introdução no mercado
de AINH de desintegração entérica permitiria poupar a porção
proximal do trato digestivo de sua ação pré-sistêmica, trans
ferindo para o intestino delgado e cólon essas ações deletérias.
Algumas publicações descreveram a recuperação de resíduos
de uma formulação com indometacina de liberação lenta em
áreas de perfuração do íleo e do cólon, bem como fragmentos
-------------------------------------------------▼ -------------------------------------------------
Quadro 1.6 Abordagem de um paciente com hemorragia digestiva aguda baixa
Ad ap tad o de Zuccaro, G. M anagem ent of the adult patient w ith acute lower gastrointestinal bleeding. Am . J. Castroenterol., 1998; 93:1202-8.
14 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
apresenta um algoritmo com a abordagem de um paciente com após a estabilização hemodinâmica do paciente, assegurando,
hemorragia digestiva aguda baixa. assim, boa tolerância ao preparo e à sedação para o exame. O
Os seguintes exames complementares são os mais utilizados tempo entre a admissão dos pacientes e a realização da colo
para definição etiológica da HDAB: retossigmoidoscopia, colo- noscopia varia, nos diversos estudos, entre 12 a 48 h. Estudos
noscopia, arteriografia seletiva, cintigrafia, cápsula endoscópica mostraram que a colonoscopia precoce está associada a menor
de intestino delgado, enteroscopia e outros. tempo de hospitalização.
As vantagens da colonoscopia de urgência incluem a maior
■ Retossigmoidoscopia probabilidade de detectar lesão sangrando ativamente ou es
Pode ser indicada, de início, em todo caso de HDAB, per tigma de sangramento recente e a possibilidade de a lesão ser
mitindo excluir doenças do cólon distai e anorretais. Além de passível de tratamento endoscópico. Portanto, a colonoscopia
oferecer chance de encontrar a lesão sangrante (Figura 1.12), de urgência tem sido recomendada como procedimento diag
a retossigmoidoscopia flexível pode identificar indícios de san- nóstico de escolha na maioria dos pacientes com HDAB, de
gramento recente (sangue vivo no reto ou sigmoide). Entre vido a alta acurácia diagnóstica, baixo índice de complicações
tanto, a sua utilização após a introdução da colonoscopia de e potencial terapêutico. O momento mais indicado para a sua
urgência tornou-se questionável, pois a presença de lesão dis realização, no entanto, ainda não foi determinado.
tai não exclui outras lesões colônicas sangrantes. A realização A capacidade de identificação do local responsável pelo san
da anuscopia deve ser estimulada por ser um exame de baixo gramento durante colonoscopia apresenta ampla variação nas
custo e ideal para detectar lesões anorretais. publicações sobre o tema (acurácia diagnóstica entre 48 e 90%).
Isso ocorre principalmente devido à falta de padronização dos
■ Colonoscopia critérios na definição dos achados endoscópicos, sendo sugerida
Mesmo diante da reconhecida importância da EDA no diag uma ordenação destes, conforme descrito no Quadro 1.7.
nóstico e na terapêutica da HDAA, a colonoscopia só foi utiliza Quando a suspeita se volta para o intestino delgado, a colo
da para a HDAB nos últimos anos. A colonoscopia de urgência noscopia permite estudar as porções distais do íleo ou visibilizar
foi relatada, pela primeira vez, nos anos setenta, mas não foi o sangue saindo através da válvula ileocecal. Para as porções
aceita de imediato como procedimento de eleição para HDAB, proximais, pode ser tentada a enteroscopia.
sendo realizada, em geral, quando o sangramento havia cessado
e o enema opaco ou a arteriografia era negativa. A relutância ■ Arteriografia seletiva
inicial ao seu uso, em virtude do risco potencial de complica Pode ser proposta nos casos de sangramentos de intestino
ções, foi aos poucos sendo superada. A partir da década de 1980, delgado ou de cólon, embora a colonoscopia seja o método
passou a ser indicada precocemente nos casos de HDAB, como mais seguro e eficaz para a definição de uma HD produzida
recurso propedêutico e terapêutico, desde que o preparo do có por lesão do íleo distai e cólon. Tem a vantagem de não depen
lon VO tornou-se eficaz e seguro. Entretanto, ainda costuma ser der de preparo para o cólon e poder ser usada como medida
indicada em pacientes que sangram, sem preparo prévio, com terapêutica, visando a estancar o sangramento. Contudo, pode
o objetivo de localizar sangramento ativo em um determinado causar complicações sérias, como: trombose arterial, reações ao
segmento cólico, ou, então, fazendo apenas o preparo através contraste e insuficiência renal aguda. Deve-se começar o estudo
de enema. Contudo, o preparo anterógrado permite melhor pela artéria mesentérica superior, porque as principais causas de
visualização da superfície mucosa, favorece a identificação da sangramento estão localizadas nessa área (doença diverticular
etiologia sem reativar o sangramento e aumenta a segurança e angiodisplasia) e, se for negativo, passa-se, então, para o ter
do procedimento por reduzir o risco de perfuração. Tal prepa ritório da artéria mesentérica inferior e tronco celíaco. Como
ro é bem tolerado e seguro, mas pode desencadear insuficiên a maioria das HDAB cessa espontaneamente, a arteriografia
cia cardíaca e desequilíbrio hidreletrolítico em pacientes com deveria ser reservada para casos em que a colonoscopia não foi
comorbidades. Portanto, a colonoscopia só deve ser realizada possível e para aqueles em que há sangramentos persistentes
ou recorrentes, cuja etiologia não foi identificada, e nos quais a
localização da lesão e a terapia efetiva podem salvar a vida.
Cl_ ii ■ Cintigrafia
Deve ser lembrada com o mesmo destaque e as mesmas res
trições feitas anteriormente em relação à HDAA. As vantagens
%
-------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------
Q u a d ro 1.7 Critérios para diagnóstico colonoscópico do local sangrante
1. Lo ca l c o m s a n g r a m e n t o a tiv o
2. V a s o v is ív e l n â o s a n g r a n te
3. C o á g u lo a d e r id o
4 . S a n g u e v iv o lo c a liz a d o n u m s e g m e n t o c o lô n ic o
5 . D iv e r tíc u lo u lc e r a d o c o m s a n g u e v iv o n as Im e d ia ç õ e s
6 . A u s ê n c ia d e s a n g u e v iv o n o íle o te r m in a l, m a s e n c o n t r a d o n o c ó lo n
Adaptado de Zuckerman, G R & Prakash, C. Acute lower intestinal bleedlng. Part I: Clinicai
Figura 1.12 Retite actínica com sangramento ativo. (Esta figura en- presentation and diagnosis. Gostrolntest. Endosc., 1998; 48:606-17.
contra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 15
da cintigrafia são: boa sensibilidade, segurança, o fato de não da, introduzido em 1994, que permite a localização de pólipos
ser invasiva, sem risco de reação a contraste e de baixo custo. e tumores colorretais, mas com as mesmas limitações para a
As suas desvantagens são: falta de capacidade terapêutica e dú localização do ponto sangrante. A angiografia por tomogra
vidas sobre sua acurácia. Cirurgia não deve ser indicada com fia computadorizada pode ser útil na identificação de ectasia
base apenas na cintigrafia. vascular colônica.
Esse método é de grande importância nos pacientes mais
jovens, quando há suspeita de divertículo de Meckel, com re
lato de sensibilidade e especificidade, respectivamente, de 85 ■ Tratamento
e 95%. A terapêutica clínica da HDAB deve seguir os mesmos cri
térios citados anteriormente para a HDAA, sendo mandatória
■ Cápsula endoscópica de intestino delgado a hospitalização para hemorragias moderadas e maciças. Na
O recente desenvolvimento da cápsula endoscópica permitiumaioria das vezes, a HDAB cessa espontaneamente, mas os pa
a visualização não invasiva do intestino delgado. São obtidas cientes com sangramento contínuo ou recorrente necessitam de
duas imagens por segundo por aproximadamente 8 h, que é o intervenção que debele a hemorragia. As opções terapêuticas
tempo de duração da bateria. As imagens são transmitidas, sem são mais limitadas que na HDAA.
fio, de uma cápsula descartável deglutida pelo paciente para um
gravador de dados, fixado à sua cintura e, depois, essas imagens
são transferidas para um computador e analisadas pelo endos- ■ Medidas específicas
copista. A principal indicação da cápsula endoscópica é HD ■ Terapêutica endoscópica
de origem obscura (não detectada por EDA ou colonoscopia), Deve-se lançar mão de exame endoscópico, por profissional
oculta ou não. Em diversos estudos, a cápsula endoscópica se experiente, logo após a admissão e estabilização hemodinâmica
mostrou mais sensível que outros exames não invasivos do in do paciente. São encontradas alterações durante colonoscopia
testino delgado, incluindo exames radiológicos contrastados, de urgência, com maior frequência, do que em procedimento
tomografia computadorizada e enteroscopia. A acurácia da cáp
eletivo. Cerca de 10 a 15% dos pacientes submetidos a colo
sula endoscópica para detectar lesões no intestino delgado é de noscopia de urgência por HDAB recebem algum tratamento
aproximadamente 70%. Atualmente, deve ser considerada a
endoscópico.
primeira escolha para investigação de sangramento de origem
A hemostasia pode ser realizada com eficácia, usando-se
obscura, como o caso ilustrado na Figura 1.11.
métodos de injeção, térmicos (laser, heater probe, eletrocoa-
gulação mono ou bipolar, coagulação com plasma de argônio)
■ Enteroscopia
e/ou mecânicos (clipes metálicos, ligadura elástica). O trata
Até o início deste século, dispunha-se apenas da enterosco
mento endoscópico deve ser realizado com cautela no cólon
pia denominadapush enteroscopia, que consiste na introdução
direito, que apresenta a parede mais fina, com o objetivo de
por via anterógrada de um endoscópio, que pode ser o colonos-
evitar perfuração colônica.
cópio pediátrico ou o enteroscópio convencional, permitindo
atingir apenas o jejuno proximal, raramente o jejuno médio.
■ Terapia angioterápica
Novas tecnologias permitiram o desenvolvimento de métodos
específicos para procedimentos endoscópicos diagnósticos e Nos casos de insucesso do tratamento endoscópico, pode ser
terapêuticos no intestino delgado. Tais procedimentos são rea realizada arteriografia com objetivo de interromper o sangra
lizados com endoscópios especializados disponíveis em poucos mento. Injeção intra-arterial de vasoconstritores (vasopressi-
serviços de endoscopia no momento e incluem: enteroscopia na) era considerada o tratamento angiográfico de escolha para
de duplo balão, enteroscopia de balão único e enteroscopia es HDAB, principalmente por doença diverticular e angiodispla-
piral. São técnicas diferentes, mas baseadas no manejo de um sia. Todavia, complicações maiores com vasopressina ocorrem
overtube sobre endoscópio longo, com sanfonamento das alças em 9 a 21% dos pacientes, e o índice de hemorragia recorrente
intestinais sobre o aparelho. Permite visualização de todo o in após infusão de vasopressina pode ser de até 50%. Atualmente,
testino delgado em até aproximadamente 86% dos pacientes, a embolização arterial superseletiva com diversos agentes subs
com baixa incidência de complicações. Pode ser utilizada a via tituiu a vasopressina intra-arterial para tratamento da HDAB.
anterógrada e/ou retrógrada. No entanto, são procedimentos Pode haver controle do sangramento em 44 a 91% dos casos,
demorados e cansativos, realizados com anestesia. A conduta com menor incidência de complicações maiores comparada à
mais preconizada é a realização inicial de cápsula endoscópica vasopressina. A recorrência do sangramento com embolização
para localização da lesão sangrante, seguida de enteroscopia superseletiva varia de 7 a 33%.
para seu tratamento.
■ Cirurgia
■ Outros m étodos de im agem A cirurgia pode ser necessária para tratamento de HDAB
Os exames contrastados de intestino delgado ou do cólon contínua ou recorrente e tem sido realizada em 15 a 25% dos
têm menor destaque na HDAB, pois não permitem identificar pacientes. A cirurgia de urgência, visando a conter a hemorra
com segurança o local sangrante e podem interferir no desem gia e preservar a vida, deve ser precedida de criteriosa pesquisa
penho de outros exames, como a colonoscopia. No entanto, no sentido de localizar o ponto sangrante. Quando a ressecção
podem ser indicados quando a HD cessa e não se sabe a causa. segmentar é feita às cegas, ou baseada apenas em cintigrafia, está
Para o intestino delgado, além do trânsito intestinal pode ser sujeita a recorrência do quadro hemorrágico e tem morbidade
feita uma enteróclise, que é um exame com duplo contraste, e mortalidade aumentadas. Entretanto, quando a arteriografia
consistindo na passagem de uma sonda nasogástrica e injeção ou a colonoscopia têm êxito na identificação do local lesado, a
de contraste baritado associado a metilcelulose. Merece desta ressecção segmentar produz melhores resultados. Em um es
que para o estudo do cólon, além do enema opaco, a colonos tudo de casos submetidos previamente à arteriografia seletiva,
copia virtual, estudo do cólon por tomografia computadoriza após 1 ano da cirurgia a incidência de ressangramento foi de
16 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa
14% naqueles que foram guiados pela arteriografia e de 42% de localizar com precisão o ponto sangrante. No insucesso da
quando a ressecção foi realizada após arteriografia negativa. colonoscopia e da terapia endoscópica, deve ser tentada a lo
Portanto, nos casos de emergência, quando se faz uma laparo- calização da área hemorrágica por cintigrafia e/ou arteriografia
tomia exploradora, é desejável que o ato cirúrgico seja guiado seletiva. Caso haja localização do ponto de sangramento, pode
por um exame endoscópico intraoperatório. ser tentado tratamento angiográfico. A cirurgia de emergência
Geralmente, a cirurgia é recomendada nos seguintes casos: deve ser reservada para os sangramentos incontroláveis. Entre
(1) pacientes que necessitam de mais de quatro unidades de tanto, quando não se tem êxito nos procedimentos anteriores
concentrado de glóbulos vermelhos dentro de 24 h; (2) pa para localizar o ponto lesado, haverá maior segurança se for
cientes com HD persistente e que exigem mais de dez unidades feito um exame endoscópico durante o ato operatório.
de hemotransfusão durante o surto de sangramento; (3) por
tadores de hemorragias recorrentes; (4) portadores de doen
ça diverticular que voltam a sangrar após um episódio inicial, ■ Prognóstico
com perdas entre 20 e 40% da volemia. Como esses critérios As variáveis clínicas que predizem a intensidade da HDAB
são relativamente arbitrários, a decisão cirúrgica nos casos de são semelhantes às descritas para a HDAA (Quadro 1.3). No
sangramentos maciços deve ser guiada também por outras va entanto, a HDAB difere da HDAA quanto à gravidade de sua
riáveis, como a concomitância de outras enfermidades e a si apresentação. Em um levantamento entre os membros do Co
tuação clínica de cada paciente. légio Americano de Gastroenterologia, demonstrou-se que a
As intervenções cirúrgicas mais indicadas são: (1) ressecção HDAB apresenta-se menos frequentemente com choque que
segmentar de emergência para uma fonte conhecida de sangra a HDAA (19 e 35%, respectivamente), exigindo menos hemo
mento persistente; (2) ressecção segmentar eletiva para uma transfusão (36 e 64%, respectivamente). A mortalidade varia
fonte conhecida de sangramento, como adenocarcinoma do de 2 a 4%.
cólon, ou para sangramento recorrente de uma lesão identifi
cada, como divertículo do cólon; (3) colectomia subtotal, com
anastomose ileorretal, para fonte desconhecida de sangramento. ■ LEITURA RECOMENDADA
As ressecções segmentares para fontes desconhecidas devem ser
evitadas porque são acompanhadas de risco de ressangramento, Adlcr, DG, Lcighton, JA, Davila, RE et al. ASGE guidclinc: The role of endos-
com maior morbidade e mortalidade. copy in acutc non-variccal upper-GI hcmorrhagc. Gastrointest Endosc,
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pacientes com HDAB e angiodisplasia é o endoscópico. Os se thc patient with lowcr-GI bleeding. Gastrointest Endosc, 2005; 62:656-60.
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de argônio. Contudo, a terapêutica endoscópica para hemos- Johnson, CD 8c Ahlquist, DA. Computed tomography colonography (virtual co
tasia é sujeita a ressangramento, principalmente quando são lonoscopy): a ncw mcthod for colorcctal scrccning. Gut, 1999; 44:301-5.
lesões múltiplas, exigindo mais de uma sessão de hemostasia. Jutabha, R. Approach to thc adult patient with lower gastrointestinal bleeding.
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A complicação mais temida com o tratamento endoscópico é a Jutabha, R 8c Jcnsen, DM. Treatment of bleeding peptie ulccrs. Em: Fcldman,
perfuração colônica, principalmente no cólon direito, que tem M. UpToDatc, Inc., Waltham, MA; 2009.
a parede mais fina. Para as angiodisplasias múltiplas de cólon Lau, JYW, Sung, JJY, Lam, YH et al. Endoscopic retreatment compared with
e/ou delgado, tem sido proposta a terapêutica hormonal com surgery in patients with rccurrcnt bleeding after initial endoscopic control
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Rocckcy, DC. Gastrointestinal Bleeding. Em: Fcldman, M, Fricdman, LS, Brandt,
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no controle e prevenção de sangramento de angiodisplasia do Rossini, FP, Arrigoni, A, Pcnnazio, M. Octreotidc in thc treatment of bleeding
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grafia deve ser considerada em casos de sangramento contínuo 88:1424-7.
Schafcr, ME 8c Lo SK. Navigating bcyond thc ligament of Trcitr an introduetion
ou recorrente, com insucesso da endoscopia para seu contro to lcarning cntcroscopy. Gastrointest Endosc, 2010; 71:1029-32.
le. Tal procedimento permite identificar as lesões sangrantes Wallacc, JL. Nonstcroidal antiinflammatory drugs and gastrocntcropathy: Thc
e tratá-las. Na refratariedade das medidas anteriores, deve-se Sccond hundred ycars. Gastroenterology, 1997; 1/2:1000-16.
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Zuckcrman, GR 8c Prakash, C. Acutc lower intestinal bleeding. Part I: Clinicai
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nicos ou injeção de epinefrina, tem sido descrita com sucesso, Zuckcrman, GR 8c Prakash, C. Acutc lower intestinal bleeding. Part II: Etiology,
mas usada em pequeno número de casos, em face da dificuldade thcrapy, and outeomes. Gastrointest Endosc, 1999; 49:228-38.
2 Sangramento
Gastrintestinal Crônico
Pedro Duarte Gaburri, Ana Karla Gaburri, Adilton Toledo Ornellas e
Aécio Flávio Meirelles de Souza
Nos últimos anos, alguns avanços têm ocorrido no reconhe desafio nessas circunstâncias é a identificação da sede e do tipo
cimento desta forma de hemorragia digestiva, embora ela se da lesão responsável pelo sangramento, para que se possa adotar
constitua quase sempre em um grande desafio para os gastro- o tratamento mais apropriado, seja clínico ou cirúrgico.
enterologistas. Sua manifestação pode se dar de forma evidente
ou imperceptível, podendo sua origem se localizar em qualquer
segmento do tubo digestivo, não identificada após as avaliações ■ Etiologia
propedêuticas iniciais. Denomina-se hemorragia gastrintestinal No Quadro 2.1, estão enumeradas as causas mais frequentes
obscura quando se trata de sangramento evidente para o médico de sangramento intestinal crônico e que, embora predominem
ou o paciente, e hemorragia gastrintestinal oculta para os ca no intestino delgado, podem se localizar em outros segmentos
sos manifestados por anemia crônica ferropriva sem evidência do trato gastrintestinal.
macroscópica do sangramento, o qual é consequente à perda As ectasias vasculares ou angiodisplasias têm a sua frequência
digestiva prolongada com pesquisa de sangue oculto positiva aumentada com a idade, sobretudo após os 50 anos. São mais
nas fezes. Fazem-se necessárias perdas gastrintestinais acima de comuns no cólon direito e podem ocasionar hemorragias co-
100 a 150 m^/24 h para que se modifique a coloração das fezes, piosas (Figura 2.1).
motivo pelo qual o sangramento pode se dar por longos perío Os tumores ocorrem em idade mais precoce, predominan
dos sem que seja notado, levando à anemia crônica como sua do entre os 30 e 50 anos, e incluem os liomiomas, leiomios-
única manifestação. Em termos gerais, a causa mais frequente
de anemia ferropriva no sexo masculino é a perda sanguínea
gastrintestinal, enquanto nas mulheres, no mundo ocidental,
as perdas ginecológicas, quando excessivas, superam as diges
▼
tivas em frequência. Algumas pistas clínicas podem indicar a
Quadro 2.1 Causas de hemorragia gastrintestinal crônica
possibilidade diagnóstica de associação de condições e enfer
midades, como: idade acima de 50 anos e neoplasias malignas; de origem obscura
insuficiência renal crônica e angiodisplasias/ectasias vasculares;
In te s tin o d e lg a d o O utra s sedes
diarréia crônica e doença celíaca; além de AIDS e sarcoma de
Kaposi ou colite por citomegalovírus. Ecta sias v a s c u la re s Ecta sias v a s c u la re s
Tu m o re s L e s ã o d e D ie u la fo y
CRÔNICA OBSCURA H e m o s u c c u s p a n c r e a t ic u s H e m a n g io m a
D iv e r tíc u lo s d u o d e n o je ju n a is
17
18 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico
Figura 2.1 Angiodisplasia do ceco. (Cortesia do Dr. Lincoln E.V.V.C. Figura 2.2 Lesões de Cameron. (Cortesia do Dr. Lincoln E.V.V.C. Ferreira.)
Ferreira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
sarcomas, adenocarcinomas, linfomas, tumores carcinoides e pertensão portal. Seu colabamento logo após o sangramento
hamartomas. Dor abdominal, emagrecimento e semioclusões pode dificultar o reconhecimento endoscópico.
intestinais podem acompanhar ou preceder as hemorragias de A gastropatia portal hipertensiva é encontrada em doentes
causas tumorais, em geral mais abundantes nos liomiomas e com hipertensão portal, podendo sua importância ser subesti
liomiossarcomas. Asfístulas aortoentéricas ocorrem em porta mada em presença de volumosos cordões varicosos gastreso-
dores de aneurisma, ou com enxerto aórtico, em geral infectado fágicos. A escleroterapia ou ligadura elástica das varizes pode
por Staphylococcus aureus, que determina processo inflama- agravar a gastropatia e aumentar o risco de sangramento (Fi
tório adjacente à parede duodenal e ruptura, com hem orra gura 2.2). As mesmas lesões vistas comumente no estômago
gia copiosa, para dentro do lúmen intestinal. A úlcera pépti- podem ocorrer também ao longo do intestino delgado como
ca penetrante, os tumores e traumas abdominais são causas enteropatia portal hipertensiva.
mais raras. As hemorragias em pessoas com menos de 25 anos A ectasia vascular gástrica antral (estômago em melancia) é
têm no divertículo de Meckel sua principal causa. Ulcerações uma condição rara, idiopática, associada a sangramento agu
na mucosa ileal adjacente ao divertículo com mucosa gástri do ou com perda de sangue prolongada e não perceptível nas
ca ectópica constituem a razão mais comum de sangramento fezes. Em alguns casos, se associa à cirrose hepática e hiperten
gastrintestinal crônico na infância. A hemobilia se acompanha são portal, possível razão da ocorrência dos vasos dilatados e
de icterícia e dor no hipocôndrio direito, e ocorre em conse tortuosos que se localizam no antro e convergem para o piloro
quência de trauma acidental, ou provocado, ou, ainda, cirúrgi (Figura 2.2).
co das vias biliares, biopsia hepática, litíase biliar, tumores, le
sões vasculares, distúrbios de coagulação, dentre outras causas.
Sua ocorrência deve ser considerada em doentes com icterícia,
■ Diagnóstico
hematêmese e/ou melena e ausência de lesões do estômago e A identificação da causa da hemorragia requer a associa
duodeno. Hemosuccus pancreaticus decorre de sangramento ção de dados clínicos, laboratoriais e o emprego de métodos
no dueto pancreático principal, resultante, na maior parte dos propedêuticos invasivos. A anamnese e o exame físico cons
casos, de ruptura de uma artéria no interior de um pseudocisto. tituem os primeiros passos no diagnóstico, em busca da sede
É devido, na maioria dos casos, a pancreatites, pseudocisto ou do sangramento. A ocorrência de melena sugere uma lesão nas
tumores pancreáticos. Na presença dessas condições, a ocor partes mais altas do tubo digestivo, enquanto a hematoquezia
rência da hemorragia deve despertar a suspeita clínica, sendo quase sempre se relaciona a lesões no cólon distai e reto. No
sua demonstração concreta realizada através de arteriografia, entanto, a intensidade da perda sanguínea pode modificar es
por meio da qual também se pode realizar a embolização te sas apresentações, gerando hematoquezia, a partir de lesões
rapêutica do vaso sangrante. A constatação endoscópica da altas com hemorragias copiosas, e melena, em sangramentos
saída de sangue pela papila pode caracterizar a ocorrência de lentos e prolongados do cólon direito. Esplenomegalia pode
hemosuccus pancreaticus ou hemobilia. sugerir hipertensão portal ou hemopatia. A sequência de in
A lesão de Dieulafoy corresponde à existência de um vaso vestigações deve seguir uma ordem determinada pelos resul
submucoso dilatado que se rompe para a luz gastrintestinal, tados que forem sendo obtidos sucessivamente. Uma lavagem
ocasionando hemorragias copiosas. Cerca de 1 a 5% das hemor gástrica pode ser útil ao demonstrar a presença de sangue no
ragias gastrintestinais altas teriam essa etiologia, estando a lesão estômago.
quase sempre localizada a 6 cm do esfíncter esofágico inferior, Os próximos passos são a endoscopia digestiva alta, a retos-
ao longo da pequena curvatura gástrica. Sua ocorrência pode sigmoidoscopia flexível ou a colonoscopia. Se estas não forem
se dar também em outros segmentos do tubo digestivo. esclarecedoras e o sangramento continuar ativo, pode-se usar
As varizes gástricas e duodenais são causas comuns de he o teste com hemácias marcadas com tecnécio , e que permite
morragias digestivas copiosas, quase sempre secundárias à hi identificar sangramentos acima de 0,1 m^ por minuto. Em al-
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 19
guns casos, os exames radiológicos demonstram a existência de minuto e ainda permitir o uso de procedimentos terapêuticos
tumores em locais não acessíveis à endoscopia alta convencio durante sua realização. A Figura 2.4 evidencia uma arterio
nal. A Figura 2.3 constitui um exemplo dessa situação. grafia com demonstração de sangramento ativo, em pacien
Caso o sangramento tenha cessado após os exames já cita te com um tumor estromal do jeuno proximal e hemorragia
dos, pode-se recorrer a recursos endoscópicos mais sofistica crônica de repetição.
dos, com a utilização de aparelhos capazes de atingir o jejuno A impossibilidade de se detectar a causa, após o emprego
e o íleo: a enteroscopia. Exame contrastado convencional do dos recursos anteriormente citados, constitui indicação para
intestino delgado ou a enterócliset em que se usa contraste laparotomia exploradora, com enteroscopia peroperatória,
diluído e instilado por sonda nasogástrica, poderão ser em visto que, na maior parte dos casos, a lesão responsável pelo
pregados, mas sua eficiência é inferior aos procedimentos en sangramento se localiza no intestino delgado. Nas situações
doscópicos. A enteróclise, a enteroscopia e mais recentemente de emergência, a laparotomia constitui-se em recurso extre
a videoendoscopia por cápsula são os principais recursos pro mo. Importante destacar que esta atitude deve ser empregada
pedêuticos para a investigação do intestino delgado. Parece após se esgotarem todas as buscas do diagnóstico exato, ex
bem estabelecido que a cápsula endoscópica está se tornando ceto se uma lesão única for identificada previamente, já que a
o método de escolha na avaliação de pacientes com sangra hemorragia pode ser causada por lesões múltiplas, gerando o
mento gastrintestinal obscuro ou oculto, após a realização de risco de se repetir o sangramento mesmo após a intervenção.
endoscopia digestiva alta e colonoscopia não elucidativas. A A cirurgia é capaz de identificar cerca de 70% das causas de
enteroscopia é capaz de identificar a fonte exata do sangramen hemorragia, em tais circunstâncias. A Figura 2.5 corresponde
to obscuro em 32 a 38% dos casos, enquanto a cápsula endos a uma lesão encontrada em paciente do sexo feminino, com
cópica o faz em 66 a 69%. Esta última tem seu uso indicado, repetidos episódios de melena, gerando anemia acentuada, com
não só nas hemorragias digestivas de origem desconhecida, 12 meses de evolução, durante os quais repetidas endoscopias
mas também nas anemias crônicas de causa não identificada gastroduodenais foram realizadas sem localizar a sede da he
e nas doenças inflamatórias intestinais. Nestas últimas, vale morragia. Uma colonoscopia demonstrou que o sangramen
realçar a ocorrência de sangramento gastrintestinal intenso, às to provinha de lesão localizada acima da válvula ileocecal, e a
vezes com choque hipovolêmico, na doença de Crohn de loca arteriografia mesentérica, demonstrada na Figura 2.4, sugeriu
lização jejunal. Devem ser lembradas, ainda, as arteriografias, tratar-se de extensa lesão tumoral. À laparotomia, foi identifi
a tomografia computadorizada e a cintigrafia com hemácias cado um tumor localizado 15 cm abaixo da junção duodeno-
marcadas com radioisótopos, como recursos complementa jejunal, que, ao exame histológico, mostrou tratar-se de um
res para a investigação diagnóstica. A arteriografia é capaz de tum or estromal ulcerado do jejuno. A Figura 2.6 correspon
reconhecer sangramentos em volume acima de 0,5 m^ por de a uma angiodisplasia no jejuno proximal identificada por
20 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico
exame com cápsula endoscópica. O sangramento gastrintes numerosas, se estendendo ao longo do intestino delgado. Em
tinal obscuro pode se fazer de forma insidiosa, em grau leve mulher com mais de 70 anos e episódios de melena volumosa
a moderado, ou abundante, sem que sua sede de origem seja e repetitiva, levando a anemia grave, encontramos incontáveis
identificada em exames endoscópicos do esôfago, estômago e ectasias, como visto na Figura 2.13. Muita atenção a esses pa
duodeno e da colonoscopia, restando a enteroscopia e o exa cientes deve ser dada, em relação ao uso de anti-inflamatórios
me com cápsula endoscópica para exame do intestino delgado
como recursos diagnósticos. Como se sabe, 5% das lesões que
ocasionam sangramento gastrintestinal acham-se localizadas
no delgado. Estudo comparativo entre os dois métodos eviden
ciou que a cápsula endoscópica tem a vantagem de inspecionar
todo o intestino delgado, enquanto a enteroscopia permite,
além do diagnóstico, intervenções terapêuticas, fazendo com
que ambos os procedimentos sejam valiosos. A enteroscopia
muitas vezes encontra dificuldades técnicas em ultrapassar as
várias flexuras do delgado. Quando realizada no peroperató-
rio, o cirurgião pode auxiliar a condução do aparelho através
do intestino, facilitando sua progressão. Outros dois casos de
abundante melena de repetição ilustram a importância da vi-
deocápsula endoscópica, tendo sido ambos esclarecidos pelo
seu emprego: foram reconhecidas lesões compatíveis com a
doença de Crohn jejunoileal em ambos os casos. As imagens
dessas lesões são mostradas nas Figuras 2.7,2.8 e 2.9, onde se
vê, na primeira, secreção sanguinolenta fluindo pelo jejuno de
um homem de 21 anos, cujo exame foi realizado na vigência
do sangramento; na segunda, erosões lineares recobertas por
coágulos, enquanto lesão aftoide linear não sangrante é vista na
Figura 2.9, ambas do mesmo paciente. Na Figura 2.10, podem-
se ver, após 6 meses de uso de imunomodulador, em exame
de controle, lesões aftoides superficiais no jejuno. Outro caso
semelhante ocorreu em uma mulher de 32 anos com melena
recorrente e anemia intensa, cujo exame com cápsula endos
Figura 2.6 Angiodisplasia no jejuno proximal identificada com a cáp
cópica mostrou diversas lesões aftoides, com aspecto também sula endoscópica. (Cortesia do Dr. Renato Dani.) (Esta figura encontra-se
compatível com doença de Crohn jejunoileal, como se vê nas reproduzida em cores no Encarte.)
Figuras 2.11 e 2.12.
Vale destacar que hemorragias copiosas são pouco frequen
tes na doença de Crohn, mas esta enfermidade tem grande
tendência a hemorragias abundantes quando acomete o je 01:36:21 26 Ju l0 7
juno com lesões ulcerosas múltiplas e profundas. Em pacien
tes idosos, as angiodisplasias e ectasias vasculares podem ser RM Q
i
PiHCamTSB
Figura 2.5 Lesão tumoral do jejuno proximal responsável por hemor Figura 2.7 Sangramento ativo identificado por exame com cápsu
ragia crônica evidente, correspondente a tumor estromal do intestino la endoscópica em paciente com doença de Crohn, hemorragia di
delgado - mesmo caso da Figura 2.4. (Cortesia dos Drs. Renato Dani gestiva copiosa e choque hipovolêmico. (Cortesia do Dr. Frederico
e Rodrigo Romualdo.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores Batista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
no Encarte.) Encarte.)
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 21
PtHCanTSB PMCanTSB
Figura 2.8 Extensa úlcera recoberta por coágulo no jejunodo mesmo Figura 2.10 Erosão superficial no jejuno do mesmo paciente da Figura
paciente da Figura 2.7. (Cortesia do Dr. Frederico Batista de Oliveira.) 2.7 após 6 meses de azatioprina, sem outros sangramentos. (Cortesia
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) do Dr. Frederico Batista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reprodu
zida em cores no Encarte.)
■ Tratamento
As medidas de tratamento da hemorragia digestiva alta e
baixa estão enumeradas no Capítulo 1 e também se aplicam
ao sangramento gastrintestinal crônico. Algumas causas do
sangramento gastrintestinal crônico aparente e recorrente são,
porém, mais difíceis de contornar. Exemplo disso são as ectasias
vasculares, por sua multiplicidade e extensão. O emprego de
PilICattTSB terapêuticas com fórmulas hormonais e do ácido aminocaproi-
co apresenta resultados discrepantes em estudos distintos, por
Figura 2.9 Erosào linear do jejuno no mesmo paciente da Figura 2.7. vezes desapontadores. Recente experiência com o emprego da
Nào estava sangrando neste momento. (Cortesia do Dr. Frederico Ba associação de estrogênio e progesterona (1 mg de noretinodrel
tista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
Encarte.)
e 0,005 mg de mestranol, 2 vezes/dia) demonstrou excelente
resultado na prevenção de novos episódios de sangramento
em doentes de ambos os sexos, com ectasias vasculares ou com
hemorragias de origem obscura, respeitadas as contraindica-
não hormonais e ácido acetilsalicílico, responsáveis por eleva ções para o uso destes hormônios. A somatostatina e o octreo-
do percentual de hemorragias digestivas, com maior risco nos tídio podem ser alternativas válidas em hemorragias por ecta
idosos. Pelos fatos anteriormente descritos, pode-se deduzir a sias vasculares. O octreotídio de liberação prolongada pode ser
grande importância do exame com cápsula endoscópica para aplicado em injeções mensais. A gastropatia hipertensiva portal
investigar lesões do intestino delgado. Porém, estudo reali tem seu risco de sangramento reduzido com o uso de medidas
zado na China, incluindo 218 pacientes dos quais 116 com que diminuem a hipertensão portal, como betabloqueadores
sangramento gastrintestinal obscuro, demonstrou que, embora ou shunts portossistêmicos, cirúrgicos ou transjugulares. A ta-
22 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico
Given® Given®
Figuras 2.11 e 2.12 Várias erosões jejunais identificadas por exame com cápsula endoscópica em paciente com repetidos episódios de melena
e anemia grave, portadora de doença de Crohn e assintomática há 3 anos; houve recuperação das taxas hemáticas com uso de azatioprina.
(Cortesia do Dr. Frederico Batista de Oliveira.) (Estas figuras encontram-se reproduzidas em cores no Encarte.)
■ HEMORRAGIA GASTRINTESTINAL
CRÔNICA OCULTA
■ Anemia ferropriva
O sangramento gastrintestinal crônico oculto é habitual
mente identificado quando a pesquisa de sangue oculto nas
fezes se faz positiva ou na ocorrência de anemia crônica fer
ropriva. Algumas lesões do tubo digestivo podem sofrer perda
crônica de sangue, ocasionando uma anemia por carência de
ferro, com baixos níveis de ferro sérico e ferritina constituin
do sua manifestação clínica mais proeminente, e obrigando ao
diagnóstico diferencial com outras entidades, que também se
manifestam da mesma forma. A anemia resultará de perda de
ferro superior à capacidade do intestino delgado em absorvê-lo
e aparecerá quando seus estoques normais no organismo forem
esgotados. Pacientes com anemia moderada não apresentam
queixas, mas, em casos mais intensos, adinamia, fadiga fácil,
dispnéia de esforço, palidez e taquicardia, especialmente em
pacientes idosos, junto a sintomas de má irrigação de órgãos
vitais, até mesmo com infarto miocárdico e isquemia cerebral,
podem ocorrer. Em alguns pacientes, a taxa de ferro diminuída
Figura 2.13 Incontáveis ectasias vasculares jejunoileais identificadas pode ser detectada antes do aparecimento da anemia, levando à
em exame com cápsula endoscópica em paciente idosa, com repeti identificação das lesões gastrintestinais mais precocemente. A
dos episódios de melena e anemia grave secundária. (Cortesia do Dr. Organização Mundial de Saúde define a anemia por deficiência
Frederico Batista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em de ferro como a condição em que a hemoglobina se encontra
cores no Encarte.) abaixo de 13 g/d^ para homens e 12 g/d^ para mulheres que
ainda menstruam.
quando sangram, o fazem de forma exuberante, exceto nos seu uso mais frequente. Nos últimos anos, a enteroscopia com
pacientes submetidos a escleroterapia ou ligadura elástica, nos enteroscópio de duplo balão vem tendo sua utilidade mais bem
quais se pode encontrar um teste positivo para sangue oculto. reconhecida. Este processo vem sendo mais comumente em
Outras causas incluem esofagite intensa, gastrite erosiva, câncer pregado e tendo seu valor cada vez mais reconhecido em vários
gástrico e ectasias vasculares. Se o sangramento for pequeno, países. Se, mesmo assim, esses exames forem negativos, deve-se
nas lesões altas, a reabsorçâo do ferro pode impedir o apare reavaliar o diagnóstico do tipo da anemia, e, caso os mesmos
cimento da anemia. achados laboratoriais se mantiverem, outros testes diagnósti
A ausência de lesões que justifiquem o sangramento após cos devem ser realizados, como a cintigrafia para pesquisa de
uma endoscopia digestiva alta e uma colonoscopia indica que divertículo de Meckel, a tomografia computadorizada e a ar-
a causa deve se localizar no intestino delgado. Angiodisplasias teriografia seletiva.
e tumores são as causas mais comuns de sangramento crônico
originado nesse segmento intestinal, mas a doença celíaca, a ■ Tratam ento
gastrenterite eosinofílica, a doença de Whipple, a endometrio- O tratamento da anemia consiste na reposição de ferro, sen
se e divertículos também podem ser sua causa. Uma elevação do o sulfato ferroso, por seu baixo custo e boa tolerância, uma
isolada das transaminases, sem outros indicadores de doença escolha apropriada. A reticulocitose, em resposta à medicação,
hepática, ou uma anemia ferropriva podem ser as únicas ma ocorrerá em 1 a 2 semanas. Um tratamento específico deverá
nifestações de doença celíaca. O achado de anticorpo antien- ser dirigido para a causa do sangramento e irá variar de acordo
domisial ou antitransglutaminase tissular positivo reforça a com o seu tipo e localização. A cirurgia poderá ser necessária
indicação para biopsia do intestino delgado, em face da sua em condições como tumores, e as ectasias vasculares não aces
elevada especificidade nessa enfermidade. Os tumores benignos síveis aos endoscópios.
e malignos do jejuno e do íleo são outras causas que devem ser
consideradas. Úlceras do intestino delgado, causadas pelo uso de
anti-inflamatórios não hormonais, endometriose e divertículos,
■ Sangramento fecal oculto
também devem ser considerados como possíveis causas. No Alguns casos de sangramento gastrintestinal oculto são de
Brasil, a ancilostomíase é uma causa relativamente frequente, tectados pela presença de sangue oculto nas fezes. Perdas en
sobretudo na zona rural. tre 0,5 e 1,5 m^/dia podem se originar em diversas lesões do
No cólon, sobretudo no direito, o carcinoma, os pólipos, as trato gastrintestinal. Podem ocorrer ou não queixas digestivas
ulcerações e ectasias vasculares são outras possíveis etiologias. associadas, mas, em geral, seu achado é constatado quando se
Entretanto, embora o carcinoma do cólon seja uma das cau investigam anemias de causa obscura, doentes com queixas
sas mais frequentes desse tipo de sangramento, é importante digestivas variadas, ou mudança de coloração das fezes, mal
registrar que, em cerca de 40% dos casos, a lesão responsável definidas. Vale frisar que o aspecto das fezes, com caracterís
se situa no trato gastrintestinal alto, acima da junção duode- ticas típicas de melena, só ocorre quando mais de 150 m^ de
nojejunal. Doenças injlamatôrias intestinais e doenças intesti sangue são derramados dentro do estômago.
nais isquêmicas devem também ser consideradas. Em 20% dos
casos, há atrofia gástrica com acloridria, sugerindo que uma ■ Etiologia
má absorção de ferro possa existir. Em doentes com varizes Várias são as situações em que os testes para pesquisa de
esofagogástricas ou com divertículos no cólon, um exame de sangue oculto nas fezes podem ser positivos, estando as prin
sangue oculto positivo deve fazer suspeitar de que outra doen cipais enumeradas no Quadro 2.2. As causas mais comuns in
ça possa ser a causa do sangramento, uma vez que, em ambas cluem as neoplasias e os processos ulcerativos do trato diges
as circunstâncias, a hemorragia, quando ocorre, é geralmente tivo superior.
copiosa e o sangramento não é oculto. Vale notar que a faixa Além dessas, existem várias condições que podem gerar re
etária em que é mais comum a doença diverticular do cólon sultados falso-positivos, como uso de medicamentos, inges-
coincide com a do carcinoma, sendo este a causa mais comum ta de carnes vermelhas, frutas e vegetais, especialmente crus,
de sangramento oculto. como mostrado no Quadro 2.3. A perda de hemoglobina deve
estar acima de 10 mg/g de fezes/dia. O uso de anticoagulantes
■ Diagnóstico pode raramente ocasionar exames positivos, por perda de san
Na ausência de sintomas específicos, sobretudo em pacientes gue pela mucosa, consequente à hipocoagulabilidade, mas, na
idosos, a investigação deve começar pelo estudo do cólon, por grande maioria dos pacientes que usam tais medicamentos,
meio de colonoscopia preferencialmente, ou enema baritado o teste positivo para sangue oculto indica a ocorrência de le
complementado por retossigmoidoscopiaflexível. Se lesões não sões preexistentes no tubo digestivo. Os carcinomas de cólon
forem reconhecidas com esses procedimentos, a pesquisa deve e os pólipos são os principais responsáveis por testes de san
se dirigir para o trato superior. Os sintomas digestivos podem gue oculto positivo, mas qualquer enfermidade que atinja a
ajudar a orientar o encaminhamento propedêutico quanto à mucosa gastrintestinal pode ser causa do sangramento. Uma
opção inicial para a colonoscopia ou a endoscopia digestiva alta, vez constatado o exame positivo, é necessária uma investigação
realizando-se esta última caso a primeira tenha sido normal. diagnóstica rigorosa em busca da etiologia.
É aconselhável repeti-las, se forem ambas negativas. Se não
se conseguir ainda identificar uma causa, deve-se investigar ■ Diagnóstico
o intestino delgado através de enteróclise e/ou enteroscopia e Os testes da hemoporfirina, do guáiaco e imunoquímicos po
da videoendoscopia por cápsula endoscópica. Como já citado dem ser empregados para a pesquisa de sangue oculto nas fezes.
para os casos de sangramento gastrintestinal obscuro, esta úl Sua utilidade na identificação precoce de neoplasias ulceradas
tima ganhou grande aceitação, constituindo-se no mais prático do tubo digestivo deve ser considerada. Na detecção de lesões
procedimento endoscópico para estudo do intestino delgado, altas, podem não ser tão eficazes como para as lesões do cólon,
embora ainda seu custo elevado para a nossa população e a pois, em casos de sangramento mais discreto do tubo digesti
suspeita de obstrução intestinal sejam barreiras que impedem vo superior, a reabsorçâo dos produtos da digestão sanguínea
24 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico
▼ --------------------------- T---------------------------
Quadro 2 2 Causas de perda de sangue oculto pelas fezes Quadro 2.3 Causas de sangue oculto nas fezes, falso-positivo
para fonte intestinal
Esôfago/estômago E s o fa g ite
G a s trite e ro siv a Perdas extraintestinais
G a s tro p a tia h ip e rte n s iv a E p is ta x e
Ú lc e ra p é p tic a S a n g r a m e n t o g e n g iv a l
T u m o r e s m a lig n o s F a rin g ite
P ó lip o s
H e m o p t is e
L e sõ e s d e C a m e r o n
Medicações causando irritação gástrica
D o e n ç a c e lía ca
A c id o a ce tilsa lic ílico
D o e n ç a d e W h ip p le
A n t i-in f la m a tó r io s n ã o e s te ro id e s
Intestino delgado D o e n ç a d e C ro h n
V ita m in a C
T u m o r e s m a lig n o s e b e n ig n o s
Atividade exógena da peroxidase
P ó lip o s
C o n s u m o d e c a r n e v e r m e lh a (h e m o g lo b in a n ã o h u m a n a )
A n c ilo s to m ía s e
C o n s u m o d e fruta s (fig o s , g ra p e fru it, m e lõ e s )
E s tro n g ilo id ía s e
V e g e ta is c ru s (c o u v e -flo r , b ró c o lis , a b ó b o r a s , p e p in o , r e p o lh o )
T u b e r c u lo s e
C o lite u lc e ra tiv a A daptado de Rockey, DC. Primary care: occult gastrintestinal bleeding. N. Engl. J. Med.,
C o lite is q u é m ic a 1999; 34138-46.
Cólon T u m o r e s m a lig n o s
P ó lip o s
Ú lc e ra c e c a l id io p á tic a
----------------------------------------▼ ----------------------------------------
Quadro 2.4 Vantagens e desvantagens dos métodos diagnósticos
Cintilografia com hemácias marcadas com Tc" B o a p a ra s a n g r a m e n t o in te n s o In e s p e cífica , falsa lo c a liz a ç ã o e n ã o lo c a liz a ç ã o d e
a lg u n s casos
N ã o id e n tific a a causa
Adaptado de Mitchell SH, Schaefer DC. D ubagunta S. A New View of Occult and O bscure Gastrointestinal Bleeding .A m . Fam. Physlcian, 2004; 69:875-81.
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 25
■ Tratam ento Ian, DR, Arnott, P, Simon, KL. Thc Clinicai Utility of Wirclcss Capsule Endos
copy. Dig. Dis. Sei., 2004; 893:901.
A causa e a localização da sede do sangramento é que vão Kcpczyk, T 8c Kadakia, SC. Prospcctivc evaluation of gastrintestinal tract in
determinar o tipo de terapêutica a ser empregado, obedecendo - patients with iron-dcficicncy anemia. Dig. Dis. Sei., 1995; 40:1283-9.
se aos mesmos critérios para as condições com anemia ferro - Lau, WY, Yucn, WK, Chu, KW et al. Obscure bleeding in thc gastrintesti-
priva já citados aqui. O tratamento endoscópico, permitindo nal tract originating in the small intcstinc. Surg. Gynecol. Obstet., 1992;
174:119-24.
a ressecção de pólipos, além do aspecto terapêutico, reveste-se Mclntyre, AS 8c Long, RG. Prospcctivc survey of investigations in outpaticnts
de um grande papel profilático, sobretudo quando se conside referred with iron dcficiency anaemia. Gut, 1993; 34:1102-7.
ram as neoplasias do intestino grosso. Nos casos em que não se Mitchcll, SH, Schacfer, DC, Dubagunta, S. A New Vicw of Occult and Obscure
consegue identificar a sede da lesão, após o emprego de todos Gastrintestinal Bleeding. Am. Fam. Physician, 2004; 69:875-81.
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os recursos diagnósticos disponíveis, o tratamento se restringe approach. Gastrointest. Endosc. Clin. North Am., 1996; 6:833-45.
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Diarréia Aguda e Crônica
Juliano Machado de Oliveira, Laura Cotta Orneiias Halfeld e
Adilton Toledo Orneiias
26
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 27
---------------------------------------------------------- ▼ ------------------------------------------
V íru s E L IS A p a ra ro ta v íru s
A diarréia não inflamatória é, em geral, moderada, mas pode alguns casos de diarréia inflamatória, a pesquisa pode ser ne
provocar grandes perdas de volume. É causada habitualmente gativa no início do quadro.
por vírus ou por bactérias produtoras de enterotoxinas e afeta
preferentemente o intestino delgado. Os microrganismos ade ■ Coprocultura
rem ao epitélio intestinal sem destruí-lo, determinando diarréia A realização da coprocultura deve ser reservada para casos
secretora, com fezes aquosas, de grande volume e sem sangue; suspeitos de diarréia infecciosa por bactérias invasivas, na pre
pode estar associada a náuseas e vômitos. As cólicas, quando pre sença de sangue oculto e leucócitos fecais ou para os casos de
sentes, são discretas, precedendo as exonerações intestinais. interesse epidemiológico. Quando a coprocultura é solicitada,
Na avaliação clínica, além de definir o padrão da diarréia o laboratório deve ser informado sobre o agente etiológico sus
aguda, devem-se também avaliar possíveis complicações, es peito, a fim de adequar o meio de cultura. Alguns parasitos in
pecialmente a desidratação. Relato de boca seca e sede, diurese testinais devem ser lembrados e pesquisados, embora, algumas
concentrada, oligúria, associados a achados ao exame físico de vezes, possam ter evolução típica de diarréia crônica.
pele e mucosas desidratadas e hipotensão postural com taqui-
cardia, demonstram desidratação e sua gravidade. Sinais de ■ Pesquisade toxinas e antígenos depatógenos
toxemia indicam quadro mais grave e necessidade de maior Pesquisa de toxinas no diagnóstico de algumas bactérias
cuidado clínico. Desta forma, presença de febre alta, taquip- pode ser mais útil do que a tentativa de sua cultura. O principal
neia, vasodilatação periférica com hipotensão e pulsos rápidos exemplo são as cepas patogênicas do Clostridium difficile que
e finos são sinais de alerta. produzem as toxinas A e B. Essas toxinas podem ser identifi
O exame físico do abdome normalmente exibe dor leve di cadas nas fezes por teste por ELISA que comprova a presença
fusa à palpação, com possibilidade de descompressão brusca de infecção pelo microrganismo.
levemente dolorosa em situações de maior distensão de alças e Na infecção viral pelo rotavírus, a pesquisa de antígenos
dor mais intensa. Os ruídos hidroaéreos estão frequentemente virais nas fezes por ELISA é a melhor forma de confirmar pre
aumentados. Dor localizada, sinais de irritação peritoneal in sença do microrganismo. Giardia e Cryptosporidium também
tensa, massas ou visceromegalias, distensão abdominal impor podem ser identificados pelo mesmo método.
tante e ausência de ruídos são achados que devem direcionar O uso da PCR (Reação em Cadeia da Polimerase) é outra
para avaliação cuidadosa pela possibilidade de outras afecções metodologia para pesquisa de antígenos nas fezes para diagnós
abdominais. tico de inúmeros microrganismos. Entretanto, sua aplicabili
dade clínica ainda é muito restrita pela pouca disponibilidade
da tecnologia e pelo seu alto custo.
■ Diagnóstico
Na maioria dos casos, a avaliação clínica é suficiente para ■ Exames de im agem
definição diagnóstica e para determinar a gravidade do quadro. Radiografia simples do abdome, nos casos mais graves, é
O estado imunológico do hospedeiro também é importante na útil para avaliar complicações como íleo paralítico e megacó-
conduta diagnóstica e terapêutica. Exemplos disso são: deficiên lon tóxico.
cia de IgA e giardíase, acloridria e salmonelose, transplantados
e infecção por citomegalovírus, AIDS e criptosporidíase, idosos ■ Endoscopia
residentes em asilo e infecção pelo Clostridium difficile, imu- A retossigmoidoscopia flexível deve ser feita nos pacientes
nodeprimidos e candidíase intestinal. com clínica de proctite (tenesmo, dor retal) e, também, se há
suspeita de colite pseudomembranosa. Nesses casos, a biopsia
■ Exames laboratoriais é importante para excluir doença inflamatória intestinal.
■ Hemograma
Em pacientes que evoluem com formas mais graves da diar ■ Tratamento
réia aguda, podem-se encontrar anemia e hemoconcentração. A imunidade do hospedeiro, na maioria das vezes, é capaz de
Nas diarréias por vírus, linfocitose pode estar presente. Leuco- eliminar infecção gastrintestinal, sem necessidade de terapêu
citose com neutrofilia e desvio à esquerda é frequente nas infec tica específica. Assim, o objetivo terapêutico está relacionado
ções bacterianas mais invasivas com diarréia inflamatória. com a reposição das perdas hidreletrolíticas.
■ Funçãorenal eeletrólitos ■ Reidratação
A desidratação causa hipovolemia que altera a perfusão re Na maioria dos casos, a reidratação oral é suficiente. A so
nal, fazendo com que haja elevação da creatinina e, principal lução deve conter glicose, para favorecer a absorção do sódio.
mente, da ureia em depleções volêmicas mais importantes. Essa Quando as perdas forem mais importantes, a reposição deve ser
complicação da diarréia deve ser prontamente diagnosticada feita com soluções contendo eletrólitos (Na*, K+, H C 0 3" e Cl")
principalmente em pacientes idosos. O distúrbio eletrolítico em concentrações aproximadas daquelas perdidas na diarréia.
tem relação com perdas entéricas e deve ser corrigido quando Para tal, os produtos existentes no comércio são satisfatórios.
presente. As soluções isotônicas, usadas para repor a transpiração de atle
tas, podem ser utilizadas, sobretudo em pacientes sem sinais de
■ Estudo das fezes desidratação, como prevenção. Para os pacientes hipovolêmi-
■ Leucócitos fecais cos, deve-se fazer hidratação venosa com soluções isotônicas
É o teste mais utilizado na avaliação de diarréia aguda e contendo glicose e eletrólitos.
identifica processos inflamatórios mais intensos. Entretanto, a
simples presença dos polimorfonucleares nas fezes não carac ■ Dieta
teriza diarréia infecciosa, pois estes são encontrados também O paciente deve ser orientado para continuar alimentando-
em outras afecções do intestino grosso. Do mesmo modo, em se durante o episódio de diarréia. Aqueles que têm náuseas
30 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica
e vômitos devem dar preferência aos líquidos em pequenas podem prolongar a eliminação de fezes com bactérias pato
quantidades de cada vez, para garantir a reposição das perdas. gênicas e contaminar o meio ambiente. Além disso, expõe
Os alimentos visam à reposição calórica, compensando assim os pacientes aos efeitos adversos dos antibióticos e promove
o estado catabólico produzido pela diarréia, e, ao contrário do o desenvolvimento de resistência bacteriana com seleção de
que se acreditava, não agravam o quadro diarreico, nem pioram bactérias como o Clostridium difficile. Seu uso deve obedecer
a sua evolução. Alguns alimentos devem ser evitados tempora a regras bem definidas, seja para reduzir o tempo de excre
riamente por causa de seus efeitos sobre a dinâmica intestinal, ção de determinados tipos de bactérias, como a Shigella, seja
como, por exemplo, aqueles que contêm cafeína, capazes de para eliminar as infecções persistentes ou o estado de portador,
inibir a fosfodiesterase e, assim, elevar os níveis intracelulares como na giardíase, amebíase, cólera, ou, ainda, para apressar
de cAMP. O mesmo ocorre com alimentos que contêm lactose, a recuperação na diarréia dos viajantes. O uso empírico, por
já que pode haver deficiência transitória de lactase. Alimentos exemplo, do sulfametoxazol-trimetoprima (TMP-SMZ) ou de
com maior teor de gordura e as frituras também podem ter sua quinolona, pode ser efetuado em pacientes com quadros clíni
absorção reduzida e agravar a diarréia. cos importantes de disenteria e possível bacteriemia, até que
se obtenha o resultado da coprocultura. A escolha do produto
■ Agentes antidiarreicos a ser administrado obedece aos parâmetros indicados no Qua
Em alguns casos, é recomendável reduzir o número das eva dro 3.3. No caso das diarréias agudas causadas por protozoá-
cuações, especialmente nas diarréias infecciosas, notadamente rios, o tratamento deve ser orientado como descrito no capítulo
naquelas não inflamatórias. sobre parasitoses intestinais.
Os adsorventes caulim e pectina, embora aumentem a con
sistência das fezes, têm pequeno efeito sobre o seu volume.
As fibras solúveis medicinais como o Psyllium (uma medida ■ Situações específicas de diarréia aguda
até 3 vezes/dia) e absorventes de água como a policarbofila de ■ Intoxicação alim entar
cálcio (1 a 2 comprimidos até 4 vezes/dia) também podem ser
A intoxicação alimentar resulta da ingestão de alimentos
usados para reter água e aumentar a consistência das fezes, di
contaminados por bactérias, fungos, vírus, parasitos ou subs
minuindo os episódios diarreicos. Porém, também têm efeito
limitado nesses casos. tâncias químicas, tendo como destaque o envolvimento de uma
coletividade que fez uso do mesmo alimento. A intoxicação sur
O subsalicilato de bismuto tem efeito variado, é bactericida
ge, principalmente, em decorrência de substâncias químicas ou
e antissecretor por bloquear o efeito das enterotoxinas, além de
estimular a reabsorção intestinal de sódio e água. Devido a seu de toxinas pré-formadas por agentes infecciosos.
baixo custo, eficácia e segurança, representa boa opção para o Para o diagnóstico, deve-se prestar atenção no intervalo re
tratamento sintomático da diarréia aguda infecciosa. Adminis lativamente curto entre a ingestão do alimento suspeito e o
trado para adultos na dose de 30 m^, ou 2 comprimidos de 30 início dos sintomas: quando for inferior a 6 h, a suspeita é da
em 30 min até completar 8 doses, costuma ser eficaz em muitos intoxicação pela toxina pré-formada por Staphylococcus au-
casos de diarréia não inflamatória. reus e Bacillus cereus; se, entre 8 e 14 h, sugere intoxicação por
Os derivados sintéticos do ópio (loperamida e difenoxilato) Clostridium perfringens; mas se, inferior a 1 h, deve-se pensar
inibem a motilidade intestinal, aumentam o tempo de contato em intoxicação por uma substância química. Entre as causas
para a absorção de água e eletrólitos, e com isso diminuem o nú infecciosas, merecem destaque as citadas a seguir.
mero das evacuações intestinais e as cólicas. Esses medicamen
tos devem ser evitados nos casos de disenterias e nos pacientes ■ Intoxicação por Staphylococcus aureus
com febre alta e toxemia, pois poderíam agravar a evolução Resulta de alimentos submetidos à cocção inadequada ou
da doença e precipitar o aparecimento de megacólon tóxico. mal refrigerados, que constituem fonte ideal para a proliferação
Além disso, podem facilitar o desenvolvimento da síndrome de agentes infecciosos e de rápida produção de toxinas. Os pa
hemolítico-urêmica nos pacientes infectados com a Escherichia cientes apresentam náuseas, vômitos intensos, cólicas e diarréia
coli êntero-hemorrágica. A dose inicial da loperamida é de 4 e, aquosa. Podem evoluir para desidratação aguda e choque hipo-
posteriormente, 2 mg após cada evacuação diarreica, não de volêmico. Em geral, a diarréia é autolimitada e cessa dentro de
vendo ultrapassar 16 mg/dia e, no máximo, administrada por algumas horas. O tratamento inclui reposição hidreletrolítica
2 a 3 dias. O difenoxilato deve ser usado na dose de 4 mg na VO e sintomáticos, mas casos graves exigem hidratação IV.
primeira tomada e depois 2 mg até 4 vezes/dia e por até 2 dias.
Os pacientes devem ser alertados de que essas drogas masca ■ Intoxicação por Clostridiumbotulinum
ram as perdas hídricas e de que eles devem fazer reposição de A toxina produzida por essa bactéria causa o botulismo e
líquidos adequada durante a terapêutica. resulta da ingestão de enlatados, peixes crus, mel, entre outros
O racecadotril é agente antissecretor que funciona através que contenham toxina pré-formada, esporos ou a própria bac
da inibição da encefalinase, enzima responsável pela inativação téria. Por isso, deve-se ter cuidados especiais no manuseio dos
do neurotransmissor encefalina. Essa ação seletiva protege as alimentos e em sua industrialização. Embora possa ser destruí
encefalinas endógenas, que são fisiologicamente ativas, e reduz da por fervura durante 10 min, a toxina botulínica é a mais
a hipersecreção de água e eletrólitos causada pelas toxinas bac- potente toxina alimentar.
terianas. Por isso, é recomendado associado às soluções reidra- A clínica depende da quantidade de toxina ingerida e da
tantes orais, principalmente em crianças. A dose habitual para resistência do hospedeiro. Assim, os sintomas podem ser dis
adultos é de 100 mg, 3 vezes/dia durante 2 a 3 dias. cretos ou intensos e levar ao óbito em poucas horas. O período
de incubação varia de 12 a 72 h após a ingestão do alimento
■ Terapêutica antim icrobiana contaminado. Cursa com náuseas, vômitos e diarréia, que se
Como a maioria das diarréias infecciosas tem evolução au- associam com repercussões neurológicas e se assemelham ao
tolimitada, o uso de antibióticos deve ser restrito a condições efeito do curare. Essas repercussões iniciam com alterações da
específicas. O emprego rotineiro deve ser evitado porque eles visão (visão turva, diplopia, arreflexia pupilar), seguindo-se de
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 31
sensação de fraqueza, tonturas, vertigens e complicações na me do quadro diarreico até 4 a 8 dias, mas há relatos de detecção
cânica respiratória. A recuperação, quando ocorre, se faz, em por até 25 a 30 dias.
geral, após 1 semana. O prognóstico depende da recuperação A infecção viral tem normalmente evolução autolimitada
muscular, mas a mortalidade é alta. e deve ser tratada com medidas para o alívio dos sintomas e
O diagnóstico diferencial deve ser feito, principalmente, com terapêutica de suporte, como reidratação oral ou intravenosa,
miastenia gravis e síndrome de Guillain-Barré. O tratamento de acordo com a repercussão do quadro clínico.
específico é com antitoxina e medidas de suporte; o paciente No Brasil, a partir de março de 2006, a vacina contra rota
pode necessitar de respiração assistida. vírus foi incluída no calendário vacinai da criança. Utiliza-se a
vacina monovalente feita do vírus atenuado de sorotipo mais
■ I ntoxicação por (lostridiumperfringens frequente [sorotipo G1P(8)]. Ela apresenta ação cruzada contra
Esta bactéria produz enterotoxina que causa diarréia aguda outros sorotipos e tem eficácia global contra gastrenterite pelo
e autolimitada. Tem origem em diversos tipos de alimentos rotavírus de 85%. A vacina é administrada por via oral em duas
contaminados, em especial carnes de aves e de gado. Diferen doses aos 2 e 4 meses de vida. Com essa medida, espera-se re
temente da intoxicação por Staphylococcus aureus, essa intoxi dução das diarréias agudas da criança, responsáveis por grande
cação predomina no inverno, mas o quadro clínico e cuidados percentual da mortalidade infantil no Brasil.
terapêuticos são semelhantes.
■ Diarréia dos viajantes
■ Diarréiapelo rotavírus É definida como diarréia infecciosa aguda que acomete in
O rotavírus foi o primeiro agente identificado como impor divíduos que viajam de área industrializada e com boas con
tante causa de gastrenterite viral, principalmente em crianças dições de higiene para outra com piores condições sanitárias.
entre 6 meses e 2 anos de idade, mas os adultos também po Ela é destaque nos viajantes internacionais que se dirigem de
dem ser atingidos. É o agente viral mais comum como causa países com elevado padrão de infraestrutura sanitária para algu
de gastrenterite endêmica. mas regiões da América Latina, África e Ásia. No Brasil, com a
Biopsias obtidas após a inoculação do vírus para induzir grande desigualdade social entre as regiões, esse tipo de diarréia
gastrenterite mostraram encurtamento de vilosidades da mu- também pode acometer viajantes de áreas mais industrializadas
cosa do duodeno e do jejuno, nas quais havia grande infiltra para aquelas mais empobrecidas.
ção da lâmina própria de células mononucleares. A microsco- Inicia-se em geral de modo abrupto, com 4 a 6 evacuações
pia eletrônica e a imunofluorescência evidenciam numerosas por dia, associadas a cólicas e náuseas. Habitualmente, é auto
partículas de rotavírus no citoplasma das células epiteliais da limitada, mas pode ser progressiva, evoluindo para disenteria
mucosa atingida. O estômago e o cólon têm acometimento não e, até mesmo, para a diarréia crônica.
significativo. Pode ser causada por bactérias em cerca de 80% dos casos, e
As crianças infectadas pelo rotavírus reagem de modo va a Escherichia coli enterotoxigênica é a principal causa na Amé
riado, desde portadores assintomáticos até formas graves com rica Latina. Além desta, são relacionadas também Salmonella,
desidratação e evolução para o óbito. A febre, geralmente baixa, Shigella, Campylobacter jejuni, Aeromonas, Plesiomonas, Vibrio
e os vômitos precedem a diarréia. A febre pode persistir por parahaemolyticus, os vírus Norovirus e Rotavírus, os protozoá-
até 1 a 2 dias, e os vômitos, em geral, não ultrapassam o 3o dia. rios Entamoeba histolytica, Giardia lamblia e Cryptosporidium,
A diarréia é aquosa, profusa, de cor amarelada a esverdeada e Microsporidium e Cyclospora cayetanensis.
raramente contém muco. O número de evacuações pode ser de A prevenção é a principal arma contra a diarréia dos viajan
8 ou mais por dia. A duração média da gastrenterite é de 8 dias, tes e relaciona-se aos cuidados com água utilizada para higiene
mas pode haver crises mais prolongadas. Sintomas respiratórios pessoal, como o simples ato de escovar os dentes, devendo-se
estão presentes em tom o da metade dos casos. A recuperação usá-la fervida ou com soluções cloradas ou iodadas, além de
é integral, mas têm sido descritas diarréias prolongadas e com evitar legumes e frutas cruas. A quimioprofilaxia (com antibió
outros distúrbios, como intolerância à lactose e a carboidratos. ticos ou subsalicilato de bismuto), embora eficaz, não deve ser
A doença aguda é associada à diminuição dos níveis das enzi rotineira, por causa de seu custo, efeitos adversos, resistência
mas da borda em escova da mucosa, como maltase, sacara se e bacteriana, e pela falsa sensação de segurança que induz a abrir
lactase, com consequente má absorção e presença de substân mão de cuidados básicos.
cias redutoras nas fezes. O tratamento deve seguir os mesmos parâmetros já cita
Os adultos adoecem mais frequentemente quando estão em dos, reservando-se a prescrição de antibióticos para os casos
contato com crianças infectadas. O rotavírus pode ser agente graves e com diarréia prolongada. O uso empírico, guiado por
causai da diarréia dos viajantes. Os sintomas são similares, mas parâmetros demonstrados no Quadro 3.3, pode ser indicado
os vômitos tendem a ser menos intensos. Os imunodeprimidos, para pessoas que têm compromissos inadiáveis, como atletas
como os transplantados de medula, podem apresentar formas e conferencistas.
graves e mais prolongadas ou evoluir para o óbito. Entretanto,
o rotavírus não é causa comum de diarréia grave nos porta ■ Diarréiapela Escherichia coli
dores do H1V. A Escherichia coli (£. coli) é uma das bactérias que integram
A gastrenterite pelo rotavírus pode causar complicações a flora bacteriana do intestino, mas, quando alguma cepa sofre
como enterocolite necrotisante, invaginação intestinal, atresia alterações genéticas, pode tornar-se patogênica. O trato gastrin-
das vias biliares, complicações neurológicas como convulsões testinal e as vias urinárias são seus alvos preferidos. As cepas de
e encefalopatia. E. coli reconhecidamente associadas à diarréia aguda são: E. coli
O rotavírus pode ser isolado por coprocultura, mas esta tem enterotoxigênica (ETEC), E. coli enteropatogênica (EPEC), E.
a desvantagem de ser muito laboriosa. Outros testes para pes coli êntero-hemorrágica (EHEC), E. coli enteroinvasiva (EIEC)
quisa de antígenos virais têm sido usados como PCR e ELISA. e E. coli enteroagregativa (EAEC).
Este último é o mais difundido por ser um meio rápido e de O diagnóstico da infecção pela E. coli é presuntivo pela apre
baixo custo. O rotavírus é detectado nas fezes desde o início sentação clínica. Os testes específicos para sua detecção são a
32 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica
coprocultura ou pesquisa de antígenos ou toxinas nas fezes, com recuperação do paciente. Porém, cerca de 10% das crian
normalmente por técnica de PCR. Contudo, tal avaliação com ças com menos de 10 anos de idade desenvolvem a síndrome
plementar habitualmente é pouco disponível e cara, ficando hemolítico-urêmica. Em pacientes idosos, costuma estar asso
restrita a situações específicas e à pesquisa científica. ciada à terapêutica quimioterápica.
O tratamento de uma forma geral visa a estabilização clínica As dificuldades para a identificação da EHEC retardam
com reposição hidreletrolítica e uso de sintomáticos. Em casos o seu diagnóstico e os estudos epidemiológicos. A EHEC
mais intensos, antibioticoterapia pode ser necessária. Os anti 0157:H7 pode fermentar, não rotineiramente, o sorbitol, ao
bióticos de escolha estão relacionados no Quadro 3.3. contrário da maioria das £ coli. Usando-se o ágar Mac Conkey
sem o sorbitol, identificam-se cepas EHEC não fermentadoras
■ f.«?//enterotoxigênica(ETEC) de sorbitol, mas as cepas não 0157 não são detectadas. A pes
Produz duas classes principais de toxinas: a toxina termo- quisa da toxina Shiga é o método gold standard para a EHEC,
lábil (TL) e a toxina termoestável (ST). A TL é semelhante em mas não revela se grupo é 0157 ou não 0157. O bioteste em
estrutura e mecanismo de ação àquela produzida pelo Vibrio cultura de tecido pode demonstrar o rápido efeito citopático
cholerae, estimulando a adenilciclase, que leva ao aumento da produzido pela toxina, mas os laboratórios não têm esse recur
cAMP intracelular. A ST estimula a guanilciclase que eleva a so de rotina. O teste do anticorpo monoclonal detecta tanto a
concentração intracelular de GMPc. Em ambos os casos, há au citotoxina Stxl como a Stx2 em amostras de alimentos, de fezes
mento na secreção de água e eletrólitos e inibição da absorção e em coprocultura. Essas citotoxinas podem ser identificadas
destes com desencadeamento de diarréia aquosa. Os sintomas pelos testes de DNA ou PCR.
surgem após curto período de incubação, com presença de náu Ainda é controverso se o tratamento da EHEC diminui ou
seas, vômitos e diarréia aquosa. O quadro pode durar cerca de aumenta o risco da síndrome hemolítico-urêmica. Existem evi
24 h ou estender-se para 4 a 5 dias. Como é uma diarréia auto- dências de que os antibióticos induzem maior liberação de to
limitada, a terapêutica baseia-se na reidratação oral. Na maio xinas Shiga ao eliminar as bactérias, aumentando com isso a
ria das vezes, não se faz nem a identificação da bactéria nem a chance da complicação. Algumas pesquisas, como as de Wong
administração de terapêutica antimicrobiana. et al., constataram que, em crianças abaixo de 10 anos, há maior
incidência de síndrome hemolítico-urêmica nas tratadas com
■ £. coli enteropatogênica (EPEC) antibiótico em relação ao grupo controle. Mas outros autores,
As bactérias aderem e destroem as microvilosidades, redu como Proulx et al., não correlacionaram o uso de antibióticos
zindo, assim, a área absortiva. Está associada a casos esporádi com o desenvolvimento da síndrome. Existe, entretanto, con
cos de diarréia principalmente de recém-nascidos, mas pode senso de que a terapêutica com antibióticos não seria benéfica,
também atingir adultos. As crianças podem apresentar quadros podendo ser até prejudicial. Por isso, a terapêutica de suporte
clínicos graves, com vômitos e desidratação. Quando a diar é a mais indicada e seria a primeira escolha.
réia é persistente, pode levar à desnutrição. Além da terapêuti
ca sintomática e da reidratação, os antimicrobianos indicados ■ E. coli enteroinvasiva (EIEC)
são as quinolonas: norfloxacino (400 mg), ou ciprofloxacino A EIEC tem como característica a habilidade de invadir as
(500 mg), ou ofloxacino (400 mg) - todos duas vezes/dia du células do epitélio intestinal, multiplicar dentro delas e atin
rante 3 a 5 dias. gir as adjacentes, produzindo pequenas ulcerações. A diarréia
por EIEC parece ser pouco frequente ou subdiagnosticada. O
■ £. coli êntero-hem orrágica (EHEC) quadro clínico é semelhante ao da shigelose. Pode apresentar
Esta bactéria foi identificada nos anos 1980 nas fezes de pa apenas diarréia aquosa, mas pode evoluir com quadro febril,
cientes que ingeriram hambúrgueres em uma cadeia de fast fezes sanguinolentas, cólicas e tenesmo.
food. Posteriormente, um estudo relacionou-a com a síndrome O tratamento antibiótico deve ser feito com quinolonas de
hemolítico-urêmica, que apresenta a tríade: anemia microan- forma semelhante ao descrito para EPEC ou com sulfameto-
giopática, insuficiência renal e trombocitopenia. xazol-trimetoprima (TMP-SMZ).
A maioria dos estudos relaciona a EHEC com disenteria e
síndrome hemolítico-urêmica, identificando-a com o sorotipo ■ E. coli enteroagregativa (EAEC)
0157:H7. Estudos retrospectivos com E. coli estocadas sugerem Entre as bactérias capazes de causar diarréia, a EAEC é a que
que essa infecção é uma doença emergente, pois não tinha sido foi descrita mais recentemente. Esse grupo de bactérias foi re
descrita antes dos anos 1980. Existem surtos esporádicos em conhecido no final dos anos oitenta, quando amostras de £ coli
todo o mundo, mas com aparente concentração no Oeste do oriundas de diarréias que ocorreram em países em desenvolvi
Canadá e nordeste dos EUA. Coloniza o gado, que é a fonte mento foram examinadas em cultura de tecido. Sua presença foi
principal de transmissão e, por isso, está ligada com a ingestão mais evidente em casos de diarréia persistente, em casos espo
de hambúrguer. Pode também contaminar verduras e sucos rádicos como em surtos diarreicos, do que em fezes de pessoas
não pasteurizados, além de alimentos contaminados com fe sem diarréia. Sua presença também foi comprovada em porta
zes de animais. Pequena quantidade de bactérias pode causar dores de HIV que apresentavam diarréia persistente.
doença. Como não existe modelo animal para essa infecção, não está
As citotoxinas Shiga Stxl e Stx2 são determinantes da in muito claro o seu mecanismo patogênico. Sabe-se, entretanto,
fecção, mas não há necessidade de ambas estarem presentes no que ela produz inflamação intestinal e induz a liberação de in-
organismo para causar a doença. A maioria das cepas de EHEC terleucina-8 pelas células do epitélio intestinal. Uma citotoxi
também produz uma êntero-hemolisina, embora não esteja na em cepas de EAEC já foi identificada em cultura de tecidos.
evidente a relação entre esse fator e o quadro clínico. A diarréia é desencadeada pelas bactérias ao se agregarem ao
Cursa com diarréia com sangue em cerca de 90% dos casos. epitélio intestinal.
Entretanto, pode iniciar com quadro mais brando e tornar-se A tendência é a tentativa de erradicá-la com ciprofloxacino
hemorrágica durante a evolução clínica. Tem período de in (500 mg, duas vezes ao dia), tanto em imunocompetentes, como
cubação de 3 a 5 dias. Os sintomas declinam entre 5 e 10 dias, em portadores de HIV, uma vez que estudos comparativos mos
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 33
traram que houve redução significativa no tempo de duração nalidíxico 55 mg/kg/dia dividido em quatro doses. Todas essas
da diarréia naqueles que receberam antibioticoterapia. opções devem ser administradas por 5 dias.
Por isso, muitas hipóteses diagnósticas podem ser levantadas, cloranfenicol, que é agente bacteriostático, há relatos de 10 a
devendo-se excluir, por exemplo, malária e leishmaniose. 25% de recaídas. Entretanto, com os novos antibióticos, a in
A apresentação clássica da febre tifoide consiste em: cidência é bem menor, entre 1 e 6%. A escolha do antimicro-
biano deve levar em consideração a sensibilidade bacteriana,
1) Primeira semana: febre alta e bacteriemia.
como as cefalosporinas de terceira geração, com uso por perío
2) Segunda semana: dor abdominal, rash cutâneo (manchas
do mais longo.
avermelhadas) no tórax e no abdome.
Portador crônico é definido pela excreção de bactérias nas fe
3) Terceira semana: hepatoesplenomegalia, hemorragia di
zes por mais de 12 meses após infecção aguda. Ocorre mais nos
gestiva e perfuração intestinal. Essa última é resultante de
casos de S. typhi do que nos de não typhi e é mais comum em
hiperplasia linfoide das placas de Peyer na região ileocecal
portadores de colelitíase ou de outras anormalidades do trato
e pode causar bacteriemia e peritonite.
biliar. O portador crônico não desenvolve doença sintomática,
A bradicardia, ou seja, a clássica dissociação pulso-tempera- sugerindo que haja equilíbrio imunológico. A colonização in
tura, embora não permita firmar o diagnóstico, deve ser sem testinal permite que haja excreção de bactérias nas fezes, com
pre lembrada. potencial risco comunitário, principalmente se esse portador
A febre tifoide pode evoluir para choque séptico, alterações manipula alimentos. Por isso, deve ser tratado com objetivo de
nos níveis de consciência, psicose aguda, mielite e rigidez. Pode erradicar a bactéria. No passado, usavam-se esquemas com altas
também complicar com pneumonia, convulsões febris, tosse, doses de ampicilina (4 a 6 g/dia) combinados com colecistecto-
artralgias e mialgias. mia, mas nem sempre o êxito era obtido. Assim, prefere-se uma
A mortalidade era em torno de 15% na era pré-antibióticos, quinolona, como o ciprofloxacino 500 mg 2 vezes/dia durante
mas, atualmente, reduziu para menos de 1,5% dos casos. 4 semanas. A colecistectomia deve ser indicada posteriormente
O diagnóstico deve ser confirmado através do isolamento se o paciente tem colelitíase.
da bactéria sempre que haja suspeita clínica. A hemocultura é Os casos de perfuração intestinal ocorrem, em geral, em tor
positiva entre 40 e 80% dos casos, sendo maior na primeira se no da terceira semana de febre. O quadro clínico consiste em
mana, com queda progressiva até a terceira semana de doença. dor abdominal, distensão, peritonite e bacteriemia por agentes
A coprocultura é rápida e simples, com máxima positividade aeróbicos e anaeróbicos. A indicação terapêutica nesses casos
em torno da terceira semana de doença. Tem grande utilidade é a ressecção do segmento afetado com cobertura antibiótica
no controle dos portadores crônicos de Salmonella. A mielo- para a peritonite.
cultura pode atingir 98% de positividade e deve ser lembrada
quando a hemocultura for negativa. A reação de Widal, desde a ■ Salmonelose não tifoide
sua descrição em 1896, continua a ser útil, mas pode ser positiva A Salmonella é uma das principais causas de gastrenterite
em pacientes com passado de infecção e ser influenciada por transmitidas através de alimentos. As principais fontes são ovos
vacinação prévia. Novas tecnologias, como o teste ELISA, têm e carnes. As aves são os carreadores mais frequentes dessas bac
importância, mas falham não atingindo os níveis de sensibili térias, mas o ser humano também pode ser portador assinto-
dade e especificidade desejados. O hemograma revela anemia mático e responsável por transmissão interpessoal.
e leucopenia e, às vezes, até leucocitose. Este subgrupo de salmonelas é causador de diarréia indis
O desenvolvimento e rápida disseminação de cepas resisten tinta das demais causas de diarréia infecciosa invasiva. Agride
tes aos antibióticos cloranfenicol, ampicilina e TMP/SMZ, que preferencialmente mucosa ileal e também cólon. Na maioria
eram considerados de escolha para a erradicação da Salmonella dos casos, o quadro é autolimitado, com febre habitualmente
typhi, têm sido observados em várias partes do mundo. Tal nos 3 primeiros dias e diarréia por até 10 dias. O espectro de
constatação foi feita em viajantes procedentes de diversas re apresentação pode variar de assintomático a diarréia associa
giões para países do primeiro mundo. Em face disso, passou-se da a dor abdominal e vômitos com possibilidade de toxemia e
a preferir as quinolonas e cefalosporinas de terceira geração. As infecção extraintestinal. Quando evolui com bacteriemia, pode
quinolonas são bactericidas e concentram-se intracelularmente causar arterite, endocardite, meningite, artrite e osteomielite.
e na bile, conseguindo rápida remissão dos sintomas. Todavia, O tratamento é ditado pela gravidade clínica e pelas comor-
já têm sido descritos casos de resistência ao ciprofloxacino, e, bidades, sendo, na maioria dos casos, desnecessária a antibio-
por isso, alguns estudos foram dirigidos à azitromicina, que ticoterapia.
também se concentra nos tecidos e nas células.
A opção de esquema terapêutico é habitualmente de uma ■ Diarréiapelo Clostridium difficile
única droga, mas a escolha e a duração do tratamento é ainda O Clostridium difficile é uma bactéria gram-positiva, anae-
motivo de pesquisa e dependem de diversos fatores como a róbia, considerada a principal responsável pela enterocolite
idade dos pacientes e a gravidade dos sintomas. Os esquemas pseudomembranosa. Foi descrita pela primeira vez em 1935 por
mais seguros para adultos são: (1) Ciprofloxacino 500 mg VO Hall e 0 ’Toole, quando estudavam a flora intestinal de recém-
ou 400 mg IV, 2 vezes/dia, durante 7 a 10 dias; (2) Ceftriaxo- nascidos saudáveis. Recebeu esse nome por causa da dificuldade
na 1 g 2 vezes/dia, IV, durante 7 a 14 dias; (3) Azitromicina de isolá-lo e cultivá-lo. Foi encontrado em metade dos casos
1.000 mg inicialmente, seguidos de 500 mg VO, dose única estudados, sugerindo tratar-se de comensal inofensivo e não
diária, durante 7 a 14 dias; (4) Cloranfenicol 500 mg VO ou patogênico. A enterocolite pseudomembranosa foi descrita em
IV, 3 vezes/dia, durante 14 dias. 1893 por Finney, cirurgião do Hospital Johns Hopkins, na ne-
Diante do risco de recaída, após o tratamento os pacientes cropsia de uma mulher jovem submetida a gastrectomia, sem
devem ser monitorados por até 4 semanas, sendo aconselhável relacioná-la ao Clostridium difficile. Em 1977, Larson e cola
a realização de coprocultura de controle. boradores descobriram uma citotoxina nas fezes de pacientes
O uso de corticosteroides deve ser reservado apenas para tra portadores de colite associada ao uso de antibióticos, e, pouco
tamento inicial de casos graves da febre tifoide com toxemia. depois, Bartlett e colaboradores correlacionaram essa toxina
A recaída é ocorrência previsível, mesmo em indivíduos com com o C. difficile. Os casos de colite pseudomembranosa au
a imunidade preservada. Quando o tratamento é feito com o mentaram no final da década de 1960 e início da de 1970, com
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 35
a introdução da lincomicina e da clindamicina. O C. difficile diagnóstica. Radiografia simples de abdome pode demonstrar a
tem tendência a colonizar o intestino humano quando a flora presença de dilatações colônicas nos casos de megacólon tóxico,
normal é alterada, principalmente por terapia antibiótica. Ele e a tomografia computadorizada do abdome pode evidenciar
é capaz de sobreviver por longos períodos no ambiente hos espessamento do cólon.
pitalar, facilitado pela forma de esporos resistentes ao calor. Como a diarréia pelo C. difficile está vinculada a outra con
Portadores assintomáticos são comuns entre os idosos, que dição mórbida, a terapêutica visa, inicialmente, à manutenção
são, por isso, reserva potencial. do estado geral do paciente, reposição hidreletrolítica, bem
O C. difficile é responsável por 50 a 70% das diarréias no- como à retirada do antibiótico ao qual foi associado o apareci
socomiais associadas ao uso de antibióticos e que ocorrem até mento da doença. Deve-se evitar uso de drogas antidiarreicas,
6 semanas após sua administração. Podem ocorrer sem uso como loperamida ou defenoxilato, pelo risco de prolongar ou
prévio de antimicrobianos. Os antibióticos mais frequente aumentar a gravidade do quadro e pela possibilidade de me
mente associados à colite por C. diffiàle estão relacionados no gacólon tóxico.
Quadro 3.4. O tratamento antimicrobiano é importante na eliminação
A colite pelo C. difficile é doença mediada por toxinas. A to da infecção. As drogas de escolha são o metronidazol VO ou
xina A (enterotoxina) é o principal fator patogênico, enquanto a intravenosa (apresenta excreção entérica) ou a vancomicina ex
toxina B (citotoxina) tem pequeno ou nenhum efeito deletério. clusivamente VO, conforme descrito no Quadro 3.3. Em cerca
A toxina A é capaz de lesar o epitélio por reação inflamatória, de 10 a 20% dos casos, pode haver recaídas com necessidade
a qual envolve exsudação de material proteico com neutrófilos de outro esquema terapêutico. Assim, alguns autores propõem
e monócitos e formação de pseudomembranas. Estudos histo- prolongar a terapêutica ou associar drogas como a rifampici-
lógicos mostram que as pseudomembranas são formadas de na 600 mg, 3 vezes/dia. A colestiramina 4 g, 3 ou 4 vezes/dia, e
material necrótico, muco e células inflamatórias que cobrem a lactobacilos 1 a 2 g, 4 vezes/dia, podem ter papel adjuvante em
superfície epitelial em área ulcerada. casos de difícil controle.
O quadro clínico varia de portadores assintomáticos, formas Nos pacientes com evolução progressiva associada a com
discretas e autolimitadas até formas fulminantes. A apresenta plicações como infarto e perfuração intestinais, há indicação
ção característica é de diarréia aquosa, com 10 a 12 evacuações/ para cirurgia.
dia, por vezes com raias de sangue. Fezes francamente hemor
rágicas ocorrem raramente. Pode haver distensão abdominal
com descompressão dolorosa. Os casos graves podem evoluir ■ DIARRÉIA CRÔNICA
para megacólon tóxico, perfuração e alta mortalidade. Distúr
bios eletrolíticos contribuem para a morbidade. As ulcerações Enquanto a diarréia aguda está relacionada principalmente
extensas resultam em perdas de proteínas com hipoalbumine- aos agentes infecciosos e, por isso, predomina entre as popu
mia, principal mente quando o quadro se prolonga. São des lações mais pobres, a crônica ocorre com expressiva frequên
critas outras complicações, como derrame pleural, ascite e a cia mesmo nos países industrializados. Nos EUA, estima-se
síndrome hemolítico-urêmica. que a prevalência de diarréia crônica seja de 5% da população
Pode haver leucocitose que, algumas vezes, atinge cifras ele adulta.
vadas. Em cerca de 50% dos casos, são detectados leucócitos Existem inúmeras causas de diarréia crônica, ligadas ora
fecais. A coprocultura anaeróbia exige prazo de 3 a 5 dias, é dis ao intestino delgado, ora ao cólon, criando dificuldades na
pendiosa e inespecífica, pois a colonização assintomática pode sua identificação e terapêutica. Por isso, é necessário ter bom
ocorrer em pacientes hospitalizados. O teste ELISA, baseado conhecimento de suas diversas etiologias, abreviando o sofri
em anticorpos específicos mono e policlonais para toxinas pu mento dos pacientes e reduzindo custos com propedêutica e
rificadas A e B, tem boa sensibilidade, exige só 4 h e é menos terapêutica.
dispendioso. O exame endoscópico (sigmoidoscopia flexível ou
colonoscopia) tem sua limitação pelo desconforto que causa aos
pacientes, mas é de grande valia, pois permite visualizar a área
■ Etiologia
que habitualmente é mais atingida (reto e as partes distais do As principais causas de diarréia crônica são síndrome do
cólon), com evidência de mucosa friável, edemaciada, eritema- intestino irritável (SII), doença inflamatória intestinal (DII),
tosa, e as pseudomembranas, que são placas branco-amareladas, síndrome de má absorção e infecção crônica. Esta última, mais
além de propiciar a coleta de biopsias da área atingida. Em por relevante em regiões de condições sanitárias inadequadas, com
tadores de colite crônica (doença inflamatória intestinal, colite possibilidade de infecções bacterianas, por protozoários ou hel-
linfocítica ou colite microscópica) infectados pelo C. difficile, a mintos.
pseudomembrana pode estar ausente, dificultando a definição Portadores de imunodeficiências apresentam frequentemen
te diarréia associada a infecções oportunistas crônicas.
O câncer colorretal pode apresentar-se com diarréia crônica,
habitualmente com sinais de perda de sangue.
▼ O uso de medicamentos também deve ser investigado. Al
Quadro 3.4 Antimicrobianos associados à colite por Oostridiumdifficile gumas drogas têm efeito secretório direto no intestino delgado
e no cólon, principalmente a fenolftaleína e os derivados antra-
Frequência A ntibiótico quinônicos como o sene. O uso excessivo de dissacarídios não
absorvíveis, como o sorbitol, em dietas com restrição de açúcar
Com um A m p id li n a , a m o x ic ilin a , c lin d a m ic in a , c e fa lo s p o rin a
pode causar diarréia osmótica à semelhança de laxativos, como
O c a s io n a l P e n ic ilin a , e rit r o m ic in a , tr im e t o p r im a -s u lf a m e t o x a z o l,
q u in o lo n a s
o manitol e o sulfato de magnésio.
Tumores neuroendócrinos produtores de neurotransmis
Rara T e t r a c id in a , m e tr o n id a z o l, v a n c o m ic in a ,
a m in o g lic o s íd io s
sores com ação secretagoga, como o VIP (peptídio vasoativo
intestinal) nos VIPomas e a serotonina na síndrome carcinoi-
36 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica
de, estão associados à diarréia crônica e intensa. Apesar de Alguns fatores de risco para doenças específicas podem ser
constituírem enfermidades mais raras, devem ser lembrados encontrados na história. O médico deve pesquisar: viagens a
nessas situações. áreas endêmicas para parasitoses; sintomas precipitados ou
A maioria dessas condições será descrita separadamente em agravados por uso de determinado alimento, como a lactose
capítulos deste livro. Neste capítulo, tais enfermidades serão (intolerância à lactose) ou o glúten (doença celíaca); comor-
abordadas apenas em linhas gerais. bidades como o diabetes de longa data e hipertiroidismo que
podem cursar com diarréia; história familiar de doença infla-
matória intestinal (D1I) ou doença celíaca que apresentam risco
■ História clínica de herança genética; exposição a fatores de risco para contami
A definição diagnóstica exclusivamente pelo quadro clínico nação pelo HIV; uso de álcool em doses potencialmente lesivas
é mais difícil na diarréia crônica devido a suas possíveis etio- ao pâncreas; abuso de produtos dietéticos com sacarídios não
logias de grande complexidade. Entretanto, a avaliação clínica absorvíveis; história medicamentosa.
acurada pode direcionar a investigação complementar, mini Ao exame físico, podemos encontrar sinais extraintestinais
mizando custos e exposição do paciente. de determinadas doenças. Na DII, além de massas inflamató-
A caracterização da diarréia como alta (intestino delgado) rias abdominais, podem ocorrer lesões perianais, lesões cutâ
ou baixa (cólon), conforme discriminada no Quadro 3.1, é uma neas, aftas orais, olho vermelho e artropatias. Nas síndromes
das formas de classificar e guiar a sequência de propedêutica de má absorção e no câncer de cólon, devemos procurar sinais
complementar. de desnutrição, como edema e anemia.
Na qualificação da diarréia, devemos ter atenção para por
tadores de incontinência anal. Esses indivíduos apresentam
o que denominamos pseudodiarreia. Existe aumento na fre
■ Diagnóstico
quência das evacuações por incapacidade de conter as fezes na A orientação do diagnóstico necessita seguir parâmetros clí
ampola retal. Nesta condição, não há aumento da quantidade nicos objetivos, em função da complexidade da propedêutica
de água nas fezes nem de seu volume global; portanto, não há específica. Quando necessária, a solicitação de exames com
diarréia. plementares deve guiar-se inicialmente pelas características
Ausência de perda ponderai e de sinais de desnutrição, pre do quadro diarreico, se diarréia alta ou baixa, conforme Fi
sença de sintomas predominantemente diurnos, alternância gura 3.1.
do hábito intestinal com períodos de constipação intestinal, Devem-se avaliar as alterações de caráter funcional na SII.
além de crise de dor associada à distensão abdominal e aliviada Em casos de dúvida, exames gerais que demonstrem ausência
pela evacuação são sugestivas de síndrome do intestino irritável de acometimento sistêmico como hemograma completo sem
(SII). O início dos sintomas, habitualmente, ocorre em perío anemia, leucocitose ou plaquetose e provas de atividade infla-
dos de instabilidade emocional e predomina em adultos jovens. matória (p. ex., proteína C reativa e VHS) normais reforçam o
Nestas condições, deve-se evitar investigação invasiva. diagnóstico de diarréia funcional.
dura ingerida, ficando em torno de 7 g/dia. Valores superiores fezes diarreicas. Em algumas etiologias, a mucosa está normal à
a esse são considerados anormais e significam esteatorreia. En macroscopia, e a biopsia é essencial para o diagnóstico, como na
tretanto, valores entre 7 e 14 g/dia de gordura fecal têm baixa colite colágena e colite linfocítica. Colites infecciosas também
especificidade para diagnosticar defeito primário de digestão podem ter o diagnóstico confirmado pela colonoscopia, como
ou absorção. Valores acima de 14 g/dia são mais específicos colite pseudomembranosa pelo C. difficile, colite amebiana e
para comprovar má absorção. tuberculose intestinal.
40
Capítulo 4 / Halitose, Eructação e Soluço 41
fatória do examinador, ou através de equipamentos capazes gástrico é a deglutição. Já foi demonstrado que, a cada ingestão
de medir a concentração dos compostos sulfurados (sulfeto de 10 m^ de líquido, chegam também ao estômago 17 m f de
de hidrogênio, metilmercaptana e dimetilsulfeto) do hálito, ar. Estudos realizados por Tomlim et al em indivíduos sadios
como o halímetro (Halimeter®). Esse aparelho tem a capacida mostraram que a ingestão diária de nitrogênio é em torno de
de de medir a concentração dos compostos sulfurados voláteis 2.000 m f, mas a sua eliminação através dos flatos foi de aproxi
do hálito, que são ionizados quando entram em contato com madamente 250 mf/dia. Como ele é pouco absorvível, pode-se
o equipamento e são medidos em concentração de partes por concluir que a maior parte é eliminada através da eructação.
bilhão {ppb)t considerando-se normal quando a concentração Assim, como o nitrogênio é o principal gás existente no estô
está abaixo de 150 ppb. Outros recursos têm sido propostos mago, só sendo eliminado pelo reto em pequena proporção,
para medir os compostos sulfurados voláteis, como um sensor fica demonstrado que, em condições fisiológicas, a passagem
colorimétrico ou através de cromatografia. do ar deglutido para o intestino é pequena.
Os gases intraluminais produzidos no trato gastrintestinal
são o dióxido de carbono, o hidrogênio e o metano. O dió
■ Tratamento xido de carbono predomina na porção superior do intestino
O tratamento tem seu êxito ligado à identificação da causa delgado, resultando da interação do ácido clorídrico e dos áci
e de sua possível remoção, como nas halitoses provadas por dos graxos (derivados da digestão de triglicerídios pela lipase
medicamentos ou infecções. Tendo em vista o predomínio pancreática) com o bicarbonato. O hidrogênio é resultante do
de afecções da cavidade oral, cuidados de higiene oral são metabolismo bacteriano, no cólon, de substratos fermentáveis,
indispensáveis. Por outro lado, torna-se mais difícil quando como carboidratos e proteínas. Por apresentar-se com grande
a etiologia da halitose não é reconhecida. A pseudo-halitose pressão parcial, difunde-se para o sangue, sendo eliminado pelo
associada frequentemente com alterações emocionais pode ar expirado. Em estudos experimentais em ratos de laborató
necessitar do auxílio de medicamentos e de profissionais es rio esterilizados e recém-natos, demonstrou-se que eles não
pecializados. produzem hidrogênio, que surge, entretanto, algumas horas
após sua contaminação por bactérias. O metano também apre
senta uma única fonte, o metabolismo de bactérias anaeróbi-
■ ERUCTAÇÃO cas, cujas colônias estão presentes em pessoas de determinado
traço familiar, sendo encontrado somente em um terço dos
É a eliminação fisiológica do conteúdo gasoso excessivo do adultos. Todavia, em condições patológicas, o ar existente no
estômago através da cavidade oral, às vezes feita de maneira estômago pode chegar ao cólon, como ficou demonstrado em
ruidosa. estudo feito por Levitt et al em um paciente portador de fla-
tulência acentuada, no qual foram medidas as concentrações
dos diversos componentes dos flatos eliminados. Observou-se,
■ Aspectos fisiológicos dos gases gastrintestinais então, que a concentração de nitrogênio era muito superior
Os gases gastrintestinais podem ter três origens: ar deglutido, àquela esperada, equiparada às concentrações intragástricas, e
produção intraluminal e difusão entre o lúmen e o sangue. que os gases intraluminais (dióxido de carbono, hidrogênio e
Cerca de 99% dos gases presentes no trato gastrintestinal metano) tinham concentração abaixo de 17%. Esse estudo de
são compostos de nitrogênio, oxigênio, dióxido de carbono, monstra que, antes de se propor um tratamento clínico para
hidrogênio e metano, sendo todos sem odor. A distribuição e um paciente com flatulência, seria importante saber se os gases
a concentração desses gases estão representadas no Quadro 4.1. eliminados são formados no próprio intestino ou se resultam
Outros gases e substâncias também estão presentes em menor do ar deglutido.
quantidade, como aqueles odoríferos, provavelmente respon A difusão de gases entre o lúmen e o sangue é determ i
sáveis pelo odor desagradável dos flatos, que são: amônia, gás nada pela diferença parcial de pressão. O sangue que irriga
sulfídrico e metilmercaptana. Eles são resultantes do metabo o cólon tem gradiente de pressão parcial muito baixa de hi
lismo de alguns alimentos. drogênio e metano. Sendo assim, eles passam do lúmen para
O ar deglutido contém os dois principais gases existentes na o sangue, ocorrendo o contrário com o dióxido de carbono e
atmosfera, ou seja, o nitrogênio e o oxigênio, não encontrados o oxigênio.
no estômago de indivíduos que não podem deglutir, como na
acalasia grave, comprovando, assim, que a única fonte de ar
■ Fisiopatologia
O gás eliminado através da eructação contém, aproximada
mente, 80% de nitrogênio e 20% de oxigênio.
---------------------------------▼ ----------------------------------------- Estudos radiológicos e, mais recentemente, de impedancio-
Quadro 4.1 Composição dos gases gastrintestinais metria e pHmetria esofágicas permitiram identificar a existên
cia de duas condições distintas: (1) a eructação supragástrica,
Gás Estôm ago (% ) In testin o (% ) Flatos (% ) quando o ar deglutido ou originário da faringe atinge o esôfago
para, logo a seguir, ser eliminado pela boca, não tendo, portan
N it r o g ê n io 79 2 3 -8 0 11-32 to, origem no estômago; (2) a aerofagia, quando há deglutição
O x ig ê n io 17 0,1 - 2 , 3 0-11 excessiva de ar, que se acumula no estômago, e para ser elimi
D ió x id o d e c a r b o n o 4 5,1 - 2 9 3-54 nado pela boca provoca um relaxamento do esfíncter esofágico
H id r o g ê n io — 0 ,0 6 - 4 7 0-69 inferior antes da eructação, criando uma cavidade gastresofá-
M e ta n o — 0-26 0-56 gica comum. Não há evidência de relaxamento do esfíncter
esofágico inferior na eructação supragástrica.
Adaptado de Berk, JE. Gas. Em: Haubrich, WS, Schaffner, F, Berk, JE. Bockus
Gastroenterology, 5th ed., Philadelphia. W.B. Saunders, 1995. Monitoramentos feitos através de impedanciometria e
pHmetria esofágicas durante 24 h demonstraram que as
42 Capítulo 4 / Halitose,Eructaçâoe Soluço
eructações supragástricas ocorrem em maior número e que prolongado. As manifestações de soluço quando se estendem
sofrem de um declínio no período noturno, enquanto aquelas por mais de 48 h são consideradas como persistentes e, se ul
originadas do estômago (aerofagia) ocorrem em menor núm e trapassam 1 mês, são chamadas de intratáveis.
ro que as supragástricas e mantiveram um equilíbrio tanto no
período diurno como no noturno. Assim, pode-se concluir que
no primeiro caso as eructações resultam de vícios adquiridos,
> Etiologia
estando relacionadas com distúrbios comportamentais. O soluço incide igualmente em ambos os sexos e em qual
quer idade. Nas crianças, a causa raramente é encontrada. As
■ Manifestações clínicas causas orgânicas predominam no sexo masculino. Cerca de
20% têm origem psicogênica, mas em muitos casos a etiologia
A eructação ocasional, durante ou após uma refeição, resul permanece idiopática.
taria da eliminação de gases da bolha gástrica, sendo conside As principais causas de soluço agudo ou benigno estão
rada um evento normal. relatadas no Quadro 4.2 e as de soluço persistente, no Qua
Toda eructação é precedida de deglutição de ar, mas os pa dro 4.3.
cientes nem sempre percebem essa relação. Os pacientes com
aerofagia engolem ar em grande quantidade, com grande fre
quência e têm excessiva quantidade de gás intestinal, que pode ■ Fisiopatologia
ser constatada em uma radiografia simples de abdome. A dis Suspeitava-se, no passado, que o soluço fosse resultante de
tensão abdominal é a principal manifestação clínica, enquanto um movimento respiratório reflexo, produzindo uma inspi
a eructação ocorre em menor grau. ração entrecortada, mas estudos de eletrofisiologia têm refu
Quando a eructação se torna mais frequente e associada a tado essa ideia. A sua produção estaria relacionada com um
desconforto, pode estar relacionada com transtornos funcio arco reflexo, proposto inicialmente por Bailey em 1943, com a
nais ou com alguma doença, como a úlcera péptica, o reflu- participação de uma via aferente composta dos nervos frêni-
xo gastresofágico e neoplasias, exigindo, nesses casos, exames co, vago e da cadeia simpática correspondente aos segmentos
complementares mais objetivos. torácicos T6-T12; de um centro do soluço, sem uma localiza
Algumas condições clínicas favorecem a deglutição de ar e ção específica entre C3 e C5; de uma conexão central entre
a consequente eructação. É o que acontece em pacientes com as vias aferentes e eferentes, constituída pela interação entre
distúrbios emocionais, como já foi descrito na sindrome Gilles o centro respiratório, o núcleo do nervo frênico, a formação
de la Tourette, bem como nos portadores de falhas dentárias, reticular e o hipotálamo; de uma via eferente, formada prin
secreção nasal e nos fumantes. cipalmente pelo nervo frênico, além das inervações da glote e
dos músculos acessórios da respiração (Figura 4.1). Assim, o
■ Tratamento soluço resultaria de estímulos aferentes, ou de origem central.
Tendo em vista a longa trajetória dos nervos e centro envol
Uma vez excluída a presença de enfermidades orgânicas res vidos nesse arco refluxo, o potencial de desencadeamento por
ponsáveis pela eructação, a primeira medida consiste em corri processos patológicos é muito diversificado, por isso inúmeras
gir hábitos viciosos da alimentação relacionados com mastiga doenças podem ser envolvidas na etiologia do soluço. O nervo
ção, consistência dos alimentos (os líquidos favorecem maior vago, em particular, pode ser ativado em várias áreas anatômi
ingestão de ar), restringir certos alimentos como feijão, len cas, como: vísceras torácicas e abdominais, cabeça e pescoço.
tilha, carnes vermelhas, verduras e legumes crus. Restrições Estudos radioscópicos têm demonstrado que o soluço envolve
também devem ser feitas a fumo, gomas de mascar, balas e mais frequentemente uma contração unilateral do diafragma
bebidas gasosas. e predomina à esquerda. Contração bilateral também ocorre,
Como a eructação frequente tem uma relação estreita com mas o comprometimento unilateral predomina.
a ansiedade e a tensão emocional, pode haver a necessidade do
auxílio de profissionais das áreas de fonoaudiologia e de psico-
terapia, além da prescrição de um psicoterápico.
A dimeticona, que atuaria no sentido de favorecer a coales- ------------------------------------- ▼---------------------------
cência das bolhas gasosas e facilitar a sua eliminação, pode ser Quadro 4.2 Causas de soluço agudo ou benigno
prescrita, embora seja de eficácia duvidosa.
Os antiácidos, os antagonistas dos receptores H2ou bloquea- D is te n s ã o g á strica
B e b id a c a r b o n a t a d a
In s u fla ç á o g á strica d u r a n t e e n d o s c o p ia
■ SOLUÇO M u d a n ç a b ru s c a n o a m b ie n t e o u n a t e m p e r a t u r a g a s trin te s tin a l
B a n h o frio
O soluço é um fenômeno neurorrespiratório resultante da
B e b id a s q u e n t e s o u frias
contração involuntária dos músculos inspiratórios, associada
ao fechamento simultâneo da glote com a produção de um ruí D is t ú r b io s e m o c io n a is s ú b ito s
do característico. C ig a r r o
É uma manifestação clínica simples e benigna, quando tran Adaptado de Rousseau, P. Hiccups South Med. 1 , 1995; 88:175-81.
sitório, mas torna-se um problema angustiante e sério, quando
Capítulo 4 / Halitose, Eructação e Soluço 43
A n o r e x ia n e rv o s a ■ Diagnóstico
D is t ú r b io s d e p e rs o n a lid a d e
Diante da diversidade de doenças capazes de desencadear o
O r g â n ic a s
soluço, uma história cuidadosa deve ser seguida de exame clí
S is te m a n e r v o s o c e n tra l
nico detalhado, com especial atenção para cabeça, estruturas
N e o p la s ia
do pescoço, coração, pulmões e abdome. O conduto auditivo
S / )u n f v e n t r ic u lo p e rit o n e a l externo deve ser examinado para excluir inflamações, corpos
E s d e r o s e m ú lt ip la estranhos, pelos aberrantes irritando a membrana do tímpano
H id ro c e fa lia e cerume impactado.
M a lf o r m a ç ã o a rte rio v e n o s a Exame radioscópico do diafragma deve ser realizado nos
A c id e n t e v a s c u la r c e re b ra l quadros de soluço persistente, quando a etiologia não está de
T r a u m a t is m o c ra n io e n c e fá lic o finida. Quando há envolvimento unilateral do diafragma, o
S is te m a n e r v o s o p e rifé ric o (irrita ç ã o d o n e r v o frè n ic o o u d o v a g o )
diagnóstico deve ser voltado para as áreas do mesmo lado do
H é rn ia h ia ta l — e so fa g ite
nervo frênico afetado, mas, se for bilateral, sugere origem afe-
rente ou central. Exames laboratoriais podem ser realizados
P e ric a rd ite
para pesquisar, por exemplo, uma origem metabólica (hipo
Im p la n t a ç ã o a n ô m a la d e e le t r o d o d e m a rc a -p a s s o
calcemia, hipopotassemia ou insuficiência renal). Os exames
In fa rto a g u d o d o m io c á r d io
endoscópicos e de imagem (radiografia de tórax, de abdome,
T u m o r o u c is to d e p e s c o ç o
tomografia computadorizada, PET/CT, ressonância magnética)
L in fa d e n o p a tia d e m e d ia s t in o são voltados para uma suspeita orgânica.
E s tim u la ç ã o d a m e m b r a n a t im p â n ic a
In fe c ç õ e s b r ô n q u ic a s , p u lm o n a r e s o u p le u ra is
T u m o r d e e s ô fa g o
■ Tratamento
G a s trite o u ú lc e ra p é p tic a A terapêutica ideal é aquela dirigida para a sua etiologia;
C â n c e r g á s tric o
entretanto, nem sempre é possível remover a causa ou iden-
P a n c re a tite
tificá-la, tornando-se assim necessárias medidas visando ao
próprio soluço.
C o le d s t o p a tia s
Muitos tratamentos não farmacológicos são empíricos, sem
P ó s -o p e r a t ó r io d o tó ra x o u d o a b d o m e
embasamento científico, mas, com frequência, eficazes. Con
M e ta b ó lic a s — fa r m a c o ló g ic a s — infe cciosa s
sistem no estímulo da nasofaringe, visando a interromper a
A n e s te s ia g e ra l
transmissão aferente vagai, e incluem: tração da língua, eleva
C o r tic o s te r o id e s p o r v ia e n d o v e n o s a ção da úvula com uma colher, estimulação da faringe com uma
B a rb ltú ric o s — d ia z e p ín ic o s mecha de algodão ou cateter, gargarejo com água, tomar água
M e t ild o p a gelada, ingerir açúcar granulado. Contrariamente, pode-se fazer
Sepse a estimulação vagai, como manobra de Valsalva, massagem da
E s ta d o g r ip a i carótida, pressão supraorbital, irritação mecânica da membra
H e rp e s z o s te r
na do tímpano e toque retal. Outros métodos que se propõem
M a lá ria
a interrompera transmissão do nervo frênico têm sido eficazes,
fazendo cessar o episódio de soluço, e consistem em dar leves
T u b e r c u lo s e
pancadas rítmicas sobre a 5.* vértebra cervical, ou aplicar gelo
U re m ia
na superfície cutânea referente ao território do nervo frênico,
H ip o c a lc e m ia — h ip o n a t r e m ia — h ip e r g lic e m ia
estimulação elétrica, bloqueio com injeção de lidocaína.
Id io p á tic a s Embora não exista uma associação evidente entre o soluço
Adaptado de Rousseau, P. Hlccups South Med. J., 1995; 88:175-81. e o aparelho respiratório, muitos tratamentos envolvem a in
terrupção da respiração normal, incluindo espirros, tosse, ap
neia voluntária, hiperventilação, dor ou medo súbitos, uso de
pressão aérea positiva contínua e respirar dentro de um saco de
papel (aumenta a Pco,, produzindo acidose respiratória).
Outras medidas têm sido propostas para tratar o soluço,
■ Manifestações clínicas como a hipnose e a acupuntura. Esta última foi empregada em
Quando agudo e transitório, o soluço é uma manifestação pacientes portadores de neoplasia maligna, obtendo-se resul
clínica simples, como ocorre no período pós-prandial ou após tados estatisticamente significantes.
a ingestão de bebidas alcoólicas, tem evolução autolimitada ou
cede com medidas simples, como apneia voluntária, ingestão
de água ou pela manobra de Valsai va. Algumas vezes, mesmo
■ Terapêutica medicamentosa
quando tem instalação aguda, pode causar grande desconforto, Quando o soluço tem evolução prolongada e não respon
exigindo medidas terapêuticas mais enérgicas e imediatas. En de às medidas supracitadas, diversos medicamentos podem
tretanto, quando é prolongado, torna-se um problema clínico ser prescritos como a clorpromazina, a única droga licenciada
44 Capítulo 4 / Halitose,Eructaçâoe Soluço
Adaptado de Wilcox, SK, Garry, A, Johnson, MJ. J. Pain Symptom Manage, 2009; 3:460-5.
para o tratamento de soluço nos EUA. Diversas referências são • Anestésicos: lidocaína, cloridrato de cetamina.
feitas ao baclofeno, um derivado do GABA, usado em neurolo • Anticonvulsivantes: fenitoína, ácido valproico, carba-
gia como um potente miorrelaxante de ação medular e central, mazepina, gabapentina.
como sendo a droga de escolha. Sua ação é relacionada com • Sedativos: midazolam.
uma hiperpolarização dos terminais aferentes e inibição de re • Antidepressivos: amitriptilina, sertralina.
flexos em nível medular. Esse fármaco deve ser prescrito nos • Psicoestimulantes: cloridrato de metilfenidato (ritalina).
casos de soluço persistente, quando a causa não foi encontrada, • Antagonistas do canal de cálcio: nifedipino, nimodipino.
ou mesmo quando uma doença esofagogástrica não responde • Antiparkinsoniano: amantadina.
ao tratamento específico. A dosagem deve ser iniciada com 5
a 10 mg, elevando-se a dose se necessário, de modo progressi
vo, até 25 mg, 2 a 4 vezes/dia. Os efeitos adversos, relaciona ■ Tratamento cirúrgico
dos principalmente com doses mais elevadas, incluem náuseas, Quando o envolvimento é unilateral, comprovado previa
tonturas, sonolência, ataxia e fadiga. O baclofeno não deve ser mente por radioscopia, e o soluço não cessa com as medidas
interrompido de modo súbito, sendo recomendada uma redu terapêuticas disponíveis, o bloqueio do nervo frênico com
ção gradual. A gabapentina tem sido usada principalmente em lidocaína a 1%, guiada por ultrassonografia na área do nervo
casos de neoplasia maligna e naqueles associados a lesões do frênico, mostrou-se eficaz e com melhora precoce e duradoura
sistema nervoso central. Poderia ser a droga de escolha nesses em casos de pacientes portadores de neoplasia maligna e com
casos, pela boa tolerabilidade, efeito modulador sobre a dor, soluço intratável. Em casos rebeldes, considera-se ressecção
discretos efeitos adversos e quase sem interação medicamen do nervo frênico do lado afetado. Esse procedimento deve ser
tosa. A dose inicial é de 300 mg, 3 vezes/dia. precedido de estudo da função respiratória, porque a paralisia
Como o soluço tem causas variadas, cada uma delas desen do diafragma pode ter grande repercussão sobre a respiração,
cadeando seu aparecimento por agir em pontos diversos do e de uma paralisia temporária do nervo frênico, através de blo
seu arco reflexo, muitas outras drogas têm sido relacionadas queio, para comprovar a sua eficácia no controle do soluço. Só
com o seu tratamento. assim a intervenção cirúrgica deve ser realizada.
A seguir, são citados os principais fármacos indicados para Intervenções não mutiladoras sobre o nervo vago têm sido
o tratamento do soluço: propostas, como uma descompressão microvascular, ou uma
• Redução da distensão gástrica: cloridrato de metoclo- técnica minimamente invasiva que foi obtida pela implantação
pramida de um estimulador do nervo vago, que é um procedimento
• Ação supressiva sobre o centro do soluço/arco reflexo: controlado pelo próprio paciente, sendo ativado quando ne
cloridrato de clorpromazina, baclofeno, haloperidol. cessário.
Capítulo 4 / Halitose, Eructação e Soluço 45
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Alterações Motoras do
Aparelho Digestivo
Ricardo Guilherme Viebig
O termo motilidade digestiva foi criado com a ideia de que o mento e cruzamento das informações. Com o advento do mi
fluxo de alimentos pelo lúmen gastrintestinal dependería da croprocessador e da miniaturização das sondas manométricas
força exercida pela musculatura sobre o conteúdo, impulsio ou dispositivos de mensuração, como o de pH, de temperatura,
nando-o mais rápida ou mais lentamente. Embora o conceito de atividade elétrica etc., passamos a quantificar melhor e a ob
explique o efeito final, os fenômenos motores do tubo digestivo servar por tempo mais prolongado. Outros métodos foram se
são complexos e dependem do local do trato que está sendo par- somando a esses, tais como a cintigrafia, a ultrassonografia e a
ticularizado, pois enquanto em um ponto a contração significa ressonância magnética, tornando a compreensão dos eventos
propulsão ou movimento, em outro pode acarretar parada ou na motilidade digestiva mais clara e propiciando conhecimen
obstáculo ao fluxo. tos que avançam a passos largos.
Desde os estudos pioneiros de Cannon, no início do século, Os patologistas, bioquímicos e fisiologistas, de uma maneira
utilizando-se da radioscopia, foram definindo-se padrões de geral, contribuíram para o conhecimento da importância da
comportamento normal de várias seções do tubo digestivo. O fisiologia celular não só da mucosa, mas também dos plexos
esôfago apresentava contrações dependentes da introdução de nervosos intestinais e de sua interação com o sistema nervoso
alimentos na sua luz, ao contrário do estômago e intestino del central. Identificaram-se hormônios, peptídios, neurotransmis-
gado, que se contraíam ou relaxavam independentemente de sores, que interagem e contribuem para o controle da atividade
seu conteúdo. muscular, secretória e absortiva do tubo digestivo.
A observação contínua, sob diferentes situações de alimen O reconhecimento dessa atividade interligada entre o siste
tação, mostrou que o conteúdo do lúmen intestinal podería ma nervoso entérico, a musculatura do tubo digestivo e a enor
influenciar a força e a frequência desses movimentos. Além me superfície de contato com o meio externo, a mucosa, fez
disso, foram assinaladas situações em que o trato intestinal, da motilidade digestiva um termo pouco abrangente, que vem
influenciado por alterações patológicas próprias ou sistêmi sendo substituído pela denominação neurogastrenterologia, a
cas, mudava o seu comportamento, pela alteração das forças qual procura englobar todos esses conceitos.
responsáveis pelo movimento. Pelo exposto, pode-se depreender quão complexo é o en
Portanto, abria-se diante dos observadores uma gama tão tendimento da atividade motora do aparelho digestivo. A ex
ampla de possibilidades que sua curiosidade e imaginação fi posição e a discussão de qualquer tema sobre essa área sempre
cavam extremamente excitadas. Mas alguns empecilhos cria envolverão conhecimentos atualizados sobre bioquímica, bio
vam obstáculos para a resposta a esses fatos, pois a radiologia, logia celular, neurotransmissores etc. Neste capítulo, introdu
método indireto e qualitativo, não permitia a observação por ziremos essas discussões na medida em que forem necessárias
período prolongado, além de ser deletéria à saúde. Um grande para tornar a leitura prática e objetiva.
impulso foi dado quando da introdução do estudo manomé-
trico e da eletromiografia em ensaios de laboratório. Naquele
momento, mesmo de maneira indireta, passou a ser possível
ao pesquisador quantificar a força e a frequência das contra ■ ANATOMIA NEUROMUSCULAR
ções da musculatura lisa do tubo digestivo, seja pela alteração DO APARELHO DIGESTIVO
da pressão exercida no dispositivo medidor, colocado no lú
men intestinal, seja pela mensuração dos potenciais de ação que O tubo digestivo se dispõe ao longo do tórax e abdome,
desencadeiam a contração muscular. A manometria permitia estreitando-se ou alargando-se conforme a sua função. É com
observações por período prolongado e sob diferentes situações posto basicamente de duas camadas musculares lisas, sendo
de estímulo ou inibição. a interna circular e a externa longitudinal. Em sua superfície
Ainda assim, esses métodos eram limitados não só pela difi externa (lúmen, em contato com o meio externo), é recoberto
culdade de posicionar o dispositivo longe das extremidades do por um epitélio, que também varia em sua composição, de
trato intestinal, como também pela capacidade de armazena pendendo da função que exerce em local específico, e em sua
46
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 47
superfície interna, exceto no esôfago e reto, é envolvido por células de Cajal, o verdadeiro reservatório regulador deste neu
uma serosa. Em determinados pontos desse trajeto, geralmente rotransmissor. Os recentes conhecimentos adquiridos sobre a
separando-os por função, encontraremos formações especiais ação da serotonina e a produção de medicamentos agonistas e
dos músculos, os esfíncteres, que funcionam como válvulas de antagonistas estão trazendo um novo horizonte para o controle
acesso para a progressão do conteúdo. Esses esfíncteres, como de doenças conhecidas como distúrbios funcionais.
veremos, são controlados por influência neuro-hormonal, às Inúmeros peptídios, produzidos em vários pontos do apa
vezes pelo sistema nervoso central (SNC) por via simpática ou relho digestivo, têm sido identificados e descritos exercendo
parassimpática, ou por controle próprio do sistema nervoso en- variadas funções, destacando-se entre eles glucagon, colecis-
térico (SNE), ou, ainda, por ambos. Nas extremidades superior tocinina (CCK), secretina, bombesina, neurotensina, gastrina,
e inferior, a participação da musculatura estriada é fundamen peptídio intestinal vasoativo (VIP), peptídio inibidor gástrico
tal para a sua função. (GIP), dentre tantos outros.
Por muitos anos, acreditou-se que os movimentos intestinais
fossem influenciados apenas pela ação do SNC, principalmente
pela ação do nervo vago, com suas fibras adrenérgicas e coli- ■ MÉTODOS DE ESTUDO DA
nérgicas, aferentes e eferentes. Por sua intervenção, ocorreriam
movimentos pró- e contra fluxo. Pela observação de modelos MOTILIDADE DIGESTIVA
desnervados, deduziu-se e reconheceu-se que grande parte des
ses movimentos estaria fora desse controle, desenvolvendo-se O estudo dos movimentos intestinais pode ser realizado por
o conceito do SNE, composto pela imensa rede neural existente meio de métodos especializados para determinados órgãos ou
nas camadas musculares e submucosa do tubo digestivo, em doenças. A seguir, descreveremos esses métodos, suas indica
conjunto com os plexos ganglionares de Meissner e Auerbach ções e limitações.
e dos gânglios mesentéricos paravertebrais. Estas duas últimas
redes formam um sistema tão complexo quanto o SNC, tendo ■ Radiologia
seus próprios mediadores e com capacidade de gerar impulsos
elétricos fásicos, determinando padrões de comportamento É o mais conhecido e mais antigo método utilizado. Em
(Figura 5.1). A presença destes é fundamental para a peris- bora qualitativo e indireto, é, em geral, o primeiro a ser usado
talse. Sua deficiência ou ausência determina síndromes im quando da análise de qualquer local do trato digestivo. Abran
portantes, como na doença de Chagas ou na aganglionose de gendo desde a radiografia simples do abdome até os métodos
Hirschsprung. modernos de videofluoroscopia para deglutição ou defecação,
Seus mediadores principais são a acetilcolina e a epinefri- a radiologia pode orientar o clínico, apontando que alteração
na. Algumas ações que não eram explicadas pela sua ação, e está ocorrendo. Para o estudo morfológico, desde o esôfago até
que foram denominadas influência não adrenérgica não coli- o cólon, é o mais completo. A alteração da forma, ou até das
nérgica (NANC), hoje têm o óxido nítrico identificado como características contráteis do órgão, pode ser correlacionada com
neurotransmissor. A ação deste último tem sido considerada a patologia suspeita. Como exemplo, podemos citar a identi
fundamental para a função dos esfíncteres, por exemplo. Mais ficação de ondas contráteis enérgicas no esôfago (esôfago em
recente, a identificação da serotonina ou 5-HT, e sua importân quebra-nozes) ou dilatações extremas de sigmoide, como na
cia na motilidade jejunal e colônica fecharam o elo que faltava doença de Chagas. Como instrumento de avaliação funcional,
para entender melhor o mecanismo da regulação da contrati- exemplificamos o estudo do trânsito intestinal, seja pela coluna
lidade da musculatura lisa e a real finalidade da presença das de bário ou por pérolas baritadas. A evolução do método, alia-
Figura 5.1 Secçào transversa do intestino mostrando a arquitetura do sistema nervoso entérico, com plexos intrínsecos e extrínsecos e suas
interconexôes.
48 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo
da à possibilidade de gravar as imagens em equipamentos de tridimensionais. Alguns estudos já acenam sobre minúcias do
alta definição (cinerradiografia ou videofluoroscopia), permite comportamento motor esofágico na acalasia e na síndrome do
agora a melhor compreensão de fenômenos rápidos e comple refluxo gastresofágico.
xos como a deglutição e a evacuação. O videodeglutograma é a
arma propedêutica mais importante para o diagnóstico preciso
das causas de disfagia. O tratamento fonoaudiológico utilizado
■ Monitoramento prolongado
para a recuperação desta função é orientado e controlado por do pH intraesofágico
esta técnica. A cinedefecografia, a exemplo do videodeglutogra
ma, pode demonstrar alterações da função evacuatória, seja de Essencial para a avaliação da doença do refluxo, a pHmetria
esofágica tem sua aplicação ampliada pelo reconhecimento de
ordem anatômica ou funcional, como, por exemplo, retocele e
anismo, respectivamente. que essa síndrome tão comum na espécie humana manifesta-
se muitas vezes por sintomas atípicos, como nas otites e pneu
monias de repetição, asma brônquica, dor precordial de ori
> Manometria gem não coronariana e outras que serão discutidas no capítulo
A manometria consiste em medir as pressões exercidas pela pertinente.
O sistema medidor é semelhante a um sistema do tipo Hol-
contração de um órgão tubular sobre o sensor, que transmite
sua intensidade a um aparelho registrador. Com a evolução da ter para eletrocardiografia. O sensor de pH é colocado por via
tecnologia, hoje podemos mensurar vários pontos simultane nasogástrica a 5 cm do esfíncter inferior do esôfago e lá perma
amente por períodos prolongados. Basicamente, os sistemas nece “lendo” as alterações do pH por 24 h ou mais, permitin
convencionais dividem-se em estacionários e ambulatoriais. do que o paciente exerça suas funções habituais e se alimente
Os primeiros nos permitem analisar períodos curtos de tem normalmente, dando a ideia do que realmente ocorre em ter
po, utilizando sondas multifenestradas e perfundidas por água, mos de refluxo ácido, podendo-se correlacionar os sintomas
que servem de coluna de transmissão para a pressão exercida, do paciente anotando-os em um diário (Figura 5.2). É possível
semelhante a uma coluna de mercúrio em um esfigmomanô- colocar mais de um sensor, permitindo, por exemplo, anotar
metro. O sistema ambulatorial é composto por sistemas de es refluxos para a orofaringe ou esôfago alto. Um sistema seme
tado sólido, que são sensores eletrônicos que não necessitam lhante foi desenvolvido para o estudo do refluxo biliar para o
de perfusão; a pressão exercida sobre uma membrana é “lida” estômago e esôfago, utilizando-se um sensor ótico que mede
pelo sensor, e o sinal eletrônico é enviado a um gravador ou a o comprimento de onda relativo à bilirrubina (BILITEC). Po
um computador. demos utilizar os dois métodos concomitantes para a avalia
Até há algum tempo, somente o esôfago e a região anorretal ção do refluxo misto, uma vez que recentes estudos mostram
eram estudados por meio desse método, daí sua gama de apli que a ação deletéria do refluxo alcalino é potencializada pela
cações práticas ser mais conhecida. Porém, esse quadro tende presença do ácido.
a mudar, pois a região antroduodenal, o intestino delgado e o Atualmente, tem-se à disposição a pHmetria sem fio. O sen
cólon também têm sido alvos de pesquisas, e os primeiros pa sor, em forma de cápsula, é aplicado ao terço inferior do esôfago
drões de normalidade e de determinadas patologias passam a por meio de fixação por grampo. Envia a um receptor portátil,
ser reconhecidos; em breve teremos indicações precisas para o por radiotelemetria, alterações do pH intraesofágico da mesma
diagnóstico e para avaliar a eficácia de um tratamento. forma que a pHmetria habitual. De uso único, desprende-se em
A manometria de intestino delgado e de cólon tem crescido torno do quinto dia após sua aplicação, sendo perdido com as
de importância nos centros de pesquisa, e não tardaremos a ter fezes. Dá maior liberdade ao paciente, pois o aparelho receptor
aplicações práticas para o seu uso. O reconhecimento de pa pode ficar até a uma distância de 3 m, permitindo menos in
drões como do complexo motor migrante (CMM), de atividade terferência estética ou desconforto faríngeo, que são as queixas
pós-prandial do intestino delgado ou do movimento de massa mais comuns dos pacientes submetidos à pHmetria convencio
do cólon são alguns exemplos de momentos fisiológicos que até nal. Suas principais limitações, por enquanto: está validado so
há pouco tempo eram difíceis de mensurar. A manometria de mente para adultos, tem um custo 10 vezes superior ao método
intestino delgado avança na direção de explicar os fenômenos tradicional, sua aplicação é mais trabalhosa, há possibilidade
motores da síndrome do intestino irritável, dando ideia de que da perda da cápsula antes do término do exame e exige vasta
ocorrem momentos de incoordenação por provável alteração experiência do médico, pois não é isento de risco.
do SNE e com participação do SNC.
As limitações desse método dependem de sua disponibili
dade aqui no Brasil, mas o número de centros que contam com
■ Cintigrafia
tal equipamento vem crescendo de maneira geométrica, pois os A cintigrafia na avaliação funcional do aparelho digestivo
custos vêm diminuindo. A necessidade de realizar uma mano é de extrema importância, pois podemos utilizar um alimento
metria esofágica antes de uma cirurgia de refluxo para avaliar marcado e observar o seu trajeto pelo tubo digestivo. Podemos
a função do órgão, ou de pesquisar a capacidade contrátil de estudar também, por exemplo, a excreção pelo sistema biliar,
um complexo esfincteriano anorretal ao se avaliar um caso de identificando discinesias da vesícula biliar. Esta técnica tem se
incontinência, são exemplos práticos de patologias comuns ao mostrado extremamente útil na determinação de transtornos
dia a dia de um gastrenterologista. do esvaziamento gástrico. Sua aplicação, no entanto, é de alto
Um aprimoramento desse método vem sendo lentamente custo e poucos centros dispõem dessa tecnologia no Brasil.
incorporado ao arsenal propedêutico: trata-se da manometria
de alta resolução. Em vez de apenas oito sensores, utilizam-se
32 a 64, ampliando-se a sensibilidade do método, assim como
■ Eletromiografia
sua representação gráfica, uma vez que as ferramentas de cál Com aplicação prática limitada e pouco acessível, tem in
culos gráficos permitem a representação dos fenômenos m o dicação precisa para disfunções do sistema muscular estriado,
tores (contrações e relaxamentos) por meio de cores e figuras principalmente nas disfunções da deglutição e da defecação.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 49
■c— n. H Jl jü i ÜC.
Figura 5.2 intervalo de 1 h de exame de pHmetria de dois canais, mostrando refluxos ácidos e sintomas assinalados pelo paciente (p 5 pirose)
pelas barras transversais.
-------------------------------- ▼--------------------------------
Quadro 5.1 Afecções esofágicas dependentes da contratilidade
ESE - S e p t o c ric o fa r ín g e o - -
(D iv e r t íc u lo d e Z e n c k e r )
DRGE: doença por refluxo gastresofágico; ESE: esfíncter superior do esôfago; EIE: esfíncter Inferior do esôfago.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 51
manifestação clínica, e vice-versa. O achado manométrico por dos com drogas específicas. Usamos frequentemente a nitro
vezes também não corresponde à manifestação clínica, mas os glicerina (0,4 mg sublingual), o dinitrato de isossorbida (10 a
achados mais comuns são: contrações simultâneas pós-deglu- 30 mg, 2 vezes/dia), a hidralazina (25 a 50 mg, 4 vezes/dia),
tição; contrações repetitivas; contrações espontâneas; ondas de o nifedipino (10 a 30 mg, 4 vezes/dia), o diltiazem (90 mg, 4 ve
longa duração e alta amplitude; esfíncter inferior hipertenso; zes/dia) e medicamentos antidepressivos e antidistônicos, com
relaxamento incompleto do EIE. dose ajustada a cada paciente.
Na verdade, o mais importante é o seu reconhecimento, pois Alguns achados típicos manométricos estão demonstrados
com frequência vemos pacientes sendo tratados como corona- nas Figuras 5.3 a 5.5.
rianos quando, na realidade, estão tendo manifestações clínicas
de dismotilidade esofágica. Os quadros clínicos de ambas as
doenças se parecem, uma vez que, se em geral são desencadea ■ ESTÔMAGO E DU0DEN0
dos pelo exercício físico, podem irradiar para a região cervical,
cotovelo e antebraço esquerdo e melhoram com nitroglicerina O estômago recebe a alimentação e a estoca; transforma ali
sublingual. Para complicar, o inverso também é comum, exis mentos em partículas; mistura seu conteúdo com saliva, pepsina
tindo concomitância das duas doenças, que afetam o mesmo e ácido clorídrico; tem a qualidade de discriminar sólidos, líqui
biotipo de pacientes e a mesma faixa etária. dos, gorduras e proteínas no seu conteúdo; tem a propriedade
Uma vez presumido o diagnóstico e afastada a causa car- de selecionar o quimo e permitir sua passagem para o duodeno
diológica, deve-se primeiro realizar a radiografia contrastada em uma proporção adequada para a digestão.
do esôfago. Com frequência, poderemos observar a alteração Do ponto de vista funcional, podemos dividir o estômago em
motora. Se não resultar positiva, ou para melhor caracterizar a duas partes: proximal, constituída pelo fundo e terço superior
dismotilidade, o exame de escolha é a manometria, ambulato- do corpo gástrico, e distai, formada pelo terço distai do corpo
rial ou prolongada, sendo esta última mais adequada quando e antro. Ao se iniciar a deglutição, o estômago se relaxa via re
os sintomas são atípicos e com sinais manométricos ambula- flexo vagai, para acomodar o conteúdo que chega. À medida
toriais negativos. que o estômago vai se preenchendo, mais relaxamento ocorre
Os testes provocativos, como o de Bernstein, do cloreto de para acomodação e adaptação à pressão intra-abdominal. Ao
edrofônio e outros, têm valor relativo, pois nem sempre há final da ingesta, inicia-se o processo de contração dessa região,
correlação ou reprodutibilidade. enviando o alimento para o estômago distai, que inicia movi
O tratamento das alterações da contratilidade esofágica tem mentos propulsivos fásicos, em média três por minuto. Nessa
sido frustrante no que diz respeito à uniformidade de resulta região, o alimento é misturado e reduzido a partículas menores.
Figura 5.3 Manometria esofágica normal de oito canais. O canal 1 corresponde ao controle de deglutição, e o canal 8, ao de respiração. O
canal 2 está posicionado ao nível do ESE, e os restantes (3,4,5,6 e 7) ao nível do corpo, distanciados por 5 cm. Notar a onda peristáltica pós-
deglutiçáo que se propaga ao longo do esôfago.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 53
tu
* ji
«crs
Figura 5.4 Manometria de esôfago de quatro canais em paciente chagásico com megaesôfago. Sensores distanciados 5 cm. Notar as ondas
simultâneas (efeito de câmara única).
Figura 5.5 Manometria em paciente com doença do refluxo. Notar ondas de grande amplitude e duração, caracterizando esôfago em quebra-nozes.
54 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo
ser útil, devendo-se ter em mente que serão usados por toda a
vida do paciente, pois a disfunção motora não regride.
Com o advento da videolaparoscopia cirúrgica, que pouco f a s e II fa s e fa s e I
-I .J - lll 1
■ ALTERAÇÕES FUNCIONAIS
DO INTESTINO DELGADO
1 0 m in
O mais longo e, talvez, o mais especializado setor do sis je j u n o , ,
tema digestivo, o intestino delgado, tem sido alvo de exaus
tivos estudos nos últimos 15 anos. Os novos conhecimentos
adquiridos por meio da neurofisiologia, da bioquímica celular
ii L 1 iiii 11 i kÉMt
e dos neuro-hormônios aumentaram a nossa compreensão Figura 5.6 Manometria prolongada de duodeno e jejuno demons
dos fenômenos fisiológicos e das alterações encontradas nas trando as três fases do complexo motor migrante. Sensores distan
doenças intrínsecas e extrínsecas que afetam a função moto ciados 10 cm.
ra do órgão.
O intestino delgado é formado por três camadas principais:
a serosa, em contato com a cavidade peritoneal; a muscular,
A explanação anterior, que resume fatos muito comple
constituída por uma camada longitudinal externa e circular
xos, cujos mediadores, estimuladores e inibidores vêm sendo
interna; e a mucosa. Entre as camadas musculares, distribui-
reconhecidos, torna-se importante à medida que, hoje, pode
se uma rede neural formada pelos plexos de Meissner e suas
mos reconhecer estados patológicos por meio da mensuração
terminações. Outra rede dispõe-se na região submucosa, for
dos padrões interdigestivos pela manometria. Também, po
mando o plexo de Auerbach. Ambas se interligam e, por sua
demos verificar a atuação de drogas procinéticas, que facili
vez, fazem conexão com os gânglios paravertebrais, que inte
tam a condução do CMM, ou de drogas inibidoras, como a
gram os diferentes níveis do tubo digestivo, como também se
loperamida, que retardam essa atividade, promovendo um
ligam à coluna vertebral e ao SNC. Esse complexo, chamado de
trânsito lento. Alguns padrões patológicos estão bem defi
sistema nervoso entérico (SNE), é um órgão independente da
nidos e exemplificados nas Figuras 5.7 e 5.8. Na síndrome
clássica ação do SNC por via vagai para algumas ações, princi
do intestino irritável, foram reconhecidos padrões de ondas
palmente as motoras. Pode também sofrer influência dos níveis
irregulares (clusters) intermitentes, de longa duração, dife
mais altos do SNC e vice-versa, alterando comportamentos de
absorção e secreção. rentes da fase III, ocorrendo inclusive durante o sono, que
A rede de neurônios do SNE é altamente especializada, já não estão presentes em todos os portadores da síndrome do
tendo sido evidenciadas ações claras de mecanorreceptores, que intestino irritável, mas que fornecem indícios de que a alte
respondem ao conteúdo, fazendo a musculatura lisa contrair-se ração, nessa síndrome, ocorre ao nível do SNE, com provável
ou relaxar-se, e de quimiorreceptores, que, por sua ação, alte influência do SNC.
ram os padrões de movimentos intestinais. As alterações funcionais do intestino delgado podem ser
O reconhecimento de padrões interdigestivos pela eletro- subdivididas de maneira prática em alguns grupos, que enu
miografia e pela manometria pode caracterizar a existência do meramos com suas possíveis causas no Quadro 5.4.
complexo motor migrante (CMM), composto de três fases prin
cipais de atividade elétrica, que correspondem a padrões de
contrações. Esta se inicia no duodeno e transmite-se ao longo je ju n o
de todo o intestino delgado.
Essas três fases consecutivas são caracterizadas por:
• Fase I: pouca ou nenhuma contratilidade (fase de quies-
cência); 1 0 m in
• Fase II: constituída por contrações irregulares e inter r e f e iç ã o
mitentes;
• Fase III: contrações frequentes e de maior amplitude,
que percorrem todo o intestino delgado, em uma fre
quência maior no intestino proximal, e que diminuem
quanto mais próximas estiverem do íleo terminal (Fi
je ju n o 50 m m H g |
gura 5.6).
Esse ciclo basal é interrompido pela presença do alimento no
— ---------
tubo digestivo, que então passa a ter uma atividade semelhante
à da fase II, mais observada em indivíduos normais durante o Figura 5.7 Manometrias prolongadas de duodeno e jejuno mostran
dia, ao passo que a fase I é a observada durante o sono. À me do a resposta pós-prandial em indivíduo normal (parte superior do
dida que a digestão se processa, o complexo motor migrante gráfico) e comparando a um portador de esderodermia (inscrições
vai se estabelecendo. inferiores).
56 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo
duodeno
■ ALTERAÇÕES FUNCIONAIS
DO INTESTINO GROSSO
Nos cólons, as camadas musculares se organizam de m a
50 m m H g
je ju n o neira diferente, conferindo a eles um aspecto característico. As
fibras musculares lisas longitudinais se dispõem em apenas três
feixes, que medem entre 6 e 10 mm de largura, as tênias. Uma
delas localiza-se ao longo da inserção mesenterial. Ao final do
cólon sigmoide, as tênias se tornam menos aparentes e se alar
gam, fundindo-se ao nível do reto e formando novamente uma
camada muscular contínua e delgada. Essa disposição confere
o aspecto sacular aos cólons, que têm um diâmetro largo em
comparação com o delgado.
Os movimentos dos cólons ainda não estão totalmente com
Figura 5.8 Manometria prolongada de duodeno e jejuno em paciente preendidos. Essa dificuldade se deve a dois fatores principais: a
portador de pseudo-obstrução intestinal crônica. Sensores distancia ausência de modelo animal experimental semelhante ao homem
dos 10 cm. Notar ondas de grande amplitude e desorganizadas. e a apresentação de atividade irregular. As técnicas de inves
tigação até há pouco tempo eram indiretas, como os raios X,
ou rudimentares, que permitiam pouco tempo de observação, e
de difícil reprodutibilidade. A evolução da manometria prolon
O fator mais importante da manipulação de uma alteração gada e de técnicas videofluroscópicas permitiu melhorar nossa
da motilidade do intestino delgado é, a nosso ver, o reconheci acuidade e correlacionar achados morfológicos e de compor
mento exato de sua causa, pois obviamente a ação terapêutica tamento normal com os estados patológicos.
tende a ter sucesso. Na sua grande maioria, as manifestações são O arranjo do SNE e a relação com os gânglios mesentéricos
transitórias, porém em algumas doenças nos deparamos com são semelhantes aos do intestino delgado, e a influência do SNC
quadros dramáticos, em que a ação medicamentosa é pouco via vagai é diminuída. Para que a função final do aparelho di
eficaz e os transtornos de nutrição são muito graves e contri gestivo se realize, ou seja, a defecação, é necessária a atuação de
buem mais ainda para agravar o quadro. Para alguns pacientes, um sistema muscular complexo, composto pelo assoalho pélvi
somente o transplante constitui-se em uma esperança, com um co e seus músculos estriados principais: os elevadores do ânus
grau de sucesso ainda muito baixo. (pubococcígeos, isquiococcígeos e coccígeo), o puborretal e o
Alguns desses aspectos serão abordados nos capítulos espe esfíncter externo do ânus. A camada muscular lisa circular do
cíficos sobre intestino delgado. reto sofre um engrossamento na porção final próxima à borda
anal (esfíncter interno) e também participa de maneira impor
tante no ato da defecação, como veremos adiante.
A atividade dos cólons pode ser resumida em três fases prin
--------------------------------- ▼--------------------------------- cipais:
Quadro 5.4 Causas de alterações funcionais do intestino delgado
a) contrações segmentares localizadas, que dividem o lúmen
I - íleo paralítico e o seu conteúdo, formando haustras e promovendo a
P ó s -o p e r a t ó r io mistura do quimo;
P e rito n ite
b) contrações propulsivas, precedidas pelo desaparecimento
C ó lic a re n a l o u b ilia r
do padrão haustral, movendo o conteúdo energicamente
P a n c re a tite
H ip o x ia a distâncias maiores, também chamadas de movimentos
H e m o r r a g ia re tro p e rito n e a l de massa;
I n f a r t o d o m io c á r d io c) antiperistalse, que consiste na principal atividade do có
P n e u m o n ia basal
T r a u m a g e n e r a liz a d o
lon proximal.
D is t ú r b io s m e ta b ó lic o s (h ip o fo s fa te m ia , h ip o c a lc e m ia , a n e m ia a g u d a , A atividade dos cólons é mínima durante o sono e aumenta
d e s id ra ta ç ã o )
com o despertar. Torna-se mais intensa após as refeições, prin
D r o g a s (a ç ã o p a ra s s im p a tic o lític a )
P o rfiria e e n v e n e n a m e n t o p o r m e ta is p e s a d o s cipalmente no almoço e no jantar.
Uma vez que o bolo fecal chega em quantidade suficiente
II - Pseudo-obstrução intestinal crônica (c a u sa s m a is f r e q u e n te s )
M io p a tia s visce rais
ao sigmoide, ele é expelido para o reto. Nesse momento, ocor
D o e n ç a s d o c o lá g e n o rem dois fenômenos principais: por distensão do reto, os ple-
D is tro fia m u s c u la r xos mioentéricos enviam impulsos ao esfíncter interno, que se
D o e n ç a s in filtra tiv a s (a m ilo id o s e ) relaxa (reflexo anorretal inibidor) para facilitar a expulsão do
N e u r o p a t ia s vis ce ra is (p rim á ria s o u fa m ilia re s)
N e u r o p a t ia s n ã o fa m ilia re s: a ca la s ia , H ir s c h s p r u n g , C h a g a s
conteúdo; ao mesmo tempo, a informação é levada à coluna
N e u r o p a t ia s g e n e ra liz a d a s : P a rk in s o n , d ia b e te s , p ó s -v ira is
vertebral pelos gânglios mesentéricos, em arco reflexo, e o SNC
A ç ã o d e d ro g a s : o p iá c e o s e c o lin é rg ic o s ; a g e n t e s c ito tó x ic o s ; é informado da necessidade de defecar, podendo o indivíduo
a n tid e p re s s iv o s contrair ou relaxar o assoalho pélvico para impedir ou facilitar
D is fu n ç õ e s m e ta b ó lic a s : h ip e r t ir e o id is m o , h ip o p a r a t ir e o id is m o ,
a saída do conteúdo retal.
u r e m ia , p o rfiria
P s e u d o -o b s t r u ç ã o p a ra n e o p lá s ic a
As alterações funcionais mais comuns da motilidade do in
L e s ã o p o r ra d ia ç ã o testino grosso são a constipação intestinal e a incontinência. O
III - Síndrome do intestino irritável
trânsito acelerado, ou a diarréia, geralmente está correlaciona
do com situações de infecção ou infestação intestinal, ou com
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 57
doenças inflamatórias que alteram os mecanismos de absorção A manometria anorretal tem se mostrado útil na análise de
e secreção, aliados ou não a uma perda da segmentação, e serão obstipação e incontinência. Por meio dela, podemos reconhecer
discutidas em capítulos específicos. várias alterações das pressões de repouso dos esfíncteres e das
A dificuldade para estabelecer o diagnóstico da constipa forças de contração e relaxamento destes. Também importante
ção intestinal começa pela interpretação dos sintomas. O que é o reconhecimento do reflexo anorretal inibidor. As alterações
é hábito intestinal normal? Por vezes, os pacientes referem ter mais comuns detectadas pela manometria são:
intestinos presos, mas evacuam diariamente, com dificuldade.
Outros não têm queixas de desconforto ou dor, mas evacuam a) obstipação na infância: diferenciação entre doença de
a cada 3 ou 4 dias. Hirschsprung e megacólon psicogênico ou megarreto
De maneira prática, poderiamos definir a constipação intesti (presença ou não do reflexo anorretal inibidor) (Figura
nal como a dificuldade para exonerar as fezes, geralmente acom 5.9);
panhada de dor, sensação de flatulência, com presença de fezes b) hipertonia esfincteriana de repouso (associada ou não a
endurecidas, e que tem esses sintomas aliviados pela defecação. fissura anal ou com proctalgia);
Até há algum tempo, a ideia de constipação intestinal estava c) anismo: diferente da hipertonia esfincteriana, pois a pres
ligada à hipotonia ou à falta de contratilidade do cólon. Hoje são de repouso é normal e, quando da força de expulsão,
sabemos que constipação intestinal é um nome genérico, que há uma contração do assoalho pélvico, em vez do relaxa
envolve variedades de alteração da atividade motora intrínse mento;
ca do cólon, às vezes dependentes de fatores sócio-higiênico- d) alterações da percepção: neuropatias, lesão espinal, co-
dietéticos, mas que, em grande parte, ocorrem por distúrbios lagenoses etc.;
no complexo esfincteriano responsável pela evacuação. e) incontinência: neuropatias, lesões pós-parto ou pós-
Usando marcadores, podemos distinguir três grupos: cirurgia orificial.
a) os marcadores demoram para atravessar todo o cólon A constipação intestinal é um tema que será abordado em
(trânsito lento); capítulo específico, mas vale salientar que, com o uso de técni
b) os marcadores atravessam o cólon em tempo normal, cas radiológicas empregando marcadores, ou da videodefeco-
mas impactam-se no retossigmoide; grafia, aliado às informações da manometria, estamos cada vez
c) o trânsito pelo cólon está normal, mas há dificuldade para mais perto de elucidar suas causas e, portanto, mais próximos
sua expulsão. de sua resolução.
Figura 5.9 Manometria anorretal de seis canais radiais posicionados ao nível de esfíncter interno. Notar a queda de pressão simultânea, ime
diatamente após insuflação de balão de látex no reto (reflexo anorretal inibidor).
58 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo
A epidemia do HIV/AIDS trouxe grandes desafios para a me HIV, revela a importância do aparelho digestivo na fisiopato
dicina moderna. Embora se encontre em estabilização no Bra logia da condição que conhecemos como AIDS. Além disso,
sil, ainda apresenta números crescentes, principalmente entre muitas vezes o trato gastrintestinal pode ser a própria porta de
as mulheres. Dados epidemiológicos do Ministério da Saúde entrada para o HIV.
(DATASUS) mostram que de 1980 a junho de 2007 foram noti Atualmente, com os novos recursos terapêuticos, observa-se
ficados 474.273 casos de AIDS no país. Nesta série histórica, fo maior sobrevida dos pacientes com AIDS. A esse dado, associa-
ram identificados 314.294 casos de AIDS em homens e 159.979 se também maior incidência de infecções oportunísticas e de
em mulheres. Ao longo do tempo, a razão entre os sexos vem neoplasias acometendo todo o trato digestivo. Sintomatologia
diminuindo de forma progressiva. Em 1985, havia 15 casos da gastrintestinal é referida por 30 a 90% dos pacientes com AIDS,
doença em homens para 1 caso em mulher. Hoje, a relação é de e populações infectadas de países em desenvolvimento apre
1,5 para 1. Em 2006, considerando dados preliminares, foram sentam os maiores índices. Trabalhos recentes mostram que,
notificados 32.628 novos casos de AIDS, com uma incidência apesar da terapêutica antirretroviral de alta atividade, que per
de 17,5 casos/100.000 habitantes. mite elevar a contagem de células CD4 e reduzir a carga viral,
Em média, o indivíduo infectado pelo HIV leva de 8 a 10 anos até 10% dos pacientes podem apresentar doenças oportunísti
para desenvolver a síndrome e só então ela é notificada como cas do trato digestivo.
um novo caso. Podemos perceber que isso abre uma grande É preciso estar alerta para o fato de que, na AIDS, os novos
janela de transmissibilidade, caso a política oficial de controle patógenos, em locais comuns, e os velhos patógenos, em locais
e prevenção da doença não se traduza em medidas eficazes. É incomuns, são a regra e não a exceção. A abordagem diagnósti-
estimado em cerca de 800.000 o número de portadores do HIV ca deve ser completa e persistente, ressaltando a etiologia múl
no Brasil até dezembro de 2008, e a transmissão vertical, ou ma tipla como achado frequente na AIDS. Podemos estar sendo
terno-infantil, é a principal via de infecção do HIV em crianças, omissos ao rotular uma diarréia como enteropatia pelo HIV.
Sendo responsável, no Brasil, por mais de 80% dos casos em É aconselhável repetir e diversificar testes propedêuticos na
menores de 13 anos. Graças ao programa do Governo Federal tentativa de estabelecer um diagnóstico mais preciso. A visão
de prevenção, diagnóstico e tratamento da AIDS (vide www. global do paciente nos permite suspeitar de que náusea, vô
aids.gov.br), a situação não se deteriora com rapidez no Brasil, mito e anorexia podem ser provocados por doenças do siste
como em outros países, especialmente do continente africano. ma nervoso central, como linfoma, toxoplasmose e meningite
É preciso manter um alto nível de vigilância e de esforços nas criptocócica. A terapêutica dos pacientes com AIDS também
ações preventivas de saúde pública, pois nota-se uma tendência se reveste de aspectos especiais, como a não resposta ao trata
de “migração” da doença para municípios menores, no interior mento padrão (o que obriga a utilização de esquemas alterna
do país, onde a estrutura do SUS, na maioria das vezes, mostra- tivos que, raramente, possuem eficácia científica comprovada),
se insuficiente para garantir a eficácia do programa. as recaídas frequentes e a necessidade do uso continuado de
Em relação à Gastrenterologia, sabemos que o tubo digestivo medicamentos.
e suas glândulas anexas apresentam papel relevante na epide-
Para o diagnóstico da condição de portador do HIV e mes
miologia, fisiopatologia e tratamento da AIDS.
mo da AIDS, hoje dispomos de:
O trato digestivo possui imensa superfície de troca. Uma
única camada epitelial separa o mundo exterior hostil do nosso • Testes de detecção de anticorpos: ELISA (teste imuno-
meio interior. Essa camada recebe a vigilância do tecido linfoi- enzimático), Western blot, imunofluorescência indireta
de encontrado no intestino, que, quando considerado coleti (conjugada com fluorocromo), radioimunoprecipitação
vamente, representa o maior órgão linfoide do corpo humano, e testes rápidos para estudos de campo baseados em aglu
com características peculiares de secreção de IgA e uma inte tinação em látex e hemaglutinação;
ração diferenciada entre os linfócitos da mucosa. A falência do • Teste de detecção de antigeno viral: pesquisa do antígeno
sistema imunológico, promovida pela evolução da infecção pelo p24 através da técnica ELISA;
59
60 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS
aftoides são características da disseminação sistêmica do CMV. nessas infecções, podendo encontrar-se, também, fungos
Essas úlceras podem ser coinfectadas pelo HSV-1. Nos casos e espiroquetas.
mais graves, o CMV pode provocar necrose gengival. A tera
O tratamento das infecções orais bacterianas envolve a hi
pêutica é realizada com o uso parenteral do ganciclovir (0,5 mg/ giene local com antissépticos e o desbridamento do tecido ne-
kg/dia, fracionado de 12/12 h, 14 a 28 dias), sendo o foscarnet crótico, incluindo os sequestros ósseos, raspagem e curetagem
(40 mg/kg, 8/8 h, por 21 dias) uma segunda opção. das áreas afetadas, seguido de irrigação com soluções orais à
base de clorexidine. Os antibióticos mais empregados são a
■ Leucoplasia pilosa (LP)
clindamicina e o metronidazol.
É associada ao vírus Epstein-Barr (EBV), embora não receba
as suas influências oncogênicas. O papilomavírus também tem ■ Úlceras aftoides recorrentes
sido implicado na sua gênese. A apresentação clássica corres Não se conhece a etiologia. Na AIDS, cursam com aumento
ponde a uma placa brancacenta, de aspecto piloso, na superfí da prevalência e gravidade das lesões. São úlceras grandes, de
cie lateral da língua, mas pode aparecer em qualquer ponto da 1 a 2 cm, dolorosas, únicas ou múltiplas. Persistem por sema
mucosa orofaríngea. O aspecto “piloso” da lesão é atribuído a nas e até meses, interferindo com a mastigação e a deglutição.
uma exacerbação da estrutura normal da mucosa da face lateral Lesões sincrônicas podem existir em outros pontos do trato
da língua. A progressão para AIDS é significativamente mais gastrintestinal. O diagnóstico diferencial inclui linfoma, carci-
frequente em paciente HlV-positivo com LP do que em pacien noma de células escamosas, CMV, tuberculose, criptococose e
te HlV-positivo sem LP. O exame clínico fornece um diagnós outros. Essas úlceras geralmente respondem a uma combinação
tico presuntivo, mas apenas a histopatologia, com particular de esteroides tópicos e antibióticos com espectro para gram-
atenção às características citológicas nucleares e à presença do negativos. Atualmente, tem sido tentado o uso da talidomida
EBV, permite o diagnóstico definitivo. O tratamento da LP é nesses casos, mas os resultados são ainda preliminares.
indicado nos casos em que o paciente refere desconforto, ou
por motivos estéticas. A superinfecção fúngica responde ao ■ Doença da glândula salivar
tratamento tópico com nistatina, e o aciclovir (200 mg TID) Tanto a queixa de xerostomia quanto o aumento das paró-
pode ser usado na tentativa de reduzir as lesões. O ganciclovir tidas podem ser observados nos pacientes com AIDS. As glân
é uma segunda opção terapêutica. dulas apresentam um edema bilateral, difuso, compressível e
não flutuante. Xeroftalmia e outras características da síndrome
■ Papilomavírus de Sjõgren estão presentes em alguns casos, porém diferenças
Em associação à infecção pelo HIV, o papilomavírus h u sorológicas e imuno-histoquímicas significativas separam a
mano (tipos 7,13 e 32) pode provocar lesões orais e labiais de doença da glândula salivar relacionada com o HIV da síndrome
característica verrucosa ou similares à hiperplasia epitelial fo de Sjõgren. Como nenhum agente infeccioso foi identificado
cal. Quando sintomáticas, essas lesões podem ser tratadas com até o momento, o tratamento consiste no alívio dos sintomas
ácido retinoico em gel ou excisadas cirurgicamente, porém a e prevenção das cáries, utilizando substitutos da saliva, contro
recorrência é frequente. lando a ingesta de açúcares e com aplicações de fluoreto.
de esofagite. O Quadro 6.2 resume as principais etiologias da As úlceras aftoides ou idiopáticas ainda são motivo de con
doença esofágica na AIDS. trovérsia. Muitas vezes, a biopsia de uma úlcera esofágica reve
A Candida albicans é o mais frequente agente etiológico la simplesmente a própria úlcera. Alguns autores referem-se a
identificado no esôfago (Prancha 6.1 A), chegando a 70% dos elas como úlceras primárias, e outros defendem a hipótese de
casos. Geralmente, associa-se à candidíase orofaríngea, mas não agentes virais ainda não identificados.
necessariamente. Os outros agentes fúngicos aparecem como A doença do refluxo gastresofágico na AIDS geralmente é
relatos isolados de casos. secundária ao processo de cicatrização de úlceras esofágicas
Dentre os patógenos virais, o citomegalovírus é encontrado que levam à distorção da anatomia da junção esofagogástrica,
em 10 a 40% das biopsias endoscópicas. A apresentação clíni facilitando o refluxo.
ca é diversificada: esofagite difusa, úlceras únicas ou múltiplas Esofagite erosada e úlceras esofágicas são descritas com o
predominando na região da junção esofagogástrica e até úlce uso de vários medicamentos. A zidovudina é reconhecida como
ras gigantes ocupando toda a extensão esofágica. Em função do um agente agressor da mucosa esofágica. A reação pode ser
tropismo vascular do CMV, as biopsias endoscópicas devem idiossincrásica, com a lesão assumindo graus variados de gra
ser retiradas do centro da ulceração. vidade.
O Herpes simplex produz vesículas e úlceras de tamanhos
variados, com bordas elevadas (em vulcão) e fundo necrótico.
A biopsia da margem da lesão pode identificar esse agente.
■ Diagnóstico
Bactérias e micobactérias são ocasionalmente identificadas Inicialmente, colhe-se uma história clínica completa. As
no esôfago. O Mycobacterium tuberculosis infecta esse órgão a queixas de odinofagia e/ou disfagia relacionam-se com líqui
partir da erosão de linfonodos mediastinais para o esôfago e nas dos e sólidos. O uso de medicamentos e os fatores de risco as
fístulas traqueoesofágicas e broncoesofágicas. O Mycobacterium sociados ao HIV são pesquisados na entrevista clínica. O exame
avium intracelullare, por disseminação hematogênica, exerce físico revela, com frequência, candidíase da orofaringe. Se este
sua patogenicidade diretamente sobre a mucosa esofágica. for o caso, preconiza-se o tratamento sistêmico da infecção. Ha
Agentes menos frequentes no esôfago, como Actinomyces, vendo resolução dos sintomas, mantém-se o acompanhamento
Pneumocystis carinii e Cryptosporidium parvum, são descritos clínico, sem a necessidade de outras provas diagnósticas. Caso
como superinfecção de úlceras esofágicas. contrário, a endoscopia digestiva alta é o passo propedêutico
O sarcoma de Kaposi também se desenvolve no esôfago seguinte. Além da macroscopia, o estudo endoscópico permite
e, por ser submucoso, é geralmente assintomático. Os sinto a realização de biopsias para os estudos histológico e microbio-
mas só aparecem nas complicações, como obstrução, ulce lógico, indispensáveis no diagnóstico definitivo das alterações.
ração e sangramento. Linfomas primários e secundários são Esofagografia contrastada é falha em até 50% dos casos, e, se
relatados no esôfago, e a associação com úlceras por CMV é forem detectadas úlceras esofágicas, estas devem ser biopsiadas
frequente. sob visão endoscópica. Dessa forma, excetuando-se os casos de
estenose e distúrbios de motilidade, o exame radiológico con
trastado torna-se dispensável.
Vários testes diagnósticos são realizados na investigação
------------------------- ▼------------------------- de úlceras esofágicas em pacientes com o HIV. As colorações
Q u a d ro 6.2 Etiologia da doença esofágica na AIDS histológicas usadas de rotina são a hematoxilina-eosina (H.E.),
Giemsa (fungos) e Fite (micobactérias). Técnicas citológicas
Fungos C a n d id a s p. (esfregaço - Papanicolaou) são úteis no diagnóstico do Herpes
H is t o p la s m a c a p s u la tu m simplex, Citomegalovírus e Candida sp. O estudo é comple
T o ru lo p s is g la b r a ta m entado pelos métodos imunológicos (hibridização in situ,
amplificação do DNA e PCR) e cultura de tecidos.
P n e u m o c y s t is c a rin ii
V íru s C it o m e g a lo v ír u s
■ Tratamento
E p s te in -B a rr
P a p o v a v íru s
A candidíase esofágica é tratada com medicação sistêmica:
cetoconazol, fluconazol e itraconazol são boas opções VO. Os
H e rp e s s im p le x 1 e 2
casos graves e resistentes exigem a anfotericina-B ou o fluco
H IV nazol IV. A vantagem do baixo custo do cetoconazol esbarra
B a ctérias M y c o b a c te r iu m tu b e r c u lo s is
em problemas relevantes, como a crescente resistência de al
gumas cepas de Candida, a hepatotoxicidade e a absorção ina
M y c o b a c te r iu m a v iu m - in tr a c e llu la r e
dequada em função da hipocloridria encontrada nos pacientes
A c t in o m y c e s com AIDS. A infecção pelo CMV responde ao tratamento com
E so fa g ite n o d u lo s a (a n g io m a t o s e b a c ila r) ganciclovir (5 mg/kg/dia IV de 14 a 28 dias) em 80% dos casos,
similar ao tratamento da retinite pelo CMV. O foscarnet é uti
P ro to z o á rio s C ry p t o s p o r id iu m
lizado nos casos resistentes ao ganciclovir. O principal efeito
L e is h m a n ia
colateral do ganciclovir é a neutropenia dose-dependente, so
N e o p la s ia s S a rc o m a d e K a p o s i
bretudo quando associado à zidovudina. Felizmente, esse efeito
pode ser revertido com os fatores estimuladores de colônias de
L in fo m a d e H o d g k in
granulócitos, embora encarecendo ainda mais o tratamento.
O u tr a s D o e n ç a d o re flu x o g a s tro e s o fá g ic o O foscarnet, por sua vez, provoca distúrbios de função renal.
E ro s õ e s m e d ic a m e n t o s a s
Hoje, a grande discussão gira em torno da necessidade ou não
de um esquema de manutenção e de qual o melhor esquema a
Le sã o a fto id e id io p á tic a
ser utilizado. Muitas variáveis ainda serão analisadas antes de
1 m
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E nd o sco p ia
C lin ft C ir
1
2 EC-2901
♦1 ■ -3 I■ I 1 PENTRX
Prancha 6.1 Aspectos de acometimento do aparelho digestivo por AIDS. A. Candidíase esofágica (gentilmente cedida pelos Drs. Joáo Batista
Campos e Itiberê Pessoa da Costa, Belo Horizonte - MG); B, Linfoma gástrico (Drs. Joáo Batista Campos e Itiberê Pessoa da Costa); C, Colangite
esclerosante relacionada com a AIDS (cortesia do Dr. Josep Maria Bordas, Barcelona - Espanha); D, Colestase provocada por obstrução da papila
duodenal: linfoma não Hodgkin (Dr. Josep Maria Bordas, Barcelona - Espanha); E, Pequena lesão brancacenta na superfície do lobo hepático
esquerdo: histoplasmose; F, Aspecto laparoscópico do fígado em paciente com micobacteriose atípica; G , Tuberculose hepática (Fite l.OOOx);
H. Microgranulomas hepáticos de etiologia indeterminada (H.E. 40x). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 65
se decidir pela manutenção do tratamento. O desenvolvimen adequadas e fornecer subsídios de macroscopia que auxiliem o
to de medicamentos administrados por via oral contra o CM V patologista no diagnóstico definitivo. É relativamente frequente
poderá ajudar na opção de uma terapêutica prolongada. a apresentação ulcerada dos linfomas gástricos (Prancha 6.1B),
A esofagite herpética tem o aciclovir (400 a 800 mg TID, por até como “kissing u/cers”, formando o chamado estômago em
14 dias) como tratamento de escolha. Nos casos de resistência, ampulheta, o que pode ser confundido com doença péptica. Já
pode-se lançar mão do foscarnet (60 a 90 mg/kg BID, 14 dias). o sarcoma de Kaposi, por ser uma lesão submucosa, pode não
Úlceras aftoides ou idiopáticas são de tratamento difícil e po ser diagnosticado pela biopsia endoscópica convencional.
lêmico. Tem sido tentado o esquema prednisona (40 mg/dia Estudos microbiológicos e de histopatologia (com técnicas
durante 28 dias, chegando a 10 mg/dia, 14 dias) ou a talidomida imuno-histoquímicas e de biologia molecular) complementam
(200 mg/dia durante 28 dias). O uso de antiácidos e sucralfato as ferramentas diagnósticas.
pode ser útil. Uma resposta favorável ao tratamento anti-HIV A terapêutica contra agentes infecciosos e neoplasias no es
também é acompanhada de melhora dessas lesões. tômago obedece aos mesmos princípios descritos para o esô
Infecções bacterianas esofágicas respondem aos antibióticos fago.
de amplo espectro. O Mycobacterium tuberculosis é sensível ao
esquema clássico com isoniazida, rifampicina e pirazinamida.
Já o Mycobacterium avium intracellulare (MAI) pode ser tra ■ INTESTINOS DELGADO E GROSSO
tado com a associação de etambutol (1,2 g/dia), clofazimina
(100 mg/dia) e rifampicina (10 mg/kg/dia). Resultados satis A diarréia é manifestação frequente para muitos pacientes
fatórios também são obtidos com a claritromicina (500 a 1.000 com AIDS. Nos países em desenvolvimento, mais de 90% dos
mg/dia) no lugar da rifampicina. Drogas como ciprofloxacino pacientes vão apresentar quadros diarreicos em algum m o
(500 a 750 mg BID) e azitromicina (500 a 1.000 mg/dia) apre mento da sua evolução clínica. A diarréia é um sinal de má
sentam resultados promissores contra o MAI, quando associa absorção, e vários mecanismos fisiopatológicos podem atuar
das ao etambutol e à clofazimina. O tratamento geralmente é na AIDS: diminuição da área de superfície mucosa, disfunção
longo, variando de 2 a 8 semanas. Profilaxia primária com ri- ileal, enteropatia exsudativa, mediadores inflamatórios, altera
fabutina 300 mg/dia é indicada para os pacientes com CD4 em ção de motilidade, secreção de endotoxinas e efeito citopático
torno de 100/mm3. do HIV sobre os enterócitos.
A Mesofagite nodulosan é uma entidade descrita, recentemen Em caso de persistência, a diarréia levará à desnutrição gra
te, como o equivalente esofágico da angiomatose bacilar, o que ve e, possivelmente, ao óbito. O maior desafio é identificar os
pode ser confirmado pela histologia dessas lesões. Há excelente agentes etiológicos da diarréia na AIDS, possibilitando um tra
resposta ao uso da eritromicina (500 mg QID), como ocorre na tamento dirigido. A real influência do HIV sobre os enterócitos,
angiomatose bacilar convencional. na gênese da diarréia, também merece maior discussão. Com
O sarcoma de Kaposi e os linfomas esofágicos são tratados uma propedêutica adequada, conseguimos isolar um agente
com esquemas de quimioterapia sistêmica, com resposta se específico em 50 a 85% dos casos, dentre os quais cerca de 80%
melhante à de outros locais de manifestação dessas doenças. apresentam resposta à terapêutica com os medicamentos dis
A sobrevida média, após o diagnóstico de linfoma no esôfago, poníveis atualmente.
é de 6 meses. A abordagem ao paciente HlV-positivo com diarréia é simi
lar à conduta básica que se aplica à população em geral. História
clínica completa (medicamentos, dieta, fatores de risco) e um
■ ESTÔMAGO exame físico minucioso são imprescindíveis. A frequência das
evacuações e o volume das fezes podem nos ajudar a localizar a
O estômago pode ser acometido por quase todos os pro origem da diarréia como sendo o intestino delgado ou o grosso.
cessos que ocorrem no esôfago. Os microrganismos encontra Fezes em grande volume, com evacuações menos frequentes e
dos no esôfago também são detectados no estômago, porém a episódios noturnos, sugerem o intestino delgado como local da
Candida, que é ácido-sensível, não representa um problema afecção. Ao contrário, fezes em menor volume, às vezes com
significativo. Existe, também, uma sobreposição de alterações sangue, evacuações frequentes, tenesmo, dor e distensão abdo
do estômago com o intestino delgado. A hipocloridria, descrita minal apontam o cólon como sede do processo.
nos pacientes com AIDS, interfere na absorção de vários me De início, realiza-se o exame de fezes, que compreende pes
dicamentos ácido-solúveis, como o cetoconazol. quisa de bactérias, fungos, protozoários, helmintíases (inclusive
O Helicobacter pylori, que exerce importante papel na fisio- por técnicas de biologia molecular para a identificação de mate
patogenia da úlcera péptica e em tumores gástricos, não pa rial genético específico), leucócitos fecais, toxina do Clostridium
rece ter uma incidência aumentada nos pacientes com AIDS. difficile e coprocultura. Se houver febre associada à diarréia, o
Os critérios para erradicação desse agente são idênticos aos da estudo é complementado com hemograma, hemocultura, urina
população em geral. de rotina e radiografia de tórax.
Em função da hipocloridria, os pacientes com AIDS que Se a análise do material fecal for negativa, a investigação en
necessitem de tratamento para um quadro de úlcera péptica doscópica com biopsias é o próximo passo. De acordo com o
teriam melhor resposta com o uso de protetores de mucosa, apurado na história clínica, se o paciente apresenta um quadro
como o sucralfato, do que com o uso de inibidores de bomba clássico de diarréia do delgado, deverá ser submetido, primeiro,
e de receptores H2. Também os antiácidos que contêm mag a uma endoscopia digestiva alta com múltiplas biopsias duode-
nésio estariam contraindicados devido à elevada incidência de nais. Aspirados e citologia esfoliativa também são empregados.
diarréia nesse grupo. As melhores opções são antiácidos à base No caso de uma história sugestiva de colite, a colonoscopia é o
de alumínio ou bismuto. método de escolha. Alguns estudos mostraram que a retossig-
O estudo endoscópico na AIDS é de primordial importância, moidoscopia flexível deixa de diagnosticar até 33% dos casos
e o endoscopista deve ter experiência com esses pacientes, possi de colite por citomegalovírus; entretanto, novas avaliações vol
bilitando o reconhecimento precoce das lesões, realizar biopsias taram a defender a retossigmoidoscopia flexível como a abor
66 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS
En ta m o e b a C y c lo s p o r a ■ Cryptosporidium
C y c lo s p o r a H e r p e s s im p le x
Promove uma diarréia líquida com perda de 1 a 20 t por
H IV (?) P n e u m o c y s t is dia, dor abdominal, anorexia, flatulência, náuseas, vômito, fe
G ia rd ia la m b lia bre, mialgia e eosinofilia. É comum a queixa de dor abdominal
En ta m o e b a e diarréia logo após a alimentação. Pode ocorrer esteatorreia,
H IV (?) má absorção da D-xilose e vitamina B12. 0 exame de fezes revela
oocistos, muco, sangue e leucócitos. Não raramente se associa
" M ycobacterium avium -intracdlulare.
"•M ycobacterium tuberculosis.
à doença da árvore biliar. Recentemente, o tratamento com pa-
romomicina 500 a 750 mg VO, de 6/6 h, por 14 a 28 dias, tem
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 67
alcançado resultados favoráveis. Em fase de experimentação, com o ciclo vital do parasito. Os casos graves cursam com dor
estão a azitromicina e a atovaquona. O octreotídio, embora abdominal, sangramento intestinal, má absorção de vitaminas
não atue sobre o agente, melhora parcialmente a diarréia (50 a e proteínas, podendo chegar à desnutrição. A retocolite é fre
500 mcg SC/TID/por 48 h). quente na amebíase. Os locais extraintestinais que podem es
tar acometidos pela Entamoeba são fígado, pleura, pericárdio
e cérebro. A giardíase pode ser detectada tanto no intestino
■ Microsporidium delgado quanto no grosso, em pacientes com AIDS. No trata
Parasito intracelular obrigatório, tem sido reconhecido mais mento da giardíase, utiliza-se o metronidazol 250 mg VO, de
frequentemente como agente causai de diarréia em pacientes 8/8 h, por 7 dias. Já a amebíase responde ao metronidazol na
com AIDS. As duas espécies associadas à doença entérica são dosagem de 750 mg VO, de 8/8 h, por 10 dias. O tratamento
a Enterocytozoa bieneusi e a Septata intestinalis. Esta última deve ser repetido após 2 semanas para ambos os agentes. O
espécie infecta os macrófagos da lâmina própria e sofre disse secnidazol apresenta-se como uma opção mais atual, 1,0 g/dia
minação por via portal até os rins, sendo os seus esporos en (dose única), repetindo-se após 1 semana.
contrados na urina. A maior eficácia diagnóstica é obtida com
a microscopia eletrônica de amostras do delgado. O albendazol,
400 mg/VO/BID por 28 dias, reduz a diarréia e promove ganho ■ MIC0BACTERI0SES
de peso em alguns pacientes.
A tuberculose intestinal é principalmente ileocecal e pode
ocorrer em qualquer fase da AIDS, geralmente por reativação
■ isosporíase de focos endógenos. Ao exame clínico, pode-se palpar uma
As fezes são líquidas, ocorrendo esteatorreia e eosinofilia em massa na região do ceco, e o paciente refere perda de peso
cerca de 15% dos casos. O exame de fezes identifica os oocis- e sangramento retal. Linfonodos mesentéricos são descritos
tos. Há boa resposta ao uso de sulfametoxazol-trimetoprima ao exame ultrassonográfico. O diagnóstico é feito pelo acha
(SMX-TMP) na dose de 75 a 100 mg/kg/dia de SMX, QID, por do do bacilo nas fezes ou através de biopsia colonoscópica da
10 dias, seguido por 3 semanas da mesma dosagem BID. As re- lesão intestinal. O tratamento é o clássico preconizado para a
cidivas são frequentes e demandam manutenção com 800 mg doença respiratória (isoniazida, rifampicina, pirazinamida),
de SMX e 160 mg de TMP diariamente. Deve ser associado o observando-se relatos de resistência e hepatotoxicidade aos
ácido folínico, 5 a 10 mg VO/MID. medicamentos empregados. As micobactérias atípicas predo
minam em fases mais avançadas da AIDS (CD4 < 50/mm3).
São encontradas no sangue, medula óssea, fígado, linfonodos,
■ Cyclosporaspp. pulmão e trato gastrintestinal. Há febre persistente, sudorese
A Cyclospora spp. é um protozoário responsável por muitos noturna, anemia, leucopenia, elevação de fosfatase alcalina,
casos de diarréia crônica em pacientes com AIDS. Seus oocis- emagrecimento, diarréia e sinais de má absorção. O diagnóstico
tos podem ser detectados em amostras frescas de fezes. Em pode ser feito através de hemocultura, biopsia de medula óssea,
geral, os pacientes predispostos têm contagem de células CD4 de linfonodos ou de lesões viscerais (principalmente no fíga
< 100 céls./mm3. A espécie C. cayetanensis é causa importante do). Embora não exista um tratamento ideal, o esquema mais
de diarréia crônica na Argentina. Os derivados imidazólicos difundido envolve: etambutol (1,2 g/dia), clofazimina (100 mg/
(metronidazol 250 mg VO/TID - 10 dias e secnidazol 1 g VO/ dia), rifampicina (10 mg/kg/dia), ciprofloxacino (500 a 750 mg
MID - 3 dias) podem ser usados no tratamento. BID). Pode ser associado à amicacina 500 mg BID. A rifabu-
tina, 300 mg/dia, é eficaz na profilaxia primária de pacientes
com CD4 < 100/mm3.
■ Shigella e Campylobacter
Na shigelose, a diarréia é de pequeno volume, sanguinolenta,
com muco, cólicas, tenesmo e febre alta na metade dos casos. ■ HIV
Precedendo o quadro diarreico pelo Campylobacter, podem
ocorrer febre, mialgia, astenia, 18 a 24 h antes dos sintomas in A enteropatia pelo HIV deve ser considerada como possi
testinais. Antidiarreicos que diminuem o peristaltismo devem bilidade diagnóstica nos casos de diarréia crônica, de grande
ser usados com cuidado, pois há risco de invasão da mucosa volume e sem outra etiologia identificável, após repetição exaus
e dilatação tóxica do cólon. O tratamento com quinolonas é tiva dos testes diagnósticos. É altamente provável que algum
eficaz para os dois agentes. Ciprofloxacino, 500 mg VO/BID patógeno seja identificado se os testes forem repetidos ou con
por 10 dias. tinuados, o que favorece o paciente na medida em que permite
uma terapêutica específica. O HIV exerce um papel relevante
na gênese da diarréia crônica da AIDS; entretanto, novos agen
■ Salmonella tes serão certamente descritos com a evolução dos estudos. Na
Apresenta-se com febre, dor abdominal, cólicas e diarréia. enteropatia pelo HIV, a histopatologia demonstra alterações
Em alguns pacientes HlV-positivos, pode ocorrer bacteriemia inespecíficas, como atrofia parcial ou total das vilosidades, hi-
por Salmonella sp.ymesmo antes de preencherem critérios clí perplasia de criptas e aumento dos linfócitos intraepiteliais. O
nicos para o diagnóstico de AIDS. O tratamento é feito com teste da D-xilose, alterado nesses pacientes, torna a nutrição
ampicilina, sulfametoxazol-trimetoprima ou ciprofloxacino. enteral ineficaz, requerendo o suporte parenteral para correção
dos déficits porventura existentes. O aconselhamento dietético
é importante, devendo-se adotar uma dieta com baixos teores
■ Giardíaseeamebíase de lactose e gordura. Antidiarreicos (loperamida, codeína) são
Existe predominância de cólicas, flatulência e diarréia cícli eficazes no controle da diarréia, e o octreotídio SC é reserva
ca, ou seja, com períodos de melhora espontânea relacionados do para os casos refratários. A zidovudina pode ser eficaz em
68 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS
doses elevadas (1,2 g/dia), embora seus efeitos colaterais sejam ciá-la da colangite esclerosante primária, como a presença
limitantes dessa opção. de débris no interior dos duetos e a lesão preferencial da
árvore esquerda;
3. Associação de estenose papilar e colangite esclerosante:
■ Clostridiumdifficile compartilha aspectos das duas primeiras formas e cor
A ação de drogas antibióticas e quimioterápicas pode levar a responde à maioria dos casos;
um desequilíbrio da flora intestinal, favorecendo o crescimen 4. Estenoses longas coledocianas: são estenoses extra-hepáti-
to de algumas cepas bacterianas, notadamente o Clostridium cas, variando de 1 a 2 cm de extensão. A fisiopatologia des
difficile} que é um germe anaeróbio de alto poder invasivo e sas estenoses ainda não está completamente elucidada.
produtor de toxinas responsáveis pela formação de pseudo-
A colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPER)
membranas, caracterizando a chamada enterocolite pseudo-
mostra anormalidades em até 80% dos casos, além de permi
membranosa. Acomete, com frequência, o reto, o cólon es
tir a obtenção de material para estudo histopatológico, sendo
querdo e, mais raramente, o intestino delgado. O diagnóstico
considerada padrão-ouro para a investigação de pacientes com
é confirmado pela associação dos resultados fornecidos por
suspeita de doença do trato biliar relacionada com a AIDS. Um
biopsia, coprocultura, teste de aglutinação do látex e atividade
método interessante que pode preceder a CPER, e com isso de
citotóxica. A vancomicina (250 a 500 mg QID VO, por 7 a 14
terminar os pacientes que vão requerer uma propedêutica mais
dias) é o tratamento de escolha. Mesmo com o tratamento, a
invasiva ou uma colocação de prótese biliar, é a colecintigrafia
mortalidade atinge índices de 10 a 30%.
com Tc-99 DISIDA. Esse método é particularmente útil nos
pacientes com estado clínico precário e permite um diagnóstico
presuntivo com elevado grau de certeza. Os padrões principais
■ ÁRVORE BILIAR da colecintigrafia são:
O acometimento da árvore biliar, incluindo a vesícula, ocor 1. Dilatação do dueto com estenose e retenção focal ou di
re em fases mais avançadas da AIDS, geralmente com a conta fusa do marcador pelo parênquima;
gem de linfócitos CD4 < lOO/mm^. Vários casos de colecistite 2. Dilatação difusa da árvore biliar com retenção do m ar
acalculosa e de colangiopatias são hoje atribuídos ao citomega- cador pelo parênquima hepático;
lovírus, ao Cryptosporidium (Pitlik, 1983), e aos Mycobacterium 3. Retenção parenquimatosa do marcador sem anormali
avium e Microsporidium. A vesícula biliar pode atuar como dades duetais.
reservatório desses agentes, perpetuando, assim, a patologia
A colecintigrafia também pode ser utilizada para monitorar
biliar, que se manifesta tanto na forma de agressão imunoló-
quantitativamente a resposta à intervenção terapêutica através
gica quanto na citopatogenicidade direta do microrganismo.
da depuração do marcador.
Episódios de colecistite acalculosa também são descritos após
No que tange à terapêutica, cabe ressaltar a importância
enterites por Salmonella e Campylobacter. Linfomas da região
da esfincterotomia endoscópica para alívio da sintomatologia
periampular (Prancha 6.1D) respondem por muitos casos de
álgica referida no quadrante superior direito. Obviamente, a
obstrução biliar em pacientes com AIDS. O próprio HIV exerce
seleção de pacientes para esse procedimento deverá ser crite
seu efeito citopático sobre o epitélio ductal biliar, podendo gerar
riosa, respeitando-se uma relação risco - benefício favorável.
uma inflamação crônica de caráter destrutivo, assumindo carac
É interessante notar que não há modificação do perfil bioquí
terísticas de doença colestática. Também tem sido sugerido que
mico hepático após a esfincterotomia, permanecendo os valores
pacientes com HLA tipo DRw52a podem desenvolver um ata
elevados de fosfatase alcalina.
que imunológico ao epitélio biliar em resposta a um patógeno.
A colecistectomia é o tratamento de escolha para os casos
Enfim, vários são os mecanismos fisiopatogênicos postulados
de colecistite (mesmo acalculosa), em função da capacidade de
para explicar a colangiopatia relacionada com a AIDS.
“reservatório” de agentes oportunistas da vesícula biliar.
Dor no quadrante superior direito, febre (até 38,5°C) e ele
Outras medidas que podem ser empregadas são a dilatação
vação significativa da fosfatase alcalina, embora inespecíficas, biliar com balão, colocação de endopróteses, quimioterapia
são as principais manifestações clínicas. A icterícia aparece em
para os linfomas e a utilização de ácido ursodesoxicólico. O
cerca de 20% dos casos, e as transaminases podem estar discre
tratamento específico para agentes oportunistas é dificultado
tamente aumentadas. O exame ultrassonográfico mostra uma pela inoperância do sistema imunológico, já bastante expres
vesícula de paredes espessadas, dilatada ou de aspecto normal.
siva nessa fase da doença.
A colecistite acalculosa deve ser considerada em todos os por
tadores de AIDS que se queixam de dor do tipo biliar, sediada
no hipocôndrio direito, ou que apresentem um abdome agudo,
sob pena de se deixar o paciente evoluir para gangrena do co- ■ FÍGADO
lecisto, perfuração e morte. A árvore biliar mostra-se alterada
Alterações bioquímicas hepáticas são muito frequentes na
em mais de 50% dos casos de colecistite acalculosa e, em me
AIDS, quase sempre assintomáticas. O grande aporte sanguíneo
nor proporção, quando da ausência de patologia vesicular. O
e a presença de células do sistema reticuloendotelial conferem
espectro da chamada “colangiopatia relacionada com o HIV”
ao fígado o status de “janela privilegiada” na detecção de mor-
divide-se em 4 formas principais:
bidades sistêmicas da AIDS. O fígado é um local potencial para
1. Estenose papilar: definida como um diâmetro de dueto remoção de células circulantes infectadas pelo HIV, replicação
biliar comum de ± 8 mm, com marcada retenção de con viral (utilizando as células de KupfFer, endotélio sinusoidal e
traste (> 30 min); hepatócito), coinfecção com outros vírus hepatotrópicos, in
2. Colangite esclerosante (Prancha 6.1C): caracterizada por fecções oportunísticas e neoplasias.
dilatações e estenoses focais dos duetos intra- e extra-he- O Quadro 6.4 resume as principais afecções hepáticas na
páticos. Outros elementos radiográficos podem diferen AIDS.
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 69
Quadro 6.4 Etiologia da doença hepática em pacientes com AIDS Quadro 6.5 HIV e vírus hepatotrópicos
A d e n o v ír u s R e d u ç ã o d o d a n o h e p á tic o n o s p o r t a d o r e s c rô n ic o s
R e s p o sta r e d u z id a à v a c in a ç ã o
Fungos C ry p t o c o c c u s n e o fo r m a n s
R e a tiv a ç ã o d o v íru s B, m e s m o n a a u s ê n c ia d o H b e A g
H is t o p la s m a c a p s u la tu m
C o c c id ío id e s Im m lt is M a io r fib ro s e h e p á tic a
P n e u m o c y s t is c a rin il A u m e n t o d a tra n s m is s ã o v e rtic a l d o v íru s C
M y c o b a c te r iu m a v iu m - in tr a c e llu la r e
H IV x V íru s D P io r e v o lu ç ã o d a c o in fe c ç ã o (v íru s B + D )
M y c o b a c te r iu m x e n o p i
P e rd a d o e fe ito in ib it ó r io d o v íru s d e lta s o b re a
M y c o b a c te r iu m k a n s a s ii re p lic a ç ã o d o v íru s B
R o c h a lim a e a q u in t a n a
H IV x V íru s E A u m e n t o d o risco d e in s u fic iê n c ia h e p á tic a fu lm in a n t e
P ro to z o á rio s T o x o p la s m a g o n d ii e m g rá v id a s
N e o p la s ia s S a rc o m a d e K a po si
L in fo m a d e H o d g k in
L in fo m a n ã o H o d g k in
■ Epstein-Barr ■ Micobacteriose
Tem sido associado a hepatite crônica ativa em crianças com É a infecção mais comumente diagnosticada por biopsia he
AIDS. Pode induzir o aparecimento de doenças linfoprolifera- pática em pacientes com AIDS. A reativação de focos latentes do
tivas. Detecção imuno-histoquímica e hibridização in situ são Mycobacterium tuberculosis ocorre em fases precoces da doen
úteis no diagnóstico. O tratamento é dirigido para as compli ça, e o aumento de linfonodos do hilo hepático pode provocar
cações. obstrução biliar. Já as micobactérias atípicas (Prancha 6.1F)
acometem o fígado em fases tardias de imunodepressão (CD4
£ 100/mm3). O paciente encontra-se febril, emagrecido, com
■ Cryptococcus neoformans, Histoplasma sudorese noturna, hepatomegalia, elevação de fosfatase alcalina
capsulatum (Prancha 6.1 E), Candidaalbicans e, às vezes, discreta elevação de transaminases.
Em se tratando do Mycobacterium tuberculosis (Prancha
e Coccidioides immitis 6.1 G), a biopsia hepática revela granulomas bem formados
São, ocasionalmente, descritos como agentes de doença he- e, geralmente, com poucos bacilos. Granulomas pequenos e
pática. A resposta inflamatória é do tipo granulomatosa, com malformados são sugestivos de infecção pelo Mycobacterium
granulomas malformados e com poucas células. Conquanto os avium. Não se observa necrose caseosa nesses granulomas. Es
microrganismos possam ser vistos na coloração por hematoxi- tudos comprovam que a histologia é mais sensível do que a cul
lina-eosina, outras colorações especiais são importantes (p. ex., tura em detectar micobactérias no tecido hepático; entretanto,
PAS com diástase e Grocott). O uso de zidovudina e ganciclovir a cultura pode ser positiva mesmo na ausência de granulomas
pode levar a uma neutropenia grave e favorecer o aparecimento e bacilos à histologia, o que torna a sua execução indispensá
de abscessos por Aspergillus sp. vel. Pacientes febris, com biopsia de medula óssea negativa,
Como são doenças sistêmicas, o diagnóstico pode ser feito a revelam, ao exame histológico do fígado, micobactérias em até
partir de secreções pulmonares, líquido cerebroespinal, exames 33% dos casos.
sorológicos e aspirado de medula óssea. Entretanto, a biopsia O tratamento do Mycobacterium tuberculosis no fígado obe
hepática é necessária em muitos casos e, de preferência, sob dece aos princípios da doença pulmonar (isoniazida, rifampi-
visão laparoscópica. O fluconazol (200 a 400 mg/VO/dia) e a cina e pirazinamida, podendo ser associado o etambutol ou a
anfotericina B (0,5 a 1 mg/kg/IV/dia) são boas opções terapêu estreptomicina). Os esquemas para tratamento do Mycobacte
ticas. Fatores estimuladores de colônias de granulócitos devem rium avium são prolongados e têm posologia empírica (clari-
ser considerados nos casos de neutropenia grave. tromicina, etambutol e clofazimina, podendo ser associada a
ciprofloxacino). A febre pode levar semanas para desaparecer,
mesmo após início do tratamento.
■ Pneumocystis carinii
Patógeno eucarionte, foi inicialmente descrito como sendo
um protozoário; entretanto, as últimas revisões o classificam
■ Peliose hepática
como fungo. Isso se deve, entre outras características, à simi Nos pacientes com AIDS, geralmente é secundária à disse
laridade do material genético (inclusive DNA mitocondrial) minação sistêmica do agente da angiomatose bacilar (um bacilo
desse agente com os basidiomicetos. Sua identificação como gram-negativo denominado Rochalimaea quintana). Entretan
causa de doença extrapulmonar é cada vez mais frequente. O to, nem todos os casos de peliose hepática podem ser atribuídos
envolvimento hepático ocorre, em muitos casos, associado à a esse agente, e pacientes HlV-negativos também desenvolvem
nebulização profilática com pentamidina, que induziría a dis peliose hepática. Histologicamente, a doença é caracterizada por
seminação do Pneumocystis. A histologia da doença no fígado múltiplos cistos pequenos, 1 a 2 mm de diâmetro, preenchidos
é similar à do pulmão, com um exsudato eosinofílico, fraca por sangue, associados a um estroma fibromixoide, contendo
atividade inflamatória e aglomerados de microrganismos. Não poucas células inflamatórias, capilares e “ninhos” de material
existem alterações bioquímicas sugestivas da infecção, sendo a granuloso, que podem corresponder aos bacilos (semelhantes
biopsia responsável pelo diagnóstico da doença hepática. O tra às riquétsias). Alguns autores sugerem uma provável associação
tamento é realizado com sulfametoxazol-trimetoprima (15 mg/ do agente com a doença da arranhadura do gato, embora novos
kg/TID por 21 dias VO ou IV). estudos microbiológicos sejam necessários para estabelecer o
real papel da Rochalimaea quintana na peliose hepática. Eri-
tromicina é o tratamento de escolha, e a regressão espontânea
■ Toxoplasmose das lesões hepáticas também já foi descrita.
Apresenta caráter sistêmico, sendo a forma cerebral mais
grave do que a hepática. Pode ser achado ocasional de biopsia.
O uso de pirimetamina (50 a 100 mg/VO/dia) e sulfadiazina
■ Sarcoma de Kaposi (SK)
(1 a 1,5 g/VO/QID) é útil na doença hepática. É a neoplasia hepática mais frequentemente encontrada em
necropsias de pacientes com AIDS. As lesões viscerais são, em
geral, assintomáticas e acompanham cerca de 30% dos casos de
■ Leishmaniose SK cutâneo (Figura 6.1). Fígado, intestinos e pulmões podem ser
A leishmaniose visceral é relativamente frequente em pa o local primário da doença. De uma malignidade rara e indolente
cientes com AIDS. Febre, queda do estado geral e esplenome- em pacientes imunocompetentes, o SK assume um comporta
galia são características da maioria dos casos. Também lesões mento agressivo nos pacientes com AIDS. O exame laparoscó-
gástricas têm sido descritas com relativa frequência, como acha pico permite a biopsia hepática dirigida de lesões violáceas ou
do endoscópico. O aspirado de medula óssea permite a iden acastanhadas, subcapsulares, cuja histologia revela nódulos he
tificação das leishmânias. A resposta ao tratamento com anti- morrágicos afetando, inclusive, os tratos portais. A quimioterapia
moniais pentavalentes e pentamidina é precária. sistêmica tem melhor resultado em fases precoces da doença.
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 71
tratamento clínico é bastante complexa na AIDS. A imunossu- como a cirrose, a insuficiência cardíaca e a hipoalbuminemia.
pressão favorece as apresentações atípicas das infecções opor A biopsia laparoscópica, ou com guia radiológico, do omen-
tunísticas, dificultando o diagnóstico. Os principais quadros to ou peritônio, pode ser diagnóstica em pacientes com AIDS
peritoneais na AIDS são dicutidos nos tópicos a seguir. que desenvolvem ascite exsudativa e cujo exame do líquido
mostrou-se inconclusivo.
■ Abscesso peritoneal
A clínica compreende febre, sudorese, fadiga, sensibilidade
■ Peritonite
abdominal localizada, às vezes uma massa palpável e leucocitose Febre, taquicardia, taquipneia, hipotensão, descompressão
com neutrofilia. Em se tratando de pacientes com AIDS, a febre abdominal dolorosa, distensão e defesa abdominal são sinais e
e a leucocitose podem estar ausentes. Métodos de imagem (ul- sintomas que podem ser encontrados em pacientes com perito
trassom, tomografia computadorizada e ressonância magnética nite. Os ruídos hidroaéreos diminuídos ou ausentes represen
nuclear) podem mostrar uma massa heterogênea, com níveis tam paralisia e/ou distensão importante de alças e até isquemia
hidroaéreos, deslocamentos viscerais e linfadenopatia. Os prin da parede intestinal. Nos pacientes com AIDS, a resposta infla-
cipais agentes etiológicos são micobactérias, citomegalovírus, matória à irritação peritoneal é, geralmente, atípica, atenuada
Aspergillus, Histoplasma capsulatum, Candida, Encephalitozo- e tardia. A concomitância de infecções oportunísticas extra-
on cuniculi e Nocardia brasiliensis. Para isolamento do agente, abdominais pode modificar a apresentação clínica de uma pe
recomenda-se a aspiração percutânea guiada por ultrassom. ritonite. Os principais agentes etiológicos relacionados com a
O tratamento baseia-se no princípio do esvaziamento da(s) peritonite crônica na AIDS estão listados no Quadro 6.7.
loja(s), embora a disseminação seja frequente e a terapêutica Os sinais radiológicos que chamam a atenção para doença
antimicrobiana, indispensável. abdominal importante são o pneumoperitônio, a imagem da
“impressão digital” na parede das alças, a perda das haustrações
colônicas e a presença de ar na parede intestinal e sistema por
■ Massa peritoneal ta. Os achados compatíveis com obstrução intestinal incluem
As principais causas de massa peritoneal na AIDS são vis- dilatação proximal, múltiplos níveis hidroaéreos e ausência de
ceromegalias, linfadenopatias, neoplasias (sarcoma de Kaposi ar na ampola retal. A perfuração intestinal (com contamina
e linfomas), hemorragias encistadas, pseudocisto pancreático e ção por gram-negativos e anaeróbios) e a peritonite piogênica
abscessos. A propedêutica é iniciada com métodos de imagem requerem laparotomia após estabilização hemodinâmica do
para esclarecimento da natureza e provável etiologia da “mas paciente. Mesmo com o atendimento adequado, esses casos
sa”. O diagnóstico definitivo é firmado pela histologia e análise exibem elevadas taxas de mortalidade.
microbiológica do material colhido diretamente da lesão. Nos pacientes com AIDS, ocorre pouca mobilização de leu-
cócitos para o fluido ascítico, inclusive nos quadros agudos de
peritonite. Nos casos crônicos, como na tuberculose, os linfó-
■ Linfadenopatia peritoneal citos predominam e o líquido ascítico deve ser cultivado para
É geralmente associada a febre, emagrecimento e fadiga. As micobactérias e fungos. Também é relatada a ocorrência de pe
principais causas na AIDS são as micobacterioses e os linfomas; ritonite bacteriana espontânea (PBE) em pacientes com AIDS,
entretanto, fungos e vírus também devem ser pesquisados. A sem perfuração intestinal e com pequenos volumes de líquido
tomografia computadorizada é excelente exame para avaliação ascítico. Os fatores de risco para PBE são a baixa concentração
da linfadenopatia abdominal. Caso não exista um linfonodo pe de proteína no líquido ascítico, a imunodepressão e a debilidade
riférico acometido, nem infiltração da medula óssea ou mesmo do quadro clínico. A infecção é, geralmente, monomicrobiana e
lesões hepáticas, pode-se tentar uma biopsia direta de linfonodo os principais agentes são Escherichia coli, Klebsiella e Streptococ-
abdominal guiada por tomografia computadorizada, ou lapa- cus. Na AIDS em particular, existe um risco aumentado de PBE
roscopia. A linfangiografia é raramente útil no diagnóstico. por Salmonella. O tratamento é clínico, com antibioticoterapia
sistêmica (cefotaxima, ceftriaxona ou ciprofloxacino).
O diagnóstico diferencial de um paciente com AIDS com
■ Ascite suspeita de peritonite deve ser feito, principalmente, com pan
As principais causas de ascite relacionadas com a AIDS são creatite, pseudo-obstrução colônica, megacólon tóxico e absces
hipoalbuminemia (desnutrição), linfomas, nefropatia pelo HIV so peritoneal. As causas mais prevalentes de laparotomia de ur
(com síndrome nefrótica) e infecções oportunísticas indutoras gência em pacientes com AIDS são expostas no Quadro 6.8.
de peritonites crônicas exsudativas. Por último, salientamos o comportamento agressivo das
Os sinais e sintomas da ascite vão depender do volume de neoplasias gastrintestinais na AIDS, com rápida disseminação
líquido acumulado, variando desde quantidades só detectadas na cavidade abdominal. Cerca de 95% desses tumores são lin
com métodos de imagem até volumes maiores, que requerem fomas não Hodgkin e sarcoma de Kaposi, sendo o carcinoma
paracentese de alívio. Em todos os casos, o líquido ascítico é
colhido para exame bioquímico, citológico e microbiológico
(indispensável em pacientes febris).
Por convenção, o líquido ascítico é classificado como exsu- ▼
dato quando contém mais de 3 g/dí de proteína, e como tran- Quadro 6.7 Causas de peritonite crônica relacionadas à AIDS
sudato quando contém menos de 3 g/d£ Outras características
do exsudato são a alta concentração de lactato-desidrogenase e M y c o b a c te r iu m t u b e r c u lo s is A s p e rg ilu s f u m ig a tu s
um baixo gradiente soro-ascite de albumina. Como exemplos M y c o b a c te r iu m a v iu m - in t r a c e llu la r e C a n d id a a lb ic a n s
de condições clínicas que podem gerar uma ascite do tipo exsu E n c e p h a lit o z o o n c u n ic u li P n e u m o c y s t is c a r in ii
dato, citamos: neoplasias, doenças granulomatosas, pancreatite, T o x o p la s m a g o n d ii C r y p t o c o c c u s n e o fo r m a n s
mixedema e vasculites. Já o transudato aparece em situações
74 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS
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Parasitoses Intestinais
Pedro Duarte Gaburri, Aécio Flávio Meirelles de Souza,
Ana Karla Gaburri e Elson VidaI Martins Junior
■ INTRODUÇÃO ■ HELMINTÍASES
Fatores comportamentais, geográficos, socioeconômicos,
culturais e imunológicos são de grande relevância na ocorrên
■ Ascaridíase
cia de doenças causadas por parasitos intestinais. Abordare O Ascaris lumbricoides é o parasito que acomete mais fre
mos neste capítulo as doenças mais frequentemente encon quentemente a população brasileira, e sua penetração no orga
tradas nos serviços de atendimento médico causadas por tais nismo se faz VO, através de ovos embrionados expulsos com as
agentes. No Brasil, este grupo de doenças tem sua importância fezes, os quais contaminam a água e os alimentos. Sua transmis
muito bem representada pelo Ascaris lumbricoides, que, em são se realiza pela via fecal-oral, e a prevalência se faz mais ele
algumas regiões, é encontrado em mais de 70% da população, vada em áreas com condições higiênicas e sanitárias precárias,
sobretudo nas crianças. Dentre os helmintos, alguns determi o que favorece a infecção humana por outros patógenos, que
nam graves lesões, por vezes letais. Quanto aos protozoários, a seguem a mesma via e podem ocasionar parasitismo múltiplo.
amebíase e a giardíase se destacam, embora, nos últimos anos, Tendo ciclo pulmonar, a passagem pela corrente sanguínea e
a criptosporidíase tenha ganhado ênfase em face da sua elevada pelo pulmão pode levar a alterações respiratórias e sistêmicas.
incidência em doentes com AIDS. A grande migração urbana Entretanto, a ação patogênica principal é mecânica, em virtude
ocorrida em nosso país, em alguns estados, tem promovido uma de seu tamanho e, não raro, da existência de centenas de parasi
mudança na frequência das diversas parasitoses, antes muito tos no lúmen intestinal. A presença do parasito, seja no intesti
prevalentes nas zonas rurais. Não se veem mais hoje em dia, nos no delgado, seu habitat natural, seja em localizações ectópicas,
hospitais, enfermarias com vários pacientes com anemia crôni como as vias biliares, o canal pancreático ou as vias respiratórias
ca grave, com níveis de hemoglobina abaixo de 5 g%, como era superiores, assume grande significado, pelas obstruções resul
comum se encontrar em meados do século passado. A esquis- tantes. A ação espoliadora é significativa, se considerarmos que
tossomose, será abordada no Capítulo 101. suas vítimas são, muitas vezes, pessoas acometidas de desnu
trição. A necessidade de maturação dos ovos no meio externo
não permite a transmissão direta entre as pessoas.
■ ETI0L0GIA O quadro clínico da doença vai depender da carga parasitária
e da localização dos vermes. Um pequeno número de parasitos
São vários os organismos que podem parasitar o aparelho pode não produzir sintomas, mas casos de infestações maci
digestivo do homem; todavia, estudaremos aqui apenas as doen ças, com centenas de vermes adultos localizando-se no intes
ças causadas por helmintos e protozoários, que serão avalia tino delgado, ocasionam cólicas intestinais, náuseas, vômito e
das em seus aspectos básicos para favorecer seu tratamento e distensão abdominal. Novelos de vermes adultos podem gerar
prevenção. obstrução intestinal. A tendência migratória do Ascaris lumbri
coides favorece a entrada nas vias biliar e pancreática, causando
icterícia obstrutiva com colangite, ou pancreatite aguda. Formas
■ PATOGENIA- QUADRO CLÍNICO mais jovens que ascendem aos canais biliares intra-hepáticos
- DIAGNÓSTICO podem provocar abscessos no fígado. Não raramente, os ver
mes adultos ascendem às partes mais altas do tubo digestivo
Para uma fácil compreensão da ação patogênica dos para e podem ser expulsos pela boca ou pelo nariz. As crianças são
sitos e das manifestações clínicas das parasitoses intestinais, mais propensas a desenvolver quadros mais sintomáticos, em
destacaremos de forma sucinta alguns aspectos referentes à sua face não só do maior número de parasitos, como também do
biologia. Dessa maneira, poderemos entender melhor o quadro menor diâmetro de suas alças intestinais. A migração pulmonar
clínico e o diagnóstico dessas parasitoses. do parasito, durante seu ciclo, pode originar quadros respira-
75
76 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais
■ Ancilostomíase
Esta doença, predominante na zona rural, é causada pelo
Ancylostoma duodenalis ou Necator americanus, ambos pa-
rasitos intestinais, com localização preferencial no duodeno e a expulsão dos vermes estão na dependência da atividade de
e que, através de dentes ou placas existentes na sua cápsula mastócitos na mucosa entérica. A doença atinge cifras variáveis
bucal, mordem a mucosa, sugam o sangue do hospedeiro, do em diversos países, sendo as crianças e as classes mais pobres as
qual se alimentam, e, ao longo do tempo, sobretudo em infes mais atingidas. Crianças em idade escolar podem estar acome
tações intensas, ocasionam uma anemia ferropriva. Penetram tidas em taxas acima de 60% em algumas áreas do Brasil. Fato
no organismo através da pele, sob a forma de larvas filarioides de grande significado é a possibilidade de autoinfecção interna
infestantes. Por terem ciclo pulmonar, também determinam ou externa, pela formação e penetração de larvas infestantes no
lesões respiratórias, e sua ocorrência está diretamente ligada interior do próprio intestino ou da pele da região perianal. Essa
ao hábito de andar descalço e ao contato direto da pele com a ocorrência permite o agravamento e a perpetuação da infec
terra. A doença predomina em países tropicais, com precárias ção humana, sobretudo em doentes imunodeprimidos. Estes
condições higiênico-sanitárias, baixos níveis de educação e de se encontram particularmente em risco de desenvolver a grave
condição econômica. A migração populacional para as cidades, forma de hiperinfecção por Strongyloides stercoralis. As lesões
nas últimas décadas, fez reduzir a frequência de formas mais intestinais variam desde enterites edematosas, com microul-
graves da doença. As lesões iniciais da infestação vão ocorrer cerações e hemorragias, espessamento da parede e atrofia da
na pele, onde petéquias e prurido decorrem da penetração das mucosa, até enterites ulceradas avançadas, com rigidez, edema
larvas. Estas, ao transitarem pelos pulmões, produzem ruptura e fibrose da parede, atrofia da mucosa e úlceras, com ilhotas de
alveolar e hemorragias. No intestino, os vermes adultos produ mucosa edemaciada de permeio, imitando, ao exame radioló-
zem lesões aftoides na mucosa, sobretudo duodenal, fruto da gico, as alterações observadas na doença de Crohn.
agressão pela mordida, a fim de sugarem o sangue. Estima-se O quadro clínico é dominado especialmente pelas manifes
que cada verme possa se alimentar de 0,01 a 0,2 m^ de sangue tações digestivas. As lesões cutâneas em geral não são notadas.
por dia. Dependendo do número de parasitos, do padrão ali No pulmão podem ocorrer infiltrados fugazes que se acom
mentar e do tempo de parasitismo, a espoliação prolongada panham de eosinofilia no escarro e no sangue (síndrome de
determinará anemia ferropriva grave. Lòffler). A eosinofilia sanguínea é marcante em quase todas as
O quadro clínico caracteriza-se por manifestações cutâneas, parasitoses intestinais; porém, nessa doença, atinge cifras mais
como urticária e petéquias, às quais se seguem sintomas respira significativas que nas demais. Formas leves de infecção podem
tórios, como tosse, escarros sanguíneos e infiltrados pulmonares ser assintomáticas, mas as queixas digestivas variam desde a
resultantes da migração larvária. Essas alterações são raramente diarréia crônica sem particularidades até formas clássicas de má
percebidas, exceto nas infestações maciças. As manifestações absorção com esteatorreia e emagrecimento acentuado.
digestivas são representadas sobretudo por epigastralgia inca- Doentes com infestação maciça e déficit imunológico apre
racterística e sangue oculto nas fezes. Os exames endoscópicos sentam disseminação parasitária, com quadros graves de íleo
permitem a identificação da duodenite, resultante de mordidas paralítico, lesões pulmonares, hepáticas e do sistema nervoso
sucessivas na mucosa, visto que o parasito muda frequente central. O óbito pode ocorrer nessas ocasiões. Grande atenção
mente o local de sua fixação. A maior representação clínica da deve ser dispensada aos doentes que necessitam de corticoste-
doença, no entanto, é a anemia, com palidez cutânea e muco roides em doses elevadas, bem como de imunodepressores e
sa de grau variável, fadiga fácil, edema de membros inferiores quimioterápicos, e que se enquadram nas condições predispo-
e insuficiência cardíaca congestiva nas formas mais graves. A nentes aqui já descritas, sobretudo porque esses medicamentos
geofagia é comum nesses casos. facilitam a instalação da grave hiperinfecção pelo parasito. Nos
O diagnóstico é realizado através do EPF, pelo achado de últimos anos, diversos casos de infestação maciça vêm sendo
ovos ou larvas nas fezes, e a associação de dados epidemioló- descritos nas mais variadas formas de transplantes de órgãos,
gicos e a anemia ferropriva são indicadores que podem levar tendo no uso de imunossupressores um dos motivos predispo-
à suspeita clínica. nentes mais importantes. Aqueles que se acham em fase pré-
transplante devem ser exaustivamente investigados quanto à
possível existência de estrongiloidíase e tratados previamente
■ Estrongiloidíase se infectados.
Seu agente etiológico é o Strongyloides stercoralis, cuja fê O diagnóstico da doença é realizado pelo encontro de lar
mea partenogenética parasita o intestino delgado do homem, vas rabditoides do parasito no EPF, sendo raro o encontro de
especialmente o duodeno e o jejuno, produzindo ovos que logo ovos. O método empregado deve ser o de Baermann-Moraes
dão origem a larvas rabditoides, vistas nas fezes. Em infecções centrifugado, ou o de Rugai, ambos específicos para pesquisa
graves, o verme pode ser encontrado do estômago até o reto. de larvas. Deve-se insistir nessa pesquisa, recolhendo-se três a
Não há machos parasitos, e o helminto penetra no organismo cinco amostras de fezes quando a suspeita clínica é forte. A bile
sob a forma de larvas filarioides infestantes encontradas no aspirada por sonda, ou durante exame endoscópico e subme
solo, onde também há machos e fêmeas de vida livre. Estes tida ao exame microscópico, pode mostrar a presença de lar
últimos não parasitam o homem, mas mantêm um ciclo no vas, o mesmo ocorrendo com o escarro. A biopsia de delgado
solo, dando origem a formas larvárias infestantes. As lesões, revela o grau das lesões e inflamação da mucosa, com ou sem
que podem ocorrer na pele e nos pulmões, assemelham-se às a presença do parasito nos fragmentos. Testes imunológicos
descritas para os ancilostomídeos, mas as mais significativas (ELISA, imunofluorescência indireta e radioimunoabsorção)
vão ocorrer no intestino delgado do homem, onde há destrui são métodos indiretos que podem ser utilizados nas situações
ção da mucosa, com desintegração do epitélio absortivo. Em em que a pesquisa nas fezes for negativa e a necessidade de
condições de deficiência imunológica, o verme pode invadir a confirmação for imperativa.
corrente sanguínea e disseminar-se para outros órgãos, pro Os remédios usados no tratamento da estrongiloidíase são
duzindo formas letais. Raça branca, sexo masculino, cirurgias tiabendazol, cambendazol, albendazol e ivermectina (Ver Qua
gástricas, doenças hematológicas malignas, uso de corticoste- dro 7.1). A hiperinfecção por S. stercolaris apresenta elevada
roides, ascaridíase, esquistossomose e cirrose hepática são con mortalidade, mesmo com tratamento adequado; recomenda-
dições que favorecem a sua ocorrência no homem. A instalação se tratá-la com tiabendazol, 10 mg/kg/dia, oralmente, por 10
78 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais
a 30 dias, ou, alternativamente, 25 mg/kg VO de 12/12 h, dose O quadro clínico é frequentemente destituído de sintomas,
máxima diária de 3 g, por 7 a 21 dias. principalmente em adultos, mas podem ocorrer dores abdomi
nais, inapetência e, raramente, anemia. O prolapso retal pode
denunciar infestações maciças, quando os vermes adultos são
■ Oxiuríase facilmente identificados na mucosa.
Enterobius vermicularis ou Oxyurus vermicularis, seu agente O diagnóstico é feito pelo encontro dos ovos ao EPF, sen
etiológico, é um helminto que se localiza na região ileoceco-cóli- do possível o achado do parasito preso à mucosa em exames
ca, de onde fêmeas fecundadas e repletas de ovos se desprendem endoscópicos.
e descem até o canal anal. Aí, por meio de seus lábios, tentam
prender-se à mucosa, determinando incômodo prurido, queixa
mais comum das pessoas parasitadas. As fêmeas não fazem pos
■ Teníases
tura, mas rompem-se nas margens do ânus, liberando os ovos É doença causada pela presença, no intestino humano, da
nessa região. A infecção humana se faz pela ingestão dos ovos, Taenia solium ou da Taenia saginatayconhecidas popularmente
que podem chegar à cavidade oral por diversos mecanismos. como solitárias. Esses dois helmintos, de corpo em forma de
Frequentemente, são transportados pelos próprios dedos das fita, localizam-se no intestino delgado do homem e podem ter
pessoas infectadas até à boca, devido ao hábito de se coçarem. vários metros de comprimento. Ambos necessitam de hospe
Os ovos ingeridos liberam larvas no intestino delgado, as quais deiros intermediários - o porco e o boi, respectivamente. Esses
evoluirão para vermes adultos sem passar pelo pulmão. A dis animais desenvolvem larvas tipo cisticerco em seus tecidos, e
seminação também se dá pela poeira, já que os ovos são leves e o homem, ao ingerir a sua carne crua ou malcozida, fica con
podem ser veiculados pelo ar ao serem agitadas as roupas ínti taminado com as larvas, que vão evoluir para os vermes adul
mas e de cama dos doentes. Objetos pessoais e brinquedos fa tos no intestino. O corpo do parasito é constituído de vários
cilitam sua transmissão, especialmente entre os que lidam mais segmentos - os proglotes - com grau de maturidade variável,
de perto com as crianças, como familiares e professores. Escolas a partir da cabeça ou escólex. Este mede 1 mm de diâmetro, e
e creches constituem um ambiente propício à disseminação. os proglotes, de 1 a 2 cm, com aspecto de talharim ou sementes
A grande produção de ovos pelas fêmeas e o fato de serem as de abóbora. Os últimos integrantes do corpo são os proglotes
crianças as que mais se contaminam são fatores que favorecem grávidos, repletos de ovos já embrionados. O porco e o boi vão
a sua transmissibilidade, bem como dificultam a erradicação. se contaminar ao ingerirem proglotes, ou ovos, que liberarão
Por serem os ovos liberados nas margens do ânus, já embrio- os embriões em seus intestinos, os quais, após transitarem pela
nados e infectantes, a transmissão assume aspectos peculiares corrente sanguínea, ficarão alojados nos músculos dos animais.
em comparação aos demais helmintos. A migração das fêmeas Os proglotes ou ovos que contaminam os animais são encon
para a vagina pode gerar sintomas ginecológicos. trados no solo e advêm da deposição de fezes humanas no ex
O quadro clínico é dominado pelo prurido anal, sobretu terior. Os vermes adultos são hermafroditas e não fazem pos
do noturno, que faz os doentes, especialmente as crianças, se tura de ovos, não sendo comum o achado destes últimos nas
tornarem irritadiços e incomodados durante o sono. Dores fezes. Entretanto, os proglotes se desprendem e são expulsos
abdominais são raramente observadas. passivamente com as fezes, no caso da Taenia solium, ou ativa
O diagnóstico é possível pelo achado dos vermes adultos mente, no da Taenia saginata}fora do período das evacuações,
nas pregas anais ou sua identificação nas fezes. A presença de sendo encontrados, às vezes, nas roupas íntimas ou de cama,
ovos ao EPF não é comum, visto não haver postura de ovos. saindo através do ânus por movimentos próprios. A ingestão
Pode-se utilizar o método de Graham, que consiste no uso de pelo homem de ovos ou proglotes de Taenia solium ocasiona
uma fita adesiva montada em um tubo de ensaio, e que é exami rá a formação de larvas cisticerco no seu organismo, fato não
nada ao microscópio após ser posta em contato com as pregas verificado com a Taenia saginata. São parasitos mais comuns
anais. Os ovos a ela se aderem e podem ser identificados. São em adultos que em crianças.
também achados ao se examinarem raspados das unhas das O quadro clínico da teníase consiste, na maioria das vezes,
crianças com oxiuríase. em cólicas intestinais ou epigastralgia, mas formas assintomá-
ticas são comuns, com o achado de proglotes nas fezes sendo
a única manifestação. Quando ocorre cisticercose humana, os
■ Tricocefalíase sintomas vão depender da localização das larvas, sendo as for
É resultante do parasitismo humano pelo Trichocephalus mas neurológicas as mais frequentes, manifestadas por convul
trichiuris, parasito que tem o corpo filiforme em sua porção sões ou hipertensão endocraniana.
cefálica, permitindo a sua introdução na mucosa intestinal, de O diagnóstico da parasitose é habitualmente realizado pela
onde extrai os nutrientes, incluindo o próprio sangue do hos identificação dos proglotes eliminados pelo ânus um a um, ou
pedeiro. O homem é contaminado pela VO, através de água e agrupados em forma de fita. Mais raramente, são encontrados
alimentos contendo ovos embrionados; estes, uma vez no in ovos nas fezes ao exame microscópico, quando há ruptura dos
testino delgado, liberam larvas que evoluem para formas adul proglotes dentro do lúmen intestinal. Métodos imunológicos,
tas sem ciclo pulmonar. O verme localiza-se ao nível da região como a fixação do complemento (reação de Weinberg), podem
ileocecal, onde a fêmea faz a postura de ovos, que são elimina ser empregados no diagnóstico da cisticercose.
dos ao exterior com as fezes. Assim como outros helmintos, os O tratamento pode ser realizado com praziquantel, ou com
ovos necessitam de maturação no meio exterior, razão por que niclosamida; esta não deve ser prescrita para grávidas. Em áreas
só se tornam infectantes dias após a eliminação. Frequente é endêmicas para neurocisticercose, a dose recomendada de pra
a localização na ampola retal em infestações graves, causando ziquantel é de 5 a 10 mg/kg. Nesta dosagem, o risco de ativar
edema e microulcerações. Embora seja um parasito hemató- as lesões é pequeno. Entretanto, para tratar a cisticercose, a
fago, a espoliação sanguínea raramente chega a gerar anemia dose sugerida pela maioria dos autores é de 50 mg/kg/dia, di
importante. vidida em três tomadas, por 15 dias, associada a corticoide,
Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais 79
para diminuir a reação inflamatória decorrente da morte dos desse protozoário. Duas espécies adicionais do gênero Enta
cisticercos. moeba foram reconhecidas em humanos, que são morfologi-
A niclosamida é prescrita em dose de 2 g VO para adultos camente indistinguíveis da E. h.. A mais recente nomenclatura
e crianças maiores de 8 anos. índice de cura entre 80 e 90% recomendada é muito importante para a aplicação prática do
dos casos. cuidado dos pacientes. Embora 10% da população mundial seja
considerada infectada pela E. h., sabe-se hoje que a maioria o
é pela Entamoeba dispar (E. d.), que não é patogênica. Estu
■ Himenolepíases dos mais recentes usando metodologias capazes de distinguir
Os helmintos Hymenolepis nana e Hymenolepis diminuta as duas espécies geneticamente têm demonstrado que a E. d. é
são os causadores da parasitose. São vermes pequenos, de cor 10 vezes mais prevalente que a E. h. em regiões endêmicas, em
po achatado, que vivem no íleo e jejuno do homem e de ratos. pessoas assintomáticas. Não há meios de distingui-las morfo-
O primeiro é mais comum, mede de 3 a 5 cm e é adquirido logicamente, sendo recomendado por alguns estudiosos que
quando se ingerem ovos embrionados ou insetos, especialmente os resultados dos exames parasitológicos baseados apenas na
pulgas e coleópteros, contendo larvas chamadas cisticercoides. morfologia sejam rotulados como E. hystolitica/E. dispar.
O segundo chega a 30 a 60 cm, é parasito habitual do rato e só A terceira espécie, a Entamoeba moshkovskii, tida a princípio
raramente contamina o homem através da ingestão de pulgas e como de vida livre, tem sido encontrada no intestino humano,
coleópteros contaminados com larvas. A sua presença é muito sugerindo que ela possa causar doença intestinal, embora pou
frequente em crianças, sobretudo de creches e orfanatos, onde co se conheça de sua patogenia e epidemiologia no momento.
a contaminação do meio se torna propícia e medidas higiêni As observações anteriormente descritas podem sugerir que se
cas não são adotadas. evite o desnecessário tratamento de pessoas assintomáticas,
O quadro clínico é modesto em suas manifestações. A grande sendo recomendável observar-se o consenso preconizado pela
maioria é assintomática ou apresenta sintomas inespecíficos, OMS. Já a E. h. é a forma patogênica, responsável pela colite
como irritabilidade, agitação e dores abdominais. A expulsão amebiana e por outras manifestações extraintestinais, sendo a
espontânea dos vermes adultos pode ocorrer, provocada por gravidade das lesões influenciadas pela virulência das cepas de
intensa ação imunogênica dos parasitos. determinadas regiões e pelo comportamento imunológico do
O diagnóstico é realizado pelo achado dos ovos nas fezes hospedeiro. Mais de 90% das infecções por E. h. permanecem
pelos métodos habituais de EPF. assintomáticas, e a invasão da mucosa intestinal pode ocorrer
O tratamento é realizado com praziquantel (dose única de dias ou anos após a contaminação.
25 mg/kg) As formas móveis da E. h., os trofozoítos, contendo ou não
hemácias no citoplasma, reproduzem-se e dão origem a formas
de resistência, os cistos, que, eliminados com as fezes, sobre
■ Difilobotríase vivem fora do intestino, permitindo a transmissão da E. h. por
Causada pela infecção intestinal pelo Diphyllobothrium la- contaminação da água e alimentos consumidos pelo homem.
tumt um platelminto comum em países do Mediterrâneo, teve Encontrada em 10% da população mundial, é responsável por
em 2005 o primeiro caso registrado no Brasil, em razão do 40 a 110 mil mortes anuais, só sendo superada pela malária
crescente hábito de uso de peixes crus na alimentação em nosso como protozoário causador de infecções fatais. Vale realçar
país. Este cestódio absorve muita vitamina BI2no lúmen intes que as estimativas sobre a prevalência da infecção pela E. h. se
tinal, o que gera em alguns anemia megaloblástica. O parasito baseiam em resultados de exames de fezes, que são incapazes de
tem nos peixes (salmão e trutas principalmente) seu hospedeiro diferenciar a E. h. de formas não patogênicas, morfologicamen-
intermediário, na carne dos quais uma forma imatura do Di te indistinguíveis como a E. dispar e a E. moshkovskiiyque não
phyllobothrium latum, chamada espargano ou plerocercoide, são patogênicas. Sua patogenicidade variável é hoje atribuída
se desenvolve e, ao ser ingerida junto à carne crua de peixes, a cepas diferentes existentes em diversos países. Assim, formas
se desenvolve no intestino humano, dando origem ao parasito graves da doença são comuns em países asiáticos, africanos e da
adulto. Embora a grande maioria das pessoas infectadas seja América Latina, especialmente o México. No Brasil, não con
assintomática, cerca de 40% manifestam anemia por carência tamos com dados reais de sua incidência nas diversas regiões,
de vitamina BI2. De 2004 a 2005, 52 casos foram descritos no mas seu comportamento parece bem distante da gravidade ve
estado de São Paulo. A profilaxia limita-se ao uso de carnes de rificada em outros países como o México. As lesões intestinais
peixes bem cozidas. O tratamento é feito com praziquantel. mais características são as úlceras, com mucosa sadia de per
meio, mais comuns no ceco, cólon ascendente, reto e sigmoide,
ocorrendo em menor número nos outros segmentos. No fíga
■ PR0T0Z00SES do, pode produzir inflamação difusa com necrose multifocal,
a hepatite amebianat ou necrose coalescente acentuada, com
secreção achocolatada em seu interior, o abscesso hepático. Este
■ Amebíase é mais comum no lobo direito, onde se localiza em 90% dos
Definida pela Organização Mundial de Saúde como a infec casos, e é quase sempre único. No pulmão e no cérebro, podem
ção pela Entamoeba histolytica (E. h.) independentemente de se formar também abscessos, com características semelhantes.
sintomatologia, é um protozoário que habita o intestino grosso Não se conhece ainda com precisão o mecanismo pelo qual a
do homem, de onde pode ganhar a corrente sanguínea e che E. h. produz a lise celular. Enzimas proteolíticas e toxinas, ci-
gar ao fígado, aos pulmões e ao cérebro, ocasionando lesões tólise por contato direto e coparticipação da flora bacteriana
extraintestinais graves. Sua presença no organismo humano intestinal são alguns dos fatores cogitados.
pode se dar sem ocorrência de lesões, havendo, assim, casos O quadro clínico varia de acordo com a localização do
de amebíase-doença e de amebíase-infecção. Sua prevalência e protozoário, podendo-se, didaticamente, separar as formas
patogenicidade variam em diferentes regiões. Recentes avanços intestinais das extraintestinais. Os infectados apresentam-se
na tecnologia molecular revolucionaram nossa compreensão assintomáticos, ou com manifestações intestinais moderadas
80 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais
na grande maioria. Já as formas extraintestinais são menos co Outras drogas poderão ser ocasionalmente usadas, como
muns, especialmente em nosso meio. Alguns se mantêm assin- amebicidas tissulares (deidroemetina e emetina), amebicidas de
tomáticos por toda a vida, mas contribuem para a disseminação ação intraluminar (furoato de diloxanida, iodoquinol, patomo-
da doença. Outros desenvolvem surtos intermitentes de diarréia micina), ou drogas que agem tanto no lúmen intestinal quanto
ou disenteria, com períodos sem sintomas entre as crises. Não na parede intestinal (tinidazol, metronidazol). O abscesso ame-
se conhece ainda a explicação para esse tipo de comportamento biano do fígado é estudado no Capítulo 99.
tão variado. Casos há em que a doença chega a formas graves,
assemelhando-se à retocolite ulcerativa inespecífica, com úl ■ Giardíase
ceras em todo o intestino grosso, podendo levar, inclusive, a
quadro de megacólon tóxico, hemorragias e perfuração. Uma É a infecção humana pela Giardia lamblia, um protozoá-
forma rara é a pseudotumoral, denominada ameboma e que rio flagelado, encontrado na forma de trofozoítas e cistos. Os
determina quadros de obstrução intestinal devido à reação hi- trofozoítas fixam-se à mucosa do intestino delgado, habitat
perplásica na submucosa. A hepatite amebiana é caracterizada natural do parasito, através de discos suctoriais existentes em
por hepatomegalia dolorosa e adinamia, sendo descrita com sua superfície, e, quando em grande número, atapetam a m u
frequência em países africanos. O abscesso hepático apresenta- cosa entérica, impedindo que os processos absortivos se rea
se com toxemia, febre tipo supurativa, hepatomegalia dolo lizem em sua plenitude. Os cistos são as formas de resistên
rosa e abaulamento doloroso dos espaços intercostais. Sinto cia capazes de viver fora do organismo humano e contaminar
mas gerais, como calafrio, suores, náuseas e inapetência, são água e alimentos, por meio dos quais chegam ao intestino e
comuns. Seu tamanho pode variar de poucos centímetros ao iniciam a formação de trofozoítas. Além de criar uma barrei
de uma cabeça de feto. O risco de perfuração para a cavidade ra entre o lúmen e a superfície dos enterócitos, em alguns pa
peritoneal é maior naqueles com diâmetro acima de 5 cm ou cientes esse protozoário ocasiona alterações inflamatórias na
nos localizados no lobo esquerdo do fígado. Coinfecção bac- mucosa, agravando mais ainda a disabsorção. Sua presença é
teriana também pode ocorrer. A perfuração para a cavidade frequente em doentes com deficiência de IgA secretora, como
pleural direita pode facilitar a chegada da E. h. ao pulmão e a nas disgamaglobulinemias com hiperplasia nodular linfoide
formação de empiemas. Os abscessos cerebrais têm manifes do intestino delgado.
tações neurológicas características. Hemorragias, perfurações, O quadro clínico é variável. Na grande maioria dos casos
estenoses e obstruções intestinais são consideradas complica assintomáticos, manifesta-se por diarréia de duração variável;
ções. A imunidade contra a infecção pela E. h. é associada à em outros, acompanhada ou não de queixas inespecíficas, como
náuseas, vômitos e dor abdominal. As manifestações clínicas
produção pela mucosa de uma IgA contra o carboidrato Gal/
GalNAc lectina. Esta observação tem estimulado a busca de mais exuberantes ocorrem nas crianças, cuja superfície absor-
tiva é menor que nos adultos, chegando a causar síndromes de
uma vacina contra a E. h cuja eficácia em animais tem se mos
má absorção clássica. A infecção assintomática é observada em
trado animadora.
todas as idades. O diagnóstico é feito pelo achado de cistos e
O diagnóstico da amebíase pode ser feito pelo achado de
trofozoítas nas fezes. Mais raramente, em fragmentos de biopsia
cistos ou de trofozoítas nas fezes, estes últimos vistos apenas
do intestino delgado, os trofozoítas podem ser vistos aderidos
em fezes purgadas. Em fezes diarreicas, os trofozoítas podem
à mucosa. Métodos de concentração (Faust, MIF centrifugado)
ser identificados em exame direto de fezes frescas, desde que podem ser úteis no achado de cistos nas fezes moldadas, mas
colhidas e examinadas de imediato. Em outras circunstâncias, os trofozoítas só são bem visualizados em fezes purgadas, cora
utilizam-se métodos de enriquecimento (Faust ou MIF centrifu das pela hematoxilina férrica. Métodos imunológicos têm sido
gado), ou exame de fezes purgadas artificialmente, colhidas em investigados, mas ainda não superam o achado direto do para
conservador de Schaudin e coradas pela hematoxilina férrica. O sito como recurso diagnóstico. A ocorrência de giardíase em
achado dos trofozoítas na secreção dos abscessos não é comum. doentes com doença celíaca pode criar dificuldades ao diagnós
Em tais circunstâncias, recorremos a testes sorológicos, como a tico desta última, sendo, em casos suspeitos dessa associação,
hemaglutinação indireta, cujos títulos de positividade para an recomendável a pesquisa de anticorpos antitransglutaminase,
ticorpos da classe IgG se encontram acima de 1:128. Esta última de grande valor no reconhecimento dos celíacos.
reação pode ser útil também nas formas intestinais invasivas. Tratamento com tinidazol (dose única de 2 g) ou com me
Por sua alta sensibilidade, o método de ELISA tem sido consi tronidazol (250 mg/kg TID, durante 5 dias). O álcool deve ser
derado o mais recomendado na atualidade. A diferenciação da interditado com ambas as drogas, pois a associação pode pro
E. h. da E. d. e das demais amebas não patogênicas se faz por vocar efeito antabuse. Ambas podem causar gosto metálico e
meio de testes de reação em cadeia da polimerase (PCR). A in sintomas gastrintestinais ligeiros.
corporação de novas tecnologias para o diagnóstico laboratorial
das tres espécies será de grande valia na melhor compreensão
de sua patogenicidade e epidemiologia. ■ Balantidíase
A forma assintomática, não invasiva, deve ser tratada com O Balantidium coli, seu agente causai, é um parasito comum
amebicidas intraluminais - etofamida, teclosan. A etofamida é no porco e que afeta principalmente os trabalhadores de pocil
prescrita para adultos na dose de 200 mg, TID VO, por 5 dias, gas ou matadouros que lidam diretamente com as vísceras do
ou 500 mg BID, por 3 dias. O teclosan é receitado em dose de animal. É o maior protozoário parasito do intestino humano
1,5 g, de uma só vez, ou em três doses de 500 mg de 8/8 h. e localiza-se na mucosa do cólon, onde pode ocasionar lesões
Para a forma invasiva, o tratamento para adultos é feito com semelhantes às da amebíase intestinal. Os trofozoítas multipli
o metronidazol, ou, alternativamente, com o tinidazol. A dose cam-se e formam cistos, que são eliminados com as fezes e vão
do primeiro é de 750 mg VO, ou de 500 mg a 750 mg IV de contaminar água e alimentos. O parasito pode, no homem, viver
8/8 h; as duas duram 5 a 10 dias. Como para os demais nitroi- sem produzir lesões, mas, por mecanismos enzimáticos, pode
midazólicos, o álcool não deve ser ingerido simultaneamente agredir a mucosa, levando à formação de úlceras de dimensões
com estes medicamentos. variáveis, contendo material purulento, onde os trofozoítas são
Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais 81
M ebendazol Albendazol Tiabendazol Cam bendazol Pam oato de p irv ín io Praziq u an te l Tetram bole tverm ectina N itazoxanida*
Oxiuríase 100 m g 2 v e z e s / d ia 10 m g /k g e m d o se 5 0 0 m g c a d a 12 h
d u r a n t e 3 d ia s ú n ic a e m j e j u m p o r 3 d ia s
Difilobotríase 5 a 1 0 m g /k g peso
- d o s e ú n ic a
M e tro n id a zo l S econidazol C lo ra c e ta m id a Fu ra zo lid o n a T e tra c k lin a Piri m e ta m ina SMZ + TM P E sp ira m k in a A lb e n d a zo l N ita zo x an id a * C ipru flo xa cin o
G ia r d ía s e a d u lto s : 5 a 7 m g / k g / d ia 4 0 0 m g / d ia 5 00 m g cada
5 0 0 m g / d ia / 1 0 d ia s d u r a n t e 7 d ia s 5 d ia s 12h p o r3
c ria n ç a s : d ia s
2 5 0 m g / d ia / 1 0 d ia s
B a la n t id ía s e 4 0 0 m g 3 v e z e s / d ia 5 a 7 m g / k g / d ia a d u lt o s :
p o r 10 d ia s d u r a n t e 7 d ia s 1 g / d ia / IO d ia s
c ria n ç a s :
4 0 0 m g / d ia /
1 0 d ia s
Is o s p o r ía s e a d u lto s : 7 5 m g / d ia 2 c o m p y d ia 500 m g
5 0 0 m g / d ia / 1 0 d ia s + 4 g de p o r lO d ia s 2 v e ze s/d ia
c ria n ç a s : su lfa d ia zin a / d u r a n t e 7 d ia s
2 5 0 m g / d ia / 1 0 d ia s d ia d u r a n t e
21 d ia s
83
84 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais
Nenhuma anormalidade hematológica significativa foi até hoje Gcnta RM. Global prcvalencc of strongyloidiasis; criticai rcvicw with epide-
miologic insights into the prevention of disseminated discasc. Rev Infec
observada. Em estudo realizado em 613 crianças HIV-negativas,
Dis, 1989; 11:755-67.
os efeitos adversos registrados foram dor abdominal em 7,8%, Gonçalves PN Diagnóstico e tratamento das parasitoses intestinais. Em: Gal-
diarréia em 2,1%, vômitos em 1,1% e cefaleia em 1,1%. vão AJ & Dani, R. Terapêutica em Gastrenterologia. Rio de Janeiro, Editora
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Estomatites
José Alves de Freitas e Dario Ravazzi Ambrizzi
■ DOENÇAS PERIODONTAIS: GENGIVITE Figura 8.1 Aspecto característico da gengivite provocada pelo acúmu
lo de placa bacteriana (cortesia: ProfJ DrJ Elaine M. S. Massucato - Ser
EPERIODONTITE viço de Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara
UNESP). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Gengivite
O termo gengivite é bastante genérico e refere-se à inflama tam de tratamento cirúrgico para a diminuição dos contornos
ção limitada aos tecidos moles que circundam os dentes, na gengivais a fim de possibilitar correta higienização.
maioria dos casos associada à falta de higiene bucal adequada, Alguns processos inflamatórios gengivais merecem apre
levando ao acúmulo de placa bacteriana e cálculo. sentação e discussão à parte, pela singularidade de suas mani
O processo inflamatório gengival pode ser localizado em festações, e serão agora apresentados.
pequena área ou generalizado. Os sinais clínicos da gengivite
são a mudança da coloração rosa-coral para a vermelha, per
da do pontilhado característico, sangramento fácil, edema e
■ Gengivite ulcerativa necrosante aguda (GUNA)
hiperplasia (Figura 8.1) (quando se observa aumento gengival A GUNA é um quadro infeccioso bastante diferenciado das
pelo edema crônico e fibrose, o quadro é denominado gengivite afecções gengivais de origem bacteriana e está relacionado com
crônica hiperplásicà). a colonização periodontal por bactérias espiroquetas (Trepo-
O tratamento consiste na eliminação de causas conhecidas nema vincentii e outras), fusobactérias (Fusobacterium spp.) e
que gerem suscetibilidade ao quadro inflamatório, como me bacteroides (Prevotella intermedia). O principal fator etiológi-
lhora da higiene bucal, remoção mecânica da placa bacteriana, co da GUNA está relacionado com elevados níveis de estresse
ou cálculo, por meio de tratamento periodontal básico (raspa- emocional e debilidade imunológica, haja vista sua alta inci
gem e polimento dental, e técnicas de escovação dental). Solu dência em populações submetidas a sobrecargas emocionais
ções enxaguatórias bucais e dentifrícios à base de clorexidina contínuas, como militares (o distúrbio era comumente obser
0,12% (Periogard*; Noplak®, solução com 250 m í) podem ser vado nas trincheiras dos campos de batalha da I e II Guerras,
indicados como meios auxiliares no controle da placa bacteria sendo apelidado de “boca de trincheira”). Acredita-se que os
na. Os casos de gengivite hiperplásicà frequentemente necessi- hormônios corticoides liberados com o estresse alterem as pro
85
86 Capítulo 8 / Estomatites
7 ■" ^ * *
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iS W * —
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Figura 8.4 Quadro avançado de periodontite, com retração gengival, Figura 8.5 Candidose pseudomembranosa em rebordo alveolar des
mobilidade dental e presença de grandes quantidades de cálculo e dentado (cortesia: Prof4Dr4Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medici
placa bacteriana. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no na Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP). (Esta
Encarte.) figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
88 Capítulo 8 / Estomatites
língua avermelhada, com aspecto liso (careca). O sintoma mais geralmente em pacientes imunossuprimidos, poderá ser neces
geralmente relatado é a sensação de queimação local. sária a utilização de anfotericina B (Fungizon®, frasco-ampola
O envolvimento da comissura labial pela doença é chama com 50 mg; Amphocil®, frasco-ampola com 50 e 500 mg), via
do de queilite angular (Figura 8.6), caracterizada por eritema, venosa, por infusão lenta (2 a 6 h). A dose de ataque da anfo
fissuração e descamação na região da prega mucocutânea, po tericina não deve ultrapassar 0,25 mg/kg/dia, e a de manuten
dendo se estender para a epiderme adjacente. Embora seja vista ção, 0,4 a 0,6 mg/kg/dia. A dose total de 30 mg/kg poderá ser
como componente de candidoses multifocais, essa forma mui administrada em 6 a 10 semanas. A isotretinoína em aplicações
tas vezes se apresenta sozinha, caracteristicamente em pacientes tópicas a 0,18% tem sido recentemente utilizada para as cepas
idosos com sulcos acentuados no canto da boca, favorecendo de Candida resistentes aos antifúngicos convencionais.
o acúmulo de saliva, retendo umidade e acarretando infecções
por leveduras. Estudos microbiológicos indicam associações
entre Candida albicans e Staphylococcus aureus em aproxima ■ Paracoccidioidomicose
damente 60% dos casos. (blastomicose sul-americana)
■ Candidose m ucocutânea A paracoccidioidomicose é uma infecção fúngica profunda
A candidose mucocutânea pertence a um grupo relativa causada pela inalação de esporos do Paracoccidioides brasilien-
mente raro de desordens imunológicas, e a gravidade da infec sis, cuja zona endêmica se restringe à América do Sul. Trata-se
ção por Candida está relacionada com a gravidade do defeito de uma infecção granulomatosa crônica pulmonar com disse
imunológico. Apesar de a maioria dos casos ser esporádica, minações linfáticas e hematogênicas para outros órgãos, comu-
encontrou-se um padrão de herança autossômica recessiva em mente afetando a mucosa oral e a orofaringe. Observa-se uma
algumas famílias. O problema imunológico evidencia-se na predisposição distinta para o acometimento em pacientes do
infância, com o surgimento de infecções por Candida no leito gênero masculino em uma relação de 25:1, diferença essa rela
ungueal, na pele, boca e outras superfícies mucosas. As lesões cionada com os hormônios femininos, uma vez que o betaes-
bucais aparecem na forma de placas espessas que dificilmente tradiol inibe a transformação das hifas do fungo para a forma
se destacam com raspagem. patogênica de leveduras.
O diagnóstico de candidose é eminentemente clínico, em A paracoccidioidomicose é, em geral, classificada nas for
bora a citologia esfoliativa e cultura fúngica possam ser empre mas mucocutânea, visceral, linfática e mista, cuja lesão comum
gadas como meios auxiliares. às várias formas é um granuloma ulcerativo. As lesões bucais
O tratamento é feito associando-se medicação antifúngica caracterizam-se por áreas eritematosas e ulceradas de superfície
apropriada e métodos de higiene bucal no intuito de remover moriforme, sangrantes à manipulação, acometendo comumen-
mecanicamente, através de escovação dental, da língua e da mu- te a mucosa alveolar, gengivas e palato (Figura 8.7), podendo
cosa bucal, as colônias de Candida. Os portadores de próteses acarretar perda óssea e mobilidade dentária. As lesões são dolo
dentárias totais ou removíveis devem ser orientados quanto ridas, causando dificuldades para a mastigação e deglutição.
às necessidades diárias de sua higienização. Vários medica O diagnóstico baseia-se no aspecto das lesões e na observa
mentos antifúngicos podem ser empregados no tratamento da ção microscópica do Paracoccidioides brasiliensis no tecido e
candidose oral. Os mais usados são: a nistatina (Nistatina®, sus exsudatos da lesão. Pode ser solicitada cultura para a identifi
pensão oral; Albistin®, suspensão oral; Candistatin®, suspensão cação do fungo, embora este cresça lentamente.
oral, 100.000 Ul/mé), em uso tópico, e os derivados imidazóli- O tratamento proposto é prolongado, não existindo um con
cos (Cetoconazol®, comprimidos de 200 mg, ou Nizoral®, idem\ senso de qual seria sua duração ideal. A suspensão precoce causa
Itraconazol®, cápsulas de 100 mg, e Sporanox®, idem; Triconal altos índices de reativação da doença, e isso tem feito com que
Fungoral®, comprimidos de 200 mg), VO. Nas formas graves, o tratamento seja demorado (em média, de 6 meses a 2 anos).
Atualmente, sugere-se que o tratamento seja dividido em duas
fases: (i) ataque - que visa ao controle dos sinais clínicos; (ii)
manutenção - que visa a reduzir as chances de recidiva da doen
ça. Podem ser utilizados os derivados sulfamídicos, derivados
azólicos e, nas formas graves, a anfotericina B.
Os derivados sulfamídicos são usados, com sucesso, desde a
década de 1940. Atualmente, a forma mais amplamente utiliza
da é a associação de sulfametoxazol-trimetoprima (Bactrim®,
Infectrim ‘, comprimidos com 80 mg de trimetoprima e 400 mg
de sulfametoxazol), que apresenta boa tolerância e poucos efei
tos colaterais (urticária, náuseas, vômitos, leucopenia, anemia
megaloblástica). Estudos demonstram que a eficácia dessa com
binação supera os 80%, e que o insucesso está relacionado com
a não adesão ao tratamento.
A anfotericina B é usada nas formas graves da doença desde a
década de 1950. Geralmente, é utilizada no início do tratamento
e, posteriormente, é substituída pela associação sulfametoxazol-
trimetoprima, embora nem todos os autores concordem com
esse esquema. É a droga de escolha nos casos de resistência clí
Figura 8.6 Candidose atrófica na forma de queilite angular na co nica às outras drogas utilizadas. Apresenta eficácia comprovada,
missura labia! (cortesia: Prof1Drà Elaine M. S. Massucato - Serviço de embora sejam frequentes as reações adversas: náuseas, vômitos,
Medicina 8ucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP). febre, tremor, nefrotoxicidade, hipopotassemia, alterações ele-
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) trocardiográficas, anemia, disfunção hepática.
Capítulo 8 / Estomatites 89
O tratamento com cetoconazol foi iniciado em 1978 com para células de origem ectodérmica, as infecções tendem a ser
excelentes resultados, com taxa de cura em 90% dos casos, mas latentes, reaparecendo periodicamente. Dentre as manifesta
com efeitos colaterais (ginecomastia, diminuição da libido) que ções clínicas oriundas dessas infecções, todas podem apresen
restringem seu uso. O itraconazol vem sendo usado com ex tar lesões bucais vesiculares, com posterior transformação para
celentes resultados, iguais ou superiores aos do cetoconazol, e úlcera; mas discutiremos apenas a GEHA, devido à sua alta
com menos efeitos colaterais, sendo considerado por diversos incidência e singularidade.
autores a droga de escolha, embora estudos mais longos sejam A gengivoestomatite herpética aguda (GEHA) é o padrão
necessários para avaliar a incidência de recidiva com seu uso. mais comum de infecção herpética primária sintomática, e mais
de 90% resultam da infecção pelo HHV-1. A maioria dos ca
sos é observada em crianças entre 6 meses e 5 anos de idade,
■ Histoplasmose sendo de início abrupto, gerando desconforto intenso, prostra
A histoplasmose é uma infecção fúngica provocada pela ina ção e irritabilidade. As lesões bucais inicialmente são vesículas
lação de esporos do Histoplasma capsulatum, presente em am puntiformes que se rompem com facilidade, formando úlceras
bientes úmidos contendo excrementos de pássaros e morcegos inicialmente pequenas recobertas por pseudomembrana amare
no solo. Em indivíduos imunocompetentes, a maioria dos casos lada e circundadas por halo eritematoso. As úlceras adjacentes
é assintomática ou produz sintomas leves. A doença pode se tendem à coalescência, formando grandes úlceras rasas e irre
manifestar nas formas aguda, crônica e disseminada. gulares, podendo acometer toda a mucosa bucal e labial, lín
A maioria das lesões bucais da histoplasmose ocorrem na gua, palato, gengivas (Figura 8.9) e orofaringe. Quadros febris
forma disseminada da doença. As áreas mais afetadas são a e linfadenopatia cervical anterior geralmente são observados.
língua, o palato e a mucosa jugal (das bochechas). Em geral, a Os casos brandos geralmente se resolvem entre 5 e 7 dias, e os
lesão apresenta-se como uma úlcera solitária de margens firmes mais graves podem persistir até por 2 semanas.
e elevadas (Figura 8.8), bastante dolorosa, de várias semanas As infecções recorrentes podem ocorrer tanto na região da
de duração, podendo ser confundida, em aspecto clínico, com inoculação primária como em áreas adjacentes supridas pelo
o carcinoma epidermoide. mesmo gânglio envolvido, e, para as infecções bucais, o local
O diagnóstico é feito, em geral, pelo quadro clínico e cultura mais afetado para recorrência é a junção mucocutânea do lá
para a identificação do fungo, ou pela identificação histológica bio, caracterizando o herpes labial (Figura 8.10). Quando a re
do fungo através de biopsia incisional. corrência se dá na mucosa bucal, o quadro é bastante similar
O tratamento de escolha é a anfotericina B endovenosa; no ao da primeira infecção, embora a infecção dessa vez seja mais
entanto, apesar da terapia, é observado um índice de mortali branda e abranja menor área. Geralmente, o paciente nota si
dade entre 7 e 23%. nais prodrômicos da recorrência na área que será afetada, como
prurido, dor, ardência ou eritema local.
O diagnóstico é baseado no aspecto típico das lesões, e o tra
■ Gengivoestomatite herpética aguda (GEHA) tamento é, na maioria das vezes, sintomático devido ao curso
Os herpesvírus são um grupo DNA vírus que engloba os do definido da doença. Para o controle da dor, podem ser utili
tipo herpes simples (HHV-1 e HHV-2), varicela-zoster (VZV zados anti-inflamatórios não esteroides sistêmicos, aplicações
ou HHV-3), Epstein-Barr (EBV ou HHV-4), citomegalovírus tópicas de lidocaína (Xylocaina®, Lidocaina®, Xylestesin gel ou
(CMV ou HHV-5), além de outros dois vírus descobertos recen spray). O aciclovir (Zovirax®; Addovir®; Aciveral®; Antivirax®,
temente, o HHV-6 e o H H V -7.0 ser humano é o reservatório comprimidos de 200 e 400 mg) oral pode atenuar a sintomato
natural desses vírus, que apresentam a capacidade de habitar logia e diminuir o ciclo da doença, se utilizado precocemente
por toda a vida o hospedeiro infectado. Com uma afinidade na fase prodrômica.
90 Capítulo 8 / Estomatites
Figura 8.9 Quadro de GEHA em paciente pediátrico. (Esta figura en Figura 8.11 Áreas ulceradas em mucosa jugal em paciente portador
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) de pênfigo vulgar (cortesia: Prof* Dr* Elaine M. S. Massucato - Serviço de
Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP).
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Figura 8.12 Lesão de penfigoide cicatricial em gengiva marginal (cor Figura 8.13 Lesões ulceradas em região anterior da língua em porta
tesia: ProP Dr» Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medicina Bucal dor de eritema multiforme (cortesia: ProfJ DrJ Elaine M. S. Massucato -
da Faculdade de Odontologia de Araraquara UNESP). (Esta figura Serviço de Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) - UNESP). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
O diagnóstico é feito através da biopsia do tecido perile- Uma forma mais grave e disseminada do eritema multiforme
sional, sendo o material submetido a exame histopatológico e é a síndrome de Stevens-Johnson, na qual ocorre a dissemina
imunofluorescência. ção das lesões para a pele, mucosas bucal e genital e conjuntiva
O tratamento é feito com corticoterapia sistêmica associada ocular, e está geralmente associada a medicamentos.
a agentes imunossupressores, como a ciclofosfamida (Genuxal®, O exame histopatológico revela padrões característicos,
drágeas com 50 mg; frasco-ampola de 10 m^ com 200 mg mas não patognomônicos. Estudos de imunofluorescência
e frasco-ampola de 50 m f com 1.000 mg), nas formas graves. direta e indireta também não são específicos para o eritema
Uma terapia sistêmica alternativa, que produz menos efeitos multiforme, sendo úteis apenas para descartar outras doen
colaterais, é a utilização da dapsona. As lesões bucais e de outras ças vesiculobolhosas. Sendo assim, o diagnóstico baseia-se
superfícies devem receber corticoterapia tópica potente várias nos achados clínicos e na exclusão de outras doenças vesi
vezes ao dia, até ser alcançado o controle. Aplicações em dias culobolhosas.
alternados podem prevenir exacerbações da doença. Todos os Na maioria dos casos, a doença é autolimitada, durando
pacientes diagnosticados como portadores de penfigoide cica entre 2 e 6 semanas, embora 20% apresentem episódios re
tricial devem ser encaminhados para controle oftalmológico, a correntes com frequência. O regime terapêutico de escolha é a
fim de prevenir e tratar as possíveis lesões oculares, em regra, corticoterapia sistêmica, especialmente nos estágios iniciais da
incapacitantes. doença. As lesões bucais podem receber corticoterapia tópica,
ou mesmo agentes anestésicos tópicos para a diminuição do
desconforto funcional.
■ Eritema multiforme
O eritema multiforme é uma doença bolhosa e ulcerativa
mucocutânea de provável origem autoimune. Observa-se que,
■ Líquen plano
em cerca de metade dos casos, pode ser identificada uma expo O líquen plano é uma doença mucocutânea crônica rela
sição recente, de média ou longa duração, a medicamentos, ou tivamente comum, incidindo com maior frequência sobre a
história de infecções precedentes, embora, muitas vezes, seja mucosa bucal (cerca de 70% dos casos) do que sobre a pele
impossível detectar um fator desencadeante. (35%). Parece haver uma associação entre estados de estresse
A manifestação geralmente ocorre em pacientes jovens, psicológico e ansiedade e o desenvolvimento dessa doença, mas
entre 20 e 30 anos, com maior predisposição para o gênero essa relação ainda é bastante controversa.
masculino, em uma proporção de 3:1, e inicia-se com sinais A manifestação tende a ocorrer em adultos a partir dos
e sintomas comuns à gripe, aproximadamente 1 semana an 40 anos de idade, em uma predisposição de 3:2 para o gênero
tes do aparecimento das lesões. As lesões de pele e da mucosa feminino, e pode apresentar-se clinicamente sob a forma de
bucal surgem rapidamente, causando dor e desconforto grave, duas variáveis, o reticular e o erosivo. O líquen plano reticular
dificultando até mesmo a ingestão de líquidos, não sendo inco- é a variante mais comum, sendo geralmente assintomático e
muns episódios de desidratação associados à presença de lesões envolvendo a mucosa bucal posterior bilateralmente, sob a for
bucais. Inicialmente, essas lesões são manchas eritematosas ma de linhas brancas entrelaçadas, tipicamente não estáticas,
cuja superfície epitelial sofre necrose, evoluindo para úlceras e aumentando e diminuindo por semanas ou mesmo meses. O
erosões de contornos irregulares, acometendo vastas superfí líquen plano erosivo, embora menos comum, apresenta sinto
cies. Observa-se distribuição difusa das lesões, com predileção matologia dolorosa, ocasionada por áreas atróficas e eritema
para mucosas labial e jugal, língua (Figura 8.13), palato mole e tosas, com ulcerações centrais em vários graus, sendo as bordas
soalho bucal, sendo as gengivas e o palato duro normalmente das áreas atróficas cercadas por finas estrias radiantes.
poupados. As lesões bucais são frequentemente acompanhadas O diagnóstico do líquen plano reticular é feito com base
de linfadenopatia cervical. nos achados clínicos, sendo sinais patognomônicos as estrias
92 Capítulo 8 / Estomatites
brancas entrelaçadas presentes na mucosa jugal. O líquen plano 8.15), mucosa das bochechas e gengivas, e podem apresentar
erosivo frequentemente necessita de biopsia para o descarte de aspectos similares aos das lesões de líquen plano ou mesmo
outras possíveis doenças vesiculobolhosas (Figura 8.14). granulomatosas, com graus variados de ulceração, eritema e
A corticoterapia tópica geralmente é suficiente para o con hiperqueratose superficial. Sintomatologia dolorosa e descon
trole das lesões. forto estão associados à presença das ulcerações.
O lúpus eritematoso cutâneo crônico (LECC) é uma va
riável que apresenta nenhum ou pouquíssimos sinais de aco
■ Lúpus eritematoso m etimento sistêmico, estando restrito à pele e às mucosas,
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença grave que principalmente na cabeça e no pescoço, além de apresentar
afeta vários sistemas (regiões mucocutâneas, pulmões, rins, co prognóstico consideravelmente melhor quando comparado
ração, fígado), muito difícil de diagnosticar em seus estágios ini ao LES. As lesões bucais observadas mostram os mesmos pa
ciais, sendo frequentemente confundida com viroses. Há uma drões da forma sistêmica. A variante cutânea subaguda apre
prevalência para o acometimento no sexo feminino de 8:1, com senta manifestações clínicas intermediárias entre as do LES e
idade média de 30 anos. Em 40 a 50% dos pacientes, observa- as do LECC.
se um exantema característico, nas regiões malar e nasal, que Além das características clínicas, uma série de exames pode
piora com a exposição solar. As lesões bucais acometem entre ser útil para a realização do diagnóstico, como a imunofluores-
10 e 40% dos pacientes, normalmente afetando o palato (Figura cência direta de tecido lesional e de tecido normal, bem como
testes imunológicos para pesquisa de anticorpos antinucleares,
anticorpos dirigidos contra o filamento duplo de DNA e anti
corpos antiproteína Sm.
Para os pacientes que apresentam LES, as lesões bucais geral
mente responderão à corticoterapia sistêmica. Podem também
ser utilizados outros agentes imunossupressores (azatiopri-
na; ciclofosfamida) e medicamentos antimaláricos (Cloroqui-
na®, Mefloquina*, comprimidos com 250 mg). Para as lesões
do LECC, a corticoterapia tópica pode ser efetiva, restando a
corticoterapia sistêmica e os antimaláricos para os casos re
sistentes.
■ Síndrome de Behçet
A síndrome de Behçet possui etiologia autoimune, parece
ser devida a uma imunodesregulação primária ou secundária a
um ou mais gatilhos, correlacionados com antígenos ambientais
para bactérias, vírus, produtos químicos e metais pesados.
Seu acometimento, dependendo das regiões de maior envol
vimento, tem sido descrito em quatro formas: ocular, mucocutâ-
nea, artrítica e neurológica. O envolvimento da mucosa bucal
é comum aos quatro tipos, sendo a primeira manifestação em
25 a 75% dos casos. As lesões são similares às da estomatite af
tosa, apresentando a mesma duração e frequência, com a par
ticularidade de ocorrerem sempre no mesmo ponto durante o
curso da doença. Os portadores da síndrome de Behçet apre
sentam seis ou mais ulcerações, em geral em áreas pouco fre
quentes para a ocorrência rotineira de estomatite aftosa, como o
palato duro, palato mole e orofaringe, com tamanhos variáveis,
Figura 8.16 Úlcera de estomatite aftosa menor em rebordo gengival. de bordas elevadas, recobertas por pseudomembrana branco-
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) amarelada e rodeadas por grande área eritematosa.
Nenhum achado laboratorial é patognomônico da doença.
Os critérios específicos para o diagnóstico são a ocorrência de,
pelo menos, três episódios de ulcerações bucais recorrentes
número de lesões varia de 1 a 10, podendo acometer toda a associadas a duas das seguintes manifestações: (1) ulceração
superfície bucal, com predileção para a mucosa labial, palato genital recorrente; (2) lesões oculares observadas por oftalmo
mole e região amigdaliana. As úlceras apresentam as mesmas logista; e (3) lesões cutâneas típicas ou teste de patergia positivo
manifestações clínicas encontradas na variante menor, mas 24 a 48 h após a injeção.
são mais profundas e maiores, medindo entre 10 e 30 mm de A síndrome de Behçet apresenta curso altamente variável,
diâmetro, levando entre 2 e 6 semanas para desaparecerem, sendo típico o padrão de recidivas e remissão. As recidivas das
podendo deixar cicatriz. lesões tendem a diminuir de frequência após o quinto ano. O
► e s t o m a t it e a f t o s a h e r p e t if o r m e . Representa 10% das prognóstico é bom na ausência de doença do SNC ou com
aftas, com início típico na vida adulta e predominância pelo plicações vasculares. A corticoterapia sistêmica destina-se aos
sexo feminino. As úlceras são pequenas, medindo entre 1 e casos mais graves, e as lesões bucais podem receber o mesmo
3 mm de diâmetro, ocorrendo em grande número e chegando tratamento dado à estomatite aftosa recorrente. Aplicações lo
até 100 lesões. As úlceras desaparecem entre 7 e 10 dias, mas cais com laser de C 0 2têm sido sugeridas no intuito de acelerar
o período para a cicatrização das lesões bucais.
as recorrências tendem a ser bastante frequentes. Como suas
características clínicas lembram a gengivoestomatite herpéti-
ca (GEHA), o termo “herpetiforme” é utilizado, embora possa ■ Estomatites alérgicas pela administração
causar certa confusão.
O diagnóstico é feito pelas características clínicas e pela
de medicamentos ou por contato
exclusão de quadros ulcerativos semelhantes aos da estoma A reação alérgica da mucosa bucal à administração de medi
tite aftosa. Suas características histopatológicas não são espe camentos sistêmicos é denominada estomatite medicamento
cíficas. sa, podendo-se observar uma série de padrões e manifestações
Os objetivos primários do tratamento da estomatite afto clínicas relacionados:
sa recorrente são o controle da dor, redução da duração das • estomatite anafilática;
úlceras e restauração das funções orais normais. Os objetivos • reações liquenoides;
secundários incluem a redução na frequência e gravidade das • reações semelhantes às de eritema multiforme, lúpus ou
recorrências, além da manutenção dos períodos de remissão. pênfigo;
Medicamentos tópicos podem atingir os objetivos primários, • lesões vesiculoulcerativas inespecíficas.
mas não são capazes de diminuir a gravidade e o número de
Mais de 150 medicamentos já foram relacionados com o
recorrências. Muitos medicamentos tópicos têm sido utilizados,
surgimento de reações alérgicas da mucosa bucal, provocando
com destaque para os corticoides tópicos, como bochechos à desde eritemas localizados, passando por lesões ulcerativas, até
base de dexametasona 0,01% (Dexametasona®, Dexacort®, mesmo reações de anafilaxia. Tais reações costumam manifes
Dexadermil® creme) e triancinolona (Omcilom A*) sobre as tar-se logo no início da terapia medicamentosa, embora não seja
lesões. Medicação sistêmica pode ser utilizada quando a terapia raro o desenvolvimento tardio dos sinais e sintomas.
tópica não for efetiva. O levamisol (Ascaridil®, comprimidos As reações por contato direto com a mucosa costumam ser
de 80 e 150 mg), a colchicina e a clofazimina aparentemente mais incomuns quando comparadas às de lesões cutâneas, devi
diminuem os períodos de duração das aftas e as recorrências. do ao menor período de contato, à ação diluidora e removedora
Estudos recentes sugerem que a administração de ácido as- da saliva e à dispersão e absorção rápida de antígenos.
córbico (vitamina C) também tende a reduzir o período de O tratamento consiste na suspensão imediata do medica
duração das aftas e sua gravidade. A corticoterapia sistêmica mento envolvido. As lesões podem ser tratadas com corticote
deve ser reservada para os casos graves (prednisolona 5 mg rapia tópica, deixando a corticoterapia sistêmica para os casos
em dose diária). mais graves.
94 Capítulo 8 / Estomatites
Figura 8.17 Paciente portadora de anemia ferropriva apresentando Figura 8.18 Candidose atrófica crônica em palato duro em paciente
área de glossite atrófica assintomática. (Esta figura encontra-se repro- diabético (cortesia: Profu DrJ Juliana Rico Peres). (Esta figura encontra-
duzida em cores no Encarte.) se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 8 / Estomatites 95
■ LEITURA RECOMENDADA
Ayangco, L 8c Rogcrs, RS. Oral manifcstations of crythcma multiform. Dermatol
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tinais em até 30% dos casos, sendo paralelas às outras lesões
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do trato digestório, podendo-se observar eritema e edema Hamuryudan, V, Mat, C, Saip, S et a i Thalidomidc in thc treatmcnt of thc mu-
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amareladas, ligeiramente elevadas, distribuídas pela mucosa Mutasim, DF. Autoimmunc bullous dcrmatoscs in thc dderly: an updatc on
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O diagnóstico é baseado em biopsia e exame histopatológico Ncvillc, BW, Damm, DD, Allcn CM, Bouquot, JE. Patologia Oral c Maxilofacial,
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Pakfctrat, A, Mansourian, A, Momcn-Hcravi, F et a i Comparison of colchi-
gastrintestinal. Uma biopsia negativa não descarta a possibili
cinc versus prcdnisolonc in rccurrcnt aphthous stomatitis: A doublc-blind
dade da doença de Crohn, pois a intensidade da reação infla- randomized clinicai trial. Clin Invest Med, 2010; 33:E189-95.
matória varia bastante entre os pacientes, dependendo também Pires, JR 8c Spolidorio, DMP. Avaliação clinica c microbiológica dc pacientes
da época em que foi colhida e da localização anatômica. portadores dc diabetes mcllitus do tipo 2. Tese dc Mestrado, Faculdade de
A terapêutica consiste em tratar a doença de base, isto é, Odontologia dc Araraquara/UNESP, 2004.
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A estomatite urêmica é uma condição relativamente rara, ob Scully, C 8c Challacombc, SJ. Pemphigus vulgaris: updatc on ctiopathogcnc-
servada em cerca de 2% dos pacientes portadores de insuficiên sis, oral manifcstations, and management. Crit Rev Oral Biol Med, 2002;
cia renal aguda ou crônica. A causa das lesões bucais ainda gera 13:397-408.
Solomon, LW, Aguirrc, A, Ncidcrs, M et a i Chronic ulcerative stomatitis: clini
controvérsias, mas acredita-se que a enzima urease, produzida
cai, histopathologic, and immunopathologic findings. Oral Surg Oral Med
por bactérias do meio bucal, degrada a ureia que é secretada Oral Pathol Oral Radiol Endod, 2003; 96:718-26.
em excesso na saliva desses pacientes, produzindo amônia livre, Spolidorio, LC, Mcrzcl, J, Villalba, H et a i Morphomctric evaluation of gingi-
causadora das lesões na mucosa. val ovcrgrovvth and regression causcd by ciclosporin in rats. / Periodontal
De início geralmente súbito, as lesões se apresentam sob Res, 2001;36:384-9.
a forma de crostas ou placas branco-amareladas recobrindo Sposto, MR, Navarro, CM, Onofrc, MA et a i Ulcerações aftosas recorrentes:
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principalmente a mucosa das bochechas, a língua e o soalho
Tyldcslcy, WR. Atlas Colorido dc Medicina Bucal, 2.* cd., São Paulo, Artes
bucal. Pode-se detectar odor de amônia ou urina no hálito do Médicas, 1995.
paciente. As queixas são de dor e ardência bucal, com subse Yasui, K, Kurata, T, Yashiro, M et a i Thc cffcct of ascorbatc on minor rccurrcnt
quentes dificuldades mastigatórias e de deglutição. aphthous stomatitis. Acta Paediatr, 2010; 99:442-5.
PARTE II
Esôfago
Anomalias Congênitas
Renato Dani e Daniella Ribeiro Einstoss Korman
As anomalias congênitas do esôfago são relativamente comuns atresia com dupla fístula, proximal e distai (Gross tipo D e Vogt
(1:3000-1:4500 nascidos vivos) e ocorrem devido a defeitos ge 3C); 5) FTE sem atresia (Gross tipo E) - (Figura 9.1). Cerca de
néticos ou problemas na maturação fetal. Podem configurar 50% das crianças com essas anormalidades apresentam outras
lesões graves, passíveis de levar o paciente à morte, ou doenças malformações congênitas associadas, principalmente cardíacas
toleráveis, de tratamento simples. Neste capítulo, abordaremos (35% dos pacientes), geniturinárias (24% dos pacientes), intes
algumas dessas alterações congênitas. Os anéis e membranas tinais e anorretais (24% dos casos) e esqueléticas (13%).
são tratados no Capítulo 11, e a acalasia, no Capítulo 14. A presença de poli-hidrâmnio materno e prematuridade
são frequentemente assinaladas. Os sintomas e sua gravidade
dependem do tipo de malformação. A atresia isolada mani-
■ ATRESIA E FÍSTULAS TRAQUE0ES0FÁGICAS festa-se nas primeiras horas de vida do neonato por salivação
abundante, regurgitação do leite ingerido, resultando em obs
Estas são as anomalias congênitas mais frequentemente no trução respiratória e pneumonia aspirativa. As fístulas que se
tadas no esôfago. As atresias são decorrentes da falta de reca- comunicam com a árvore traqueobrônquica manifestam-se
nalização do tubo digestivo proximal embrionário, e as fístu- por cianose, tosse, pneumonia recorrente, esta última causa
las traqueoesofágicas (FTE) resultam da incompleta separação da por material ingerido ou por refluxo de secreção gástrica.
do brotamento pulmonar do intestino anterior primitivo. As Os portadores de fístula em I I podem evoluir até a adolescên
atresias são observadas em 1:3.000 a 1:4.500 nascidos vivos. A cia ou à idade adulta sem o diagnóstico correto e, geralmente,
atresia isolada corresponde a apenas 6% dos casos, enquanto apresentam problemas respiratórios crônicos, como uma asma
94% dos portadores dessas anomalias associam uma FTE. Das resistente ao tratamento e pneumonias recorrentes.
fístulas, 90% correspondem à atresia, fístula do esôfago distai O diagnóstico é suspeitado pela história e confirmado por
(mais frequente) e 4%, à FTE sem atresia (fístula em H). diferentes métodos propedêuticos, adaptados a cada situação.
Há cinco tipos fundamentais de atresia esofágica e FTE, Radiografias simples de tórax poderão evidenciar um abdome
e duas classificações são normalmente adotadas (de Gross e sem gás (atresia isolada) ou distendido, dependendo da varie
Vogt): 1) atresia sem fístula (Gross tipo A e Vogt tipo 2); 2) dade da malformação. A fístula poderá ser identificada pela
atresia e FTE do esôfago proximal (Gross tipo B e Vogt 3A); introdução de ar ou contraste por um cateter posicionado no
3) atresia e FTE do esôfago distai (Gross tipo C e Vogt 3B); 4) esôfago, ou, ainda, pela impossibilidade de fazer progredir uma
Figura 9.1 Tipos de atresia do esôfago e fístulas congênitas traqueoesofágicas. a, atresia do esôfago isolada; b, atresia e fístula traqueoesofágica
distai; cf fístula sem atresia; d, atresia e dupla fístula, proximal e distai; e, atresia e fístula proximal. (Modificada de Lewin, KJ e i o i , 1992.)
99
100 Capítulo 9 / Anomalias Congênitas
sonda colocada no esôfago. Mais raramente, em casos de fístula Essas estruturas podem ou não gerar sintomas. A maioria
em H utilizam-se ingestão de azul de metileno e broncoscopia dos pacientes sintomáticos está no primeiro ano de vida, mas
para situar a comunicação esofagotraqueal. Métodos recentes há casos iniciados na idade adulta. Os sintomas são decorren
de diagnóstico por imagem são a ressonância magnética e a tes de compressão sobre os órgãos vizinhos, manifestando-se
endoscopia, que é usada no pré-operatório para localizar a es- como tosse, dispnéia, taquipneia, disfagia, regurgitação, dor
tenose ou a fístula proximal. Em geral, a endoscopia é realizada torácica e arritmias cardíacas. Complicações podem acontecer,
no peroperatório, podendo modificar a abordagem cirúrgica. sobretudo porque a mucosa que reveste as estruturas compro
O diagnóstico de atresia sem FTE também pode ser suspeitado metidas é, na maioria das vezes, do tipo gástrico e secretante,
no pré-natal, mediante uma ultrassonografia evidenciando um sujeita à ulceração, hemorragia e, mesmo, perfuração em brôn-
feto com estômago sem líquido amniótico. quios ou em esôfago.
O tratamento é cirúrgico, às vezes apresentando muita difi O diagnóstico é feito preferencialmente por ecoendoscopia,
culdade, podendo incluir a interposição de uma alça de cólon. O ressonância magnética ou tomografia computadorizada. Radio
prognóstico é bom. As complicações mais frequentes incluem grafias simples de tórax evidenciam massa no mediastino médio
recorrência da fístula, estenose e deiscência da anastomose. A ou posterior. Sinais indiretos são percebidos ao estudo radio
endoscopia digestiva alta é usada para avaliar e tratar algumas lógico baritado do esôfago, mas este não é o melhor método
destas complicações. A ocorrência de doença do refluxo gas- diagnóstico. Entretanto, há necessidade do estudo anatomopa-
tresofágico é comum nos pacientes no pós-operatório tardio e tológico do cisto ressecado para se excluir uma neoplasia.
relaciona-se com anormalidades intrínsecas da função esofá- O tratamento é cirúrgico e, em crianças com sintomas de
gica, associadas a um distúrbio do esvaziamento gástrico (mais correntes de compressão traqueobrônquica, deve ser realizado
frequentes nestes pacientes). Em cerca de 6 a 45% dos casos, há sem demora, pois a procrastinação pode resultar em morte.
indicação de uma cirurgia antirrefluxo.
■ DIVERTÍCUL0 CONGÊNITO
■ ESTENOSE CONGÊNITA
É muito raro. Anatomicamente, a estrutura contém mucosa
Esta anomalia é rara, surgindo em 1:25.000 nascimentos. e todas as camadas musculares. Manifesta-se por disfagia ou por
Localiza-se mais frequentemente nos terços médio e inferior episódios de infecção pulmonar. O diagnóstico é radiológico.
do esôfago, com uma extensão variável de 2 a 5 cm. Sua etiolo- O tratamento é cirúrgico.
gia parece estar relacionada com uma separação incompleta do
brotamento pulmonar do intestino anterior primitivo, gerando
a formação de remanescentes cartilaginosos traqueobrônqui- ■ DISFAGIA LUSÓRIA
cos (coristomas) dentro da parede esofágica, ou com um dano
ao plexo mioentérico e perda do sistema neural nitrenérgico Esta alteração é provocada pela compressão do esôfago por
de relaxamento muscular. As estenoses cerradas manifestam- artéria anômala, mais frequentemente por uma artéria subclá-
se como disfagia no l.° ou 2.° ano de vida, mas pacientes com via direita aberrante. Ela emerge da aorta descendente, cru
sintomas leves podem ter o diagnóstico realizado só na vida zando obliquamente o mediastino posterior, da esquerda para
adulta, sendo confundido com o de uma estenose adquirida. a direita, entre o esôfago e a coluna vertebral. Gera então uma
Outros sintomas são a regurgitação e a impactação de alimentos compressão no esôfago cervicotorácico.
sólidos. O diagnóstico é realizado principalmente por exame Outros vasos podem causar disfagia por compressão sobre o
radiológico. A endoscopia permite a realização de biopsias, esôfago: artéria vertebral anômala, arco aórtico duplo, arco aór-
importantes no diagnóstico diferencial com neoplasias e es tico direito coexistindo com um ligamento arterioso esquerdo
tenose péptica. A manometria pode constatar distúrbios da e artéria pulmonar esquerda aberrante. O sintoma é a disfagia.
motilidade na região estenótica, especialmente aperistalse. A As compressões por anomalias vasculares, entretanto, são, na
ecoendoscopia tem se mostrado importante na avaliação da maioria das vezes, assintomáticas.
etiologia da estenose, visto que é capaz de identificar o teci O diagnóstico é realizado por exame radiológico baritado do
do traqueobrônquico remanescente, contraindicando assim a esôfago (demonstra uma compressão na parede posterior do
realização da dilatação por via endoscópica, devido ao risco de esôfago, ao nível da quarta vértebra torácica), por ecoendosco
perfuração por ruptura da cartilagem. O tratamento varia da pia, por ressonância nuclear magnética, por tomografia compu
dilatação do segmento acometido, sob controle endoscópico, tadorizada e por arteriografia. A endoscopia digestiva evidencia
à necessidade de ressecção. uma compressão pulsátil na parede posterior do esôfago.
O tratamento, mais comumente, restringe-se a modificações
da dieta, recomendando-se alimentos pastosos, oferecidos em
■ DUPLICAÇÃO DO ESÔFAGO pequenos volumes. Ocasionalmente, se há sintomas disfágicos
graves, indica-se a cirurgia.
Esta malformação ocorre em cerca de 1:8.000 nascimentos.
Apresenta-se sob a forma mais comum de um cisto (80% dos
casos descritos) situado no mediastino posterior, entre o esô ■ TECIDO HETER0TÓPIC0
fago e a coluna vertebral; 60% dos casos relatados localizaram-
se no terço distai do esôfago, 23% no terço proximal e 17% no O tecido heterotópico mais frequentemente encontrado no
terço médio. São geralmente únicos, revestidos por epitélio e esôfago é o gástrico, e é um achado relativamente comum. Na
cheios de líquido. Em 20% dos casos referidos, a anomalia era maioria das vezes, localiza-se no terço proximal do esôfago, logo
tubular. As duplicações tubulares podem se comunicar com a abaixo do esfíncter esofágico superior. A biopsia endoscópica
luz do esôfago por uma de suas extremidades, ou por ambas, mostra células do tipo gástrico, fúndico ou antral, incluindo
mas a variedade cística não se comunica com a luz esofágica. células parietais, que conservam a propriedade secretora. Por
Capítulo 9 / Anomalias Congênitas 101
isso, pode haver úlcera péptica sobre o tecido heterotópico, Hajivassiliou, CA, Davis, CF, Young, DG. Fibcroptic localization of thc upper
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Doença por Refluxo
Gastresofágico
Eliza Maria de Brito e Luciana Dias Moretzsohn
■ INTRODUÇÃO d a d e p u ra ç ã o
D telunçáo do
O refluxo gastresofágico (RGE) é, por definição, o desloca
mento, sem esforço, do conteúdo gástrico do estômago para o H é rn ia hiatal
102
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 103
hiatal contribui para o funcionamento inadequado da barreira do conteúdo refluxado é uma das possíveis explicações para
antirrefluxo através da dissociação entre o esfíncter externo e o os diferentes graus de esofagite observadas em pacientes com
interno e do refluxo sobreposto (fluxo retrógrado do conteú a mesma quantidade de refluxo ácido demonstrado por exa
do refluxado preso no saco herniário para a porção tubular do mes pHmétricos.
esôfago). O mecanismo responsável pelas manifestações extraesofá-
A distensão gástrica, principalmente após as refeições, con gicas da DRGE, como tosse e broncospasmo, nem sempre é a
tribui para o refluxo gastresofágico. O retardo do esvaziamento aspiração com lesão da mucosa de vias respiratórias por con
gástrico, o aumento da pressão intragástrica (ambos presentes tato direto. Pode ser via reflexo vagai por acidificação da m u
quando há obstrução ou semiobstrução antropilórica) e a alte cosa esofágica distai. No caso de granulomas de cordas vocais
ração da secreção gástrica (como a hipersecreção da síndrome e estenose subglótica, é necessário, provavelmente, o contato
de Zollinger-Ellison) são fatores que podem estar presentes, direto com a mucosa das vias respiratórias.
mas são pouco frequentes.
■ Esofagite erosiva
O grupo mais facilmente identificável e com alterações fi-
siopatológicas mais claras é o dos portadores de esofagite ero
siva. A visualização endoscópica de erosões esofágicas sela o
diagnóstico de DRGE. Apesar disso, ainda cabem diagnósticos
diferenciais, como lesão esofágica induzida por comprimido e Figura 10.2 Aspecto endoscópico da estenose péptica do esôfago.
esofagite eosinofílica, dentre outros. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 105
■ A DRGE em padentes com esôfago de Barrett padrão de citoqueratinas na diferenciação da metaplasia intes
Pacientes com a forma clássica do esôfago de Barrett pa tinal de cárdia e do epitélio de Barrett. A cromoscopia é uma
recem apresentar anormalidades fisiológicas que contribuem técnica que consiste na utilização de corantes sobre a mucosa
para a gravidade da DRGE. do esôfago, com o objetivo de facilitar a visualização do epi
A função motora esofágica está frequentemente comprome télio displásico ou metaplásico. São utilizados vários corantes,
tida nesses indivíduos, traduzindo-se por baixa amplitude das como o azul de metileno, que cora a metaplasia intestinal de
ondas peristálticas associada a uma maior frequência de con azul; o lugol, que cora o epitélio esofágico de marrom; o azul de
trações anormais. Essas anormalidades comprometem o clarea- toluidina, que facilita a visualização do epitélio. Outro recurso
mento esofágico do material refluído, aumentando o tempo utilizado é a magnificação endoscópica de imagem, que per
de contato do refluxato com epitélio esofágico. mite a visualização da superfície vilosa do epitélio metaplásico
Em mais de 90% dos pacientes, observam-se alterações do intestinal (Figura 10.4). Entretanto, estudos que avaliaram a
esfíncter esofágico inferior, como hipotonia e pequeno compri cromoendoscopia e magnificação não observaram a obtenção
mento intra-abdominal, além de uma alta incidência de hérnia de informações adicionais com o emprego dessa técnica, o que
hiatal. Esses fatores favorecem o refluxo gastresofágico, inclu não justifica sua utilização rotineira.
sive durante o período noturno.
Estudos utilizando pHmetria esofágica prolongada m os
tram que, em portadores de esôfago de Barrett, o refluxo ácido
gastresofágico é mais intenso e duradouro que em portadores
de DRGE não complicada. Além disso, o refluxo de secreções
duodenais (bile e suco pancreático) parece desempenhar um
importante papel na patogênese do esôfago de Barrett.
■ Quadro clínico
Uma história clínica detalhada dos portadores de esôfago de
Barrett geralmente identifica sintomas de longa duração que
incluem pirose, regurgitação e disfagia esofágica. Existe também
uma maior associação do esôfago de Barrett com outras com
plicações da DRGE, como estenose, ulcerações e sangramen-
tos. Entretanto, quando ocorre o desenvolvimento da doença,
a maioria desses pacientes apresenta uma grande melhora dos
seus sintomas, tornando-se mesmo oligossintomáticos. Essa
melhora é explicada pela maior resistência do epitélio de Bar
rett à agressão ácida.
■ Diagnóstico
Atualmente, propõe-se a seguinte classificação para o epi
télio colunar de Barrett:
Figura 10.3 Aspecto endoscópico do esôfago de Barrett. (Esta figura
• Segmento longo do esôfago de Barrett (metaplasia in encontra-se reproduzida enn cores no Encarte.)
testinal £ 3 cm).
• Segmento curto do esôfago de Barrett (metaplasia intes
tinal < 3 cm).
• Tecido cárdico com metaplasia intestinal.
Essa classificação é importante, pois, até o momento, o risco
de degeneração maligna somente está bem estabelecido no seg
mento longo do esôfago de Barrett. A presença de metaplasia
intestinal em tecido cárdico não se relaciona à DRGE e sim à
infecção pelo Helicobacterpylori e, dessa forma, não se associa
patogeneticamente com o adenocarcinoma de esôfago.
O diagnóstico do esôfago de Barrett baseia-se no aspecto
endoscópico do epitélio colunar recobrindo o esôfago (Figura
10.3) e no exame histopatológico desse epitélio, que evidencia
a presença de metaplasia intestinal incompleta. Esse diagnós
tico é fácil quando se trata de segmento longo de epitélio colu
nar que se inicia no estômago e se estende até o esôfago médio
ou proximal. Entretanto, em segmentos curtos de esôfago de
Barrett, nem sempre é fácil esse diagnóstico, pois, às vezes, é
difícil determinar onde se situa a junção esofagogástrica (JEG).
O epitélio colunar normal pode ser identificado em esôfago dis
tai de indivíduos sadios, além da possibilidade de existência de
metaplasia intestinal na cárdia.
Na tentativa de aprimorar o diagnóstico do esôfago de Bar Figura 10.4 Aspecto da magnificação endoscópica com ácido acético
rett curto, várias técnicas têm sido utilizadas, como a cromo- no esôfago de Barrett. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
endoscopia e magnificação endoscópica, além da avaliação do no Encarte.)
106 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico
Citoqueratinas são proteínas estruturais encontradas no ci- da DRGE, que é uma doença multifatorial. Outros fatores além
toplasma de células epiteliais. Estudos envolvendo citoquerati da exposição ácida vão determinar a presença ou ausência de
nas sugerem que a metaplasia intestinal do epitélio de Barrett é sintomas e de lesões epiteliais, como sensibilidade e resistência
precursora de células escamosas que não existem no estômago. da mucosa, e presença de outras substâncias no refluxado além
Sendo assim, o padrão de citoqueratinas 7/20 (CK7/20) estaria do ácido, conforme citado na fisiopatologia. Além do mais, os
presente na metaplasia intestinal do esôfago de Barrett, mas não sintomas da DRGE podem variar de um momento para o outro,
na metaplasia intestinal gástrica, o que facilitaria a confirmação o que torna uma única avaliação de exposição ácida passível de
do diagnóstico do segmento curto de Barrett. subestimar o refluxo ácido gastresofágico.
A correlação entre o sintoma e o refluxo ácido é útil por
determinar quando os sintomas referidos pelo paciente foram
■ PROPEDÊUTICA provocados pelo refluxo ácido (Figura 10.5). Essa correlação
é obtida através de manipulações estatísticas, que avaliam a
relação temporal entre episódios de refluxo e sintomas. Uma
■ Exame clínico das correlações mais utilizadas é o índice de sintomas, definido
A identificação dos sintomas cardinais da DRGE (pirose e pelo número de refluxos associados a sintoma dividido pelo
regurgitação) permite um diagnóstico presuntivo da DRGE sem número total de sintomas e expresso em porcentagem. Esse
a necessidade da realização de outros exames complementares. método apresenta limitações, pois não considera o número to
Estudo de Klauser et al.} comparando a presença desses sinto tal de episódios de refluxo. Um método mais recente, e talvez
mas e achados de pHmetria esofágica prolongada, observou que o melhor disponível, considera a probabilidade de associação
a sensibilidade dos sintomas pirose e regurgitação é de, respec de sintomas e utiliza o método exato de Fisher para analisar
tivamente, 38 e 6%, e a especificidade de 89 e 95%. Dessa forma, quatro possíveis associações temporais entre sintoma e refluxo:
em um paciente com queixas de pirose e/ou regurgitação ácida, refluxo e sintoma, refluxo sem sintoma, sintoma sem refluxo,
é segura a instituição de tratamento clínico empírico. e ausência de sintoma e de refluxo.
Outra aplicação muito importante da pHmetria é no moni
toramento de pH intragástrico. Apesar de existirem diversos
■ pHmetria esofágica prolongada métodos para estudo do pH intragástrico, o monitoramento
O advento de monitoramento prolongado do pH intrae- prolongado do pH parece ser o mais confiável e utilizado. Uma
sofágico contribuiu muito para a compreensão da DRGE. O importante indicação desse estudo é na avaliação de drogas
exame é realizado ambulatorialmente, utilizando equipamen inibidoras da secreção ácida. Nesses casos, é possível avaliar a
tos portáteis, sensores miniaturizados de pH e análise de dados magnitude do bloqueio da secreção ácida, bem como o início
computadorizados. A pHmetria prolongada permite o diag e a duração da ação de determinada droga.
nóstico da DRGE por demonstrar a presença de refluxo ácido
gastresofágico anormal.
A pHmetria não é considerada o padrão-ouro no diagnóstico
■ Impedância/pHmetria
da DRGE, pois é um método que apresenta várias limitações. Trata-se de técnica que permite a identificação do refluxo
Cerca de 25% dos pacientes sabidamente portadores de eso- gastresofágico independente de seu pH e de seu estado (Figura
fagite apresentam um estudo de pHmétrico normal. Existem 10.6). Sendo assim, possibilita a avaliação qualitativa do tipo
controvérsias quanto à reprodutibilidade da pHmetria prolon de refluxo (ácido ou fracamente ácido), seu alcance proximal,
gada. Alguns estudos sugerem uma reprodutibilidade de 85%, sua composição (líquido, gasoso ou misto), bem como do tem
enquanto outros mostram registros de diferentes quantidades po de depuração (ou clareamento) esofágico. A principal in
de refluxo ácido ao utilizarem simultaneamente dois catete- dicação da impedância/pHmetria é na avaliação de pacientes
res de monitoramento. Essas limitações são previsíveis, pois a com sintomas típicos ou extraesofágicos atribuídos à DRGE,
pHmetria prolongada mede apenas um aspecto fisiopatológico que não responderam de forma completa ao tratamento com
Figura 10.5 Estudo de pHmetria prolongada evidenciando um episódio de refluxo ácido anormal do tipo supino (S), e índice de sintomas
positivo entre os episódios de pirose (H) e os episódios de refluxo ácido.
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 107
Figura 10.6 Registro de episódio de refluxo minimamente ácido, que alcança o esôfago proximal, coincidindo com queixa de regurgitação
do paciente através de impedânda/pHmetria esofágica. O registro de pH é feito pelo canal distai.
inibidores de bomba protônica. Nesses casos, é possível iden na própria, estimulando quimiorreceptores e fibras nervosas
tificar a associação dos sintomas com refluxo fracamente ácido desmielinizadas.
ou ácido residual. Como a impedância/pHmetria fornece todas A realização de biopsias esofágicas é importante para o diag
as informações obtidas pela pHmetria, a tendência é que esse nóstico diferencial com a esofagite eosinofílica.
método substitua o exame convencional. A lesão mais precocemente detectada na DRGE é a dilatação
dos espaços intercelulares à microscopia eletrônica e cujo va
lor máximo médio comparado a controles foi estatisticamente
■ Endoscopia digestiva alta significativo. Entretanto, o aumento do espaço intercelular foi
A endoscopia digestiva alta é o exame de escolha para ava também descrito em controles assintomáticos, o que diminui a
liação das alterações da mucosa esofágica secundárias à DRGE, especificidade desse método. A medida dos espaços intercelu
permitindo, além de sua visualização direta, a coleta de frag lares demanda um tempo demorado para sua execução, o que
mentos esofágicos através de biopsias. As principais indicações impede a sua aplicabilidade na prática clínica atual.
de realização de endoscopia digestiva em pacientes com sus
peita de DRGE são:
■ Estudos radiológicos
• Excluir outras doenças ou complicações da DRGE, prin
A cintigrafia e o esofagograma com bário são métodos radio
cipalmente em pacientes com sintomas de alarme, como
lógicos habitualmente utilizados na avaliação da DRGE e suas
disfagia, emagrecimento, hemorragia digestiva.
complicações. Os estudos baritados são úteis em pacientes com
• Pesquisar a presença do esôfago de Barrett em pacientes disfagia, visto que apresentam boa sensibilidade na detecção de
com sintomas de longa duração. hérnias hiatais, estenoses e anéis esofágicos. O diagnóstico de
• Avaliar a gravidade da esofagite. esofagite, de um modo geral, só é evidente radiologicamente em
• Orientar o tratamento e fornecer informações sobre a casos mais graves. Entretanto, pHmetria é um método muito
tendência de cronicidade do processo. mais sensível que a radiologia no diagnóstico da DRGE.
De um modo geral, as classificações endoscópicas das eso- A cintigrafia para estudo da DRGE utiliza alimento marca
fagites não contemplam as alterações mínimas da mucosa do com tecnécio99. Trata-se de método de baixa sensibilidade
esofágica, quais sejam friabilidade, edema e hiperemia. Essa quando comparado com a pHmetria prolongada. Entretanto,
abordagem, apesar de aumentar a sensibilidade do exame no como permite avaliar o refluxo gastresofágico do material iso-
diagnóstico da esofagite, apresenta baixa especificidade. topicamente marcado, independente de sua acidez, pode ser
A resposta histológica da mucosa esofágica ao refluxo gas útil em estudo de pacientes gastrectomizados, portadores de
tresofágico crônico mostra principalmente mudanças reacio- anemia perniciosa, ou em vigência de tratamento com drogas
nais (alongamento das papilas na lâmina própria e hiperplasia inibidoras da secreção ácida gástrica.
da camada de células basais) e alterações inflamatórias (pre
sença de neutrófilos e eosinófilos intraepiteliais). Podem existir
também células com abundante citoplasma pálido, chamadas
■ Testes provocativos
células “em balão”, provavelmente devido ao aumento da per O teste de Bernstein-Baker objetiva comprovar que o sin
meabilidade. Segundo Ismail-Beigi, que descreveu pioneira toma do paciente decorre do refluxo ácido gastresofágico. Esse
mente o alongamento das papilas e a hiperplasia de células teste utiliza a infusão de ácido clorídrico a 0,1 N na luz esofá
basais, estas alterações evidenciam descamação acelerada do gica, na tentativa de reproduzir o sintoma típico do paciente,
epitélio. A proximidade das papilas à superfície epitelial po e a infusão de solução salina como placebo. Considera-se o
dería explicar a pirose pelo contato do refluxado com a lâmi teste positivo naquele paciente que apresentou sintomas típi
108 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico
cos apenas durante a infusão de ácido clorídrico. Esse teste é ácida observada à pHmetria quando comparado com o café
considerado de alta especificidade ao atribuir a origem do sin tradicional.
toma ao refluxo ácido. Deve ser reservado para situações em A queixa de pirose após ingestão de bebida alcoólica é fre
que não se dispõe de pHmetria prolongada, ou para pacientes quente em pacientes com DRGE. Embora não totalmente es
que apresentam sintomas infrequentes, e que não ocorreram clarecidos, os mecanismos responsáveis seriam o efeito direto
durante o monitoramento esofágico do pH. do álcool sobre a mucosa, redução da pressão do EIE e prolon
gamento da exposição ácida noturna, sugerindo efeito deletério
■ Manometria esofágica nas defesas contra o refluxo patológico.
A obesidade é considerada, hoje, fator de risco para DRGE,
A manometria esofágica apresenta uma indicação limita principalmente a gordura intra-abdominal medida pela cir
da na avaliação inicial da DRGE e não deve ser realizada para cunferência abdominal. A perda de peso deve ser estimulada
diagnóstico dessa doença. Esse exame pode ser útil na ava nos pacientes obesos, sendo comumente observada melhora
liação da gravidade da DRGE, podendo prever sua gravidade subjetiva dos sintomas.
ao demonstrar um EIE defectivo ou disfunção peristáltica. A O tabagismo tem influência negativa na DRGE devido a:
melhor indicação da manometria na DRGE é na avaliação de diminuição da pressão do EIE, diminuição do volume e da se
diagnósticos diferenciais de afecções que podem provocar sin creção de bicarbonato salivar, e aumento do risco de desenvol
tomas semelhantes aos da DRGE, como regurgitação e disfagia, vimento de adenocarcinoma do esôfago distai e cárdia.
frequentemente observadas em portadores de esclerodermia A elevação da cabeceira da cama é questionável, pois a maio
e acalasia. ria dos pacientes apresenta episódios de refluxo durante o dia,
e esta medida beneficiaria apenas um reduzido grupo de pa
- Bilitec® cientes com sintomas noturnos que tem, por exemplo, intensa
regurgitação.
O refluxo duodenogastresofágico tem sido associado à pa- Existem evidências de que o decúbito lateral esquerdo deve
togênese de formas esofágicas mais graves da DRGE, como ser recomendado para pacientes com DRGE pela observação de
esôfago de Barrett e estenose péptica. O Bilitec* foi criado vi redução do ácido no esôfago, uma vez que o volume alcançado
sando à detecção dessas substâncias que possuem um alto pH
pelo suco gástrico não chega a atingir a JEG.
e, portanto, não são detectadas pela pHmetria prolongada. Esse
sistema percebe a presença de bilirrubina através de espectro-
fotometria. Apresenta limitações, como sua incapacidade de ■ Tratamento medicamentoso
diferenciar substâncias com coloração semelhante à da bilir
■ Inibidores da bom ba de prótons
rubina, exigência de dieta líquida (pouco fisiológica) durante
o exame, e é pouco utilizado em nosso meio. A terapia com antissecretores potentes é capaz de aliviar
os sintomas mais rapidamente e cicatrizar as lesões na maior
parte dos pacientes. Doses padronizadas dos inibidores da
bomba de prótons (IBP) (omeprazol, 20 mg; lansoprazol,
■ TRATAMENTO 30 mg; pantoprazol, 40 mg; rabeprazol, 20 mg; e esomepra-
zol, 40 mg) são capazes de tratar a esofagite e aliviar sinto
■ Medidas higienodietéticas mas em 80 a 90% dos casos em 8 semanas. A resposta inicial
A importância das modificações no estilo de vida e dos fa ao uso dos IBP é fator preditivo do sucesso do tratamento a
tores dietéticos foi muito enfatizada no passado. Atualmente, longo prazo. Estes medicamentos devem ser sempre tomados
considera-se que é recomendável educar os pacientes a respeito antes das refeições.
dos fatores que podem precipitar episódios de refluxo, mas o A adoção inicial da terapia mais potente, seguida de redução
emprego isolado destas recomendações não é suficiente para da dose suficiente para obter controle sintomático (“step-down”),
controlar de modo eficaz seus sintomas. A adesão da grande parece ser a melhor opção em termos de resolutividade e de
maioria dos pacientes a estas medidas é geralmente limitada custos, estratégia recomendada pelo Consenso de Genval.
devido ao comprometimento da qualidade de vida. Os IBP são eficazes e seguros quando usados na terapia de
Refeições pouco volumosas, com alto conteúdo de proteí manutenção, que deve ser individualizada de acordo com a
nas e baixo conteúdo de gorduras, podem evitar a distensão gravidade e resposta ao tratamento.
gástrica e contribuir para manter a pressão do EIE. A ingestão Se o paciente apresenta sintomas pouco frequentes, o uso do
de alimentos nas três horas precedentes ao horário de dei medicamento pode ser feito de acordo com demanda própria.
tar contribuiría para reduzir a frequência dos episódios pós- Porém, nos pacientes com esofagite grave (classificação de Los
prandiais de refluxo, especialmente na posição de decúbito. Angeles C e D), deve-se iniciar com a dose-padrão e mantê-la.
Foi demonstrado que, imediatamente após a ingestão de cho Caso os sintomas ou as lesões endoscópicas persistam, acrescen-
colate, a pressão do EIE diminui. O suco de laranja teria efeito ta-se uma segunda dose à noite. Estes pacientes frequentemente
irritativo direto na mucosa esofágica independente do pH, o desenvolvem complicações da doença. O controle dos sintomas
que podería ser explicado pela elevada osmolaridade dos sucos atípicos é mais difícil do que o controle da pirose, necessitando
concentrados, também presente em comidas apimentadas que frequentemente do uso de dose dupla de IBP.
geralmente são preparadas com muito sal. A hiperosmolari- São considerados pacientes refratários aqueles que necessi
dade dos alimentos pode também ser responsável pela pirose, tam usar IBP mais que 2 vezes/dia, sem controle dos sintomas
comparativamente mais frequente em pacientes com teste de associados ao refluxo e/ou com alterações mucosas significati
Bernstein positivo (esôfago sensível ao ácido) do que naque vas após 12 semanas ou mais de tratamento.
les com teste negativo (p < 0,01). Em relação ao café, existem A recorrência dos sintomas após interrupção do IBP não é
estudos conflitantes na literatura quanto ao seu efeito sobre considerada refratariedade, pois a DRGE é condição crônica
o EIE, mas o café descafeinado diminui em 85% a exposição ou recidivante.
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 109
As principais preocupações sobre as consequências da ini DRGE, são necessárias doses múltiplas. Além disso, observa-se
bição da secreção gástrica incluem: declínio da inibição da secreção ácida quando usada por mais
que duas semanas, fenômeno conhecido como taquifilaxia ou
• Hipergastrinemia, reversível com a interrupção do trata
tolerância, que limita a eficácia terapêutica.
mento e não relacionada com desenvolvimento de car-
cinoides ou displasia. Dentre os AH2, cimetidina e ranitidina foram os mais estu
dados no tratamento da DRGE, com boa resposta após 8 sema
• Progressão da gastrite do corpo gástrico induzida pela
nas de tratamento em aproximadamente 50 a 66% dos pacien
infecção pelo H. pylori. Nos pacientes que necessitam
tes. Os melhores resultados foram obtidos em pacientes com
de uso continuado de IBP, é recomendável a pesquisa
esofagite leve a moderada, tratados com doses elevadas.
e erradicação do microrganismo. Quanto à controversa
A ranitidina foi menos eficaz em manter a remissão na
relação entre DRGE e H. pylori, se aceita atualmente que
DRGE (45%) do que o omeprazol em diferentes doses (62 a
a erradicação do microrganismo não exacerba a DRGE
72%) em pacientes com esofagite erosiva ou ulcerada. A dose
e que, na maioria dos indivíduos, a erradicação não está
diária de 10 mg de omeprazol parece ser superior à dose-
associada ao desenvolvimento de DRGE.
padrão de ranitidina (150 mg 2 vezes/dia). A eficácia limitada
• Possível interferência na absorção de nutrientes, devi
dos AH, pode ser explicada pelo efeito insuficiente na inibição
do à hipocloridria resultante do uso prolongado de IBP.
ácida após refeições. No entanto, os AH2têm eficácia compro
Existem controvérsias na literatura sobre a necessidade
vada na inibição da secreção noturna.
de dosar periodicamente os níveis séricos de ferro e de
vitamina Bl2, de acordo com poucos estudos publicados a
■ Procinéticos
respeito, sendo todos com pequeno número de pacientes.
As alterações fisiopatológicas responsáveis pela DRGE pode-
Com relação à absorção do cálcio, existem alguns estu
riam ser corrigidas por drogas que aumentassem a pressão do
dos observacionais que sugerem um possível aumento
EIE, melhorassem o peristaltismo do esôfago e o esvaziamento
do risco de fraturas ósseas em usuários crônicos de IBP.
gástrico. Os medicamentos procinéticos atualmente disponí
Atualmente, vários aspectos desta possível relação não
veis no mercado não corrigem estas alterações, e são eficientes
estão resolvidos, devendo-se aguardar a realização de no
apenas quando usados em pacientes com sintomas dispépticos
vos estudos, para o esclarecimento adequado.
associados.
A terapia antiácida com IBP é capaz de diminuir drastica A metoclopramida não é considerada boa escolha no trata
mente o refluxo duodeno-gastresofágico, o que pode ser expli mento da DRGE, pois atua no sistema nervoso central, causan
cado pela diminuição do ácido e do volume da secreção gástrica. do efeitos colaterais como sonolência, irritabilidade, tremores
A proteção da mucosa esofágica ocorre também pela eliminação e discinesia.
do sinergismo negativo entre o ácido, a pepsina e a bile. A domperidona, antagonista da dopamina apenas em nível
É recomendável, no entanto, usar a menor dose do IBP para periférico, é útil, mas observa-se hiperprolactinemia em 10 a
obtenção do efeito terapêutico desejável. 15% dos seus usuários crônicos.
Os objetivos do tratamento do esôfago de Barrett incluem, Outro eficaz procinético, a cisaprida, foi retirado do comér
idealmente, o controle dos sintomas da DRGE, a cicatrização cio por induzir arritmias cardíacas principalmente quando as
de lesões associadas e a prevenção da progressão para neopla- sociada a outras drogas.
sia do epitélio metaplásico e/ou displásico.
Estudos recentes corroboram o conceito de que a exposi ■ Novas drogas
ção ácida persistente no esôfago de Barrett associa-se com a Algumas drogas de diferentes perfis farmacológicos têm sido
precipitação de todos os estágios de progressão molecular do testadas, apresentando resultados iniciais limitados. Resulta
desenvolvimento do adenocarcinoma. O refluxo ácido crô dos promissores têm sido obtidos com o baclofeno, agonista
nico pode predispor ao câncer por lesar as células epiteliais dos receptores B do ácido gama-aminobutírico (GABA). Seu
metaplásicas, aumentando sua proliferação e diminuindo sua uso em pacientes com DRGE mostrou redução do número de
diferenciação. Sendo assim, a tendência atual é que seja feito episódios de refluxo e o percentual de tempo de exposição áci
um controle rigoroso do refluxo gastresofágico em portado da após uma única dose de 40 mg. Seu mecanismo parece ser
res de esôfago de Barrett, através de uma abordagem clínica a supressão dos RTEIE. Como seus efeitos colaterais são fre
ou cirúrgica. quentes, impedindo provavelmente o uso rotineiro, o baclofeno
O tratamento clínico do esôfago de Barrett consiste na uti tem sido considerado um protótipo para o desenvolvimento de
lização de inibidores de bomba protônica em doses definidas novas drogas anti-RTEIE.
por monitoramento por pH esofagogástrico, visando a abolir
a secreção ácida gástrica e, dessa forma, a impedir o refluxo
gastresofágico. Vale salientar que essas drogas também contro
■ Tratamento cirúrgico
lam o refluxo biliar provavelmente por diminuírem o conteú O tratamento cirúrgico da DRGE consiste no reposiciona
do do refluxato. O uso de drogas anti-inflamatórias parece ter mento do esôfago na cavidade abdominal associado à hiatoplas-
um papel profilático no desenvolvimento do adenocarcinoma tia e fundoplicatura. Após a realização da primeira fundoplica-
esofágico, e sua utilização rotineira em portadores de esôfago tura (Nissen) por via laparoscópica, em 1991, por Dallemagne
de Barrett tem sido defendida por alguns autores. et a l y observou-se uma tendência crescente na indicação da
cirurgia, considerada alternativa segura e eficaz no tratamento
■ Antagonistas H 2 de portadores de DRGE.
Os antagonistas dos receptores H2(AH2) - cimetidina, ra- As indicações da cirurgia antirrefluxo variam. As diretrizes
nitidina, famotidina, nizatidina - são drogas seguras e bem do American College of Gastroenterology (2005) colocam a ci
toleradas, mas têm curta duração de ação (entre 4 e 8 h, con rurgia como uma opção para o tratamento de manutenção para
forme o regime empregado) e resultam em inibição incompleta os pacientes com DRGE bem documentada, enquanto o Con
da secreção ácida. Consequentemente, para o tratamento da senso de Genval considera o tratamento cirúrgico apropriado
110 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico
em todos os pacientes que, devidamente informados, optem completa com tratamento medicamentoso. Os sintomas típi
pela cirurgia. Ambos enfatizam a importância da escolha do cos respondem mais provavelmente após a cirurgia do que os
cirurgião bem treinado. sintomas atípicos extraesofágicos.
O tratamento cirúrgico no esôfago de Barrett não compli Atualmente, existem alguns estudos observacionais, mas não
cado consiste na fundoplicatura, atualmente realizada por via estudos controlados, comparando o tratamento clínico com o
videolaparoscópica. A realização de uma pHmetria pós-opera tratamento cirúrgico no controle dos sintomas extraesofágicos
tória seria ideal para se confirmar a ausência de refluxo ácido da DRGE. A resposta favorável ao tratamento cirúrgico foi ob
no esôfago. servada apenas em pacientes rigorosamente selecionados, por
A falta de resposta ao tratamento clínico não é atualmente tadores de tosse crônica e de asma, associadas à DRGE.
considerada como indicação de tratamento cirúrgico, pois a Outra vantagem do tratamento cirúrgico é o controle do
falha terapêutica pode ser devida à incorreção do diagnóstico. refluxo não ácido (componente biliar e pancreático) e seu con
Neste caso, deve-se sempre reconsiderar o diagnóstico e rea troverso impacto nas alterações metaplásicas e displásicas do
valiar a terapia. epitélio esofágico.
Conforme o II Consenso Brasileiro da Doença do Refluxo Sintomas pós-operatórios como disfagia, incapacidade de
Gastroesofágicoy realizado em 2003, o tratamento cirúrgico da eructar, plenitude pós-prandial, síndrome do ar preso (gas blo-
DRGE não complicada deve ser considerado quando: houver at) e flatulência ocorrem em 0 a 40% dos casos e devem ser in
razões que impossibilitem a continuidade do tratamento clínico formados previamente ao candidato à cirurgia.
(de ordem pessoal, econômica ou intolerância) e nos casos em
que for exigido tratamento contínuo de manutenção com IBP,
especialmente naqueles com menos de 40 anos de idade, que
■ Tratamento endoscópico
optem pelo tratamento cirúrgico. Está recomendado também Novos e variados procedimentos endoscópicos para trata
nas formas complicadas da DRGE (i. e., estenose e/ou úlcera) mento da DRGE estão sendo investigados e todos têm como
e quando houver adenocarcinoma. objetivo aumentar a barreira antirrefluxo. Apesar de algumas
Existem estudos comparativos da eficácia do tratamento destas técnicas terem sido aprovadas pelo órgão regulatório
clínico com o tratamento cirúrgico. Um estudo prospectivo e americano PDA (Food and Drug Administration), elas conti
randomizado avaliou a satisfação dos pacientes portadores de nuam sendo investigadas: radiofrequência (Stretta), sutura en-
DRGE que se submeteram ao tratamento clínico ou cirúrgico. doscópica, implantação de microesferas. O procedimento com
O seguimento foi, em média, de 10,6 anos para o tratamento Stretta cria uma lesão que, ao cicatrizar, resulta em estenose. A
medicamentoso e de 9,1 anos para o cirúrgico. A grande maio sutura endoscópica cria uma plicatura endoluminal no esôfago
ria dos pacientes operados (62%) estava usando algum tipo de distai. Várias questões ainda não resolvidas sobre estes proce
medicamento antirrefluxo (IBP, AH, ou procinéticos) regular dimentos incluem eficácia, durabilidade e segurança a longo
mente, apesar de estarem satisfeitos com o tratamento inicial prazo. Aguardam-se estudos controlados e randomizados para
(Figura 10.7). Os autores concluíram que pacientes que se sub determinação das suas indicações nos portadores de DRGE.
metem à cirurgia antirrefluxo não podem ter a expectativa de
não usar novamente medicamentos antissecretores. ■ Estenose esofágica
As conclusões de um estudo prospectivo randomizado e O tratamento de estenose péptica do esôfago consiste no
multicêntrico europeu, comparando o tratamento clínico com controle da DRGE e nas dilatações esofágicas. Apesar de a dila-
o cirúrgico, foram publicadas após 3 anos de seguimento por tação esofágica ser a base do tratamento da estenose péptica do
Lundell et a l (2008). Ambos os tratamentos atingiram o mes esôfago, o uso de antissecretores tem mudado o curso natural
mo grau de satisfação dos pacientes e foram considerados al dessa afecção. Na verdade, esses medicamentos diminuem o
tamente eficazes, seguros e bem tolerados. Como o seguimen edema da mucosa, aumentando o diâmetro da luz do esôfago,
to destes pacientes continua, aguardam-se novas publicações além de evitar a persistência da agressão ácida sobre o órgão.
dos autores. Esses efeitos determinam uma melhora do quadro esofágico a
A seleção apropriada e a avaliação pré-operatória dos pa longo prazo. Os inibidores da bomba protônica em altas doses
cientes são de fundamental importância. Os fatores preditivos são as drogas de escolha para o tratamento desses pacientes,
de boa resposta, encontrados em um estudo com 100 pacientes, oferecendo resultados muito superiores àqueles obtidos com o
foram idade inferior a 50 anos, sintomas típicos com resolução uso de antagonistas dos receptores H2. A cirurgia antirrefluxo
Figura 10.7 Tratamento cirúrgico e medicamentoso da DRGE: seguimento a longo prazo. Adaptado de Spechler.
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 111
(fundoplicatura) é também uma boa opção para evitar o reflu Barbuti, RC & Moracs-Filho, JPP. Doença do refluxo gastrocsofágico. Em: Cas
xo gastresofágico, diminuindo a probabilidade de recidiva da tro, LP & Coelho, LGV. Gastrocntcrologia. Rio de Janeiro, Medsi: 2004,
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O principal tratamento da estenose esofágica é a dilatação da Pathol, 1975:387-91.
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de sistemas de dilatação esofágica: os dilatadores de borracha marker of ocsophagcal damage: comparativo rcsults in gastro-ocsophagcal
preenchidos por mercúrio (dilatadores de Hurst e Maloney), os reflux disease with or without bile reflux. Aliment Pharmacol Ther, 2003:
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termoplásticos (polivinil) representados principalmente pelos Cange, L, Johnsson, E, Rhydolm, H et ai Baclofen-mcdiated gastro-ocsophagcal
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determinar quadro de meningite, endocardite ou abscesso ce Canto, MI, Yoshida, T, Gossner, L. Chromoscopy of intestinal metaplasia in
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vido a estenose péptica do esôfago apresentarão recorrência do Clousc, RE, Richtcr, JE, Hcading, RC et a i Functional csophageal disorders.
quadro. O número de recorrências apresentadas pelo paciente Cut, 1999; 45:1131-6.
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8c Coelho, LGV (cds.). Rio de Janeiro: Medsi Editora Médica e Científica,
Sendo assim, um paciente que apresentou duas recorrências 2004:75-113.
da estenose esofágica necessitando de dilatação tem 94% de Dallemagne, B, Wccrts, JM, Hehacs, C et ai Laparoscopic Nissen fundoplication:
possibilidade de recidivar o quadro. Outros fatores preditivos preliminary report. Surg Laparosc Endosc, 1991; 1:138-43.
da necessidade de dilatações repetidas são a perda de peso e a De Vault, KR 8c Castcll, DO. Updatcd guidelines for the diagnosis and treatment
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■ Esôfago de Barrett El-Scrag, HB, Graham, DY, Satia, JA et a i Obcsity Is an Indcpcndcnt Risk
Estão sendo propostos tratamentos endoscópicos que consis Factor for GERD Symptoms and Erosivc Esophagitis. Am } Gastroenterol,
tem na ablação do epitélio metaplásico e displásico do esôfago 2005; 100:1243-50.
de Barrett, permitindo a regeneração do epitélio tipo escamoso Fitzgcrald, RC, Onwucgbusi, BA, Baja-EUiott, M et a i Divcrsity in the oesopha-
gcal phcnotypic response to gastro-ocsophagcal reflux: immunological dc-
do esôfago. Com esse intuito, são utilizadas energias térmicas,
terminants. Gut, 2002; 50:451-9.
como coagulação multipolar ou coagulação com argon plas Hallerback, B, Unge, P, Carling, L et a i Omcprazolc or ranitidinc in long-tcrm
ma, ou fotoquímicas, como terapia fotodinâmica. Existe muita treatment of reflux csophagitis. Gastroenterology, 1994; 107:1305-11.
controvérsia quanto ao uso dessa modalidade terapêutica, pois, Hatlcback, JG, Bcrstad, A, Carling, L et a i Lansoprazolc versus omcprazolc in
além dos riscos de estenose e perfuração do esôfago, é possível short-term treatment of reflux oesophagitis. Scand J Gastroenterol, 1993;
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endoscópica. Além disso, alguns estudos mostram um aumento saliva. Gastroenterology, 1982; 83:69-74.
do risco de degeneração do epitélio tratado com essas técnicas. Ismail-Bcigi, F, Horton, PF, Pope, CE. Histological consequcnces of gastroc
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■ Vigilância endoscópica Joncs, R 8c Bytzcr, P. Review articlc: acid supprcssion in the management of
Como, até o momento, nenhum estudo confirmou que qual gastro-ocsophagcal reflux disease - an appraisal of treatment options in
quer tratamento antirrefluxo, seja clínico ou cirúrgico, possa primary carc. Aliment Pharmacol 7her, 2001; 15:765-72.
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a vigilância endoscópica para diagnóstico precoce de um even Kahrilas, PJ, Shahccn, NJ, Vaezi, MV. American Gastrocntcrological Association
tual tumor no epitélio metaplásico. Atualmente, recomenda-se Institutc tcchnical review on the management of gastroesophageal reflux
a realização de endoscopia digestiva em portadores de esôfago disease. Gastroenterology, 2008; 135:1392-413.
de Barrett a cada 2 ou 3 anos. Caso seja detectada displasia de Katz, LC, Just, R, Castcll, DO. Body position aífccts rccumbent postprandial
reflux./C/m Gastroenterol, 1994; 18:280-3.
baixo grau, esse intervalo deve ser reduzido a 6 meses. Caso Katzka, DA 8c Castcll, DO. Conscrvativc thcrapy (phase I) for gastrocsopha
haja regressão dessa displasia após 1 ano, deve-se manter a gcal reflux disease (lifcstylc modifications). Em: Castcll, DO 8c Richtcr,
vigilância endoscópica a cada ano. Nos casos de displasia de JE (cds.).Thc esophagus. Philadclphia: Lippincott Williams 8c Wilkins,
alto grau, muitos autores recomendam a esofagectomia. Ou 1999:437-45.
tros acreditam que esses pacientes possam ser acompanhados Kawamura, O, Aslam, M, Rittmann, T et a i Physical an pH properties of gas
trocsophagcal refluxate: a 24 hour simultancous ambulatory impcdancc and
com endoscopia a cada 3 meses, optando-se pela ressecção ci pH monitoring study. Am J Gastroenterol, 2004; 99:1000-10.
rúrgica apenas quando se estabelecer o diagnóstico de tumor Klauscr, AG, Schindlbcck, NE, Mullcr-Lissncr, SA. Symptons in gastro-ocsop
invasivo. Um terceiro grupo advoga a ideia de ressecção endos hagcal reflux disease. Lancet, 1990; 335:205-8.
cópica do epitélio com displasia, através de técnicas ablativas Lind, T, Havclund, T, Lundcll, L et a i On demand thcrapy with omcprazolc for
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112 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico
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11 Membranas, Anéis e
Divertículos do Esôfago
Vitor Antonino Mendes de Sá
113
114 Capítulo 11 / Membranas, Anéis e Divertículos do Esôfago
■ ANELDESCHATZKI (ANEL DO Figura 11.1 Endoscopia digestiva alta mostrando anel de Schatzki.
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
ESÔFAGO DISTAL)
O anel de Schatzki é uma estrutura que anatomicamente de
limita a junção escamocolunar, sendo observado em até cerca com ambas. Frequentemente, são necessárias novas sessões
de 6 a 14% de pacientes submetidos a um esofagograma. de tratamento.
É constituído exclusivamente por mucosa e submucosa,
com centro preenchido por tecido conjuntivo e células infla-
matórias.
Sua etiologia é controversa, podendo estar relacionada com
■ ANÉIS MUSCULARES
a presença de doença do refluxo gastresofágico (DRGE), origi- São bastante raros, estando a maioria absoluta localizada
nar-se congenitamente ou, até mesmo, estar ligada à esofagite poucos centímetros acima da junção escamocolunar. Carac
eosinofílica. terizam-se por uma constrição anular espessada a partir da
O anel de Schatzki não parece prevenir contra uma maior camada muscular circular do esôfago, estando recobertos por
exposição ácida na DRGE, conforme demonstrado em um es mucosa esofágica normal.
tudo recente. Todavia, o epitélio metaplásico de Barrett é me
Podem provocar disfagia para sólidos, e mesmo para líqui
nos frequente em pacientes com anel de Schatzki, o que susci
dos, crônica e de caráter intermitente.
ta algumas questões sobre sua verdadeira fisiopatologia e sua
O esofagograma revela uma estrutura contrátil anular de es
relação com a presença de ácido na luz esofágica.
pessura e lúmen variáveis. A endoscopia mostra estreitamento
Em geral, é assintomático, mas, quando o diâmetro lumi-
luminal focal, mas é menos apropriada para mensurar sua es
nal se torna m enor que 13 mm, podem surgir disfagia para
pessura. Nos poucos casos estudados por manometria, obser
sólidos ou impactações alimentares. Característica marcante
varam-se múltiplos picos de contrações esofágicas peristálticas
da disfagia relacionada com o anel de Schatzki é seu caráter
intermitente, diferente da causada por estenoses péptica ou ne- de grande amplitude e longa duração.
oplásica; entretanto, o anel de Schatzki é a causa mais comum As formas de tratamento propostas incluem dilatações com
de disfagia intermitente para alimentos sólidos. Essa disfagia dilatadores rígidos, secção endoscópica através de corrente elé
aparece particularmente quando o indivíduo come rapidamen trica, ou cirurgia aberta. Outra opção terapêutica a ser consi
te e mastiga mal. derada é a injeção local de toxina botulínica. O uso de agentes
O padrão-ouro para diagnóstico do anel de Schatzki con anticolinérgicos também pode ser útil em pacientes com reci-
tinua sendo o exame radiológico contrastado, utilizando con diva sintomática, ou naqueles considerados maus candidatos
traste mais espesso. Apresenta-se como anel regular, concên aos tratamentos invasivos.
trico e estreito (até 2 mm de espessura). Durante a endoscopia
digestiva alta, pode também ser bem identificado (Figura 11.1),
necessitando apenas de adequada distensão gasosa do esôfago ■ ANÉIS FUNCIONAIS (ANÉIS A EB)
distai. Quando se acompanha de hérnia hiatal, sua identifica
ção é mais fácil. São anéis fisiológicos, observados rotineiramente em exa
Pacientes assintomáticos não necessitam de tratamento. Me mes radiológicos contrastados e, ocasionalmente, em exames
didas simples, como orientações sobre a necessidade de masti endoscópicos.
gação adequada e deglutição de pequenos volumes de alimentos O anel A de Wolf marca o início do esfíncter esofágico in
sólidos, muitas vezes são suficientes para o controle de pacien ferior (EIE), delimitando superiormente a ampola epifrênica
tes sintomáticos. vista à radiologia. Tal ampola corresponde à região do EIE e é
Os casos sintomáticos refratários às medidas conservadoras delimitada inferiormente pelo chamado anel B de Wolf, na jun
podem ser tratados com dilatações por velas de Savary-Gilliard ção escamocolunar (linha Z). A presença de uma hérnia hiatal
ou Maloney, além de ruptura do anel em quatro quadrantes facilita a visibilização do anel B, já que nessa situação a linha
usando pinças de biopsia. A recorrência dos sintomas após Z se encontra superiormente ao pinçamento diafragmático, e
essas duas técnicas é comum e ocorre em taxas semelhantes isso permite a distensão gasosa, realçando-o.
Capítulo 11 / Membranas, Anéis e Divertículos do Esôfago 115
O tratamento atualmente preconizado é a diverticulectomia sintomas podem estar relacionados também com os distúrbios
por videotoracoscopia direita isolada, caso não haja distúrbios motores concomitantes. Complicações envolvem perfurações,
motores concomitantes. Associa-se à diverticulectomia a mio- abscesso e hemorragia.
tomia extramucosa longitudinal nos casos que se acompanham São identificados em exames radiológicos contrastados do
de dismotilidade. esôfago, sendo solitários na maioria dos casos. Têm largura
média de 4,4 cm e profundidade média de 3,7 cm. Parece ha
ver correlação dos sintomas com o enchimento preferencial do
■ Divertículos epifrênicos divertículo e com seu tamanho.
Divertículos epifrênicos são raros, respondendo por cerca de O tratamento só está indicado quando há sintomatologia
20% de todos os divertículos esofágicos. Localizam-se no terço importante ou na presença de complicações. Classicamente,
distai, em geral próximo ao diafragma, e predominam no lado é realizada a diverticulectomia associada à esofagomiotomia e
direito do órgão (Figuras 11.2 e 11.3). Estão comumente asso um procedimento antirrefluxo, geralmente uma fundoplicatura
ciados a distúrbios motores do esôfago, como acalasia, elevadas parcial. O acesso pode ser transtorácico, por via aberta ou to-
pressões em repouso no esfíncter esofágico inferior, esôfago em racoscópica, ou laparoscópico. Devido à relativa infrequência
quebra-nozes e dismotilidade inespecífica. dessa condição, não há estudos comparativos entre as técnicas
As manifestações clínicas atribuídas aos divertículos epifrê propostas, mas a cirurgia por laparoscopia é relatada como a
nicos são disfagia, regurgitação e sintomas respiratórios. Tais técnica de escolha atualmente.
O desenvolvimento de lesões da mucosa do esôfago depende da exame radiológico deve ser realizado quando houver contrain-
resistência desta aos agentes agressores e do poder de agressão dicação ao exame endoscópico. Nos pacientes com síndrome da
destes agentes, que podem ser intrínsecos, como a secreção gás imunodeficiência adquirida (AIDS), as opiniões são divergentes
trica, ou extrínsecos, como produtos corrosivos, medicamentos, quanto à indicação da endoscopia para o diagnóstico da EC.
agentes infecciosos e radiação ionizante. A concomitância de Alguns autores sugerem que, se o paciente apresenta sintomas
esofagite de refluxo com as induzidas por produtos químicos, típicos e candidíase oral, estes deveriam ser tratados, e a en
ou mesmo por agentes infecciosos, pode ser um fator de con doscopia indicada apenas em casos especiais. Outros estudos,
fusão no estabelecimento do diagnóstico preciso. A esofagite todavia, mostraram que, diante dessas alterações clínicas, o
de refluxo é a causa mais comum de inflamação do esôfago e médico ainda não estaria autorizado a iniciar o tratamento, e
será discutida em capítulo específico. a endoscopia seria obrigatória, não só para confirmar o diag
Abordaremos as esofagites de causas infecciosas e as provo nóstico, mas também para excluir outras lesões concomitantes
cadas por agentes químicos e pela radiação. (Prancha 12.1 A). A endoscopia digestiva alta (EDA) em pa
cientes com infecção fúngica no esôfago mostra a presença de
placas brancacentas ou amareladas, aderidas à mucosa, sendo
■ INFECÇÕES DO ESÔFAGO esses os locais indicados para a coleta de material através de
biopsias ou escovado para citologia, histologia e cultura. Dentre
as classificações para avaliar o grau de infecção pela Candida,
■ Esofagite por fungos segundo os aspectos endoscópicos, destacam-se a de Kodsi et al.
e a de Wilcox. Esta última é descrita como segue:
■ Esofagite por Candida (EC)
O esôfago é o órgão mais frequentemente infectado pela • Grau I: placas esparsas, comprometendo menos de 50%
Candida, do mesmo modo que a Candida é o agente infeccioso da mucosa esofágica.
mais comum neste órgão. Existem alguns grupos de pacien • Grau II: placas esparsas comprometendo mais de 50%
tes que apresentam predisposição ao desenvolvimento de EC, da luz esofágica.
como os portadores de diabetes, de doenças malignas, de doen • Grau III: placas confluentes, reversíveis à insuflação, que
ças crônicas debilitantes, de obstrução do esôfago, os pacientes cobrem circunferencialmente pelo menos 50% da m u
em uso de terapia antimicrobiana ou corticoterapia por perío cosa.
dos prolongados e, em especial, os pacientes comprometidos • Grau IV: placas circunferenciais, com estenose, não re
imunologicamente. Na patogênese da EC, estão envolvidos três versíveis à insuflação.
fatores, que são: alteração do sistema imunológico, da motili- Os fragmentos obtidos por biopsias ou escovados devem ser
dade esofágica e do metabolismo de carboidrato. inicialmente fixados em formol e corados por hematoxilina-
A disfagia e a odinofagia são os sintomas mais frequentes em eosina (HE), para análise de rotina. Outras colorações especí
pacientes com EC. Quando esses sintomas são intensos e por ficas tais como Ziel-Neelsen, além de estudo imuno-histoquí-
período prolongado, podem levar à desnutrição. Cabe ressal mico, com pesquisa de antígenos para a micobacteriose e vírus,
tar que nos pacientes que apresentam EC não se pode excluir podem ser realizadas também. No diagnóstico da Candida, des
a possibilidade de associação com outros agentes. Também, a tacamos outras colorações específicas, como corantes pela prata,
ausência de candidíase oral não exclui a presença da doença ácido periódico de Schiff (PÁS) e o Gram. As culturas em meio
esofágica. Em relação ao diagnóstico etiológico, os exames ra- de Sabouraud têm demonstrado uma sensibilidade de até 80%,
diológicos têm valor limitado, ficando reservados para avaliação mas deve ser ressaltado que o método não diferencia a Can
da motilidade, manifestada por diminuição do peristaltismo, dida como agente comensal ou infeccioso. No entanto, apesar
irritabilidade ou espasmos, exclusão de obstrução mecânica, de inúmeros recursos, o diagnóstico histológico para Candida
diagnóstico da presença de fístulas ou perfuração. Também o gira entre 50 e 64%. Esta baixa positividade pode ser explicada,
118
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 119
pois, nas infecções leves, com baixo grau de invasão, o fungo go. Essas úlceras, quando mais profundas, podem unir-se na
pode ser eliminado durante o processamento das biopsias, ou submucosa e, com a cicatrização após o tratamento, ocasionar
o número de fragmentos coletados é insuficiente, e mesmo por estenose. Outras alterações endoscópicas, em menor frequência,
erro na coleta. A EDA, com a coleta de material usando acessó são as áreas de hiperemia da mucosa ou erosões com bordas
rio próprio para escovado, e semeando diretamente na solução geográficas serpiginosas e elevadas. Deve-se lembrar ainda que
de hidróxido de potássio a 10%, é considerada, por alguns au a coexistência de outros agentes infecciosos pode alterar seu
tores, como método diagnóstico de escolha. Níveis séricos de formato clássico de apresentação, destacando-se as infecções
aglutinina acima de 1:160 são considerados confirmatórios para por Candida albicans e Herpes simples. O diagnóstico através
esofagite por Candida, mas raramente são positivos. Os sinto da biopsia endoscópica é essencial. O CMV infecta fibroblastos
mas geralmente desaparecem com o tratamento, mas a melhora e células endoteliais, que estão localizados na base das úlceras
clínica não significa necessariamente o desaparecimento total esofágicas e não no epitélio escamoso. Assim, as biopsias devem
das lesões na mucosa. Alguns autores indicam a EDA como ser realizadas na base e margens das úlceras. O escovado cito-
controle de tratamento, embora não seja essencial em todos os lógico também pode evidenciar inclusões citoplasmáticas em
pacientes. A droga de escolha para o tratamento é a nistatina, fibroblastos ou endotélio. A cultura do vírus em material de es
200.000 unidades em intervalos de 2 a 4 h, por período de 7 covado ou biopsias tem uma sensibilidade de aproximadamen
a 14 dias. Com este esquema terapêutico, conseguem-se altos te 67%, maior do que a do estudo histológico, que é próxima
índices de cura, com poucos efeitos colaterais. Em pacientes de 35%. O tratamento da ECMV é realizado com ganciclovir,
imunodeprimidos, ou resistentes à nistatina, pode-se lançar 5 mg/kg 2 vezes/dia, durante 14 a 21 dias, e, depois, com dose
mão de outros antifúngicos mais potentes, como cetoconazol, de manutenção de 6 mg/kg/dia, durante 5 a 7 semanas.
que é menos tóxico do que o miconazol, e a anfotericina 13. A
dose do cetoconazol é de 200 a 400 mg VO, 1 vez/dia, por 14 a ■ Esofagite por herpes simples (EHS)
21 dias. Outro medicamento que tem demonstrado melhores Em 1940, Johnson foi o primeiro a descrever a esofagite cau
resultados, principalmente em pacientes imunodeprimidos, é sada pelo herpes-vírus. Na maioria das vezes, a infecção pelo HS
o fluconazol, administrado nas doses de 100 a 200 mg IV ou ocorre em pacientes imunodeprimidos, mas pode acometer in
VO no primeiro dia, em seguida 100 mg VO por um período divíduos saudáveis. Alguns estudos de necropsias revelaram que
de, no mínimo, três e, no máximo, 8 semanas. Na candidíase o herpes-vírus simples tipo 1 (HSV-1) foi encontrado em 0,4%
com sintomas sistêmicos, ou na forma disseminada, ameaçando dos indivíduos, mas, se fossem portadores de alguma doença
a vida, indica-se a anfotericina B IV, com ou sem flucitosina maligna, esta incidência aumentaria para 4%. A infecção eso-
VO. Nessa situação, o acometimento esofágico é parte de uma fágica pode ocorrer devido à contaminação da orofaringe pelo
agressão maior. vírus ou pela reativação do vírus já existente no indivíduo. Os
principais sintomas provocados pela EHS são disfagia, odinofa
■ Esofagite por outros fungos gia e dor retroesternal, podendo ainda ocorrer febre, náuseas e
Pode-se encontrar, principalmente em pacientes imunode vômito. A associação de lesão na cavidade oral pode se dar em
primidos, especialmente com AIDS, a colonização do esôfago até 29% dos pacientes e, mais raramente, podem ser encontra
por outros fungos além da Candida. Estes podem ser o Toru- das lesões na pele. Alterações esofágicas encontradas em estudo
lopsis glabrata, que se manifesta com a presença de úlceras no radiológico com bário não são específicas, podendo mostrar
esôfago, o Aspergillus sp, que apresenta manifestações clínicas nodulações difusas e pequenas úlceras. A EDA com biopsias é o
método de escolha para o diagnóstico da EHS (Prancha 12.1 B).
e achados endoscópicos semelhantes aos da Candida, e, mais
raramente, a mucormicose, a Exophiala jeanselmei e o Histo- O acometimento do esôfago pode ser segmentar ou difuso. A
apresentação clássica é a presença de pequenas lesões purpúreas
plasma capsulatum.
ou vesiculares, que evoluem para pequenas úlceras superficiais
com fundo enantematoso e halo de hiperemia, e que não aco
■ Esofagite por vírus metem a muscular da mucosa. Também são descritas úlceras
em forma de vulcão, devido ao processo inflamatório marginal.
■ Esofagite por Cytomegalovirus (ECMV) Algumas vezes, as úlceras podem ser confluentes, ocupando
A prevalência da infecção pelo Cytomegalovirus (CMV) na toda a circunferência do esôfago. Complicações como fístula
população adulta é alta. Esta infecção pode tornar-se sintomá esofagotraqueal e sangramento acentuado são situações raras.
tica em qualquer momento da vida, principalmente em perío A atividade da infecção é mais bem demonstrada através da
dos quando ocorre alteração da resposta imune do indivíduo. O histologia, cujas biopsias devem ser realizadas na borda das
CMV é um dos agentes infecciosos mais comuns que acometem úlceras, pois o epitélio adjacente a elas geralmente está intacto.
pacientes imunodeprimidos, como transplantados, aqueles em Evidencia-se processo inflamatório agudo ou crônico, fibrina e
uso de quimioterápico ou corticosteroides, mas a maior preva material necrótico. Em algumas situações, identifica-se invasão
lência se apresenta nos portadores de AIDS. Na patogênese da tecidual por herpes e monília. A confirmação da infecção viral
lesão pelo CMV, destaca-se o processo inflamatório, a necrose se dá através da cultura e pela presença das inclusões tipo A de
e lesões do endotélio vascular, ocasionando alterações isquê- Cowdry, além de técnicas imuno-histoquímicas. A sorologia
micas. Disfagia e odinofagia são os sintomas mais frequentes, confirma a infecção aguda. O tratamento pode ser conservador
podendo estar presentes em até 59% dos casos. Os pacientes em pacientes imunocompetentes, mas nos imunodeprimidos
podem ainda apresentar vômito, dor abdominal, febre, perda pode ser necessário o uso de drogas antivirais, como o aciclo-
de peso, diarréia e, menos frequentemente, a hemorragia di vir, 15 mg/kg/dia, durante 14 a 21 dias, IV. Por via oral, a dose
gestiva alta (HDA) em até 15%. Raramente, a HDA pode ser de deverá ser de 200 a 400 mg, 5 vezes/dia, durante 14 a 21 dias.
grande vulto. A principal forma de apresentação endoscópica da
infecção pelo CMV no esôfago corresponde a lesões ulceradas. ■ Esofagite pelo vírus da im unodeficiência hum ana (H IV)
Estas podem ser de tamanhos variados, únicas ou múltiplas, Algumas lesões da mucosa esofágica têm sido relacionadas
ocupando preferencialmente o terço médio e distai do esôfa com o vírus da imunodeficiência humana. Merece destaque uma
120 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos
enfermidade febril, aguda, semelhante à mononucleose, que incidência e importância em relação aos outros agentes infec
ocorre aproximadamente 2 semanas após a exposição ao vírus. ciosos que causam esofagite. Não apresentam grande prevalên
Os pacientes apresentam sintomas digestivos com náuseas, vô cia em paciente com AIDS, mas podem ser mais frequentes em
mito e diarréia. Podem, ainda, ter febre, mialgia e rush cutâneo pacientes com doenças hematológicas malignas e diabetes. Os
maculopapular. Quando presentes disfagia e odinofagia, o exa principais sintomas são disfagia e odinofagia, que podem estar
me endoscópico pode evidenciar alterações específicas da eso- acompanhadas de febre. São definidas histopatologicamente
fagite desencadeada por esse vírus. A EDA revela a presença de como a invasão bacteriana específica da mucosa ou de cama
úlceras profundas, únicas ou múltiplas, pequenas ou grandes, das mais profundas da parede esofágica, na ausência de outros
bem delimitadas, e encontradas mais frequentemente no terço agentes. A EB é descrita com maior frequência em pacientes
médio do órgão. O aspecto das úlceras é semelhante ao do CM V. imunodeprimidos cursando com neutropenia acentuada. Os
As biopsias realizadas na base das úlceras revelam a presença de agentes infecciosos mais frequentemente encontrados são os
HIV RNA em linfócitos e células mononucleares. Outros acha gram-positivos, como o Streptococcus viridans, Staphylococcus
dos à esofagoscopia em pacientes com AIDS são as denominadas aureus, Staphylococcus epidermidis e Bacillus sp. O estrepto-
úlceras idiopáticas, que apresentam o aspecto aftoide, com tama coco beta-hemolítico do grupo A pode acometer submucosa
nhos variados, bordas bem definidas, sem enantema ou edema, e muscular própria, levando à esofagite esfoliativa. Não existe
geralmente múltiplas, e ocupam preferencialmente o terço m é uma apresentação endoscópica clássica. Podem ser observadas
dio do esôfago. Vários métodos foram utilizados na tentativa de placas de exsudato, pseudomembrana, eritema, erosões san-
identificação do agente etiológico específico nessas lesões, sem, grantes, ou, mesmo, conservar a aparência normal da mucosa.
contudo, alcançar esse objetivo. As úlceras esofágicas causadas O tratamento deverá ser individualizado, mas, na maioria das
pelo HIV podem apresentar cura espontânea ou melhora dos vezes, poder-se-á usar ampicilina-sulbactam (1,5 a 3,0 g IV de
sintomas com o uso de sucralfato e corticoterapia. 8 em 8 h), ou amoxicilina-ácido clavulânico (0,5 a 1,0 g IV de
8 em 8 h), ou ticarcilina-ácido clavulânico (3,1 g IV de 4 em 4
■ Esofagite pelo vírus Epstein-Barr (EEBV) ou de 6 em 6 h).
O EBV é um vírus da família Herpes viridae e pode infectar
certos tipos de linfócitos B e células epiteliais, estando relacio
nado com a leucodisplasia pilosa oral e alguns linfomas, princi
■ Esofagite por protozoários
palmente em pacientes com AIDS. A EDA revela a presença de O achado de esofagite por protozoários é raro, observando-
úlceras profundas, localizadas principalmente no terço médio se publicações de casos isolados na literatura. Em pacientes
do esôfago e de formato linear. A histopatologia revela hiper- com infecção disseminada pelo Pneumocystis carinii, obser-
plasia epitelial e paraqueratose. Pacientes com EEBV apresen varam-se como alterações endoscópicas do esôfago áreas de
tam, como sintomas clínicos principais, disfagia, odinofagia, exsudato sobre ulcerações superficiais. A infecção do esôfago
dor torácica e emagrecimento. O tratamento é conservador, pelo Cryptosporidium sp, Leishmania sp e por Trypanosoma
com o desaparecimento das lesões espontaneamente. cruzi foi descrita em pacientes com AIDS e com alterações en
doscópicas inespecíficas.
■ Esofagite por micobactérias
A incidência da infecção por Mycobacterium tuberculosis
■ Acometimento do esôfago por radiação
vem aumentando nos últimos anos principalmente após a exa O esôfago sofre frequentemente ação da irradiação durante
cerbação da AIDS. O esôfago é raramente acometido, e este tratamento radioterápico de neoplasia do pulmão, de tumores
envolvimento se faz por contiguidade com os linfonodos me- do mediastino, de tumores torácicos e de cabeça e pescoço. A
diastinais. Por isso, o local de maior acometimento do órgão incidência é menor durante o tratamento radioterápico para
é a porção média, ao nível da carina. Clinicamente, a esofagite metástases de carcinoma de mama e de testículo, de linfomas
tuberculosa (ET) pode manifestar-se com sintomas de disfagia, e de carcinoma primário de células escamosas. O mecanismo
odinofagia, febre persistente, perda de peso, dor torácica, san- de ação da radiação para o tratamento das neoplasias consiste
gramento ou tosse, esta última consequente à formação de fístu- no dano direto ao DNA das células neoplásicas, ou indireto,
la esofagotraqueal, levando a pneumonias de repetição. Poucos através da produção de radicais livres, resultando na morte ce
casos têm sido descritos em que o esôfago é o foco primário. A lular. A dosagem e a frequência de exposição irão determinar a
apresentação endoscópica da ET pode ser variada, como uma sintomatologia aguda de esofagite, estando estes valores entre
ulceração irregular, ou com ulcerações múltiplas de coloração 2.500 e 6.000 rd. A esofagite actínica (EA) é muito frequente,
acinzentada, com fundo contendo material necrótico. Outra podendo chegar a 100% nos pacientes que receberam 6.000 rd
forma de apresentação é como lesão hipertrófica ou granular ou para tratamento de carcinoma broncogênico. Os sintomas da
como massa subepitelial. A forma ulcerativa é a mais comum, EA aguda são disfagia, odinofagia e dor torácica espontânea.
e todas as formas podem simular lesão neoplásica. Nas formas O início da sintomatologia é após a segunda semana de trata
mais avançadas, podem ser observadas compressões extrínsecas mento, apresentando melhora com a interrupção da irradia
e a presença de fístulas esofagotraqueais. As biopsias, realizadas ção. O estudo contrastado do esôfago é considerado normal na
nas bordas das úlceras, revelam granuloma caseoso e a presença maioria das vezes, notando-se apenas alterações na motilida-
do bacilo álcool-ácido-resistente. O tratamento é realizado com de esofágica. A apresentação endoscópica consiste em edema,
tuberculostáticos, e a resposta em pacientes com AIDS é baixa, hiperemia e friabilidade da mucosa, presença de erosões, ou
sendo a doença potencialmente fatal neste grupo. mesmo ulcerações, cobertas por exsudato (Prancha 12.1 C).
A longo prazo, podem ser encontradas alterações vasculares
da mucosa do esôfago. Não são encontradas alterações histo-
■ Esofagite bacteriana (EB) lógicas específicas na EA, e as biopsias revelam apenas sinais
As EB são causadas por um número grande de bactérias e inflamatórios agudos e crônicos. A destruição da barreira epi
raramente são suspeitadas. Por isso, não se sabe qual sua real telial predispõe à infecção oportunista, sendo mais frequente
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 121
a candidíase. Em algumas situações, o aspecto endoscópico aórtico, por exemplo) ou patológicas, em casos de cardiome-
da EA pode ser indistinguível das esofagites infecciosas. Nâo galia com aumento do átrio esquerdo; na primeira situação, a
se conhece uma maneira de prevenir as lesões esofágicas agu impactação é proximal, em torno de 22 a 24 cm da arcada den
das secundárias à radioterapia. Tem-se tentado, com algum tária superior (ADS), e, na segunda, aos 30 ou 35 cm da ADS.
entusiasmo, a amifostina, mas não há nenhuma conclusão. O Desordens da motilidade, como acalasia e espasmo esofágico
tratamento da EA é apenas de suporte, através de orientações difuso, também podem contribuir para essas lesões. Apesar de
dietéticas, e emprego de anestésicos tópicos a analgésicos. O muitos dos pacientes serem assintomáticos, observam-se odi-
sucralfato pode ser utilizado em pacientes com úlcera esofági- nofagia em 74%, dor retroesternal contínua em 72%, disfagia
ca. Não há evidências de benefícios com os bloqueadores H2, em 20% ou a combinação desses sintomas. Durante a entrevista,
ou inibidores de bomba de prótons, na prevenção ou melhora é de fundamental importância uma boa anamnese, incluindo
da EA. Tem sido descrito o uso de bloqueadores dos canais de o questionamento acerca de medicamentos em uso e sua for
cálcio para a diminuição do espasmo esofágico. O tratamento ma de administração. Dentre os exames complementares, o
recomendado para as estenoses de esôfago após radioterapia é exame radiológico contrastado do esôfago tem valor limitado,
a dilatação, levando à melhora da disfagia. Utilizam-se sondas evidenciando estenoses ou ulcerações em localizações atípicas.
de dilatação de Savary-Muller, que são guiadas por um fio me O exame de eleição, e que permite diagnóstico e documentação
tálico, passado sob controle endoscópico, e posicionando sua dos achados, é o endoscópico. Os achados macroscópicos são
extremidade distai no estômago. Nos casos de tumores primá variados: áreas focais de edema e enantema, erosões recobertas
rios, quando não ocorre resposta às dilatações, pode-se avaliar por fibrina e até ulcerações em paredes opostas do tipo kissing.
a possibilidade de colocação de endopróteses. A complicação Raramente, são encontrados segmentos estenosados ou obstru
mais temida das dilatações são as perfurações, que, de acordo ção inflamatória por agressão crônica. Nestes casos, é imperati
com estudos da literatura, estão entre 0,9 e 16%. Por isso, o cui vo estabelecer-se o diagnóstico diferencial com lesões neoplási-
dado deve ser maior, evitando-se forçar uma sonda de maior cas por meio de biopsias e estudo histopatológico. São também
calibre. A radioscopia pode ser de grande auxílio na colocação complicações raras a hemorragia e a perfuração. O tratamento
dessas sondas. Existe ainda relato de benefício com o uso de consiste na interrupção do uso da medicação e/ou na alteração
corticosteroide intralesional após as dilatações, para os casos do modo de sua administração, usando formulações líquidas,
refratários, mas faltam estudos controlados e com maior casuís diluindo o conteúdo de cápsulas ou triturando comprimidos,
tica para confirmação de sua eficácia. aconselhando um bom volume de água ao tomar comprimidos
e similares. A supressão ácida é útil como adjuvante. Sobretudo
em pacientes acamados, deve-se ter o cuidado de administrar
■ Esofagite por agentes químicos a medicação com maior volume de líquido e nunca com o do
ente completamente deitado. Caso se caracterize uma estenose,
■ Esofagite medicamentosa poderá estar indicada dilatação endoscópica.
Um grande número de drogas tem sido descritas como cau
sadoras de lesões esofágicas, apesar de as publicações provavel
mente subestimarem estes números. Embora as lesões possam ■ Esofagite por cáusticos (EC)
ocorrer por efeito sistêmico da medicação, o contato direto da As lesões esofágicas causadas pela ingestão de agentes cáus
substância com a mucosa esofágica é o principal fator de agres ticos de forma acidental ou como tentativa de autoextermínio
são. Cápsulas e comprimidos de determinadas drogas levam à vêm ocorrendo há mais de 200 anos. A incidência diminuiu
lesão da mucosa esofágica ao se dissolverem e permanecerem principalmente nos países desenvolvidos pelas medidas de se
em contato com a mucosa por período prolongado. Dentre as gurança adotadas pelos governos por meio de fiscalização da
drogas descritas, estão os antimicrobianos, doxiciclina, tetraci- forma de comercialização desses produtos, sua concentração e
clina e clindamicina. Outras comumente apontadas são ácido uso de embalagens com tampas de segurança, sendo estas me
acetilsalicílico, cloreto de potássio, sulfato ferroso, ácido ascór- didas fundamentais para o grupo etário infantil. O primeiro
bico, quinidina e vários agentes anti-inflamatórios esteroides e país a se preocupar com esses acidentes foram os EUA, em
não esteroides (AINE). O alendronato de sódio (Prancha 12.1 1927, tendo o governo adotado uma lei federal para os produ
D), usado no tratamento e prevenção de doenças metabóli- tos cáusticos. Esta foi idealizada por Chevalier Jackson, consi
cas ósseas, tem indubitável associação com lesões esofágicas derado um dos pais da endoscopia. Atualmente, nos países em
(erosões e úlceras nos terços médio e inferior e estenoses), po desenvolvimento, apesar de não termos uma estatística oficial,
dendo causar lesões gástricas semelhantes àquelas provocadas estes acidentes ainda são frequentes. Tem-se observado que a
por AINE. As doenças esofágicas têm maior prevalência na cada dia eles estão mais graves devido ao aumento da concen
população idosa e se manifestam por sintomas variados, como tração de ácidos ou álcalis nos produtos de limpeza doméstica,
dor torácica, disfagia e queimação retroesternal. Em função da na tentativa das indústrias em mostrar que seu produto é mais
maior utilização de medicamentos nessa faixa etária, a exacer eficiente. Em alguns países, ainda se cultiva o hábito da produ
bação de queixas esofágicas preexistentes poderá estar associada ção artesanal de sabão domiciliar, com a utilização de soda
à esofagite induzida por drogas. O fato, muitas vezes notado, cáustica (NaOH) para saponificar gorduras animais. Após a
de a medicação ser administrada com pequena quantidade de produção do sabão, o corrosivo é armazenado de forma inade
líquido e a posição de decúbito dorsal assumida pelo paciente quada, na maioria das vezes em recipientes de refrigerantes,
logo após a ingestão relacionam-se com a indução das lesões. que ficam ao alcance das crianças, que o ingerem acidental
Correlacionam-se também à maior chance de lesões caracte mente. Estes fatos levam as vítimas a tratamentos que duram
rísticas individuais do medicamento, como o grande tamanho anos, com dilatações de estenoses de esôfago periodicamente,
de alguns, o formato arredondado e plano de outros, a baixa tirando adultos do mercado de trabalho, crianças das escolas,
densidade e a rápida solubilidade e, sem dúvida, suas proprie além do elevado custo de tratamento para as empresas privadas
dades químicas. Aspectos anatômicos do esôfago devem ser de seguro saúde e para o sistema público de saúde, principal
ressaltados, como as compressões esofágicas fisiológicas (arco mente (Prancha 12.1 E). Tem-se discutido muito sobre a pato-
122 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos
gênese das lesões provocadas pelos cáusticos. Podem-se dividir ocorre com os produtos alcalinos. Os tecidos conectivos da
os produtos que levam a maior dano em dois grandes grupos: submucosa degeneram e são infiltrados por linfócitos; as fibras
os ácidos fortes e as bases fortes. Os ácidos provocam necrose musculares são acometidas de formas variadas, necrosando
por coagulação, e as bases, necrose por liquefaçâo. A necrose por quando ocorre o acometimento de toda a parede. Entre o se
liquefação acomete a parede do órgão de um lado ao outro, gundo e o quarto dia, há regressão da neoformação vascular e
sendo profunda e extensa. A necrose por coagulação leva à for da migração de fibroblastos. Entre o quarto e o sétimo dia,
mação de uma camada coagulada, que, de certa forma, age ocorre a conclusão da escara necrótica, com regressão do pro
como proteção da área lesada, limitando a extensão da lesão. cesso de cicatrização precoce ou granulação. Os riscos de per
Mesmo assim, pode acometer toda a parede do órgão. Existem furação são maiores nesse período. Até o final da segunda se
algumas variáveis que dificultam uma avaliação prognóstica, mana, as áreas acometidas são cobertas por tecido de
baseada apenas nos dados clínicos. Entre elas, estão a quanti granulação e inicia-se a fase de cicatrização. O processo de re-
dade do produto ingerido, a sua forma de apresentação, líqui epitelização ocorre no decorrer das próximas 4 semanas, e a
da ou sólida, a sua concentração, o tempo de contato do cor deposição de colágeno pelos fibroblastos é responsável pela
rosivo com a mucosa do trato gastrintestinal, a presença de cicatrização. O processo de retração cicatricial continua por
alimentos no estômago após a ingestão, medidas tomadas após meses e, frequentemente, resulta em estenose. Estes podem
o acidente, como estímulo de vômito, e o acometimento das variar de discreta sintomatologia, com apenas dor na cavidade
vias respiratórias pelo corrosivo através de sua aspiração. Os oral, até quadros de toxemia generalizada com sinais de perfu
acidentes provocados pela forma de apresentação sólida acar ração visceral. O quadro clínico da esofagite causada por estes
retam um maior número de lesões em orofaringe e supraglote. agentes pode ser dividido em três etapas distintas. A primeira
Pela limitação natural à ingestão de grandes quantidades, de etapa, ou fase aguda, vai desde a ingestão do produto até o de
sencadeiam lesões de menor gravidade. Por outro lado, as for saparecimento dos sintomas inflamatórios. Caracteriza-se pela
mas líquidas, por não apresentarem odor ou sabor, proporcio presença de lesões na cavidade oral, como edema e hiperemia
nam ingestão de um maior volume, resultando em lesões com de mucosa, presença de ulcerações com exsudato purulento,
maior gravidade. Essas substâncias ainda podem causar lesões que se traduzem em dor local, disfagia, salivação abundante e
mais extensas e em toda a circunferência do esôfago, pelo seu halitose. A hemorragia digestiva alta, manifestada sob forma
total contato com a superfície luminal do órgão. O estômago é de hematêmese, geralmente é de leve intensidade, mas, em cer
acometido em apenas 20% de todas as ingestões de substâncias tas ocasiões, pode ser maciça pela penetração das úlceras em
alcalinas. A concentração dos produtos cáusticos é importante vasos esofágicos ou gástricos mais calibrosos, ou ainda pelo
fator de prognóstico e gravidade da lesão. No Brasil, os produ estabelecimento de uma fístula aortoesofágica. Quando a quei
tos são comercializados na concentração de 20 a 40%. Estudos madura atinge a glote, podem-se observar sintomas respirató
mostraram que uma breve exposição, de 10 segundos, de NaOH rios, como respiração ruidosa, e, em caso de aspiração, a evo
diluída a 3,8% pode lesar a mucosa e a submucosa. A concen lução para broncopneumonia. Em casos de queimaduras
tração deste produto a 10% pode lesar as camadas musculares acentuadas do esôfago, pode estar presente a dor retroesternal.
do esôfago. Lesões transmurais ocorrem em poucos segundos Nos casos mais graves, podem ser observadas alterações sistê
de exposição a NaOH a 22,5%. O estímulo do vômito após a micas como febre, desidratação, taquicardia, taquipneia, hipo-
ingestão do corrosivo é fator importante de agravamento da tensão e choque séptico. Uma segunda fase, descrita por alguns
lesão esofágica. Pacientes e familiares adotam essa medida na autores como de cura aparente, inicia-se após o desprendimen
tentativa de que, expulsando o produto do organismo, atenu to do tecido necrótico, permitindo ao paciente a ingestão de
ariam a lesão. Com o vômito, o agente cáustico entra novamen líquidos e alimentos pastosos. Neste período, a dor desaparece,
te em contato com a mucosa esofágica, provocando nova ex e esta fase é compreendida entre 4 e 8 semanas. Nela, muitos
posição do órgão ao agente agressor, aumentando o tempo de pacientes, e mesmo alguns médicos, consideram que o pacien
exposição e, consequentemente, maior queimadura. As solu te está curado. A terceira e última etapa consiste na formação
ções ácidas, como o ácido muriático, utilizadas para limpeza da estenose cicatricial. A disfagia volta a aparecer, torna-se pro
de superfícies metálicas são responsáveis por um número m e gressiva, acompanhada de regurgitações e emagrecimento. To
nor de acidentes. Esta menor prevalência pode estar relaciona das as vítimas de acidentes cáusticos, que apresentem qualquer
da com o menor número de produtos de limpeza com essas sinal ou sintoma de lesão, devem ser submetidas à endoscopia
substâncias, em relação às bases, e com o gosto desagradável e digestiva alta. Alguns autores defendem a não realização do
odor acentuado desses compostos. Os ácidos são mais frequen exame em pacientes assintomáticos e sem evidência de lesão
temente associados a lesões gástricas, pois o esôfago apresenta superficial em orofaringe. É importante lembrar que em 20%
fatores de proteção, como a necrose por coagulação e a habili dos pacientes sem lesão de orofaringe pode estar presente a
dade do epitélio escamoso estratificado em resistir aos ácidos. lesão de esôfago, e que há uma pobre correlação entre a sinto
Outros agentes disponíveis no comércio podem ser potencial matologia e as queimaduras parciais, que podem resultar em
mente perigosos. Entre eles, estão alvejantes domésticos, pinhas estenose, sendo este um legítimo argumento para a realização
alcalinas tipo “botão” que contêm hidróxido de sódio ou po de endoscopia em todos os casos. Outros autores alegam que,
tássio em concentrações que variam de 26 a 45%, limpadores se estes pacientes residem em países em desenvolvimento onde
e desinfetantes que contêm fenol, agentes cosméticos usados não existe controle de segurança na comercialização destes pro
para alisar cabelos, amônia e detergentes iônicos. Dentro da dutos, a endoscopia deve ser sempre realizada. O exame endos-
fisiopatologia das lesões provocadas pelos cáusticos, alguns as cópico é o método propedêutico indicado na fase aguda da
pectos evolutivos devem ser de conhecimento dos profissionais esofagite química, por fornecer as características das lesões e
que atenderão esses pacientes. A ação do cáustico no trato di permitir definição de grupos de risco para necrose e estenose.
gestivo ocorre nos dois primeiros dias após a ingestão. Uma A endoscopia não deve ser realizada muito precocemente, an
intensa reação inflamatória provocando eritema e edema das tes de 12 h do acidente, pois pode-se subestimar a alteração
camadas superficiais, evoluindo com trombose vascular, infil devido à ação de o corrosivo persistir por mais tempo, deven
tração bacteriana, morte celular e saponificação gordurosa, do ser realizada entre 24 e 48 h depois da ingestão do produto.
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 123
Até há alguns anos, a endoscopia realizada na fase aguda era do uso de agentes pró-cinéticos, inibidores da secreção ácida
temida devido aos riscos de perfuração visceral. Com o desen do estômago nem do sucralfato, que são empregados em mui
volvimento dos equipamentos, o uso de drogas anestésicas e tos serviços com a justificativa de melhorar a sintomatologia
técnicas endoscópicas mais sofisticadas, o procedimento é con do paciente. Algumas complicações podem ocorrer nos pri
siderado muito seguro. Apesar de alguns autores contraindi- meiros dias após o acidente, dentre elas o acometimento das
carem a endoscopia após 48 h do acidente, pelo risco maior de vias respiratórias, provocando obstrução à passagem de ar,
perfuração, a maioria concorda que a definição do exame en- quando localizadas na laringe, e a ocorrência de pneumonia
doscópico levará a maior benefício. Os estudos realizados por bacteriana nos casos de aspiração. Uma das complicações mais
Zargar et al. (1989) permitiram relacionar os graus de lesões à temidas é a lesão completa do órgão com ou sem perfuração,
possibilidade de evolução com estenose e/ou perfuração do que necessita de intervenção cirúrgica agressiva. A perfuração
esôfago. Segundo o autor, grau 0 seria o exame normal; grau 1, do esôfago pode ocorrer a qualquer tempo durante as primei
edema e hiperemia de mucosa; grau 2A, ulcerações superficiais, ras 2 semanas do acidente, podendo ser abordada de forma
erosões, friabilidade, bolhas, exsudato e hemorragia; grau 2B conservadora em algumas situações, mas na maioria requer
seria o grau 2A acrescido de ulcerações pouco profundas ou tratamento cirúrgico e o emprego de nutrição parenteral. O
circunferenciais, e grau 3, múltiplas ulcerações profundas e tratamento na fase tardia consiste em dilatações das estenoses,
extensas áreas de necrose. Foi observado em pacientes com correções cirúrgicas e, mais recentemente, tem-se descrito a
queimaduras de graus 0,1 e 2A, que não progrediam para es colocação de endopróteses autoexpansivas e removíveis (Pran
tenose. Já os pacientes com graus de queimadura 2B e 3 apre cha 12.1 F e G). As dilatações endoscópicas estão indicadas em
sentaram alta probabilidade de evolução para estenose ou per casos de disfagia, assim como na situação em que a dificuldade
furação do órgão, principalmente quando ocorriam lacerações do trânsito alimentar através do esôfago ocasiona broncoaspi-
profundas de coloração enegrecida, que correlacionaram com ração, principalmente no período noturno. A repetição dos
necrose transmural e possibilidade de perfuração iminente ou procedimentos de dilatação deve ser baseada na avaliação mé
presente. Alguns estudos recentes têm demonstrado maior acu- dica, na satisfação do paciente com sua deglutição, em seu es
rácia na avaliação das lesões agudas através da ecoendoscopia. tado nutricional e, em crianças, de acordo com a ingestão de
Este procedimento tem se mostrado eficaz na definição da pro tipos de alimentos preconizados para cada faixa etária. Cada
fundidade das lesões, sendo capaz de prever com maior sensi estenose apresenta características próprias, necessitando de
bilidade uma possível evolução para estenose, mas é um exame estudo cuidadoso antes do início do tratamento. Deve-se ava
de custo elevado e pouco disponível no nosso meio. Na fase liar a história clínica do paciente, seu estado nutricional e o
tardia, o aspecto endoscópico não segue uma classificação ri estudo radiológico contrastado. Este último torna-se extrema
gorosa, porém deve obedecer a uma orientação clássica de aná mente importante nas estenoses por cáusticos, pois elas podem
lise do calibre, trajeto e distensibilidade das paredes do órgão, acometer mais de um segmento do esôfago, informação esta
além das características do anel estenótico, extensão, diâmetro, importante no cuidado durante a passagem do fio que guiará
consistência e lesões associadas. A abordagem terapêutica pode as sondas de dilatação. Todos os pacientes a serem submetidos
ser específica para a fase aguda da esofagite cáustica e para a à dilatação devem ser sedados de forma habitual, tomando-se
fase tardia, em que a dilatação das estenoses esofágicas com o cuidado para que a sedação não seja muito profunda, a fim
auxílio da endoscopia é o procedimento mais utilizado. Na re- de permitir a comunicação entre o endoscopista e o paciente,
fratariedade às dilatações, a correção cirúrgica é indicada. Jun no sentido de avaliação da dor desencadeada pelo procedimen
to com as medidas iniciais, deve-se obter o maior número de to. Nas crianças, as dilatações, na grande maioria das vezes, são
informações a respeito da substância e da quantidade ingerida. realizadas sob anestesia geral. Os dilatadores mais empregados
Exames complementares devem ser solicitados somente nas atualmente são os termoplásticos de Savary-Gilliard e similares.
formas graves, em que ocorrem distúrbios hidreletrolíticos, São de material plástico especial semirrígido de polivinil, do
acidobásicos e infecciosos. Radiografias de tórax e abdome de tado de um canal coaxial por onde passa o fio-guia de aço. Este
vem ser solicitadas na suspeita de perfuração visceral, e estudo sistema é composto de dilatadores com pontas afiladas e diâ
contrastado não deve ser realizado na fase inicial. As condutas metro externo que varia de 15 a 60 Fr. Por serem radiopacos,
imediatas, como em outras emergências, baseiam-se em asse esses dlatadores podem ser empregados com auxílio da radios-
gurar e manter vias respiratórias pérvias, os sinais vitais, cor copia, especialmente nas estenoses complexas, que também
reção de distúrbios hidreletrolíticos e atenuação da dor. Devem- apresentam dificuldades na passagem do fio-guia a ser posicio
se lavar com água fria a face e a boca para a retirada de qualquer nado no estômago. Dilatadores metálicos foram empregados
partícula de cáustico residual. A lavagem gástrica e o uso de durante muitos anos; entre eles, destacam-se os de Eder Pues-
produtos neutralizantes devem ser desincentivados devido ao tow, que são compostos de ogivas metálicas de diâmetros que
risco de complicações como vômito, aspiração e a provocação variam de 21 a 53 Fr. Elas são interpostas em uma haste metá
de reação com liberação de calor, podendo danificar tecidos lica com uma ponta flexível de mola. Seu funcionamento é se
subjacentes. O uso de corticoterapia sistêmica nessa fase é con melhante aos dilatadores de Savary-Gilliard, guiados por um
troverso, embora alguns autores o indiquem, principalmente fio metálico. Em algumas situações especiais, como em esteno
quando existe o acometimento das vias respiratórias. O uso de ses muito rígidas e naquelas em que se deseja progredir o diâ
antibioticoterapia é reservado para os casos em que esteja con m etro da dilatação mais lentamente, os dilatadores de Eder
firmada infecção bacteriana secundária. A passagem de sonda Puestow ainda são empregados. Os dilatadores de Tucker tam
gástrica também é controversa. Alguns autores acham obriga bém são reservados para situações especiais. São dilatadores de
tório esse procedimento nos casos graves, com grau 2B ou 3 de borracha que apresentam as duas extremidades afiladas com
Zargar, com o objetivo imediato de impedir a distensão gástri um fio de seda fixado nestas. Reservado também para as este
ca, além de possibilitar a realimentação precoce, principalmen noses multissegmentares em que existe dificuldade na passagem
te em crianças. O uso da sonda para a prevenção de estenose do fio-guia. Outra vantagem desses dilatadores é que eles po
já foi muito discutido, mas nenhum estudo comprovou a sua dem ser passados de forma anterógrada ou retrógrada. A des
eficácia. Não existem estudos controlados mostrando benefício vantagem é que se necessita de gastrostomia, por onde passa o
124 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos
Prancha 12.1 Lesões do esôfago causadas por infecção, radiação e substâncias químicas. (Estas figuras encontram-se reproduzidas em cores
no Encarte.)
A. Esofagite por monília.
B. Esofagite herpética.
C. Esofagite actínica.
D. Esofagite por alendronato.
E. Queimadura por cáustico.
F. Prótese esofágica.
G. Criança de 7 anos de idade, portadora de estenose cáustica do esôfago, sem melhora após 3 anos de tratamento por dilatação. Colo
cou-se esta prótese, que foi mantida por 4 meses. Ainda sob observação, porém não mais necessitando de dilatação.
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 125
fio de seda que será fixado aos dilatadores para a sua condução. Wciss, sindrome de Bocrhaavc c outras afecçõcs raras. Em: Castro, LP &
Dilatadores tipo balão, pneumáticos ou hidrostáticos, foram Coelho, LGV. Gastrcntcrologia. Medsi Editora Médica c Cientifica Ltda.,
Rio de Janeiro, 2004.
desenvolvidos com base no princípio da aplicação exclusiva da Andrcn, L & lheander, G. Rocntgcnographic appcaranccs of csophagcal monili-
força radial, visando a mesma eficiência e segurança obtidas asis. Acta Radiol, 1956; 46:571-4.
pelos citados anteriormente. Os balões são confeccionados de Arora, AS & Murray, JA. Iatrogcnic csophagitis. Curr Gastroenterol Rep, 2000;
material derivado do poliuretano, apresentando boa distensi- 2:224-9.
bilidade e resistência. Estão disponíveis em vários diâmetros e Bahcr, PH & McDonald, GB. Esophagcal infcction: risk factors, presentation,
diagnosis and treatment. Gastroenterology, 1994; 106:509-32.
comprimentos, e são acoplados a manômetros que quantificam Baucr, DC, Black, D, Ensurcd, K et al. Uppcr gastrintcstinal tract safety profile
a pressão desejada. Eles são introduzidos pelo canal de trabalho of alendronate: thc fracturc intervention trial. Arch Internai Med, 2000;
dos endoscópios, sendo possível a visualização direta pelo en- 160:517-25.
doscopista durante o procedimento. Não existem estudos de Bhutani, MS, Usman, N, Shenuy, V et al. Endoscopic ultrasound miniprobc-
monstrando maior segurança e eficácia desses dilatadores. Deve guided steroid injcction for treatment of rcfractory csophagcal stricturcs.
Endoscopy, 1997; 29:757-9.
ainda ser salientado o elevado custo desses balões no nosso Broto, J, Arsensio, M, Vcrnct, JMG. Results of a ncw technique in the treat
meio, e a sua utilização, praticamente única, lembrando que as ment of severe csophagcal stenosis in childrcn: poliflex stents. / Pediatr
estenoses cáusticas necessitam de inúmeras dilatações. Alguns Gastroenterol Nutr, 2003; 37:203-6.
estudos demonstraram o benefício do uso de corticosteroide Eras, P, Goldstcin, MJ, Shcrlock, P. Candida infcction of thc gastrintcstinal tract.
intralesional após as dilatações. Sua ação estaria na inibição da Medicine, 1972;51:367-79.
Ertckin, C, Alimoglu, O, Akyildiz, H et al. Thc results of caustic ingestion.
síntese de colágeno. Especialmente nas estenoses cáusticas, ne-
Hepatogastroenterology, 2004; 51:1397-400.
cessita-se de estudos controlados e com maior número de casos Galvão-Alves, J & Braga, DC. Esofagitc infecciosa. Em: Galvão-Alves, J & Dani,
para avaliarmos sua real eficácia. Estudos mais recentes utili R. Terapêutica cm Gastrcntcrologia. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro,
zaram a ecoendoscopia com miniprobe para direcionar o local 2005.
da injeção. Outra alternativa de tratamento das estenoses cáus Graham, DY & Malaty, HM. Alendronate gastric ulccrs. Aliment Pharmacol
Vier, 1999; 13:515-9.
ticas de esôfago seriam as endopróteses. Estudo recente de
Griga, T, Duchna, HW, Orth, M et al. Tuberculous involvement of thc oesopha-
monstrou resultados encorajadores com a colocação de próte gus with ocsophagobronchcal fistula. Dig Liver Dis, 2002; 34:528-31.
ses autoexpansivas e removíveis em crianças. Das 10 crianças Gumasckaran, TS & Namachivayan, N. Dilficult csophagcal stricturcs: Role of
que participaram daquele estudo, cinco delas tiveram a reso endoscopic application of topical Mitomycin. Gastrintestinal Endoscopy,
lução da estenose em um período de acompanhamento de 4 a 2005:61 AB 307.
Hamza, AF, Abdclhay, S, Shcrif, H et al. Caustic esophagcal stricturcs in chil
19 meses. Em três pacientes, foram recolocadas as próteses, e
drcn: 30 ycars experiencc. / Ped Surg, 2003; 38:828-33.
dois estavam em observação após elas serem retiradas. O tem Hirota, S, Tsujino, K, Hishikawa, Y et al. Endoscopic findings of radiation
po de permanência das próteses variou de 20 a 133 dias, com csophagitis in concurrent chcmoradiothcrapy for intrathoracic malignan-
boa tolerância por todas as crianças. Outros estudos, contudo, cics. Radiother Oncol, 2001; 58:273-8.
não conseguiram demonstrar estes resultados. Estudos com Huang, YC, Ni, YH, Lai, HS, Chang, MH. Corrosivc csophagitis in childrcn.
Pediatr Surg Int, 2004; 20:207-10.
plementares, e com maior tempo de seguimento, poderão de
Itoh, T, Takahashi, T, Kusaka, K et al. Herpcs simples csophagitis from 1307
finir melhor esta nova modalidade terapêutica. Alguns relatos autopsy cases. Gastroenterol Hepatol, 2003; 18:1407-11.
de casos têm sido publicados com o uso tópico da mitomicina Jaspcrscn, D. Drug-induccd ocsophagcal disorders: pathogcncsis, incidcnce,
após a dilatação. Este medicamento impediría a proliferação prevention and management. DrugSaf, 2000; 22:237-49.
da formação cicatricial diminuindo a frequência da reestenose. Kamijo, Y, Kodo, I, Kokuto, M et al. Miniprobe ultrasonography for determining
Quando todas as alternativas endoscópicas de tratamento das prognosis in corrosivc csophagitis. Am / Gastroenterol, 2004; 9:851-4.
Kantrowitz, PA, Flcischli, DJ, Butlcr, WT. Successful treatment of chronic
estenoses de esôfago falharam, cabe o tratamento cirúrgico. Em csophagcal moniliasis with a viscus suspension of nystatin. Gastroenterol-
épocas passadas, muitos autores consideravam que a melhor ogy, 1969;57:424-30.
forma de tratamento inicial desses casos era a cirurgia. Atual Kikcndall, JW. Pill csophagitis. / Clin Gastroenterol, 1999; 28:298-305.
mente, considera-se que se deve fazer o maior esforço para Kodsi, BE, Wickremcsinghc, C, Kozinn, PJ et al. Candida csophagitis: A pros-
obter a reparação do esôfago através das dilatações. Mas alguns pcctivc study of 27 cases. Gastroenterology, 1976; 71:715-9.
Konda, K, Kumck, K, Yoshikawa, I et al. Cytomcgalovirus csophagitis with
autores consideram que, se o paciente necessita de dilatações massive uppcr-GI hcmorrhage. Gastrointest Endosc, 2004; 59:741-3.
em intervalos menores que 21 dias após 3 meses de tratamen Kotanidou, A, Adrianakis, I, Mavroummatis, A et al. Mcdiastinal mass with
to, deveria ser candidato a esofagocoloplastia. Outros conside dysphagia in an cldcrly patient. Infection, 2003; 31:178-80.
ram que este tempo seria acima de 1 ano. Aproximadamente Laine, L, Drctlcr, RH, Conteas, CN et al. Fluconazol comparcd with cetoconazol
15% de todos os pacientes tratados irão apresentar estenose for thc treatment of Candida csophagitis in AIDS. A randomized trial. Ann
Intern Med, 1992; 117:655-60.
refratária a todos os tipos de terapia. Além disso, deve-se ana Mosimann, F, Cuenoud, PF, Stcinhauslin, F, Wautcrs JP. Herpes simples cso
lisar à parte o grupo de pacientes pediátricos, pois o resultado phagitis after renal transplantation. Transpl, 1994; 7:79-82.
cirúrgico a longo prazo das crianças difere daquele dos pacien Mulhal, BP, Nelson, B, Rogcrs, L, Wong, RK. Hcrpctic csophagitis and intrac-
tes adultos. Cuidados tardios devem ser lembrados para os pa tablc hiccups (singultus) in an immunocompctcnt patient. Gastrointest
cientes que em algum período da vida apresentaram queima Endosc, 2003; 57:796-7.
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dura do esôfago por corrosivos. Após 20 anos do acidente, os
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pacientes devem submeter-se a EDA com cromoscopia com Pazin, GJ. Hcrpcs simples csophagitis after trigcminal nerve surgery. Gastro
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área fibrótica, objetivando a detecção precoce de câncer nesse Pcnnazio, M, Arrigoni, A, Spadrc, M et al. Endoscopy to dctcct oral and oc
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126 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos
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Corpos Estranhos, Perfurações,
Hérnias Diafragmáticas, Síndrome
de Boerhaave, Lesões Causadas
por Comprimidos e Síndrome
de Mallory-Weiss
David Corrêa Alves de Lima, Silas de Castro Carvalho, Rodrigo Macedo Rosa
e Luiz Ronaldo Alberti
127
128 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas
Figura 13.1 Corpo estranho pontiagudo (agulha) no antro gástrico. Figura 13.3 Corpos estranhos rombudos. (Cortesia do Professor Dul-
(Arquivo dos autores.) mar Garcia de Carvalho.)
A endoscopia é o método ideal tanto para se estabelecer o 12 h (Figura 13.3). Conduta conservadora deve ser realizada
diagnóstico, quanto para a proposta terapêutica. Salvo em si naqueles objetos que alcançam o estômago. A maioria deles
tuações de emergência, deve-se respeitar o período mínimo de será eliminada em 4 a 6 dias, ainda que alguns estejam presentes
6 h de jejum para se realizar o exame. O risco de aspiração du por até 4 semanas. Enquanto se espera a passagem espontânea,
rante o procedimento é grande, portanto o auxílio de um anes- os pacientes são orientados a continuar com dieta normal, e,
tesiologista faz-se necessário em algumas situações. Anestesia na ausência de sintomas, radiografias semanais são suficientes
geral com intubação orotraqueal pode ser necessária nos casos para o acompanhamento. Objetos que não migram do estôma
demorados e com risco aumentado de aspiração. Existem aces go após 4 semanas ou que permanecem na mesma localização
sórios que podem auxiliar o endoscopista na retirada dos CE. devem ser retirados endoscopicamente. Sintomas como febre,
A experiência e o bom-senso do endoscopista são duas grandes vômitos ou dor abdominal são indicações para cirurgia.
armas para o sucesso da terapêutica (Figura 13.2).
O conhecimento da natureza do CE é importante para se ■ Objetos cortantes e pontiagudos
estabelecer a conduta. Podemos dividir os CE em seis grupos,
Neste grupo, os mais comuns são os ossos de galinha, es
descritos a seguir.
pinhas de peixe, próteses dentárias, pedaços de vidro, agulhas
■ Objetos longos e pregos. São os responsáveis pela maior incidência de com
plicações, podendo chegar a 35%. A endoscopia deve ser rea
Objetos maiores que 6 a 10 cm terão dificuldade em passar
lizada nas primeiras 6 h. A laringoscopia poderá ser utilizada
pelo duodeno e deverão ser retirados. O uso do overtube facilita
quando os CE estão localizados acima do músculo cricofarín-
a retirada após a apreensão desses objetos.
geo (Figura 13.4).
■ Objetos rom budos
Moedas, esferas e outros objetos semelhantes são os mais ■ Bolo de alim entos
comuns, e a população pediátrica é a que apresenta maior inci A impactação de alimentos é uma complicação esperada
dência de acidentes. Quando não progridem espontaneamente quando se tem alteração do calibre do esôfago por estenoses
nas primeiras horas para o estômago e ficam impactados no ou acalasia. Não se trata de uma emergência, e a endoscopia
esôfago, devem ser retirados pela endoscopia nas primeiras poderá ser realizada dentro das primeiras 24 h após o evento, a
■ Pacotes de narcóticos
A utilização do tubo digestório para o transporte de drogas
ilícitas tem sido constatado nos dias atuais. A pessoa ingere
propositalmente pacotes ou cápsulas contendo drogas em seu
interior, com o intuito de serem eliminados posteriormente. O
tempo gasto entre a ingestão até a sua eliminação é o suficien
te para a pessoa passar por postos de fiscalização. Devido ao
grande risco de ruptura destes pacotes e liberação de grandes
quantidades de drogas, o tratamento endoscópico não é reco
mendado, devendo-se optar pelo tratamento cirúrgico.
■ PERFURAÇÕES
As perfurações esofágicas são classificadas em dois grupos. O
primeiro deles inclui as perfurações espontâneas, descritas mais
adiante neste capítulo, e também conhecidas como síndrome
de Boerhaave. O outro grupo engloba as perfurações traumá
ticas, as iatrogênicas e as relacionadas com doenças esofágicas.
Dentre as doenças que levam à perfuração, destacam-se: neopla-
sias esofágicas avançadas, linfoma de esôfago, úlcera de Barrett,
carcinoma broncogênico, leiomioma, aneurismas dissecantes e
ruptura de anel esofágico inferior. As infecções do esôfago tam
bém podem causar perfuração, ocorrendo mais comumente em
pacientes imunodeprimidos, tendo como agentes etiológicos:
citomegalovírus, herpes simples e monilíase.
Com relação aos corpos estranhos, são encontrados objetos
e alimentos pontiagudos como ossos e espinhas, fragmentos de
vidro ou objetos metálicos. Nestes casos, a perfuração pode ser
Figura 13.4 Corpos estranhos pontiagudos. (Cortesia do Professor imediata ou tardia. O corpo estranho leva a processo inflama-
Dulmar Garcia de Carvalho.) tório reacional com infecção, necrose, perfuração ou migração
através da parede. Este tipo de perfuração é menos frequente
do que as iatrogênicas. Com o advento da endoscopia flexível,
essas perfurações se tornaram raras, especialmente quando da
menos que esteja associada à queixa de disfagia total e a grande realização de endoscopia diagnóstica, variando sua incidência
desconforto. O diagnóstico de estenose esofágica muitas vezes de 0,0003 a 0,01%.
é feito depois do primeiro episódio de impactação alimentar. Alguns procedimentos endoscópicos predispõem à perfura
O bolo alimentar pode ser retirado com o uso de acessórios ou ção, destacando-se a retirada de corpos estranhos e a dilatação
introduzido suavemente para o estômago em algumas situações. de estenoses, tanto para lesões benignas quanto para malignas.
Enzimas proteolíticas, como a papaína, não devem ser usadas Durante a ressecção de tumores por meio de mucosectomias,
por estarem associadas a hipernatremia, erosão e perfuração pode ocorrer perfuração, tendo em vista a parede ser mais fina
esofágica. Deve-se lembrar da utilização do overtube com a fi e não ter camada serosa. Outras terapêuticas endoscópicas, tais
nalidade de se preservarem as vias respiratórias e a hipofaringe, como escleroterapias, uso de sondas de calor, e mesmo terapêu
quando da retirada do bolo alimentar ou quando da retirada tica com laser ou radiofrequência, podem levar à perfuração.
de múltiplos CE por endoscopia. O uso de overtube em procedimentos endoscópicos tam
bém está acompanhado de maior risco de perfuração devido
■ Baterias ao traumatismo pela extremidade do tubo, levando à laceração
A ingestão de pequenas baterias é considerada uma emer da mucosa. Entretanto, não se observam complicações rela
gência, e a endoscopia deverá ser realizada nas primeiras horas, cionadas com realização da via anterógrada de enteroscopia
não se respeitando o prazo de 6 h do jejum, sendo as crianças as de mono e duplo balão. É também citada perfuração causada
principais vítimas. Por serem pequenas e esféricas, à semelhança pelo uso do balão de Sengstaken-Blakemore, durante intubação
de comprimidos, passam rapidamente pelo esôfago. Causam orotraqueal e passagem de cateter nasogástrico. A perfuração
dois tipos de lesões: o primeiro por queimadura elétrica atra durante passagem de sondas ocorre mais comumente quando
vés do contato direto com a mucosa esofágica e o segundo por existem divertículos esofágicos. A introdução do endoscópio
liberação de substâncias químicas (lítio, mercúrio, zinco e ou em divertículo de Zenker, durante a passagem do aparelho com
tros) após corrosão pelo suco gástrico. Baterias que alcançam objetivo diagnóstico, ou na terapêutica desta condição, está as
o estômago não precisam ser retiradas, a menos que os pacien sociada a índices expressivos de perfuração. A perfuração ao
tes apresentem sinais e sintomas de complicações ou que elas nível do esôfago cervical, quando tratada em tempo hábil, tem
permaneçam na cavidade gástrica por mais de 48 h. Em cerca bom prognóstico.
de 85% dos casos, as baterias são eliminadas em 72 h. Uso de As perfurações iatrogênicas são responsáveis por cerca de
eméticos, catárticos ou inibidores de bomba protônica não se 55% das perfurações esofágicas. Em uma longa série de pacien
mostrou eficaz. tes submetidos à esofagoscopia, a incidência de perfuração foi
130 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas
de 1,7% (17 casos em 1.011 procedimentos). Desses 17 casos, já com sintomatologia e repercussão sistêmica, não há dúvidas
foram encontrados tumores em oito e acalasia em quatro. Os quanto à indicação precoce do tratamento cirúrgico.
cinco casos seguintes tinham estreitamento, estenoses ou anas- As medidas conservadoras incluem jejum absoluto, repo
tomoses esofágicas. O índice de complicações aceitáveis na di- sição hidreletrolítica, nutrição parenteral, antibioticoterapia
latação pneumática para acalasia varia de 2 a 6%. e monitoramento clínico, laboratorial e radiográfico. Se o diag
A mortalidade por perfuração por instrumental é mais baixa nóstico é feito em fase tardia, sem sinais de infecção e com
do que nas outras causas, variando de 15 a 20%. A perfuração estabilidade clínica, medidas conservadoras podem ser ado
em decorrência de uma endoscopia diagnóstica sem lesões pre tadas.
existentes é evento extremamente raro. Na maior parte dos ca O tratamento cirúrgico deve ser realizado prontamente se
sos de perfuração há doenças associadas sendo mais comuns a houver sinais de infecção e mediastinite. A cirurgia varia desde
partir da quinta década de vida e frequentemente relacionadas o desbridamento de estruturas não viáveis, drenagem, esofagos-
com estenoses e obstruções por neoplasias. tomia, até ressecções mais agressivas, incluindo esofagectomia.
A reconstrução pode não ser imediata, dependendo da gravi
dade do caso. O prognóstico se relaciona com o diagnóstico
■ Apresentação clínica precoce e o tratamento efetivo nas fases iniciais.
Assim como na síndrome de Boerhaave, o quadro clínico
na perfuração esofágica não espontânea varia de acordo com
a localização e extensão da lesão. A dor, na maioria dos casos, ■ HÉRNIAS DIAFRAGMÁTICAS
é o principal sintoma, localizando-se na região retroesternal
ou região epigástrica e podendo irradiar-se para o dorso. Pode O diafragma é um órgão de constituição musculotendinosa
ocorrer dispnéia também, e o diagnóstico muitas vezes é fei que, no adulto, separa as cavidades torácica e abdominal. Deriva
to em fases tardias. As perfurações intratorácicas apresentam de quatro estruturas embriológicas: ventralmente, o septo trans
maior risco de morte que as perfurações cervicais, e o tratamen verso; lateralmente, a membrana pleuroperitoneal e os múscu
to cirúrgico relaciona-se à melhora da sobrevida. los da parede do corpo; e mediodorsalmente, o mesoesôfago.
A radiografia de tórax demonstra enfisema subcutâneo, A sua parte periférica é composta de musculatura estriada com
pneumotórax e pneumomediastino. Os estudos contrastados fixação ao esterno, arcos costais e coluna vertebral, enquanto
do esôfago podem ser realizados inicialmente com contrastes a sua parte central compõe-se basicamente de tecidos aponeu-
hidrossolúveis e, se esses estudos forem negativos, o bário pode róticos. Apresenta orifícios naturais, através dos quais passam
ser usado com os devidos cuidados. O estudo baritado negativo estruturas entre as cavidades torácica e abdominal, como a veia
não exclui a perfuração. cava inferior, aorta, nervos simpáticos e esôfago.
A tomografia computadorizada cervical e torácica permite Define-se hérnia como a passagem, parcial ou total, de uma
o diagnóstico, além de oferecer informações do mediastino e estrutura anatômica, através de orifício patológico ou tornado
tórax. patológico, de sua localização normal para outra anormal. Hér
O exame físico é inespecífico, porém enfisema subcutâneo nias diafragmáticas podem ocorrer através do hiato esofágico,
pode estar presente e palpável no pescoço e no tórax, e os si outras aberturas congênitas como os forames de Bochdalek
nais normalmente surgem dentro da primeira hora após a le ou Morgagni, ou aberturas pós-traumáticas. As hérnias hiatais
são. A conhecida tríade de Mackller, que consiste em vômitos, por deslizamento compreendem a grande maioria das hérnias
dor torácica e enfisema subcutâneo, nem sempre está presente. diafragmáticas.
Os pacientes frequentemente apresentam-se com taquicardia
e taquipneia. ■ Hérnias hiatais
Dependendo da extensão e tempo da apresentação das per
furações, os pacientes podem apresentar febre. Atraso diag ■ Hérnia hiatal por deslizam ento
nóstico pode levar a quadros de septicemia e choque. Derra A hérnia hiatal por deslizamento ou tipo I é definida pela
me pleural é frequente e mais comum à esquerda, e a punção migração cranial do esôfago abdominal e do segmento proxi-
torácica poderá mostrar resíduos e sucos digestivos, definindo mal do estômago para o mediastino posterior, através do hiato
o diagnóstico. O diagnóstico diferencial inclui várias doenças, esofágico, ou seja, quando a junção esofagogástrica, ou parte
sendo úlcera perfurada, aneurisma dissecante da aorta, infarto do estômago, localiza-se acima do diafragma, portanto em po
agudo do miocárdio, pancreatite aguda e pneumotórax espon sição intratorácica. Apresenta etiologia desconhecida, porém
tâneo as mais comuns. observa-se aumento da incidência com o envelhecimento. Nor
Quando a perfuração ocorre no esôfago cervical, o enfisema malmente, o ligamento frenoesofágico ancora a junção esofa
subcutâneo é um sinal precoce, podendo estar associado à disfa- gogástrica ao nível do diafragma, e as hérnias hiatais podem
gia. A radiografia de tórax sempre deve ser realizada, e estudos estar associadas a um processo de deterioração desse ligamen
contrastados eventualmente podem ajudar no diagnóstico. to relacionado com o envelhecimento, às persistentes pressões
positivas intra-abdominais e à tração exercida pelo esôfago no
estômago, durante as manobras normais de deglutição. Hérnias
■ Tratamento hiatais são encontradas em cerca de 10% da população adul
Na perfuração iatrogênica, ocorrida na endoscopia diagnós ta e cerca de 90 a 95% desse total corresponde às hérnias por
tica, pode-se optar pelo tratamento conservador nos casos de deslizamento, cabendo o restante às hérnias paraesofágicas e
lesões pequenas e diagnóstico precoce, sobretudo em perfura mistas, descritas posteriormente.
ções cervicais. Quando as perfurações ocorrem no terço médio A grande maioria dos pacientes com hérnias hiatais por des
e distai, a conduta vai depender da extensão da perfuração, do lizamento de pequeno tamanho é assintomática. Quando da
diagnóstico precoce e da sintomatologia. Nas lesões pronta presença de sintomas, destaca-se a associação com a doença do
mente diagnosticadas em pacientes estáveis, pode-se optar por refluxo gastresofágico (DRGE), manifestada frequentemente
conduta conservadora. No entanto, nos casos de lesões extensas por azia e queimaçâo retroesternal, associadas ou não à pre
Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 131
Figura 13.6 Estudo tomográfico de volumosa hérnia hiatal por deslizamento janela de mediastino e pulmão. O estômago está posicionado
na metade inferior do mediastino posterior, em situação retrocardíaca, com orientação atípica e parcialmente preenchido por contraste oral.
(Cortesia do Dr. Renato Macedo Rosa.)
132 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas
fágicas secundárias a DRGE. Manifestações obstrutivas podem óxido nítrico (ON) como vasodilatador pulmonar seletivo e
estar presentes nos casos de grandes hérnias e mesmo de parte oxigenação extracorpórea por membrana (ECMO) foram in
ou de todo o estômago para o tórax. Pode ainda ocorrer o vólvu- corporados ao tratamento de RN portadores de HDC. Parale
lo gástrico, exigindo tratamento cirúrgico emergencial. Estudo lamente, a possibilidade de diagnóstico ultrassonográfico pré-
radiográfico do trato digestório alto é método diagnóstico pela natal e as tentativas de intervenção intraútero abriram novas
observação de nível hidroaéreo no espaço retrogástrico. A eso- perspectivas de sucesso. Apesar de relatos iniciais apontando
fagogastroduodenoscopia auxilia na confirmação diagnóstica, redução na mortalidade, algumas análises retrospectivas não
permite a avaliação da extensão da anormalidade e a definição confirmaram um impacto significativo na sobrevida global. O
de complicações, como esofagite, úlceras e vólvulo. binômio hipoplasia-hipertensão pulmonar permanece como
O tratamento cirúrgico das hérnias paraesofágicas ou mis principal fator de mortalidade.
tas tem sido sugerido tanto nos pacientes sintomáticos, quanto As complicações da HDC são obstrução intestinal, insuficiên
nos assintomáticos, no sentido da prevenção de possíveis com cia cardiorrespiratória e isquemia intestinal. O tratamento ci
plicações, como encarceramento, vólvulo, perfuração, obstru rúrgico está indicado na confirmação do diagnóstico, mesmo
ção e hemorragia. Vários cirurgiões rotineiramente associam quando ocasional. A via de acesso recomendada para hernior-
a fundoplicatura, mesmo nas hérnias paraesofágicas isoladas, rafia diafragmática é a abdominal, pois permite, também, a
visando à prevenção do refluxo gastresofágico no pós-operató correção da má rotação intestinal associada. O emprego da vi-
rio e à fixação do estômago ao abdome. Pode ser realizado por deocirurgia para o reparo da HDC é factível e tem como vanta
acesso cirúrgico torácico ou abdominal, por técnicas abertas gens diminuição da dor pós-operatória, alta hospitalar precoce
ou laparoscópicas. e melhor estética da ferida operatória. A colocação de dreno
torácico ipsilateral é controversa; alguns autores mostram que
essa conduta não resulta em aumento da expansibilidade do
■ Hérnias diafragmáticas congênitas pulmão hipoplásico.
As hérnias diafragmáticas congênitas representam uma das
malformações congênitas mais comuns, com incidência de 8%. ■ Hérnia de Bochdalek
O prognóstico se associa ao grau de hipoplasia pulmonar e não Frequentemente, as hérnias de Bochdalek são diagnostica
ao tamanho do defeito no diafragma. Cerca de 80% dos casos das em recém-nascidos e raramente em adultos. Em recém-
se localizam à esquerda. O conteúdo herniário varia de acordo nascidos, manifestam-se por sintomas respiratórios agudos e
com o lado do defeito. Nos casos de defeitos à direita, intes ausculta respiratória negativa no hemitórax acometido. Nos
tino delgado, parte do intestino grosso, estômago, baço e até casos de herniação por períodos prolongados, durante o de
mesmo lobo esquerdo do fígado são os órgãos herniados mais senvolvimento fetal, pode ocorrer grave hipoplasia do pulmão
frequentes. Quando o acometimento se dá à direita, observa-se ipsilateral e graus variáveis do pulmão contralateral. Hiperten
principalmente herniação do intestino delgado e lobo direito são pulmonar é um achado comum. Pacientes adultos podem
do fígado. apresentar-se completamente assintomáticos, embora grande
Resultam da ausência ou defeitos na fusão das estruturas parcela relate desconforto abdominal inespecífico, vômitos e
que formam o diafragma. Quando ocorre falha na fusão da constipação intestinal. Dores torácicas e sintomas respiratórios
membrana pleuroperitoneal esquerda com o septo transverso, e cardiológicos são incomuns. Possível complicação grave é o
forma-se um defeito posterolateral esquerdo, sem presença de encarceramento intestinal, determinando dor abdominal in
saco herniário, e, no caso de fusão completa, porém com falha tensa e sintomas obstrutivos. O diagnóstico pré-natal pode ser
da muscularização, forma-se um saco herniário verdadeiro, e realizado através de exame ultrasssonográfico pela visualização
esse defeito recebe o nome de forame de Bochdalek. A hernia do estômago ou alças intestinais no tórax do feto. A suspeita
ção de estruturas abdominais através desse forame caracteriza em adultos pode ser aferida em radiografias comuns de tórax
a hérnia diafragmática de Bochdalek ou hérnia posterolateral, em visão lateral, uma vez que essas hérnias são de localização
que se localiza geralmente à esquerda e corresponde a cerca de posterior, e a confirmação diagnóstica é realizada por estudo
85% das hérnias diafragmáticas congênitas. No caso de falha na radiológico contrastado e tomografia computadorizada (Fi
fusão entre as junções esternocostais e o diafragma, origina-se gura 13.7).
um forame que se localiza na região retrocostoxifoide, e estru A prioridade no tratamento de recém-nascidos com hérnia
turas que se projetam através desse forame originam hérnias de Bochdalek é o suporte ventilatório inicial para estabilização
com saco herniário verdadeiro, chamadas de hérnias diafrag clínica e posterior tratamento cirúrgico da lesão diafragmática,
máticas de Morgagni, paraesternais ou retroesternais, de loca classicamente realizada por via aberta, com relatos na literatura
lização geralmente à direita. de tratamento por via laparoscópica. As hérnias de Bochdalek
A etiologia das hérnias diafragmáticas congênitas é desco correspondem a cerca de 2 a 3% das hérnias diafragmáticas
nhecida. Atualmente, postula-se que seja multifatorial e rela tratadas cirurgicamente.
cionada com fatores hereditários com relatos de rara associa
ção familiar e com síndromes de malformações, como descrito ■ Hérnia de M orgagni
previamente. Entre as hérnias diafragmáticas congênitas, as hérnias de
O aspecto mais importante da fisiopatologia da hérnia dia Morgagni correspondem a uma minoria, entre 5 e 11% do to
fragmática congênita é a hipoplasia pulmonar, responsável por tal. Em 90% dos casos, localizam-se à direita, 8% são bilaterais
um quadro grave de hipertensão pulmonar. e apenas 2% ocorrem à esquerda, recebendo o nome de hérnia
O tratamento de recém-nascidos (RN) com hérnia diafrag de Morgagni-Larrey. Quase sempre são diagnosticadas na fase
mática congênita (HDC) continua sendo um desafio para cirur adulta e, na infância, frequentemente associam-se com hérnias
giões pediátricos e neonatologistas. Mais recentemente, avanços de Bochdalek. Pode se manifestar logo após o nascimento, atra
na terapia da hipertensão pulmonar primária (HPP) do recém- vés de insuficiência respiratória aguda por hipoplasia pulmo
nascido, tais como ventilação suave com hipercapnia permis nar ou encarceramento visceral. O saco herniário pode conter
siva, ventilação por oscilação de alta frequência (VAF), uso de omento, cólon, intestino delgado, estômago ou fígado. A maio-
Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 133
Figura 13.8 Volumosa hérnia diafragmática direita de Morgagni, associada a hérnia de parede abdominal em região posterolateral ipsilateral
(reconstrução coronal e parassagital). Evidencia-se a vantagem do aparelho de TC m u lti- s lic e na obtenção de reconstruções multiplanares.
(Cortesia do Dr. Renato Macedo Rosa.)
134 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas
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■ Fisiopatologia Quadro 13.1 Diagnóstico diferencial na síndrome de Boerhaave
A ruptura esofágica na síndrome Boerhaave é considerada
como consequência de um súbito aumento na pressão intralu- A n e u r is m a d is s e c a n te d a a o rta
minal do esôfago produzida durante esforços de vômitos. Estes H é rn ia s d ia fra g m á tic a s a d q u irid a s
provocam uma incoordenação neuromuscular, levando à falên S ín d r o m e d e M a llo r y -W e is s
cia do músculo cricofaríngeo. A síndrome comumente está as In fa rto a g u d o d o m io c á r d io
sociada a excessos alimentares e/ou ingestão abusiva de álcool. P a n g a s trite a g u d a
O local mais comum de ocorrer a laceração na síndrome de D o e n ç a u lc e ro s a p é p tic a
Boerhaave é a parede posterolateral esquerda no terço inferior P n e u m o tó ra x
do esôfago, 2 a 3 cm proximalmente à junção esofagogástrica.
H e m a t o m a in t r a m u r a l e s p o n t â n e o d o e s ô fa g o
Apresenta origem barogênica devido ao aumento súbito da
pressão intraluminal contra um músculo cricofaríngeo fecha
do, e a perfuração tipicamente ocorre no ponto mais frágil do
esôfago, em geral no esôfago inferior à esquerda, abaixo do
diafragma em adultos. Alcoolismo e excessos alimentares são Dentre os achados usuais, podem-se encontrar cianose peri
fatores de risco primários, e ambos podem levar à hiperêmese, férica, rouquidão (envolvimento do nervo laríngeo recorrente),
a qual é o maior componente na apresentação clássica. desvio da traqueia e mediastino, e obstrução venosa cervical.
O pneumomediastino é um achado muito importante, poden
■ Epidemiologia do estar presente em 20% dos pacientes e causar sons de es
talido durante a ausculta torácica. Esses estalidos são ouvidos
Esta síndrome é de incidência relativamente rara. Em uma coincidentemente com os batimentos cardíacos, podendo ser
revisão realizada em 1980 por Kish, são citados 300 casos na confundidos com fricção do pericárdio. Nos estágios avança
literatura mundial. Em 1986, Bladergroen e Postlethwait des dos da doença, podem ocorrer sinais de infecção e septicemia,
creveram 127 casos. Destes, 114 foram diagnosticados em vida, incluindo febre e instabilidade hemodinâmica, com progres
enquanto os outros em necropsias. Quanto ao sexo, é mais siva deterioração do quadro clínico. Várias doenças podem
comum em homens que em mulheres, variando de 2:1 a 5:1. estar relacionadas com a dificuldade diagnóstica diferencial, e
Quanto à idade, ocorre mais frequentemente em pacientes na as principais estão relacionadas no Quadro 13.1.
faixa etária de 50 a 70 anos, e a maioria dos relatos descritos
é relacionada com homens na faixa etária média dos 60 anos.
Existem casos descritos em crianças e neonatos, bem como em ■ Exames complementares
pessoas acima de 90 anos. ■ Testes laboratoriais
Os índices de mortalidade são altos, estando a sobrevida re
Os achados laboratoriais são inespecíficos, podendo-se ob
lacionada com o diagnóstico precoce seguido de intervenção
servar leucocitose com desvio à esquerda. A albumina séri-
cirúrgica imediata. A mortalidade global é em torno de 35% e,
ca é normal, enquanto as frações de globulina estão normais ou
quando os pacientes se submetem à cirurgia dentro das 24 h
ligeiramente elevadas. Muitos pacientes apresentam derrame
após a laceração, as chances de sobrevida são de 70 a 75%. Há
pleural, e a toracocentese pode ajudar no diagnóstico. Frequen
casos descritos de sobrevida sem cirurgia, porém são relatos
isolados, e esta conduta não é preconizada. temente, são encontradas partículas alimentares e suco gástrico
no líquido pleural. O pH desse líquido pode ser menor do que 6,
e o conteúdo de amilase pode estar elevado. Células escamosas
■ Apresentação clínica da saliva são encontradas com frequência.
A apresentação clínica clássica consiste em episódios de es
forços de vômitos, tipicamente em homens na idade adulta, ■ Radiografia de tórax
após uso abusivo de álcool e excessos alimentares. Esta situação A radiografia de tórax é útil no diagnóstico, já que 90% dos
é acompanhada de início súbito de dor torácica na parte inferior pacientes revelam alterações após a perfuração. O achado mais
do tórax e abdome superior, irradiando para as costas e ombro comum é o derrame pleural unilateral, comumente à esquerda,
esquerdo. A deglutição frequentemente agrava os sintomas. A fato relacionado com o local mais comum de perfuração, descri
hematêmese habitualmente não é vista na ruptura esofágica, to anteriormente. Outros achados podem incluir pneumotórax,
o que ajuda a distingui-la da síndrome de Mallory-Weiss. A hidrotórax, pneumomediastino e enfisema subcutâneo. Cerca
deglutição pode desencadear tosse, devido à comunicação do de 10% das radiografias de tórax são normais.
esôfago com a cavidade pleural. Pode ocorrer dispnéia devido
ao derrame pleural associado à dor pleurítica. ■ Esofagograma
A tríade de Mackler define a apresentação clássica, consis Este exame ajuda a confirmar o diagnóstico e tipicamente
tindo em vômitos, dor torácica baixa e enfisema subcutâneo. demonstra extravasamento de contraste para a cavidade pleural.
Os achados de alterações pleurais são comuns. Se ocorre enfi O estudo radiológico contrastado do esôfago também demons
sema subcutâneo, este é particularmente útil para confirmação tra a extensão da perfuração e sua localização, o que pode ser
diagnóstica, sendo visto em cerca de 28 a 66% dos pacientes na de ajuda na decisão da abordagem cirúrgica, por via torácica
apresentação inicial, ocorrendo mais frequentemente nas fases ou via abdominal.
tardias. Outros sintomas clássicos foram descritos por Ander- Inicialmente, um contraste aquoso solúvel, como a gastro-
son e Barrett, incluindo taquipneia e rigidez abdominal. Podem grafina, deve ser utilizado. O uso de bário nesses casos pode se
também surgir taquicardia, febre e hipotensão, à medida que a associar à mediastinite grave, não sendo recomendado. Se o
doença progride, porém são achados inespecíficos. estudo radiográfico contrastado inicial é negativo e permanece
136 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas
uma forte suspeita, a mudança de decúbito lateral esquerdo e toracotomia à esquerda é a abordagem de preferência, embo
direito pode ser útil. ra a laparotomia possa ser necessária quando a laceração se
estende até o esôfago distai. Várias técnicas são empregadas,
■ Tom ografia com putadorizada inclusive com a sutura de omento para ajudar no fechamen
Pode ser útil nos pacientes gravemente enfermos que não to primário. A vitalidade do tecido circunvizinho é um fator
toleram o esofagograma. A tomografia computadorizada per importante durante a seleção do procedimento cirúrgico. Para
mite localizar coleções líquidas para drenagem cirúrgica. A vi- os pacientes com diagnóstico além de 24 h, a sutura primária
sibilização de estruturas adjacentes é possível, permitindo o pode não ser possível. Após 24 h, a ferida encontra-se com
diagnóstico diferencial com as afecções descritas no Quadro edema e áreas de necrose e friabilidade. Várias alternativas à
13.1. A desvantagem da tomografia é não precisar a localização sutura primária estão disponíveis, incluindo a esofagostomia
da perfuração. com desvio do trânsito esofágico, no intuito de favorecer a ci-
catrização por segunda intenção. O uso de tubos em T tem sido
■ Endoscopia digestiva descrito, levando à formação de fístula, controlada com uma
A endoscopia não é útil no diagnóstico, podendo inclusive drenagem dirigida de secreções esofágicas. As complicações
acarretar riscos adicionais, levando ao aumento da extensão da tardias da cirurgia podem incluir empiema, com necessidade
perfuração inicial. A insuflação forçada de ar para o mediastino de drenagem ou decorticação, e fístulas esofagotraqueais ou
e cavidade pleural pode agravar o quadro clínico. A endoscopia esofagobrônquicas.
pode eventualmente ser útil nos casos de suspeita não compro Novas técnicas envolvem próteses metálicas autoexpansivas,
vada de ingestão de corpos estranhos, permitindo, neste caso, consideradas alternativas aceitáveis somente quando as opções
possibilidade de terapêutica. cirúrgicas clássicas estão contraindicadas. O uso de próteses em
doenças sem malignidade é altamente controverso, devido aos
■ Complicações riscos associados a sua remoção. Sendo assim, o uso de próte
se na síndrome de Boerhaave é recomendado para os casos de
A ruptura esofágica pode levar ao desenvolvimento de sep- diagnósticos tardios, com falha no tratamento conservador.
ticemia, pneumomediastino, mediastinite, derrame pleural vo Recentemente, têm sido divulgadas as próteses biodegradáveis
lumoso, empiema, ou enfisema subcutâneo. Se a ruptura esten com perspectivas promissoras, uma vez que não requerem re
de-se diretamente até a pleura, a ocorrência de pneumotórax moção. A colocação de próteses a longo prazo na síndrome de
é esperada. Logo após a ruptura, ocorre a entrada de ar para Boerhaave não foi adequadamente avaliada.
o mediastino, podendo espalhar-se por estruturas adjacentes,
levando a abscesso mediastinal. Outras complicações incluem
síndrome do desconforto respiratório do adulto, pneumotórax
e hidrotórax. ■ LESÃO ESOFÁGICA POR COMPRIMIDO
A utilização do tubo digestório como via de administração
■ Tratamento de medicamentos sob a forma de chás, poções e infusões data
do terceiro milênio a.C. As primeiras publicações associando
A abordagem ideal na síndrome de Boerhaave envolve a
o uso de medicações à lesão esofágica surgem a partir de 1970,
associação de ambos os tratamentos conservador e cirúrgico.
por Pembertom. Vários relatos são publicados a partir des
As medidas a serem tomadas incluem: acesso venoso de gros
ta data, mas o número certamente subestima esta associação.
so calibre com reposição hidreletrolítica, combate ao choque,
Inúmeras são as drogas hoje reconhecidas como causadoras
administração de antibióticos de amplo espectro e intervenção
de lesões na mucosa esofágica. Existe uma preocupação, por
cirúrgica precoce. Estes são os pilares do tratamento.
parte dos laboratórios, em desenvolver comprimidos com re
A decisão entre um tratamento conservador e um tratamen
vestimento externo, que propiciem a liberação do princípio
to mais agressivo com cirurgia depende dos vários fatores; entre
eles, cabendo citar: ativo em outro ambiente que não o esôfago e que “deslizem”
com facilidade sobre a mucosa. Estudos demonstram que um
a) tempo de apresentação dos sintomas até o diagnóstico; comprimido ingerido com certa quantidade de líquido, por uma
b) localização e extensão da perfuração; pessoa sem lesões esofágicas, leva no mínimo cerca de 5 min
c) doenças esofágicas associadas; para atingir o estômago.
d) condições clínicas gerais do paciente. Outro ponto importante é o uso indiscriminado de certas
Quando se faz a opção pelo tratamento conservador, sem medicações sem orientação médica, que comprovadamente
cirurgia, as medidas consistem em: infusão de líquidos IV, anti causam lesões no esôfago e que têm seu uso estimulado em co
bióticos de amplo espectro, aspiração por cateter nasogástrico merciais de televisão, a exemplo do ácido acetilsalicílico.
contínua, drenagem adequada através de toracotomia e suporte O mecanismo de ação para o aparecimento de lesões no esô
nutricional, incluindo nutrição parenteral. Recentemente, tem fago após o uso de medicações depende de fatores relacionados
se preconizado nutrição enteral através de sondas de jejunos- com o comprimido e o paciente. Os fatores relacionados com
tomia. o comprimido são: natureza química da droga, tempo de con
Com relação à cirurgia, foi descrito inicialmente por Bar- tato com a mucosa esofágica e grau de solubilidade. Os fatores
rett, em 1947, um caso tratado com sucesso. Antes desse re relacionados com o paciente são aqueles ligados ao clearance
lato, os casos de síndrome de Boerhaave eram considerados esofágico. O clearance certamente está alterado na presença
virtualmente letais com 100% de mortalidade. A maioria dos de certas afecções do esôfago, como na acalasia, nas estenoses,
médicos advoga a intervenção cirúrgica se o diagnóstico é rea nos tumores, na esclerodermia e em outras. Fatores compor-
lizado dentro das primeiras 24 h após a perfuração. A sutura tamentais interferem no clearance esofágico, como o hábito de
imediata do local de ruptura e drenagem do mediastino e ca ingerir comprimidos com pouco ou nenhum líquido ou em
vidade pleural possibilitam melhores índices de sobrevida. A posição de decúbito.
Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 137
Embora existam estudos com uso de tamponamento com Chung, IK, Kim, EJ, Hwang, KY et al. Evaluation of cndoscopic hemostasis in
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14 Acalasia e Megaesôfago
Eponina Maria de Oliveira Lemme, Paula Amorim Novais e
Vânia Luiza Cochlar Pereira
■ INTRODUÇÃO ----------------------------▼----------------------------
Quadro 14.1 Distúrbios motores primários do esôfago
O esôfago é sede de alterações funcionais que produzem
sintomas, conhecidos como distúrbios motores do esôfago 1. A C A L A S IA
(DME). 2 . E S P A S M O E S O F Á G IC O D IF U S O
4 . H IP E R E H IP O T IR E O ID IS M O
140
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 141
ciente durante longo período. A seguir, vários autores tentaram (Rezende, 2004). Há um predomínio do sexo masculino sobre
elucidar o mecanismo da AC, e seu histórico se confunde com o feminino, sendo encontrada em todas as faixas etárias, com
sua fisiopatologia. Foram descritas teorias como “espasmo na m aior predominância entre os 20 e 40 anos. Tanto no Chi
porção inferior do esôfago”, “diminuição da contratilidade eso- le como na Argentina, o megacólon parece ocorrer com mais
fágica” e, tempos depois, a “falta de relaxamento da cárdia”, com frequência do que o megaesôfago.
possível anormalidade da ação reflexa responsável pela abertura Portanto, no Brasil, como um todo, há um franco predo
da cárdia às deglutições. Já no século XX, foi demonstrado o mínio da acalasia chagásica, devido à endemicidade da doen
substrato anatomopatológico da AC, a degeneração do plexo ça, e as áreas mais acometidas estão nos estados de Goiás, São
de Auerbach, e inúmeras outras pesquisas se seguiram. Paulo, Bahia e Minas Gerais. É pouco conhecida a prevalência
No Brasil, a descoberta da tripanossomíase americana se deu da acalasia idiopática, porém estudos com grandes séries reali
em 1909 pelo sanitarista Carlos Chagas, mas somente em 1916 zados no Rio de Janeiro (Lemme et ai, 1985; Pereira 8c Lemme,
é divulgada a ideia de que a disfagia conhecida como “mal de 1995; No vais 8c Lemme, 2010) mostram franco predomínio da
engasgo” estaria relacionada com a infecção pelo Trypanosoma acalasia idiopática sobre a chagásica naquela cidade (aproxima
cruzi. Nos anos que se seguiram, foram descritas lesões no ple damente 3 para 1), uma vez que o município não é área reco
xo mientérico não só no esôfago, mas em todo o tubo digestivo nhecidamente infestada pelo vetor, e os portadores desta última
de portadores de megaesôfago de origem chagásica. A teoria são provenientes de áreas endêmicas.
da etiologia chagásica foi reforçada pelo achado da reação de Por motivos didáticos, abordaremos AC idiopática e cha
fixação do complemento positiva para doença de Chagas em gásica no mesmo tópico.
mais de 90% dos pacientes portadores de megaesôfago. O pa
rasito é transmitido ao homem por um inseto hematófago, o
Triatoma infestans, conhecido popularmente pelos nomes de ■ ETI0PAT0GENIA
“barbeiro”, “chupão”, “procotó” e outros. Além da transmissão
pelo inseto, a infecção pelo T. cruzi é transmitida também por
via sanguínea, de mãe para filho (transmissão vertical) e nos
■ Acalasia idiopática
transplantes de órgãos e tecidos. Como o nome indica, a AC idiopática não tem etiologia co
A relação definitiva entre megaesôfago/megacólon e a doen nhecida, e vários fatores são apontados em sua etiopatogenia.
ça de Chagas foi feita por Koeberle e Nador (1955), na Escola Alguns casos familares têm sido descritos, mas, devido à
de Medicina de Ribeirão Preto, e enfatizada posteriormente em raridade, não suportam a hipótese de que a herança genética
inúmeras publicações. seja um fator determinante. Estudos em gêmeos sugerem que
a possibilidade de herança autossômica recessiva, influenciada
por fatores ambientais, poderia predispor à doença.
■ EPIDEMI0L0GIA, INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA Aventou-se também a teoria infecciosa, na qual um vírus
neurotrópico poderia provocar as lesões histopatológicas vis
A AC idiopática é relativamente incomum, sendo respon tas na acalasia, e foram sugeridas associações com os vírus do
sável por 8 a 14% das causas de disfagia nos países em que não sarampo, varicela-zóster e pólio.
existe doença de Chagas. Estudos na Europa e nos EUA esti Das evidências a favor de um fator infeccioso como agente
mam uma incidência de um caso novo/ano por 100 mil habi desencadeante da AC idiopática, a mais importante é o fato
tantes, com prevalência de cerca de 10 casos por 100 mil ha bem estabelecido de que a AC de natureza chagásica (causada
bitantes. pelo Trypanossoma cruzi) tem fisiopatologia muito semelhante
A distribuição quanto ao sexo masculino ou feminino é pra à da forma idiopática.
ticamente igual, podendo ser encontrada em qualquer idade, Em poucos casos, é descrita associação com doenças neuro
porém é diagnosticada principalmente entre 30 e 60 anos. Um lógicas, como Parkinson e ataxia cerebelar. Exposição a toxinas,
estudo retrospectivo conduzido no Hospital Universitário Cle- entre elas, o gás de guerra (iperite), também foi aventada como
mentino Fraga Filho - UFRJ (Pereira, 1994) demonstrou que, possível causa, sem qualquer comprovação.
entre 1978 e 1994, havia 248 pacientes com diagnóstico de AC, Mais recentemente, vem ganhando importância a teoria
idades entre 16 e 80 anos, maior concentração na 5* década imunológica, devido à presença de infiltrado de linfócitos T
(média de idade de 43 anos). Houve franco predomínio do sexo entre as células mioentéricas e a frequente associação entre a
feminino tanto na AC chagásica como na idiopática, embora AC idiopática e o antígeno de histocompatibilidade da classe
trabalhos estrangeiros não demonstrem predominância entre II, DQwl, o que conferiría ao grupo de pacientes estudados
os sexos e na forma chagásica predomine o sexo masculino. um risco relativo de 3,6 a 4,2 para o diagnóstico de AC (Wong
Nos países onde a doença de Chagas é endêmica (Brasil, Ar et a l, 1989). Há também relatos de associação da presença de
gentina, Chile, Bolívia, Venezuela, principalmente), observa-se antígenos de histocompatibilidade, com maior prevalência de
elevado número de pessoas acometidas pela doença, cerca de 16 anticorpos antiplexo mientérico (Ruiz de Leon et a i, 2002),
a 18 milhões, segundo dados da Organização Mundial de Saúde dando suporte para uma causa autoimune, porém essas afirma
de 1993. Entretanto, relatos brasileiros indicam que a doença tivas precisam ser analisadas com cuidado, uma vez que nem
está em descenso em nosso país, relacionado possivelmente à todos os pacientes com AC apresentam identificação desses
erradiação dos vetores por meio de campanhas, desmatamento antígenos.
e urbanização em áreas endêmicas.
O comprometimento do aparelho digestivo na doença de
Chagas ocorre com frequência variável conforme a região geo
■ AC chagásica
gráfica, o que tem sido atribuído à diferença nas cepas de Trypa Coube a Koeberle, em inúmeros trabalhos realizados prin
nosoma cruzi. A prevalência da esofagopatia em nosso país, cipalmente na década de 1950, demonstrar a correlação ana-
avaliada em metanálise de mais de 3.000 pacientes portadores tomopatológica entre a doença de Chagas e o megaesôfago,
da doença, é em média de 8,8%, com 3% da forma ectásica identificando a forma de leishmânia (amastigota) do T. cruzi
142 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago
sido descrita em alguns pacientes. Na maior parte dos casos, é detecção da infecção pelo T. cruzi. É ainda o método mais
atribuída à estase e fermentação alimentar no interior do esôfa divulgado e amplamente utilizado. Tem elevada sensibi
go, tornando o resíduo ácido (rico em ácido láctico) em contato lidade (90%) e, como desvantagem, a reação cruzada com
com a mucosa esofágica. as leishmanioses, hanseníase, lues, malária e doenças do
Tosse noturna é apresentada por cerca de 20% dos pacien colágeno, gerando falso-positivos.
tes, e a queixa, que, por vezes, leva à procura do médico, não • Reação de imunofluorescência indireta - Tem sido con
raramente é acompanhada de infecção respiratória. siderada a mais sensível das provas sorológicas para doen
Sialorreia em grande quantidade é um sintoma menos co ça de Chagas, com sensibilidade de até 100%. Utilizam-
mum, surgindo durante a alimentação, acompanhando a dis- se reagentes padronizados assegurando uniformidade e
fagia ou a dor torácica. Nos pacientes com doença de Chagas, positivação mais precoce, quando comparada com outros
observou-se que a sialorreia acompanha-se de hipertrofia das exames. Além disso, é de fácil execução.
glândulas salivares, especialmente das parótidas. Isso se deve • Reação de hemaglutinação indireta - Tem grande sen
ao fato de que as glândulas, por estarem desnervadas, apresen sibilidade e especificidade, comparável às anteriores, com
tam hipertrofia e hiperatividade funcional ao reflexo esôfago- simplicidade de execução. Os resultados falso-positivos
salivar de Roger, exacerbado pela estase alimentar e irritação podem ser contornados empregando-se diluição inicial
constante da mucosa esofágica. de 1:100.
Soluços ou singultos podem ser observados na fase inicial da • Ensaio imunoenzimático (ELISA) - Além de pouco dis
esofagopatia, durante o ato da alimentação, acompanhando a pendioso, é de execução simples, podendo ser automati
disfagia. Menos comumente, os soluços têm duração prolonga zado para grande número de amostras.
da, em crises de dias ou semanas, e desaparecem ou se atenuam • Xenodiagnóstico - É a pesquisa do parasito no conteúdo
com o tratamento da disfagia. intestinal e nas fezes dos vetores, algumas semanas após
Muitos pacientes referem constipação intestinal, atribuída alimentá-los com sangue dos indivíduos possivelmente
à alimentação inadequada, pobre em fibras devido a disfagia e infectados.
ajuste das consistências alimentares à sua intensidade. Entre Os testes sorológicos mais empregados habitualmente são
tanto, na AC chagásica, a constipação intestinal acentuada pode a reação de fixação de complemento de Machado e Guerreiro
ser devida à associação com megacólon. e a imunofluorescência indireta. Pacientes com história epide-
Sintomas decorrentes de distúrbios do ritmo cardíaco e de miológica positiva devem ser submetidos a mais de um teste,
evolução para insuficiência cardíaca, quando referidos pelos em caso do primeiro negativo. Pelo menos três exames devem
pacientes de origem chagásica, devem sugerir associação com
ser solicitados, em caso desta eventualidade.
a cardiopatia.
Não há diferenças no quadro clínico de pacientes com AC
chagásica e idiopática. Isso foi demonstrado em um estudo de ■ Avaliação esofágica
232 pacientes (Pereira & Lemme, 1995) com diagnóstico etio- ■ Esofagografia
lógico definido, sendo 154 (66%) portadores de AC idiopática
O estudo radiológico é de fundamental importância no diag
e 78 (44%) de AC chagásica. A constipação intestinal foi mais
nóstico da AC, sendo os achados de alta especificidade, quan
frequente nos chagásicos, devido à associação de 27% de me
do correlacionados com o estudo manométrico. Os achados
gacólon. A média de idade foi significativamente maior na AC
sugestivos da AC são retardo do meio de contraste, ausência
chagásica do que na idiopática (47 e 39 anos, respectivamente)
de peristalse do órgão com ou sem contrações terciárias, JEG
e também o tempo de doença (5 e 3 anos, respectivamente).
afilada conferindo o aspecto descrito como “rabo de rato” ou
O exame físico em pacientes com AC é pobre, evidenciando-
“bico de pássaro”, e os diferentes graus de dilatação esofágica
se emagrecimento e sinais de desnutrição em alguns. A hiper (Figura 14.1).
trofia das parótidas pode gerar aumento do diâmetro da face,
Existem classificações de megaesôfago que são empregadas
bem característico, mas incomum nos pacientes com AC cha
para definir o grau de avanço da doença por meio da mensu-
gásica. A associação com megacólon pode apresentar-se como
ração do diâmetro distai do esôfago, auxiliando na opção tera
fecaloma palpável no quadrante inferior esquerdo do abdome,
pêutica e avaliação prognóstica. As mais empregadas entre nós
e anormalidades cardiológicas podem ser observadas quando
são a de Ferreira-Santos (1961) e a de Rezende (1982) (Qua
existe cardiopatia associada.
dros 14.3 e 14.4). A maioria dos pacientes se apresenta com
megaesôfago não avançado (graus I e II), tanto na AC chagásica
como na idiopática. Os graus III e IV são estágios avançados
■ MÉTODOS COMPLEMENTARES da doença. Algumas vezes, o diagnóstico da AC não é claro nas
fases iniciais, e a sua confirmação requer exame manométrico.
■ Definição de etiologia Entretanto, é incomum que paciente com AC apresente estudo
radiológico inteiramente normal.
O inquérito epidemiológico deve preceder a avaliação la
boratorial. Indivíduos naturais ou residentes em áreas sabida ■ Endoscopia digestiva alta (EDA)
mente endêmicas e/ou casa de pau a pique são considerados
O papel mais importante da endoscopia digestiva é na ex
possivelmente portadores da forma chagásica. A etiologia da
clusão de alteração orgânica como causa da disfagia e eventu
AC deve ser confirmada pelo emprego das reações sorológicas,
almente o diagnóstico de complicações da AC. Muitas vezes,
pois a sua negatividade aponta para o diagnóstico da forma
se inicia a avaliação de disfagia pelo método endoscópico e, em
idiopática. As várias reações empregadas para o diagnóstico
caso de normalidade, o paciente deve ser submetido a esofago-
da doença de Chagas são as seguintes:
manometria ou estudo radiológico.
• Reação de fixação de complemento ou reação de Ma Na AC, a mucosa em geral é normal (exceto quando existe
chado Guerreiro - Foi o primeiro teste utilizado para a esofagite por estase alimentar ou complicações como associação
144 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago
G ra u I D iâ m e t r o d o e s ô fa g o n o r m a l, c o m trâ n s ito le n to e
c o lu n a re tid a d e m e io d e c o n tra s te d e n ív e l p la n o
G r a u II P e q u e n a / m o d e r a d a d ila ta ç ã o , r e te n ç ã o e v id e n t e d a
c o lu n a b a rita d a e c o n tr a ç õ e s te rciá ria s
G r a u III G r a n d e d ila ta ç ã o d o ó rg á o , g r a n d e re te n ç ã o d o m e io
d e c o n tra s te , h ip o to n ia o u a to n ia
G r a u IV G r a n d e d ila ta ç ã o c o m t o r t u o s id a d e
(d o lic o m e g a e s ô f a g o )
Como a AC é doença de musculatura lisa, os achados ma- po controle e portadores de doença de Chagas em um estudo
nométricos ocorrem nos dois terços distais do órgão. Os mais (Dantas et a i, 2000). Com emprego de cateter com transdu-
importantes são: falta de relaxamento ou relaxamento incom tor em estado sólido, foi demonstrada pressão do esfíncter
pleto do HEI e aperistalse do corpo esofágico (Figura 14.3). superior semelhante em ambas as acalasias, porém menor do
Relaxamentos ausentes ocorrem quando não existe que que no grupo controle, na acalasia chagásica (Abrahão-Junior
da da PEEI após a deglutição. Relaxamentos incompletos são etal.y2001) .
identificados quando a PEEI cai em relação à PEEI basal, mas
a pressão residual não atinge valor menor que 8 mmHg. Por ■ pHm etria esofágica prolongada (p H m )
vezes, os relaxamentos são completos, porém de curta duração A pHm não é um exame habitualmente solicitado para pa
(tempo de relaxamento < 6 s). cientes com AC virgens de tratamento. Entretanto, ela pode ser
A média da PEEI tende a ser maior em pacientes com AC, empregada para o diagnóstico diferencial de algumas manifes
quando comparada a grupos controles assintomáticos. A hi tações clínicas encontradas na doença e que exijam diagnóstico
pertensão do EEI é encontrada em cerca de 40 a 60% dos pa diferencial, por exemplo, com a sensação de refluxo retrosternal
cientes portadores da doença. A forma chagásica geralmente e a queixa de pirose. Como referido, a pirose pode ser observa
apresenta PEEI menor do que a de pacientes com AC idio- da em 27 a 48% dos pacientes com o diagnóstico de AC. Nos
pática. pacientes com AC sem tratamento prévio, essa queixa pode
Em relação ao corpo esofágico, a perda da peristalse pode ser justificada, na maioria dos casos, pela presença de estase e
ser registrada como ausência de contrações ou contrações si fermentação alimentar, levando a alterações características na
multâneas, em geral de baixa amplitude (< 30 mmHg), algu pHm. Entretanto, alguns pacientes exibem pHm com padrão
mas vezes de caráter repetido. Mais raramente, as contrações de refluxo gastresofágico (RGE) verdadeiro, não relacionado
simultâneas atingem amplitude mais elevada do que as habi com a estase de alimentos, havendo relato de prevalência em
tualmente registradas, sendo esta entidade denominada AC até 20% dos casos (Shoenut et al.t 1997), o que pareceria inicial
vigorosa. mente um paradoxo, visto que na AC o EEI é frequentemente
Estudos comparativos entre AC idiopática e AC chagásica hipertenso e com falhas no seu relaxamento, o que dificultaria
demonstram que a amplitude e duração das contrações são se sua ocorrência.
melhantes em ambas as etiologias (Abrahão-Junior et al.}2001; Por outro lado, o RGE é uma das complicações mais fre
Dantas et al.y2001). quentes, tanto do tratamento cirúrgico quanto do tratamento
Quanto ao esfíncter superior, há referência à pressão de por dilatação pneumática, com incidência variável de aproxi
repouso com valores semelhantes na acalasia idiopática, gru madamente 13% e 4 a 8% dos casos, respectivamente. O estudo
Figura 14.3 Esofagomanometria de paciente com acalasia. No canal distai (P5),o EEI com relaxamentos incompletos. Nos quatro canais pro-
ximais (PI -P4), aperistalse do corpo esofágico (distância entre os canais 5 cm). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
146 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago
Twnpo
I ■ Ereto a Refeição □ Pós-Prandd É Oeateio
Figura 14.4 Gráfico pHmétrico de paciente com acalasia apresentando sinais de fermentação alimentar - queda do pH abaixo de 4, de maneira
prolongada, atingindo 3 no período supino (em azul). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 147
é maior do que o encontrado em pacientes com a esofagopatia Metanálise publicada em 2009 (Campos et al.) revisou os
chagásica (Abrahão et al, 2010). Esta técnica tem se mostrado resultados de 315 pacientes submetidos à injeção de toxina bo
bastante promissora em pesquisa, com amplas possibilidades tulínica, demonstrando que o índice de sucesso foi de 40,6% em
potenciais de aplicação na prática clínica. um seguimento médio de 12 meses. Ainda não existem estudos
randomizados a longo prazo avaliando os possíveis riscos de
injeções repetidas de toxina botulínica no esôfago.
■ TRATAMENTO Sugere-se que os melhores candidatos à BoTox sejam:
1. idosos com comorbidades e pacientes com alto risco cirúr
Os objetivos de qualquer forma de tratamento na AC são: 1. gico, uma vez que o procedimento é praticamente isento de
aliviar os sintomas; 2. melhorar ou aliviar o esvaziamento eso- riscos; 2. falha no tratamento cirúrgico; 3. falência na resposta
fágico; 3. prevenir o desenvolvimento de megaesôfago e suas a múltiplas dilatações em pacientes com risco cirúrgico alto; 4.
complicações. Não há evidências de que a etiologia idiopática dilatação pneumática com perfuração; 5. associação com di-
ou chagásica tenha influência nas respostas às diferentes for vertículo epifrênico.
mas de tratamento empregadas (Herbella et al., 2004). Todas as Vários estudos tentaram estabelecer preditores de resposta
opções terapêuticas, com exceção da esofagectomia, objetivam para a toxina botulínica. Os dados suportam a hipótese de que
diminuir a pressão no esfíncter esofágico inferior (PEEI) para idade maior que 50 anos, sexo feminino e presença de AC vi
desobstruir o trânsito alimentar, facilitando o esvaziamento do gorosa poderíam apresentar melhor resposta a esta modalidade
esôfago. As diferentes modalidades de tratamento são empre terapêutica. Um interessante benefício da injeção de Botox é
gadas para ambas as formas da doença. que também pode ser usada como preditor de resposta a novas
intervenções, por exemplo, em pacientes que não responderam
bem à cirurgia, avaliando se os sintomas persistentes são de
■ MEDICAMENTOS correntes da hipertonia do EEI ou de tortuosidade decorrente
do megaesôfago (Pehlivanov & Pasricha, 2006).
Na AC chagásica, o emprego da BoTox oferece melhores
■ Nitratos e antagonistas dos canais de cálcio respostas do que as observadas com emprego de placebo a curto
São os medicamentos mais comumente empregados no tra prazo. Houve 58% de respondedores (Brant et al., 2003), com
tamento clínico e devem ser administrados em todos os pa resultados similares aos da AC idiopática.
cientes que tolerarem o seu uso, uma vez que podem ser em Não há consenso entre cirugiões em relação à dificuldade
pregados como ponte para um tratamento mais duradouro e na realização de miotomia nos pacientes que receberam in
eficaz, aliviando os sintomas em uma parcela significativa dos jeção prévia de toxina botulínica, alguns referindo que sim,
pacientes. Seu mecanismo de ação é fundamentado na dimi enquanto outros não encontraram dificuldades na técnica ci
nuição da PEEI. rúrgica ou piores resultados em pacientes submetidos ao uso
Os nitratos (dinitrato de isossorbida 5 a 10 mg/dia) aumen prévio do BoTox.
tam a concentração de óxido nítrico nas células musculares Logo, a injeção de toxina botulínica é mais bem indicada em
lisas, resultando em relaxamento. Administrados por via su- pacientes idosos e com alto risco cirúrgico que não puderem
blingual, os nitratos reduzem a PEEI dentro de 15 min e seu ser submetidos à DPC ou cirurgia.
efeitos persistem por até 90 min. Os antagonistas do canal de
cálcio, como, por exemplo, o nifedipino (10 a 30 mg/dia), tam
bém inibem a musculatura lisa e agem 30 min após sua admi
■ Dilatação pneumática da cárdia (DPC)
nistração via sublingual, na redução da PEEI. A DPC é o tratamento conservador definitivo mais frequen
As duas medicações têm efeito variável, melhorando os sin temente empregado para o tratamento da AC. Tem como obje
tomas em 49 a 90% dos pacientes. Entretanto, seus efeitos cola tivo romper as fibras musculares do EEI, reduzindo sua pressão
terais, como cefaleia, tonturas e edema de membros inferiores, e a obstrução funcional do esôfago. A consequência é a melhora
muitas vezes limitam seu uso, havendo também taquifilaxia ao do esvaziamento esofágico e da disfagia.
longo prazo. Os dilatadores mais antigos, tais como Brown-McHardy,
Hurst-Tucker, Ridder-Moeller, Mosher e Sippy, foram objeto
de metanálise, considerando-se trabalhos prospectivos e retros
■ Toxina botulínica pectivos, em acalasia idiopática (Kadakia et al., 2001). Em cinco
A toxina botulínica (BoTox), potente inibidor da acetilco- estudos prospectivos, com 235 pacientes e tempo de seguimento
lina, de ação excitatória no tônus do EEI, tem sido usada em médio de 2,7 anos, respostas boas ou excelentes foram observa
injeções locais por via endoscópica, com redução dos sintomas das em 85% desses pacientes. Em 15 estudos retrospectivos, in
do paciente, da pressão do EEI e do diâmetro esofágico. A téc cluindo total de 2.183 pacientes, bons resultados foram encon
nica consiste em 20 a 25 U injetados em cada um dos quatro trados em 71%, ao tempo médio de 5 anos. O balão do dilatador
quadrantes da região do esfíncter inferior. de Witzel é de poliuretano e posicionado na JEG com auxílio
Muitos ensaios clínicos têm demonstrado os benefícios, a do endoscópio, sem necessidade de radioscopia. Seis estudos
curto prazo, da injeção dessa toxina nas camadas musculares (quatro prospectivos e dois retrospectivos, incluindo total de
da JEG. Infelizmente, seu efeito é limitado pelo tempo de ação 266 pacientes) avaliaram os resultados com seu uso, e respostas
com o índice de recorrência maior que 50% em alguns meses. excelentes/boas foram encontradas em 66% dos pacientes com
A ação da medicação dura em média cerca de 6 meses. seguimento médio de 11 anos (Kadakia et al., 2001).
Boa resposta sintomática em 6 meses foi observada em 55% Atualmente, os dilatadores mais utilizados são os balões do
de 147 pacientes de vários centros submetidos a única dose de tipo Rigiflex (Boston Scientific®, Boston, MA, EUA) feitos de
BoTox (Hoogerwert & Pasricha, 2001), porém resposta sus polietileno com marcador radiopaco. Disponíveis em diferen
tentada em 2 anos ocorreu em apenas 24% dos 87 pacientes tes calibres, 30,35 e 40 mm (Figura 14.5), são introduzidos no
acompanhados. esôfago, através de um fio-guia metálico flexível, posicionados
148 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago
na JEG e inflados com ar até que ocorra a dilatação do EEI A fluoroscopia é usada em muitos serviços para guiar o po
(Figura 14.6). A mais importante vantagem do Rigiflex é a sua sicionamento do balão, mas não é indispensável, uma vez que
baixa complacência (o diâmetro máximo com a insuflação é a visão direta pela EDA também permite avaliar a localização
previsível), e a tentativa de exceder a este diâmetro resulta em adequada. A técnica de insuflação é variável conforme a ex
ruptura do balão. periência de cada Serviço, em geral utilizando-se pressão de
10 libras por polegada quadrada (psi) em um total de 60 s. A
decisão de escolha do calibre do balão e número de balões in
flados a cada sessão também varia.
O índice de sucesso da DPC é de 70 a 95%, porém há con
trovérsias em relação à manutenção de resultados nos primei
ros 5 anos.
Uma excelente metanálise publicada recentemente (Campos
et a i, 2009) incluiu 1.065 pacientes submetidos à DPC. Foi de
monstrado que a taxa de sucesso foi de 85% no primeiro mês,
mas reduzia-se para 68% no 12° mês e para 58% após 36 meses.
Concluiu também que o alívio dos sintomas esteve relacionado
com o tamanho e tempo de insuflação do balão.
Certos fatores podem predizer melhor resposta às dilatações;
são eles: idade avançada, doença de longa duração, sexo femi
nino e queda da PEEI para metade do valor pré-procedimento
ou para <10 mmHg (Katsinelos et a i, 2005). A presença de
PEEI pré-procedimento > 30 a 50 mmFIg, calibre esofágico
maior que 3 cm na esofagografia, sexo masculino e presença
de sintomas pulmonares parecem ser preditores de resposta
Figura 14.5 Foto de balões pneumáticos Rigiflex. insatisfatória à DPC (Pehlivanov & Pasricha, 2006).
Figura 14.6 Fotos da sequência de dilataçào pneumática da cárdia. Passagem do fío-guia (A). Insuflação do balão pneumático (B). Laceraçáo
da JEG (C). Visão endoscópica pós-dilataçào (D). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 149
No Brasil, o emprego da dilatação forçada da cárdia em pa do esôfago distai (6 a 8 cm) e da cárdia (2 a 3 cm), em geral
cientes com AC chagásica é referido em trabalhos mais anti acompanhada de procedimento antirrefluxo (fundoplicatura
gos, uma vez que, nos maiores centros de referência para o - Fp). É grande a experiência brasileira com cirurgia no mega
tratamento desta entidade, predomina o tratamento cirúrgico. esôfago chagásico. Pinotti et al. (1974), com técnica própria e
Com dilatação hidrostática, foram encontrados bons resulta cardiomiotomia associada à esofagofundogastropexia, acompa
dos imediatos em 78,4% de 342 pacientes chagásicos (Raia 8c nharam 223 pacientes com megaesôfago chagásico não avança
Pinotti, 1983). Rezende (1979) obteve bons resultados com a do, por período entre 6 meses e 12 anos, e relataram resultados
DPC em 45% de 103 pacientes acompanhados por período de excelentes ou bons em 95% dos casos.
1 a 5 anos, 28% foram submetidos a outras DPC e 15% foram Outra grande experiência brasileira é a de Barbosa et al.
operados por insucesso da DPC. Melhores resultados foram (1981), que utilizaram procedimento mais complexo, como a
obtidos por Esper et al. (1988), com melhora clínica em 80% de cirurgia de Thal-Hatafuku, com bons resultados no megaesô
280 pacientes acompanhados por um período médio de 7 anos, fago chagásico.
e apenas 10% necessitaram de nova dilatação. Até alguns anos atrás, o procedimento era feito por via ab
Na experiência do Hospital Universitário Clementino Fraga dominal ou torácica; porém, atualmente, a via de escolha é a
Filho, da UFRJ, no Rio de Janeiro, centro de referência para pa laparoscópica, e um dos procedimentos mais empregados é a
cientes com AC, consta a avaliação dos resultados com a DPC miotomia de Heller com fundoplicatura de Dor (Figuras 14.7
em três estudos, dois retrospectivos e um prospectivo. No pri e 14.8).
meiro, 132 pacientes foram submetidos a 175 DPC, com balões Na metanálise já referida (Campos et al., 2009), foram
de Mosher e Witzel. Destes, 85 tiveram a resposta clínica avalia incluídos 3.086 pacientes submetidos à miotomia laparoscó
da por período entre 1 e 15 anos. Em análise estratificada a cada pica. Houve bons resultados em 89% do total deles, em um
5 anos, demonstrou-se a deterioração da resposta à DPC com seguimento médio de 35 meses. Analisando separadamente os
o passar do tempo, porém os resultados foram excelentes ou pacientes que receberam Fp e aqueles em que o procedimento
bons em 46% dos pacientes em período médio de 3 anos. Não antirrefluxo não foi realizado, observou-se melhora em 90,3 e
houve diferenças entre os resultados obtidos nas AC chagásica 89,9%, respectivamente. Os autores concluíram que a cirurgia
ou idiopática (Pereira 8c Lemme, 1995). No segundo estudo, foi o tratamento mais eficaz, quando comparada aos outros
empregou-se o balão Rigiflex em 85 pacientes/125 DPC e obser métodos terapêuticos.
vou-se que, em até 1 ano, 80% apresentavam bons resultados, As complicações da esofagomiotomia com fundoplicatura
caindo para 60% entre 1 e 5 anos (Vargas, 2001). Estes achados são raras, mas podem ocorrer, entre elas, perfuração esofágica,
com o balão Rigiflex foram confirmados em estudo prospecti
vo de 45 pacientes com AC graus 1 a 3, ou seja, bons resulta
dos precoces (73%), com queda da taxa de resposta ao final do
segundo ano para 54% (Borges, 2010). É importante assinalar
que nestes estudos predominaram fortemente pacientes com
acalasia idiopática, uma vez que, como referido, o município
do Rio de Janeiro não é área de doença de Chagas.
O número de dilatações a que cada paciente pode ser subme
tido é objeto de controvérsia. Há quem realize 2 ou 3 dilatações
em sessões diferentes ou 1 a 3 em cada sessão, podendo ser re
petido o procedimento uma vez ou no máximo duas vezes.
A DPC é um método seguro com morbidade e mortalida
de baixas. Uma das vantagens da DPC é a possibilidade de ser
utilizada antes ou depois de outros procedimentos, sem pre
judicar a resposta deles.
As principais complicações no ato do procedimento são per
furação do esôfago e sangramento na região da dilatação, o que Figura 14.7 Desenho esquemático mostrando a visão laparoscópica
pode ocorrer em cerca de 1,3% dos casos. São raras e incluem da área da esofagomiotomia de Heller, 2 cm no estômago e 6 cm no
hematoma intramural, divertículos da cárdia, dor torácica pro esôfago (A). Miotomia realizada (B).
longada pós-procedimento e febre.
O RGE verdadeiro após a DPC tem sido registrado na litera
tura como um todo em torno de 4 a 8% dos pacientes. Entretan
to, a maioria dos estudos não faz referência precisa à maneira de
diagnóstico, se pela presença de esofagite, de sintomas, e poucos
empregaram a pHmetria. Quando se emprega este exame, o re-
fluxo anormal pode ser encontrado em até 30% dos pacientes
(Shoenut et al., 1997; Novais & Lemme, 2010).
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO
O tratamento cirúrgico da AC pode ser feito por meio de
técnicas conservadoras (esofagomiotomias) ou cirurgias mais
invasivas (esofagoplastias e esofagectomias).
A cirurgia conservadora mais empregada é a esofagomioto- Figura 14.8 Desenho esquemático mostrando o aspecto final da fun
mia de Heller, que consiste na secção das camadas musculares doplicatura de Dor.
150 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago
mediastinit e,gas/bloat syndrome (dificuldade de eructação, ge Portanto, a escolha entre a dilatação pneumática da cárdia e
ralmente associada à Fp apertada, frequentemente autolimita- a esofagomiotomia de Heller ainda gera controvérsias, uma vez
da) e RGE. A presença de RGE após a cirurgia tem incidência que ambas apresentam vantagens e desvantagens. Os estudos
variável, podendo ocorrer em cerca de 6 a 13% dos casos, atin realizados para elucidar a questão são, em sua maioria, muito
gindo até 36% quando não há Fp (Vela et al, 2006). Portanto, a heterogêneos quanto à metodologia empregada, e as taxas de
associação de Fp à miotomia tem se mostrado importante fator sucesso relatadas são bastante variáveis. O melhor método cer
para a diminuição desta complicação no pós-operatório. tamente é aquele com o qual o Serviço tem mais experiência,
Em relação à técnica de Fp, sabe-se que a mais utilizada é a e acredita-se que a conduta deva ser individualizada, baseada
Fp parcial, uma vez que a total está associada à presença de dis- nas características e vontade do paciente.
fagia no pós-operatório, podendo ser anterior ou posterior. A miotomia, em centros especializados, parece ser o trata
As ressecções esofágicas (esofagectomias) ou esofagoplastias mento de escolha em pacientes jovens e com bom risco cirúr
(Thal-Hatafuku e Serra Doria) são, habitualmente, indicadas em gico. A DPC está bem indicada, principalmente, em pacientes
alguns casos de falha do tratamento cirúrgico inicial (em geral, idosos, com alto risco cirúrgico ou que não querem ser sub
resolvidos com nova miotomia) e, raramente, como primeiro metidos a procedimentos mais invasivos, podendo ser o pro
tratamento do megaesôfago muito avançado. cedimento inicial eficaz em centros economicamente menos
desenvolvidos, porém sua realização também exige treinamen
to especializado.
■ DILATAR OU OPERAR?
Os estudos mais antigos, comparativos entre a cirurgia con
servadora aberta e a DPC, demonstram que os resultados do
■ LEITURA RECOMENDADA
tratamento cirúrgico são melhores e, em geral, mais duradouros Abir, F, Modlin, I, Kidd, M, Bell, R. Surgical treatment of achalasia: currcnt
do que os obtidos com a dilatação, em estudos retrospectivos, status and controvcrsics. Dig. Surgery, 2004; 21:165-76,
de grande série de pacientes (85% de bons resultados com a ci Abrahão, LJ, Bhargava, V, Lcmmc, EMO et al. Chagas discasc csophagcal in-
volvcmcnt evaluated by high frcqucncy intraluminal ultrasound. AGA abs-
rurgia x 65% com a DPC, Okike et al.y 1979) como de número
tracts, DDW, 2010, p. S 342-3.
menor de pacientes (65% de bons resultados com a cirurgia de Abrahão-Junior, LJ, Lcmmc, EMO, Domingues, GR et al. Manomctric study
Thal-Hatafuku x 45% com a DPC, Pereira, 1994). Estudo pros- of csophagcal body in idiophatic achalasia and Chagas’ discasc relatcd
pectivo (Csendes et al, 1991) também demonstra melhores re achalasia. Em: Pinotti HW, Ceconello, I, Fdix, VN, Oliveira, MA. Rcccnt
sultados com a miotomia do que com a DPC (95 x 65%). Advanccs in Discases of thc Esophagus. Bolonha, Itália: Monduzzi, 2001,
p. 227-233.
Campos et al. (2009), em sua metanálise, analisaram
Abrahào-Junior, LJ, Lcmmc, EMO, Domingues, GR et al. Uppcr csophagcal
3.086 pacientes com AC operados por cirurgia laparoscópi- sphinctcr and pharyngcal function in idiophatic and Chagas’ discasc rclatcd
ca e 1.065 manejados com DPC. Concluíram que a cirurgia achalasia. Em: Pinotti, HW, Ccconcllo, I, Felix, VN, Oliveira, MA. Rcccnt
(combinada com o procedimento antirrefluxo) foi o tratamen Advanccs in Discases of thc Esophagus. Bolonha, Itália: Monduzzi, 2001,
to mais eficaz. A taxa de sucesso aos 12 meses foi de 89% para p. 235-240.
cirurgia e 68% para DPC, mantendo-se estável para o grupo Anderson, SH, Yadcgarfac, G, Arastud, MH et al. The rclationship bctwccn
gastro ocsophageal rcílux symptoms and achalasia. Eur J Gastroenterol He-
operado após 3 anos e com queda para 56% nos submetidos patolol, 2006; 18:369-74.
à DPC. A necessidade de tratamento adicional nos pacientes Andrcollo, NA, Lopes, LR, Brandalisc, NA et al. AC idiopática do esôfago:
submetidos à DPC foi de 25%. A incidência de RGE foi menor análise dc 25 casos. GED, 1996:15:151-55.
nos pacientes que tiveram Fp associada à miotomia (8,8% com Barbosa, H, Barichcllo, AW, Viana, AL et al. Megaesôfago chagásico. Tratamento
Fp e 31,5% sem Fp). pela cardioplastia a Thal. Rev. Col. Bros. Cir., 1981; 8:16-29.
Bassotti, G & Anncse, V. Revicw articlc: pharmacological options in achalasia.
Alguns trabalhos mostram resultados diferentes. Estudo na Aliment Pharmacol 7her, 1999; 13:1391-6.
cional, prospectivo e randomizado avaliou os resultados ob Bhutani, MS. Gastrointestinal uses of botulinum toxin. Am J Gastroenterol,
tidos em 40 casos de megaesôfago não avançado submetidos 1997; 92:429-33.
à dilatação forçada ou à cirurgia laparoscópica, em período Borges, A. Estudo comparativo da resposta clínica c dc fatores prognósticos na
de 3 anos. Os dois métodos se mostraram igualmente eficazes dilatação pneumática da cárdia c na esofagomiotomia de Heller com fundo-
plicatura por via laparoscópica cm pacientes com acalasia. Rio dc Janeiro,
(Felixeí al, 1998).
2010,91 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade dc Medicina, Universidade
Outro estudo relatou que, depois de 6 meses, ambos os mé Federal do Rio dc Janeiro.
todos (DPC e miotomia laparoscópica) ofereceram bons resul Brant, C, Moraes-Filho, JPP, Siqueira, E et al. Intrasphinctcric botulinum toxin
tados em 90% dos pacientes, reduzindo-se para 44% (DPC) e injcction in thc treatment of chagasic achalasia. Dis Esophagus, 2003;
57% (miotomia) após 6 anos, sem diferença significativa entre 16:33-8.
Campos, G, Vittinghof, E, Charlottc, RC. Endoscopic and Surgical Trcatmcnts
eles (Vela et a l, 2006).
for Achalasia. A Systcmatic Rcvicw and Mcta-Analysis. Ann Surg, 2009;
Recentemente, no Serviço de Gastrenterologia do Hospital 249:45-57.
Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, foi realizado Cartcr, R & Brcwcr, LA. Achalasia and csophagcal carcinoma. Studics in
ensaio clínico de 5 anos de duração, em que 92 pacientes com carly diagnosis for improved surgical management. Am J Surg, 1975; 13:
AC (sem tratamento prévio) foram randomizados para cada um 114-20.
dos grupos de tratamento (DPC x miotomia de Heller laparos Chagas, C. Tripanossomíasc americana (forma aguda da moléstia). Mem Inst
Oswaldo Cruz, 1916;8:37-60.
cópica com Fp). Respostas satisfatórias foram semelhantes nos Crookcs, OS, Corkill, S, Dc Mccstcr, TR. Gastrocsophagcal rcílux in achalasia.
dois procedimentos (HFp 84%, DPC 73% p < 0,05) na avaliação W hcn is rcílux rcally rcílux? Dig Dis Sei, 1997; 42:1354-61.
precoce (3 meses). Os dois métodos apresentaram queda na Csendes, A, Braghcto, I, Burdilcs, P et al. Comparison o f forccful dilatation and
resposta de forma semelhante no período de 2 anos. A taxa de csophagomyotomy in patients with achalasia of thc esophagus. Hepatogas-
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refluxo determinada à pHmetria foi significativamente maior
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Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 151
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Tumores do Esôfago
José Mauro Messias Franco, Fernando Augusto Vasconcellos Santos
e Marcelo Flenrique de Oliveira
O esôfago é um órgão tubular que cumpre a função de conduzir talmente em um exame radiológico ou endoscopia. Podem estar
o bolo alimentar da boca, passando pela faringe, ao estômago. associados a vago desconforto retroestemal. Os leiomiomas são
Qualquer formação tumoral em seu trajeto tem o potencial de os tumores esofágicos benignos mais comuns.
prejudicar a alimentação do paciente, podendo se manifestar
por desconforto, dor, engasgo, ou mesmo não causar sinto
mas, sendo encontrada fortuitamente em exames com outro ■ TUMORES EPITELIAIS BENIGNOS
propósito.
Os tumores do esôfago podem ser benignos, mas, quando ■ Papilomas de células escamosas
ocorrem, são, na maioria das vezes, malignos, e originam-se
São raros e representam cerca de 3% dos tumores benignos
principalmente da mucosa de suas diversas camadas. Uma vez
do esôfago. Em geral, são achados casualmente durante exames
feito o diagnóstico de uma turno ração esofágica, impõe-se o
endoscópicos, sendo, na maioria das vezes, pequenos, brancos
esclarecimento de sua origem para uma conduta adequada. O ou rosados e sésseis. A biopsia da mucosa ou a polipectomia
Quadro 15.1 mostra a classificação dos tumores de esôfago. são procedimentos seguros. Não têm tendência a recorrer. Na
maioria das vezes, é lesão única localizada no terço distai do
órgão. A sua transformação maligna é muito rara.
■ TUMORES BENIGNOS DO ESÔFAGO Histologicamente são descritos como projeções digitiformes
da lâmina própria, recobertas por epitélio escamoso hiperplá-
O achado de tumor benigno no esôfago é bastante incomum. sico. Tem-se avaliado a associação do papiloma vírus com o
Caracteristicamente, são assintomáticos e descobertos inciden- papiloma de células escamosas.
T
Q u a d ro 15.1 Classificação dos tumores do esôfago ¥lLíÂh
Tumores epiteliais Tumores não epiteliais
Malignos Malignos
T u m o r e s d e c é lu la s e s c a m o s a s L in fo m a s
A d e n o c a r d n o m a d o e s ô fa g o S a rc o m a s
A d e n o c a r c in o m a d a j u n ç ã o g a s tro e s o fá g ic a T u m o r e s m e ta s tá tic o s
C a r c in o m a v e r r u c o s o
C a rc in o s s a rc o m a
T u m o r d e p e q u e n a s c é lu la s Benignos
M e la n o m a L e io m io m a
Benignos T u m o r d e c é lu la g r a n u la r
' L ES Ã O E L E V A D A E S Ô F A G O
P a p ilo m a e s c a m o s o T u m o r fib ro v a s c u la r
l i h a ‘ i5-v
Adenom a H e m a n g io m a
Li p o m a Figura 15.1 Papiloma esofagiano. Fonte: Dr. David Corrêa Lima. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
152
Capítulo 15 / Tumores do Esôfago 153
Tempo em anos
Estádio
■ APRESENTAÇÃO CLÍNICA E PROGNÓSTICO I T1N 0M 0
T2N 0M 0
A disfagia é o principal sintoma (75 a 90%), seguido por odi- IIA T3N 0M 0
ulceração do tumor. Dor torácica e dor irradiada para as costas, III T1N 2M 0
em geral, estão associadas à invasão de estruturas nervosas no T2N 2M 0
mediastino, sendo sinônimo de mau prognóstico. IV T 4 , q u a lq u e r N , M 0
O aparecimento de sintomas em geral ocorre quando há Q u a lq u e r T , q u a lq u e r N , M l
obstrução de 2/3 da luz esofágica. Nestes casos, acometimento Adaptado do American Joint Committee on Câncer.
esofágico transmural e metástase linfonodal é a regra, e o trata
mento curativo é realizado de forma excepcional. A incidência
de metástase linfática é de aproximadamente 25% quando existe
invasão da camada submucosa do órgão.
Perda de peso, estado clínico deteriorado, acometimento O estadiamento clínico, que considera a extensão da doença
tumoral transmural e formação de fístula esofagobrônquica, antes do tratamento, é baseado em história clínica, exame físico,
por sua vez, são determinantes de mau prognóstico. com especial atenção aos gânglios supraclaviculares e cervicais,
biopsia, exames laboratoriais, endoscopia e métodos de imagem
como o ultrassom endoscópico, tomografia computadorizada
■ DIAGNÓSTICO E ESTADIAMENTO e tomografia por emissão de pósitrons.
O esofagograma, apesar de muito útil na determinação topo
O American Joint Committee on Câncer (AJCC) estabeleceu gráfica da lesão, detecta alterações na fase avançada da afecção.
um sistema de estadiamento dos tumores do esôfago baseado Tipicamente, mostra falha de enchimento e/ou estenose da luz
na descrição da lesão tumoral, dos linfonodos locorregionais, esofágica, desvio do eixo esofágico e fístula esofagobrônquica
e das metástases a distância. O Quadro 15.3 ilustra esta clas quando presente.
sificação. Tomografias computadorizadas tanto do tórax como do ab-
Para o estágio T, considera-se somente a profundidade da dome superior estão indicadas para avaliar a lesão e suas rela
penetração da lesão não se levando em consideração exten ções com estruturas adjacentes, tais como aorta, brônquios e
são do tumor, porcentagem da circunferência envolvida ou linfonodos mediastinais, além de possíveis metástases pulmo
obstrução da luz do órgão. Diferentemente de outros tumores nares e hepáticas. O uso da tomografia pode prever a resseca-
gastrintestinais, o acometimento linfonodal além daqueles pe- bilidade do tum or em 65 a 88% das vezes; ela pode prever o
ritumorais (N l) é considerado doença metastática e não aco estágio T em 70% das vezes e o N em 50 a 70%. Na avaliação
metimento linfonodal. dos linfonodos celíacos e na resposta à quimioterapia e radio-
156 Capítulo 15 / Tumores do Esôfago
em geral estão na 5“ e 6“ décadas de vida, são frequentemente Estudos comparativos e recente metanálise concluíram que
tabagistas, alcoolistas e apresentam outras comorbidades, que não há diferença significativa entre as técnicas no que diz respei
os colocam, a princípio, em situação de risco cirúrgico eleva to à radicalidade da ressecção tumoral e obtenção de margens
do. O diagnóstico é frequentemente tardio e em cerca de 50% microscópica livres de tumor, à morbimortalidade cirúrgica e
dos casos existem metástases à avaliação inicial. Apesar disso, sobrevida a longo prazo. A opção sobre qual a via de acesso a
a sobrevida a longo prazo melhorou nas últimas décadas, pas ser utilizada fica a cargo da preferência do cirurgião e experi
sando de 4% em 1970 para 14% atualmente. ência do serviço.
O tratamento cirúrgico é, até o momento, o único que pode Com o recente avanço da cirurgia minimamente invasiva,
proporcionar a cura. Neste caso, o estadiamento tumoral (Qua alguns autores propõem a toracoscopia e a laparoscopia, com
dro 15.3), a ressecção cirúrgica sem tumor microscópico resi binadas ou não, como alternativas à cirurgia convencional, na
dual (ressecçâo RO), a presença ou ausência de metástases tentativa de reduzir as complicações decorrentes das incisões
linfonodais, a localização tumoral e a experiência da equipe cirúrgicas, especialmente as complicações respiratórias. Po
cirúrgica são considerados fatores prognósticos importantes. rém, até o momento, e apesar de a radicalidade cirúrgica ser
semelhante, não há nenhum estudo que comprove o benefício
com a utilização dessas vias de acesso, e estudos prospectivos
- Tumor inicial (TisNOMO/TINOMO) e comparativos são necessários para definição de seu papel no
Nota-se avanço considerável da endoscopia no tratamento tratamento do câncer de esôfago.
dos tumores do trato digestivo como um todo, mas especial Outro ponto de controvérsia é se a linfadenectomia deve ser
mente no esôfago e estômago. Os tumores restritos à mucosa realizada ou não, e qual a extensão dela. O câncer esofágico dis
do órgão devem, quando possível, ser tratados por via endos- semina-se precocemente por via linfática e espera-se incidência
cópica. A incidência de complicações graves é baixa, bem como de metástase linfonodal em aproximadamente 25% dos casos
sua mortalidade. na presença de acometimento tumoral da submucosa.
No planejamento do tratamento endoscópico dos tum o O acometimento linfonodal é considerado fator indepen
res esofágicos, é fundamental a utilização da ecoendoscopia. dente de mau prognóstico e, quando presente, a sobrevida em
Desta forma, é possível determinar precisamente a extensão 5 anos é baixa e, em muitas ocasiões, denota estadiamento tu
do tumor em profundidade na parede do esôfago e o risco de moral avançado e comprometimento sistêmico.
Não há na literatura estudos prospectivos e comparativos
metástase linfática.
entre as técnicas de linfadenectomia no câncer esofágico, e a
A ressecção endoscópica, mucosectomia, está indicada nos
tumores que acometem a mucosa e naqueles que invadem a
camada superficial da submucosa. Nestas situações, a incidên
cia de metástase linfonodal é muito baixa e os índices de cura
são superiores a 95%.
Apesar de promissor, o tratamento endoscópico possui al
gumas limitações como necessidade de realização de endosso-
nografia esofágica em todos os casos, disponibilidade de en-
doscopista experiente com as cirurgias endoscópicas, rigor no
preparo da peça ressecada e patologista experimentado para a
análise da peça adquirida com a ressecção endoscópica.
Na impossibilidade de ressecção endoscópica dos tumores
intramucosos, naqueles com acometimento das camadas pro
fundas da submucosa e na suspeita de metástase linfonodal
periesofágica, o tratamento de escolha é a esofagectomia. Este
tratamento apresenta morbidez elevada e mortalidade que pode
chegar a 20%. Atualmente, se aceita a realização da esofagec
tomia somente em serviços de alto volume, com o mínimo de
20 esofagectomias ao ano. Assim, espera-se mortalidade ope-
ratória em torno de 2%.
Na programação da esofagectomia, é fundamental o estadia
mento tumoral pré-operatório, porém mais importante ainda
é a utilização de critérios clínicos rigorosos para a seleção dos
pacientes. Frequentemente, os pacientes estão desnutridos, são
alcoolistas e tabagistas, idosos, estão em tratamento de outras
afecções, tais como diabetes e coronariopatias, portanto não são
bons candidatos ao tratamento cirúrgico. Permanece discutível
qual a melhor via de acesso cirúrgico para o tratamento dos tu
mores esofágicos, se transtorácica ou transiatal. Na primeira,
realizada por meio de toracotomia direita, é possível melhor
identificação das estruturas mediastinais, dissecção por visão
direta da lesão, ressecção tumoral em monobloco e linfadenec-
tomia intratorácica alargada. Na ressecção transiatal, a linfade-
nectomia intratorácica, especialmente das cadeias linfonodais
mais craniais, é limitada e a dissecção dos tumores de esôfago Figura 15.6 CCE de esôfago distai. (Esta figura encontra-se reproduzida
médio não é, na maioria das vezes, realizada por visão direta. em cores no Encarte.)
158 Capítulo 15 / Tumores do Esôfago
■ Tumor avançado
(T2 N1 M0/T3 N1 M0 /T4 N1 M0/TXNXM1 )
Nesta fase, a cura é excepcional e a recidiva tumoral no me
diastino posterior ocorre em até 50% dos pacientes no prazo
de aproximadamente 2 anos. O tratamento cirúrgico acarreta
elevada morbidade pós-operatória e o paciente tem sua qua
lidade de vida extremamente comprometida. A indicação do
tratamento cirúrgico com a mera finalidade de controle da dis-
fagia parece insuficiente para justificar o sofrimento do pós-
operatório.
A associação da radioterapia e quimioterapia, sem a reali
zação de cirurgia, é capaz de controlar a doença locorregional-
mente, devolver a capacidade de ingestão de alimentos à custa
de morbidade e mortalidade aceitáveis.
A endoscopia assume papel importante como tratamento
paliativo do tumor esofágico, já que é capaz de aliviar a disfagia
e tratar fístulas esofagobrônquicas, eventualmente presentes,
especialmente em pacientes com tumor de esôfago torácico.
Para a disfagia, são muitas as técnicas endoscópicas descritas,
algumas desobstruem o esôfago por meio do deslocamento e
tunelização tumoral, outras utilizam técnicas de ablação do tu
mor. A dilatação direta da estenose tumoral utilizando cateteres
dilatadores de poiivinil (Savary-Guillard) ou balões endoscópi-
cos foi muito utilizada, com a vantagem de ser barata, relativa
mente segura, mas com o incoveniente de reestenose precoce
da luz esofágica e da necessidade de repetidas dilatações.
Intubação com prótese esofágica é método atrativo para o
Figura 15.7 Esofagectomia transiatal: peça cirúrgica. (Esta figura en alívio da disfagia e fístula esofagotraqueal, por meio da com
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) pressão tumoral em direção à parede do esôfago por ação me
cânica direta. Inicialmente, utilizavam-se próteses endoscópi
cas rígidas, porém estas são difíceis de serem posicionadas e
apresentam alto índice de deslocamento e perfuração do ór
maioria deles baseia-se na experiência de um único serviço e, gão. Atualmente, existem próteses metálicas autoexpansivas,
mesmo assim, são incluídos pacientes em estágios tumorais e de manuseio mais fácil, que permitem melhor posicionamento
tipos histológicos diferentes. na luz esofágica, com grande força radial e melhor fixação ao
Aparentemente, para os tumores esofágicos distais, de modo esôfago, com consequente redução do risco de deslocamento.
especial, nos casos de adenocarcinoma, a linfadenectomia em Talvez, o maior inconveniente resida no fato de poder ocorrer
dois campos, mediastino inferior e tronco celíaco, é recomenda crescimento tumoral para dentro da prótese (5 a 20%), levando
da. A realização de linfadenectomia junto ao nervo laríngeo re à necessidade de novas intervenções para a sua desobstrução,
corrente e a linfadenectomia cervical bilateral aumentam a mor- além de seu elevado custo. O alívio da disfagia é imediato e a
bidade operatória sem, a princípio, aumentar a sobrevida. incidência de complicações é pequena. Também, podem ser
A terapia neoadjuvante é atrativa, uma vez que é capaz de utilizadas no tratamento das fístulas esofagobrônquicas. Seu
promover redução do tamanho tumoral e no número de lin- emprego em pacientes com tumor em esôfago cervical não é
fonodos acometidos, aumentando a incidência de ressecções recomendado pelo desconforto torácico provocado por sua
completas (ressecção RO). Em metanálise recentemente publi presença, e, naqueles com prótese posicionada próximo à jun
cada, avaliando radioterapia (RxT) isolada no pré-operatório, ção esofagogástrica, o uso de bloqueador da bomba de prótons
não se observou nenhum ganho de sobrevida a longo prazo. é recomendado.
Fenômeno semelhante acontece quando se utiliza quimiotera A fotoablação endoscópica a laser (Nd:YAG = neodymium-
pia (QT) isolada no pré-operatório. yttrium-aluminum-garnet laser) produz vaporização e necrose
O tratamento combinado, utilizando-se RxT e QT neoad por coagulação do tumor, sem necessidade de contato direto
juvante, inicialmente difundido por Walsh e cols., foi testado com a lesão. Há alívio da disfagia em 70 a 85% dos pacientes
em dois estudos prospectivos. O estudo americano, que preten após 3 a 6 sessões, por período de 3 a 6 semanas. Tumores de
dia avaliar 620 pacientes, foi precocemente interrompido após terço médio, vegetantes e que promovem estenose de até 5 cm
inscrição de 75 pacientes, devido à toxicidade do tratamento, de extensão são os que apresentam melhor resposta. A sua uti
e, no segundo estudo, proveniente da Austrália, não se obser lização é dificultada pelo alto custo para aquisição e manuten
vou nenhum benefício a favor do tratamento combinado, com ção do equipamento.
Capítulo 15 / Tumores do Esôfago 159
A terapia fotodinâmica utiliza substância citotóxica para as Barbicr, PA, Ludcr, PJ, Schupfcr, G et al. Quality of lifc and pattcrns of rccurrcncc
células tumorais, ativada por meio da luz de laser posicionada following transhiatal esophagcctomy for canccr: rcsults of a prospectívc
follow-up in 50 paticnts. World / Surg, 1988; 12:270-6.
em proximidade com o tumor. Tem como vantagem a possibi Blazcby, JM, Farndon, JR, Donovan, JL et al. A Prospcctivc Longitudinal Study
lidade de tratamento de grande extensão tumoral, com relativa Examining the Quality of Lifc of Paticnts with Esophagcal Carcinoma. Cân
segurança e baixa incidência de perfuração esofágica. Pacientes cer, 2000; 88:1781-7.
submetidos a este tratamento podem apresentar sensibilidade Bossct, JF, Lorchcl, F, M antion, CL Ncoadjuvant trcatmcnt of carly stagc
squamous ccll carcinoma. Diseases o f the Esophagus, 2002; 15:117-20.
cutânea à luz. Como ocorre com o NdrYAG laser, o custo do Dc Palma, GD, Di Matteo, E, Romano, G et al. Plastic prothesis versus cxpand-
método dificulta sua utilização em nosso meio. able metal stents for palliation of inopcrablc csophagcal thoracic carcinoma:
Opção mais econômica e que pode ser utilizada em grande a controllcd prospcctivc study. Castrointest Endosc, 1996; 43:478-82.
número de serviços de endoscopia é a injeção de substâncias Ellis, FH. Standard rcscction for canccr of the esophagus and cardia. Surg Oncol
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aceitação do método é a incapacidade de controlar o grau de Ginsbcrg, GG & Fleischcr, D. Esophagcal Tumors. Em: Fcldman, M et al. Gas-
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sistêmicos. Recentemente, em estudo aleatório, comparando
Homs, MYV, Stcybcrg, EW, Eijkcnboom, WMH, Tilanus, HW et al. Single
braquiterapia e stetit endoscópico para paliação da disfagia, dose brachythcrapy versus metal stent placcment for the palliation of dys-
os autores perceberam menor incidência de complicações re phagia from ocsophagcal canccr: multiccntrc randomized trial. Lancet,
lacionadas com o procedimento, alívio mais prolongado da 2004; 364:1497-504.
disfagia e melhor qualidade de vida nos pacientes tratados Knyrim, K, Wagner, HJ, Beth, N et al. A controllcd trial of an cxpansible metal
stent for palliation of csophagcal obstruetion due to inopcrablc canccr. N
com braquiterapia. O alívio da disfagia foi mais rápido no Engl J Med, 1993; 329:1302-7.
grupo tratado com stent endoscópico, devendo este procedi Koshy, M, Esiashvilli, A, Landry, JC et al. Combincd modality management
mento ser reservado para aqueles pacientes com expectativa approachcs. The Oncologist, 2004; 9:147-59.
de vida mais curta. Koshy, M, Esiashvilli, N, Landry, JC et al. Multiplc management modalities in
csophagcal canccr: cpidcmiology, presentation and progression, work-up,
Infelizmente, em algumas situações o alívio da disfagia não
and surgical approachcs. The Oncologist, 2004; 9:137-46.
é possível, tal como ocorre em pacientes com lesões extensas, Lee, LS, Singhal, S, Brinstcr, GJ et al. Currcnt management of csophagcal lcio-
com desvio patológico do eixo esofágico e estenose completa e myoma. Am Coll Surg, 2004; 798:136-46.
intransponível da luz do órgão. Nesses casos, está indicada gas- Linhares, E, Marques, A, Sardou, L. Câncer do Esôfago. Em: Galvào-Alvcs, J
trostomia ou jejunostomia cirúrgica para que o paciente possa 8c Dani, R. Terapêutica cm Gastrocntcrologia, Rio dc Janeiro, Guanabara
Koogan, 2005.
receber suporte nutricional e também medicamentos, de modo
Lyn, CY, Chcng, YL, Huang, WH et al. Primary Malignant Melanoma of the
especial analgésicos, sempre que necessário. Ocsophagus presenting with massive mclcna and hypovolemic shock. ANZ
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Trata-se de lesão maligna agressiva, de pior prognóstico em Moreira, LS 8c Dani, R. Trcatmcnt of granular ccll tum or of the esophagus
relação ao CCE, rara no esôfago, e, por isso, não existe consenso by cndoscopic injcction of dchydratcd alcohol. Am / Castroenterol, 1992,
na literatura quanto à melhor abordagem terapêutica. 87:659:61.
A presença de linfonodos metastáticos determina sobrevida Munro, AJ. Ocsophagcal canccr: a vicw over ovcrvicws. Lancet, 2004;
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tomia parece ser o tratamento de primeira escolha, e a associa dinicopathological and immunohistochcmical analisis of six cases. Diseases
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o diagnóstico é tardio, já sendo observada a presença de metás- North Am, 1997; 77:1198-216.
tases para o fígado (31%), mediastino (29%) e pulmão (18%). Sicwcrt, JR, von Rahdcn, BHA, Stcin, H J. Currcnt status of csophagcal canccr -
West versus East: the Europcan point of vicw. Esophagus, 2004; 7:147-59.
A grande maioria dos estudos baseia-se em relatos de casos e, Silva, LD, Magalhães, LCR, Reis, LFA et al. Carcinoma dc pequenas células do
nestes, o tratamento cirúrgico é o mais utilizado. A sobrevida esôfago com apresentação múltipla: relato dc caso c revisão da literatura.
média com o tratamento cirúrgico é de 4,25% em 5 anos e 0% GED, 1999;78:113-16.
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PARTE III
Estômago e Duodeno
Anomalias Congênitas
Marisa Fonseca Magalhães e Maria do Carmo Friche Passos
O estômago se desenvolve durante a quarta semana de vida porção terminal do esôfago, e os pacientes apresentam, logo
embrionária, a partir do intestino primitivo. Nessa época, se após o nascimento, quadro de vômitos, anemia e desnutrição.
apresenta como uma porção dilatada, de forma fusiforme. Nas A microgastria tem sido descrita em associação com asplenia,
semanas seguintes, ocorre a rotação sobre seu eixo longitudinal, cardiopatias e má rotação intestinal, entre outras. O tratamento
em 90°. Esse movimento determina o posicionamento anterior inicial consiste em pequenas e frequentes refeições e alimenta
da borda direita, formando a parede anterior do estômago; a ção parenteral. Em sua maioria, os pacientes morrem em sema
borda esquerda origina a parede posterior do órgão. A antiga nas ou meses. Quando o paciente sobrevive, tem sido tentada
parede posterior, agora borda esquerda, apresenta um cresci a confecção cirúrgica de uma bolsa jejunal funcionando como
mento maior que a borda direita, o que resulta na forma assi reservatório do bolo alimentar.
métrica do estômago, com a diferenciação das duas curvaturas,
pequena à esquerda e grande à direita. O movimento de rotação
explica, ainda, por que a parede anterior é inervada pelo vago ■ ATRESIAS
esquerdo e a posterior, pelo vago direito.
Como o estômago, também o duodeno cresce rapidamente, As atresias são decorrentes da não recanalização do lúmen
formando um arco, que se projeta ventralmente, e, através de gástrico em determinada porção. Sua ocorrência é rara, sendo
rotação para a esquerda, vai se localizar no retroperitônio. O descritos menos de 50 casos. A área de atresia localiza-se no an
lúmen do duodeno permanece obliterado até a quinta ou sexta tro ou no piloro. Duas são as teorias que explicam a persistente
semana, devido à proliferação rápida do epitélio. A vacuoliza- obliteração do lúmen tubular: a falha da recanalização por não
ção, com degeneração de algumas células, acarretará a recana- vacuolização e a não involução da hiperplasia da mucosa.
lização do duodeno nas semanas seguintes. Polidrâmnio materno e vômitos não biliosos desde o nas
O endoderma embrionário dá origem aos epitélios gástrico cimento, associados à não eliminação de mecônio, são chaves
e duodenal, e do mesoderma derivam o tecido conjuntivo e as para o diagnóstico. A radiologia mostra distensão gasosa do
camadas muscular e serosa. As alterações do desenvolvimento estômago e opacidade no restante do abdome. O tratamento
embrionário do estômago darão origem às malformações gás consiste na ressecção gástrica da porção atrésica. Crianças nas
tricas, que, de maneira geral, são raras, sendo a mais frequente quais foi tentada apenas a ressecção da faixa membranosa, que
delas a estenose hipertrófica do piloro. Casos de agenesia gástri causava oclusão da luz do órgão, necessitaram de nova inter
ca só foram relatados em anencéfalos. É objetivo deste capítulo venção cirúrgica em decorrência de obstrução gástrica.
rever as malformações gastroduodenais do tipo microgastria,
atresias ou estenoses parciais, duplicações, divertículos e defei
tos de parede muscular. ■ ESTENOSE HIPERTRÓFICA DO PILORO
É a mais comum das malformações gástricas, ocorrendo em
■ MICROGASTRIA cerca de 2 para cada 1.000 nascidos vivos. Em consequência
de hipertrofia e edema da musculatura do piloro, desenvol-
É uma malformação rara, tendo sido descritos, até o mo ve-se uma síndrome de obstrução ao esvaziamento gástrico,
mento, menos de 30 casos, com adequada documentação. Em que é responsável pela maioria das cirurgias realizadas duran
apenas um caso, o diagnóstico não foi feito na infância. É resul te as seis primeiras semanas de vida. A etiologia da estenose é
tado da não rotação gástrica, o que determina a interrupção do desconhecida, sendo postuladas algumas teorias como hiper
desenvolvimento, sem a diferenciação das duas curvaturas. O trofia muscular primária, alterações na maturação das células
estômago permanece com seu eixo longo na região média, no ganglionares e resposta às concentrações elevadas de gastrina
plano sagital, e não há diferenciação em fundo, corpo e antro. circulante; mais recentemente, a ausência de síntese do óxido
A função de reservatório é mantida pela dilatação que se dá na nítrico no tecido pilórico tem sido considerada um dos fatores
163
164 Capítulo 16 / Anomalias Congênitas
165
166 Capítulo 17 / Dispepsia Funcional
De fato, muitos pacientes com DF parecem possuir um li motoras e de percepção visceral (hiperalgesia) desses dois gru
miar reduzido para a dor ou respondem aos estímulos doloro pos de dispépticos foi incapaz de detectar diferenças entre eles,
sos com maior intensidade ou duração (hiperalgesia); outras concluindo que as alterações inflamatórias induzidas pelo mi
vezes, a dor ou o desconforto é produzido por estímulos que crorganismo não são responsáveis pela hiperalgesia observada
normalmente não induzem tais sintomas (alodinia). em pacientes dispépticos.
Vários pesquisadores demonstraram que parcela de pacien Os distúrbios de motilidade estão presentes em até metade
tes com DF apresentam uma sensação de desconforto e dor dos pacientes dispépticos, sendo questionada a possibilidade
quando se insufla um balão dentro do estômago e essa hiper- de essas alterações se seguirem a uma infecção bacteriana. En
sensibilidade se exacerba durante a infusão de lipídios intraduo- tretanto, trabalhos atuais contrariam essa hipótese ao demons
denais. Esses dados sugerem a possibilidade de uma percepção trarem menor prevalência da infecção pelo H. pylori em dis
visceral anormal capaz de induzir respostas exageradas nesses pépticos funcionais tipo desconforto pós-prandial.
pacientes, diante de diversos estímulos. Alguns estudos recentes Poucos estudos demonstraram um real benefício com a utili
sugerem que o SNC processa anormalmente a informação em zação de antibióticos para a erradicação do H. pylori, e a maioria
pacientes com distúrbios gastrintestinais funcionais. dos pacientes permanece sintomática após esse tipo de trata
Esses achados também são observados em pacientes com ou mento. Entretanto, estudos de metanálise, recentemente rea
tros distúrbios funcionais, como, por exemplo, na síndrome do lizados, demonstram que a erradicação da bactéria resulta em
intestino irritável, na qual tem sido demonstrado um limiar re um ganho terapêutico que varia de 4 a 14%, sendo superior ao
duzido à dor quando se insufla um balão intrarretal. As bases placebo, e o tratamento anti-H. pylori é uma opção terapêuti
das anormalidades da sensação visceral não são bem conhecidas ca para os dispépticos funcionais. Baseando-se nesses dados,
e não parecem estar relacionadas com distúrbios da motilidade os especialistas do Consenso Roma III recomendam que o H.
gastrintestinal. Estudos iniciais sugerem que essas alterações pylori seja pesquisado e, se presente, erradicado nesse grupo de
se restringem à função visceral aferente, e a sensação de dor pacientes. Da mesma forma, o último consenso europeu sobre
somática está preservada. H. pylori (Maastricht III) faz recomendação semelhante com
Nos últimos anos, diversas drogas capazes de atuar nos me a justificativa de que o tratamento anti-H. pylori beneficia um
canismos das sensações viscerais, reduzindo a hipersensibili- subgrupo de pacientes dispépticos, com a vantagem de reduzir,
dade do sistema digestivo e, consequentemente, melhorando a longo prazo, o risco de evolução para úlcera péptica, atrofia
a sintomatologia dispéptica, vêm sendo testadas, o que gera e câncer gástrico.
grande expectativa para o aprimoramento da terapêutica dos
pacientes com distúrbios funcionais.
■ ACOMODAÇÃO
■ GASTRITE CRÔNICA E HELICOBACTERPYLORI O esvaziamento gástrico é regulado basicamente por dois
compartimentos do estômago, distintos fisiologicamente. O
O papel da infecção pelo H. pylori em pacientes com DF estômago proximal acomoda os alimentos e regula a transfe
permanece controvertido, mas os resultados de metanálises rência para o estômago distai. Este, por sua vez, tritura e mis
recentes sugerem um pequeno benefício com a erradicação da tura o conteúdo intragástrico, além de participar na regulação
bactéria em pacientes infeccionados. da saída dos nutrientes para o duodeno.
Embora o microrganismo seja encontrado em cerca de 50% Muitos estudiosos têm tentado determinar se uma alteração
dos pacientes portadores de dispepsia funcionai, tal prevalência da acomodação gástrica, ou seja, a má distribuição dos alimen
não é significativamente superior àquela observada em grupos- tos no estômago proximal, poderia levar ao aparecimento de
controles adequadamente pareados. Alguns estudos demons sintomas dispépticos. Alguns estudos demonstraram que as
tram que esta infecção é mais prevalente entre os dispépticos tipo alterações da acomodação gástrica são frequentes nos dispép
úlcera do que entre aqueles com dispepsia tipo dismotilidade ou ticos funcionais.
inespecífica, sugerindo a possibilidade de que existam mecanis Em um recente estudo proveniente da Bélgica, foi demons
mos fisiológicos distintos e que o H. pylori possa ter importância trado que alterações do relaxamento do estômago proximal
na patogenia de subgrupos de dispépticos funcionais. estavam presentes em até 40% dos pacientes dispépticos. Foi
Evidências irrefutáveis responsabilizam hoje esse microrga ainda observada uma nítida relação com o sintoma de saciedade
nismo como o principal agente causai da gastrite crônica antral precoce, mas não com hipersensibilidade gástrica à distensão.
e mesmo da pangastrite. A erradicação do H. pylori acompanha-
se quase sempre de normalização histológica da mucosa gástri
ca, mas o efeito sobre a sintomatologia dispéptica é, no mínimo,
muito controvertido. Há, entre os leigos, e também entre os
■ EROSÕES PRÉ-PILÓRICAS
médicos, uma tendência antiga de relacionar gastrite crônica EDUODENITE CRÔNICA
com dispepsia, continuando o debate de se a gastrite é ou não
importante causa de sintomas digestivos altos. Sabemos, entre As erosões pré-pilóricas que podem ser observadas na en-
tanto, que a correta definição clínica, endoscópica e histológica doscopia de pacientes com dispepsia crônica têm a sua etiopa-
de gastrite não se correlaciona com sintomatologia dispéptica. togenia muito controvertida. Essas alterações podem ser en
A dispepsia funcional é uma entidade clínica, sem marcador contradas em indivíduos normais e em pacientes em uso de
biológico conhecido, e a gastrite crônica é uma entidade histo anti-inflamatórios não esteroides.
lógica que evolui, em geral, sem produzir sintomas. É contraditória, também, a possibilidade de a duodenite le
Até o momento, os estudos têm sido incapazes de estabe var a sintomas dispépticos. O número de pessoas com duode
lecer algum padrão sintomatológico distinto entre os pacien nite, isoladamente, é pequeno (menos de 20%), associando-se,
tes dispépticos infectados e não infectados pelo H. pylori. Um na maioria das vezes, à inflamação crônica do antro gástrico.
estudo comparando o comportamento clínico, as alterações No nosso meio, associa-se às parasitoses intestinais, causa co
168 Capítulo 17 / Dispepsia Funcional
mum de sintomas dispépticos entre nós. Na forma erosiva, é Muito frequente também é o relato de sintomas compatíveis
considerada como variante da doença cloridropéptica. com a síndrome do intestino irritável em pacientes dispépticos
funcionais. Cerca de 30% dos pacientes com diagnóstico de DF
relatam concomitantemente dor na região inferior do abdome,
■ FATORES PSICOSSOCIAIS distensão e alteração do hábito intestinal.
turas doenças gastroduodenais. É preciso ressaltar que Uma boa relação médico-paciente continua sendo funda
apenas parcela dos pacientes portadores de DF se benefi mental. É necessário que os pacientes sejam esclarecidos de que
ciará com a erradicação do microrganismo, ou seja, pou seus sintomas são decorrentes de distúrbios funcionais e não
cos pacientes apresentarão melhora clínica significativa caracterizam nenhuma doença grave ou risco de vida, assegu
após esse tratamento. rando-lhes que o problema será tratado de forma interessada
5. A endoscopia digestiva é recomendada para pacientes e racional.
que apresentam sinais de alarme e para aqueles com ida Muitos pacientes obtêm melhora com simples mudanças em
de superior a 40 anos, especialmente naqueles com início seu estilo de vida e adoção de hábitos salutares em seu cotidia
recente dos sintomas. O limite de idade para recomen no como a dieta mais saudável, atividade física regular e exer
dar endoscopia varia de acordo com a epidemiologia do cícios de relaxamento. Devemos sempre recomendar hábitos
câncer gástrico em cada região. dietéticos saudáveis (comer devagar, mais vezes/dia, menor
quantidade), evitando-se alimentos gordurosos, condimenta
É importante ressaltar que, no nosso meio, devemos sem dos, ácidos, café, cigarro e álcool em excesso. O empachamen-
pre solicitar exames parasitológicos de fezes com o objetivo de to pós-prandial em geral melhora com a retirada de alimentos
excluir parasitoses intestinais, especialmente estrongiloidíase gordurosos da dieta, enquanto a saciedade precoce pode ser
e giardíase, causa frequente de sintomas dispépticos entre nós. aliviada com o fracionamento das refeições.
É preciso realizar exames seriados (no mínimo três amostras), A utilização de medicamentos está indicada para as fases
solicitando ao laboratório os métodos mais apropriados para sintomáticas, cuja duração é variável, esperando-se pelos perío
o diagnóstico desses dois parasitos, entre os quais aqueles de dos de melhora clínica em que deverão ser suspensos. O tra
concentração de larvas como o Baermann modificado por Mo tamento medicamentoso preconizado visa a aliviar o sintoma
raes e suas variações (para o diagnóstico de estrongiloidíase) e predominante.
o exame direto das fezes ou o método de flutuação em sulfato Os fatores emocionais devem ser abordados em todos os
de zinco (para o diagnóstico de giardíase). grupos de pacientes, através de uma conversa franca e aberta,
tentando também esclarecer ao paciente a provável associa
■ Pacientes com diagnóstico de ção de seus sintomas com distúrbios emocionais. Muitas vezes,
está indicada a psicoterapia, ou outras técnicas que objetivem
dispepsia funcional a redução do estresse, sendo observada excelente resposta em
alguns subgrupos de pacientes.
O Consenso Roma III não definiu nenhuma estratégia in-
vestigatória de rotina para pacientes com diagnóstico de DF
(síndrome do desconforto pós-prandial e/ou síndrome da dor
epigástrica). A realização da endoscopia digestiva alta duran ■ TERAPÊUTICA ATUAL
te um período sintomático e, preferencialmente, sem terapia
O tratamento medicamentoso disponível visa principalmen
antissecretora é fundamental para o diagnóstico. As biopsias
te a aliviar o sintoma predominante, e a estratégia terapêutica
devem ser realizadas rotineiramente durante o procedimento
vai depender basicamente da natureza e intensidade da sinto
endoscópico, visando também a detectar o H. pylori. A erradi
matologia, do grau do comprometimento funcional e dos fa
cação do microrganismo tem sido recomendada nos casos po
tores psicossociais envolvidos.
sitivos, como discutiremos a seguir. Inúmeros estudos demonstraram que a melhora clínica, du
A ultrassonografia não é indicada de rotina, devendo ser rante e após o tratamento medicamentoso tradicional, ocorre
realizada quando houver suspeita de doença pancreática ou em menos de 60% dos dispépticos, e em geral não se observa
de via biliar. Testes de esvaziamento gástrico (cintigrafia, teste resposta uniforme a essa terapêutica. Sabemos que a DF é uma
respiratório com ácido octanoico ou ultrassom) também não síndrome heterogênea e é frequente o relato concomitante de
são em geral recomendados porque os resultados raramente pirose ou sintomas gastrintestinais baixos, o que dificulta ainda
alteram a conduta clínica. mais a real interpretação dos resultados terapêuticos.
Estudos recentes demonstraram que menos de 30% dos pa Deve-se lembrar que a resposta ao placebo é, em geral, mui
cientes dispépticos apresentam retardo do esvaziamento gástri to alta. Estudos controlados e duplo-cegos demonstram que o
co, quando se consideram exclusivamente pacientes com dis placebo é capaz de promover melhora dos sintomas em um
pepsia funcional tipo síndrome do desconforto pós-prandial. grande número de pacientes (25 a 60%), indicando que a tera
Da mesma forma, o eletrogastrograma e o barostato gástrico pêutica com drogas nem sempre é necessária.
têm sido de utilidade prática discutível na avaliação propedêu Para o tratamento clássico da DF, podem ser utilizados di
tica desses pacientes. Deve-se afastar também a possibilidade versos medicamentos, destacando-se, entre eles, antiácidos,
de doença celíaca e de intolerância à lactose nos casos em que drogas antissecretoras, procinéticos, antibióticos para erradi
houver suspeita clínica. Importante avaliar a presença de co- cação do H. pylori, ansiolíticos e antidepressivos, como mostra
fatores psicológicos, ambientais e dietéticos e o uso de medi o Quadro 17.1.
camentos que possam ocasionar ou agravar a sintomatologia O Comitê Roma III sugere que os inibidores da secreção
dispéptica. ácida (bloqueadores H2 ou inibidores da bomba de prótons)
sejam a primeira escolha para os pacientes com DF e predo
mínio de dor epigástrica, e os procinéticos (metoclopramida,
■ TRATAMENTO domperidona, bromoprida) para aqueles com desconforto pós-
prandial.
A maneira mais apropriada de tratar o paciente é através de Os antissecretores são drogas seguras e se constituem em
uma abordagem ampla e global, tentando identificar fatores medicação de primeira linha para os pacientes com síndrome
desencadeantes ou agravantes da sintomatologia, inerentes a da dor epigástrica. Tanto os bloqueadores H2 como os inibi
cada paciente. dores da bomba de prótons são amplamente prescritos e reco-
170 Capítulo 17 / Dispepsia Funcional
Uma excelente revisão sobre novos procinéticos foi publica nisms, clinicai presentation, and managcmcnt. Am J Castroenterol, 2006;
101:S644-53.
da recentemente e trouxe grande otimismo quanto à disponi- Furuta T & Dclchicr JC. Helicobacterpylori and non-malignant discascs. Heli-
bilização de novas drogas capazes de atuar tanto na motilidade cobacter, 2009; 14 Suppl. 1:29-35.
digestiva como no relaxamento do fundo gástrico. Entre essas Gwec, KA, Teng, L, Wong, RK et al. The response o f Asian paticnts with func
drogas, a acotiamida, os derivados da motilina e da grelina têm tional dyspcpsia to cradication o f Helicobacter pylori infcction. Eur J Cas
se mostrado eficazes em ensaios iniciais e poderão se constituir, troenterol Hepatol, 2009; 21:417-24.
Hiyama, T, Yoshihara, M, Matsuo, K et al. Mcta-analysis of thc cffects of proki
em breve, uma nova classe de procinéticos. nctic agents in paticnts with functional dyspcpsia. / Castroenterol Hepatol,
Novos medicamentos serotoninérgicos também estão sen 2007;22:304-10.
do testados. O alosetron demonstrou ser superior ao placebo Hiyama, T, Yoshihara, M, Matsuo, K et al. Treatmcnt of functional dyspcpsia
(54% vs. 43%) no alívio dos sintomas em mulheres portadoras with scrotonin agonists: a mcta-analysis of randomized controllcd trials. /
Castroenterol Hepatol, 2007; 22:1566-70.
de DF. Jackson, JL, 0 ’Mallcy, PG, Tomkins, G et al. Treatmcnt of functional gastroin
Outras promissoras drogas são as que atuam nos receptores testinal disorders with antidepressant mcdications: a mcta-analysis. Am J
do sistema nervoso aferente como os antagonistas purinocep- Med, 2000; 108:65-72.
tores e antagonistas dos receptores N-metil-D-aspartato (dex- Kcohane, J 8c Quiglcy, EM. Functional dyspcpsia and noncrosivc rctlux discasc:
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que é um potente agonista, apresentam grande potencial tera
Miwa, H, Nagahara, A, Tominaga, K et al. Efficacy of thc 5-HT1A agonist
pêutico. Outras substâncias estão sendo avaliadas em vários tandospirone citratc in improving symptoms of paticnts with functio
centros de investigação como os receptores do canal de sódio, os nal dyspcpsia: a randomized controllcd trial. Am J Castroenterol, 2009;
antagonistas da colecistocinina (loxiglumide, dexloxiglumide), 104:2779*7.
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(estudos iniciais demonstram que o octreotídio é capaz de re Moayycdi, P, Soo, S, Dccks, J et al. Pharmacological interventions for non-uleer
duzir a sensação de plenitude gástrica em voluntários sadios). dyspcpsia. Cochrane Database Syst Rev, 2006; 4:CD001960.
Também estão em desenvolvimento drogas capazes de preve Mõnkcmüllcr, K 8c Malfcrtheiner, P. Drug treatmcnt of functional dyspcpsia.
nir a sensibilização central, como os antagonistas do receptor 1 World J Castroenterol, 2006; 12:2694-700.
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demonstrou significativa superioridade do citrato de tandospi- raturc. Pain Physician, 2008; 11:597-609.
rona (agonista 5-HT1 A) sobre o placebo no alívio dos sintomas Qin, F, Huang, X, Rcn, P. Chincsc herbal medicine modificd xiaoyao san for
em pacientes dispépticos funcionais. functional dyspcpsia: mcta-analysis of randomized controllcd trials. / Cas
troenterol Hepatol, 2009; 24:1320-5.
Em recente publicação, Talley discute sobre a emergente Quiglcy, EM 8c Kcohane, J. Dyspcpsia. Curr Opm Castroenterol, 2008; 24:692-7.
necessidade de se investir na pesquisa de novas drogas para o Rcad, NW, Abitbol, JL, Bardhan, KD et al. Efficacy and safety of thc pcriphcral
tratamento dos distúrbios funcionais, sobretudo para pacien kappa agonist fedotozine vs. placebo in thc treatmcnt of functional dys
tes portadores da SII e da DF, salientando um especial apoio pcpsia. Gut, 1997; 41:664-8.
Saad, RJ 8c Chcy, WD. Rcvicw artide: currcnt and emerging therapies for func
da FDA nesse sentido.
tional dyspcpsia. Aliment Pharmacol Ther, 2006; 24:475-92.
Como vemos, o arsenal farmacológico para a DF está em Sangcr, GJ 8c Alpcrs, DH. Developmcnt of drugs for gastrointestinal motor
constante crescimento e acreditamos que, em breve, inúmeras disorders: translating scicncc to clinicai nccd. Neurogastroenterol Motil,
novidades terapêuticas estarão disponíveis, o que proporcio 2008; 20:177-84.
Suzuki, H, Inadomi, JM, Hibi, T. Japanesc herbal medicine in functional gas
nará um controle mais adequado dos sintomas para o enorme
trointestinal disorders. Neurogastroenterol Motil, 2009; 21:688-96.
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Gastrite
Luiz Gonzaga Vaz Coelho e Maria Clara Freitas Coelho
172
Capítulo 78 / Gastrite 173
anormalidades macroscópicas são extremamente variáveis à cientes tratados clinicamente evoluindo para o óbito, contra
endoscopia, desde pequeno enantema até erosões, úlceras ou, apenas dois dos 11 tratados cirurgicamente.
mesmo, lesões pseudotumorais. Na maioria dos pacientes, as
alterações concentram-se fundamentalmente no antro, poden
do, às vezes, comprometer também o corpo gástrico. Embora o
■ Gastrite aguda hemorrágica
quadro clínico seja autolimitado, evoluindo sem sintomas, ou As lesões agudas da mucosa gastroduodenal ou úlceras de
com sintomas persistindo por até 2 semanas, na quase totalida estresse se iniciam nas primeiras horas após grandes traumas
de dos casos a infecção, se não tratada, permanece indefinida ou doenças sistêmicas graves e acometem as regiões proximais
mente e se acompanha sempre de quadro histológico de gastrite do estômago. Ocasionalmente, podem também envolver o an
crônica. O diagnóstico laboratorial da infecção aguda pode ser tro gástrico, duodeno ou esôfago distai. São caracterizadas por
feito através de histologia, testes respiratórios com carbono 13 múltiplas lesões hemorrágicas, puntiformes, associadas a altera
ou 14, cultura e teste da urease. A sorologia também pode ser ções da superfície epitelial e edema. Como complicação clínica,
usada, embora, em pacientes recentemente infectados, possam a gastrite aguda pode exteriorizar-se por hemorragia digestiva
ocorrer resultados falso-negativos. alta. A sua patogenia não é bem conhecida, sendo os mecanis
mos mais aceitos aqueles relacionados com alterações nos me
■ Tratamento canismos defensivos da mucosa gastroduodenal. Endoscopias
A abordagem terapêutica, quando decidida, é feita da ma realizadas dentro de 72 h após trauma cranioencefálico ou quei
neira usual. Embora se acredite que a hipossecreção ácida possa maduras extensas mostram anormalidades agudas da mucosa
facilitar a resposta ao tratamento, há relato da necessidade de gástrica em mais que 75% dos pacientes, e, na metade dos casos,
vários cursos de tratamento para obtenção da erradicação neste existem evidências endoscópicas de sangramento recente ou em
estágio do acometimento gástrico pelo H. pylori. atividade. Apesar disso, um percentual mínimo de pacientes
apresentará evidências hemodinâmicas consequentes à perda
aguda de sangue. Estudos epidemiológicos estimam que 1,5 a
■ Gastrite flegmonosa aguda 8,5% dos pacientes internados em unidades de terapia intensiva
É uma entidade rara, às vezes também presente em pacien apresentam sangramento gastrintestinal visível, podendo, entre
tes pediátricos, que se caracteriza por infecção bacteriana da tanto, acometer até 15% daqueles que não recebem tratamento
profilático adequado. É hoje aceito que pacientes internados em
muscularis mucosa e submucosa do estômago, com infiltra
unidades de terapia intensiva e que apresentem alto risco para
ção de células plasmáticas, linfócitos e polimorfonucleares. Na
o desenvolvimento de lesões agudas da mucosa gastroduodenal
maioria dos casos descritos, a inflamação não ultrapassa o cár-
devam receber tratamento profilático. O Quadro 18.1 apresenta
dia e o piloro, sendo a mucosa gástrica relativamente pouco
as principais indicações para tratamento profilático sugeridas
acometida. O quadro costuma se instalar como complicação
pela The American Society o f Health System Pharmacists.
de doença sistêmica ou septicemia, tendo sido descrita após
empiema, meningite e endocardite pneumocócica, entre outras.
■ Tratamento
Quando causada por agentes formadores de gás, é denominada
Estudos clínicos têm demonstrado que os inibidores de
gastrite enfisematosa. Muitas vezes, podem-se observar alguns
bomba de prótons, antagonistas dos receptores H2 e os antiá-
fatores predisponentes, como cirurgia gástrica prévia, hipoclo-
cidos reduzem a frequência de sangramento digestivo visível em
ridria, câncer gástrico, úlcera gástrica e gastrite. Na maioria dos
pacientes internados em CTI, quando comparados com grupos
casos descritos até hoje, foram isolados germes gram-positivos,
placebo ou sem nenhuma profilaxia. Embora existam estudos
especialmente Streptococcus spp.} embora Pneumococcus spp., comparando as diferentes opções terapêuticas, deve-se salientar
Staphylococcus spp., Proteus vulgaris, Escherichia coli e Clostri- que eles são ainda considerados limitados, seja pelo tamanho
dium welchii também já tenham sido identificados. O diagnós amostrai, seja por deficiências metodológicas.
tico clínico é muitas vezes difícil. A evolução clínica é rápida, Um grande estudo duplo-cego e randomizado comparou o
com dor epigástrica, náuseas e vômitos purulentos, constituin emprego de omeprazol suspensão (40 mg, duas vezes no primei
do sintomas comumente observados. Outras vezes, podem-se ro dia, seguidos por 40 mg/dia, nos dias subsequentes, por via
encontrar sinais de irritação peritoneal. A visualização de gás orogástrica ou por sonda nasogástrica) e cimetidina intravenosa
na submucosa gástrica na radiografia simples de abdome sugere (300 mg, em bolus, seguidos por 50 mg/h) por até 14 dias em
a possibilidade de germes formadores de gás, tipo Clostridium
welchii. Com frequência, o diagnóstico é feito através de lapa-
rotomia exploradora ou, mesmo, na necropsia. Leucocitose
com desvio para a esquerda é quase sempre descrita, sendo a ------------------------------------▼------------------------------------
amilase normal. O estudo radiológico do estômago revela es- Quadro 18.1 Indicações de tratamento profilático para lesões agudas
pessamento das pregas gástricas com redução da distensibili- de mucosa gastroduodenal em pacientes internados
dade antral. Sendo a mucosa gástrica habitualmente poupada, em unidades de terapia intensiva*•
a biopsia convencional pode não definir o diagnóstico, sendo
necessário o uso de procedimentos especiais para se obter ma • C o a g u lo p a t ia , d e fin id a c o m o c o n t a g e m p la q u e t á r ia in fe rio r
terial da submucosa gástrica. a 5 0 .0 0 0 / m m \ R NI > 1 ,5, o u P T T > 2 v e z e s o c o n tro le .
• V e n tila ç ã o m e c â n ic a p o r m a is q u e 4 8 h.
■ Tratamento • A n t e c e d e n t e s d e u lc e ra ç ã o g a s trin te s tin a l o u s a n g r a m e n t o n o a n o
A terapêutica inclui o emprego de antibióticos de amplo a n te rio r.
359 pacientes mecanicamente ventilados por mais que 48 h e Schindler, levaram em consideração os aspectos morfológicos
com pelo menos um fator de risco adicional. Pacientes em uso em especial, além de se dirigirem fundamentalmente para o estu
de omeprazol apresentaram menos sangramento digestivo visí do das formas crônicas, inequivocamente as mais prevalentes.
vel (19 vs. 32%), embora não houvesse diferenças significantes As contradições existentes entre as diversas classificações das
entre sangramento persistente (3,9 vs. 5,5%), necessidade de gastrites e a imperiosa necessidade de se uniformizar a termino
hemotransfusão (2,8 vs. 2,8%), pneumonia (11,2 vs. 9,4%) ou logia após a identificação e reconhecimento do H. pylori como o
morte (15,2 vs. 11,6%). principal agente etiológico da gastrite crônica determinaram o
Embora o emprego de IBP (omeprazol e pantoprazol) IV desenvolvimento, em 1990, de uma nova classificação denomi
promova efetiva redução da acidez gástrica, não existem evi nada Sistema Sydney para a classificação das gastrites. Em 1994,
dências convincentes que confiram benefícios superiores àque 4 anos após sua introdução, o Sistema Sydney foi reavaliado,
les obtidos por outras estratégias terapêuticas menos onerosas, sendo mantidos os princípios gerais e a graduação do que foi
como os antagonistas dos receptores H2IV, na profilaxia das originalmente proposto em 1990, e acrescentada uma escala
lesões agudas da mucosa gastroduodenal. analógica visual com o objetivo de tornar mais homogêneas e
menos subjetivas as graduações das gastrites. A terminologia
da classificação final foi também aperfeiçoada para enfatizar a
■ Gastrites crônicas distinção entre gastrite atrófica e não atrófica. Para o adequado
Em decorrência do desconhecimento da etiologia das prin estudo das gastrites, é recomendada a realização de, pelo menos,
cipais formas de gastrite e pelo fato de as gastrites agudas rara- cinco biopsias, sendo uma da grande e outra da pequena cur
mente constituírem um problema para o patologista, pois habi vatura gástrica, a 2 a 3 cm do piloro, uma da incisura angular,
tualmente são afecções transitórias e quase nunca biopsiadas, as uma da pequena curvatura a 4 cm acima do angulus e outra na
diferentes classificações das gastrites propostas, desde 1947, por grande curvatura a 8 cm do cárdia. O Quadro 18.2 mostra a
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Quadro 18.2 Classificação das gastrites baseada na topografia, morfologia e etiologia, segundo o Sistema Sydney atualizado
A t r ó fic a
A u t o im u n e A u t o im u n id a d e T i p o A*
D ifu s a d o c o r p o
A s s o c ia d a a a n e m ia p e rn ic io s a
F o r m a s e s p e c ia is
Q u ím ic a b Irrita ç ã o q u ím ic a R ea tiva
Bile R e flu x o
A IN E S A IN E S
O u t r o s a g e n te s ? T ip o C
R a d ia ç ã o L e s ã o r a d ió g e n a
classificação das gastrites crônicas baseadas na topografia, mor- testinal como células caliciformes, células absortivas, células de
fologia e etiologia, segundo o Sistema Sydney atualizado. Paneth e células endócrinas.
A atrofia da mucosa gástrica associada à gastrite crônica
sinaliza para a possibilidade da existência de metaplasia in
■ Gastrite crônica associada ao Helicobacter testinal ou torna sua ocorrência mais provável. A associação
pylori (H. pylori) entre metaplasia intestinal e sinais histológicos conspícuos de
atrofia glandular ocorre na maioria dos casos, não oferecendo
O H. pylori é hoje considerado o principal agente etiológico
dificuldade diagnóstica. Como já é conhecido, os pacientes que
em mais de 95% das gastrites crônicas. Essa bactéria coloniza apresentam gastrite crônica que afeta, em graus semelhantes,
a mucosa gástrica humana com mínima competição por parte
tanto o antro quanto o corpo do estômago (pangastrite crôni
de outros microrganismos e parece estar particularmente adap ca) costumam evoluir com atrofia glandular do estômago e são
tada a esse ambiente. Embora a presença do H. pylori evoque exatamente os casos em que o câncer gástrico desenvolve-se
resposta imune local e sistêmica, a infecção, uma vez adquirida, com mais frequência. Em relação ao carcinoma gástrico tipo
persiste para sempre, sendo raramente eliminada espontanea intestinal, o elo principal entre estas lesões precursoras é admi
mente. Mais ainda, é sempre acompanhada por gastrite histo- tido como sendo a metaplasia intestinal. Tendo em vista a alta
lógica, de intensidade variável.
frequência de metaplasia intestinal e a relativa baixa frequência
O antro é tipicamente a primeira região a ser acometida, do câncer gástrico, alguns autores ressaltam que a atrofia da
podendo às vezes predominar o comprometimento do corpo mucosa gástrica seria tão relevante quanto a metaplasia intes
ou, mesmo, de todo o órgão (pangastrite). A distribuição do tinal, ou mais, em relação à carcinogênese gástrica.
H. pylori no estômago é importante, pois parece ser um indica Gastrite atrófica, atrofia gástrica e metaplasia intestinal cons
dor do padrão de evolução da gastrite. Assim, indivíduos com tituem sequelas frequentes de gastrite crônica secundária à in
gastrite predominantemente antral terão secreção gástrica nor fecção por H. pylori. Um grande estudo multicêntrico japonês
mal ou elevada graças à manutenção de mucosa oxíntica íntegra relatou a presença de gastrite atrófica em 89,2% dos indivíduos
e poderão ter um risco aumentado para úlcera duodenal. Indiví infectados e em apenas 9,8% naqueles não infectados. Da mes
duos com gastrite acometendo de forma predominante o corpo ma forma, metaplasia intestinal foi detectada em 43,1% dos in
do estômago terão secreção ácida reduzida, em consequência da divíduos H. pylori positivos, enquanto somente 6,2% daqueles
destruição progressiva da mucosa oxíntica. Histologicamente, não infectados apresentavam tal anormalidade.
exibem uma mistura de gastrite crônica superficial e alterações
atróficas com tendências a progredir com o passar dos anos ■ Tratamento
(ou décadas), podendo ocorrer também o desenvolvimento de Como inúmeros indivíduos portadores de dispepsia funcio
metaplasia intestinal. Estima-se que a gastrite crônica do corpo nal albergam o H. pylori e, portanto, são também portadores de
gástrico, associada a atrofia acentuada, eleva de três a quatro gastrite crônica, muitos clínicos optam pelo tratamento anti-H.
vezes o risco de carcinoma gástrico, do tipo intestinal. pylori nessa eventualidade. Entretanto, as evidências são contro
A gastrite crônica do antro associada a H. pylori é habitual versas no tocante ao benefício da erradicação do microrganis-
mente uma condição assintomática. Apesar de alguns estudos mo na resolução dos sintomas. É estimado que seja necessário
tentarem associá-la à dispepsia funcional, a maioria dos estudos realizar o tratamento em 15 pacientes para obtenção de alívio
não encontrou correlação entre sintomas gastrintestinais e a sintomático em um paciente.
extensão ou intensidade da gastrite. Desta forma, o principal É hoje bem estabelecido que a erradicação do H. pylori pro
significado clínico da gastrite crônica associada ao H. pylori re move remissão da gastrite ativa e reduz, enormemente, a inci
side em sua estreita associação etiológica com a úlcera péptica dência e/ou recorrência da doença ulcerosa.
duodenal e com o carcinoma e linfoma gástrico. No homem, a gastrite crônica ativa reverte ao normal após
A sequência infecção pelo H. pylori —>gastrite crônica —> a erradicação do microrganismo. Entretanto, há dúvidas sobre
atrofia glandular - » metaplasia intestinal constitui um conjunto uma eventual regressão da atrofia gástrica e da metaplasia in
de alterações associativas muito frequentemente observado na testinal, lesões consideradas como condições pré-neoplásicas.
espécie humana e desencadeado pela infecção pelo H. pylori ou Alguns estudos sugerem que a regressão possa ocorrer em pa
tendo como passo inicial essa infecção. Embora a progressão cientes acompanhados por longos períodos, enquanto outros
da atrofia e da metaplasia, associadas ao H. pyloriypossa trazer sugerem que a erradicação da bactéria seja capaz de impedir a
outras consequências fisiopatológicas como a úlcera péptica, progressão das lesões atróficas e metaplásicas. Vale lembrar que,
o ponto de maior interesse está localizado, hoje, no desenvol naqueles pacientes nos quais a bactéria não é erradicada, as le
vimento do câncer gástrico. Entre elas, a mais importante é o sões progridem ou não se alteram. Os resultados obtidos nestes
adenocarcinoma tipo intestinal que, de acordo com muitos, estudos mostram que, em relação às condições pré-neoplásicas
podería ser colocado como a etapa final da sequência evoluti - atrofia e metaplasia intestinal -, a erradicação do microrga
va anteriormente descrita, em um número significativo de pa nismo, embora não tenha promovido a sua regressão, parece ter
cientes. Portanto, atrofia glandular e metaplasia intestinal são sido capaz de impedir sua progressão. Em relação ao resultado
consideradas, hoje, como corresponsáveis pelo câncer gástrico do tratamento da bactéria na prevenção do câncer gástrico, o
do tipo intestinal, havendo controvérsias na literatura acerca estudo mais longo e com maior número de pacientes mostrou
do grau de importância de cada uma. que a erradicação do H. pylori é capaz de reduzir a incidência
Metaplasia intestinal no estômago se refere à reposição de câncer gástrico apenas nos indivíduos sem alterações histo-
progressiva do epitélio gástrico pelo epitélio tipo intestinal, ou lógicas (atrofia e/ou metaplasia) prévias.
seja, por um epitélio neoformado que apresenta características Concluindo, o real valor da erradicação do H. pylori na pre
bioquímicas e morfológicas (tanto à microscopia óptica como venção do câncer gástrico ainda carece de novos estudos envol
à eletrônica) do epitélio intestinal, tanto do delgado como do vendo grande número de pacientes, acompanhados por longos
cólon. Assim sendo, o epitélio metaplásico pode ser constituí períodos de tempo e com controle cuidadoso das condições
do por diferentes linhagens de células próprias da mucosa in subjacentes da mucosa gástrica dos pacientes, quando da en
176 Capítulo 18 / Gastrite
trada, e ao longo do estudo. Importante salientar que, mes pode ser detectada através da secreção gástrica basal e estimu
mo reconhecendo estas limitações e dificuldades, o Consenso lada. A medida isolada do pH gástrico em jejum pode mostrar
Pacífico-Asiático para Prevenção do Câncer Gástrico delibe também uma boa correlação com hipocloridria verdadeira ob
rou, pela primeira vez, em 2008, que é tempo de tentar intervir servada na gastrite do corpo e fundo. As determinações séricas
na prevenção desse câncer, recomendando a pesquisa e tra de pepsinogênio, especialmente a relação entre pepsinogênio I
tamento da infecção por H. pylori em toda a população asiá e II, constituem testes não invasivos promissores para a detec
tica moradora em regiões de alto risco, definidas como aquelas ção de gastrite atrófica do corpo e antro.
onde a incidência de câncer gástrico na população é superior a
20/100.000 habitantes.
■ Tratamento
A gastrite crônica autoimune do corpo é assintomática na
■ GASTRITE CRÔNICA AUT0IMUNE maioria dos pacientes e, desta forma, não requer tratamento.
A presença, entretanto, de anemia perniciosa exige a reposi
Conhecida também como gastrite tipo A, acomete o corpo ção de vitamina B,2, por via parenteral, na dose de 200 |ig por
e fundo gástricos, raramente atingindo o antro. Caracteriza- mês, durante toda a vida. Tal terapêutica corrige as alterações
se por uma atrofia seletiva, parcial ou completa, das glândulas hematológicas, embora não interfira na histologia da mucosa
gástricas no corpo e fundo do estômago, ocorrendo uma subs gástrica. A presença de deficiência de ferro obriga a investigação
tituição, parcial ou completa, das células superficiais normais cuidadosa para neoplasias de estômago e cólon antes de mera
por mucosa tipo intestinal (metaplasia intestinal). A mucosa terapêutica de reposição. Diarréias frequentes podem sugerir
antral, por quase não ser acometida nesta entidade, mantém ocorrência de supercrescimento bacteriano.
sua estrutura glandular normal e apresenta células endócrinas Não há ainda consenso sobre como devem ser acompanha
hiperplásticas. dos, ao longo do tempo, os portadores de gastrite crônica au
Funcionalmente, a atrofia das glândulas gástricas do cor toimune do corpo para se evitar sua complicação mais temida
po se associa com hipocloridria (atrofia parcial) ou, em casos - o câncer gástrico. Pacientes com anemia perniciosa parecem
avançados, acloridria, secundária à redução da massa de cé ter um risco para carcinoma gástrico até três a cinco vezes su
lulas parietais; paralelamente, há um decréscimo também na periores a indivíduos controles. A decisão por seguimento com
secreção de fator intrínseco, podendo ocasionar a redução da exames endoscópicos irá depender dos achados iniciais e sin
absorção de vitamina B , , e o aparecimento de manifestações tomas: caso a endoscopia inicial, com biopsias realizadas em
clínicas da anemia perniciosa. A preservação funcional da m u diferentes áreas do estômago, não observe carcinoma, pólipos
cosa antral resulta em estimulação constante das células G com adenomatosos, tumores carcinoides ou displasia acentuada,
hipergastrinemia. provavelmente não há necessidade de acompanhamento en-
Evidências imunológicas e experimentais sugerem um doscópico, principalmente na ausência de história familiar de
componente autoimune nesta entidade. Assim, a maioria dos câncer gástrico e naqueles procedentes de regiões onde o cân
pacientes apresenta testes imunológicos positivos, enquanto cer gástrico não é epidêmico. A conduta na presença de dis
vários evoluem com outras doenças autoimunes, como, por plasia acentuada é também controvertida, com alguns autores
exemplo, as tireoidites autoimunes. Estudos em famílias de sugerindo a repetição anual de endoscopias com biopsias. Por
portadores de gastrite atrófica demonstram uma incidência outro lado, um extenso estudo de acompanhamento a longo
aumentada de gastrite em parentes de primeiro grau, sugerin prazo realizado por investigadores da Clínica Mayo, nos EUA,
do uma base genética, sendo a anemia perniciosa, a expressão não observou risco aumentado para carcinoma gástrico em
final da gastrite crônica autoimune do corpo, hoje considerada portadores de anemia perniciosa. Os tumores carcinoides gás
como determinada por um gene autossômico único. tricos são encontrados em 2 a 9% dos pacientes com anemia
A gastrite autoimune é assintomática do ponto de vista gas- perniciosa, sendo a maioria deles assintomáticos. Microsco
trintestinal, advindo sintomas hematológicos e/ou neurológicos picamente, são constituídos de células ECL e, à macroscopia,
na ocorrência de anemia perniciosa. Em decorrência da aclo apresentam-se habitualmente como lesões polipoides, pequenas
ridria, com a consequente elevação do pH gástrico, tem sido (< 1 cm), frequentemente múltiplas, localizadas no corpo gás
descrita uma maior suscetibilidade desses pacientes a infecções trico. Tumores pequenos e assintomáticos podem ser removi
entéricas por bactérias, vírus e parasitos. dos endoscopicamente; tumores sintomáticos, com frequência
O diagnóstico da gastrite crônica autoimune do corpo é emi avançados, podem ser removidos cirurgicamente. Alguns au
nentemente histopatológico. À endoscopia, quando se insufla tores sugerem que a antrectomia isoladamente, ao promover a
ar no estômago, o pregueado mucoso do corpo se desfaz to retirada das células G e abolir a hipergastrinemia, propiciaria
tal ou parcialmente e observa-se uma mucosa de aspecto liso, a regressão do tumor, estando assim indicada em portadores
brilhante e delgado, com os vasos da submucosa facilmente de carcinoides gástricos múltiplos. Tal conduta obviamente
visualizados. Deve-se proceder à coleta simultânea de material necessita de maiores estudos.
para exame histopatológico do corpo e antro gástricos, para se
ter certeza da localização do processo inflamatório. Os índices
de concordância da histologia com a endoscopia são confli ■ GASTRITES QUÍMICAS
tantes, embora, nos casos mais avançados, a correlação seja
razoavelmente boa. Anticorpos anticélula parietal e antifator Terminologia adotada no lugar de designações encontra
intrínseco, embora presentes em até 90% dos portadores de das em outras classificações, como gastrites reativas, gastrite
anemia perniciosa, com frequência estão ausentes em porta de refluxo ou gastrite tipo C. Engloba os achados observados
dores de gastrite atrófica apenas, sem alterações hematológicas. no refluxo biliar, em associação com certas drogas ou sem rela
A gastrina sérica acha-se comumente elevada, embora possa ção causai evidente, porém com aspectos histológicos comuns,
estar normal ou reduzida em um pequeno número de casos, constando de hiperplasia foveolar, edema, vasodilatação, fibrose
quando a atrofia atinge também o antro gástrico. A acloridria ocasional e escassez de componente inflamatório.
Capítulo 18 / Gastrite 177
■ Tratam ento
O tratamento do acometimento gastroduodenal é semelhan
te àquele empregado nas formas mais distais, com exceção das
formulações pH-dependentes da mesalazina e da sulfassalazina.
A presença de sintomas de obstrução da via de saída gástrica
pode requerer dilatação com balão ou, mesmo, cirurgia.
■ Sarcoidose
O envolvimento gástrico pela sarcoidose é sempre secundá
rio à forma sistêmica do processo. Assim, o diagnóstico é rea
lizado pela presença de granulomas gástricos, frequentemente
múltiplos, associado a evidências de adenomegalias hilares,
doença fibronodular dos pulmões, lesões líticas das falanges,
anergia cutânea ou teste de Kveim positivo. Sarcoidose gástrica
é responsável por 1 a 21% dos casos de inflamação granuloma
tosa do estômago. A maior parte dos casos é assintomática, e
as anormalidades endoscópicas mais encontradas incluem no-
dularidade mucosa, alterações polipoides, erosões, ulcerações
e, às vezes, rigidez da parede gástrica simulando linite plástica.
Na ausência de acometimento pulmonar ou mediastinal e de
outras possíveis causas de gastrite granulomatosa, a presença
de hipergamaglobulinemia, hipercalciúria, níveis elevados de
enzima conversora de angiotensina, testes de função pulmonar
com padrão restritivo e captação ativa de gálio à cintigrafia são
indicativos de sarcoidose como principal etiologia da gastrite
granulomatosa.
■ Tratam ento
Embora não existam ensaios clínicos disponíveis, a corti-
coterapia parece efetiva nas formas gastrintestinais de sarcoi
dose. Habitualmente, recomenda-se o uso de prednisona, 20 a
Figura 18.1 Detalhe da mucosa gástrica de paciente com gastrite 40 mg/dia, com redução progressiva. A duração do tratamento
linfocítica. Em A, observa-se visão panorâmica do epitélio gástrico com
irá depender da resposta clínica. Metotrexato, clorambucila,
contagem elevada de linfócitos intraepiteliais (LIE) (HE, x80). Em B
visáo em detalhe de epitélio gástrico com contagem elevada de LIE azatioprina, infliximabe e ciclosporina são alternativas para os
(HE, x500). (Gentileza do Prof. Alfredo J.A. Barbosa, Departamento de casos refratários à prednisona.
Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da UFMG.) (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Gastrite eosinofílica
Eosinófilos e leucócitos são normalmente encontrados na
mucosa e submucosa do trato digestivo superior. A gastrente-
fecções como tuberculose, sífilis, histoplasmose, esquistossomo- rite eosinofílica é uma afecção rara caracterizada por infiltrado
se etc., além daqueles secundários a neoplasias como linfomas eosinofílico denso na parede do estômago e intestino delgado.
e carcinomas e a doenças idiopáticas como sarcoidose, doença Embora sua etiologia seja desconhecida, fatores alérgicos (50%
de Crohn ou gastrite granulomatosa isolada, entre outras. têm história de atopia anterior, como urticária, asma ou rinite),
alimentares (alguns alimentos podem desencadear sintomas
intestinais) e a presença de parasitos têm sido considerados.
■ Doença de Crohn Três formas de apresentação são descritas, considerando a in
O acometimento gastroduodenal é raro e geralmente acom tensidade e localização do infiltrado: acometimento predomi
panha a doença intestinal. Raramente, se constitui na única nante da mucosa, da parede muscular ou da serosa. Nas formas
manifestação da doença. Um estudo endoscópico e histológi- de acometimento mucoso predominante, o antro é mais fre
co de 62 pacientes com doença de Crohn ileocolônica encon quentemente acometido e, endoscopicamente, as pregas estão
trou gastrite crônica H. pylori negativa em 21 (32%) pacientes espessadas, podendo haver nodosidades, ulcerações ou pólipos
e granuloma em quatro deles. Os granulomas costumam ser gástricos contendo agregados de eosinófilos e linfócitos (Figura
pequenos, escassos e, muitas vezes, não são encontrados. O 18.2). A sintomatologia inclui náuseas, vômitos, diarréia, dor
exame endoscópico pode mostrar úlceras aftosas ou serpigi- abdominal e perda de peso.
nosas, especialmente no antro, e uma mucosa com o aspecto O diagnóstico é estabelecido pela presença de aumento do
clássico de calçamento de rua (cobblestone). Com o progredir número de eosinófilos na parede gástrica, pela infiltração de eo
da doença, o antro tende a se afunilar, sendo o duodeno contí sinófilos nas glândulas gástricas na ausência de envolvimento de
guo também afetado, mas a ocorrência de fístulas é raramente outros órgãos e na exclusão de outras causas de eosinofilia.
observada. Essa entidade é, muitas vezes, assintomática, salvo Eosinofilia periférica pode faltar em 20% dos casos.
naquelas situações de obstrução da via de saída do estômago Quando presente, representa 5 a 35% dos leucócitos, com
ou da presença de ulceração gástrica ou duodenal. valores absolutos em torno de 2.000 células/jii. Anemia ferro-
Capítulo 78 / Gastrite 179
■ Tuberculose
A tuberculose raramente acomete o estômago. Possivelmen
te, a virtual ausência de folículos linfoides no estômago, o pH
gástrico e a curta permanência de organismos ingeridos no
estômago contribuem para a não frequente associação entre
a forma pulmonar ou intestinal com a gastrite granulomato-
sa tuberculosa. O local mais acometido é o antro gástrico, e o
diagnóstico definitivo irá depender da presença de granulomas
com necrose caseosa ou do bacilo álcool-ácido resistente em
biopsias endoscópicas ou peças cirúrgicas. A demonstração do
bacilo ocorre em menos que 33% dos casos, sendo a etiologia
tuberculosa sugerida, muitas vezes, pela presença da doença
em outros locais. Manifestações atípicas de tuberculose en
volvendo o trato gastrintestinal têm sido observadas hoje, em
associação com a AIDS.
■ Tratam ento
Tratamento específico clássico geralmente induz remissão
do processo, sendo a cirurgia indicada apenas em casos de obs
Figura 18.2 Aspecto endoscópico da mucosa antral de paciente com
trução gástrica.
gastrite eosinofílica. (Esta Figura encontra-se reproduzida em cores
no Encarte.)
■ Sífilis
A gastrite granulomatosa luética é rara, sendo observada em
priva, hipoalbuminemia e redução das imunoglobulinas séricas menos de 1% dos pacientes com sífilis. Embora o envolvimento
também são observadas como consequência de perdas pro-
gástrico possa ocorrer em muitos pacientes durante a espiro-
teicas através do epitélio lesado. Nos casos de acometimento quetemia da sífilis primária e, ainda na fase secundária precoce,
predominante da parede muscular, o diagnóstico histológico os sintomas gástricos raramente são presentes, e não ocorre a
pode ser difícil, já que a biopsia convencional é muitas vezes
formação de granulomas. Doença gástrica significante geral
normal; assim, é necessária a realização de biopsias envolvendo mente se limita aos casos de sífilis secundária tardia e terciária,
toda a parede gástrica. Ao exame radiológico e/ou endoscópico,
em que os achados radiológicos e endoscópicos podem variar
se observam rigidez e estreitamento antral, com mucosa pra
de gastrite superficial a infiltração transmural mimetizando a
ticamente normal. O acometimento predominante da serosa
linite plástica, sendo o diagnóstico diferencial com carcinoma
é o mais raro, e a ascite que contém alto teor de eosinófilos
e linfoma muitas vezes difícil. Não raramente, alguns pacien
(12 a 95%) é a principal forma de expressão clínica. Embora
tes são mesmo submetidos a gastrectomia. Se o quadro evolui
a presença de alergia seja difícil de documentar, a eliminação
com estreitamento fibrótico da parede do estômago, podem-
de determinados alimentos suspeitos pode, às vezes, produzir
se encontrar deformidades do tipo “estômago em ampulheta”.
resultados duradouros. A consulta com imunoalergologista e
Com frequência, as estenoses associadas a terciarismo são mais
a realização de testes cutâneos podem auxiliar na identificação
observadas no antro e se estendem até o duodeno. O diagnós
de alergênios.
tico de acometimento gástrico pode ser feito pelo encontro do
microrganismo em fragmentos de biopsia, pela técnica de imu-
■ Tratam ento
nofluorescência, pela coloração pela prata ou pela pesquisa do
Em algumas situações, a prednisona, em doses iniciais de
treponema em campo escuro, e também, é claro, pelos testes
20 a 40 mg/dia, com redução progressiva, é capaz de induzir
sorológicos para sífilis.
e manter remissões por períodos prolongados. Outras drogas,
como o cromoglicato de sódio, anti-histamínicos e antiespas- ■ Tratam ento
módicos têm sido tentados com resultados precários. Um es
A terapêutica com penicilina produz resultados favoráveis
tudo sugere que o cetotifeno, um bloqueador dos receptores
especialmente nos quadros de secundarismo, sendo incertos no
H,, pode vir a representar uma alternativa efetiva aos corti-
terciarismo. A sensibilidade do treponema aos antimicrobia-
costeroides. O tratamento cirúrgico pode ser considerado para
nos permanece inalterada mesmo na população de aidéticos,
as complicações como perfuração, estenose pilórica ou doença
embora tratamentos com maior duração sejam propostos nos
refratária.
casos de sífilis precoce.
causadoras de diarréia e ulcerações no ceco, que podem san albumina marcada por este radioisótopo. O H. pylori tem sido
grar profusamente ou acarretar perfurações. 0 acometimento observado em alguns casos, e sua erradicação muitas vezes se
hepático está muitas vezes associado a febre e mal-estar geral, acompanha de regressão completa do espessamento das pre
podendo se acompanhar de hipotensão e colapso circulató gas. Estudos empregando ecoendoscopia demonstram que o
rio. O acometimento do trato digestivo superior quase sempre espessamento da parede gástrica observado na presença da in
coincide com infecção sistêmica, podendo estar associado a fecção pelo H. pylori deve-se ao espessamento seletivo das três
sintomas de dismotilidade, especialmente náuseas, distensão camadas internas da parede gástrica (interface mucosa-lúmen,
abdominal, peso epigástrico pós-prandial, vômitos e disfagia. mucosa e submucosa). A não regressão da hiperplasia mucosa
O diagnóstico da infecção por CMV pode ser feito por mé
após a erradicação do H. pylori exige aprofundamento da pro
todos sorológicos através de evidências de soroconversão re pedêutica para se afastar a possibilidade de neoplasia maligna.
cente ou pela elevação de quatro ou mais vezes nos títulos de
O diagnóstico diferencial inclui síndrome de Zollinger-Ellison,
anticorpos; ainda, pela presença de altos títulos de anticorpos
amiloidose gástrica, linfoma, carcinoma infiltrativo e processos
IgM anti-CMV. Naquelas situações com acometimento gástrico,
granulomatosos do estômago.
a endoscopia pode mostrar uma mucosa nodulosa, irregular,
com erosões ou mesmo ulcerações. A biopsia gástrica consti
■ Tratam ento
tui o melhor meio diagnóstico para a presença de gastrite por
CMV, pela observação de inclusões virais típicas. As células Como a maioria é assintomática apesar das alterações histo-
infectadas são grandes, com inclusões intranucleares grandes lógicas, nenhum tratamento é indicado, além da manutenção
e inclusões citoplasmáticas pequenas. As inclusões intranu de dieta de alto valor calórico e proteico. Alguns estudos suge
cleares são caracteristicamente circundadas por um halo claro rem que drogas como bloqueadores H2, anticolinérgicos, ácido
(inclusão em olho de coruja). tranexâmico e prednisolona podem corrigir as perdas protei-
cas gástricas através de mecanismos não conhecidos. Recente
■ Tratam ento mente, foram também relatados casos de remissão espontânea
Estudos preliminares sugerem que o ganciclovir, o foscarnet da doença. Como já mencionado, a erradicação do H. pylori
e, mais recentemente, o valganciclovir possam ser ativos con pode ser acompanhada de regressão do quadro clínico e histo
tra o CMV, embora sejam descritos efeitos indesejáveis, como lógico. Na presença de ulcerações, deve-se proceder ao trata
leucopenia, trombocitopenia, manifestações neurológicas e al mento antiulceroso clássico. A cirurgia é raramente indicada,
terações da função hepática. restringindo-se aos casos de hipoproteinemia não controlável,
sangramentos agudos e crônicos persistentes, obstrução pilórica
■ Gastropatia hipertrófica e câncer gástrico associado.
Também conhecida como gastrite crônica hipertrófica, gas
trite de pregas gigantes, gastropatia hipertrófica hipersecreto-
ra e doença de Ménétrier, constitui uma entidade específica,
■ LEITURA RECOMENDADA
de origem obscura caracterizada pela tríade de pregas gigan Britt, WJ. Infcctions associatcd with human cytomcgalovirus. Hm: Goldman,
tes no corpo e fundo gástricos, hipoalbuminemia secundária L, Ausicllo, D (eds.). Cccil Tcxtbook of Medicine. Philadclphia, Saundcrs,
à gastropatia perdedora de proteínas e quadro histológico de 1993-5,2004.
hiperplasia foveolar com atrofia glandular, dilatação cística e Castro, LP, Coelho, LGV, Barbosa, AJA. Acute Helicobacter pylori infection.
espessamento da mucosa. Embora na doença de Ménétrier clás Em: Pajarcs Garcia, JM, Corrêa, P, Pércz Pércz, GI (eds.). Helicobacter pylori
infection in gastroduodcnal lesions. The sccond dccadc, Barcelona, Prous
sica ocorra hipocloridria, uma variante hipersecretora tem sido
Science, 137-48,2000.
descrita, o que obriga, nesta circunstância, o diagnóstico dife De Vrics, AC 8c Kuipcrs, EJ. Epidcmiology of premalignant gastric lesions:
rencial com síndrome de Zollinger-Ellison. A doença é mais implications for the devclopment of scrccning and survcillancc strategies.
comumente observada em homens, após os 50 anos, e os sin Helicobacter 2007; 2:22-31.
tomas são habitualmente vagos e inespecíficos, consistindo em Dixon, MF, Gcnta, RM, Yardlcy, JH, and the participants in the International
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cos. O diagnóstico é estabelecido pela presença das pregas gi
Fock, KM, Tallcy, N, Moayycdi, P et a i Asia-Pacific conscnsus guidelines on
gantes, tendo em geral 1 cm ou mais de diâmetro transversal, gastric câncer prevention. / Gastroenterol Hepatol, 2008; 23:351-65.
especialmente no fundo e corpo gástricos. São rígidas e, ao Groisman, CM, Georgc, J, Berman, D et a i Resolution of protein loosing hy-
contrário das pregas normais, não se desfazem à insuflação de pcrtrophic lymphocitic gastritis with therapeutie cradication of H. pylori.
ar à endoscopia nem à compressão durante o exame radiológi- Am J Gastroenterol, 1994; 89:1548-57.
co, que também pode mostrar uma aparência espiculada pela Hayat, M, Arora, DS, Dixon, MF, Clark, B et a i Effccts of Helicobacter py
visualização dos sulcos entre as pregas. Endoscopicamente, lori cradication on the natural history of lymphocytic gastritis. Gut, 1999;
45:495-8.
podem-se ainda observar alterações inflamatórias da mucosa Miller, AI, Smith, B, Rogcrs, AI. Phlcgmonous gastritis. Gastroenterology, 1975;
como hiperemia, edema, friabilidade, erosões e, mesmo, ul 68:231-8.
cerações francas. A hipocloridria está quase sempre presente, Moayycdi, P, Soo, S, Dccks, J et a i Systcmatic rcvicw and cconomic evaluation
com a secreção ácida máxima após estímulo com pentagastri- of Helicobacter pylori cradication treatment for non-uleer dyspcpsia. Br
na em torno de 10 mmol/h. A determinação da gastrinemia MedJ, 2000; 321:659-64.
é útil no diagnóstico diferencial entre doença de Ménétrier e Modlin, IM, Lyc, K, Kidd, M. Carcinoid tumors of the stomach. Surg Oncol,
síndrome de Zollinger-Ellison, já que pregas gigantes podem 2002; 12:153-72.
Mottct, C, Juillerat, P, Pittct, V et a i Uppcr Gastrointestinal Crohn’s Diseasc.
ser encontradas em ambas as entidades, mas elevados índices Digestion, 2007; 76:136-140.
de gastrina sérica são encontrados apenas na última. A perda Nixon, MF. Acute Helicobacter pylori gastritis. Em: Grahan, DY, Gcnta, RM,
proteica pode levar à hipoalbuminemia e pode ser estimada Dixon, MF (eds.). Gastritis. Philadclphia: Williams 8c Wilkins, 169-75,
pelo teor de 5,Cr nas fezes, após administração intravenosa de 1999.
Capítulo 18 / Gastrite 181
Rao, YG, Pandc, GK, Sahni, P et al. Gastroduodcnal tubcrculosis managcmcnt Stolte, M, Batz, C, Bayerdõrfer, H, Eidt, S. Helicobacter pylori cradication in the
guidclincs, based on a large cxpcricncc and a review of the literature. / Can treatment and difcrcntial diagnosis of giant folds in the corpus and fundus
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Crit Care Nurse, 2006; 26:18-28. 1456-93,1995.
Úlcera Péptica Gastroduodenal
Ricardo P. B. Ferreira e Jaim e Natan Eisig
■ INTRODUÇÃO ■ EPIDEMIOLOGIA
Por mais de um século, a úlcera péptica foi considerada uma A prevalência de úlcera péptica é variável nas diferentes re
doença de evolução crônica, de etiologia desconhecida, com giões do mundo. As úlceras duodenais predominam em popu
surtos de recidiva e períodos de acalmia. A identificação e o lações ocidentais, enquanto as úlceras gástricas são mais fre
isolamento do Helicobacter pylori, há pouco mais de duas dé quentes na Ásia, em especial no Japão. Apesar da redução na
cadas, representaram significativo avanço na compreensão, no incidência de doença ulcerosa péptica em países ocidentais ao
diagnóstico e no tratamento da doença ulcerosa péptica. Tal longo do século passado, estima-se que cerca de 500.000 novos
descoberta rendeu a Warren e Marshall, em 2005, o Prêmio casos e 4.000.000 recidivas ocorrem a cada ano nos EUA.
Nobel de Medicina como reconhecimento da importância da A úlcera duodenal é a forma predominante de doença ulce
erradicação do H. pylori na cura da úlcera péptica. rosa péptica, sendo cinco vezes mais frequente do que a úlcera
Atualmente, obtém-se a cura na imensa maioria dos pacien gástrica, em 95% dos casos localiza-se na primeira porção do
tes, mas novos desafios impõem-se, como qual a proposta ideal duodeno e incide na faixa etária de 30 a 55 anos de idade. A
de erradicação do H. pylori, especialmente devido ao aumento localização mais frequente da úlcera péptica do estômago é na
na taxa de falha terapêutica observada em vários países, à bus região de antro gástrico (80% na pequena curvatura), no epitélio
ca pela prevenção e recorrência da úlcera péptica em usuários gástrico não secretor de ácido, geralmente próximo à transição
de anti-inflamatórios não esteroides (AINE), bem como aos para o epitélio secretor localizado no corpo do estômago, em in
avanços no tratamento dos casos não relacionados com AINE divíduos entre 50 e 70 anos de idade. De modo geral, as úlceras
e H. pylori. são mais comuns no sexo masculino (1,5 a 3 vezes).
No Brasil, estima-se que 10% da população têm, tiveram O declínio na prevalência de úlcera péptica observado no
ou terão úlcera. Observa-se, conquanto, que a prevalência da século XX tem sido atribuído à redução das taxas de infecção
doença esteja diminuindo, possivelmente em decorrência dos pelo H. pylori, resultado da melhoria dos padrões de higiene
tratamentos de erradicação do H. pylori e da melhora nas con e condições sanitárias urbanas. Embora o baixo nível socioe-
dições higienodietéticas da população, fatores que contribuem conômico e suas consequências estejam relacionados com a
para reduzir a contaminação. infecção pelo H. pylori, a baixa incidência de úlcera gastroduo
denal, em alguns países com elevada prevalência de infecção
pela bactéria, indica a existência de outros fatores associados à
■ CONCEITO úlcera péptica, como características intrínsecas de virulência e
toxicidade das cepas do H. pylori.
As úlceras pépticas constituem soluções de continuidade As taxas de doença ulcerosa péptica complicada com he
da mucosa gastrintestinal secundárias ao efeito corrosivo do morragias ou perfurações, por outro lado, não apresentaram
ácido clorídrico (HC1) e da pepsina, estendendo-se através da reduções significativas nas últimas décadas. O fato é que entre
muscularis mucosae, atingindo a camada submucosa e, mes populações idosas essas taxas de complicações parecem estar
mo, a muscularis própria. Lesões mais superficiais são definidas aumentando, com destaque para as úlceras gástricas, provavel
como erosões, não atingem a camada submucosa e, portanto, mente devido ao uso crescente de AINE.
não deixam cicatrizes. O sangramento é a complicação mais frequente da doença
As úlceras pépticas podem se desenvolver em qualquer por ulcerosa péptica, ocorrendo em torno de 15 a 20% dos casos,
ção do trato digestório exposta à secreção cloridropéptica em em sua maioria associados às úlceras duodenais e com taxa de
concentração e duração suficientes, mas o termo “doença ul mortalidade de 5 a 10%. A doença ulcerosa péptica representa
cerosa péptica” é geralmente empregado para descrever ulce- a causa mais comum de hemorragia digestiva alta, responsável
rações do estômago, do duodeno ou de ambos. por aproximadamente 50% dos casos.
182
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 183
As perfurações são complicações ainda mais graves, obser eventos que culminaria, eventualmente, na úlcera. Sugeriu-se,
vadas em até 5% dos pacientes e responsáveis por dois terços inclusive, que o aforismo de Schwartz “no acid no u lcef fosse
das mortes por úlcera péptica. Ocorrem mais frequentemente substituído por “no Helicobacter, no ulcer'*.
na pequena curvatura gástrica e na parede anterior do bulbo
duodenal. As úlceras gástricas perfuradas, com certa frequên
cia, são bloqueadas pelo lobo hepático esquerdo e as duodenais
■ Atuação multifatorial do ácido, gastrina,
pelo pâncreas e, raramente, pelo cólon. pepsina e H. pylori
Estreitamento e estenose secundária a edema ou cicatriza-
Proteínas, íons Ca~, aminoácidos, histamina e acetilcolina
ção são observados em até 2% dos ulcerosos, comumente rela
estimulam a célula G a produzir gastrina. A gastrina atinge o
cionados com úlceras do canal pilórico, mas também podem
receptor na célula parietal por via sanguínea, induzindo-a a
ocorrer como complicações de úlceras duodenais.
produzir HC1. A queda no pH intraluminal se difunde e ocupa
o receptor da célula D, produtora de somatostatina, que possui
ação inibitória (via parácrina) sobre a celular G. Trata-se, por
■ ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA tanto, de um eficiente mecanismo de autorregulação.
O fator genético é, provavelmente, muito importante quanto A secreção de ácido de um indivíduo varia na dependência
ao fenótipo secretório de determinada população, não só pela de vários fatores ambientais. A alimentação, o uso de determi
variação na população de células parietais, mas, também, pelo nados medicamentos, o hábito de fumar, o estado emocional
limiar de sensibilidade das células envolvidas no processo se influenciam a produção de ácido nas 24 h.
cretório gástrico. A produção de ácido está, em geral, aumentada nos por
O aforismo do médico croata Karl Schwartz, citado em 1910, tadores de úlcera duodenal e normal ou baixa nos indivíduos
“sem ácido, sem úlcera” (“no acid no ulcer"), foi um marco no com úlcera gástrica. A secreção basal de HC1 é 2 a 3 vezes maior
tratamento da úlcera péptica. A teoria cloridropéptica era um nos ulcerosos duodenais, observando-se um intrigante imbri-
consenso, não havendo dúvidas quanto à explicação na gêne camento dos valores pós-estímulo máximo. No entanto, ape
se das úlceras. Não se discutia a importância do ácido clorí nas 20 a 30% da população de ulcerosos duodenais apresenta,
drico (HC1) e da pepsina na agressão à mucosa, mas por que após estímulo máximo, uma produção de HC1 acima do limite
alguns ulcerosos apresentavam produção de ácido normal ou superior do normal. O aumento da secreção ácida pode ser ex
um pouco abaixo do normal. A úlcera duodenal e a gástri plicado pelas seguintes observações:
ca eram consideradas, pela maioria dos investigadores, iguais • Aumento da população de células parietais.
do ponto de vista fisiopatológico, ainda que nas primeiras, em • Maior sensibilidade da célula parietal ao estímulo da gas
geral, se observasse hipersecreção e, nas segundas, normo ou trina.
hipossecreção ácida. A importância dos mecanismos de defesa • M enor sensibilidade da célula G aos mecanismos ini-
da mucosa era lembrada, estabelecendo-se que os indivíduos bitórios.
normais apresentavam equilíbrio entre os fatores agressivos e
os defensivos, quando essa condição era alterada favoreceria a A histamina produzida nas células enterocromafin simile
eclosão da úlcera. (ECL = enterocromaphin cell like), a gastrina nas células G e a
Sabe-se, atualmente, que a úlcera é uma afecção de origem acetilcolina no nervo vago são os primeiros mensageiros quí
multifatorial. Fatores ambientais seguramente desempenham micos que ativam a célula parietal. A ligação destas aos recepto
papel importante na eclosão da úlcera nos indivíduos geneti res específicos na membrana da célula parietal ativaria o segun
camente predispostos e, entre eles, a infecção pelo H. pylori é, do mensageiro (AMP-cíclico ou canais de cálcio), culminando
aparentemente, fundamental. Isso explicaria por que a úlcera na produção da ATPase K* ativada no canalículo secretor, con
ocorre em indivíduos que secretam ácido em níveis próximos siderada a via final para a produção do HC1 (Figura 19.1).
dos normais, e por que indivíduos hipersecretores podem não O principal mediador da secreção ácida estimulada por ali
apresentar úlcera. mentos é a gastrina; portanto, distúrbios da secreção ácida rela
O H. pylori é uma bactéria espiralada descrita primeiramen cionados com a hipergastrinemia tendem a se exacerbar com a
te por Warren e Marshall. Em 14 de abril de 1982, a 35a placa ingestão de alimentos. O peptídio liberador da gastrina (Gastrin
de cultura da bactéria (denominada Campylobacter pyloridis) ReleasingPeptide - GRP), neuropeptídio presente nos nervos do
demonstrou a presença de colônias transparentes de 1 mm. Em trato gastrintestinal, especialmente no antro gástrico, é liberado
junho de 1984, Marshall e Warren publicavam os resultados do na presença de alimentos no estômago e estimula a secreção de
sucesso da cultura da bactéria, responsável pela mudança radi gastrina pelas células G. Atualmente, o GRP é o melhor mé
cal nos conceitos sobre a etiopatogenia da úlcera péptica, por todo disponível para simular a secreção ácida estimulada pela
décadas considerados intocáveis pela elite de investigadores, alimentação. Após infusões intravenosas de GRP, pacientes
gastrenterologistas e fisiologistas. Atualmente, é incontestável H. pylori positivos apresentam níveis de gastrina e secreção áci
a atuação do H. pylori na gênese da úlcera péptica, em virtude da 3 vezes maior que os encontrados em voluntários negativos
da inflamação sobre a mucosa e da alteração dos mecanismos submetidos ao mesmo estímulo. Entre os pacientes H. pylori
regulatórios da produção de ácido. Estima-se que cerca de 90 a positivos, os portadores de úlcera péptica produzem até 2 ve
95% dos ulcerosos duodenais e de 60 a 70% dos portadores de zes mais ácido para os mesmos níveis de gastrina. Tais achados
úlceras gástricas encontram-se infectados pela bactéria. podem estar relacionados com a hipergastrinemia prolongada e
Alguns investigadores acreditam até que o fator ácido não é o o maior número de células parietais, bem como com a redução
mais importante, mas sim a presença da bactéria. A liberação de de mecanismos inibitórios da secreção gástrica, associados ou
citocinas inflamatórias e a resposta imunológica do hospedeiro não a características genéticas do indivíduo.
seriam os moduladores da agressão que determinaria a presença A resposta exagerada da gastrina pode resultar, também, da
e o tipo de doença que o hospedeiro infectado apresentaria. A menor produção de somatostatina, hormônio que inibe a célula
variedade da cepa do H. pylori seria primordial na cascata de G. A razão da diminuição da concentração da somatostatina
184 Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal
Célula enterocromafim
símile
Nervo
vago
V lores H2
Bloqueadores
(-)
t
/
(+)
•• Inibidores de
(-)
bomba protônica
Figura 19.1 Fatores que influenciam a secreção ácida pela célula parietal gástrica. A, acetilcolina; H, histamina; G, gastrina; S, somatostatina;
(+), estímulo; (-), inibiçáo/bloqueio.
na mucosa e de seu RN A-mensageiro em ulcerosos infectados gulam o fluxo sanguíneo da mucosa e a capacidade de replica-
não está esclarecida, mas, certamente, deve-se à presença da ção do epitélio. A redução dos níveis de PG resultaria em sério
bactéria, pois se normaliza com a sua erradicação. As citoci- comprometimento dos mecanismos de defesa da mucosa. O
nas localmente produzidas e a elevação do pH consequente à EGF é elemento essencial na reparação da mucosa. O compro
produção de amônia pela bactéria são mecanismos lembrados metimento de sua produção significa redução na capacidade
como responsáveis pela diminuição da concentração da so regenerativa da superfície epitelial. Diminuição da concentra
matostatina. ção do EGF foi observada em pacientes portadores de úlcera
O pepsinogênio, precursor da pepsina, encontra-se eleva gástrica e duodenal.
do na maioria dos ulcerosos. As frações 1 e 3 do pepsinogênio Em suma, a integridade da mucosa ante um ambiente in-
I, que possuem maior atividade proteolítica, estão presentes traluminal extremamente hostil depende de um mecanismo
em porcentagem maior nos ulcerosos. Os ulcerosos duodenais complexo, no qual os elementos responsáveis pela defesa da
apresentam, portanto, aumento no pepsinogênio total e, ainda mucosa devem estar aptos a exercer proteção eficaz contra os
de maior relevância, é o fato de a atividade proteolítica desta fatores agressivos. A Figura 19.2 resume os fatores agressivos,
enzima ser maior nos ulcerosos. defensivos e de reparação da mucosa.
Além das alterações na produção de HC1 e pepsinogênio, Nos pacientes com úlcera duodenal, em geral a inflamação
deve ser lembrada a equação agressão/defesa. A diminuição da está restrita ao antro gástrico e à região do corpo poupada, ou
capacidade de defesa da mucosa é importante, tornando-a mais comprometida por discreta inflamação. Em virtude da infecção
vulnerável aos elementos agressivos. A inflamação da mucosa e e do processo inflamatório antral pela bactéria, a produção de
a diminuição de peptídios envolvidos no estímulo dos elemen gastrina está aumentada e, como a mucosa do corpo está pre
tos que mantém a mucosa íntegra favorecem a lesão. servada, observa-se maior produção de ácido, que é ofertado
O H. pylori atuaria em ambos os lados dessa equação, dimi em maior quantidade ao bulbo. Uma das consequências deste
nuindo a disponibilidade endógena de prostaglandinas (PG) fenômeno é maior frequência de metaplasia gástrica no bulbo
e do fator de crescimento epitelial (EGF = Epithelial Growth duodenal. Os locais onde existe metaplasia gástrica são coloni
Factor), reduzindo a defesa da mucosa, além de aumentar a zados pelo H. pylori, evoluindo com inflamação, tornando-se
produção dos fatores agressivos por mecanismos descritos an- mais suscetível à agressão pelo fator acidopéptico, cujo resul
teriormente. As PG são responsáveis por estimular a produção tado final é a úlcera.
de muco e de bicarbonato pelas células epiteliais, influenciam Além do distúrbio na secreção de ácido e alteração da defesa
a hidrofobicidade do muco adjacente à superfície epitelial, re da mucosa, a própria ação lesiva da bactéria deve ser lembra-
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 185
Acido Muco
Pepsina Bicarbonato A n gio gê n e se
A IN Es/AAS Fluxo san g uín eo Proliferação celular
H. pylori Cam ada surfactante Reconstituição epitelial
da como fator importante na etiologia da úlcera. Sabe-se que a presença de úlcera. Estas observações são bastante sugesti
pacientes ulcerosos estão em geral infectados por cepas cag-A vas de que a simples presença da bactéria não é suficiente para
(cytotoxin-associated gene) positivas que são, também, em ge provocar a úlcera.
ral, vac-A (vacuolating cytotoxin A) positivas. A proteína cag-A A Figura 19.3 demonstra uma cascata de eventos, unindo
é um marcador de ilha de patogenicidade envolvendo outras a teoria cloridropéptica à infecciosa, uma hipótese bastante
citocinas importantes em determinar a virulência da bactéria. simpática, para explicar a etiologia das úlceras duodenais rela
Estudos recentes demonstraram um padrão constante, relacio cionadas com o H. pylori.
nando as cepas cag-A positivas com maior produção de gastri-
na e de ácido pós-estímulo. Outros genes, como das proteínas
de adesão BabA e de membrana OipA, têm, também, elevada
■ Com a erradicação do H. pylori, a úlcera deve
frequência nos pacientes com doença ulcerosa, porém com um ser considerada uma doença em extinção?
papel menos relevante na sua patogênese.
Em estudo recente realizado em nosso meio, a comparação
Qual o papel dos AINE/AAS?
entre pacientes ulcerosos e dispépticos não ulcerosos demons Tem-se observado, com frequência cada vez maior, a cons
trou que a positividade de proteínas da ilha de patogenicidade tatação de úlceras H. pylori negativas (Figura 19.4). Especula-se
cag (cag-T, cag-M, cag-A) representa importante fator preditivo que o maior número de pacientes submetidos ao tratamento de
no desenvolvimento de úlcera péptica no Brasil. Em países com erradicação aumente a tendência ao surgimento de úlceras re
elevada prevalência da infecção pelo H. pylori na população ge lacionadas com o uso de AINE/AAS ou a situações raras, como
ral, como o Brasil (70 a 80%), esta poderá ser uma ferramenta gastrinoma, doença de Crohn ou resposta secretória exagerada
de grande importância, para indicação de erradicação da bac aos estímulos fisiológicos.
téria em pacientes dispépticos não ulcerosos. A fisiopatologia da lesão induzida por AINE/AAS baseia-
se na supressão da síntese de prostaglandinas. O mecanismo
envolvido nessa situação indica a agregação de neutrófilos às
■ A úlcera é uma doença péptica ou infecciosa? células endoteliais da microcirculação gástrica, diminuindo o
Existem vários argumentos que endossam a teoria infeccio fluxo sanguíneo gástrico efetivo, bem como a redução na pro
sa, tais como, alterações da regulação da secreção, virulência da dução de muco prostaglandina-dependente e o comprometi
bactéria e demonstração inquestionável de que a erradicação mento da capacidade de migração epitelial de células adjacentes
da bactéria resulta na normalização da alteração fisiológica e na à área lesada. A circulação da mucosa e a capacidade de defesa
cura da doença da maioria dos ulcerosos. A recidiva nos indiví celular ficam comprometidas, e a mucosa torna-se vulnerável
duos erradicados ocorre quando há reinfecção, recrudescência à agressão de fatores intraluminares, como ácido clorídrico,
ou o uso de AINE (incluindo-se o AAS). pepsina, sais biliares, H. pylori e medicamentos.
É importante destacar o papel do HC1 na doença ulcerosa, Na década de 1990, a introdução no mercado de inibidores
pois o uso de antissecretores relativamente pouco potentes, seletivos da ciclo-oxigenase-2 (COX-2) representou um avanço
como a cimetidina, ou mesmo antiácidos, é eficaz em promo na prevenção de úlceras induzidas por AINE; contudo, sabe-
ver a cicatrização da úlcera. Sabe-se, também, que, felizmente, se hoje que a inibição seletiva da COX-2 não elimina o risco
a imensa maioria dos indivíduos infectados nunca apresentará de desenvolver úlceras gastroduodenais e suas complicações.
úlcera. A ausência de ácido é praticamente incompatível com Pacientes em uso de AINE têm um risco 4 vezes maior de de-
186 C a p ítu lo 79 / Ú lcera P é p tica G a stro d u o d e n a l
\
In fla m a ç ã o d a s áre as
passo que, em portadores de UG, a ingestão de alimentos às
vezes piora ou desencadeia o sintoma (dor em quatro tempos:
dói-come-passa-dói).
m e ta p lá s ic a s — M e n o r v ita lid a d e Outra característica da dor da úlcera péptica é a periodicida
d a m u c o sa de: períodos de acalmia (desaparecimento da dor por meses ou
mesmo anos) intercalados por outros sintomáticos. O fato de o
paciente ser despertado pela dor no meio da noite ("clocking’)
............... A u m e n to d e H C I e p e p sin a é sugestivo da presença de úlcera, particularmente duodenal. A
pirose ou azia é comum nos pacientes com UD, em virtude da
associação da UD com refluxo gastresofágico. Outros sintomas
D ig e s tã o d e áre a s m e ta p lá s ic a s dispépticos, como eructação, flatulência, sialorreia, náuseas,
vômitos não são próprios da úlcera péptica, mas podem estar
i associados. O exame físico nada acrescenta, a não ser nos casos
de complicações, como hemorragia, estenose ou perfuração.
Ú LCERA D U O D EN A L Muitos pacientes que procuram os hospitais para tratamento
das complicações da doença, como hemorragias ou perfurações,
Figura 19.3 Teoria doridropéptica + infecciosa. nunca apresentaram sintomatologia prévia. Curiosamente, em
Figura 19.5 Ciclo vital das úlceras pépticas (Sakita, 1973). Este ciclo é dividido em três fases: fase inicial, denominada ativa (A - a c tiv e ); fase
intermediária, com úlcera em cicatrizaçào (H - h e a lin g ); fase final, com úlcera cicatrizada (S - scar).
Figura 19.6 Imagens endoscópicas de úlceras pépticas. A, Úlcera gástrica, pré-pilórica, plana, de fundo claro, com bordas planas e hiperemia-
das, apresentando convergência de pregas edemaciadas e congestas (atividade). B, úlceras duodenais em atividade, localizadas em paredes
opostas de bulbo duodenal (k is s in g u lce rs). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
ressecção cirúrgica sempre que possível. Recomenda-se que a úlcera (uso de AINE, gastrinoma), dispensando a terapêutica
investigação seja realizada em centros de referência com exa antibiótica. É necessário lembrar, porém, que podem ocorrer re
mes que incluam ultrassonografia endoscópica, cintigrafia dos sultados falso-negativos em pacientes que receberam tratamen
receptores da somatostatina, tomografia computadorizada, res to com inibidores da bomba de prótons, bismuto ou antibió
sonância magnética e arteriografia seletiva. ticos, os quais podem suprimir temporariamente o H. pylori.
Os métodos para diagnóstico do H. pylori podem ser clas
■ Diagnóstico dos fatores etiológicos sificados em invasivos e não invasivos. Suas características e
aplicabilidade clínica estão resumidas no Quadro 19.4.
■ Helicobacterpylori Os métodos invasivos são aqueles que necessitam de endos-
Os testes para diagnosticar infecção pelo H. pylori são im copia acompanhada de biopsia gástrica. Segundo o II Consenso
portantes em pacientes com doença ulcerosa péptica. Exames Brasileiro sobre o Helicobacter pylori, caso haja opção pela pes
negativos mudam a estratégia diagnóstica para outras causas de quisa de HP durante a endoscopia digestiva, a coleta de material
190 Capítulo 19 / Úlcera Péptica Gastroduodenal
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Invasivos (endoscópicos)
H is to lo g ia 9 0 -9 5 % 9 0 -9 5 % T e s te p a d r õ o - o u r o p a ra d ia g n ó s t ic o N e c e s s á rio p a to lo g is ta e x p e r ie n t e ; d a d o s
n a ro tin a h o s p ita la r a d ic io n a is s o b r e a tro fia e in fla m a ç ã o
U re a s e 90% 90% R á p id o , b o a re la ç á o c u s t o -b e n e f íc io E x ig e te s te a d ic io n a l p a ra c o n f ir m a ç ã o d a
in fe c ç ã o
para urease deverá ser realizada no corpo e antro gástricos. O doença ulcerosa antes de verificar o seu resultado. Na prática
estudo histológico deve incluir a coleta de cinco fragmentos: clínica, por outro lado, os excelentes resultados divulgados em
dois do antro, dois do corpo e um da incisura angular. trabalhos científicos bem conduzidos nem sempre são observa
Os métodos não invasivos, que não necessitam de endos- dos, especialmente nos locais onde a resistência é alta ao metro-
copia, são três: nidazol. Neste caso, é possível que 30 a 50% dos pacientes não
erradiquem o microrganismo e, portanto, um número substan
• Teste sorológico: pode ser realizado em laboratórios de
cial de pacientes possam se beneficiar do exame de controle de
referência ou através de um teste rápido desenvolvido
cura e de uma eventual modificação de conduta. Haverá situ
para o consultório. Geralmente, a IgG está aumentada em
ação na qual o paciente questionará se a bactéria foi realmente
pessoas contaminadas pelo microrganismo. O achado de
erradicada, já que a confirmação permitirá ao clínico informar
IgG elevada não significa infecção ativa, uma vez que os
que a doença ulcerosa não recidivará. Em algumas condições,
níveis de anticorpos decrescem vagarosamente depois da
a verificação é obrigatória, como, por exemplo, na doença ulce
erradicação da infecção. Não deve ser utilizado, portanto,
rosa péptica, especialmente na forma complicada (hemorragia,
nos casos em que haja necessidade de controle imediato
perfuração ou obstrução), na recorrência e na refratariedade.
de tratamento, embora uma queda acentuada dos níveis
Após o tratamento com antibióticos, a maior probabilidade
de anticorpos observada 6 a 12 meses após o tratamento
de testes com resultados falso-negativos ou equivocados aconte
antimicrobiano signifique sucesso na erradicação.
ce se esses testes forem realizados antes de 4 semanas após o tér
• Teste respiratório com ureia marcada: quando positivo,
mino do tratamento, pois o microrganismo pode estar suprimi
ao contrário do teste sorológico, sempre significa infec
do, mas não erradicado. O número de falso-negativos diminui se
ção atual. Pode indicar cura do H. pylori 8 semanas após
os exames forem realizados depois de 6 a 8 semanas. No Brasil,
a terapia antibiótica, período em que os testes com anti
o II Consenso Brasileiro sobre o Helicobacterpylori recomenda
corpos ainda são positivos. Neste teste, o paciente ingere
o controle somente 2 meses após o término da terapia, em todos
ureia marcada com carbono 14 (radioativo) ou carbono
os casos de UG, UD e linfoma MALT de baixo grau.
13 (não radioativo). Este último, por não ser radioativo,
Ao indicar um teste de controle, deve-se considerar sempre a
é seguro, podendo ser utilizado em mulheres grávidas,
sua sensibilidade, segurança e conveniência para o paciente, isto
crianças e também para transporte de um local para outro
é, facilidade de realização e adequada relação custo-benefício.
(análise laboratorial em outra localidade). Se o organis
O teste respiratório tem sido o mais recomendado para ve
mo estiver presente, ele transforma a ureia em amônia
rificar a eficácia do tratamento de erradicação do H. pylori após
e dióxido de carbono marcado. Este pode ser detectado
o tratamento. Nos casos em que se realiza exame endoscópico
e quantificado no ar expirado 30 min mais tarde em um
para controle de cicatrização da úlcera péptica (úlcera gástrica
balão de coleta.
principalmente), torna-se mandatória a realização de testes ba
• Pesquisa do antígeno fecal: método que identifica, através
seados na retirada de fragmentos de biopsia. Nestas ocasiões,
de reação imunoenzimática, antígenos do H. pylori nas
os resultados falso-negativos podem ser reduzidos através da
fezes dos pacientes. É bastante conveniente para pesquisa
retirada de múltiplos fragmentos de antro e corpo e com a uti
da bactéria em população pediátrica.
lização de mais de um teste. A combinação de, ao menos, dois
Os testes não invasivos também podem ser utilizados para testes é recomendável (histologia, teste da urease, cultura).
confirmar a negatividade ao H. pylori ao teste da urease em
pacientes ulcerosos nos quais não foram obtidos fragmentos ■ Drogas anti-inflam atórias (AINE)
de biopsia para estudo histológico. Deve-se pesquisar durante a anamnese o uso de drogas anti-
A utilidade de exames para confirmar a erradicação do inflamatórias, particularmente em pacientes idosos nos quais
H. pylori tem sido amplamente discutida. Como a maioria (80 a haja maior consumo devido à elevada prevalência de doenças
90%) dos pacientes tratados é curada pelo tratamento antimi osteoarticulares. Pacientes cardiopatas devem ser pesquisados,
crobiano, parece sensato esperar uma recidiva sintomática da pois, nesse grupo, é comum a ingestão regular de doses baixas
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 191
de ácido acetilsalicílico na profilaxia de enfermidades cardio- vamente, que podem ser administradas em dose única matinal
vasculares isquêmicas. ou noturna, embora, com maior frequência, sejam fracionadas
Quando uma úlcera gástrica for refratária ao tratamento em duas tomadas.
instituído e existir suspeita de ingestão de AINE não admiti As medicações da classe IBP bloqueiam diretamente a ATPase
da pelo paciente, o nível sérico dos salicilatos ou a atividade K’ ativada, enzima responsável pela união do H* com o Cl"
da ciclo-oxigenase das plaquetas, se disponível, pode ser so no canalículo da célula parietal, origem do HC1. Atualmente,
licitado. no Brasil, os medicamentos disponíveis são: omeprazol, lan-
soprazol, pantoprazol, rabeprazol e esomeprazol. Estes medi
camentos possuem eficácia semelhante, com cicatrização de
■ TRATAMENTO 70% após 2 semanas e 92 a 100% depois de 4 semanas de tra
tamento. A dose de IBP é de 20 mg para o omeprazol e o rabe
O tratamento da úlcera péptica, seja ela gástrica ou duode- prazol, 30 mg para o lansoprazol e 40 mg para o pantoprazol
nal, tem como objetivos: alívio dos sintomas, cicatrização das e o esomeprazol. O medicamento é administrado pela manhã,
lesões e prevenção de recidivas e complicações. em jejum; nos poucos pacientes cuja úlcera permanece ativa
Até a descoberta do H. pylori, os dois primeiros objetivos após 4 semanas de tratamento, observa-se cicatrização com o
eram facilmente alcançados; entretanto, ao final de 1 ano, prati aumento da dose.
camente todas as úlceras recidivavam. Atualmente, sabe-se que Os IBP são muitos seguros; entretanto, a polêmica em torno
não basta cicatrizar a úlcera, mas há necessidade de erradicar a de seu uso prolongado advém do risco teórico de cancerização.
bactéria, a título de evitar a recidiva. Em razão de sua potente ação antissecretora, observa-se aumento
Cultivar uma boa relação médico-paciente é fundamental, nos níveis de gastrina plasmática de 2 a 3 vezes a partir das pri
explicando ao paciente a natureza de sua doença, inclusive do meiras 48 a 96 h, que, em geral, se mantém nesses níveis a des
ponto de vista emocional. Quanto à alimentação e dieta, nem peito do uso prolongado. A possibilidade teórica de aumento na
o tipo, nem a consistência da dieta afetam a cicatrização da úl população das células enterocromafins símile (ECL liké) e o apa
cera, mas é conhecido que alguns alimentos aumentam e/ou recimento de carcinoide do estômago têm sido apontados como
estimulam a produção de ácido clorídrico e outros são irritantes contraindicação do uso prolongado deste potente antissecretor.
à mucosa gástrica. E importante recomendar aos pacientes que A supressão ácida com tendência à hipo e acloridria poderia fa
evitem alguns alimentos e que parem de fumar, pois o fumo vorecer o crescimento de bactérias no estômago e a formação
pode alterar o tempo de cicatrização da úlcera. de compostos nitrosos pela ação das bactérias sobre os radicais
As medicações que promovem a cicatrização da úlcera agem nitratos, oriundos de alimentos consumidos; no entanto, vários
por dois mecanismos: fortalecendo os componentes que m an estudos sobre pacientes acompanhados por vários anos com estes
têm a integridade da mucosa gastroduodenal (pró-secretores) medicamentos, como nos casos de esofagite ou gastrinoma, não
e diminuindo a ação cloridropéptica (antissecretores). mostraram maior risco de tumor carcinoide ou câncer.
Os pró-secretores atuam estimulando os fatores responsá
veis pela integridade da mucosa, como muco, bicarbonato, fa
tores surfactantes, além de favorecer a replicação celular e o
■ Helicobacterpylori e úlcera
fluxo sanguíneo da mucosa. São considerados pró-secretores: As evidências atuais demonstram a importância da erradica
antiácidos, sucralfato, sais de bismuto coloidal e prostaglandi- ção do H. pylori na prevenção de recidiva ulcerosa, seja ela gás
nas, mas, na prática, são pouco utilizados. As prostaglandinas trica ou duodenal. Quanto à abordagem terapêutica da úlcera
surgiram na década de 1980 como medicamentos promissores duodenal, embora alguns autores indiquem unicamente a erra
baseados na ação antissecretora e citoprotetora. O misoprostol dicação da bactéria, independente de tamanho, profundidade
era altamente eficaz na prevenção de lesões agudas de mucosa e número de lesões, acreditamos que tal conduta seja avaliada
provocada por AINE, com eficácia semelhante à do omeprazol. com cautela. Sugerimos que o tratamento da úlcera duodenal
O alto custo, os efeitos colaterais (diarréia e cólicas abdomi restrito à erradicação da bactéria seja indicado naqueles casos
nais) e o uso indevido como abortivo, por outro lado, invia em que a lesão não é muito profunda, nem múltipla. Nos casos
bilizaram a utilização e eles foram praticamente abandonados em que a úlcera é profunda, com 1 cm ou mais, o bom-senso
na prática clínica. indica a manutenção do IBP por um período de pelo menos 10
Os antissecretores são os medicamentos de escolha para a a 14 dias, após a conclusão do esquema de erradicação.
cicatrização da úlcera, e dois grupos são atualmente utilizados: Numerosos esquemas de erradicação têm sido propostos,
os bloqueadores do receptor H, da histamina e os inibidores mas nem todos mostram a mesma eficácia. São considerados
da bomba de prótons (IBP). aceitáveis índices de erradicação acima de 80%. Os esquemas
O primeiro bloqueador H 2 que nos anos setenta revolu monoterápicos ou duplos não devem ser utilizados, pois resul
cionou o tratamento da úlcera péptica foi a cimetidina, dimi tam em índices de erradicação extremamente baixos. Os esque
nuindo significativamente a indicação de cirurgias. Posterior mas tríplices são os mais indicados e os esquemas quádruplos
mente, surgiram no mercado brasileiro ranitidina, famotidina devem ser reservados para situações especiais, como, por exem
e nizatidina. Esse grupo de medicamentos atua bloqueando o plo, nos casos de falha terapêutica ao esquema tríplice.
receptor H2 existente na membrana da célula parietal, dimi Convém lembrar que alguns esquemas apresentam excelentes
nuindo significativamente a ativação da ATPase K* ativada no níveis de erradicação em países desenvolvidos, mas deixam mui
canalículo secretor, com redução de aproximadamente 70% da to a desejar em nosso meio. Essa constatação justifica-se devido
secreção ácida estimulada pela refeição. Todos eles apresentam à resistência primária a grupos bactericidas (principalmente imi-
eficácia semelhante de cicatrização, em torno de 60 a 85%, com dazólicos, como metronidazol e tinidazol, e claritromicina).
4 semanas de tratamento, com resposta adicional de cerca de Atualmente, o esquema considerado de primeira linha as
10% após extensão do tratamento por mais 4 semanas. As do socia um inibidor de bomba protônica em dose-padrão + cla
ses preconizadas diárias de cimetidina, ranitidina, famotidina ritromicina 500 mg + amoxicilina 1.000 mg ou metronidazol
e nizatidina são de 800 mg, 300 mg, 40 mg e 300 mg, respecti 500 mg, 2 vezes/dia, por um período mínimo de 7 dias. O tempo
192 Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal
de tratamento pode variar de 7 a 14 dias, havendo uma tendên Todos esses esquemas apresentam o inconveniente de utili
cia a se dar preferência por 7 dias, já que a redução do tempo de zar um grande número de comprimidos, dificultando a adesão
tratamento não influencia nos índices de erradicação, favorece do paciente ao tratamento, além de efeitos colaterais, como:
a aderência e torna o custo mais acessível. diarréia, cólicas abdominais, náuseas, vômitos, gosto metálico,
Contudo, devido à prescrição indiscriminada do metrodi- glossite e vaginite, que variam de centro para centro; podem
nazol em nosso meio, deve-se dar preferência ao uso da fu- chegar até 30% de frequência.
razolidona como droga alternativa. O II Consenso Brasileiro Com relação às lesões induzidas por AINE, indubitavel
sobre o Helicobacter pyloriy realizado em junho de 2004, na mente o melhor tratamento é o profilático. Devem-se utili
cidade de São Paulo, recomenda a associação de IBP + fu- zar, sempre que possível, os AINE com menor potencial de
razolidona + claritromicina ou tetraciclina, como esquemas agressão (COX-2 seletivos) e instituir o tratamento profiláti
alternativos de primeira linha para erradicação da bactéria co concomitante (IBP) para aqueles pacientes considerados
(Quadro 19.5). de alto risco a fim de evitar complicações. Em pacientes com
alto risco cardiovascular, recomenda-se que o AINE de eleição
seja o naproxeno em associação a um IBP ou ao misoprostol;
-------------------------▼------------------------- todavia, é importante considerar que mesmo esta associação
Quadro 19.5 Tratamento do H. pylori - II Consenso Brasileiro não é isenta de riscos em pacientes com múltiplos fatores de
risco gastrintestinais. Em pacientes de baixo risco cardiovas
sobre o Helicobacterpylori
cular, AINE não seletivos podem ser utilizados associados a
a ) IBP + a m o x ic ilin a 1,0 g + c la ritro m ic in a 5 0 0 m g , 2 x / d ia , 7 d ia s
um IBP, naqueles com um ou dois fatores de risco para úlce
b ) IBP 1 x / d ia + c la r it r o m ic in a 5 0 0 m g 2 x / d ia + fu ra z o lid o n a 2 0 0 m g ra gastroduodenal. Na presença de múltiplos fatores de risco
2 x / d ia , 7 d ia s ou antecedente de úlcera complicada, deve-se optar pelo uso
c ) IBP 1 x / d ia + fu ra z o lid o n a 2 0 0 m g 3 x / d ia + te tra c ic lin a 5 0 0 m g 4 x / d ia ,
criterioso de inibidores seletivos da COX-2 em associação
7 d ia s
com IBP ou misoprostol e avaliar a relação risco-benefício,
R e tr a ta m e n to (d u a s te n ta tiv a s , n ã o se r e p e t in d o o e s q u e m a in ic ia l):
caso a caso.
• S e t r a t a m e n t o in ic ia l c o m e s q u e m a a ) o u b ):
111o p ç ã o : IBP + sal d e b is m u t o 2 4 0 m g + fu ra z o lid o n a 2 0 0 m g + Os AINE são a segunda maior causa de úlcera péptica, e, por
a m o x ic ilin a 1,0 g (o u d o x ic id in a 100 m g ), 2 x / d ia , 10 a 14 dias tanto, a ação sinérgica entre o H. pylori e os AINE vem sendo
2 * o p ç ã o : IBP 2 x / d ia + a m o x ic ilin a 1,0 g 2 x / d ia + le v o flo x a c in o 5 0 0 m g demonstrada para o desenvolvimento de úlcera. Seu apareci
1 x / d ia , 10 d ia s; o u IBP + fu ra z o lid o n a 4 0 0 m g + le v o flo x a c in o 5 0 0 m g
1 x / d ia , 10 d ia s
mento é raro em não usuários de AINE e H. pylori negativos. As
• S e t r a t a m e n t o in ic ia l c o m e s q u e m a c ): recomendações do II Consenso Brasileiro sobre o Helicobacter
1* o p ç ã o : IBP + a m o x ic ilin a 1,0 g + c la ritro m ic in a 5 0 0 m g , 2 x / d ia , 7 d ia s pylori para erradicação da bactéria, em usuários de AINE, estão
2-* o p ç ã o : IBP + sal d e b is m u t o 2 4 0 m g + f u ra z o lid o n a 2 0 0 m g + resumidas no Quadro 19.6.
a m o x ic ilin a 1,0 g (o u d o x ic id in a 100 m g ), 2 x / d ia , 10 a 14 d ias
Recentemente, um consenso entre cardiologistas e gastrente-
C o n t r o le d e e rra d ic a ç ã o (ú lc e ra g á s tric a o u d u o d e n a l, lin fo m a M A L T d e
rologistas americanos concluiu que a associação de AAS e IBP,
b a ix o g r a u ):
• N o m ín im o , 8 s e m a n a s a p ó s o t é r m in o d o t r a t a m e n t o
em pacientes cardiopatas com elevado risco gastrintestinal, é
• D e e s c o lh a : te s te r e s p ira tó rio c o m u re ia m a rc a d a , q u a n d o n ã o h o u v e r melhor do que o uso de clopidogrel isoladamente na prevenção
in d ic a ç ã o p a ra n o v a e n d o s c o p ia . S e e x a m e e n d o s c ó p ic o : u re a s e e de úlceras complicadas. Todavia, as evidências recentes de que
h is to lo g ia
o uso concomitante de IBP pode modificar as propriedades an-
• A n tis s e c re to re s d e v e r ã o se r s u s p e n s o s 7 a 10 d ia s a n te s d o c o n tr o le d e
e rra d ic a ç ã o
tiplaquetárias dessas drogas têm sido motivo de preocupação e
aguardam estudos clínicos prospectivos, embora novos estudos
Figura 19.9 Algoritmo de investigação diagnóstica na doença ulcerosa péptica refratária ou recorrente.
--------------------------T--------------------------
Quadro 19.6 Recomendações para pacientes em uso de AINE/AAS - ■ LEITURA RECOMENDADA
II Consenso Brasileiro sobre o Helicobacterpylori Bhatt, DL, Schciman, J, Abraham, NS et al. ACCF/ACCI/AHA 2008 expcrt
conscnsus document on reducing thc gastrointestinal risks of antiplatelet
P es qu is a e t r a t a m e n t o d e in fe c ç ã o p e lo H . p y lo ri: thcrapy and NSAID use: a report of thc American Collegc of Cardiology
• P a c ie n te s q u e in ic ia rã o t r a t a m e n t o c o n t í n u o c o m A IN E n ã o s e le tiv o s Foundation Task Force on Clinicai Expcrt Conscnsus Documcnts. ) Am
• P a c ie n te s d e risco* já e m u s o d e A IN E e / o u A A S , o u q u e in ic ia rã o Coll Cardiol, 2008; 52:1502-17.
t r a t a m e n t o c o m e les, i n d e p e n d e n t e d e t ip o , d o se , t e m p o o u in d ic a ç ã o Coelho, LGV 8c Zatcrka, S. II Consenso Brasileiro sobre Helicobacter pylori.
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Eisig, JN, Andrc, SB, Silva, FM, Hashimoto, C, Moraes-Filho, JP, Laudanna, AA.
história prévia de úlcera péptica, idade acima de 60 anos, associação de AINE com Thc impact of Helicobacter pylori rcsistancc on thc efficacy of a short coursc
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A Figura 19.9 apresenta algoritmo que resume o tratamento Lanas, A, Baron, JA, Sandlcr, RS et al. Pcptic ulccr and bleeding events associ-
da úlcera péptica gástrica. Em consequência à maior incidên ated with rofecoxib in a 3-ycar colorcctal adenoma chcmoprcvcntion trial.
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cia de úlceras H. pylori e AINE/ASS negativas, a proporção de Malfcrthcincr, P, Chan, FKL, McColl, KEL. Pcptic Ulccr Discase. Lancei, 2009;
pacientes com doença ulcerosa péptica refratária ou recorrente 374:1449-61.
tem sido crescente. A correta avaliação, identificação e o trata Malfcrthcincr, P, Mcgraud, F, 0 ’Morain, C, Bazzoli, F, El-Ornar, E, Graham, D
mento adequado de fatores associados à refratariedade ou re et al. Current conccpts in thc management of Helicobacter pylori infcction:
thc Maastricht III Conscnsus Report. Gut, 2007; 56:772-81.
corrência tornam as taxas de intratabilidade praticamente nulas Marshall, BJ. Helicobacter pylori. Am J Gastroenterol, 1994; 89:S116-28.
(Figura 19.9). Já as úlceras duodenais, no geral, não necessitam Marshall, BJ. Unidcntificd curvcd bacilli on gastric cpithclium in active chronic
de controle endoscópico, recomendando-se apenas o controle gastritis. Lancet, 1983; J:1273-4.
de erradicação do H. pylori após 4 a 8 semanas do término do Marshall, BJ 8cWarrcn, JR. Unidcntificd curvcd bacilli in thc stomach of patients
with gastritis and pcptic ulccration. Lancet, 1984; J: 1311-4.
tratamento e tendo como método de escolha o teste respirató Matar, R, Marques, SB, Monteiro, MS, dos Santos, AF, Iriya, K, Carrilho, FJ. He
rio com ureia marcada. licobacter pylori cag pathogcnicity island genes: clinicai rclcvancc for pcptic
O tratamento de complicações pode ser abordado, primei ulccr discase dcvclopment in Brazil. / Med Microbiol, 2007; 56:9-14.
ramente, através de métodos endoscópicos, como nos san- Ray, WA, Murray, KT, Griffin, MR, Chung, CP, Smallcy, WE, Hall, K et al. Out-
comcs with concurrcnt use of clopidogrcl and proton-pump inhibitors: A
gramentos, fazendo a hemostasia endoscópica ou a dilatação cohort study. Ann Intern Med, 2010; 152:337-45.
nas estenoses. Nos casos de perfuração, a conduta é sempre Yuan, Y, Padol, IT, Hunt, RH. Pcptic ulccr discase today. Nat Clin Pract Gas
cirúrgica. troenterol Hepatol, 2006; 3:80-9.
Úlcera Péptica H e l i c o b a c t e r
negativa
p y l o r i -
194
Capítulo 20 / Úlcera Péptica Helicobacter py\or\-negativa 195
H . p y lo ri -negativas
H. py/or/-negativas
Tempo Tempo
Figura 20.1 Aumemo da proporção das úlceras H.py/oft-negativas. (Extraído de: Peura, AD.The problem of H e lic o b a c te r p y lo r i- n e g a iw e idiopa-
thic ulcer disease. Best Practice & Research, G in . G a s tro e n te ro l., 2000; 14:109-17.)
Na década de 1990, a expressiva consistência dos resultados população geral. Portanto, o aparente aumento na frequência
sobre a associação de H. pylori e úlcera péptica, sobretudo as úl de úlceras H. py/orí-negativas não pode ser inteiramente expli
ceras duodenais, permitiu que alguns estudiosos questionassem cado pela redução na prevalência da infecção.
a necessidade de se comprovar a infecção diante de um exame
endoscópico com o achado de uma úlcera. Entretanto, como
já citado, mais recentemente, registra-se o aumento das úlceras ■ REVISÕES
não infecciosas. Alguns desses trabalhos utilizam dados retros
pectivos, portanto passíveis de críticas pelas falhas nos métodos Em recente trabalho de revisão, Gisbert et al. estudaram a
de diagnóstico da infecção e de exclusão de anti-inflamatórios prevalência da infecção associada à úlcera duodenal em traba
e outras medicações. Porém, outras fontes de dados coletados lhos publicados de 1998 até 2008. Nessa análise, foram excluídos
em diferentes países apontam nessa mesma direção. os estudos em que todos os pacientes apresentavam doenças
Em dois ensaios clínicos multicêntricos, o envolvimento de concomitantes (neoplasias malignas, insuficiência renal, cirro
HP e/ou AINEs não foi comprovado em 20 e 30%, respectiva se hepática) ou complicações da doença ulcerosa (hemorragia,
mente, dos pacientes com úlcera duodenal. Os autores presu perfuração e obstrução pilórica), pois suas menores taxas de
mem que esses pacientes sejam portadores de úlcera péptica infecção (média de 70%) poderiam ser explicadas por tais con
idiopática, já que outras causas de úlcera péptica, como uso de dições. A revisão mencionada contabilizou mais de 16.000 pa
anti-inflamatórios e estados hipersecretórios, foram excluídas. cientes com úlcera duodenal, encontrando uma taxa média de
Um outro estudo norte-americano que envolveu 2.394 pacien infecção por H. pylori de 81,2. A prevalência da infecção foi
tes encontrou 27% de úlceras não relacionadas com H. pylori ou maior nos estudos europeus quando comparados aos norte-
AINEs. Apesar do número impressionante de participantes, o americanos (83,9% vs. 72,4%, p < 0,001), e cifras intermediárias
estudo não foi poupado de críticas, especialmente pela suspeita foram encontradas em estudos de outros países americanos,
de que pelo menos 20% dos pacientes tenham usado AINEs, como Brasil, Colômbia e Peru (81,9%). As mais altas taxas de
mesmo com testes negativos para salicilatos. infecção foram encontradas no Japão, com valores médios de
Estudos realizados em outros países mostram resultados 94,3%. Quando analisados somente os estudos publicados entre
semelhantes aos dos norte-americanos quanto ao aumento na 1999 e 2003, a prevalência da infecção foi de 84%, ao passo que,
prevalência das úlceras H. pylori-negativas. Em 1993, McColl no período 2004-2008, foi de 77%, diferença significativamente
et al. identificaram 12 portadores de úlcera péptica HP-nega estatística. Tal diferença podería representar a crescente ten
tiva dentre 435 pacientes com úlcera duodenal atendidos em dência de aumento das úlceras HP-negativas? Esperamos que
um centro de referência na Escócia. Dos 12 pacientes, qua futuros estudos respondam a essa pergunta.
tro haviam usado AINEs, um possivelmente tinha doença de Apesar das revisões mais recentes, a real prevalência de úl
Crohn no duodeno e um preenchia critérios para síndrome cera HP-negativa é difícil de ser determinada, sobretudo pelo
de Zollinger-Ellison. Portanto, apenas seis pacientes, em um desenho retrospectivo da maioria dos trabalhos estudados.
universo de mais de 400, foram considerados como portadores
de úlcera idiopática. Na Austrália, uma análise retrospectiva de
125 pacientes com úlcera duodenal encontrou 56 (45%) casos ■ ESTUDOS PR0SPECTIV0S
de úlceras HP-negativa. Todavia, os autores reconhecem que
o uso de anti-inflamatórios pode explicar uma grande parcela Os estudos prospectivos têm demonstrado que um núme
desses casos. ro substancial de ulcerosos infectados por HP desenvolvem
No Japão, onde a prevalência da infecção ainda é alta, as úl recidiva da úlcera após a erradicação da bactéria. Hirschowitz
ceras HP-negativas também parecem aumentar, mas ainda são et al. relataram que 45% dos pacientes com úlcera duodenal
muito raras. Em um estudo de 2000, Aoyama et al. relataram H. pylori-positiva não associada a AINEs, submetidos com su
11 pacientes com úlceras HP-negativas (3,6% de 302 pacientes). cesso à erradicação de HP, tiveram recorrência da úlcera em
Desses, dois eram sabidamente usuários de AINEs. Revisões re um período de até 6 meses após o término do tratamento. Uma
centes mostram uma clara mudança na prevalência da infecção metanálise norte-americana demonstrou recorrência de úlce
no país nos últimos 20 anos, com redução de 73% para 39% na ra duodenal de 20% em 6 meses, a despeito da erradicação de
196 Capítulo 20 / Úlcera Péptica HeUcobacter py\or\-negativa
H. pylori e exclusão de AINEs. Uma possível explicação seria o 2. realizar dois testes: urease ou teste respiratório associados
enfraquecimento da mucosa atingida pela úlcera, que, apesar da a pesquisa histológica com pelo menos duas biopsias de
erradicação da bactéria, estaria suscetível a novas lesões. Uma antro e corpo;
outra hipótese é a de que esses pacientes sejam na verdade por 3. proceder a um terceiro teste, incluindo teste sorológico,
tadores de úlceras idiopáticas coincidentemente infectados por quando os dois exames anteriormente citados forem ne
HP. Esses resultados reforçam as teorias sobre a participação de gativos.
outros fatores etiológicos além da infecção por H. pylori. Mesmo diante de exames negativos, existem evidências in
Contudo, esses achados se contrapõem aos encontrados pe diretas de que o H. pylori ainda pode estar associado. Alguns
los japoneses. Em um grande estudo muticêntrico realizado no autores procederam ao tratamento empírico contra a infecção,
Japão, que envolveu 4.940 portadores de úlcera acompanhados observando a cicatrização persistente da úlcera após a terapia e
por 48 meses após a erradicação de HP, a taxa de recorrência foi melhora no padrão de gastrite crônica antral. Portanto, a pre
de apenas 3,02%, ou 1,6% ao ano. Esse índice foi ainda menor sença de gastrite com lesões histológicas sugestivas na ausência
ao se excluir o uso de AINEs, reduzindo para 1,3% ao ano. A da infecção por H. pylori deve suscitar a hipótese de resultado
recorrência foi significativamente maior entre etilistas, taba- falso-negativo. Além disso, um recente estudo sugeriu que em
gistas e portadores de lesões gástricas. Quanto às úlceras reci- alguns casos de úlcera duodenal a infecção está restrita à m u
divadas, 83,9% acometiam o mesmo local previamente lesado cosa duodenal, sendo curável com a erradicação da bactéria.
ou áreas adjacentes. Na opinião dos autores, a recorrência das Consequentemente, em pacientes com úlcera duodenal sem
lesões após a erradicação da bactéria é rara, tendendo a ocorrer evidência de H. pylori no estômago, biopsias da mucosa duo
sobre o mesmo local da úlcera original. denal deveriam ser realizadas.
Quadro 20.1 Causas de úlcera gastroduodenal H.pylori-neqtim Quadro 20.2 Causas de hipergastrinemia
--------------------------- T---------------------------
Quadro 20.3 Diagnóstico diferencial da hipergastrinemia e hipercloridria
H ip e rp la s ia d e c é lu la s G D e s c o n h e c id a D o r a b d o m in a l Ú lc e ra p é p tic a T e s te d a s e c re tin a n e g a t iv o
d o a n tro H ip e r g a s t r in e m ia m o d e r a d a M a io r n ú m e r o d e c é lu la s G
F r e q u e n t e m e n t e a ss o c ia d a a H . p y lo r i
Extraído de: Jensen, RT. Zollinger-Ellison Syndrom e. Em: Bennett, JC & Plum, F. Ceo'/ TextbookofM edicine, 1996. W. B. Saunders C om pany, 20* e d .,674-6.
198 Capítulo 20 / Úlcera Péptica HeUcobacter py\or\-negativa
Ainda pelo mecanismo da hipersecreção, outra causa rara 3. Envolvimento simultâneo de estômago e duodeno.
é a mastocitose sistêmica. Nesse caso, o estímulo secretagogo 4. Presença de fístulas.
provém da histamina. A infiltração de mastócitos em diferen
O diagnóstico definitivo é feito pela demonstração do bacilo
tes tecidos e órgãos gera um quadro sistêmico de rash cutâ
álcool-ácido-resistente ou de granulomas caseosos em biop
neo, prurido, dor abdominal, diarréia, além de dispepsia e úl
sias endoscópicas. Porém, a positividade das biopsias é baixa,
cera duodenal. A concentração sérica de histamina é elevada,
de apenas 30%, pois os granulomas concentram-se na cama
particularmente na doença ulcerosa. A síndrome carcinoide
da submucosa, não estando acessíveis às biopsias superficiais.
também pode se manifestar com úlcera péptica pela produ
Muitas vezes, o diagnóstico só se estabelece após a ressecção
ção ectópica de histamina, assim como outras desordens mie-
cirúrgica.
loproliferativas relacionadas com a basofilia, como leucemia
Outras causas infecciosas que não H. pylori podem rara
basofílica e leucemia mieloide crônica. Na policitemia vera, os
mente se associar a úlceras. A associação com citomegaloviro-
níveis circulantes de histamina são considerados baixos para
se, inicialmente descrita em transplantados, já foi relatada em
induzirem a formação de úlceras. Provavelmente, o mecanismo
pacientes infectados pelo HIV e mesmo em indivíduos imu-
é a relativa isquemia da mucosa em decorrência da hipervis-
nocompetentes. As úlceras por citomegalovírus são geralmente
cosidade sanguínea.
múltiplas e de localização gástrica. O diagnóstico é feito através
A úlcera péptica por hipersecreção ácida é também descri
de biopsias da base da úlcera, pois o vírus se localiza no epi-
ta em pacientes submetidos a extensas ressecções do intestino
télio submucoso e vascular. Métodos sorológicos e reação em
delgado, como ocorre, por exemplo, na isquemia intestinal.
cadeia da polimerase podem ser úteis. O possível envolvimento
Nessas situações, o mecanismo exato é ainda desconhecido.
do herpesvírus simples (HSV) do tipo 1 com as úlceras pépti-
Acredita-se que decorra da falta de inibição da secreção ácida
cas deve-se ao aumento nos títulos de anticorpos anti-HSV-1
e liberação da gastrina normalmente controladas pelos peptí-
e detecção de DNA e proteínas virais em material colhido da
dios intestinais.
borda de úlceras tidas como ordinárias. Nesses casos, as úlceras
Alguns casos de úlcera duodenal têm sido relacionados com
parecem se concentrar na região pré-pilórica e, em um trabalho
obstruções duodenais, incluindo membranas congênitas de
de relato de casos, nenhum paciente com marcador do HSV -1
duodeno, estenose hipertrófica de piloro e pâncreas anular.
evidenciava infecção sistêmica ou sinais de comprometimento
Nesses casos, a úlcera duodenal pode se apresentar na infância,
imunológico. Raramente, outras de espécies de HeUcobacter
podendo também incidir em adolescentes e adultos. As lesões
têm sido associadas à úlcera gastroduodenal. Debongnie et al.
são geralmente pós-bulbares e parecem se associar a hipersecre
descreveram uma possível associação entre H. heilmannii e
ção ácida basal, embora o mecanismo exato seja desconhecido.
úlcera gástrica em 14 pacientes negativos para a infecção por
Doenças da mucosa duodenal constituem um subgrupo que
H. pylori. Contudo, trata-se de infecção mais rara e de menor
cursa com úlceras nos segmentos atingidos. Dentre os represen
patogenicidade do que a causada por H. pylori. Embora seja
tantes desse grupo, encontram-se doença de Crohn, sarcoidose,
reconhecidamente implicada na patogênese da úlcera péptica
amiloidose, gastrenterite eosinofílica e linfoma.
em animais, mais estudos são necessários para se estabelecer o
A maior preocupação diante de uma lesão ulcerada, sobre
significado da infecção por H. heilmannii em homens.
tudo das lesões gástricas, é afastar a possibilidade de neoplasia.
Questiona-se o papel das síndromes hipercalcêmicas no de
As biopsias devem ser obtidas tanto da base quanto da bor
senvolvimento das úlceras pépticas. O efeito estimulador do
da da úlcera, diminuindo o risco de amostras falso-negativas.
cálcio sobre a liberação da gastrina é bem conhecido, porém a
Nos casos de úlceras gástricas aparentemente benignas, faz-se
importância clínica desse efeito ainda é desconhecida. Dentre
necessária a repetição da endoscopia digestiva 8 a 12 semanas
tais síndromes, a incidência de úlcera péptica é maior em pa
após seu diagnóstico para comprovar a cicatrização da lesão e
cientes com hiperparatireoidismo primário, mas, exceto nos
confirmar a natureza benigna da úlcera. Além dos adenocar-
casos de associação com gastrinoma, configurando a síndro
cinomas gástricos, principal neoplasia maligna do estômago,
me da neoplasia endócrina múltipla, não há evidências firmes
há que se fazer o diagnóstico diferencial de linfoma, tum or
de nenhuma relação causai entre úlcera péptica e hiperpara
carcinoide e sarcomas.
tireoidismo.
Úlceras gástricas sifilíticas devem ser suspeitadas em todo
Em idosos, especula-se que o reduzido fluxo sanguíneo mu-
paciente portador de sífilis não tratada, com lesões de antro sem
coso decorrente de alterações próprias da idade seja fator de ris
resposta ao tratamento convencional. A biopsia da lesão revela
co para úlcera péptica. Em um trabalho finlandês, cerca de 35%
inflamação granulomatosa, e testes sorológicos treponêmicos e
das úlceras de pacientes geriátricos eram HP-negativas e sem
não treponêmicos confirmam o diagnóstico. O exame micros
associação com AINEs ou salicilatos... Os autores especulam
cópico de campo escuro é geralmente negativo nessa fase da
se a redução dos mecanismos de defesa da mucosa pela menor
doença (secundária ou terciária).
perfusão tecidual torna-a vulnerável ao ataque ácido.
Tuberculose gástrica ou duodenal pode cursar com úlceras
Em pacientes com pancreatite crônica (PC), observa-se uma
nesses locais. Apesar de raro o acometimento gástrico pela doen
ça, espera-se um aumento na incidência dessa apresentação maior prevalência da úlcera duodenal. Atribuíam-se como cau
sa as alterações na secreção pancreática secundárias à doença,
pelo aumento na prevalência da infecção em imunossuprimi-
com menor liberação de bicarbonato e, portanto, menor efeito
dos. A porção mais acometida é o antro, que alberga as úlceras
em 80% dos casos, exceto em pacientes aidéticos, nos quais a neutralizador sobre o ácido gástrico. Porém, resultados de es
tudos refutaram essa hipótese. Ovensen et al. demonstraram
principal localização é na cárdia. Do ponto de vista topográfico
não haver diferenças significativas na acidez duodenal ejejunal
e endoscópico, assemelha-se à doença de Crohn. O diagnóstico
deve ser considerado em indivíduos com lesões gástricas não entre portadores de pancreatite crônica e indivíduos controles
normais. Em recente estudo realizado em nosso meio, foi de
responsivas a tratamento clínico convencional e que apresen
monstrado que o principal fator patogênico envolvido na úlcera
tem uma ou mais das seguintes condições:
duodenal dos portadores de PC é a infecção por HP. Dos 15
1. Tuberculose em outro local. pacientes com pancreatite crônica alcoólica e úlcera duodenal,
2. PPD fortemente reator. apenas um (6,7%) não tinha a infecção por H. pylori.
Capítulo 20 / Úlcera Péptica Helicobacter py\or\-negativa 199
Por fim, excluindo-se a participação de HP, o uso de anti- têm postulado que a presença de secreção ácida aumentada no
inflamatórios e/ou ácido acetilsalicílico e as raras condições já bulbo duodenal torna insolúveis os ácidos biliares conjugados
citadas, a úlcera péptica pode ser classificada como idiopática, (pKaentre 4,3 e 5,2), permitindo que o microrganismo sobre
assunto de crescentes pesquisas e inúmeras dúvidas. No estudo viva no ambiente duodenal.
de McColl et al., seis casos de portadores de úlcera idiopática Todo fator relacionado com a patogênese da úlcera duodenal
foram encontrados em um grupo de 435 ulcerosos. Comparan pode ser compreendido pelo efeito que exerce nos termos da
do estudos de fisiologia, constataram que os níveis de gastrina equação da acidez duodenal. Fatores que aumentam a secreção
sérica e secreção máxima de ácido ao gastroacidograma eram ácida, seja direta (em resposta à gastrina ou ao tabagismo), seja
similares aos encontrados nos portadores de úlceras HP-posi indiretamente (perda do feedback negativo da acidificação an-
tivas, sendo superiores aos encontrados em sadios. Contudo, tral sobre a secreção ácida), vão exercer seu efeito no primeiro
os pacientes com lesão idiopática apresentavam esvaziamento termo da equação. Fatores que diminuem a capacidade do duo
gástrico mais acelerado, sugerindo que a ulceração fosse re deno em neutralizar a acidez local vão agir no lado duodenal da
sultado de hipersecreção ácida, rápido esvaziamento gástrico equação. Assim, a úlcera duodenal parece ser mais frequente
e exposição ácida aumentada no duodeno. em pacientes infectados por H. pylori e com cirrose ou com
Harris et al. estudaram a recorrência da úlcera após pelo pancreatite crônica, condições associadas a m enor secreção
menos 6 meses da terapia de erradicação de HP. Excluídos os de bile ou de bicarbonato para o duodeno, respectivamente.
AINEs e as outras raras causas, um grupo de sete homens Por outro lado, a inibição da secreção ácida pelo uso de drogas
foi estudado. Os autores encontraram as mesmas alterações antissecretoras, por vagotomia superseletiva, pela cessação do
descritas por McColl et al. Comparados a voluntários sadios, hábito de fumar, ou por qualquer mecanismo que resulte em
H. pylori-negativos, e a portadores de úlcera duodenal HP-posi elevação do pH duodenal, tenderia a inibir o crescimento de
tivos antes e depois de 6 meses da erradicação, os pacientes com HP, favorecendo a cicatrização da úlcera.
úlcera H. pylori- negativos exibiam hipersecreção ácida gástrica. A úlcera duodenal pode ser encontrada em vários pontos
A especulação dos autores é a de que o mecanismo dessa hiper do espectro da secreção ácida. O limite extremo da hipersecre
secreção seja a hiperplasia das células parietais e que talvez a ção ácida é a síndrome de Zollinger-Ellison, com elevada carga
infecção por HP não seja a causa das úlceras duodenais desses ácida no duodeno de forma permanente. Na gastrite crônica
pacientes. Nesses casos, já que a úlcera não pode ser curada pela infecção por HP, o comprometimento dos mecanismos
com antimicrobianos, discute-se a necessidade de algum tra de feedback negativo gera hiperacidez gástrica, mas em uma
tamento de manutenção pelo uso de drogas antissecretoras ou intensidade muito menor do que a observada no gastrinoma.
tratamento cirúrgico na prevenção de recorrências. A hiperacidez da úlcera duodenal relacionada com HP esta
As evidências apontam a provável influência de fatores ge ria entre essas duas condições. Pacientes com úlcera duodenal
néticos na patogênese da úlcera péptica. Sabe-se, por exemplo, HP-positivos exibem um aumento no número de células pa
que o grupo sanguíneo O está, por algum mecanismo, associado rietais que não regride após a erradicação do microrganismo,
às úlceras. No estudo de McColl et al, quatro dos seis pacientes sugerindo que esse aumento celular possa ser geneticamente
(66%) com úlcera idiopática eram do grupo O, enquanto apenas predeterminado e anterior à infecção por HP. Quando a gran
36% dos controles sadios eram O-positivos. Nenhum dos seis de massa de células parietais associa-se a uma mínima gastrite
pacientes apresentava genes do grupo sanguíneo Al. A maior de corpo gástrico, ocorre hiperacidez superior à observada na
prevalência do grupo sanguíneo O e a menor prevalência do gastrite crônica, mas inferior à da SZE. No extremo final do
grupo A foram igualmente observadas nos portadores de úlcera espectro, contrapondo-se à SZE, encontra-se o paciente com
H. pylori-positivos em relação aos sadios. Esse provável compo gastrite de corpo e secreção ácida pouco acima do limiar para
nente genético parece atuar independentemente da influência úlcera duodenal. Nesse caso, a ulceração somente ocorrerá se
genética para a aquisição da infecção por H. pylori. houver acentuado comprometimento da neutralização da carga
ácida no duodeno, por exemplo, pelo tabagismo.
O aumento da carga ácida oferecida ao duodeno induz a
■ EQUAÇÃO DA ACIDEZ DUODENAL formação de metaplasia gástrica, mas essa adaptação tecidual
somente se converterá em úlcera se a carga ácida for excessiva,
A equação que determina a carga ácida presente no duodeno como na síndrome de Zollinger-Ellison, superando a capaci
tem dois lados: a secreção ácida pelo estômago e a capacidade dade de neutralização do duodeno. Ou se houver a infecção
do duodeno em neutralizá-la. Diversos fatores influenciam os por HP, que coloniza e inflama a área metaplásica, podendo
elementos dessa equação, facilitando ou dificultando o desen culminar com a ulceração.
volvimento das úlceras. O tabagismo, por exemplo, exerce uma No caso das úlceras idiopáticas, os trabalhos de McColl e
forte influência nesse binômio, favorecendo a colonização de Harris sugerem uma hiperacidez semelhante à dos pacientes
H. pylori no bulbo duodenal. Ao estimular a secreção ácida e com úlcera HP-positiva, além do esvaziamento gástrico acelera
inibir a de bicarbonato pelo pâncreas, pode comprometer a do. Harris et al. defendem que essa hipersecreção seja causada
capacidade do duodeno em neutralizar a carga ácida recebida. pelo aumento idiopático das células parietais.
Porém, após a cura da infecção, a persistência do tabagismo
não mais representa fator de risco para recorrência da úlcera,
na demonstração de que a infecção pelo microrganismo é o ■ IMPLICAÇÕES CLÍNICAS
fator crítico para a ocorrência da lesão.
Diversos trabalhos relataram a ação lítica da bile sobre o Os pacientes com úlceras pépticas idiopáticas são candida
H. pylori, o que teoricamente tornaria o bulbo duodenal um tos a uso crônico de antissecretores. Entretanto, os estudos que
ambiente hostil à bactéria. Contudo, a infecção por HP no antro avaliaram as doses de antagonistas de receptores de H2 e ini
gástrico induz a hipersecreção gástrica ao bloquear mecanismos bidores de bomba de prótons capazes de prevenir as recorrên
fisiológicos inibitórios entre as células produtoras de gastrina e cias foram realizados com portadores de úlcera HP-positivos.
as células parietais, resultando no aumento da liberação de gas Faltam estudos para avaliar as doses de manutenção a serem
trina e, consequentemente, da acidez gástrica. Graham e outros usadas nesses pacientes. Sabe-se que as drogas antissecretoras
200 C a p ítu lo 2 0 / Ú lcera P é p tica H e U co b a cte r p y lo ri-n e g a tiv a
são menos eficazes no controle do pH intragástrico de indiví Hirschowitz, BI, Mohnen, J, Shaw, S. High rccurrcncc rate of duodcnal ulccr
despite H. pylori eradication in a clinicai subsct-rapidly rccurring peptie
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Divertículos, Vólvulo, Dilatação
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Carlos Henrique Diniz de Miranda e Maria do Carmo Friche Passos
201
202 C a p ítu lo 21 / D iv e rtíc u lo s, V ólvulo, D ila ta ç ã o A g u d a , C o rp o s E stra n h o s (B ezoa res), R u p tu ra G á strica e C ro h n
■ Fisiopatologia * Etiologia
No caso de vólvulo primário, a fisiopatologia está relaciona Atualmente, aspiração nasogástrica, correção de distúrbios
da com alterações decorrentes de relaxamento ou malforma hidreletrolíticos e acidobásicos e melhores técnicas anestésicas
ção de um ou mais dos ligamentos que sustentam o estômago. fazem com que a dilatação gástrica pós-operatória seja menos
O estômago em cascata, a dilatação gástrica e condições que frequente. Outras etiologias incluem oxigenoterapia por más
promovem o hiperperistaltismo são fatores que predispõem ao cara ou cateter nasal, intubação orotraqueal, difusão do óxido
relaxamento dos ligamentos. nitroso no tubo digestivo durante a cirurgia, manobras de re
O vólvulo secundário tem sua origem na herniação gástri animação cardiorrespiratória, insuflação gástrica na indução
ca consequente a defeito diafragmático, como, por exemplo, a anestésica, traumatismos diversos, peritonites graves e cetoa-
hérnia paraesofágica. cidose diabética, entre outras.
■ Diagnóstico ■ Fisiopatologia
Dor epigástrica ou torácica inferior intensa, acompanhada Relacionada com distúrbio motor do estômago, com com
de náuseas, esforço de vômito sem eliminação do conteúdo prometimento do marca-passo gástrico, originando um íleo
gástrico e dificuldade para progressão de sonda nasogástrica paralítico segmentar. O estômago se distende, acumulando
são os principais sintomas do vólvulo agudo. Distensão abdo aí suas secreções, que são continuam ente estimuladas pelo
minal, dor à palpação e timpanismo são os principais achados aum ento da pressão intragástrica. Há depleção do espaço
ao exame físico. Com frequência, o quadro de vólvulo agudo extracelular e distúrbios hidreletrolíticos. A compressão da
é complicado por obstrução ou estrangulamento, evoluindo veia cava e da veia porta pelo estômago dilatado pode reduzir
para choque. O vólvulo crônico origina mal-estar e distensão o retorno venoso, com alterações hemodinâmicas, inclusive
no andar superior do abdome, que não cedem com eructações choque.
e, às vezes, estão associados a pirose e palpitações.
A radiologia faz o diagnóstico diferencial do vólvulo agu
do com outras urgências abdominais. A radiografia simples
■ Diagnóstico
mostra víscera cheia de gás, no tórax ou abdome superior, e a Dor abdominal, desconforto epigástrico, náuseas e vômito
contrastada mostra obstrução no ponto de rotação. No vólvulo são os principais sintomas. Distensão epigástrica progressiva e
crônico, a sintomatologia é menos exuberante e quase sempre timpanismo abdominal, desidratação, hipotensão e choque em
intermitente. fases tardias são os principais achados ao exame físico.
A radiografia contrastada durante a ocorrência do quadro A radiografia simples de abdome mostra dilatação gástrica
estabelece o diagnóstico. intensa com nível hidroaéreo. Os raios X contrastados eviden
ciam dilatação parcial no nível do duodeno proximal. A intro
dução de sonda gástrica drena grandes volumes de secreção
■ Tratamento gástrica.
O vólvulo agudo constitui emergência cirúrgica. O trata Laboratorialmente, evidencia-se distúrbio hidreletrolítico e
mento envolve redução do vólvulo, gastrectomia parcial, nos acidobásico, com alcalose ou acidose, dependendo da quanti
casos de necrose, e gastropexia ou gastrostomia para fixar o dade de ácido gástrico e secreções biliares e pancreáticas perdi
estômago em sua posição anatômica correta. Concom itan das. O diagnóstico diferencial se faz com peritonite, obstrução
temente, devem-se reparar os fatores predisponentes para intestinal mecânica e doenças vasculares abdominais agudas.
hérnia. O vólvulo secundário requer reparação do diafragma, A ausência de irritação peritoneal, a presença de ruídos intes
correção de aderências e gastrectomia parcial na presença tinais e de vômitos e os sinais radiológicos permitem, de forma
de carcinoma. A laparotomia é o método mais comum para geral, estabelecer o diagnóstico.
tratamento do vólvulo agudo. Porém, a redução laparoscó-
pica com gastropexia endoscópica percutânea por múltiplos
tubos de gastrostomia pode ser utilizada para tratamento do
■ Tratamento
vólvulo organoaxial. Consiste em drenagem gástrica contínua por sonda, uso de
Nos casos de vólvulo crônico, podem-se obter resultados antieméticos, mudança de posição do paciente em intervalos
com medidas dietéticas, como diminuir o volume alimentar e regulares, hidratação e correção de distúrbios hidreletrolíticos
evitar ingestão concomitante de líquidos. Várias modalidades e acidobásicos. O tratamento cirúrgico está indicado quando
cirúrgicas podem ser empregadas no tratamento do vólvulo há complicações, como infarto gástrico com gangrena ou ne
crônico. Desfazer a rotação, durante endoscopia, e múltiplas crose.
Figura 21.1 A, Formação sacular com pedículo no fundo gástrico (divertículo gástrico). (Gentileza do Prof. João Paulo Matushita — Belo Ho
rizonte, MG.) B. Visão endoscópica de divertículo de fundo gástrico. (Gentileza da Dra. Luciana Moretzsohn — 8elo Horizonte, MG.) C, Vólvulo
gástrico organoaxial sem obstrução. Incidência frontal. (Gentileza do Prof. João Paulo Matushita — Belo Horizonte, MG.) D, Vólvulo gástrico
organoaxial sem obstrução. Incidência em perfil. (Gentileza do Prof. João Paulo Matushita — Belo Horizonte, MG.) E, Dilataçáo gástrica aguda
vista aos raios X de tórax. (Gentileza do Dr. J. Laurentys Medeiros — Belo Horizonte, MG.) F, Aspecto de tricobezoar à gastrotomia. (Gentileza
do Dr. J. Laurentys Medeiros — Belo Horizonte, MG.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
203
204 C a p ítu lo 21 / D iv e rtíc u lo s, V ólvulo, D ila ta ç ã o A g u d a , C o rp o s E stra n h o s (B ezoa res), R u p tu ra G á strica e C ro h n
Provavelmente devido à ação esterilizante do suco gástrico, que úlcera ou neoplasia gástricas ou por contiguidade de lesões em
destroi a maioria dos microrganismos deglutidos pelo homem, órgãos vizinhos.
as infecções gástricas são bastante incomuns. Exceção é feita A apresentação clínica da tuberculose gástrica é dividida em
para a infecção causada pelo Helicobacter pylori, que conseguiu três principais grupos: síndrome de obstrução pilórica, hemor
adaptar-se de forma extraordinária a esse ambiente hostil. Neste ragia digestiva alta e massa simulando neoplasia. Dessa forma,
capítulo, serão abordadas as infecções gástricas causadas por os principais sintomas referidos pelos pacientes são dor ab
tuberculose, sífilis, fungos e herpes simples. dominal crônica e inespecífica, hematêmese (às vezes maciça),
vômito, perda de peso, febre, além de diarréia ou constipação
intestinal. Clinicamente, a tuberculose gástrica não pode ser
■ I. TUBERCULOSE GÁSTRICA diferenciada de uma úlcera péptica ou de uma neoplasia. Sendo
assim, devemos suspeitar dessa etiologia em pacientes jovens
A incidência da tuberculose em países ocidentais diminuiu que não responderam à terapia antiulcerosa, em portadores de
gradativamente até 1985. Entretanto, estudos recentes têm tuberculose em outros órgãos, quando o teste cutâneo de tuber-
demonstrado um aumento do número de casos de tubercu culina for positivo, na presença de massa palpável em epigástrio,
lose no trato gastrintestinal nos Estados Unidos, provavelmente quando o estudo radiológico evidenciar fístulas gástricas e en
como resultado da grande imigração de estrangeiros para aquele volvimento concomitante do duodeno. Em mais de 50% dos
país, do aparecimento da Síndrome de Imunodeficiência H u pacientes, é possível evidenciar tuberculose extragástrica.
mana Adquirida (AIDS) e do uso de drogas imunossupres- Os métodos de imagem e a endoscopia digestiva alta podem
soras. O envolvimento da tuberculose no trato gastrintestinal ser úteis para o diagnóstico. A aparência macroscópica da tu
acontece mais frequentemente na região ileocecal, seguido por berculose gástrica é dividida em três categorias: tubérculo, úl
cólon ascendente, jejuno, apêndice, duodeno, estômago, sig- cera e hipertrofia. Em 57 a 95% das vezes, a tuberculose gástrica
moide e reto. Múltiplos segmentos do aparelho digestivo po apresenta-se como lesões ulcerativas únicas ou múltiplas, irregu
dem ser acometidos, entretanto o envolvimento do estômago é lares, com base caseosa ou granular. Acometem principalmente
raro, provavelmente devido à inexistência de tecido linfoide na a pequena curvatura do antro, exceto em portadores de AIDS,
mucosa gástrica normal, seu ambiente ácido, seu esvaziamento onde são mais frequentes na cárdia. A perfuração é rara, visto
rápido, além da imunidade local. que essas lesões raramente ultrapassam a camada muscular. O
A frequência da tuberculose gástrica é variável em diferentes encontro de tubérculos é infrequente e, de um modo geral, é
estudos. Em 1930, Good reportou uma incidência de tubercu parte do espectro da tuberculose miliar em fase final. A principal
lose gástrica de 0,003 a 0,21% em necropsias de rotina, e de 0,3 forma de apresentação de um único tuberculoma é como uma
a 2,3% em necropsia de portadores de tuberculose pulmonar. lesão submucosa gástrica.
Em 1950, Palmer encontrou, em necropsias de rotina, uma O diagnóstico definitivo é estabelecido através de estudo his-
incidência de tuberculose gástrica de 0,16%. A frequência de topatológico de amostras de tecido obtidas através de biopsias
tuberculose gastrintestinal guarda uma relação com a presença endoscópicas ou de peças cirúrgicas, onde se observa inflamação
e gravidade do acometimento pulmonar da doença, podendo granulomatosa com caseificação, necrose tecidual, infiltrado lin-
estar presente em até 25% dos pacientes com formas pulmo focítico e de células plasmáticas e, ocasionalmente, a presença de
nares graves. O acometimento gástrico da doença é 2 a 3 vezes células gigantes multinucleadas. O encontro de bacilos álcool-
mais comum em homens que em mulheres, atingindo prefe acidorresistentes somente ocorre em um terço dos casos e, ra
rencialmente adultos com idade entre 20 e 40 anos. ramente, há crescimento em cultura de lavado gástrico.
A principal via de disseminação da tuberculose para o es Diagnósticos diferenciais incluem sífilis, infecções micóticas,
tômago é a linfática, através de linfonodos celíacos. Outras vias doença de Crohn, sarcoidose, gastrite por contato com cor
possíveis incluem a invasão direta da mucosa gástrica por bacilo rosivos, gastrite granulomatosa primária, úlcera e carcinoma
deglutido, disseminação hematogênica, superinfecção de uma gástricos.
206
C a p ítu lo 2 2 / In fe cçõ es C rô n ica s: Tub ercu lose, S ífilis, M icose s e H e rp e s 207
Apesar de muitos autores sugerirem que a melhor aborda inespecíficos e incluem dor abdominal, náuseas, vômito, perda
gem terapêutica da tuberculose gástrica seja a cirurgia seguida ponderai, hiporexia e sangramento digestivo. Deve-se pensar
por terapia antituberculosa, ainda não existem estudos con nesse diagnóstico em pacientes com sorologia positiva para sí
trolados que definam qual a melhor estratégia. O tratamento filis (VDRL - Venereal Disease Research Laboratory e FTA-ABS
clínico com esquemas terapêuticos clássicos parece oferecer - Fluorescent Treponemal Antibody Absorption) que apresen
excelentes resultados como em outras formas extrapulmonares tam alterações endoscópicas ou radiológicas principalmente
da doença. Sendo assim, a abordagem cirúrgica seria indicada em antro e que não responderam ao tratamento convencional
apenas em casos especiais como obstrução pilórica, perfuração, para afecções pépticas.
formação de abscessos, hemorragia maciça ou dificuldade no O aspecto endoscópico da sífilis gástrica é variável, poden
diagnóstico. do apresentar-se como um eritema e edema difusos às vezes
O prognóstico da tuberculose gástrica depende da gravi com erosões ou ulcerações rasas, em alguns casos como lesões
dade e da extensão da doença, mas geralmente há uma boa profundas, extensas e ulceradas, sugerindo uma neoplasia e,
resposta ao tratamento antimicrobiano associado a suporte ocasionalmente, como uma hipertrofia mucosa que simula um
nutricional. linfoma ou linite plástica (Figura 22.1).
O estudo histopatológico de fragmentos de mucosa gástri
ca obtidos através de biopsias endoscópicas geralmente mos
■ II. SÍFILIS GÁSTRICA tra alterações inespecíficas com processo inflamatório crônico,
com grande infiltrado de células plasmáticas estendendo-se até
O acometimento gástrico é raro na sífilis secundária e ter a submucosa. Pode ocorrer também um processo inflamatório
ciária, ocorrendo em aproximadamente 0,1% dos pacientes in agudo com grave destruição da mucosa. Vasculite mononu-
fectados. Dessa forma, é necessário um alto grau de suspeição clear envolvendo grandes vasos na submucosa e muscular é
para o diagnóstico desses casos. sugestivo de gastrite sifilítica, e seu encontro deve alertar para
A sífilis gástrica é mais comum em indivíduos jovens, meno esse diagnóstico.
res de 30 anos, apesar de poder acometer pacientes mais ido O diagnóstico definitivo é feito através da demonstração do
sos. Os principais sintomas relacionados à sífilis gástrica são Treponema pallidum no tecido gástrico, com utilização de co-
Figura 22.1 Aspectos endoscópico e radiológico de lesão antral observada em paciente portador de sífilis secundária. (Arquivo Prof. J. Lau-
rentys Medeiros.) As características endoscópicas são ulcerações, friabilidade e hemorragia da mucosa. Radiologicamente, há perda do padrão
mucoso normal e afunilamento do antro.
208 C a p ítu lo 2 2 / In fe cçõ es C rô n ica s: Tub ercu lose, Sífilis, M i coses e H erp e s
loração com prata, técnicas de campo escuro ou microscopia O diagnóstico é difícil e geralmente ocorre durante a necrop-
imunofluorescente. sia, quando são identificadas hifas compatíveis com mucormi
O tratamento da sífilis gástrica baseia-se na utilização de cose no tecido gástrico. A cultura para fungos da parede gástrica
penicilina. Alguns autores preconizam o uso concomitante de pode fornecer um diagnóstico de certeza.
drogas antissecretoras que otimizariam a cicatrização das lesões. O tratamento consiste em suporte metabólico, adminis
O período médio de cura das lesões gástricas é de aproxima tração de anfotericina B, além de desbridamento cirúrgico de
damente 1 mês, podendo em alguns casos ocorrer em 10 dias, tecido necrótico.
ou em até vários meses. O processo cicatricial pode deixar uma
deformidade gástrica definitiva.
■ 3. Histoplasmose
É raro o envolvimento gástrico na histoplasmose dissemi
■ III. MICOSES GÁSTRICAS nada. Após a infecção respiratória inicial, a disseminação da
doença ocorre na minoria dos casos, particularmente em idosos
■ 1.1 nfecção por Candidaalbicans e pacientes imunodeprimidos. O estudo histológico de úlceras
ou lesões que simulam neoplasia em fundo gástrico e cárdia,
Trata-se de um saprófita que reside habitualmente no trato através do Giemsa, da prata ou técnicas de imunofluorescên-
gastrintestinal, estando presente na cavidade oral de 50% das cia, evidencia granulomas não caseificados e o fungo de forma
pessoas hígidas. A candidíase é comum e ocorre frequente
oval. O tratamento com anfotericina B ou cetoconazol é geral
mente em pessoas imunodeficientes, alcoólatras, pacientes em
mente eficaz.
uso de antibióticos, corticoides e antineoplásicos. Boca, faringe
e esôfago são as estruturas mais frequentemente acometidas.
De um modo geral, o acometimento gástrico é secundário à ■ 4. Blastomicose Sul-americana
infiltração de lesões ulceradas benignas ou malignas. Excepcio
nalmente, observa-se candidíase primária da mucosa gástrica Parece ser excepcional a lesão paracoccidioidomicótica no
em pacientes imunodeprimidos. estômago. As raras descrições disponíveis sugerem que o aco
Nos imunocomprometidos, o fungo pode promover apenas metimento gástrico ocorre por contiguidade de doença gra-
uma colonização superficial ou invadir a parede gástrica. A pre nulomatosa estabelecida em gânglios linfáticos e órgãos vizi
sença de hifas sugere invasão pela C. albicans, pois, nos casos nhos. Clinicamente, apresenta-se como lesões ulceradas ou até
de simples colonização, observam-se apenas esporos. Lesões vegetantes, que simulam neoplasia. A biopsia dessas lesões, de
precoces apresentam-se como pequenas elevações brancacentas um modo geral, mostra apenas processo inflamatório crônico
que tendem a se ulcerar com o progredir da doença. O acometi com ausência do parasito. O tratamento é dirigido à micose
mento vascular resulta em trombose e isquemia, com surgimen sistêmica.
to de ulcerações largas e serpiginosas. O aspecto radiológico é
de lesões nodulares e úlceras aftoides rasas.
O diagnóstico baseia-se na identificação do fungo através de ■ IV. HERPES SIMPLES
citologia ou biopsia gástrica. De um modo geral, o tratamento
requer o uso de antifúngicos de ação sistêmica, e o prognóstico Doença disseminada pelo herpes simples pode acometer
depende da doença primária do paciente. tanto o esôfago como o estômago de pacientes imunodeficien
tes. O acometimento gástrico pelo herpes simples determina,
de um modo geral, sintomatologia discreta e inespecífica. O
■ 2. Mucormicose estudo endoscópico pode identificar lesões em diferentes está
Apesar de haver controvérsias com relação à nomenclatura, gios evolutivos. Inicialmente, observam-se pequenas vesículas
mucormicose é o nome genérico dado a diversas doenças causa de base eritematosa que evoluem com uma ulceração no ápi
das por diferentes tipos de fungos saprofiticos da ordem Muco- ce conferindo-lhes o aspecto de um vulcão e, posteriormente,
rales (Absidia, Mucor, Rhizomucor e Rhizopus). O acometi pode ocorrer a coalescência dessas lesões com formação de
mento gastrintestinal é raro na mucormicose invasiva, com ulcerações lineares superficiais. Como a infecção pelo herpes
ocorrência estimada de apenas 7% dos casos. simples ocorre na camada epitelial, as biopsias e escovados en-
A mucormicose gástrica é bastante grave e associa-se a alto doscópicos devem ser realizados nas bordas das lesões. O estu
índice de mortalidade, ocorrendo principalmente em regiões do histopatológico evidencia as típicas inclusões eosinofílicas
tropicais. Fatores predisponentes ao desenvolvimento da m u intranucleares. O tratamento, além da abordagem da doença
cormicose gástrica incluem desnutrição grave, insuficiência de base, consiste na administração de antiviróticos, principal
renal, diabetes, imunodeficiência, neoplasias hematológicas, mente o aciclovir.
cirurgia gástrica recente e alcoolismo. Esses fungos são encon
trados em comida apodrecida como frutas e pães e, provavel
mente, atingem o trato gastrintestinal através da ingestão desses
alimentos. Esses microrganismos podem crescer em ambientes ■ LEITURA RECOMENDADA
anaeróbios e microaerófilos. Athcy, PA, Goldstcin, HM, Dodd, GD. Radiologic spcctrum of opportunistic
Os zigomicetos invadem as paredes dos vasos, nas quais infcctions of thc uppcr gastrointestinal tract. Am. J. Radiol., 1977; 129-A19-
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Polipose Gástrica
Celso Mirra de Paula e Silva
■ Pólipos hiperplásicos
■ PÓLIPOS DO ESTÔMAGO Os pólipos hiperplásicos representam mais de 85% dos pó
lipos gástricos benignos. Em geral, são múltiplos, sésseis ou
■ Introdução pedunculados, com tamanho variando entre 5 e 15 mm, aco
Pólipos gástricos são tumores mucosos ou epiteliais benig metendo principalmente o antro gástrico, sendo mais comuns
nos, circunscritos, que podem ser sésseis, pedunculados ou se- nos adultos, especialmente na sétima década de vida.
mipedunculados. Estão presentes entre 1 e 2% da população Habitualmente, são assintomáticos, podendo raramente
geral, sendo mais frequentes acima dos 50 anos, e são represen se manifestar com dispepsia, dor abdominal ou sangramento
tados principalmente pelos pólipos hiperplásicos e os pólipos gastrintestinal. Podem ser considerados marcadores de mu-
adenomatosos. cosa gástrica anormal, o que pode ocorrer em até 85% dos
Os pólipos gástricos podem ser classificados, macroscopi- casos.
camente, em quatro subtipos, segundo Yamada. O potencial As várias condições associadas ao aparecimento de pólipos
de malignidade pode ser avaliado pelo subtipo macroscópico gástricos hiperplásicos estão relacionadas no Quadro 23.1.
e tamanho do pólipo (Figura 23.1). Há expressiva associação entre as várias formas de gastrite
e o desenvolvimento de pólipos hiperplásicos. Particularmente
forte, é a associação de pólipos hiperplásicos com formas de
gastrite que evoluem com atrofia e metaplasia intestinal, como
Tamanho ocorre com a gastrite pelo Helicobacter pylori (H. pylori) e a
C lassificação
segundo Yamada
gastrite atrófica, em especial a gastrite atrófica autoimune. A
Até 19 mm Acim a de 20 mm
erradicação do H. pylori resulta em regressão dos pólipos hi
perplásicos em até 70% dos pacientes.
Geralmente Geralmente Existem alguns relatos de casos de pacientes que desenvol
benigno benigno vem pólipos gástricos hiperplásicos após transplantes de ór
Ligeiramente elevada
gãos sólidos, principalmente de coração ou de fígado. Surgem,
geralmente, depois de 1 ano da realização do transplante. São
pólipos múltiplos, na maioria das vezes, sésseis e localizados
Maligno abaixo Frequentemente no antro gástrico.
de 50% maligno
Sóssil
SL Geralmente 1. G a s trite c rô n ic a p e lo H . p y lo r i
5. P ó s -te ra p ia la s e r (w a te rm e lo n )
Figura 23.1 Classificação e potencial de malignidade dos pólipos gás 6. P ó s -tra n s p la n te d e ó r g ã o s s ó lid o s
tricos. Modificada de Yamada e t o l.
210
Capítulo 23 / Polipose Gástrica 211
O tabagismo aumenta a possibilidade do surgimento de pó- do fundo e corpo gástrico, coalescendo e dando um aspecto de
lipos gástricos epiteliais benignos em pacientes com gastrite tapete à superfície mucosa.
atrófica de corpo. Se menores que 5 mm, o diagnóstico deve ser feito através
Quando associados à gastrite autoimune, os pólipos hiper- de biopsia de apenas um pólipo. Acima de 5 mm, todos os pó
plásicos tendem a ser múltiplos, acometendo principalmente lipos devem ser biopsiados.
o corpo gástrico. Até 25% dos pólipos de glândulas fúndicas, associados à
Metaplasia intestinal focal do pólipo pode ocorrer em 16% polipose adenomatosa familial, e 1% dos pólipos de glându
dos casos, e displasia em até 4% deles. Em pólipos hiperplásicos las fúndicas esporádicos podem apresentar displasia epitelial
com mais de 2 cm de diâmetro, têm sido detectadas mutações foveolar.
do gene p53, aberrações cromossômicas e instabilidade mi- Os do tipo esporádico são, em geral, causados por mutações
crossatélite. Raramente, em 0,6% dos casos, pode-se detectar do gene betacatenina, enquanto aqueles associados à polipose
adenocarcinoma no pólipo hiperplásico e no estômago não adenomatosa familial surgem de inativação mutacional do gene
polipoide circunjacente, o que torna difícil definir o ponto de APC. A displasia, em pólipos de glândulas fúndicas, pode ser
origem do carcinoma. observada quando ocorre em pólipos com mutações do gene
O estudo da mucosa gástrica circunjacente ao pólipo hi APC. Tal fato justifica a raridade da displasia nos pólipos de
perplásico, que tenha mais de 2 cm de diâmetro, pode eviden glândulas fúndicas esporádicos, já que são ligados a mutações
ciar metaplasia intestinal em 37% das vezes, displasia em 2% do gene betacatenina.
e adenocarcinoma metacrônico ou sincrônico em até 4% dos Contudo, o risco de câncer gástrico na polipose adenoma
casos. tosa familial é da ordem de apenas 0,6%.
Estudo de Muehldorfer et a l, comparando a acurácia diag- H. pylori e pólipos de glândulas fúndicas guardam uma re
nóstica de biopsia versus polipectomia para pólipos gástricos, lação inversa: a bactéria raramente é identificada em pacientes
observou risco de 3% de adenocarcinoma em pólipos hiper H. pylori positivos e, por outro lado, a infecção pode levar à
plásicos. regressão dos pólipos de glândulas fúndicas.
Em presença de pólipos hiperplásicos do estômago, com Tem sido observada correlação entre terapia prolongada
mais de 2 cm de diâmetro, devem-se obter biopsias da mucosa com inibidores de bomba de prótons e a presença de pólipos
não poliposa no antro e corpo gástrico, devido ao risco de car de glândulas fúndicas. Nestes casos, os pólipos são múltiplos
cinoma nas áreas adjacentes aos pólipos. e podem desaparecer com a suspensão do uso dos inibidores
da bomba de prótons.
■ Pólipos de glândulas fúndicas
Os pólipos de glândulas fúndicas são sésseis, com tamanho ■ Pólipo inflam atório fíbroide
variando de 1 a 5 mm de diâmetro. Acometem o corpo ou o O pólipo inflamatório fibroide, também conhecido como
fundo gástrico e têm o aspecto da mucosa que os circunda. Es tumor de Vanek, é uma lesão que se origina na submucosa do
ses pólipos podem ocorrer de modo esporádico, sobretudo em trato gastrintestinal, principalmente na região antral e pré-piló-
pacientes em uso prolongado de inibidores de bomba protônica, rica do estômago. É composto por tecido fibrótico e estruturas
ou em associação com polipose adenomatosa familial. vasculares com estroma que mostram infiltrado inflamatório
Quando esporádicos, são únicos ou ocorrem em pequeno proeminente, destacando-se a presença importante de inúme
número. Quando em associação com polipose adenomatosa ros eosinófilos.
familial, ocorre às centenas, podendo cobrir toda a superfície Em geral, é um pólipo semipedunculado, único, recoberto
por mucosa de aspecto normal, podendo ser ulcerado. Pode
estar associado à hipocloridria ou acloridria.
Estudos imuno-histoquímicos desses pólipos afastam a hi
pótese de natureza neural ou vascular da lesão, indicando, pos
sivelmente, fases evolutivas de uma reação inflamatória local.
O pólipo inflamatório fibroide não apresenta tendência para
evolução neoplásica.
■ Pólipos adenomatosos
Representam cerca de 10% dos pólipos gástricos e são clas
sificados histologicamente em adenomas tubulares, vilosos e
tubulovilosos. Podem ser sésseis ou pedunculados. Normal
mente, são únicos, ou pouco numerosos, e ocorrem mais fre
quentemente no antro gástrico. O tipo mais comum deles é o
pólipo adenomatoso tubular.
O risco de degeneração maligna é maior nos adenomas vilo
sos ou tubulovilosos, podendo atingir cerca de 60% dos casos,
especialmente nos pólipos com diâmetro superior a 2 cm.
O adenocarcinoma focal ocorre em 33% dos casos de ade
nomas vilosos e tubulovilosos do estômago. Adenocarcinoma
sincrônico, em outra área do estômago, pode ocorrer em até
30% destes pacientes. É muito importante salientar a impor
Figura 23.2 Pólipos gástricos de glândulas fúndicas. Fonte: N a t. Rev. tância do estudo histológico do pólipo por inteiro, já que o
2009. (Esta figura encontra-se reproduzida
G a s tro e n te ro l. & H e p a to l., diagnóstico endoscópico de adenoma não exclui a presença de
em cores no Encarte.) adenocarcinoma focal, na mesma lesão.
212 Capítulo 23 / Polipose Gástrica
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Tumores do Estômago
Luiz Gonzaga Vaz Coelho, Washington Luiz dos Santos Vieirafe
Rogério Luiz Pinheiro
215
216 Capítulo 24 / Tumores do Estômago
não operados. Na patogênese desse tipo de neoplasia, assume os estômagos exibiam gastrite ativa associada à presença de
importância a gastrite crônica atrófica, que surge devido ao re- H. pylori; na 26a semana, três dos cinco animais exibiam me-
fluxo duodenogástrico, inevitável nas ressecções à Billroth II. taplasia intestinal; na 52a semana, foi evidenciada metaplasia
A ação detergente dos sais biliares, rompendo a barreira mu- intestinal em todos os cinco animais e três deles apresentavam
cosa, acelera o aparecimento da gastrite crônica atrófica; esta, também pólipos hiperplásicos, e, na 62asemana, foi observado
com seu baixo poder cloridropéptico favorece a proliferação adenocarcinoma do tipo intestinal em 10 (37%) dos 27 animais
de bactérias, que irão transformar os nitratos alimentares em infectados. Como H. pylori não promove tais índices de ade
nitritos, criando, ao catalisarem a nitrosação das aminas, con nocarcinoma gástrico no homem, outros fatores certamente
dições para a síntese de nitrosaminas, substâncias sabidamente devem estar envolvidos.
carcinogênicas. Os mecanismos de carcinogênese gástrica induzidos pela
Associação entre câncer gástrico, gastrite autoimune e ane infecção por H. pylori vêm sendo progressivamente aclarados
mia perniciosa é reconhecida há anos. Hsing et a i, em uma e parecem relacionados com a capacidade de promover de
coorte com 4.517 pacientes portadores de anemia perniciosa e sequilíbrio entre proliferação celular e apoptose, liberação de
acompanhados por até 20 anos, observaram um aumento no citocinas pró-inflamatórias, formação de radicais livres, des-
risco de câncer gástrico de até 3 vezes. regulação da Cox-2, subversão da imunidade e estimulação da
A maior parte dos adenocarcinomas gástricos ocorre espo angiogênese. Além disso, é sabido o papel da inflamação crô
radicamente, enquanto 8 a 10% têm um componente familial nica do trato gastrintestinal na proliferação, adesão e transfor
envolvido. Carcinoma gástrico pode ocasionalmente se desen mação celulares. No ambiente intragástrico, a proteína CagA
volver em famílias com mutações genéticas nos genes p53 (sín- produzida por algumas cepas de H. pylori é hoje considera
drome de Li-Fraumeni) e BRCA2. É estimado que 1 a 3% dos da como potencial agente oncogênico direto. Esta proteína,
tumores gástricos derivam de mutações no gene codificador produzida pelo gene CagA, é introduzida dentro das células
E-cadherina, proteína de adesão celular, que originam uma epiteliais gástricas através do sistema de secreção tipo IV do
predisposição ao câncer gástrico (câncer gástrico hereditário di H. pylori (como uma “seringa molecular”). Uma vez injetada
fuso) com penetrância de 70%. O câncer gástrico pode também no interior da célula epitelial, esta proteína é fosforilada pe
se desenvolver como parte da síndrome do câncer colorretal las quinases da família SRC e ativa a fosfoquinase SHP2, que
hereditário sem polipose (HNPCC) e de outras síndromes po- atua como oncoproteína humana, e, em conjunto com outras
lipoides gastrintestinais como a polipose adenomatosa familiar quinases, são capazes de subverter a fisiologia celular, gerando
e a síndrome de Peutz-Jeghers. processos pré-neoplásicos como ativação de receptores de fa
A infecção por Helicobacterpylori (H. pylori) constitui hoje tores de crescimento, proliferação celular aumentada, evasão
o maior fator de risco para o desenvolvimento do adenocar- de apoptose, angiogênese sustentada, dissociação celular e in
cinoma distai de estômago, e, desde 1994, este microrganis- vasão tecidual, entre outros.
mo é considerado um carcinógeno tipo 1 (definido) para o Também fatores relacionados com o hospedeiro têm sido
desenvolvimento de câncer gástrico no homem. Sua presença estudados no processo de carcinogênese gástrica associada ao
no estômago humano eleva cerca de 6 vezes a incidência desse H. pylori. El-Omar et al., em trabalho memorável, estudando
tipo de tumor. A prevalência exata da infecção por H. pylori pacientes com câncer gástrico e familiares de portadores de
em pacientes com câncer gástrico não é facilmente estimada, câncer gástrico, demonstraram que fatores genéticos do hospe
já que ela pode ter desaparecido espontaneamente com o pro deiro - polimorfismos dos genes que codificam a interleucina
gredir das lesões pré-neoplásicas, dificultando o seu diagnósti IL-1(3 - são capazes de aumentar a possibilidade de resposta
co mesmo por métodos sorológicos. Um importante e extenso hipoclorídrica crônica à infecção por H. pylori e o risco de cân
estudo sueco, ao pesquisar, em portadores de câncer gástrico, cer gástrico, presumivelmente por alterar os níveis de IL- lp no
a presença do microrganismo não apenas por métodos soro estômago, sugerindo, assim, por que alguns indivíduos infecta
lógicos convencionais (ELISA), mas também pela técnica de dos por H. pylori desenvolvem câncer gástrico, enquanto outros
immunoblot CagA, indicador sensível de infecção prévia pelo não o fazem. Sendo esse câncer uma doença multifatorial, ou
microrganismo, demonstrou que a associação entre a presença tros fatores estão certamente envolvidos, justificando-se, desse
da bactéria e o câncer gástrico é semelhante àquela observada modo, por que nem todos os indivíduos com este genótipo irão
entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão. Outras evidências desenvolver o câncer no estômago.
epidemiológicas convincentes vêm sendo acumuladas. Um es Recentemente, estudos experimentais em ratos coloniza
tudo japonês recente envolveu pacientes (idade média próxima dos por H.felis têm questionado a teoria epitelial para a carci
de 50 anos) infectados e não infectados por H. pylori, que foram nogênese gástrica. No experimento, a mucosa gástrica infec
acompanhados por 7,8 anos. Ao término da análise, 2,9% dos tada tornou-se atrófica, sendo colonizada por células-tronco
pacientes infectados desenvolveram câncer gástrico, o mesmo da medula óssea que se diferenciariam em células intestinais,
não ocorrendo em nenhum dos pacientes não infectados. dando sequência à metaplasia intestinal, displasia e câncer in-
Em 1998, Watanabe et ai, no Japão, desenvolveram um m o traepitelial.
delo animal de adenocarcinoma gástrico induzido por H. pylori
usando um roedor denominado Mongolian gerbil. Neste es
tudo, 55 animais foram inoculados com H. pylori humano; 30
■ Anatomia patológica
animais não inoculados serviram como controles. Os estôma Segundo Pelayo Corrêa, a carcinogênese gástrica constitui
gos de cinco animais inoculados foram examinados nas 6a, 26a, processo multifatorial que se desenvolve em etapas sucessivas
39a e 52a semanas; os estômagos dos animais não sacrificados ou sequenciais a partir da gastrite crônica induzida pela bacté
sobreviventes (n = 27) e dos 30 controles foram examinados ria. As lesões evoluiríam progressivamente e culminariam no
na 62a semana. Estômagos do grupo controle, não infectado, adenocarcinoma gástrico do tipo intestinal ou difuso. Naqueles
estavam inalterados ao final do experimento. Por outro lado, os do tipo intestinal, a mucosa assemelha-se, em seu aspecto, ao
estômagos dos animais infectados mostravam alterações pro intestino delgado, o adenocarcinoma gástrico localiza-se com
gressivas em direção ao adenocarcinoma. Na 6a semana, todos mais frequência no antro, não está associado a grupos sanguí
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 217
neos definidos, é mais frequente em homens de idade avançada Entre os sintomas dependentes da disseminação metastática,
e predomina em populações de alto risco. Está ainda relacio destacam-se dores ósseas, sintomas pulmonares, hepáticos e
nado com a presença de gastrite crônica com atrofia, metapla- neurológicos.
sia intestinal e displasia epitelial antecedendo o aparecimento O exame objetivo dos pacientes com CG precoce nada apre
do câncer. Nos tumores do tipo difuso (menos frequente que senta de anormal; apenas nas formas mais avançadas do tumor,
o tipo intestinal), a localização principal é o fundo gástrico, o constatam-se caquexia, icterícia, palidez cutânea com pele de
adenocarcinoma gástrico acomete pacientes mais jovens, é li tonalidade amarelo-pálida. Às vezes, evidencia-se a presença de
geiramente mais frequente em homens e pode estar associado
massas palpáveis, dolorosas ou não, no epigástrio, bem como
ao grupo sanguíneo A. Histologicamente, é composto por focos
ascite e edema de membros inferiores. Pode ocorrer a disse
de células malignas com infiltração inflamatória mínima, em
minação por invasão direta através da parede do estômago,
uma quantidade substancial de tecido fibroso, sendo mais fre
com adesão ou invasão de estruturas subjacentes, tais como
quente em populações de baixo risco para carcinoma gástrico.
Nestes casos, a gastrite crônica por H. pylori, sob modulação pâncreas, fígado e cólon (Quadro 24.3). Quando a doença se
de fatores genéticos, progrediría mais diretamente a partir de estende para o cólon transverso, podem surgir vômitos feca-
lesões hiperplásicas e talvez displasia para o adenocarcinoma loides e, às vezes, observam-se alimentos recentemente inge
difuso. Embora, algumas vezes, a classificação dos adenocarci- ridos nas fezes. A doença também pode se disseminar, através
nomas como difusos ou intestinais não seja possível, esses dois dos linfáticos, para os linfonodos intra- e extra-abdominais,
tipos de tumores parecem representar desordens distintas, com destacando-se, dentre estes, os linfonodos palpáveis na fossa
diferentes fatores epidemiológicos e etiológicos. supraclavicular esquerda (gânglio de Virchow-Troisier), nó-
Macroscopicamente, a classificação morfológica de Bor- dulos ou empastamento do fundo de saco de Douglas ao toque
rmann, divide os adenocarcinomas gástricos em quatro grupos:
TipoI: polipoide, exofítico, papilar ou vegetante, correspon
dente às lesões que se projetam para o lúmen gástrico e que, ----------------------------------- ▼-----------------------------------
variando de tamanho, podem atingir grandes proporções. Q u a d ro 24.2 Sinais e sintomas mais frequentes em 18.365 pacientes
TipoII: são os cânceres ulcerados que medem mais de 3 cm
com câncer gástrico
de diâmetro, bem delimitados, sem infiltração do tecido vizi
nho. Suas bordas são caracteristicamente elevadas, irregulares
Sin ais/Sin to m as Frequência (% )
e mamelonadas. Apresentam fundo de cor acinzentada, com
tecido necrótico mesclado com coágulos de sangue, podendo P e rd a d e p e s o 61,1
retal (sinal de Blumer), aumento do volume do ovário ao exame Pelayo Corrêa, constitui o fundamento inicial para os estudos
ginecológico (tumor de Krukenberg). de prevenção do adenocarcinoma gástrico baseado na erradi
Ocasionalmente, podem ocorrer síndrome paraneoplásica, cação do H. pylori. No homem, a gastrite crônica ativa reverte
anemia hemolítica microangiopática, glomerulopatia membra- ao normal após a erradicação do microrganismo. Entretanto,
nosa, queratose seborreica, acantose nigricans (lesões filiformes há dúvidas sobre uma eventual regressão da atrofia gástrica e
e papulares com pigmentação nas dobras da pele e de membra da metaplasia intestinal, lesões consideradas como condições
nas mucosas), coagulação intravascular crônica causando trom pré-neoplásicas. Alguns estudos sugerem que a regressão pos
bose arterial e venosa e, em raras ocasiões, dermatomiosite. sa ocorrer em pacientes acompanhados por longos períodos,
enquanto outros sugerem que a erradicação da bactéria é ca
paz de impedir a progressão das lesões atróficas e metaplásicas.
■ Diagnóstico Vale lembrar que naqueles pacientes em que a bactéria não é
Nos casos de doença precoce, o diagnóstico é possível apenas erradicada, as lesões progridem ou não se alteram.
quando se realizam programas de rastreamento na população Um ponto fundamental para o estabelecimento de estraté
assintomática, como é, rotineiramente, feito no Japão e na Co gias de prevenção do câncer gástrico é a definição exata do pon
réia, ou, o diagnóstico se faz por acaso durante exame endos- to, dentro da cascata evolutiva da gastrite crônica, a partir do
cópico em pacientes com outras queixas. Nos casos de doença qual não mais se observa regressão das alterações histológicas
avançada, os exames laboratoriais podem demonstrar anemia com a erradicação do microrganismo. Os resultados obtidos
(42% dos casos), presença de sangue oculto nas fezes (40% dos nos diferentes estudos realizados com o objetivo de analisar as
casos), hipoproteinemia (26% dos casos) e anormalidades das alterações histológicas e ocorrência de câncer gástrico após a
provas de função hepática (26% dos casos). A determinação erradicação do H. pylori mostram que, em relação às condições
dos níveis plasmáticos do pepsinogênio A e C em combinação pré-neoplásicas - atrofia e metaplasia intestinal -, a erradicação
com a soro positividade do H. pylori têm sido sugeridas como do microrganismo, embora não tenha promovido a sua regres
exames promissores para o rastreamento de lesões pré-malignas são, parece ter sido capaz de impedir sua progressão.
do estômago. Em relação ao câncer gástrico, o estudo mais longo e com
Embora o estudo contrastado do estômago possa contribuir maior núm ero de pacientes mostrou que a erradicação do
para o diagnóstico do adenocarcinoma gástrico, a endoscopia H. pylori é capaz de reduzir a sua incidência apenas nos indi
digestiva alta constitui o procedimento mais empregado por víduos sem alterações histológicas (atrofia e metaplasia) pré
sua segurança e especificidade. Quando associada a biopsias vias. Mesmo reconhecendo estas limitações e dificuldades, o
múltiplas, com retirada de múltiplos fragmentos (em torno de Consenso Pacífico-Asiático para Prevenção do Câncer Gás
10 fragmentos) tanto da base como da borda da lesão para es trico deliberou, pela primeira vez, em 2008, que é tempo de
tudo anatomopatológico, a sensibilidade desse procedimento tentar intervir na prevenção do câncer gástrico, recomendan
ultrapassa 98%. do a pesquisa e tratamento da infecção por H. pylori em toda
Outros métodos de imagem como a tomografia computa a população de regiões de alto risco, definidas como aquelas
dorizada do abdome podem delimitar a extensão do tum or onde a incidência de câncer gástrico na população é superior
primário, bem como a presença de metástase para linfonodos a 20/100.000 habitantes.
regionais ou a distância. A comparação entre os achados da No Brasil, do ponto de vista prático, dentro de uma estraté
tomografia com os da laparotomia exploradora indica que a to gia de prevenção, deve-se considerar a erradicação de H. pylori
mografia pré-operatória frequentemente subestima a extensão em pacientes ou grupos de pacientes com risco aumentado de
da doença, sobretudo se existem metástases radiologicamente câncer gástrico, ou seja, pacientes com história familiar positi
não detectáveis para linfonodos, fígado e omento. O ultrassom va e após gastrectomia subtotal ou remoção de câncer gástrico
endoscópico é capaz de determinar a profundidade e a pene precoce através de endoscopia ou cirurgia.
tração do tumor na parede gástrica e revelar a presença de me
tástases para linfonodos regionais, sendo particularmente útil
no estadiamento de tumores precoces. Apesar do entusiasmo
■ Tratamento
inicial com os marcadores tumorais sorológicos, eles não têm Geralmente, o tratamento dos tumores do estômago é es
sido de ajuda no diagnóstico dos tumores precoces. O antígeno sencialmente cirúrgico, mas seu resultado está ligado inexora
carcinoembriogênico (CEA) não tem papel no diagnóstico do velmente ao estágio da doença, pois, na maior parte das vezes,
câncer gástrico, embora possa ser útil para avaliar a possibili no momento do diagnóstico, 50% dos tumores são irressecá-
dade de recidiva no seguimento pós-operatório tardio dos pa veis e apenas 30 a 50% são passíveis de ressecção com intenção
cientes submetidos a gastrectomia. Os níveis de alfafetoproteína curativa. Uma completa ressecção do tumor e dos linfonodos
e CA 19 a 9 usados comumente como marcadores de tumores regionais é a única chance de cura, e, desde que a ressecção da
hepáticos e pancreáticos, respectivamente, se elevam em 30% lesão primária possa oferecer um recurso a mais para melhora
dos casos de adenocarcinoma gástrico, sobretudo nos pacientes paliativa ou sintomática do paciente, a exploração abdominal
com tumores incuráveis, e, portanto, não são úteis na detec com intenção de cura deve ser tentada, a menos que exista uma
ção precoce ou nos casos de tumores curáveis cirurgicamente. clara evidência de doença disseminada ou que outras contrain-
Outras opções propedêuticas utilizadas no estadiamento do dicações clinicocirúrgicas estejam presentes.
tum or gástrico incluem ultrassom ou ressonância magnética
do abdome, PET-scan e laparoscopia. ■ Tratam ento endoscópico
O princípio básico para a ressecção endoscópica da neoplasia
gástrica superficial é quando a possibilidade de comprometi
■ Prevenção mento linfonodal for mínima ou inexistente. Existem diversas
A sequência carcinogenética de infecção pelo H. pylori —> técnicas endoscópicas para remoção dessas lesões, mas o dese
gastrite crônica —» atrofia glandular —» metaplasia intestinal—» jável é que o espécime seja removido em monobloco, com mar
displasia —» adenocarcinoma do tipo intestinal, proposta por gens macroscópicas livres e fixado adequadamente para uma
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 219
avaliação precisa do patologista. Este deverá avaliar a profun ■ Tratam ento radioterápico
didade de invasão da lesão, o grau de diferenciação do câncer e O CG é relativamente resistente à radioterapia, requeren
se há invasão linfovascular, permitindo assim predizer o risco do doses de radiação que excedem a tolerância das estrutu
de metástase para linfonodo. A análise final desses dados per ras vizinhas, como mucosa intestinal, fígado e medula espinal.
mitirá ao médico assistente definir se o paciente está adequa Consequentemente, seu emprego habitualmente objetiva pro
damente tratado por endoscopia ou se ele deverá redirecionar porcionar alívio dos sintomas, e não aumento da taxa de sobre
para outro tratamento, mais frequentemente uma gastrectomia vivência. O uso de radiação de alta frequência durante a cirurgia
com esvaziamento linfonodal seguida ou não de quimioterapia. começa a ser estudado, mas seu papel nesse tipo de tratamento
Embora não haja consenso sobre o intervalo ideal para o acom ainda é incerto. Devido à alta incidência de recidiva local e/ou
panhamento de pacientes tratados por ressecção endoscópica, regional do CG, o uso profilático da radioterapia, após a res
parece racional a reavaliação anual durante dez anos. secção cirúrgica, tem sido tentado, mas estudos controlados
A erradicação profilática do H. pylori após a ressecção en têm falhado em demonstrar algum benefício na sobrevida dos
doscópica por câncer gástrico precoce deve ser empregada para pacientes que recebem somente radioterapia após a ressecção
prevenir o desenvolvimento de carcinoma gástrico metacrôni- cirúrgica curativa do CG.
co. Estudo randomizado recente demonstra que o risco de de
senvolvimento de um câncer gástrico subsequente foi reduzido
de 4 por cem indivíduos/ano para 1,4 por cem indivíduos/ano ■ Prognóstico
no grupo submetido à erradicação do H. pylori. Um prognóstico favorável do CG depende de um diagnós
tico precoce, quando a doença é ainda surpreendida em uma
■ Tratam ento drúrgico fase inicial de sua evolução, limitada à mucosa ou submucosa;
O CG é doença primariamente regional. Assim sendo, na porém, a identificação desses casos é dificultada pela ausência
ausência de metástase a distância, está indicada a ressecção ou escassez de manifestações clínicas. Entre os dados clínicos,
cirúrgica que constitui a única forma eficaz de tratamento apenas a duração dos sintomas permite prever a possibilida
com finalidade curativa. Esta inclui a exérese de tum or com de de ressecabilidade da lesão e a sobrevida pós-operatória. O
margens de segurança proximal e distai, bordas de secção ci prognóstico do CG é baseado principalmente nos fatores mor-
rúrgica livres de neoplasia e remoção dos linfonodos locor- fológicos do tumor primitivo, como tipo macroscópico, loca
regionais, independentemente de serem suspeitos ou não de lização no estômago, características histológicas e a presença
acometimento. Inclui, também, a ressecção, em monobloco, ou não de metástases. As formas invasivas correspondentes aos
de estruturas, órgãos ou segmentos de órgãos eventualmente tipos III e IV da classificação de Borrmann têm pior prognósti
envolvidos por contiguidade, além da remoção de ambos os co do que as formas I e II, que são formas bem delimitadas. A
omentos, da lâmina anterior do mesocólon transverso e do relação entre a localização do tum or e seu prognóstico é con
peritônio pré-pancreático. troversa, com alguns investigadores referindo maior sobrevida
A ressecabilidade do CG tem aumentado de forma progres após 5 anos para os pacientes portadores de tumores localiza
siva, alcançando, atualmente, índices que atingem até 85% dos dos no antro e corpo gástrico, ao contrário daqueles situados
casos. Quando se restringe a ressecções com finalidade curati no cárdia. Quanto ao tamanho, os tumores com diâmetro su
va, estes índices caem para, em torno, de 70%. No tratamento perior a 2 cm apresentam um menor índice de cura. Histolo-
do CG avançado, ou seja, de tumores que já infiltraram e/ou gicamente, a relação entre malignidade e grau de anaplasia ou
ultrapassaram a muscular própria do estômago, esses índices atipias parece ser pouco significante em termos de prognóstico
são muito inferiores. do tumor, porém tumores que progressivamente invadem as
Na ausência de ascite ou de doença metastática extensa, mes camadas mais profundas da parede gástrica, atingindo a sero-
mo em casos considerados cirurgicamente incuráveis, a ressec sa, têm prognóstico mais desfavorável. O comprometimento
ção gástrica total ou uma gastroenteroanastomose devem ser ganglionar satélite nos tumores do estômago é sinal de mau
consideradas, pois tais procedimentos podem aliviar a obstru prognóstico, uma vez que a taxa de sobrevivência de 5 anos para
ção, o sangramento e a dor. os pacientes que não apresentaram metástases ganglionares é
Como alternativas ao tratamento cirúrgico, os métodos en- bem maior do que a daqueles que apresentam disseminação da
doscópicos para aliviar a obstrução gástrica podem promover doença para linfonodos.
uma melhora transitória. O implante de próteses plásticas ou
metálicas em pacientes selecionados com tumores da junção
esofagogástrica ou cárdia tem sido associado a um índice de ■ LINFOMA GÁSTRICO
sucesso em torno de 85%, para alívio dos sintomas, especial
mente disfagia. Os linfomas gástricos constituem as neoplasias do estômago
mais frequentes, depois do adenocarcinoma. Este último chega
■ Tratam ento quim ioterápico a atingir 95% dos tumores gástricos, e os linfomas, por sua vez,
A indicação de tratamento quimioterápico adjuvante ao tra perfazem apenas 3% deles. Enquanto se tem notado uma redu
tamento cirúrgico para pacientes considerados de alto risco ção da incidência dos adenocarcinomas gástricos, a incidência
para recaída tem-se tornado mais consistente, de acordo com dos linfomas tem aumentado.
resultados de estudos recentes. A maioria dos autores sugere Os linfomas gástricos podem ser primários ou secundá
que, para pacientes de alto risco, um esquema poliquimioterá- rios. Eles são primários quando se originam no estômago, e
pico à base de 5-fluoruracila ou cisplatina seja empregado em esse órgão, com acometimento ou não dos linfonodos regio
pelo menos quatro ciclos. nais, constitui o único foco da doença. O estômago e o intes
A quimioterapia primária ou neoadjuvante não tem ainda tino constituem os locais mais frequentes de linfomas primá
papel estabelecido no tratamento de CG, devendo ser evitada rios, e a maioria se origina no estômago, que, ao contrário do
fora de protocolos de pesquisa. intestino, não possui normalmente tecido linfoide. Os linfo-
220 Capítulo 24 / Tumores do Estômago
mas gástricos primários são quase exclusivamente do tipo não mas MALT de baixo grau se transformam em tumores de alto
Hodgkin, e a maior parte é da linhagem de células B (90%). grau, perdem suas principais características histológicas, e, a
Os de célula T também ocorrem, mas são muito mais raros. menos que haja foco residual de doença de baixo grau, torna-
A doença de Hodgkin raramente se origina no estômago. O se difícil saber se são linfomas de célula B de alto grau do tipo
linfoma é secundário quando invade esse órgão proveniente MALT ou não. Entretanto, há muitas evidências de diferenças
de linfonodos regionais, no curso de sua disseminação. O en fenotípicas e genéticas entre linfomas de célula B de alto grau
volvimento gástrico é encontrado em necropsias em 50% dos do MALT e os tipos nodais.
pacientes com linfoma nodal disseminado e leucemia linfo-
cítica. Os linfomas gástricos secundários são mais frequentes
do que os primários. ■ Etiopatogenia
Os linfomas primários do estômago constituem uma enti ■ Teddo linfoide associado à mucosa - MALT
dade clinicopatológica distinta dos linfomas nodais. Os estudos Ao contrário dos linfonodos periféricos, adaptados a lidar
têm mostrado que as suas características clinicopatológicas são com antígenos que chegam ao gânglio pelos linfáticos aferentes,
mais relacionadas com a estrutura e função do assim chamado o MALT parece ter evoluído para proteger a mucosa que está
tecido linfoide associado à mucosa (MALT) do que às dos linfo em contato direto com antígenos do meio externo. Ele existe
nodos periféricos. Ao que parece, o tecido linfoide associado à em outros locais, como glândulas salivares, pulmões e tireoide,
mucosa (MALT) surge no estômago em resposta à infecção pela mas é mais bem caracterizado no trato gastrintestinal, onde
bactéria Helicobacterpylori. Do MALT, originam-se os linfomas compreende quatro compartimentos linfoides. O primeiro e
também denominados maltomas. Os linfomas MALT podem mais relevante para os linfomas são as placas de Peyer; os outros
ter baixo ou alto grau de malignidade. Acredita-se que os lin compreendem os linfócitos intraepiteliais, a lâmina própria e
fomas MALT de alto grau de malignidade possam originar-se os linfonodos mesentéricos.
dos de baixo grau, ou mesmo já nascerem assim. Embora não
se possa afirmar, acredita-se que os linfomas de alto grau tam ■ Placas de Peyer
bém se originam do MALT.
A histologia das placas de Peyer difere da dos linfonodos
Os linfomas tendem a permanecer localizados até tardia em vários aspectos importantes. Ao contrário dos linfonodos,
mente no curso da evolução e costumam responder favora as placas de Peyer não são capsuladas e não têm linfáticos afe
velmente à terapêutica. O prognóstico, de um modo geral, é
rentes. O componente de célula B é dominante e consiste em
consideravelmente melhor do que nos tumores nodais de grau
um folículo central circundado por uma proeminente zona
histológico semelhante.
marginal. Esse folículo é coroado por uma cúpula de epitélio
Teoricamente, à exceção do linfoma de célula T cerebrifor-
que contém células B intraepiteliais; essas células B devem ser
me, qualquer linfoma listado nas classificações correntes de
distinguidas de células T intraepiteliais presentes no resto do
linfoma não Hodgkin (LNH) pode originar-se no trato gas-
epitélio intestinal.
trintestinal. Entretanto, tais casos são exceções, e a maioria dos
linfomas gastrintestinais primários são entidades distintas, não
■ Outros com ponentes
se enquadrando nas classificações correntes de linfomas. A clas
sificação de linfomas gastrintestinais de Isaacson, a mais ade A lâmina própria contém uma população heterogênea de
quada e recente, é mostrada no Quadro 24.4. células plasmáticas, linfócitos B e T, macrófagos e células apre
Os linfomas de célula B do tipo MALT são os linfomas mais sentadoras de antígenos. A população de linfócitos intraepite
comuns e podem ser de alto ou de baixo grau. Quando os linfo- liais, pouco conhecida, consiste principalmente em células T
CD31, CD81, além de células T de diferentes imunofenótipos.
Os linfonodos mesentéricos formam a interface entre o MALT
e o sistema imune periférico.
------------------------------------- ▼ Embora lembrem linfonodos periféricos, os folículos de cé
Q u a d ro 2 4 .4 Classificação atualizada de Isaacson de lulas B são em geral pequenos e inativos, podendo ter uma zona
linfoma não-Hodgkin primário gastrintestinal marginal proeminente. A zona paracortical é também pouco
desenvolvida.
— F E N Ô TIP O B
L in fo m a M A L T ■ Propriedades funcionais do MALT
B aixa m a lig n id a d e
Experiências em animais têm fornecido a base para o con
A lta m a lig n id a d e c o m o u s e m c o m p o n e n t e d e b a ix a m a lig n id a d e
C e n t r o b lá s t ic o
ceito de um padrão específico de células precursoras plasmá
Im u n o b lá s tic o ticas derivadas do MALT. Antígenos provenientes do lúmen
G r a n d e s c é lu la s a n a p lá sic a s intestinal entram diretamente nas placas de Peyer por um me
canismo de transporte envolvendo células especializadas "M”.
— L in fo m a , D IP ID (d o e n ç a im u n o p r o lif e r a t iv a d o in t e s t in o d e lg a d o )
Após estimulação antigênica, as células B do MALT deixam a
B aixa m a lig n id a d e
A lta m a lig n id a d e c o m o u s e m c o m p o n e n t e d e b a ix a m a lig n id a d e
mucosa, via linfáticos eferentes, atravessam os linfonodos me
L in fo m a d o m a n t o (p o lip o s e lin fo m a to s a ) sentéricos e entram na circulação via dueto torácico. Essas célu
L in fo m a d e B u r k it t e d o t i p o B u rk itt las B voltam, então, à mucosa intestinal, onde passam a compor
as células plasmáticas da lâmina própria. Esse comportamento
— F E N Ô T IP O T
L in fo m a T a s s o c ia d o a u m a e n t e ro p a t ia (L TA E )
das células, de retornarem ao local de origem, podería explicar
O u t r o s t ip o s , s e m e n te ro p a tia a tendência que apresentam os linfomas MALT de permanece
rem localizados por longo tempo.
— FO R M A S RARAS O MALT não existe normalmente no estômago, o contrário
MALT: tecido linfoide associado è mucosa.
ocorrendo nos intestinos, delgado e grosso, onde é encontrado
normalmente.
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 221
■ MALT, infecção pelo h. pylori e linfoma As células tumorais são, caracteristicamente, de tamanho
Até 1988, a hiperplasia linfoide encontrada na mucosa gástri pequeno a médio, com citoplasma abundante e núcleo com
ca foi designada como linfoma linfofolicular ou pseudolinfoma, contorno irregular, lembrando o das células do centro dos fo
e a patogênese dessas alterações era meramente especulativa. lículos (centrócitos), pequenas células clivadas. Em decorrência
Entretanto, em 1988, Wyatt e Rathbone foram os primeiros a de tal semelhança, as células do linfoma MALT de baixo grau
descrever a propensão da mucosa gástrica para formar folículos foram denominadas por Isaacson células do tipo centrócito
linfoides em gastrites onde era detectada a bactéria Helicobacter (icentrocyte like cells). Embora a denominação célula do tipo
pylori. Eles sugeriram que essa hiperplasia linfoide fosse secun centrócito (centrocyte like cell), célula CCL, seja comumente
dária à persistente presença de antígenos do H. pylori. usada para descrever as células do linfoma MALT de baixo grau,
Trabalhos subsequentes vieram confirmar essa associação, suas características citológicas são variáveis e podem lembrar
sugerindo que o desenvolvimento dos folículos linfoides repre pequenos linfócitos ou mostrar características da, assim cha
sentava uma resposta imune ao H. pylori. Não está claro, ainda, mada, célula B monocitoide. Pequeno a moderado número de
porque só alguns pacientes infectados manifestam hiperplasia células blásticas maiores estão em geral presentes.
linfoide. Ela aparece em mais de 54% dos pacientes infectados. Uma característica distintiva das células tumorais é a tendên
Além da presença do H. pylori, outros fatores podem estar asso cia para invadir, em aglomerados, o epitélio glandular e as crip
ciados: cepas, grau e duração da infecção, certos cofatores am tas e formar lesões linfoepiteliais com degeneração eosinofílica
bientais e/ou uma particular suscetibilidade do hospedeiro. e desintegração do epitélio glandular. A presença dessas lesões
Em 1991, Wotherspoon et al. notaram que, além da forma é altamente sugestiva de linfoma MALT de baixo grau.
ção de folículos linfoides no tecido gástrico, alguns desses pa Grupos de células B intraepiteliais podem estar presentes
cientes apresentavam células B infiltrando o epitélio e formando na gastrite crônica por Helicobacter pylori, mas a destruição e
grupos sugestivos de linfoma gástrico. Eles examinaram amos a eosinofilia de células epiteliais não são características dessa
tras teciduais de 110 pacientes com características de linfoma de condição, e nela não se encontram outras características do
célula B e encontraram o H. pylori presente em 101 pacientes, linfoma.
ou seja, em 92% das amostras. Posteriormente, Parsonnet et al. A diferenciação da célula CCL em células plasmáticas pode
realizaram um estudo caso-controle com 33 pacientes com lin ocorrer no linfoma MALT, mas é frequentemente mascarada
foma não Hodgkin (LNH), mostrando, então, que o LNH está por infiltração de células plasmáticas reativas que ocorre carac
associado à infecção prévia pelo H. pylori, como determinado teristicamente na região subepitelial.
por anticorpo IgG contra H. pylori. Vários trabalhos subse Mesmo os menores focos de linfoma são acompanhados
quentes mostraram a relação entre a erradicação do H. pylori de um folículo reativo, sugerindo que a formação do folículo é
e o efeito na extinção do linfoma MALT. uma precondição para o desenvolvimento do linfoma. O lin
O mecanismo pelo qual a infecção pelo H. pylori leva ao foma por si só também parece induzir a formação de folículo.
desenvolvimento do linfoma MALT não está completamente No linfoma MALT estabelecido, numerosos folículos podem
elucidado. estar presentes.
Assim, está claro que o H. pylori encontra-se associado a A relação entre o infiltrado de células CCL e os folículos rea
linfoma MALT; entretanto, as etapas da progressão da infecção tivos é complexa. Os folículos podem ser simplesmente invadi
para o linfoma não estão estabelecidas. É possível que a per dos ou seletivamente colonizados pelo linfoma. No último caso,
sistente estimulação do tecido linfoide por citocinas oriundas o centro do folículo é substituído por células CCL, que podem
de células T anti-H. pylori podería levar ao desenvolvimento exibir transformação blástica ou diferenciação em células plas
de mutação para uma população monoclonal, que, até certo máticas, em geral com preservação da zona do manto.
ponto, é reversível com a remoção do estímulo. No linfoma de alto grau, os linfócitos são maiores e podem
Lesões genéticas em algumas das células poderíam permitir lembrar centroblastos ou, mesmo, imunoblastos. Eles podem
uma proliferação autônoma para ocasionar o surgimento do ser vistos em linfoma MALT de baixo grau, colonizando o cen
linfoma MALT de alto grau. tro dos folículos reativos, ou em lençóis no meio do infiltrado.
Há casos em que o componente de baixo grau é apenas resi
dual. Nos casos em que não se detecta componente de baixo
■ Patologia grau, pode-se presumir de novo que o linfoma primário é de
■ Aspectos macroscópicos alto grau.
O linfoma gástrico, assim como o carcinoma, mais frequen Devido à mistura de graus, pode ser difícil decidir se o lin
temente envolve o antro, mas pode ocorrer em qualquer parte foma é de baixo ou de alto grau. Há, em geral, concordância
do estômago. em que a presença de grupos confluentes ou lençóis de células
O linfoma de baixo grau, em geral, aparece como uma lesão transformadas fora dos folículos colonizados permite definir
infiltrativa, às vezes associada a ulcerações e erosões superfi um linfoma gástrico como de alto grau de malignidade.
ciais. As massas grandes e profundamente infiltrativas não são Em 2008, a Organização Mundial da Saúde reclassificou os
comuns. Os de alto grau são, em geral, tumores volumosos. linfomas, e aqueles que acometem com mais frequência o es
tômago são denominados linfoma MALT e linfoma difuso de
■ Histopatologia grandes células B não especificado (LDGCB).
As características histológicas de linfoma MALT de baixo
grau lembram aquelas das placas de Peyer. O linfoma infiltra a ■ Diagnóstico
periferia dos folículos reativos e a área entre eles, envolvendo-os
e espalhando-se difusamente na mucosa circunvizinha. ■ Apresentação clínica
Os três principais componentes que integram a histologia O linfoma gástrico de baixo grau pode ocorrer em qualquer
do linfoma gástrico são as células tumorais, as células plasmá- idade, mas é predominante em indivíduos acima de 50 anos,
ticas e os folículos. com um pico de incidência na sétima década. A proporção
222 Capítulo24 / Tumores do Estômago
----------------------------------------------T----------------------------------------------
Quadro 24.7 Classificação histológica do Groupedítude des Lymphomesdel'Adulte (GELA) para gradação de linfomas da
mucosa gástrica pós-tratamento do H. pylori, com base na presença do infiltrado linfocitário na mucosa e/ou submucosa,
presença de lesão linfoepitelial e alterações do estroma
Grau In filtrad o lin focitário Lesão lin fo e p ite lial Alterações de estrom a
É ainda pequena a experiência sobre a evolução, a longo completa, com apenas 14 recidivas posteriores (geralmente,
prazo, dos linfomas MALT gástricos associados à infecção por em órgão contralateral ou locais MALT distantes). Nenhuma
H. pylori. Morgner et a l, na Alemanha, descreveram três ca recidiva foi observada nos casos de linfoma primário de es
sos, entre 120 pacientes acompanhados por longo tempo, que tômago. Em outro estudo, 17 pacientes com linfoma gástrico
desenvolveram adenocarcinoma gástrico precoce, 4 a 5 anos estágio clínico IE ou IIE, sem infecção por H. pylori ou com
após a erradicação de H. pylori e completa remissão do tumor persistência do tum or após a erradicação da bactéria, foram
inicial. Tais achados reforçam a necessidade de seguimento tratados locorregionalmente apenas com 30 Gy durante 4 se
clínico e endoscópico destes pacientes mesmo após um trata manas. No seguimento (mediana de 27 meses), todos perma
mento bem-sucedido. neciam vivos e livres de doença. Apesar do pequeno número
Embora considerados como tumores independentes da infec de estudos, tem sido sugerido que a radioterapia locorregional
ção por H. pyloriy há relatos de regressão de linfomas de alto grau, com doses baixas representa alternativa a ser empregada em
especialmente em estágio IE após terapêutica anti-H. pylori. Por pacientes com linfoma MALT localizado que não respondem a
isso, a erradicação de H. pylori tem sido preconizada como parte antibióticos e/ou em idosos e/ou com contraindicação a outras
da estratégia terapêutica dos linfomas de alto grau. modalidades terapêuticas.
Para os linfomas de alta malignidade, a necessidade de doses
■ Cirurgia e radioterapia mais altas e o risco de sequelas digestivas têm limitado o seu
Historicamente, a cirurgia tem sido o tratamento de escolha emprego, ficando restrito apenas para tratamento de resgate de
para os linfomas gástricos. Mais recentemente, observa-se uma massas abdominais residuais após quimioterapia.
tendência crescente pelo tratamento conservador. Constituem,
ainda, boa opção terapêutica nas seguintes situações: ■ Quimioterapia (QT)
• dúvida diagnóstica, em que o exame detalhado da peça A QT é hoje um recurso terapêutico essencial para LNH
cirúrgica permite estadiamento preciso, orientando a te de alta malignidade. Estudos prospectivos randomizados têm
rapêutica oncológica ideal a ser empregada; demonstrado, em seguimento de até 10 anos, que a quimio
• tumores complicados com obstrução, sangramento ou terapia isoladamente é tão efetiva como a cirurgia seguida de
perfuração; quimioterapia. O esquema terapêutico mais utilizado é o CHOP
• falha terapêutica, com a gastrectomia agindo como te (ciclofosfamida, oncovin, adriamicina, prednisona) associado
rapêutica de resgate ou para o controle locorregional da ou não a imunoterapia empregando o anticorpo monoclonal
doença; anti-CD-20, rituximabe. O tratamento dos linfomas avança
• linfomas gástricos distais, de baixo grau, IE,, IIE,, com dos de alto grau deve ser realizado conforme recomendado
baixo risco operatório e que preferem o procedimento ci por consensos nacionais ou internacionais, como aquele da
rúrgico à quimioterapia, em associação à radioterapia. National Comprehensive Câncer Network (www.nccn.org), e
A radioterapia tem sido proposta em duas situações: como foge ao escopo deste capítulo.
terapia principal para linfoma localizado e como terapia adju- Para os linfomas de baixa malignidade, são escassos os tra
vante após ressecção cirúrgica completa ou paliativa. balhos mostrando a validade ou não da QT. A utilização de mo-
A radioterapia pode curar certos LNH ganglionares locali noquimioterapia com alquilantes orais, como o clorambucila,
zados, mas sua eficácia não foi avaliada de forma prospectiva pode ser considerada para os pacientes que não respondem ao
nos linfomas digestivos. As doses de radioterapia preconizadas tratamento do H. pylori ou para os que apresentem recidiva,
(30 a 35 Gy) nos LNH de baixa malignidade localizados são como alternativa à radioterapia.
feitas em administrações fracionadas para diminuir os riscos
dos efeitos secundários sobre a medula óssea e o trato digesti
vo. Em um estudo recente, 85 pacientes com linfoma MALT ■ LEI0MI0SSARC0MAS
de diferentes locais, incluindo 17 linfomas MALT gástricos,
foram tratados com radioterapia exclusiva na dose de 30 Gy. Os leiomiossarcomas representam 1 a 3% de todos os tu
Oitenta e quatro dos 85 pacientes alcançaram resposta clínica mores malignos do estômago. Surgem em qualquer região do
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 225
estômago, são bem delimitados, localizados na submucosa, dos tumores gástricos primários, por ter seu tratamento com
possuem consistência elástica e seu tamanho pode ser difícil pletamente diferente, e raramente o tratamento cirúrgico será
de estimar, uma vez que, tanto endoscópica como radiologi- necessário para controlar um sangramento maciço ou perfura
camente, a maior porção do tumor pode estender-se da parede ção nas metástases gástricas de outras neoplasias.
do estômago para a cavidade peritoneal. Histologicamente, al
gumas vezes, é difícil a diferenciação entre leiomiossarcoma e
leiomioma benigno, mas lesões com grande número de mitoses, ■ LEITURA RECOMENDADA
grau de pleomorfismo aumentado e com tamanho superior a
6 cm são quase sempre malignas. Armitagc, JO. Mauch, PM, Harris, NL, Bicman, P. Non-Hodgkins lymphomas.
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Doenças Eosinofílicas
do Aparelho Digestivo
Mauro Bafutto e Joffre Rezende Filho
227
228 Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo
componentes da parede celular de bactérias gram-negativas, os Os eosinófilos contêm numerosos mediadores inflamatórios
eosinófilos são ativados e promovem a liberação de mediado e proteínas tóxicas. Eles também secretam citocinas, quimocinas
res tóxicos, incluindo o DNA mitocondrial, que é um potente e produtos neuroquímicos. Proteínas granulares derivadas dos
bactericida. Além disso, ao contrário dos eosinófilos no sangue, eosinófilos, principalmente a proteína básica principal (MBP), e
eosinófilos gastrintestinais são altamente suscetíveis à ativação, outros mediadores solúveis, como o fator de célula tronco, indu
mesmo em mucosa não inflamada, tornando-se prontos para zem a ativação dos mastócitos humanos, o que leva à liberação de
uma resposta imediata às bactérias da luz, em caso de perda da triptase, histamina e prostaglandinas D2. Os eosinófilos também
integridade epitelial. secretam um fator neurotroíflico, o que, além dos seus efeitos
As funções fisiológicas dos eosinófilos também dependem neuronais, também aumenta a sobrevida dos mastócitos.
da sua capacidade de interação coordenada com outras cé Os eosinófilos se ligam a células neurais em uma forma espe
lulas do sistema imunológico. Os eosinófilos interagem com cífica de adesão, molécula-dependente, que resulta em mudan
células T de forma bidirecional. Nos locais de inflamação alér ças na atividade neurotransmissora e na transcrição de genes
gica da mucosa, linfócitos T CD4+ e T auxiliares (T helper) envolvidos no metabolismo do neurotransmissor.
secretam citocinas ativadoras dos eosinófilos, incluindo IL-5, Estudos em humanos e em animais de laboratório têm iden
que promovem a sobrevivência local e degranulação dos eo tificado vários outros mediadores derivados do eixo de eosinó
sinófilos. filos-mastócitos, com a capacidade de regular a função neuro-
Os eosinófilos são capazes de apresentar antígenos às célu nal, incluindo o peptídio intestinal vasoativo, a substância P, a
las T, expressando o complexo de histocompatibilidade classe serotonina, a histamina e os leucotrienos.
II e moléculas coestimulatórias, e de estimular ou modular a Os eosinófilos também podem estar envolvidos na reparação
função das células T. Essas células também interagem direta e do epitélio intestinal. Após danos ou necrose das células epite-
indiretamente com o sistema nervoso entérico, através da sua liais, nota-se potente quimiotaxia de eosinófilos e a secreção
relação com os mastócitos, constituindo-se no denominado de citocinas de reparação tecidual, como fator de crescimento
eixo eosinófilos-mastócitos. transformador p (TGF-p) e fator de crescimento fibroblástico.
Lâmina própria
Permeabilidade Eotaxin-1
O epitelial
Degranulação
MBP SC F. NGF Síntese de proteínas
catiônlcas. quimiocinas
fatores de crescimento
mediadores lipidicos
Serotonina
Histamina O
Estimulação neural
Sintomas e contração da
musculatura lisa
Figura 25.1 O eixo de eosinófilos-mastócitos. Eosinófilos são ativados por eotaxin-1, que está expresso na lâmina própria. Também são ativa
dos por alergénios e/ou patógenos do lúmen intestinal ao atravessar a barreira epitelial. Eosinófilos podem atuar como APC para os linfócitos
Th2. Citocinas derivadas linfócitos Th2, incluindo IL-4 e IL-13, estimulam a produção de anticorpos pró-alérgicos da classe igE. Eosinófilos tam
bém são ativados por citocinas (incluindo IL-5, secretada pelas célulasTh2), e degranulação subsequente leva ao aumento da permeabilidade
epitelial e ativação de mastócitos através da secreção pelos eosinófilos de MBP. SCF e NGF. Mastócitos também são ativados pela secreção de
IL-4 e IL-13 a partir de células Th2, e por igE e igG4 secretada pelas células 8. Mastócitos ativados secretam histamina e serotonina (também
um quimiotático para eosinófilos), que, juntamente com fatores de desgranulação de eosinófilos, levam à estimulação neural e contração do
músculo liso, o que leva a sintomas gastrintestinais como dor abdominal e flatulência. Abreviaturas: APC, células apresentadoras de antígenos;
IL-5, IL-13, MBP, a proteína básica principal; NGF, fator de crescimento neural; SCF, fator de célula-tronco; Th2, células T h e lp e r. Adaptado de Po-
well, N, Walker, MM, Talley, NJ. N a t. Ver. G a s tro e n te ro l. H e p a to i, 2010.
Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo 229
linfócitos, células dendríticas e mastócitos, e habitualmente os e disfagia. Nos adultos, o diagnóstico ocorre habitualmente
eosinófilos não estão presentes. entre a 3a e a 4a décadas de vida, sendo a disfagia o sintoma
Inflamação eosinofílica do esôfago pode ser encontrada em mais característico, geralmente intermitente, e frequentemente
uma série de doenças, incluindo a DRGE, gastrenterite eosino acompanhada por impactação alimentar.
fílica, síndrome hipereosinofílica, alergias alimentares, doença Os sintomas podem estar presentes durante muitos anos,
inflamatória intestinal, infecção parasitária e doenças do colá- e sua característica intermitente pode dificultar ou retardar o
geno. Até o momento, nenhum estudo definiu claramente o diagnóstico. Cerca de metade dos pacientes com EE apresentam
limite superior do número de eosinófilos no epitélio de adultos sintomas alérgicos, incluindo eczema, rinite alérgica e bron-
e crianças. Normalmente, esse número é provavelmente infe cospasmo. Há também estreita correlação com a história de
rior a cinco por campo, estando limitado ao esôfago distai. Em doenças alérgicas na família.
crianças com DRGE, o número de eosinófilos no esôfago pode Tem sido descrita melhora parcial dos sintomas após o blo
ser significativamente maior, além de que os eosinófilos esofági- queio da secreção de ácido, o que, frequentemente, dificulta a
cos podem se estender até a mucosa do esôfago proximal. Neste diferenciação com DRGE, mas, nos casos de EE, mesmo após
sentido, é necessário que a DRGE deva ser excluída como causa o uso de altas doses de IBP, a eosinofilia esofágica persiste.
de eosinofilia esofágica antes de fazer o diagnóstico da EE. Diante de uma biopsia esofágica demonstrando um grande
Nos casos sugestivos de EE, algumas alterações histológicas número de eosinófilos por campo (mais de 15 ou 20), além da
características têm sido descritas: DRGE, uma série de outras doenças precisam ser descartadas,
1. Epitélio geralmente contém uma infiltração densa de como doenças inflamatórias intestinais, doenças do colágeno,
mais de 15 ou 20 eosinófilos por campo de alta defini reação de hipersensibilidade a drogas, infecções parasitárias,
ção (CAD). condições malignas, síndrome hipereosinofílica e doenças au-
2. Os eosinófilos podem ser encontrados frequentemente toimunes.
ao longo da camada superficial do epitélio. Alguns fatores capazes de diferenciar a EE de DRGE já fo
3. Microabscessos eosinofílicos (> quatro eosinófilos aglo ram descritos: 1) idade jovem; 2) disfagia; 3) alergia alimentar
merados) podem ser vistos em 40 a 50% das seções do documentada; 4) anéis esofágicos; 5) sulcos lineares; 6) placas
tecido afetado. esbranquiçadas ou exsudato; 7) ausência de hérnia hiatal; 8)
eosinófilos aumentados na mucosa; e 9) presença de degranu-
Os abscessos se correlacionam com a presença de exsudato
lação destes eosinófilos. O Quadro 25.1 evidencia as principais
esbranquiçado ou pápulas identificadas, muitas vezes, ao exa
características que diferenciam EE e DRGE.
me endoscópico.
Esses padrões de eosinofilia estão geralmente associados à ■ Exames complementares
hiperplasia intensa da camada basal. Estas alterações geralmen
► EXAMES LABORATORIAIS. A presença de eosinofilia é co
te persistem, apesar do uso de inibidores da bomba de prótons
mum, variando nas diversas séries entre 30 a 100%, assim como
(IBP).
estão aumentados os níveis séricos de IgE em 20 a 60% dos
As anormalidades histológicas podem se estender desde o
pacientes.
esôfago proximal até a parte distai. Os tecidos gástricos e duo-
denais são normais, sendo esta característica a que diferencia Testes cutâneos para alergia e testes RAST (radioallergosor-
esofagite eosinofílica das outras doenças eosinofílicas gastrin- bent) são utilizados para avaliar a sensibilidade aos alergênios
testinais. Esta distinção é importante, tendo em vista que os tra de trigo, milho, carne, leite, soja, centeio, ovos, frango, aveia e
tamentos para estas outras doenças podem ser muito diferentes. batata. Entretanto, a evidência definitiva de que um alimento
Além disso, estudos sugerem que a patogênese da EE, quando está causando esofagite eosinofílica depende da resolução dos
associada às outras doenças eosinofílicas gastrintestinais, seja sintomas e da normalização da biopsia com uma dieta de elimi
diferente, possivelmente mediada pela eotaxin, enquanto, na nação, bem como do retorno dos eosinófilos ao esôfago, após
esofagite eosinofílica isolada, como já descrito, esta mediação a reintrodução do alimento.
é feita preferencialmente pela IL-5. ► ESOFAGOGRAMA. Vários achados radiológicos são suges
Não se sabe ainda se a inflamação se estende até os níveis tivos de esofagite eosinofílica, mas nenhum deles é considerado
mais profundos dos tecidos esofágicos, porque geralmente as patognomônico. Pode ser visualizada a presença de anéis, di
biopsias da mucosa são limitadas em sua profundidade. En minuição do calibre esofágico, estreitamento da luz e estenoses
tretanto, alguns pesquisadores sugerem que a extensão da in nos casos mais graves.
flamação eosinofílica possa alcançar a submucosa e a camada ► ENDOSCOPIA. A mucosa pode ser normal ou com caracte
muscular. Essas observações, se confirmadas, podem dar sus rísticas inespecíficas de inflamação, tais como eritema, edema
tentação à especulação de que os eosinófilos e seus mediadores e friabilidade. Com base nestes resultados, pode-se imaginar
são capazes de induzir alterações motoras no esôfago, resultan a dificuldade em distinguir a EE da esofagite péptica, o que
do em dismotilidade esofágica, presente em parcela significativa enfatiza a necessidade de obtenção de biopsias do esôfago em
desses pacientes. todos os pacientes suspeitos.
Aspectos endoscópicos, tais como granularidade, perda da
■ Características clínicas visualização vascular, sulcos lineares verticais e horizontais, pla
A EE é mais comum em homens, e a relação homem/mu- cas esbranquiçadas, ulcerações, estenoses, muitas vezes proxi-
lher é de 4:1. mais, e formações anelares dando um aspecto de corrugamento
Os sintomas podem variar com a idade. As crianças peque ou “esôfago enrugado” ou “traqueização”, sugerem francamente
nas geralmente são levadas ao médico para avaliação de retar o diagnóstico de EE.
do de desenvolvimento e recusa alimentar, enquanto, em fases Embora nenhuma destas características seja patognomônica,
posteriores, queixam-se mais de vômitos, regurgitação, dor re- estes dados tomados em conjunto podem representar evidên
troesternal e epigastralgia. Adolescentes e adultos apresentam- cias de inflamação eosinofílica aguda (granularidade e exsuda-
se, muito frequentemente, com queixa de pirose retroesternal tos) e inflamação eosinofílica crônica (fissuras verticais).
Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo 231
------------------------ ▼------------------------
Q u a d ro 25.1 Aspectos de diferenciação entre EE e DRGE
C lín ic o s
P re v a lê n c ia d e a to p ia M u it o alta N o r m a l (p o s s iv e lm e n t e )
S e x o p re v a le n t e M a s c u lin o Nenhum
Im p a c t a ç á o a lim e n ta r Com um In c o m u m
E x a m e s c o m p le m e n t a r e s
p H m e t r ia e s o fa g ia n a T ip ic a m e n t e n o rm a l A n o rm a l
E ro s õ e s lin e a re s à E D A M u it o c o m u n s O c a s io n a l
H is t o p a t o lo g ia
E n v o lv im e n t o d o e s ô fa g o p ro x im a l S im Não
E n v o lv im e n t o d o e s ô fa g o distai S im S im
H ip e rp la s ia e p ite lia l M u it o a u m e n t a d a A u m e n ta d a
T ra ta m e n to
IBP R e s p o sta irre g u la r R e s p o sta a d e q u a d a
Figura 25.2 Aspectos endoscópicos da esofagite eosinofílica. A. Formações anelares no esôfago. B. Sulcos lineares verticais. C. Placas e exsudato
esbranquiçado. D. Aspecto histológico da infiltração eosinofílica (H & E x 100). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
232 C a p ítu lo 2 5 / D o e n ç a s E o sin o fd ic a s d o A p a re lh o D ig e stiv o
Biopsias do epitélio esofágico após doses altas de inibição de se identifica um alimento alergênio, este deve ser eliminado
bomba de prótons, dadas durante no mínimo 4 semanas, são da dieta. Se a restrição alimentar não melhorar os sintomas,
necessárias para o diagnóstico. Caracteristicamente, há mais pode-se indicar a ingestão exclusiva de uma fórmula baseada
de 15 ou 20 eosinófilos/CAD. Dada a propensão de esofagite em aminoácidos que tem se mostrado eficaz tanto na melhora
eosinofílica afetar o esôfago proximal, as biopsias devem ser dos sintomas como na redução da infiltração eosinofílica. Di
realizadas em todo o comprimento do esôfago. Além disso, versos autores sugerem que a dieta elementar deva ser usada
um número mínimo de cinco biopsias tem sido sugerido como durante 4 semanas, seguida pela adição de grupos de alimentos
forma de reduzir os erros de amostragem. É interessante tam individuais a cada 5 a 7 dias.
bém realizar biopsias da mucosa do estômago e duodeno, que Estão enumeradas adiante as linhas gerais da orientação die-
estão normais na EE, afastando assim a possibilidade de uma tética para os pacientes portadores de EE, e a conduta na rein-
doença eosinofílica mais extensa. trodução dos alimentos é sugerida no Quadro 25.1.
► pHMETRIA ESOFÁGICA. Vários estudos têm demonstrado
1. Remover os alimentos agressores conforme testes alérgicos
que pacientes com esofagite eosinofílica geralmente apresentam
ou história clínica.
monitoramento do pH esofágico normal. Portanto, a presença
a. Opção alternativa: se nenhum alimento for identificado,
de esofagite grave, intratável, que se encontra após o bloqueio
remover os que mais provavelmente apresentarem aler-
de ácido agressivo, na presença de uma pHmetria normal, é
gênios (leite, soja, ovo, trigo, noz).
virtualmente diagnóstico de esofagite eosinofílica. O mais im
2. Repetir biopsia da mucosa esofágica em 4 a 6 semanas.
portante é que o monitoramento do pH normal praticamente
a. Se a biopsia for anormal, iniciar dieta elementar.
elimina a DRGE como uma etiologia da esofagite refratária. Nos
b. Se a biopsia for normal, reintroduzir os alimentos (um
últimos anos, entretanto, tornou-se evidente que há pacientes
por vez) a cada 5 a 7 dias.
com esofagite eosinofílica que apresentam refluxo gastresofá-
c. Se os sintomas recorrerem, retirar o alimento; caso con
gico subjacente. Este achado pode explicar por que alguns pa
trário, acrescentar 2 ou 3 alimentos.
cientes podem ter uma resposta parcial após o uso de IBP.
d. Na ausência de sintomas, a repetição da biopsia é neces
► MANOM ETRIA ESO FÁGICA. A fisiopatologia da disfagia
sária para documentar a continuação da resolução da
associada à esofagite eosinofílica não é bem compreendida.
doença.
Muitos estudos, utilizando manometria estacionária, demons
e. Repetir biopsias endoscópicas da mucosa esofágica,
traram peristaltismo normal na maior parte dos casos. Algu
depois de 4 semanas, para evidenciar resolução da
mas séries descrevem a ocorrência de contrações terciárias,
doença.
aperistalse, contrações simultâneas, espasmo difuso e esôfago
f. Após resolução, reintroduzir um novo alimento cada 5
em quebra-nozes. Quando se empregou manometria de 24 h,
a 7 dias (Quadro 25.2).
diversos estudos demonstraram um percentual significativa
g. Se os sintomas não se desenvolverem, repetir biopsias
mente maior de peristaltismo ineficaz, de contrações de alta
endoscópicas após a reintrodução dos grupos de cinco
amplitude (> 180 mmHg) e contrações isoladas em relação aos
alimentos.
controles. A observação mais importante dos estudos é que a
h. Se houver recorrência da presença de eosinófilos na biop
atividade peristáltica esofágica anormal estava correlacionada
sia, remover o último alimento introduzido.
com momentos de disfagia. Assim, é possível que o caráter in
termitente da disfagia possa, de fato, estar associado a alterações Sempre que possível, deve ser indicado também o acom
motoras do esôfago. panhamento de um nutricionista para garantir que a relação
► ECOGRAFIA ENDOSCÓPICA. Como os sintomas da doença calórica, de proteínas e de micronutrientes seja adequada. A
sugerem disfunção motora e, em geral, as biopsias permitem nutrição enteral pode ser necessária em casos muito compli
apenas amostras da mucosa superficial, o ultrassom endoscó- cados e graves da doença.
pico (EUS) pode ser utilizado para determinar se a inflamação Os corticosteroides inibem a síntese e secreção de citoci-
do esôfago se estende para além da mucosa. nas que influenciam a diferenciação de crescimento e ativação
de eosinófilos. Os pacientes que não respondem apenas com
■ Tratamento o tratamento dietético ou aqueles que não toleraram a restri
Após o diagnóstico, todos os esforços devem ser feitos para ção alimentar podem se beneficiar com o uso de corticosteroi
identificar os alimentos que estão associados a sintomas e infil des sistêmicos ou tópicos. É recomendado o uso do corticoide
tração eosinofílica. Nos pacientes com EE por atopia, devem- VO para os pacientes que apresentam quadros mais graves,
se evitar alimentos e/ou aeroalergênios identificados nos tes principalmente quando existe disfagia importante. Na maioria
tes alérgicos. das vezes, indica-se a metilprednisolona na dose de 1,5 mg/kg,
Embora este tipo de dieta melhore os sintomas e seja capaz 2 vezes/dia, por um período de 4 semanas, seguindo-se então
de reduzir o número de eosinófilos em biopsias da mucosa eso a redução da dosagem de forma gradual, durante um período
fágica de pacientes com EE, muitas vezes esta medida é insatis médio de 6 semanas, até a sua suspensão total.
fatória. A identificação destes alimentos, por vezes, é difícil e os Com o objetivo de se evitarem os efeitos colaterais que re
pacientes, com frequência, não conseguem correlacionar seus sultam do uso crônico de corticoide sistêmico, a maioria dos
sintomas com a ingestão de alimento específico. Isso ocorre pacientes pode ser tratada com corticoide de uso tópico, sendo
porque a antigenicidade na EE está ligada a uma resposta de o dipropionato de fluticasona o mais utilizado. Dessa forma, o
hipersensibilidade retardada ou mista. A recorrência dos sin corticoide é administrado na forma de aerossol pela VO, sendo
tomas após a ingestão de antígenos que causam a EE pode le o paciente orientado a não utilizar o espaçador para a realização
var vários dias, ou até semanas, para o seu surgimento. Assim, dos puffs da fluticasona e, ainda, deglutir o medicamento para
apenas a adoção de uma dieta restritiva pode não ser medida promover a sua deposição na mucosa esofágica. A dose pode
terapêutica suficiente para a remissão da doença. variar conforme a gravidade do caso e o nível de resposta do
Muitas vezes, é recomendada uma consulta a um alergista paciente. Tem sido sugerido o uso de dois puffs de fluticasona,
para realização de testes cutâneos e RAST. Nos casos em que 2 vezes/dia, durante um período de 6 semanas.
C a p ítu lo 2 5 / D o e n ça s E o sin o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o 233
▼
Q u a d ro 25.2 Reintrodução dos alimentos em pacientes com EE
A B c D
Melões Carnes A m e n d o im
C a n t a lo u p o , m e la n c ia C o r d e ir o , fra n g o , p e r u , p o r c o
Bagas Peixe/crustáceos T r ig o
M o r a n g o , a m o r a , f r a m b o e s a , cereja
Tree n u ts C a rn e d e vaca
A m ê n d o a , n o z , a ve lã , c a s t a n h a -d o -p a r á ,
n o z -p e c ã
S oja
O vo
Le ite
Cada novo alimento deve ser Introduzido a cada 5 dias, começando com os alimentos da coluna A. Quando vários alimentos da coluna A foram introduzidos, alimentos
da coluna B podem ser introduzidos da mesma maneira, progredindo para os alimentos das colunas C e D. Alimentos com conhecida sensibilidade devem ser evitados.
Adaptado de Dominguos, GRS, Domingues, AGL. J. Bros. Gastroentcrol., 2006.
Este tratamento é particularmente atraente porque apenas picos. Em pacientes com reconhecida alergia ao ovo, este fár-
1% da droga é absorvida sistemicamente e sofre rápida trans maco deve ser evitado.
formação hepática. O principal efeito colateral é a infecção por
Cândida oral ou esofágica. Os pacientes devem ser instruídos ■ Gastrenterite eosinofílica
a evitar alimentos ou líquidos por um período de 30 min após ■ Introdução
a administração da fluticasona e a lavar a cavidade oral para A gastrenterite eosinofílica (GE) é uma doença pouco co
diminuir o risco da candidíase. mum, de causa desconhecida, caracterizada por infiltração eo
O montelucaste é um antagonista seletivo que bloqueia o sinofílica de camadas da parede gastrintestinal e, comumente,
receptor D4 de leucotrienos presente nos eosinófilos, comu- acompanhada por eosinofilia no sangue periférico. Muito pou
mente utilizado em pacientes com asma. Devido ao importante co se sabe sobre essa doença eosinofílica gastrintestinal primária
papel dos leucotrienos no recrutamento e perpetuação dos eo (DEGP), bem como acerca do número exato de eosinófilos ne
sinófilos na mucosa esofágica e contração da musculatura lisa, cessários para diagnosticá-la, o que é difícil de ser estabelecido,
esse medicamento oferece uma nova alternativa ao tratamento pois, ao contrário do esôfago, os eosinófilos são componentes
medicamentoso da HE, sobretudo para aqueles que apresentam normais no restante do trato gastrintestinal. Gastrite eosinofí
sintomas recidivantes e necessitam de uso crônico de corticoide. lica, enterite eosinofílica e gastrenterite eosinofílica represen
A dose habitual é de 30 mg/dia e os efeitos colaterais mais fre tam um grupo heterogêneo de desordens que com frequência
quentes com essa droga são mialgia e náuseas. Embora a droga se sobrepõem e apresentam variável grau de envolvimento nas
não diminua o número de eosinófilos na mucosa esofágica, tem diferentes camadas do estômago e do intestino delgado. Tendo
se mostrado capaz de reduzir a resposta inflamatória e, em al em conta essa apreciável sobreposição, a heterogeneidade e a
guns estudos, foi demonstrada indução da melhora sintomática falta de definição de critérios diagnósticos, o termo gastrenterite
e redução da necessidade da prescrição do corticoide sistêmico. eosinofílica é usado para definir qualquer uma dessas afecções.
Resultados de estudos randomizados, controlados por placebo, Na gastrenterite eosinofílica, além de um aumento do número
com maior número de casos, são aguardados para conclusões de eosinófilos na mucosa, ocorre também ativação de citocinas,
definitivas sobre o real papel deste medicamento na EE. incluindo IL-3, IL-5 e GM-CSF.
Outra droga com grande potencial terapêutico é o mepoli- Não existe prova definitiva de relação causa e efeito com al
zumabe, um anticorpo monoclonal humanizado contra a in- gum tipo de transtorno alérgico ou hiperimune, embora isso
terleucina-5, uma citocina que regula vários processos associa tenha sido demonstrado em alguns estudos. No estômago, a
dos ao eosinófilo. Estudos preliminares bem controlados têm gastrenterite eosinofílica se apresenta muitas vezes como nó-
demonstrado bons resultados. dulos difusos. Esse achado não deve ser confundido com o
Dilatação do esôfago e remoção endoscópica de alimentos granuloma eosinofílico do estômago, também chamado de he-
podem ser necessárias em alguns pacientes com esofagite eo- mangiopericitomüy que é, ao contrário da doença eosinofílica,
sinofílica. A dilatação deve ser conservadora, dado o risco de uma alteração bem localizada.
laceração e mesmo de perfuração. É recomendado que a dilata
ção seja realizada inicialmente com sondas de pequeno calibre, ■ Anatomiapatológica
com revisão endoscópica do procedimento a cada mudança de A lesão fundamental é representada por extensa infiltração
calibre das sondas. Outra preocupação nos pacientes com EE inflamatória das camadas do estômago e/ou intestino delgado,
se relaciona ao uso de propofol nos procedimentos endoscó- com predominância de eosinófilos. Há espessamento da ca
234 C a p ítu lo 2 5 / D o e n ç a s E o s in o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o
mada muscular, sobretudo do antro, por vezes do jejuno. Esse pró-inflamatórios, incluindo o aumento da regulação dos sis
espessamento da muscular gástrica pode simular hipertrofia temas de adesão, a modulação do tráfico celular, os estados de
pilórica e ser responsável, em alguns casos, por obstrução piló- ativação celular, a liberação de citocinas (IL-2, IL-4, IL-5,
rica. O processo tende a ser difuso, formando nódulos mucosos, IL-10, IL-12, IL-13, IL-16, IL-18 e o fator de crescimento trans
que podem ulcerar. Nos casos de acometimento importante do formador [TGF-alfa/beta]), quimiocinas (RANTES e eotaxin) e
intestino delgado, a diferenciação com doença de Crohn pode mediadores lipídicos (fator ativador de plaquetas e leucotrieno
ser muito difícil, sobretudo em bases clínicas. Já foram descri (C4)). Além disso, os eosinófilos podem servir como células
tas infiltrações eosinofílicas no fígado, na vesícula, no cólon, no efetoras importantes, induzindo a disfunção e dano tecidual,
esôfago, no peritônio e em outros órgãos, incluindo o pulmão liberando proteínas tóxicas (proteína básica principal), proteí
em alguns pacientes com GE. na catiônica eosinofílica, peroxidase eosinofílica, neurotoxina
À microscopia, nota-se aumento do número de eosinófilos derivada de eosinófilos e mediadores lipídicos, que apresentam
(geralmente, > 50 por CAD) na lâmina própria. Frequente alta citotoxicidade.
mente, grande quantidade de eosinófilos também é vista nas A atopia está presente em um subgrupo de pacientes, já ten
camadas muscular e serosa. A infiltração eosinofílica pode cau do sido demonstrado aumento total de imunoglobulina E (IgE)
sar hiperplasia das criptas, necrose epitelial e atrofia vilositária. a alimentos específicos, aos testes cutâneos e testes RAST (ra-
Infiltrados de mastócitos e hiperplasia eosinofílica de linfono- dioallergosorbent). Foi observado que as células T da lâmina
dos mesentéricos podem estar presentes. Análise histológica própria do duodeno desses pacientes proliferaram em resposta
pode revelar deposição extracelular da proteína básica principal a proteínas do leite e secretam citocinas Th2 (IL-13). Outros
(MBP) e da proteína catiônica eosinofílica (ECP). estudos sugerem também um possível mecanismo não media
do pela IgE.
■ Patogênese
A patogênese da GE não é bem conhecida. Existem, no en ■ Apresentaçáo clínica ediagnóstico
tanto, inúmeras evidências favoráveis à etiologia imunológica Embora a doença seja encontrada especialmente na popula
ou alérgica, que compreendem: a) aumento de eosinófilos no ção adulta, casos pediátricos já foram descritos. As apresenta
sangue periférico e infiltração eosinofílica do trato gastrintesti- ções clínicas dependem do local onde predomina a infiltração
nal; b) incidência relativamente elevada de transtornos alérgi eosinofílica.
cos nesses pacientes (rinite sazonal, asma, eczema e urticária); ► PREDOMÍNIO DE INFILTRAÇÃO MUCOSA. Estes pacientes
c) sintomatologia desencadeada por determinados alimentos; relatam náuseas intermitentes ou vômitos, disfagia quando o
d) testes cutâneos para anticorpo sensibilizado de pele correla esôfago também está acometido, dor abdominal ou lombar, in
cionam-se, comumente, com a sensibilidade ao alimento sus tolerância a determinados alimentos, diarréia e perda de peso.
peito ingerido pelo paciente; e e) melhora dos sintomas com Pode haver sangramento gastrintestinal, enteropatia perdedora
corticoterapia. Contudo, contrariando esses achados, o ecze de proteínas e má absorção, de intensidade variável. Asma ou
ma atópico raramente tem sido observado nesses casos e a eli rinite alérgica tem sido observada em até 60% dos casos. O exa
minação dos alimentos suspeitos não melhora os sintomas, me físico não costuma ser florido, mas podem ser observados
quando os pacientes são acompanhados por longos períodos. eczema atópico, urticária e edema nos membros inferiores.
Além disso, em recente estudo de revisão, foi mostrado que, Os exames laboratoriais podem demonstrar anemia ferropri-
em mais de 50% dos casos de GE, não havia nenhum elemento va, eosinofilia no sangue periférico (20 a 80%), hipoalbumine-
alérgico implicado. mia, redução nos níveis séricos de IgG, IgA e IgM, esteatorreia,
Em um trabalho clássico, foram sugeridos três mecanismos absorção alterada de d-xilose, sangue nas fezes e perdas pro-
para explicar a infiltração eosinofílica do trato gastrintestinal teicas intestinais, que podem ser aferidas através da dosagem
em pacientes sintomáticos e com suposta alergia a alimentos. de alfa-1 antitripsina em amostra de fezes de 24 h. Os valores
A origem parasitária foi aventada por terem sido observados totais da IgE sérica podem estar elevados. As provas inflama-
casos de gastrite eosinofílica associados à infecção por Eustoma tórias estão normais ou pouco alteradas. O exame radiológico
rotundatum, Entamoeba hystolitica e ao Strongyloides sterco- do intestino delgado se apresenta normal na maioria das vezes,
ralis, sobretudo nas regiões costeiras do Mar do Norte, Japão podendo, ocasionalmente, demonstrar espessamento de pregas
e Península Americana. Entretanto, é bastante provável que e edema da mucosa. A biopsia jejunal mostrará infiltração da
esses casos nada mais representem que uma reação a corpos mucosa por eosinófilos.
estranhos ou que estejam relacionados com o granuloma eosi- O diagnóstico vai se basear, sobretudo, na biopsia gastrin
nofílico e não com a gastrenterite eosinofílica. testinal. Particular atenção deve ser dada aos seguintes itens:
Alguns autores demonstraram a presença de grande núm e (1) determinação do número de eosinófilos; (2) localização dos
ro de eosinófilos ativados e desgranulados em pacientes com eosinófilos, especialmente intraepiteliais e/ou nas criptas intes
síndrome hipereosinofílica e em pacientes com a síndrome de tinais; (3) presença de grânulos eosinofílicos extracelulares; (4)
Churg-Strauss. Nesses casos, estudos in vitro mostraram que anormalidades patológicas associadas; (5) ausência de outras
a proteína catiônica do eosinófilo é tóxica para uma variedade doenças primárias (f.e., vasculites).
de tecidos, responsáveis por lesão tissular, sugerindo que os O diagnóstico diferencial inclui, principalmente, doenças
eosinófilos tenham importante papel patológico na gastren que produzem má absorção intestinal ou enteropatias perdedo
terite eosinofílica. ras de proteínas, doença de Crohn, poliarterite nodosa, síndro
Pesquisas recentes demonstraram que, além dos eosinófilos, me hipereosinofílica (lembrar-se de esquistossomose aguda),
os linfócitos T helper 2 (Th2), citocinas (interleucina [IL]-3, além de algumas parasitoses.
IL-4, IL-5 e IL-13) e eotaxin são fundamentais na patogênese ► PREDOMÍNIO DE ACOMETIMENTO DA CAMADA MUSCULAR.
da GE. Neste grupo, os pacientes se apresentam com espessamento e
Os eosinófilos funcionam como células apresentadoras de rigidez das paredes do estômago e/ou do intestino delgado, e
antígenos por meio da expressão do complexo de histocom- quadro clínico mais típico é de obstrução pilórica ou do intes
patibilidade da classe II. Além disso, podem mediar os efeitos tino delgado. É comum dividir este tipo de anormalidade em
C a p ítu lo 2 5 / D o e n ça s E o sin o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o 235
- DRGE
Pacientes com DRGE podem apresentar um ligeiro aumento
de eosinófilos na mucosa do esôfago. Esta infiltração eosino
fílica pode representar uma resposta normal à lesão tecidual.
duas formas. Uma, chamada “monoentérica”, em que o pro Um aumento no número de eosinófilos tem sido observado
cesso encontra-se confinado ao antro e piloro. Outra, denomi em até 50% dos pacientes com esofagite. O número de eosinó
nada “polientérica”, em que há predomínio de infiltração eosi- filos se correlaciona com a gravidade da doença avaliada tanto
nofílica difusa, em lençol, na submucosa, camadas musculares por endoscopia como por anormalidades na pHmetria, mas
e subserosa. em geral é menor do que nos casos de EE. A presença de anéis
Os exames complementares revelam eosinofilia no sangue e de fissuras do esôfago observadas à endoscopia, bem como
periférico na grande maioria dos pacientes, anemia, hipoprotei- a formação de microabscessos eosinofílicos e a expressão au
nemia secundária à perda de proteínas no intestino, floculação mentada da eotaxin-3 (CCL26) sugerem o diagnóstico de EE
do contraste radiológico, estreitamento concêntrico ou irregu e não de DRGE.
lar do antro, e múltipos defeitos de enchimento no estômago
distai (imagens polipoides). O diagnóstico diferencial inclui ■ Alergias alimentares
pólipos e tumores gástricos (adenocarcinoma ou linfossarco- As alergias alimentares, imunologicamente relacionadas,
ma), pólipos gástricos, poliarterite nodosa, enterite regional e podem ser subdivididas em dependentes ou independentes da
granuloma eosinofílico (Quadro 25.3). IgE. Pacientes com alergia alimentar IgE-dependente apresen
► PREDOMÍNIO DE INFILTRAÇÃO NA SUBSEROSA. Nos casos tam reação de hipersensibilidade imediata. Os anticorpos IgE
de infiltração na subserosa, ascite é um achado frequente, ob apresentam alta afinidade aos alergênios alimentares específi
servando-se eosinofilia acentuada no líquido ascítico. Pode-se cos, o que desencadeia a degranulação de mastócitos e a acumu
identificar espessamento da serosa no intestino delgado com lação de eosinófilos ativados, basófilos, células T e citocinas na
infiltração eosinofílica da subserosa. Frequentemente, há envol mucosa intestinal. Além disso, este processo alérgico é capaz
vimento do estômago e do intestino delgado. Derrame pleural de reativar células T CD4+ presentes no sangue periférico e na
já foi relatado. mucosa intestinal. Estas células T não apenas ativam eosinófilos
Finalmente, tem sido descrita uma forma combinada em que e mastócitos, mas também estimulam a secreção de citocinas,
o paciente apresenta tanto ascite como obstrução intestinal. incluindo IL-4, IL-5 e IL-13.
Estima-se que alergias alimentares possam ocorrer em cerca
■ Tratamento de 1 a 2% da população, considerando os testes sorológicos de
Nas formas com infiltração mucosa ou subserosa da GE, o medição de IgE alergênio-específicos. Os alergênios alimentares
tratamento se faz de forma semelhante, sendo sugerido iniciar mais comuns incluem leite de vaca, amendoim, nozes, ovos de
prednisona na dose de 5 a 10 mg/dia, ou 10 a 15 mg em dias al galinha, mariscos e peixes.
ternados. Nas fases de exacerbação aguda dos sintomas, a dose Na alergia alimentar IgE-dependente, o espectro clínico e
deverá ser maior, recomendando-se 20 a 40 mg/dia, durante a gravidade da doença são extremamente variáveis, desde sin
7 a 10 dias. Em casos muito graves, a duração do tratamento tomas leves e transitórios até manifestações sistêmicas graves,
pode ser prolongada. Como a doença se manifesta de forma incluindo anafilaxia e choque.
intermitente, a terapêutica deverá ser repetida a cada agudiza- As alergias alimentares independentes de IgE se originam a
ção clínica. O uso de corticosteroides tópicos como fluticazona partir de respostas imunes mediadas predominantemente por
e budesonida tem apresentado bons resultados. Outras drogas células. A doença celíaca é um exemplo de uma resposta media
que foram usadas com bons resultados incluem cromoglicato da por células contra um antígeno alimentar, independente de
de sódio e montelucaste. IgE. Na doença celíaca, células CD4+ TH são inadequadamente
236 C a p ítu lo 2 5 / D o e n ç a s E o s in o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o
ativadas após a exposição ao glúten, o que resulta na elaboração SHE é uma causa bem reconhecida de gastrite, gastrenterite e
de citocinas Thl, incluindo a interferona. Outras reações media colite eosinofílicas, mas, ao contrário das DEGP, observa-se
das por células são dirigidas contra a ingestão de proteínas na infiltração eosinofílica também em outros órgãos, incluindo o
dieta, particularmente do leite, resultando na inflamação eosi- coração, a pele e os nervos periféricos.
nofílica do TG1, proporcionando o surgimento da enterocolite
e proctocolite eosinofílica. Estas doenças ocorrem geralmente ■ Doenças do tecido conjuntivo
em crianças e estão relacionadas com infiltração linfocítica da Eosinofilia na mucosa gastrintestinal é uma característica
mucosa que, em resposta ao antígeno, secreta citocinas. Essas conhecida da vasculite sistêmica, particularmente da síndrome
doenças têm um mecanismo de ação semelhante ao da doença de Churg-Strauss. Nesta afecção, o comprometimento do trato
celíaca e podem ser evitadas retirando-se a proteína específica gastrintestinal indica um prognóstico ruim, estando associado
da dieta. a complicações significativas, tais como: ulceração intestinal,
isquemia, perfuração e hemorragia.
■ Infecção einfestaçãogastrintestinal
Os eosinófilos são considerados células efetoras importan ■ Dispepsia funcional
tes na defesa do hospedeiro contra infestação por helmintos, Um estudo populacional realizado na Suécia, envolvendo
e é frequente, nesses casos, o achado de eosinofilia periférica mais de 1.000 pacientes, demonstrou a presença de um número
e tecidual. significativamente maior de eosinófilos na mucosa duodenal
Os eosinófilos também possuem propriedades antibacteria- de pacientes portadores de dispepsia funcional comparados a
nas que no TGI têm fundamentai importância para a manuten controles assintomáticos. Estes eosinófilos apresentavam de-
ção da homeostase intestinal epitelial. Essas células produzem granulação, o que é indicativo de ativação. O grau de infiltra
substâncias que são tóxicas tanto para bactérias gram-positivas ção eosinofílica se correlacionou com o sintoma de saciedade
como para gram-negativas. Os eosinófilos da lâmina própria precoce.
gastrintestinal são rapidamente ativados, o que leva a uma rápi Em estudo realizado no nosso meio, observamos um maior
da resposta contra quaisquer microrganismos ou antígenos lu-
número de eosinófilos na segunda porção duodenal de pacien
minais capazes de romper a camada epitelial intestinal. Apesar
tes dispépticos funcionais, quando comparados a um grupo
dessas interessantes observações, eosinofilia gastrintestinal não
controle. Achados similares foram observados em crianças com
é comum após infecções virais, bacterianas e fúngicas. Algumas
sintomas dispépticos. Aumento do número de eosinófilos na
exceções incluem micobactérias, Isospora belli, Sarcocystis coc-
mucosa também foi documentado em crianças com obstrução
cidiomycosis, Dientamoeba fragilis e HIV.
intestinal funcional.
■ Doenças inflamatórias intestinais As drogas que antagonizam o eixo de eosinófilos-mastócitos,
como anti-histamínicos, cromoglicato e os antagonistas dos
Em pacientes com doenças inflamatórias intestinais (DII),
os neutrófilos são predominantes; contudo, eosinófilos ativados receptores dos leucotrienos, apresentaram efeitos terapêuticos
na lâmina própria da mucosa também estão presentes. nessa população pediátrica com dispepsia funcional.
O exato papel da presença dos eosinófilos na DII ainda é Estes estudos têm estimulado considerável interesse na
controverso. Especula-se que estas células realizem um pa possibilidade de que os eosinófilos sejam células efetoras im
pel de regulação do processo inflamatório ou mesmo funções portantes, em um subgrupo de pacientes diagnosticados hoje
de reparação tecidual. Em pacientes com retocolite ulcerativa como portadores de dispepsia funcional. A replicação destes
(RCUI), um número maior de eosinófilos na mucosa do intes estudos, principalmente em adultos, é aguardada com grande
tino associou-se a um curso clínico menos agressivo e a uma expectativa.
resposta favorável ao tratamento clínico. Há também evidências
de aumento da ativação dos eosinófilos na lâmina própria em
pacientes com RCUI durante as fases inativas da doença, suge ■ LEITURA RECOMENDADA
rindo que essas células possam estar envolvidas na reparação
Blanchard, C, Wang, N, Rothcnbcrg, ME. Eosinophilic csophagitis: pathogc-
do epitélio após a lesão inflamatória. Em resposta aos danos do
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epitélio intestinal, eosinófilos também secretam TGF-p, uma Dcllon, ES, Adcroju, A, Wooslcy, JT et al. Variability in diagnostic critcria for
citocina que promove o reparo do tecido e suprime a inflama eosinophilic csophagitis: a systematie rcvicw. Am J Gastroenterol, 2007;
ção intestinal. J02:l-14.
Eosinófilos e mastócitos também são capazes de influenciar Dobbins, JW, Shcahan, DG, Behar, J. Eosinophilic gastroenteritis with csopha-
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A síndrome hipereosinofílica (SHE) compreende um grupo
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heterogêneo de doenças que se caracterizam por apresentar um to H1/H2 antagonist and cromolyn thcrapy in pediatrie dyspcpsia. Clin
número excessivo de eosinófilos, tanto na circulação como nos Pediatr, 2006; 45:143-7.
tecidos, resultando em disfunção orgânica. A SHE é observa Furuta, GT. Eosinophilic csophagitis. Dig Dis, 2009; 27:122-8.
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O comprometimento do trato gastrintestinal é comum, e ferentiate eosinophilic csophagitis from gastrocsophagcal reflux discasc?
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Outras Doenças do Duodeno
Luciana DinizSilva e Penélope Lacrísio dos Reis Menta
238
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 239
rotina. Contudo, com o uso da cromoscopia, especialmente pelo extensão das áreas de metaplasia gástrica do duodeno. Nos se
azul de metileno, é possível a identificação dessas áreas. res humanos, a bactéria não é encontrada na mucosa duodenal,
Outro mecanismo adaptativo ao ambiente ácido nas porções mas, apenas e exclusivamente, em células da mucosa gástrica. A
mais proximais do duodeno é a hiperplasia das glândulas duo- colonização do duodeno ocorrerá somente nas áreas de epitélio
denais, mais conhecidas como glândulas de Brunner. Essas es metaplásico, composto por células epiteliais mucossecretoras,
truturas, que produzem secreção rica em bicarbonato, cujo pH 0 que provavelmente reflete a presença de uma adesina locali
varia entre 8,2 e 9,3, participam do mecanismo de neutralização zada na superfície apical desse tipo de célula.
do quimo e estabilização do pH do conteúdo duodenal. Foi demonstrado, através da coleta de dois fragmentos de
Geralmente, as glândulas de Brunner estão em maior nú cada quadrante do bulbo duodenal, que pacientes com úlce
mero no bulbo duodenal e duodeno proximal e tornam-se es ra duodenal infectados pelo H. pylori possuíam uma extensão
cassas no duodeno distai. A hiperplasia glandular ocorrerá na das áreas de metaplasia gástrica quatro vezes maior quando
presença de hipersecreção gástrica e duodenite péptica. À en- comparados ao grupo controle, constituído por pacientes
doscopia, observa-se aparência nodular, principalmente da mu- H. pylori-positivos assintomáticos. A densidade bacteriana e
cosa do bulbo e, menos frequentemente, naquela do duodeno a frequência de cepas de H. pylori cagA-positivas também fo
pós-bulbar. Os nódulos apresentam-se únicos ou múltiplos, ram mais elevadas no duodeno dos pacientes ulcerosos. Em
arredondados ou alongados, com diâmetro que varia entre 0,5 relação à análise histológica, a infiltração linfocítica (duode
e 1,5 cm. À histologia, a hiperplasia das glândulas de Brunner é nite crônica) foi maior nos indivíduos com úlcera duodenal, e
caracterizada por aumento do número e do tamanho dos ácinos a infiltração de neutrófilos (duodenite ativa) foi somente veri
glandulares presentes na porção basal da mucosa do duodeno ficada nos pacientes ulcerosos. Conclui-se que nessas regiões
(Figura 26.1). A síndrome de Zollinger-Ellison e a insuficiên ocorre uma diminuição da resistência da mucosa, o que facilita
cia renal crônica são exemplos de condições clínicas em que se a penetração e ação do suco gástrico e favorece a formação da
verifica a proliferação das glândulas duodenais. úlcera péptica duodenal.
■ Duodenite péptica
■ DUODENITES PARASITÁRIAS
A duodenite péptica está associada à exposição crônica da
mucosa do duodeno à hipersecreção ácida gástrica. As m o A OMS estimou, em 2001, que aproximadamente 2 bilhões
dificações adaptativas da mucosa duodenal à hiperacidez são de indivíduos no m undo estavam infectados por helmintos
caracterizadas por graus variáveis de inflamação crônica e agu transmitidos pelas fezes. O significado em termos de saúde
da, em geral acompanhadas por metaplasia gástrica e hiperpla pública e o impacto econômico dessas infecções são difíceis
sia das glândulas de Brunner. Ao exame anatomopatológico, de quantificar, embora a OMS tenha estimado que mais de
a duodenite péptica é caracterizada pela presença de infiltrado 1 bilhão de pessoas no mundo estejam infectadas por um ou
inflamatório constituído predominantemente por neutrófilos, poliparasitadas pelos seguintes agentes: Ascaris lumbricoides,
mais acentuado nas regiões em que se observa erosão da muco Trichuris trichiura, Necator americanus e Ancylostoma duode-
sa. Ocasionalmente, pólipos inflamatórios hiperplásicos, com nalis. No Brasil, as doenças intestinais causadas por parasitos
postos por epitélio metaplásico gástrico e glandular também ainda constituem um sério problema de saúde pública, apre
podem ser identificados. sentando maior prevalência em populações de nível socioeco-
A associação entre duodenite e úlcera duodenal está relacio nômico baixo. Em determinadas regiões, encontra-se até 70%
nada com a hiperacidez gástrica e admite-se que a duodenite da população infectada, sobretudo crianças, que geralmente
péptica preceda o aparecimento da úlcera duodenal. O H. pylori são poliparasitadas.
aparece como um fator importante associado à duodenite e à Geralmente, as helmintíases intestinais interferem nas con
dições nutricionais do hospedeiro e associam-se com atraso
do crescimento e maior prejuízo do aprendizado escolar. En
tretanto, na minoria de pacientes infectados, sintomas mais
significativos podem ser identificados. Dentre eles, destacam-
se a enteropatia perdedora de proteína, a disenteria crônica, a
anemia e o prolapso retal.
Os protozoários que mais comumente infectam o trato gas-
trintestinal são Giardia spp., Entamoeba hystolitica, Cyclospora
cayetanenensis e Cryptosporidium spp. A giardíase é considera
da uma das infecções mais prevalentes no mundo. No período
entre 1992 e 1997, foi verificado pelo CDC (CentersforDisease
Control and Prevention) que aproximadamente 2,5 milhões de
indivíduos estavam infectados nos EUA. A OMS identificou,
em 1997, que cerca de 50 milhões de indivíduos no mundo fo
ram acometidos pela amebíase invasiva.
O endoscopista, ao se deparar com qualquer processo infla
matório no duodeno, deve colher sempre fragmentos de muco
sa para análise histológica, bem como aspirar líquido duodenal
para estudo parasitológico. Os parasitos mais frequentemen
Figura 26.1 Aspecto histológico da hiperplasia das glândulas duo te relacionados com a duodenite são os seguintes: G. lamblia,
denais (gentilmente cedida pela Dra. Lúcia Porto Fonseca de Castro). Strongyloides stercoralis, A. lumbricoides, A. duodenale e Schis-
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) tosoma mansoni.
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 241
fície da mucosa e formando um revestimento que interfere na dica. O exame endoscópico foi realizado em um período médio
absorção. É frequentemente encontrado em indivíduos com de 9,1 dias após o evento isquêmico, e as lesões mais comumen-
deficiência de IgA secretora, como nas disgamaglobulinemias te detectadas foram úlcera duodenal, úlcera gástrica, gastrite e
com hiperplasia linfoide do intestino delgado. esofagite. Geralmente, o dano da mucosa duodenal associa-se a
Nem sempre são evidenciadas alterações do ponto de vista anormalidades da microcirculação acompanhadas por isquemia
endoscópico, sendo a mucosa, na maioria das vezes, aparente e/ou hemorragia. Outras condições, como hiperacidez gástrica,
mente normal. Porém, após um exame mais minucioso, obser- produção diminuída de mucoproteínas e discinesia motora do
va-se que as válvulas coniventes encontram-se espessadas em estômago, que poderiam contribuir para o aparecimento das
número razoável de pacientes. Nos pacientes com hipogama- lesões do duodeno já foram identificadas.
globulinemia, entretanto, a mucosa pode mostrar numerosos
nódulos, indicando a presença de hiperplasia nodular linfoide.
O achado de pontilhado esbranquiçado da mucosa duodenal ■ 0CLUSÃ0 DUODENAL ARTERIOMESENTÉRICA
sugere o diagnóstico endoscópico de giardíase.
Do ponto de vista histológico, as alterações da mucosa va INTERMITENTE CRÔNICA
riam de discretas a acentuadas, podendo causar enteropatia
A síndrome da artéria mesentérica superior é uma condição
com lesão do enterócito, atrofia vilositária e hiperplasia das
pouco comum caracterizada por compressão extrínseca das pa
criptas. O achado mais expressivo é a infiltração aguda e focal
redes do duodeno e suboclusão ao trânsito intestinal. A artéria
das criptas intestinais, associado ao infiltrado de polimorfonu-
cleares na mucosa e lâmina própria. mesentérica superior em geral forma um ângulo de aproxima
damente 45° (faixa de 38" a 56°) com a aorta abdominal. Dis-
O exame de fezes frescas corados com iodo apresenta uma
talmente à origem da artéria mesentérica superior, a terceira
sensibilidade em torno de 50%, pois cistos e trofozoítos são
porção do duodeno cruza anteriormente a veia cava inferior e a
eliminados de forma intermitente através das fezes. A análise
aorta e permanece entre a artéria mesentérica superior e a aorta.
do aspirado duodenal é outra forma de diagnóstico com sen
Situações que determinem a redução do ângulo arteriomesen-
sibilidade de 80%. Ainda, a pesquisa de G. lamblia nas fezes
térico podem causar compressão do duodeno. Alguns fatores
pode ser feita por meio de testes que empregam técnicas de
associados ao estreitamento desse ângulo podem ser citados:
imunoensaio (ELISA) e imunofluorescência, que apresentam
lordose lombar acentuada, visceroptoses, alterações anatômicas
sensibilidade e especificidade de 90 e 100%, respectivamente.
da artéria mesentérica superior e rápida perda de peso.
Em adição aos testes que detectam antígenos nas fezes, tem
A oclusão duodenal arteriomesentérica intermitente crô
sido possível identificar sequências do DNA de G. lamblia pre
nica, também denominada Síndrome de Wilkie, acomete am
sentes nas fezes por meio de exames baseados em técnicas de
bos os sexos com predomínio do sexo feminino. A faixa etária
biologia molecular.
mais acometida é dos 10 aos 30 anos. Os pacientes apresentam
O tratamento da giardíase é feito com drogas do grupo dos
dor na metade superior do abdome, provocada pela estase e
nitroimidazóis, especialmente o metronidazol na dose de 250 a
distensão duodenal, náuseas, vômitos alimentares e medo de
500 mg, 3 vezes/dia, durante 5 a 7 dias, ou 2 g, diariamente, em
alimentar-se. O emagrecimento pode provocar visceroptoses
dose única, por 3 dias e o tinidazol 2 g em dose única. Outras
e o agravamento dessa condição. O alívio do desconforto epi-
drogas como o albendazol e a nitazoxanida são também eficazes,
gástrico é obtido com vômitos ou quando o paciente assume
mas devem ser administradas em doses múltiplas.
a posição de decúbito lateral direito ou genupeitoral. A croni-
cidade e a intermitência da sintomatologia digestiva agravam
a irritabilidade emocional. A úlcera péptica, em aproximada
■ LESÕES DU0DENAIS AGUDAS EM PACIENTES mente 25% dos casos, pode coexistir com a oclusão duodenal
COM INFART0 D0 MIOCÁRDIO arteriomesentérica.
O diagnóstico clínico é, em geral, difícil ou mesmo subesti
A isquemia miocárdica mostra incidência, mortalidade e mado. Através do estudo radiológico do estômago e duodeno,
morbidade elevadas, podendo ser considerada um dos princi observa-se compressão extrínseca de orientação vertical entre a
pais problemas clínicos da atualidade. A hemorragia digestiva é terceira e a quarta porções duodenais e dilatação da segunda e
também uma afecção grave que ameaça a vida, principalmente da primeira porções do duodeno. A distensão da alça intestinal
de pacientes idosos e com comorbidades. Vários estudos têm desaparece quando o paciente adota as posições descritas ante
demonstrado a presença de duodenite hemorrágica e necrose riormente. A mensuração do ângulo arteriomesentérico pode
entérica em pacientes acometidos pelo infarto do miocárdio. ser realizada através da ultrassonografia e tomografia compu
A incidência de hematêmese e/ou melena após um evento de tadorizada do abdome.
isquemia miocárdica não é bem determinada, porém existem A maioria dos autores recomenda medidas conservadoras
vários fatores contributivos: insuficiência vascular associada para o tratamento desses pacientes, incluindo, assim, nutri
ao choque e à insuficiência cardíaca; uso de medicamentos que ção adequada, descompressão do trato gastrintestinal e posi
poderiam lesar a mucosa gastroduodenal como os anti-inflama- cionamento adequado do indivíduo no período pós-prandial
tórios não esteroides, anticoagulantes e trombolíticos. (decúbito lateral esquerdo ou posição genupeitoral). Nos ca
Khominskaia et al. (1991) estudaram as alterações histoquí- sos de desnutrição grave e vômito repetido, há necessidade de
micas e morfológicas da mucosa do estômago e duodeno de hospitalização para a correção dos distúrbios hidreletrolíticos
22 pacientes que faleceram devido à insuficiência coronariana e administração de dieta por sonda nasoentérica posicionada
crônica. Foi observado que a mucosa gástrica e duodenal desses distalmente à obstrução ou através do uso da nutrição paren-
pacientes apresentava-se atrófica. Essa anormalidade da mucosa teral total. Raramente, recorre-se ao tratamento cirúrgico com
foi associada à vasoconstrição do território esplâncnico. Em um anastomose jejunoduodenal. A lise do ligamento de Treitz e
estudo conduzido nos EUA, através da endoscopia digestiva alta mobilização do duodeno por via laparoscópica também têm
foram avaliados 200 pacientes com quadro de isquemia miocár sido relatadas.
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 243
no duodeno. São tumores submucosos mesenquimais, bem de neoplasias do intestino delgado no período de 1980 a 2000 e o
limitados, não encapsulados, compostos por células fusiformes. adenocarcinoma foi o tipo histológico mais comumente iden
Originam-se de células musculares lisas e apresentam marca tificado no duodeno (200 casos, 52,7%).
dores imuno-histoquímicos positivos para desmina e actina
de músculo liso e são CD34 e CD 117 negativos. Esses achados
são importantes em relação ao diagnóstico diferencial com os
■ Adenocarcinoma do duodeno
tumores estromais do trato gastointestinal, tema abordado no O adenocarcinoma é o tumor do intestino delgado mais pre-
Capítulo 37. valente, correspondendo a cerca de 50% das neoplasias nesse
Têm localização subserosa e intramural e variam em tama local. O carcinoma duodenal primário é raro e, geralmente, é
nho de poucos milímetros a vários centímetros. Os métodos identificado na segunda e na terceira porções do duodeno. É
de imagem, em geral, são importantes para o diagnóstico dife mais encontrado em homens do que em mulheres acima de
rencial de tumores da submucosa. Através desses métodos, o 50 anos de idade, tendo pico de incidência aos 60 anos. As le
liomioma, em particular, apresenta-se como lesão arredondada, sões pré-neoplásicas são semelhantes às do tum or do cólon,
regular, homogênea com áreas de calcificação. sobressaindo-se como fator de risco a doença de Crohn. À ma-
croscopia, observa-se mais frequentemente a forma polipoide
e ulcerativa no duodeno e a forma estenosante no íleo. O tu
■ Lipomas mor pode originar metástases para linfonodos regionais, fígado,
Os lipomas são mais comuns no íleo e podem ser caracteriza pâncreas e pulmões. Como é assintomático por longo tempo, o
dos como lesões intramurais, geralmente pequenas, com menos prognóstico é ruim. Clinicamente, a hemorragia ou a presença
de 4 cm, únicas ou múltiplas, que se localizam na submucosa. de sangue oculto nas fezes é a manifestação mais comum se
São compostos por tecido adiposo bem diferenciado, envolvido guida por sinais de obstrução (Figura 26.2).
por uma cápsula fibrosa. A aparência endoscópica é similar aos Dentre os exames complementares, a endoscopia digestiva
outros tumores da submucosa. À tomografia computadorizada, alta com biopsias pode ser considerada um exame diagnósti
o lipoma apresenta o coeficiente de absorção negativo. co inicial. Métodos de imagem da cavidade abdominal podem
auxiliar no diagnóstico da lesão duodenal e na detecção de lin-
fadenomegalias e metástases. Outra ferramenta que pode ser
■ TUMORES MALIGNOS DO DUODENO empregada para o estadiamento da neoplasia é a ultrassono-
grafia endoscópica.
Como descrito previamente, a incidência de tumores malig A ressecção tumoral constitui a melhor forma de tratamento
nos no intestino delgado é baixa e representa 1 a 2% das neo- do adenocarcinoma do duodeno. A duodenopancreatectomia
plasias que acometem o trato gastrintestinal e 0,3% das neopla- pela técnica de Whipple é o procedimento de escolha, uma vez
sias em geral. A maioria dos tumores é clinicamente silenciosa que permite a ressecção em bloco com os linfonodos regionais.
por longos períodos ou ocasiona sintomas/sinais inespecíficos, Entretanto, somente 30% desses tumores são ressecáveis. A so
como plenitude, dor e distensão abdominal, presença de san brevida, em cinco anos, de pacientes submetidos a esse proce
gue oculto nas fezes, náuseas e vômitos. Geralmente, são des dimento gira em torno de 40%. Ainda, para tumores pequenos
cobertos em fase avançada, ulcerados, produzindo obstrução da terceira e, especialmente, da quarta porções do duodeno,
intestinal parcial, diarréia crônica, hemorragia digestiva alta pode ser feita a ressecção segmentar com intenção curativa.
ou invasão e metástase em órgãos vizinhos, além de icterícia e A gastrojejunostomia é reservada aos pacientes com doença
comprometimento do estado geral dos pacientes. Os tumores avançada em que não é mais possível a ressecção tumoral. O
malignos do duodeno localizam-se preferencialmente na se tratamento adjuvante com quimioterapia e radioterapia deve
gunda porção. Os tipos de neoplasias malignas mais comuns ser individualizado. A sobrevida em cinco e dez anos é de 39 e
do intestino delgado são os adenocarcinomas, os carcinoides, 37%, respectivamente, para as neoplasias primárias do duode
os linfomas e os sarcomas. no ressecáveis e correlaciona-se com a fase do diagnóstico. Os
Em um estudo conduzido nos EUA, foram analisados 328
casos de neoplasias do intestino delgado no período de 1966 a
1990. A incidência ajustada pela idade foi de 1,4/100.000 indiví
duos. Os tumores foram classificados como carcinoides (41%),
adenocarcinomas (24%), linfomas (22%), sarcomas (11%) e 1%
não foi classificado. Em relação à localização nos segmentos
intestinais, o adenocarcinoma representou a neoplasia malig
na mais comum do duodeno. As metástases a distância foram
detectadas em 26 a 33% dos pacientes, sendo mais frequentes
nos indivíduos acometidos por sarcomas e adenocarcinomas.
A ressecção cirúrgica foi realizada em 49 a 79% dos pacientes e
a sobrevida em 5 anos foi de 54%, variando de acordo com tipo
de tumor, carcinoide (83%), adenocarcinoma (25%), linfoma
(62%) e sarcoma (45%). Através de uma revisão do National
Data Base, também realizada nos EUA, foram avaliadas 4.995
neoplasias do intestino delgado. Em relação à localização dos
tumores nesse segmento, foi identificada a seguinte distribui
ção: duodeno (55%), jejuno (18%), íleo (13%) e não especifi Figura 26.2 Lesão tumoral do duodeno. O exame histopatológico
cado (14%). A sobrevida em cinco anos foi menor que a des demonstrou adenocarcinoma periampulardo tipo intestinal infiltrante
crita no trabalho anterior, correspondendo a 30,5% (média de em parede duodenal (gentilmente cedida pelo Dr. Fernando Augusto).
19,7 meses). Ainda, nos EUA foram analisados 1.260 casos de (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 245
pacientes submetidos à cirurgia paliativa têm sobrevida que, Hatzaras, I, Palesty, JA, Abir, F, Sullivan, P, Kozol, RA, Dudrick, SJ, Longo, WE.
geralmente, não ultrapassa 24 meses. Small-bowcl tumors: cpidemiologic and clinicai charactcristics of 1260 cases
from thc Connccticut tumor registry. Arch. Surg., 2007; 142:229-35.
Em um estudo conduzido na Alemanha, foram avaliados 18 Howc, JR, Karnell, LH, Menck, HR, Scott-Conncr, C. The American Collegc
pacientes (14 homens, quatro mulheres; idade média 58 anos) of Surgeons Commission on Canccr and thc American Canccr Socicty.
com carcinoma primário do duodeno. Os principais sintomas Adenocarcinoma of thc small bowel: rcvicw of thc National Canccr Data
clínicos detectados foram dor no andar superior do abdome Base, 1985-1995. Câncer, 1999; 86:2693-706.
(61%), perda de peso (44%) e anemia (38%). Dez pacientes James, AH. Gastric cpithclium in thc duodenum. Gut, 1964; 105:285-94.
Janoíf, EN, Smith, PD, Blascr, MJ. Acute antibody responses to Giardia lamblia
(56%) foram submetidos a ressecções curativas, oito operações
are depressed in patients with AIDS. /. Infect. Dis., 1988; 157:798-804.
de Whipple e duas duodenectomias segmentares. A sobrevida, Jcpscn, JM, Pcrsson, M, Jakobsen, NO, Christiansen, T, Skoubo-Kristcnscn, E,
ao fim de um, três e cinco anos após a ressecção, foi de 90,66,7 Funch-Jcnscn, P, Krusc A, Thommcscn, P. Prospectivc study of prcvalcncc
e 53,3%, respectivamente. Nos pacientes com tumores irressecá- and cndoscopic and histopathologic charactcristics of duodenal polyps
veis, que foram submetidos à cirurgia paliativa, a sobrevida foi in patients submitted to upper cndoscopy. Scand. J. Gastroenterol., 1994;
29:483-7.
inferior a 25 meses. Em uma revisão realizada na Itália, foram
Khominskaia, MB 8c Dcgtiareva, LV. Structural changes in thc stomach, duode
avaliados 89 pacientes com adenocarcinoma duodenal, não ori num and pancreas in ischcmic hcart disease. Vrach Delo, 1991; 7:53-6.
ginário da papila de Vater, submetidos ao tratamento cirúrgico. Konorcv, MR, Litviakov, AM, Matvecnko, ME, Krylov, Iu, V, Kovalev, AV,
A maioria dos tumores (62,9%) foi detectada na região periam- Riashchikov, AA. Principies of currcnt classification of duodenitis. Klin.
pular. A ressecção curativa foi realizada em 65 (73%) de 89 pa Med. (Mosk.), 2003; 81:15-20.
cientes. A mortalidade no período pós-operatório foi de 10,1% Krcuning, J, Bosman, FT, Kuiper, G, Wal, AM, Lindcman, J. Gastric and duo-
dcnal mucosa in ‘hcalthy’ individuais. An cndoscopic and histopathological
e a sobrevida em cinco anos, de 25%. Em geral, a sobrevida dos study of 50 volunteers. /. Clin. Pathoi, 1978; 31:69-77.
pacientes com doença localizada, avançada localmente, e me- Lang, H, Nadalin, S, Raab, R, Jahnc, J. Results of surgical thcrapy of primary
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PARTE IV
Intestino Delgado
Anomalias Congênitas de
Intestino Delgado e Grosso
Dorina Barbieri, Maraci Rodrigues e Isaura Ramos Assumpção
As anomalias congênitas de intestino delgado e grosso podem te e grande parte do transverso, e o hindgut, responsável pela
ser, de maneira geral e abrangente, relacionadas com as seguin formação do resto do transverso, descendente, sigmoide, reto
tes situações de comprometimento da sua embriogênese: e parte superior do canal anal.
O midgut e seu respectivo mesentério têm um crescimento
a) defeitos de posição do delgado e colo em virtude de pro
muito grande, formando alças que penetram no cordão umbi
blemas na rotação do intestino primitivo, ou de ausência
lical (5a semana) por falta de espaço na cavidade abdominal, e
ou de insuficiência na fixação do mesentério à parede
só mais tarde com o desenvolvimento desta (IO4semana) vol
abdominal posterior; tam à cavidade peritoneal. Simultaneamente a este movimento,
b) defeito de desenvolvimento das paredes do tubo intestinal o midgut realiza um movimento em rotação anti-horária ao
com prejuízo da permeabilidade de seu lúmen, manifes- redor da artéria mesentérica superior, de modo que a porção
tando-se como atresia} estenose e duplicação; cranial do delgado se posiciona atrás da artéria mesentérica
c) defeitos embriogênicos atingindo apenas determinadas
superior, e a parte caudal ou colo se coloca anteriormente a
linhagens celulares, tais como neurônios (megacolo con esta artéria e ao delgado até atingir sua posição definitiva (to
gênito), epitélio (pólipos), fibra muscular lisa (miopatias pografia normal final).
viscerais), tecido conectivo (doença de Ehlers-Danlos), A fixação de algumas partes do tubo digestório à parede
vasos (hemangiomas); posterior do abdome se deve a encurtamento e reabsorção de
d) persistência de restos embrionários (divertículo de Me- seus respectivos mesos. É o que ocorre com o duodeno, ceco,
ckel); ascendente e descendente. O delgado, o transverso e o sigmoi
e) erros metabólicos moleculares com interferência prima de mantêm seus mesos e suas respectivas inserções na parede
riamente a aspectos de funções (doença meconial da mu- posterior do abdome. Importante lembrar a inserção do me
coviscidose). sentério, que segue uma linha oblíqua desde a altura do ângulo
É importante assinalar que cada uma das anomalias pode de Treitz até o ceco, formando uma espiral ao redor da artéria
estar associada a outras anomalias digestivas ou extradigestivas, mesentérica superior.
inclusive fazendo parte de síndromes clínicas específicas.
As anomalias congênitas de intestino delgado e grosso po ■ Conceito
dem se manifestar já ao nascimento (atresia anorretal), ou mais
tardiamente na infância (estenoses) ou adultícia (hamartomas). Má rotação é a modificação da posição normal do intestino
Algumas, por serem assintomáticas, constituem achados oca em decorrência de alguma interferência neste processo rotató
sionais. rio do desenvolvimento do tubo intestinal.
Serão apresentadas, neste capítulo, as situações clínicas mais Defeito defixação é definido como a insuficiente ou ausente
frequentes. fixação do mesentério na parede posterior do abdome.
■ Frequência
■ DEFEITOS DE ROTAÇÃO E DE FIXAÇÃO Muito comum, estimando-se que haja um caso para cada
DO INTESTINO 6.000 nascidos vivos. É mais frequente no sexo masculino, com
relação 2:1.
De maneira sumária, embriologicamente o intestino primiti
vo se divide em três partes: o foregut, ou intestino anterior, que
dá origem à faringe, esôfago, estômago e duodeno (primeira
■ Etiologia
e segunda porções); o midgut, ou intestino médio, que forma Nos casos isolados ela é desconhecida. Quando associada a
todo o resto do duodeno, todo o delgado, ceco, colo ascenden defeitos de diafragma ou de parede abdominal a herniação do
249
250 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
■ Diagnóstico pré-natal
O diagnóstico de vólvulo do intestino delgado pelo ultras-
som gestacional (USG) é muito difícil. Quando ocorre oclusão
arterial e necrose da parede intestinal, os sinais são mais evi
dentes pela presença de perfuração e ascite.
■ Diagnóstico
A apresentação clinica é muito variável, desde formas as-
sintomáticas (de achado ocasional) até quadros clínicos gra
ves, catastróficos. Ela ocorre em 30% no período pré-natal, de
50 a 75% nos primeiros meses de vida e em 90% até o fim do
primeiro ano de vida. Os casos restantes podem aparecer em
qualquer outra idade. Os sintomas apresentados são vômitos
biliosos, dor e distensão abdominal no andar superior. A pal-
pação abdominal pode mostrar massa representada pelo in
testino edemaciado.
O vólvulo agudo do midgut} ou vólvulo agudo do intestino
médio, é a forma clínica mais grave deste erro de rotação e fi
xação do intestino. Nesta situação, o mesentério do delgado,
englobando a artéria mesentérica superior, tem uma base bem
estreita, formando um pedículo fino e muito móvel, facilitan
do a torção das alças em torno da artéria mesentérica superior.
Esta torção ocasiona obstrução da luz duodenal. Os sintomas
Figura 27.1 Radiografia de estômago e duodeno de paciente com
são os já descritos anteriormente. Se a torção for muito intensa,
defeito de rotação e de fixação do intestino, mostrando o duodeno e
ocasiona estrangulamento das artérias com isquemia e necro as primeiras alças jejunais em forma de espiral e localizados à direita
se do intestino, traduzindo-se clinicamente por hematêmese, da coluna vertebral.
evacuações com sangue, choque e septicemia. O quadro clínico
agudo é muito sugestivo de obstrução intestinal e o estudo ra-
diológico simples mostra a imagem de bolha dupla (estômago
e duodeno) com ausência de ar no resto do abdome, podendo
ser confundido com atresia duodenal ou outro problema obs-
■ Tratamento
trutivo em duodeno. O estudo radiológico contrastado alto não O tratamento cirúrgico está sempre indicado na má rotação
deve ser realizado para não piorar o sofrimento de alça e afetar intestinal, inclusive nos casos crônicos e pouco sintomáticos,
a sua viabilidade. Pode ser feito um enema opaco que vai mos uma vez que não há como se avaliar qual paciente evoluirá para
trar o ceco localizado à esquerda da coluna, mas nem sempre vólvulo, necrose e em qual idade.
este achado é de fácil interpretação. A videolaparoscopia, atualmente, tem permitido, além da
O vólvulo de intestino médio pode ocorrer de maneira crô confirmação diagnóstica, a correção total da má rotação, em
nica e intermitente, desenvolvendo crises de quadro doloroso qualquer faixa etária, além de ser possível fazer a distorção do
abdominal e vômitos; eventualmente, má absorção intestinal vólvulo intestinal.
e déficit de crescimento. O estudo radiológico contrastado alto Na forma aguda emergencial, o tratamento é cirúrgico, por
mostra o duodeno e primeiras alças jejunais à direita da coluna laparotomia, para se aliviar a obstrução, não havendo a necessi
e descrevendo uma espiral ou imagem em Z. dade de preparo do cólon, uma vez que a área de manuseio é ex-
Algumas vezes, há a formação de bridas, denominadas faixas trínseca à luz intestinal. Entretanto, nos casos crônicos, em que a
(“bandas”) de Ladd, ligando o ceco, situado alto, e o duodeno, cirurgia é eletiva, o preparo do cólon pode facilitar a dissecção.
provocando obstrução duodenal. A cirurgia consiste em redução do vólvulo, rodando-se o
O diagnóstico da má rotação intestinal pode ser também intestino quantas vezes forem necessárias até exposição de ceco
realizado pelo ultrassom abdominal focando as posições da e ascendente, que deverão ser fixados.
artéria mesentérica superior e a veia mesentérica superior. Em A cirurgia para correção de vólvulo com isquemia de alça
condição normal, a artéria mesentérica superior está à esquerda é controversa na literatura, no sentido de retirada da alça com
da veia mesentérica superior e, quando ocorre má rotação, a sofrimento imediatamente, ou desfazendo-se o vólvulo e aguar
artéria mesentérica superior fica à direita da veia mesentérica dando-se por 12 ou 24 h a fim de se avaliar a viabilidade da alça
superior. intestinal acometida. Avaliações criteriosas devem ser feitas no
sentido de se permitir o mínimo de ressecções, impedindo-se a
instalação de síndrome do intestino encurtado, que piora bas
■ Condições associadas tante o prognóstico.
Várias condições estão associadas à má rotação intestinal, Em geral, o prognóstico é bom, exceto naqueles relaciona
como hérnia diafragmática, onfalocele, gastrosquise, atresias dos com complicações por isquemia, síndrome do intestino
intestinais múltiplas, malformação do reto e ânus, além de al encurtado ou complicações decorrentes do uso de nutrição
terações de trato geniturinário. parenteral.
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 251
■ Frequência ■ Diagnóstico
As atresias e estenoses do duodeno e do delgado levam a
A frequência das atresias e estenoses do duodeno e do intes
processo obstrutivo e subobstrutivo, respectivamente.
tino delgado juntas variam de 1:2.000 a 1:6.000 nascimentos.
Pode-se suspeitar da presença de obstrução do trato alimen
As atresias são mais comuns do que as estenoses em am
tar alto do feto em toda grávida com poli-hidrâmnio, sendo
bas as localizações, duodeno e delgado, e podem ser simples
confirmada pelo ultrassom pré-natal em cerca de 30 a 59% dos
ou múltiplas.
casos, já na 22a semana de gravidez.
Levando-se em conta o total dos casos de atresias e de es
Ao nascimento, os recém-nascidos com atresia duodenal
tenoses, a distribuição das frequências é a seguinte, respecti podem apresentar como primeiro sinal vômitos, frequente
vamente:
mente biliosos, geralmente poucas horas após o nascimento.
A inspeção mostrará abdome distendido e peristaltismo visível
Duodeno Jejuno íleo apenas no seu andar superior, devido a distensão do estômago,
Atresias 40% 25% 35% enquanto o restante do abdome será escavado. Poderá ocorrer,
também, ausência de eliminação de mecônio. O recém-nasci
Estenoses 75% 5% 20% do, geralmente, apresenta sinais de desidratação e distúrbios
metabólicos. A colocação de sonda nasogástrica, além de evi
Classificação segundo Cray e Skandalakis: tar a aspiração, através da saída de material bilioso, confirma
a obstrução intestinal. Cerca de 15% dos casos de obstrução
Tipo I - obstrução do lúmen do intestino delgado, devido à duodenal congênita ocorrem proximalmente ao dueto biliar e
presença de uma membrana constituída das camadas mucosa os vômitos não são biliosos.
e submucosa. A estenose duodenal pode passar despercebida para os pais e
Tipo II - presença de uma fenda separando o intestino del para os médicos, até uma fase tardia da infância. Alguns casos
gado em porções proximal e distai, unidas entre si por um li de estenose duodenal não são reconhecidos até a vida adulta,
gamento fibroso curto. e essa estenose é diagnosticada devido às complicações tardias,
Tipo Illa - o defeito atinge também o mesentério com au tais como megaduodeno, alterações de motilidade, refluxo duo-
sência de tecido de conexão entre os fundos cegos dos segmen denogástrico, gastrite, úlcera péptica, refluxo gastresofágico,
tos do intestino. cisto de colédoco, colelitíase e colicistite.
Tipo Illb - atresia do delgado proximal e ausência de artéria O diagnóstico de obstrução duodenal pode ser confirmado
mesentérica superior distai. O intestino delgado distai ao seg por raios X simples de abdome, em pé, revelando o sinal clássico
mento atrésico assume uma forma em espiral e recebe o supri de dupla bolha da obstrução duodenal. Se não se identificar a
mento sanguíneo da artéria ileocólica e cólica direita inferior. presença de gás abaixo do ligamento de Treitz, provavelmente
Tipo IV - atresias múltiplas do intestino delgado. o diagnóstico será de atresia duodenal. Em alguns casos, é pos
sível constatar, em raios X simples de abdome, sinal evidente
■ Etiologia de calcificações, que sugerem associação com perfuração duo
denal intrauterina.
A etiologia da atresia e da estenose do duodeno e do jejuno, Os primeiros sintomas no recém-nascido são vômito bilio
secularmente aceita como falha na recanalização do lúmen in so e distensão abdominal progressiva e ausência ou retardo na
testinal, a partir de seu estágio inicial de cordão sólido, levando eliminação do mecônio, geralmente manifestados nas primei
a anomalias intrínsecas, incluindo a atresia (em fundo cego), ras 24 h de vida. Porém, em 20% dos casos, esta manifestação
a estenose (estreitamento), ou a formação de uma membrana poderá se desenvolver no 2o ou 3o dia de vida. Em casos de
mucosa, é, atualmente, de validade discutível. diagnóstico mais tardio, o recém-nascido poderá apresentar
Para o duodeno proximal, que é derivado do foregut, a etio desidratação, hiperbilirrubinemia não conjugada e pneumonia
logia dessas anomalias não estão, ainda, bem esclarecidas. Para aspirativa. A distensão abdominal é observada em cerca de 78%
o duodeno distai, jejuno e íleo, todos oriundos do midguty a dos casos das atresias jejunais e em 98% das atresias ileais. O
etiologia dessas anomalias seria consequência de acidentes grau de distensão abdominal é determinado pelo nível da obs
vasculares na vida intrauterina, proposta por vários autores trução: quanto mais baixo o nível da obstrução, mais pronun
nas últimas quatro décadas. ciada e difusa será a distensão. Nos casos de diagnóstico tardio,
ou na presença de perfuração intestinal, a distensão abdominal
pode ser muito mais intensa, comprometendo a respiração do
■ Diagnóstico pré-natal recém-nascido.
O diagnóstico pré-natal das malformações digestivas pode O diagnóstico de atresia jejunoileal é confirmado por raios X
ser realizado por meio do ultrassom gestacional (USG). Existem simples do abdome, com sinais de obstrução intestinal em cerca
alguns marcadores indiretos dos tipos de malformação digesti de 95% dos casos. O diagnóstico de atresia jejunoileal é baseado
252 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
■ Diagnóstico
Ao nascimento, a criança pode apresentar grau variável de ■ ATRESIA DE RETO E ÂNUS
distensão abdominal, com falência na eliminação de mecônio
e desconforto respiratório variável com o grau de distensão ■ Conceito
abdominal. As anomalias do reto e ânus ocorrem devido à falência da
Raios X simples de abdome na atresia colônica mostram dis separação do reto e do sistema urogenital ou à falência da rup
tensão gasosa das alças intestinais, sendo tanto maior a quanti tura da membrana anal durante a fase de desenvolvimento do
dade de alças distendidas e número de níveis hidroaéreos ob embrião. Essas anomalias em geral incluem conexões fistulosas
servados, quanto mais baixa a obstrução. Segundo Maksoud, entre o reto e o sistema urogenital. O ânus pode ser imperfura-
o diagnóstico pode ser feito exclusivamente através de raios X do, estenótico ou de localização anômala. As anomalias anor-
simples de abdome, reservando-se o enema opaco para casos retais podem interferir com a continência, e/ou a eliminação
especiais de dúvida diagnóstica com megacólon agangliônico fecal, ou ainda comprometer a integridade do trato urinário e
ou íleo meconial. genital. As anomalias que interferem com a passagem de fezes
Na estenose do cólon, por caracterizar uma síndrome semi- constituem emergência do período neonatal. Suspeita-se das
obstrutiva dependente do diâmetro de abertura da estenose, os outras anomalias pelos distúrbios anatômicos perineais ou pela
raios X simples de abdome demonstram níveis hidroaéreos e o passagem de material fecal através de uretra ou vagina.
enema opaco, alças estenosadas, com distensão das alças a mon
tante. A colonoscopia pode ser útil no diagnóstico.
O diagnóstico diferencial deve ser realizado com doença de ■ Etiologia
Hirschsprung, síndrome do mecônio espesso, íleo meconial, A atresia anorretal alta resulta da falha na separação da por
ou qualquer outra síndrome obstrutiva. ção cloacal do intestino primitivo em seio urogenital e reto.
A atresia anorretal baixa resulta da separação incompleta
da parte inferior do seio urogenital do reto, ou da falência da
■ Condições associadas ruptura da membrana anal.
Algumas síndromes genéticas específicas, como a sirenome- As atresias anorretais ocorrem na incidência de 1/5.000 nas
lia e atresias intestinais múltiplas, têm a atresia de cólon como cidos vivos, com predominância do sexo masculino, em uma
parte integrante. relação de 3/1. A maioria dos casos são esporádicos e, apesar de
A associação com defeitos de parede, vólvulo, má rotação e não haver descrição de hereditariedade, existe recorrência em
anormalidades vasculares ocorre em 1/3 dos pacientes, pois são algumas famílias. A presença de anomalias anorretais é comum
estas, muitas vezes, as causas primárias das atresias. em inúmeras síndromes genéticas, e dois fatores são reconhe
cidamente teratogênicos para essas anomalias, a talidomida e
o diabetes materno.
■ Tratamento
O tratamento das atresias e das estenoses é cirúrgico. Os ■ Classificação
cuidados pré-operatórios incluem a descompressão abdominal
através de sonda nasogástrica aberta, termorregulaçâo, correção As atresias anorretais têm anatomia bastante variada e são
dos distúrbios hidreletrolíticos e antibioticoterapia, se houver classificadas de acordo com o nível da atresia, e em subgrupos
sinais de infecção. O uso de nutrição parenteral está indicado, dependendo da presença ou ausência de fístulas:
uma vez que a criança deverá permanecer em jejum por tempo • Altas - a atresia ocorre acima do músculo elevador do
prolongado após a cirurgia. ânus e pode apresentar-se sem fístula ou com fístula re-
O tratamento cirúrgico constitui-se na ressecção do segmen touretral (mais comum em menino), retovaginal, reto-
to atrésico ou estenosado, com sepultamento do coto distai e vesical ou retocloacal.
2 54 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
■ Etiologia ■ Diagnóstico
Os mecanismos patogênicos que levam à duplicação intes A duplicação colônica atinge principalmente ceco (52%),
tinal ainda são bastante discutidos em literatura. A duplicação seguindo-se sigmoide (28%), transverso e descendente (8% cada
ocorreria na fase inicial do desenvolvimento do tudo gastrintes- um) e ascendente (4%), com igual predileção entre os sexos.
tinal, quando então o intestino primitivo se dividiría em duas Embora 10% das duplicações possam permanecer assinto-
partes. Esse fato é reforçado pela coincidência de duplicação máticas por toda a vida e se constituir apenas de achados ocasio
de ureter e bexiga nestes pacientes. nais, quando sintomáticas 25% delas se manifestam no primeiro
A - D u p l i c a ç ã o c is tic a B - D u p li c a ç ã o t u b u la r a d j a c e n t e a o C - D u p l i c a ç ã o t u b u la r a o lo n g o d o
in t e s t in o , c o m u n i c a ç ã o d is ta i c o m p r i m e n t o p r o x im a l
D- D u p lic a ç ã o p o r s e p to ,
c o m u n i c a ç ã o d u p la
E - D u p li c a ç ã o p o r s e p t o e s t e n d e n d o - s e
p o r t o d o o c ó lo n
Figura 27.2 Configuração esquemática dos vários tipos de duplicação de intestino grosso (equivale, também, ao delgado).
256 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
mês de vida, 50% até os seis meses de idade e praticamente 90% de ânus bipartido ou acessório, podendo o diagnóstico ser sus
terão se mostrado sintomáticas aos dois anos de idade. peitado pelo simples exame clínico do períneo. O enema opaco
As duplicações do cólon, além de serem heterogêneas na sua demonstra duplicação quando há comunicação distai, mas não
forma de apresentação, podem ocorrer em qualquer segmento contrasta aquelas duplicações com hóstio proximal, que poderá,
colônico associadas a fístulas ou não, portanto a sintomatolo no entanto, ser detectado pelo trânsito intestinal.
gia vai depender da sua forma de apresentação, localização e
presença de fístulas.
Duplicações não comunicantes podem ser assintomáticas
■ Tratamento
ou se apresentar com aumento de volume abdominal e massa Passarg e Stevenson acreditam que, muito embora as dupli
palpável, uma vez que a mucosa do segmento é funcionante e há cações possam ser e permanecer assintomáticas, e o diagnóstico
acúmulo de secreções intestinais que não podem ser drenadas ocorrer de modo ocasional, a ressecção cirúrgica está indicada,
por falta de comunicação. Se o volume do segmento intestinal devido ao risco de quadro de abdome agudo grave, como perfu
duplicado for grande, pode haver fenômeno compressivo e obs- ração, vólvulo, sangramento e invaginação. Dois procedimentos
trutivo. O ultrassom de abdome neste caso mostra a presença podem ser adotados: ressecção do septo, se não há evidências de
de massa cística, correspondente ao segmento duplicado não obstrução; ou ressecção da duplicação e do intestino adjacente
comunicante. a partir da inserção no mesentério.
Duplicações comunicantes tubulares adjacentes ao lúmen O prognóstico é bom, devendo-se estar atento às anomalias
(Figura 27.2B) permitem bom esvaziamento do conteúdo se- associadas, à correção e manutenção do equilíbrio hidreletrolíti-
cretado e menor possibilidade de sintomatologia. Entretanto, co e nutricional. Grandes ressecções devem ser evitadas devido
segmentos tubulares maiores que correm de forma adjacente ao risco de síndrome do intestino encurtado.
ao comprimento do cólon (Figura 27.2C) permitem acúmulo
de secreções e entrada de material fecal, com menor possibili
dade de drenagem, levando mais facilmente à sintomatologia ■ DESORDEM DE DESENVOLVIMENTO
obstrutiva, com massa palpável na região acometida e risco de
perfuração. O orifício de entrada desse segundo segmento fa DO SISTEMA NERVOSO ENTÉRICO
vorece a ocorrência de invaginações e sangramento.
Duplicações comunicantes com septo vão apresentar sin Estão incluídas neste item três condições: a) displasia neuro-
tomatologia condicionadas à permeabilidade dos lumens (Fi nal intestinal; b) parada de maturação dos plexos mioentéricos;
gura 27.2D e E). Se ambos forem pérvios, a possibilidade de e c) doença de Hirschsprung.
fenômeno obstrutivo é rara; no entanto, se um dos lumens As duas primeiras condições são responsáveis por quadro
terminar em fundo cego, a impactação de fezes ocorre, levando clínico semelhante ao da síndrome de pseudo-obstrução intes
a aumento de volume abdominal, massa palpável correspon tinal crônica e serão descritas juntas.
dente ao segmento, e processo suboclusivo que pode evoluir
para oclusão. ■ Pseudo-obstrução intestinal crônica
Duplicações que se comunicam com uretra, bexiga ou vagina
levam à eliminação de material fecal por essas estruturas. Du ■ Conceito
plicações podem se comunicar com o períneo por intermédio É uma síndrome caracterizada por episódios recorrentes
de manifestações clínicas sugerindo obstrução intestinal, na
ausência de oclusão mecânica do intestino.
■ Etiologia e classificação
A pseudo-obstrução intestinal crônica pode ocorrer como
uma doença primária ou como manifestação secundária de ou
tra doença (p. ex., hipotireoidismo, esclerodermia).
As formas primárias são congênitas e, sob ponto de vista
histológico, podem corresponder a uma miopatia visceral ou
a uma neuropatia visceral.
Na displasia neuronal intestinal, observa-se um defeito de
desenvolvimento caracterizado por hiperplasia dos plexos ner
vosos entéricos e uma anormal distribuição de elementos neu-
rais. Na parada de maturação dos plexos mioentéricos, estes
podem se apresentar com número reduzido de neurônios, ou
com número aparentemente normal, mas com alterações ul-
traestrut urais.
Em ambas as situações, a alteração funcional é a mesma,
induzindo um movimento propulsivo ineficiente e incapaz de
fazer o fluido intestinal progredir distalmente.
Na minoria dos casos, são de caráter hereditário (autossômi-
co recessivo ou dominante), mas frequentemente representam
casos esporádicos.
■ Diagnóstico
Figura 27.3 Enema opaco de criança com duplicação de sigmoide Os pacientes apresentam quadro clínico variado. Em alguns
com comunicação distai. pacientes, a apresentação é leve, com sintomas de desconforto,
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 257
distensão abdominal e hábito intestinal irregular, com longos Há estudos experimentais em cobaias portadoras de pseudo-
períodos de constipação intestinal, intercalados por diarréia. Po obstrução intestinal utilizando marca-passo elétrico colocado no
rém, há pacientes com sintomas e sinais graves, representados estômago e intestino, com o objetivo de estudar a indução da mo-
por vômitos de repetição, dilatação de alças intestinais e impos tilidade digestiva e sua possível aplicação futura nos pacientes.
sibilidade em tolerar alimentos VO. O início dos sintomas, geral Nos casos em que o acometimento é restrito ao cólon, a
mente distensão abdominal, ocorre desde o nascimento. Os sin colectomia total pode ser realizada, com cura total. Nos casos
tomas podem melhorar com o aumento da idade do paciente. de pseudo-obstrução intestinal acometendo todo o delgado, e
O exame inicial consiste em raios X simples e contrastados irresponsivos ao tratamento, indica-se transplante intestinal.
do intestino delgado e grosso, que poderão revelar dilatação Lembrar que o comprometimento de outros órgãos como fí
intestinal segmentar ou generalizada. gado cirrótico por NPP por tempo prolongado, gastroparesia,
Se o estudo radiológico não for esclarecedor, há necessidade principalmente em crianças com gastrostomia por longo tem
de se realizarem estudos manométricos e biopsias para averi po, e acesso venoso limitado por longos anos de NPP podem
guação histológica dos plexos neuronais. Dentro dos recur inviabilizar o processo de transplante.
sos disponíveis, a manometria antroduodenal poderá mostrar
alterações sugestivas do processo, assim como a manometria ■ Complicações
anorretal. O estudo histológico de mucosa (obtida por biopsia As crianças com pseudo-obstrução intestinal podem de
endoscópica ou pinças de sucção) e de peças cirúrgicas é im senvolver vólvulo e, às vezes, necessitam de correção cirúrgica
portante para a determinação do tipo de desordem neuronal de urgência.
ou glial do caso em estudo, através de colorações específicas e
por imuno-histoquímica.
■ Megacólon aganglionar
■ Condições associadas ■ Conceito
Anormalidades do trato urinário, em particular bexiga neu- O megacólon aganglionar, também conhecido como me
rogênica, podem estar associadas a pseudo-obstrução intes gacólon congênito ou doença de Hirschsprung, é uma doença
tinal. congênita que se caracteriza por suboclusão intestinal crôni
ca primária, que ocorre por ausência congênita dos gânglios
■ Tratamento parassimpáticos mioentéricos de Auerbach e submucosos de
Inicialmente, é importante estabelecer o tipo de distúrbio Meissner.
neuronal e a gravidade do caso para se estabelecer o esquema
terapêutico. Este visa a atender o suporte nutricional adequado ■ Etiologia
e a prevenir complicações. O megacólon aganglionar ocorre por interrupção da migração
As complicações mais comuns são esofagite péptica e sobre- craniocaudal dos neuroblastos da crista neural até a parede intes
crescimento bacteriano. Este último pode ser responsável por tinal, por volta da 12asemana de vida intrauterina, ocasionando
quadro de diarréia crônica e deve ser tratado com antibióticos incoordenação peristáltica e obstrução ao trânsito intestinal.
e metronidazol em intervalos regulares, além de oferecer dieta Estudos recentes demonstram a existência de três genes res
hipofermentativa. Anorexia, náuseas e vômito são frequentes e ponsáveis pela doença, e 10% dos casos tem características he
impedem aporte nutricional adequado. Cerca de 50% dos casos reditárias e o restante se apresenta na forma de mutação livre.
em crianças se beneficiam com a dieta oferecida por gastros- Estudos genéticos têm demonstrado casos familiares com gene
tomia e com infusão lenta de fórmulas elementares e semiele- autossômico dominante de penetração incompleta para a forma
mentares, embora a oferta em bolo também seja possível em total e gene recessivo de baixa penetrância na forma clássica.
alguns casos. Se houver comprometimento intenso do estôma
go, a sonda poderá ser colocada no jejuno. Estes estornas são ■ Classificação
úteis para a descompressão quando a distensão abdominal se De acordo com o comprimento e localização do segmento
tornar exagerada. aganglionar, a doença pode ser classificada em quatro formas
Nutrição parenteral muitas vezes é requerida para a m a diferentes:
nutenção do estado nutricional, entretanto uma dieta enteral
mínima deve ser mantida. Lembrar que a morbidade e mor • Longa ou clássica - o segmento aganglionar se estende
talidade relacionadas com a nutrição parenteral são elevadas. do reto até o sigmoide.
Os distúrbios metabólicos mais comuns são hipopotassemia e • Total - o segmento aganglionar se estende por todo o có
hipocalcemia. É frequente os pacientes desenvolverem desnu lon, podendo também o íleo terminal ser aganglionar.
trição proteico-calórica e hipovitaminose B12. • Curta - a aganglionose está restrita à porção distai do
Todas as drogas disponíveis atualmente no mercado para reto.
o tratamento da pseudo-obstrução intestinal crônica não são • Ultracurta - a aganglionose restringe-se ao esfíncter in
eficazes no controle dos sintomas clínicos. O uso de procinéti- terno do ânus.
cos pode ser útil. Eles induzem a liberação de acetilcolina pelos
neurônios entéricos que, por sua vez, vai estimular os músculos, ■ Diagnóstico pré-natal
restabelecendo parcialmente o trânsito intestinal. Não pode ser feito pelo USG. A única possibilidade seria nos
Muitas novas drogas estão sob investigação, tais como ago- casos de aganglinose do colo total, o que provocaria dilatação
nistas da serotonina, agentes antidopaminérgicos, antagonistas do delgado e poli-hidrâmnio.
da colecistocinina, agonistas e antagonistas opiáceos e vários
derivados macrolídeos. ■ Diagnóstico
Os agonistas dos receptores da serotonina são aplicados na O megacólon aganglionar ocorre em 1/5.000 nascidos vi
pseudo-obstrução intestinal por sua ação específica sobre o es vos, havendo predileção para o sexo masculino na proporção
vaziamento gástrico, com destaque o Tegaserode. de 3,9/1 nos casos esporádicos.
258 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
O megacólon aganglionar na forma clássica é a forma mais mento normal, ganglionar, é secundária ao acúmulo de
comum da doença e ocorre em 80% dos casos. O transverso fezes.
e o cólon direito estão acometidos em 10 a 20% das vezes. O • A quantidade de contraste deve ser pequena, pois gran
megacólon aganglionar total ocorre em apenas 3% dos casos, des quantidades de contraste impedem a individualização
sendo a verdadeira incidência das formas curta e ultracurta dos segmentos.
desconhecida, devido aos critérios diagnósticos não uniformes • O perfil é a melhor posição para se realizar a radiografia,
empregados pela literatura. pois permite melhor visualização do retossigmoide.
O quadro clínico é variável com o comprimento do seg • Na presença de estudo radiológico inconclusivo no re
mento aganglionar. cém-nascido, repetir o exame após uma ou duas sema
A forma clássica tem manifestação no período neonatal, com nas, pois as imagens típicas nem sempre estão presentes
demora para eliminação de mecônio, distensão abdominal e, ao nascimento.
raramente, vômitos. A eliminação de fezes ocorre nas primeiras
O enema opaco nas formas clássicas demonstra a diferença
24 h após o parto em 94% dos recém-nascidos normais e a ter
de calibre entre a zona acometida (estreitada) e o segmento co-
mo. A ausência de eliminação de mecônio além desse tempo é
lônico ganglionar a montante (dilatado). Nas formas de agan-
altamente sugestiva de processo suboclusivo ou oclusivo nessas
glionose total, o enema opaco mostra cólon de calibre uniforme
crianças. Realmente, Swenson constatou que 94% das crianças
constante e apagamento das haustrações, não se observando
acometidas com megacólon aganglionar não evacuaram nas
diferenças de calibre entre os segmentos colônicos e a zona de
primeiras 24 h de vida. Entretanto, esse tempo para eliminação
transição, uma vez que todo o cólon está acometido. Nas for
do primeiro mecônio em recém-nascidos pré-termo deve ser
mas curtas, o enema opaco é incaracterístico.
estendido para até 72 h sem significação patológica. Os recém-
A biopsia do reto e a manometria anorretal são os métodos
nascidos em geral são bastante irritados, com baixa aceitação
mais fáceis e sensíveis para o diagnóstico da doença de Hirs-
alimentar e desnutridos. A manipulação anal pode levar à eli
chsprung.
minação de mecônio pelo recém-nascido, melhorando a disten
A biopsia da parede retal cirúrgica ou a biopsia por sucção
são abdominal que, entretanto, logo se reinstala. O padrão de
com coloração pela hematoxilina/eosina e por histoquímica pela
evacuações e distensão abdominal não responde ao tratamento
acetilcolinesterase complementam o estudo, sendo confiáveis e
clínico, com dieta ou laxantes, exceção feita aos clisteres.
seguras. A biopsia cirúrgica da parede retal tem a desvantagem
A forma total tem quadro clínico irregular e paradoxalmen de exigir internação e anestesia geral, por se tratar de procedi
te, em geral, é mais branda que a forma clássica, embora já es
mento cirúrgico, mas permite a obtenção de fragmento repre
teja presente no período neonatal. A sintomatologia mais leve
sentativo, contendo submucosa e muscular, o que permite, com
poderia ser explicada porque não há incoordenação peristáltica,
segurança, pesquisar os plexos mioentéricos de Auerbach e os
uma vez que todo o cólon é aganglionar. Assim como na forma
submucosos de Meissner. A biopsia por sucção é mais simples,
clássica, as crianças acometidas apresentam grave comprome não requerendo internação e nem mesmo sedação, mas requer
timento ponderai.
patologista experiente, pois o fragmento obtido dessa forma só
As formas curta e ultracurta têm sintomatologia leve, cons-
representa mucosa e submucosa, sendo somente possível a pes
tituindo-se de constipação intestinal, com pouca ou nenhuma quisa de plexos de Meissner. A presença de acetilcolina devido
repercussão ponderoestatural, fazendo com que o diagnóstico
à hipertrofia de fibras colinérgicas pré-simpáticas que ocorre na
muitas vezes ocorra mais tardiamente. doença é demonstrada através da coloração histoquímica com
A enterocolite é uma complicação grave do megacólon agan
acetilcolinesterase e foi descrita pela primeira vez por Meier-
glionar, que pode ocorrer no recém-nascido ou mesmo no lac-
Ruge. Em criança maior de um ano, o padrão histológico clássi
tente jovem e se caracteriza por diarréia profusa, fétida com co consiste em fibrilas nervosas acetilcolinesterase-positivas em
sangue e muco, intensa distensão abdominal e comprometi
submucosa e muscular da mucosa e clara infiltração de fibras
mento do estado geral.
nervosas finas acetilcolinesterase-positivas em lâmina própria.
Perfuração do cólon ou apendicite podem ocorrer, compli
De acordo com Brito e Maksoud, no recém-nascido e até o ter
cando a doença concomitantemente à enterocolite ou não, e
ceiro mês de vida este padrão clássico não é observado. Esses
são bastante sugestivas de megacólon aganglionar. A literatura autores descrevem o padrão de recém-nascido que se caracte
refere que toda criança abaixo de dois anos com perfuração de
riza por troncos de fibras nervosas acetilcolinesterase-positiva
cólon ou apendicite, mesmo com ausência de constipação in em muscular da mucosa e submucosa, mas com ausência de
testinal deve ser investigada para megacólon aganglionar.
atividade para acetilcolinesterase em lâmina própria. Padrão
O toque retal é de grande importância, pois caracteriza reto
intermediário é encontrado entre essas idades.
vazio. A presença de fezes em ampola retal só ocorre na consti
A manometria anorretal mede a pressão do esfíncter anal
pação intestinal do tipo funcional ou na forma ultracurta.
interno no momento em que um balão é distendido no reto.
Raios X simples de abdome são inespecíficos, podendo mos
No indivíduo normal, essa pressão cai, enquanto, no paciente
trar apenas fezes impactadas.
com a doença de Hirschsprung, essa pressão não cai ou, para
O enema opaco é o exame de escolha, porque permite o
doxalmente, se eleva. A acurácia diagnóstica é de 90%.
diagnóstico pela demonstração de segmento estreitado distai,
A manometria anorretal está indicada principalmente na
correspondendo ao segmento aganglionar, contrastando com
queles casos de forma curta e ultracurta, para diagnóstico dife
o segmento dilatado proximal que corresponde ao segmento
rencial com constipação intestinal funcional, pois no megacólon
ganglionar normal, além de permitir avaliação da extensão do
aganglionar não ocorre resposta manométrica de relaxamento
cólon acometido. Entretanto, cuidados técnicos são essenciais
do esfíncter interno ao aumento de pressão retal.
para a realização do enema opaco:
• O exame deve ser realizado sem preparo prévio, pois o ■ Condições associadas
preparo atenua a diferença de calibre entre o segmento O megacólon aganglionar pode ocorrer isoladamente ou as
acometido e o normal, uma vez que a dilatação do seg sociado a diversas síndromes genéticas, principalmente àquelas
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 259
com falência de migração das células da crista neural, como to, uma vez que, cada vez mais, se têm relatos do potencial de
adenomatose endócrina múltipla tipo 3, disautonomia fami malignidade desses pólipos.
liar, além de frequente associação com síndrome de Down, Pólipos são tumores epiteliais que se projetam acima da mu
macro e microcefalia, surdez, ictiose, palato fendido, braqui- cosa. São inúmeras as classificações dos pólipos intestinais utili
dactilia e outras. zadas em literatura, mas, para o presente capítulo, utilizaremos
a classificação de Cooper, que se baseia nas características his-
■ Tratam ento tológicas dos pólipos, podendo, dessa forma, ser classificados
O tratamento é cirúrgico, estando indicado mesmo nos ca em pólipos neoplásicos e não neoplásicos.
sos com evolução clínica favorável, devido ao risco de ente- Os pólipos não neoplásicos podem ser, por sua vez, subdivi
rocolite. O uso de clister para promover alívio da distensão didos em: hamartomas, pólipos hiperplásticos e pólipos juvenis,
das alças e para preparo cirúrgico deve ser bastante cauteloso, enquanto os neoplásicos são representados por adenomas.
uma vez que o aumento de pressão na luz do cólon pode levar
à ruptura de parede, além de facilitar bacteriemia com conse
quente septicemia.
■ Hamartomas - síndrome de Peutz-Jeghers
O tratamento cirúrgico tradicional é realizado em dois tem Hamartoma é um erro congênito do desenvolvimento tissu-
pos. No primeiro tempo, é realizada colostomia ou ileosto- lar caracterizado pela mistura anormal de tecidos indígenas e
mia, com boca única, dependendo do segmento acometido, que assume aspecto tumoral não neoplásico, primariamente,
na porção mais distai do segmento normal. A reconstrução do e pode estar presente já ao nascimento ou crescer excessiva
trânsito em segundo tempo está indicada a partir do segundo mente no período pós-natal.
semestre de vida. Os pólipos do tipo hamartomas são formados por tecido
Se as condições clínicas da criança forem boas, assim como glandular normal, entremeado por faixas de tecido muscular
se o preparo do cólon estiver adequado e houver certeza da liso oriundo da muscular da mucosa. Das síndromes clínicas
extensão dos segmentos afetados, a cirurgia pode ser realizada que apresentam pólipos hamartomatosos, a síndrome de Peutz-
em um único tempo. Jeghers é a mais importante pela sua frequência.
A presença de enterocolite contraindica a derivação, pois
aumenta o risco de óbito por infecção, devendo-se manter trata ■ Conceito
mento clínico intensivo até que as condições clínicas da criança A síndrome de Peutz-Jeghers é uma doença genética, de
permitam derivação do trânsito intestinal. caráter autossômico dominante, de penetrância variável e alta,
No paciente com aganglionose total, a reconstrução do trân que se caracteriza por pólipos hamartomatosos em todo o trato
sito intestinal é feita com a anastomose do íleo com o reto. En gastrintestinal e pigmentação mucocutânea (palma das mãos,
tretanto, a fim de se minimizar a diarréia consequente à perda planta dos pés e mucosa oral).
do cólon, pode-se proceder à anastomose longitudinal do íleo
terminal com a porção aganglionar do retossigmoide. Tal pro ■ Diagnóstico
cedimento não compromete a motilidade intestinal e permite A pigmentação anômala nos lábios em geral aparece na in
a absorção de água através da mucosa colônica. fância, e a pigmentação da mucosa da boca está presente em
A anorretomiectomia está indicada para as formas curtas 80% dos portadores desta síndrome, precedendo as lesões cutâ
de megacólon agangliônico, mas o sucesso terapêutico nestes neas, que são encontradas em menos de 5% dos pacientes.
casos é bastante discutível. Os sintomas digestivos podem ocorrer desde a idade escolar,
Após a reconstrução do trânsito intestinal, é comum a in- porém a grande maioria dos pacientes inicia os sintomas por
continência fecal, que em geral regride com o treinamento es- volta dos 30 anos de idade, com dor abdominal, sangramento
fincteriano. Porém a incontinência fecal pode ocorrer de forma digestivo, oculto ou não, e obstrução intestinal por intussus-
permanente e está em geral relacionada com traumatismos por cepção. A hemorragia oculta a partir da ulceração dos pólipos
ocasião da reconstrução do trânsito intestinal. A intolerância é responsável pela anemia ferropriva dos pacientes.
à lactose é comum nesses pacientes após a reconstrução do O trânsito intestinal e o enema opaco demonstram a presen
trânsito, estando então indicadas, nestes casos, dietas isentas ça de pólipos em intestino delgado e cólons, respectivamente.
de lactose. O estudo endoscópico do tubo digestivo, alto e baixo, confirma
No momento atual, o tratamento cirúrgico evoluiu muito a presença dos pólipos nesta região, não alcançando o delgado
com a introdução da cirurgia laparoscópica, nos centros que médio. Permite a coleta de pólipos para exame histológico que
dispõem desse recurso. Dessa forma, os passos iniciais e poste confirma o diagnóstico.
riores se modificaram, assim como a indicação de colostomia A associação com tumores de pulmão, ovário, mama e úte
descompressiva, em favor de cirurgia definitiva em tempo pre ro ocorre em idade mais jovem em relação à população geral.
coce e com menos complicações. Muitos autores têm preferi Embora tenha sido considerada como de baixo risco de malig-
do e obtido melhores resultados com a cirurgia videolaparos- nização, desde 1969 são relatados casos em literatura de câncer
cópica transanal, que consiste no abaixamento transanal com gástrico, de duodeno e cólon em pacientes com síndrome de
mucossectomia. Esfincterectomia parcial do esfíncter interno Peutz-Jeghers.
é importante no resultado final. Neste último decênio, foi introduzido o método de colonos-
copia virtual por tomografia computorizada. Esse exame permite
detectar pólipos com dimensões iguais ou superiores a 1 cm, não
■ POLIPOSES INTESTINAIS requer sedação e é de curta duração (15 min), e fúturamente sua
difusão facilitará o diagnóstico das poliposes colônicas.
Embora os pólipos intestinais não estejam presentes ao nas
cimento na grande maioria dos casos, algumas condições serão ■ Tratam ento
discutidas neste capítulo devido às características hereditárias, Se não houver complicações decorrentes dos pólipos, como
às vezes presentes, e à sua importância quanto ao seguimen sangramento incontrolável clinicamente ou intussuscepção,
260 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
o tratamento é conservador, com seguimento adequado para fase de lactente até a idade adulta, entretanto apenas 15% dos
detecção precoce de transformação maligna. pacientes têm diagnóstico realizado acima dos 18 anos. Existe
A ressecção endoscópica seriada está indicada, porém a gran discreta predileção pelo sexo masculino, em uma frequência
de quantidade de pólipos pode tornar o procedimento imprati de 1,4 a 2/1. Apesar de acometer principalmente a raça branca,
cável. A ressecção de segmentos do trato gastrintestinal estaria dois casos foram descritos na raça negra. Na experiência das
condicionada às situações em que houvesse comprometimento autoras, foi verificado polipose juvenil colônica em uma meni
da viabilidade da alça, mas, sempre de modo racional, a fim de na de cor parda. O quadro clínico é variável, podendo ocorrer
se evitar síndrome do intestino encurtado. anemia crônica ferropriva, edema e hipoalbuminemia por en-
O prognóstico é bom, porém controles rígidos para detecção teropatia perdedora de proteína, sangramento digestivo alto ou
precoce de transformação maligna dos hamartomas são neces baixo e intussuscepção. São descritas associações com fístulas
sários, assim também como dos outros tumores que podem arteriovenosas em cérebro, pulmões e fígado em aproximada
estar associados à própria síndrome. mente 15% dos casos, telangiectasias hemorrágicas múltiplas
de trato gastrintestinal e osteoartropatia hipertrófica. O trân
sito intestinal e o enema opaco demonstram a presença de pó
■ Pólipo juvenil epolipose juvenil lipos, que também podem ser observados e ressecados através
■ Conceito da colonoscopia e endoscopia digestiva alta. O diagnóstico de
O pólipo juvenil ou pólipo inflamatório é constituído por certeza também aqui só será possível pela histologia. Ultras-
dilatações císticas das glândulas, circundadas por edema e in som de abdome, raios X de ossos longos e tórax e tomografia
filtrado inflamatório, com presença frequente de superfície ul computadorizada de tórax são indicados para investigação das
cerada e formação de tecido de granulação. anomalias associadas.
O pólipo juvenil pode ser único e ocorrer isoladamente no
cólon, caracterizando o pólipo juvenil solitário ou múltiplo (po- ■ Tratam ento
lipose), acometendo todo o cólon n apolipose juvenil colônica e O tratamento deve ser conservador, com ressecção endos
ainda comprometendo todo o trato gastrintestinal na polipose cópica sempre que possível. A ressecção cirúrgica do cólon ou
juvenil generalizada. segmentos de delgado está indicada para os casos de sangra
A conceituação de polipose também é de extrema impor mento e perda proteica incontroláveis clinicamente, devendo-se
tância. Os pólipos juvenis sempre foram considerados lesões ter em mente os riscos da síndrome do intestino encurtado em
benignas quanto ao risco de neoplasias; porém, em 1974, Sa- ressecções amplas. Devido ao risco aumentado de neoplasias, o
chatello et a i chamaram a atenção para a presença de displasias controle endoscópico a cada ano é imprescindível. Alguns auto
nesses pólipos e a maior incidência de carcinoma de cólon em res discutem a colectomia total a partir da época do diagnóstico
pacientes e familiares com pólipos múltiplos em relação à po devido ao risco de neoplasia. Entretanto, principalmente em
pulação em geral. Com base nestes achados, a literatura vem criança, é considerado que o controle rígido por endoscopia e
discutindo o número de pólipos juvenis necessários para se colonoscopia seja o adequado.
caracterizar polipose. Neste sentido, Giardello et al., em 1991,
propuseram que três pólipos juvenis, ou qualquer número de
pólipos em indivíduo com história familiar, fazem o diagnós
■ Pólipos neoplásicos - polipose cólica familiar
tico de polipose juvenil e propõem rígido controle desses in ■ Conceito
divíduos devido ao risco de neoplasias. Os adenomas são os representantes dos pólipos neoplásicos
e podem ser classificados em tubulares, vilosos e mistos. São
■ Etiologia importantes clinicamente, pois são lesões reconhecidamente
Em 1970, Sachatello et al. chamaram a atenção, pela primeira pré-malignas. As síndromes clínicas com pólipos adenomato-
vez, para o caráter hereditário da polipose juvenil, tanto colôni sos são a polipose cólica familiar, a síndrome de Gardner e a
ca como generalizada. Aproximadamente 1/3 dos casos de poli síndrome de Turcot. A polipose cólica familiar pode ter mani
pose apresentam caráter autossômico dominante, enquanto os festação precoce na infância, sendo as outras duas, embora de
restantes apresentam-se na forma de mutações livres. Esse fato caráter hereditário, de aparecimento mais tardio. Os pólipos
é de extrema relevância, no aconselhamento genético do casal intestinais não são obrigatórios nestas duas últimas síndromes,
que tem um filho afetado, pois enquanto o risco de recorrência ocorrendo em apenas 35% dos casos.
na herança autossômica dominante é de 50%, na mutação livre A polipose cólica familiar é uma doença de caráter heredi
o risco é praticamente desprezível. tário autossômico dominante, descrita pela primeira vez por
Menzel em 1821, embora 20% dos casos representem mutações
■ Diagnóstico novas. A criança, porém, não nasce com a doença, apenas herda
O pólipo juvenil solitário é bastante comum na criança e está a tendência das células epiteliais colônicas de se proliferarem
restrito ao cólon. A sintomatologia consiste principalmente em na adolescência ou fase adulta, desenvolvendo pólipos adeno-
sangramento retal, podendo haver protrusão do pólipo através matosos no cólon.
do ânus ou mesmo autoamputação em até 10% dos casos. O
toque retal pode permitir palpação de massa correspondente ■ Diagnóstico
ao pólipo, quando de localização mais distai, e enema opaco A sintomatologia raramente surge antes dos 10 anos de ida
à visualização de imagem correspondente ao pólipo. Entre de; na adolescência e no adulto jovem, os pólipos frequente
tanto, o diagnóstico de certeza só será firmado pela histologia mente aparecem. A sintomatologia se constitui de diarréia, que
característica após a exérese, por colonoscopia ou retossigmoi- a princípio pode ser leve e intermitente, passando a intensa,
doscopia. com presença de muco e sangue, dor abdominal, emagrecimen
O diagnóstico da maioria dos pacientes com polipose juvenil to e anemia. Se já existe a presença de carcinoma, pode haver
acontece na idade pré-escolar, embora possa ocorrer desde a obstrução intestinal e perfuração. O toque retal pode revelar a
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 261
presença de inúmeros pólipos. O enema opaco é importante A fragilidade das paredes vasculares leva à formação de
mas, às vezes, não possibilita a visualização de micropólipos. A aneurismas e ruptura de artérias, sendo as mais atingidas as
colonoscopia com ressecção ou biopsia do pólipo é exame obri artérias ilíacas, esplênicas e renais.
gatório, pois o diagnóstico de certeza só é dado pelo exame his- A confirmação diagnóstica se faz por biopsia cutânea com a
tológico que deve dar especial atenção à presença de displasias identificação do defeito de formação do colágeno III.
ou alterações para adenocarcinoma. A presença de hipertrofia
do epitélio pigmentar da retina, segundo alguns autores, é um ■ Tratamento
bom marcador da polipose cólica familiar, pois pode anteceder, Não há terapia específica direta do defeito molecular da sín
em muitos anos, o aparecimento dos pólipos. drome de Ehlers-Danlos. A terapia de suporte inclui a preser
vação da função articular, através de exercícios planejados e a
■ Tratam ento prevenção da constipação intestinal pelo uso de dieta rica em
O tratamento é essencialmente cirúrgico, uma vez que 60% fibras.
dos pacientes já apresentam carcinoma no momento do diag O reparo cirúrgico dos vasos rompidos ou víscera interna é
nóstico. Três abordagens cirúrgicas são possíveis: a) cirurgia extremamente difícil devido à friabilidade dos tecidos.
ampla com proctossigmoidectomia total com ileostomia ter O quadro perfurativo intestinal recorrente, de acordo com a
minal definitiva; b) colectomia subtotal com excisão da mucosa experiência das autoras, pode ser tratado, em alguns episódios,
retal e abaixamento transretal do íleo com reservatório; c) co clinicamente, de modo expectante com suporte nutricional pa-
lectomia total com preservação do reto e anastomose ileorretal. renteral e antibióticos, ou, em outros, com abordagem cirúrgica
Entretanto, nesta última opção, devido à manutenção do reto adequada ao processo. É aconselhável evitar exercícios intensos,
(e, consequentemente, dos pólipos que podem ser cauteriza- por risco de ruptura de vísceras, assim como evitar gravidez,
dos em seção única ou em várias), o controle colonoscópico a pois o risco de ruptura uterina é grande.
cada seis a 12 meses é imperioso para detecção de transforma
ção maligna.
■ ANOMALIAS CONGÊNITAS DOS VASOS
■ DESORDEM DE DESENVOLVIMENTO DO INTESTINO DELGADO E GROSSO
DO TECIDO C0NECTIV0 As anormalidades dos vasos do intestino delgado e grosso
incluem hemangiomas e telangiectasias. São responsáveis por
um terço dos casos de perdas sanguíneas crônicas do intesti
■ Síndrome de Ehlers-Danlos no. Representam um desafio ao médico devido à dificuldade
■ Conceito na sua identificação e suas limitações terapêuticas, principal
A síndrome de Ehlers-Danlos é resultante de alterações con mente em crianças com anomalias vasculares amplas do trato
gênitas do tecido conectivo e se caracteriza por uma variedade gastrintestinal.
de sinais e sintomas, incluindo hipermobilidade articular, fa
cilidade de adquirir escoriações, hiperextensibilidade da pele, ■ Hemangiomas
algumas vezes escaras atróficas, pseudotumores moluscoides
e epicanto. ■ Conceito
São considerados neoplasias verdadeiras, pois representam
■ Classificação um crescimento do espaço vascular com caráter regenerativo
Há pelo menos 10 tipos da síndrome; no entanto, apenas o e proliferativo.
tipo IV apresenta sintomatologia gastrintestinal.
■ Frequência
■ Etiologia da síndrom e de Ehlers-Danlos - tipo IV Um quarto dos casos de hemangiomas do intestino se ma
A síndrome de Ehlers-Danlos - tipo IV é uma mutação no nifestam no primeiro ano de vida. A maioria das crianças são
gene COL 3A1 do braço longo do crossomo 2, levando à anor diagnosticadas após os 12 anos de idade, depois de anos de
malidade na produção do colágeno tipo III. Doença de herança sangramento intestinal e transfusões sanguíneas, sem esclare
autossômica dominante. cimento etiológico.
O intestino delgado é acometido isoladamente em cerca de
■ Diagnóstico 35% dos casos e, em conjunto com o intestino grosso, ao redor
Neste tipo IV, a hipermobilidade articular (em extensão e de 45% dos casos.
flexão) e a hiperextensibilidade da pele são menos acentuadas
do que nos demais tipos. A pele é fina e transparente, dando ■ Diagnóstico
ao dorso da mão aspecto senil (acrogeria) e no tronco permi Os hemangiomas capilares podem ser assintomáticos ou
te visualizar uma vascularização proeminente. Os cabelos são evoluir com fases de sangramento digestivo, alto ou baixo, in
esparsos e os olhos, proeminentes. Em membros inferiores, a tercaladas por períodos assintomáticos. Os hemangiomas ca
presença de hematomas é frequente, notando-se, também, em vernosos costumam se manifestar com hemorragias profusas e,
face anterior do joelhos, numerosas escaras nacaradas. em algumas vezes, com sintomas de dor abdominal em decor
A fragilidade do tecido colágeno das camadas musculares rência de invaginação intestinal. Apresentam, também, perío
do tubo digestório condiciona a ocorrência de perfurações es dos assintomáticos.
pontâneas, com peritonite tamponada ou não, manifestadas Em ambos os tipos de hemangiomas, pode ocorrer sangra
como quadro abdominal agudo de repetição e de graus varia mento discreto, oculto, de longa duração (anos) com desenvol
dos de gravidade. vimento de anemia crônica de difícil diagnóstico.
262 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
A confirmação diagnóstica é sempre endoscópica, para os de O divertículo de Meckel pode ser livre (74%), ou ligado
regiões acessíveis por este método. Os hemangiomas capilares (26%) por faixas fibrosas ao umbigo.
se mostram como manchas vermelho-vivas e os cavernosos,
como lesões vinhosas, polipoides ou não. ■ Frequência
A presença de hemangioma cutâneo pode orientar na busca Uma incidência de 1 a 4% é comumente descrita na popula
de hemangioma intestinal. ção geral e esse divertículo pode ser diagnosticado em qualquer
Se a endoscopia não localizar o local de sangramento, deve- idade. Segundo Soltero e Bill, o risco de o portador de divertí
se indicar cintigrafia com 99mTc enxofre coloidal (hemorragia culo de Meckel desenvolver sintomas é em torno de 4 a 6% dos
ativa) ou com hemácias marcadas com 99mTc. Outro recurso casos, e este risco diminui com a idade. A incidência no sexo
complementar é arteriografia seletiva, de difícil execução em masculino e no feminino é cerca de 2,7:1.
crianças muito pequenas.
■ Etiologia
■ Tratam ento A falência na obliteração do dueto onfalomesentérico, o qual
Ver adiante. conecta o saco vitelino ao trato intestinal, da 5aà 7* semana in-
trauterina, determina a ocorrência do divertículo de Meckel.
■ Telangiectasia ■ Diagnóstico
■ Conceito Mayo descreveu em 1933 que frequentemente se suspeita do
Não são considerados tumores vasculares, mas ectasias da divertículo de Meckel, e esse divertículo é pouco diagnosticado
vascularização normal, preexistente, sem caráter de prolifera e raramente encontrado.
ção e regeneração. Alguns casos de divertículo de Meckel são assintomáticos
e diagnosticados acidentalmente em laparotomia por outras
■ Frequência causas, como, por exemplo, devido à apendicite aguda.
Sua frequência é de 1 a 2 para 100.000 da população geral. Quando manifesto, as formas de apresentação do divertí
culo de Meckel são:
■ Diagnóstico a) quadro obstrutivo (30% dos casos) em decorrência da
Duas formas clínicas são de caráter congênito, mas de m a presença de bandas peritoneais ligando o divertículo ao
nifestação tardia, em geral na 5a década. mesentério ou ao umbigo, e, também, da presença de
Uma delas é representada pela doença de Rendu-Osler- Weber, tecido pancreático ectópico. Em ambas as situações, é
na qual as telangiectasias são localizadas na língua, superfície possível se desenvolver vólvulo ou invaginação;
mucosa dos lábios, na face, conjuntiva, orelhas, dedos, nariz e b) quadro de hemorragia digestiva (27% dos casos) e, destes,
em todo o tubo digestivo. O sangramento digestivo pode ser 60% manifestam-se em crianças menores de dois anos
alto e/ou baixo, sem dor abdominal. Alguns casos são acom de idade. A causa da hemorragia em 96% dos casos é a
panhados de cirrose hepática e outros por fístula arteriovenosa presença de mucosa gástrica ectópica que provoca ulce-
pulmonar. ração péptica no próprio divertículo ou na mucosa ileal
A segunda forma congênita é a angiodisplasia que acome adjacente. Esta ulceração pode, também, se aprofundar,
te principalmente o delgado alto e pode ter extensões muito ocasionando perfuração e peritonite ou hemoperitônio.
amplas. O uso de anti-inflamatório não hormonal pode agravar
O roteiro diagnóstico é igual ao indicado para os hem an a ulceração péptica no divertículo com mucosa gástrica
giomas. ectópica;
c) diverticulite com perfuração ou não;
■ Tratam ento
O tipo de tratamento nas anomalias vasculares intestinais
depende de muitos fatores, incluindo tipo, localização e número
de lesões. Pacientes com poucos hemangiomas em segmento
intestinal bem definido podem ter tratamento cirúrgico. Quan
do as lesões são múltiplas e limitadas pelo tamanho, poderá ser
realizada fotocoagulação. Algumas vezes, é necessário repetir
o tratamento.
■ Tratam ento
Quando encontrado ocasionalmente na laparotomia explo
radora, seu tratamento continua controverso, particularmente
na população pediátrica. Ele deverá ser ressecado se houver
suspeita de mucosa ectópica ou se houver ligamento ao umbi
go ou ao mesentério através de bandas fibrosas, como medida
preventiva.
O divertículo de Meckel complicado por sangramento, pro
cesso inflamatório, perfuração ou obstrução deve ser sempre
operado.
A diverticulectomia está indicada se a complicação estiver
restrita ao divertículo, sem comprometimento da parede intesti
nal adjacente. Entretanto, se essa parede estiver comprometida,
está indicada ressecção segmentar da alça com o divertículo e
anastomose terminoterminal. Todos esses procedimentos po
dem ser realizados com sucesso por via laparoscópica.
■ DOENÇA DOMECÔNIO
São incluídas dentro deste item as doenças resultantes de
Figura 27.5 Imagem cintigráfica do divertículo de Meckel (seta). ação nociva do mecônio que ou bloqueia o lúmen intestinal ou
patologicamente se localiza na cavidade peritoneal.
Embora grande parte dos casos de doença meconial esteja
associada à mucoviscidose, outras condições podem ocasionar
d) quadro umbilical já no período neonatal, com granu- esta doença. Sob ponto de vista clínico, a doença do mecônio
lomas, drenagem de fluidos pelo umbigo e cisto um pode ser dividida em quatro categorias:
bilical. 1- íleo meconial;
A cintigrafia para pesquisa de divertículo de Meckel é posi 2- rolha de mecônio;
tiva em 85% dos casos. O uso de pentagastrina endovenosa ou 3- peritonite meconial;
cimetidine VO pode melhorar a positividade do teste. A colo- 4- equivalente tardio do íleo meconial.
noscopia e a endoscopia digestiva alta afastam outras causas de As primeiras três situações manifestam-se logo ao nasci
sangramento intestinal. mento, mas a quarta pode surgir no paciente mucoviscidótico
A arteriografia e estudos contrastados devem apenas ser rea em qualquer período da vida.
lizados se o sangramento persistir e se os exames anteriores
foram normais.
■ íleo meconial
■ Condições associadas ■ Conceito
Situs inversus totalis. É uma obstrução intestinal intraluminal que ocorre no perío
do neonatal, caracterizada pela presença anormal de mecônio
viscoso e espesso, levando à obstrução do intestino delgado,
geralmente no íleo terminal, descrito pela primeira vez por
Landsteiner em 1905.
■ Frequência
De todos os casos de obstrução intestinal no recém-nascido,
9 a 33% são ocasionados por íleo meconial. Dos pacientes com
íleo meconial, detectou-se mucoviscidose entre 25 e 80% dos
casos; dentre os pacientes com mucoviscidose, 10 a 16% deles
relatam íleo meconial ao nascimento.
■ Classificação
Pode ser classificado em duas categorias: 1) simples, ou não
complicado, quando o mecônio anormal causa uma simples
obstrução no Üeo distai, onde se encontram muitas concreções
de mecônio; 2) complicado, quando a massa de mecônio espes
so funciona como um fulcro, levando ao desenvolvimento de
vólvulo, perfuração e peritonite meconial cística gigante.
Figura 27.6 Peça cirúrgica de um divertículo de Meckel retirado de
paciente do sexo masculino, de 12 anos de idade, com história de en- ■ Doenças associadas
terorragia intensa e indolor, decorrente de sangramento desse divertí Além da fibrose cística, o íleo meconial pode estar associa
culo. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) do à doença de Hirschsprung, à insuficiência pancreática não
264 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso
■ Tratam ento
O íleo meconial simples deve ser tratado de modo conser ■ Peritonite meconial
vador, conforme esquema instituído por Noblett em 1969, com ■ Conceito
enemas de Gastrografina diluído 3:1 ou 4:1 em água e adminis
A peritonite meconial é definida como uma peritonite assép
trados lentamente pelo reto. A maioria dos pacientes necessita
tica e química, causada pela presença de mecônio na cavidade
de quatro ou mais enemas para liberar a obstrução intestinal.
peritoneal devido à perfuração intestinal e calcificação ainda
A solução chega no íleo terminal e se mistura com o mecônio
na fase intrauterina. A primeira descrição foi feita em 1761 por
espesso. Geralmente após 24 a 48 h, ocorre a passagem de m e
Morgagni, mas a primeira operação bem-sucedida de que se
cônio semilíquido.
tem relato é de 1943, por Agerty.
Há registro de 11% de perfuração relacionada com o uso de
enema com Gastrografina. Alguns autores diluem a Gastrogra
fina a baixas concentrações, pois, reduzindo a osmolaridade, o ■ Etiologia e patogênese
risco de perfuração também se reduz. A perfuração intestinal ocorre principalmente devido à obs
Outro método inclui o uso da N-acetilcisteína por sonda trução intestinal, que pode ser causada por íleo meconial, atresia
nasogástrica que permite a desobstrução em 30% dos casos. intestinal, estenose, vólvulo, faixas aderenciais peritoneais con
Alguns pacientes com üeo meconial, mau estado geral e con gênitas, gastrosquise e megacólon aganglionar, embora possa
taminação do abdome com mecônio necessitam de gastrosto- não haver evidências de obstrução intestinal. O mecônio esté
mia com dupla boca. Os casos complicados com vólvulo e atre ril, extravasado através de uma perfuração intestinal, induz a
sia necessitam de ressecção intestinal e anastomose primária. uma peritonite química, devido à ação das enzimas digestivas
nele contidas, levando à adesão fibrosa, aglutinação das alças
■ Prognóstico intestinais e calcificação. O local da perfuração, muitas vezes,
A mortalidade com o tratamento conservador do íleo m e não é encontrado devido às adesões. Se, entretanto, não existir
conial é de cerca de 0 a 15%. A mortalidade para pacientes que tamponamento adequado e o mecônio continuar extravasando
apresentam perfuração intestinal é alta, ao redor de 50% dos para a cavidade peritoneal, pode haver formação de aderência
casos. entre as alças do tipo fibrinoso, mais frouxo.
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 265
■ Diagnóstico pré-natal Bacrt, AL & Castccls-Van Daelc, B. Gcncralizcd juvenile polyposis with pul-
monary arteriovenous malformation and hypcrtrofic ostcoarthropathy.
Pelo USG, se o examinador estiver atento a essa possibili
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dade, o diagnóstico pode ser realizado a partir da 26a semana Brito, IA & Maksoud, JG. Evolution with age of thc acctylcholinestcrasc acti-
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instáveis e não obrigatoriamente simultâneos, e as calcificações, Castro, RRO, Brant, CQ, Ferreira, LEVVC et al. Síndromc de Peutz-Jcghcrs c
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A sintomatologia ocorre logo após o nascimento, com gra le polyposis associatcd with pulmonary malformation. Gastroenterology,
ve e progressiva distensão abdominal, com eritema e edema 1980;78:1566-70
de parede abdominal. O abdome pode estar tenso e distendi Fcnlon, HM, Nunes, DP, Schroy, PC et al. A comparison of virtual convcn-
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com o tipo de peritonite, sendo comum o aparecimento de cal Maksoud, JCÍ. Mcgacolo aganglionar. Em: Corrêa Neto, A. Clínica cirúrgica, 4a
cificações, que podem ocorrer em até 24 h após a perfuração. É cd., São Paulo, Sarvicr, 1988.
importante a diferenciação entre calcificações intraperitoneais e Marchcse, LT & Sakasscgawa-Spcrandio, IM. Rotação intestinal incompleta. Em:
Maksoud, JG. Cirurgia Pediátrica, 2" cd., Rio de Janeiro, Rcvintcr, 2003.
calcificações intraluminais, que não têm significação clínica.
Mathias, AL. Malformação anorrctal. Em: Barbicri, D & Koda, YKL. Doenças
Gastroenterológicas em Pediatria, São Paulo, Athencu, 1996.
■ Tratam ento Mathias, AL. Moléstia de Hirschsprung. Em: Barbicri, D 8í Koda, YKL. Doenças
Os casos sem sinais obstrutivos devem ter conduta expectan Gastroenterológicas em Pediatria, São Paulo, Athencu, 1996.
te, sendo a indicação cirúrgica reservada aos casos com sinais Passarg, E 8c Stevcnson, RE. Small and large intestines. Em: Stevenson, RE;
obstrutivos ou com sinais infecciosos, realizando-se ressecção Hall, JG; Goodma, RM. Human malformations and related anomalies, NY,
Oxford Univcrsity Press, 1996.
dos segmentos atrésicos e inviáveis. O prognóstico é relativa
Pena, A. Anomalias anorretais. Em: Maksoud, JG. Cirurgia Pediátrica, 2l cd.,
mente bom, embora possam ocorrer novas obstruções. Rio de Janeiro, Rcvintcr, 2003.
Sachatcllo, CR, Pickrcn, JW. 8c Gracc, JT. Gencralized juvenile polyposis: A
hercditary syndromc. Gastroenterology, 1970; 58:699-708.
■ Equivalente do íleo meconial Schufflcr, MD. Pathology of enterie neuromuseular disorders. Em: Hyman, PE
Condição relativamente rara. 8c DiLorcnzo, C. Pediatric gastrintestinal motility disorders. NY, Acadcmy
Profissional Information Services, 1994.
Ocorre em pacientes mucoviscidóticos, com tratamento ina Scott-Cornncr, CEH, Hausmann, M, Hall, TJ et al. Familial juvenile polyposis:
dequado em relação às enzimas pancreáticas. O quadro obs- Pattcrns of rccurrcncc and implications for surgical management. J Am Coll
trutivo pode ser mais tardio, na época escolar, descrito como Surg, 1995; i8i:407-13.
equivalente meconial, com sintomatologia de dor abdominal Silva, MM. Duplicação do trato gastrintestinal. Em: Maksoud, JG. Cirurgia
em cólica, vômitos, alteração no hábito intestinal, constipa Pediátrica. 2a cd., Rio de Janeiro, Rcvintcr, 2003.
ção intestinal, distensão abdominal e, às vezes, sangramento Smith, S, William, CS, Fcrris, CP. Diagnosis and treatment of chronic gastropa-
resis and chronic intestinal pseudo-obstruetion. Gastroenterol Clin North
retal. Am, 2003; 32:619-58.
O tratamento é igual ao do íleo meconial simples. Touloukian, RJ. Intestinal atresia and stenosis. Em: Aschraft, KW 8c Holdcr,
TM. Pediatric Surgery, 2nd cd., NY, Saundcrs, 1993.
Wesson, D. Thc intestines - Congcnital anomalies. Em: Walkcr, WA, Duric,
■ LEITURA RECOMENDADA PR, Hamilton, JR, Walkcr-Smith, JA, Watkins, JB. Pediatric Gastrintestinal
Disease, Philadclphia, BC Decker, 1991.
Andrassy, RJ 8c Nirgioti, JG. Mcconium discasc of infancy. Em: Aschraft, KW Wrenn Jr, EL. Alimcntary tract duplications. Em: Aschraft KW 8c Holdcr TM.
& Holdcr, TM. Pediatric Surgery, 2nd cd., NY, Saundcrs, 1993. Pediatric Surgery, 2nd cd., NY, Saundcrs, 1993.
Ayoub, AAR. íleo Meconial. Em: Maksoud, JG. Cirurgia Pediátrica, 2" cd., Rio Wyllc, R. Motility disorders and Hirschsprung discasc. Em: Bchrman, RE et al.
de Janeiro, Rcvintcr, 2003. Nelson Textbook o f Pediatrics. 17* cd., Elscvicr, 2004.
Síndrome de Má Absorção
Intestinal
Lorete Maria da Silva Kotze, Luiz Roberto Kotze e Renato Mitsunori Nisihara
266
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 267
LUM EN IN T E ST IN A L E N T E R Ó C IT O SA N G U E - L IN F A
D IG EST Ã O d i g e s t A o /a b s o r ç Ao c a p t a ç Ao
AM BAS
Agressões à mucosa
Síndrome do Intestino curto
Doença cellaca
Espru tropical
Figura 28.1 Digestão e absorção dos carboidratos da dieta. As etapas principais do processo digestivo e absortivo são mostradas com algumas
afecções que resultam em má digestão e/ou má absorção de hidratos de carbono.
Aos tecidos
para
utilização
Figura 28.2 Digestão e absorção dos lipídios da dieta. As etapas principais do processo digestivo e absortivo são mostradas com algumas
afecções que resultam em má digestão e/ou má absorção de gorduras.
• impedimento à remoção dos nutrientes da mucosa (vasos mo, hipoparatireoidismo e doença de Addison), Colagenoses
linfáticos e estruturas ganglionares mesenteriais): (esclerodermia, vasculites do lúpus eritematoso disseminado,
Causas pós-epiteliais ou pós-entéricas. poliarterite nodosa) e Amiloidose.
Seguem-se as principais entidades que podem ser classifi
cadas, predominantemente, em cada uma das etapas anterior
mente apontadas (Quadros 28.1 a 28.5).
■ DIAGNÓSTICO
É de suma importância o conhecimento das manifestações
digestivas das doenças sistêmicast que, em muitos casos, po ■ Diagnóstico da má absorção
dem se iniciar por disabsorção ou cursar com tal síndrome A ordem de raciocínio, primária e essencialmente, consiste
no decorrer de sua evolução clínica. Temos, como exemplos, em caracterizar a situação observada em cada paciente com a
a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, cada vez mais fre maior acurácia possível, visando-se a chegar a um diagnóstico
quente; Doenças Endócrinas (diabetes, hiper ou hipotireoidis- definitivo. O tratamento a ser instituído, para ser efetivo, deve
268 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal
Figura 28.3 Digestão e absorção das proteínas da dieta. As etapas principais do processo digestivo e absortivo são mostradas com algumas
afecçòes que resultam em má digestão e/ou má absorção de proteínas.
se basear nesse diagnóstico, e os efeitos da terapia ajudam a ■ Má absorção secundária a distúrbios constitucionais ou cirurgias
confirmá-lo ou a refutá-lo. O tratamento destas condições é principalmente dependente
O diagnóstico das síndromes de má absorção compreende do reconhecimento da doença primária: Diabetes melito, doen
quatro estágios: ça de Addison, amiloidose, esclerodermia, tuberculose, neo-
plasias do intestino delgado (linfoma e carcinoide abetalipo-
1. Diagnóstico primário de má absorção;
proteinemia etc.
2. Diferenciação entre estados disabsortivos secundários a
outros distúrbios constitucionais ou secundários a proce Más absorções secundárias a operações abdominais: gas-
trectomia, alça cega, fístulas e anastomoses, ressecções intes
dimentos cirúrgicos e os de origem alimentar primária;
tinais etc.
3. O diagnóstico diferencial dos estados disabsortivos de
vidos à falta de preparação para a absorção daqueles nos
■ Diagnóstico diferencial das disabsorções por falta de
quais as funções absortivas do intestino delgado parecem preparo à absorção
anormais (enteropatias);
Compreende as falhas na secreção gástrica, deficiência de
4. Diagnóstico diferencial das enteropatias.
enzimas pancreáticas, deficiência biliar.
■ Diagnóstico prim ário de má absorção ■ Diagnóstico diferencial das enteropatias
O diagnóstico de má absorção propriamente dito se baseia
a. Enteropatias altas;
no tripé história, exame físico completo e estudo das fezes do
b. Enteropatias baixas.
paciente.
O Quadro 28.6 sintetiza os dados clínicos e os resultados de
exames, destacando seus prováveis mecanismos.
■ EXAMES COMPLEMENTARES
São usados para confirmar má digestão e má absorção e, mais
importante, ajudam a identificar a causa. Podem ser divididos
quanto a disponibilidade, custos e grau de invasão. Pacien
tes com pandisabsorção estabelecida tipicamente têm diversas
anormalidades laboratoriais, ao contrário dos portadores de má
absorção isolada que podem não apresentar qualquer alteração
nos exames de rotina (Quadro 28.6).
------------------------------- ▼-------------------------------
Q u a d ro 28.1 Afecções gastrintestinais associadas com má digestão luminal
Estômago
D e s n u tr iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a D im in u iç ã o d a p r o d u ç ã o d e á c id o (h ip o c lo r id r ia )
A n e m ia p e rn ic io s a D im in u iç ã o d e fa to r in trín s e c o , m á a b s o rç ã o d e v lt . B u
S ín d r o m e d e d u m p in g E s v a z ia m e n t o r á p id o d o c o n t e ú d o g á s tr ic o p a ra o in t e s t in o d e lg a d o
D ilu iç ã o d e e n z im a s
Pâncreas
F ib ro s e cística Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s e b ic a r b o n a t o
S. S h w a c h m a n -D ia m o n d Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s
P a n c re a tite a g u d a / c rô n ic a Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s e b ic a r b o n a t o
D e s n u tr iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s
D e fic iê n c ia d e t r ip s in o g è n io Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s
D e fic iê n c ia d e lip a se Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s
D e fic iê n c ia d e a m ila s e Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s
Fígado
S ín d r o m e s c o le stá tic a s Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e sais b ilia re s c o m d e fic ie n te f o r m a ç ã o d e m ice la s
Intestino
D e fic iê n c ia d e e n te ro q u in a s e Im p e d i m e n t o d a a tiv a ç ã o d a s e n z im a s p a n c re á tic a s lu m in a is
D e s n u tr iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s
P r o d u ç ã o d e to x in a s
D e s c o n ju g a ç â o d e sais b ilia res
D u p lic a ç ã o a n a tô m ic a S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s
S ín d r o m e d a a lça c e g a S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s
S ín d r o m e d o in t e s t in o c u r t o S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s
P s e u d o -o b s t r u ç â o in te s tin a l S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s
----------------------------------------------------------------------- ▼-----------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 28.2 Afecções gastrintestinais associadas com má digestão na membrana do enterócito
Lactase
S a c a ra s e -is o m a lta s e
Tre a la s e
L a cta se
Sacarase-isomaltase
Glicoamilase
------------------------------------------ ▼------------------------------------------
Q u a d ro 28 .3 Afecções gastrintestinais associadas com má absorção no enterócito
M á n u t r iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a D a n o x a d a p t a ç ã o d a a rq u it e t u r a m u c o s a a lte ra d a
D o e n ç a d e H a rtn u p D e fe ito d e t r a n s p o r t e d e a m in o á c id o s n e u tro s
S ín d r o m e d a fra ld a a zu l D e fe ito n o tr a n s p o r t e d e tr ip t o f a n o
S ín d r o m e d e O a s t h o u s e D e fe ito n o tr a n s p o r t e d e m e tio n in a n o in t e s t in o e rim
D o e n ç a c elía ca D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
S ín d r o m e d o in t e s t in o c u r t o P e rd a d a s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a , t r â n s ito a n o r m a l
S ín d r o m e d e d a n o à m u c o s a D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
In to le râ n c ia a o le ite/so ja S ín d r o m e p ó s -g a s t r o e n t e r it e
E s p ru tro p ic a l D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
D o e n ç a d e W h ip p le O b s t r u ç ã o lin fá tica . Im p e d i m e n t o n o tr a n s p o r t e d e lip íd io s (?), e n t e ro p a t ia focal
In fe c ç á o / in fla m a ç â o b a c te ria n a
D o e n ça de C ro h n D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a . P e rd a c rô n ic a d e s a n g u e
In fe c ç ã o vira l
R o ta v íru s D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
S ID A D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
S u p e r c r e s c im e n t o b a c te r ia n o
In s u fic iê n c ia p a n c re á tic a e x ó c rin a e h e p á tic a
A c r o d e r m a t it e e n te ro p á tic a Im p e d i m e n t o à a b s o rç ã o d o z in c o
----------------------------------------------------- ▼-----------------------------------------------------
Q uadro 28 .4 Afecções gastrintestinais associadas com alterações no transporte para o sangue e a linfa
In s u fic iê n c ia c a rd ía c a c o n g e s tiv a D is te n s ã o v e n o s a
E d e m a d a p a r e d e in te s tin a l
--------------------------------------------- ▼---------------------------------------------
Q u a d ro 28.5 Afecções gastrintestinais associadas com diversas alterações (miscelânea)
Doença/Condição Fisiopatologia
G a s t r o e n t e r o c o lo p a t ia e o s in o fílic a M e c a n is m o im u n o ló g ic o d e s c o n h e c id o
D ro g a s
M á a b s o rç ã o d e c á lc io , g o r d u r a , á c id o s b ilia re s e v it a m in a s lip o s s o lú v e is
F e n a n to ín a M á a b s o r ç ã o d e c á lc io e á c id o fó lic o
S u lfa s a la zin a M á a b s o rç ã o d e á c id o fó lic o
A n t a g o n is t a s d o r e c e p t o r H , d a h is ta m in a I m p e d i m e n t o à lib e ra ç ã o á c id o / p ro te o lític a d e v it a m in a B u
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 271
▼ ------------------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 28 .6 Síndrome de má absorção intestinal — dados clínicos, de exames e mecanismos envolvidos
s a n g r a m e n t o , e q u im o s e TTA P a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d e v it a m in a K
p a restesia s m a c ro d to s e a lte ra ç ã o n a a b s o r ç ã o d e v it a m in a B ,,
n e u ro p a tia i v it. B , „ m e g a lo b la s to s
g lo s s ite i fo la to s a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d e á c id o fó lic o
a n e m ia m ic ro c ito s e a lte ra ç ã o n a a b s o r ç ã o d e Fe
h lp o c r o m ia
experientes, tais resultados têm sensibilidade e especificida ra. Apresenta uma correlação muito boa com o teste de Van
de altas, estando claramente correlacionados com a dosagem der Kamer. Tem sido muito usado para avaliar a redução da
quantitativa de gordura fecal. esteatorreia em pacientes com fibrose cística em resposta à te
rapêutica com enzimas pancreáticas. Embora não substitua a
■ Balançode gorduranas fezes dosagem quantitativa da gordura fecal, é um teste rápido, viá
Esta prova consiste na avaliação quantitativa de triglicerí- vel, não oneroso e seguro para a triagem de esteatorreia, prin
dios e ácidos graxos livres nas fezes. Para a realização do teste, cipalmente para pacientes pediátricos.
administra-se ao paciente, durante seis dias, uma dieta conten
do aproximadamente 35% das calorias em gordura. A partir do ■ Determinação da elastase-1(EL-1)
quarto dia até o sexto dia, as fezes são guardadas juntas em ge Relatos recentes indicam que a determinação da EL-1 nas
ladeira. Ao final da coleta, são homogeneizadas e a quantidade fezes é um teste sensível, específico e não invasivo da função
de gordura fecal é analisada pelo método de Van der Kamer que pancreática. Carrocio et al. compararam a acurácia diagnós-
se baseia na extração e na titulação dos ácidos graxos de cadeia tica da EL-1 fecal com a quimiotripsina fecal (FCT) para dis
longa com NaOH. O peso de lipídios no espécime é calculado tinção entre má digestão de origem pancreática e má absorção
e expresso em gramas por 24 h. Considera-se normal quando intestinal. As fezes foram coletadas por 72 h em dieta comum
ele for igual ou inferior a 5 g/dia. Valores entre 5 e 7 g/dia são e estes testes comparados com o esteatócrito. A acurácia diag-
considerados sugestivos de esteatorreia e acima de 7 g/dia são nóstica foi de 92% para a EL-1 e 82% para a FCT, concluin
diagnóstico de esteatorreia. do que a primeira é mais específica para demonstrar provável
Alguns serviços adotam a dosagem da gordura fecal na vi causa pancreática.
gência de dieta habitual, pois no Brasil esta já é rica em gordu
ras. Os valores considerados normais são: ■ Testesrespiratórios
O teste respiratório da trioleína marcada com MC pode tam
• Crianças: 1,52 - 0,73 g/dia;
bém ser utilizado para estudo da má absorção de gordura, pois
• Adultos: 2,24 - 0,89 g/dia.
esta, depois de hidrolisada e absorvida, libera CO, marcado
O balanço de gordura, pelo método de Van der Kamer, é com HC, permitindo medida da radioatividade no ar expira
considerado o padrão-ouro para a avaliação da má absorção do. Dispensa o inconveniente da coleta de fezes de 72 h e tem
de gordura, mas apresenta dificuldades técnicas quando feito sensibilidade e especificidade altas. Do mesmo modo que os
em crianças, particularmente naquelas ainda sem controle es- anteriores, esse teste pode levar ao diagnóstico de má absorção,
fincteriano. mas também não localiza em que fase está o distúrbio.
Ponto importante a destacar é que a demonstração de gor
■ Esteatócrito dura fecal aumentada não discrimina o tipo de esteatorreia,
O esteatócrito é um teste de triagem semiquantitativo, re devendo-se lançar mão de dados clínicos e de outras provas
lativamente simples para se avaliar a má absorção de gordu para se determinar a causa do problema.
272 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal
■ Testes relacionados com carboidratos (ver Figura 28.2) Recomenda-se sempre analisar concomitantemente o pH
■ Prova dao-xilose fecal e a presença de substâncias redutoras nas fezes. Deve-se
lembrar que, ocorrendo a fermentação completa dos hidratos
A D-xilose é uma pentose que normalmente não é encon
de carbono não absorvidos, detecta-se apenas alteração do pH
trada no organismo. A sua absorção ocorre principalmente
fecal.
em duodeno e jejuno proximal via mecanismo de transporte
da glicose. No entanto, apresenta baixa afinidade pelos carre
■ Provas desobrecargacomdissacarídios (lactose, sacarose)
gadores e depende da integridade da mucosa intestinal. Como
A prova de sobrecarga, com doses padronizadas de diferen
a sua absorção é independente de fatores intraluminares, tais
tes açúcares, baseia-se na alteração da glicemia após a ingestão
como sais biliares, secreções exócrinas do pâncreas ou da pre
e absorção dos hidratos de carbono. O açúcar a ser investigado
sença de enzimas da borda em escova das vilosidades, a sua má
é administrado por via oral, após jejum de 6 a 8 h, na dose de
absorção é indicativa de lesão da mucosa do intestino delgado 2 g/kg de peso corpóreo para os dissacarídios (lactose, sacaro
proximal. Uma vez ingerida, metade da D-xilose é absorvida e
se ou maltose), no máximo 50 g, e de 1 g/kg de peso corpóreo
metabolizada no fígado e metade, excretada pela urina. Des
para os monossacarídios (glicose e frutose), em solução aquo
sa forma, pode-se avaliar a sua absorção pela quantidade que sa a 10%. A cada 20 min, e até os 80 min, novas amostras de
é excretada na urina, durante um período de 5 h após a sua
sangue são obtidas, e estabelece-se uma curva. As amostras de
ingestão, ou pela D-xilosemia. Devido à dificuldade em se co 20 e de 40 min devem estar, no mínimo, 20 mg acima do nível
lher urina, principalmente em crianças pequenas, a avalia de jejum. Um aumento da glicemia superior a 34 mg/d^, em
ção da D-xilosúria praticamente não é realizada e prefere-se relação ao valor da glicemia de jejum, é considerado normal
a determinação da D-xilosemia. A D-xilosemia é realizada da e o paciente é classificado como bom absorvedor. Quando o
seguinte forma: após jejum de 8 h, é administrado aos pacientes aumento variar de 20 a 34 m g/dt ou não ultrapassar 19 mg/dê,
0,5 grama por quilograma de D-xilose dissolvida em solução os pacientes serão considerados pobres absorvedores ou não
aquosa a 10% até no máximo 25 g. Sessenta minutos após a absorvedores, respectivamente.
administração da D-xilose, é coletada amostra de sangue ve- Estas provas de sobrecarga são bastante úteis. Entretanto,
noso. A D-xilose sanguínea é determinada pelo método colo- alguns fatores podem interferir no resultado, como, por exem
rimétrico descrito por Roe e Rice. plo, o tempo de esvaziamento gástrico.
Consideram-se valores normais: Em geral, o paciente com intolerância ao dissacarídio sente-
• Adultos: D-xilosemia: valor menor que 25 mg/d^ é con se nauseado, tem borborismos e alguns chegam a apresentar
siderado alterado diarréia do tipo fermentativa logo após o término do teste. Caso
° Acima de 5 g na urina de 5 h; seja determinado o pH das fezes, provavelmente ele estará áci
• Crianças: D-xilosemia: valores acima de 20 mg/dí para do nessa situação.
crianças até 6 meses ou acima de 25 m g / d t para crian
ças com mais de 6 meses e adultos indicam boa absor ■ Determinação daatividade das dissacaridases
ção intestinal. Em fragmentos de mucosa do intestino delgado, é possível
determinar-se o nível de atividade das enzimas que hidrolisam
Devido à interferência de fatores como hipermotilidade in os dissacarídios: lactase, sacarase e maltase. Na literatura, os
testinal, uso de drogas, doença renal, ascite, mixedema etc., fragmentos são colhidos ao nível do ângulo de Treitz, onde há
muitos autores relatam resultados falso-positivos e falso- padronização dos valores. Entretanto, com o advento das biop-
negativos, não mais preconizando a prova como há alguns anos sias endoscópicas, na segunda e na terceira porções do duode
atrás. no, alguns autores recomendam dosagens a esse nível. Poderá
haver diminuição seletiva de uma enzima ou de mais de uma.
■ Determinação dopH fecal Há necessidade de se estabelecer o padrão histológico para se
A determinação do pH fecal é de fácil execução e é comu- caracterizar o problema como primário (mucosa normal) ou
mente realizada com tiras de papéis indicadores de pH que são secundário (mucosa alterada).
colocadas na parte líquida de fezes recém-emitidas. Normal
mente, o pH das fezes está entre 6,0 e 7,0. Valores abaixo de ■ Testesrespiratórios: Provadohidrogênio expirado
5,5 são indicativos de má absorção. O pH baixo deve-se à fer A prova do hidrogênio expirado é um teste não invasivo,
mentação dos hidratos de carbono que não foram absorvidos de tecnologia simples e acurada, sendo bem tolerada inclusive
na parte proximal do intestino delgado, pela ação de bactérias pelas crianças. Baseia-se no fato de que os açúcares não absor
anaeróbicas do cólon, com a consequente formação de ácidos vidos, ao chegarem ao cólon, são fermentados por ação da flora
graxos de cadeia curta. Se o paciente estiver recebendo anti bacteriana com produção de hidrogênio. Cerca de 16 a 20% do
bióticos que alterem a flora bacteriana, o resultado poderá ser hidrogênio formado durante a fermentação é absorvido e elimi
falso-negativo. Deve-se também ressaltar que, nos lactentes que nado pelos pulmões, podendo ser medido por cromatografia ga
recebem leite materno, o pH das fezes geralmente é ácido. sosa. A quantidade de hidrogênio expirado reflete a quantidade
de hidratos de carbono que não foram absorvidos no intestino
■ Pesquisa desubstâncias redutoras delgado. O cólon produz virtualmente todo o hidrogênio cor
Fezes líquidas não necessitam de diluição, mas fezes pastosas póreo e demonstrou-se que o hidrogênio exalado aumenta após
ou firmes são diluídas em duas partes de água. Dessa mistu a introdução de pequenas quantidades de hidratos de carbono
ra, colocam-se 15 gotas em contacto com um comprimido de diretamente no órgão. O aumento correlaciona-se diretamente
Clinitest®. Essa reação é positiva quando há mono ou dissaca- com a quantidade de hidratos de carbono que entram no cólon,
rídios, à exceção da sacarose. Suspeitando-se de intolerância a e uma proporção constante de hidrogênio passa para a corrente
esse dissacarídio, acidifica-se previamente a mistura de fezes sanguínea para ser excretada pela respiração.
com ácido clorídrico, com o intuito de hidrolisar o açúcar em Um indivíduo em jejum normalmente expira pequena
seus componentes redutores. quantidade de hidrogênio devido à fermentação de alimentos
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 273
residuais e das fibras presentes no cólon. O valor basal de hi creopatia crônica. Também pode ser de ajuda em situações de
drogênio deve ser menor que 10 ppm (partes por milhão) em emergência, em relação a suboclusões ou oclusões.
condições adequadas de jejum. Após a administração da so
brecarga do açúcar, a quantidade de hidrogênio aumentará se ■ Trânsito intestinal
o substrato não tiver sido absorvido em intestino delgado. Um A visualização da superfície absortiva do intestino delgado
aumento da concentração de hidrogênio de 20 ppm durante a por meio de raios X contrastado pode ajudar a definir qual a
realização da prova significa má absorção do açúcar. causa da má absorção. Salienta-se que grave má absorção pode
A prova do hidrogênio expirado, se realizada em condições estar presente sem que nenhuma anormalidade seja detectada
técnicas adequadas, é atualmente considerada como o méto nas radiografias; por isso, o exame radiológico não deve ser usa
do de escolha para se avaliar a má absorção dos hidratos de do como substituto dos testes funcionais. Portanto, o radiologis
carbono. Teste semelhante pode ser feito com lactose-"C, en ta pode excluir algumas condições e sugerir outras, mas o diag
contrando-se o CO, diminuído no ar alveolar quando houver nóstico definitivo vai depender da soma dos dados de história,
deficiência de lactase. exame físico, exames laboratoriais e de anatomia patológica.
Os achados serão, independentemente da etiologia, em geral
■ Testes relacionados com proteínas (Figura 28.3) os que sugerem má absorção: edema de mucosa, floculação e/ou
Devido às dificuldades técnicas, provas de absorção de segmentação do contraste, dilatações de alças, hipo ou hipermo-
proteínas, peptídios e aminoácidos têm sido mais realizadas tilidade. Tais aspectos podem ser verificados na doença celíaca,
em pesquisas, não sendo usadas na prática para diagnóstico. As doença de Whipple, hipobetalipoproteinemia etc.
mais importantes são: determinação do nitrogênio fecal, testes Em contrapartida, existem afecções que podem se apresentar
de perfúsão com macromoléculas e teste utilizando albumina com imagens bem sugestivas. Como exemplos, citam-se:
marcada co m 5'Cr. a) doença de Crohn: espessamento da parede, hiperplasia do
tecido linfoide, nódulos de tamanhos variados, ulcerações
■ Exames específicos para determinadas afecções transversais, lesões tipo "pedra de calçamento”, fístulas,
estenoses, com áreas preservadas e lesões “em salto”;
• Anticorpos antigliadina (AGA IgG e IgA), anticorpos b) linfomas: falhas nodulares de enchimento, irregularida
antiendomísio (EmA IgA) e antitransglutaminase teci- de na mucosa, ulcerações, aumento da distância entre as
dual são determinados no soro de pacientes com suspeita alças etc.;
de doença celíaca; c) imunodeficiência comum variável: padrão nodular por
• Determinação de eletrólitos no suor é realizada para pes hiperplasia linfoide;
quisa de fibrose cística; d) tuberculose intestinal: lesões estenosantes no íleo termi
• Detecção de proteínas anômalas no sangue ou secre nal, lesões no ceco, falhas de enchimento;
ções, como na doença imunoproliferativa do intestino e) estrongiloidíase: sinais de inflamação aguda no intestino
delgado; proximal.
• Dosagem do ácido 5-hidroxindolacético, na suspeita de
tumor carcinoide; ■ Ultrassonografia, tom ografia com putadorizada e ressonância
• Hemoglobina glicosilada, perfil glicêmico ou curva gli- m agnética do abdom e
cêmica para diagnóstico do diabetes melito; Podem ser solicitadas para diagnóstico de causas biliopancreá-
• Dosagens de T3, T4 e TSH e anti-TPO na suspeita de ticas, detecção de massas ou aumento de linfonodos, complica
doenças da tireoide; ções da doença de Crohn etc.
• Pesquisa de anti-HIV para diagnóstico da síndrome da
imunodeficiência adquirida; ■ Raios X de tórax
• Pesquisa de microrganismos na síndrome da alça estag- Têm importância para diagnóstico de afecções que cursam
nante; também com alterações no mediastino (linfomas, deficiência de
• Pesquisa de parasitos em suco duodenal na suspeita de IgA com timoma), pleura (tuberculose, metástases) parênquima
giardíase ou estrongiloidíase; e árvore brônquica (fibrose cística, tuberculose).
• Testes para estudo da função pancreática, na suspeita de
pancreopatias; ■ Raios X dos seios da face
• Detecção de alfa-1-antitripsina, usada como marcador de São solicitados quando se têm casos de imunodeficiências
perda proteica; que cursam com infecções de vias respiratórias superiores,
• Teste de calprotectina na avaliação de doenças inflama- como deficiência seletiva de IgA ou deficiência imunológica
tórias intestinais; comum variável.
• Pesquisa de lactoferrina fecal na suspeita de doença in-
flamatória intestinal; ■ Raios X de articulações
• Detecção de pANCA e ASCA-IgA e ASCA-lgG para o Quando a má absorção advém de doenças do colágeno, são
diagnóstico diferencial entre doenças inflamatórias intes estudadas determinadas articulações, assim como quando há
tinais como colite ulcerativa e doença de Crohn. uma doença inflamatória (doença de Crohn) ou infecciosa
(doença de Whipple), que também mostram artralgias e artrites
■ Exames de imagem nos seus quadros clínicos.
T
Q u a d ro 28 .7 Dados de histologia em biopsias do intestino delgado
S ÍN D R O M E P Ó S -E N T E R E C T O M I A
H E P A T O P A T IA S
IN S U F IC IÊ N C IA P A N C R E A T IC A E X Ô G E N A
M u c o s a g e r a lm e n t e s e m a lte ra ç õ e s h is to ló g ic a s
IN T O L E R Â N C I A P R IM A R IA A L A C T O S E
R E T O C O L IT E U L C E R A T IV A IN E S P E C ÍF IC A
A N E M I A F E R R O P R IV A
E N TE R O C O L O P A T IA F U N C IO N A L
G A S T R O E N T E R IT E A G U D A
D E S N U T R IÇ Ã O
A L E R G IA A P R O T E Í N A D O L E IT E D E V A C A
A c h a t a m e n t o d e v ilo s id a d e s ; a u m e n t o d o n ú m e r o d e c é lu la s in fla m a tó ria s n o c ó r io n m u c o s o ; sinais
A L E R G IA A P R O T E Í N A D A S O J A
d e re g e n e r a ç ã o e p ite lia l c o m d im in u iç ã o d a m u c o p r o d u ç ã o ; a u m e n t o d e p la s m ó c ito s ; a u m e n t o d e
S ÍN D R O M E D A A L Ç A E S T A G N A N T E
e o s in ó filo s e e x o c ito s e d e e o s in ó filo s e m a le rg ia s e re a ç õ e s a d r o g a s ; a u m e n t o d is c re to d e lin fó c ito s
DROGAS in tra e p ite lia is
D E F IC IÊ N C IA D E F O L A T O E V IT A M IN A B „
E N T E R IT E S P O R E N T E R O V ÍR U S , R O T A V ÍR U S ,
A D E N O V ÍR U S
E N T E R O P A T IA A U T O I M U N E
C L O S T R ID IU M D IF F IC IL E E ro s ã o d a m u c o s a c o m f o r m a ç ã o d e e x s u d a t o f i b r in o le u c o d t á r io e m "vulcão*; p s e u d o m e m b r a n a s
D O E N Ç A C E L ÍA C A A tro fia p a rcia l o u to ta l d e v ilo s id a d e s , d ifu sa o u fo ca l. A u m e n t o d o n ú m e r o d e lin fó c ito s in tra e p ite lia is
278
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 279
O tratamento baseia-se na utilização de inibidores da secre nio-tauro-homocolato), associados a testes terapêuticos com
ção ácida, preferencialmente os inibidores de bomba de pró colestiramina, têm demonstrado a importância da participação
tons, em uma dose que varia de 60 a 240 mg/dia durante tempo da MAB na patogênese da diarréia sem, no entanto, excluir a
indeterminado. A eficácia do tratamento pode ser avaliada com existência de outros fatores. O teste do SeHCAT tem se mostra
a mensuração do débito da secreção ácida, que deve ser m an do fundamental para o diagnóstico diferencial entre a diarréia
tida entre 1 e 10 mEq/h, evitando, assim, a acloridria. Após o pós-colecistectomia e a síndrome do cólon irritável. Trata-se
advento dos antissecretores, a gastrectomia tem sido tratamento de exame com custos elevados, sendo, muitas vezes, substituí
de exceção. Indica-se tratamento cirúrgico para os gastrinomas do por prova terapêutica com colestiramina.
esporádicos, localizados no pâncreas e maiores que 3,0 cm de
diâmetro, sem metástases hepáticas. Os fatores de risco associa
dos à metástase hepática são o tamanho do tumor, localização ■ Malabsorção de ácidos biliares em pacientes
pancreática e associação com NEM 1. com diarréia crônica
Extensos estudos com o teste do SeHCAT têm sido reali
zados em pacientes portadores de diarréia crônica sem causa
■ BILE
detectável ou rotulados como funcionais. Embora ainda não
A insuficiência biliar acompanha-se de esteatorreia. Os sais tenha sido possível estabelecer uma identidade fisiopatológica
biliares são os detergentes mais importantes, portanto de fun para a má absorção primária de ácidos biliares, foi verificada
damental importância na emulsificação e micelação das gor uma incidência razoável de casos em que a MAB está presente,
duras. e o tratamento do quadro diarreico crônico com colestiramina
traz benefícios ao paciente. Um estudo prospectivo em porta
dores de diarréia crônica associada à AIDS revelou a presença
■ Colestase de MAB em 47% dos casos. Esses achados sugerem fortemente
A falência da excreção biliar que ocorre na colestase, seja a realização desse teste, ou de prova terapêutica, mais precoce
intra-hepática (parenquimatosa) ou extra-hepática (obstru- mente no curso da investigação da diarréia crônica.
tiva), determina uma queda na concentração intraluminal de
ácidos biliares. O processo de formação de micelas na diges
tão dos lipídios fica prejudicado, resultando em má absorção ■ SUCO PANCREÁTIC0
de gorduras, inclusive de vitaminas lipossolúveis. Geralmente,
são quadros diarreicos de pequena intensidade. O tratamento A diminuição acentuada, ou ausência, do suco pancreático
deve ser dirigido à doença básica. acarreta muitos problemas, visto conter poderosas enzimas que
exercem ação sobre nutrientes nobres, quais sejam carboidra-
tos, proteínas e gorduras.
■ Ressecção ou disfunção ileal A consequência previsível é a má absorção de todos esses
Indivíduos com doença inflamatória do íleo (doença de nutrientes em graus variáveis, sendo clinicamente mais expres
Crohn, tuberculose intestinal) ou uma ressecção ileal extensa siva a de gorduras, determinando esteatorreia. As principais
(síndrome do intestino curto) apresentam captação ileal defei causas da insuficiência pancreática com apresentação por diar
tuosa dos ácidos biliares e, portanto, má absorção desses ácidos. réia crônica são as pancreatites crônicas, de etiologia variável,
Tais ácidos passam para o cólon e promovem uma diarréia se- porém mais comumente alcoólica; os tumores pancreáticos, as
cretória mediada por mecanismo dependente do AMP-cíclico. ressecções pancreáticas e a fibrose cística. A diarréia é secun
Com a perda fecal dos ácidos biliares aumentada, ocorre um dária à insuficiência exócrina do pâncreas que ocorre em 30 a
incremento compensatório da sua síntese, e o pool de ácidos 40% das pancreatites crônicas, 80 a 95% na fibrose cística e é
biliares é mantido. Esses pacientes podem ser tratados com relativamente frequente no câncer de pâncreas, devido à obs
resinas que se ligam aos ácidos biliares, como a colestiramina, trução do dueto pancreático. A fisiopatologia da insuficiência
para evitar diarréia. Se a perda for muito intensa, pode exce exócrina de acordo com a sua etiologia, assim como alterações
der a síntese compensatória e ocorrerá uma redução do pool e, fisiológicas associadas, que afetam a eficácia dos tratamentos
consequentemente, diminuição da concentração intraluminal dietéticos e medicamentosos, estão detalhadas nos capítulos
de ácidos biliares, abaixo da concentração crítica necessária das doenças pancreáticas.
para a micelização das gorduras. Isso resulta em má absorção
de gorduras e de vitaminas lipossolúveis. A reposição de bile
ou ácidos biliares poderia levar a uma piora da diarréia causada ■ Doenças pancreáticas na criança
por sua entrada no cólon. No entanto, existe relato de melhora As doenças pancreáticas na criança geralmente são congê
importante da esteatorreia, sem piora do quadro clínico, com a nitas.
administração de bile bovina a pacientes com ressecção de íleo
terminal e cólon preservado. 1. Anormalidades anatômicas que causam sintomas pan
creáticos são, costumeiramente, tratadas por cirurgia;
2. Anormalidades bioquímicas encontradas com deficiên
■ Diarréia pós-colecistectomia cias enzimáticas, fibrose cística e síndrome de Schwach-
A má absorção de ácidos biliares (MAB) na diarréia pós- man são bem manejadas com medicamentos;
colecistectomia é uma condição clínica bem conhecida, porém 3. Pancreatite aguda tem como causa mais frequente o
seu papel etiopatogênico não está esclarecido. O aumento da trauma;
ciclagem êntero-hepática dos ácidos biliares após a colecistec- 4. Insuficiência pancreática crônica habitualmente ocorre
tomia pode ser responsável pela diminuição de sua captação de modo secundário à fibrose cística do pâncreas. Por
no íleo terminal. Testes diagnósticos com SeHCAT (75 selê- sua importância prática, será discutida em detalhes.
C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trie n te s 281
O diagnóstico da doença leva a aconselhamento genético mundo, porém está presente em apenas 40% dos fibrocísticos
e supervisão pulmonar adequada que podem tomar-se muito brasileiros, provavelmente devido à miscigenação racial. A pre
importantes como avanço terapêutico e melhora da qualida sença da mutação AF508del na forma homozigota está relacio
de de vida! nada com insuficiência pancreática, colonização precoce pela
Pseudomonas aeruginosa e doença pulmonar mais grave.
As mutações do gene da FC são classificadas em classes de I a
■ Fibrose cística (FC) V, conforme o tipo de defeito encontrado na proteína: ausência
■ Introdução total de síntese (classe I), bloqueio no processamento (classe II),
A fibrose cística (FC), ou mucoviscidose, é uma doença ge bloqueio na regulação (classe III), condutância alterada (classe
nética de herança autossômica recessiva, de caráter crônico e IV) e síntese reduzida (classe V). As três primeiras classes estão
progressivo, que compromete as glândulas exócrinas de múl relacionadas à insuficiência pancreática e a quadros clínicos
tiplos órgãos e sistemas, tais como o respiratório, o digestivo, o mais graves, enquanto as duas últimas costumar ter sinais e
reprodutivo e o glandular. sintomas mais brandos.
É a doença genética letal mais comum na população cau- Vários pacientes apresentam problemas mais leves, possivel
casiana, e a principal causa de óbito é o comprometimento mente associados à disfunção da CFTR, tais como infertilidade
pulmonar que ocorre em torno de 90% dos casos. A doença masculina, pancreatite recorrente, sinusite crônica e colangite
se caracteriza por infecção respiratória crônica, insuficiência esclerosante primária. Geralmente, tais pacientes apresentam
pancreática, altos níveis de sódio e cloro no suor e outras com concentrações de cloro limítrofes no suor e estes casos são de
plicações associadas. nominados doenças relacionadas com o CFTR, fenótipos par
A FC é causada pela mutação de um único gene, o gene da ciais que devem ser diferenciados da fibrose cística.
fibrose cística, denominado CFTR (cystic fibrosis transmem- Nem todas as mutações do CFTR causam doenças como
brane regulator), que codifica uma proteína de mesmo nome, a FC, ou outras doenças relacionadas com o CFTR. Algumas
responsável pelo transporte de eletrólitos pelas células epiteliais. mutações podem não apresentar significado clínico ou ter re
A doença é decorrente da ausência, deficiência na produção, levância clínica ainda incerta. A presença isolada da mutação
ou defeito da função, do polipeptídio produzido pelo gene de do gene CFTR, portanto, não pode encerrar o diagnóstico de
feituoso da fibrose cística. A identificação e o sequenciamento fibrose cística ou das doenças relacionados com o CFTR. O
diagnóstico deve ser sempre baseado na apresentação clínica,
do gene alterado da fibrose cística e o conhecimento dos me
nas provas de avaliação da função do gene CFTR, tais como
canismos fisiopatológicos da doença são pontos fundamentais
teste do suor e diferença de potencial nasal, e, finalmente, na
para novas estratégias terapêuticas e aconselhamento genéti
análise genética.
co. O diagnóstico precoce, a partir do screening neonatal, e a
O genótipo de forma isolada também não pode ser usado
melhor abordagem no tratamento da doença pulmonar e do
para estimar a gravidade da doença, especialmente no que se
estado nutricional foram responsáveis pelo aumento da sobre-
refere ao dano pulmonar, já que o fenótipo é afetado por ou
vida da doença.
tros fatores genéticos e ambientais, além do tipo de mutação
No Brasil, o Programa Nacional de Triagem Neonatal foi encontrada. Gêmeos monozigóticos podem apresentar quadros
criado em 2001, a partir da Portaria n° 822, do Ministério da clínicos bem diferentes, apesar de apresentarem o mesmo tipo
Saúde, e, no mesmo ano, o Paraná foi o primeiro estado a ser de mutação. Esta discrepância entre fenótipo e genótipo ocorre
credenciado e já na fase III, ou seja, para diagnóstico de fenil- provavelmente devido a polimorfismos em outros genes não
cetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e ou relacionados com o gene da fibrose cística.
tras hemoglobinopatias e fibrose cística. No Brasil, atualmente
apenas quatro estados estão credenciados na fase III para diag ■ Fisiopatologia
nóstico de fibrose cística, a saber: Paraná, Minas Gerais, Santa A proteína CFTR está presente na superfície apical das cé
Catarina e Espírito Santo. lulas epiteliais onde constitui um canal de cloro dependente de
AMP cíclico. Embora a função da CFTR seja principalmente
■ Incidência relacionada com o canal de cloro, ela também exerce outras
A incidência da fibrose cística é de aproximadamente 1/2.000 funções reguladoras.
a 1/5.000 na população caucasiana da Europa, EUA e Canadá. Em indivíduos normais, a CFTR promove o transporte ade
É menos comum em outros grupos étnicos, sendo encontrada quado do cloro da célula para o lúmen glandular. Nos indiví
em 1/17.000 na população negra e em 1/90.000 na população duos fibrocísticos, as glândulas mucosas e as serosas não fun
oriental. No Brasil, nos estados em que há a triagem neonatal cionam adequadamente. Nas glândulas mucosas dos doentes,
para FC, a incidência é de 1/9.000 a 1/9.500 nascidos vivos. não há transporte adequado do cloro para o lúmen glandular,
impedindo a hidratação adequada do fluido luminal e predis
■ Genética pondo as secreções viscosas que obstruem os duetos. Já nas
O gene da fibrose cística foi clonado em 1989 e se localiza no glândulas serosas, como são as glândulas sudoríparas, há falha
braço longo do cromossomo 7. Trata-se da doença autossômica na reabsorção do cloro predispondo níveis elevados de cloro
recessiva mais frequente na raça branca, e 5% dos indivíduos no suor. Os órgãos mais acometidos pela FC são o pulmão e
desta etnia são portadores heterozigotos do gene. o pâncreas.
Mais de 1.700 mutações já foram identificadas como respon Esta alteração no líquido de superfície das vias respiratórias
sáveis pela fibrose cística. Os tipos de mutações variam em sua promove obstrução das vias respiratórias por rolhas de muco
frequência e distribuição em diferentes populações. A mutação que favorecem a instalação da inflamação, colonização e in
mais comumente encontrada é a deleção de 3 pares de bases fecção, especialmente por algumas espécies de bactérias. Den
nitrogenadas que levam à perda da fenilalanina na posição 508, tre os agentes infecciosos mais comumente encontrados, estão
também conhecida como AF508del. Esta mutação é responsá Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa, Stenotropho-
vel por aproximadamente dois terços dos portadores de FC no monas maltophiliaybactérias do complexo Burkholderia cepa-
282 C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trien tes
cia, micobactérias atípicas e Aspergillus fumigatus. A infecção ção geográfica. Os sinais e sintomas da doença são sibilância,
broncopulmonar crônica ou recorrente leva à lesão pulmonar infiltrados pulmonares e bronquiectasias centrais.
progressiva da fibrose cística e deve ser prontamente tratada. Quanto ao acometimento do pâncreas, a lesão já se inicia
Os recém-natos nascem com os pulmões anatômica e his- intraútero e se traduz por obstrução e dilatação dos duetos
tologicamente normais e o trato respiratório é colonizado por pancreáticos por secreções viscosas e lesão do epitélio que é
bactérias da flora normal. Inicialmente, ocorrem dilatação e substituído por tecido gorduroso e fibrose. Eventualmente,
hipertrofia de glândulas mucosas seguida de metaplasia esca podem ocorrer calcificações intraluminais e formações císti-
mosa do epitélio broncopulmonar, presença de rolhas de muco, cas, alterações que batizaram a doença como fibrose cística do
alterações ciliares secundárias e infiltrados inflamatórios na pâncreas. Já as alterações inflamatórias não são habituais. O
submucosa. Ciclos repetidos de obstrução e infecção desenca quadro clínico tradicional é a insuficiência pancreática exó-
deiam a formação de bronquiolectasias e bronquiectasias. Ao crina que ocorre em 90% dos pacientes. A função endócrina é
redor destas lesões, há artérias brônquicas dilatadas e de pare menos afetada, já que as ilhotas de Langerhans são inicialmente
des finas que se rompem e causam hemoptise. Com a evolução poupadas nos primeiros anos da doença.
do quadro clínico, a hipoxemia promove vasoconstrição da
artéria pulmonar, hipertrofia da camada média e hipertensão
■ Quadro clínico
pulmonar secundária ou cor pulmonale.
Clinicamente, as manifestações da FC relacionam-se a uma
Com o passar dos anos, os agentes da colonização e infec
ção são diferentes e seguem uma sequência tradicionalmente disfunção epitelial multissistêmica, em todas as glândulas secre-
toras exócrinas, sejam elas do tipo seroso ou mucoso. As ma
descrita.
Quando lactente, o paciente portador de FC pode apresen nifestações clínicas mais notáveis referem-se, particularmente,
tar exacerbações respiratórias por agentes virais, causadores ao dano progressivo dos pulmões e pâncreas, cujos duetos são
de bronquiolites. obliterados pelas secreções viscosas e espessas desses órgãos.
A partir dos primeiros anos de vida, os pacientes são colo Essa obliteração acarreta comprometimentos sequenciais que
nizados por Staphylococcus aureus, seguido por Pseudomonas variam, em cada órgão, com a extensão e o grau de obstrução,
aeruginosa cepa não mucoide, Pseudomonas aeruginosa cepa que partem da inflamação e dilatação ductal à destruição dos
mucoide e complexo Burkholderia cepacia. Estudos demons tecidos nobres do órgão afetado.
tram que, aos 3 anos de idade, 98% das crianças são colonizadas As secreções das glândulas serosas, como as sudoríparas e
por Pseudomonas aeruginosa. as salivares, não provocam, na síndrome clínica, alterações ex
Infecção persistente leva a geração e secreção de citocinas pressivas comparáveis às do pâncreas e dos pulmões. Em con
quimiostáticas que recrutam grande número de polimorfonu- trapartida, é a determinação da elevação anormal da concen
cleares para as vias respiratórias. A Pseudomonas libera toxinas tração de sódio e cloro na secreção sudorípara que oferece a
e elastases que clivam os polimorfonucleares, e estes liberam identificação comprobatória da enfermidade.
suas próprias proteases e elastases, ampliando o ciclo de infec Além do pâncreas e dos pulmões, os órgãos mais comu-
ção e inflamação. A liberação do DNA dos neutrófilos enve mente envolvidos, a FC envolve um largo espectro de sinais e
lhecidos aumenta a viscosidade do muco, trazendo mais dano sintomas descritos a seguir.
ao epitélio.
A via respiratória do paciente portador de FC é propícia ao ■ Viasrespiratórias superiores
crescimento da Pseudomonas, por várias razões: microambiente A totalidade dos pacientes se apresenta com pansinusite
permissivo com nichos hipóxicos de placas de muco, aumento crônica, grande parte dos casos associada à polipose nasal e
da adesão bacteriana ao epitélio e redução do clearance bactéria- recorrente. A polipose nasal acomete 20% dos pacientes e pode
no por mecanismos imunes inatos. Após anos de colonização, ser o sintoma inicial da doença. Podem ocorrer também otite
a Pseudomonas muda seu fenótipo do tipo não mucoide para média crônica ou recorrente, anosmia, rouquidão transitória
o tipo mucoide, momento este que passa a produzir grandes e defeitos da audição.
quantidades de um polissacarídio denominado alginato. O al-
ginato facilita a proliferação bacteriana por estimular a adesão
■ Viasrespiratórias inferiores
e a formação de microcolônias de bactérias, o biofilme, e inibe
o processo imunológico de defesa do hospedeiro por dificul A tosse persistente é o sintoma primordial do comprometi
tar a opsonização, fagocitose e a penetração de anticorpos e mento de vias respiratórias inferiores e costuma se iniciar nos
antibióticos. primeiros meses de vida. Inicialmente, é seca, coqueluchoide,
Pacientes colonizados por Pseudomonas aeruginosa, caracte noturna e compromete o sono e a alimentação. Com o passar
rística marcante desta doença, apresentam maior taxa e duração do tempo, a tosse evolui para produtiva matinal com expecto-
de hospitalizações e redução da função pulmonar à espirome- ração variando de mucoide a purulenta.
tria. Apresentam declínio da função pulmonar, alguns evoluem A progressão da doença leva a um quadro de insuficiência
de forma lenta e com pequenos danos e outros evoluem com respiratória, com dispnéia inicialmente durante a atividade fí
rápidos e grandes danos pulmonares. sica e, depois, ao repouso, inclusive. Pode se manifestar com
O complexo Burkholderia cepacia é um grupo de pelo menos quadro de pneumonia de repetição, bronquiolite persistente ou
nove bactérias extremamente virulentas, transmitidas de pessoa de repetição, sibilância que não responde a broncodilatadores,
a pessoa e com resistência inata à antibioticoterapia. Causam atelectasias e bronquiectasias. A evolução é para insuficiência
rápido declínio da função pulmonar, ou também podem desen respiratória crônica e cor pulmonale.
cadear um quadro fulminante invasivo, denominado usíndrome Nos casos iniciais ou leves, o exame físico pode ser total
da cepacia”, em que há disseminação hematogênica e óbito. mente normal. Nos casos avançados, podem-se encontrar ta-
O Aspergillus fumigatus pode desencadear intensa resposta quipneia, estertores crepitantes localizados ou difusos, tiragem
alérgica a fungos, quadro chamado de aspergilose broncopulmo esternal, aumento do diâmetro anteroposterior do tórax, ba-
nar que ocorre em 1 a 15% dos pacientes, conforme a localiza queteamento digital e cianose de extremidades.
C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trie n te s 283
Podem ocorrer exacerbações do quadro respiratório e estas O quadro clínico se traduz por esteatorreia devido à má ab
devem ser reconhecidas para o tratamento imediato. Os sinais sorção intestinal. Os achados clínicos são distensão abdominal,
e sintomas são febre, piora da tosse, surgimento de expectora- diarréia crônica com grande número de evacuações, consis
ção, mudança no aspecto e quantidade da expectoração, redu tindo em fezes amolecidas, pálidas, em grandes quantidades,
ção do apetite, menor tolerância ao exercício, agravamento ou oleosas e fétidas. Como consequência, o paciente se apresenta
surgimento de hemoptise, taquipneia, fadiga, sonolência. Além com desnutrição proteico-calórica, apesar da ingestão calórica
destes, são fortemente sugestivos a presença de esforço respira normal ou aumentada, e com deficiência de vitaminas liposso-
tório, aparecimento de ruídos adventícios ou piora da ausculta, lúveis (Figura 29.1).
perda de peso e sinais de aprisionamento de ar. Deficiência das vitaminas A, D, E e K leva a quadros de
A infecção pulmonar crônica, associada à obstrução pro acrodermatite, anemia, neuropatia, cegueira noturna, hiper
gressiva das vias respiratórias, gera maior trabalho respiratório, tensão intracraniana idiopática, osteoporose e desordens he
aumentando o gasto energético basal mesmo em pacientes com morrágicas.
doença pulmonar leve. A osteopenia inicia-se na infância, mas o quadro clínico
geralmente se manifesta na idade adulta.
■ Pâncreas A osteoporose pode ser secundária à deficiência de vitamina
D, à inflamação crônica sistêmica e ao uso de corticoides.
A insuficiência pancreática ocorre em 60% dos pacientes no
A desnutrição está fortemente associada à deterioração da
período neonatal, em 80% aos 6 meses de vida e em 90% dos
função pulmonar.
bebês com 1 ano de idade.
Vários fatores influenciam o metabolismo da glicose, in
O suco pancreático dos pacientes é liberado em pequena cluindo gasto energético elevado, infecção crônica e aguda,
quantidade e com baixa concentração de enzimas pancreáticas deficiência de glucagon, disfunção hepática, lentidão do trânsito
e de bicarbonato. A deficiência de enzimas pancreáticas é cau gastrintestinal e aumento do trabalho respiratório. As ilhotas
sada inicialmente pela obstrução dos duetos devido à secreção de Langerhans do pâncreas endócrino não são primeiramente
espessa e, posteriormente, pela destruição progressiva da ar afetadas na FC, mas, com a evolução da doença, o pâncreas sofre
quitetura pancreática. autólise e as ilhotas são substituídas por tecido gorduroso. O pa
A insuficiência pancreática decorre da redução, tanto na ciente desenvolve insuficiência de insulina e intolerância à gli
quantidade, quanto na qualidade, das enzimas pancreáticas. cose, provavelmente coexistindo com resistência insulínica.
Isso porque, além do teor reduzido de enzimas pancreáticas, es O diabetes melito associado à FC é bem diferente do diabe
tas sofrem inativação no duodeno. Isso ocorre devido à deficiên tes dos tipos I ou II. Diabetes melito relacionado com a fibrose
cia de bicarbonato, que leva à acidificação do duodeno e inativa cística ocorre em 30% dos pacientes acima de 25 anos, e 40%
enzimas pancreáticas e precipita sais biliares, comprometendo dos adolescentes apresentam alteração do teste oral de tolerân
a digestão das gorduras. cia à glicose. Existe correlação clínica entre diabetes melito e
Figura 29.1 Paciente portadora de fibrose cística. Suor: sódio, 108,0 mEq/f; cloro, 93,0 mEq/f. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
no Encarte.)
284 C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trien tes
doença pulmonar mais grave e estado nutricional precário. Os O tratamento é feito com reposição enzimática e melhora do
pacientes com perda de peso inexplicada ou redução da função estado nutricional.
pulmonar devem ser testados para diabetes.
■ Doençadorefluxo gastresofágico (DRGE)
■ fleomeconial Pacientes com FC apresentam incidência aumentada de
Na fase intrauterina, todo o tubo digestivo se encontra co DRGE por alterações no esvaziamento gástrico e relaxamento
berto por uma camada de secreção mucosa mais espessa e vis inadequado do esííncter esofágico inferior. O quadro de DRGE
cosa do que a habitual no pós-parto. ainda é complicado pelo aumento da pressão intra-abdominal
O mecônio se apresenta excepcionalmente espesso e causa, devido à tosse e pelo rebaixamento do diafragma. A DRGE pode
junto à válvula ileocecal, obstrução do íleo terminal, e o qua trazer complicações, agravando ainda mais a função pulmonar
dro clínico é, então, denominado íleo meconial. Ocorre em 10 dos pacientes fibrocísticos.
a 20% dos recém-natos portadores de FC e é o sinal mais pre
coce da doença. Todo paciente com quadro de íleo meconial é ■ Manifestaçõeshepatobiliares
considerado portador de fibrose cística até que se prove o con Assim como acontece nos outros órgãos, a secreção biliar
trário. Este dado é verdadeiro em 90% dos casos. Manifesta- espessa promove obstrução biliar, inflamação, fibrose biliar
se logo ao nascer ou nos primeiros dias de vida com ausência periporta e cirrose biliar focal.
de eliminação de mecônio, distensão abdominal progressiva e Um em cada quatro pacientes apresenta alterações labo
vômito biliar, evoluindo, eventualmente, para perfuração in ratoriais de dano hepático e colestase, apesar de geralmente
testinal e peritonite. ser assintomático. Podem ser encontradas esteatose hepática e
A radiografia simples do abdome denota sinais de obstrução colelitíase. A cirrose biliar focal geralmente ocorre aos 15 anos
intestinal distai com distensão de alças com níveis hidroaéreos, de idade e acomete apenas 5% dos pacientes que se apresen
ausência de ar distai e aspecto em vidro fosco ou granuloso, tam com hepatoesplenomegalia, ascite, edema periférico e hi
representada pela mistura do mecônio espesso com pequenas pertensão porta. O óbito por doença hepatobiliar ocorre em
bolhas de ar. A radiografia contrastada mostra os segmentos 2% dos casos.
do cólon, distais ao bloqueio, vazios e colapsados, revelando o
aspecto de microcólon. O tratamento clínico é sempre a op ■ Outras causas de dor abdominal
ção inicial, e o tratamento cirúrgico fica restrito aos casos de Além das já citadas, podem existir intussuscepção intestinal,
falha terapêutica. aderências intestinais decorrentes de procedimentos cirúrgicos,
apendicite, abscesso apendicular, pancreatite (em caso de fun
■ Síndrome daobstruçãointestinal distai ção pancreática residual) e colecistite.
(equivalenteaoíleo meconial)
Ocorre em 10 a 20% dos pacientes e é causada pela obs ■ Manifestaçõesreprodutivas
trução intestinal, geralmente parcial, após o período neonatal, Pode haver atraso puberal nos pacientes com comprome
em geral em adolescentes e adultos. Assim como no íleo m e timento nutricional. A esterilidade masculina ocorre virtual
conial, há obstrução da região ileocecal. O quadro está asso mente em todos os casos devido à azoospermia por obstrução
ciado com fezes volumosas, viscosas e mal digeridas e com a dos canais deferentes, tanto nos pacientes portadores de fibro
interrupção, ou o uso inadequado, das enzimas pancreáticas. se cística quanto nos pacientes heterozigotos para a mutação
Clinicamente, o paciente se apresenta com dor abdominal CFTR.
recorrente e fecaloma na fossa ilíaca direita, distensão abdo Apesar de muitas controvérsias sobre o assunto, mulheres
minal e constipação intestinal. O tratamento do quadro de portadoras de FC apresentam fertilidade normal e podem com
suboclusão é clínico. pletar uma gravidez a termo se tiverem suporte nutricional
adequado e boa reserva pulmonar.
■ Prolapso reta!
O prolapso retal ocorre em cerca de 20% dos pacientes, em ■ Manifestaçõesglandularessudoríparas
especial nos menores de 3 anos de idade. Lactente com pro A perda excessiva de sódio e cloro no suor pode ser perce
lapso retal deve ser sempre submetido ao teste do suor para bida pelos pais como “beijo salgado”. Especialmente quando
avaliar a hipótese de fibrose cística. O prolapso retal depende expostos a períodos de muito calor ou na presença de vômito e
de vários fatores, tais como diarréia crônica, fezes volumosas, diarréia, o paciente pode apresentar desidratação com alcalose
desnutrição proteico-calórica, tônus muscular diminuído e au metabólica hipoclorêmica e hiponatrêmica.
mento da pressão intra-abdominal pela tosse. O tratamento é
clínico com melhora do estado nutricional e o tratamento da ■ Diagnóstico
insuficiência pancreática. Os sinais e sintomas da FC podem ser gerais, independen
tes da idade, ou específicos para cada faixa etária conforme
■ Constipaçãointestinalcrônica disposto no Quadro 29.4. Na presença de sinais e sintomas
A constipação intestinal pode ocorrer em aproximadamente característicos, os pacientes devem ser submetidos à dosagem
26 a 47% dos pacientes fibrocísticos menores de 18 anos, sejam de cloro no suor.
eles portadores de insuficiência pancreática ou não. Os fatores Deve-se suspeitar de FC em qualquer idade em caso de his
de risco são secreção intestinal espessa, má absorção, redução tória familiar sugestiva (paciente diagnosticado ou óbitos por
da motilidade intestinal e histórico de íleo meconial. doenças pulmonares), pele salgada, pneumopatias crônicas e/
ou de repetição, baqueteamento digital, distúrbios hidreletro-
■ Edemahipoproteinêmico líticos (especialmente, alcalose metabólica hiponatrêmica e hi
Ocorre em 5% dos recém-natos portadores de fibrose cís poclorêmica) e isolamento casual de Pseudomonas aeruginosa
tica e é secundário à insuficiência pancreática e à desnutrição. de secreções respiratórias.
C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trie n te s 285
B a q u e t e a m e n t o d ig ita l D e s n u tr iç ã o
T o s s e p r o d u t iv a H ip o tir e o id is m o
P n e u m o p a t ia d e r e p e tiç ã o H ip e rp la s ia c o n g ê n it a d a s u p ra rre n a l
C a lc ific a ç ó e s a b d o m in a is o u e scro ta is D is fu n ç à o a u t o n ô m ic a
E d e m a h i p o p r o t e in ê m ic o S ín d r o m e d e M u n c h a u s e n p o r p ro c u r a ç ã o ( b y p r o x y )
A n e m ia h e m o lític a (d e fic iê n c ia d e v it a m in a E)
gestacional e com mais de 2 semanas de idade. Valores abai A pesquisa de enzima nas fezes consiste comumente na do
xo de 40 mEq/^ sâo considerados normais para pacientes com sagem da elastase-1 pancreática fecal. A dosagem desta enzima
6 meses ou mais. é um teste preciso, simples e que não é alterado pela reposição
O teste do suor é positivo em 98 a 99% das crianças com enzimática, entretanto não está disponível de rotina em nos
fibrose cística. so meio.
Crianças com 2 valores de IRT alterados e teste do suor O método indireto padrão-ouro é o balanço de gordura de 3
intermediário devem repetir o teste do suor. Se persistir in dias (método de Van der Kamer) em que se medem a ingestão
termediário, o paciente deve ser encaminhado ao serviço de e a excreção fecal de gorduras. O balanço entre eles correspon
referência de fibrose cística para pesquisa de mutações CFTR. de à taxa de absorção de gorduras, dado que é utilizado para
O algoritmo de diagnóstico para fibrose cística está descrito definir se o paciente é pancreatossuficiente ou insuficiente. Os
na Figura 29.3. inconvenientes são a coleta e conservação de todas as evacu
Não existe correlação clínica entre a concentração de cloro ações durante 72 h e o manuseio de grandes quantidades de
no suor e a gravidade da doença. fezes em laboratório.
No caso de pacientes com quadro clínico compatível e teste O método direto padrão-ouro de investigação da função
do suor não conclusivo, a presença de duas mutações conhe pancreática é o teste da secretina/pancreozimina. Este teste
cidas firma o diagnóstico de fibrose cística. Se a pesquisa de consiste na administração endovenosa de secretina (ou secre-
mutações for negativa, não se exclui a doença, já que pode ser tina + cecequina) seguida de coleta da secreção pancreática
um caso de mutação nova ou rara. produzida, mas raramente é necessário. É um teste invasivo e
Assim como para IRT, há casos de falso-positivos e falso- de alto custo.
negativos no teste do suor (ver Quadro 29.7). A ultrassonografia de abdome é útil para avaliar colelitíase,
A função pancreática pode ser avaliada por métodos diretos dilatação de duetos biliares e veias hepáticas. Para avaliação do
ou indiretos (Capítulo 28). Os métodos indiretos são mais co- parênquima hepático quanto à presença de fibrose ou cirrose,
mumente utilizados e consistem em pesquisa de gordura nas é necessária a biopsia hepática.
fezes e dosagem de enzimas nas fezes. A radiografia de tórax costuma mostrar comprometimen
A pesquisa de gordura pode ser realizada pela análise qua to pulmonar, especialmente em lobos superiores e no hemi-
litativa a partir do método Sudam III, pelo método semiquan- tórax direito. Os achados mais comumente encontrados são
titativo do esteatócrito ou pelo método quantitativo de Van hiperinsuflaçâo, espessamento de paredes brônquicas, áreas
der Kamer. de consolidação, bronquiectasias, atelectasias e impactações
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* Em duas dosagens.
IRT: Tripsinogènio imunorreativo.
Figura 29.3 Algoritmo diagnóstico para fibrose cística. (Adaptado de Farrel, Rosenstein e ta l., 2008.)
288 Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes
mucoides. A tomografia de tórax é indicada para avaliar os e aumenta a sobrevida. Felizmente, o Ministério da Saúde auxi
mesmos achados, entretanto é mais sensível e específica nas lia nas despesas com o custo da maioria das medicações.
fases iniciais da doença. O tratamento se baseia em suporte nutricional adequado,
A espirometria demonstra inicialmente um padrão obs- controle de manifestações gastrintestinais, controle da infecção,
trutivo e, com a evolução da doença, um padrão restritivo controle de manifestações respiratórias.
associado.
A pesquisa de microrganismos deve ser realizada de modo ■ Suportenutricional
rotineiro para detecção de patógenos incipientes através da A ingestão energética deve ser aumentada para contraba
orofaringe, do aspirado traqueal ou do escarro induzido. lançar o maior gasto energético basal e as perdas alimentares
A investigação complementar do quadro de exacerbação pelas fezes.
pulmonar demonstra radiografia de tórax com novos infiltra Vários fatores influenciam no ganho de peso, tais como:
dos ou piora dos já existentes, leucocitose e redução da satu genética, insuficiência pancreática, ressecção intestinal, perda
ração de oxigênio. de sais biliares, DRGE, inflamação, infecção, diabetes e aspec
tos emocionais.
■ Diagnóstico diferendal O objetivo do tratamento nutricional é prevenir e tratar dé-
O diagnóstico diferencial da FC deve ser feito com discinesia ficits nutricionais e suas complicações. É realizado a partir de
ciliar primária, bronquiectasias de outra etiologia, bronquiolite dados de anamnese e exame físico à procura de sinais e sinto
obliterante, síndrome da imunodeficiência humoral, síndrome mas de déficits nutricionais e checar o uso da TRE, medidas
da imunodeficiência adquirida (AIDS), asma e doença pulmo antropométricas e testes laboratoriais.
nar obstrutiva crônica (DPOC) no caso de pacientes adultos. O tratamento consiste em educação nutricional, orienta
ção dietética, suplementação diária de vitaminas A, D, E e K,
■ Seguim ento suplementação de sais, especialmente no verão, e terapia de
O seguimento deve ser realizado durante toda a vida. O pa reposição enzimática (TRE).
ciente portador de FC necessita de uma equipe interdisciplinar O aleitamento materno deve ser incentivado, pois confere
e deve ser submetido a consultas a cada 1 a 3 meses, conforme benefícios duradouros.
seu estado clínico. Em todas as consultas, devem ser realizadas a A dieta deve ser hipercalórica, hiperproteica e normo ou hi-
pesquisa de microrganismos e a medida da saturação transcutâ- pergordurosa, atingindo 120 a 150% das necessidades diárias
nea de oxigênio da hemoglobina. recomendadas. Em casos selecionados, quando não for possí
Devem ser solicitados anualmente os seguintes exames com vel ou suficiente a ingestão de calorias pela dieta tradicional,
plementares: radiografia de tórax, ultrassonografia de abdome, pode-se optar por suplementação oral, enteral, gastrostomia
hemograma completo, dosagem de transaminases, glicemia de e nutrição parenteral. O potencial de crescimento das crian
jejum, cálcio, fósforo, fosfatase alcalina, coagulograma, hemo ças com FC é normal e este deve ser o objetivo do tratamento
grama completo e proteína total e frações. No meio brasileiro, nutricional.
exames parasitológicos de fezes devem ser adicionados para
verificar concomitância com parasitoses intestinais, causadoras ■ Controle dasmanifestações gastrintestinais
frequentes de espoliação. O tratamento do íleo meconial é feito à base de enemas de
Pacientes em uso de antibioticoterapia inalatória devem contraste, de preferência hidrossolúveis e não iônicos, e reali
ser submetidos semestralmente ao exame de rotina de urina e zados sob controle de fluoroscopia. Na falência do tratamento
dosagens de ureia e creatinina. clínico, indica-se o tratamento cirúrgico.
O teste oral de tolerância à glicose deve ser solicitado a O tratamento da síndrome da obstrução intestinal distai
partir dos 7 anos de idade, ou antes se a glicemia de jejum consiste no uso de soluções de lavagem balanceadas de ele-
for alterada. trólitos com polietilenoglicol. A dose de enzimas pancreáticas
A partir dos 6 anos, deve-se proceder à espirometria a cada deve ser reajustada, assim como deve ser estimulada uma dieta
6 meses e à tomografia computadorizada de tórax a cada 2 a rica em fibras e uso de laxativos e mucolíticos para evitar re-
3 anos, ou antes se for necessário. cidivas do quadro.
Além do calendário vacinai habitual preconizado pelo Mi O uso do ácido ursodesoxicólico em alta dose (20 mg/kg/dia)
nistério da Saúde, os pacientes também devem receber a vacina deve ser indicado nos pacientes com evolução colestase-fibrose-
antipneumocócica (conjugada a partir de 2 meses e polissaca- cirrose. Apesar da falta de evidências científicas conclusivas, ele
rídica 23-valente a partir de 2 anos) e vacinação anti-influenza aumenta o transporte dos ácidos biliares tóxicos endógenos e
anual. Embora ainda não haja consenso, as vacinas contra va inibe sua absorção intestinal, estimula o fluxo biliar e tem efei
ricela e hepatite A também devem ser recomendadas pelo ris tos citoprotetor e imunomodulador no fígado.
co de dano nos órgãos especialmente acometidos pela fibrose A TRE deve ser instituída o mais precocemente possível, as
cística. sim que for determinado o diagnóstico de fibrose cística com
acometimento pancreático, independente da idade, o que ocor
■ Tratam ento re em 90% dos pacientes. Alguns sugerem sua utilização nos
O tratamento da FC deve ser realizado em um centro es casos de íleo meconial, antes mesmo do diagnóstico confirma
pecializado de referência, devido ao acometimento multissis- do de fibrose cística, pois a TRE não interfere no diagnóstico e
têmico da doença e com o intuito de prevenir complicações e pode evitar e tratar a desnutrição.
infecções. A equipe deve ser constituída por médico pneumolo- São utilizadas enzimas do tipo pancreolipases, contendo li-
gista, nutricionista, fisioterapeuta, enfermeira, assistente social pase, protease e amilase obtidas de pâncreas porcino ou bovi
e psicólogo. O tratamento precisa ser individualizado, levando no. São encontradas em preparações comuns ou sofisticadas,
em conta a gravidade e a localização dos órgãos acometidos. muitas delas acidorresistentes, evitando a inativação pelo suco
O tratamento iniciado o mais precocemente possível retarda a gástrico, e com concentrações mais uniformes e padronizadas.
progressão do acometimento pulmonar, melhora o prognóstico As enzimas artificiais possibilitam aumento da absorção de gor-
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 289
vida do paciente. Além disso, apresenta poucos efeitos colaterais Outras drogas estão em estudo, tais como agonistas dos re
e é de baixo custo, permitindo seu uso com sucesso mesmo em ceptores de canal de cloro não CFTR (denufosol), drogas com
países subdesenvolvidos. Antes da inalação com solução sali potencial anti-inflamatório (antagonistas da elastase neutro-
na hipertônica (NaCl 7%), é indicado o uso de salbutamol em fílica), produtos que interferem na formação de biofilmes da
spray oral 30 a 60 min antes. Estudos sugerem que a inalação Pseudomonas (dextrana inalatório), novos antibióticos ina-
com solução salina deva ser mais efetiva no início da vida, antes latórios (carbapenêmicos e aztreonam) e a vacina anti-Pseu-
que a doença pulmonar esteja estabelecida. domonas.
A DNAse humana recombinante (rhDNAse, dornase alfa -
Pulmozymect) é um mucolítico que cliva o DNA dos núcleos ■ Prognóstico
de neutrófilos degenerados presentes no muco e reduz a vis O prognóstico está associado a vários fatores como genó-
cosidade do muco. É usada por via inalatória por inalador a tipo, idade de instalação dos primeiros sintomas, presença de
jato, através de bocal, na dose de 2,5 mg (1 m g/ml), 1 vez/dia. insuficiência pancreática e grau de envolvimento pulmonar.
Deve ser utilizada de modo contínuo para sustentar os bene As complicações costumam acontecer nos pacientes mais
fícios clínicos; apresenta alto custo. É reservada para os casos velhos, devido à evolução da doença. São elas: hemoptises re
de presença de secreções brônquicas purulentas, espirometria correntes, impactações mucoides brônquicas, atelectasias, em-
com sinais de obstrução e exames de imagem de vias respira piema, pneumotórax, enfisema progressivo, fibrose pulmonar,
tórias com alterações estruturais. diabetes melito, pancreatite, osteoartropatia hipertrófica, as-
Em torno de 50% dos fibrocísticos evoluem com hiper-res- pergilose broncopulmonar alérgica, DRGE, osteoporose e cor
ponsividade de vias respiratórias, e o tratamento é similar ao pulmonale.
da asma atópica. A taxa de sobrevida é inversamente proporcional ao acome-
A azitromicina é indicada por apresentar efeitos anti-in- timento pulmonar da doença.
flamatórios, inibição da formação de biofilme e da aderência A insuficiência respiratória é responsável por pelo menos
bacteriana. É provável que estabilize a função pulmonar, di 80% dos óbitos. O óbito geralmente ocorre por uma combina
minua as exacerbações e melhore o estado nutricional. Deve ção de falências respiratória e cardíaca.
ser usada 3 vezes/semana, durante longos períodos, nas doses Quando a fibrose cística foi descrita em 1938, a expectativa
de 250 mg nos pacientes menores de 40 kg e de 500 mg nos de vida era de apenas alguns meses. A média de sobrevida nos
maiores a partir de 40 kg. países desenvolvidos está ao redor dos 35 anos; entretanto, nos
A oxigenoterapia deve ser reservada para os casos de países subdesenvolvidos, como o Brasil, os índices de sobrevi
insuficiência respiratória hipoxêmica, utilizando os mesmos da são baixos. Nos EUA e no Canadá, 15 a 20% dos pacientes
critérios usados para pacientes portadores de DPOC. Dentre evoluem para óbito antes dos 10 anos de vida.
seus benefícios, estão redução da resistência vascular pulmonar,
correção da policitemia, redução do número de hospitalizações, ■ Conclusão
aumento da sobrevida e melhor qualidade de vida. O objetivo atual é preservar a função pulmonar dos pacien
A fisioterapia na prática clínica é medida muito eficaz, por tes portadores de FC para que possam beneficiar-se de terapias
auxiliar na depuração das secreções respiratórias, mas infeliz futuras que permitam a correção do defeito básico e tornem a
mente ainda não há estudos randomizados controlados para fibrose cística uma doença manejável.
uma metanálise que comprove o seu papel. Deve ser empregada
em todos os pacientes. Existem muitas técnicas empregadas na
fisioterapia, tais como manobras de aceleração do fluxo expi- ■ SUC0ENTÉRIC0
ratório, drenagem postural, expiração forçada eflutter, dentre
outras. As técnicas fisioterápicas devem ser associadas e ajusta Enzimas produzidas pelas células do intestino delgado têm
das conforme a idade e a necessidade do paciente. A tosse deve importante papel na complementação da digestão de vários
ser sempre estimulada, já que é o melhor mecanismo conhecido nutrientes, principalmente de dissacarídios (Capítulo 28).
para eliminar as secreções. Atividade física deve ser preconiza
da, pois também é um estimulante da tosse.
■ Digestão na membrana do enterócito
■ Transplantepulmonar Os carboidratos são hidrolisados por enzimas associadas à
O transplante pulmonar bilateral é a alternativa final para membrana dos enterócitos. O padrão de ingestão dos carboidra
pacientes com doença pulmonar avançada, ou seja, quando a tos muda com a idade. Durante a infância, a quantidade maior
sobrevida por 2 anos é inferior a 50%. Após o transplante, não da dieta corre por conta da lactose. Já na criança mais velha e
há reincidência da doença no órgão transplantado e a sobrevida em adultos, o amido constitui 60% dos carboidratos ingeridos,
pós-transplante em 5 anos é menor que 50%. a sacarose 30% e a lactose 10%. Tais carboidratos complexos
são hidrolisados a dissacarídios e monossacarídios. Os dissa
■ Outros tratamentos carídios são hidrolisados a monossacarídios por dissacaridases
A terapia gênica foi motivo de grande entusiasmo, mas en- específicas, localizadas na membrana da borda estriada das cé
contra-se distante da prática clínica. Um gene CFTR normal é lulas epiteliais intestinais (Quadro 29.9). Os monossacarídios
introduzido dentro das células somáticas a partir de um vetor. O são então transportados através da membrana dos enterócitos.
vetor inicialmente testado foi o adenovírus, porém apresentou Quando há deficiência de dissacaridases da borda estriada, o
resultados ruins devido à imunogenicidade e baixa eficácia em dissacarídio mal digerido chega ao cólon com o conteúdo lu-
introduzir DNA nas células epiteliais. Novos vetores não virais minal, onde é metabolizado por bactérias colônicas. Dióxido de
estão sendo testados; dentre eles, lipossomas e plasmídios. carbono, hidrogênio, gases e ácidos orgânicos são produzidos
Uma nova perspectiva seria o uso de substâncias que estimu com consequente distensão abdominal, flatulência e diarréia.
lem o funcionamento da proteína CFTR, tais como genisteína, Embora várias deficiências de dissacaridases tenham sido des
apigenina e IBMX. critas, a mais comum é a deficiência de lactase.
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 291
D E F IC IÊ N C IA C O N G Ê N I T A D E D IS S A C A R ID A S E S
L a cta se
■ Deficiência de lactase/intolerância à lactose
S a c a ra s e -is o m a lta s e ■ Introdução
T re a la s e O dissacarídio lactose é um carboidrato presente unicamen
D E F IC IÊ N C IA A D Q U I R ID A O U T A R D IA D E D IS S A C A R ID A S E S
te no leite dos mamíferos. Intolerância à lactose (IL) é a for
ma mais comum de má absorção de carboidratos. Isso ocorre
La cta se
porque a atividade intestinal da lactase, enzima necessária para
S a c a ra s e -is o m a lta s e
hidrólise da lactose em glicose e galactose, diminui progressiva
G lic o a m ila s e o u m a lta s e
mente com o passar dos anos em todos os mamíferos, inclusive
"Impedimento da digestão de um dissacarídio específico, levando à fermentação no homem. A população que hoje digere a lactose o faz graças
bacteriana no cólon.
à mutação genética ocorrida há 3.000 ou 5.000 anos e que se
expressa como característica autossômica dominante. Sua pre
valência é extremamente variável, sendo de 10% no norte da
Europa, 25% nos EUA e 70% na Ásia e na África. No Brasil, a
■ Malabsorção de dissacarídios prevalência varia de acordo com a região e o método diagnós
Entende-se por deficiência de dissacaridase a absoluta ou re tico empregado, mas situa-se entre 45 e 50%.
lativa diminuição na quantidade de uma enzima ativa disponí
vel para hidrólise de um dissacarídio da dieta. Tais deficiências ■ Tipos de deficiência de lactase
são geralmente seletivas ou específicas, marcadas pela redução A deficiência de lactase pode ser congênita, primária ou se
da atividade de uma única dissacaridase, como, por exemplo, cundária. A forma congênita é muito rara, possui caráter autos-
no caso da deficiência congênita de lactase. Por outro lado, sômico recessivo e foi descrita pela primeira vez em 1959. Nes
deficiências de dissacaridases podem ser gerais, com redução tes pacientes, há ausência total da enzima desde o nascimento
na capacidade de digerir a maioria ou a totalidade dos dissa devido a alterações localizadas no cromossomo 2q21. Os sinto
carídios, como, por exemplo, na doença celíaca, onde há lesão mas iniciam-se após a primeira amamentação e caracteriza-se
intestinal difusa. por diarréia grave. A deficiência de lactase primária, também
A lactose predomina na dieta láctea; a sacarose, no açúcar denominada de não persistência da lactase, é a principal causa
comum e nas frutas; e o amido, nos cereais. Para digerir os de IL em todo o mundo, sendo também determinada geneti
carboidratos, há necessidade de plena atividade das enzimas camente de forma recessiva. Ao nascimento, a atividade enzi
digestivas, donde a ação da amüase salivar, da alfa-amilase mática é máxima, porém reduz-se gradualmente, chegando a
pancreática e das oligossacaridases (lactase, sacarase e malta níveis indetectáveis após alguns anos de vida. A taxa de perda
se) localizadas na borda em escova dos enterócitos. Seus pro da atividade da lactase depende da etnia. Os chineses e os ja
dutos de digestão, os monossacarídios, são absorvidos quase poneses perdem 80 a 90% da atividade da enzima dentro de 3
totalmente pelo intestino delgado. a 4 anos após o desmame.
A deficiência secundária ou adquirida refere-se à perda da
lactase - lactose - » glicose e galactose atividade da lactase em pessoas com persistência da enzima e é
sacarase - sacarose —»glicose e frutose mais comum em adultos. Isso ocorre como resultado de doen
maltase - maltose —> glicose e glicose ças do trato gastrintestinal, como doença celíaca, gastrenterite
Em resumo, a digestão dos carboidratos completa-se na su viral, infestação por Giardia lamblia, cirurgias, medicamentos e
perfície luminal do enterócito sob a ação coletiva de sete car- radioterapia (Quadro 29.10). Estas condições promovem redu
boidrases. ção ou alteração nas microvilosidades intestinais, local onde se
O destino de um dissacarídio da dieta depende da quanti encontra a lactase. O tratamento da doença de base e a melhora
dade ingerida, do tempo de contato com a mucosa intestinal e histológica do epitélio intestinal nem sempre traduzirão uma
do nível da enzima disponível para sua digestão. Exceto para a reversão do quadro de intolerância com melhora enzimática.
lactose, a capacidade para a hidrólise intestinal do dissacarídio,
sob condições normais, é tal que a absorção é completa.
Quando ocorre malabsorção, há sintomas como borborig-
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------
mos, dor abdominal, diarréia e flatulência. A intolerância ao
dissacarídio ê definida, então, como a ocorrência de sintomas Q u a d ro 29 .1 0 Causas secundárias de intolerância à lactose
à ingestão de um determinado dissacarídio. Lembrar que sinto
In testin o delgado M ultissistêm ica latro gên ica
mas de malabsorção ou intolerância podem ocorrer a despeito
de atividade enzimática normal quando uma quantidade exage D o e n ç a celía ca S ín d r o m e c a rc in o id e Q u im io t e r a p ia
rada do dissacarídio é ingerida ou quando o trânsito intestinal D o e n ç a d e C ro h n F ib ro s e cística R a d io te ra p ia
está acelerado. Por tais razões, os termos “deficiência” e "into D o e n ç a d e W h ip p Ie E n te ro p a tia d ia b é tic a C iru rg ia s
lerância” não devem ser usados indistintamente. P ara sitose s (g ia rd ía s e ) S ín d r o m e d e Z o llin g e r -E llis o n C o i c h id n a
Também se deve esclarecer que “intolerância ao leite” se G a s tre n te rite vira l A lc o o lis m o N e o m ic in a
refere à intolerância à lactose e é diferente de “alergia ao leite”
E n te ro p a tia d o H IV D e fic iê n c ia d e fe rro C a n a m id n a
quando se trata de problemas relacionados com a proteína do
S ín d r o m e d o in te s tin o
leite de vaca. c u rto
É importante salientar que, após uma agressão ao intestino, a S ín d r o m e d a a lça c e g a
lactase é a primeira enzima a diminuir e a última a normalizar,
292 Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes
IL é diferente de alergia ao leite, pois esta ocorre por reação equivalente a um litro de leite de vaca) e coletam-se amostras
alérgica a proteínas (lactoalbumina e lactoglobulina) ou caseí- do ar expirado a cada 15 min, por 180 min. Nos portadores de
na, e aquela, à má digestão de carboidratos. A alergia ao leite IL, há uma elevação de 20 ppm no hidrogênio expirado, o que
ocorre em 1 a 2% das crianças e pode ser diagnosticada através indica fermentação da lactose pela flora colônica. Resultados
de testes alérgicos cutâneos. falso-negativos ocorrem quando há o uso concomitante de anti
bióticos, pois nesta situação existe redução da flora bacteriana
■ Fisiopatologia fermentadora. Atualmente, é considerado o melhor teste, pois
A lactose (p-D-galactosil-D-glicose) é um dissacarídio for não é invasivo e é mais confiável que outros métodos.
mado pela união de moléculas de glicose e galactose, sendo Dentre os testes fecais, utilizam-se a análise do pH fecal e a
encontrada no leite dos mamíferos. Entre estes, destaca-se o pesquisa de substâncias redutoras. Na IL, o pH fecal cai para
leite humano, pois é o mais rico em lactose (7,2 g/100 m fl. valores inferiores ou iguais a 5,5. Resultados normais não ex
Para que ocorra sua absorção, é necessária a hidrólise prom o cluem o diagnóstico, pois, se as fezes não forem frescas, os
vida principalmente pela enzima lactase, uma p-galactosidase ácidos fecais podem volatilizar-se. A pesquisa de substâncias
localizada na borda em escova das células epiteliais do intesti redutoras nas fezes indica má digestão de açúcares e é signifi
no delgado, com alta expressão no jejuno médio. No feto já é cativa quando possui valores acima de 0,5%. Resultado falso-
possível detectar a presença de lactase, cuja expressão máxima negativo ocorre se houver bactérias colônicas consumidoras
ocorre ao nascimento. Após alguns meses de vida, a atividade de açúcar.
da enzima começa a cair e esse descenso é progressivo até n í
veis indetectáveis, como consequência da maturidade. Quando ■ Tratam ento
a lactose não é digerida adequadamente, é carreada para o cólon O paciente com IL primária deve ser tranquilizado e orien
onde será fermentada pela flora local. Este processo produzirá tado de que a base do tratamento é a correção da dieta, pois
ácidos orgânicos, dióxido de carbono, metano e hidrogênio e geralmente são necessários pelo menos 20 a 50 g de lactose para
elevação da osmolaridade do lúmen entérico. O aumento da que apareçam sintomas. Assim, tanto alimentos sem lactose
carga osmótica atrairá água para o interior do cólon, levando (à base de soja), quanto produtos com baixa quantidade deste
à diarréia aquosa ácida. açúcar, como leites de baixa lactose, margarinas e alguns quei
jos, podem ser consumidos pela maioria dos pacientes. Iogur
■ Manifestações dínicas tes contendo lactobacilos acidófilos podem ser bem tolerados,
As queixas clínicas ocorrem apenas se houver a ingestão de porque a quantidade de lactose presente no leite é reduzida
produtos contendo lactose. Os sintomas iniciam-se após 15 a através da ação bacteriana. O Quadro 29.11 resume o conteú
120 min da ingestão deste açúcar, podendo surgir diarréia aquo do de lactose nos produtos lácteos mais consumidos no Brasil.
sa, distensão abdominal, flatulência, borborigmo, desconforto Deve ser lembrado que a lactose é amplamente utilizada na in
abdominal (às vezes, referido como dor tipo cólica ou meteo- dústria farmacêutica, como excipiente de medicamentos, e na
rismo), náuseas e vômito. Destaca-se que alguns pacientes po de alimentos, como espessante no preparo de carne de frango
dem ser oligo ou assintomáticos, mesmo com baixa atividade processada, salsicha, hambúrguer e outros produtos. Certos
de lactase. Interessante observar que muitos pacientes não as alimentos industrializados podem ter concentração de lactose
sociam seus sintomas com a ingestão de lactose e outros não maior que o próprio leite animal.
melhoram mesmo que a lactose seja excluída. No primeiro caso,
a habilidade da flora colônica em fermentar a lactose, produ
zindo gases em m aior ou m enor quantidade, pode ser uma
das justificativas da variação da intensidade dos sintomas. No ▼
segundo caso, quando a lactose é excluída e os sintomas per Q u a d ro 29.11 Concentração de lactose em alguns produtos lácteos
sistem, deve-se suspeitar da associação com síndrome do in
testino irritável. Alim ento % d e lactose por peso
O consumo de lactose com outros alimentos minimiza os Alvarcz, AE, Ribeiro, AF, Hcsscl, G et al. Fibrose cística cm um centro de re
ferência no Brasil: características clínicas c laboratoriais de 104 pacientes
sintomas, pois há redução do trânsito intestinal, permitindo
c sua associação com o genótipo c a gravidade da doença. /. Pediatr., 2004;
maior contato do bolo alimentar com a lactase residual. O mes 80:371-9.
mo ocorre com o consumo de leite integral em relação ao des Borowitz, D, Robinson, KA, Roscnfcld, M et al. Cystic Fibrosis Foundation
natado, pois a gordura do primeiro retarda o esvaziamento Evidencc-Bascd Guidclincs for Management of Infants with Cystic Fibrosis.
gástrico, permitindo lento deslocamento do produto lácteo no /. Pediatr., 2009; 155:73-93.
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não conseguem seguir a dieta, é possível utilizar a lactase em Castcllani, C, Cuppcns, H, Macck Jr, M et al. Consensus on thc use and inter-
cápsulas, acompanhando a ingestão de alimentos, a qual está pretation of cystic fibrosis mutation analysis in clinicai practicc. J. Cyst.
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sorvível, derivado da rifampicina, chamado rifamixina, no tra Fibrosis in Ncwborns through oldcr adults: Cystic Fibrosis Foundation
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cólon, a qual é a principal formadora de hidrogênio, dióxido de and Cookc tcchniquc and sweat conductivity test in patients with or without
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10 dias, conseguiram normalizar o teste do hidrogênio expirado Mayell, SJ, Munck, A, Craig, JV et al. A Europcan consensus for thc evaluation
e reduzir significativamente os sintomas destes pacientes por and management of infants with an equivocai diagnosis following newborn
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até 30 dias. No entanto, ainda não se sabe se a administração
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prolongada deste fármaco é benéfica. vel cm: <gophcr://http://portal.saudc.gov.br/portal/saude/visualizar_tcxto.
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cente do paciente. Nessas situações, a lactose deve ser excluída Online Mendclian Inhcritancc in Man. MIM *219700 Cystic Fibrosis; CF. Dis-
por, pelo menos, 4 semanas e depois pode ser feito o reteste, ponivcl cm: <gophcr://http://www.ncbi.nlm.nih.gov/omim/219700> Acesso
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Doença Celíaca e Outros
Distúrbios na Absorção
de Nutrientes
Lorete Maria da Silva Kotze e Shirley Ramos da Rosa Utiyama
294
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 295
---------------------------- ▼-----------------------------
Q u a d ro 30.1 Dados sobre prevalência da doença celíaca
p o p u la ç Ao g er al
K o r p o n a y -S z a b o e t a i H u n g r ia 1 99 9 427 1/85
G o m e s e t a l. A r g e n t in a 2001 2 .0 0 0 1/167
DOADORES DE SANGUE
N o t et a í EUA 1 99 8 2 .0 0 0 1 /25 0
T re v is io l e t a í Itália 1 99 9 4 .0 0 0 1/400
H o v d e n a k e ra / . N o ru e g a 1 99 9 2 .0 9 6 1 /34 0
R o s ta m i e t a l. H o la n d a 1 99 9 1 .00 0 3 /1.0 0 0
de celíacos como o grupo de maior risco ao desenvolvimento • há concordância de 11 a 20% da DC em gêmeos dizi-
da doença (Figura 30.1). Tais dados reforçam a importância góticos;
do rastreamento sorológico em todos os familiares de celía • há concordância de 30 a 40% entre irmãos HLA idên
cos, enfatizando a indicação de biopsia intestinal nos positivos, ticos;
mesmo na ausência de sintomatologia clínica. • ocorrem múltiplos casos da doença dentro da mesma
O que se pode concluir dos dados aqui apresentados é que família;
a DC é um problema de Saúde Pública, mundial, e que neces • a doença é rara em determinados grupos étnicos (orien
sita de atenção pelas autoridades competentes, com progra tais e negros).
mas de rastreamento como se faz para fenilcetonúria e outros
defeitos metabólicos, como bem preconizam Rubio-Tapia e A DC resulta de um efeito combinado de produtos de di
Murray (2010). ferentes genes, HLA e não HLA. O espectro de estágios pa
tológicos e a heterogeneidade clínica observados na DC são
■ Etiopatogenia compatíveis com sua natureza poligênica, considerando-se que
A Figura 30.2 demonstra o envolvimento de fatores genéti diferentes genes de suscetibilidade podem contribuir nos dife
cos, imunológicos e ambientais na etiopatogenia da DC. rentes estágios para o desenvolvimento final da doença.
► ASSO CIAÇÕ ES COM AN TÍGENOS LEUCO CITÁRIO S HUMA
■ Fatoresgenéticos NOS (HLA) NA D O EN ÇA CELÍA CA . Os genes do sistema HLA
De acordo com King e Ciclitira, a DC é fortemente heredi ocupam uma região de 4 Mb no braço curto do cromossomo
tária, oligogênica e complexa. As doenças complexas consistem 6p21 e contêm aproximadamente 200 genes, dos quais mais
em afecções influenciadas por múltiplos fatores ambientais e da metade tem função imunológica. Três regiões separadas de
genéticos e, potencialmente, por interações entre esses. Estudos genes são reconhecidas: os genes de classe I (HLA-A, B e C); a
com familiares de celíacos gradualmente ressaltaram o papel região de classe II, que inclui os genes para as cadeias ocpa e p
da genética na suscetibilidade à doença: das moléculas apresentadoras de antígenos de classe II (HLA-
• a doença é familial, pois a lesão característica da mucosa DR, DP e DQ), entre outras; e os genes de classe III, que co
entérica ocorre de 5 a 20% nos familiares dos pacientes, dificam proteínas do sistema complemento (C2, C4A, C4B e
mesmo que os sintomas sejam mínimos ou inexistentes; BF) (Figura 30.2), além do fator de necrose tumoral (TNF) e
• há concordância de 70 a 75% da DC em gêmeos mono- outras. As moléculas de classe I são encontradas na superfície
zigóticos; da maioria das células nucleadas do organismo, enquanto as
296 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
p = 0,084('i r
0 , 1%
Figura 30.1 Positividade de anticorpos antiendomísio IgA em grupos de risco para doença celíaca e população (Utiyama e t o i., 2009).
' Familiares x população sadia: p < 0,001. :J'Diabetes melito x população sadia: p < 0,001. l3,Síndrome de Down x população sadia: p = 0,019.
:/,Cardiomiopatias x população sadia: p = 0,084.
HUMORAIS C E LU LA R E S
Anticorpos FATO R ES CD4+/CD8*
IM U N O L Ó G IC O S
Complemento LIE/TCR y 6
Citocinas M acró fago s
FATO R ES FATO R ES
A M B IE N T A IS G E N É T IC O S
GLÚTEN GENES HLA
Antígenos Tóxicos Classes 1, II e III
GENES NÀO HLA
Figura 30.2 Fatores de patogenicidade na doença celíaca (Kotze, 2003). LIE = linfócito intraepitelial; TCR = receptor de célula T; FILA = antíge-
nos leucocitários do sistema humano.
moléculas de classe II estão expressas na superfície de células ses genes desenvolve a DC (cerca de 2-5%). Esse aspecto mos
apresentadoras de antígenos, principalmente macrófagos, cé tra que a presença de alelos específicos do locus HLA-DQ é
lulas dendríticas e células B. necessária, mas não suficiente para a expressão fenotípica da
A relação entre a DC e os genes I ILA no cromossomo 6p21 doença, e ressalta ainda a influência de genes não I ILA na sus-
(região CELIAC1) representa uma das associações HLA/doen- cetibilidade à DC.
ça mais forte e bem compreendida até o momento. Até 90-95% Os alelos HLA-DQ2 de suscetibilidade à DC podem ser her
dos pacientes celíacos expressam o heterodímero HLA-DQ2 dados em cis (do cromossomo de um dos pais) ou em trans,
(DQA1*0501/DQB1*0201), enquanto os 5-10% restantes ex com um alelo HLA-DQ vindo do cromossomo de cada um dos
pressam HLA-DQ8 (DQA1*0301/DQB 1*0302). Cabe ressal pais. Indivíduos com sorologia para DR3 (atualmente designa
tar, no entanto, que, apesar de esses alelos serem relativamente do DR17) carreiam esses alelos em cis, enquanto os heterozi-
comuns na população geral sadia onde a DC é prevalente (30 gotos para DR5 (atualmente DR11 ou DR12) e DR7 carreiam
a 35%), apenas uma pequena proporção dos que carreiam es os alelos em trans.
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 297
DQ2 DQ2
C IS TRAN S
Figura 30.3 Molécula de membrana DQ-DR mais frequente na DC. (Adaptada de Kagnoff, 2005.)
A Figura 30.3 sintetiza a molécula de membrana DQ-DR DC seja praticamente excluído em indivíduos que não apresen
mais frequente na DC. tem esses alelos (valor preditivo negativo próximo de 100%).
Esses aspectos fizeram com que atualmente a determinação do
• DQA 1*0501, DQB 1*0201: genes localizados no mesmo
HLA-DQ2 e HLA-DQ8 pudesse constituir um exame de rotina
cromossomo (os)/DR3;
na prática clínica.
• DQA1*0501, DQB1*0201: genes em diferentes cromosso
► O UTRAS ASSO C IAÇ Õ ES HLA NA DC. Além da associação
mos (trans), em indivíduos heterozigotos (DR5/DR7).
HLA-DQ2 e DQ-8 na DC, inúmeras outras associações HLA
Estudos recentes mostram ainda haver duas formas de mo foram gradualmente descritas. Destacam-se os genes MICA e
léculas HLA-DQ2, designadas HLA-DQ2.5 e HLA-DQ2.2. En MICB, e o gene HLA-G, da região de classe I do MHC, além
quanto HLA-DQ2.5 é um forte fator de risco à DC, o HLA- do gene HLA-DRB4 (HLA-DR53) e DPB1*0301, DPB1*0101
DQ2.2 não predispõe à doença, a menos que se expresse junto e DPB1*0402 da região de classe II.
com HLA-DQ2.5. Dessa forma, indivíduos homozigotos para Na população brasileira, Kotze e Ferreira, em 1977, em
o genótipo HLA-DQ2.5 ou heterozigotos para HLA-DQ2.5/ uma investigação com pacientes celíacos da região sul, detec
DQ2.2 têm alto risco de desenvolver a doença, enquanto indi taram o HLA-B8 em 71% desses em comparação a 6% dos in
víduos heterozigotos HLA-DQ2.5/não HLA-DQ2.2 apresentam divíduos sadios da mesma área geográfica. Por sua vez, Silva
risco discretamente elevado, decorrente do efeito do número et al.y em estudo com 25 pacientes de Ribeirão Preto, SP, de
de alelos na suscetibilidade à DC, bem como da magnitude da monstraram que os alelos HLA-DRB1*03, HLA-DRB1*07 e
resposta de células T-glúten específicas. HLA-DQ2.5 liga pep- HLA-DQB 1*02 conferiam suscetibilidade à DC, enquanto o
tídios de glúten com maior afinidade e permite uma apresen HLA-DQB1*06 conferiu proteção contra o desenvolvimento
tação mais prolongada do mesmo às células apresentadoras de da doença na população estudada.
Além dos genes HLA de classe II, também os genes da re
antígenos (APC) do que HLA-DQ2.
gião de classe III apresentam participação na suscetibilidade à
► RELEVÂNCIA CLÍNICA DA ASSOCIAÇÃO DQ2 E DQ8 NA DC.
DC. Entre esses, se encontram os genes que codificam o fator
Embora relatos prévios sugiram que uma vez que a DC se desen
de necrose tum oral-a (TNF-a), a a citocina pró-inflamatória
volve o curso clínico dela em geral é semelhante, dados recentes
e imunomoduladora envolvida na lesão imune mediada da DC,
mostram possível relação desse aspecto com a população em es
e as proteínas do sistema complemento (BF, C2, C4A e C4B).
tudo. Karinen et al.yna Finlândia, demonstraram associação da Estudos na população da Sicília detectaram aumento significa
homozigose para HLA-DQB 1*0201 com uma forma mais grave tivo dos alelos TNFa-308A e IFN-y +874T, sugerindo a presen
da DC, relacionada com maiores índices de atrofia vilositária, ça simultânea desses como uma combinação genética capaz de
diarréia mais grave, menores níveis de hemoglobina plasmática aumentar a suscetibilidade à DC. Por sua vez, a via alternativa
e idade mais jovem ao diagnóstico, além de regeneração mais do complemento exerce importante papel na patogênese da
lenta da atrofia de vilosidades após dieta isenta de glúten (DIG). DC, considerando que o glúten é um potente ativador da mes
Dados semelhantes foram descritos em pacientes italianos. ma. O fator B (BF) é a proteína central de ativação dessa via.
Nesse contexto, a genotipagem para HLA-DQ2 e HLA-DQ8 No Brasil, Utiyama et al. (2005), ao analisarem os alótipos de
tem se mostrado clinicamente relevante, além de apresentar BF na DC, caracterizaram a variante BFSF como marcador de
valor preditivo na detecção de familiares de alto risco ou si suscetibilidade à doença e a variante BFS como marcador de
tuações de suspeita clínica de DC nas quais o diagnóstico não proteção em familiares de celíacos da população do sul do país,
é claro. A ausência do HLA-DQ2 e HLA-DQ8 permite que o embora não tenham verificado associação com a gravidade da
diagnóstico ou a possibilidade de futuro desenvolvimento da DC e com a presença de autoanticorpos concomitantes.
298 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
► A SSO C IAÇ Ã O COM GENES NÃO HLA NA DC. Embora a esclerose múltipla e asma. Essa região contém os genes CD28,
associação entre DC e os genes HLA (região CELIAC 1) já se CTLA4 e ICOS, que codificam moléculas de superfície regu-
encontre bem estabelecida, a taxa de concordância da doença latórias da atividade de linfócitos T (Figura 30.4), o que faz de
entre gêmeos monozigóticos (70 a 75%) e em pares de irmãos CELIAC 3 forte candidato a um locus de suscetibilidade à DC,
afetados HLA idênticos (30 a 50%) mostra que tais genes são considerando que a ativação de células T glúten-reativas na
parcialmente responsáveis pela predisposição genética à doen mucosa intestinal representa um ponto crítico no desenvolvi
ça. Genes fora do complexo HLA, de diferentes cromossomos, mento da doença. O antígeno 4 associado ao linfócito T citotó-
também podem contribuir significativamente no desenvolvi xico (CTLA4) medeia a apoptose de células T e representa uma
mento da DC. Pesquisas direcionadas à caracterização de genes molécula coestimulatória negativa da resposta de células T, isto
adicionais, principalmente com o uso de estratégias de tria é, fornece um sinal negativo inibindo a ativação de células T.
gem genômica, têm sido realizadas. Os estudos de Hunt & Van Resultados conflitantes mostram ligação e/ou associação
Heel (2010), bem como os de Dubois e cols. (2010), permitem para DC com CELIAC 3 em algumas populações (francesa, no
observar o grande número de regiões genéticas recentemente rueguesa, sueca, britânica, espanhola e finlandesa), em oposição
identificadas com envolvimento na suscetibilidade à DC (8 a à ausência de associação em outras (da Itália, Tunísia, Irlanda
13, respectivamente), e a maioria dessas contém genes com ou América do Norte). Dados discordantes podem decorrer
função imunológica. Por sua vez, metanálises dos estudos de do baixo poder estatístico para detectar regiões de baixo risco
triagem genômica têm permitido sintetizar as inúmeras infor genotípico, pois milhares de famílias, em vez de centenas, po
mações disponíveis das investigações baseadas em famílias e dem ser requeridas nesses estudos. É possível que a resposta
identificar as novas regiões de potencial contribuição na pre definitiva para o papel desempenhado pelo gene CTLA4 no
disposição à DC. desenvolvimento da DC dependerá de projetos multicêntricos
O polimorfismo dos numerosos genes candidatos testados colaborativos e maiores evidências funcionais para os genes da
na DC permite destacar, dentre outras, as regiões designadas região CELIAC 3.
como CELIAC 2, do cromossomo 5q31-33, CELIAC 3, do cro ► R e g iã o C E L IA C 4. Genes notáveis encontram-se nessa re
mossomo 2q33, e CELIAC 4, do cromossomo 19pl3.1 gião (cromossomo 19pl3.1), destacando-se o da miosina IXB
► R e g iã o C E L IA C 2. Os estudos de triagem genômica têm (MY09B), que codifica uma molécula de miosina não conven
sugerido o cromossomo 5q31-33 como importante locus de ris cional, envolvida no movimento intracelular, que tem um pa
co para a DC e outras doenças inflamatórias. A região CELIAC pel na remodelação do citoesqueleto de actina dos enterócitos
2 contém genes que codificam moléculas envolvidas na ativação epiteliais. A descoberta de uma ligação genética entre a DC e
de células T, as quais controlam a resposta imunológica e a di uma variante da miosina IXB enfatiza a potencial importân
ferenciação celular, bem como a produção de citocinas e outras cia de um defeito na função da barreira intestinal, como um
moléculas pró-inflamatórias. Koskinen et a i (2009), em um processo primário na etiologia da DC, que permite explicar
minucioso estudo de mapeamento genético em famílias da Fin a passagem de peptídios imunogênicos de glúten através da
lândia e da Hungria, demonstraram ligação dessa região com a mesma. Esse poderia representar um fator envolvido nos even
DC, embora relatos prévios na Irlanda, ao analisar a variação tos iniciais na mucosa, que precedem a resposta inflamatória
genética para IL4, IL5, IL9, IL13, IL17B e NR3CI, genes candi na DC, e que vem ao encontro com a recente observação da
datos com função imunológica e/ou inflamatória presentes no permeabilidade intestinal em indivíduos com DC com histo-
cromossomo 5, não forneceram evidências de associação desses logia normal. Pode ser importante ainda no desenvolvimento
loci com a DC. Esse fato ressalta a importância de estudos em de tratamentos alternativos para a rígida dieta isenta de glúten
populações de diferentes origens étnicas e geográficas. usado correntemente.
► R e g iã o C E L IA C 3. Estudos diversos em populações têm A associação com o alelo rs2305764*A, no gene MY09B, foi
evidenciado que a região CELIAC 3, no cromossomo 2q33, relatada por Monsuur et al. (2005), na Irlanda. Forte associação
apresenta ligação com a predisposição à DC, assim como com de MY09B com doença celíaca refratária tipo II (RDCII) e en-
diabetes tipo I, doença de Graves, hipotireoidismo autoimune, teropatia associada ao linfoma de célula T (EATL) foi demons-
Figura 30.4 Marcadores genéticos na doença celíaca. (Adaptada de Louka e Sollid. 2003.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 299
trada por Wolters et al. (2007). A RDC é uma síndrome de má fora da membrana basal, entre as células epiteiiais (Figura 30.5).
absorção caracterizada pela persistência de atrofia vilositária e Os que apresentam os receptores gama/delta são importantes na
presença aberrante de linfócitos intraepiteliais na mucosa intes manutenção da integridade epitelial por destruir células infec
tinal, apesar da aderência do paciente à dieta isenta de glúten. tadas, transformadas ou danificadas. No indivíduo normal, os
Frequência significativamente maior do alelo rs7259292 foi ob LIE predominantes não expressam esses receptores, mas, nos
servada em pacientes com RDC II e EATL em relação a pacien celíacos, estão significativamente elevados, mesmo após dieta
tes não complicados e a indivíduos sadios. Estudos mostram sem glúten. Seu aumento sugere o diagnóstico de DC, porém
que ambos, MY09B rs7259292 e homozigose para HLA DQ2, podem aumentar na alergia alimentar, com densidade menor
aumentam o risco para tais complicações, sem evidências de do que na DC. Os LIE com receptores alfa/beta são principal
interação entre os dois fatores, sugerindo que possam ser en mente CD8+, estão aumentados nos celíacos não tratados, to
volvidos no prognóstico da doença. davia normalizam em número nos pacientes aderentes à dieta
► OUTRAS REGIÕES GENÉTICAS ASSO CIAD A S À DC. Dentre isenta de glúten.
inúmeros estudos que avaliam a contribuição de outras regiões
genéticas na suscetibilidade à DC em diferentes populações, o ■ Fatores ambientais
compilamento dos dados em revisões recentes permitem des Quanto aos fatores ambientais, embora se descreva o apa
tacar ainda: recimento da DC após uma infecção, não se comprovou que
• Região CELIAC 6 (4q27): Reino Unido, Holanda, Irlanda, um determinado microrganismo possa ter papel relevante. No
Itália, EUA, Escandinávia; entanto, dados recentes sugerem que a exposição precoce de
• Região CELIAC 7 (lq31): Reino Unido, Holanda, Irlan crianças ao glúten, infecção precoce com vírus enteropáticos
da, Itália, EUA; ou uma mudança da flora bacteriana tem mostrado favorecer
• Região CELIAC 8 (2qll-ql2): Reino Unido, Holanda, a evolução de DC clinicamente manifesta na infância.
Irlanda; ► CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CEREAIS E SUAS RELAÇÕES
• Região CELIAC 9 (3p21): Reino Unido, Holanda, Irlan TAXONÔM ICAS. Em cada espécie de cereal, há muitas proteínas
da, Espanha; de estoque. O glúten é a fração proteica do trigo, do centeio e
• Região CELIAC 10 (3q25-q26): Reino Unido, Holanda, da cevada que confere a propriedade de viscoelasticidade e que
Irlanda, Itália, EUA; permite a coesão da farinha. O consumo desses cereais faz parte
• Região CELIAC 11 (3q28): Reino Unido, Holanda, Ir da dieta tanto pela disponibilidade em termos de agricultura,
landa, Itália, EUA; como pelas propriedades físicas inerentes às suas proteínas.
• Região CELIAC 12 (6q25.3): Reino Unido, Holanda, Ir Além de permitir obter o pão fermentado, o glúten isolado pode
landa, Itália; ainda ser usado na preparação de alimentos industrializados
• Região CELIAC 13 (12q24): Reino Unido, Holanda, Ir (espessantes), bem como estar presente em bebidas (cervejas,
landa, Itália, EUA. drinques maltados).
Cereais são uma espécie de erva ou grama (Gramineae) que
Embora a contribuição genética como um todo desses poli- são cultivados pelos seus grãos. São classificados em quatro gru
morfismos combinados seja substancialmente menor, quando pos (Figura 30.6), e o trigo, o centeio e a cevada são cereais in
comparada à de 30 a 35% conferida pelos alelos HLA-DQ2 ou timamente relacionados (Tribo Triticeae) e tóxicos aos pacien
HLA-DQ8, a identificação desses genes e de seu papel na sus tes com DC. A toxicidade da aveia, taxonomicamente muito
cetibilidade, ou mesmo na proteção à DC, pode trazer avanços próxima a estes cereais (Tribo Aveneae), é controversa. Estes
nos aspectos diagnósticos e terapêuticos, além de servir como são os únicos cereais com grãos tóxicos conhecidos. Por outro
modelo nos estudos de outras doenças autoimunes. lado, o arroz e o milho não apresentam toxicidade.
Os linfócitos intraepiteliais (LIE), considerados também As frações proteicas solúveis em álcool são denominadas
como marcadores genéticos, são células T que se localizam por prolaminas enquanto as insolúveis, gluteninas. Aparentemen
te, as prolaminas são as principais responsáveis pelo desen-
cadeamento ou exacerbação da DC. No trigo, as prolaminas
são chamadas de gliadinas, enquanto no centeio, na cevada e
na aveia são conhecidas como secalina, hordeína e avenina,
respectivamente. Dados recentes sugerem que as gluteninas
também podem estar envolvidas com o dano na mucosa in
testinal.
B a m b u s o id e a e P o o id e a e P a n lc o ld e a e C h lo r id o id e a e
1
O ryze a e T ritic e a e
\
Aveneae P a n ic e a o
\
A n d ro p o g o n e a e
1
C y n o d o n te a e
■ Fatoresimunológicos
Os conhecimentos da patogênese da DC tiveram grandes
avanços nos últimos anos. O glúten induz uma resposta imuno- a enzima transglutaminase tecidual (transglutaminase 2 - TG2,
lógica inata que atua em conjunto com a imunidade adaptativa. em geral denominada tTG). Esta é uma enzima intracelular se-
Componentes humorais e celulares participam ativamente no cretada por fibroblastos, leucócitos, células endoteliais de vasos
processo da lesão da mucosa intestinal. De acordo com Schup- sanguíneos, células de músculo liso e de mucosas. Na DC, a tTG
pan et al. (2009), a DC representa uma das doenças ligadas ao tem sido detectada em todas as camadas da parede do intestino
HLA mais bem compreendida, pois constitui uma afecção úni delgado, com predomínio de expressão na submucosa. A tTG
ca ao se considerar que tem o “gatilho” definido (proteínas do é liberada das células durante a inflamação ou lesão e promo
glúten e cereais relacionados), a necessária presença do HLA- ve a ligação cruzada de certas proteínas da matriz extracelular,
DQ2 ou HLA-DQ8, e a produção de autoanticorpos circulantes estabilizando assim o tecido conjuntivo.
contra a enzima transglutaminase tecidual (TG2). Shan et al. (2002) identificaram os peptídios imunogênicos
A DC está associada à resposta autoimune altamente especí (33 mer-peptide), presentes exclusivamente nas proteínas do
fica ao endomísio, que faz parte da estrutura da matriz celular glúten da dieta, responsáveis pelo desencadeamento da DC.
do tecido conjuntivo do músculo liso (Figura 30.7). O antígeno Esses peptídios são, em geral, resistentes à degradação por pro-
endomisial foi identificado por Dieterich et al., em 1997, como teases gastrintestinais, fato que favorece sua sobrevivência e
H L A -D Q 2 H L A -D Q 2
i m / n / r tA m .trt.ir
(DR5)
H LA -D Q 2 em e is H LA -D Q 2 em t r a n s
disponibilidade no intestino delgado. Atualmente, esse peptí- a(TNF-a) e interferona Y(IFN-y), que estimulam os fibroblastos
dio é considerado um “superantígeno celíaco” e é usado como intestinais a secretarem metaloproteinases de matriz proteolí-
peptídio modelo em estudos pré-clínicos. Devido ao seu alto ticas (MMP-1 e MMP-3), que causam a destruição da mucosa
conteúdo em glutamina e proximidade com prolina e resíduos pela dissolução do tecido conjuntivo, com consequente atrofia
hidrofóbicos de aminoácidos, as proteínas do glúten, especial vilositária e hiperplasia de criptas. A MMP-3 exerce papel cen
mente a fração solúvel em álcool (gliadina do trigo, cecalina da tral na remodelação da mucosa, visto que degrada componentes
cevada e hordeína do centeio) e também as gluteninas, são o da matriz não colagenosa, glicoproteínas e proteoglicanos, além
substrato específico da enzima tTG. de ativar a MMP-1, responsável pela degradação do colágeno
Os peptídios penetram na lâmina própria no intestino delga fibrilar. Por sua vez, as citocinas da resposta Th2 direcionam
do, provavelmente após mudanças ocorridas nas junções ínti a ativação e expansão clonal de células B para a produção de
mas intercelulares, que resultam no aumento da permeabilidade autoanticorpos (IgA e IgG) contra o glúten (gliadina), tTG e
intestinal, um evento precoce na patogênese da DC. complexos gliadina-tTG. Outras citocinas como IL-18, IFN-a
Através de um processo de desaminação, a tTG converte a ou IL-21 parecem exercer um papel na polarização e manuten
glutamina em resíduos de ácido glutâmico (carregados nega ção da resposta Th-1. AIL-21, produzida por células Thl CD4',
tivamente), gerando potentes epítopos imunoestimulatórios. foi caracterizada como um fator adicional da imunidade inata,
Devido à carga negativa, a maioria desses peptídios de glúten ao atuar em conjunto com a interleucina (1L)-15. Por sua vez,
resultantes se liga com maior afinidade às moléculas HLA-DQ2 a IL-15 interliga o sistema imune adaptativo à resposta imune
(ou HLA-DQ8) das células apresentadoras de antígenos (APC) inata na fisiopatogenia da DC (Figura 30.8).
e leva a uma intensa ativação de clones de linfócitos T CD4* São recentes os progressos que permitiram compreender
glúten-específicos, presentes na mucosa intestinal de pacientes como linfócitos intraepiteliais (LIE) são ativados pelas proteínas
com DC, induzindo dessa forma a reação autoimune da DC. dos cereais. De forma integrada à resposta imunológica adap-
Os linfócitos B podem ser estimulados porque também tativa, estudos têm mostrado o efeito do glúten na imunidade
atuam como APC, expondo peptídios de glúten desaminado inata na DC, com ativação predominante de LIE e células do
aos linfócitos T específicos. epitélio intestinal. O peptídio a-2-gliadina p31-43, distinto do
Subsequente à ativação das células T CD4’, uma resposta peptídio que induz a resposta adaptativa (33 mer-peptidé)ycons
Thl e/ou Th2 se estabelece. As células da resposta Thl libe titui o gatilho dessa reação no epitélio intestinal, estimulando
ram primariamente citocinas como fator de necrose tumoral as células epiteliais, bem como macrófagos/células dendríticas
L u m o n in te s tin a l
E p it ô h o in to s tin o l
M e m b ra n a ba sa l
IL -1 5 Ativação do LIE L â m in a p r ó p n a
P o p t ld io s d o g lú lo n
r o o g o m n o s u b o p itô lio
d o lô m m a p r ó p r io
^ IL-21 D e g r a d a ç ã o d a m a t r iz o
d e m o d o ta ç à o d a m u c o s a
C o m p o n e n t e s d o s c e r e a is
o O e s tim u la m im u n id a d o in a ta S MMP-1, -3, -12f
9? & e m c é lu la s e p ite lia is e
Fibroblasto
dondnticas IF N -;
TNF'i
P e p t í d i o s d e g lú t e n d e a m in a d o s
s õ o a p r o s o n to d o s p o r A P C p o r o IL-21
c é lu la s T v ln H L A - D Q 2 o u D Q 8
A n t i c o r p o s c o n tr a
O Peptídio» do glúton o g lú t e n e T G 2
A u to a n t ic o r p o s k g a m -s o
nos t o a d o s o u s é o lib e r a d o s
no sangue
a secretar IL-15. A expressão da IL-15 exerce um papel central verificou-se tratar-se de linfócitos T com receptores gama/delta
no direcionamento dos processos que levam ao aumento do (LT- yÔ), considerados como marcadores precoces da DC. Tal
número de LIE, como também nos processos de destruição de fato permite identificar formas latentes de DC, tanto em indi
células epiteliais e danos na mucosa. víduos com arquitetura mucosa preservada e presença de anti
A ativação imune inata de LIE pelo glúten induz a expressão corpos positivos, como em familiares de celíacos. Em pacientes
de moléculas HLA classe I não clássicas (MICA) no epitélio in com outras expressões de sensibilidade ao glúten, tais como der-
testinal, que serve de ligante para o receptor NKG2D de célu matite herpetiforme, aftas recorrentes e artralgias, a presença de
las NK, linfócitos T-yÔ e linfócitos T citotóxicos CD8’. MICA tais células aponta para o correto diagnóstico (Figura 30.5).
epitelial e a produção epitelial ("up-regulated") de IL-15 levam
à ativação de NKG2D nos LIE. Os LIE citotóxicos ativados in ■ Fisiopatologia
duzem aumento da apoptose epitelial e da permeabilidade. As A DC compromete o intestino delgado proximal, afetando
vias da perforina/granzima e/ou Fas/FasL são fundamentais os locais “nobres” da absorção (Figura 30.9).
para essas atividades de citotoxicidade e apoptose dos LIE no O comprimento do intestino lesado na DC varia de paciente
epitélio intestinal na DC. a paciente, correlacionando-se com a gravidade dos sintomas
NKG2D também liga a imunidade adaptativa e inata, ao ati clínicos. Quanto mais grave a lesão e maior o segmento atin
var a citotoxicidade mediada por linfócito antígeno-específico, gido, mais intensa será a má absorção e mais comprometida a
bem como a função citolítica direta independente de receptor saúde do paciente. Entretanto, há pacientes celíacos com altera
de células T (TCR). ções discretas no intestino proximal. Somente rigorosa análise
Ainda é controverso como os peptídios imunogênicos de é que dará o diagnóstico nesses casos.
glúten alcançam a lâmina própria a partir do lúmen intestinal. O defeito básico da absorção, na forma pura, situa-se na fase
Evidências sugerem a participação de uma via paracelular, por epitelial. À medida que o processo evolui, surgem comprome
defeitos nas junções íntimas intercelulares, e de mecanismos de timentos secundários: na etapa pré-epitelial, há alterações na
transcitose, especialmente na mucosa inflamada na DC. Mais micelação das gorduras, perda fecal de sais biliares, assim como
recentemente, tem sido sugerida ainda a participação dos an redução da enteroquinase devido à redução da borda estriada
ticorpos IgA e IgG antiglúten e antitTG, que, ao ligarem-se aos do enterócito; na etapa pós-epitelial, há bloqueio relativo ao es
peptídios, favoreceríam o transporte transcelular dos mesmos coamento de nutrientes devido à infiltração do córion. Portan
do lúmen para a lâmina própria, amplificando a resposta de to, na DC, além da redução da área absortiva, existem alterações
linfócitos T CD4’ glúten-específica. nos mecanismos de digestão e transporte. Consequentemente,
Cabe salientar a importância do aumento do número de lin também ocorrem espoliação de vários nutrientes, exsudação de
fócitos intraepiteliais (LIE) na mucosa de celíacos, tanto em ati proteínas e oligoelementos para o lúmen intestinal e aumento
vidade como em remissão, como já assinalado. Posteriormente, de secreção pelas células das criptas.
GORDURAS
M O N O SSA C A R lD lO S
ÁGU A INT. D ELG A D O
D IS S A C A R lD IO S
E L E T R Ô L IT O S PRO XIM AL
P E P T ÍD IO S
Ca. Mg. Fe. Zr» AM INO ÁCIDO S
INT. D ELG A D O VIT. LIP O S S O L .
PRO XIM AL VIT. H ID R O S SO L.
AÇUCARES
P E P T ÍD IO S
AM INO ÁCIDO S INT. D ELG A D O
C Á LC IO MEDIANO
ÁGU A
Ag u a E L E T R Ô L IT O S
E L E T R Ô L IT O S
C Ó LO N S
VIT. B t2
S A IS B IL IA R E S
ÁGU A
E L E T R Ô L IT O S
D ISTA L
Figura 30.9 Esquema dos locais de absorção dos nutrientes, segundo Kotze.
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 303
Figura 30.10 Classificação de Marsh para os achados histopatológicos na doença celíaca. (Esta figura encontra-se reproduzida enn cores no
Encarte.)
-------------------------------------------- ▼--------------------------------------------
Q u a d ro 30.3 Classificação de Marsh para lesões da mucosa entérica na doença celíaca
0 <24 N o r m a is N o r m a is M u c o s a n o r m a l; D C im p r o v á v e l
3a >24 H ip e rp lá s tic a s A tro fia le v e Le sá o d e s tru tiv a ; e s p e c tro d e a lte ra ç õ e s c a ra c te rís tica s d e D C
n ã o tra ta d a ; p a c ie n te s p o d e m ser o u n ã o s in to m á tic o s
3b >24 H ip e rp lá s tic a s A tro fia g r a v e
3c >24 H ip e rp lá s tic a s A u s e n te s
, l/TTTTTl
IV
T --------------------------------------------------------------------------------------
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Q uadro 3 0 .4 Efeitos do comprometimento dos principais nutrientes: aspectos clínicos, laboratoriais e mecanismos envolvidos
B aixa e sta tu ra P ro te ic o
Edem a A b s o r ç á o e in g e s tá o
Fra tu ra s
S a n g r a m e n t o , e q u im o s e <TA P A lte r a ç ã o a b s o rç á o v it a m in a K
A n e m ia M íc ro c ito s e h ip o c r o m ia A lte r a ç ã o a b s o rç á o d e Fe
D is te n s ã o a b d o m in a l A c h a t a m e n t o c u rv a A lte r a ç ã o na h id ró lis e e a b s o rç á o d e h id ra to s d e
D ia rré ia , fla t u lé n d a G lic é m ic a c o m la cto se , s a ca ro se o u m a lto s e c a rb o n o
íntegras que compensarão a absorção dos nutrientes, como As alterações metabólicas que ocorrem na DC devido à má
também da própria redução da ingestão alimentar do pacien absorção de nutrientes, teoricamente, podem atingir qualquer
te (Figura 30.13B a E). Quando há edema, o emagrecimento dos sistemas, daí entender-se por que alguns celíacos se apre
pode estar mascarado (Figura 30.13F). Em crianças, a incapa sentam com sintomas extraintestinais.
cidade de ganho ponderai e atraso no crescimento tornam-se Como os sintomas, os sinais encontrados variam de caso a
muito evidentes. caso, não sendo específicos de DC. Quando a lesão é discreta
O estado nutricional pode agravar-se mais ainda devido à e limitada ao intestino delgado proximal, o exame físico pode
anorexia que muitos pacientes apresentam. Outros têm apetite ser normal ou refletir discreta anemia. Já nos casos graves, evi
normal ou, mais raramente, hiperfagia. dencia-se grave desnutrição (Figura 30.13).
Fraqueza, Cansaço e Fadiga. Relacionam-se com o estado No exame do paciente celíaco, podem ser observados: hi-
nutricional dos pacientes, que cansam ao executar tarefas ha potensão; emaciação, diminuição da massa muscular e do pa-
bituais. As crianças escolhem brincadeiras calmas ou até param nículo adiposo; unhas em vidro de relógio; pele seca e turgor
de brincar. A anemia e a insuficiência suprarrenal podem con diminuído; edema de extremidades; pigmentação de pele; equi-
tribuir para estes sintomas, bem como a hipopotassemia. moses; palidez de pele e mucosas; queilite e glossite, língua
Dor Abdominal. Não é frequente e, se presente, sua locali despapilada; abdome protuberante e timpânico, com alças pal
zação corresponde ao intestino delgado. páveis; raramente hepatoesplenomegalia ou ascite; sinais de
Distensão Abdominal. Constitui-se em queixa comum, pode neuropatia periférica com alterações de sensibilidade; sinais
ser a primeira manifestação da doença e chega a caracterizar o de Chvostek ou Trousseau etc. Os achados vão depender do
que, no exame físico, se conhece como hábito celíaco. nutriente comprometido (Quadro 30.4).
Náuseas e Vômito. São encontrados com menor frequência. O modo de apresentação da DC difere com a idade: mais
Distúrbios Psicoafetivos. Os fatores implicados seriam alte exuberante na criança e mais discreta no adulto. Raramente, se
rações nas rotas metabólicas da 5-hidroxitriptamina, dopami- apresenta por complicação, como perfuração ou linfoma.
na e norepinefrina, com papel importante na patogênese da Se o início for mais insidioso, os pacientes procuram mais
depressão. Em crianças celíacas, encontram-se irritabilidade, tardiamente o médico, Já com comprometimento do estado
modificações de comportamento e de humor, consideradas si nutricional, podendo chegar à caquexia. Muitos só solicitam
nais equivalentes à depressão. Transtornos caracterizados por atendimento quando há intercorrências ou piora acentuada.
ansiedade podem fazer parte do quadro clínico da DC. Even Outros podem apresentar-se em estado relativamente bom,
tualmente, os distúrbios apontados podem ser tão graves que com sintomas nem sempre relacionados com o aparelho diges
necessitem de medicações e/ou psicoterapia. Há correlação di tivo, sendo atendidos em outros serviços e nem sempre diag
reta entre o início dos sintomas e a demora no diagnóstico. nosticados corretamente. Por exemplo, baixa estatura, fraturas,
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 307
Figura 30.13 Apresentações clínicas da doença celíaca. A, Paciente obesa, com dispepsia. B, Paciente desnutrida e com diabetes. C, Paciente
com hipotireoidismo, desnutrição e língua despapilada. D, Paciente com hipotireoidismo, desnutrição e língua despapilada após tratamento
para câncer de mama. E, Graves alterações do sistema musculoesquelético em paciente idosa. F, Desnutrição e edema de membros inferiores
no puerpério do primeiro parto em paciente de 22 anos de idade. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
308 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
infertilidade, déficit de desenvolvimento etc. Podem recorrer e) Endocrinológicos: baixa estatura, atraso de desenvolvi
a atendimento neurológico e até psiquiátrico. mento sexual.
Várias formas de apresentação da DC podem surgir na clí f) Neuropsiquiátricos: irritabilidade, choro fácil, ansiedade,
nica, sendo comparadas com um iceberg: só as sintomáticas depressão, tentativa de suicídio; degeneração cerebroes-
seriam a porção visível desse iceberg. pinal, neuropatia periférica, ataxia.
g) Metabólicos: cãibras, diurese noturna, parestesias, tetania.
a) Forma clássica: decorrente da má absorção de nutrientes,
h) Hematológicos: anemia, hematomas, sangramento.
com quadro de diarréia crônica e desnutrição; encon
i) Tegumentares: alterações nos cabelos, edema, hemato
trada tanto em crianças como em adultos. Na criança, a
mas, lesões pruriginosas, lesões bolhosas, pigmentação
distensão abdominal e a intensa redução de massa glútea
de pele, poiquiloníquia, rashes.
são dados que chamam a atenção;
b) Forma não clássica: também denominada forma atípica ■ DCno idoso
que pode ser de dois tipos. Um tipo chamado de atípico
Anteriormente, a DC era considerada rara no idoso, mas,
digestivo com sintomas digestivos mais discretos ou com
com o aumento da longevidade, chega a 27% dos casos de DC
constipação intestinal, e um segundo tipo chamado de
diagnosticada em adultos, embora com grande intervalo entre
atípico extradigestivo com sintomas como baixa estatura,
os sintomas e o correto diagnóstico. Estudo recente na Fin
anemia, tetania etc.
lândia mostrou prevalência superior à da população geral em
c) Forma latente: em indivíduos com biopsia intestinal nor adultos entre 52 e 74 anos (2,7%). Alguns autores informam
mal frente ao consumo habitual de glúten e que, anterior
que a resposta à dieta isenta de glúten é pior do que nos adul
ou posteriormente, desenvolvem atrofia parcial ou total tos, porém esta não é a experiência da autora que obteve exce
de vilosidades, retornando novamente ao normal após
lente recuperação de celíacos diagnosticados após os 60 anos
isenção do glúten da dieta;
de idade.
d) Forma assintomática: ocorre entre familiares de celíacos
com anticorpos positivos no soro, com alterações histo- ■ Transição clínica
lógicas mais ou menos graves, mas número aumentado
Muitos pacientes diagnosticados como celíacos na infância
de LIE, revertendo com dieta isenta de glúten.
não recebem orientação médica ou supervisão alimentar após
Alguns autores preferem dividir as formas de apresentação transição para a idade adulta. Cerca de 1/3 não obedece à die
da DC segundo o Quadro 30.5. ta. O principal motivo para os que aderem à dieta é evitar sin
Para orientação didática e prática, seguem-se sintomas e tomas mais do que medo de complicações. A prevalência dos
sinais clínicos de DC relacionados com os diversos aparelhos distúrbios preveníveis e tratáveis nos adultos jovens mostra a
e sistemas, seja como manifestações isoladas seja como parte falha nos serviços de saúde após a transição da faixa pediátrica
do mosaico clínico dos pacientes. para os atendimentos para adultos.
Como se deduz, a DC pode cursar com qualquer sintoma
a) Gerais: anorexia, cansaço, emagrecimento, fraqueza, hi-
ou sinal, tornando muitas vezes difícil o diagnóstico. Também
perfagia, mal-estar; baixa estatura, construção delgada,
deve-se considerar a ocorrência de doenças associadas.
desgaste físico, febrícula, hipotensão.
b) Digestivos: dispepsia, distensão abdominal, flatulência, ■ Doenças associadas
fezes gordurosas, náuseas, vômitos, dor abdominal, diar
Numerosas condições têm sido relatadas com DC, tanto
réia, constipação intestinal; abdome escavado ou globo-
em crianças como em adultos. Geralmente, são afecções com
so, aftas, alças intestinais palpáveis, alterações da língua,
envolvimento de mecanismos autoimunes e/ou ligadas a an-
aumento de ruídos hidroáereos, peristalse visível (Figura
tígenos do sistema HLA. Por ordem alfabética, destacam-se:
30.13A, C e D).
acidose tubular renal, alergia alimentar, alveolite fibrosante,
c) Musculoesqueléticos: artralgia, dor óssea, miopatia pro-
artrite reumatoide, asma e atopia, câncer (do intestino delga
ximal; alterações da marcha, artrite, deformidades ósseas do, do esôfago e da faringe), cirrose biliar primária, coarctação
(Figura 30.13E), osteomalacia, raquitismo.
da aorta, deficiência de IgA, diabetes melito (Figura 30.13B),
d) Gineco-obstétricos: amenorreia secundária, atraso na me-
doença de Addison, doenças da tireoide (Figura 30.13C e D),
narca, aumento de abortamentos, diminuição da fertili
epilepsia com calcificações cerebrais, fibrose cística, hemos-
dade, menopausa precoce, podendo ocorrer no puerpério siderose pulmonar, linfoma, lúpus eritematoso disseminado,
(Figura 30.13F); oligospermia, diminuição de caracteres pancreatite crônica, poliomiosite, psoríase, síndrome de Down,
sexuais secundários, diminuição do sêmen, hipogona- síndrome de Sjõgren, síndrome de Turner, síndrome de Williams
dismo. e síndrome do intestino irritável.
O quadro clínico pode ser um mosaico entre os sintomas e
sinais da DC e da entidade associada. O diagnóstico de ambas
T será feito conforme a natureza da comorbidade.
Q u a d ro 30.5 Tipos de doença celíaca ■ Dermatopatias
Na DC pode haver alterações mucocutâneas consequentes à
T ip o S in to m a s An ticorp os En te ro p a tia Ge né tica
má absorção de nutrientes (estomatite, glossite, lesões eritema-
Clássica + + + + tosas e erosivas etc.), mas eczema, dermatite seborreia, psoríase,
P o te n c ia l - - - + ictiose e outras têm sido descritos.
S ile n c io sa - + + + Dermatite herpetiforme (DH) não é considerada como “as
L a te n te a n te s + + - +
sociação”, mas manifestação dermatológica da doença por sen
L a te n te a tu a l - - + +
sibilidade ao glúten. Assim, pode preceder os sinais e sintomas
de DC, ou surgir após alguns anos do diagnóstico da doença
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 309
intestinal. A DC e a DH podem aparecer em uma mesma fa outro lado, o controle metabólico do diabetes melhora, dimi
mília. Sua relação é com o mesmo fenótipo de antígenos HLA nuindo o número de hipoglicemias graves.
de classe II, mostrando 90% dos pacientes positividade para Existem controvérsias quanto ao emprego dos marcadores
HLA-DQ2 e os outros restantes HLA DQ8. Pode ou não haver sorológicos, mas atualmente se recomenda que sejam utilizados
lesões intestinais, mas a autora recomenda biopsia em todos os ao diagnóstico do diabetes, anualmente nos 3 anos seguintes
casos, além da determinação dos autoanticorpos. e depois a cada 5 anos ou se houver suspeita de DC. Deve-se,
As lesões são placas urticariformes e vesículas altamente também, realizar rastreamento para DC nos familiares de pri
pruriginosas de distribuição simétrica, predominando em áreas meiro grau dos pacientes diabéticos, porque apresentam DC
de extensão dos joelhos, cotovelos, dorso e glútea, podendo ser assintomática.
esparsas por todo o organismo (Figura 30.14). O dado mais
valioso para o diagnóstico é a demonstração de depósitos gra ■ Doenças da tireoide
nulosos de IgA na derme superior de qualquer ponto do tegu- A doença autoimune da tireoide engloba um conjunto de
mento, através de imunofluorescência direta. O tratamento é alterações tireoideanas com características imunológicas co
a supressão do glúten e o uso de sulfona VO. A determinação muns e origem etiopatogênica semelhante, mesmo que funcio
dos anticorpos EmA e antitTG é útil tanto para o diagnóstico nalmente haja eutireoidismo ou hipotireoidismo (tireoidite de
como para a monitoramento da dieta. Hashimoto) ou hiperfunção (Graves-Basedow). A etiologia é
Psoríase tem sido associada à DC, e a DIG pode melhorar desconhecida, há associação com certos haplotipos HLA (DR3-
o quadro clínico. DQ2) ou outros (Figura 30.13C e D)
Alopecia areata tem sido encontrada em 2% dos celíacos. Cerca de 5% dos pacientes com DC podem sofrer hiper ou
A dieta isenta de glúten pode produzir crescimento de pelos hipotireoidismo, e em 14% há doença autoimune na idade in
em alguns pacientes. fantil. A DC pode ser silenciosa e os marcadores sorológicos
ajudam no diagnóstico. No Brasil, Kotze et al. (2006) encon
■ Endocrinopatias traram 32% de anticorpos antiperoxidase em pacientes celía
■ Diabetes melito tipo I cos. Assim, recomenda-se rastreamento para DC em todos os
É uma entidade caracterizada por uma autorresposta contra pacientes com doenças autoimunes da tireoide e vice-versa.
as ilhotas de Langerhans do pâncreas que culmina com a des A dieta isenta de glúten tem efeito sobre a glândula e também
truição das células beta. A sua prevalência estimada, na idade sobre a absorção das drogas utilizadas para o tratamento.
pediátrica, é de 1/1.000. As publicações apontam 0,97 a 16,4% Como a suspeita clínica de hipotireoidismo pode ser mas
de DC em pacientes diabéticos tipo I, aumentando com a idade. carada por quadro de má absorção, recomenda-se determi
Os testes sorológicos devem ser realizados nos diabéticos, pois nação da função tireoideana, anticorpos antitireoglobulina e
pode haver DC silenciosa e seu tratamento evita o desenvol antimicrossomais, de maneira seriada, nos pacientes celíacos,
vimento de processos associados e outras comorbidades. Por principalmente nos refratários ao tratamento.
Figura 30.14 Dermatite herpetiforme. A, Lesões bolhosas e vesículas disseminadas. B, Lesões em áreas de extensáo de cotovelos e joelhos,
locais de maior prevalência das alterações, antes e depois do uso de dapsona. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
310 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
Figura 30.15 imunofluorescência indireta para o anticorpo antiendomísio. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
312 C a p ítu lo 3 0 / D o e n ç a C e lía ca e O u tro s D istú rb io s n a A b so rç ã o d e N u trien tes
---------------------------------------------------------------- ▼--------------------------------------------------------------------
Q uadro 30 .6 Correlação entre anticorpos séricos e alterações da mucosa duodenal em pacientes celíacos*
7 N e g a t iv o 8 ,1 4 (3 -1 5 ) 7 N 4 2 ,2 8 ( 1 1 -7 3 )
8 1/2,5 1 1 ,8 7 ( 2 -2 1 ) 8 N 4 7 ,7 5 (3 2 -7 1 )
4 1/5 4 1 ,5 0 (6 -1 0 0 ) 2 N , 1 AP, 1 A T 3 4 ,2 5 (2 1 -4 5 )
3 1/10 1 8 1 ,6 7 (6 5 -3 9 0 ) 3AT 4 6 ,3 3 (2 5 -6 5 )
9 1/20 3 5 6 ,3 3 (3 6 -6 4 0 ) 1 N M A P .7 A T 3 9 ,5 5 (3 -5 3 )
8 1/40 3 0 7 ,3 7 (9 1 -6 4 0 ) 8 A T* 3 1 ,1 2 ( 5 -6 0 )
8 1/80 4 3 2 ,7 5 (1 0 2 -6 4 0 ) 8AT 3 9 ,1 2 ( 1 8 -6 3 )
a correlação dos autoanticorpos e o grau de infiltração da mu- Têm muita importância clínica para monitorar a suplementa-
cosa intestinal pelos LIE. ção de cálcio e vitamina D no tratamento.
Somente dados da biopsia intestinal somados aos testes A densitometria óssea, que determina a densidade mineral
sorológicos positivos para DC permitem diagnóstico defini óssea, mostra níveis de osteopenia ou de osteoporose em pa
tivo de DC! Segundo a WGO-OMGE Guidelines (Diretrizes cientes com ou sem ingestão de glúten e serve ainda para mo
da Organização Mundial de Gastrenterologia), isto éo g o ld nitorar a reposição de cálcio e vitamina D. Deve ser realizada ao
standard! diagnóstico em todos os pacientes a partir de crianças maiores
► Sorologia positiva e histologia negativa. Rever ou re (Figura 30.17AeB).
petir a biopsia após 1 a 2 anos. Seguir o paciente.
► Sorologia positiva e histologia positiva. DC confir ■ Endoscopia ebiopsiaperoraldointestino delgado
mada. A biopsia do intestino delgado pode ser realizada através
► Sorologia negativa e histologia positiva. Considerar de cápsulas ou durante endoscopia digestiva alta. O que tem
outras causas de enteropatia. Se não encontrar, tratar como importância é o correto manejo do fragmento, para adequada
DC. Genotipagem HLA. orientação dos cortes e análise acurada do espécime. Para tal,
► Sorologia negativa e histologia negativa. DC excluída. recomenda-se colocá-lo em papel de filtro embebido ou não em
soro fisiológico e com a superfície vilositária para cima. Inde-
■ Genotipagem HLA pendentemente do aparelho ou local da biopsia, o diagnóstico
A sua determinação pode ser de valor no monitoramento de DC pode ser feito em todos os casos de DC, corroborando o
de casos suspeitos ou quando os dados sorológicos e/ou his- fato, há muito conhecido, de que essa enfermidade comprome
tológicos são ambíguos. Recentemente, foi relatado o uso de te mais o duodeno e o jejuno proximai justamente segmentos
um método rápido e sensível para detecção de antígenos HLA em que se visualiza a mucosa com os endoscópios e nos quais
classe II através de kits. se podem colher, sob visão direta, quantos fragmentos forem
►DETECÇÃO DE OUTROS AUTOANTICORPOS. Independente necessários para exames.
do tempo da sintomatologia ou diagnóstico de DC e também Biopsias duodenais são comparáveis às obtidas na região do
da aderência ou não à dieta isenta de glúten, preconiza-se a ligamento de Treitz com aparelhos convencionais, fato também
determinação de outros autoanticorpos, principalmente para assinalado na literatura.
doenças da tireoide, do fígado e do tecido conectivo, devido à Com o advento das modernas técnicas de endoscopia di
alta prevalência dessas associações com a DC. gestiva, novos conhecimentos surgiram para o diagnóstico de
Amplo perfil de autoanticorpos foi realizado em indivíduos
de uma área geográfica da Região Sul do Brasil por Utiyama
et al. (2001), com 25% de positividade para os pacientes celíacos
L 2 -L 4 Comparação com referência
(16,1% de anticorpo antimicrossomal da tireoide, 8,9% para
fator antinuclear) e 17,8% para familiares de celíacos (9,3% de
anticorpo antimicrossomal da tireoide, 5,1% de fator antinu
clear), com diferença significativa em relação aos controles.
Tais dados reforçam as características autoimunes, concomi
tantes tanto nos indivíduos com doença celíaca como em seus
familiares próximos. Nass (2008) corroborou tais achados em
um estudo com 233 familiares de celíacos do Sul do Brasil, com
destaque para a significativa positividade detectada para os an
ticorpos antitireoideanos e anticélula gástrica parietal nesses
familiares em relação a indivíduos da população geral.
Em contrapartida, portadores das afecções listadas anterior
mente deverão ser rastreados para doença celíaca, com ou sem
sintomatologia digestiva.
■ Exames de imagem
Trânsito Intestinal. Os dados radiológicos encontrados na IN TEIRO Comparação com referência
DC são semelhantes aos observados em afecções que cursam
com má absorção intestinal. DilataçÕes, pregas alargadas, frag
mentações e floculação do contraste são os achados mais co
muns, sendo mais evidentes no intestino proximal. Raramente,
há rigidez e perda do padrão mucoso.
Cerca de 12% dos celíacos têm raios X de intestino delgado
normais, e pacientes com DC grave podem apresentar apenas
discretas alterações radiológicas. Assim, o exame serve somente
para se ter ideia global, para diagnóstico diferencial com ou
tras afecções e para excluir ou detectar a presença de linfoma.
Pode haver dilatação dos cólons nos celíacos com constipação
intestinal.
A idade óssea atrasada em relação à cronológica pode ser
IDADE (anos) b
detectada em alguns pacientes e serve para avaliar a evolução.
Raios X ósseos podem demonstrar desmineralização com di Figura 30.17 Densitometria óssea em paciente celíaca aos 21 anos.
minuição da densidade, osteoporose, fraturas e pseudofraturas. A, Osteoporose em fêmur. B, Osteopenia em coluna lombar.
314 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
DC. Brocchi et al. relataram perda das pregas de Kerkring no mia ferropriva, hipertransaminasemia, gastrenteropatia perde
duodeno descendente como característica de pacientes com dora de proteínas etc. Portanto, pacientes não diagnosticados
DC (Figura 30.18B). Acham que tal aspecto endoscópico tem como celíacos estão sujeitos a desenvolver linfomas, inclusive
88% de especificidade. Outros aspectos descritos são perda da como primeira manifestação da DC.
granulosidade, padrão mosaico (Figura 30.18C), pregas mais Nesta enfermidade, as possíveis indicações para a CE são:
espessadas e proeminentes, concêntricas (Figura 30.18A) e va
• pacientes com sintomatologia típica ou atípica com dú
sos sanguíneos visíveis (Figura 30.18C). Observa-se perda ou
vida diagnóstica pelos métodos tradicionais;
redução na proeminência das pregas duodenais em aproxima
• no estudo e valorização das complicações em pacientes
damente 70% dos celíacos.
refratários ao tratamento;
►CROMOENDOSCOPIA DE MAGNIFICAÇAO. Através da en-
• no rastreamento de familiares;
doscopia e com o uso de 5 a 10 m^ de solução de índigo-car-
• no rastreamento de grupos de risco para DC (diabéti
mim a 1%, podem-se predizer áreas de atrofia vilositária. Tal
cos, síndrome de Down, doenças autoimunes, tireoido-
visão tem importância para dirigir as biopsias, principalmente
patias etc.);
quando há áreas de alterações focais {patchy) e revela doença
• suspeita de linfoma em celíacos;
persistente (Figura 30.18C).
• seguimento de pacientes com maior risco de desenvolver
Demonstrou-se que, quando os endoscopistas olham aten
linfomas, como nos diagnosticados como celíacos acima
tamente a mucosa duodenal, há aumento significativo do nú
de 50 anos de idade;
mero de casos diagnosticados como DC, sugerido pela ma-
• no diagnóstico diferencial com outras causas de SMA e
croscopia e confirmado pelos achados histológicos nas várias
processos associados.
biopsias realizadas.
Com o advento da cápsula endoscópica (CE) (Wireless Cap- Concordância de 100% entre os achados com a CE e a his-
sule Endoscopy — WCE), tem sido possível determinar melhor a tologia de fragmentos duodenais obtidos por endoscopia na
extensão da atrofia das vilosidades intestinais na DC, reconhecer atrofia vilositária foi assinalada.
complicações como ulcerações e, mais importante ainda, excluir
tumores, principalmente nos casos de refratariedade ao trata ■ E x a m e a n a to m o p a to ló g ic o
mento. O diagnóstico por este método chega a ser de 87%. Necessário mesmo com positividade dos anticorpos detecta
Lembrar que 50% dos pacientes celíacos cursam sem SMA, dos no soro. É importante o estudo da celularidade, para iden
podendo se apresentar com hemorragia digestiva oculta, ane tificação de provável desenvolvimento de linfomas.
doente receber dieta habitual para sua faixa etária, permane grupos de autoajuda. No Brasil, há a federação FENACELBRA,
cendo somente a restrição de glúten. com filiadas em vários estados, como ACELBRA (Associação
A terceirafase, de manutenção da dieta sem glúten, é a mais dos Celíacos do Brasil), em São Paulo, ligada à Pediatria da
difícil, principalmente em relação às crianças. À medida que UNIFESP-EPM; e a ACELPAR (Associação dos Celíacos do
elas crescem e participam de atividades sociais, ressentem-se Paraná), em Curitiba, dirigida por adultos celíacos.
por não usarem os mesmos alimentos que os seus pares. Sabe-se que pequenas quantidades de glúten ingeridas na
O seguimento da dieta pelo paciente celíaco depende, fun fase de manutenção podem não dar sintomatologia clínica, o
damentalmente, dos familiares no que tange às substituições que faz com que o paciente não se sinta prejudicado e que a
dos alimentos proibidos. Assim, é extremamente importante família faça concessões. A atitude do médico deve ser firme no
saber educar os doentes. sentido de recomendar que a dieta seja rigorosamente cumpri
Alguns pontos devem ser considerados quando se preconiza da, explicando que há um período mais ou menos longo, para
dieta isenta de glúten: haver ressensibilização da mucosa, com ou sem sintomatologia
a. A falta de alimentos alternativos já prontos no mercado clínica. Argumentar que pode haver atraso no desenvolvimento
brasileiro, fazendo com que haja necessidade de prepara sexual, quando as transgressões antecedem a puberdade.
ções caseiras, o que não é tão difícil de aceitar, pois é cos Mesmo tendo conhecimento de que a DC pode cursar com
tume, no Brasil, usar as farinhas permitidas no preparo de quiescência na adolescência e que as transgressões nesta fase e
bolos, bolachas, sobremesas etc. Avisar que os utensílios na idade adulta são muito mais de ordem psicológica, a posi
utilizados não podem ser os mesmos que os usados para ção correta do médico é a de sempre incentivar a manutenção
preparação de alimentos com glúten, pois podem conter de uma dieta totalmente isenta de glúten.
resíduos!; Holmes et al. (1989) demonstraram que, para o paciente
b. Como as pessoas dispõem de pouco tempo para a pre celíaco que segue rigorosamente a dieta, a possibilidade de de
paração dos alimentos alternativos, devem-se preconizar senvolver câncer é a mesma da população geral. O risco au
os que não exijam muita manipulação e que venham de menta, contudo, para os que usam quantidades habituais ou
encontro às habilidades culinárias de quem os prepara; reduzidas de glúten. Tais resultados sugerem um papel protetor
c. Considerar os recursos financeiros das famílias para que da dieta isenta de glúten contra malignidade e oferecem subsí
usem cardápios adequados e baratos, compatíveis com dios para advertir os doentes a aderir a uma alimentação sem
seu orçamento; glúten para o resto de suas vidas.
d. Fazer com que as crianças levem lanches de casa para a
escola e que as que recebem merenda escolar possam ter ■ Medicamentos
atenção especial das professoras para que não transgri- Inicialmente, usam-se medicamentos para correção de ca
dam a dieta; rências, enfatizando ao paciente e família que o verdadeiro tra
e. Proibir alimentos industrializados, visto que o trigo é tamento da DC é dietético, sem glúten, permanentemente.
muito usado como ingrediente ou espessante: cafés ins a. Ácido fólico e compostos polivitamínicos são utilizados
tantâneos, pós achocolatados, enlatados, cereais pré-cozi- por via parenteral ou oral; vitaminas K, e B12por via pa-
dos, maionese pronta, molhos de tomate, mostarda, salsi renteral, quando necessário;
chas, salames, sopas enlatadas ou desidratadas, chicletes, b. Cálcio por via IV nas crises de tetania e VO, no desen
sorvetes, cerveja etc. Deve-se ensinar à pessoa que faz as rolar do tratamento, pois sabe-se que, mesmo que haja
compras habituar-se à leitura dos ingredientes estam melhora da massa óssea nos celíacos tratados, não chega
pados nas embalagens e evitar os que tenham os cereais à normalidade. Ferro parenteral, quando muito necessá
proibidos. Algumas firmas de alimentos fornecem, a pe rio, ou VO, quando tolerado;
dido do usuário, uma lista dos produtos que são isentos c. Enzimas pancreáticas são utilizadas como coadjuvantes,
de glúten, para facilitar a escolha. É lei que haja menção nos primeiros meses, por facilitarem a digestão princi
se o produto contém glúten ou não contém glúten. Em palmente de gorduras e porque, nos celíacos, como em
alguns países, há o símbolo característico; desnutridos primários, há falta de proteínas para geração
f. Evitar m onotonia do cardápio. e secreção de enzimas pancreáticas digestivas (a determi
Nem sempre se pode contar com a ajuda de uma nutricio nação de quimiotripsina fecal pode ser índice preditivo
nista para a orientação do cardápio. Então, é o próprio médico da recuperação do peso, principalmente em crianças);
quem deve estabelecer o menu, controlar o seu cumprimento e d. Antibióticos ou antimicrobianos (metronidazol) são usa
instituir as modificações necessárias ao longo do tratamento. dos raramente, mais para certas infecções intestinais as
Assim, não basta o médico indicar o que o paciente celíaco sociadas;
não pode comer e quais as opções de substituição. Há necessida e. Corticosteroides são indicados apenas em insuficiência
de de motivação e composição de cardápio variado e agradável. suprarrenal, necessitando de reposição concomitante de
Kotze reeditou livro (“SEM GLÚTEN”), já indicado na consulta cloreto de sódio por via IV.
em que se vai explicar o diagnóstico. Isso é muito importante
Observação importante: na DC ativa ou parcialmente trata
para que o paciente e familiares não se sintam “perdidos e desa
da, há absorção alterada da maioria dos medicamentos VO, o
nimados” com a perspectiva de que não vão dispor de produtos
que exige ajustamento das doses de antitireoideanos, anticon
industrializados. Bastante estímulo no início do tratamento é
cepcionais, anticonvulsivantes e antibióticos.
fundamental para o seguimento da dieta.
► PROBLEMAS DA OBEDIÊNCIA À DIETA E POBRE RESPOSTA
Mesmo com discussão e ensinamentos sobre os detalhes
NA DC. São eles:
da dieta aos celíacos, levando-se em conta o nível sociocultu-
ral dos pacientes e suas famílias, cerca de 40% não obedecem • alto custo dos alimentos sem glúten;
à dieta apesar de todos os esforços. Para minimizar o proble • poucos produtos sem glúten disponíveis no mercado;
ma, surgiram as sociedades de celíacos, no mundo todo, como • palatabilidade pobre;
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 317
• ausência de sintomas quando a dieta não é observada; intestino irritável (22%), DC refratária (10%), intolerância à
• inadequada informação do conteúdo de glúten em ali lactose (8%) e colite microscópica (6%). Nestes pacientes, houve
mentos e medicamentos; elevação dos níveis de antitTG. Sexo masculino e perda de peso
• inadequado aconselhamento dietético; foram os fatores preditivos mais significativos para refratarie-
• inadequada informação inicial pelo profissional que fez dade. Chama-se a atenção para o diagnóstico de malignidade
o diagnóstico; nos casos de longa evolução clínica.
• inadequados seguimentos médico e nutricional; ►DOENÇA CELÍACA REFRATÁRIA (DCR). A DCR é uma con
• falta de participação em grupos de suporte (associações dição rara, geralmente em pacientes acima de 47 anos de idade.
de celíacos); Cellier et al. descreveram a presença de uma população anor
• informações não acuradas por médicos, nutricionistas, mal de LIE CD3, sugerindo que seja classificada como linfoma
associações, Internet; intraepitelial críptico. As condições clínicas são desfavoráveis
• alimentações fora de casa; e a sobrevida é curta.
• pressões socioculturais pelos companheiros; Daum et al. definem DCR quando há atrofia vilositária com
• transição para adolescência; hiperplasia de criptas e aumento dos linfócitos intraepiteliais
• inadequado seguimento médico após a infância. (LIE) persistindo por mais de 12 meses, apesar da dieta rígi
►PERSISTÊNCIA DOS SINTOMAS. Quando os sintomas não da sem glúten. Atenção deve ser dada ao desenvolvimento de
desaparecem após o tratamento da DC, a primeira coisa a se linfoma.
pensar é a ingestão consciente ou inadvertida de glúten. DCR tipo I - caracterizada por expressão normal de antíge-
Outras causas: nos para célula T e rearranjo policlonal do gene TCR;
DCR tipo II - caracterizada por fenótipo anormal de LIE
• má absorção de lactose ou frutose da dieta; com expressão intracitoplasmática CD3, CD 103 de superfície,
• outras intolerâncias ou alergias alimentares; e falta dos clássicos marcadores de superfície tais como CD8,
• insuficiência pancreática; CD4 e TCR-alfa/beta.
• supercrescimento bacteriano; Os pacientes devem ser investigados por exames radioló-
• colite microscópica (colagenosa ou linfocítica); gicos, de imagem e endoscópicos (cápsula ou enteroscopia)
• síndrome do intestino irritável; para biopsias, com estudos imuno-histoquímicos. O tratamento
• disfunção esfincteriana anal com incontinência; consiste em uso de antiTNF-alfa (infliximabe) com predniso-
• diagnóstico incorreto; lona e azatioprina.
• jejunite ulcerativa; ►NOVAS POTENCIAIS TERAPIAS. Um futuro sem dieta isenta
• enteropatia por linfoma; de glúten? O Quadro 30.7 resume as pesquisas. Enquanto os
• DC refratária. estudos se desenvolvem, a obediência total à DIG permanece
As causas assinaladas em negrito são consideradas compli tratamento seguro e eficaz para a DC.
cações e merecem a devida atenção para o correto diagnóstico
e manejo terapêutico. ■ Tratamento cirúrgico
►DO EN ÇA C ELÍA CA NÂO RESPO N SIVA (DCNR). Define-se O tratamento cirúrgico só está indicado quando ocorre per
“doença celíaca não responsiva” (DCNR) quando há falha para furação, o que é bastante raro. Pode ser indicado em neoplasias
responder à dieta estritamente sem glúten pelo menos após ou linfomas, conforme localização e estágio.
6 meses de tratamento; ou o ressurgimento de sintomas ou
anormalidades laboratoriais típicas de DC enquanto permane ■ Evolução e prognóstico
ce o tratamento com DIG. Para Leffler et al. (2007), as causas Após a retirada de glúten da dieta, a resposta clínica com
mais comuns foram: exposição ao glúten (36%), síndrome do desaparecimento dos sintomas é bastante rápida - dias ou se-
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
M a n ip u la ç ã o o u se le ç ã o d e c o m p o n e n t e s M o d ific a ç ã o d e cereais
d ie té tic o s N e u tr a liz a ç ã o e p o lim e r iz a ç ã o d a g lia d in a
C o q u e t e l d e e n z im a s A L V 0 0 3
P ro b ió tic o s (V S L # 3 )
In ib iç ã o d a p e r m e a b ilid a d e in te s tin a l
In ib iç ã o d a z o n u lin a A c e t a to d e la ra z o tid a
M o d u la ç ã o d a re s p o s ta im u n e
D im in u iç ã o d a a tiv id a d e im u n e B lo q u e io d o s a n t ic o r p o s t T G
a d a p ta tiv a B lo q u e io d o s a n t íg e n o s a p r e s e n ta d o s p o r H L A D Q 2 e D Q 8
V a c in a p a ra o p e p t íd e o d o g lú t e n
In fe c ç ã o c o m N e c a x o r a m e ric a n u s
R e d u ç ã o d a in fla m a ç ã o In te rle u c in a 10
318 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
manas, com evolução extremamente gratificante. Os defeitos A DC só é fatal quando não é reconhecida e o paciente chega
absortivos desaparecem, a diarréia cessa, há perda do edema e à desnutrição muito grave, ocorrendo hemorragias, infecções
surgimento de apetite, às vezes voraz. Inicia-se recuperação nu recorrentes ou insuficiência suprarrenal. Com o advento da
tricional com ganho de peso e retomada da velocidade de cres nutrição parenteral, doentes podem ser recuperados de estados
cimento, normalizando-se peso/estatura em cerca de 15 meses, extremamente inquietantes.
nas crianças, e estas retornam à deambulação. Os adolescen Pode haver quiescência da DC na adolescência, como já foi
tes iniciam ganho ponderai logo a seguir, e muitos até neces assinalado, mas não se deve esquecer que a história natural da
sitam de controle em poucos meses; a melhora do psiquismo afecção é de exacerbações intermitentes e remissões relativas.
que passa da irritabilidade, depressão ou apatia à participação Como a incapacidade de tolerância ao glúten é permanente,
na vida familiar e escolar, tomando gosto pelas brincadeiras e entre a terceira e a quarta década a doença pode manifestar-se
trabalho, chegando muitas vezes à euforia. Há uma verdadeira novamente, com qualquer das modalidades apontadas.
mudança no aspecto do indivíduo (Figura 30.19) e revelan Nos celíacos cujos sintomas iniciam na idade adulta, o prog
do melhor qualidade de vida. A fertilidade volta ao normal, nóstico também é favorável, mas as alterações ósseas, se exis
devendo-se orientar as celíacas quanto a possíveis gestações e tentes, podem não ser totalmente recuperáveis.
planejamento familiar. Como linfomas e outras neoplasias, principalmente de
O prognóstico para os seguidores de dieta sem glúten é bom. esôfago, são descritos nos pacientes celíacos e de difícil diag
Entretanto, se já houver osteoporose, mesmo com tratamento de nóstico, conclui-se que os doentes devam ser vigiados e que,
reposição de cálcio e vitamina D, pouca é a melhora referida. periodicamente, ou à mínima manifestação clínica e/ou labo
O risco de desenvolver malignidade é o mesmo da popula ratorial, sejam exaustivamente reinvestigados. Nestes casos, o
ção normal para os pacientes aderentes à dieta isenta de glú prognóstico é pobre.
ten. Aumenta muito nos não aderentes, mais para linfomas,
neoplasias de esôfago e laringe e adenocarcinoma do intestino ■ Causas de m orte na DC
delgado. Conclui-se que os pacientes devam ser reassegurados A DC refratária é uma condição rara; geralmente, acome
em relação à dieta adequada e vigiados e reinvestigados a qual te pacientes acima de 47 anos de idade, em que se encontram
quer modificação referida. populações anormais de LIE CD3. As condições clínicas são
Inicialmente, o paciente celíaco pode perder peso, se já apre desfavoráveis e a sobrevida é curta.
senta edema, mas, em seguida, começa a ganhá-lo mais rapi Como assinalado, os celíacos apresentam alto risco de morte
damente que a estatura. por doenças malignas do tubo gastrintestinal e linfomas, mas
A idade óssea vai gradativamente se aproximando da cro pouco se sabe das outras causas de morte. Em estudo brasileiro
nológica. recente, publicado por Kotze (2009), em um período de 40 anos
O comprometimento do desenvolvimento neuropsicomo- as causas de morte em 157 celíacos foram uma por complicação
tor, comum em crianças de menor idade, desaparece após tra de diabetes tipo 1, uma por suicídio em paciente deprimida e
tamento, não deixando sequelas graves ou permanentes, desde duas por linfomas.
que existam condições adequadas de nutrição e estímulos am
■ Recomendações às fam ílias de celíacos
bientais durante a recuperação.
Pais e familiares de pacientes celíacos frequentemente per
guntam se seus filhos poderão desenvolver a doença. A DC ocor
re nas famílias, mas não de modo predizível. Se uma pessoa na
família tem DC, a chance de outro membro tê-la é de 1 em 10.
Familiares agora podem ser triados facilmente através de testes
sorológicos, e biopsia intestinal é recomendada nos positivos. A
falta de HLA DQ2 ou DQ8 praticamente exclui a possibilidade
de DC se desenvolver em indivíduos com história familiar.
Quando nasce uma criança em uma família com DC, os pais
devem ser avisados de introduzir o glúten na época habitual (6
a 9 meses). É importante que os bebês sejam alimentados nor
malmente e não dar quantidades baixas de glúten, por receio,
pois, se há DC, esta vai se manifestar. Isso permite o diagnós
tico precoce e o pronto tratamento.
■ Conclusão
Figu ra 30.19 Paciente com a forma clássica de doença celíaca. Enquanto se aguardam novas pesquisas, segue o consenso de
A, Antes do tratamento. B, Após dieta isenta de glúten. Observar que a DC é causada por intolerância permanente ao glúten, o
recuperação do estado nutricional e mudança de aspecto geral. (Esta diagnóstico é feito pela sorologia + biopsia do intestino delgado,
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) e seu tratamento é a exclusão definitiva do glúten da dieta!
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 319
atingirem as células neoplásicas e também as células normais. • Cólicas intestinais - sintoma mais comum, geralmente
Com o aumento da sobrevida, a detecção dessas complicações decorrente de obstrução intestinal;
cresce em importância. Aproximadamente, dois terços dos so • Náuseas e vômitos - decorrentes de obstrução intestinal;
breviventes de câncer na infância irão apresentar ao menos uma • Diarréia crônica e/ou esteatorreia - decorrentes de vá
complicação tardia do tratamento. rios fatores, incluindo má absorção, supercrescimento
A ocorrência e gravidade dos efeitos tóxicos aparentam es bacteriano, diminuição da motilidade e desenvolvimen
tar diretamente relacionadas com os efeitos cumulativos das to de fístulas;
drogas utilizadas na quimioterapia, com a dose (total e fracio- • Fecalúria ou pneumatúria - decorrentes de fístulas;
nada) da radioterapia e com a idade da criança no momento • Tenesmo, fezes com muco, hematoquezia, constipação
do tratamento. intestinal e diminuição do calibre das fezes - decorrentes
As complicações gastrintestinais da radiação são bem do do envolvimento retal;
cumentadas em adultos, mas em crianças os relatos não são • Hemorragia digestiva maciça - evento raro;
tão abundantes. Os efeitos crônicos da radioterapia no trato • Peritonite e toxemia - eventos raros, decorrentes de per
gastrintestinal podem ser encontrados em cerca de 36% dos furação.
pacientes com longa sobrevida e incluem enterocolite actínica
O exame físico é variável e dependente das complicações
com má absorção, estenoses e obstrução.
associadas:
■ Patogênese • Perda de peso e desnutrição - consequentes à má ab
A alteração mais importante na célula é a produção de ra sorção;
dicais livres que impedem a replicação, transcrição e translado • Palidez cutaneomucosa - consequente à anemia;
do DNA. As células que mais rapidamente se dividem são as • Aumento de sensilbilidade abdominal;
mais vulneráveis ao dano da radiação, como o são as células da • Sinais de peritonite - resultantes de perfuração intes
mucosa gastrintestinal. tinal;
Os efeitos agudos da radiação são proporcionais à veloci • Massa palpável - possível consequência de resposta in-
dade com que a radiação se faz. Se é feita em alta velocidade, flamatória;
a renovação das células perdidas não consegue ser suficiente. • Aumento de ruídos hidroaéreos, borborigmo - conse
As vilosidades se encurtam. Diarréia e má absorção advêm no quente à obstrução intestinal;
intestino delgado, e anemia pode se desenvolver. Tais efeitos • Dor retal e hematoquezia - resultantes de comprome
são notados enquanto se faz radiação e permanecem por mais timento retal.
algumas semanas.
Já os efeitos tardios da radiação estão relacionados com a ■ Fatores de risco
dose total e variam. A variabilidade está relacionada com: a) a Embora a radiação seja a maior responsável pelos danos ao
maneira com que a dose total foi dividida; b) o estado nutricio trato gastrintestinal, alguns fatores predisponentes aumentam
nal do paciente; c) a presença de doença vascular; d) a cirurgia o risco de lesões. São eles:
prévia que possa ter fixado o intestino na pelve. Isquemia e
depósito de colágeno são os dois fatores mais importantes que • Cirurgias prévias: causa desenvolvimento de adesões que
contribuem para os efeitos tardios da radiação. podem fixar alças intestinais;
• Dose de radioterapia administrada: é determinada pela
■ Quadro clínico intenção da terapia (curativa ou paliativa), quimiotera
Os sintomas podem aparecer muito precocemente, até mes pia associada ou não, histologia do tumor, estadiamento,
mo em poucas horas após a primeira sessão; ou tardiamente, idade da criança, condições gerais do paciente;
anos depois do término da terapia. Na apresentação precoce, na • Quimioterapia associada: algumas drogas aumentam sen
maior parte dos casos, os pacientes têm sintomas 2 a 3 semanas sibilidade à radiação, como actinomicina D, 5-fluoracil,
após início do tratamento. Sintomatologia geralmente cessa em bleomicina;
2 a 6 meses, os sintomas são habitualmente moderados e ten • Idade: crianças menores tendem a apresentar mais sin
dem a ser autolimitados, necessitando apenas de tratamento tomas precoces.
sintomático. A correlação com a gravidade dos sintomas e da
nos à mucosa parece ser pobre. Os sintomas incluem: ■ Diagnóstico
O diagnóstico é geralmente estabelecido por achados suges
• Anorexia; tivos em exames de imagem em pacientes com clínica compa
• Náuseas - mais comuns após irradiação do abdome su tível que tenham sido expostos a radioterapia prévia. Achados
perior; laboratoriais são inespecíficos e habitualmente transitórios:
• Vômitos - mais comuns após irradiação do abdome su anemia por sangramento ou má absorção, azotemia, anorma
perior; lidades eletrolíticas e alteração dos parâmetros nutricionais
• Cólicas - decorrentes do envolvimento de delgado; decorrentes de vômitos e má absorção.
• Diarréia - mais comum depois de irradiação pélvica; Os exames de laboratório não são nem sensíveis nem espe
• Tenesmo e fezes com muco - decorrentes do envolvi
cíficos, mas má absorção de lactose, esteatorreia, má absorção
mento do reto; de vitamina BI2 e perda de sais biliares são comuns no dano
• Hematoquezia - decorrente do envolvimento do reto. agudo.
Na apresentação tardia, geralmente os sintomas são insidio- Na fase crônica, além dos citados, podem aparecer super
sos e se desenvolvem meses ou anos após o término da terapia. crescimento bacteriano secundário à estase ou fístula. Linfan-
Muitos dos pacientes com enterocolite actínica crônica não giectasia secundária resulta em enteropatia perdedora de proteí
apresentaram quadros agudos na sua evolução. Os sintomas nas com diminuição das proteínas séricas, linfopenia, aumento
incluem: dos níveis de alfa-l-antitripsina e linfócitos nas fezes.
322 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
único sistema de transporte. A morfologia da mucosa é normal, Moynahan e Barnes, em 1973, descreveram associação dos
bem como o transporte de frutose. O defeito está localizado na achados clínicos com níveis baixos de zinco no plasma e grande
borda-em-escova dos enterócitos. melhora com a ingestão oral de zinco. Atualmente, o tratamento
Crianças se apresentam com diarréia aquosa profusa e desi com zinco tem sido utilizado em diversos centros e assume-se
dratação já na primeira semana de vida. As fezes têm pH baixo, que o seja indefinidamente. Felizmente, nada emergiu que pro
e a presença de substâncias redutoras é positiva. Melhoram à vasse que o zinco, a longo prazo, possa trazer qualquer compli
introdução de fórmulas com frutose e sem glicose e galactose. cação. Em 2001, Wang et al.}em mapeamento de homozigotos
Embora o defeito seja genético, crianças maiores chegam a de com AE, localizaram o gene na região do cromossomo 8p24.3 e,
senvolver alguma tolerância à glicose, mais tarde. no ano seguinte, o gene SLC39 A 4 .0 gene codifica uma proteí
na rica em histidina que foi referida como “hZIP4”, membro de
■ Má absorção de frutose uma grande família de proteínas de transmembrana, algumas
A frutose é um importante carboidrato encontrado em for das quais são conhecidas como proteínas captadoras de zinco.
ma livre nas frutas e também é um monossacarídio resultante SLC39A4 está expressa abundantemente na região apical da
da cisão da sacarose. Xaropes de milho com altas concentra membrana dos enterócitos de ratos, sugerindo que o trans
portador hZIP4 seja responsável pela absorção intestinal do
ções de frutose são usados como adoçantes na manufatura de
zinco. No mesmo ano, Küry et al. postularam que SLC39A4
bebidas. Quando há intolerância, surgem diarréia crônica e
esteja centralmente envolvida na AE, após estudos em famí
dor abdominal, associadas ao consumo exagerado de frutas ou lias da Tunísia com esta entidade. A despeito dos progressos,
excesso de ingestão de seus sucos. o defeito básico permanece ainda desconhecido. Na literatu
ra brasileira, encontraram-se apenas trabalhos de Guimarães
■ Má absorção de am ido
e Viana (1959), Campos et a l, (1969), Perafán-Riveros et al.
Embora se acredite que o amido seja bem absorvido, em (2002) e Kotze et al. (2010).
certas condições pode haver má absorção com trigo, milho,
centeio, batata e feijões. O amido refinado e preparações sem ■ Patogênese
glúten são mais completamente absorvidos, sugerindo que A deficiência de zinco pode ser dividida em dois grupos:
complexos de fibras sejam menos tolerados. A melhora dos forma congênita e forma adquirida, decorrente de diversos dis
sintomas após a restrição de glúten em pacientes com alterações túrbios básicos, como uso de drogas, nutrição parenteral to
funcionais dos intestinos pode ser explicada pela incompleta tal ou prematuridade. Outras causas de lesões-AE like incluem
absorção do amido. nutrição parenteral total sem suplementação de zinco, doença
de Crohn, procedimentos de bypass intestinal, gastrectomias,
■ Intolerância ao sorbitol AIDS, anorexia nervosa e fibrose cística.
O sorbitol é um açúcar encontrado naturalmente nas frutas. AE em geral se manifesta à época do desmame - ou antes -
Devido à sua pequena fermentação pela flora oral e incomple nas crianças alimentadas com leite materno, podendo ser fatal
ta absorção pelo intestino, tem sido usado como adoçante em se não tratada. O ácido picolínico é produzido no pâncreas e
produtos dietéticos e nos chamados produtos livres de açúcar. carreia o zinco para o lúmen intestinal. O leite humano contém
Em doses elevadas, produz diarréia osmótica. este ácido que não é encontrado no leite bovino. A explicação
de a AE se manifestar após o desmame é a alta concentração de
■ Má absorção iatrogênica de carboidratos zinco no leite bovino semelhante ao humano, mas não propicia
O uso de lactulose e manitol, carboidratos não absorvíveis, condição para capacitar a absorção do zinco.
usados para efeito laxativo, produz gás e distensão abdominal, O zinco é um mineral essencial para humanos, presente em
possivelmente por fermentação colônica. ao menos 100 metaloenzimas (incluindo a fosfatase alcalina),
com importante papel no metabolismo de proteínas, carboi
dratos e vitamina A. Por sua vez, tem importância no cresci
■ Má absorção de minerais mento, desenvolvimento e proliferação celular, cicatrização e
■ Acroderm atite enteropática reparo tecidual. As doses diárias variam com a idade, pois 30%
do zinco ingerido é absorvido, principalmente no duodeno e
A acrodermatite enteropática (AE) é um distúrbio recessivo
no intestino delgado proximal. Sua excreção é primariamente
e raro do metabolismo do zinco que habitualmente se apresenta
intestinal com pequena excreção pelo suor. O homem necessita,
à época do desmame, com a tríade de alopecia, diarréia e der-
em média, de 10 mg/dia; gestantes, de 30 mg/dia.
matite com lesões periorificiais e de distribuição acral, indefi
A maior concentração de zinco está localizada nos rins, os
nidamente. Outros achados incluem conjuntivite, fotofobia,
sos, músculos, olhos, esperma, pele, cabelos e unhas. É encon
distrofia ungueal, anormalidades em fâneros, baixa estatura,
trado em diversos componentes regulares da dieta, a maioria
estomatite e queilite, além de distúrbios emocionais. Sua inci de origem animal, e também presente no leite humano e nas
dência é baixa, cerca de 30% em irmãos, embora descrita em secreções pancreáticas. Está presente em carne vermelha, fígado
diversos países com distintas mutações. de boi, carne de peru, frutos do mar, germe de trigo, amendoim,
Em 1942, na Alemanha, o professor Niels Danboldt des nozes e água potável. A grande fonte é a ostra: 85 g de ostra
creveu a condição em colaboração com o bioquímico Karl crua contêm 65 mg de zinco. Fitatos encontrados em diversos
Closs, nomeada como akrodermatitis enteropathicay conhe vegetais podem dificultar a absorção de zinco; a deficiência de
cida também como síndrome de Danboldt-Closs. Em 1952, absorção de ferro interfere na absorção de zinco. Álcool, es
em Chicago, uma criança foi tratada com uma variedade de tresse ou consumo excessivo de zinco (mais que 150 mg/dia)
desinfetantes e se percebeu que a di-iodo-hidroxiquinoquina podem causar náuseas, febre, suor excessivo e problemas na
(Diodoquin®) teve efeito surpreendentemente favorável nas coordenação motora.
lesões de pele. Mas, a longo prazo, podería causar retinopatia A mais séria complicação na AE está associada à im uno
e atrofia óptica. deficiência, resultando em morbidade e mortalidade à infecção.
324 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
Apontam-se comprometimento da função imune e redução da Na literatura, há descrição de erupções eczematosas algumas
resposta humoral, e celular pelas células T. Há também dimi vezes vesicobolhosas ou pustulares. Infecções intercorrentes
nuição da fagocitose pelos macrófagos. Isso poderia explicar com bactéria e fungos, provavelmente relacionadas com qui-
infecções secundárias e a necessidade de antibióticos precoce miotaxia comprometida. Podem complicar o quadro clínico.
mente na vida. Ao contrário, períodos curtos de suplementa- A deficiência de zinco pode ocorrer em associações com
ção de zinco melhoram substancialmente a reposta imune e a outras doenças do intestino delgado, como doença celíaca, en-
defesa dos indivíduos com deficiência de zinco. teropatias perdedoras de proteínas, em pacientes em nutrição
Assim, na AE os parâmetros imunológicos podem ser resu parenteral total com administração insuficiente de zinco, em
midos como segue: atrofia do timo, linfopenia, diminuição da crianças em uso do leite de soja com baixo teor de zinco.
resposta mitógena, diminuição da resposta mediada por célu
las (hipersensibilidade tardia), diminuição dos níveis de imu- ■ Diagnóstico
noglobulinas, aumento de infecções recorrentes (pneumonia, O diagnóstico é confirmado pelo nível de zinco diminuído
sepse, candidíase, influenza, resfriados). no plasma; em alguns casos, também nos cabelos e nas unhas.
Em resumo, o zinco é uma molécula sinalizadora intrace Mais recentemente, foram descritos casos de AE com níveis
lular nos monócitos, células dendríticas e macrófagos, tendo séricos normais de zinco, dando os autores importância à biop-
papel importante na função imunológica mediada por células sia intestinal no sentido de que se podem verificar alterações
e no estresse oxidativo. O zinco também é um agente anti- nas células de Paneth justamente associadas à deficiência de
inflamatório. zinco. Existem casos de AE com aumento nos níveis de zinco,
devendo-se isso ao zinco circulante unido a outras substâncias,
■ Manifestações clínicas formando união mais estável do que com o ácido picolínico,
Geralmente, os pacientes se tornam sintomáticos dos 3 aos mas não o liberando em níveis periféricos onde deva ser utili
18 meses. Eliminam fezes diarreicas profusas e aquosas, perdem zado, desencadeando a sintomatologia da afecção.
peso, têm anorexia e dermatite característica. As lesões de pele ► Dados de laboratório. Embora a deficiência de Zn seja
são mais proeminentes nas junções mucocutâneas, tais como a característica da doença, os níveis totais de Zn são difíceis de
as regiões perioral e perianal, e nas mãos e nos pés, áreas de serem determinados porque refletem o Zn-ligado à albumi-
flexuras, áreas expostas à fricção. As lesões podem abrir feri na, e os pacientes geralmente têm hipoproteinemia. Assim, Zn
das ou hiperqueratose, erupções eritematosas. Estomatite ou menor que 6 mol/^ é significante somente se a albumina séri-
queilite podem acompanhar as lesões de pele. Queratite e xe- ca estiver normal. A determinação de Zn em cabelo ou unha
roftalmia também podem aparecer, tanto quanto alopecia ou se correlaciona mal com os sinais clínicos. Mas níveis séricos
onicodistrofia (Figura 30.20). baixos de zinco com dados clínicos sustentam o diagnóstico de
Portanto, as manifestações clínicas envolvem justamente os AE. O diagnóstico diferencial deve ser feito com situações de
tecidos com grande renovação celular: pele e epitélio intestinal. grandes perdas por diarréia ou inadequada suplementação de
Apresentam como peculiaridades: Zn em nutrição parenteral.
• Diarréia iniciando-se caracteristicamente por ocasião do Testes de função imunológica podem estar alterados, devido
desmame; às funções do Zn na estimulação de células T, produção de Ig
• Lesões mucocutâneas ao redor da boca e do ânus; e fagocitose de bactérias.
• Dermatite nos dedos e artelhos; Como o Zn é o maior cofator para muitas enzimas intrace
• Unhas distróficas; lulares, a deficiência de Zn se associa com níveis baixos de fos-
• Paroníquia; fatase alcalina, gamaglutamil transpeptidase e 5-nucleotidase.
• Alopecia; ► Histologia. O exame anatomopatológico da pele não é
• Desnutrição; específico. As alterações variam com a idade da lesão. Nas pri
• Alterações de crescimento. meiras, há paraqueratose confluente, ausência da camada gra-
Figura 30.20 Paciente com acrodermatite enteropática. Observar lesões periorificiais e de pele. A. Ao diagnóstico. B, Após tratamento. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 325
nulosa e discreta espongiose e acantose. Lesões vesicobolhosas crônica de zinco pode contribuir para distúrbios do SNC como
são intradérmicas e resultam de alteração vacuolar citoplasmá- alterações cerebelares, parkinsonismo e atrofia cortical. Assim,
tica com baloneamento maciço e alteração reticular produzindo recomenda-se supervisisão clínica cuidadosa para toda a vida
citólise de queratinócitos. Necrose confluente leva ao alarga em pacientes com AE.
mento das vesículas. Nas lesões posteriores, há paraqueratose
confluente. Achados menos comuns incluem células apoptó-
ticas, poucas células acantolíticas nas lesões vesicobolhosas e
■ Má absorção de ácidos graxos e monoglicerídios
neutrófilos dentro da epiderme. Infecções secundárias podem ■ Abeta/hipobetalipoproteinem ia
complicar este quadro. Os ácidos graxos de cadeia longa e os monoglicerídios absor
A microscopia eletrônica mostra gotas lipídicas e múltiplos vidos para dentro da célula epitelial são reesterificados para tri-
vacúolos citoplasmáticos nos queratinócitos da derme superior. glicerídios. Estes são envolvidos por um revestimento de proteí
Desmossomos podem estar diminuídos, associados frequente na (apoproteína), éster de colesterol e fosfolipídio para formar
mente com alargamento do espaço intercelular. os quilomícrons que aparecem na linfa e, depois, são transpor
Biopsias jejunais não são rotineiramente requisitadas. Ne tados para o sangue através do canal torácico.
nhuma anormalidade consistente é observada na microscopia A maioria dos triglicerídios na dieta é de cadeia longa, mas
óptica. Na eletrônica, contudo, revela-se inclusão anormal de os de cadeia média (com 6 a 12 átomos de carbono) são absor
corpos nas células de Paneth. Desde que haja alto conteúdo vidos por processo diferente. Têm hidrossolubilidade maior
de zinco normalmente nestas células e boa resposta ao tra que os de cadeia longa, são hidrolisados mais rapidamente e
tamento com zinco, cogita-se de anormalidade na célula de não dependem tanto da lipase pancreática. Uma vez absorvidos
Paneth na etiologia da AE. no enterócito, são reesterificados, mas se dirigem diretamente
ao fígado através da veia porta.
■ Tratamento As apoproteínas têm a propriedade de formar complexos
O tratamento com zinco é efetivo na AE presumivelmente com lipídios, tornando-os mais solúveis no plasma, permitindo
devido ao aumento da concentração do mineral na luz pro que sejam transportados pela corrente sanguínea para desem
piciar estimulação do seu transporte. A remissão dos sinais e penhar suas funções.
sintomas ocorre em cerca de 1 mês. Contudo, mesmo perío A apoproteína B é essencial na síntese de quilomícrons pela
dos curtos de interrupção da ingestão (7 a 10 dias) resultam mucosa intestinal e de pré-betalipoproteínas pelo fígado. As
em praticamente imediata recorrência, com reaparecimento betalipoproteínas responsáveis pelo transporte do colesterol
das lesões de pele. e apoproteína B no plasma derivam do catabolismo intravas-
O tratamento consiste em 8 a 10 vezes o requerimento diário cular das pré-betalipoproteínas. Na doença, estas estarão au
de 15 mg: 100 mg de Zn/dia corrigem as manifestações da AE. sentes também.
Suplementação extra deve ser mantida até a puberdade para A falta de síntese de quilomícrons acarreta prejuízo na en
homens e durante toda a vida para mulheres. trada de gordura do tubo digestivo ao plasma, provocando es-
Recomenda-se tratamento por toda a vida, pois, quando se teatorreia e má absorção de vitaminas lipossolúveis.
faz a prova de supressão do medicamento, a grande maioria Bassen e Kornzweig, em 1950, descreveram uma síndrome
dos pacientes sofre recorrência clínica logo em seguida. Pode- que tinha como característica aparência anormal das hemácias,
se complementar o tratamento VO, usando-se preparados tó retinopatia e alterações no sistema nervoso central. Posterior
picos com sulfato de zinco. mente, novos casos foram descritos, sendo o diagnóstico dife
O tratamento com pomada com óxido de Zn 25% nas áreas rencial feito principalmente com doença celíaca.
afetadas pode ser de algum benefício. Logo após, foi possível, por técnica eletroforética, imunoquí-
O mecanismo de transporte de zinco é comum ao cobre. mica ou de ultracentrifugação, estabelecer que as concentra
Assim, no tratamento com zinco oral, é necessário determinar- ções de betalipoproteínas estão diminuídas no plasma destes
se a concentração sorológica de ambos para evitar intoxicação. pacientes.
Há relação inversa entre zinco e cobre que pode ser detectada Abetalipoproteinemia é uma doença metabólica rara com
nos cabelos da cabeça dos pacientes. É útil monitorar a inges frequência < 1 em 100.000, caracterizada pela ausência vir
tão de cobre em indivíduos que usam altas doses de zinco por tual de lipoproteínas do plasma contendo apolipoproteína B
longos períodos. (apoB).
Para monitorar as doses orais de zinco, devem-se determi É causada por mutações no gene MTP localizado no braço
nar seus níveis nos cabelos e nos eritrócitos, mas não refletem longo do cromossomo 4 (4q22-24) que codifica uma proteí
acuradamente o estado no organismo todo. Portanto, os níveis na de 894 aminoácidos denominada microsomal triglyceride
plasmáticos são os mais utilizados no controle. Outro dado transfer protein. Até o momento, três mutações foram identi
laboratório frequente é o nível de excreção urinária do zinco. ficadas, explicando as diferentes manifestações clínicas. Existe
Níveis baixos da fosfatase alcalina, metaloenzima zinco-depen- uma forma de transmissão genética autossômica recessiva e,
dente, pode ser de valor para indicar deficiência de zinco. mais raramente, autossômica dominante. Predomina no sexo
masculino em cerca de 70% dos casos.
■ Evolução eprognóstico Portanto, é decorrente da ausência de apoproteína B no
Pouca informção está disponível em relação ao prognós plasma, necessária para a síntese e integridade estrutural das
tico a longo prazo da AE. Alguns pacientes param de tomar frações pré-beta (VLDL), betalipoproteínas (LDL) e quilomí
suplementos de zinco na adolescência e podem não necessitar crons que deverão estar ausentes no plasma dos indivíduos
de supervisão médica. Mas nestes casos a deficiência crônica portadores da afecção.
de zinco pode não ser reconhecida sem nehuma ou leve mani Os pacientes com abetalipoproteinemia têm falta, em seu
festação dermatológica. plasma, de todas as lipoproteínas que contêm apolipoproteí
Entretanto, manifestações neurológicas ou neuropsiquiá- na B-100 e B-43. Entretanto, o defeito não parece envolver o
tricas como sequelas podem ocorrer. Em adultos, a deficiência gene da apolipoproteína, nem a síntese, nem a glicosilação da
326 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
apolipoproteína, mas, em vez disso, parece comprometer algum Do ponto de vista anatomopatológico, ocorrem desmielini-
aspecto da formação ou secreção da lipoproteína. zação e perda de axônios em nervos periféricos.
Na mucosa intestinal, normalmente as gotículas de triglice- Em resumo, essas doenças são caracterizadas por enterócitos
rídios estão rodeadas por retículo endoplasmático e aparelho cheios de gordura, má absorção intestinal, acantocitose, ausên
de Golgi, cujas cisternas contêm grupos de quilomícrons. Estes cia ou diminuição de apobetalipoproteínas e grave deficiência
são sintetizados pela mucosa intestinal e juntam-se à gota de de vitamina E.
lipídio para formar um quilomícron completo. Na abetalipo-
proteinemia, as cisternas estão vazias, e grandes gotículas de ■ Diagnóstico
lipídios encontram-se livres no citoplasma. Usando-se técnicas 1. Biopsia peroral do intestino delgado mostrando (Figura
de anticorpo fluorescente, percebe-se que não há apoproteína 30.21):
quilomícron-demonstrável (apoB) na mucosa intestinal nem • arquitetura mais ou menos preservada, a não ser por al
lipoproteínas de baixa densidade (Figura 30.21). terações decorrentes de desnutrição;
Existe acantocitose, cujo mecanismo exato permanece incer • enterócitos ingurgitados com gotículas de gordura, dan
to. São hipóteses: alterações passivas nas membranas lipídicas, do aspecto claro ao citoplasma, mais bem evidenciado do
interações entre os receptores de membrana e suas ligações e meio ao topo das vilosidades;
um defeito primário na membrana. • lâmina própria com espessura e celularidade normais.
A hipobetalipoproteinemia é uma condição rara, autos- 2. Raios X: intestino delgado com padrão disabsortivo.
sômica dominante, caracterizada por baixas concentrações de 3. Exames de sangue:
colesterol no soro. O exato defeito bioquímico não é conhecido, • hemograma.
embora formas truncadas de ApoB tenham sido descritas.
Heterozigotos tendem a ser assintomáticos, e os homozigo- Acantocitose pode ser detectada algumas vezes no sangue
tos apresentam-se com alterações neurológicas semelhantes às periférico. Para reconhecê-la, é essencial examinar o sangue
da abetalipoproteinemia. fresco e não diluído quando a aparência espiculada é carac-
■ Quadro clínico
Há associação de acantocitose no sangue periférico com re-
tinite pigmentosa atípica e ataxia.
Infância: predomina quadro de má absorção intestinal, com
esteatorreia, carências vitamínicas e de minerais como hipo-
protrombinemia, raquitismo e anemia; sinais de retinite pro
gressiva e neuropatia atáxica em torno dos 5 anos de idade;
retardamento mental pode aparecer em alguns casos.
Adulto: má absorção menos pronunciada; paciente cada vez
com limitações maiores, principalmente na marcha, podendo
surgir alterações cardíacas. Comprometimento do estado nu
tricional (Figura 30.22).
Achados neurológicos (reversíveis com vitamina E):
• retinopatia pigmentar;
• disartria;
• ataxia;
• arreflexia;
• extensor plantar; e
• perda da sensibilidade da coluna dorsal.
Figura 30.21 Aspecto da mucosa entérica na hipobetalipoproteine Figura 30.22 Paciente com hipobetalipoproteinemia, desnutrida e
mia, revelando enterócitos ingurgitados com gotículas de gordura. com alterações neurológicas. (Esta figura encontra-se reproduzida em
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) cores no Encarte.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 327
terística, não se formando rouleaux. No sangue corado, essa 5. Vitamina K IM, se necessário.
anormalidade é facilmente mal interpretada como crenação. A 6. Vitamina D VO, se houver sinais de carência.
velocidade de hemossedimentação (VHS), extremamente baixa,
A combinação de suplementação oral de vitaminas A e E
confirma a falha na formação do rouleaux. Os acantócitos têm
iniciada antes dos 2 anos de idade pode atenuar, de modo mar
sobrevida normal ou diminuída, aumento de suscetibilidade
cante, a degeneração retiniana grave que se associa.
ao trauma e hemólise, que se reverte com a suplementação de
vitamina E. ■ Prognóstico
• colesterol total diminuído (abaixo de 60 mg/100 mf) (Fi A regra é haver um processo progressivo de deteriorização
gura 30.21); neurológica e retiniana. Os sintomas são debilitantes e a expec
• fosfolipídios diminuídos; tativa de vida fica reduzida.
• triglicerídios diminuídos;
• betalipoproteína ausente ou diminuída;
• quilomícrons ausentes (após refeição gordurosa);
■ Outras afecções
• vitamina E ausente; O Quadro 30.8 mostra as principais características de doen
• carotenoides ausentes; ças que são decorrentes de outras alterações na rota de absorção
• vitamina A diminuída; de um nutriente em particular.
• TAP normal ou aumentado em % (vitamina K).
4. Exame de fezes: esteatorreia (aumento da gordura fecal).
■ LEITURA RECOMENDADA
■ Tratam ento
■ Restrição detriglicerídios ■ Doença celíaca
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C is tin a , Usina, o rn it in a e a rg in in a C is tin ú ria F o rm a ç ã o d e c á lc u lo s
A u s ê n c ia d e s in to m a s G l
U s in a , o rn it in a e a rg in in a A m i n o a d d ú r i a h ip e rd ib á s ic a In to le râ n c ia fa m ilia l à p ro te ín a , d ia rré ia e v ô m it o , m á a b s o r ç á o d e
Usina, p a ra d a d e c re s c im e n to
T r ip t o f a n o S ín d r o m e b lu e d ia p e r H ip e r c a lc e m ia , d e s c o lo ra ç ã o a z u l d a á re a d ia p e r
M o n o s s a c a r íd lo s
G lic o s e -g a la c t o s e M á a b s o rç ã o d e g lic o s e -g a la c to s e D ia rré ia , d e s id ra ta ç ã o c o m a c id o s e
E le t r ó lit o s
C lo re to s C lo r id o rr e ia c o n g ê n it a D ia rré ia , a lca lo se , h ip o c a le m ia
M in e r a is
M a g n é s io H ip o m a g n e s e m ia fa m ilia l T e ta n ia n o p e r ío d o n e o n a ta l
C á lc io R a q u it is m o d e p e n d e n t e d e v it a m in a D A m i n o a d d ú r i a , ra q u it is m o , h ip o c a lc e m ia
P s e u d o -h ip o p a r a t ir e o id is m o R e ta rd o m e n t a l, b a ix a e s ta tu ra , te ta n ia
S ín d r o m e d e M e n k e s R e ta rd o m e n t a l, c a b e lo r e t o rc id o , in s ta b ilid a d e d e t e m p e r a t u r a
Z in c o A c r o d e r m a t it e e n te ro p á tic a Le sõe s e m á re as p ró x im a s a m u c o s a s , a lo p e c ia
V it a m in a s
V ita m in a B ,? M á a b s o rç á o d e v it a m in a B -, A n e m ia m e g a lo b lá s tic a , fra q u e z a , d ia rré ia , v ô m it o , a n o re x ia , fa lha
d e c re s c im e n to
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330 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes
331
332 C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva do In te stin o D elg a d o , D o e n ça d e W h ip ple e O utro s D istú rb io s n o Transporte d e N utrientes
são poucos os casos descritos na literatura nacional. Durante maioria dos pacientes. Nas fases iniciais da doença, estas mani
16 anos, os autores estudaram e acompanharam o perfil epi- festações podem ser intermitentes, alternando-se com períodos
demiológico, clínico e evolutivo de 24 pacientes com DIPID. de melhora espontânea.
Trata-se da maior casuística do Continente Americano e um A dor abdominal é inicialmente descrita como difusa, ou
dos períodos mais longos de acompanhamento de pacientes pode apresentar-se como desconforto epigástrico ou perium-
registrados na literatura mundial. Dentre as características epi- bilical. À medida que a doença progride, esse sintoma tende
demiológicas avaliadas, os autores observaram que a doença a assumir o caráter de cólica e tornar-se mais intenso e per
predominou na quinta década. No entanto, os outros aspectos sistente.
mostraram-se semelhantes aos descritos na literatura. A diarréia crônica pode preceder o diagnóstico da doen
ça por poucos meses ou até anos. No início da doença, tende
■ E tio p a to g e n ia a ser aquosa e, com o evoluir do processo, instala-se o quadro
O mecanismo etiopatogênico da doença permanece desco de franca má absorção intestinal. Este se caracteriza por um
nhecido, mas sabe-se que existe forte interação entre fatores grande número de evacuações, diurnas e noturnas, chegando,
ambientais e genéticos na sua gênese. em casos extremos, a 30 dejeções diárias, com fezes volumosas
As evidências epidemiológicas associadas à boa resposta à que podem superar 5 kg/dia. O aspecto das fezes pode variar de
antibioticoterapia, nas fases iniciais da doença, fazem supor que pastosas a líquidas, fétidas, amareladas, de aspecto brilhante e,
antígenos intraluminais, provavelmente, bactérias, vírus e/ou por vezes, com restos alimentares, caracterizando esteatorreia
parasitos, representem potente estímulo proliferativo crônico e ocasionando grande espoliação de água e eletrólitos.
e sustentado ao sistema MALT intestinal. Estes estímulos an- Perda de peso é observada com relativa frequência. Muitas
tigênicos locais parecem ser o gatilho direto para proliferação vezes, é rápida e de grande intensidade, com relato de redução
clonal ou agir de maneira indireta, predispondo os imunócitos ponderai de até 30 kg em curto período de tempo. Astenia,
a estímulos não específicos, que potencializa o efeito oncogêni- anorexia, náuseas e vômitos podem estar presentes em boa por
co, por exemplo, de certos vírus, à semelhança do que ocorre centagem dos casos.
no linfoma de Burkitt. No entanto, a natureza do agente esti Devido à natureza neoplásica da DIPID, quadros de obstru
mulante é desconhecida. ção, perfuração e intussuscepção intestinal podem ser encon
Estudos genéticos têm demonstrado clara associação da trados com menor frequência, principalmente nas fases mais
doença com antígenos de histocompatibilidade HLA-AW19, tardias, e geralmente associados à presença de massas tumo-
HLA-B12 e HLA-A9, assim como translocação dos cromos rais. A pseudo-obstrução intestinal determinada pela intensa
somos 9 e 14 (D14+q). A ocorrência de DIPID em familiares infiltração linfoide do intestino delgado foi descrita em poucos
de pacientes que residem fora da região de maior incidência, a casos e evolui com períodos de melhora temporária, sem a ne
maior frequência da DIPID em indivíduos com grupo sanguí cessidade de procedimento cirúrgico.
neo B e o nível elevado de fosfatase alcalina em membros sadios Dentre os sinais físicos mais comuns, destaca-se o baque-
da família de pacientes com DIPID podem indicar predisposi teamento digital, que está presente em uma frequência muito
ção herdada para esta doença. maior do que a observada nas outras doenças do intestino del
A sequência de eventos que provavelmente explica o de gado. Sinais de desnutrição e desidratação, alterações distróficas
senvolvimento da DIPID pode ser compreendida da seguinte da pele caracterizadas pela descamação lamelar, hipercromia
forma: a transformação maligna ocorre em um clone de linfó- e ressecamento, associados à redução da tela subcutânea e ca-
citos do folículo central e/ou zona marginal em resposta à es quexia. Edema, principalmente de membros inferiores, e ascite
timulação imunoproliferativa crônica. Como resultado, pode são manifestações que se relacionam a enteropatia perdedora
ocorrer o desenvolvimento de células plasmáticas produtoras de proteína, tornando-se mais evidentes naqueles pacientes que
da imunoglobulina anormal, principalmente a cadeia alfa pe têm obstrução do fluxo da linfa, ao nível dos linfonodos me-
sada; entretanto, este fenômeno pode não estar presente em sentéricos. Tetania, sinais de Chvostek e de Trousseau são, por
todos os casos de DIPID. A intensidade do infiltrado das célu vezes, observados, em especial quando ocorre diarréia muito in
las plasmáticas na mucosa intestinal e sua redução em resposta tensa, acarretando distúrbios hidreletrolíticos (Figura 31.1).
ao uso de antibióticos fazem supor que as células malignas re A febre é sinal pouco comum; habitualmente, surge mais
presentadas pelos linfócitos do folículo central são responsivas tardiamente na história natural da doença e tende a ser baixa
aos antígenos luminais, possivelmente bacterianos. A imuno e intermitente. São raras as descrições de sudorese noturna
globulina anormal é ineficaz na neutralização dos antígenos associada a DIPID.
presentes. Como resultado, mais células plasmáticas chegam à A linfadenomegalia periférica e a hepatomegalia são encon
mucosa e mascaram os linfócitos malignos do folículo central tradas em uma frequência menor e estão, na maioria das vezes,
até o curso final da doença. Estas observações sugerem que associadas à doença de curso mais longo. Esplenomegalia ra
tanto as células plasmáticas que infiltram a mucosa quanto os ramente é observada. Massas abdominais, que correspondem
linfócitos malignos são formados a partir do mesmo clone ce ao aumento dos linfonodos mesentéricos, podem fazer parte
lular. Desta maneira, parece existir um processo contínuo lin- do quadro clínico.
foproliferativo, modulado por uma complexa interação entre Amenorreia, alopecia e retardo de crescimento nas crianças
infecção, imunidade e oncogênese, sobre o qual o diagnóstico e nos adolescentes têm relação com o tempo e a gravidade da
e tratamento precoces vão interferir de forma significativa na má absorção intestinal. O Quadro 31.1 sumariza as principais
evolução da doença. manifestações clínicas.
■ D ia g n ó s t ic o
■ Q u a d r o c lín ic o
As manifestações clínicas da DIPID são, em geral, uniformes ■ Exames delaboratório
e constantes, diferenciando-se consideravelmente das outras Os exames de laboratório, realizados de forma rotineira, não
formas de linfoma primário do trato gastrintestinal. Dor ab se constituem em elementos diagnósticos, mas contribuem para
dominal e diarréia crônica são sintomas observados na grande avaliar a repercussão sistêmica da doença.
C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva d o In te stin o D e lgado, D o e n ça d e W h ip p le e O utro s D istú rb io s no Transporte d e N utrientes 333
Figura 31.1 Pacientes com DIPID estágio 8, evidenciando acentuado emagrecimento e desnutrição (A). Em B, observa-se baqueteamento
digital (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
podem estar presentes. Estas se caracterizam por larga faixa suficientes para fornecer uma classificação segura do tipo his-
de precipitação de proteínas que se estende da região a 2 à p2. tológico do linfoma, o que deve ser obtido por meio de outros
Outra alteração é o aumento da a2 globulina, associado à re métodos propedêuticos.
dução de albumina e das outras gamaglobulinas. A cadeia alfa
pesada é considerada uma imunoglobulina monoclonal, mas ■ M é to d o s d e im a g e m
apresenta heterogenicidade eletroforética, que não permite o Os métodos de imagem auxiliam mas não se constituem
aparecimento do pico agudo como observado no traçado ele- exames diagnósticos, uma vez que não existem alterações con
troforético das outras imunoglobulinas monoclonais. sideradas patognomônicas.
Os métodos utilizados para pesquisar a cadeia alfa pesada A radiografia simples de abdome em ortostatismo pode re
no soro são: imunoeletroforese, com a utilização dos antissoros velar níveis hidroaéreos no intestino delgado e mais raramente
específicos para cadeias pesadas e leves, e imunosseleção, que é nos cólons.
o método mais sensível e específico (Figura 31.2). A pesquisa O estudo morfológico da alças do intestino delgado mostra
da imunoglobulina na mucosa intestinal se faz pela técnica da alterações extensas, difusas e contínuas, localizadas principal
imunoperoxidase. mente no duodeno, jejuno e íleo proximal. A intensidade das
alterações radiológicas, em geral, se correlaciona diretamente
■ Endoscopiadigestiva com a gravidade do infiltrado da parede intestinal.
A endoscopia digestiva com visualização de todo o duodeno As alterações radiológicas mais comumente observadas
e das porções iniciais do jejuno constitui-se em exame de grande são:
valor diagnóstico. Cinco padrões endoscópicos são observados 1) segmentação e floculação do bário, que traduz a presença
na DIPID (Figura 31.3): de líquido estagnado no interior das alças intestinais. Este
1) pregas da mucosa espessadas presentes de forma isolada; dado é encontrado com maior frequência nos pacientes que
2) padrão nodular, definido pela presença de nódulos de ta apresentam dilatação de segmentos intestinais;
manhos variados; aqueles maiores que 1 mm foram deno 2) alargamento e espessamento das pregas da mucosa são ob
minados de nódulos e os menores de micronódulos; servados em graus que variam de discreta intensidade a um
3) padrão infiltrativo, caracterizado pela redução da motilidade pregueamento grosseiro, simétrico e difuso, que confere um
das paredes intestinais, que não se distenderam à insuflação aspecto bem transversal das pregas da mucosa, característica
e se apresentaram firmes à pressão da pinça de biopsia; nesta esta mais facilmente observada na presença de dilatação das
alças intestinais;
região, as pregas da mucosa eram grosseiras e desorganiza
das ou estavam ausentes; 3) aspecto nodular é uma consequência da infiltração linfo-
plasmocitária da lâmina própria, que faz projeção para o
4) padrão ulcerativo, várias úlceras de tamanho e profundidade
lúmen intestinal. Os nódulos formados podem variar de 2
variados;
a 3 mm a nodulações grosseiras de 8 a 10 mm, com aspec
5) padrão em mosaico.
to tipo polipoide, que leva a grandes distorções no padrão
Além de fornecer o aspecto endoscópico, a endoscopia di mucoso normal do intestino delgado;
gestiva alta permite a coleta de fragmentos de mucosa sob visão 4) irregularidades e espiculações na periferia da mucosa intesti
direta da lesão. As alterações histopatológicas da DIPID estão nal conferem à alça intestinal aspecto rendilhado, tipo “papel
localizadas, principalmente, na lâmina própria da mucosa in rasgado”, semelhante ao observado na retocolite ulcerativa.
testinal. A biopsia das porções distais do duodeno é diagnós- Este aspecto denuncia a presença de ulcerações na mucosa
tica em 85% dos casos. Entretanto, estes fragmentos não são intestinal;
A r c o d e p r e c ip it a ç ã o d a
c a d e ia g a m a p e s a d a - M IC
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*■<
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I m u n o s s e le ç ã o a n t i g a m a
B
Figura 31.2 Imunoeletroforese do soro de paciente com DIPID, estágio C, mostrando migração anormal da cadeia alfa pesada (A). Em B,
imunosseleção demonstrando arco de precipitação da cadeia gama pesada do soro de paciente com DIPID (arquivo dos autores). N = normal;
P = paciente. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva d o In te stin o D e lgado, D o e n ça d e W h ip p le e O utro s D istú rb io s no Transporte d e N utrientes 335
Figura 3 1.3 Endoscopia duodenal de paciente com DIPID, estágio C. A mucosa apresenta-se com nodulações grosseiras e variáveis em tama
nho (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ E s t a d ia m e n t o
A adequada classificação dos pacientes com DIPID, dentro
dos três estágios descritos, é necessária e deve ser feita mais
precocemente possível, uma vez que a terapêutica baseia-se
neste dado, que interfere diretamente no prognóstico da doen
ça. A maioria dos autores é concordante em afirmar que os
métodos propedêuticos existentes são incapazes de fornecer
um estadiamento adequado. Isso se baseia principalmente nas
observações de que as atipias celulares são encontradas inicial histológicas de infiltração neoplásica. Macroscopicamente, o
mente nas camadas mais profundas da parede intestinal e/ou aspecto pode ser infiltrativo, nodular, polipoide, com lesões,
nos linfonodos mesentéricos, locais inacessíveis aos procedi às vezes, ulceradas, ou áreas de estenose anular com dilatações
mentos tradicionais de biopsias. Também é reconhecido que aneurismáticas. Predomina o linfoma originário da célula B,
existe certo assincronismo das lesões, no que se refere aos graus tipo MALT, principalmente os de baixo grau, com os de alto
de malignidade, que podem variar em segmentos diferentes de grau sendo observados em menor frequência. Clinicamente,
um órgão ou em órgãos diversos, em um mesmo indivíduo, no manifestam-se principalmente por dor abdominal, hemorragia,
mesmo momento da doença. perfuração intestinal e sintomas obstrutivos. Diarréia com má
Estadiar um paciente é constatar o grau de disseminação absorção intestinal é manifestação rara.
da doença. Assim, vários autores consideram a laparotomia Algumas entidades como a doença celíaca e os estados de
exploradora como o método mais adequado para o correto imunodeficiência, congênitos, adquiridos ou de natureza iatro-
estadiamento dos pacientes. Um protocolo proposto por Ga- gênica, podem mimetizar quadros clínicos e histológicos seme
lian et a l, 1977, foi recomendado pela Organização Mundial lhantes a DIPID e se constituem em diagnósticos diferenciais
de Saúde e tem sido o mais utilizado com essa finalidade e está importantes. Outras doenças intestinais, como espru tropical,
representado no Quadro 31.2 (Figura 31.6). espru refratário, enterite ulcerativa não granulomatosa, doen
ça de Crohn, hiperplasia nodular linfoide do intestino delgado,
■ D ia g n ó s t ic o d i f e r e n c ia l doença de Whipple, síndrome de supercrescimento bacteriano
Pacientes que cursam com quadros de diarréia crônica, sín- intestinal e tuberculose intestinal, são entidades clínicas que,
drome de má absorção intestinal e/ou uma perda inexplicável também, devem ser levadas em consideração no diagnóstico
de peso requerem avaliação diagnóstica, que frequentemente diferencial da DIPID.
inclui biopsia da mucosa das porções iniciais do intestino del
gado. A presença de alterações histopatológicas, caracterizadas ■ Tra ta m e n to
pelo aumento do número de linfócitos e/ou plasmócitos na A resposta favorável da DIPID aos antibióticos tem sido
lâmina própria que, consequentemente, alteram a arquitetura observada desde as descrições iniciais. A antibioticoterapia é
das vilosidades, impõe a necessidade do diagnóstico diferencial, considerada como tratamento de escolha para o estágio A. A
entre uma série de doenças intestinais, que podem apresentar
estas alterações histológicas e que devem ser avaliadas dentro
de um contexto clínico-epidemiológico, associada a uma per
feita integração entre o clínico e o patologista.
É de grande importância no nosso meio que o diagnóstico
diferencial seja feito com os linfomas primários localizados do
intestino delgado, por se tratarem de entidades mais frequentes
no mundo ocidental. Geralmente, este não possui distribuição
geográfica ou socioeconômica específica. Tem dois picos de
incidência, sendo mais frequente em crianças com idade infe
rior a 10 anos e na quinta e sexta décadas de vida. Possui certa
predominância para o sexo masculino. Uma de suas caracterís
ticas mais marcantes é manifestar-se através de massa tumoral
definida, única, e em cerca de 20% as lesões podem ser múlti
plas. O segmento intestinal mais acometido é a região ileocecal,
em 60% dos casos, seguida pelo jejuno em aproximadamente
30% e duodeno em 10% dos pacientes. As áreas do intestino
delgado fora da região do tum or não apresentam evidências
----------------------------- ▼------------------------------
Q u a d r o 3 1 2 P r o to c o lo p a ra e s t a d ia m e n t o d a D IP ID p o r la p a r o t o m ia
"A ressecçào dos 10 cm do segmento jejunal pode ser substituída por duas biopsias em
Figura 31.6 Estadiamento cirúrgico de paciente com DIPID, estágio
cunha e transmural do mesmo segmento, se as condições do paciente nâo permitirem B. Em A, observam-se linfonodos mesentéricos muito aumentados e,
este procedimento (Galian era/., 1977). em B, detalhe de A (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se re
produzida em cores no Encarte.)
338 C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva do In te stin o D elg a d o , D o e n ça d e W h ip ple e O utro s D istú rb io s n o Transporte d e N utrientes
introdução dessa medicação é acompanhada por acentuada Os esquemas terapêuticos mais utilizados são: CHOP (ci-
melhora da diarréia e síndrome de má absorção intestinal. No clofosfamida, doxirrubicina, vincristina e prednisona), reco
entanto, no início do tratamento, não é observado paralelismo mendado pela literatura atual; MOPP (mostarda nitrogenada,
entre melhora clínica, histológica ou imunológica. vincristina, procarbazina e prednisona); m-BACOD (meto-
Entre os antibióticos, a tetraciclina, em doses que variam de trexato, bleomicina, adriamicina, ciclofosfamina, vincristina e
1,0 a 2,0 g ao dia, tem sido a droga de escolha. Não existe con dexametasona) e COPP. Resultados obtidos com esses esque
senso por quanto tempo ela deva ser mantida. Alguns autores mas são variados, sendo descritos em média 50% de remissão
recomendam período mínimo de 6 meses, enquanto outros completa e sobrevida em 3 anos de 58 a 64%.
acreditam que o antibiótico deva ser administrado por perío A literatura tem mostrado que a taxa de sobrevida, em 5 anos,
do de até 2 anos. A quimioterapia antineoplásica, com esque na análise dos três estágios apresenta variações de 20 a 67%.
ma terapêutico semelhante ao empregado no tratamento dos Abordagem cirúrgica está indicada nos quadros de obstrução
estágios mais avançados, está indicada naqueles pacientes do intestinal por massas tumorais, bem como para diagnóstico e
estágio A, que não respondem à tetraciclina, após 3 a 6 meses estadiamento da doença. A radioterapia abdominal estaria in
de início do tratamento, ou quando a remissão completa não é dicada na presença de disseminação abdominal da doença, com
observada depois de 9 a 12 meses do uso de antibióticos. relatos de remissões. No entanto, é procedimento acompanhado
Outros regimes terapêuticos que usam antibióticos, como de significativa morbidade e efeito terapêutico questionável.
metronidazol, ampicilina e ciprofloxacino, foram utilizados, Naturalmente, em qualquer estágio da doença, o tratamento
porém a experiência com essas drogas é pequena. A taxa de suportivo deve ser realizado. A correção dos distúrbios hidre-
remissão completa da doença no estágio A em resposta à te letrolíticos, instalação de suporte nutricional, reposição das
traciclina varia de 25 a 70%, com média de 50%. carências vitamínicas e derivados de sangue, melhora o prog
Os estágios B e C são tratados com quimioterapia anti nóstico e favorece a resposta ao tratamento.
neoplásica; vários são os esquemas utilizados, sem que exista Na casuística dos autores sumarizada no Quadro 31.3, dos
consenso de qual é mais eficaz. Estudos têm demonstrado que 24 casos estudados, em 18, a avaliação do tratamento pôde ser
esquemas quimioterápicos com antraciclina mostraram-se su feita de forma satisfatória. Remissão completa foi alcançada em
periores, quando se comparam o tempo de sobrevida livre da 10 (55,5%) pacientes e remissão parcial, em dois (11,1%). Assim,
doença e a taxa de remissão completa. ao término do estudo, com tempo médio de acompanhamento
------------------------------------------- ▼-------------------------------------------
Q u a d r o 3 1 . 3 R e s p o s ta t e r a p ê u t ic a , e v o lu ç ã o e t e m p o d e a c o m p a n h a m e n t o d e 2 4 p a c ie n te s c o m d o e n ç a
im u n o p r o lif e r a t iv a d o in t e s t in o d e lg a d o . C a s u ís tic a d o s a u to re s
Acompanhamento
Pacientes Tratamento Resposta (meses) Estágio
MIC Tetraciclina Remissão completa 180 A
MFS Tetraciclina Remissão completa 84 A
ARB Tetraciclina Remissão parcial 120 A
MGS Tetraciclina Perda do seguimento 1 A
GLFC Óbito" 4 A
RAS CHOP Remissão completa 105 B
RLF CHOP-Bleo Remissão completa 110 B
SNV CHOP-Bleo Remissão completa 99 B
MJB CHOP-Bleo Perda do seguimento 3 B
AC CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 57 B
JSF CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 16 C
LFC CHOP-Bleo Remissão completa 72 C
JRP CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 53 c
APS CHOP-Bleo Perda do seguimento 31 c
SDR CHOP-Bleo Remissão completa 76 c
MSS CHOP Remissão parcial 36 c
VBA CHOP Perda do seguimento 20 c
NRC CHOP Fracasso terapêutico 4 c
MJF CHOP Sem avaliação 8 c
LAS COP + CHOP-Bleo Remissão completa 196 c
ODS COP + CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 29 c
MAS Miscelânea Remissão completa 164 c
de 66,7 meses, com limites de 1 a 196 meses, 12 (66,6%) pacien que a sequência do RNA da porção 16S ribossômico do bacilo
tes encontravam-se vivos. O fracasso terapêutico, que resultou mostrava-se altamente constante, ambos os grupos codificaram
em óbito, foi observado em seis (33,3%) casos. A análise da curva o primer e compararam-no com sequências de outras bactérias,
de sobrevida, realizada através do estimador de Kaplan-Meier, evidenciando íntima relação deste com bactérias gram-positivas
mostrou que todos os óbitos da série em estudo ocorreram antes do grupo dos actinomicetos. A sequência 1.321 presente no
dos 60 meses. A sobrevida encontrada para os casos do estágio primer mostrou-se ser específica para os pacientes com diag
B foi de 75%, enquanto, para os pacientes do estágio C, foi de nóstico de DW.
55%, após os 5 anos de acompanhamento. Não foi constatado Estabelecidas as relações filogenéticas e a tendência de a
óbito associado à DIPID entre os pacientes do estágio A. doença cursar com má absorção, foi proposta a denominação
de Tropheryma whippelii para o agente etiológico da doença,
que do grego significa trophe nutrição e eryma, barreira.
■ Doença de Whipple No ano de 2000, o bacilo de Whipple foi finalmente culti
■ In tro d u ç ã o
vado. Utilizando-se uma linhagem de fibroblastos humanos,
sem qualquer meio de cultura específico, foi possível o cultivo
Descrita em 1907 por George Hoyt Whipple, a doença de
e isolamento do T. whippelii, além da detecção de anticorpos
Whipple (DW) é afecção sistêmica rara, de etiologia infecciosa,
específicos. Assim, como acontece com o Mycobacterium leprae,
causada por uma bactéria gram-positiva do grupo dos actino-
o Helicobacterpylori e espécies de bartonela, o crescimento do
micetos, denominada Tropheryma whippelii. A doença pode T. whippelii é lento, levando aproximadamente 18 dias.
afetar virtualmente qualquer órgão, e o intestino delgado é a
A identificação do agente etiológico foi um grande avanço
víscera acometida com maior frequência. Tem curso clínico
em direção à melhor compreensão da patogênese da DW. En
insidioso e manifesta-se principalmente por meio de diarréia,
tretanto, muitas questões permanecem ainda sem respostas.
perda de peso, dor abdominal, que muitas vezes é precedida
Está bem estabelecido que os diversos tecidos acometidos,
por poliartralgias e poliartrites. O diagnóstico é sugerido pela
principalmente a mucosa do intestino delgado, mesmo quando
presença de macrófagos corados pela reação de Schiff, em ma
não existam sintomas relacionados com este órgão, estão infil
terial de biopsia, em geral mucosa jejunal, e confirmado pela
trados pelo T. whippelii durante a fase ativa da doença. Como
visualização, por microscopia eletrônica, de um bacilo que tem também, é observada melhora clínica dramática, que ocorre de
a parede celular envolvida por uma membrana, conferindo a ela
forma paralela à redução e mesmo desaparecimento do agente
o aspecto trilaminar, ou quando se reconhece a sequência do etiológico dos tecidos após antibioticoterapia eficiente. Estas
RNA da porção 16S ribossômico do agente, através da reação evidências não deixam dúvidas sobre o importante papel do T.
em cadeia da polimerase (PCR). A resposta à antibioticoterapia whippelii na patogênese da doença. No entanto, a existência de
é boa e quase que invariavelmente permanente, levando à cura. organotropismo das diferentes cepas, bem como a via pela qual
Entretanto, quando não tratada, é doença fatal. o T. whippelii penetra no organismo são desconhecidas.
Características individuais, relacionadas com o hospedeiro,
■ E p id e m io lo g ia
também estão implicadas na etiopatogênese. Alguns trabalhos
A raridade da doença dificulta uma precisa avaliação so têm demonstrado que a doença é três vezes mais frequente entre
bre a sua prevalência. A incidência anual parece ser inferior a os indivíduos com a subclasse I do antígeno de histocompatibi-
1/1.000.000 habitantes. Acredita-se que não mais de 1.000 ca lidade HLA-B7. Reconhecem-se possíveis alterações primárias
sos tenham sido descritos na literatura mundial e poucos são nos mecanismos de defesa do indivíduo suscetível à doença.
os relatos na literatura nacional. Os EUA e a Inglaterra são os Em relação à imunidade humoral, observa-se diminuição
países responsáveis pelo maior número de casos. dos níveis séricos de IgG2, a despeito de os níveis da IgG total
Apesar de não se ter padrão epidemiológico definido, a e a resposta dos anticorpos a agentes específicos estarem pre
doença parece não ser contagiosa, pois a frequência de pacientes servados na maioria dos pacientes. Na imunidade celular, algu
com DW na mesma família ou entre indivíduos que residem mas alterações foram descritas e se caracterizam pelo aumento
em áreas geograficamente próximas é rara. Não há relato de da expressão do CD45RO, que é um marcador de memória
transmissão epidêmica ou inter-humana. Observa-se nítida das células T; ocorre ainda aumento da expressão do CD25 e
predominância na raça branca, e a doença é cinco vezes mais CD58 nas células T, que estão relacionados diretamente com
frequente no sexo masculino. A faixa etária mais acometida está a ativação celular; existência de diminuição da reação de hi-
entre os 45 e 55 anos. A prevalência entre fazendeiros e traba persensibilidade tipo retardada, como também diminuição da
lhadores ao ar livre parece ser maior. Este dado foi corroborado produção de interleucina 12 (IL-12) e da secreção de interfe-
pelos estudos que evidenciaram a presença do T. whippelii em rona gama (ITF-y).
amostras de material coletado em unidades de tratamento de A diminuição da produção de IL-12 e de ITF-y pelas células
esgoto. Estudos têm demonstrado que o T. whippelii pode estar mononucleares parece assumir papel importante relacionado
presente na saliva, placa dentária, amostras de fezes e espécimes com a presença de grânulo mas na doença. A IL-12 é media
de mucosa intestinal de indivíduos sadios. A predisposição ge dor central na imunidade celular e induz a produção do ITF-y
nética para a DW é discutida, embora nenhum fator de risco pelos linfócitos T tipo 1. Ao mesmo tempo, ocorre diminuição
específico tenha sido reconhecido. da concentração sérica de IgG2 e consequente associação na for
mação dos granulomas na DW. O acúmulo de bactérias intactas
■ E tio p a to g e n ia ou de seus produtos dentro dos macrófagos por longo período
A despeito da experiência acumulada com a boa resposta de tempo, associado à ausência de dano celular ou à existên
terapêutica aos antimicrobianos, a etiologia infecciosa da DW cia de pequeno dano celular, reflete diminuição da função dos
sempre foi questionada ao longo dos anos. No entanto, no início macrófagos, que se mostram capazes de digerir as bactérias,
da década de 1990, dois grupos distintos identificaram o bacilo mas não de destruí-las. Essa incapacidade funcional dos ma
de Whipple, até então não cultivado, e utilizaram para isso a crófagos está relacionada com reduzida expressão do CD 11b,
técnica de reação em cadeia da polimerase, PCR. Sabendo-se baixa produção da IL-12, aumento na liberação da IL-16,
340 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes
e redução da apoptose dos macrófagos na mucosa intestinal. artralgia, nesta ordem de frequência. O Quadro 31.4 sumariza
Os níveis sé ricos da IL-16 e marcadores de apoptose estão re as manifestações clínicas de casuísticas diferentes, sendo duas
lacionados com a gravidade da doença, e a redução dos níveis de autores brasileiros. Existe certo predomínio das manifesta
séricos é observada em resposta ao tratamento antimicrobiano ções gastrintestinais no momento do diagnóstico. Este acha
eficaz. Estudos têm demonstrado que a inativação da IL-16 por do contrasta-se, em muitos casos, com os sintomas das fases
anticorpos específicos inibe a proliferação do T. whippelii no iniciais da doença, quando acometimento articular, febre, ou
interior dos macrófagos, ressaltando a importância desta cito- mesmo sintomas neurológicos, podem dominar o quadro; en
cina na replicação da bactéria. tretanto, nessa circunstância, o diagnóstico é geralmente difícil
Pacientes com DW apresentam redução da reposta Thl na de ser realizado.
lâmina própria da mucosa intestinal e no tecido periférico, em Os sintomas gastrintestinais não são específicos e se asseme
especial das células T CD4+ específicas para o T. whippelii. Por lham aos observados em qualquer doença que cursa com má
outro lado, observa-se aumento da reposta Th2, tanto na muco absorção intestinal. A diarréia geralmente é crônica e reflete o
sa intestinal quanto nos tecidos periféricos. Este desequilíbrio acometimento do intestino delgado; o número de evacuações
da resposta imunológica cria condições favoráveis à replicação varia entre 5 e 10 episódios por dia. As fezes são aquosas ou
do T. whippelii no interior dos macrófagos. semipastosas, e comumente ocorre importante perda de gor
A presença de grandes macrófagos, contendo no seu interior dura. Distensão e dor abdominal difusa, associada à anorexia,
os corpúsculos PAS positivos, que infiltram os diversos tecidos são sintomas frequentes. A gravidade da diarréia e o grau da
do organismo, contribui diretamente para os variados sinto anorexia correlacionam-se diretamente ao emagrecimento, po
mas clínicos observados na doença. No intestino delgado, por dendo levar à caquexia. Fadiga e fraqueza estão presentes em
exemplo, a infiltração da lâmina própria determina distorção grande número de pacientes e, também, resultam da espolia
da arquitetura das vilosidades, interferindo diretamente com a ção crônica. A consequente perda de albumina, principalmente
absorção intestinal, e é responsável pela diminuição do trans quando acompanhada de obstrução linfática pelo envolvimento
porte dos nutrimentos para os canais linfáticos de drenagem. de linfonodos mesentéricos, resulta em edema periférico, pre
Os vasos linfáticos da mucosa e submucosa intestinal podem dominantemente dos membros inferiores e ascite. O sangra-
estar dilatados e, consequentemente, depósitos de gordura são mento intestinal não é comum, mas pode ocorrer sob forma de
observados com certa frequência no meio extracelular da lâ melena, hematêmese e sangue oculto nas fezes.
mina própria. Tais achados provavelmente refletem a obstru Entre as manifestações extraintestinais e sistêmicas, a ar
ção linfática causada pelo aumento de linfonodos e infiltração tralgia, a artrite e a febre são as mais comuns. Os sintomas ar
celular do mesentério. ticulares são observados em aproximadamente 66% dos pacien
Como referido, a DW é afecção sistêmica e os outros órgãos tes. A artralgia caracteriza-se pelo envolvimento de pequenas
mais comumente comprometidos são coração, cérebro, fígado, e grandes articulações. É migratória, simétrica e não erosiva.
baço, articulações, pulmões e rins. O T. whippelii está ainda A gravidade varia de paciente para paciente e pode ser acom
associado a amiloidose secundária, nefropatia por IgA, linfoma panhada de calor e edema, principalmente quando acomete
não Hodgkin e, mais recentemente, a uma forma de sarcoidose joelhos, tornozelos e punhos. Com a progressão da doença, os
na qual os granulomas, a princípio PAS-negativos, contêm, em períodos sem dor diminuem e o paciente evolui com artralgia
sua estrutura, pouquíssimos microrganismos intercelulares que contínua. Pelo fato de não ser erosiva, a deformidade perma
são observados apenas por microscópicos de alta resolução. nente é rara, diferente do que ocorre na artrite reumatoide.
Artrite axial, sacroileíte e espondilite ancilosante são formas
■ Quadro clínico raras de apresentação da doença. A natureza inespecífica do
A apresentação clínica varia na dependência do sistema aco quadro articular, na fase inicial, é responsável pelo atraso no
metido. Os principais sintomas são emagrecimento, diarréia e diagnóstico. Habitualmente, este não é suspeitado até o surgi-
--------------------------- ▼---------------------------
Q u a d ro 3 1 .4 Doença de Whipple: principais manifestações clínicas
n = 19 n = 29 n= 5 n= 4 n = 764
M a nifestações clínicas % % % % %
E m a g r e c im e n t o 95 89 80 100 92
D ia rré ia 78 75 80 100 76
A rtra lg ia 65 82 40 33,3 67
H ip o te n s ã o a rte ria l 70 - - - -
D o r a b d o m in a l 60 - 80 - 55
L in fa d e n o m e g a lia 55 54 60 6 6 ,6 60
mento dos sintomas gastrintestinais. A febre normalmente é livres e não dolorosos. Massas abdominais consequentes à lin
baixa e intermitente, podendo durar vários anos. Com o evoluir fadenomegalia mesentérica podem se constituírem achado do
do processo, a temperatura pode tornar-se mais alta e não raro exame físico. A hepatoesplenomegalia é observada em pequena
assume o caráter remitente. frequência.
O padrão do acometimento do sistema cardiovascular é am Os sopros cardíacos podem estar associados às lesões val
plo, pois todas as três camadas do músculo cardíaco, bem como vulares ou se constituem em sopros funcionais, relacionados
as artérias coronárias, podem estar infiltradas pelo T. whippe- com a anemia, que ocorre com relativa frequência. O exame
lii. O paciente pode apresentar-se com insuficiência cardíaca das articulações pode revelar sinais flogísticos. O atrito pleu-
congestiva, angina ou pericardite. Lesões valvulares vegetan- ral e/ou pericárdico é observado quando existe acometimento
tes ou perfurativas também podem ocorrer, principalmente destas membranas serosas.
em câmaras esquerdas. Estima-se que 30% dos pacientes com Atenção especial, como monitoramento cuidadoso, deve ser
DW tenham algum tipo de lesão cardíaca. No entanto, ape dada ao paciente após o tratamento, pois o aparecimento de
nas uma pequena parcela é sintomática. O ecocardiograma, alterações neurológicas pode ser os primeiros sinais de recaí
preferencialmente transesofágico, deve ser realizado de rotina da da doença.
nesses pacientes.
O envolvimento do sistema nervoso central (SNC) é obser ■ Diagnóstico
vado em 21 a 43% dos casos. Os sintomas neurológicos podem Muitas das anormalidades laboratoriais encontradas na DW
preceder outras manifestações clínicas ou originar-se junto com são consequência da má absorção intestinal. Anemia é comum
elas. Entretanto, a presença desses sintomas, de forma isolada, e, na maioria das vezes, está associada à deficiência de ferro;
é situação rara. O diagnóstico de recorrência da doença após entretanto, anemia de doença crônica, bem como anemia se
tratamento clínico aparentemente eficaz pode ser suspeitado cundária à deficiência de ácido fólico e/ou de vitamina B,, tam
perante os sintomas neurológicos. Virtualmente, qualquer seg bém podem estar presentes. Leucocitose com neutrofilia são
mento cerebral e da medula espinal pode estar comprometido observadas em 33% dos pacientes, principalmente quando há
pelo T. whippelii. Assim sendo, grande variedade de manifes febre. A trombocitose é rara.
tações neurológicas se fazem presentes. Os sintomas incluem Esteatorreia, redução da excreção da d(+) xilose e diminui
demência, com desorientação e perda da memória, cefaleia, ção dos níveis séricos de caroteno e colesterol são frequente
letargia, que pode progredir até o coma, convulsões, fraqueza mente observadas. Nos pacientes com quadros mais graves de
muscular, alterações no sensório, incoordenação motora, po- diarréia, deve-se atentar para os sintomas relacionados com
lidpsia, parkinsonismo e outros sintomas relacionados com o hipocalcemia, hipopotassemia, hipomagnesemia e hipoalbu-
acometimento dos nervos cranianos, como surdez, disartria, minemia.
diplopia e redução da acuidade visual. Classicamente, a tríade O estudo do liquor, nos pacientes que apresentam sintomas
composta por demência, oftalmoplegia e mioclonia é observada neurológicos, pode mostrar aumento do teor proteico, pleoci-
em 33% dos pacientes. Segundo alguns autores, uma anormali tose e presença de células PAS. Entretanto, estas alterações não
dade de movimento da musculatura ocular denominada mior- são observadas em todos os pacientes.
ritmia oculomastigatória, que se caracteriza por nistagmo con O estudo radiológico contrastado do intestino delgado é
vergente associado à movimentação da mandíbula e da língua, importante para avaliação morfológica do órgão e geralmente
concomitantemente, é suficiente para o diagnóstico de DW. encontra-se alterado. A subversão da arquitetura do relevo mu-
A grande maioria das alterações oftalmológicas é secundá coso e espessamento das pregas, principalmente localizadas no
ria ao comprometimento do sistema nervoso central, sendo duodeno e jejuno proximal, sugerindo doença infiltrativa, são
descritas em 2 a 3% dos pacientes com DW. As mais comuns achados compatíveis com o diagnóstico de D W, mas não espe
são nistagmo, oftalmoplegia e ptose palpebral, dentre outras. cíficos. São descritas, à esofagogastroduodenoscopia, algumas
Manifestações intraoculares têm sido relatadas com ou sem alterações duodenais como espessamento do pregueamento
envolvimento do sistema nervoso central e incluem uveíte, vi- mucoso, presença de placas amarelo-esbranquiçadas e erosões,
trite, hemorragia vítrea, papiledema e queratite. Em 34 casos de por vezes formando mosaicos e linfangiectasia (Figura 31.7).
acometimento ocular publicados na literatura, apenas quatro Na suspeita de acometimento neurológico, a ressonância
apresentavam lesão ocular exclusiva. nuclear magnética é o método de escolha, pois pode evidenciar
Tosse crônica e dor pleurítica, quando presentes, refletem o áreas de alta densidade em T2. Outros métodos complementa
acometimento pulmonar da doença. Outras manifestações me res, como o ecocardiograma e a radiografia de tórax, também
nos comuns são hipotensão arterial e sintomas urinários. são úteis na avaliação global do paciente.
As alterações observadas ao exame físico estão diretamente Os manifestações clínicas e laboratoriais induzem a suspeita
relacionadas com a presença e gravidade da má absorção intes diagnóstica, que deve ser confirmada ou afastada. Para isso, a
tinal, bem como com o acomentimento dos diferentes sistemas. literatura recomenda a combinação de exames considerados
Assim, são observados sinais de emagrecimento, como perda da clássicos com aqueles alternativos, conforme esquematizado
massa muscular, palidez, edemas periféricos e, mais raramente, no Quadro 30.1.
ascite, baqueteamento digital, queilite, glossite, púrpura, au O intestino delgado está comprometido na maioria dos pa
mento da pigmentação e descamação lamelar da pele, aumento cientes, desde as fases iniciais da doença, mesmo naqueles ca
da excitabilidade muscular, chegando, em alguns casos, a teta- sos em que não são observados sintomas relacionados com este
nia causada pela hipocalcemia e alterações na sensibilidade das órgão. A biopsia endoscópica do duodeno ou jejuno proximal
extremidades, secundárias à neuropatia periférica. Estes sinais se constitui em procedimento de importância na avaliação da
refletem os mais variados graus de deficiências a que estes pa doença. Para evitar erros de amostragem, no mínimo cinco
cientes estão sujeitos ao longo de sua enfermidade. fragmentos de mucosa devem ser obtidos.
A linfadenomegalia periférica é observada com relativa fre A mucosa intestinal revela vários graus de atrofia vilosi-
quência e está presente em algumas séries em 55% dos pacien tária. As células epiteliais normalmente colunares tornam-se
tes. Os linfonodos apresentam aumento moderado, são firmes, cuboidais, e certo grau de redução da borda em escova pode
342 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes
antígenos do T. whippelii, como as proteínas 84kDA, 134kDA, realizado. Entretanto, deve ser levado em consideração como
60kDA e 68kDA, em poucos pacientes com DW e sua ausência diagnóstico diferencial de uma série de síndromes neurológicas.
em controles sadios, abre a perspectiva futura para seu uso no Recentemente, um maior número de casos com acometimento
diagnóstico da doença. ocular e pulmonar têm sido descritos, o que torna esta afecção
um importante diagnóstico diferencial.
■ Diagnóstico diferencial Doença de Crohn, sarcoidose, linfoma difuso do intestino
A DW pode se apresentar por meio de várias manifesta delgado, doença celíaca e enteropatia crônica resultante da sín-
ções clínicas inespecíficas, inclusive aquelas relacionadas com drome de imunodeficiência adquirida são algumas das doenças
o sistema gastrintestinal. Assim, para a suspeiçâo diagnósti- que cursam com má absorção intestinal e que sempre devem
ca precoce da doença, torna-se de fundamental importância ser aventadas na abordagem propedêutica. No entanto, a par
atenção a determinadas manifestações clínicas, como artralgia, tir do momento em que é realizada a biopsia intestinal, pou
que normalmente antecedem as manifestações clínicas asso cas são as afecções que apresentam corpúsculos PAS-positivos
ciadas aos outros sistemas, por meses ou anos. Nessa situa nos macrófagos, alterando a arquitetura vilositária do epitélio
ção, a abordagem inicial da doença geralmente é realizada nos intestinal. Esta apresentação histológica pode ser encontra
ambulatórios de Reumatologia, e a presença, por exemplo, de da em algumas situações, como nos pacientes com síndrome
sacroileítes sorológico-negativas constitui-se em importante de imunodeficiência adquirida, que desenvolvem infecção in
diagnóstico diferencial. O mesmo pode ser observado quando testinal pelo complexo Mycobacterium avium-intracelullare.
as alterações neurológicas surgem como manifestações clínicas Nestes casos, a clínica e o padrão histológico são semelhantes;
isoladas, sem haver concomitância das queixas digestivas. Esta entretanto, este complexo cora-se positivamente na pesqui
é uma situação em que o diagnóstico da DW é difícil de ser sa de bacilo álcool-ácido resistente, o que não é observado na
Figura 31.10 Organograma para diagnóstico da doença de Whipple. (Modificado de Schneider.T, Moos, V, Loddenkemper, C, MarthT, Fenollar,
F, Raoult, D. L a n c e t In fe c t. D is. 2008; 8:179-90.)
344 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes
DW. A macrogamaglobulinemia e a histoplasmose dissemi Passou-se então a recomendar que o tratamento não deva ser
nada são outras entidades que apresentam quadro histológico feito por período inferior a 12 meses.
semelhante. No entanto, nessas duas afecções, os corpúsculos Não existe consenso sobre o tempo de duração do tratamen
PAS-positivos localizam-se apenas ao redor dos macrófagos e, to. Aparentemente, esquemas terapêuticos com duração de no
na histoplasmose, o agente corado pelo PAS apresenta-se mais máximo 3 meses estão associados a índices de recaídas maiores.
arredondado. Outro método propedêutico que pode auxiliar Os esquemas mantidos por 12 ou 24 meses associam-se a maior
no diagnóstico diferencial é a eletroforese de proteínas, pois índice de resposta completa, isto é, sem recidivas.
esta apresenta pico monoclonal na macrogamaglobulinemia. O esquema terapêutico recomendado, por vários anos, foi a
Alguns outros microrganismos como Bacillus cereus, Coryne- administração da penicilina G procaína ou penicilina cristalina,
bacterium spp, Histoplasma e Rhodococcus equi, anteriormente na dose de 18 milhões de unidades ao dia, associada a um ami-
denominado Corynebacterium equi, podem ser corados pelo noglicosídio. Classicamente, tem se utilizado a estreptomicina,
ácido periódico de Schiíf. na dose de 1 g ao dia; entretanto, esta droga pode ser substituída
pela amicacina ou gentamicina. Atualmente, utiliza-se ceftria-
■ Tratam ento xone 2,0 g ao dia, ou meropeném 3,0 g ao dia, por 14 dias. A
No período de 1907 a 1952, todos os casos publicados evoluí terapia de manutenção é feita com sulfametoxazol (800 mg) +
ram invariavelmente para o óbito. A introdução dos antibió trimetoprima (160 mg), 2 vezes/dia. O tempo ideal para se fazer
ticos na abordagem dessa enfermidade foi acompanhada por a terapia de manutenção é questão em aberto. O uso da anti-
mudança radical no curso e prognóstico da doença. Vários anti- bioticoterapia por 2 anos pode não ser suficiente para prevenir
microbianos foram empregados ao longo dos anos; dentre eles, a recaída em alguns pacientes, enquanto outros permanecem
são citados cloranfenicol, tetraciclina, doxiciclina, sulfonamidas livres da doença após 1 ano de tratamento.
e penicilinas, com resultados variáveis. Esquema terapêutico alternativo é a associação da doxici
Inúmeros trabalhos tentaram padronizar o tratamento com clina 100 mg 2 vezes/dia com a hidroxicloroquina 600 mg/dia,
antibióticos, baseando-se na melhora clínica dos pacientes. No por período de 1 a 2 anos.
entanto, a dificuldade de se cultivar o T. whippelii impossibilitou A interferona gama está indicada, nas recaídas, a despeito de
a realização de estudos bacteriológicos in vitro ou in vivo deste antibioticoterapia adequada, terapêutica que só deve ser indica
microrganismo, por vários anos. Este fato associado à falta de da quando não há evidências de lesões inflamatórias no SNC.
estudos prospectivos controlados com maior número de casos O início da antibioticoterapia pode ser acompanhado por
se constituíram em fatores impeditivos para a padronização de manifestações sistêmicas como febre alta. Nessa situação, a
um esquema ideal de tratamento. No manejo destes pacientes, corticoterapia deve ser considerada, principalmente se houver
três questões devem ser levantadas: Qual o tratamento ideal? acometimento do SNC, pois a redução da inflamação local, do
Qual a duração do regime terapêutico? E como o paciente deve edema e do dano endotelial, à semelhança do que ocorre na
ser monitorado? O recente cultivo do T. whippelii pode abrir neurotuberculose, melhora o prognóstico da doença.
caminho para a padronização de um esquema de tratamento O monitoramento clínico e laboratorial dos pacientes após
que forneça ao gastrenterologista maior segurança na aborda o tratamento é fundamental para confirmação da cura ou no
gem terapêutica. diagnóstico precoce das recidivas.
A partir do trabalho de Keinath et al., publicado em 1985, A pesquisa de PCR é método de escolha no acompanhamen
alguns preceitos passaram a nortear a terapêutica da DW. Estes to dos pacientes e mostra-se superior ao estudo histológico. A
autores acompanharam 88 pacientes durante pelo menos 1 ano negativação do PCR em 2 a 6 meses após o início do tratamen
após o tratamento, ou 2 anos após o diagnóstico. No período to correlaciona-se com evolução clínica favorável. O substrato
de estudo, foram constatados 37 casos de recidivas da doen tecidual a partir do qual é feita a análise depende da forma de
ça, sendo 16 recidivas clínicas, cinco reumatológicas e apenas apresentação da doença e deve se constituir do mesmo material
uma gastrintestinal (estas recidivas ocorreram até 2 anos após a ser analisado após o tratamento. Habitualmente, recomenda-
o término do tratamento, sendo assim consideradas precoces). se a análise de fragmentos do intestino delgado, combinada com
Já as recidivas observadas no SNC, 13 casos, e cardíacas, dois o estudo do sangue periférico, aumentando-se dessa forma a
pacientes, foram constatadas em um período de tempo superior confiabilidade do resultado dos exames. Nos pacientes com
a 2 anos e chamadas de recidivas tardias. A comparação das doença neurológica, o PCR do liquor, frequentemente, torna-se
características das recidivas, com os esquemas de tratamento negativo nas duas primeiras semanas de tratamento. No entan
utilizado, fez com que estes autores chegassem a algumas con to, poucos pacientes permanecem com PCR positivo, por vários
clusões que hoje sustentam o tratamento da doença. anos, após a terapêutica ter sido descontinuada. A permanên
No referido trabalho, todos os pacientes que tiveram re- cia do material PAS-positivo em fragmentos de biopsia após o
cidiva tardia a partir do SNC fizeram uso de tetraciclina, que tratamento não indica falha terapêutica e não deve ser utilizada
sabidamente é um antibiótico incapaz de penetrar na barreira na avaliação da resposta antimicrobiana, pois essas alterações
hematencefálica. Acrescido ao fato de que a introdução do sul- podem persistir por mais de 20 anos depois do tratamento.
fametoxazol + trimetoprima aos esquemas terapêuticos, droga,
que têm a capacidade de atravessar a barreira hematencefálica,
foi acompanhada por uma evidente redução do número de re
■ Gastrenteropatia eosinofílica (ver Capítulo 25)
cidivas a partir do SNC. Assim sendo, o esquema terapêutico
deve basear-se, de preferência, nos antimicrobianos que têm a ■ ANORMALIDADES DOS VASOS LINFÁTIC0S
propriedade de atravessar a barreira hematencefálica, a fim de
evitar a recidiva tardia da doença, pois reconhece-se que o SNC
é importante fonte residual da bactéria, sendo responsável, em
■ Linfangiectasia intestinal
parte, pelas recidivas que ocorrem após 2 anos de tratamento. A drenagem linfática do intestino delgado tem início em
As recidivas precoces foram mais frequentes nos pacientes sub vaso linfático que ocupa a região central da vilosidade intesti
metidos ao tratamento por período de tempo inferior a 1 ano. nal. Essa estrutura tem a extremidade voltada para o ápice da
Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes 345
Parece ter no solo ou nos detritos vegetais o seu habitat natural. Nassar, VH, Salem, PA, Munib, JS et al. Meditcrrancan abdominal diseasc or
immunoprolifcrativc small intestinal diseasc. Part II: pathological aspccts.
É doença sistêmica, polimórfica, com grande variabilidade na
Câncer, 1978; 41:1340-54.
frequência de diferentes quadros clínicos. Pode assumir duas Pricc, SK. Immunoprolifcrativc small intestinal diseasc: a study of 13 cases with
formas principais: a paracoccidioidomicose aguda, tipo juvenil, alpha hcavy-chain diseasc. Histopathology, 1990; 17:7-17.
ou a paracoccidioidomicose crônica, tipo adulto. Rambaud, JC, Bogncl, C, Prost, A et al. Clinico-pathological study of a patient
O acometimento do sistema digestivo é observado com with “meditcrrancan” type of abdominal lymphoma and a ncw typc of IgA
abnormality (“Alpha chain diseasc”). Digestion, 1968; 1:321-36.
maior frequência na forma juvenil. Lesão na cavidade oral e
Salem, PA, Nassar, VH, Shahid, MJ et al. Meditcrrancan abdominal diseasc
orofaringe são mais frequentes, e as lesões do esôfago, estômago or immunoprolifcrativc small intestinal diseasc. Part I: clinicai aspccts.
e duodeno são raras. Alguns autores relatam comprometimento Câncer, 1977; 40:2941-7.
intestinal em aproximadamente 80% dos casos. Os segmentos Tabbanc, F, Mourali, N, Cammoun, M, Najjar, T. Rcsults of laparotomy in im
intestinais mais acometidos são íleo, ceco e cólon. Dor abdo munoprolifcrativc small intestinal diseasc. Câncer, 1988; 61:1699-706.
W HO-Mcmorandum. Alpha-chain diseasc and rclated small intestinal lym
minal, crônica, de localização variável, contínua ou em cólica, phoma a memorandum. Bull World Health Organ, 1976; 54:615-24.
associada a alterações no trânsito intestinal, são as queixas mais
comuns. A lesão intestinal parece ser secundária ao comprome
timento do sistema linfático abdominal e da enterite específica ■ Doença de Whipple
causada pelo P. braziliensis. A diarréia pode manifestar-se como Durand, DV, Lccomtc, C, Cathcbras, P et al. Whipplcss diseasc - clinicai rcvicw
síndrome disenteriforme grave, síndrome de má absorção ou of 52 cases. Medicine (Baltimore), 1997; 76:170-84.
simular retocolite ulcerativa. A constipação intestinal pode ser Ferrari, MLA 8c Vilela, E. Doença de Whipple. Em: Castro, LP 8c Coelho, LGV.
Gastrocntcrologia. Ia. cd., Rio de Janeiro: Editora Mcdsi, 2004. cap. 71, p.
outra forma de manifestação da doença, podendo complicar-
1209-19.
se com quadros de semiobstrução ou obstrução intestinal, em Ferrari, MLA, Vilela, EG, Faria, LC et al. W hipples diseasc. Rcport of five
decorrência de processos estenosantes, bridas ou compressão cases cases with dilTcrcnt clinicai features. Rev Inst Med Trop São Paulo,
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O diagnóstico é feito por quadro clínico, testes sorológicos Kcinath, RD, Mcrrcll, DE, Vlietstra, R, Dobbins, WO. Antibiotic treatment and
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Doença de Crohn
Lorete Maria da Silva Kotze, Paulo Gustavo Kotze e Luiz Roberto Kotze
347
348 Capítulo 32 / Doença de Crohn
da mucosa e também age como mediador nas respostas especí -------------------------- ▼--------------------------
ficas a patógenos (Bonen et al., 2003; Vermeire et al., 2006; Ba- Q u a d ro 32.2 Resposta inflamatória e imune na doença de Crohn
mias e Cominelli, 2007). Os principais polimorfismos do gene
CARD15 (R702W, G908R e 3020insC) podem ser encontrados Im u n id a d e h u m o r a l A s s o c ia ç ã o fra ca c o m d o e n ç a s a u t o im u n e s
(tir e o id ite d e H a s h im o t o , LE S )
em até 33% dos pacientes com DC nas populações caucasia-
nas. Indivíduos portadores de um destes polimorfismos têm R ara p r o d u ç ã o d e a u t o a n t ic o r p o s (a n tic ó lo n ,
pANCA)
um risco aumentado de 2 a 4 vezes para o desenvolvimento da
DC, enquanto portadores homozigotos ou heterozigotos com Im u n id a d e m e d ia d a In filtra d o m u c o s o g r a n u lo m a t o s o (p r e d o m ín io
p o r c é lu la s d e c é lu la T )
postos têm um risco de 20 a 40 vezes. Estudos de análise entre
A u m e n t o d a re a tiv id a d e d e c é lu la s T
os principais polimorfismos do gene CARD15 e manifestações
fenotípicas da DC têm encontrado associação com a idade de P r o d u ç ã o d e c it o c in a s R e s p o sta T h 1 (IL -2 , IF N , IL -1 2 , T N F - a )
conforme Acosta e Pena (2007). IFN » Interfcron; IL ■ Interleucinas; pANCA - Anticorpo citoplasmátlco perinudear
A descoberta do gene ATG16L1 (autophagy-related 16-like antineutrófilo; Th ■ Célula T auxiliadora: TNF = Fator de necrose tumoral; LES » Lúpus
1) salienta a participação da resposta imune inata na DC. Para critematoso sistêmico.
Prancha 32.1 Manifestações clínicas de pacientes com doença de Crohn. A. Déficit de crescimento (12 anos); B. Atraso de desenvolvimento
sexual (17 anos); C. Quadro de oclusáo intestinal aguda, diagnóstico de DC; D. Paciente adulta com diarréia crônica e desnutrição, diagnóstico
diferencial com linfoma. Laparotomia sem ressecções; E. Paciente antes e depois de nutrição parenteral total; F. Adolescente com efeitos da
corticoterapia; acne e m o o n face.
352 Capítulo 32 / Doença de Crohn
Prancha 32.2 Lesões perineais na doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A. Lesões orificiais graves
com distorção da anatomia anorretal; B. Lesões graves da pele perineal, alterações orificiais. Observar lesões de vasculite na pele das nádegas;
C. Enduraçáo em períneo estendendo-se à região escrotal, com vários orifícios fistulosos; D. Lesões orificiais, abscesso com orifício drenado
secreção; E. Aumento de volume dos grandes lábios e orifícios fistulosos (se tas); F. Leucorreia e orifícios fistulosos para períneo e região peri
neal (setas).
Capítulo 32 / Doença de Crohn 353
traduz comprometimento dos colos. O Quadro 32.3 mostra os A doença perianal (Prancha 32.2) é observada em 15 a 40%
mecanismos e o tratamento para a diarréia na DC. dos pacientes e pode se destacar como a primeira manifestação
A perda de peso pode ser o sintoma inicial da DC. Os me da DC, segundo Buchmann & Alexander-Willians. A doença
canismos são vários: redução da ingestão de alimentos, perdas perianal pode se apresentar nas seguintes formas:
proteicas para o lúmen intestinal, aumento das necessidades
alimentares não atendidas, estado de catabolismo. A desnutri a) lesão de pele: maceração, erosão, ulceração e abscessos,
ção cobra um pesado ônus, sobretudo nas crianças. Felizmente, pregas;
algumas dessas alterações podem ser corrigidas com suporte b) lesão do canal anal: fissura, úlcera, estenose com indu-
alimentar adequado (Prancha 32.1, D). ração;
O déficit de crescimento e o retardo de maturação sexual c) fístula: baixa (canal anal para a pele), alta (reto para a
ocorrem em cerca de 6 a 50% dos casos de crianças (Prancha pele), retovaginal.
32.1, A e B). Os distúrbios de crescimento:
a) afetam os pacientes com DC; ■ Manifestações extraintestinais
b) podem preceder a doença por vários anos;
As manifestações extraintestinais da DC são bastante fre
c) são fáceis de reconhecer;
quentes. Muitas se relacionam com exacerbações da afec-
d) mas ainda não são valorizados;
e) são irreversíveis se não tratados a tempo. ção, cedendo quando a doença básica se torna inativa; outras,
uma vez estabelecidas, seguem curso independente e, con
Sua avaliação pode ser feita pelas curvas de percentis. Tam forme sua gravidade, podem levar o paciente ao óbito (Qua
bém a determinação da idade óssea serve para detectar qualquer dro 32.4).
retardo na ossificação (discrepância entre a idade biológica e Manifestações sistêmicas, como fadiga, febre e emagreci
a cronológica) ou desmineralização e permite calcular o com mento, são notadas na maioria dos pacientes com DC. Pode
primento ósseo esperado.
haver comprometimento de vários órgãos, mas os chamados
Tais efeitos são devidos à desnutrição, por aporte nutricio
órgãos-alvo costumam ser articulações, pele e mucosas, olhos,
nal insuficiente, uma vez que são revertidos com a recuperação
fígado e rins (Prancha 32.3).
nutricional e o controle da doença. Tais alterações podem ser
muito sutis no início e frequentemente precedem as manifes
tações gastrintestinais. A corticoterapia e a inflamação crôni
ca intestinal agravam o déficit de crescimento. O TNF-a pode ----------------------- ▼-----------------------
também ser importante mediador da falência de crescimento,
Quadro 32.4 Associações extraintestinais e complicações
pois estudos experimentais comprovam seu efeito inibidor di
reto sobre o condrócito da placa de crescimento. Não há bene na doença de Crohn
fício com uso de hormônio de crescimento.
Osteoarticulares A r t r o p a t ia e n te ro p á tic a "
Nas DII, devem ser excluídas outras entidades que causam
S a c ro ile íte
déficit de desenvolvimento sexual, tais como retardo constitu
E s p o n d ilite a n q u ilo s a n t e
cional, doença celíaca, fibrose cística, anorexia nervosa, hipo-
gonadismo e má nutrição. Na DC, um em cada cinco pacientes Clubbing
apresenta distúrbios de maturação puberal que podem prece O s te o p o ro s e '
der claramente o aparecimento de sintomas gastrintestinais Oculares E p is d e r it e "
(Prancha 32.1, A e B). Assim, a DC deve entrar no diagnóstico U v e ít e "
diferencial de puberdade atrasada (cerca de 1,5 ano em meni
Dermatológicas E rite m a n o d o s o
nas e 1 ano em meninos).
P io d e r m a g a n g r e n o s o
Alguns autores referem aceleração do crescimento e desen
volvimento após ressecções cirúrgicas. Já há relatos após uso Urinárias C á lc u lo s d e á c id o ú ric o (p a n c o lit e , ile o s t o m ia )'
Hepáticas F íg a d o g o r d u r o s o
C irro s e
C o la n g it e e s d e r o s a n t e
S u p e r c r e s c im e n t o b a c te r ia n o A n t ib ió t ic o s
n o in t e s t in o d e lg a d o C o la n g io c a r c in o m a
Fístula in te rn a C ir u r g ia R e ta rd o d e c r e s c im e n t o ”
Prancha 32.3 Manifestações extraintestinais da doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A. Lesão aftoide
grande e profunda no lábio inferior; B. Acne e lesões na pele da face; C. Aumento de volume dos joelhos, hiperemia. Calor e dor em artrite
reativa; D. Conjuntivite e anemia, com língua despapilada; E. Lesões na pele escrotal; F. Vasculite e eritema nodoso.
Capítulo 32 / Doença de Crohn 355
■ Exames de fezes
■ Complicações 1. Rotina para parasitos, bactérias, vírus
■ H e m o r ra g ia 2. Clostridium difficile e toxina, pesquisar mesmo na ausên
É menos comum na DC do que na RCU e é mais por doença cia de uso de antibióticos
no íleo. Cerca de 5 a 10% dos pacientes com DC têm ulcerações 3. Pesquisa de leucócitos e/ou sangue oculto
no estômago ou duodeno, e, nas crianças, o comprometimento 4. Pesquisar citomegalovírus, principalmente em pacientes
do intestino delgado proximal é mais frequente. com uso de imunossupressores
• Perfuração intestinal; 5. Pesquisa de alfa-1-antitripsina, calprotectina ou lactofer-
• Abscesso intrabdominal; rina para determinar atividade da doença (Capítulo 28)
• Estenoses; A dosagem de alfa-1-antitripsina fecal pode ser útil no con
• Suboclusão e obstrução intestinal (são as mais frequentes, trole da atividade da doença, pois, como mede a perda proteica
surgem em consequência de inflamação aguda ou edema, intestinal, a elevação de seus títulos traduz aumento nas fases
ou fibrose crônica); de aumento da permeabilidade intestinal e atividade da doen
• Fístulas e doença perianal; ça; e sua diminuição reflete acalmia do processo inflamatório
• Megacólon tóxico (relativamente raro, associado a grave intestinal.
estado toxêmico dos pacientes); A determinação da calprotectina fecal também pode ser uti
• Malignidade (maior risco de câncer de cólon após 8 anos lizada no monitoramento da atividade da DC. A calprotectina
de doença, principalmente com grande área do cólon é uma proteína neutrofílica abundante extremamente estável
comprometida. Maior risco conforme duração da DC, nas fezes. Reflete a inflamação intestinal em crianças com DII.
idade precoce de começo, ou história familiar de cân
Como é um teste simples, seguro e não invasivo, tem o potencial
cer colorretal. Há também risco aumentado para adeno-
de reduzir o número de procedimentos invasivos na criança.
carcinoma do intestino delgado. Colangite esclerosante
Seu nível plasmático aumenta de 5 a 40 vezes em condições in-
primária pode ocorrer na DC e aumenta o risco para
fecciosas/inflamatórias, porém nas fezes a calprotectina pode
colangiocarcinoma;
ser determinada facilmente por ELISA. As fezes podem ser co
• Complicações extraintestinais (Quadro 32.4).
lhidas em domicílio e entregues no laboratório, repetindo-se o
teste quantas vezes forem necessárias.
Outro teste que pode servir de marcador para se conhecer a
■ DIAGNÓSTICO atividade da DC é a determinação fecal de lactoferrina, também
Aumento da suspeita clínica pelo pediatra e pelo clínico por ELISA. A lactoferrina é considerada marcador sensível e
das manifestações intestinais e extraintestinais tem diminuído específico da inflamação, tanto para diagnóstico, como para
o intervalo entre sintomas e diagnóstico da DC. Apesar dos m onitorar a manutenção, pois seus níveis se correlacionam
avanços tecnológicos, o diagnóstico da DC permanece emi bem com os escores de atividade e com a PCR.
nentemente clínico.
Diversos autores de centros diferentes afirmam, unanime ■ Exames de sangue
mente, que o diagnóstico de DC é feito após grande intervalo 1. Hemograma
desde o aparecimento de sintomas e sinais compatíveis com a 2. Eletrólitos
afecção, principalmente em se tratando de crianças e adoles 3. Proteínas e frações
centes. No Brasil, os dados são semelhantes: 1 a 6 anos para 4. Ferritina (pode estar elevada na DC ativa e pode estar nor
Kotze, Kotze et a i (2006) e 1 mês a 11 anos para Barbieri et mal mesmo na vigência de deficiência grave de ferro)
a i (2003). 5. Transferrina deve ser feita para avaliar anemia
O diagnóstico da DC ainda depende da experiência clínica 6. Dosagem de vitamina B12
do gastrenterologista, combinada à do endoscopista e do pato 7. Provas de função hepática
logista, através de dados macroscópicos e histológicos do trato 8. HIV
gastrintestinal alto e baixo, e exclusão de todas as outras possi 9. Velocidade de hemossedimentação ou proteína C reativa
bilidades diagnósticas. Como a doença pode ser grave, lembrar ultrassensível
que os exames invasivos podem piorar as condições emocionais
O hemograma, na fase aguda, mostra leucocitose com des
dos pacientes e de seus familiares.
vio à esquerda, linfopenia, eosinofilia moderada ou acentuada,
História Clínica. Queixa de dor abdominal intensa, noturna
e associada a diarréia constituem os dados mais valorizáveis plaquetose. Pode ainda revelar anemia microcítica, enquanto
na anamnese. a anemia megaloblástica é mais rara, mas pode ser observa
Exame Físico. Dados antropométricos e de desenvolvimen da na DC, por alterações na absorção de vitamina BI2 no íleo
to sexual relacionados com a idade; dor à palpação principal terminal.
mente no quadrante inferior direito do abdome com ou sem A hemossedimentação está elevada na fase inicial e se reduz
massa palpável; presença de fissuras, abscessos ou fístula na com o tratamento, sendo um dos indicadores de atividade da
região perianal e lesão perineais são importantes, podendo ser doença, bem como a proteína C reativa (PCR). Entre os pa
o único achado de exame. cientes tratados com azatioprina ou 6-mercaptopurina, a PCR
ultrassensível parece ser um indicador inflamatório negativo
melhor do que a velocidade de hemossedimentação, segundo
■ Exames laboratoriais Barnes et al. (2004).
São utilizados alguns exames laboratoriais habituais com os As alterações das frações proteicas, principalmente a acen
objetivos de avaliar a atividade, o prognóstico, as manifestações tuada redução da albumina, o aumento da alfa-2-globulina (su
hepáticas ou pancreáticas, os fenômenos disabsortivos, o estado postamente sintetizada nos cólons) são muito importantes na
nutricional dos pacientes ou ainda afastar outras doenças. avaliação do prognóstico e prenúncio da recidiva da doença.
356 Capítulo 32 / Doença de Crohn
Prancha 32.4 Exames radiológicos e de imagem na doença de Crohn. A. Padrão disabsortivo do intestino delgado, com síndrome de má
absorção intestinal; B. Lesões estenosantes no íleo terminal; C. Ultrassonografía abdominal mostrando espessamento das alças intestinais;
D. Comprometimento do jejuno em paciente já operado, tendo desenvolvido fístulas internas; E. Lesão em cólon ascendente; F. Densitometria
óssea de paciente em uso crônico de corticosteroides, denotando necessidade de atenção para metabolismo do cálcio.
358 Capítulo 32 / Doença de Crohn
tras vezes, dilatações de alças e trajetos fistulosos. As lesões são Enterografia por TC ou RM mostra detalhes da morfologia
descontínuas na DC, descritas como lesões em salto. das alças intestinais e faz melhor avaliação do processo infla
Outros exames de imagem são muito úteis não só para ava matório e do grau de fibrose, além de analisar estenoses com
liação, mas também para drenagem percutânea de coleções maior sensibilidade.
localizadas. Colangiorressonância quando há evidência de colestase.
A ultrassonografia (US) pode ser útil na identificação de
espessamento da mucosa intestinal (Prancha 32.4, C) e presen ■ Exames endoscópicos
ça de adenomegalia e líquido na cavidade abdominal. É eco
O exame endoscópico é de suma importância no diagnóstico
nômica, largamente disponível, não envolve radiação e avalia
e acompanhamento evolutivo da DC, inclusive com obtenção
complicações periviscerais e extraintestinais. Soma-se a isso a
de fragmentos de mucosa para exame histopatológico.
possibilidade de se conhecer a atividade da doença ao se moni Enteroscopia de duplo balão ou videopush enteroscopyé uti
torar o volume do fluxo na artéria mesentérica superior.
lizada para acessar áreas do intestino delgado altamente suspei
A ultrassonografia endorretal é útil no caso de fístulas, mas tas, quando outras modalidades diagnósticas foram negativas,
restrita devido à dor. ou para atingir áreas estenosadas para dilatação com o balão.
A tomografia computadorizada de abdome (TC) pode de A enteroscopia tem sido indicada na localização de sangra-
finir precisamente a anatomia de fístulas e cavidades na DC; mento digestivo proveniente do intestino delgado quando ou
ou ser útil para identificar abscesso ou linfoma. É uma técnica tros métodos diagnósticos falham. Também pode ser indicada
rápida, bastante disponível, bem tolerada e que permite com para estudo de afecções, inclusive no diagnóstico da DC. A tole
pleta avaliação do cólon quando a endoscopia é incompleta. rância é boa e não são relatadas complicações. Tem a vantagem
Contudo, associa-se à grande exposição de radiação ionizan- de permitir biopsias. Entretanto, poucos centros dispõem de
te. Ambas, US e CT, são cada vez mais usadas para identificar aparelhos e profissionais treinados para este método. Assim, a
anormalidades intrínsecas da parede abdominal, como áreas de colonoscopia, com estudo de todos os segmentos dos cólons e
espessamento ou aderências das alças intestinais. reto, e possibilitando visualização da válvula ileocecal e do íleo
A ressonância magnética (RM) não requer radiação ioni- terminal, tem sido o exame endoscópico de escolha (Prancha
zante, dá excelente contraste dos tecidos moles e pode ofertar 32.5, B e C). Está indicada na falta de resposta à terapia habi
imagens sequenciais. Consequentemente, é superior à US na tual, quando se pretende afastar citomegalovírus em pacientes
identificação de fístulas e estenoses, e na localização de segmen crônicos em uso de imunossupressores, e para verificar colite
tos afetados, principalmente no intestino delgado proximal. O por Clostridium difficile em exames duvidosos.
uso de contraste com gadolínio, endovenoso, melhora a técnica As úlceras são as alterações endoscópicas mais frequentes,
e permite separar doença da mucosa (RCU) da doença trans- com tamanhos e formas variáveis, recobertas por fibrina, bor
mural (DC), além de identificar comprometimento do intestino dos elevados, limites nítidos, sendo poupada a mucosa entre
delgado proximal. Há excelente concordância com o diagnós as lesões. Podem localizar-se em todos os segmentos do trato
tico histológico (sensibilidade 96% e especificidade 90%). Pode digestivo, da boca ao ânus, sendo mais frequentes, porém, em
ser usada para se conhecer a atividade da DC, pois se correla cólon e íleo terminal, preservando o reto na grande maioria das
ciona com o índice de atividade (CD AI = Crohris DiseaseActi- vezes. Os casos crônicos, de longa duração, podem apresentar
vity Index). É um exame que permite escanear todo o abdome mucosa espessada, com aspecto em “paralelepípedo”, associada
dentro de um curto período de tempo. É particularmente útil a estenoses segmentares únicas ou múltiplas, fístulas comple
na detecção de fístulas e estenoses. Em relação a abscessos, Ma- xas (peritoneais, perineais e retovaginais) de difícil controle
ruyama et al. (2000) relatam sua utilidade na diferenciação de clínico-endoscópico.
abscessos isquirretais e pelvirretais. Permite visualizar infiltra Endoscopia virtual do intestino delgado e colonoscopia
ção do tecido adiposo e espessamentos significativos na parede virtual não mostraram grande vantagem, mas podem ser úteis
intestinal, ambos fatores evidentes de processo inflamatório em casos de estenoses, principalmente se intransponíveis aos
agudo. Outra vantagem do método é a de permitir localizar colonoscópios.
“zonas quentes”, isto é, áreas de inflamação particularmente ■ Cápsula endoscópica (CE)
graves, em atividade da DC. Como não requer radiação ioni-
Recentemente, foi introduzida na prática médica a cápsu
zante, é indicada para casos em que há necessidade de repetições
la endoscópica (wireless capsule-enteroscopy = WCE) que vem
do exame, principalmente em crianças e adolescentes.
contribuindo de maneira significativa para o esclarecimento de
Assche et a l (2003) desenvolveram score para determinação afecções comprometendo o intestino delgado. Na DC fornece
da gravidade da DC perianal através da RM: informação sobre o tipo de lesões e a extensão da enfermida
• Número de trajetos fistulosos: nenhum, único sem ramos, de, principalmente em casos de difícil diagnóstico pelos outros
ou ramificado, múltiplos; métodos. Entretanto, salienta-se a importância da realização
• Localização: extra ou interesfinctérico, transesfinctérico, prévia de um trânsito intestinal a fim de se evitar a retenção da
supraesfinctérico; CE em áreas de estenose. Já está disponível para crianças e tem
• Extensão: infraelevador ou supraelevador; se tornado a modalidade diagnóstica de escolha para pacientes
• Hiperintensidade em imagens T2: ausente, discreta, pro com suspeita de DC no intestino delgado proximal.
nunciada;
• Coleções (cavidades > 3 mm de diâmetro): ausentes ou
■ Indicaçõesna DC
presentes; • avaliação do envolvimento do intestino delgado em pa
cientes com DII e colite isolada;
• Comprometimento retal: normal ou espessado.
• determinação da extensão da DC do intestino delgado;
De acordo com o tratamento com infliximabe ou cirur • suspeita diagnóstica de DC;
gia, comparações podem ser feitas para tomada de novas de • seguimento dos pacientes com DC;
cisões. • monitoramento do tratamento.
Capítulo 32 / Doença de Crohn 359
■ Aspectos macroscópicos
■ Alterações totais da parede do intestino
Nos locais do intestino afetado, observa-se o envolvimen A partir de peças cirúrgicas, observam-se úlceras cicatriza
to total da parede, com hiperemia e depósito de exsudato no das causando distorção da arquitetura, proliferação do tecido
peritônio visceral, com aspecto rugoso e nodular, propician conjuntivo e fibrose da submucosa e muscular da mucosa. Na
do aderência entre as alças, entre estas e outras vísceras e até submucosa, pode-se observar dilatação de linfáticos. Toda a
com a parede abdominal. Em fases mais avançadas da doen extensão da parede intestinal apresentará, à microscopia, infil
ça, toda a parede e, em especial, a válvula ileocecal tornam-se trado inflamatório rico em plasmócitos, linfócitos, macrófagos,
fibróticas, espessadas e rígidas. A lesão da mucosa é represen mastócitos, eosinófilos e neutrófilos.
tada por úlceras aftoides que se unem, aumentando de tam a
nho, formando lesões irregulares e serpiginosas, intercaladas ■ Acúmulo de gordura no mesentério na DC
com áreas normais, chamadas de “lesões em salto”. A muco
sa preservada, mas com edema, entre as áreas com úlceras, Em peças cirúrgicas de portadores da DC, encontra-se es-
pode apresentar aspecto polipoide, chamado de pseudopólipo, pessamento e endurecimento da borda mesentérica com hiper
podendo também estar presentes os pólipos inflamatórios. O trofia significativa do tecido adiposo. Tais acúmulos aparecem
conjunto de achados: úlceras aftoides, ulcerações serpigino- também à TC e à RM. Constitui uma “característica” da DC
sas, edema, ulcerações lineares (aspecto em ucobblestone,p) e (Figura 32.1, A).
os pseudopólipos são importantes para o diagnóstico de DC A origem desta gordura excessiva é desconhecida. Não apa
(Figura 32.1, A). rece em pacientes obesos. Ao contrário, os acúmulos ocorrem
mais frequentemente em pessoas com índice de massa cor
■ Aspectos microscópicos poral normal e parecem ser consequência, a longo prazo, de
As alterações epiteliais variam de discretas a intensas, ao inflamação crônica. Podem ser uma expressão da interação
lado de áreas de processo reparativo. Os sinais de cronicidade entre tecido adiposo e mediadores da resposta imune. Parece
360 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n
Prancha 32.5 Imagens endoscópicas na doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A . Endoscopia diges
tiva alta com lesões no antro gástrico. B. Lesáo aftoide em válvula ileocecal. C. Colonoscopia mostrando lesões "em pedra de calçamento*.
D. Imagens obtidas pela cápsula endoscópica: Lesões aftoides de pequena monta em intestino delgado.
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 361
Figura 32.1 Patologia na doença de Crohn. A, Peça cirúrgica com mucosa tipo pedra de calçamento. Notar espessamento da parede por
intensa fibrose e a gordura em serosa. B, Exame histológico demonstrando granuloma nào caseoso. (Esta figura encontra-se reproduzida em
cores no Encarte.)
Síndrome de Stevens-Johnson
recido (Quadro 32.6).
Perda de cabelos
A sulfasalazina foi a primeira formulação oral do 5-ASA,
Outros Oligoespermia"
tendo sido criada na década de 1930, pela combinação de 5-ASA Pancreatite aguda
à sulfapiridina (carreador, por uma ligação azo). Esta droga tem Hepatite
sido utilizada por longo tempo e é terapia de eleição das formas Síndrom e lu p u s -llk e
leves de RCUI e DC envolvendo o cólon, sendo também efetiva Miocardite
na manutenção de remissão da RCUI. Fibrose pulmonar
Seus efeitos colaterais (Quadro 32.6) são provocados, em Monitoramento
grande parte, pela sulfapiridina. Sulfasalazina Cada 3 meses: hemograma, folato, ureia,
As doses utilizadas em adultos estão indicadas no Qua Creatinina, testes de função hepática
dro 32.8 e, em crianças, são de 50 a 75 mg/kg/dia (máximo de Mesalazina Cada 6-12 meses: ureia e creatinina
3 a 4 g/dia) VO, divididas em três tomadas. Eventualmente, Contraindicações
a introdução da droga pode ser feita de modo gradativo, ini Sulfasalazina Sensibilidade a salicilato ou sulfonamida
ciando-se com 25 a 40 mg/kg/dia. Sua retirada também é feita Mesalazina Sensibilidade a salicilato
lentamente, até ser atingida a dose ideal para a manutenção. Insuficiência renal
Como a sulfasalazina interfere na absorção de folato, recomen •Consequente à sulfonamida da sulfasalazina.
da-se suplementação com dose diária de 1 mg de ácido fólico NF ■ Fator de transcrição nuclear; TNF = Fator de necrose tumoral.
FMLP « Proteína.
para crianças e 5 mg para adultos, com a finalidade de se evitar
anemia megaloblástica.
■ Mesalazina
Com o objetivo de serem eliminados os efeitos da porção tudos comprovam que a mesalamina é tão eficiente quanto a
sulfa, desenvolveram-se compostos, já disponíveis no comércio, sulfasalazina no tratamento da DC afetando o cólon, além de
nos quais as moléculas de 5-ASA se apresentam de forma livre, manter a remissão.
sendo designados de mesalamina nos EUA e de mesalazina na Em crianças, a DC é tipicamente subtratada. A mesalazina,
Europa. Para se evitar que o 5-ASA seja absorvido nas porções dos compostos 5-ASA, é a preparação mais frequentemente
superiores do trato digestivo e que alcance, assim, os locais de usada. As preparações cuja mistura proporciona liberação no
inflamação, um dos recursos utilizados foi o de “recobrir” a intestino delgado são de preferência; também têm biodisponibi-
mesalazina com resina acrílica sensível a pH maior de 7, o que lidade para liberação no íleo distai e cólon. As preparações que
permite sua liberação no íleo distai e cólon. Tais modificações dependem da liberação do pH são consideradas inadequadas
aumentariam a tolerância à droga, e 80 a 90% dos pacientes para tratar DC de comprometimento delgado, pois são efetivas
intolerantes à sulfasalazina aceitam bem a mesalazina. Entre no íleo terminal e cólon. As mesalazinas com pontes dissulfí-
tanto, tais compostos não são isentos de efeitos colaterais. Es dicas (olsalazina, sulfasalazina, balsalazida) não têm indicação
366 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n
■ Im unom oduladores
■ Azatioprina e 6-mercaptopurina (Quadro 32.7) O metotrexato não tem boa absorção quando administrado
Azatioprina (AZA) e 6-mercaptopurina (6-MP) têm efei por via oral e parece não dar bons resultados para fechamento
to imunossupressor e propriedades linfocitotóxicas. O tempo de fístulas. Alguns estudos preconizam seu uso SC. É um anta
para alcançarem o efeito metabólico ativo é de diversos meses, gonista do ácido fólico. Com objetivos de redução de toxicidade
explicando a demora na resposta clínica de 3 a 4 meses. O me e aderência à terapia, doses semanais intramusculares podem
canismo de ação destas drogas parece estar relacionado com a ser administradas. Tem indicação para refratariedade ao trata
inibição da função dos linfócitos, primariamente das células T. mento com corticoides e azatioprina. Efeitos colaterais: altera
Como tais efeitos são observados apenas 2 meses após a intro ção de transaminase pirúvica (7%), náuseas (1%) e rash (1%).
dução de 6-MP ou AZA, estes medicamentos não são adequa Os antimetabólicos parecem ampliar a resposta à terapia
dos para o tratamento das formas agudas. Todavia, são indica biológica, estando associados à menor incidência de anticor
dos para o tratamento de corticodependência, refratariedade pos contra infliximabe.
ao tratamento ou fistulização grave na DC. Estudos mostram
que pacientes tratados com estas medicações podem se livrar ■ Quandosuspender ouso deimunossupressores?
do uso de corticosteroides. Até o presente, não se tem a resposta.
As drogas imunomoduladoras atualmente representam op
ções para o tratamento a longo prazo em casos selecionados de ■ Tracolimus
DC. A 6-m ercaptopurina (6-MP) e a azatioprina (AZA) po Embora o tracolimus tenha um mecanismo de ação seme
dem ser usadas em pacientes que se tornaram dependentes de lhante ao da ciclosporina, sua absorção VO é boa, mesmo na
corticosteroides e refratários ao tratamento com estes compos DC do intestino delgado. Alguns estudos demonstraram fe
tos ou com aminossalicilatos. De modo similar, pacientes com chamento de fístulas em núm ero pequeno de pacientes. As
DC nos quais os corticosteroides não podem ser descontinuados doses preconizadas são de 0,15 a 0,31 mg/kg/dia; entretanto,
ou que apresentam doença perianal ou fístulas persistentes, po os doentes recebiam, concomitantemente, AZA ou 6-MP por
dem se beneficiar do uso destes imunomoduladores. 22 semanas antes de esta droga ser interrompida. Em crianças,
As doses preconizadas são de 1 a 1,5 mg/kg/dia de 6-MP e 0,5 mg/kg/dia.
de 1,5 a 2 mg/kg/dia de AZA (Quadro 32.8). Entre os efeitos
adversos relacionados com estes fármacos, cita-se a supressão ■ Mofetila micofenolato
da medula óssea, particularmente neutropenia e plaquetopenia, O mofetila micofenolato foi indicado para pacientes que
disfúnção hepática e pancreatite, que respondem bem à retirada não toleraram AZA e 6-MP. Esta droga inibe a síntese de pu-
da droga. Recomenda-se controle periódico com hemograma rinas nos linfócitos T e B. Parece agir mais rapidamente que a
e provas de função hepática pelo menos quatro vezes ao ano. AZA e a 6-MP. A dose de 2 g/dia, com poucos efeitos colaterais,
Estas drogas têm se mostrado seguras em crianças e adultos e foi indicada. Como é usada em transplantes, doenças imuno-
existe evidência crescente de sua segurança na gestação. proliferativas têm sido descritas em alguns pacientes.
Capítulo 32 / Doença de Crohn 367
----------------------------▼---------------------------- BIOLÓGICOS
Q u a d ro 32 .8 Medicamentos utilizados no tratamento da doença de IN F L IX IM A B E
CORTICOIDES A D A L IM U M A B E
P R E D N IS O N A H u m lra • : a m p o la s d e 4 0 m g , S C
M e t ic o r t e n ®, P r e d n is o n a • : c o m p r im id o s d e 5 e 2 0 m g In d u ç ã o : 160 m g s e m a n a 1; 8 0 m g s e m a n a 2 , S C
D o s e in ic ia l: 4 0 -6 0 m g / d ia , V O , a té re m is s ã o ; d im in u ir g r a d a t iv a m e n t e a té M a n u t e n ç ã o : 1 a m p o la d e 4 0 m g e m s e m a n a s a lte rn a d a s , S C
e x c lu s ã o
VO ■ Via oral; EV ■ Via endovenosa; SC » Subcutânea.
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : n ã o é in d ic a d a p a ra m a n u te n ç ã o
•Alguns autores recomendam dose de manutenção semelhante à Inicial.
B U D E S O N ID A
E n t o c o r f : c o m p r im id o s d e 3 m g ; fra s c o p a ra e n e m a
D o s e in ic ia l: 9 m g e m d o s e ú n ic a m a tin a l, V O , p o r 8 s e m a n a s
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : n ã o é in d ic a d a p a ra m a n u te n ç ã o
■ Antim icrobianos (Quadro 32.8, Parte II)
E n e m a : c o m p r im id o s d is p e rs ív e is d e 2 ,3 m g e m 115 m l d e s o lu ç ã o ;
1 fra sco /d ia , 7 a 14 d ia s
Os antimicrobianos são efetivos em algumas situações, par
ticularmente na doença perianal. São de algum beneficio na
H ID R O C O R T IS O N A
doença do intestino delgado, mas de uso principal na doen
S u c c in a to s ó d ic o : C o rt iz o l* e S o lu - C o r t e f K a m p o la s d e 1 0 0 e 5 0 0 m g ; u s o E V
ça dos cólons. Alteram a flora intestinal e diminuem a esti
S u c c in a to : F le b o c o r tid * : f r a s c o -a m p o la s d e 1 0 0 ,3 0 0 e 5 0 0 m g ;
mulação antigênica ao sistema imune da mucosa do intestino,
H id r o c o r t iz o n a C o r t is o n a l* fr a s c o -a m p o la s d e 1 0 0 e 5 0 0 m g ; u s o E V
sendo usados como tratamento primário ou de infecções in-
AMINOSSALICILATOS tercorrentes.
S U L F A S A L A Z IN A O metronidazol mostra-se efetivo no tratamento da doen
A z u lf im * e S a la z o p r im ®: c o m p r i m i d o s d e 5 0 0 m g ça fistulosa perianal, provavelmente por ser um potente agente
D o s e in ic ia l: 2 -4 g / d ia , V O , a té re m is s ã o
antianaerobiose por afetar a capacidade dos neutrófilos para mi
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : 1 -2 g / d ia , V O , t e m p o p r o lo n g a d o "
grar aos locais da inflamação. A dose utilizada é de 10 a 15 mg/
M E S A L A Z IN A (5 -A S A : Á C I D O 5 -A M I N O S S A L IC ÍL IC O ) kg/dia (máximo de 1,5 g/dia). O tratamento prolongado (4 a
A s a llt 9 : c o m p r im id o s d e 4 0 0 m g 6 meses) acarreta risco de neuropatia periférica, especialmen
S u p o s itó rio s : 0 ,5 g , 3 v e z e s a o d ia , p o r 14 a 21 d ia s te nos pacientes recebendo mais que 10 mg/kg/dia. Essa droga
M e s a c o l * : c o m p r im id o s d e 4 0 0 e 8 0 0 m g não é efetiva na ileíte da DC, isolada. Efeitos colaterais: náuseas,
D o s e in ic ia l: 1,6 g / d ia , V O , a té re m is s ã o gosto metálico e risco de neuropatia periférica. O paciente deve
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : 8 0 0 m g / d ia , V O , t e m p o p ro lo n g a d o " evitar o uso de álcool.
E n e m a d e r e te n ç ã o : 3 g /d ia , 14 d ia s O ciprofloxacino tem sido apontado como opção terapêutica
S u p o s itó rio s : 0 ,5 g , 3 v e z e s a o d ia , p o r 14 a 21 d ia s para pacientes adultos intolerantes ao metronidazol.
P e n t a s a *: c o m p r im id o s d e 5 0 0 m g Lembrar que o metronidazol, como o ciprofloxacino, exer
D o s e in ic ia l: 3 -4 g / d ia , V O , a té re m is s ã o ce efeito sobre a flora intestinal, mas ambos têm propriedades
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : 1 ,5 -2 g / d ia , V O , t e m p o p r o lo n g a d o " imunomoduladoras.
S a c h ê : 1 e 2 g , in ic ia l 3 -4 g ; m a n u t e n ç ã o 1 ,5 -2 g / d ia
S u p o s itó rio s : 0 ,5 g , 3 v e z e s a o d ia , p o r 14 a 21 d ia s ■ Antibióticos
E n e m a d e r e te n ç ã o : 1 a o d ia , 14 d ia s Há risco aumentado para colite associada a C. difficile quan
do se usam antibióticos, concluindo-se que pacientes com surto
Parte II de diarréia devem ser checados para este e outros patógenos.
IMUNOSSUPRESSORES
A Z A T IO P R IN A
■ Terapia biológica
Im u r a n •: c o m p r im id o s d e 5 0 m g Com a introdução da terapia biológica no armamentário
D o s e : 2 m g / k g / d ia , V O , p o r t e m p o p r o lo n g a d o do tratamento da DC, principalmente nas suas formas graves,
6 -M E R C A P T O P U R IN A
houve grande empolgação, mas deve-se ponderar, com muito
M e r c a p tin a * , P u r i-N e t h o f * : c o m p r im id o s d e 5 0 m g
cuidado, a sua indicação, pois a ocorrência de sérios efeitos ad
D o s e : 1,5 m g / k g / d ia , V O
versos pode aumentar o risco do tratamento, apesar do benefí
cio que possa ser alcançado. Portanto, algumas perguntas são
M E TO TR E X A TE
inevitáveis: em quais pacientes devemos usar a terapia biológica
M e th o tre x a te ®, M e to tre x a te K e M o tre x • : c o m p r im id o s d e 2 ,5 m g
na DC? Quando devemos utilizar estes medicamentos? Quando
D o s e : 2 5 a 5 0 m g / s e m a n a , V O , 12 s e m a n a s
não podemos utilizá-los? Por quanto tempo?
ANTIMICROBIANOS
M E T R O N ID A Z O L ■ Infliximabe (anti-TNF-a)
F la g y l *, M e t r o n id a z o l e M e tro n ix * : c o m p r im id o s d e 2 5 0 e 4 0 0 m g ; Infliximabe (Remicade®) é um anticorpo monoclonal qui-
s o lu ç ã o in je tá v e l d e 5 0 0 m g
mérico antifator de necrose tumoral. É geneticamente produzi
D o s e in ic ia l: 1,2 g / d ia , V O , e m 3 t o m a d a s , a té re m is s ã o
do através de uma linhagem celular recombinante e na qual as
C IP R O F L O X A C IN O regiões variáveis de ligações do anticorpo monoclonal murino
C iflo x * , C ip r o * , P r o c ln 9, Q u in o flo x ®: c o m p r im id o s d e 2 5 0 e 5 0 0 m g específico para o fator de necrose tumoral humano são ligadas
P ro fla x * : c o m p r im id o s d e 2 5 0 ,5 0 0 e 7 5 0 m g às regiões constantes da imunoglobulina humana da subclasse
D o s e in ic ia l: 5 0 0 -7 5 0 m g / d ia , V O ; t e m p o ? IgGlk. Este tipo de construção reduz a possibilidade de uma
368 Capítulo 32 / Doença de Crohn
reação imunológica à imunoglobulina inteiramente murina. A eficácia do ADA foi semelhante com, ou sem, o uso de
O infliximabe é capaz de neutralizar o TNF-a e não há dúvi imunossupressores associados; provavelmente, o uso exclu
da de que exerce atividade anti-inflamatória e induz apoptose sivo de ADA seja mais conveniente, na intenção de reduzir
de células T ativas. Três polimorfismos nos genes da apoptose efeitos adversos. Destes, a longo prazo, deve-se estar atento às
potencialmente influenciam a resposta ao infliximabe em pa infecções, principalmente nos pacientes em uso concomitante
cientes com DC luminal ou fistulizante. de imunossupressores ou que tenham necessidade de corti-
A resposta ao infliximabe pode ser determinada por con costeroides.
dições fisiológicas e/ou genéticas. Os genes do polimorfismo
NOD2 não predizem a resposta do tratamento anti-TNF-a. ■ Certolizumabe-pegol
Parece que a dose de manutenção a cada 8 semanas é supe É outro anti-TNF humanizado e peguilado, de adminstração
rior a 12 semanas. Os dados sugerem que os efeitos do trata subcutânea, mas ainda não disponível no Brasil.
mento com infliximabe em crianças são melhores do que para
adultos, tanto na indução da remissão como para o tratamento ■ Natalizumabe
de manutenção. É droga anti-integrina-alfa 4, que inibe a migração leucoci-
Retardo de crescimento é uma complicação comum na DC tária através do endotélio vascular, reduzindo o processo infla-
da criança e do adolescente, sendo seu restabelecimento um matório. É usada no tratamento da esclerose múltipla. Também
marcador de sucesso terapêutico bem aceito. Até agora, há evi não está disponível no Brasil.
dências de que o tratamento com infliximabe melhora o cres
cimento em crianças com retardo causado pela DC. ■ Talidomida
Por outro lado, relato de casos assinalam melhora das mani A talidomida parece ser potente inibidor do fator de necro
festações extraintestinais da DC não responsivas às terapêuticas se tumoral-alfa (TNF-alfa). Dois trabalhos mostraram uso de
convencionais após o uso de infliximabe. 50 a 100 mg e 200 a 300 mg, em dose única noturna, com boa
Recentemente, foram relatados casos do desenvolvimento resposta no fechamento de fístulas (64 e 70%, respectivamen
de linfoma hepatoesplênico-células T, que é uma forma rara te). Em crianças, 1,5 a 2 mg/kg/dia. Os efeitos colaterais são
de linfoma não Hodgkin, ocorrendo mais frequentemente em teratogenicidade, neuropatia periférica, dermatite, constipação
intestinal e sedação excessiva.
adolescentes e adultos jovens masculinos. Os pacientes estavam
também recebendo azatioprina ou 6-mercaptopurina. Perma
■ Indicaçõesgerais dos agentes anti-TNF
nece a dúvida sobre o desenvolvimento da neoplasia estar re
Tanto o infliximabe (IFX) como o adalimumabe (ADA)
lacionado com os imunossupressores ou o infliximabe.
foram mais tardiamente utilizados em Gastrenterologia, so
Outros eventos adversos incluem infecções oportunistas,
mente usados após experiência acumulada na Reumatologia,
reativação de tuberculose e ocorrência de doenças malignas.
principalmente no tratamento da artrite reumatoide (AR), que
foi a doença desbravadora que permitiu utilizar estes medi
►Imunogeniddade
camentos na prática clínica diária. Algumas indicações, den
Reações adversas podem ocorrer à infusão da droga, mesmo
tre elas a AR e a própria DC, são atualmente consagradas,
com uso de pré-medicação (antipiréticos, anti-histamínicos ou
e constam em bula. Entretanto, há outras indicações, como
corticoides), provavelmente pelo desenvolvimento de autoanti- uveíte, iridociclite, hidrosadenite supurativa e artrite reuma
corpos ao infliximabe, chamados de anticorpos antiquiméricos toide juvenil, que ainda não estão liberadas para uso pelos
humanos. Sua presença está associada ao aumento do número órgãos reguladores, apesar de significativas evidências cien
de reações a infusões, reações de hipersensibilidade retardada tíficas comprovando a eficácia destes agentes. Estas indica
e curta duração da resposta ao tratamento. A imunomodula- ções, denominadas off-labelypor não constarem em bula oficial
ção funciona sinergicamente com o infliximabe e parece dimi dos medicamentos, tornam o acesso ao IFX e ADA difícil no
nuir o risco da formação de anticorpos e o risco para reações cenário público e privado de saúde, pois nem as Secretarias
de infusão. Pacientes menores de 14 anos tendem a ter menos de Saúde, nem os convênios médicos autorizam sua libera
anticorpos. Se ocorreu reação à infusão em uma sessão, pré- ção para este fim. As principais indicações, que constam em
medicação pode prevenir reação subsequente. bula, dos agentes anti-TNF são: artrite reumatoide, doença de
Crohn (crianças e adultos), espondilite ancilosante, psoríase
■ Adalimumabe (anti-TNF-a) e artrite psoriásica.
Adalimumabe (Humira®) é um anticorpo monoclonal, total
mente humano, antagonista do fator de necrose tumoral (anti- ■ Indicações dos biológicosna doença de Crohn
TNF), liberado para uso na DC de adultos. Mostrou-se mais Em Gastrenterologia, é no campo da DC que os prim ei
efetivo do que o placebo na indução da remissão em pacientes ros conhecimentos sobre a terapia biológica foram aplicados,
que não haviam recebido previamente anti-TNF, bem como inicialmente com o IFX e posteriormente com o ADA. Para
nos que deixaram de responder, ou mostraram intolerância melhor se entenderem as indicações mais consagradas, uma
ao infliximabe. leitura detalhada das bulas destes medicamentos evidencia es
Esquema de indução: 160 mg na semana zero, 80 mg na tes dados.
semana dois. No Brasil, o IFX foi liberado para uso na DC no ano 2000,
Esquema de indução: 40 mg a cada 2 semanas, a partir da inicialmente para o tratamento das formas moderadas a graves
semana quatro. da doença, que não respondiam à terapia convencional com
Os dados sobre a formação de anticorpos contra o adalimu corticoides e/ou imunossupressores. Os estudos definiram
mabe (ADA) na artrite reumatoide registraram 5,5% de positi- doença moderada a grave baseando-se no CD AI (Crohn’s di-
vidade, mas na DC estes dados ainda são limitados. Anticorpos sease activity index) entre 220 e 450. Inicialmente, o IFX foi uti
monoclonais totalmente humanos tendem a ser menos imu- lizado para a forma luminal da DC, entretanto, outros estudos
nogênicos do que os quiméricos. evidenciaram a forma fistulizante como outra grande indicação
Capítulo 32 / Doença de Crohn 369
■ Critérios de agressividade
desta terapia. Mais recentemente, passou-se a se utilizar o IFX Alguns estudos procuraram estudar quais os fatores que in
no manejo da DC na faixa etária pediátrica, com bons resulta dicariam doença com pior prognóstico e maior possibilidade
dos. Ultimamente, fala-se na utilização do IFX após ressecções de complicações na DC. Em um destes trabalhos, procurou-se
intestinais, para prevenção da recorrência. Entretanto, estudos estudar quais os fatores de risco para cirurgia precoce nestes
com maior amostragem devem ser publicados antes de se acei pacientes. Após a análise de 345 pacientes, Sands et al. (2003)
tar esta como uma indicação precisa do tratamento. concluíram que tabagismo, doença de intestino delgado sem
O ADA foi liberado para uso na DC, no Brasil, no ano de acometimento do cólon, náuseas, vômito e dor abdominal à
2007, com seus estudos focando, da mesma forma que para o
IFX, as formas moderadas a graves da doença, seja de forma
luminal seja fistulizante. Neste mesmo ano, provou-se a eficá
cia do ADA em pacientes que apresentaram perda de resposta
ou intolerância ao uso do IFX. Portanto, o ADA tem indicação
precisa tanto em pacientes virgens de outros agentes anti-TNF,
como na falha ao tratamento prévio com IFX.
apresentação inicial, aumento na contagem de neutrófilos, e ■ Com entários dos autores do capítulo
uso de corticoides nos primeiros 6 meses do diagnóstico foram O estudo top-down versus step-up foi realmente um estudo
fatores com influência significativa em operações abdominais revolucionário no que diz respeito a indicações mais precoces
precoces. Em outro estudo, Lakatos et al. (2009) acrescentam a de utilização de terapia biológica. Entretanto, este estudo apre
estes a doença perianal e o uso precoce de imunossupressores senta algumas limitações importantes. Primeiramente, não foi
e biológicos. Outros trabalhos procuraram identificar pacien um estudo duplo-cego, o que pode trazer um viés na análise
tes que se beneficiariam da estratégia descendente (top-down) das variáveis. Além disso, a terapia biológica empregada foi
na DC pela maior agressividade de doença. Nestes, ficou claro somente o regime de indução de IPX (0, 2 e 6 semanas), não
que pacientes com diagnóstico abaixo de 40 anos, com doen seguido de manutenção da remissão a cada 8 semanas. Isso pode
ça fistulizante, tabagistas, com perda de mais de 5 kg antes do ter colaborado para que as taxas de remissão se equilibrassem
diagnóstico e com uso de corticoides como primeira forma de após as 52 semanas. Ressalta-se que, mesmo assim, os dados de
tratamento apresentam reais possibilidades de benefício com cicatrização da mucosa mostram superioridade importante na
formas mais agressivas de tratamento. Portanto, pacientes com terapia biológica mais precoce. Se a estratégia descendente não
estas características, ilustradas nos trabalhos descritos, passa pode ser recomendada para todos os pacientes, este trabalho
riam a ter doença com curso mais grave e poderíam se bene afirma que há definitivamente lugar para este tipo de terapia
ficiar de indicações de terapia biológica mais precoce, com o em alguns pacientes com DC.
benefício de redução das taxas de complicações da DC e suas
consequências. As principais características de agressividade ■ Contraindicações da terapia biológica nas DII
da DC encontram-se resumidas no Quadro 32.10. Nem todos os potenciais candidatos à utilização de agentes
biológicos nas DII podem ser beneficiados com estes medica
■ Resultados: step-up versus top-down mentos, e isso vale tanto para DC quanto para RCU1, até mes
Apenas um trabalho randomizado comparando as duas es mo para outras indicações de agentes anti-TNF fora do sistema
tratégias de tratamento da DC, ascendente versus descendente, digestório. A segurança nos estudos de fase II e III, somada à
foi publicado na literatura. Trata-se do famoso estudo de top- experiência principalmente da Reumatologia, além dos acha
down publicado pelo professor Geert DTlaens, da Bélgica, e seu dos pós-marketing destas drogas, mostra que algumas situações
grupo. Este estudo foi publicado no Lancet, em 2008, e incluiu tornam impossível a utilização de IPX e ADA com segurança.
133 pacientes oriundos de 18 centros de referência em DII da Como os agentes anti-TNF são potentes imunossupressores,
Bélgica, Holanda e Alemanha. O desenho deste trabalho divi nenhuma infecção deve estar vigente no início do tratamento.
diu os pacientes em dois grupos: um que recebeu imunossu- Portanto, infecções ativas, em qualquer sistema do organismo,
pressão combinada de azatioprina e IFX como primeira terapia tornam-se contraindicações importantes e devem ser comple
(top-down) e outro com tratamento convencional, iniciando-se tamente erradicadas antes da exposição do paciente aos bioló
com corticoides, passando posteriormente para azatioprina e gicos. Neste contexto, entra importante alerta: observaram-se
utilizando o IPX mais tardiamente (step-up). O principal ob índices significativos de reativação de tuberculose durante o
jetivo foi analisar taxas de remissão sem corticoides entre os tratamento biológico em alguns casos. A infecção prévia por
dois grupos. Ao final de 26 semanas, houve maiores taxas de tuberculose e/ou uma exposição a contatos recentes torna a
remissão sem corticoides nos pacientes com imunossupres- investigação prévia com detalhada anamnese, PPD e radio
são combinada precoce (top-down) em relação ao outro grupo grafia de tórax essencial para se afastar qualquer possibilidade
(60% versus 35,9%; p = 0,006). Esta diferença diminuiu um de problemas, antes do tratamento. Pacientes com PPD reator,
pouco após 52 semanas de seguimento (61,5% versus 42,2%; p acima de 10 mm (ou até 5 mm em algumas situações), tornam-
= 0,028). Entretanto, após 2 anos de seguimento (104 semanas), se impossibilitados de serem tratados por biológicos, sem um
não houve diferença estatística nas taxas de remissão entre os tratamento específico prévio de erradicação da tuberculose. O
dois grupos. Um importante dado deste trabalho, que foi um Quadro 32.11 ilustra as principais contraindicações da utiliza
dos objetivos secundários do estudo, mostrou que ao final de ção de inibidores do TNF-alfa encontradas na prática clínica
2 anos, uma maior taxa de cicatrização da mucosa no grupo diária e na literatura.
que seguiu a estratégia top-down foi encontrada em relação
ao grupo de tratamento convencional (73,1% versus 30,4%;
p = 0,0028). ----------------------------- ▼-----------------------------
Q u a d ro 32.11 Principais contraindicações dos agentes anti-TNF
no cenário da DC e da RCUI
-------------------------- T
P R IN C IP A IS C O N T R A I N D IC A Ç Õ E S D A T E R A P IA B IO L Ó G I C A N A S D II:
Q u a d ro 32.10 Critérios de pior prognóstico (maior agressividade)
1. In fe c ç õ e s a tiv a s d e q u a lq u e r n a tu re z a , lig a d a s o u n ã o à D C o u R C U I
da DC, que definem potenciais candidatos à terapia descendente
2. A b s c e s s o s a b d o m in a is o u p e ria n a is lig a d o s à D C
[top-down) no manejo da DC
3. T u b e r c u lo s e a tiv a , re c e n te o u p ré v ia , c o m P P D re a to r o u ra d io g ra fia d e
t ó ra x c o m a c h a d o s s u g e s tiv o s
C rité rio s d e m a io r a g re s s iv id a d e (p io r p r o g n ó s t ic o ) n a D C :
4. N e u r it e ó p tic a
1. Id a d e m e n o r q u e 4 0 a n o s a o d ia g n ó s t ic o
5. E s d e ro s e m ú ltip la
2. D C n a f o r m a fis tu liz a n te (p e r ia n a l o u a b d o m in a l)
6. N e u r o p a t ia p e rifé ric a c o m b lo q u e io d e c o n d u ç ã o
3. T a b a g is m o
7. In s u fic iê n c ia c a rd ía c a g ra u s III e IV p e lo s c rité rio s d a A m e r ic a n H e a rt
4. U lc e ra ç ó e s p ro f u n d a s n o c ó lo n
A s s o c ia tio n
5. G r a n d e e x te n s ã o d a d o e n ç a (c o m p r im e n t o d e in t e s t in o a c o m e t id o )
8. A le r g ia o u h ip e rs e n s ib ilid a d e a os c o m p o n e n t e s d o IFX o u A D A
6. U s o d e c o r tic o id e s n a s p rim e ir a s crises
9. L in fo m a o u o u t r a s n e o p la s ia s p re v ia m e n t e tra ta d a s (c o n t r a in d ic a ç ã o
7. E m a g r e c im e n t o m a io r q u e 5 k g a n te s d o d ia g n ó s t ic o d a D C re la tiv a )
Capítulo 32 / Doença de Crohn 371
■ Com entários dos autores do capítulo pares da mesma faixa etária, seja na escola, seja no trabalho,
As contraindicações dos agentes biológicos devem ser sem enfim, na sociedade.
pre exaustivamente investigadas, em anamnese detalhada e exa O uso de ansiolíticos e antidepressivos fica reservado para
mes complementares. Os pacientes e familiares devem ser aler situações em que a avaliação mostre necessidade. Cuidado com
tados de que nem todos podem utilizar estas medicações com os efeitos anticolinérgicos dos tricíclicos, pois podem favore
segurança, para que uma imensa decepção não atrapalhe o se cer megacólon tóxico. Psicoterapias são indicadas conforme
guimento destes doentes após este momento. A segurança do o caso clínico.
tratamento depende de uma pesquisa minuciosa da lista de con
traindicações. Especificamente, como exemplo, no caso de neo-
plasias previamente tratadas, apesar do receio da utilização dos
■ Manutenção da remissão na DC
biológicos, os oncologistas recomendam o uso deste tratamento ►S u lfa sa la zin a . Estudos multicêntricos demonstraram que
se a quimioterapia estiver finalizada, em período posterior ao esta droga não é eficaz na manutenção da DC;
tratamento do câncer. Recomendam-se bom-senso e análise de ►5 -A S A . Metanálise demonstrou que houve redução de re
cada caso para definições sobre este controverso tema. corrência em 50% dos pacientes com doença ileal ou ileocolô-
Atenção para as vacinas em imunodeprimidos.* nica. Não se sabe se doses altas (4 g) podem ser mais efetivas
► C o n tra in d ic a d a s . Vacinas vivas (tríplice, sarampo, ca na manutenção da remissão ou se facilitariam a retirada dos
xumba, rubéola, varicela, sabin, febre amarela) para pacientes corticoides;
imunodeprimidos e em uso de corticoides em dose equivalente ►C o rtic o ste ro id e s. As drogas-padrão não são usadas para
a 2 mg/kg/dia de prednisona durante 2 semanas ou mais (ou manutenção, mas são de ajuda as novas, de ação tópica, sem
20 mg/dia para crianças com > 10 kg). Consideram-se contrain maiores efeitos colaterais. Budesonida não foi eficaz para m an
dicadas as vacinas vivas durante 1 a 3 meses após o término ter a remissão. Entretanto, pulsoterapia com 9 mg em dose úni
da corticoterapia. ca matinal é preconizada nas exacerbações da DC;
► V a c in a s in d ic a d a s. Salk, influenza, pneumocócica (para ►Im u n o s s u p re s s o re s . AZA/6-MP são as únicas drogas
crianças com 2 anos ou mais, com asplenia anatômica ou fun que induzem remissão clínica, embora não haja conhecimen
cional, hemoglobinopatias, imunodeficiência congênita ou ad to de quanto tempo devam e possam ser administradas, porém
quirida, pessoas HIV+). 6 meses seria o tempo mínimo. Relatou-se que, após 4 anos
de uso, pode desaparecer sua tendência de manter a DC em
remissão;
■ Tratamento de problemas psicoemocionais ►Imunomoduladores. Há grande esperança de que drogas
Os aspectos psicológicos representam um componente im imunomoduladoras mudem o tratamento da DC a longo prazo.
portante nas DII, mas não são a causa das doenças. Vários es Os resultados com infliximabe têm sido bons e promissores,
tudos indicam que o estresse exerce efeito adverso diretamente podendo o benefício ser alcançado até por 1 ano. A droga é bem
sobre o trato gastrointestinal, alterando os mediadores inflama- tolerada e retratamento é possível, mesmo que não se saiba o
tórios e neurotransmissores. Para se saber como o paciente está potencial de desenvolvimento de linfomas.
se sentindo em relação à doença, é preciso incorporar informa O desenvolvimento de farmacogenômicos será a melhor op
ções psicológicas e não só testes laboratoriais que determinam ção, no futuro!
a gravidade da afecção. É importante se saber quais os fatores
positivos e negativos que influenciam a adaptação à doença
crônica, incluindo-se aqui o suporte social, a autoconfiança e • OUTROS TRATAMENTOS
a presença de comorbidade psiquiátrica. Questionários relacio
nados com o conhecimento da qualidade de vida do paciente
ajudam o clínico a identificar áreas problemáticas. Com conhe
■ Oxigenoterapia hiperbárica
cimento holístico, firma-se mais a relação médico-paciente e A oxigenoterapia hiperbárica é a inalação de oxigênio medi
há melhora no estado de saúde do doente. cinal com pressão acima da ambiente, necessitando, para isso,
Como qualquer doença crônica, a DC tem significativo im de uma câmara denominada hiperbárica. O aumento do oxi
pacto sobre o paciente e sua família. Embora haja evidências gênio no meio é letal para as bactérias anaeróbicas. Também
de início da sintomatologia ou recorrência sob situações de provoca melhora na atividade bactericida dos leucócitos e oti
estresse, percebem-se mais problemas emocionais em doentes miza proliferação de fibroblastos.
que apresentam doença anorretoperineal. O desconforto, a dor Na DC é indicada quando há fístulas, lesões refratárias e in
e, principalmente, a incontinência de gases e/ou fezes causam fecções necrosantes dos tecidos moles, após drenagem, se neces
embaraços sociais, levando a sequelas psicossociais que incluem sária. Seu alto custo faz com que seja empregada para pequeno
perda da autoestima, declínio no desempenho escolar e profis número de pacientes com doença grave refratária.
sional, problemas sexuais e depressão.
Na adolescência, fase caracterizada pela necessidade de au-
toafirmação e desligamento de vínculos familiares, os pacientes
■ Ovosdehelmintos
entram em conflito com os pais, pois se recusam, muitas vezes, a Uma proposta terapêutica do uso de ovos de helmintos e do
seguir regimes alimentares e uso ininterrupto de medicações. próprio parasito tem base na hipótese da higiene, já citada. O
O médico atendente deve estar preparado para dar suporte Trichuris suis é helminto parasito de suínos, não acarreta qual
emocional ao paciente e à família, tanto durante as crises, como quer lesão no homem, mas consegue resposta imune do orga
nas fases de quiescência. Deve fazer o possível para melhorar a nismo. Summers et al. (2005), em 29 casos de DC, referem que
qualidade de vida dos doentes para conviverem bem com seus 79% apresentaram melhora clínica e 72%, remissão completa.
Não houve efeitos colaterais ou complicações, concluindo-se
•Centro dc Referência de Imunobiológicos Especiais (CRIE), Sociedade Brasi por tratamento efetivo e seguro. Outros estudos são necessários
leira de Pediatria c Manual dc Normas dc Vacinação, Ministério da Saúde. para inclusão deste tratamento na prática.
372 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n
manas para manutenção do tratamento, a partir da semana associação pode ser utilizada, com a ideia de que os biológicos
4. A eficácia destes dois agentes foi amplamente comprovada podem reduzir a intensidade da inflamação e assim facilitar al
em estudos clínicos randomizados, controlados com placebo, gumas operações. Outros acreditam que estes dois tratamentos
com índices de remissão clínica em cerca de 1/3 dos pacientes. não podem ser misturados, sob risco de haver prejuízo ao pós-
Ambas as drogas são potentes imunossupressores, com poten operatório destes pacientes. Segundo o consenso europeu de
cial de ocorrência de efeitos adversos, que variam desde infec DC, não existe concordância sobre o tema, e ainda não foi defi
ções simples do trato respiratório superior até situações mais nido o intervalo seguro para se usarem ou não os biológicos em
complexas, como reativação de tuberculose e desmielinização períodos próximos das operações. Não há estudos prospectivos
central ou periférica. randomizados comparando-se a utilização ou não de biológi
Tanto o tratamento cirúrgico quanto a utilização dos me cos em pacientes cirúrgicos, somente estudos retrospectivos,
dicamentos biológicos convergem para o controle das formas de séries de casos. Deve-se, portanto, analisar cada paciente, e
graves da doença, situações com extensa inflamação, e geral discussões interativas entre os clínicos e cirurgiões devem de
mente associadas a fístulas. Por este motivo, não raramente es terminar as vantagens de se usarem as medicações ou não nas
tas terapias acabam sendo utilizadas em um mesmo momento, situações em que os dois tratamentos sejam indicados em um
em alguns pacientes. Uma questão acabou sendo relevante nos mesmo momento.
últimos anos no tratamento da DC: será que os medicamentos Ressecção intestinal é a maior complicação e a maior fonte
biológicos, se usados simultaneamente com o tratamento ci de morbidade na DC pediátrica. Gupta et al. (2006) assinalam
rúrgico, por serem potentes imunossupressores, aumentariam o risco cumulativo de cirurgia descrevendo 5,7% em 1 ano, 17%
os índices de complicações cirúrgicas? Será que estas formas de em 5 anos e 28,4% em 10 anos após o diagnóstico, fato corro
tratamento podem realmente ser utilizadas conjuntamente? borado pelos autores deste capítulo.
Há evidências concretas de que tanto o tratamento com Preditores positivos para cirurgia são: sexo feminino; mar
infliximabe quanto o com adalimumabe reduzem as taxas de cadores clínicos de gravidade, incluindo pobre crescimento;
internações e necessidade de cirurgia abdominal ao longo do presença de abscesso, fístula ou estenose intestinal. Raça, etni-
tempo, se usados continuamente. Na doença perianal, a terapia cidade, localização e gravidade ao diagnóstico não são fatores
combinada traz múltiplas vantagens para os pacientes. Entre preditivos de resultados da cirurgia. Por outro lado, fato inte
tanto, nas operações abdominais mais alargadas, com ressecções
ressante é que a presença de granulomas, ou tratamentos com
intestinais e anastomoses, na vigência do uso dos anti-TNF, a 5-ASA ou infliximabe são preditores negativos para cirurgia.
dúvida a respeito da segurança dos biológicos no pós-operatório
Amre et al. (2006), em 139 pacientes pediátricos, verifica
persiste sendo extremamente relevante.
ram ASCA IgA positivo em 48,2%, IgG em 42,4% e ANCA em
Alguns trabalhos defendem que estas terapias podem ser 21%. Títulos elevados de ASCA aumentavam a possibilidade
utilizadas conjuntamente, sem problemas. Um estudo retros
de complicações, mas nem sempre associadas à cirurgia. A pri
pectivo em um grande centro europeu de tratamento de doen
meira complicação foi observada em pacientes com ASCA IgA
ças inflamatórias intestinais analisou retrospectivamente uma
elevado ou tanto ASCA IgA ou IgG, o que também é a experi
coorte de pacientes submetidos a ressecções intestinais. Houve
ência dos autores deste capítulo.
uma divisão destes indivíduos em dois grupos, um com uso
Sabe-se que cerca de 70% dos pacientes portadores de DC
de infliximabe previamente à cirurgia, e outro sem este tipo
de tratamento. Após a análise de 313 prontuários, os auto serão submetidos a, pelo menos, uma cirurgia no decorrer de
res concluíram que não houve diferença significativa entre os suas vidas, como terapia de sua doença. As indicações emer-
grupos em respeito a complicações pós-operatórias precoces genciais, como oclusão intestinal, perfuração com peritonite e
e tardias, e, da mesma forma, não houve diferença no tempo abscessos abdominais, são mais óbvias. Ocorrem em cerca de
de internamento. Kunitake et al. (2008), do grupo de Boston - 20% dos casos. Entretanto, pacientes portadores de DC crôni
EUA, analisaram retrospectivamente 413 pacientes com doen cos podem ter indicação de tratamento cirúrgico mais discutí
ças inflamatórias intestinais submetidos a ressecções cirúrgicas. vel. Entre estes, citam-se intratabilidade clínica, manifestações
Destes, 188 eram portadores de DC e foram analisados quanto extraintestinais de difícil controle, distúrbios do crescimento e
ao risco de complicações pós-operatórias relacionadas com o corticodependência. Estenoses e fístulas internas identificadas
uso de infliximabe. Estes autores igualmente concluíram que em exames radiológicos tornam certa a indicação de tratamen
a utilização pré-operatória do infliximabe não trouxe maio to cirúrgico em pacientes sintomáticos. Abscessos perianais
res complicações no pós-operatório. Concluíram ainda que múltiplos devem ser drenados. Fístulas complexas, incluindo
a utilização de corticoides trouxe maior prejuízo aos pacientes, as retovaginais, podem ser tratadas também de maneira cirúr
como variável isolada. Por outro lado, um outro estudo publi gica em casos selecionados.
cado pelo grupo da Cleveland Clittic de Ohio, EUA, demons Os fatores de risco para recorrência após ressecção intestinal
tra diferentes achados. Em uma análise também retrospectiva, nos pacientes pediátricos com DC não são bem estabelecidos.
Appau et al. (2008) revisaram os dados de 389 pacientes sub Em pacientes com doença ileocolônica, reoperação em 5 anos
metidos a ressecções ileocólicas por DC, 60 dos quais com utili varia entre 25 e 60% e atinge 91% após 15 anos. A recorrência
zação pré-operatória do infliximabe. Os autores demonstraram após reanastomose colônica é menor. Um grande preditor de
que o uso da droga em período menor que 3 meses da data da recorrência de doença é o comportamento da afecção. Pacien
operação é fator de risco e aumenta as taxas de complicações tes com doença perfurante são mais suscetíveis a nova cirurgia.
infecciosas (sepse e abscessos abdominais) e readmissões hos É apropriado colocar os pacientes com doença mais agressiva,
pitalares. Ainda não há trabalhos na literatura analisando estes dependendo até do fenótipo, em terapia imunomoduladora
riscos com a utilização do adalimumabe. após cirurgia.
Pode-se concluir, por estes estudos, que não há consenso Estenoplastia foi um grande avanço no manejo cirúrgico
na literatura quanto à utilização dos biológicos neste contex da DC no intestino delgado proximal, pois evita ressecções e a
to, se é benéfica ou prejudicial para os pacientes em momen consequente síndrome do intestino encurtado. Sua morbidade
tos próximos da ressecção cirúrgica. Alguns advogam que esta é menor que 15%.
374 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n
As implicações cirúrgicas da pancolite em pacientes pediá Nas oclusões intestinais do íleo terminal, a ressecção deve
tricos com colite indeterminada ou DC grave carecem de maio ser acompanhada de ileostomia terminal se houver dilatação de
res avaliações, mas são tão graves e difíceis de manejar como as alças proximais, e se o estado geral e nutricional dos pacientes
decorrentes de operações para RCU {pouchitis, sepse pélvica, não for o ideal. Hipoalbuminemia, uso prévio de corticoides
fístulas etc.). e imunossupressores fazem com que o risco de deiscência de
anastomoses nesta situação seja elevado. A reconstrução do
trânsito é então realizada após a recuperação nutricional do
■ Cuidados pré- e transoperatórios paciente (período mínimo de 3 meses).
Os portadores de DC que se enquadram na indicação cirúr A economia no comprimento do intestino a ser ressecado
gica eletiva necessitam de cuidados que visam a menores taxas nos portadores de DC fez com que algumas técnicas se tornas
de complicações e melhor prognóstico. O aspecto nutricional é sem particularmente úteis no tratamento de estenoses múlti
importante, e pacientes com desnutrição grave são beneficiados plas, associadas ou não a ressecções. As estenoplastias, ver
por nutrição parenteral total (NPI), geralmente realizada por dadeiras anastomoses sobre áreas fibrosadas ou inflamadas,
algumas semanas antecedendo o procedimento. Antibioticote- apresentam bons resultados, com índice de fístulas semelhan
rapia deve ser utilizada, sendo o esquema mais comum o cipro- tes às ressecções. As estenoses curtas devem ser tratadas pela
floxacino associado ao metronidazol. O cólon destes pacientes técnica de Heineke-Mikulicz, semelhante à piloroplastia, com
deve ser sempre preparado mecanicamente, para que se evitem abertura longitudinal e fechamento transversal da alça intestinal
surpresas em casos de fístulas internas, mesmo que a doença com pontos separados. Estenoses longas são mais bem trata
supostamente acometa apenas o intestino delgado. A utilização das pela técnica de Finney, verdadeira anastomose laterolateral
de imunossupressores (comumente azatioprina) pode ser inter ampla da região estenosada dobrada sobre seu próprio eixo.
rompida, com resultados questionáveis na literatura. Através destas, técnicas há menor ressecção e risco menor de
Vale lembrar que os pacientes com diagnóstico firmado de desnutrição e síndrome do intestino curto. São particularmente
DC, que se apresentam com abdome agudo, devem ser trata úteis nos casos de acometimento difuso jejunoileal.
dos como tal: sondagem vesical para melhor monitoramento As derivações internas (bypasses) são operações raramente
da diurese, reserva de sangue e vaga de UTI; bom acesso venoso utilizadas nos dias de hoje e ficam reservadas aos casos de en
(de preferência, central) deve ser realizado. volvimento do ureter do processo inflamatório, com risco de
Pacientes que utilizaram corticoides em um período de pelo lesão desta importante estrutura.
menos 1 ano antes da operação devem ser tratados com repo Sem dúvida, os melhores resultados ocorrem quando há
sição intraoperatória. A hidrocortisona utilizada na dose de ressecção do extenso processo inflamatório, com anastomose
100 mg IV na indução anestésica, complementada se o proce no mesmo tempo cirúrgico. A utilização de estornas e outras
dimento tiver duração maior que 2 h, deve ser seguida de es técnicas devem ser particularizadas para cada caso, e o cirurgião
quema de manutenção com retirada gradual. Evita-se, assim, deve sempre “pensar com a razão, nunca com o coração”. Um
insuficiência adrenal no transoperatório, causa de hipotensão estorna pode salvar uma vida, e depois ser reconstruído. Nunca
de origem obscura. se arrepender de realizá-lo, apenas de não o fazer!
■ PodeaDCaparecerpelaprimeira vezdurantegestação?
■ QUESTÕES PERTINENTES À FERTILIDADE Sim, pode, mas, em geral, o comportamento da doença não
E ALTERAÇÕES GINECOOBSTÉTRICAS EM é mais grave do que nas pacientes não grávidas.
PORTADORES DA DC* ■ As drogas usadas no tratamento daDCpodemser usadas durante
agestação?
■ Podemamulher e ohomemcomDll se tornarempais?
Sim, conforme os esquemas já mencionados.
Em geral, a resposta é “sim”. Dar preferência quando a doen
ça estiver inativa. ■ As drogas sãoperigosaspara ofeto?
Não, de acordo com os esquemas. A DC inadequadamente
■ ComoaDll afeta afertilidade feminina emasculina e quais as tratada é mais perigosa para a mãe e para o feto!
chancespara umagravidez bem-sucedida? A budesonida não trouxe dano para a mãe ou para o fetoy
Na DC a fertilidade não se afeta nos períodos de quiescência, mas são poucos os estudos realizados a esse respeito.
mas na DC ativa ou após extensa cirurgia pode diminuir por As mães em uso de infliximabe devem pensar em concepção
alterar o ciclo menstrual-amenorreia-sintoma que se segue à pelo menos depois de 3 meses da interrupção da droga.
perda significativa de peso. O uso de fibras (Plantago ovata, Ispaghula husks) pode ser
A fertilidade masculina não é afetada na DC. Entretanto, abs- útil em casos de diarréia.
cessos e fístulas na pélvis e região anal podem causar distúrbio de
ereção e ejaculação; ou quando há cirurgia extensa, particular ■ Oscontraceptivos oraispodemcausar ou agravarDC?
mente seguida de bolsa ileoanal. Quando o paciente está usando Embora estudos controversos, não parece haver contrain-
sulfasalazina, pode haver infertilidade temporária que se norma dicação para seu uso. Lembrar que no caso de diarréia grave,
liza em 2 meses após interrupção da droga ou troca pelo uso de sua absorção pode ser pequena e a paciente não estar devida
5-ASA. As razões incluem diminuição na contagem dos esperma mente protegida.
tozóides, redução de fluxo seminal, anormalidades na estrutura e
motilidade das células espermáticas. Tais anormalidades ocorrem ■ Azatioprina ou 6-mercaptopurinapodemser usadas antes ou
em cerca de 80% dos homens tratados com esta droga. duranteagestação?
Ver os esquemas.
■ ComoaDll afeta ocurso dagravideze asaúde do bebê?
Cerca de 85% das mulheres com DC têm gravidez normal. ■ 0 uso de corticosteroides éseguro durantegestação e
Malformações nos fetos ocorrem somente em 1%. Não parece amamentação?
haver maior risco de abortamento espontâneo. Lembrar que Sim, mas o recém-nascido pode apresentar apatia e redu
em mulheres sadias 15% das gestações cursam com problemas ção de sua atividade por baixos níveis de cortisona pelas suas
ou complicações. Concepção em fase de quiescência é sempre suprarrenais. Às vezes, o neonatologista necessita prescrever
recomendável. esta droga para a criança. Isso geralmente ocorre quando a mãe
Se a concepção ocorre em período de grande atividade da precisa de altas doses de corticosteroides.
doença, o número de abortos, prematuridade dos fetos e outras Como a cortisona passa pelo leite materno, as mesmas con
complicações surgem em maior risco. siderações devem ser feitas.
Com a budesonida, tais efeitos não têm sido detectados.
■ Queexames médicos sáoimportantes antes doplanejamentode
umagestação?
Os exames são os habitualmente recomendados, dependen --------------------------------- ▼---------------------------------
do da fase da DC. A administração de ácido fólico é indicada, Q u a d ro 32.13 Curso da gestação em mulheres sadias e pacientes
como em qualquer gravidez, principalmente quando há uso com doença de Crohn (estudos europeus e americanos)
de sulfasalazina.
N o rm al M a lform açõe s P re m a tu ro s A b o rto
■ Comoacirurgiapara otratamento da DCpode afetar agestação?
P o p u la ç ã o g e ra l 83 2 6 9
Gestações sem complicações são vistas após cirurgias intes
D C e m re m is s ã o 82 1 7 10
tinais extensas, inclusive quando há colectomia ou ileostomia.
Recomenda-se que se espere 1 ano após o procedimento cirúr D C e m fase a tiva 54 1 25 20
Por outro lado, piora dos sintomas em uma gestação não • d u r a n t e o p r im e ir o trim e s tre -1 3 %
implica que isso possa ocorrer em gestações subsequentes. • d u r a n t e o s e g u n d o trim e s tre <1%
■ Deve-se interromper ouso de5-ASA por ocasiãodoparto? descoberta de agentes terapêuticos específicos e mais potentes
Em geral, não é necessário, particularmente porque os ní para a DC que é tão debilitante e que implica ajustes e adapta
veis sanguíneos de 5-ASA são baixos e não causam alterações ções familiares, sexuais, sociais e emocionais!
na coagulação nem na agregação plaquetária. Enquanto se aguarda a cura para a DC, as terapias disponí
veis visam à manipulação dos estímulos enterais e regulação,
■ Quais examespodemserfeitos duranteagestação? cada vez mais sofisticada, da resposta imune!
Em geral, a ultrassonografia. Complementada ou não pela
ressonância magnética, são de grande valia. Métodos que en
volvam radiação devem ser deixados para após o parto ou para ■ LEITURA ALTAMENTE RECOMENDADA
situações de emergência. Só realizar qualquer tipo de endosco-
pia em mãos de examinador experiente. SECOND EUROPEAN EV1DENCE-BASED CONSENSUS ON CROHN*S
DISEASE. Journal o f Crohrís & Colitis, 2010; 4:1-101.
WORLD GASTROENTEROLOGICAL ORGANIZATION PRACTICE GUl-
■ Quais as considerações especiais durante oparto? DELINES FOR THE DIAGNOSIS AND MANAGEMENT OF IBD IN 2010.
Parto vaginal geralmente é preferível, mas episiotomia perma Inflamm Dowel Dis, 2010; 16:112-24.
nece assunto controverso, se há ou não maior risco de DC peria-
nal. Em pacientes com ileostomia, pode-se prefeir cesariana, para
evitar contrações abdominais que causem prolapso intestinal. ■ LEITURA RECOMENDADA
■ Hádieta especialpara amulhergrávida comDO Acosta, MB & Pena, AS. Clinicai applications of NOD/CARD15 mutations in
Não, apenas uma dieta balanceada. Crohns’ discase. Acta Gastroenterol Latinoam, 2007; 37:49-54.
Ahmad, T, Armuzzi, A, Buncc, M et al. The molecular classification of thc clini
cai manifestations of Crohns discase. Gastroenterology, 2002; 122:854-66.
■ Quaisosriscosdeumacriançadepais comDCteramesmadoença? Alcxander-Williams, J. Doença de Crohn. Em: Coelho, JCU. Aparelho Digestivo.
A DC não é hereditária, mas há predisposição genética. Clinica e Cirurgia, 2* cd., Rio de Janeiro, Mcdsi, p. 525-35,1996.
Allcz, M, Lemann, M, Bonnct, J et al. Long term outeome of patients with active
■ Asmulheres comDCpodemamamentar? Crohns discase cxhibiting extensive and decp ulccrations at colonoscopy.
Am J Gastroenterol, 2002; 97:947-53.
Sim, desde que não estejam usando imunomoduladores. Alos, R 8c Hijonosa, J. Timing of surgery in Crohn’s discase: a kcy issuc in thc
management. World J Gastroenterol, 2008; 14:5532-9.
■ Drogas biológicas Amre, DK, Lu, SE, Costca, F et al. Utility of scrological markers in prcdicting thc
early occurrcncc of complications and surgery in pediatric Crohns discase
OIFX parece não interferir na fertilidade. Mostrou-se pouco patients. Am J Gastroenterol, 2006; 101:645-52.
Andus, T 8c Targan, SR. Glucocorticoids. Em: Targan, SR 8c Shanaban, F. Inflam-
tóxico para uso durante gestação, possibilitando sua m anuten
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Síndrome do Intestino Curto
Paulo Cesar Andriguetto
381
382 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto
------------------------------------- ▼-------------------------- Interessante ressaltar que todos esses passos podem ser subs
Q u a d ro 33.1 Causas da síndrome do intestino curto tituídos, sublimados ou abolidos, exceto a absorção, tornando
o intestino delgado a área nobre do processo de alimentação.
• T r o m b o s e / e m b o lia d o s v a s o s m e s e n té ric o s Até o presente momento, não existe mecanismo eficiente que
• T r a u m a a b d o m in a l possa manter a vida em um padrão mínimo de qualidade, pres
• D o e n ç a in fla m a tó ria in te s tin a l (d o e n ç a d e C r o h n ) cindindo do fenômeno de absorção de nutrientes. Mesmo a
• V ó lv u lo d o in t e s t in o d e lg a d o Nutrição Parenteral Total (NPT), infundindo diretamente na
• E n te rite a c tín ic a
veia cava nutrientes vitais à homeostase, não substitui o com
plexo mecanismo de absorção, transporte, metabolização e uti
• T u m o r e s d e in t e s t in o d e lg a d o / m e s e n t é r ic o / r e t r o p e r it ô n io
lização dos nutrientes.
• Fístulas e n té ric a s
O tubo digestivo otimiza a absorção de nutrientes por meio
• E s c le ro d e rm ia
de mecanismos estruturais que aumentam a área absortiva. As
• A fe c ç ó e s c o n g ê n it a s
sim, há as pregas de Kerkring, aumentando esta área em três
• P s e u d o -o b s t r u ç õ e s c rô n ic a s vezes, as vilosidades em 30 vezes e as microvilosidades em
• M ú lt ip la s in t e r v e n ç õ e s c irú rg ic a s a b d o m in a is 600 vezes. O intestino delgado pode medir de 400 a 700 cm,
com extensão média do jejuno de 600 cm e com um diâmetro
interno variando de 1,5 a 3,0 cm. Tais dimensões, multiplica
das, oferecem uma ideia aproximada da extensão desse manto
absortivo.
dro 33.1). Lembrando a anatomia vascular, o duodeno tem su O intestino delgado contém estruturas dinâmicas que com
primento sanguíneo derivado tanto do tronco celíaco como da
preendem uma variedade de componentes celulares, tais como
artéria mesentérica superior, incluindo tributárias da artéria
células epiteliais, imunológicas, musculares, vasculares e Enfá
gastroduodenal, parte superior e inferior da artéria pancrea-
ticas. O tecido epitelial apresenta um tumover altamente regu
toduodenal, da artéria gastrepiploica direita e artérias supra- lado, movendo-se da cripta para a porção apical das vilosidades
duodenais e retroduodenais. Esta rica vascularização preserva entre 5 e 6 dias, e a porção ileal pode apresentar uma migração
o duodeno durante os eventos isquêmicos mesentéricos. Por celular em até 3 dias. A renovação celular sofre influência ne
outro lado, o jejuno e o íleo dependem exclusivamente das tri gativa por diversos fatores, notadamente infecção, inflamação,
butárias da artéria mesentérica superior. Assim como o ceco, desnutrição, ausência de nutrientes intraluminais, químio e ra
o cólon direito e metade do transverso recebem irrigação da dioterapia. Quando a renovação celular é comprometida, isso se
artéria ileocólica, da artéria cólica direita e da artéria cólica mé traduz por alterações morfológicas, principalmente atrofia das
dia, todas oriundas da artéria mesentérica superior. A metade vilosidades, que pode reverter-se com terapia adequada.
distai do transverso, o cólon esquerdo, sigmoide e reto são ir A motilidade intestinal também influencia a absorção de nu
rigados através de tributárias da artéria mesentérica inferior, trientes, reconhecendo-se que o quimoquilo passa mais lenta
sigmoideana e retais. A potência da artéria mesentérica supe mente pelo íleo que em poções altas do jejuno. O trânsito pode
rior fica, desta maneira, sendo a chave da irrigação da grande ficar marcadamente lento através do cólon (24 a 96 h).
e maior parte intestinal. Diariamente, 9 t de água, fluidos e nutrientes percorrem o
O registro espanhol de nutrição domiciliar, referido por tubo digestivo, sendo 2 £ provenientes da ingestão oral e 7 í
Moreno, relata a isquemia mesentérica como causa principal de secreções internas. Em geral, 98% deste contingente é reab-
de SIC (29,7%), seguida de neoplasia (16,2%), enterite actí- sorvido (5,5 t pelo duodeno-jejuno, 2 í pelo íleo e 1,3 t pelo
nia (12,5%), afecçóes de motilidade (8,1%) e doença de Crohn cólon).
(5,4%). Outros estudos referidos por Ladefoged e por Nightin- A absorção de carboidratos, proteínas e ácidos graxos se ini
gale e Lennard-Jones encontraram na doença de Crohn a causa cia no duodeno e praticamente se encerra nos primeiros 100 cm
mais comum de SIC, acometendo 50% dos casos. do jejuno, assim como a absorção de ferro, cálcio e vitaminas
Trauma abdominal pode ser causa eventual de SIC, nas gran hidrossolúveis. Na ausência do jejuno, o íleo pode adaptar-se
des metrópoles. e absorver estes nutrientes, no entanto o íleo não pode com
Em pediatria, causas neonatais, como a enterocolite ne- pensar a secreção de êntero-hormônios.
crosante, atresia intestinal e vólvulo do intestino delgado são A ressecção jejunal resulta em perda do hormônio polipep-
frequentes determinantes de SIC. Stollman et al. reportaram, tídio inibitório gástrico e polipeptídio vasoativo, o que faz ele
em um estudo envolvendo 114 crianças com atresia jejunal, var a gastrina e a secreção gástrica, favorecendo a presença de
submetidas a ressecção e anastomose primária (69%) ou com lesões erosivas gástricas e hemorragia digestiva alta.
enterostomia temporária (29,7%), uma frequência de SIC em O íleo, contudo, tem funções singulares, incluindo a ab
15% dos pacientes. sorção de sais biliares e vitamina B12e vitaminas lipossolúveis.
Atualmente, com o advento progressivo da cirurgia bariá- Quando ressecado, a absorção de ácidos graxos fica prejudica
trica disabsortiva, relatos de desnutrição grave podem enqua da, acentuando a esteatorreia. A presença de sais biliares não
drar-se no conceito de falência intestinal, semelhantes à SIC. absorvidos provoca aumento do estado secretório colônico,
piorando a diarréia.
Para que a absorção fique significativamente diminuída,
■ PATOGENIA deve-se levar em conta a quantidade de intestino delgado res
secado, a ressecção inclusa de íleo e válvula ileocecal, e a res
O fenômeno da alimentação depende de volição, ou seja, secção colônica.
da vontade de ingerir alimentos, da ingestão oral e mastiga Ressecções de 50% da totalidade do intestino delgado são
ção, deglutição, digestão gastroduodenal com a participação de bem toleradas e acompanhadas de certo grau de má absorção,
órgãos anexos, fígado e pâncreas, absorção intestinal de água, facilmente controlável. Ao contrário, ressecções que ultrapas
eletrólitos, macro e micronutrientes e, finalmente, excreção. sem 75% da extensão do intestino delgado evidenciam clara
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 383
■ CONSEQUÊNCIAS DA SÍNDROME
DO INTESTINO CURTO (QUADRO 33.2)
■ Nutricionais (Figura 33.2)
■ Perda de água e eletrólitos
Nos primeiros dias após extensa ressecção intestinal, po
dem-se observar perdas diárias de até 5 l de água e fluidos,
perdurando até aproximadamente a terceira semana pós-ope Figura 33.2 Paciente com síndrome do intestino curto demonstrando
ratório. A tradução clínica de tais perdas é grave quadro de de desnutrição grave e alimentação parenteral total.
sidratação e desequilíbrio hidreletrolítico e ácido-básico, além
de hipovolemia, arritmias cardíacas, insuficiência respiratória
e renal. Exames complementares comprovam facilmente tais
desequilíbrios. satisfatório, terá, em muitas fases de sua vida, necessidade de
reposição parenteral adjuvante de micronutrientes, sobretudo
■ Perda de m acronutrientes cálcio, fósforo, magnésio e vitaminas.
A má absorção de proteínas, carboidratos e gorduras é res
ponsável pela gradativa perda de peso, perda de massa muscular, ■ Hipersecreção gástrica
perda de depósitos de gordura, da arquitetura tecidual e de fun A hipersecreção gástrica pode ocorrer em mais da metade
ções vitais (Figura 33.2). A tradução clínica dessa perda é ema dos pacientes com SIC, podendo retornar à normalidade após
grecimento, apatia, limitação funcional e infecções secundárias 3 a 6 meses. A hipercloridria determina o aparecimento de le
pelo comprometimento da imunocompetência. Exames com sões da mucosa gastroduodenal, incluindo úlceras pépticas que
plementares denotam alterações na composição das proteínas, podem ser causa de hemorragia digestiva. Além disso, o baixo
com inversão da relação albumina-globulina, transferrina baixa, pFI luminal inativa enzimas digestivas necessárias à digestão
linfopenia e testes alterados de bioimpedância. e absorção de nutrientes, acarretando perdas nutricionais. Es
tudos mostraram que pacientes portadores de SIC, ao recebe
■ Perda de m icronutrientes rem bloqueadores de receptores H, da histamina, melhoravam
A perda de cálcio, fósforo e magnésio é notória já nos pri a digestão intraluminal e absorção intestinal, reduzindo pela
meiros dias, sendo responsável por alterações clínicas. A perda metade a perda de gordura fecal, em até 22% a perda de nitro
de ferro, cobre, zinco, molibdênio, vitaminas hidro e lipos- gênio fecal e em ate 34% o volume fecal diário.
solúveis é observada mais tardiamente. Essas perdas condu Um interessante estudo dinamarquês comprovou a eficácia
zem a um largo espectro de alterações clínicas, desde anemia do uso de inibidores da bomba de prótons, reduzindo a perda
e neutropenia, alterações neurológicas, acrodermatite, alope- fecal, embora não melhorasse a absorção de nutrientes.
cia, diminuição da imunidade, intolerância glicídica, mialgias,
cardiomiopatias, arritmias cardíacas, alterações visuais, ence- ■ Acidose láctica
falopatia de Wernicke, acidose láctica, parestesias, neuropatia O ácido láctico é produzido pela fermentação de carboidra
periférica, tetania e outras. tos não absorvidos pelo intestino delgado, dentro do cólon.
A maior parte dos autores acredita que o paciente portador Observa-se acidose metabólica, e sintomas de disartria, ataxia
de SIC, mesmo com boa adaptação funcional e tamanho residual e confusão mental.
384 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto
■ Nutrientes intraluminais
A preservação e manutenção da estrutura celular intestinal, e
■ Nefrolitíase de suas funções, são altamente dependentes da presença de nu
trientes intraluminais, estimulando diretamente a proliferação
Normalmente oxalatos da dieta ligam-se ao cálcio no lúmen
celular e, indiretamente, a produção de peptídios e hormônios
intestinal, formando complexos insolúveis que são excretados
entéricos, além da regulação do fluxo esplânico.
nas fezes. Em pacientes com S1C, o cálcio liga-se a ácidos gra-
xos não absorvidos, induzindo a absorção colônica de oxalato A atrofia intestinal em animais e humanos, submetidos a
jejum e NPT, é fato comprovado. Por outro lado, demonstrou-
livre. Da mesma forma, sais biliares não absorvidos aumentam
se que nutrientes intraluminais ofertados na fase adaptativa da
a permeabilidade intestinal, permitindo maior absorção de oxa
SIC melhoram a capacidade absortiva intestinal, reduzindo a
lato. A hiperoxalúria resultante contribui para a formação de
dependência à NPT. Animais tratados com terapia nutricional
cálculos urinários. Por outro lado, desidratação crônica e acido
enteral tiveram um efeito trófico acentuado, tendo inclusive
se, aliadas à diminuição de inibidores de formação de cálculos,
aumento na hipercelularidade, ganho na altura das vilosida
como citrato e magnésio, aumentam o índice de formação de
des intestinais, na profundidade das criptas e no conteúdo de
cálculos urinários de ácido úrico.
DNA intracelular.
Os nutrientes específicos (aminoácidos, proteínas, triglice-
■ Colelitíase
rídios, ácidos graxos, carboidratos e fibras) têm papel impor
Em geral, pacientes com SIC têm aumento na incidência de tante nesta regulação.
cálculos biliares, de 25 a 30%. Os sais biliares não reabsorvidos,
devido à ressecção do íleo, diminuem a concentração na bile,
acarretando precipitação do colesterol e formação de cálculos ■ Proteínas e aminoácidos
biliares. Além disso, pacientes permanentemente dependentes A proteína intacta tem efeito trófico primordial quando in
de NPT promovem estase na vesícula biliar, proporcionando fundida no intestino delgado residual. A dieta polimérica in
formação de cálculos de bilirrubinato de cálcio. fluencia mais a adaptação e a capacidade absortiva que a dieta
hidrolisada.
precursora da síntese de DNA intestinal. Durante fases críticas vam em animais alimentados com óleos não saturados. Outras
de lesão intestinal, a glutamina pode tornar-se um aminoácido observações sugerem que a hiperplasia celular após ressecções
condicionalmente essencial. maciças do delgado, estimulada com uso de uma mistura de
A glutamina é essencial para manutenção do trofismo do 50% de ácido oleico e 50% de ácido linoleico, age tão efetiva
enterócito e parece também exercer papel preponderante nas mente quanto o uso de triglicerídios de cadeia longa.
funções imunológicas. Pacientes com graves queimaduras, Os ácidos graxos de cadeia curta (acetato, propionato e bu-
nos quais existia redução na capacidade efetiva dos neutrófi- tirato) são bioprodutos de fermentação colônica de fibras e
los contra estafilococos, ao serem submetidos à nutrição ente- carboidratos resistentes à digestão. Os ácidos graxos de cadeia
ral acrescida com glutamina, melhoravam substancialmente curta são rapidamente absorvidos pela mucosa colônica e uti
esta capacidade. lizados como fonte de energia, estimando-se que, diariamente,
A maior parte dos estudos com glutamina foi realizada com em indivíduos sadios, essa fonte possa suprir entre 5 e 10% do
animais de laboratório, e um estudo precursor demonstrou que requerimento energético, podendo elevar-se em indivíduos que
a infusão de glutaminase em animais reduzia sensivelmente consomem altas taxas de fibras ou em portadores de afecções
a concentração sérica de glutamina, a qual era acompanhada disabsortivas.
por diarréia, atrofia vilositária, ulcerações da mucosa digestiva Os ácidos graxos aumentam a absorção de água e sódio, re
e necrose intestinal. duzem a atrofia intestinal causada pela NPT e influenciam a
A atrofia vilositária e o aumento da permeabilidade intesti adaptação trófica do intestino delgado e cólon remanescentes.
nal favorecem a translocação bacteriana e a bacteriemia. Neste As fibras proveem o cólon de substratos para produção de
caso, a adição de glutamina à nutrição parenteral ou enteral ácidos graxos de cadeia curta. Em modelos experimentais, as
pode reverter a atrofia intestinal, estimulando a celularidade e fibras solúveis têm efeito benéfico, marcadamente a pectina,
as funções da mucosa intestinal. A glutamina é um substrato no controle da diarréia, diminuindo o número de evacuações
essencial para a recuperação do intestino remanescente após líquidas, melhorando a adaptação intestinal, o peso da muco
ressecções maciças, tendo alguns estudos demonstrado que a sa, o conteúdo de DNA e a atividade das disacaridases, além
suplementação nutricional com glutamina acelera a hiperplasia de aumentar a absorção colônica de água e a solidificação das
do intestino residual, embora tais resultados de hipercelulari- fezes.
dade não tenham sido reproduzidos no nosso brasileiro.
Em humanos, ensaios terapêuticos com a glutamina na SIC
não são extensos, sendo mais comuns na Europa, onde pacien
■ Carboidratos
tes recebem NPT enriquecida com soluções de dipeptídios de Além de prover as calorias necessárias ao metabolismo ener
glutamina. Em pacientes depletados, a glutamina normaliza os gético, os carboidratos não digeridos podem ser substrato para
níveis séricos e da mucosa intestinal, melhorando a capacidade a produção de ácidos graxos de cadeia curta no cólon. Demons
absortiva e revertendo alterações morfológicas devido à priva trou-se que pacientes com SIC beneficiam-se com dietas ricas
ção proteica. Em pacientes graves, após grandes ressecções do em carboidratos e baixas em gordura, em uma proporção de
intestino, a adição de glutamina na solução de NPT atenua a 60 a 20%.
permeabilidade intestinal induzida pelo jejum e NPT, induzin
do efeito trófico e regenerativo do intestino. Contudo, existem
resultados controversos em relação à toxicidade da glutamina
■ Secreções biliopancreáticas
infundida via parenteral. Altas taxas de glutamina podem ele Em animais submetidos a grandes ressecções intestinais, as
var metabólitos putativos tóxicos, como o ácido carboxílico secreções biliopancreáticas demonstraram importância evi
1-pirrolidona, e aumentar a produção de amônia. Portanto, dente para a manutenção da altura das vilosidades e da massa
pacientes com insuficiência hepática ou renal devem ter indi de mucosa intestinal, sobretudo no íleo. Ao que parece, tais
cação judiciosa e monitoramento rígido de seu uso. secreções seriam estimuladas por colecistoquinina e secretina,
Nos pacientes com SIC, a glutamina deveria ser administra as quais seriam influenciadas pelo enteroglucagon.
da preferencialmente pelo trato digestivo, pois teoricamente seu
efeito seria mais benéfico, tendo em vista o contato imediato
com a mucosa digestiva. Observou-se que pacientes críticos sob
■ Hormônios
NPT acrescida de glutamina mantêm a troficidade intestinal, Podem-se enumerar como fatores tróficos as proteínas ana-
embora, quando a glutamina é administrada por via enteral, a bolizantes, as quais têm papel no crescimento e no desenvolvi
absorção de glicose é maior pelo delgado, e estudos experimen mento celular, destacando-se, entre eles, hormônios intestinais,
tais de diarréia demonstraram melhor absorção de sódio com enteroglucagon, GH, hormônio de fator de crescimento epi
uso de glutamina enteral. Além disso, a glutamina administrada dérmico (EGF - epidermal growth factor), hormônio de fator
por via oral pode aumentar o nível sérico de GH, tendo efeito de crescimento similar à insulina-I (IGF-I insuline-likegrowth
positivo na manutenção do trofismo intestinal. factor-I), insulina, testosterona e neurotensina.
O hormônio de crescimento (somatotropina) é um hormô
nio pituitário, com comprovada atuação na troficidade intes
■ Triglicerídios, ácidos graxos e fibras tinal. O GH acelera a utilização de aminoácidos pelo jejuno e
Resultados atuais de pesquisas mostram que os ácidos gra íleo. Os efeitos positivos compreendem aumento do peso da
xos são importantes mantenedores da troficidade intestinal. mucosa intestinal, aumento na altura das vilosidades e na pro
A administração de ácidos graxos de cadeia longa promove fundidade das criptas, além de estímulo à hipercelularidade
adaptação intestinal mais intensa que a de ácidos graxos de após ressecções maciças intestinais. Em interessante trabalho,
cadeia média, e o grau de saturação dos ácidos graxos parece comprovou-se a eficácia do uso de GH e outros nutrientes na
ser o elemento principal para tal adaptação. redução de NPT em pacientes portadores de SIC.
Estudos demonstraram que o peso da mucosa intestinal, o O horm ônio polipeptídio IGF-I apresenta similaridades
conteúdo de DNA e o conteúdo proteico intestinal aumenta à proinsulina: primariamente produzido no fígado, pode ser
386 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto
sintetizado no intestino delgado, sendo mediador de cresci O exame físico denota emagrecimento global, apatia, astenia,
mento, da divisão e da diferenciação celular. A administração distensão abdominal, hematomas e escaras devido à imobilida
exógena de IGF-I aumenta a hiperplasia e hipertrofia intestinal de e diminuição dos coxins gordurosos periarticulares. Pelo
após ressecção extensa jejunoileal. Além dos efeitos tróficos, o déficit imunológico, infecções são frequentes, notadamente res
IGF-1 aumenta o transporte de água e sódio no cólon, pare piratórias, agravadas pela disfunção diafragmática ocasionada
cendo também regular a absorção intestinal de aminoácidos pela desnutrição, por atelectasias eventualmente presentes no
em modelos animais e humanos, provavelmente estimulan pós-operatório e pela necessidade de ventilação assistida. Este
do carreadores funcionais existentes na borda em escova das período pode estender-se a um prazo médio de 2 a 3 meses,
membranas celulares. com alta taxa de mortalidade devido a complicações imediatas,
O EGF, em condições normais, é produzido nas glându sobretudo se ocorrerem novos episódios cardiocirculatórios, ou
las de Brunner, e, na vigência de afecções intestinais, sua pro se a infecção não for passível de controle. Icterícia e colestase
dução pode situar-se em outros locais do trato digestivo. O são comuns, em quadros infecciosos ou pelo uso prolongado
EGF é considerado potente mitógeno para as células da mu- de NPT.
cosa intestinal. O EGF também está presente no leite materno, Neste período, as modificações morfológicas já são demons-
acreditando-se ser importante regulador do crescimento e do tráveis, existindo aumento do comprimento intestinal de 25% e
desenvolvimento do trato gastrintestinal. Em animais subme da circunferência intestinal de 30%. À microscopia eletrônica,
tidos a ressecções maciças intestinais, o EGF aumentou signi observam-se aumento na profundidade das criptas, aumento
ficativamente a absorção de nutrientes, tendo papel marcante no número e na largura das vilosidades.
na regeneração tecidual.
A glutamina é um nutriente essencial para estímulo do EGF « Segundo período: adaptação progressiva
e proliferação celular, tendo-se demonstrado em trabalhos que
a administração de glutamina e EGF têm efeito aditivo no tro- Neste período, vencido o primeiro momento de hipercatabo
fismo intestinal. lismo, o paciente tende a apresentar certa estabilização clínica.
Ocorre redução progressiva da diarréia, e a perda de peso ten
de a estacionar em um baixo patamar. Raramente, observa-se
ganho ponderai. A cólica abdominal e os vômitos tornam-se
■ QUADRO CLÍNICO ocasionais. A diarréia tende a limitar-se entre seis e oito depo
sições diárias, e as fezes podem ficar pastosas, embora ainda
A SIC apresenta sinais e sintomas característicos pela perda
de grande área absortiva. Diarréia e perda de peso são sinais possa persistir esteatorreia.
preponderantes. O paciente pode apresentar mais de 20 depo Ao exame clínico, o paciente encontra-se seriamente des
nutrido, mas temporariamente adaptado a seu novo biotipo.
sições fecais por dia, e, em breve espaço de tempo, perder de
Aparecem sinais e sintomas de desnutrição crônica de micro
20 a 30% de seu peso habitual.
nutrientes e vitaminas, com dermatite, alopecia e alterações
Na fase aguda, a perda de massa magra e reserva lipídica
de fàneros.
é notável, conferindo ao paciente aspecto desnutrido, seme
Quando o paciente apresentar hipercloridria, quadros dis-
lhante ao aspecto de refugiados, prisioneiros de guerra ou a
pépticos e mesmo hemorragia digestiva podem estar presentes.
sobreviventes de grandes períodos de penúria (Figura 33.2).
Edema de membros inferiores é frequente.
Em fase mais tardia, quando o metabolismo do indivíduo adap Antropometria e exames laboratoriais comprovam o estado
ta-se lentamente a esse estado crônico e irreversível de desnu
carencial grave, com hipoproteinemia, hipoalbuminemia e que
trição calórico-proteica, começam aparecer sinais e sintomas da nos valores séricos de micronutrientes e vitaminas.
decorrentes da privação de micronutrientes. Desse modo, o Esse período pode estender-se de 6 meses a 2 anos.
paciente pode apresentar modificações em seu quadro clínico, Exames radiológicos contrastados do tubo digestivo mos
dependendo da fase ou do período pós-operatório em que se tram diminuição do tempo de esvaziamento gástrico e aumento
encontra, embora o limite temporal desta fase não seja m ui do calibre do intestino remanescente (Figura 33.3).
to preciso.
Podem-se dividir temporalmente três períodos distintos:
■ Terceiro período: estabilização
■ Primeiro período: pós-operatório imediato Dependendo da extensão do intestino remanescente e da
qualidade de sua área absortiva, o paciente pode estabilizar-se
O primeiro período inicia-se imediatamente após a inter após, em média, 2 anos. O emagrecimento pode atingir 30%
venção cirúrgica. Além do hipercatabolismo intenso prove do peso habitual e estabilizar-se definitiva e irreversivelmen-
niente da magnitude do ato operatório e, eventualmente, de te. Tentativas de terapia nutricional agressiva e insistente são
comorbidades existentes (cardiopatias e vasculopatias), não é ineficazes para o retorno ao peso habitual. A diarréia varia em
infrequente a bacteriemia causada pela translocação bactéria- torno de seis deposições pastosas diárias, necessitando indefini
na através das paredes necrosadas do intestino. Existe grande damente de terapêutica medicamentosa. Em tal período, com
depleção hidreletrolítica, desequilíbrio acidobase e hipovole- plicações tardias como litíase biliar e nefrolitíase podem surgir,
mia, culminando com instabilidade hemodinâmica. Some-se a assim como complicações metabólicas oriundas de deficiência
diarréia profusa iniciada nas primeiras 24 h, tendendo a piorar de micronutrientes, sobretudo a hipocalcemia e a hipomag-
se tentativas errôneas de alimentação oral forem forçadas. As nesemia.
fezes são líquidas ou semilíquidas, de coloração amarelada e O paciente pode ser considerado controlável, mas não está
textura oleosa, acompanhadas, por vezes, de cólicas abdomi vel, conquanto um mínimo de absorção de nutrientes continue
nais e, também, de náuseas e vômitos. Nas primeiras semanas, a existir e a alimentação oral possa ser recomendada. Pacientes
o paciente perde rapidamente suas reservas calóricas, proteicas dependentes de NPT apresentam seguidamente complicações
e de sais minerais. metabólicas, vasculares e infecciosas.
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 387
Passados os primeiros dias de PO, e não sendo observadas Análogos da somatostatina promovem aumento na absorção
complicações imediatas, é possível oferecer, VO, pequenas e de sódio, água e cloro, além de reduzir a atividade secretória
fracionadas quantidades de líquidos isotônicos. Podem-se, ain digestiva e o volume fecal, podendo ter seu uso indicado.
da, utilizar preparados à base de farinha ou mingau de aveia, Glutamina e GH também se mostraram eficazes para melho
arroz, batatas cozidas ou mesmo massas simples, dependendo rar a adaptação intestinal e diminuir o uso de NPT, e a utilização
da tolerância individual, e se isso não acarretar piora da diar deve ser considerada. Por outro lado, outros hormônios, como
réia, vômitos ou distensão abdominal. a neurotensina, a bombesina, peptídio-II similar ao glucagon e
A nutrição enteral pode ser iniciada da mesma forma, gra IGF, estão em fase de pesquisas, e resultados definitivos ainda
dativamente, se o paciente não tem condições de deglutição, ou devem ser confirmados.
qualquer outra incapacidade de ingestão suficiente de alimentos Os apoios psicológico, médico, familiar e, sobretudo, da
VO. A terapia nutricional enteral utilizará, preferencialmen equipe de terapia nutricional são de fundamental importância
te, dietas semielementares com dipeptídios e ácidos graxos de para que o paciente aceite as modificações dietéticas impostas
cadeia média, os quais são bem tolerados, absorvidos e trans por seu quadro.
portados diretamente pela via porta, embora não apresentem a
mesma capacidade de estímulo à regeneração tecidual intestinal
que os ácidos graxos de cadeia longa.
■ Período de equilíbrio
Convém observar que portadores de SIC e ausência de vál Nesta fase, o paciente tem emagrecimento, diarréia e disab
vula ileocecal não apresentam desconjugação de sais biliares sorção estabilizados. Acostuma-se à nova fisiologia digestiva,
e redução na absorção de gorduras, agravando a esteatorreia. usa medicamentos independentemente e consegue readapta
Em tais casos, o uso de colestiramina pode ser benéfico. A nu ção em seu ambiente domiciliar, familiar e até profissional,
trição enteral pode ser infundida através de sondas de silicone, dependendo da quantidade e qualidade do intestino restante
dentro do estômago ou jejuno, colocadas via nasogástrica ou definitivo.
por gastrostomia ou jejunostomia, menos frequentemente. A Neste período, o paciente faz de seis a dez pequenas refei
infusão, em geral, é auxiliada por bombas infusoras próprias ções diárias, introduzindo novos alimentos conforme a acei
à nutrição enteral. tação, podendo adicionar soluções e suplementos nutricionais
VO, com alto teor de eletrólitos, sais minerais e vitaminas. O
■ Período de adaptação paciente deve ser orientado a revisões sistemáticas, a contro
le antropométrico e metabólico contínuo, já que comumente
Quando o paciente com SIC apresenta área absortiva resi se observa deficiência de micronutrientes, traduzida por uma
dual adequada, pode-se reduzir o uso de NPT paulatinamen- miríade de sinais e sintomas, incluindo fadiga, dermatite, alo-
te, aumentando o aporte da nutrição enteral e estimulando a pecia, taquicardia, mialgia, cardiomiopatias, encefalopatia de
dieta oral. Wernicke, acidose láctica, tetania, cegueira noturna e outros.
Os módulos de nutrição enteral não devem ultrapassar o Muitas vezes, o internamento e a reposição destes nutrientes,
dobro da osmolaridade plasmática, evitando agravamento da temporariamente, se fazem obrigatórios.
diarréia e disabsorção. O uso de triglicerídios de cadeia média Aparentemente, pacientes que apresentam extensão mínima
não deve ultrapassar o aporte calórico diário de 450 kcal, pois de 100 cm de intestino delgado remanescente podem atingir
doses elevadas desses triglicerídios (TCM) causam náuseas, esta fase com certo conforto e ter sobrevida satisfatória. Por ou
vômitos, distensão abdominal e diarréia osmótica. O aporte tro lado, aqueles que têm menos que 60 cm de intestino delgado,
lipídico deve limitar-se a 30 g por dia, totalizando uma mé ou apenas o duodeno, raramente conseguem ficar independen
dia de 15% das calorias totais, sendo razoável uma relação de tes de NPT, e, a estes, apenas o transplante intestinal poderá
2:3 de ácidos graxos de cadeia curta e 1:3 de ácidos graxos de devolver a esperança de sobrevivência e qualidade de vida.
cadeia longa.
Os peptídios (fórmulas oligomonoméricas) são mais bem
absorvidos, e de maneira mais rápida, que os aminoácidos li
vres ou a proteína intacta. O aporte proteico deve ser ofertado
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO PARA SÍNDROME
na razão de 1,2 a 2 g/kg/dia. Suplemento de glutamina diário, D0 INTESTINO CURTO
na ordem de 25 g/dia.
As vitaminas hidrossolúveis (ácido ascórbico, ácido fólico O uso contínuo e crônico de NPT no tratamento da SIC
e vitaminas do complexo B, excetuando a vitamina B12) são provoca morbidade elevada. Devido a inúmeras dificuldades na
absorvidas no intestino residual e devem ser prescritas. Na au manutenção destes pacientes, idealizaram-se no passado recen
sência de válvula ileocecal, a vitamina Bl2 deve ser prescrita por te, vários procedimentos cirúrgicos com o intuito de melhorar
via parenteral, através de injeção intramuscular, a cada 2 ou a qualidade de vida destes indivíduos.
3 meses. Vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) necessitam de A tentativa destes procedimentos era retardar o tempo de
reposições mais frequentes, em geral 2 vezes/semana. Micro- trânsito intestinal, permitindo maior tempo de contato do ali
nutrientes e oligoelementos como cálcio, zinco, ferro e mag mento com a mucosa intestinal remanescente, e, consequente
nésio deverão, da mesma forma, ser infundidos, com controle mente, melhorar a absorção. Técnicas propostas de confecções
metabólico. de válvulas, interposição de segmentos intestinais, construção
Dependendo da tolerância, a alimentação VO pode ser esti de segmentos anisoperistálticos e marca-passos intestinais fo
mulada, e quantidades de alimentos podem ser ofertadas pro ram descritas, e enteroplastia longitudinal e alongamento in
gressivamente, tendo-se em conta a proscrição do uso de leite testinal são bem consagrados.
e derivados, naqueles com deficiência de lactase. Neste perío Nos últimos 10,20 anos, a proposta de transplante intestinal,
do, os pacientes começam a identificar determinados alimen isolado ou combinado, vem ratificando-se como a alternativa
tos que melhoram ou pioram sua nova condição fisiológica ideal aos portadores de SIC. É indicada primordialmente a pa
digestiva. cientes com complicações graves da falência intestinal, dentre as
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 389
quais se destacam hepatopatia (acometendo 50% dos pacientes Dowling, RH, Fullcr, R, Ulshcn, MH, Zimmcrmann, E, Lund, PK. Small and
em NPT prolongada), sepse recorrente e perda dos acessos ve- large bowcl mRNA in thc intestinal adaptation of growth hormone in trans-
genie mice (abstract). Gut, 1991; 32:A 1208.
nosos. Embora eficaz em casos selecionados, este procedimento Dudrick, SJ, Latifi, R, Fosnoch, DE. Management of thc short bowcl syndromc.
ainda envolve dificuldades associadas à rejeição de difícil ma Surg Clin North Am, 1991; 71:625.
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O paciente submetido a transplante hepático terá indica but not vascular glutaminc in thc jointly perfused small intestine and liver
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a infecções, falência renal, hipertensão arterial, alterações neu- Gianotti, L, Alcxandcr, JS, Gcnnari, EF et al. Oral glutamine dccreases bactc-
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Insuficiência Vascular
Mesentérica
Ricardo Cesar Rocha Moreira
As lesões oclusivas dos vasos mesentéricos são, felizmente, rede colateral é formada pelas arcadas duodenopancreáticas.
problemas relativamente raros na prática clínica. No entanto, Entre as artérias mesentérica superior e inferior, existem arté
quando ocorrem, essas lesões se apresentam de forma dramá rias comunicantes que recebem epônimos: a artéria marginal
tica: o diagnóstico é difícil, o tratamento, em geral, tardio e o de Drummond (que acompanha a borda mesentérica do cólon
prognóstico desfavorável. O médico que assume a responsa esquerdo) e a arcada de Riolano (que percorre o mesocólon).
bilidade de tratar estes pacientes tem que dispor dos conhe Quando ocorre lesão oclusiva de uma das artérias mesentéricas,
cimentos básicos sobre as doenças dos vasos mesentéricos e as artérias comunicantes podem se dilatar, servindo de eficien
aplicá-los com presteza, para reduzir a alta morbimortalidade tes vasos colaterais. A colateral dilatada que pode ser demons
destas afecções. trada por angiografia é denominada artéria do meandro.
A circulação venosa colateral mesentérica é tão desenvolvida
quanto a circulação colateral arterial. Apesar de terminar em
■ CONSIDERAÇÕES BÁSICAS uma única veia, a veia porta, o sistema venoso mesentérico apre
senta numerosas veias colaterais, tanto dentro do mesentério,
■ Anatomia quanto ao redor do fígado (a chamada circulação periporta).
A circulação mesentérica (ou esplâncnica) é formada pelo
conjunto de artérias, veias e capilares que irrigam e drenam a ■ Fisiologia
parte abdominal do tubo digestivo e órgãos sólidos anexos (fí O fluxo sanguíneo esplâncnico em um indivíduo adulto hí-
gado, pâncreas e baço). O eixo da circulação mesentérica é a gido, em repouso e em jejum corresponde a cerca de 20% do
artéria mesentérica superior, ramo da aorta que irriga todo o débito cardíaco. A circulação esplâncnica se caracteriza por
intestino delgado e parte do intestino grosso, do ceco à flexu- ser regulada por fatores extrínsecos (pressão arterial e débito
ra esplênica do cólon. Dois outros ramos da aorta abdominal
cardíaco) e pela autorregulação intrínseca, isto é, pela influên
também fazem parte da circulação mesentérica: o tronco celía-
cia de fatores locais, como hormônios da parede intestinal e a
co, que irriga o estômago, o duodeno e as vísceras sólidas do
presença de alimento na luz do estômago ou do intestino del
abdome superior (fígado, pâncreas e baço) e a artéria mesen
gado. Em condições fisiológicas, os fatores intrínsecos fazem
térica inferior, que supre parte do intestino grosso, do cólon
descendente ao reto. Essas três artérias garantem um abundante com que o fluxo sanguíneo varie muito, devido aos fenômenos
suprimento sanguíneo para todos os órgãos abdominais. de dilatação e constrição do leito vascular mesentérico.
A circulação venosa do intestino é igualmente abundan A vasodilatação provoca aumento acentuado do fluxo
te. A veia esplênica drena o baço, o estômago e o pâncreas. A sanguíneo para o trato gastrintestinal e para os órgãos anexos.
veia mesentérica superior drena o intestino delgado e a parte Após a alimentação, por exemplo, o fluxo sanguíneo para os
do cólon irrigados pela artéria mesentérica superior. A veia intestinos pode aumentar até 60%, como consequência da va
mesentérica inferior drena o segmento do cólon irrigado pela sodilatação mediada por hormônios da parede do tubo diges
artéria correspondente. A veia porta, formada pela confluência tivo, como a gastrina e a colecistoquinina; e do pâncreas, como
das três veias anteriores, percorre um trajeto curto, da base do o glucagon. O aumento fisiológico do fluxo sanguíneo se torna
mesentério ao hilo hepático, drenando todo o sangue da cir necessário para que o intestino exerça suas funções de digestão
culação mesentérica para o fígado. e absorção dos alimentos. Em condições patológicas, como,
Uma vasta rede de vasos colaterais interliga as três artérias por exemplo, uma oclusão da artéria mesentérica superior, a
da circulação mesentérica. Os ramos jejunais, ileais e cólicos vasodilatação do leito mesentérico não é acompanhada por
da artéria mesentérica superior formam uma complexa rede de aumento do fluxo sanguíneo. O resultado é um desequilíbrio
arcadas vasculares no mesentério e na própria parede intesti entre a demanda e o aporte de sangue para a parede intestinal,
nal. Entre o tronco celíaco e a artéria mesentérica superior, a fenômeno conhecido como isquemia funcional
391
392 Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica
■ Métodos diagnósticos
O diagnóstico das afecções vasculares mesentéricas depende
não apenas do exame clínico, mas principalmente de métodos
de imagem. Atualmente, existem pelo menos quatro métodos
para investigar lesões dos vasos mesentéricos: a ultrassonografia
Doppler, a angiorressonância magnética, a angiotomografia e
a angiografia com cateter.
A ultrassonografia Doppler é geralmente o exame inicial de
triagem, por ser um método totalmente não invasivo que tem
se revelado altamente acurado na avaliação de lesões no tronco
celíaco e na origem da artéria mesentérica superior. No entanto,
a ultrassonografia Doppler tem utilidade apenas como exame
diagnóstico, que permite confirmar a suspeita clínica, mas não é
precisa e detalhada o suficiente para se planejar o tratamento.
A angiorressonância magnética e a angiotomografia são mé
todos pouco invasivos de se obterem imagens angiográficas dos
vasos mesentéricos. Ambas são bastante acuradas, dependendo
da qualidade do aparelho onde o exame é executado. Aparelhos
de ressonância magnética de 1,5 Tesla (ou mais) e tomógrafos
helicoidais de múltiplos canais (multislice) fornecem imagens
de alta qualidade da aorta abdominal e das três artérias que
irrigam o trato gastrintestinal, bem como do sistema venoso
mesentérico. Estes métodos permitem confirmar o diagnósti
co da isquemia mesentérica e da trombose venosa, bem como
planejar o tratamento cirúrgico ou endovascular, na grande
maioria dos casos.
O exame definitivo para o diagnóstico e planejamento tera
pêutico da isquemia mesentérica aguda e crônica é a arteriogra
fia com cateter. O exame arteriográfico deve obrigatoriamente
incluir aortografia em posição lateral, além de injeções seletivas
no tronco celíaco, artéria mesentérica superior e inferior. A ar-
teriografia com cateter é essencial no diagnóstico da isquemia
Figura 34.1 Arteriografia mostra artéria do meandro.
mesentérica aguda, onde o cateter também pode ser o veículo
para administração de drogas vasodilatadoras ou trombolíticas.
A arteriografia com cateter também é essencial no diagnóstico e
tratamento endovascular da isquemia mesentérica crônica.
Do ponto de vista fisiopatológico, o mais im portante fe
nômeno da circulação mesentérica é a vasoconstrição, que é
desencadeada por qualquer redução do fluxo sanguíneo para
os intestinos. A redução pode ser de causa local (oclusão da ■ ISQUEMIA MESENTÉRICA AGUDA
artéria mesentérica superior) ou sistêmica, por redução acen A forma clínica mais comum de insuficiência vascular me
tuada do débito cardíaco, como acontece nos estados de choque sentérica é a isquemia intestinal aguda. A isquemia aguda -
ou na insuficiência cardíaca. A redução de fluxo desencadeia queda do fluxo sanguíneo arterial para níveis abaixo das ne
uma constrição intensa dos vasos mesentéricos. Essa resposta, cessidades metabólicas do intestino - é uma das catástrofes
mediada pelo eixo renina-angiotensina, pode se prolongar por abdominais, resultando na morte da maioria das suas vítimas.
muitas horas depois que cessou o estímulo desencadeante. A va Apesar dos avanços recentes no diagnóstico e manejo dos pa
soconstrição do leito vascular mesentérico tem importantes im cientes com isquemia intestinal aguda, a mortalidade e as com
plicações na fisiopatologia da isquemia aguda dos intestinos. plicações tardias (síndrome do intestino curto) destes pacientes
permanecem desalentadoramente elevadas.
■ Farmacologia
Como mencionado anteriormente, a circulação mesenté ■ Etiologia e patogênese
rica tem grande capacidade de autorregulação, respondendo O mecanismo básico da isquemia intestinal aguda é a queda
a estímulos sistêmicos e locais. Da mesma forma, a circulação abrupta do fluxo sanguíneo mesentérico - por oclusão aguda
mesentérica é afetada por diversas drogas, tanto lícitas quanto e/ou por vasoconstrição prolongada dos vasos mesentéricos.
ilícitas. Das drogas lícitas, devem ser mencionados os digitáli- As causas de isquemia mesentérica aguda são: trombose, em
cos, a vasopressina e algumas drogas vasoativas adrenérgicas, bolia e a isquemia não oclusiva. Outra causa de insuficiência
como a epinefrina e a dobutamina em doses altas. Essas dro mesentérica aguda, discutida na terceira seção deste capítulo,
gas induzem vasoconstrição prolongada e podem provocar ou é a trombose venosa mesentérica.
agravar a isquemia intestinal. Das drogas ilícitas, é importante
ressaltar os efeitos vasoconstritores da cocaína, que pode pro ■ Trom bose arterial
vocar dor abdominal por isquemia do intestino delgado e até A causa subjacente à maioria das tromboses agudas mesen
mesmo necrose isquêmica do cólon. téricas é a aterosclerose. Quase todos os pacientes são idosos
Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica 393
e apresentam evidências clínicas da doença aterosclerótica em À medida que a isquemia persiste, a mucosa se torna permeá
outros territórios, como nas coronárias, nas carótidas e nas vel às enzimas digestivas e às bactérias do lúmen intestinal.
artérias dos membros inferiores. A trombose aguda em geral Ocorre então o fenômeno de translocação bacteriana, com a
se instala em uma placa de ateroma no óstio da artéria mesen migração de bactérias através da parede isquêmica para a ca
térica superior. O trombo se propaga distalmente, ocluindo vidade peritoneal e corrente sanguínea. Na submucosa, apare
sucessivamente os ramos duodenais, a artéria cólica média e ce edema intenso, com hemorragias esparsas e pouca reação
os ramos jejunais e ileais. A trombose pode se propagar até o inflamatória. As alterações patológicas se estendem a todas as
ramo terminal da artéria mesentérica superior, a artéria ileo- camadas da parede intestinal. Os músculos da parede intesti
cólica. Outras doenças sistêmicas infrequentes, como dissecção nal começam a sofrer o processo de infarto e apresentam cor
aguda da aorta, poliarterite nodosa, lúpus eritematoso sistê arroxeada característica.
mico, púrpura de Henoch-Schônlein, arterite de Takayasu e A isquemia que se prolonga por mais do que algumas horas
hiper-homocisteinemia, podem provocar trombose aguda das acaba por provocar necrose hemorrágica do intestino. O seques
artérias mesentéricas. tro maciço de plasma e fluidos na parede e na luz dos intestinos
provoca hipovolemia e queda do débito cardíaco, reforçando o
■ Embolia arterial ciclo vicioso hipovolemia-vasoconstrição-isquemia. Nos está
A embolia arterial é a causa mais comum de isquemia me gios finais do processo, a necrose hemorrágica envolve toda a
sentérica aguda, correspondendo a cerca de 50% dos casos nas parede intestinal, permitindo a livre passagem de bactérias para
grandes séries publicadas. Como as embolias arteriais em ou a cavidade peritoneal {peritonite) e para a corrente circulatória
tros territórios, os êmbolos mesentéricos quase sempre têm (bacteriemia e choque séptico).
sua origem no coração. As causas de embolia cardiogênica são Paradoxalmente, as graves alterações provocadas pela is
fibrilação atrial crônica e infarto do miocárdio nos idosos e quemia podem ser agravadas pelo tratamento bem-sucedido.
valvulopatia reumática nos mais jovens. Enquanto a trombose Quando se consegue restabelecer o fluxo sanguíneo mesentérico
oclui a artéria mesentérica superior no seu óstio, na embolia antes da necrose intestinal, ocorre o fenômeno da reperfusão. Os
o coágulo geralmente se aloja alguns centímetros distalmente tecidos isquêmicos são inundados pelo fluxo pulsátil de sangue
à origem da artéria mesentérica superior, na altura da artéria oxigenado, o que provoca novos danos celulares pela liberação
cólica média. Devido a essas diferenças de local de oclusão, na de substâncias citotóxicas (os chamados radicais livres) e por
trombose aguda todo o intestino delgado e o cólon direito so complexas interações entre o endotélio e os neutrófilos do san
frem isquemia, enquanto na embolia as alças jejunais proximais gue. O resultado é a virtual destruição de membranas celulares
e o cólon esquerdo são poupados. já lesadas pela isquemia e, eventualmente, o aparecimento de
resposta inflamatória sistêmica, com lesões de outros órgãos,
■ Isquemia não odusiva como os rins e o pulmão.
Uma causa peculiar de isquemia mesentérica aguda é a is
quemia não oclusiva, na qual não se observa oclusão mecânica
das artérias mesentéricas e sim vasoconstrição intensa nas pe
■ Quadro clínico
quenas artérias e arteríolas do leito mesentérico. Várias situações O(A) paciente apresenta dor abdominal, cuja principal ca
clínicas podem desencadear isquemia intestinal sem oclusão racterística é ser fora de proporção com os achados do exame
vascular: insuficiência cardíaca, hipotensão, hipovolemia e de clínico do abdome. Portanto, a apresentação clínica é de um
sidratação. Em todas essas situações, ocorrem queda do débito abdome agudo e deve ser investigada como tal. A dor pode ter
cardíaco e o fenômeno reflexo de vasoconstrição intensa dos início abrupto ou gradual, dependendo da causa da isquemia in
vasos mesentéricos. A vasoconstrição, aliada ao estado de baixo testinal aguda. Como as apresentações clínicas variam de acor
fluxo sanguíneo sistêmico, resulta em provocar isquemia intes do com a causa, Bergan sugeriu classificá-las em síndromes:
tinal. Os pacientes com isquemia não oclusiva tipicamente estão ► 1. Sín d ro m e da e m b o lia arte ria l. O paciente se queixa se
internados em Unidade de Terapia Intensiva, em tratamento dor abdominal difusa e intensa, de início abrupto. A dor pode
de uma doença grave subjacente. Um fator agravante é o uso ser contínua ou em cólica e ser seguida por náuseas e vômitos.
de drogas que induzem vasoconstrição mesentérica, como os Pode ocorrer um episódio de esvaziamento intestinal. O pa
digitálicos e as drogas vasopressoras usadas para tratar hipo ciente invariavelmente tem cardiopatia embolígena: arritmia
tensão. Nos trabalhos recentes, a isquemia não oclusiva vem cardíaca (mais comum é a fibrilação atrial); infarto do mio
sendo cada vez mais diagnosticada como causa de isquemia cárdio recente; doença valvular com sopro cardíaco ou mio-
intestinal aguda. cardiopatia (no Brasil, doença de Chagas). Cerca de 30% dos
pacientes têm história pregressa de embolia arterial. A tríade
clínica: dor abdominal intensa de início abrupto, esvaziamento
■ Patologia intestinal e doença cardíaca embolígena é altamente sugestiva
Na fase inicial da isquemia, a camada da parede intestinal de embolia mesentérica.
mais afetada é a mucosa. O metabolismo energético das células ► 2. S ín d ro m e da tro m b o se a rte ria l. O paciente é geral
epiteliais cessa completamente. A função absortiva da mucosa mente idoso, com manifestações clínicas de aterosclerose, como
se perde, permitindo a passagem bidirecional dos fluidos or história de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral is-
gânicos. Os achados macroscópicos nesta fase podem ser sutis, quêmico ou doença arterial obstrutiva dos membros inferiores.
como palidez das alças intestinais e edema da parede. Micros Alguns pacientes apresentam uma história prolongada de dor
copicamente, observam-se perda das vilosidades intestinais e abdominal pós-prandial e perda de peso, sugerindo isquemia
edema das camadas internas (mucosa e submucosa). A hipoxia intestinal crônica. O quadro pode ter início insidioso, com dor
dos músculos da parede intestinal manifesta-se inicialmente abdominal vaga, inapetência, náuseas e vômitos. Pode haver eli
como aumento do peristaltismo e esvaziamento intestinal, se minação de fezes com sangue visível ou oculto. A apresentação
guido por paralisia e distensão das alças intestinais. clínica lembra o quadro de uma oclusão intestinal aguda. Ao
394 Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica
exame físico, o abdome se apresenta distendido, mas os ruídos bose aguda, a artéria mesentérica superior e seus ramos estão
hidroaéreos são hipoativos ou ausentes. ocluídos e a circulação colateral é pobre. Na embolia, a porção
► 3. Sín d ro m e da isq u e m ia não o c lu siv a . Os pacientes são inicial da artéria mesentérica superior se enche de contraste, e
invariavelmente cardiopatas graves, quase sempre em uso de tromboêmbolos obstruindo parcial ou totalmente o leito dis
digitálicos. Comumente, já estão internados por piora recente tai podem ser demonstrados (Figura 34.2). Na isquemia não
da cardiopatia ou por intercorrência grave (infecção aguda, pio oclusiva, o tronco da artéria mesentérica superior e seus ramos
ra de insuficiência cardíaca ou cirurgia de grande porte). Mais principais estão normais, mas notam-se múltiplas estenoses,
da metade dos pacientes têm evidência de intoxicação digitá- oclusões segmentares e espasmo difuso das pequenas artérias
lica. No início do quadro, a dor pode estar ausente ou, quando do leito mesentérico. Na fase visceral da arteriografia, nota-se
presente, ser apenas moderada. Os sintomas iniciais podem ser escassez ou ausência de contraste em segmentos do intestino.
passagem de fezes sanguinolentas e/ou melena. Ao exame, o A introdução da angiografia por tomografia computadori
abdome está distendido e pouco doloroso à palpação, sugerin zada de alta resolução (a chamada angiotomografia multislice)
do íleo paralítico. Uma situação particular é o aparecimento de veio facilitar o diagnóstico da dor abdominal aguda de causa
isquemia intestinal não oclusiva no pós-operatório de cirurgia vascular, especialmente quando existe trombose venosa mesen
cardíaca, o que ocorre em cerca de 1% dos casos. térica. Na isquemia arterial, a angiotomografia tem sensibilida
de apenas razoável, embora seja altamente específica, quando
demonstra trombos nas artérias mesentéricas.
■ Diagnóstico Outros exames: ultrassonografia Doppler, endoscopia di
Em todo paciente com dor abdominal intensa e prolongada, gestiva e angiografia por ressonância magnética também são
mas com o exame clínico do abdome normal, deve ser levan usadas no diagnóstico de dor abdominal aguda. No entanto,
tada a suspeita de isquemia intestinal aguda. A suspeita deve quando existe a suspeita de isquemia mesentérica aguda, é mais
aumentar se o paciente for idoso, com história de cardiopatia apropriado encaminhar o paciente para laparotomia explora
grave, arritmia cardíaca ou sinais de aterosclerose avançada. dora (ou para laparoscopia diagnóstica) do que perder tempo
O paciente com suspeita de isquemia aguda intestinal deve ser com estes exames, cuja utilidade é limitada.
internado em hospital e submetido à rotina diagnóstica para
abdome agudo. Desta rotina inicial, devem constar hemogra-
ma, amilase/lipase, exames metabólicos, provas de função he-
■ Tratamento
pática, radiografias simples e ultrassonografia do abdome. Os A grande maioria dos pacientes com isquemia mesentérica
exames têm como finalidade excluir causas mais comuns de aguda se apresenta com abdome agudo. Como existem causas
dor abdominal aguda, como perfuração de uma víscera, obs muito mais frequentes de dor abdominal aguda, o diagnóstico
trução intestinal e pancreatite. Na isquemia intestinal aguda, de isquemia mesentérica não é considerado. Nas palavras de
esses exames estão invariavelmente alterados. O hemograma Bergan, “o paciente é tratado conservadoramente, enquanto o
revela precocemente leucocitose acentuada (15.000 a 25.000 intestino morre”. Somente um alto grau de suspeita que desen
leucócitos/mm3), com desvio para formas imaturas. O hema- cadeie uma investigação dirigida pode levar ao diagnóstico e ao
tócrito pode estar elevado, refletindo a perda de plasma no tratamento precoce de isquemia intestinal aguda.
intestino isquêmico. A amilase sérica está elevada em cerca da
metade dos casos, mas não nos níveis encontrados nos porta
dores de pancreatite aguda. Acidose metabólica é um achado
precoce e constante, que tende a se acentuar com a progressão
da isquemia intestinal. Enzimas que refletem destruição teci-
dual (creatinofosfoquinase, desidrogenase láctica e as transa-
minases) somente se alteram na fase tardia de necrose intesti
nal. Outros exames rotineiros, como eletrólitos e glicemia, são
úteis no manejo metabólico dos pacientes, mas não auxiliam
o diagnóstico específico. Os únicos exames laboratoriais cujas
alterações são especificamente sugestivas de isquemia mesen
térica são a dosagem de fosfato sérico e o exame de dímero-D.
Infelizmente, ambos são raramente solicitados em pacientes
com dor abdominal aguda.
Na fase inicial da isquemia mesentérica, radiografias simples
do abdome são úteis apenas para excluir outras causas de ab
dome agudo. Na fase tardia, com necrose intestinal já presente,
as radiografias podem mostrar distensão e edema das alças, e
a presença de gás na parede intestinal, em ramos da veia porta
e na cavidade peritoneal.
Caso os exames iniciais não revelem outra causa, deve-se
proceder imediatamente à investigação vascular armada. O exa
me tradicional nestes casos é a arteriografia com cateter. Todo
paciente com suspeita clínica de isquemia mesentérica aguda
deve ser submetido a arteriografia de emergência, antes de lapa-
rotomia exploradora. O exame arteriográfico adequado deve ser
feito com cateter seletivo, nos planos anteroposterior a lateral e
mostrar as diversas fases da circulação mesentérica. Cada causa Figura 34.2 Aspecto arteriográfico típico da embolia da mesentérica
de isquemia aguda apresenta achados característicos. Na trom superior.
Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica 395
imediata, mas o condena às graves complicações metabólicas a hipótese de que a dor abdominal podería ser causada por is
e nutricionais da chamada síndromedointestinocurto. Essa quemia intestinal pós-prandial. Com este conceito em mente,
síndrome é discutida detalhadamente em outro capítulo desta Dunphy observou em necropsias que a maioria dos pacientes
obra (Capítulo 33). com trombose aguda da artéria mesentérica superior relatavam
► 3. R e sse cção d o in te stin o n e cro sa d o . Pode ser extrema episódios recorrentes de dor abdominal pós-prandial meses
mente difícil a definição intraoperatória de quais os segmen ou anos antes. Sua conclusão - “a importância clínica da dor
tos intestinais ainda são viáveis e quais já estão necrosados. abdominal de origem vascular reside no fato de ser precursora
Os critérios clínicos tradicionais: cor das alças, pulsações dos de oclusão mesentérica vascular fatal” - estabeleceu definiti
vasos mesentéricos, presença de peristaltismo e sangramento vamente a correlação clínica entre dor abdominal, oclusão das
da parede intestinal à secção podem ser inconclusivos e mes artérias digestivas e necrose intestinal. Mikkelsen, em 1957,
mo enganosos. Estas dificuldades levaram ao desenvolvimento em uma feliz comparação com a isquemia miocárdica, popu
de métodos objetivos para auxiliar na decisão de quais os seg larizou o termo “angina intestinal” e sugeriu que as oclusões
mentos que devem ser ressecados e quais devem ser preserva crônicas das artérias mesentéricas poderiam ser tratadas por
dos. Os métodos mais estudados são: o fluxômetro Doppler técnicas cirúrgicas. Um ano depois, Shaw e Maynard relata
ultrassônico; a medida do gradiente de temperatura entre as ram a primeira operação bem-sucedida para tratamento da is
bordas mesentérica e antimesentérica do intestino; a infusão quemia intestinal crônica: a tromboendarterectomia da artéria
intravenosa de fluorosceína, seguida do exame das alças com mesentérica superior.
uma lâmpada ultravioleta; e o uso do laser Doppler. Os qua Desde então, diferentes técnicas cirúrgicas: endarterectomia,
tro métodos são bastante acurados em estudos de laboratório derivações com veias ou enxertos sintéticos e reimplante da
e têm sido usados clinicamente. Na prática, o simples exame artéria mesentérica na aorta têm sido utilizadas no tratamento
clínico do intestino, após revascularização, tem sido o método da isquemia intestinal crônica. Mais recentemente, o advento
mais usado pela grande maioria dos cirurgiões no Brasil, que de técnicas endovasculares como a angioplastia, com ou sem
geralmente não dispõem dos métodos sofisticados descritos implante de stentsy tem simplificado o tratamento das lesões
anteriormente. oclusivas das artérias intestinais.
Nos casos em que persistem dúvidas quanto à viabilidade
intestinal, pode-se proceder à ressecção das alças claramente
necrosadas e reoperar o paciente 12 a 24 h depois, para reexa
■ Etiologia e patogênese
minar as alças intestinais remanescentes e as anastomoses. Essa A aterosclerose da aorta e das artérias viscerais é um acha
conduta de se reoperar o paciente deliberadamente, chamada do universal na população idosa do mundo ocidental. Porém,
second-lookoperation na literatura de língua inglesa, tem sido na grande maioria das vezes, as lesões ateroscleróticas das ar
utilizada por muitos cirurgiões experientes. Embora sua lógi térias que suprem as vísceras abdominais são assintomáticas.
ca não possa ser questionada, um estudo recente mostrou que Geralmente, a lesão aterosclerótica é ostial, isto é, na origem
os pacientes submetidos à laparotomia second-look tiveram da artéria, e se instala lentamente, o que permite o desenvolvi
mortalidade significativamente maior (80% x 35%) do que os mento de uma circulação colateral eficaz distalmente à lesão.
pacientes que foram tratados apenas com o melhor suporte A rede colateral entre as artérias digestivas é tão rica que pelo
clínico possível. menos duas das três artérias têm que apresentar estenoses gra
ves ou oclusões, para que o intestino venha a sofrer isquemia.
No indivíduo com isquemia intestinal crônica, o fluxo sanguí
■ Prognóstico neo durante o jejum em geral é suficiente para as necessidades
Embora tenha havido avanços recentes no diagnóstico e do intestino. Durante a digestão, quando aumentam as neces
tratamento da isquemia intestinal aguda, a mortalidade tem sidades metabólicas do intestino, o fluxo sanguíneo se torna
sido extremamente elevada. Os pacientes com embolia mesen insuficiente, desencadeando a dor isquêmica. Embora pareça
térica operados precocemente têm o melhor prognóstico, com um mecanismo simples, na realidade a resposta fisiológica da
a mortalidade variando de 30 a 50%. Por outro lado, trombose circulação intestinal durante a digestão é bastante complexa.
mesentérica apresenta péssimo prognóstico. Como esses pa A causa mais comum de isquemia intestinal crônica é, de
cientes são quase sempre operados tardiamente, a mortalida longe, a aterosclerose. Causas raras incluem: estenoses congê
de fica acima de 85%, chegando a 100% em algumas séries. A nitas (coarctação da aorta abdominal), displasia fibromuscular,
isquemia não oclusiva tem prognóstico intermediário, graças arterites (doença de Takayasu) e sequelas de irradiação sobre o
ao tratamento clínico intensivo e ao uso de vasodilatadores. abdome (arterite actínica).
No entanto, mesmo em condições ideais de tratamento, cer
ca da metade dos pacientes morrem durante o tratamento,
por complicações da doença cardíaca subjacente. A maioria
■ Quadro clínico
dos pacientes que sobrevivem a ressecções intestinais maci Os pacientes com isquemia intestinal crônica se queixam de
ças sucumbe tardiamente por complicações da síndrome do dor abdominal e perda de peso. Dor abdominal pós-prandial
intestino curto. (a chamada “angina mesentérica”) é o sintoma característico da
isquemia intestinal crônica. A dor se inicia de 30 a 60 min de
pois da refeição, é contínua ou em cólica, se localiza no epigás-
■ ISQUEMIA INTESTINAL CRÔNICA trio ou na região periumbilical e pode durar de 1 a 4 h. Alguns
pacientes referem alívio da dor adotando a posição de cócoras
Desde o final do século XIX, já se sabia que alguns pacientes ou de prece maometana. Os episódios repetidos de dor levam
com dor abdominal crônica tinham oclusão das artérias que ir o paciente a ter medo de se alimentar, o que resulta em per
rigam o intestino. No entanto, autoridades médicas da época, da de peso em praticamente 100% dos casos. Alguns autores
como William Osler, atribuíam a dor abdominal a formas atípi até afirmam que o diagnóstico de isquemia intestinal deve ser
cas de anginadepeito. Em 1933, Conner levantou novamente questionado se o paciente não tiver perda de peso. No entan
C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V a scu la r M ese n térica 397
to, alguns pacientes não relacionam a perda de peso com a dor revascularização intestinal. Em particular, o achado arterio
abdominal e têm que ser questionados especificamente sobre gráfico de uma artéria do meandro deve alertar o cirurgião
o momento que a dor aparece e sua relação com as refeições. para a necessidade de revascularização profilática, no decur
Náuseas ou vômito são sintomas infrequentes. Alterações de so de operações sobre a aorta abdominal (por aneurisma ou
hábito intestinal, como constipação intestinal ou diarréia, po doença oclusiva).
dem estar presentes. A técnica mais popular de revascularização intestinal é a
No exame físico, além de emagrecimento e sinais de desnu ponte aortomesentérica. Uma única ponte para a artéria me
trição, pode-se auscultar sopro abdominal em cerca de 50% dos sentérica superior é suficiente para aliviar a isquemia na gran
casos. A maioria dos pacientes é fumante e apresenta sinais de de maioria dos casos, mesmo quando há doença oclusiva em
aterosclerose avançada em outros territórios. duas ou nas três artérias digestivas. Ocasionalmente, duas pon-
■ Diagnóstico
Os sintomas de dor abdominal e perda de peso sugerem o
diagnóstico de neoplasia maligna oculta. Os pacientes são qua
se sempre submetidos a uma série de exames de imagem e a
endoscopias do trato digestivo, com resultados evidentemente
negativos. Os sintomas são então rotulados como funcionais e
os pacientes tratados sintomaticamente. Alguns são até envia
dos a psiquiatras para tratamento de seus distúrbios “emocio
nais”. A tríade dor abdominal, medo de se alim entar e perda
de peso deve levantar a suspeita clínica de isquemia intestinal
crônica. A partir desta suspeita, devem ser solicitados exames
de imagem das artérias mesentéricas.
A ultrassonografia Doppler é geralmente o primeiro exame
a ser solicitado, por ser não invasivo, sem riscos ou desconforto
para o paciente. Nos ambientes que dispõem de ultrassonogra-
fistas experientes, a suspeita de isquemia intestinal crônica pode
ser confirmada pelo achado de lesões oclusivas na origem das
artérias mesentéricas. Porém, os achados da ultrassonografia
Doppler devem ser sempre confirmados por exames mais pre
cisos, que permitem planejar o tratamento.
Os métodos pouco invasivos de angiografia mesentérica -
a angiotomografia e a angiorressonância magnética - podem
ser úteis no diagnóstico das oclusões crônicas das artérias me
sentéricas, especialmente quando envolvem a porção proximal
destas artérias. Nos aparelhos modernos de alta resolução, a
acurácia se aproxima do método “padrão-ouro”, a angiografia
com cateter.
O exame definitivo para o diagnóstico e planejamento te
rapêutico da isquemia mesentérica crônica é a arteriografia. O Figura 34.4 Arteriografia mostra odusão do tronco celíaco e das ar
exame arteriográfico deve obrigatoriamente incluir aortografia térias mesentéricas superior e inferior.
em posição lateral, além de injeções seletivas no tronco celía-
co, artéria mesentérica superior e inferior. Para se confirmar
o diagnóstico de isquemia mesentérica crônica, a arteriografia
tem que mostrar estenoses graves e oclusões de pelo menos
duas das três artérias anteriores (Figura 34.4).
Ocasionalmente, os exames de imagem podem mostrar este-
nose isolada do tronco celíaco. Este achado é bastante contro
vertido como causa de dor abdominal crônica e somente deve
ser levado em conta se nenhuma outra causa, vascular ou não,
for encontrada para explicar a dor abdominal do paciente.
■ Tratamento
O tratamento tradicional da isquemia mesentérica crônica é
cirúrgico, consistindo na revascularização intestinal por meio
de uma derivação, endarterectomia ou reimplante arterial. A
indicação para o tratamento cirúrgico é absoluta nos pacientes
sintomáticos, de bom risco cirúrgico, não apenas para aliviar
os sintomas, como também para prevenir necrose intestinal no
futuro. Em pacientes com poucos sintomas, ou assintomáticos,
mas cujos exames de imagem mostram estenoses graves ou Figura 34.5 Ponte aortomesentérica superior. (Esta figura encontra-se
oclusões das artérias mesentéricas, há indicação relativa para reproduzida em cores no Encarte.)
398 C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V ascu la r M ese ntérica
■ Prognóstico ■ Etiopatogenia
O prognóstico dos pacientes submetidos à revasculariza A trombose da veia mesentérica superior pode ser aguda,
ção intestinal eletiva é geralmente satisfatório. Por outro lado, subaguda ou crônica, dependendo da sua causa. A trombose
pacientes com isquemia crônica não tratada que desenvolvem aguda da veia mesentérica superior geralmente acomete apenas
isquemia aguda e necessitam de tratamento de urgência têm esta veia e seus ramos, mas pode se estender proximalmente
um péssimo prognóstico, como mostrado na seção anterior para a veia porta, provocando hipertensão portal aguda. As
deste capítulo. tromboses subaguda e crônica geralmente acontecem como
consequência de hipertensão do sistema porta por doença do
parênquima hepático (hepatite crônica e cirrose). O processo
■ TROMBOSE VENOSA MESENTÉRICA de trombose se propaga de forma retrógrada da veia porta para
suas principais tributárias.
A trombose da veia mesentérica superior e/ou de um dos Atualmente, sabe-se que a causa mais comum de trombose
seus ramos é causa infrequente de isquemia e necrose intesti venosa mesentérica é trombofilia (ou seja, hipercoagulabilidade
nal. Como descrito na seção inicial deste capítulo, três grandes sanguínea). As causas de trombofilia podem ser congênitas
C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V a scu la r M ese n térica 399
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Figura 34.7 Imagens ao ecodoppler da trombose da veia mesentérica superior. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
400 C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V ascu la r M ese ntérica
O diagnóstico de trombose venosa mesentérica subaguda sem anastomose. Pode-se então recorrer a uma reoperação de
ou crônica pode ser feito pelos métodos anteriores e também liberada (second-look operation) 12 a 24 h depois da operação
pela ultrassonografia Doppler. inicial, para ressecar segmentos intestinais claramente inviáveis
e para restabelecer o trânsito intestinal.
■ Tratamento
A medida terapêutica mais importante é a administração de
■ Prognóstico
heparina, tão logo o diagnóstico seja confirmado por exames Apesar dos avanços recentes no diagnóstico por imagem e
de imagem ou à operação. O uso rotineiro de heparina na fase no tratamento anticoagulante, a mortalidade da trombose ve
aguda, seguida de anticoagulante oral por tempo prolongado, nosa mesentérica permanece relativamente alta. Isso se deve
tem reduzido substancialmente a progressão, a recidiva e a mor ao diagnóstico frequentemente tardio, à progressão e recidiva
talidade da trombose venosa mesentérica. Alguns autores têm do processo trombótico e à necessidade de ressecções intesti
advogado o tratamento clínico (heparina, antibióticos e trata nais maciças.
mento suportivo) para todos os casos de trombose venosa me
sentérica, cujo diagnóstico seja feito por exame de imagem.
Recentemente, têm sido publicadas séries pequenas de trata ■ LEITURA RECOMENDADA
mento trombolítico da trombose venosa mesentérica. A injeção
da droga trombolítica (em geral, o ativador tissular do plasmi- Acosta, S, Nilsson, TK, Bjorck, M. Prcliminary study of D-dimcr as a possiblc
nogênio recombinante - rTPA) pode feita por meio de cateter markcr of acutc bowcl ischacmia. Br J Surg, 2001; 88-.385-8.
Acosta, S, Ogrcn, M, Stcrnby, NH et al. Mcscntcric vcnous thrombosis wi-
de angiografia colocado diretamente na artéria mesentérica
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por implante de um cateter diretamente em um ramo da veia Bcch, FR. Ccliac artery comprcssion syndromcs. Surg Clin North Am, 1997;
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Supercrescimento Bacteriano
no Intestino Delgado
Ahmed Abu-Shanab, Rodrigo M. Quera e Eamonn M. M. Quigley
(Tradução: Lorete Maria da Silva Kotze)
402
C a p ítu lo 3 5 / S u p e rc re sc im e n to B a c te ria n o n o In te stin o D e lg a d o 403
leva à produção de hidrogênio, que é absorvido e finalmente terapia antibiótica efetiva deverá cobrir bactérias aeróbicas e
excretado pela respiração. Como a produção de hidrogênio é anaeróbicas. Diferentes esquemas têm sido sugeridos. Em ge
um fenômeno normal, a preparação do paciente é vital para ral, um curso de 7 a 10 dias de antibióticos pode melhorar os
a acurácia do teste. Assim, a ingestão de certos alimentos - sintomas até por diversos meses em cerca de 46 a 90% dos pa
tais como pão, fibras e massas o fumo, as ações das bacté cientes com SBID e tornar os testes respiratórios negativos em
rias orais e a presença de doença pulm onar podem afetar a 20 a 75% dos casos. Devido à recorrência de sintomas, alguns
acurácia diagnóstica. Nestes testes, o diagnóstico de SI3ID é pacientes necessitarão de repetição (p. ex., nos 5 a 10 primeiros
estabelecido quando a concentração do H, exalado aumenta dias de cada mês) ou cursos contínuos de tratamento antibió
mais que 10 partes por milhão (ppm) em relação ao basal em tico. Para estes últimos, regimes rotatórios de antibióticos são
duas amostras consecutivas, ou se o hidrogênio respiratório de recomendados para prevenir resistência bacteriana. As decisões
jejum excede 20 ppm. A fermentação do carboidrato residual de manejo devem ser individualizadas e devem-se considerar
pelas bactérias da orofaringe pode também contribuir para n í os riscos de esquemas a longo prazo, como diarréia, infecção
veis elevados de hidrogênio e, assim, para uma superestimação por Clostridium difficile, intolerância, resistência bacteriana, e
do nível do hidrogênio respiratório de jejum. Limpeza da boca os custos. Nós recomendamos o uso de antibióticos com me
com água contendo clorexidina antes da coleta do teste pode nos toxicidade e de baixa absorção sistêmica. Regimes de 7 dias
resolver este problema. incorporando ciprofloxacino, norfloxacino, amoxicilina-
A interpretação dos testes respiratórios pode ser especial- ácido clavulínico, ou metronidazol podem parecer boas opções.
mente problemática no contexto das doenças associadas a re Quando disponível, a minimamente absorvível rifaximina pa
tardo do esvaziamento gástrico (resultados falso-negativos) rece oferecer uma excelente opção. Até o momento, não há
ou trânsito intestinal rápido (resultados falso-positivos). Além boa evidência da eficácia dos probióticos na terapia primária
disso, entre 15 e 27% da população não produzirá hidrogênio, do SBID. O conceito de que os probióticos poderiam prevenir
e a credibilidade nos testes respiratórios apenas pode, então, a recorrência após tratamento bem-sucedido com antibióticos
proporcionar um significativo núm ero de resultados falso- é atraente, mas ainda não provado.
negativos. A combinação da determinação de hidrogênio e me O papel de agentes procinéticos em casos com estase e dis-
tano, produtos finais do metabolismo bacteriano anaeróbio no motilidade também não está provado e o alcance das opções
intestino, pode evitar este problema. presentemente é limitado. Como o octreotídio estimula a fase
Dentre os vários substratos disponíveis, a sensibilidade e propagativa 3 no intestino delgado, baixas doses (50 pg por dia)
especificidade do teste respiratório com D-xilose parecem ser foram evocadas para pacientes que não respondem aos antibió
melhores. Como a adminstração de MC está associada à expo ticos, ou que não os toleraram, ou que desenvolveram compli
sição à radiação, o teste com ,;,C D-xilose, usando um isótopo cações a eles relacionadas. Soluções purgativas não absorvíveis
estável, tem sido utilizado como alternativa, tanto em crianças podem melhorar os sintomas gastrintestinais em crianças com
como em mulheres em período fértil. O teste respiratório com a síndrome do intestino curto e SBID.
lactulose é seguro, fácil de ser feito e aplicável a crianças e m u Suporte nutricional é um importante componente do ma
lheres em idade de procriar. Como a lactulose não é absorvida nejo do SBID e pode incluir modificações dietéticas, tais como
pelo intestino normal, em indivíduos sadios, deveria produzir dieta livre de lactose, reposição das deficiências vitamínicas
um pico em 2 a 3 h, refletindo a chegada do substrato ao cólon, (especialmente as lipossolúveis) e correção de deficiência de
assumindo-se que a flora colônica esteja intacta. No SBID, outro nutrientes, como cálcio, magnésio e vitamina B12. Se houver
pico ocorre dentro de 1 h da ingestão e é menos proeminente dano mucoso, este poderá persistir por algum tempo, mesmo
que o pico colônico. Como a glicose é rapidamente absorvida após a completa erradicação do supercrescimento bacteriano,
no intestino delgado proximal, somente supercrescimento pro- e o suporte nutricional será necessário por um período pro
ximal pode ser detectado pelo teste respiratório com glicose. longado.
O fato de que qualquer pico é anormal neste teste é a sua prin
cipal vantagem sobre os que usam substratos não absorvíveis
como a lactulose.
■ COMPLICAÇÕES E SEU MANEJO
O comprometimento da absorção de nutrientes pode ser
■ TRATAMENTO E PREVENÇÃO atribuído aos efeitos intraluminais da proliferação bacteriana
combinado com lesão à mucosa. Má absorção de carboidratos
Há três componentes para o tratamento do SBID: primei resulta da combinação da sua degradação pelas bactérias e da
ramente, tratar a doença básica; em segundo lugar, erradicar o perda da atividade das dissacaridases da borda estriada resul
SBID; e, por fim, corrigir qualquer deficiência nutricional asso tante do dano ao enterócito.
ciada. O objetivo principal deve ser o tratamento ou correção A má nutrição proteica é também multifatorial e resulta
de qualquer doença ou defeito básico, quando possível. de utilização intraluminal da proteína da dieta pelas bactérias,
Infelizmente, diversas condições clínicas associadas ao SBID, impedimento da absorção, e desenvolvimento de enteropatia
tais como miopatias viscerais e divertículos jejunais múltiplos, perdedora de proteínas. Em um terço dos pacientes, o SBID é
não são prontamente reversíveis. O manejo, então, se baseia em grave o suficiente para causar deficiência de vitaminas, como
terapia antibiótica. Seu objetivo não é o de erradicar a flora bac- de B12 e de lipossolúveis (A, D e E). Embora os principais as
teriana, mas alterá-la de modo a conseguir melhora sintomática. pectos histológicos do intestino delgado estejam normais ha
Embora, de modo ideal, a escolha dos agentes antimicrobianos bitualmente, o SBID pode estar associado à redução da altura
devesse refletir a suscetibilidade in vitro, isto em geral é impra das vilosidades, à profundidade das criptas e à espessura da
ticável, pois coexistem muitas diferentes espécies bacterianas, mucosa, com aumento dos linfócitos intraepiteliais e áreas fo
com diferentes sensibilidades aos antibióticos. O tratam en cais de ulceração e erosão. Tais alterações são reversíveis após
to antibiótico permanece, assim, primariamente empírico. A tratamento antibiótico bem-sucedido.
C a p ítu lo 3 5 / S u p e rc re sc im e n to B a c te ria n o n o In te stin o D e lg a d o 405
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Tumores do Intestino Delgado
Lorete Maria da Silva Kotze, Luiz Roberto Kotze e Paulo Gustavo Kotze
406
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 407
--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Q u a d ro 36.1 D a d o s c lín ic o s e lo c a liz a ç ã o d o s tu m o re s d o in te s tin o d e lg a d o *
Benigno 66 9 8 4 7 6 17
Maligno 60 17 15 10 10 12 32
Sintomático 61 21 18 10 12 17 39
Assintomático 67 5 5 4 5 1 10
▼
Q u a d ro 3 6 2 T ip o s h is to ló g ic o s d o s tu m o re s d o in te s tin o d e lg a d o *
------------------------------------▼------------------------------------
Q u a d ro 36.3 A p re se n ta çã o c lín ic a d o s tu m o re s d o in te s tin o d e lg a d o *
■ T u m o r e s b e n ig n o s
■ Tomografia computadorizada
Adenoma: tumor benigno mais comum no duodeno e je-
juno, geralmente pequeno, lobulado, assintomático e intralu- A tomografia computadorizada (TC) é indicada para diag
minal. Podem ser sésseis ou pediculados (podendo causar obs nosticar ou sugerir a presença de um tum or no ID, bem como
trução por intussuscepção) e desenvolver pequenas ulcerações para avaliar a extensão e as complicações de um tumor detec
superficiais, quase imperceptíveis. tado por radiografias convencionais. Tecnicamente, deve ha
Lipoma: segundo tumor benigno mais comum, em homens, ver uma boa opacificação do lúmen intestinal e boa distensão
da parte distai do íleo, localizando-se na submucosa e com cres durante o scanning, a fim de se evitar resultado falso-positivo
cimento intraluminal. Podem exibir ulcerações profundas e ou falso-negativo.
facilmente reconhecíveis.
Liomioma: terceiro tum or benigno mais comum do ID,
mais frequente no jejuno e, depois, no íleo, tipos submucosos
■ Enterografia por TC
ou serosos. Geralmente, apresentam lesão única e pequena, A enterografia por TC combina o aumento de resolução es
podendo ser apenas intramurais, intraluminais ou ambos. O pacial e temporal do multidetector da TC com grandes volumes
sangramento é comum e frequentemente pronunciado. de contraste neutro para o intestino e permite a visualização da
Fibroma e neuroíibrom a: apresentam defeitos nodulares parede do ID e sua luz. A distensão luminal adequada pode ser
de enchimento na margem mesentérica do intestino, podendo conseguida com hiper-hidratação. Além de doença de Crohn
causar efeito de massa com compressão extrínseca, vólvulo ou e doença celíaca, pode ser alternativa diagnóstica para neopla-
ulcerações. Se são neurofibromas generalizados, constituem a sias do ID.
doença de von Recklinghausen.
Hemangioma: geralmente no jejuno, lesão única, formada por
espaço endotelial cheio de sangue, ou massa capilar, ou mistura de ■ Ressonância magnética
ambas. Às vezes, pode haver calcificação persistente, semelhante As vantagens do uso da ressonância magnética (RM) in
a flebólito, na margem intestinal. Causa anemia persistente. cluem a falta de radiação ionizante, a capacidade de prover
informação dinâmica em relação à distensão e motilidade in
■ T u m o r e s m a lig n o s
testinal, melhorar o contraste dos tecidos moles, e o uso de
Tum or carcinoide: provém de células enterocromafins e os contraste intravenoso relativamente seguro. Como limitações,
tumores produzem serotonina, podendo ocorrer em qualquer podem-se citar custo, acesso à imagem, variação na qualida
parte do trato GI, exceto no esôfago. No ID são diagnosticados
de do exame e baixa resolução espacial e temporal comparada
30 a 40% deles, a maioria no íleo e apêndice. Aos raios X, de com a TC. É útil para determinação de complicações de doen
feito de enchimento nodular bem delimitado, frequentemen
ça inflamatória, mas pode ser alternativa para diagnóstico de
te múltiplo (ver capítulo sobre tumores carcinoides do trato
tumores e suas complicações.
gastrointestinal).
Adenocarcinoma: é o segundo tumor maligno do ID, con
siderado raro, aparecendo no duodeno (45%), no jejuno (45%) ■ Enterografia por RM
e no íleo (10%). A lesão é predominantemente infiltrante, de
pequena extensão, destruindo a mucosa e com bordas marginais Enterografia por RM é método recente e parece promissor
de transição abruptas. Evolui com reação fibrótica e estenose da para detecção de tumores do ID.
luz. Pode se apresentar como lesão polipoide séssil e raramente
como grande massa ulcerada, ou lesão polipoide pediculada. ■ Endoscopia convencional
Linfoma: incomum, mais em porção distai do ID devido
às placas de Peyer. Mais comumente se apresenta como lesão A endoscopia digestiva alta (EDA) tem pouca acurácia no
infiltrante e estenosante extensa com espessamento e ulcera diagnóstico dos tumores do ID. Pode demonstrar lesão em mas
ções. Pode se apresentar em forma difusa ou como múltiplos sa, defeito da mucosa ou intussuscepção. Pode diagnosticar tu
pequenos pólipos. Pode constituir nódulo único e grande, cau mores do duodeno. A colonoscopia pode adentrar 10 a 60 cm
sando obstrução ou intussuscepção. do íleo terminal e detectar lesões tumorais.
Leiomiossarcoma: lesão única, incidindo em qualquer por
ção do ID, intramural ou intramural pediculado. A maioria ■ Cápsula endoscópica
dos liomiossarcomas cresce para a cavidade peritoneal. Afasta,
muitas vezes, alças intestinais, mas a obstrução é rara e a intus [WCE= wireless capsule endoscopic)
suscepção ocorre em 50% dos casos. Os métodos endoscópicos tradicionais e os de imagem nem
■ T u m o r e s m e t a s t á t ic o s
sempre podem estabelecer o diagnóstico. Neste leque de possi
bilidades, sem um método diagnóstico ideal, surge a possibili
Clinicamente, podem apresentar dor abdominal, obstrução,
dade de diagnóstico através da cápsula endoscópica (CE) que
sangramento e massa abdominal. Tumor primário, em ordem
decrescente: ovário, pâncreas, estômago, cólon, mama, pulmão traz sensibilidade e especificidade elevadas sem as complica
e útero. À radiologia, múltiplas apresentações. A disseminação ções dos métodos invasivos e sem a necessidade de hospitali
pode ser hematogênica (êmbolos tumorais), intraperitoneal, zação. Tem o potencial de mostrar o ID inteiro, inclusive em
linfática ou por contiguidade (frequente fistulização). áreas não alcançadas pela endoscopia tradicional. Foi iniciada
no final de 2001.
Na série de 86 pacientes relatada por Schwartz & Barkin
■ Enterografia com 87 tumores provados histologicamente, a endoscopia con
Estudo de duplo contraste realizado após passagem de sonda vencional e os métodos radiológicos falharam em chegar ao
até o ID proximal e injeção de bário e metilcelulose; acurácia correto diagnóstico. Os 86 pacientes foram submetidos a 395
em torno de 96%. procedimentos negativos antes do uso da CE: média de 4,6
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 409
exames negativos por paciente. Tais procedimentos incluíram flamação ileal, nódulo submucoso e sangramento ativo em 4.
137 colonoscopias, 131 EDA, 40 trânsitos intestinais, 26 ente- A histologia mostrou linfoma (3), metástase de câncer de có
roscopias, 24 TC, 16 enterografias, 6 scans por sangramento, 6 lon (3), carcinoide (3), GIST (2), adenocarcinoma primário
angiografias, 5 raios X simples de abdome, 2 scans para divertí- do ID (1).
culo de Meckel, 1 ultrassonografia abdominal e 1 laparoscopia. No Brasil, Saul & Torresini relatam que a CE foi eficaz em
Pacientes com tumores duodenais realizaram uma média de 2 demonstrar a lesão/fonte de sangramento em pacientes com
procedimentos negativos prévios, enquanto tumores jejunais e sangramento gastrintestinal obscuro em 77% dos casos. Qua
ileais foram submetidos a uma média de 5,3 e 4,1 procedimen tro casos de tumores malignos do ID (2 adenocarcinomas e 2
tos negativos, respectivamente. As indicações para a CE foram tumores estromais - GIST) foram adequadamente diagnosti
sangramento GI obscuro (69%), anemia (21%), dor abdominal cados (11,7%).
(8%) e história de polipose (2%).
Embora a CE não permita biopsia das lesões, os achados ■ C E e m p a c ie n t e s c o m r is c o p a ra t u m o r e s d o ID
macroscópicos sugerem o tipo de tumor e, principalmente, sua Muitas síndromes com polipose GI incluem o ID como parte
localização para orientação de tratamento. Alguns exemplos de sua apresentação clínica. A polipose adenomatosa familiar
com indicação cirúrgica e histologia: (PAF), com prevalência estimada de 1 caso para 5.000-7.500 pes
• lesão elevada, polilobulada, coloração enegrecida: me- soas, apresenta pólipos em trato GI de 60 a 90%. Adenocarcino
lanoma; ma duodenal é a causa de morte prevalente após a colectomia
• lesão polipoide com sangramento recente: linfoma; profilática; adenomas jej unais têm sido detectados em 40% dos
• lesão ulcerada infiltrativa: adenocarcinoma; pacientes e ileais, em 20%.
• área saliente com vasos tortuosos na superfície: tumor Na síndrome de Peutz-Jeghers pólipos hamartomatosos po
estromal ulcerado; dem ser detectados no ID, podendo ser a causa de obstrução
• lesão polipoide: tum or carcinoide; através de intussuscepção e sangramento agudo ou crônico.
• lesões estenosantes e áreas de mucosa ulcerada: implantes Numerosos estudos têm sugerido a CE como procedimento
peritoneais de adenocarcinoma metastático. seguro e bem tolerado nos pacientes com polipose. Barkay et
al. encontraram prevalência de pólipos detectados por CE em
Como pacientes com tumores do ID podem apresentar 59% dos pacientes. Comparando com os outros métodos, a CE
sangramento oculto, anemia ferropriva ou então sangramen
pode detectar maior número de pólipos e de menor tamanho,
to com melena, e ter normais seus estudos radiológicos, a CE
servindo de triagem.
é uma boa opção para diagnóstico. Por outro lado, considerar
Contraindicações absolutas para o emprego da CE na sus
que, além da possível iatrogenia dos diferentes procedimentos,
peita de tumor do ID são a obstrução intestinal ou a pseudo-
para os pacientes os custos da investigação para sangramento
obstrução intestinal; e relativas são marca-passo cardíaco, dis-
também são elevados, segundo Lewis e Goldfarb. O uso da CE
fagia, gravidez e diverticulose.
traz conforto ao doente, redução dos gastos e maior acurácia
Conclusão, a CE é segura e, a despeito da incapacidade de
diagnóstica.
colher fragmentos de biopsia, o que representa sua principal
O estudo da patologia tumoral do ID tem sido proposto
limitação, é procedimento que provê informações importan
como uma das indicações desta nova técnica. Caunedo et al. a
indicaram para determinar a extensão do tumor, como, ainda, tes nas doenças do ID não diagnosticadas pelos métodos con
para verificar a resposta à quimioterapia. O papel da CE nos vencionais.
tumores infiltrativos do ID depende da suspeita diagnóstica do
médico, da escolha da técnica mais apropriada, do estadiamento ■ Angiografia
ou do conhecimento da resposta à quimioterapia.
A angiografia visceral é útil para os casos de sangramento
Experiência de Caunedo et al. em 92 exames com a CE em
pacientes com EDA; nesses pacientes, a colonoscopia e o trân GI com avaliação endoscópica negativa, apresentando sensibi
sito intestinal foram não conclusivos: lidade de 50 a 67%. Pode demonstrar um enovelado vascular
tumoral em casos específicos de subtipos de tumores malignos,
• diarréia crônica = 33; mais em carcinoides, liomiossarcomas e hemangiomas (Pran
• dor abdominal de etiologia desconhecida = 29; cha 36.1 - E e F ) .
• sangramento GI oculto ou anemia ferropriva =13;
• desconforto abdominal em usuários de AINE = 7;
• estadiamento de tumores GI = 4; ■ Laparoscopia e laparotomia
• controles assintomáticos = 2. São indicados quando há fortes indícios de tratar-se de neo-
Resultados: plasia, e os métodos anteriormente apontados não corroboram
este diagnóstico.
• aftas e ulcerações jejunoileais = 29;
• malformações vasculares = 13;
• neoplasias = 6.
■ Comparação de métodos
Os grupos com maior concordância entre os achados e a in
dicação propedêutica foram os de sangramento oculto (76,9%) Na experiência de Hara et al., o exame radiológico com bá-
e diarréia crônica (67,8%). rio foi positivo em 1 de 40 pacientes (3%), a CE em 22 (55%) e
Spada et al., na Itália, relatam 13 casos de tumores do ID. a TC em 4 (21%). Encontraram tumores com a CE em 3 de 5
Indicações para a CE foram sangramento obscuro em 9 (70%), casos confirmados cirurgicamente (carcinoide, intussuscepção,
dor abdominal, doença celíaca, febre de origem indeterminada linfangioma). Ocorre que, em pacientes sem lesões estenosantes
e metástase hepática. Detectaram, por CE, 6 pólipos (46,2%), ao estudo radiológico, mais doenças do intestino delgado foram
lesão estenosante ulcerada em 3 (23,5%), erosão, estenose, in encontradas com a CE do que aos raios X e à TC.
410 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado
A CE e a enteroscopia podem ser consideradas métodos sinais de obstrução: cólicas, náuseas e vômitos, distensão abdo
complementares. minal agravada pela alimentação. Anorexia e emagrecimento
Após essas considerações gerais, serão abordados alguns acompanham sangramento oculto, ou sangramento óbvio pode
tumores primários, da experiência dos autores, divididos em ocorrer. Perfuração com peritonite é rara. Icterícia obstrutiva
grupos. surge quando há envolvimento da ampola de Vater. Como os
sintomas não são específicos, há demora no diagnóstico.
■ NEOPLASIAS EPITELIAIS ■ D ia g n ó s t ic o
Não há sintomas específicos para quaisquer tipos de neopla-
sia comprometendo o intestino delgado. O exame físico costu
■ Adenocarcinoma ma ser normal. Hepatomegalia surge por metástases.
■ Epidemiologia O exame radiológico a ser feito é o trânsito intestinal que
O adenocarcinoma é o tumor maligno do ID mais preva- mostrará deformidades (wanel de guardanapo”, “caroço de
lente no mundo e correlaciona-se com a prevalência do câncer maçã”), diferente de adenomas que aparecem como falhas de
do cólon. Não parece haver diferença de acometimento entre a enchimento polipoide. Os tumores malignos enrijecem a pa
população rural e a urbana. É mais encontrado em homens do rede intestinal.
que em mulheres com mais de 50 anos, tendo pico de incidência À tomografia abdominal apresentam-se como massa focal
aos 60 anos, mais em negros do que em brancos. Na revisão do excêntrica ou circunferencial, assimétrica, com espessamento
National Câncer Data Base (NCDB), dos EUA, em 4.995 casos irregular da parede intestinal; estreitamento da luz e dilatação do
descritos de 1985 a 1995,55% dos tumores eram de duodeno, segmento proximal são comuns. Geralmente, os tumores com
18% do jejuno, 13% do íleo e 14% em locais não especificados. mais de 3 cm têm crescimento extraluminal; os menores de 2 cm
A sobrevida, em 5 anos, foi de 30,5% (média 19,7 meses), sendo podem não ser vistos à TC. Esse exame também está indicado
reduzida nos pacientes com mais de 75 anos. para detectar recorrência após cirurgia. Também é necessário
Constituem maior risco para adenocarcinoma no intestino para estadiamento, detectando extensão local e metástases.
delgado: A endoscopia digestiva alta pode detectar e confirmar o diag
nóstico por permitir biopsias até a terceira ou quarta porções
• Doença celíaca do duodeno.
° 80 vezes mais que na população geral; Tumores do íleo terminal podem ser alcançados por colo-
° mais comum no duodeno e jejuno proximal (Figura noscopia, através da válvula ileocecal.
36.1); O advento da “push”-enteroscopia, com longos instrumen
° tumor pode ser multifocal; tos ou com sondas, torna possível a identificação de todo o in
° associação com displasia; testino delgado, principalmente em casos de sangramento de
° risco maior após 2 anos da doença; diagnóstico obscuro.
° pacientes em dieta sem glúten e que se apresentam com A CE tem-se mostrado extremamente útil para diagnóstico
cansaço, anorexia, náuseas, diarréia, anemia ou pesqui e indicação cirúrgica.
sa de sangue oculto positivo são altamente suspeitos. A angiografia pode ser de ajuda ao demonstrar foco de neo-
• Doença de Crohn vascularização.
° 86 vezes mais que na população geral; O uso de hemácias marcadas também localiza uma lesão
° mais no sexo masculino; sangrante, porém não permite diagnóstico específico.
° correlação maior com a duração da doença e extensão
do processo inflamatório; ■ P a t o lo g ia
° mais frequente em alças excluídas cirurgicamente; Adenocarcinomas esporádicos do intestino delgado podem
° mais comum em portadores de doença fistulosa; ser macroscopicamente planos, ulcerados, infiltrativos, estenó-
° mortalidade de 80% quando há associação; ticos ou polipoides. Seu tamanho varia em média entre 1,2 e
° 30% dos tumores localizam-se no jejuno e 70% no 15 cm ao diagnóstico, e os maiores são, em geral, localizados
íleo; distalmente no delgado, pois causam menos sintomas e estão
° displasia como antecedente (Figura 36.2). mais avançados ao diagnóstico.
• Síndrome de Peutz-Jeghers Histologicamente, os adenocarcinomas de delgado são simi
o A síndrome de Peutz-Jeghers caracteriza-se por pó- lares aos que se desenvolvem em outras partes do tubo digesti
lipos hamartomatosos no intestino delgado e cólon, vo. Entretanto, como a maior parte deles se desenvolve a partir
com manchas de melanina na mucosa oral, lábios e de adenomas, em geral pode-se observar displasia residual na
dedos. É de transmissão autossômica dominante. Ge mucosa adjacente ou suprajacente ao tumor. O encontro de al
ralmente, são benignos, mas pode ocorrer degenera- terações intraepiteliais é um dado que corrobora o diagnóstico
ção maligna (2,4%). de local primário da lesão em intestino delgado.
• Síndrome da polipose familial À microscopia, os adenocarcinomas são caracterizados por
o Adenomas do duodeno são descritos em pacientes pleomorfismo celular e nuclear, perda da polaridade epitelial,
com esta síndrome, mas adenocarcinoma é raro, apa perda da arquitetura glandular com glândulas cribriformes, e
recendo mais na região periampolar. invasão de tecidos adjacentes. A maioria deles é moderadamen
te diferenciada, e cerca de 20% são pouco diferenciados e podem
■ Quadro clínico conter células isoladas tipo “anel de sinete”. Outros tumores
O quadro clínico varia de acordo com o tamanho, a loca podem conter áreas mucinosas e lagos de mucina extracelular,
lização, a situação dentro da parede intestinal, o suprimento e, quando estas áreas perfazem mais que 50% do tumor, a de
sanguíneo e a tendência a ulceração e necrose. Alguns abran signação de adenocarcinomas mucinosos deve ser empregada.
gem toda a parede, gradativamente estreitam a luz e produzem Adenocarcinomas mucinosos possuem prognóstico pior que
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 411
tumores não mucinosos. Células neoplásicas com diferenciação Tumores na papila de Vater são geralmente menores ao
neuroendócrina e células de Paneth podem estar presentes, as diagnóstico e seu grau de invasão é menor, devido à apresen
sim como focos de diferenciação escamosa, e nenhuma destas tação clínica ser geralmente mais precoce.
características altera o prognóstico da neoplasia. Carcinomas hepatoides, coriocarcinoma, carcinomas de
Adenocarcinomas do intestino delgado possuem expres pequenas células, carcinomas adenoescamosos e carcinoma
são imuno-histoquímica semelhante à dos adenocarcinomas de células escamosas podem ocorrer no delgado, porém são
de cólon, com usual expressão de citoqueratina 20 e negativi- bastante raros e possuem características patológicas e prog
dade para citoqueratina 7, expressão de CEA, CDX-2 e vilina. nóstico distintos.
Tumores associados à síndrome de Lynch podem apresentar
ausência de expressão das proteínas de reparo de DNA hMLH 1 ■ T ra ta m e n to
e hMSH2, ligadas à instabilidade de microssatélites. Ainda, al Ressecções extensas devem ser evitadas, e operações repeti
guns tumores podem apresentar expressão aberrante de p53, das podem levar à síndrome do intestino curto. O tratamento
como seus pares colorretais. cirúrgico dos adenocarcinomas e os cuidados com os linfono-
O estadiamento é feito segundo o sistema TMN e é seme dos regionais devem ser preconizados (Figura 36.1). Infeliz-
lhante ao aplicado a carcinomas de cólon, para os carcinomas mente, pode haver comprometimento da artéria mesentérica
de delgado que ocorrem longe da papila de Vater. Para os úl superior e do retroperitônio.
timos, há uma classificação específica devido à anatomia com Nos raros adenocarcinomas do íleo distai, preconiza-se he-
plexa regional e diferenças no prognóstico. micolectomia direita (Figura 36.2).
Estima-se a ressecabilidade dos adenocarcinomas em 50% Linfomas podem aparecer em casos de lúpus eritematoso
dos casos, com sobrevida de 5 anos em torno de 20%. Em dois sistêmico, doença de Crohn, pós-quimioterapia e em síndro-
terços dos pacientes, a ressecção é curativa após extirpação com mes de imunodeficiências, inclusive AIDS.
pleta ao tumor.
Rádio e quimioterapia sâo de benefício mínimo. Cerca de
15% dos pacientes com doença metastática têm um breve be
■ Linfomas primários do tipo ocidental
nefício com 5-fluoruracila. Sua classificação permanece polêmica, porém a tendência
é usar a morfologia para imunotipar o tumor. Ocorrem mais
comumente no íleo, mas podem desenvolver-se em qualquer
■ NEOPLASIAS LINFOIDES segmento. Apresentam-se como infiltração difusa, nódulos, le
sões polipoides ou massas ulceradas. Cerca de 20% dos pacien
tes desenvolvem múltiplas lesões. O padrão de disseminação é
■ Linfomas para o tecido adjacente e linfonodos regionais e, depois, para
Os linfomas do intestino delgado são considerados como linfonodos mais distantes e diferentes órgãos.
entidade rara (1,6/1 milhão de pessoas). São classificados como
primários e secundários. Há algumas controvérsias quanto ■ Quadro clínico
a tal divisão. Para alguns autores, o linfoma primário seria Os sintomas não são específicos e podem incluir manifes
aquele com predominância de comprometimento gastrintes- tações sistêmicas, como febre e suores noturnos. Costumam
tinal e restrito à linfadenomegalia regional. Linfadenopatias surgir de modo insidioso e inespecífico, incluindo sintomas
superficiais ou mediastinais, junto com envolvimento do baço de cólicas abdominais, náuseas e vômitos, quando com obs
e fígado, classificariam o linfoma como secundário. Por essa trução parcial, e mal-estar e fadiga, também com presença de
definição, ficariam excluídos os linfomas intestinais primários sangue oculto ou sangramento macroscópico, quando há lesões
que se disseminassem. Para outros pesquisadores, os linfomas ulceradas. Alguns se apresentam com quadro agudo e neces
com comprometimento predominantemente do intestino del sitam de cirurgia de emergência (obstrução, intussuscepção
gado, ou manifestando-se por sintomas mais GI, poderiam ser ou perfuração).
denominados primários; os secundários seriam os que afe
■ Diagnóstico
tassem o intestino delgado, mas com origem sabidamente de
outro local. Nos exames de rotina, pode-se encontrar anemia.
O trânsito intestinal pode demonstrar falhas de enchimen
Os linfomas primários podem ser divididos nos tipos Oci
to, ulcerações, estenoses, dilatações ou segmentos aperistálti-
dental e do Mediterrâneo. O primeiro caracteriza-se por dis
cos. Enfatiza-se que apenas 10% dos tumores podem ser diag
cretas lesões em mucosa intestinal normal, de fundo; o segundo
nosticados por esse exame, principalmente no início (Prancha
se associa à doença imunoproliferativa do intestino delgado
36.1- A e C ) .
(DIPID), ou doença da cadeia alfa. Perda de mucosa normal
A tomografia computadorizada abdominal evidencia aumen
e proliferação de células B ocorrem ao longo de todo o intes
to da espessura da parede intestinal ou comprometimento de
tino delgado.
linfonodos. Pode mostrar tecido mole envolvendo concentrica-
mente um segmento relativamente longo do intestino delgado.
■ Epidemiologia
A luz é quase sempre dilatada, a obstrução é rara, pois o tumor
Os linfomas primários do intestino delgado constituem cerca enfraquece a muscularis própria. Quando a parede aparece as
de 18% de todos os tumores malignos do mundo ocidental. A simétrica, o linfoma pode mimetizar uma lesão inflamatória
maioria deles é do tipo não Hodgkin. Por outro lado, os lin ou isquêmica. Podem-se detectar adenopatias e comprometi
fomas primários intestinais constituem menos de 5% dos lin mento mesentérico na parede já espessada. Formas cavitárias
fomas não Hodgkin e somente 7,5% dos extranodais. Afetam são comuns, resultantes de ulcerações.
duas vezes mais o sexo masculino que o feminino, e mais os Há uma forma mesentérica resultante de um linfoma que se
indivíduos de raça branca. A apresentação é bimodal: um pico desenvolve nos linfonodos mesentéricos com extensão direta
abaixo dos 15 anos de idade (predominância ileocecal), e outro para a parede intestinal. As alças ficam deslocadas e podem ser
acima de 50 a 60 anos. obstruídas por massas arredondadas, nodos lobulados ou gran
des massas que envelopam os vasos mesentéricos e a gordura
■ Etiologia e fatores de risco circunjacente, típico “sinal do sanduíche”.
A etiologia/patogênese dos linfomas é desconhecida. Pro A endoscopia digestiva alta pode ser útil na localização e
põe-se que infecções crônicas do trato gastrintestinal produzam identificação das lesões, bem como na obtenção de fragmentos
estímulo antigênico aumentado para as células plasmáticas e para exame histológico; ou no íleo terminal, à colonoscopia.
linfócitos, o que, por sua vez, leva a mutações e transformação Muitas vezes, o diagnóstico final depende de exploração ci
maligna. rúrgica.
Pacientes com doença celíaca apresentam um risco de 11
a 14% para desenvolver linfoma, e a doença celíaca precede ■ Patologia
o aparecimento da neoplasia em dois terços dos casos, locali- Como já dito, estes linfomas são classificados em geral
zando-se mais no jejuno proximal e menos frequentemente no por suas características morfológicas e fenotipagem imuno-
duodeno. Em 20% dos casos, apresentam-se simultaneamente, histoquímica. São linfomas ditos do tipo ocidental:
e má absorção intestinal torna-se evidente após o diagnóstico
de linfoma em 15%. A dieta isenta de glúten parece exercer
papel protetor contra a instalação de neoplasias.
■ Linfomas B
Em geral, o linfoma é do tipo enteropathy-type T-cell lym- Linfoma MALT (linfoma de células B extranodal da zona
phoma. marginal): tipo mais comum, com morfologia semelhante à do
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 413
seu colega gástrico, porém lesões linfoepiteliais são mais raras. ■ NE0PLASIAS NEUROENDÓCRINAS
A morfologia é, em geral, composta por linfócitos pequenos,
em meio a restos de folículos linfoides não neoplásicos. Estes
tumores podem evoluir para tipos mais agressivos de linfoma. ■ Tumores carcinoides
São CD20+, CD5-, CD 10-, BCL-2+ e possuem baixo índice Ver capítulo sobre tumores carcinoides do trato gastrin-
proliferativo (ki-67 com baixa expressão). testinal.
Linfoma B difuso de grandes células: tipo mais agressivo
de tumor com morfologia difusa, composto por linfócitos neo
plásicos maiores. Seu índice proliferativo é alto (alta expressão ■ TUMORES MESENQUIMAIS
de ki-67. São CD20+, CDS-, CD 10- e BCL-2.
Linfoma do manto: este tipo, geralmente, se apresenta com
padrão nodular e infiltração difusa do segmento acometido, ■ Tumores estromais
com aparência macroscópica de múltiplos pólipos, a chamada Ver capítulo sobre tumores estromais gastrintestinais.
polipose linfomatosa múltipla do intestino. São CD20+, CD5+,
CD43+, CD10- e CiclinaDl-K
Linfoma folicular: este tipo possui histologia que pode va ■ OUTROS TUMORES
riar de completamente nodular a difusa, com quantidade variá
vel de blastos nos centros germinativos neoplásicos. São CD20+,
CD 10+, BCL2+ e BCL6+. Podem evoluir para forma difusa mais
■ Tumores benignos
agressiva (linfoma difuso de grandes células B). Os tum ores benignos mais comuns são os adenomas, lipo-
Linfoma de Burkitt: tum or altamente agressivo, de alto mas e liomiomas.
grau, com crescimento rápido. Pode ser endêmico ou esporá
dico e está ligado à infecção pelo HIV. Possui morfologia com ■ Adenomas
células pequenas a medianas, com cromatina grosseira ou sal São os tumores benignos mais comuns no ID, mais em duo-
picada, entremeadas por macrófagos, o que dá aparência ca deno e jejuno. Do ponto de vista radiológico, trânsito intestinal,
racterística dita de “céu estrelado”. São CD20+, CD10+, CD5-, se apresentam geralmente pequenos, lobulados e intraluminais,
BCL2-, e possuem expressão de ki-67 de virtualmente 100%. podendo desenvolver pequenas ulcerações superficiais, quase
imperceptíveis; ou podem ser sésseis ou pediculados, podendo
causar obstrução por intussuscepção.
■ LinfomasT
Linfoma T intestinal tipo ligado à enteropatia: possui mor ■ Adenom a tubular simples
fologia em geral difusa, pode ser ulcerado, e acometer um único Surge mais no duodeno e tem baixo potencial de malignidade.
segmento ou múltiplos segmentos do intestino. Eosinófilos e O carcinoma das glândulas de Brünner é extremamente raro.
macrófagos podem estar presentes em meio às células neoplá-
sicas, que são CD3+, CD20-, CDS-, CD1- CD57. Alguns tu ■ Adenom a viloso
mores com morfologia anaplásica podem ser CD30+. Este tumor, que aparece mais no duodeno, muitas vezes de
senvolve carcinoma superficial e invasivo. Cerca de um terço
■ Tratam ento contém focos de adenocarcinoma. Cresce para mais de 5 cm e
A ressecção cirúrgica é a primeira escolha em muitos casos geralmente é solitário. Embora mole, pode obstruir a luz. Não
(Figura 36.2) que podem, também, ter indicação de radiotera costuma ocasionar sangramento, nem diarréia pela produção
pia, indicada em alguns. Pacientes com lesões ressecáveis têm de muco e eletrólitos, provavelmente devido à capacidade ab-
chance de 40 a 50% de sobrevida em 5 anos. sortiva do intestino delgado. Se ocorrer icterícia, sugere infil
Quimioterapia (QT), mais do que radioterapia, é uma op tração maligna. Aos raios X, tem aspecto de bolhas de sabão.
ção a ser considerada. Pode ser efetiva no controle de lesões Quando o tumor é acessível à endoscopia, a biopsia confirma
localizadas. Por sua vez, os pacientes com doença disseminada o diagnóstico.
recebem QT da mesma maneira que portadores de linfoma sis
têmico. Preconizam-se drogas como ciclofosfamida, vincristina, ■ Lipomas
doxorrubicina e prednisona. Muitas vezes, devido ao risco de Constituem segundo tum or benigno mais comum no ID,
perfuração consequente à QT, ressecções localizadas são reali incidindo mais em homens. Geralmente, são tumores peque
zadas de maneira prévia. nos, com menos de 4 cm, únicos ou múltiplos. Têm crescimento
Quando há associação com doença celíaca, o prognóstico é lento, são compostos por tecido adiposo bem diferenciado, en
pobre, refletindo o diagnóstico tardio e o comprometimento volvido por uma cápsula fibrosa. São submucosos em 90-95%
do estado geral por ocasião da apresentação. Os tratamentos dos casos e tendem a prolapsar para a luz. Quando ocorrem
preconizados e as altas doses de quimioterapia são eficazes em ulcerações, estas são profundas e facilmente reconhecíveis. Le
pequena porcentagem dos casos. sões com mais de 2 cm causam dor, diarréia, constipação in
testinal ou sangramento quando a mucosa se úlcera. Quando
se localizam no íleo, podem determinar intussuscepção por
■ Linfomas do tipo mediterrâneo: serem pediculados. À TC, aparecem como massa homogênea
doença imunoproliferativa do intestino de baixos valores de atenuação.
delgado — DIPID ■ Leiom iom as (Prancha 36.2)
Ver capítulo sobre doença imunoproliferativa, doença de Constituem terceiro tum or benigno mais comum no ID.
Whipple. Ocorrem mais no jejuno e causam mais dor e mais sangra-
414 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado
E
Prancha 36.1 A, linfossarcoma do intestino delgado. Trânsito intestinal mostrando maior distância entre as alças e “impressões digitais" (finger
correspondentes à hiperplasia linfoide. B( Biopsia correspondente à Figura A, denotando comprometimento de toda a mucosa e atrofia
p r in t)
das vilosidades. C, Trânsito intestinal em doença de Hodgkin com rechaço de alças intestinais e impressões digitais. D, Biopsia correspondente
à Figura C com comprometimento da mucosa e presença de células de Reed-Stenberg. E, Arteriografia mostrando massa com grande vas-
cularizaçâo à esquerda da coluna vertebral, sugerindo tumor vascular (hemangioma). F, Tumor vascular em alça jejunal logo abaixo do ângulo
deTreitz, extramucoso, responsável por hemorragia de grande monta ao se ulcerar para o lúmen intestinal.
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 415
Prancha 36.2 L e io m io m a . A, Laparoscopia revelou tumor de 8 cm na bacia, à direita, em nítida dependência e continuidade com alça jejunal.
B, À cirurgia, tumor jejunal distai, continuando-se com o lúmen intestinal. C, Exame anatomopatológico revelou leiomioma (Gentileza do Pro
fessor Renato Dani). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
mento, por serem do tipo polipoide. Têm localização sub- sarcomas, dependendo de crescerem primariamente para a luz
serosa e intramural, com baixa sensibilidade aos raios X. À (intussuscepção) ou de fazerem extrusão para a superfície se-
tomografia, apresentam-se arredondados, regulares, hom o rosa (massa palpável).
gêneos ou com calcificação e necrose. São mais bem diag
nosticados por arteriografia, pela grande vascularização que ■ Hem angiom as
apresentam. Geralmente, são múltiplos e podem envolver o trato gas-
trintestinal difusamente. Variam de tam anho desde “ponta
■ Fibromas de alfinete” até grandes tum ores cavernosos. O casional
Aparecem como defeitos nodulares de enchimento na mente, são polipoides e dão imagem de falha de enchim en
margem mesentérica do intestino, mas podem causar efeito to. Produzem desde sangram ento oculto até hemorragias
de massa com compressão extrínseca, vólvulo ou ulcerações. maciças. À angiografia, há padrão característico (Prancha
Produzem sintomas semelhantes aos dos liomiomas e liomios- 36.1-EeF).
416 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado
417
418 Capítulo 37 / Tumor Estromal Gastrintestinal
nericamente chamados, até os anos sessenta, de “liomiomas, também positivos focalmente para actina de musculatura lisa,
liomiossarcomas, liomioblastomas e liomiomas bizarros. Com o porém negativos para desmina.
desenvolvimento da microscopia eletrônica e, posteriormente, Estudos mais recentes, como foi mencionado, demonstram
com a introdução da imuno-histoquímica na década de 1980, que as células tumorais dos TEG expressam um receptor de fa
demonstrou-se que muito dessas lesões careciam de caracte tor de crescimento com atividade tirosinoquinase, denominado
rísticas imunofenotípicas na diferenciação da musculatura lisa, “KIT”, detectado por imuno-histoquímica para CD 117.
recebendo, assim, uma denominação mais genérica de “tum o A positividade para KIT (CD117), encontrada em cerca de
res estromais”. 91% dos casos, representa uma característica específica para
Os TEG representam cerca de 2,2% de todas as neoplasias os TEG, o que, no entanto, poderá ser também observado em
digestivas, 13,9% dos tumores de delgado e 0,1% dos colorre- outros tumores que não incidem sobre o aparelho digestivo.
tais. Estas neoplasias podem se localizar extraintestinalmente, A incidência familiar de TEG, com mutação do KIT, tem sido
principalmente no mesentério, epípioon e retroperitônio e, ex relatada, inclusive associada à hiperpigmentação cutânea.
cepcionalmente, na vesícula biliar e bexiga. A expressão imuno-histoquímica do CD117 é semelhante à
Com relação ao seu tamanho, é extremamente variável, en das células intersticiais de Cajal e, em 60 a 70%, ao CD34, que
contrando-se lesões desde 1 a 2 cm até maiores do que 20 cm é um marcador de células intersticiais fibroblásticas dendríti-
de diâmetro. cas, com variáveis positivas para SI00 e geralmente negativas
Macroscopicamente, são lesões bem delimitadas, não cap- para desmina.
suladas, podendo, no entanto, observar-se o aparecimento de
uma pseudocápsula. Comprometem as camadas submucosa,
muscular própria e serosa, provocando, ocasionalmente, o apa ■ TRATAMENTO
recimento de ulcerações na mucosa.
A análise microscópica das lesões demonstra uma compo O tratamento eletivo para os TEG consiste na sua remoção
sição de 60 a 70% de células fusiformes e epitelioides. Atipias cirúrgica, “em bloco”, com margens amplas de ressecção e, in
nucleares, celularidade acentuada, morfologia mista de célu clusive, de estruturas adjacentes comprometidas pelo processo.
las fusiformes e epitelioides, e índice mitótico acima de 5 por É pouco frequente o comprometimento ganglionar nas formas
50 campos, invasão mucosa e necrose estão diretamente rela malignas dos TEG e não existe qualquer evidência de que a
cionados com a malignidade do processo. No entanto, nem remoção além da massa tumoral promoverá maior sobrevida
sempre os TEG são claramente identificáveis como benignos e/ou o retardo da recorrência.
ou malignos, e muitos são denominados como sendo de baixo A completa remoção dos TEG primários apresenta uma so
potencial maligno. brevida média de 5 anos em 48 a 65% dos pacientes operados.
Esta complexa e indefinida situação poderá ser mais bem Muitos pacientes com GIST primário poderão ser beneficiados
avaliada conforme exposto no Quadro 37.1, proposto por Fle- com ressecções limitadas, através de procedimentos minima
tcher et al. e modificado por Connoly et ai, em que são estabe mente invasivos.
lecidos critérios para verificação de riscos dos TEG. O tratamento clínico dos TEG e de suas manifestações me-
Em cerca de 82% dos casos, os TEG apresentam positivida- tastáticas representa uma situação extremamente complexa,
de para o CD34 imunorreativo, antígeno celular, e poderão ser pela falta de resposta satisfatória à químio e radioterapia. No
entanto, o advento do imatinibe (Glivec®), que atua diretamen
te na inibição da mutação do KIT, atingindo cerca de 90% das
T lesões malignas, representou a única terapia sistêmica para os
Quadro 37.1 Avaliação de risco dos TEG TEG inoperáveis e metástases, sem, contudo, ter-se podido,
ainda, avaliar seus resultados a longo prazo.
Tam anho (cm) índice m itótico para 50 cam pos
Os resultados clínicos do tratamento com o imatinibe são
extremamente rápidos, com melhora dos sintomas logo nos
R isco m u it o b a ix o <2 <5 primeiros dias. A duração do tratamento não está devidamen
R isco b a ix o 2 -5 <5 te estabelecida, porém admite-se que a droga deverá ser admi
R isco in t e r m e d iá r io <5 6 -1 0 nistrada de forma continuada. O mecanismo de resistência à
5 -1 0 <5 terapia com o imatinibe é desconhecido, no entanto admite-se
A lt o risco >5 >5 a atuação de múltiplos mecanismos moleculares, devendo-se
>10 Q u a lq u e r v a lo r
considerar também a possibilidade de efeitos hepatotóxicos
Q u a lq u e r t a m a n h o > 10
colaterais. A dosagem usual é de 400 a 600 mg/dia, em toma
da única.
-------------------------------▼-------------------------------
Quadro 3 7 2 Diagnóstico diferencial dos TEG (Fletcherefo/.)
Estudos recentes têm demonstrado que o tratamento com Gcballos, KM, Francis, JA, Mazurka, JL. Gastrointestinal strom al tum or
o imatinibe apresenta ação realmente efetiva nas formas local presenting as a rccurrcnt vagin mass. Arc. Pathol. Lab. Med., 2004:
128:1442-4.
mente avançadas, irressecáveis ou metastáticas dos TEG, com Connolly, EM, Galíhcy, E, Reynolds, JV. Gastrointestinal stromal tumours. Br.
uma substancial resposta em cerca de 50% de todos os casos. J. Surg., 2003; 90:1178-86.
Seguimento a longo prazo dos pacientes comprova que mais Corless, Cl, Flctchcr, JA, Hcinrich, MC. Biology of gastrointestinal stromal
de 50% dos TEG primários apresentam recorrência em 5 anos tumors. /. Clin Oncoi, 2004; 22:3813-25.
e, em 10 anos, a reincidência é menos frequente. Desta forma, DeMattco, RP, Lcwis, JJ, Lcung, D, Mudan, SS, WoodruíT, JM, Brcnnan, MF. Two
hundred gastrointestinal stromal tumors: rccurrcncc patterns and prognos-
é recomendável um seguimento cuidadoso e permanente destes tic factors for survival. Ann. Surg., 2000; 23i:51 -8.
pacientes, uma vez que a recorrência poderá se dar mesmo após Emory, TS, Sobin, LH, Lukcs, I, Lee, DH, 0 ’Lcary, TJ. Prognosis of gastroin
muitos anos da remoção do TEG primário. Para a eventualida testinal smooth musclc (stromal) tumors. Depcndcncc on anatomic site.
de da ocorrência da recidiva e/ou de metástases, encontra-se Am. J. Surg. Pathol., 1999; 23:82-7.
disponibilizada uma terapia efetiva através do imatinibe. Flctchcr, CDM, Bcrman, JJ, Corless, C et al. Diagnosis of gastrointestinal stromal
tumours: A conscnsus approach. Hum. Pathol., 2002; 33:459-65.
Cerca de 40 a 50% dos pacientes, após remoção do tumor Flctchcr, CDM, Path, FRC, Bcrman, JJ, Corless, C, Gorstcin, F, Lasota, J, Lonng-
primário, poderão desenvolver recorrência do processo, prin ley, BJ, Micttinen, M, 0 ‘Lcary, TJ, Rcmotti, H, Rubin, BP, Shmookler, B,
cipalmente no fígado e peritônio. Antes da utilização do imati Sobin, LH, Wciss, SW. Diagnosis of gastrointestinal stromal tumours: A
nibe, a sobrevida média destes pacientes era de 19 meses, com consensus approach. Int. J. Surg. Pathol., 2002; i 0:81-9.
25% vivos em 5 anos. Gcrvaz, P, Huber, O, Morei, P. Surgical management of gastrointestinal stromal
tumours. Br. J. Surj», 2009; 96:567-78.
A utilização do imatinibe, a partir de 2002, como medica- GunJi, Y, Nikaidou, T, Okazumi, S, Matsubara, H, Shimada, H, Nabeya, Y, Aoki,
ção-padrão nos casos de recorrência dos GIST promoveu uma T, Makino, H, Miyazaki, S, Ochiai, T. Evaluation of Ki-67 and p53 expres-
extraordinária melhoria nos resultados terapêuticos. Porém, a sion in primary and repeated metastases of GISTs. Hepato-Gastroenterology,
maior limitação no uso deste medicamento é representada pela 2005; 52:829-32.
possibilidade do aparecimento de um tum or secundário resis Langcr, CL Gunawam, B, Schulcr, P, Huber, W, Fuzesi, L, Bccker, H. Prognostic
factor inilucncing surgical management and outeome of gastrointestinal
tente, consequente ao desenvolvimento de mutação no c-KIT, stromal tumours. Br. J. Surg., 2003; 90:332-9.
necessitando de abordagem múltipla, com ressecção do tumor Lcv, D, Karis, J, Issakov, J, Mcrhav, H, Bcrger, E, Mcrimsky, O. Gastrointestinal
residual. Há melhora da resposta cirúrgica com o posterior tra stromal sarcomas. Br. J. Surg., 1999; 86:545-9.
tamento com os inibidores da tirosinoquinase. Medeiros, F, Corless, Cl, Ducnsing, A, Hornick, JL, Oliveira, AM, Hcinrich,
Tentativas de uma terapia neoadjuvante com imatinibe é de MC, Flctchcr, JA, Flctchcr, CDM. KIT-Ncgativc Gastrointestinal Stromal
Tumors. ProfFof Conccpt and Therapcutic Implications. Am. J. Surg. Pathol.,
pendente de um diagnóstico pré-operatório, o que nem sempre
2004; 28:889-94.
é possível pela dificuldade na obtenção de biopsias destas lesões. Micttinen, M, Sobin, IH, Lasota, J. Gastrointestinal stromal tumors of the
Inclusive, admite-se que a tentativa de obtenção de biopsias por stomach: A clinicopathological, immunohistochcmical, and molecular
punção aspirativa poderá ocasionar a ruptura do tumor, com gene study of 1765 cases with long-tcrm follow-up. Am. J. Surg. Pathol.,
disseminação intra-abdominal ou sangramento. 2005:29:52-68.
Morgan, BK, Compton, C, Talbcrt, M, Gallaghcr, WJ, Wood, WC. Bcnign
A estratégia para a abordagem dos GIST seria o reconhe smooth musclc tumors of the gastrointestinal tract. Ann. Surg., 1990;
cimento dos fatores de prognóstico, permitindo uma atenção 211:63.
individualizada conforme a localização do tumor e de suas ca Parreira, JG, Freitas W, Rasslan, S. Uppcr gastrointestinal hemorrrhagc duc to
racterísticas morfológicas, e, também, oferecendo a oportuni duodcnal stromal tumor. Arq. Gastroenterol., 2003; 40:188-91.
dade do tratamento clínico medicamentoso. Sakano, AI, Brcsciani, CJC, Habr-Gama, A, Alves, VAF, Gama-Rodrigues, J.
Tumor estromal gastrointestinal: Caracterização anatomopatológica c cor
relação com sobrevivência. ABCD Arq. Bros. Cir. Dig., 2003; J6:10-13.
Savagc, DCí & Antmann, KH. Imatinib mcsylatc - a ncw oral targetcd thcrapy.
■ LEITURA RECOMENDADA N. Engl. ). Med., 2002; 346:683-93.
Schippcr, JP, Liem, RSL, Van Dcn Ingh, HFGM, Van Der Harst, E. Rcvi-
Ayoub, WS, Geller, AS, Tran, T, Martin, P, Vicrling, JM, Poordad, FF. Imatinib sion of gastrointestinal mescnchymal tumours with GDI 17. EJSO, 2004;
(Glccvec*) - induced hcpatotoxicity. /. Clin. Gastroenterol., 2005; 39:75-7. 30:959-62.
PARTE V
Intestino Grosso
Colite Microscópica,
Colite Pseudomembranosa e
Colite Radiógena
Mounib Tacla e Renato Dani
■ COLITE MICROSCÓPICA (COLITE COLÁGENA (tireoidite, doença celíaca, artrite e outras) naturalmente su
geriu a possibilidade da autoimunidade. Uma associação rela
E COLITE LINFOCITÁRI A) tivamente comum entre CM e doença com fundo autoimune
é com a doença celíaca, especialmente com a CL e menos com
Podemos definir as colites microscópicas (CM) como in a CC. Também a asma é mais frequentemente associada à CL
flamação crônica do cólon, que se manifesta por modificações
do que à CC.
histológicas ao nível de uma mucosa radiológica e endoscopica- Pensou-se em etiologia infecciosa, mas sem comprovação,
mente normal. Esta entidade foi inicialmente descrita por Lin- ou, em outros casos, como um processo reacional a drogas.
dstrom, em 1976, ao estudar uma mulher portadora de diarréia A similitude de alterações anatomopatológicas entre a coli
crônica com proctoscopia normal e alterações histológicas na te microscópica e a doença celíaca, especialmente o infiltrado
mucosa retal. Observou também que havia uma faixa sube- inflamatório na lâmina própria e na superfície epitelial, evo
pitelial de colágeno depositada no reto e no cólon, que seria cou a alguns pesquisadores a possibilidade de uma reação a
produzida por fibroblastos após imunoestimulação. A colite um antígeno alimentar, como a gliadina para a doença celía
microscópica engloba as colites colágena (CC) e linfocitária ca. Também se descreve a associação dessas colites com certos
(CL). É uma denominação mais antiga, substituída hoje, na medicamentos, especialmente com os anti-inflamatórios não
literatura inglesa, pelo título watery diarrhea-colitis syndrome. hormonais e com a ticlopidina, o que lembra um relaciona
Essas doenças dependem de exame histopatológico de fragmen mento causa/efeito. Também o lanzoprazol, o omeprazol e o
tos colhidos no cólon para que se faça o diagnóstico, e, embora, esomeprazol foram relacionados com a colite microscópica,
por vezes, não seja fácil desmembrá-las, é preferível, sempre que sobretudo em idosos.
possível, individualizá-las para fins epidemiológicos. Sua inci Associação da doença com antígenos leucocitários huma
dência é difícil de ser estabelecida, mas dados suecos dão conta nos (HLA-DQ2, HLA-DQ1,3 e subtipos), semelhante ao que
de 1,8/100.000 habitantes para a CC, e um estudo da Espanha, ocorre na doença celíaca, sugere um especulativo mecanismo
referente à CL, mostrou incidência de 3,4/100.000 habitantes. imune similar.
Acredita-se que até 10 a 15% dos pacientes com diarréia crônica Em resumo, a CC e a CL se comportam clinicamente de ma
sejam portadores de colite microscópica, e esta seria, provavel neira muito similar, mas há diferenças na ocorrência de condi
mente, causa frequente de diarréia aquosa em idosos, acompa ções de origem autoimune e de asma, o que podería significar
nhada geralmente de emagrecimento e dor abdominal. Certa diferenças na imunopatologia. Tal como está, ainda não foi
mente, sua prevalência é subavaliada. devidamente estabelecido se a colite microscópica é uma enti
dade distinta ou somente um epifenômeno de outras doenças
■ Etiologia que levam a alterações na camada de colágeno.
423
424 Capítulo 38 / CoUte Microscópica, Colite Pseudomembranosa e Colite Radiógena
na sexta década da vida, embora surgindo um pouco mais cedo a 5-ASA, 1 a 4 g/dia, em doses divididas, associada, se neces
do que a anterior (em média, aos 59 anos de idade para a CC sário, à loperamida. Em caso de insucesso ou de repercussão
e 54 anos para a CL). grave da doença, acrescentar corticosteroides. A resposta da CM
Os exames de laboratório servem para excluir outras doen aos antidiarreicos é, em geral, desapontadora, mas justifica-se,
ças. Não há contribuição do enema opaco. sobretudo, em pacientes com diarréia ainda em fase de estudo
A colonoscopia mostra uma mucosa macroscopicamente para o diagnóstico da CM.
inalterada, mas as biopsias são o elemento-chave para o diag
nóstico correto. De fato, é o exame anatomopatológico que
permite diferenciar a colite colágena da colite linfocitária e de
■ Prognóstico
um cólon sadio. Este fato alerta os médicos para a indispen- A CC e a CL são doenças crônicas, de curso benigno. En
sabilidade de biopsias apropriadas de reto e cólon para que tretanto, um número significativo de doentes pode apresentar
não se deixe passar o diagnóstico dessas doenças. Na CC, de- diarréia intermitente, ou diarréia contínua, exigindo medica
posita-se colágeno sob a mucosa, levando a um espessamento ção prolongada.
significativo e não contínuo da camada basal subepitelial, mas
que respeita a basal periglandular. Esse colágeno é sobretudo
dos tipos 1 e III, fibrilar, e um pouco de colágeno de tipo VI, ■ COUTE PSEUDOMEMBRANOSA
portanto diferente do colágeno que constitui a camada sube
pitelial do cólon sadio, que é do tipo IV, não fibrilar. A colite A ocorrência de diarréia em pacientes sob antibioticoterapia
linfocitária, por sua vez, caracteriza-se por um aumento das é fenômeno comum na prática diária, particularmente quando
células inflamatórias mononucleadas - monócitos e linfóci- se utilizam ampicilina e clindamicina. Habitualmente, a diarréia
tos - que se distribuem pelo córion e, sobretudo, pelo epitélio ocorre na vigência da utilização dos antibióticos, com resolução
superficial. Aqui, o aumento de linfócitos deve ser superior a espontânea após a interrupção das drogas. Na maioria das ve
20/100 células epiteliais, contra um máximo de 6/100 no cólon zes, a diarréia se manifesta com pouca intensidade, não neces
normal. Várias características histológicas são comuns às duas sitando de nenhum tratamento específico, e o exame de fezes
formas de colite, tais como o aumento de linfócitos intraepite- não demonstra a presença de leucócitos e não cresce nenhum
liais, lesões no epitélio de superfície e infiltrado mononuclear germe na coprocultura. A colite pseudomembranosa (CP), tam
no córion. Na colite colágena, as lesões predominam no cólon bém denominada colite induzida por antibióticos, é geralmente
direito, daí a necessidade de retirar fragmentos de diferentes ocasionada pelo Clostridium difficile, através da liberação de
níveis do cólon. É preciso que o patologista separe bem a colite suas toxinas e em decorrência da superpopulação desse agente
colágena da esclerodermia, o que se faz, inclusive, em bases clí infeccioso, consequente ao uso de antibióticos. Poderá, também,
nicas. A amiloidose também pode gerar dúvidas, mas técnicas ser encontrada em pacientes imunodeprimidos, portadores de
apropriadas de coloração orientarão o diagnóstico. Atualmente, colopatias crônicas, sem história de uso de antibióticos, e, com
têm sido observadas evidências de doenças alérgicas ou alergias maior frequência, em aidéticos. O sistema digestório poderá ser
alimentares em pacientes com colite microscópica, podendo- totalmente envolvido no processo, desencadeando grave surto
se, desta forma, aventar a possibilidade de uma conexão entre infeccioso sistêmico, que necessita de pronto reconhecimento
esta entidade e alergia alimentar. e imediatas atitudes terapêuticas. O Clostridium diffiàle, reco
nhecido como agente entérico endêmico em 1977, é encontrado
nas fezes de 15 a 25% dos pacientes com diarréia induzida pelos
■ Diagnóstico diferencial antibióticos, e em 5 a 10% dos que, apesar de estarem recebendo
O principal desafio é separar essas entidades do cólon irritá antibióticos, não apresentam diarréia. Essa porcentagem muda
vel. Muitas vezes, apenas a biopsia da mucosa do cólon permiti para 75% nos doentes que desenvolvem colite, e em quase 100%
rá que se chegue ao diagnóstico correto. Outras doenças, como se há pseudomembranas no cólon. O processo compromete
colite aguda, parasitoses, doenças inflamatórias intestinais, diar geralmente o reto e o cólon, e, mais raramente, o intestino del
réia por laxativos, amiloidose cólica e colite isquêmica, também gado. Pode apresentar-se de maneira localizada ou difusa, com
deverão ser consideradas no diagnóstico diferencial. formação de placas exsudativas que se agregam, constituindo
as chamadas pseudomembranas, que vêm a ser uma resposta
inespecífica da mucosa intestinal frente à endotoxina A pro
■ Tratamento duzida pelo agente bacteriano agressor. As colites associadas
A doença não se cura de maneira espontânea e evolui entre aos antibióticos representam importante situação clínica, com
meando crises e períodos de acalmia. Apesar de haver algumas incidência maior nos pacientes hospitalizados, estando presen
diferenças entre CC e CL, o tratamento é o mesmo para ambas tes em 20% dos que receberam essas drogas, desencadeando
as formas. As duas formas respondem muito bem à sulfassa- alteração no equilíbrio da flora intestinal e permitindo, assim,
lazina, com ou sem corticoides, tanto VO quanto por clister. o desenvolvimento da bactéria anaeróbia. O C. difficile é facil
Os índices de sucesso com o tratamento clínico alcançam 80 a mente encontrado nas enfermarias e banheiros dos hospitais,
90%. Recentemente, usou-se subsalicilato de bismuto em do sendo transmitido de paciente para paciente ou, então, através
ses altas, por 8 semanas, com resultados positivos tanto sobre do pessoal da enfermagem. Essas colites representam a maior
a diarréia quanto sobre as alterações histológicas. Na verdade, causa de diarréia em pacientes hospitalizados por período su
vários medicamentos foram propostos, tais como loperamida (2 perior a 3 dias, com incidência de 7:1.000 pacientes. Apesar de
a 16 mg/dia) ou difenoxilato (2,5 a 10 mg/dia) para a diarréia, qualquer antibiótico poder induzir essas colites, assumem maior
octreotídio (100 mg TID), metronidazol (800 mg/dia), coles- importância a ampicilina, a clindamicina e as cefalosporinas.
tiramina (até 16 g/dia), mepacrina, corticosteroides sistêmicos Os sintomas poderão desenvolver-se logo no início da antibio
e tópicos (incluindo a budesonida), 1 a 2 g de 5-ASA/dia e me- ticoterapia, ou, então, mais tardiamente, até após algumas se
totrexato, e relata-se até um caso de remissão com omeprazol. manas. Assim, na vigência de quadros diarreicos, é importante
Do ponto de vista prático, como primeira tentativa, sugerimos a pesquisa da utilização pregressa de antibióticos.
Capítulo 38 / Colite Microscópica, Colite Pseudomembranosa e Colite Radiógena 425
Há uma peculiaridade envolvendo os recém-nascidos: 80% 10 mm de diâmetro, intercaladas com áreas de intensa hipere-
deles poderão ser portadores do C. difficile, muitos com cepas mia (Figura 38.1). Ao exame histológico do material colhido
toxigênicas, mas não desenvolvem a doença porque faltam re por biopsia, evidenciam-se ulcerações epiteliais, exsudato de
ceptores colônicos para as toxinas, que surgem apenas após fibrina e neutrófilos (Figura 38.2). Em cerca de 10% dos casos,
1 ano de vida. o processo é restrito ao cólon proximal e, portanto, não atingí
vel pela retossigmoidoscopia. Nessas situações, é extremamente
importante a colonoscopia, procurando-se chegar ao ceco.
■ Quadro clínico
A maioria desses doentes apresenta diarréia aquosa mode ■ Ultrassonografia
rada, associada a desconforto abdominal no baixo ventre. Nas A ultrassonografia abdominal poderá ser de utilidade no
formas graves, a dor é tipo cólica, no baixo abdome, seguida de diagnóstico da CP. O achado ultrassonográfico é o de espes-
evacuações líquidas profusas, até 30 vezes/dia, com muco e, às samento grosseiro da parede intestinal com estreitamento da
vezes, sangue. Pacientes muito graves, podem desenvolver me- luz, mas é inespecífico. Entretanto, dentro do contexto clínico,
gacólon e até perfuração intestinal. Há febre e alterações hidre- esses dados poderão corroborar o diagnóstico.
letrolíticas, moderadas ou acentuadas. A palpação do abdome
desperta dor no baixo ventre, e, eventualmente, notam-se sinais ■ Tom ografia com putadorizada (TC)
de irritação peritoneal. A TC do abdome apresenta características próprias na CP,
Em algumas situações, o quadro poderá encaminhar-se para revelando o segmento intestinal comprometido, geralmente
uma forma chamada fulminante da colite, com toxemia cau
sada pela sepse, manifestando-se com dor, febre, taquicardia e
distensão abdominal.
Lesões extensas da mucosa intestinal podem causar perda
significativa de proteínas e consequente hipoalbuminemia.
■ Exames complementares
■ Bioquím ica
O leucograma mostrará leucocitose expressiva, dependendo
da intensidade do processo. É importante monitorar as dosa-
gens séricas de eletrólitos, especialmente de sódio e potássio,
além de outros parâmetros, como ureia, creatinina, proteínas
séricas, gasimetria e outros que se fizerem necessários para ava
liar o doente e promover as devidas reposições.
■ Exame de fezes
O C. difficile produz dois tipos de toxina: A, que é uma ente-
rotoxina, e B, que é uma citotoxina. O diagnóstico da CP poderá
ser afirmado pelo encontro, nas fezes, da toxina B, com especi Figura 38.1 Colite pseudomembranosa. Aspecto endoscópico de
ficidade de até 99% e sensibilidade de 95%. Porém, esse teste de cólon sigmoide, com formações pseudopolipoides e placas de fibrina.
detecção das toxinas por anticorpos e cultura de células pode (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
demorar até 48 h, e, em uma emergência, podemos optar pelo
teste ELISA para verificação das toxinas A e B, que apresenta
sensibilidade menor, entre 70 e 85%, mas é mais rápido.
A cultura para o C. difficile é dispensável, pois, além de ser
demorada, não identifica a presença de cepas toxigênicas.
A presença de leucócitos nas fezes é verificada em apenas 50%
das situações, não sendo fundamental para o diagnóstico.
■ Endoscopia
O exame endoscópico, através da retossigmoidoscopia
e/ou da colonoscopia, permitirá uma avaliação diagnóstica mais
rápida e, consequentemente, uma pronta ação terapêutica. Nos
doentes com sintomatologia moderada, o aspecto endoscópico
Figura 38.2 Colite pseudomembranosa. Aspecto panorâmico micros
da mucosa do reto e cólon poderá ser normal ou, então, evi cópico mostrando necrose da mucosa e substituição por pseudomem-
denciar processo inflamatório difuso, moderado e inespecífico brana de fibrina, exsudato de neutrófilos e restos de células epiteliais,
da mucosa. Nas formas graves, encontramos a típica CP, com conforme indicação das setas. (Esta figura encontra-se reproduzida
a presença de placas amareladas aderentes à mucosa, com 2 a em cores no Encarte.)
426 Capítulo 38 / CoUte Microscópica, Colite Pseudomembranosa e Colite Radiógena
reto e cólon esquerdo, com suas paredes espessadas e aspecto formas recorrentes da colite pseudomembranosa, com resul
sanfonado, além de acusar ascite e edema pericolônico. Essas tados imunogênicos satisfatórios.
alterações são identificadas também na criança, não só no adul
to. Os seguintes achados da TC são mencionados: espessamen-
to circunferencial da parede do cólon em 78%; espessamento ■ COUTE RADIÓGENA
nodular das haustrações em 44%; edema pericolônico em 33%;
e ascite em 11% dos pacientes avaliados. A colite radiógena resulta de agressão à mucosa retossigmoi-
deocólica por irradiação terapêutica de cânceres em geral locali
■ Diagnóstico diferendal zados na bexiga, no reto e ginecológicos. Ocorre em 2 a 20% dos
Devemos considerar outros processos infecciosos que pode pacientes submetidos à radioterapia pélvica. Considera-se que
ríam provocar diarréia em pacientes hospitalizados. As doenças a quantidade de radiação necessária para lesar o intestino varia
inflamatórias intestinais, nas suas manifestações agudas, par de doente para doente e com o tipo de tratamento. Entretanto,
ticularmente a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, além é pouco usual doses de até 4.000 cGy causarem lesão, mas, na
da colite isquêmica, também deverão ser consideradas. queles acima de 5.000 cGy, essa possibilidade é elevada. A lesão
pode ser aguda ou crônica e desenvolve-se rapidamente após o
■ Complicações início da irradiação. Entretanto, pode manifestar-se meses ou
As formas fulminantes de CP, com intensa desidratação, anos após a radioterapia, e o início da sintomatologia é estima
perda de eletrólitos e sepse, poderão evoluir muito rapidamen do, em média, em 6 a 12 meses. Caso se suspeite de lesão da m u
te para uma dilatação aguda do cólon (megacólon tóxico), se cosa logo de início e o tratamento radioterápico seja suspenso,
guida de perfuração, peritonite e, por sua extrema gravidade, há recuperação total sem terapêutica especial. Se o médico in
caminhar para óbito. Pacientes portadores de psoríase, em uso siste com a irradiação, então tanto poderá desenvolver-se uma
de drogas como fluouracil ou metotrexato, poderão apresentar forma aguda quanto uma forma crônica. Esta não só pode surgir
colite pseudomembranosa, e estudos têm demonstrado a pre em continuidade imediata ao processo agudo como manifestar-
sença da toxina do Clostridium. As formas crônicas evoluem se até meses, ou anos, depois de cessada a irradiação. Como,
com emagrecimento e poderão evidenciar uma enteropatia per em geral, o tratamento é indicado por tumores que se assentam
dedora de proteínas. na bacia, a maioria das lesões localiza-se no sigmoide e reto,
mas o cólon proximal e mesmo o intestino delgado também
■ Tratam ento podem ser atingidos (Figura 38.3). De fato, o intestino delgado
é comprometido em cerca de 1 a 5% dos pacientes submetidos
Nas formas moderadas, a suspensão da antibioticoterapia
à radioterapia pélvica, representando uma complicação de ex
geralmente é suficiente para a pronta resolução do processo,
trema gravidade, com mortalidade elevada (10 a 20%). Nessas
sem necessidade de qualquer terapêutica específica.
situações, o tratamento é cirúrgico, consistindo na remoção
Nas formas mais graves, é importante a reposição hidrele-
do segmento intestinal afetado. Todavia, pela ação deletéria da
trolítica, além de suporte metabólico através de nutrição pa-
radioterapia, há maior incidência de deiscência de anastomose
renteral. A terapêutica medicamentosa consiste basicamente
na administração endovenosa de metronidazol (500 mg a cada
8 h), associado a vancomicina (500 mg a cada 6 h). A vanco-
micina é um remédio caro, e há grupos que aconselham do
ses de 125 mg, 4 vezes/dia VO (o medicamento é ineficaz IV),
sendo atualmente preconizada a sua utilização VR. A melhora
é notada após 72 h. A duração é de 10 a 14 dias. Não há oferta
de vancomicina oral no mercado brasileiro, mas podemos nos
servir da forma parenteral VO (Vancocina®, Vancomicinal>;).
As drogas antidiarreicas, particularmente a loperamida, de
vem ser evitadas, pois atuam diminuindo a motilidade do có
lon, permitindo uma exposição mais prolongada da mucosa ao
agente agressor. Essa redução da motilidade, inibindo o peris-
taltismo, poderá levar, também, à formação de dilatação aguda
do cólon. A colestiramina, na dose de 4 g, 3 ou 4 vezes/dia, como
resina de troca aniôntica, tem a propriedade de se ligar à toxi
na bacteriana, reduzindo, assim, a sua capacidade de agressão.
É preciso lembrar que a resina se liga também à vancomicina,
diminuindo os níveis do antibiótico no cólon.
Cerca de 20% dos pacientes apresentam recorrência dos
sintomas após 1 a 2 semanas do término do tratamento, seja
devido à reinfecção, seja à falha de erradicação do C. difficile.
Nessas situações, poderemos reintroduzir a terapêutica com
metronidazol e vancomicina VO, durante até 4 semanas. Não
há necessidade da troca dos antimicrobianos, pois não existe,
senão raramente, resistência a eles. Foi sugerido tratamento
complementar com Lactobacillus (1 a 2 g VO, 4 vezes/dia) ou Figura 38.3 Estudo radiológico contrastado do intestino delgado
com Saccharomyces boulardii em casos recorrentes de colite mostrando segmento de alça distai estenosado pela açáo da radiote
pseudomembranosa. Vacina de uso parenteral, contendo to- rapia em uma paciente previamente operada por neoplasia de ovário
xoide A e toxoide B, tem sido considerada no tratamento das direito.
C a p ítu lo 3 8 / C o lite M icro scó p ica , C o lite P se u d o m e m b ra n o sa e C o lite R a d ió g e n a 427
■ Anatomia patológica
Do ponto de vista histológico, notam-se sinais inflamatórios
representados por infiltrado celular e abscessos de criptas, com
eosinófilos na fase aguda. Como o tumover das células intes
tinais é rápido, os efeitos da radiação aguda sobre a mucosa e
submucosa tendem a ser limitados, manifestados por diarréia,
má absorção e dor abdominal. Na fase crônica, o processo pa
rece decorrer de vasculite e endarterite. Nessa fase, todas as
camadas do intestino são atingidas, inclusive a serosa. Como
há isquemia decorrente de trombose arteriolar ou venosa, pode Figura 38.4 Peça cirúrgica da paciente da Figura 38.3. Segmento de
haver hipoxia tissular, que vai manifestar-se como espessamen- intestino delgado distai irradiado, com espessamento da parede e
to de várias camadas do intestino. Estenoses no reto e fístulas mucosa de coloração esbranquiçada e superfície lisa. (Esta figura en
interintestinais, com a bexiga ou com a vagina, são notadas em contra-se reproduzida em cores no Encarte.)
variável número de casos.
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Constipação Intestinal e
Fecaloma
José Alves de Freitas e Mounib Tacla
429
430 C a p ítu lo 3 9 / C o n stip a ç ã o In te stin a l e F e ca lo m a
turas constituintes da região anorretal e pela força da gravidade gicos realizados nos EUA estimam mais de quatro milhões de
durante o ato da defecação. Pacientes constipados relatam fezes pessoas constipadas apenas nesse país. Levantamento epide-
finas como um lápis, ou volumosas, ou fragmentadas em vários miológico feito na Inglaterra revelou que 29% da população
tamanhos, como fezes de cabra. toma laxativos, mas somente 1/5 é constipado. Na França, são
► c o m p r i m e n t o . Noventa por cento das pessoas normais es vendidos anualmente 36 milhões de comprimidos laxativos.
vaziam apenas o reto quando defecam; os outros 10% esvaziam Em nosso meio, estudo realizado por Kingma, em Belo Hori
0 cólon, desde a flexura esplênica até o ânus. zonte, revendo 1.000 prontuários de sua clínica gastrenteroló-
► p e s o f e c a l . O peso normal das fezes pode variar de 35 a gica, revelou que:
450 gramas por evacuação, nos homens, e de 5 a 335 gramas, nas
1. °) de 500 pacientes do sexo masculino, 37 (7,4%) apresen
mulheres. Estudos realizados em diferentes países demonstra
tavam constipação intestinal, e, em 17 destes (45,9%), essa era
ram que o peso médio das fezes foi de 100 gramas na Inglaterra
a queixa principal;
e nos EUA, 300 gramas na índia e 500 gramas em Uganda. Essa
2. °) de 500 pacientes do sexo feminino, 104 (20,8%) apre
ampla variação deve-se ao teor de fibras na dieta.
sentavam constipação intestinal, sendo, em 45 (43,3%), a quei
► c o n s i s t ê n c i a . A consistência das fezes pode ser determina
xa principal.
da objetivamente através da força necessária para fazer passá-las
por um tubo fino, ou observando-se a profundidade de penetra A incidência pode variar na dependência de vários fatores,
ção de um objeto no bolo fecal. Existem variações apreciáveis incluindo os citados a seguir.
► i d a d e . A ocorrência de constipação intestinal aumenta
de indivíduo para indivíduo e do homem para a mulher.
muito após os 60 anos. Estatísticas revelam que 21 a 34% das
► f r e q u ê n c i a . É, sem dúvida, o parâmetro mais fácil de quan
mulheres e 9 a 26% dos homens, após 65 anos, são constipados.
tificar e o de maior aplicação clínica. A grande maioria das pes
É interessante ressaltar que isso não representa uma conse
soas normais, em várias amostras da população geral, evacua
quência fisiológica do envelhecimento. A etiologia nestes casos
1 vez/dia, e raramente alguém evacua menos de 5 vezes/sema-
é multifatorial, incluindo comorbidades, diminuição da moti-
na. Entretanto, essa frequência pode ser alterada por inúmeros
lidade, defecação e medicamentos.
fatores, tais como cultura, hábitos alimentares, atividade física,
► s e x o . Meninos em geral apresentam maior incidência do
educação e fatores emocionais.
Uma maneira prática de se avaliarem não só as característi que meninas. Essa situação se inverte na idade adulta, sendo
cas das fezes, mas também a correlação com o tempo de trân até duas vezes mais frequente na mulher.
► s e d e n t a r i s m o . Pessoas sedentárias têm maior dificuldade
sito, é a utilização da Escala de Bristol para o formato das fezes
(Figura 39.1). para evacuar e o fazem com menor frequência.
■ EPIDEMI0L0GIA ■ ETI0PAT0GENIA
A constipação intestinal é um dos sintomas mais comuns Do ponto de vista etiopatogênico, podemos classificar a
em Medicina. Constitui a segunda queixa mais frequente na constipação intestinal em três grupos:
gastrenterologia atrás apenas da dor abdominal. Entretanto, • primária;
devido às dificuldades para definir exatamente o que é hábito • secundária ou orgânica;
intestinal normal, torna-se muito difícil, também, avaliar a in • idiopática ou funcional.
cidência real. Em inquérito realizado em um hospital geral, en
volvendo grande número de pacientes, somente 38% disseram
nunca terem tido constipação intestinal. Estudos epidemioló- ■ Constipação intestinal primária
Também chamada de constipação intestinal simples, é aque
la provocada por situações inerentes aos hábitos de vida do pa
ciente ou por outras circunstâncias, geralmente banais (Qua
dro 39.1). Neste caso, a anatomia do órgão está preservada.
Trânsito lento
Ex^lOO h
P o d a ç o s s o p n rn d o s , ■ I n g e s t a a l i m e n t a r in a d e q u a d a
■ Tipo 1 d u ro s c o m o a m e n d o in s
o % ° 0 °
A anamnese cuidadosa de pacientes constipados que não
F o r m a d o s a ls ic h a , m a s
Tipo 2 s o g m o n tn d a
apresentam causa orgânica revela ingesta reduzida de fibras, ou
F o r m a d o s a ls ic h a c o m
Tipo 3 fis s u ra s s u p o rfic ia ls
F o r m a d o s a ls ic h a o u
Tipo 4 c o b ra lis a o m o lo -----------------------▼-----------------------
P o d a ç o s m o lo s , m a s Q u a d r o 3 9 .1 H á b it o s d e v id a q u e p r o v o c a m c o n s tip a ç ã o
Tipo 5 c o n to r n o s n ítid o s
P o d a ç o s fofo s o
Tipo 6 c o n to r n o s o s g a rç a d o s
Ingesta alimentar inadequada
A q u o sa , som podaços Sedentarismo
Tipo 7 s ó lid o s L íq u id a Gravidez
Trânsito rápido Perda do reflexo da evacuação
Ex j 10 h Postura
Viagens
Figura 39.1 Escala de Bristol para o formato das fezes. Adaptada de Pouca disponibilidade de sanitários
Heaton.KWera/., 1992.
C a p ítu lo 3 9 / C o n stip a ç ã o In te stin a l e F e ca lo m a 431
até mesmo desnutrição, em 90% dos casos. Como sabemos, a cossociais. As situações mais frequentes são: doenças do cólon,
presença de fibras vegetais na dieta acelera o trânsito colorretal, doenças neurológicas, distúrbios endócrinos, medicamentos e
aumenta o peso das fezes e a frequência das evacuações. distúrbios psiquiátricos.
Além da dieta pobre em fibras, é frequente a ingesta de quan
tidade inadequada de líquidos. ■ D o e n ç a s d o c ó lo n
Qualquer condição que provoque estreitamento anatômico
■ S e d e n t a r is m o ou bloqueio mecânico do lúmen intestinal pode produzir cons
A vida sedentária, em si, não constitui fator importante na tipação intestinal. As principais enfermidades responsáveis por
etiopatogenia da constipação intestinal. Em estudo realizado essa situação estão listadas no Quadro 39.2. Devemos lembrar
nos EUA, demonstrou-se que a frequência das evacuações não sempre que a constipação intestinal, sobretudo se acompanha
é influenciada por exercícios físicos. Entretanto, a inatividade da de hemorragia, pode ser o primeiro sintoma de câncer do
física, notadamente nos idosos, associada à postura antifisio- cólon ou do reto.
lógica para defecar, colabora para a ocorrência de constipação As lesões extraluminais e, em certos casos, até extraintes-
intestinal. Além disso, os músculos diafragmáticos, abdominais tinais, como cistos ovarianos, miomas, tumores da próstata,
e pélvicos atuam na fase expulsiva da evacuação, e a inatividade dependendo do tamanho, podem ocasionar constipação intes
física debilita esses músculos. tinal por compressão extrínseca, ao passo que hérnias, vólvulos
e invaginação o fazem por obstrução intestinal.
■ G ra v id e z As lesões luminais em geral ocupam espaço, reduzindo a luz
A mulher grávida pode ficar constipada por dois motivos: do órgão, produzindo, dessa forma, constipação intestinal.
alterações hormonais e compressão extrínseca que o útero gra- O dolicocólon é uma alteração muito frequente, podendo
vídico faz sobre o intestino. atingir 14% dos indivíduos adultos. Caracteriza-se pelo alon
gamento do intestino grosso, especialmente do cólon esquerdo
■ P e r d a d o r e f le x o d a e v a c u a ç ã o e sigmoide. Nem sempre apresenta sintomas e, em geral, cons
A manutenção da continência dos esfíncteres anais interno titui achado radiológico.
e externo é complexa e de grande importância, pois permite ao A doença diverticular, embora muito frequente, sobretu
indivíduo controlar a evacuação, contraindo voluntariamente do nos indivíduos acima de 60 anos, é assintomática. Não só
esses esfíncteres, e, portanto, defecar em hora e local adequa a doença diverticular em si, mas também suas complicações
dos. Algumas pessoas condicionam o ato de defecar a rituais os
mais diversos, entre eles: ingerir água ou café em jejum; fumar
logo ao se levantar; ler jornais ou revistas etc. Entretanto, na
maioria das pessoas, o desejo de evacuar ocorre após a primeira -------------------------------------------------▼ -------------------------------------------------
refeição do dia, podendo se repetir após as outras refeições. É Q u a d r o 3 9 . 2 D o e n ç a s d o c ó lo n a s s o c ia d a s à c o n s tip a ç ã o
o chamado reflexo gastrocólico. Estudos recentes de fisiologia
demonstraram que o bloqueio voluntário e repetido do desejo Extraluminais
de evacuar provoca alterações, por vezes definitivas, nos me • Tumores
canismos sensoriais, de tal forma que a chegada de mais fezes • Vólvulos crônicos
• Hérnias
no reto não é capaz de provocar o desejo de evacuar.
Em pacientes com a síndrome do cólon irritável, podem Luminais
ocorrer alterações do limiar de sensibilidade à pressão provo • Tumores
• Estenoses
cada pela distensão retal, e, portanto, eles apresentam hipoati- • Diverticulite
vidade do reflexo da defecação. • Linfogranuloma venéreo
. Sífilis
■ P o s iç ã o • Tuberculose
• Colite isquêmica
A posição ereta adotada pelo homem na sua evolução reduziu a • Endometriose
velocidade de progressão do bolo alimentar, devido às angulações • Cirurgias
formadas no estômago e alças intestinais, através dos ligamentos
e flexuras, que funcionam como um obstáculo mecânico. Alterações da Musculatura e da Inervação
• Dolicocólon
• Miopatia visceral familial
■ V ia g e n s • Doença diverticular
Durante viagens, é comum a mudança do hábito intestinal, • Distrofia miotônica
consequente à alteração na dieta habitual e no hábito evacua- • Distrofia muscular de Duchenne
• Dermatomiosite
tório do indivíduo. Entretanto, essa situação geralmente é tran • Amiloidose
sitória, normalizando-se com a volta à rotina.
Lesões do reto
• Prolapso interno do reto
■ P o u c a d i s p o n i b i l i d a d e d e s a n it á r io s
• Retocele
A inexistência de locais adequados para defecar pode inibir • Proctite ulcerativa
o reflexo da evacuação. Geralmente, ocorre com crianças em • Tumores
idade escolar ou com pessoas que trabalham em locais públicos, Estenose anorretal
com sanitários anti-higiênicos. Tumor pré-sacral
Deformidade do sacro
Lesões do canal anal
■ Constipação intestinal secundária • Estenoses
• Fissura anal
Neste caso, a constipação intestinal é ocasionada por uma • Prolapso da mucosa anal
doença sistêmica, por iatrogenia ou, então, por problemas psi-
432 C a p ítu lo 3 9 / C o n stip a ç ã o In te stin a l e F e ca lo m a
Analgésicos
----------------------------- ▼ Anestésicos
Q u a d r o 3 9 . 3 C o n s tip a ç ã o d e o r ig e m n e u r o g ê n ic a *• Antiácidos (à base de cálcio e alumínio)
Antiarrítmicos
Periférica Anticolinérgicos
• D o e n ç a d e H ir s c h s p r u n g
• H i p o o u h ip e r g a n g lio n o s e
Antidepressivos
• N e u r o p a t ia a u t o n ô m ic a Anti-hipertensivos
• D oença de Chagas Antiparkinsonianos
Bismuto
Central (Cerebral e Medular)
Bloqueadores ganglionares
• Tu m o re s
• A c id e n t e v a s c u la r c e re b ra l Diuréticos
• P a rk in s o n Hematínicos (especialmente à base de ferro)
• Tabes dorsalis Inibidores da MAO
• E s d e r o s e m ú lt ip la
Intoxicação por metais pesados
• T r a u m a r a q u im e d u la r
• T u m o r d a c a u d a e q u in a
Opiáceos
• M e n in g o c e le Parassimpaticol (ticos
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 433
■ Distúrbios psiquiátricos
Pacientes que sofrem de depressão, ansiedade e, sobretudo,
aqueles com distúrbios psiquiátricos mais sérios (psicose, neu
rose, anorexia nervosa, entre outros) geralmente apresentam,
entre suas queixas, constipação intestinal. Nesses casos, é pre
ciso atenção especial, pois, muitas vezes, a queixa é constipação
intestinal, mas, na verdade, o paciente não se sente satisfeito
com a evacuação, quer seja quanto ao volume de fezes, quer
seja na consistência, ou até mesmo na sensação da evacuação
em si.
Muitas vezes, são pacientes fóbicos e, nas suas fantasias,
creem ser portadores de grave doença intestinal.
Nos pacientes com anorexia nervosa, a reduzida ingesta de
água e alimentos é a causa da constipação intestinal. Na sín-
drome do cólon irritável, com predomínio de constipação in
testinal, não existe correlação entre as queixas subjetivas e os
exames objetivos. Esses pacientes apresentam, quase sempre,
um distúrbio de sensibilidade visceral e, consequentemente, to
leram mal qualquer distensão do cólon. Além disso, geralmen
te ocorrem alterações motoras em todo o trato gastrintestinal,
mediado pelo sistema nervoso central.
■ Constipação intestinal idiopática ou funcional Figura 39.2 Constipação intestinal com trânsito lento. Retenção dos
marcadores 5 dias após a sua ingestão. Baseada em Santos, SL er a l.
Nesta situação, não há nenhuma alteração estrutural ou me- B raz. J. M e d . B io l. Res., 2000.
tabólica, nem qualquer alteração na rotina diária do paciente
que possa justificar o sintoma. Geralmente, o problema é crô
nico, muitas situações remontam à infância, e responde mal ao
tratamento convencional. Do ponto de vista fisiopatológico, ■ Defecação dissinérgica ou obstrutiva
pode ser dividida em três subgrupos: Nesta situação, existe uma falência do mecanismo de co
• constipação intestinal com trânsito normal; ordenação da evacuação. Este defeito funcional tem recebido
• constipação intestinal com trânsito lento; vários nomes: obstrução da via de saída, defecação obstrutiva,
• obstrução anorretal. disquesia anorretal, anismus; dissinergia do assoalho pélvico.
Esta pletora de nomes expressa o nosso desconhecimento dos
Estudo envolvendo 1.000 ou 1.009 pacientes constipados
mecanismos envolvidos neste importante distúrbio. Do ponto
revelou que 59% apresentavam trânsito intestinal normal; 25%,
de vista prático, o que ocorre é uma contração da musculatura
disfunção pélvica; 13%, trânsito lento; 3%, ambos (trânsito len
da pelve, em vez de relaxamento, durante a evacuação, resul
to e disfunção).
tando em acúmulo do bolo fecal na região retossigmoidiana
(Figura 39.3).
■ Constipação intestinal com trânsito norm al
Em algumas ocasiões, podem-se observar os dois mecanis
É a forma mais comum na prática clínica. Neste caso, o
mos em um mesmo paciente, notadamente em conjunto com
trânsito colônico e a frequência das evacuações são normais.
a síndrome do intestino irritável. A presença de constipação
Entretanto, os pacientes consideram-se constipados. Sentem
intestinal com dor sugere esta possibilidade.
dificuldade para evacuar e/ou apresentam fezes endurecidas.
■ Exames bioquím icos e microbiológicos uma vez que as informações fornecidas pelo paciente não são
A escolha de qual ou quais exames realizar depende da ava acuradas.
liação clínica meticulosa de cada caso, tendo sempre em mente Várias técnicas têm sido descritas, entretanto a mais usada
a exclusão de doenças orgânicas. Nesse sentido, o hemograma, consiste na administração, por via oral, de um marcador radio-
a determinação de glicemia em jejum e testes para avaliar a fun paco (cápsulas contendo bário, pedaços de sonda nasogástrica
ção da tireoide devem ser realizados rotineiramente. Devido radiopaca etc.). Seguem-se radiografias seriadas diariamente.
à frequente associação entre constipação intestinal e infecção Em geral, considera-se patológica a retenção de 20% do contras
do trato urinário, exame do sedimento urinário e urocultura te ao final do 5odia. Nesse período, o paciente não poderá usar
também devem fazer parte da rotina. laxativos, e sua dieta deverá ser a habitual. Para maior precisão,
basta conhecer o número de marcadores ingeridos e realizar a
■ Retossigmoidoscopia contagem daqueles recuperados nas fezes durante os 5 dias.
Observação da mucosa retal através da retossigmoidoscopia Este estudo poderá revelar um de três padrões (Figura 39.4):
é indicada com o intuito de afastar doenças orgânicas. Pode ser ► 7u- t r A n s i t o n o r m a l . Quando, ao final do 5o dia, restaram
realizada tanto com aparelho flexível quanto com rígido. Este menos de 20% dos marcadores no cólon.
último tem a vantagem de não necessitar de insuflação de ar e ► 2u- t r A n s i t o l e n t o o u i n é r c i a c o l ô n i c a . Observam-se, após
permitir demonstrar prolapso retal interno. o 5o dia, mais de 20% dos marcadores espalhados pelo cólon
ou concentrados no cólon ascendente.
■ Colonoscopia ► 3 o- p a d r A o o b s t r u t i v o . Retenção de mais de 20% dos mar
Poderá ser necessária naqueles casos em que se suspeita de cadores na região retossigmoidiana com um trânsito pratica
malignidade. mente normal no restante do cólon.
Dois terços dos pacientes com dissinergia anorretal podem
■ Exames radiológicos exibir um padrão misto, isto é, trânsito lento e padrão obstru
■ Enemaopaco tivo simultâneos.
Na constipação intestinal de aparecimento recente, o enema Quando disponível, a cintigrafia colônica também constitui
opaco é obrigatório, no sentido de afastar a possibilidade de um um bom método para avaliar o tempo de trânsito.
carcinoma. Nos casos crônicos, permite avaliar o tamanho do
intestino, a presença ou não de divertículos, megacólon, este- ■ M anom etria anorretal
noses, entre outros achados. Ultimamente, vem sendo progres Existem várias técnicas para medir a pressão na região anor
sivamente substituído pela colonoscopia. retal. Embora qualitativamente os resultados obtidos com as
várias técnicas sejam superponíveis, há necessidade de padro
■ Defecografía nização. Na prática, a principal indicação desse exame restrin-
Nos últimos anos, a defecografía vem sendo realizada com ge-se à diferenciação entre constipação intestinal idiopática e
muita frequência. Esse exame permite avaliar a anatomia e a doença de Hirschsprung, nas quais nem a radiologia nem a
dinâmica da evacuação. A técnica do exame varia entre os dife histopatologia chegaram a uma conclusão.
rentes centros, mas, de uma maneira geral, usam-se 150 m^ de
uma pasta espessa de bário, imitando a consistência das fezes. ■ Eletrom iografia do cólon
Isso pode ser facilmente conseguido adicionando-se ao bário ce O registro da atividade elétrica do cólon fornece elementos
lulose, ou batata cozida amassada. O exame permite diagnosticar importantes a respeito da fisiopatologia da constipação intes
prolapso retal, enterocele, prolapso de mucosa, peritoniocele, tinal. Contudo, do ponto de vista prático, é muito trabalhoso.
retocele, queda do períneo e reação paradoxal do esfíncter, e A maneira mais adequada de realizar esse exame consiste na
ainda permite estudar o esvaziamento do reto e do canal anal. introdução de eletrodos na forma de anel, via colonoscopia.
O formato dos eletrodos permite captar os sinais pelo simples
contato com a parede intestinal.
■ Avaliação funcional
■ Determ inação do tem po de trânsito colônico ■ Eletrom iografia do esfíncter anal
O estudo do tempo de trânsito colônico permite ao médico Pode ser realizada utilizando-se eletrodo em agulhas, per
entender melhor o movimento do bolo fecal através do cólon, mitindo detecção de dissinergia em um músculo isoladamente.
Através desse método, é possível investigar também o reflexo físico que se estabelece a relação médico-paciente. Em geral,
entre a pele perineal e a musculatura pélvica, determinando a são pacientes com alto grau de frustração, pois já ouviram que
integridade da inervação proveniente da cauda equina. não estão doentes, ou que seu problema é psicológico, ou então
que nada pode ser feito. Devemos lembrar que doenças funcio
■ Avaliação dinâm ica da evacuação nais não significam que não haja doença. A melhor conduta é
Pode ser feita através da defecografia (como descrito ante fazer um diagnóstico positivo, mostrando que algo está errado,
riormente), ou, então, pelo teste de expulsão de balão. Consiste e relacionar isso à avaliação funcional. Dessa forma, é possível
na introdução de um balão de silicone, com formato de fezes, conseguir uma aliança terapêutica com o paciente.
preenchido com 50 m^ de água morna VR e na observação da
dinâmica da evacuação enquanto o paciente evacua o balão. ■ Orientações gerais ao padente
Permite avaliar o comprimento e a pressão de abertura do ca Chamar a atenção para eventos que induzam constipação
nal anal e, ainda, estudar o ângulo anorretal. intestinal.
• necessidade de aderência ao tratamento;
■ Avaliação psicológica • atentar para a variabilidade das funções intestinais, e que
não é obrigatório evacuar diariamente;
Devemos lembrar sempre que o cólon está dentro de uma
• importância de se estabelecer uma rotina evacuatória;
pessoa. Nesse sentido, é necessário levar em conta os elementos
imaginários que o paciente tem de sua configuração corporal. • investigar causas específicas de constipação intestinal e
Constipação intestinal não é somente a evacuação pouco fre tratá-las;
quente e/ou com fezes duras, mas, também, a sensação subjetiva • esclarecer sobre o abuso e o uso inadequado de laxa-
que o paciente apresenta. O constipado com frequência passa tivos.
de médico a médico, pois nem sempre aceita realizar os exames
■ Reeducação dos hábitos evacuatórios - Ritualizar a defecação
propostos, gerando frustração, desprazer ou mesmo raiva no
médico, e rompendo a relação médico-paciente. Procurar manter um horário para evacuar, de preferência
É essencial obter uma história de vida do paciente, no sen após uma refeição. Procurar defecar ainda que não tenha desejo.
tido de detectar “traumas emocionais” e conflitos não resol Com o passar do tempo, torna-se um reflexo condicionado. Essa
vidos. medida isoladamente é tão eficaz quanto o uso de laxantes.
Aqueles que querem ser rigorosos podem lançar mão de Sempre que possível, não deixar de atender ao desejo de
testes psicológicos, mas, na prática, de um modo geral, os pa evacuar.
cientes constipados não aceitam bem a ideia de que seus pro Adequar a ingestão de líquidos, procurando beber pelo me
blemas possam ter origem emocional. nos 1 1 de água por dia.
É necessário atenção especial para detectar ocorrência de Postura no vaso sanitário. Infelizmente, a modernidade e
abuso sexual, notadamente na infância e adolescência. comodidade dos vasos sanitários atuais nos tiraram da posição
ideal para evacuar (de cócoras) para uma posição sentada, pou
co fisiológica. Nos casos mais graves, pode-se lançar mão de um
tablado ou qualquer outro artifício que eleve os pés e, mesmo
■ TRATAMENTO no vaso sanitário, conseguir uma posição mais fisiológica.
Não existe nenhum medicamento ou esquema terapêutico Tratar as afecções anorretais (hemorroidas, fissuras, fístulas,
único para todos os pacientes ou situações. A melhor estraté retocele etc.), quando existirem.
gia é personalizar o tratamento, levando-se em conta a história Praticar exercícios físicos regularmente, sobretudo os abdo
clínica, a causa e aspectos emocionais. minais. Essa medida visa a reforçar o diafragma e a musculatura
abdominal, que participam ativamente no processo da eva
cuação.
■ Medidas gerais Coibir o uso abusivo de laxantes, especialmente os drás
O tratamento baseia-se em melhorar os sintomas, sempre ticos.
que possível atuando nos mecanismos fisiológicos que regu
lam as funções do trato gastrintestinal. Não existe nenhum es ■ Aum ento da ingestão de fibras
tudo controlado sobre qualquer tipo de tratamento, levando- O aumento do teor de fibras na dieta deve ser sempre in
se em conta a história natural da constipação intestinal. Para centivado, notadamente naqueles pacientes em quem a cons
se ter uma ideia da importância desse fato, em uma série de tipação intestinal não tem uma causa evidente. Isso pode ser
200 pacientes com queixas abdominais tidas como funcionais, conseguido através da utilização de alimentos ricos em fibras
34 tinham a constipação intestinal como sintoma. Somente um como farelo de trigo, verduras, frutas e leguminosos. Algumas
tornou-se assintomático após 2 anos de seguimento. vezes, podem-se adicionar à dieta fibras medicinais naturais
Dentre as medidas gerais, destacam-se: como psílio, plantago e sene, e fibras sintéticas representadas
pela policarbofila.
■ Relação m édico-padente As fibras dietéticas estão disponíveis em diversas fontes
O tratamento começa no momento exato em que o paciente naturais, como: frutas, vegetais e cereais. Do ponto de vista
entra no consultório pela primeira vez. Cerca de 80% têm as nutricional, são melhores do que os suplementos com fibras
mãos frias e úmidas e, quase sempre, um abdome doloroso e o purificados. Por outro lado, aconselhar os pacientes a come
cólon palpável. Cicatrizes abdominais são quase sempre uma rem mais frutas, vegetais e cereais frequentemente é perda de
regra. Devemos prestar muita atenção na comunicação não tempo, pois a maioria deles não segue esta orientação, ou, se o
verbal. Geralmente, apresentam comportamento e expressões faz, é por pouco tempo. Quando se prescrevem suplementos de
inapropriados, com preocupações que não correspondem às fibras industrializados, a aderência dos pacientes é maior. As
expressões faciais e corporais. E durante a anamnese e o exame fibras podem ser solúveis ou insolúveis. As primeiras consis
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 437
em água; são encontradas na aveia, cevada, em legumes e al Q u a d ro 39 .6 Conteúdo de fibras de alguns vegetais,
guns vegetais e frutas, metabolizadas pelas bactérias do cólon, frutas e cereais
formando um gel lubrificante que é incorporado ao bolo fecal,
amaciando-o e facilitando a sua progressão. Vegetais Porção Fibras (g)
As fibras insolúveis são constituídas de celulose, ligninas e
A lfa c e 1 xíca ra 0 .9
algumas hemiceluloses. As principais fontes destas fibras são
A s p a rg o s 1/2 xíca ra 1,0
grãos integrais (trigo, cereais, arroz), nozes, sementes e vege
tais. Atuam retendo água, aumentando o volume e o peso do B ata ta 1 (m é d ia ) 2.5
bolo fecal. Estimulam a motilidade e aumentam o tempo de B ró c o lis 1/2 x ícara 2,2
vel, com casca, perfazendo um total de 30 gramas de fibras por P ã o in te g ra l 100 g 1,5
dia. No Quadro 39.6, encontra-se relacionado o teor de fibras
dos principais alimentos. Alguns pacientes queixam-se de pro Modificado de: Pontes. JF & Freitas. JA. 1985.
dução excessiva de gases e distensão abdominal com o uso de
fibras. Para amenizar estes efeitos, aconselhamos iniciar com
doses subterapêuticas, aumentando o teor, semanalmente, até
atingir o efeito ideal.
Quando o paciente não tolera o aumento de fibras natu
▼
rais na dieta, pode-se lançar mão das fibras medicinais ou das
sintéticas. Q u a d ro 39.7 Classificação dos laxativos e principais
substâncias laxativas
■ Abordagem farmacológica
Á g a r -á g a r
Infelizmente, o uso de laxativos tornou-se popular em nos
M e tilc e lu lo s e
so meio, sustentado por propagandas na mídia que, de ma
F o rm a d o r e s d e m a ssa C a r b o x im e t ilc e lu lo s e
neira impune, divulgam benefícios cosméticos e de bem-estar
S e m e n te s d e p la n t a g o
provocados por laxativos; às vezes, em situações indevidas, até
mesmo por orientação médica, acarretando significantes ma ^ F a re lo d e t r ig o
para tratar constipação intestinal são vendidas livremente nas L u b r if ic a n t e s ------------------------------------------ ô l e o m in e r a l o u p a ra fin a líq u id a
crever laxantes, deve-se respeitar a tolerância e a preferência no lúmen intestinal e atuam estimulando o plexo nervoso. Seu
do paciente. uso indiscriminado e a longo prazo pode lesar definitivamente
Os agentes formadores de massa, como o próprio nome os plexos, provocando o chamado “cólon catártico”.
indica, atuam aumentando o bolo fecal. São constituídos por Outras drogas usadas isoladamente ou em associação com
derivados da celulose e polissacarídios semissintéticos, entre laxativos têm sido testadas no tratamento da constipação in
eles: metilcelulose, carboximetilcelulose, semente de plantago, testinal. O betanecol foi estudado em pacientes com trânsito
ágar, farelo e polímeros sintéticos como a policarbofila. Podem colônico lento, mas sem sucesso. A cisaprida, um agonista de
exacerbar os sintomas, se a causa da constipação intestinal for 5-hidroxitriptamina, aumenta a liberação de acetilcolina sem
orgânica. De qualquer forma, são os mais indicados para o provocar efeito antidopaminérgico, incrementando dessa forma
tratamento a longo prazo. Todos os outros laxativos devem a motilidade intestinal. Em estudo duplo-cego utilizando 10 mg
ser usados apenas nos casos agudos, ou por curto período de em três tomadas diárias, demonstrou ser efetiva nos casos de
tempo, ou, ainda, quando houver necessidade de limpeza in constipação intestinal leve, com diminuição da dor abdominal,
testinal para a realização de qualquer procedimento (exames, da distensão, da consistência das fezes e aumento da frequência
cirurgias etc.). das evacuações. Mostrou-se útil também nos pacientes porta
As fibras sintéticas são substâncias inertes, resistentes à ação dores de constipação intestinal de origem orgânica, tais como
bacteriana. São substâncias osmoticamente ativas, com capaci trauma raquimedular e lesões do SNC. Estudos com cintigrafia
dade hidrófila de 40 a 60 vezes o seu peso. colônica revelaram que a cisaprida melhora não só o tempo de
Os surfactantes ou emolientes são usados com o propósito trânsito no cólon, mas também a sensibilidade retal.
de facilitar a mistura de água e gordura na massa fecal, amo-
lecendo-a. Provavelmente, dificultam a absorção de água pela ■ Agentesneuromusculares
mucosa intestinal. São constituídos de docusato de sódio, cál A maioria dos medicamentos para tratar constipação intes
cio ou potássio. Podem provocar ruptura dos epitélios gástri tinal vem sendo utilizada desde a antiguidade, sem ser testada
co e intestinal. em estudos bem conduzidos. Na era moderna, seu uso depende
Os lubrificantes são representados pelo óleo mineral e pela mais do costume do que da ciência.
parafina líquida. Agem lubrificando a parede intestinal e dimi Os conhecimentos adquiridos nos últimos 20 anos acerca
nuindo a absorção de água pelo cólon. Seu uso crônico acarreta da neuroanatomia, neuroquímica e propriedades elétricas do
diminuição de absorção de vitaminas lipossolúveis. sistema nervoso entérico (SNE) vêm permitindo uma melhor
Os laxantes osmóticos incluem os salinos formados por sais compreensão da fisiopatologia da constipação intestinal e a
de magnésio ou de sódio. Praticamente, não são absorvidos e, sua manipulação farmacológica. Nesse sentido, as substâncias
com isso, produzem um fluxo osmótico de água para o lúmen mais promissoras são:
intestinal. Seu uso prolongado pode ocasionar distúrbios hidre- ► AGONISTAS DOS RECEPTORES 5-HT4. Os receptores 5-HT.,
letrolíticos, sobretudo em pacientes renais crônicos. desempenham importante papel, tanto fisiológico quanto fi-
Também são laxantes osmóticos os açúcares de baixa ab siopatológico, na regulação das funções gastrintestinais. A ati
sorção, como: a lactulose, a lactose, o sorbitol, o manitol e a vação neural desses receptores resulta em ativação procinética
glicerina. ao longo do trato gastrintestinal (TGI). A liberação de neuro-
Estes carboidratos não absorvíveis constituem substratos transmissores a partir dos nervos entéricos resulta em aumento
para a fermentação bacteriana no cólon, resultando na produ da contratilidade e estimulação do reflexo peristáltico. O papel
ção de hidrogênio, metano, dióxido de carbono, água, ácidos e exato dos neurotransmissores na sensibilidade visceral ainda
ácidos graxos voláteis. Além do efeito osmótico, essas substân é desconhecido. Várias substâncias agonistas dos receptores
cias estimulam a motilidade intestinal e a secreção de água. 5-HT, estão sendo investigadas, destacando-se o tegaserode, a
A lactose é um laxante suave e seguro para os casos de cons prucaloprida e a renzaprida.
tipação intestinal moderada. A produção de gás poderá causar O tegaserode é um agonista parcial dos receptores 5-HT, e
dor abdominal e flatulência. O sorbitol é um açúcar pouco ab- representa uma tentativa mais factível de estimulação destes
sorvível e geralmente utilizado para limpeza dos cólons. A gli receptores com finalidade terapêutica.
cerina não pode ser utilizada por via oral, pois é prontamente Foi desenhado para mimetizar a estrutura química da seroto-
absorvida no intestino delgado. nina, mas modificada de tal forma que não atravessa a barreira
Mais recentemente, têm sido utilizados agentes osmóticos hematencefálica, limitando a sua atividade ao sistema nervoso
sintéticos à base de polietilenoglicol (PEG). Esta substância é periférico.
um polímero de alto peso molecular com intensa atividade os- Apesar de ter sido comercializado, com grande expectativa,
mótica. Em nosso meio, está sendo comercializado o macrogol em várias partes do mundo, foi retirado do mercado devido a
3350. Trata-se de um polímero quimicamente inerte associa seus efeitos adversos no sistema cardiovascular.
do a uma solução eletrolítica que não contém qualquer sal que A prucaloprida faz parte de uma nova classe de drogas co
possa ser absorvido. É atóxico mesmo em altas doses, podendo nhecidas como benzofurancarboxamidas, atuando como ago
ser utilizado em idosos, mulheres grávidas e crianças. Infeliz- nista completo dos receptores 5-HT.,.
mente, o seu custo limita o seu uso. Em dois amplos estudos randomizados e bem controlados,
No grupo de laxativos estimulantes, encontramos os deriva envolvendo mais de 1.200 indivíduos, observou-se que a pru
dos difenilmetânicos, entre eles a fenolftaleína e o bisacodil, e caloprida, na dose de 2 e 4 mg/dia, aumentou o número de eva
os derivados antraquinônicos, como cáscara sagrada, sene, óleo cuações completas no período de 12 semanas de observação,
de rícino, entre outros. A fenolftaleína inibe a absorção ativa quando comparada ao placebo.
de sódio. Seu uso está restrito a alguns países subdesenvolvi Apesar dos resultados de ensaios clínicos recentes terem de
dos, ou em desenvolvimento, pois pode provocar sérias lesões monstrado eficácia e efeitos colaterais até então desprezíveis, a
hepáticas. O bisacodil estimula o plexo nervoso da mucosa do sua similaridade com a cisaprida, que foi retirada do mercado
cólon, causando contrações e diminuindo a absorção de água. por causar arritmia cardíaca, tem retardado a comercialização
Os derivados antraquinônicos são desconjugados por bactérias da droga.
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 439
A renzaprida é uma mistura de agonista 5-HT., e antago Entretanto, existem poucos estudos a respeito de sua eficácia
nista 5-HT3 que apresenta efeito estimulante da motilidade e no tratamento da constipação intestinal crônica.
do trânsito gastrintestinal. Apesar de comprovados efeitos sa Vale ressaltar que a maioria, dos probióticos comerciali
tisfatórios em melhorar não só a constipação intestinal mas zados em nosso meio, se não todos, sobretudo nas gôndolas
também a dor abdominal, a droga, assim como a mosaprida e de supermercados, podem não conter organismos vivos, ou
outros serotoninérgicos, permanece em investigação. os organismos podem não sobreviver às condições de estoca-
► ANTAGONISTAS OPIOIDES. Outro alvo de pesquisa de dro gem, incluindo temperatura e tempo. Nem sempre os efeitos
gas que atuam no SNC para o tratamento da constipação intes benéficos propagados foram testados de maneira científica e,
tinal envolve os neurônios secretores de opiáceos endógenos finalmente, alguns produtos podem conter, até mesmo, orga
e seus receptores. Sabe-se que a liberação destas substâncias e nismos patogênicos.
sua interação com receptores pós-sinápticos diminuem a pe-
ristalse. Este é o mecanismo pelo qual os opiáceos exógenos ■ Medicina alternativa ou com plem entar
causam constipação intestinal. O aspecto crônico da constipação intestinal e os resultados
Fundamentado nestas observações, sugeriu-se que antago insatisfatórios obtidos com as medidas terapêuticas habituais
nistas opioides poderíam melhorar os sintomas de constipação induzem o paciente a experimentar as mais diversas formas
intestinal crônica. A primeira droga utilizada foi o naloxone. de alívio de seu sintoma. Dentre estas, as mais comuns são as
Entretanto, devido ao fato de a droga atravessar a barreira he- ervas, especialmente as chinesas.
matencefálica e agir nos receptores opioides do sistema ner Existem poucos trabalhos científicos bem conduzidos a res
voso central, a sua utilização com finalidades terapêuticas foi peito de medidas alternativas para o tratamento da constipação
interrompida. Recentemente, iniciaram-se estudos com dois intestinal. Na maioria deles, não há critérios científicos aceitá
novos antagonistas opiáceos que não atravessam a barreira he- veis, como grupo-controle, tamanho da amostra e padronização
matencefálica, são eles: metilmatroxeno e alvimopam. Estudos de diagnóstico e terapêutica.
em animais sugerem que as drogas são eficazes no tratamento Em recente revisão da literatura, encontraram-se apenas 18
de constipação intestinal induzida por opiáceos e no íleo adi- trabalhos considerados de boa qualidade. Destes, apenas 8 de
nâmico pós-cirúrgico. alta qualidade. Os resultados destes estudos mostram que pa
► OUTRAS DROGAS QUE ESTÃO SENDO INVESTIGADAS. N eu- rece haver benefícios na utilização da acupuntura e, sobretudo,
ro tro fin a 3. A neurotrofina 3 é um peptídio que aumenta o de de certas ervas no manejo da constipação intestinal. Entretan
senvolvimento de neurônios in vitro. A tentativa de tratamento to, não se pode extrair nenhuma conclusão definitiva devido à
de doenças degenerativas, como Parkinson e Alzheimer, com heterogeneidade entre estes estudos.
esta substância apresentou como principal efeito colateral a
diarréia. Com base nisso, iniciaram-se os estudos (ainda não ■ Reeducação fun d o n a l - Biofeedback
conclusivos) da utilização desta substância para o tratamento Numerosos estudos demonstram que o uso de técnicas de
da constipação intestinal. relaxamento pode, até mesmo, curar a constipação intestinal.
► A tiv a d o re s d o s ca n a is d e clo ro . Uma classe de drogas O princípio do biofeedback é reativar um reflexo preexisten
que, sem dúvida, atua no sistema de transporte através da mu- te, reeducando o paciente. Todas as modalidades de biofee
cosa são os agentes que abrem os canais de cloro. A secreção dback ensinam os pacientes a relaxar, em vez de contrair, a
de fluidos pelo intestino depende da secreção de cloretos que é musculatura pélvica durante o esforço para evacuar. Pode ser
mediada pelos canais de cloro existentes na membrana apical realizado através de eletromiografia, ou manometria anorretal,
dos enterócitos. Este é o mecanismo pelo qual várias toxinas com sinais auditivos e visuais, reforçados verbalmente. Outra
bacterianas produzem diarréia. Com fundamento nestas obser técnica consiste na introdução de um balão VR e pedir ao pa
vações, vêm sendo estudados o lubiprostone, linaclotide, entre ciente que o evacue. Pela própria natureza da técnica, é claro
outros. Aguardam-se com grande expectativa novos estudos. que ela não se aplica a muitos pacientes, sobretudo a mulheres
com história de abuso sexual. Tem sido utilizada com sucesso
■ Farmacobióticos nos casos de dissinergia do assoalho pélvico.
A flora existente no TG1 humano é um complexo ecossis
tema com aproximadamente 300 a 500 espécies de bactérias, ■ Psicoterapia
com cerca de dois milhões de genes (microbioma). Quando A maioria dos estudos controlados relativos à psicoterapia
alterada, apresenta uma incrível capacidade de se autorres- para tratamento de constipação intestinal mostra resultados de
taurar, retornando exatamente ao mesmo estado anterior. A cepcionantes. Relatos de bons resultados, inclusive com melho
flora bacteriana intestinal normal influencia uma variedade ra do tempo de trânsito colônico, foram descritos isoladamente
de funções, principalmente motoras, envolvidas na gênese da e necessitam de confirmação. O efeito benéfico da psicoterapia
constipação intestinal; entretanto, não existem provas cabais seria a diminuição da ansiedade e o consequente relaxamen
de que alterações na flora bacteriana possam provocar consti to da musculatura pélvica. Além disso, auxiliaria na correção
pação intestinal. de conceitos distorcidos a respeito dos hábitos intestinais e da
O conceito de farmacobiótica vem sendo utilizado recente imagem corporal. Contudo, os resultados, quando existem, só
mente na tentativa de abranger as várias maneiras de manipu se fazem notar a longo prazo e a um custo proibitivo.
lação da flora com fins terapêuticos. Nesse sentido, podemos Terapia de grupo também já foi avaliada e resultou em me
utilizar: a) suplementação com organismos comensais (probi- lhora da constipação intestinal em apenas 15% dos pacientes.
óticos); b) estímulo seletivo a certas espécies comensais (pré- Em crianças, a constipação intestinal pode fazer parte de
bióticos); e c) produtos ou componentes purificados, biologi uma constelação de problemas familiares. Com frequência, são
camente ativos, a partir da flora comensal. constipadas apenas em casa, sugerindo um conflito com um ou
A farmacobiótica, especialmente pré- e probióticos, tem sido ambos os pais. Há necessidade de habilidade especial por parte
estudada nas doenças inflamatórias intestinais e na síndrome do médico, que tem uma tendência de se aliar aos pais, em de
do intestino irritável, especialmente em indivíduos constipados. trimento do paciente, no caso a criança. É preciso convencer
440 Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma
os pais de que o que eles pensam ser um problema físico é, na • Doenças venéreas.
verdade, emocional. Nesse caso, a terapia da família é funda • Doenças sistêmicas, como: diabetes, Parkinson, hipoti-
mental, tirando dos pais o sentimento de culpa e frustração. reoidismo etc.
■ Medicamentosas
■ Tratamento cirúrgico • Opiáceos e derivados fenotiazínicos.
Em casos muito bem selecionados, pode ser necessária uma • Antiácidos à base de sais de Al e Ca.
intervenção cirúrgica. Destacamos, em seguida, algumas situa • Laxativos à base de cáscara sagrada e sênicos.
ções em que a intervenção do cirurgião se faz desejável. • Anticolinérgicos.
• Sulfato de bário usado como meio de contraste.
■ Doença de Hirschsprung ■ Psicogênicas
Em algumas situações, conseguem-se bons resultados com São mais comuns em criança. São chamadas de encoprese
a miotomia anorretal, que consiste na secção de uma faixa e caracterizam-se pela presença de fecaloma, mas com passa
muscular na face posterior da junção anorretal sobre o esfínc- gem intermitente de pequenas quantidades de fezes, sujando
ter anal interno e as duas camadas da parede posterior e infe as vestes da criança.
rior do reto.
■ Outras causas
■ Constipação intestinal grave • Dolicocólon.
• Estenoses do cólon.
Colectomia, total e parcial, com ileorretoanastomose já foi • Doenças inflamatórias intestinais.
realizada por vários autores para o tratamento dos casos gra • Tumores.
ves. Entretanto, mostrou-se ineficaz na totalidade dos casos, e,
o que é pior, em muitos ocorreram complicações graves, como
incontinência fecal, disquesia retal e diarréia, entre outras. Em ■ Diagnóstico
uma série de 246 pacientes submetidos à colectomia total com ■ Quadro clínico
ileorretoanastomose, 25% permaneceram constipados, 22%
Os sintomas habituais devido à presença de fecaloma são dor
ficaram com diarréia e 11% com incontinência fecal.
no baixo ventre, tenesmo retal, distensão abdominal e perda
de pequenas quantidades de fezes líquidas ou pastosas, simu
lando incontinência e sujando a roupa íntima do paciente. No
■ FECALOMA homem, acompanham-se frequentemente de retenção urinária,
por compressão prostática e vesical. Em alguns casos, ocorre
■ Conceito perda de sangue e muco pelo reto, consequente ao esforço para
evacuar. Dependendo do tamanho, o fecaloma pode acarretar
Consiste na formação de uma massa de fezes, grande, dura
e imóvel, que se localiza em geral no reto e sigmoide. Pelo seu obstrução intestinal com todo o seu cortejo sintomático.
volume e consistência, o fecaloma não pode ser eliminado pelo
■ Exame físico
paciente através do esforço da evacuação. Em geral, resulta da
evacuação fecal incompleta, por longo período de tempo, po Ao exame, geralmente deparamos com um paciente idoso,
dendo ocasionar obstrução parcial ou total do intestino. debilitado, com aspecto de abandono, ou então com uma crian
ça com evidente distúrbio psicológico. A inspeção do abdome
pode revelar alças intestinais dilatadas, e a ausculta revela ruí
■ Fatores predisponentes dos hidroaéreos com timbre metálico, caracterizando peris-
A formação de fecaloma é uma situação quase exclusiva de taltismo de luta, ou, então, silêncio abdominal, em uma fase
crianças portadoras de megacólon ou problemas psicogênicos, mais tardia. O toque retal, em geral, confirma o diagnóstico.
de idosos debilitados, sedentários, usuários de narcóticos, e, em A palpação simultânea do abdome é importante nos casos em
nosso meio, de pacientes chagásicos. que o fecaloma não está na ampola retal.
■ Retossigmoidoscopia
■ Etiologia Permite identificar com clareza o fecaloma. É importante,
De uma maneira didática, podemos dividir as causas de feca especialmente nos casos em que a massa fecal não está ao al
loma em: anatômicas, medicamentosas, psicogênicas e outras. cance no toque retal.
■ Anatômicas ■ Radiologia
• Deficiência de prensa abdominal. De um modo geral, a radiografia simples do abdome con
• Lesões anatômicas: estenoses e fístulas perianais, pós- firma o diagnóstico. Em alguns casos, poderá haver confusão
cirúrgicas etc. entre fecaloma e tumores malignos do intestino. Nessa situa
• Lesões neurológicas centrais e medulares. ção, recomendamos a realização de enema opaco utilizando
• Deficiência mental. contraste hidrossolúvel, em vez de bário, injetado lentamente,
• Lesões do plexo mioentérico: Chagas, Hirschsprung. sem muita pressão.
• Compressões extrínsecas: tumores ovarianos, uterinos,
prostáticos etc. ■ Outros exames
• Lesões anais dolorosas: papilites, proctites, fissuras, he- A ultrassonografia abdominal, a tomografia computadoriza
morroidas. da, a defecografia e, eventualmente, o estudo manométrico da
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 441
“The bowels are at one time constipated, another lax, in the ----------------------------- ▼
same person. How the disease has two such different Q uadro 40.1 Diagnóstico da SII de acordo com o Consenso ROMA III*•
symptoms I do not profess to explain.”
(C u m m in g W„ 1849) Sintomas iniciados pelo menos 6 meses antes do diagnóstico
1. S in to m a s p re s e n te s , n o m ín im o , 3 d ia s p o r m ê s n o s ú lt im o s 3 m e se s
2 . D o r e /o u d e s c o n f o r t o a b d o m in a l, c o n tín u o s o u re c o rre n te s , q u e
a ) A lív io d o s s in to m a s c o m as e v a c u a ç õ e s ;
442
Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável 443
Nos pacientes portadores de SII, em todas as suas formas ferem na motilidade e na transmissão dos estímulos sensoriais
(SII-C, SII-D, SII-M), tem sido recomendado afastar a possi permanece desconhecido.
bilidade de doença celíaca e intolerância à lactose. Devemos Estudos mais recentes sugerem que a ativação imunológica
ainda lembrar a possibilidade de supercrescimento bacteriano e a inflamação da mucosa também possam estar associadas às
intestinal e microcolite inflamatória e proceder a esta investi alterações neuropáticas relatadas na fisiopatologia da síndro
gação em casos selecionados. A colonoscopia deve ser realizada me e justificam o conceito da SII pós-infecciosa (SII-PI). Um
quando há suspeita de neoplasia ou doença inflamatória e nos estudo realizado pelo grupo da Universidade de Los Angeles
pacientes com mais de 50 anos. conseguiu evidenciar associação entre a presença de supercres
No nosso meio, devemos sempre pesquisar parasitoses in cimento bacteriano e redução das células intersticiais de Cajal,
testinais, sobretudo giardíase e amebíase, que podem algumas 0 que poderia explicar o desenvolvimento da SII pós-infecciosa.
vezes simular o quadro da SII, especialmente na forma com Foi demonstrado em alguns estudos que 7 a 31% (média de
diarréia ou mista. 9,8%) dos pacientes desenvolvem a síndrome após um episó
dio de diarréia aguda infecciosa causada por diversos agentes
microbianos. Alguns fatores são considerados de risco para o
surgimento da SII pós-infecciosa: pacientes jovens, sexo femi
■ FISI0PAT0L0GIA nino, enterite prolongada, ausência de vômitos e presença de
O modelo fisiopatológico proposto pelos especialistas do eventos estressantes durante o curso da infecção.
Consenso Roma III sugere que os sintomas sejam entendidos Os fatores psicossociais, ambientais e genéticos também pa
dentro de um pluralismo fisiológico: simultaneamente, podem recem contribuir de maneira determinante para a expressão
interagir distúrbios motores, aumento da sensibilidade visce dos sintomas, em geral.
ral, alteração das conexões do sistema nervoso central com o A Figura 40.1 mostra os aspectos fisiopatológicos mais atuais
intestino, ao mesmo tempo eventos socioculturais e influências para a SII, de acordo com o Consenso Roma III.
psicossociais parecem modular a percepção dos sintomas.
Alterações na motilidade gastrintestinal e na percepção vis
ceral, bem como fatores psicossociais contribuem para a ex ■ GASTRENTERITE AGUDA E A SII PÓS INFECÇÃ0
pressão dos sintomas em geral.
Estudos atuais demonstram que os pacientes com SII-PI
Nos últimos anos, ocorreu um grande avanço no entendi
diferem daqueles com SII não infecciosa pela presença de m ar
mento da patogenia da SII com base nos novos conhecimen cadores de inflamação crônica e de infecção intestinal aguda,
tos de fenômenos biológicos que ocorrem no sistema nervoso disbiose e supercrescimento bacteriano do intestino delgado.
central (SNC) e sistema nervoso entérico (SNE). As alterações Trabalhos prévios evidenciaram aumento de células inflama-
da regulação das conexões do SNC com o SNE têm sido muito tórias e enterocromafins na mucosa do cólon de pacientes com
pesquisadas nos últimos anos e é provável que centros neurais gastrenterite por Campylobacter jejuni. Dunlop et al. observa
superiores modulem a atividade motora e sensorial gastrintes ram, em biopsias retais de pacientes com diagnóstico de SII-PI,
tinal, e vice-versa. Acredita-se que o SNC funciona como um aumento das células enterocromafins e de linfócitos quando
filtro da percepção dos sinais periféricos aferentes, variando comparado ao de um grupo-controle. Estes autores também
o limite da percepção visceral de acordo com o estado emo demonstraram aumento dos níveis plasmáticos pós-prandiais
cional e cognitivo. Por outro lado, a ansiedade e o estresse po de serotonina (5-HT) nesse grupo de pacientes. Sabendo-se
dem aumentar a percepção da dor, e o relaxamento é capaz de que a serotonina desempenha importante papel na regulação
reduzir esta percepção. da motilidade digestiva e na percepção visceral, sua liberação
Assim como no SNC, mensageiros moleculares são respon aumentada poderia contribuir para os sintomas pós-prandiais
sáveis pela ativação neuronal seletiva no SNE. Inúmeros neu- desses pacientes e proporcionar uma base lógica para pesquisa
rotransmissores e neuropeptídios já foram identificados, entre de antagonistas da serotonina no tratamento dessa síndrome.
eles a proteína receptora do gene da calcitonina, substância P, Spiller observou aumento das células enterocromafins até
peptídio intestinal vasoativo, óxido nítrico, acetilcolina e sero- 1 ano após a infecção inicial na SII-PI. Esse autor sugere que
tonina. O mecanismo íntimo pelo qual estas substâncias inter a infecção aguda provavelmente ocasione a ativação de cito-
-----------------T-----------------
Q uadro 40 .2 Modalidades terapêuticas da SII
1 I
A n t id ia r r e ic o s
I
L a x a t iv o s
I
A n t id e p r e s s iv o s
A n t ie s p a s m ó d i c o s
M e n t h a p ip e r it a (f ib r a s o u o s m ó t i c o s ) A lo s e t r o n * ( S I I c o m d i a r r é ia )
A n t id e p r e s s iv o s
A lo s e t r o n * L u b ip r o s t o n e * Te g a s e ro d e * *
M e n t h a p ip e r it a
C ila s e t r o n * Te g a s e ro d e * * (S I I c o m c o n s t ip a ç ã o )
P s ic o t e r a p ia
T e r a p i a s a lt e r n a t iv a s
A classificação clínica dos pacientes (sugerida pelo Consen maneira especial, para pacientes com sintomas mais graves ou
so de Roma III) auxilia a decisão terapêutica. As opções tera refratários e quando se observa nítida associação com depres
pêuticas para os pacientes com SII com diarréia incluem anti- são ou crises de pânico. Para que seja avaliado o real benefício
diarreicos e, ocasionalmente, colestiramina. O alosetron, um do antidepressivo, devemos prescrevê-lo por, no mínimo, 3
serotoninérgico antagonista 5-HT„ está disponível em poucos a 4 semanas e, caso seja considerado eficaz, mantido por 3 a
países, e está indicado em casos mais refratários. 12 meses. Os tricíclicos devem ser evitados nos pacientes com
Nos casos de SII com constipação intestinal (SII-C), os laxa- constipação intestinal predominante, pelo risco de agravamen
tivos podem ser prescritos, mas sempre de maneira criteriosa to do quadro.
e, se possível, por curtos períodos. Utilizamos preferencial Os ansiolíticos também podem ser prescritos para alguns
mente os que aumentam o bolo fecal (fibras insolúveis e solú pacientes com SII pela frequência dos sintomas de ansiedade e
veis), os agentes osmóticos (macrogol/PEG ou lactulose) e os relato de agravamento do quadro intestinal desencadeado por
emolientes/lubrificantes (docusato, óleo mineral). Os laxan fatores emocionais. Alguns estudos corroboram a eficácia dos
tes estimulantes/irritantes (antraquinônicos, difenilmetano) benzodiazepínicos na SII, mas a diferença entre droga e placebo
apresentam rápido início de ação, porém devem ser evitados é relativamente pequena. Em virtude do potencial de depen
a longo prazo devido aos seus conhecidos efeitos colaterais, dência e de interação com outros medicamentos, essas drogas
especialmente cólica abdominal e risco de lesão do plexo mio- devem ser sempre utilizadas com bastante prudência.
entérico colônico. Terapias alternativas e/ou complementares têm sido cada
A utilização de outros medicamentos capazes de estimular o vez mais utilizadas para pacientes com SII, destacando-se, en
trânsito colônico tem sido tentada com eficácia clínica variável, tre elas, ervas asiáticas, suplementos nutricionais (probióticos,
como os procinéticos, a colchicina e a trimebutina. O tegasero- prebióticos, fibras especiais), dietas que eliminam alimentos
de, um agonista 5-HT.,, mostrou-se bastante eficaz para os pa capazes de aumentar os anticorpos anti-IgE (ovos, leite, tri
cientes com constipação intestinal predominante, mas a recente go, carnes vermelhas), acupuntura e homeopatia. A maioria
observação de efeitos colaterais cardiovasculares limita muito dos estudos empregando essas terapias, no entanto, apresenta
a sua prescrição. Recentemente, o lubiprostone, um ativador falhas metodológicas, o que obviamente dificulta conclusões
dos canais de cloro, foi liberado pela PDA para o tratamento definitivas sobre o real benefício dessa nova abordagem te
da SII-C. Teoricamente, essa droga é capaz de promover a se rapêutica.
creção de fluidos e acelerar o trânsito intestinal.
Para alívio da dor, estão indicados os antiespasmódicos, que
representam a classe de medicamentos mais utilizada na síndro
me e apresentam grau B de evidência na literatura. Entre eles, ■ TRATAMENTO DA SII-PI
estão os bioqueadores de canais de cálcio (brometo de pinavério
Alguns estudos, de ótima qualidade metodológica, têm de
e de otilônio), derivados da papaverina (cloridrato de mebeve-
monstrado que até 75% dos sintomas da SII podem melhorar
rina), relaxantes musculares (hioscina, dicloverina) e derivados
com antibioticoterapia, de modo especial nos pacientes que
opioides (trimebutina, lopramida). Em várias metanálises e na
apresentam supercrescimento bacteriano intestinal associado.
Cochrane (16 estudos), tem sido confirmada a eficácia clínica
Pimentel, em um estudo duplo cego e randomizado, compa
dos antiespasmódicos, tanto em relação à melhora global como
em relação ao alívio da dor e distensão abdominal. rou rifaximina e placebo em 87 pacientes com SII e evidenciou
melhora global dos sintomas, especialmente da flatulência no
Estudos recentes demonstraram significativa melhora da dor
grupo que recebeu a droga ativa. Este medicamento ainda não
abdominal e da flatulência com a utilização da mentha piperita.
Tem sido descrito que o óleo de menta apresenta ação relaxante está disponível no Brasil.
na musculatura lisa mediada via bloqueio do canal de cálcio e No nosso meio, os antibióticos rotineiramente empregados
parece ter uma eficiente ação antiespasmódica. para o tratamento do SCBID são as quinolonas (ciprofloxacino,
O tratamento psicológico deve ser considerado para os pa norfloxacino, levofloxacino), metronidazol, amoxicilina-ácido
cientes com SII e sintomas mais graves que não respondem ao clavulânico, cloranfenicol e tetraciclina. A duração do trata
tratamento farmacológico e para aqueles com doenças psiquiá mento não está estabelecida, mas a maioria dos autores reco
tricas associadas, como depressão ou transtorno da ansiedade. menda cursos de antibióticos durante 7 a 10 dias. Um estudo
As intervenções psicológicas mais estudadas no tratamento da demonstrou que um tratamento único por 7 dias pode melho
SII são controle do relaxamento e do estresse, terapia cognitivo- rar os sintomas da SII em 46 a 90% dos pacientes e normalizar
comportamental, hipnoterapia, e psicoterapia psicodinâmica o teste respiratório em 20 a 75% das vezes.
ou interpessoal. A maioria dos estudos corrobora o tratamen Alguns autores sugerem também que os probióticos apre
to psicológico na redução de estresse, ansiedade e depressão sentam efeitos anti-inflamatórios e de normalização da flora
e, em muitos casos, alívio da dor e do desconforto abdominal intestinal. A justificativa para a sua utilização seria que a infla
associado à SII. mação do intestino aparece como uma reação à flora comensal,
Os antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, imipramina, e a possibilidade de modificá-la com estes medicamentos tem
desipramina, doxepina) ou os inibidores da captação da seroto- sido bastante atrativa nos últimos anos.
nina (fluoxetina, sertralina, paroxetina), que apresentam como Dessa forma, inúmeros estudos atuais têm avaliado o efei
mecanismo de ação uma provável analgesia central e bloqueio to dos probióticos na SII, e os primeiros resultados têm sido
da transmissão da dor do trato digestivo para o cérebro, podem promissores. Um estudo controlado com placebo demonstrou
ser utilizados no tratamento. Essas drogas têm propriedades redução consistente nos níveis do H, expirado após 21 dias de
neuromoduladoras e analgésicas, independentes da ação psi- tratamento no grupo que recebeu Lactobacillus. Outros autores,
cotrópica, e esses efeitos ocorrem mais precocemente e com no entanto, não encontraram os mesmos resultados, e novos
doses mais baixas do que aquelas em geral empregadas para o estudos bem elaborados e rigorosos do ponto de vista meto
tratamento da depressão (p. ex., 10 a 50 mg de amitriptilina e dológico se fazem necessários para esclarecer o real valor dos
10 a 20 mg de fluoxetina, 1 ou 2 vezes/dia). Estão indicadas, de probióticos no tratamento dos pacientes com SII.
Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável 447
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41 Doença Diverticular do Cólon
José Alves de Freitas e Mounib Tada
449
450 Capítulo 47 / Doença Diverticular do Cólon
intraluminar, pacientes com DDC sintomática apresentam altos Do ponto de vista anatomopatológico, o divertículo é for
índices de motilidade quando comparados a assintomáticos e mado por um óstio e uma parte sacular ou corpo. Seu tamanho
indivíduos normais. Contudo, é ainda discutível se o aumento é variável, podendo chegar a 5 cm de diâmetro. A sua secção
da pressão intraluminal e a alteração de motilidade represen mostra que é formado por mucosa e serosa. Algumas vezes, po
tam causa ou consequência da doença. demos encontrar também parte da submucosa ou da muscularis
mucosae. Na doença diverticular do sigmoide, ambas as cama
das musculares estão espessadas. Há encurtamento das tênias e
■ Teor de fibra na dieta contrações musculares, produzindo uma deformidade chama
A revolução industrial, com suas máquinas cada vez mais da de miocose, que estreita e, algumas vezes, oblitera o lúmen
modernas, removeu mais de dois terços do conteúdo de fibras intestinal, criando compartimentos temporariamente isolados.
dos alimentos. A diminuição no teor de fibras na dieta humana As tênias aparecem espessadas e encurtadas, adquirindo consis
após este período correlaciona-se muito bem com o surgimento tência quase cartilaginosa. À microscopia, a camada muscular
da doença diverticular sintomática. A variabilidade geográfica está espessada, porém sem hipertrofia ou hiperplasia celular. A
da DDC e a correlação com a dieta ocidental sugerem que o musculatura circular apresenta-se septada, formando fascículos
teor de fibra e o alto teor de carboidratos na dieta exercem um bem demarcados, separados uns dos outros por tecido conjun-
papel fundamental na patogênese de doença. Esta dieta produz tivo. Nos casos em que ocorreram surtos múltiplos de infla
um bolo fecal pouco volumoso, retendo menos água, alteran mação, pode-se evidenciar tecido fibroso envolvendo o cólon.
do o trânsito colônico e aumentando a pressão intraluminal. Nessa situação, a alça torna-se rígida e com estenose da luz.
Painter e Burkitt, ao estudarem o tempo de trânsito intestinal
e o peso das fezes de 1.200 indivíduos na Inglaterra e em uma
zona rural de Uganda, verificaram que os pacientes ingleses in ■ EPiDEMIOLOGIA
geriam pouca fibra e apresentavam tempo de trânsito de 80 h e
110 gramas de fezes/dia em comparação a 34 h e 450 gramas de A DDC é muito comum em países desenvolvidos, e a sua
fezes/dia nos ugandenses que têm uma dieta basicamente vege frequência aumenta com a idade. O aumento na prevalência
tariana. Em vista disso, os autores rotularam a DDC de doença da doença reflete o aumento na longevidade. Estudos basea
carencial. Acreditava-se que o pequeno volume de fezes aliado dos em necropsias, colonoscopia e radiologia indicam preva
ao prolongado tempo de trânsito predispunha a herniação. lência de:
Apesar desta hipótese bastante convincente, estudos em po • 5 a 10% dos indivíduos abaixo de 50 anos
pulações ocidentais comparando-se o peso das fezes e o tempo • 30% entre 50 e 70 anos
de trânsito em pacientes com e sem doença diverticular não • 50% entre 70 e 85 anos
evidenciaram nenhuma diferença significativa. • 66% após 85 anos
Não obstante, estudos em animais, sobretudo em ratos ali
Quanto ao sexo, há predomínio nas mulheres, na propor
mentados com dieta pobre em fibras, desenvolveram DDC em
ção de 3:2. Complicações são relativamente frequentes, po
45% dos casos comparados a 9% daqueles que receberam dieta rém a mortalidade em consequência da doença não ultrapassa
com altos teores de fibra. 1: 10. 000.
■ Outros fatores
Outros fatores que, de alguma forma, contribuem para o
■ ABORDAGEM CLÍNICA
surgimento de divertículos são sedentarismo, obesidade, cons A DDC pode-se apresentar de forma assintomática, sinto
tipação intestinal, fumo e tratamento com anti-inflamatórios mática e complicada. Por este motivo, e por motivo puramen
não esteroides. te didático, abordaremos o quadro clínico, os procedimentos
diagnósticos e o tratamento de cada forma separadamente.
■ Diverticulite
Diverticulite é a complicação mais comum, acometendo
10-25% dos pacientes com DDC. O mecanismo de formação
da diverticulite é semelhante ao da apendicite, ou seja, o diver-
tículo é obstruído por fezes endurecidas que provocam abrasâo
da mucosa do saco diverticular (Figura 41.4), causando infla
mação e proliferação da flora bacteriana local, acarretando di
minuição do fluxo venoso e isquemia localizada. A infiltração
bacteriana rompe a mucosa e o processo pode se estender por
toda a espessura da parede, algumas vezes ocasionando perfu
ração. A extensão e localização desta perfuração é que vai esta
belecer o quadro clínico. Microperfuração poderá permanecer
Figura 41.2 Enema opaco - DDC.
bloqueada pela gordura pericólica e mesentérica, ocasionando
um pequeno abscesso pericólico. Grandes perfurações podem
resultar em abscessos algumas vezes envolvendo toda a parede
cólica, formando uma grande massa inflamatória ou estender-
se para órgãos vizinhos. Perfuração em peritônio livre é um
quadro grave que causa franca peritonite e acarreta risco de
morte. Felizmente, esta situação é rara.
A gravidade da diverticulite pode ser graduada de acordo
com a classificação de Hinchey (Quadro 41.1).
Clinicamente, o paciente com diverticulite quase sempre se
apresenta com dor no quadrante inferior esquerdo, uma vez
que a DDC predomina no sigmoide, contudo indivíduos com
sigmoide redundante podem apresentar dor suprapúbica ou
até mesmo na fossa ilíaca direita. A dor pode ser intermitente
ou constante e, algumas vezes, associa-se com mudanças no
hábito intestinal. Hematoquezia é rara, entretanto anorexia,
náuseas e vômitos são frequentes.
O exame físico geralmente revela sensibilidade localizada
e eventualmente massa palpável. A ausculta mostra ruídos
hidroaéreos tipicamente diminuídos, podendo ser normais nos
Figura 41.3 Colonoscopia - DDC. Óstios diverticulares. (Esta figura casos leves e exacerbados nos casos com obstrução do lúmen.
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) O toque retal geralmente é doloroso e nos abscessos pélvicos
revela massa palpável. A maioria dos pacientes desenvolve fe
bre. Hipotensão e choque podem ocorrer, mas são raros. Leu-
cocitose está quase sempre presente.
mitente, com intensidade variável, mas frequentemente leve a
moderada, localizada quase sempre na fossa ilíaca esquerda ou
na região infraumbilical. Costuma acompanhar-se de flatulên-
cia, distensão abdominal e alteração do hábito intestinal (cons
tipação intestinal ou diarréia). A dor geralmente é exacerbada
pela alimentação e aliviada com a defecação ou eliminação de
flatos, sugerindo tensão na parede colônica devido ao aumen
to da pressão intraluminal. Muitas vezes, é difícil estabelecer
uma relação causai entre os sintomas e a doença. O exame fí
sico pode revelar um abdome distendido, sensível à palpação,
notadamente na fossa ilíaca esquerda; os exames laboratoriais
em geral são normais.
O diagnóstico definitivo pode ser obtido através do enema
opaco ou da colonoscopia.
O tratamento nestes casos consiste apenas na orientação
com relação à possibilidade de complicações da doença, ade
quar a ingesta de fibras e líquidos e prescrever antiespasmódicos
quando necessário. Não há qualquer fundamento científico na Figura 41.4 Diverticulite. Nota-se reaçáo inflamatória em volta de
utilização de antibióticos e analgésicos potentes (narcóticos) um óstio diverticular. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
nestes pacientes. no Encarte.)
452 Capítulo 47 / Doença Diverticular do Cólon
----------------------------- ▼------------------------------
Quadro 41.1 Classificação de Hinchey para diverticulite
Em geral, elas se formam entre o cólon e a bexiga. Nesse caso, ■ Hem orragia
além dos sintomas inflamatórios, o paciente poderá apresen Constitui uma das principais causas de enterorragia, res
tar disúria, pneumatúria e fecalúria. São mais frequentes no pondendo por 40% dos casos. Acomete 5 a 10% dos pacientes
homem na proporção de 2:1 em relação às mulheres devido à com DDC. Na metade dos casos, a hemorragia poderá ser grave,
proteção da bexiga pelo útero. Poderão ocorrer também fístulas colocando em risco a vida do paciente. Não se conhece o meca
colovaginais e colocutâneas. nismo exato da hemorragia. Estudos histológicos demonstram
que não há inflamação, o que se vê é um enfraquecimento da
Cistoscopia, cistografia, radiografias contrastadas utilizan
parede dos vasos com um espessamento da íntima e adelgaça-
do-se constrastes dissolvidos em água ou azul de metileno po
mento da camada média. Sabe-se que o sangramento é arterial e
dem demonstrar o trajeto fistuloso. ocorre, provavelmente, em consequência de erosão da mucosa
As fístulas diverticulares são, em sua maioria, tratadas ci do divertículo e dos vasos subjacentes. É interessante observar
rurgicamente. que estudos recentes demonstraram que os anti-inflamatórios
Após a resolução de um episódio de diverticulite aguda, é não esteroides (AINEs) acarretam risco de sangramento no
necessário investigar o cólon inteiro no sentido de excluir si paciente com DDC na mesma proporção que nos pacientes
tuações que mimetizem inflamação, principalmente câncer e com úlcera duodenal.
doença inflamatória intestinal. Cerca de 3 a 5% dos casos ini Estudos angiográficos demonstram que, apesar de os di-
cialmente diagnosticados como diverticulite são, na verdade, vertículos serem encontrados com muito maior frequência no
adenocarcinoma. A colonoscopia ou a tomografia computado hemicólon esquerdo, 70% dos sangramentos provêm de diver-
rizada são os exames de escolha. tículos localizados no cólon direito.
O sangramento por DDC é caracteristicamente indolor, com
■ Obstrução intestinal sangue vermelho-vivo (Figura 41.7), quase sempre em grandes
volumes. Em 80% dos casos, cessa espontaneamente, e 25%
Dependendo da intensidade e da frequência dos surtos de
destes apresentarão recidivas. É raro um divertículo do cólon
inflamação, poderá surgir estenose do lúmen intestinal, acar causar sangramento crônico.
retando quadros de suboclusão ou, até mesmo, de oclusão in Do ponto de vista clínico, o sangramento em geral tem iní
testinal. Felizmente, essa complicação é rara e de fácil diagnós cio abrupto e sem dor. O paciente às vezes tem cólicas abdomi
tico. A obstrução aguda, durante um episódio de diverticulite, nais discretas e urgência para evacuar, segue-se a evacuação de
em geral é autolimitada e responde bem ao tratamento clíni sangue vivo, vermelho-rutilante, que assusta o paciente e seus
co. Raros casos exigem cirurgia. As estenoses crônicas devem familiares. A hemorragia cessa espontaneamente em 70-80%
ser submetidas a colonoscopia para se afastar câncer. Quando dos pacientes com ressangramento em 22-38% dos casos. A
sintomáticas, podem ser tratadas por via endoscópica (dilata- chance de um terceiro episódio de hemorragia é em torno de
ção por velas, por balão, pela eletrocoagulação, ou laser), ou 50%, levando a maioria dos médicos a indicar cirurgia após o
cirurgicamente. segundo episódio.
O diagnóstico do local exato do sangramento é importante,
mas nem sempre fácil. O procedimento inicial é, na maioria
das vezes, a retossigmoidoscopia flexível, mesmo sem preparo,
no sentido de identificar lesões no reto e/ou no sigmoide. Se
nenhuma causa for identificada, e se as condições do paciente
permitirem, o próximo passo é a colonoscopia, que, além de
localizar o sangramento, possibilita, algumas vezes, o controle
da hemorragia através de esclerose do vaso roto.
Muitas vezes, é difícil identificar o local exato do sangramen
to. Nesta situação, a cintigrafia com hemácia marcada constitui
um método bastante eficaz, não invasivo e sensível, detectan
do sangramento tão pequeno como 0,1 m^/min. Além disso, a
hemácia permanece marcada por 24 h, permitindo repetição matório grave, não ocorrendo melhora após 72 h de tratamento
de pesquisa várias vezes. clínico, deverão ser avaliados para abordagem cirúrgica.
A angiografia, embora não seja tão sensível quanto a cinti- O tratamento cirúrgico nos pacientes com DDC consiste,
grafia, tem a vantagem de identificar o local exato do sangra- basicamente, em remoção do segmento intestinal comprome
mento, permitindo uma hemicolectomia seletiva, se necessá tido, controle da sepse e eliminação de outras complicações,
rio. Algumas vezes, pode-se atuar terapeuticamente, durante o como fístulas e/ou obstrução, restaurando a continuidade do
exame, através da administração intra-arterial de vasopressina. trânsito intestinal.
Este procedimento cessa a hemorragia em 90% dos casos, en Nas complicações inflamatórias agudas, poderá haver ne
tretanto é temporário. cessidade de dissecção pélvica dificultosa, envolvendo, muitas
Durante o procedimento de investigação, o paciente deve vezes, ureteres, além da feitura de colostomia temporária.
estar com uma boa via de acesso para receber fluidos e repo Nas cirurgias eletivas, é indispensável um preparo mecâ
sição sanguínea. Não podemos esquecer que geralmente são nico do cólon para a sua limpeza, além da utilização de anti
pacientes idosos e com uma ou mais comorbidades. bióticos para a redução da flora intestinal, propiciando, assim,
melhor segurança na feitura das anastomoses e reduzindo a
possibilidade de fístulas e/ou deiscências, além de intercor-
rências sépticas.
■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Indicação para cirurgia emergencial inclui perfuração livre,
Em algumas circunstâncias, o diagnóstico diferencial pode com peritonite e grandes abscessos peridiverticulares. Nessas
ser muito difícil, pois várias doenças apresentam quadros clí situações, o procedimento cirúrgico consiste, basicamente, na
nicos bem semelhantes. Dentre estas, destacam-se: remoção do segmento colônico comprometido e na colosto
mia temporária, além de proceder-se à limpeza e drenagem da
cavidade abdominal. Representam situações muitas vezes de
■ Carcinoma de cólon grande gravidade e morbidade, requerendo a utilização de anti
Além do quadro clínico similar, o câncer do intestino e a bióticos de largo espectro, com atuação em flora gram-negativa.
DDC podem coexistir. Nesta situação, o aspecto radiológico é Posteriormente, após a resolução da fase aguda e recuperação
das condições do paciente, o segundo tempo cirúrgico recons
dúbio, e a colonoscopia, por dificuldades técnicas, pode não ser
tituirá o trânsito intestinal.
esclarecedora. O diagnóstico será feito na peça cirúrgica.
Nas situações de hemorragia pela DDC, em cerca de 90%
dos casos ocorre resolução espontânea, sem necessidade de
■ Doença inflamatória intestinal qualquer abordagem terapêutica específica, além da reposição
volêmica. Em pacientes com sangramento contínuo e/ou per
Tanto a doença de Crohn como a retocolite ulcerativa po
sistente, poderá haver indicação de cirurgia, com remoção do
dem apresentar sinais e sintomas superponíveis aos da DDC. O
segmento de cólon envolvido, ou, então, através de arteriografia
exame radiológico ou endoscópico permitirá a diferenciação.
mesentérica, a embolização do vaso sangrante. A opção ficará
na dependência da disponibilidade dos recursos existentes. Po
■ Colite isquêmica rém, na eventualidade da opção cirúrgica, é sempre importante
a localização do local de sangramento, através da colonosco
Incide na mesma faixa etária da DDC. Além disso, as duas pia, da arteriografia ou, então, de estudos cintigráficos. Mais
entidades podem coexistir, dificultando o diagnóstico. Algu recentemente, a cirurgia videolaparoscópica também passou a
mas vezes, além do enema opaco, há necessidade de realizar ser utilizada para a abordagem do cólon, com reais benefícios,
arteriografia seletiva para o diagnóstico. como a redução da dor no pós-operatório e do íleo paralítico,
assim como menor internação hospitalar. No entanto, para ob
■ Outras doenças tenção dessas vantagens, deverá haver uma criteriosa seleção
dos pacientes, uma vez que a taxa de conversão do procedimen
A angiodisplasia intestinal hemorrágica pode simular san- to laparoscópico é superior a 20%. Habitualmente, a laparos-
gramento por divertículo. Nessa oportunidade, a colonoscopia copia é utilizada para a liberação do cólon, porém a ressecção
decide o diagnóstico e pode ser terapêutica. A angiodisplasia e a anastomose são realizadas externamente, exteriorizando o
é uma alteração adquirida, raramente diagnosticada antes dos cólon através de pequenas incisões.
40 anos, e aumenta com a idade. As lesões são mais comuns A cirurgia videolaparoscópica é hoje amplamente utilizada
no ceco, mas cerca de 20% das angiodisplasias localizam-se nos para a reconstituição do trânsito em pacientes submetidos a
cólons descendente e sigmoide. Em alguns casos, pode haver cirurgias de urgência, com fechamento do coto intestinal dis
dificuldade no diagnóstico diferencial com apendicite, espe tai e colostomia proximal (cirurgia de Hartmann). Nessas si
cialmente se o sigmoide ultrapassa a linha mediana, ou se a tuações, o segmento proximal do cólon é liberado por vídeo e
diverticulite se assenta no cólon direito. a anastomose com o coto distai é realizada por grampeadores
Quase todas as doenças do trato geniturinário, especialmen introduzidos VR.
te em mulheres, podem simular DDC. Contudo, são entidades Finalmente, não considerando um quadro agudo de diverti
de fácil diagnóstico. culite complicada por sepse, fístula ou obstrução, quais seriam
os candidatos ao tratamento cirúrgico? São os pacientes com
episódios recorrentes de diverticulite, aqueles que são insuces
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO so da terapêutica clínica, ou doentes nos quais uma estenose
colônica é de causa duvidosa (câncer? estenose cicatricial in
Cerca de 20 a 30% dos pacientes portadores de DDC que flamatória?), pacientes sintomáticos com sanfonamento acen
desenvolvem crises de diverticulite serão encaminhados para tuado do sigmoide (e espessamento da parede intestinal). Para
tratamento cirúrgico. Quadros evolutivos com processo infla- esses casos, devemos considerar o tratamento cirúrgico. Entre
Capítulo 41 / Doença Diverticular do Cólon 455
tanto, pacientes que apresentam fatores de risco, ou aqueles Lctwin, ER. Divcrticulitis of the colon. Clinicai review of acute presentations
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então, deverão ser cuidadosamente reavaliados, considerando- AJR, 1998; 170:1445-9.
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Apendicite Aguda e Outras
Doenças do Apêndice
Mounib Toda
■ Manifestações clínicas
■ APENDICITE AGUDA ■ Sintom as e sinais
Habitualmente, o processo de apendicite inicia-se com dor
■ Epidemiologia periumbilical ou epigástrica, com posterior localização na fossa
ilíaca direita, piorando com a movimentação e deambulação,
Aproximadamente 7% dos indivíduos de países ocidentais podendo também ser acompanhada de náuseas e desconforto
apresentam, ao longo de sua existência, processo de inflamação epigástrico. Nessa fase, aparece a constipação intestinal e, pela
do apêndice. Nos EUA, são realizadas cerca de 200.000 apen- indefinição do quadro, é comum a administração de laxativos,
dicectomias anualmente, representando, sem dúvida, a mais no sentido de aliviar os sintomas. Febre moderada, de até 38°C,
frequente urgência abdominal cirúrgica. A sua incidência é é também manifestação típica, e a presença de temperaturas
maior na faixa etária de 10 a 20 anos, com preponderância em mais elevadas poderá sugerir outros diagnósticos ou, então,
indivíduos do sexo masculino, na proporção de 1,4:1. O risco perfuração do apêndice.
de incidência, ao longo da vida, nos EUA, é de 8,6% para o sexo O exame físico do abdome revela sensibilidade dolorosa jun
masculino e de 6,7% para o feminino. to ao quadrante inferior direito, e, em formas mais avançadas,
A apendicite aguda representa também a mais comum das poderemos perceber massa palpável no local, consequente ao
urgências na gravidez, com incidência de 0,15 a 2,10% por bloqueio do processo pelo epíploo; a descompressão brusca
1.000.0 deslocamento do apêndice pelo útero grávido poderá dolorosa decorre do comprometimento peritoneal local.
levar a dificuldades e retardo no diagnóstico, com consequente Complementando o exame do abdome, é também impor
letalidade para o feto, com mortalidade fetal de 20 a 35% nos tante o toque retal, para avaliação de eventual coleção em fundo
casos de apendicites com perfuração. de saco, percebida pelo abaulamento local.
456
Capítulo 42 / Apendicite Aguda e Outras Doenças do Apêndice 45 7
Em algumas situações, devido a variações na localização do derando que a apendicectomia desnecessária cria morbidade e
apêndice, as manifestações clínicas poderão apresentar-se de aumenta custos, há muito interesse em otimizar a acurácia diag-
forma atípica. Assim, uma localização retrocecal poderá mini nóstica. Estudos recentes mostraram que o exame ultrassono-
mizar a sensibilidade dolorosa na parede anterior do abdome, gráfico tem uma sensibilidade de 81% e uma especificidade de
referindo-a então à região do flanco direito. A posição pélvica 96%, o que ajuda bastante no diagnóstico correto da apendicite.
provocará sintomas urinários e retais, e, nas grávidas, a mani A TC, embora em alguns estudos apresente números melhores
festação clínica poderá ser no quadrante superior direito ou que a ultrassonografia, é um exame mais caro e, na maioria das
periumbilical, decorrente do deslocamento do apêndice pelo vezes, pode ser dispensado, pois os métodos clínicos e de exa
útero grávido. Uma apendicite retrocecal ascendente pode mes subsidiários mais simples já fecharam o diagnóstico. A TC
rá mimetizar colecistite aguda. É importante também consi estaria mais indicada em casos de difícil diagnóstico.
derar, no indivíduo adulto, o diagnóstico diferencial com a
diverticulite do cólon direito que, mesmo sendo doença me ■ Diagnóstico diferencial
nos frequente, apresenta as mesmas manifestações clínicas da Em face das mais diversas formas na sua apresentação, a
apendicite aguda. apendicite deverá ser considerada no diagnóstico diferencial
O conjunto de sintomas clínicos, associado ao exame do de qualquer paciente com quadro abdominal agudo, indepen
abdome, permite a suspeita do quadro infeccioso agudo, que dentemente de idade e sexo.
deverá ser devidamente confirmado pelos exames complemen Cerca de 5 a 10% dos pacientes com o diagnóstico de apen
tares. Entretanto, no idoso, que muitas vezes evolui sem febre dicite aguda apresentam resultado negativo quando submeti
e sem leucocitose, há necessidade de elevado nível de suspeita dos a laparotomia, ou então é encontrada uma outra doença
para não deixar passar uma apendicite. cirúrgica. A utilização de rotina da ultrassonografia e da tomo
grafia computadorizada tem reduzido muito a possibilidade de
■ Exames subsidiários diagnósticos incorretos; porém, em muitas situações, somente
■ Laboratoriais através de laparotomia ou de laparoscopia haverá a confirma
ção da doença abdominal realmente presente.
A leucocitose moderada (10.000 a 20.000 leucócitos/mm3),
As afecções mais frequentemente confundidas com a apen
associada à neutrofilia, juntamente com a elevação de basto-
dicite aguda são os processos pélvicos ginecológicos ou, en
netes, segmentados e da velocidade de hemossedimentação
tão, gastrenterite, cólica renal ou pielonefrite agudas. A endo-
(VHS), caracteriza o chamado hemograma infeccioso, situ
metriose do apêndice também poderá simular um quadro de
ação característica nos processos agudos do apêndice. A as
apendicite aguda, assim como outra afecção ginecológica, a
sociação de leucocitose, neutrofilia e elevação da proteína C
salpingite aguda, por contiguidade, também poderá envolver
reativa representa também um parâmetro para a identificação
o apêndice.
do processo de apendicite aguda, e a normalidade destes testes
O comprometimento ileocecal da doença de Crohn, em sua
obrigará a uma melhor avaliação do diagnóstico.
forma aguda, com manifestações no quadrante inferior direi
O exame de urina também é importante, no sentido de afas
to do abdome, deverá também ser considerado no diagnóstico
tar eventual processo infeccioso de vias urinárias, ou litíase re diferencial.
nal (cólica nefrética direita).
A diverticulite de Meckel, com localização junto ao íleo dis
tai, representa outra situação que poderá levar à confusão diag-
■ Exames de imagem nóstica, sendo praticamente impossível a diferenciação entre os
Não existe especificidade nos exames de imagens para afir dois processos infecciosos. Porém, trata-se de situação irrele
mação do diagnóstico da apendicite aguda, mas deverão ser vante, pois ambas as doenças são de abordagem cirúrgica.
analisados em conjunto com as manifestações clínicas. Uma outra afecção que, às vezes, apresenta grandes dificul
Os raios X simples do abdome poderão mostrar alça intes dades na elaboração do diagnóstico diferencial é a linfadenite
tinal sentinela bloqueando o processo apendicular, além do mesentérica. Em relação às mulheres, é preciso estabelecer o
velamento da margem direita do músculo psoas, decorrente diagnóstico diferencial entre abscesso periapendicular e con
do comprometimento peritoneal. dições como abscesso tubo-ovariano, cisto do ovário torcido,
A ultrassonografia abdominal, associada à abordagem com o gravidez ectópica rompida e ruptura de cisto folicular do ová
transdutor transvaginal, poderá levar a uma positividade diag- rio. Em situações de vasculite sistêmica, poderá também ocorrer
nóstica de até 85%, com a grande vantagem de permitir o diag o comprometimento do apêndice, bem como a incidência de
nóstico diferencial com outras doenças pélvicas. proliferação neural na síndrome de Van Recklinghause, em que
A tomografia computadorizada pélvica é de grande valia na a ocorrência de neuromas poderá obliterar a luz apendicular e
demonstração de processos perfúrativos e/ou de abscessos pe- desencadear o processo infeccioso agudo.
riapendiculares. A utilização da tomografia computadorizada
helicoidal com administração do contraste venoso e VR repre ■ Complicações
senta um método rápido e de grande eficiência no diagnóstico A perfuração do apêndice ocorre em cerca de 20% dos casos e
da apendicite aguda. A não opacificação do apêndice representa deverá ser sempre considerada em casos com evolução superior
um critério maior para a sua confirmação do diagnóstico, ou, a 24 h, além da presença de dor persistente e contínua, com febre
então, o encontro do órgão espessado (diâmetro superior a elevada e sinais de irritação peritoneal. A perfuração poderá estar
6 mm) e/ou processo periapendicular. A tomografia apresenta, bloqueada, constituindo abscesso localizado junto ao apêndice,
de modo geral, sensitividade de 86% e especificidade de 81%. ou, então, poderá ocorrer a perfuração livre em cavidade ab
Atualmente, em muitos centros, preconiza-se a realização da dominal, com consequente processo de peritonite supurativa e
tomografia sem uso de qualquer contraste, como suficiente para concomitante quadro de toxemia desencadeado pela sepse.
a determinação do diagnóstico da apendicite aguda. Outras complicações da apendicite aguda são a peritonite, o
O diagnóstico de apendicite em adultos, puramente em ba abscesso periapendicular localizado, a pileflebite com trombose
ses clínicas, pode ser alcançado em até 80% dos casos. Consi da veia porta, o abscesso hepático e a septicemia.
458 Capítulo 42 / Apendicite Aguda e Outras Doenças do Apêndice
O apêndice representa o local mais frequente onde se implan Bowman, CIA & Rosenthal, D. Carcinoid tumors of thc appcndix. Am. J. Surg.,
ta o carcinoide no aparelho digestivo. Em cerca de 3% dos casos, 1983; 146:700-3.
Cançado, JR. Apendicite aguda c outras afccçòcs do apêndice. Em: Dani, R
encontramos comprometimento ganglionar periférico junto ao & Paula Castro, L. Gastroenterologia Clínica. Rio de Janeiro, Guanabara
meso (ver Cap. 100). Nessas condições, a colectomia direita é Koogan, 1993.
mandatória, juntamente com limpeza ganglionar do meso. Carr, NJ & Sobin, IH. Ncurocndocrine tumors of thc appcndix. Semin. Diagn.
O adenocarcinoma é outra neoplasia passível de originar-se Pathoi, 2004; 21:108-19.
também no apêndice, com invasão dos linfonodos regionais, Duhamcl, P, Chapuis, F, Ncidhardt, JP, Lauro, C, Isaac, S, Caillot, JL, Voiglio,
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ou, então, comprometendo estruturas vizinhas, como o ovário 200 cases. Ann. Chir., 1998; 52:896-904.
e o peritônio parietal, e de maneira extremamente rápida. Ha Eastcr, DW. The diagnosis and treatment of acute appcndicitis with laparoscopic
bitualmente, o diagnóstico é intraoperatório, a operação quase mcthods. Em: Minimally Invasive Surgery. USA, McGraw-Hill, 1993.
sempre indicada por se acreditar tratar-se de apendicite aguda. Elangovan, S. Clinicai and laboratory findings in acutc appcndicitis in thc el-
Uma vez observada a infiltração neoplásica, a conduta consiste dcrly. /. Am. Board Fam. Prací., 1996; 9:75-8.
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comprometidas. A sobrevida de 5 anos é da ordem de 60% dos Frazcc, RC, Robcrts, JW, Symmonds, RE, Snydcr, SK, Hcndricks, JC, Smith,
casos submetidos a colectomia, e de somente 20% daqueles em RW, Custcr, MD, Harrison, JB. A prospcctivc randomized trial comparing
que se realizou unicamente apendicectomia, ou que já apresen opcn versus laparoscopic appcndcctomy. Ann. Surg., 1994; 219:725-31.
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porém poderá recorrer localmente após a apendicectomia. Esta Nalfaa, IN, Ishak, GE, Haddad, MG. Thc value of contrast-enhanccd hclical
última forma constitui a apresentação mais comum de muco CT scan with rcctal contrast enema in thc diagnosis of acutc appcndicitis.
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cele do apêndice. Em algumas situações, o processo degenerará Nitccki, SS, WolfT, BG, Schilinkcrt, R, Sarr, MG. Thc natural history of surgically
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A mucocele do apêndice é mais comum nas mulheres, em a prospcctivc non randomized long-tcrm follow-up study. /. Clin. Castro-
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50% dos casos, palpa-se massa na fossa ilíaca direita, em geral Paredes Estcban, RM, Salas Molina, J, Ocana Losa, JM, Expin, JB. Indication
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A ultrassonografia e a tomografia computadorizada auxiliam Pritchctt, GV, Lcvinsky, NC, Ha, YP, Dembe, AE, Stcimbcrg, SM. Management
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133:373-7.
tico é, naturalmente, ruim se o tum or é maligno. A retirada
Stagnitti, F, Salvi, PF, Schillaci, F, Priorc, F, Corona, F, Tibcri, R, Dc Pascalis, M.
do apêndice, associada à quimioterapia intraperitoneal, pode Acutc appcndicitis or divcrticulitis of thc right colon? Diagnostic problcm
melhorar a sobrevida. in cmcrgcncy surgery. G. Chir., 2005:26:89-93.
Tate, JJT. Laparoscopic appendiccctomy. Br. J. Surg., 1996; 83:1169-70.
Yang, HR, Wang, YC, Chung, PK, Chcn, WK, Jcng, LB, Chcn, RJ. Role of lcu-
■ LEITURA RECOMENDADA kocytc count, ncutrophil pcrccntagc, and C-rcactivc protein in thc diagnosis
of acutc appcndicitis in thc cldcrly. Am. Surg, 2005; 7:344-7.
Arnbjorncs, E & Bcngmark, S. Role of obstruetion in thc pathogcncsis of acutc Young, RH. Pscudomyxoma pcritonci and sclcctcd othcr aspccts of thc spread
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Retocolite Ulcerativa
José Alves de Freitas, Adérson Omar Mourâo Cintra Damião e Mounib Tacla
Retocolite ulcerativa (RCU), ou colite ulcerativa, é uma doença importante papel na etiologia da doença. É incomum na Ásia,
inflamatória que atinge preferencialmente a mucosa do reto e mas estudos recentes demonstram aumento tanto na incidên
do cólon esquerdo, mas, eventualmente, todo o cólon. Trata-se cia como na prevalência. Exceções incluem Austrália e Nova
de uma doença crônica, com surtos de remissão e exacerbação, Zelândia, onde a ocorrência segue padrão americano e euro
caracterizada por diarréia e perda de sangue. Surge principal- peu. Números recentes mostram incidência de 0,4 a 2,1 por
mente em pessoas jovens ou de meia-idade. Além das alterações 100.000 habitantes na Ásia, em oposição a 6-15,6 na América
locais, frequentemente apresenta complicações sistêmicas. Aco do Norte e 10-20,3 na Europa. Já a prevalência é de 6,30 por
mete milhões de indivíduos ao redor do mundo, com sintomas 100.000 habitantes na Ásia comparada a 37,5-229 na América
debilitantes e sério comprometimento da qualidade de vida. do Norte e 21,4-243 na Europa. Em nosso meio, ainda há pou
cos dados e poucos estudos populacionais.
A doença acomete ambos os sexos, na mesma proporção,
■ ASPECTOS HISTÓRICOS embora com tendência de ocorrer mais em mulheres. Há uma
distribuição etária bimodal para homens, com picos entre 15 e
A RCU foi descrita pela primeira vez em 1875, por Wilks 35 anos e 60 e 70 anos. Por sua vez, em mulheres, a faixa mais
e Moxon, na Inglaterra. A relativa demora na sua descoberta acometida é dos 15 aos 35 anos.
deveu-se ao fato de que todo quadro diarreico era tido como de
Classicamente, se diz que a RCU afeta mais as pessoas bran
origem infecciosa. Durante muitos anos, foi considerada como
cas e jovens. Contudo, estudos recentes demonstram um au
uma doença exclusiva da América do Norte e da Europa. Sua
mento na incidência entre negros, equiparando-se aos brancos.
incidência vem apresentando um crescimento aparente nas
Em 10 a 15% dos pacientes, há uma história familiar positiva
Américas do Sul e Central à medida que aumenta a capacida
para a doença. É interessante notar a alta frequência da doença
de dos médicos em diagnosticar a doença. Hoje está claro que
entre não fumantes comparados a fumantes.
é uma doença universal.
Com a descrição da enterite regional por Crohn e colabo
radores, em 1930, a separação entre as duas doenças parecia
muito fácil. Hoje, oito décadas depois, observamos uma su ■ ETI0PAT0GÊNESE
perposição entre as duas entidades, tanto do ponto de vista
patológico como do anatômico, principalmente nos casos em Nos últimos 10 anos, houve maior compreensão da etiopa-
que a doença de Crohn (DC) compromete apenas o intestino togênese da RCU, e os investigadores concordam que fatores
grosso. Estatísticas recentes demonstram que isso ocorre em ambientais, genéticos, a flora intestinal e o sistema imune estão
27% dos casos, dificultando muito o diagnóstico. envolvidos e funcionalmente integrados na gênese da reação
inflamatória crônica que caracteriza as doenças inflamatórias
intestinais (DII). Dessa forma, ao que tudo indica, a RCU re
sulta de uma resposta imunológica exagerada da mucosa do
■ EPIDEMI0L0GIA
cólon a antígenos luminais, possivelmente microbianos, em
A RCU é uma doença de ocorrência mundial, com uma in indivíduos geneticamente predispostos.
cidência de 3 a 20 novos casos por ano para cada 100.000 habi
tantes. Sua incidência vem aumentando com nítido paralelismo ■ Fatores ambientais
entre o desenvolvimento social e econômico da população e
a ocidentalização do estilo de vida. A incidência é 3 a 5 ve ■ Dieta
zes maior nos EUA e países do Norte da Europa em relação A observação de que uma alimentação isenta de leite poderia
aos países do sul. Este gradiente norte-sul sugere que fatores diminuir o índice de recidivas da doença fez com que se aven
ambientais e, consequentemente, estilo de vida desempenham tasse a possibilidade da participação de elementos da dieta na
460
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 461
primeiro grau dos doentes, direcionam a maioria das pesquisas entre as necessidades de tolerância imunológica em relação à
para os fatores genéticos. Vários marcadores genéticos, como flora com a necessidade de defesa contra patógenos. A caracte
sistema HLA, autoanticorpos, aumento na permeabilidade in rística principal do processo inflamatório na RCU é a pronun
testinal, anormalidades da mucina, têm sido estudados, mas, ciada infiltração, na lâmina própria de células imunes inatas
por enquanto, não forneceram elementos suficientes para im (neutrófilos; macrófagos, células dendríticas e células T (natu
plicar definitivamente os fatores genéticos como responsáveis ral killer) e células adaptativas (B e T). O aumento do número
pela gênese da RCU. destas células na mucosa acarreta aumento do fator de necrose
alfa, da interleucina-l-p do interferon gama e de citocinas.
A resposta imune inicial à flora é regulatória, determinan
■ Fatores imunológicos do tolerância ou defesa. Desequilíbrio nesta resposta pode ser
A associação entre RCU e outras doenças imunológicas, tais a chave para o surgimento da doença inflamatória.
como uveíte, anemia hemolítica autoimune, eritema nodoso, O braço inato do sistema imune provê resposta inicial rápi
lúpus eritematoso sistêmico, a presença de autoanticorpos an- da secretando muco, peptídios antimicrobianos, imunoglobina
ticólon no soro de pacientes com a doença, e a boa resposta A e outras proteínas. A seguir, entram em cena outras células
terapêutica aos corticosteroides sugerem que a doença tem na como células T helper (Th,, Th2 e Th17) e outros subgrupos de
sua etiologia um componente imunológico. Porém, a impossi células regulatórias como CD.,. O resultado é a secreção de vá
bilidade de reprodução da doença em animais de experimen rios tipos de citocinas e interleucinas.
tação e a grande dificuldade em distinguir entre fenômenos Este complexo arsenal de armas imunológicas associado a
imunológicos primários e secundários à inflamação bloqueiam não menos complexos componentes genéticos constitui sem
o avanço das pesquisas. Sabemos, à luz dos conhecimentos atu dúvida a chave para entendermos a patogênese desta intrigante
ais, que os principais elementos imunológicos envolvidos na doença e a chance de intervenção terapêutica através de anti
patogênese da RCU são: a) o microbioma; b) o epitélio intesti corpos monoclonais.
nal; e c) a resposta inflamatória.
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Q u a d ro 43.1 índice de gravidade da RCU
se que 54% dos pacientes apresentavam doença leve; 27%, mo podem ocorrer mesmo após colectomia total. Várias outras
derada; e 19%, grave. Avaliar a gravidade da doença é impor lesões de pele, como vitiligo, vasculites, rosácea, alopecia, po
tante no planejamento terapêutico, pois, quanto mais grave é dem ocorrer.
a doença, pior é a resposta. Manifestações oculares acometem 1 a 10% dos pacientes,
sendo as mais comuns episclerite, uveíte e irite. As duas últimas
são graves, pois podem levar à cegueira. Os sintomas mais co
■ CURSO CLÍNICO muns são dor ocular, fotofobia, borramento da visão e cefaleia.
Essas lesões podem preceder o início dos sintomas intestinais e
O curso clínico da RCU varia muito de um paciente para não guardam relação com a atividade da doença.
outro. Em recente estudo de base populacional realizado na O envolvimento hepático é relativamente frequente. De 15 a
Noruega, 1/5 dos pacientes não apresentaram recidivas após 50% dos pacientes apresentam alterações das provas de função
10 anos do diagnóstico e, na metade dos casos, a doença per hepática. Entretanto, pela sua gravidade, a manifestação mais
maneceu quiescente por 5 anos. preocupante é a colangite esclerosante. Ocorre em 1 a 5% dos
A localização da doença correlaciona-se estreitamente com a pacientes com RCU. Caracteriza-se por astenia, prurido, icte
evolução. Desta forma, colite extensa está associada a aumento rícia, dor abdominal e febre. Laboratorialmente, nota-se eleva
do risco de colectomia e câncer de cólon, assim como aumento ção dos níveis séricos das enzimas indicadoras de colestase. O
na mortalidade. diagnóstico definitivo é dado pela colangiografia endoscópica
retrógrada.
Os prováveis mecanismos responsáveis pelas manifestações
■ MANIFESTAÇÕES EXTRAINTESTINAIS extraintestinais são:
• Imunocomplexos circulantes.
Aproximadamente 20% dos pacientes com RCU apresen • Antígenos bacterianos.
tarão manifestações extraintestinais. A artrite ou artralgia é a • Crioproteínas circulantes.
mais frequente, acometendo 10 a 20% dos casos. Geralmente, o • Reações imunes que envolvem anticorpos contra antíge
envolvimento articular não produz deformações, é migratório, nos de células epiteliais intestinais.
assimétrico, ocorrendo preferencialmente nas articulações dos
joelhos, quadris, tornozelos e cotovelos. Em alguns casos, po
dem ocorrer sacroiliite e espondilite ancilosante, muitas vezes
como primeira manifestação da doença. Por outro lado, em
■ DIAGNÓSTICO
algumas circunstâncias, essas alterações não apresentam sin A despeito dos avanços no conhecimento genético dos fato
tomas e são descobertas apenas com o emprego de técnicas de res ambientais e imunológicos que participam da etiopatogê-
diagnóstico mais sensíveis, como, por exemplo, a tomografia nese da RCU, não existe nenhum marcador patognomônico da
computadorizada. Em todo paciente com artropatia soronega- doença; desta forma, o diagnóstico é, em geral, feito por meio
tiva para doença reumática, deve-se pesquisar RCU. da avaliação conjunta do quadro clínico, dos achados labora
O envolvimento da pele e da mucosa oral ocorre em 4 a 20% toriais, radiológicos, endoscópicos e histológicos.
dos pacientes. Na boca, as lesões são as aftas e acompanham a
atividade da doença intestinal. O eritema nodoso ocorre em 2 a
4% dos casos. Caracteriza-se por lesões nodulares, avermelha ■ QUADRO CLÍNICO
das, dolorosas, não ulceradas, com diâmetro de 1 a 5 cm, mais
comumente nas regiões anteriores das pernas. A sintomatologia da RCU é variável e depende da extensão
Em alguns casos, pode aparecer o pioderma gangrenoso. e intensidade das lesões. O início da doença pode ser insidioso
Surge em qualquer parte do corpo, sendo, entretanto, mais fre ou abrupto, e a evolução é, em geral, crônica, com surtos de
quente nas áreas de maior trauma e de punção por agulhas. São exacerbação intercalados com períodos de acalmia. O sintoma
úlceras grandes, profundas, com centro necrótico e geralmente predominante é a diarréia, com inúmeras evacuações por dia,
infectadas. Em geral, dependem da atividade da doença, mas geralmente com fezes líquidas misturadas com sangue, muco
464 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa
e pus. Na fase aguda, em geral há dor em cólica no abdome, ■ Anticorpos contraestruturas citoplasmáticas dos neutrófilos
febre, perda de peso e mal-estar geral. Setenta e cinco por cento Os anticorpos antiestruturas citoplasmáticas dos neutrófi
dos pacientes irão apresentar sintomas intermitentes e com los (ANCA) foram descritos primariamente nas vasculites e na
pleta remissão entre os ataques. Em 5 a 15%, os sintomas se granulomatose de Wegener. Posteriormente, percebeu-se que
rão contínuos, sem remissão, e 5 a 10% apresentarão apenas poderiam relacionar-se a outras doenças. No caso da RCU, o
um surto sem sintomas subsequentes por mais de 15 anos. A padrão de ANCA mais encontrado nas colorações é o perinu-
gravidade do surto inicial irá ditar a conduta terapêutica; por clear, daí surgiu a sigla pANCA. Este anticorpo é produzido
isso, é essencial uma avaliação meticulosa para dimensionar pelas células (3p na mucosa intestinal e pode refletir a resposta
adequadamente a doença. local a antígenos, próprios da mucosa ou a bactérias. O isola
mento e purificação destes anticorpos em pacientes com RCU
■ Exame físico permitiram a identificação de vários alvos antigênicos, dentre
eles a histona H l. Esta é uma pequena proteína intimamente
O exame físico cuidadoso é fundamental. Deve ser direcio envolvida em espiralar o DNA dentro do núcleo das células.
nado não só ao trato gastrintestinal, mas, sobretudo, à pesquisa Outras proteínas também já foram identificadas.
de manifestações extraintestinais (aftas, pioderma, eritema no- A frequência de pANCA em pacientes com RCU varia de 23
doso, artrites, uveítes etc.), para demonstrar alterações sistêmi a 89%, comparada a 4% em indivíduos normais. Há também
cas, nas formas graves da doença (febre, taquicardia, desidrata uma maior positividade em parentes de primeiro grau de pa
ção), e auxiliar na detecção de complicações, como megacólon cientes com RCU quando comparados a controles.
tóxico e perfuração intestinal, entre outras. Nas formas leves e Em nosso meio, a prevalência de pANCA em pacientes com
moderadas da doença, o exame, em geral, é normal. RCU variou de 47 a 66%. Possivelmente, diferenças genéticas e
metodológicas limitam a utilização deste marcador.
■ Alterações laboratoriais
■ Anticorpos o/?f/-Saccharomyces cerevisiae
Apesar de inespecíficos, os exames laboratoriais são utiliza Anticorpos anti-Saccharomyces cerevisiae (ASCA) referem-
dos não só para uma avaliação global do paciente, mas também se ao anticorpo contra o fermento de padaria. Têm sido en
para estabelecer o grau de atividade da doença e, portanto, ava contrados em 50 a 70% dos pacientes com doença de Crohn e
liar a resposta terapêutica. As alterações mais frequentes são somente em 6 a 14% na RCU. Recentemente, observou-se que
anemia ferropriva, leucocitose, aumento do número de pla-
este anticorpo ocorre também em várias outras doenças como
quetas, hipoalbuminemia, elevação da velocidade de hemos-
hepatite autoimune, colangite esclerosante e cirrose biliar pri
sedimentação, dos níveis sanguíneos de proteína C reativa e
mária, diminuindo a sua especificidade e, portanto, limitando
alfa-1-glicoproteína ácida. Distúrbios eletrolíticos como hipo-
o seu uso.
potassemia, hipocloremia, hiponatremia, alcalose ou acido-
se metabólica são frequentes, sobretudo nas formas graves da ■ Anticorpos antibacterianos
doença. Em nosso meio, é sempre importante o exame para- Partindo da hipótese de que a doença inflamatória intestinal
sitológico e a cultura das fezes no sentido de eliminar outras
resulta de uma resposta imune aberrante direcionada à flora mi-
causas de diarréia. Além destes exames laboratoriais, exis
crobiana intestinal, pacientes com estas doenças poderiam for
tem outros que vêm sendo testados, sobretudo para avalia
mar anticorpos contra proteínas bacterianas. Estes anticorpos
ção de atividade inflamatória, mas que ainda não fazem parte
podem significar perda de tolerância às bactérias ou resposta do
da rotina. Dentre estes, destacam-se: calprotectina sérica,
hospedeiro a um agente patológico. Um aspecto ainda mais in
P2-microglobulina sérica, interleucina-6, eotaxina 2, dipeptidil
teressante é que estes anticorpos podem ajudar na identificação
peptidase IV.
de subgrupos de pacientes nos quais a inflamação é perpetuada
■ Marcadores sorológicos por bactérias existentes no lúmen intestinal e podem responder
à terapêutica direcionada em alterar a flora.
A utilização de marcadores sorológicos para prognosticar,
monitorar e tratar determinada doença é uma prática bem es
tabelecida em Medicina. Nos últimos anos, inúmeros novos ■ Exames radíológicos
marcadores da doença inflamatória intestinal têm sido reco
nhecidos e provocado um debate sadio na comunidade de gas- ■ Raios X simples do abdom e
trenterologistas a respeito de sua utilidade. Uma radiografia simples do abdome deve ser sempre reali
Estudos em animais e em seres hum anos dem onstram zada, especialmente nos pacientes com formas graves da doen
que o paciente com RCU tem um distúrbio no mecanismo ça. Se o cólon estiver cheio de ar, podemos observar encur
normal de regulação da resposta im une direcionada à flo tamento do órgão, perda das haustrações e, eventualmente,
ra intestinal. A utilização de marcadores sorológicos (p. ex., alterações grosseiras do relevo mucoso. Outras informações
anticorpos) fundamenta-se na hipótese de que a presença des importantes que podem ser obtidas por meio desse exame são
tes anticorpos séricos refletiria este desequilíbrio do sistema os sinais de complicações, como dilatações extremas no me
imune. Tais marcadores são úteis, sobretudo para monitorar gacólon tóxico, presença de pneumoperitônio nas perfurações
o tratamento. intestinais e alterações consequentes às manifestações extrain
Mais de 20 anticorpos diferentes já foram identificados no testinais, ou seja, sacroiliite e espondilite ancilosante.
soro de pacientes com doença inflamatória intestinal. Estes an
ticorpos parecem refletir uma resposta anormal a proteínas es ■ Enem a opaco
tranhas, pois não são encontrados em indivíduos sadios nem É um exame muito útil, principalmente quando feito com a
em pacientes com outra doença intestinal. Dentre os anticorpos técnica do duplo contraste (bário e ar). Permite não só estabe
com possível aplicação clínica, destacam-se: lecer o diagnóstico, mas também avaliar a extensão da doen
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 465
ça. Não deve ser realizado nos casos graves devido ao risco de e sangramento. A microscopia revela infiltrado inflamatório
perfuração intestinal. agudo e crônico com distorção e perda da arquitetura das crip
A alteração mais precoce ao enema opaco é o aspecto gra tas, microabscessos, depleção de células caliciformes, congestão
nuloso da mucosa, consequente ao edema que a infiltra. Com a vascular, hemorragias focais e ulcerações. Nas formas graves,
progressão da doença, podemos notar erosões e ulcerações, que poderão ocorrer necrose da mucosa, ulcerações e pólipos in-
conferem ao órgão um aspecto característico “em papel rasgado, flamatórios.
ou borda de selo” (Prancha 43.1). Quase sempre, há perdas das
haustrações e afilamento e encurtamento do cólon.
Deve-se realizar sempre uma radiografia em perfil para es ■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
tudar o espaço pré-sacral. Normalmente, esse espaço tem me
nos de 1,0 cm e, em mais da metade dos pacientes com RCU, O diagnóstico diferencial deve ser feito com as principais
está aumentado devido à diminuição do diâmetro retal. Nesse doenças intestinais que cursam com diarréia, como DC, sín-
caso, o espaço é preenchido por tecido adiposo ou fibrótico. drome de má absorção, doenças infecciosas e parasitárias, colite
Com a modernização e a disponibilidade dos exames endoscó- isquêmica, colite actínica, mucoviscidose, síndrome do cólon
picos, tanto o Colégio Americano de Gastrenterologia quanto irritável, entre outras. De uma forma geral, é muito fácil dife
a Sociedade Britânica de Gastrenterologia só recomendam o renciar entre RCU e outras doenças, excetuando-se a DC, que
enema opaco quando a colonoscopia não está disponível pron pode ser muito difícil, até mesmo para o gastrenterologista mais
tamente, ou quando existir estenose no cólon que impeça uma experiente. No Quadro 43.2, encontram-se listadas as principais
avaliação endoscópica. diferenças entre essas duas afecções.
Prancha 43.1 Aspectos radiológicos e cirúrgicos da RCU. A, Retocolite ulcerativa. Raios X do cólon (enema opaco). Observa-se o aspecto "pi-
cotado”da mucosa intestinal, com perda de haustrações e comprometimento generalizado do cólon, a partir do reto. B, Retocolite ulcerativa.
Peça cirúrgica do cólon, observando-se os aspectos da forma crônica. Comprometimento difuso da mucosa, já com a forma pseudopoiiposa.
C, Retocolite ulcerativa. Peça cirúrgica do cólon mostrando a associação do processo inflamatório crônico com o carcinoma. D, Retocolite ul
cerativa. Paciente operado com colectomia total e ileorretoanastomose. Controle radiológico pós-operatório, verificando-se o segmento retal
remanescente com a anastomose ileal. E, Retocolite ulcerativa. Radiografia simples do abdome em paciente com megacólon tóxico. Observa-
se distensão do cólon, com maior intensidade junto ao transverso. F, Retocolite ulcerativa. Peça cirúrgica de megacólon tóxico. Observa-se a
distensão do órgão. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 467
T
Q u a d ro 43 .2 Diferenças entre RCU e DC
RCU DC
Achados clínicos
Dor Ocasional Frequente
Vômito Raro Frequente
Diarréia Frequente Frequente
Sangue nas fezes Comum Incomum
Tenesmo Comum Incomum
Perda de peso Comum Rara
Achados macroscópicos Predomina no cólon distai Predomina no cólon proximal
Envolvimento retal frequente Envolvimento retal é raro
Lesões contínuas Lesões segmentares
Úlceras superficiais Úlceras profundas
Aspecto polipoide Aspecto em mosaico (cobblestone )
Achados microscópicos Inflamação difusa Inflamação segmentar
Frequentes abscessos de criptas Raros abscessos
Mucosa atrófica Mucosa sem atrofia
Ausência de granulomas Granulomas sâo frequentes
Pronunciada depleçào de células caliciformes Raramente depleçào de células caliciformes
cautela, pois podem desencadear o megacólon tóxico. Da mes o 5-ASA agiria primariamente, impedindo a transformação
ma forma, o consumo de anti-inflamatórios não esteroides, neoplásica celular, e secundariamente, reduzindo o processo
mesmo os mais modernos, devem ser evitados, uma vez que inflamatório. Convém ressaltar que, em alguns casos, a dose
podem exacerbar a doença. Lembrar que, na doença de Crohn, do derivado salicílico, suficiente para manter o paciente com
0 tabagismo, ao contrário da RCU, piora a doença e aumenta RCU em remissão, pode ser semelhante à necessária para in
a frequência de recaída pós-operatória. duzir a remissão.
Efeitos colaterais com a SSZ têm sido relatados em até 45%
■ Derivados salicílicos dos pacientes. São geralmente dose-dependentes, relaciona
Neste grupo de medicamentos, incluímos a tradicional sul- dos com altos níveis séricos de sulfapiridina, ocorrendo prin
fassalazina (SSZ) e os novos derivados salicílicos. A SSZ foi cipalmente nos indivíduos com baixa capacidade genética de
desenvolvida no final dos anos 30 para o tratamento da artrite acetilação hepática da droga (acetiladores lentos), e incluem:
reumatoide, pela Dra. Nana Svartz, e, casualmente, mostrou- dor abdominal, náuseas, vômitos, anorexia, cefaleia, hemólise,
se eficaz na RCU. Quando ingerida, a SSZ é desdobrada, no infertilidade masculina etc. Menos frequentemente, os efeitos
cólon, por ação bacteriana, em sulfapiridina (grandemente ab colaterais com o tratamento com a SSZ podem ser por hiper-
sorvida) e ácido 5-aminossalicílico (5-ASA ou mesalazina ou sensibilidade (alergia ou idiossincrasia): febre, rash cutâneo,
mesalamina - pouco absorvido). Este último é o princípio ati linfadenopatia, Stevens-Johnson, agranulocitose, hepatite, pan
vo do medicamento, agindo de forma tópica. Entre os vários creatite, exacerbação da diarréia etc. Assim, em virtude dos
mecanismos de ação do 5-ASA, estão a inibição da produção efeitos colaterais da SSZ, foram desenvolvidas estratégias de
de leucotrienos e de anticorpos, além da capacidade de assimi liberação do 5-ASA (mesalamina nos EUA ou mesalazina na
lação de radicais livres. Estudos bem controlados nos anos 60 Europa) no trato digestivo, a saber: a) revestimento do 5-ASA
revelaram melhora clínica e endoscópica em cerca de 80% dos em microgrânulos com etilcelulose (liberação do 5-ASA ao lon
pacientes com RCU ativa (formas leves e moderadas), com 2 a go de todo o trato digestivo); neste caso, em idosos e crianças
6 g/dia de SSZ por 3 a 4 semanas. A melhora no grupo placebo com dificuldade para ingerir cápsulas e comprimidos, as cáp
foi de 40%. Na RCU, após a fase aguda, a dose de manutenção sulas podem ser abertas e os microgrânulos de 5-ASA, também
de 2 g de SSZ/dia foi suficiente para manter aproximadamen recobertos com etilcelulose, ingeridos; b) conjugação de duas
te 80% dos pacientes em remissão clínica e endoscópica após moléculas de 5-ASA (olsalazina) com liberação do 5-ASA no
1 ano. No grupo placebo, este valor foi de apenas 28%. Assim, cólon (diarréia em 10 a 15% dos casos por sua ação secretago-
nos pacientes com RCU leve ou moderada, e que toleram bem ga sobre o intestino delgado e cólon); c) cobertura do 5-ASA
a SSZ, à dose de 2 a 4 g/dia na fase aguda deve seguir-se a de com resinas acrílicas (p. ex., Eudragit S, L etc.) com liberação
2 g/dia de manutenção, por tempo indefinido. Ácido fólico (2 do 5-ASA a partir do íleo proximal (Eudragit L) ou distai (Eu
a 5 mg/dia) deve ser dado concomitantemente à SSZ, pelo ris dragit S). A maioria dos pacientes intolerantes ou alérgicos (80
co de desenvolvimento de anemia macrocítica, um dos efeitos a 90%) à SSZ tolera bem o 5-ASA; contudo, alguns pacientes
colaterais da SSZ. (10 a 20%) reproduzem os efeitos colaterais com a SSZ ao uti
Mais recentemente, constatou-se que a chance de desen lizarem o 5-ÁSA, corroborando o fato de que alguns efeitos
volvimento do câncer colorretal em pacientes com RCU pode colaterais da SSZ são ocasionados pelo 5-ASA e não pela sul
ser substancialmente reduzida com o uso dos derivados salicí fapiridina. Mais recentemente, Foram desenvolvidas prepara
licos (p. ex., SSZ, mesalazina), como manutenção. Neste caso, ções contendo concentrações mais elevadas de 5-ASA por com
468 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa
primidos ou sachês. Tais medicamentos podem ser oferecidos de evitar recaídas, podendo-se utilizá-lo 2 ou 3 vezes/semana
1 vez/dia para o paciente, o que favorece consideravelmente a ou até menos.
aderência dele ao tratamento. As preparações estão resumidas A combinação de 5-ASA oral (2,4 g/dia) e 5-ASA enema
no Quadro 43.3. (4 g/dia) foi melhor do que cada um isoladamente na RCU
Hoje, completados 20 anos de pesquisas sobre o 5-ASA, lan ativa distai. Também, a associação de 5-ASA enema (4 g/2 ve
çamos mão de metanálises, que agrupam os vários trabalhos zes/semana) e 5-ASA oral (1,6 g/dia) revelou-se melhor do
sobre o assunto, segundo critérios preestabelecidos, em uma que a administração isolada de 5-ASA oral, em pacientes com
análise estatística global, fornecendo, assim, dados sobre sua RCU em remissão e alto risco de recaídas (2 ou mais recaídas
eficácia e indicações. Apesar das limitações das metanálises no último ano e remissão alcançada nos últimos 3 meses). Se
(p. ex., diferentes metodologias e critérios de remissão etc.), melhantemente, a associação de mesalazina oral (> 2 g/dia) e
observou-se que, na RCU ativa, formas leves e moderadas, doses mesalazina tópica (1 a 4 g/dia) foi melhor que cada uma delas
maiores que 2 g/dia de 5-ASA oral são superiores ao placebo e isoladamente na RCU esquerda, leve/moderada. Finalmente,
tão eficazes quanto a SSZ. Na RCU em remissão, 5-ASA e SSZ a associação de mesalazina oral (4 g/dia) e mesalazina enema
são equivalentes. As doses recomendadas de 5-ASA para a RCU (1 g/dia) mostrou-se mais eficaz que mesalazina oral isolada
ativa e em remissão acham-se representadas no Quadro 43.4. mente na RCU extensa, leve/moderada.
A mesalazina também pode ser empregada na forma de ene-
ma ou supositórios, 1 a 4 g/dia. Está indicada na RCU ativa ■ Corticoides
distai (proctite e proctossigmoidite) com índices de melhora Em 1955, Truelove & Witts publicaram os resultados finais
clínica, endoscópica e histológica em 60 a 90% dos casos nas do estudo controlado, comparando cortisona oral (100 mg/dia)
primeiras semanas de tratamento. Nestas condições, é equiva e placebo na RCU ativa. Ao final de 6 semanas, cerca de 70%
lente aos enemas tradicionais, ou até melhor que eles (p. ex., dos pacientes apresentaram remissão (40%) ou melhora clínica
enema de hidrocortisona etc.), e tão eficaz quanto a SSZ, via (30%). No grupo placebo, os valores para remissão e melhora
oral, com a vantagem de promover melhora mais rápida e com clínica foram 16 e 25%, respectivamente. Pacientes com o pri
menos efeitos colaterais. Na RCU distai em remissão, o 5-ASA meiro quadro de agudização da RCU responderam melhor do
tópico apresentou eficácia semelhante à da SSZ oral no sentido que aqueles com recaída da doença. Os autores também obser
varam que os valores para remissão (30%) ou melhora (22%)
endoscópica foram um pouco menores do que os obtidos para
a remissão ou melhora clínica.
----------------------------- ▼----------------------------- De maneira geral, na RCU ativa, de intensidade moderada a
Q uadro 43 .3 Novas preparações de mesalazina, com maior grave, iniciamos prednisona oral (0,75 a 1 mg/kg/dia, sem ul
concentração de mesalazina por unidade posológica (em breve, trapassar 60 mg/dia) até a remissão clínica, quando então pas
algumas formulações estarão disponíveis no Brasil) samos a diminuir o corticoide (10 mg/semana, até 0,5 mg/kg/
dia e, a seguir, 5 mg/semana, até retirada completa). Se, durante
1. Mesalazina MMX 1,2 g (M u ltlM atrix System) comp. - Lialda*, Mezavant* o “desmame”, houver recaída da doença, pode-se aumentar o
2. Mesalazina 800 mg comp. - Mesacol*, Asacol® corticoide para a penúltima dose que precedeu aquela em que
3. Mesalazina microgrânulos sachês 1 e 2 g - Pentasa® ocorreu a recaída. Havendo nova recaída com o desmame, reco
4. Mesalazina m icropellet sachês 1,5 g - Salofalk Granu-Stix8, Apriso® menda-se a utilização de medicação imunossupressora (p. ex.,
5. Mesalazina grânulos sachês 3 g - Salofalk*
azatioprina, 6-mercaptopurina etc.) com o intuito de deixar o
paciente sem corticoide. Em casos graves, internados, hidrocor
6. Balsalazida 1,1 g comp. - Colazide*
tisona, 100 mg IV a cada 6 ou 8 h, pode ser administrada e, em
------------------------------------------------------------▼ --------------------------------------
Q uadro 4 3 .4 Derivados salicílicos no tratamento da RCU
Doses
Droga Nome comercial
RCU ativa RCU em remissão
5-ASA tópico Asalit (suposit. 250 mg; enema 3 g),
1 g/dia
Rowasa, Salofalk,
ou
Mesacol (enema 4 g), 1-4 g/dia
1-4 g
Pentasa (suposit. 1 g),
a cada 2 ou 3 dias
Chron-ASA 5 (enema 2 e 3 g), Mesacol (suposit. 250 e 500 mg)
Sulfassalazina (oral) Azulfin (500 mg) 2-4 g/dia 2-4 g/dia
Olsalazina (oral) Dipentum (500 mg) 2-3 g/dia 1-3 g/dia
Balsalazida (oral) Colazal, Colazide (750 mg) 2,25-6,75 g/dia 2,25-6,75 g/dia
5-ASA microgrânulos (oral) Pentasa (500 mg) 2-3 g/dia 1,5-3 g/dia
5-ASA Eudragit-S (oral) Asacol (400 mg),
Asalit (400 mg), 2,4-4,8 g/dia 0,8-4,8 g/dia
Mesacol (400 e 800 mg), Chron-ASA 5 (400,500 e 800 mg)
5-ASA Eudragit L (oral) Rowasa, Salofalk, Claversal, Mesacol (250 e 500 mg) 2-3 g/dia 0,75-3 g/dia
seguida, substituída por prednisona oral tão logo o estado do ou 6-MP. De maneira geral, o uso de AZA e 6-MP está indicado
paciente assim o permita. Os corticoides não devem ser usados nas formas corticoide-resistentes (ou refratárias) e corticoide-
como droga de manutenção, mesmo em doses baixas (< 10 a dependentes, facilita a redução/suspensão do corticoide (cor-
15 mg/dia) em virtude de seus efeitos colaterais. ticoid sparing effect), promove manutenção da remissão, é útil
Os efeitos colaterais dos corticoides tradicionais são bem na DC penetrante (fistulizante) e no pós-operatório da DC para
conhecidos, particularmente quando utilizados por tempo se evitarem recaídas.
prolongado, ainda que em baixas doses: aumento do apetite e Os efeitos colaterais da AZA e da 6-MP ocorrem em torno de
do peso, edema, insônia, labilidade emocional, psicose, acne, 15% e podem ser: a) de natureza alérgica, como febre, rash cutâ
Cushing, osteoporose, osteonecrose, retardo de crescimento, neo, mal estar, náuseas, vômitos, dor abdominal, diarréia, hepa
supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, infecções, mio- tite e pancreatite, ou b) não alérgica, como depressão medular
patia, catarata, atrofia de pele, estrias, equimose, fígado gordu (leucopenia, neutropenia, trombocitopenia, anemia), infecções,
roso, diabetes, hipertensão, glaucoma e pancreatite aguda. Por alterações de enzimas hepáticas e neoplasia. A frequência de
causa dos efeitos colaterais dos corticoides tradicionais, foram infecções (7%) e de neoplasia (3%) (p. ex., câncer de cólon, de
desenvolvidos novos corticoides em uma tentativa de reduzir mama, testicular, melanoma e leucemia) é semelhante à espe
tais efeitos. O mais estudado tem sido a budesonida, rapida rada na população com DII sem uso de AZA ou 6-MP. Alguns
mente metabolizada (cerca de 90%) em produtos inativos logo autores, entretanto, têm mostrado um risco 4 vezes maior de
após sua primeira passagem pelo fígado. É comercializada sob desenvolvimento de linfoma não Hodgkin em pacientes que
a forma de enema (2 m g/100 m^) e comprimidos (3 mg). Na fazem uso de AZA ou 6-MP. Assim, o risco de neoplasia com
RCU distai ativa, a budesonida na forma de enema é equivalen AZA ou 6-MP, nas doses habitualmente usadas na DII, deve
te ao 5-ASA tópico e tão eficaz, ou mais, quanto os corticoides ser contraposto às complicações, limitações, incapacitações e
tópicos tradicionais (p. ex., hidrocortisona, fosfato de predni- efeitos deletérios da DII em atividade. Semelhantemente, AZA
solona), com a vantagem de provocar menos efeitos colaterais e 6-MP são seguras durante a gravidez e podem ser mantidas
(p. ex., menor inibição do cortisol plasmático). caso o médico julgue a indicação necessária.
Na RCU ativa, a budesonida oral é tão eficaz quanto a pred- AZA e 6-MP costumam ser usadas por pelo menos 4 anos,
nisolona oral na melhora endoscópica e histológica do cólon se não houver contraindicação. No entanto, a DII tende a recair
direito, porém no cólon esquerdo é inferior à prednisolona. Tal após suspensão da droga, justificando-se a conduta mais atual
fato está relacionado com a formulação da budesonida, pro de mantê-la indefinidamente.
gramada para liberar o princípio ativo no íleo e cólon direito. Cloroquina, um reconhecido agente contra a malária com
Portanto, nessas situações, um tratamento tópico, na forma de propriedades anti-inflamatórias e imunomoduladoras, foi tão
enema, é recomendável em conjunto com o tratamento com eficaz quanto a SSZ (3 g/dia), na dose de 500 mg/dia, VO, no
budesonida oral, para agir no cólon esquerdo. tratamento da RCU ativa. Com o uso prolongado (> 6 meses),
Os corticoides tradicionais como a prednisona não devem pode haver retinopatia ou depósitos na córnea.
ser empregados como drogas de manutenção pelos já m en Ciclosporina é um peptídio extraído do fungo Tolypocla-
cionados efeitos indesejáveis que geram. Tão logo o paciente dium inflatum que, sem dúvida, revolucionou os transplantes
configure dependência do corticoide (necessita do corticoide de órgãos e o tratamento de doenças autoimunes. Seu principal
para manter remissão) ou refratariedade (não responde ao cor mecanismo de ação é a redução na produção de interleucina-2
ticoide na dose de 0,75 a 1 mg/kg/peso de prednisona por 4 a (IL-2) pelas células T auxiliadoras (T-helper). Na DII, mostrou-
7 semanas), outras alternativas (p. ex., imunomoduladores) se razoavelmente eficaz na RCU grave, não responsiva após 5
devem ser instituídas. a 10 dias de corticoterapia e na DC refratária e fistulizante. As
doses normalmente usadas são 2 a 4 mg/kg/dia IV, infusão
■ Im unom oduladores (ou imunossupressores) contínua, por 1 a 2 semanas, seguidas da administração oral
Neste grupo de medicamentos, comumente incluímos a aza- da droga na dose de 6 a 8 mg/kg/dia. Os resultados, a curto
tioprina (AZA) e a 6-mercaptopurina (6-MP), a cloroquina, a prazo, são favoráveis e oscilam entre 60 e 80%. Em médio ou
ciclosporina e o metotrexato. Mais recentemente, tacrolimus longo prazos, a droga não produz bons resultados, a menos que
(FK 506) e micofenolatomofetila têm sido testados. seja acrescentado um imunossupressor do tipo AZA ou 6-MP.
Sem dúvida, os imunomoduladores mais estudados, e com Durante o desmame da ciclosporina oral, haverá um período
os quais há considerável experiência acumulada, são a AZA e em que o paciente utilizará corticoide, ciclosporina e AZA ou
a 6-MP. Após absorção, a AZA é rapidamente convertida em 6-MP. Nestas condições, está indicada a profilaxia da pneumo
6-MP nas hemácias, havendo geração de metabólitos ativos do nia por Pneumocystis carinii com sulfametoxazol/trimetoprima.
grupo dos 6-tioguanina nucleotídios (6-TGN). AZA e 6-MP Os grandes óbices à terapêutica com ciclosporina são alto custo,
são potentes imunossupressores, inibindo a atividade de lin- necessidade de monitoramento rígido dos seus níveis séricos,
fócitos T e B, além de células NK (natural killer). AZA e 6-MP interação com outras drogas e toxicidade. Níveis sanguíneos
também induzem apoptose celular, o que é benéfico para os entre 150 e 300ng/m^, medidos por radioimunoensaio com
pacientes com DII, cujos linfócitos e monócitos têm redução anticorpo monoclonal ou HPLC (high-performance liquid chro-
de apoptose. Em altas doses, AZA também inibe a síntese de matography) são considerados uma faixa segura. Ciclosporina
prostaglandinas. Na DII, AZA e 6-MP têm sido utilizadas na é metabolizada no citocromo P-450 no fígado e, desta forma,
dose de 2 a 3 mg/kg/dia e 1 a 1,5 mg/kg/dia, respectivamen drogas que o induzem (p. ex., cimetidina, rifampicina, trime-
te. Ambas são drogas de ação retardada, sendo necessário um toprima, carbamazepina, fenobarbital, fenitoína, octreotídio)
tempo de uso de 3 a 6 meses antes de qualificarmos a situação podem dim inuir a concentração sanguínea da ciclosporina,
como insucesso terapêutico. e as que o inibem (p. ex., verapamil, fluconazol, cetoconazol,
Estudos bem controlados e metanálises têm revelado a im claritromicina, eritromicina, corticoides, metoclopramida, clo
portância da AZA e da 6-MP no tratamento da DII. Com ex roquina) podem aumentá-la. Os efeitos colaterais são relativa
ceção das formas graves da DII, todas as situações envolvendo mente frequentes, podendo chegar a 50%. São relacionados, em
RCU e DC podem ser beneficiadas com o tratamento com AZA geral, à dose e regridem, na maioria das vezes, com a redução
470 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa
ou suspensão da droga. São eles, em ordem de frequência: pa- eficácia do bloqueio seletivo de mediadores inflamatórios, bem
restesia, hipertensão arterial, hipertricose, insuficiência renal, como do incremento da imunidade inata. Esta nova abordagem
cefaleia, infecções oportunistas, hiperplasia gengival, tonturas é, genericamente, denominada terapia biológica, uma vez que
e anafilaxia. Convulsões do tipo “grande maT podem ocorrer age sobre mediadores e fenômenos naturais e fisiológicos. A
em pacientes com níveis séricos baixos de colesterol (< 120 mg/ terapia biológica pode ser dividida em quatro grandes grupos:
df). Finalmente, existe a rara possibilidade de a ciclosporina 1) agentes que incrementam o efeito de barreira da mucosa
provocar colite ou jejunite e até mesmo linfoma. Assim, o seu gastrintestinal, incluindo a estimulação da imunidade inata;
emprego deve ser reservado aos centros com experiência no 2) agentes que inibem ou modulam citocinas; 3) agentes que
manejo da droga e com infraestrutura para acompanhar o pa bloqueiam a atividade de células T (imunidade adquirida); 4)
ciente e tratar as complicações. Uma boa perspectiva é a utiliza agentes que bloqueiam a adesão e migração de células inflama-
ção de uma nova formulação da ciclosporina VO, sob a forma tórias (p. ex., neutrófilos).
de microemulsão (Neoral). Sua biodisponibilidade é maior e
os resultados iniciais, na dose de 5 mg/kg/dia, são equivalentes ■ Agentes que incrementam oefeito de barreira da mucosa
aos obtidos com ciclosporina intravenosa, porém com menos gastrintestinal, incluindo a estimulação daimunidadeinata
efeitos colaterais. Fatores de crescimento (p. ex., fator epidérmico de cresci
Metotrexato (MTX) é um antagonista do folato e interfere na mento, fator trefoil, TGF-p, hormônio de crescimento, fator de
síntese de DNA. Age sobre a atividade de citocinas e mediado crescimento do queratinócito etc.) têm sido testados no sentido
res inflamatórios, bloqueando a ligação da IL-1 ao seu receptor de melhorar a defesa do trato digestório (incremento sobre o
e reduzindo a síntese de IL-2, IL-6, IL-8, interferona-gama e efeito da barreira intestinal). Alguns deles (p. ex., TGF-p) têm,
leucotrieno B ,. Na dose semanal de 15 a 25 mg IM ou subcutâ- além da ação anti-inflamatória, efeito sobre o processo de re
nea, o MTX promoveu remissão em cerca de 60% dos pacientes paração tissular.
com DC refratária, após 12 a 16 semanas de tratamento. As re Os prebióticos, probióticos e simbióticos modificam a flora
ações adversas ocorreram em 10 a 25% dos pacientes e incluí intestinal e normalizam o conteúdo de Bifidobacteria e Lacto-
ram: náuseas, diarréia, estomatite, leucopenia, queda de cabelo, bacilli, alterações estas que acabam por reduzir o contingente
elevação de transaminases, pneumonia por hipersensibilidade, antigênico imposto às células imunológicas da lâmina própria
fibrose ou cirrose hepática. A administração concomitante de intestinal. Além disso, estimulam a secreção de mucina e de
ácido fólico (1 a 2 mg/dia VO) ajuda na prevenção da estoma TGF-p, aumentando assim a capacidade de defesa do trato gas
tite, diarréia e toxicidade medular. Quando MTX é dado em trintestinal. Também ações imunomoduladoras como redução
conjunto com sulfametoxazol/trimetoprima, AZA ou 6-MP, o de citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL-1 ,1L-8, TNF etc.) e
risco de leucopenia grave torna-se ainda mais elevado. MTX é aumento de citocinas anti-inflamatórias (p. ex., IL-10) têm sido
teratogênico e pode causar aborto, sendo, portanto, contrain- demonstradas para os probióticos.
dicado em mulheres que desejam engravidar. Na RCU, o MTX O fator estimulador de colônias de granulócitos e macró
não parece trazer benefício. fagos (GM-CSF, sargramostim) consiste em outra forma de
Tacrolimus (FK 506), um antibiótico macrolídico com pro melhorar a imunidade inata do organismo.
priedades imunomoduladoras e eficaz na prevenção de rejeição
após transplante hepático, foi recentemente testado em três ■ Modulação decitocinas
pacientes com formas graves de DC. O resultado foi satisfató No caso da imunidade adquirida, é possível bloquear
rio nos três pacientes, com resposta rápida (< 3 semanas). Em IL-12/23 (anticorpos humanizados ABT-874, CNTO 1275 e
pacientes com RCU, tacrolimus em altas doses (o suficiente molécula STA-5326 mesilato), a interferona-y(anti-IFN-y, an
para manter níveis séricos de 10-15 ng/mé) VO e por 14 dias ticorpo humanizado fontolizumabe ou HuZAF), a IL-6 (anti
foi benéfico em pacientes internados com quadro grave, cor- corpo humanizado atlizumabe) e, finalmente, o fator de necrose
ticoide-dependentes ou corticoide-refratários. Nefrotoxicida- tumoral (TNF-a) através do infliximabe (75% humano), certoli-
de foi observada em 5% dos pacientes. A droga age de forma zumabe pegol (anticorpo humanizado CDP-870,95% humano)
semelhante à ciclosporina, porém sua ingestão oral é seguida e adalimumabe (anticorpo 100% humano). Por outro lado, é
de melhor absorção, mesmo diante de mucosa lesada. Estudos possível oferecer citocinas anti-inflamatórias como a IL-10.
controlados são aguardados para estabelecimento da dose ideal Recentemente, a capacidade de secretar IL-10 ou fator trefoil
e dos efeitos colaterais, que parecem ser semelhantes aos des foi incorporada ao probiótico Lactococcus lactis, por engenha
critos para a ciclosporina. ria genética, fazendo com que, além dos benefícios inerentes
Micofenolatomofetila (MMF) é um éster do ácido micofe- ao probiótico, se obtenha ação direta anti-inflamatória, imu-
nólico com ação imunossupressora, reduzindo a produção de nomoduladora e reparadora sobre a mucosa inflamada. Tam
interferona-gama e a proliferação de linfócitos. Trabalhos ini bém IL-10 foi utilizada sob forma de microesferas gelatinosas
ciais revelaram que o MMF (1 a 2 g/dia VO) poderia ser útil (GM-IL-10). Tais estratégias de liberação direta na mucosa au
nos pacientes com DC refratária, grave e intolerantes à AZA ou mentaram a eficácia da IL-10 e se mostraram melhores que a
6-MP. Todavia, o mais recente estudo sobre MMF, conquanto oferta sistêmica de IL-10.
não controlado, questionou sua eficácia na DC. Na RCU, MMF
não foi superior à AZA. ■ Bloqueio decélulas Tativadas
A ativação das células T na mucosa intestinal constitui eta
■ Terapia biológica pa importante no processo inflamatório na DII. Dessa forma,
O sucesso da pesquisa de bancada - em laboratório - en foram desenvolvidos anticorpos humanizados contra recepto
sejou novas opções terapêuticas na DII. A descoberta de que res da superfície de células T ativadas. É o caso do anti-CD3,
na DC existe prejuízo na imunidade inata (células dendríticas, visilizumabe ou HuM291 e dos anticorpos monoclonais contra
neutrófilos, macrófagos) e consequente hiperestimulação da receptores CD25 (receptor de IL-2), como no caso do anticorpo
imunidade adquirida (células T) descortinou novas perspectivas humanizado daclizumabe e do anticorpo quimérico basilixima-
terapêuticas. Hoje, os estudos clínicos têm por objetivo avaliar a be. Outra estratégia consiste em bloquear sinais de coestimu-
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 471
lação para a ativação de células T (CTLA-4-Ig ou abatacepte). e histológica e não somente clínica. Dessa forma, teremos de
Trabalhos controlados com essas modalidades terapêuticas es reconsiderar os métodos atuais de avaliação da resposta te
tão em andamento na DII. rapêutica na DII, como os índices de atividade, que, por ve
zes, não levam em conta a condição macro e microscópica da
■ Bloqueio deadesão emigração de células inflamatórias mucosa intestinal. O mesmo se aplica à capacidade de induzir
Inibidores seletivos de moléculas de adesão (p. ex., inte- apoptose e de reduzir o processo inflamatório do tecido adipo-
grinas, ICAM) também se mostraram inicialmente úteis no so mesentérico. Provavelmente, esses métodos tradicionais de
tratamento da DC, particularmente naqueles com elevação da avaliação da remissão da doença darão lugar a exames labora
proteína C reativa (PCR). Nesse grupo, incluímos: o anticorpo toriais (p. ex., dosagem fecal de calprotectina e de lactoferrina
humanizado natalizumabe, contra a integrina a 4, o anticorpo etc.), endoscópicos (p. ex., cápsula endoscópica, enteroscopia
humanizado MLN02 ou LDP02, contra a integrina a 4(57), e com duplo-balão etc.), ultrassonográficos, tomografia compu
o oligonucleotídio antissenso alicaforseno ou ISIS 2302, con tadorizada com multidetector (enterografia multislice com TC),
tra ICAM1. ressonância nuclear magnética, colonoscopia virtual etc., que,
Muitas dessas modalidades terapêuticas ainda estão em fase com o tempo, deverão ter seus custos mais reduzidos, possibi
experimental ou carecem de maior confirmação clínica. Entre litando abordagem mais rotineira.
tanto, os resultados preliminares são encorajadores. No Brasil, Finalmente, associações de terapia biológica que ajam si-
duas drogas biológicas já foram aprovadas: infliximabe e ada- nergicamente melhorando a imunidade inata e minimizando
limumabe. Infliximabe mostrou-se útil no tratamento da DC a resposta inflamatória adaptativa (p. ex., sargramostim + anti-
e da RCU. Os estudos ACT 1 e ACT 2, para RCU não respon- TNF-a) talvez sejam utilizadas a fim de se obter melhor efeito
siva aos tratamentos habituais, revelaram nítida vantagem do terapêutico, evitando-se assim o uso de corticoides. No Qua
infliximabe sobre o placebo. Após indução com 5 mg/kg nas dro 43.5, resumimos as perspectivas no tratamento da RCU.
semanas 0,2 e 6 IV, a droga foi mantida a cada 8 semanas. Ao
final de 30 semanas, a resposta clínica com IPX foi de 52 versus
30% no grupo placebo (p < 0,001), a remissão clínica foi de 34
(IPX) versus 16% (placebo), p < 0,001, e a remissão endoscó-
■ COMPLICAÇÕES E PROGNÓSTICO
pica foi de 50 (IFX) versus 25% (placebo), p < 0,001. A remis
são clínica sem corticoide foi de 24% no grupo IPX e 10% no ■ Megacólon tóxico
grupo placebo (p < 0,03). Adalimumabe, em um estudo-piloto,
O megacólon tóxico ocorre em 3 a 5% dos pacientes com
também mostrou-se útil na RCU.
RCU. Caracteriza-se por uma dilatação progressiva do cólon as
Os efeitos colaterais dos anti-TNF ocorrem em uma frequên sociada a manifestações tóxicas sistêmicas, com estiramento da
cia menor que 10% e em alguns trabalhos não foram superiores
parede da víscera, podendo ocasionar perfuração. O paciente,
aos constatados para o grupo placebo. Os efeitos colaterais men
em geral, apresenta-se toxemiado, com febre, taquicardia, dor
cionados para o anti-TNF incluem: a) mais comuns: reações à
e distensão abdominal. O leucograma revela intensa leucocito-
infusão (prevenidas e tratadas com redução da velocidade de in
se. Essa complicação exige colectomia urgente, assim mesmo a
fusão, difenidramina 25 a 50 mg IV ou VO, hidrocortisona 100
mortalidade é alta e atinge metade dos pacientes.
a 200 mg IV, ou prednisona 40 mg VO e acetaminofeno 650 mg
VO), infecções de vias respiratórias superiores, bronquite, farin-
gite, febre, cefaleia, náuseas, dor abdominal; b) menos comuns: ■ Displasiaecarcinoma do cólon
tontura, dor torácica, artralgia, reações de hipersensibilidade
Não há dúvidas de que a incidência de displasia e câncer do
tardia, abscessos (abdominais ou perianais), pneumonia, fu-
runculose, obstrução intestinal, anemia hemolítica, disfunção cólon é maior nos pacientes com RCU do que na população
cardíaca, lúpus induzido por droga (anti-DNA positivo); o risco geral e, obviamente, é a complicação mais temida. Acredita-se
de linfoma não Hodgkin é sugerido por alguns autores, porém que a inflamação persistente poderá progredir para displasia e
parece relacionar-se mais com o uso do corticoide ou com a câncer na seguinte sequência: colite sem displasia > displasia
associação entre terapia biológica e imunossupressor. Alguns de baixo grau (DBG) > displasia de alto grau (DAG) > carci-
pacientes desenvolvem anticorpo contra o próprio anti-TNF noma. Estudos recentes sugerem que a DBG pode evoluir para
(4 a 35% dos pacientes), porém o seu significado ainda não câncer sem passar por DAG. Em vista disso, alguns autores têm
está totalmente esclarecido. Tais anticorpos desenvolvem-se sugerido colectomia profilática neste ponto. Entretanto, não há
em uma frequência menor nos que consomem, concomitan consenso sobre esta questão.
temente, um imunossupressor (p. ex., azatioprina, 6-mercap- Os fatores determinantes do risco de degeneração malig
topurina, metotrexato etc.). Alguns pacientes podem reativar na são a duração e extensão da doença e a gravidade da in
tuberculose latente, o que justifica a realização do PPD e raios X flamação.
de tórax antes da infusão. Assim, pacientes com PPD negativo Com relação à duração, sabe-se que o risco cumulativo de
ou < 5 mm e raios X de tórax normal podem ser submetidos à desenvolver câncer de cólon, após 15 anos de doença, é de 5 a
terapêutica com anti-TNF. Nos casos de PPD > 5 mm, os pa 8%; após 20 anos, de 12%; e, após 25 anos, de 25 a 30%. Caso
cientes devem ser tratados com isoniazida profilática (300 mg/ a doença se limite ao reto, a chance de malignização é seme
dia, 6 meses), e a terapia anti-TNF deve ser iniciada somente lhante à da população normal. Por outro lado, o risco, quando
após 1 mês de isoniazida. A droga também deve ser evitada a doença é universal (ou seja, atinge todo o cólon), é de 13%,
em cardiopatas. após 15 anos de doença; de 23%, após 20 anos; e de 42%, após
A pesquisa com terapia biológica certamente continuará de 25 anos.
forma célere, na busca de medicamentos mais eficazes, de fácil Geralmente, o tumor que se desenvolve em um paciente com
administração, com menos efeitos colaterais e com impacto RCU é extremamente agressivo. As lesões são planas, infiltra-
sobre a história natural da doença. Os estudos com terapia bio tivas, e, na maioria dos pacientes, já se encontram metástases
lógica também têm revelado o valor da remissão endoscópica durante a laparotomia.
472 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa
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Q u a d ro 43 .5 Perspectivas no tratamento da retocolite ulcerativa inespecífica (RCU)
T e r a p i a b io ló g i c a
1) G o li m u m a b e - a n t ic o r p o m o n o c lo n a l lg G 1 , h u m a n o , c o n t r a T N F .......................................................................... . .........E m a n d a m e n t o
4 ) M L N -0 2 - a n t ic o r p o h u m a n iz a d o , I g G I , m o n o c lo n a l, c o n tr a a lfa -4 b e t a -7 in te g r in a , in ib e a d e s ã o le u c o c it á r ia ........... F a vo rá v e is
1 5 ) ln t e r f e r o n a -0 -1 ...................................................................................................................................................................................................................... N á o fa v o rá v e is
M is c e lâ n e a
3 ) H e p a r i n a ............................................................................................................................................................................. .... N á o fa vo rá v e is
1 1 ) L id o c a ín a / ro p iv a c a ín a ( e n e m a ) ............................................................................................................................. ... F a vo rá v e is
1 3 ) L e v a m is o le ........................................................................................................................................................................ .... N á o fa v o rá v e is
1 6 ) A lo e v e r a .............................................................................................................................................................................. .... N á o fa v o rá v e is
1 8 ) D e s id r o e p ia n d r o s t e r o n a (D H E A ) - a ç ã o a n t i-in f la m a t ó r ia ..................................................................... . F a vo rá v e is
Outros fatores considerados de risco são: doença colestática 2 anos a partir de 8 a 10 anos do início da doença na pancoli-
no fígado (p. ex., colangite esclerosante primária) e, possivel te e 15 a 20 anos nas formas localizadas. Sugere-se colectomia
mente, o uso de drogas imunomoduladoras, tais como: azatio- profilática em pacientes com doença universal com mais de
prina e 6-mercaptopurina. 10 anos de duração.
A alta incidência de malignização impõe medidas de vigi Infelizmente, muitas questões ainda não estão respondi
lância em todos os pacientes com RCU. Infelizmente, não dis das, entre elas: Quando iniciar a vigilância? Qual é o número
pomos, até hoje, de um método ideal de vigilância. Os possíveis de biopsias? Quais locais deverão ser biopsiados? Além disso,
marcadores de pré-malignidade, como antígeno carcinoem- existe muita discrepância de resultados entre os patologistas
brionário (CEA), a excreção fecal de ácidos biliares e a presença Em razão da falta de estratégia de vigilância universalmen
de displasia, entre outros, não se mostraram confiáveis. te aceita, têm-se procurado novos métodos de m onitorar os
Nos EUA e na Europa, vêm sendo testados vários protocolos pacientes com RCU. Nesse sentido, destacam-se: a cromoen-
envolvendo marcadores sanguíneos e teciduais, colonoscopia doscopia e a “quimioprofilaxia” com aminossalicilatos. A cro-
anual ou bianual e colectomia profilática, mas, até agora, não moendoscopia consiste na utilização de corantes por meio da
existe consenso sobre a questão. Recomenda-se, entretanto, colonoscopia com ou sem magnificação de imagem. A utili
a realização de colonoscopia com biopsia pelo menos a cada zação de corante permitiría identificar com maior precisão as
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 473
lesões planas e também as polipoides, indicando o melhor lo acima de 100 bpm, temperatura superior a 38°C e albumina
cal para a biopsia. sérica inferior a 3 mg/d^. Considera-se, também, que aqueles
Estudos realizados na Dinamarca demonstraram que a inci doentes que apresentam ilhotas de mucosa no cólon, ou nos
dência de displasia e câncer em pacientes com RCU é muito me quais se evidenciam mais de três alças de delgado distendidas,
nor naquele país. Da mesma forma, a realização de colectomia ou, ainda, dilatação do cólon, notada à radiografia simples de
foi muito menor. A explicação para isso foi a maior utilização abdome, possivelmente terminarão por exigir tratamento ci
de aminossalicilatos. Mais recentemente, estudos realizados no rúrgico de urgência.
Reino Unido demonstraram que o uso regular de aminossali ► Complicações agudas. As mais importantes são sangra
cilatos na dose mínima de 1,2 g/dia reduziu em até 75% o risco mento incontrolável por medidas clínicas, megacólon tóxico e
de desenvolvimento de câncer e displasia. perfuração do cólon.
A despeito destes excelentes resultados com estas novas es ► Riscos de câncer. Essa situação é mais frequente quan
tratégias, a cromoendoscopia ainda é um método caro e a uti do o surto inicial da doença ocorre na juventude, naqueles em
lização de aminossalicilatos por tempo prolongado necessita que todo o cólon está comprometido, e quando o processo
de estudos prospectivos em escala convincente. se prolonga por mais de 10 anos. Após a primeira década de
doença, cerca de 2% dos pacientes desenvolverão o câncer co-
lônico a cada ano.
■ PROGNÓSTICO ► Retardo de desenvolvimento somático nas crianças.
Essa situação é dependente da lesão intestinal. A cirurgia de
O prognóstico depende da extensão e gravidade da doença verá ser realizada antes do fechamento do espaço epifisário e,
na época do diagnóstico inicial. Estatísticas indicam que 45% portanto, em condições de a criança retornar ao seu desenvol
dos pacientes apresentam doença limitada ao cólon distai, 35% vimento físico.
têm uma forma moderada e 20% exibem doença universal. ► Complicações extraintestinais. As complicações extrain
O acompanhamento dos pacientes a longo prazo demons testinais não constituem indicações para colectomia. A indica
tra que, em média, 50% ficam livres dos sintomas, mas quase ção de operação dependerá da situação da doença colônica, da
todos irão apresentar, pelo menos, uma recidiva nos próximos resposta ao tratamento e do tempo de duração da RCU. Essas
10 anos. complicações poderão, todavia, reforçar a decisão de operar.
Apesar do caráter crônico, a proctite e a proctossigmoidite As complicações extraintestinais são divididas em dependentes
apresentam baixa incidência de complicações, e as manifestações e independentes da lesão intestinal.
extraintestinais ocorrem em menos de 10% dos pacientes. ► Dependentes da lesão intestinal: pioderma gangrenoso,
Pacientes jovens tendem a apresentar doença mais grave, eritema nodoso, estomatite aftoide, irites, artrites periféricas;
com manifestações extraintestinais e sangramento intenso no independentes da lesão intestinal: colangite esclerosante, es-
primeiro episódio, além de evoluírem, em geral, para formas pondilite ancilosante, nefropatias crônicas e amiloidose.
mais graves.
■ Procedimentos cirúrgicos
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO Os procedimentos cirúrgicos para o tratamento da RCU
sofreram transformações ao longo dos anos, com o desenvol
O momento da indicação cirúrgica para a RCU é geralmen vimento de novas técnicas e com o melhor conhecimento da
te protelado devido à preocupação de clínicos e pacientes com fisiopatologia da doença. Assim, a abordagem cirúrgica inicial
relação à feitura de ileostomias e/ou colostomias, temporárias consistia em simples desvio do trânsito intestinal, através de
ou definitivas, com suas consequências do ponto de vista físico colostomia ou ileostomias, que logo se mostraram inadequadas,
e de convívio social. Assim, para esses pacientes receberem a uma vez que mantinham o segmento intestinal doente, com to
orientação cirúrgica no momento adequado, sempre é necessá das as suas consequências. O mesmo acontece quando se pra
rio o acompanhamento por uma equipe multiprofissional com ticam, nas formas localizadas da doença, colectomias parciais,
a importante participação de um cirurgião. uma vez que, nesses casos, o processo ressurgirá no segmento
As indicações para o tratamento cirúrgico da RCU são, clas- do cólon remanescente.
sicamente, as seguintes: Atualmente, os procedimentos cirúrgicos utilizados para a
► In tra ta b ilid a d e c lín ic a . Apesar de persistente e adequada RCU são os seguintes:
terapia, ocorre a manutenção da doença, tornando difíceis as
condições de vida dos pacientes. E quais são esses casos? Em ■ Proctocolectomia com ileostomia
geral, são pacientes que se apresentam em episódios graves de Procedimento proposto por Brooke, em 1952, que é indicado
diarréia com sangue, febris, taquicárdicos e anemiados. A con para as formas difusas e mais graves, com grande comprome
duta clínica inclui internação, hidratação e corticoterapia ve- timento do reto. Consiste na remoção de todo o cólon e reto,
nosas. Não há evidência de que a nutrição oral, líquida ou pas- com feitura de ileostomia em caráter definitivo, apresentando
tosa, agrave a diarréia, mas doentes desnutridos devem receber a grande vantagem de realmente curar a doença, além de re
nutrição parenteral total. Se o paciente continua a deteriorar, solver, também, as manifestações extraintestinais dependentes
pode-se tentar ciclosporina intravenosa, na dose de 4 mg/kg/ da lesão intestinal.
dia. Se, ainda assim, e ao fim de 7 dias, não houver melhora, No entanto, por ser procedimento extremamente mutilan-
com o doente mantendo-se febril, taquicárdico e sem diminuir te e com a ileostomia definitiva, leva a grandes implicações do
a diarréia, indica-se operação de urgência. Esses doentes, que ponto de vista psicossocial, como a reclusão do paciente.
acabarão operados durante a crise inflamatória, correspondem
a 20 ou 30% dos casos graves de RCU. Há sinais que ajudam ■ Proctocolectomia com ileostomia continente
ao médico prever mau prognóstico, quando o doente se apre No sentido de reduzir as consequências da ileostomia defi
senta: com mais de nove episódios de diarréia no dia, pulso nitiva nas proctocolectomias, Kock, em 1976, propôs a reali
474 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa
zação de ileostomias continentes, dotadas de reservatório for endoscópica. Esse processo nada tem a ver com a doença in
mado por segmento de intestino delgado distai com sistema flamatória inicial, apresentando alterações bacteriológicas e
valvulado. Esse reservatório, de feitura complexa, era esvazia histopatológicas, com consequentes repercussões funcionais,
do pelo próprio paciente, por meio da introdução de sondas manifestando-se por dor pélvica, febre, diarréia aquosa e san-
pela ileostomia. guinolenta. A sua etiologia ainda não está devidamente estabe
Com o desenvolvimento de novas técnicas, essa conduta foi lecida, considerando-se a possibilidade de estase fecal prolon
praticamente abolida, devido principalmente a complicações gada no reservatório, com decorrente proliferação bacteriana
na sua manipulação (perfuração do reservatório pela sonda ou, por isquemia da mucosa ou má absorção. Esses processos res
então, pela perda de continência do sistema valvular). pondem de modo satisfatório ao uso de metronidazol, poden
do, em algumas situações, haver necessidade de reconstrução
■ Colectomia total com ileorretoanastomose cirúrgica do reservatório ileal.
Em 1952, Aylett divulgou técnica originariamente propos Outras complicações pós-operatórias são representadas
ta por Devine, em 1943, e Corbett, em 1952, que consistia na por insuficiência anastomótica, fístula, sepse pélvica (17,6%),
remoção de todo o cólon e preservação do reto e dos esfíncte- estenose de anastomose (14,7%), obstrução intestinal (8%) e
res por uma anastomose ileorretal na altura do promontório incontinência (11%), exigindo, na maioria das vezes, reinter-
sacral. Esse procedimento só poderá ser indicado em situações venção cirúrgica para a resolução dessas situações, que, inclu
especiais, em que não ocorra um maior comprometimento do sive, estão associadas ao aumento da incidência das manifesta
reto, com suas funções preservadas, sem doença ativa intensa ções extraintestinais. Complicações tardias são a bolsite, como
ou estenoses, ausência de displasias na mucosa e com esfíncter mencionado, a incontinência anal e a disfunção sexual, prin
anal adequado para controlar fezes líquidas. cipalmente nas mulheres, caracterizando-se por dispareunia.
A manutenção do reto torna essa técnica discutida, pois, A julgar por um relatório da Clínica Mayo, as complicações
nessa porção remanescente, poderá surgir um processo de de- per e pós-operatórias da PTAIBI chegam a 70%. Esse núme
generação neoplásica, requerendo, dessa forma, revisões locais ro, aparentemente assustador, não desanima os que precisam
a cada 6 meses. O risco do surgimento de um processo neoplá- de uma colectomia total e não desejam permanecer com uma
sico no reto residual é de 5% em 20 anos. colostomia definitiva.
Pelo seu baixo índice de morbidade e pelas excelentes con
dições de vida propiciadas aos pacientes, essa técnica tem, sem
dúvida, um lugar de destaque e de grande valia em casos de ■ Megacólon tóxico
vidamente selecionados. Sempre existe a possibilidade de, em Na fase inicial de instalação do megacólon tóxico, a conduta
situações de recrudescimento da atividade inflamatória no reto deverá ser clínica e expectante. É importante o controle dos si
e/ou encontro de graves displasias nos controles periódicos, re nais vitais, além de reposição hidreletrolítica, utilização de anti
verter esse procedimento para a remoção do reto e feitura de bióticos de largo espectro e controle radiológico a cada 12 h.
reservatório ileal, ou, então, ileostomia definitiva. A alteração de sinais vitais (febre, taquicardia, toxemia),
do exame clínico (distensão abdominal, dor e irritação perito-
■ Proctocolectomia total com anastom ose ileoanal
neal), juntamente com a falta de resposta às medidas clínicas
e bolsa ileal (PTAIBI) nas primeiras 24 h, ou então à mudança no quadro radioló
Essa técnica consiste na remoção de todo o cólon, dissecção gico (aumento da distensão do cólon), são sinais indicativos
do reto e secção deste cerca de 1 cm acima da linha pectínea. para um pronto procedimento cirúrgico, antes da ocorrência
É realizado um reservatório utilizando-se o segmento distai de perfuração.
do íleo, que deverá ser anastomosado junto ao coto do reto. A
A conduta cirúrgica ideal seria a colectomia total, com fe
bolsa poderá ser realizada de diferentes formas, porém a mais
chamento do coto retal e ileostomia, para uma reconstituição
utilizada é aquela em formato de J, proposta por Utsunomya
do trânsito em procedimento posterior.
em 1980, que forma um reservatório com cerca de 15 a 20 cm.
Em circunstâncias de maior comprometimento das condi
A extremidade distai do J é anastomosada ao coto retal, utili
ções do paciente, ou então na presença de perfuração intestinal,
zando-se grampeadores.
a conduta cirúrgica, na impossibilidade de remoção do cólon,
O procedimento cirúrgico é realizado em dois estágios, dei
deverá ser a feitura de colostomias descompressivas múltiplas,
xando inicialmente uma ileostomia de proteção da anastomose,
além de limpeza e drenagem da cavidade abdominal.
que, posteriormente, deverá ser fechada.
Em algumas situações, poderemos m anter um coto retal
maior, no qual é removida a mucosa (mucosectomia), facili
tando a anastomose com a bolsa ileal. ■ LEITURA RECOMENDADA
Apesar da complexidade dessa técnica, ela, sem dúvida, nos Abraham, C. & Cho, JH. Mccanisms of Discasc. Inflamatory Bowcl Discasc. N
últimos anos, promoveu uma revolução no tratamento cirúrgi Engl J Med, 2009; 365:2066-78.
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Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 475
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Tuberculose Intestinal
Mounib Toda
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Capítulo 44 / Tuberculose Intestinal 477
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Megacólon
José Alves de Freitas, Mounib Tacla e Renato Dani
Megacólon é um termo meramente descritivo. Refere-se ao estar envolvidos com as formas longas do MC, enquanto um
aumento do diâmetro dos diversos segmentos do cólon, ve modelo multifatorial explicaria as formas curtas. Um grupo
rificado ao exame radiológico, sem levar em consideração a parisiense, do Hôpital des Enfants Malades, mostrou a ligação
etiologia, desde que não seja devido à obstrução mecânica do entre o proto-oncogene RET com o MC; esses e outros tra
cólon. O diâmetro desta víscera é variável. Considera-se m e balhos indicaram que as mutações daquele gene caracterizam
gacólon quando o diâmetro do ceco ultrapassa 12 cm, o do có 50% das formas familiais e 15% das formas esporádicas da
lon ascendente 8 cm e o do cólon descendente 7 cm. Quando doença.
o retossigmoide supera 7 cm, diagnostica-se megarreto. Neste Em 1982, esta doença foi classificada em três grupos:
capítulo, serão discutidos ligeiramente o megacólon congênito • MC clássico: Envolve o reto e o sigmoide, estendendo-se
(doença de Hirschsprung) e, mais extensamente, o megacólon até a flexura esplênica;
chagásico. Não serão abordados o megacólon que acompanha • MC ultracurto: Limitado aos 2 a 3 cm distais do reto; e
a constipação intestinal crônica ou a pseudo-obstrução intes • MC ultralongo: Neste caso, mais da metade do cólon
tinal, nem doenças neurológicas (distrofia miotônica, Parkin- está envolvido.
son, neuropatia diabética, distrofia miotônica etc.), doenças da
musculatura lisa intestinal (escleroderma, dermatomiosite e Na verdade, a extensão do segmento aganglionar pode va
polimiosite, por exemplo), ou decorrente de doenças metabó- riar desde o esfíncter anal interno, inferiormente, até as últimas
licas (porfiria, hipotireoidismo), nem o megacólon causado por alças do intestino delgado, superiormente.
drogas, assim como não comentaremos o megacólon tóxico. A doença se manifesta geralmente na infância, mas também
pode surgir na vida adulta.
O leitor deve consultar o Capítulo 27 para obter outras in
formações sobre a doença de Hirschsprung.
■ MEGACÓLON CONGÊNITO (MC) OU
DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG
A doença de Hirschsprung foi descrita pela primeira vez em
■ MEGACÓLON CHAGÁSICO (MCH)
1886 pelo médico dinamarquês Harold Hirschsprung. Trata- A doença de Chagas, ou tripanossomíase americana, é uma
se de uma malformação congênita, relativamente frequente, zoonose causada por um protozoário flagelado, denominado
que se manifesta em 1/5.000 nascimentos. Hoje sabe-se que o Tripanosoma cruzi (Carlos Chagas, 1909). É transmitido ao
MC é um representante de um grupo de distúrbios do sistema homem por um inseto hematófago da família Triatominae, co
nervoso entérico, distúrbios esses caracterizados pela ausência nhecido popularmente no Brasil como barbeiro ou chupança.
de células ganglionares dos plexos mioentéricos de Meissner e A doença é uma endemia exclusiva do continente americano,
de Auerbach, que são responsáveis pela atividade muscular in estendendo-se desde o sul dos EUA ao sul da Argentina. A Or
trínseca do intestino. Como essas células se originam da crista ganização Mundial de Saúde estima em 12 a 14 milhões as pes
neural, a doença é uma neurocristopatia. Resulta de anomalia soas parasitadas e em 90 milhões aquelas vivendo em condições
que se manifesta na migração, na divisão ou na diferenciação de adquirir a doença. No Brasil, um amplo inquérito sorológico
dos neuroblastos intestinais primitivos, o que acontece entre coordenado pelo Ministério da Saúde entre 1975 e 1980, abran
a 7.“ e a 12.* semana do desenvolvimento embrionário. A pre gendo 3.026 municípios e 1.352.197 amostras de sangue, reve
dominância da doença entre o sexo masculino (1,8 a 3,6:1) e a lou a prevalência em 4,2% da população rural, o que permite
existência de 15 a 20% de casos familiais sugerem a possibili estimar em 5 a 6 milhões os chagásicos só no Brasil.
dade de fatores genéticos implicados em sua origem. De fato, Estudos recentes demonstram que, apesar da progressiva
estudos de segregação comprovaram que um ou vários genes melhora do Sistema Único de Saúde, assim como medidas pro-
autossômicos dominantes, de penetração incompleta, podem filáticas adotadas em áreas de grande endemicidade, a doença
478
Capítulo 45 / Megacólon 479
continua sendo um grave problema de Saúde Pública. Cons pacientes a utilizarem laxativos cada vez mais potentes. Em 70%
titui a quarta causa de morte no Brasil entre as doenças infec- dos casos, o intervalo entre as evacuações é superior a 10 dias
toparasitárias. e mais de 30 dias em 15%. Outro sintoma muito frequente é a
Dados recentes fornecidos pela Organização Mundial de distensão abdominal, devido à grande retenção de fezes e gases
Saúde revelam que, nas últimas duas décadas, ocorreu aumento ocasionada pela não propulsão e pela acalasia do esfíncter anal
na detecção da doença nos EUA, no Canadá, em vários países interno. Devido ao baixo nível socioeconômico da maioria dos
europeus e nos países asiáticos. Isso foi ocasionado principal portadores de MCH, estes pacientes não se preocupam com o
mente pela mobilidade da população entre a América Latina funcionamento intestinal, acarretando, com muita frequência,
e o resto do mundo. a formação de fecaloma. Disfagia é frequente e traduz com
Uma vez infectado, o indivíduo poderá apresentar a forma prometimento esofágico concomitante. Tontura, palpitações e
clínica aguda ou a crônica, bastante distintas entre si. A aguda perda transitória da consciência indicam cardiopatia chagásica.
pode ser aparente ou inaparente e, em geral, tem duração limi Frequentemente, a colopatia chagásica se associa à esofagopatia
tada. A crônica persiste indefinidamente, e, como se trata de (83,5%) e à cardiopatia (21,7%) chagásicas.
infecção sistêmica, os mais diversos órgãos podem ser atingidos.
Entretanto, os mais afetados são o coração e o trato digestório, ■ Diagnóstico
caracterizando as formas cardíaca e digestiva da doença. O diagnóstico de MCH é, em geral, simples devido à sinto
O acometimento do trato gastrintestinal constitui a segun matologia típica e à procedência do paciente.
da manifestação mais frequente. Do ponto de vista patológico, O exame físico poderá evidenciar diferentes graus de dis
caracteriza-se por uma denervação autonômica intramural, que tensão abdominal, geralmente assimétrica. O estado nutricio
pode atingir todo o tubo digestivo. Neste capítulo, trataremos nal dependerá do comprometimento ou não do esôfago. Fre
apenas do comprometimento do cólon. quentemente, detecta-se também arritmia cardíaca. Quando há
O megacólon chagásico (MCH), no Brasil, acomete 2 a 5% grande retenção de fezes, pode-se provocar o sinal do cacifo,
dos indivíduos infectados pelo tripanossoma, atingindo geral comprimindo-se o sigmoide cheio de fezes e passando-se, em
mente pessoas de meia-idade. Constitui a forma mais grave da seguida, a mão sobre esse local da parede abdominal. O toque
doença, depois da cardiopatia, produzindo muito desconforto retal deve ser sempre realizado. Quando há necrose intesti
e levando à morte um grande número de doentes. nal, a dor em cólica torna-se contínua, há sinais de peritonite,
a distensão abdominal passa a ser simétrica e o estado geral
deteriora-se rapidamente.
■ Incidência O exame radiológico consiste na radiografia simples do ab-
O MCH pode ocorrer isoladamente ou associado ao mega- dome e no enema opaco. Os raios X simples permitem, muitas
esôfago, o que é mais comum. Nesse caso, em geral, o paciente vezes, comprovar a existência de ectasia do cólon sigmoide,
procura o médico com disfagia. A incidência global de MCH distensão gasosa e, eventualmente, fecaloma.
não é conhecida. Admite-se que seja ligeiramente menor do que O enema opaco é essencial para confirmação do diagnóstico
o megaesôfago. Este fato é explicado pelas dificuldades em se de casos duvidosos, assim como para determinar o grau de di
detectar o megacólon, talvez devido à sua evolução mais lenta, latação e os segmentos que estão comprometidos (Figuras 45.1
com sintomas brandos, ou, ainda, porque o paciente suporta a 45.3), mas é preciso ser realizado cuidadosamente.
mais os sintomas de constipação intestinal do que a disfagia e O exame proctológico evidencia dilatação luminal e fezes
procura o médico mais tardiamente. É mais comum entre 30 e no reto. Eventualmente, podem-se observar ulcerações da mu-
60 anos, seja porque a doença se manifesta mais tardiamente, cosa.
seja porque o doente demora para procurar o médico, como Do ponto de vista laboratorial, os exames mais importantes
mencionado. Além disso, como assinala U. Meneghelli “.. .nas são a reação de fixação do complemento para doença de Chagas,
últimas décadas houve notável redução na transmissão da doen a reação de Machado-Guerreiro e o eletrocardiograma.
ça por meio do inseto vetor, graças a medidas profiláticas ado
tadas em grandes áreas onde a doença de Chagas era de alta
endemicidade. Em consequência da contenção do surgimento
■ Complicações
de novos casos, a maioria dos chagásicos que se apresenta aos As principais complicações do MCH são o fecaloma, a im-
ambulatórios e hospitais é composta por pacientes com mais pactação fecal, o vólvulo do sigmoide, as úlceras por estase fe
de 50 ou 60 anos de idade, ao contrário do que acontecia até cal e as perfurações.
há três ou quatro décadas”. Atinge ambos os sexos na mesma O fecaloma ocorre em 59% dos pacientes. Forma-se qua
proporção. se sempre por descuido do paciente em promover o esvazia
mento intestinal. As fezes acumuladas no segmento dilatado
se desidratam, aumentando cada vez mais a sua consistência.
■ Patologia Localizam-se, quase sempre, no retossigmoide e, portanto, ao
Na grande maioria dos casos, os principais aspectos his- alcance do dedo no toque retal. O diagnóstico de fecaloma é
topatológicos são espessamento e dilatação da parede colôni- fácil. O paciente apresenta história de vários dias sem evacuar,
ca, notadamente do reto e do sigmoide. Microscopicamente, e palpa-se massa moldada, geralmente no sigmoide. A radio
a doença caracteriza-se por uma neuropatia inflamatória do grafia simples do abdome confirma o diagnóstico.
plexo mioentérico, com hiperplasia das células musculares li A impactação fecal consiste na obstrução aguda por fecalo
sas, infiltração do plexo mioentérico por linfócitos e células ma. Nesse caso, além da história de obstipação de longa dura
plasmáticas, degeneração e destruição neuronal. ção, o paciente refere piora súbita, com distensão abdominal
e dor no baixo ventre.
■ Quadro clínico Quanto ao vólvulo do sigmoide, devem-se distinguir duas
O principal sintoma do MCH é a constipação intestinal. situações: torção com alça viável e torção com necrose de alça.
Geralmente, instala-se lenta e progressivamente, obrigando os No primeiro caso, o quadro clínico é o de obstrução intestinal
480 Capítulo 45 / Megacólon
■ Tratamento
■ Megacólon não complicado
Quando procura o médico, o paciente com MCH apresenta,
Figura 45.1 Raios X de cólon (enema opaco). Grande dilataçào do reto em geral, constipação intestinal de longa data e já experimentou
e do cólon sigmoide, caracterizando o megacólon. vários tipos de laxantes, em geral sem orientação adequada.
Os casos com ritmo intestinal normal não requerem trata
mento. Já os pacientes oligossintomáticos necessitam de acom
panhamento clínico, pois a história natural da doença mostra
que a constipação intestinal é de instalação lenta e, na maioria
das vezes, permanece estável por vários anos. Vale lembrar que
a maioria dos pacientes convive muito bem com o problema e
que a simples presença de constipação intestinal não é motivo
de cirurgia, além do que o tratamento cirúrgico não é totalmen
te satisfatório e nem isento de complicações.
A orientação clínica fundamenta-se em medidas compor-
tamentais higiênico-dietéticas, uso de laxativos e lavagens in
testinais, objetivando eliminar as fezes, evitando a formação
de fecaloma e prevenindo a dilatação do cólon, como admitem
alguns autores.
As medidas comportamentais e higieno-dietéticas consistem
na orientação do paciente quanto à natureza de sua doença e
à necessidade de evacuar o intestino. Tentar ritualizar o ato
evacuatório, comparecendo ao vaso sanitário diariamente, de
Figura 45.2 Fotografia intraoperatória do caso da Figura 45.1. Ob preferência no mesmo horário, de tal forma que isso possa se
servam-se o alongamento e o grande diâmetro do cólon sigmoide. tornar um hábito. Adequar a ingestão de líquidos e evitar o uso
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) de alimentos e medicamentos constipantes.
■ Fecaloma
Na maioria dos casos, pode ser eliminado manualmente,
quando estiver ao alcance do dedo ao toque retal, ou, então,
através de gotejamento retal de soro fisiológico ou solução de
bicarbonato a 10%. Com essas medidas, promovem-se o amo
lecimento progressivo e a eliminação do fecaloma através de
dejeções sucessivas.
Em algumas situações, para remover a porção distai do fe
caloma impactado na ampola retal, é necessária a complemen-
tação com raquidianestesia, para produzir relaxamento dos es-
fíncteres com maior facilidade, visando à remoção das fezes.
■ Vólvulo
O vólvulo é formado pela rotação de um segmento do cólon
em eixo formado pelo seu próprio mesentério e poderá resultar
em obstrução parcial ou total do lúmen.
Figura 45.4 Raios X simples de abdome em vólvulo do sigmoide. No MCH, o alongamento e aumento do calibre da alça intes
Observa-se a grande distensão gasosa dos cólons descendente e trans tinal, principalmente na região do sigmoide, juntamente com o
verso, por torção do sigmoide. volume fecal retido, representam as condições predisponentes
para a ocorrência do vólvulo. A obstrução do lúmen ocorre
quando a rotação é de 180° e, quando chega a 360°, promove
também a obstrução da circulação local, com gangrena e per
furação decorrentes de isquemia, caso não ocorra uma pronta
intervenção.
A manifestação clínica do vólvulo é a parada de eliminação
de gases e fezes, com dor súbita e intensa manifestada no qua-
drante inferior esquerdo do abdome, juntamente com disten
são, podendo-se, em algumas situações, palpar a alça colônica
distendida.
O diagnóstico é realizado através de radiografias simples do
abdome, que demonstram distensão do sigmoide, com afila-
mento do local da rotação e ausência de ar na ampola retal. O
enema opaco só é realizado em caso de dúvida, cuidadosamen
te, visando a evitar perfuração intestinal. A imagem clássica é
comparada ao “ás de espadas” ou a um "bico de pássaro”.
O tratamento inicial do vólvulo do sigmoide é a descompres-
são da alça pela inserção de colonoscópio ou de sonda passada
pelo retossigmoidoscópio, desfazendo a torção e promovendo
o esvaziamento da alça. Devemos sempre preferir a utilização
do colonoscópio para esse procedimento, pois permite a sua
execução sob visão direta, além de detectar possíveis alterações
isquêmicas locais. O tratamento cirúrgico fica reservado para
os casos de torção completa (acima de 180°) e na suspeita de
sofrimento de alça.
É importante o diagnóstico e tratamento precoce do vólvu
lo para evitar perfuração, gerada pela alteração da circulação
local, levando a situações de extrema gravidade e morbidade.
Retardos podem ocorrer por diagnósticos incorretos ou, então,
em tentativas infrutíferas de descompressão por procedimen
tos endoscópicos.
Figura 45.5 Raios X de abdome após administração de contraste. Ocorrendo sucesso nos procedimentos endoscópicos, o pa
Vólvulo de sigmoide, observando-se distensão do cólon descendente ciente poderá ser preparado para posterior procedimento ci
(contrastado) e distensão gasosa no transverso. rúrgico eletivo.
482 Capítulo 45 / Megacólon
P e u t z -J e g h e r s S ín d r o m e d e P e u tz -Je g h e r s
Morson, 8C. Disease s o ftheColon, Rectum a nd Anus. London, William Heinemann Medicai
A palavra “pólipo” é um termo clínico-morfológico utilizado Books, 1969.
para descrever pequenos tumores que se projetam da mucosa
483
484 Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais
de malignização está na dependência direta do seu tamanho, contar na progressão tardia do adenoma para o câncer. Esse
padrão de crescimento e grau de atipia celular. O câncer é en gene localiza-se no cromossomo 17p. Um mecanismo que pa
contrado em 1% dos adenomas com menos de 1 cm de diâme rece importante é representado por mutações em qualquer uma
tro, em 10% com 1 a 2 cm e em 45% nos maiores de 2 cm. das muitas enzimas que controlam o sistema de reparo de erro
Os pólipos adeno matosos e o papiloma viloso apresentam- no pareamento de DNA (DNA mismatch repair system). Essas
se de formas diferentes na aparência microscópica, porém são mutações deságuam em um fenótipo característico, proces
decorrentes do mesmo processo patológico. Formas interme so chamado de instabilidade de microssatélite (microsatellite
diárias entre o adenoma e o papiloma viloso são comuns, e, para instability), muito comum em pacientes portadores de câncer
essas situações, poderá ser utilizada a denominação de adenoma colorretal não polipoide hereditário associado a adenoma. Es
papilar ou tubuloviloso} sendo muitas vezes difícil situar qual ses adenomas apresentam particular tendência para progredir
desses tipos estaria envolvido em determinado tumor. Seriam, até carcinoma.
na realidade, denominações para indicar diferentes padrões de A PFA, como se viu, está envolvida no processo de carcino-
desenvolvimento de um mesmo processo patológico, denomi gênese do câncer colorretal, e estudos genéticos realizados iden
nado “neoplasias do epitélio intestinal”, muito bem estabelecido tificaram o cromossomo 5q21 como local implicado na gênese
pelos trabalhos de Morson. de lesão nesses pacientes. O gene de polipose adenomatosa foi,
O típico adenoma pediculado é de pequenas dimensões, esfé subsequentemente, identificado nesse mesmo local.
rico, com superfície lisa e, às vezes, lobulada. Os tumores vilosos Cerca de 200 mutações foram observadas no gene APC, e,
são geralmente de base larga e sésseis, superfície felpuda, forma através da reação de cadeia da polimerase, poderemos identi
da por centenas de pequenos pólipos pediculados, dando um ficar os membros de uma família que apresentam a mutação
aspecto cerebriforme. Os três padrões histológicos do adenoma do gene APC antes de desenvolverem o pólipo. A possibili
são variações do mesmo processo neoplásico, e, dessa forma, dade da identificação dessas alterações hereditárias no gene
cerca de 5% dos adenomas tubulares, 22% dos tubulovilosos e APC permitirá a detecção pré-sintomática da PFA, podendo,
40% dos vilosos se transformam em carcinomas. assim, prevenir a eventualidade do câncer colorretal, até com
Histopatologicamente, os adenomas têm origem em células a efetivação de uma colectomia total profilática. Apesar de as
imaturas localizadas junto ao fundo das criptas intestinais, que síndromes hereditárias serem responsáveis por menos de 15%
persistem no processo proliferativo celular, ultrapassando as dos casos de câncer colorretal, e a PFA por apenas uma fração
necessidades da reparação normal do epitélio. As células epi- desse índice, genes APC mutantes foram encontrados em 50
teliais não conseguem restringir a síntese do DNA; como con a 60% de todos os carcinomas colorretais. A mesma mutação
sequência, o processo proliferativo atinge a mucosa e, pelo seu do APC mencionada foi anotada, em porcentagem similar, em
acúmulo, formam os pólipos, que, na sua progressão, atingem pequenos adenomas e lesões displásicas que apresentam eleva
a forma displásica. O ciclo celular e as alterações quantitativas dos riscos de progredir para o carcinoma invasivo, e também
do conteúdo de DNA do núcleo celular poderão ser estudados poderemos encontrar mutação do K-ras em pequenas lesões
através da citometria de fluxo, recurso já disponível na rotina não displásicas. A PFA juntamente com a síndrome de Lynch
de laboratórios de patologia. representam duas importantes condições hereditárias que
Com relação à distribuição dos tipos, o adenoma tubular ocasionam o aparecimento do câncer colorretal, e foram iden
ocorre em 75% dos casos, o papiloma viloso em 5%, e a forma tificadas três vias de eventos genéticos responsáveis: a via de
intermediária ou tubulovilosa, em 20%. Como foi dito, aceita-se instabilidade cromossômica (CIN+), a de instabilidade de mi-
hoje que a maioria dos cânceres do cólon origina-se de adeno crossatélites (MSI+) e a combinação das duas vias: CIN-MSI.
mas. Os argumentos que sustentam essa afirmação partem de A via MSI+ promove um aumento significativo nas alterações
documentos epidemiológicos, clínicos, patológicos e, moderna súbitas do DNA, enquanto a CIN+ aumenta a velocidade em
mente, da contribuição da biologia molecular. A progressão de que ocorrem as alterações grosseiras durante a divisão celular.
adenoma para carcinoma abrange, pois, alterações de genética O câncer colorretal causado por suscetibilidade hereditária re
molecular, entre estas a ativação de oncogenes e a inativação de presenta uma pequena parcela de cerca de 5% do total de casos,
genes supressores de tumor. O mais estudado desses oncoge estando a PFA responsável por até 1% dos casos e a síndrome
nes é o K-ros. Sabe-se que apenas 9% dos pequenos adenomas de Lynch por até 5% dos casos na população em geral.
apresentam mutações no gene K-ros, enquanto essa cifra é da Através de estudos oncogenéticos, afirma-se que a mutação
ordem de 58% nos adenomas maiores de 1 cm, e de 47% nos do K-ras apresenta importante papel na formação de criptas
cânceres do cólon. Essas mutações permitem ao gene transfor aberrantes, porém essas lesões não progridem para os adeno
mar células e, portanto, induzir neoplasias. Entretanto, como mas, com displasia, sem a presença de outras alterações gené
muitos adenomas não exibem alterações do gene K-ras, deve ticas, como a mutação do gene APC. Junto com a PFA, encon
haver outras alterações genéticas envolvidas no fenômeno de traremos também associação de manifestações extracolônicas,
transformação tumoral. O gene APC, um gene supressor de benignas e malignas. A síndrome de Gardner associa a PFA com
tumor, localizado no braço longo do cromossomo 5, é, prova tumores desmoides, osteomas da mandíbula, ou de outras par
velmente, um elemento importante nessa cadeia de eventos. tes do esqueleto, e cistos sebáceos. A síndrome de Turcot cor
Mutações ou perdas desse gene permitem maior suscetibilidade responde à PFA com meduloblastoma ou gliomas do sistema
em desenvolver neoplasia nos portadores de polipose familiar nervoso central. Essas duas síndromes são exemplos da PFA
adenomatosa (PFA), assim como em pacientes com adenomas com manifestações extracolônicas. A manifestação clínica do
esporádicos. Segundo a hipótese geral de Knudson, os pacientes pólipo é pouco significativa e poderá se dar através da perda de
com PFA nascem com mutação em um alelo do gene APC e sangue e/ou muco junto com as fezes. A intensidade da perda
adquirem uma mutação somática no outro alelo, o que permite estará em relação com o número e tamanho dos pólipos, po
a manifestação fenotípica. Outros genes supressores de tumor, dendo variar desde a ausência de perdas sanguíneas até situa
como o DCC (deleted in colon câncer), que está localizado no ções de enterorragia mais intensa, levando à anemia. Os póli
cromossomo 18q, podem estar envolvidos no processo cance- pos retais pediculados poderão exteriorizar-se no momento da
rigênico. A mutação no gene p53 é outra alteração que pode evacuação. A perda de muco, misturado com sangue ou não, é
Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais 485
a manifestação característica dos pólipos vilosos. Estes chegam, Outras drogas foram avaliadas, e, particularmente, o ácido
em algumas situações, a apresentar grandes volumes de per acetilsalicílico se mostrou efetivo em estudos experimentais,
das, com consequente depleção hidreletrolítica. Pólipos mais reduzindo o carcinoma colorretal em modelos animais. Estu
volumosos poderão ocupar espaço dentro do lúmen intestinal, dos epidemiológicos com a utilização do ácido acetilsalicílico
levando a episódios de suboclusão intestinal. demonstraram a redução do risco de todos os tumores colorre
O diagnóstico é realizado através de procedimentos endos- tais. Drogas anti-inflamatórias do grupo de inibidores da COX 2
cópicos (retossigmoidoscopia e colonoscopia) e radiológicos também foram utilizadas com esta finalidade e, no momento,
(enema opaco). A retossigmoidoscopia com tubo rígido detecta questionando-se os seus efeitos colaterais em aumentar o risco
cerca de 30% dos pólipos, e, através da colonoscopia, esse valor de eventos cardíacos, sem dúvida, estudos a longo prazo deve
atinge 90%. O exame radiológico (enema opaco) consegue de rão ser abandonados.
tectar cerca de 80% dos pólipos, porém apresenta dificuldades Apesar de plenamente demonstrado o papel desses medica
no encontro de lesões com menos de 0,5 cm, havendo, muitas mentos na prevenção do câncer colorretal, quando de uso con
vezes, resultados falso-positivos provocados por fecalitos ade tinuado, não se sabe, ainda, o que seria a dose ideal, a duração
ridos à parede intestinal. Assim, na realidade, esses dois méto da terapia, além da necessária precaução com seus efeitos co
dos propedêuticos se complementam e devem ser utilizados em laterais, principalmente sobre o aparelho digestivo (hemorra
conjunto para a completa detecção dos pólipos. Em exame de gias, úlceras, perfurações e progressão de doenças inflamatórias
rotina, o encontro de sangue oculto nas fezes indicará a reali intestinais). O mecanismo de sua ação seria na redução da sín
zação de procedimentos endoscópicos. O tratamento consiste tese das prostaglandinas através da inibição da ciclo-oxigenase
na remoção de qualquer pólipo encontrado, e a via de eleição (COX). Porém, como provocam alteração na proliferação celu
são os procedimentos endoscópicos, que permitem o enlaça- lar, ainda não está devidamente estabelecido como agem. As
mento do pólipo através de alças e sua ressecção com eletroful- sim, um melhor esclarecimento dos mecanismos de ação dessas
guração da sua base. Pólipos maiores, sésseis e com base larga drogas irá representar importante contribuição à terapêutica
são removidos em partes, através de procedimentos sucessivos, no controle do crescimento dos pólipos.
muitas vezes em mais de uma sessão.
Na impossibilidade da remoção endoscópica de pólipos, pelo ■ Pólipos hamartomatosos
seu volume ou base extremamente larga, a conduta passará a
ser cirúrgica, com laparotomia e colotomia. Nessas situações, O hamartoma é definido como um tumor não neoplásico,
em casos suspeitos, a cirurgia poderá ser ampliada com a rea formado pela proliferação anormal de tecido normal, disposto
de forma desorganizada, não existindo qualquer evidência de
lização da colectomia parcial.
que representa alterações pré-cancerosas.
Mais recentemente, tem sido utilizada a fotocoagulação pelo
O pólipo juvenil é mais comumente encontrado em crianças
YAG-laser para a remoção de volumosos pólipos vilosos. Po
e, ocasionalmente, em adultos. Apresenta-se de forma esférica e
rém, esse procedimento está limitado pelo alto custo da apa
superfície lisa, diâmetro médio de 1 a 2 cm, com pedículos lon
relhagem.
gos e finos, contendo inúmeros cistos preenchidos por mucina,
Cerca de 2 a 4% dos pólipos removidos endoscopicamente
daí também a denominação “pólipo de retenção”. Ao contrário
apresentam carcinoma invasivo, e, nessas condições, deverá ser
dos adenomas, não apresenta qualquer alteração epitelial. Em
tomada a decisão de operar e remover o segmento de cólon ou, 70% dos casos, localiza-se no reto, em 15% no sigmoide e, nos
então, acompanhar o paciente através de endoscopias progra 15% restantes, ao longo do cólon. Em 75% das vezes, são póli
madas. A presença do carcinoma in situ, que representa uma pos únicos e, quando múltiplos, variam, na maioria das vezes,
anormalidade citológica equivalente a uma displasia grave, não em número de 2 a 12.
necessita de qualquer outro tratamento após a remoção endos A formação desses pólipos está diretamente ligada à inflama
cópica do pólipo, a não ser revisão endoscópica posterior. ção e ulceração da mucosa colônica. Essas situações obliteram
Uma vez removido o pólipo por via endoscópica, nova colo pequenas glândulas, que se dilatam e proliferam, formando
noscopia deverá ser realizada após 1 a 2 anos e, depois, a, pelo inúmeros cistos de conteúdo mucinoso, fazendo, na sequência,
menos, cada 3 anos em pacientes do grupo de risco. A introdu a protrusão do lúmen intestinal. O movimento do bolo fecal
ção de novos métodos de imagem, através da tomografia com traciona essa protrusão, formando então o pedículo, desprovido
putadorizada em aparelhos multislice de alta resolução, realiza de muscularis mucosae. Por essa razão, poderá sofrer processo
a chamada “Colonoscopia Virtual”, que poderá ser utilizada no de torção e/ou necrose, com sua eliminação espontânea.
acompanhamento de pacientes submetidos a remoção endos A manifestação clínica mais importante é a perda de sangue
cópica de pólipos ou por ressecção de câncer colorretal. Porém, junto com as fezes. Como a maioria desses pólipos são de lo
esta metodologia só consegue identificar lesões maiores do que calização baixa, o sangue é de coloração clara. Alguns pólipos
0,5 cm, prejudicando assim o nível de sua eficácia. retais, de pedículo longo, poderão exteriorizar-se pelo ânus du
Nos últimos anos, foi devidamente estabelecido o valor da rante a evacuação. Em situações de múltiplos pólipos, poderá
utilização de drogas anti-inflamatórias não hormonais, par acontecer o aparecimento da diarréia.
ticularmente o Sulindac, na redução do número dos pólipos, O diagnóstico é realizado através de procedimentos endos
com observação de seus resultados após 6 meses de tratamento. cópicos, e, pela retossigmoidoscopia, poderemos detectar cer
Porém, findo o tratamento, ocorre novamente o aumento do ca de 75% desses pólipos, e os restantes, pela colonoscopia. O
número e tamanho dos pólipos. Recentemente, foi demonstra método endoscópico permite não somente o diagnóstico deles,
do que a ação do Sulindac estimularia a apoptose no epitélio co- mas também sua remoção, através do seu enlaçamento com
lônico de pacientes com PFA, indicando o potencial mecanismo alças ligadas a eletrocautério.
de regressão dos pólipos na vigência de sua administração. Foi O enema opaco poderá ser avaliado para o diagnóstico dos
também demonstrada a redução dos pólipos retais em pacien pólipos, porém, com a disseminação do uso da colonoscopia,
tes com PAF submetidos a colectomia total, com anastomose com sua vantagem terapêutica de excisão dos pólipos, este re
ileorretal, que passaram a utilizar essa droga. curso praticamente deixou de ser utilizado.
486 Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais
A polipose juvenil, que é a presença difusa de hamartomas, específica, uma vez que estão relacionados diretamente com o
poderá apresentar-se sob a forma de três síndromes: poliposeju processo inflamatório de base.
venil colônica, polipose juvenil gastrintestinal difusa e síndrome
de Cronkhite-Canada (polipose juvenil com lesões ectodérmi-
cas). As duas primeiras são de caráter hereditário autossômico
■ Pólipos metaplásicos
recessivo, e os pólipos hamartomatosos apresentam baixíssimo Os pólipos metaplásicos, ou hiperplásicos, são bastante fre
potencial de malignização. Porém, existe um risco maior do quentes no reto e achado comum em exames retossigmoidos-
câncer colorretal nos portadores da forma familiar juvenil e em cópicos. Apresentam-se como pequenas lesões com poucos
seus familiares. Poderemos encontrar a presença simultânea de milímetros de diâmetro, recobertas por mucosa normal, sés-
adenomas junto com hamartomas, e somente através de estudos seis, com aspecto nodular ou mamelonado. Esses pólipos são
histopatológicos é possível a sua diferenciação. formados a partir de alterações na divisão celular no interior
A remoção dos pólipos através da endoscopia é o procedi da cripta de Lieberkühn, com expansão da zona de replicação
mento eletivo inicial. Em algumas situações, o volume dos pó celular em sua base, resultando na elevação polipoide, e sem
lipos poderá levar à invaginação intestinal e, nessas condições, qualquer evidência de atipia.
ou na impossibilidade da remoção de todos os pólipos por via Em algumas situações, esses nódulos, na realidade, já seriam
endoscópica, é indicada a colectomia total. Atualmente, tem adenomas, coexistindo com uma estrutura de pólipo hiperplá-
sido demonstrado que a cirurgia intestinal, feita através da vi- sico. É necessário exame microscópico para a devida remoção
deolaparoscopia, tem apresentado resultados melhores do que dessas lesões, no sentido da prevenção do câncer local. Os ver
a cirurgia convencional aberta, com menos ileoparalítico no dadeiros pólipos metaplásicos, simples ou múltiplos, são assin
pós-operatório, redução do tempo de internação hospitalar, tomáticos e não requerem qualquer terapêutica específica.
melhores resultados estéticos e o mais breve retorno do pa
ciente às suas atividades.
O pólipo de Peutz-Jeghers manifesta-se de forma solitária,
mais comumente no intestino delgado, podendo também ser
■ OUTROS TUMORES COLORRETAIS
encontrado no reto e no cólon, e, do ponto de vista histológi- Os tumores não epiteliais colorretais são de ocorrência mais
co, apresenta malformação da muscularis mucosae, recoberta rara, sendo a maioria constituída por pequenas lesões sésseis,
por mucosa normal, sem qualquer atividade de proliferação subserosas ou submucosas, projetando-se no lúmen intestinal.
celular anormal. A síndrome de Peutz-Jeghers é forma pou Os tumores a serem considerados são os seguintes: lipomas,
co comum de uma entidade autossômica dominante, em que leiomiomas, carcinoides, linfomas, endometriomas e neurofi-
múltiplos pólipos hamartomatosos são encontrados no estôma
bromas.
go, intestino delgado e cólon. Há concomitante aparecimento
de pigmentação mucocutânea junto aos lábios, mucosa bucal,
língua, genitais e períneo. O potencial de malignização desses ■ Lipomas
pólipos é extremamente baixo, e eles poderão ser removidos
Representam, após os adenomas, a neoplasia benigna mais
por via endoscópica. Nesses pacientes, o carcinoma incide de
comumente encontrada no intestino grosso, sendo de incidên
forma elevada em outros órgãos, como estômago, duodeno,
cia maior no sexo feminino, com localização mais frequente
pâncreas, intestino delgado e pulmões.
no ceco e, mais raramente, na parte digestiva alta, podendo se
apresentar sob a forma de lesões solitárias múltiplas.
■ Pólipos inflamatórios Habitualmente, originam-se na submucosa, mostrando for
mas arredondadas ou ovaladas, consistência amolecida pelo
O pólipo linfoide benigno é mais frequentemente encontrado
no terço distai do reto e no íleo terminal. É formado por tecido seu conteúdo de tecido gorduroso, fazendo protrusão no lú
linfoide, constituindo estrutura de linfonodo, porém sem sinuo- men intestinal.
sidades, localizando-se na submucosa e recoberto de mucosa A manifestação clínica estará na dependência do seu tama
normal. Representa uma lesão inflamatória em fase de regenera nho, com os grandes volumes podendo levar à situação de su-
ção, que deve ser diferenciada do linfoma maligno solitário. boclusão ou, então, à intussuscepção intestinal, desencadeando,
Habitualmente, esses pólipos são assintomáticos, sendo en assim, sintomas específicos dessas complicações.
contrados devido à patologia inflamatória associada; a sua ex- O diagnóstico poderá ser feito através do exame radiológico
cisão representa o tratamento correto. (enema opaco), que, em algumas situações, não permite a dife
A polipose inflamatória, também erroneamente chamada de renciação com as neoplasias. Nessas condições, a colonoscopia
pseudopolipose, uma vez que os pólipos são verdadeiros, ocorre poderá confirmar o diagnóstico, inclusive com a obtenção de
como resultado de ulceração que compromete toda a espessura material para estudo histopatológico.
do epitélio intestinal, principalmente em processos disentéricos Outros métodos de imagem, como a ultrassonografia e a to-
crônicos do cólon, como os encontrados na doença de Crohn e, mografia computadorizada, permitem, também, a identificação
particularmente, na retocolite ulcerativa. Esses pólipos se apre da massa representada pelo lipoma.
sentam, em grande número, sob a forma de apêndices mucosos, O tratamento estará na dependência do volume do tum or e
contendo alterações de caráter inflamatório. suas consequências sobre o trânsito intestinal. Assim, na vigên
Não há evidências de que a polipose inflamatória estaria di cia de complicações (suboclusão, invaginação intestinal), essas
retamente relacionada com o aparecimento do câncer colorretal lesões deverão ser removidas por via endoscópica e, na sua im
nos processos inflamatórios crônicos do cólon. possibilidade, através de procedimentos cirúrgicos. A cirurgia
Do ponto de vista radiológico e endoscópico, a diferencia consiste na remoção da lesão por laparotomia e colotomia, ou,
ção entre a polipose inflamatória e a adenomatosa poderá ser então, na ressecção segmentar do cólon.
difícil, sendo necessário o exame histopatológico de biopsias As lesões subserosas podem ser removidas sem a abertura do
para o correto diagnóstico. Esses pólipos não requerem terapia lúmen intestinal e, eventualmente, pela via laparoscópica.
Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais 487
■ Linfomas
Representam os mais frequentes tumores malignos não car-
cinomatosos do cólon, sendo raro o aparecimento de uma po-
lipose linfomatosa difusa.
Os linfomas não Hodgkin e o sarcoma de Kaposi são duas
condições ligadas à AIDS que podem afetar o cólon e o reto.
■ Endometriomas
Figura 46.1 Colonoscopia. Pólipo adenomatoso solitário em cólon
Os endometriomas são representados por massas ectópi-
sigmoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
cas de tecido endometrial, implantadas na superfície serosa
do reto, sigmoide, apêndice cecal, ceco ou delgado distai, po
dendo invadir localmente até a camada muscular ou submu-
cosa. Essas massas são hormônio-dependentes e, na vigência
do ciclo menstruai, apresentam sangramento, que poderá ser
escoado através do lúmen intestinal, ou, então, na falta de dre
nagem, esse sangue menstruai poderá ficar retido em forma
ções císticas.
O diagnóstico é firmado pelas manifestações clínicas (dor
pélvica, alteração no hábito intestinal), que se acentuam no H
rL
ciclo menstruai, além da eventual perda de sangue intestinal
nesse período.
Essas massas poderão ser identificadas no lúmen intestinal
através de métodos endoscópicos, ou pelo exame radiológi- 1
co (enema opaco), ou, então, quando extraluminares, pela ul-
trassonografia pélvica. A videolaparoscopia também poderá 1
ser extremamente importante na identificação de localização
extraintestinal das lesões endometriais em pacientes do sexo
feminino, com dor pélvica crônica.
O tratamento básico consiste no controle das massas atra
vés da hormonioterapia. Massas volumosas que promovem Figura 46.2 Raios X de cólon (enema opaco). Pólipos adenomatosos
quadros de suboclusão, ou na ocorrência de áreas extensas de (ia s s in a la d o s ) em cólon sigmoide.
488 Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais
Figura 46.4 Peça cirúrgica de cólon. Adenocarcinoma infíltrativo e Figura 46.7 Peça cirúrgica. Inúmeros tumores carcinoides em mucosa
estenosante em sigmoide, com pólipo adenomatoso satélite. (Esta intestinal. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ LEITURA RECOMENDADA
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Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais 489
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Tumores Malignos Colorretais
Mounib Tada e Arnaldo José Pontello Neves*
Tra n s v e rs o 10%
C e c o a s c e n d e n te 25%
*0 Dr. Neves escreveu a parte sobre rastreamento do câncer colorretal.
490
Capítulo 47 / Tumores Malignos Colorretais 491
a complementação com remoção dos gânglios comprometidos, a procedimentos de rotina, sempre na expectativa de detecção
o que é encontrado em cerca de 50% dos casos. precoce de um TMCR.
Em algumas situações, células neoplásicas extravasam do lú- O diagnóstico dos TMCR é estabelecido basicamente
men intestinal para a cavidade peritoneal, produzindo implan através de história clínica, exame físico e procedim entos
tes locais ou, então, carcinomatose abdominal generalizada. subsidiários.
Células tumorais poderão ser liberadas e levadas pela cor
rente fecal para serem implantadas, a distância, em mucosa
normal. Esse tipo de situação é de ocorrência rara, e grande
■ História clínica
parte das recidivas junto às anastomoses é devida a células pro É importante a tomada da história clínica, com judiciosa
venientes de fora da parede intestinal, principalmente de lin- avaliação de todos os sintomas, tais como alteração do hábi
fáticos do mesocólon. to intestinal com mudança das características do bolo fecal,
Com base na patologia do processo tumoral, procurou-se presença de sangue e/ou muco nas fezes, dor abdominal pre
estabelecer o estadiamento da doença para que fosse possível cedendo evacuação e sintomas gerais, como astenia, anemia e
não só avaliar a perspectiva de sobrevida do paciente, mas tam emagrecimento.
bém a necessidade de uma terapia adjuvante. Os sintomas dos TMCR estão na dependência da localização
A classificação de Dukes, proposta em 1932 e posteriormente anatômica da lesão, seu tipo e extensão, bem como da even
modificada por Astler-Coller com a inclusão de subgrupos, é tual presença de complicações, como perfuração, obstrução e
utilizada de forma universal. Porém, atualmente, a classificação hemorragias.
TNM passou a ser preferida, pois permite um melhor estadia O tempo médio para a feitura do diagnóstico dos TMCR, a
mento do processo. partir dos sintomas relatados, é de 7 a 9 meses. A responsabili
O Quadro 47.3 apresenta o estadiamento dos TMCR con dade desse tempo prolongado é dos pacientes, que minimizam
forme a classificação TNM e a de Dukes modificada (Astler- os sintomas e protelam a procura do profissional, ou, então, do
Coller). próprio médico que não valoriza as queixas relatadas.
No cólon direito, que apresenta maior calibre, paredes fi
nas e distensíveis, com conteúdo fecal líquido, a presença de
■ DIAGNÓSTICO neoplasia manifesta-se mais tardiamente, atingindo as lesões
grandes volumes antes de serem diagnosticadas. Os pacientes
O desenvolvimento de uma neoplasia colorretal até alcan apresentam queixas vagas de astenia, debilidade física e anemia,
çar o volume suficiente para desencadear sintomas é de, pelo com sensação de desconforto no abdome direito. A presença
menos, 5 anos. Assim, nessa fase assintomática, o diagnósti de anemia hipocrômica microcítica é sinal importante na pes
co ficaria na dependência de um achado casual em exame de quisa da neoplasia de cólon direito. Geralmente, não ocorre
rotina, e o seu encontro precoce traria grandes benefícios em alteração do hábito intestinal, e, em cerca de 10% dos casos, a
termos de sobrevida para o paciente. Os indivíduos incluídos primeira evidência é de massa palpável na região onde está o
nos grupos de risco teriam que ser submetidos periodicamente tumor, observada pelo paciente ou pelo médico.
---------------------------------------------▼---------------------------------------------
Quadro 47.3 Estadiamento do câncer colorretal pela classificação TNM e de Dukes modificada (Astler-Coller)
TNM DUKES
Estágio 0
— C a r c in o m a / n s / r u T is NO M0
Estágio 1
— T u m o r i n v a d in d o s u b m u c o s a T1 NO M0 Dukes A
— T u m o r i n v a d in d o m u s c u la r p ró p r ia T2 NO M0 Dukes BI
Estágio II
— T u m o r in v a d e a s u b s e ro s a o u t e c id o p e r ic o lô n ic o o u T3 NO M0 D u k e s B1 o u D u k e s B2
p e rirre ta l n ã o p e r it o n iz a d o s
— T u m o r u ltra p a s s a o p e r it ó n io v is ce ra l, o u in v a d e o u t r o s T4 NO M0 D u k e s B2
ó rg ã o s o u e s tru tu ra s
Estágio III
C o m p r o m e t i m e n t o d e lin fo n o d o s e d e t o d a a p a r e d e
in te s tin a l
— 1 a 3 lin fo n o d o s e n v o lv id o s (1 ,2 ,3 ) T NI M0 D u k e s C1
— M e tá s ta s e s p a ra lin fo n o d o s e m t r o n c o s v a s c u la re s (n.°) T N3 M0
Estágio IV
P re se n ça d e m e tá s ta s e s a d is tâ n c ia (n.°) T N4 M1 Dukes D
No cólon esquerdo, o calibre do lúmen intestinal é menor e tecção precoce de metástases após procedimentos cirúrgicos. O
o conteúdo fecal é formado por material semissólido. Assim, o CEA encontra-se alterado em cerca de 70% dos pacientes com
crescimento das neoplasias nessa região, com oclusão progres TMCR, porém eleva-se em menos da metade dos portadores
siva do lúmen, leva a alterações mais precoces da evacuação. da forma localizada do processo tumoral.
Essa situação poderá evoluir para uma obstrução parcial ou A persistência do CEA elevado, mesmo após a ressecçâo
completa do local. A presença de sangue nas fezes é frequente, cirúrgica de um TMCR, é indicativa de péssimo prognóstico.
porém não sob a forma de perdas maiores, geralmente de co Se ocorrer normalização dos níveis de CEA após a cirurgia e,
loração escurecida e associada a muco. no período de seguimento, eles voltarem a apresentar elevação
No câncer retal, o sintoma mais frequente é a perda de san progressiva, isso é sinal indicativo de recorrência da doença.
gue claro, juntamente com as fezes, associada ou não à pre A avaliação do antígeno CA 19 a 9 em conjunto com o CEA
sença de muco. Outra manifestação relatada com frequência é poderá melhorar a acurácia para a detecção de neoplasia, reci-
a sensação de evacuação incompleta e “puxos” no canal retal, divas e/ou metástases.
independentemente da movimentação intestinal.
■ Exames radiológicos
A radiografia de tórax deve ser considerada como procedi
■ Exame físico mento de rotina, em pacientes com TMCR, para avaliação de
O exame físico é importante para avaliar o local e extensão metástases pulmonares.
da doença, ou então detectar metástases a distância e/ou com O estudo contrastado do cólon (enema opaco) representa
prometimento de outros órgãos ou sistemas que, inclusive, po importante método diagnóstico para revelar TMCR. O carci-
derão influenciar no tratamento. noma do cólon esquerdo aparece como imagem de “defeito de
A palpação da região inguinal e supraclavicular é importante enchimento”, com extensão de 2 a 6 cm e aspecto de “anel de
para a verificação de nódulos metastáticos. O exame do abdome guardanapo”, conforme demonstrado nas Figuras 47.1 e 47.2.
poderá revelar presença de massa, hepatomegalia ou circulação No cólon direito, a lesão apresenta-se sob forma de constri-
colateral em parede, indicando obstrução portal. ção ou, então, de massa intraluminar (Figura 47.3). Nos locais
O câncer retal poderá ser identificado através do toque digi comprometidos, a parede intestinal torna-se rígida, com des
tal, não somente pela percepção da massa tumoral, mas também truição do relevo mucoso. Atualmente, com a disseminação
pela presença de sangue na luva do exame. A avaliação gineco- do uso de colonoscopia, o exame de enema opaco passou a ser
lógica poderá detectar comprometimento regional e, também, pouco utilizado.
permitir palpar gânglios retrorretais. Em situações de quadros obstrutivos, a radiografia simples
do abdome poderá mostrar a distensão das alças, além de per
mitir a localização do local obstruído, facilitando a abordagem
■ Procedimentos subsidiários cirúrgica. Atualmente, com a facilidade do acesso ao exame
■ Exames de laboratório colonoscópico e pelas dificuldades técnicas na realização do
Não existe especificidade de exames laboratoriais para o estudo radiológico, este procedimento deixou de ser a primeira
diagnóstico dos TMCR. Porém, através do hemograma, pode opção na avaliação do cólon.
remos detectar a anemia, e uma fosfatase alcalina alterada pode
rá significar a presença de metástases hepáticas. A avaliação das
proteínas séricas indicará a situação nutricional do paciente.
A pesquisa de sangue oculto nas fezes poderá ser im por
tante na detecção precoce de pólipos e/ou neoplasias em fase
assintomática, principalmente quando utilizada em pacientes
pertencentes a grupos de risco ou, então, na presença de ane
mia. Esses testes (Hemocult, Hemocult II) estão disponíveis
com facilidade, são baratos e fáceis de realizar. Entretanto, a
eficiência dependerá do grau de hidratação fecal, que aumen
ta a sensibilidade, do volume da degradação de hemoglobina,
que diminui a sensibilidade, e da ausência de substâncias que
interferem com a oxidação do corante indicador, tais como o
ácido ascórbico. Lembrar que alimentos que contêm atividade
de peroxidase, ou pseudoperoxidase, podem provocar reações
positivas (brócolis, couve-flor, melão, entre outros).
O antígeno carcinoembriogênico (CEA) é uma glicoproteína
encontrada na membrana celular de muitos tecidos, inclusive
nos cânceres do cólon e reto, e os antígenos são detectados no
sangue através de técnicas de radioimunoensaio, sendo encon
trados, também, em outros fluidos, como urina e fezes.
A elevação do nível sérico do CEA não é específica para
os TMCR, podendo acontecer também em outras neoplasias,
gastrintestinais ou não, além de esse nível se apresentar também
alterado nas doenças inflamatórias e nos indivíduos tabagistas.
Assim, o CEA não é um método acurado para o diagnóstico
dos TMCR, porém tem valor como teste preditivo, para ava Figura 47.1 Radiografia de cólon (enema opaco). Lesáo subesteno-
liação de resultados terapêuticos e, principalmente, para a de santeem sigmoide distai.
C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is 495
■ Ultrassonografia endorretal
Esse procedimento, cuja utilização tem sido mais divulga
da com o aparecimento de novos equipamentos, permite uma
acurada avaliação do grau de comprometimento da parede in
testinal no câncer retal, além da demonstração da presença de
linfonodos aumentados. Porém, não é capaz de distinguir se o
aumento do linfonodo é decorrente de processo reativo ou por
infiltração neoplásica.
■ Retossigmoidoscopia
A retossigmoidoscopia com tubo rígido permite o diagnós
tico de cerca de 20% dos TMCR. Porém, a utilização do retos-
sigmoidoscópio flexível com extensão de 30 cm permite diag
nosticar 30 a 40% desses tumores, e, com os de 60 cm, chega-se
Figura 47.2 Radiografia de cólon (enema opaco). Lesão subesteno- a identificar 50 a 60% de todos os TMCR.
sante em cólon descendente.
■ Colonoscopia
A colonoscopia permite o exame de toda a extensão do có
lon, obtendo-se não somente a detecção precoce de pólipos
(Figura 47.4) e sua remoção através de alças diatérmicas, mas
também o diagnóstico dos TMCR (Figuras 47.5 e 47.6). Mes
mo nas situações em que o exame radiológico (enema opaco)
já tenha fornecido o diagnóstico de um TMCR, a colonosco
pia deverá ser realizada no sentido de confirmar a natureza
da lesão, além de detectar a presença de pólipos e/ou tumores
sincrônicos. O enema opaco poderá não identificar lesões de
até 5 mm em cerca de 20% dos casos, mas também a colonos
copia poderá deixar passar pequenas lesões junto às flexuras
e/ou dobras do cólon, e o ceco nem sempre é alcançado em to
dos os pacientes. Dessa forma, uma colonoscopia incompleta
ou inconclusiva deverá ser completada pelo enema opaco com
duplo contraste.
■ Tomografia computadorizadaeressonânciamagnética
Esses dois procedimentos não são importantes para o diag
nóstico dos TMCR, porém servem para avaliar o comprome
timento extramural no câncer do reto e para a detecção de
metástases. A tomografia poderá ser realizada também com
a administração do contraste VR, permitindo, desta forma, Figura 47.4 Colonoscopia. Pólipo adenomatoso em cólon ascendente.
também o estudo do lúmen intestinal. O advento de moder (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
496 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is
■ TRATAMENTO
t ■ Ressecção cirúrgica
A remoção cirúrgica do segmento comprometido representa
o tratamento básico para todos os pacientes com TMCR. Mes
.\ mo na presença de metástases, a ressecção é indicada, evitan
do a possibilidade de obstrução ou sangramentos. No câncer
colônico, as ressecções são seguidas de anastomoses primárias
para reconstituição do trânsito intestinal.
Nas situações de emergência, com perfuração ou obstrução,
e na impossibilidade do preparo intestinal adequado, a cirurgia
poderá ser feita em dois tempos: ressecção com colostomia e
posterior reconstituição do trânsito.
A abordagem laparoscópica para o câncer do cólon tem sido
amplamente discutida. Estudos têm demonstrado a ocorrên
cia de metástases no local de introdução dos trocartes, além da
* impossibilidade da feitura do procedimento dentro de rígidas
normas oncológicas, bem como a dificuldade da ligadura de
vasos junto à sua emergência. Assim, esse tipo de cirurgia esta
Figura 47.6 Colonoscopia. Lesáo tumoral subestenosante em cólon ria indicado apenas nas formas em que já ocorreu a metástase,
sigmoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) permitindo uma menor manipulação do paciente, com recu
peração pós-operatória mais rápida e menor tempo de hospi
talização. No entanto, com a passagem do tempo, houve um
aprimoramento da técnica laparoscópica que passou a ser uti
■ Colonoscopia virtual lizada de rotina em inúmeros Centros, obtendo-se resultados
Trata-se de um procedimento já disponível, em que o colo- semelhantes aos da cirurgia aberta, com melhor recuperação
noscópio é substituído por um programa de software acoplado pós-operatória e resultados estéticos e menor morbidade.
a tomógrafo de alta resolução. O programa de computador con Trabalhos recentes acrescentam a técnica robótica para a
segue produzir, através do tomógrafo, imagens tridimensionais realização das cirurgias videoassistidas, porém o elevado cus
em tempo real de todo o trajeto colônico, com detecção de le to dos equipamentos seguramente limitará a sua ampla utili
sões com menos de 0,5 cm. Estudos comparativos têm demons zação.
trado resultados semelhantes aos da colonoscopia tradicional, No câncer retal, o procedimento cirúrgico estará na depen
porém com a vantagem de não introduzir qualquer instrumento dência da extensão da lesão e, principalmente, do nível acima
no paciente, além de não ser necessária a utilização de sedação. da margem anal. As lesões pequenas e sem qualquer invasão
A necessidade de tomógrafos de alta resolução com o sistema detectada pela ultrassonografia endoanal e por tomografia po
multi-sliceyainda não disponibilizado de forma mais generali derão ser removidas por ressecção transanal. Na maioria das
zada, tem limitado também a indicação deste método. situações, é desejável a remoção do segmento retal comprome
tido, com anastomose colorretal ou coloanal. Em comprometi
■ PET-SCAN mentos mais extensos e lesões baixas, é preferível uma conduta
A tomografia por emissão de pósitrons (PET-SCAN), mais mais radical, com a amputação abdominoperineal do reto e
recentemente introduzida no arsenal diagnóstico, obtém ima colostomia terminal em sigmoide. Nos tumores infiltrativos e
gens do metabolismo celular com a utilização de um radio- irressecáveis do reto, a conduta é a feitura de colostomia des-
marcador, sendo mais utilizado o 2-fluoro-2-deoxi-D-glicose compressiva, e, nos pacientes em situação clínica delicada, po
C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is 497
■ Quimioterapia
Em pacientes selecionados, a quimioterapia tem demonstra
do melhorar a sobrevida, e a sua utilização deverá ser procedida
conforme a classificação TNM:
Estágio I: Devido à excelente expectativa de sobrevida de
5 anos (80 a 100%), não é indicada terapia adjuvante nesses
pacientes.
Estágio II: A expectativa de sobrevida de 5 anos é de 50 a
75%. A utilização da quimioterapia, com ausência de compro
Figura 47.7 Peça cirúrgica. Lesão neoplásica em reto. (Esta figura en metimento ganglionar, é discutível e, por ora, a quimioterapia
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) não deve ser utilizada.
Estágio III: A sobrevida de 5 anos é de cerca de 30 a 50%.
O tratamento adjuvante com fluoruracila e levamisol tem de
monstrado redução em 33% de mortalidade, além de aumentar o
período de ausência de doença, em 42 meses, de 47 para 63%.
Para o câncer retal, a combinação de rádio e quimioterapia
é recomendada nos estágios II e III, melhorando a sobrevida e
reduzindo a incidência de infiltração pélvica.
Trabalhos recentes demonstram, em estudos randomizados,
a importância da radioterapia pré- e pós-operatória no câncer
do reto em reduzir de forma significativa a recorrência local e
o número de óbitos relacionados diretamente com a doença.
A combinação rádio-quimioterapia apresenta resultados supe
riores aos da radioterapia aplicada de forma isolada.
Preconiza-se, atualmente, a utilização da radioterapia no
pré-operatório do câncer retal, uma vez que o seu emprego
no pós-operatório poderá ser retardado em muitas situações,
em decorrência de complicações cirúrgicas. Em nosso meio,
conforme relatado por Habr-Gama et al (1998), 118 pacientes
com adenocarcinoma de reto distai, e sem metástases a distân
cia, foram submetidos, no pré-operatório, a radioterapia com
Figura 47.8 Peça cirúrgica. Lesão neoplásica subestenosante em cólon dose de 5.040 Gy por 6 semanas, e quimioterapia com leuco-
sigmoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) vorin e 5-fluoruracila nos três primeiros e três últimos dias da
498 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is
radioterapia. Em seguimento médio de 36 meses, observou-se vem mais que 30% em 1 ano e 2% em 3 anos. Esses números
incidência de recorrência local de 4,3%, e local, associada a me- mudam para 40% em 3 anos e 25% em 5 anos, se as metástases
tástases distantes, em 6,7% dos doentes. Esses resultados foram são ressecadas, o que tem sido possível, cada vez mais frequen
considerados animadores. temente, em virtude da melhora das técnicas cirúrgicas e dos
Cerca de 20% dos pacientes com TMCR apresentam metás- procedimentos auxiliares. Entretanto, na prática, essa ressecção
tases por ocasião do diagnóstico, e outros 30% vão desenvolver só tem sido realizada em 5 a 15% dos doentes. Até pouco tempo,
metástases a distância, com sobrevida média aos 5 anos de 5%. os critérios de inclusão limitavam os candidatos àqueles com
A ressecção de metástases isoladas do fígado aumenta a sobre menos de 4 metástases, inferiores a 5 cm de diâmetro, sem dis
vida aos 5 anos para 30%. seminação extra-hepática, e com antígeno carcinoembrionário
Recentemente, nova droga quimioterápica foi apresentada: inferior a 5 ng/m l. Estudos mais recentes, todavia, ampliaram
o irinotecan (CPT 11), desenvolvido na França, com resultados as indicações; para alguns, os critérios decisivos seriam apenas
favoráveis em 24% dos casos em que não houve resposta ao fluo- a possibilidade de realizar a ressecção total das lesões tumorais
ruracila, e de 32% quando foi utilizado como droga primária. visíveis (em toda a cavidade abdominal) e de avaliar bem os ris
Esquemas terapêuticos utilizam o irinotecan em doses sema cos da operação, de maneira a alcançar mortalidade operatória
nais em pacientes previamente submetidos a tratamento com muito baixa ou nula. Do ponto de vista prático, essas decisões
fluoruracila e que não obtiveram resultados e que apresentam devem ser tomadas sempre por uma equipe multiprofissional
a doença em forma avançada, conseguindo, desta forma uma (clínico, cirurgião, oncologista). O doente deve ser amplamente
resposta objetiva em até 20% dos casos. A dose utilizada é de informado dos riscos e vantagens, cabendo a ele escolher, em
100 mg/m2, em infusão venosa com duração de 60 min, por última análise, operar ou não.
4 semanas consecutivas, com posterior descanso de 2 semanas Em alguns casos de metástases hepáticas, quando pequenas
para avaliação de resultados e de efeitos colaterais. ou em situações de elevado risco para indicação de ressecção
Outra droga utilizada, inibidor específico da sintetase do local, poderá ser utilizado o procedimento de ablação por ra
timidilato, denominada Tomudex, mostrou resultados seme diofrequência, por laparotomia ou via laparoscópica, obtendo-
lhantes aos da associação do fluoruracila com leucovorin, po se também excelentes resultados.
rém com menos toxicidade.
Mais recentemente, novo produto foi lançado, com grande
esperança nos casos avançados de câncer colorretal com m e ■ PREVENÇÃO D0 CÂNCER COLORRETAL
tástases. É o bevacizumabe (Avastin:<-Roche), um anticorpo
monoclonal humanizado recombinante, produzido por tecno A hipótese de que numerosos fármacos poderíam atuar de
logia de DNA recombinante, que tem apresentado resultados forma preventiva nos TMCR abriu perspectivas bastante atra
altamente satisfatórios quando utilizado como tratamento de entes. Inúmeras drogas foram avaliadas, e, até o momento, ape
primeira linha em combinação com quimioterapia à base de nas algumas do grupo dos anti-inflamatórios não hormonais
fluoropirimidina. e o ácido acetilsalicílico mostraram-se eficientes. A primeira
Mesmo com a introdução de novas drogas e variados esque evidência de sua ação foi relatada por Waddel e Loughry, em
mas, a combinação mais utilizada para o tratamento quimiote- 1983, que observaram o desaparecimento de pólipos retais em
rápico dos TMCR continua sendo o fluoruracila, potencializado pacientes com polipose familiar adenomatosa em uso de Sulin-
com o leucovorin e imunoestimulado com o levamisol. dac. A partir dessa evidência, longos estudos epidemiológicos
passaram a ser realizados, utilizando-se os anti-inflamatórios
e o ácido acetilsalicílico (AAS), e demonstrando firmemente a
■ SEGUIMENTO PÓSCIRURGIA redução do risco dos TMCR.
A ação dessas substâncias seria resultante da inibição de
Pacientes operados em decorrência dos TMCR deverão ter ciclo-oxigenase, a enzima-chave na síntese das prostaglandi-
acompanhamento programado, no sentido de detectar preco nas. Foi descoberta também uma forma de ciclo-oxigenase
cemente qualquer recorrência e/ou metástase. (COX-2), cujos níveis elevados foram observados em tumores
A colonoscopia poderá ser realizada após 6 meses a 1 ano da experimentais e humanos. Dessa forma, esses fármacos atua
cirurgia, para verificar recorrência local. Na ausência de tumor riam não somente inibindo a COX-2 na mucosa colônica, mas
ou de pólipos, deverá ser realizada a cada 2 anos, no sentido de também induzindo a apoptose e aumentando o gene APC (ver
procurar pólipos ou tumores metacrônicos. Capítulo 100). Estudos com a utilização de anti-inflamatórios
Na presença de um nível elevado do CEA por ocasião da ci que atuam inibindo a ação da COX-2 demonstraram uma efe
rurgia, esse exame deverá ser repetido a cada 3 meses no primeiro tiva redução no aparecimento de novos pólipos colônicos. No
ano e, depois, a cada 6 meses por mais 4 anos. A elevação do CEA entanto, o reconhecimento de efeitos colaterais destas subs
é sugestiva de recorrência do tumor, requerendo a realização de tâncias, aumentando o risco de eventos cardíacos, sem dúvida
colonoscopia e tomografia do abdome e tórax, por vezes laparos- não permitirá estudos a longo prazo para uma melhor e efetiva
copia, no sentido de localizar metástases. De fato, a determinação avaliação do seu valor.
seriada do CEA é recomendada como rotina de vigilância. Mais
recentemente, a introdução de nova tecnologia (PET-SCAN),
em que há uma combinação de tomografia computadorizada ■ RASTREAMENT0 D0 CÂNCER D0 CÓLON
de alta resolução com mapeamento corporal por radiofármacos
captados por tumores, permite a detecção precoce de metástases Os TMCR constituem uma doença comum, letal quando não
e poderá ser utilizada no acompanhamento dos pacientes opera diagnosticada a tempo, porém prevenível. A sobrevida de 5 anos
dos, quando ocorre elevação do marcador tumoral. estimada nos portadores de TMCR é de, aproximadamente,
O fígado é a sede mais frequente de metástases do câncer co 90% nos pacientes com doença localizada, de 60% naqueles com
lorretal em mais de 50% dos casos. Na falta de uma terapêutica doença regional e de cerca de 5% naqueles com metástases a dis
agressiva, os pacientes com metástases hepáticas não sobrevi tância. Há evidências indicando que a detecção dos TMCR em
C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is 499
estágio assintomático precoce, através do rastreamento, pode adesão atribuída à recusa do paciente, às dificuldades técnicas e
melhorar o índice de sobrevida (prevenção secundária). Além à ausência de sintomas. Dois por cento dos pacientes com teste
da detecção precoce, o rastreamento é efetivo na prevenção pri positivo são portadores de câncer.
mária do câncer, através da remoção de pólipos adenomatosos
benignos, precursores do câncer do cólon. ■ Sigmoidoscopia flexível
Pessoas que apresentam sintomas sugestivos de TMCR, ou O aparelho de 60 cm alcança a flexura esplênica, identifican
de pólipos, devem ser submetidas a uma completa e apropriada do, portanto, cerca de metade das lesões colônicas. Os exames
avaliação diagnóstica, e não apenas às técnicas de rastreamento. anormais, principalmente se detectarem tumores, deverão ser
A recomendação de rastreamento deve levar em consideração complementados com colonoscopia ou enema opaco. O exa
vários fatores, incluindo a patogênese da doença, fatores de ris me realizado por profissional bem treinado apresenta taxa de
co e as características dos vários testes disponíveis. Além disso, perfuração intestinal de 1 a 2/100.000 e mortalidade rara. Há
deve-se estimular a participação do paciente, oferecendo-lhe evidência de que esse exame reduz a mortalidade por TMCR
informações adequadas sobre a doença e os riscos e benefícios em 66%, considerando o trajeto colônico examinado. Custo,
dos procedimentos. Naturalmente, o médico deve ficar atento desconforto e medo são as principais causas da baixa adesão
à relação custo/benefício. O propósito do rastreamento é iden muitas vezes observada, situações estas que deverão estar logo
tificar indivíduos que apresentam maior probabilidade de ter superadas, uma vez que este exame passou a ser colocado em
a doença não reconhecida, especialmente dentre aqueles sem check-ups empresariais.
sinais ou sintomas, para selecionar os que serão submetidos à
avaliação diagnóstica completa do cólon. ■ PSOF e sigmoidoscopia flexível
A patogênese dos TMCR permite duas oportunidades para A PSOF é pouco sensível na detecção de lesões distais, en
prevenir o seu aparecimento: descobrir e remover pólipos para quanto a sigmoidoscopia pode examinar cuidadosamente a
prevenir o início do câncer, e descobrir e remover o câncer pre mucosa da metade distai do intestino grosso. Os dados sobre
coce para melhorar o prognóstico. A intervenção preventiva o uso combinado desses exames são limitados, mas a principal
transcorre em três fases: evidência valorizando essa prática é um estudo não randomiza-
do, que demonstrou redução de 43% na mortalidade por TMCR
• Rastreamento de pessoas sem sintomas, para identificar quando comparado com a sigmoidoscopia isolada.
aquelas com maior probabilidade de doença.
• Testes diagnósticos para determinar se pacientes apre ■ Estudo contrastado do cólon (enem a opaco)
sentam, ou não, pólipos ou câncer. O exame com duplo contraste é mais sensível do que o
• Vigilância das pessoas de alto risco, incluindo as síndro- enema com coluna única de bário. Identifica lesões no con
mes familiais e hereditárias, e pacientes com pólipos ade torno da alça e diagnostica boa parte dos pólipos e cânceres
nomatosos grandes, nestes procurando novas lesões após
grandes, mas é pouco sensível para pólipos menores que 1 cm.
remoção das anteriores. Exames falso-positivos podem ser induzidos por irregularida
des da mucosa ou retenção de fezes. Apesar de ser usado há
■ Testes de rastreamento m uito tempo, não há estudos comprovando sua eficácia na
redução da mortalidade por TMCR. Do mesmo modo, não se
■ Toque retal comprovou ganho importante na sensibilidade ao se adicio
O seu valor como teste de rastreamento para TMCR é limi nar sigmoidoscopia ao enema opaco. Com a disseminação do
tado pela extensão do dedo do examinador. O tamanho médio uso da colonoscopia, atualmente o exame de enema opaco é
do dedo varia de 6 a 8 cm e não alcança toda a profundidade pouco indicado.
retal, que varia de 11 a 12 cm. Além disso, somente 10% dos
TMCR têm origem no reto, e menos de 10% deles são diagnos ■ Colonoscopia
ticados pelo toque retal, quando usado isoladamente. Entretan Há forte evidência de que a colonoscopia pode reduzir a
to, o exame deve ser rotineiramente feito, não só como técnica mortalidade por TMCR. Entretanto, não há evidência dessa
de rastreamento, mas também pela sua facilidade de detectar redução em pacientes assintomáticos ou sem pólipos. O pro
anormalidades retais e prostáticas. cedimento acrescenta um benefício adicional por permitir a
remoção, ou biopsia, de lesões porventura existentes. Apresenta
■ Pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) como desvantagem, além do seu custo, o fato de ser um exame
Sua sensibilidade tem melhorado com as novas gerações de complicado, com taxas de perfuração, sangramento e mortali
testes baseados na pesquisa de hemoglobina humana (Heme- dade, respectivamente, de: 1/1.000, 3/1.000 e 1-3/10.000. Em
Select'?;)> reduzindo o número de exames falso-positivos, sem, bora seja desconfortável, a adesão está em torno de 90%.
contudo, perder valor na sua especificidade. Estimativas de sua
sensibilidade/especificidade têm variado amplamente, desde ín ■ Outros
dices de 92 e 98%, respectivamente, até valores de sensibilidade A colonoscopia virtual, testes genéticos e testes para detec
abaixo de 30%. Como rastreamento, não é um exame particular ção de antígenos tumorais nas fezes parecem promissores; no
mente bom para a detecção de pólipos, que habitualmente não entanto, ainda não estão disponíveis para uso na prática diária
sangram. Apresenta ainda, como desvantagem, o baixo impacto na maioria dos centros médicos.
na incidência e na redução da mortalidade por TMCR. Pacien O rastreamento da população de risco habitual se inicia aos
tes em uso do anticoagulante varfarina não necessitam inter 50 anos de idade. Essa recomendação se baseia na incidência
romper o seu uso para a realização do exame de sangue oculto, etária dos TMCR e na eficácia do rastreamento. Esses tumores
uma vez que foi devidamente demonstrado que o seu uso não apresentam baixa incidência antes dos 50 anos, e, dessa manei
reduz o valor preditivo de positividade do teste. ra, somente 10% dos casos não serão identificados.
A adesão ao exame é bastante variável, tendo relatos de ín Nenhum teste de rastreamento isolado é ideal. O rastrea
dices de 92 a 94% ou tão baixos quanto 15 a 30%, sendo a baixa mento é baseado no conhecimento da biologia dos TMCR:
500 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is
• Se o paciente é de risco para início precoce dos TMCR, a mutação é encontrada no caso índice, a acurácia nos outros
o rastreamento deve ser iniciado mais cedo (ver fatores membros também é próxima a 100%. O rastreamento é reali
de risco, anteriormente). zado com colonoscopia a cada 1 ou 2 anos, iniciando-se entre
• Se o paciente é de risco para lesões que progridem mais 20 e 30 anos de idade, e anualmente após os 40 anos, ou, ainda,
rapidamente, o rastreamento deve ser mais frequente. 10 anos mais cedo que a idade do caso mais precoce na família.
• Se o paciente é de risco para lesões mais proximais, o Sigmoidoscopia é insuficiente, pois a maior parte dos tumores
rastreamento deve ser realizado com colonoscopia ou é proximal, e a PSOF mostra sensibilidade muito baixa para
enema opaco. detecção de pólipos.
• Se o paciente é de risco para uma incidência muito alta ► 4. H istó ria p e sso a l d e n e o p la sia . Estes pacientes devem
da doença, os testes mais sensíveis devem ser utilizados ser submetidos ao exame de todo o cólon, à época do diagnós
(colonoscopia ou enema opaco). tico, para excluir lesões sincrônicas e pólipos. Colonoscopias
subsequentes devem ser realizadas a cada 2 a 3 anos para de
Como se vê, o primeiro passo para iniciar o rastreamento
tectar novos cânceres ou pólipos.
é determinar se o paciente é de alto risco para TMCR, pois as ► 5. D o e n ç a in fla m a tó ria in te stin a l. É comum indicar-se
atitudes serão realizadas de maneira diferente da que se propõe colonoscopia a cada 1 ou 2 anos após 8 anos de doença nos
para aqueles de risco para câncer esporádico.
pacientes com pancolite, ou depois de 10 a 15 anos naqueles
com colite envolvendo apenas o cólon esquerdo. No entanto,
■ Pacientes comrisco habitual (câncer esporádico) não há evidência direta de que essa prática reduza a mortalidade
• Iniciar rastreamento aos 50 anos de idade. por TMCR, nem há dados sólidos de que tal atitude seja mais
• A decisão do método a ser utilizado deve ser tomada em efetiva que a colectomia, esta baseada somente na extensão e
conjunto, médico/paciente, levando em consideração a duração da doença. Há necessidade de estudos randomizados
eficácia, a conveniência, a segurança e o custo de cada e de longa duração visando a essas particularidades.
exame.
• Rastreamento com pesquisa de sangue oculto nas fezes
anual.
• Rastreamento com sigmoidoscopia flexível a cada
■ LEITURA RECOMENDADA
5 anos. Baigric, RJ & Stupart, D. Introduction oflaparoscopic colorcctal canccr surgcry
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O rastreamento com esses dois exames (PSOF ou sigmoi Benamouzig, R, Uzzan, B, Littlc, J, Chaussadc, S. Low dose aspirin, COX-inhi-
doscopia) apresenta forte evidência de eficácia. bition and chemoprevcntion of colorcctal canccr. Curr. Top. Med. Chem.,
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colonoscopia a cada 10 anos, não é uma conduta aconse blood testing in person taking warfarin. Br. J. Surg., 2010; 97:396-403.
lhada, pois não há evidência de que esses procedimentos Bini, EJ, Rajapaksa, RC, Wcinshcl, EH. Positive prcdictive value of fecal oc
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considerar testes para determinar se são portadores do gene DAnnibalc, A, Morpurgo, E, Fiscon, V, Trcvisan, P, Sovcrnigo, G, Orsini, C,
responsável pela PFA. A detecção de fragmento proteico leva Guidolin D. Robotic and laparoscopic surgcry for treatment of colorcctal
à identificação do gene APC mutante em, aproximadamente, discasc. Dis. Colon Rectum, 2004; 47:2162-8.
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60 a 80% das famílias com PFA. Se o caso índice (portador de réclles des hcpatcctomics pour métastascs dorigine colorcctale? Gastroen
PFA) tem o teste positivo, os outros membros podem ser testa terol. Clin. Biol., 1998; 22:1048-55.
dos com uma acurácia próxima de 100%. Um resultado negati Fcrnandcz-Lobato, R, Pinto, I, Paul, L, Tcjcro, E, Montes, C, Fcrnandcz, L,
vo exclui PFA somente se o membro afetado da família possui Morcno-Azcoitc, M, Lozano, R. Sclf-cxpanding prosthcscs as a pal-
liativc m ethod in treating advaneed colorcctal canccr. Int. Surg., 1999;
uma mutação conhecida. Os portadores do gene, ou casos in 84:159-62.
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como na PFA, estes pacientes devem receber aconselhamento Habr-Gama, A, Souza, PMSB, Ribeiro Jr, U, Madalin, W, Gans, LR, Souza Jr,
genético, e aqueles que preenchem os critérios de Amsterdam HS, Campos, FG, Gama-Rodrigues, J. Low rcctal canccr: impact o f ra-
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Obstrução Intestinal
Renato Rocha Passos, Augusto Paulino Nettó 1e Paulo Villar do Valle
Obstrução intestinal é uma das causas mais frequentes de emer Podemos classificar ainda a obstrução intestinal como sim
gência. Aproximadamente 20% das internações por doença ab ples ou com estrangulamento, relacionadas à existência ou não
dominal aguda ocorrem por obstrução intestinal. A desatenção de comprometimento da irrigação sanguínea do segmento in
ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado ocasiona o testinal comprometido.
fato de a mortalidade ainda permanecer acima do desejável, A obstrução simples não apresenta risco à vitalidade da alça
embora já tenha declinado de 60%, que prevalecia em meados envolvida porque não há restrição do fluxo sanguíneo. A obs
do século passado, para os atuais 6 a 8%. É fundamental assi trução com estrangulamento representa risco para a vitalidade
nalar a importância de se fazer o diagnóstico de localização da da alça porque há restrição do fluxo sanguíneo. Será de maior
obstrução, principalmente nos casos menos evidentes, em que ou menor gravidade, dependendo da extensão de meso e da
a causa não é facilmente identificável. alça envolvidos.
Há ainda um tipo especial de obstrução que é a obstrução em
alça fechada, quando o mesmo segmento intestinal está obstru
■ DEFINIÇÃO ído em dois pontos. Exemplos clássicos são o tumor obstrutivo
da sigmoide com válvula ileocecal competente, a torção do del
Obstrução intestinal é uma condição em que há falha na gado e a torção de alça aferente num paciente gastrectomizado
progressão normal do conteúdo intestinal. O conteúdo do tubo com anastomose a Billroth II. Nesta situação, há grande proli
digestivo percorre um trajeto da boca em direção ao ânus. Obs feração bacteriana e aumento da virulência, grande produção
trução intestinal estará presente a partir do momento em que de toxinas e comprometimento da irrigação sanguínea. São
qualquer obstáculo impeça esta progressão, seja por uma bar estes fatos que tornam esse tipo de obstrução grave, porque o
reira física ou por distúrbio funcional da força propulsora da segmento envolvido rapidamente caminha para necrose e es
musculatura intestinal. facelamento, rotura e peritonite.
Podemos, ainda, classificar a obstrução de acordo com o
ponto em que se estabeleceu a barreira física: obstrução alta,
quando ocorre próximo ao ângulo de Treitz, e obstrução baixa,
■ CLASSIFICAÇÃO quando ocorre no cólon. Entretanto, clinicamente, é possível
Podemos dividir a obstrução intestinal em dois grandes gru dividir o quadro obstrutivo em três grupos: obstrução alta do
pos: obstrução mecânica e obstrução reflexa. delgado, obstrução baixa do delgado e obstrução do cólon. É
Na obstrução mecânica, há uma barreira física com m a importante frisar que o delgado está envolvido em aproximada
nutenção da força propulsora da musculatura intestinal. Isto mente 60 a 80% dos casos de obstrução intestinal e a obstrução
significa que o peristaltismo estará presente e que, auscul- mecânica é a mais frequente.
tando o abdome, poderemos não só ouvir os ruídos peristálti-
cos como também perceber os detalhes dos sons, que poderão ■ Obstrução mecânica
ser fortes, exacerbados, de luta, com timbre metálico (ver Capí
tulo 111). O obstáculo pode estar na luz intestinal, como no íleo biliar;
pode acontecer na parede intestinal, como no carcinoma obs
Na obstrução reflexa, ou íleo paralítico, não há barreira físi
trutivo da sigmoide, ou, ainda, fora da parede intestinal, como
ca. O que há é um distúrbio da força propulsora da musculatura
nas grandes massas abdominais, nas bridas e hérnias.
intestinal. Podemos encontrar duas situações: íleo adinâmico,
Na investigação de um paciente com quadro clínico suges
em que a ineficiência é resultante do relaxamento da musculatu
tivo de obstrução intestinal, temos que responder às seguintes
ra, e íleo dinâmico, em que a ineficiência é resultante de espas
perguntas:
mo da musculatura. Isto significa que, auscultando o abdome,
há silêncio abdominal porque o peristaltismo estará ausente ou • Há obstrução?
é ineficiente. Vale assinalar que o íleo dinâmico é raro. • Há estrangulamento?
502
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 503
de peritonite significa doença avançada, grave, e certamente Se o intestino contém ar e líquido, formará as imagens de
haverá silêncio abdominal. níveis líquidos.
Se o intestino contém muito líquido e pouco ar, formará
■ D ia g n ó s t ic o p o r i m a g e m imagem semelhante às contas do rosário.
Iniciar com radiografia (RX) simples do abdome, que é efi Se o intestino só contém ar, transmitirá as imagens das dis
ciente em 60% dos casos. As incidências clássicas são: RX de tensões intestinais sem níveis líquidos, frequente nas incidências
tórax, RX simples de abdome em ortostatismo, com a opção em decúbito dorsal em que os níveis não se tornam aparentes.
do decúbito lateral esquerdo, com raios horizontais, quando A identificação do gás intraluminal permite o reconhecimento
o paciente não puder ficar de pé, e RX simples de abdome em dos diferentes segmentos do tubo digestivo.
decúbito dorsal. Atualmente, com a evolução tecnológica, pas-
3. Reconhecer, pela topografia e pelo aspecto morfológico,
sou-se a usar a tomografia computadorizada helicoidal, às vezes
quais são os segmentos do tubo digestivo comprometi
associada à reconstrução em 3D, principalmente nos casos mais
dos, o que poderá permitir o diagnóstico de obstrução
difíceis e complicados, mas que exige um especialista mais bem
mecânica e também o diagnóstico diferencial entre íleo
qualificado na interpretação das imagens. Nos casos de subo-
adinâmico e as desordens da parede intestinal.
clusão, indefinidos, arrastados, sem urgência, podemos lançar
mão dos exames contrastados. O objetivo de todos esses exa Os cólons posicionam-se como que fazendo uma moldu
mes é procurar evidenciar o ponto de obstrução, que é o alvo ra para o delgado: ascendente e descendente verticalizados e
da intervenção cirúrgica. ocupando as goteiras parietocólicas, e o transverso cruzando
Para entender os achados dos exames de imagem, é preciso: da direita para a esquerda e de baixo para cima em direção ao
diafragma esquerdo. É reconhecido pelas saculações, chama
1. Conhecer os cinco padrões clássicos de densidade de ima
das de haustrações, que são dilatações em forma de crescente,
gem radiológica. Os padrões são: ar, gordura, água (ou
delimitadas pelas plicas semilunares.
de partes moles), cálcio e metal.
O delgado ocupa uma posição central. As pregas mucosas
2. Conhecer as modificações do tubo digestivo a partir do
orientam-se transversalmente, colocando-se paralelamente,
momento em que se estabelece a obstrução.
próximas umas das outras, distanciadas com intervalos regu
As modificações do tubo digestivo na presença de obstrução lares e estendendo-se de uma parede a outra da luz intestinal a
são variáveis. Há acúmulo do seu conteúdo acima do local da um ângulo de 90°. Em condições normais, seu calibre não deve
obstrução, ao mesmo tempo em que, abaixo, fica vazio. Este exceder 3 cm e a espessura da prega deve ser inferior a 3 mm.
acúmulo tem múltiplas variáveis responsáveis pelas diferentes Quando distendido, o delgado é reconhecido pelas pregas de
apresentações. O diagnóstico de obstrução torna-se progres Kerkring. O delgado não tem gás, ao contrário do cólon, que
sivamente menos difícil à medida que o ponto de obstrução sempre tem gás. Este é o padrão radioiógico normal. Toda vez
situa-se mais distalmente no delgado, porque o envolvimento que observarmos inversão do padrão radioiógico normal, ou
de maior quantidade de alças faz com que o quadro radioiógico seja, delgado distendido, cheio de gás, e o cólon vazio, estare
fique mais facilmente identificável. mos diante de um quadro de obstrução mecânica.
Se o intestino está repleto de líquido, transmitirá a imagem Em determinadas condições, poderemos lançar mão dos
do padrão água e de pseudotumor. exames contrastados do intestino delgado, com bário ou com
Figura 48.1 A. RX simples de abdome em posição ortostática. Obstrução do delgado mostrando os níveis líquidos em diferentes alturas. Ob
servar a opacidade abaixo dos níveis, representando alças cheias de líquido. Não há gás nos cólons. B. RX simples de abdome em ortostatismo.
Obstrução do delgado. Observar o padrão da mucosa com as pregas de Kerkring. Ausência de gás nos cólons.
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 505
Figura 48.2 A. RX simples de abdome em ortostatismo mostrando níveis aéreos no intestino delgado. As setas mostram bolhas de gás, em
série, retidas dentro da alça, que representam o sinal das contas do rosário, significando que o paciente está realmente obstruído. B. RX simples
de abdome em decúbito dorsal mostrando o gás retido no intestino delgado. As setas assinalam o gás na forma de faixas sequenciais, que
representam o sinal ó o * s tr e c h s ig n * significativo de que o paciente está realmente obstruído.
Figura 48.3 A. RX simples de abdome, em decúbito dorsal, mostrando delgado distendido com gás. Nào é possível a percepção de níveis
hidroaéreos devido à incidência dos feixes de RX, em relação à posiçáo do paciente. B. RX simples de abdome em decúbito dorsal mostrando
a apresentação em escada na obstrução do delgado.
contraste hidrossolúvel. Para usar o bário, é necessário preen A tomografia computadorizada (TC) é um exame que não é
cher determinadas condições: não pode haver a menor sus acessível a todos, mas, quando disponível, deve ser usado nos
peita de estrangulamento, peritonite ou perfuração. O con casos em que a radiologia convencional não forneça as infor
traste hidrossolúvel está indicado quando existe suspeita de mações desejadas. É capaz de mostrar detalhes que a radiologia
perfuração. Enfatizamos que se deve usar o exame contrastado convencional não consegue captar, como aqueles da estrutura
somente diante da dúvida. A presença de pneumoperitônio da parede intestinal, tanto do lado da luz, quanto da parte ex
confirma a existência de perfuração, que dispensa o exame terna da parede, o que o torna de grande utilidade para o diag
contrastado. nóstico de obstrução por torção do meso e de estrangulamento.
506 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal
Figura 48.4 Exame contrastado do intestino delgado. Observar a di Figura 48.5 RX simples de abdome em decúbito dorsal mostrando
ferença de calibre - maior no jejuno que no íleo - e da conformação a escassez de gás no intestino delgado e o cólon delineado pela pre
das pregas, transversais no jejuno (Kerkring) e longitudinais no íleo, sença de gás.
assim como sua posiçào central no abdome.
Figura 48.6 A. Exame contrastado do delgado mostrando o local de estreitamento responsável pelo quadro de suboclusão intestinal. B. Exame
contrastado do delgado mostrando o local do estreitamento responsável pelo quadro de subodusào intestinal.
Tem a grande vantagem de não ser “operador-dependente”, da mudança de calibre das alças: alças distendidas acima e va
como é o ultrassom. Embora seja um exame cada vez mais zias abaixo do ponto de obstrução e, na ausência de outra causa
empregado, principalmente a TC helicoidal pela sua rapidez que seja responsável pelo quadro obstrutivo, podemos deduzir
de execução, seu uso indiscriminado não é recomendável. Os que se trata de uma brida. Este raciocínio tem seus oponentes,
exames devem ser individualizados e particularizados, com in que preferem fazer o diagnóstico de maneira direta e não por
dicação dos objetivos, para que possam orientar o radiologista exclusão.
e racionalizar os custos. Nos centros mais desenvolvidos, que pesquisam e compa
Mesmo com a utilização dos novos equipamentos, a chave ram os pacientes com a realização dos dois exames, já existe
para o diagnóstico de obstrução continua sendo a observação uma tendência de iniciar a investigação com a TC e, mesmo
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 507
■ Obstrução do cólon
■ D ia g n ó s t ic o d í n i c o
Figura 48.7 TC de abdome após administração de contraste oral e A sintomatologia da obstrução do cólon difere da do delgado
venoso. Observar alça ileal com distensão e redução do calibre em bico por condições anatômicas e fisiológicas: o cólon está preparado
de pena, sem espessamento da parede (obstrução por brida). para reter gases e fezes, está distante do estômago e muito pró
ximo do orifício de esvaziamento, o ânus. A complacência do
cólon, a ausência de dor forte, que poderia desencadear vômitos
reflexos, e a distância do estômago fazem com que a ocorrência
de vômito seja rara. A distensão pode assumir grandes propor
ções. A parada de gases e fezes poderá ser o primeiro sintoma,
desde que interpretada corretamente, porque, na maioria dos
casos, ocorre em pacientes idosos com história de constipação
crônica. Na obstrução do cólon, a grande distensão abdominal
é o sinal predominante.
■ E x a m e f ís ic o
A mesma conduta utilizada para a obstrução do delgado
deve ser mantida quando a suspeita é de obstrução do cólon.
A grande distensão será evidente, com timpanismo aumenta
do, dor fraca referida ao hipogástrio, ceco facilmente palpável,
o que já nos dará informações do problema atual, preditivo
da possibilidade de rotura do ceco, antes mesmo do exame
Figura 48.8 TC do abdome revelando que a causa da obstrução é
recidiva de tumor e não brida. Observar a presença de massa intralu- radiológico.
minar e espessamento parietal.
Figura 48.9 RX simpies de abdome em ortostatismo. Observar a gran Figura 48.10 RX simples de abdome em decúbito dorsal. Observar a
de dilatação dos cólons e o delgado sem gás. Imagem habitual da grande dilatação dos cólons, o delgado sem gás e a parede da coluna
obstrução da alça sigmoide com válvula ileocecal competente. de ar na altura do ilíaco esquerdo.
508 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal
■ D ia g n ó s t ic o p o r i m a g e m
A imagem radiológica do cólon é influenciada pelo local e
duração da obstrução, composição do conteúdo intestinal e
pela competência da válvula ileocecal.
O cólon sempre tem gás. Na ocorrência de obstrução, ob
servamos uma exacerbação do quadro radiológico normal: o
cólon extremamente distendido e o delgado sem gás. O cólon
apresenta haustrações, que são pregas espessadas da mucosa
que não atingem os dois lados da luz intestinal, separadas por
grandes recessos; contém material sólido e apresenta partes fi
xas no retroperitônio facilmente identificáveis: o ascendente e o
descendente são segmentos tipicamente orientados no sentido
cefálico, junto à parede lateral do abdome, e o reto encontra-
se no meio da pélvis.
Na fisiologia normal o conteúdo intestinal passa continua
mente do delgado para o cólon através da válvula ileocecal.
Aproximadamente 75% dos pacientes têm a válvula ileocecal
competente. Podemos antever três situações diante de uma
obstrução do cólon:
1) A válvula é competente. Neste caso, teremos a situação
clássica de obstrução em alça fechada. É o quadro mais
comum. Nesta situação existe possibilidade de rotura do Figura 48.11 Clister opaco em tumor obstrutivo do cólon descen
ceco quando, no RX simples, identificarmos o ceco com dente. Há distensão do delgado em consequência da válvula ileocecal
diâmetro aproximado de 12 cm. É uma emergência ci incompetente.
rúrgica.
2) A válvula é competente, porém a grande pressão den
tro do ceco bloqueia a progressão do conteúdo. Situação
igual à anterior, com os mesmos problemas, mas com a
participação do delgado distai, o que pode trazer alguma
indecisão com a presença do delgado distendido.
3) A válvula ileocecal é incompetente. Neste caso a pressão
aumentada dentro do ceco será transmitida para o íleo
terminal, que ficará distendido, e o risco de rotura do
ceco será pequeno. A participação do íleo terminal, com
sintomatologia compatível com obstrução baixa do del
gado, pode mascarar o diagnóstico correto, entretanto o
cólon sempre estará muito distendido.
O exame contrastado do cólon deve obedecer a algumas
regras básicas:
• Não pode haver suspeita de perfuração, real ou iminente;
• Não pode haver suspeita de isquemia;
• O ceco não deve apresentar-se com diâmetro maior que
10 cm.
As principais indicações para o uso do exame contrastado
do cólon são:
• Determinar o local da obstrução com precisão;
• Fazer o diagnóstico diferencial entre pseudo-obstrução Figura 48.12 Clister opaco mostrando a interrupção da coluna de
e obstrução mecânica; bário na sigmoide por tumor obstrutivo.
• Ocasionalmente, reduzir o volvo da sigmoide ou inva-
ginação intestinal.
O exame contrastado de emergência é realizado sem prepa a intenção de, com a precisão diagnóstica, executar o menor
ro do intestino, porque a informação desejada é limitada, sem procedimento cirúrgico no momento em que o paciente se en
necessidade de ver detalhes da mucosa, somente identificar contra no estágio mais delicado de sua doença.
o ponto de obstrução. Na suspeita de perfuração, o contraste
hidrossolúvel é o indicado, se um diagnóstico preciso for es ■ Exames laboratoriais
sencial. Em se tratando de abdome agudo, os exames laboratoriais
A TC pode trazer contribuição importante, particularmente serão os necessários para se ter uma avaliação geral do paciente.
quando executada com administração de contraste hidrossolú Eles devem ser objetivamente orientados para o tipo de procedi
vel por via retal e associada com contraste venoso. mento a que irá se submeter. Quanto mais longo o tempo de obs
Na obstrução do cólon, sempre podemos confirmar a sus trução, mais grave o caso; quanto mais idoso e maior a evidência
peita diagnóstica com quaisquer dos exames relacionados, com de doenças associadas, mais elaborados serão os exames.
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 509
perfuração para evitar a perpetuação da contaminação perito- diagnóstico pré-operatório, do tipo de procedimento realizado e
neal. O tratamento realizado em três tempos é acessível tanto da probabilidade de complicações é importante para se correla
ao iniciante quanto ao cirurgião experiente. Quando houver a cionar com os sintomas atuais. A suspeita ocorrerá se o paciente
associação de cirurgião experiente, recursos materiais e pacien apresentar uma recuperação retardada; os novos sintomas ou
tes selecionados, é possível reduzir o número de operações. a perpetuação do íleo merecem ser investigados com atenção.
Quando se tratar de diverticulite do sigmoide, com obstru Deve-se manter o paciente hidratado, aspirado e monitorizado,
ção, o melhor exame para investigar o estado da alça é a TC, pela sob vigilância constante, até a resolução dos problemas.
sua habilidade de revelar o que está acontecendo na luz, na pa
rede e fora da parede intestinal. Quando há indicação cirúrgica,
o melhor procedimento é aquele em que se retira o segmento
■ Obstrução recorrente
doente, inflamado e abscedido de dentro do abdome, habitual O paciente com recidivas frequentes de obstrução por bridas
mente a colostomia de duas bocas ou a cirurgia de Hartmann. e aderências torna-se um problema de difícil solução. Apesar
dos avanços na compreensão do processo de cicatrização, ainda
não conhecemos meios de controlá-lo; nem temos como ante
■ PROBLEMAS E DIFICULDADES ver quais pacientes apresentarão tais recidivas, assim como não
sabemos explicar por que alguns pacientes criam múltiplas ade
As dificuldades surgem na medida em que estamos investi rências e outros não. O paciente operado por bridas tem uma
gando casos complexos e tardios. O diagnóstico de obstrução probabilidade 20% maior de apresentar nova obstrução do que
intestinal é clínico e, neste caso, a história e exame físico, re o paciente operado por outras razões; e, quanto mais vezes é
alizados com o máximo de detalhes, fornecerão os elementos operado, maior a probabilidade de novos episódios. A tentativa
para o raciocínio clínico. A compreensão da fisiopatologia da de evitar novos episódios com procedimentos que acomodam
doença, como apresentada, permite que o médico encontre o de maneira organizada as alças intestinais, como as operações
caminho correto para atuar de maneira eficiente. de Noble e Philips, tem resultados controversos.
Alguns pontos merecem ser enfatizados: o alvo da investiga
ção é o local da obstrução, a partir deste ponto as alças estarão
dilatadas, cheias de gás e líquido a montante e vazias a jusante;
■ Obstrução na mulher grávida
a magnitude da dilatação e a quantidade de líquido e gás são Quando tratamos uma mulher grávida, é importante o co
aleatórias; a ausência de peristaltismo significa que o intestino nhecimento preciso das particularidades anatômicas e fisioló
entrou em estafa ou que há necrose da alça envolvida, a pre gicas que acompanham a gravidez: ela é fisiologicamente hiper-
sença de peritonite pode ter outra causa que muitas vezes será volêmica e anêmica e estamos tratando de duas pessoas.
difícil de esclarecer somente com o RX simples. Nestes casos, Para tratar corretamente de ambas, devemos tratar bem da
a TC assume grande importância, porque poderá esclarecer mãe, porque em situações de risco de vida a natureza tende
a causa real da peritonite. Um dos problemas difíceis do pré- a preservar a mãe; o grande útero, apoiado sobre a veia cava,
operatório é afirmar com segurança se existe ou não estrangu pode dificultar o retorno venoso, com consequente redução
lamento, principalmente na fase inicial: temperatura acima de
38°C, dor constante, pulso elevado, leucocitose acima de 15.000
e silêncio abdominal ajudam, mas não são definitivos. A TC é
de grande ajuda nesses casos. A presença de sinais de peritonite
não deixa dúvidas da gravidade do caso.
A avaliação da viabilidade da alça comprometida é um pon
to difícil durante a operação. Deve-se observar atentamente o
retorno da coloração ao normal, dos batimentos arteriais, do
brilho da superfície peritoneal e do peristaltismo e avaliar a
textura dos tecidos. Se persistir a dúvida, deve-se ressecar o
segmento comprometido.
Portanto, a terapêutica da obstrução intestinal é cirúrgica.
Qualquer tentativa de tratamento clínico, a não ser em casos
muito especiais, já descritos, pode levar o paciente à morte.
Há, entretanto, que se realizar um preparo pré-operatório me
ticuloso e adequado, sem apressar ou retardar o momento da
intervenção cirúrgica. É a “hora H” de Forgue. O clínico e o
cirurgião devem estar atentos para isso. Aguardar para operar
um paciente com perfuração ou necrose intestinal pode ser fa
tal. Ao mesmo tempo, operá-lo com desidratação grave, sepse,
choque, com má perfusão tecidual e anúria, também. O bom
senso é a melhor arma de um bom médico.
Figura 48.17 RX simples de abdome em decúbito dorsal. Observar Figura 48.18 Trânsito intestinal evidenciando perda da distensibili-
o delgado distendido e com perda do padráo da mucosa. As alças dade da alça com aspecto espiculado das bordas. Enterite actínica.
estão'carecas". Achado habitual nas lesões isquêmicas agudas como
o infarto enteromesentérico.
Pseudo-obstrução intestinal é uma síndrome clínica caracteri e substância P, de receptores opioides ji e k, assim como a pro
zada por sinais e sintomas de obstrução do trânsito gastrintes- dução de citocinas por células inflamatórias teciduais e circu
tinal sem obstáculos mecânicos. Pode ocorrer de forma aguda lantes.
ou crônica e acometer todo o tubo digestivo ou partes dele, O quadro clínico típico se apresenta imediatamente após
desde o esôfago até o reto. Essa síndrome pode acompanhar a uma laparotomia através de distensão abdominal, dor discre
terapêutica com certas drogas ou fazer parte do quadro clíni ta e mal localizada, náuseas, vômito e parada da eliminação de
co de algumas doenças, especialmente da esclerose sistêmica gases e fezes. O exame revela um abdome distendido e timpâ-
primária, de síndromes paraneoplásicas, da doença de Chagas, nico, com diminuição dos ruídos peristálticos e dor discreta e
do diabetes melito e da amiloidose. Quando tais doenças são difusa à palpação. A radiografia simples costuma evidenciar
excluídas, a possibilidade de miopatia ou neuropatia primária alças intestinais dilatadas principalmente no delgado, mas tam
visceral deve ser considerada. bém no cólon.
Sendo assim, a pseudo-obstrução intestinal pode ser classi Não havendo intercorrências, o peristaltismo retorna espon
ficada como secundária, quando fa z parte de uma doença sub taneamente em 2 a 3 dias, notando-se inicialmente a recupe
jacente reconhecida como responsável pelo quadro, ou quando ração da motilidade do intestino delgado em cerca de 24 h,
causada pelo uso de drogas, ou primária, quando não há causa seguindo-se a do estômago em 24 a 48 h, e, por fim, a do có
extraintestinal envolvida. lon, em 48 a 72 h, havendo, então, eliminação de flatos e fezes
Podemos ainda classificá-la como crônica, quando persiste pelo paciente. Alguns autores chamam de íleo paralítico ou adi-
além de 6 meses, ou quando se manifesta ao nascimento, per nâmico o quadro de inibição da motilidade que perdura além
sistindo após 2 meses de vida, ou aguda, correspondendo aos desse período.
demais casos. Dentre as formas agudas, destacam-se o íleo e a Quando isso ocorre, suspeita-se de complicações cirúrgicas,
pseudo-obstrução colônica aguda. tais como formação de abscessos e coleções, deiscências de su-
turas, hemorragia e lesões vasculares. Outros fatores também
devem ser investigados e corrigidos quando presentes, des
■ ÍLEO tacando-se distúrbios eletrolíticos, metabólicos, endócrinos
e infecções locais, ou a distância. O emprego de analgésicos
Caracteriza-se pela hipomotilidade acentuada do trato gas- opioides, antidepressivos, antagonistas de canais de cálcio, fe-
trintestinal na ausência de obstrução mecânica ao trânsito, sen notiazinas e anti-histamínicos pode também contribuir para
do habitualmente consequente a um procedimento cirúrgico, o agravamento do quadro. Nos quadros de instalação tardia,
principalmente quando realizado na cavidade abdominal. Pode com rápida progressão dos sintomas e dor acentuada em có
também ocorrer em situações clínicas diversas, destacando-se: lica, deve-se pensar em obstrução mecânica, que pode surgir
doenças neurológicas; infecções graves, abdominais ou não; em até 1% dos pacientes nos primeiros 30 dias após a cirurgia
infarto do miocárdio; distúrbios metabólicos como: descom abdominal.
pensação diabética, uremia, hipoparatireoidismo e distúrbios
eletrolíticos; pancreatite aguda; cólica ureteral.
O íleo pós-operatório é considerado uma resposta fisioló
■ Prevenção e tratamento
gica à cirurgia do abdome, tendo-se evidências de que a inci A prevenção do íleo paralítico depende da técnica cirúrgica,
são cirúrgica, a manipulação das alças e o derrame de conteú devendo-se evitar grandes incisões e a manipulação excessiva
do irritante sobre o peritônio ativem vias neuronais e liberem das alças, preferindo-se, se possível, a via laparoscópica. O tra
mediadores inflamatórios que inibem a motilidade intestinal. tamento é basicamente suportivo, envolvendo a correção dos
Supõe-se que o mecanismo fisiopatológico envolva a ativação distúrbios mencionados anteriormente, a reposição de água e
do eixo hipotalâmico-hipofisário, de neurônios adrenérgicos e eletrólitos IV e o uso criterioso de sonda nasogástrica em ca
liberadores de óxido nítrico, peptídio intestinal vasoativo (VIP) sos de distensão do abdome e vômitos. Há uma tendência em
514
Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal 515
se reintroduzir dieta líquida oral mais precocemente, respei- a ausculta de ruídos hidroaéreos. A febre pode estar presente,
tando-se sempre a tolerância do paciente. A substituição total associando-se às doenças de base. No entanto, quando essa se
ou parcial dos analgésicos opioides no período pós-operatório acentua, e quando surgem sinais de irritação peritoneal ou rigi
por anti-inflamatórios não esteroidais ou por anestesia epidural dez abdominal, deve-se supeitar de isquemia ou perfuração.
prolongada aplicada ao nível torácico tem benefício preventivo Uma vez instalada a síndrome, o acúmulo de gases, pro
comprovado. Por outro lado, os trabalhos científicos não são duzidos pela flora colònica ou deglutidos pelo paciente, leva
uniformes quanto à demonstração da eficácia na redução do à distensão do cólon. Segundo a lei de Laplace, a tensão na
íleo com o incentivo à deambulação precoce do paciente ope parede intestinal depende do diâmetro da alça e de sua pres
rado, salientando-se, contudo, sua importância comprovada são interna (tensão = diâmetro x pressão intraluminal). Sendo
ao prevenir atelectasias, tromboses venosas e pneumonias. Da assim, o ceco, submetido a maior tensão, devido ao seu maior
mesma forma, é questionável o uso de goma de mascar após a diâmetro, e também por apresentar parede menos espessa, é
cirurgia, apesar da segurança dessa prática. A base teórica para o segmento mais propenso a sofrer ruptura. Os estudos mais
tal prática está no estímulo vagai e na liberação de hormônios recentes sugerem que o risco de ruptura torna-se considerável
intestinais através da refeição-simulada (sham feeding) pro quando o diâmetro cecal atinge 12 cm, principalmente se a di-
porcionada ao se mascar a goma. Apesar de serem amplamen latação já dura alguns dias. No entanto, são citados casos em
te utilizados no tratamento de náuseas, os procinéticos, como que a perfuração se deu com diâmetros menores, assim como
eritromicina, domperidona, metoclopramida e cisaprida, não casos em que a distensão atingiu o dobro desse valor, havendo
mostraram eficácia no restabelecimento do trânsito intestinal. recuperação total. Sugere-se, mesmo, que a duração da dilata-
Mais promissores têm sido os estudos realizados com neostig- ção seja mais importante para determinar esse risco do que o
mina, um inibidor da acetilcolinesterase, e alguns novos anta tamanho total atingido pelo ceco. Ocorrendo perfuração, sur
gonistas periféricos seletivos de receptores opioides p, como a gem os sinais de peritonite, quando então a mortalidade atinge
metilnaltrexona e o alvimopam. cifras superiores a 50%, não só pelo quadro abdominal, como
também pelo estado geral precário do paciente e pelas comor-
bidades habitualmente presentes.
■ PSEUDO-OBSTRUÇÃO AGUDA DO CÓLON O quadro radiológico caracteriza-se por distensão colònica,
principalmente dos cólons direito e transverso, que apresen
(SfNDROME DE OGILVIE) tam diâmetro superior ou igual a 9 cm, podendo haver níveis
hidroaéreos. O delgado costuma apresentar dilatação devido
Apresenta denominação incorreta, uma vez que os dois casos à incompetência da papila ileal, pela deglutição de ar pelo pa
descritos por Sir William Heneage Ogilvie, em 1948, referiam- ciente ou por peritonite. A presença de ar no retossigmoide
se a pacientes com quadro clínico crônico recorrente sugestivo permite o diagnóstico diferencial com quadros de obstrução
de obstrução colònica. Nesses pacientes, à laparotomia, não se mecânica, mas isso nem sempre ocorre. Em caso de dúvida
demonstrou obstrução mecânica do intestino, mas sim uma quanto ao diagnóstico diferencial, principalmente quando não
invasão tumoral do plexo celíaco, o que provocara, segundo se vê ar no cólon distai, pode-se realizar enema com contraste
esse autor, um predomínio do tônus parassimpático visceral hidrossolúvel ou colonoscopia, sempre com bastante cuidado
pela desnervação simpática decorrente da lesão. Supõe-se, hoje, devido ao risco de perfuração. A tomografia computadorizada
que os pacientes eram portadores de tumores primariamente helicoidal apresenta excelente acurácia diagnóstica nesses ca
pulmonares. sos, com sensibilidade e especificidade acima de 90%, sendo de
Essa síndrome caracteriza-se por sinais e sintomas, habitu grande valia também na detecção de complicações.
almente transitórios e reversíveis, de obstrução do cólon, sem Os exames laboratoriais podem mostrar alterações hidrele-
causa mecânica. É pouco frequente, acometendo geralmente trolíticas e metabólicas, além de leucocitose discreta, condições
pacientes hospitalizados e com idade superior a 50 anos. A etio- comuns em pacientes com doenças que requerem tratamento
logia é obscura, ligando-se às mais diversas condições clínicas, hospitalar.
destacando-se: pós-operatório, insuficiência cardíaca conges O tratamento inicial dos casos mais brandos consiste em
tiva, acidente vascular cerebral, alcoolismo, sepse, infecções correção dos distúrbios hidreletrolíticos, passagem de sonda
abdominais e doença de Parkinson. Menos frequentemente, nasogástrica nos casos de vômitos, restrição da VO e incentivo
relaciona-se a infarto agudo do miocárdio, politraumatismo, à movimentação do paciente. Deve-se mudar, com frequência,
uremia, distúrbios hidreletrolíticos e queimaduras. Há ainda sua posição no leito, dando-se preferência aos decúbitos laterais
relatos de casos idiopáticos, que não atingem 6% do total. e ao decúbito ventral com travesseiros sob a pelve. É importante
Sabe-se que sua patogênese provavelmente envolve um de a suspensão das drogas que possam diminuir o peristaltismo,
sequilíbrio entre os tônus simpático e parassimpático do sis principalmente narcóticos e drogas com efeito anticolinérgi-
tema nervoso autônomo e, possivelmente, uma diminuição co. O uso de sonda retal é discutível. Esses cuidados levam à
da liberação de óxido nítrico de neurônios inibitórios e uma regressão da distensão em poucos dias, na maioria das vezes.
excessiva estimulação de receptores opioides p periféricos por Deve-se, sempre, monitorar o paciente com exames clínicos e
opioides endógenos ou exógenos. de sangue e com radiografias simples de abdome diárias ou a
A síndrome caracteriza-se pela distensão abdominal pro cada 12 h.
gressiva e acentuada, que se instala em poucos dias. Normal Se o diâmetro de ceco persiste acima de 9 cm e não se reduz
mente, ocorre a parada de eliminação de gases e fezes, mas após essas medidas em 72 h, deve-se lançar mão de tratamento
muitos pacientes ainda mantêm a capacidade de eliminar um farmacológico por via venosa. Procinéticos como eritromicina,
pouco de flatos, podendo mesmo apresentar diarréia. Descon cisaprida ou metoclopramida já foram usados no passado, sem
forto abdominal e dor difusamente localizada estão quase sem eficácia conclusiva, todavia. A naloxona, contudo, mostrou ser
pre presentes, muitas vezes associados a cólicas, às vezes acom útil em alguns casos induzidos pelo uso de opioides. Excelen
panhadas por náuseas e vômitos. O exame do abdome revela tes resultados têm sido obtidos com o uso da neostigmina, um
timpanismo, com dor leve a moderada à palpação, mantendo-se inibidor da acetilcolinesterase de baixo custo, que atua compe
516 Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal
tindo com a acetilcolina em sua ligação com essa enzima nos nuição do tônus simpático abdominal, favorecendo-se assim a
locais de transmissão colinérgica. A administração dessa droga atividade procinética do parassimpático. Resultados prelimina
resulta assim em maior disponibilidade da acetilcolina na jun res com a técnica anestésica mostraram resultados semelhantes
ção neuromuscular, aumentando a contratilidade do músculo aos da colonoscopia, porém com menos efeitos colaterais.
liso. Sua eficácia varia entre 53 e 96% dos casos, a maioria dos Nas poucas ocasiões em que há insucesso com todos os tra
trabalhos mostrando uma taxa de sucesso superior a 80%. tamentos descritos anteriormente, ou quando ocorre mais de
Em vista dos efeitos colinérgicos produzidos, as contraindi- uma recorrência com o tratamento endoscópico, deve-se ava
cações para o uso da neostigmina incluem: frequência cardíaca liar a indicação de uma cecostomia descompressiva, que pode
abaixo de 60 bpm, pressão arterial sistólica inferior a 90 mmHg, ser realizada por via cirúrgica, percutânea transperitoneal ou
presença de broncoconstrição, acidose, sinais de perfuração in por via endoscópica. Essa cecostomia pode ser usada ainda em
testinal, creatinina sérica acima de 3 mg/d^, infarto do miocár- casos selecionados de perfuração cecal puntiforme, que pode
dio recente, terapia com betabloqueadores, gravidez e obstrução ocorrer, por exemplo, durante a colonoscopia.
mecânica. A dose usual é de 2 mg, ministrada lentamente (em A presença de sinais de irritação peritoneal, dor abdominal
3 a 5 min) em bolo endovenoso, ou, preferencialmente, em acentuada ou leucocitose progressiva levanta a hipótese de is
infusão com 100 m^ de solução salina, em 1 h. A estimulação quemia acentuada ou perfuração, que ocorre em 3 a 15% dos
parassimpática decorrente de seu uso pode induzir bradicardia, pacientes, necessitando-se então de tratamento cirúrgico, que
sialorreia, náuseas e cólicas abdominais e, menos frequente em geral implica hemicolectomia direita.
mente, vômitos, assistolia, hipotensão, convulsões, inquietude, A mortalidade da síndrome situa-se entre 15 e 30%, elevan-
tremor, miose, broncoconstrição e sudorese. do-se até 50% quando ocorre perfuração intestinal, refletindo
Sendo assim, o paciente deve ser mantido em m onitora a presença de múltiplas comorbidades e o atraso frequente no
mento eletrocardiográfico e pressórico durante, e pelo menos, seu diagnóstico e tratamento.
uma hora após a administração venosa, utilizando-se atropina
ou glicopirolato para tratamento de possíveis efeitos colaterais
colinérgicos, havendo autores que sugerem seu uso profilático ■ PSEUDO-OBSTRUÇÃO INTESTINAL
rotineiro. A grande maioria dos enfermos responde em alguns
minutos com eliminação de flatos e/ou fezes e diminuição da CRÔNICA (P0IC)
distensão abdominal. Alguns deles necessitam de mais uma
ou duas doses da medicação após 4 h da primeira infusão, no > História e exame físico
caso de ausência de resposta inicial, ou havendo recorrência do
quadro, o que pode acontecer em até 35% dos casos. Os sinais e sintomas desta síndrome, em geral recorrente,
Se o tratamento farmacológico falha e o paciente ainda não variam conforme a localização e a intensidade do acometimen-
tem sinais de irritação peritoneal, deve-se proceder à colonos- to, que pode ir do esôfago ao reto.
copia descompressiva, na qual se aspira o máximo possível de ar A dor abdominal é frequente, ocorrendo não só pela dis
da luz colônica, diminuindo-se assim sua pressão interna. Com tensão intestinal, mas também por espasmos musculares e pela
ela, pode-se ainda fazer o diagnóstico diferencial com outras hiperalgesia visceral.
doenças, tais como megacólon tóxico, colite por Clostridium O envolvimento do esôfago pode ser assintomático ou pode
difficile, isquemia mesentérica, neoplasias e vólvulo, sendo ain manifestar-se por disfagia, dor precordial e regurgitação, ou
da muito útil em caso de dúvidas sobre a presença de obstrução como pirose causada pelo refluxo gastresofágico.
mecânica. Deve-se lembrar que a colonoscopia traz o risco real A gastroparesia pode apresentar-se com vômitos, plenitude
de perfuração, devendo ser realizada com cuidado, utilizando- gástrica e saciedade precoce.
se a mínima insuflação de ar possível à introdução do aparelho. A predominância de acometimento do intestino delgado
A eficácia do método aumenta quando se consegue progredir leva ao supercrescimento bacteriano e à síndrome de alça cega,
o aparelho além da flexura hepática, a despeito de o preparo havendo esteatorreia, diarréia, distensão abdominal e desnu
ser realizado apenas com enemas salinos de pequeno volume. trição. O acometimento predominante do cólon manifesta-se
A média de sucesso com o método é de, aproximadamente, por constipação intestinal acentuada, enquanto o estado nu
70%, havendo recidiva da dilatação em até 40% das vezes e uma tricional do indivíduo tende a ser preservado. Em pacientes
taxa de perfuração de cerca de 3%. Para diminuir a recidiva, a com o intestino difusamente afetado, pode haver alternância
maioria dos autores preconiza a introdução e manutenção de desses sintomas.
uma sonda longa posicionada no cólon direito, o que promove O acometimento urinário simultâneo pode mostrar-se com
uma descompressão mais prolongada. infecções de repetição, disúria e retenção de urina.
A observação de mucosa isquêmica durante a colonoscopia Muitos pacientes apresentam história de laparotomias ex
não indica, obrigatoriamente, uma laparotomia, já que a isque ploradoras que não evidenciaram obstrução mecânica, o que
mia pode ser reversível e parcial, ou seja, pode não atingir toda pode, desde então, levar a confusão diagnóstica devido à sus
a espessura da parede. O sucesso deve ser avaliado clinicamente, peita da participação de aderências nas crises subsequentes. A
não podendo ser visibilizado radiologicamente de imediato, já sintomatologia costuma surgir na infância ou adolescência,
que o diâmetro cecal permanece aumentado, habitualmente, algumas vezes mais tarde, havendo história familiar positiva
logo após o procedimento. Em caso de recorrência, que ocorre em até 30% dos casos.
principalmente quando não é posicionada uma sonda descom A história clínica do paciente é, sem dúvida, o principal ele
pressiva na primeira colonoscopia, pode-se repetir mais uma mento para o diagnóstico, devendo guiar os exames comple
vez a terapia endoscópica. mentares. O quadro típico é de um paciente jovem com meses
Vários estudos mostraram também boa eficácia do trata a anos de sintomas insidiosos, terminando por apresentar epi
mento da pseudo-obstrução colônica aguda utilizando-se blo sódios intermitentes de obstrução intestinal incompleta, com
queio anestésico epidural contínuo com bupivacaína ao nível evidências de desnutrição, distensão e dor abdominal, náuseas
do tórax. Tal procedimento promovería teoricamente a dimi e vômitos. Podem-se observar, às vezes, alterações neurológicas
Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal 517
ou do trato urinário, bem como evidências de doenças subja Na POIC primária miopática, podem-se observar, muitas
centes causadoras da síndrome. vezes: dilatação duodenal, acentuada hipocontratilidade, perda
de haustrações e aumento do diâmetro do cólon. Já na forma
neuropática, notam-se contrações abundantes, porém desor
■ Diagnóstico ganizadas e ineficazes, muitas vezes com dilatação leve a mo
■ Exames laboratoriais derada do delgado. A diferenciação segura entre essas formas,
Além dos exames usados na avaliação do estado nutricio contudo, não pode ser feita comumente pela radiologia.
nal e metabólico do paciente, deve-se solicitar, criteriosamen A urografia excretora pode mostrar alterações urinárias as
te, e guiando-se sempre pela avaliação física e pela anamnese, sociadas, sendo citada a presença de disfunção da bexiga (me-
a realização de testes para doenças sistêmicas possivelmente gabexiga) em até 85% das crianças com a forma miopática pri
causadoras de pseudo-obstrução intestinal crônica, tais como: mária da síndrome e em 15% daquelas com a forma neuropática
anticorpos antinucleares séricos (lúpus eritematoso sistêmico, primária.
esclerose sistêmica, poli e dermatomiosite), anti-SCL-70 (es- A tomografia computadorizada helicoidal tem boa indica
clerose sistêmica), glicemia de jejum (diabetes melito), testes ção quando persiste a dúvida com o diagnóstico diferencial de
de função tireoidiana (hipotireoidismo), sorologia para doen quadros obstrutivos mecânicos.
ça de Chagas, dosagem de paratormônio e cálcio sérico (hipo-
paratireoidismo), creatinofosfoquinase (doenças musculares), ■ M anom etria
porfirinas (porfirias), lactato e piruvato séricos (doenças mi- Além da manometria esofágica, que tem se mostrado o me
tocondriais) etc. Na síndrome paraneoplásica do carcinoma lhor método para estudo da motilidade desse segmento, dis
pulmonar de pequenas células, pode-se detectar a presença de põe-se, em alguns centros especializados, da manometria in
anticorpos anti-Hu (anticorpo antineuronal nuclear). testinal.
Na POIC, esse exame pode diferenciar os casos de miopatia
■ Radiologia (que se caracterizam por ondas peristálticas de pequena ampli
As radiografias simples normalmente revelam níveis hidroaé- tude) dos casos de neuropatia (com ondas de amplitude nor
reos e/ou presença de alça sentinela, podendo não haver qual mal, porém incoordenadas). Nesta última, observam-se ainda
quer alteração em períodos assintomáticos. Raramente, pode anormalidades ou mesmo inexistência da fase III do complexo
haver pneumatose intestinal e pneumoperitônio benigno (sem motor migratório em jejum. Uma resposta motora normal à
perfuração de alça), o que se explica, talvez, pela entrada de ar alimentação denota integridade tanto dos sistemas de controle
no intestino causada pelo aumento de pressão intraluminal e neural quanto da musculatura lisa gastrintestinal. Da mesma
pela presença de bactérias formadoras de gás. forma, alterações dessa resposta podem advir tanto de causas
Os estudos radiológicos contrastados mostram, muitas ve neurais quanto de musculares. Na presença de dilatação intes
zes, o acometimento simultâneo de diversos segmentos do tubo tinal acentuada e duradoura, os registros manométricos podem
digestivo, vendo-se normalmente órgãos dilatados, sem evidên ser inespecíficos, com redução acentuada da atividade contrátil,
cias de obstrução mecânica. Para afastar esta última, e para que o que limita a sua utilização nesses casos.
se planeje adequadamente o tratamento, é importante que se Os estudos científicos têm mostrado ainda a utilidade de exa
avalie radiologicamente todo o trato gastrintestinal. Deve-se mes de manometria antroduodenal para a avaliação do prog
ter em mente que indivíduos em estágios iniciais da síndrome, nóstico e da possibilidade de resposta ao tratamento. Sendo
com alterações manométricas e clínicas sugestivas de pseudo- assim, pacientes que apresentem complexo motor migratório
obstrução intestinal, podem apresentar-se inicialmente sem têm boa possibilidade de tolerar dieta enteral, e aqueles em que
dilatação de alças. está presente a fase III desse complexo têm maior possibilidade
Na POIC primária, mais da metade dos pacientes apresenta de resposta ao uso de procinéticos.
alterações da motilidade esofágica, podendo mimetizar quadros A manometria pode ser utilizada também para detecção de
de acalasia ou espasmo esofágico difuso. segmentos intestinais afetados que devem ser contornados por
Não é incomum a presença de estômagos distendidos e com desvios cirúrgicos. Por exemplo, em casos de acometimento
esvaziamento retardado, e o estudo radiológico contrastado isolado do estômago, a alimentação por jejunostomia pode ser
ajuda a excluir uma causa obstrutiva mecânica para tal, porém considerada. Já quando há dismotilidade acentuada e isolada
sua correlação com o estudo cintigráfico é baixa, permanecen do cólon, uma ileostomia pode permitir a descompressão in
do esse último como o método de escolha para o diagnóstico testinal e possibilitar a alimentação do paciente.
de gastroparesia.
A presença de megaduodeno é característica da forma au- ■ Biopsia intestinal
tossômica dominante de miopatia visceral, sendo ela muitas Apesar de o diagnóstico da POIC ser baseado no quadro
vezes diagnosticada erroneamente como “síndrome da artéria clínico e radiológico do paciente, algumas vezes a exclusão de
mesentérica superior”. obstruções mecânicas pela endoscopia e radiologia não é pos
Para estudo do delgado, o método radiológico mais acura sível, devendo-se então recorrer à laparotomia exploradora.
do é a enteróclise, que consiste na introdução de uma sonda Quando a suspeita de uma obstrução mecânica não se confir
no delgado proximal por onde se injeta contraste e ar, permi ma, devem-se realizar biopsias de espessura total do intestino,
tindo-se estudar a motilidade e a distensibilidade do órgão à colhendo-se material tanto da área dilatada quanto de uma
fluoroscopia. Esse exame, contudo, é bem mais trabalhoso e área de aspecto normal.
desconfortável que o estudo do trânsito intestinal VO, sendo Os fragmentos devem ter pelo menos 2 cm por 2 cm quan
pouco usado em nosso meio. do abertos, possibilitando seu exame por colorações habituais
A observação radiológica de diverticulose intestinal difusa (hematoxilina-eosina e tricrômio de Masson) e especiais (técni
pode estar associada tanto à POIC miopática quanto à neu- ca de coloração pela prata de Smith, imuno-histoquímica para
ropática. a pesquisa de c-kit etc.), a fim de se estudar adequadamente
518 Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal
■ Classificação da pseudo-obstrução -
- C o m r e t a r d a m e n t o m e n ta l
C o m o u tra s a lte ra ç õ e s n e u ro ló g ic a s
DROGAS
O p io id e s , c lo n id in a , fe n o tia z in a s , a n tid e p r e s iv o s t r ic íd ic o s , a lc a ló id e s d a
cólon redundante e megabexiga. Midríase ocorre em mais de idiopática. Dentre os agentes infecciosos envolvidos, podemos
50% dos pacientes. Alguns casos essencialmente assintomáticos citar: o Trypanosoma cruzi da doença de Chagas, o citomegalo-
nessas famílias podem receber o diagnóstico de “megaduodeno vírus, o HIV, o vírus Epstein-Barr e o herpes-zoster.
idiopático” ou “síndrome da artéria mesentérica superior”. O Nas neuropatias não inflamatórias degenerativas, observam-
tipo II representa forma autossômica recessiva, envolvendo of- se, dentre outros aspectos: diminuição da população neuronal,
talmoplegia, múltiplos divertículos no delgado, que se apresenta corpos celulares edemaciados, alterações dendríticas, núcleos
dilatado, e atonia gástrica. Os pacientes do tipo III apresentam vacuolizados, axônios fragmentados, proliferação das células
dilatação de todo o trato gastrintestinal, desde o estômago até gliais, fibrose do plexo nervoso e hipertrofia da muscular pró
o reto. Sua forma de transmissão ainda é incerta, sendo prova pria. Como exemplos, temos a maior parte das neuropatias
velmente autossômica recessiva. esporádicas e familiares.
Os sintomas e o estudo histológico da miopatia primária Em lactentes e crianças, a POIC normalmente resulta de
não familiar são idênticos aos da familiar, ressaltando-se aí a um desenvolvimento anormal do sistema nervoso entérico. Na
dependência da anamnese para diferenciá-las. Há ainda uma maior parte dos casos, os neurônios dos plexos estão presentes
forma congênita de miopatia visceral, habitualmente fatal nos em número usual, porém são qualitativamente anormais, com
primeiros anos de vida. deficiência de neurofilamentos. No outro extremo, há casos em
Dentre as miopatias ligadas às colagenoses, a mais frequen que se nota a ausência da formação de plexos, ou aganglionose.
te é a da esclerodermia, em que cerca de metade dos pacientes Podemos citar, como exemplos de desenvolvimento anormal, a
apresenta distúrbios motores durante a evolução da doença. doença de Hirschsprung e a estenose hipertrófica do piloro.
O órgão mais acometido é o esôfago, observando-se disfagia e A neuropatia visceral primária familiar mais frequente é a
refluxo gastresofágico acentuado, com consequente esofagite doença da inclusão intranuclear neuronal, caracterizada pela
e formação de estenose. O intestino delgado é frequentemen presença de inclusões nos neurônios dos plexos submucoso e
te acometido, o que leva a um quadro de dilatação com estase mioentérico, que sofrem posterior degeneração e desapareci
intestinal, supercrescimento bacteriano e esteatorreia. Apesar mento, o que pode ser verificado no material obtido através de
da dilatação, as válvulas coniventes dispõem-se junto umas das biopsia retal. Essa doença é de transmissão autossômica reces
outras. No cólon, a pressão intraluminal exercida sobre os fo siva, e os sintomas podem incluir déficit mental e disfunção
cos de deposição de colágeno produz sua protrusão, formando autonômica. Outras formas primárias familiares são citadas
divertículos de óstio amplo. As dilatações colônica e gástrica no Quadro 49.1.
também ocorrem com frequência. Entre as doenças que acometem difusamente o sistema ner
A dermatomiosite e a polimiosite podem envolver a voso, devem-se ressaltar a doença de Parkinson e a polineuro-
musculatura lisa do trato gastrintestinal além da esquelética, patia diabética. Na primeira, deve-se considerar sempre, além
com os pacientes podendo apresentar disfagia, distensão ab da doença em si, o uso de drogas de ação anticolinérgica, que
dominal e constipação intestinal. podem agravar a gastroparesia e a constipação intestinal comu-
Na distrofia miotônica, são afetados o esôfago, principal- mente vistas. No diabetes melito, o acometimento do sistema
mente, e, menos frequentemente, o cólon. Nos casos de lúpus nervoso autônomo pode provocar vários sintomas, sendo a
eritematoso envolvendo pseudo-obstrução, descrevem-se como constipação intestinal o mais frequente. Além desta, podemos
achados a dilatação gástrica e duodenal e a diarréia. Acredita-se citar dor abdominal, náuseas, vômito, disfagia leve, diarréia e
que o quadro resulta da vasculite de vasos abdominais gerando incontinência fecal. Chama atenção a gastroparesia diabética,
isquemia intestinal. que pode criar sérios problemas de nutrição e de controle da
As infiltrações da musculatura lisa são bastante raras, ha glicemia.
vendo dúvida, no caso da amiloidose, se as alterações da moti-
lidade se devem à deposição de amiloide na musculatura ou à
lesão do sistema nervoso. ■ DROGAS
Várias são as drogas que podem comprometer a motilidade
■ NEUROPATIAS VISCERAIS do trato digestivo, seja por exercerem uma ação parassimpa-
ticolítica temporária, como no caso dos antidepressivos, dos
A POIC neuropática pode ser classificada em duas formas: bloqueadores dos canais de cálcio e dos antiparkinsonianos e
a) neuropatias inflamatórias, nas quais o sistema nervoso en- opioides, seja por provocarem lesão neuronal, como os catár-
térico é afetado por um mecanismo de resposta imunitária e ticos, a isoniazida e os alcalóides da vinca.
inflamatória; b) neuropatias degenerativas, nas quais se observa
degeneração neuronal sem resposta inflamatória evidente.
As neuropatias inflamatórias caracterizam-se histologica- ■ DISTÚRBIOS METABÓLICOS
mente pela presença de um denso infiltrado inflamatório lin-
foplasmocitário envolvendo os axônios e plexos nervosos, es A constipação intestinal e a distensão abdominal estão fre
pecialmente os mioentéricos, com subsequente degeneração e quentemente associadas ao hipotireoidismo, sendo o vômito
desaparecimento das células nervosas ganglionares. Ao lado da pouco comum. Alguns casos podem sugerir uma obstrução
resposta imunitária celular, evidenciada pela presença predo mecânica do delgado (“íleo mixedematoso”), quadro que pode
minante no infiltrado de linfócitos CD4 (T helper) e CD8 (T ser totalmente revertido com a administração de hormônio
supressor), observa-se uma resposta humoral caracterizada por tireoidiano.
anticorpos antineuronais, como os anticorpos antinucleares A pseudo-obstrução como manifestação do hipoparatireoi-
neuronais (ANNA-1) e anti-Hu. Normalmente, essa forma de dismo, ou do feocromocitoma, é muito rara, sendo descrita
neuropatia é secundária a outras doenças, ocorrendo, por exem em casos isolados. Também cada vez mais raros são os casos
plo, na síndrome paraneoplásica, nas doenças do tecido conjun- de dilatação intestinal e náuseas em pacientes urêmicos des-
tivo e nas doenças infecciosas, podendo, contudo, ter origem compensados.
520 Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal
Na porfiria intermitente aguda, os pacientes podem apre IV, não persistindo seu efeito quando usada de forma contínua
sentar dor abdominal em cólica, náuseas, vômito e constipação devido à taquifilaxia.
intestinal como consequência da neuropatia que se desenvolve A cisaprida teve um sucesso limitado, de forma geral, tendo
nas exacerbações. sido retirada do mercado por seus efeitos cardiovasculares.
O octreotídio é um análogo da somatostatina de ação pro
longada. Em doses de 50 pg SC, estimula o peristaltismo do
■ OUTRAS CONDIÇÕES intestino delgado e inibe o esvaziamento gástrico. Sendo as
sim, deve ser ministrado apenas à noite, pois pode dificultar a
Tumores e infartos do sistema nervoso central podem dar digestão das refeições ingeridas durante o dia. Seu uso parece
origem a distúrbios da motilidade gastrintestinal, uma vez que mais justificado em casos de esclerose sistêmica progressiva,
esta é modulada pela formação reticular ascendente, pelo tron associado ou não à eritromicina.
co cerebral (núcleo ambíguo) e pelo núcleo motor dorsal do Aqueles pacientes que não respondam ao tratamento clínico,
vago. e que tenham alterações segmentares, devem ser encaminha
O trauma raquimedular pode também levar a anormalidades dos à cirurgia. Deve-se lembrar sempre que, antes de operar, é
da motilidade colônica e anorretal e, menos frequentemente, imprescindível um estudo adequado, minucioso, do tubo di
do delgado e do estômago, estas últimas como consequência gestivo, já que o segmento a ser operado pode não ser o úni
da desnervaçâo simpática decorrente. co ou principal responsável pelos sintomas do paciente. Além
Outras causas de pseudo-obstrução intestinal crônica citadas disso, uma vez realizada a cirurgia, o diagnóstico diferencial
na literatura são diverticulose jejunal, doença celíaca, radiação com obstruções mecânicas causadas por aderências dificulta
e bypass jejunoileal. bastante o seguimento do caso.
O tratamento cirúrgico pode significar uma colectomia para
casos de pseudo-obstrução isolada do cólon, duodenojejunos-
■ TRATAMENTO tomia para o megaduodeno, ressecção ou desvio do trânsito de
segmentos disfuncionais isolados, confecção de estornas para
Sendo uma síndrome de causas e manifestações tão varia nutrição enteral e para descompressão do trato gastrintestinal.
das, procura-se sempre basear o tratamento em diagnósticos Em alguns centros avançados, tem-se realizado o transplan
individuais precisos. Deve-se tentar descobrir todos os fatores te intestinal em pacientes com acometimento intestinal acen
causadores relacionados com o quadro, procurando-se atuar tuado, sem doenças de base graves, que dependam de nutrição
naqueles passíveis de correção, o que pode significar uma m e parenteral prolongada, e que apresentem complicações como
lhora significativa para o paciente. perda de acesso venoso central, infecções recorrentes desse
Um exemplo disso é o tratamento das crises de supercres- acesso, ou insuficiência hepática.
cimento bacteriano com antibióticos como levofloxacino, ci-
profloxacino, amoxicilina-ácido clavulânico, riafaximina e me-
tronidazol, muitas vezes possibilitando o controle do quadro
■ LEITURA RECOMENDADA
de diarréia e má absorção nos casos de estase intestinal. O uso Alves, JG & Stanziola, IP. Pseudo-obstrução intestinal. Em: Alves, JG & Dani,
contínuo de antibióticos deve ser evitado, pois promove o cres R. Terapêutica em Gastroentcrologia, Rio de Janeiro, Editora Guanabara
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PARTE VI
Ânus e Reto
Doenças Anorretais
Flávio Antonio Quilici e Lisandra Carolina Quilici
523
524 Capítulo 50 / Doenças Anorretais
parado. A observação é melhor quando feita durante a retirada sistema portal pela veia retal superior, tributária da veia me-
do anuscópio, devendo-se observar: sentérica inferior.
Em 1963, Stelzner criou o termo “corpos cavernosos” para
• O conteúdo do retossigmoide, se está vazio ou com fezes
descrever essa estrutura angiocavernosa que constitui o plexo
(observando suas características);
hemorroidário interno do canal anal. Esses corpos cavernosos
• A presença de sangue, muco e/ou pus;
são sustentados, segundo Thomson, pelas fibras da musculatura
• Se o lúmen intestinal apresenta-se espástico ou esteno- lisa localizada na submucosa do canal anal (descrito por Treitz,
sado; em 1853) e que auxilia, também, a fixá-los nessa localização.
• As características da mucosa - de coloração rósea, su Esses corpos cavernosos permanecem continuamente preen
perfície lisa e brilhante, permitindo a visão do padrão chidos com sangue e murcham apenas no ato evacuatório, para
vascular da submucosa ou se se apresenta inflamada, in- facilitar a passagem das fezes, e, como consequência, também
tumescida e/ou sangrando fácil ao toque do aparelho; e contribuem para a continência fecal, em especial para gases e
• A presença de ulcerações, lesões polipoides ou vegetantes fezes líquidas.
da mucosa retal.
Identificada qualquer afecção anorretal, deve-se medir sua ■ Plexo hem orroidário externo
distância em relação à linha pectínea, para definir sua exata Situa-se no espaço subcutâneo do canal anal, abaixo da li
localização, e biopsiá-la, para confirmação histopatológica do nha pectínea (sentido distai), sendo vascularizado pelos ramos
diagnóstico. Os fragmentos retirados deverão ser colocados terminais das artérias retais inferiores, e drena para a circula
em recipiente com solução de formol a 10% e encaminhados ção sistêmica (veia cava inferior), pelas veias retais inferiores,
para exame. tributárias das veias pudendas e ilíacas internas.
As complicações da retossigmoidoscopia (hemorragia ou Ambos os plexos se comunicam, por apresentarem anasto-
perfuração) são raras. moses arteriovenosas entre si.
Há indicação de se prosseguir a propedêutica, em especial
com a colonoscopia, nos enfermos que: ■ Etiopatogenia
• Apresentarem perda de sangue pelo ânus ou nas fezes; A natureza da doença hemorroidária não é, ainda, com
• Tiverem resultado positivo no teste de sangue oculto nas pletamente conhecida. Vários fatores são importantes na sua
fezes; etiopatogenia:
• Apresentarem presença de pólipos ou alterações infla- ► Veia varicosa. Representada pela dificuldade do esvazia
matórias da mucosa retossigmoidiana; mento sanguíneo do canal anal no ato defecatório, com con
• Sentirem dor abdominal, diarréia e/ou constipação in gestão e dilatação dos corpos cavernosos.
testinal; ► Degenerativa. Presença de prolapso anormal do plexo
• Possuírem antecedentes pessoais e/ou familiares de doen hemorroidário interno, durante a evacuação, por deficiência
ças neoplásicas; de sua fixação pela musculatura longitudinal da submucosa
• Forem pertencentes a grupo de risco para câncer color- (músculo de Treitz).
retal (ver Quadro 50.1). ► Mecânica. Caracterizada pelo excessivo esforço defecató
rio e/ou pela dieta pobre em resíduos (fibras) e pouca ingestão
de líquidos, que pode acarretar o endurecimento das fezes e
■ DOENÇA HEM0RR0IDÁRIA aumentar ainda mais o esforço evacuatório.
► Hiperplasia vascular. A presença de hiperplasia dos cor
É afecção das mais frequentes, sendo, porém, impossível pre pos cavernosos do canal anal que poderá ocasionar sua dila
cisar sua real prevalência. Incide em ambos os sexos, em todas tação e aumento.
as raças e idades, com maior incidência na quarta década de ► Hemodinâmica. Pela presença das comunicações arterio
vida, ocorrendo raramente na infância e adolescência. venosas, muito calibrosas, na submucosa do canal anal, facili
A doença hemorroidária surge quando há congestão, dilata- tando o aumento e dilatação dos corpos cavernosos.
ção e aumento dos corpos cavernosos do canal anal formando ►Disfunção do esfíncteranal interno. Hiperatividade do
grandes emaranhados vasculares, submucosos e/ou subcutâ- esfíncter anal interno do ânus com hipertonia ocasionando
neos, flexíveis, que se enchem de sangue, constituindo os ma distensão dos corpos cavernosos.
milos hemorroidários. Na etiopatogenia da doença hemorroidária, é importante
considerarem-se, também, seus fatores desencadeantes e agra
vantes.
■ Anatomia Os agravantes estão relacionados com hábitos defecatórios
A vascularização da região anorretal é constituída por uma errôneos, tais como: insistência em evacuar todos os dias, es
rica rede de arteríolas e vênulas que se comunicam diretamente, forçar-se para defecar em um determinado horário por con
formando os corpos cavernosos e chamados de plexos hemor veniência ou forçar o esvaziamento total do conteúdo retal de
roidários, um interno e outro externo no canal anal. uma só vez.
Seus fatores desencadeantes são: constipação intestinal, abu
■ Plexo hem orroidário interno so de laxativos (em especial, os catárticos), diarréia crônica,
Localiza-se no espaço submucoso do canal anal, acima da gravidez (pelo aumento da pressão intra-abdominal), e a posi
linha pectínea (sentido proximal), sendo formado por uma rede ção bípede do ser humano.
de vasos sanguíneos calibrosos. É vascularizado pelos três ra Não há remissão espontânea para a doença hemorroidá
mos terminais da artéria retal superior, dois à direita (um an ria; uma vez manifestada e sem tratamento, sua evolução é
terior e outro posterior) e um lateral esquerdo. Drena para o progressiva.
526 Capítulo 50 / Doenças Anorretais
Figura 50.1 Esquema da localização no canal anal dos três mamilos hemorroidários internos principais: anterior e posterior direitos e lateral
esquerdo.
Figura 50.2 Visão à anuscopia, acima da linha pectínea ou proximal Figura 50.3 Mamilo hemorroidário interno de 2° grau, prolabado para
a ela, de mamilo hemorroidário interno de 1° grau que não prolaba à o exterior do canal anal ao esforço evacuatório, porém retraindo-se,
evacuação ou aos esforços. (Esta figura encontra-se reproduzida em espontaneamente, cessado esse esforço. (Esta figura encontra-se re
cores no Encarte.) produzida em cores no Encarte.)
Capítulo 50 / DoençasAnorretais 527
Figura 50.4 Presença de mamilos hemorroidários internos de 3° grau, Figura 50.6 Presença de mamilos hemorroidários externos (abaixo da
proiabados para o exterior do canal anal ao esforço evacuatório, porém linha pectínea ou distai a ela) no canal anal. (Esta figura encontra-se
não retornando, espontaneamente, cessado esse esforço, e necessitan reproduzida em cores no Encarte.)
do ser recolocados digitalmente. (Esta figura encontra-se reproduzida
em cores no Encarte.)
Figura 50.5 Mamilo hemorroidário interno de 4Ugrau prolabado, per Figura 50.7 Presença de mamilos hemorroidários, internos e externos,
manentemente, para o exterior do canal anal, sem possibilidade de chamados de mistos. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
ser recolocado para seu interior. (Esta figura encontra-se reproduzida no Encarte.)
em cores no Encarte.)
tipo de higiene anal utilizado pelo enfermo, como, por exem tites, papilites ou abscessos), doenças inflamatórias, tumores
plo, o uso de papel higiênico. benignos ou malignos do canal anal e tumores retais prolaba
Esse sangramento ou enterorragia é, com frequência, inter dos benignos.
mitente e, não raro, a principal causa da consulta médica. Ele
é esporádico, em geral acontecendo em crises curtas de dias,
pouco volumoso e relacionado com a evacuação. Essa perda
■ Tratamento
sanguínea, discreta e contínua, quando frequente, pode acar O tratamento da doença hemorroidária depende de haver
retar anemia ferropriva. A enterorragia volumosa causada pela sintomas e de seu tipo e gravidade. A que não ocasiona sinto
doença hemorroidária é rara. mas ao paciente não necessita de tratamento específico, mas
Por serem bastante similares, é fundamental diferenciar esse somente de cuidados higiênico-dietéticos.
sangramento originado da doença hemorroidária daquele oca Para o sucesso do tratamento da doença hemorroidária, é
sionado pelos tumores colorretais, pelas doenças inflamatórias fundamental que o médico tenha conhecimento adequado da
intestinais, pela fissura anal etc. sua fisiopatologia, de suas várias formas de apresentação clínica,
grande familiaridade com a anatomia do canal anal, habilidade
■ Prolapso técnica e, sobretudo, experiência e competência com as várias
Caracteriza-se pela exteriorização do mamilo hemorroidário técnicas para sua abordagem.
interno, para fora do canal anal, durante o ato evacuatório ou
durante as atividades físicas. Ele deve ser diferenciado da papila ■ T r a t a m e n t o c lín ic o
anal hipertrófica prolapsada, do pólipo retal baixo que se exterio- O tratamento clínico pode ser indicado quando a doença
riza pelo canal anal e da procidência retal que se caracteriza pela hemorroidária acarreta sintomas discretos e esporádicos ao pa
protrusão de todas as camadas do reto para o exterior do ânus ciente, com longos períodos de acalmia. Está indicado, também,
(no prolapso, há apenas a exteriorização da mucosa retal). nas gestantes com doença hemorroidária não complicada, em
especial no terceiro trimestre. Em doentes terminais, cirróti-
■ E x s u d a ç ã o p e r ia n a l cos, cardiopatas graves ou com importante comprometimento
Corresponde à umidade da pele perianal causada pela pre do estado geral.
sença de muco nessa região, decorrente, sobretudo, da irritação Ele compreende os seguintes cuidados:
da mucosa dos mamilos hemorroidários internos prolabados. ► Medidas higiênico-dietéticas. Orientar os hábitos eva
Acompanha-se, em geral, pela dermatite e pelo prurido anal. cuatórios do paciente, tais como o fato de evacuar sempre que
sentir desejo. Provocar amolecimento das fezes e diminuição
■ D e s c o n fo rto a n a l do tempo de trânsito intestinal, evitando o trauma local e o
Durante ou após a evacuação, pode haver uma pressão anal, esforço evacuatório. É importante a proibição do uso de laxa
definida pelo paciente como um desconforto, porém sem dor tivos, em especial dos catárticos. Orientar a utilização de uma
anal, porque a simples presença de doença hemorroidária não dieta rica em fibras (farelos, germe de trigo etc.) na dose diária
dói. de 20 a 30 g, também incluindo verduras cruas e cozidas, legu
A presença de dor no canal anal concomitante à doença mes, frutas (mamão, laranja com bagaço etc.). Indicar a inges
hemorroidária ou é causada pelas suas complicações, como a tão abundante de líquidos (aproximadamente 2 ^/dia) e evitar
trombose vascular (endoflebite), o hematoma, ou pela presença bebidas alcoólicas, pimentas e condimentos pela ação irritante
concomitante de outras enfermidades dolorosas dessa região, sobre a mucosa do canal anal.
como a fissura anal, a infecção perianal (criptite, papilite ou Nos pacientes com constipação intestinal, devem-se acres
abscesso), as lesões inflamatórias ou tumorais. centar auxiliares da evacuação, tais como: mucilagem, metil-
celulose e semente de plantago.
■ Diagnóstico ► Cuidados locais. Deve-se proibir a utilização de papel
higiênico para limpeza anal, substituindo-o por banhos de as
É realizado por meio de anamnese pormenorizada dos sin sento com água morna.
tomas e sinais anteriormente mencionados, além da avaliação ► Medicação tópica. É indicada para aliviar o desconforto
dos hábitos evacuatórios e alimentares dos pacientes, do uso de local, fazendo-se uso de pomadas e/ou supositórios à base de
laxativos, da existência de doenças anteriores ou de cirurgias anestésicos e anti-inflamatórios.
no trato digestivo. Deve-se questionar, também, a existência ► Drogas vasoativas. A administração oral de drogas va-
de doenças gastrintestinais nos familiares. soativas na doença hemorroidária está indicada para comple
Nas enfermidades agudas e dolorosas, como na trombose mentar o tratamento clínico e, muitas vezes, também, nas crises
hemorroidária, o exame proctológico deverá limitar-se ao mí de agudização.
nimo necessário para confirmar o diagnóstico, sem agravar o
sofrimento do paciente. ■ T r a t a m e n t o c i r ú r g ic o
O exame proctológico deverá seguir a sequência indicada O tratamento curativo da doença hemorroidária é cirúr
anteriormente. gico. No entanto, para a obtenção de bons resultados é ne
cessária a combinação de uma indicação cirúrgica criteriosa,
■ D ia g n ó s t ic o d i f e r e n c ia l de técnica operatória apurada e de cuidados pós-operatórios
Visto que para os leigos, sob a designição de “hemorroi- adequados.
das”, é incluída, com frequência e erroneamente, uma gran Vários métodos terapêuticos podem ser utilizados, desde os
de variedade de doenças anorretais, é importante proceder-se, mais conservadores aos mais radicais.
com especial cuidado e atenção, ao diagnóstico diferencial da O tratamento cirúrgico tem como objetivo a realização de
doença hemorroidária com as seguintes enfermidades: proci um procedimento que seja de execução simples, que acarrete
dência retal, papila anal hipertrófica, hemangiomas perianais, mínima ou nenhuma dor, que permita uma evacuação fisio
condiloma, plicomas, fissura anal, processos infecciosos (crip- lógica, tenha baixa morbidade e mínima mortalidade, além de
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 529
■ Q u a d r o c lín ic o
A dor local é o principal sintoma, de aparecimento abrupto,
com intensidade variável, frequentemente contínua e que rara
mente se altera com a evacuação. Essa dor costuma permanecer
por 2 a 3 dias consecutivos, quando, então, tende a diminuir,
concomitante à dissolução do hematoma, que acaba por desa
Figura 50.8 Presença de trombose hemorroidária com extenso pro parecer após 7 a 10 dias.
cesso inflamatório endoflebítico e intenso edema local. (Esta figura Os hematomas perianais, em especial os com nódulos maio
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) res que 2 cm, permanecem, em geral, por um período maior
C a p ít u lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 531
■ Anatomopatologia
Caracteriza-se por uma lesão ulcerada linear situada no ano
derma do canal anal, que raramente ultrapassa a linha pectínea
e a anocutânea. Sua localização predominante é na região pos
terior do canal anal, correspondendo a 85,5% em nossa casuís
tica. A fissura anterior ocorre em cerca de 10,5% dos enfermos
e a simultaneidade de ambas, anterior e posterior, em 4% deles,
sendo sua localização lateral rara.
Essas localizações estão relacionadas com fatores anatômi
cos do canal anal, tais como, a elasticidade reduzida em algu
mas de suas regiões, sobretudo na comissura posterior, fato
Figura 50.9 Visão de hematoma perianal como nódulo no anoderma que impede sua adequada dilatação à evacuação, e a vascula-
do canal anal de coloração azulada. (Esta figura encontra-se reprodu rização menos intensa, também na região posterior, que pode
zida em cores no Encarte.) ocasionar isquemia ou dificuldade de cicatrização nesta região
do canal anal.
A fissura anal pode acarretar um processo inflamatório lo
e, após dissolverem-se, podem resultar em um excesso de pele cal, em cerca de 30% dos enfermos, e este fato pode provocar
perianal, denominado plicoma residual. alterações secundárias, tais como edema e/ou infecção discreta,
Às vezes, pode ocorrer ulceração da pele que recobre o he que levam à formação de um plicoma sentinela na borda da pele
matoma, e essa ruptura provoca a eliminação espontânea dos e de uma papila anal hipertrófica na linha pectínea. Quando
coágulos extravasais, aliviando de imediato seus sintomas. Este simultâneas, os enfermos são portadores da “tríade fissurária”
sangramento perianal, no entanto, pode preocupar o paciente, (Figura 50.10).
fazendo-o procurar orientação médica. Com o tempo, a lesão fissurária vai se aprofundando no
anoderma, até alcançar o músculo esfíncter anal interno, que
■ D ia g n ó s t ic o
passa a ser seu assoalho. Isso agrava a dor local, acarretando o
A anamnese é bem característica, com o paciente referindo a espasmo esfincteriano reflexo contínuo e responsável pela di
presença de um ou mais nódulos dolorosos na região perianal, ficuldade evacuatória subsequente.
de aparecimento abrupto.
A infecção da lesão pode ocorrer em qualquer momento e
À inspeção estática, observa-se um ou mais nódulos, dolo estender-se para os tecidos adjacentes, formando um abscesso
rosos ao toque, de tamanhos variados, em geral de cor azulada.
interesfincteriano ou perianal. Quando esse abscesso drena es
O exame proctológico deverá ser completo, embora, em alguns
pontaneamente, produz uma fístula baixa.
enfermos, a dor o impeça. Nesses casos, ele deverá ser comple
tado após a melhora dos sintomas.
■ Etiopatogenia
■ Tra ta m e n to
Embora controversa, apresenta vários fatores que são cau
Pela tendência de os hematomas perianais dissolverem-se ou
romperem-se espontaneamente, seu tratamento é conservador, sais, desencadeantes e agravantes.
objetivando a diminuição da dor local, a eliminação do nódulo
(hematoma) e evitando sua recidiva. Prescrevem-se banhos de
assento mornos, analgésicos e anti-inflamatórios tópicos e orais,
correção da higiene anal e auxiliares da evacuação.
Os nódulos maiores, com dor anal intensa e que não dimi
nuem após 48 h de abordagem clínica, devem ter tratamento
cirúrgico. A excisão do hematoma perianal poderá ser feita
em regime ambulatorial, sob anestesia local. As complicações
pós-operatórias são raras, os cuidados da ferida cirúrgica são
simples (limpeza local e uso de pomada analgésica tópica) e a
recuperação do enfermo é rápida.
■ FISSURA ANAL
Abordaremos neste tópico, somente, as fissuras anais ines-
pecíficas associadas a traumas do anoderma e hipertonia do
esfíncter anal interno reflexa (estímulo simpático). Sua incidên
cia é universal, benigna, acometendo ambos os sexos e todas as
faixas etárias. Das enfermidades proctológicas, porém, poucas Figura 50.10 Lesão ulcerada posterior acompanhada por plicoma
causam tanta dor e sofrimento, a despeito do seu pequeno ta sentinela e papila hipertrófica (interna) caracterizando a "tríade fissu-
manho. Mesmo na fase aguda, quando não passa de mera esco rária". (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
532 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is
► Fator traumático. É considerado o mais importante e re ► S a n g r a m e n t o . A lesão fissurária produz um sinal comum,
lacionado com o esforço evacuatório, a constipação intestinal o sangramento anal, de cor vermelho-rutilante, sempre rela
crônica, a passagem de fezes endurecidas ou diarreicas, o uso cionado com a evacuação, podendo ocorrer por meio do seu
de papel para higiene local que pode produzir uma ruptura do gotejamento no vaso sanitário, visível no papel higiênico ou
epitélio de revestimento do ânus, ou seja, a lesão fissurária. Essa depositado nas fezes. É mais frequente na fissura aguda, dimi
lesão provoca a estimulação das terminações sensoriais do ano- nuindo com a fissura crônica. Esse sangramento associado à
derma do canal anal, levando à contínua excitação reflexa do dor no ânus costuma preocupar o enfermo e induzi-lo a pro
esfíncter anal interno, acarretando espasmo e, em consequên curar auxílio médico.
cia, sua hipertonia. Essa hipertonia do esfíncter anal interno é ► Irritação perianal. Poderá haver irritação perianal asso
bem caracterizada na eletromanometria anorretal. ciada ou não ao prurido local, resultantes da presença de se
A passagem das fezes pelo canal anal, durante o ato defe- creção advinda da eliminação de muco pela lesão fissurária
catório, produz a distensão das fibras musculares lisas desse inflamada.
esfíncter e estimula a sensibilidade dolorosa local. A conscien ► Infecção local. Na fissura anal, às vezes, surge uma com
tização da evacuação dolorosa inicia um mecanismo reflexo, plicação - a infecção do leito fissurário - resultante de um
tanto voluntário quanto involuntário, de inibição da evacuação, processo inflamatório pela passagem das fezes. Essa infecção
provocando o ressecamento das fezes, que, quando expelidas do leito fissurário poderá atingir as criptas anais e, como con
endurecidas, podem traumatizar ainda mais o anoderma. Este sequência, contaminar as glândulas mucossecretoras anais
fato agrava a lesão fissurária, dificultando sua cicatrização. (glândulas de Chiari), originando um abscesso perianal. Esses
► Fator anatômico. No quadrante posterior do canal anal, abscessos quando drenados, espontaneamente ou não, permi
há um ponto de fraqueza chamado “espaço de Brick”, formado tem a formação de uma fístula perianal. Realmente, no exa
pela confluência das fibras do músculo esfíncter anal interno e me proctológico de muitas fistulas anais, pode-se identificar
das fibras transversas do músculo esfíncter anal externo, local o processo inflamatório como tendo iniciado em uma fissura
onde pode haver a ruptura do anoderma durante o ato eva anal cicatrizada.
cuatório. Quando o ânus se abre para a passagem das fezes, é
■ C la s s if ic a ç ã o d a f is s u r a a n a l
nesse ponto onde há a menor distensibilidade, tornando-o mais
vulnerável ao trauma, fato que justifica a maior incidência da É classificada, de acordo com a duração de seu quadro clí
nico, em aguda ou crônica.
lesão fissurária na região posterior do canal anal.
► Fator vascular. A comissura posterior é menos vascu- ► Fissura anal aguda. Caracteriza-se por uma lesão em for
ma de fenda, estreita e superficial, sem elevação das bordas e
larizada, quando comparada às outras regiões do ânus, como
com curto período de sintomas, variando de dias a 2 ou 3 me
demonstraram diversos autores, tais como, Klosterhalfen et al.,
ses (Figura 50.11).
por meio de dissecções anatômicas em 85% dos casos; Schouten
et a l, pela avaliação do fluxo sanguíneo da sua circulação com
► Fissura anal crônica. À medida que a fissura anal apresen
ta sintomas por períodos prolongados ou recidivantes, a lesão
o uso de “ecodoppler a laser” e Klug et al. (apud Quilici, FA),
torna-se mais profunda, com bordos bem definidos e salientes,
por meio da medida da pressão parcial de oxigênio do canal
caracterizando sua fase crônica, em geral com mais de 6 meses
anal. Essa redução do fluxo sanguíneo pode levar à isquemia da de duração. Nesta, há perpetuação da hipertonia do esfíncter
região posterior, contribuindo para o aparecimento da fissura
anal interno e, algumas vezes, podem-se até observar as suas
anal, em seu quadrante posterior com maior frequência. Deve- fibras musculares transversais no fundo da ulceração de colo
se salientar que a hipertonia esfincteriana nos pacientes com ração branca (Figura 50.12).
fissura anal também reduz o fluxo sanguíneo na linha poste
rior do anoderma. É por isso que a esfincterotomia, reduzindo
a pressão anal, melhora a vascularização na região posterior e
possibilita a sua cura.
■ Quadro clínico
O quadro clínico da fissura anal caracteriza-se por:
► Dor anal. Seu principal sintoma é a dor anal intensa, pe
netrante e aguda, do tipo latejante ou em queimação, durante e
após as evacuações. Ela produz a sensação de estar rasgando ou
cortando o ânus de forma aguda durante a passagem das fezes.
Muitas vezes, essa dor se estende de forma espasmódica até a
região genital, às costas ou aos membros inferiores, podendo
manter-se por horas depois da evacuação. A dor apresenta in
tensidade máxima durante ou imediatamente após a evacuação
ou a distensão do canal anal, pela grande sensibilidade do ano
derma a estímulos dolorosos, em vista de suas inúmeras termi
nações nervosas e frequente exposição das fibras do músculo
esfíncter anal interno pela lesão.
► Obstipação intestinal. O receio da defecação doloro
sa causada pela “dor antecipada” faz o paciente não evacuar,
adiando a defecação sempre que possível e, com isso, induzindo Figura 50.11 Lesão fissurária do canal anal em forma de fenda, estreita
a obstipação e, em consequência, o uso abusivo de laxativos, e superficial de localização posterior (aguda). (Esta figura encontra-se
ambos agravando seu quadro doloroso. reproduzida em cores no Encarte.)
C a p ít u lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 533
■ Tratamento
Na Antiguidade, Hipócrates (460 a.C), para diminuir a dor
Figura 50.12 Fissura ulcerada com bordos bem definidos, com expo
da fissura anal, recomendava o tratamento local com banhos de
sição das fibras brancas transversais do músculo esfíncter anal interno
(crônica). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) água quente e a proibição de pimentas na dieta. Não obtendo
melhora, indicava sua cauterização com ferro em brasa.
A cauterização local com solução de nitrato de prata, ou por
meio de injeções esclerosantes, foi utilizada até recentemente,
O exame histopatológico da fissura anal nesta fase mostra assim como as dilatações digitais forçadas, todas com resulta
infiltrado inflamatório crônico inespecífico com áreas necró- dos insatisfatórios.
ticas, além de tecido fibrótico na sua base.
■ T r a t a m e n t o c lín ic o
Atualmente, na presença de fissura anal aguda, quando a hi
■ Diagnóstico pertonia do músculo esfíncter anal interno não é muito intensa,
Seu diagnóstico é, com frequência, fácil e simples. Na anam- propõe-se o tratamento conservador. Para tal, atua-se sobre as
nese, a queixa de dores anais intensas, durante e/ou imediata causas da dor da fissura, obtendo-se, em consequência, o rela
mente após a defecação, do tipo latejante e/ou em queimação, xamento anal e a cicatrização da lesão.
já permite essa suspeição. A introdução de dieta rica em fibras e água em quantidades
Mediante o afastamento das nádegas e da exposição cuida adequadas para manter as fezes macias e bem formadas e au
dosa do canal anal para inspeção, observa-se lesão ulcerada no xiliares da defecação, tais como sementes de plantago e muci-
anoderma, de forma elíptica, medindo, em geral, 10 a 20 mm lagens, estão indicados. Proíbe-se o uso de papel higiênico na
de extensão, no eixo longitudinal do canal anal. Pode haver limpeza local, condimentos, bebidas alcoólicas e a utilização
associação, ou não, de plicoma sentinela. A fissura anal, em de laxativos catárticos.
geral, é única. Nos casos em que são múltiplas ou localizadas Na fase aguda, os banhos de assento em água morna produ
fora da linha média, deve-se afastar sua relação com afecções zem o relaxamento do esfíncter anal interno, melhorando sig
sistêmicas de manifestação no canal anal. nificativamente a dor e o espasmo reflexo com alívio imediato.
O exame digital do ânus é, também, muito doloroso e o to Emprega-se a aplicação de pomadas tópicas, que são superio
que retal, com frequência, só é possível após analgesia local. Ao res ao uso de supositórios, para combater a dor, o prurido e a
realizá-lo, deve-se observar a presença ou não de papila hiper- infecção. Pode-se associar o uso de anestésicos endoanais, na
trófica e verificar a intensidade do espasmo esfincteriano. forma de enemas. Evita-se o emprego de pomadas contendo
É importante lembrar que o exame proctológico completo corticoides, por possuírem propriedades inibidoras da prolife
deve sempre ser realizado na procura de enfermidades anor ração celular que alteram a cicatrização e epitelização.
retais associadas, em especialmente nos pacientes idosos, po Ainda com o objetivo de evitar seu tratamento cirúrgico,
rém, apenas, após analgesia local ou posteriormente, quando que, apesar de simples, não é isento de complicações, novas
da melhora do quadro doloroso. terapêuticas têm possibilitado a cicatrização de até 70% das
fissuras anais agudas, segundo nossa experiência e semelhan
■ D ia g n ó s t ic o d i f e r e n c ia l te à dos dados da literatura. É a denominada "esfincterotomia
Algumas enfermidades anorretais podem assemelhar-se, química”, que visa ao relaxamento esfincteriano temporário,
morfologicamente, à fissura anal, sendo importante realizar apenas para permitir a cura da fissura, sem a ruptura perma
seu diagnóstico diferencial. As principais são: nente da função esfincteriana normal.
► Carcinomas do canal anal. O diagnóstico diferencial com Os conhecimentos da fisiologia do canal anal e dos meca
os carcinomas do canal anal, embora de incidência rara, é mui nismos de controle da contração muscular lisa permitiram a
to importante. manipulação farmacológica do tônus esfincteriano. O relaxa
534 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is
mento da musculatura lisa anal é inibido por estimulação dos ■ Esfincterotomia posterior
plexos entéricos não colinérgicos e não adrenérgicos, de recep É realizada no próprio leito da fissura anal. A técnica, descri
tores muscarínicos parassimpáticos, de beta-adrenorreceptores ta por Eisenhammer (1951), consiste em seccionar-se o músculo
simpáticos e pela inibição da entrada de cálcio na célula. O esfíncter interno do ânus, por meio de uma incisão na linha
bloqueio da liberação dos receptores da acetilcolina ocasiona média da parede posterior do canal anal, diretamente no leito
inibição da contração do músculo esfíncter interno do ânus, da fissura, deixando a ferida aberta para cicatrização por se
inibindo seu espasmo e consequente hipertonia. gunda intenção.
locais com banhos de assento com água morna, pomada anti- -----------------------▼----------------------
inflamatória e analgésica, além da proibição do uso de papel Q u a d ro 50.2 A fe c ç õ e s c r ip t o g la n d u la r e s : e t io p a t o g e n ia
higiênico para limpeza local, uso de bebidas alcoólicas e de
alimentos condimentados. 1. Criptite
Trauma na cripta anal
2. Abscesso anorretal
Contaminação da glândula anal
■ PROCESSOS INFLAMATÓRIOS E INFECCIOSOS 3. Ffstula anorretal
Drenagem do abscesso
Os processos inflamatórios e/ou infecciosos acometem, com
frequência, a região anorretal, independentemente da idade ou
do sexo do enfermo. Têm como fatores predisponentes seu es
tado geral, a presença de doenças associadas, como o diabetes A criptite e o abscesso perianal, portanto, são as fases agu
melito, ou enfermidades que alteram seu sistema imunológi- das e, a fístula, a fase crônica de um mesmo processo infeccioso
co, tais como, a AIDS, os linfomas, a leucemia, ou, mesmo, os anorretal (Quadro 50.2).
pacientes transplantados ou submetidos à quimioterapia e à
radioterapia. ■ Papilites
A fase aguda de um processo inflamatório da papila anal
■ Etiopatogenia poderá acarretar o aumento de seu volume, com alargamen
Suas causas mais frequentes são: to de sua base, em decorrência do edema e da congestão. De
► Doenças intestinais. Processos inflamatórios e/ou infec acordo com a duração desse processo, ela poderá cronificar-se,
ciosos podem ocorrer na região anorretal decorrentes de en originando a papilite crônica, em geral com aumento do seu
fermidades sistêmicas que acometem os intestinos, tais como, tamanho e, por isso, denominada papila hipertrófica.
doença de Crohn, retocolite ulcerativa, tuberculose intestinal
e actinomicose ■ Quadro dínico
► Traumas. Lesões anorretais provocados por empalamen- Seus sintomas são geralmente vagos e relatados pelo pacien
tos, corpos estranhos (osso de galinha, espinha de peixe etc.), te como um incomodo anal, discreto ardor ou, mesmo, dor na
quedas a cavaleiro sobre o canal anal, agressões sexuais etc. região anal, que pioram com a defecação. Quando o tamanho
podem ocasionar processos infecciosos desta região, por vezes da papila ultrapassar 10 mm, ela poderá prolabar à evacuação.
com alta morbidade. Esse fato confunde-se com doença hemorroidária.
► Complicações pós-operatórias de cirurgias anorretais.
A falta de cuidados pós-operatórios, tais como, a limpeza local, ■ Diagnóstico
com as feridas cirúrgicas realizadas no canal anal pode causar Na fase aguda da papilite, seu diagnóstico é realizado pelo
quadros infecciosos, às vezes graves, desta região. toque retal, no qual se palpa, na região da linha pectínea, a pre
► Doenças malignas. Tumores, como o carcinoma, o lin- sença de formações mamelonadas, únicas ou múltiplas, sensí
foma etc., podem manifestar-se como lesões infecciosas anor veis ao toque. À anuscopia, poderá se ver e confirmar a presença
retais. dessas papilas edemaciadas e congestas, em geral com volume
► Radioterapia. As lesões actínicas provocadas pela irradia aumentado (Figura 50.13).
ção pélvica e/ou perineal também podem ocasionar processos
infecciosos anorretais.
► Criptoglandular. A inflamação da região criptoglanduiar
do canal anal é a causa mais comum dos processos infecciosos
anorretais. Por ser a mais importante e frequente, responsável
por cerca de 80% de todas as infecções anorretais, será o que
abordaremos com mais detalhes. No entanto, a maioria dos con
ceitos que serão relatados valerá para as suas demais causas.
■ Infecções criptoglandulares
As infecções anorretais de origem criptoglandular têm como
seu fator desencadeante o traumatismo local, como, por exem
plo, a passagem de fezes endurecidas pelo canal anal, por quadro
diarreico intenso ou pelo uso de papel higiênico para limpeza
local. Esse trauma poderá acarretar uma lesão com solução de
continuidade nessa região, propiciando um processo inflamató-
rio e sua consequente invasão por microrganismos da microbió-
tica colônica, originando um processo infeccioso agudo local.
Quando a inflamação/infecção acometem as papilas anais,
originam as papilites e, quando acometem as criptas anais, cau
sam as criptites.
Se, durante a criptite, esse processo alcançar também o dueto
de uma das glândulas anais, poderá contaminá-lo, com forma
ção de um abscesso perianal. Havendo ruptura desse abscesso, Figura 50.13 V is á o à a n u s c o p ia d e p a p ila s a n a is e d e m a c ia d a s , c o n
espontaneamente ou por drenagem cirúrgica, isso poderá oca g e s t a s e a u m e n t a d a s d e t a m a n h o . (E sta fig u ra e n c o n t r a - s e r e p ro d u z id a
sionar uma fístula perianal. e m c o r e s n o E n c a r te .)
536 Capítulo 50 / Doenças Anorretais
As papilas hipertróficas, pelo tamanho que podem atingir, É im portante acompanhar a evolução do enfermo, pois,
poderão exteriorizar-se pelo ânus, à evacuação, facilitando seu não havendo melhora do quadro clínico, no máximo até 7 dias
diagnóstico. Entretanto, o diagnóstico diferencial das papilites, de tratamento clínico, deverá ser indicada a cirurgia. Nestes
especialmente da papilite hipertrófica (crônica), deverá ser feito casos, deverá realizar-se a exploração das criptas anais com
com a doença hemorroidária e os pólipos retais prolabados. A estilete cirúrgico, sob anestesia local ou bloqueio medular. As
diferenciação se faz pelo aspecto característico das papilas e sua criptas que estiverem pérvias à introdução do estilete deverão
localização na linha pectínea do canal anal, junto às bordas das ser cauterizadas ou ressecadas. Havendo a presença concomi
criptas anais e nas bases das colunas de Morgagni. tante de plicomas perianais, papilas hipertróficas ou mamilos
hemorroidários, eles poderão ser ressecados no mesmo ato
■ Tratam ento cirúrgico.
Na fase aguda da papilite, seu tratamento é clínico, por meio
de anti-inflamatórios orais, de pomadas ou supositórios anal
gésicos e anti-inflamatórios, calor local por bolsa quente e/ou
■ Abscessos
banhos de assento em água morna. Nestes casos, deve-se auxi Os abscessos são processos infecciosos agudos, supurativos,
liar a evacuação, sobretudo nos pacientes idosos, que são fre caracterizados por coleções purulentas na região anorretal. Sua
quentemente constipados, por meio de dieta rica em fibras etiologia principal é a criptoglandular, pela infecção de uma
e/ou com uso de mucilagens, plantago e proibindo-se a higiene cripta anal e consequente contaminação glandular.
anal com papel. As glândulas anais, também chamadas de glândulas de
O tratamento cirúrgico é indicado, somente, para a papilite Chiari, localizam-se no canal anal, no espaço existente entre
hipertrófica (crônica) que causa sintomas importantes. Consiste os músculos esfincterianos anais, interno e externo. Elas são em
na sua ressecção, que poderá ser efetuada, sob anestesia local, número de oito a doze, e seus duetos desembocam nas bases
em regime ambulatorial ou em ambiente hospitalar. das criptas anais. É por esses duetos que ocorre a contaminação
glandular, originária de uma criptite preexistente. A infecção
glandular pode espalhar-se, do espaço interesfincteriano do
■ Criptites canal anal às mais variadas direções adjacentes. A classifica
A cripta anal predispõe-se aos traumatismos no canal anal ção dos abscessos é feita, conforme sua localização anatômica,
por causa de sua forma anatômica e da fragilidade de suas pa em perianais, isquiorretais, submucosos, interesfincterianos e
redes, fatos que facilitam a infecção. pelvirretais (Figura 50.14).
Suas principais características são:
■ Quadro clínico ► Abscessos perianais. São os de diagnóstico, em geral,
Caracteriza-se por desencadear desde discreto ardor até dor mais fácil, os mais frequentes, menos agressivos e de tratamento
na região anal. Essa dor, quando intensa, é do tipo pulsante e cirúrgico mais simples.
contínua, piorando à evacuação, sendo, às vezes, acompanhada ► Abscessos isquiorretais. Propagam-se ao lado oposto
da eliminação de secreção perianal de muco ou mesmo purulen- pelo espaço retroesfincteriano e, quando drenados, originam
ta, nas formas mais graves. Poderá ocorrer, também, a sensação as fístulas denominadas “em ferradura”, tornando seu trata
de peso no canal anal e de evacuação incompleta. mento cirúrgico mais complexo. Nesses casos, deve-se sempre
diferenciá-los das doenças inflamatórias, como da doença de
■ Diagnóstico Crohn anorretal.
Poderá ser realizado se, à inspeção anal, houver a presença ► Abscessos submucosos. São processos infecciosos, em
de secreção de muco ou de pus. O toque retal contribui pouco geral, pouco agressivos. Provocam, com frequência, um abau-
para o diagnóstico, pois a dor que acarreta provoca contratura lamento na mucosa da ampola retal e, por isso, podem ser diag
esfincteriana reflexa, que dificulta o exame proctológico. nosticados ao toque retal. Seu tratamento cirúrgico é realizado
A anuscopia, quando possível, ou seja, quando a dor duran pela via transanaJ.
te sua realização for suportável pelo enfermo, poderá mostrar
congestão, enantema e edema em uma região da linha pectínea.
A passagem do anuscópio pelo canal anal poderá, também, pro
vocar a eliminação de pus pela cripta infectada, o que poderá ser
observado durante esse exame. A retossigmoidoscopia deverá,
sempre que possível, completar o exame proctológico, permi
tindo avaliar a presença de enfermidades concomitantes.
Seu diagnóstico diferencial deverá ser efetuado com as ou
tras infecções do canal anal.
■ Tratam ento
As criptites agudas, com frequência, têm regressão espon
tânea. Entretanto, as mais intensas levam o paciente a procu
rar atendimento médico. Seu tratamento é clínico, na maioria
dos pacientes, mediante antibioticoterapia oral (ciprofloxacino,
500 mg oral, 2 vezes/dia, durante 7 dias), pomadas ou suposi
tórios analgésicos e anti-inflamatórios, calor local com bolsa
quente e banhos de assento em água morna. Deve-se, também,
auxiliar a evacuação com dieta rica em fibras e/ou com plantago, Figura 50.14 L o c a liz a ç ã o e s q u e m á t ic a d o s a b s c e s s o s a n o rre ta is . (E sta
mucilagens, além da proibição da higiene anal com papel. f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a r te .)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 537
► Abscessos interesfincterianos. Seu diagnóstico e tra O diagnóstico diferencial dos abscessos criptoglandulares
tamento cirúrgico são, com frequência, mais complexos por deve ser feito com os originários de outros processos infecciosos
que eles envolvem e dissecam o plano intermuscular da região originados por doenças como carcinoma epidermoide do canal
anorretal. anal, doença de Crohn anorretal e tuberculose perianal.
► Abscessos pelvirretais. Pela sua localização, acima dos
músculos elevadores do ânus e abaixo da reflexão peritoneal, ■ Tratam ento
são os mais difíceis de diagnóstico e de tratamento cirúrgico. O tratamento dos abscessos anorretais é essencialmente ci
Felizmente, são os abscessos menos frequentes. rúrgico. Os abscessos, depois de diagnosticados, deverão sem
Os abscessos anorretais podem, também, ser classificados, pre ser drenados de imediato.
de acordo com a sua profundidade no canal anal, em superfi
ciais, como os perianais e isquiorretais, e em profundos, como ■ Drenagemsimples
os submucosos, os interesfincterianos e os pelvirretais. Uma de suas opções operatórias é a drenagem simples da
coleção purulenta, por meio da incisão do local do abscesso,
■ Quadro clínico para permitir sua ampla drenagem, impedindo o fechamento
A dor é o sintoma mais importante e característico, sendo, prematuro da ferida e, com isso, a sua recidiva.
em geral, contínua e latejante, de intensidade variável de acor Nos processos superficiais e pequenos, essa drenagem pode
do com o volume da coleção purulenta, piorando à deambu- ser realizada, sob anestesia local, ambulatorialmente. Já nos
lação, ao sentar-se e até mesmo à evacuação. Sintomas como abscessos profundos e amplos, ela deverá ser efetuada, sob blo
febre, calafrios, tenesmos retal e urinário e tumoração perianal queio medular, em centro cirúrgico. A ferida cirúrgica na pele
associam-se, frequentemente, ao quadro clínico. deverá permanecer aberta até a total limpeza pós-operatória da
cavidade do abscesso. Outra opção é sua drenagem orientada
■ Diagnóstico pela ressonância magnética.
É realizado pela inspeção que, nos abscessos superficiais, Ocorrendo a cicatrização total do abscesso, o paciente será
pode revelar os sinais flogísticos de tumoração, hiperemia, dor considerado curado.
e calor local (Figura 50.15) e pela palpação perinal que, nos Entretanto, com frequência (90% dos casos), depois da dre
abscessos purulentos profundos, permite notar sua flutuação nagem simples do abscesso, haverá a persistência de um trajeto
e seus limites perianal ou intrarretal.
(fistuloso) entre a cripta infectada (orifício interno) e o local
Nos abscessos profundos, a inspeção e a palpação podem da drenagem perianal do abscesso (orifício externo), caracteri
nada revelar. Ao toque retal, podem-se palpar abaulamentos
zando uma fístula perianal. Pelo orifíco externo, poderá ocor
bastante dolorosos. A anuscopia costuma nada revelar; no en rer eliminação, contínua ou não, de secreção purulenta, o que
tanto, em alguns enfermos, poderá observar-se a presença de
exigirá nova cirurgia para a correção desta fístula.
secreção purulenta no reto. A retossigmoidoscopia deve sempre
ser realizada para avaliação de doenças concomitantes. Nos en
■ Drenageme fistulotomia
fermos com dor intensa, o exame proctológico terá de ser reali
Outra tática operatória para o tratamento cirúrgico dos abs
zado sob analgesia, de preferência em centro cirúrgico.
cessos anorretais consiste em realizarem-se, em um mesmo ato
Naqueles pacientes com diagnóstico difícil ou duvidoso,
operatório, a drenagem do abscesso e a pesquisa da cripta in
deve-se efetuar ressonância magnética pélvica, exame padrão-
fectada ou do seu orifício interno, origem do abscesso cripto-
ouro para demonstrar a presença de abscessos e/ou trajetos
glandular. Sendo identificada essa cripta ou seu orifício interno,
fistulosos. A tomografia computadorizada e a cintigrafia não
apresentam a mesma especificidade diagnóstica. deve-se efetuar uma ampla abertura de todo o trajeto fistuloso,
desde a cavidade do abscesso até a cripta infectada no canal anal,
com sua curetagem, deixando-se a ferida operatória aberta até
sua completa cicatrização. Com esta tática, pretende-se evitar
a recidiva do abscesso ou a necessidade de nova cirurgia para
a correção da fístula residual.
■ Pós-operatório
O uso profilático de antibióticos como rotina é muito impor
tante, sendo administrados previamente à drenagem cirúrgica
dos abscessos, à exceção dos pacientes imunocomprometidos,
debilitados, idosos ou diabéticos etc., quando os antibióticos
deverão ser utilizados como terapia (ciprofloxacino oral ou
parenteral).
Analgésicos e anti-inflamatórios orais ou parenterais são,
também, sempre empregados. Auxilia-se a evacuação com dieta
rica em fibras e/ou mucilagens.
Os cuidados locais pós-operatórios são fundamentais para
a cura. Indicam-se curativos diários, inicialmente até 5 vezes/
dia, com limpeza exaustiva da ferida operatória de drenagem,
mediante sua lavagem com água corrente e sua proteção com
gazes e pomadas analgésicas e anti-inflamatórias, até sua cicatri
Figura 50.15 A b s c e s s o a n o rre ta l c a r a c t e r iz a d o p e la p r e s e n ç a d e t u zação total. Associam-se banhos de assento com permanganato
m o r a ç ã o p e r ia n a l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o de potássio, na diluição de 1:40.000, como solução antisséptica,
E n c a rte .) após cada evacuação, nos primeiros 7 dias de pós-operatório.
538 Capítulo 50 / DoençasAnorretais
Figura 50.17 A. B. C e D. Esquema segundo a localização das fístulas anorretais: interesfincteriana em A, transesfincteriana em 8, supraesfinc-
teriana em C e extraesfincteriana em D.
Capítulo50 / DoençasAnorretais 539
■ Tratam ento
Muito embora a preferência do tratamento das fístulas anor
retais seja cirúrgica, em algumas fístulas complexas sua corre
ção pode acarretar o risco de sequelas, como as alterações da
continência fecal e dificuldade cicatricial, como as estenoses
anais. Este fato é relevante, especialmente para as fístulas da
doença de Crohn.
Para abordagem conservadora, podemos utilizar a cola de
fibrina (selante) injetada no seu trajeto, possibilitando a sua
cicatrização. As vantagens são não provocar danos à muscula
tura esfincteriana e, como consequência, nenhum risco de in-
continência fecal. Ela apresenta rápida cicatrização, sem o des
conforto do pós-operatório tradicional. O mecanismo de ação
destes selantes, biológicos ou sintéticos, é formar um coágulo
no trajeto fistuloso, servindo de suporte para a neoformação
vascular, possibilitando a proliferação fibroblástica e formação
de colágeno, elementos fundamentais para a cicatrização das fe
ridas fistulosas. O material biológico combina um concentrado
de fibrinogênio e trombina, misturados somente no momento
da sua aplicação. Por serem autólogos, não oferecem o risco de
contaminação viral. Os melhores resultados com o selante são
obtidos nas fístulas interesfincterianas e transesfincterianas de
origem criptoglandular de trajeto longo (maior que 3,5 cm).
■ Etiopatogenia
A incontinência fecal é resultante do enfraquecimento e/ou
destruição, total ou parcial, da musculatura pélvica, podendo
associar-se a: neuropatia do nervo pudendo; alterações do ân
gulo anorretal (com a idade, ele torna-se mais obtuso); sequelas
de traumas cirúrgico ou consequente a doenças inflamatórias.
Outro fator a considerar é a alteração sensorial da mucosa re
tal que ocorre no processo de envelhecimento no idoso e/ou
pelo uso prolongado e abusivo de laxativos que provocam a
degeneração neuronal da mucosa retal. Ambos causam a perda
de sensibilidade para a presença de fezes na ampola retal, não
havendo a contração dos músculos da continência voluntária,
ou seja, do esfíncter anal externo, dos elevadores do ânus e do
puborretal.
■ Quadro clínico
Caracteriza-se pela incapacidade de retenção fecal volun
Figura 50.20 Procidência retal com exteriorização pelo canal anal tária. Em suas fases iniciais, a incapacidade é para gases e fe
de todas as camadas do reto com pregueamento circular da mucosa zes líquidas (incontinência parcial). Os casos mais avançados,
que é sua característica. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores quando há perda de fezes formadas, são chamados de incon
no Encarte.) tinência total.
542 Capítulo 50 / Doenças Anorretais
Ambos ocasionam problemas sociais, econômicos e psicoló condições físicas e operatórias dos pacientes. Várias técnicas
gicos aos enfermos, de maneira mais ou menos importante. de esfincteroplastias para reconstrução da musculatura anor
A história clínica é de grande importância, pois permite esta retal e outras tantas de anoplastias poderão ser utilizadas para
belecer o grau da incontinência e o quanto ele prejudica as ativi sua correção.
dades cotidianas do enfermo. Devem-se questionar o tempo e o
modo de aparecimento da incontinência fecal, se há consciência
da vontade evacuatória, urgência defecatória e as características ■ ESTENOSEANAL
das fezes, além da frequência de sua ocorrência.
A estenose anal é uma alteração da fisiologia do canal anal
caracterizada pela dificuldade de sua abertura durante o ato
■ Diagnóstico defecatório. Origina-se nas deformidades anatômicas do ânus,
A inspeção da região perianal pode demonstrar a presença com consequente diminuição de sua elasticidade e/ou de seu
de fezes ou de escaras. A inspeção estática do ânus permite a diâmetro circunferencial (Figura 50.22).
observação da forma do canal anal, a presença de cicatrizes Sua importância está no grande desconforto e dor à eva
e/ou a existência de algum grau de hipotonia anal esfincteriana cuação que provoca nos pacientes, sobretudo quando ocorre
(Figura 50.21). no pós-operatório de cirurgias anorretais, constituindo-se a
A inspeção dinâmica do canal anal pode evidenciar o pro- iatrogenia mais temida pelos cirurgiões. Apresenta incidência
lapso mucoso, a procidência retal ou, até mesmo, o abaula- pequena na população em geral, não havendo prevalência en
mento perineal. tre sexo e faixa etária.
O toque retal permite a avaliação da tonicidade dos músculos
esfincterianos e sua capacidade de contração, para fechar e abrir
o ânus. A retossigmoidoscopia deverá ser, sempre, realizada
■ Etiopagenia
para afastar enfermidades que alteram o hábito intestinal e que A estenose anal tem várias causas. As principais são: pós-
possam contribuir para essa incontinência fecal. operatória (iatrogênica); congênita; neoplásica; traumática e
Para a adequada avaliação da incontinência fecal, realizam- inflamatória.
se exames, especializados e precisos, tais como, defecograma, Sua causa mais frequente é a iatrogênica, consequente a ci
manometria anorretal e/ou eletromiografia. rurgias anorretais realizadas sem os cuidados técnicos neces
sários e pelas ressecções extensas da pele perianal, que podem
acarretar cicatrizes defeituosas e alterar a configuração anatômi
■ Tratamento ca do canal anal. Dentre as cirurgias anorretais que propiciam
A maioria dos enfermos com incontinência fecal é trata o aparecimento da estenose anal cicatricial, estão hemorroidec-
da com medidas conservadoras, de acordo com sua etiologia tomia, fistulectomias e excisões de condilomas perianais.
e de suas condições físicas. Pode-se utilizar o retreinamento Nas hemorroidectomias, particularmente quando se utiliza
da evacuação (biofeedback) e/ou a estimulação elétrica anal. a técnica aberta, nas quais as feridas cutâneas cicatrizarão por
Esse tratamento não cura o paciente, porém melhora seus sin segunda intenção, essas áreas precisam de cuidados especiais;
tomas. caso contrário, é neste local que poderá ocorrer a estenose anal
A indicação do tratamento cirúrgico varia de acordo com cicatricial. Havendo incisões cutâneas muito amplas, as pontes
a causa da incontinência, da intensidade dos sintomas e das de anoderma entre elas poderão tornar-se estreitas e insuficien
tes, originando a estenose.
Ela poderá ocorrer, também, como complicação pós-ope
ratória das cirurgias de fístulas e/ou abscessos perianais, quan
do houver excisão mucocutânea excessiva. O mesmo é válido
para a eletrocauterização de condiloma acuminado perianal
extenso.
É feito pelo quadro clínico e pelas modificações anatômicas • A doença pilonidal seria resultado da sucção de pelos
do canal anal, observadas à sua inspecção. Os critérios para o da pele para o subcutâneo por pressão negativa das ná
diagnóstico da estenose anal cicatricial são definidos pelas se degas, formando uma cavidade recoberta por tecido de
guintes alterações do canal anal: deformidade anatômica do granulação, com pelos aprisionados em seu interior, que
ânus (modificando sua configuração normal); diminuição de atuariam como corpo estranho (Patey e Scarff);
elasticidade do canal anal; diminuição do seu diâmetro cir- • Causada pelo atrito da região interglútea, provocado pe
cunferencial; solução de continuidade no anoderma (fissura los movimentos de deambulação e/ou por traumas locais
pós-cicatricial); e fibrose no anoderma, em forma de barra, lo que propiciariam a justaposição de pelos em feixes. Estes
calizada na região posterior e/ou anterior, que possibilita uma migrariam, por sucção, para o tecido celular subcutâ
configuração triangular ao ânus. neo, por causa da pressão negativa que se forma no teci
O exame proctoiógico nos pacientes com estenose anal (to do subcutâneo da região, pelo estiramento da pele, nos
que retal, anuscopia e retossigmoidoscopia), embora im por movimentos de sentar e levantar, aliados à elevação da
tante na propedêutica de todos os pacientes, com frequência fáscia sacrococcígea (Brearley).
acarreta dor e nem sempre é realizado no momento da con
sulta. Os enfermos com estenoses importantes serão submeti ■ Quadro clínico
dos a esse exame sob analgesia, muitas vezes durante a própria
cirurgia corretiva. A fase aguda da enfermidade caracteriza-se pela presença
de tumoração sacrococcígea associada a dor intensa e febre,
indicativas de processo supurativo abscedado. Na crônica, o
■ Tratamento enfermo relata a presença de tumoração na região sacrococ
Nas alterações cicatriciais do canal anal que acarretam dis cígea, em geral acompanhada por orifício único ou múltiplo,
cretas modificações anatômicas e fisiológicas, pode-se realizar com secreção e dor. Pode haver, também, eliminação de pelos
o tratamento clínico por meio de dilatações, digital e/ou instru por orifícios da lesão. Alguns enfermos relatam ter ocorrido
mental (com velas de Hegar), progressivas e periódicas. algum trauma local, antecedendo os sintomas.
Nas deformidades cicatriciais em que há tecido fibroso en
volvendo a pele, o subcutâneo, a mucosa e, às vezes, alcançando ■ Diagnóstico
parte do anel esfincteriano, tornando o canal anal inextensível
e deformado, o tratamento clínico é de pouco valor e sua cor É realizado pela história clínica e pelos achados ao exame
reção é cirúrgica. físico da região sacrococcígea, pela presença de tumoração
A técnica operatória para correção da estenose cicatricial por subcutânea de forma, tam anho e consistência variáveis, de
meio de um (ou mais) enxerto de retalho retangular de pele, acordo com a fase em que se encontra a enfermidade.
colocado sobre a área fibrótica, previamente excisada e suturada Na maioria, há um orifício primário, em geral de pequena
à mucosa retal, descrita por Sarner, apresenta bons resultados. dimensão, situado na linha interglútea. Outros orifícios secun
Seu maior problema é o tempo necessário para a cicatrização dários podem estar presentes, nesta mesma linha ou lateral
da ferida operatória, de 4 a 6 semanas. Quilici e Reis Neto ela mente a ela, com ou sem eliminação de secreções purulentas
boraram uma nova técnica cirúrgica para a estenose anal cica ou mucossanguinolentas, ou com a presença de pelos saindo
tricial (anoplastia) com a utilização de dois ou mais retalhos de seu interior (Figura 50.23). Estes achados caracterizam a fase
pediculados, cutâneo e mucoso, no canal anal após excisão do crônica da doença pilonidal.
tecido fibroso cicatricial. Um fato significativo dessa técnica é Algumas vezes, ele manifesta-se na forma de um abscesso
a feitura dos retalhos, cutâneo e mucoso, que, inseridos sobre a sacrococcígeo, que pode ou não drenar espontaneamente.
área excisada de fibrose cicatricial, permitem uma cicatrização O diagnóstico diferencial deve ser feito com as seguintes
mais rápida e mais eficaz. enfermidades: foliculites, hidroadenite supurativa, fístula anor-
retal e tumores benignos e malignos da região.
■ Etiopatogenia
As dermatites perianais, a despeito da patogenia diversa,
têm manifestações clínicas semelhantes, sendo o prurido anal
seu sintoma mais evidente. Nos casos de etiologia conhecida,
o tratamento específico cura a enfermidade e soluciona o pru
rido anal. Entretanto, em geral, a dermatite é inespecífica e seu
tratamento é realizado mediante abordagem local com medi
camentos tópicos e conduta higiênica e dietética.
■ Quadro clínico
Figura 50.23 Orifícios da doença pilonidal na região sacrococcígea
Manifesta-se de maneiras variáveis, continuamente ou com
com a presença de pelos saindo de seu interior (doença na fase
crônica). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) períodos de acalmia e paroxismos, geralmente mais intensos à
noite. A intensa necessidade de coçar-se pode provocar escoria
ções na pele, agravando a lesão e perpetuando o prurido.
■ HIDRADENITE SUPURATIVA
■ PRURIDO ANAL
É doença crônica, recidivante, da pele e do tecido celular
As doenças dermatológicas da região anal e perianal, no subcutâneo, caracterizada pela formação de abscessos e trajetos
adulto, são causa frequente de consulta ao dermatologista, ao fistulosos, acometendo, inicialmente, as glândulas sudorípa-
clínico geral e, não raro, ao coloproctologista e serão abordadas ras apócrinas. A hidradenite supurativa localizada nas regiões
mais adiante neste capítulo. perineal, inguinal e glútea é pouco frequente, porém ocasiona
As condições de normalidade da pele na região anal e pe intenso sofrimento aos enfermos, com repercussões psicológi
rianal são facilmente deterioráveis por falta de ventilação, pelo ca, familiar e profissional.
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 545
■ Etiopatogenia
Havendo oclusão do orifício glandular por tampão queratí-
nico, pode ocorrer infecção secundária que, com sua ruptura,
provocará a propagação da infecção aos tecidos e glândulas
adjacentes. A influência de fatores genéticos (doença autossô-
mica dominante), alterações imunológicas ou dos hormônios
sexuais ainda são controversas. Figura 50.24 Hidradenite supurativa com a presença de vários abs
cessos e orifícios fistulosos perianais, perineais e nas nádegas. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Quadro clínico
A enfermidade tem curso crônico e recidivante. Os pacien
tes apresentam vários orifícios fistulosos nas regiões perineal, ■ TRAUMA ANORRETAL
inguinal, glútea, na raiz das coxas, no escroto ou na vulva,
com queixa de supuração crônica e dor. Há endurecimento Os ferimentos anorretais podem acontecer por contusão,
da pele e do tecido celular subcutâneo e palpam-se nódulos denominados de trauma fechado, e/ou por lesão penetrante ou
hipodérmicos e trajetos fistulosos múltiplos e serpiginosos. perfurante, chamados de trauma aberto. Causam lesões intrape-
As cicatrizes deixadas pelos abscessos e fístulas têm aspecto ritoneais, perianais e/ou perineais, podendo afetar o reto intra
de queloide. e/ou extraperitoneal, bem como a sua vascularização.
■ Diagnóstico ■ Etiologia
É feito essencialmente pelo seu quadro clínico, que se carac Os traumatismos anorretais são classificados, de acordo
teriza pela presença de vários orifícios fistulosos nestas regiões, com a sua origem, em os de causa acidental, os iatrogênicos,
com endurecimento da pele e celular subcutâneo e supuração os criminosos, provocados por autoerotismo ou por objetos
crônica (Figura 50.24). deglutidos.
Seu diagnóstico diferencial será com a fúrunculose, a tuber
culose, o linfogranuloma venéreo, a actinomicose, o cisto pilo- ■ Traum as acidentais
nidal, a doença de Crohn, os abscessos e as fístulas perianais. Os mais comuns são os provocados por acidentes de trân
sito, sobretudo os de motocicletas e bicicletas. No entanto, os
acidentais, em ambiente de trabalho ou domiciliar, por “queda
■ Tratamento a cavaleiro” sobre muro, telhado, ou sobre objetos pontiagudos
O tratamento clínico com antimicrobianos é utilizado no etc., são muito importantes por ocasionar traumatismos anor
combate da infecção local, porém é ineficaz para a erradicação retais e/ou fraturas dos ossos da bacia com laceração do reto.
da moléstia. Os traumas pelo disparo acidental de armas de fogo, e mais
Sua excisão cirúrgica é a única opção para a cura definitiva. raramente com arma branca, são menos frequentes.
Deverá ser ampla e radical, incluindo toda a área comprome
tida, com margem segura e profundidade suficiente, até atingir ■ Traum as iatrogênicos
os tecidos normais e, sempre que possível, preservando a pele A iatrogenia pode ocorrer devido a vários procedimentos
perianal. De acordo com a extensão e complexidade das áreas médicos, em especial os proctológicos, tocoginecológicos, uro-
cruentas resultantes dessa excisão, a excisão poderá ser tratada lógicos, endoscópicos e radiológicos. O trauma ginecológico
pela sutura primária, pela cicatrização por segunda intenção pode acontecer durante as cirurgias de dilatação e de curetagem
ou pelos enxertos livres de pele, imediatos ou tardios, após o uterina ou de uma episiotomia extensa durante o parto vaginal.
controle da infecção. Os proctológicos podem resultar de procedimentos como di
Sua recidiva pode ocorrer, segundo a literatura, entre 5 e 30% latação de estenose anastomótica, inflamatória ou tumoral do
dos enfermos, independentemente do método optado para o reto, ressecção local de tumoração retal ou durante a realização
tratamento da ferida resultante. de biopsias. Os urológicos durante as prostatectomias, no mo-
546 Capítulo 50 / Doenças Anorretais
mento da enucleação da próstata e mais raramente durante sua aproximadamente, 10,Ja 101!por grama de fezes, sendo algumas
ressecção transuretral. A perfuração do reto durante a introdu de alta morbidade.
ção de sonda uretral é rara. Lesões iatrogênicas no reto podem, Suas consequências clínicas estão diretamente relacionadas
também, ocorrer durante a realização de retossigmoidoscopia com a anatomia da região destes traumas e os cuidados tera
rígida ou na colonoscopia devido a manobras intempestivas, pêuticos específicos a cada um deles.
dilatação de estenose e/ou nas polipectomias em reto intrape- Quando a lesão é perfurante, em reto intraperitoneal, há
ritoneal, em especial de adenomas vilosos. extravasamento do conteúdo fecal para a cavidade abdominal,
ocasionando uma peritonite estercorácica (bacteriana) extre
■ Traum as de origem criminosa mamente grave.
Os traumas ditos criminosos acontecem, geralmente, nos Os ferimentos do reto extraperitoneal e do canal anal, no
assaltos com agressão sexual; nos ferimentos intencionais por entanto, raramente atingem a cavidade abdominal. Contudo,
arma de fogo ou por arma branca. como também estão em contato direto com o conteúdo fecal,
podem ocasionar quadros infecciosos importantes e, caso não
■ Traum as provocados por autoerotism o haja tratamento adequado, evoluem, com frequência, para a
Traumatismos anorretais ocorrem em pacientes com al formação de graves abscessos pélvicos e/ou perianais. Quando
teração do comportamento sexual, sobretudo homossexuais atingem os espaços pelvirretais e/ou retrorretal, caracterizam-
masculinos, e são causados pela introdução, via anorretal (em- se pela dificuldade diagnóstica e por quadro toxêmico de alta
palamento), dos mais variados objetos, tais como, vibrador, morbimortalidade.
lâmpada, frasco de fluido de isqueiro, frasco de desodorante
(Figura 50.25), bico de esguicho, cabo de vassoura, vela, garrafa,
ovo, copo, caneta e legumes (cenoura, pepino etc.).
■ Quadro clínico
Uma anamnese pormenorizada e criteriosa é fundamental
■ Traum a por objetos deglutidos para se estabelecerem o quadro clínico e o diagnóstico do pa
O trauma retal pode originar-se de objetos deglutidos, na ciente com lesão anorretal. Estando ele alerta e cooperativo,
sua maioria, inadvertidamente. Os adultos, em especial os que poderá ser questionado a respeito das circunstâncias do trauma.
usam dentadura, não percebem pequenos fragmentos, de osso Entretanto, se o paciente apresenta politraumatismo e/ou lesão
de galinha, espinha de peixe ou prótese dentária, e as crianças cerebral, pode haver impossibilidade de comunicação. Sendo
podem deglutir pequenos objetos como moedas, agulhas, alfi assim, é necessário, sempre que possível, o depoimento de uma
netes ou pregadeiras. testemunha que tenha assistido à cena, para a composição da
Contudo, há pacientes com distúrbios psiquiátricos, que história. O relato do tipo e modo do ferimento, além do tem
deglutem objetos de propósito, como agulhas, parafusos, pre po decorrido do ato até o atendimento médico, é importante
gos, grampos etc. para a sua avaliação.
Todos eles podem ferir o reto ou o canal anal ao sair junto Nas lesões criminosas com agressão sexual ou por autoe
com as fezes, no momento da defecação. No entanto, o trau rotismo, as informações, em geral, são difíceis de obter e, não
ma mais frequente pelos objetos deglutidos é a perfuração do raro, até escondidas pelo paciente, pois o fato acarreta gran
intestino delgado e, quando isso ocorre, em 75% das vezes, a de constrangimento. Isso ocasiona demora no diagnóstico e o
lesão acontece na sua passagem pela válvula ileocecal. agravamento do quadro clínico, piorando o prognóstico.
Com relação ao empalamento, a maioria dos enfermos, so
bretudo os homossexuais masculinos, não confirma a histó
■ Fisiopatologia ria da introdução de objetos pelo ânus, a não ser quando esse
A microbiótica colorretal normal é o principal fator da mor- fica retido no reto e/ou cólon sigmoide. Quando admitem o
bimortalidade das lesões traumáticas anorretais. Ela é com fato, com frequência, negam que tenha sido voluntário, crian
posta, nos adultos, por uma grande população bacteriana de, do narrativas envolvendo acidentes fantásticos, com detalhes
engenhosos.
Os principais sintomas relacionados com o trauma anorretal
são: dor, tenesmo retal e sangramento.
■ Dor
É o mais importante. O trauma isolado anorretal provoca
dor contínua, às vezes latejante, localizada nas áreas envolvidas:
períneo, canal anal, reto e/ou abdome.
Nas lesões do reto intraperitoneal, a dor localiza-se no ab
dome, em geral, na região infraumbilical. A dor difusa pelo
abdome é rara; no entanto, sua presença caracteriza um qua
dro de peritonite generalizada e grave. Ela é, com frequên
cia, intensa, contínua e acompanhada com sinais de reação
peritoneal.
Quando há lesão da linha pectínea, a dor localiza-se no ca
nal anal, inicia-se no momento do trauma e piora com as eva
cuações.
Figura 50.25 E m p a la m e n t o p o r a u t o e r o t is m o : o b je t o (d e s o d o r a n t e ) A dor poderá ser discreta ou inexistente, somente nos en
s e n d o re tira d o d o re to p e la v ia t r a n s a n a l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e re fermos com pequenas lesões do reto extraperitoneal ou em-
p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .) palados.
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 547
■ Tenesm oretal
■ Tratamento
Pode ocorrer nesses traumatismos, especialmente na pre
sença de abscesso anorretal ou de empalamento. A abordagem de todo paciente com traumatismo está pa
dronizada em três fases de atendimento:
■ Sangram ento
Ia) Está indicada apenas para os pacientes graves, em geral os
Acontece quando há lesão de canal anal e/ou da mucosa politraumatizados, nos quais se utilizam todos os cuidados
retal. Tem como características a cor rutilante e sua perda em para manutenção da vida.
pequena quantidade. As hemorragias copiosas são raras, es 2a) Inicia-se a fase da avaliação das lesões anorretais, após es
tando associadas, sobretudo, à presença de abscesso, piorreia
tar o paciente com seus dados vitais regulares e mantidos,
e/ou mucorreia
em venóclise, com sondagem nasogástrica e vesical. Deve-se
identificá-las se são isoladas na região anorretal ou se asso
■ Diagnóstico ciadas a outros traumas, tais como do períneo, pélvicos
e/ou abdominais, envolvendo ou não outros órgãos. O fato
É necessário realizar-se um minucioso exame físico. No
de não serem restritas ao reto e ao canal anal agrava seu
paciente politraumatizado, são imperativos os procedimentos
prognóstico.
para manutenção da vida.
3a) Efetuados os procedimentos diagnósticos, passa-se à sua
O paciente com trauma anorretal deverá ser submetido aos terapêutica, realizada, em geral, por meio de cirurgia para
exames descritos a seguir.
reparação e/ou desbridamento do ferimento.
■ Exame abdom inal Nos traumas anorretais, não há o tratamento ideal. O que
Na palpação abdominal, a constatação de irritação abdo ocorre é a busca da melhor conduta terapêutica, cirúrgica ou
minal com rigidez da parede e descompressão brusca dolo não, para os diferentes ferimentos, de cada enfermo.
rosa, além da presença de febre e sinais gerais de toxemia, faz Os fatores mais importantes que influem no tratamento
o diagnóstico de peritonite bacteriana. A febre não é sintoma são:
frequente, porém, quando presente e alta (acima de 39°C), é
• Estado geral e idade do paciente;
indicativa de quadro infeccioso grave.
• Localização e extensão do trauma;
• Número de lesões e sua proximidade;
■ Exame proctológico
• Conteúdo intestinal no momento da lesão;
É fundamental para a avaliação dos ferimentos anorretais.
• Tempo decorrido entre o trauma e a terapêutica;
Todos deverão ser submetidos à inspecção estática e dinâmica
• Presença de choque ou instabilidade hemodinâmica;
do ânus e períneo, ao toque retal, à anuscopia e à retossigmoi-
• Presença de contaminação peritoneal;
doscopia. Na maioria, por causa da dor local, há necessidade
• Lesão mesenterial do cólon ou do reto; e
de realizá-lo sob analgesia e, de preferência, em centro cirúr
• Presença de ferimentos em múltiplos órgãos.
gico, para ser cuidadoso e completo. A presença de sangue
na ampola retal, sua perda pelo canal anal ou sua presença No trauma anorretal, o emprego de antibioticoterapia é con
na luva, após o toque retal, é sinal de lesão anorretal. A pre duta obrigatória. São utilizados os antibióticos de largo espec
sença de muco e/ou pus indica a existência de abscesso ou de tro, sendo nossa opção as associações com ação nas bactérias
fístula na região. anaeróbias e gram-negativas. Deve ser realizada, também, a
profilaxia do tétano.
■ Exame ginecológico e do trato urinário Havendo traumatismo retal, é importante saber se o feri
Pela possibilidade da associação das lesões anorretais com mento é extraperitoneal, intraperitoneal ou de ambos os tipos.
órgãos adjacentes, realiza-se rigoroso exame ginecológico e do Quando há lesão concomitante, as condutas para o trauma se
trato urinário, concomitante ao proctológico. rão individualizadas para cada um dos segmentos comprome
tidos, como descritas a seguir:
■ Exames por im agem
► R a d io lo g ia s im p le s d e a b d o m e . Deverá ser realizada ■ T r a u m a n o re to in tra p e rito n e a l
sempre em três posições: ortostática, decúbito horizontal dor Nos pacientes com diagnóstico, ou mesmo à suspeita de
sal e de cúpulas frênicas. É importante para avaliação da pre traum a no reto intraperitoneal, está indicada a laparotomia
sença de pneumoperitônio, nas perfurações cólicas e do reto exploradora para sua confirmação, sua avaliação e, se possível,
intraperitoneal. Pode diagnosticar, também, fraturas dos os o reparo cirúrgico do ferimento. Confirmado o trauma no reto
sos da bacia e fornece a localização de objetos introduzidos intraperitoneal, as várias técnicas operatórias que podem ser
no reto. empregadas para seu reparo são:
► R a d io lo g ia co n tra s ta d a d e c ó lo n . Nos primeiros mo
• Sutura primária da lesão do reto intraperitoneal e feitura
mentos da suspeita de lesão anorretal, ela é contraindicada,
de sigmoidostomia (terminal ou em alça) de proteção;
pois pode provocar o extravasamento do contraste pelos fe
• Sutura primária do ferimento do reto intraperitoneal sem
rimentos perfurantes, agravando-os. Passada a fase aguda do
colostomia de proteção; ou
trauma, poderá ser realizada, com os cuidados necessários, para
• Ressecção do segmento de reto com o ferimento e reali
identificar trajetos fistulosos.
zação de sigmoidostomia terminal proximal com fecha
► E c o g ra fia , to m o g ra fia e/o u re s s o n â n c ia m a g n é tic a
mento do reto distai, pela técnica de Hartmann.
(a b d o m in a l e/ou p erin e al). São muito importantes para detec
tar-se a presença de hematomas ou abscessos anorretais, depen De acordo com a literatura, a melhor conduta é a sutura pri
dendo da gravidade e da dificuldade de cada caso. O diagnóstico mária da lesão com reavivamento prévio de suas bordas. Con
de corpo estranho no reto também poderá ser observado. tudo, para realizá-la, são necessárias as seguintes condições:
548 Capítulo 50 / Doenças Anorretais
• O ferimento deverá ser menor que a metade da circun Entretanto, estará indicada a laparotomia exploradora sem
ferência do reto; pre que o cirurgião não estiver seguro de que o trauma no reto
• Deverá apresentar boas condições locais de vasculari- extraperitoneal manteve a integridade peritoneal.
zação;
• Paciente jovem e em bom estado geral; ■ Traum a no canal anal
• Ausência de lesões múltiplas ou próximas; Nos ferimentos restritos ao canal anal, também é preciso
• Ausência de lesão de órgão adjacente; definirem-se sua profundidade e extensão.
• Curto período de tempo transcorrido entre o trauma e a A lesão anal pode ser superficial, quando não atinge o es-
cirurgia (menor que 6 h); e fíncter anal externo, e profunda, quando o atinge e/ou o ul
• Ausência de sinais de peritonite bacteriana. trapassa.
• A colostomia de proteção deverá ser realizada sempre Quando o ferimento anal compromete menos da metade
que ocorrer uma das seguintes condições: do esfíncter anal externo, é considerado pequeno. Entretan
• Longo período de tempo transcorrido entre o trauma to, quando atinge mais da metade desse esfíncter e/ou com
retal e a realização da cirurgia (mais de 12 h); promete, também, órgãos adjacentes, como vagina, uretra ou
• Presença de peritonite fecal; bexiga, é extenso.
• Lesões do tipo explosivas, lacerantes ou amplos ferimen Nas lesões do canal anal, superficiais e/ou pequenas, a con
tos estrelares; duta será o desbridamento da ferida, com remoção dos tecidos
• Destruição tecidual com hematoma intramural extenso; não viáveis, sutura para reconstrução anatômica da musculatura
• Traumatismo na vascularização mesentérica; do esfíncter externo (quando necessária), associando-se uma
• Presença de grande hematoma retrorretal ou retrope- área perianal (cutânea) de drenagem.
ritoneal; e São necessários o acompanhamento rigoroso desses cura
• Lesões de múltiplos órgãos. tivos e a observação minuciosa da presença de áreas de necro-
se e/ou gangrena na ferida operatória, pois, quando presente,
A intenção desta colostomia, dita de “proteção”, é a deriva devem-se indicar novos desbridamentos até o ferimento per
ção do trânsito fecal da área reparada do ferimento, com o intui manecer limpo, vascularizado e sem infecção.
to de diminuir a morbimortalidade das possíveis complicações Nas lesões do canal anal extensas e/ou profundas, a tera
pós-operatórias, tais como, deiscência ou fístulas da sutura. pêutica, em geral, será em três etapas cirúrgicas:
Nossa opção é pela colostomia terminal em cólon sigmoi-
1*) Faz-se o desbridamento do ferimento, com remoção dos
de, sempre que possível, e, após 2 ou 3 meses, estando a sutura
tecidos não viáveis, e realiza-se uma área de drenagem cutâ
íntegra, confirmada pela radiologia contrastada do reto, efetua
mos a reconstrução do trânsito intestinal com o fechamento nea. Associa-se a essa limpeza uma colostomia terminal,
se possível no cólon sigmoide proximal, para derivação do
da colostomia.
trânsito intestinal;
Com relação à drenagem da região do segmento retal sutu-
2“) Completada a cicatrização da ferida operatória do canal anal,
rado ou seccionado, poder-se-á fazê-la com o intuito de diag
geralmente 2 a 3 meses após a primeira intervenção, reali
nosticar precocemente as possíveis complicações locais, embora
za-se uma esfincteroplastia anal, para reconstrução esfinc-
sabendo que essa drenagem não as impeça. Nossa conduta, no
teriana e preservação da continência fecal. O enfermo ainda
entanto, é pela colocação de drenos somente nas regiões con
deverá permanecer com a colostomia derivativa; e
taminadas pelo trauma, onde poderá haver acúmulo de secre 3*) Passados mais 2 ou 3 meses, estando a função esfincteriana
ções, sempre após limpeza exaustiva dessas áreas, lavando-as normalizada, finalmente efetua-se a reconstrução do trânsito
com soro fisiológico. intestinal, por meio do fechamento da sigmoidostomia.
■ T r a u m a n o re to e x tra p e r ito n e a l
■ Em palam ento
O tratamento das lesões retais extraperitoneais foi, duran Em relação aos objetos introduzidos no reto, é importante
te anos, por meio da realização de uma colostomia proximal conhecer alguns cuidados para sua remoção pelo ânus, para
(sigmoidostomia) para a derivação do trânsito fecal. O advento evitar a laceração do canal anal e/ou do reto durante esse pro
dos antibióticos e o melhor conhecimento da fisiopatologia dos cedimento. Esses cuidados são:
ferimentos infectados alteraram este procedimento.
Por isso, havendo uma ou mais lesões no reto extraperito • Escolha da melhor posição, se litotomia ou de Sims (de-
neal, devemos, de início, separá-las em: cúbito lateral esquerdo), de acordo com o objeto a ser
►P e q u e n a , ú n ica e s u p e rfic ia l. A lesão do reto extrape removido;
ritoneal pequena é a que tem até 3 cm de extensão, única e • Lubrificação do segmento intestinal distai e do canal
superficial, ou seja, atinge até a camada muscular circular do anal;
reto, sem lesá-la. A conduta nessas lesões será sua limpeza, • Delicadeza de movimentos nas manobras para sua re
reavivamento das bordas e sutura primária, sem necessidade tirada; e
de colostomia de proteção. • Bloqueio anestésico (se necessário).
►E xte n sa , p ro fu n d a e/ou m ú ltip la s. O ferimento exten Não se devem administrar laxativos, bem como usar ene-
so é aquele maior que 3 cm, profundo - ou seja, que agride mas, pois a evacuação forçada poderá provocar lesão intestinal
ou mesmo ultrapassa a camada muscular circular do reto - pelo próprio objeto.
e/ou múltiplo. Tendo o cirurgião diagnosticado a integridade Copos, jarros, garrafas etc., quando empalados no reto, por
peritoneal, faz-se o desbridamento da lesão e sua sutura ou a apresentarem uma abertura em uma de suas extremidades e
reparação muscular, associando-se uma sigmoidostomia, na um espaço vazio interno, podem provocar pressão negativa
fossa ilíaca esquerda, sem necessidade de exploração da cavi em seu interior e, como consequência, poderão ficar aderi
dade abdominal. dos à mucosa retocólica, por causa da aspiração desta mucosa
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 549
■ Leucoplasia
É uma lesão pré-maligna caracterizada por ulceração su
■ Tumores malignos do canal anal
perficial de diversas formas e tamanhos, podendo ocorrer na A incidência de lesão maligna no ânus é baixa — de 1 a 2%
mucosa de transição da boca (gengiva) e na do ânus. É mais co dos tumores do trato digestivo — e apresenta, na maioria, bom
mum no sexo masculino e ocasionalmente associada a retardo prognóstico. Segundo a classificação histológica proposta pela
na cicatrizaçâo de feridas perianais pós-operatórias, tais como: Organização Mundial da Saúde, cerca de 80% dessas neoplasias
hemorroidectomia, fissurectomia e ressecção de condilomas. são do tipo epidermoide, subdivididas em tumores espinoce-
Embora sua simples presença não represente uma condição lulares ou de células escamosas, basaloides (cloacogênicos) e
maligna, há sempre a possibilidade de haver displasia com o mucoepidermoides.
risco de desenvolvimento de carcinoma epidermoide. Os demais 20% incluem: adenocarcinomas originários da
► Q u a d ro c lín ic o . Consiste em sangramento, geralmente mucosa do tipo retal que pode invadir o canal anal, das glân
rutilante (vivo), prurido e secreção perianal. dulas anais ou das fístulas anorretais preexistentes; linfomas;
► D ia g n ó stic o . É realizado pela presença de ulcerações su melanoma; sarcoma de Kaposi; doença de Bowen; e doença de
perficiais no canal anal, de tamanho e formato variados, em Paget (Quadro 50.3).
550 Capítulo 50 / DoençasAnorretais
■ Linfoma
É doença maligna relacionada com a proliferação neoplási-
ca de células do sistema linfoide-reticular e rara no canal anal.
O linfoma fungoide é a forma que afeta primariamente a pele.
Atinge, preferencialmente, adultos masculinos, acima dos 40 Figura 50.30 L e s ã o v e g e t a n t e e x t e n s a d e c o r v e r m e lh o - c a s t a n h a
anos de idade, com sobrevida média de 5 anos, quando não e x t e r io r iz a n d o - s e p e lo c a n a l a n a l (lin fo m a ). (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e
tratada. r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .)
552 Capítulo 50 / DoençasAnorretais
■ Sarcoma de Kaposi
É um sarcoma da pele de crescimento lento, originário das
células endoteliais. Atualmente, é diagnosticado, com frequên
cia, em pacientes com AIDS, podendo ocorrer não só na pele,
como em qualquer local do trato gastrintestinal, aí incluído o
canal anal e a pele perianal.
► Q u a d ro c lín ico . As lesões do sarcoma de Kaposi são, com
frequência, assintomáticas.
► D ia g n ó stic o . Presença de várias lesões pequenas e sepa
radas, de 5 a 20 mm de diâmetro, de cor púrpura ou negra as
sintomáticas (Figura 50.32). A biopsia deve ser realizada para
confirmar o diagnóstico.
► T ra ta m e n to . Por causa do imunocomprometimento dos
pacientes com AIDS, a terapia daqueles com sarcoma de Ka
posi é mais paliativa e, na maioria das vezes, sem qualquer tra
tamento. No entanto, como essas lesões são muito sensíveis à Figura 50.33 Lesão ulcerada e eczematosa descamativa, de limites
rádio e à quimioterapia, em casos selecionados elas poderão nítidos, polimorfa e eritematosa de canal anal (Bowen). (Esta figura
ser empregadas. encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 553
■ Sífilis
Seu agente etiológico é o Treponema pallidum, espiroqueta
aeróbia, com período de incubação de 2 a 6 semanas após o
contato sexual. Essencialmente venérea e endêmica nos cen
tros metropolitanos, com incidência crescente, sobretudo, em
homossexuais masculinos, a sífilis acomete principalmente o
sistema vascular, com edema e proliferação endotelial e infil
tração perivascular, após a inoculação do treponema Figura 50.38 Sífilis primária do canal anal com lesões ulceradas, de
tonalidade vermelha forte, fundo liso, margens náo proeminentes e
■ Quadroclínico indolores. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Desde o início, a sífilis é infecção sistêmica. Depois da pene
tração do treponema, que se multiplica já no local da inoculação,
a disseminação ocorre em horas, pela circulação sanguínea e um endurecimento. Decorridos 10 dias da contaminação, pode
linfática. Caracteriza-se por três estágios clínicos sequenciais: associar-se adenopatia inguinal bilateral, dura, indolor e não
► S ífilis p rim á ria (a g u d a ). É a fase na qual há os sinais e inflamatória.
sintomas localizados da doença. Quando a lesão inicial é anor- ► S ífilis se c u n d á ria (su b a g u d a ). É a fase clínica sistêmica,
retal, acomete, principalmente, a região perianal através da pele que se dá entre 1 e 2 meses após a fase localizada, quando essa
e, raramente, o canal anal ou a mucosa retal, atingindo os lin- não foi tratada corretamente. O treponema entra na circulação
fonodos regionais após 10 dias. À inspecção, no local da ino e multiplica-se, disseminando-se por todo o corpo, ocasionando
culação, observa-se uma pápula eritematosa, geralmente única, um exantema epidérmico generalizado com lesões chamadas
indolor, base dura, chamada de cancro duro (Figura 50.37), que de roséolas, mais acentuadas nas regiões plantares e palmares.
sofre necrose isquêmica e origina uma ulceraçâo vermelha forte, Surgem pequenos pontos maculares de cor cúprea, opacos, sem
fundo liso e com acantose na epiderme das suas margens, que prurido, que são facilmente confundidos com reação alérgica.
não são proeminentes (Figura 50.38). Essas lesões também aparecem nas mucosas, disseminadamen-
Seu sintoma é um discreto incômodo na região perianal, te, e, por não possuírem camada córnea, são mais infectantes
com certo grau de umidade pelo exsudato da ulceraçâo sifilíti- que as cutâneas.
ca. Essa lesão desaparece espontaneamente, após 1 ou 2 meses, Nessa fase, pode ocorrer o condiloma plano sifilítico na re
sem deixar cicatriz, podendo ficar em seu lugar um eritema e gião perianal (Figura 50.39), com secreção de odor fétido, ex-
556 Capítulo 50 / DoençasAnorretais
■ Donovanose
É infecção bacteriana crônica, pouco contagiosa e de evolu
ção progressiva, com destruição da área genital, classificada, em
geral, como venérea. Seu agente causai descoberto por Charles
Donovan (1905) é o Donovania granulomatis. Com os conhe
cimentos atuais, esse agente foi definido como uma bactéria
gram-negativa do gênero Klebsiella e denominada Calymmato-
bacterium granulomatis. Seu período de incubação varia entre
8 e 80 dias. A doença é conhecida, também, como granuloma
venéreo ou tropical.
► Q u a d ro c lín ic o . A enfermidade começa com nódulos
subcutâneos múltiplos ou isolados, que ulceram através da pele,
inclusive perianal, produzindo lesões indolores, que sangram
com facilidade, aumentam gradativamente e são, quase sem
pre, associadas a infecções secundárias, com tecido necrótico
Figura 50.39 Condiloma plano da sífilis secundária perianal. (Esta fi na base das úlceras, intensa secreção purulenta e odor fétido,
gura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) formando pústulas. Associa-se adenopatia inguinal, igualmente
com secreção fétida.
► D ia g n ó stico . É feito mediante as características clínicas da
tremamente contagioso, associado ao enantema e à friabilidade lesão, que se inicia como um nódulo subcutâneo que úlcera e
da mucosa retal. ocasiona uma lesão granulomatosa exuberante, vegetante e que,
► S ífilis te rc iá ria (crô n ica ). É sua fase tardia, de 2 a 5 anos progressivamente, alastra-se por coalescência e autoinoculação,
após a sistêmica, sendo, contudo, rara, dado o tratamento pré preservando o aspecto ulcerovegetante (Figura 50.40).
vio ou a autoimunidade (30% dos casos) que leva à cura espon A extensão do processo inflamatório ocasiona fibrose dos
tânea. Pode manifestar-se como: tecidos, que, quando acomete o canal anal, pode levar à este-
• Forma tegumentar, com lesões nodulares na derme (go nose (diagnosticada ao toque retal), semelhante à encontrada
mas sifilíticas); no linfogranuloma venéreo.
• Forma cardiovascular com estreitamento do óstio das As biopsias permitem o diagnóstico histológico, caracte
coronárias, insuficiência da válvula aórtica e aneurisma rizado por extensa acantose e denso infiltrado dérmico, com
da aorta torácica; plasmócitos e histiócitos. Os corpúsculos de Donovan, carac
• Forma neurológica, tanto meníngea, parenquimatosa terísticos da enfermidade, são encontrados no interior dos ma-
quanto congênita, com paralisia e ataxia locomotora; ou crófagos.
• Como lesões ósseas e viscerais. ► T ra ta m e n to . As tetraciclinas e as gentamicinas são os
antibióticos mais eficazes. A tetraciclina é a primeira escolha,
■ Diagnóstico na dose de 500 mg VO, de 6 em 6 horas, durante, no mínimo, 10
Para o diagnóstico, é importante evidenciar que a sífilis apre dias. A gentamicina deverá ser usada na dose de 80 mg (1 mg/
senta mais sinais que sintomas, e o paciente pouco se queixa, kg de peso corporal) IM, de 12 em 12 horas, pelo mesmo perío
tendo que ser rigorosamente examinado, incluindo o exame do. O paciente deverá ser acompanhado, semanalmente, até a
proctológico completo. cicatrização das lesões, com cura prevista ao redor de 3 sema
O diagnóstico é confirmado, na fase primária, mediante o nas. Em casos de lesões muito extensas, devem-se extirpá-las
exame direto da secreção perianal em campo escuro, com im cirurgicamente.
pregnação pela prata, coloração pelo Giemsa ou pela tinta da
China, todas possibilitando a identificação das espiroquetas,
ou mesmo por meio de biopsias das lesões para exame histo-
patológico.
A sorologia pela floculação (VDRL) ou da reação de comple
mento (Wasserman) positivam-se na fase secundária; por não
serem específicas, dá-se preferência à prova FTA, com antígenos
treponêmicos (IgM) de alta sensibilidade e especificidade.
A diferenciação diagnóstica é feita com a fissura anal, o con
diloma acuminado e o carcinoma anorretal.
■ Tratamento
Penicilina benzatínica, na dose semanal de 2.400.000 unida
des IM, durante 4 semanas. Como segunda opção, eritromi-
cina ou tetraciclina, na dose de 500 mg VO, de 6 em 6 horas,
durante 15 dias.
Os pacientes e seus companheiros sexuais devem ser acom
panhados e orientados, necessitando-se de abstenção sexual du Figura 50.40 D o n o v a n o s e c o m n ó d u lo s s u b c u t â n e o s m ú lt ip lo s n a s
rante o tratamento. Os pacientes assim tratados devem tomar- r e g iõ e s p e r ia n a l e p e r in e a l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m
se soronegativos em 12 semanas, caso não haja reinfecção. c o r e s n o E n c a rte .)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 557
A epidemiologia da AIDS é cosmopolita, disseminada por significativo da sua incidência em nosso meio. Afeta ambos os
todo o planeta e se transmite pelo esperma, nos contatos sexu sexos, na mesma proporção, em todas as idades, com máxima
ais, pelo sangue e hemoderivados, nas transfusões, ou pelo uso entre a 2a e a 4a décadas, e com prevalência para a raça branca.
compartilhado de agulhas de injeção de tóxicos venosos, além Apresenta quadro clínico variável, com frequência crônico e
da via transplacentária. Outras maneiras de contaminação, os com ritmo evolutivo incerto, ocasionando importantes reper
humores corpóreos, são acidentais. cussões biopsicossociais.
Desde sua primeira descrição, em 1979, por Weisman e Got- Suas manifestações anorretais e perianais são frequentes, em
tlieb, tem-se mantido mais restrita aos denominados “grupos geral associadas à doença no cólon e/ou reto, em cerca de 70%
de risco”: homens homo e bissexuais, heterossexuais promíscu dos enfermos, e com as formas ileais em 30%. Ocorrem como
os, usuários de drogas injetáveis, pacientes transfundidos com o primeiro sinal da doença em cerca de 4% dos enfermos, po
sangue e hemoderivados, filhos gerados de mães com HIV ou dendo preceder qualquer sintoma intestinal em muitos anos.
viciadas em drogas injetáveis, e parceiros sexuais de pacientes O curso evolutivo dessas lesões anorretais é variável, podendo
portadores de HIV. regredir ou evoluir, com consideráveis modificações das estru
► Quadro clínico. É complexo, pois inclui as manifestações turas do canal anal, independentemente da presença e/ou da
causadas pelo HIV e pelas infecções associadas. A OMS clas intensidade das lesões intestinais.
sifica as várias formas clínicas da AIDS como: assintomática,
infecção aguda, linfadenopatia persistente, manifestações sistê
micas, neurológicas e neoplásicas e infecções relacionadas com
■ Quadro clínico
a AIDS. Nem todas as formas clínicas estão presentes em todos As lesões anorretais da DC manifestam-se como plicomas,
os pacientes e podem não ocorrer consecutivamente. O sarco- escoriações, fístulas, abscessos, estenoses, fissuras e/ou ulcera-
ma de Kaposi, relacionado com a AIDS, tornou-se epidêmico, ções no canal anal. Os sintomas mais comuns são dor, em espe
sendo a lesão inicial em 30% dos enfermos. cial às evacuações, ardor, secreção purulenta que suja a roupa,
► Diagnóstico. O diagnóstico laboratorial inclui a pesquisa prurido e/ou incontinêncial anal. Os plicomas são frequentes,
do HIV ou dos anticorpos anti-HIV, sendo os mais utilizados, apresentando-se inflamados e edemaciados, com 1 a 2 cm de
em nosso meio, o ELISA, com especificidade de 99,8%, e, para tamanho (Figura 50.47). Costumam provocar incomodo, às
confirmação de resultados duvidosos, o teste de Western blot e vezes até dor e dificuldade na higiene anal. Podem persistir
a imunofluorescência (IF). Confirmado o diagnóstico, efetua-se por 10 anos ou mais. Em geral, são acompanhados de úlcera-
uma avaliação da quantidade de HIV presente no plasma (carga ções anais (Figura 50.48), fístulas (Figura 50.49) e/ou papilites
viral) e do sistema imunológico do paciente, por contagem das (Figura 50.50).
células TH (CD4), além da identificação das possíveis infecções As lesões fissurárias ou ulceradas são comuns e caracteri-
ou neoplasias associadas. zam-se pela presença de ulcerações amplas, atípicas e profun
O diagnóstico diferencial deverá ser feito com: imunodeficiên das no anoderma, localizadas em qualquer quadrante do ânus,
cias congênitas ou adquiridas; terapias com imunossupressores; únicas ou múltiplas, de margens irregulares e edemaciadas, en
neoplasias malignas e quadros infecciosos graves. durecidas ao toque. São, geralmente, indolores pela ausência
► Tratamento. A terapia anti-HIV baseia-se na contagem de hipertonia do esfíncter anal interno.
das células TH (CD4), na quantidade de vírus presente no plas
ma (carga viral) e/ou na situação clínica do enfermo. Assim,
todos os pacientes com AIDS e com a doença manifesta (sin
tomáticos), ou os assintomáticos, porém com contagem de TH
(CD4) menor que 500 céls./mm3, devem ser tratados. Aqueles
com contagem de TH (CD4) acima de 500 céls./mm3devem ser
tratados somente se tiverem carga viral superior a 30.000 cópias
de RNA/ml. As drogas disponíveis para o tratamento são re
guladas pelo Ministério da Saúde, Programa Nacional de DST
e Aids (2008, 7a edição) e fornecidas através do SUS (medica
mentos de alto custo). A terapia combinada de drogas tem como
objetivo controlar melhor a replicação viral, diminuindo a sua
carga e reduzindo a seleção de drogas resistentes ao HIV.
Figura 50.49 Fístula complexa da doença de Crohn com dois orifí Figura 50.51 Processo supurativo extenso da doença de Crohn, en
cios externos, trajeto em'ferradura" e ulceraçáo posterior. (Esta figura volvendo todo o períneo, desestruturando o canal anal. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Figura 50.50 Papilas hipertróficas exteriorizadas no canal anal em Figura 50.52 Estilete colocado no trajeto flstuloso existente entre
enfermo com doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida o reto e a vagina, em paciente com doença de Crohn. (Esta figura
em cores no Encarte.) encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
562 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is
■ Doenças dermatológicas primárias Figura 50.54 Dermatite perianal aguda e superficial com eritema pe
rianal. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Derm atite de contato
É o mecanismo básico que proporciona o quadro derma
tológico mais comum de reação inflamatória da região anal e
perianal. Caracteriza-se, inicialmente, pela presença de eritema
e, com sua evolução, pode apresentar edema, infiltração, vesi-
culação, secreção, crostas, escamas e liquenificação. De acordo
com a presença ou predominância das lesões, o quadro pode
ser agudo, subagudo ou crônico. Com sua cronicidade e em
decorrência da coçadura, surge liquenificação e, às vezes, me-
lanodermia regional e perda de pelos.
Sua etiologia pode resultar do contato com substâncias irri
tantes, o que é denominado dermatite por irritante primário, ou
por desenvolvimento de sensibilização à substância não irritan
te, chamado de dermatite de contato por sensibilizante.
A dermatite de contato por irritação primária desenvolve-se
súbita ou gradualmente pela exposição ao irritante, de acordo
com a concentração deste, o tempo de ação e a tolerância indi
vidual. Limita-se à área constatada, e o simples afastamento da
substância responsável determinará a melhora do quadro. Suas
Figura 50.55 Dermatite de contato perianal complicada por infecção
causas perianais mais frequentes são: uso de papel higiênico,
secundária estafilocócica decorrente de escarificaçáo por coçadura
perfume, sabonete, desodorante, talco, pomada ou pó antimi- local. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
cótico; trauma local durante a higiene do ânus com material
inadequado; ingestão de alimentos condimentados, pimentas
ou álcool; passagem frequente de fezes líquidas, abuso de laxati-
vos de contato e contato através das roupas íntimas ou não, com escroto ou à região vulvar, particularmente nos casos de longa
náilon, seda, raiom, laicra, corantes de tecido ou borracha. duração ou por tratamentos impróprios. O prurido anal, nessa
A dermatite de contato por sensibilização alérgica surge pelo fase, tem um começo gradual ou abrupto, manifestando-se, ge
desenvolvimento de um estado de sensibilização que pode ocor ralmente, pelo desejo de coçar, com maior intensidade à noite.
rer em algumas semanas ou somente depois de alguns anos. Esse sintoma é, por vezes, intermitente, podendo persistir por
Estabelecido o quadro, a reação cutânea perianal surgirá após longos períodos com grande intensidade.
algumas horas da nova exposição. Entretanto, toda a pele está A fase crônica pode apresentar uma dermatite perianal li-
sensibilizada. Essa dermatite pode ser causada por alergênios quenificada, caracterizada por um espessamento cutâneo co
químicos ou imunológicos, tais como as reações a sulfas, anti berto por pedaços brancos macerados (Figura 50.56), o qual
bióticos (neomicina, penicilina etc.), antissépticos, antimicó- pode atingir progressivamente a pele adjacente. Nessa fase, o
ticos (Figura 50.54) e anestésicos. prurido anal é intenso, podendo provocar insônia, ansiedade
e depressão.
■ Quadro clínico e diagnóstico A infecção secundária pode surgir como complicação da
O quadro inicial pode ser agudo, fúndamentalmente erite- fase aguda exsudativa ou por coçadura na crônica. É causada
matoso, e a inspecção perianal revelará um simples eritema da por bactéria piogênica (estafilococos ou estreptococos) ou pe
região, com ou sem exsudação. las bactérias intestinais.
Sua evolução é para uma dermatite subaguda, dita ecze-
matosa. Apresenta-se, à inspecção, como lesões congestivas, ■ Tratamento
microerosivas ou exsudativas, raramente vesiculares, escoria É realizado mediante abordagem local com medicamentos
ções provocadas pela coçadura da região (Figura 50.55) e com e conduta higiênica e dietética. Remove-se todo agente irri
formação de rágades perianais direcionadas ao canal anal. Em tante ou sensibilizante, procurando-se esclarecer o paciente. É
alguns casos, podem estender-se às nádegas, ao períneo, ao importante notar que, nas dermatites de contato crônicas, de
564 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is
■ Tratamento
Uso local de corticoides tópicos, na forma de creme. Nos
quadros em que há reação inflamatória intensa, utilizam-se,
simultaneamente, banhos de solução de permanganato de po Figura 50.58 L íq u e n s im p le s c r ô n ic o p e ria n a l. (E sta fig u ra e n c o n t r a - s e
tássio na diluição de 1:40.000. r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a r te .)
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 565
■ Tratamento
Aplicação tópica de corticosteroides na forma de creme; nos
casos graves, infiltrações intradérmicas de corticoides, 1 vez/
semana. Eventualmente, podem-se administrar antiprurigino-
sos sistêmicos. É importante esclarecer ao paciente que evite
coçar-se, no intuito de interromper o círculo vicioso que agrava
o quadro da doença.
■ Intertrigo
As condições de falta de ventilação, de calor e umidade na
região perianal podem ocasionar essa dermatite, mais comum
no verão. Ela é agravada por obesidade, transpiração excessiva,
roupas justas, falta de higiene e ocupações sedentárias.
■ Tratamento
estado emocional, o prurido e a queimação atingem intensi
É fundamental combater suas causas e evitar a coçadura, dade variável.
para impedir a liquenificação e progressão da dermatite. A con
duta é sintomática, com banhos de solução de permanganato ■ Tratamento
de potássio, na diluição de 1:40.000, e creme de corticosteroi
Apesar da falta de medicamentos para sua cura definitiva,
des tópicos.
o uso tópico de corticoides possibilita o controle da enfermi
dade.
■ Psoríase
Sua etiologia é desconhecida, atingindo ambos os sexos, par ■ Vitiligo
ticularmente na 2ae na 3adécadas de vida. Raramente, é encon
trada em crianças e indivíduos da raça negra. Está relacionada Leucodermia adquirida que surge, geralmente, em vista da
com uma queratinização defeituosa, provavelmente em virtude diminuição da melanina, na 2adécada da vida. Sua causa é des
de um distúrbio enzimático das células epidérmicas, não afe conhecida; ocasionalmente, há ocorrência familiar. Pode per
tando os órgãos internos. manecer estacionária por anos ou progredir, atingindo áreas
extensas.
■ Quadro clínico e diagnóstico
São lesões caracterizadas por placas eritemoescamosas ■ Quadro clínico e diagnóstico
bem delimitadas, com escamas secas (Figura 50.60), distribui É caracterizado por manchas hipocrômicas, depois acrô-
ção quase sempre simétrica, e afetando inclusive as regiões micas, marfíneas, de limites nítidos e, em geral, com bordas
perianal e genital. A existência de tais placas em outras loca hiperpigmentadas, com forma e extensão variáveis (Figura
lizações, como dobras inguinocrurais, cotovelos, joelhos, pal- 50.61), não pruriginosas. Há predileção pelas seguintes áreas:
moplantares e dorso, faz seu diagnóstico. A evolução é crônica, periorbital, maleolares, punhos, pernas, mãos, pescoço, geni-
com períodos de exacerbação e de acalmia. De acordo com o tália e perianal.
■ Tratamento
Obtêm-se resultados favoráveis pela aplicação local de cor-
ticosteroides tópicos, na forma de creme.
■ Acanthosis nigrans
Dermatite melanodérmica, com manchas hipercrômicas,
por aumento da melanina.
Figura 50.62 A ca n th o sis n igrans p e r ia n a l c o m m a n c h a s h ip e r c r ô m i Figura 50.64 Líquen plano com erupções papuloesbranquiçadas, de
c a s , liq u e n if ic a ç ã o e v e g e t a ç ã o in t e r t r ig in o s a . (E sta fig u r a e n c o n t r a - s e superfície lisa, brilhante e cor vermelho-violácea. (Esta figura encontra-
r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .) se reproduzida em cores no Encarte.)
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 567
■ Histiodtose
Figura 50.65 ^ênfigo perianal com eritema e descamaçào, atingindo o É doença de causa desconhecida, relacionada com a altera
períneo. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) ção do sistema reticuloendotelial. Acomete, sobretudo, adoles
centes; quando ocorre em crianças, porém, é, frequentemen
te, grave.
atingindo o períneo (Figura 50.65). Há contínua sensação de
■ Quadro clínico e diagnóstico
ardor e calor, febre irregular e sensibilidade ao frio exagerada.
As lesões cutâneas são erosões ou úlceras localizadas na boca,
O diagnóstico é citológico, revelando células epiteliais acanto-
na genitália e na região perianal (Figura 50.67). Pode haver
líticas no material obtido por raspagem da lesão.
diabetes insípido, febre e leucocitose. A histopatologia revela
granuloma formado por histiócitos, células gigantes tipo corpo
■ Tratamento
estranho, e eosinófilos.
Corticoterapia, com administração oral de prednisona - 40 a
100 mg, por dia - até o controle das manifestações, quando então
se reduz, gradativamente, essa quantidade até a menor dosagem
de manutenção. As medicações tópicas têm pouca influência na
evolução da doença, porém são indicadas para melhorar o bem-
estar do paciente. Empregam-se banhos de assento com solução
de permanganato de potássio, na diluição de 1:40.000.
■ Acne vulgar
Enfermidade de causa desconhecida. Há aumento de ta
manho e atividade da glândula sebácea, formando-se massa
vermiforme de queratina e sebo que obstrui o folículo pilosse-
báceo, constituindo o comedão (cravo). Bactérias, aeróbias e
anaeróbias, podem-se desenvolver nos comedões, ocasionando
reações inflamatórias e pústulas.
■ Tratamento
Deve ser orientado para eliminar e prevenir os comedões, Figura 50.67 H is t io d t o s e p e r ia n a l c o m e r o s õ e s e u lc e r a ç õ e s m ú lt i
evitar e reduzir a infecção, exacerbações e recidivas. A primeira p la s . (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .)
568 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is
■ Tratamento
É cirúrgico, com ressecção das lesões, associada à radiote
rapia.
■ Craurose
Lesão cutânea, de etiologia desconhecida, denominada, tam
bém, líquen escleroso ou atrófico. As localizações mais frequen
tes são nuca, ombros, genitália e região perianal.
■ Tratamento
Uso de corticosteroides tópicos na forma de creme ou mes Figura 50.69 Tinha crural perianal com lesões eritemoescamosas,
mo por meio de infiltrações intradérmicas. bordas nítidas atingindo ambas as nádegas. (Esta figura encontra-se
reproduzida em cores no Encarte.)
■ Tinha crural
Micose superficial comum no homem e rara na mulher.
Atinge a face interna da coxa ou da região glútea com frequen
te comprometimento bilateral e propagação para as regiões
perianal e do períneo. Pode ser causada pelo fungo Epidermo-
phyton.
►Q u a d ro c lín ic o e d ia g n ó s tic o . As lesões são eritemato-
escamosas, com bordas nítidas onde se observam, às vezes, pe
quenas vesículas (Figura 50.69). As afecções antigas tornam-se
escuras e liquenificadas, por causa do prurido.
►T ra ta m e n to . Emprego local de antifúngicos sob forma
líquida.
Figura 50.70 Blastomicose sul-americana perianal apresentando le
■ Blastomicose são verrucosa, vegetante e bem delimitada. (Esta figura encontra-se
Causada pelo fungo Paracoccidiodes brasiliensis que habita reproduzida em cores no Encarte.)
saprofitamente a natureza e que pode infectar a região peria
nal pelo contato, durante a higiene local, sendo doença mais
► Quadro clínico e diagnóstico. As formas clínicas da blas
do meio rural.
tomicose são as seguintes: tegumentar, linfática, visceral e mista.
As lesões cutâneas, incluindo as perianais, são muito variadas
e polimorfas. Encontram-se pápulas, nódulos, úlceras, vegeta
ções, placas papulosas e abscessos. Normalmente, existe mais
que um tipo de lesão. Sua quantidade é também variável, desde
única até centenas (Figura 50.70). O diagnóstico laboratorial é
feito mediante a demonstração do fungo no material colhido
por raspagem ou pela biopsia da lesão.
► Tratamento. Para a blastomicose sul-americana, há duas
medicações ativas: as sulfas e a anfotericina B.
■ Actinomicose
Encontrada nas regiões tropicais e subtropicais, atingindo,
principalmente, trabalhadores rurais. Em nosso meio, a doen
ça é determinada por um actinomiceto aeróbio, o fungo No-
cardia brasiliensis.
► Quadro clínico e diagnóstico. As lesões são represen
tadas por nódulos, gomas e fístulas, drenando material seroso
Figura 50.68 C r a u r o s e p e r ia n a l c o m le s õ e s b r a n c a s a tr ó fic a s d a p e le ou seropurulento; a temperatura local pode estar ligeiramente
e ro lh a c ó r n e a c e n tra l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s elevada, sendo característica a dureza, geralmente lenhosa, da
n o E n c a r te .) pele (Figura 50.71).
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 569
575
576 Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar
de glicemia); da gordura (oxidaçào beta dos ácidos graxos para ------------------------------------- ▼------------------------------------
produção de colesterol, sendo 80% deste convertidos em sal bi- Quadro 51 2 Características da membrana hepatocelular
liar e fosfolipídios); da conversão de carboidratos e proteínas em
gordura; das proteínas (desaminação de aminoácidos, formação 1. C o m p o s t a p o r fina s p e líc u la s lip íd ic o -p r o te ic a s u n id a s p o r in te ra ç õ e s
de ureia para eliminação da amônia, produção de proteínas plas- n á o c o v a le n t e s
máticas); dos fatores de coagulação (fibrinogênio, protrombina, 2. E n v o lv e os h e p a tó c ito s , d e f in in d o lim ite s e n t r e c ito s o l e e s p a ç o
fator VII, globulina); além disso, tem função no armazenamento e x tra c e lu la r
------------------------------------- ▼
▼ Quadro 51.4 Características dos retículos endoplasmáticos rugoso,
Quadro 51.1 Modelo do zoneamento metabólico liso e do aparelho de Golgi
(heterogeneidade funcional) do ácino hepático
Retículo endoplasmático rugoso (RER)
S ín te se , tra n s lo c a ç à o e d is p o n ib ilid a d e d e p ro te ín a s , d e líp id e s , d a
Zona periportal Zona perivenosa c o m p a r t im e n t a liz a ç à o d o n ú c le o , tr a n s p o r t e n u d e o c it o p la s m á t ic o e
lig a ç à o c o m lâ m in a s
Metabolismo oxidativo energético
O x id a ç à o d e á c id o s g ra x o s Retículo endoplasmático liso
C ic lo d o á c id o c ítric o S ín te se d e líq u id o s , d e to x ific a ç â o , a r m a z e n a m e n t o e lib e ra ç ã o d e C a ?'
C a d e ia re s p ira tó ria
Aparelho de Golgi
Metabolismo de carboidratos Glicólise R e c e b e m a te ria l d o RER, p ro ce ssa e fosforila g lic o p r o te ín a s , m a s a d ic io n a
4. T r a n s p o r t e n u d e o c it o p la s m a b id ir e c lo n a l, v a le n d o -s e d e e n z im a
■ SINTOMAS E SINAIS TÍPICOS DE
(G T P a s e )
DOENÇAS HEPATOBILIARES
Algumas doenças podem cursar assintomáticas durante lon
gos anos. Este comportamento pode ser observado nas hepati
tes crônicas ou na colangite esclerosante primária, e na cirrose
■ OUTRAS ESTRUTURAS biliar primária, bem como em afecções metabólicas, como he-
mocromatose hereditária, ou na doença de Wilson, mesmo nas
As células sinusoidais são representadas por: I. endoteliais, fases cirróticas. Outras vezes, expressam-se por quadro agudo,
fenestradas e responsáveis pela formação de uma barreira en traduzido por adinamia, náuseas, vômito, febre, calafrio e ma
tre sinusoides e espaço de Disse; 2. células de Kupffer, de for nifestações sistêmicas típicas, tal como se observa nas hepatites
ma estelar, grandes, móveis e responsáveis por fagocitose de aguda viral e autoimune. Ascite, encefalopatia ou distúrbios
células mais velhas, tecidos tumorais, vírus, parasitos e bac da coagulação ocorrem nas fases descompensadas da cirrose,
térias; 3. lipócitos ou células de Ito, precursores inativos dos mas podem constituir sinais de instalação rápida nas necroses
fibroblastos, mais numerosos nas áreas pericentrais, encerram fulminantes do parênquima hepático, típicas da redução da re
gotículas de gordura ricas em retículo endoplasmático rugo- serva funcional parenquimatosa. A avaliação desses pacientes
so. Contêm actina e miosina, produzem colágenos tipos I, III, obedece a uma sequência típica (Quadro 51.7).
IV e laminina, além de inibidores das metaloproteinases; 4.
células p it} linfócitos NK, atuantes contra células neoplásicas
ou proteínas virais. ■ ASPECTOS D0 EXAME FÍSICO
O espaço de Disse estende-se entre hepatócitos contíguos,
encerrando lipócitos, microvilos dos hepatócitos e plasma. A icterícia é um sinal importante na suspeita de doença he
Além disso, contém fibras de reticulina, com diâmetro entre patobiliar. Pode evoluir silenciosamente ou acompanhada de
5 e 10 |im. Tem a função de condução da linfa formada no fí sinais típicos agudos, como náuseas, vômito e adinamia, como
gado a partir da filtração do plasma originário dos sinusoides. ocorre nas hepatites virais. Também pode ser encontrada na
Continua-se pelo espaço de Mall, tendo seu livre fluxo facilita queles doentes que cursam com febre, calafrio e prurido, com
do por fibras colágenas, as quais penetram junto com vênulas portamento observado nas obstruções de vias biliares intra- ou
e arteríolas na placa limitante. extra-hepáticas (Capítulo 52). A sua acentuação com rápida
O sistema de canais biliares intralobulares tem 1 a 2 jim progressão, quando acompanhada de aranhas vasculares, des-
de diâmetro, dispostos entre hepatócitos, os quais se ligam às
membranas de sua porção apical. Distribuem-se pelos lóbulos,
penetrando nos canais de Hering. Esses duetos são, portanto, -------------------------- ▼--------------------------
estruturas típicas voltadas para a secreção e condução da bile Quadro 51.7 Comportamento diante de suspeita de
no interior do parênquima até o intestino. São representados
doença hepatobiliar
pelos: I. colangíolos, revestidos por células epiteliais, com nú
cleos ovais; 2. duetos interlobulares, com diâmetros entre 15 e I. Identificação de fatores de risco
80 |im, revestidos também por células epiteliais que repousam C a r a c t e r iz a ç ã o d o s a s p e c t o s d e m o g r á f ic o s (id a d e , s e x o e r a ç a )
sobre a membrana basal, e envolvidos por tecido colágeno; 3. Im p o r t a n t e , p o is d e t e rm in a d a s d o e n ç a s s â o m a is c o m u n s e n tre
os jo v e n s (h e p a tite s v ira is ), e n q u a n t o o u tra s e n t r e o s m a is id o s o s
duetos septais, também revestidos por células colunares epite
(c â n c e r). P o r su a v e z , m u lh e r e s s â o m a is a fe ta d a s p o r p ro c e s s o s c o m o
liais e envolvidos por feixes colágenos.
h e p a tite a u t o im u n e e c irro s e b ilia r p rim á r ia , e n q u a n t o h o m e n s p e la
O sistema linfático, por sua vez, volta-se à drenagem de linfa h e m o c r o m a t o s e h e re d itá ria e c o la n g it e e s c le ro s a n te p rim á ria
dotada de elevado teor proteico, a partir do espaço perissinusoi- II. História familiar
dal de Disse e dos espaços portais, assumindo disposição periarte- E x t r e m a m e n t e i m p o r t a n t e n a c a ra c te riz a ç ã o d e d o e n ç a s h e rd a d a s ,
rial, alargando-se seus diâmetros quando em tomo de veias porta c o m o h e m o c r o m a t o s e h e re d itá ria , d o e n ç a d e W ils o n , d e fic iê n c ia d e
o c -1 -a n titrip s in a , fib ro s e cística e tc.
e tubulárias dos duetos biliares, até atingirem gânglios celíacos,
ligamento falciforme, gânglios paresternais, e aqueles dispostos III. Hábitos pessoais
N e ste s c aso s, se m o s t r a m im p o r t a n t e s as h istó ria s d e a lc o o lis m o ,
ao longo da gástrica esquerda e mediastinais posteriores. in g e s ta d e fá rm a c o s , u s o d e d r o g a s ilícitas p a re n te ra is ,
Além disso, o fígado tem ricas inervações parassimpática e c o m p o r t a m e n t o s e x u a l p ro m ís c u o , p a rc e iro s e x u a l p o r t a d o r d e
simpática. Essas últimas fibras formam um rico feixe perivascu- h e p a tite p e lo v íru s B o u C , tra n s fu s õ e s d e s a n g u e o u c iru rg ia p re té rita s
lar, envolvendo também células perissinusoidais e hepatócitos. IV. História de surtos ictéricos pregressos
Fibras nervosas parassimpáticas ou colinérgicas, por sua vez, P o d e in d ic a r h e p a tite d e e v o lu ç ã o in s id io s a , c o le d o c o litía s e (s e m p r e
H e m o c ro m a to s e F e rritin a sérica ín d ic e d e s a tu ra ç ã o ín d ic e F e / id a d e 2 2
> 400 pg// 55%
D e fic iê n c ia d e a -1 -A T > N ív e l s é ric o a - 1 - A T F e n ó t ip o PI B io p s ia h e p á tic a c o m g ló b u lo s
PAS ( x ) p o s itiv o s
D o e n ç a d e W ils o n C e r u lo p la s m in a C u U :C u S B io p s ia h e p á tic a
< 10 m g/d/ > 80 ng/24 h C u > 5 0 p g / g d e t e c id o s e co
LSN = limite superior normal; a-1 -A T = a-1-antitrlpslna; Cu ■ cobre; Fe ■ ferro; C u U = cobre urinário; CuS ■ cobre sérico; N » normal.
nutrição, eritema palmar, ginecomastia, atrofia testicular, perda caracterizarão as doenças autoimunes (Quadro 51.10), e o com
de pelos corpóreos, petéquias, hematomas, edema periférico e portamento da coagulação sanguínea (Quadro 51.11) poderá
ascite, é mais observada na cirrose, em decorrência da redução ser indicativo de diferentes formas de doenças hepatobiliares,
da população de hepatócitos. participando juntamente com outras provas que quantificarão
Circulação colateral abdominal e torácica, ascite e edema, a reserva funcional do órgão (Quadro 51.12).
esplenomegalia e hemorroidas traduzem existência de hiper
tensão portal. Outras manifestações físicas são a contratura de
Dupuytren e o aumento de volume das parótidas, identificados
em alcoólatras. Pele bronzeada, artropatia, testículo doloroso -------------------------------▼-------------------------------
e reduzido de volume, além de sinais de insuficiência cardíaca Quadro 51.9 Testes imune-sorológicos úteis na avaliação de
são identificados em doentes com hemocromatose hereditária. doenças hepatobiliares
Distúrbios da movimentação, tremores, espasticidade, rapidez,
disartria são próprios do envolvimento neurológico na doença Hepatites virais Aguda Crônica
■ MÉTODOS DE IMAGENS
Quadro 51.11 Comportamento da coagulação sanguínea
Nos últimos anos, diferentes métodos de imagens ganharam
S ín te s e r e d u z id a d o s fa to re s d e c o a g u la ç ã o
acesso na avaliação diagnóstica das doenças hepatobiliares,
M e n o r m a ssa d e h e p a tó c it o s f u n c io n a n te s
D e fic iê n c ia d e sín te s e o u a b s o rç ã o d e v it a m in a K (e s te a to rre ia ) sobretudo o ultrassom (US), com ou sem Doppler colorido;
S ín te s e r e d u z id a d o s in ib id o r e s d a c o a g u la ç ã o tomografia computadorizada (TC), com ou sem portogra-
P r o d u ç ã o d e p ro te ín a s a n o rm a is fia (TCPG); ressonância magnética (RM); colangiografia por
M a io r a tiv id a d e fib rin o lític a RM (CRM); colangiografia endoscópica retrógrada (CER) ou
C la r e a m e n t r o r e d u z id o d e a tiv a d o re s d e fib rln ó lis e a transparieto-hepática (CTPH); e mapeamento com enxofre
P r o p o r ç ã o r e d u z id a d e in ib id o r e s d e fib rin ó lis e
coloidal, marcado com tecnécio (9!>Tc) ou índio ( mIn) (Qua
R e d u z id o d a r e a m e n t o h e p á tic o d e fa to re s a tiv a d o s d e c o a g u la ç à o
dro 51.13).
C o a g u la ç ã o in tra v a s c u la r d is s e m in a d a (m u ltifa to r ia l)
As Figuras 51.1 a 51.13 exemplificam o alcance dos métodos
A n o r m a lid a d e s p la q u e tá ria s
de imagem no diagnóstico das doenças hepatobiliares.
--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Quadro 51.12 Provas de quantificação da reserva funcional parenquimatosa
M ic r o s s o m o A m in o p ir in a N -d e m e t ila ç ã o A m in o p ir in a m a rc a c o m ’* C a d m in is tr a d a V O . R e s u lta d o a c a d a 2 h , t r a d u z id o p e lo
(C it P 4 5 0 ) d e s a p a r e c im e n t o d a r a d io a t iv id a d e p la s m á tic a
-------------------------------------- ▼--------------------------------------
Quadro 51.13 Métodos de imagens no estudo das doenças hepatobiliares
Doenças hepatobiliares A valiação in icial A valiação com plem entar (se necessária)
D o e n ç a p a r e n q u im a to s a US D o p p le r c o lo r id o o u R M , se a n o r m a lid a d e v a s c u la r é s u s p e ita d a
M a lig n a (?) U S o u T C - c o m o u s e m b io p s ia d ir ig id a T C P G o u RM
B e n ig n a (?) U S o u T C - e ritró c ito s m a r c a d o s c o m °°TC U S in t r a o p e r a t ó r io
U S o u T C - c o m a s p ira ç ã o R M o u a n g io g r a fia
M a p e a m e n t o c o m g á lio o u c o m e ritró c ito s m a r c a d o s c o m ' " I n
Figura 51.1 Ultrassom evidenciando volumosa lesão isoecogênica no Figura 51.2 Tomografia computadorizada evidenciando, na fase sem
lobo hepático direito (setas) promovendo distorção e compressão das injeção de contraste intravenoso, volumosa lesão hipodensa no lobo
veias hepáticas média e direita. hepático direito, segmento VIII.
Figura 51.6 Ressonância magnética com imagem ponderada em T I,
axial, evidenciando discreto hipossinal da volumosa lesão hepática de
Figura 51.3 Tomografia computadorizada na fase pós-injeção de con lobo direito definida ao ultrassom e à tomografia computadorizada.
traste intravenoso, fase precoce (arterial), demonstrando impregnação
intensa e homogênea de volumosa lesáo hepática, exceto a área da
cicatriz central. Mesmo caso da Figura 51.2.
Figura 51.4 Tomografia computadorizada na fase pós-injeçáo de con Figura 51.7 Ressonância magnética com imagem ponderada em
traste intravenoso, fase venosa portal, demonstrando a lesáo do lobo T2, axial, evidenciando discreto sinal da lesáo hepática, porém com
direito já com menor impregnação do que o parênquima hepático hipersinal da cicatriz central. A lesáo estabelece contato e comprime
circundante. Mesmo caso da Figura 51.3. as veias hepáticas média e direita.
Figura 51.5 Tomografia computadorizada, na fase tardia pós-injeçáo Figura 51.8 Angiorressonância magnética axial após injeção intrave-
de contraste intravenoso, demonstrando que a lesáo se tornou prati nosa do gadolínio, evidenciando lesáo com sinal semelhante ao do
camente isodensa em relação ao parênquima hepático circundante. fígado circundante, a qual está em contato com as veias hepáticas e
Mesmo caso anterior. a cava inferior.
Figura 51.9 Angiorressonância magnética axial após injeção intra- Figura 51.12 Ressonância magnética com sequência ponderada em
venosa do gadolínío com sinal semelhante ao do fígado circundan TI (s p in e c h o ), com imagem em plano axial. A lesão do lobo esquerdo
te, mostrando leve compressão sobre as veias hepática direita e cava apresenta-se hipointensa em relação ao parênquima hepático circun
inferior. dante, com ligeira impressão sobre ramo portal esquerdo.
-------------------------------------- ▼--------------------------------------
Quadro 51.14 Características clínicas das lesões hepáticas focais benignas
C is to s s im p le s In c id e m e m t o r n o d e 2 - 7 % d a p o p u la ç ã o , s e n d o is o la d o s o u m ú lt ip lo s , a s s u m in d o d iâ m e t r o s v a riá v e is . S in to m a s típ ic o s
sã o d o r s u rd a n o h ip o c ô n d r io d ir e it o e e p ig á s trio , e s e n s a ç ã o d e m a ssa a b d o m in a l p a lp á v e l
H e m a n g io m a c a v e r n o s o In c id e e m t o r n o d e 5 - 7 % d a p o p u la ç ã o , s e n d o is o la d o o u m ú lt ip lo , c o m d iâ m e t r o v a riá v e l. E v o lu ç ã o , e m g e ra l,
a s s in to m á tic a , c o n s t it u in d o , na m a io ria d a s v e z e s , a c h a d o in c id e n ta l. S u a p re s e n ç a p o d e t r a d u z ir -s e p e la q u e ix a d e
d o r n o h ip o c ô n d r io d ir e it o e e p ig á s trio . F e b re e h ip o te n s ã o a rte ria l c o m s u d o re s e p o d e m ser id e n tific a d a s c a s o exista
r u p t u r a in tra p e rito n e a l. M a is c o m u m e n t r e p a c ie n te s d o se x o f e m in in o
A d e n o m a h e p a to c e lu la r M a is fr e q u e n t e e n tre m u lh e r e s q u e u s a ra m o u a in d a u s a m a n t ic o n c e p c io n a l o ra l. P o d e fa ze r p a rte d o q u a d r o d e
g lic o g é n e s e t i p o I, o u id e n tific a d o n a q u e le s e m u s o d e e s te ro id e s a n d r o g é n ic o s . D o t a d o d e p o t e n c ia l te n d ê n c ia à
tra n s fo r m a ç ã o m a lig n a , o q u e re fo rça a in d ic a ç ã o d o t r a t a m e n t o c ir ú r g ic o
----------------------------------------------- ▼------------------------------------------------
Quadro 51.15 Características aos métodos de imagens das lesões hepáticas focais benignas
C is to s sim p les * U S - N ó d u lo a n e c o ic o o u h ip o e c o ic o
T C - C o n t o r n o s sã o b e m d e fin id o s . T e m v a lo r d e a te n u a ç ã o b a ix o ig u a l a o d a á g u a (0 -1 0 U H )
N ã o so fre im p r e g n a ç ã o d o c o n tra s te e n d o v e n o s o
R M - A p r e s e n ta -s e h ip o in t e n s o e m T1 e h ip e r in t e n s o e h o m o g ê n e o e m T 2 . N ã o sofre re a lc e p ó s -in je ç ã o d e g a d o lín io
H e m a n g io m a c a v e rn o s o * U S - E m g e ra l, a p re s e n ta -s e h ip e r e c o g ê n ic o , m a s p o d e ser h ip o o u is o e c o g è n ic o , c o m fo rm a re g u la r o u lo b u la d a
T C - H ip o d e n s o e m re la ç ã o a o fíg a d o n o r m a l. P ó s -in je ç ã o d o c o n tra s te e n d o v e n o s o so fre im p r e g n a ç ã o p e rifé ric a , c o m
re a lc e p ro g r e s s iv o e m d ir e ç ã o a o c e n t ro d a lesão. P o d e se id e n tific a r fib ro s e c e n tra l
R M - C a r a c te r is tic a m e n te h ip o in t e n s o e m T 1 e h ip e r in t e n s o e m T 2 , m e s m o n o s t e m p o s d e e c o ( T E ) lo n g o
C a r d n o m a h e p a to c e lu la r P e q u e n o t u m o r { < 2 ,0 c m ) - e m g e ra l, e v o lu i a s s in to m á tic o , s e n d o m a is f r e q u e n t e m e n t e d ia g n o s t ic a d o
d u r a n t e se u r a s tre a m e n to , ra s t r e a m e n t o a tra v é s d e u ltra s s o m o u t o m o g r a fia c o m p u t a d o r iz a d a d e p a c ie n te s
d r r ó t ic o s
G r a n d e t u m o r (> 3 ,0 -4 ,0 c m ). P r e d o m in a e m p a c ie n te s d o s e x o m a s c u lin o a lc o ó la tra s , f u m a n t e s e, s o b r e t u d o ,
n o s p o r t a d o r e s d o s v íru s B o u C d a h e p a tite . T r a d u z -s e c lin ic a m e n t e p e lo a p a r e c im e n t o d e d o r c o n t ín u a e m
a b d o m e s u p e rio r, a n o re x ia , a ste n ia e e m a g r e c im e n t o . A sc ite , h e m o r r a g ia d ig e s tiv a a lta e icte ríc ia p o d e m ser
o b s e rv a d a s
M e tá s ta s e s O b s e r v a d a s , s o b r e t u d o , n o c â n c e r c o lo rre ta l. M e tá s ta s e s s in c rô n ic a s o c o r r e m e m 1 5 -3 0 % , e essa m e s m a
fre q u ê n c ia é o b s e r v a d a a o fim d e 3 a n o s d a re s se cç â o d o t u m o r p rim á r io . O s caso s n ã o tra ta d o s s o b r e v iv e m
a p e n a s 6 -1 8 m e s e s e 2 5 m e s e s c o m le sã o so litá ria . H e p a t e c t o m ia p o d e ser re a liz a d a e m a p e n a s 1 0 % d o s casos,
c o m m o r t a lid a d e e m t o r n o d e 1 -2 % , c o m s ig n ific a tiv a p r o p o r ç ã o d e le s p e r m a n e c e n d o livres d a d o e n ç a p o r
m a is d e 2 0 a n o s . P r e d o m in a m n o s h o m e n s , q u e se q u e ix a m d e d o r n o a b d o m e s u p e rio r o u p o d e m c u rs a r c o m
m a ssa p a lp á v e l. Ic te rícia e sin ais d e Irre s s e c a b ilid a d e p o d e m ser o b e r v a d o s . Essas m e s m a s c a ra c te rís tic a s sã o
o b s e r v a d a s n o s t u m o r e s d e p â n c re a s , d e p u lm ã o , n e u r o e n d ó c r ln o s e G IS T
T
Quadro 51.17 Características aos métodos de imagens das lesões hepáticas focais malignas
C a ra c te rís tic a s %
D e fe ito d e p e rfu s ã o
P re s e n te 64
A u s e n te 36
R M - C a ra c te rís tic a s %
T I (A ) T 2 (B ) 13
T 1 ( A ) T 2 (N D ) 44
T I (B ) T 2 (A ) 6
T I ( N D ) T 2 (A ) 6
T 1 (A )T 2 (H ) 0
T I ( l ) T 2 (N D ) 31
M e tá s ta s e s " U S - L e sõ e s h ip o e c o ic a s e m a lv o , h ip o v a s c u la r e s e m 5 0 % d o s p a c ie n te s . Ú n ic a s o u m ú ltip la s
T C - L e sõ e s h ip o d e n s a s c o m im p r e g n a ç ã o p e rifé ric a p ó s -in je ç ã o d e c o n tra s te , s e n d o e ste e lim in a d o
r a p id a m e n t e . P o d e m c o m p r i m i r va so s. S e n s ib ilid a d e d ia g n ó s t ic a a u m e n t a c o m p o rto g ra fia
R M - L e sõ e s h ip o in t e n s a s e m T 1 , c o m m o d e r a d o h ip e rs in a l e m T 2 . P ro c u ra r d ife re n c ia r d e o u tra s lesões;
q u a n d o m u it o v a s c u la riz a d a s , s ã o m a is b e m d e fin id a s a p ó s in je ç ã o d e g a d o lín io
Figura 51.14 Fase parenquimatosa da arteriografia hepática pós- Figura 51.15 Fase parenquimatosa da arteriografia hepática pós-
injeçáo de lipiodol, evidenciando, pelo menos, quatro grandes nódulos injeçáo de lipiodol, evidenciando um grande e múltiplos pequenos
tumorais hipervasculares, típicos do carcinoma hepatocelular. nódulos hipervasculares, típicos de carcinoma hepatocelular.
Icterícia significa coloração amarelada de pele e mucosas, con P-450. Ela se liga fortemente à albumina plasmática, a fim de
sequente ao acúmulo de bilirrubina no soro e tecidos. Repre ser transportada para o polo sinusoidal do hepatócito, e a liga
senta sinal clínico de extrema importância no diagnóstico e ção é do tipo covalente, ocorrendo em dois locais, sendo um
estadiamento das doenças hepatobiliares, podendo ocorrer de alta e outro de baixa afinidade (Figura 52.1).
também como consequência de doenças extrínsecas a essas Alterações na forma e função dos eritrócitos e situações que
estruturas. Manifesta-se clinicamente quando os níveis séri- interferem no seu transporte levam a um aumento da oferta do
cos de bilirrubina excedem 2,5 mg/d^, no adulto, e 8 a 9 mg/ pigmento, resultando em hiperbilirrubinemia indireta. Assim,
d f, no neonato. a hemólise congênita ou adquirida, considerada como principal
As síndromes ictéricas podem estar ou não associadas à co- causa de icterícia não colestática, as deficiências nutricionais
lestase. As não colestáticas são causadas pela maior oferta de que cursam com hipoalbuminemia, drogas que competem com
bilirrubina ao fígado, por deficiência de captação pelo hepa- a bilirrubina no seu local de menor afinidade de ligação com a
tócito, ou por defeito no seu transporte extracelular e/ou na albumina, as síndromes que determinam baixo débito cardíaco
conjugação, caracterizando-se por hiperbilirrubinemia indireta.
De forma inversa, quando ocorre por déficit na excreção hepa-
tocitária, existe predomínio da bilirrubina direta.
A colestase, por sua vez, consiste em uma alteração da for H e m o p r o t e ín a s d o s e ritró c ito s O u t r a s h e m ip r o t e ín a s
mação e excreção da bile, alteração que pode estar localizada (± 7 0 % ) (F íg a d o ± 3 0 % )
i
■ ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS L ig a -s e à a lb u m in a
I
■ Icterícia não colestática C o m p le x o c o n d u z i d o n o p la s m a
heme, monóxido de carbono e bilirrubina sob ação da enzima 2. D if u s ã o p e lo c ito s o l p o r lig a n d in a s c o n ju g a n d o -s e n o re tíc u lo
hemioxigenase. Essa bilirrubina formada é dita indireta ou não e n d o p la s m á t ic o v a le n d o -s e d a e n z im a g lic u ro n iltra n s fe ra s e ;
conjugada e tem como propriedades ser lipossolúvel, atraves 3. F o rm a -s e e n t ã o m o n o e d ig lic u r o n íd e o s d e b ilir r u b in a s e x p o r t a d o s
sar facilmente as membranas lipoproteicas (em particular, a p e lo c a n a l biliar, v a le n d o -s e d e u m a p ro t e ín a tr a n s p o r t a d o r a M R P 2
barreira hematoliquórica) e não ser excretada pelos rins. A sua (d e fic iê n c ia r e s p o n s á v e l p e la s ín d r o m e d e D u b in -J o h n s o n ) .
produção diária é de cerca de 300 mg, sendo 70 a 75% prove
nientes do sistema reticuloendotelial e os restantes 25 a 30% do Figura 52.1 Formação, metabolismo e excreção da bilirrubina (Lidofsky,
heme hepático e de hemoproteínas, sobretudo do citocromo 2000) .
585
586 C a p ítu lo 5 2 / A Icte rícia c o m o S ín d ro m e : N ã o C o le stá tica e C o le stá tica
■ Icterícia colestática —
—
D ro g a s
H e p a t o p a t ia c rô n ic a
— In fe cç ã o
A captação da bilirrubina pela membrana sinusoidal do he- — D o e n ç a d o c o lá g e n o
patócito é dependente da sua concentração sérica, de sua força — Id io p á tic a
de ligação com a albumina, do fluxo sanguíneo do sinusoide, F r a g m e n ta ç ã o e ritro c ità ria
dos mecanismos de difusão passiva e da existência de substân — V a lv u lo p a tia
— M a lá ria
cias captadoras e transportadoras. É facilitada pela presença de
3. O utras
fenestrações na membrana plasmática das células sinusoidais, o
H e m a to m a s
que permite a passagem de proteínas para o espaço de Disse e o
II - Redução do transporte de bilirrubina
acoplamento do complexo albumina-bilirrubina à membrana In s u fic iê n c ia c a rd ía c a c o n g e s tiv a
hepatocitária. Uma vez no interior do hepatócito, o pigmento Choque
liga-se à ligandina, proteína que participa ativamente de seu H ip o x ia
D e s id ra ta ç ã o
transporte para o microssomo, facilita sua difusão para o re-
H i p o a lb u m in e m ia
tículo endoplasmático e impede seu refluxo para o sinusoide. N u t r iç á o p a re n te ra l p ro lo n g a d a
Por sua vez, a conjugação ocorre no microssomo hepático, sob
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
H e ra n ç a — A u to s s ô m ic a recessiva A u to s s ô m ic a d o m in a n t e A u to s s ô m ic a d o m in a n t e
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
D u b in -Jo h n so n R otor
a ação da enzima UDP-glicuroniltransferase, com os grupos O citoesqueleto, por sua vez, é formado pelos microtúbulos e
carboxila das cadeias laterais do ácido propiônico sendo es- microfilamentos que envolvem o canalículo biliar. Os primeiros
terificados com o ácido glicurônico, resultando na formação são constituídos de tubulina, uma proteína polimerizada, e têm
de mono e diglicuronídio de bilirrubina. O pigmento passa a a função de secretar albumina e lipoproteínas. Já os microfila
ser, então, transportável até o polo canalicular do hepatócito, mentos, constituídos de actina, envolvem os canalículos e têm
onde é excretado para a bile através de processo ativo, com a a função de manter o tônus e a integridade das microvilosida-
participação do complexo de Golgi e dos lisossomos, sob forma des, sendo responsáveis por sua atividade contrátil, em nível
de complexo micelar juntamente com colesterol, sais biliares e canalicular na colestase. São estes os mais lesados na colestase.
fosfolipídio. Tem a característica de ser hidrossolúvel, o que o Nessa situação, ocorre edema dessas estruturas, com conse
torna facilmente excretável pelos rins. Uma vez no intestino, quente hipertrofia e hipocontratilidade, levando à dilatação
ao nível do íleo terminal e cólon, a bilirrubina sofre degradação canalicular e estagnação da bile.
pela ação da flora bacteriana local, transformando-se princi São definidos três tipos de vesículas de membrana: 1. homo
gêneas, idênticas em tamanho, atuantes no transporte de proteí
palmente em urobilinogênio, cuja maior parte é reabsorvida
nas; 2. similares, constituídas por membranas do mesmo tipo,
pela mucosa intestinal, ganha a circulação êntero-hepática e
diferindo no tamanho e densidade da proteína carreadora; 3.
retorna ao fígado, enquanto pequena fração é eliminada jun
heterogêneas, compostas de membranas altamente diferentes,
tamente com as fezes.
com transportadoras distintas para o mesmo substrato. A atu
A bile, formada principalmente por ácidos biliares, lecitina, ação dessas vesículas no transporte e na secreção da bile rela
colesterol e bilirrubina, tem a função de excretar substâncias ciona-se com a presença de enzimas, como Na', K*-ATPase, ou
lipossolúveis, participar no processo da digestão e exercer papel bomba de trocas Na' -K’, ou de cálcio dependente de Ca*-ATPa-
imunológico, na medida em que transporta IgA para o intesti ses e das forças de fluxo direcional, certamente ligadas à parti
no. É armazenada e concentrada na vesícula biliar e eliminada cipação de outros cofatores, organelas e nucleotídios.
para o duodeno através da ampola de Vater. A sua produção O complexo de Golgi está relacionado com a secreção e trans
por complexo sistema de transporte localizado no hepatócito porte de lipoproteínas, e com as vesículas de transferência, in-
e nas células epiteliais biliares depende do estabelecimento de vaginações da membrana que têm função de transporte de vá
gradientes osmóticos entre o sangue, as células hepáticas e o rias substâncias.
espaço intercelular, bem como do livre movimento de água e Na colestase intra-hepática, ocorre um desequilíbrio entre os
solutos através das membranas canaliculares. O substrato ul- gradientes osmóticos que participam do processo de secreção
traestrutural de sua formação é denominado aparelho secretor biliar, levando à alteração na fluidez da membrana plasmática,
da bile, constituído pela membrana sinusoidal do hepatócito, redução da atividade da Na*, K*-ATPase, com consequente au
complexo juncional, retículo endoplasmático liso, citoesquele- mento de síntese das enzimas aí localizadas, tais como fosfatase
to, vesículas de membrana plasmática e do complexo de Golgi, alcalina, gamaglutamiltransferase e 5-nucleotidase. Em geral,
os quais serão descritos a seguir. relaciona-se com alteração nos sistemas de transporte e secre
A membrana sinusoidal corresponde a cerca de 70% da su ção da bile pelos hepatócitos, ou com um processo obstrutivo
perfície hepatocitária e é responsável pelo transporte bidirecio- das vias biliares intra-hepáticas (Quadro 52.4).
nal de várias substâncias; entre elas, sais biliares, bilirrubina, Colestase extra-hepática (CEH) significa obstrução mecâ
colesterol e outros ânions orgânicos. Possui em sua superfície nica ao fluxo normal da bile, localizada em algum ponto entre
receptores para a enzima N a \ IO-ATPase, enquanto a cana a emergência do dueto hepático comum e a ampola de Vater.
licular tem a função de excretar bile e solutos para os canalí- Pode originar-se na própria árvore biliar ou ser extrínseca a ela,
culos biliares. Tem composição lipídica, portanto resistente à ter caráter benigno ou maligno, instalação aguda ou crônica,
ação detergente dos ácidos biliares. Sua superfície de absorção como se observa nos casos de tumores ou estenose benigna de
é aumentada pela presença dos microvilos. colédoco, ou, ainda, ser transitória, a exemplo do que ocorre
nos casos de migração de cálculos (Quadro 52.5).
O complexo juncional representa uma diferenciação da
membrana celular, cuja função é manter a união entre as célu
las, compondo-se de três zonas: 1. de união máxima, localizada
------------------------------------- ▼-------------------------------------
entre o canalículo biliar, o espaço intercelular e o sangue, regula
o fluxo de água e solutos através da membrana canalicular; 2. Q u a d ro 5 2 .4 P rin c ip a is c a u s a s d e c o le s ta s e in t r a -h e p á t ic a *
presença do citocromo P-450. Contém a 7-hidroxilase e a gli- •Todas merecerão considerações em capítulos específicos deste livro.
curoniltransferase.
588 C a p ítu lo 5 2 / A Icte rícia c o m o S ín d ro m e : N ã o C o le stá tica e C o le stá tica
■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS
■ Clínicos
Exigem-se uma precisa anamnese e adequado exame físi
co. A definição da época do surgimento dos sintomas e sinais
mostra-se importante. Assim, icterícia no recém-nato leva a
pensar nas formas hereditárias e anomalias do desenvolvimento
das vias biliares. No adulto jovem, são mais comuns proces
sos infecciosos agudos e crônicos do fígado e vias biliares, que,
quando presentes nas mulheres de meia-idade, sugerem cir
rose biliar primária, enquanto, nos homens em torno dos 10 a
40 anos, associados a febre e calafrios, despertam a suspeita de
colangite esclerosante primária. Nos pacientes que se encon
tram além dos 40 a 50 anos, referindo dor abdominal cursando
febre ou não e astenia, torna-se necessário pensar em doença Figura 52.3 Resumo dos aspectos diagnósticos na icterícia coles
neoplásica maligna (Figura 52.2). tática.
590 Capítulo 52 / A Icterícia como Síndrome: Não Colestática e Colestática
A n t i-h is ta m ín ic o s
D if e n id r a m in a , h id ro x iz in a 2 5 -5 0 m g , 6/6 h P o u c o e ficaze s S o n o lê n c ia
2 5 m g , 8/8 h
A escolha de qualquer dessas modalidades baseia-se na dispo Oliveira c Silva, A de, Meta, CRR, Almeida, FAS, Amaral CHA, D Albuquerque, LAC.
nibilidade material e humana, nos serviços e no técnico mais Síndromes que determinam alterações na função cxcrctora biliar cm recém-
nascidos, crianças c adultos. Em: Oliveira c Silva, A de & DAlbuqucrque,
habilitado à manipulação de qualquer delas. LAC. Síndromes Ictéricas, l 4 cd., São Paulo, Fundo Editorial BYK, p. 29-
Na presença de neoplasias obstruindo a via biliar, a ressecção 35. 1996.
tem indicação formal. Quando a neoplasia for irressecável, a Oliveira e Silva, A de, Mcniconi, MT, Copstcin, JLM, Santos Jr, ED, Manccro,
terapêutica baseia-se na realização de cirurgia paliativa, através JMP, Quirczc Jr, C, Paula Filho, U, DAlbuqucrque, LAC. Colcstasc extra-
hepática. Em: Síndromes Ictéricas, 1.* cd., São Paulo, Fundo Editorial BYK,
de anastomose biliodigestiva. Em alguns casos de litíase intra-
p. 70-108,1996.
hepática, está indicada hepatectomia regrada. Portadores de Oliveira c Silva, A de, Rosa, H, Carvalho, HA, Ferreira, ACS, Melo, CRR,
cirrose biliar primária ou secundária ou síndromes híbridas DAlbuqucrque, LAC. Colcstasc intra-hcpática. Em: Oliveira c Silva, A de
(hepatite autoimune + CEP ou CBP) deverão ser levados ao 8c DAlbuqucrque, LAC. Síndromes Ictéricas, 1.* cd., São Paulo, Fundo Edi
transplante de fígado. torial BYK, p. 36-69, 1996.
Oliveira c Silva, A de, Santos, TE, Cardoso, ES, Teixeira, ACS, Marques, CP,
DAlbuqucrque, LAC. Metabolismo da bilirrubina c síndromes que de
term inam hiperbilirrubinemia indireta. Em: Oliveira c Silva, A de 8c
■ LEITURA RECOMENDADA DAlbuqucrque, LAC. Síndromes Ictéricas, 1.* cd., São Paulo, Fundo Editorial
BYK, p. 13-28, 1996.
Chowdhury, JR & Chowdhury, NR. Bilirrubin metabolism and its disordcrs. Pereira Lima, J 8c Pereira Lima, J. Diagnóstico diferencial das icterícias do
Em: Kaplowitz, N. Liver and Biliary Disease, 2*dcd., Baltímorc, Williams & adulto. Em de Mattos, AA 8c Dantas, W. Compêndio de Hepatologia. São
Wilkins, p. 154-70,1996. Paulo, Fundo Editorial BYK, p. 87-99, 1995.
Galizzi Filho, J & Antuna, IT. Metabolismo da bilirrubina c seus distúrbios Shcrlock, S 8c Dooley, J. Jaundice. Em: Shcrlock, S 8c Doolcy, J. Diseases of
hereditários. Em: de Mattos, AA & Dantas, W. Compêndio de Hepatologia. the Liver and Biliary System, 10,h ed.. Oxford, Blacwell Science, p. 201-16,
São Paulo, Fundo Editorial BYK, p. 15-29, 1995. 1997.
Lidofski, SD. Jaundice. Em: Bacon, BR, 0'Grady, JG, Di Bisccglic, AM, Lakc, JR Silveira, TR. Icterícia na infância. Em: de Mattos, AA 8c Dantas, W. Compêndio
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Lidofski, SD. Jaundice. Em: Fcldman, M, Friedman, M, Brandt, LJ. Gastrintes- Suchy, FJ. The use membrane vesiclcs to study hepatic transport. Em: Tavo-
tinal and Liver Disease, Vol. 1, Saundcrs-Elscvicr, Philadclphia, PA, 2010, loni, N 8c Berk, PD. Hepatic Transport and Bile Secretion. Physiology and
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Ncuberger, J 8c Farrant, M. Cholcstatic liver disease. Em: Williams, R, Port- Suchy, FJ 8c Shncidcr, BL. Nconatal Jaundice and cholcstasis. Em: Kaplow
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Churchill Livingstonc, p. 29-34,1995. p. 495-510,1996.
Hepatite Aguda Viral
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Leonardo ReuterMotta Gama,
Celso Marques Raposo Júnior, Naísa Oliveira Alvim Mattedi,
Lucas Cagnin, Gerusa Náximo de Almeida, Flávia Costa Cardoso,
Raul Carlos Wahle
A hepatite aguda viral representa a causa mais comum de doen por Hollinger, em 1994. Comentaremos, em seguida, certas
ça hepática infecciosa, ictérica ou não, no Brasil. Causada, pelo peculiaridades de alguns desses vírus.
menos, por cinco vírus A, B, C, D e E, traduz-se por sintomas, O vírus A é um vírus RNA, pertencente à família Picorna-
sinais clínicos e laboratoriais superponíveis nas diferentes etio- viridae, a qual inclui os enterovírus e rinovírus. Tem a forma
logias. Divergem, no entanto, no que diz respeito às caracterís icosaédrica, com 28 nm de diâmetro, seu genoma é de fita única,
ticas dos agentes etiológicos, tendência evolutiva, estratégias de composto de 30% de RNA e 70% de proteínas, senso positivo,
manipulação e, inclusive, na incidência das formas fulminantes, e encerra 7,48 kbRNA. Produz uma poliproteína com 22,27
quando muitos pacientes deverão ser conduzidos ao transplante resíduos de aminoácidos, relativamente estável ao calor, e é
de fígado. Outros vírus podem infectar o fígado, mas este ó r inativado quando exposto a autoclave, radiação ultravioleta,
gão não é nem o local primário de suas replicações, nem o seu formalina e iodo. Existe apenas um serotipo e quatro genótipos.
alvo principal. Nessa condição, incluem-se o citomegalovírus, Seu período de incubação se situa entre 14 e 50 dias. A viremia
o herpes simples, o Epstein-Barr, o vírus da febre amarela e da não ultrapassa 7 dias, daí porque a transmissão parenteral é rara.
dengue, assim como outros flavivírus. Ainda contam-se os ví Não evolui para hepatite crônica, embora raríssimos casos com
rus do sarampo, da rubéola, da influenza e do herpes genital, essa evolução tenham sido descritos.
capazes de causar hepatite de gravidade variável, os quais não Revela-se diretamente citopático, transmitido pela rota oral-
merecerão considerações neste capítulo. fecal, replicando no intestino, indo ao fígado, valendo-se do
sistema venoso portal, onde replica, atingindo por essa via o
intestino, sendo então eliminado pelas fezes.
■ AGENTES VIRAIS MAIS FREQUENTES O vírus B é um vírus DNA, pertencente à família Hepadna-
virus com vírion completo, a partícula de Dane tendo 42 nm
Os vírus das hepatites humanas representam um grupo de de diâmetro, com genoma circular, composto de dupla fita de
patógenos dotados da capacidade de causar necrose em hepa- DNA com aproximadamente 3.200 pares de base de exten
tócitos e inflamação no fígado. Na maioria das vezes, tais casos são. Tem quatro aberturas de leitura, codificando o envelope
são devidos à participação dos vírus A, B, C, D, E, definidos (preS/S) sintetizadora do AgHBs, core (precore/core) respon
como hepatotrópicos. A taxonomia, os genótipos e serótipos, sável pela formação do AgHBc, a DNA polimerase, catalisado-
as propriedades dos vírions, dos genomas e biológicas estão ra da replicação viral; e uma proteína X, que parece implicada
representados nos Quadros 53.1 a 53.4, segundo foi proposto na replicação de outros vírus, como o vírus da AIDS (HIV).
------------------------------------------ ▼------------------------------------------
Q uadro 53.1 Taxonomia, genótipos e serótipos dos vírus humanos hepatotrópicos
A E B C D
E sp écies V íru s d a h e p a tite A V íru s d a h e p a tit e E V íru s d a h e p a tite B V íru s d a h e p a tite C V íru s d a h e p a tite D
G e n ó t ip o s 7 3 5 >6 3
S e ró tip o s 1 1 1 ? ?
592
Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira! 593
--------------------------------▼--------------------------------
Q u a d ro 53.2 Propriedades dos vírus humanos hepatotrópicos
T a m a n h o (n m ) 28 32 42 3 8 -5 0 43
E n v e lo p e Nào Nâo S im S im S im
P ro te ín a s c a p s íd ic a s 3 1 1 1 1
Lo ca l d a m o n t a g e m C ito p la s m a D e s c o n h e c id a C it o p la s m a D e s c o n h e c id a C it o p la s m a
--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Q u a d ro 53.3 Propriedades dos genomas dos vírus hepatotrópicos humanos
S e n t id o 1 1 ND 1 2
L o ca is d e re p lic a ç á o C ito p la s m a D e s c o n h e c id o N ú c le o D e s c o n h e c id o N ú c le o
ND - Nâo definido.
▼
Q u a d ro 53 .4 Propriedades biológicas dos vírus hepatotrópicos humanos
T ít u lo s m á x im o s 10“ 7 g m ? 10” 7 n V 1 0 ° -7 m t lO ^ V m i
C ro n ic id a d e N â o (? ) Não S im S im S im
C u rs o fu lm in a n t e R a ro G e s ta ç ã o R a ro R a ro In c o m u m
S o ro lo g ia
A n t ic o r p o S im 4 S im 4 S im b S im b S im 6
Á c id o n u c le ic o S im 4* S im 4* S im b S im b Slm °
Apresenta quatro subtipos antigênicos: adw, ayw, adr e ayr, transativador transcripcional. Inicia sua ação deletéria sobre o
que mostram distribuição geográfica peculiar. Variações do fígado ao se ligar às membranas dos hepatócitos replicando via
genoma geram as mutações que podem ocorrer nas regiões transcrição e produção de RNA pregenômico, gerando nucleo-
do core, pré-core, pré-S, ou no gene da polimerase ou no X, capsídio, polimerase e partículas ccc (closed circular) DNA em
as quais podem induzir à hepatite fulminante, reduzir a res nível nuclear após envelopamento de proteínas; suas expressões
posta ao interferon, facilitar a perpetuação da doença ou a sua dependem de elementos cis e trans promotores de pré-S 1, pré-
recorrência após transplante hepático. A partir da atuação da S2 e X, reguladas pela metilação de ilhas CpG identificada em
proteína HBX, tem atuação oncogênica se associando à evo fígados humanos dos portadores desse agente. Nestes, a lesão
lução para o carcinoma hepatocelular, ao atuar como potente hepatocelular induzida se relaciona com linfócitos T citotóxi-
594 Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira!
cos, ao reconhecer antígenos específicos em associação com A partir daí, foi clonado, e classificado como um RNA vírus
antígenos HLA classe I, causando apoptose de hepatócitos in da família Flaviviridae, mantendo 29% de homologia com o
fectados. É transmitido pelo sangue, por via sexual, por agulhas VHC. Sua detecção em soro ou outros fluidos e tecidos depende
contaminadas e verticalmente da mãe para o filho, com período do emprego de reação em cadeia de polimerase (PCR), técni
de incubação entre 14 e 90 dias. ca sem sensibilidade e especificidade bem definidas. A partir
O vírus C é um vírus RNA pertencente à família Flaviviri- da proteína E2 do envelope do seu genoma, empregada como
dae, composto de genoma de fita única, com aproximadamen antígeno, utiliza-se o método de ELISA para identificação de
te 10.000 nucleotídios em sua composição. Tem apenas uma anticorpos específicos.
abertura de leitura, replicando através de uma RNA polimerase Tudo indica que sua transmissão seja predominantemente
codificada pelo gene NS 5B. Apresenta seis grupos filogenéticos parenteral, existindo dúvidas quanto à importância das rotas
e seis genótipos principais, com inúmeras variantes. Os genóti- oral e sexual. Período de incubação, porcentagens de formas
pos lb e 4 são os mais agressivos, associados à baixa resposta ao sintomáticas e evolução para cronicidade ou existência de por
tratamento com interferon, e o resultado deste tratamento é tadores assintomáticos são aspectos que não se encontram ain
melhor com os portadores de genótipos 2a e 2b. Os vírus RNA da bem definidos. Tem sido identificado entre 0,4 e 1,6% dos
mostram misturas heterogêneas de genomas mutantes, decor doadores voluntários de sangue, em associação com 15% dos
rência de taxas elevadas de erro na replicação do RNA. Isso portadores crônicos do VHC, em 20% dos doentes com cir
constitui as quasiespecies, cuja importância reside no fato de rose criptogênica, em 26 a 31% dos dialisados e, finalmente,
que elas respondem heterogeneamente ao interferon-padrão ou em 9 a 24, 43,6 e 31% dos transplantados de coração, fígado
peguilado. Uma menor heterogeneidade favorece a terapêutica e rim, respectivamente. Apesar desses avanços, não se definiu
antiviral, e vice-versa. A quantidade de partículas C no sangue ainda se se trata de um vírus realmente hepatotrófico, sendo
circulante é muito menor do que a observada na infecção pelo recomendável pesquisá-lo naqueles pacientes que apresentam,
vírus B. Atualmente, o vírus C é o maior responsável pelas he sobretudo, hepatite pós-transfusional do tipo não A-E. Apesar
patites pós-transfusionais. Assim, o contágio pode ser feito por desse aspecto, sabe-se que está associado a hepatite aguda, e a
sangue transfundido, por agulhas contaminadas e, significativa lesão hepatocelular instalada é, na maioria das vezes, de leve
mente menos do que na hepatite B, e quase negligenciável, por intensidade. Este fato tem levado alguns autores a insistirem
contato sexual, ou de forma vertical. Curiosamente, entretanto, em que raramente existem formas mais graves de necrose hepa
no maior número de casos de hepatite crônica por vírus C o tocelular com esse vírus. Entretanto, a participação do vírus G
contágio não é identificado, constituindo a chamada infecção foi advogada na insuficiência hepática fulminante. Nestes raros
esporádica. O vírus C é considerado um vírus oncogênico, as casos, é possível que a presença do vírus G pudesse ser conse
sociando-se à instalação do carcinoma hepatocelular. quente ao uso de sangue contaminado, empregado durante a
O vírus D é um pequeno vírus RNA, com seu genoma com terapêutica de urgência pré-transplante de fígado.
posto de fita única. Pode replicar de maneira autônoma, mas,
em geral, necessita, para tal, da presença do B, de quem usa,
para exercer tal função, o excesso da proteína proveniente do
■ Vírus da hepatite TT
AgHBs, levando a que cursem com dupla infecção. Assume À semelhança do vírus GB-C, o vírus da hepatite TT recebe
distribuição característica em indivíduos residentes em países essa denominação em referência às iniciais TT do paciente in
do Mediterrâneo, Oriente e da região Amazônica, tais como fectado em que esse agente foi identificado pela primeira vez.
Colômbia, Venezuela e Brasil, com a coinfecção sendo respon Inicialmente, foi caracterizado como pertencente à família dos
sável pelo advento de hepatite aguda. Parvovirus (não envelopados). Logo em seguida, passa a ser
O vírus E, por sua vez, é um vírus RNA, sem envelope, ente- definido como sendo um DNA-vírus, com genoma circular,
ricamente transmitido, similar aos pertencentes à família Gali- de sentido negativo, encerrando 3.739 pares de base, fazendo,
civiridae, tendo seu genoma com 7,5 kb, codificando proteínas então, parte da família dos circivírus humanos. Sua identifica
estruturais e não estruturais, com oito diferentes genótipos sen ção em sangue tem sido realizada através da técnica PCR, a qual
do identificados em diferentes regiões da África, Ásia, Oriente tem limitações, pois subestima a prevalência da infecção, já que
Médio e América Central, assim representados: tipo 1 em Bur- tem sua atuação baseada na presença de anticorpos, com melhor
na, 2 no México, 3 na América do Norte, 4 na China, 5,6 e 7 na capacidade de detecção dos genótipos 2 e 3, não do 1.
Europa e 8 na Argentina, com uma outra variante descrita entre No início, acreditava-se que a forma de infecção mais co
austríacos. Transmissão pessoa-pessoa é a regra; no entanto, mum era após a transfusão de sangue e de derivados. Tem sido
reservatórios animais, como suínos, têm sido identificados (o identificado diversamente: entre 1 e 10% (EUA e Europa), 7 e
que podería significar que a hepatite por vírus E seria uma zo- 14% (Ásia), e em 62% dos brasileiros doadores voluntários.
onose). Apresenta um período de incubação de 2 a 9 semanas, Sua positividade também tem sido observada entre 24 e 45%
em média de 40 dias. A infecção por este agente no Brasil não dos portadores crônicos do VHC e em 47% dos portadores
parece ser comum. de insuficiência hepática fulminante não A-G. A sua frequên
cia varia, conforme se considerem categorias de pacientes, tais
como os toxicômanos intravenosos, os homossexuais e prosti
■ AGENTES VIRAIS MENOS FREQUENTES tutas, e indivíduos não incluídos nessa classificação (5 a 13% x
4,5%). Existem evidências de que a contaminação não se pro
cessa intraútero, mas pode ocorrer pós-parto. Ela também pode
■ Vírus da hepatite G se dar através da rota oral-fecal, diferindo, todavia, das hepatites
Esse agente viral foi identificado em 1955, a partir da in virais A e E, pela possibilidade aparente de evoluir para doença
jeção do sangue de um cirurgião em um sagui. As iniciais do hepática crônica, o que não acontece com as hepatites A e E.
cirurgião, GB, foram utilizadas para a denominação do agente. Aumenta sua prevalência após transplante hepático de 10 para
Isolaram-se dois tipos GBV-A e GBV-B em animais de experi 20%. Casos comunitários têm sido descritos, ampliando-se a
mentação, e o GBV-C, ou simplesmente G, em seres humanos. presença do TTV com o aumento da idade. O vírus apresenta
Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira! 595
tendência ao hepatotropismo, comprovado por: 1. são 10 vezes se celular. Na hepatite crônica, o mecanismo de lesão depende
mais elevados os títulos no tecido hepático do que no sangue; 2. de linfócitos T citotóxicos que atacam o complexo molecular
existe paralelismo entre infecção e necrose hepatocelular, tra composto por antígenos virais e HLA (de histocompatibilidade)
duzida pela elevação dos valores séricos de aminotransferases: dispostos na superfície do hepatócito. É possível que outros fa
3. existe paralelismo entre clareamento viral e normalização tores intervenham, como lesão celular por citocinas. Na hepatite
dos valores enzimáticos. por vírus C, o mecanismo de lesão celular não é bem entendido,
A maioria dos indivíduos com TTV é constituída por por mas acredita-se que também seja imunológico. Não se sabe se
tadores assintomáticos, com pequena proporção desenvolven o vírus é citopático. É possível, ademais, que uma exagerada
do hepatite aguda. Há dúvidas sobre o papel causai na doen variação de proteínas do envelope viral facilite uma evasão à
ça crônica do fígado, não existindo evidências de que o vírus resposta imunológica do hospedeiro, levando à persistência da
possa causar carcinoma hepatocelular. Esses aspectos levam a infecção pelo vírus C.
uma interrogação sobre a real capacidade de esse vírus lesar
o fígado.
Desde a descoberta do TTV, vários vírus com pequeno ge- ■ ASPECTOS ANAT0M0PAT0LÓGIC0S
noma DNA foram descritos no Japão. Esses vírus foram deno
minados Sanban, Yonban e TTV-similar minivírus. Nenhum A hepatite aguda viral é uma doença difusa necroinflama-
deles provou, até o presente, provocar doença em humanos. tória do fígado, que, em geral, evolui com menos de 6 meses
de duração. Pode ser histologicamente não distinguível da he
patite crônica, o que torna o tempo de doença um critério di-
■ MECANISMOS DE LESÃO CELULAR ferenciador muito importante, além do que as maiores modi
ficações são lobulares e não de espaços portais. Caracteriza-se
Aceita-se que a magnitude da lesão celular, nas hepatites por comprometimento panlobular, acentuada celularidade e
agudas, dependa da carga viral e da capacidade de multiplicação pleomorfismo de hepatócitos e necroses focais. Degeneração e
do agente viral. Por sua vez, tem importância a resposta des eosinofilia ou corpos apoptóticos e balonizados dos hepatócitos
pertada pelo hospedeiro, classificada como: 1. não específica, levam à necrose lítica. A regeneração traduz-se pela presença
dependente da participação de interferon, complemento e lin- de mitose e/ou multinucleação dos hepatócitos, com variações
fócito NK; 2. de células killer, como neutrófilos e macrófagos, de tamanho, forma e qualidade de coloração dos hepatócitos.
as quais requerem anticorpos para sua atuação; 3. especificidade O infiltrado inflamatório é constituído por células sinusoidais
exercida pelos linfócitos T citotóxicos (CTC). Esses mecanismos ativadas, sobretudo de Kupffer, enquanto nos espaços portais
atuam visando a eliminar o agente viral, precipitando a lise ce predominam linfócitos, plasmócitos e eosinófilos, com poucos
lular. Quando essas respostas se revelam eficientes e precoces, neutrófilos. Casos mais graves traduzem-se por necrose multi-
propiciam a cura sorológica e restituição total do parênquima, lobular, em ponte ou submaciça. Colestase citoplasmática ou
não facilitando a instalação de estado de portador ou de hepa intracanalicular faz parte do quadro.
tite crônica. Além desses efeitos, o vírus pode lesar a célula do
hospedeiro ao interferir diretamente com o seu maquinismo,
ou exercer toxicidade a partir de seus produtos. ■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS
Na hepatite por vírus A, a lesão do hepatócito provavelmente
decorre de citotoxicidade mediada por células imunocompe-
tentes. Uma resposta imune exagerada pode gerar a hepatite
■ Etiológicos e sorológicos
fulminante. Na hepatite por vírus B, o dano maior é causado Encontram-se sumariados no Quadro 53.5.
pela reação do hospedeiro. A resposta imunológica é mediada Os marcadores virais constituem chave importante para o
por células e dirigida contra o antígeno core, que se expressa na diagnóstico das hepatites, razão pela qual devem ser bem co
superfície do hepatócito. A reação elimina o antígeno e o hepa nhecidos.
tócito. No estado de hospedeiro sadio, a resposta imunológica O anti-VHA IgM é um indicador de hepatite aguda por
é inadequada e há tolerância ao vírus. Esse estado de tolerância vírus A. Aparece precocemente e persiste por 3 a 6 meses. O
pode ser ultrapassado a qualquer momento, com a emergência anti-VHA IgG é marcador de infecção passada, prestando-se
de clones de células T reativas levando à inflamação e à necro mais para inquéritos epidemiológicos.
---------------------------------▼---------------------------------
Q uadro 53.5 Diagnóstico sorológico das hepatites agudas virais
Marcadores sorológicos
H e p a t it e B - + + + - - - - - -
H e p a t it e C - - - - - ± - + - -
H e p a t it e E - - - - - - - - + +
H e p a t it e D - + + + - - - - - +
596 Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira!
O antígeno de superfície do vírus B (AgHBs) corresponde à ral, náuseas, vômito, anorexia, artralgia e febrícula. Icterícia
proteína do envelope do vírus B. Indica infecção aguda ou crô colestática faz parte do quadro, acompanhando-se de colúria,
nica. Quando desaparece do soro, significa clareamento viral. acolia fecal e prurido, mais comum entre idosos. Essa forma de
O anti-HBc, ou AcHBc (anticorpo anticore do vírus B), é apresentação mostra-se mais leve na C e mais florida na A e na
uma proteína que circunda o DNA do vírus B. Por sua vez, é B, sendo as manifestações extra-hepáticas mais comuns nesses
cercada pelo AgHBs na partícula viral completa, ou partícula de dois tipos. Predomina, no entanto, a evolução assintomática,
Dane. Há três formas: a IgG, a IgM e a total. A positividade da expressa algumas vezes apenas por manifestações gastrintesti-
total indica contato presente ou passado com o vírus B. A IgM nais sutis, em geral não valorizadas. A recuperação se processa
indica infecção aguda, ou reativação do vírus na dependência entre 2 e 8 semanas. A evolução para a cronicidade traduz-se
de imunossupressão. Pode positivar-se também no curso de he pela ausência de sinais e sintomas típicos, caracterizada apenas
patite crônica, significando uma reagudização. O anti-HBc IgG pela persistente elevação de níveis séricos de aminotransferases
representa infecção passada, ou, quando associada ao AgHBs, e expressão sorológica típica. Nas fases iniciais, além da icterícia,
sinaliza o estado de portador crônico. O antígeno “c”, AgHBc, notam-se outros sinais, hepatomegalia dolorosa e, eventualmen
não é secretado no soro. te, esplenomegalia. Necrose maciça ou submaciça revela-se por
► AgHBe e o AcHBe (antígeno e anticorpo "e" do vírus colestase acentuada, distúrbios de coagulação e da consciência,
B). O antígeno “e” faz parte do core viral e indica replicação. insuficiência renal, pré-coma e coma hepático, sinais de exaus
Pode ser detectado na hepatite aguda e na replicação viral no tão funcional do parênquima hepático, definido como hepatite
curso de hepatite crônica. Quando presente em doente crôni aguda fulminante (Capítulo 56). A hepatite A costuma invo-
co e associado ao AgHBs, ajuda a indicar tratamento antiviral. luir rapidamente na criança, mas pode demorar a resolver no
Seu anticorpo surge quando há resolução da hepatite aguda, ou adulto (hepatite aguda prolongada), sem que isso tenha uma
quando cessa a fase replicativa em hepatite crônica. significação ominosa. As hepatites por vírus B, C e D podem
O AcHBs, ou anti-I IBs, é o anticorpo contra o antígeno de cronificar, mas a por vírus A nunca o faz. O vírus E manifesta-
superfície do vírus B. É um anticorpo neutralizador e indica se, sobretudo, em epidemias, mais comumente em países em
infecção jugulada, ou resulta de vacinação contra hepatite B desenvolvimento. O curso clínico assemelha-se ao da hepatite
bem-sucedida, sobretudo se em título superior a 10 mUI/mf. A. É responsável por elevada mortalidade entre grávidas, so
► DNA polimerase do vírus B. Indica presença do vírus B. bretudo aquelas que estão no terceiro trimestre de gestação. O
É pouco sensível. diagnóstico é comprovado pela presença de anti-VEH IgM (e
► Ensaios de hibridização. Utilizam várias técnicas e de IgG para fins epidemiológicos) e testes de hibridização para o
terminam partes específicas do DNA do genoma do vírus B. VHE RNA. Não há relato de evolução para a cronicidade.
São bastante sensíveis e detectam o DNA no soro em faixa de
1,5 a 20 pg/m^. Excelentes para distinguir uma fase replicativa
da não replicativa. ■ ASPECTOS LABORATORIAIS
► Ensaios bDNA (branched-chain DNA). São testes m ui
to mais sensíveis do que os anteriores e indicam replicação Classicamente, em qualquer dos tipos de hepatite aguda
viral. viral, ocorre elevação de níveis séricos de aminotransferases,
► Testes por PCR (polymerase chain reaction) do DNA vi sempre acima de 500 a 1.000 U l/f, com valores maiores de
ral. São extremamente sensíveis para detectar o DNA do vírus. alanina-aminotransferase (ALT). Acentuam-se também as con
Essa elevada sensibilidade acaba por tornar esses testes pouco centrações plasmáticas de gamaglutamiltransferase e, sobretu
confiáveis em separar estados replicativos e não replicativos, do, de fosfatase alcalina, principalmente nas formas colestáticas.
porque algum DNA será sempre surpreendido. Há uma ele Hiperbilirrubinemia, quando presente, ocorre sempre à custa
vada relação entre a positividade desses testes e a presença de da fração direta, em geral não ultrapassando 20 m g/dl. São
AgHBs no soro. normais a atividade e tempo de protrombina, mesmo naque
O teste ELISA para hepatite C detecta a presença de anti les mais acentuadamente ictéricos. Agravamento da icterícia
corpo em duas regiões do genoma do vírus. É muito sensível, e alargamento do tempo de protrombina significam sempre
mas pouco específico, com relativamente grande incidência necrose hepática mais extensa, que pode acompanhar-se de
de falso-positivos. O anticorpo detectado não é um anticorpo hipoglicemia e baixa síntese do fator V. Recomenda-se a repe
neutralizador, isto é, não significa imunidade, cura da doença. tição de provas bioquímicas a cada 15 dias, até que ocorram
O teste recombinante RIBA é menos sensível do que o anterior, normalização dos parâmetros laboratoriais e a seroconversão
mas é mais específico. Outros testes para diagnosticar o VHC antigênica. O diagnóstico etiológico será sempre confirmado
são o bDNA quantitativo para o RNA do vírus C e o PCR. O pela sorologia, conforme já foi explicitado.
C-RNA pode ser pesquisado no soro e no tecido hepático e
constitui o padrão-ouro no diagnóstico da hepatite C.
A hepatite por vírus D é diagnosticada por teste ELISA, que
■ Diagnóstico diferencial
determina anticorpo contra o vírus D tanto no soro quanto no Os vírus não hepatotrópicos primariamente infectam outros
plasma. Esses anticorpos são das classes IgM (fase aguda) e IgG órgãos e tecidos, antes de envolverem o fígado como parte de
(infecção crônica). Há teste tipo PCR para surpreender o RNA uma infecção disseminada. Essas hepatites são causadas por
do vírus D no soro e no tecido hepático. vírus Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simples, varicela-
A hepatite E é pesquisada por teste ELISA, que detecta o zoster, adenovírus, vírus do sarampo e da rubéola. Menos fre
anticorpo ao vírus E. quentemente, são responsáveis os vírus da febre amarela, das
febres de Lassa, Marburg, ebola e dengue, além dos reovírus,
rotavírus, hantavírus, influenza (síndrome de Reye), paramo-
■ Sintomas e sinais xivírus (hepatite de células sinciciais gigantes), e, talvez, o ví
Os vírus A, B, C, D, E costumam apresentar o mesmo cur rus da imunodeficiência humana. A febre Q pode simular uma
so clínico, que se traduz pelo aparecimento de mal-estar ge hepatite viral.
Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira! 597
Vacina para hepatite A, vírus inativado Vacina para h epatite B, recom bínante
-------------------------------------------- ▼--------------------------------------------
Q u a d ro 53.8 Dosagens e esquemas de vacinação anti-hepatite viral A (intramuscular)
Esquem a Esquem a
Grupo HA V R IX * ( 2 -1 8 A) VAQTA® (2-27 A)
(m eses) (m eses)
C ria n ç a s 7 2 0 E L IS A 0 e 6 -1 2 25 U / m / 0 e 6 -1 8
U / 0 ,5 m *
ou
3 6 0 E L IS A 0,1 e 6 - 1 2
U / 0 ,5 m *
(> 1 8 A )
A d u lt o s 1 .4 4 0 U / 1 ,0 m Z 0 e 6 -1 2 50 U / m / 0 e 6 -1 2
A = Anos; U = Unidades.
598 Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira!
------------------------------------------
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------▼
M ã e s A g H B s (2 ) 0 -2 ,1 ; > 4 e 6 - 1 8 2 ,5 m g / 0 ,5 m l 10 m g / 0 ,5 m l
M ã e s A g H B s (1 ) N a s c im e n t o < 1 2 h : H B IG ;
1 ís 2 e 6
5 ,0 m g / 0 ,5 m l 10 m g / 0 ,5 m l
A d o le s c e n t e s ( 1 1 - 1 9 a n o s ) 0,1 i 2 e 4 - 6 5 ,0 m g / 1 0 ,5 m l 10 m g / 1 0,5 m l
A d u lt o s (£ 2 0 a n o s ) 0,1 i 2 e 4 - 6 1 0 m g / 1 ,0 m l 2 0 m g /1 f0 m l
Im u n o s s u p r im id o s a d u lto s 0,1 e 6 4 0 m g / 1 ,0 m l 4 0 m g / 2 ,0 m l
cirrose, dentro de 20 a 25 anos. Visando a impedir essa tendên sitivo, antes do aparecimento dos sintomas?; 2. por ocasião do
cia, existem 11 estudos controlados empregando interferona a pico de elevação da ALT?; 3. quando os títulos do RNAVHC
ou p, na condução desses pacientes. Resultados encontram-se estão declinando?; 4. ou, mesmo mais tarde, após esperar o
discriminados no Quadro 53.10. Um estudo por metanálise de clareamento espontâneo do RNAVHC, de forma que apenas
monstrou uma resposta completa das transaminases em 69% os pacientes virêmicos sejam tratados?; 5. persistem também
dos pacientes que receberam interferon contra apenas 29% dos dúvidas se aqueles com genótipos 2 ou 3 deverão ser tratados
controles. Embora esses resultados pareçam reconfortantes, obedecendo ao mesmo esquema proposto para aqueles com
é preciso que se note que apenas uma pequena proporção de hepatite crônica?; 6. e, sobretudo, indaga-se sobre qual atitude
casos de hepatite aguda por vírus C são sintomáticos, e menos deverá ser tomada naqueles usuários de drogas intravenosas,
ainda são reconhecidos clinicamente. ou com infecção concomitante pelos HIV ou VHB?
Mais recentemente, procurou-se avaliar a eficácia da inter
ferona peguilado a 2b (1,5 jig/kg/semana), administrado por
24 semanas a pacientes alemãs. Os resultados obtidos foram
similares àqueles com interferon padrão, com índices de res
■ LEITURA RECOMENDADA
posta virológica ultrapassando 90%. Barreiros, AP, Sprinzl, M, Rossct, S et al. EGF and HGF leveis are incrcascd
Apesar desses avanços, persistem dúvidas sobre a manipula during active HBV infcction and cnchancc survival signaling through cx-
ção desses pacientes, a propósito de qual o momento de iniciar tracellular matrix interactions in primary human hcpatocytcs. Int} Câncer,
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Hepatite Viral Crônica
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Leonardo ReuterMotta Gama,
Celso Marques Raposo Júnior, Cristiane Maria de Freitas Ribeiro,
Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Maria Elizabeth Calore Neiva,
Gerusa Máximo de Almeida, Raul Carlos Wahle
Manifestações de agressão hepatocelular traduzidas, sobretudo, Aproximadamente, 500.000 desses pacientes morrerão ao ano
por elevação de níveis séricos de aminotransferases persistin em consequência da instalação de cirrose e carcinoma hepato
do por 6 ou mais meses, conduzem ao diagnóstico de hepatite celular, e outros 40.000 de hepatite aguda fulminante em todo
crônica. A confirmação alicerça-se, no entanto, em um padrão o mundo.
histológico bem definido, em geral heterogêneo, e também em As vias clássicas de infecção pelo VHB relacionam-se ao
expressão clínico-laboratorial variável. contato com sangue infectado ou secreções corpóreas. Nessas
condições, o agente penetra o corpo via mucosas ou soluções
de continuidade cutâneas, vias abertas, como consequência do
■ ASPECTOS ETIOLÓGICOS uso de agulhas, ou de seringas contaminadas, ou via oral. A
detecção do antígeno de superfície (AgHBs) no sangue pode
Diferentes agentes ou doenças podem levar a que pacientes ocorrer em 4-10 semanas pós-contato. A transmissão sexual
evoluam com hepatite crônica. Neste capítulo, estudaremos se mostra prevalente, predom inando entre homossexuais
apenas as formas relacionadas aos vírus B, D, C e G, com a
masculinos, mas, também, identificada entre heterossexuais.
evolução do processo podendo desaguar na cirrose e no carci- Por sua vez, a via perinatal mostra-se responsável por 90%
noma hepatocelular (Quadro 54.1). dos casos de mães que são AgHBe positivos, mas essa via de
contaminação pode se dar durante o parto, ou no período
pós-natal, pelo contato estreito m aterno-recém nato. Essa
■ INFECÇÃO PELO VÍRUS DA HEPATITE B evolução também se identifica entre crianças e adolescentes,
O vírus da hepatite B (VIIB) é um hepadnavírus, circular, via escovas de dentes ou barbeadores e mesmo brinquedos
envelopado, que replica via RNA, usando transcriptase rever contaminados.
sa. A infecção crônica induzida por esse agente atinge 400 m i
lhões de pessoas em todo o mundo, predominando, sobretu
do, entre habitantes da Ásia e África, onde a transmissão se -------------------------------------▼-------------------------------------
processa mais frequentemente por via vertical (matemo-fetal), Q u a d ro 54.2 Fatores predisponentes à evolução para hepatite crônica B1
mas, também, horizontal, comportamento observado entre
crianças, adolescentes e adultos. Os fatores predisponentes que 1. Idade do início da R e c é m -n a t o s n á o im u n iz a d o s 9 0 -1 0 0 %
contribuem para tal evolução estão dispostos no Quadro 54.2. infecção R e c é m -n a t o s im u n iz a d o s 1 0 -2 0 %
C ria n ç a s 2 0 -3 0 %
A d u lt o s 5 -1 0 %
2. Sexo - estado de H o m e n s : 5 - 1 0 % se t o r n a m c rô n ic o s
T portador do AgHBs M u lh e re s : 1 - 3 % se t o r n a m c rô n ic o s
600
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 601
Figura 54.1 Curso clínico ou história natural da hepatite viral B (Fattovich, Zagni, Scatollini, 2004).
602 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Q uadro 54.4 Padrões comuns de marcadores sorológicos nas diferentes fases da infecção pelo vírus da hepatite B
Anti-AgHBe
P e r ío d o d e in c u b a ç ã o + - - - + -
In fe c ç ã o a g u d a + - + - + -
C o n v a le s c e n ç a o u re c u p e ra ç ã o
C o m im u n id a d e - + + ± - +
Ja n e la im u n o ló g ic a o u r e c u p e r a ç ã o -
S e m im u n id a d e - - + ± - -
P o r t a d o r c rô n ic o
[ i 6 m eses) + - + ± - +
(s 6 m eses) + - + ± + -
Im u n iz a ç ã o p ó s -v a c in a ç ã o + - - -
▼ --------------------------- T
Q u a d ro 54.5 Distribuição geográfica dos diferentes genótipos do vírus Q u a d ro 54 .6 Características especiais dos genótipos
da hepatite B (Keefe etal., 2004) do vírus da hepatite B
G E s ta d o s U n id o s e E u ro p a
H A m é r ic a C e n tra l e C a lifó rn ia
no Japão e na Austrália, os 1, 2 e 3 na África, o 4 no Egito e o hepática com finalidade de: 1. avaliar o grau das lesões necroin-
6 no Oriente Médio. São todos hepatotróficos, replicando em flamatórias (AO-3); 2. estadiar a fibrose (FO-4); 3. identificar
primatas não humanos e entre os humanos, não sendo citopá- cofatores que contribuem para evolução crônica, tais como,
ticos diretos, porém com a lesão hepatocelular, como vimos sinais de doença hepática alcoólica ou de esteato-hepatite não
anteriormente, sendo imunemediada via linfócitos T-helper alcoólica e sobrecarga de ferro, definidos se valendo do escore
(CD4) e T citotóxicos que se envolvem no reconhecimento de META VIR. Mais recentemente, tem sido proposto avaliá-los
antígenos virais dispostos em superfícies celulares, atuando em usando o método de elastrografia por impulsos (FicroScan),
conjunto com proteínas do complexo MHC classe 1. com a elasticidade hepática sendo mensurada por ondas ul-
trassonográficas. Ressalte-se que o estudo histológico possibi
■ Aspectos clínicos do VHC lita identificar ainda agressão de duetos biliares e existência de
agregados linfocitários e folículos linfoides, além de esteatose
A infecção aguda pelo VHC, na maioria das vezes, cursa as- macro e microvesicular, além de ser possível, em futuro pró
sintomática e sem precipitar o aparecimento da icterícia. Cerca ximo, definir a expressão de certos genes ou do micro-RNA,
de 50-80% desses pacientes, no entanto, evoluem para hepatite abrindo-se perspectiva para definir, valendo-se desses marca
crônica, metade dos quais não manifesta sintomas, enquanto dores, a previsão sobre resposta ao tratamento com interferon
os outros apresentam sintomas inespecíficos, tais como aste- peguilado e ribavirina.
nia, mal-estar geral ou náuseas. Esses terão um curso clínico e
história natural típicos, conforme expresso na Figura 54.2, com
fatores influentes sobre índice de progressão para cirrose e car-
cinoma hepatocelular, traduzindo as tendências apresentadas
■ INFECÇÃO PELO VÍRUS DA HEPATITE G (VHG)
na Figura 54.2 e no Quadro 54.7. Neste território, parece interessante fazer um relato histó
rico. Este vírus foi identificado em 1955, a partir da injeção do
■ Aspectos diagnósticos sangue de um cirurgião em um sagui. As iniciais do cirurgião,
GB, foram usadas para a denominação do agente. Em 1995,
A doença revela-se bioquimicamente por elevação persis cientistas dos Laboratórios Abbott, retomando estudos inicia
tente e flutuante dos níveis séricos de ALT e AST. Diante da dos na década de 1960 por Deinhardt, valendo-se de um soro
suspeita clínica, se pesquisa no sangue a presença do anti-VHC. daquele cirurgião GB, clonaram e sequenciaram dois vírus, de
Positiva implica a busca de identificação do RNA VHC (técnica nominados, então, GBV-A e GBV-B. O primeiro, quando in
PCR), seguida da determinação da carga viral e do genótipo, jetado, infectava pequenos saguis, mas não causava hepatite.
sobretudo quando se busca iniciar o tratamento específico para Por sua vez, o segundo provocava hepatite aguda autolimitada
tais pacientes. Complementa-se esse início se valendo da biópsia naqueles primatas. Nenhum deles, no entanto, foi encontra
do ulteriormente em outros seres humanos, permanecendo
ainda inexplicável de que forma o cirurgião se infectou com
------------------------------------- ▼------------------------------------- eles. Logo em seguida, outro vírus foi descoberto e isolado em
Q u a d ro 54 .7 Cofatores influentes sobre índice de progressão para indivíduos com comportamento de alto risco para hepatite,
cirrose (Albertitffl/., 2004) valendo-se da técnica de PCR por transcrição reversa, logo de
signado de GBV-C. Concomitantemente, em outro laboratório,
E tn ic id a d e foi descrito um quarto agente, isolado de pacientes portado
V ire m ia d e base
res de hepatite não A-E, nomeado HGV. Subsequentemente,
G e n ó t ip o 1 b
comprovou-se que tanto este quanto o GBV-C eram variantes
de um mesmo vírus, rarissimamente encontrando-se associados
Quasispecies
a hepatite. Apesar dessa comprovação, cerca de 10 a 20% dos
Id a d e a o d ia g n ó s t ic o
pacientes com hepatite não A-E estão infectados pelo GBV-C/
Im u n o g e n é t ic a (P o lim o r fis m o d o g e n e IL 2 8 B )
HGV, responsável por pequena, porém distinta, proporção de
S o b r e c a r g a d e fe rro casos de hepatites pós-transfusionais, causando doença hepá
Este a to s e h e p á tic a tica aguda leve, gerando discreta elevação dos níveis séricos de
C o in fe c ç ã o c o m H IV o u v íru s d a h e p a tite B aminotransferases. Forma mais agressiva verifica-se entre he-
O b e s id a d e e re s is tê n cia à in s u lin a modialisados, e a sua presença tendo sido descrita em 6% dos
Falta d e re s p o s ta à t e ra p ê u tic a a n tiv ira l pacientes com hepatite crônica anteriormente definida como
H ip o r r e g u la ç ã o d e g e n e s h e p á tic o s e s tim u la d o s p e lo in te rfe ro n
criptogênica e, em alguns japoneses, evoluindo como forma
fulminante da doença.
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 605
▼
Q u a d ro 5 4 .1 1 1ncidência c u m u la tiv a a n u a l d e re sistê n cia a o s a n á lo g o s n u c le o s (t)íd e o s
V 2o 3o 4o 5o 6o
L a m iv u d in a 23 46 55 71 80 -
T e lb u v id in a A g H B e (+ ) 4 ,4 21 - - - -
T e lb u v u d in a AgHBe (-) 2 ,7 8 ,6 - - - -
A d e f o v ir AgHBe (-) 0 3 6 18 29 -
A d e fo v ir R e s is te n te a la m iv u d in a >20 - - - - -
T e n o f o v ir 0 0 - - - -
E n t e c a v ir R e s is te n te a la m iv u d in a 6 15 36 1,2 51 57
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------- tais como discriminadas no Quadro 54.13. Essa situação deve
Q u a d r o 5 4 .1 3 Adaptações da terapêutica à resistência cruzada ser identificada o mais precocemente possível, valendo-se da
monitorização dos níveis de DNA VHB, antes que se desen
Resistência Adaptações da terapêutica volva hipertransaminasemia.
L a m iv u d in a A d ic io n a r t e n o f o v ir o u a d e fo v ir d ip iv o x il
■ Estratégias de tratamento
A d e fo v ir d ip iv o x il S u b s t it u ir p o r t e n o f o v ir e u m a s e g u n d a d r o g a ,
Podem ser adotadas de forma prática segundo exposto nas
la m iv u d in a o u e n te c a v ir, o u t e lb u v id in e o u
t e n o f o v ir c o m e n te c a v ir
Figuras 54.3 e 54.4.
Os resultados obtidos com essas opções estão expostos segun
T e lb u v id in e A d ic io n a r t e n o f o v ir o u a d e fo v ird ip iv o x il se t e n o f o v ir
do os fármacos usados, avaliando a melhora histológica, a norma
n ã o fo r d is p o n ív e l
lização de ALT, a negativaçâo do AgHBe e a redução dos níveis
E n te c a v ir A d ic io n a r t e n o f o v ir
de DNA VHB, conforme mostrado nas Figuras 54.5 e 54.6.
T e n o f o v ir N ã o t e m s id o d e s c rita res is tên cia p rim á ria , p o d e n d o
h a v e r c ru z a d a , s e n d o re c o m e n d á v e l a d ic io n a r, a p ó s ■ Novas drogas emdesenvolvimento
g e n o t ip a g e m , e n te c a v ir, t e lb u v id in e , la m iv u d in e
o u e n tric it a b in e
São poucas as novas drogas em desenvolvimento visando a
tratar pacientes com VHB. No entanto, permanece a pesquisa
Figura 54.3 Recomendações para tratamento de hepatite crônica B AgHBe positivo. Doença compensada.
Figura 54.4 Recomendações para tratamento de hepatite crônica B AgH8e negativo. Doença compensada.
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 609
voltada a entender na intimidade mecanismos de patogênese formação do nucleocapsídeo. Outras se impõem como candi
e resistência, na busca de identificar e interferir, nos diferentes datas, ao buscar a modulação da resposta inata e adaptativa, ao
mecanismos patogenéticos. Assim tem sido proposto tratá-los ativar células dendríticas, ou que deverão atuar na capacidade
valendo-se de pequenas moléculas que impeçam o acesso do de replicação de mutantes VHB. Selecionam-se assim moléculas
agente viral aos hepatócitos. Com esse objetivo, se pesquisam que permitam a adoção de medidas terapêuticas personalizadas
atuações dos peptídios pré-Sl, isolados ou combinados aos aná a cada indivíduo, ampliando a supressão e o clareamento viral,
logos nucleos(t)ídeos, prevenindo a infecção de novos, e clarea- prevenindo a eclosão de resistência e suas complicações.
mento dos hepatócitos infectados. Outros agentes definidos A falência da terapêutica instituída e a evolução para cir
como candidatos se voltam ao bloqueio e processamento do rose, com sinais de insuficiência hepatocelular, hipertensão
cccDNA, modificando sua regulação epigenética. Também têm portal ou carcinoma hepatocelular, indicam que esses doentes
sido gerados fármacos que se envolvem na encapsulação e for devam ser conduzidos pelo transplante de fígado, represen
mação do capsídeo, bem como moléculas heterocry-pirimiáims tando cerca de 5-10% dos candidatos a serem submetidos a
têm sido experimentalmente empregadas. Também se buscam esse tipo de tratamento, cujas indicações nas hepatites B, C e
fármacos que atuem na dimerização do AgHBe, prevenindo a D encontram-se expressas no Quadro 54.14. As perspectivas
610 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica
----------------------------------- ▼-------------------------------- 2. DNA VHB < 10‘ cópias/m^ ou < 2.000 Ul/m* e VHD
Indicações de transplante de fígado em pacientes
Q u a d r o 5 4 .1 4 RN A negativo e/ou anti-VHD IgM negativo. Para esses,
com hepatite crônica ou cirrose pelos vírus das hepatites B, C e D propõe-se monitorizar níveis séricos de aminotransfe-
rases a cada 6 meses, enquanto marcadores virais, tais
I-Qualidade de vida como VHD RNA ou HVD IgM a cada 12 meses.
A s te n ia 3. HBV DNA > 10» cópias/mf ou 2.000 Ul/m* e VHD RNA
S u rto s re p e tid o s d e e n c e fa lo p a tia
negativo e anti-VHD IgM não reagente. Deverão ser
In fe c ç õ e s re c o rre n te s
tratados segundo algoritmo de monoinfectados AgHBe
II - Gravidade da doença
e/ou anti-AgHBe (Figuras 54.3 e 54.4).
A lb u m in a sérica < 2,5 g / d f
T e m p o d e p r o t r o m b in a > 5" (a la r g a d o )
B ilirru b in a sé rica > 5,0 m g / d f. - Coinfecção VHB/HIV
S ín d r o m e h e p a to rre n a l Nestes pacientes, ocorre aumento da replicação do VHB,
P e rito n ite b a c te ria n a e s p o n tâ n e a
gerando formas mais graves de doença hepática, com baixas
S a n g r a m e n t o p o r h ip e r t e n s ã o p o rta l
taxas de seroconversão para anti-AgHBs, anti-AgHBe e títu
los elevados de DNA VHB. Preocupantes também são aqueles
que cursam com VHB oculto, forma expressa por DNA VHB
em títulos baixos e AgHBs não reagente. Em qualquer dessas
------------------------------------- ▼------------------------------------- expressões, a resposta ao tratamento com interferon a é menor,
Perspectivas evolutivas da infecção pelo vírus
Q u a d r o 5 4 .1 5 com risco maior de evoluírem com síndrome da reconstrução
da hepatite B pós-transplante de fígado (Berenguer, 2008) imune (TARV), gerando necrose hepatocelular extensa e redu
ção da capacidade de síntese hepática. Do ponto de vista prático,
1. S e m e fe tiva s t e ra p ê u tic a s p ro filá tic a s , V H B re c o rre e m 1 5 - 9 0 % d o s segundo orientação do Ministério da Saúde do Brasil, deverão
c aso s, m a is c o m u n s n a q u e le s A g H B e e D N A V H B p o s itiv o s .
ser tratados aqueles pacientes com as seguintes características:
2. Essa h is tó ria m u d a c o m a d m in is tr a ç ã o n o in tra e n o p ó s -o p e r a t ó r io d e 1. com evidências de replicação viral (AgHBe positivos, DNA
d o s e s e le v a d a s d e H B IG (g a m a g lo b u lin a h ip e r im u n e a n t i-V H B ). A s s im
se r e d u z e m os ín d ic e s d e re c o rrê n c ia p a ra 1 7 -3 8 % . Esta, q u a n d o o c o rre ,
VHB £ 10‘ cópias/m^ ou > 2.000 UI/mQ, além de hipertran-
le va à c irro s e e m 2 a n o s d e p ó s -o p e r a t ó r io . O u t r a s lim ita ç õ e s e x is te n te s
saminasemia; 2. sem evidências de replicação viral, porém com
a o se u u s o sá o: (1 ) a lg u m a s re in fe c ç õ e s c o m p e rd a d o e n x e r t o ; (2 ) fibrose F1 a F4, ou sem fibrose, mas com atividade necroinfla-
t e ra p ê u tic a o n e ro s a u lt r a p a s s a n d o a R S 2 5 .0 0 0 -3 0 .0 0 0 rea is/a no . matória > 2 (Metavir); 3. com cirrose; para esses, o tratamento
3. O u t r a d ific u ld a d e n a im u n iz a ç ã o c o m H B IG re s id e n o fa to d e q u e e m será definido de acordo com a contagem de linfócitos T-CD4 ',
a lg u n s o c o r r e re s p o s ta in e fic a z : in d u ç ã o d e b a ix o s títu lo s d e a n t i-H B S segundo Quadros 54.16 a 54.18.
(< 1 0 0 U l/ Q , a lé m d e s u p e r p r o d u ç ã o d e m u ta ç õ e s .
A ssintom áticos com Status clínico im unológico Tratam ento de escolha Com entários
LF-C D 4+ > 500
A s s in t o m á t ic o s e v ir g e n s T e n o f o v ir + la m iv u d in a
células/m m 1 V escolha A lte rn ativa
deTAR V + IT R N N o u IP/n
A ssintom áticos com L T C D 4 f (NS 5B) e da expressão de proteínas estruturais do vírus da he
entre 300 e 500 células/m m 1 V escolha Com entários patite C. Atua também bloqueando a proliferação de linfócitos
T iti vitro e aumentando secreção de citocinas Thl e redução de
V H B D N A > 2 .0 0 0 W m f In e rfe ro n a o u te n o fo v ir C a s o a c o n ta g e m
o u 1 0 “ c ó p ia s + la m iv u d in a + IT R N N d e L T -C D 4 ‘ Th2, com estratégia proposta de tratamento que está disposta
o u IP / k esteja p ró x im a a no Quadro 54.18, enquanto cuidados ou vigilâncias maiores
5 0 0 c é lu la s / m m \
durante o uso combinado desses dois fármacos estão discri
p o d e -s e o p t a r
p o r IF N a minados no Quadro 54.19.
V H B D N A > 2 .0 0 0 U l / m í T e n o f o v ir + la m iv u d in a
o u 10 4 c ó p ia s e p re s e n ç a + IT R N N o u IP/n ■ Fatorespreditivos deresposta ao tratamento cominterferon
d e c irro s e h e p á tic a peguiladoa2a ou2b
V H B D N A < 2 .0 0 0 U l / m f M o n it o r a r V H B D N A Estão expostos no Quadro 54.20.
o u 1 0 'c ó p ia s / m /
Recentemente, surgiram novas perspectivas quanto a certos
ITR N N - Nucleotideos da transcriptase reversa; IP/n ■ Inibidores d e protease marcadores genéticos indicadores de quais pacientes respon
potencializados com ritonavir. derão à terapêutica clássica envolvendo interferon peguüado
a. Entre estes, incluem-se os que exibem polimorfismos de nu-
cleotídeo único em região IL- 18B codificadora de interleucina-
28B ou interferon lambda 3. Também a interleucina IL-28 se
higroscópica, solúvel em água e pouco solúvel em álcool, de encontra envolvida nessa resposta, codificando superfamília
vendo ser tomada na dose de 15 mg/kg de peso e em total de da IL-10, interferons tipo III ou X, disparando sinais via JAK1/
800-1.200 mg/dia, distribuída em duas tomadas. Tem ação an- STAT. Abre-se uma perspectiva importante, com impacto so
tiviral e imunomoduladora, promovendo, quando combinada bre o prognóstico e as novas estratégias terapêuticas, selecio-
ao Pegasys® ou ao Peg-Intronl?;, inibições de replicação do RNA nadoras de fármacos indutores de mutações com resistência e
subgenômico, do RNA VHC dependente da RNA polimerase ausência de resposta ao esquema instituído. Além disso, será
Figura 54.7 Estratégia proposta de tratamento da hepatite crônica viral C com interferon peguilado e ribavirina (Pawlotsky, 2004).
612 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica
----------------------------- ▼------------------------------
Q u a d r o 5 4 .1 9 Cuidados ou vigilâncias maiores durante o uso combinado ■ PERSPECTIVAS: FUTUROS ANTIVIRAIS
de interferon peguilado e ribavirina Acredita-se que o genoma do VHC é dotado de extrema
complexidade, com genes codificando proteínas estruturais,
1. P re se n ça d e re a ç õ e s p s iq u iá tric a s , tais c o m o d e p re s s ã o , id é ia s o u os quais se combinam com o core e o envelope para formar a
te n ta tiv a s d e s u ic íd io p re té rita s o u na v ig ê n c ia d o t r a t a m e n t o . estrutura da partícula e das proteínas não estruturais voltadas à
2. P re se n ça d e e le v a ç õ e s p ro g re s s iv a s d o s n ív e is sé ric o s d e a la n in a - replicação. Pensando nesses fatores, os futuros fármacos deve
a m in o tra n s fe ra s e .
rão ser altamente efetivos e ser administrados por via oral, sem
3. P re se n ça d e in filtra d o p u lm o n a r , p n e u m o n it e , p n e u m o n ia o u induzir efeitos colaterais indesejáveis, comprometendo a qua
d is p n é ia .
lidade de vida daqueles assim conduzidos. Além disso, devem
4 . P re se n ça d e d is tú r b io s e n d ó c r in o s c o m o h ip e r o u h ip o g lic e m ia ,
estar voltados a interferir sobre os passos que se estabelecem
h ip e rc o le s te ro le m ia o u h ip e r t rig lic e r id e m ia , h ip e r o u h ip o tir e o id is m o .
durante o ciclo de vida desse agente infeccioso, tais como:
5. E x a c e rb a ç ã o d e d o e n ç a a u t o im u n e e d a p so ría s e .
VX-947 (merimepodib) e micofenolato mofetil; 7. anti- tem se baseado em um novo membro pertencente a essa classe
virais de amplo espectro, como amantadina e rimantadi- de medicamentos, VX-950 ou telaprevir, um reversível seleti
na); 8. outros imunemoduladores como dicloridrato de vo, de ingesta oral, atuando como inibidor de protease VHC
histamina, timosina alfa-1, IL-10, IL-12; 9. imunização NS3/4A, enzima requerida para que ocorra replicação viral.
passiva HCIg e, finalmente; 10. vacinação terapêutica: Assim conduzidos, definiu-se redução de, pelo menos, 2 log10
a. administrando El; b . E1-E2; c. proteína de fusão do em 28 pacientes tratados com telaprevir. Naqueles com títulos
core encerrando NS3-NS4-NS5 e; d. vacina sintética IC41 mais elevados, a dose de 750 mg ao dia baixou títulos em 4,4
(Quadros 54.21 a 54.23). logI0 e clarearam definitivamente o agente, com alguns agindo
Baseiam-se seus desenvolvimentos e aplicabilidades nos di breakthrough viral, relacionado à seleção de variantes virais
ferentes passos que estão envolvidos no ciclo vital do VHC, que expressam menor sensibilidade ao fármaco. Tal compor
eventos ordenados de formas independentes, tais como: tamento e a necessidade de estimulação de, pelo menos, uma
centena de genes resultando em efeitos imunomoduladores
levaram a que tais pacientes fossem conduzidos valendo-se de
■ PERSPECTIVAS MAIS SÓLIDAS ATUAIS associação com interferon-a 2a peguilado e ribavirina. Ba
seados nessa combinação, já foram realizados dois estudos
No momento, em uso clínico bem definido em seres hu randomizados cujos resultados estão discriminados nos Qua
manos, a terapêutica-alvo antivírus da hepatite C (STAT-C) dros 54.24 a 54.27.
T
Q u a d r o 5 4 .2 1 Tipos de fármacos e compostos com várias fases de desenvolvimento clínico
Fases de
desenvolvim ento
Tipos de fárm acos Com postos clínico Com entários
In ib id o re s d e e n z im a s vira is
(p e q u e n a s m o lé c u la s )
In ib id o re s d e h e lica se N S 3 1e p r é -d í n i c a D e s e n v o lv im e n t o d e u m a g e n t e s e m d o s e d e fin id a a in d a
In ib id o re s d e p o lim e ra s e N S 5 B J T K -0 0 3 1e II In ib e re p lic a ç á o e m c u lt u r a d e c é lu la s
J T K -1 0 9 P r é -d ín ic a In ib e re p lic a ç á o e m c u ltu ra d e c é lu la s in t e r r o m p id a
N M -2 8 3 1 e II < 4 ,5 lo g .0 d o R N A V H C e m 4 s e m a n a s a ss o c ia d a a o P E G IFN
H C U 796 1 A t iv id a d e a n tiv ira l e m c u ltu ra d e c élu la s
R -8 0 3 l-H I P o b re d e d is p o n ib ilid a d e
R ib o z im a s H e p a ta zy m e 1e II T o x ic id a d e e m a n im a is . In t e r r o m p id o
s iR N A e e iR N A P r é -d ín ic a H ip o e x p r e s s á o p ó s -tra n s la c io n a l d e g e n e s . M ú lt ip lo s fá rm a c o s
e m a v a lia ç ã o
------------------------------------- ▼-------------------------------------
Q u a d r o 5 4 .2 2 Tipos de fármacos e compostos com várias fases de desenvolvimento clínico
Fases de
desenvolvim ento
Tipos de fárm acos Com postos clínico Com entários
In d u t o r e s o ra is d e in te rfe ro n Im iq u im o d P ré -c lín ic a A p r o v a d o p a ra u s o t ó p ic o e m d e r m a t o lo g ia
R e s iq u im o d II S e m e fe ito a n tiv ira l o u in d u ç ã o d e c ito c in a
--------------------------------------------------------------▼ ------------------------------------------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 54.23 Tipos de fármacos e compostos com várias fases de desenvolvimento clínico
Fases de
desenvolvimento
Tipos de fármacos Compostos clínico Comentários
Análogos nudeosídicos Levovirin _ Retardado desenvolvimento. Absorçáo e liberação indefinidas
Viramidine III Pró-droga da RBV captaçáo hepática dominante. Trlals com PEG IFN
em evolução
IMPDH VX-497 (Merimepodib) II Inibidor específico da IMPDH. Sem hemólise. Trials com PEG IFN e RBV
em evolução
Micofenolato mofetil II Combinado a PEG IFN. Estudo em evolução
Atividade de amplo espectro Amatadina II Trials em evolução com PEG IFN e/ou RBV em "virgens" e não
respondedores
Rimantadina II Trials = amantadina
Outros imunomoduladores Didoreto de histamina II Ativador NK. Trials com PEG IFN e RBV em não respondedores
Timosinaal II e III Associada a PEG IFN ou isolada em não respondedores
IL-10 II e III < ALT não interfere na fibrose. < Inflamação. > log,0
IL-12 II e III Falta de significado antiviral. Toxicidade significativa
Imunização passiva IgVHC lie III Trial. Pós-T x F
Vacinação terapêutica E1/E2 Pré-clínica e I Previne infecção em chimpanzés
NS3-NS4-NSS Fasel Combinada com adjuvante. > Resposta CD4'. CD8’
IC41 II Induz resposta T helper
McHutchinson et oC 2009.
IFNPa2a ■ Interferon peguilado a2a (180 mcg/semana); RBV » Ribavirina (1.000-1.200
mg/dia); TPV ■ Telaprevir (1.250 mg (1o dia) e 750 mg, 8/8 horas, nos dias seguintes).
----------------------------------▼----------------------------------
Q u a d ro 54 .2 7 Efeitos colaterais nos dois estudos segundo grupos
▼ Grupos
Q uadro 54.25 Frequência de nível indetectável do RNAVHC
durante e após tratamento (%) Prove 1 (norte-americano) Prove 2 (europeu)
Grupos Efeitos Grupo com Grupo sem Grupo com Grupo sem
colaterais TPV (%) TPV (%) TPV (%) TPV (%)
Semanas (%) 1 2 3 4
Rash 59 41 52 35
4a 11 59 81 81 Prurido 14 59 35
12a 45 71 68 80 Náuseas 53 29 42 40
24 a 57 - 57 71 Vômitos 22 12 _ _
48 a 47 - - 65 Diarréia 36 28 27 28
24 a (após tratamento) 41 35 61 65 Anemia 33 27 21 19
6 . N e fro p a ta s
■ Talassêmicos
7. M ie lo s s u p re s s â o
Entre estes pacientes, submetidos a múltiplas transfusões
sanguíneas, a prevalência da infecção pelo VHC é muito alta. 8. N e u r o p s iq u iá tr ic a s
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Hepatite Crônica Não Viral
Luiz de Souza e Silva Júnior, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle, Taiane Costa Marinho,
Leonardo ReuterMotta Gama, Celso Marques Raposo Júnior,
Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas Gagnin, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin,
Paula Hugueney Cruz, Maiza da Silva Costa, Adávio de Oliveira e Silva
A primeira classificação de hepatite crônica data de 1969. A A HAI relaciona-se com a resposta exacerbada exercida pe
partir de então, outras e diversas definições têm sido propos los linfócitos B, gerando elevação acentuada dos níveis séricos
tas, sendo a última e mais bem aceita aquela organizada em de IgG e intensa infiltração de plasmócitos em espaços portais,
Cancun, México, durante o Encontro Internacional para Es com indução de fibrose, cirrose hepática e até carcinoma hepa
tudo do Fígado, em 1994. A hepatite crônica foi definida, en tocelular. Essa tendência pode ter sua evolução mais lenta com
tão, como síndrome clínico-patológica decorrente de múltiplas o uso de imunossupressores, como prednisona ou azatiopri-
etiologias, caracterizada por diferentes estágios de inflamação na, mas, também, pode assumir, ao longo dos anos, inexorável
e necrose hepatocelular. Por sua vez, conceituou-se que a cro- evolução, apenas abortada naqueles pacientes submetidos ao
nicidade associa-se à persistência de atividade inflamatória, transplante de fígado, aspectos esses que serão considerados
traduzida por elevação de níveis séricos de aminotransferases neste capítulo.
por mais de 6 meses. As causas dessa tendência evolutiva se Nos últimos anos, busca-se definir qual é o gatilho do desar
encontram no Quadro 55.1 e serão comentadas isoladamente ranjo imunológico verificado em linfócitos TCD4' e CD8', os
neste capítulo. quais infiltram o fígado, associados a plasmócitos, com geração
de anticorpos séricos. Alguns autores acham que este gatilho é
acionado a partir da participação de vários fármacos (estatinas,
■ HEPATITE AUTOIMUNE (HAi) anticorpos monoclonais, interferona (5), toxinas e agente infec
ciosos. Dessa forma, sensibilizam-se os indivíduos predispostos
Representa uma doença inflamatória crônica hepatocelular, geneticamente a desenvolver a hepatite autoimune, evolução
relacionada com a ruptura dos fenômenos da autotolerância, que se relaciona com a presença de curtas sequências antigêni-
desregulados entre jovens, afetando, em geral, pacientes do cas comuns, frequentemente encontradas nesses agentes dispa-
sexo feminino, que cursam com hepatite agressiva de interfa radores, responsáveis pela quebra da autotolerância periférica
ce, identificada em crianças ou adultos jovens, com 20% dos que normalmente apresentam. Como consequência, instala-se
casos acometendo indivíduos com mais de 60 anos de idade. resposta exacerbada contra antígenos expressos no fígado, sufi
Testes sorológicos, indispensáveis para o diagnóstico, incluem ciente para induzir uma agressão de natureza autoimune, a qual
o anticorpo antinuclear (ANA), anticorpos antimúsculo liso pode ocorrer sem existência de prévia lesão hepatocelular. Essa
(SMA) e anticorpos para microssomo de fígado e rins tipo 1 evolução relaciona-se com o recrutamento que o fígado seletiva
(anti-LKM-1). mente realiza, induzindo a apoptose de linfócitos TCD8+ após
uma resposta imune. Nesse processo de sequestro dessas célu
las, ocorre hiperexpressão de citocinas e moléculas de adesão,
iniciando-se e perpetuando-se assim a agressão hepatocelular.
------------------------------------- ▼------------------------- A partir desses acontecimentos, surge a perspectiva do adven
Q uadro 55.1 Causas de hepatite crônica não viral*• to de novos agentes terapêuticos bloqueando especificamente
essas vias. Nessa cascata, é importante também a atuação das
• H e p a tite a u t o im u n e células T reguladoras, moduladoras da proliferação de CD8 f e
• D o e n ç a d e W ils o n supressoras da produção de IFNy.
• H e m o c r o m a t o s e g e n é tic a Esses avanços nos conhecimentos permitiram a identifica
• D e fic iê n c ia d e a 1 -a n titrip s in a ção de diferentes expressões de hepatite autoimune. Assim, a
• F á rm a c o s HAI tipo 1 traduz-se pela presença no soro de autoanticor-
• In g e s ta a lc o ó lic a e xcessiva pos antinuclear, antimúsculo liso e antiactina, geradores de
• C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á ria
formação de imunocomplexos causadores de lesões submem-
• P ó s -tra n s p la n te d e fíg a d o
branosas em hepatócitos, facilitando fenômenos ADCC e lise
celular. Associam-se, por regulação genética, ao HLA de classe
620
C a p ítu lo 5 5 / H e p a tite C rô n ic a N ã o Vira! 621
II, sendo mais prevalentes os haplótipos HLA DR3 e DR4 na lores séricos normais de ferritina e de saturação de transferrina
Europa e nos Estados Unidos, e HLA DR13.01 no Brasil e na em pacientes que não fizeram uso de drogas hepatotóxicas. São
Argentina, em pacientes que cursam com baixos níveis de fator esses que têm valores sanguíneos normais de alfa-l-antitripsina
4 do complemento. e ceruloplasmina e que apresentam lesões histológicas típicas,
A HAI tipo 2 aparece, na maioria das vezes, ainda na infân tais como necrose periférica, lesão inflamatória lobular, necro-
cia com o autoanticorpo antimicrossomal fígado-rim presente, se em ponte, hepatócitos em roseta e plasmócitos infiltrando o
cujo antígeno pertence à família do citocromo-mono-oxigenase fígado, sem agressão aos duetos biliares. Critérios diagnósticos
P450IID6 (CyP2D6), o qual surge na superfície dos hepatóci- internacionais reforçam que, para que tal se confirme, deve-se
tos dispostos em cinco sítios diferentes. Alguns desses pacien empregar um escore proposto pela Associação Internacional
tes podem portar o autoanticorpo anticitosol hepático (LC1), para Estudo do Fígado, discriminado no Quadro 55.2.
com o anticorpo antirreceptor de asialoglicoproteína (ASPG-R) Existe uma predisposição genética determinante do início
podendo ser identificado em qualquer dos outros tipos de he e progressão dessa doença, conforme discriminado no Qua
patite autoimune. Por sua vez, a HAI tipo 3 é identificada pela dro 55.3.
presença do anticorpo antiantígeno solúvel do fígado (SLA/LP), Deve-se frisar que, em qualquer desses pacientes, doenças
exibindo forte tendência de progressão para cirrose hepática. autoimunes concorrentes podem obscurecer ou ofuscar a pre
Nos últimos anos, tem-se observado que portadores dos an- sença de hepatite autoimune. Nos adultos, relata-se, sobretudo,
tígenos antimicrossomal fígado e rim, e também do anticitosol esclerose sistêmica e polimiosite, neurite multiplexa e síndrome
hepático, são mais jovens e exibem maior atividade inflama- pluriglandular tipo 3, autoimune. Uma síndrome sequencial
tória e elevados valores séricos de bilirrubina e aminotransfe- pode ser observada quando pacientes que cursam com hepatite
rase. Estes cursam com índice maior de apresentação aguda autoimune, alguns anos depois, desenvolvem colangite escle-
e maior prevalência de cirrose. Os mais idosos são, em geral, rosante primária. Essa evolução se observa em crianças, mas
antinúcleo-positivos. também em adultos. Similaridades entre as duas condições in
A confirmação do diagnóstico de hepatite autoimune baseia- cluem parâmetros clínicos e bioquímicos e baixa frequência do
se: 1. na ausência sérica dos marcadores dos vírus das hepatites haplótipo HLADR4. Outros parâmetros relevantes: 1. doença
B e C; 2. na inexistência de ingesta alcoólica excessiva; 3. nos va inflamatória intestinal mais comum na colangite esclerosante
---------------------------------------------▼---------------------------------------------
Q u a d ro 55.2 Sistema de escore recomendado para diagnóstico de hepatite autoimune
Autoanticorpos
Aspectos clínicos Escore Escore
Títulos
Sexo: M a s c u lin o 0 F A N , A M L o u K L M -1 3
F e m in in o +2 > 1:80 +3
D o e n ç a s im u n o ló g ic a s +1 1 :80 +2
In g e s ta d e á lc o o l (A ju s t e / Q u a n t id a d e ) A u s e n te 0
-1 Aspectos histológicos
-2 N e c r o s e p e rifé rica +3
2 H e p a t it e lo b u la r
A n t i- V H A (Ig M ) -3 N e c r o s e e m s a c a -b o c a d o s +2
A g H B s o u A n t i-H B c (Ig M ) -3 R osetas +1
RNAVHC -3 P la s m ó c ito s +1
A n t i-V H C -2 L e sõ e s e m d u e to s b ilia re s (le v e s ) -1
H L A B8 DR3 o u DR4 +1 C o m p le t a +2
F A :A L T
< 3 x n o rm a l +2
> 3 x n o rm a l -2
P ro v á v e l 1 0 -1 5 1 2 -1 7
FA = Fosfatase alcalina; ALT = Alanina-aminotransferase; FAN = Fator antlnudean KLM-1 = Anticorpo antifigado liso; AMA = Anticorpo antimitocôndria;
AML = antimúsculo lisa
622 C a p ítu lo 5 5 / H e p a tite C rô n ica N ã o Viral
Q u a d ro 55.3 Predisposição genética à hepatite autoimune Q u a d ro 55 .4 Aspectos terapêuticos iniciais da hepatite autoimune
J a p o n e s e s e a rg e n t in o s D R B T 0 4 0 4 (D R 4 ) 1 60 30 50
M e x ic a n o s D R B1 * 04 04 (D R 1 3 ) 2 40 20 50
4 20 10 50
U s o p e r e n e e c o n t ín u o 20 10 50
C o n t r a in d ic a ç õ e s D o e n ç a óssea L e u c o p e n ia
re lativas P sicose A n e m ia
autoimune, acompanhada de modificações histológicas biliares;
O b e s id a d e P la q u e to p e n ia
2. coagulopatia, hipoalbuminemia, hepatite periportal e presen D ia b e te s G r a v id e z
ça do HLADR3 na hepatite autoimune. A predileção quanto à H ip e r te n s ã o a rte ria l M a lig n id a d e
distribuição do gênero é interessante e não totalmente explicá G la u c o m a H e p a tite c o le s tá tic a
---------------------------------------- ▼----------------------------------------
Q u a d ro 55.5 Acompanhamento clínico de pacientes com hepatite autoimune
B io p s ia h e p á tic a + - ± - -
H e m o g ra m a + + + + +
A m in o tra n s fe ra s e s + + + + +
G G tra n s fe ra s e + + + - -
G a m a g lo b u lin a + + + - -
B ilirru b in a + + + + +
C o a g u lo g r a m a + + + + +
A u to a n t ic o r p o s + ± - - -
F u n ç ã o t ire o id e + ± - - -
GGtransferase = Gamaglutamiltransferaso.
Naqueles doentes com manifestações colaterais graves, refe hepatoesplenomegalia, 40-60% têm cirrose compensada ou des-
rentes ao uso combinado de prednisona e azatioprina, é reco compensada, 20% mostram varizes esofagogástricas e 50% ma
mendável redução com reescalonamento das doses, evitando- nifestações autoimunes extra-hepáticas, situações que agravam
se administrar esses medicamentos em doentes com intensa a evolução pós-operatória. Conceitua-se hoje que, nesses, o im
citopenia, doença maligna associada, rash cutâneo e infecções, plante de um novo fígado permitirá uma sobrevida mais longa,
com risco maior naqueles com deficiência da enzima tiopuri- além dos 90% em 10 anos. O transplante também se impõe, uma
nametiltransferase e, certamente, no advento de gravidez. Nes vez que os pacientes desenvolvam sinais clínicos e laboratoriais
sa última eventualidade, existem riscos de malformação fetal de agravamento. A sobrevida de 5 anos chega a ultrapassar
e naquelas grávidas com anticorpos anti-SLA/LP e RO/SSA, 90%, mas descreve-se risco maior de evoluírem com surtos de
ou com síndrome antifosfolipídios, 9% delas evoluindo para rejeição, ou de recorrência da doença, facilmente controladas
complicações maternas graves. Nessas gestantes, recomenda- pela administração de corticosteroides. Essa última tendência
se a redução da dose de azatioprina, pois a placenta se mostra pode ocorrer em 20 a 30% dos doentes, traduzida por elevações
como a única barreira protetora aos efeitos lesivos exercidos dos níveis séricos de aminotransferases e de gamaglobulina e
pelos metabólitos 6-tioguaninanucleotídios. Não se recomenda positivação de autoanticorpos. Confirma-se pelo encontro de
formalmente interromper a terapêutica nessas mulheres, pois alterações histológicas, como hepatite portal com plasmócitos
tal comportamento, quando adotado, se associa à reativação da e acentuada atividade inflamatória de interface. Tem sido re
doença e consequente hiperatividade do sistema imunológico, lacionada essa tendência à imunossupressão inadequada, mais
presente e detectado logo após o parto. comum entre receptores HLADR3 positivos recebendo fígado
Em casos nos quais inexista resposta bioquímica, ou diante de doador HLADR3 negativo, sobretudo naqueles com hepatite
da existência de efeitos colaterais graves com uso desses fárma- autoimune do tipo I, ou que estavam evoluindo no pré-opera-
cos, deve-se valer de drogas opcionais no tratamento da hepatite tório com atividade necroinflamatória intensa, ou expressavam,
autoimune, conforme disposto no Quadro 55.6. no fígado, a forma fulminante da doença. Naqueles que exibem
Alguns autores ressaltam que essas últimas opções farma- essas características específicas, mostra-se maior o retorno da
cológicas são medidas empíricas, traduzem o desespero de clí doença após o transplante.
nicos e pacientes, não são isentas de risco. Além disso, não se
encontram definidas claramente as doses e esquemas a serem
empregados. Nesses doentes, o custo-benefício deve ser anali ■ DOENÇA DE WILSON
sado, sobretudo quando se sabe que o procedimento ainda não
se encontra consagrado, nem definida a população-alvo a ser Descrita por Samuel Alexander Kinnier Wilson em 1912, é
tratada com esses imunossupressores. Acresce que a eficácia considerada doença de herança autossômica recessiva, secun
está ainda indefinida e repleta de riscos, tais como: 1. evolução dária a um defeito genético ligado ao cromossomo 13, com um
com efeitos colaterais graves; 2. do ponto de vista financeiro, gene-candidato, designado ATP7B, presente, naquele cromos
os medicamentos são cerca de 10 vezes mais onerosos do que a soma, na região onde se situa o locus do retinoblastoma. Tem
combinação terapêutica clássica, com o agravante de que pode recebido as denominações de degeneração hepatolenticular,
postergar erroneamente a realização do transplante de fígado, ou doença de Wilson. Caracteriza-se pelo depósito excessivo
que será apenas executado em fases mais avançadas, ou seja, de cobre em vários órgãos e tecidos, resultante da redução da
no momento em que cerca de 30-80% dos doentes apresentam excreção deste metal pela bile. Os principais tecidos acometidos
são fígado, cérebro, hemácias, rins, córnea. Tem caráter familial,
sendo a prevalência variável no mundo, com a consanguinidade
contribuindo para sua instalação.
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------ A etiopatogenia da doença permanece obscura, mas sabe-se
Q u a d ro 55 .6 Drogas opcionais no tratamento da hepatite autoimune que, nesses pacientes, o gene ATP7B codifica uma enzima trans
portadora de cátions, a adenosina trifosfatase, que se expressa
Drogas Doses Ações no fígado, nos rins e na placenta. Encontra-se ainda indefinida
onde se localiza essa proteína no hepatócito, supondo-se que
C ic lo s p o rin a 5 -6 m g / k g / d ia In ib e lib e ra ç ã o d e lin fo d n a s
seja na rede trans-Golgi. Mutações que nesse gene se instalam,
S u p r im e e x p a n s ã o d o n a l
d e lin f ó c it o s T h e lp e r e
resultam em transtornos do transporte do cobre do fígado para
e x p re s s ã o d e re c e p to re s a bile, e consequente acúmulo do metal nas células parenquima-
d e IL -2 tosas do fígado, com o mRNA sendo encontrado em coração,
T a c r o lim u s 3 m g (2 v e z e s / d ia ) In ib e g e r a ç ã o d e lin fó c ito s músculos, cérebro, pulmões e pâncreas.
T c ito tó x ic o s e s ín te s e d e A idade do aparecimento desses distúrbios se mostra variá
á c id o s n u d e ic o s
vel, ocorrendo predominantemente entre 15 e 20 anos. Existe
M ic o fe n o la to m o fe t il 1 g (2 v e ze s /d ia ) R e d u z p ro life ra ç ã o d e
um caso de paciente que, por ocasião do diagnóstico, tinha 76
lin f ó c it o s T c ito tó x ic o s
anos. Esses distúrbios podem ser observados entre extremos de
6 -M e r c a p t o p u r in a 1,5 m g / k g / d ia M e t a b ó lit o a tiv o d a
6 e 50 anos de idade. No entanto, a exteriorização sob formas
a z a tio p rin a , q u e in ib e
sín te se s d o D N A e d a in o s in a
de insuficiência hepática aguda fulminante ou hepatite crôni
m o n o f o s f a t o -d e s id r o g e n a s e ca ocorre mais frequentemente entre 8 e 18 anos, com cirrose
Á c id o 1 3 -1 5 m g / k g / d ia A lte ra e x p re s s ã o H L A -I, in ib e podendo ser identificada já antes dos 15 anos. Esses doentes
u rs o d e s o x ic ó lic o IL -2 e 4 e in te rfe ro n a y e cursam com mal-estar generalizado, anorexia, sintomas ab
r e d u z p r o d u ç ã o d e ó x id o dominais vagos, artralgias, amenorreia, puberdade retardada
n ítric o
e icterícia discreta. Nessa fase, não se identifica o anel de Kay-
B u d e s o n id a 3 m g (3 v e z e s / d ia ) S e g u n d a g e ra ç ã o d e
ser-Fleischer, e a biópsia mostra infiltrado expandindo espaços
c o rtic o s te ro id e s , c o m b a ix a
d is p o n ib ilid a d e sistê m ica
portais, necrose periférica e fibrose, com ou sem regeneração
nodular. A apresentação clínica pode revelar-se também através
624 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral
de manifestações neurológicas ou psiquiátricas, exteriorizando- lamina e observar se a taxa do cobre urinário se eleva, sem que
se, em mais de 33% dos casos, em pacientes que são crianças, tenha especificidade bem definida. Associação desses aspectos
adolescentes ou adultos jovens. O acometimento neurológico tornou possível que diferentes pesquisadores em Leipzig, em
traduz-se principalmente por anormalidades da fala, deglutição, 2001, construíssem um escore diagnóstico, conforme exposto
coordenação, tremor de extremidades e da cabeça, corioatetose, no Quadro 55.7.
riso espástico, déficit de atenção. Podem ocorrer também altera Objetiva-se no tratamento desses pacientes tomar atitudes
ções psiquiátricas, isoladas ou associadas aos quadros hepático que reduzam os estoques corpóreos teciduais de cobre, reco
e neurológico, como mania, ansiedade, depressão, esquizofrenia mendando-se diminuir a ingesta de alimentos que contenham
e psicose, não sendo infrequentes crises de hemólise, tubulo- elevados teores do metal, tais como moluscos, legumes, cogu
patias renais e, principalmente, a presença do anel comeano melos, nozes, chocolate e fígado. Nesse momento, já nas fases
de Kayser-Fleischer, completando o quadro clínico complexo iniciais do tratamento, pode haver certa acentuação dos sinto
dessa doença metabólica. Não infrequentemente, desenvolvem mas, quando a D-penicilaminay um quelante de cobre, passa
hipercalciúria e nefrocalcinose, arritmias, cardiopatia, disfun- a ser administrada. Esse comportamento provoca um grande
ção autonômica, fibrilação ventricular e morte. balanço negativo inicial, consequente à mobilização intensa
Do ponto de vista laboratorial, diante da suspeita de doença dos depósitos do metal, podendo gerar a eclosão de sintomas
de Wilson, deve-se pesquisar o nível sérico de ceruloplasmina, neurológicos. Esse fármaco deve ser administrado na dose de
que, em 90% dos pacientes, está abaixo de 20 mg%, exigindo- 1-2 g/dia, 1 h antes ou 2 depois das refeições. Caso ocorra exa
se, como atitude imperativa, mensurar a excreção urinária de cerbação dos sinais e sintomas clínicos, exige-se redução dessa
cobre, geralmente superior a 100 mg/24 h, sendo a normal até dose, sobretudo quando se acentua a proteinúria, que alguns
30 mg/24 h, não sendo esse considerado como o melhor teste pacientes mostram, consequente à síndrome nefrótica que eles
diagnóstico. Quando possível, deve-se definir a concentração têm. Além disso, são frequentes deficiência de piridoxina, in
de cobre no tecido hepático seco, em geral com valores acima terferência com formações de colágeno e elastina, muitas ve
de 50 mg/g de tecido, habitualmente ultrapassando 250 mg/g, zes sem precipitar manifestações cutâneas típicas. Preocupa
enquanto em pessoas normais não atinge 10 mg/g. também a eclosão de manifestações imunológicas, tais como
O anel de Kayser-Fleischer, identificado em pacientes com plaquetopenia, lúpus eritematoso sistêmico, nefrite complexa,
baixos níveis séricos de ceruloplasmina e cobre urinário alto, pênfigo, ulcerações orais, miastenia gravis, neurite óptica e sín
praticamente define o diagnóstico. Em geral, está presente em drome de Goodpasture, ocorrendo cerca de 90 dias após início,
pacientes com manifestações neurológicas e em 50% daqueles exigindo-se interrupção do uso do remédio, pois há risco de
com doença hepática. Frise-se que a sua ausência, sobretudo hepatite fulminante.
quando se considera um paciente jovem, sem evidência de obs Doentes com manifestações colaterais próprias da intole
trução biliar, porém evoluindo com alterações do metabolis rância, alternativamente, podem ser tratados pelo trientine, na
mo do cobre, não afasta a possibilidade de doença de Wilson. dose de 1,0 a 1,5 g/dia, também um quelante do cobre, o qual,
Caso existam dúvidas, recomenda-se administrar D-penici- embora seja eficiente, produz balanço negativo, traduzido por
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------▼ ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
A u s e n te 0 5 0 -2 5 0 p g / g 1
S in to m a s n e u ro ló g ic o s N o r m a l (< 5 0 p g / g ) -1
G ra v e s 2 R o d o n in a p o s itiv a 1
M o d e ra d o s 1 (G r â n u lo s )"
A u s e n te s 0 C o b r e u r in á r io (s e m h e p a tite a g u d a )
C e r u lo p la s m in a sérica N o rm a l 0
N o r m a l ( > 0 ,2 g / f ) 0 1 -2 x L S N 1
0 ,1 -0 ,2 g / f 1 > 2 x LSN 2
C o o m b s n e g a t iv o : a n e m ia h e m o lít ic a A n á lis e s d a s m u ta ç õ e s c ro m o s s ô m ic a s
P re se n te 1 2 m u ta ç õ e s 4
A u s e n te 0 1 m u ta ç ã o 1
S e m m u ta ç õ e s 0
E s c o re to ta l A v a lia ç ã o
4 o u m a is D ia g n ó s t ic o fir m a d o
2 ou m enos D ia g n ó s t ic o im p r o v á v e l
•Caso disponível, cobre hepático quantitativo; LSN ■ Limite superior norm al; DP = D-penicilam ina.
Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Vira! 625
progressiva redução da cupriurese, mantendo esses pacientes desse distúrbio ainda permanece obscura, sendo, no entanto,
clinicamente bem, com a sobrevida descrita para aqueles assim mais prevalente entre ocidentais europeus, descendentes de an
conduzidos da ordem de 2 a 15 anos. cestrais nórdicos célticos. Merece, por ocasião do diagnóstico,
Ausência da resposta a essas opções leva a que os pacientes ser diferenciada de outras doenças relacionadas à sobrecarga
sejam tratados com sulfato ou acetato de zinco, variáveis de 75 a de ferro, assim classificadas: 1.familiares ou hereditárias - não
250 mg/dia, com possibilidades de promover balanço negativo relacionada ao HFE, expressa nas formas juvenil ou neonatal,
de cobre e reequilíbrio funcional. No entanto, após suspensão sendo autossômica dominante predominante entre habitantes
da administração, alguns doentes faleceram em consequência das ilhas Solomon; 2. anemias com sobrecarga de ferro - indi
da instalação de necrose maciça do fígado. Esta complicação, vidualizada na talassemia sideroblástica ou hemolíticas crôni
no entanto, foi raramente descrita. cas; 3. por sobrecarga dietética; 4. ou identificada naqueles com
Outra perspectiva reside na administração do tetratiomoli- hepatite viral C, doença hepática alcoólica e esteato-hepatite
bedato de amônia, administrado na dose de 60-100 mg/dia, em não alcoólica.
duas tomadas, sendo até os dias de hoje empregado em pequeno Acomete geralmente homens que se encontram em torno
número de doentes. Atua interferindo com a absorção intes da quinta década, de vida, mais raramente mulheres após a
tinal do metal, além de formar complexos com o cobre sérico menopausa, com manifestações clínicas variáveis, traduzidas
e torná-lo não tóxico. É necessária maior experiência com sua por acometimento multissistêmico, dependente do acúmulo do
administração antes de consagrá-lo como arma importante do metal em vários órgãos e tecidos. As principais manifestações
arsenal terapêutico. Na falência dessas medidas, e nos casos de são artropatia, hiperpigmentação cutânea, sinais de hepatopa-
hepatite fulminante que não melhoram com a terapia medi tia crônica, insuficiência cardíaca, diabetes, impotência sexual
camentosa proposta, deve-se indicar o transplante de fígado, e hipogonadismo. As agressões hepatocelulares variam desde
visando à reversão das graves manifestações decorrentes da alterações dos níveis séricos de aminotransferases (AST, ALT),
precária síntese hepatocelular, com a taxa de sobrevida de 1 até sinais de franca insuficiência parenquimatosa. Esses extre
ano sendo de 79%, com o implante de um órgão que expresse mos serão evitados, se o diagnóstico e a instituição da terapêu
a mutante ATP7B, por um órgão que expressa o produto nor tica correta forem estabelecidos precocemente. A doença deve
mal da proteína do gene da doença de Wilson podendo corri ser aventada em todo paciente com cirrose de etiologia obscura,
gir o defeito no metabolismo de cobre. Entretanto, a reversão principalmente do sexo masculino e acima de 40 anos, cursan
das manifestações extra-hepáticas da doença não é observada do com diabetes melito ou não, com a incidência de carcinoma
em todos os casos, e há pacientes vivos entre 2,5 e até 20 anos hepatocelular variando de 15 a 20%, sempre que cirrose já se
de pós-operatório. encontre instalada.
Diante dessa grave tendência evolutiva, torna-se recomen O diagnóstico é baseado nos aspectos clínicos, bioquímicos
dável que se promova nos parentes mais próximos o rastrea- e histológicos. Nos achados laboratoriais, observa-se aumento
mento da doença, baseando-se nas dosagens do cobre sérico e discreto do nível sérico das aminotransferases e do ferro; o nível
urinário, do nível sanguíneo da ceruloplasmina e, se possível, de saturação de transferrina é significativo quando se encon
pela mensuração dos depósitos hepáticos do metal e definindo- tra acima de 50%, para mulheres, e de 60%, para os homens,
se o sequenciamento genético do gene mutante ATP7B para podendo a ferritinemia estar elevada ou normal. A histologia
início mais precoce das adequadas recomendações dietéticas, identifica, nas fases iniciais, deposição de ferro nos hepatócitos
medicamentosas e monitorização progressiva. periportais, sem quase nenhum comprometimento das regiões
centrolobulares, com posterior acúmulo no lóbulo, duetos bilia-
res e células de Kupffer. Raramente, se observa necrose celular
■ HEM0CR0MAT0SE GENÉTICA ou infiltrado inflamatório, com tendência evolutiva inexorável
para hepatite crônica e cirrose, se os doentes não são adequa
É uma das doenças metabólicas do fígado mais comuns, damente tratados. Outros métodos utilizados no diagnóstico
identificadas na prática da hepatologia. Foi descrita pela pri são a ressonância magnética e a tomografia computadorizada
meira vez em 1889, por Von Recklinghausen, em necropsias de abdome, com ou sem mensuração hepática de ferro, ambas
de indivíduos cirróticos do sexo masculino, cursando com a sem sensibilidade suficiente para rastreamento de pacientes as-
maciça deposição de ferro nos hepatócitos. Trata-se de doença sintomáticos. Recomendável que essa sequência de avaliações
genética, herdada de forma recessiva autossômica, consequente seja feita nos familiares de primeiro grau de pacientes porta
à mutação gênica instalada no braço curto do cromossomo 6, dores desse distúrbio metabólico, ou em indivíduos que sejam
comportamento observado em 70% dos pacientes com antíge- surpreendidos em exames de rotina com elevação dos valores
no de histocompatibilidade HLA A3. Um gene candidato para de AST, ALT, hepatomegalia ou astenia. São esses que, diag
a hemocromatose foi chamado HFE (antigamente HLA-H). A nosticados em fases iniciais, deverão ser submetidos à rápida e
principal mutação disponível para avaliação do gene da HFE é segura remoção de ferro, com seguimento vigilante dos resul
resultante da substituição da tirosina por cistina no aminoácido tados da terapêutica adotada, buscando-se adotar algoritmos
282 na alça alfa 3, abolindo a ponte dissulfídica nesse domínio, de condução (Figuras 55.1 e 55.2).
sendo denominada C282Y. Frise-se que cerca de 85% desses O tratamento consiste em reduzir os estoques corpóreos
pacientes são homozigóticos para essa mutação, com 40 a 70% de ferro, através da realização semanal de flebotomias de 450
desenvolvendo manifestações orgânicas típicas da sobrecarga mé (200-250 mg de ferro), até os estoques se exaurirem, o que
de ferro. A segunda mutação é marcada pela substituição do ocorre, em média, por volta de 1-3 anos. O monitoramento deve
ácido aspártico pela histidina na posição H63D. Contribui para ser feito pela determinação da taxa de hemoglobina, que deve
a hemocromatose hereditária em pequena porcentagem (1,5%), estar abaixo de 11 g/%, e a ferritina abaixo do, ou no, limite in
em geral em pacientes heterozigóticos para C282Y e H63D. ferior da normalidade. Outra alternativa de manuseio naqueles
A doença caracteriza-se pelo aumento na absorção intestinal sem doença isquêmica do coração é manter a continuação das
do ferro e seu consequente acúmulo no fígado, pâncreas, cora sangrias, desde que o hematócrito pré-sangria esteja acima de
ção, suprarrenais, testículos, pituitária e rins. A etiopatogenia 35%, buscando manter o nível sérico de ferritina abaixo de 50
626 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral
noma hepatocelular. Mais raramente, são encontradas mani entretanto, sugere-se reação de hipersensibilidade ou ação
festações clínicas de doença respiratória e hepática, associadas lesiva exercida por um metabólito. Os achados morfológicos
nessa faixa etária. são variáveis, podendo predominar hiperplasia de células
Identificação e confirmação diagnóstica baseiam-se em ní de Kupffer e infiltrado linfoplasmocitário, seguidos, poste
vel sérico baixo de a,-AT, confirmam o diagnóstico em recém - riormente, de necrose em ponte e nódulos de regeneração.
natos ictéricos ou naqueles com hepatite crônica, ou cirrose, Os sintomas instalam-se dentro de 7 a 180 dias de uso, com
traduzindo-se histologicamente por acentuada necrose perifé período médio de 90 dias a partir da administração. São
rica dos hepatócitos, presença de glóbulos intracelulares PAS pacientes que referem adinamia, desconforto abdominal,
positivos e a,-AT identificada por imunoperoxidase, predomi mal-estar geral e, nos casos mais graves, letargia e icterícia.
nantemente naqueles que são genótipos PiZ ou PiSZ. O reconhecimento precoce da agressão exige interrupção da
Recém-natos devem receber leite materno. Polimerização exposição e, nos casos de insuficiência hepática, tratamento
dessa proteína anormal (a,-AT) tem sido bloqueada valendo- suportivo e intensivo, sem administração de corticoide.
se de chaperones, moléculas competitivas, na tentativa de se 2. Nitrofurantoína constitui outra droga capaz de causar lesão
impedir a formação do acúmulo dos agregados de proteínas hepática crônica. A evolução é assintomática, mas traduzida
mutantes nos hepatócitos. Falência dessa atitude leva a que, do bioquimicamente por alterações de níveis séricos de AST
ponto de vista evolutivo, defina-se que: I. apenas uma minoria e ALT, com a frequência da lesão hepatocelular sendo de
de crianças portadoras da doença são levadas ao transplante 1:3.000 pacientes expostos, cerca de 33-67% evoluindo para
de fígado, sendo importante que elas, em geral no momento hepatite crônica, o que já se observa após 6 meses de exposi
de serem assim conduzidas, ainda sejam jovens, sem doença ção. Cerca de 90% dos agredidos são mulheres acima dos 40
pulmonar ou insuficiência renal, não diferindo o per e pós- anos de idade, com mortalidade em torno de 8%. Relatam,
operatório do observado em pacientes na mesma faixa etária, em geral, astenia, fadiga, mal-estar, náuseas, anorexia e vô
porém com insuficiência hepática ou hipertensão portal, de mito. Icterícia e hepatomegalia são identificadas nos casos
outra causa; 2. adolescentes ou adultos, no entanto, mostram graves. Deve-se a lesão a um fenômeno de hipersensibilidade
tendência a evoluírem com complicações, tais como hemorragia que, histologicamente, se traduz por necrose periférica e em
digestiva, ascite, edema, encefalopatia, distúrbios da coagula- ponte, hepatite crônica e cirrose em 20% dos expostos. Esses
ção, peritonite bacteriana espontânea, encefalopatia e síndrome cursam com hipertransaminasemia e hipergamaglobuline-
hepatorrenal e com menor incidência de enfisema pulmonar. mia, incluindo-se também positividade de autoanticorpos
Obrigatoriamente nessa fase, esses doentes deverão ser con (antinúcleo e antimúsculo liso). A terapêutica envolve sus
duzidos ao transplante de fígado, que, quando bem-sucedido, pensão da administração, excepcionalmente indicando-se
faz com que o nível sérico e tecidual de a,-AT retorne ao nor corticoide.
mal e a sobrevida de 5 anos ultrapasse 80%. 3. Dantrolene, um derivado da hidantoína, é capaz de causar
Uma grande esperança para esses doentes repousa na tera lesão hepática principalmente em mulheres com mais de
pia gênica, esperando que se consiga uma substituição genética 30 anos de idade que utilizam dose igual ou superior a 300
para a deficiência de a,-AT. mg/dia, com incidência que varia de 0,8 a 1,9%. Casos fa
tais relacionam-se ao uso prolongado desse fármaco, com
os sintomas iniciando-se entre 1 e 6 meses, com período as-
■ FÁRMACOS sintomático fazendo parte do quadro. Icterícia é observada
em 50%, e morte em 28%, causada por hepatite crônica ou
O fígado desempenha papel fundamental no metabolismo de insuficiência hepática fulminante. A recuperação histológica
fármacos e se constitui alvo frequente de lesões decorrentes da ocorre em 1-5 meses após interrupção de seu uso, restando
ação lesiva exercida por eles e seus metabólitos, que haviam sido sinais de cirrose inativa. Não há indicação de corticoidete-
ministrados com intenção terapêutica. Essa evolução se traduz rapia.
evolutivamente desde a instalação de discretas manifestações de 4. Isoniazida, droga usada rotineiramente no tratamento da
colestase e necrose hepática até formas mais graves, tais como tuberculose, induz aparecimento de alterações hepáticas
hepatite aguda, insuficiência hepática fulminante e até doença variadas, expressando-se desde simples elevações de níveis
hepática crônica. Essa evolução última, motivo de nossa pre séricos de AST e ALT e hiperbilirrubinemia até alterações
ocupação nesse capítulo, ocorre entre 5,7 e 33%, com 2 a 3% histológicas que se estendem desde a necrose lobular fo
deles requerendo admissão hospitalar. São mais susceptíveis os cal até necrose periférica, excepcionalmente sendo maciça
idosos, por apresentarem reduzida atividade do sistema enzi- multilobular. São menos frequentes hepatite crônica grave
mático citocromo P450 e reduzida excreção renal, com maior e cirrose. A descontinuação do fármaco é a terapêutica de
tempo de circulação. Também as mulheres são particularmente escolha, com o mecanismo da lesão parecendo ser por idios
predispostas, a mesma tendência observada naqueles indiví sincrasia.
duos com depleção dos estoques de glutation nos hepatócitos.
5. Propiltiouracil, agente antitireoidiano, que raramente cau
O mesmo mecanismo é também observado entre desnutridos, sa hepatite crônica. Quando ocorre, existe uso prolongado,
alcoólatras crônicos e com síndrome da imunodeficiência ad com os pacientes referindo sintomas como anorexia, astenia,
quirida. Nestes, a incidência de hepatite crônica, resultante dos
artralgia e hepatomegalia. Laboratorialmente, revela-se por
efeitos lesivos por certos fármacos, mostra-se preocupante e
elevação de níveis séricos de AST, ALT, fosfatase alcalina
merecerá comentários de forma isolada:
e bilirrubina total. São baixos os títulos de autoanticorpos
1. Alfametildopa, droga anti-hipertensiva, introduzida para uso (antinúcleo e antimúsculo liso). Histologicamente, se tra
clínico em 1960. Evolução de agressão hepatocelular cursa duz por alargamento de espaços portais, necrose periférica
desde quadro típico de hepatite aguda até cirrose, incidin e fibrose, com ou sem regeneração nodular. A terapêutica
do mais frequentemente em mulheres obesas, além dos 50 envolve descontinuação do medicamento e administração
anos de idade. O mecanismo etiopatogênico é desconhecido; de corticosteroides.
628 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral
6. Oxifenisatina foi empregada durante anos como laxante de ferase se observa em 90% dos casos, sempre acompanhado de
uso amplo e baixo preço. A partir de 1971, passou a ser iden macrocitose. À biópsia hepática, observam-se, dependendo do
tificada como causa de hepatite aguda e crônica, algumas estádio, algumas peculiaridades, como infiltrado inflamatório
vezes de grave intensidade, evoluindo para cirrose. As m u constituído por polimorfonucleares, corpúsculos de Mallory,
lheres são afetadas quatro vezes mais que os homens, rela esteatose, podendo apresentar esclerose da veia centrolobular,
tando que fizeram uso deste fármaco pelo período de 12-36 com ou sem nódulos de regeneração. O tratamento se baseia
anos, com média de 9 meses. Os pacientes referem astenia, na interrupção da ingesta do álcool e boa nutrição, além de
mal-estar, anorexia, náuseas e icterícia, evoluindo com ele medidas de suporte. Em casos mais avançados, já cirrotizados,
vação de níveis séricos de AST e ALT, cerca de 50-70% de tem sido indicado transplante hepático, devendo ser realizado
les evidenciando anticorpos (antinúcleo e antimúsculo), e apenas para aqueles com, no mínimo, 6 meses de abstinência,
30% com células LE positivas. Anatomopatologicamente, a e amplo apoio psiquiátrico associado.
lesão traduz-se por necrose periférica e em ponte, fibrose e
regeneração nodular. Esta evolução se relaciona a fenômeno
imunológico, tipo hipersensibilidade. A interrupção do me ■ COLANGITE ESCLER0SANTE PRIMÁRIA
dicamento leva a desaparecimento dos sintomas, regressão
da agressão histológica, com permanência de leve fibrose. A colangite esclerosante primária é uma forma de doença
7. Diclofenaco, derivado do ácido fenilacético, pode causar he biliar menos comum que a cirrose biliar primária e a hepatite
patite, sempre acometendo mulheres acima dos 65 anos de autoimune, porém mais frequente que as síndromes híbridas.
idade, que referem icterícia após 3-11 meses do início da Diferentemente do observado nas outras doenças hepáticas au-
terapêutica. Todos os casos evoluem com elevação de níveis toimunes, tem predileção pelo sexo masculino (2:1), não exis
séricos de AST, ALT e de bilirrubina. Necrose em ponte tindo uma explicação plausível que justifique esse comporta
pode ser identificada, relacionando-se com fenômeno de mento preferencial.
autoimunidade. A terapêutica envolve suspensão da droga De etiologia desconhecida, o processo inflamatório é pre
e medidas de suporte. dominantemente linfocitário, com toda evolução relacionada
8. A evolução para hepatite crônica pode também ser obser com a agressão que essas células causam sobre o epitélio dos
vada entre pacientes em uso crônico de sulfonamidas, clo- duetos biliares, alvos dos linfócitos T CD8+, o que lhes confere
metacinay halotanot paracetamol e aspirina, drogas que potencial patogenético. Tudo indica que essa evolução guarde
merecem ser lembradas como causadoras de lesão hepa- relação com uma resposta imunológica TH2 pró-inflamatória
tocelular prolongada. Tal tendência relaciona-se ao fato de exacerbada, sendo a natureza do alvo ainda incerta. São eles
que as drogas e/ou os xenobióticos são lipofílicos, absorvi que evoluem com expansões dos espaços portais ocupados por
dos no trato gastrintestinal, requerendo ser transformados linfócitos CD8+, dispostos ao nível das células epiteliais dos
em compostos solúveis a serem eliminados na urina e na duetos biliares, uma forma de expressão dependente de uma
bile. Nesse processo, se encontram envolvidos o sistema resposta à hipersecreção de citocinas originárias da flora bacte-
misto de oxidase ou mono-oxigenase presente no retículo riana intestinal anormal que apresentam. Em geral, cursam, em
endoplásmico do hepatócito, complexos citocromo c-re- associação, com aumento significativo da relação CD4+:CD8+
dutase e P-450, estando duas fases envolvidas na biotrans- no sangue periférico, como consequência de uma acentuada
formação. São mais suscetíveis as crianças ou os idosos, as redução de células CD8+, comportamento relacionado à pre
mulheres, os portadores de doença renal ou hepática, os sença de TN Fa e baixas respostas proliferativas a mitógenos.
infectados pelo HIV, bem como os obesos ou desnutridos, São elevados os níveis séricos de IL-8 e IL-10 e IgG, com cerca
os alcoolistas ou aqueles que exibem um polimorfismo ge de 60-70% deles sendo anticorpos anticitoplasma de neutró-
nético. filos (p-ANCA) positivos. Epifenômeno dessa cascata infla-
matória se traduz pela identificação de outros autoanticorpos
inespecíficos, tais como antinúcleo (7-77%), anticardiolipina
■ INGESTA ALCOÓLICA EXCESSIVA (4-66%), antimúsculo liso (13-20%), antiperoxidase tireoidia-
na (16%) e fator reumatoide (15%). Toda essa complexidade
Ingesta alcoólica excessiva se constitui em uma das princi depende ainda da participação de alguns alelos do complexo de
pais causas de doença hepática crônica em todo o globo. Mos histocompatibilidade (HLA) e de polimorfismos, que também
tra-se mais frequente em grupos socioeconômicos mais baixos, se identificam em genes reguladores da resposta imunológica,
mas presente também naqueles em classes afluentes. Nesses tais como ICAM-1 e CR5A32. Apesar dessas evidências, alguns
pacientes, o etanol excessivamente ingerido pode causar des ainda não aceitam que existam provas irrefutáveis de que o
de quadro benigno de esteatose hepática até cirrose e carcino- sistema imune-humoral exerça qualquer interferência na pa-
ma hepatocelular. O sexo feminino mostra-se mais propenso togênese da colangite esclerosante primária. Outros definem
em relação à ingesta, com a evolução para a doença hepática que tal evolução se relaciona com a presença de espécies de
crônica geralmente sendo observada entre homens quando a Helicobacter, de citomegalovírus, de reovírus tipo 3, bactérias
dose ultrapassa 40 a 80 g/dia por mais de 5 anos. Esses núme e até fungos como Cândida.
ros são bem mais inferiores para as mulheres, 20-30 g/dia; elas Clinicamente, esses pacientes cursam com surtos de dor ab
caminham para as complicações graves em tempo mais curto dominal em cólica, no andar superior do abdome ou hipocôn-
de etilismo. Fatores predisponentes a essa evolução nefasta são drio direito, acompanhada de febre, astenia, calafrios, icterícia,
de ordem genética, nutrição deficiente e associação com vírus prurido, colúria e acolia, tendo-se hoje a certeza de que cerca
das hepatites B ou C. de 20-25% dos que apresentam essas características as desen
Na hepatite crônica do alcoólatra, os exames bioquímicos volveram mesmo quando existia comprometimento apenas
não diferem muito dos das outras hepatopatias, porém com al de pequenos duetos biliares. Achados comuns são hepatome-
gumas peculiaridades, predominando o nível sérico de AST so galia e esplenomegalia identificadas ao exame físico, respecti
bre as taxas de ALT. Aumento de valores de gamaglutamiltrans- vamente em 44-55% e 20-30% dos casos em diferentes séries.
Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Vira! 629
Hipertensão portal se instala progressivamente, com 2-4% dos plantados, sendo reconhecida em torno de 8 a 12, ou 25 me
doentes cursando com ascite, enquanto 2,6-6% sangram por ses de pós-operatório, expressando-se histologicamente por
varizes esofagogástricas rotas, varizes que são identificadas em atividade necroinflamatória e, algumas vezes, por infiltrado
7-36% deles. inflamatório portal constituído de plasmócitos e fibrose, com
O quadro laboratorial é de colestase, traduzida por elevação potencial evolutivo até cirrose. Em alguns, se expressa labo
sérica dos níveis de bilirrubina total e da fração direta, além da ratorialmente por elevação de níveis sanguíneos de fosfatase
fosfatase alcalina e da gamaglutamiltransferase. A histopato- alcalina, sem que perda do enxerto faça parte da perspectiva
logia pode se expressar sob forma de hepatite autoimune, so evolutiva desses pacientes.
bretudo quando acomete crianças, antes que elas exibam sinais Recentemente, alguns grupos têm descrito um tipo particu
típicos de colangite esclerosante primária, quando ainda a co- lar de disfunção tardia do enxerto, identificado em pacientes
langiografia endoscópica retrógrada ou por ressonância mag cursando com aspectos sorológicos e histológicos típicos de
nética mostram-se normais. Farmacologicamente, esses doentes hepatite autoimune, sem que essa doença fosse a causa de seu
têm sido conduzidos de forma errática, imprecisa, baseando-se transplante de fígado. Essa evolução se relaciona com infecções
nas administrações de ácido ursodesoxicólico em dose mais ele induzidas por citomegalovírus, vírus Epstein-Barr ou parvoví-
vada, D-penicilamina e opções ainda mais ineficazes, tais como rus, os quais precipitam mecanismos, tais como estímulo po-
emprego de penicilamina, prednisona, azatioprina, colchicina, liclonal, aumento e indução de expressão de antígenos classes
pentoxifilina, nicotina oral, metotrexate e até ciclosporina A e I e II do sistema HLA, interferindo também com células imu-
tacrolimus (FK 506). De forma alternativa e desesperada, alguns nerreguladoras. Difere do ponto de vista anatomopatológico
têm tentado bloquear o aparecimento de surtos de colangite, da rejeição celular, recebendo a denominação de hepatite au
realizando dilatações endoscópicas com balão e implante de
toimune e de novo instalada 2 a 4 anos de pós-operatório.
próteses, por via radiológica ou endoscópica, visando a reduzir
as incidências de febre, calafrios e queda do estado geral. Aque
les assim manuseados deverão ser tratados profilaticamente e,
após o procedimento, receber ciprofloxacina por via oral ou pa- ■ LEITURA RECOMENDADA
renteral. Irracionalidade maior na condução de tais pacientes é Alia, V, Abraham, J, Siddiqui, J et al. Autoimmune hepatili» triggered by statins.
a realização de hepatectomias, visando a ressecção de estenoses / Gastroenterol, 2006; 40:757.
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definitiva apenas é possível com o transplante de fígado. Essa HFE hcrcditary hcmochromatosis. N EngJMed, 2008; 358:221-30.
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modalidade deverá ser empregada, sobretudo, naqueles que já
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diferenciar se tal evolução, inclusive traduzida pelos apareci Transplant, 2006; i 0:371-6.
mentos colangiográficos de zonas de estenoses, subestenoses e Cullcn, S & Chapman, RW. lh e medicai management of primary sderosing
dilatações na árvore biliar presentes em 20-25% deles, decorre cholangitis. Semin Liver Dis, 2006; 26:52.
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de lesões arteriais isquêmicas próprias das anastomoses bilia
Czaja, AJ & Carpcntcr, HA. Distinctive dinical phcnotype and treatment
res realizadas ou instala-se em seguida aos repetidos surtos de outeome of typc 1 autoimmune hepatitis in thc cldcrly. Hepatology, 2006;
colangite bacteriana que os pacientes podem apresentar, pro 43:532.
motores de redução funcional parenquimatosa progressiva. Deugnier, Y 8c Turlin, B Pathology of hepatie iron ovcrload. World J Gastroen
Tal evolução leva a que alguns precisem ser retransplantados, terol, 2007; i3:4755-60.
pois essa evolução pode traduzir recorrência da colangite es Dhalluin-Venicr, V, Bcsscn, C, Dimct, S et al. Imatinib mcsylate-induced acute
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De frequência incomum, tem sua história natural e signi
iron indiccs for HFE C282Y homozygosity associatcd with hcrcditary hcmo
ficado clínico indefinido, desconhecido. De etiologia indefini chromatosis. Gastroenterology, 2008; 135:1945-52.
da, aventa-se que decorra de condições associadas, tais como Kcrkar, N, Hadzic, N, Davics, ET et al. De-novo autoimmune hepatitis after
toxicidade por fármacos, repercussão de infecção sistêmica liver transplantation. Lancet, 1998; 351:409-13.
ou consequência de fatores hemodinâmicos. A maioria dos Krasinskas, AM, Yao, Y, Randhawa, P et al. Hclicobactcr pylori may play a
contributory role in thc pathogcncsis of primary sderosing cholangitis.
casos não parece progredir, podendo melhorar com o correr Dig Dis Sei, 2009; 52:2265-70
do tempo, porém com possibilidade de evoluir para perda do Krawitt, EL. Autoimmune hepatitis. N EngJ Med, 2006; 354:54.
enxerto como resultado de evolução da hepatite crônica que Kulaksiz, H, Rudolph, G, Kloctcrs-Plachky, P, Sauer, P et al. Biliary Candida
apresentam. Observa-se aproximadamente em 10% dos trans infcctions in primary sderosing cholangitis. / Hepatol, 2006; 45:711.
630 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral
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Hepatite Aguda Fulminante
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin,
Paula Hugueney Cruz, Taiane Costa Marinho,
Maria Juliana Louggio Cavalcanti, Maria Elizabeth Calore Neiva,
Arnaldo Berna! Filho, Raul Carlos Wahle
631
632 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ ▼ -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 56.1 Características dos subgrupos dos pacientes com hepatite aguda fulminante
E n c e fa lo p a tia S im S im S im
D u r a ç ã o d a icte ríc ia (d ia s) 0 -7 8 -2 8 2 9 -7 1
T e m p o d e in s ta la çã o P r o lo n g a d o c o m o a g u d o P r o lo n g a d o c o m o h ip e r a g u d o M e n o s p r o lo n g a d o
B llirru b in a M e n o s e le v a d a E le v a d a c o m o s u b a g u d a E le v a d a c o m o a g u d a
P r o g n ó s t ic o M o d e ra d o R u im R u im
Estima-se que, no mundo, trezentos milhões de indivíduos ■ HEPATITES POR OUTROS AGENTES VIRAIS
são portadores do AgHBs, com cerca de 1% evoluindo com
hepatite aguda fulminante. Essa forma grave de necrose do pa- A infecção disseminada pelo vírus do herpes simples pode
rênquima hepático observa-se em diferentes situações, como: ser identificada no soro pela técnica HSVDNA, valendo-se de
1. pacientes que se apresentam apenas com infecção pelo VHB; reação em cadeia de polimerase; é capaz de levar à instalação
ou 2. quando existe coinfecção pelo VHC e VHD; 3. menos de hepatite aguda fulminante, exigindo realização urgente de
frequentemente, quando se superimpõe um outro agente viral transplante de fígado. É recomendável que estes pacientes, no
desconhecido. A prevalência respectiva dessas condições entre pós-operatório imediato, recebam altas doses de antivirais. En
italianos se situa em 39% (infecção única pelo VHB), 25% (coin tretanto, frise-se que, mesmo assim sendo tratados, taxas subs
fecção pelo VHC), 23% (coinfecção pelo VHD) e 13% (agen tanciais de morbimortalidade têm sido observadas. Em crian
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 633
■ Gestacional
Duas formas de apresentação de hepatite aguda fulminante ■ ANORMALIDADES VASCULARES CARDÍACAS
podem ser identificadas em gestantes, uma expressa sob for
ma de plaquetopenia (síndrome HELLP) própria daquelas em São requerimentos básicos para funcionamento do fígado o
excessiva produção de tirosina-cinase-1 (sftl), um fator an- adequado fluxo sanguíneo e a boa oferta de oxigênio. A redu
tiangiogênico gerador de distúrbio placentário, disfunção en- ção da perfusão sanguínea, arterial e/ou venosa portal costuma
dotelial, hipertensão e proteinúria. A outra se relaciona à dis induzir a hipóxia centrolobular, gerando necrose hepatocitá-
função mitocondrial consequente a distúrbios de p-oxidação ria, congestão sinusoidal e colestase. Esse processo é mais fre
de ácidos graxos materno-fetais gerando infiltração gordurosa quentemente observado entre pacientes infectados, hipotensos
microvesicular, que se acompanha de insuficiência hepatoce (choque) e portadores de insuficiência cardíaca congestiva e
lular. Esta é observada mais no terceiro trimestre de gravidez, com manifestações respiratórias. Eles desenvolvem elevação
em torno de 34,5 semanas, média de 28-39 semanas. Tais pa dos valores séricos de aminotransferases, bilirrubina total e
cientes cursam com eclâmpsia, prenhez gemelar, o concepto é desidrogenase lática, podendo, com o agravamento hemodi-
feto masculino, sendo mais comum entre nulíparas. Não infre nâmico, evoluir para HAF.
quentemente, desenvolvem necrose hepática com hemorragia
intraperitoneal, exigindo embolização da artéria hepática, em
caráter de urgência. ■ PÓS EXERCÍCIO FÍSICO EXCESSIVO
SOB CONDIÇÕES ADVERSAS
■ Doenças linfoproliferativas Alguns casos de doença hepática aguda com expressão leve
Doenças linfoproliferativas, tais como, infiltração leucêmica, ou moderada têm sido descritos em pacientes que realizam um
ou durante invasão metastática maciça, geram isquemia e défi grande esforço físico. As formas mais graves também ocor
cit funcional hepatocelular ocasionado pela maciça presença de rem. A patogênese do processo relaciona-se com exercício fí
células tumorais, capaz de ser acompanhada de hepatite aguda sico excessivo, sob condições adversas, tais como temperatura
fulminante. Quadro semelhante se observa também em porta e umidade elevadas, e, possivelmente, uso concomitante de
dores de câncer de mama, melanoma, próstata e pulmão. Todos ecstasy. A baixa perfusão sanguínea hepatocelular e a condição
cursam com volumosa hepatomegalia e dor forte no hipocôn- de hipermetabolismo geram degeneração microvesicular dos
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 635
hepatócitos centrolobulares, causando congestão, hemorragia ma, com comprometimento associado de rins, coração e sis
e presença de hemossiderina, além de sinais de colestase. Isso é tema nervoso central.
acompanhado por elevação dos valores séricos de aminotrans-
ferases, alargamento de tempo de protrombina e aumento do
INR. Rabdomiólise ocorre em 25% dos doentes, acompanhada
■ Doença de Wilson (DW)
de insuficiência renal. Na maioria dos casos, observa-se reso Também denominada degeneração hepatolenticular. Doen
lução dentro de semanas a poucos meses. Casos mais graves ça metabólica genética, autossômica recessiva, que se caracte
são tratados pelo transplante de fígado, com maus resultados riza por deposição de cobre em diferentes órgãos, como rins e
precoces e tardios. olhos, mas, sobretudo, no cérebro e no fígado. Neste último, o
excesso do metal leva ao aparecimento de hepatite crônica, fi
brose ou cirrose e até IHF. Nesta última forma de apresentação,
■ DOENÇAS METABÓLICAS ocorre lesão extensa, com deterioração acentuada da função
hepática. É chamada de forma fulminante da DW. Laboratorial
(PREVALENTESEM CRIANÇAS) mente, se expressa por baixos níveis séricos de cobre e de fosfa-
tase alcalina, além de elevadas concentrações de cobre na urina
■ Síndrome de Reye de 24 h. Os doentes evoluem com valores aumentados de ami-
notransferases e das proporções fosfatase alcalinaibilirrubina
Trata-se de uma doença rara que se instala predominante total e aspartato aminotransferase:bilirrubina total, abaixo de
mente em crianças, com história de ingestão de aspirina, visan 2,0 e acima de 4,0, respectivamente. Quando presente, a ane
do a combater sintomas gripais. A patogênese é multifatorial, mia hemolítica é Coombs-negativa. Os pacientes muitas vezes
relacionada possivelmente à predisposição genética, envolven apresentam história familiar e podem evidenciar anel corneano
do anormalidades de enzimas mitocondriais, sem que evolução de Kayser-Fleischer, identificado pela lâmpada de fenda. Exige-
mais grave se correlacione com níveis séricos de salicilatos. se diagnóstico precoce, com realização, em caráter de urgência,
Traduz-se histologicamente por esteatose microgoticular, de transplante de fígado. Quando não conduzidos dessa forma,
sem infiltrado inflamatório, quadro que precede o aparecimento a mortalidade atinge 100%.
da hepatite aguda fulminante, expressa níveis muito elevados O curso prodrômico varia de 5 dias a 7 semanas, sem que
de bilirrubina, ultrapassando a 15 mg/df, acompanhada de en- a verdadeira duração possa ser rigidamente precisada. Todos
cefalopatia e síntese hepatocelular comprometida. exibem sinais histológicos de grave inflamação, com expansão
de espaços portais e necrose periférica. Distribuição celular
■ Mitocondriopatias parenquimatosa, cirrose, acúmulo hepatocitário de cobre e em
septos periportais, colestase, todas essas alterações podem ser
Mitocôndrias encerram mais que uma cópia de DNA, repli- evidenciadas.
cação e codificação dependente de genes nucleares. Depleção
nessas cópias leva ao aparecimento de distúrbios mitocondriais,
gerando depleção energética dessas organelas intracelulares ■ Protoporfiria eritropoética
que afetam a cadeia respiratória, de oxidação e transporte de Doença genética de herança autossômica recessiva, depen
ácidos graxos, e deficiências de acilcoenzima desidrogenase ou dente de defeito na enzima ferroquelatase, resultando na ex
das cadeias longas e curtas de 3-hidroacilcoenzima A. Como cessiva deposição de cristais birrefringentes de protoporfirina
essas alterações podem precipitar evolução para hepatite aguda nas células parenquimatosas do fígado. Quando ocorre de for
fulminante, é necessário que haja transplante de fígado. ma excessiva, pode causar exaustão funcional do parênquima
hepático e leva fatalmente à morte, evolução que poderá ser
■ Galactosemia interrompida caso os doentes sejam submetidos a transplan
te de fígado. Esses pacientes transplantados podem exibir, no
Doença rara, de herança autossômica, consequente à defi pós-operatório imediato, disfunção autonômica traduzida por
ciência de galactose-1 -fosfato uridiltransferase. Nessas crian dor abdominal, hipertensão, taquicardia, retenção urinária,
ças, ocorre, após introdução do leite de vaca na alimentação, constipação, náuseas e vômitos. Cursam ainda com neuropa-
acúmulo hepático de galactose-1-fosfato, gerando esteatose, tia periférica, manifesta por paresia e paralisia, parestesias e
proliferação periportal de duetos biliares e deposição de ferro. extremidades dolorosas. O sistema nervoso pode apresentar-se
Persistência na ingestão desse leite leva ao aparecimento de comprometido, com estado mental preservado. Pode ocorrer
fibrose e cirrose hepática. É necessário o diagnóstico precoce, paralisia progressiva com degeneração axonal de nervos moto
baseado na detecção de substâncias redutoras na urina e ativi res, evoluindo para mioclonia e coma. Hemólise intraoperatória
dade baixa da enzima em eritrócitos, antes que haja instalação faz parte do quadro.
de hepatite aguda fulminante.
■ Hemocromatose neonatal
■ Tirosinemia hereditária tipo 1 Trata-se de doença grave e geralmente fatal. É consequente
Também uma doença herdada de forma autossômica reces à maciça e rápida deposição de ferro no fígado, precipitando
siva, consequência de funcionalidade comprometida da hidro- a instalação de quadro de HAF no período neonatal. O trans
lase do fumarilacetoacetato. O gene dessa enzima se localiza no plante é a única forma de terapêutica eficaz, acompanhando-se,
braço curto do cromossomo 15, com geração de mutações le no entanto, de risco elevado de insucesso. Nesses pacientes, a
vando a formações de compostos altamente reativos, tais como distribuição do metal nos órgãos se assemelha ao que ocorre
maleilacetoacetato e fumarilacetoacetato e succinilacetona, que, na hemocromatose genética, com envolvimento também do
depositando-se no fígado, geram necrose maciça do parênqui- pâncreas, miocárdio e baço.
636 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
C o a g u lo p a t ia >90% In s ta la -s e n a d e p e n d ê n c ia d a r e d u z id a sín te se d o s fa to re s d e c o a g u la ç á o . T r a d u z -s e , s o b r e t u d o , p o r
a la r g a m e n t o d o s t e m p o s d e p r o t r o m b in a d o IN R e d e t r o m b o p la s t in a p a rcia l a tiv a d a . R e d u z e m -s e o n ú m e r o e
fu n ç á o d as p la q u e ta s e a tiv id a d e d o fa to r V, c o m a p a r e c im e n t o d a c irc u la ç ã o d o s p r o d u t o s d e d e g r a d a ç ã o d o
f ib r in o g è n io (P D F ). T a is d is tú r b io s sá o re s p o n s á v e is p e lo s e le v a d o s ín d ic e s d e s a n g r a m e n t o s d ig e s tiv o s .
In s u fic iê n c ia re n a l 4 0 -6 0 % R e la c io n a -s e c o m a fa lê n c ia h e p a to c e lu la r c a u s a d o ra d e c o n c e n t r a ç õ e s séricas m a io re s d e su b s tâ n c ia s
v a s o c o n s trito ra s e m e n o r e s d a s v a s o d ila ta d o ra s . T e m cará te r, p o r t a n t o , f u n c io n a l, p re c ip it a d o r a d e b aix a
p e r fu s á o re n a l. In sta la -se , m a is f r e q u e n t e m e n t e , n a q u e le s e m faixa e tá ria m a is a v a n ç a d a , n o s q u e p r e e n c h e m
na t o t a lid a d e o s c rité rio s p ro g n ó s t ic o s K in g 's C o lle g e H o s p it a l, n o s h ip o te n s o s , in fe c ta d o s , o u e m q u a d r o
m a is e x a c e r b a d o d e s ín d r o m e sistê m ic a à re s p o s ta in fla m a tó ria e c o m le sá o h e p a to c e lu la r in d u z id a p e lo
p a ra c e ta m o l.
M e ta b ó lic a s 4 0 -5 0 % T r a d u z e m -s e , m a is f r e q u e n t e m e n t e , p o r h ip o g lic e m ia , h ip o p o t a s s e m ia e h ip o n a t r e m ia . N a d e p e n d ê n c ia d a
a c id o s e lática, h lp e r v e n t ila m e e v o lu e m c o m a lc a lo s e o u a c id o s e re s p ira tó ria c o m e le v a ç õ e s d a p re s s á o
in tra c ra n ia n a , d e p re s s ã o re s p ira tó ria e in fe c ç ã o p u lm o n a r .
------------------------------------- ▼
Q uadro 56.5 Avaliação laboratorial na hepatite aguda fulminante
■ ASPECTOS PROGNÓSTICOS
Pacientes com hepatite aguda fulminante excepcionalmen
H e m a to lo g ia
te sobrevivem, exceto quando ocorre restauração da massa de
H e m o g r a m a c o m p le t o
hepatócitos fúncionantes. Quando esse comportamento não
B io q u ím ic a
se observa, falecem em alguns poucos dias. Avaliação de pa
N ív e is séricos d e g lic o s e , b ilir r u b in a to ta l e fra çõe s, a m in o tra n s fe ra s e ,
g a m a g lu ta m iltra n s fe ra s e , fosfata se a lca lin a , d e s id r o g e n a s e lática, râmetros clínicos, etiológicos, laboratoriais e, sobretudo, da
a m ila s e , a lb u m in a , c e r u lo p la s m in a , g lo b u lin a , a lfa -fe to p ro te ín a , coagulação permite distinguir aqueles que se recuperarão ape
i m u n o g lo b u lin a , u re ia , c re a tin in a nas com medidas não cirúrgicas e os que se tornam candidatos
M e t a b ó lic a ao transplante de fígado de emergência (Quadro 56.6).
N ív e is sé rico s d e s ó d io , p o tá s s io , c lo ro , c á lc io , c o b re , b ic a r b o n a t o p H e
g ase s, á c id o lá tic o , c o n c e n t r a ç ã o u rin á ria d e e le tró lito s
C o a g u lo g r a m a
A t iv id a d e e t e m p o d e p r o t r o m b in a , t e m p o d e t r o m b o p la s t in a p a rcia l
■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
a tiv a d o , fib r in o g è n io , p la q u e ta s , t e m p o d e lise d e e u g lo b u lin a e
p r o d u t o s d e d e g r a d a ç ã o d a fib rin a A condução terapêutica desses pacientes exige atitude mul-
V iro lo g ia
tidisciplinar voltada inicialmente ao equilíbrio e manutenção
P e s q u is a s d o a n t i-V H A Ig M , A g H B s , a n t i-A g H B c Ig M , a n t i-V H D Ig M , da estabilidade hemodinâmica. Baseia-se na passagem de son
a n t i-V H E Ig M , c it o m e g a lo v ír u s , v ír u s E p s te in -B a rr, h e rp e s s im p le s . da nasoenteral e vesical, acesso arterial, se possível, através do
N o s n e g a t iv o s p a ra esses, ra s tre a r as p re s e n ç a s d e p a r v o v ír u s B I 9 ,
implante do balão de Swan-Ganz, monitorização cardiológica,
e c h o v ír u s , fe b re a m a re la , d e n g u e , S e n -v e Lassa
eletroencefalográfica e da pressão intracraniana. Associada
C u ltu r a s
H e m o c u lt u r a (a e ró b ia e a n a e r ó b ia ), u re ia , fe ze s, e sc a rro
mente, devem ser submetidos à entubação endotraqueal, as
sistência ventilatória e oxigenação adequada aqueles pacientes
com encefalopatia grau III, bem como à descontaminação se
letiva intestinal, administração de manitol e furosemide, e po
sicionamento com ângulo cefálico de 20°, visando a manter a
A essa avaliação laboratorial, deve associar-se realização pressão intracraniana < 30 mmHg.
de ultrassom e mapeamento do fígado, com objetivo de defi A manipulação das complicações extra-hepáticas realiza-se
nir volume e reserva parenquimatosa. Avaliam-se condições segundo discriminado no Quadro 56.7.
neurológicas através de eletroencefalograma e monitorização Falência dessas medidas e progressão para encefalopatia,
da pressão intracraniana. Necessário estudo radiológico do coma, vasodilatação sistêmica, insuficiência hepatocelular e
tórax. pulmonar têm levado a que, em alguns Serviços de Hepato-
638 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante
logia, esses pacientes sejam conduzidos, valendo-se de siste Ias de mercaptanas, ácido gama-aminobutírico, aminoácidos
mas de suporte ao fígado. Experiência nesse campo se iniciou de cadeia ramificada, e ácidos graxos. A inquietação dos pes
com emprego do sistema de hemodiálise, usando membranas quisadores diante dos precários resultados obtidos leva a que
voltadas ao clareamento da amônia, capaz de melhorar a in se busque fornecer condições de restauração desses pacientes,
tensidade do distúrbio neurológico, sem redução nos índices conduzindo-os através de perfusão extracorpórea a partir de
de mortalidade. Estende-se essa experiência histórica através um fígado auxiliar proveniente de porco, babuíno ou de cadá
de realizações de exsanguíneo-transfusões e/ou plasmaférese. ver humano, com resultados precários, o que, no momento,
Avanço maior se consegue com sistema de hemoperfúsão em impede a adoção dessa medida terapêutica.
pregando-se carvão ativado, na busca de remoção de molécu- Ampliam-se os avanços nessa área com o emprego de siste
ma de diálises, valendo-se de fígados bioativados, absorvedo-
res de moléculas. Inicia-se a experiência com esse método em
------------------------------------- ▼ 2004, com o sistema encerrando coluna de hemoperfúsão com
Q u a d ro 56 .6 Aspectos prognósticos para realização do transplante carvão e hepatócitos de porco e 2% de células parenquimatosas
humanas. Avanço técnico com outro dispositivo ocorreu com
de fígado na hepatite aguda fulminante
hepatologistas, hemodinamicistas, fisiologistas, tratando seus
K in g 's C o lle g e pacientes com o “Sistema Recirculante Absorvedor de Molécu
A c e t a m in o f e n
las” (MARS), valendo-se de sessões terapêuticas de, pelo menos,
p H < 7,3 (I n d e p e n d e n t e d o g r a u d e e n c e fa lo p a tia ), o u t o d o s o s trê s d o s 6 h, repetidas a cada 24 a 36 h, empregando-se um dialisador
s e g u in te s G r a u s III - IV d a e n c e fa lo p a tia de alto fluxo de 150-200 mf/min, dotado de membrana com
T P > 1 0 0 " o u (IN R > 7,7)
poros de 50 a 60 kDa, impermeável à albumina. Essa proteína
C re a tin in a sé rica > 3,4 m g / d /
está presente no lado oposto da membrana em volume de 600
N â o a c e t a m in o fe n
T P > lO O s o u IN R > 7 ,7 (I n d e p e n d e n t e d o g r a u d e e n c e fa lo p a tia ), o u três
m^ a 10%, tornando possível, assim, dialisar moléculas tóxicas
d o s s e g u in te s circulantes. Assim tratados, a sobrevivência pós-transplante
Id a d e < 10 o u > 4 0 a n o s atinge 94%, reduzindo-se para 77% no grupo não tratado por
E tio lo g ia n ã o A n ã o B, h a lo ta n o , re a ç ã o id io s s in c rá tic a a fá rm a c o s ,
esse sistema artificial de suporte.
d o e n ç a d e W ils o n
P e río d o d e icte ríc ia e e n c e fa lo p a tia > 7 d ia s
Recentemente, outro sistema, também se valendo de colunas
T P > 5 0s o u IN R > 3,85 de carvão e resinas trocadoras de ânions, tem sido empregado.
B ilirru b in a sé rica > 17 m g / d / Denominado na Europa, Prometeus, dotado de uma m em
C lic h y (n â o a c e t a m in o fe n ) brana de 250 kDa, disposta entre dois sistemas, valendo-se da
Id a d e < 3 0 a n o s + F a to r V < 2 0 %
própria albumina do paciente em tratamento, com medidas de
ou
Id a d e > 3 0 a n o s + F a to r V < 3 0 %
anticoagulação sendo necessárias, administrando-se heparina
e citrato. Dados da literatura se baseiam apenas em estudos
TP: tempo de protrombina.
pH: pH do sangue arterial.
não controlados ou retrospectivos, surgindo, no entanto, como
perspectiva de conduta para tão graves pacientes.
T
Q u a d ro 56.7 Manipulação terapêutica das complicações extra-hepáticas nas hepatites agudas fulminantes
E d e m a c e re b ra l A d m in is t r a ç ã o d e q u a t r o u n id a d e s d e p la s m a e tra n s fu s ã o d e p la q u e ta s v is a n d o a im p la n t e d o m o n i t o r d e p re s s ã o
In tra c ra n ia n a . M a n u t e n ç ã o e m â n g u lo d e 20° p a ra m o n it o r iz a ç ã o d e p e r fu s ã o c e re b ra l. O s a g ita d o s e e n c e fa lo p a ta s d e v e m
ser s e d a d o s c o m fe n ta n il e c u ra riz a d o s . D ú v id a s e x is te m q u a n t o à n e c e s s id a d e d e h ip e r v e n tila ç á o , v is a n d o a m a n te r
p e r fu s ã o s a n g u ín e a c e re b ra l. E x ig ê n c ia p re n d e -s e a o m a n it o l, na d o s e d e 0 ,5 m g / k g e m b o lo , in f u n d id o e m 10 m in , d e fo rm a
q u e a o s m o la lid a d e n ã o u ltra p a s s e a 3 2 0 m O s m . O s n â o re s p o n s iv o s a essa a tit u d e d e v e m ser c o n d u z id o s p e la a d m in is tr a ç ã o
t io p e n ta l e / o u d e x a m e ta s o n a .
P a n c re a tite a g u d a E n v o lv e re s ta u ra ç ã o d e c o n d iç õ e s h e m o d in â m ic a s , s o n d a n a s o e n te ra l e in fu s ã o d e b lo q u e a d o re s d e b o m b a d e p ró to n s .
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 639
dessas células, pela introdução da enzima humana telomerase 2 . ín d ic e d e m o r t a lid a d e na fila d e e s p e ra p o r fíg a d o d e d o a d o r c a d á v e r
reverse transcriptase (hTERT)> inativação da via pl6/RB ou do e n tre 4 0 e 6 2 %
p53, valendo-se de proteínas estruturais E6/E7 provenientes do 3. In s u fic iê n c ia h e p á tic a f u lm in a n t e e n tre n á o tra n s p la n t a d o s e n t r e 8 0 e
85%
papiloma vírus humano tipo 16 (HPV16E6/E7 e hTERT), esta
belecendo duas linhagens celulares HHE6E7T-1 e HHE6E7-2. 4 . T r a n s p la n t e in t e r v iv o s situ a -s e c o m o a le rn a tiv a d e s d e 1992
Essas têm sido injetadas por via subcutânea, não induzindo de
senvolvimento tumoral, com apenas a primeira linhagem sendo
introduzida por via intraesplênica em ratos com insuficiência
fulminante induzida por acetaminofeno. Abrem-se e ampliam-
técnicas que permitem a repopulação do fígado, com hepató
se, assim, as perspectivas de que tais linhagens possam servir
como possível fonte de transplante de hepatócitos. citos maduros ou fetais, melhorando no momento o distúrbio
neurológico que apresentam; esse certamente será um novo
A inviabilidade dessas novas propostas e a falência das
medidas anteriormente empregadas e descritas, bem como o capítulo da moderna hepatologia.
aprofundamento da encefalopatia graus III ou IV, resultam em
indicação de transplante de fígado de emergência. Sobrevida
desses pacientes assim conduzidos amplia-se de menos de 20 ■ EXISTEM NOVAS PERSPECTIVAS
para 56-92%, segundo diferentes experiências. Respondem e
sobrevivem mais aqueles não infectados e com nível sérico de TERAPÊUTICAS?
creatinina normal no período pré-operatório. Evolução pós-
Na impossibilidade de executar tais procedimentos, tem sido
operatória com índices maiores de mortalidade mais precoce
ocorre quando índice de massa corpórea do doador ultrapassa proposto tratá-los adotando-se métodos alternativos, como o
a 25 kg/m2, um possível marcador de esteatose hepática. Essa transplante de hepatócitos, conforme discriminado no Qua
tendência também se observa quando receptor ou doador têm dro 56.10.
mais de 60 anos de idade, ou se encontram em ventilação me
cânica por ocasião da cirurgia e nível sérico de creatinina > 2
m g/dl. Essa tendência também se observa quando se utilizam
----------------------------------- ▼----------------------------------
enxertos ABO incompatíveis ou de tamanho reduzido. Nesses
graves pacientes, o risco de retransplante atinge 13%, evolução Q uadro 56 .1 0 Insuficiência hepática fulminante. Outras alternativas
relacionada a não funcionamento primário do fígado, precipi terapêuticas. Transplante de hepatócitos
tação de estenoses biliares intra-hepáticas, complicações em
1. D e v e m se r in je ta d o s , p e lo m e n o s , 3 0 0 g d e h e p a tó c it o s v iá v e is a tra v é s
geral relacionadas com a qualidade do enxerto ou implante de
d o s iste m a v e n o s o p o r t a l p ó s -p u n ç à o tra n s ju g u la r
órgão ABO incompatível.
2 . A d o ç à o dessa m o d a lid a d e te r a p ê u t ic a b a s e ia -s e e m :
Recomenda-se que deverão ser excluídos da lista de trans а. In s ta la ç ã o d a fa lê n c ia rá p id a d e m ú lt ip lo s ó rg ã o s
plante de fígado para tratamento de pacientes com hepatite б. R á p id a in s ta la ç ã o d e h ip e r t e n s ã o in tra c ra n ia n a e m o r t e d o s
aguda fulminante aqueles que apresentam os parâmetros dis p a c ie n te s
postos no Quadro 56.8. c P r o lo n g a d o t e m p o e m lista d e e s p e ra d e n o v o ó r g à o , e m t o r n o d e
4 -8 d ias
A principal limitação tomada dessa atitude terapêutica se
relaciona com a baixa oferta de órgãos-cadáveres. Nesse caso, 3 . S e u e m p r e g o vis a a:
a. R e m o ç à o se le tiv a d e m o lé c u la s n e u ro tó x ic a s
deve-se optar pela doação de lobo direito, intervivo, valendo-se b. F o r n e c im e n t o d e fa to re s d e c re s c im e n t o a o s h e p a tó c it o s n a tiv o s
de um parente próximo. Essa medida pode ser aplicada visan
4 . L im ita ç ã o a o su c e s s o d a te ra p ê u tic a :
do a tratar pacientes adultos e crianças, com justificativas à sua а. H e p a tó c ito s s à o o rig in á rio s d e fíg a d o s n á o a c e ito s p a ra tra n s p la n te
realização estando discriminadas no Quadro 56.9. б. A d v e n t o d e c o m p lic a ç õ e s (4 8 h a p ó s )
Diante desses avanços e premida pela carência de órgãos, a H ip o x e m ia p o r e m b o liz a ç â o p u lm o n a r
busca desesperada de salvar vidas que se encontram no limite S u s c e tib ilid a d e m a io r a in fe c ç õ e s fú n g ic a s e b a c te ria n a s
c o n s e q u e n te s à im u n o s s u p re s s à o
tem levado a que sejam conduzidas, valendo-se do transplan c S o b r e v id a a in d a c u r t a d o s p a c ie n te s : e n t r e 2 4 h e 52 d ia s
te de células-tronco adultas, ou originárias de medula óssea,
640 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante
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Cirrose Hepática
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Taiane Costa Marinho,
Leonardo ReuterMotta Gama, Lucas Cagnin,
Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula Hugueney Cruz,
Guilherme Tarameli dos S. Cecílio, Maria Juliana Louggio Cavalcanti,
Francisco César Nassar Tribulato, Raul Carlos Wahle
Cirrose hepática resulta da inter-relação entre diversos fatores quente acúmulo de proteínas da matriz extracelular. Desse pro
etiológicos, que atuam ao longo dos anos, tais como, morte e cesso, participam células endoteliais, células de Kupffer, células
regeneração celular, degradação e formação anormal da matriz estelares e perissinusoidais do espaço de Disse. Na vigência da
extracelular. Trata-se de um processo que se caracteriza por perpetuação da agressão, ocorre capilarização dos sinusoides,
formações de fibrose difusa, além de micro e macronódulos, onde se depositam continuamente laminina, colágeno tipo IV
estabelecendo perversão da arquitetura normal do parênquima. e perlecans. Nessa situação, reduzem-se os microvilos dos he-
O diagnóstico confirma-se por meio de dados clínicos, labo patócitos, instalam-se modificações fenotípicas das células de
ratoriais, anatomopatológicos, ou valendo-se de métodos de Ito, as quais assumem aspecto miofibroblástico. Participam
imagens como ultrassonografia, tomografia computadorizada, ainda do processo fatores liberados de macrófagos ativados,
ressonância magnética, videolaparoscopia ou até pela cintigra- sobretudo IL-1, fator de necrose tumoral, prostaglandinas e
fia. Representa a principal causa de morte em muitas partes do substâncias inflamatórias outras, como fator de crescimento
mundo, comportamento que se relaciona com a participação derivado de plaquetas, além de radicais livres de oxigênio in
de diferentes causas e manifestações clínicas, gravidade das termediários, responsáveis pela ativação de lipócitos, os quais
lesões histológicas, reserva funcional parenquimatosa e oferta se encontravam quiescentes (Figura 57.1).
de possibilidades terapêuticas.
■ CLASSIFICAÇÃO ANATÔMICA
■ ASPECTOS PATOGENÉTICOS
Baseia-se em alguns parâmetros, mas, sobretudo, no diâme
A maioria das doenças crônicas do fígado associa-se a contí tro dos nódulos de regeneração e espessura dos septos fibrosos,
nua fibrogênese, resultante da lesão dos hepatócitos, com conse gerando três tipos de cirrose: a. micronodular, representada por
F ib r o b l a s t o s p o rt a is
T o x i n a s , c o le s t a s e ,
A t i v a m - s e v ia
v ír u s , a u t o im u n id a d e ,
e s tre s s e C é l u l a s e s t e la r e s q u i e s c e n t e s e
d o e n ç a s m e t a b ó lic a s
m io f ib r o b la s t o s
Fatores de crescimento
Integrinas
Citocinas
Colágenos T
TIMP-1 t
Colagenase 1
Radicais livres de 0 2
P r o lif e r a ç ã o fib r ó t ic a c o m
r e g e n e r a ç ã o n o d u la r
643
644 Capítulo 57 / Cirrose Hepática
-----------------------------▼----------------------------
Q u a d r o 5 7 .1 Classificação etiológica da cirrose hepática
Infecciosa
H e p a tite s B e D
H e p a tite C
Hepatite autoimune
Figura 57.4 Visão microscópica de um macronódulo de regeneração
Alcoólica envolvido por um processo inflamatório durante hepatite crônica viral
Obstrução biliar C. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte)
C o la n g it e c rô n ic a d e s tru tiv a n ã o s u p u ra tiv a
C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á ria
A tre s ia d e via s b ilia res
F ib ro s e cística
H ip o p la s ia in tra -h e p á tic a
D is p la sia a rt é r io -h e p á tic a (s ín d r o m e d e A la g ille )
S a rc o id o s e
Fármacos
Metabólica
D o e n ç a d e W ils o n
H e m o c r o m a t o s e h e re d itá ria
D e fic iê n c ia d e a ,-a n t it r ip s in a
G a la c to s e m ia
G lic o g e n o s e s
T ir o s in e m ia
P orfirias
E s te a to -h e p a tite n ã o a lc o ó lic a
C irro s e d a c ria n ç a in d ia n a
Vascular
S ín d r o m e d e B u d d -C h ia r i
D o e n ç a v e n o c lu s iv a
T e la n g ie c ta s ia h e m o r r á g ic a h e re d itá ria Figura 57.5 Visão microscópica de necrose periférica, com infiltrado
Criptogènica inflamatório do parênquima e formando nódulos. (Esta figura encontra-
se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 645
---------------------------------- ▼-----------------------------------
Q u a d r o 5 7 .2 Características evolutivas nas hepatites crônicas virais
3. A s p e c t o d iv e rs o o c o r r e c o m o s in fe c ta d o s p e lo v íru s d a h e p a tit e C.
A s s im , a lg u n s se t o r n a m c irró tic o s e m m e n o s d e 5 a n o s , e v o lu ç ã o
id e n tific a d a e m o u t r o s a p e n a s a p ó s 2 0 a n o s d e d o e n ç a . F o rm a m a is
g r a v e se ins ta la n a q u e le s q u e fo r a m c o n t a m in a d o s já e m fase m a is
a v a n ç a d a d a v id a , e n tre a lco o llsta s, p o r t a d o r e s d o s v íru s B o u H IV,
n a rc o a d ic to s e o b e s o s .
1. C e rc a d e 3 0 % d o s a d u lt o s já se a p r e s e n t a m c o m c irro s e p o r o c a s iã o d o
d ia g n ó s t ic o ;
ção colangiolar periporta, transformação pseudoacinar, com a cos elevados de aminotransferases e gamaglutamiltransferases
progressão para cirrose podendo ocorrer em 6 meses. de pacientes atendidos em ambulatórios ou consultórios de
As glicogenoses constituem-se em grupo heterogêneo de clínicas privadas; 2. é mais observada entre obesos, sobretudo
doenças, consequentes a distúrbios do metabolismo do glico- naqueles com hipertensão arterial, hiperglicemia, hipertrigli-
gênio, cuja formação e degradação são reguladas por processo ceridemia (> 150 mg/à£) e com valores de HDL abaixo de 40
que envolvem, pelo menos, oito enzimas, cujas deficiências ge e de 50 mg/d£, respectivamente, para homens e mulheres. São
ram, pelo menos, 12 formas reconhecidas de doenças de arma estes que demonstram risco maior de desenvolver essa síndro-
zenamento desse carboidrato com apenas três tipos induzindo me plurimetabólica, que traduz resistência à insulina. De me
evolução para agressão hepatocelular, conforme discrimina canismo patogenético complexo, instala-se em consequência
do adiante: I. cursam todos com hipoglicemia, acidose láctica, de: 1. redução da oxidação mitocondrial de triglicerídios; 2.
hiperuricemia, hipofosfatemia, hiperlipidemia, neutropenia e baixa exportação hepática de ácidos graxos e lipídios; 3. síntese
disfunção plaquetária, com desenvolvimento de adenoma he hepática maior de fosfolipídios e ésteres de colesterol; 4. acen
patocelular em consequência da hiperglucagonemia que apre tuadas produções de radicais livres de O,; 5. hipersecreção de
sentam; II. evoluem com déficit de crescimento, ausência de leptina e grelina, as quais hiperestimulam células estelares do
hipoglicemia, progressiva fraqueza muscular, aumento volu- fígado e da matriz extracelular. Com história natural indefini
métrico dos rins, enquanto no fígado evoluem com esteatose, da, tem estabilidade histológica entre 1 e 9 anos de evolução,
septos fibrosos, alguns evoluindo para cirrose; e III. conhecido comportamento notado em 54% dos pacientes. A cirrose é mais
como amilopectinose ou doença de Andersen, com crianças frequentemente observada na presença de infiltrado inflama-
evoluindo em 3 a 5 meses, com distensão abdominal, sintomas tório, com a sobrevida de 5 a 10 anos nesses pacientes sendo,
dispépticos, hipotonia, atrofia muscular, com o fígado exibindo respectivamente, de 67 e 59%, mostrando tendência à expansão
depósitos citoplasmáticos PAS positivos, núcleo deslocado por para carcinoma hepatocelular, levando-os a serem conduzidos
inclusões glicogênicas, fibrose e cirrose micronodular, não in pelo transplante de fígado.
frequentemente conduzidos pelo transplante de fígado. A cirrose da criança indiana tem sido também descrita entre
Tirosinemia, desordem do metabolismo dos aminoácidos, norte-americanos e em habitantes de outros países, inclusive
representação do reduzido catabolismo de tirosina, um aminoá- europeus. São acometidos entre 1 e 3 anos, mas também com
cido aromático essencial às sínteses de catecolaminas, melanina 10 anos de idade, predominando no sexo masculino, na pro
e hormônios tireoidianos. Representada por quatro erros inatos porção 3:1. A doença manifesta-se em três estágios; a. inicial,
autossômicos recessivos definidos pelas seguintes síndromes: expresso por anorexia, irritabilidade, quadro febril, hepatome-
tirosinemia hereditária tipos 1,2 e 3, e alcaptonúria. São crian galia e distensão abdominal; b. intermediário, que se traduz por
ças que evoluem com níveis séricos elevados de tirosina (30 mg/ icterícia, esplenomegalia e sinais de hipertensão portal, com
á£) e excreção acentuada do composto tirosil. A forma aguda cirrose instalando-se entre 1 e 8 meses; e c. tardio, definido por
ocorre já no recém-nato, expressa por vômito, diarréia, anemia, sinais de descompensação expressos por colestase, hemorragia
com morte ocorrendo no primeiro ano de vida por insuficiência digestiva, infecções repetidas, edema, encefalopatia hepática e
hepática. A forma crônica define-se pela presença de hepato- morte. Essa evolução ocorre entre 4 e 6 meses. Fatores patoge-
esplenomegalia, colestase, fibrose pericelular e periporta, além néticos são ingesta de alimentos contaminados por aflatoxina
de cirrose micro e, posteriormente, macronodular, com focos e de leite encerrando cobre. Esse metal é identificado nas biop-
de displasia celular eventualmente complicada por carcinoma sias hepáticas em concentrações que ultrapassam 4.788 pg/g
hepatocelular. A terapêutica se baseia em medidas dietéticas e, de fígado seco, bem acima dos 1.400 pg/g presentes em indiví
nas fases avançadas da doença hepática crônica, por meio do duos normais. Histologicamente, expressa-se por: 1. necrose
transplante de fígado. hepatocelular; 2. corpúsculo de Mallory ocupando mais de 15%
As porfirias são, por sua vez, doenças causadas por anor dos hepatócitos; 3. fibrose pericelular; 4. expansão dos espaços
malidades na síntese do heme, resultado da deficiência de di portais por células mononucleares e alguns neutrófilos; 5. pro
ferentes enzimas relacionadas com deficiências enzimáticas liferação ductular; e 6. cirrose micronodular. Tratados na fase
específicas, herdadas de formas recessiva ou dominante, en compensada com 20 pg/g/kg/dia de d-penicilamina, reduz-se
volvendo dois grupos dependendo do tecido acometido, tais a mortalidade de 93 para 53% em 18 meses de evolução. Reco
como eritrócitos ou hepatócitos. Doenças hepáticas resultam mendável terapêutica antioxidante e, para aqueles em estágios
dessa desorganização, cinco delas localizadas exclusivamente mais avançados, o transplante de fígado pode ser realizado.
nos hepatócitos, em duas outras, de modo combinado, encon
tra-se comprometida a medula óssea, estrutura lesada apenas
na última delas. São pacientes que cursam com manifestações
■ Vascular
clínicas neuropsiquiátricas, cutâneas ou hepáticas. Dessas, a A síndrome de Budd-Chiari instala-se em consequência
mais frequente é a protoporfiria eritro-hepática, na qual o exces de obstáculo ao livre fluxo sanguíneo secundário a trom bo
so de produção de protoporfirinas não sofre eficaz clareamento se de veias hepáticas ou de veia cava inferior supra-hepática.
hepatobiliar, levando à instalação de agregados insolúveis, que É mais frequentemente observada em situações de hipercoa-
se depositam nos duetos biliares, promovendo colestase, fibro gulabilidade (policitemia rubra vera, hemoglobinúria paro-
se e cirrose micronodular. A conduta envolve transplante de xística noturna e síndromes neoplásicas, deficiências de an-
fígado, com sobrevida e melhor qualidade de vida, porém com titrombina III e proteína C), em mulheres que se encontram
persistência de distúrbios bioquímicos e a recorrência da lesão em uso de anticoncepcional oral, durante ou após a gestação,
hepatocelular podendo ser observada. e na presença de anticorpos anticardiolipina. Pacientes cursam
com volumosa hepatomegalia, ascite tensa, como outros sinais
típicos de hipertensão portal, instalando-se de forma aguda ou
■ Esteato-hepatite não alcoólica (EHNA) crônica. Histologicamente, traduz-se por dilatação e colageni-
Tem características típicas que assim podem ser resumidas: zação dos sinusoides, desaparecimento de veias centrolobula-
1. é responsável por cerca de 60 a 80% dos casos de níveis séri res, lobulação reversa e cirrose. O diagnóstico confirma-se por
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 649
meio de ultrassom com Doppler, angiorressonância magnética sanguíneo para o córtex renal em consequência da vasoconstri-
ou tomografia computadorizada e estudo histológico do fíga ção das arteríolas aferentes, com consequente desvio de sangue
do. Esse mesmo distúrbio de drenagem venosa observa-se na para a medular. Tais modificações resultam em importante di
insuficiência cardíaca direita crônica. minuição da filtração glomerular, maior reabsorção tubular de
A doença venoclusiva, por sua vez, é uma síndrome clínica sódio e água e retenção azotada culminando com a síndrome
caracterizada por icterícia, hepatomegalia e ascite, em geral pre hepatorrenal, um indicativo de mau prognóstico.
sente em pacientes submetidos a quimioterapia com bussulfan, Distúrbios hematológicos são frequentes na cirrose hepáti
ciclofosfamida, carmustina e etoposide, associada a irradiação ca, tais como: 1. anemia, multifatorial causada por hemólise,
corpórea total. Instala-se também em alguns pacientes cerca deficiência na síntese de ácido fólico e absorção do ferro, ob
de 3 semanas após o transplante de medula óssea. O quadro servada sobretudo nos desnutridos; 2. leucopenia e plaquetope-
clínico e histológico assemelha-se aos anteriormente citados, nia geradas a partir do hiperesplenismo; 3. redução na síntese
em consequência da obstrução ao fluxo sanguíneo de deságue dos fatores que compõem o complexo protrombínico (II, VI,
que apresentam. IX, X), representada por baixa na atividade e alargamento no
Telangiectasia hemorrágica hereditária, doença herdada com tempo de protrombina. Em geral, esses cursam também com
caráter autossômico dominante, com frequência estimada de baixos valores séricos de fator V, associadamente responsáveis
1 a 2:100.000 nascidos vivos. Os pacientes exibem telangiecta- pelo aparecimento de sangramentos espontâneos, equimoses e
sias de pele e mucosas, com cerca de 30% apresentando fístulas hematomas presentes ao menor trauma.
hepáticas A-V. Como consequência, eles cursam com dor no Por sua vez, o fígado normal produz cerca de 10 g de albu-
hipocôndrio direito, hepatomegalia e insuficiência cardíaca de mina/dia, nível que se reduz para 4 g/dia nos cirróticos. Essa
débito elevado. A angiografia hepática é típica e, histologica- hipoalbuminemia altera a pressão coloidosmótica plasmática, a
mente, traduz-se por estruturas vasculares portais e periportais qual, associada à hipertensão portal e à presença de substâncias
dilatadas, volumosas e com paredes delgadas. Tem tendência vasoconstritoras, leva à menor excreção renal de sódio e água,
a evoluir com fibrose secundária e trombose, e a coalescer for com formação de ascite. Nessa situação, encontra-se compro
mando traves até as veias centrais. Desenvolve-se como res metido o transporte plasmático de diversas substâncias de baixo
posta uma regeneração nodular, formando cirrose atípica, ou peso molecular, dependentes da atuação dessa proteína.
também definida como pseudocirrose, sempre acompanhada As alterações nos aminoácidos plasmáticos, na cirrose hepá
de hipertensão portal e insuficiência hepatocelular. tica, dependem do grau de comprometimento celular e da ex
tensão das anastomoses portocavas. Geralmente, as concentra
ções plasmáticas de citrulina, metionina, tirosina, fenilalanina
■ Criptogênica estão aumentadas, e as de leucina, isoleucina e valina, diminuí
Constitui um grupo heterogêneo, de etiologia desconheci das. A redução dos níveis séricos desses últimos aminoácidos
da, representando cerca de 5 a 15% das cirroses. São pacien de cadeia ramificada, os quais são degradados na musculatura,
tes negativos para todos os marcadores séricos, radiológicos e deve-se a uma baixa da insulina - hormônio que acelera a cap
histológicos que definem as anteriores etiologias. Mecanismos tação desses aminoácidos pela musculatura e fígado. Também a
patogenéticos são desconhecidos, e, histologicamente, a doença queda da capacidade de síntese hepática leva à incapacidade de
representa-se por ausência de espaços portais, arranjos vascula conversão de amônia em ureia, ocasionada pela diminuição da
res anormais, septos fibrosos e regeneração nodular. Predomina atividade da carbamoil-fosfato-sintetase e da argininossuccina-
entre mulheres, não infrequentemente nas fases avançadas da to-sintetase, com consequente menor clareamento da amônia
doença, sendo conduzidos pelo transplante de fígado. e geração de hiperamoniemia.
A alta incidência de infecções bacterianas em cirróticos pode
ser explicada pela existência de importantes alterações nos me
■ ASPECTOS FISI0PAT0LÓGIC0S canismos de defesa contra as bactérias, dependentes da depres
são funcional do sistema reticuloendotelial e dos granulócitos,
A instalação da fibrose e da regeneração nodular no fígado baixos níveis de complemento e deterioração da imunidade
acaba por determinar o aparecimento da hipertensão portal, celular. São pacientes que exibem diminuição de alguns cons
definida pelo aumento dos níveis pressóricos no sistema venoso tituintes do plasma que estão envolvidos com a resposta imune,
portal acima de 5 mmHg da pressão da veia cava inferior. Com como zinco, albumina e transferrina. A síntese desses aspectos
a instalação desse distúrbio hemodinâmico, forma-se extensa fisiopatológicos encontra-se representada no Quadro 57.9.
rede de circulação colateral, na tentativa de aumentar o retor
no venoso para a circulação cardiopulmonar e aliviar o sistema
portal, formando-se, assim, desvios da circulação portal para a ■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
sistêmica, representados, sobretudo, pelas varizes esofagogás-
tricas. Apesar dessa desestruturação, o fluxo hepático deve ser A magnitude das manifestações clínicas está, obviamente,
mantido, como tentativa de garantir o funcionamento hepáti na dependência do grau de comprometimento celular hepá
co, o que se traduz pelo aumento do débito cardíaco com re tico e da intensidade da fibrose. Alguns pacientes, sobretudo
dução na resistência arteriolar esplâncnica (aumento do fluxo nas fases iniciais da doença, não apresentam quaisquer sinais
sanguíneo para os órgãos abdominais) e acentuação da resis ou sintomas, o que torna possível dividi-la em: 1. cirrose he
tência oferecida pelos vasos colaterais. São pacientes que evo pática compensada, muitas vezes pobre em sinais e sintomas,
luem ainda com anastomoses arteriovenosas intrapulmonares e suspeitando-se da doença pela identificação de alterações fí
portopulmonares (sistema ázigo-pulmonares, ao nível do hilo sicas, como hepatoesplenomegalia e hipertransaminasemia,
pulmonar), levando à diminuição da pO, no sangue arterial e detectadas durante realização de exames físicos e laboratoriais
da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio. de rotina. Nesses doentes, mostra-se comum a existência de
Por outro lado, a circulação renal, dependendo do estágio história mórbida pregressa de hepatite sem etiologia definida,
clínico, pode estar alterada, ocorrendo diminuição do fluxo uso crônico de álcool ou sintomatologia vaga, tal como astenia,
650 Capítulo 57 / Cirrose Hepática
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Q u a d ro 57 .9 Esquema simplificado das alterações fisiopatológicas na cirrose
epistaxe, edema, lentidão de raciocínio, emagrecimento, sen (que adquirem forma ginecoide no homem e, na mulher, ten
do também encontrados febrícula, aranhas vasculares, eritema dem a desaparecer), ginecomastia, atrofia testicular, petéquias
palmar e referências a episódios de diarréia, além de sintomas e equimoses, tremor de extremidades ou flapping. No abdome,
dispépticos diversos, tais como plenitude epigástrica ou flatu- detectam-se ascite e sinais de circulação colateral, esta podendo
lência. Esses pacientes podem manter-se nessa fase por toda ser: a. tipo porta, rede venosa vicariante localizada nas regiões
a sua vida, vindo a falecer por causas diversas, porém alguns, periumbilical, epigástrica e face anterior do tórax, com fluxo
em poucos meses ou anos, geralmente evoluem para falência do abdome para o tórax; b . tipo cava inferior, formada atra
hepatocelular e hipertensão portal. Prever essa evolução é m ui vés das veias retais, com o fluxo da mesentérica inferior, por
to difícil, sendo seu curso considerado individual, dependen contracorrente, atingindo a cava inferior. O fígado pode estar
te de inúmeros fatores, bem como da etiologia da doença; 2. aumentado, de volume, endurecido ou, então, diminuído e não
cirrose hepática descompensada: não raramente, nessa fase o palpável. Esplenomegalia pode ser evidenciada pela ocupação
paciente é levado ao médico por apresentar complicações da do espaço de Traube, ou palpação do órgão abaixo do rebordo
cirrose hepática, tais como ascite, encefalopatia e hemorragia costal esquerdo.
digestiva alta. Em geral, apresenta fraqueza progressiva, perda
ponderai, com evidentes sinais de comprometimento de seu
estado nutricional e diminuição de massa muscular. Pode ha ■ ASPECTOS LABORATORIAIS
ver episódios de bacteriemia, com febre causada por bactérias
gram-negativas, necrose celular ou instalação de carcinoma he Alguns destes estão representados no Quadro 57.10.
patocelular. Comumente, os doentes exibem hálito hepático e O comportamento de alguns outros parâmetros merece ser
icterícia, do tipo hepatocelular ou causada por hiper-hemólise. citado neste capítulo, sobretudo no que diz respeito às proteí
Ao exame, identificam-se hiperpigmentação da pele (hemo- nas e enzimas séricas, tratadas logo adiante.
cromatose hereditária), dedo hipocrático com unhas esbran A albumina apresenta composição homogênea, sendo sin
quiçadas, telangiectasias aracniformes (na face e no tronco), tetizada exclusivamente no fígado; portanto, na cirrose hepá
eritema palmar, alteração na distribuição dos pelos pubianos tica, encontramos baixos níveis séricos. Em geral, os doentes
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 651
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Q u a d ro 57 .1 0 Aspectos laboratoriais diagnósticos nas cirroses
Infecciosa
Hepatites B e D AgHBs e Anti-VHD IgM e IgG (sorológicos e no tecido)
Hepatite C RNAVHC (técnica PCR - sorologia e tecido)
H epatite autoim une Hipergamaglobulinemia e autoanticorpos séricos específicos
Obstrução b ilia r
Cirrose biliar primária Hipergamaglobulinemia, anticorpo antimitocôndria
Colangite esclerosante primária VHS elevada e p-ANCA positivo
Fibrose cística Teste de suor
Metabólica
Doença de Wilson Cobre e ceruloplasmina séricos, excreção de CUUnas 24 h, concentração de Cu no fígado
Hemocromatose hereditária índice de saturação da transferrina e ferritina elevados
Deficiência de a,-AT Nível sérico de a,-AT, fenótipo PiZZ
Galactosemia Açúcar redutor urinário náo glicose, nível eritrocitário de galactose-1 -fosfato uridil-
transferase
Glicogenose Acido láctico, glicemia de Jejum, nível enzimático muscular e hepático
Tirosinemia Nível sérico elevado de tirosina
Porfiria eritro-hepática Nível sérico de porfirinas, vírus das hepatites B e C
Figura 57.8 Ultrassom de fígado definindo um padráo heterogêneo Figura 57.9 Tomografia computadorizada mostrando fígado redu
e grosseiro com uma lesáo nodular hipoecoica, tradução da presença zido de volume com aspecto heterogêneo do parênquima. Presença
de um carcinoma hepatocelular de pequeno diâmetro (2,0 cm). de um pequeno nódulo que pode representar desenvolvimento de
carcinoma hepatocelular de pequeno diâmetro.
toyr
■ Ressonância magnética (RM) bem como suas complicações, como a hipertensão portal, de
finidas por técnica específica, a angiorressonância magnética
As alterações morfológicas características da cirrose detecta (Figuras 57.13 a 57.17).
das por esse método assemelham-se às descritas anteriormente.
A ressonância magnética tem sido usada para detectar lesões
hepáticas focais em pacientes com cirrose hepática e, de manei ■ Angiografia de tronco celíaco
ra geral, para investigar, de forma não invasiva, as formações O cateterismo seletivo da artéria femoral e do tronco celíaco
vasculares intra e extra-hepáticas. Dependendo da técnica uti permite uma definição precisa da arquitetura de ramos arteriais
lizada em relação ao tempo (TI e T2) e à densidade do próton, e venosos do fígado cirrótico (Figuras 57.18 a 57.22).
um mesmo tecido pode apresentar diferentes imagens, fugindo
ao nosso objetivo enumerá-las. De maneira geral, a ressonância
magnética nos fornece uma descrição anatômica detalhada e
■ Supra-hepatovenografia
informações importantes em relação a lesões focais e difusas do O cateterismo de veias hepáticas assume importância, pois
fígado. Pacientes com cirrose hepática podem ser identificados, as medidas de pressão ocluída (com cateter impactado) e livre
654 Capítulo 57 / Cirrose Hepática
Figura 57.15 Angiorressonância magnética 3D, com injeção de gadolínio com reconstrução tridimensional. Observa-se recanalização da
veia paraumbilical. A, Visão coronal; B. Visão sagital; C, Visão coronai oblíqua; D, Visão axial. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
Encarte.)
(com cateter solto na luz do vaso) (Figura 57.23) definirão o tica cirúrgica visando a tratamento da hipertensão portal (Fi
verdadeiro gradiente hepatoportal. Assim, o nível acima de gura 57.25).
12 mmHg, resultado da diferença entre esses valores, atua como
fator preditivo de risco de sangramento e servirá de orienta
ção a medidas terapêuticas a serem adotadas nos hipertensos ■ Endoscopia digestiva alta
portais com varizes de esôfago de médio e grande calibres, com Tem importância na definição da presença de varizes eso-
risco maior de ruptura. fágicas, gástricas (Figuras 57.26 e 57.27) e gastropatia hiper-
tensiva portal (Figuras 57.28 e 57.29). Por meio desse método,
■ Angiorressonância magnética identifica-se a sede das lesões hemorrágicas, podendo-se atuar
Técnica de avaliação recente das condições anatômicas do terapeuticamente na interrupção do sangramento adotando-
sistema venoso portal. Tem indicação na caracterização: a. das se medidas como escleroterapia e ligadura das varizes rotas,
mensurações volumétricas de fígado e baço e distribuição da ou injeção de cola biológica no interior das varizes gástricas
vasculatura portal (Figura 57.24); b. e definição sobre terapêu (Figuras 57.30 e 57.31).
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 655
Figura 57.17 Angiorressonância magnética 3D, com injeção de gadolínio (coronal-MPVR). Demonstração de imagens peroladas do terço
distai, constituindo as varizes esofágicas.
656 Capítulo 57 / Cirrose Hepática
P .V .H .L . = 12f 5
Figura 57.27 Visáo à endoscopia digestiva alta revelando vários cor Figura 57.30 Visáo à endoscopia digestiva alta mostrando, à retro-
dões varicosos com sinais premonitórios de sangramento. (Esta figura versáo, início de formação de varizes de fundo gástrico. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Figura 57.28 Visáo à endoscopia digestiva alta de gastropatia con- Figura 57.31 Visáo endoscópica de injeçáo de histoacril (cola bioló
gestiva inicial. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no En gica) em variz de fundo gástrico sangrante. (Esta figura encontra-se
carte.) reproduzida em cores no Encarte.)
Figura 57.29 Visáo à endoscopia digestiva alta de gastropatia con- ■ Encefalopatia hepática
gestiva em fase mais avançada. (Esta figura encontra-se reproduzida A combinação de insuficiência hepatocelular, consequente a
em cores no Encarte.) redução volumétrica do fígado, com a desestruturação da arqui-
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 659
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A m p lia r d e g r a d a ç ã o d a m a tr iz P ro te a se s e x ó g e n a s o u e n d ó g e n a s
E n c e fa lo p a tia h e p á tic a A ID S
T e m p o d e p r o t r o m b in a > 5 s a lé m d o c o n tr o le C o la n g io c a r c in o m a
S ín d r o m e h e p a to r r e n a l A g H B s (+ ) s o b r e t u d o A g H B e ( + ) e D N A V H B (+ )
tetura vascular, presença de circulação colateral e anastomoses ser identificada naqueles com ou sem doença cardiopulmonar
naturais, cirúrgicas ou radiológicas, constituem-se no substrato intrínseca, tais como obstrução ao livre fluxo aéreo induzido
anatomofúncional para que substâncias proteicas de origem in pelo fumo. Difere da hipertensão pulmonar, constituindo um
testinal atinjam a circulação sistêmica e alterem o estado m en problema hemodinâmico que se traduz por elevação da pres
tal desses pacientes. De uma forma simplificada, define-se que são arterial pulmonar ultrapassando a 25 mmHg em repouso.
tal evolução relaciona-se com a presença de neurotoxinas, tais Separação entre ambas obedece a alguns critérios diagnósti
como amônia, citocinas, benzodiazepínicos “naturais”, neu- cos (Quadro 57.18) e a conduta terapêutica a certos princípios
roesteroides, manganês, glutamina-glutamato e substâncias (Quadro 57.19).
dopaminérgicas, responsáveis pelos distúrbios neurológicos
que tais cirróticos apresentam. ■ Hidrotórax hepático
Conduzi-los do ponto de vista terapêutico inclui impedir o Definido pela presença de derrame (efusão) pleural, ultra
aparecimento de distúrbios do sono, sintomas extrapiramidais e passando, em geral, mais de 500 m^, identificado em cirrótico
o coma hepático, conforme esquematizado no Quadro 57.17. sem doença cardiopulmonar primária. Predomina entre alcoó
latras e relaciona-se com transferência de líquido intraperito-
■ Síndrom e hepatopulm onar - hipertensão pulm onar neal ao tórax por meio de comunicações transdiafragmáticas.
Tem sido observada em cirróticos de qualquer etiologia, cur Instala-se, sobretudo, no hemitórax direito e apresenta mani
sando com intensa hipoxemia. São pacientes que evoluem com festações clínicas e laboratoriais, conforme exposto no Qua
difusão gasosa pulmonar alterada, gerando hipoxemia arterial, e dro 57.20. Para tratá-lo, é recomendável seguir o algoritmo
com evidências de dilatações vasculares intrapulmonares. Pode mostrado no Quadro 57.21.
660 Capítulo 57 / Cirrose Hepática
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Q u a d ro 57 .1 4 Conduta terapêutica na hemorragia digestiva alta (HDA) do cirrótico (Shahi&Sarin, 1998; NorthItalianEndoscopicCIub, 1988)
Fases Definições
De prevenção P -b lo q u e a d o r e s (p r o p r a n o lo l) 4 0 -3 0 0 m g / d ia o u n a d o lo l
D e v e r e d u z ir d é b it o c a rd ía c o e m 2 5 % d o s e u ín d ic e inicia l
E fica z n as v a riz e s d e g r a n d e c a lib re
D e v e r e d u z ir g ra d ie n te h e p a t o p o r t a l p a ra < 12 m m H g
S e g u ro s , p o u c o o n e ro s o s , e fic a ze s n a p ro fila xia
E s d e r o t e r a p ia — r e d u z a in c id ê n c ia d e H D A e a m p lia a s o b r e v id a n o s C h ild A e B, m a s n ã o n o C
L ig a d u r a e n d o s c ó p ic a — s u p e r io r à e s d e r o t e r a p ia n a p re v e n ç ã o a o p r im e ir o s u r to h e m o r r á g ic o
T r a t a m e n t o c ir ú r g ic o — n ã o d e v e r á se r e m p r e g a d o
In fu s ã o d e d r o g a s e n d o v e n o s a s D oses
V a s o p re s s in a 0 ,4 p / m in — 0 8 p / m in
Te rlip re s s in a 2 m g E V c a d a 4 h o ra s
S o m a to s ta tin a In je ç ã o e m b o lu s d e 2 5 0 p g //
M a n u t e n ç ã o n as 2 4 h (2 5 0 p g //)
T r a t a m e n t o e n d o s c ó p ic o E s d e r o t e r a p ia o u lig a d u ra
T1PS N a fa lê n c ia d as m e d id a s a n te rio re s
C o m o p o n t e p a ra tr a n s p la n te d e f íg a d o
D e r iv a ç ã o c irú rg ic a d e s c o m p re s s iv a A n a s to m o s e p o r t o c a v a o u m e s e n t é r ic o -c a v a , se n ã o fo r p o s s ív e l T IP S
T r a n s p la n t e d e fíg a d o D e f in it iv o - > c u r a t iv o
M a n t e r sessões d e lig a d u ra e n d o s c ó p ic a
P -b lo q u e a d o r e s + n itra to s p o d e m se r ú te is
T r a n s p la n t e d e f íg a d o
----------------------------------------------------- ▼----------------------------------------------------
Q uadro 57.15 Conduta terapêutica na ascite não complicada do cirrótico (Moreau & Lebrec, 1999)
D iu r e tic o te r a p ia : a s s o c ia ç ã o e m d o s e ú n ic a
In íc io M a is re s is te n te
F u r o s e m id a 4 0 m g / d ia 8 0 -1 2 0 m g / d ia
E s p ir o n o la c t o n a 1 0 0 m g / d ia 3 0 0 -4 0 0 m g / d ia
P e rsistê ncia d o s e d e m a s
P e rd a d e p e s o c o r p ó r e o < 5 0 0 m g / d ia
E x c re ç ã o d e N A ' u r in á r io < 1 0 0 m m o l/ d ia
C le a r a n c e d e c re a tin in a < 4 0 m E q / d ia
E le v a ç ã o d e n ív e is sé ric o s d e u re ia e c re a tin in a
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 661
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Q u a d ro 57.16 Conduta terapêutica na ascite complicada do cirrótico (Moreau & Lebrec, 1999)
Volumosa (restritiva) P a ra c e n te s e e v a c u a d o r a + e x p a n s o r d e v o lu m e
< 5 ( - > in f u n d ir d e x t r a n 7 0
> 5 £ - > in f u n d ir a lb u m in a h u m a n a a 2 0 %
T IP S
T r a n s p la n t e d e f íg a d o
T r a t a m e n t o e n d o s c ó p ic o
P ro te ín a n a a scite (á 1,0 g/£ )
S u r t o a n te rio r
O u t r a in fe c ç á o v ig e n t e
Antibioticoterapia preventiva
N o r f lo x a d n o 4 0 0 -8 0 0 m g / d ia
O flo x a c in o 4 0 0 m g / d ia
S u lf a m e t o x a z o l-t r im e t o p r im a 1 6 0 -8 0 0 m g / 5 d ia s /s e m a n a
Antibioticoterapia curativa
C e fo ta x im a 2 g -8 / 8 h
C e ftria x o n a 2 g / d ia
A m o x id lin a 1 g 6 /6 h
A c id o d a v u lín ic o 2 0 0 m g 6/6 h
O flo x a c in o 4 0 0 m g 1 2/1 2 h
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Q u a d ro 57.17 Conduta terapêutica na encefalopatia hepática do cirrótico
(Seym our&W helan, 1999; Soulby & Morgan, 1999; Bustamante ero/.# 1999)
In t e r r u p ç ã o d o e ix o i n t e s t in o -c é r e b r o p o r m e io d a r e m o ç ã o p ro te ic a e n v o lv e n d o e s v a z ia m e n t o c o lô n ic o p o r c listere s g lic e r in a d o s ( 1 - 2 v e z e s / d ia ), c o m
o u s e m a d iç ã o d e s u lfa to d e n e o m ic in a . D e v e -s e t a m b é m p r o m o v e r a s s o c ia ç ã o d e in g e s ta d e su lfa to d e n e o m ic in a ( 2 - 3 g / d ia ) c o m la c tu lo s e (2 0 m / ,
2 - 3 v e z e s / d ia ), s e m c a u s a r d ia rré ia .
R e s ta u ra ç ã o p ro te ic a in ic ia l e n v o lv e n d o 2 0 g d e p ro te ín a s / d ia , a s c e n d e n d o 10 g a c a d a 3 - 4 d ia s, a té to le râ n c ia d e 0 ,8 -1 ,0 g / k g d e p e s o c o r p ó r e o . In d u z -
se, a ssim , a u m b a la n ç o p o s itiv o , m e lh o r a n d o as c o n d iç õ e s n u tric io n a is . D e v e b a s e a r-s e n a o fe rta d e a m in o á c id o s d e c a d e ia ra m ific a d a (v a lin a , le u c in a
e i s o le u d n a ) c o n s titu íd a p o r le ite o u b ife d e so ja , p ro t e ín a te x tu riz a d a d e so ja , le ite d e o v e lh a e p e ix e c o n g e la d o . E v ite -s e in g e s ta d e c a r n e v e r m e lh a ,
b a n a n a e c h o c o la te . R e s trin ja m -s e s ó d io e á g u a n o s h ip o n a t r é m ic o s e c o m a scite . N o s a lc o ó la tra s o u n o s a n o ré tic o s , n a u s e a d o s e e m e s ta d o
h ip e r m e t a b ó lic o , p r o m o v a -s e n u t r iç ã o e n te ra l c o m b a ix a p re s e n ç a d e a m in o á c id o s a ro m á tic o s .
E v it e m -s e a s c o le c t o m ia s (m o r b im o r t a lid a d e e le v a d a ).
Q u a d ro 57.18 Síndrome hepatopulmonar e hipertensão pulmonar. Q u a d ro 57.20 Aspectos clínicos e laboratoriais do hidrotórax hepático
Critérios diagnósticos (Krowka, 1999; Krowka, 2000) (Strauss & Boyer, 1997, Sahn, 1988, Lazaridis e t a l . , 1999)
PAO? < 70 m m H g ou H e m it ó r a x e s q u e r d o 13
H ip e r te n s ã o p o r t o p u lm o n a r P r o p o r ç ã o p ro t e ín a líq u id a p le u r a l: so ro < 0 ,5
Q uadro 57.19 Conduta terapêutica na síndrome hepatopulmonar e Q u a d ro 57.21 Algoritmo visando a diagnóstico e manuseio terapêutico
hipertensão pulmonar do cirrótico (Abram s& Fallon, 1997;Tarek et ai, do hidrotórax hepático (Lazaridisef 0/., 1999)
1997; Krowka etai, 1997; Krowka, 1999)
Hidrotórax hepático
Síndrome hepatopulmonar (sem doença cardíopulmonar primária)
Resultados precários com administração de análogos da
somatostatina, fenilefrina, isoproterenol, indometacina, -¥ Restrição de sódio
plasmaférese, azul de metileno e quimioterapia — prednisona -♦ Diurético
-♦ Toracocentese terapêutica
Novas perspectivas
In g e s ta d e d u a s c á p s u la s (5 0 0 m g ) d e a lh o a p ó s café d a m a n h ã e ja n ta r.
A m p lia r p a ra 3 ,0 g / d ia , c a s o P A O , sofra in c r e m e n t o d e 10 m m H g .
1----------------- T
R e s u lta d o s b o n s e m 4 0 % d o s tra ta d o s . E m v ir t u d e d o s e u c o n t e ú d o d e
e n x o fre , p e r m it e m e lh o r a tu a ç á o s o b r e t ô n u s v a s c u la r a d e s p e it o d o s
n ív e is d e ó x id o n ítric o , m e lh o r a n d o r e d is trib u iç á o d o flu x o s a n g u ín e o Seguimento T1PS
p e lo s 2/3 m é d io e s u p e r io r d o p u lm à o .
Resultado alvissareiro
O b t é m -s e a tra v é s d a e m b o liz a ç á o r a d io ló g ic a d a s c o m u n ic a ç õ e s
a rte rio v e n o s a s .
Seguimento Avaliar efeitos diafragmáticos
Transplante de fígado
V o lt a d o p a ra a q u e le s c o m P A O , < 5 0 m m H g . A c im a d e ss e n ív e l, a
m o r t a lid a d e p ó s -o p e r a t ó r ia a tin g e 7 0 % .
i ---------------
Presente Ausente
r
Hipertensão pulmonar
Terapêutica temporária
A d m in is t r a ç ã o d e is o p ro te n o l e m in fu s à o v e n o s a (c o m b o m b a ).
Terapêutica definitiva
V o lta d a a p e n a s p a ra a q u e le s c o m p re s s ã o d e a rté ria p u lm o n a r a b a ix o Sucesso Insucesso Sucesso
d e 4 0 m m H g . C a s o tal c u id a d o n à o se ja t o m a d o , a m o r t a lid a d e a tin g e
7 0 % a o s 3 a n o s d e p ó s -o p e r a t ó r io . Seguimento Seguimento Seguimento
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Encefalopatia Hepática
Adávio de Oliveira e Silva, Raul Carlos Wahle,
Verônica Desirée Samudio Cardozo, Evandro de Oliveira Souza,
Maria Ermelinda Camilo, Ana Beatriz de Vasconcelos,
Marcela Mendes Assumpção, Francisco César Nassar Tribulato,
Taiane Costa Marinho, Dan L. Waitzberg
■ FISI0PAT0L0GIA
O fígado normal responsabiliza-se pela metabolização e
clareamento de substâncias proteicas neurotóxicas, de origem ■ Amônia
intestinal. Essas substâncias, em consequência da redução da Vários estudos, nos últimos 50 anos, comprovam que 50%
massa dos hepatócitos funcionantes, como ocorre na insuficiên dos cirróticos com EH evoluem com hiperamonemia, aceitan
cia hepática fulminante (1HF), ou na cirrose, pela existência de do-se que a concentração necessária para provocar inibição
anastomoses portossistêmicas (Figuras 58.1 e 58.2), circulam sináptica seja de 0,5 mmol/g. Uma vez ultrapassada a BHL, a
livremente, ultrapassando a barreira hematoliquórica (BHL), amônia é detoxificada nos astrócitos através da amidação do
causando alterações cerebrais. As substâncias que mais fre glutamato e formação da glutamina, e baixa dos níveis do mio-
quentemente estão envolvidas na indução da EH merecerão inositol. Esse comportamento bioquímico observa-se mesmo
comentários, a seguir. naqueles pacientes com encefalopatia subclínica. Recentemen-
664
Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática 665
------------------------------------ ▼------------------------------------
Q u a d ro 58.2 Argumentos desfavoráveis à participação da
hiperamoniemia na gênese da encefalopatia hepática (Blei etal., 1996)
• A u s ê n c ia d e c o rre la ç ã o e n t r e n ív e is s a n g u ín e o s d e a m ô n ia e g ra u s d e
e n c e fa lo p a tia h e p á tic a
• In to x ic a ç ã o a g u d a p o r a m ô n ia p r o d u z c o n v u ls õ e s e m a n im a is , a s p e c to
n à o o b s e r v a d o n o h o m e m c o m e n c e fa lo p a tia h e p á tic a .
o < A m in o á c id o s d e c a d e ia ra m ific a d a .
O desequilíbrio de aminoácidos plasmáticos é observado, • N ív e is e le v a d o s d e a m ô n ia e d e falsos n e u ro tra n s m is s o re s d e t e r m in a m
sobretudo, nos cirróticos, que evoluem com níveis séricos e ce m a io r p e r m e a b ilid a d e d e b a rre ira h e m o liq u ó r ic a ;
• N ív e l c e re b ra l e le v a d o d e g lu t a m in a , u m p r o d u t o d e r iv a d o d o • M e n s u r a ç õ e s c e re b ra is d e falsos n e u ro tra n s m is s o re s p ó s -m o r t e d o s
m e t a b o lis m o d a a m ô n ia ; c irró tic o s m o s t r a m -s e n o rm a is ;
o D ia n te d e in g e s ta a lim e n t a r h ip e r p r o t e ic a n o s q u a d r o s in fe cc io s o s e
sé p tico s
o C o n s t ip a ç ã o in te s tin a l
o H e m o r r a g ia d ig e s t iv a alta
o H e m o tr a n s fu s õ e s
o In s u fic iê n c ia re n a l (u r e m ia )
• Q u a n d o o c o r r e r e d u ç ã o d o in tra v a s c u la r e is q u e m ia h e p á tic a
0 D iu re s e e xcessiva
0 P a ra c e n te s e v o lu m o s a
0 D ia rré ia s e v ô m it o s p ro fu s o s
o H e m o r r a g ia d ig e s t iv a alta
• U s o d e s e d a tiv o s (b a r b it ú r ic o s e b e n z o d ia z e p ín ic o s )
• H ip o p o t a s s e m ia c o m a lca lo se m e ta b ó lic a
• P ó s -c iru rg ia s d e s c o m p re s s iv a s p o rta is e im p la n t e d o T IP S
nização dos macrófagos, e redução da atividade dos linfócitos Q u a d ro 58.7 Diagnóstico nutricional do hepatopata crônico
T e B. Nessa situação, acentuam-se o catabolismo proteico e a
produção de substâncias nitrogenadas, com aumento da ureia V a lo r do índice de risco n u tricio n a l In te rp reta çõe s
dos pacientes com EH. Consiste no emprego de fichas com dências que tornam esses métodos de diagnóstico e graduação
sequências numéricas desordenadas, graduadas segundo cres da intensidade dessa síndrome neuropsiquiátrica em desvan
cente nível de dificuldade. Analisa o tempo gasto em segundos tagem, pois se alicerçam também na subjetividade, exigindo-
para que o paciente realize a conexão dos números. Diversos se, para tal, critérios mais objetivos, buscando diagnosticá-la e
trabalhos da literatura demonstram correlação entre grau de en monitorá-la evolutivamente.
cefalopatia, presença de flapping e teste de Reitan (Quadro 58.8 Foi por isso que pesquisadores tentaram vencer essa limita
e Figura 58.4). Embora seja considerado o procedimento padrão ção, valendo-se do potencial visual evocado, que se baseia no
para o diagnóstico, tem inconvenientes de baixa especificidade, emprego de flashes de luz como estímulo. Traduz a atividade
para detecção dessa síndrome, sofrendo, sobretudo, influências, do potencial celular pós-sináptico, refletindo a sucessão de al
tais como idade, sexo e capacidade intelectual. terações dos potenciais de membranas dos neurônios situados
Mais recentemente, tem-se adotado um índice resultante no córtex cerebral. É um método de grande importância no
de um sistema composto de contagem, baseado no estado de diagnóstico da EH subclínica. A neurotransmissão também
consciência, sinais eletroencefalográficos, intensidade do flap- pode ser definida pelo potencial visual auditivo.
pingyconcentração arterial de amônia e teste de conexão. Tem A ressonância magnética revela que tais pacientes evoluem
a desvantagem principal de misturar diferentes possíveis me com sinal de hiperintensidade em T l, ao nível do núcleo pálido.
canismos patogênicos com manifestações de EH. São tais evi- Esse sinal mostra-se prevalente, sendo mais acentuado naque
les com baixa reserva funcional e mais elevado nível de pressão
portal (Figuras 58.5 e 58.6). Parece que sua presença depende
do acúmulo cerebral de manganês, sendo incerta sua relação
-------------------------------- ▼--------------------------------- com os sintomas neurológicos que os cirróticos apresentam,
Q uadro 58 .8 Correlação entre grau de encefalopatia, flapping e e desaparece após o transplante de fígado. Quando avaliados
teste de conexão numérica pela espectroscopia empregando 31P, definiu-se que no pós-
operatório cursam com redução nos níveis de fosfocreatinina
Grau de Teste de conexão num érica e fosfato inorgânico. Essa técnica não invasiva permitirá definir
e nce falo patia Flapping (segundos)
com exatidão, em futuro próximo, quais os metabólitos relacio
0 (a u s e n te ) A u s e n te 1 5 -3 0 nados com a EH que se encontram alterados ao nível cerebral
1 (le v e ) R a ro 3 1 -5 0 (Figuras 58.7 a 58.10). Através desse método, se definem quali
II (m o d e r a d o ) F re q u e n te 5 1 -8 0
tativa e quantitativamente os desarranjos metabólicos que ocor
III (g r a v e ) C o n tín u o 8 1 -1 2 0
IV (c o m a ) S e m c o n d iç ã o d e p e s q u is a In c a p a z d e re a liza r o teste rem na EH, sobretudo do cirrótico, traduzindo-se por redução
nos valores cerebrais do mioinositol creatinina (mlns/Cr) e de
colina/creatinina (Cho/Cr), bem como de elevação dos valores
cerebrais de glutamina + glutamato/creatinina (Glx/Cr). Tais
modificações são mais intensas naqueles com doença hepática
crônica mais avançada, reversíveis com a terapêutica medica
mentosa, bem como pelo transplante de fígado.
O monitoramento da pressão intracraniana (PIC) não assu
me importância na avaliação da EH nos cirróticos, tendo im-
I»
M*
Figura 58.7 Ressonância magnética de encéfalo. Voxel no nível da Figura 58.9 Ressonância magnética de encéfalo. Voxel no nível da
substância cinzenta bioccipital. Técnica p r o b e S. substância branca parietal E. Técnica p r o b e S.
portância apenas naqueles com IHF, quando a elevação de seus de descerebração quando a PIC ultrapassa 30 mmHg, parâme
níveis é a principal causa de mortalidade nesses pacientes. A hi tro importante na indicação do transplante de fígado.
pertensão intracraniana decorre do aumento agudo da permea Todos esses parâmetros diagnósticos em geral não guardam
bilidade da BHL e dos distúrbios hemodinâmicos e eletrolíticos correlação com o aspecto anatomopatológico cerebral. Assim,
que apresentam. Geralmente, o paciente se encontra obnubila- em necropsias de pacientes com EH, o cérebro pode ser normal
do, com convulsões focais, pupilas fixas, comatoso, com sinais ou apresentar edema difuso do córtex, com ou sem herniação
670 Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática
■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
Baseiam-se em atitudes bem definidas, que se traduzem por:
rias desses cirróticos, os quais cursam com aumentado débito D is t ú r b io s h id re le tro lític o s C o r r e ç ã o d e h ip e r e h ip o n a t r e m ia e
h ip o p o ta s s e m ia
cardíaco, circulação portal hiperdinâmica e reduzidos fluxos
D is t ú r b io s d a c o a g u la ç á o E n v o lv e n d o a d m in is tr a ç õ e s d e s a n g u e e
sanguíneos, renal e cerebral. Nessas condições, citocinas pró-
p la s m a fre sco o u fa to re s s in té tic o s
inflamatórias e óxido nítrico têm seus níveis secretórios acen
F á rm a c o s d e p re s s o re s d a In t e r r o m p e n d o se u u s o
tuados, exacerbando o afluxo de falsos neurotransmissores ao a tiv id a d e c e re b ra l
interior dos astrócitos.
Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática 671
esse esquema, deve-se realizar aumento progressivo da oferta pH através da produção de ácido láctico e acético, promovendo
desses nutrientes. Exige-se monitorar o possível aparecimen efeito catártico, com aumento da excreção fecal de nitrogênio.
to de hiperglicemia, a qual deverá ser corrigida com insulina Deve ser administrada por via oral, ou através de sonda naso-
simples na dose de 1 UI/10 g do açúcar. gástrica, em doses iniciais fracionadas no total de 60 a 80 g/dia.
Com a progressiva melhora dos pacientes, traduzida por Outros preferem, com o mesmo objetivo, a utilização de lacti-
superficialização e manutenção de contato racional com en tol. Porém, quando não há resposta à monoterapia com esses
volvidos no tratamento, pode-se interromper a administração dissacarídios, deve-se utilizar a associação com sulfato de neo-
intravenosa dos aminoácidos, passando-se sonda nasoenteral micina e/ou metronidazol nas doses anteriormente propostas.
de fino calibre e valendo-se de bomba de infusão, injetar dietas Em algumas ocasiões, torna-se necessária a limpeza dos cólons
enterais industrializadas, com maior densidade calórica (1,2 a através do emprego de substâncias catárticas, como manitol a
1,5 caloria/mí), contendo aminoácidos essenciais e micronu- 20%, sulfato de magnésio ou lactulose, ou valendo-se de ente-
trientes, com teor de sódio inferior ou igual a 40 mEq/dia, sem roclismas, compostos de soluções glicerinadas associadas ao
pre em pequenos volumes para não ampliar o desconforto que sulfato de neomicina (2 g), 2 ou 3 vezes/dia, tendo efeito bené
apresentam aqueles com ascite volumosa. fico, principalmente naqueles com HDA. Deve-se ter cuidado
nesses pacientes para não precipitar aumento da osmolaridade
plasmática, hiponatremia ou hipopotassemia graves.
■ Fora do surto de encefalopatia hepática Outra opção reside na administração de antagonistas dos
Neste período, visando à restauração das precárias condições receptores centrais de benzodiazepínicos, fazendo com que as
nutricionais, recomendam-se legumes e verduras e peixe con chamadas “endozerpinas” circulantes sejam conduzidas ao ní
gelado. Do cardápio, não deverão fazer parte carne vermelha, vel dos receptores GABA. O flumazenil tem essas características
chocolate, amêndoa, amendoim e goiaba, e os pacientes são e, quando administrado por via intravenosa, promove melhora
orientandos para ingerirem dietas ricas em proteínas lácteas neurológica em 40% dos pacientes com EH grau 4. Outros es
(leite, iogurtes, queijos, requeijão cremoso) e vegetais (soja, tudos em andamento demonstram a tentativa de reversão do
feijão, grão de bico, frutas secas, nozes, massas, pães integrais quadro neurológico através do uso de fármacos que interferem
e peixe congelado). É recomendável, então, consumir em tor na neurotransmissão dopaminérgica e serotoninérgica. A fa
no de 150 a 200 calorias por dia, em quatro pequenas refeições lência dessas medidas envolve a adoção de atitudes cirúrgicas,
diárias e um lanche noturno. Assim conduzidos, 80% cursam as quais se baseiam na exclusão ou ressecção colônica, pouco
com redução significativa do nível de amônia plasmática, me empregadas nos dias atuais, pois apresentam elevada morbi-
lhorando o quociente respiratório, mantendo-se neurologica- dade e mortalidade, em torno de 25 a 50%.
mente estáveis e ampliando o balanço nitrogenado positivo. Infelizmente, alguns desses cirróticos cursam com sinais
Recomenda-se que, para tal, ingiram cerca de 0,25 a 0,75 g de de infecção e sepse promotoras de rápida deterioração das
proteínas/kg de peso corpóreo ao dia. Nova perspectiva tera condições hemodinâmicas e circulatórias, aumentando o dé
pêutica, mais recente, envolve prescrever a ingesta de cápsulas
bito cardíaco, provocando maior formação das anastomoses
de probióticos que encerram Bifidobacterium, Lactobacillus
portossistêmicas, evoluindo com baixas expressões dos fluxos
acidophilus, Enterococcus, ou Bacillus subtilis e Enterococcus
sanguíneos, renal e cerebral. Nessas condições, citocinas pró-
fecium, por 14 dias. Esses microrganismos vivos não patogê
inflamatórias e óxido nítrico têm seus níveis secretórios acen
nicos fermentam açúcares, reduzindo a biodisponibilidade de
tuados, exacerbando o afluxo de outros falsos neurotransmis-
substratos, criando um ambiente não favorável para o desen
sores ao interior dos astrócitos. Modificações desses distúrbios
volvimento de bactérias patogênicas, ao gerarem CO, e ácido
ocorrem através de administração de anticorpos anti-TNFot e
láctico. Importante ressaltar que aqueles pacientes inapetentes
podem ser tratados com fórmulas enterais industrializadas, com antibioticoterapia, promovendo-se assim modulação da flo
ra e da permeabilidade intestinal, atitudes que podem exigir
maior densidade calórica (1,2 a 1,5 cal/mO» contendo aminoá
cidos essenciais e micronutrientes, com teor de sódio inferior associarem-se medidas terapêuticas anteriormente propostas
ou igual ao 40 mEq/dia. neste Capítulo.
Alguns avanços recentes têm se concentrado na manipu Prudente afirmar que essa complexa arquitetura terapêutica
lação dos cirróticos com encefalopatia hepática envolvendo o não deva ser repetida em vários surtos de EH, exigindo-se, por
uso de droga bloqueadora do ciclo de ureia, como o acetato de tanto, que tais pacientes devam ser conduzidos ao transplan
zinco na dose de 800 mg/dia, promotora de melhora nos testes te de fígado, única modalidade terapêutica curativa definitiva
neuropsiquiátricos desses pacientes. Outros pesquisadores têm para esses doentes classificados como CHILD B ou C, ou seja,
proposto administração de L-ornitina-L-aspartato na dose de com reserva hepática precária, expressa também pelo índice do
18 a 27 g/dia, enquanto a ampliação da excreção do nitrogênio MELD, em geral além de 25 a 30. Recomendável entender-se
é provocada através do uso de benzoato de sódio (dose de 10 que será prudente que o implante do novo órgão não seja rea
g/dia), cujo metabólito é o hipurato, que passa a ser excretado lizado naqueles com avançada agressão neurológica, pois auto
na urina associado ao nitrogênio. Outra droga com ação seme res japoneses recentemente descreveram que pacientes, nessa
lhante é o fenilbuturato de sódio, empregado na dose de 10 a fase, já cursavam com lesões das substâncias cerebrais branca
20 g a cada 3 dias, tendo ambos os fármacos o inconveniente e cinzenta, demonstradas em imagens de RM ponderadas em
de aumentar o índice de retenção corpórea de água, agravando T2, todos com degeneração cortical espongiforme pseudola-
a ascite. Alternativamente, podem ser conduzidos valendo-se minar, atrofia cerebral e cerebelar, perdas mielínicas e axonial.
da administração de um fármaco bloqueador do ciclo da ureia, São essas anomalias consideradas como causadas pelo bombar
como o acetato de zinco na dose de 800 mg/dia, promotor de deamento contínuo de substâncias neurotóxicas sobre o cérebro
melhora nos testes neuropsiquiátricos de pacientes com EH. desses pacientes, gerando recuperação incompleta das funções
É recomendável que todos sejam conduzidos pelo uso de lac- neuropsicológicas após o transplante de fígado, presentes em
tulose, um dissacarídio sintético que age no cólon, reduzindo o pacientes já cursando com dano cerebral irreversível.
672 Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática
Depois de 10 anos do diagnóstico estabelecido de cirrose, pelo insuficiência cardíaca. De forma sintética, podemos definir que
menos 50% dos pacientes desenvolverão ascite. Essa evolução toda essa evolução guarda relação com precipitação da redução
guarda relação com a instalação de hipertensão portal, com a do volume sanguíneo central na dependência de substâncias
redução da capacidade de síntese hepatocelular e com a dificul vasodilatadores, conforme mostrado no Quadro 59.1.
dade que esses pacientes manifestam na manipulação renal de As tentativas de explicação desses distúrbios hemodinâmicos
sódio e água. Esses pacientes estarão predispostos a cursarem e humorais baseiam-se nas teorias clássicas: a. do subenchimen-
com peritonite bacteriana espontânea, hemorragia digestiva to (underfill), alicerçada na comprovação de que a maioria dos
alta, icterícia e encefalopatia hepática. Além disso, eles exibirão pacientes com cirrose avançada apresenta grande dificuldade
alterações, tais como elevação pressórica sinusoidal, vasodila- em manter o volume líquido extracelular dentro dos limites da
tação sistêmica, vasoconstrição arterial renal, ascite refratária e normalidade. Além disso, o baixo volume intravascular cola
síndrome hepatorrenal. Também, nessa fase mais avançada da bora fortemente para sequestro de líquido para o interior da
doença, desenvolvem mecanismos compensadores de aumento cavidade peritoneal, com formação de ascite, derrame pleural
do volume intravascular, relacionado com secreção estimulada e acúmulo de líquido no tecido intersticial, além de retenção
de vasopressina, desenvolvem elevada resistência vascular intra- renal de sódio e água, que, eventualmente, os leva a cursar com
hepática, apresentam mudanças na microcirculação esplâncni- hiponatremia dilucional; b. também se propõe que todo o pro
ca, produção excessiva de linfa nesse território e maior volume cesso se inicia pela expansão do volume intravascular (teoria do
de extravasamento abdominal de plasma. Ativam-se também overflow), quando a avidez renal por sódio e água vai depen
barorreceptores, sistemas vasoconstritores antinatriuréticos, der mais da maior pressão intrassinusoidal, de modificações
sobretudo renina-angiotensina-aldosterona, sistema nervoso da arquitetura do fígado e da menor população de hepatócitos
simpático e vasoconstritores renais. Paralelamente, dilata-se o funcionantes; c. finalmente, alguns advogam que a tentativa de
leito arterial na busca de reequilibrar esse sistema vasocomu- restauração do equilíbrio das leis de Starling envolve vasodilata
nicante em desorganização. ção arterial periférica e liberação de mediadores neurormonais,
Embora cursem assintomáticos, desenvolvem distúrbios com o objetivo de melhorar o tônus vascular, essa hipótese mo-
cardiovasculares expressos por débito cardíaco aumentado,
reduzida resistência vascular periférica e hipotensão arterial.
Essa evolução se relaciona com hiporregulação de receptores ---------------------------------▼---------------------------------
beta-adrenérgicos, lesões de membranas dos cardiomiócitos, Quadro 59.1 Fatores que contribuem para a instalação de ascite
dificultando ou bloqueando atuações do complexo entre proteí
na G estimuladora e complexo ligande-receptor p adrenérgico, Precipitação d a redução do volum e
resultando em contratilidade cardíaca anormal, mais graves nos sangu ín eo central Su bstân cias vasodilatadoras
ictéricos, cursando com baixas concentrações de membrana
V a s o d ila ta ç ã o a rte ria l p e rifé rica P ro s ta g la n d in a s
da enzima adenilatociclase. Concomitantemente, desenvolve-
C a p a c itâ n c ia v e n o s a a u m e n t a d a Falso s n e u ro tra n s m is s o re s
se aumento dos níveis de AMP cíclico, consequência de efei
M a io r p re s s ã o c a p ila r e s p lâ n c n ic a P e p t íd e o v a s o in te s tin a l
tos inibitórios que se processam a partir das atuações do fator
alfa de necrose tumoral e monóxido de carbono, promovendo A n a s to m o s e s a rte rio v e n o s a s S u b s tâ n c ia P
res canabinoides. Geram-se, então, alterações funcionais dos S e n s ib ilid a d e a o s v a s o c o n s trito re s F a to r n a t r iu r é tic o atrial
canais de potássio, alargando o intervalo QT e deprimindo a B aix a p re s s ã o o n c ó tic a G lu c a g o n
contratilidade cardíaca nesses pacientes. O significado clínico R e d u z id a c o n tr a t ilid a d e m io c á r d ic a F a to r a tiv a d o r d e p la q u e ta s
desses distúrbios, em geral, é sublimado, uma vez que neles A u m e n t a d a v a s o p e r m e a b ilid a d e Ó x i d o n ítric o
predomina associadamente a vasodilatação periférica, voltada M a io r f o r m a ç ã o d e linfa P e p t íd e o re la c io n a d o a c a lc ito n in a
à redução da pós-carga, suprimindo as manifestações típicas de
673
674 Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
1 i i
A s c ite A u m e n t a d o v o lu m e s a n g u ín e o R e d u ç ã o d o v o lu m e s a n g u ín e o e fe tiv o
1 i i
M o d ific a ç õ e s n as fo rç a s d e S ta rlin g e m v a s o s
R e d u ç ã o n o v o lu m e s a n g u ín e o e fe tiv o A t iv a ç ã o d e h o r m ô n io s r e te n to re s d e v o lu m e
e s p là n c n ic o s
i i i
A t iv a ç ã o d e h o r m ô n io s re te n to re s d e v o lu m e A scite R e te n ç ã o re n a l d e s ó d io
i i
R e te n ç ã o ren a l d e s ó d io A scite
derna definida como da vasodilataçâo arterial periférica, com No início, ao exame físico, comprovam-se macicez nos flan
esses conceitos dispostos no Quadro 59.2. cos e sinal do piparote positivo. Esse quadro inicial já é detec
tado quando, na cavidade peritoneal, existem 2 f de líquido, ou
até menos. A progressão traduz-se por ascite tensa, acentuação
■ OUTROS ASPECTOS HUMORAIS ENVOLVIDOS da circulação colateral, além de hérnia umbilical e hidrotórax.
A tendência ao desenvolvimento de bloqueio funcional da veia
O cirrótico apresenta hipervolemia, hiponatremia e déficit cava inferior leva ao edema de membros inferiores. Todos os
de excreção de água, essas alterações provavelmente associadas pacientes evoluem com circulação hipercinética, traduzida por
aos efeitos do hormônio antidiurético (HAD) sobre os recep hipotensão arterial, aumento do débito cardíaco e fluxo sanguí
tores V2 (receptores 2 da vasopressina), ao nível dos túbulos neo tecidual aumentado, traduzido por hiperemia de face e
renais. Promove-se assim a liberação de uma aquaporina re mãos, podendo haver dispnéia e cianose, esses quando existe
nal (AQP-2), a partir de uma proteinoquinase dependente de hipertensão pulmonar. Obrigatória a avaliação do sistema de
cAMP (monofosfato cíclico de adenosina), responsável por coagulação sanguíneo, em geral traduzindo-se por alargamento
alterar a permeabilidade do dueto coletor renal, interferindo dos tempos de protrombina e de tromboplastina parcial e do
com a excreção de água livre. Nesse processo, mais recente INR, baixos níveis séricos do fator V, do fibrinogênio e con
mente, tem-se atribuído importância à urotensina II, um oli- tagem de plaquetas, valores que guardam relação com hipo-
gopeptídio mediador da vasodilataçâo esplàncnica participan albuminemia e hiperbilirrubinemia à custa da fração direta.
do, assim, da redução da filtração glomerular e aumento da Todos expressam síntese hepática reduzida. No início, cursam
retenção renal de sódio, na dependência de seu acoplamento
com níveis séricos normais de ureia e creatinina, os quais pro
à proteína G, formando óxido nítrico e ativando células da
gressivamente se elevam em paralelo à queda dos valores do
musculatura lisa vascular. Correlacionam-se seus níveis plas-
clareamento de creatinina, em pacientes com concentrações
máticos com o grau de hipertensão portal, formação da ascite
plasmáticas elevadas de renina e norepinefrina.
e negativamente com a pressão arterial média. Tais parâmetros
modificam-se experimentalmente quando ratos cirróticos são A punção abdominal revela líquido ascítico transparente ou
tratados com seu antagonista, o palosuran, reversor dessas mo amarelo-citrino. A concentração de proteína total, de leucócitos
dificações anatomofuncionais do sistema venoso portal. Essa e eritrócitos atinge, respectivamente, menos de 2,5 g/df, 300 cé-
inter-relação anatômica fígado-rim pode ser demonstrada nas lulas/mm3e 10.000 elementos/mm3. Valores mais elevados do
Figuras 59.1 a 59.6. que esses traduzem complicações, tais como carcinoma hepa-
tocelular, com ou sem síndrome de Budd-Chiari (trombose
de veia cava inferior), tuberculose peritoneal, carcinomatose
peritoneal ou peritonite bacteriana espontânea. O diagnóstico
■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS diferencial é feito através do emprego de métodos de imagem,
Ascite representa o acúmulo de líquido no interior da cavi mas, sobretudo, pela videolaparoscopia com biopsia dirigida
dade peritoneal, instalando-se de modo súbito, ou desenvol- sobre lesões intra ou extra-hepáticas.
vendo-se lentamente, ao curso de alguns meses, inicialmente Todos esses pacientes cirróticos com ascite devem ser sub
traduzida pela sensação de flatulência iminente e distensão ab metidos a exame ultrassonográfico, com ou sem Doppler, ou
dominal. Algumas vezes, a detecção inicial ocorre após um sur tomografia computadorizada. Essa conduta visa a afastar a pre
to de necrose extensa do parênquima, tal como se observa na se- sença de diagnósticos de carcinoma hepatocelular (ascite asso
roconversão do AgHBe para anti-AgHBe, em surtos infecciosos, ciada a 25% dos casos) e de trombose portal (contraindicação à
após libação alcoólica ou ingesta de alimentos ricos em sódio e, realização de transplante hepático), e espessamento peritoneal,
sobretudo, após episódio de hemorragia digestiva alta. além de descartar doença renal.
Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica 675
IM »»2
Figura 59.1 Angiorressonância de aorta, veia cava, artérias renais e sistema venoso portal. Observar, nesta sequência de oito fotos, a inter-
relaçáo nítida anatômica e, como consequência, funcional do fígado e rins.
676 Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica
t .
L . / Â
Figura 59.5 Supra-hepatovenografia evidenciando cateterismo de
veia hepática esquerda; ausência de ramos de 2 ° e 3.a ordens, com o
cateter impactado medindo a pressão de veia hepática ocluída.
■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
■ Fase de pré-instalação de ascite
A homeostase de sódio em cirróticos sem ascite (Child A) já R e d u ç ã o d o s v a s o d il a t a d o r e s
A u m e n t o d o s v a s o d il a t a d o r e s
( Ó x i d o n ít r ic o ,
se apresenta alterada. Nestes, a oferta de uma dieta encerrando ( Ó x i d o n ít r ic o e C o )
a m a n d a m id a e o u tro s )
mais de 200 mmol de sódio por dia modifica a capacidade de
manipulação orgânica desse íon, fenômeno observado, sobre
tudo, ao nível do túbulo contorcido proximal. Essa avidez por
+ 1
V a s o d i la t a ç ã o d e a r t é r ia s
sódio é maior com o paciente em posição supina, sugerindo que A u m e n to d e
e s p l â n c n ic a s
os sistemas renina-angiotensina-aldosterona e nervoso simpá v a s o c o n s t r it o r e s
F lu x o p o rt a l e l e v a d o + e l e v a d a
(E n d o t e l in a s ,
tico encontram-se hiperativos. Nesses doentes, eleva-se também p r e s s ã o d e c a p ila r e s in t e s tin a is
p r o s t a n o id e s e o u t r o s )
a produção de receptores de angiotensina II, localizados em glo- D é b ito c a r d ía c o a u m e n t a d o
--------------------------- T-------------------------
Quadro 59.6 Fase de pré-diureticoterapia (natriuréticos)
----------------------------------- ▼---------------------------------
• R e p o u s o n o le ito m o s tr a -s e d e s n e c e s s á rio
Quadro 59.9 Excreção anormal de água na cirrose — patogênese
• R e s triç ã o h íd ric a
N o r m o n a t r é m ic o s , 8 0 0 -1 .0 0 0 m í/ d ia
I. Níveis séricos elevados de vasopressina (HAD)
H ip o n a t rè m ic o s , 6 0 0 -8 0 0 m í/ d ia
• H ip e r s e c r e ç ã o n ã o o s m ó tic a
• D ie ta h ip o s s ó d ic a
• > R e d u z id o v o lu m e in tra v a s c u la r e fe tiv o (D e m e d o c ld in a )
1 0 -2 0 m E q / d ia (5 0 0 -6 0 0 m g / d ia )
II. Síntese < de prostaglandina E2 causada pelo uso de drogas anti-
• S e , a p ó s essa fase d e d iu re s e e s p o n t â n e a ( 4 - 5 d ia s ), h á p e rd a d e p e s o inflamatórias não hormonais
< 2 k g , e x ig e m -s e m a n ip u la ç ã o c o m n a triu ré tic o s e re fo rç o d a m e d id a
III. <Acesso do filtrado ao túbulo contorcido distai
d e re s triç ã o d e s ó d io
< ín d ic e d e filtra ç â o g lo m e r u la r ren a l
> R e a b s o rç ã o d e N a n o t ú b u l o c o n t o r c id o p ro x im a l
------------------------------------- T
Quadro 59.7 Fase de diureticoterapia (natriuréticos)
• In icia r c o m b lo q u e io d e t ú b u l o c o n t o r c id o d ista i
urinário. D é b i t o c a r d ía c o a u m e n t a d o
R es is tê n cia v a s c u la r s is tê m ic a to ta l r e d u z id a
H ip e r a t iv id a d e d e sis te m a s v a s o a tiv o s
H ip o t e n s á o a rte ria l
------------------------------------- ▼-------------------------------------
Q u a d ro 59.11 T ra ta m e n to da h ip o n a tre m ia d ilu c io n a l — a d m in is tra ç ã o Leitos vasculares específicos
V a s o c o n s trlç â o ren a l
d e a g o n is ta s K -o p io id e s (m o r f in a e d e riv a d o s ) •
R es is tê n cia c e re b ro v a s c u la r a u m e n t a d a
A n a lg e s ia , a ç õ e s p s ic o t ró p ic a s , a c e n t u a d o s e fe ito s a q u a r é t ic o s
----------------------------------- ▼----------------------------------
Agonistas K-opioides Q u a d ro 5 9 .1 4 C rité rio s d ia g n ó s tic o s p a ra d e f in ir a s c ite re fra tá ria
• K e ta z o c in a , e t ilk e t a z o d n a , b r e m a z o d n a , R -8 4 7 6 0 , E -2 0 7 8 e U -6 2 .0 6 6 E (R u n y o n , 1 9 9 7 ; R u n y o n , 1 9 9 8 ; A r r o y o etal., 1 9 9 6 )
• > F lu x o u r in á r io ; < O S M O L 0; E x c re ç ã o d e e le tró lito s n á o >
H i p o (< 3 m m o l/ l ) o u h ip e r p o ta s s e m ia (> 6 m m o l/ Q a p e s a r d e a d o ç ã o
d e m e d id a s c o rre tiv a s
---------------------------------------------------------------▼---------------------------------------------------------------
Q u a d ro 59.12 T r a t a m e n t o d a h ip o n a t r e m ia d ilu c io n a l c o m a n t a g o n is t a s d e re c e p to re s A V P V 2 e a n t a g o n is t a s K -o p io id e s
In o u e 1 99 8 O P C -3 1 2 6 0 30 m g /V O T D iu re s e e d o c le a r a n c e d e H , 0 livre
(D o s e ú n ic a ) 8 1 O s m o la r id a d e u rin á ria
G uya 2002 V P A -9 8 5 2 5 -3 0 0 m g / V O T D iu re s e , c le a ra n c e d e H 20 livre, N A , s e m e fe ito s c o la te ra is
(D o s e ú n ic a ) 22
---------------------------------------------- ▼----------------------------------------------
Q u a d ro 59.15 Conduta terapêutica temporária no paciente cirrótico com ascite refratária
2. A n a s to m o s e p e r it o n e o v e n o s a (v á lv u la d e L e V e e n ). P r o m o v e rá p id a r e d is tr ib u iç á o d o v o lu m e in tra v a s c u la r c o m m e lh o r p e r fu s â o ren a l e a c e n tu a ç ã o
d a n a triu re s e . In c o n v e n ie n t e s : in s ta la ç ã o d e d is tú rb io s d a c o a g u la ç á o (1 0 % ) , o u o b s t r u ç ã o d o sis te m a (2 0 % ) , n e c e s s ita n d o , e n tà o , d e r e in te rv e n ç â o .
A ascite refratáriafoi definida como "aquela que não pode ser renal. Mostram, então, dificuldade em manipular sódio e água,
mobilizada, ou cuja recorrência precoce (após paracentese tera com formação inexorável de edema periférico e ascite, a qual,
pêutica) não pode ser satisfatoriamente prevenida por terapêutica progressivamente, torna-se tensa e refratária ao tratamento
apropriada”. A maioria dos doentes com ascite refratária apre clássico, envolvendo dieta hipossódica e diureticoterapia. Essa
senta acentuada retenção de sódio e grave incapacidade de excre ausência de resposta deve-se a: 1. hiperatividade do sistema ner
tar água, esta podendo causar hiponatremia dilucional. O fluxo voso simpático; 2. redução progressiva do volume sanguíneo
renal e a filtração glomerular diminuem acentuadamente. A as circulante; 3. baixa pressão de enchimento do átrio direito, com
cite não é mobilizada nem com o correto emprego de diuréticos. menor produção de fator natriurético atrial (FNA); 4. vasocons-
Ela também pode ser intratável porque os pacientes desenvolvem trição de arteríolas renais, levando a baixos índices de filtração
sistematicamente complicações com o uso de diuréticos em do glomerular e de excreção de sódio urinário; 5. associação de hi
ses corretas. Essas complicações são: encefalopatia; insuficiência potensão arterial, menor resistência vascular sistêmica e elevado
renal induzida por diuréticos; hiponatremia diurético-induzida; débito cardíaco; 6. hiporreatividade arterial a vasoconstritores
hipopotassemia ou hiperpotassemia resistentes às medidas cor endógenos, como norepinefrina, vasopressina, angiotensina II,
retoras. Convém atentar para a falsa ascite refratária, o médico endotelina-1, tromboxane A2; 7. produção aumentada de vaso-
devendo se certificar se o seu paciente faz correta restrição de dilatadores, como óxido nítrico, prostaglandinas ou glucagon,
sódio, se não está tomando anti-inflamatórios não hormonais ácidos biliares, endotoxinas e/ou urodilatina.
ou se já se instalou peritonite bacteriana espontânea. Não há nenhum tratamento específico para a hiponatremia
A síndrome hepatorrenal incide em 10% desses pacientes, re dilucional. Tem-se procurado avaliar a eficiência de agentes
lacionada com modificações dos sistemas vasoativos. Tipicamen aquaréticos (substâncias que inibem a secreção ou os efeitos
te, se instala resistência arterial renal acentuada, acompanhada
do hormônio antidiurético), mas ainda não se chegou a uma
de vasodilatação arterial da circulação esplâncnica. Definem-se
definição.
os tipos: 1. tipicamente pela rápida instalação da débacle, que se
expressa laboratorialmente por valor de creatinina sérica ultra
passando a 2,5 mg/dê e clearance de creatinina em 24 h abaixo ■ Medidas especiais
de 20 m^/min, acompanhados de rápida e progressiva oligúria,
■ Paracentese de grande volum e associada à infusão de
retenção de sódio em TCP e TCD e hiponatremia dilucional,
modificações que se estabelecem em menos de 2 semanas; 2. tais
expansores plasmáticos
modificações instaladas no tipo 1 são observadas mais lentamen É realizada com o objetivo de promover homeostase volu-
te, com nível sérico de creatinina não ultrapassando 1,5 mg/df, métrica, melhor perfusâo renal, acentuada natriurese, redução
com índice de filtração glomerular além de 30 mf/min, presentes de produção de renina-angiotensina-aldosterona e melhor
naqueles com reserva hepatocelular mais preservada. resposta ao uso de diuréticos. Obtêm-se esses benefícios rea-
Essas tendências inexoráveis acompanham-se de fatores pre- lizando-se paracenteses de grandes volumes (4 a 20 f/sessão),
ditivos adversos, tais como: l. físicos (ausência de hepatomega- com adequada reexpansão do intravascular infundindo albumi
lia, estado nutricional precário, hipotensão arterial, icterícia); na humana, Dextrana 70 ou Rheomacrodex nas doses de 10 g,
2. bioquímicos (hiperbilirrubinemia, hipoalbuminemia, hipo 8 g ou 150 mf, respectivamente, por litro de ascite drenada. Os
natremia, elevação de valores de ureia e creatinina, de ativida resultados parecem semelhantes. As duas últimas substâncias
des plasmáticas de renina, de aldosterona e de norepinefrina, utilizadas apresentam, no entanto, o inconveniente de uma vida
e baixo valor de sódio urinário). média plasmática mais curta, mas têm a vantagem de ser me
nos onerosas. Entretanto, trabalhos recentes têm insistido em
que havería vantagem no emprego da albumina sobre os outros
■ OUTRAS MEDIDAS TERAPÊUTICAS expansores plasmáticos. Complicações ligadas às punções, tais
como, peritonite bacteriana secundária, hematoma parietal ou
Cirróticos, sobretudo em fase de insuficiência hepatocelu intra-abdominal e hemoperitônio, são raramente observadas.
lar grave, cursam com síndrome hipercinética e hipoperfusão Mais graves são os estrangulamentos herniários, hiponatremia,
Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica 681
E m t o r n o d e 4 6 % t in h a m a p r e s e n t a d o p e lo m e n o s 1 s u r to d e
■ Anastomose portocava transjugular (TIPS) e n c e fa lo p a tia , e 4 2 % a p r e s e n t a v a m in s u fic iê n c ia re n a l (c re a tin in a sérlca
Visando a evitar os elevados índices de mortalidade que se > 1,5 m g / d -0
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Síndrome Hepatorrenal e
Síndrome Hepatopulmonar
Heitor Rosa e Américo de Oliveira Silvério
684
Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar 685
1. V o lu m e u rin á rio , 5 0 0 m / / d ia .
2. S ó d io u rin á rio , 1 0 m E q / ( .
manas se não são tratados; os pacientes com SHR tipo II so estão localizados nas superfícies pleurais e assemelham-se a
brevivem por alguns meses sem terapêutica dirigida. No tipo “aranhas vasculares”. Funcionam como um shunt, desviando do
II, a função renal está relativamente conservada, e a principal alvéolo o sangue desoxigenado, podendo justificar a hipoxemia
consequência clínica é a ascite refratária. No tipo I, os doentes e muitos dos fenômenos fisiológicos observados na SHP.
geralmente apresentam sinais de insuficiência hepática avança A fisiopatogenia da vasodilatação intrapulmonar permanece
da. A piora progressiva de uma ascite e a hiponatremia anun incerta; vários mecanismos têm sido postulados para explicá-
ciam a evolução para SHR. A hiponatremia não deve ser tratada la, incluindo um desequilíbrio entre as substâncias vasodila-
de forma rotineira, repondo-se soluções salinas hipertônicas, tadoras e vasoconstritoras normalmente presentes na circu
pois, além de serem ineficientes, aumentam a retenção de só lação, resultando em um predomínio das vasodilatadoras ou
dio e água, podendo precipitar o óbito em edema pulmonar. A em aumento na sensibilidade ao nível do endotélio pulmonar
combinação de hiponatremia, uremia e hipotensão é prenuncio a um fator vasodilatador produzido ou não metabolizado pelo
de desenlace fatal. fígado doente, ou em uma hiporresponsividade às substâncias
vasoconstritoras.
Alguns estudos têm demonstrado que o leito vascular de
SÍNDROME HEPATOPULMONAR animais ou de pacientes com hipertensão portal é hiporres-
ponsivo a substâncias vasoconstritoras exógenas, incluindo
norepinefrina e angiotensina II. Essa hiporresponsividade pa
■ INTRODUÇÃO rece ser decorrente de uma alteração na resposta pós-receptor,
Os pacientes com cirrose podem apresentar uma grande provavelmente por uma diminuição na atividade dos mensa
variedade de doenças pulmonares, tais como bronquite crôni geiros celulares. É descrito aumento no nível de AMP-cíclico
ca, derrame pleural e complicações ventilatórias secundárias à e GMP-cíclico e diminuição no cálcio iônico intracelular em
ascite tensa. Certos tipos de cirrose podem estar associados a animais com hipertensão portal. Essas alterações podem justi
doenças específicas do pulmão, como é o caso da cirrose biliar ficar a diminuição do tônus vascular e a atenuação da resposta
primária e alveolite fibrosante, ou a deficiência de alfa-l-anti- vasoconstritora pulmonar à hipoxia.
tripsina, e ao enfisema pulmonar. Recentes achados fortalecem a teoria de que o óxido nítrico
A síndrome hepatopulmonar (SHP) pode ser caracterizada (NO) (anteriormente chamado de fator relaxante derivado do
pela tríade clínica que inclui doença hepática. anormalidades endotélio) seja o principal agente mediador responsável pela
nas trocas gasosas (aumento no gradiente alvéolo-arterial de vasodilatação intrapulmonar observada na SHP. O NO é um
oxigênio, com ou sem hipoxemia) e a presença de dilatações potente vasodilatador pulmonar, sintetizado via um processo
vasculares pulmonares (Quadro 60.5). Outras anormalidades oxidativo que envolve a conversão da L-arginina em NO e citru-
pulmonares (p. ex., derrame pleural, doença pulmonar obstru- lina, pela ação catalítica de uma família de enzimas, as sintetases
tiva crônica) podem coexistir com a SHP, dificultando o seu do NO (NO-S). Estudos com modelos animais demonstram
diagnóstico (Quadro 60.5). que a atividade das NO-S pode ser induzida por endotoxinas
bacterianas e citocinas. A sua síntese pelo endotélio vascular é
responsável pelo tônus vasodilatador, sendo importante para
a regulação da pressão sanguínea.
■ FISIOPATOGENIA Postula-se que a endotoxemia observada nos cirróticos in
O diâmetro normal dos capilares pulmonares é de aproxima duziría, diretamente, a atividade das NO-S ou, indiretamente,
damente 8 a 15 pm. Os pacientes com SHP podem apresentar através da liberação de citocinas, com consequente aumento
capilares com até 500 fim de diâmetro, localizados preferen da síntese de NO, e que este seria o mediador responsável pelo
cialmente na periferia e nas bases pulmonares. Essas dilatações estado hiperdinâmico e pela vasodilatação pulmonar observa
permitem desequilíbrio na relação entre a ventilação/perfusão dos nesses pacientes. Se essa teoria é correta, a inibição da sín
pulmonar, contribuindo, dessa forma, para a hipoxemia. tese de NO poderia restaurar a capacidade de vasoconstrição
Outras alterações vasculares que foram observadas nos cir- pulmonar em resposta à hipoxia. Certamente, o NO não pode
róticos são as comunicações vasculares diretas entre a artéria explicar todos os achados da SHP nos pacientes com comuni
pulmonar e as veias pulmonares. Esses canais normalmente cações arteriovenosas anatômicas. Outros fatores angiogêni-
cos podem ser importantes no desenvolvimento das dilatações
vasculares.
------------------------------------- ▼----------------------------------
Q u a d ro 60.5 Critérios diagnósticos da síndrome hepatopulmonar ■ ACHADOS CLÍNICOS E LABORATORIAIS
Doença hepática A dispnéia, que é o sintoma pulmonar mais comum, pode
- C irro s e ser agravada por exercício. Alguns pacientes podem apresentar
- H ip e r te n s ã o p o r t a l n ã o c ir r ó t ic a
platipneia, ou seja, dispnéia quando assumem a posição supina,
- H e p a t it e a g u d a fu lm in a n t e
que é aliviada com o decúbito dorsal, e/ou ortodeoxia, carac
- R e je iç ã o d e tra n s p la n te
terizada pela dessaturação da oxigenação arterial (hipoxemia
Hipoxemia
- P aO , < 70 m m H g
arterial) maior que 3 mmHg, quando o paciente assume a po
- A u m e n t o d o g ra d ie n te a lv é o lo -a r t e r ia l d e o x ig ê n io (> 2 0 m m H g ) sição ereta. A presença desses sintomas reflete a gravidade da
Dilatação vascular intrapulmonar dilatação vascular pulmonar, a qual predominaria nos terços
- D e m o n s tr a d a p e la e c o c a rd io g ra fia c o m c o n tra s te , d n t ilo g r a f ia inferiores de ambos os pulmões.
p u lm o n a r o u a rte rio g ra fia p u lm o n a r A ortodeoxia é um achado clínico característico, mas não é
PaO, = pressão parcial de oxigênio arterial. patognomônico da síndrome. Acomete até 88% dos pacientes
com SHP, tanto quando eles se encontram respirando ar am
688 Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenale Síndrome Hepatopulmonar
Figura 60.1 Ecocardiograma bidimensional com contraste (EGBC) de um paciente com dilatação vascular intrapulmonar. A, Câmaras cardía
cas normais. B, Presença de microbolhas no átrio e ventrículo direito. C , Opacificaçáo tardia, pelas microbolhas, do átrio e do ventrículo es
querdo.
A ECC é considerada como o método não invasivo de esco a seis ciclos cardíacos após o seu aparecimento nas câmaras
lha para a detecção das dilatações vasculares intrapulmonares. cardíacas direitas (Figura 60.1). O seu aparecimento antes do
Permite excluir a presença de comunicações intracardíacas, terceiro ciclo sugere a presença de comunicação intracardíaca.
quantificar o grau de opacificação do ventrículo esquerdo e, por A prevalência de ECC positiva (com dilatação vascular intra
intermédio da ecocardiografia transesofágica, pode localizar o pulmonar) em hepatopatas crônicos é de 5 a 47%.
maior local de dilatações vasculares (lobo superior ou inferior, A cintigrafia pulmonar com macroagregados de albumina
direito ou esquerdo). marcada com 99mTc é outro método utilizado para a detecção
Esse método utiliza indocianina verde, dextrose a 5% ou da vasodilatação intrapulmonar, sendo mais específico que a
solução salina, as quais, quando agitadas, formam microbo ECC. A maioria dos macroagregados de albumina apresenta
lhas, que são maiores que o leito capilar pulm onar normal diâmetro superior a 20 |im, sendo, portanto, maior que o diâ
(8 a 15 p.m). Logo após a injeção dessas substâncias na veia metro do leito capilar pulmonar normal. Em condições nor
antecubital, pode ser detectada a presença das microbolhas, mais, o pulmão capta a maioria dos radioisótopos, permitindo
que são ecogênicas, nas câmaras cardíacas direitas. Em condi a passagem de apenas 3 a 6% dos macroagregados. Na presença
ções normais, essas microbolhas ficam retidas no leito capilar de comunicações vasculares intrapulmonares ou intracardía
pulmonar. Todavia, em pacientes com dilatações vasculares cas, os radioisótopos não são totalmente captados na circula
intrapulmonares ou anastomoses broncopulmonares, as mi ção pulmonar, podendo ser detectados no cérebro, nos rins e
crobolhas podem ser identificadas no átrio esquerdo em três no fígado (Figura 60.2). O método permite quantificar o grau
de dilatação vascular, pela determinação da porcentagem de
radioisótopos que escaparam da circulação pulmonar, e é par
ticularmente importante para avaliar a contribuição da SHP na
hipoxemia em cirróticos com pneumopatia. Entretanto, esse
método é incapaz de distinguir as comunicações vasculares
intrapulmonares das intracardíacas, além de possuir baixa sen
sibilidade quando comparado com a ECC.
A arteriografia pulmonar é o mais invasivo dos três méto
dos e, por essa razão, o menos utilizado (Figura 60.2). Não é
necessária para o diagnóstico, porém pode ser útil na escolha
do tipo de tratamento.
■ TRATAMENTO
Nas fases iniciais, a hipoxemia, em pacientes com a SHP,
geralmente responde bem à suplementação de oxigênio, em
fluxo baixo (2 a 4 é/min), através de um cateter nasal. Poste
riormente, uma suplementação progressivamente maior passa
a ser necessária, e, então, pode-se oferecer o oxigênio através
de cânula transtraqueal.
Vários agentes terapêuticos têm sido utilizados no tratamen
to da SHP, todavia sem uma melhora substancial. O objetivo da
terapia farmacológica é limitar a vasodilatação pulmonar pelo
uso de substâncias que inibem a vasodilatação ou que poten
cializam a vasoconstrição.
Figura 60.2 Arteriografia pulmonar evidenciando extensas vasodila- Foram relatados casos de pacientes tratados, com sucesso
tações arteriovenosas. limitado, utilizando análogos da somatostatina, drogas anti-
690 Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar
As infecções bacterianas permanecem como uma das compli diversas; no entanto, a via hematogênica parece ser a mais
cações mais frequentes e preocupantes nos pacientes com cir aceita.
rose. A quebra de barreiras mucosas ou epiteliais (trato respirató
Sendo a hepatopatia crônica, provavelmente, uma das for rio, trato urinário e a pele) pode servir como porta de entrada
mas mais comuns de imunodeficiência adquirida, no senso para o organismo infectante; contudo, a maioria dos microrga-
genérico do termo, não é de surpreender que as infecções bac nismos que causam a PBE são de origem entérica. Desta forma,
terianas sejam eventos comuns em sua história natural. Quando o principal fator que desencadeia o surgimento da PBE parece
avaliamos 541 internações consecutivas em nosso hospital, dos ser a quebra da barreira mucosa intestinal, e o mecanismo pro
426 pacientes com cirrose hepática, observamos a presença de posto, a translocação de bactérias entéricas para os linfonodos
infecção em 25% dos casos. Destas, as mais frequentes foram mesentéricos e daí para a circulação sistêmica. Os três principais
infecção do trato urinário, peritonite bacteriana espontânea mecanismos para explicar a translocação bacteriana, que não
(PBE), broncopneumonia e infecções de pele. No entanto, den podem ser excluídos em um paciente com hipertensão portal,
tre as infecções que acometem os pacientes com hepatopatia são: alteração da flora intestinal, alteração da permeabilidade
crônica a de maior importância é a PBE. da mucosa intestinal e diminuição das defesas do hospedeiro.
Entende-se por PBE a infecção do fluido de ascite sem Assim, em decorrência da translocação bacteriana, poderá so
que haja um foco intra-abdominal aparente causador da in brevir um quadro de PBE devido à incapacidade do fígado em
fecção. remover as bactérias da corrente sanguínea, pois os shunts por-
É importante salientar que, já nas primeiras séries de pa tossistêmicos, tanto intra quanto extra-hepáticos, permitem que
cientes descritas na literatura, observava-se o que poderiamos as bactérias realizem um “curto-circuito”, fugindo à captação
considerar variantes dessa doença. Assim, em alguns casos, do sistema reticuloendotelial, que provavelmente é o maior
tínhamos quadros em tudo semelhantes à PBE, porém com local de remoção das bactérias.
exame bacteriológico no líquido de ascite negativo (ascite neu- A presença de líquido peritoneal, de ascite portanto, é par
trofllica - AN); em outros, tínhamos quadros silenciosos, com te crítica nesta síndrome, sendo condição sine qua non para o
pequena resposta celular no líquido de ascite, embora com cres surgimento da PBE.
cimento de bactérias quando cultivado (bacterioascite - BA). O líquido peritoneal, que normalmente tem uma atividade
antimicrobiana, perde parte dessa capacidade no doente cir-
rótico, tornando-se, assim, excelente meio de cultura. A opso-
■ INCIDÊNCIA nização, processo que envolve a superfície do microrganismo
invasor com imunoglobulina ou com o complemento, funda
A PBE e suas variantes constituem uma complicação que se mental à fagocitose, está prejudicada no cirrótico, podendo ser
desenvolve frequentemente em pacientes cirróticos com ascite, baixo o índice opsônico do fluido de ascite.
principalmente quando de etiologia alcoólica. A sua incidência Também foi demonstrado que a concentração de proteí
oscila entre 4 e 27%. Têm um prognóstico ainda reservado, va nas no líquido de ascite é menor naqueles pacientes com PBE,
riando a mortalidade de 20 a 30%, mesmo nas séries mais atuais. havendo uma estreita correlação entre a atividade opsônica, a
Em nosso meio, na última década, a prevalência da PBE girou concentração de proteínas e os níveis de complemento. Assim,
ao redor de 11%, com uma mortalidade de 22%. pacientes com concentração de proteínas no líquido de ascite
inferior a 1 g/d^ têm maior risco de desenvolver PBE.
Em resumo, poderiamos afirmar que, na patogênese da PBE,
■ Patogenia há o envolvimento de bactérias a colonizar uma ascite suscetí
A patogenia da PBE ainda não está bem estabelecida. As vel à infecção por déficit de sua atividade antimicrobiana en-
rotas prováveis para que a bactéria chegue ao peritônio são dógena (Figura 61.1).
692
Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea 693
■ DADOS CLÍNICOS apresenta, caso não seja tratada de forma precoce, é muito
importante que seu diagnóstico seja feito de forma rápida e
A forma de apresentação clínica da PBE é extremamente pleo- adequada. Para tanto, é fundamental o estudo do líquido de
mórfica, variando desde os pacientes assintomáticos até aqueles ascite, motivo pelo qual todo paciente com ascite admitido
com quadro de peritonite franca. No entanto, a maior parte com em hospital deva submeter-se à paracentese diagnóstica. Em
preende aqueles casos com manifestações oligossintomáticas. bora, por motivos óbvios, o esclarecimento diagnóstico esteja
Classicamente, a PBE é caracterizada por febre de início centrado no exame bacteriológico, em decorrência dos resul
abrupto, calafrio, dor abdominal, sinal de Blumberg presente e tados falso-negativos e da demora em obtermos seu resulta
diminuição dos ruídos hidroaéreos. Náuseas, vômito e diarréia do, é im portante que tenhamos, a princípio, outros índices
são achados comuns. diagnósticos.
Este quadro se sobrepõe àquele encontrado em um paciente Dos parâmetros bioquímicos, parece-nos relevante a dosa
com hepatopatia crônica descompensada. gem de proteínas. Os pacientes com níveis de proteínas inferio
A gravidade dos sintomas parece estar diminuindo nos re res a 1 g/dêy pela dificuldade em destruir as bactérias, parecem
latos mais recentes, presumivelmente em decorrência de um ter 10 vezes mais chances de desenvolver infecção do líquido
maior índice de suspeita clínica e do uso mais rotineiro da pa- ascítico. Assim, sua determinação pode selecionar possíveis
racentese diagnóstica nos últimos anos. candidatos a desenvolverem um quadro de PBE, permitindo,
Com frequência, os pacientes se apresentam com manifes então, que, nesta população, sejam utilizadas medidas profilá-
tações frustras do tipo febre sem foco definido, encefalopatia ticas, como consideraremos mais adiante.
portossistêmica, dor abdominal incaracterística, falta de res- Na realidade, o grande parâmetro prático no diagnóstico da
ponsividade da ascite à terapêutica utilizada ou, simplesmente, infecção do líquido peritoneal parece ser o exame citológico do
um quadro de deterioração clínica. fluido de ascite, através da contagem dos polimorfo nucleares
(contagem igual ou superior a 250 células por mm3). Recente
mente, foi publicado um estudo, sugerindo um papel de im
■ TESTES DIAGNÓSTICOS portância para as fitas que detectam esterases leucocitárias no
exame de urina, quando estas fitas são utilizadas no exame do
Tendo em vista as manifestações clínicas da PBE serem, liquido ascítico. Assim, este exame proporcionaria um diagnós
muitas vezes, atípicas, bem como o prognóstico reservado que tico extremamente ágil de PBE, permitindo o início da antibio-
694 Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea
ticoterapia empírica. No entanto, como foi demonstrado que a mes do líquido de ascite revelarem infecção já nos primeiros
contagem automatizada de células, à semelhança do que ocor 3 dias de hospitalização; caso contrário, é considerada como
re no sangue, proporciona resultados semelhantes ao método nosocomial.
manual clássico, é possível que a utilização de testes de triagem Do ponto de vista prático, consideramos PBE aqueles casos
não ganhe um maior prestígio. Ressalte-se a necessidade da va em que o exame citológico mostra contagem de PMN superior
lidação destes resultados por outros autores. Da mesma forma, ou igual a 250 células por mm 3 e na ausência de fonte intra-
entendemos ser de interesse um aprofundamento na utilização abdominal de infecção. Consideramos AN aqueles em que não
de técnicas de biologia molecular na avaliação diagnóstica do há crescimento bacteriano na cultura do líquido de ascite, po
líquido de ascite. rém a contagem de PMN é igual ou superior a 250 células por
Um outro critério que deve ser levado em conta no diagnós mm3, na ausência de fonte intra-abdominal de infecção. Nestes
tico da infecção do líquido de ascite é a diminuição do número casos, não deve haver evidência do uso de antibiótico nos úl
de PMN com a terapêutica instituída. timos 30 dias que precederam a paracentese e deve ser excluí
O exame bacteriológico é realmente o gold standard da PBE. da a possibilidade de tuberculose e carcinomatose peritoneal,
É surpreendente o fato de uma única espécie de bactéria causar pancreatite e de ascite hemorrágica, com base em estudos apro
a infecção em 90% das situações. Outro aspecto interessante é priados do líquido de ascite. BA é considerada quando um mi-
a baixa população bacteriana nestas situações, havendo uma crorganismo é isolado no líquido de ascite com uma população
concentração média de 1 a 2 bactérias por m^, o que inclusive de PMN inferior a 250 células por mm 3, sem haver evidência
podería explicar os frequentes resultados falso-negativos das de fonte de infecção intra-abdominal.
culturas.
A maior parte dos microrganismos responsáveis pela PBE
são integrantes da flora aeróbica normal do intestino; 60 a 80%
são bactérias aeróbicas Gram-negativas. A bactéria que mais
■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
frequentemente é isolada nos casos de PBE é a E. coli. Bacté É fundamental que a PBE seja diferenciada da peritonite
rias como K. pneumoniae, S. pneumoniae e outras espécies de bacteriana secundária (PBS). Embora ambas possam ser infec
estreptococos são também encontradas com relativa frequên ções letais, uma conduta conservadora em paciente com víscera
cia, sendo descrito, no entanto, um espectro muito grande de oca perfurada ou uma conduta cirúrgica em um paciente com
bactérias. PBE são catastróficas.
É interessante notar que os anaeróbios não têm um papel A PBE ocorre com uma frequência 10 vezes maior do que
de destaque na PBE, embora dominem a flora intestinal, em a PBS. Em 10 a 15% dos pacientes com infecção peritoneal, é
particular os bacteroides. A frequência dos anaeróbios nas cul encontrado um foco intra-abdominal de infecção.
turas gira ao redor de 5%. A explicação para isso poderia estar
Duas formas de PBS podem ser reconhecidas, dependendo
baseada no fato de esses germes não atravessarem a barreira
da existência de perfuração de uma víscera oca (úlcera péptica
mucosa intestinal, não sobreviverem à passagem pela corrente
perfurada, ruptura de um divertículo de cólon) ou não (abs-
circulatória ou não proliferarem no líquido de ascite.
cesso perinefrítico, apendicite aguda).
A infecção peritoneal com múltiplos microrganismos, ou
Clinicamente, não é possível a diferenciação entre a PBE e
com anaeróbios, muitas vezes estará na dependência de uma
peritonite bacteriana secundária. a PBS. A análise inicial do derrame peritoneal e a resposta de
determinados parâmetros do líquido de ascite ao tratamento,
Em vista de um terço de pacientes com PBE morrerem em
porém, têm mostrado valor para definir se trata-se de PBE ou
até 7 dias após o diagnóstico, a velocidade com que a bacté
ria é identificada pode ser crucial, já que a terapêutica poderá PBS.
então ser reorientada. Por outro lado, torna-se fundamental Peritonite associada a perfuração pode ser identificada com
que a sensibilidade das culturas aumente, evitando uma inter base na análise bioquímica do líquido de ascite, sendo caracte
rupção prematura da antibioticoterapia, com sérios danos ao rizada por preencher, no mínimo, dois dos seguintes critérios:
paciente. Em decorrência desses fatores, alguns autores, tendo níveis de proteínas superiores a 1 g/d^; de glicose inferiores a
o grupo de Runyoncomo incentivador, apregoam a realização 50 m g/dí e atividade de desidrogenase láctica superior ao seu
do exame bacteriológico com inoculação do material coletado limite máximo normal no soro. Este critério peca pela baixa
em frascos de hemocultura. O exame bacteriológico, quando especificidade. No entanto, um antígeno carcinoembrionário
feita a inoculação de 10 m^ de líquido peritoneal em meio de na ascite maior do que 5 n g lm t ou uma fosfatase alcalina no
hemocultura, à beira do leito, possibilitaria uma positividade líquido peritoneal superior a 240 \Jl/£ apresentam uma elevada
que gira ao redor de 60 a 90% dos casos. acurácia no diagnóstico da PBS decorrente de perfuração.
Parece ser fundamental que a inoculação seja feita à beira do Uma amilase elevada no líquido peritoneal pode sugerir a
leito, já que teoricamente as bactérias poderíam ser destruídas perfuração de víscera oca. Em regra, a contagem de PMN é mais
no trajeto do material ao laboratório, em decorrência da refri elevada na PBS. Embora, nestes pacientes, a infecção geralmente
geração inadequada ou pela atividade antimicrobiana endógena seja causada por mais de um microrganismo e com frequên
continuada do fluido de ascite. cia anaeróbios, o resultado das culturas, sendo tardio, pouco
Quando analisamos a globalidade dos casos por nós avalia auxilia nesta avaliação. Observe-se que o exame bacterioscó-
dos de PBE e de suas variantes, obtivemos um exame bacterio pico é mais frequentemente positivo na PBS, demonstrando
lógico positivo em 63% dos casos. múltiplos microrganismos. O isolamento de Candida albicans,
na ausência de candidíase sistêmica ou de intervenção abdo
minal, é sugestivo de perfuração intestinal.
■ DIAGNÓSTICO Na opinião de alguns autores, uma resposta após 48 h de
tratamento, com diminuição do número de PMN e negativação
Recentemente, os termos PBE comunitária e nosocomial do exame bacteriológico, seria de valor na diferenciação entre
têm sido utilizados. A PBE é tida como comunitária se os exa a PBE e a PBS sem perfuração.
Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea 695
Na realidade, esses critérios são utilizados não para indicar sintomáticos. Quando avaliamos a sobrevida de pacientes com
ab initio a necessidade de laparotomia, mas sim para que o bacterioascite, sem a utilização de antibioticoterapia, observa
clínico decida se deve ou não realizar uma investigação mais mos que ela foi semelhante à dos pacientes com ascite estéril.
detalhada. Nos casos assintomáticos, a paracentese deve ser repetida, sendo
Pacientes com PBS devem receber cobertura com antibió introduzido o tratamento medicamentoso quando houver um
ticos para anaeróbios em adição à cefalosporina de terceira ge aumento significativo do número de PMN.
ração antes do tratamento cirúrgico. Embora seja de fundamental importância no tratamento da
PBE a utilização de antibioticoterapia adequada, diversos auto
res têm demonstrado a importância da função renal como fator
■ TRATAMENTO preditivo no prognóstico desses pacientes. Quando avaliamos
mais de 100 episódios de PBE, observamos uma mortalidade
Em reunião do International Ascites Club (IAC), foi esta de 36 e 6,8% nos pacientes com e sem insuficiência renal, res
belecido, como consenso, que deveriam ser tratados todos os pectivamente.
pacientes com hepatopatia crônica que tivessem 250 ou mais Baseados no fato de que a PBE pode estar associada a um
polimorfonucleares (PMN) por m m 3 no líquido de ascite. Pa déficit da função renal e, ao partirem da premissa de que a ex
cientes assintomáticos, em acompanhamento ambulatorial, pansão do volume plasmático preveniría esta disfunção, foi rea
mesmo que com celularidade elevada no líquido de ascite, por lizado um estudo multicêntrico, prospectivo e randomizado,
apresentarem melhor prognóstico, poderíam ser considerados utilizando infusão de albumina endovenosa (1,5 g/kg de peso no
exceção a esta regra. 1° dia e 1,0 g/kg de peso no 3° dia) na profilaxia da insuficiência
A droga de eleição no tratamento é uma cefalosporina de renal desses doentes. Constataram não só uma menor presença
terceira geração, preferencialmente a cefotaxima. de hipovolemia e de déficit da função renal, como também uma
A duração usual da antibioticoterapia em infecções graves queda na taxa de mortalidade no grupo que usou albumina,
varia de 10 a 14 dias. Na PBE, a duração do tratamento tem quando comparado ao grupo-controle. Embora se necessite de
sido empírica. A PBE é caracterizada pela baixa concentração outros estudos para confirmar esses achados, é provável que a
de bactérias e pela falta de invasão tecidual ou de um foco de sobrevida desta população de pacientes possa ser aumentada
infecção. Assim, tratamentos de curta duração têm sido ava com a utilização de expansores plasmáticos. Os pacientes com
liados. Em um estudo randomizado, demonstrou-se não haver bilirrubina elevada (superior a 4 m g/dl) e aqueles com déficit
diferença na eficácia do tratamento ou na recorrência da PBE de função renal seriam os mais beneficiados. A utilização de
quando foram utilizados cursos curtos (5 dias) de cefatoxima. expansores plasmáticos sintéticos, comparados com albumina,
Tem sido nossa rotina a manutenção da antibioticoterapia por em um estudo-piloto, não se mostrou eficiente em prevenir a
um período de 7 dias. A dose preconizada é de 2 g de 8/8 h; deterioração hemodinâmica sistêmica.
nos pacientes com creatinina sérica superior a 3 m g/dí, o in Quando um quadro infeccioso, relacionado ou não à PBE,
tervalo de administração pode ser prolongado para 12 h. A leva um cirrótico ao choque séptico, parece mais comum que,
despeito de eventuais variações na conduta, a dose mínima em outras populações de pacientes, sobrevenha uma situação
a ser utilizada seria de 2 g de 12/12 h, e a duração mínima do de insuficiência adrenal relativa e choque refratário associado
tratamento, de 5 dias. a ela. Em cirróticos com choque séptico e insuficiência adrenal
Nos casos de PBE não complicada, que não estivessem em relativa diagnosticada pelo teste da corticotropina, pode haver
uso profilático de quinolonas, baseado no estudo capitaneado benefício quanto à resolução do choque e quanto à sobrevida
pelo grupo de Barcelona, podería ser utilizado o ofloxacino na quando se utilizam corticosteroides em dose de estresse, em
dose mínima de 400 mg de 12 em 12 h. Entendem-se por PBE bora mais estudos possam ser necessários.
não complicada aqueles casos em que a creatinina não ultra No que tange ao tratamento, é importante salientar que a
passa 3 mg/d^, que não tenham sangrado, que não apresentem sobrevida observada nos pacientes com PBE é substancialmen
encefalopatia portossistêmica graus II-IV, sem sepse e sem íleo te mais curta do que aquela relatada em pacientes com cirrose
paralítico. Outra proposta de terapia oral poderia ser com o uso submetidos ao transplante hepático. Assim, esse transplante
de ciprofloxacino. No entanto, o surgimento de um grande nú deve sempre ser considerado naqueles pacientes que sobrevi
mero de infecções com bactérias resistentes às quinolonas torna vem a um episódio de PBE.
seu uso discutível como droga de primeira linha.
Tem sido descrito, entre outras cefalosporinas, que o cef-
triaxone, em uma dose de 2 g/24 h, é efetivo no tratamento da ■ PROFILAXIA
PBE. Da mesma forma, a associação da amoxacilina com o ácido
clavulânico parece ser uma opção viável e bastante econômica Como a infecção contribui para piorar o prognóstico dos
no tratamento destas infecções. pacientes hepatopatas, entendemos ser fundamental o estabe
Seja qual for a droga utilizada no tratamento, assim que o lecimento de medidas profiláticas para evitar sua ocorrência.
microrganismo for identificado, o programa de antibiotico A prevenção da PBE pode ter maior impacto na sobrevida dos
terapia, se necessário, deverá ser adequado aos resultados das pacientes com cirrose do que o tratamento daquela compli
culturas. cação.
A resposta ao tratamento deve ser avaliada pela repetição A PBE, a bacteriemia e outras infecções tendem a ocorrer
da paracentese 48 h após o início do tratamento. Quando este com mais frequência nos cirróticos após hemorragia digestiva.
foi eficiente, a contagem de PMN deve cair em 25 a 50%, e as Por outro lado, a probabilidade de recorrência da PBE em cir
culturas tornam-se negativas. róticos é de 69% em 1 ano, e os pacientes com doença hepática
Os pacientes com AN devem ser tratados obedecendo aos mais grave e/ou concentração baixa de proteínas no líquido de
mesmos preceitos aplicados àqueles com PBE. Nos casos de ascite são aqueles que apresentam maior risco de desenvolver
BA, o tratamento deve ser instituído apenas naqueles pacientes um episódio de PBE.
696 Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea
A profilaxia da PBE pode ser resumida da seguinte maneira: tente à meticilina, a adição de vancomicina deve ser considerada
quando há falha terapêutica. A dose preconizada é de 500 mg
A. Cirróticos com sangramento gastrintestinal recebem anti
de 6/6 h, em infusão lenta, no mínimo em 60 min.
biótico por 7 dias. Ressalta-se que nas recomendações da
Na tentativa de buscar uma profilaxia menos dispendiosa,
Associação Americana para o Estudo das Doenças do Fí
tem sido proposta a utilização da sulfametoxazol-trimetoprima
gado (AASLD), poder-se-ia utilizar uma quinolona por
na prevenção da PBE. Utilizando dose dupla em cinco admi
via parenteral enquanto o paciente estivesse sangrando
nistrações por semana, foi observada uma menor incidência
de forma ativa.
de infecção, sem que, com isso, houvesse se constatado a pre
B. Cirróticos em recuperação de episódio de PBE recebem
sença de efeitos colaterais. Em recente estudo por nós reali
antibiótico cronicamente até o transplante ou até o de
zado, quando randomizamos uma população de pacientes para
saparecimento da ascite.
a realização de profilaxia, observamos não haver diferença na
C. Para os cirróticos com ascite e com níveis baixos de
prevenção da infecção e na sobrevida quando a sulfametoxazol-
proteína no líquido ascítico, isto é, abaixo de 1,0 g/d^
trimetoprima foi comparada com o norfloxacino. Assim, ela
(alguns autores consideram 1,5 g/dé), a vantagem de se
poderia ser uma opção viável a considerar-se, uma vez que, por
instituir a antibioticoterapia profilática encontra-se in
ser menos onerosa e por ser disponível gratuitamente na rede
definida. pública, poderia contribuir para maior adesão ao tratamento
Apesar dessa simplificação, alguns comentários são neces e estender o benefício da profilaxia a uma maior parcela da
sários. Na reunião de consenso do IAC, ficou acordado que a população. A dose preconizada é de 160 mg de trimetoprima
profilaxia deveria ser sempre realizada nos pacientes cirróti + 800 mg de sulfametoxazol, 1 vez/dia, por 5 dias na semana.
cos com hemorragia digestiva e naqueles que já tiveram um No entanto, recente estudo sugere que a norfloxacina, ao con
episódio de PBE. A droga de escolha para a profilaxia foi o trário da sulfametoxazol-trimetoprima, tem importante efeito
norfloxacino. imunológico, tanto ao nível hormonal quanto ao celular, além
Classicamente, a dose preconizada para doentes que apre do efeito bactericida intestinal amplamente conhecido.
sentaram PBE e para pacientes com baixas taxas de proteína
no líquido ascítico é de 400 mg/dia, e, para aqueles que apre
sentaram hemorragia varicosa, de 400 mg 2 vezes/dia, durante ■ LEITURA RECOMENDADA
7 dias.
Um estudo comparando o papel do norfloxacino e da cef- Angcloni, S, Lcboffc, C, Parente A et al. Eflicacy o í currcnt guidelines for thc
triaxona em pacientes com cirrose avançada com sangramento treatment of spontaneous bactcrial peritonitis in the clinicai practice. World
digestivo demonstrou ser esta droga a mais efetiva em prevenir J Gastroenterol, 2008;14:2757-62.
a infecção. Os autores sugerem a utilização de ceftriaxone 1 g/dia Arroyo, V & Navasa, M. Ascitcs and spontaneous bactcrial peritonitis. Em:
Schiff, ER. Sorrcll, MF, Maddrcy, WC (cds.). Schiffs Diseases of the Liver.
durante 7 dias em pacientes com sangramento digestivo e dois
Philadclphia. Lippincott-Ravcn, 527 a 568,2007.
ou mais critérios de gravidade da cirrose, quais sejam: ascite, Conn, HO & Fesscl, JM. Spontaneous bactcrial peritonitis in cirrhosis: varia-
desnutrição importante, encefalopatia hepática e bilirrubina tions on a theme. Medicine, 1971; 50:161-97.
superior a 3 mg/dl. Coral, GP & Mattos, AA. Renal impairment after spontaneous bactcrial perito
Na publicação do IAC, para os pacientes com um nível de nitis: incidence c prognosis. Can } Gastroenterol, 2003;17:187-90.
proteínas no líquido de ascite inferior a 1 g/d^, não houve con Coral, GP, Mattos, AA, Damo, DF et al. Prevalência c prognóstico da peritonite
senso sobre realizar ou não a profilaxia. O uso de antibióticos, bacteriana espontânea. Arq Gastroenterol, 2002; 39:158-62.
de forma rotineira, nestes casos, poderia favorecer o surgimento Fasolato, S, Angcli, P, Dallagncsc, L et al. Renal failure and bactcrial infcctions
in patients with cirrhosis: cpidcmiology and clinicai features. Hepatology,
de resistência bacteriana. Esta matéria, no entanto, é polêmi
2007;45:223-9.
ca. Nas recomendações da AASLD, é indicada a profilaxia em
Fcrnándcz, J, Del Arbol, LR, Gómcz, C et al. Norfloxacinc vs Ceftriaxone in thc
tais circunstâncias. Existe estudo que, ao avaliar pacientes com Prophylaxis of Infcctions in Patients with Advanced Cirrhosis and Hcmor-
proteínas baixas no líquido de ascite, demonstrou que aqueles rhage. Gastroenterology, 2006; 131:1049-56.
com hiperbilirrubinemia e com plaquetopenia eram os que ti Fcrnándcz, J, Navasa M, Gómcz J et al. Bactcrial infcccion in cirrhosis: epide-
nham maior risco de desenvolver PBE. Talvez, então, seja esta miological changcs with invasive proccdurcs and norfloxacinc prophylaxis.
a população que se beneficiaria com a antibioticoprofilaxia. Hepatology, 2002; 35:140-8.
Recentemente, foi publicado um estudo controlado com pla- Garcia-Tsao, G. Bactcrial infcctions and antibioties in cirrhosis. Em: Arroyo,
cebo, demonstrando ser a profilaxia primária com norfloxacino V, Forns, X, García-Pagan, JC, Rodes, J (cds.). Progress in the treatment of
liver diseases. Ars Medica, Barcelona, 2003; 43-50.
400 mg/dia benéfica em pacientes com ascite com proteína in
Ginès, P, Cárdcnas, A, Arroyo, V, Rodés, J. Management of cirrhosis and ascitcs.
ferior a 1,5 g/d^ e hepatopatia grave (Child > 9 com bilirrubina
N Engl J Med, 2004; 350:1646-54.
> 3 mg/d^) ou disfiinção renal (creatinina >1,2 mg/d^, nitrogê Guarncr, C, Solà, R, Soriano, G. Risk of a first community-acquircd sponta-
nio ureico sanguíneo > 25 mg/d^ ou Na' sérico ^ 130 mEq/í), ncous bactcrial peritonitis in cirrhotic with low ascitic fluid protein leveis.
com redução da incidência de PBE e de síndrome hepatorrenal Gastroenterology, 1999; 117:414-9.
em 1 ano e, inclusive, aumentando a sobrevida desses pacientes. Hocfs, JC 8c Runyon, BA. Spontaneous bactcrial peritonitis. Dis Mon, 1985;
Um outro estudo recente, comparando a profilaxia primária 31:1-48.
com ciprofloxacino 500 mg/dia contra placebo em uma popu Jcpscn, P, Vilstrup, H, Mollcr, JK et al. Prognosis o f patients with liver cir
lação de cirróticos com ascite com proteína inferior a 1,5 g/d^, rhosis and spontaneous bactcrial peritonitis. Hepato-Gastroenterol, 2003;
50:2133-6.
demonstrou redução da incidência de infecções e aumento da
Mattos, AA, Coral, G, Menti, E et al. Infecção bacteriana no paciente cirrótico.
sobrevida no grupo-intervenção.
Arq Gastroenterol, 2003; 40:11-5.
Naqueles casos que desenvolvessem PBE na vigência da anti Navasa, M. Advanccs in thc treatment o f spontaneous bactcrial peritonitis.
biótico-profilaxia, a droga a ser utilizada seria a cefotaxima. No Em: Arroyo, V, Bosch, J, Brugucra, M, Rodés, J (cds.). 7herapy in liver
entanto, em decorrência de uma maior frequência de bactérias diseases. The pathophysiological basis of therapy. Barcelona, Masson S.A.,
gram-positivas, particularmente de Staphylococcus aureus resis 407 a 410,1997.
Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea 697
Nousbaum, J-B, Cadrancl, J-F, Nahon, P et al. Diagnostic accuracy of thc Mul- Salerno, F, Gcrbcs, A, Ginès, P, Wong, F, Arroyo, V. Diagnosis, prevention and
tistix 8 SG rcagcnt strip in diagnosis of sponlancous bactcrial pcritonitis. treatment o f hepatorenal syndrome in cirrhosis. Gut, 2007; 56:1310-8.
Hepatology, 2007; 45:1275-81. Sort, P, Navasa, M, Arroyo, V et al. Eflcct of intravenous albumina on renal
Rimola, A, Garcia-Tsao, G, Navasa, M et al. Diagnosis, trcatmcnt and prophy- impairment and mortality in patients with cirrhosis and spontancous bac
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2000; 32:142-53. Such, J, Guarncr, C, Runyon, BA. Spontancous bactcrial pcritonitis. Em: Arroyo,
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Runyon, BA. Management of adult patients with ascitcs duc to cirrhosis. He Tandon, P 8f Garcia-Tsao, G. Bactcrial infcctions, sepse, and multiorgan failurc
patology, 2004; 39:841-56. in cirrhosis. Sem Liver Dis, 2008; 28:26-42.
Hemorragia Digestiva
Alta no Cirrótico
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle, Taiane Costa Marinho,
Renato Ferrari Letrinta, Arnaldo BernaI Filho, Paula Fluhueney Cruz,
Briane André Vertuan Ferreira, Fauze Maluf Filho
Durante a evolução natural da cirrose hepática, ocorrem m o belecido entre potentes vasoconstritores, como endotelina-1,
dificações anatômicas e anatomofimcionais do parênquima leucotrienos, tromboxane A2, além de outros, e da presença de
hepático e do sistema venoso portal, responsáveis pela drena moléculas vasodilatadoras, como óxido nítrico, anandamida,
gem do sangue proveniente do trato gastrintestinal, pâncreas, ou monóxido de carbono. Todos atuando sobre microvascu-
vesícula biliar e baço, em direção ao fígado. Mensurações de laturas hepática, esplâncnica e sistêmica, conforme disposto
finem que o fluxo sanguíneo portal é de aproximadamente na Figura 62.1.
1 £ por minuto e a pressão média, de 7 mmHg, facilitando o Complicações próprias desse distúrbio apenas instalar-se-
afluxo de cerca de 70% do oxigênio e da totalidade de fatores ão, desde que a pressão portal, mensurável por cateterismo de
hepatotróficos necessários ao perfeito funcionamento do pa veias hepáticas, ultrapasse 10 a 12 mmHg. Nessa ocasião, de
rênquima hepático. senvolverão varizes esofagogástricas e ascite de pequeno ou
Cirróticos cursam com acentuada resistência intra-hepática, grande volume, resistente ou não ao tratamento com diuré-
consequência mecânica da distorção da arquitetura hepática ticos administrados, isolados ou associados às paracenteses.
que eles apresentam, causada por fibrose, formações de nódu- Cada uma dessas formas de apresentação tem características
los, remodelação sinusoidal e oclusão vascular. Associam-se a próprias comentadas logo adiante em outros capítulos, e mais
esses eventos um componente dinâmico, dependente da ativa graves nos pacientes com baixa reserva parenquimatosa de fí
contração de miofibroblastos portais/septais, células hepáticas gado, classificados como Child B ou C.
endoteliais ativadas e as células da musculatura lisa de vênulas Além disso, observa-se que, seguindo-se o desenvolvimento
portais. Também esse comportamento e o do fluxo sanguíneo de hipertensão portal, ocorre abertura de microvasos e de co
aumentado, que se processa pelo território esplâncnico, têm laterais venosas voltada a descomprimir o território hiperten
intensidade e magnitude dependentes do balanceamento esta so para a circulação sistêmica, hipotensa. Formam-se, assim,
698
Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico 699
C irro s e
Figura 62.2 Eventos sequenciais observados na instalação da hipertensão portal (Grozsmann, 2002).
as varizes esofagogástricas, além de ectasias venosas dispostas renciação do valor entre as duas deve atingir, no máximo, 7 a
também no duodeno, cólon, reto, parede abdominal e retro- 10 mmHg. Observa-se risco maior de cursarem com ascite e
peritônio. Tais modificações também têm sido descritas em ruptura de varizes esofagogástricas quando essa pressão ultra
doentes com forma leve de cirrose, com fibrose não cirróti- passa 12 mmHg.
ca (esquistossomose mansônica), fibrose congênita hepática e
doenças autoimunes, tais como colangite esclerosante primária
e cirrose biliar primária, ou nos que evoluem com trombose ■ IMPORTÂNCIA DESSES ACHADOS
venosa portal, com, ou sem, transformação cavernomatosa.
Também se formam colaterais em torno da vesícula biliar e HEMODINÂMICOS E M0RF0LÓGIC0S
duetos biliares, as quais podem causar necrose dessas últimas
estruturas, formando áreas de estenose, com dilatações colan- Clinicamente, pode-se definir com bastante certeza que: 1.
30% daqueles pacientes com cirrose compensada têm varizes
giectásicas semelhantes às observadas na colangite esclerosante
primária. Toda essa evolução gera fenômenos hemodinâmicos, esofagogástricas, índice que se amplia para 60% naqueles com
a forma descompensada da doença; 2. risco anual de desenvol
conforme exposto na Figura 62.2.
ver novas ectasias venosas é de 8% e de ruptura entre 2 e 70%,
comportamento que depende da gravidade da doença hepática
e do nível pressórico portal; 3. sangram mais aquelas varizes de
■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS grosso calibre, azuladas, tortuosas e que apresentam sobre sua
superfície sinais endoscópicos, como manchas hematocísticas
O diagnóstico dessas manifestações se baseia no emprego da
e do vergão vermelho. São mais graves as hemorragias desen
endoscopia digestiva alta, constituindo-se no método respon
cadeadas a partir da ruptura das varizes de fundo gástrico; 4.
sável, geralmente, pela primeira caracterização de hipertensão
gastropatia hipertensiva portal tem sido conceituada como uma
portal. Através desse método, identificam-se varizes esofágicas
síndrome relacionada com as modificações da mucosa gástrica,
de pequeno, médio e grande calibres, lisas ou retilíneas. Preo
observadas entre 7 e 98% dos cirróticos, sendo responsável por
cupa quando se evidenciam tortuosidade e sinais que indicam
cerca de 4 a 38% dos episódios agudos hemorrágicos que tais
risco maior de sangramento, como manchas hematocísticas, ou
pacientes apresentam, com ressangramento incidindo entre
sinais de cor vermelha. As varizes subcárdicas, em geral, com
62 a 75%, com outras características típicas encontrando-se
portam-se como as esofágicas, porém aquelas de fundo cursam
discriminadas no Quadro 62.1.
com mais episódios hemorrágicos, mesmo naqueles pacientes
com baixa pressão portal, com índice maior de episódios de
ressangramento. Gastropatia hipertensiva portal traduz-se pela
presença do padrão em mosaico da mucosa gástrica, merecendo ------------------------------------- ▼-------------------------------------
preocupação maior quando essas ectasias venosas também se Q u a d ro 62.1 Outras características típicas da gastropatia
distribuem pelo duodeno. hipertensiva portal
Vasos intra-abdominais, como veia esplênica, mesentérica
1. H is t o lo g ic a m e n t e , id e n tific a m -s e d ila ta ç õ e s d e c a p ila re s e v ê n u la s d a
superior e inferior, além do tronco e ramos venosos portais di
m u c o s a g á s tric a ín te g ra e s e m in fla m a ç ã o ;
reito e esquerdo, são identificados através da angiorressonância
2 . M a is c o m u m e n t e o b s e r v a d a n a q u e le s s u b m e t id o s a e s d e r o t e r a p ia o u
magnética ou angiotomografia computadorizada. São métodos lig a d u r a e n d o s c ó p ic a ;
capazes de identificar também perviedade de veias gástricas e 3. S à o in o p e r a n t e s t r a t a m e n t o s c o m d r o g a s a n tis s e c re to ra s , ta is c o m o
da umbilical, além de anastomoses espontâneas ou cirurgica in ib id o r e s d e b o m b a s d e p ró to n s ;
mente construídas, visando a descompressão desses territórios 4 . R e la c io n a d a à h ip e r t e n s ã o p o rta l, o q u e fa z c o m q u e tais p a c ie n te s
potencialmente hemorrágicos. s e ja m c o n d u z id o s p e la s a d m in is tr a ç õ e s d e (J -b lo q u e a d o r e s , c o m o u
dadeira pressão portal, é obtida através de angiografia inva- 5 . N a fa lê n c ia d a a tit u d e 4 , t ra tá -lo s a tra v é s d e im p la n t e d o t ip s o u
r e a liz a ç ã o d e c iru rg ia s d e s c o m p re s s iv a s clássicas d o s is te m a v e n o s o
siva, valendo-se do acesso pela veia jugular com definição de p o rta l.
valores conseguidos em veia hepática oeluída e livre. A dife
700 Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico
Figura 62.3 Observar bem, no sentido horário, as varizes esofágicas e gástricas, com sinais premonitórios ou preditivos de sangramento. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Figura 62.4 Arteriografia de tronco celíaco mostrando artérias he- Figura 62.5 Portografia arterial evidenciando tronco porta e esplênica
páticas irregulares, tortuosas, porém com distribuição normal até a pérvia, com circulação colateral bem visível.
periferia do órgão.
Figura 62.6 Venografia hepática com cateter impactado, visando a Figura 62.7 Venografia hepática com cateter livre na luz do vaso, vi-
medir pressão de supra-hepática ocluída. sando a medir pressão de supra-hepática livre.
promovendo hipotensão arterial e baixa perfusão renal. Entre A g e n t e s a n tia lfa -a d re n é rg ic o s -' P ra z o s in 1’
C lo n id in e 0
essas drogas, incluem-se os doadores de óxido nítrico, agentes
C a r v e d ilo l6
antialfa-adrenérgicos, bloqueadores do sistema renina-angio-
B lo q u e a d o re s d o siste m a re n in a -a n g io t e n s in a L o s a rta n b
tensina e dos canais de cálcio e dos receptores de endotelina, Irb e s a rta n *
conforme apresentado no Quadro 62.3. B lo q u e a d o r e s d o s re c e p to re s d e e n d o t e lin a B o s e ta n
Nessa fase, discute-se o emprego associado da escleroterapia R 0 4 8 -5 6 9 5
ou da ligadura elástica das varizes esofagogástricas. Embora al LU 135252
F R 139317
guns estudos demonstrem que os pacientes assim conduzidos
B lo q u e a d o re s d o s c a n a is d e c á lc io V e r a p a m ilb
evoluem com redução na incidência de hemorragia digesti
N ife d ip in e b
va alta, outros estudos caracterizam índices mais elevados de N ic a r d ip in e b
morbidade e mortalidade em relação ao tratamento efetuado
4Nào há dados disponíveis para seu uso combinado com betabloqueadores náo seletivos.
na vigência do sangramento, naqueles pacientes manipulados L Testados em humanos.
por via endoscópica.
Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico 703
Os cirróticos com HDA deverão ser internados na unida Q u a d ro 62 .4 Drogas usadas de forma isolada visando o controle da
de de terapia intensiva, monitorados e procurando-se melhor ruptura de varizes esofagogástricas em cirróticos
e mais rápida estabilização hemodinâmica. Para tal, deve-se (McCormick & McCormick, 1999)
conseguir acesso venoso central, através de cateter central ou
promovendo-se dissecção venosa naqueles em que a ativida D rogas D osagem e a d m in is tra çã o
de de protrom bina se encontre abaixo de 50%, TTPA alar S o m a to s ta tin a 2 5 0 p g /h . In fu s ã o e n d o v e n o s a p o r 5 d ia s
gado e contagem de plaquetas inferior a 50.000/mm3. A re
O c t r e o t íd io 5 0 p g /h . In fu s ã o e n d o v e n o s a p o r 5 d ia s
posição volêmica deverá ser realizada através da infusão de
T e rlip re s s in a 1 -2 m g e m b o lo a c a d a 4 h/2 d ia s
fluidos coloides e/ou hemoderivados de acordo com a neces 1 m g p a ra p a c ie n te s c o m < 5 0 kg
sidade clínica. Exige-se monitoramento laboratorial através 1,5 m g p a ra p a c ie n te s e n t r e 5 0 e 7 0 kg
do controle seriado de hemoglobina, hematócrito, eletrólitos, 2 ,0 m g p a ra p a c ie n te s c o m > 7 0 kg
Te rlip re s s in a 1 - 2 m g e m b o lo a c a d a 4 - 6 h
provas de função renal e de reserva parenquimatosa hepática
(albumina, bilirrubinas e parâmetros da coagulação). Todos N itra to s 10 p g d e n it r o g lic e r in a , a d e s iv o t r o c a d o a p ó s 2 4 h
gas betabloqueadoras, nitratos e/ou octreotídio. Apesar dessas a muscularis mucosae do estômago, sobretudo quando o GHP
medidas, a recorrência do sangramento pode ocorrer cerca de se encontra além de 12 mmHg. A incidência geralmente se
5 dias após interrupção do tratamento, relacionando-se esse acentua após sessões repetidas de EE ou LE das VEGR. Res
comportamento ao GHP > 20 mmHg, concomitância com in ponsável por 10-20% das FIDA em cirróticos, expressa-se ini
fecção bacteriana, existência de trombose venosa portal, evo cialmente sob forma de perdas microscópicas nas fezes, mas
lução em choque, e naqueles Child-Pugh B ou C, e com níveis pode acentuar-se, evoluindo para situação de difícil controle,
séricos elevados de alanina-aminotransferase (ALT). Também aspecto clínico que não raramente se observa também naqueles
pode ser observado em 30-70% dos pacientes no primeiro com colopatia hipertensiva (Figura 62.9). Apresenta resposta
sangramento, ampliando-se, além desses números, a partir de terapêutica baixa à infusão de drogas vasoativas. Nesse caso, a
2 anos após interrupção do sangramento. Advogamos iniciar, terapêutica ideal não cirúrgica consiste no implante do TI PS,
logo em seguida ao prim