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GASTROENTEROLOGIA

ESSENCIAL
Renato Dani
Coautora
Maria do Carmo Friche Passos

Quarta edição

a
GUANABARA
KOOGAN
Gastroenterologia
Essencial

Respeite o Jireifo aufera'


Editorial ---------------------------------------------------------------------------------
Nacional

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çados pela natureza educacional de nossa atividade, sem comprometer o crescimento continuo e a
rentabilidade do grupo.
Gastroenterologia
Essencial

Renato Dani
Professor Aposentado do Departamento de Clínica Médica da FMUFMG.
Membro Flonorário da Academia Nacional de Medicina.
Titular da Academia Mineira de Medicina.

Coautora:

Maria do Carmo Friche Passos


Professora Adjunta Doutora do Departamento de Clínica Médica da
Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Doutorado em Gastroenterologia pela
Harvard Medicai School (EUA). Belo Horizonte, MG.

Quarta edição

O
GUANABARA
KOOGAN
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SIN D ICA TO N A C IO N A L D OS E D IT O R E S DE L IV R O S, R J

D184g
4.ed.

Dani, Renato
Gastrocntcrologia essencial / Renato Dani, Maria do Carmo Frichc Passos. - 4. ed. - Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2011.

Inclui índice

ISBN 978-85-277-1834-9

1. Gastrocntcrologia. 2. Aparelho digestivo - Doenças. I. Passos, Maria do Carmo Friche.


II. Título.

11-1941. CDD: 616.33


CDU: 616.3
Colaboradores

Adávio d c Oliveira c Silva Américo de Oliveira Silvério


Professor Livre-Doccntc do Departamento de Gastrocntcrologia da Fa­ Mestre cm Medicina. Professor substituto da disciplina de Gastrocntcro­
culdade de Medicina da USP. Diretor Clínico do Centro Terapêutico Es­ logia da Universidade Federal de Goiânia. Chefe do Serviço de Gastro-
pecializado cm Fígado (CETEF1) do Hospital da Bcncficiência Portuguesa cnterologia c Endoscopia Digestiva Alta do Hospital Geral de Goiânia.
de São Paulo. São Paulo, SP. Goiânia, GO.

Adérson O rnar M ourào C intra Damiào Ana Beatriz de Vasconcelos


Professor Assistente Doutor do Departamento de Gastrocntcrologia da Membro da Clínica Céu Aberto, do Ambulatório de Estimulantes do Gru­
Faculdade de Medicina da USP. São Paulo, SP. po Intcrdisciplinar de Estudos Álcool c Drogas, do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Psicóloga do
Adilton Toledo Orncllas
CETEFI do Hospital da Beneficiência Portuguesa de São Paulo. Psicóloga
Professor Adjunto de Gastrocntcrologia do Departamento de Clínica Mé­ do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. São Paulo, SP.
dica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora,
MG. Ana Flávia Passos Ramos
Gastrocntcrologista. Médica Assistente da Clínica de Gastrocntcrologia
Adriana Athaydc Lima Stehling
da Santa Casa de Belo Horizonte c da Fundação Hospitalar do Estado de
Gastrocntcrologista titulada pela FBG. Endoscopista titulada pela SOBED.
Minas Gerais. Mestranda cm Gastrocntcrologia pela Faculdade de Medi­
Membro do corpo clínico do Hospital Biocor. Belo Horizonte, MG.
cina da UFMG, Belo Horizonte, MG.
Adriana P orta Michc Hirschfcld
Ana Karla G aburri
Pediatra titulada pela Sociedade Brasileira de Pediatria. Médica Assistente
Mestre cm Gastrocntcrologia pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).
do Grupo de transplante hcpático do Hospital A. C. Camargo, São Paulo,
Professora Assistente de Gastrocntcrologia da Universidade Metropolita­
c do Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP.
na de Santos. Santos, SP.
Adriano Miziara Gonzalcz
André Gustavo Santos Pereira
Professor de Gastrocntcrologia Cirúrgica do Hospital São Paulo da Univer­
Médico do Centro Terapêutico Especializado em Fígado (CETEFI) do
sidade Federal de São Paulo. Research Fcllowship in Liver and GI Trans-
Hospital da Beneficiência Portuguesa de São Paulo, SP.
plant, Department of Surgery of thc University of Miami, Florida. Médico
do Centro Terapêutico Especializado cm Fígado (CETEFI) do Hospital da André Luiz Tavares Pinto
Bcncficiência Portuguesa de São Paulo. São Paulo, SP. Professor Associado da disciplina de Gastrocntcrologia da Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG. Mestre em Gastrocntcrologia pela Univer­
Aécio Flávio McircUcs de Souza
sidade Federal de São Paulo, SP. Juiz de Fora, MG.
Mestre cm Gastrocntcrologia pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesqui­
sas em Gastrocntcrologia (IBEPEGE). São Paulo, SP. Professor Adjunto de Andréa de Faria Mendes
Gastrocntcrologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Médica da 18* Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Ja­
Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. Chefe do Serviço neiro. Professora Auxiliar de Ensino da Universidade Gama Filho, Rio
de Gastrocntcrologia c Coordenador do Centro de Referência cm Hepatites de Janeiro, RJ.
do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
Andreia Maria Camargos Rocha
Ahmcd Abu-Shanab Professora Associada, Departamento de Propedêutica Complementar,
Research Fcllow, Alimentary Pharmabiotic Centre, University Collcgc Faculdade de Medicina da UFMG. Doutora cm Gastrocntcrologia pela
of Cork, Ircland. UFMG, Belo Horizonte, MG.
Alexandre Rodrigues Ferreira Ângelo Alves de M attos
Professor Adjunto do Departamento de Pediatria da UFMG. Doutor cm Professor Titular da Disciplina de Gastrocntcrologia da Universidade Fe­
Medicina. Gastrocntcrologista Pediátrico do Setor de Gastrocntcrologia deral de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) c do Curso de Pós-
Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG. Endoscopista pediátrico do Graduação cm Hepatologia da UFCSPA. Presidente da Sociedade Brasi­
Instituto Alfa de Gastrocntcrologia do Hospital das Clínicas da UFMG. leira de Hepatologia. Presidente da Associação Latino-Americana para o
Belo Horizonte, MG. Estudo do Fígado, Porto Alegre, RS.

Aloísio Sales da Cunha Ângelo Paulo Ferrari Junior


Professor Emérito do Departamento de Clínica Médica da UFMG. Belo Professor Adjunto c Chefe do Setor de Endoscopia da Universidade Fe­
Horizonte, MG. deral de São Paulo. São Paulo, SP.
VI Colaboradores

Angclo Zambam dc Mattos Aparelho Digestivo (ICAD) do Hospital da Bcncficiôncia Portuguesa dc


Membro do Serviço dc Gastrocnterologia Clínica c Cirúrgica da Irmandade São Paulo. São Paulo, SP.
da Santa Casa dc Misericórdia de Porto Alegre. Mcstrando do Curso dc
Pós-Graduação cm Hcpatologia da UFCSPA, Porto Alegre, RS. Daniclla Cavalcanti
Pós-Graduada cm Gastrocnterologia pela PUC do Rio dc Janeiro. Mé­
Arnaldo Bernal Filho dica Residente de Clínica Médica da Santa Casa de Misericórdia do Rio
Médico do Centro Terapêutico Especializado cm Fígado (CETEFI) do dc Janeiro, RJ.
Hospital da Bcncficiôncia Portuguesa dc São Paulo, SP.
Daniclla Ribeiro Einstoss Korman
Arnaldo José Pontello Neves Gastrocntcrologista. Capitã Médica c Endoscopista da Polícia Militar dc
Gastrocntcrologista do Hospital Israel Pinheiro, do Instituto dc Previdên­ Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.
cia dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.
Dario Ravazzi Ambrizzi
Augusto Paulino N ettot Chefe do Serviço de Cirurgia c Traumatologia Buco-Maxilo-Facial da
Chefe da 13* Enfermaria da Santa Casa do Rio dc Janeiro. Professor Ti­ FAMECA, Catanduva, SP. Mestre cm Cirurgia dc Cabeça e Pescoço pelo
tular e Chefe do Departamento dc Cirurgia da Escola dc Medicina Souza Hospital Heliópolis dc São Paulo, SP.
Marques, Rio dc Janeiro. Membro Titular da Academia Nacional dc Me­
David Corrêa Alves de Lima
dicina, Rio dc Janeiro.
Diretor da Clínica BIOGASTRO - Núcleo dc Gastrocnterologia c Video-
Brianc A ndré Vertuan Ferreira cndoscopia Digestiva. Membro da SFED (Sociedade Francesa dc Endos-
Médica do CETEFI do Hospital da Bcneficiência Portuguesa dc São Pau­ copia Digestiva). Membro da ASGE (American Socicty of Gastrointestinal
lo, SP. Endoscopy), Belo Horizonte, MG.

Bruno Squárcio Fernandes Sanches D orina Barbicri


Mestre em Gastrocnterologia pela Faculdade dc Medicina da UFMG. Livre-Docentc cm Pediatria pela Faculdade dc Medicina da Universidade
Membro do Serviço dc Gastrocnterologia do Hospital Biocor. Belo Ho­ dc São Paulo. Ex-Chefe da Unidade de Gastrocnterologia do Instituto da
rizonte, MG. Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP. Professora do Curso dc Pós-
Graduação do Departamento dc Pediatria da FMUSP, São Paulo, SP.
Carlos Augusto Gomes
Professor Adjunto Doutor responsável pela Disciplina dc Cirurgia do Sis­ Dulcicne Maria dc Magalhães Queiroz
tema Digestório da Faculdade dc Medicina da Universidade Federal dc Professora Titular do Departamento dc Propedêutica Complementar,
Juiz dc Fora (UFJF). Membro Titular do Colégio Brasileiro dc Cirurgiões Faculdade dc Medicina da UFMG. Doutora cm Microbiologia pela Uni­
(CBC). Membro Titular da Sociedade Brasileira de Nutrição Parcnteral c versidade Federal do Rio dc Janeiro. Belo Horizonte, MG.
Entcral (SBNPE), Juiz dc Fora, MG.
Eamonn M. M. Quigley
Carlos H enrique D iniz dc Miranda Professor do Medicine and Human Physiology, Alimentary Pharmabiotic
Professor Auxiliar do Departamento dc Clínica Médica da Faculdade dc Centre, Department of Medicine, Cork University Hospital, Cork, Irlanda.
Ciências Médicas dc Minas Gerais. Assistente Efetivo do Serviço de Gas­ Ex-Presidente do World Gastroenterology Organization. Ex-Presidente
trocnterologia da Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG. do American Collcge of Gastroenterology. Cork, Irlanda.

Carlos Sandoval Gonçalves Edivaldo Fraga Moreira


Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da UFES. Chefe do Servi­ Chefe da Clínica Endoscópica do Hospital Fclício Rocho. Belo Horizon­
ço dc Gastrocnterologia do Hospital Universitário Cassiano Antônio dc te, MG.
Moraes do Centro Biomédico da Universidade Federal do Espírito San­
to. Vitória, ES. Eduardo Botelho dc C arvalhot
Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da FMUFMG.
Celso M arques Raposo Júnior
Belo Horizonte, MG.
Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa dc São Pau­
lo, SP. Eduardo Figueiredo Benedetti
Celso M irra dc Paula c Silva Médico do CETEFI do Hospital da Bcneficiência Portuguesa dc São Pau­
Gastrocntcrologista. Membro do American Collcge of Gastrocntcrology. lo. São Paulo, SP.
Ex-Presidente da Sociedade de Gastrocnterologia c Nutrição de Minas
Eduardo Nacur Silva
Gerais. Belo Horizonte, MG.
Mestre cm Cirurgia. Cirurgião geral da Santa Casa dc Belo Horizonte.
Claudcmiro Q uireze Junior Membro do Colégio Brasileiro dc Cirurgiões. Belo Horizonte, MG.
Doutor cm Medicina pelo Departamento dc Cirurgia da Universidade
Federal dc São Paulo. Assistente Doutor do Departamento dc Gastrocn­ Eliza Maria dc Brito
terologia da Faculdade dc Medicina da Universidade Federal dc Goiás. Mestre cm Gastrocnterologia. Professora Assistente da Faculdade dc Ciên­
Goiânia, GO. cias Médicas da UNIFENAS, cm Belo Horizonte. Membro do Grupo dc
Esôfago, Estômago c Duodeno do Instituto Alfa dc Gastrocnterologia,
Cristianc Maria Freitas Ribeiro Hospital das Clínicas, UFMG, Belo Horizonte, MG.
Médica Patologista do Hospital da Bcncficiência Portuguesa dc São Pau­
lo. Médica Assistente do Departamento dc Anatomia Patológica da Santa Elmar José M oreira Lima
Casa dc Misericórdia de São Paulo. São Paulo, SP. Gastrocntcrologista cm Belo Horizonte, MG.

Dan Linctzky W aitzbcrg Elson Vidal M artins Junior


Professor Associado da Disciplina dc Cirurgia Experimental da Facul­ Mestre cm Gastrocnterologia pela Escola Paulista dc Medicina (UNIFESP).
dade dc Medicina da Universidade dc São Paulo. Livre-Docente, xMestre Professor Assistente da Disciplina dc Clínica Médica da Faculdade dc
c Doutor cm Cirurgia pela FMUSP. Diretor do Instituto dc Cirurgia do Ciências Médicas dc Santos, SP.
Colaboradores V II

Eponina M aria dc Oliveira Lemmc Gifonc Aguiar Rocha


Professora Associada do Departamento dc Clínica Médica da Faculdade Professor Associado, Departamento dc Propedêutica Complementar, Fa­
dc Medicina da Universidade Federal do Rio dc Janeiro. Chefe da Uni­ culdade dc Mcdicina/UFMG. Doutor cm Microbiologia pela UFRJ, Belo
dade dc Esôfago c do Ambulatório dc Doenças do Esôfago, Serviço dc Horizonte, MG.
Gastroentcrologia do Hospital Clcmcntino Fraga Filho, UFRJ - Rio dc
Janeiro, RJ. Gilberto Perón Júnior
Médico Assistente do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa
Evandro dc Oliveira Souza dc São Paulo. São Paulo, SP.
Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São Pau­
lo, SP. Gilda Porta
Professora Livrc-Doccntc do Departamento dc Pediatria da FMUSP. Mé­
Fábio Heleno de Lima Pacc dica Hepatologista Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital das Clí­
Mestre e D outor em Gastroentcrologia pela Escola Paulista dc Medicina nicas da FMUSP. Médica do Grupo dc Transplante Hcpático do Hospital
da Universidade Federal dc São Paulo (UNIFESP). Professor Adjunto dc A. C. Camargo c do Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP.
Gastroentcrologia do Departamento dc Clínica Médica da Faculdade dc
Medicina da Universidade Federal de Juiz dc Fora, MG. Glaciomar Machado
Professor Titular dc Gastroentcrologia da Faculdade dc Medicina da Uni­
Fábio Rosa Moraes versidade Federal do Rio de Janeiro. Ph.D. pela Universidade dc Bristol,
Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa de São Pau­ Inglaterra. Membro Titular da Academia Nacional dc Medicina (cadeira
lo, SP. 18). Presidente da Organização Mundial dc Endoscopia Digestiva - OMED
Fausto E. Lima Pereira (1998-2002). Presidente Honorário da Organização Mundial dc Endosco­
Professor Titular dc Patologia da Universidade Federal do Espírito Santo, pia Digestiva - OMED (2005). Rio de Janeiro, RJ.
Núcleo de Doenças Infecciosas (NDI) da UFES, Vitória, ES.
Graziclla M attar Vieira de Alvarenga
Fauze M aluf Filho Membro Titular da Sociedade Brasileira dc Endocrinologia e Mctabologia.
Mestre cm Medicina pelo Departamento dc Gastroentcrologia da Facul­ Endocrinologista do Hospital Socor. Belo Horizonte, MG.
dade dc Medicina da Universidade dc São Paulo. Médico Assistente do
Guilherme Santiago Mendes
Serviço dc Endoscopia Gastrointestinal do Hospital das Clínicas da USP.
Hepatologista e Gastrocntcrologista. Prcccptor da Residência dc Gastro-
Endoscopista do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São
cntcrologia do Hospital Governador Israel Pinheiro do Instituto dc Previ­
Paulo. Chefe do Serviço dc Endoscopia do Instituto do Câncer do Estado
dência dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.
dc São Paulo, SP.

Felipe dc Souza Atan Guilherme Taram cli dos Santos Cecílio


Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São Pau­ Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa de São Pau­
lo, SP. lo, SP.

Fernando Augusto Vasconccllos Santos Gustavo M iranda M artins


Mestre cm Cirurgia pela Faculdade dc Medicina da UFMG. Titular da Assistente da Clínica Gastroenterológica da Santa Casa dc Misericórdia
Sociedade Brasileira dc Canccrologia e do Colégio Brasileiro de Cirurgia dc Belo Horizonte. Ex-Estagiário do Serviço de Hcpatogaslrocntcrologia
Digestiva. Cirurgião do Hospital Governador Israel Pinheiro (IPSEMG) do Hospital Sainte Marguerite, Marselha, França (Serviço do Prof. José
c do Instituto Alfa do HC da UFMG - Belo Horizonte, MG. Sahcl). Belo Horizonte, MG.

Flávia Costa Cardoso H eitor Rosa


Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São Pau­ Doutor cm Medicina. Professor Titular da Disciplina dc Gastroentcrologia
lo, SP. da Faculdade dc Medicina da Universidade Federal dc Goiás. Chefe do Ser­
viço dc Gastroentcrologia c Hepatologia do I lospital das Clínicas da UFG.
Flávio Antonio Quilici
Ex-Diretor da Faculdade de Medicina da UFGO. Goiânia, GO.
Professor Titular dc Gastroentcrologia c Cirurgia Digestiva da Faculdade
dc Medicina do CCV da PUC-Campinas. Mestre cm Medicina c Doutor H enrique Eloy B. Câmara
em Cirurgia pela Unicamp. Ex-Presidente da Sociedade Brasileira dc En­ Membro do Serviço dc Cirurgia da Santa Casa de Misericórdia dc Belo
doscopia Digestiva. Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Coloprocto- Horizonte. Cirurgião cm Belo Horizonte, MG.
logia. Ex-Presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Síndrome
do Intestino Irritável, Campinas, SP. Hilton Muniz Leão Filho
Médico Radiologista Especializado cm Imagens do Abdome c Pclvc. Se­
Francisco César Nassar Tribulato tor dc Radiologia do Hospital do Coração, Parte dc Medicina Interna.
Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São Pau­ São Paulo, SP.
lo, SP.
Isaura Ramos Assumpção
Francisco Leôncio Dazzi
Mestre em Pediatria pela Faculdade dc Medicina da Universidade dc São
Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São Pau­
Paulo. Assistente da Unidade dc Gastroentcrologia do Instituto da Crian­
lo, SP.
ça do Hospital das Clínicas da FMUSP, Médica Assistente da Unidade dc
Frederico Passos M arinho Gastroentcrologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da
Gastrocntcrologista titulado pela Federação Brasileira dc Gastroentero- FMUSP. São Paulo, SP.
logia. Mestrando cm Gastroentcrologia pela Faculdade dc Medicina da
Jaime N atan Eisig
UFMG. Belo Horizonte, MG.
Doutor cm Gastroentcrologia pela Faculdade dc Medicina da Universi­
Gerusa Máximo dc Almeida dade dc São Paulo. Chefe do Grupo dc Estômago do Serviço dc Gastro-
Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiôncia Portuguesa dc São Pau­ cntcrologia Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade dc Medicina da
lo, SP. Universidade dc São Paulo, SP.
VIII Colaboradores

Jandcr Toledo Ferreira Juliana Becattini Guerra


Membro do Grupo de Esôfago c Estômago c do Grupo de Fígado, Vias Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa cm Bacteriologia da FMUFMG.
Biliarcs, Pâncreas c Baço do Instituto Alfa de Gastrocntcrologia do Hos­ Professora da Universidade de Itaúna, MG. Belo Horizonte, MG.
pital das Clínicas da UFMG. Cirurgião do Instituto de Previdência dos
Juliano Machado de Oliveira
Servidores do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.
Mestre cm Gastroenterologia pela Universidade de São Paulo (USP), São
Jcan Rodrigo TafarcI Paulo, SP. Professor Assistente de Gastrocntcrologia do Departamento de
Gastroentcrologista titulado pela FBG. Endoscopista titulado pela Clínica Médica da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
SOBED. Doutor em Ciências Médicas pela Escola Paulista de Medicina,
Julio M aria Fonseca Chcbli
da UFSP. Curitiba, PR.
Doutor cm Gastrocntcrologia pela UNIFESP. Professor Associado e Di­
Joffre Marcondes de Rezende retor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora,
Professor Emérito da Universidade Federal de Goiânia. Goiânia, GO. MG. Pesquisador do CNPq. Juiz de Fora, MG.

Joffre Rezende Filho Katia Valéria Bastos Dias Barbosa


Mestre c Doutora em Gastroenterologia pela Universidade Federal de
Professor Assistente Doutor do Serviço de Gastrocntcrologia c Hcpato-
Minas Gerais, MG. Médica do Serviço de Gastroenterologia do Hospital
logia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás. Mestre
Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. Professora
cm Clínica Médica pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (Uni­
Assistente de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica da
versidade de São Paulo). Goiânia, GO.
Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
Jorge Marcelo Padilla Manccro
Laura Cotta Orncllas lialfcld
Mestre cm Gastrocntcrologia pelo Hospital dos Servidores Públicos do
Doutora cm Gastroenterologia pela Escola Paulista de Medicina
Estado de Sào Paulo. Médico Assistente do CETEFI, do Hospital da Bc-
(UNIFESP).
ncficiência Portuguesa de São Paulo. Sào Paulo, SP.
Leonardo Reutcr M otta Gama
José Alves de Freitas Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
Doutor cm Gastrocntcrologia pela Escola Paulista de Medicina, São Paulo. lo, SP.
Professor Titular de Clínica Médica 1da Faculdade de Medicina de Catan-
duva c Diretor da Faculdade de Medicina de Catanduva. Catanduva, SP. Liano Sia Moreira
Chefe do Serviço de Endoscopia Digestiva do Hospital Socor. Membro
José Celso Ardcngh dos Serviços de Endoscopia Digestiva dos Hospitais Matcr Dei e Gover­
Médico Assistente do Setor de Endoscopia c Ecocndoscopia do Hospital nador Israel Pinheiro (IPSEMG). Gastroentcrologista titulado pela FBG.
Israelita Albcrt Einstcin. Médico Voluntário do Setor de Endoscopia Di­ Endoscopista titulado pela SOBED. Belo Horizonte, MG.
gestiva da Disciplina de Gastrocntcrologia da Escola Paulista de Medicina
(UNIFESP). São Paulo, SP. Liliana Andrade Chcbli
Gastroentcrologista pelo Hospital Universitário da Faculdade de Medicina
José Dayrell de Lima Andrade da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Mestre cm Ciências
Professor da Faculdade de Medicina de Barbacena, MG. Prcccptor da Resi­ da Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de
dência de Clínica Médica no Hospital Regional de Barbacena (FHEMIG). Fora. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação cm Saúde, Núcleo de
Ex-Estagiário no Serviço de Hepatogastrocntcrologia do Prof. Jose Sahel Pesquisa cm Gastrocntcrologia. Faculdade de Medicina da Universidade
no Hôpital de la Conccption, cm Marselha, França. Barbacena, MG. Federal de Juiz de Fora, MG.
José de Laurentys Medeiros Lincoln Eduardo Villcla Vieira de Castro Ferreira
Professor Titular de Semiologia da Faculdade de Ciências Médicas de D outor em Gastrocntcrologia pela Escola Paulista de Medicina - Uni­
Belo Horizonte. Chefe da Clínica Gastroenterológica da Santa Casa de versidade Federal de São Paulo, SP. Médico do Serviço de Gastrocntcro­
Belo Horizonte. Titular da Academia Mineira de Medicina. Belo H ori­ logia do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora,
zonte, MG. MG.
José de Laurentys Medeiros Junior Lisandra Carolina M. Quilici
Gastrocnterologista c Endoscopista do Hospital da Polícia Militar de Belo Cirurgiã do Aparelho Digestivo e Endoscopista. Cirurgiã do Hospital da
Horizonte, MG. PUC. Campinas, SP.
José Galvão Alves Lorctc Maria da Silva Kotzc
Chefe da 18* Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia Doutora cm Gastrocntcrologia Clínica pela Escola Paulista de Medicina da
do Rio de Janeiro. Professor Titular de Clínica Médica da Universidade Universidade Federal de São Paulo. Titulada como Especialista em Gas­
Gama Filho e da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico-Educacional trocntcrologia, Gastrocntcrologia Pediátrica c Clínica Médica. Professora
Souza Marques. Professor de pós-graduação cm Gastrocntcrologia da Pon­ Adjunta Aposentada da Disciplina de Gastrocntcrologia do Hospital das
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro Titular da Acade­ Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Professora Adjunta do C ur­
mia Nacional de Medicina. Presidente da Federação Brasileira de Gastro­ so de Medicina do Setor de Ciências Biológicas c da Saúde da Pontifícia
cntcrologia. Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da UFMG. Universidade Católica (PUC) do Paraná. Professora do Curso de Espe­
Rio de Janeiro, RJ. cialização cm Adolescência da PUC-Paraná. Chefe do Serviço de Gastro­
cntcrologia do Hospital Universitário Cajuru da PUC-Paraná. Membro
José M auro Messias Franco
Internacional do American Collcgc of Gastrocntcrology. Curitiba, PR.
Chefe do Serviço de Gastrocntcrologia do Hospital Governador Israel
Pinheiro (IPSEMG). Sócio-Titular da FBG c da SGNMG. Belo H ori­ Lucas Cagnin
zonte, MG. Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
lo, SP.
José Sahel
Professor de Gastrocntcrologia c de Hcpatologia da Universidade do Me­ Lucas Souto Nacif
diterrâneo (Aix-Marscillc II). Marselha. Chefe do Serviço de Gastrocntc­ Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
rologia do Hôpital de la Conccption, Marselha, França. lo, SP.
Colaboradores IX

Luciana Dias M orctzsohn Marcelo H enrique de Oliveira


Professora Adjunta Doutora do Departamento de Clínica Médica da Fa­ Especialista cm Gastroenterologia pelo Serviço de Gastroenterologia do
culdade de Medicina da UFMG. Membro do Grupo de Propedêutica do Hospital Governador Israel Pinheiro (1PSEMG, Belo Horizonte). Barba-
Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG. ccna, MG.
Belo Horizonte, MG.
Márcio G uimarães M oreira Dias
Luciana Diniz Silva Gastrocntcrologista c Endoscopista. Patos de Minas, MG.
Professora Associada, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de
Medicina da UFMG. Coordenadora de Projetos de Pesquisa c Extensão Marcos Vinícius Pcrini
do Ambulatório de Hepatites Virais do Instituto Alfa de Gastroenterologia Assistente Doutor do Serviço de Cirurgia de Fígado c Hipertensão Portal.
do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG. Hospital das Clínicas, FMUSP. São Paulo, SP.
Luciano Cézar Ribeiro Magalhães
Maria Clara Freitas Coelho
Gastrocntcrologista c Endoscopista. Professor Assistente da Faculdade
Assistente Voluntária da VI Enfermaria de Mulheres da Santa Casa de
Federal de Medicina de Montes Claros, MG.
Belo Horizonte, MG.
Luis Fernando D utra Diniz
Gastrocntcrologista c Endoscopista Titulado. Sete Lagoas, MG. Maria da Penha Zago Gomes
Professora Adjunta de Clínica Médica do Centro Biomédico da Univer­
Luiz Augusto C arneiro D’Albuqucrquc sidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES.
Professor Titular do Departamento de Gastroenterologia, Disciplina de
Transplante de Fígado, da Faculdade de Medicina da Universidade de Maria de Lourdcs de Abreu Ferrari
São Paulo. Diretor Cirúrgico do CETEFI, Hospital da Bencficiéncia Por­ Professora Adjunta Doutora do Departamento de Clínica Médica da Fa­
tuguesa de São Paulo, SP. culdade de Medicina da UFMG. Membro do Grupo de Coloproctologia c
Intestino Delgado c Coordenadora do Ambulatório de Intestino Delgado
Luiz Cláudio M iranda da Rocha
do Instituto Alfa de Gastroenterologia, Belo Horizonte, MG.
Endoscopista Assistente do Hospital Matcr Dei c do Hospital da Polícia
Militar de Minas Gerais. Especialista cm Endoscopia do Aparelho Diges­
Maria do Carm o Frichc Passos
tivo titulado pela SOBED. Curso de Especialização em Endoscopia Di­
Professora Adjunta Doutora do Departamento de Clinica Médica da Uni­
gestiva em Lyon, França. Mestre em Gastroenterologia pela Faculdade de
versidade Federal de Minas Gerais. Pós-Doutorado cm Gastroenterologia
Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG.
pela Harvard Medicai School (EUA). Belo Horizonte, MG.
Luiz de Souza e Silva Júnior
Professor da Universidade de Ciência da Saúde de Alagoas. Médico do Maria Elizabcth Calorc Nciva
Hospital Universitário da Universidade Federal de Alagoas. Maceió, AL. Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiéncia Portuguesa de São Pau­
lo, SP.
Luiz Gonzaga Vaz Coelho
Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Maria Ermclinda Camilo
Medicina da UFMG. Subchefe do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Professora Auxiliar c Diretora do Centro de Nutrição c Metabolismo da
Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG. Faculdade de Medicina de Lisboa. Lisboa, Portugal.
Luiz Roberto Kotzc
Maria Juliana Louggio Cavalcanti
Médico Patologista, titulado pela Sociedade Brasileira de Patologia (SBP).
Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiéncia Portuguesa de São Pau­
Médico colaborador do Grupo de Pesquisa cm Doenças do Sistema Diges-
lo, SP.
tório da PUC-PR. Patologista do Laboratório CITOPAR. Curitiba, PR.

Luiz Ronaldo Albcrti Marisa Fonseca Magalhães


Endoscopista e diretor-técnico da Clínica Biogastro de Belo Horizonte. Professora Auxiliar do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de
Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia da UFMG. Mestre c Dou­ Ciências Médicas de Minas Gerais. Assistente Efetiva do Serviço de Gas-
tor cm Cirurgia pela UFMG. Membro Titular da Federação Brasileira de trocnterologia da Santa Casa de Belo Horizonte, MG.
Gastroenterologia c da SGNMG. Membro Adjunto do Colégio Brasileiro
de Cirurgiões. Membro da SOBED. Belo Horizonte, MG. M arta Carvalho Galvão
Médica do staff da 18a Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia do Rio
Maiza da Silva Costa de Janeiro. Chefe do Serviço de Radiologia do Hospital São Zacarias do
Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiéncia Portuguesa de São Pau­ Hospital Geral da Santa Casa do Rio de Janeiro. Professora Assistente de
lo, SP. Radiologia da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico-Educacional
Souza Marques c da Universidade Gama Filho. Mestre cm Radiologia pela
Maraci Rodrigues
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ.
Doutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo. Assistente do Departamento de Gastroenterologia do Instituto M auro Bafutto
Central do Hospital das Clínicas da FMUSP. Ex-Estagiária do Departa­
Mestre em Gastroenterologia pela Universidade Federal de São Paulo.
mento de Pediatria - Divisão de Gastroenterologia c Nutrição da UCLA,
Professor Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
Los Angeles, Califórnia. São Paulo, SP.
de Goiás, Goiânia. Diretor Clínico e Pesquisador do Instituto Goiano de
Marcela Mendes Assumpção Gastroenterologia. Goiânia, GO.
Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiéncia Portuguesa de São Pau­
M ounib T ada
lo, SP.
Membro do Instituto Brasileiro de Estudos c Pesquisas cm Gastrocn-
Marcelo Augusto Fontcncllc Ribeiro Júnior terologia (IBEPEGE) c do Instituto de Gastroenterologia de São Paulo
Doutor cm Medicina pela Universidade Federal de São Paulo. São Pau­ (IGESP). Chefe da Unidade de Gastroenterologia do Hospital do Cora­
lo, SP. ção. São Paulo, SP.
X Colaboradores

Naisa Oliveira Alvim M attedi Priscila Lopes


Médica do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­ Médica do CETEFI do Hospital da Bcncficiôncia Portuguesa de São Pau­
lo, SP. lo, SP.

Natália Cordeiro Rafael liygino Rodrigues Cremonin


Médica Residente de Clínica Médica da Santa Casa de Misericórdia do Médico do CETEFI do Hospital da Bencficiência Portuguesa de São Pau­
Rio de Janeiro, RJ. lo, SP.
Patrícia Barbosa Ferrari
Raul Carlos Wahlc
Pediatra Titulada pela Sociedade Brasileira de Pediatria. Pediatra da Tria­
Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
gem Nconatal do Estado do Paraná, Fundação Ecumênica da Proteção ao
lo, SP.
Excepcional. Curitiba, PR.
Renato Dani
Patrícia Lofôgo Gonçalves
Professor aposentado do Departamento de Clínica Médica da FMUFMG.
Médica do Serviço de Gastrocntcrologia, Centro Biomédico, Universidade
Ex-Chefe do Serviço de Gastrocntcrologia do Hospital Israel Pinheiro,
Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória, ES.
do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais.
Paula Amorim Novais Titular da Academia de Medicina de Minas Gerais. Membro Honorário
Mestre cm Gastrocntcrologia pela UFRJ. Médica do Serviço de Gastrocn­ da Academia Nacional de Medicina. Ex-Presidente da Federação Brasi­
tcrologia do Hospital Universitário Clcmentino Fraga Filho, UFRJ. Rio leira de Gastrocntcrologia c da Sociedade Brasileira de Hepatologia. Belo
de Janeiro, RJ. Horizonte, MG.

Paula Hugucncy Cruz Renato Ferrari Letrinta


Médica do CETEFI do Hospital da Bencficiéncia Portuguesa de São Pau­ Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
lo, SP. lo, SP.

Paulo Cesar Andriguetto Renato M itsunori Nisihara


Mestre cm Cirurgia. Coordenador Geral da Residência do Hospital Nos­ Ph.D. Professor Titular da disciplina de Microbiologia e Imunologia
sa Senhora das Graças de Curitiba. Preccptor de Residência cm Cirurgia Médica do Departamento de Medicina da Universidade Positivo. Pro­
do Aparelho Digestivo do Hospital das Clínicas da UFPR. Cirurgião As­ fessor Responsável pela disciplina de Microbiologia c Imunologia M é­
sistente Estrangeiro da Faculdade de Medicina de Montpcllicr, França. dica do Departamento de Medicina da Faculdade Evangélica do Paraná
Curitiba, PR. (FEPAR). Membro do Grupo Docente Estruturante do Curso de Medicina da
FEPAR. Pesquisador do Grupo de Pesquisa do Laboratório de Imuno-
Paulo Fernando Souto Bittencourt
patologia da Universidade Federal do Paraná c Responsável Técnico do
Doutor cm Pediatria pela Faculdade de Medicina da UFMG. Endoscopis-
Laboratório de 1muno patologia da UFPR. Consultor do Setor de Im u­
ta Pediátrico do Instituto Alfa (HC da FMUFMG) e do Hospital Fclício
nologia do Citolab, Laboratório de Citologia Clínica c Histopatologia.
Rocho. Belo Horizonte, MG.
Curitiba, PR.
Paulo Gustavo Kotze
Renato Rocha Passos
Médico Coloproctologista. Membro Titular da Sociedade Brasileira de
Chefe de Clínica da 13a Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa de
Coloproctologia. Médico do Serviço de Coloproctologia da Aliança Saúde
Misericórdia do Rio de Janeiro. Professor Auxiliar da Universidade Gama
do Hospital Universitário Cajuru (PUCPR). Mestre em Ciências da Saúde
Filho. Professor Auxiliar da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico*
pelo Setor de Ciências Biológicas da Pontifícia Universidade Católica do
Educacional Souza Marques. Rio de Janeiro, RJ.
Paraná. Curitiba, PR.

Paulo Herman Ricardo Cesar Rocha Moreira


Professor Associado do Departamento de Gastrocntcrologia da FMUSP. Cirurgião Vascular c Endovascular. Diplomado pelo American Board
Chefe do Serviço de Cirurgia de Fígado c Hipertensão Portal do Hospital of Surgery. Mestre e Doutor cm Cirurgia pela Universidade Federal do
das Clínicas da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP. Paraná. Chefe do Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital Universitário
Cajuru da PUC do Paraná, em Curitiba. Membro Titular c Ex-Mestre
Paulo Roberto Savassi Rocha do Capítulo do Paraná do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Presidente
Professor Titular do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medici­ da Sociedade Brasileira de Angiologia c Cirurgia Vascular, Regional do
na da Universidade Federal de Minas Gerais. Chefe do Instituto Alfa de Paraná. Curitiba, PR.
Gastrocntcrologia do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte,
MG. Ricardo G uilherme Vicbig
Mestre em Gastrocntcrologia pelo IBEPEGE, São Paulo. Membro Titular
Paulo Villar do Vallc do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Editor Consultivo da Revista
Chefe do Setor de Imagens da Casa de Saúde São José. Rio de Janeiro, Arquivos de Gastrocntcrologia. São Paulo, SP.
RJ.
Ricardo P. B. Ferreira
Pedro D uarte G aburri Gastrocntcrologista pelo Serviço de Gastrocntcrologia Clínica do Hospi­
Professor Adjunto de Gastrocntcrologia do Departamento de Clínica Mé­ tal das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
dica da Universidede Federal de Juiz de Fora, MG. Titular da Federação Brasileira de Gastrocntcrologia. Professor de Gas­
trocntcrologia da Universidade do Estado do Amazonas c do Centro Uni­
Pcnélopc Lacrísio dos Reis Menta versitário Nikon Lins.
Mestranda do Programa de Saúde do Adulto da Faculdade de Medicina
da UFMG. Nutricionista do Ambulatório de Hepatites Virais do Insti­ Roberto Franceschclli Neto
tuto Alfa de Gastrocntcrologia (Hospital das Clínicas da UFMG). Belo Médico do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
Horizonte, MG. lo, SP.
Colaboradores XI

Roberto Pimcntcl Dias Clínica c Disciplina de Estágio Obrigatório Profissionalizante do Centro


Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de de Farmácia da UFPR.
Medicina da UFMG. Chefe do Serviço de Clínica Médica do Hospital Go­ Professora do Programa de Pós-Graduação cm Ciências Farmacêuticas
vernador Israel Pinheiro (1PSEMG). Belo Horizonte, MG. da UFPR. Curitiba, PR.

Roberto San toro Mcirellcs Taianc Costa Marinho


Médico Gastrocntcrologista cm Belo Horizonte, MG. Médica do CETEFI do Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Pau­
lo, SP.
Rodrigo de Oliveira Peixoto
Professor Assistente da Disciplina de Cirurgia do Sistema Digestório da Ihiago Beduschi, MD
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Fcllow do Programa de Transplantes, Departamento de Cirurgia, Indiana
Mestre cm Cirurgia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mem­ University Health and Clarian Transplant Institute, Indianapolis, USA.
bro Titular da Sociedade Brasileira de Nutrição Parcnteral c Entcral
Vânia Luiza Cochlar Pereira
(SBNPE).
Professora Assistente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade
Rodrigo M. Quera de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ. Mestre cm
Gastrocntcrologista, Clinica Las Condes, Santiago do Chile. Honorary Gastrocnterologia pela UFRJ. Rio de Janeiro, RJ.
Lecturcr, Department of Gastroentcrology, University of Chile Hospitais Verônica Desiréc Samudio Cardozo
and Clinies, Santiago, Chile. Médica do Centro Terapêutico Especializado em Fígado (CETEFI) do
Hospital da Bcncficiência Portuguesa de São Paulo. São Paulo, SP.
Rodrigo Macedo Rosa
Membro Titular da Federação Brasileira de Gastrocnterologia c Sociedade Victor B. Kochnc
Brasileira de Endoscopia Digestiva. Coordenador da Residência Médica Gastrocntcrologista e Endoscopista. Mestre cm Gastrocnterologia pela
c Estágios cm Endoscopia Digestiva do Instituto Alfa de Gastroentero- Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG.
logia - Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Belo Horizonte, MG. Vitor A ntonino Mendes de Sá
Chefe do Serviço de Gastrocnterologia do Hospital Evangélico de Belo
Rodrigo Vianna, MD Horizonte. Gastrocntcrologista e Endoscopista. Belo Horizonte, MG.
Diretor do Programa de Transplante Intestinal c Multivisccral, Professor
Associado do Departamento de Cirurgia. Indiana University Health and Vitor Arantes
Clarian Transplant Institute, Indianápolis, USA. Membro de Serviço de Endoscopia Digestiva do Instituto Alfa de Gastro-
cntcrologia (Hospital das Clínicas da UFMG). Especialização cm Colan-
Rogério Luiz Coutinho Lopes giopancrcatografia Endoscópica Retrógrada c Terapêutica Endoscópica
Professor Assistente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade na Universidade Autônoma de Barcelona. Research Fellow em Ultras-
de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG. som Endoscópico, University of Texas Medicai Branch, Galvcston, EUA.
Mestre cm Gastrocncrologia pela Faculdade Medicina da UFMG. Belo
Rogério Luiz Pinheiro Horizonte, MG.
Professor Assistente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade
de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG. W alton Albuquerque
Coordenador Médico do Serviço de Endoscopia Digestiva do Instituto Alfa
Sandra Beatriz M arion Valarini de Gastrocnterologia (do Hospital das Clínicas da UFMG) c do Hospital da
Médica Gastrocntcrologista c Endoscopista Titulada. Mestre cm Medici­ Polícia Militar de Minas Gerais. Endoscopista Assistente do Hospital Felício
na de Urgência pela PUCPR. Professora de Medicina da PUCPR, Curi­ Rocho. Membro Titular da SOBED c do CBC. Especialização cm Endosco­
tiba, PR. pia cm Lyon, França. Doutor cm Gastrocnterologia pela FMUFMG.

Shirley Ramos da Rosa Utiyama W ashington Luiz dos Santos V icirat


Ph.D. Professora Associada do Departamento de Patologia Médica da Doutor cm Gastrocnterologia. Assistente da Clínica Gastrocntcrológica
Universidade Federal do Paraná. Professora da Disciplina de Imunologia da Santa Casa de Misericórdia, Belo Horizonte, MG.
Dedicatória

Dedico este livro a Lucia Soares de Albuquerque, verdadeira irmã mais velha, amiga em todos
os momentos, falecida dias antes de seu centenário, e a Célio Diniz Nogueira, grande mestre
de cirurgia, grande amigo.

R. Datti

Para meus mestres da vida, diletos pais, Abelardo e Mariinha.

Para meus mestres de iniciação na ciência e na arte de Hipócrates, nos exemplos luminosos de
José de Laurentys Medeiros e Luiz de Paula Castro, bússolas orientadoras que me conduziram
ao saber sábio e de prática aprendizagem com um Vaz Coelho.

Com especial reconhecimento ao professor Renato Dani, pelo generoso convite que me abre
as portas deste livro de referência para toda a gastroenterologia brasileira, por ele magistral­
mente concebido.

Maria do Carmo Friche Passos


Meus filh o s e netinhos

Há muitos anos um árabe, homem importante entre os seus, palácios subterrâneos, tampouco aqueles que os precederam.
dirigiu a um arqueólogo inglês, de nome Austen Henry Layard, Então, eis que aparece um franco, de um país afastado muitos
as palavras de espanto e respeito que verão adiante. O que mo­ dias de viagem, vai ele diretamente ao lugar, pega um bastão e
tivou toda a emoção e admiração do xeique foram as descober­ traça uma linha para cá, uma linha para lá. Aqui, diz, está o
tas trazidas à luz do dia pelo arqueólogo. Esse inglês, nascido palácio, e acolá está o portão. E mostra-nos o que, durante toda
de família modesta e mais tarde nomeado Sir, desenterrou das a nossa vida, esteve sob os nossos pés, sem que nada soubésse­
areias do deserto maravilhas de um passado remoto, testemu­ mos. Maravilhoso! Maravilhoso! Aprendeste isso pelos livros,
nhas palpitantes do esplendor da perdida civilização assíria. Ele por artes mágicas, ou pelos vossos profetas? Di-lo, ó Bei! Diz-me
é um bom exemplo de como um homem de poucos recursos
o segredo da sabedoria!"
materiais, mas determinado, transforma sonhos em realidade.
Layard continuou o trabalho do francês Paul-Émil Botta, pio­ Assim discursou o aturdido xeique Abd-Al-Rahman. Eu
neiro no campo da arqueologia mesopotâmica, com quem se também queria saber esse segredo e meu coração se aquece ao
encontrara e cujas conversas muito o influenciaram. O francês imaginar que — quem sabe? — vocês o descubram. É possível
era, também, um médico como o trisavô, o bisavô, o avô e a que o caminho para lá chegar inclua ter um espírito aberto e
avó de vocês, meus netos, o que não deixa de gerar um certo desarmado, inteligência, curiosidade, observação crítica e sim­
ar de empatia... Botta constitui outro belo exemplo de como plicidade. Simplicidade de espírito para reconhecer que pouco
nada interfere entre um homem e seu sonho, se o espírito é se sabe e que sempre devemos buscar aprender mais; humildade
forte. Agora, fechem os olhos, imaginem-se sobre uma duna para perceber que a verdadeira sabedoria é mais que erudição,
no deserto do Iraque e ouçam o árabe: mas que, ao mesmo tempo, permita sentir cada alvorada como
um reinicio e cada dia como outro momento para se procurar
uMeu pai e o pai de meu pai, antes de mim, abriram aqui as
suas tendas... Há doze séculos que os verdadeiros crentes — Alá o que toda a vida esteve sob os nossos pés.
seja louvado, só eles possuem a verdadeira sabedoria! — se es­
tabeleceram neste país, e nenhum deles jamais ouviu falar em Com o amor do Renato
Apresentação

O Brasil é um país suficientemente importante em Gastro-soube utilizar os meios de que dispunha, analisando prospec-
enterologia para ter, em língua portuguesa, um bom tratado de tivamente um material patológico enorme, em comum com o
doenças do aparelho digestivo, como, de fato, existe. Um destes seu amigo Célio Nogueira. Exploraram a anatomia patológica,
foi editado por Renato Dani e Luiz de Paula Castro, e conta com a epidemiologia, a clínica, a cirurgia, enfim, a patologia pan­
várias edições. A presente obra, Gastroenterologia Essencial, é creática brasileira sob múltiplos aspectos, bem como seu papel
mais compacta que o livro anterior, uma atualização crítica, nosológico. Fizeram isso tão bem que permitiram conhecer as
motivada pelos mais recentes progressos em Gastroenterologia. doenças do pâncreas melhor do que em diversos outros países
Penso que Renato Dani é, realmente, a pessoa apropriada para mais equipados. Após sua iniciação, Renato Dani não se deixou
redigi-lo. Eu o conheço há mais de 40 anos. Foi um dos primei­ repousar. Ele compreendeu que métodos sofisticados de pes­
ros colaboradores do meu Serviço de Gastroenterologia Clínica quisa, como a biologia molecular, não tornam inútil a pesquisa
e do Grupo de Pesquisas em Patologia Digestiva de Marselha, clínica, como muitos imaginam. De fato, não é raro observar
setor este muito orientado para o pâncreas. Rapidamente, me que trabalhos complexos e bem elaborados não se aplicam a
dei conta das qualidades que fazem dele um pesquisador inter­ nenhum problema preciso. Multiplicando as conferências no
Brasil e em numerosos países da América e da Europa, ele pode
nacionalmente conhecido: é detentor de uma inteligência viva,
ser considerado, sem favor, um dos responsáveis pela vitalidade
bastante cético para rejeitar, sem dar maior atenção, o inútil e
da pesquisa em Gastroenterologia no Brasil. Ninguém duvide
o falso, ainda que revestidos de uma roupagem que impressio­
que este livro, que traz uma visão precisa sobre múltiplos as­
na, assim como tem a capacidade de identificar o relevante — e
pectos da patologia do aparelho digestivo, se compare aos bons
apreendê-lo. Juntos, em meu laboratório, estudamos os efeitos
similares publicados na literatura internacional.
da refeição simulada sobre a secreção pancreática do homem,
o que tinha sido descrito apenas no cão, por Pavlov (fase cefá- Henri Sarles
lica da secreção pancreática). Voltando a Belo Horizonte, ele Marselha.
Prefácio à Quarta Edição

Esta quarta edição de Gastroenterologia Essencial apresenta diagnóstico. Um exemplo edificante desses fatos é o livro de Za-
algumas diferenças se comparada com a anterior. A primeira e chary Cope (1881 -1974), Early diagnosis o f the acute abdômen,
mais importante novidade é a inclusão da professora Maria do publicado a primeira vez em 1921, com inúmeras edições. Foi
Carmo Friche Passos como autora associada. A doutora Maria atualizado apenas em seus comentários sobre exames comple­
do Carmo é Professora Doutora da Faculdade de Medicina da mentares modernos, por William Silen, professor de Cirurgia
UFMG. É um nome bastante conhecido da Gastroenterologia da Harvard School of Medicine. Este livro é uma obra-prima
nacional, sobretudo entre aqueles que se interessam pelas do­ de Medicina Clínica e continua tão atual e útil quanto o era em
enças funcionais do aparelho digestivo. A sua inclusão certa­ 1921, justamente por privilegiar a clínica. A última edição, a
mente valoriza o nosso livro e é muito bem-vinda. vigésima, é de 2000.
O texto foi todo revisto para ficar conforme as normas do Dois colegas faleceram durante os trabalhos de preparação
mais recente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A Edi­ do livro, e lamentamos profundamente essas mortes e a falta
tora Guanabara Koogan, por sua vez, utilizou um programa de que farão: o Professor Doutor Washington Luiz dos Santos
computador que padroniza os termos mais usados em Medi­ Vieira, falecido por ocasião da 3dedição, e o Professor Doutor
cina, para uniformizar a grafia dessas palavras nos livros que Augusto Paulino Netto, durante a feitura da quarta edição. Am­
edita. Particularmente, estranhamos algumas poucas palavras, bos foram muito importantes em edições passadas e estão incluí­
mas todas foram pesquisadas pela Editora e se encontram jus­ dos nesta. Manifestamos aqui a nossa saudade e respeito.
tificadas no vernáculo.
Finalmente, queremos, mais uma vez, agradecer aos co­
Do ponto de vista científico, o livro foi revisado integralmen­ laboradores, nacionais e estrangeiros, pelo esplêndido tra­
te. Dois capítulos foram excluídos, por não serem mais rele­ balho ao escrever os seus capítulos. Agradecemos, também,
vantes para a Gastroenterologia clínica ou por tratarem de um aos leitores, e estamos abertos para suas sugestões e críticas.
teste propedêutico já rotineiro; outros tiveram a colaboração de Não poderiamos deixar de agradecer à diretoria do GEN
novos autores ou, ainda, foram incluídos por versarem sobre | Grupo Editorial Nacional - do qual faz parte a Guanaba­
conhecimentos recentes, como o caso do 113, Transplante de ra Koogan -, na pessoa de seu diretor-presidente, Sr. Mauro
Intestino e Multivisceral. Os capítulos que seguem essas normas Koogan Lorch, que sempre nos prestigiou e tratou com distin­
são: 23, 25, 34, 35, 50, 76, 92, 105 e 113. O livro é fartamente ção. Agradecemos também ao pessoal técnico da área da saú­
documentado com figuras em preto e branco e, em relação às de: Sérgio Pinto, Robson Domingues, Aluisio AfFonso, Juliana
edições anteriores, conta com mais ilustrações coloridas. Que­ Affonso, Maria Fernanda Dionysio e Beatriz Carneiro, dentre
remos insistir no fato de que, apesar dos avanços dos testes outros que trabalharam no livro. A todos que nos apoiaram e
diagnósticos, o exame clínico é fundamental. Devemos ouvir incentivaram, o nosso muito obrigado.
os doentes, interrogá-los e proceder ao exame físico cuidadoso.
Muitas vezes, o doente, ao contar a sua história, nos entrega o Os autores.
Prefácio à Terceira Edição

Esta terceira edição da Gastroenterologia Essencial pretende Em 2004 faleceu o professor Liberato João AfFonso Di Dio.
seguir a mesma orientação das edições precedentes: compac­ Foi uma grande perda para o ensino e a pesquisa, tanto no Bra­
ta, informativa e atualizada. A boa acolhida das duas edições sil, quanto na América do Norte. Fui seu monitor de Anatomia
anteriores justifica a atual e constitui, para o autor e colabora­ Humana na Faculdade de Medicina da UFMG e quero dar-lhe
dores, motivo de muita satisfação. Algumas mudanças foram o meu adeus nestas páginas.
introduzidas visando atender leitores e tratar de matéria que
Ao Sr. Mauro Koogan Lorch, diretor da Guanabara Koogan,
foi menos ventilada na segunda edição. O livro aumentou um
um verdadeiro gentleman, minha gratidão por sua confiança
pouco, agora tem 112 capítulos. Como sempre, os colaborado­
e muitas gentilezas.
res fizeram um belo serviço, sobretudo se considerarmos que é
muito mais difícil escrever compactamente do que sem limites. Ao Sr. Sérgio Alves Pinto, o meu muito obrigado por seus
Aproveito, portanto, para agradecer a todos que escreveram cuidados e dedicação para fazer o melhor possível editorial­
para as três edições e dizer-lhes da minha admiração e gratidão. mente.
Sou particularmente reconhecido aos amigos Adávio de Oli­ Finalmente, expresso minha esperança de que o livro con­
veira e Silva, Luiz Gonzaga Vaz Coelho, Lorete Maria da Silva tinue a ser útil a médicos e estudantes que se interessam pela
Kotze, Mounib Tacla e à “turma” de Juiz de Fora. O entusiasmo Gastroenterologia.
deles contagia e impulsiona. Não posso deixar de mencionar
os meus residentes, que, através dos anos, constituíram motivo Renato Dani
de orgulho e um estímulo continuado. Verão de 2006.
Prefácio à Primeira Edição

Este livro foi encomendado pelo Sr. Mauro Koogan Lorch, a minha formação profissional ao Prof. Sarles, a cuja escola
da Editora Guanabara Koogan. Ele desejava uma obra que fosse tenho a honra de pertencer, e, também, aos Professores Luigi
compacta, atualizada, de leitura amena, e que servisse a estu­ Bogliolo e, especialmente, João Galizzi; deste, fui assistente por
dantes, clínicos e especialistas. Na realidade, ele estava pro­ muitos anos, e não conheço quem lhe seja superior em decência,
pondo uma tarefa bastante difícil e, por isso, a minha primeira retidão e respeito a seus semelhantes; aquele introduziu-me na
resposta foi um assustado não. No Natal de 1996, o Sr. Mauro pesquisa experimental e ensinou-me a ser crítico.
renovou o convite e, com seus argumentos envolventes e sim­
Durante a impressão do livro, perdemos Eduardo Botelho
páticos, acabou por obter a temerosa aquiescência deste escri-
de Carvalho, colaborador em nossos livros médicos e colega na
ba. Antes do sim definitivo, porém, procurei ouvir colegas que
Faculdade de Medicina da UFMG. Faleceu prematuramente,
poderiam me auxiliar a cumprir aquele contrato tão específico.
aos 44 anos, em plena efervescência de uma carreira em franca
Assim, expliquei ao Adávio de Oliveira e Silva de que se tratava,
ascensão. Realmente, lamentamos muito. Devo assinalar a pa­
e perguntei-lhe o que achava. A resposta foi o que o Adávio é:
ciência do Sr. Sérgio Alves, ocasionalmente necessária, durante
uma explosão de dinâmico otimismo e entusiasmo. Com essa
a gestação da obra; é sua a responsabilidade por todo o trabalho
positiva injeção de ânimo, convidei, em seguida, colaborado­
gráfico envolvido na feitura deste livro. Ao agradecer à Gua­
res reconhecidamente respeitados por seus conhecimentos e
experiência, e entreguei a eles, e a seus grupos, algumas partes nabara Koogan a confiança em mim depositada, pergunto-me
do livro. Ao Pedro Gaburri, Aécio Meirelles e Adilton Orne- se o Sr. Mauro aceitou o trabalho terminado como aquilo que
las, encomendei a primeira seção do livro; ao Márcio Tolenti- imaginara, pois muito compacto o livro não ficou, afinal são
no, confiei doenças do esôfago; ao Luiz Gonzaga Vaz Coelho, 100 capítulos... Reconheço, ademais, que alguns destes acaba­
o bloco do estômago; à Lorete Kotze, a patologia do intestino ram mais longos do que eu desejava, mas achei que estavam
delgado; ao Adávio, o fígado; ao Mounib Tacla, as alterações do tão informativos que não deveria podá-los. Sobretudo, tenho
intestino grosso; e, a outros colegas, capítulos isolados. Creio a esperança de que os colegas encontrem em suas páginas res­
que os leitores concordarão em que todos os colaboradores, postas para as indagações do dia a dia, e até mesmo algumas
nacionais e internacionais, se saíram muito bem, como era de informações que serão parte rotineira da formidável medicina
se esperar, e agradeço a cada um o seu esforço e competência. que se prenuncia para o século XXI.
O meu amigo, Professor Henri Sarles, de Marselha, escreveu a Lembro que, apesar de muito cuidado com as informações
“Apresentação”. Fiz questão de convidá-lo porque tenho por relacionadas à terapêutica, esse é um território muito movediço,
ele o maior respeito e afeição. O Prof. Sarles é líder de uma e alterações podem aparecer a qualquer momento.
prestigiosa escola de Gastroenterologia, com discípulos atu­
Gostaria de terminar esse prefácio citando o padre Antonio
antes por todo o mundo, muitos aqui no Brasil. A sua cultura
Vieira (Lisboa, 6/2/1608 — Salvador, Bahia, 18/7/1697), ao es­
é algo de notável, não só médica, mas humanística, o que faz
dele um homem à altura das melhores tradições da escola fran­ crever sobre a arte de semear, num franco anunciar de Guima­
cesa. É um homem que é quelqu’un et quelque chose. O atual rães Rosa: Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo sefa z por
comandante dessa Escola de Marselha é o Prof. José Sahel, de compasso, na arquitetura, tudo se fa z por regra, na aritmética
renome internacional, que também colabora neste livro, e que tudo se fa z por conta, na geometria tudo se fa z por medida. O
mantém a tradição de nossa escola. Os leitores notarão que o semear não é assim. Ê uma arte sem arte: caia onde cair.
Prof. Sarles usou, a meu respeito, palavras fraternas, exageradas,
tais como um amigo se refere a outro, mas que, não obstante, Renato Dani
me deixaram emocionado e grato. Reconheço que muito devo Belo Horizonte, verão de 1998.
Sumário

P arte I Generalidades, 1 13 Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias


1 Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa, 3 Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões
Laura Cotta Ornellas Halfeld, Juliano Machado de Oliveira
Causadas por Comprimidos e Síndrome de
eAdilton Toledo Ornellas Mallory-Weiss, 127
David Corrêa Alves de Lima, Silas de Castro Carvalho,
2 Sangramento Gastrintestinal Crônico, 17 Rodrigo Macedo Rosa e Luiz Ronaldo Alberti
Pedro Duarte Gaburri, Ana Karla Gaburri, Adilton Toledo
Ornellas e Aécio Flávio Meirelles de Souza 14 Acalasia e Megaesôfago, 140
Eponina Maria de Oliveira Lemme, Paula Amorim Novais
3 Diarréia Aguda e Crônica, 26 e Vânia Luiza Cochlar Pereira
Juliano Machado de Oliveira, Laura Cotta Ornellas Halfeld
eAdilton Toledo Ornellas 15 Tumores do Esôfago, 152
José Mauro Messias Franco, Fernando Augusto
4 Halitose, Eructação e Soluço, 40
Vasconcellos Santos e Marcelo Henrique de Oliveira
Adilton Toledo Ornellas, Juliano Machado de Oliveira e
Laura Cotta Ornellas Halfeld
P arte III Estômago e Duodeno, 161
5 Alterações Motoras do Aparelho Digestivo, 46
Ricardo Guilherme Viebig
16 Anomalias Congênitas, 163
Marisa Fonseca Magalhães e Maria do Carmo
6 Aparelho Digestivo e AIDS, 59 Friche Passos
Luis Fernando Dutra Diniz e Renato Dani
17 Dispepsia Funcional, 165
7 Parasitoses Intestinais, 75 Ana Flávia Passos Ramos e Maria do Carmo Friche Passos
Pedro Duarte Gaburri, Aécio Flávio Meirelles de Souza,
Ana Karla Gaburri e Elson Vida! Martins Junior 18 Gastrite, 172
8 Estomatites, 85 Luiz Gonzaga Vaz Coelho e Maria Clara Freitas Coelho
José Alves de Freitas e Da rio Ravazzi Ambrizzi
19 Úlcera Péptica Gastroduodenal, 182
Ricardo P. B. Ferreira e Jaime Natan Eisig
P arte II Esôfago, 97
9 Anomalias Congênitas, 99 20 Úlcera Péptica Helicobacterpylori-negativa, 194
Renato Dani e Daniella Ribeiro Einstoss Korman Bruno Squárcio Fernandes Sanches, Graziella Mattar
Vieira de Alvarenga e Renato Dani
10 Doença por Refluxo Gastresofágico, 102
Eliza Maria de Brito e Luciana Dias Moretzsohn 21 Divertículos, Vólvulo, Dilatação Aguda,
11 Membranas, Anéis e Divertículos do Corpos Estranhos (Bezoares), Ruptura Gástrica
Esôfago, 113 e Crohn, 201
Carlos Henrique Diniz de Miranda e Maria do Carmo
Vitor Antonino Mendes de Sá
Friche Passos
12 Comprometimento do Esôfago por Infecções,
Radiação e Agentes Químicos, 118 22 Infecções Crônicas: Tuberculose, Sífilis, Micoses
Paulo Fernando Souto Bittencourt, Edivaldo Fraga e Herpes, 206
Moreira e Walton Albuquerque Luciana Dias Moretzsohn e Maria do Carmo Friche Passos
XXVI Sumário

23 Polipose Gástrica, 210 37 Tumor Estromal Gastrintestinal, 417


Celso Mirra de Paula e Silva Mounib Tacla

24 Tumores do Estômago, 215


Luiz Gonzaga Vaz Coelho, Washington Luiz dos Santos P arte V Intestino Grosso, 421
Vieira'e Rogério Luiz Pinheiro 38 Colite Microscópica, Colite Pseudomembranosa
e Colite Radiógena, 423
25 Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo, 227
Mounib Tacla e Renato Dani
Mauro Bafutto eJoffre Rezende Filho
39 Constipação Intestinal e Fecaloma, 429
26 Outras Doenças do Duodeno, 238
José Alves de Freitas e Mounib Tacla
Luciana Diniz Silva e Penélope Lacrfsio dos Reis Menta
40 Síndrome do Intestino Irritável, 442
P arte IV Intestino Delgado, 247 Maria do Carmo Friche Passos
27 Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e
41 Doença Diverticular do Cólon, 449
Grosso, 249
José Alves de Freitas e Mounib Tacla
Dorina Barbieri, Maraci Rodrigues e Isaura Ramos
Assumpção 42 Apendicite Aguda e Outras Doenças do
28 Síndrome de Má Absorção Intestinal, 266 Apêndice, 456
Lorete Maria da Silva Kotze, Luiz Roberto Kotze e Renato Mounib Tacla
Mitsunori Nisihara
43 Retocolite Ulcerativa, 460
29 Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios José Alves de Freitas, Adérson Ornar Mourõo Cintra
e Outros Distúrbios na Digestão de Damiõo e Mounib Tacla
Nutrientes, 278
Patrícia Barbosa Ferrari, Sandra Beatriz Marion Valarini,
44 Tuberculose Intestinal, 476
Jean Rodrigo Tafarel e Lorete Maria da Silva Kotze Mounib Tacla

30 Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção 45 Megacólon, 478


de Nutrientes, 294 José Alves de Freitas, Mounib Tacla e Renato Dani
Lorete Maria da Silva Kotze e Shirley Ramos da Rosa
Utiyama 46 Tumores Benignos Colorretais, 483
Mounib Tacla
31 Doença Imunoproliferativa do Intestino
Delgado, Doença de Whipple e Outros 47 Tumores Malignos Colorretais, 490
Distúrbios no Transporte de Nutrientes, 331 Mounib Tacla e Arnaldo José Pontello Neves
Maria de Lourdes de Abreu Ferrari, Aloísio Sales da Cunha
e Lorete Maria da Silva Kotze
48 Obstrução Intestinal, 502
Renato Rocha Passos, Augusto Paulino Netto' e
32 Doença de Crohn, 347 Paulo Villardo Valle
Lorete Maria da Silva Kotze, Paulo Gustavo Kotze e Luiz
Roberto Kotze 49 Pseudo-obstrução Intestinal, 514
VictorB. Koehne
33 Síndrome do Intestino Curto, 381
Paulo Cesar Andriguetto
P arte VI Ânus e Reto, 521
34 Insuficiência Vascular Mesentérica, 391 50 Doenças Anorretais, 523
Ricardo Cesar Rocha Moreira Flávio Antonio Quilici e Lisandra Carolina Quilici
35 Supercrescimento Bacteriano no Intestino
Delgado, 402 P arte VII Fígado, 573
Ahmed Abu-Shanab, Rodrigo M. Quera e Eamonn M. M.
51 Conduta Diagnóstica em Pacientes com Doença
Quigley (Tradução: Lorete Maria da Silva Kotze)
Hepatobiliar, 575
36 Tumores do Intestino Delgado, 406 Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Lorete Maria da Silva Kotze, Luiz Roberto Kotze e Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle,
Paulo Gustavo Kotze Taiane Costa Marinho e Leonardo ReuterMotta Gama
Sumário XXVII

52 A Icterícia como Síndrome: 59 Ascite Hepatogênica, 673


Não Colestática e Colestática, 585 Adávio de Oliveira e Silva, Evandro de Oliveira Souza,
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Verônica Desirée Samudio Cardozo, Briane André
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Leonardo Vertuan Ferreira, Leonardo ReuterMotta Gama, Celso
ReuterMotta Gama, Celso Marques Raposo Júnior, Marques Raposo Júnior, Naisa Oliveira Alvim Mattedi,
Cristiane Maria de Freitas Ribeiro, Naisa Oliveira Lucas Cagnin, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula
Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Fábio Rosa Moraes, Hugueney Cruz, Francisco Leôncio Dazzi, Raul Carlos Wahle
Raul Carlos Wahle 60 Síndrome Hepatorrenal e Síndrome
Hepatopulmonar, 684
53 Hepatite Aguda Viral, 592
Heitor Rosa e Américo de Oliveira Silvério
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Leonardo Reuter 61 Peritonite Bacteriana Espontânea, 692
Motta Gama, Celso Marques Raposo Júnior, Naisa Oliveira Ângelo Alves de Mattos e Ângelo Zambam de Mattos
Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Gerusa Náximo de Almeida,
Flávia Costa Cardoso, Raul Carlos Wahle 62 Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico, 698
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
54 Hepatite Viral Crônica, 600 Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle,
Taiane Costa Marinho, Renato Ferrari Letrinta, Arnaldo
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Bernal Filho, Paula Huheney Cruz, Briane André Vertuan
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Leonardo Reuter
Ferreira, FauzeMaluf Filho
Motta Gama, Celso Marques Raposo Júnior, Cristiane
Maria de Freitas Ribeiro, Naisa Oliveira Alvim Mattedi, 63 Cirrose Biliar Primária e Síndromes de
Lucas Cagnin, Maria Elizabeth Calore Neiva, Gerusa Superposição, 710
Máximo de Almeida, Raul Carlos Wahle Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Taiane Costa
55 Hepatite Crônica Não Viral, 620
Marinho, Celso Marques Raposo Júnior, Naisa Oliveira
Luiz de Souza e Silva Júnior, Verônica Desirée Samudio Alvim Mattedi, Paula Hugueney Cruz, Lucas Souto Nacif,
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos André Gustavo Santos Pereira, Raul Carlos Wahle
Wahle, Taiane Costa Marinho, Leonardo ReuterMotta
Gama, Celso Marques Raposo Júnior, Naisa Oliveira 64 Colangite Esclerosante Primária, 719
Alvim Mattedi, Lucas Gagnin, Rafael Hygino Rodrigues Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Cremonin, Paula Hugueney Cruz, Maiza da Silva Costa, Cardozo, Taiane Costa Marinho, Naisa Oliveira Alvim
Adávio de Oliveira e Silva Mattedi, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula
Hugueney Cruz, Guilherme Tarameli dos S. Cecílio, Raul
56 Hepatite Aguda Fulminante, 631 Carlos Wahle, Cristiane Maria de Freitas Ribeiro
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio 65 Hemocromatose Hereditária, 728
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Rafael Hygino Adávio de Oliveira e Silva, Luiz de Souza e Silva Júnior,
Rodrigues Cremonin, Paula Hugueney Cruz, Taiane Verônica Desirée Samudio Cardozo, Evandro de Oliveira
Costa Marinho, Maria Juliana Louggio Cavalcanti, Maria Souza, Taiane Costa Marinho, Leonardo ReuterMotta
Elizabeth Calore Neiva, Arnaldo BernaI Filho, Raul Carlos Gama, Celso Marques Raposo Júnior, Naisa Oliveira
Wahle Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Rafael Hygino Rodrigues
Cremonin, Hilton Muniz Leão Filho e Raul Carlos Wahle
57 Cirrose Hepática, 643
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio 66 Doença de Wilson, 736
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Taiane Costa Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Marinho, Leonardo ReuterMotta Gama, Lucas Cagnin, Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Celso Marques
Raposo Júnior, Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas
Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula Hugueney Cruz,
Cagnin, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Taiane Costa
Guilherme Tarameli dos S. Cecílio, Maria Juliana Louggio
Marinho, Leonardo ReuterMotta Gama, Arnaldo Bernal
Cavalcanti, Francisco César Nassar Tribulato, Raul Carlos
Filho, Ana Beatriz de Vasconcelos, Raul Carlos Wahle
Wahle
67 Doença Hepática Alcoólica, 740
58 Encefalopatia Hepática, 664 Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio
Adávio de Oliveira e Silva, Raul Carlos Wahle, Verônica Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Ana Beatriz de
Desirée Samudio Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Vasconcelos, Lucas Cagnin, Rafael Hygino Rodrigues
Maria Ermelinda Camilo, Ana Beatriz de Vasconcelos, Cremonin, Felipe de Souza Atan, Celso Marques Raposo
Marcela Mendes Assumpçâo, Francisco César Nassar Júnior, Naisa Oliveira Alvim Maltedi, Paula Hugueney
Tribulato, Taiane Costa Marinho, Dan L Waitzberg Cruz, Raul Carlos Wahle
XXVIII Sumário

68 Doença Vascular do Fígado, 749 80 Colecistites, 908


Aécio Flávio Meirelles de Souza, Kátia Valéria Bastos Dias Renato Dani e Henrique Eloy B. Câmara
Barbosa, Fábio Heleno de Lima Pace e Lincoln Eduardo
Villela Vieira de Castro Ferreira 81 Síndrome Pós-colecistectomia, 913
Eduardo Nacur Silva e Renato Dani
69 Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica, 762
Guilherme Santiago Mendes 82 Disfunção do Esfíncter de Oddi, 917
José Galvõo Alves, José Celso Ardengh, Ângelo Paulo
70 Fígado e Gravidez, 767 Ferrari Junior e Marta Carvalho Galvõo
José de Laurentys Medeiros e José de Laurentys
Medeiros Junior 83 Colecistoses, Coleperitônio, Peritonite Biliar,
Hemobilia, Bilemia e Parasitos Biliares, 927
71 Fígado e Drogas, 775 Paulo Roberto Savassi Rocha e Rogério Luiz Coutinho
Aécio Flávio Meirelles de Souza, Kátia Valéria Bastos Lopes
Dias Barbosa, Fábio Heleno de Lima Pace e Juliano
Machado de Oliveira 84 Tumores de Vesícula, Vias Biliares e Ampola
de Vater, 939
72 Doença Cística Hepatobiliar, 800 Renato Dani e José Dayrell de Lima Andrade
Marcos Vinícius Perini e Paulo Herman

73 Abscesso Piogênico do Fígado, 806 P arte IX Pâncreas, 965


Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio 85 Anomalias do Desenvolvimento, 967
Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Leonardo Reuter
Julio Maria Fonseca Chebli, Liliana Andrade Chebli,
Motta Gama, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula
André Luiz Tavares Pinto
Hugueney Cruz, Roberto Franceschelli Neto, Renato
Ferreira Letrinta, Lucas Souto Nacif, Raul Carlos Wahle 86 Deficiências Enzimáticas Isoladas
e Hilton Muniz Leáo Filho Congênitas, 974
74 Tumores Benignos do Fígado, 809 Renato Dani
Adávio de Oliveira e Silva, Raul Carlos Wahle, Verônica 87 Classificação das Pancreatites, 976
Desirée Samudio Cardozo, Evandro de Oliveira Souza, Renato Dani
Lucas Cagnin, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula
Hugueney Cruz, Priscila Lopes, Cristiane Maria de Freitas 88 Pancreatite Aguda, 980
Ribeiro e Hilton Muniz Leão Filho Renato Dani
75 Tumores Malignos do Fígado, 822 89 Complicações da Pancreatite Aguda, 996
Carlos Sandoval Gonçalves, Maria da Penha Zago Gomes, José Galvâo-Alves e Marta Carvalho Galvõo
Patrícia Lofêgo Gonçalves e Fausto E. L Pereira
90 Nutrição e Pancreatite Aguda, 1007
76 Doenças do Fígado na Infância, 853
Julio Maria Fonseca Chebli, Liliana Andrade Chebli,
Gilda Porta e Adriana Porta Miche Hirschfeld Carlos Augusto Gomes, Rodrigo de Oliveira Peixoto
77 Transplante de Fígado, 865 91 Pancreatite Crônica, 1013
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Renato Dani e Eduardo Nacur Silva
Cardozo, Jorge Marcelo Padilla Mancero, Francisco
Leôncio Dazzi, Adriano Miziara Gonzalez, Marcelo 92 Pancreatite Autoimune, 1024
Augusto Fontenelle Ribeiro Júnior, Evandro de Oliveira José Galvâo Alves, Natália Cordeiro, Daniella Cavalcanti
Souza, Cristiane Maria de Freitas Ribeiro, Arnaldo e Marta Carvalho Galvâo
Bernal Filho, Renato Ferrari Letrinta, Luiz A. Carneiro
D'Albuquerque 93 Cistos Pancreáticos, 1029
Renato Dani
P arte VIII Vias Biliares, 893 94 Tratamento Endoscópico das Doenças
78 Anomalias Congênitas, 895 Pancreáticas, 1042
Renato Dani José Sahel e Gustavo Miranda Martins

79 Litíase Biliar, 898 95 Tumores do Pâncreas Exócrino, 1052


Renato Dani e Henrique Eloy B. Câmara Liano Sia Moreira e Renato Dani
Sumário XXIX

96 Tumores Neuroendócrinos do Pâncreas, 1068 105 Pancreatite Crônica Paraduodenal


José Galvóo Alves, Augusto Paulino Netto (in memoriam), (Groove pancreatitis), 1166
Marta Carvalho Galvâo, Andréa de Faria Mendes, Renato Dani
DanielIa Cavalcanti e Natália Cordeiro
106 Farmacoterapia, Aparelho Digestivo e o
Paciente Geriátrico, 1168
P arte X Miscelânea, 1077 Márcio Guimarães Moreira Dias, Renato Dani e
Elmar José Moreira Lima
97 Alergia Alimentar, 1079
Renato Dani e Eduardo Botelho de Carvalho 107 Imunidade, Inflamação e o Aparelho
fin memoriam; Digestivo, 1179
Roberto Pimentel Dias
98 Fístulas Digestivas, 1086
Renato Dani e Eduardo Botelho de Carvalho 108 Terapêutica da Dor Abdominal, 1200
(in memoriam) Renato Dani e Roberto Santoro Meirelles

99 Abscessos Intra-abdominais, 1097 109 Dor Torácica não Cardíaca (de Origem
Renato Dani e Bruno Squárcio Fernandes Sanches Indeterminada), 1205
Joffre Rezende Filho e Joffre Marcondes de Rezende
100 Tumores Carcinoides do Trato
Gastrintestinal, 1111 110 Flora Gastrintestinal Indígena, 1211
Luciano Cézar Ribeiro Magalhães, Renato Dani, Dulciene Maria de Magalhães Queiroz, Luciana Diniz
Márcio Guimarães Moreira Dias Silva, Andreia Maria Camargos Rocha e Gifone Aguiar
Rocha
101 Esquistossomose Mansônica, 1124
Guilherme Santiago Mendes 111 Diagnóstico e Tratamento das Complicações em
Endoscopia Digestiva, 1216
102 Doenças do Peritônio, 1130
Walton Albuquerque, Luiz Cláudio Miranda da Rocha,
José de Laurentys Medeiros e Maria do Carmo Vitor Arantes e Alexandre Rodrigues Ferreira
Friche Passos
112 Abdome Agudo, 1244
103 Obesidade, 1138
Frederico Passos Marinho e Adriana Athayde Lima Stehling
José Dayrell de Lima Andrade e Renato Dani
113 Transplante de Intestino e Multivisceral, 1258
104 Terapêutica Endoscópica em Patologia
Rodrigo Vianna e Thiago Beduschi
Biliar, 1151
Glaciomar Machado índice Alfabético, 1263
Gastroenterologia
Essencial
PARTE I
Generalidades
Hemorragia Digestiva Aguda
Alta e Baixa
Laura Cotta Ornellas Halfeld, e
Adilton Toledo Ornellas

■ INTRODUÇÃO ■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS


A hemorragia digestiva (HD) é uma das causas mais fre­ A HD aguda manifesta-se através de hematèmese (vômitos
quentes de hospitalização de urgência. A sua incidência tem se de sangue vivo ou em “borra de café”), de melena (fezes negras,
mantido estável nas últimas décadas, pois, apesar da melhora tipo alcatrão, malcheirosas), de hematoquezia (eliminação pelo
na abordagem propedêutica e na terapêutica, principalmente reto de sangue vermelho vivo, ou de cor vinhosa, ou de coá­
da úlcera péptica gastroduodenal, que é a causa mais im por­ gulos recentemente formados).
tante, a população tem envelhecido e aumentado a incidência A hem orragia digestiva aguda alta (HDAA) é definida
de comorbidades que predispõem a HD. como aquela que se instala em consequência de lesões locali­
O quadro clínico da HD pode corresponder a várias situa­zadas proximais ao ligamento de Treitz, manifestando-se, na
ções diferentes. A razão de tal diversidade é que o sangramen- maioria das vezes, através de hematèmese e/ou de melena. A
to pode decorrer de múltiplas lesões e de vários segmentos do hemorragia digestiva aguda baixa (HDAB) é causada por le­
trato gastrintestinal. O sangramento também pode ser maciço sões situadas distalmente ao ligamento de Treitz e identificada,
ou leve, evidente ou oculto. A HD manifesta-se clinicamente de mais frequentemente, através de hematoquezia.
uma ou mais das seguintes formas: alta (proveniente do trato A primeira etapa na conduta do paciente com HD é a ava­
gastrintestinal superior), baixa (proveniente do trato gastrintes­ liação da gravidade do sangramento, conforme o Quadro 1.1.
tinal inferior), oculta (desconhecida pelo paciente), ou obscura Levando-se em consideração o volume das perdas sanguíneas, a
(proveniente de local desconhecido no trato gastrintestinal). HD pode ser caracterizada como maciça, moderada ou discreta.
HD aguda é aquela de aparecimento recente (arbitrariamente Maciça, quando há perdas muito elevadas, com repercussões
definido como menos de 3 dias de duração), podendo levar à hemodinâmicas importantes e apresentando pressão arterial
instabilidade dos sinais vitais, anemia e/ou necessidade de trans­ sistólica com o paciente em posição supina abaixo de 90 mmHg,
fusão sanguínea. HD crônica consiste em sangramento por um frequência cardíaca acima de 100 bpm e perdas sanguíneas aci­
período de vários dias, frequentemente com perda de sangue ma de 2.000 m^ ou mais de 40% da volemia. Moderada, quando
lenta ou intermitente. Pode se manifestar com sangue oculto ou se exterioriza por hematèmese, melena ou hematoquezia, mas
visível nas fezes, anemia, sem repercussão hemodinâmica. Este com repercussões hemodinâmicas discretas, pressão arterial
capítulo refere-se apenas à HD aguda, tanto alta quanto baixa. sistólica acima de 90 mmHg, frequência cardíaca abaixo de
HD alta é aproximadamente cinco vezes mais frequente que 100 bpm e perdas sanguíneas abaixo de 1.500 m^ ou entre 20
HD baixa. A HD é mais comum em homens, idosos e porta­ e 40% da volemia. Caracteriza-se como discreta quando não
dores de doenças crônicas. Pode apresentar uma evolução au- tem repercussão hemodinâmica, as perdas sanguíneas são in­
tolimitada em cerca de 80% dos casos, o que não diminui sua feriores a 1.000 ou de, no máximo, 20% da volemia. São
importância, pois algumas vezes evolui mal e leva ao óbito. Em ainda incluídos nesse grupo os sangramentos gastrintestinais
vista disso, é preciso ficar alerta para os critérios preditivos de crônicos inaparentes, com sangue oculto nas fezes e/ou anemia
um prognóstico desfavorável ou de risco de ressangramento, ferropriva (ver Capítulo 2).
a fim de serem tomadas medidas corretas e em tempo hábil,
visando à preservação do equilíbrio hemodinâmico e da vida.
Embora a conduta dos pacientes com HD tenha apresentado ■ REANIMAÇÃO
inúmeros avanços nas últimas décadas, os seguintes princípios
clínicos se mantêm constantes: avaliação imediata e estabiliza­ Dependendo da intensidade do sangramento, serão instituí­
ção hemodinâmica do paciente; determinação da fonte do san­ das medidas mais ou menos enérgicas para reanimação dos pa­
gramento; parada do sangramento ativo; tratamento da doença cientes. A conduta nos pacientes hemodinamicamente instáveis
de base; e prevenção de sangramento recorrente. é a seguinte: colocação de dois cateteres intravenosos calibrosos

3
4 Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

----------------------------------------- ▼-----------------------------------------
Quadro 1.1 Avaliação da gravidade da hemorragia digestiva aguda

H em orragia d igestiva PA sistólica (posição supina) FC Perda sangu ín ea % v o le m ia perdido

D is cre ta > 90 m m H g < 100 b p m < 1 .0 0 0 m f <20%

M o d e ra d a > 90 m m H g < 100 b p m < 1 .5 0 0 m * 2 0 % -4 0 %

M a c iç a < 90 m m H g > 100bpm > 2 .0 0 0 m l >40%

PA = Pressão arterial: FC « Frequência cardíaca.

imediatamente e infusão rápida de solução cristaloide com o A aparência do sangramento é útil no esclarecimento de sua
objetivo de restaurar e manter os sinais vitais normais. Além origem, mas pode induzir a erros. Quando o sangue é vermelho
disso, está indicada suplementação de oxigênio, monitoramen­ vivo e reveste as fezes, sugere origem retal (hemorroidas e fis­
to dos sinais vitais e do débito urinário. Pacientes com hema- suras, principalmente). Melena indica que o paciente sangrou
têmese significativa e contínua ou aqueles que podem não ser no mínimo 50 a 100 m^ de sangue há pelo menos 14 h e rela­
capazes de proteger a via respiratória por alguma razão e estão ciona-se mais à HDAA, embora mesmo lesões do cólon direi­
sob risco de aspiração devem ser considerados para intubação to, com trânsito lento, possam apresentar melena. A presença
endotraqueal. Os pacientes hemodinamicamente instáveis de hematoquezia é mais comum nas lesões do cólon, do reto
e/ou portadores de comorbidades graves necessitam de trans­ e do canal anal, e menos frequente em hemorragias profusas
ferência para unidade de terapia intensiva. do delgado ou proximais ao ligamento de Treitz, com trânsito
A transfusão de glóbulos vermelhos está geralmente indicada acelerado. Em uma série de 80 pacientes com hematoquezia de
em todos os pacientes com sinais vitais instáveis, sangramento vulto, 74% tinham lesões no cólon, 11% eram casos de HDAA,
contínuo ou sintomas de baixa oxigenação tecidual. O objeti­ 9% com lesões provavelmente originárias do intestino delgado e
vo deve ser a manutenção do hematócrito acima de 30% em 6% sem origem identificada. A hematêmese é mais sugestiva de
pacientes idosos ou portadores de enfermidades nos quais as HDAA, mas a peristalse reversa pode produzi-la em lesões da
perdas sanguíneas impliquem risco maior, como as coronario- parte alta do intestino delgado, distais ao ligamento de Treitz.
patias, ou acima de 20 a 25% nos pacientes jovens e saudáveis. Vômito com sangue vivo geralmente indica sangramento gas-
Nos pacientes com hipertensão portal, o hematócrito não deve trintestinal alto significativo, mesmo em pequena quantidade.
subir acima de 27 a 28%, para não elevar a pressão venosa por­ Pacientes com vômito em borra de café habitualmente não es­
tão com sangramento ativo, mas é provável que tenham san­
tal. Pode-se utilizar plasma fresco congelado ou concentrado
grado recentemente.
de plaquetas, ou ambos, nos casos de coagulopatias e que re­
Falsas HD podem ocorrer em vômitos de estase, fezes aver­
querem transfusão de mais de 10 unidades de glóbulos verme­
melhadas pela ingestão de beterraba, fezes negras pelo uso de sais
lhos. Hematócritos seriados devem complementar a avaliação
de ferro ou de bismuto, alimentos contendo sangue animal, san­
clínica dos pacientes. Quando as transfusões sanguíneas não
gramento originário na cavidade oral, epistaxe ou hemoptise.
forem mais necessárias, deve ser feita suplementação de ferro
O exame físico visa a estimar o volume perdido, através da
após avaliação diagnóstica.
repercussão hemodinâmica, verificando-se a frequência do pul­
so e a pressão arterial com o paciente deitado, assentado e em
posição ortostática, se possível. Atenta-se para a cordas muco-
■ ANAMNESEE EXAME FÍSICO sas visíveis e a presença ou não de sudorese. Propicia também
meios para identificar sinais de hipertensão portal, insuficiência
Embora cerca de 80% das HD cessem espontaneamente, a hepática, malformações vasculares, vasculites e coagulopatias.
abordagem diagnóstica necessita ser dinâmica e associada a A detecção de dor à palpação abdominal, linfadenopatia, massa
cuidados terapêuticos, com o objetivo de preservar o equilíbrio abdominal e esplenomegalia também são importantes no diag­
hemodinâmico e a vida. nóstico. Ruídos intestinais exacerbados sugerem HDAA. O to­
A magnitude do sangramento nem sempre está relaciona­ que retal deve ser realizado de rotina durante o exame físico em
da com a etiologia, estando ligada principalmente à idade do todo caso suspeito de HDAB, pois permite identificar patologias
paciente, ao uso prévio de medicamentos capazes de lesar a anorretais e, com isso, evitar que exames mais complexos sejam
mucosa ou de alterar o estado da coagulação do sangue, ou, realizados. O exame físico pode fornecer importantes informa­
ainda, à presença de enfermidades preexistentes. ções sobre a localização do sangramento, enquanto a história
Inicialmente, deve-se fazer uma anamnese bem orientada, clínica é mais útil na determinação da etiologia.
no sentido de confirmar a existência do sangramento e o uso dos Lavagem com sonda nasogástrica tem sido utilizada com
medicamentos citados anteriormente. Outros aspectos referem- a finalidade de diferenciar HDAA de HDAB, no entanto não
se à história de hemorragia anterior ou existência de sintomas esclarece a etiologia do sangramento, nem é confiável para de­
ou condições que possam produzir lesões capazes de sangrar. terminar a atividade da hemorragia. Quando positiva, pode ser
Arguir sobre cirurgias prévias, radioterapia, etilismo, uso de decorrente de trauma pela sonda e, quando negativa, mesmo
tóxicos e procedência de áreas onde prevaleçam certas doen­ com um aspirado aparentemente colorido por bile, não exclui
ças, como a esquistossomose mansônica. Sinais e sintomas que HDAA. Portanto, o seu uso tem sido desestimulado e não afeta
podem auxiliar na determinação de hipóteses diagnósticas são: a evolução do paciente. A única exceção seria na presença de
dor abdominal, náuseas, vômitos, mudança do hábito intestinal, hematoquezia em paciente com instabilidade hemodinâmica
anorexia e perda de peso. e possibilidade de HDAA.
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 5

■ EXAMES LABORATORIAIS -------------------------------------------- ▼ ----------------------------------


Quadro 1.2 Causas de hemorragia digestiva aguda alta
Os exames laboratoriais nos fornecem dados sobre o grau
do sangramento, a sua possível origem e orientam a terapêu­ Frequentes
tica. Devem incluir o hemograma e a contagem de plaquetas. Ú lc e ra g á strica
Ú lc e ra d u o d e n a l
O hematócrito solicitado logo após o início da hemorragia ge­
Lesào a g u d a da m u c o s a g a s tro d u o d e n a l
ralmente não reflete a perda sanguínea, pois o seu valor vai se V a rize s e so fá g ic a s
reduzindo à medida que o fluido extravascular penetra no es­ L e s à o d e M a llo ry -W e is s
paço vascular para restabelecer o volume, e tal processo não se Menos frequentes
completa antes de 24 a 72 h. O hematócrito seriado pode indicar E ro s õ e s g á s tric a s / g a s tro p a tia
E so fa g ite
sangramento persistente ou recorrente. Podem ser úteis tam ­
L e sõ e s d e C a m e r o n
bém as dosagens séricas de ureia, creatinina, proteínas totais e L e s à o d e D ie u la fo y
frações, aminotransferases, bilirrubinas, eletrólitos, gasometria T e la n g ie c ta s ia s
e o estudo da coagulação. G a s tro p a tia h ip e r te n s iv a p o r ta l
E cta sia v a s c u la r a n tra l g á s tric a (e s t ô m a g o e m m e la n c ia )
V a rize s g á strica s
N e o p la s ia s
■ DIAGNÓSTICO Ú lc e ra e so fá g ic a
D u o d e n it e e ro siv a

Como a anamnese e o exame físico são importantes, mas não Fístula a o r to e n té ric a
H e m o b ilia
esclarecem a etiologia do sangramento, são geralmente necessá­ H e m o s u c c u s p a n c re a t ic u s
rios exames complementares. Os principais exames disponíveis Doença d e C ro h n
para diagnóstico de HD são: endoscopia, exames radiológicos
com contraste baritado, cintigrafia e arteriografia. Alguns exa­
mes também se enquadram na categoria de procedimentos te­
rapêuticos, como endoscopia e arteriografia.
■ Gastropatia hem orrágica e erosiva
Consiste em hemorragia subepitelial e erosões, geralmente
restritas à mucosa, onde não existem vasos sanguíneos calibro-
■ TRATAMENTO sos e, portanto, não causam sangramento volumoso. São incluí­
das neste grupo as lesões de estresse observadas em pacientes
Os objetivos principais do tratamento na HD são a parada
críticos, como ocorre na insuficiência respiratória aguda, na
do sangramento e a prevenção do ressangramento. As formas
de terapia disponíveis para atingir tais objetivos são: farmaco- insuficiência renal aguda, nos queimados com mais de 35%
lógica, endoscópica, angiográfica e cirúrgica. A conduta varia de área corporal atingida, nos processos expansivos cerebrais,
de acordo com a etiologia, as condições gerais do paciente, a nas septicemias, nos pós-operatórios de grandes cirurgias, bem
gravidade do sangramento e está em constante evolução com como as lesões que se desenvolvem associadas ao uso de áci­
o desenvolvimento de novas técnicas. do acetilsalicílico, etanol e AINH. A HD é a mais importante
e mais temida complicação da gastropatia, com maior morta­
lidade em pacientes hospitalizados do que naqueles casos ad­
mitidos primariamente por sangramento digestivo, pois surge
■ HEMORRAGIA DIGESTIVA AGUDA ALTA como um agravante da doença básica que determinou a hospi­
talização, embora, também, em cerca de 80% dos casos, cesse
■ Etiologia espontaneamente.
As causas de HDAA estão relacionadas no Quadro 1.2. As
doenças têm frequência variável conforme a região estudada e ■ Lesão de M allory-W eiss
o tipo de amostragem utilizado. Varizes esofagogástricas e gas- É diagnosticada em aproximadamente 5 a 15% dos pacientes
tropatia hipertensiva serão consideradas no Capítulo 62. com HDAA e está frequentemente relacionada com esforços de
vômitos ou tosse, caracterizando-se por uma laceração longitu­
■ Úlcera péptica gastroduodenal dinal ou elíptica localizada na região da junção esofagogástrica,
É a causa mais frequente de HDAA (cerca de 50% dos ca­ podendo comprometer a mucosa gástrica e/ou esofágica (Fi­
sos). Os fatores mais importantes que predispõem a úlcera pép­ guras 1.1 e 1.2). A hemorragia surge quando a lesão atinge um
tica e sangramento são: acidez gástrica, Helicobacter pylori e plexo venoso ou arterial. Tem pior prognóstico quando ocorre
uso de AINH. Embora tenha havido redução tanto de hospi­ em pacientes com hipertensão portal. Na maioria das vezes, a
talização quanto de mortalidade por doença ulcerosa péptica lesão cicatriza em 24 a 48 h.
na década de 1990, a mortalidade por HD causada pela doen­
ça tem se mantido estável, provavelmente devido ao balanço ■ Fístula aortoentérica
entre aumento do uso de AINH e redução na prevalência do É de ocorrência rara, mas tem mortalidade elevada. Localiza-
Helicobacter pylori combinada a aumento do uso de redutores se com mais frequência no duodeno distai ou jejuno, podendo
da acidez. A incidência de sangramento por úlcera duodenal é estar além do alcance do endoscópio convencional. Resulta de
aproximadamente o dobro daquela por úlcera gástrica. O res­ comunicação direta entre a aorta e o trato digestivo, provocada
sangramento é mais intenso nas úlceras de maior diâmetro e por aneurisma, aortite sifilítica ou tuberculosa, pós-enxerto aór-
mais profundas, nos portadores de coagulopatias, quando há tico (de aparecimento precoce ou tardio - entre 4 e 10 semanas,
coexistência de outras enfermidades e, principalmente, quando até 14 anos), úlcera penetrante, invasão tumoral, traumatismo
se desenvolve durante uma hospitalização. abdominal e radioterapia. Causa HD maciça, que leva ao óbito
6 Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

Figura 1.1 Lesão de Mallory-Weiss. (Esta figura encontra-se reprodu­ Figura 1.3 Lesáo de Dieulafoy com sangramento em jato, localizada
zida em cores no Encarte.) na pequena curvatura do corpo gástrico. (Esta figura encontra-se re­
produzida em cores no Encarte.)

melancia” deriva do fato de apresentar pontos avermelhados,


formando faixas, que partem do piloro para o antro, lembrando
as listras de uma melancia. As listras vermelhas representam
vasos mucosos ectasiados e saculares. Os pontos avermelhados
também podem ter distribuição mais difusa e comprometer
o estômago proximal, sendo usado o termo ectasia vascular
gástrica difusa neste caso. Pode ser idiopática, mas associa-se
L A C E R A Ç A O OE M A L L O R Y -W E IS S
com cirrose e esclerose sistêmica, entre outras doenças. O perfil
mais comum do portador de ectasia vascular antral é de mulher
L E S Ã O OE D I E U L A F O Y
com mais de 70 anos, com anemia por deficiência de ferro, que
I apresenta sangramento crônico (Capítulo 2).

■ Tum ores gastrintestinais


Os tumores de esôfago, estômago e intestino delgado pro­
ximal respondem por cerca de 5% dos casos de HDAA, geral­
mente representando, no caso dos malignos, seu estágio final,
Figura 1.2 Lesáo de Mallory-Weiss em paciente com hematêmese
causada inicialmente por lesáo de Dieulafoy. (Esta figura encontra-se quando o tumor reduz seu suprimento sanguíneo e há ulceração
reproduzida em cores no Encarte.) da mucosa (Figura 1.4).

quando não diagnosticada e tratada a tempo. Pode ser diagnos­


ticada por tomografia computadorizada ou arteriografia.

■ Lesão de Dieulafoy
Ocorre quando uma artéria submucosa anormal calibrosa
fica exposta na superfície mucosa e depois se rompe, sem for­
mação de úlcera no local. Localiza-se, em geral, na parte alta
da pequena curvatura do estômago, próximo à junção esofago-
gástrica, embora ocorra em outras áreas do trato digestivo. Sua
etiologia é desconhecida, mas pode ser atribuída à isquemia da
superfície mucosa. A HD é frequentemente maciça e recorren­
te. A lesão pode ser de difícil identificação, exceto quando está
sangrando ativamente ou apresenta estigmas de sangramento
recente (Figura 1.3).

■ Ectasia vascular gástrica


É uma causa rara de HD, que pode ser confundida com a
gastropatia hipertensiva, pois ambas podem ocorrer em cirró- Figura 1.4 Linfoma gástrico com sangramento ativo. (Esta figura en­
ticos. O termo ectasia vascular gástrica antral ou “estômago em contra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 7

■ Hem obilia zado nas primeiras 24 h da admissão (endoscopia precoce).


É uma hemorragia que tem origem no trato hepatobiliar. A EDA tem como objetivos confirmar o diagnóstico, definir
Deve ser lembrada em pacientes com HDAA com história a etiologia, orientar a terapêutica, fornecer prognóstico a res­
recente de traumatismo do parênquima hepático ou do tra­ peito da persistência ou da possibilidade de ressangramento,
to biliar, biopsia percutânea ou transjugular, colangiografia além de permitir a realização de procedimentos hemostáticos,
percutânea trans-hepática, colecistectomia, biopsia biliar en- que comprovadamente melhoram o prognóstico do paciente.
doscópica, além de colelitíase ou colecistite, tumor hepático Para a úlcera péptica gastroduodenal, a EDA fornece informa­
ou de dueto biliar, aneurisma de artéria hepática e abscesso ções valiosas sobre o risco de ressangramento ao identificar
hepático. Pode-se suspeitar de hemobilia através de duode- úlceras próximas da pequena curvatura alta do corpo gástrico
noscopia, quando se observa o sangue saindo através da papila e da parede posteroinferior do bulbo duodenal, que podem
duodenal, sendo o diagnóstico confirmado através de colangio­ atingir artérias mais calibrosas, provocando HD volumosas.
grafia retrógrada endoscópica, cintigrafia utilizando hemácias Identifica estigmas endoscópicos de ressangramento, que estão
marcadas com tecnéciow, ou arteriografia seletiva da artéria associados a taxas altas de recorrência se não tratada a lesão,
hepática (Figura 1.5). ocorrendo frequentemente nas primeiras 72 h: (1) sangramento
ativo (90% de recorrência) (Figura 1.6); (2) vaso visível (50%
■ Hemosuccuspancreaticus de recorrência) (Figura 1.7); (3) coágulo aderido (25 a 30% de
É o sangramento através do dueto pancreático, mais fre­ recorrência). Tais achados implicam terapêutica endoscópica,
quentemente causado por pancreatite crônica, pseudocisto maiores cuidados clínicos e permanência dos pacientes sob
ou tumor do pâncreas. A hemorragia ocorre quando um vaso vigilância hospitalar. Entretanto, quando no exame endoscó-
sanguíneo é envolvido, formando uma comunicação entre o pico se encontra coágulo plano ou úlcera com base limpa, são
vaso e o dueto pancreático. Pode surgir também em conse­ remotas as chances de ressangramento.
quência de terapêutica endoscópica, visando ao pâncreas e ao A EDA somente deve ser realizada quando se tiver condições
dueto pancreático, ou de drenagem de pseudocisto. Deve-se de oferecer segurança e eficácia do procedimento. Os pacien­
suspeitar de hemosuccus pancreaticus quando existem sinto­ tes devem estar hemodinamicamente estáveis. Aqueles com
mas sugestivos das doenças citadas, sendo confirmado através sangramento maciço ou rebaixamento do nível de consciência
de tomografia computadorizada, pancreatografia retrógrada devem ser submetidos a intubação traqueal antes do exame.
endoscópica, arteriografia ou exploração cirúrgica. Caso os pacientes apresentem sangramento ativo ou sangue
que prejudica a visualização endoscópica, o estômago deve ser
lavado com sonda orogástrica calibrosa. A administração de
■ Diagnóstico de HDAA eritromicina 30 a 90 min antes da EDA, na dose intravenosa
Os seguintes exames complementares podem ser utilizados de 250 mg em bolus ou 3 mg/kg durante 30 min, comprova­
para auxiliar no diagnóstico etiológico da HDAA. damente melhora a visualização endoscópica por estimular a
motilidade gástrica e promover o esvaziamento do conteúdo
■ Radiografias de tórax e de abdom e simples do estômago. A disponibilidade de endoscópio terapêutico fa-
Devem ser feitas em casos suspeitos de perfuração visceral
concomitante, obstrução intestinal ou aspiração pulmonar.

■ Endoscopia digestiva alta (EDA)


É o exame mais importante quando se suspeita de HDAA,
com grande sensibilidade e especificidade, devendo ser reali-

Figura 1.5 Arteriografia seletiva em caso de hemobilia secundária a Figura 1.6 Úlcera gástrica com sangramento ativo. (Cortesia do Dr.
ferimento por arma de fogo: pseudoaneurisma em ramo secundário Lincoln E.V.V.C. Ferreira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
da artéria hepática, tratado por embolizaçáo. no Encarte.)
8 Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

tante, internados em UTI. Os pacientes sem risco imediato de


flWV M recorrência da HD (não apresentaram hemorragia de vulto e a
úlcera tem coágulo plano ou base limpa) podem ser alimenta­
dos precocemente e não necessitam permanecer hospitalizados,
pois é remota a chance de ressangramento.

*> A 1 ■ Medidas específicas


% *f
T f r '
■ Úlcera péptica gastroduodenal
» * *•*.

# •• .
■ Terapêutica endoscópica
É considerada como o método mais efetivo para controle
• ' da HD por úlcera. Está indicada para os casos em que os sinais

- endoscópicos são preditivos de recorrência do sangramento ou
de mau prognóstico (sangramento ativo, vaso visível e coágulo
\
aderido), com significativa melhora da evolução dos pacientes,
incluindo redução de ressangramento, transfusão sanguínea,
necessidade de cirurgia, tempo de hospitalização, custo e m or­
Figura 1.7 Úlcera gástrica com vaso visível. (Esta figura encontra-se talidade. A hemostasia pode ser feita através de métodos tér­
reproduzida em cores no Encarte.) micos (laser, heater probe, eletrocoagulação mono ou bipolar,
coagulação com plasma de argônio), mecânicos (colocação de
clipes metálicos, ligadura elástica, endoloops) e de injeção de
substâncias através de um cateter ao redor do ponto de san­
cilita bastante o procedimento. Antes de iniciar a endoscopia, gramento e diretamente nele. As substâncias mais usadas para
devem ser preparados os materiais necessários para realização injeção são o álcool absoluto, que desidrata e provoca reação
de hemostasia. inflamatória imediata, e a solução de epinefrina 1:10.000, vi­
sando à vasoconstrição e à formação de coágulo. São usados
■ Arteriografia seletiva também solução salina, água, dextrose, cola de fibrina, trombi-
Este exame só é conclusivo quando o sangramento é supe­ na, cianoacrilato, além de agentes esclerosantes (etanolamina,
rior a 0,5 m f/m in, sendo realizado através de um cateter in ­ morruato de sódio, polidocanol). Estudos que compararam as
troduzido na artéria femoral, que alcança seletivamente a ar­ diversas modalidades de hemostasia endoscópica em pacientes
téria gástrica esquerda. Permite ainda atuar terapeuticamente com lesões ulcerosas de alto risco geralmente demonstraram
através da administração de substâncias vasoconstritoras ou que sua eficácia foi semelhante. Entretanto, a terapia de inje­
da embolização vascular. ção e os métodos térmicos (eletrocoagulação bipolar e heater
probe) são mais utilizados na prática por serem mais fáceis de
■ Cintigrafia aplicar, e os endoscopistas apresentarem maior experiência com
Indicada nos casos de HD não elucidadas através das me­ eles. Publicações demonstraram que a combinação da injeção
didas anteriores, principalmente na HDAB e no sangramento de epinefrina com termocoagulação ou com métodos mecâni­
gastrintestinal crônico, podendo detectar perdas sanguíneas cos, como terapêutica inicial, foi mais efetiva em conseguir a
tão baixas quanto 0,1 m^/min. São feitos mapeamentos abdo­ hemostasia e prevenir o ressangramento do que a utilização só
minais após a administração intravenosa geralmente de hemá- da epinefrina. Outra publicação, na qual 1.169 pacientes com
cias marcadas com tecnédo99. As pesquisas devem ser feitas 1 HDAA foram tratados endoscopicamente, mostrou 8,7% de
e 4 h após a injeção, bem como 24 h depois, sendo de grande recorrência do sangramento, dos quais 48 pacientes foram sub­
utilidade nos sangramentos intermitentes. A desvantagem do metidos ao retratamento endoscópico combinado, como pro­
método é sua acurácia, muito variável, pois o sangue extrava­ posto anteriormente, e 44 encaminhados para cirurgia. Embora
sado movimenta tanto no sentido peristáltico quanto no an- tenham ocorrido dois casos de perfuração visceral atribuída
tiperistáltico, podendo induzir a erros de localização, além de à termocoagulação, as complicações foram menores entre os
não identificar a etiologia. Entretanto, como tem grande sensi­ que repetiram a terapêutica endoscópica do que entre os en­
bilidade, poderia ser usado previamente à arteriografia, porque caminhados para cirurgia. As complicações mais frequentes
pacientes com cintigrafia negativa provavelmente também não da terapêutica endoscópica são a reativação do sangramento
terão êxito com a arteriografia, que exige maior perda sanguí­ e a perfuração visceral. Todos os pacientes com úlcera péptica
nea por minuto. devem ser investigados para a presença do Helicobacterpylori.
No entanto, durante o episódio de sangramento ativo, o teste
■ Exames radiológicos com contraste baritado da urease tem sensibilidade reduzida. Os pacientes com teste
Estes exames só têm indicação diante de falha dos outros positivo devem ser tratados para erradicar a bactéria, pois está
meios diagnósticos para elucidar a origem da HD, principal- comprovado que a erradicação do Helicobacter pylori previne
mente pela sua impossibilidade de demonstrar o sangramen­ a recorrência da úlcera péptica e da HD.
to ativo.
■ Antagonistas dos receptores H2e bloqueadores da
bombaprotônica
■ Tratamento Estudos experimentais indicam que o pH ácido retarda a
Os portadores de HDAA maciça ou moderada, os que apre­ coagulação sanguínea e aumenta a dissolução do coágulo por
sentam estigmas preditivos de ressangramento, devem ser hos­ enzimas proteolíticas, como a pepsina. A elevação do pH intra-
pitalizados, e aqueles com repercussão hemodinâmica im por­ gástrico pode facilitar a agregação plaquetária. No entanto, o
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 9

efeito dos antagonistas dos receptores H2nas úlceras sangrantes cirúrgica deve levar em conta as condições locais de endosco­
tem sido desapontador, provavelmente por não promoverem pia, cirurgia e terapia intensiva.
inibição ácida máxima, sendo o seu uso em tais casos desa­
conselhado. Os bloqueadores de bomba protônica propiciam ■ Gastropatia hem orrágica e erosiva
maior redução da acidez intragástrica que os antagonistas dos A profilaxia da gastropatia e da HD é preocupação não só
receptores H2 e mostraram-se como os únicos agentes farma- de gastrenterologistas como de todo profissional médico. A
cológicos com evidência suficiente de eficácia na prevenção de profilaxia para as lesões de estresse pode ser feita em pacientes
ressangramento por úlcera em pacientes de alto risco, o que os de alto risco através da tentativa de elevar o pH intragástri-
torna preferenciais na escolha terapêutica. Como grande par­ co acima de 4, com a utilização de antiácidos, inibidores dos
te dos pacientes também é submetida a tratamento endoscó- receptores H2, bloqueadores da bomba protônica, embora a
pico, o efeito dos bloqueadores de bomba protônica deve ser prescrição destes últimos seja relacionada com o risco de pneu­
considerado como somatório ao da terapêutica endoscópica. monia. Em face disso e de um melhor conhecimento da fisio-
Pode ser administrado omeprazol ou pantoprazol em bolus de patologia da doença, voltada principalmente para alterações
80 mg, ambos seguidos preferencialmente de infusão contí­ no metabolismo oxidativo da mucosa, as medidas profiláticas
nua de 8 mg/h durante 72 h, após a hemostasia endoscópica. têm se dirigido mais no sentido de manter uma ventilação pul­
Depois de cessarem os vômitos e feita a realimentação, pode monar adequada e estabilização hemodinâmica dos pacientes
ser administrado, por via oral, o omeprazol, de 40 mg, a cada com risco previsível. Pode-se usar também o sucralfato (4 a
24 h. Ele pode ser substituído por lansoprazol, pantoprazol, ra- 6 g/24 h), por sua ação citoprotetora, com menor incidência
beprazol ou esomeprazol. Entretanto, ainda não se esclareceu de pneumonia nosocomial. Entretanto, as lesões associadas ao
qual o agente farmacológico, a via de administração, a dose ou uso de etanol, ácido acetilsalicílico e AINH têm sua prevenção
a duração do tratamento mais eficaz. Após o controle do san- dificultada, principalmente quando se leva em consideração a
gramento, o tratamento clínico deverá ser orientado conforme relação custo/benefício para manter, por períodos prolongados,
descrito no Capítulo 19. os inibidores dos receptores H2, os bloqueadores da bomba de
prótons ou o sucralfato. Os AINH com ação inibidora seletiva
■ Somatostatina eoctreotídio
da ciclo-oxigenase-2 também estão associados a HD por úlcera,
Atuam reduzindo a pressão venosa portal e o fluxo arterial mas em menor proporção que os demais AINH. No entanto,
para o estômago e o duodeno, enquanto preservam o fluxo ar­
o seu uso foi reduzido devido à possibilidade de aumento do
terial renal. Metanálise que incluiu 1.829 pacientes com HDAA risco de doenças cardiovasculares.
não varicosa concluiu que tais medicamentos reduzem o risco
O tratamento clínico das HD por gastropatia inclui o uso dos
de sangramento contínuo e a necessidade de cirurgia, e que eles
inibidores dos receptores H2 ou dos bloqueadores da bomba
são mais eficazes em sangramento por úlcera péptica do que
de prótons, conforme descrito anteriormente para as úlceras
por outras causas. Podem ser considerados nos casos de HD
pépticas gastroduodenais. A somatostatina e o octreotídio po­
de vulto antes da endoscopia e nos casos de fracasso do trata­
dem ser prescritos com as mesmas restrições, indicações e doses
mento endoscópico ou na sua impossibilidade, ou ainda diante
citadas em relação à úlcera péptica gastroduodenal.
da impossibilidade cirúrgica. A somatostatina é administrada
por via intravenosa, na dose de 50 a 250 pg em bolus, seguida Durante o exame endoscópico, pouco se pode fazer para
de 3,5 jxg/kg/h, em solução salina, até 48 a 72 h após cessada a tratamento das lesões sangrantes, exceto quando um pequeno
hemorragia. O octreotídio tem vida média mais longa, menor número de erosões isoladas são a causa do sangramento. Nos
custo e maior resistência à degradação enzimática. Pode ser casos rebeldes, pode ser tentada a farmacoterapia angiográfi-
administrado por via intravenosa, inicialmente em bolus de ca, através do cateterismo seletivo da artéria gástrica esquerda,
100 jig, seguido de 25 |ig/h IV. A via subcutânea, com admi­ e a administração de vasopressina diluída em soro glicosado,
nistrações a cada 8 h, pode ser uma alternativa. na dose inicial de 0,2 m^/min nas primeiras 24 h, seguida de
0,1 m^/min nas 36 h seguintes. Esse procedimento pode desen­
■ Tratamento angiográfíco cadear algumas complicações, como: retenção hídrica, hipona-
Embora seja raramente indicado em pacientes com úlcera tremia, hipertensão transitória, bradicardia, arritmias, edema
sangrante, pode ser útil naqueles que apresentam hemorragia agudo pulmonar e isquemia miocárdica.
intensa, persistente, em que a terapia endoscópica não é bem- Nos casos de HD persistente ou recorrente, a cirurgia deve
sucedida ou não está disponível, e a cirurgia é muito arriscada. ser indicada, desde que viável. A vagotomia seletiva, com pi-
Pode ser realizada aplicação intra-arterial de vasopressina ou loroplastia e sutura das lesões sangrantes, é uma das cirurgias
oclusão seletiva da artéria sangrante com agente embolizante. mais adequadas. Nos casos de HD incontrolável, a gastrecto-
Complicações do tratamento angiográfico são: isquemia, infar- mia total pode ser o último recurso eficaz em mãos experientes.
to, perfuração e abscesso em órgãos-alvo ou não. No entanto, o tratamento cirúrgico está associado à elevada
mortalidade.
■ Cirurgia
Está indicada quando o sangramento não responde ao tra­ ■ Ectasia vascular antral (estôm ago em m elanda)
tamento habitual. A decisão precisa ser individualizada, mas Nos casos raros de hemorragia maciça, a terapêutica endos­
a cirurgia deve ser prontamente indicada quando sua protela­ cópica permite debelá-la e, na falha desta, a antrectomia é a op­
ção represente risco de vida para o paciente. Recomenda-se ao ção definitiva. Coagulação com plasma de argônio, aplicado em
menos uma tentativa de retratamento endoscópico antes de várias sessões, reduz o risco de ressangramento e a necessidade
indicar cirurgia no caso de ressangramento após terapia inicial, de transfusões sanguíneas.
utilizando as mesmas técnicas ou métodos diferentes. Durante
a cirurgia, pode ser realizada apenas sutura da lesão sangrante ■ Lesão de M allory-W eiss
ou procedimento mais invasivo para redução da acidez, com Na grande maioria dos casos (80 a 90%), a HD cessa espon­
o objetivo de prevenir recorrência. A decisão por intervenção taneamente, mas alguns são controlados com a terapia endos-
10 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

cópica, além da terapêutica sintomática para vômitos ou tosse -------------------------------------------- ▼ ----------------------------------


e o uso de drogas que visam a elevar o pH intragástrico. Quadro 1 3 Variáveis de mau prognóstico em pacientes
com hemorragia digestiva aguda alta
■ Fístula aortoentérica
A fístula aortoentérica apresenta mortalidade elevada, e o Id a d e a v a n ç a d a

único tratamento definitivo é a cirurgia. M a io r n ú m e r o d e c o m o r b id a d e s


S a n g r a m e n t o p o r v a riz e s

■ Lesão de Dieulafoy C h o q u e o u h ip o te n s ã o n a a d m is s ã o

A terapia endoscópica é eficaz para hemostasia na maioria S a n g u e v iv o n o s v ô m it o s o u n as fezes


M a io r n ú m e r o d e u n id a d e s d e s a n g u e tra n s fu n d id a s
dos casos. Tem sido proposta a terapêutica combinada, usando
S a n g r a m e n t o a t iv o n o m o m e n t o d a e n d o s c o p ia
métodos de injeção, térmicos e/ou mecânicos, como medida
S a n g r a m e n t o p o r ú lc e ra > 2 c m
eficaz para controlar o sangramento e prevenir a sua recorrência
S a n g r a m e n t o e m ja t o o u v a s o v is ív e l à e n d o s c o p ia
em mais de 95% dos casos (Figura 1.8). A ecoendoscopia tem
S a n g r a m e n t o e m p a c ie n te p re v ia m e n t e h o s p ita liz a d o
sido usada para identificar a lesão ou conferir o resultado da
N e c e s s id a d e d e c ir u r g ia d e e m e r g ê n c ia
terapêutica endoscópica. Os casos de sangramento persistente
C o a g u lo p a t ia in te n s a
podem exigir procedimento terapêutico por radiologia inter-
vencionista ou cirurgia.

■ Tum ores gastrintestinais


Os malignos, quando se apresentam com HDAA, têm geral­ ■ Prognóstico
mente prognóstico sombrio. A terapia endoscópica para coibir
o sangramento (principalmente através de métodos térmicos e A mortalidade por HDAA tem se mantido estável nas últi­
de injeção) tem caráter temporário, pois geralmente eles vol­ mas décadas em aproximadamente 7 a 10%, embora tenha ha­
tam a sangrar. Algumas lesões polipoides sangrantes podem vido melhora nos cuidados de terapia intensiva e na conduta
ser tratadas com polipectomia. Toda lesão de aspecto maligno terapêutica. A justificativa para tal fato seria o envelhecimento
da população e a maior proporção de comorbidades em pacien­
deve ser biopsiada. A ressecção cirúrgica da lesão é opção de
tes com HDAA. Pacientes com HDAA raramente morrem pelo
tratamento, mesmo que frequentemente paliativo em termo de
sangramento propriamente dito, mas devido à descompensação
cura da neoplasia. Arteriografia, radioterapia e quimioterapia
de outras enfermidades.
constituem outras opções de caráter paliativo.
Vários estudos tentaram definir fatores preditivos da evolu­
■ Hem obilia ção dos pacientes com HDAA e estabelecer escores prognós­
ticos. Tais fatores prognósticos se aplicam principalmente a
O tratamento deve ser dirigido para a causa da hemorragia,sangramento por úlceras pépticas, que correspondem à maioria
podendo ser realizado através de ressecção do segmento atin­
das causas de HDAA. As variáveis dos diversos estudos são se­
gido ou de embolização arterial. melhantes e facilmente reconhecidas pelo médico na admissão
dos pacientes (ver Quadro 1.3).
■ Hemosuccus pancreaticus
A HD, neste caso, pode ser tratada através de embolização
arterial, mas, se o processo persiste, pode-se tentar a ligadura
do vaso sangrante, a ressecção de um pseudocisto ou até a pan-
■ HEMORRAGIA DIGESTIVA AGUDA BAIXA
creatoduodenectomia em casos de hemorragia maciça.
■ Etiologia
A Hemorragia Digestiva Aguda Baixa (HDAB) corresponde
a aproximadamente 24% dos casos de HD, predomina no sexo
masculino e a sua incidência aumenta com a idade, notada-
mente naqueles pacientes com mais de 60 anos, sendo causada
principalmente por doença diverticular dos cólons, angiodis-
plasias e colite isquêmica. Entretanto, na criança, o divertículo
de Meckel é a causa mais comum.
As principais causas de HDAB são relacionadas no Qua­
dro 1.4.

■ Lesões vasculares
São causas importantes de HDAB a isquemia mesentérica
e a colite isquêmica. A isquemia visceral secundária a exercí­
cios físicos prolongados é uma causa rara de HDAB em atletas.
Vasculites causadas por periarterite nodosa, granulomatose de
Wegener e artrite reumatoide podem causar sangramentos di­
gestivos em consequência de ulcerações e processo necrótico,
algumas vezes precipitados pela terapêutica com imunossupres-
sores, que causa trombocitopenia. Fístulas aortocolônicas são
Figura 1.8 Lesão de Dieulafoy da Figura 1.3 após hemostasia endos­ mais raras que as já citadas para o duodeno, mas aneurismas
cópica com clipes metálicos e aplicação de coagulador de plasma de aórticos ou aortoilíacos, bem como aqueles resultantes de en­
argônio. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) xerto aórtico, podem causar HDAB de vulto e fatais.
Capítulo 7 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 11

----------------------------------------- ▼ ----------------------------------------- deira participação é passível de dúvidas quando levamos em


Quadro 1.4 Principais causas de hemorragia digestiva aguda baixa consideração a propedêutica empregada. Embora os divertí-
culos sejam prevalentes no cólon esquerdo, em um levanta­
Lesões vasculares mento no qual o meio diagnóstico usado foi a arteriografia a
Is q u e m ia m e s e n té ric a
hemorragia localizou-se em 60% dos casos no cólon direito, e
C o lite is q u è m ic a
V a sc u lite s
no mesmo percentual no cólon esquerdo, quando foi usada a
Fístula a rte rio v e n o s a colonoscopia. Essas observações permitem também inferir que
A n g io d is p la s ia s as maiores hemorragias se instalam no cólon direito, pois ne­
T u m o r e s v a s c u la re s
cessitam ultrapassar 0,5 m f/m in para serem demonstradas por
T e la n g ie c ta s ia s h e re d itá ria s
M a lf o r m a ç õ e s a rte rio v e n o s a s
arteriografia. Quanto ao mecanismo pelo qual os diverticulos
Tumores
sangram, estudos histológicos mostram que provavelmente
B e n ig n o s seja devido a ulcerações ou erosões no óstio ou na cúpula dos
Adenom as diverticulos, atingindo ramos intramurais da artéria marginal
F ib ro m a s que irriga o cólon, dando-se menos importância às inflama­
L e io m io m a s
H a m a rto m a s
ções e diverticulites. O uso prévio de AINH pode desencadear
M a lig n o s o sangramento de diverticulos. No intestino delgado, raramen­
A d e n o c a rd n o m a s te causam HD.
C a rc in o id e s O diagnóstico de HD por doença diverticular é frequen­
L in fo s s a rc o m a s
temente de exclusão, pois em poucos pacientes se identifica
L e io m io s s a rc o m a s
hemorragia ativa ou estigmas de sangramento recente no di-
Doenças inflamatórias e infecciosas
R e to c o lite u lc e ra tiv a
vertículo (Figura 1.9). Do mesmo modo que são utilizados na
D o e n ç a de C ro h n úlcera péptica gastroduodenal, também nas úlceras diverticu-
E n te ro c o lite a c tín ic a lares examinadas por colonoscopia podem ser descritos estig­
E n te r o c o lite b a c te ria n a
mas indicativos de prognóstico. Em um estudo, a presença de
Diverticulos coágulo aderido com hemorragia ativa ou de vaso visível não
D o in t e s t in o d e lg a d o
sangrante em associação com úlcera diverticular é forte indi­
D o c ó lo n
D e M eckel cador de hemorragia importante. Esses achados foram relacio­
Lesões anorretais nados mais frequentemente com maior número de episódios
H e m o r r o id a s de HD (3,5 episódios em média), com hemoglobinemia mais
Fissuras baixa, exigindo maior número de unidades de hemotransfusão,
P ro la p s o s
e, ainda, terapêutica invasiva, quando comparados às úlceras
Outras causas diverticulares sem esses estigmas. Tais achados permitem con­
L e sõ e s tra u m á tic a s
Le sõe s ia tro g é n ic a s
cluir que pacientes portadores de diverticulos com úlceras de
D iscra sias s a n g u ín e a s base limpa que sangraram têm baixo risco de ressangramento,
prevendo-se assim uma alta hospitalar mais breve. A HD por
doença diverticular habitualmente cessa espontaneamente e
não apresenta recorrência na maioria dos pacientes. O risco de
■ Tum ores ressangramento parece aumentar com o decorrer do tempo e
Os pólipos e os tumores malignos são causas pouco frequen­ ser proporcional à intensidade do sangramento inicial.
tes de HDAB, sendo mais relacionados com sangramentos gas- Os diverticulos de Meckel, que constituem a maior causa
trintestinais crônicos. Todavia, podem ser responsáveis por até de HDAB em crianças e adultos jovens, não têm a mesma im-
aproximadamente 17% dos casos de HDAB. Infelizmente, tais
casos são geralmente relacionados com formas avançadas da
doença. As remoções endoscópicas dos pólipos também podem
causar HD imediatamente e até 3 semanas depois, correspon­
dendo a cerca de 2 a 6% dos casos de HDAB. A maioria dos
casos de hemorragia pós-polipectomia pode ser acompanhada
com tratamento conservador, algumas vezes necessitando de
tratamento endoscópico.

■ Doenças inflamatórias e infecciosas


Diversas doenças inflamatórias podem ser causa de HDAB,
como: colites por irradiação, doença de Crohn e retocolite ulce­
rativa. Entre as colites infecciosas, algumas raramente causam
HDAB, como a febre tifoide, a colite pseudomembranosa, a co­
lite por citomegalovírus e a tuberculose intestinal. A colite por
irradiação pode causar HD entre 9 e 15 meses após a radiotera­
pia, mas já foram descritos casos mais tardios, entre 3 e 4 anos;
afeta mais frequentemente o reto, após radioterapia pélvica.

■ Doença diverticular
A doença diverticular dos cólons constitui a causa mais fre­ Figura 1.9 Divertículo colônico com coágulo aderido. (Esta figura
quente de HDAB (cerca de 40% dos casos), mas a sua verda­ encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
12 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

portância após os 30 anos. Consistem em anomalia congênita 04 Dec 04


que ocorre entre 1 e 3% da população e está localizada entre 20
04:34:36
e 80 cm da junção ileocecal. A HD é provocada pela presença SNP
de mucosa gástrica heterotópica, encontrada em cerca de 50%
dos casos, que secreta o ácido clorídrico e úlcera a mucosa no
próprio divertículo ou em áreas ileais adjacentes. O diagnósti­
co geralmente é feito por cintigrafia, e a conduta terapêutica é
cirúrgica, com ressecção do divertículo.

■ Angiodisplasias
São vasos ectasiados, vistos na mucosa ou submucosa do
trato gastrintestinal, com incidência no cólon entre 1 e 2%, à
colonoscopia ou à necropsia, predominando no cólon direito
e em idosos (Figura 1.10). Estudos histológicos têm mostrado
que há um fino revestimento mucoso ou presença de úlcera-
ções como possíveis explicações para a HD. São responsáveis
por aproximadamente 11% dos casos de HDAB. Têm sido des­
critas em associação com insuficiência renal crônica, doença
arterioesclerótica cardiovascular, doença de von Willebrand,
doença pulmonar obstrutiva crônica e cirrose hepática. Quando
se suspeita da existência de angiodisplasia, deve-se evitar o uso
de opioides como sedativos para a colonoscopia, porque eles GIUEN(R)
reduzem o fluxo sanguíneo mucoso, mascarando sua detecção.
Grande avanço no diagnóstico dessa doença foi obtido com a Figura 1.11 Angiodisplasia de cólon ascendente demonstrada pela
introdução da cápsula endoscópica, conforme foi demonstra­ cápsula endoscópica. Paciente de 82 anos, que, no espaço de 1 ano,
teve quatro episódios de hemorragia digestiva. Colonoscopias descre­
do na Figura 1.11.
veram apenas alguns divertículos de cólon esquerdo, sem sangramen­
to. O exame pela cápsula endoscópica mostrou, além da lesào descrita,
■ Lesões anorreta is outra menor no jejuno. (Cortesia do Dr. Roberto Santoro - Serviço de
Embora nem sempre sejam relacionadas entre as causas de Gastrenterologia do Hospital Governador Israel Pinheiro Filho). (Esta
HDAB, as hemorroidas têm sido responsabilizadas por 5 e 10% figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
dos casos de HDAB por alguns autores e apresentam-se de
modo intermitente ou maciço, sendo o sangramento observa­
do mais frequentemente durante a defecação. Como a doen­
ça hemorroidária tem prevalência considerável na população, anos, estudos bem dirigidos comprovaram que podem produ­
outras causas de sangramento devem ser excluídas antes de zir diversos tipos de colites (eosinofüica, pseudomembranosa e
responsabilizá-la pela HDAB. colagenosa), bem como exacerbação de doenças preexistentes,
como colite ulcerativa e doença de Crohn, além de estenoses e
■ M edicam entos anti-inflam atórios não horm onais (AINH) úlceras de delgado e de cólon, podendo resultar em HD agudas
Sabe-se, desde a década de 1930, que os AINH são capazes ou sangramentos crônicos. A ação lesiva dos AINH sobre a m u­
de lesar a mucosa gastroduodenal. Entretanto, só nos últimos cosa do trato digestivo tem mecanismo incerto, mas a hipótese
central seria através de alterações na síntese das prostaglandi-
nas, acreditando-se ainda em uma ação pré-sistêmica ou tópica,
alterando a integridade da mucosa. A introdução no mercado
de AINH de desintegração entérica permitiria poupar a porção
proximal do trato digestivo de sua ação pré-sistêmica, trans­
ferindo para o intestino delgado e cólon essas ações deletérias.
Algumas publicações descreveram a recuperação de resíduos
de uma formulação com indometacina de liberação lenta em
áreas de perfuração do íleo e do cólon, bem como fragmentos

m [ Rp de um comprimido de diclofenaco em áreas de ulceração e es-


tenose do cólon.

■ Síndrom e da im unodeficiência adquirida (AIDS)


-4
A etiologia da HDAB em portadores de AIDS é diferente da
;
observada nos pacientes em geral. Alguns relatos descreveram
que os portadores dessa afecção têm como causa, em cerca de
23% dos casos, hemorroidas e fissuras anais, associadas fre­
08 / 02 /00 quentemente a trombocitopenia, e, em mais de 70% dos casos,
ocorrem lesões retais, principalmente colite por citomegaloví-
Figura 1.10 Angiodisplasia de cólon direito com sangramento ativo. rus. Foram descritos, ainda, colite bacteriana, histoplasmose
(Cortesia do Dr. Lincoln E.V.V.C. Ferreira.) (Esta figura encontra-se repro­ colônica e sarcoma de Kaposi do cólon. Entretanto, é incomum
duzida em cores no Encarte.) que o óbito se relacione com HDAB.
Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 13

■ Diagnóstico da HDAB --------------------------------------- ▼ ---------------------------------------


Quadro 1.5 Critérios de prioridades no diagnóstico de certeza da
A real incidência de HDAB é difícil de ser determinada pela hemorragia aguda do cólon — avaliação pré-cirúrgica
falta de padronização dos métodos de investigação. Além disso,
algumas estatísticas não incluem os sangramentos orificiais. A
Nível I: diagnóstico definitivo
confirmação de que uma determinada lesão seria responsável
A : le sà o s a n g r a n d o a tiv a m e n t e lo c a liz a d a p o r e n d o s c o p ia o u
pelo sangramento muitas vezes é motivo de dúvida, tanto assim
a rte rio g ra fia .
que existe uma tendência em separar os achados em “origem
B: e s t ig m a d e s a n g r a m e n t o r e c e n te id e n t ific a d o p o r e n d o s c o p ia
provada” e “origem potencial”. Em muitos casos, a localização
(v a s o v is ív e l n á o s a n g ra n te , c o á g u lo a d e r id o ).
da HD relaciona-se a uma evidência circunstancial, como, por
C : d n t ig r a f ia c o m h e m á c ia s m a rc a d a s p o s itiv a e c o n f ir m a d a p o r IA o u IB.
exemplo, quando se encontra uma determinada lesão como
fonte potencial de sangramento em um paciente com hemato- Nível li: diagnóstico presuntivo/evidènda circunstancial
A : s a n g u e v iv o lo c a liz a d o e m s e g m e n t o c ó lic o q u e p o s s u i fo n te p o te n c ia l
quezia. Entretanto, a correlação etiológica pode ser falsa, com
p a ra s a n g r a m e n to .
mais de uma causa como provável origem do sangramento.
B: d n t ig r a f ia p o s itiv a d ir ig id a a o c ó lo n e c o lo n o s c o p ia q u e m o s tra fo n te
Portanto, há necessidade de padronização dos métodos de pes­
p o t e n c ia l p a ra s a n g r a m e n t o n a á rea d e s c rita p e la d n t ig r a fia .
quisa, principalmente se levarmos em conta que um determi­
C : h e m a t o q u e z ia c o n fir m a d a e c o lo n o s c o p ia q u e d e m o n s t r a u m a fo n te
nado caso clínico pode exigir solução cirúrgica, que precisa ser
p o t e n c ia l d e s a n g r a m e n t o n o c ó lo n , c o m p le m e n t a d a c o m e n d o s c o p ia
corretamente indicada. Assim, foi proposto um esquema para a
d ig e s t iv a a lta n e g a tiv a .
ordenação diagnóstica da HDAB, descrita no Quadro 1.5.
Destaque-se, ainda, que a sua apresentação clínica é variá­ Nível III: diagnóstico equivocado
vel, o que dificulta a comparação entre as diversas publicações A : " h e m a t o q u e z ia " o u s a n g u e e lim in a d o p e lo re t o (s e m e s p e c ific a ç ã o d e

a respeito da HDAB. Formas maciças, que exigem cirurgia de c o r ) e c o lo n o s c o p ia q u e d e m o n s t r a u m a o u m a is fo n te s p o te n c ia is d e

urgência ou rapidez para restabelecer o equilíbrio hemodinâ- s a n g ra m e n to .

mico e salvar a vida, são pouco frequentes, predominando as


A d a p ta d o d c Zuckerm an, GR & Prakash, C. A cute lo w e r intestinal ble cd in g . Part II:
apresentações leves a moderadas. Não há padronização para a Etiology, therapy, and outcom es. Castroiniest. Endosc.. 1999; 49.228-38.
abordagem diagnóstica dos pacientes com HDAB. O Quadro 1.6

-------------------------------------------------▼ -------------------------------------------------
Quadro 1.6 Abordagem de um paciente com hemorragia digestiva aguda baixa

Ad ap tad o de Zuccaro, G. M anagem ent of the adult patient w ith acute lower gastrointestinal bleeding. Am . J. Castroenterol., 1998; 93:1202-8.
14 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

apresenta um algoritmo com a abordagem de um paciente com após a estabilização hemodinâmica do paciente, assegurando,
hemorragia digestiva aguda baixa. assim, boa tolerância ao preparo e à sedação para o exame. O
Os seguintes exames complementares são os mais utilizados tempo entre a admissão dos pacientes e a realização da colo­
para definição etiológica da HDAB: retossigmoidoscopia, colo- noscopia varia, nos diversos estudos, entre 12 a 48 h. Estudos
noscopia, arteriografia seletiva, cintigrafia, cápsula endoscópica mostraram que a colonoscopia precoce está associada a menor
de intestino delgado, enteroscopia e outros. tempo de hospitalização.
As vantagens da colonoscopia de urgência incluem a maior
■ Retossigmoidoscopia probabilidade de detectar lesão sangrando ativamente ou es­
Pode ser indicada, de início, em todo caso de HDAB, per­ tigma de sangramento recente e a possibilidade de a lesão ser
mitindo excluir doenças do cólon distai e anorretais. Além de passível de tratamento endoscópico. Portanto, a colonoscopia
oferecer chance de encontrar a lesão sangrante (Figura 1.12), de urgência tem sido recomendada como procedimento diag­
a retossigmoidoscopia flexível pode identificar indícios de san- nóstico de escolha na maioria dos pacientes com HDAB, de­
gramento recente (sangue vivo no reto ou sigmoide). Entre­ vido a alta acurácia diagnóstica, baixo índice de complicações
tanto, a sua utilização após a introdução da colonoscopia de e potencial terapêutico. O momento mais indicado para a sua
urgência tornou-se questionável, pois a presença de lesão dis­ realização, no entanto, ainda não foi determinado.
tai não exclui outras lesões colônicas sangrantes. A realização A capacidade de identificação do local responsável pelo san­
da anuscopia deve ser estimulada por ser um exame de baixo gramento durante colonoscopia apresenta ampla variação nas
custo e ideal para detectar lesões anorretais. publicações sobre o tema (acurácia diagnóstica entre 48 e 90%).
Isso ocorre principalmente devido à falta de padronização dos
■ Colonoscopia critérios na definição dos achados endoscópicos, sendo sugerida
Mesmo diante da reconhecida importância da EDA no diag­ uma ordenação destes, conforme descrito no Quadro 1.7.
nóstico e na terapêutica da HDAA, a colonoscopia só foi utiliza­ Quando a suspeita se volta para o intestino delgado, a colo­
da para a HDAB nos últimos anos. A colonoscopia de urgência noscopia permite estudar as porções distais do íleo ou visibilizar
foi relatada, pela primeira vez, nos anos setenta, mas não foi o sangue saindo através da válvula ileocecal. Para as porções
aceita de imediato como procedimento de eleição para HDAB, proximais, pode ser tentada a enteroscopia.
sendo realizada, em geral, quando o sangramento havia cessado
e o enema opaco ou a arteriografia era negativa. A relutância ■ Arteriografia seletiva
inicial ao seu uso, em virtude do risco potencial de complica­ Pode ser proposta nos casos de sangramentos de intestino
ções, foi aos poucos sendo superada. A partir da década de 1980, delgado ou de cólon, embora a colonoscopia seja o método
passou a ser indicada precocemente nos casos de HDAB, como mais seguro e eficaz para a definição de uma HD produzida
recurso propedêutico e terapêutico, desde que o preparo do có­ por lesão do íleo distai e cólon. Tem a vantagem de não depen­
lon VO tornou-se eficaz e seguro. Entretanto, ainda costuma ser der de preparo para o cólon e poder ser usada como medida
indicada em pacientes que sangram, sem preparo prévio, com terapêutica, visando a estancar o sangramento. Contudo, pode
o objetivo de localizar sangramento ativo em um determinado causar complicações sérias, como: trombose arterial, reações ao
segmento cólico, ou, então, fazendo apenas o preparo através contraste e insuficiência renal aguda. Deve-se começar o estudo
de enema. Contudo, o preparo anterógrado permite melhor pela artéria mesentérica superior, porque as principais causas de
visualização da superfície mucosa, favorece a identificação da sangramento estão localizadas nessa área (doença diverticular
etiologia sem reativar o sangramento e aumenta a segurança e angiodisplasia) e, se for negativo, passa-se, então, para o ter­
do procedimento por reduzir o risco de perfuração. Tal prepa­ ritório da artéria mesentérica inferior e tronco celíaco. Como
ro é bem tolerado e seguro, mas pode desencadear insuficiên­ a maioria das HDAB cessa espontaneamente, a arteriografia
cia cardíaca e desequilíbrio hidreletrolítico em pacientes com deveria ser reservada para casos em que a colonoscopia não foi
comorbidades. Portanto, a colonoscopia só deve ser realizada possível e para aqueles em que há sangramentos persistentes
ou recorrentes, cuja etiologia não foi identificada, e nos quais a
localização da lesão e a terapia efetiva podem salvar a vida.

Cl_ ii ■ Cintigrafia
Deve ser lembrada com o mesmo destaque e as mesmas res­
trições feitas anteriormente em relação à HDAA. As vantagens
%

-------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------
Q u a d ro 1.7 Critérios para diagnóstico colonoscópico do local sangrante

1. Lo ca l c o m s a n g r a m e n t o a tiv o

2. V a s o v is ív e l n â o s a n g r a n te

3. C o á g u lo a d e r id o

4 . S a n g u e v iv o lo c a liz a d o n u m s e g m e n t o c o lô n ic o

5 . D iv e r tíc u lo u lc e r a d o c o m s a n g u e v iv o n as Im e d ia ç õ e s

6 . A u s ê n c ia d e s a n g u e v iv o n o íle o te r m in a l, m a s e n c o n t r a d o n o c ó lo n

Adaptado de Zuckerman, G R & Prakash, C. Acute lower intestinal bleedlng. Part I: Clinicai
Figura 1.12 Retite actínica com sangramento ativo. (Esta figura en- presentation and diagnosis. Gostrolntest. Endosc., 1998; 48:606-17.
contra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa 15

da cintigrafia são: boa sensibilidade, segurança, o fato de não da, introduzido em 1994, que permite a localização de pólipos
ser invasiva, sem risco de reação a contraste e de baixo custo. e tumores colorretais, mas com as mesmas limitações para a
As suas desvantagens são: falta de capacidade terapêutica e dú­ localização do ponto sangrante. A angiografia por tomogra­
vidas sobre sua acurácia. Cirurgia não deve ser indicada com fia computadorizada pode ser útil na identificação de ectasia
base apenas na cintigrafia. vascular colônica.
Esse método é de grande importância nos pacientes mais
jovens, quando há suspeita de divertículo de Meckel, com re­
lato de sensibilidade e especificidade, respectivamente, de 85 ■ Tratamento
e 95%. A terapêutica clínica da HDAB deve seguir os mesmos cri­
térios citados anteriormente para a HDAA, sendo mandatória
■ Cápsula endoscópica de intestino delgado a hospitalização para hemorragias moderadas e maciças. Na
O recente desenvolvimento da cápsula endoscópica permitiumaioria das vezes, a HDAB cessa espontaneamente, mas os pa­
a visualização não invasiva do intestino delgado. São obtidas cientes com sangramento contínuo ou recorrente necessitam de
duas imagens por segundo por aproximadamente 8 h, que é o intervenção que debele a hemorragia. As opções terapêuticas
tempo de duração da bateria. As imagens são transmitidas, sem são mais limitadas que na HDAA.
fio, de uma cápsula descartável deglutida pelo paciente para um
gravador de dados, fixado à sua cintura e, depois, essas imagens
são transferidas para um computador e analisadas pelo endos- ■ Medidas específicas
copista. A principal indicação da cápsula endoscópica é HD ■ Terapêutica endoscópica
de origem obscura (não detectada por EDA ou colonoscopia), Deve-se lançar mão de exame endoscópico, por profissional
oculta ou não. Em diversos estudos, a cápsula endoscópica se experiente, logo após a admissão e estabilização hemodinâmica
mostrou mais sensível que outros exames não invasivos do in­ do paciente. São encontradas alterações durante colonoscopia
testino delgado, incluindo exames radiológicos contrastados, de urgência, com maior frequência, do que em procedimento
tomografia computadorizada e enteroscopia. A acurácia da cáp­
eletivo. Cerca de 10 a 15% dos pacientes submetidos a colo­
sula endoscópica para detectar lesões no intestino delgado é de noscopia de urgência por HDAB recebem algum tratamento
aproximadamente 70%. Atualmente, deve ser considerada a
endoscópico.
primeira escolha para investigação de sangramento de origem
A hemostasia pode ser realizada com eficácia, usando-se
obscura, como o caso ilustrado na Figura 1.11.
métodos de injeção, térmicos (laser, heater probe, eletrocoa-
gulação mono ou bipolar, coagulação com plasma de argônio)
■ Enteroscopia
e/ou mecânicos (clipes metálicos, ligadura elástica). O trata­
Até o início deste século, dispunha-se apenas da enterosco­
mento endoscópico deve ser realizado com cautela no cólon
pia denominadapush enteroscopia, que consiste na introdução
direito, que apresenta a parede mais fina, com o objetivo de
por via anterógrada de um endoscópio, que pode ser o colonos-
evitar perfuração colônica.
cópio pediátrico ou o enteroscópio convencional, permitindo
atingir apenas o jejuno proximal, raramente o jejuno médio.
■ Terapia angioterápica
Novas tecnologias permitiram o desenvolvimento de métodos
específicos para procedimentos endoscópicos diagnósticos e Nos casos de insucesso do tratamento endoscópico, pode ser
terapêuticos no intestino delgado. Tais procedimentos são rea­ realizada arteriografia com objetivo de interromper o sangra­
lizados com endoscópios especializados disponíveis em poucos mento. Injeção intra-arterial de vasoconstritores (vasopressi-
serviços de endoscopia no momento e incluem: enteroscopia na) era considerada o tratamento angiográfico de escolha para
de duplo balão, enteroscopia de balão único e enteroscopia es­ HDAB, principalmente por doença diverticular e angiodispla-
piral. São técnicas diferentes, mas baseadas no manejo de um sia. Todavia, complicações maiores com vasopressina ocorrem
overtube sobre endoscópio longo, com sanfonamento das alças em 9 a 21% dos pacientes, e o índice de hemorragia recorrente
intestinais sobre o aparelho. Permite visualização de todo o in­ após infusão de vasopressina pode ser de até 50%. Atualmente,
testino delgado em até aproximadamente 86% dos pacientes, a embolização arterial superseletiva com diversos agentes subs­
com baixa incidência de complicações. Pode ser utilizada a via tituiu a vasopressina intra-arterial para tratamento da HDAB.
anterógrada e/ou retrógrada. No entanto, são procedimentos Pode haver controle do sangramento em 44 a 91% dos casos,
demorados e cansativos, realizados com anestesia. A conduta com menor incidência de complicações maiores comparada à
mais preconizada é a realização inicial de cápsula endoscópica vasopressina. A recorrência do sangramento com embolização
para localização da lesão sangrante, seguida de enteroscopia superseletiva varia de 7 a 33%.
para seu tratamento.
■ Cirurgia
■ Outros m étodos de im agem A cirurgia pode ser necessária para tratamento de HDAB
Os exames contrastados de intestino delgado ou do cólon contínua ou recorrente e tem sido realizada em 15 a 25% dos
têm menor destaque na HDAB, pois não permitem identificar pacientes. A cirurgia de urgência, visando a conter a hemorra­
com segurança o local sangrante e podem interferir no desem­ gia e preservar a vida, deve ser precedida de criteriosa pesquisa
penho de outros exames, como a colonoscopia. No entanto, no sentido de localizar o ponto sangrante. Quando a ressecção
podem ser indicados quando a HD cessa e não se sabe a causa. segmentar é feita às cegas, ou baseada apenas em cintigrafia, está
Para o intestino delgado, além do trânsito intestinal pode ser sujeita a recorrência do quadro hemorrágico e tem morbidade
feita uma enteróclise, que é um exame com duplo contraste, e mortalidade aumentadas. Entretanto, quando a arteriografia
consistindo na passagem de uma sonda nasogástrica e injeção ou a colonoscopia têm êxito na identificação do local lesado, a
de contraste baritado associado a metilcelulose. Merece desta­ ressecção segmentar produz melhores resultados. Em um es­
que para o estudo do cólon, além do enema opaco, a colonos­ tudo de casos submetidos previamente à arteriografia seletiva,
copia virtual, estudo do cólon por tomografia computadoriza­ após 1 ano da cirurgia a incidência de ressangramento foi de
16 Capítulo 1 / Hemorragia Digestiva Aguda Alta e Baixa

14% naqueles que foram guiados pela arteriografia e de 42% de localizar com precisão o ponto sangrante. No insucesso da
quando a ressecção foi realizada após arteriografia negativa. colonoscopia e da terapia endoscópica, deve ser tentada a lo­
Portanto, nos casos de emergência, quando se faz uma laparo- calização da área hemorrágica por cintigrafia e/ou arteriografia
tomia exploradora, é desejável que o ato cirúrgico seja guiado seletiva. Caso haja localização do ponto de sangramento, pode
por um exame endoscópico intraoperatório. ser tentado tratamento angiográfico. A cirurgia de emergência
Geralmente, a cirurgia é recomendada nos seguintes casos: deve ser reservada para os sangramentos incontroláveis. Entre­
(1) pacientes que necessitam de mais de quatro unidades de tanto, quando não se tem êxito nos procedimentos anteriores
concentrado de glóbulos vermelhos dentro de 24 h; (2) pa­ para localizar o ponto lesado, haverá maior segurança se for
cientes com HD persistente e que exigem mais de dez unidades feito um exame endoscópico durante o ato operatório.
de hemotransfusão durante o surto de sangramento; (3) por­
tadores de hemorragias recorrentes; (4) portadores de doen­
ça diverticular que voltam a sangrar após um episódio inicial, ■ Prognóstico
com perdas entre 20 e 40% da volemia. Como esses critérios As variáveis clínicas que predizem a intensidade da HDAB
são relativamente arbitrários, a decisão cirúrgica nos casos de são semelhantes às descritas para a HDAA (Quadro 1.3). No
sangramentos maciços deve ser guiada também por outras va­ entanto, a HDAB difere da HDAA quanto à gravidade de sua
riáveis, como a concomitância de outras enfermidades e a si­ apresentação. Em um levantamento entre os membros do Co­
tuação clínica de cada paciente. légio Americano de Gastroenterologia, demonstrou-se que a
As intervenções cirúrgicas mais indicadas são: (1) ressecção HDAB apresenta-se menos frequentemente com choque que
segmentar de emergência para uma fonte conhecida de sangra­ a HDAA (19 e 35%, respectivamente), exigindo menos hemo­
mento persistente; (2) ressecção segmentar eletiva para uma transfusão (36 e 64%, respectivamente). A mortalidade varia
fonte conhecida de sangramento, como adenocarcinoma do de 2 a 4%.
cólon, ou para sangramento recorrente de uma lesão identifi­
cada, como divertículo do cólon; (3) colectomia subtotal, com
anastomose ileorretal, para fonte desconhecida de sangramento. ■ LEITURA RECOMENDADA
As ressecções segmentares para fontes desconhecidas devem ser
evitadas porque são acompanhadas de risco de ressangramento, Adlcr, DG, Lcighton, JA, Davila, RE et al. ASGE guidclinc: The role of endos-
com maior morbidade e mortalidade. copy in acutc non-variccal upper-GI hcmorrhagc. Gastrointest Endosc,
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■ Cuidados específicos for rccurrcnt small bowcl bleending. N. Engl. J. Med., 2001; 344:232-3.
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► Angiodisplasias. Aquelas que sangram necessitam de Digestive Diseases and Sciences, 2004; 49:893-901.
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pacientes com HDAB e angiodisplasia é o endoscópico. Os se­ thc patient with lowcr-GI bleeding. Gastrointest Endosc, 2005; 62:656-60.
Jcnsen, G 8c Machicado, GA. Diagnosis and treatment of severe hcmatochc-
guintes métodos são eficazes e seguros: eletrocoagulação, te­ zia: thc role of urgent colonoscopy after purge. Gastroenterology, 1988;
rapia de injeção, heater probe, laser e coagulação com plasma 95:1569-74.
de argônio. Contudo, a terapêutica endoscópica para hemos- Johnson, CD 8c Ahlquist, DA. Computed tomography colonography (virtual co­
tasia é sujeita a ressangramento, principalmente quando são lonoscopy): a ncw mcthod for colorcctal scrccning. Gut, 1999; 44:301-5.
lesões múltiplas, exigindo mais de uma sessão de hemostasia. Jutabha, R. Approach to thc adult patient with lower gastrointestinal bleeding.
In: Slivka, A. UpToDatc, Inc., Waltham, MA; 2009.
A complicação mais temida com o tratamento endoscópico é a Jutabha, R 8c Jcnsen, DM. Treatment of bleeding peptie ulccrs. Em: Fcldman,
perfuração colônica, principalmente no cólon direito, que tem M. UpToDatc, Inc., Waltham, MA; 2009.
a parede mais fina. Para as angiodisplasias múltiplas de cólon Lau, JYW, Sung, JJY, Lam, YH et al. Endoscopic retreatment compared with
e/ou delgado, tem sido proposta a terapêutica hormonal com surgery in patients with rccurrcnt bleeding after initial endoscopic control
a associação estrógeno-progesterona (1 mg de noretinodrel e of bleeding ulccrs. N Engl J Med, 1999; 340:751-6.
Rocckcy, DC. Gastrointestinal Bleeding. Em: Fcldman, M, Fricdman, LS, Brandt,
0,005 mg de mestranol/dia), com relatos de resultados profi- LJ, Slciscngcr, MH (cds.). Gastrointestinal and Liver Discase. Philadclphia:
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no controle e prevenção de sangramento de angiodisplasia do Rossini, FP, Arrigoni, A, Pcnnazio, M. Octreotidc in thc treatment of bleeding
intestino delgado, na dose de 100 |ig 2 vezes/dia SC. A arterio­ duc to angiodysplasia of thc small intcstinc. Am J Gastroenterol, 1993;
grafia deve ser considerada em casos de sangramento contínuo 88:1424-7.
Schafcr, ME 8c Lo SK. Navigating bcyond thc ligament of Trcitr an introduetion
ou recorrente, com insucesso da endoscopia para seu contro­ to lcarning cntcroscopy. Gastrointest Endosc, 2010; 71:1029-32.
le. Tal procedimento permite identificar as lesões sangrantes Wallacc, JL. Nonstcroidal antiinflammatory drugs and gastrocntcropathy: Thc
e tratá-las. Na refratariedade das medidas anteriores, deve-se Sccond hundred ycars. Gastroenterology, 1997; 1/2:1000-16.
considerar a indicação cirúrgica. Zuccaro, G. Management of thc adult patient with acutc lower gastrointestinal
► Doença diverticular dos cólons. A terapêutica endoscó­ bleeding. Am / Gastroenterol, 1998; 93:1202-8.
Zuckcrman, GR 8c Prakash, C. Acutc lower intestinal bleeding. Part I: Clinicai
pica, visando à hemostasia através de métodos térmicos, mecâ­ presentation and diagnosis. Gastrointest Endosc, 1998; 48:606-17.
nicos ou injeção de epinefrina, tem sido descrita com sucesso, Zuckcrman, GR 8c Prakash, C. Acutc lower intestinal bleeding. Part II: Etiology,
mas usada em pequeno número de casos, em face da dificuldade thcrapy, and outeomes. Gastrointest Endosc, 1999; 49:228-38.
2 Sangramento
Gastrintestinal Crônico
Pedro Duarte Gaburri, Ana Karla Gaburri, Adilton Toledo Ornellas e
Aécio Flávio Meirelles de Souza

Nos últimos anos, alguns avanços têm ocorrido no reconhe­ desafio nessas circunstâncias é a identificação da sede e do tipo
cimento desta forma de hemorragia digestiva, embora ela se da lesão responsável pelo sangramento, para que se possa adotar
constitua quase sempre em um grande desafio para os gastro- o tratamento mais apropriado, seja clínico ou cirúrgico.
enterologistas. Sua manifestação pode se dar de forma evidente
ou imperceptível, podendo sua origem se localizar em qualquer
segmento do tubo digestivo, não identificada após as avaliações ■ Etiologia
propedêuticas iniciais. Denomina-se hemorragia gastrintestinal No Quadro 2.1, estão enumeradas as causas mais frequentes
obscura quando se trata de sangramento evidente para o médico de sangramento intestinal crônico e que, embora predominem
ou o paciente, e hemorragia gastrintestinal oculta para os ca­ no intestino delgado, podem se localizar em outros segmentos
sos manifestados por anemia crônica ferropriva sem evidência do trato gastrintestinal.
macroscópica do sangramento, o qual é consequente à perda As ectasias vasculares ou angiodisplasias têm a sua frequência
digestiva prolongada com pesquisa de sangue oculto positiva aumentada com a idade, sobretudo após os 50 anos. São mais
nas fezes. Fazem-se necessárias perdas gastrintestinais acima de comuns no cólon direito e podem ocasionar hemorragias co-
100 a 150 m^/24 h para que se modifique a coloração das fezes, piosas (Figura 2.1).
motivo pelo qual o sangramento pode se dar por longos perío­ Os tumores ocorrem em idade mais precoce, predominan­
dos sem que seja notado, levando à anemia crônica como sua do entre os 30 e 50 anos, e incluem os liomiomas, leiomios-
única manifestação. Em termos gerais, a causa mais frequente
de anemia ferropriva no sexo masculino é a perda sanguínea
gastrintestinal, enquanto nas mulheres, no mundo ocidental,
as perdas ginecológicas, quando excessivas, superam as diges­

tivas em frequência. Algumas pistas clínicas podem indicar a
Quadro 2.1 Causas de hemorragia gastrintestinal crônica
possibilidade diagnóstica de associação de condições e enfer­
midades, como: idade acima de 50 anos e neoplasias malignas; de origem obscura
insuficiência renal crônica e angiodisplasias/ectasias vasculares;
In te s tin o d e lg a d o O utra s sedes
diarréia crônica e doença celíaca; além de AIDS e sarcoma de
Kaposi ou colite por citomegalovírus. Ecta sias v a s c u la re s Ecta sias v a s c u la re s

Tu m o re s L e s ã o d e D ie u la fo y

H e m o b ilia V a riz e s g á s trica s

■ HEMORRAGIA GASTRINTESTINAL Fístula a o r to e n té ric a Ecta sia v a s c u la r g á s tric a a n tra l

CRÔNICA OBSCURA H e m o s u c c u s p a n c r e a t ic u s H e m a n g io m a

D iv e r tíc u lo s d u o d e n o je ju n a is

Manifesta-se por perda sanguínea reconhecível pelo pacien­ D iv e r t íc u lo d e M e c k e l

te ou equipe médica, porém sem que a causa seja identificada U lc e ra ç ô e s m e d ic a m e n t o s a s o u


pelos processos propedêuticos, sobretudo endoscópicos, do infe cc io sa s

trato digestivo superior e do cólon, havendo hoje maior cons­ V a riz e s d u o d e n a is

cientização dos gastroenterologistas de que se torna indispen­ S a rc o m a d e K a p o si


sável a investigação apurada do intestino delgado nesses casos. D o e n ç a d e C ro h n
Não raramente, os episódios de sangramento se repetem, sem V a sc u lite s
que haja identificação da etiologia. As manifestações clínicas
Modificado de Rockey. DC. Chronlc Gastrintestinal Bleeding. Em: Grendell, JH, M cQuaid,
dependerão da intensidade das perdas, mas não fogem às tra­ KR, Friedm an, SC. Current D lagnosis a n d Treatm entin Castroenterology, 1996.
dicionalmente conhecidas e abordadas no Capítulo 1.0 maior

17
18 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico

Figura 2.1 Angiodisplasia do ceco. (Cortesia do Dr. Lincoln E.V.V.C. Figura 2.2 Lesões de Cameron. (Cortesia do Dr. Lincoln E.V.V.C. Ferreira.)
Ferreira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

sarcomas, adenocarcinomas, linfomas, tumores carcinoides e pertensão portal. Seu colabamento logo após o sangramento
hamartomas. Dor abdominal, emagrecimento e semioclusões pode dificultar o reconhecimento endoscópico.
intestinais podem acompanhar ou preceder as hemorragias de A gastropatia portal hipertensiva é encontrada em doentes
causas tumorais, em geral mais abundantes nos liomiomas e com hipertensão portal, podendo sua importância ser subesti­
liomiossarcomas. Asfístulas aortoentéricas ocorrem em porta­ mada em presença de volumosos cordões varicosos gastreso-
dores de aneurisma, ou com enxerto aórtico, em geral infectado fágicos. A escleroterapia ou ligadura elástica das varizes pode
por Staphylococcus aureus, que determina processo inflama- agravar a gastropatia e aumentar o risco de sangramento (Fi­
tório adjacente à parede duodenal e ruptura, com hem orra­ gura 2.2). As mesmas lesões vistas comumente no estômago
gia copiosa, para dentro do lúmen intestinal. A úlcera pépti- podem ocorrer também ao longo do intestino delgado como
ca penetrante, os tumores e traumas abdominais são causas enteropatia portal hipertensiva.
mais raras. As hemorragias em pessoas com menos de 25 anos A ectasia vascular gástrica antral (estômago em melancia) é
têm no divertículo de Meckel sua principal causa. Ulcerações uma condição rara, idiopática, associada a sangramento agu­
na mucosa ileal adjacente ao divertículo com mucosa gástri­ do ou com perda de sangue prolongada e não perceptível nas
ca ectópica constituem a razão mais comum de sangramento fezes. Em alguns casos, se associa à cirrose hepática e hiperten­
gastrintestinal crônico na infância. A hemobilia se acompanha são portal, possível razão da ocorrência dos vasos dilatados e
de icterícia e dor no hipocôndrio direito, e ocorre em conse­ tortuosos que se localizam no antro e convergem para o piloro
quência de trauma acidental, ou provocado, ou, ainda, cirúrgi­ (Figura 2.2).
co das vias biliares, biopsia hepática, litíase biliar, tumores, le­
sões vasculares, distúrbios de coagulação, dentre outras causas.
Sua ocorrência deve ser considerada em doentes com icterícia,
■ Diagnóstico
hematêmese e/ou melena e ausência de lesões do estômago e A identificação da causa da hemorragia requer a associa­
duodeno. Hemosuccus pancreaticus decorre de sangramento ção de dados clínicos, laboratoriais e o emprego de métodos
no dueto pancreático principal, resultante, na maior parte dos propedêuticos invasivos. A anamnese e o exame físico cons­
casos, de ruptura de uma artéria no interior de um pseudocisto. tituem os primeiros passos no diagnóstico, em busca da sede
É devido, na maioria dos casos, a pancreatites, pseudocisto ou do sangramento. A ocorrência de melena sugere uma lesão nas
tumores pancreáticos. Na presença dessas condições, a ocor­ partes mais altas do tubo digestivo, enquanto a hematoquezia
rência da hemorragia deve despertar a suspeita clínica, sendo quase sempre se relaciona a lesões no cólon distai e reto. No
sua demonstração concreta realizada através de arteriografia, entanto, a intensidade da perda sanguínea pode modificar es­
por meio da qual também se pode realizar a embolização te­ sas apresentações, gerando hematoquezia, a partir de lesões
rapêutica do vaso sangrante. A constatação endoscópica da altas com hemorragias copiosas, e melena, em sangramentos
saída de sangue pela papila pode caracterizar a ocorrência de lentos e prolongados do cólon direito. Esplenomegalia pode
hemosuccus pancreaticus ou hemobilia. sugerir hipertensão portal ou hemopatia. A sequência de in­
A lesão de Dieulafoy corresponde à existência de um vaso vestigações deve seguir uma ordem determinada pelos resul­
submucoso dilatado que se rompe para a luz gastrintestinal, tados que forem sendo obtidos sucessivamente. Uma lavagem
ocasionando hemorragias copiosas. Cerca de 1 a 5% das hemor­ gástrica pode ser útil ao demonstrar a presença de sangue no
ragias gastrintestinais altas teriam essa etiologia, estando a lesão estômago.
quase sempre localizada a 6 cm do esfíncter esofágico inferior, Os próximos passos são a endoscopia digestiva alta, a retos-
ao longo da pequena curvatura gástrica. Sua ocorrência pode sigmoidoscopia flexível ou a colonoscopia. Se estas não forem
se dar também em outros segmentos do tubo digestivo. esclarecedoras e o sangramento continuar ativo, pode-se usar
As varizes gástricas e duodenais são causas comuns de he­ o teste com hemácias marcadas com tecnécio , e que permite
morragias digestivas copiosas, quase sempre secundárias à hi­ identificar sangramentos acima de 0,1 m^ por minuto. Em al-
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 19

Figura 2.4 Arteriografia mesentérica revelando várias fases da identifi­


cação de tumor hipervascularizado, responsável por sangramento ativo
Figura 2.3 Radiografia contrastada de estômago e duodeno mostran­ para o lúmen intestinal: tumor estromal nojejuno proximal. (Cortesia
do estenose irregular na 3d porçáo duodenal por adenocarcionoma do Dr. Renato Dani.)
de duodeno.

guns casos, os exames radiológicos demonstram a existência de minuto e ainda permitir o uso de procedimentos terapêuticos
tumores em locais não acessíveis à endoscopia alta convencio­ durante sua realização. A Figura 2.4 evidencia uma arterio­
nal. A Figura 2.3 constitui um exemplo dessa situação. grafia com demonstração de sangramento ativo, em pacien­
Caso o sangramento tenha cessado após os exames já cita­ te com um tumor estromal do jeuno proximal e hemorragia
dos, pode-se recorrer a recursos endoscópicos mais sofistica­ crônica de repetição.
dos, com a utilização de aparelhos capazes de atingir o jejuno A impossibilidade de se detectar a causa, após o emprego
e o íleo: a enteroscopia. Exame contrastado convencional do dos recursos anteriormente citados, constitui indicação para
intestino delgado ou a enterócliset em que se usa contraste laparotomia exploradora, com enteroscopia peroperatória,
diluído e instilado por sonda nasogástrica, poderão ser em ­ visto que, na maior parte dos casos, a lesão responsável pelo
pregados, mas sua eficiência é inferior aos procedimentos en­ sangramento se localiza no intestino delgado. Nas situações
doscópicos. A enteróclise, a enteroscopia e mais recentemente de emergência, a laparotomia constitui-se em recurso extre­
a videoendoscopia por cápsula são os principais recursos pro­ mo. Importante destacar que esta atitude deve ser empregada
pedêuticos para a investigação do intestino delgado. Parece após se esgotarem todas as buscas do diagnóstico exato, ex­
bem estabelecido que a cápsula endoscópica está se tornando ceto se uma lesão única for identificada previamente, já que a
o método de escolha na avaliação de pacientes com sangra­ hemorragia pode ser causada por lesões múltiplas, gerando o
mento gastrintestinal obscuro ou oculto, após a realização de risco de se repetir o sangramento mesmo após a intervenção.
endoscopia digestiva alta e colonoscopia não elucidativas. A A cirurgia é capaz de identificar cerca de 70% das causas de
enteroscopia é capaz de identificar a fonte exata do sangramen­ hemorragia, em tais circunstâncias. A Figura 2.5 corresponde
to obscuro em 32 a 38% dos casos, enquanto a cápsula endos­ a uma lesão encontrada em paciente do sexo feminino, com
cópica o faz em 66 a 69%. Esta última tem seu uso indicado, repetidos episódios de melena, gerando anemia acentuada, com
não só nas hemorragias digestivas de origem desconhecida, 12 meses de evolução, durante os quais repetidas endoscopias
mas também nas anemias crônicas de causa não identificada gastroduodenais foram realizadas sem localizar a sede da he­
e nas doenças inflamatórias intestinais. Nestas últimas, vale morragia. Uma colonoscopia demonstrou que o sangramen­
realçar a ocorrência de sangramento gastrintestinal intenso, às to provinha de lesão localizada acima da válvula ileocecal, e a
vezes com choque hipovolêmico, na doença de Crohn de loca­ arteriografia mesentérica, demonstrada na Figura 2.4, sugeriu
lização jejunal. Devem ser lembradas, ainda, as arteriografias, tratar-se de extensa lesão tumoral. À laparotomia, foi identifi­
a tomografia computadorizada e a cintigrafia com hemácias cado um tumor localizado 15 cm abaixo da junção duodeno-
marcadas com radioisótopos, como recursos complementa­ jejunal, que, ao exame histológico, mostrou tratar-se de um
res para a investigação diagnóstica. A arteriografia é capaz de tum or estromal ulcerado do jejuno. A Figura 2.6 correspon­
reconhecer sangramentos em volume acima de 0,5 m^ por de a uma angiodisplasia no jejuno proximal identificada por
20 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico

exame com cápsula endoscópica. O sangramento gastrintes­ numerosas, se estendendo ao longo do intestino delgado. Em
tinal obscuro pode se fazer de forma insidiosa, em grau leve mulher com mais de 70 anos e episódios de melena volumosa
a moderado, ou abundante, sem que sua sede de origem seja e repetitiva, levando a anemia grave, encontramos incontáveis
identificada em exames endoscópicos do esôfago, estômago e ectasias, como visto na Figura 2.13. Muita atenção a esses pa­
duodeno e da colonoscopia, restando a enteroscopia e o exa­ cientes deve ser dada, em relação ao uso de anti-inflamatórios
me com cápsula endoscópica para exame do intestino delgado
como recursos diagnósticos. Como se sabe, 5% das lesões que
ocasionam sangramento gastrintestinal acham-se localizadas
no delgado. Estudo comparativo entre os dois métodos eviden­
ciou que a cápsula endoscópica tem a vantagem de inspecionar
todo o intestino delgado, enquanto a enteroscopia permite,
além do diagnóstico, intervenções terapêuticas, fazendo com
que ambos os procedimentos sejam valiosos. A enteroscopia
muitas vezes encontra dificuldades técnicas em ultrapassar as
várias flexuras do delgado. Quando realizada no peroperató-
rio, o cirurgião pode auxiliar a condução do aparelho através
do intestino, facilitando sua progressão. Outros dois casos de
abundante melena de repetição ilustram a importância da vi-
deocápsula endoscópica, tendo sido ambos esclarecidos pelo
seu emprego: foram reconhecidas lesões compatíveis com a
doença de Crohn jejunoileal em ambos os casos. As imagens
dessas lesões são mostradas nas Figuras 2.7,2.8 e 2.9, onde se
vê, na primeira, secreção sanguinolenta fluindo pelo jejuno de
um homem de 21 anos, cujo exame foi realizado na vigência
do sangramento; na segunda, erosões lineares recobertas por
coágulos, enquanto lesão aftoide linear não sangrante é vista na
Figura 2.9, ambas do mesmo paciente. Na Figura 2.10, podem-
se ver, após 6 meses de uso de imunomodulador, em exame
de controle, lesões aftoides superficiais no jejuno. Outro caso
semelhante ocorreu em uma mulher de 32 anos com melena
recorrente e anemia intensa, cujo exame com cápsula endos­
Figura 2.6 Angiodisplasia no jejuno proximal identificada com a cáp­
cópica mostrou diversas lesões aftoides, com aspecto também sula endoscópica. (Cortesia do Dr. Renato Dani.) (Esta figura encontra-se
compatível com doença de Crohn jejunoileal, como se vê nas reproduzida em cores no Encarte.)
Figuras 2.11 e 2.12.
Vale destacar que hemorragias copiosas são pouco frequen­
tes na doença de Crohn, mas esta enfermidade tem grande
tendência a hemorragias abundantes quando acomete o je­ 01:36:21 26 Ju l0 7
juno com lesões ulcerosas múltiplas e profundas. Em pacien­
tes idosos, as angiodisplasias e ectasias vasculares podem ser RM Q
i

PiHCamTSB
Figura 2.5 Lesão tumoral do jejuno proximal responsável por hemor­ Figura 2.7 Sangramento ativo identificado por exame com cápsu­
ragia crônica evidente, correspondente a tumor estromal do intestino la endoscópica em paciente com doença de Crohn, hemorragia di­
delgado - mesmo caso da Figura 2.4. (Cortesia dos Drs. Renato Dani gestiva copiosa e choque hipovolêmico. (Cortesia do Dr. Frederico
e Rodrigo Romualdo.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores Batista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
no Encarte.) Encarte.)
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 21

01:37:11 26 Jul 07 06:56:25 26 Jul 07


y
RMQ RMQ
^ * ‘

PtHCanTSB PMCanTSB
Figura 2.8 Extensa úlcera recoberta por coágulo no jejunodo mesmo Figura 2.10 Erosão superficial no jejuno do mesmo paciente da Figura
paciente da Figura 2.7. (Cortesia do Dr. Frederico Batista de Oliveira.) 2.7 após 6 meses de azatioprina, sem outros sangramentos. (Cortesia
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) do Dr. Frederico Batista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reprodu­
zida em cores no Encarte.)

a cápsula endoscópica deva ser o primeiro recurso a ser usa­


07:09:36 03 Feb 09 do na investigação do jejuno e íleo, a enteroscopia com duplo
R Q d^É balão é capaz de evidenciar algumas lesões não identificadas
ao exame com a cápsula. Portanto, os dois exames podem ser
complementares, com vantagens e desvantagens para ambos,
como visto no Quadro 2.4. Outro fato relevante foi a criação
de uma cápsula que se dissolve espontaneamente após cerca de
40 h (Cápsula M2A Patency), não criando o risco de obstrução
intestinal permanente, nos casos de ser retida em segmentos
com estenose.

■ Tratamento
As medidas de tratamento da hemorragia digestiva alta e
baixa estão enumeradas no Capítulo 1 e também se aplicam
ao sangramento gastrintestinal crônico. Algumas causas do
sangramento gastrintestinal crônico aparente e recorrente são,
porém, mais difíceis de contornar. Exemplo disso são as ectasias
vasculares, por sua multiplicidade e extensão. O emprego de
PilICattTSB terapêuticas com fórmulas hormonais e do ácido aminocaproi-
co apresenta resultados discrepantes em estudos distintos, por
Figura 2.9 Erosào linear do jejuno no mesmo paciente da Figura 2.7. vezes desapontadores. Recente experiência com o emprego da
Nào estava sangrando neste momento. (Cortesia do Dr. Frederico Ba­ associação de estrogênio e progesterona (1 mg de noretinodrel
tista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
Encarte.)
e 0,005 mg de mestranol, 2 vezes/dia) demonstrou excelente
resultado na prevenção de novos episódios de sangramento
em doentes de ambos os sexos, com ectasias vasculares ou com
hemorragias de origem obscura, respeitadas as contraindica-
não hormonais e ácido acetilsalicílico, responsáveis por eleva­ ções para o uso destes hormônios. A somatostatina e o octreo-
do percentual de hemorragias digestivas, com maior risco nos tídio podem ser alternativas válidas em hemorragias por ecta­
idosos. Pelos fatos anteriormente descritos, pode-se deduzir a sias vasculares. O octreotídio de liberação prolongada pode ser
grande importância do exame com cápsula endoscópica para aplicado em injeções mensais. A gastropatia hipertensiva portal
investigar lesões do intestino delgado. Porém, estudo reali­ tem seu risco de sangramento reduzido com o uso de medidas
zado na China, incluindo 218 pacientes dos quais 116 com que diminuem a hipertensão portal, como betabloqueadores
sangramento gastrintestinal obscuro, demonstrou que, embora ou shunts portossistêmicos, cirúrgicos ou transjugulares. A ta-
22 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico

04:51:10 17 Sep 07 04:30:24 17 Sep 07


EHL EHL

Given® Given®
Figuras 2.11 e 2.12 Várias erosões jejunais identificadas por exame com cápsula endoscópica em paciente com repetidos episódios de melena
e anemia grave, portadora de doença de Crohn e assintomática há 3 anos; houve recuperação das taxas hemáticas com uso de azatioprina.
(Cortesia do Dr. Frederico Batista de Oliveira.) (Estas figuras encontram-se reproduzidas em cores no Encarte.)

■ HEMORRAGIA GASTRINTESTINAL
CRÔNICA OCULTA
■ Anemia ferropriva
O sangramento gastrintestinal crônico oculto é habitual­
mente identificado quando a pesquisa de sangue oculto nas
fezes se faz positiva ou na ocorrência de anemia crônica fer­
ropriva. Algumas lesões do tubo digestivo podem sofrer perda
crônica de sangue, ocasionando uma anemia por carência de
ferro, com baixos níveis de ferro sérico e ferritina constituin­
do sua manifestação clínica mais proeminente, e obrigando ao
diagnóstico diferencial com outras entidades, que também se
manifestam da mesma forma. A anemia resultará de perda de
ferro superior à capacidade do intestino delgado em absorvê-lo
e aparecerá quando seus estoques normais no organismo forem
esgotados. Pacientes com anemia moderada não apresentam
queixas, mas, em casos mais intensos, adinamia, fadiga fácil,
dispnéia de esforço, palidez e taquicardia, especialmente em
pacientes idosos, junto a sintomas de má irrigação de órgãos
vitais, até mesmo com infarto miocárdico e isquemia cerebral,
podem ocorrer. Em alguns pacientes, a taxa de ferro diminuída
Figura 2.13 Incontáveis ectasias vasculares jejunoileais identificadas pode ser detectada antes do aparecimento da anemia, levando à
em exame com cápsula endoscópica em paciente idosa, com repeti­ identificação das lesões gastrintestinais mais precocemente. A
dos episódios de melena e anemia grave secundária. (Cortesia do Dr. Organização Mundial de Saúde define a anemia por deficiência
Frederico Batista de Oliveira.) (Esta figura encontra-se reproduzida em de ferro como a condição em que a hemoglobina se encontra
cores no Encarte.) abaixo de 13 g/d^ para homens e 12 g/d^ para mulheres que
ainda menstruam.

lidomida tem sido aconselhada nestas circunstâncias, mas, no ■ Etiologia


Brasil, a droga só é aprovada pelas autoridades sanitárias para Anemia ferropriva, em homens e em mulheres pós-meno-
o tratamento da hanseníase. pausa, tem quase sempre sua origem em perda gastrintestinal
Quando as lesões são acessíveis ao alcance dos aparelhos crônica. Qualquer lesão do tubo digestivo pode ocasionar esse
existentes, o tratamento endoscópico pode ser uma das alter­ tipo de sangramento. Nos países ocidentais, sua principal cau­
nativas mais eficazes. sa é a úlcera gástrica ou duodenal. As varizes esofagogástricas,
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 23

quando sangram, o fazem de forma exuberante, exceto nos seu uso mais frequente. Nos últimos anos, a enteroscopia com
pacientes submetidos a escleroterapia ou ligadura elástica, nos enteroscópio de duplo balão vem tendo sua utilidade mais bem
quais se pode encontrar um teste positivo para sangue oculto. reconhecida. Este processo vem sendo mais comumente em­
Outras causas incluem esofagite intensa, gastrite erosiva, câncer pregado e tendo seu valor cada vez mais reconhecido em vários
gástrico e ectasias vasculares. Se o sangramento for pequeno, países. Se, mesmo assim, esses exames forem negativos, deve-se
nas lesões altas, a reabsorçâo do ferro pode impedir o apare­ reavaliar o diagnóstico do tipo da anemia, e, caso os mesmos
cimento da anemia. achados laboratoriais se mantiverem, outros testes diagnósti­
A ausência de lesões que justifiquem o sangramento após cos devem ser realizados, como a cintigrafia para pesquisa de
uma endoscopia digestiva alta e uma colonoscopia indica que divertículo de Meckel, a tomografia computadorizada e a ar-
a causa deve se localizar no intestino delgado. Angiodisplasias teriografia seletiva.
e tumores são as causas mais comuns de sangramento crônico
originado nesse segmento intestinal, mas a doença celíaca, a ■ Tratam ento
gastrenterite eosinofílica, a doença de Whipple, a endometrio- O tratamento da anemia consiste na reposição de ferro, sen­
se e divertículos também podem ser sua causa. Uma elevação do o sulfato ferroso, por seu baixo custo e boa tolerância, uma
isolada das transaminases, sem outros indicadores de doença escolha apropriada. A reticulocitose, em resposta à medicação,
hepática, ou uma anemia ferropriva podem ser as únicas ma­ ocorrerá em 1 a 2 semanas. Um tratamento específico deverá
nifestações de doença celíaca. O achado de anticorpo antien- ser dirigido para a causa do sangramento e irá variar de acordo
domisial ou antitransglutaminase tissular positivo reforça a com o seu tipo e localização. A cirurgia poderá ser necessária
indicação para biopsia do intestino delgado, em face da sua em condições como tumores, e as ectasias vasculares não aces­
elevada especificidade nessa enfermidade. Os tumores benignos síveis aos endoscópios.
e malignos do jejuno e do íleo são outras causas que devem ser
consideradas. Úlceras do intestino delgado, causadas pelo uso de
anti-inflamatórios não hormonais, endometriose e divertículos,
■ Sangramento fecal oculto
também devem ser considerados como possíveis causas. No Alguns casos de sangramento gastrintestinal oculto são de­
Brasil, a ancilostomíase é uma causa relativamente frequente, tectados pela presença de sangue oculto nas fezes. Perdas en­
sobretudo na zona rural. tre 0,5 e 1,5 m^/dia podem se originar em diversas lesões do
No cólon, sobretudo no direito, o carcinoma, os pólipos, as trato gastrintestinal. Podem ocorrer ou não queixas digestivas
ulcerações e ectasias vasculares são outras possíveis etiologias. associadas, mas, em geral, seu achado é constatado quando se
Entretanto, embora o carcinoma do cólon seja uma das cau­ investigam anemias de causa obscura, doentes com queixas
sas mais frequentes desse tipo de sangramento, é importante digestivas variadas, ou mudança de coloração das fezes, mal
registrar que, em cerca de 40% dos casos, a lesão responsável definidas. Vale frisar que o aspecto das fezes, com caracterís­
se situa no trato gastrintestinal alto, acima da junção duode- ticas típicas de melena, só ocorre quando mais de 150 m^ de
nojejunal. Doenças injlamatôrias intestinais e doenças intesti­ sangue são derramados dentro do estômago.
nais isquêmicas devem também ser consideradas. Em 20% dos
casos, há atrofia gástrica com acloridria, sugerindo que uma ■ Etiologia
má absorção de ferro possa existir. Em doentes com varizes Várias são as situações em que os testes para pesquisa de
esofagogástricas ou com divertículos no cólon, um exame de sangue oculto nas fezes podem ser positivos, estando as prin­
sangue oculto positivo deve fazer suspeitar de que outra doen­ cipais enumeradas no Quadro 2.2. As causas mais comuns in­
ça possa ser a causa do sangramento, uma vez que, em ambas cluem as neoplasias e os processos ulcerativos do trato diges­
as circunstâncias, a hemorragia, quando ocorre, é geralmente tivo superior.
copiosa e o sangramento não é oculto. Vale notar que a faixa Além dessas, existem várias condições que podem gerar re­
etária em que é mais comum a doença diverticular do cólon sultados falso-positivos, como uso de medicamentos, inges-
coincide com a do carcinoma, sendo este a causa mais comum ta de carnes vermelhas, frutas e vegetais, especialmente crus,
de sangramento oculto. como mostrado no Quadro 2.3. A perda de hemoglobina deve
estar acima de 10 mg/g de fezes/dia. O uso de anticoagulantes
■ Diagnóstico pode raramente ocasionar exames positivos, por perda de san­
Na ausência de sintomas específicos, sobretudo em pacientes gue pela mucosa, consequente à hipocoagulabilidade, mas, na
idosos, a investigação deve começar pelo estudo do cólon, por grande maioria dos pacientes que usam tais medicamentos,
meio de colonoscopia preferencialmente, ou enema baritado o teste positivo para sangue oculto indica a ocorrência de le­
complementado por retossigmoidoscopiaflexível. Se lesões não sões preexistentes no tubo digestivo. Os carcinomas de cólon
forem reconhecidas com esses procedimentos, a pesquisa deve e os pólipos são os principais responsáveis por testes de san­
se dirigir para o trato superior. Os sintomas digestivos podem gue oculto positivo, mas qualquer enfermidade que atinja a
ajudar a orientar o encaminhamento propedêutico quanto à mucosa gastrintestinal pode ser causa do sangramento. Uma
opção inicial para a colonoscopia ou a endoscopia digestiva alta, vez constatado o exame positivo, é necessária uma investigação
realizando-se esta última caso a primeira tenha sido normal. diagnóstica rigorosa em busca da etiologia.
É aconselhável repeti-las, se forem ambas negativas. Se não
se conseguir ainda identificar uma causa, deve-se investigar ■ Diagnóstico
o intestino delgado através de enteróclise e/ou enteroscopia e Os testes da hemoporfirina, do guáiaco e imunoquímicos po­
da videoendoscopia por cápsula endoscópica. Como já citado dem ser empregados para a pesquisa de sangue oculto nas fezes.
para os casos de sangramento gastrintestinal obscuro, esta úl­ Sua utilidade na identificação precoce de neoplasias ulceradas
tima ganhou grande aceitação, constituindo-se no mais prático do tubo digestivo deve ser considerada. Na detecção de lesões
procedimento endoscópico para estudo do intestino delgado, altas, podem não ser tão eficazes como para as lesões do cólon,
embora ainda seu custo elevado para a nossa população e a pois, em casos de sangramento mais discreto do tubo digesti­
suspeita de obstrução intestinal sejam barreiras que impedem vo superior, a reabsorçâo dos produtos da digestão sanguínea
24 Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico

▼ --------------------------- T---------------------------
Quadro 2 2 Causas de perda de sangue oculto pelas fezes Quadro 2.3 Causas de sangue oculto nas fezes, falso-positivo
para fonte intestinal
Esôfago/estômago E s o fa g ite
G a s trite e ro siv a Perdas extraintestinais
G a s tro p a tia h ip e rte n s iv a E p is ta x e
Ú lc e ra p é p tic a S a n g r a m e n t o g e n g iv a l
T u m o r e s m a lig n o s F a rin g ite
P ó lip o s
H e m o p t is e
L e sõ e s d e C a m e r o n
Medicações causando irritação gástrica
D o e n ç a c e lía ca
A c id o a ce tilsa lic ílico
D o e n ç a d e W h ip p le
A n t i-in f la m a tó r io s n ã o e s te ro id e s
Intestino delgado D o e n ç a d e C ro h n
V ita m in a C
T u m o r e s m a lig n o s e b e n ig n o s
Atividade exógena da peroxidase
P ó lip o s
C o n s u m o d e c a r n e v e r m e lh a (h e m o g lo b in a n ã o h u m a n a )
A n c ilo s to m ía s e
C o n s u m o d e fruta s (fig o s , g ra p e fru it, m e lõ e s )
E s tro n g ilo id ía s e
V e g e ta is c ru s (c o u v e -flo r , b ró c o lis , a b ó b o r a s , p e p in o , r e p o lh o )
T u b e r c u lo s e
C o lite u lc e ra tiv a A daptado de Rockey, DC. Primary care: occult gastrintestinal bleeding. N. Engl. J. Med.,
C o lite is q u é m ic a 1999; 34138-46.

Cólon T u m o r e s m a lig n o s
P ó lip o s

Ú lc e ra c e c a l id io p á tic a

A m e b ía s e no intestino delgado pode levar a resultados negativos. Aqui


Ffgado/vias biliares/pàncreas H e m o b ilia também, o resultado positivo deve encaminhar à busca da etio-
H e m o s u c c u s p a n c r e a t ic u s logia inicialmente no cólon, por serem os testes de pesquisa de
U lc e ra ç ô e s sangue oculto mais apropriados às perdas intestinais baixas. A
sigmoidoscopia flexível, a colonoscopia ou o enema baritado po­
Qualquer localização no tubo H e m a n g io m a s
digestivo
dem ser empregados, embora a colonoscopia permita, além de
Ectasias v a s c u la re s
visualização mais acurada, sobretudo de lesões menores, tam ­
A n g io d is p la s ia s
bém a realização de biopsias e, às vezes, a extirpação endoscópi-
Extraintestinais E p is ta x e ca da lesão. Se a investigação do cólon for negativa, deve-se pro­
H e m o p t is e ceder à endoscopia digestiva alta, que será capaz de identificar
a causa em 75% dos casos, nessas circunstâncias. Caso exames
Adaptado de Rockey. DC. Primary care: occult gastrintestinal bleeding. N. Engl. J. Med.,
1999; 34 í:38-46.
hematológicos demonstrem uma anemia ferropriva, deve-se
proceder como já demonstrado para essa condição.

----------------------------------------▼ ----------------------------------------
Quadro 2.4 Vantagens e desvantagens dos métodos diagnósticos

Método Vantagens Desvantagens

Raios X, intestino delgado ou enteróclise M í n i m o d e s c o n f o r t o e risco N ã o id e n tific a m to d a s as le sõ es


E n t e r ó c lis e -t u b o d e s c o n fo rtá v e l

Cintilografia com hemácias marcadas com Tc" B o a p a ra s a n g r a m e n t o in te n s o In e s p e cífica , falsa lo c a liz a ç ã o e n ã o lo c a liz a ç ã o d e
a lg u n s casos
N ã o id e n tific a a causa

Cintilografia para divertículo de Meckel B o a e m p a c ie n te s jo v e n s p a ra a c h a r o A p e n a s e sp e cífica p a ra d iv e r t íc u lo d e M e c k e l


d iv e r t íc u lo

Angiografia B o a p a ra s a n g r a m e n t o in te n s o In v a s iv a , risco d e in fa rto in te s tin a l c o m


P e rm ite in t e r v e n ç ã o se a s e d e é lo c a liz a d a e m b o liz a ç ã o
M e n o r ch a n ce d e a cha r a causa q u e c o m a
e n d o s c o p ia
R isco d e re a ç ã o a o c o n tra s te e n d o v e n o s o

Enteroscopia V is u a liz a ç ã o d ire ta e é p o s s ív e l in t e r v e n ç ã o In v a s iv a , risco e n d o s c ó p ic o , d e s c o n fo r tá v e l, n ã o


t e ra p ê u tic a v is u a liz a p a rte d o je j u n o e íleo

Cápsula endoscópica P e rm ite v is u a liz a ç ã o d a m a io r p a rte d o N e n h u m a in t e r v e n ç ã o é p o s s ív e l


in te s tin o d e lg a d o In t e r p r e t a ç ã o d a s im a g e n s p e lo m é d ic o d e m a n d a
N ã o in v a s iva lo n g o t e m p o

Adaptado de Mitchell SH, Schaefer DC. D ubagunta S. A New View of Occult and O bscure Gastrointestinal Bleeding .A m . Fam. Physlcian, 2004; 69:875-81.
Capítulo 2 / Sangramento Gastrintestinal Crônico 25

■ Tratam ento Ian, DR, Arnott, P, Simon, KL. Thc Clinicai Utility of Wirclcss Capsule Endos­
copy. Dig. Dis. Sei., 2004; 893:901.
A causa e a localização da sede do sangramento é que vão Kcpczyk, T 8c Kadakia, SC. Prospcctivc evaluation of gastrintestinal tract in
determinar o tipo de terapêutica a ser empregado, obedecendo - patients with iron-dcficicncy anemia. Dig. Dis. Sei., 1995; 40:1283-9.
se aos mesmos critérios para as condições com anemia ferro - Lau, WY, Yucn, WK, Chu, KW et al. Obscure bleeding in thc gastrintesti-
priva já citados aqui. O tratamento endoscópico, permitindo nal tract originating in the small intcstinc. Surg. Gynecol. Obstet., 1992;
174:119-24.
a ressecção de pólipos, além do aspecto terapêutico, reveste-se Mclntyre, AS 8c Long, RG. Prospcctivc survey of investigations in outpaticnts
de um grande papel profilático, sobretudo quando se conside­ referred with iron dcficiency anaemia. Gut, 1993; 34:1102-7.
ram as neoplasias do intestino grosso. Nos casos em que não se Mitchcll, SH, Schacfer, DC, Dubagunta, S. A New Vicw of Occult and Obscure
consegue identificar a sede da lesão, após o emprego de todos Gastrintestinal Bleeding. Am. Fam. Physician, 2004; 69:875-81.
Mujica, VR 8c Barkin, JS. Occult gastrintestinal bleeding: general overview and
os recursos diagnósticos disponíveis, o tratamento se restringe approach. Gastrointest. Endosc. Clin. North Am., 1996; 6:833-45.
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■ LEITURA RECOMENDADA Stanford, Appleton and Langc, 1996.
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Barkin, JS & Ross, BS. Medicai thcrapy for chronic gastrintestinal bleeding of 1999; 341:38-46.
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Bashir, RM 8c Al-Kawas, FH. Rarc causes of occult small intestinal bleeding. iron-dcficiency anemia. N. Engl. J. Med., 1993; 329:1691-5.
Gastrointest. Endosc. Clin. N. Am., 1996; 6:709. Rollins, ES, Picus, D, Hicks, ME et al. Angiography is uscful in dctccting thc
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J. Gastroenterol., 1997; 32:469-72. Surgery, 1991; 110:799-804.
Diarréia Aguda e Crônica
Juliano Machado de Oliveira, Laura Cotta Orneiias Halfeld e
Adilton Toledo Orneiias

10 t de líquidos por dia (ingesta, secreções de saliva, gástrica,


• INTRODUÇÃO biliar, pancreática e intestinal), absorve cerca de 6 t no jejuno
Muitos pacientes apresentam queixas relativas ao hábito in­ e 2,5 t no íleo. O cólon recebe do delgado em torno de 1,5 e
testinal. Alguns desses referem frequência evacuatória acima apenas 100 m^ são eliminados nas fezes. A capacidade absor-
da média e outros, abaixo. Portanto, é importante definir o que tiva total do cólon é de 4 a 5 ê/24 h e, quando essa quantidade
é hábito intestinal normal, ou melhor, saudável. A evacuação é ultrapassada, surge a diarréia.
de fezes consistentes 1 a 3 vezes/dia ou até a cada 2 a 3 dias é O principal mecanismo pelo qual a água é absorvida e secre-
considerada normal. Em algumas situações, os pacientes po­ tada se faz segundo o gradiente osmótico criado pelo transpor­
dem alternar o ritmo intestinal, mantendo-se nos parâmetros te ativo do sódio. O sódio é absorvido associado ao cloro ou a
normais da frequência evacuatória, porém com desconforto. alguns nutrientes. A absorção de NaVCl' pelas vilosidades leva
Nesses casos, deve-se avaliar adequadamente o paciente. a água passivamente através da mucosa. Isso se dá pela menor
Diarréia consiste em alteração do hábito intestinal por di­ concentração de sódio no interior do enterócito em relação à
minuição de consistência das fezes e aumento da frequência e luz intestinal. Essa via é inibida pelo cAMP e GMPc, que so­
do volume das evacuações. Apesar de a quantificação do peso frem estimulação da adenilciclase e guanilciclase do enterócito.
fecal diário ser a forma mais precisa para se definir diarréia, Essas enzimas podem ser ativadas pelas toxinas bacterianas. A
esta medida é pouco prática e restrita ao academicismo ne­ absorção acoplada de Na* com glicose, galactose e aminoácidos
cessário às pesquisas. Habitualmente, o peso médio diário das é ativa e não sofre influência dos agentes infecciosos, por isso
fezes é de 100 g/dia. é utilizado para restaurar as perdas nas diarréias infecciosas.
Alterações intestinais são caracterizadas por variações na A secreção entérica depende da secreção ativa de CP, que se
consistência e pela presença de produtos patológicos nas fezes. acompanha da eliminação de Na* e H20 para o lúmen intesti­
Estes são definidos pela presença de muco, pus, sangue, resíduos nal pelas células das criptas. Assim, a água acompanha o m o­
alimentares ou fezes brilhantes e/ou flutuantes (esteatorreia). vimento do Na’, e a absorção se faz pelas células do ápice das
Os três primeiros estão frequentemente associados a diarréias vilosidades intestinais, enquanto a secreção é realizada pelas
de origem inflamatória, enquanto os dois últimos, às síndromes células das criptas. Diversos agentes estimulam a secreção ou
disabsortivas, conforme descrito adiante neste capítulo. inibem a absorção, como as prostaglandinas, o peptídio vaso-
A investigação das características clínicas da diarréia au­ ativo intestinal (VIP) e o peptídio calmodulina, enquanto as
xilia na compreensão da fisiopatologia envolvida no processo encefalinas atuam no sentido de estimular a absorção de água
e até mesmo das etiologias mais prováveis. Em muitos casos, e eletrólitos. No cólon, há vários mecanismos de transporte de
terapêutica sintomática e específica pode ser introduzida com sódio, através dos quais ocorre a absorção de água. A absorção
esses dados iniciais. Sempre que possível, no entanto, deve- e a secreção acontecem concomitantemente com predomínio
se definir a etiologia para se conduzir a terapêutica de forma do conteúdo absorvido. A diminuição da absorção ou aumento
mais dirigida. da secreção ou a alteração de ambas produzem diarréia.
Muitos microrganismos alteram o equilíbrio de absorção e
secreção no intestino delgado e são capazes de provocar diar­
■ FISI0L0GIAE FISIOPATOLOGIA réia. Alguns produzem enterotoxinas que ativam o mecanismo
secretor e outros, por alterarem as vilosidades, prejudicam a
O intestino tem a função de secretar substâncias que auxi­ absorção. No íleo distai e cólon, a diarréia é causada princi­
liam no processo digestivo e de absorver líquidos, eletrólitos e palmente por invasão e destruição do epitélio, que resulta em
nutrientes. Fisiologicamente, a absorção de nutrientes e líqui­ ulceração, infiltração da submucosa com eliminação de soro
dos excede a secreção, e o intestino delgado é predominante e sangue. Além disso, podem estimular resposta inflamatória
nessa atividade. O intestino delgado recebe, aproximadamente, local, que resulta na produção de vários secretagogos, como as

26
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 27

prostaglandinas e interleucinas, e contribuem para a perda de ------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------


líquidos para o lúmen intestinal. Quadro 3.1 Diagnóstico diferencial de diarréia alta (delgado)
A fisiopatologia da diarréia envolve cinco mecanismos bá­ e baixa (cólon)
sicos, sendo possível a concomitância de mais de um deles no
desencadeamento de determinado tipo de diarréia: Aspecto Delgado Cólons

a. Diarréia Secretora: resulta da hipersecreção de água e ele- V o lu m e G ra n d e Pequeno


trólitos pelo enterócito, como ocorre pela ação das ente- N° d e e va c u a ç õ e s Pequeno G ra n d e
rotoxinas bacterianas. Pode também resultar da produção
M u co e pus A u s e n te s P o d e m o c o rre r
excessiva de hormônios e outros secretagogos, como no
D o r a b d o m in a l H e m ia b d o m e d ir . H e m ia b d o m e esq.
gastrinoma (gastrina), na síndrome carcinoide (seroto-
m e s o g á s t rio h ip o g á s t r io
nina, prostaglandinas, calcitonina), na cólera pancreática
Náuseas M a is fr e q u e n te s M a is raras
(VIPomas), no adenoma viloso, na insuficiência adrenal
e no hipoparatireoidismo.
b. Diarréia Osmótica: o processo da digestão determina fi-
siologicamente a transformação do conteúdo intestinal
de sua origem. Denomina-se diarréia alta a originada no intes­
em material isosmótico. Distúrbios da digestão presen­
tes nas deficiências de dissacaridases, que mantêm um tino delgado e baixa a relacionada com o intestino grosso. A
conteúdo hiperosmolar, determinam a passagem de lí­ importância dessa classificação está na diferenciação de causas
quidos parietais para o lúmen intestinal e, consequente­ mais frequentes em cada local, dirigindo melhor conduta médi­
mente, diarréia. O mesmo pode acontecer pela ingestão ca investigativa e terapêutica iniciais. A maioria das etiologias
de agentes osmoticamente ativos como a lactulose, o ma- que causam problemas ao trato gastrintestinal alto desencadeia
nitol, o sorbitol e os sais de magnésio. diarréia de padrão secretor. Por outro lado, as diarréias baixas
c. Diarréia Motora: resulta de alterações motoras com trân­ costumam apresentar padrão inflamatório. O Quadro 3.1 traz
sito intestinal acelerado, como ocorre nas enterocolopa- as principais características desses dois tipos de diarréia.
tias funcionais ou doenças metabólicas e endócrinas. Sur­
ge, também, por redução da área absortiva consequente
de ressecções intestinais ou de fístulas enteroentéricas. ■ DIARRÉIA AGUDA
d. Diarréia Exsudativa/Inflama tória: decorre de enfermi­
dades causadas por lesões da mucosa resultantes de pro­ A diarréia aguda geralmente manifesta-se como quadro de
cessos inflamatórios ou infiltrativos, que podem levar a instalação súbita em resposta a estímulos variáveis, sendo os
perdas de sangue, muco e pus, com aumento do volume principais associados a agentes infecciosos com evolução au-
e da fluidez das fezes. É encontrada nas doenças infla- tolimitada.
matórias intestinais, neoplasias, shigelose, colite pseu- A prevalência mundial dessa afecção é de 3 a 5 bilhões de
domembranosa, linfangiectasia intestinal. casos/ano, associada a 5 a 10 milhões de mortes/ano. Os da­
e. Diarréia Disabsortiva: resulta de deficiências digestivas dos oficiais do Brasil (www.datasus.gov.br) revelam que 5 em
e lesões parietais do intestino delgado que impedem a cada 1.000 mortes no país em 2007 foram causadas por diar­
correta digestão ou absorção. Este processo pode causar réia aguda infecciosa. Trinta por cento dessas mortes ocorre­
diarréia com esteatorreia e resíduos alimentares. ram em menores de 14 anos e 50%, em maiores de 60 anos. A
prevalência real da enfermidade é difícil de ser definida devido
à subnotificação.
■ CLASSIFICAÇÃO O organismo saudável possui mecanismos de defesa que
permitem resistir aos agentes lesivos e que incluem: (1) o suco
Existem várias formas de se classificarem as diarréias. A de­ gástrico, que é letal a muitos organismos pelo baixo pH; (2) a
finição que apresenta maior relevância clínica é a que distingue motilidade intestinal, que dificulta a aderência dos microrga-
tipos de diarréia de acordo com seu tempo de evolução. Assim, nismos à parede do intestino; (3) os sistemas linfático e imune,
define-se como aguda a diarréia que tem duração máxima de que promovem a defesa celular e humoral contra os agentes
30 dias, habitualmente ficando restrita a 2 semanas. A diarréia nocivos. A falha desses mecanismos e/ou a alta agressividade
é considerada crônica quando tem duração superior a 1 mês. do estímulo agressor do intestino causam a diarréia.
Essa distinção auxilia na conduta médica desde a avaliação de
etiologias mais frequentes até as necessidades de terapêuticas
empíricas iniciais.
■ Etiologia
As diarréias agudas devem ser consideradas como urgência Como o processo é autolimitado, a definição etiológica nem
médica devido aos riscos inerentes especialmente relacionados sempre altera a conduta médica na diarréia aguda. Entretanto,
com a desidratação habitual nesses casos. A principal etiologia é em casos mais graves ou em situações especiais, medidas espe­
a infecciosa. Contudo, são processos autolimitados, na maioria cíficas podem ser necessárias.
das vezes, e a conduta primordial é a manutenção da homeos- Como citado anteriormente, o mecanismo de geração da
tase com o equilíbrio hidreletrolítico. diarréia aguda na maioria das vezes está associado à agressão
As diarréias crônicas apresentam condições etiopatogênicas por microrganismo. Porém, outras causas como sobrecarga de
muito mais complexas, porém raramente necessitam de abor­ solutos hiperosmolares por abusos alimentares ou fármacos
dagem emergencial. Com isso, a necessidade de tratamento (diarréia osmótica) e estímulos de peristalse exacerbados como
empírico inicial é reduzida e o médico tem condições de con­ os induzidos por estresse emocional nas síndromes funcionais
duzir investigação adequada. (diarréia motora) também podem acarretar quadros agudos.
Outra forma também muito utilizada na prática clínica de Os agentes infecciosos mais comumente envolvidos nos qua­
classificar diarréia é em relação ao local do trato gastrintestinal dros de diarréia aguda são expostos no Quadro 3.2. Nas popu-
28 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica

--------------------------------------- ▼--------------------------------------- Essa distinção é de grande valia, pois favorece o diagnóstico


Quadro 3.2 Causas mais frequentes de diarréia aguda infecciosa diferencial e ajuda na conduta terapêutica.

Viral Bacteriana Protozoária


■ História clínica
R o ta víru s S h ig e lla G ia rd ia
Na história do paciente, devem-se investigar o local e as
N o r o v ír u s S a lm o r e lla E n t a m o e b a h is t o ly tic a
condições em que a diarréia foi adquirida. Deve-se investigar
C a lid v ír u s C a m p y lo b a c t e r C ry p t o s p o r id iu m a ingestão recente de água, frutas ou verduras potencialmente
A s tro v íru s E s c h e r ic h ia c o li contaminadas, alimentos suspeitos, viagens recentes, presença
C o r o n a v ír u s Y e rs in ia de pessoas próximas também acometidas, uso recente de anti­
H e rp e s sim p le s C lo s t r id iu m d iffic ile bióticos e outros fármacos, história sexual, banho em locais
C it o m e g a lo v ír u s C lo s t r id iu m p e rfr in g e n s públicos e contatos com animais. Na avaliação da origem da
S ta p h y lo c o c c u s a u re u s diarréia, há que se considerar o período de incubação no caso de
B a c illu s c e re u s infecções intestinais que podem levar de horas a 2 semanas.
V ib rio A apresentação clínica da diarréia aguda é bastante seme­
C h la m y d ia lhante, independente do agente causador. Entretanto, algumas
T re p o n e m a p a llld u m diferenças podem ocorrer de acordo com a fisiopatogênese en­
N e is s e ria g o n o r rh o e a e
volvida.
A diarréia inflamatória apresenta espectro clínico mais gra­
Adaptado de Park, SI & Giannella, RA. Approach to the adult patient w ith acute diarrhea.
Castroenterology Clinics o fN o rth Am erica, 1993; 22:483-97.
ve e exige tratamento mais criterioso. É causada por bactérias
invasivas, parasitos e bactérias produtoras de citotoxinas que
afetam preferentemente o íleo e o cólon. Promove ruptura do
revestimento mucoso e perda de soro, hemácias e leucócitos
lações mais pobres, predomina a etiologia bacteriana e, nas de para o lúmen. Manifesta-se por diarréia, em geral de peque­
melhor nível social, prevalece a viral. no volume, com muco, pus ou sangue, febre, dor abdominal
Os mecanismos fisiopatológicos das diarréias infecciosas predominante no quadrante inferior esquerdo, tenesmo, dor
são o secretório ou o inflamatório. Alguns microrganismos retal. Algumas vezes, apresenta, no início da evolução, diarréia
estão mais associados ao estímulo secretório e outros, ao infla­ aquosa, que só mais tarde se converte em típica diarréia infla­
matório. No Quadro 3.3, os agentes agressores estão divididos matória, quando os microrganismos ou suas toxinas lesam a
de acordo com o tipo de lesão e suas diferenças laboratoriais. mucosa colônica.

---------------------------------------------------------- ▼ ------------------------------------------

Quadro 3.3 Diarréia aguda - características e tratamento específico

Laboratório - diagnó stico específico


Tipo de diarréia Principais agentes (quando indicado) Tratam ento espedfico (quando indicado)

S h ig e lla L e u c ó c ito s fecais; C o p r o c u ltu r a C ip r o f lo x a d n o 5 0 0 m g 12/12 h/5 d


T M P -S M Z * 1 6 0 /8 0 0 m g 12/12 h/5 d

S a lm o n e lla n ã o tifo id e L e u c ó c ito s fecais; C o p r o c u ltu r a C ip r o f lo x a d n o 5 0 0 m g 12/12 h/3 a 1 0 d


T M P -S M Z * 1 6 0 /8 0 0 m g 12/12 h/3 a 1 0 d

E n t a m o e b a h is t o ly tic a EPF**; E L IS A p a ra E. h y s to U tic a M e t r o n id a z o l 5 0 0 m g 8/8 h/7 a lO d


S e c n id a z o l o u T i n i d a z o l 2 g /dia /3 d

In fla m a tó ria E s c h e r ic h ia c o li L e u c ó c ito s fecais; C o p r o c u ltu r a C ip r o f lo x a d n o 5 0 0 m g 12/12 h/5 d


(c ó lo n ) (E IE C e E H E C )— T M P - S M Z - 1 6 0 /8 0 0 m g 12/12 h/5 d

C a m p y lo b a c t e r L e u c ó c ito s fecais; C o p r o c u ltu r a E r it r o m id n a 2 5 0 m g 12/12 h/5 d


C ip r o f lo x a d n o 5 0 0 m g 12/12 h/5 d

Y e rs in ia L e u c ó c ito s fecais; C o p r o c u ltu r a T e t r a d c lin a 5 0 0 m g 6/6 h/5 d


C ip r o f lo x a d n o 5 0 0 m g 12/12 h/5 d

C lo s t r id iu m d iffic ile L e u c o c ito s e ; L e u c ó c ito s fe ca is; T o x in a s (E L IS A ) M e t r o n id a z o l 2 5 0 a 4 0 0 m g 8/8 h / 1 0 a 14 d


V a n c o m i d n a 125 m g 6 /6 h /1 0 a 14 d

V íru s E L IS A p a ra ro ta v íru s

N ã o in fla m a tó ria In to x ic a ç ã o a lim e n t a r


(d e lg a d o )
G ia rd ia E P F -* ; E L IS A p a ra G ia rd ia M e t r o n id a z o l 2 5 0 m g 8/8 h/5 d
N it a z o x a n id e 5 0 0 m g 12/12 h/3 d

E s c h e r ic h ia c o li C o p r o c u ltu r a C ip r o f lo x a d n o 5 0 0 m g 12/12 h/5 d


(E P E C , E A E C e E T E C )— T M P - S M Z - 1 6 0 /8 0 0 m g 12/12 h/5 d

"TM P -SM Z = Trim etoprim a + Sulfametoxazol.


"•EPF = Exame parasitológico das fezes.
***EIEC e EHEC ■ Escherichia coll enteroinvasiva e Escherichia co li èntero-hem orrágica.
"— E P E Ç E A E C e E T E C = Escherichia coli enteropatogènica, Escherichia coli enteroagregativa e Escherichia coli enterotoxigènica.
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 29

A diarréia não inflamatória é, em geral, moderada, mas pode alguns casos de diarréia inflamatória, a pesquisa pode ser ne­
provocar grandes perdas de volume. É causada habitualmente gativa no início do quadro.
por vírus ou por bactérias produtoras de enterotoxinas e afeta
preferentemente o intestino delgado. Os microrganismos ade­ ■ Coprocultura
rem ao epitélio intestinal sem destruí-lo, determinando diarréia A realização da coprocultura deve ser reservada para casos
secretora, com fezes aquosas, de grande volume e sem sangue; suspeitos de diarréia infecciosa por bactérias invasivas, na pre­
pode estar associada a náuseas e vômitos. As cólicas, quando pre­ sença de sangue oculto e leucócitos fecais ou para os casos de
sentes, são discretas, precedendo as exonerações intestinais. interesse epidemiológico. Quando a coprocultura é solicitada,
Na avaliação clínica, além de definir o padrão da diarréia o laboratório deve ser informado sobre o agente etiológico sus­
aguda, devem-se também avaliar possíveis complicações, es­ peito, a fim de adequar o meio de cultura. Alguns parasitos in­
pecialmente a desidratação. Relato de boca seca e sede, diurese testinais devem ser lembrados e pesquisados, embora, algumas
concentrada, oligúria, associados a achados ao exame físico de vezes, possam ter evolução típica de diarréia crônica.
pele e mucosas desidratadas e hipotensão postural com taqui-
cardia, demonstram desidratação e sua gravidade. Sinais de ■ Pesquisade toxinas e antígenos depatógenos
toxemia indicam quadro mais grave e necessidade de maior Pesquisa de toxinas no diagnóstico de algumas bactérias
cuidado clínico. Desta forma, presença de febre alta, taquip- pode ser mais útil do que a tentativa de sua cultura. O principal
neia, vasodilatação periférica com hipotensão e pulsos rápidos exemplo são as cepas patogênicas do Clostridium difficile que
e finos são sinais de alerta. produzem as toxinas A e B. Essas toxinas podem ser identifi­
O exame físico do abdome normalmente exibe dor leve di­ cadas nas fezes por teste por ELISA que comprova a presença
fusa à palpação, com possibilidade de descompressão brusca de infecção pelo microrganismo.
levemente dolorosa em situações de maior distensão de alças e Na infecção viral pelo rotavírus, a pesquisa de antígenos
dor mais intensa. Os ruídos hidroaéreos estão frequentemente virais nas fezes por ELISA é a melhor forma de confirmar pre­
aumentados. Dor localizada, sinais de irritação peritoneal in­ sença do microrganismo. Giardia e Cryptosporidium também
tensa, massas ou visceromegalias, distensão abdominal impor­ podem ser identificados pelo mesmo método.
tante e ausência de ruídos são achados que devem direcionar O uso da PCR (Reação em Cadeia da Polimerase) é outra
para avaliação cuidadosa pela possibilidade de outras afecções metodologia para pesquisa de antígenos nas fezes para diagnós­
abdominais. tico de inúmeros microrganismos. Entretanto, sua aplicabili­
dade clínica ainda é muito restrita pela pouca disponibilidade
da tecnologia e pelo seu alto custo.
■ Diagnóstico
Na maioria dos casos, a avaliação clínica é suficiente para ■ Exames de im agem
definição diagnóstica e para determinar a gravidade do quadro. Radiografia simples do abdome, nos casos mais graves, é
O estado imunológico do hospedeiro também é importante na útil para avaliar complicações como íleo paralítico e megacó-
conduta diagnóstica e terapêutica. Exemplos disso são: deficiên­ lon tóxico.
cia de IgA e giardíase, acloridria e salmonelose, transplantados
e infecção por citomegalovírus, AIDS e criptosporidíase, idosos ■ Endoscopia
residentes em asilo e infecção pelo Clostridium difficile, imu- A retossigmoidoscopia flexível deve ser feita nos pacientes
nodeprimidos e candidíase intestinal. com clínica de proctite (tenesmo, dor retal) e, também, se há
suspeita de colite pseudomembranosa. Nesses casos, a biopsia
■ Exames laboratoriais é importante para excluir doença inflamatória intestinal.
■ Hemograma
Em pacientes que evoluem com formas mais graves da diar­ ■ Tratamento
réia aguda, podem-se encontrar anemia e hemoconcentração. A imunidade do hospedeiro, na maioria das vezes, é capaz de
Nas diarréias por vírus, linfocitose pode estar presente. Leuco- eliminar infecção gastrintestinal, sem necessidade de terapêu­
citose com neutrofilia e desvio à esquerda é frequente nas infec­ tica específica. Assim, o objetivo terapêutico está relacionado
ções bacterianas mais invasivas com diarréia inflamatória. com a reposição das perdas hidreletrolíticas.
■ Funçãorenal eeletrólitos ■ Reidratação
A desidratação causa hipovolemia que altera a perfusão re­ Na maioria dos casos, a reidratação oral é suficiente. A so­
nal, fazendo com que haja elevação da creatinina e, principal­ lução deve conter glicose, para favorecer a absorção do sódio.
mente, da ureia em depleções volêmicas mais importantes. Essa Quando as perdas forem mais importantes, a reposição deve ser
complicação da diarréia deve ser prontamente diagnosticada feita com soluções contendo eletrólitos (Na*, K+, H C 0 3" e Cl")
principalmente em pacientes idosos. O distúrbio eletrolítico em concentrações aproximadas daquelas perdidas na diarréia.
tem relação com perdas entéricas e deve ser corrigido quando Para tal, os produtos existentes no comércio são satisfatórios.
presente. As soluções isotônicas, usadas para repor a transpiração de atle­
tas, podem ser utilizadas, sobretudo em pacientes sem sinais de
■ Estudo das fezes desidratação, como prevenção. Para os pacientes hipovolêmi-
■ Leucócitos fecais cos, deve-se fazer hidratação venosa com soluções isotônicas
É o teste mais utilizado na avaliação de diarréia aguda e contendo glicose e eletrólitos.
identifica processos inflamatórios mais intensos. Entretanto, a
simples presença dos polimorfonucleares nas fezes não carac­ ■ Dieta
teriza diarréia infecciosa, pois estes são encontrados também O paciente deve ser orientado para continuar alimentando-
em outras afecções do intestino grosso. Do mesmo modo, em se durante o episódio de diarréia. Aqueles que têm náuseas
30 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica

e vômitos devem dar preferência aos líquidos em pequenas podem prolongar a eliminação de fezes com bactérias pato­
quantidades de cada vez, para garantir a reposição das perdas. gênicas e contaminar o meio ambiente. Além disso, expõe
Os alimentos visam à reposição calórica, compensando assim os pacientes aos efeitos adversos dos antibióticos e promove
o estado catabólico produzido pela diarréia, e, ao contrário do o desenvolvimento de resistência bacteriana com seleção de
que se acreditava, não agravam o quadro diarreico, nem pioram bactérias como o Clostridium difficile. Seu uso deve obedecer
a sua evolução. Alguns alimentos devem ser evitados tempora­ a regras bem definidas, seja para reduzir o tempo de excre­
riamente por causa de seus efeitos sobre a dinâmica intestinal, ção de determinados tipos de bactérias, como a Shigella, seja
como, por exemplo, aqueles que contêm cafeína, capazes de para eliminar as infecções persistentes ou o estado de portador,
inibir a fosfodiesterase e, assim, elevar os níveis intracelulares como na giardíase, amebíase, cólera, ou, ainda, para apressar
de cAMP. O mesmo ocorre com alimentos que contêm lactose, a recuperação na diarréia dos viajantes. O uso empírico, por
já que pode haver deficiência transitória de lactase. Alimentos exemplo, do sulfametoxazol-trimetoprima (TMP-SMZ) ou de
com maior teor de gordura e as frituras também podem ter sua quinolona, pode ser efetuado em pacientes com quadros clíni­
absorção reduzida e agravar a diarréia. cos importantes de disenteria e possível bacteriemia, até que
se obtenha o resultado da coprocultura. A escolha do produto
■ Agentes antidiarreicos a ser administrado obedece aos parâmetros indicados no Qua­
Em alguns casos, é recomendável reduzir o número das eva­ dro 3.3. No caso das diarréias agudas causadas por protozoá-
cuações, especialmente nas diarréias infecciosas, notadamente rios, o tratamento deve ser orientado como descrito no capítulo
naquelas não inflamatórias. sobre parasitoses intestinais.
Os adsorventes caulim e pectina, embora aumentem a con­
sistência das fezes, têm pequeno efeito sobre o seu volume.
As fibras solúveis medicinais como o Psyllium (uma medida ■ Situações específicas de diarréia aguda
até 3 vezes/dia) e absorventes de água como a policarbofila de ■ Intoxicação alim entar
cálcio (1 a 2 comprimidos até 4 vezes/dia) também podem ser
A intoxicação alimentar resulta da ingestão de alimentos
usados para reter água e aumentar a consistência das fezes, di­
contaminados por bactérias, fungos, vírus, parasitos ou subs­
minuindo os episódios diarreicos. Porém, também têm efeito
limitado nesses casos. tâncias químicas, tendo como destaque o envolvimento de uma
coletividade que fez uso do mesmo alimento. A intoxicação sur­
O subsalicilato de bismuto tem efeito variado, é bactericida
ge, principalmente, em decorrência de substâncias químicas ou
e antissecretor por bloquear o efeito das enterotoxinas, além de
estimular a reabsorção intestinal de sódio e água. Devido a seu de toxinas pré-formadas por agentes infecciosos.
baixo custo, eficácia e segurança, representa boa opção para o Para o diagnóstico, deve-se prestar atenção no intervalo re­
tratamento sintomático da diarréia aguda infecciosa. Adminis­ lativamente curto entre a ingestão do alimento suspeito e o
trado para adultos na dose de 30 m^, ou 2 comprimidos de 30 início dos sintomas: quando for inferior a 6 h, a suspeita é da
em 30 min até completar 8 doses, costuma ser eficaz em muitos intoxicação pela toxina pré-formada por Staphylococcus au-
casos de diarréia não inflamatória. reus e Bacillus cereus; se, entre 8 e 14 h, sugere intoxicação por
Os derivados sintéticos do ópio (loperamida e difenoxilato) Clostridium perfringens; mas se, inferior a 1 h, deve-se pensar
inibem a motilidade intestinal, aumentam o tempo de contato em intoxicação por uma substância química. Entre as causas
para a absorção de água e eletrólitos, e com isso diminuem o nú­ infecciosas, merecem destaque as citadas a seguir.
mero das evacuações intestinais e as cólicas. Esses medicamen­
tos devem ser evitados nos casos de disenterias e nos pacientes ■ Intoxicação por Staphylococcus aureus
com febre alta e toxemia, pois poderíam agravar a evolução Resulta de alimentos submetidos à cocção inadequada ou
da doença e precipitar o aparecimento de megacólon tóxico. mal refrigerados, que constituem fonte ideal para a proliferação
Além disso, podem facilitar o desenvolvimento da síndrome de agentes infecciosos e de rápida produção de toxinas. Os pa­
hemolítico-urêmica nos pacientes infectados com a Escherichia cientes apresentam náuseas, vômitos intensos, cólicas e diarréia
coli êntero-hemorrágica. A dose inicial da loperamida é de 4 e, aquosa. Podem evoluir para desidratação aguda e choque hipo-
posteriormente, 2 mg após cada evacuação diarreica, não de­ volêmico. Em geral, a diarréia é autolimitada e cessa dentro de
vendo ultrapassar 16 mg/dia e, no máximo, administrada por algumas horas. O tratamento inclui reposição hidreletrolítica
2 a 3 dias. O difenoxilato deve ser usado na dose de 4 mg na VO e sintomáticos, mas casos graves exigem hidratação IV.
primeira tomada e depois 2 mg até 4 vezes/dia e por até 2 dias.
Os pacientes devem ser alertados de que essas drogas masca­ ■ Intoxicação por Clostridiumbotulinum
ram as perdas hídricas e de que eles devem fazer reposição de A toxina produzida por essa bactéria causa o botulismo e
líquidos adequada durante a terapêutica. resulta da ingestão de enlatados, peixes crus, mel, entre outros
O racecadotril é agente antissecretor que funciona através que contenham toxina pré-formada, esporos ou a própria bac­
da inibição da encefalinase, enzima responsável pela inativação téria. Por isso, deve-se ter cuidados especiais no manuseio dos
do neurotransmissor encefalina. Essa ação seletiva protege as alimentos e em sua industrialização. Embora possa ser destruí­
encefalinas endógenas, que são fisiologicamente ativas, e reduz da por fervura durante 10 min, a toxina botulínica é a mais
a hipersecreção de água e eletrólitos causada pelas toxinas bac- potente toxina alimentar.
terianas. Por isso, é recomendado associado às soluções reidra- A clínica depende da quantidade de toxina ingerida e da
tantes orais, principalmente em crianças. A dose habitual para resistência do hospedeiro. Assim, os sintomas podem ser dis­
adultos é de 100 mg, 3 vezes/dia durante 2 a 3 dias. cretos ou intensos e levar ao óbito em poucas horas. O período
de incubação varia de 12 a 72 h após a ingestão do alimento
■ Terapêutica antim icrobiana contaminado. Cursa com náuseas, vômitos e diarréia, que se
Como a maioria das diarréias infecciosas tem evolução au- associam com repercussões neurológicas e se assemelham ao
tolimitada, o uso de antibióticos deve ser restrito a condições efeito do curare. Essas repercussões iniciam com alterações da
específicas. O emprego rotineiro deve ser evitado porque eles visão (visão turva, diplopia, arreflexia pupilar), seguindo-se de
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 31

sensação de fraqueza, tonturas, vertigens e complicações na me­ do quadro diarreico até 4 a 8 dias, mas há relatos de detecção
cânica respiratória. A recuperação, quando ocorre, se faz, em por até 25 a 30 dias.
geral, após 1 semana. O prognóstico depende da recuperação A infecção viral tem normalmente evolução autolimitada
muscular, mas a mortalidade é alta. e deve ser tratada com medidas para o alívio dos sintomas e
O diagnóstico diferencial deve ser feito, principalmente, com terapêutica de suporte, como reidratação oral ou intravenosa,
miastenia gravis e síndrome de Guillain-Barré. O tratamento de acordo com a repercussão do quadro clínico.
específico é com antitoxina e medidas de suporte; o paciente No Brasil, a partir de março de 2006, a vacina contra rota­
pode necessitar de respiração assistida. vírus foi incluída no calendário vacinai da criança. Utiliza-se a
vacina monovalente feita do vírus atenuado de sorotipo mais
■ I ntoxicação por (lostridiumperfringens frequente [sorotipo G1P(8)]. Ela apresenta ação cruzada contra
Esta bactéria produz enterotoxina que causa diarréia aguda outros sorotipos e tem eficácia global contra gastrenterite pelo
e autolimitada. Tem origem em diversos tipos de alimentos rotavírus de 85%. A vacina é administrada por via oral em duas
contaminados, em especial carnes de aves e de gado. Diferen­ doses aos 2 e 4 meses de vida. Com essa medida, espera-se re­
temente da intoxicação por Staphylococcus aureus, essa intoxi­ dução das diarréias agudas da criança, responsáveis por grande
cação predomina no inverno, mas o quadro clínico e cuidados percentual da mortalidade infantil no Brasil.
terapêuticos são semelhantes.
■ Diarréia dos viajantes
■ Diarréiapelo rotavírus É definida como diarréia infecciosa aguda que acomete in­
O rotavírus foi o primeiro agente identificado como impor­ divíduos que viajam de área industrializada e com boas con­
tante causa de gastrenterite viral, principalmente em crianças dições de higiene para outra com piores condições sanitárias.
entre 6 meses e 2 anos de idade, mas os adultos também po­ Ela é destaque nos viajantes internacionais que se dirigem de
dem ser atingidos. É o agente viral mais comum como causa países com elevado padrão de infraestrutura sanitária para algu­
de gastrenterite endêmica. mas regiões da América Latina, África e Ásia. No Brasil, com a
Biopsias obtidas após a inoculação do vírus para induzir grande desigualdade social entre as regiões, esse tipo de diarréia
gastrenterite mostraram encurtamento de vilosidades da mu- também pode acometer viajantes de áreas mais industrializadas
cosa do duodeno e do jejuno, nas quais havia grande infiltra­ para aquelas mais empobrecidas.
ção da lâmina própria de células mononucleares. A microsco- Inicia-se em geral de modo abrupto, com 4 a 6 evacuações
pia eletrônica e a imunofluorescência evidenciam numerosas por dia, associadas a cólicas e náuseas. Habitualmente, é auto­
partículas de rotavírus no citoplasma das células epiteliais da limitada, mas pode ser progressiva, evoluindo para disenteria
mucosa atingida. O estômago e o cólon têm acometimento não e, até mesmo, para a diarréia crônica.
significativo. Pode ser causada por bactérias em cerca de 80% dos casos, e
As crianças infectadas pelo rotavírus reagem de modo va­ a Escherichia coli enterotoxigênica é a principal causa na Amé­
riado, desde portadores assintomáticos até formas graves com rica Latina. Além desta, são relacionadas também Salmonella,
desidratação e evolução para o óbito. A febre, geralmente baixa, Shigella, Campylobacter jejuni, Aeromonas, Plesiomonas, Vibrio
e os vômitos precedem a diarréia. A febre pode persistir por parahaemolyticus, os vírus Norovirus e Rotavírus, os protozoá-
até 1 a 2 dias, e os vômitos, em geral, não ultrapassam o 3o dia. rios Entamoeba histolytica, Giardia lamblia e Cryptosporidium,
A diarréia é aquosa, profusa, de cor amarelada a esverdeada e Microsporidium e Cyclospora cayetanensis.
raramente contém muco. O número de evacuações pode ser de A prevenção é a principal arma contra a diarréia dos viajan­
8 ou mais por dia. A duração média da gastrenterite é de 8 dias, tes e relaciona-se aos cuidados com água utilizada para higiene
mas pode haver crises mais prolongadas. Sintomas respiratórios pessoal, como o simples ato de escovar os dentes, devendo-se
estão presentes em tom o da metade dos casos. A recuperação usá-la fervida ou com soluções cloradas ou iodadas, além de
é integral, mas têm sido descritas diarréias prolongadas e com evitar legumes e frutas cruas. A quimioprofilaxia (com antibió­
outros distúrbios, como intolerância à lactose e a carboidratos. ticos ou subsalicilato de bismuto), embora eficaz, não deve ser
A doença aguda é associada à diminuição dos níveis das enzi­ rotineira, por causa de seu custo, efeitos adversos, resistência
mas da borda em escova da mucosa, como maltase, sacara se e bacteriana, e pela falsa sensação de segurança que induz a abrir
lactase, com consequente má absorção e presença de substân­ mão de cuidados básicos.
cias redutoras nas fezes. O tratamento deve seguir os mesmos parâmetros já cita­
Os adultos adoecem mais frequentemente quando estão em dos, reservando-se a prescrição de antibióticos para os casos
contato com crianças infectadas. O rotavírus pode ser agente graves e com diarréia prolongada. O uso empírico, guiado por
causai da diarréia dos viajantes. Os sintomas são similares, mas parâmetros demonstrados no Quadro 3.3, pode ser indicado
os vômitos tendem a ser menos intensos. Os imunodeprimidos, para pessoas que têm compromissos inadiáveis, como atletas
como os transplantados de medula, podem apresentar formas e conferencistas.
graves e mais prolongadas ou evoluir para o óbito. Entretanto,
o rotavírus não é causa comum de diarréia grave nos porta­ ■ Diarréiapela Escherichia coli
dores do H1V. A Escherichia coli (£. coli) é uma das bactérias que integram
A gastrenterite pelo rotavírus pode causar complicações a flora bacteriana do intestino, mas, quando alguma cepa sofre
como enterocolite necrotisante, invaginação intestinal, atresia alterações genéticas, pode tornar-se patogênica. O trato gastrin-
das vias biliares, complicações neurológicas como convulsões testinal e as vias urinárias são seus alvos preferidos. As cepas de
e encefalopatia. E. coli reconhecidamente associadas à diarréia aguda são: E. coli
O rotavírus pode ser isolado por coprocultura, mas esta tem enterotoxigênica (ETEC), E. coli enteropatogênica (EPEC), E.
a desvantagem de ser muito laboriosa. Outros testes para pes­ coli êntero-hemorrágica (EHEC), E. coli enteroinvasiva (EIEC)
quisa de antígenos virais têm sido usados como PCR e ELISA. e E. coli enteroagregativa (EAEC).
Este último é o mais difundido por ser um meio rápido e de O diagnóstico da infecção pela E. coli é presuntivo pela apre­
baixo custo. O rotavírus é detectado nas fezes desde o início sentação clínica. Os testes específicos para sua detecção são a
32 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica

coprocultura ou pesquisa de antígenos ou toxinas nas fezes, com recuperação do paciente. Porém, cerca de 10% das crian­
normalmente por técnica de PCR. Contudo, tal avaliação com­ ças com menos de 10 anos de idade desenvolvem a síndrome
plementar habitualmente é pouco disponível e cara, ficando hemolítico-urêmica. Em pacientes idosos, costuma estar asso­
restrita a situações específicas e à pesquisa científica. ciada à terapêutica quimioterápica.
O tratamento de uma forma geral visa a estabilização clínica As dificuldades para a identificação da EHEC retardam
com reposição hidreletrolítica e uso de sintomáticos. Em casos o seu diagnóstico e os estudos epidemiológicos. A EHEC
mais intensos, antibioticoterapia pode ser necessária. Os anti­ 0157:H7 pode fermentar, não rotineiramente, o sorbitol, ao
bióticos de escolha estão relacionados no Quadro 3.3. contrário da maioria das £ coli. Usando-se o ágar Mac Conkey
sem o sorbitol, identificam-se cepas EHEC não fermentadoras
■ f.«?//enterotoxigênica(ETEC) de sorbitol, mas as cepas não 0157 não são detectadas. A pes­
Produz duas classes principais de toxinas: a toxina termo- quisa da toxina Shiga é o método gold standard para a EHEC,
lábil (TL) e a toxina termoestável (ST). A TL é semelhante em mas não revela se grupo é 0157 ou não 0157. O bioteste em
estrutura e mecanismo de ação àquela produzida pelo Vibrio cultura de tecido pode demonstrar o rápido efeito citopático
cholerae, estimulando a adenilciclase, que leva ao aumento da produzido pela toxina, mas os laboratórios não têm esse recur­
cAMP intracelular. A ST estimula a guanilciclase que eleva a so de rotina. O teste do anticorpo monoclonal detecta tanto a
concentração intracelular de GMPc. Em ambos os casos, há au­ citotoxina Stxl como a Stx2 em amostras de alimentos, de fezes
mento na secreção de água e eletrólitos e inibição da absorção e em coprocultura. Essas citotoxinas podem ser identificadas
destes com desencadeamento de diarréia aquosa. Os sintomas pelos testes de DNA ou PCR.
surgem após curto período de incubação, com presença de náu­ Ainda é controverso se o tratamento da EHEC diminui ou
seas, vômitos e diarréia aquosa. O quadro pode durar cerca de aumenta o risco da síndrome hemolítico-urêmica. Existem evi­
24 h ou estender-se para 4 a 5 dias. Como é uma diarréia auto- dências de que os antibióticos induzem maior liberação de to­
limitada, a terapêutica baseia-se na reidratação oral. Na maio­ xinas Shiga ao eliminar as bactérias, aumentando com isso a
ria das vezes, não se faz nem a identificação da bactéria nem a chance da complicação. Algumas pesquisas, como as de Wong
administração de terapêutica antimicrobiana. et al., constataram que, em crianças abaixo de 10 anos, há maior
incidência de síndrome hemolítico-urêmica nas tratadas com
■ £. coli enteropatogênica (EPEC) antibiótico em relação ao grupo controle. Mas outros autores,
As bactérias aderem e destroem as microvilosidades, redu­ como Proulx et al., não correlacionaram o uso de antibióticos
zindo, assim, a área absortiva. Está associada a casos esporádi­ com o desenvolvimento da síndrome. Existe, entretanto, con­
cos de diarréia principalmente de recém-nascidos, mas pode senso de que a terapêutica com antibióticos não seria benéfica,
também atingir adultos. As crianças podem apresentar quadros podendo ser até prejudicial. Por isso, a terapêutica de suporte
clínicos graves, com vômitos e desidratação. Quando a diar­ é a mais indicada e seria a primeira escolha.
réia é persistente, pode levar à desnutrição. Além da terapêuti­
ca sintomática e da reidratação, os antimicrobianos indicados ■ E. coli enteroinvasiva (EIEC)
são as quinolonas: norfloxacino (400 mg), ou ciprofloxacino A EIEC tem como característica a habilidade de invadir as
(500 mg), ou ofloxacino (400 mg) - todos duas vezes/dia du­ células do epitélio intestinal, multiplicar dentro delas e atin­
rante 3 a 5 dias. gir as adjacentes, produzindo pequenas ulcerações. A diarréia
por EIEC parece ser pouco frequente ou subdiagnosticada. O
■ £. coli êntero-hem orrágica (EHEC) quadro clínico é semelhante ao da shigelose. Pode apresentar
Esta bactéria foi identificada nos anos 1980 nas fezes de pa­ apenas diarréia aquosa, mas pode evoluir com quadro febril,
cientes que ingeriram hambúrgueres em uma cadeia de fast fezes sanguinolentas, cólicas e tenesmo.
food. Posteriormente, um estudo relacionou-a com a síndrome O tratamento antibiótico deve ser feito com quinolonas de
hemolítico-urêmica, que apresenta a tríade: anemia microan- forma semelhante ao descrito para EPEC ou com sulfameto-
giopática, insuficiência renal e trombocitopenia. xazol-trimetoprima (TMP-SMZ).
A maioria dos estudos relaciona a EHEC com disenteria e
síndrome hemolítico-urêmica, identificando-a com o sorotipo ■ E. coli enteroagregativa (EAEC)
0157:H7. Estudos retrospectivos com E. coli estocadas sugerem Entre as bactérias capazes de causar diarréia, a EAEC é a que
que essa infecção é uma doença emergente, pois não tinha sido foi descrita mais recentemente. Esse grupo de bactérias foi re­
descrita antes dos anos 1980. Existem surtos esporádicos em conhecido no final dos anos oitenta, quando amostras de £ coli
todo o mundo, mas com aparente concentração no Oeste do oriundas de diarréias que ocorreram em países em desenvolvi­
Canadá e nordeste dos EUA. Coloniza o gado, que é a fonte mento foram examinadas em cultura de tecido. Sua presença foi
principal de transmissão e, por isso, está ligada com a ingestão mais evidente em casos de diarréia persistente, em casos espo­
de hambúrguer. Pode também contaminar verduras e sucos rádicos como em surtos diarreicos, do que em fezes de pessoas
não pasteurizados, além de alimentos contaminados com fe­ sem diarréia. Sua presença também foi comprovada em porta­
zes de animais. Pequena quantidade de bactérias pode causar dores de HIV que apresentavam diarréia persistente.
doença. Como não existe modelo animal para essa infecção, não está
As citotoxinas Shiga Stxl e Stx2 são determinantes da in­ muito claro o seu mecanismo patogênico. Sabe-se, entretanto,
fecção, mas não há necessidade de ambas estarem presentes no que ela produz inflamação intestinal e induz a liberação de in-
organismo para causar a doença. A maioria das cepas de EHEC terleucina-8 pelas células do epitélio intestinal. Uma citotoxi­
também produz uma êntero-hemolisina, embora não esteja na em cepas de EAEC já foi identificada em cultura de tecidos.
evidente a relação entre esse fator e o quadro clínico. A diarréia é desencadeada pelas bactérias ao se agregarem ao
Cursa com diarréia com sangue em cerca de 90% dos casos. epitélio intestinal.
Entretanto, pode iniciar com quadro mais brando e tornar-se A tendência é a tentativa de erradicá-la com ciprofloxacino
hemorrágica durante a evolução clínica. Tem período de in­ (500 mg, duas vezes ao dia), tanto em imunocompetentes, como
cubação de 3 a 5 dias. Os sintomas declinam entre 5 e 10 dias, em portadores de HIV, uma vez que estudos comparativos mos­
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 33

traram que houve redução significativa no tempo de duração nalidíxico 55 mg/kg/dia dividido em quatro doses. Todas essas
da diarréia naqueles que receberam antibioticoterapia. opções devem ser administradas por 5 dias.

■ Diarréiainfecciosa invasiva ■ Diarréia por Salmonella


Pela potencial gravidade dessas condições clínicas, serão des­ A Salmonella é um bacilo gram-negativo que coloniza ou
critos seus principais agentes: Shigella e Salmonella. Também infecta diversos animais, inclusive o ser humano. A infecção
podem causar diarréia invasiva E. coli enteroinvasiva (discutida pela Salmonella pode causar: gastrenterite; febre entérica (fe­
anteriormente), Campylobacter e Yersinia. bre tifoide e paratifoide); bacteriemia e infecção endovascular;
infecção focal como a osteomielite; estado de portador crônico
■ Diarréia pela Shigella assintomático.
A shigelose é a causa mais comum de diarréia bacteriana Com base nos avanços científicos que demonstraram altos
em todo o mundo. Essa bactéria é resistente à ação do ácido níveis de similaridade de DNA, todas as espécies de Salmonella
clorídrico; por isso, mesmo em pequeno número, passa pelo de importância clínica passaram a ser classificadas como uma
estômago e tem acesso ao intestino delgado onde se multipli­ única, a Salmonella choleraesuis. Assim, os organismos como S.
ca e chega ao cólon onde exerce sua ação patogênica. Assim, typhiy S. choleraesuis e S. enteritidis, que anteriormente repre­
não necessita de sua replicação, nos alimentos contaminados sentavam espécies diferentes, baseando-se na estrutura antigê-
ou na água, para tornar-se infecciosa. A transmissão ocorre nica, nas características bioquímicas e nos tipos de hospedeiros,
por propagação de pessoa a pessoa, bem como através de ali­ são agora sorotipos individuais de uma mesma espécie.
mentos e água. As salmonelas são facilmente reconhecidas em laboratórios
A Shigella é causadora da disenteria clássica, que consiste em de bacteriologia clínica. Elas crescem tanto em condições aeró-
febre, cólicas, diarréia com muco e sangue. Vômitos são pouco bicas como anaeróbicas. Elas são oxidase-negativas e, virtual­
frequentes. O período de incubação é de 1 a 7 dias. O quadro mente, todas são lactose-negativas. Muitos laboratórios iden­
clínico característico inicia com febre, anorexia, mal-estar e tificam a Salmonella pela combinação de antígenos e reações
diarréia aquosa e, posteriormente, fezes com muco e sangue e bioquímicas. Colônias suspeitas são aglutinadas usando-se an-
tenesmo. O número de evacuações intestinais varia de 8 a 10 por tissoro dirigido contra os antígenos O e H (flagelar), que permi­
dia, mas pode ser mais frequente e em volume pequeno. Há tem a identificação do sorogrupo. Somente a S. typhiy a S. para-
perda pouco expressiva de líquidos, o que é característica das typhi C e algumas cepas como S. dublin e S. citrobacterfreundii
infecções do cólon. O vulto da infecção varia com o sorotipo possuem antígeno capsular polissacáride Vi, o qual pode ser
da bactéria causadora. A S. sotinei causa distúrbios modera­ rapidamente identificado por estudos de aglutinação.
dos, que podem ser limitados à diarréia aquosa. S. dysenteriae
ou S.flexneri causam geralmente sintomas disentéricos. Tam­ ■ Salmonelose tifoide (Salmonella typhieSalmonellaparatyphi)
bém o estado de saúde do hospedeiro interfere na repercussão A epidemiologia dos dois sorotipos é muito diferente. A S.
da infecção, que tende a ser autolimitada naqueles com bom typhi é rara nos países desenvolvidos, sendo adquirida em ou­
estado geral. Todavia, a shigelose pode desenvolver complica­ tras áreas e em geral é identificada em viajantes. A S. paratyphi
ções diversas, no próprio intestino ou sistêmicas, sendo mais ocorre de modo crescente, mesmo nos países desenvolvidos,
frequentes nas infecções por S. dysenteriae. desde a 2“Guerra Mundial. Outros sorotipos também estão as­
O quadro disentérico clássico pode ser chave para a suspei­ sociados à febre tifoide, como S. paratyphi B, S. paratyphi C e
ta diagnóstica da shigelose, mas ele pode ocorrer na doença S. typhimurium. Têm alta especificidade para humanos, trans­
inflamatória intestinal e em outras diarréias infecciosas como mitidos após contato com indivíduos agudamente infectados
naquelas causadas por Salmonella, Campylobacter, Yersiniat ou portadores assintomáticos ou, ainda, de alimentos ou água
EIEC ou por Clostridium difficile. Os leucócitos fecais estão contaminados por fezes. A febre tifoide persiste como problema
presentes em mais de 70% dos casos. A coprocultura deve ser de saúde global, principalmente no Sudeste Asiático, na índia,
feita em amostras de fezes colocadas no meio de cultura ime­ na África e na América do Sul. Por isso, é necessária implemen­
diatamente. Obtém-se melhor resultado com a parte mucoide tação de medidas preventivas, como cuidados na manipulação
das fezes. Outras técnicas mais sensíveis podem ser utilizadas de alimentos, tratamento do lixo e da água.
como a PCR. A vacinação contra a S. typhi é indicada apenas a grupos de
Estudos comparativos mostraram que, apesar de ser em ge­ risco elevado devido à exposição profissional ou viagem para
ral infecção autolimitada, a antibioticoterapia reduz o tempo áreas de alta prevalência.
de doença, com alívio mais rápido dos sintomas e do risco de A Salmonella tem sua transmissão relacionada com reserva­
disseminação interpessoal. Aqueles pacientes não tratados po­ tórios animais e produtos agrícolas, especialmente ovos e aves.
dem abrigar a bactéria por até 6 semanas, mesmo mantendo-se Pode passar através dos ovários das aves aos ovos intactos. As­
assintomáticos. sim, ovos com aparência normal podem transmitir a doença.
A indicação terapêutica com antibióticos deve ser guiada Os produtos industrializados, nos quais são utilizados muitos
pela apresentação clínica e pela presença de comorbidades que ovos em mistura, representam risco potencial de disseminar a
tornem o paciente mais vulnerável para infecção grave. Deve ser doença a milhares de pessoas. Outros produtos, como carne,
feita de modo empírico nos pacientes com suspeita de shigelose leite, aveia e suco de laranja não pasteurizado, também podem
que se apresentam toxemiados, nos idosos, nos portadores de transmitir a doença.
HIV, nos trabalhadores de clínicas e de hospitais e nos casos As febres tifoide e paratifoide, também conhecidas como fe­
de bacteriemia. bres entéricas, constituem doenças sistêmicas graves com febre
A escolha do esquema terapêutico pode ser feita conforme persistente e sintomas abdominais. O quadro clínico se mani­
indicado no Quadro 3.3. Em crianças, a escolha é de TMP/SMX festa entre 5 e 21 dias após a contaminação. O período de incu­
10/50 mg/kg/dia divididos em duas doses diárias por 5 dias. bação é dependente do status imunológico do hospedeiro, de
Outras opções são a ceftriaxona 50 a 75 mg/kg/dia, ou a fura- sua idade e acidez gástrica. Os sintomas são inespecíficos, como
zolidona 5 a 8 mg/kg/dia dividida em quatros doses, ou o ácido dor abdominal, febre e calafrios, além de sintomas sistêmicos.
34 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica

Por isso, muitas hipóteses diagnósticas podem ser levantadas, cloranfenicol, que é agente bacteriostático, há relatos de 10 a
devendo-se excluir, por exemplo, malária e leishmaniose. 25% de recaídas. Entretanto, com os novos antibióticos, a in­
A apresentação clássica da febre tifoide consiste em: cidência é bem menor, entre 1 e 6%. A escolha do antimicro-
biano deve levar em consideração a sensibilidade bacteriana,
1) Primeira semana: febre alta e bacteriemia.
como as cefalosporinas de terceira geração, com uso por perío­
2) Segunda semana: dor abdominal, rash cutâneo (manchas
do mais longo.
avermelhadas) no tórax e no abdome.
Portador crônico é definido pela excreção de bactérias nas fe­
3) Terceira semana: hepatoesplenomegalia, hemorragia di­
zes por mais de 12 meses após infecção aguda. Ocorre mais nos
gestiva e perfuração intestinal. Essa última é resultante de
casos de S. typhi do que nos de não typhi e é mais comum em
hiperplasia linfoide das placas de Peyer na região ileocecal
portadores de colelitíase ou de outras anormalidades do trato
e pode causar bacteriemia e peritonite.
biliar. O portador crônico não desenvolve doença sintomática,
A bradicardia, ou seja, a clássica dissociação pulso-tempera- sugerindo que haja equilíbrio imunológico. A colonização in­
tura, embora não permita firmar o diagnóstico, deve ser sem­ testinal permite que haja excreção de bactérias nas fezes, com
pre lembrada. potencial risco comunitário, principalmente se esse portador
A febre tifoide pode evoluir para choque séptico, alterações manipula alimentos. Por isso, deve ser tratado com objetivo de
nos níveis de consciência, psicose aguda, mielite e rigidez. Pode erradicar a bactéria. No passado, usavam-se esquemas com altas
também complicar com pneumonia, convulsões febris, tosse, doses de ampicilina (4 a 6 g/dia) combinados com colecistecto-
artralgias e mialgias. mia, mas nem sempre o êxito era obtido. Assim, prefere-se uma
A mortalidade era em torno de 15% na era pré-antibióticos, quinolona, como o ciprofloxacino 500 mg 2 vezes/dia durante
mas, atualmente, reduziu para menos de 1,5% dos casos. 4 semanas. A colecistectomia deve ser indicada posteriormente
O diagnóstico deve ser confirmado através do isolamento se o paciente tem colelitíase.
da bactéria sempre que haja suspeita clínica. A hemocultura é Os casos de perfuração intestinal ocorrem, em geral, em tor­
positiva entre 40 e 80% dos casos, sendo maior na primeira se­ no da terceira semana de febre. O quadro clínico consiste em
mana, com queda progressiva até a terceira semana de doença. dor abdominal, distensão, peritonite e bacteriemia por agentes
A coprocultura é rápida e simples, com máxima positividade aeróbicos e anaeróbicos. A indicação terapêutica nesses casos
em torno da terceira semana de doença. Tem grande utilidade é a ressecção do segmento afetado com cobertura antibiótica
no controle dos portadores crônicos de Salmonella. A mielo- para a peritonite.
cultura pode atingir 98% de positividade e deve ser lembrada
quando a hemocultura for negativa. A reação de Widal, desde a ■ Salmonelose não tifoide
sua descrição em 1896, continua a ser útil, mas pode ser positiva A Salmonella é uma das principais causas de gastrenterite
em pacientes com passado de infecção e ser influenciada por transmitidas através de alimentos. As principais fontes são ovos
vacinação prévia. Novas tecnologias, como o teste ELISA, têm e carnes. As aves são os carreadores mais frequentes dessas bac­
importância, mas falham não atingindo os níveis de sensibili­ térias, mas o ser humano também pode ser portador assinto-
dade e especificidade desejados. O hemograma revela anemia mático e responsável por transmissão interpessoal.
e leucopenia e, às vezes, até leucocitose. Este subgrupo de salmonelas é causador de diarréia indis­
O desenvolvimento e rápida disseminação de cepas resisten­ tinta das demais causas de diarréia infecciosa invasiva. Agride
tes aos antibióticos cloranfenicol, ampicilina e TMP/SMZ, que preferencialmente mucosa ileal e também cólon. Na maioria
eram considerados de escolha para a erradicação da Salmonella dos casos, o quadro é autolimitado, com febre habitualmente
typhi, têm sido observados em várias partes do mundo. Tal nos 3 primeiros dias e diarréia por até 10 dias. O espectro de
constatação foi feita em viajantes procedentes de diversas re­ apresentação pode variar de assintomático a diarréia associa­
giões para países do primeiro mundo. Em face disso, passou-se da a dor abdominal e vômitos com possibilidade de toxemia e
a preferir as quinolonas e cefalosporinas de terceira geração. As infecção extraintestinal. Quando evolui com bacteriemia, pode
quinolonas são bactericidas e concentram-se intracelularmente causar arterite, endocardite, meningite, artrite e osteomielite.
e na bile, conseguindo rápida remissão dos sintomas. Todavia, O tratamento é ditado pela gravidade clínica e pelas comor-
já têm sido descritos casos de resistência ao ciprofloxacino, e, bidades, sendo, na maioria dos casos, desnecessária a antibio-
por isso, alguns estudos foram dirigidos à azitromicina, que ticoterapia.
também se concentra nos tecidos e nas células.
A opção de esquema terapêutico é habitualmente de uma ■ Diarréiapelo Clostridium difficile
única droga, mas a escolha e a duração do tratamento é ainda O Clostridium difficile é uma bactéria gram-positiva, anae-
motivo de pesquisa e dependem de diversos fatores como a róbia, considerada a principal responsável pela enterocolite
idade dos pacientes e a gravidade dos sintomas. Os esquemas pseudomembranosa. Foi descrita pela primeira vez em 1935 por
mais seguros para adultos são: (1) Ciprofloxacino 500 mg VO Hall e 0 ’Toole, quando estudavam a flora intestinal de recém-
ou 400 mg IV, 2 vezes/dia, durante 7 a 10 dias; (2) Ceftriaxo- nascidos saudáveis. Recebeu esse nome por causa da dificuldade
na 1 g 2 vezes/dia, IV, durante 7 a 14 dias; (3) Azitromicina de isolá-lo e cultivá-lo. Foi encontrado em metade dos casos
1.000 mg inicialmente, seguidos de 500 mg VO, dose única estudados, sugerindo tratar-se de comensal inofensivo e não
diária, durante 7 a 14 dias; (4) Cloranfenicol 500 mg VO ou patogênico. A enterocolite pseudomembranosa foi descrita em
IV, 3 vezes/dia, durante 14 dias. 1893 por Finney, cirurgião do Hospital Johns Hopkins, na ne-
Diante do risco de recaída, após o tratamento os pacientes cropsia de uma mulher jovem submetida a gastrectomia, sem
devem ser monitorados por até 4 semanas, sendo aconselhável relacioná-la ao Clostridium difficile. Em 1977, Larson e cola­
a realização de coprocultura de controle. boradores descobriram uma citotoxina nas fezes de pacientes
O uso de corticosteroides deve ser reservado apenas para tra­ portadores de colite associada ao uso de antibióticos, e, pouco
tamento inicial de casos graves da febre tifoide com toxemia. depois, Bartlett e colaboradores correlacionaram essa toxina
A recaída é ocorrência previsível, mesmo em indivíduos com com o C. difficile. Os casos de colite pseudomembranosa au­
a imunidade preservada. Quando o tratamento é feito com o mentaram no final da década de 1960 e início da de 1970, com
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 35

a introdução da lincomicina e da clindamicina. O C. difficile diagnóstica. Radiografia simples de abdome pode demonstrar a
tem tendência a colonizar o intestino humano quando a flora presença de dilatações colônicas nos casos de megacólon tóxico,
normal é alterada, principalmente por terapia antibiótica. Ele e a tomografia computadorizada do abdome pode evidenciar
é capaz de sobreviver por longos períodos no ambiente hos­ espessamento do cólon.
pitalar, facilitado pela forma de esporos resistentes ao calor. Como a diarréia pelo C. difficile está vinculada a outra con­
Portadores assintomáticos são comuns entre os idosos, que dição mórbida, a terapêutica visa, inicialmente, à manutenção
são, por isso, reserva potencial. do estado geral do paciente, reposição hidreletrolítica, bem
O C. difficile é responsável por 50 a 70% das diarréias no- como à retirada do antibiótico ao qual foi associado o apareci­
socomiais associadas ao uso de antibióticos e que ocorrem até mento da doença. Deve-se evitar uso de drogas antidiarreicas,
6 semanas após sua administração. Podem ocorrer sem uso como loperamida ou defenoxilato, pelo risco de prolongar ou
prévio de antimicrobianos. Os antibióticos mais frequente­ aumentar a gravidade do quadro e pela possibilidade de me­
mente associados à colite por C. diffiàle estão relacionados no gacólon tóxico.
Quadro 3.4. O tratamento antimicrobiano é importante na eliminação
A colite pelo C. difficile é doença mediada por toxinas. A to­ da infecção. As drogas de escolha são o metronidazol VO ou
xina A (enterotoxina) é o principal fator patogênico, enquanto a intravenosa (apresenta excreção entérica) ou a vancomicina ex­
toxina B (citotoxina) tem pequeno ou nenhum efeito deletério. clusivamente VO, conforme descrito no Quadro 3.3. Em cerca
A toxina A é capaz de lesar o epitélio por reação inflamatória, de 10 a 20% dos casos, pode haver recaídas com necessidade
a qual envolve exsudação de material proteico com neutrófilos de outro esquema terapêutico. Assim, alguns autores propõem
e monócitos e formação de pseudomembranas. Estudos histo- prolongar a terapêutica ou associar drogas como a rifampici-
lógicos mostram que as pseudomembranas são formadas de na 600 mg, 3 vezes/dia. A colestiramina 4 g, 3 ou 4 vezes/dia, e
material necrótico, muco e células inflamatórias que cobrem a lactobacilos 1 a 2 g, 4 vezes/dia, podem ter papel adjuvante em
superfície epitelial em área ulcerada. casos de difícil controle.
O quadro clínico varia de portadores assintomáticos, formas Nos pacientes com evolução progressiva associada a com­
discretas e autolimitadas até formas fulminantes. A apresenta­ plicações como infarto e perfuração intestinais, há indicação
ção característica é de diarréia aquosa, com 10 a 12 evacuações/ para cirurgia.
dia, por vezes com raias de sangue. Fezes francamente hemor­
rágicas ocorrem raramente. Pode haver distensão abdominal
com descompressão dolorosa. Os casos graves podem evoluir ■ DIARRÉIA CRÔNICA
para megacólon tóxico, perfuração e alta mortalidade. Distúr­
bios eletrolíticos contribuem para a morbidade. As ulcerações Enquanto a diarréia aguda está relacionada principalmente
extensas resultam em perdas de proteínas com hipoalbumine- aos agentes infecciosos e, por isso, predomina entre as popu­
mia, principal mente quando o quadro se prolonga. São des­ lações mais pobres, a crônica ocorre com expressiva frequên­
critas outras complicações, como derrame pleural, ascite e a cia mesmo nos países industrializados. Nos EUA, estima-se
síndrome hemolítico-urêmica. que a prevalência de diarréia crônica seja de 5% da população
Pode haver leucocitose que, algumas vezes, atinge cifras ele­ adulta.
vadas. Em cerca de 50% dos casos, são detectados leucócitos Existem inúmeras causas de diarréia crônica, ligadas ora
fecais. A coprocultura anaeróbia exige prazo de 3 a 5 dias, é dis­ ao intestino delgado, ora ao cólon, criando dificuldades na
pendiosa e inespecífica, pois a colonização assintomática pode sua identificação e terapêutica. Por isso, é necessário ter bom
ocorrer em pacientes hospitalizados. O teste ELISA, baseado conhecimento de suas diversas etiologias, abreviando o sofri­
em anticorpos específicos mono e policlonais para toxinas pu­ mento dos pacientes e reduzindo custos com propedêutica e
rificadas A e B, tem boa sensibilidade, exige só 4 h e é menos terapêutica.
dispendioso. O exame endoscópico (sigmoidoscopia flexível ou
colonoscopia) tem sua limitação pelo desconforto que causa aos
pacientes, mas é de grande valia, pois permite visualizar a área
■ Etiologia
que habitualmente é mais atingida (reto e as partes distais do As principais causas de diarréia crônica são síndrome do
cólon), com evidência de mucosa friável, edemaciada, eritema- intestino irritável (SII), doença inflamatória intestinal (DII),
tosa, e as pseudomembranas, que são placas branco-amareladas, síndrome de má absorção e infecção crônica. Esta última, mais
além de propiciar a coleta de biopsias da área atingida. Em por­ relevante em regiões de condições sanitárias inadequadas, com
tadores de colite crônica (doença inflamatória intestinal, colite possibilidade de infecções bacterianas, por protozoários ou hel-
linfocítica ou colite microscópica) infectados pelo C. difficile, a mintos.
pseudomembrana pode estar ausente, dificultando a definição Portadores de imunodeficiências apresentam frequentemen­
te diarréia associada a infecções oportunistas crônicas.
O câncer colorretal pode apresentar-se com diarréia crônica,
habitualmente com sinais de perda de sangue.
▼ O uso de medicamentos também deve ser investigado. Al­
Quadro 3.4 Antimicrobianos associados à colite por Oostridiumdifficile gumas drogas têm efeito secretório direto no intestino delgado
e no cólon, principalmente a fenolftaleína e os derivados antra-
Frequência A ntibiótico quinônicos como o sene. O uso excessivo de dissacarídios não
absorvíveis, como o sorbitol, em dietas com restrição de açúcar
Com um A m p id li n a , a m o x ic ilin a , c lin d a m ic in a , c e fa lo s p o rin a
pode causar diarréia osmótica à semelhança de laxativos, como
O c a s io n a l P e n ic ilin a , e rit r o m ic in a , tr im e t o p r im a -s u lf a m e t o x a z o l,
q u in o lo n a s
o manitol e o sulfato de magnésio.
Tumores neuroendócrinos produtores de neurotransmis­
Rara T e t r a c id in a , m e tr o n id a z o l, v a n c o m ic in a ,
a m in o g lic o s íd io s
sores com ação secretagoga, como o VIP (peptídio vasoativo
intestinal) nos VIPomas e a serotonina na síndrome carcinoi-
36 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica

de, estão associados à diarréia crônica e intensa. Apesar de Alguns fatores de risco para doenças específicas podem ser
constituírem enfermidades mais raras, devem ser lembrados encontrados na história. O médico deve pesquisar: viagens a
nessas situações. áreas endêmicas para parasitoses; sintomas precipitados ou
A maioria dessas condições será descrita separadamente em agravados por uso de determinado alimento, como a lactose
capítulos deste livro. Neste capítulo, tais enfermidades serão (intolerância à lactose) ou o glúten (doença celíaca); comor-
abordadas apenas em linhas gerais. bidades como o diabetes de longa data e hipertiroidismo que
podem cursar com diarréia; história familiar de doença infla-
matória intestinal (D1I) ou doença celíaca que apresentam risco
■ História clínica de herança genética; exposição a fatores de risco para contami­
A definição diagnóstica exclusivamente pelo quadro clínico nação pelo HIV; uso de álcool em doses potencialmente lesivas
é mais difícil na diarréia crônica devido a suas possíveis etio- ao pâncreas; abuso de produtos dietéticos com sacarídios não
logias de grande complexidade. Entretanto, a avaliação clínica absorvíveis; história medicamentosa.
acurada pode direcionar a investigação complementar, mini­ Ao exame físico, podemos encontrar sinais extraintestinais
mizando custos e exposição do paciente. de determinadas doenças. Na DII, além de massas inflamató-
A caracterização da diarréia como alta (intestino delgado) rias abdominais, podem ocorrer lesões perianais, lesões cutâ­
ou baixa (cólon), conforme discriminada no Quadro 3.1, é uma neas, aftas orais, olho vermelho e artropatias. Nas síndromes
das formas de classificar e guiar a sequência de propedêutica de má absorção e no câncer de cólon, devemos procurar sinais
complementar. de desnutrição, como edema e anemia.
Na qualificação da diarréia, devemos ter atenção para por­
tadores de incontinência anal. Esses indivíduos apresentam
o que denominamos pseudodiarreia. Existe aumento na fre­
■ Diagnóstico
quência das evacuações por incapacidade de conter as fezes na A orientação do diagnóstico necessita seguir parâmetros clí­
ampola retal. Nesta condição, não há aumento da quantidade nicos objetivos, em função da complexidade da propedêutica
de água nas fezes nem de seu volume global; portanto, não há específica. Quando necessária, a solicitação de exames com­
diarréia. plementares deve guiar-se inicialmente pelas características
Ausência de perda ponderai e de sinais de desnutrição, pre­ do quadro diarreico, se diarréia alta ou baixa, conforme Fi­
sença de sintomas predominantemente diurnos, alternância gura 3.1.
do hábito intestinal com períodos de constipação intestinal, Devem-se avaliar as alterações de caráter funcional na SII.
além de crise de dor associada à distensão abdominal e aliviada Em casos de dúvida, exames gerais que demonstrem ausência
pela evacuação são sugestivas de síndrome do intestino irritável de acometimento sistêmico como hemograma completo sem
(SII). O início dos sintomas, habitualmente, ocorre em perío­ anemia, leucocitose ou plaquetose e provas de atividade infla-
dos de instabilidade emocional e predomina em adultos jovens. matória (p. ex., proteína C reativa e VHS) normais reforçam o
Nestas condições, deve-se evitar investigação invasiva. diagnóstico de diarréia funcional.

Figura 3.1 Roteiro diagnóstico de diarréia crônica.


Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 37

■ Exames laboratoriais ■ Estudo das fezes


Exames laboratoriais gerais são muito úteis na avaliação ini­ A coleta de fezes para análise encontra frequente resistência
cial da diarréia crônica, especialmente para avaliar presença de por parte dos pacientes. Muitos consideram desagradável o ato
atividade inflamatória e/ou comprometimento nutricional. de manipular as fezes para a amostra e alguns se sentem enver­
gonhados ao imaginar a possibilidade do diagnóstico de parasi­
■ Hem ogram a tose intestinal. Por isso, muitos médicos deixam de solicitar essa
Todas as séries hematológicas podem fornecer informações avaliação. Entretanto, a análise das fezes pode traduzir vários
valiosas na pesquisa de diarréia crônica. Na série vermelha, problemas do TGI e é valiosa ferramenta diagnóstica.
presença de anemia pode estar relacionada com disabsorção ou
com perdas. Em enfermidades que promovem perda sanguínea, ■ Pesquisa de agentes infecciosos
encontraremos sinais de deficiência de ferro com microcitose A maioria das parasitoses intestinais é assintomática nos
e hipocromia. Nas síndromes de má absorção, o local do trato adultos. A Entamoeba hystolitica e a Giardia lamblia são os
gastrintestinal (TGI) acometido determina a deficiência de nu­ agentes infecciosos mais frequentes como causadores de diar­
trientes específicos. Assim, doenças que acometem o delgado réia crônica. O exame parasitológico das fezes tem baixa sen­
proximal causam dificuldade de absorção de ferro e ácido fólico sibilidade para estas infecções. A coleta de múltiplas amostras
com formação de hemácias disfórmicas (poiquilocitose) com e a análise rápida ao microscópio aumentam a sensibilidade,
micro e macrocitose concomitantes. Doenças que lesam o íleo mas esta não ultrapassa 60%. A pesquisa de antígenos de Giar­
ou que causam insuficiência pancreática dificultam a absorção dia por ELISA tem sensibilidade de até 90% com grande valor
de vitamina B12 com consequente macrocitose. nos casos suspeitos.
Alterações da série branca sugerem diarréia de origem in­ Em imunocomprometidos, especialmente em HIV positivos,
flamatória. Quando há predomínio de eosinofilia, parasitose Cryptosporidium e Isospora belli devem ser lembrados para que
intestinal é o diagnóstico mais provável. Porém, devemos con­ se façam métodos específicos para sua detecção.
siderar a possibilidade de síndrome eosinofílica acometendo o
TGI com diarréia crônica, especialmente quando há histórico ■ Sangue oculto
relevante de atopia. A expressiva frequência de exames falso-positivos e falso-
A plaquetose é marcador inespecífico de processo inflama- negativos coloca em dúvida sua segurança no sentido de in­
tório crônico e pode ser encontrada em portadores de DII. dicar a presença de lesão orgânica como causa da diarréia.
Entretanto, os achados conjuntos de sangue oculto e de leu-
■ Provas de atividade inflam atória cócitos fecais reforçam o diagnóstico de diarréia inflamató­
Proteína C reativa (PCR), velocidade de hemossedimenta- ria. Além das colites, neoplasias malignas também devem ser
ção (VMS) e a-1 glicoproteína ácida são bons marcadores de consideradas.
atividade inflamatória. Apesar de inespecíficos, no contexto de Com o desenvolvimento da imunocromatografia de cap­
diarréia crônica são importantes preditores de DII. tura a pesquisa de sangue oculto tornou-se mais sensível e
específica. Essa técnica possibilita a detecção de sangue em
■ Perfil nutridonal/m etabólico níveis tão baixos quanto 6 pg de hemoglobina/g de fezes em
A albumina é nutriente nobre e de meia-vida longa. Sua apenas 5 min. Nesta reação imunológica, não há possibili­
deficiência está associada a condições com perda nutricional dade de falso-positivos por fatores da dieta ou reação com
significativa. O perfil lipídico também se altera na desnutri­ hemoglobinas de outras espécies que ocorre para os testes
ção e na disabsorção. Em diarréias mais intensas, alterações utilizando guáiaco.
hidreletrolíticas e disfunção renal são frequentes e devem ser
pesquisadas. ■ Leucódtos
O método-padrão para sua pesquisa nas fezes (coloração pelo
■ Marcadores específicos Wright e microscopia) tem sua acurácia dependente da expe­
O anticorpo antiendomísio IgA e o antitransglutaminase riência do examinador. A pesquisa de leucódtos fecais é con­
tecidual IgA têm alta sensibilidade e especificidade para o diag­ siderada positiva quando há três ou mais polimorfo nucleares
nóstico de doença celíaca. O antitransglutaminase, apesar de por campo. A lactoferrina fecal é marcador para os leucócitos
discretamente superior ao antiendomísio, é menos disponível fecais, é altamente sensível e específica para as diarréias agu­
e mais caro. O antiendomísio tem especificidade e sensibilida­ das infecciosas e para a enterocolite pseudomembranosa por
de em torno de 95% e é útil na triagem de suspeitos de doença C. difficile, mas para as diarréias crônicas sua utilidade não está
celíaca antes da realização de endoscopia para biopsia de del­ bem definida.
gado proximal.
Anticorpo anti-Saccharomyces cerevisiae (ASCA) e anti­ ■ Gordura
corpo anticitoplasma de neutrófilo perinuclear (pANCA) po­ A análise qualitativa se baseia na pesquisa microscópica de
dem auxiliar no diagnóstico diferencial de retocolite ulcerativa gordura corada pelo Sudan III. Uma alternativa é o método
(RCUI) e doença de Crohn. Entretanto, não devem ser usados semiquantitativo, o esteatócrito, usado principalmente em pe­
na avaliação diagnóstica inicial dessas doenças devido à bai­ diatria, com resultados que se correlacionam melhor com o
xa especificidade e sensibilidade. O ASCA tem sensibilidade método quantitativo de Van de Kamer.
de 40 a 76% para doença de Crohn e o pANCA, de 60 a 65% Na análise quantitativa, o paciente deve receber orientação e
para RCUI. recursos técnicos que permitam a coleta das fezes em segurança
Os hormônios tireoideanos (T3, T4 e T4 livre) e o tireoes- e sem contaminação por urina. Deve ingerir de 70 a 100 g de
timulante (TSH) nos casos de suspeita de diarréia secundária gordura por dia durante o período de coleta das fezes, de 2 a
ao hipertiroidismo definem o diagnóstico. 3 dias. A excreção normal corresponde a cerca de 9% da gor­
38 Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica

dura ingerida, ficando em torno de 7 g/dia. Valores superiores fezes diarreicas. Em algumas etiologias, a mucosa está normal à
a esse são considerados anormais e significam esteatorreia. En­ macroscopia, e a biopsia é essencial para o diagnóstico, como na
tretanto, valores entre 7 e 14 g/dia de gordura fecal têm baixa colite colágena e colite linfocítica. Colites infecciosas também
especificidade para diagnosticar defeito primário de digestão podem ter o diagnóstico confirmado pela colonoscopia, como
ou absorção. Valores acima de 14 g/dia são mais específicos colite pseudomembranosa pelo C. difficile, colite amebiana e
para comprovar má absorção. tuberculose intestinal.

■ Eletrólitos e osmolaridade ■ Cápsula endoscópica


As concentrações de eletrólitos são medidas nas fezes após É ferramenta de grande valia na investigação de doenças de
sua homogeneização (por meio manual ou mecânico) e centri- grande parte do delgado, inacessível aos métodos endoscópi-
fugação da amostra para obter um sobrenadante para a análise. cos habituais. A visualização da mucosa pode definir diagnós­
Casos de diarréia não esclarecidos podem necessitar da averi­ tico de enterites em geral. Como desvantagem em relação aos
guação do gap osmótico do fluido fecal, que analisa a partici­ demais métodos endoscópicos, a impossibilidade de coleta de
pação de substância osmoticamente ativa nas fezes, servindo material para análise restringe sua acurácia em determinadas
para estimar a contribuição que os eletrólitos e outros elementos situações.
têm na retenção de água no lúmen intestinal. Na diarréia se-
cretora, os eletrólitos não absorvidos são os responsáveis e, na ■ Enteroscopiacomduplo balão
osmótica, são os outros elementos osmoticamente ativos, como A utilização da enteroscopia com duplo balão (EDB) per­
os carboidratos. A osmolaridade teórica no intestino delgado mite o alcance das porções mais distais do intestino delgado
distai é estimada em 290 m Osm /f, porque é equilibrada com a de forma mais simples e eficaz. A boa flexibilidade do endos-
do plasma. O gap osmótico é maior (>125 mOsm /l) na diar­ cópio é mantida mesmo após a sua inserção, já que o corpo
réia osmótica e menor (< 50 mOsm/^) na secretora. Em diar­ deste está fixado pelo overtube. Assim sendo, qualquer ponto
réias mistas (osmóticas e secretoras) ou em casos de discreta do intestino delgado pode ser fixado, possibilitando a intro­
má absorção de carboidratos, o gap osmótico fica entre 50 e dução e retirada do endoscópio, ao mesmo tempo em que
125 mOsm/^. A estocagem das fezes pode elevar a osmolarida­ propicia o exame detalhado da mucosa, realização de biópsias
de por causa da ação das bactérias fecais sobre os carboidratos e procedimentos terapêuticos, facilitados pelos comandos de
durante esse período. operação em quatro direções. Yamamoto et al. relataram sua
experiência com a EDB através de 178 enteroscopias, 89 por
■ pH fecal via anterógrada e 89 por via retrógrada, realizadas em 123 pa­
Sua pesquisa é indicada diante de suspeita de diarréia cau­ cientes. O endoscópio com duplo balão foi inserido pelas vias
sada por má absorção de carboidratos, como nos casos relacio­ oral e anal, conseguindo-se atingir cerca da metade ou 66%
nados com o uso de sorbitol ou lactulose. Nestas condições, o de todo o intestino delgado. A combinação de ambas as vias
pH é baixo (< 6). Nas diarréias envolvendo perdas de aminoá- permite o exame de todo o intestino delgado, sendo relatado
cidos e de ácidos graxos associados a carboidratos, o pH fica sucesso de 86% na tentativa de enteroscopia total. Esse resul­
elevado (entre 6,0 e 7,5). tado é comparável com 79% de sucesso, recentemente obti­
do pela cápsula endoscópica. Dessa forma, a enteroscopia é
■ Teste para pesquisa de carboidratos fecais método seguro, que possibilita diagnóstico preciso, coleta de
Embora testes para o teor de carboidratos não sejam feitos biópsias e abordagem terapêutica, além do estadiamento de
rotineiramente para fezes, testes qualitativos podem ser usados lesões através da endossonografia. Os índices de complicações
para identificar carboidratos mal absorvidos. Contudo, exames são baixos e aceitáveis
que originalmente foram usados para medi-los na urina não
estão padronizados para as fezes. O clinitest é positivo para ■ Im agem
glicose, galactose, maltose, frutose e lactose, mas negativo com ■ Trânsito deintestino delgado
sacarose, sorbitol, lactulose e manitol. É o principal exame complementar para estudo do intestino
delgado devido a seu baixo custo, fácil execução e com seguran­
■ Endoscopia ça para o paciente. Apresenta alta sensibilidade para avaliação
■ Endoscopiadigestiva alta de desordens do jejuno e íleo.
Nos quadros clínicos compatíveis com diarréia alta, a en­
doscopia digestiva alta pode auxiliar no diagnóstico através da ■ Tomografia computadorizada
visualização da mucosa do intestino delgado proximal ou de sua A tomografia com contraste oral também auxilia na avalia­
análise por biopsia. Entre essas etiologias, estão doença celíaca, ção do trânsito pelo intestino delgado. Tem bom desempenho
parasitoses, doença de Whipple, entre outras. especialmente para lesões tumorais dessa área. É menos sensível
do que o trânsito intestinal para lesões de mucosas.
■ Colonoscopia O avanço dos tomógrafos com maior número de detecto­
Exame de grande importância no diagnóstico de diarréias res de imagem e da ressonância magnética tem possibilitado o
crônicas baixas. Além do cólon, o exame se completa com ava­ aprimoramento na avaliação intestinal com enterografia e co­
liação adicional do íleo distai, região também associada a diar­ lonoscopia virtual. A enterografia tem como vantagem a ava­
réias inflamatórias baixas. Por ser procedimento mais invasivo, liação das alças em três dimensões, sem sobreposição. A colo­
deve ser realizado após triagem clínica e laboratorial adequada noscopia virtual apresenta boa sensibilidade para lesões acima
que indique forte suspeita de acometimento ileocolônico. A de 1 cm, mas tem a desvantagem em relação à colonoscopia de
avaliação endoscópica da mucosa é característica nas DII e em não permitir biopsia, com necessidade de preparo de cólon tão
outras colites, assim como nas neoplasias, também associadas a rigoroso quanto para o exame endoscópico.
Capítulo 3 / Diarréia Aguda e Crônica 39

■ TRATAMENTO ■ LEITURA RECOMENDADA


Quando a causa é bem definida, o controle clínico dependerá Chak, A & Banwcll, JG. Travclcr’s diarrhca. Castroenterol. Clin. North Am.,
do êxito da terapêutica específica instituída ou da exclusão de 1993;22:549-61.
Charalabos, P & LaMont, J. Clostridium diflicilc colitis and diarrhca. Castro­
agentes causadores da diarréia. Para os pacientes que estão em enterol. Clin. North Am., 1993; 22:623-37.
investigação diagnóstica, deve-se prescrever inicialmente dieta Chency, CP & Wong, RKH. Acutc Infcctious Diarrhca. Med. Gin. North Am.,
pobre em resíduos, restrição de leite e derivados, utilizando-se 1993;77:1169-95.
medicamentos sintomáticos para a diarréia. Dclvaux, M & Gay, G. Novel applications of balloon cndoscopy. Gastrointest.
Os agentes antimotilidade, derivados do ópio, também Endosc. Clin. N. Am., 2009; 79:509-18.
Drcyfus, G, Hébutcrnc, X, Schncider, S, Rampal, P. Prisc cn chargc diagnostique
atuam sobre receptores específicos na membrana celular, ini­ des diarrhócs chroniques. Castroenterol. Clin. Biol., 1999; 23:75-83.
bindo a atividade da adenilciclase, diminuindo a concentração Farthing, MJG. Chronic diarrhoea: currcnt concepts on mcchanism and ma-
intracelular de cAMP, tendo assim atividade antissecretora e nagement. Eur. ]. Gastroenterol. Hepatol., 1996; 5:157-67.
inibidora da motilidade intestinal. Embora os derivados sinté­ Fine, KD & Schiller, LR. AGA tcchnical revievv on thc evaluation and manage-
ticos do ópio (loperamida e difenoxilato) sejam mais utiliza­ ment of chronic diarrhca. Castroenterology, 1999; 776:1464-86.
Gunzcr, F. Bohm, H, Russmann, H et al. Molecular detcction of sorbito-fermen-
dos, a morfina e a codeína, por terem ação central e periférica, ting Eschcrichia coli 0157 in patients with hemolytic-urcmic syndrome. /.
são mais potentes e mais eficazes em diarréias persistentes de Clin. Microbiol., 1992; 39:1807-10.
aidéticos. Holtz, LR, Neil, MA, Tarr, PI. Acute Bloody Diarrhca: A Medicai Hmcrgcncy
Os alfa2-adrenorreceptores estão presentes no intestino e for Patients of AU Ages. Castroenterology, 2009; 736:1887-98.
medeiam os efeitos pró-absortivos e antimotilidade das cate- Lysy, J, Isracli, E, Goldin, E. Thc prcvalcnce of chronic diarrhca among diabetie
patients. Am. J. Castroenterol., 1999; 94:2165-70.
colaminas. A clonidina, agonista alfa2-adrenérgico, tem ati­ Park, SI 8c Giannclla, RA. Approach to the adult patient with acute diarrhca.
vidade antidiarreica, sendo utilizada com sucesso na diarréia Castroenterol. Clin. North Am., 1993; 22:483-97.
dos diabéticos, embora apresente restrições por causa de seu Pawlowski, SW, Alcantara, CA, Guerrant, WR. Diagnosis and Treatmcnt of
efeito hipotensor. Acutc or Pcrsistcnt Diarrhca. Castroenterology, 2009; 736:1874-86.
Proulx, F, Turgcon, JP, Dclagc, G et al. Randomizcd, controllcd trial of an-
A somatostatina e o octreotídio têm ação diversificada no
tibiotic thcrapy for Eschcrichia coli 0157:H7 enteritis. /. Pediatr., 1992;
tubo digestivo. Inibem a motilidade e a secreção gástrica e 727:299-303.
pancreática com favorecimento da absorção de água e eletró- Rcad, NW, Krcjs, GJ, Rcad, MG et al. Chronic diarrhca of unknown origin.
litos. O octreotídio é poderoso inibidor da liberação de gastri- Castroenterology, 1980; 78:264-71.
na, VIP e 5-HT. Por isso, é usado no tratamento da diarréia da Wong, CS, Jclacic, S, Habccb, RL et al. Thc risk of thc hemolytic-urcmic syn­
síndrome carcinoide, da síndrome de Zollinger-Ellison e nos drome after antibiotic treatmcnt of Eschcrichia coli 0157:H7 infcctions. N.
Engl. J. Pediatr., 2000; 342:1930-6.
aidéticos. O octreotídio é usado, também, na diarréia dos dia­ Yamamoto, H, Kita, H, Sunada, K et al. Clinicai outeomes of doublcballoon
béticos, diarréia aquosa idiopática e naquela que ocorre durante cndoscopy for thc diagnosis and treatmcnt of small-intestinal discascs. Clin.
o tratamento com drogas antineoplásicas. Castroenterol. Hepatol., 2004;2:1010-6.
Halitose, Eructação e Soluço
Adilton Toledo OrneiIas, Juliano Machado de Oliveira e
Laura Cotta Ornellas Halfeld

estudo asiático, realizado em portadores de dispepsia funcio­


• HALITOSE nal e halitose, comprovou que a erradicação da bactéria fez
As alterações do hálito são manifestações frequentes, cons­ desaparecer a queixa de halitose por um período prolongado
trangedoras, que podem ser indicadoras de alguma doença ain­ de acompanhamento. Embora o tema suscite novas investiga­
da não diagnosticada. Podem ser consideradas como objetivas, ções, o tratamento de erradicação desse microrganismo deve
ser considerado nos casos de halitose, quando outras etiologias
quando constatadas por alguém da intimidade do paciente ou
foram descartadas.
por um médico, ou subjetivas (pseudo-halitose ou halitofobia),
Em estudo multidisciplinar realizado em Louvain (Bélgica)
quando os próprios pacientes procuram ajuda por se sentirem
portadores de halitose que, todavia, não pode ser comprovada com 2.000 pacientes, foram identificadas as seguintes causas
para halitose: em 76% dos casos, foi encontrada uma doença
por um exame médico.
da cavidade oral; entre elas, língua saburrosa (43%), gengivite
(3,8%), periodontite (7,4%) e xerostomia (2,5%). A incidência
■ Etiologia de pseudo-halitose foi de 16%; casos de amigdalites, rinites,
sinusites e obstrução nasal, de 1,9%. A etiologia não foi iden­
A halitose pode ocorrer ao despertar, de modo transitório,
tificada em 0,8% dos casos. Portanto, na maioria das vezes, a
sem que tenha significado patológico.
halitose teve origem oral, resultando provavelmente da degra­
A grande maioria dos casos decorre de doenças locorregio-
dação de substratos orgânicos por bactérias anaeróbicas, pro­
nais situadas na cavidade oral (higiene oral inadequada, cáries
duzindo compostos sulfurados.
dentárias, língua saburrosa, proliferação da placa bacteriana,
Determinadas doenças têm hálitos característicos e exigiam,
tártaro dentário, doenças periodontais), na cavidade nasal, seios
no passado, um grande tirocínio clínico para identificá-las, pela
paranasais, amígdalas e faringe (amigdalites, faringites, sinu-
limitação dos recursos propedêuticos de então. Três são os mais
sites, rinites) ou mesmo nos pulmões (abscessos pulmonares, importantes: (1) hálito cetônico, que ocorre em casos de ceto-
bronquiectasias). O tabagismo atua por si só ou agravando con­ acidose diabética ou jejum prolongado, quando há produção
dições preexistentes. Pode também decorrer de enfermidades de corpos cetônicos, que são eliminados pela urina (cetonúria)
digestivas, como nas lesões obstrutivas do esôfago, estômago, e pela respiração, causando um odor que lembra frutas enve­
intestino delgado ou cólon. lhecidas; (2) hálito urêmico, que ocorre na insuficiência renal,
A redução do fluxo salivar (xerostomia) também pode al­ conferindo um odor amoniacal; e (3) hálito hepático (Joetor
terar o hálito e pode ocorrer pelo uso de medicamentos (an- hepaticus), que ocorre em portadores de doença hepática grave
ticolinérgicos, antidepressivos, betabloqueadores), em lon­ e resulta da eliminação de metilmercaptana e de outros com­
gas falas e na síndrome de Sjõgren. A halitose pode resultar postos voláteis sulfurados, conferindo um odor de peixe, de rato
da eliminação de substâncias aromáticas no ar expirado em ou comparável a um cadáver recentemente aberto.
consequência do metabolismo de etanol, gorduras, proteínas
e carboidratos.
Alguns pesquisadores têm investigado a participação da ■ Diagnóstico
bactéria Helicobacter pylori (H. pylori) na etiologia da halito­ Além de uma história clínica criteriosa para identificar a
se, tanto por sua localização oral como gástrica. Um estudo possível causa da halitose, o exame físico deve ser voltado para
chinês comprovou que a presença dessa bactéria no estôma­ a cavidade oral, que é sede das principais etiologias. Tais cuida­
go era significativamente maior em portadores de halitose do dos são ainda mais necessários diante de um caso de pseudo-
que em indivíduos sadios. Uma pesquisa realizada em pacien­ halitose, a fim de se evitar a realização de exames complemen­
tes sem lesão gástrica investigada por endoscopia digestiva e tares dispendiosos.
sem queixas dispépticas, mas portadores de H. pylori, mostrou A halitose pode ser medida por critérios subjetivos, cha­
significativa melhora da halitose após a sua erradicação. Um mados organolépticos, que são dependentes da capacidade ol-

40
Capítulo 4 / Halitose, Eructação e Soluço 41

fatória do examinador, ou através de equipamentos capazes gástrico é a deglutição. Já foi demonstrado que, a cada ingestão
de medir a concentração dos compostos sulfurados (sulfeto de 10 m^ de líquido, chegam também ao estômago 17 m f de
de hidrogênio, metilmercaptana e dimetilsulfeto) do hálito, ar. Estudos realizados por Tomlim et al em indivíduos sadios
como o halímetro (Halimeter®). Esse aparelho tem a capacida­ mostraram que a ingestão diária de nitrogênio é em torno de
de de medir a concentração dos compostos sulfurados voláteis 2.000 m f, mas a sua eliminação através dos flatos foi de aproxi­
do hálito, que são ionizados quando entram em contato com madamente 250 mf/dia. Como ele é pouco absorvível, pode-se
o equipamento e são medidos em concentração de partes por concluir que a maior parte é eliminada através da eructação.
bilhão {ppb)t considerando-se normal quando a concentração Assim, como o nitrogênio é o principal gás existente no estô­
está abaixo de 150 ppb. Outros recursos têm sido propostos mago, só sendo eliminado pelo reto em pequena proporção,
para medir os compostos sulfurados voláteis, como um sensor fica demonstrado que, em condições fisiológicas, a passagem
colorimétrico ou através de cromatografia. do ar deglutido para o intestino é pequena.
Os gases intraluminais produzidos no trato gastrintestinal
são o dióxido de carbono, o hidrogênio e o metano. O dió­
■ Tratamento xido de carbono predomina na porção superior do intestino
O tratamento tem seu êxito ligado à identificação da causa delgado, resultando da interação do ácido clorídrico e dos áci­
e de sua possível remoção, como nas halitoses provadas por dos graxos (derivados da digestão de triglicerídios pela lipase
medicamentos ou infecções. Tendo em vista o predomínio pancreática) com o bicarbonato. O hidrogênio é resultante do
de afecções da cavidade oral, cuidados de higiene oral são metabolismo bacteriano, no cólon, de substratos fermentáveis,
indispensáveis. Por outro lado, torna-se mais difícil quando como carboidratos e proteínas. Por apresentar-se com grande
a etiologia da halitose não é reconhecida. A pseudo-halitose pressão parcial, difunde-se para o sangue, sendo eliminado pelo
associada frequentemente com alterações emocionais pode ar expirado. Em estudos experimentais em ratos de laborató­
necessitar do auxílio de medicamentos e de profissionais es­ rio esterilizados e recém-natos, demonstrou-se que eles não
pecializados. produzem hidrogênio, que surge, entretanto, algumas horas
após sua contaminação por bactérias. O metano também apre­
senta uma única fonte, o metabolismo de bactérias anaeróbi-
■ ERUCTAÇÃO cas, cujas colônias estão presentes em pessoas de determinado
traço familiar, sendo encontrado somente em um terço dos
É a eliminação fisiológica do conteúdo gasoso excessivo do adultos. Todavia, em condições patológicas, o ar existente no
estômago através da cavidade oral, às vezes feita de maneira estômago pode chegar ao cólon, como ficou demonstrado em
ruidosa. estudo feito por Levitt et al em um paciente portador de fla-
tulência acentuada, no qual foram medidas as concentrações
dos diversos componentes dos flatos eliminados. Observou-se,
■ Aspectos fisiológicos dos gases gastrintestinais então, que a concentração de nitrogênio era muito superior
Os gases gastrintestinais podem ter três origens: ar deglutido, àquela esperada, equiparada às concentrações intragástricas, e
produção intraluminal e difusão entre o lúmen e o sangue. que os gases intraluminais (dióxido de carbono, hidrogênio e
Cerca de 99% dos gases presentes no trato gastrintestinal metano) tinham concentração abaixo de 17%. Esse estudo de­
são compostos de nitrogênio, oxigênio, dióxido de carbono, monstra que, antes de se propor um tratamento clínico para
hidrogênio e metano, sendo todos sem odor. A distribuição e um paciente com flatulência, seria importante saber se os gases
a concentração desses gases estão representadas no Quadro 4.1. eliminados são formados no próprio intestino ou se resultam
Outros gases e substâncias também estão presentes em menor do ar deglutido.
quantidade, como aqueles odoríferos, provavelmente respon­ A difusão de gases entre o lúmen e o sangue é determ i­
sáveis pelo odor desagradável dos flatos, que são: amônia, gás nada pela diferença parcial de pressão. O sangue que irriga
sulfídrico e metilmercaptana. Eles são resultantes do metabo­ o cólon tem gradiente de pressão parcial muito baixa de hi­
lismo de alguns alimentos. drogênio e metano. Sendo assim, eles passam do lúmen para
O ar deglutido contém os dois principais gases existentes na o sangue, ocorrendo o contrário com o dióxido de carbono e
atmosfera, ou seja, o nitrogênio e o oxigênio, não encontrados o oxigênio.
no estômago de indivíduos que não podem deglutir, como na
acalasia grave, comprovando, assim, que a única fonte de ar
■ Fisiopatologia
O gás eliminado através da eructação contém, aproximada­
mente, 80% de nitrogênio e 20% de oxigênio.
---------------------------------▼ ----------------------------------------- Estudos radiológicos e, mais recentemente, de impedancio-
Quadro 4.1 Composição dos gases gastrintestinais metria e pHmetria esofágicas permitiram identificar a existên­
cia de duas condições distintas: (1) a eructação supragástrica,
Gás Estôm ago (% ) In testin o (% ) Flatos (% ) quando o ar deglutido ou originário da faringe atinge o esôfago
para, logo a seguir, ser eliminado pela boca, não tendo, portan­
N it r o g ê n io 79 2 3 -8 0 11-32 to, origem no estômago; (2) a aerofagia, quando há deglutição
O x ig ê n io 17 0,1 - 2 , 3 0-11 excessiva de ar, que se acumula no estômago, e para ser elimi­
D ió x id o d e c a r b o n o 4 5,1 - 2 9 3-54 nado pela boca provoca um relaxamento do esfíncter esofágico
H id r o g ê n io — 0 ,0 6 - 4 7 0-69 inferior antes da eructação, criando uma cavidade gastresofá-
M e ta n o — 0-26 0-56 gica comum. Não há evidência de relaxamento do esfíncter
esofágico inferior na eructação supragástrica.
Adaptado de Berk, JE. Gas. Em: Haubrich, WS, Schaffner, F, Berk, JE. Bockus
Gastroenterology, 5th ed., Philadelphia. W.B. Saunders, 1995. Monitoramentos feitos através de impedanciometria e
pHmetria esofágicas durante 24 h demonstraram que as
42 Capítulo 4 / Halitose,Eructaçâoe Soluço

eructações supragástricas ocorrem em maior número e que prolongado. As manifestações de soluço quando se estendem
sofrem de um declínio no período noturno, enquanto aquelas por mais de 48 h são consideradas como persistentes e, se ul­
originadas do estômago (aerofagia) ocorrem em menor núm e­ trapassam 1 mês, são chamadas de intratáveis.
ro que as supragástricas e mantiveram um equilíbrio tanto no
período diurno como no noturno. Assim, pode-se concluir que
no primeiro caso as eructações resultam de vícios adquiridos,
> Etiologia
estando relacionadas com distúrbios comportamentais. O soluço incide igualmente em ambos os sexos e em qual­
quer idade. Nas crianças, a causa raramente é encontrada. As
■ Manifestações clínicas causas orgânicas predominam no sexo masculino. Cerca de
20% têm origem psicogênica, mas em muitos casos a etiologia
A eructação ocasional, durante ou após uma refeição, resul­ permanece idiopática.
taria da eliminação de gases da bolha gástrica, sendo conside­ As principais causas de soluço agudo ou benigno estão
rada um evento normal. relatadas no Quadro 4.2 e as de soluço persistente, no Qua­
Toda eructação é precedida de deglutição de ar, mas os pa­ dro 4.3.
cientes nem sempre percebem essa relação. Os pacientes com
aerofagia engolem ar em grande quantidade, com grande fre­
quência e têm excessiva quantidade de gás intestinal, que pode ■ Fisiopatologia
ser constatada em uma radiografia simples de abdome. A dis­ Suspeitava-se, no passado, que o soluço fosse resultante de
tensão abdominal é a principal manifestação clínica, enquanto um movimento respiratório reflexo, produzindo uma inspi­
a eructação ocorre em menor grau. ração entrecortada, mas estudos de eletrofisiologia têm refu­
Quando a eructação se torna mais frequente e associada a tado essa ideia. A sua produção estaria relacionada com um
desconforto, pode estar relacionada com transtornos funcio­ arco reflexo, proposto inicialmente por Bailey em 1943, com a
nais ou com alguma doença, como a úlcera péptica, o reflu- participação de uma via aferente composta dos nervos frêni-
xo gastresofágico e neoplasias, exigindo, nesses casos, exames co, vago e da cadeia simpática correspondente aos segmentos
complementares mais objetivos. torácicos T6-T12; de um centro do soluço, sem uma localiza­
Algumas condições clínicas favorecem a deglutição de ar e ção específica entre C3 e C5; de uma conexão central entre
a consequente eructação. É o que acontece em pacientes com as vias aferentes e eferentes, constituída pela interação entre
distúrbios emocionais, como já foi descrito na sindrome Gilles o centro respiratório, o núcleo do nervo frênico, a formação
de la Tourette, bem como nos portadores de falhas dentárias, reticular e o hipotálamo; de uma via eferente, formada prin­
secreção nasal e nos fumantes. cipalmente pelo nervo frênico, além das inervações da glote e
dos músculos acessórios da respiração (Figura 4.1). Assim, o
■ Tratamento soluço resultaria de estímulos aferentes, ou de origem central.
Tendo em vista a longa trajetória dos nervos e centro envol­
Uma vez excluída a presença de enfermidades orgânicas res­ vidos nesse arco refluxo, o potencial de desencadeamento por
ponsáveis pela eructação, a primeira medida consiste em corri­ processos patológicos é muito diversificado, por isso inúmeras
gir hábitos viciosos da alimentação relacionados com mastiga­ doenças podem ser envolvidas na etiologia do soluço. O nervo
ção, consistência dos alimentos (os líquidos favorecem maior vago, em particular, pode ser ativado em várias áreas anatômi­
ingestão de ar), restringir certos alimentos como feijão, len­ cas, como: vísceras torácicas e abdominais, cabeça e pescoço.
tilha, carnes vermelhas, verduras e legumes crus. Restrições Estudos radioscópicos têm demonstrado que o soluço envolve
também devem ser feitas a fumo, gomas de mascar, balas e mais frequentemente uma contração unilateral do diafragma
bebidas gasosas. e predomina à esquerda. Contração bilateral também ocorre,
Como a eructação frequente tem uma relação estreita com mas o comprometimento unilateral predomina.
a ansiedade e a tensão emocional, pode haver a necessidade do
auxílio de profissionais das áreas de fonoaudiologia e de psico-
terapia, além da prescrição de um psicoterápico.
A dimeticona, que atuaria no sentido de favorecer a coales- ------------------------------------- ▼---------------------------
cência das bolhas gasosas e facilitar a sua eliminação, pode ser Quadro 4.2 Causas de soluço agudo ou benigno
prescrita, embora seja de eficácia duvidosa.
Os antiácidos, os antagonistas dos receptores H2ou bloquea- D is te n s ã o g á strica

dores de bomba protônica, visando a reduzir a quantidade de A e ro fa g ia


ácido clorídrico que chega ao duodeno e assim diminuir a pro­ A lim e n t a ç ã o e xcessiva
dução de dióxido de carbono, podem ser úteis. Entretanto, os A lim e n t a ç ã o rá p id a
antiácidos não devem ser compostos de carbonato. B e b id a a lc o ó lic a

B e b id a c a r b o n a t a d a

In s u fla ç á o g á strica d u r a n t e e n d o s c o p ia
■ SOLUÇO M u d a n ç a b ru s c a n o a m b ie n t e o u n a t e m p e r a t u r a g a s trin te s tin a l

B a n h o frio
O soluço é um fenômeno neurorrespiratório resultante da
B e b id a s q u e n t e s o u frias
contração involuntária dos músculos inspiratórios, associada
ao fechamento simultâneo da glote com a produção de um ruí­ D is t ú r b io s e m o c io n a is s ú b ito s

do característico. C ig a r r o

É uma manifestação clínica simples e benigna, quando tran­ Adaptado de Rousseau, P. Hiccups South Med. 1 , 1995; 88:175-81.
sitório, mas torna-se um problema angustiante e sério, quando
Capítulo 4 / Halitose, Eructação e Soluço 43

------------------------------------- ▼------------------------------ mais sério, causando sensação de fadiga, desidratação, altera­


Quadro 4.3 Causas de soluço persistente ção do sono, prejuízo da alimentação, depressão e, até mesmo,
a morte em casos extremos. Frequentemente, o soluço surge
P s ic o g ê n ic a s como uma intercorrência de um quadro neurológico ou de
Estre sse /e x c ita çâ o uma neoplasia maligna.
C ris e c o n v e rs iv a

A n o r e x ia n e rv o s a ■ Diagnóstico
D is t ú r b io s d e p e rs o n a lid a d e
Diante da diversidade de doenças capazes de desencadear o
O r g â n ic a s
soluço, uma história cuidadosa deve ser seguida de exame clí­
S is te m a n e r v o s o c e n tra l
nico detalhado, com especial atenção para cabeça, estruturas
N e o p la s ia
do pescoço, coração, pulmões e abdome. O conduto auditivo
S / )u n f v e n t r ic u lo p e rit o n e a l externo deve ser examinado para excluir inflamações, corpos
E s d e r o s e m ú lt ip la estranhos, pelos aberrantes irritando a membrana do tímpano
H id ro c e fa lia e cerume impactado.
M a lf o r m a ç ã o a rte rio v e n o s a Exame radioscópico do diafragma deve ser realizado nos
A c id e n t e v a s c u la r c e re b ra l quadros de soluço persistente, quando a etiologia não está de­
T r a u m a t is m o c ra n io e n c e fá lic o finida. Quando há envolvimento unilateral do diafragma, o
S is te m a n e r v o s o p e rifé ric o (irrita ç ã o d o n e r v o frè n ic o o u d o v a g o )
diagnóstico deve ser voltado para as áreas do mesmo lado do
H é rn ia h ia ta l — e so fa g ite
nervo frênico afetado, mas, se for bilateral, sugere origem afe-
rente ou central. Exames laboratoriais podem ser realizados
P e ric a rd ite
para pesquisar, por exemplo, uma origem metabólica (hipo­
Im p la n t a ç ã o a n ô m a la d e e le t r o d o d e m a rc a -p a s s o
calcemia, hipopotassemia ou insuficiência renal). Os exames
In fa rto a g u d o d o m io c á r d io
endoscópicos e de imagem (radiografia de tórax, de abdome,
T u m o r o u c is to d e p e s c o ç o
tomografia computadorizada, PET/CT, ressonância magnética)
L in fa d e n o p a tia d e m e d ia s t in o são voltados para uma suspeita orgânica.
E s tim u la ç ã o d a m e m b r a n a t im p â n ic a

In fe c ç õ e s b r ô n q u ic a s , p u lm o n a r e s o u p le u ra is

T u m o r d e e s ô fa g o
■ Tratamento
G a s trite o u ú lc e ra p é p tic a A terapêutica ideal é aquela dirigida para a sua etiologia;
C â n c e r g á s tric o
entretanto, nem sempre é possível remover a causa ou iden-
P a n c re a tite
tificá-la, tornando-se assim necessárias medidas visando ao
próprio soluço.
C o le d s t o p a tia s
Muitos tratamentos não farmacológicos são empíricos, sem
P ó s -o p e r a t ó r io d o tó ra x o u d o a b d o m e
embasamento científico, mas, com frequência, eficazes. Con­
M e ta b ó lic a s — fa r m a c o ló g ic a s — infe cciosa s
sistem no estímulo da nasofaringe, visando a interromper a
A n e s te s ia g e ra l
transmissão aferente vagai, e incluem: tração da língua, eleva­
C o r tic o s te r o id e s p o r v ia e n d o v e n o s a ção da úvula com uma colher, estimulação da faringe com uma
B a rb ltú ric o s — d ia z e p ín ic o s mecha de algodão ou cateter, gargarejo com água, tomar água
M e t ild o p a gelada, ingerir açúcar granulado. Contrariamente, pode-se fazer
Sepse a estimulação vagai, como manobra de Valsalva, massagem da
E s ta d o g r ip a i carótida, pressão supraorbital, irritação mecânica da membra­
H e rp e s z o s te r
na do tímpano e toque retal. Outros métodos que se propõem
M a lá ria
a interrompera transmissão do nervo frênico têm sido eficazes,
fazendo cessar o episódio de soluço, e consistem em dar leves
T u b e r c u lo s e
pancadas rítmicas sobre a 5.* vértebra cervical, ou aplicar gelo
U re m ia
na superfície cutânea referente ao território do nervo frênico,
H ip o c a lc e m ia — h ip o n a t r e m ia — h ip e r g lic e m ia
estimulação elétrica, bloqueio com injeção de lidocaína.
Id io p á tic a s Embora não exista uma associação evidente entre o soluço
Adaptado de Rousseau, P. Hlccups South Med. J., 1995; 88:175-81. e o aparelho respiratório, muitos tratamentos envolvem a in­
terrupção da respiração normal, incluindo espirros, tosse, ap­
neia voluntária, hiperventilação, dor ou medo súbitos, uso de
pressão aérea positiva contínua e respirar dentro de um saco de
papel (aumenta a Pco,, produzindo acidose respiratória).
Outras medidas têm sido propostas para tratar o soluço,
■ Manifestações clínicas como a hipnose e a acupuntura. Esta última foi empregada em
Quando agudo e transitório, o soluço é uma manifestação pacientes portadores de neoplasia maligna, obtendo-se resul­
clínica simples, como ocorre no período pós-prandial ou após tados estatisticamente significantes.
a ingestão de bebidas alcoólicas, tem evolução autolimitada ou
cede com medidas simples, como apneia voluntária, ingestão
de água ou pela manobra de Valsai va. Algumas vezes, mesmo
■ Terapêutica medicamentosa
quando tem instalação aguda, pode causar grande desconforto, Quando o soluço tem evolução prolongada e não respon­
exigindo medidas terapêuticas mais enérgicas e imediatas. En­ de às medidas supracitadas, diversos medicamentos podem
tretanto, quando é prolongado, torna-se um problema clínico ser prescritos como a clorpromazina, a única droga licenciada
44 Capítulo 4 / Halitose,Eructaçâoe Soluço

Adaptado de Wilcox, SK, Garry, A, Johnson, MJ. J. Pain Symptom Manage, 2009; 3:460-5.

Figura 4.1 Arco reflexo do soluço.

para o tratamento de soluço nos EUA. Diversas referências são • Anestésicos: lidocaína, cloridrato de cetamina.
feitas ao baclofeno, um derivado do GABA, usado em neurolo­ • Anticonvulsivantes: fenitoína, ácido valproico, carba-
gia como um potente miorrelaxante de ação medular e central, mazepina, gabapentina.
como sendo a droga de escolha. Sua ação é relacionada com • Sedativos: midazolam.
uma hiperpolarização dos terminais aferentes e inibição de re­ • Antidepressivos: amitriptilina, sertralina.
flexos em nível medular. Esse fármaco deve ser prescrito nos • Psicoestimulantes: cloridrato de metilfenidato (ritalina).
casos de soluço persistente, quando a causa não foi encontrada, • Antagonistas do canal de cálcio: nifedipino, nimodipino.
ou mesmo quando uma doença esofagogástrica não responde • Antiparkinsoniano: amantadina.
ao tratamento específico. A dosagem deve ser iniciada com 5
a 10 mg, elevando-se a dose se necessário, de modo progressi­
vo, até 25 mg, 2 a 4 vezes/dia. Os efeitos adversos, relaciona­ ■ Tratamento cirúrgico
dos principalmente com doses mais elevadas, incluem náuseas, Quando o envolvimento é unilateral, comprovado previa­
tonturas, sonolência, ataxia e fadiga. O baclofeno não deve ser mente por radioscopia, e o soluço não cessa com as medidas
interrompido de modo súbito, sendo recomendada uma redu­ terapêuticas disponíveis, o bloqueio do nervo frênico com
ção gradual. A gabapentina tem sido usada principalmente em lidocaína a 1%, guiada por ultrassonografia na área do nervo
casos de neoplasia maligna e naqueles associados a lesões do frênico, mostrou-se eficaz e com melhora precoce e duradoura
sistema nervoso central. Poderia ser a droga de escolha nesses em casos de pacientes portadores de neoplasia maligna e com
casos, pela boa tolerabilidade, efeito modulador sobre a dor, soluço intratável. Em casos rebeldes, considera-se ressecção
discretos efeitos adversos e quase sem interação medicamen­ do nervo frênico do lado afetado. Esse procedimento deve ser
tosa. A dose inicial é de 300 mg, 3 vezes/dia. precedido de estudo da função respiratória, porque a paralisia
Como o soluço tem causas variadas, cada uma delas desen­ do diafragma pode ter grande repercussão sobre a respiração,
cadeando seu aparecimento por agir em pontos diversos do e de uma paralisia temporária do nervo frênico, através de blo­
seu arco reflexo, muitas outras drogas têm sido relacionadas queio, para comprovar a sua eficácia no controle do soluço. Só
com o seu tratamento. assim a intervenção cirúrgica deve ser realizada.
A seguir, são citados os principais fármacos indicados para Intervenções não mutiladoras sobre o nervo vago têm sido
o tratamento do soluço: propostas, como uma descompressão microvascular, ou uma
• Redução da distensão gástrica: cloridrato de metoclo- técnica minimamente invasiva que foi obtida pela implantação
pramida de um estimulador do nervo vago, que é um procedimento
• Ação supressiva sobre o centro do soluço/arco reflexo: controlado pelo próprio paciente, sendo ativado quando ne­
cloridrato de clorpromazina, baclofeno, haloperidol. cessário.
Capítulo 4 / Halitose, Eructação e Soluço 45
Marinclla, MA. Diagnosis and management of hiccups in thc patient with ad-
■ LEITURA RECOMENDADA vanccd. Câncer J. Support. OncoL, 2009; 7:122-30.
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Alterações Motoras do
Aparelho Digestivo
Ricardo Guilherme Viebig

O termo motilidade digestiva foi criado com a ideia de que o mento e cruzamento das informações. Com o advento do mi­
fluxo de alimentos pelo lúmen gastrintestinal dependería da croprocessador e da miniaturização das sondas manométricas
força exercida pela musculatura sobre o conteúdo, impulsio­ ou dispositivos de mensuração, como o de pH, de temperatura,
nando-o mais rápida ou mais lentamente. Embora o conceito de atividade elétrica etc., passamos a quantificar melhor e a ob­
explique o efeito final, os fenômenos motores do tubo digestivo servar por tempo mais prolongado. Outros métodos foram se
são complexos e dependem do local do trato que está sendo par- somando a esses, tais como a cintigrafia, a ultrassonografia e a
ticularizado, pois enquanto em um ponto a contração significa ressonância magnética, tornando a compreensão dos eventos
propulsão ou movimento, em outro pode acarretar parada ou na motilidade digestiva mais clara e propiciando conhecimen­
obstáculo ao fluxo. tos que avançam a passos largos.
Desde os estudos pioneiros de Cannon, no início do século, Os patologistas, bioquímicos e fisiologistas, de uma maneira
utilizando-se da radioscopia, foram definindo-se padrões de geral, contribuíram para o conhecimento da importância da
comportamento normal de várias seções do tubo digestivo. O fisiologia celular não só da mucosa, mas também dos plexos
esôfago apresentava contrações dependentes da introdução de nervosos intestinais e de sua interação com o sistema nervoso
alimentos na sua luz, ao contrário do estômago e intestino del­ central. Identificaram-se hormônios, peptídios, neurotransmis-
gado, que se contraíam ou relaxavam independentemente de sores, que interagem e contribuem para o controle da atividade
seu conteúdo. muscular, secretória e absortiva do tubo digestivo.
A observação contínua, sob diferentes situações de alimen­ O reconhecimento dessa atividade interligada entre o siste­
tação, mostrou que o conteúdo do lúmen intestinal podería ma nervoso entérico, a musculatura do tubo digestivo e a enor­
influenciar a força e a frequência desses movimentos. Além me superfície de contato com o meio externo, a mucosa, fez
disso, foram assinaladas situações em que o trato intestinal, da motilidade digestiva um termo pouco abrangente, que vem
influenciado por alterações patológicas próprias ou sistêmi­ sendo substituído pela denominação neurogastrenterologia, a
cas, mudava o seu comportamento, pela alteração das forças qual procura englobar todos esses conceitos.
responsáveis pelo movimento. Pelo exposto, pode-se depreender quão complexo é o en­
Portanto, abria-se diante dos observadores uma gama tão tendimento da atividade motora do aparelho digestivo. A ex­
ampla de possibilidades que sua curiosidade e imaginação fi­ posição e a discussão de qualquer tema sobre essa área sempre
cavam extremamente excitadas. Mas alguns empecilhos cria­ envolverão conhecimentos atualizados sobre bioquímica, bio­
vam obstáculos para a resposta a esses fatos, pois a radiologia, logia celular, neurotransmissores etc. Neste capítulo, introdu­
método indireto e qualitativo, não permitia a observação por ziremos essas discussões na medida em que forem necessárias
período prolongado, além de ser deletéria à saúde. Um grande para tornar a leitura prática e objetiva.
impulso foi dado quando da introdução do estudo manomé-
trico e da eletromiografia em ensaios de laboratório. Naquele
momento, mesmo de maneira indireta, passou a ser possível
ao pesquisador quantificar a força e a frequência das contra­ ■ ANATOMIA NEUROMUSCULAR
ções da musculatura lisa do tubo digestivo, seja pela alteração DO APARELHO DIGESTIVO
da pressão exercida no dispositivo medidor, colocado no lú­
men intestinal, seja pela mensuração dos potenciais de ação que O tubo digestivo se dispõe ao longo do tórax e abdome,
desencadeiam a contração muscular. A manometria permitia estreitando-se ou alargando-se conforme a sua função. É com­
observações por período prolongado e sob diferentes situações posto basicamente de duas camadas musculares lisas, sendo
de estímulo ou inibição. a interna circular e a externa longitudinal. Em sua superfície
Ainda assim, esses métodos eram limitados não só pela difi­ externa (lúmen, em contato com o meio externo), é recoberto
culdade de posicionar o dispositivo longe das extremidades do por um epitélio, que também varia em sua composição, de­
trato intestinal, como também pela capacidade de armazena­ pendendo da função que exerce em local específico, e em sua

46
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 47

superfície interna, exceto no esôfago e reto, é envolvido por células de Cajal, o verdadeiro reservatório regulador deste neu­
uma serosa. Em determinados pontos desse trajeto, geralmente rotransmissor. Os recentes conhecimentos adquiridos sobre a
separando-os por função, encontraremos formações especiais ação da serotonina e a produção de medicamentos agonistas e
dos músculos, os esfíncteres, que funcionam como válvulas de antagonistas estão trazendo um novo horizonte para o controle
acesso para a progressão do conteúdo. Esses esfíncteres, como de doenças conhecidas como distúrbios funcionais.
veremos, são controlados por influência neuro-hormonal, às Inúmeros peptídios, produzidos em vários pontos do apa­
vezes pelo sistema nervoso central (SNC) por via simpática ou relho digestivo, têm sido identificados e descritos exercendo
parassimpática, ou por controle próprio do sistema nervoso en- variadas funções, destacando-se entre eles glucagon, colecis-
térico (SNE), ou, ainda, por ambos. Nas extremidades superior tocinina (CCK), secretina, bombesina, neurotensina, gastrina,
e inferior, a participação da musculatura estriada é fundamen­ peptídio intestinal vasoativo (VIP), peptídio inibidor gástrico
tal para a sua função. (GIP), dentre tantos outros.
Por muitos anos, acreditou-se que os movimentos intestinais
fossem influenciados apenas pela ação do SNC, principalmente
pela ação do nervo vago, com suas fibras adrenérgicas e coli- ■ MÉTODOS DE ESTUDO DA
nérgicas, aferentes e eferentes. Por sua intervenção, ocorreriam
movimentos pró- e contra fluxo. Pela observação de modelos MOTILIDADE DIGESTIVA
desnervados, deduziu-se e reconheceu-se que grande parte des­
ses movimentos estaria fora desse controle, desenvolvendo-se O estudo dos movimentos intestinais pode ser realizado por
o conceito do SNE, composto pela imensa rede neural existente meio de métodos especializados para determinados órgãos ou
nas camadas musculares e submucosa do tubo digestivo, em doenças. A seguir, descreveremos esses métodos, suas indica­
conjunto com os plexos ganglionares de Meissner e Auerbach ções e limitações.
e dos gânglios mesentéricos paravertebrais. Estas duas últimas
redes formam um sistema tão complexo quanto o SNC, tendo ■ Radiologia
seus próprios mediadores e com capacidade de gerar impulsos
elétricos fásicos, determinando padrões de comportamento É o mais conhecido e mais antigo método utilizado. Em­
(Figura 5.1). A presença destes é fundamental para a peris- bora qualitativo e indireto, é, em geral, o primeiro a ser usado
talse. Sua deficiência ou ausência determina síndromes im ­ quando da análise de qualquer local do trato digestivo. Abran­
portantes, como na doença de Chagas ou na aganglionose de gendo desde a radiografia simples do abdome até os métodos
Hirschsprung. modernos de videofluoroscopia para deglutição ou defecação,
Seus mediadores principais são a acetilcolina e a epinefri- a radiologia pode orientar o clínico, apontando que alteração
na. Algumas ações que não eram explicadas pela sua ação, e está ocorrendo. Para o estudo morfológico, desde o esôfago até
que foram denominadas influência não adrenérgica não coli- o cólon, é o mais completo. A alteração da forma, ou até das
nérgica (NANC), hoje têm o óxido nítrico identificado como características contráteis do órgão, pode ser correlacionada com
neurotransmissor. A ação deste último tem sido considerada a patologia suspeita. Como exemplo, podemos citar a identi­
fundamental para a função dos esfíncteres, por exemplo. Mais ficação de ondas contráteis enérgicas no esôfago (esôfago em
recente, a identificação da serotonina ou 5-HT, e sua importân­ quebra-nozes) ou dilatações extremas de sigmoide, como na
cia na motilidade jejunal e colônica fecharam o elo que faltava doença de Chagas. Como instrumento de avaliação funcional,
para entender melhor o mecanismo da regulação da contrati- exemplificamos o estudo do trânsito intestinal, seja pela coluna
lidade da musculatura lisa e a real finalidade da presença das de bário ou por pérolas baritadas. A evolução do método, alia-

Figura 5.1 Secçào transversa do intestino mostrando a arquitetura do sistema nervoso entérico, com plexos intrínsecos e extrínsecos e suas
interconexôes.
48 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo

da à possibilidade de gravar as imagens em equipamentos de tridimensionais. Alguns estudos já acenam sobre minúcias do
alta definição (cinerradiografia ou videofluoroscopia), permite comportamento motor esofágico na acalasia e na síndrome do
agora a melhor compreensão de fenômenos rápidos e comple­ refluxo gastresofágico.
xos como a deglutição e a evacuação. O videodeglutograma é a
arma propedêutica mais importante para o diagnóstico preciso
das causas de disfagia. O tratamento fonoaudiológico utilizado
■ Monitoramento prolongado
para a recuperação desta função é orientado e controlado por do pH intraesofágico
esta técnica. A cinedefecografia, a exemplo do videodeglutogra­
ma, pode demonstrar alterações da função evacuatória, seja de Essencial para a avaliação da doença do refluxo, a pHmetria
esofágica tem sua aplicação ampliada pelo reconhecimento de
ordem anatômica ou funcional, como, por exemplo, retocele e
anismo, respectivamente. que essa síndrome tão comum na espécie humana manifesta-
se muitas vezes por sintomas atípicos, como nas otites e pneu­
monias de repetição, asma brônquica, dor precordial de ori­
> Manometria gem não coronariana e outras que serão discutidas no capítulo
A manometria consiste em medir as pressões exercidas pela pertinente.
O sistema medidor é semelhante a um sistema do tipo Hol-
contração de um órgão tubular sobre o sensor, que transmite
sua intensidade a um aparelho registrador. Com a evolução da ter para eletrocardiografia. O sensor de pH é colocado por via
tecnologia, hoje podemos mensurar vários pontos simultane­ nasogástrica a 5 cm do esfíncter inferior do esôfago e lá perma­
amente por períodos prolongados. Basicamente, os sistemas nece “lendo” as alterações do pH por 24 h ou mais, permitin­
convencionais dividem-se em estacionários e ambulatoriais. do que o paciente exerça suas funções habituais e se alimente
Os primeiros nos permitem analisar períodos curtos de tem ­ normalmente, dando a ideia do que realmente ocorre em ter­
po, utilizando sondas multifenestradas e perfundidas por água, mos de refluxo ácido, podendo-se correlacionar os sintomas
que servem de coluna de transmissão para a pressão exercida, do paciente anotando-os em um diário (Figura 5.2). É possível
semelhante a uma coluna de mercúrio em um esfigmomanô- colocar mais de um sensor, permitindo, por exemplo, anotar
metro. O sistema ambulatorial é composto por sistemas de es­ refluxos para a orofaringe ou esôfago alto. Um sistema seme­
tado sólido, que são sensores eletrônicos que não necessitam lhante foi desenvolvido para o estudo do refluxo biliar para o
de perfusão; a pressão exercida sobre uma membrana é “lida” estômago e esôfago, utilizando-se um sensor ótico que mede
pelo sensor, e o sinal eletrônico é enviado a um gravador ou a o comprimento de onda relativo à bilirrubina (BILITEC). Po­
um computador. demos utilizar os dois métodos concomitantes para a avalia­
Até há algum tempo, somente o esôfago e a região anorretal ção do refluxo misto, uma vez que recentes estudos mostram
eram estudados por meio desse método, daí sua gama de apli­ que a ação deletéria do refluxo alcalino é potencializada pela
cações práticas ser mais conhecida. Porém, esse quadro tende presença do ácido.
a mudar, pois a região antroduodenal, o intestino delgado e o Atualmente, tem-se à disposição a pHmetria sem fio. O sen­
cólon também têm sido alvos de pesquisas, e os primeiros pa­ sor, em forma de cápsula, é aplicado ao terço inferior do esôfago
drões de normalidade e de determinadas patologias passam a por meio de fixação por grampo. Envia a um receptor portátil,
ser reconhecidos; em breve teremos indicações precisas para o por radiotelemetria, alterações do pH intraesofágico da mesma
diagnóstico e para avaliar a eficácia de um tratamento. forma que a pHmetria habitual. De uso único, desprende-se em
A manometria de intestino delgado e de cólon tem crescido torno do quinto dia após sua aplicação, sendo perdido com as
de importância nos centros de pesquisa, e não tardaremos a ter fezes. Dá maior liberdade ao paciente, pois o aparelho receptor
aplicações práticas para o seu uso. O reconhecimento de pa­ pode ficar até a uma distância de 3 m, permitindo menos in­
drões como do complexo motor migrante (CMM), de atividade terferência estética ou desconforto faríngeo, que são as queixas
pós-prandial do intestino delgado ou do movimento de massa mais comuns dos pacientes submetidos à pHmetria convencio­
do cólon são alguns exemplos de momentos fisiológicos que até nal. Suas principais limitações, por enquanto: está validado so­
há pouco tempo eram difíceis de mensurar. A manometria de mente para adultos, tem um custo 10 vezes superior ao método
intestino delgado avança na direção de explicar os fenômenos tradicional, sua aplicação é mais trabalhosa, há possibilidade
motores da síndrome do intestino irritável, dando ideia de que da perda da cápsula antes do término do exame e exige vasta
ocorrem momentos de incoordenação por provável alteração experiência do médico, pois não é isento de risco.
do SNE e com participação do SNC.
As limitações desse método dependem de sua disponibili­
dade aqui no Brasil, mas o número de centros que contam com
■ Cintigrafia
tal equipamento vem crescendo de maneira geométrica, pois os A cintigrafia na avaliação funcional do aparelho digestivo
custos vêm diminuindo. A necessidade de realizar uma mano­ é de extrema importância, pois podemos utilizar um alimento
metria esofágica antes de uma cirurgia de refluxo para avaliar marcado e observar o seu trajeto pelo tubo digestivo. Podemos
a função do órgão, ou de pesquisar a capacidade contrátil de estudar também, por exemplo, a excreção pelo sistema biliar,
um complexo esfincteriano anorretal ao se avaliar um caso de identificando discinesias da vesícula biliar. Esta técnica tem se
incontinência, são exemplos práticos de patologias comuns ao mostrado extremamente útil na determinação de transtornos
dia a dia de um gastrenterologista. do esvaziamento gástrico. Sua aplicação, no entanto, é de alto
Um aprimoramento desse método vem sendo lentamente custo e poucos centros dispõem dessa tecnologia no Brasil.
incorporado ao arsenal propedêutico: trata-se da manometria
de alta resolução. Em vez de apenas oito sensores, utilizam-se
32 a 64, ampliando-se a sensibilidade do método, assim como
■ Eletromiografia
sua representação gráfica, uma vez que as ferramentas de cál­ Com aplicação prática limitada e pouco acessível, tem in­
culos gráficos permitem a representação dos fenômenos m o­ dicação precisa para disfunções do sistema muscular estriado,
tores (contrações e relaxamentos) por meio de cores e figuras principalmente nas disfunções da deglutição e da defecação.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 49

■c— n. H Jl jü i ÜC.

Figura 5.2 intervalo de 1 h de exame de pHmetria de dois canais, mostrando refluxos ácidos e sintomas assinalados pelo paciente (p 5 pirose)
pelas barras transversais.

ções desse método são as possíveis variações da posição gástrica


■ Ultrassonografia e de influências elétricas de órgãos musculares próximos. No
Tem encontrado o seu lugar na avaliação funcional do esva­ entanto, tem sido interessante acompanhar a evolução do mé­
ziamento gástrico, da vesícula e na visualização da arquitetura todo, que, além de simples e confortável, pode explicar o com­
muscular dos esfíncteres anais. Como é limitada pela presença portamento de síndromes como a da dispepsia não ulcerosa e
do ar, o desenvolvimento de contrastes específicos poderá acres­ da gastroparesia diabética, dentre outras.
centar detalhes morfofuncionais de outras áreas. Para exem­
plificar, divulgaram-se recentemente estudos sobre o esfíncter
inferior do esôfago e sobre o refluxo duodenogástrico com a ■ Impedanciometria intraluminal
aplicação do efeito Doppler na região do piloro. O princípio da impedanciometria esofágica baseia-se nas
alterações da condutividade elétrica diante do conteúdo do
■ Detecção química do trânsito intestinal bolo esofágico. Quanto maior o número de íons no conteúdo,
maior é a condutividade elétrica. Ao longo de um cateter, são
Utilizando-se uma substância que sabemos não ser digerida colocados vários sensores, que, distanciados entre si, tradu­
pelos sucos digestivos, a lactulose, por exemplo, e que sofra ação zem as alterações da condutividade elétrica, dando a direção
digestiva da flora intestinal, liberando metabólitos, no caso hi­ que o bolo intraluminal percorre. Daí depreende-se que tanto
drogênio, e por sua mensuração no ar expirado antes e depois
refluxos como fluxos podem ser registrados, inclusive durante
da ingesta, em intervalos determinados, podemos obter uma
um longo período, à semelhança do que se realiza com a
curva de tempo de chegada ao intestino grosso e o tempo para
pHmetria. Mais ainda, podem-se acoplar os dois métodos si­
sua metabolização. Por meio de comparação com indivíduos
multaneamente, validando a presença do refluxo e o valor de
normais, podemos depreender se há alterações da composição
seu pH. O método parece promissor, permitindo também que
da flora intestinal ou da velocidade de trânsito. Esse método,
seja simultâneo à manometria. Pode contemplar, de certa for­
pouco disponível em nosso meio, é utilizado principalmente em
pesquisas. Dispositivos portáveis e com preços mais acessíveis ma, toda a investigação do refluxo gastresofágico, indepen­
estão sendo disponibilizados nos últimos anos e serão extre­ dente de suas características físicas, não necessitando de dietas
mamente úteis para o diagnóstico de intolerâncias específicas, especiais. As limitações do método são, por enquanto, o custo.
como, por exemplo, lactose e frutose, estudo do tempo de trân­ Pesquisas mais exaustivas são necessárias, pois a maioria das
sito intestinal e determinação da presença de supercrescimento possibilidades diagnósticas já é atendida por outros métodos já
bacteriano do intestino delgado. descritos e as indicações parecem limitar-se à suspeita de reflu­
xo não ácido. Trabalhos recentemente publicados na literatura
sobre o uso da pH impedanciometria vem ampliando nossos
■ Eletrogastrografia conhecimentos sobre a doença do refluxo gastresofágico e suas
O estômago tem uma atividade mioelétrica intensa e uma variáveis. Fala-se com mais liberdade sobre a ação deletéria do
posição razoavelmente fixa no abdome. É possível, por meio refluxo não ácido, que é facilmente identificado por este méto­
de sensores colocados na parede abdominal externa, mensurar do, e também acerca da presença do refluxo não tão ácido (pH
a atividade elétrica do órgão. São reconhecidos padrões típicos menor que 6) que igualmente pode ter ação patológica sobre
como taquigastria, bradigastria, incoordenação etc. As limita­ a mucosa esofágica.
50 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo

fagia. A manometria tem dificuldades para estabelecer o defeito


u ALTERAÇÕES FUNCIONAIS mais comum, que é a estase ou aspiração laringeal. O ideal é
DO APARELHO DIGESTIVO utilizar-se da videofluoroscopia para a avaliação das possíveis
alterações. A manometria pode avaliar a função do esfíncter
O fluxo pelo sistema digestivo pode sofrer influência de superior do esôfago (ESE) e, principalmente, a coordenação
afecções sistêmicas ou de doenças específicas de determinado faringoesofágica.
órgão ou de parte dele. Portanto, discorreremos sobre essas O ESE deve relaxar-se imediatamente antes da entrada do
situações, individualizando cada órgão específico do tubo di­ alimento e, após sua passagem, deve contrair-se vigorosamente,
gestivo, detendo-nos, à medida do necessário, em algum con­ permanecendo fechado até a próxima deglutição. A ausência
ceito fisiopatológico. desse relaxamento, ou sua ocorrência em tempo igual ao da
contração, leva ao impedimento da deglutição. Tal fenômeno
pode ser mais bem observado pela videofluoroscopia conhecida
■ DEGLUTIÇÃO também por videodeglutograma.

A maioria dos compêndios de gastrenterologia abre suas


páginas descrevendo o aparelho digestivo como se este se ini­ ■ ESÔFAGO
ciasse no esôfago. Ora, o processo alimentar na verdade come­
ça com a mastigação, salivação e deglutição. Com frequência, órgão tubular, de cavidade virtual, composto por duas ca­
vemos pacientes portadores de disfunções digestivas que são madas musculares lisas completas, sofre a influência im por­
dependentes de uma boa função mastigatória, como naqueles tante, na sua porção superior, dos músculos estriados, que
portadores de prótese ou lesões neurológicas centrais. Sabemos o auxiliam no processo da deglutição, formando o esfíncter
que o processo da digestão começa com o olfato e a visão dos superior do esôfago. Sua função de permitir a passagem do
alimentos (fase cefálica), a seguir o paladar, estimulando a sali­ alimento está integrada aos movimentos da laringe e faringe,
vação, as secreções gástrica, biliar e pancreática. Uma eficiente impedindo o acesso do conteúdo alimentar para a árvore res­
mastigação prepara o bolo alimentar, misturando-o à saliva e piratória. Da mesma forma, impede a ingestão de ar durante
colocando-o em contato com a amilase salivar. a inspiração.
Essa área tem sido objeto de atuação e integração de vá­ Tal controle é feito exclusivamente por fibras vagais exci-
rios especialistas, como otorrinolaringologistas, neurologistas, tatórias, sujeitas ao centro da deglutição da medula. Uma vez
fonoaudiólogos. Têm sido trocadas experiências produtivas desencadeada a deglutição, há uma ativação sequencial das uni­
que, com certeza, produzirão frutos nesta década. Identificar dades motoras intrínsecas em direção craniocaudal, no processo
uma disfagia orofaríngea pode evitar pneumonias por aspira­ conhecido como peristalse esofágica primária.
ção, a desnutrição, entre outras situações. Assim, as afecções motoras do esôfago podem ser dependen­
A avaliação da deglutição depende da compreensão da com­ tes de situações que afetem a contração ou o relaxamento da
plexa sequência de eventos controlados pelo sistema nervoso musculatura estriada ou lisa e encontram-se descritas no Qua­
central basicamente. Após a mastigação, o bolo alimentar é dro 5.1. Por vezes, ambos os sistemas musculares podem estar
impulsionado pela língua, ocorrendo a introdução do bolo ali­ envolvidos, como nas neuropatias e doenças do colágeno.
mentar na orofaringe. Simultaneamente, há aumento da pressão Podemos também classificar os distúrbios motores do esô­
da língua sobre o palato mole, fechando a rinofaringe, e, pela fago de acordo com sua origem, sendo primários, se exclusivos,
elevação da laringe, fecha-se a glote, ocorrendo a abertura do ou secundários, se decorrentes de doença sistêmica.
esfíncter superior do esôfago, permitindo assim a passagem do ► Primários. Acalasia; espasmo esofágico difuso; esôfago
alimento para o esôfago. Ao nível do SNC, quando o centro de em quebra-nozes; hipotonia e hipertonia do esfíncter inferior;
controle da deglutição é envolvido, ao nível da ponte e medula distúrbios motores inespecíficos.
ou do núcleo motor dos nervos craniais, há uma total inabi­ ► Secundários. Doença de Chagas; doenças neurológicas ou
lidade para iniciar uma deglutição. Nos acidentes vasculares musculares (Parkinson, miastenia, acidente vascular cerebral);
unilaterais, poderiamos presumir que, uma vez sendo a iner- colagenoses (esclerose sistêmica progressiva); endocrinopa-
vação bilateral, não ocorreriam dificuldades para o controle da tias (diabetes, hipotireoidismo); pseudo-obstrução intestinal
deglutição. Porém, em cerca de 50% dos casos, pode haver dis­ crônica.

-------------------------------- ▼--------------------------------
Quadro 5.1 Afecções esofágicas dependentes da contratilidade

Relaxam ento Contração

Excessivo Inadequado Excessiva Inadequada

ESE - S e p t o c ric o fa r ín g e o - -
(D iv e r t íc u lo d e Z e n c k e r )

CORPO - E s p a s m o d ifu s o D e s o r d e n s e sp á stica s A calasia


A c a la sia v ig o r o s a E s c le ro d e rm ia

EIE DRGE A calasia A calasia DRGE


D e s o r d e n s e sp á stica s E s c le ro d e rm ia

DRGE: doença por refluxo gastresofágico; ESE: esfíncter superior do esôfago; EIE: esfíncter Inferior do esôfago.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 51

ligado somente à pressão exercida pela plastia gástrica em torno


■ Diagnóstico do esôfago, ou de seu comprimento, mas sim à diminuição da
O diagnóstico dos distúrbios motores do esôfago baseia-se capacidade de distensão do fundo gástrico.
no quadro clínico e pode ser confirmado por exames já mencio­ O refluxo crônico pode acarretar processo inflamatório ao
nados (raios X, manometria, cintigrafia, videofluoroscopia). nível do esôfago distai, e, com frequência, observamos alte­
As principais manifestações clínicas são disfagia, dor toráci- rações da peristalse decorrentes desse processo. Atualmente,
ca retroesternal e pirose. A dificuldade em efetuar a deglutição pode-se afirmar que os distúrbios da contratilidade do corpo
fornece indícios de que doenças sistêmicas, notadamente neu­ esofágico, tanto para a hipermotilidade (esôfago em quebra-no­
rológicas, podem estar ativas, sendo por vezes a sua primeira zes) como para a hipomotilidade, associam-se com frequência
manifestação. Uma vez estabelecido que não existe dificuldade à doença do refluxo. Tais efeitos podem provocar dor torácica
para a passagem do alimento, pode-se inferir que há impedi­ e disfagia.
mento do transporte do alimento até o estômago. Com o advento da técnica videolaparoscópica para a corre­
No corpo esofágico, detectamos desde aperistalse até ondas ção da doença do refluxo, a cirurgia tem sido mais indicada, e
de contração com grande amplitude e duração. O EIE deve per­ cresce com isso a indicação da manometria pré-operatória, que
manecer em seu estado de repouso, isto é, contraído, impedindo pode evidenciar a ocorrência de doença sistêmica ou de aca­
a passagem do conteúdo gástrico para o seu interior. Uma vez lasia, que tornaria a operação desastrosa, com evidente piora
iniciada a deglutição, deve-se relaxar por alguns segundos até a dos sintomas esofágicos.
passagem do alimento, fechando-se em seguida com o retorno A utilização de técnicas mais modernas, usando-se catete-
de seu tônus de repouso. res de estado sólido, permite a observação prolongada do pe-
Em um exame manométrico habitual, observamos pelo me­ ristaltismo esofágico, conseguindo-se diagnosticar alterações
nos três pontos simultâneos, distanciados entre si no mínimo inconstantes da motilidade esofágica e correlacionando-se es­
5 cm. Em indivíduos normais, podemos observar uma onda ses distúrbios à dor precordial atípica, opressão, sensação de
peristáltica que percorre o esôfago em uma velocidade entre globus etc.
3 e 5 cm por segundo. A duração da onda é curta, 1 a 1,5 s, e
sua amplitude média na região central do esôfago atinge, em ■ Acalasia
média, 70 mmHg. A onda peristáltica atinge o EIE cerca de 5 se­ A acalasia primária ou idiopática em pouco difere da que
gundos após a deglutição. Essas medições podem variar depen­ ocorre na doença de Chagas, à exceção de que, na segunda,
dendo do material deglutido e da frequência das deglutições. conhecemos o agente etiológico. Há destruição dos neurônios
Por meio da observação desses três momentos, o observador do plexo mioentérico esofágico, e, quando encontramos algum,
pode concluir qual a alteração de peristalse e inferir o possível geralmente está cercado por células inflamatórias mononu-
diagnóstico etiológico. No Quadro 5.2, enumeramos as prin­ cleares.
cipais afecções e seus achados manométricos. Essa desnervação acarreta dois fenômenos principais: au­
sência ou pouco relaxamento do EIE, e falta de peristalse ao
■ Relaxam ento transitório de EIE nível do corpo.
Embora seja de indicação diagnóstica relativa para a doença Suas manifestações clínicas principais são disfagia, regurgi­
do refluxo, a manometria tornou-se importante quando da de­ tação, perda de peso e desconforto retroesternal.
cisão cirúrgica para a correção da hérnia de hiato e da esofagite Mais uma vez, o estudo radiológico deve ser o primeiro exa­
de refluxo. Sendo basicamente uma alteração da competência me a ser pedido para confirmação diagnóstica, observando-se
do EIE, intuitivamente se poderia esperar uma pressão baixa geralmente o afilamento da porção final do esôfago e a dilatação
do esfíncter como característica dessa afecção. No entanto, isso do corpo, que pode ser mais intensa, dependendo do tempo de
não é necessário, e, na maioria dos casos, não é necessária uma existência da doença.
correlação direta entre a pressão do esfíncter e a ocorrência do O tratamento da acalasia depende do grau de dilatação em
refluxo. Isso acontece principalmente em decorrência do au­ que o esôfago se encontra. Em estágios mais iniciais, pode-se
mento de duração e frequência dos relaxamentos transitórios realizar a dilatação com balões pneumáticos, ou, mais m o­
que ocorrem de maneira fisiológica, sobretudo após a alimen­ dernamente, embora tema controverso, com a injeção de to­
tação, pelo estímulo provocado pela distensão do fundo gástri­ xina botulínica ao nível do EIE. Ambos os tratamentos são
co. O mecanismo pelo qual a valvuloplastia funciona não está paliativos, mas de certa forma permitem que o paciente vol­
te a alimentar-se. Não há melhora do comportamento motor
do corpo esofágico, e a descida do alimento é decorrente da
ação da gravidade. Em pacientes idosos ou extremamente des­
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nutridos, permitem que eles recuperem o estado nutricional
Q uadro 5 2 Achados manométricos das principais para posterior cirurgia. Em casos mais avançados, somente a
afecções motoras do esôfago cirurgia corrige o problema, propondo-se a esofagoplastia de
Heller para casos iniciais e a esofagectomia com interposição
Acalasia - R e la x a m e n to in c o m p le t o o u a u s e n te d o EIE. A p e ris ta ls e d o
de cólon, ou anastomose gastresofágica alta, no megaesôfago
c o r p o (c o n tr a ç õ e s s im u ltâ n e a s , e fe ito d e c a v id a d e ú n ic a ).
avançado.
Espasmo Esofágico Difuso - 2 0 % o u m a is d e c o n tr a ç õ e s s im u ltâ n e a s .
R e la x a m e n to c o m p le t o o u in c o m p le t o d o EIE.
■ Espasmo esofágico difuso
Esôfago em Quebra-Nozes - O n d a s p e ris tá ltic a s c o m a m p lit u d e m é d ia A dor torácica, semelhante àquela da angina de peito, é en­
m a io r q u e 180 m m H g . EIE h ip e r t ô n ic o (p re s s ã o d e r e p o u s o 4 5 m m H g ).
contrada em diversas alterações de motilidade do esôfago. Mui­
Distúrbio Motor Inespecífico - Q u a n d o n ã o o e n q u a d r a m o s d e n t r o d as tas denominações são utilizadas para descrever a manifestação
a n o r m a lid a d e s d e sc rita s. (In c o o r d e n a ç ã o , às v e z e s o n d a s s im u ltâ n e a s
clínica: espasmo difuso, esôfago em quebra-nozes, hipertensão
o u p e rista lse in c o m p le t a , o n d a s d e d u r a ç ã o a u m e n t a d a , re la x a m e n t o
i n c o m p le t o is o la d o .)
do EIE, distúrbio motor não específico, entre muitas outras.
Por vezes, encontramos a alteração motora aos raios X e não há
52 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo

manifestação clínica, e vice-versa. O achado manométrico por dos com drogas específicas. Usamos frequentemente a nitro­
vezes também não corresponde à manifestação clínica, mas os glicerina (0,4 mg sublingual), o dinitrato de isossorbida (10 a
achados mais comuns são: contrações simultâneas pós-deglu- 30 mg, 2 vezes/dia), a hidralazina (25 a 50 mg, 4 vezes/dia),
tição; contrações repetitivas; contrações espontâneas; ondas de o nifedipino (10 a 30 mg, 4 vezes/dia), o diltiazem (90 mg, 4 ve­
longa duração e alta amplitude; esfíncter inferior hipertenso; zes/dia) e medicamentos antidepressivos e antidistônicos, com
relaxamento incompleto do EIE. dose ajustada a cada paciente.
Na verdade, o mais importante é o seu reconhecimento, pois Alguns achados típicos manométricos estão demonstrados
com frequência vemos pacientes sendo tratados como corona- nas Figuras 5.3 a 5.5.
rianos quando, na realidade, estão tendo manifestações clínicas
de dismotilidade esofágica. Os quadros clínicos de ambas as
doenças se parecem, uma vez que, se em geral são desencadea­ ■ ESTÔMAGO E DU0DEN0
dos pelo exercício físico, podem irradiar para a região cervical,
cotovelo e antebraço esquerdo e melhoram com nitroglicerina O estômago recebe a alimentação e a estoca; transforma ali­
sublingual. Para complicar, o inverso também é comum, exis­ mentos em partículas; mistura seu conteúdo com saliva, pepsina
tindo concomitância das duas doenças, que afetam o mesmo e ácido clorídrico; tem a qualidade de discriminar sólidos, líqui­
biotipo de pacientes e a mesma faixa etária. dos, gorduras e proteínas no seu conteúdo; tem a propriedade
Uma vez presumido o diagnóstico e afastada a causa car- de selecionar o quimo e permitir sua passagem para o duodeno
diológica, deve-se primeiro realizar a radiografia contrastada em uma proporção adequada para a digestão.
do esôfago. Com frequência, poderemos observar a alteração Do ponto de vista funcional, podemos dividir o estômago em
motora. Se não resultar positiva, ou para melhor caracterizar a duas partes: proximal, constituída pelo fundo e terço superior
dismotilidade, o exame de escolha é a manometria, ambulato- do corpo gástrico, e distai, formada pelo terço distai do corpo
rial ou prolongada, sendo esta última mais adequada quando e antro. Ao se iniciar a deglutição, o estômago se relaxa via re­
os sintomas são atípicos e com sinais manométricos ambula- flexo vagai, para acomodar o conteúdo que chega. À medida
toriais negativos. que o estômago vai se preenchendo, mais relaxamento ocorre
Os testes provocativos, como o de Bernstein, do cloreto de para acomodação e adaptação à pressão intra-abdominal. Ao
edrofônio e outros, têm valor relativo, pois nem sempre há final da ingesta, inicia-se o processo de contração dessa região,
correlação ou reprodutibilidade. enviando o alimento para o estômago distai, que inicia movi­
O tratamento das alterações da contratilidade esofágica tem mentos propulsivos fásicos, em média três por minuto. Nessa
sido frustrante no que diz respeito à uniformidade de resulta­ região, o alimento é misturado e reduzido a partículas menores.

Figura 5.3 Manometria esofágica normal de oito canais. O canal 1 corresponde ao controle de deglutição, e o canal 8, ao de respiração. O
canal 2 está posicionado ao nível do ESE, e os restantes (3,4,5,6 e 7) ao nível do corpo, distanciados por 5 cm. Notar a onda peristáltica pós-
deglutiçáo que se propaga ao longo do esôfago.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 53

tu
* ji
«crs

Figura 5.4 Manometria de esôfago de quatro canais em paciente chagásico com megaesôfago. Sensores distanciados 5 cm. Notar as ondas
simultâneas (efeito de câmara única).

Figura 5.5 Manometria em paciente com doença do refluxo. Notar ondas de grande amplitude e duração, caracterizando esôfago em quebra-nozes.
54 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo

O piloro se abre, permitindo a passagem dessas partículas, e, ------------------------------------- ▼-------------------------------------


dependendo do seu conteúdo químico e de sua osmolaridade, Quadro 5.3 Principais causas de dismotilidade gastrojejunai
existe perviedade para quantidades maiores, adaptando-se o
duodeno para efetuar o seu papel no processo digestivo, como D o e n ç a s q u e a fe ta m o c o n tr o le n e u r o ló g ic o d a m o t ilid a d e
In fe c ç õ e s vira is: ro ta v íru s , a d e n o v ír u s , c it o m e g a lo v ír u s e h e rp e s s im p le s
o ponto de encontro entre o alimento, o suco gástrico e as se­
D ia b e te s
creções, biliar e pancreática. A m ilo id o s e
Esse processo que acabamos de descrever é influenciado por N e u r o f ib r o m a t o s e
neuro-hormônios tais como a gastrina e a colecistocinina. A N e u r o p a t ia p a ra n e o p lá s ic a
açâo do marca-passo gástrico (localizado no fundo gástrico), P s e u d o -o b s t r u ç à o in te s tin a l c rô n ic a id io p á tic a
D is tro fia m io t ô n ic a
que envia potenciais de ação ao longo do estômago, fazendo a
D o e n ç a d e P a rk in s o n
musculatura lisa se contrair e relaxar fisicamente, também inte­ T r a n s e c ç à o t r a u m á tic a d a c o r d a e s p in a l
rage e sofre influências neuro-hormonais. A atividade duodenal D o e n ç a s re la c io n a d a s c o m a in g e s tã o
depende, então, da presença do quimo e dos estímulos elétricos A n o r e x ia n e rv o s a e m á n u triç ã o
gerados pelo SNE (sistema nervoso entérico). B u lim ia
Como vimos nessa rápida descrição da fisiologia motora O b e s id a d e

gastroduodenal, podemos assimilar a complexidade dos fenô­ D o e n ç a s re la c io n a d a s c o m o t e c id o c o n ju n t iv o


E s d e ro s e s is tê m ic a p ro g re s s iv a
menos nesses órgãos e os vários locais de anormalidades que
P oli e d e r m a t o m io s it e
podem ocorrer para a sua disfunção.
D is p e p s ia s a c o m p a n h a d a s o u n á o d e d o e n ç a u lc e ro s a p é p tic a
Os métodos utilizados para a avaliação da motilidade gas­
troduodenal incluem desde a tradicional radiografia contras­
tada até a eletrogastrografia, passando pela manometria e pela
cintigrafia.
A radiografia contrastada traz informações qualitativas e
indiretas sobre a função gástrica. É o método utilizado com
■ DISTÚRBIOS MOTORES DO TRATO BILIAR
maior frequência por sua facilidade de execução e disponibi­ A regulação do fluxo da bile para o duodeno envolve a in­
lidade. Do ponto de vista acadêmico, a cintigrafia é o método teração da motilidade da vesícula biliar, do dueto biliar e do
de escolha para avaliar uma disfunção do esvaziamento gástri­ esfíncter de Oddi. Essas funções são controladas por via ner­
co. Pode-se estudá-lo com alimentos marcados, avaliando-se o vosa intrínseca e extrínseca, por ação de peptídios reguladores.
comportamento gástrico em diferentes situações. A manome­ Inúmeros hormônios liberados durante as fases interdigestivas
tria antroduodenal e a eletrogastrografia são métodos que se pré- e pós-prandial interagem com esse sistema.
encontram em desenvolvimento e, no futuro, provavelmente
Podemos estudar a função desse sistema por meio da ra­
terão sua indicação e interpretação mais precisas.
diologia, da ultrassonografia, da cintigrafia e da manometria
Os sintomas da disfunção motora do estômago são frequen­
do esfíncter de Oddi.
temente inespecíficos e difíceis de interpretar. Por vezes, pacien­
Durante o jejum, a bile é armazenada na vesícula biliar e
tes portadores de distúrbios motores são isentos de sintomas.
concentrada pela absorção de água. Por vezes, a vesícula ejeta
O esvaziamento gástrico acelerado ou retardado pode resultar
seu conteúdo, mesmo em fases de jejum, principalmente para
do aumento ou decréscimo do tônus do fundo gástrico, ou
não ocorrer hipersaturação. O esfíncter de Oddi apresenta ati­
por alteração da contratilidade da região antropilórica ou de
vidade muscular própria, independente de outros mecanis­
sua incoordenação. A sensação de plenitude gástrica, ou em-
pachamento, é frequente, sem encontrarmos distúrbio motor mos, ora facilitando a saída da bile, ora mantendo-se fechado,
obstruindo o refluxo de conteúdos duodenais para os duetos
mensurável por esses métodos, conferindo a ideia de estar ocor­
rendo alteração na percepção, e não contrações diminuídas ou biliar e pancreático.
dilatação gástrica. A inervação vagai parece ter importância principalmente
As anomalias motoras gastroduodenais podem resultar de no tônus da vesícula biliar. A contração do colecisto com o
processos que atinjam a inervação extrínseca ou intrínseca, consequente esvaziamento se faz sobretudo por influência da
ou de doenças que afetem a musculatura lisa, ou de interação colecistocinina produzida pelo duodeno e intestino delgado.
de drogas, ou de radioterapia, e até de alimentação inade­ Ao mesmo tempo, a colecistocinina promove o relaxamento
quada. da musculatura do esfíncter de Oddi, facilitando o escoamen­
As principais entidades relacionadas com os distúrbios m o­ to da bile.
tores gastroduodenais encontram-se listadas no Quadro 5.3. Entre os indivíduos normais e os portadores de colecisto-
O tratamento desses distúrbios, principalmente os que re­ patia calculosa, existem inúmeros estágios intermediários, que
tardam o esvaziamento gástrico, sofreu grande impulso com o vão desde o simples retardo no esvaziamento vesicular, com
advento das drogas procinéticas, tais como a bromoprida e a sintomas dispépticos, passando para fases dolorosas pós-pran-
domperidona. A cisaprida, droga de efeito procinético superior diais, evoluindo para a formação de microcristais de coleste-
às demais, foi retirada de mercado por ação agônica com ou­ rol e, ao final, por agrupamento dos cristais, com formação
tros medicamentos, potencializando o efeito de alongamento de cálculos.
do segmento S-T, com possibilidades de parada cardíaca. Os Usando técnicas principalmente cintigráficas e manométri-
derivados da eritromicina, por ora chamados de motilídios, cas, podemos confirmar tais estágios na evolução da doença.
ainda estão em investigação, porém agem no mesmo local da Vale lembrar que, em algumas situações especiais, o compo­
cisaprida. Antagonistas seletivos da serotonina (5-HT.,) vêm nente de absorção está prejudicado, ou então há um excesso
sendo pesquisados quanto a possíveis efeitos procinéticos no de oferta de substâncias que se depositam com facilidade na
sistema digestório alto. Outra droga, usada sobretudo na Itália, vesícula. Como exemplo da primeira, podemos citar o uso da
é a levossulpirida, que age como antagonista do receptor D2e ciclosporina e, do segundo caso, as anemias hemolíticas que
agonista do receptor 5-HT., (5-HT: 5-hidroxitriptamina). favorecem a precipitação de sais de bilirrubina.
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 55

O uso de medicamentos colecinéticos e procinéticos pode duodeno

ser útil, devendo-se ter em mente que serão usados por toda a
vida do paciente, pois a disfunção motora não regride.
Com o advento da videolaparoscopia cirúrgica, que pouco f a s e II fa s e fa s e I

agride e permite rápido retorno à vida normal, não há motivos


para protelar o tratamento cirúrgico. je ju n o 50 m m H g

-I .J - lll 1
■ ALTERAÇÕES FUNCIONAIS
DO INTESTINO DELGADO
1 0 m in
O mais longo e, talvez, o mais especializado setor do sis­ je j u n o , ,
tema digestivo, o intestino delgado, tem sido alvo de exaus­
tivos estudos nos últimos 15 anos. Os novos conhecimentos
adquiridos por meio da neurofisiologia, da bioquímica celular
ii L 1 iiii 11 i kÉMt
e dos neuro-hormônios aumentaram a nossa compreensão Figura 5.6 Manometria prolongada de duodeno e jejuno demons­
dos fenômenos fisiológicos e das alterações encontradas nas trando as três fases do complexo motor migrante. Sensores distan­
doenças intrínsecas e extrínsecas que afetam a função moto­ ciados 10 cm.
ra do órgão.
O intestino delgado é formado por três camadas principais:
a serosa, em contato com a cavidade peritoneal; a muscular,
A explanação anterior, que resume fatos muito comple­
constituída por uma camada longitudinal externa e circular
xos, cujos mediadores, estimuladores e inibidores vêm sendo
interna; e a mucosa. Entre as camadas musculares, distribui-
reconhecidos, torna-se importante à medida que, hoje, pode­
se uma rede neural formada pelos plexos de Meissner e suas
mos reconhecer estados patológicos por meio da mensuração
terminações. Outra rede dispõe-se na região submucosa, for­
dos padrões interdigestivos pela manometria. Também, po­
mando o plexo de Auerbach. Ambas se interligam e, por sua
demos verificar a atuação de drogas procinéticas, que facili­
vez, fazem conexão com os gânglios paravertebrais, que inte­
tam a condução do CMM, ou de drogas inibidoras, como a
gram os diferentes níveis do tubo digestivo, como também se
loperamida, que retardam essa atividade, promovendo um
ligam à coluna vertebral e ao SNC. Esse complexo, chamado de
trânsito lento. Alguns padrões patológicos estão bem defi­
sistema nervoso entérico (SNE), é um órgão independente da
nidos e exemplificados nas Figuras 5.7 e 5.8. Na síndrome
clássica ação do SNC por via vagai para algumas ações, princi­
do intestino irritável, foram reconhecidos padrões de ondas
palmente as motoras. Pode também sofrer influência dos níveis
irregulares (clusters) intermitentes, de longa duração, dife­
mais altos do SNC e vice-versa, alterando comportamentos de
absorção e secreção. rentes da fase III, ocorrendo inclusive durante o sono, que
A rede de neurônios do SNE é altamente especializada, já não estão presentes em todos os portadores da síndrome do
tendo sido evidenciadas ações claras de mecanorreceptores, que intestino irritável, mas que fornecem indícios de que a alte­
respondem ao conteúdo, fazendo a musculatura lisa contrair-se ração, nessa síndrome, ocorre ao nível do SNE, com provável
ou relaxar-se, e de quimiorreceptores, que, por sua ação, alte­ influência do SNC.
ram os padrões de movimentos intestinais. As alterações funcionais do intestino delgado podem ser
O reconhecimento de padrões interdigestivos pela eletro- subdivididas de maneira prática em alguns grupos, que enu­
miografia e pela manometria pode caracterizar a existência do meramos com suas possíveis causas no Quadro 5.4.
complexo motor migrante (CMM), composto de três fases prin­
cipais de atividade elétrica, que correspondem a padrões de
contrações. Esta se inicia no duodeno e transmite-se ao longo je ju n o
de todo o intestino delgado.
Essas três fases consecutivas são caracterizadas por:
• Fase I: pouca ou nenhuma contratilidade (fase de quies-
cência); 1 0 m in
• Fase II: constituída por contrações irregulares e inter­ r e f e iç ã o

mitentes;
• Fase III: contrações frequentes e de maior amplitude,
que percorrem todo o intestino delgado, em uma fre­
quência maior no intestino proximal, e que diminuem
quanto mais próximas estiverem do íleo terminal (Fi­
je ju n o 50 m m H g |
gura 5.6).
Esse ciclo basal é interrompido pela presença do alimento no
— ---------
tubo digestivo, que então passa a ter uma atividade semelhante
à da fase II, mais observada em indivíduos normais durante o Figura 5.7 Manometrias prolongadas de duodeno e jejuno mostran­
dia, ao passo que a fase I é a observada durante o sono. À me­ do a resposta pós-prandial em indivíduo normal (parte superior do
dida que a digestão se processa, o complexo motor migrante gráfico) e comparando a um portador de esderodermia (inscrições
vai se estabelecendo. inferiores).
56 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo

duodeno
■ ALTERAÇÕES FUNCIONAIS
DO INTESTINO GROSSO
Nos cólons, as camadas musculares se organizam de m a­
50 m m H g
je ju n o neira diferente, conferindo a eles um aspecto característico. As
fibras musculares lisas longitudinais se dispõem em apenas três
feixes, que medem entre 6 e 10 mm de largura, as tênias. Uma
delas localiza-se ao longo da inserção mesenterial. Ao final do
cólon sigmoide, as tênias se tornam menos aparentes e se alar­
gam, fundindo-se ao nível do reto e formando novamente uma
camada muscular contínua e delgada. Essa disposição confere
o aspecto sacular aos cólons, que têm um diâmetro largo em
comparação com o delgado.
Os movimentos dos cólons ainda não estão totalmente com­
Figura 5.8 Manometria prolongada de duodeno e jejuno em paciente preendidos. Essa dificuldade se deve a dois fatores principais: a
portador de pseudo-obstrução intestinal crônica. Sensores distancia­ ausência de modelo animal experimental semelhante ao homem
dos 10 cm. Notar ondas de grande amplitude e desorganizadas. e a apresentação de atividade irregular. As técnicas de inves­
tigação até há pouco tempo eram indiretas, como os raios X,
ou rudimentares, que permitiam pouco tempo de observação, e
de difícil reprodutibilidade. A evolução da manometria prolon­
O fator mais importante da manipulação de uma alteração gada e de técnicas videofluroscópicas permitiu melhorar nossa
da motilidade do intestino delgado é, a nosso ver, o reconheci­ acuidade e correlacionar achados morfológicos e de compor­
mento exato de sua causa, pois obviamente a ação terapêutica tamento normal com os estados patológicos.
tende a ter sucesso. Na sua grande maioria, as manifestações são O arranjo do SNE e a relação com os gânglios mesentéricos
transitórias, porém em algumas doenças nos deparamos com são semelhantes aos do intestino delgado, e a influência do SNC
quadros dramáticos, em que a ação medicamentosa é pouco via vagai é diminuída. Para que a função final do aparelho di­
eficaz e os transtornos de nutrição são muito graves e contri­ gestivo se realize, ou seja, a defecação, é necessária a atuação de
buem mais ainda para agravar o quadro. Para alguns pacientes, um sistema muscular complexo, composto pelo assoalho pélvi­
somente o transplante constitui-se em uma esperança, com um co e seus músculos estriados principais: os elevadores do ânus
grau de sucesso ainda muito baixo. (pubococcígeos, isquiococcígeos e coccígeo), o puborretal e o
Alguns desses aspectos serão abordados nos capítulos espe­ esfíncter externo do ânus. A camada muscular lisa circular do
cíficos sobre intestino delgado. reto sofre um engrossamento na porção final próxima à borda
anal (esfíncter interno) e também participa de maneira impor­
tante no ato da defecação, como veremos adiante.
A atividade dos cólons pode ser resumida em três fases prin­
--------------------------------- ▼--------------------------------- cipais:
Quadro 5.4 Causas de alterações funcionais do intestino delgado
a) contrações segmentares localizadas, que dividem o lúmen
I - íleo paralítico e o seu conteúdo, formando haustras e promovendo a
P ó s -o p e r a t ó r io mistura do quimo;
P e rito n ite
b) contrações propulsivas, precedidas pelo desaparecimento
C ó lic a re n a l o u b ilia r
do padrão haustral, movendo o conteúdo energicamente
P a n c re a tite
H ip o x ia a distâncias maiores, também chamadas de movimentos
H e m o r r a g ia re tro p e rito n e a l de massa;
I n f a r t o d o m io c á r d io c) antiperistalse, que consiste na principal atividade do có­
P n e u m o n ia basal
T r a u m a g e n e r a liz a d o
lon proximal.
D is t ú r b io s m e ta b ó lic o s (h ip o fo s fa te m ia , h ip o c a lc e m ia , a n e m ia a g u d a , A atividade dos cólons é mínima durante o sono e aumenta
d e s id ra ta ç ã o )
com o despertar. Torna-se mais intensa após as refeições, prin­
D r o g a s (a ç ã o p a ra s s im p a tic o lític a )
P o rfiria e e n v e n e n a m e n t o p o r m e ta is p e s a d o s cipalmente no almoço e no jantar.
Uma vez que o bolo fecal chega em quantidade suficiente
II - Pseudo-obstrução intestinal crônica (c a u sa s m a is f r e q u e n te s )
M io p a tia s visce rais
ao sigmoide, ele é expelido para o reto. Nesse momento, ocor­
D o e n ç a s d o c o lá g e n o rem dois fenômenos principais: por distensão do reto, os ple-
D is tro fia m u s c u la r xos mioentéricos enviam impulsos ao esfíncter interno, que se
D o e n ç a s in filtra tiv a s (a m ilo id o s e ) relaxa (reflexo anorretal inibidor) para facilitar a expulsão do
N e u r o p a t ia s vis ce ra is (p rim á ria s o u fa m ilia re s)
N e u r o p a t ia s n ã o fa m ilia re s: a ca la s ia , H ir s c h s p r u n g , C h a g a s
conteúdo; ao mesmo tempo, a informação é levada à coluna
N e u r o p a t ia s g e n e ra liz a d a s : P a rk in s o n , d ia b e te s , p ó s -v ira is
vertebral pelos gânglios mesentéricos, em arco reflexo, e o SNC
A ç ã o d e d ro g a s : o p iá c e o s e c o lin é rg ic o s ; a g e n t e s c ito tó x ic o s ; é informado da necessidade de defecar, podendo o indivíduo
a n tid e p re s s iv o s contrair ou relaxar o assoalho pélvico para impedir ou facilitar
D is fu n ç õ e s m e ta b ó lic a s : h ip e r t ir e o id is m o , h ip o p a r a t ir e o id is m o ,
a saída do conteúdo retal.
u r e m ia , p o rfiria
P s e u d o -o b s t r u ç ã o p a ra n e o p lá s ic a
As alterações funcionais mais comuns da motilidade do in­
L e s ã o p o r ra d ia ç ã o testino grosso são a constipação intestinal e a incontinência. O
III - Síndrome do intestino irritável
trânsito acelerado, ou a diarréia, geralmente está correlaciona­
do com situações de infecção ou infestação intestinal, ou com
Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo 57

doenças inflamatórias que alteram os mecanismos de absorção A manometria anorretal tem se mostrado útil na análise de
e secreção, aliados ou não a uma perda da segmentação, e serão obstipação e incontinência. Por meio dela, podemos reconhecer
discutidas em capítulos específicos. várias alterações das pressões de repouso dos esfíncteres e das
A dificuldade para estabelecer o diagnóstico da constipa­ forças de contração e relaxamento destes. Também importante
ção intestinal começa pela interpretação dos sintomas. O que é o reconhecimento do reflexo anorretal inibidor. As alterações
é hábito intestinal normal? Por vezes, os pacientes referem ter mais comuns detectadas pela manometria são:
intestinos presos, mas evacuam diariamente, com dificuldade.
Outros não têm queixas de desconforto ou dor, mas evacuam a) obstipação na infância: diferenciação entre doença de
a cada 3 ou 4 dias. Hirschsprung e megacólon psicogênico ou megarreto
De maneira prática, poderiamos definir a constipação intesti­ (presença ou não do reflexo anorretal inibidor) (Figura
nal como a dificuldade para exonerar as fezes, geralmente acom­ 5.9);
panhada de dor, sensação de flatulência, com presença de fezes b) hipertonia esfincteriana de repouso (associada ou não a
endurecidas, e que tem esses sintomas aliviados pela defecação. fissura anal ou com proctalgia);
Até há algum tempo, a ideia de constipação intestinal estava c) anismo: diferente da hipertonia esfincteriana, pois a pres­
ligada à hipotonia ou à falta de contratilidade do cólon. Hoje são de repouso é normal e, quando da força de expulsão,
sabemos que constipação intestinal é um nome genérico, que há uma contração do assoalho pélvico, em vez do relaxa­
envolve variedades de alteração da atividade motora intrínse­ mento;
ca do cólon, às vezes dependentes de fatores sócio-higiênico- d) alterações da percepção: neuropatias, lesão espinal, co-
dietéticos, mas que, em grande parte, ocorrem por distúrbios lagenoses etc.;
no complexo esfincteriano responsável pela evacuação. e) incontinência: neuropatias, lesões pós-parto ou pós-
Usando marcadores, podemos distinguir três grupos: cirurgia orificial.
a) os marcadores demoram para atravessar todo o cólon A constipação intestinal é um tema que será abordado em
(trânsito lento); capítulo específico, mas vale salientar que, com o uso de técni­
b) os marcadores atravessam o cólon em tempo normal, cas radiológicas empregando marcadores, ou da videodefeco-
mas impactam-se no retossigmoide; grafia, aliado às informações da manometria, estamos cada vez
c) o trânsito pelo cólon está normal, mas há dificuldade para mais perto de elucidar suas causas e, portanto, mais próximos
sua expulsão. de sua resolução.

R euieu ana-reta l rad ial H el»=Fl

Paçj e 20 < 26) Conpress: 2 C=20:15:46 T= 2.1 s

Figura 5.9 Manometria anorretal de seis canais radiais posicionados ao nível de esfíncter interno. Notar a queda de pressão simultânea, ime­
diatamente após insuflação de balão de látex no reto (reflexo anorretal inibidor).
58 Capítulo 5 / Alterações Motoras do Aparelho Digestivo

interessados encontrarão mais respostas e maiores detalhes que


■ SÍNDROME DO INTESTINO IRRITÁVEL não fizeram parte deste texto, por serem muito extensos.
A nosso ver, é a doença mais complexa em que a função
motora do aparelho digestivo está alterada. Será discutida em
outro capítulo, mas não poderiamos deixar de citá-la e tecer ■ LEITURA RECOMENDADA
alguns breves comentários.
Brito, EM. Qual o quadro clínico dos distúrbios hipcrcontrátcis do esôfago? Em:
As recentes pesquisas demonstram que essa síndrome, po- Paula Castro, L, Savassi-Rocha, PR, Cunha Melo, JR, Costa, MMB. Tópicos
lissintomática, pode manifestar desde simples sensações como em Gastroenterologia 10. Rio de Janeiro, Mcdsi, 2000.
flatulência, constipação intestinal, dor abdominal, até quadros Castcll, DO. The Esophagus. Boston, Littlc Brown & Co., 1995.
complexos que envolvem sintomas esofágicos, gástricos e in ­ Champion, MC} & Orr, WC. Evolving Concepts in Gastrointestinal Motility. Ox­
ford, Blackwell Science, 1996.
testinais. Há evidências de distúrbios neurológicos centrais e Chiai, HJ & Camillcri, M. Motility disorders of thc stomach 8c small intestinc.
do SNE, sendo claramente estabelecida a importância da sero- Em: Friedman, SL, McQuaid, KR, Grcndcll, JH. Current Diagnosis and
tonina liberada pelas células de Cajal. Sua produção, transpor­ Treatment in Gastroenterology, 2nd cd., New York, Langc Medicai Books/
te e captação influenciam diretamente a motilidade jejunal e McGraw-Hill, 2003.
Drossman, DA. The Functional Gastrointestinal Disorders. Boston, Littlc-Brown
colônica. A partir dos critérios de Roma, em 1989, os pesqui­
& Co., 1994.
sadores, partindo de definições consensuais mais claras dessa Fishcr, RS 8c Krcvsky, B (cd.). Motor Disorders o f the Gastrointestinal Tract:
síndrome, vêm aos poucos encontrando dados para confirmar What's New & What to Do (AGA publication). New York, Acadcmy Profcs-
tais hipóteses. Há evidências claras da influência da serotonina sional Information Services, Inc., 1993.
na sensibilidade visceral. Kahrilas, PJ. Esophagcal motor disorders in terms of high-rcsolution csopha-
gcal pressurc topography: what has changed? Am. J. Gastroenterol., 2010;
105:981-7
Kahrilas, PJ & Sifrim, D. High-rcsolution m anom etry and impcdancc-pH/
■ CONCLUSÃO manometry: valuablc tool in clinicai and invcstigational csophagology. Gas­
troenterology, 2008; 135:756-69.
Kumar, D 8c Wingatc, D. An Illustrated Cuide to Gastrointestinal Motility. Lon-
Nos próximos anos, com certeza, muitos dos conceitos ex­
don, Churchill-Livingstonc, 1994.
planados neste capítulo sofrerão modificações. A neurogas- Regadas, SM, Regadas, FSP, Rodrigues, LV et al. Importancc of the tridimensional
trenterologia vem se tornando não uma especialidade, mas sim ultrasound in thc anorcctal evaluation. Arq. Gastroenterol., 2005; 42:226-32.
um movimento mundial em que vários centros têm dado sua Sinn, A. Motility Disorders of the Gastrointestinal Tract. New York, Ravcn Press,
contribuição para o maior conhecimento da fisiologia e fisiopa- 1992.
Smout, AJPM 8c Akkcrmans, LMA. Fisiologia y Patologia de la Motilidad Gas­
tologia do sistema digestivo. Os termos citados neste capítulo, trointestinal. Wrightson Biomcdical Publishing Ltd., 1992.
para alguns novos e estranhos, farão parte do colóquio corri­ Stanghcllini, V, De Ponti, F, De Giorgio, R et al. New dcvelopmcnts in thc treat­
queiro entre os gastrenterologistas. Na leitura recomendada, os ment of functional dyspcpsia. Drugs, 2003; 63:869-92.
Aparelho Digestivo e AIDS
Luís Fernando Dutra Diniz e Renato Dani

A epidemia do HIV/AIDS trouxe grandes desafios para a me­ HIV, revela a importância do aparelho digestivo na fisiopato­
dicina moderna. Embora se encontre em estabilização no Bra­ logia da condição que conhecemos como AIDS. Além disso,
sil, ainda apresenta números crescentes, principalmente entre muitas vezes o trato gastrintestinal pode ser a própria porta de
as mulheres. Dados epidemiológicos do Ministério da Saúde entrada para o HIV.
(DATASUS) mostram que de 1980 a junho de 2007 foram noti­ Atualmente, com os novos recursos terapêuticos, observa-se
ficados 474.273 casos de AIDS no país. Nesta série histórica, fo­ maior sobrevida dos pacientes com AIDS. A esse dado, associa-
ram identificados 314.294 casos de AIDS em homens e 159.979 se também maior incidência de infecções oportunísticas e de
em mulheres. Ao longo do tempo, a razão entre os sexos vem neoplasias acometendo todo o trato digestivo. Sintomatologia
diminuindo de forma progressiva. Em 1985, havia 15 casos da gastrintestinal é referida por 30 a 90% dos pacientes com AIDS,
doença em homens para 1 caso em mulher. Hoje, a relação é de e populações infectadas de países em desenvolvimento apre­
1,5 para 1. Em 2006, considerando dados preliminares, foram sentam os maiores índices. Trabalhos recentes mostram que,
notificados 32.628 novos casos de AIDS, com uma incidência apesar da terapêutica antirretroviral de alta atividade, que per­
de 17,5 casos/100.000 habitantes. mite elevar a contagem de células CD4 e reduzir a carga viral,
Em média, o indivíduo infectado pelo HIV leva de 8 a 10 anos até 10% dos pacientes podem apresentar doenças oportunísti­
para desenvolver a síndrome e só então ela é notificada como cas do trato digestivo.
um novo caso. Podemos perceber que isso abre uma grande É preciso estar alerta para o fato de que, na AIDS, os novos
janela de transmissibilidade, caso a política oficial de controle patógenos, em locais comuns, e os velhos patógenos, em locais
e prevenção da doença não se traduza em medidas eficazes. É incomuns, são a regra e não a exceção. A abordagem diagnósti-
estimado em cerca de 800.000 o número de portadores do HIV ca deve ser completa e persistente, ressaltando a etiologia múl­
no Brasil até dezembro de 2008, e a transmissão vertical, ou ma­ tipla como achado frequente na AIDS. Podemos estar sendo
terno-infantil, é a principal via de infecção do HIV em crianças, omissos ao rotular uma diarréia como enteropatia pelo HIV.
Sendo responsável, no Brasil, por mais de 80% dos casos em É aconselhável repetir e diversificar testes propedêuticos na
menores de 13 anos. Graças ao programa do Governo Federal tentativa de estabelecer um diagnóstico mais preciso. A visão
de prevenção, diagnóstico e tratamento da AIDS (vide www. global do paciente nos permite suspeitar de que náusea, vô­
aids.gov.br), a situação não se deteriora com rapidez no Brasil, mito e anorexia podem ser provocados por doenças do siste­
como em outros países, especialmente do continente africano. ma nervoso central, como linfoma, toxoplasmose e meningite
É preciso manter um alto nível de vigilância e de esforços nas criptocócica. A terapêutica dos pacientes com AIDS também
ações preventivas de saúde pública, pois nota-se uma tendência se reveste de aspectos especiais, como a não resposta ao trata­
de “migração” da doença para municípios menores, no interior mento padrão (o que obriga a utilização de esquemas alterna­
do país, onde a estrutura do SUS, na maioria das vezes, mostra- tivos que, raramente, possuem eficácia científica comprovada),
se insuficiente para garantir a eficácia do programa. as recaídas frequentes e a necessidade do uso continuado de
Em relação à Gastrenterologia, sabemos que o tubo digestivo medicamentos.
e suas glândulas anexas apresentam papel relevante na epide-
Para o diagnóstico da condição de portador do HIV e mes­
miologia, fisiopatologia e tratamento da AIDS.
mo da AIDS, hoje dispomos de:
O trato digestivo possui imensa superfície de troca. Uma
única camada epitelial separa o mundo exterior hostil do nosso • Testes de detecção de anticorpos: ELISA (teste imuno-
meio interior. Essa camada recebe a vigilância do tecido linfoi- enzimático), Western blot, imunofluorescência indireta
de encontrado no intestino, que, quando considerado coleti­ (conjugada com fluorocromo), radioimunoprecipitação
vamente, representa o maior órgão linfoide do corpo humano, e testes rápidos para estudos de campo baseados em aglu­
com características peculiares de secreção de IgA e uma inte­ tinação em látex e hemaglutinação;
ração diferenciada entre os linfócitos da mucosa. A falência do • Teste de detecção de antigeno viral: pesquisa do antígeno
sistema imunológico, promovida pela evolução da infecção pelo p24 através da técnica ELISA;

59
60 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

• Técnicas de cultura viral: cultura de células mononu- --------------------------------------------------▼ ------------------------------------------------------------------------------


cleares de sangue periférico, cultura quantitativa de cé­ Q u a d ro 6.1 Lesões orais associadas ao HIV
lulas e cultura quantitativa de plasma;
• Testes de amplificação dogenoma do vírus: análise quan­ N e o p la s ia s S a rc o m a d e K a p o s i
titativa direta da carga viral através de técnicas baseadas L in fo m a n ã o H o d g k in
na amplificação de ácidos nucleicos, tais como a reação
de polimerase em cadeia (PCR) quantitativa, amplifica­ Fungos C a n d id ía s e

ção de DNA em cadeia ramificada {branched-chain DNA H is to p la s m o s e

ou bDNA) e amplificação sequencial de ácidos nucleicos C r ip t o c o c o s e


(nucleic acid sequence-based amplification ou NASBA); A s p e rg ilo s e
• Contagem de células CD4+ em sangue periférico: tem
G e o tr lc o s e
implicações prognósticas na evolução da infecção pelo
HIV, pois a medida de imunocompetência celular é a V íru s H e rp e s s im p le x
mais útil no acompanhamento de pacientes infectados H e r p e s -z o s te r
pelo HIV.
E p s t e in -B a r r (le u c o p la s ia p ilo s a )

Os medicamentos aprovados pelo Food and DrugAdminis- C it o m e g a lo v ír u s


tration (FDA - EUA), até dezembro de 2009, para tratamento P a p ilo m a v íru s
do HIV se dividem em 6 grupos de acordo com o seu meca­
nismo de ação, apesar de serem comuns as formulações com­ B actérias G e n g iv it e

binadas com associação de antirretrovirais: E s to m a tite

1. Nucleosidios inibidores da transcriptase reversa: abacavir, E s to m a tite n e c ro tiz a n te

lamivudina, zidovudina, didanosina, entricitabina, teno- M y c o b a c te r iu m t u b e rc u lo s is


fovir, estavudina e zalcitabina; M y c o b a c te r iu m a v iu m in tr a c e llu la r e
2. Não nucleosidios inibidores da transcriptase reversa: de-
lavirdina, efavirenz, nevirapina e etravirina; A u to im u n e / id io p á t lc a Ú lc e ra s a fto id e s re c o rre n te s

3. Inibidores deprotease: amprenavir, tipranavir, atazanavir, P ú r p u r a t r o m b o d t o p è n ic a

fosamprenavir, indinavir, lopinavir, ritonavir, nelfinavir, D o e n ç a d a g lâ n d u la sa liv a r


saquinavir e darunavir; P ig m e n t a ç ã o a n o r m a l
4. Inibidores de fusão: enfurtivida;
5. Inibidores de entrada co-receptor antagonista CCR5: ma-
raviroque (Selzentry®);
6. Inibidor de transferência da H IV integrase: raltegravir ■ Sarcoma de Kaposi (SK)
(Isentress®).
Pode surgir como a primeira manifestação da AIDS. É fre­
Para se combater o HIV, é necessário utilizar pelo menos quente entre homossexuais masculinos, mas raro entre mulhe­
dois medicamentos de classes diferentes. A maioria dos in­ res e crianças. Na presença de uma lesão oral, sempre suspei­
divíduos em tratamento toma três ou quatro medicamentos tamos do acometimento visceral.
antirretrovirais. Porém, muitos medicamentos não podem ser Recentemente, material genético de papilomavírus foi isola­
utilizados de forma simultânea, pois interagem entre si, poten­ do de células dessas lesões, sendo levantada a hipótese de uma
cializando os efeitos tóxicos ou inibindo a sua ação. relação etiológica. A localização oral mais frequente do SK é o
Considerando o movediço terreno da patologia na AIDS, palato, mas as lesões também podem ser encontradas na língua,
para fins didáticos abordaremos as doenças do aparelho digesti­ gengiva, glândulas salivares e linfonodos mandibulares e cervi-
vo relacionadas com essa condição em segmentos topográficos, cais. Apresentam-se como lesões violáceas ou azuladas, planas
a saber: cavidade oral, esôfago, estômago, intestinos delgado e ou elevadas, nodulares ou extensas, com um anel de mucosa
grosso, árvore biliar, fígado, pâncreas e peritônio. pálida circunjacente, podendo ser dolorosas quando ulceradas
ou com infecção secundária. O diagnóstico diferencial deve
ser feito com hemangioma, granuloma piogênico, equimose e
■ CAVIDADE ORAL lesões malignas. A biopsia fornece o diagnóstico definitivo. Le­
sões pequenas podem responder à terapêutica local, como a ex-
Apesar de mais de 40 tipos de lesões orais terem sido descri­ cisão cirúrgica, ou ao laser e ao uso intralesional de vimblastina.
tos como associados à infecção pelo HIV, apenas as lesões lista­ Agentes esclerosantes também são úteis. Lesões mais extensas
das no Quadro 6.1 apresentam clara associação com a doença (Figura 6.1) requerem tratamento quimioterápico sistêmico e
provocada pelo vírus da imunodeficiência humana. radioterapia que, em muitos casos, pode provocar uma muco-
Em estudo descritivo publicado, 92 pacientes vitimados pela site. Os agentes citostáticos com maior eficácia no sarcoma de
AIDS passaram por uma avaliação histológica da língua que Kaposi são as antraciclinas lipossômicas. O tratamento com a
revelou alterações em 75% dos casos: leucoplasia pilosa (42), doxorrubicina lipossômica peguilada na dose de 20 mg/m2de
candidíase (31), glossite crônica inespecífica (29), lesões conco­ superfície corporal durante todas as 2 a 3 semanas conduz à
mitantes (28), ulceração crônica inespecífica (17), pigmentação remissão parcial em cerca 80% dos doentes tratados. O trata­
melanótica (13), Herpes simplex (10), cistos linfoepiteliais (2), mento com daunorrubicina lipossômica 40 mg/m2de superfície
criptococose (2), micobacteriose, histoplasmose, citomegalo- corporal de 2 a 2 semanas mostra taxas de remissão ligeiramente
vírus e linfoma não Hodgkin (1 cada). Isso mostra que a lín­ mais baixas. O paclitaxel também é um tratamento muito eficaz
gua é um local importante de ocorrência de infecções e lesões no sarcoma de Kaposi. A dose recomendada é 100 mg/m2 de
concorrentes nos quadros avançados de AIDS. superfície corporal, ev, administrado quinzenalmente em 3 a
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 61

calis e Candida parapsilosis. Também pode aparecer no quadro


de infecção aguda pelo HIV. A candidíase, como outras lesões
orais, é um indicador clínico de progressão da imunodeficiên­
cia. A associação entre doença oral e esofágica é frequentemente
encontrada, embora não necessariamente. Na cavidade oral, a
candidíase tem três formas clínicas principais de apresentação,
como exposto a seguir.
Enantematosa => Ocorre principalmente no palato e dorso
da língua, podendo ser assintomática. É raramente diag­
nosticada em função do seu aspecto pouco evocador.
Pseudomembranosa => É a forma clássica de apresentação,
com placas brancacentas de tamanho variado, confluen-
tes ou não, e que, ao serem removidas, exibem uma mu-
cosa enantematosa e friável. O paciente geralmente refere
disfagia e ardor.
Queilite angular => Notável pela formação de erosões e fis­
suras nos ângulos da boca, também associadas a dor e
dificuldade de mastigação.
O diagnóstico de candidíase pode ser feito pelo aspecto clí­
nico; entretanto, alguns recursos (p. ex., hidróxido de potássio)
ajudam o patologista na identificação das hifas de Candida em
biopsias e raspados das lesões. A cultura pode ser útil na deter­
minação da espécie do fungo presente e de sua sensibilidade
farmacológica.
A terapêutica envolve a utilização de antifúngicos tópicos,
como a nistatina (em óvulos de dissolução lenta), micostatina
e clotrimazol. Em casos mais graves, medicamentos sistêmicos,
como o cetoconazol (200 a 400 mg/dia durante 2 a 3 semanas),
fluconazol (150 mg/semana por 4 semanas) e o itraconazol, po­
dem ser utilizados. Não há consenso quanto à eficácia e valor
Figura 6.1 Paciente de 56 anos, caso avançado de AIDS, com exten­ da profilaxia antifúngica a longo prazo na AIDS.
so acometimento cutâneo por sarcoma de Kaposi. Apesar de a pele
estar muito tomada, as vísceras nào evidenciaram Kaposi. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) ■ Outras lesões fúngicas orais
Alguns relatórios descrevem lesões orais na histoplasmose,
criptococose, aspergilose e geotricose. Apesar de constituírem
4 h. Obtêm-se com este tratamento remissões parciais em 60% infecções sistêmicas, a presença de uma lesão oral pode facilitar
dos doentes tratados. O paclitaxel é mielotóxico e quase sempre o diagnóstico, permitindo instituir a terapêutica específica.
provoca alopecia, por vezes logo após a primeira administra­
ção. Os doentes devem ser avisados da ocorrência deste tipo ■ Herpes simplex
de efeito adverso. O paclitaxel atua provocando a disrupção As lesões típicas são as úlceras recorrentes intraorais e o
da reorganização estrutural dos microtúbulos intracelulares. herpes labial. São úlceras extensas e de evolução mais arrastada
Este efeito provoca a paragem da mitose e consequente morte do que em pacientes imunocompetentes. O Herpes simplex 1
celular programada (apoptose). O paclitaxel pode também ser (HSV-1) é o predominante, embora o Herpes simplex 2 (HSV-2)
utilizado com eficácia nos doentes com progressão tumoral sob tenha sido ocasionalmente descrito. O aciclovir (200 mg TID)
terapêutica com antraciclinas. As recidivas após tratamento tem sido usado para encurtar o tempo de evolução do herpes la­
(com antraciclinas ou paclitaxel) podem ser tratadas com doses bial e aliviar os sintomas de úlceras intraorais. Já o HSV-2 mos­
baixas de etoposido oral. tra uma resistência progressiva ao aciclovir, e devemos, nesses
casos, utilizar o foscarnet (40 mg/kg, 8/8 h, por 21 dias) como
opção terapêutica.
■ Linfoma não Hodgkin
A maioria é constituída de células B, e alguns apresentam ■ Herpes-zóster
EBV-DNA positivo. Esses linfomas podem ser encontrados, Lesões orofaciais do herpes-zóster manifestam-se como rea­
em qualquer ponto da cavidade oral, como tumores, nódulos tivação de focos virais latentes. São indicadores claros da falên­
ou úlceras de aspecto e tamanho variados. O diagnóstico é feito cia da imunidade celular no decurso da AIDS. Aparecem como
através do estudo histopatológico. Os linfomas na AIDS têm vesículas e ulcerações dolorosas no trajeto de distribuição de
comportamento agressivo, e a terapêutica baseia-se na quimio­ ramos do trigêmeo. O tratamento com aciclovir em altas doses
terapia sistêmica. (2 a 4 g IV/dia) pode tratar ou prevenir lesões oculares. Neu-
ralgia pós-herpética é uma dolorosa complicação.
■ Candidíase ■ Citom egalovírus (CM V)
É a infecção oportunística de maior prevalência na AIDS. As É um dos agentes mais frequentemente encontrados em pa­
espécies mais encontradas são Candida albicans, Candida tropi- cientes com AIDS. Úlceras orais que lembram grandes úlceras
62 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

aftoides são características da disseminação sistêmica do CMV. nessas infecções, podendo encontrar-se, também, fungos
Essas úlceras podem ser coinfectadas pelo HSV-1. Nos casos e espiroquetas.
mais graves, o CMV pode provocar necrose gengival. A tera­
O tratamento das infecções orais bacterianas envolve a hi­
pêutica é realizada com o uso parenteral do ganciclovir (0,5 mg/ giene local com antissépticos e o desbridamento do tecido ne-
kg/dia, fracionado de 12/12 h, 14 a 28 dias), sendo o foscarnet crótico, incluindo os sequestros ósseos, raspagem e curetagem
(40 mg/kg, 8/8 h, por 21 dias) uma segunda opção. das áreas afetadas, seguido de irrigação com soluções orais à
base de clorexidine. Os antibióticos mais empregados são a
■ Leucoplasia pilosa (LP)
clindamicina e o metronidazol.
É associada ao vírus Epstein-Barr (EBV), embora não receba
as suas influências oncogênicas. O papilomavírus também tem ■ Úlceras aftoides recorrentes
sido implicado na sua gênese. A apresentação clássica corres­ Não se conhece a etiologia. Na AIDS, cursam com aumento
ponde a uma placa brancacenta, de aspecto piloso, na superfí­ da prevalência e gravidade das lesões. São úlceras grandes, de
cie lateral da língua, mas pode aparecer em qualquer ponto da 1 a 2 cm, dolorosas, únicas ou múltiplas. Persistem por sema­
mucosa orofaríngea. O aspecto “piloso” da lesão é atribuído a nas e até meses, interferindo com a mastigação e a deglutição.
uma exacerbação da estrutura normal da mucosa da face lateral Lesões sincrônicas podem existir em outros pontos do trato
da língua. A progressão para AIDS é significativamente mais gastrintestinal. O diagnóstico diferencial inclui linfoma, carci-
frequente em paciente HlV-positivo com LP do que em pacien­ noma de células escamosas, CMV, tuberculose, criptococose e
te HlV-positivo sem LP. O exame clínico fornece um diagnós­ outros. Essas úlceras geralmente respondem a uma combinação
tico presuntivo, mas apenas a histopatologia, com particular de esteroides tópicos e antibióticos com espectro para gram-
atenção às características citológicas nucleares e à presença do negativos. Atualmente, tem sido tentado o uso da talidomida
EBV, permite o diagnóstico definitivo. O tratamento da LP é nesses casos, mas os resultados são ainda preliminares.
indicado nos casos em que o paciente refere desconforto, ou
por motivos estéticas. A superinfecção fúngica responde ao ■ Doença da glândula salivar
tratamento tópico com nistatina, e o aciclovir (200 mg TID) Tanto a queixa de xerostomia quanto o aumento das paró-
pode ser usado na tentativa de reduzir as lesões. O ganciclovir tidas podem ser observados nos pacientes com AIDS. As glân­
é uma segunda opção terapêutica. dulas apresentam um edema bilateral, difuso, compressível e
não flutuante. Xeroftalmia e outras características da síndrome
■ Papilomavírus de Sjõgren estão presentes em alguns casos, porém diferenças
Em associação à infecção pelo HIV, o papilomavírus h u ­ sorológicas e imuno-histoquímicas significativas separam a
mano (tipos 7,13 e 32) pode provocar lesões orais e labiais de doença da glândula salivar relacionada com o HIV da síndrome
característica verrucosa ou similares à hiperplasia epitelial fo­ de Sjõgren. Como nenhum agente infeccioso foi identificado
cal. Quando sintomáticas, essas lesões podem ser tratadas com até o momento, o tratamento consiste no alívio dos sintomas
ácido retinoico em gel ou excisadas cirurgicamente, porém a e prevenção das cáries, utilizando substitutos da saliva, contro­
recorrência é frequente. lando a ingesta de açúcares e com aplicações de fluoreto.

■ Lesões bacterianas ■ Púrpura trom bocitopênica autoim une


A resposta imunológica celular deprimida favorece tam ­ Quando se manifesta na forma de lesões orais, como peque­
bém as infecções bacterianas, como aquelas por enterobacté- nas manchas purpúricas ou grandes equimoses, vem sempre
rias, micobactérias e outros germes encapsulados. Entretanto, acompanhada de sangramento gengival espontâneo, às vezes
as formas mais comuns de infecção oral bacteriana na AIDS vultoso. O tratamento é sistêmico e requer a utilização de cor-
estão associadas às variantes da doença periodontal relaciona­ ticoides.
das com o HIV: gengivite, gengivite necrosante, periodontite
grave e estomatite necrosante. ■ Pigm entação anorm al
Independentemente da forma, todas elas apresentam curso O uso de zidovudina e cetoconazol é responsável pelo apa­
evolutivo rápido para doença destrutiva, com resposta insatis­ recimento de pigmentações acastanhadas na mucosa oral dos
fatória à terapêutica convencional. É necessário o acompanha­ pacientes com AIDS. Outras vezes não encontramos um fator
mento odontológico especializado nesses casos. causai, a não ser a própria infecção pelo HIV, para explicar o
aparecimento de máculas melanóticas orais. Já foi sugerida uma
Gengivite => Originariamente denominada gengivite do provável insuficiência adrenocortical associada ao HIV como
HIV, apresenta-se como uma faixa estreita de enante- fator desencadeante dessas pigmentações anormais.
ma ao longo da margem gengival de um ou mais grupos
dentários. Pode aparecer sem a concomitância das placas
de tártaro. O sangramento espontâneo é frequente, so­ ■ ESÔFAGO
bretudo ao despertar. A forma mais grave é a gengivite
ulcerativa necrosante, que cursa com inflamação margi­ Pelo menos 1/3 dos pacientes com AIDS apresenta algum
nal, odor fétido e febre. tipo de doença esofágica. A importância do diagnóstico e tera­
Periodontite do HIV => Diferencia-se da periodontite con­ pêutica eficaz dessas afecções reside no fato de que, mesmo com
vencional pela rápida e simultânea perda de mucosa e o apetite preservado, a sintomatologia esofágica pode impedir
tecido ósseo, promovendo a mobilidade dentária e con­ a ingesta adequada de alimentos, levando a quadros graves de
sequente perda de vários dentes. Ulcerações e necrose desidratação e desnutrição. O sintoma mais frequentemente
podem sobrepor-se ao processo, inclusive com seques­ referido é a odinofagia e, depois, a disfagia. A concomitância
tro de tecido ósseo alveolar, configurando a chamada es­ de sintomas aparece nos quadros mais graves. O soluço, que
tomatite necrosante. A flora gram-negativa predomina nem sempre é valorizado, pode representar uma manifestação
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 63

de esofagite. O Quadro 6.2 resume as principais etiologias da As úlceras aftoides ou idiopáticas ainda são motivo de con­
doença esofágica na AIDS. trovérsia. Muitas vezes, a biopsia de uma úlcera esofágica reve­
A Candida albicans é o mais frequente agente etiológico la simplesmente a própria úlcera. Alguns autores referem-se a
identificado no esôfago (Prancha 6.1 A), chegando a 70% dos elas como úlceras primárias, e outros defendem a hipótese de
casos. Geralmente, associa-se à candidíase orofaríngea, mas não agentes virais ainda não identificados.
necessariamente. Os outros agentes fúngicos aparecem como A doença do refluxo gastresofágico na AIDS geralmente é
relatos isolados de casos. secundária ao processo de cicatrização de úlceras esofágicas
Dentre os patógenos virais, o citomegalovírus é encontrado que levam à distorção da anatomia da junção esofagogástrica,
em 10 a 40% das biopsias endoscópicas. A apresentação clíni­ facilitando o refluxo.
ca é diversificada: esofagite difusa, úlceras únicas ou múltiplas Esofagite erosada e úlceras esofágicas são descritas com o
predominando na região da junção esofagogástrica e até úlce­ uso de vários medicamentos. A zidovudina é reconhecida como
ras gigantes ocupando toda a extensão esofágica. Em função do um agente agressor da mucosa esofágica. A reação pode ser
tropismo vascular do CMV, as biopsias endoscópicas devem idiossincrásica, com a lesão assumindo graus variados de gra­
ser retiradas do centro da ulceração. vidade.
O Herpes simplex produz vesículas e úlceras de tamanhos
variados, com bordas elevadas (em vulcão) e fundo necrótico.
A biopsia da margem da lesão pode identificar esse agente.
■ Diagnóstico
Bactérias e micobactérias são ocasionalmente identificadas Inicialmente, colhe-se uma história clínica completa. As
no esôfago. O Mycobacterium tuberculosis infecta esse órgão a queixas de odinofagia e/ou disfagia relacionam-se com líqui­
partir da erosão de linfonodos mediastinais para o esôfago e nas dos e sólidos. O uso de medicamentos e os fatores de risco as­
fístulas traqueoesofágicas e broncoesofágicas. O Mycobacterium sociados ao HIV são pesquisados na entrevista clínica. O exame
avium intracelullare, por disseminação hematogênica, exerce físico revela, com frequência, candidíase da orofaringe. Se este
sua patogenicidade diretamente sobre a mucosa esofágica. for o caso, preconiza-se o tratamento sistêmico da infecção. Ha­
Agentes menos frequentes no esôfago, como Actinomyces, vendo resolução dos sintomas, mantém-se o acompanhamento
Pneumocystis carinii e Cryptosporidium parvum, são descritos clínico, sem a necessidade de outras provas diagnósticas. Caso
como superinfecção de úlceras esofágicas. contrário, a endoscopia digestiva alta é o passo propedêutico
O sarcoma de Kaposi também se desenvolve no esôfago seguinte. Além da macroscopia, o estudo endoscópico permite
e, por ser submucoso, é geralmente assintomático. Os sinto­ a realização de biopsias para os estudos histológico e microbio-
mas só aparecem nas complicações, como obstrução, ulce­ lógico, indispensáveis no diagnóstico definitivo das alterações.
ração e sangramento. Linfomas primários e secundários são Esofagografia contrastada é falha em até 50% dos casos, e, se
relatados no esôfago, e a associação com úlceras por CMV é forem detectadas úlceras esofágicas, estas devem ser biopsiadas
frequente. sob visão endoscópica. Dessa forma, excetuando-se os casos de
estenose e distúrbios de motilidade, o exame radiológico con­
trastado torna-se dispensável.
Vários testes diagnósticos são realizados na investigação
------------------------- ▼------------------------- de úlceras esofágicas em pacientes com o HIV. As colorações
Q u a d ro 6.2 Etiologia da doença esofágica na AIDS histológicas usadas de rotina são a hematoxilina-eosina (H.E.),
Giemsa (fungos) e Fite (micobactérias). Técnicas citológicas
Fungos C a n d id a s p. (esfregaço - Papanicolaou) são úteis no diagnóstico do Herpes
H is t o p la s m a c a p s u la tu m simplex, Citomegalovírus e Candida sp. O estudo é comple­
T o ru lo p s is g la b r a ta m entado pelos métodos imunológicos (hibridização in situ,
amplificação do DNA e PCR) e cultura de tecidos.
P n e u m o c y s t is c a rin ii

V íru s C it o m e g a lo v ír u s
■ Tratamento
E p s te in -B a rr

P a p o v a v íru s
A candidíase esofágica é tratada com medicação sistêmica:
cetoconazol, fluconazol e itraconazol são boas opções VO. Os
H e rp e s s im p le x 1 e 2
casos graves e resistentes exigem a anfotericina-B ou o fluco­
H IV nazol IV. A vantagem do baixo custo do cetoconazol esbarra
B a ctérias M y c o b a c te r iu m tu b e r c u lo s is
em problemas relevantes, como a crescente resistência de al­
gumas cepas de Candida, a hepatotoxicidade e a absorção ina­
M y c o b a c te r iu m a v iu m - in tr a c e llu la r e
dequada em função da hipocloridria encontrada nos pacientes
A c t in o m y c e s com AIDS. A infecção pelo CMV responde ao tratamento com
E so fa g ite n o d u lo s a (a n g io m a t o s e b a c ila r) ganciclovir (5 mg/kg/dia IV de 14 a 28 dias) em 80% dos casos,
similar ao tratamento da retinite pelo CMV. O foscarnet é uti­
P ro to z o á rio s C ry p t o s p o r id iu m
lizado nos casos resistentes ao ganciclovir. O principal efeito
L e is h m a n ia
colateral do ganciclovir é a neutropenia dose-dependente, so­
N e o p la s ia s S a rc o m a d e K a p o s i
bretudo quando associado à zidovudina. Felizmente, esse efeito
pode ser revertido com os fatores estimuladores de colônias de
L in fo m a d e H o d g k in
granulócitos, embora encarecendo ainda mais o tratamento.
O u tr a s D o e n ç a d o re flu x o g a s tro e s o fá g ic o O foscarnet, por sua vez, provoca distúrbios de função renal.
E ro s õ e s m e d ic a m e n t o s a s
Hoje, a grande discussão gira em torno da necessidade ou não
de um esquema de manutenção e de qual o melhor esquema a
Le sã o a fto id e id io p á tic a
ser utilizado. Muitas variáveis ainda serão analisadas antes de
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2 EC-2901
♦1 ■ -3 I■ I 1 PENTRX

Prancha 6.1 Aspectos de acometimento do aparelho digestivo por AIDS. A. Candidíase esofágica (gentilmente cedida pelos Drs. Joáo Batista
Campos e Itiberê Pessoa da Costa, Belo Horizonte - MG); B, Linfoma gástrico (Drs. Joáo Batista Campos e Itiberê Pessoa da Costa); C, Colangite
esclerosante relacionada com a AIDS (cortesia do Dr. Josep Maria Bordas, Barcelona - Espanha); D, Colestase provocada por obstrução da papila
duodenal: linfoma não Hodgkin (Dr. Josep Maria Bordas, Barcelona - Espanha); E, Pequena lesão brancacenta na superfície do lobo hepático
esquerdo: histoplasmose; F, Aspecto laparoscópico do fígado em paciente com micobacteriose atípica; G , Tuberculose hepática (Fite l.OOOx);
H. Microgranulomas hepáticos de etiologia indeterminada (H.E. 40x). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 65

se decidir pela manutenção do tratamento. O desenvolvimen­ adequadas e fornecer subsídios de macroscopia que auxiliem o
to de medicamentos administrados por via oral contra o CM V patologista no diagnóstico definitivo. É relativamente frequente
poderá ajudar na opção de uma terapêutica prolongada. a apresentação ulcerada dos linfomas gástricos (Prancha 6.1B),
A esofagite herpética tem o aciclovir (400 a 800 mg TID, por até como “kissing u/cers”, formando o chamado estômago em
14 dias) como tratamento de escolha. Nos casos de resistência, ampulheta, o que pode ser confundido com doença péptica. Já
pode-se lançar mão do foscarnet (60 a 90 mg/kg BID, 14 dias). o sarcoma de Kaposi, por ser uma lesão submucosa, pode não
Úlceras aftoides ou idiopáticas são de tratamento difícil e po­ ser diagnosticado pela biopsia endoscópica convencional.
lêmico. Tem sido tentado o esquema prednisona (40 mg/dia Estudos microbiológicos e de histopatologia (com técnicas
durante 28 dias, chegando a 10 mg/dia, 14 dias) ou a talidomida imuno-histoquímicas e de biologia molecular) complementam
(200 mg/dia durante 28 dias). O uso de antiácidos e sucralfato as ferramentas diagnósticas.
pode ser útil. Uma resposta favorável ao tratamento anti-HIV A terapêutica contra agentes infecciosos e neoplasias no es­
também é acompanhada de melhora dessas lesões. tômago obedece aos mesmos princípios descritos para o esô­
Infecções bacterianas esofágicas respondem aos antibióticos fago.
de amplo espectro. O Mycobacterium tuberculosis é sensível ao
esquema clássico com isoniazida, rifampicina e pirazinamida.
Já o Mycobacterium avium intracellulare (MAI) pode ser tra­ ■ INTESTINOS DELGADO E GROSSO
tado com a associação de etambutol (1,2 g/dia), clofazimina
(100 mg/dia) e rifampicina (10 mg/kg/dia). Resultados satis­ A diarréia é manifestação frequente para muitos pacientes
fatórios também são obtidos com a claritromicina (500 a 1.000 com AIDS. Nos países em desenvolvimento, mais de 90% dos
mg/dia) no lugar da rifampicina. Drogas como ciprofloxacino pacientes vão apresentar quadros diarreicos em algum m o­
(500 a 750 mg BID) e azitromicina (500 a 1.000 mg/dia) apre­ mento da sua evolução clínica. A diarréia é um sinal de má
sentam resultados promissores contra o MAI, quando associa­ absorção, e vários mecanismos fisiopatológicos podem atuar
das ao etambutol e à clofazimina. O tratamento geralmente é na AIDS: diminuição da área de superfície mucosa, disfunção
longo, variando de 2 a 8 semanas. Profilaxia primária com ri- ileal, enteropatia exsudativa, mediadores inflamatórios, altera­
fabutina 300 mg/dia é indicada para os pacientes com CD4 em ção de motilidade, secreção de endotoxinas e efeito citopático
torno de 100/mm3. do HIV sobre os enterócitos.
A Mesofagite nodulosan é uma entidade descrita, recentemen­ Em caso de persistência, a diarréia levará à desnutrição gra­
te, como o equivalente esofágico da angiomatose bacilar, o que ve e, possivelmente, ao óbito. O maior desafio é identificar os
pode ser confirmado pela histologia dessas lesões. Há excelente agentes etiológicos da diarréia na AIDS, possibilitando um tra­
resposta ao uso da eritromicina (500 mg QID), como ocorre na tamento dirigido. A real influência do HIV sobre os enterócitos,
angiomatose bacilar convencional. na gênese da diarréia, também merece maior discussão. Com
O sarcoma de Kaposi e os linfomas esofágicos são tratados uma propedêutica adequada, conseguimos isolar um agente
com esquemas de quimioterapia sistêmica, com resposta se­ específico em 50 a 85% dos casos, dentre os quais cerca de 80%
melhante à de outros locais de manifestação dessas doenças. apresentam resposta à terapêutica com os medicamentos dis­
A sobrevida média, após o diagnóstico de linfoma no esôfago, poníveis atualmente.
é de 6 meses. A abordagem ao paciente HlV-positivo com diarréia é simi­
lar à conduta básica que se aplica à população em geral. História
clínica completa (medicamentos, dieta, fatores de risco) e um
■ ESTÔMAGO exame físico minucioso são imprescindíveis. A frequência das
evacuações e o volume das fezes podem nos ajudar a localizar a
O estômago pode ser acometido por quase todos os pro­ origem da diarréia como sendo o intestino delgado ou o grosso.
cessos que ocorrem no esôfago. Os microrganismos encontra­ Fezes em grande volume, com evacuações menos frequentes e
dos no esôfago também são detectados no estômago, porém a episódios noturnos, sugerem o intestino delgado como local da
Candida, que é ácido-sensível, não representa um problema afecção. Ao contrário, fezes em menor volume, às vezes com
significativo. Existe, também, uma sobreposição de alterações sangue, evacuações frequentes, tenesmo, dor e distensão abdo­
do estômago com o intestino delgado. A hipocloridria, descrita minal apontam o cólon como sede do processo.
nos pacientes com AIDS, interfere na absorção de vários me­ De início, realiza-se o exame de fezes, que compreende pes­
dicamentos ácido-solúveis, como o cetoconazol. quisa de bactérias, fungos, protozoários, helmintíases (inclusive
O Helicobacter pylori, que exerce importante papel na fisio- por técnicas de biologia molecular para a identificação de mate­
patogenia da úlcera péptica e em tumores gástricos, não pa­ rial genético específico), leucócitos fecais, toxina do Clostridium
rece ter uma incidência aumentada nos pacientes com AIDS. difficile e coprocultura. Se houver febre associada à diarréia, o
Os critérios para erradicação desse agente são idênticos aos da estudo é complementado com hemograma, hemocultura, urina
população em geral. de rotina e radiografia de tórax.
Em função da hipocloridria, os pacientes com AIDS que Se a análise do material fecal for negativa, a investigação en­
necessitem de tratamento para um quadro de úlcera péptica doscópica com biopsias é o próximo passo. De acordo com o
teriam melhor resposta com o uso de protetores de mucosa, apurado na história clínica, se o paciente apresenta um quadro
como o sucralfato, do que com o uso de inibidores de bomba clássico de diarréia do delgado, deverá ser submetido, primeiro,
e de receptores H2. Também os antiácidos que contêm mag­ a uma endoscopia digestiva alta com múltiplas biopsias duode-
nésio estariam contraindicados devido à elevada incidência de nais. Aspirados e citologia esfoliativa também são empregados.
diarréia nesse grupo. As melhores opções são antiácidos à base No caso de uma história sugestiva de colite, a colonoscopia é o
de alumínio ou bismuto. método de escolha. Alguns estudos mostraram que a retossig-
O estudo endoscópico na AIDS é de primordial importância, moidoscopia flexível deixa de diagnosticar até 33% dos casos
e o endoscopista deve ter experiência com esses pacientes, possi­ de colite por citomegalovírus; entretanto, novas avaliações vol­
bilitando o reconhecimento precoce das lesões, realizar biopsias taram a defender a retossigmoidoscopia flexível como a abor­
66 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

dagem mais racional e econômica para esses casos. Durante a


colonoscopia ou retossigmoidoscopia, mesmo se a mucosa tiver
■ Estrongiloidíase
um aspecto normal, múltiplas biopsias aleatórias são colhidas Embora endêmica no Brasil, não é tão frequente quanto seria
na tentativa de isolar um agente específico. Os mais frequen­ esperado em pacientes com AIDS. A dor abdominal é do tipo
temente encontrados são: citomegalovírus, Criptosporidium, cólica ou queimação epigástrica, sendo confundida com doença
Microsporidiutn e micobactérias. Na dúvida quanto à origem cloridropéptica. Outras manifestações incluem náuseas, vômi­
da diarréia, prefere-se começar a investigação com a endoscopia to, diarréia (podendo evoluir com má absorção) e eosinofilia
digestiva alta, deixando a colonoscopia ou retossigmoidoscopia significativa. Nos casos de invasão pulmonar, durante o ciclo
flexível como exame seguinte, se necessário. da doença, caracteriza-se a síndrome de Lõffler com sintomas
Pode ser frustrante para o médico e para o paciente chegar respiratórios. O exame de fezes (Baermann-Moraes) permite
ao final desse ciclo diagnóstico sem conseguir determinar a a identificação do parasito. O tratamento é com tiabendazol
causa da diarréia. Essa é a realidade difícil da AIDS e que não VO 30 a 50 mg/kg no l.° dia, seguido de 500 mg/dia durante 3
deve ser vista como uma falha. A terapêutica sintomática com semanas. A segunda opção é o albendazol 400 mg/dia durante
loperamida, difenoxilato, elixir paregórico e, recentemente, o 7 dias, repetindo-se o esquema após 15 dias.
racecadotril é útil na diminuição do número de evacuações e
do volume hidreletrolítico expoliado. O octreotídio subcutâneo ■ Citomegalovírus (CMV)
pode ser eficiente em casos graves e refratários. Dietas especiais,
sem lactose e com pouca gordura, são instituídas para recupe­ É o principal agente responsável pelas colites, chegando a
ração nutricional do paciente, sendo necessária a nutrição pa- 67% dos casos. Também pode causar úlceras duodenais, ente-
renteral nos casos mais graves. rites e perfurações ileais. Na doença colônica, a apresentação
Caso a diarréia persista por mais 4 semanas, um novo ciclo varia desde o aspecto normal da mucosa, passando por microul-
diagnóstico é iniciado com exames de fezes e estudo endoscó- cerações “em botão”, até a forma mais grave, com ulcerações
pico. A repetição do ciclo aumenta sensivelmente as chances profundas e confluentes. A diarréia vem acompanhada de febre
de isolamento do agente causai, o que é vantajoso para o pa­ baixa (até 38°C) e dor abdominal. Descompressão abdominal
ciente, pois permite um tratamento específico, com resultados dolorosa pode ser encontrada na colite por CMV. A biopsia co-
mais alentadores. lonoscópica, mesmo em mucosa aparentemente normal, pode
O Quadro 6.3 mostra as principais etiologias da diarréia em fornecer o diagnóstico. Casos extremos de infecção colônica
pacientes HlV-positivos. pelo CMV podem se apresentar como formas pseudotumorais
Fatores sazonais, geográficos e de risco influenciam na pre­ com diagnóstico de certeza apenas através do anatomopatoló-
valência de cada agente. Os linfomas de delgado estão, frequen­ gico. 0 tratamento é feito por via parenteral com ganciclovir
temente, associados à icterícia obstrutiva por acometimento da 5 mg/kg/BID por 14 a 21 dias, sendo o foscarnet, 90 mg/kg/
região periampular. Já o sarcoma de Kaposi responde, princi­ TID por 14 a 21 dias, a 2.aopção. A recorrência acontece em até
palmente, pelos casos de doença orificial (proctites). A into­ 9 semanas, devendo-se, no retratamento, utilizar uma dose de
lerância à lactose, em fases mais avançadas da AIDS, é uma manutenção (metade da dose inicial) por mais 21 dias.
importante condição a ser lembrada, podendo ser decorrente
do efeito citopático do próprio HIV sobre a mucosa intestinal. ■ Adenovírus
O diagnóstico diferencial com pancreatopatias é essencial em
pacientes com precedente de alcoolismo. Tem sido descrito como causa de diarréia em pacientes adul­
tos imunossuprimidos e em crianças normais. A biopsia co­
lônica exibe achados histopatológicos diferentes daqueles da
colite por CMV. Até o momento, o suporte clínico é a única
T opção terapêutica.
Quadro 6.3 Causas de diarréia em pacientes com AIDS
■ Herpes simplex
In t e s t i n o d e l g a d o In te s tin o g ro s s o O u tra s
Causa importante de proctites na AIDS, levando a diarréia,
S tr o n g y lo id e s C it o m e g a lo v ír u s P a n c re a tite hematoquezia, tenesmo e dolorosas úlceras perianais. Essas
C ry p t o s p o r id iu m C r y p t o s p o r id iu m In to le râ n c ia à la cto se ulcerações são similares àquelas induzidas pelo CMV, porém
M ic r o s p o r id lu m M A I" D ro g a s a biopsia permite o diagnóstico diferencial. Nos casos de cons­
Is o s p o r a b e lli M T - L in fo m a s tipação intestinal e manifestações neurológicas, o Herpes sim­
S h ig e lla C lo s t r id iu m d iffic ile S a rc o m a d e K a p o si
plex é o principal agente suspeito. O tratamento é realizado
S a lm o n e lla H is t o p la s m a
com aciclovir 200 a 800 mg/dia VO ou com foscarnet 40 mg/
C a m p y lo b a c t e r
kg/IV/TID por 21 dias.
C a m p y lo b a c t e r
G ia rd ia la m b lia A d e n o v ír u s

En ta m o e b a C y c lo s p o r a ■ Cryptosporidium
C y c lo s p o r a H e r p e s s im p le x
Promove uma diarréia líquida com perda de 1 a 20 t por
H IV (?) P n e u m o c y s t is dia, dor abdominal, anorexia, flatulência, náuseas, vômito, fe­
G ia rd ia la m b lia bre, mialgia e eosinofilia. É comum a queixa de dor abdominal
En ta m o e b a e diarréia logo após a alimentação. Pode ocorrer esteatorreia,
H IV (?) má absorção da D-xilose e vitamina B12. 0 exame de fezes revela
oocistos, muco, sangue e leucócitos. Não raramente se associa
" M ycobacterium avium -intracdlulare.
"•M ycobacterium tuberculosis.
à doença da árvore biliar. Recentemente, o tratamento com pa-
romomicina 500 a 750 mg VO, de 6/6 h, por 14 a 28 dias, tem
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 67

alcançado resultados favoráveis. Em fase de experimentação, com o ciclo vital do parasito. Os casos graves cursam com dor
estão a azitromicina e a atovaquona. O octreotídio, embora abdominal, sangramento intestinal, má absorção de vitaminas
não atue sobre o agente, melhora parcialmente a diarréia (50 a e proteínas, podendo chegar à desnutrição. A retocolite é fre­
500 mcg SC/TID/por 48 h). quente na amebíase. Os locais extraintestinais que podem es­
tar acometidos pela Entamoeba são fígado, pleura, pericárdio
e cérebro. A giardíase pode ser detectada tanto no intestino
■ Microsporidium delgado quanto no grosso, em pacientes com AIDS. No trata­
Parasito intracelular obrigatório, tem sido reconhecido mais mento da giardíase, utiliza-se o metronidazol 250 mg VO, de
frequentemente como agente causai de diarréia em pacientes 8/8 h, por 7 dias. Já a amebíase responde ao metronidazol na
com AIDS. As duas espécies associadas à doença entérica são dosagem de 750 mg VO, de 8/8 h, por 10 dias. O tratamento
a Enterocytozoa bieneusi e a Septata intestinalis. Esta última deve ser repetido após 2 semanas para ambos os agentes. O
espécie infecta os macrófagos da lâmina própria e sofre disse­ secnidazol apresenta-se como uma opção mais atual, 1,0 g/dia
minação por via portal até os rins, sendo os seus esporos en­ (dose única), repetindo-se após 1 semana.
contrados na urina. A maior eficácia diagnóstica é obtida com
a microscopia eletrônica de amostras do delgado. O albendazol,
400 mg/VO/BID por 28 dias, reduz a diarréia e promove ganho ■ MIC0BACTERI0SES
de peso em alguns pacientes.
A tuberculose intestinal é principalmente ileocecal e pode
ocorrer em qualquer fase da AIDS, geralmente por reativação
■ isosporíase de focos endógenos. Ao exame clínico, pode-se palpar uma
As fezes são líquidas, ocorrendo esteatorreia e eosinofilia em massa na região do ceco, e o paciente refere perda de peso
cerca de 15% dos casos. O exame de fezes identifica os oocis- e sangramento retal. Linfonodos mesentéricos são descritos
tos. Há boa resposta ao uso de sulfametoxazol-trimetoprima ao exame ultrassonográfico. O diagnóstico é feito pelo acha­
(SMX-TMP) na dose de 75 a 100 mg/kg/dia de SMX, QID, por do do bacilo nas fezes ou através de biopsia colonoscópica da
10 dias, seguido por 3 semanas da mesma dosagem BID. As re- lesão intestinal. O tratamento é o clássico preconizado para a
cidivas são frequentes e demandam manutenção com 800 mg doença respiratória (isoniazida, rifampicina, pirazinamida),
de SMX e 160 mg de TMP diariamente. Deve ser associado o observando-se relatos de resistência e hepatotoxicidade aos
ácido folínico, 5 a 10 mg VO/MID. medicamentos empregados. As micobactérias atípicas predo­
minam em fases mais avançadas da AIDS (CD4 < 50/mm3).
São encontradas no sangue, medula óssea, fígado, linfonodos,
■ Cyclosporaspp. pulmão e trato gastrintestinal. Há febre persistente, sudorese
A Cyclospora spp. é um protozoário responsável por muitos noturna, anemia, leucopenia, elevação de fosfatase alcalina,
casos de diarréia crônica em pacientes com AIDS. Seus oocis- emagrecimento, diarréia e sinais de má absorção. O diagnóstico
tos podem ser detectados em amostras frescas de fezes. Em pode ser feito através de hemocultura, biopsia de medula óssea,
geral, os pacientes predispostos têm contagem de células CD4 de linfonodos ou de lesões viscerais (principalmente no fíga­
< 100 céls./mm3. A espécie C. cayetanensis é causa importante do). Embora não exista um tratamento ideal, o esquema mais
de diarréia crônica na Argentina. Os derivados imidazólicos difundido envolve: etambutol (1,2 g/dia), clofazimina (100 mg/
(metronidazol 250 mg VO/TID - 10 dias e secnidazol 1 g VO/ dia), rifampicina (10 mg/kg/dia), ciprofloxacino (500 a 750 mg
MID - 3 dias) podem ser usados no tratamento. BID). Pode ser associado à amicacina 500 mg BID. A rifabu-
tina, 300 mg/dia, é eficaz na profilaxia primária de pacientes
com CD4 < 100/mm3.
■ Shigella e Campylobacter
Na shigelose, a diarréia é de pequeno volume, sanguinolenta,
com muco, cólicas, tenesmo e febre alta na metade dos casos. ■ HIV
Precedendo o quadro diarreico pelo Campylobacter, podem
ocorrer febre, mialgia, astenia, 18 a 24 h antes dos sintomas in­ A enteropatia pelo HIV deve ser considerada como possi­
testinais. Antidiarreicos que diminuem o peristaltismo devem bilidade diagnóstica nos casos de diarréia crônica, de grande
ser usados com cuidado, pois há risco de invasão da mucosa volume e sem outra etiologia identificável, após repetição exaus­
e dilatação tóxica do cólon. O tratamento com quinolonas é tiva dos testes diagnósticos. É altamente provável que algum
eficaz para os dois agentes. Ciprofloxacino, 500 mg VO/BID patógeno seja identificado se os testes forem repetidos ou con­
por 10 dias. tinuados, o que favorece o paciente na medida em que permite
uma terapêutica específica. O HIV exerce um papel relevante
na gênese da diarréia crônica da AIDS; entretanto, novos agen­
■ Salmonella tes serão certamente descritos com a evolução dos estudos. Na
Apresenta-se com febre, dor abdominal, cólicas e diarréia. enteropatia pelo HIV, a histopatologia demonstra alterações
Em alguns pacientes HlV-positivos, pode ocorrer bacteriemia inespecíficas, como atrofia parcial ou total das vilosidades, hi-
por Salmonella sp.ymesmo antes de preencherem critérios clí­ perplasia de criptas e aumento dos linfócitos intraepiteliais. O
nicos para o diagnóstico de AIDS. O tratamento é feito com teste da D-xilose, alterado nesses pacientes, torna a nutrição
ampicilina, sulfametoxazol-trimetoprima ou ciprofloxacino. enteral ineficaz, requerendo o suporte parenteral para correção
dos déficits porventura existentes. O aconselhamento dietético
é importante, devendo-se adotar uma dieta com baixos teores
■ Giardíaseeamebíase de lactose e gordura. Antidiarreicos (loperamida, codeína) são
Existe predominância de cólicas, flatulência e diarréia cícli­ eficazes no controle da diarréia, e o octreotídio SC é reserva­
ca, ou seja, com períodos de melhora espontânea relacionados do para os casos refratários. A zidovudina pode ser eficaz em
68 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

doses elevadas (1,2 g/dia), embora seus efeitos colaterais sejam ciá-la da colangite esclerosante primária, como a presença
limitantes dessa opção. de débris no interior dos duetos e a lesão preferencial da
árvore esquerda;
3. Associação de estenose papilar e colangite esclerosante:
■ Clostridiumdifficile compartilha aspectos das duas primeiras formas e cor­
A ação de drogas antibióticas e quimioterápicas pode levar a responde à maioria dos casos;
um desequilíbrio da flora intestinal, favorecendo o crescimen­ 4. Estenoses longas coledocianas: são estenoses extra-hepáti-
to de algumas cepas bacterianas, notadamente o Clostridium cas, variando de 1 a 2 cm de extensão. A fisiopatologia des­
difficile} que é um germe anaeróbio de alto poder invasivo e sas estenoses ainda não está completamente elucidada.
produtor de toxinas responsáveis pela formação de pseudo-
A colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPER)
membranas, caracterizando a chamada enterocolite pseudo-
mostra anormalidades em até 80% dos casos, além de permi­
membranosa. Acomete, com frequência, o reto, o cólon es­
tir a obtenção de material para estudo histopatológico, sendo
querdo e, mais raramente, o intestino delgado. O diagnóstico
considerada padrão-ouro para a investigação de pacientes com
é confirmado pela associação dos resultados fornecidos por
suspeita de doença do trato biliar relacionada com a AIDS. Um
biopsia, coprocultura, teste de aglutinação do látex e atividade
método interessante que pode preceder a CPER, e com isso de­
citotóxica. A vancomicina (250 a 500 mg QID VO, por 7 a 14
terminar os pacientes que vão requerer uma propedêutica mais
dias) é o tratamento de escolha. Mesmo com o tratamento, a
invasiva ou uma colocação de prótese biliar, é a colecintigrafia
mortalidade atinge índices de 10 a 30%.
com Tc-99 DISIDA. Esse método é particularmente útil nos
pacientes com estado clínico precário e permite um diagnóstico
presuntivo com elevado grau de certeza. Os padrões principais
■ ÁRVORE BILIAR da colecintigrafia são:
O acometimento da árvore biliar, incluindo a vesícula, ocor­ 1. Dilatação do dueto com estenose e retenção focal ou di­
re em fases mais avançadas da AIDS, geralmente com a conta­ fusa do marcador pelo parênquima;
gem de linfócitos CD4 < lOO/mm^. Vários casos de colecistite 2. Dilatação difusa da árvore biliar com retenção do m ar­
acalculosa e de colangiopatias são hoje atribuídos ao citomega- cador pelo parênquima hepático;
lovírus, ao Cryptosporidium (Pitlik, 1983), e aos Mycobacterium 3. Retenção parenquimatosa do marcador sem anormali­
avium e Microsporidium. A vesícula biliar pode atuar como dades duetais.
reservatório desses agentes, perpetuando, assim, a patologia
A colecintigrafia também pode ser utilizada para monitorar
biliar, que se manifesta tanto na forma de agressão imunoló-
quantitativamente a resposta à intervenção terapêutica através
gica quanto na citopatogenicidade direta do microrganismo.
da depuração do marcador.
Episódios de colecistite acalculosa também são descritos após
No que tange à terapêutica, cabe ressaltar a importância
enterites por Salmonella e Campylobacter. Linfomas da região
da esfincterotomia endoscópica para alívio da sintomatologia
periampular (Prancha 6.1D) respondem por muitos casos de
álgica referida no quadrante superior direito. Obviamente, a
obstrução biliar em pacientes com AIDS. O próprio HIV exerce
seleção de pacientes para esse procedimento deverá ser crite­
seu efeito citopático sobre o epitélio ductal biliar, podendo gerar
riosa, respeitando-se uma relação risco - benefício favorável.
uma inflamação crônica de caráter destrutivo, assumindo carac­
É interessante notar que não há modificação do perfil bioquí­
terísticas de doença colestática. Também tem sido sugerido que
mico hepático após a esfincterotomia, permanecendo os valores
pacientes com HLA tipo DRw52a podem desenvolver um ata­
elevados de fosfatase alcalina.
que imunológico ao epitélio biliar em resposta a um patógeno.
A colecistectomia é o tratamento de escolha para os casos
Enfim, vários são os mecanismos fisiopatogênicos postulados
de colecistite (mesmo acalculosa), em função da capacidade de
para explicar a colangiopatia relacionada com a AIDS.
“reservatório” de agentes oportunistas da vesícula biliar.
Dor no quadrante superior direito, febre (até 38,5°C) e ele­
Outras medidas que podem ser empregadas são a dilatação
vação significativa da fosfatase alcalina, embora inespecíficas, biliar com balão, colocação de endopróteses, quimioterapia
são as principais manifestações clínicas. A icterícia aparece em
para os linfomas e a utilização de ácido ursodesoxicólico. O
cerca de 20% dos casos, e as transaminases podem estar discre­
tratamento específico para agentes oportunistas é dificultado
tamente aumentadas. O exame ultrassonográfico mostra uma pela inoperância do sistema imunológico, já bastante expres­
vesícula de paredes espessadas, dilatada ou de aspecto normal.
siva nessa fase da doença.
A colecistite acalculosa deve ser considerada em todos os por­
tadores de AIDS que se queixam de dor do tipo biliar, sediada
no hipocôndrio direito, ou que apresentem um abdome agudo,
sob pena de se deixar o paciente evoluir para gangrena do co- ■ FÍGADO
lecisto, perfuração e morte. A árvore biliar mostra-se alterada
Alterações bioquímicas hepáticas são muito frequentes na
em mais de 50% dos casos de colecistite acalculosa e, em me­
AIDS, quase sempre assintomáticas. O grande aporte sanguíneo
nor proporção, quando da ausência de patologia vesicular. O
e a presença de células do sistema reticuloendotelial conferem
espectro da chamada “colangiopatia relacionada com o HIV”
ao fígado o status de “janela privilegiada” na detecção de mor-
divide-se em 4 formas principais:
bidades sistêmicas da AIDS. O fígado é um local potencial para
1. Estenose papilar: definida como um diâmetro de dueto remoção de células circulantes infectadas pelo HIV, replicação
biliar comum de ± 8 mm, com marcada retenção de con­ viral (utilizando as células de KupfFer, endotélio sinusoidal e
traste (> 30 min); hepatócito), coinfecção com outros vírus hepatotrópicos, in­
2. Colangite esclerosante (Prancha 6.1C): caracterizada por fecções oportunísticas e neoplasias.
dilatações e estenoses focais dos duetos intra- e extra-he- O Quadro 6.4 resume as principais afecções hepáticas na
páticos. Outros elementos radiográficos podem diferen­ AIDS.
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 69

--------------------------------- ▼--------------------------------- --------------------------------------------- ▼ ------------------------------------------------------------------------------

Quadro 6.4 Etiologia da doença hepática em pacientes com AIDS Quadro 6.5 HIV e vírus hepatotrópicos

V íru s H IV H IV x V íru s A N ã o há e v id ê n c ia d e in te ra ç ã o n o c u rs o c lín ic o d essas


in fe c ç õ e s
H e p a tite s A , B, C , D , E, G

C it o m e g a lo v ír u s H IV x V íru s B A u m e n t o d a re p lic a ç ã o d o v íru s B


H e r p e s s im p le x A u m e n t o d o risco d e c ro n ific a ç ã o d a h e p a tite p o r
H e r p e s -z o s t e r v ír u s B

A d e n o v ír u s R e d u ç ã o d o d a n o h e p á tic o n o s p o r t a d o r e s c rô n ic o s

E p s te in -B a rr R e s p o sta r e d u z id a a o a lfa -in te rfe ro n

R e s p o sta r e d u z id a à v a c in a ç ã o
Fungos C ry p t o c o c c u s n e o fo r m a n s
R e a tiv a ç ã o d o v íru s B, m e s m o n a a u s ê n c ia d o H b e A g
H is t o p la s m a c a p s u la tu m

C a n d id a a lb ic a n s H IV x V íru s C A u m e n t o d a v ire m ia n a h e p a tite c rô n ic a

C o c c id ío id e s Im m lt is M a io r fib ro s e h e p á tic a
P n e u m o c y s t is c a rin il A u m e n t o d a tra n s m is s ã o v e rtic a l d o v íru s C

B a ctérias M y c o b a c te r iu m tu b e r c u lo s is E v o lu ç ã o m a is r á p id a p a ra a c irro s e (?)

M y c o b a c te r iu m a v iu m - in tr a c e llu la r e
H IV x V íru s D P io r e v o lu ç ã o d a c o in fe c ç ã o (v íru s B + D )
M y c o b a c te r iu m x e n o p i
P e rd a d o e fe ito in ib it ó r io d o v íru s d e lta s o b re a
M y c o b a c te r iu m k a n s a s ii re p lic a ç ã o d o v íru s B

R o c h a lim a e a q u in t a n a
H IV x V íru s E A u m e n t o d o risco d e in s u fic iê n c ia h e p á tic a fu lm in a n t e

P ro to z o á rio s T o x o p la s m a g o n d ii e m g rá v id a s

L e is h m a n ia H IV x V íru s G In te ra ç ã o s im ila r à d e s c rita p a ra o v íru s C

N e o p la s ia s S a rc o m a d e K a po si

L in fo m a d e H o d g k in

L in fo m a n ã o H o d g k in

O u tra s H e p a t it e g r a n u lo m a t o s a ■ Citomegalovírus (CMV)


H e p a t o t o x ic id a d e p o r d r o g a s É frequentemente encontrado em biopsia hepática de pa­
ciente com AIDS. Pode infectar o parênquima hepático e tam­
bém a árvore biliar, mas sempre como parte de uma doença
sistêmica. A hepatite pelo CMV é, em geral, assintomática, em­
bora a histologia seja compatível com um quadro agudo, evi­
■ HIV denciando degeneração hepatocitária, necrose e regeneração.
Exerce seu efeito citopático principalmente sobre as células Podem estar associados infiltrados neutrofílicos, linfocíticos e
de Kupffer e endotélio sinusoidal, que expressam o receptor granulomas. Algumas inclusões nucleares possuem um halo
CD4 em sua superfície. Essas células atuam como reservatório e claro circunjacente, dando às células o aspecto clássico de “olho
local de replicação do HIV. Também os hepatócitos, embora em de coruja”. A presença do CMV pode ser confirmada por es­
menor escala, podem servir de albergue para o HIV, como pro­ tudos imuno-histoquímicos, hibridização in situ ou cultura. O
vam estudos imuno-histoquímicos e de hibridização in situ. tratamento é feito com ganciclovir (5 mg/kg/IV/BID, por 14 a
21 dias) ou foscarnet (90 mg/kg/IV/TID, por 14 a 21 dias).

■ HEPATITES A, B,C, D, E,G ■ Herpessimplex


A história natural das hepatites crônicas virais é alterada Também atuando de forma sistêmica, produz lesões na cáp­
pela coinfecção com o HIV. Os índices de fibrose hepática e as sula e no parênquima hepático. São lesões amareladas, com
manifestações clínicas da doença hepática desenvolvem-se mais focos hemorrágicos, podendo atingir até alguns centímetros.
rapidamente. Um tratamento seguro e virologicamente ativo da O diagnóstico é feito com imuno-histoquímica ou cultura. Aci-
coinfecção vírus B/HIV pode ser alcançado através de terapias
clovir, 200 a 800 mg VO, 5 vezes/dia, por 14 a 21 dias, é uma
antirretrovirais contendo lamivudina e/ou tenofovir. Em rela­
boa opção terapêutica, embora a medicação parenteral seja ne­
ção à coinfecção vírus C/HIV, alguns autores têm descrito um
cessária em muitos casos.
processo acelerado de fibrose hepática quando da existência de
hepatopatia crônica ativa pelo vírus C. Entretanto, na maioria
dos casos, a terapêutica antirretroviral representa a mais bené­
fica intervenção inicial. A terapêutica específica contra o vírus
■ Adenovírus
C deveria ser reservada para aqueles pacientes que atingissem Geralmente é achado de necropsia, estando associado a ne­
a supressão do HIV-RNA e uma restauração da atividade imu- crose hepatocitária extensa e hemorragias. Tem maior impor­
nológica, ou seja, linfócitos CD4+ > 350 céls./mm3. tância na população pediátrica. A microscopia eletrônica e téc­
O Quadro 6.5 sintetiza as interações entre HIV e vírus he- nicas de imuno-histoquímica são utilizadas para o diagnóstico.
patotrópicos. Não existe tratamento específico até o momento.
70 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

■ Epstein-Barr ■ Micobacteriose
Tem sido associado a hepatite crônica ativa em crianças com É a infecção mais comumente diagnosticada por biopsia he­
AIDS. Pode induzir o aparecimento de doenças linfoprolifera- pática em pacientes com AIDS. A reativação de focos latentes do
tivas. Detecção imuno-histoquímica e hibridização in situ são Mycobacterium tuberculosis ocorre em fases precoces da doen­
úteis no diagnóstico. O tratamento é dirigido para as compli­ ça, e o aumento de linfonodos do hilo hepático pode provocar
cações. obstrução biliar. Já as micobactérias atípicas (Prancha 6.1F)
acometem o fígado em fases tardias de imunodepressão (CD4
£ 100/mm3). O paciente encontra-se febril, emagrecido, com
■ Cryptococcus neoformans, Histoplasma sudorese noturna, hepatomegalia, elevação de fosfatase alcalina
capsulatum (Prancha 6.1 E), Candidaalbicans e, às vezes, discreta elevação de transaminases.
Em se tratando do Mycobacterium tuberculosis (Prancha
e Coccidioides immitis 6.1 G), a biopsia hepática revela granulomas bem formados
São, ocasionalmente, descritos como agentes de doença he- e, geralmente, com poucos bacilos. Granulomas pequenos e
pática. A resposta inflamatória é do tipo granulomatosa, com malformados são sugestivos de infecção pelo Mycobacterium
granulomas malformados e com poucas células. Conquanto os avium. Não se observa necrose caseosa nesses granulomas. Es­
microrganismos possam ser vistos na coloração por hematoxi- tudos comprovam que a histologia é mais sensível do que a cul­
lina-eosina, outras colorações especiais são importantes (p. ex., tura em detectar micobactérias no tecido hepático; entretanto,
PAS com diástase e Grocott). O uso de zidovudina e ganciclovir a cultura pode ser positiva mesmo na ausência de granulomas
pode levar a uma neutropenia grave e favorecer o aparecimento e bacilos à histologia, o que torna a sua execução indispensá­
de abscessos por Aspergillus sp. vel. Pacientes febris, com biopsia de medula óssea negativa,
Como são doenças sistêmicas, o diagnóstico pode ser feito a revelam, ao exame histológico do fígado, micobactérias em até
partir de secreções pulmonares, líquido cerebroespinal, exames 33% dos casos.
sorológicos e aspirado de medula óssea. Entretanto, a biopsia O tratamento do Mycobacterium tuberculosis no fígado obe­
hepática é necessária em muitos casos e, de preferência, sob dece aos princípios da doença pulmonar (isoniazida, rifampi-
visão laparoscópica. O fluconazol (200 a 400 mg/VO/dia) e a cina e pirazinamida, podendo ser associado o etambutol ou a
anfotericina B (0,5 a 1 mg/kg/IV/dia) são boas opções terapêu­ estreptomicina). Os esquemas para tratamento do Mycobacte­
ticas. Fatores estimuladores de colônias de granulócitos devem rium avium são prolongados e têm posologia empírica (clari-
ser considerados nos casos de neutropenia grave. tromicina, etambutol e clofazimina, podendo ser associada a
ciprofloxacino). A febre pode levar semanas para desaparecer,
mesmo após início do tratamento.
■ Pneumocystis carinii
Patógeno eucarionte, foi inicialmente descrito como sendo
um protozoário; entretanto, as últimas revisões o classificam
■ Peliose hepática
como fungo. Isso se deve, entre outras características, à simi­ Nos pacientes com AIDS, geralmente é secundária à disse­
laridade do material genético (inclusive DNA mitocondrial) minação sistêmica do agente da angiomatose bacilar (um bacilo
desse agente com os basidiomicetos. Sua identificação como gram-negativo denominado Rochalimaea quintana). Entretan­
causa de doença extrapulmonar é cada vez mais frequente. O to, nem todos os casos de peliose hepática podem ser atribuídos
envolvimento hepático ocorre, em muitos casos, associado à a esse agente, e pacientes HlV-negativos também desenvolvem
nebulização profilática com pentamidina, que induziría a dis­ peliose hepática. Histologicamente, a doença é caracterizada por
seminação do Pneumocystis. A histologia da doença no fígado múltiplos cistos pequenos, 1 a 2 mm de diâmetro, preenchidos
é similar à do pulmão, com um exsudato eosinofílico, fraca por sangue, associados a um estroma fibromixoide, contendo
atividade inflamatória e aglomerados de microrganismos. Não poucas células inflamatórias, capilares e “ninhos” de material
existem alterações bioquímicas sugestivas da infecção, sendo a granuloso, que podem corresponder aos bacilos (semelhantes
biopsia responsável pelo diagnóstico da doença hepática. O tra­ às riquétsias). Alguns autores sugerem uma provável associação
tamento é realizado com sulfametoxazol-trimetoprima (15 mg/ do agente com a doença da arranhadura do gato, embora novos
kg/TID por 21 dias VO ou IV). estudos microbiológicos sejam necessários para estabelecer o
real papel da Rochalimaea quintana na peliose hepática. Eri-
tromicina é o tratamento de escolha, e a regressão espontânea
■ Toxoplasmose das lesões hepáticas também já foi descrita.
Apresenta caráter sistêmico, sendo a forma cerebral mais
grave do que a hepática. Pode ser achado ocasional de biopsia.
O uso de pirimetamina (50 a 100 mg/VO/dia) e sulfadiazina
■ Sarcoma de Kaposi (SK)
(1 a 1,5 g/VO/QID) é útil na doença hepática. É a neoplasia hepática mais frequentemente encontrada em
necropsias de pacientes com AIDS. As lesões viscerais são, em
geral, assintomáticas e acompanham cerca de 30% dos casos de
■ Leishmaniose SK cutâneo (Figura 6.1). Fígado, intestinos e pulmões podem ser
A leishmaniose visceral é relativamente frequente em pa­ o local primário da doença. De uma malignidade rara e indolente
cientes com AIDS. Febre, queda do estado geral e esplenome- em pacientes imunocompetentes, o SK assume um comporta­
galia são características da maioria dos casos. Também lesões mento agressivo nos pacientes com AIDS. O exame laparoscó-
gástricas têm sido descritas com relativa frequência, como acha­ pico permite a biopsia hepática dirigida de lesões violáceas ou
do endoscópico. O aspirado de medula óssea permite a iden­ acastanhadas, subcapsulares, cuja histologia revela nódulos he­
tificação das leishmânias. A resposta ao tratamento com anti- morrágicos afetando, inclusive, os tratos portais. A quimioterapia
moniais pentavalentes e pentamidina é precária. sistêmica tem melhor resultado em fases precoces da doença.
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 71

■ Linfomas podendo ser recalculado durante a internação. O tratamento


da pancreatite aguda é principalmente suportivo e consiste no
O linfoma não Hodgkin é o predominante, sendo de alto emprego de analgésicos, reposição hidreletrolítica, suporte nu­
grau e de células B. O envolvimento extranodal e a doença difu­ tricional e, eventualmente, antibióticos e antivirais. Os pacien­
sa são a regra no paciente com AIDS. Alguns casos de acometi- tes devem ser monitorados para detecção dos sinais de falência
mento primário do fígado são relatados. A doença de Hodgkin, de múltiplos órgãos, como hipotensão, síndrome de angústia
embora menos frequente, também é descrita no fígado, apre­ respiratória, coagulopatia, insuficiência renal e sangramento
sentando comportamento agressivo tanto do ponto de vista gastrintestinal. Também as complicações locais (pseudocisto
histológico quanto clínico. Os esquemas clássicos de quimio­ pancreático, abscesso e necrose) serão objeto de vigilância cons­
terapia são utilizados e produzem resultados piores do que na tante. As principais etiologias da pancreatite aguda relacionadas
população soronegativa para o HIV. com a AIDS estão listadas no Quadro 6.6.

■ Drogas e hepatotoxicidade ■ Esteatorreia


Vários agentes farmacológicos utilizados pelos pacientes É definida como a excreção maior que 6 g/dia para uma
com AIDS são hepatotóxicos. Cerca de 10% desses pacientes dieta de 100 g/dia de lipídios. No contexto da AIDS, é neces­
apresentarão algum tipo de complicação hepática secundária ao sária uma pesquisa exaustiva, em material fecal e biopsias de
uso de medicamentos. Os principais achados da doença hepá­ mucosa intestinal, de agentes como Cryptosporidium, Myco-
tica induzida por drogas são: esteatose, colestase, granulomas, bacterium avium, citomegalovírus e Microsporidium. Os dados
fibrose, sobrecarga de ferro transfusão-dependente, necrose he- clínicos sugestivos de insuficiência pancreática incluem dolori-
patocelular e insuficiência hepática fulminante. As drogas que mento e distensão abdominal, diabetes, alcoolismo e calcifica-
merecem maior vigilância são zidovudina, didanosina, isonia- ções pancreáticas. Se a esteatorreia for de origem pancreática,
zida, cetoconazol, sulfametoxazol-trimetoprima, pentamidina, a histologia do intestino delgado e a prova da D-xilose serão
difenil-hidantoína e rifampicina. normais; caso contrário, tornar-se-á difícil determinar o meca­
A entidade “hepatite granulomatosa” (quando nenhum nismo preponderante da má absorção. Em fases avançadas da
agente potencial é identificado) ainda é alvo de calorosas dis­ AIDS, a insuficiência pancreática pode originar-se da síntese
cussões. Uma resposta granulomatosa ao próprio HIV já foi enzimática diminuída, secundária à desnutrição.
postulada como responsável pelo desencadeamento do quadro
(Prancha 6.1H).
■ Icterícia obstrutiva
Nas causas relacionadas com a AIDS, destacam-se: colangi-
■ PÂNCREAS te esc lerosante secundária e compressão biliar por sarcoma de
Kaposi e linfomas, envolvendo linfonodos periportais, duetos
Estudos de necropsias revelam lesões pancreáticas em cerca biliares e cabeça do pâncreas. A colangite esclerosante, nesses
de 10% dos pacientes com AIDS. Alcoolismo e uso de drogas casos, está associada à infecção por citomegalovírus, Cryptos-
injetáveis foram os principais fatores de risco nessa população. poridium, Mycobacterium avium ou Microsporidium.
A doença pancreática desenvolve-se a partir de infecções, neo-
plasias, medicamentos e outras condições relacionadas com a
AIDS. O diagnóstico diferencial dessas manifestações inclui as
■ Intolerância à glicose
seguintes entidades. Pode ser secundária à toxicidade da pentamidina. O acome-
timento pancreático maciço pelo sarcoma de Kaposi, embora
raro, também interfere no metabolismo da glicose. O próprio
■ Hiperamilasemia e pancreatite aguda HIV já foi responsabilizado por uma disfunção de células beta,
A hiperamilasemia sem pancreatite é achado relativamente das ilhotas de Langerhans, levando a um quadro de diabetes
frequente na AIDS e pode ser secundária à insuficiência renal dependente de insulina. Há estudos de engenharia genética em
(nefropatia associada a AIDS), macroamilasemia (imunocom- andamento, visando à identificação de material genético do
plexos circulantes) e hiperamilasemia salivar (doença da paróti- HIV nos cromossomas das células beta do pâncreas.
da). A pancreatite aguda é mais comum entre os pacientes inter­
nados, em estado grave e sob ação farmacológica constante.
O quadro agudo é caracterizado por dor em faixa no an­
dar superior do abdome, náuseas, vômito, elevação de amilase ------------------------ ▼------------------------
(não obrigatória) e, mais tardiamente, da lipase. A tomografia Quadro 6.6 Principais etiologias da pancreatite
computadorizada pode evidenciar o edema pancreático e a he- aguda relacionadas à AIDS
terogeneidade do tecido peripancreático. As características ul-
trassonográficas da pancreatite aguda nos pacientes com AIDS In fe c ç õ e s C it o m e g a lo v ír u s D ro g a s : D id a n o s in a
são similares àquelas dos pacientes não infectados pelo HIV. T o x o p la s m a g o n d ii P e n ta m id in a
Entretanto, em pacientes com AIDS, o fígado e os rins podem C r y p t o c o c c u s n e o fo r m a n s S u lfa m e t o x a z o l-
ser mais ecogênicos, tornando o pâncreas relativamente hipo- T r im e t o p r im a
C o n d id a a lb ic a n s
ecogênico, o que acarreta o diagnóstico errôneo de pancreatite O c t r e o t íd io
H IV (?)
em alguns pacientes. O reconhecimento precoce de um episó­
dio grave de pancreatite aguda demanda cuidados intensivos, N e o p la s ia s S a rc o m a d e K a p o s i e lin fo m a s
sendo o APACHE II utilizado com frequência para esse fim,
/2 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

■ Massa pancreática agudos, e não crônicos. Já as infecções oportunísticas são fre­


quentes nos pacientes com alterações pancreatográficas do tipo
Em função da localização retroperitoneal do pâncreas, torna- crônicas. O Cryptosporidium, por colonização ascendente atra­
se rara a detecção precoce de tumorações pancreáticas. Aliás, vés da papila, pode afetar os duetos biliares e pancreáticos. Ou­
essas tumorações podem nascer de uma lesão pancreática in ­ tros agentes, como Candida, citomegalovírus e Microsporidium,
trínseca, ser uma extensão direta de uma víscera adjacente, uma também são potencialmente lesivos aos duetos pancreáticos,
metástase ou um linfonodo peripancreático. Em se tratando de promovendo a fibrose pancreática. Com base em achados pan-
AIDS, todas as possibilidades devem ser consideradas. creatográficos, alguns autores têm sugerido a denominação
O estudo radiológico de uma massa pancreática é feito atra­ “pancreatite esclerosante relacionada com a AIDS”, embora
vés da apreciação indireta dos seus efeitos sobre o intestino novos estudos sejam necessários para melhor compreensão da
adjacente. Uma ulceração duodenal pode representar exten­ fisiopatologia do processo.
são direta do processo, a estenose luminal uma compressão
extrínseca e o alargamento do arco duodenal traduz o cres­
cimento de uma massa em topografia de cabeça de pâncreas. ■ Toxicidade pancreática induzida por drogas
A ultrassonografia auxilia na distinção entre massas císticas e Pentamidina => Usada no tratamento das infecções por
sólidas, e a tomografia computadorizada identifica adenopatia Pneumocystis carinii, é altamente lipofílica e acumula-se
peripancreática e invasão de vasos adjacentes. Uma história clí­ no pâncreas. Causa lesão da célula acinar pancreática as­
nica de alcoolismo, dor abdominal e pancreatite sugere uma co­ sociada a mecanismos imunológicos. Tanto a terapêutica
leção pancreática aguda ou um pseudocisto como responsáveis sistêmica quanto o uso de aerossóis podem desencadear
pela “massa” pancreática. A tríade perda de peso, hiporexia e a pancreatite aguda. Geralmente, o quadro se instala en­
icterícia progressiva indica um processo neoplásico que, no caso tre o 6.° e o 21.° dia após início do uso. A pentamidina é
de pacientes jovens com AIDS, pode ser um linfoma ou o sar- excretada pelos rins, e a insuficiência renal pode agravar
coma de Kaposi. As infecções pancreáticas associam-se a febre, a sua toxicidade. A hiper ou a hipoglicemia precede o
sudorese noturna e leucocitose (que pode estar ausente). Geral­ quadro de pancreatite, que apresenta os sinais e sintomas
mente, produzem massas heterogêneas e até císticas. A erosão clássicos. O tratamento consiste em suspensão da penta­
de linfonodos retroperitoneais para o parênquima pancreático midina, analgésicos e hidratação parenteral. A resolução
é uma forma importante de disseminação do Mycobacterium do quadro leva cerca de 2 semanas. O metabolismo da
tuberculosis. O diagnóstico é tentado, inicialmente, em locais glicose deve ser acompanhado de perto nos pacientes em
periféricos, medula óssea e fígado. A biopsia pancreática diri­ uso de pentamidina, visto que a hipoglicemia pode ter
gida por ultrassom deve ser realizada com absoluta segurança consequências catastróficas para esses pacientes.
em relação aos parâmetros de coagulação e condição clínica Sulfametoxazol-trimetoprima => A pancreatite desenvolve-
do paciente. Os estudos histopatológico e microbiológico do se em torno do 7.° dia de tratamento, assumindo a forma
espécime colhido são de fundamental importância. edematosa na maioria dos casos. A interrupção do me­
dicamento promove o alívio dos sintomas em 3 dias. Pa­
cientes com algum grau de insuficiência renal encerram
■ Abscesso pancreático pior prognóstico e têm risco de hipoglicemia grave.
O diagnóstico diferencial de uma massa pancreática cística Didanosina => Cerca de 2% dos pacientes em uso desse me­
envolve: coleção aguda, pseudocisto, necrose tumoral e abscesso dicamento irão desenvolver pancreatite. Geralmente, é
pancreático. Este último cursa com febre, episódios de sudo­ associada à zidovudina no tratamento específico anti-
rese e calafrio, fadiga e perda de peso. O paciente com AIDS HIV. Pode desencadear hiperamilasemia assintomática, e
pode não desenvolver leucocitose na presença de um abscesso. a pancreatite ocorre entre a 6.“ e a 24.a semana após início
A tomografia computadorizada é o exame de primeira escolha do tratamento. São episódios graves de pancreatite, com
para estudo de um abscesso pancreático. Infecções por mico- evolução para óbito em 10% dos casos. A didanosina deve
bactérias e Aspergillus respondem por vários casos na AIDS, ser descontinuada já na detecção da hiperamilasemia, po­
sendo a disseminação sistêmica uma constante. dendo demorar até 2 semanas para resolução do quadro
Os abscessos pancreáticos na AIDS devem ser aspirados clínico. Os principais fatores de risco para desenvolvi­
sob controle ultrassonográfico e, quando necessário, realizar mento de toxicidade pancreática são episódios prévios
drenagem externa com antibioticoterapia de amplo espectro de pancreatite, altas doses de medicamentos, baixa con­
de cobertura. tagem de linfócitos CD4 e estado geral debilitado.
Octreotídio => Análogo da somatostatina, tem sido usado
para tratamento de diarréias graves e refratárias em pa­
■ Pancreatite crônica cientes com AIDS. Relatos apontam como de 48 h o inter­
Pouco se sabe a respeito da pancreatite crônica relacionada valo médio entre o uso da medicação e o estabelecimento
com a AIDS. Os pacientes com quadro de insuficiência pancreá­ da pancreatite. Embora não haja consenso, acredita-se
tica e malabsorção, quando submetidos à colangiopancreato- que o octreotídio iniba a secreção ductal pancreática, di­
grafia endoscópica retrógrada (CPER), apresentam alterações minuindo o fluxo e levando à obstrução subsequente. A
pancreatográficas em metade dos casos. Essas alterações são suspensão da droga e a hidratação parenteral generosa
compatíveis com formas crônicas de pancreatite e estão inti­ são os principais pontos do tratamento.
mamente relacionadas com a coexistência de colangite escle-
rosante secundária. Os achados de necropsia revelam fibrose
pancreática e estenoses do dueto pancreático principal.
■ Peritônio
A etiologia da pancreatite crônica relacionada com a AIDS A doença peritoneal nos pacientes com AIDS representa, em
é bastante discutida. Estudos recentes mostram que o padrão geral, uma extensão da doença gastrintestinal. A diferenciação
de toxicidade pancreática induzido por drogas leva a quadros entre doenças de natureza cirúrgica e aquelas que demandam
Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS 73

tratamento clínico é bastante complexa na AIDS. A imunossu- como a cirrose, a insuficiência cardíaca e a hipoalbuminemia.
pressão favorece as apresentações atípicas das infecções opor­ A biopsia laparoscópica, ou com guia radiológico, do omen-
tunísticas, dificultando o diagnóstico. Os principais quadros to ou peritônio, pode ser diagnóstica em pacientes com AIDS
peritoneais na AIDS são dicutidos nos tópicos a seguir. que desenvolvem ascite exsudativa e cujo exame do líquido
mostrou-se inconclusivo.
■ Abscesso peritoneal
A clínica compreende febre, sudorese, fadiga, sensibilidade
■ Peritonite
abdominal localizada, às vezes uma massa palpável e leucocitose Febre, taquicardia, taquipneia, hipotensão, descompressão
com neutrofilia. Em se tratando de pacientes com AIDS, a febre abdominal dolorosa, distensão e defesa abdominal são sinais e
e a leucocitose podem estar ausentes. Métodos de imagem (ul- sintomas que podem ser encontrados em pacientes com perito­
trassom, tomografia computadorizada e ressonância magnética nite. Os ruídos hidroaéreos diminuídos ou ausentes represen­
nuclear) podem mostrar uma massa heterogênea, com níveis tam paralisia e/ou distensão importante de alças e até isquemia
hidroaéreos, deslocamentos viscerais e linfadenopatia. Os prin­ da parede intestinal. Nos pacientes com AIDS, a resposta infla-
cipais agentes etiológicos são micobactérias, citomegalovírus, matória à irritação peritoneal é, geralmente, atípica, atenuada
Aspergillus, Histoplasma capsulatum, Candida, Encephalitozo- e tardia. A concomitância de infecções oportunísticas extra-
on cuniculi e Nocardia brasiliensis. Para isolamento do agente, abdominais pode modificar a apresentação clínica de uma pe­
recomenda-se a aspiração percutânea guiada por ultrassom. ritonite. Os principais agentes etiológicos relacionados com a
O tratamento baseia-se no princípio do esvaziamento da(s) peritonite crônica na AIDS estão listados no Quadro 6.7.
loja(s), embora a disseminação seja frequente e a terapêutica Os sinais radiológicos que chamam a atenção para doença
antimicrobiana, indispensável. abdominal importante são o pneumoperitônio, a imagem da
“impressão digital” na parede das alças, a perda das haustrações
colônicas e a presença de ar na parede intestinal e sistema por­
■ Massa peritoneal ta. Os achados compatíveis com obstrução intestinal incluem
As principais causas de massa peritoneal na AIDS são vis- dilatação proximal, múltiplos níveis hidroaéreos e ausência de
ceromegalias, linfadenopatias, neoplasias (sarcoma de Kaposi ar na ampola retal. A perfuração intestinal (com contamina­
e linfomas), hemorragias encistadas, pseudocisto pancreático e ção por gram-negativos e anaeróbios) e a peritonite piogênica
abscessos. A propedêutica é iniciada com métodos de imagem requerem laparotomia após estabilização hemodinâmica do
para esclarecimento da natureza e provável etiologia da “mas­ paciente. Mesmo com o atendimento adequado, esses casos
sa”. O diagnóstico definitivo é firmado pela histologia e análise exibem elevadas taxas de mortalidade.
microbiológica do material colhido diretamente da lesão. Nos pacientes com AIDS, ocorre pouca mobilização de leu-
cócitos para o fluido ascítico, inclusive nos quadros agudos de
peritonite. Nos casos crônicos, como na tuberculose, os linfó-
■ Linfadenopatia peritoneal citos predominam e o líquido ascítico deve ser cultivado para
É geralmente associada a febre, emagrecimento e fadiga. As micobactérias e fungos. Também é relatada a ocorrência de pe­
principais causas na AIDS são as micobacterioses e os linfomas; ritonite bacteriana espontânea (PBE) em pacientes com AIDS,
entretanto, fungos e vírus também devem ser pesquisados. A sem perfuração intestinal e com pequenos volumes de líquido
tomografia computadorizada é excelente exame para avaliação ascítico. Os fatores de risco para PBE são a baixa concentração
da linfadenopatia abdominal. Caso não exista um linfonodo pe­ de proteína no líquido ascítico, a imunodepressão e a debilidade
riférico acometido, nem infiltração da medula óssea ou mesmo do quadro clínico. A infecção é, geralmente, monomicrobiana e
lesões hepáticas, pode-se tentar uma biopsia direta de linfonodo os principais agentes são Escherichia coli, Klebsiella e Streptococ-
abdominal guiada por tomografia computadorizada, ou lapa- cus. Na AIDS em particular, existe um risco aumentado de PBE
roscopia. A linfangiografia é raramente útil no diagnóstico. por Salmonella. O tratamento é clínico, com antibioticoterapia
sistêmica (cefotaxima, ceftriaxona ou ciprofloxacino).
O diagnóstico diferencial de um paciente com AIDS com
■ Ascite suspeita de peritonite deve ser feito, principalmente, com pan­
As principais causas de ascite relacionadas com a AIDS são creatite, pseudo-obstrução colônica, megacólon tóxico e absces­
hipoalbuminemia (desnutrição), linfomas, nefropatia pelo HIV so peritoneal. As causas mais prevalentes de laparotomia de ur­
(com síndrome nefrótica) e infecções oportunísticas indutoras gência em pacientes com AIDS são expostas no Quadro 6.8.
de peritonites crônicas exsudativas. Por último, salientamos o comportamento agressivo das
Os sinais e sintomas da ascite vão depender do volume de neoplasias gastrintestinais na AIDS, com rápida disseminação
líquido acumulado, variando desde quantidades só detectadas na cavidade abdominal. Cerca de 95% desses tumores são lin­
com métodos de imagem até volumes maiores, que requerem fomas não Hodgkin e sarcoma de Kaposi, sendo o carcinoma
paracentese de alívio. Em todos os casos, o líquido ascítico é
colhido para exame bioquímico, citológico e microbiológico
(indispensável em pacientes febris).
Por convenção, o líquido ascítico é classificado como exsu- ▼
dato quando contém mais de 3 g/dí de proteína, e como tran- Quadro 6.7 Causas de peritonite crônica relacionadas à AIDS
sudato quando contém menos de 3 g/d£ Outras características
do exsudato são a alta concentração de lactato-desidrogenase e M y c o b a c te r iu m t u b e r c u lo s is A s p e rg ilu s f u m ig a tu s
um baixo gradiente soro-ascite de albumina. Como exemplos M y c o b a c te r iu m a v iu m - in t r a c e llu la r e C a n d id a a lb ic a n s
de condições clínicas que podem gerar uma ascite do tipo exsu­ E n c e p h a lit o z o o n c u n ic u li P n e u m o c y s t is c a r in ii
dato, citamos: neoplasias, doenças granulomatosas, pancreatite, T o x o p la s m a g o n d ii C r y p t o c o c c u s n e o fo r m a n s
mixedema e vasculites. Já o transudato aparece em situações
74 Capítulo 6 / Aparelho Digestivo e AIDS

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Parasitoses Intestinais
Pedro Duarte Gaburri, Aécio Flávio Meirelles de Souza,
Ana Karla Gaburri e Elson VidaI Martins Junior

■ INTRODUÇÃO ■ HELMINTÍASES
Fatores comportamentais, geográficos, socioeconômicos,
culturais e imunológicos são de grande relevância na ocorrên­
■ Ascaridíase
cia de doenças causadas por parasitos intestinais. Abordare­ O Ascaris lumbricoides é o parasito que acomete mais fre­
mos neste capítulo as doenças mais frequentemente encon­ quentemente a população brasileira, e sua penetração no orga­
tradas nos serviços de atendimento médico causadas por tais nismo se faz VO, através de ovos embrionados expulsos com as
agentes. No Brasil, este grupo de doenças tem sua importância fezes, os quais contaminam a água e os alimentos. Sua transmis­
muito bem representada pelo Ascaris lumbricoides, que, em são se realiza pela via fecal-oral, e a prevalência se faz mais ele­
algumas regiões, é encontrado em mais de 70% da população, vada em áreas com condições higiênicas e sanitárias precárias,
sobretudo nas crianças. Dentre os helmintos, alguns determi­ o que favorece a infecção humana por outros patógenos, que
nam graves lesões, por vezes letais. Quanto aos protozoários, a seguem a mesma via e podem ocasionar parasitismo múltiplo.
amebíase e a giardíase se destacam, embora, nos últimos anos, Tendo ciclo pulmonar, a passagem pela corrente sanguínea e
a criptosporidíase tenha ganhado ênfase em face da sua elevada pelo pulmão pode levar a alterações respiratórias e sistêmicas.
incidência em doentes com AIDS. A grande migração urbana Entretanto, a ação patogênica principal é mecânica, em virtude
ocorrida em nosso país, em alguns estados, tem promovido uma de seu tamanho e, não raro, da existência de centenas de parasi­
mudança na frequência das diversas parasitoses, antes muito tos no lúmen intestinal. A presença do parasito, seja no intesti­
prevalentes nas zonas rurais. Não se veem mais hoje em dia, nos no delgado, seu habitat natural, seja em localizações ectópicas,
hospitais, enfermarias com vários pacientes com anemia crôni­ como as vias biliares, o canal pancreático ou as vias respiratórias
ca grave, com níveis de hemoglobina abaixo de 5 g%, como era superiores, assume grande significado, pelas obstruções resul­
comum se encontrar em meados do século passado. A esquis- tantes. A ação espoliadora é significativa, se considerarmos que
tossomose, será abordada no Capítulo 101. suas vítimas são, muitas vezes, pessoas acometidas de desnu­
trição. A necessidade de maturação dos ovos no meio externo
não permite a transmissão direta entre as pessoas.
■ ETI0L0GIA O quadro clínico da doença vai depender da carga parasitária
e da localização dos vermes. Um pequeno número de parasitos
São vários os organismos que podem parasitar o aparelho pode não produzir sintomas, mas casos de infestações maci­
digestivo do homem; todavia, estudaremos aqui apenas as doen­ ças, com centenas de vermes adultos localizando-se no intes­
ças causadas por helmintos e protozoários, que serão avalia­ tino delgado, ocasionam cólicas intestinais, náuseas, vômito e
das em seus aspectos básicos para favorecer seu tratamento e distensão abdominal. Novelos de vermes adultos podem gerar
prevenção. obstrução intestinal. A tendência migratória do Ascaris lumbri­
coides favorece a entrada nas vias biliar e pancreática, causando
icterícia obstrutiva com colangite, ou pancreatite aguda. Formas
■ PATOGENIA- QUADRO CLÍNICO mais jovens que ascendem aos canais biliares intra-hepáticos
- DIAGNÓSTICO podem provocar abscessos no fígado. Não raramente, os ver­
mes adultos ascendem às partes mais altas do tubo digestivo
Para uma fácil compreensão da ação patogênica dos para­ e podem ser expulsos pela boca ou pelo nariz. As crianças são
sitos e das manifestações clínicas das parasitoses intestinais, mais propensas a desenvolver quadros mais sintomáticos, em
destacaremos de forma sucinta alguns aspectos referentes à sua face não só do maior número de parasitos, como também do
biologia. Dessa maneira, poderemos entender melhor o quadro menor diâmetro de suas alças intestinais. A migração pulmonar
clínico e o diagnóstico dessas parasitoses. do parasito, durante seu ciclo, pode originar quadros respira-

75
76 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais

Figura 7.1 Intensa destruição da mucosa jejunal, com infiltrado infla-


matório, em caso de hiperinfecçáo por estrongiloidíase. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

tórios com tosse produtiva, escarros hemoptoicos e infiltrados


transitórios, estes identificados em exames radiológicos. Qua­
dros alérgicos, como a asma, têm sido considerados resultado
de hipersensibilidade a substâncias tóxicas produzidas pelo pa­
rasito, mas as convulsões, no passado a ele atribuídas, hoje não
são mais relacionadas com a ascaridíase. Figura 7.3 Mesmo caso da Figura 7.2, após tratamento com tiaben-
O diagnóstico da parasitose se faz pelo achado dos vermes dazol.
adultos nas fezes, de sua expulsão pelas vias respiratórias su­
periores e cavidade oral ou através do exame parasitológico de
fezes (EPF), que faz o reconhecimento de sua presença no orga­ de uma a duas centenas de milhares de ovos por dia facilita o
nismo pelo achado de ovos do parasito. O método empregado diagnóstico. Mais raramente, em exames radiológicos, o ver­
será um dos processos de enriquecimento, como o Hoffmann- me adulto pode ser reconhecido no intestino delgado ou nas
Pons-Janer ou o MIF centrifugado. A postura, por cada fêmea, vias biliares. Em quadros de obstrução intestinal, um aspecto
tipo “miolo de pão” na topografia das alças do delgado sugere
a possibilidade da etiologia da obstrução.

■ Ancilostomíase
Esta doença, predominante na zona rural, é causada pelo
Ancylostoma duodenalis ou Necator americanus, ambos pa-

Figura 7.2 Aspecto radiológico de alça jejunal, em caso de


estrongiloidíase grave, com intensa modificação no padrão da mu­ Figura 7.4 Exemplar adulto de T ric h u ris tric h iu ra , identificado na mu­
cosa. cosa do ceco durante colonoscopia.
Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais 77

rasitos intestinais, com localização preferencial no duodeno e a expulsão dos vermes estão na dependência da atividade de
e que, através de dentes ou placas existentes na sua cápsula mastócitos na mucosa entérica. A doença atinge cifras variáveis
bucal, mordem a mucosa, sugam o sangue do hospedeiro, do em diversos países, sendo as crianças e as classes mais pobres as
qual se alimentam, e, ao longo do tempo, sobretudo em infes­ mais atingidas. Crianças em idade escolar podem estar acome­
tações intensas, ocasionam uma anemia ferropriva. Penetram tidas em taxas acima de 60% em algumas áreas do Brasil. Fato
no organismo através da pele, sob a forma de larvas filarioides de grande significado é a possibilidade de autoinfecção interna
infestantes. Por terem ciclo pulmonar, também determinam ou externa, pela formação e penetração de larvas infestantes no
lesões respiratórias, e sua ocorrência está diretamente ligada interior do próprio intestino ou da pele da região perianal. Essa
ao hábito de andar descalço e ao contato direto da pele com a ocorrência permite o agravamento e a perpetuação da infec­
terra. A doença predomina em países tropicais, com precárias ção humana, sobretudo em doentes imunodeprimidos. Estes
condições higiênico-sanitárias, baixos níveis de educação e de se encontram particularmente em risco de desenvolver a grave
condição econômica. A migração populacional para as cidades, forma de hiperinfecção por Strongyloides stercoralis. As lesões
nas últimas décadas, fez reduzir a frequência de formas mais intestinais variam desde enterites edematosas, com microul-
graves da doença. As lesões iniciais da infestação vão ocorrer cerações e hemorragias, espessamento da parede e atrofia da
na pele, onde petéquias e prurido decorrem da penetração das mucosa, até enterites ulceradas avançadas, com rigidez, edema
larvas. Estas, ao transitarem pelos pulmões, produzem ruptura e fibrose da parede, atrofia da mucosa e úlceras, com ilhotas de
alveolar e hemorragias. No intestino, os vermes adultos produ­ mucosa edemaciada de permeio, imitando, ao exame radioló-
zem lesões aftoides na mucosa, sobretudo duodenal, fruto da gico, as alterações observadas na doença de Crohn.
agressão pela mordida, a fim de sugarem o sangue. Estima-se O quadro clínico é dominado especialmente pelas manifes­
que cada verme possa se alimentar de 0,01 a 0,2 m^ de sangue tações digestivas. As lesões cutâneas em geral não são notadas.
por dia. Dependendo do número de parasitos, do padrão ali­ No pulmão podem ocorrer infiltrados fugazes que se acom­
mentar e do tempo de parasitismo, a espoliação prolongada panham de eosinofilia no escarro e no sangue (síndrome de
determinará anemia ferropriva grave. Lòffler). A eosinofilia sanguínea é marcante em quase todas as
O quadro clínico caracteriza-se por manifestações cutâneas, parasitoses intestinais; porém, nessa doença, atinge cifras mais
como urticária e petéquias, às quais se seguem sintomas respira­ significativas que nas demais. Formas leves de infecção podem
tórios, como tosse, escarros sanguíneos e infiltrados pulmonares ser assintomáticas, mas as queixas digestivas variam desde a
resultantes da migração larvária. Essas alterações são raramente diarréia crônica sem particularidades até formas clássicas de má
percebidas, exceto nas infestações maciças. As manifestações absorção com esteatorreia e emagrecimento acentuado.
digestivas são representadas sobretudo por epigastralgia inca- Doentes com infestação maciça e déficit imunológico apre­
racterística e sangue oculto nas fezes. Os exames endoscópicos sentam disseminação parasitária, com quadros graves de íleo
permitem a identificação da duodenite, resultante de mordidas paralítico, lesões pulmonares, hepáticas e do sistema nervoso
sucessivas na mucosa, visto que o parasito muda frequente­ central. O óbito pode ocorrer nessas ocasiões. Grande atenção
mente o local de sua fixação. A maior representação clínica da deve ser dispensada aos doentes que necessitam de corticoste-
doença, no entanto, é a anemia, com palidez cutânea e muco­ roides em doses elevadas, bem como de imunodepressores e
sa de grau variável, fadiga fácil, edema de membros inferiores quimioterápicos, e que se enquadram nas condições predispo-
e insuficiência cardíaca congestiva nas formas mais graves. A nentes aqui já descritas, sobretudo porque esses medicamentos
geofagia é comum nesses casos. facilitam a instalação da grave hiperinfecção pelo parasito. Nos
O diagnóstico é realizado através do EPF, pelo achado de últimos anos, diversos casos de infestação maciça vêm sendo
ovos ou larvas nas fezes, e a associação de dados epidemioló- descritos nas mais variadas formas de transplantes de órgãos,
gicos e a anemia ferropriva são indicadores que podem levar tendo no uso de imunossupressores um dos motivos predispo-
à suspeita clínica. nentes mais importantes. Aqueles que se acham em fase pré-
transplante devem ser exaustivamente investigados quanto à
possível existência de estrongiloidíase e tratados previamente
■ Estrongiloidíase se infectados.
Seu agente etiológico é o Strongyloides stercoralis, cuja fê­ O diagnóstico da doença é realizado pelo encontro de lar­
mea partenogenética parasita o intestino delgado do homem, vas rabditoides do parasito no EPF, sendo raro o encontro de
especialmente o duodeno e o jejuno, produzindo ovos que logo ovos. O método empregado deve ser o de Baermann-Moraes
dão origem a larvas rabditoides, vistas nas fezes. Em infecções centrifugado, ou o de Rugai, ambos específicos para pesquisa
graves, o verme pode ser encontrado do estômago até o reto. de larvas. Deve-se insistir nessa pesquisa, recolhendo-se três a
Não há machos parasitos, e o helminto penetra no organismo cinco amostras de fezes quando a suspeita clínica é forte. A bile
sob a forma de larvas filarioides infestantes encontradas no aspirada por sonda, ou durante exame endoscópico e subme­
solo, onde também há machos e fêmeas de vida livre. Estes tida ao exame microscópico, pode mostrar a presença de lar­
últimos não parasitam o homem, mas mantêm um ciclo no vas, o mesmo ocorrendo com o escarro. A biopsia de delgado
solo, dando origem a formas larvárias infestantes. As lesões, revela o grau das lesões e inflamação da mucosa, com ou sem
que podem ocorrer na pele e nos pulmões, assemelham-se às a presença do parasito nos fragmentos. Testes imunológicos
descritas para os ancilostomídeos, mas as mais significativas (ELISA, imunofluorescência indireta e radioimunoabsorção)
vão ocorrer no intestino delgado do homem, onde há destrui­ são métodos indiretos que podem ser utilizados nas situações
ção da mucosa, com desintegração do epitélio absortivo. Em em que a pesquisa nas fezes for negativa e a necessidade de
condições de deficiência imunológica, o verme pode invadir a confirmação for imperativa.
corrente sanguínea e disseminar-se para outros órgãos, pro­ Os remédios usados no tratamento da estrongiloidíase são
duzindo formas letais. Raça branca, sexo masculino, cirurgias tiabendazol, cambendazol, albendazol e ivermectina (Ver Qua­
gástricas, doenças hematológicas malignas, uso de corticoste- dro 7.1). A hiperinfecção por S. stercolaris apresenta elevada
roides, ascaridíase, esquistossomose e cirrose hepática são con­ mortalidade, mesmo com tratamento adequado; recomenda-
dições que favorecem a sua ocorrência no homem. A instalação se tratá-la com tiabendazol, 10 mg/kg/dia, oralmente, por 10
78 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais

a 30 dias, ou, alternativamente, 25 mg/kg VO de 12/12 h, dose O quadro clínico é frequentemente destituído de sintomas,
máxima diária de 3 g, por 7 a 21 dias. principalmente em adultos, mas podem ocorrer dores abdomi­
nais, inapetência e, raramente, anemia. O prolapso retal pode
denunciar infestações maciças, quando os vermes adultos são
■ Oxiuríase facilmente identificados na mucosa.
Enterobius vermicularis ou Oxyurus vermicularis, seu agente O diagnóstico é feito pelo encontro dos ovos ao EPF, sen­
etiológico, é um helminto que se localiza na região ileoceco-cóli- do possível o achado do parasito preso à mucosa em exames
ca, de onde fêmeas fecundadas e repletas de ovos se desprendem endoscópicos.
e descem até o canal anal. Aí, por meio de seus lábios, tentam
prender-se à mucosa, determinando incômodo prurido, queixa
mais comum das pessoas parasitadas. As fêmeas não fazem pos­
■ Teníases
tura, mas rompem-se nas margens do ânus, liberando os ovos É doença causada pela presença, no intestino humano, da
nessa região. A infecção humana se faz pela ingestão dos ovos, Taenia solium ou da Taenia saginatayconhecidas popularmente
que podem chegar à cavidade oral por diversos mecanismos. como solitárias. Esses dois helmintos, de corpo em forma de
Frequentemente, são transportados pelos próprios dedos das fita, localizam-se no intestino delgado do homem e podem ter
pessoas infectadas até à boca, devido ao hábito de se coçarem. vários metros de comprimento. Ambos necessitam de hospe­
Os ovos ingeridos liberam larvas no intestino delgado, as quais deiros intermediários - o porco e o boi, respectivamente. Esses
evoluirão para vermes adultos sem passar pelo pulmão. A dis­ animais desenvolvem larvas tipo cisticerco em seus tecidos, e
seminação também se dá pela poeira, já que os ovos são leves e o homem, ao ingerir a sua carne crua ou malcozida, fica con­
podem ser veiculados pelo ar ao serem agitadas as roupas ínti­ taminado com as larvas, que vão evoluir para os vermes adul­
mas e de cama dos doentes. Objetos pessoais e brinquedos fa­ tos no intestino. O corpo do parasito é constituído de vários
cilitam sua transmissão, especialmente entre os que lidam mais segmentos - os proglotes - com grau de maturidade variável,
de perto com as crianças, como familiares e professores. Escolas a partir da cabeça ou escólex. Este mede 1 mm de diâmetro, e
e creches constituem um ambiente propício à disseminação. os proglotes, de 1 a 2 cm, com aspecto de talharim ou sementes
A grande produção de ovos pelas fêmeas e o fato de serem as de abóbora. Os últimos integrantes do corpo são os proglotes
crianças as que mais se contaminam são fatores que favorecem grávidos, repletos de ovos já embrionados. O porco e o boi vão
a sua transmissibilidade, bem como dificultam a erradicação. se contaminar ao ingerirem proglotes, ou ovos, que liberarão
Por serem os ovos liberados nas margens do ânus, já embrio- os embriões em seus intestinos, os quais, após transitarem pela
nados e infectantes, a transmissão assume aspectos peculiares corrente sanguínea, ficarão alojados nos músculos dos animais.
em comparação aos demais helmintos. A migração das fêmeas Os proglotes ou ovos que contaminam os animais são encon­
para a vagina pode gerar sintomas ginecológicos. trados no solo e advêm da deposição de fezes humanas no ex­
O quadro clínico é dominado pelo prurido anal, sobretu­ terior. Os vermes adultos são hermafroditas e não fazem pos­
do noturno, que faz os doentes, especialmente as crianças, se tura de ovos, não sendo comum o achado destes últimos nas
tornarem irritadiços e incomodados durante o sono. Dores fezes. Entretanto, os proglotes se desprendem e são expulsos
abdominais são raramente observadas. passivamente com as fezes, no caso da Taenia solium, ou ativa­
O diagnóstico é possível pelo achado dos vermes adultos mente, no da Taenia saginata}fora do período das evacuações,
nas pregas anais ou sua identificação nas fezes. A presença de sendo encontrados, às vezes, nas roupas íntimas ou de cama,
ovos ao EPF não é comum, visto não haver postura de ovos. saindo através do ânus por movimentos próprios. A ingestão
Pode-se utilizar o método de Graham, que consiste no uso de pelo homem de ovos ou proglotes de Taenia solium ocasiona­
uma fita adesiva montada em um tubo de ensaio, e que é exami­ rá a formação de larvas cisticerco no seu organismo, fato não
nada ao microscópio após ser posta em contato com as pregas verificado com a Taenia saginata. São parasitos mais comuns
anais. Os ovos a ela se aderem e podem ser identificados. São em adultos que em crianças.
também achados ao se examinarem raspados das unhas das O quadro clínico da teníase consiste, na maioria das vezes,
crianças com oxiuríase. em cólicas intestinais ou epigastralgia, mas formas assintomá-
ticas são comuns, com o achado de proglotes nas fezes sendo
a única manifestação. Quando ocorre cisticercose humana, os
■ Tricocefalíase sintomas vão depender da localização das larvas, sendo as for­
É resultante do parasitismo humano pelo Trichocephalus mas neurológicas as mais frequentes, manifestadas por convul­
trichiuris, parasito que tem o corpo filiforme em sua porção sões ou hipertensão endocraniana.
cefálica, permitindo a sua introdução na mucosa intestinal, de O diagnóstico da parasitose é habitualmente realizado pela
onde extrai os nutrientes, incluindo o próprio sangue do hos­ identificação dos proglotes eliminados pelo ânus um a um, ou
pedeiro. O homem é contaminado pela VO, através de água e agrupados em forma de fita. Mais raramente, são encontrados
alimentos contendo ovos embrionados; estes, uma vez no in ­ ovos nas fezes ao exame microscópico, quando há ruptura dos
testino delgado, liberam larvas que evoluem para formas adul­ proglotes dentro do lúmen intestinal. Métodos imunológicos,
tas sem ciclo pulmonar. O verme localiza-se ao nível da região como a fixação do complemento (reação de Weinberg), podem
ileocecal, onde a fêmea faz a postura de ovos, que são elimina­ ser empregados no diagnóstico da cisticercose.
dos ao exterior com as fezes. Assim como outros helmintos, os O tratamento pode ser realizado com praziquantel, ou com
ovos necessitam de maturação no meio exterior, razão por que niclosamida; esta não deve ser prescrita para grávidas. Em áreas
só se tornam infectantes dias após a eliminação. Frequente é endêmicas para neurocisticercose, a dose recomendada de pra­
a localização na ampola retal em infestações graves, causando ziquantel é de 5 a 10 mg/kg. Nesta dosagem, o risco de ativar
edema e microulcerações. Embora seja um parasito hemató- as lesões é pequeno. Entretanto, para tratar a cisticercose, a
fago, a espoliação sanguínea raramente chega a gerar anemia dose sugerida pela maioria dos autores é de 50 mg/kg/dia, di­
importante. vidida em três tomadas, por 15 dias, associada a corticoide,
Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais 79

para diminuir a reação inflamatória decorrente da morte dos desse protozoário. Duas espécies adicionais do gênero Enta­
cisticercos. moeba foram reconhecidas em humanos, que são morfologi-
A niclosamida é prescrita em dose de 2 g VO para adultos camente indistinguíveis da E. h.. A mais recente nomenclatura
e crianças maiores de 8 anos. índice de cura entre 80 e 90% recomendada é muito importante para a aplicação prática do
dos casos. cuidado dos pacientes. Embora 10% da população mundial seja
considerada infectada pela E. h., sabe-se hoje que a maioria o
é pela Entamoeba dispar (E. d.), que não é patogênica. Estu­
■ Himenolepíases dos mais recentes usando metodologias capazes de distinguir
Os helmintos Hymenolepis nana e Hymenolepis diminuta as duas espécies geneticamente têm demonstrado que a E. d. é
são os causadores da parasitose. São vermes pequenos, de cor­ 10 vezes mais prevalente que a E. h. em regiões endêmicas, em
po achatado, que vivem no íleo e jejuno do homem e de ratos. pessoas assintomáticas. Não há meios de distingui-las morfo-
O primeiro é mais comum, mede de 3 a 5 cm e é adquirido logicamente, sendo recomendado por alguns estudiosos que
quando se ingerem ovos embrionados ou insetos, especialmente os resultados dos exames parasitológicos baseados apenas na
pulgas e coleópteros, contendo larvas chamadas cisticercoides. morfologia sejam rotulados como E. hystolitica/E. dispar.
O segundo chega a 30 a 60 cm, é parasito habitual do rato e só A terceira espécie, a Entamoeba moshkovskii, tida a princípio
raramente contamina o homem através da ingestão de pulgas e como de vida livre, tem sido encontrada no intestino humano,
coleópteros contaminados com larvas. A sua presença é muito sugerindo que ela possa causar doença intestinal, embora pou­
frequente em crianças, sobretudo de creches e orfanatos, onde co se conheça de sua patogenia e epidemiologia no momento.
a contaminação do meio se torna propícia e medidas higiêni­ As observações anteriormente descritas podem sugerir que se
cas não são adotadas. evite o desnecessário tratamento de pessoas assintomáticas,
O quadro clínico é modesto em suas manifestações. A grande sendo recomendável observar-se o consenso preconizado pela
maioria é assintomática ou apresenta sintomas inespecíficos, OMS. Já a E. h. é a forma patogênica, responsável pela colite
como irritabilidade, agitação e dores abdominais. A expulsão amebiana e por outras manifestações extraintestinais, sendo a
espontânea dos vermes adultos pode ocorrer, provocada por gravidade das lesões influenciadas pela virulência das cepas de
intensa ação imunogênica dos parasitos. determinadas regiões e pelo comportamento imunológico do
O diagnóstico é realizado pelo achado dos ovos nas fezes hospedeiro. Mais de 90% das infecções por E. h. permanecem
pelos métodos habituais de EPF. assintomáticas, e a invasão da mucosa intestinal pode ocorrer
O tratamento é realizado com praziquantel (dose única de dias ou anos após a contaminação.
25 mg/kg) As formas móveis da E. h., os trofozoítos, contendo ou não
hemácias no citoplasma, reproduzem-se e dão origem a formas
de resistência, os cistos, que, eliminados com as fezes, sobre­
■ Difilobotríase vivem fora do intestino, permitindo a transmissão da E. h. por
Causada pela infecção intestinal pelo Diphyllobothrium la- contaminação da água e alimentos consumidos pelo homem.
tumt um platelminto comum em países do Mediterrâneo, teve Encontrada em 10% da população mundial, é responsável por
em 2005 o primeiro caso registrado no Brasil, em razão do 40 a 110 mil mortes anuais, só sendo superada pela malária
crescente hábito de uso de peixes crus na alimentação em nosso como protozoário causador de infecções fatais. Vale realçar
país. Este cestódio absorve muita vitamina BI2no lúmen intes­ que as estimativas sobre a prevalência da infecção pela E. h. se
tinal, o que gera em alguns anemia megaloblástica. O parasito baseiam em resultados de exames de fezes, que são incapazes de
tem nos peixes (salmão e trutas principalmente) seu hospedeiro diferenciar a E. h. de formas não patogênicas, morfologicamen-
intermediário, na carne dos quais uma forma imatura do Di­ te indistinguíveis como a E. dispar e a E. moshkovskiiyque não
phyllobothrium latum, chamada espargano ou plerocercoide, são patogênicas. Sua patogenicidade variável é hoje atribuída
se desenvolve e, ao ser ingerida junto à carne crua de peixes, a cepas diferentes existentes em diversos países. Assim, formas
se desenvolve no intestino humano, dando origem ao parasito graves da doença são comuns em países asiáticos, africanos e da
adulto. Embora a grande maioria das pessoas infectadas seja América Latina, especialmente o México. No Brasil, não con­
assintomática, cerca de 40% manifestam anemia por carência tamos com dados reais de sua incidência nas diversas regiões,
de vitamina BI2. De 2004 a 2005, 52 casos foram descritos no mas seu comportamento parece bem distante da gravidade ve­
estado de São Paulo. A profilaxia limita-se ao uso de carnes de rificada em outros países como o México. As lesões intestinais
peixes bem cozidas. O tratamento é feito com praziquantel. mais características são as úlceras, com mucosa sadia de per­
meio, mais comuns no ceco, cólon ascendente, reto e sigmoide,
ocorrendo em menor número nos outros segmentos. No fíga­
■ PR0T0Z00SES do, pode produzir inflamação difusa com necrose multifocal,
a hepatite amebianat ou necrose coalescente acentuada, com
secreção achocolatada em seu interior, o abscesso hepático. Este
■ Amebíase é mais comum no lobo direito, onde se localiza em 90% dos
Definida pela Organização Mundial de Saúde como a infec­ casos, e é quase sempre único. No pulmão e no cérebro, podem
ção pela Entamoeba histolytica (E. h.) independentemente de se formar também abscessos, com características semelhantes.
sintomatologia, é um protozoário que habita o intestino grosso Não se conhece ainda com precisão o mecanismo pelo qual a
do homem, de onde pode ganhar a corrente sanguínea e che­ E. h. produz a lise celular. Enzimas proteolíticas e toxinas, ci-
gar ao fígado, aos pulmões e ao cérebro, ocasionando lesões tólise por contato direto e coparticipação da flora bacteriana
extraintestinais graves. Sua presença no organismo humano intestinal são alguns dos fatores cogitados.
pode se dar sem ocorrência de lesões, havendo, assim, casos O quadro clínico varia de acordo com a localização do
de amebíase-doença e de amebíase-infecção. Sua prevalência e protozoário, podendo-se, didaticamente, separar as formas
patogenicidade variam em diferentes regiões. Recentes avanços intestinais das extraintestinais. Os infectados apresentam-se
na tecnologia molecular revolucionaram nossa compreensão assintomáticos, ou com manifestações intestinais moderadas
80 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais

na grande maioria. Já as formas extraintestinais são menos co­ Outras drogas poderão ser ocasionalmente usadas, como
muns, especialmente em nosso meio. Alguns se mantêm assin- amebicidas tissulares (deidroemetina e emetina), amebicidas de
tomáticos por toda a vida, mas contribuem para a disseminação ação intraluminar (furoato de diloxanida, iodoquinol, patomo-
da doença. Outros desenvolvem surtos intermitentes de diarréia micina), ou drogas que agem tanto no lúmen intestinal quanto
ou disenteria, com períodos sem sintomas entre as crises. Não na parede intestinal (tinidazol, metronidazol). O abscesso ame-
se conhece ainda a explicação para esse tipo de comportamento biano do fígado é estudado no Capítulo 99.
tão variado. Casos há em que a doença chega a formas graves,
assemelhando-se à retocolite ulcerativa inespecífica, com úl­ ■ Giardíase
ceras em todo o intestino grosso, podendo levar, inclusive, a
quadro de megacólon tóxico, hemorragias e perfuração. Uma É a infecção humana pela Giardia lamblia, um protozoá-
forma rara é a pseudotumoral, denominada ameboma e que rio flagelado, encontrado na forma de trofozoítas e cistos. Os
determina quadros de obstrução intestinal devido à reação hi- trofozoítas fixam-se à mucosa do intestino delgado, habitat
perplásica na submucosa. A hepatite amebiana é caracterizada natural do parasito, através de discos suctoriais existentes em
por hepatomegalia dolorosa e adinamia, sendo descrita com sua superfície, e, quando em grande número, atapetam a m u­
frequência em países africanos. O abscesso hepático apresenta- cosa entérica, impedindo que os processos absortivos se rea­
se com toxemia, febre tipo supurativa, hepatomegalia dolo­ lizem em sua plenitude. Os cistos são as formas de resistên­
rosa e abaulamento doloroso dos espaços intercostais. Sinto­ cia capazes de viver fora do organismo humano e contaminar
mas gerais, como calafrio, suores, náuseas e inapetência, são água e alimentos, por meio dos quais chegam ao intestino e
comuns. Seu tamanho pode variar de poucos centímetros ao iniciam a formação de trofozoítas. Além de criar uma barrei­
de uma cabeça de feto. O risco de perfuração para a cavidade ra entre o lúmen e a superfície dos enterócitos, em alguns pa­
peritoneal é maior naqueles com diâmetro acima de 5 cm ou cientes esse protozoário ocasiona alterações inflamatórias na
nos localizados no lobo esquerdo do fígado. Coinfecção bac- mucosa, agravando mais ainda a disabsorção. Sua presença é
teriana também pode ocorrer. A perfuração para a cavidade frequente em doentes com deficiência de IgA secretora, como
pleural direita pode facilitar a chegada da E. h. ao pulmão e a nas disgamaglobulinemias com hiperplasia nodular linfoide
formação de empiemas. Os abscessos cerebrais têm manifes­ do intestino delgado.
tações neurológicas características. Hemorragias, perfurações, O quadro clínico é variável. Na grande maioria dos casos
estenoses e obstruções intestinais são consideradas complica­ assintomáticos, manifesta-se por diarréia de duração variável;
ções. A imunidade contra a infecção pela E. h. é associada à em outros, acompanhada ou não de queixas inespecíficas, como
náuseas, vômitos e dor abdominal. As manifestações clínicas
produção pela mucosa de uma IgA contra o carboidrato Gal/
GalNAc lectina. Esta observação tem estimulado a busca de mais exuberantes ocorrem nas crianças, cuja superfície absor-
tiva é menor que nos adultos, chegando a causar síndromes de
uma vacina contra a E. h cuja eficácia em animais tem se mos­
má absorção clássica. A infecção assintomática é observada em
trado animadora.
todas as idades. O diagnóstico é feito pelo achado de cistos e
O diagnóstico da amebíase pode ser feito pelo achado de
trofozoítas nas fezes. Mais raramente, em fragmentos de biopsia
cistos ou de trofozoítas nas fezes, estes últimos vistos apenas
do intestino delgado, os trofozoítas podem ser vistos aderidos
em fezes purgadas. Em fezes diarreicas, os trofozoítas podem
à mucosa. Métodos de concentração (Faust, MIF centrifugado)
ser identificados em exame direto de fezes frescas, desde que podem ser úteis no achado de cistos nas fezes moldadas, mas
colhidas e examinadas de imediato. Em outras circunstâncias, os trofozoítas só são bem visualizados em fezes purgadas, cora­
utilizam-se métodos de enriquecimento (Faust ou MIF centrifu­ das pela hematoxilina férrica. Métodos imunológicos têm sido
gado), ou exame de fezes purgadas artificialmente, colhidas em investigados, mas ainda não superam o achado direto do para­
conservador de Schaudin e coradas pela hematoxilina férrica. O sito como recurso diagnóstico. A ocorrência de giardíase em
achado dos trofozoítas na secreção dos abscessos não é comum. doentes com doença celíaca pode criar dificuldades ao diagnós­
Em tais circunstâncias, recorremos a testes sorológicos, como a tico desta última, sendo, em casos suspeitos dessa associação,
hemaglutinação indireta, cujos títulos de positividade para an­ recomendável a pesquisa de anticorpos antitransglutaminase,
ticorpos da classe IgG se encontram acima de 1:128. Esta última de grande valor no reconhecimento dos celíacos.
reação pode ser útil também nas formas intestinais invasivas. Tratamento com tinidazol (dose única de 2 g) ou com me­
Por sua alta sensibilidade, o método de ELISA tem sido consi­ tronidazol (250 mg/kg TID, durante 5 dias). O álcool deve ser
derado o mais recomendado na atualidade. A diferenciação da interditado com ambas as drogas, pois a associação pode pro­
E. h. da E. d. e das demais amebas não patogênicas se faz por vocar efeito antabuse. Ambas podem causar gosto metálico e
meio de testes de reação em cadeia da polimerase (PCR). A in­ sintomas gastrintestinais ligeiros.
corporação de novas tecnologias para o diagnóstico laboratorial
das tres espécies será de grande valia na melhor compreensão
de sua patogenicidade e epidemiologia. ■ Balantidíase
A forma assintomática, não invasiva, deve ser tratada com O Balantidium coli, seu agente causai, é um parasito comum
amebicidas intraluminais - etofamida, teclosan. A etofamida é no porco e que afeta principalmente os trabalhadores de pocil­
prescrita para adultos na dose de 200 mg, TID VO, por 5 dias, gas ou matadouros que lidam diretamente com as vísceras do
ou 500 mg BID, por 3 dias. O teclosan é receitado em dose de animal. É o maior protozoário parasito do intestino humano
1,5 g, de uma só vez, ou em três doses de 500 mg de 8/8 h. e localiza-se na mucosa do cólon, onde pode ocasionar lesões
Para a forma invasiva, o tratamento para adultos é feito com semelhantes às da amebíase intestinal. Os trofozoítas multipli­
o metronidazol, ou, alternativamente, com o tinidazol. A dose cam-se e formam cistos, que são eliminados com as fezes e vão
do primeiro é de 750 mg VO, ou de 500 mg a 750 mg IV de contaminar água e alimentos. O parasito pode, no homem, viver
8/8 h; as duas duram 5 a 10 dias. Como para os demais nitroi- sem produzir lesões, mas, por mecanismos enzimáticos, pode
midazólicos, o álcool não deve ser ingerido simultaneamente agredir a mucosa, levando à formação de úlceras de dimensões
com estes medicamentos. variáveis, contendo material purulento, onde os trofozoítas são
Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais 81

encontrados ao exame direto em microscopia óptica. Sua agres­


são à mucosa parece depender de uma lesão prévia causada por
■ TRATAMENTO
outros agentes, tais como bactérias ou vírus. Nas últimas décadas, o tratamento das parasitoses intestinais
O quadro clínico varia desde formas assintomáticas até sur­
experimentou grande avanço com o surgimento de antiparasi-
tos de diarréia intermitente ou de disenteria semelhante à ame- tários polivalentes, de boa tolerância e de significativa eficiên­
biana. cia, simplificando a terapêutica. Ao mesmo tempo, a eficácia de
O diagnóstico baseia-se no achado dos trofozoítas e cistos substâncias de grande ação no tratamento das protozooses foi
em exame direto das fezes frescas ou de material colhido dire­
confirmada, tornando mais fácil para o clínico a abordagem da
tamente das úlceras por retossigmoidoscopia.
maioria das parasitoses. Também foi mais bem demonstrada a
importância do sistema imunológico, não só na instalação como
■ Isosporíase na expulsão dos parasitos intestinais, deixando compreender a
razão de casos resistentes ao tratamento. A elevada prevalência
A lsospora belli é um protozoário parasito intracelular dos dessas doenças está relacionada com problemas de saneamento
enterócitos e que se reproduz na mucosa intestinal, gerando básico e educação sanitária, razão por que não basta apenas usar
a formação de oocistos, eliminados ao exterior com as fezes. medicamentos, mas também incrementar medidas profiláticas
Sua frequência não é significativa, e estudos recentes têm de­ para evitar as reinfecções. As formas de contaminação humana
monstrado seu papel patogênico relacionado com algum grau e as vias de penetração dos parasitos devem orientar medidas
de imunodepressão. A infecção humana ocorre através da in- preventivas específicas e já bem conhecidas. Quanto aos medi­
gesta de água e alimentos contaminados com oocistos. Adquire camentos disponíveis, alguns se destacam, sendo mais empre­
maior importância em doentes com AIDS. gados por sua melhor tolerância e comodidade posológica. Os
O quadro clínico da doença é caracterizado por diarréia crô­ Quadros 7.1 e 7.2 apontam os principais recursos terapêuticos
nica e perda de peso, embora um grande número de pessoas se atualmente disponíveis. Outras alternativas estão sendo propos­
apresente sem sintomas, ou com diarréia leve e autolimitada.
tas em algumas parasitoses, como o albendazol, 400 mg/dia du­
O diagnóstico é realizado pelo encontro de oocistos nas
rante 5 dias, para o tratamento da giardíase, e a paromomicina,
fezes, favorecido pelo uso de métodos de enriquecimento. O
500 mg 3 ou 4 vezes/dia, para a criptosporidíase. A ivermectina
protozoário pode ser, também, encontrado em biopsias je-
demonstrou valiosa ação terapêutica na estrongiloidíase, equi­
j unais.
valente à do tiabendazol, na dose de 200 pg/kg de peso/dia, em
dose única, por 2 dias consecutivos, com menor índice de efei­
■ Cri ptosporid íase tos colaterais. Resultados significativos foram também obtidos
com essa nova droga na ascaridíase, oxiuríase e tricocefalíase.
O Cryptosporidium constitui-se em um gênero que agrupa A forma grave de hiperinfecção por Strongyloides stercoralis
vários protozoários descritos ao longo das últimas décadas, merece menção terapêutica especial. O tratamento é feito com
incluído entre os coccídeos e parasitos de diversas espécies ani­ o tiabendazol, em doses de 50 mg/kg de peso/dia, e deve ser
mais. O Cryptosporidium parvum é a única espécie descrita prolongado por 7 a 14 dias. Nunca se devem usar corticoides,
como parasito do intestino delgado do homem. Sua infecção nem outras drogas imunossupressoras, nesses doentes, por au­
também se faz por via fecal-oral graças à ingestão de oocistos. mentarem muito a possibilidade de êxito letal.
A autoinfecção tem sido descrita como meio de manutenção da
Em relação à amebíase, existem amebicidas tissulares e ou­
infecção em doentes aidéticos. Infiltrado inflamatório e atrofia
tros de ação intraluminal. No primeiro grupo, se incluem os
das vilosidades ocasionam, sobretudo em imunodeficientes,
nitroimidazólicos como o metronidazol, o tinidazol e o seco-
dificuldades de absorção de gorduras e dissacarídios. Meca­
nidazol. Embora o metronidazol tenha também ação intralu­
nismos imunológicos interferem na patogenia da doença. A
redução dos linfócitos auxiliares na mucosa parece envolvida minal sobre os cistos em 50% dos casos em que é empregado,
com a cronicidade observada em imunodeficientes, já que a recomenda-se o uso de outra droga como o iodoquinol, a pa­
infecção em imunocompetentes é, em geral, autolimitada. A romomicina, a etofamida, o teclozam ou o furoato de diloxa-
diarréia seria resultante não só das lesões estruturais da m u­ nide, que possuem ação intraluminal e são capazes de atuar
cosa, mas também da produção de toxinas ativadoras da ade- sobre as formas císticas, eliminando assim a disseminação do
nilciclase do enterócito. protozoário. Esta última conduta é desnecessária em regiões de
O quadro clínico, em imunocompetentes, caracteriza-se por alta endemicidade, onde é frequente a reinfecção precoce após
diarréia aquosa, em geral sem grandes repercussões gerais e com o tratamento apropriado.
duração de poucas horas a 2 semanas; mas casos mais graves Mais recentemente, passamos a contar com o uso da nitazo-
podem ocorrer, manifestando febre, vômitos, desidratação e xanida, um antiparasitário de amplo espectro de ação sobre os
disabsorção. Alguns pacientes cursam com infecção assintomá- nematelmintos e platelmintos, assim como sobre os protozoa-
tica. Nos imunodeficientes, a diarréia é variável em intensidade, rios, inclusive o Cryptosporidium spp. Trata-se de um derivado
apresentando desde quadros insidiosos até quadros dramáticos, do nitrothiazol (2-Acetyloxil-N-(5-nitro-2 thiazolil) benzami-
com diarréia profusa e êxito letal. Esses quadros mais graves da, cuja estrutura química é relacionada ao metronidazol, e que
costumam ocorrer em estágios finais da AIDS e, às vezes, acom­ atua inibindo uma enzima essencial ao metabolismo energético
panham-se de colestase, por invasão das vias biliares. dos parasitas. A dose para adultos é de 500 mg a cada 12 horas
O diagnóstico baseia-se no achado do protozoário nas fezes, por 3 dias. Para crianças de 12 a 47 meses, se recomendam 100
utilizando coloração específica em métodos de pesquisa de an­ mg a cada 12 horas, enquanto, para as de 4 a 11 anos, 200 mg no
ticorpos por ELISA. A microscopia óptica permite identificar o mesmo intervalo entre as doses, em ambas as circunstâncias por
parasito em fragmentos de biopsia do intestino delgado, onde 3 dias consecutivos. Os seus efeitos adversos são pouco comuns
são facilmente reconhecíveis na superfície dos enterócitos. e representados por cefaleia, náusea e desconforto abdominal.
82
Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais
------------------------- ▼-------------------------
Quadro 7.1 Medicações e doses empregadas nas helmintíases

M ebendazol Albendazol Tiabendazol Cam bendazol Pam oato de p irv ín io Praziq u an te l Tetram bole tverm ectina N itazoxanida*

Ascaridíase 100 m g 2 v e z e s / d ia 1 0 m g / k g p e so , 8 0 m g / c ria n ç a s 5 0 0 m g c a d a 12 h


d u r a n t e 3 d ia s e m d o s e ú n ic a 1 6 0 m g / a d u lto s p o r 3 d ia s
à n o ite e m d o s e ú n ic a

Ancilostomíase 100 m g 2 v e z e s / d ia 500 m g cada 12h


d u r a n t e 3 d ia s p o r 3 d ia s

Estrongiloidíase lO m g / k g p e s o , 5 0 m g / k g p e s o / d ia 5 m g/kg, e m dose 10 m g . e m dose 2 0 0 p g / k g p e so , 5 0 0 m g c a d a 12 h


e m d o s e ú n ic a - 3 d ia s ú n ic a à n o ite ú n ic a à n o ite , e m dose p o r 3 d ia s
à n o ite , 3 d ia s c o n s e c u tiv o s ; p o r 3 d ia s ú n ic a , o u p o r
c o n s e c u tiv o s r e p e tir n o 5 o e c o n s e c u t iv o s 2 d ia s
n o 15° d ia s

Oxiuríase 100 m g 2 v e z e s / d ia 10 m g /k g e m d o se 5 0 0 m g c a d a 12 h
d u r a n t e 3 d ia s ú n ic a e m j e j u m p o r 3 d ia s

Tricocefalíase 100 m g 2 v e z e s / d ia 1 0 m g / k g p e so , 5 m g/kg, e m dose


d u r a n t e 3 d ia s e m d o s e ú n ic a ú n ic a à n o ite
è n o ite

Teníases 100 m g 2 v e z e s / d ia 25 m g/kg/peso , 5 0 0 m g c a d a 12 h


d u r a n t e 6 d ia s e m d o s e ú n ic a p o r 3 d ia s

Himenolepíases 100 m g 2 v e z e s / d ia 25 m g/kg/peso , 5 0 0 m g c a d a 12 h


d u r a n t e 6 d ia s e m d o s e ú n ic a ; p o r 3 d ia s
r e p e tir n o 10 3 d ia

Difilobotríase 5 a 1 0 m g /k g peso
- d o s e ú n ic a

•Observar no texto a dose para crianças.


---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------▼ ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Quadro 72 Mediações e doses empregadas nas protozooses

M e tro n id a zo l S econidazol C lo ra c e ta m id a Fu ra zo lid o n a T e tra c k lin a Piri m e ta m ina SMZ + TM P E sp ira m k in a A lb e n d a zo l N ita zo x an id a * C ipru flo xa cin o

A m e b ía s e 2 50 a 750 m g - 1,5 g / d ia d u r a n t e 3 0 0 m g / d ia 5 00 m g cada


3 v e z e s / d ia - 5 a 3 d ia s d u ra n te 1 2h por
1 0 d ia s c ria n ç a s : 3 0 m g / k g / 5 d ia s 3 d ia s
d ia d u r a n t e 3 d ia s

G ia r d ía s e a d u lto s : 5 a 7 m g / k g / d ia 4 0 0 m g / d ia 5 00 m g cada
5 0 0 m g / d ia / 1 0 d ia s d u r a n t e 7 d ia s 5 d ia s 12h p o r3
c ria n ç a s : d ia s
2 5 0 m g / d ia / 1 0 d ia s

B a la n t id ía s e 4 0 0 m g 3 v e z e s / d ia 5 a 7 m g / k g / d ia a d u lt o s :
p o r 10 d ia s d u r a n t e 7 d ia s 1 g / d ia / IO d ia s
c ria n ç a s :
4 0 0 m g / d ia /
1 0 d ia s

Is o s p o r ía s e a d u lto s : 7 5 m g / d ia 2 c o m p y d ia 500 m g
5 0 0 m g / d ia / 1 0 d ia s + 4 g de p o r lO d ia s 2 v e ze s/d ia
c ria n ç a s : su lfa d ia zin a / d u r a n t e 7 d ia s
2 5 0 m g / d ia / 1 0 d ia s d ia d u r a n t e
21 d ia s

Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais


C r i p t o s p o r id í a s e 1 g /3 v e z e s 400 m g 2 5 00 m g cada
a o dia veze s/d ia 12 h p o r
d u ra n te 7 a 3 d ia s
14 d ia s

SM Z + TM P = S ulfam etoxa/ol + Trim etoprim a.


•Observar no texto a dose para crianças.

83
84 Capítulo 7 / Parasitoses Intestinais

Nenhuma anormalidade hematológica significativa foi até hoje Gcnta RM. Global prcvalencc of strongyloidiasis; criticai rcvicw with epide-
miologic insights into the prevention of disseminated discasc. Rev Infec
observada. Em estudo realizado em 613 crianças HIV-negativas,
Dis, 1989; 11:755-67.
os efeitos adversos registrados foram dor abdominal em 7,8%, Gonçalves PN Diagnóstico e tratamento das parasitoses intestinais. Em: Gal-
diarréia em 2,1%, vômitos em 1,1% e cefaleia em 1,1%. vão AJ & Dani, R. Terapêutica em Gastrenterologia. Rio de Janeiro, Editora
Guanabara Koogan, 2005.
Haquc, R, Huston CD, Hughes, M et a i Amcbiasis. N Engl J Med, 2003,
■ LEITURA RECOMENDADA 348:1565-73.
Castro, LP, ('unha, AS, Rezende, JM. Protozooses Humanas. São Paulo, Fun­ Liu, LX & Wellcr, PF. Drug thcrapy: antiparasitic drugs. N Engl J Med, 1996;
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Cunha, AS. Parasitoses intestinais. Em: Dani, R & Castro, LP. Gastrenterologia Naquira, C, Jimcncz, G, Guerra, JG et a i Ivcrmectin for hum an strongyl­
Clinica, 3 / cd., Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1993. oidiasis and othcr intestinal hclminths. Am J Trop Med Uyg, 1989;
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Estomatites
José Alves de Freitas e Dario Ravazzi Ambrizzi

Por definição, estomatite é qualquer processo inflamatório


da mucosa bucal, independentemente de sua localização, in­
cluindo mucosas labial e jugal, gengivas, língua e palato. Seu
correto diagnóstico muitas vezes é dificultado pela semelhança
entre os variados tipos de lesões.
De maneira didática, podemos classificar as estomatites, de
acordo com suas etiologias, em:
1. Doenças periodontais
2. Doenças fúngicas
3. Doenças virais
4. Manifestações de doenças imunológicas, dermatológicas
e alérgicas
5. Manifestações de outras doenças sistêmicas

■ DOENÇAS PERIODONTAIS: GENGIVITE Figura 8.1 Aspecto característico da gengivite provocada pelo acúmu­
lo de placa bacteriana (cortesia: ProfJ DrJ Elaine M. S. Massucato - Ser­
EPERIODONTITE viço de Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara
UNESP). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Gengivite
O termo gengivite é bastante genérico e refere-se à inflama­ tam de tratamento cirúrgico para a diminuição dos contornos
ção limitada aos tecidos moles que circundam os dentes, na gengivais a fim de possibilitar correta higienização.
maioria dos casos associada à falta de higiene bucal adequada, Alguns processos inflamatórios gengivais merecem apre­
levando ao acúmulo de placa bacteriana e cálculo. sentação e discussão à parte, pela singularidade de suas mani­
O processo inflamatório gengival pode ser localizado em festações, e serão agora apresentados.
pequena área ou generalizado. Os sinais clínicos da gengivite
são a mudança da coloração rosa-coral para a vermelha, per­
da do pontilhado característico, sangramento fácil, edema e
■ Gengivite ulcerativa necrosante aguda (GUNA)
hiperplasia (Figura 8.1) (quando se observa aumento gengival A GUNA é um quadro infeccioso bastante diferenciado das
pelo edema crônico e fibrose, o quadro é denominado gengivite afecções gengivais de origem bacteriana e está relacionado com
crônica hiperplásicà). a colonização periodontal por bactérias espiroquetas (Trepo-
O tratamento consiste na eliminação de causas conhecidas nema vincentii e outras), fusobactérias (Fusobacterium spp.) e
que gerem suscetibilidade ao quadro inflamatório, como me­ bacteroides (Prevotella intermedia). O principal fator etiológi-
lhora da higiene bucal, remoção mecânica da placa bacteriana, co da GUNA está relacionado com elevados níveis de estresse
ou cálculo, por meio de tratamento periodontal básico (raspa- emocional e debilidade imunológica, haja vista sua alta inci­
gem e polimento dental, e técnicas de escovação dental). Solu­ dência em populações submetidas a sobrecargas emocionais
ções enxaguatórias bucais e dentifrícios à base de clorexidina contínuas, como militares (o distúrbio era comumente obser­
0,12% (Periogard*; Noplak®, solução com 250 m í) podem ser vado nas trincheiras dos campos de batalha da I e II Guerras,
indicados como meios auxiliares no controle da placa bacteria­ sendo apelidado de “boca de trincheira”). Acredita-se que os
na. Os casos de gengivite hiperplásicà frequentemente necessi- hormônios corticoides liberados com o estresse alterem as pro­

85
86 Capítulo 8 / Estomatites

porções de linfócitos T4/T8 e possam causar a diminuição na


quimiotaxia dos neutrófilos e na resposta fagocitária. Supõe-
se, também, que haja isquemia gengival localizada produzida
pela liberação de catecolaminas relacionadas com o estresse,
predispondo o tecido gengival à GUNA.
A GUNA pode ocorrer em qualquer idade, porém é vista
com maior frequência em jovens e adultos de meia-idade, em
boas condições de saúde aparentes. Geralmente, se desenvol­
ve de forma abrupta, embora alguns pacientes relatem sinais
prodrômicos constituídos de prurido ou queimação gengival,
mas a maioria dos casos começa com dor gengival aguda e
sangramento, por vezes espontâneo. Suas lesões são caracte­
rísticas, havendo necrose da superfície gengival, semelhante a
uma pseudomembrana branco-acinzentada ou a camadas de
resíduos, recobrindo um leito ulcerado e sangrante, resultando
em defeito dos tecidos moles semelhante à formação de crate­
ras, classicamente descrito como “papilas socavadas” (Figura Figura 8.3 Hiperplasia gengival medicamentosa em paciente com
8.2). Outros sinais e sintomas comumente relacionados com uso crônico de Hidantal® (cortesia: Prof* DrJ Elaine M. S. Massucato -
a GUNA são linfadenopatia cervical, salivação excessiva, mau Serviço de Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara
hálito, mal-estar e febre. - UNESP). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
As áreas afetadas devem ser debridadas para a remoção de
restos necróticos, por raspagem e curetagem periodontal ou
instrumentação ultrassônica, associadas a orientações rigoro­
bém está associada a uma higiene bucal deficiente, tornando-
sas de higiene bucal. Bochechos à base de clorexidina 0,12% ou
se inflamada, de coloração vermelho-escura, com superfície
peróxido de hidrogênio (água oxigenada 10 volumes) diluído
friável, de sangramento fácil e, ocasionalmente, ulcerada (Fi­
podem ser indicados como meios auxiliares no controle da
placa bacteriana. Antibioticoterapia sistêmica durante 7 dias, gura 8.3).
A descontinuidade da medicação frequentemente resulta
através de penicilina ou derivados, geralmente se faz necessá­
ria, podendo-se fazer associações com metronidazol (Flagyl®, em interrupção e, quase sempre, regressão do processo infla-
comprimidos de 400 mg administrados por via oral de 8/8 h), matório. Nos casos em que não há possibilidade de mudança
nos casos mais graves, por sua ação contra espiroquetas e bac- na medicação, são preconizados o controle da placa bacteriana
teroides. por meio de tratamento periodontal básico, a manutenção da
higiene bucal e cirurgia (gengivectomia) no intuito de remover
o excesso do tecido hiperplásico.
■ Hiperplasia gengival medicamentosa
Uma série de medicamentos pode induzir a formação de ■ Gengivite descamativa
hiperplasia gengival benigna, e o grau de aumento gengival
está relacionado com a suscetibilidade do paciente e ao nível de Trata-se de um processo inflamatório vesiculoerosivo crô­
higiene bucal. Dentre as drogas mais comumente envolvidas, nico envolvendo a gengiva, que se destaca espontaneamente ao
estão: a fenitoína, a ciclosporina e bloqueadores dos canais de menor toque. Do ponto de vista etiológico, parece associado a
cálcio, notadamente a nifedipina. A gengiva hiperplásica tam- doenças dermatológicas e autoimunes, como o líquen plano,
pênfigo, lúpus eritematoso sistêmico, entre outras. As lesões se
restringem às áreas gengivais, sem acometimento a outras áreas
mucosas da cavidade bucal. As áreas afetadas inicialmente se
apresentam eritematosas e com a perda do pontilhado caracte­
rístico, progredindo para formações bolhosas contendo fluido
claro ou sanguinolento, descamação espontânea ou zonas de
erosão. As áreas ulceradas e erodidas trazem dor significativa.
O diagnóstico é feito com base na história clínica, no aspecto
das lesões e na biopsia com exame histopatológico de rotina e
imunofluorescência.
Antes da terapêutica definitiva, são necessários o controle
da placa bacteriana por meio de tratamento periodontal bási­
co e a manutenção de excelente higiene bucal. A prescrição de
doxiciclina monoidratada (doxiciclina, vibramicina, ciclisan,
drágeas ou comprimidos de 100 mg administrados por via oral
a cada 12 h) pode reduzir o grau de inflamação da mucosa, an­
tes do emprego de terapia imunossupressora. Muitos pacientes
respondem bem ao uso de corticosteroides tópicos, e aqueles
cujas condições se mostram resistentes à corticoterapia fre­
Figura 8.2 Aspecto característico da GUNA, observar área de necrose
e inversão papilar entre os incisivos centrais superiores (cortesia: ProfJ quentemente respondem à dapsona (Dapsona* comprimidos
Dr*1Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medicina Bucal da Faculdade de 50 mg administrados por via oral 1 ou 2 vezes/dia) ou sul-
de Odontologia de Araraquara - UNESP). (Esta figura encontra-se re­ fapiridina (Azulfin*; sulfassalazina, comprimidos de 500 mg
produzida em cores no Encarte.) VO de 6/6 h).
Capítulo 8 / Estomatites 87

e a histoplasmose, merecedoras de destaque neste capítulo. Da


■ Periodontite mesma forma, das infecções virais com acometimento bucal,
A periodontite é um processo inflamatório que acomete as as relacionadas com o herpesvírus humano (HHV) são mais
estruturas de suporte dos dentes (ligamento periodontal, osso frequentes e características.
alveolar e cemento), cuja evolução pode levar à destruição do
osso alveolar, com subsequente mobilidade ou, mesmo, perda ■ Candidose
do dente (Figura 8.4). Dos mais de 300 tipos de bactérias da
flora bucal, apenas alguns se relacionam à periodontite do adul­ A candidose ou candidíase é a infecção fúngica bucal mais
to, predominantemente Actinomices actinomycetemcomitans, comum no homem, podendo se apresentar sob formas clíni­
Porphyromonas gingivalis e Prevotella intermedia. cas bastante variadas, dificultando muitas vezes seu diagnósti­
Para a maioria das periodontites, a gengivite está presente e co. De fato, vários membros do gênero Candida, notadamente
precede o desenvolvimento das lesões periodontais, caracteri­ Candida albicans, são constituintes da flora bucal, e cerca de
zadas pela reabsorção óssea e formação de bolsa periodontal e 50% das pessoas possuem o microrganismo e não apresentam
perda da aderência entre a gengiva marginal e os dentes, ocasio­ evidências clínicas da doença. A presença clínica de infecção
nalmente se observando a formação de abscessos periodontais, depende de três fatores gerais: (1) estado imunológico do in­
mau hálito e sensação de gosto ruim na boca, dor latejante e divíduo; (2) meio ambiente da mucosa bucal; e (3) resistência
sensibilidade local exacerbada. da C. albicans.
A periodontite, no paciente HlV-positivo, pode apresentar- Apesar de ser considerada, na maioria das vezes, uma in­
se bastante agressiva e de rápida progressão. fecção oportunista, afetando indivíduos debilitados por outras
O prognóstico da periodontite correlaciona-se diretamente doenças, a candidose bucal pode afetar indivíduos saudáveis,
com o desejo do paciente de manter a saúde bucal. Esta pode de acordo com a interação entre o microrganismo e o meio bu­
ser mantida com tratamento periodontal apropriado e um pro­ cal, podendo se apresentar sob formas clínicas variadas, sendo
grama de higiene bucal rigoroso, além de supervisão profis­ descritas as mais frequentes a seguir.
sional rotineira a cada 6 meses, ou 3 meses para os casos mais
graves. ■ Candidose pseudom em branosa
Devido à sua natureza crônica, antibióticos geralmente não É a forma mais conhecida de infecção por Candida, o “sa-
são usados, exceto naqueles pacientes que não respondem à te­ pinho”, caracterizada pela presença de placas brancas aderen­
rapia convencional. Quando necessários, penicilinas, tetracicli- tes à mucosa íntegra ou eritematosa (Figura 8.5), podendo ser
nas (Tetrex®, comprimidos de 500 mg VO de 6/6 h) ou metroni- removidas por raspagem ou fricção.
dazol (Flagyl®) são os medicamentos de escolha. A utilização de Os sintomas são relativamente leves, constituídos de sen­
anti-inflamatórios não esteroides pode auxiliar na diminuição sação de queimação bucal e relatos de gosto desagradável na
da progressão da perda óssea. Bochechos à base de clorexidina boca e mau hálito.
0,12% ou peróxido de hidrogênio diluído podem ser indicados
■ Candidose eritematosa
como meios auxiliares no controle da placa bacteriana.
Diferindo da forma pseudomembranosa, a candidose erite­
matosa não apresenta a formação de placas brancas, podendo se
apresentar sob formas bastante variadas. A candidose atrófica
■ LESÕES BUCAIS DECORRENTES DE INFECÇÕES aguda geralmente acomete pacientes com histórico de antibio-
FÚNGICAS EVIRAIS ticoterapia de amplo espectro por médio e longo prazos, carac-
terizando-se pela presença de máculas eritematosas distribuídas
Inúmeras doenças fúngicas podem acometer a cavidade oral, pela mucosa bucal e orofaringe, além de perda difusa das papilas
sendo as mais comuns: a candidose, a paracoccidioidomicose filiformes da superfície dorsal da língua, resultando em uma

7 ■" ^ * *

^ •

iS W * —

w

Figura 8.4 Quadro avançado de periodontite, com retração gengival, Figura 8.5 Candidose pseudomembranosa em rebordo alveolar des­
mobilidade dental e presença de grandes quantidades de cálculo e dentado (cortesia: Prof4Dr4Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medici­
placa bacteriana. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no na Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP). (Esta
Encarte.) figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
88 Capítulo 8 / Estomatites

língua avermelhada, com aspecto liso (careca). O sintoma mais geralmente em pacientes imunossuprimidos, poderá ser neces­
geralmente relatado é a sensação de queimação local. sária a utilização de anfotericina B (Fungizon®, frasco-ampola
O envolvimento da comissura labial pela doença é chama­ com 50 mg; Amphocil®, frasco-ampola com 50 e 500 mg), via
do de queilite angular (Figura 8.6), caracterizada por eritema, venosa, por infusão lenta (2 a 6 h). A dose de ataque da anfo­
fissuração e descamação na região da prega mucocutânea, po­ tericina não deve ultrapassar 0,25 mg/kg/dia, e a de manuten­
dendo se estender para a epiderme adjacente. Embora seja vista ção, 0,4 a 0,6 mg/kg/dia. A dose total de 30 mg/kg poderá ser
como componente de candidoses multifocais, essa forma mui­ administrada em 6 a 10 semanas. A isotretinoína em aplicações
tas vezes se apresenta sozinha, caracteristicamente em pacientes tópicas a 0,18% tem sido recentemente utilizada para as cepas
idosos com sulcos acentuados no canto da boca, favorecendo de Candida resistentes aos antifúngicos convencionais.
o acúmulo de saliva, retendo umidade e acarretando infecções
por leveduras. Estudos microbiológicos indicam associações
entre Candida albicans e Staphylococcus aureus em aproxima­ ■ Paracoccidioidomicose
damente 60% dos casos. (blastomicose sul-americana)
■ Candidose m ucocutânea A paracoccidioidomicose é uma infecção fúngica profunda
A candidose mucocutânea pertence a um grupo relativa­ causada pela inalação de esporos do Paracoccidioides brasilien-
mente raro de desordens imunológicas, e a gravidade da infec­ sis, cuja zona endêmica se restringe à América do Sul. Trata-se
ção por Candida está relacionada com a gravidade do defeito de uma infecção granulomatosa crônica pulmonar com disse­
imunológico. Apesar de a maioria dos casos ser esporádica, minações linfáticas e hematogênicas para outros órgãos, comu-
encontrou-se um padrão de herança autossômica recessiva em mente afetando a mucosa oral e a orofaringe. Observa-se uma
algumas famílias. O problema imunológico evidencia-se na predisposição distinta para o acometimento em pacientes do
infância, com o surgimento de infecções por Candida no leito gênero masculino em uma relação de 25:1, diferença essa rela­
ungueal, na pele, boca e outras superfícies mucosas. As lesões cionada com os hormônios femininos, uma vez que o betaes-
bucais aparecem na forma de placas espessas que dificilmente tradiol inibe a transformação das hifas do fungo para a forma
se destacam com raspagem. patogênica de leveduras.
O diagnóstico de candidose é eminentemente clínico, em ­ A paracoccidioidomicose é, em geral, classificada nas for­
bora a citologia esfoliativa e cultura fúngica possam ser empre­ mas mucocutânea, visceral, linfática e mista, cuja lesão comum
gadas como meios auxiliares. às várias formas é um granuloma ulcerativo. As lesões bucais
O tratamento é feito associando-se medicação antifúngica caracterizam-se por áreas eritematosas e ulceradas de superfície
apropriada e métodos de higiene bucal no intuito de remover moriforme, sangrantes à manipulação, acometendo comumen-
mecanicamente, através de escovação dental, da língua e da mu- te a mucosa alveolar, gengivas e palato (Figura 8.7), podendo
cosa bucal, as colônias de Candida. Os portadores de próteses acarretar perda óssea e mobilidade dentária. As lesões são dolo­
dentárias totais ou removíveis devem ser orientados quanto ridas, causando dificuldades para a mastigação e deglutição.
às necessidades diárias de sua higienização. Vários medica­ O diagnóstico baseia-se no aspecto das lesões e na observa­
mentos antifúngicos podem ser empregados no tratamento da ção microscópica do Paracoccidioides brasiliensis no tecido e
candidose oral. Os mais usados são: a nistatina (Nistatina®, sus­ exsudatos da lesão. Pode ser solicitada cultura para a identifi­
pensão oral; Albistin®, suspensão oral; Candistatin®, suspensão cação do fungo, embora este cresça lentamente.
oral, 100.000 Ul/mé), em uso tópico, e os derivados imidazóli- O tratamento proposto é prolongado, não existindo um con­
cos (Cetoconazol®, comprimidos de 200 mg, ou Nizoral®, idem\ senso de qual seria sua duração ideal. A suspensão precoce causa
Itraconazol®, cápsulas de 100 mg, e Sporanox®, idem; Triconal altos índices de reativação da doença, e isso tem feito com que
Fungoral®, comprimidos de 200 mg), VO. Nas formas graves, o tratamento seja demorado (em média, de 6 meses a 2 anos).
Atualmente, sugere-se que o tratamento seja dividido em duas
fases: (i) ataque - que visa ao controle dos sinais clínicos; (ii)
manutenção - que visa a reduzir as chances de recidiva da doen­
ça. Podem ser utilizados os derivados sulfamídicos, derivados
azólicos e, nas formas graves, a anfotericina B.
Os derivados sulfamídicos são usados, com sucesso, desde a
década de 1940. Atualmente, a forma mais amplamente utiliza­
da é a associação de sulfametoxazol-trimetoprima (Bactrim®,
Infectrim ‘, comprimidos com 80 mg de trimetoprima e 400 mg
de sulfametoxazol), que apresenta boa tolerância e poucos efei­
tos colaterais (urticária, náuseas, vômitos, leucopenia, anemia
megaloblástica). Estudos demonstram que a eficácia dessa com­
binação supera os 80%, e que o insucesso está relacionado com
a não adesão ao tratamento.
A anfotericina B é usada nas formas graves da doença desde a
década de 1950. Geralmente, é utilizada no início do tratamento
e, posteriormente, é substituída pela associação sulfametoxazol-
trimetoprima, embora nem todos os autores concordem com
esse esquema. É a droga de escolha nos casos de resistência clí­
Figura 8.6 Candidose atrófica na forma de queilite angular na co­ nica às outras drogas utilizadas. Apresenta eficácia comprovada,
missura labia! (cortesia: Prof1Drà Elaine M. S. Massucato - Serviço de embora sejam frequentes as reações adversas: náuseas, vômitos,
Medicina 8ucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP). febre, tremor, nefrotoxicidade, hipopotassemia, alterações ele-
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) trocardiográficas, anemia, disfunção hepática.
Capítulo 8 / Estomatites 89

Figura 8.8 Úlcera palatina em portador de histoplasmose (cortesia:


ProfJ Dr* Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medicina 8uca! da Facul­
Figura 8.7 Aspecto moriforme e ulcerativo de lesões acometendo o dade de Odontologia de Araraquara - UNESP). (Esta figura encontra-se
palato em portador de paracoccidioidomicose. (Esta figura encontra- reproduzida em cores no Encarte.)
se reproduzida em cores no Encarte.)

O tratamento com cetoconazol foi iniciado em 1978 com para células de origem ectodérmica, as infecções tendem a ser
excelentes resultados, com taxa de cura em 90% dos casos, mas latentes, reaparecendo periodicamente. Dentre as manifesta­
com efeitos colaterais (ginecomastia, diminuição da libido) que ções clínicas oriundas dessas infecções, todas podem apresen­
restringem seu uso. O itraconazol vem sendo usado com ex­ tar lesões bucais vesiculares, com posterior transformação para
celentes resultados, iguais ou superiores aos do cetoconazol, e úlcera; mas discutiremos apenas a GEHA, devido à sua alta
com menos efeitos colaterais, sendo considerado por diversos incidência e singularidade.
autores a droga de escolha, embora estudos mais longos sejam A gengivoestomatite herpética aguda (GEHA) é o padrão
necessários para avaliar a incidência de recidiva com seu uso. mais comum de infecção herpética primária sintomática, e mais
de 90% resultam da infecção pelo HHV-1. A maioria dos ca­
sos é observada em crianças entre 6 meses e 5 anos de idade,
■ Histoplasmose sendo de início abrupto, gerando desconforto intenso, prostra­
A histoplasmose é uma infecção fúngica provocada pela ina­ ção e irritabilidade. As lesões bucais inicialmente são vesículas
lação de esporos do Histoplasma capsulatum, presente em am ­ puntiformes que se rompem com facilidade, formando úlceras
bientes úmidos contendo excrementos de pássaros e morcegos inicialmente pequenas recobertas por pseudomembrana amare­
no solo. Em indivíduos imunocompetentes, a maioria dos casos lada e circundadas por halo eritematoso. As úlceras adjacentes
é assintomática ou produz sintomas leves. A doença pode se tendem à coalescência, formando grandes úlceras rasas e irre­
manifestar nas formas aguda, crônica e disseminada. gulares, podendo acometer toda a mucosa bucal e labial, lín­
A maioria das lesões bucais da histoplasmose ocorrem na gua, palato, gengivas (Figura 8.9) e orofaringe. Quadros febris
forma disseminada da doença. As áreas mais afetadas são a e linfadenopatia cervical anterior geralmente são observados.
língua, o palato e a mucosa jugal (das bochechas). Em geral, a Os casos brandos geralmente se resolvem entre 5 e 7 dias, e os
lesão apresenta-se como uma úlcera solitária de margens firmes mais graves podem persistir até por 2 semanas.
e elevadas (Figura 8.8), bastante dolorosa, de várias semanas As infecções recorrentes podem ocorrer tanto na região da
de duração, podendo ser confundida, em aspecto clínico, com inoculação primária como em áreas adjacentes supridas pelo
o carcinoma epidermoide. mesmo gânglio envolvido, e, para as infecções bucais, o local
O diagnóstico é feito, em geral, pelo quadro clínico e cultura mais afetado para recorrência é a junção mucocutânea do lá­
para a identificação do fungo, ou pela identificação histológica bio, caracterizando o herpes labial (Figura 8.10). Quando a re­
do fungo através de biopsia incisional. corrência se dá na mucosa bucal, o quadro é bastante similar
O tratamento de escolha é a anfotericina B endovenosa; no ao da primeira infecção, embora a infecção dessa vez seja mais
entanto, apesar da terapia, é observado um índice de mortali­ branda e abranja menor área. Geralmente, o paciente nota si­
dade entre 7 e 23%. nais prodrômicos da recorrência na área que será afetada, como
prurido, dor, ardência ou eritema local.
O diagnóstico é baseado no aspecto típico das lesões, e o tra­
■ Gengivoestomatite herpética aguda (GEHA) tamento é, na maioria das vezes, sintomático devido ao curso
Os herpesvírus são um grupo DNA vírus que engloba os do definido da doença. Para o controle da dor, podem ser utili­
tipo herpes simples (HHV-1 e HHV-2), varicela-zoster (VZV zados anti-inflamatórios não esteroides sistêmicos, aplicações
ou HHV-3), Epstein-Barr (EBV ou HHV-4), citomegalovírus tópicas de lidocaína (Xylocaina®, Lidocaina®, Xylestesin gel ou
(CMV ou HHV-5), além de outros dois vírus descobertos recen­ spray). O aciclovir (Zovirax®; Addovir®; Aciveral®; Antivirax®,
temente, o HHV-6 e o H H V -7.0 ser humano é o reservatório comprimidos de 200 e 400 mg) oral pode atenuar a sintomato­
natural desses vírus, que apresentam a capacidade de habitar logia e diminuir o ciclo da doença, se utilizado precocemente
por toda a vida o hospedeiro infectado. Com uma afinidade na fase prodrômica.
90 Capítulo 8 / Estomatites

Figura 8.9 Quadro de GEHA em paciente pediátrico. (Esta figura en­ Figura 8.11 Áreas ulceradas em mucosa jugal em paciente portador
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) de pênfigo vulgar (cortesia: Prof* Dr* Elaine M. S. Massucato - Serviço de
Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP).
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

o envolvimento intrabucal em determinada fase da doença. A


idade média ao diagnóstico gira em torno dos 40 aos 60 anos,
não havendo predileção por sexo.
As lesões bucais apresentam-se, inicialmente, sob a forma de
bolhas e vesículas, fase esta dificilmente observada pelo clínico,
devido à facilidade do rompimento, evoluindo para erosões e
ulcerações rotas superficiais (Figura 8.11) que acometem pa­
lato, gengivas, mucosa labial, bochechas e soalho lingual. As
lesões geram dor e desconforto constantes, tendendo a aco­
meter maiores áreas superficiais caso o paciente permaneça
sem tratamento.
O diagnóstico é feito pelo aspecto das lesões associado à
biopsia para análise histopatológica e imunofluorescência di­
reta e indireta. Quanto mais precoce for o diagnóstico, mais
fácil será o tratamento.
O tratamento consiste em corticoterapia à base de predni-
Figura 8.10 Herpes labial recorrente na fase vesicular inicial. (Esta figura sona (Corticorten:‘:, Meticorten®; prednisona; Predicorten®, em
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) comprimidos de 5, 20 e 50 mg). Algumas vezes, é necessário
associar imunossupressores, geralmente à base de azatioprina
(Imuran®, comprimidos de 50 mg) 50 a 150 mg/dia. A doença
raramente sofre uma resolução completa, embora períodos de
■ LESÕES BUCAIS ASSOCIADAS remissões e exacerbações sejam comuns.
A DOENÇAS IMUNOLÓGICAS, ■ Penfigoide cicatricial
DERMATOLÓGICAS E ALÉRGICAS O penfigoide cicatricial é uma doença autoimune mucocutâ-
Muitas lesões bucais estão associadas a processos patológi­ nea bolhosa, na qual anticorpos são dirigidos contra a membra­
cos sistêmicos, dermatológicos ou imunológicos, sendo muitas na basal. O termo “penfigoide” é utilizado devido ao aspecto
delas assintomáticas. Discutiremos aquelas que apresentam clínico das lesões, semelhantes ao pênfigo, embora suas caracte­
sintomatologia dolorosa. rísticas microscópicas sejam bastante distintas e sua incidência
seja duas vezes mais comum.
O acometimento normalmente se dá em adultos idosos, por
■ Pênfigo volta dos 60 anos, em uma frequência de duas mulheres afeta­
A condição conhecida como pênfigo representa quatro va­ das para cada homem. Observam-se lesões orais na maioria dos
riantes de etiologia autoimune: vulgar, vegetante, eritematoso pacientes, com um aspecto inicial de bolhas ou vesículas comu-
e foliáceo, mas apenas os dois primeiros afetam a mucosa bu­ mente vistas, ao contrário das lesões iniciais do pênfigo vulgar,
cal. Como a variante vegetante é rara, discutiremos o pênfigo que dificilmente são detectadas. Após o rompimento das bolhas,
vulgar. observam-se grandes superfícies ulceradas difusas por toda a
As manifestações iniciais do pênfigo vulgar acometem pri­ mucosa bucal (Figura 8.12), que podem persistir por semanas
meiramente a mucosa bucal em mais de 50% dos casos, em ­ ou mesmo meses, quando não tratadas, sendo normalmente
bora a quase totalidade dos portadores da doença apresentem doloridas e causadoras de sérias dificuldades funcionais.
Capítulo 8 / Estomatites 91

Figura 8.12 Lesão de penfigoide cicatricial em gengiva marginal (cor­ Figura 8.13 Lesões ulceradas em região anterior da língua em porta­
tesia: ProP Dr» Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medicina Bucal dor de eritema multiforme (cortesia: ProfJ DrJ Elaine M. S. Massucato -
da Faculdade de Odontologia de Araraquara UNESP). (Esta figura Serviço de Medicina Bucal da Faculdade de Odontologia de Araraquara
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) - UNESP). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

O diagnóstico é feito através da biopsia do tecido perile- Uma forma mais grave e disseminada do eritema multiforme
sional, sendo o material submetido a exame histopatológico e é a síndrome de Stevens-Johnson, na qual ocorre a dissemina­
imunofluorescência. ção das lesões para a pele, mucosas bucal e genital e conjuntiva
O tratamento é feito com corticoterapia sistêmica associada ocular, e está geralmente associada a medicamentos.
a agentes imunossupressores, como a ciclofosfamida (Genuxal®, O exame histopatológico revela padrões característicos,
drágeas com 50 mg; frasco-ampola de 10 m^ com 200 mg mas não patognomônicos. Estudos de imunofluorescência
e frasco-ampola de 50 m f com 1.000 mg), nas formas graves. direta e indireta também não são específicos para o eritema
Uma terapia sistêmica alternativa, que produz menos efeitos multiforme, sendo úteis apenas para descartar outras doen­
colaterais, é a utilização da dapsona. As lesões bucais e de outras ças vesiculobolhosas. Sendo assim, o diagnóstico baseia-se
superfícies devem receber corticoterapia tópica potente várias nos achados clínicos e na exclusão de outras doenças vesi­
vezes ao dia, até ser alcançado o controle. Aplicações em dias culobolhosas.
alternados podem prevenir exacerbações da doença. Todos os Na maioria dos casos, a doença é autolimitada, durando
pacientes diagnosticados como portadores de penfigoide cica­ entre 2 e 6 semanas, embora 20% apresentem episódios re­
tricial devem ser encaminhados para controle oftalmológico, a correntes com frequência. O regime terapêutico de escolha é a
fim de prevenir e tratar as possíveis lesões oculares, em regra, corticoterapia sistêmica, especialmente nos estágios iniciais da
incapacitantes. doença. As lesões bucais podem receber corticoterapia tópica,
ou mesmo agentes anestésicos tópicos para a diminuição do
desconforto funcional.
■ Eritema multiforme
O eritema multiforme é uma doença bolhosa e ulcerativa
mucocutânea de provável origem autoimune. Observa-se que,
■ Líquen plano
em cerca de metade dos casos, pode ser identificada uma expo­ O líquen plano é uma doença mucocutânea crônica rela­
sição recente, de média ou longa duração, a medicamentos, ou tivamente comum, incidindo com maior frequência sobre a
história de infecções precedentes, embora, muitas vezes, seja mucosa bucal (cerca de 70% dos casos) do que sobre a pele
impossível detectar um fator desencadeante. (35%). Parece haver uma associação entre estados de estresse
A manifestação geralmente ocorre em pacientes jovens, psicológico e ansiedade e o desenvolvimento dessa doença, mas
entre 20 e 30 anos, com maior predisposição para o gênero essa relação ainda é bastante controversa.
masculino, em uma proporção de 3:1, e inicia-se com sinais A manifestação tende a ocorrer em adultos a partir dos
e sintomas comuns à gripe, aproximadamente 1 semana an­ 40 anos de idade, em uma predisposição de 3:2 para o gênero
tes do aparecimento das lesões. As lesões de pele e da mucosa feminino, e pode apresentar-se clinicamente sob a forma de
bucal surgem rapidamente, causando dor e desconforto grave, duas variáveis, o reticular e o erosivo. O líquen plano reticular
dificultando até mesmo a ingestão de líquidos, não sendo inco- é a variante mais comum, sendo geralmente assintomático e
muns episódios de desidratação associados à presença de lesões envolvendo a mucosa bucal posterior bilateralmente, sob a for­
bucais. Inicialmente, essas lesões são manchas eritematosas ma de linhas brancas entrelaçadas, tipicamente não estáticas,
cuja superfície epitelial sofre necrose, evoluindo para úlceras e aumentando e diminuindo por semanas ou mesmo meses. O
erosões de contornos irregulares, acometendo vastas superfí­ líquen plano erosivo, embora menos comum, apresenta sinto­
cies. Observa-se distribuição difusa das lesões, com predileção matologia dolorosa, ocasionada por áreas atróficas e eritema­
para mucosas labial e jugal, língua (Figura 8.13), palato mole e tosas, com ulcerações centrais em vários graus, sendo as bordas
soalho bucal, sendo as gengivas e o palato duro normalmente das áreas atróficas cercadas por finas estrias radiantes.
poupados. As lesões bucais são frequentemente acompanhadas O diagnóstico do líquen plano reticular é feito com base
de linfadenopatia cervical. nos achados clínicos, sendo sinais patognomônicos as estrias
92 Capítulo 8 / Estomatites

brancas entrelaçadas presentes na mucosa jugal. O líquen plano 8.15), mucosa das bochechas e gengivas, e podem apresentar
erosivo frequentemente necessita de biopsia para o descarte de aspectos similares aos das lesões de líquen plano ou mesmo
outras possíveis doenças vesiculobolhosas (Figura 8.14). granulomatosas, com graus variados de ulceração, eritema e
A corticoterapia tópica geralmente é suficiente para o con­ hiperqueratose superficial. Sintomatologia dolorosa e descon­
trole das lesões. forto estão associados à presença das ulcerações.
O lúpus eritematoso cutâneo crônico (LECC) é uma va­
riável que apresenta nenhum ou pouquíssimos sinais de aco­
■ Lúpus eritematoso m etimento sistêmico, estando restrito à pele e às mucosas,
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença grave que principalmente na cabeça e no pescoço, além de apresentar
afeta vários sistemas (regiões mucocutâneas, pulmões, rins, co­ prognóstico consideravelmente melhor quando comparado
ração, fígado), muito difícil de diagnosticar em seus estágios ini­ ao LES. As lesões bucais observadas mostram os mesmos pa­
ciais, sendo frequentemente confundida com viroses. Há uma drões da forma sistêmica. A variante cutânea subaguda apre­
prevalência para o acometimento no sexo feminino de 8:1, com senta manifestações clínicas intermediárias entre as do LES e
idade média de 30 anos. Em 40 a 50% dos pacientes, observa- as do LECC.
se um exantema característico, nas regiões malar e nasal, que Além das características clínicas, uma série de exames pode
piora com a exposição solar. As lesões bucais acometem entre ser útil para a realização do diagnóstico, como a imunofluores-
10 e 40% dos pacientes, normalmente afetando o palato (Figura cência direta de tecido lesional e de tecido normal, bem como
testes imunológicos para pesquisa de anticorpos antinucleares,
anticorpos dirigidos contra o filamento duplo de DNA e anti­
corpos antiproteína Sm.
Para os pacientes que apresentam LES, as lesões bucais geral­
mente responderão à corticoterapia sistêmica. Podem também
ser utilizados outros agentes imunossupressores (azatiopri-
na; ciclofosfamida) e medicamentos antimaláricos (Cloroqui-
na®, Mefloquina*, comprimidos com 250 mg). Para as lesões
do LECC, a corticoterapia tópica pode ser efetiva, restando a
corticoterapia sistêmica e os antimaláricos para os casos re­
sistentes.

■ Estomatite aftosa recorrente


A estomatite aftosa recorrente, conhecida popularmente
como afta, apresenta alta prevalência na população geral, va­
riando entre 10 e 66% para os grupos estudados. O desenvol­
vimento da estomatite aftosa tem base imunológica, podendo
ser induzido por uma série de fatores etiológicos: predisposição
genética, processos alérgicos, alterações hormonais, alterações
nutricionais, anormalidades hematológicas, processos infec­
Figura 8.14 Lesáo de líquen plano reticularem mucosa jugal (cortesia:
ProfJ Dr* Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medicina Bucal da Facul­ ciosos, trauma e estresse. Quando em combinação de vários
dade de Odontologia de Araraquara - UNESP). (Esta figura encontra-se fatores, agrupam-se três categorias:
reproduzida em cores no Encarte.) • imunodesregulação primária;
• aumento na exposição antigênica;
• redução ou falha da barreira física epitelial (mucosa).
Clinicamente, existem três variações da estomatite aftosa:
menor, maior e herpetiforme, discutidas a seguir.
► e s t o m a t it e a f t o s a m e n o r . É a mais comum, representan­
do 80% das aftas; apresenta menor duração e menor quanti­
dade de recorrências quando comparada às outras variantes.
Inicia-se geralmente na infância ou adolescência, com recor­
rências altamente variáveis, desde uma em anos até mais de
dois episódios por mês. As lesões apresentam-se como úlceras
recobertas por pseudomembrana branco-amarelada, que pode
ser removível, e são circundadas por halo eritematoso. As le­
sões podem medir entre 3 e 10 mm de diâmetro, estando pre­
sentes geralmente em número de uma a cinco, desaparecendo
entre 7 e 14 dias, sem deixar cicatriz. As úlceras se originam,
quase exclusivamente, sobre mucosa não ceratinizada, mais
frequentemente em mucosas jugal e labial, superfície ventral
da língua, soalho bucal e palato mole. O quadro doloroso re­
Figura 8.15 Lesões ulceradas no palato duro de portador de LES (cor­ ferido geralmente não é compatível com o tamanho da lesão
tesia: Prof* Dra Elaine M. S. Massucato - Serviço de Medicina Bucal (Figura 8.16).
da Faculdade de Odontologia de Araraquara - UNESP). (Esta figura ► e s t o m a t it e a f t o s a m a io r . Representa 10% das aftas, ten­
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) dendo a ocorrer após a puberdade e durante a vida adulta. O
Capítulo 8 / Estomatites 93

■ Síndrome de Behçet
A síndrome de Behçet possui etiologia autoimune, parece
ser devida a uma imunodesregulação primária ou secundária a
um ou mais gatilhos, correlacionados com antígenos ambientais
para bactérias, vírus, produtos químicos e metais pesados.
Seu acometimento, dependendo das regiões de maior envol­
vimento, tem sido descrito em quatro formas: ocular, mucocutâ-
nea, artrítica e neurológica. O envolvimento da mucosa bucal
é comum aos quatro tipos, sendo a primeira manifestação em
25 a 75% dos casos. As lesões são similares às da estomatite af­
tosa, apresentando a mesma duração e frequência, com a par­
ticularidade de ocorrerem sempre no mesmo ponto durante o
curso da doença. Os portadores da síndrome de Behçet apre­
sentam seis ou mais ulcerações, em geral em áreas pouco fre­
quentes para a ocorrência rotineira de estomatite aftosa, como o
palato duro, palato mole e orofaringe, com tamanhos variáveis,
Figura 8.16 Úlcera de estomatite aftosa menor em rebordo gengival. de bordas elevadas, recobertas por pseudomembrana branco-
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) amarelada e rodeadas por grande área eritematosa.
Nenhum achado laboratorial é patognomônico da doença.
Os critérios específicos para o diagnóstico são a ocorrência de,
pelo menos, três episódios de ulcerações bucais recorrentes
número de lesões varia de 1 a 10, podendo acometer toda a associadas a duas das seguintes manifestações: (1) ulceração
superfície bucal, com predileção para a mucosa labial, palato genital recorrente; (2) lesões oculares observadas por oftalmo­
mole e região amigdaliana. As úlceras apresentam as mesmas logista; e (3) lesões cutâneas típicas ou teste de patergia positivo
manifestações clínicas encontradas na variante menor, mas 24 a 48 h após a injeção.
são mais profundas e maiores, medindo entre 10 e 30 mm de A síndrome de Behçet apresenta curso altamente variável,
diâmetro, levando entre 2 e 6 semanas para desaparecerem, sendo típico o padrão de recidivas e remissão. As recidivas das
podendo deixar cicatriz. lesões tendem a diminuir de frequência após o quinto ano. O
► e s t o m a t it e a f t o s a h e r p e t if o r m e . Representa 10% das prognóstico é bom na ausência de doença do SNC ou com­
aftas, com início típico na vida adulta e predominância pelo plicações vasculares. A corticoterapia sistêmica destina-se aos
sexo feminino. As úlceras são pequenas, medindo entre 1 e casos mais graves, e as lesões bucais podem receber o mesmo
3 mm de diâmetro, ocorrendo em grande número e chegando tratamento dado à estomatite aftosa recorrente. Aplicações lo­
até 100 lesões. As úlceras desaparecem entre 7 e 10 dias, mas cais com laser de C 0 2têm sido sugeridas no intuito de acelerar
o período para a cicatrização das lesões bucais.
as recorrências tendem a ser bastante frequentes. Como suas
características clínicas lembram a gengivoestomatite herpéti-
ca (GEHA), o termo “herpetiforme” é utilizado, embora possa ■ Estomatites alérgicas pela administração
causar certa confusão.
O diagnóstico é feito pelas características clínicas e pela
de medicamentos ou por contato
exclusão de quadros ulcerativos semelhantes aos da estoma­ A reação alérgica da mucosa bucal à administração de medi­
tite aftosa. Suas características histopatológicas não são espe­ camentos sistêmicos é denominada estomatite medicamento­
cíficas. sa, podendo-se observar uma série de padrões e manifestações
Os objetivos primários do tratamento da estomatite afto­ clínicas relacionados:
sa recorrente são o controle da dor, redução da duração das • estomatite anafilática;
úlceras e restauração das funções orais normais. Os objetivos • reações liquenoides;
secundários incluem a redução na frequência e gravidade das • reações semelhantes às de eritema multiforme, lúpus ou
recorrências, além da manutenção dos períodos de remissão. pênfigo;
Medicamentos tópicos podem atingir os objetivos primários, • lesões vesiculoulcerativas inespecíficas.
mas não são capazes de diminuir a gravidade e o número de
Mais de 150 medicamentos já foram relacionados com o
recorrências. Muitos medicamentos tópicos têm sido utilizados,
surgimento de reações alérgicas da mucosa bucal, provocando
com destaque para os corticoides tópicos, como bochechos à desde eritemas localizados, passando por lesões ulcerativas, até
base de dexametasona 0,01% (Dexametasona®, Dexacort®, mesmo reações de anafilaxia. Tais reações costumam manifes­
Dexadermil® creme) e triancinolona (Omcilom A*) sobre as tar-se logo no início da terapia medicamentosa, embora não seja
lesões. Medicação sistêmica pode ser utilizada quando a terapia raro o desenvolvimento tardio dos sinais e sintomas.
tópica não for efetiva. O levamisol (Ascaridil®, comprimidos As reações por contato direto com a mucosa costumam ser
de 80 e 150 mg), a colchicina e a clofazimina aparentemente mais incomuns quando comparadas às de lesões cutâneas, devi­
diminuem os períodos de duração das aftas e as recorrências. do ao menor período de contato, à ação diluidora e removedora
Estudos recentes sugerem que a administração de ácido as- da saliva e à dispersão e absorção rápida de antígenos.
córbico (vitamina C) também tende a reduzir o período de O tratamento consiste na suspensão imediata do medica­
duração das aftas e sua gravidade. A corticoterapia sistêmica mento envolvido. As lesões podem ser tratadas com corticote­
deve ser reservada para os casos graves (prednisolona 5 mg rapia tópica, deixando a corticoterapia sistêmica para os casos
em dose diária). mais graves.
94 Capítulo 8 / Estomatites

As manifestações bucais incluem queilite angular, glossite


• LESÕES BUCAIS ASSOCIADAS A DOENÇAS atrófica (Figura 8.17) e atrofia difusa ou generalizada da mucosa
SISTÊMICAS bucal, com relatos frequentes de ardência bucal e glossodinia.
Tais achados também ocorrem na presença de candidose, su­
■ Deficiências vitamínicas gerindo que a deficiência de ferro predisponha a infecção por
Candida sp.
As deficiências vitamínicas ocorrem em decorrência de má Uma condição um tanto rara relacionada com a anemia fer­
nutrição, podendo também acometer pacientes com má ab­ ropriva é a síndrome de Plummer-Vinson, que ocorre em asso­
sorção ou aqueles em dietas para emagrecimento e alcoólatras. ciação com glossite e disfagia decorrente da formação de anéis
Certas deficiências vitamínicas podem apresentar manifesta­ esofágicos, gerando desconforto intenso para a deglutição.
ções bucais evidentes, embora altamente inespecíficas, resul­ O tratamento para a maioria dos casos se faz com a adequa­
tantes de alterações metabólicas das mucosas, notadamente as ção da dieta alimentar, ou por terapia de reposição com sulfato
das vitaminas riboflavina (B2), niacina (B3), piridoxina (B6), ferroso. Nos casos de má absorção, pode ser administrado ferro
cobalamina (B12), folato, vitaminas C eK : parenteral periodicamente.
• Deficiências de vitaminas do complexo B e folato: po­
dem causar surgimento de queilite angular, glossite eri- ■ Diabetes melito
tematosa e atrófica (com depapilação - “língua careca”,
de aspecto liso e brilhante), eritema e edema difusos da As manifestações bucais do diabetes estão diretamente rela­
cionadas com a microangiopatia causada pela doença, resultan­
mucosa bucal, resultando em ardência bucal e glossodi-
do na oclusão de pequenos vasos sanguíneos com consequente
nia, e predispor ao aparecimento de surtos de estomatite
doença vascular periférica. A isquemia resultante predispõe o pa­
aftosa recorrente.
ciente à infecção, além do prejuízo na função dos neutrófilos.
• Deficiências de vitamina C: escorbuto. Geralmente, acar­
reta hiperplasia gengival generalizada, com sangramento A presença do diabetes não está relacionada com nenhum
padrão específico de lesão bucal. Observa-se mais frequente­
espontâneo, ulcerações ao nível gengival, periodontite,
mobilidade dental e, eventualmente, hemorragia pete- mente o acometimento por doenças periodontais, principal­
mente periodontite, que apresenta progressão bastante rápida,
quial e equimoses submucosas.
além de uma suscetibilidade aumentada à candidose bucal (Fi­
• Deficiência de vitamina K: seja pela má absorção, seja pela
gura 8.18). Tais processos infecciosos também podem apresen­
inibição de sua atividade por meio de anticoagulantes,
tar relação com os quadros de xerostomia relatados por 30%
sua deficiência gera quadro de coagulopatia relaciona­
dos diabéticos. Tem-se também observado maior incidência
da com a síntese de protrombina e de outros fatores de
de estomatite aftosa recorrente em pacientes diabéticos não
coagulação, cuja manifestação bucal mais comum é o
controlados.
sangramento gengival espontâneo.
O tratamento consiste em controle adequado do diabetes.
O tratamento se faz com a adequação da dieta alimentar, Uma dieta pobre em açúcares é interessante para o controle da
ou por terapia de reposição vitamínica, para casos mais graves flora bucal. A manutenção de higiene oral rigorosa, supervisio­
ou de má absorção. nada periodicamente por profissional, ainda é a melhor forma
de prevenção e tratamento das doenças periodontais.
■ Anemia ferropriva
É a causa mais comum de anemia em todo o mundo, poden­
■ Doença de Crohn
do ocorrer basicamente sob quatro condições: perda excessiva A doença de Crohn é uma condição inflamatória de pro­
de sangue, demanda aumentada para as hemácias, dieta pobre vável origem imunológica que pode acometer qualquer loca­
em ferro e má absorção do ferro ingerido. lização do trato gastrintestinal, mas principalmente a porção

Figura 8.17 Paciente portadora de anemia ferropriva apresentando Figura 8.18 Candidose atrófica crônica em palato duro em paciente
área de glossite atrófica assintomática. (Esta figura encontra-se repro- diabético (cortesia: Profu DrJ Juliana Rico Peres). (Esta figura encontra-
duzida em cores no Encarte.) se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 8 / Estomatites 95

Têm-se utilizado com sucesso bochechos colutórios com


peróxido de hidrogênio diluído para a cura das lesões. O trata­
mento sintomático pode ser feito com lidocaína tópica. Algu­
mas vezes, a estomatite também pode desaparecer em poucos
dias após a hemodiálise, com a diminuição dos níveis séricos
de ureia.

■ LEITURA RECOMENDADA
Ayangco, L 8c Rogcrs, RS. Oral manifcstations of crythcma multiform. Dermatol
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que recebe tratamento para doença de Crohn. (Esta figura encontra- Dcllinger, TM 8c Livingston, HM. Oral candidiasis. Ann Pharmacother, 2003;
se reproduzida em cores no Encarte.) 37:1529-48.
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Ferreira, OG, Cardoso, SV, Borges, AS et al. Oral histoplasmosis in Brazil. Oral
tinais em até 30% dos casos, sendo paralelas às outras lesões
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do trato digestório, podendo-se observar eritema e edema Hamuryudan, V, Mat, C, Saip, S et a i Thalidomidc in thc treatmcnt of thc mu-
de lábios e mucosa jugal, ulcerações mucosas, formação de cocutancous lesions of thc Bchçcts syndrome. A randomized, doublc-blind,
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Martíncz-Bcncyto, Y, López-Jornct, P, Vclandrino-Nicolás, A, Jornct-García,
cientes podem apresentar um quadro conhecido como pioes-
V. Use of antifungal agents for oral candidiasis: rcsults of a national survey.
tom atite vegetante, caracterizado pela presença de pústulas lnt J Dent Hyg, 2010; 8:47-52.
amareladas, ligeiramente elevadas, distribuídas pela mucosa Mutasim, DF. Autoimmunc bullous dcrmatoscs in thc dderly: an updatc on
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O diagnóstico é baseado em biopsia e exame histopatológico Ncvillc, BW, Damm, DD, Allcn CM, Bouquot, JE. Patologia Oral c Maxilofacial,
do material obtido da mucosa bucal ou de outras áreas do trato 1.* cd., Rio dc Janeiro, Guanabara Koogan, 1998.
Pakfctrat, A, Mansourian, A, Momcn-Hcravi, F et a i Comparison of colchi-
gastrintestinal. Uma biopsia negativa não descarta a possibili­
cinc versus prcdnisolonc in rccurrcnt aphthous stomatitis: A doublc-blind
dade da doença de Crohn, pois a intensidade da reação infla- randomized clinicai trial. Clin Invest Med, 2010; 33:E189-95.
matória varia bastante entre os pacientes, dependendo também Pires, JR 8c Spolidorio, DMP. Avaliação clinica c microbiológica dc pacientes
da época em que foi colhida e da localização anatômica. portadores dc diabetes mcllitus do tipo 2. Tese dc Mestrado, Faculdade de
A terapêutica consiste em tratar a doença de base, isto é, Odontologia dc Araraquara/UNESP, 2004.
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■ Estomatite urêmica pazian, RCJ 8c Goldbcrg, MH. Infecções Orais c Maxilofaciais, 3.* cd., São
Paulo, Editora Santos, 1997.
A estomatite urêmica é uma condição relativamente rara, ob­ Scully, C 8c Challacombc, SJ. Pemphigus vulgaris: updatc on ctiopathogcnc-
servada em cerca de 2% dos pacientes portadores de insuficiên­ sis, oral manifcstations, and management. Crit Rev Oral Biol Med, 2002;
cia renal aguda ou crônica. A causa das lesões bucais ainda gera 13:397-408.
Solomon, LW, Aguirrc, A, Ncidcrs, M et a i Chronic ulcerative stomatitis: clini­
controvérsias, mas acredita-se que a enzima urease, produzida
cai, histopathologic, and immunopathologic findings. Oral Surg Oral Med
por bactérias do meio bucal, degrada a ureia que é secretada Oral Pathol Oral Radiol Endod, 2003; 96:718-26.
em excesso na saliva desses pacientes, produzindo amônia livre, Spolidorio, LC, Mcrzcl, J, Villalba, H et a i Morphomctric evaluation of gingi-
causadora das lesões na mucosa. val ovcrgrovvth and regression causcd by ciclosporin in rats. / Periodontal
De início geralmente súbito, as lesões se apresentam sob Res, 2001;36:384-9.
a forma de crostas ou placas branco-amareladas recobrindo Sposto, MR, Navarro, CM, Onofrc, MA et a i Ulcerações aftosas recorrentes:
Diagnóstico clínico, tratamento local c sistêmico. RGO, 1995; 43:77.
principalmente a mucosa das bochechas, a língua e o soalho
Tyldcslcy, WR. Atlas Colorido dc Medicina Bucal, 2.* cd., São Paulo, Artes
bucal. Pode-se detectar odor de amônia ou urina no hálito do Médicas, 1995.
paciente. As queixas são de dor e ardência bucal, com subse­ Yasui, K, Kurata, T, Yashiro, M et a i Thc cffcct of ascorbatc on minor rccurrcnt
quentes dificuldades mastigatórias e de deglutição. aphthous stomatitis. Acta Paediatr, 2010; 99:442-5.
PARTE II
Esôfago
Anomalias Congênitas
Renato Dani e Daniella Ribeiro Einstoss Korman

As anomalias congênitas do esôfago são relativamente comuns atresia com dupla fístula, proximal e distai (Gross tipo D e Vogt
(1:3000-1:4500 nascidos vivos) e ocorrem devido a defeitos ge­ 3C); 5) FTE sem atresia (Gross tipo E) - (Figura 9.1). Cerca de
néticos ou problemas na maturação fetal. Podem configurar 50% das crianças com essas anormalidades apresentam outras
lesões graves, passíveis de levar o paciente à morte, ou doenças malformações congênitas associadas, principalmente cardíacas
toleráveis, de tratamento simples. Neste capítulo, abordaremos (35% dos pacientes), geniturinárias (24% dos pacientes), intes­
algumas dessas alterações congênitas. Os anéis e membranas tinais e anorretais (24% dos casos) e esqueléticas (13%).
são tratados no Capítulo 11, e a acalasia, no Capítulo 14. A presença de poli-hidrâmnio materno e prematuridade
são frequentemente assinaladas. Os sintomas e sua gravidade
dependem do tipo de malformação. A atresia isolada mani-
■ ATRESIA E FÍSTULAS TRAQUE0ES0FÁGICAS festa-se nas primeiras horas de vida do neonato por salivação
abundante, regurgitação do leite ingerido, resultando em obs­
Estas são as anomalias congênitas mais frequentemente no­ trução respiratória e pneumonia aspirativa. As fístulas que se
tadas no esôfago. As atresias são decorrentes da falta de reca- comunicam com a árvore traqueobrônquica manifestam-se
nalização do tubo digestivo proximal embrionário, e as fístu- por cianose, tosse, pneumonia recorrente, esta última causa­
las traqueoesofágicas (FTE) resultam da incompleta separação da por material ingerido ou por refluxo de secreção gástrica.
do brotamento pulmonar do intestino anterior primitivo. As Os portadores de fístula em I I podem evoluir até a adolescên­
atresias são observadas em 1:3.000 a 1:4.500 nascidos vivos. A cia ou à idade adulta sem o diagnóstico correto e, geralmente,
atresia isolada corresponde a apenas 6% dos casos, enquanto apresentam problemas respiratórios crônicos, como uma asma
94% dos portadores dessas anomalias associam uma FTE. Das resistente ao tratamento e pneumonias recorrentes.
fístulas, 90% correspondem à atresia, fístula do esôfago distai O diagnóstico é suspeitado pela história e confirmado por
(mais frequente) e 4%, à FTE sem atresia (fístula em H). diferentes métodos propedêuticos, adaptados a cada situação.
Há cinco tipos fundamentais de atresia esofágica e FTE, Radiografias simples de tórax poderão evidenciar um abdome
e duas classificações são normalmente adotadas (de Gross e sem gás (atresia isolada) ou distendido, dependendo da varie­
Vogt): 1) atresia sem fístula (Gross tipo A e Vogt tipo 2); 2) dade da malformação. A fístula poderá ser identificada pela
atresia e FTE do esôfago proximal (Gross tipo B e Vogt 3A); introdução de ar ou contraste por um cateter posicionado no
3) atresia e FTE do esôfago distai (Gross tipo C e Vogt 3B); 4) esôfago, ou, ainda, pela impossibilidade de fazer progredir uma

Figura 9.1 Tipos de atresia do esôfago e fístulas congênitas traqueoesofágicas. a, atresia do esôfago isolada; b, atresia e fístula traqueoesofágica
distai; cf fístula sem atresia; d, atresia e dupla fístula, proximal e distai; e, atresia e fístula proximal. (Modificada de Lewin, KJ e i o i , 1992.)

99
100 Capítulo 9 / Anomalias Congênitas

sonda colocada no esôfago. Mais raramente, em casos de fístula Essas estruturas podem ou não gerar sintomas. A maioria
em H utilizam-se ingestão de azul de metileno e broncoscopia dos pacientes sintomáticos está no primeiro ano de vida, mas
para situar a comunicação esofagotraqueal. Métodos recentes há casos iniciados na idade adulta. Os sintomas são decorren­
de diagnóstico por imagem são a ressonância magnética e a tes de compressão sobre os órgãos vizinhos, manifestando-se
endoscopia, que é usada no pré-operatório para localizar a es- como tosse, dispnéia, taquipneia, disfagia, regurgitação, dor
tenose ou a fístula proximal. Em geral, a endoscopia é realizada torácica e arritmias cardíacas. Complicações podem acontecer,
no peroperatório, podendo modificar a abordagem cirúrgica. sobretudo porque a mucosa que reveste as estruturas compro­
O diagnóstico de atresia sem FTE também pode ser suspeitado metidas é, na maioria das vezes, do tipo gástrico e secretante,
no pré-natal, mediante uma ultrassonografia evidenciando um sujeita à ulceração, hemorragia e, mesmo, perfuração em brôn-
feto com estômago sem líquido amniótico. quios ou em esôfago.
O tratamento é cirúrgico, às vezes apresentando muita difi­ O diagnóstico é feito preferencialmente por ecoendoscopia,
culdade, podendo incluir a interposição de uma alça de cólon. O ressonância magnética ou tomografia computadorizada. Radio­
prognóstico é bom. As complicações mais frequentes incluem grafias simples de tórax evidenciam massa no mediastino médio
recorrência da fístula, estenose e deiscência da anastomose. A ou posterior. Sinais indiretos são percebidos ao estudo radio­
endoscopia digestiva alta é usada para avaliar e tratar algumas lógico baritado do esôfago, mas este não é o melhor método
destas complicações. A ocorrência de doença do refluxo gas- diagnóstico. Entretanto, há necessidade do estudo anatomopa-
tresofágico é comum nos pacientes no pós-operatório tardio e tológico do cisto ressecado para se excluir uma neoplasia.
relaciona-se com anormalidades intrínsecas da função esofá- O tratamento é cirúrgico e, em crianças com sintomas de­
gica, associadas a um distúrbio do esvaziamento gástrico (mais correntes de compressão traqueobrônquica, deve ser realizado
frequentes nestes pacientes). Em cerca de 6 a 45% dos casos, há sem demora, pois a procrastinação pode resultar em morte.
indicação de uma cirurgia antirrefluxo.

■ DIVERTÍCUL0 CONGÊNITO
■ ESTENOSE CONGÊNITA
É muito raro. Anatomicamente, a estrutura contém mucosa
Esta anomalia é rara, surgindo em 1:25.000 nascimentos. e todas as camadas musculares. Manifesta-se por disfagia ou por
Localiza-se mais frequentemente nos terços médio e inferior episódios de infecção pulmonar. O diagnóstico é radiológico.
do esôfago, com uma extensão variável de 2 a 5 cm. Sua etiolo- O tratamento é cirúrgico.
gia parece estar relacionada com uma separação incompleta do
brotamento pulmonar do intestino anterior primitivo, gerando
a formação de remanescentes cartilaginosos traqueobrônqui- ■ DISFAGIA LUSÓRIA
cos (coristomas) dentro da parede esofágica, ou com um dano
ao plexo mioentérico e perda do sistema neural nitrenérgico Esta alteração é provocada pela compressão do esôfago por
de relaxamento muscular. As estenoses cerradas manifestam- artéria anômala, mais frequentemente por uma artéria subclá-
se como disfagia no l.° ou 2.° ano de vida, mas pacientes com via direita aberrante. Ela emerge da aorta descendente, cru­
sintomas leves podem ter o diagnóstico realizado só na vida zando obliquamente o mediastino posterior, da esquerda para
adulta, sendo confundido com o de uma estenose adquirida. a direita, entre o esôfago e a coluna vertebral. Gera então uma
Outros sintomas são a regurgitação e a impactação de alimentos compressão no esôfago cervicotorácico.
sólidos. O diagnóstico é realizado principalmente por exame Outros vasos podem causar disfagia por compressão sobre o
radiológico. A endoscopia permite a realização de biopsias, esôfago: artéria vertebral anômala, arco aórtico duplo, arco aór-
importantes no diagnóstico diferencial com neoplasias e es­ tico direito coexistindo com um ligamento arterioso esquerdo
tenose péptica. A manometria pode constatar distúrbios da e artéria pulmonar esquerda aberrante. O sintoma é a disfagia.
motilidade na região estenótica, especialmente aperistalse. A As compressões por anomalias vasculares, entretanto, são, na
ecoendoscopia tem se mostrado importante na avaliação da maioria das vezes, assintomáticas.
etiologia da estenose, visto que é capaz de identificar o teci­ O diagnóstico é realizado por exame radiológico baritado do
do traqueobrônquico remanescente, contraindicando assim a esôfago (demonstra uma compressão na parede posterior do
realização da dilatação por via endoscópica, devido ao risco de esôfago, ao nível da quarta vértebra torácica), por ecoendosco­
perfuração por ruptura da cartilagem. O tratamento varia da pia, por ressonância nuclear magnética, por tomografia compu­
dilatação do segmento acometido, sob controle endoscópico, tadorizada e por arteriografia. A endoscopia digestiva evidencia
à necessidade de ressecção. uma compressão pulsátil na parede posterior do esôfago.
O tratamento, mais comumente, restringe-se a modificações
da dieta, recomendando-se alimentos pastosos, oferecidos em
■ DUPLICAÇÃO DO ESÔFAGO pequenos volumes. Ocasionalmente, se há sintomas disfágicos
graves, indica-se a cirurgia.
Esta malformação ocorre em cerca de 1:8.000 nascimentos.
Apresenta-se sob a forma mais comum de um cisto (80% dos
casos descritos) situado no mediastino posterior, entre o esô­ ■ TECIDO HETER0TÓPIC0
fago e a coluna vertebral; 60% dos casos relatados localizaram-
se no terço distai do esôfago, 23% no terço proximal e 17% no O tecido heterotópico mais frequentemente encontrado no
terço médio. São geralmente únicos, revestidos por epitélio e esôfago é o gástrico, e é um achado relativamente comum. Na
cheios de líquido. Em 20% dos casos referidos, a anomalia era maioria das vezes, localiza-se no terço proximal do esôfago, logo
tubular. As duplicações tubulares podem se comunicar com a abaixo do esfíncter esofágico superior. A biopsia endoscópica
luz do esôfago por uma de suas extremidades, ou por ambas, mostra células do tipo gástrico, fúndico ou antral, incluindo
mas a variedade cística não se comunica com a luz esofágica. células parietais, que conservam a propriedade secretora. Por
Capítulo 9 / Anomalias Congênitas 101
isso, pode haver úlcera péptica sobre o tecido heterotópico, Hajivassiliou, CA, Davis, CF, Young, DG. Fibcroptic localization of thc upper
incluindo a presença de Helicobacter pylori. Em geral, não há pouch in csophageal atresia. /. Pediatr. Surg., 1997; 32:678-9.
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Doença por Refluxo
Gastresofágico
Eliza Maria de Brito e Luciana Dias Moretzsohn

■ INTRODUÇÃO d a d e p u ra ç ã o

D telunçáo do
O refluxo gastresofágico (RGE) é, por definição, o desloca­
mento, sem esforço, do conteúdo gástrico do estômago para o H é rn ia hiatal

esôfago. Ocorre em todas as pessoas várias vezes ao dia e, des­


de que não haja sintomas ou sinais de lesão mucosa, pode ser
considerado um processo fisiológico.
A doença do refluxo gastresofágico (DRGE) foi definida ob­
jetivamente, no consenso internacional realizado em Montreal
(2006), como “condição na qual o refluxo do conteúdo gástrico
causa sintomas que afetam o bem-estar do paciente e/ou com­
plicações’\
Atualmente, a DRGE é considerada um problema de saúde
pública em razão de sua elevada prevalência, evolução crôni­ E s v a zia m e n to gástrico

ca, recorrências frequentes e comprometimento da qualidade retardado

de vida. A prevalência estimada da DRGE baseia-se apenas na


presença de sintomas clássicos. Existe uma quantidade cres­ Figura 10.1 Causas do aumento da exposição do epitélio esofágico
cente de informação sobre manifestações extraesofágicas da ao conteúdo gástrico.
DRGE, com evidências de que a DRGE pode ser mais comum
do que estimado atualmente. Dados epidemiológicos baseados
na presença de pirose como indicador da DRGE revelam que
15 a 44% dos adultos norte-americanos têm este sintoma pelo ■ Barreira antirrefluxo
menos uma vez por mês, e 14 a 17,8%, diariamente. No Brasil,
A barreira antirrefluxo, principal proteção contra o RGE, é
foi realizado um estudo populacional que avaliou a frequência
composta por: esfíncter interno (ou esfíncter inferior do esô­
de pirose, entrevistando quase 14.000 pessoas em 22 cidades,
fago - EIE - propriamente dito) e esfíncter externo (formado
que conclui que 12% da população urbana tem a DRGE.
pela porção crural do diafragma). O EIE mantém-se fechado em
A DRGE afeta todos os grupos etários, mas os idosos pro­
repouso e relaxa com a deglutição e com a distensão gástrica.
curam tratamento mais frequentemente. O impacto negativo
O relaxamento não relacionado com a deglutição é chamado
da DRGE na qualidade de vida é significativo, maior do que
relaxamento transitório do EIE (RTEIE), sendo considerado o
em pacientes com diabetes melito e hipertensão arterial, com
rápida melhora após resposta favorável ao tratamento. principal mecanismo fisiopatológico associado à DRGE, res­
ponsável por 63 a 74% dos episódios de RGE. Em pacientes
com formas graves de DRGE, a pressão de repouso do EIE está
■ FISI0PAT0L0GIA diminuída. Muitas substâncias afetam a pressão do EIE: a co-
lecistocinina (CCK) é responsável pela diminuição da pressão
A etiologia da DRGE é multifatorial. Tanto os sintomas de EIE observada após a ingestão de gorduras; outros neuro-
quanto as lesões teciduais resultam do contato da mucosa com transmissores estão envolvidos, entre os quais se destacam o
o conteúdo gástrico refluxado, decorrentes de falha em uma ou óxido nítrico (ON) e o peptídio intestinal vasoativo (VIP). O
mais das seguintes defesas do esôfago: barreira antirrefluxo, comprimento total e o comprimento abdominal do EIE são
mecanismos de depuração intraluminal e resistência intrínseca outros parâmetros usados para avaliar a função do EIE, e que
do epitélio (Figura 10.1). são valorizados quando estão diminuídos. A presença de hérnia

102
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 103

hiatal contribui para o funcionamento inadequado da barreira do conteúdo refluxado é uma das possíveis explicações para
antirrefluxo através da dissociação entre o esfíncter externo e o os diferentes graus de esofagite observadas em pacientes com
interno e do refluxo sobreposto (fluxo retrógrado do conteú­ a mesma quantidade de refluxo ácido demonstrado por exa­
do refluxado preso no saco herniário para a porção tubular do mes pHmétricos.
esôfago). O mecanismo responsável pelas manifestações extraesofá-
A distensão gástrica, principalmente após as refeições, con­ gicas da DRGE, como tosse e broncospasmo, nem sempre é a
tribui para o refluxo gastresofágico. O retardo do esvaziamento aspiração com lesão da mucosa de vias respiratórias por con­
gástrico, o aumento da pressão intragástrica (ambos presentes tato direto. Pode ser via reflexo vagai por acidificação da m u­
quando há obstrução ou semiobstrução antropilórica) e a alte­ cosa esofágica distai. No caso de granulomas de cordas vocais
ração da secreção gástrica (como a hipersecreção da síndrome e estenose subglótica, é necessário, provavelmente, o contato
de Zollinger-Ellison) são fatores que podem estar presentes, direto com a mucosa das vias respiratórias.
mas são pouco frequentes.

■ Mecanismos de depuração intraluminal ■ SINTOMATOLOGIA


A depuração (ou “clareamento”) do material refluxado pre­
sente na luz do esôfago decorre de uma combinação de meca­
■ Sintomas típicos
nismos mecânicos (retirando a maior quantidade do volume Os sintomas clássicos da DRGE são pirose (sensação de
refluído, através do peristaltismo e da gravidade) e químicos queimação retroesternal, ascendente em direção ao pescoço) e
(neutralização do conteúdo residual pela saliva ou pela muco- regurgitação (retorno de conteúdo gástrico, ácido ou amargo,
sa). A alteração do peristaltismo pode ser primária (no caso até a faringe), de fácil reconhecimento. Os pacientes podem
dos distúrbios motores do esôfago, como na motilidade eso- relatar alívio dos sintomas com uso de medicamentos antiá-
fágica ineficaz) ou secundária (nas doenças do tecido conjun- cidos. Estes sintomas são mais frequentes após as refeições ou
tivo, como esclerodermia, síndrome CREST ou doença mista quando o paciente está em decúbito supino ou em decúbito
do tecido conjuntivo). A diminuição do fluxo salivar pode ser lateral direito.
secundária à síndrome de Sjõgren ou ao uso de diversos medi­
camentos. A depuração do ácido pela saliva não é instantânea
e, sob ótimas circunstâncias, requer 3 a 5 min para restaurar o
■ Sintomas atípicos
pH após um único episódio de refluxo. Cada 7 m^ de saliva é A causa mais comum da dor torácica de origem esofágica é
capaz de neutralizar 1 m^ de HC1 0,1 N. Episódios de refluxo a DRGE, que pode ser indistinguível da dor de origem cardía­
ocorridos durante a noite, na posição supina, são duradouros e ca. O estímulo de quimiorreceptores da mucosa esofágica pelo
têm grande chance de causar lesão mucosa devido à diminuição refluxato desencadeia essa dor, visto que a inervaçáo do esôfago
do fluxo de saliva, que ocorre normalmente à noite, associada e do miocárdio é a mesma.
à falta de ação da gravidade.
■ Sintomas extraesofágicos
■ Resistência intrínseca do epitélio Manifestações extraesofágicas pulmonares (tosse crônica,
A resistência intrínseca da mucosa é constituída pelos se­ asma, bronquite, fibrose pulmonar, aspiração recorrente, den­
guintes mecanismos de defesa, normalmente presentes no epi­ tre outras), otorrinolaringológicas (rouquidão, globus, roncos,
télio esofágico: pigarro, alterações das cordas vocais, laringite crônica, sinusi-
te e erosões dentárias) estão associadas à DRGE, mas não são
• defesa pré-epitelial (composta por muco, bicarbonato e
específicas. A maioria dos pacientes com sinais e/ou sintomas
água no lúmen do esôfago, formando uma barreira físico-
extraesofágicos não apresenta sintomas típicos concomitan­
química, que é pouco desenvolvida no esôfago, quando
tes. Na realidade, a DRGE pode ser apenas uma das diversas
comparada à mucosa gástrica e duodenal);
causas destes sintomas. Portanto, nos pacientes com sintomas
• defesa epitelial (junções intercelulares firmes, característi­
extraesofágicos, é necessária a confirmação da existência de
cas do epitélio estratificado pavimentoso, o que dificulta a
DRGE, através de exames complementares ou de resposta ao
retrodifusão de íons, e substâncias tamponadoras inters-
tratamento com antissecretores potentes, para concluir que a
ticiais, como proteínas, fosfato e bicarbonato);
causa é a DRGE.
• defesa pós-epitelial (suprimento sanguíneo, responsável
tanto pelo aporte de oxigênio e nutrientes quanto pela
remoção de metabólitos). O defeito mais comum da re­ ■ Sintomas de alarme
sistência epitelial é o aumento da permeabilidade para-
As manifestações de alarme, que sugerem formas mais agres­
celular. A esofagite ocorre quando os fatores de defesa
sivas ou complicações da doença, são: odinofagia, disfagia, san-
são sobrepujados pelos fatores agressivos.
gramento, anemia e emagrecimento.
Outro constituinte do material refluxado, que tem sido cor­
relacionado com maior agressividade para a mucosa do esôfa­
go, é o conteúdo duodenal (bile e secreções pancreáticas), que ■ APRESENTAÇÃO CLÍNICA
atinge o estômago, através do piloro e, subsequentemente, che­
ga ao esôfago. O refluxo duodeno-gastresofágico é um fenô­ Os portadores de DRGE não constituem uma população
meno fisiológico, de composição variada, que lesa a mucosa homogênea. As diferentes respostas ao refluxo gastresofágico
esofágica pela ação das enzimas proteolíticas, potencializando ainda são pouco entendidas. Os determinantes imunológicos
a lesão provocada pelo ácido. A variabilidade da composição da resposta inflamatória do epitélio esofágico ao refluxo gas-
104 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico

tresofágico foram estudados por Fitzgerald et a i, que encon­ ■ Estenose péptica


traram uma diversidade da resposta inflamatória e do padrão
de citocinas. Apesar das controvérsias existentes na literatura A incidência de estenose péptica caiu muito após a introdu­
atual, estes grupos representariam subpopulações com dife­ ção dos IBP. Não existem fatores que possam predizer sobre a
rentes respostas ao mesmo fator comum, ou seja, exposição tendência evolutiva para estenose esofágica, pois a gravidade
do epitélio esofágico ao refluxo ácido, mais estudado do que o da DRGE não se associa com essa tendência.
refluxo não ácido. A DRGE é responsável por 70% das estenoses esofágicas.
Outras causas incluem ingestão de cáusticos, sequela de radio­
terapia ou esclerose de varizes, epidermólise bolhosa, doença
■ Sintomas típicos com endoscopia digestiva de Crohn, tumores, sífilis, tuberculose e citomegalovírus, den­
alta (EDA) normal tre outras.
Estudos realizados junto à comunidade indicam que apro­ O sintoma mais frequente de apresentação da estenose pép­
ximadamente 60% dos pacientes com DRGE têm endoscopia tica é a disfagia esofágica. Cerca de 30% dos pacientes não refe­
normal. A maior parte dos pacientes com sintomas de refluxo rem sintomas prévios de pirose e regurgitação ácida.
não apresenta evidências de esofagite ou de suas complicações Na propedêutica desses pacientes, utilizamos habitualmente
à endoscopia, mas manifestam sintomas com a mesma inten­ o estudo radiológico e a endoscopia digestiva. A radiologia do
sidade e o mesmo impacto na qualidade de vida do que os que esôfago tem alta sensibilidade na detecção das estenoses eso­
têm esofagite. fágicas, muitas vezes não visualizadas pela endoscopia. A en­
De acordo com o resultado da pHmetria, os portadores de doscopia digestiva é um exame imprescindível, pois, além de
DRGE com endoscopia normal podem ser subdivididos em dois visualizar a estenose, permite a coleta de biopsias para estudo
grupos: doença do refluxo não erosiva e pirose funcional. histopatológico (Figura 10.2).

■ Doença do refluxo não erosiva


Trata-se de condição na qual o paciente apresenta sintomas ■ Esôfago de Barrett
típicos da DRGE e o exame endoscópico não evidencia altera­ O esôfago de Barrett é uma condição em que um epitélio
ções da mucosa esofágica. Baseados na resposta terapêutica com colunar associado à metaplasia intestinal substitui o epitélio
IBP e pHmetria esofágica prolongada, esses pacientes podem escamoso normal que recobre o esôfago distai. Trata-se, na
ser classificados em: grande maioria das vezes, de uma sequela da DRGE de longa
• pacientes com exposição ácida anormal (que têm respos­ evolução. O exame histopatológico do epitélio de Barrett geral-
ta terapêutica semelhante à dos pacientes com esofagite mente evidencia uma forma incompleta de metaplasia intesti­
endoscópica); nal. A grande preocupação causada pelo esôfago de Barrett é
• pacientes com exposição ácida normal e com correlação a predisposição de suas células sofrerem alterações genéticas
positiva entre sintomas e episódios de refluxo (estimado associadas ao adenocarcinoma.
pelo índice de sintomas, que é positivo) e resposta ao uso Essa doença é diagnosticada principalmente em homens
de inibidores da bomba de prótons (IBP). brancos, na sexta década de vida, sendo pouco frequente em
mulheres, negros e asiáticos. Sua real prevalência é desconhe­
■ Pirose funcional cida, mas dados americanos sugerem que ela está presente, em
Segundo os critérios conhecidos como Roma III, é a pirose sua forma clássica, em 6 a 12% dos pacientes submetidos à en­
com todos os parâmetros pHmétricos normais e ausência de doscopia digestiva devido a sintomas de DRGE.
resposta ao uso de inibidores da bomba de prótons. Segundo
Martinez et al.y corresponde a menos de 10% dos portadores
de pirose avaliados por gastrenterologistas.
A sobreposição entre os distúrbios gastrintestinais funcio­
nais é amplamente aceita como uma realidade clínica. Existe
sobreposição entre a pirose funcional e a dispepsia funcional,
que poderia ser explicada pela íntima relação fisiológica e fi-
siopatológica entre o EIE e a porção superior do estômago. A
distensão do fundo gástrico é o mecanismo primário de indução
dos RTEIE. Alterações semelhantes da motilidade, como, por
exemplo, esvaziamento gástrico retardado, têm sido descritas
na DRGE e na dispepsia funcional. A alteração da acomodação
do fundo gástrico é reconhecida como uma importante carac­
terística da dispepsia funcional.

■ Esofagite erosiva
O grupo mais facilmente identificável e com alterações fi-
siopatológicas mais claras é o dos portadores de esofagite ero­
siva. A visualização endoscópica de erosões esofágicas sela o
diagnóstico de DRGE. Apesar disso, ainda cabem diagnósticos
diferenciais, como lesão esofágica induzida por comprimido e Figura 10.2 Aspecto endoscópico da estenose péptica do esôfago.
esofagite eosinofílica, dentre outros. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 105

■ A DRGE em padentes com esôfago de Barrett padrão de citoqueratinas na diferenciação da metaplasia intes­
Pacientes com a forma clássica do esôfago de Barrett pa­ tinal de cárdia e do epitélio de Barrett. A cromoscopia é uma
recem apresentar anormalidades fisiológicas que contribuem técnica que consiste na utilização de corantes sobre a mucosa
para a gravidade da DRGE. do esôfago, com o objetivo de facilitar a visualização do epi­
A função motora esofágica está frequentemente comprome­ télio displásico ou metaplásico. São utilizados vários corantes,
tida nesses indivíduos, traduzindo-se por baixa amplitude das como o azul de metileno, que cora a metaplasia intestinal de
ondas peristálticas associada a uma maior frequência de con­ azul; o lugol, que cora o epitélio esofágico de marrom; o azul de
trações anormais. Essas anormalidades comprometem o clarea- toluidina, que facilita a visualização do epitélio. Outro recurso
mento esofágico do material refluído, aumentando o tempo utilizado é a magnificação endoscópica de imagem, que per­
de contato do refluxato com epitélio esofágico. mite a visualização da superfície vilosa do epitélio metaplásico
Em mais de 90% dos pacientes, observam-se alterações do intestinal (Figura 10.4). Entretanto, estudos que avaliaram a
esfíncter esofágico inferior, como hipotonia e pequeno compri­ cromoendoscopia e magnificação não observaram a obtenção
mento intra-abdominal, além de uma alta incidência de hérnia de informações adicionais com o emprego dessa técnica, o que
hiatal. Esses fatores favorecem o refluxo gastresofágico, inclu­ não justifica sua utilização rotineira.
sive durante o período noturno.
Estudos utilizando pHmetria esofágica prolongada m os­
tram que, em portadores de esôfago de Barrett, o refluxo ácido
gastresofágico é mais intenso e duradouro que em portadores
de DRGE não complicada. Além disso, o refluxo de secreções
duodenais (bile e suco pancreático) parece desempenhar um
importante papel na patogênese do esôfago de Barrett.

■ Quadro clínico
Uma história clínica detalhada dos portadores de esôfago de
Barrett geralmente identifica sintomas de longa duração que
incluem pirose, regurgitação e disfagia esofágica. Existe também
uma maior associação do esôfago de Barrett com outras com­
plicações da DRGE, como estenose, ulcerações e sangramen-
tos. Entretanto, quando ocorre o desenvolvimento da doença,
a maioria desses pacientes apresenta uma grande melhora dos
seus sintomas, tornando-se mesmo oligossintomáticos. Essa
melhora é explicada pela maior resistência do epitélio de Bar­
rett à agressão ácida.

■ Diagnóstico
Atualmente, propõe-se a seguinte classificação para o epi­
télio colunar de Barrett:
Figura 10.3 Aspecto endoscópico do esôfago de Barrett. (Esta figura
• Segmento longo do esôfago de Barrett (metaplasia in­ encontra-se reproduzida enn cores no Encarte.)
testinal £ 3 cm).
• Segmento curto do esôfago de Barrett (metaplasia intes­
tinal < 3 cm).
• Tecido cárdico com metaplasia intestinal.
Essa classificação é importante, pois, até o momento, o risco
de degeneração maligna somente está bem estabelecido no seg­
mento longo do esôfago de Barrett. A presença de metaplasia
intestinal em tecido cárdico não se relaciona à DRGE e sim à
infecção pelo Helicobacterpylori e, dessa forma, não se associa
patogeneticamente com o adenocarcinoma de esôfago.
O diagnóstico do esôfago de Barrett baseia-se no aspecto
endoscópico do epitélio colunar recobrindo o esôfago (Figura
10.3) e no exame histopatológico desse epitélio, que evidencia
a presença de metaplasia intestinal incompleta. Esse diagnós­
tico é fácil quando se trata de segmento longo de epitélio colu­
nar que se inicia no estômago e se estende até o esôfago médio
ou proximal. Entretanto, em segmentos curtos de esôfago de
Barrett, nem sempre é fácil esse diagnóstico, pois, às vezes, é
difícil determinar onde se situa a junção esofagogástrica (JEG).
O epitélio colunar normal pode ser identificado em esôfago dis­
tai de indivíduos sadios, além da possibilidade de existência de
metaplasia intestinal na cárdia.
Na tentativa de aprimorar o diagnóstico do esôfago de Bar­ Figura 10.4 Aspecto da magnificação endoscópica com ácido acético
rett curto, várias técnicas têm sido utilizadas, como a cromo- no esôfago de Barrett. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
endoscopia e magnificação endoscópica, além da avaliação do no Encarte.)
106 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico

Citoqueratinas são proteínas estruturais encontradas no ci- da DRGE, que é uma doença multifatorial. Outros fatores além
toplasma de células epiteliais. Estudos envolvendo citoquerati­ da exposição ácida vão determinar a presença ou ausência de
nas sugerem que a metaplasia intestinal do epitélio de Barrett é sintomas e de lesões epiteliais, como sensibilidade e resistência
precursora de células escamosas que não existem no estômago. da mucosa, e presença de outras substâncias no refluxado além
Sendo assim, o padrão de citoqueratinas 7/20 (CK7/20) estaria do ácido, conforme citado na fisiopatologia. Além do mais, os
presente na metaplasia intestinal do esôfago de Barrett, mas não sintomas da DRGE podem variar de um momento para o outro,
na metaplasia intestinal gástrica, o que facilitaria a confirmação o que torna uma única avaliação de exposição ácida passível de
do diagnóstico do segmento curto de Barrett. subestimar o refluxo ácido gastresofágico.
A correlação entre o sintoma e o refluxo ácido é útil por
determinar quando os sintomas referidos pelo paciente foram
■ PROPEDÊUTICA provocados pelo refluxo ácido (Figura 10.5). Essa correlação
é obtida através de manipulações estatísticas, que avaliam a
relação temporal entre episódios de refluxo e sintomas. Uma
■ Exame clínico das correlações mais utilizadas é o índice de sintomas, definido
A identificação dos sintomas cardinais da DRGE (pirose e pelo número de refluxos associados a sintoma dividido pelo
regurgitação) permite um diagnóstico presuntivo da DRGE sem número total de sintomas e expresso em porcentagem. Esse
a necessidade da realização de outros exames complementares. método apresenta limitações, pois não considera o número to­
Estudo de Klauser et al.} comparando a presença desses sinto­ tal de episódios de refluxo. Um método mais recente, e talvez
mas e achados de pHmetria esofágica prolongada, observou que o melhor disponível, considera a probabilidade de associação
a sensibilidade dos sintomas pirose e regurgitação é de, respec­ de sintomas e utiliza o método exato de Fisher para analisar
tivamente, 38 e 6%, e a especificidade de 89 e 95%. Dessa forma, quatro possíveis associações temporais entre sintoma e refluxo:
em um paciente com queixas de pirose e/ou regurgitação ácida, refluxo e sintoma, refluxo sem sintoma, sintoma sem refluxo,
é segura a instituição de tratamento clínico empírico. e ausência de sintoma e de refluxo.
Outra aplicação muito importante da pHmetria é no moni­
toramento de pH intragástrico. Apesar de existirem diversos
■ pHmetria esofágica prolongada métodos para estudo do pH intragástrico, o monitoramento
O advento de monitoramento prolongado do pH intrae- prolongado do pH parece ser o mais confiável e utilizado. Uma
sofágico contribuiu muito para a compreensão da DRGE. O importante indicação desse estudo é na avaliação de drogas
exame é realizado ambulatorialmente, utilizando equipamen­ inibidoras da secreção ácida. Nesses casos, é possível avaliar a
tos portáteis, sensores miniaturizados de pH e análise de dados magnitude do bloqueio da secreção ácida, bem como o início
computadorizados. A pHmetria prolongada permite o diag­ e a duração da ação de determinada droga.
nóstico da DRGE por demonstrar a presença de refluxo ácido
gastresofágico anormal.
A pHmetria não é considerada o padrão-ouro no diagnóstico
■ Impedância/pHmetria
da DRGE, pois é um método que apresenta várias limitações. Trata-se de técnica que permite a identificação do refluxo
Cerca de 25% dos pacientes sabidamente portadores de eso- gastresofágico independente de seu pH e de seu estado (Figura
fagite apresentam um estudo de pHmétrico normal. Existem 10.6). Sendo assim, possibilita a avaliação qualitativa do tipo
controvérsias quanto à reprodutibilidade da pHmetria prolon­ de refluxo (ácido ou fracamente ácido), seu alcance proximal,
gada. Alguns estudos sugerem uma reprodutibilidade de 85%, sua composição (líquido, gasoso ou misto), bem como do tem­
enquanto outros mostram registros de diferentes quantidades po de depuração (ou clareamento) esofágico. A principal in­
de refluxo ácido ao utilizarem simultaneamente dois catete- dicação da impedância/pHmetria é na avaliação de pacientes
res de monitoramento. Essas limitações são previsíveis, pois a com sintomas típicos ou extraesofágicos atribuídos à DRGE,
pHmetria prolongada mede apenas um aspecto fisiopatológico que não responderam de forma completa ao tratamento com

Figura 10.5 Estudo de pHmetria prolongada evidenciando um episódio de refluxo ácido anormal do tipo supino (S), e índice de sintomas
positivo entre os episódios de pirose (H) e os episódios de refluxo ácido.
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 107

Figura 10.6 Registro de episódio de refluxo minimamente ácido, que alcança o esôfago proximal, coincidindo com queixa de regurgitação
do paciente através de impedânda/pHmetria esofágica. O registro de pH é feito pelo canal distai.

inibidores de bomba protônica. Nesses casos, é possível iden­ na própria, estimulando quimiorreceptores e fibras nervosas
tificar a associação dos sintomas com refluxo fracamente ácido desmielinizadas.
ou ácido residual. Como a impedância/pHmetria fornece todas A realização de biopsias esofágicas é importante para o diag­
as informações obtidas pela pHmetria, a tendência é que esse nóstico diferencial com a esofagite eosinofílica.
método substitua o exame convencional. A lesão mais precocemente detectada na DRGE é a dilatação
dos espaços intercelulares à microscopia eletrônica e cujo va­
lor máximo médio comparado a controles foi estatisticamente
■ Endoscopia digestiva alta significativo. Entretanto, o aumento do espaço intercelular foi
A endoscopia digestiva alta é o exame de escolha para ava­ também descrito em controles assintomáticos, o que diminui a
liação das alterações da mucosa esofágica secundárias à DRGE, especificidade desse método. A medida dos espaços intercelu­
permitindo, além de sua visualização direta, a coleta de frag­ lares demanda um tempo demorado para sua execução, o que
mentos esofágicos através de biopsias. As principais indicações impede a sua aplicabilidade na prática clínica atual.
de realização de endoscopia digestiva em pacientes com sus­
peita de DRGE são:
■ Estudos radiológicos
• Excluir outras doenças ou complicações da DRGE, prin­
A cintigrafia e o esofagograma com bário são métodos radio­
cipalmente em pacientes com sintomas de alarme, como
lógicos habitualmente utilizados na avaliação da DRGE e suas
disfagia, emagrecimento, hemorragia digestiva.
complicações. Os estudos baritados são úteis em pacientes com
• Pesquisar a presença do esôfago de Barrett em pacientes disfagia, visto que apresentam boa sensibilidade na detecção de
com sintomas de longa duração. hérnias hiatais, estenoses e anéis esofágicos. O diagnóstico de
• Avaliar a gravidade da esofagite. esofagite, de um modo geral, só é evidente radiologicamente em
• Orientar o tratamento e fornecer informações sobre a casos mais graves. Entretanto, pHmetria é um método muito
tendência de cronicidade do processo. mais sensível que a radiologia no diagnóstico da DRGE.
De um modo geral, as classificações endoscópicas das eso- A cintigrafia para estudo da DRGE utiliza alimento marca­
fagites não contemplam as alterações mínimas da mucosa do com tecnécio99. Trata-se de método de baixa sensibilidade
esofágica, quais sejam friabilidade, edema e hiperemia. Essa quando comparado com a pHmetria prolongada. Entretanto,
abordagem, apesar de aumentar a sensibilidade do exame no como permite avaliar o refluxo gastresofágico do material iso-
diagnóstico da esofagite, apresenta baixa especificidade. topicamente marcado, independente de sua acidez, pode ser
A resposta histológica da mucosa esofágica ao refluxo gas­ útil em estudo de pacientes gastrectomizados, portadores de
tresofágico crônico mostra principalmente mudanças reacio- anemia perniciosa, ou em vigência de tratamento com drogas
nais (alongamento das papilas na lâmina própria e hiperplasia inibidoras da secreção ácida gástrica.
da camada de células basais) e alterações inflamatórias (pre­
sença de neutrófilos e eosinófilos intraepiteliais). Podem existir
também células com abundante citoplasma pálido, chamadas
■ Testes provocativos
células “em balão”, provavelmente devido ao aumento da per­ O teste de Bernstein-Baker objetiva comprovar que o sin­
meabilidade. Segundo Ismail-Beigi, que descreveu pioneira­ toma do paciente decorre do refluxo ácido gastresofágico. Esse
mente o alongamento das papilas e a hiperplasia de células teste utiliza a infusão de ácido clorídrico a 0,1 N na luz esofá­
basais, estas alterações evidenciam descamação acelerada do gica, na tentativa de reproduzir o sintoma típico do paciente,
epitélio. A proximidade das papilas à superfície epitelial po­ e a infusão de solução salina como placebo. Considera-se o
dería explicar a pirose pelo contato do refluxado com a lâmi­ teste positivo naquele paciente que apresentou sintomas típi­
108 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico

cos apenas durante a infusão de ácido clorídrico. Esse teste é ácida observada à pHmetria quando comparado com o café
considerado de alta especificidade ao atribuir a origem do sin­ tradicional.
toma ao refluxo ácido. Deve ser reservado para situações em A queixa de pirose após ingestão de bebida alcoólica é fre­
que não se dispõe de pHmetria prolongada, ou para pacientes quente em pacientes com DRGE. Embora não totalmente es­
que apresentam sintomas infrequentes, e que não ocorreram clarecidos, os mecanismos responsáveis seriam o efeito direto
durante o monitoramento esofágico do pH. do álcool sobre a mucosa, redução da pressão do EIE e prolon­
gamento da exposição ácida noturna, sugerindo efeito deletério
■ Manometria esofágica nas defesas contra o refluxo patológico.
A obesidade é considerada, hoje, fator de risco para DRGE,
A manometria esofágica apresenta uma indicação limita­ principalmente a gordura intra-abdominal medida pela cir­
da na avaliação inicial da DRGE e não deve ser realizada para cunferência abdominal. A perda de peso deve ser estimulada
diagnóstico dessa doença. Esse exame pode ser útil na ava­ nos pacientes obesos, sendo comumente observada melhora
liação da gravidade da DRGE, podendo prever sua gravidade subjetiva dos sintomas.
ao demonstrar um EIE defectivo ou disfunção peristáltica. A O tabagismo tem influência negativa na DRGE devido a:
melhor indicação da manometria na DRGE é na avaliação de diminuição da pressão do EIE, diminuição do volume e da se­
diagnósticos diferenciais de afecções que podem provocar sin­ creção de bicarbonato salivar, e aumento do risco de desenvol­
tomas semelhantes aos da DRGE, como regurgitação e disfagia, vimento de adenocarcinoma do esôfago distai e cárdia.
frequentemente observadas em portadores de esclerodermia A elevação da cabeceira da cama é questionável, pois a maio­
e acalasia. ria dos pacientes apresenta episódios de refluxo durante o dia,
e esta medida beneficiaria apenas um reduzido grupo de pa­
- Bilitec® cientes com sintomas noturnos que tem, por exemplo, intensa
regurgitação.
O refluxo duodenogastresofágico tem sido associado à pa- Existem evidências de que o decúbito lateral esquerdo deve
togênese de formas esofágicas mais graves da DRGE, como ser recomendado para pacientes com DRGE pela observação de
esôfago de Barrett e estenose péptica. O Bilitec* foi criado vi­ redução do ácido no esôfago, uma vez que o volume alcançado
sando à detecção dessas substâncias que possuem um alto pH
pelo suco gástrico não chega a atingir a JEG.
e, portanto, não são detectadas pela pHmetria prolongada. Esse
sistema percebe a presença de bilirrubina através de espectro-
fotometria. Apresenta limitações, como sua incapacidade de ■ Tratamento medicamentoso
diferenciar substâncias com coloração semelhante à da bilir­
■ Inibidores da bom ba de prótons
rubina, exigência de dieta líquida (pouco fisiológica) durante
o exame, e é pouco utilizado em nosso meio. A terapia com antissecretores potentes é capaz de aliviar
os sintomas mais rapidamente e cicatrizar as lesões na maior
parte dos pacientes. Doses padronizadas dos inibidores da
bomba de prótons (IBP) (omeprazol, 20 mg; lansoprazol,
■ TRATAMENTO 30 mg; pantoprazol, 40 mg; rabeprazol, 20 mg; e esomepra-
zol, 40 mg) são capazes de tratar a esofagite e aliviar sinto­
■ Medidas higienodietéticas mas em 80 a 90% dos casos em 8 semanas. A resposta inicial
A importância das modificações no estilo de vida e dos fa­ ao uso dos IBP é fator preditivo do sucesso do tratamento a
tores dietéticos foi muito enfatizada no passado. Atualmente, longo prazo. Estes medicamentos devem ser sempre tomados
considera-se que é recomendável educar os pacientes a respeito antes das refeições.
dos fatores que podem precipitar episódios de refluxo, mas o A adoção inicial da terapia mais potente, seguida de redução
emprego isolado destas recomendações não é suficiente para da dose suficiente para obter controle sintomático (“step-down”),
controlar de modo eficaz seus sintomas. A adesão da grande parece ser a melhor opção em termos de resolutividade e de
maioria dos pacientes a estas medidas é geralmente limitada custos, estratégia recomendada pelo Consenso de Genval.
devido ao comprometimento da qualidade de vida. Os IBP são eficazes e seguros quando usados na terapia de
Refeições pouco volumosas, com alto conteúdo de proteí­ manutenção, que deve ser individualizada de acordo com a
nas e baixo conteúdo de gorduras, podem evitar a distensão gravidade e resposta ao tratamento.
gástrica e contribuir para manter a pressão do EIE. A ingestão Se o paciente apresenta sintomas pouco frequentes, o uso do
de alimentos nas três horas precedentes ao horário de dei­ medicamento pode ser feito de acordo com demanda própria.
tar contribuiría para reduzir a frequência dos episódios pós- Porém, nos pacientes com esofagite grave (classificação de Los
prandiais de refluxo, especialmente na posição de decúbito. Angeles C e D), deve-se iniciar com a dose-padrão e mantê-la.
Foi demonstrado que, imediatamente após a ingestão de cho­ Caso os sintomas ou as lesões endoscópicas persistam, acrescen-
colate, a pressão do EIE diminui. O suco de laranja teria efeito ta-se uma segunda dose à noite. Estes pacientes frequentemente
irritativo direto na mucosa esofágica independente do pH, o desenvolvem complicações da doença. O controle dos sintomas
que podería ser explicado pela elevada osmolaridade dos sucos atípicos é mais difícil do que o controle da pirose, necessitando
concentrados, também presente em comidas apimentadas que frequentemente do uso de dose dupla de IBP.
geralmente são preparadas com muito sal. A hiperosmolari- São considerados pacientes refratários aqueles que necessi­
dade dos alimentos pode também ser responsável pela pirose, tam usar IBP mais que 2 vezes/dia, sem controle dos sintomas
comparativamente mais frequente em pacientes com teste de associados ao refluxo e/ou com alterações mucosas significati­
Bernstein positivo (esôfago sensível ao ácido) do que naque­ vas após 12 semanas ou mais de tratamento.
les com teste negativo (p < 0,01). Em relação ao café, existem A recorrência dos sintomas após interrupção do IBP não é
estudos conflitantes na literatura quanto ao seu efeito sobre considerada refratariedade, pois a DRGE é condição crônica
o EIE, mas o café descafeinado diminui em 85% a exposição ou recidivante.
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 109

As principais preocupações sobre as consequências da ini­ DRGE, são necessárias doses múltiplas. Além disso, observa-se
bição da secreção gástrica incluem: declínio da inibição da secreção ácida quando usada por mais
que duas semanas, fenômeno conhecido como taquifilaxia ou
• Hipergastrinemia, reversível com a interrupção do trata­
tolerância, que limita a eficácia terapêutica.
mento e não relacionada com desenvolvimento de car-
cinoides ou displasia. Dentre os AH2, cimetidina e ranitidina foram os mais estu­
dados no tratamento da DRGE, com boa resposta após 8 sema­
• Progressão da gastrite do corpo gástrico induzida pela
nas de tratamento em aproximadamente 50 a 66% dos pacien­
infecção pelo H. pylori. Nos pacientes que necessitam
tes. Os melhores resultados foram obtidos em pacientes com
de uso continuado de IBP, é recomendável a pesquisa
esofagite leve a moderada, tratados com doses elevadas.
e erradicação do microrganismo. Quanto à controversa
A ranitidina foi menos eficaz em manter a remissão na
relação entre DRGE e H. pylori, se aceita atualmente que
DRGE (45%) do que o omeprazol em diferentes doses (62 a
a erradicação do microrganismo não exacerba a DRGE
72%) em pacientes com esofagite erosiva ou ulcerada. A dose
e que, na maioria dos indivíduos, a erradicação não está
diária de 10 mg de omeprazol parece ser superior à dose-
associada ao desenvolvimento de DRGE.
padrão de ranitidina (150 mg 2 vezes/dia). A eficácia limitada
• Possível interferência na absorção de nutrientes, devi­
dos AH, pode ser explicada pelo efeito insuficiente na inibição
do à hipocloridria resultante do uso prolongado de IBP.
ácida após refeições. No entanto, os AH2têm eficácia compro­
Existem controvérsias na literatura sobre a necessidade
vada na inibição da secreção noturna.
de dosar periodicamente os níveis séricos de ferro e de
vitamina Bl2, de acordo com poucos estudos publicados a
■ Procinéticos
respeito, sendo todos com pequeno número de pacientes.
As alterações fisiopatológicas responsáveis pela DRGE pode-
Com relação à absorção do cálcio, existem alguns estu­
riam ser corrigidas por drogas que aumentassem a pressão do
dos observacionais que sugerem um possível aumento
EIE, melhorassem o peristaltismo do esôfago e o esvaziamento
do risco de fraturas ósseas em usuários crônicos de IBP.
gástrico. Os medicamentos procinéticos atualmente disponí­
Atualmente, vários aspectos desta possível relação não
veis no mercado não corrigem estas alterações, e são eficientes
estão resolvidos, devendo-se aguardar a realização de no­
apenas quando usados em pacientes com sintomas dispépticos
vos estudos, para o esclarecimento adequado.
associados.
A terapia antiácida com IBP é capaz de diminuir drastica­ A metoclopramida não é considerada boa escolha no trata­
mente o refluxo duodeno-gastresofágico, o que pode ser expli­ mento da DRGE, pois atua no sistema nervoso central, causan­
cado pela diminuição do ácido e do volume da secreção gástrica. do efeitos colaterais como sonolência, irritabilidade, tremores
A proteção da mucosa esofágica ocorre também pela eliminação e discinesia.
do sinergismo negativo entre o ácido, a pepsina e a bile. A domperidona, antagonista da dopamina apenas em nível
É recomendável, no entanto, usar a menor dose do IBP para periférico, é útil, mas observa-se hiperprolactinemia em 10 a
obtenção do efeito terapêutico desejável. 15% dos seus usuários crônicos.
Os objetivos do tratamento do esôfago de Barrett incluem, Outro eficaz procinético, a cisaprida, foi retirado do comér­
idealmente, o controle dos sintomas da DRGE, a cicatrização cio por induzir arritmias cardíacas principalmente quando as­
de lesões associadas e a prevenção da progressão para neopla- sociada a outras drogas.
sia do epitélio metaplásico e/ou displásico.
Estudos recentes corroboram o conceito de que a exposi­ ■ Novas drogas
ção ácida persistente no esôfago de Barrett associa-se com a Algumas drogas de diferentes perfis farmacológicos têm sido
precipitação de todos os estágios de progressão molecular do testadas, apresentando resultados iniciais limitados. Resulta­
desenvolvimento do adenocarcinoma. O refluxo ácido crô­ dos promissores têm sido obtidos com o baclofeno, agonista
nico pode predispor ao câncer por lesar as células epiteliais dos receptores B do ácido gama-aminobutírico (GABA). Seu
metaplásicas, aumentando sua proliferação e diminuindo sua uso em pacientes com DRGE mostrou redução do número de
diferenciação. Sendo assim, a tendência atual é que seja feito episódios de refluxo e o percentual de tempo de exposição áci­
um controle rigoroso do refluxo gastresofágico em portado­ da após uma única dose de 40 mg. Seu mecanismo parece ser
res de esôfago de Barrett, através de uma abordagem clínica a supressão dos RTEIE. Como seus efeitos colaterais são fre­
ou cirúrgica. quentes, impedindo provavelmente o uso rotineiro, o baclofeno
O tratamento clínico do esôfago de Barrett consiste na uti­ tem sido considerado um protótipo para o desenvolvimento de
lização de inibidores de bomba protônica em doses definidas novas drogas anti-RTEIE.
por monitoramento por pH esofagogástrico, visando a abolir
a secreção ácida gástrica e, dessa forma, a impedir o refluxo
gastresofágico. Vale salientar que essas drogas também contro­
■ Tratamento cirúrgico
lam o refluxo biliar provavelmente por diminuírem o conteú­ O tratamento cirúrgico da DRGE consiste no reposiciona­
do do refluxato. O uso de drogas anti-inflamatórias parece ter mento do esôfago na cavidade abdominal associado à hiatoplas-
um papel profilático no desenvolvimento do adenocarcinoma tia e fundoplicatura. Após a realização da primeira fundoplica-
esofágico, e sua utilização rotineira em portadores de esôfago tura (Nissen) por via laparoscópica, em 1991, por Dallemagne
de Barrett tem sido defendida por alguns autores. et a l y observou-se uma tendência crescente na indicação da
cirurgia, considerada alternativa segura e eficaz no tratamento
■ Antagonistas H 2 de portadores de DRGE.
Os antagonistas dos receptores H2(AH2) - cimetidina, ra- As indicações da cirurgia antirrefluxo variam. As diretrizes
nitidina, famotidina, nizatidina - são drogas seguras e bem do American College of Gastroenterology (2005) colocam a ci­
toleradas, mas têm curta duração de ação (entre 4 e 8 h, con­ rurgia como uma opção para o tratamento de manutenção para
forme o regime empregado) e resultam em inibição incompleta os pacientes com DRGE bem documentada, enquanto o Con­
da secreção ácida. Consequentemente, para o tratamento da senso de Genval considera o tratamento cirúrgico apropriado
110 Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico

em todos os pacientes que, devidamente informados, optem completa com tratamento medicamentoso. Os sintomas típi­
pela cirurgia. Ambos enfatizam a importância da escolha do cos respondem mais provavelmente após a cirurgia do que os
cirurgião bem treinado. sintomas atípicos extraesofágicos.
O tratamento cirúrgico no esôfago de Barrett não compli­ Atualmente, existem alguns estudos observacionais, mas não
cado consiste na fundoplicatura, atualmente realizada por via estudos controlados, comparando o tratamento clínico com o
videolaparoscópica. A realização de uma pHmetria pós-opera­ tratamento cirúrgico no controle dos sintomas extraesofágicos
tória seria ideal para se confirmar a ausência de refluxo ácido da DRGE. A resposta favorável ao tratamento cirúrgico foi ob­
no esôfago. servada apenas em pacientes rigorosamente selecionados, por­
A falta de resposta ao tratamento clínico não é atualmente tadores de tosse crônica e de asma, associadas à DRGE.
considerada como indicação de tratamento cirúrgico, pois a Outra vantagem do tratamento cirúrgico é o controle do
falha terapêutica pode ser devida à incorreção do diagnóstico. refluxo não ácido (componente biliar e pancreático) e seu con­
Neste caso, deve-se sempre reconsiderar o diagnóstico e rea­ troverso impacto nas alterações metaplásicas e displásicas do
valiar a terapia. epitélio esofágico.
Conforme o II Consenso Brasileiro da Doença do Refluxo Sintomas pós-operatórios como disfagia, incapacidade de
Gastroesofágicoy realizado em 2003, o tratamento cirúrgico da eructar, plenitude pós-prandial, síndrome do ar preso (gas blo-
DRGE não complicada deve ser considerado quando: houver at) e flatulência ocorrem em 0 a 40% dos casos e devem ser in­
razões que impossibilitem a continuidade do tratamento clínico formados previamente ao candidato à cirurgia.
(de ordem pessoal, econômica ou intolerância) e nos casos em
que for exigido tratamento contínuo de manutenção com IBP,
especialmente naqueles com menos de 40 anos de idade, que
■ Tratamento endoscópico
optem pelo tratamento cirúrgico. Está recomendado também Novos e variados procedimentos endoscópicos para trata­
nas formas complicadas da DRGE (i. e., estenose e/ou úlcera) mento da DRGE estão sendo investigados e todos têm como
e quando houver adenocarcinoma. objetivo aumentar a barreira antirrefluxo. Apesar de algumas
Existem estudos comparativos da eficácia do tratamento destas técnicas terem sido aprovadas pelo órgão regulatório
clínico com o tratamento cirúrgico. Um estudo prospectivo e americano PDA (Food and Drug Administration), elas conti­
randomizado avaliou a satisfação dos pacientes portadores de nuam sendo investigadas: radiofrequência (Stretta), sutura en-
DRGE que se submeteram ao tratamento clínico ou cirúrgico. doscópica, implantação de microesferas. O procedimento com
O seguimento foi, em média, de 10,6 anos para o tratamento Stretta cria uma lesão que, ao cicatrizar, resulta em estenose. A
medicamentoso e de 9,1 anos para o cirúrgico. A grande maio­ sutura endoscópica cria uma plicatura endoluminal no esôfago
ria dos pacientes operados (62%) estava usando algum tipo de distai. Várias questões ainda não resolvidas sobre estes proce­
medicamento antirrefluxo (IBP, AH, ou procinéticos) regular­ dimentos incluem eficácia, durabilidade e segurança a longo
mente, apesar de estarem satisfeitos com o tratamento inicial prazo. Aguardam-se estudos controlados e randomizados para
(Figura 10.7). Os autores concluíram que pacientes que se sub­ determinação das suas indicações nos portadores de DRGE.
metem à cirurgia antirrefluxo não podem ter a expectativa de
não usar novamente medicamentos antissecretores. ■ Estenose esofágica
As conclusões de um estudo prospectivo randomizado e O tratamento de estenose péptica do esôfago consiste no
multicêntrico europeu, comparando o tratamento clínico com controle da DRGE e nas dilatações esofágicas. Apesar de a dila-
o cirúrgico, foram publicadas após 3 anos de seguimento por tação esofágica ser a base do tratamento da estenose péptica do
Lundell et a l (2008). Ambos os tratamentos atingiram o mes­ esôfago, o uso de antissecretores tem mudado o curso natural
mo grau de satisfação dos pacientes e foram considerados al­ dessa afecção. Na verdade, esses medicamentos diminuem o
tamente eficazes, seguros e bem tolerados. Como o seguimen­ edema da mucosa, aumentando o diâmetro da luz do esôfago,
to destes pacientes continua, aguardam-se novas publicações além de evitar a persistência da agressão ácida sobre o órgão.
dos autores. Esses efeitos determinam uma melhora do quadro esofágico a
A seleção apropriada e a avaliação pré-operatória dos pa­ longo prazo. Os inibidores da bomba protônica em altas doses
cientes são de fundamental importância. Os fatores preditivos são as drogas de escolha para o tratamento desses pacientes,
de boa resposta, encontrados em um estudo com 100 pacientes, oferecendo resultados muito superiores àqueles obtidos com o
foram idade inferior a 50 anos, sintomas típicos com resolução uso de antagonistas dos receptores H2. A cirurgia antirrefluxo

Figura 10.7 Tratamento cirúrgico e medicamentoso da DRGE: seguimento a longo prazo. Adaptado de Spechler.
Capítulo 10 / Doença por Refluxo Gastresofágico 111

(fundoplicatura) é também uma boa opção para evitar o reflu­ Barbuti, RC & Moracs-Filho, JPP. Doença do refluxo gastrocsofágico. Em: Cas­
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área estenosada. Com esse objetivo, podem-se utilizar três tipos Calabresc, C, Fabbri, A, Bortolotti, M et a i Dilatcd intcrccllular spaccs as a
de sistemas de dilatação esofágica: os dilatadores de borracha marker of ocsophagcal damage: comparativo rcsults in gastro-ocsophagcal
preenchidos por mercúrio (dilatadores de Hurst e Maloney), os reflux disease with or without bile reflux. Aliment Pharmacol Ther, 2003:
18:525-32.
termoplásticos (polivinil) representados principalmente pelos Cange, L, Johnsson, E, Rhydolm, H et ai Baclofen-mcdiated gastro-ocsophagcal
dilatadores de Savary-Gilliard e Bard, e aqueles com balão hi- acid reflux control in patients with cstablished reflux disease. Aliment Phar­
drostático e/ou pneumáticos. Complicações das dilatações eso- macol !Ther. 2002; 16:869-73.
fágicas incluem perfuração, hemorragia (raramente de grande Canto, MI, Sctrakian, S, Willis, J et a i Mcthylcnc blue-dircctcd biopsies im­
monta) e bacteriemia transitória, que infrequentemente pode prove detcction of intestinal metaplasia and dysplasia in Barrett s esophagus.
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determinar quadro de meningite, endocardite ou abscesso ce­ Canto, MI, Yoshida, T, Gossner, L. Chromoscopy of intestinal metaplasia in
rebral. Cerca de 50% dos pacientes submetidos a dilatação de­ Barretts esophagus. Endoscopy, 2002; 34:330-6.
vido a estenose péptica do esôfago apresentarão recorrência do Clousc, RE, Richtcr, JE, Hcading, RC et a i Functional csophageal disorders.
quadro. O número de recorrências apresentadas pelo paciente Cut, 1999; 45:1131-6.
tem um valor preditivo quanto a novas recorrências futuras. Coelho, LGV 8c Castro, LPC. Infecção por Helicobacterpylori. Em: Castro, LPC
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Sendo assim, um paciente que apresentou duas recorrências 2004:75-113.
da estenose esofágica necessitando de dilatação tem 94% de Dallemagne, B, Wccrts, JM, Hehacs, C et ai Laparoscopic Nissen fundoplication:
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Estão sendo propostos tratamentos endoscópicos que consis­ Factor for GERD Symptoms and Erosivc Esophagitis. Am } Gastroenterol,
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de Barrett, permitindo a regeneração do epitélio tipo escamoso Fitzgcrald, RC, Onwucgbusi, BA, Baja-EUiott, M et a i Divcrsity in the oesopha-
gcal phcnotypic response to gastro-ocsophagcal reflux: immunological dc-
do esôfago. Com esse intuito, são utilizadas energias térmicas,
terminants. Gut, 2002; 50:451-9.
como coagulação multipolar ou coagulação com argon plas­ Hallerback, B, Unge, P, Carling, L et a i Omcprazolc or ranitidinc in long-tcrm
ma, ou fotoquímicas, como terapia fotodinâmica. Existe muita treatment of reflux csophagitis. Gastroenterology, 1994; 107:1305-11.
controvérsia quanto ao uso dessa modalidade terapêutica, pois, Hatlcback, JG, Bcrstad, A, Carling, L et a i Lansoprazolc versus omcprazolc in
além dos riscos de estenose e perfuração do esôfago, é possível short-term treatment of reflux oesophagitis. Scand J Gastroenterol, 1993;
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endoscópica. Além disso, alguns estudos mostram um aumento saliva. Gastroenterology, 1982; 83:69-74.
do risco de degeneração do epitélio tratado com essas técnicas. Ismail-Bcigi, F, Horton, PF, Pope, CE. Histological consequcnces of gastroc­
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a vigilância endoscópica para diagnóstico precoce de um even­ Kahrilas, PJ, Shahccn, NJ, Vaezi, MV. American Gastrocntcrological Association
tual tumor no epitélio metaplásico. Atualmente, recomenda-se Institutc tcchnical review on the management of gastroesophageal reflux
a realização de endoscopia digestiva em portadores de esôfago disease. Gastroenterology, 2008; 135:1392-413.
de Barrett a cada 2 ou 3 anos. Caso seja detectada displasia de Katz, LC, Just, R, Castcll, DO. Body position aífccts rccumbent postprandial
reflux./C/m Gastroenterol, 1994; 18:280-3.
baixo grau, esse intervalo deve ser reduzido a 6 meses. Caso Katzka, DA 8c Castcll, DO. Conscrvativc thcrapy (phase I) for gastrocsopha­
haja regressão dessa displasia após 1 ano, deve-se manter a gcal reflux disease (lifcstylc modifications). Em: Castcll, DO 8c Richtcr,
vigilância endoscópica a cada ano. Nos casos de displasia de JE (cds.).Thc esophagus. Philadclphia: Lippincott Williams 8c Wilkins,
alto grau, muitos autores recomendam a esofagectomia. Ou­ 1999:437-45.
tros acreditam que esses pacientes possam ser acompanhados Kawamura, O, Aslam, M, Rittmann, T et a i Physical an pH properties of gas­
trocsophagcal refluxate: a 24 hour simultancous ambulatory impcdancc and
com endoscopia a cada 3 meses, optando-se pela ressecção ci­ pH monitoring study. Am J Gastroenterol, 2004; 99:1000-10.
rúrgica apenas quando se estabelecer o diagnóstico de tumor Klauscr, AG, Schindlbcck, NE, Mullcr-Lissncr, SA. Symptons in gastro-ocsop­
invasivo. Um terceiro grupo advoga a ideia de ressecção endos­ hagcal reflux disease. Lancet, 1990; 335:205-8.
cópica do epitélio com displasia, através de técnicas ablativas Lind, T, Havclund, T, Lundcll, L et a i On demand thcrapy with omcprazolc for
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11 Membranas, Anéis e
Divertículos do Esôfago
Vitor Antonino Mendes de Sá

O esôfago é um órgão tubular cuja extensão varia de 18 a


26 cm em média, constituído por quatro camadas: mucosa,
■ MEMBRANAS ESOFÁGICAS
submucosa, muscular própria e adventícia. Não possui uma As membranas do esôfago cervical são delgadas estruturas
camada serosa. Inicia-se proximalmente a partir de uma es­ mucosas geralmente excêntricas que surgem a partir da parede
trutura funcionalmente denominada esfincter esofágico supe­ anterior e se prolongam lateralmente. Costumam estar associa­
rior, que, anatomicamente, corresponde às fibras musculares das à anemia ferropriva, quando então se caracteriza a síndrome
estriadas esqueléticas dos músculos constritor inferior e cri- de Plummer-Vinson, ou a outras condições, como a doença do
cofaríngeo. A constituição muscular de sua porção proximal refluxo gastresofágico, a síndrome de Sjogren, pênfigos, epider-
é parcialmente composta por fibras estriadas, progressiva­ mólise bolhosa e tireoidopatias. Frequentemente, são assinto-
mente substituídas por fibras lisas. No terço distai, dentro do máticas, podendo, entretanto, provocar disfagia intermitente
hiato diafragmático, há um espessamento da musculatura lisa para sólidos ou impactação de bolo alimentar.
circular interna, que constitui o chamado esfincter esofágico O diagnóstico, tanto em indivíduos disfágicos quanto nos
inferior, habitualmente coincidente com a transição mucosa assintomáticos, habitualmente advém de uma endoscopia di­
escamocolunar. gestiva alta ou de um esofagograma. O tratamento, quando
necessário, envolve ruptura ou dilatações das membranas.
Pela sua peculiaridade, deve ser mencionada a síndrome de
■ MEMBRANAS E ANÉIS Plummer-Vinson, também denominada síndrome de Paterson-
Brown Kelly. É uma entidade rara descrita inicialmente por
O conceito atualmente vigente diferencia os termos mem­ Plummer, em 1912, que acomete preferencialmente mulheres
branas e anéis esofágicos. na faixa etária entre 30 e 70 anos. É caracterizada pela presen­
Denomina-se membrana toda estrutura que cause estreita­ ça de anemia ferropriva, disfagia e uma ou mais membranas
mento luminal do órgão, formada exclusivamente por mucosa esofágicas cervicais. Pode ainda cursar com queilite, glossite,
escamosa, tanto na superfície superior quanto na inferior, sem coiloníquia e, mais raramente, baqueteamento digital e tortuo-
componente muscular associado. Raramente, são concêntri­ sidade esofágica.
Sua patogênese não foi esclarecida, mas acredita-se que a
cas, surgindo habitualmente da parede esofágica anterior, de
forma assimétrica. sideropenia em um indivíduo geneticamente predisposto te­
nha envolvimento, além de possíveis cofatores autoimunes,
O termo anel vem sendo usado para denominar as estruturas
infecciosos ou ambientais. Entretanto, deve ser ressaltado que
semelhantes às membranas que, entretanto, são concentrica-
as membranas esofágicas cervicais nem sempre estão associa­
mente regulares e se localizam na junção mucosa escamocolu­ das à ferropenia, fato este relatado em várias séries clínicas. O
nar da transição esofagogástrica. Portanto, apresentam mucosa desenvolvimento da disfagia, e não das membranas, parece ter
escamosa na superfície superior e epitélio colunar na superfí­ forte correlação com a ferropenia, com comprometimento da
cie inferior. Usa-se o termo anel também para identificar duas deglutição e da motilidade esofágica, alterações que são rever­
outras estruturas, que são os anéis funcionais, frequentemente tidas com a reposição de ferro.
descritos em exames radiológicos contrastados, e o anel mus­ A incidência dessa síndrome, que já foi bastante elevada
cular do esôfago, raramente encontrado. nos países nórdicos, está em franco declínio, possivelmente
O diagnóstico dessas estruturas habitualmente é feito em pela maior oferta nutricional e suplementar de ferro. Não há
pacientes com queixas relacionadas com disfagia ou regur­ consenso sobre uma possível relação da síndrome de Plummer-
gitação, ou como achados incidentais observados durante a Vinson com o surgimento de câncer de esôfago, inicialmente
realização de exames endoscópicos ou radiológicos contras­ relatada na Suécia na década de 1960. Estudos posteriores não
tados. confirmaram tal associação.

113
114 Capítulo 11 / Membranas, Anéis e Divertículos do Esôfago

O tratamento envolve suplementação de ferro até a correção


da anemia e dos estoques desse elemento. Alguns casos reque­
rem intervenções endoscópicas, que variam de simples ruptura
de delgadas membranas com o próprio endoscópio, até repeti­
das sessões de dilatação com velas ou dilatadores.
As membranas do esôfago médio são bem mais incomuns
que as membranas de localização cervical. Geralmente, estão
associadas a doenças subjacentes, como a doença do enxerto
versus hospedeiro, que pode ocorrer em indivíduos transplan­
tados de medula óssea, mas também em pessoas absolutamente
hígidas.
A presença de múltiplas membranas esofágicas pode cons­
tituir uma síndrome congênita que acomete preferencialmente
indivíduos do sexo masculino. Há uma longa história de disfa-
gia e é frequente a necessidade de dilatações terapêuticas.

■ ANELDESCHATZKI (ANEL DO Figura 11.1 Endoscopia digestiva alta mostrando anel de Schatzki.
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
ESÔFAGO DISTAL)
O anel de Schatzki é uma estrutura que anatomicamente de­
limita a junção escamocolunar, sendo observado em até cerca com ambas. Frequentemente, são necessárias novas sessões
de 6 a 14% de pacientes submetidos a um esofagograma. de tratamento.
É constituído exclusivamente por mucosa e submucosa,
com centro preenchido por tecido conjuntivo e células infla-
matórias.
Sua etiologia é controversa, podendo estar relacionada com
■ ANÉIS MUSCULARES
a presença de doença do refluxo gastresofágico (DRGE), origi- São bastante raros, estando a maioria absoluta localizada
nar-se congenitamente ou, até mesmo, estar ligada à esofagite poucos centímetros acima da junção escamocolunar. Carac­
eosinofílica. terizam-se por uma constrição anular espessada a partir da
O anel de Schatzki não parece prevenir contra uma maior camada muscular circular do esôfago, estando recobertos por
exposição ácida na DRGE, conforme demonstrado em um es­ mucosa esofágica normal.
tudo recente. Todavia, o epitélio metaplásico de Barrett é me­
Podem provocar disfagia para sólidos, e mesmo para líqui­
nos frequente em pacientes com anel de Schatzki, o que susci­
dos, crônica e de caráter intermitente.
ta algumas questões sobre sua verdadeira fisiopatologia e sua
O esofagograma revela uma estrutura contrátil anular de es­
relação com a presença de ácido na luz esofágica.
pessura e lúmen variáveis. A endoscopia mostra estreitamento
Em geral, é assintomático, mas, quando o diâmetro lumi-
luminal focal, mas é menos apropriada para mensurar sua es­
nal se torna m enor que 13 mm, podem surgir disfagia para
pessura. Nos poucos casos estudados por manometria, obser­
sólidos ou impactações alimentares. Característica marcante
varam-se múltiplos picos de contrações esofágicas peristálticas
da disfagia relacionada com o anel de Schatzki é seu caráter
intermitente, diferente da causada por estenoses péptica ou ne- de grande amplitude e longa duração.
oplásica; entretanto, o anel de Schatzki é a causa mais comum As formas de tratamento propostas incluem dilatações com
de disfagia intermitente para alimentos sólidos. Essa disfagia dilatadores rígidos, secção endoscópica através de corrente elé­
aparece particularmente quando o indivíduo come rapidamen­ trica, ou cirurgia aberta. Outra opção terapêutica a ser consi­
te e mastiga mal. derada é a injeção local de toxina botulínica. O uso de agentes
O padrão-ouro para diagnóstico do anel de Schatzki con­ anticolinérgicos também pode ser útil em pacientes com reci-
tinua sendo o exame radiológico contrastado, utilizando con­ diva sintomática, ou naqueles considerados maus candidatos
traste mais espesso. Apresenta-se como anel regular, concên­ aos tratamentos invasivos.
trico e estreito (até 2 mm de espessura). Durante a endoscopia
digestiva alta, pode também ser bem identificado (Figura 11.1),
necessitando apenas de adequada distensão gasosa do esôfago ■ ANÉIS FUNCIONAIS (ANÉIS A EB)
distai. Quando se acompanha de hérnia hiatal, sua identifica­
ção é mais fácil. São anéis fisiológicos, observados rotineiramente em exa­
Pacientes assintomáticos não necessitam de tratamento. Me­ mes radiológicos contrastados e, ocasionalmente, em exames
didas simples, como orientações sobre a necessidade de masti­ endoscópicos.
gação adequada e deglutição de pequenos volumes de alimentos O anel A de Wolf marca o início do esfíncter esofágico in­
sólidos, muitas vezes são suficientes para o controle de pacien­ ferior (EIE), delimitando superiormente a ampola epifrênica
tes sintomáticos. vista à radiologia. Tal ampola corresponde à região do EIE e é
Os casos sintomáticos refratários às medidas conservadoras delimitada inferiormente pelo chamado anel B de Wolf, na jun­
podem ser tratados com dilatações por velas de Savary-Gilliard ção escamocolunar (linha Z). A presença de uma hérnia hiatal
ou Maloney, além de ruptura do anel em quatro quadrantes facilita a visibilização do anel B, já que nessa situação a linha
usando pinças de biopsia. A recorrência dos sintomas após Z se encontra superiormente ao pinçamento diafragmático, e
essas duas técnicas é comum e ocorre em taxas semelhantes isso permite a distensão gasosa, realçando-o.
Capítulo 11 / Membranas, Anéis e Divertículos do Esôfago 115

endoscópio, o que pode levar a perfurações inadvertidas. Deve


■ DIVERTÍCULOS ESOFÁGICOS ser ressaltado que a presença do divertículo de Zenker não é
Conceitualmente, divertículos esofágicos são protrusões uma contraindicação ao exame endoscópico. De fato, uma das
de uma ou mais camadas da parede do órgão, para fora de opções terapêuticas disponíveis envolve o uso da endoscopia,
sua luz. como será citado adiante. O que se procura é acentuar os cui­
Os divertículos podem ser classificados quanto a localização, dados para evitar lesões advindas de uma tentativa forçada de
etiologia (congênitos ou adquiridos), fisiopatologia (pulsão ou progredir o endoscópio fora da luz do esôfago, dentro da bolsa
tração) e anatomopatologia (verdadeiros ou falsos). A fim de diverticular.
evitar termos em demasia, optamos por citá-los como mais vêm Estudos manométricos não são considerados essenciais ao
sendo referenciados, usando a localização anatômica. diagnóstico ou ao planejamento terapêutico. Quando reali­
zados, podem demonstrar pressões basais normais ou baixas no
EES, mas um tônus aumentado, com relaxamento incompleto,
■ Divertículo de Zenker durante a deglutição.
O divertículo de Zenker, também chamado de faringoeso- As principais complicações relacionadas com a presença de
fágico ou hipofaríngeo, é o tipo mais frequentemente obser­ um divertículo de Zenker são desnutrição, pneumonia por as­
vado, respondendo por cerca de 70% dos casos de divertículos piração, abscesso pulmonar, bronquiectasias, perfuração inad­
esofágicos. São notados em cerca de 1% dos esofagogramas vertida durante procedimento invasivo (sondagens, endoscopia
contrastados. Trata-se de uma protrusão extraluminal de parte digestiva alta, ecocardiograma transesofágico), hemorragias,
da mucosa hipofaríngea na junção do músculo cricofaríngeo, ulcerações e câncer na mucosa diverticular.
com fibras transversais, e do músculo constritor inferior da fa- Divertículos assintomáticos ou oligossintomáticos não de­
ringe. Essa região onde ocorre a herniação é conhecida como mandam tratamento específico. Aconselha-se ao paciente por­
triângulo de Killian e considerada um ponto bastante fraco do tador de tal condição mastigação exaustiva, evitar grandes volu­
tubo digestivo. mes de alimentos sólidos em uma mesma deglutição e ingestão
A fisiopatologia do divertículo é bastante complexa e, ainda de líquidos concomitante às refeições sólidas.
hoje, motivo de frequentes discussões. A teoria mais aceita na A persistência ou o agravamento de sintomas geralmente
atualidade é a de que um incompleto relaxamento do esfíncter indica a necessidade de intervenção cirúrgica. As opções tera­
esofágico superior (EES) durante a deglutição leva ao aumen­ pêuticas para os divertículos de Zenker sintomáticos envolvem
to da pressão do bolo alimentar contra a frágil área de Killian, quatro técnicas abertas, que são a ressecção transcervical (di-
ocasionando a herniação mucosa nesse ponto. verticulotomia), com ou sem cricomiotomia, a miotomia cri-
Não está claro se há relação entre o aparecimento do diver­ cofaríngea isolada e a suspensão diverticular (diverticulopexia)
tículo de Zenker e a DRGE. Há uma hipótese, não comprova­ associada à miotomia cricofaríngea. O procedimento terapêu­
da, de que o refluxo levaria ao encurtamento longitudinal do tico por via endoscópica envolve a técnica de miotomia crico­
esôfago, favorecendo a herniação mucosa. faríngea (diverticulostomia), que pode ser feita por eletrocau-
A prevalência estimada na população geral é de cerca de tério, alça diatérmica, grampeador ou laser. Um recente estudo
0,1%. Predominam em indivíduos do sexo masculino em uma comparando os procedimentos abertos e a técnica endoscópica
razão de 2:1 e em pacientes com idade superior a 60 anos. permitiu a conclusão de que a diverticulostomia é segura, rá­
Os pequenos divertículos faringoesofágicos podem ser total­ pida e eficaz para a maioria dos pacientes com divertículos de
mente assintomáticos e só são identificados em exames comple­ Zenker de médio tamanho, entre 2 e 5 cm. Já as técnicas abertas
mentares solicitados em função de sintomas não relacionados oferecem melhores resultados a longo prazo e devem ser reco­
com a sua presença. As manifestações clínicas iniciais associa­ mendadas para os pacientes mais jovens, saudáveis e naqueles
das ao divertículo de Zenker são a disfagia e a regurgitação de com divertículos pequenos ou muito grandes. Outro estudo
alimentos não digeridos. Podem também ser observados sialor- mais amplo, comparando todas as técnicas citadas, conclui que
reia e desconforto na garganta ou pescoço. Com o aumento do as técnicas abertas oferecem melhor alívio sintomático, em es­
volume diverticular, podem advir tumefaçáo cervical, halitose, pecial aos pacientes com pequenos divertículos. As principais
mau gosto na boca, modificações da voz, dor torácica retroes- complicações do tratamento por endoscopia são a hemorragia,
ternal, perda de peso devido à ingestão alimentar insuficiente, a perfuração e a fistulização, enquanto nas cirurgias abertas po­
e manifestações pulmonares relacionadas com a aspiração de dem ocorrer mediastinite, lesão do nervo laríngeo recorrente
resíduos alimentares (tosse, dispnéia e sibilância). com paralisia de pregas vocais e fístulas.
O padrão-ouro no diagnóstico do divertículo de Zenker con­
tinua sendo a radiografia contrastada do esôfago com bário em
duas diluições, sendo uma mais espessa, para melhor identi­
■ Divertículos medioesofágicos
ficação de divertículos menores, e outra, menos concentrada, São considerados o subtipo de divertículo esofágico mais
para divertículos maiores. Podem ser necessários diferentes raro, respondendo por cerca de 10% dos casos.
posicionamentos do paciente durante o exame, além de even­ Podem estar relacionados com transtornos da motilidade
tuais manobras específicas para retirada de alimentos retidos esofágica ou com a presença de processos inflamatórios e ci-
em seu interior e sua melhor visibilização. Formações sacula- catriciais do mediastino.
res, ovaladas, pendulares e outras são geralmente encontradas, A maioria dos casos é assintomática. Entretanto, podem cau­
além de níveis hidroaéreos. sar disfagia, regurgitação e dor torácica.
A endoscopia digestiva alta não deve ser rotineiramente in­ O exame radiológico mostra o divertículo geralmente na
dicada como método diagnóstico na suspeita de divertículo de altura da bifurcação traqueal, predominando no lado direito,
Zenker. Pequenos divertículos podem não ser identificados de­ com boca larga. A manometria esofágica pode mostrar diversos
vido às pequenas dimensões do orifício de entrada, e grandes padrões de dismotilidade e sempre deve ser realizada antes de
divertículos habitualmente são a via preferencial de descida do qualquer decisão terapêutica.
116 Capítulo 11 / Membranas, Anéis e Divertículos do Esôfago

O tratamento atualmente preconizado é a diverticulectomia sintomas podem estar relacionados também com os distúrbios
por videotoracoscopia direita isolada, caso não haja distúrbios motores concomitantes. Complicações envolvem perfurações,
motores concomitantes. Associa-se à diverticulectomia a mio- abscesso e hemorragia.
tomia extramucosa longitudinal nos casos que se acompanham São identificados em exames radiológicos contrastados do
de dismotilidade. esôfago, sendo solitários na maioria dos casos. Têm largura
média de 4,4 cm e profundidade média de 3,7 cm. Parece ha­
ver correlação dos sintomas com o enchimento preferencial do
■ Divertículos epifrênicos divertículo e com seu tamanho.
Divertículos epifrênicos são raros, respondendo por cerca de O tratamento só está indicado quando há sintomatologia
20% de todos os divertículos esofágicos. Localizam-se no terço importante ou na presença de complicações. Classicamente,
distai, em geral próximo ao diafragma, e predominam no lado é realizada a diverticulectomia associada à esofagomiotomia e
direito do órgão (Figuras 11.2 e 11.3). Estão comumente asso­ um procedimento antirrefluxo, geralmente uma fundoplicatura
ciados a distúrbios motores do esôfago, como acalasia, elevadas parcial. O acesso pode ser transtorácico, por via aberta ou to-
pressões em repouso no esfíncter esofágico inferior, esôfago em racoscópica, ou laparoscópico. Devido à relativa infrequência
quebra-nozes e dismotilidade inespecífica. dessa condição, não há estudos comparativos entre as técnicas
As manifestações clínicas atribuídas aos divertículos epifrê­ propostas, mas a cirurgia por laparoscopia é relatada como a
nicos são disfagia, regurgitação e sintomas respiratórios. Tais técnica de escolha atualmente.

Figura 11.2 Divertículo epifrênico único em endosco-


pia digestiva alta (A) e dois divertículos epifrênicos em
esofagograma (B). (Esta figura encontra-se reproduzida
em cores no Encarte.)

Figura 11.3 Pseudodiverticulose intramural do esô­


fago, identificada em endoscopia digestiva alta (A) e
pelo esofagograma (B) (cortesia: Dr. Luiz Fernando
Abraão Reis, Belo Horizonte). (Esta figura encontra-se
" B reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 11 / Membranas, Anéis e Divertículos do Esôfago 117

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Comprometimento do Esôfago
por Infecções, Radiação e
Agentes Químicos
Paulo Fernando Souto Bittencourt, Edivaldo Fraga Moreira e
Walton Albuquerque

O desenvolvimento de lesões da mucosa do esôfago depende da exame radiológico deve ser realizado quando houver contrain-
resistência desta aos agentes agressores e do poder de agressão dicação ao exame endoscópico. Nos pacientes com síndrome da
destes agentes, que podem ser intrínsecos, como a secreção gás­ imunodeficiência adquirida (AIDS), as opiniões são divergentes
trica, ou extrínsecos, como produtos corrosivos, medicamentos, quanto à indicação da endoscopia para o diagnóstico da EC.
agentes infecciosos e radiação ionizante. A concomitância de Alguns autores sugerem que, se o paciente apresenta sintomas
esofagite de refluxo com as induzidas por produtos químicos, típicos e candidíase oral, estes deveriam ser tratados, e a en­
ou mesmo por agentes infecciosos, pode ser um fator de con­ doscopia indicada apenas em casos especiais. Outros estudos,
fusão no estabelecimento do diagnóstico preciso. A esofagite todavia, mostraram que, diante dessas alterações clínicas, o
de refluxo é a causa mais comum de inflamação do esôfago e médico ainda não estaria autorizado a iniciar o tratamento, e
será discutida em capítulo específico. a endoscopia seria obrigatória, não só para confirmar o diag­
Abordaremos as esofagites de causas infecciosas e as provo­ nóstico, mas também para excluir outras lesões concomitantes
cadas por agentes químicos e pela radiação. (Prancha 12.1 A). A endoscopia digestiva alta (EDA) em pa­
cientes com infecção fúngica no esôfago mostra a presença de
placas brancacentas ou amareladas, aderidas à mucosa, sendo
■ INFECÇÕES DO ESÔFAGO esses os locais indicados para a coleta de material através de
biopsias ou escovado para citologia, histologia e cultura. Dentre
as classificações para avaliar o grau de infecção pela Candida,
■ Esofagite por fungos segundo os aspectos endoscópicos, destacam-se a de Kodsi et al.
e a de Wilcox. Esta última é descrita como segue:
■ Esofagite por Candida (EC)
O esôfago é o órgão mais frequentemente infectado pela • Grau I: placas esparsas, comprometendo menos de 50%
Candida, do mesmo modo que a Candida é o agente infeccioso da mucosa esofágica.
mais comum neste órgão. Existem alguns grupos de pacien­ • Grau II: placas esparsas comprometendo mais de 50%
tes que apresentam predisposição ao desenvolvimento de EC, da luz esofágica.
como os portadores de diabetes, de doenças malignas, de doen­ • Grau III: placas confluentes, reversíveis à insuflação, que
ças crônicas debilitantes, de obstrução do esôfago, os pacientes cobrem circunferencialmente pelo menos 50% da m u­
em uso de terapia antimicrobiana ou corticoterapia por perío­ cosa.
dos prolongados e, em especial, os pacientes comprometidos • Grau IV: placas circunferenciais, com estenose, não re­
imunologicamente. Na patogênese da EC, estão envolvidos três versíveis à insuflação.
fatores, que são: alteração do sistema imunológico, da motili- Os fragmentos obtidos por biopsias ou escovados devem ser
dade esofágica e do metabolismo de carboidrato. inicialmente fixados em formol e corados por hematoxilina-
A disfagia e a odinofagia são os sintomas mais frequentes em eosina (HE), para análise de rotina. Outras colorações especí­
pacientes com EC. Quando esses sintomas são intensos e por ficas tais como Ziel-Neelsen, além de estudo imuno-histoquí-
período prolongado, podem levar à desnutrição. Cabe ressal­ mico, com pesquisa de antígenos para a micobacteriose e vírus,
tar que nos pacientes que apresentam EC não se pode excluir podem ser realizadas também. No diagnóstico da Candida, des­
a possibilidade de associação com outros agentes. Também, a tacamos outras colorações específicas, como corantes pela prata,
ausência de candidíase oral não exclui a presença da doença ácido periódico de Schiff (PÁS) e o Gram. As culturas em meio
esofágica. Em relação ao diagnóstico etiológico, os exames ra- de Sabouraud têm demonstrado uma sensibilidade de até 80%,
diológicos têm valor limitado, ficando reservados para avaliação mas deve ser ressaltado que o método não diferencia a Can­
da motilidade, manifestada por diminuição do peristaltismo, dida como agente comensal ou infeccioso. No entanto, apesar
irritabilidade ou espasmos, exclusão de obstrução mecânica, de inúmeros recursos, o diagnóstico histológico para Candida
diagnóstico da presença de fístulas ou perfuração. Também o gira entre 50 e 64%. Esta baixa positividade pode ser explicada,

118
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 119

pois, nas infecções leves, com baixo grau de invasão, o fungo go. Essas úlceras, quando mais profundas, podem unir-se na
pode ser eliminado durante o processamento das biopsias, ou submucosa e, com a cicatrização após o tratamento, ocasionar
o número de fragmentos coletados é insuficiente, e mesmo por estenose. Outras alterações endoscópicas, em menor frequência,
erro na coleta. A EDA, com a coleta de material usando acessó­ são as áreas de hiperemia da mucosa ou erosões com bordas
rio próprio para escovado, e semeando diretamente na solução geográficas serpiginosas e elevadas. Deve-se lembrar ainda que
de hidróxido de potássio a 10%, é considerada, por alguns au­ a coexistência de outros agentes infecciosos pode alterar seu
tores, como método diagnóstico de escolha. Níveis séricos de formato clássico de apresentação, destacando-se as infecções
aglutinina acima de 1:160 são considerados confirmatórios para por Candida albicans e Herpes simples. O diagnóstico através
esofagite por Candida, mas raramente são positivos. Os sinto­ da biopsia endoscópica é essencial. O CMV infecta fibroblastos
mas geralmente desaparecem com o tratamento, mas a melhora e células endoteliais, que estão localizados na base das úlceras
clínica não significa necessariamente o desaparecimento total esofágicas e não no epitélio escamoso. Assim, as biopsias devem
das lesões na mucosa. Alguns autores indicam a EDA como ser realizadas na base e margens das úlceras. O escovado cito-
controle de tratamento, embora não seja essencial em todos os lógico também pode evidenciar inclusões citoplasmáticas em
pacientes. A droga de escolha para o tratamento é a nistatina, fibroblastos ou endotélio. A cultura do vírus em material de es­
200.000 unidades em intervalos de 2 a 4 h, por período de 7 covado ou biopsias tem uma sensibilidade de aproximadamen­
a 14 dias. Com este esquema terapêutico, conseguem-se altos te 67%, maior do que a do estudo histológico, que é próxima
índices de cura, com poucos efeitos colaterais. Em pacientes de 35%. O tratamento da ECMV é realizado com ganciclovir,
imunodeprimidos, ou resistentes à nistatina, pode-se lançar 5 mg/kg 2 vezes/dia, durante 14 a 21 dias, e, depois, com dose
mão de outros antifúngicos mais potentes, como cetoconazol, de manutenção de 6 mg/kg/dia, durante 5 a 7 semanas.
que é menos tóxico do que o miconazol, e a anfotericina 13. A
dose do cetoconazol é de 200 a 400 mg VO, 1 vez/dia, por 14 a ■ Esofagite por herpes simples (EHS)
21 dias. Outro medicamento que tem demonstrado melhores Em 1940, Johnson foi o primeiro a descrever a esofagite cau­
resultados, principalmente em pacientes imunodeprimidos, é sada pelo herpes-vírus. Na maioria das vezes, a infecção pelo HS
o fluconazol, administrado nas doses de 100 a 200 mg IV ou ocorre em pacientes imunodeprimidos, mas pode acometer in­
VO no primeiro dia, em seguida 100 mg VO por um período divíduos saudáveis. Alguns estudos de necropsias revelaram que
de, no mínimo, três e, no máximo, 8 semanas. Na candidíase o herpes-vírus simples tipo 1 (HSV-1) foi encontrado em 0,4%
com sintomas sistêmicos, ou na forma disseminada, ameaçando dos indivíduos, mas, se fossem portadores de alguma doença
a vida, indica-se a anfotericina B IV, com ou sem flucitosina maligna, esta incidência aumentaria para 4%. A infecção eso-
VO. Nessa situação, o acometimento esofágico é parte de uma fágica pode ocorrer devido à contaminação da orofaringe pelo
agressão maior. vírus ou pela reativação do vírus já existente no indivíduo. Os
principais sintomas provocados pela EHS são disfagia, odinofa­
■ Esofagite por outros fungos gia e dor retroesternal, podendo ainda ocorrer febre, náuseas e
Pode-se encontrar, principalmente em pacientes imunode­ vômito. A associação de lesão na cavidade oral pode se dar em
primidos, especialmente com AIDS, a colonização do esôfago até 29% dos pacientes e, mais raramente, podem ser encontra­
por outros fungos além da Candida. Estes podem ser o Toru- das lesões na pele. Alterações esofágicas encontradas em estudo
lopsis glabrata, que se manifesta com a presença de úlceras no radiológico com bário não são específicas, podendo mostrar
esôfago, o Aspergillus sp, que apresenta manifestações clínicas nodulações difusas e pequenas úlceras. A EDA com biopsias é o
método de escolha para o diagnóstico da EHS (Prancha 12.1 B).
e achados endoscópicos semelhantes aos da Candida, e, mais
raramente, a mucormicose, a Exophiala jeanselmei e o Histo- O acometimento do esôfago pode ser segmentar ou difuso. A
apresentação clássica é a presença de pequenas lesões purpúreas
plasma capsulatum.
ou vesiculares, que evoluem para pequenas úlceras superficiais
com fundo enantematoso e halo de hiperemia, e que não aco­
■ Esofagite por vírus metem a muscular da mucosa. Também são descritas úlceras
em forma de vulcão, devido ao processo inflamatório marginal.
■ Esofagite por Cytomegalovirus (ECMV) Algumas vezes, as úlceras podem ser confluentes, ocupando
A prevalência da infecção pelo Cytomegalovirus (CMV) na toda a circunferência do esôfago. Complicações como fístula
população adulta é alta. Esta infecção pode tornar-se sintomá­ esofagotraqueal e sangramento acentuado são situações raras.
tica em qualquer momento da vida, principalmente em perío­ A atividade da infecção é mais bem demonstrada através da
dos quando ocorre alteração da resposta imune do indivíduo. O histologia, cujas biopsias devem ser realizadas na borda das
CMV é um dos agentes infecciosos mais comuns que acometem úlceras, pois o epitélio adjacente a elas geralmente está intacto.
pacientes imunodeprimidos, como transplantados, aqueles em Evidencia-se processo inflamatório agudo ou crônico, fibrina e
uso de quimioterápico ou corticosteroides, mas a maior preva­ material necrótico. Em algumas situações, identifica-se invasão
lência se apresenta nos portadores de AIDS. Na patogênese da tecidual por herpes e monília. A confirmação da infecção viral
lesão pelo CMV, destaca-se o processo inflamatório, a necrose se dá através da cultura e pela presença das inclusões tipo A de
e lesões do endotélio vascular, ocasionando alterações isquê- Cowdry, além de técnicas imuno-histoquímicas. A sorologia
micas. Disfagia e odinofagia são os sintomas mais frequentes, confirma a infecção aguda. O tratamento pode ser conservador
podendo estar presentes em até 59% dos casos. Os pacientes em pacientes imunocompetentes, mas nos imunodeprimidos
podem ainda apresentar vômito, dor abdominal, febre, perda pode ser necessário o uso de drogas antivirais, como o aciclo-
de peso, diarréia e, menos frequentemente, a hemorragia di­ vir, 15 mg/kg/dia, durante 14 a 21 dias, IV. Por via oral, a dose
gestiva alta (HDA) em até 15%. Raramente, a HDA pode ser de deverá ser de 200 a 400 mg, 5 vezes/dia, durante 14 a 21 dias.
grande vulto. A principal forma de apresentação endoscópica da
infecção pelo CMV no esôfago corresponde a lesões ulceradas. ■ Esofagite pelo vírus da im unodeficiência hum ana (H IV)
Estas podem ser de tamanhos variados, únicas ou múltiplas, Algumas lesões da mucosa esofágica têm sido relacionadas
ocupando preferencialmente o terço médio e distai do esôfa­ com o vírus da imunodeficiência humana. Merece destaque uma
120 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos

enfermidade febril, aguda, semelhante à mononucleose, que incidência e importância em relação aos outros agentes infec­
ocorre aproximadamente 2 semanas após a exposição ao vírus. ciosos que causam esofagite. Não apresentam grande prevalên­
Os pacientes apresentam sintomas digestivos com náuseas, vô­ cia em paciente com AIDS, mas podem ser mais frequentes em
mito e diarréia. Podem, ainda, ter febre, mialgia e rush cutâneo pacientes com doenças hematológicas malignas e diabetes. Os
maculopapular. Quando presentes disfagia e odinofagia, o exa­ principais sintomas são disfagia e odinofagia, que podem estar
me endoscópico pode evidenciar alterações específicas da eso- acompanhadas de febre. São definidas histopatologicamente
fagite desencadeada por esse vírus. A EDA revela a presença de como a invasão bacteriana específica da mucosa ou de cama­
úlceras profundas, únicas ou múltiplas, pequenas ou grandes, das mais profundas da parede esofágica, na ausência de outros
bem delimitadas, e encontradas mais frequentemente no terço agentes. A EB é descrita com maior frequência em pacientes
médio do órgão. O aspecto das úlceras é semelhante ao do CM V. imunodeprimidos cursando com neutropenia acentuada. Os
As biopsias realizadas na base das úlceras revelam a presença de agentes infecciosos mais frequentemente encontrados são os
HIV RNA em linfócitos e células mononucleares. Outros acha­ gram-positivos, como o Streptococcus viridans, Staphylococcus
dos à esofagoscopia em pacientes com AIDS são as denominadas aureus, Staphylococcus epidermidis e Bacillus sp. O estrepto-
úlceras idiopáticas, que apresentam o aspecto aftoide, com tama­ coco beta-hemolítico do grupo A pode acometer submucosa
nhos variados, bordas bem definidas, sem enantema ou edema, e muscular própria, levando à esofagite esfoliativa. Não existe
geralmente múltiplas, e ocupam preferencialmente o terço m é­ uma apresentação endoscópica clássica. Podem ser observadas
dio do esôfago. Vários métodos foram utilizados na tentativa de placas de exsudato, pseudomembrana, eritema, erosões san-
identificação do agente etiológico específico nessas lesões, sem, grantes, ou, mesmo, conservar a aparência normal da mucosa.
contudo, alcançar esse objetivo. As úlceras esofágicas causadas O tratamento deverá ser individualizado, mas, na maioria das
pelo HIV podem apresentar cura espontânea ou melhora dos vezes, poder-se-á usar ampicilina-sulbactam (1,5 a 3,0 g IV de
sintomas com o uso de sucralfato e corticoterapia. 8 em 8 h), ou amoxicilina-ácido clavulânico (0,5 a 1,0 g IV de
8 em 8 h), ou ticarcilina-ácido clavulânico (3,1 g IV de 4 em 4
■ Esofagite pelo vírus Epstein-Barr (EEBV) ou de 6 em 6 h).
O EBV é um vírus da família Herpes viridae e pode infectar
certos tipos de linfócitos B e células epiteliais, estando relacio­
nado com a leucodisplasia pilosa oral e alguns linfomas, princi­
■ Esofagite por protozoários
palmente em pacientes com AIDS. A EDA revela a presença de O achado de esofagite por protozoários é raro, observando-
úlceras profundas, localizadas principalmente no terço médio se publicações de casos isolados na literatura. Em pacientes
do esôfago e de formato linear. A histopatologia revela hiper- com infecção disseminada pelo Pneumocystis carinii, obser-
plasia epitelial e paraqueratose. Pacientes com EEBV apresen­ varam-se como alterações endoscópicas do esôfago áreas de
tam, como sintomas clínicos principais, disfagia, odinofagia, exsudato sobre ulcerações superficiais. A infecção do esôfago
dor torácica e emagrecimento. O tratamento é conservador, pelo Cryptosporidium sp, Leishmania sp e por Trypanosoma
com o desaparecimento das lesões espontaneamente. cruzi foi descrita em pacientes com AIDS e com alterações en­
doscópicas inespecíficas.
■ Esofagite por micobactérias
A incidência da infecção por Mycobacterium tuberculosis
■ Acometimento do esôfago por radiação
vem aumentando nos últimos anos principalmente após a exa­ O esôfago sofre frequentemente ação da irradiação durante
cerbação da AIDS. O esôfago é raramente acometido, e este tratamento radioterápico de neoplasia do pulmão, de tumores
envolvimento se faz por contiguidade com os linfonodos me- do mediastino, de tumores torácicos e de cabeça e pescoço. A
diastinais. Por isso, o local de maior acometimento do órgão incidência é menor durante o tratamento radioterápico para
é a porção média, ao nível da carina. Clinicamente, a esofagite metástases de carcinoma de mama e de testículo, de linfomas
tuberculosa (ET) pode manifestar-se com sintomas de disfagia, e de carcinoma primário de células escamosas. O mecanismo
odinofagia, febre persistente, perda de peso, dor torácica, san- de ação da radiação para o tratamento das neoplasias consiste
gramento ou tosse, esta última consequente à formação de fístu- no dano direto ao DNA das células neoplásicas, ou indireto,
la esofagotraqueal, levando a pneumonias de repetição. Poucos através da produção de radicais livres, resultando na morte ce­
casos têm sido descritos em que o esôfago é o foco primário. A lular. A dosagem e a frequência de exposição irão determinar a
apresentação endoscópica da ET pode ser variada, como uma sintomatologia aguda de esofagite, estando estes valores entre
ulceração irregular, ou com ulcerações múltiplas de coloração 2.500 e 6.000 rd. A esofagite actínica (EA) é muito frequente,
acinzentada, com fundo contendo material necrótico. Outra podendo chegar a 100% nos pacientes que receberam 6.000 rd
forma de apresentação é como lesão hipertrófica ou granular ou para tratamento de carcinoma broncogênico. Os sintomas da
como massa subepitelial. A forma ulcerativa é a mais comum, EA aguda são disfagia, odinofagia e dor torácica espontânea.
e todas as formas podem simular lesão neoplásica. Nas formas O início da sintomatologia é após a segunda semana de trata­
mais avançadas, podem ser observadas compressões extrínsecas mento, apresentando melhora com a interrupção da irradia­
e a presença de fístulas esofagotraqueais. As biopsias, realizadas ção. O estudo contrastado do esôfago é considerado normal na
nas bordas das úlceras, revelam granuloma caseoso e a presença maioria das vezes, notando-se apenas alterações na motilida-
do bacilo álcool-ácido-resistente. O tratamento é realizado com de esofágica. A apresentação endoscópica consiste em edema,
tuberculostáticos, e a resposta em pacientes com AIDS é baixa, hiperemia e friabilidade da mucosa, presença de erosões, ou
sendo a doença potencialmente fatal neste grupo. mesmo ulcerações, cobertas por exsudato (Prancha 12.1 C).
A longo prazo, podem ser encontradas alterações vasculares
da mucosa do esôfago. Não são encontradas alterações histo-
■ Esofagite bacteriana (EB) lógicas específicas na EA, e as biopsias revelam apenas sinais
As EB são causadas por um número grande de bactérias e inflamatórios agudos e crônicos. A destruição da barreira epi­
raramente são suspeitadas. Por isso, não se sabe qual sua real telial predispõe à infecção oportunista, sendo mais frequente
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 121

a candidíase. Em algumas situações, o aspecto endoscópico aórtico, por exemplo) ou patológicas, em casos de cardiome-
da EA pode ser indistinguível das esofagites infecciosas. Nâo galia com aumento do átrio esquerdo; na primeira situação, a
se conhece uma maneira de prevenir as lesões esofágicas agu­ impactação é proximal, em torno de 22 a 24 cm da arcada den­
das secundárias à radioterapia. Tem-se tentado, com algum tária superior (ADS), e, na segunda, aos 30 ou 35 cm da ADS.
entusiasmo, a amifostina, mas não há nenhuma conclusão. O Desordens da motilidade, como acalasia e espasmo esofágico
tratamento da EA é apenas de suporte, através de orientações difuso, também podem contribuir para essas lesões. Apesar de
dietéticas, e emprego de anestésicos tópicos a analgésicos. O muitos dos pacientes serem assintomáticos, observam-se odi-
sucralfato pode ser utilizado em pacientes com úlcera esofági- nofagia em 74%, dor retroesternal contínua em 72%, disfagia
ca. Não há evidências de benefícios com os bloqueadores H2, em 20% ou a combinação desses sintomas. Durante a entrevista,
ou inibidores de bomba de prótons, na prevenção ou melhora é de fundamental importância uma boa anamnese, incluindo
da EA. Tem sido descrito o uso de bloqueadores dos canais de o questionamento acerca de medicamentos em uso e sua for­
cálcio para a diminuição do espasmo esofágico. O tratamento ma de administração. Dentre os exames complementares, o
recomendado para as estenoses de esôfago após radioterapia é exame radiológico contrastado do esôfago tem valor limitado,
a dilatação, levando à melhora da disfagia. Utilizam-se sondas evidenciando estenoses ou ulcerações em localizações atípicas.
de dilatação de Savary-Muller, que são guiadas por um fio me­ O exame de eleição, e que permite diagnóstico e documentação
tálico, passado sob controle endoscópico, e posicionando sua dos achados, é o endoscópico. Os achados macroscópicos são
extremidade distai no estômago. Nos casos de tumores primá­ variados: áreas focais de edema e enantema, erosões recobertas
rios, quando não ocorre resposta às dilatações, pode-se avaliar por fibrina e até ulcerações em paredes opostas do tipo kissing.
a possibilidade de colocação de endopróteses. A complicação Raramente, são encontrados segmentos estenosados ou obstru­
mais temida das dilatações são as perfurações, que, de acordo ção inflamatória por agressão crônica. Nestes casos, é imperati­
com estudos da literatura, estão entre 0,9 e 16%. Por isso, o cui­ vo estabelecer-se o diagnóstico diferencial com lesões neoplási-
dado deve ser maior, evitando-se forçar uma sonda de maior cas por meio de biopsias e estudo histopatológico. São também
calibre. A radioscopia pode ser de grande auxílio na colocação complicações raras a hemorragia e a perfuração. O tratamento
dessas sondas. Existe ainda relato de benefício com o uso de consiste na interrupção do uso da medicação e/ou na alteração
corticosteroide intralesional após as dilatações, para os casos do modo de sua administração, usando formulações líquidas,
refratários, mas faltam estudos controlados e com maior casuís­ diluindo o conteúdo de cápsulas ou triturando comprimidos,
tica para confirmação de sua eficácia. aconselhando um bom volume de água ao tomar comprimidos
e similares. A supressão ácida é útil como adjuvante. Sobretudo
em pacientes acamados, deve-se ter o cuidado de administrar
■ Esofagite por agentes químicos a medicação com maior volume de líquido e nunca com o do­
ente completamente deitado. Caso se caracterize uma estenose,
■ Esofagite medicamentosa poderá estar indicada dilatação endoscópica.
Um grande número de drogas tem sido descritas como cau­
sadoras de lesões esofágicas, apesar de as publicações provavel­
mente subestimarem estes números. Embora as lesões possam ■ Esofagite por cáusticos (EC)
ocorrer por efeito sistêmico da medicação, o contato direto da As lesões esofágicas causadas pela ingestão de agentes cáus­
substância com a mucosa esofágica é o principal fator de agres­ ticos de forma acidental ou como tentativa de autoextermínio
são. Cápsulas e comprimidos de determinadas drogas levam à vêm ocorrendo há mais de 200 anos. A incidência diminuiu
lesão da mucosa esofágica ao se dissolverem e permanecerem principalmente nos países desenvolvidos pelas medidas de se­
em contato com a mucosa por período prolongado. Dentre as gurança adotadas pelos governos por meio de fiscalização da
drogas descritas, estão os antimicrobianos, doxiciclina, tetraci- forma de comercialização desses produtos, sua concentração e
clina e clindamicina. Outras comumente apontadas são ácido uso de embalagens com tampas de segurança, sendo estas me­
acetilsalicílico, cloreto de potássio, sulfato ferroso, ácido ascór- didas fundamentais para o grupo etário infantil. O primeiro
bico, quinidina e vários agentes anti-inflamatórios esteroides e país a se preocupar com esses acidentes foram os EUA, em
não esteroides (AINE). O alendronato de sódio (Prancha 12.1 1927, tendo o governo adotado uma lei federal para os produ­
D), usado no tratamento e prevenção de doenças metabóli- tos cáusticos. Esta foi idealizada por Chevalier Jackson, consi­
cas ósseas, tem indubitável associação com lesões esofágicas derado um dos pais da endoscopia. Atualmente, nos países em
(erosões e úlceras nos terços médio e inferior e estenoses), po­ desenvolvimento, apesar de não termos uma estatística oficial,
dendo causar lesões gástricas semelhantes àquelas provocadas estes acidentes ainda são frequentes. Tem-se observado que a
por AINE. As doenças esofágicas têm maior prevalência na cada dia eles estão mais graves devido ao aumento da concen­
população idosa e se manifestam por sintomas variados, como tração de ácidos ou álcalis nos produtos de limpeza doméstica,
dor torácica, disfagia e queimação retroesternal. Em função da na tentativa das indústrias em mostrar que seu produto é mais
maior utilização de medicamentos nessa faixa etária, a exacer­ eficiente. Em alguns países, ainda se cultiva o hábito da produ­
bação de queixas esofágicas preexistentes poderá estar associada ção artesanal de sabão domiciliar, com a utilização de soda
à esofagite induzida por drogas. O fato, muitas vezes notado, cáustica (NaOH) para saponificar gorduras animais. Após a
de a medicação ser administrada com pequena quantidade de produção do sabão, o corrosivo é armazenado de forma inade­
líquido e a posição de decúbito dorsal assumida pelo paciente quada, na maioria das vezes em recipientes de refrigerantes,
logo após a ingestão relacionam-se com a indução das lesões. que ficam ao alcance das crianças, que o ingerem acidental­
Correlacionam-se também à maior chance de lesões caracte­ mente. Estes fatos levam as vítimas a tratamentos que duram
rísticas individuais do medicamento, como o grande tamanho anos, com dilatações de estenoses de esôfago periodicamente,
de alguns, o formato arredondado e plano de outros, a baixa tirando adultos do mercado de trabalho, crianças das escolas,
densidade e a rápida solubilidade e, sem dúvida, suas proprie­ além do elevado custo de tratamento para as empresas privadas
dades químicas. Aspectos anatômicos do esôfago devem ser de seguro saúde e para o sistema público de saúde, principal­
ressaltados, como as compressões esofágicas fisiológicas (arco mente (Prancha 12.1 E). Tem-se discutido muito sobre a pato-
122 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos

gênese das lesões provocadas pelos cáusticos. Podem-se dividir ocorre com os produtos alcalinos. Os tecidos conectivos da
os produtos que levam a maior dano em dois grandes grupos: submucosa degeneram e são infiltrados por linfócitos; as fibras
os ácidos fortes e as bases fortes. Os ácidos provocam necrose musculares são acometidas de formas variadas, necrosando
por coagulação, e as bases, necrose por liquefaçâo. A necrose por quando ocorre o acometimento de toda a parede. Entre o se­
liquefação acomete a parede do órgão de um lado ao outro, gundo e o quarto dia, há regressão da neoformação vascular e
sendo profunda e extensa. A necrose por coagulação leva à for­ da migração de fibroblastos. Entre o quarto e o sétimo dia,
mação de uma camada coagulada, que, de certa forma, age ocorre a conclusão da escara necrótica, com regressão do pro­
como proteção da área lesada, limitando a extensão da lesão. cesso de cicatrização precoce ou granulação. Os riscos de per­
Mesmo assim, pode acometer toda a parede do órgão. Existem furação são maiores nesse período. Até o final da segunda se­
algumas variáveis que dificultam uma avaliação prognóstica, mana, as áreas acometidas são cobertas por tecido de
baseada apenas nos dados clínicos. Entre elas, estão a quanti­ granulação e inicia-se a fase de cicatrização. O processo de re-
dade do produto ingerido, a sua forma de apresentação, líqui­ epitelização ocorre no decorrer das próximas 4 semanas, e a
da ou sólida, a sua concentração, o tempo de contato do cor­ deposição de colágeno pelos fibroblastos é responsável pela
rosivo com a mucosa do trato gastrintestinal, a presença de cicatrização. O processo de retração cicatricial continua por
alimentos no estômago após a ingestão, medidas tomadas após meses e, frequentemente, resulta em estenose. Estes podem
o acidente, como estímulo de vômito, e o acometimento das variar de discreta sintomatologia, com apenas dor na cavidade
vias respiratórias pelo corrosivo através de sua aspiração. Os oral, até quadros de toxemia generalizada com sinais de perfu­
acidentes provocados pela forma de apresentação sólida acar­ ração visceral. O quadro clínico da esofagite causada por estes
retam um maior número de lesões em orofaringe e supraglote. agentes pode ser dividido em três etapas distintas. A primeira
Pela limitação natural à ingestão de grandes quantidades, de­ etapa, ou fase aguda, vai desde a ingestão do produto até o de­
sencadeiam lesões de menor gravidade. Por outro lado, as for­ saparecimento dos sintomas inflamatórios. Caracteriza-se pela
mas líquidas, por não apresentarem odor ou sabor, proporcio­ presença de lesões na cavidade oral, como edema e hiperemia
nam ingestão de um maior volume, resultando em lesões com de mucosa, presença de ulcerações com exsudato purulento,
maior gravidade. Essas substâncias ainda podem causar lesões que se traduzem em dor local, disfagia, salivação abundante e
mais extensas e em toda a circunferência do esôfago, pelo seu halitose. A hemorragia digestiva alta, manifestada sob forma
total contato com a superfície luminal do órgão. O estômago é de hematêmese, geralmente é de leve intensidade, mas, em cer­
acometido em apenas 20% de todas as ingestões de substâncias tas ocasiões, pode ser maciça pela penetração das úlceras em
alcalinas. A concentração dos produtos cáusticos é importante vasos esofágicos ou gástricos mais calibrosos, ou ainda pelo
fator de prognóstico e gravidade da lesão. No Brasil, os produ­ estabelecimento de uma fístula aortoesofágica. Quando a quei­
tos são comercializados na concentração de 20 a 40%. Estudos madura atinge a glote, podem-se observar sintomas respirató­
mostraram que uma breve exposição, de 10 segundos, de NaOH rios, como respiração ruidosa, e, em caso de aspiração, a evo­
diluída a 3,8% pode lesar a mucosa e a submucosa. A concen­ lução para broncopneumonia. Em casos de queimaduras
tração deste produto a 10% pode lesar as camadas musculares acentuadas do esôfago, pode estar presente a dor retroesternal.
do esôfago. Lesões transmurais ocorrem em poucos segundos Nos casos mais graves, podem ser observadas alterações sistê­
de exposição a NaOH a 22,5%. O estímulo do vômito após a micas como febre, desidratação, taquicardia, taquipneia, hipo-
ingestão do corrosivo é fator importante de agravamento da tensão e choque séptico. Uma segunda fase, descrita por alguns
lesão esofágica. Pacientes e familiares adotam essa medida na autores como de cura aparente, inicia-se após o desprendimen­
tentativa de que, expulsando o produto do organismo, atenu­ to do tecido necrótico, permitindo ao paciente a ingestão de
ariam a lesão. Com o vômito, o agente cáustico entra novamen­ líquidos e alimentos pastosos. Neste período, a dor desaparece,
te em contato com a mucosa esofágica, provocando nova ex­ e esta fase é compreendida entre 4 e 8 semanas. Nela, muitos
posição do órgão ao agente agressor, aumentando o tempo de pacientes, e mesmo alguns médicos, consideram que o pacien­
exposição e, consequentemente, maior queimadura. As solu­ te está curado. A terceira e última etapa consiste na formação
ções ácidas, como o ácido muriático, utilizadas para limpeza da estenose cicatricial. A disfagia volta a aparecer, torna-se pro­
de superfícies metálicas são responsáveis por um número m e­ gressiva, acompanhada de regurgitações e emagrecimento. To­
nor de acidentes. Esta menor prevalência pode estar relaciona­ das as vítimas de acidentes cáusticos, que apresentem qualquer
da com o menor número de produtos de limpeza com essas sinal ou sintoma de lesão, devem ser submetidas à endoscopia
substâncias, em relação às bases, e com o gosto desagradável e digestiva alta. Alguns autores defendem a não realização do
odor acentuado desses compostos. Os ácidos são mais frequen­ exame em pacientes assintomáticos e sem evidência de lesão
temente associados a lesões gástricas, pois o esôfago apresenta superficial em orofaringe. É importante lembrar que em 20%
fatores de proteção, como a necrose por coagulação e a habili­ dos pacientes sem lesão de orofaringe pode estar presente a
dade do epitélio escamoso estratificado em resistir aos ácidos. lesão de esôfago, e que há uma pobre correlação entre a sinto­
Outros agentes disponíveis no comércio podem ser potencial­ matologia e as queimaduras parciais, que podem resultar em
mente perigosos. Entre eles, estão alvejantes domésticos, pinhas estenose, sendo este um legítimo argumento para a realização
alcalinas tipo “botão” que contêm hidróxido de sódio ou po­ de endoscopia em todos os casos. Outros autores alegam que,
tássio em concentrações que variam de 26 a 45%, limpadores se estes pacientes residem em países em desenvolvimento onde
e desinfetantes que contêm fenol, agentes cosméticos usados não existe controle de segurança na comercialização destes pro­
para alisar cabelos, amônia e detergentes iônicos. Dentro da dutos, a endoscopia deve ser sempre realizada. O exame endos-
fisiopatologia das lesões provocadas pelos cáusticos, alguns as­ cópico é o método propedêutico indicado na fase aguda da
pectos evolutivos devem ser de conhecimento dos profissionais esofagite química, por fornecer as características das lesões e
que atenderão esses pacientes. A ação do cáustico no trato di­ permitir definição de grupos de risco para necrose e estenose.
gestivo ocorre nos dois primeiros dias após a ingestão. Uma A endoscopia não deve ser realizada muito precocemente, an­
intensa reação inflamatória provocando eritema e edema das tes de 12 h do acidente, pois pode-se subestimar a alteração
camadas superficiais, evoluindo com trombose vascular, infil­ devido à ação de o corrosivo persistir por mais tempo, deven­
tração bacteriana, morte celular e saponificação gordurosa, do ser realizada entre 24 e 48 h depois da ingestão do produto.
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 123

Até há alguns anos, a endoscopia realizada na fase aguda era do uso de agentes pró-cinéticos, inibidores da secreção ácida
temida devido aos riscos de perfuração visceral. Com o desen­ do estômago nem do sucralfato, que são empregados em mui­
volvimento dos equipamentos, o uso de drogas anestésicas e tos serviços com a justificativa de melhorar a sintomatologia
técnicas endoscópicas mais sofisticadas, o procedimento é con­ do paciente. Algumas complicações podem ocorrer nos pri­
siderado muito seguro. Apesar de alguns autores contraindi- meiros dias após o acidente, dentre elas o acometimento das
carem a endoscopia após 48 h do acidente, pelo risco maior de vias respiratórias, provocando obstrução à passagem de ar,
perfuração, a maioria concorda que a definição do exame en- quando localizadas na laringe, e a ocorrência de pneumonia
doscópico levará a maior benefício. Os estudos realizados por bacteriana nos casos de aspiração. Uma das complicações mais
Zargar et al. (1989) permitiram relacionar os graus de lesões à temidas é a lesão completa do órgão com ou sem perfuração,
possibilidade de evolução com estenose e/ou perfuração do que necessita de intervenção cirúrgica agressiva. A perfuração
esôfago. Segundo o autor, grau 0 seria o exame normal; grau 1, do esôfago pode ocorrer a qualquer tempo durante as primei­
edema e hiperemia de mucosa; grau 2A, ulcerações superficiais, ras 2 semanas do acidente, podendo ser abordada de forma
erosões, friabilidade, bolhas, exsudato e hemorragia; grau 2B conservadora em algumas situações, mas na maioria requer
seria o grau 2A acrescido de ulcerações pouco profundas ou tratamento cirúrgico e o emprego de nutrição parenteral. O
circunferenciais, e grau 3, múltiplas ulcerações profundas e tratamento na fase tardia consiste em dilatações das estenoses,
extensas áreas de necrose. Foi observado em pacientes com correções cirúrgicas e, mais recentemente, tem-se descrito a
queimaduras de graus 0,1 e 2A, que não progrediam para es­ colocação de endopróteses autoexpansivas e removíveis (Pran­
tenose. Já os pacientes com graus de queimadura 2B e 3 apre­ cha 12.1 F e G). As dilatações endoscópicas estão indicadas em
sentaram alta probabilidade de evolução para estenose ou per­ casos de disfagia, assim como na situação em que a dificuldade
furação do órgão, principalmente quando ocorriam lacerações do trânsito alimentar através do esôfago ocasiona broncoaspi-
profundas de coloração enegrecida, que correlacionaram com ração, principalmente no período noturno. A repetição dos
necrose transmural e possibilidade de perfuração iminente ou procedimentos de dilatação deve ser baseada na avaliação mé­
presente. Alguns estudos recentes têm demonstrado maior acu- dica, na satisfação do paciente com sua deglutição, em seu es­
rácia na avaliação das lesões agudas através da ecoendoscopia. tado nutricional e, em crianças, de acordo com a ingestão de
Este procedimento tem se mostrado eficaz na definição da pro­ tipos de alimentos preconizados para cada faixa etária. Cada
fundidade das lesões, sendo capaz de prever com maior sensi­ estenose apresenta características próprias, necessitando de
bilidade uma possível evolução para estenose, mas é um exame estudo cuidadoso antes do início do tratamento. Deve-se ava­
de custo elevado e pouco disponível no nosso meio. Na fase liar a história clínica do paciente, seu estado nutricional e o
tardia, o aspecto endoscópico não segue uma classificação ri­ estudo radiológico contrastado. Este último torna-se extrema­
gorosa, porém deve obedecer a uma orientação clássica de aná­ mente importante nas estenoses por cáusticos, pois elas podem
lise do calibre, trajeto e distensibilidade das paredes do órgão, acometer mais de um segmento do esôfago, informação esta
além das características do anel estenótico, extensão, diâmetro, importante no cuidado durante a passagem do fio que guiará
consistência e lesões associadas. A abordagem terapêutica pode as sondas de dilatação. Todos os pacientes a serem submetidos
ser específica para a fase aguda da esofagite cáustica e para a à dilatação devem ser sedados de forma habitual, tomando-se
fase tardia, em que a dilatação das estenoses esofágicas com o cuidado para que a sedação não seja muito profunda, a fim
auxílio da endoscopia é o procedimento mais utilizado. Na re- de permitir a comunicação entre o endoscopista e o paciente,
fratariedade às dilatações, a correção cirúrgica é indicada. Jun­ no sentido de avaliação da dor desencadeada pelo procedimen­
to com as medidas iniciais, deve-se obter o maior número de to. Nas crianças, as dilatações, na grande maioria das vezes, são
informações a respeito da substância e da quantidade ingerida. realizadas sob anestesia geral. Os dilatadores mais empregados
Exames complementares devem ser solicitados somente nas atualmente são os termoplásticos de Savary-Gilliard e similares.
formas graves, em que ocorrem distúrbios hidreletrolíticos, São de material plástico especial semirrígido de polivinil, do­
acidobásicos e infecciosos. Radiografias de tórax e abdome de­ tado de um canal coaxial por onde passa o fio-guia de aço. Este
vem ser solicitadas na suspeita de perfuração visceral, e estudo sistema é composto de dilatadores com pontas afiladas e diâ­
contrastado não deve ser realizado na fase inicial. As condutas metro externo que varia de 15 a 60 Fr. Por serem radiopacos,
imediatas, como em outras emergências, baseiam-se em asse­ esses dlatadores podem ser empregados com auxílio da radios-
gurar e manter vias respiratórias pérvias, os sinais vitais, cor­ copia, especialmente nas estenoses complexas, que também
reção de distúrbios hidreletrolíticos e atenuação da dor. Devem- apresentam dificuldades na passagem do fio-guia a ser posicio­
se lavar com água fria a face e a boca para a retirada de qualquer nado no estômago. Dilatadores metálicos foram empregados
partícula de cáustico residual. A lavagem gástrica e o uso de durante muitos anos; entre eles, destacam-se os de Eder Pues-
produtos neutralizantes devem ser desincentivados devido ao tow, que são compostos de ogivas metálicas de diâmetros que
risco de complicações como vômito, aspiração e a provocação variam de 21 a 53 Fr. Elas são interpostas em uma haste metá­
de reação com liberação de calor, podendo danificar tecidos lica com uma ponta flexível de mola. Seu funcionamento é se­
subjacentes. O uso de corticoterapia sistêmica nessa fase é con­ melhante aos dilatadores de Savary-Gilliard, guiados por um
troverso, embora alguns autores o indiquem, principalmente fio metálico. Em algumas situações especiais, como em esteno­
quando existe o acometimento das vias respiratórias. O uso de ses muito rígidas e naquelas em que se deseja progredir o diâ­
antibioticoterapia é reservado para os casos em que esteja con­ m etro da dilatação mais lentamente, os dilatadores de Eder
firmada infecção bacteriana secundária. A passagem de sonda Puestow ainda são empregados. Os dilatadores de Tucker tam­
gástrica também é controversa. Alguns autores acham obriga­ bém são reservados para situações especiais. São dilatadores de
tório esse procedimento nos casos graves, com grau 2B ou 3 de borracha que apresentam as duas extremidades afiladas com
Zargar, com o objetivo imediato de impedir a distensão gástri­ um fio de seda fixado nestas. Reservado também para as este­
ca, além de possibilitar a realimentação precoce, principalmen­ noses multissegmentares em que existe dificuldade na passagem
te em crianças. O uso da sonda para a prevenção de estenose do fio-guia. Outra vantagem desses dilatadores é que eles po­
já foi muito discutido, mas nenhum estudo comprovou a sua dem ser passados de forma anterógrada ou retrógrada. A des­
eficácia. Não existem estudos controlados mostrando benefício vantagem é que se necessita de gastrostomia, por onde passa o
124 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos

Prancha 12.1 Lesões do esôfago causadas por infecção, radiação e substâncias químicas. (Estas figuras encontram-se reproduzidas em cores
no Encarte.)
A. Esofagite por monília.
B. Esofagite herpética.
C. Esofagite actínica.
D. Esofagite por alendronato.
E. Queimadura por cáustico.
F. Prótese esofágica.
G. Criança de 7 anos de idade, portadora de estenose cáustica do esôfago, sem melhora após 3 anos de tratamento por dilatação. Colo­
cou-se esta prótese, que foi mantida por 4 meses. Ainda sob observação, porém não mais necessitando de dilatação.
Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos 125

fio de seda que será fixado aos dilatadores para a sua condução. Wciss, sindrome de Bocrhaavc c outras afecçõcs raras. Em: Castro, LP &
Dilatadores tipo balão, pneumáticos ou hidrostáticos, foram Coelho, LGV. Gastrcntcrologia. Medsi Editora Médica c Cientifica Ltda.,
Rio de Janeiro, 2004.
desenvolvidos com base no princípio da aplicação exclusiva da Andrcn, L & lheander, G. Rocntgcnographic appcaranccs of csophagcal monili-
força radial, visando a mesma eficiência e segurança obtidas asis. Acta Radiol, 1956; 46:571-4.
pelos citados anteriormente. Os balões são confeccionados de Arora, AS & Murray, JA. Iatrogcnic csophagitis. Curr Gastroenterol Rep, 2000;
material derivado do poliuretano, apresentando boa distensi- 2:224-9.
bilidade e resistência. Estão disponíveis em vários diâmetros e Bahcr, PH & McDonald, GB. Esophagcal infcction: risk factors, presentation,
diagnosis and treatment. Gastroenterology, 1994; 106:509-32.
comprimentos, e são acoplados a manômetros que quantificam Baucr, DC, Black, D, Ensurcd, K et al. Uppcr gastrintcstinal tract safety profile
a pressão desejada. Eles são introduzidos pelo canal de trabalho of alendronate: thc fracturc intervention trial. Arch Internai Med, 2000;
dos endoscópios, sendo possível a visualização direta pelo en- 160:517-25.
doscopista durante o procedimento. Não existem estudos de­ Bhutani, MS, Usman, N, Shenuy, V et al. Endoscopic ultrasound miniprobc-
monstrando maior segurança e eficácia desses dilatadores. Deve guided steroid injcction for treatment of rcfractory csophagcal stricturcs.
Endoscopy, 1997; 29:757-9.
ainda ser salientado o elevado custo desses balões no nosso Broto, J, Arsensio, M, Vcrnct, JMG. Results of a ncw technique in the treat­
meio, e a sua utilização, praticamente única, lembrando que as ment of severe csophagcal stenosis in childrcn: poliflex stents. / Pediatr
estenoses cáusticas necessitam de inúmeras dilatações. Alguns Gastroenterol Nutr, 2003; 37:203-6.
estudos demonstraram o benefício do uso de corticosteroide Eras, P, Goldstcin, MJ, Shcrlock, P. Candida infcction of thc gastrintcstinal tract.
intralesional após as dilatações. Sua ação estaria na inibição da Medicine, 1972;51:367-79.
Ertckin, C, Alimoglu, O, Akyildiz, H et al. Thc results of caustic ingestion.
síntese de colágeno. Especialmente nas estenoses cáusticas, ne-
Hepatogastroenterology, 2004; 51:1397-400.
cessita-se de estudos controlados e com maior número de casos Galvão-Alves, J & Braga, DC. Esofagitc infecciosa. Em: Galvão-Alves, J & Dani,
para avaliarmos sua real eficácia. Estudos mais recentes utili­ R. Terapêutica cm Gastrcntcrologia. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro,
zaram a ecoendoscopia com miniprobe para direcionar o local 2005.
da injeção. Outra alternativa de tratamento das estenoses cáus­ Graham, DY & Malaty, HM. Alendronate gastric ulccrs. Aliment Pharmacol
Vier, 1999; 13:515-9.
ticas de esôfago seriam as endopróteses. Estudo recente de­
Griga, T, Duchna, HW, Orth, M et al. Tuberculous involvement of thc oesopha-
monstrou resultados encorajadores com a colocação de próte­ gus with ocsophagobronchcal fistula. Dig Liver Dis, 2002; 34:528-31.
ses autoexpansivas e removíveis em crianças. Das 10 crianças Gumasckaran, TS & Namachivayan, N. Dilficult csophagcal stricturcs: Role of
que participaram daquele estudo, cinco delas tiveram a reso­ endoscopic application of topical Mitomycin. Gastrintestinal Endoscopy,
lução da estenose em um período de acompanhamento de 4 a 2005:61 AB 307.
Hamza, AF, Abdclhay, S, Shcrif, H et al. Caustic esophagcal stricturcs in chil­
19 meses. Em três pacientes, foram recolocadas as próteses, e
drcn: 30 ycars experiencc. / Ped Surg, 2003; 38:828-33.
dois estavam em observação após elas serem retiradas. O tem ­ Hirota, S, Tsujino, K, Hishikawa, Y et al. Endoscopic findings of radiation
po de permanência das próteses variou de 20 a 133 dias, com csophagitis in concurrent chcmoradiothcrapy for intrathoracic malignan-
boa tolerância por todas as crianças. Outros estudos, contudo, cics. Radiother Oncol, 2001; 58:273-8.
não conseguiram demonstrar estes resultados. Estudos com­ Huang, YC, Ni, YH, Lai, HS, Chang, MH. Corrosivc csophagitis in childrcn.
Pediatr Surg Int, 2004; 20:207-10.
plementares, e com maior tempo de seguimento, poderão de­
Itoh, T, Takahashi, T, Kusaka, K et al. Herpcs simples csophagitis from 1307
finir melhor esta nova modalidade terapêutica. Alguns relatos autopsy cases. Gastroenterol Hepatol, 2003; 18:1407-11.
de casos têm sido publicados com o uso tópico da mitomicina Jaspcrscn, D. Drug-induccd ocsophagcal disorders: pathogcncsis, incidcnce,
após a dilatação. Este medicamento impediría a proliferação prevention and management. DrugSaf, 2000; 22:237-49.
da formação cicatricial diminuindo a frequência da reestenose. Kamijo, Y, Kodo, I, Kokuto, M et al. Miniprobe ultrasonography for determining
Quando todas as alternativas endoscópicas de tratamento das prognosis in corrosivc csophagitis. Am / Gastroenterol, 2004; 9:851-4.
Kantrowitz, PA, Flcischli, DJ, Butlcr, WT. Successful treatment of chronic
estenoses de esôfago falharam, cabe o tratamento cirúrgico. Em csophagcal moniliasis with a viscus suspension of nystatin. Gastroenterol-
épocas passadas, muitos autores consideravam que a melhor ogy, 1969;57:424-30.
forma de tratamento inicial desses casos era a cirurgia. Atual­ Kikcndall, JW. Pill csophagitis. / Clin Gastroenterol, 1999; 28:298-305.
mente, considera-se que se deve fazer o maior esforço para Kodsi, BE, Wickremcsinghc, C, Kozinn, PJ et al. Candida csophagitis: A pros-
obter a reparação do esôfago através das dilatações. Mas alguns pcctivc study of 27 cases. Gastroenterology, 1976; 71:715-9.
Konda, K, Kumck, K, Yoshikawa, I et al. Cytomcgalovirus csophagitis with
autores consideram que, se o paciente necessita de dilatações massive uppcr-GI hcmorrhage. Gastrointest Endosc, 2004; 59:741-3.
em intervalos menores que 21 dias após 3 meses de tratamen­ Kotanidou, A, Adrianakis, I, Mavroummatis, A et al. Mcdiastinal mass with
to, deveria ser candidato a esofagocoloplastia. Outros conside­ dysphagia in an cldcrly patient. Infection, 2003; 31:178-80.
ram que este tempo seria acima de 1 ano. Aproximadamente Laine, L, Drctlcr, RH, Conteas, CN et al. Fluconazol comparcd with cetoconazol
15% de todos os pacientes tratados irão apresentar estenose for thc treatment of Candida csophagitis in AIDS. A randomized trial. Ann
Intern Med, 1992; 117:655-60.
refratária a todos os tipos de terapia. Além disso, deve-se ana­ Mosimann, F, Cuenoud, PF, Stcinhauslin, F, Wautcrs JP. Herpes simples cso­
lisar à parte o grupo de pacientes pediátricos, pois o resultado phagitis after renal transplantation. Transpl, 1994; 7:79-82.
cirúrgico a longo prazo das crianças difere daquele dos pacien­ Mulhal, BP, Nelson, B, Rogcrs, L, Wong, RK. Hcrpctic csophagitis and intrac-
tes adultos. Cuidados tardios devem ser lembrados para os pa­ tablc hiccups (singultus) in an immunocompctcnt patient. Gastrointest
cientes que em algum período da vida apresentaram queima­ Endosc, 2003; 57:796-7.
Ouatu-Lascar, R & Triadaftlopoulos, G. Ocsophagcal mucosal discascs in thc
dura do esôfago por corrosivos. Após 20 anos do acidente, os
cldcrly. DrugsAging, 1998; 2:161-76.
pacientes devem submeter-se a EDA com cromoscopia com Pazin, GJ. Hcrpcs simples csophagitis after trigcminal nerve surgery. Gastro­
lugol e estudo citológico e anatomopatológico de biopsias da enterology, 1978; 74:741-3.
área fibrótica, objetivando a detecção precoce de câncer nesse Pcnnazio, M, Arrigoni, A, Spadrc, M et al. Endoscopy to dctcct oral and oc­
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126 Capítulo 12 / Comprometimento do Esôfago por Infecções, Radiação e Agentes Químicos

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Corpos Estranhos, Perfurações,
Hérnias Diafragmáticas, Síndrome
de Boerhaave, Lesões Causadas
por Comprimidos e Síndrome
de Mallory-Weiss
David Corrêa Alves de Lima, Silas de Castro Carvalho, Rodrigo Macedo Rosa
e Luiz Ronaldo Alberti

m CORPOS ESTRANHOS NO ESÔFAGO ■ Diagnóstico e conduta


A ingestão de corpos estranhos (CE) e a impactação alimen­ A história clínica e a sintomatologia são de fundamental
tar no esôfago são muito comuns na prática clínica. importância para se estabelecer a conduta. Em alguns casos,
podem-se dispensar exames sofisticados para se traçar uma
O esôfago, por sua estrutura tubular e localização anatô­
conduta adequada quando se tem uma anamnese detalhada.
mica, é alvo constante de passagem de elementos estranhos
O médico assistente certamente deverá lidar com um grau de
ao tubo digestório, que não os alimentos. A impactação é
ansiedade muito grande, por parte do paciente e de seus fa­
rara em face da grande incidência de ingestão. Cerca de 80 %
miliares. A postura a ser tomada deverá ser de tranquilidade,
dos CE ingeridos passam pelo tubo digestório livremente sem
sempre discutindo e explicando as condutas. Na maioria das
causar danos. Entretanto, 10 a 20% deles necessitarão de in­
vezes, o paciente informa o tipo de CE ingerido e o tempo de
tervenções endoscópicas e procedimentos cirúrgicos serão
sua ingestão. Em algumas situações, o médico não pode contar
realizados em menos de 1% dos casos. Pessoas de todas as
com esses dados. É o caso dos pacientes psiquiátricos, das crian­
idades ingerem acidentalmente CE, mas crianças, idosos, alco-
ças, dos pacientes com doenças neurológicas e os alcoolistas.
olistas, pacientes com distúrbios neurológicos e psiquiátricos
Importante investigar história pregressa de afecções esofágicas,
apresentam maior incidência de acidentes. Apesar da grande de disfagia e de ingestão anterior de CE.
incidência dessa afecção, a mortalidade em decorrência de A sintomatologia é bastante característica, sendo que disfa­
CE é muito baixa. gia parcial ou total, odinofagia, sialorreia, vômitos e dor retroes-
ternal são os sintomas mais comuns. A disfagia total associada à
■ Considerações anatômicas sialorreia é elemento importante para se indicar exame endos-
cópico nas próximas horas, às vezes podendo ser realizado fora
O esôfago é um órgão musculoso e tubular, dividido topo- dos horários-padrão de trabalho, até mesmo na madrugada. O
graficamente em três porções: cervical, torácica e abdominal. exame físico é pobre na maioria dos pacientes. Na presença de
Apresenta três constrições anatômicas e duas dilatações. complicações, como a perfuração, podem-se identificar crepi-
A primeira constrição localizada no segmento cervical, a cer­ tações na região cervical.
ca de 15 cm da arcada dentária superior, deve-se à compressão Exame radiográfico localiza a maioria dos CE radiopacos,
pela cartilagem cricoide. É geralmente nesse segmento que se além de permitir acompanhar sua progressão até a sua elimi­
alojam a maioria dos CE de natureza pontiaguda, como ossos nação e identificar sinais de perfuração nos casos de objetos
de galinha, espinhas de peixe; e CE de tamanhos despropor­ pontiagudos (Figura 13.1). A radiografia em perfil confirma a
cionais, como grandes moedas e peças dentárias. É também localização esofágica. Exames contrastados não devem ser rea­
nessa localização onde há maior incidência de complicações, lizados em pacientes com disfagia total associada à sialorreia
como perfuração, mediastinite e compressão das vias respira­ em virtude do risco de aspiração e impactação no esôfago, difi­
tórias superiores. cultando a abordagem endoscópica. Em alguns casos, a tomo-
A segunda constrição, localizada no segmento torácico, a grafia computadorizada pode ser útil para identificar o local
cerca de 22 cm da arcada dentária superior, resulta da compres­ exato da impactação.
são feita pela bifurcação da traqueia e pelo arco da aorta. Na vigência de ingestão de CE, o médico deverá decidir
A terceira e última compressão anatômica é feita pelo dia­ se deve ou não intervir, qual o momento adequado para essa
fragma e pelas estruturas musculares da cárdia e se localiza a abordagem e de que maneira. Esse manejo é influenciado pela
cerca de 40 cm da arcada dentária superior. Neste segmento, idade e condição clínica do paciente, tamanho e forma do CE,
os tipos de CE mais comuns são os bolos de alimentos e os localização anatômica, e recursos disponíveis para o endosco-
rombudos de grande tamanho, que não progridem esponta­ pista. O momento para a abordagem depende principalmente
neamente para o estômago. da avaliação do risco de aspiração e perfuração.

127
128 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas

Figura 13.1 Corpo estranho pontiagudo (agulha) no antro gástrico. Figura 13.3 Corpos estranhos rombudos. (Cortesia do Professor Dul-
(Arquivo dos autores.) mar Garcia de Carvalho.)

A endoscopia é o método ideal tanto para se estabelecer o 12 h (Figura 13.3). Conduta conservadora deve ser realizada
diagnóstico, quanto para a proposta terapêutica. Salvo em si­ naqueles objetos que alcançam o estômago. A maioria deles
tuações de emergência, deve-se respeitar o período mínimo de será eliminada em 4 a 6 dias, ainda que alguns estejam presentes
6 h de jejum para se realizar o exame. O risco de aspiração du­ por até 4 semanas. Enquanto se espera a passagem espontânea,
rante o procedimento é grande, portanto o auxílio de um anes- os pacientes são orientados a continuar com dieta normal, e,
tesiologista faz-se necessário em algumas situações. Anestesia na ausência de sintomas, radiografias semanais são suficientes
geral com intubação orotraqueal pode ser necessária nos casos para o acompanhamento. Objetos que não migram do estôma­
demorados e com risco aumentado de aspiração. Existem aces­ go após 4 semanas ou que permanecem na mesma localização
sórios que podem auxiliar o endoscopista na retirada dos CE. devem ser retirados endoscopicamente. Sintomas como febre,
A experiência e o bom-senso do endoscopista são duas grandes vômitos ou dor abdominal são indicações para cirurgia.
armas para o sucesso da terapêutica (Figura 13.2).
O conhecimento da natureza do CE é importante para se ■ Objetos cortantes e pontiagudos
estabelecer a conduta. Podemos dividir os CE em seis grupos,
Neste grupo, os mais comuns são os ossos de galinha, es­
descritos a seguir.
pinhas de peixe, próteses dentárias, pedaços de vidro, agulhas
■ Objetos longos e pregos. São os responsáveis pela maior incidência de com­
plicações, podendo chegar a 35%. A endoscopia deve ser rea­
Objetos maiores que 6 a 10 cm terão dificuldade em passar
lizada nas primeiras 6 h. A laringoscopia poderá ser utilizada
pelo duodeno e deverão ser retirados. O uso do overtube facilita
quando os CE estão localizados acima do músculo cricofarín-
a retirada após a apreensão desses objetos.
geo (Figura 13.4).
■ Objetos rom budos
Moedas, esferas e outros objetos semelhantes são os mais ■ Bolo de alim entos
comuns, e a população pediátrica é a que apresenta maior inci­ A impactação de alimentos é uma complicação esperada
dência de acidentes. Quando não progridem espontaneamente quando se tem alteração do calibre do esôfago por estenoses
nas primeiras horas para o estômago e ficam impactados no ou acalasia. Não se trata de uma emergência, e a endoscopia
esôfago, devem ser retirados pela endoscopia nas primeiras poderá ser realizada dentro das primeiras 24 h após o evento, a

Figura 13.2 Acessórios mais utilizados na retirada de corpos estranhos.


Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 129

■ Pacotes de narcóticos
A utilização do tubo digestório para o transporte de drogas
ilícitas tem sido constatado nos dias atuais. A pessoa ingere
propositalmente pacotes ou cápsulas contendo drogas em seu
interior, com o intuito de serem eliminados posteriormente. O
tempo gasto entre a ingestão até a sua eliminação é o suficien­
te para a pessoa passar por postos de fiscalização. Devido ao
grande risco de ruptura destes pacotes e liberação de grandes
quantidades de drogas, o tratamento endoscópico não é reco­
mendado, devendo-se optar pelo tratamento cirúrgico.

■ PERFURAÇÕES
As perfurações esofágicas são classificadas em dois grupos. O
primeiro deles inclui as perfurações espontâneas, descritas mais
adiante neste capítulo, e também conhecidas como síndrome
de Boerhaave. O outro grupo engloba as perfurações traumá­
ticas, as iatrogênicas e as relacionadas com doenças esofágicas.
Dentre as doenças que levam à perfuração, destacam-se: neopla-
sias esofágicas avançadas, linfoma de esôfago, úlcera de Barrett,
carcinoma broncogênico, leiomioma, aneurismas dissecantes e
ruptura de anel esofágico inferior. As infecções do esôfago tam­
bém podem causar perfuração, ocorrendo mais comumente em
pacientes imunodeprimidos, tendo como agentes etiológicos:
citomegalovírus, herpes simples e monilíase.
Com relação aos corpos estranhos, são encontrados objetos
e alimentos pontiagudos como ossos e espinhas, fragmentos de
vidro ou objetos metálicos. Nestes casos, a perfuração pode ser
Figura 13.4 Corpos estranhos pontiagudos. (Cortesia do Professor imediata ou tardia. O corpo estranho leva a processo inflama-
Dulmar Garcia de Carvalho.) tório reacional com infecção, necrose, perfuração ou migração
através da parede. Este tipo de perfuração é menos frequente
do que as iatrogênicas. Com o advento da endoscopia flexível,
essas perfurações se tornaram raras, especialmente quando da
menos que esteja associada à queixa de disfagia total e a grande realização de endoscopia diagnóstica, variando sua incidência
desconforto. O diagnóstico de estenose esofágica muitas vezes de 0,0003 a 0,01%.
é feito depois do primeiro episódio de impactação alimentar. Alguns procedimentos endoscópicos predispõem à perfura­
O bolo alimentar pode ser retirado com o uso de acessórios ou ção, destacando-se a retirada de corpos estranhos e a dilatação
introduzido suavemente para o estômago em algumas situações. de estenoses, tanto para lesões benignas quanto para malignas.
Enzimas proteolíticas, como a papaína, não devem ser usadas Durante a ressecção de tumores por meio de mucosectomias,
por estarem associadas a hipernatremia, erosão e perfuração pode ocorrer perfuração, tendo em vista a parede ser mais fina
esofágica. Deve-se lembrar da utilização do overtube com a fi­ e não ter camada serosa. Outras terapêuticas endoscópicas, tais
nalidade de se preservarem as vias respiratórias e a hipofaringe, como escleroterapias, uso de sondas de calor, e mesmo terapêu­
quando da retirada do bolo alimentar ou quando da retirada tica com laser ou radiofrequência, podem levar à perfuração.
de múltiplos CE por endoscopia. O uso de overtube em procedimentos endoscópicos tam ­
bém está acompanhado de maior risco de perfuração devido
■ Baterias ao traumatismo pela extremidade do tubo, levando à laceração
A ingestão de pequenas baterias é considerada uma emer­ da mucosa. Entretanto, não se observam complicações rela­
gência, e a endoscopia deverá ser realizada nas primeiras horas, cionadas com realização da via anterógrada de enteroscopia
não se respeitando o prazo de 6 h do jejum, sendo as crianças as de mono e duplo balão. É também citada perfuração causada
principais vítimas. Por serem pequenas e esféricas, à semelhança pelo uso do balão de Sengstaken-Blakemore, durante intubação
de comprimidos, passam rapidamente pelo esôfago. Causam orotraqueal e passagem de cateter nasogástrico. A perfuração
dois tipos de lesões: o primeiro por queimadura elétrica atra­ durante passagem de sondas ocorre mais comumente quando
vés do contato direto com a mucosa esofágica e o segundo por existem divertículos esofágicos. A introdução do endoscópio
liberação de substâncias químicas (lítio, mercúrio, zinco e ou­ em divertículo de Zenker, durante a passagem do aparelho com
tros) após corrosão pelo suco gástrico. Baterias que alcançam objetivo diagnóstico, ou na terapêutica desta condição, está as­
o estômago não precisam ser retiradas, a menos que os pacien­ sociada a índices expressivos de perfuração. A perfuração ao
tes apresentem sinais e sintomas de complicações ou que elas nível do esôfago cervical, quando tratada em tempo hábil, tem
permaneçam na cavidade gástrica por mais de 48 h. Em cerca bom prognóstico.
de 85% dos casos, as baterias são eliminadas em 72 h. Uso de As perfurações iatrogênicas são responsáveis por cerca de
eméticos, catárticos ou inibidores de bomba protônica não se 55% das perfurações esofágicas. Em uma longa série de pacien­
mostrou eficaz. tes submetidos à esofagoscopia, a incidência de perfuração foi
130 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas

de 1,7% (17 casos em 1.011 procedimentos). Desses 17 casos, já com sintomatologia e repercussão sistêmica, não há dúvidas
foram encontrados tumores em oito e acalasia em quatro. Os quanto à indicação precoce do tratamento cirúrgico.
cinco casos seguintes tinham estreitamento, estenoses ou anas- As medidas conservadoras incluem jejum absoluto, repo­
tomoses esofágicas. O índice de complicações aceitáveis na di- sição hidreletrolítica, nutrição parenteral, antibioticoterapia
latação pneumática para acalasia varia de 2 a 6%. e monitoramento clínico, laboratorial e radiográfico. Se o diag­
A mortalidade por perfuração por instrumental é mais baixa nóstico é feito em fase tardia, sem sinais de infecção e com
do que nas outras causas, variando de 15 a 20%. A perfuração estabilidade clínica, medidas conservadoras podem ser ado­
em decorrência de uma endoscopia diagnóstica sem lesões pre­ tadas.
existentes é evento extremamente raro. Na maior parte dos ca­ O tratamento cirúrgico deve ser realizado prontamente se
sos de perfuração há doenças associadas sendo mais comuns a houver sinais de infecção e mediastinite. A cirurgia varia desde
partir da quinta década de vida e frequentemente relacionadas o desbridamento de estruturas não viáveis, drenagem, esofagos-
com estenoses e obstruções por neoplasias. tomia, até ressecções mais agressivas, incluindo esofagectomia.
A reconstrução pode não ser imediata, dependendo da gravi­
dade do caso. O prognóstico se relaciona com o diagnóstico
■ Apresentação clínica precoce e o tratamento efetivo nas fases iniciais.
Assim como na síndrome de Boerhaave, o quadro clínico
na perfuração esofágica não espontânea varia de acordo com
a localização e extensão da lesão. A dor, na maioria dos casos, ■ HÉRNIAS DIAFRAGMÁTICAS
é o principal sintoma, localizando-se na região retroesternal
ou região epigástrica e podendo irradiar-se para o dorso. Pode O diafragma é um órgão de constituição musculotendinosa
ocorrer dispnéia também, e o diagnóstico muitas vezes é fei­ que, no adulto, separa as cavidades torácica e abdominal. Deriva
to em fases tardias. As perfurações intratorácicas apresentam de quatro estruturas embriológicas: ventralmente, o septo trans­
maior risco de morte que as perfurações cervicais, e o tratamen­ verso; lateralmente, a membrana pleuroperitoneal e os múscu­
to cirúrgico relaciona-se à melhora da sobrevida. los da parede do corpo; e mediodorsalmente, o mesoesôfago.
A radiografia de tórax demonstra enfisema subcutâneo, A sua parte periférica é composta de musculatura estriada com
pneumotórax e pneumomediastino. Os estudos contrastados fixação ao esterno, arcos costais e coluna vertebral, enquanto
do esôfago podem ser realizados inicialmente com contrastes a sua parte central compõe-se basicamente de tecidos aponeu-
hidrossolúveis e, se esses estudos forem negativos, o bário pode róticos. Apresenta orifícios naturais, através dos quais passam
ser usado com os devidos cuidados. O estudo baritado negativo estruturas entre as cavidades torácica e abdominal, como a veia
não exclui a perfuração. cava inferior, aorta, nervos simpáticos e esôfago.
A tomografia computadorizada cervical e torácica permite Define-se hérnia como a passagem, parcial ou total, de uma
o diagnóstico, além de oferecer informações do mediastino e estrutura anatômica, através de orifício patológico ou tornado
tórax. patológico, de sua localização normal para outra anormal. Hér­
O exame físico é inespecífico, porém enfisema subcutâneo nias diafragmáticas podem ocorrer através do hiato esofágico,
pode estar presente e palpável no pescoço e no tórax, e os si­ outras aberturas congênitas como os forames de Bochdalek
nais normalmente surgem dentro da primeira hora após a le­ ou Morgagni, ou aberturas pós-traumáticas. As hérnias hiatais
são. A conhecida tríade de Mackller, que consiste em vômitos, por deslizamento compreendem a grande maioria das hérnias
dor torácica e enfisema subcutâneo, nem sempre está presente. diafragmáticas.
Os pacientes frequentemente apresentam-se com taquicardia
e taquipneia. ■ Hérnias hiatais
Dependendo da extensão e tempo da apresentação das per­
furações, os pacientes podem apresentar febre. Atraso diag­ ■ Hérnia hiatal por deslizam ento
nóstico pode levar a quadros de septicemia e choque. Derra­ A hérnia hiatal por deslizamento ou tipo I é definida pela
me pleural é frequente e mais comum à esquerda, e a punção migração cranial do esôfago abdominal e do segmento proxi-
torácica poderá mostrar resíduos e sucos digestivos, definindo mal do estômago para o mediastino posterior, através do hiato
o diagnóstico. O diagnóstico diferencial inclui várias doenças, esofágico, ou seja, quando a junção esofagogástrica, ou parte
sendo úlcera perfurada, aneurisma dissecante da aorta, infarto do estômago, localiza-se acima do diafragma, portanto em po­
agudo do miocárdio, pancreatite aguda e pneumotórax espon­ sição intratorácica. Apresenta etiologia desconhecida, porém
tâneo as mais comuns. observa-se aumento da incidência com o envelhecimento. Nor­
Quando a perfuração ocorre no esôfago cervical, o enfisema malmente, o ligamento frenoesofágico ancora a junção esofa­
subcutâneo é um sinal precoce, podendo estar associado à disfa- gogástrica ao nível do diafragma, e as hérnias hiatais podem
gia. A radiografia de tórax sempre deve ser realizada, e estudos estar associadas a um processo de deterioração desse ligamen­
contrastados eventualmente podem ajudar no diagnóstico. to relacionado com o envelhecimento, às persistentes pressões
positivas intra-abdominais e à tração exercida pelo esôfago no
estômago, durante as manobras normais de deglutição. Hérnias
■ Tratamento hiatais são encontradas em cerca de 10% da população adul­
Na perfuração iatrogênica, ocorrida na endoscopia diagnós­ ta e cerca de 90 a 95% desse total corresponde às hérnias por
tica, pode-se optar pelo tratamento conservador nos casos de deslizamento, cabendo o restante às hérnias paraesofágicas e
lesões pequenas e diagnóstico precoce, sobretudo em perfura­ mistas, descritas posteriormente.
ções cervicais. Quando as perfurações ocorrem no terço médio A grande maioria dos pacientes com hérnias hiatais por des­
e distai, a conduta vai depender da extensão da perfuração, do lizamento de pequeno tamanho é assintomática. Quando da
diagnóstico precoce e da sintomatologia. Nas lesões pronta­ presença de sintomas, destaca-se a associação com a doença do
mente diagnosticadas em pacientes estáveis, pode-se optar por refluxo gastresofágico (DRGE), manifestada frequentemente
conduta conservadora. No entanto, nos casos de lesões extensas por azia e queimaçâo retroesternal, associadas ou não à pre­
Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 131

sença de esofagite. Disfagia, desconforto torácico e no andar


superior do abdome e sintomas otorrinolaringológicos tam ­
bém são observados. Lesões mucosas observadas nas porções
proximais da curvatura menor do estômago, ao nível do pinça-
mento diafragmático, são encontradas em até 5% dos pacientes
com hérnia de hiato por deslizamento, principalmente grandes
hérnias, e recebem o nome de úlceras ou erosões de Cameron,
possivelmente associadas a sangramento agudo ou crônico.
O diagnóstico das hérnias hiatais por deslizamento baseia-se
na definição do deslocamento da junção esofagogástrica para o
tórax, evidenciado pela sua localização pelo menos 2 cm acima
do pinçamento diafragmático. O deslocamento entre 2 e 3 cm
caracteriza as hérnias de pequeno tamanho; entre 3 e 5 cm, as
hérnias de médio tamanho; e superiores a 5 cm, as hérnias de
grande tamanho. A esofagogastroduodenoscopia é atualmen­
te o método diagnóstico mais utilizado e permite diagnóstico
acurado na grande maioria dos casos (Figura 13.5). Estudos
radiográficos do esôfago e estômago e a tomografia computa­ Figura 13.5 Hérnia hiatal por deslizamento de tamanho médio e eso­
dorizada constituem métodos alternativos de diagnóstico (Fi­ fagite erosiva de intensidade moderada, Grau C de Los Angeles - visão
gura 13.6). endoscópica. (Arquivo dos autores.) (Esta figura encontra-se reprodu­
Hérnias hiatais por deslizamento de pequeno tamanho em zida em cores no Encarte.)
pacientes assintomáticos ou oligossintomáticas são de trata­
mento clínico através de medidas comportamentais e, em al­
guns casos, com terapia supressora de ácido, geralmente através
de inibidores de bomba de prótons (IBP). Nos pacientes com vés do hiato anormalmente alargado, lateralmente ao esôfago,
doença do refluxo complicada, dificuldade de controle clínico em direção ao mediastino posterior, permanecendo a junção
do refluxo e nos pacientes jovens dependentes de altas doses de esofagogástrica ao nível do pinçamento diafragmático. Inci­
IBP, pode-se indicar tratamento cirúrgico, que pode ser reali­ de em faixa etária mais elevada e geralmente não se associa a
zado por via aberta ou laparoscópica. Complicações cirúrgicas DRGE. No caso de associação com hérnia hiatal por desliza­
incluem perfuração gástrica e esofágica, pneumotórax e lace- mento, recebe a denominação hérnia diafragmática mista.
ração hepática, e complicações tardias compreendem disfagia Quando na sua forma isolada, pode ser completamente as-
ou recidiva do refluxo gastresofágico por desabamento ou mi­ sintomática, embora pela frequente associação com hérnia hia­
gração torácica da fundoplicatura. tal por deslizamento, observe-se DRGE em até 50% dos pa­
cientes. Sintomas como disfagia, dor epigástrica ou torácica e
■ Hérnia por rolam ento ou paraesofágica (tipo II) e mista (tipo III) desconforto pós-prandial não são raros. A anemia é um achado
A hérnia paraesofágica ou por rolamento caracteriza-se pela frequente e aparentemente está relacionada com as erosões e
migração do estômago, principalmente do fundo gástrico, atra- friabilidade da mucosa gástrica herniada e com as erosões eso-

Figura 13.6 Estudo tomográfico de volumosa hérnia hiatal por deslizamento janela de mediastino e pulmão. O estômago está posicionado
na metade inferior do mediastino posterior, em situação retrocardíaca, com orientação atípica e parcialmente preenchido por contraste oral.
(Cortesia do Dr. Renato Macedo Rosa.)
132 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas

fágicas secundárias a DRGE. Manifestações obstrutivas podem óxido nítrico (ON) como vasodilatador pulmonar seletivo e
estar presentes nos casos de grandes hérnias e mesmo de parte oxigenação extracorpórea por membrana (ECMO) foram in­
ou de todo o estômago para o tórax. Pode ainda ocorrer o vólvu- corporados ao tratamento de RN portadores de HDC. Parale­
lo gástrico, exigindo tratamento cirúrgico emergencial. Estudo lamente, a possibilidade de diagnóstico ultrassonográfico pré-
radiográfico do trato digestório alto é método diagnóstico pela natal e as tentativas de intervenção intraútero abriram novas
observação de nível hidroaéreo no espaço retrogástrico. A eso- perspectivas de sucesso. Apesar de relatos iniciais apontando
fagogastroduodenoscopia auxilia na confirmação diagnóstica, redução na mortalidade, algumas análises retrospectivas não
permite a avaliação da extensão da anormalidade e a definição confirmaram um impacto significativo na sobrevida global. O
de complicações, como esofagite, úlceras e vólvulo. binômio hipoplasia-hipertensão pulmonar permanece como
O tratamento cirúrgico das hérnias paraesofágicas ou mis­ principal fator de mortalidade.
tas tem sido sugerido tanto nos pacientes sintomáticos, quanto As complicações da HDC são obstrução intestinal, insuficiên­
nos assintomáticos, no sentido da prevenção de possíveis com­ cia cardiorrespiratória e isquemia intestinal. O tratamento ci­
plicações, como encarceramento, vólvulo, perfuração, obstru­ rúrgico está indicado na confirmação do diagnóstico, mesmo
ção e hemorragia. Vários cirurgiões rotineiramente associam quando ocasional. A via de acesso recomendada para hernior-
a fundoplicatura, mesmo nas hérnias paraesofágicas isoladas, rafia diafragmática é a abdominal, pois permite, também, a
visando à prevenção do refluxo gastresofágico no pós-operató­ correção da má rotação intestinal associada. O emprego da vi-
rio e à fixação do estômago ao abdome. Pode ser realizado por deocirurgia para o reparo da HDC é factível e tem como vanta­
acesso cirúrgico torácico ou abdominal, por técnicas abertas gens diminuição da dor pós-operatória, alta hospitalar precoce
ou laparoscópicas. e melhor estética da ferida operatória. A colocação de dreno
torácico ipsilateral é controversa; alguns autores mostram que
essa conduta não resulta em aumento da expansibilidade do
■ Hérnias diafragmáticas congênitas pulmão hipoplásico.
As hérnias diafragmáticas congênitas representam uma das
malformações congênitas mais comuns, com incidência de 8%. ■ Hérnia de Bochdalek
O prognóstico se associa ao grau de hipoplasia pulmonar e não Frequentemente, as hérnias de Bochdalek são diagnostica­
ao tamanho do defeito no diafragma. Cerca de 80% dos casos das em recém-nascidos e raramente em adultos. Em recém-
se localizam à esquerda. O conteúdo herniário varia de acordo nascidos, manifestam-se por sintomas respiratórios agudos e
com o lado do defeito. Nos casos de defeitos à direita, intes­ ausculta respiratória negativa no hemitórax acometido. Nos
tino delgado, parte do intestino grosso, estômago, baço e até casos de herniação por períodos prolongados, durante o de­
mesmo lobo esquerdo do fígado são os órgãos herniados mais senvolvimento fetal, pode ocorrer grave hipoplasia do pulmão
frequentes. Quando o acometimento se dá à direita, observa-se ipsilateral e graus variáveis do pulmão contralateral. Hiperten­
principalmente herniação do intestino delgado e lobo direito são pulmonar é um achado comum. Pacientes adultos podem
do fígado. apresentar-se completamente assintomáticos, embora grande
Resultam da ausência ou defeitos na fusão das estruturas parcela relate desconforto abdominal inespecífico, vômitos e
que formam o diafragma. Quando ocorre falha na fusão da constipação intestinal. Dores torácicas e sintomas respiratórios
membrana pleuroperitoneal esquerda com o septo transverso, e cardiológicos são incomuns. Possível complicação grave é o
forma-se um defeito posterolateral esquerdo, sem presença de encarceramento intestinal, determinando dor abdominal in­
saco herniário, e, no caso de fusão completa, porém com falha tensa e sintomas obstrutivos. O diagnóstico pré-natal pode ser
da muscularização, forma-se um saco herniário verdadeiro, e realizado através de exame ultrasssonográfico pela visualização
esse defeito recebe o nome de forame de Bochdalek. A hernia­ do estômago ou alças intestinais no tórax do feto. A suspeita
ção de estruturas abdominais através desse forame caracteriza em adultos pode ser aferida em radiografias comuns de tórax
a hérnia diafragmática de Bochdalek ou hérnia posterolateral, em visão lateral, uma vez que essas hérnias são de localização
que se localiza geralmente à esquerda e corresponde a cerca de posterior, e a confirmação diagnóstica é realizada por estudo
85% das hérnias diafragmáticas congênitas. No caso de falha na radiológico contrastado e tomografia computadorizada (Fi­
fusão entre as junções esternocostais e o diafragma, origina-se gura 13.7).
um forame que se localiza na região retrocostoxifoide, e estru­ A prioridade no tratamento de recém-nascidos com hérnia
turas que se projetam através desse forame originam hérnias de Bochdalek é o suporte ventilatório inicial para estabilização
com saco herniário verdadeiro, chamadas de hérnias diafrag­ clínica e posterior tratamento cirúrgico da lesão diafragmática,
máticas de Morgagni, paraesternais ou retroesternais, de loca­ classicamente realizada por via aberta, com relatos na literatura
lização geralmente à direita. de tratamento por via laparoscópica. As hérnias de Bochdalek
A etiologia das hérnias diafragmáticas congênitas é desco­ correspondem a cerca de 2 a 3% das hérnias diafragmáticas
nhecida. Atualmente, postula-se que seja multifatorial e rela­ tratadas cirurgicamente.
cionada com fatores hereditários com relatos de rara associa­
ção familiar e com síndromes de malformações, como descrito ■ Hérnia de M orgagni
previamente. Entre as hérnias diafragmáticas congênitas, as hérnias de
O aspecto mais importante da fisiopatologia da hérnia dia­ Morgagni correspondem a uma minoria, entre 5 e 11% do to­
fragmática congênita é a hipoplasia pulmonar, responsável por tal. Em 90% dos casos, localizam-se à direita, 8% são bilaterais
um quadro grave de hipertensão pulmonar. e apenas 2% ocorrem à esquerda, recebendo o nome de hérnia
O tratamento de recém-nascidos (RN) com hérnia diafrag­ de Morgagni-Larrey. Quase sempre são diagnosticadas na fase
mática congênita (HDC) continua sendo um desafio para cirur­ adulta e, na infância, frequentemente associam-se com hérnias
giões pediátricos e neonatologistas. Mais recentemente, avanços de Bochdalek. Pode se manifestar logo após o nascimento, atra­
na terapia da hipertensão pulmonar primária (HPP) do recém- vés de insuficiência respiratória aguda por hipoplasia pulmo­
nascido, tais como ventilação suave com hipercapnia permis­ nar ou encarceramento visceral. O saco herniário pode conter
siva, ventilação por oscilação de alta frequência (VAF), uso de omento, cólon, intestino delgado, estômago ou fígado. A maio-
Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 133

típico é de uma opacidade bem definida, localizada geralmen­


te no ângulo cardiofrênico direito. Métodos propedêuticos
adicionais compreendem estudos radiográficos contrastados,
ultrassonografia, tomografia computadorizada e ressonância
magnética (Figura 13.8). A ultrassonografia vem se mostran­
do método m uito eficaz, tanto na determinação do defeito
diafragmático, quanto no estudo do conteúdo herniado com
possibilidade inclusive de diagnóstico intraútero. O estudo
tomográfico avalia e define o defeito no diafragma, permite o
estudo do conteúdo herniado e é de importância significativa
no diagnóstico diferencial com outras afecções, como pneu­
monias e tumores diafragmáticos. Apresenta a limitação de ser
um exame de imagens estáticas e, na ausência de herniação no
momento do exame, pode não diagnosticar esse tipo de hér­
nia. A laparoscopia mostra-se técnica segura de diagnóstico
definitivo em casos duvidosos e permite abordagem terapêu­
tica em um só tempo.
Em recém-nascidos, propõe-se o tratamento cirúrgico logo
após a estabilização hemodinâmica e respiratória. Na presença
de complicações, o tratamento cirúrgico emergencial também
é imperativo. Indica-se o tratamento cirúrgico eletivo nos de­
mais casos, mesmo nos pacientes assintomáticos, em função
do risco iminente de complicações gastrintestinais como má
rotação, vólvulo e encarceramento. A abordagem cirúrgica pode
Figura 13.7 Reconstrução parassagital de cortes tomográficos axiais ser realizada através de acesso torácico ou abdominal e por
em paciente com hérnia diafragmática posterior, à esquerda - hérnia técnicas de cirurgia aberta, toracoscopia e/ou laparoscopia. O
de Bochdalek. (Cortesia do Dr. Renato Macedo Rosa.) tratamento laparoscópico está indicado em crianças e adultos
com hérnias de apresentação tardia, assintomáticos ou oligos-
sintomáticos, e não nos casos de apresentação neonatal.

ria dos pacientes são assintomáticos ou apresentam apenas sin­


tomas inespecíficos, como desconforto torácico, tosse, dispepsia ■ Hérnias traumáticas
ou dispnéia, o que justifica o diagnóstico geralmente tardio. As hérnias diafragmáticas traumáticas ocorrem em função
Sintomas agudos podem ocorrer na presença de encarceramen­ de grande variedade de traumatismos abdominais, tanto fecha­
to com sinais de obstrução ou isquemia de estômago, omento dos como penetrantes. Aparentemente, grandes variações da
ou intestino. Radiografia simples do tórax, particularmente pressão intra-abdominal podem ocasionar lesões no diafragma
na incidência de perfil pela localização anterior desse tipo de que permitiríam a transposição de estruturas abdominais para
hérnia, compreende o exame diagnóstico inicial, e o aspecto o tórax, originando as hérnias traumáticas. Os traumas fecha-

Figura 13.8 Volumosa hérnia diafragmática direita de Morgagni, associada a hérnia de parede abdominal em região posterolateral ipsilateral
(reconstrução coronal e parassagital). Evidencia-se a vantagem do aparelho de TC m u lti- s lic e na obtenção de reconstruções multiplanares.
(Cortesia do Dr. Renato Macedo Rosa.)
134 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas

dos correspondem à maioria das situações que originam essas


hérnias, uma vez que as lesões associadas geralmente levam a
aumento da pressão intra-abdominal de forma mais intensa
que as provenientes de traumas penetrantes. Entretanto, vale
ressaltar a importância das pequenas hérnias, que, em função
do colo de diâmetro reduzido, expressam maior risco de en­
carceramento. Localizam-se geralmente no lado esquerdo do
diafragma, em função de local embriologicamente mais fraco
nessa topografia, e pelo efeito protetor anatômico do fígado à
direita. Lesões diafragmáticas podem não resultar em hernia-
ção imediata e em alguns casos, com o passar do tempo, em
função das pressões negativas intratorácicas, ocorre aumento
das lesões e progressiva passagem do conteúdo abdominal para
o tórax. A incidência das hérnias traumáticas é incerta, porém
lesões diafragmáticas são detectadas em até 5% dos pacientes
vítimas de politrauma.
Em pacientes politraumatizados, uma lesão diafragmática
pode passar despercebida em função de lesões emergenciais
de outros órgãos. Sintomas respiratórios e/ou abdominais ini­
ciados dias ou semanas após um trauma podem sugerir lesões Figura 13.10 Ruptura traumática do diafragma por acidente automo­
diafragmáticas. Há relatos de hérnias diafragmáticas origina­ bilístico. Corte tomográfico demonstra uma solução de continuidade
das de traumatismos ocorridos com tempo superior a 10 anos. no diafragma direito (seta) com herniaçáo da gordura omental (f) e
do cólon (C). (Cortesia do Dr. Renato Macedo Rosa.)
A sintomatologia é variada e corresponde a náuseas, dispnéia,
empachamento pós-prandial, dor retroesternal, vômitos e sin­
tomas obstrutivos com encarceramento de vísceras intra-ab-
dominais. A sintomatologia pode ser aguda e dramática, exi­
Lesões crônicas podem associar-se a múltiplas aderências, e a
gindo intervenção cirúrgica imediata. O diagnóstico pode ser
técnica mais indicada seria por acesso torácico ou pela com­
sugerido através de exame físico minucioso, com elevação do
binação de abordagem abdominal e toracoscopia. Tratamento
diafragma e ausculta de ruídos hidroaéreos no tórax, e confir­
cirúrgico laparoscópico também apresenta excelente opção
mação através de estudos radiográficos simples do tórax e con­
trastados do abdome, ecografia e tomografia computadorizada terapêutica.
(Figuras 13.9 e 13.10).
Indica-se sempre o tratamento cirúrgico, que deve ser rea­
lizado o mais precocemente possível no sentido da prevenção ■ SÍNDROME DE BOERHAAVE
de complicações. Lesões diafragmáticas agudas podem ser re­
paradas por acesso abdominal durante laparotomia explora­ Esta síndrome foi primeiramente descrita por Hermam Bo­
dora ou através do tórax, principalmente para lesões à direita. erhaave, em 1724, médico que descreveu caso de ruptura eso-
fágica que matou o Grande Almirante da Holanda 18 h depois
de vômitos autoinduzidos. Tendo em vista que a síndrome de
Boerhaave pode estar associada a vômitos, nem sempre ela
ocorre na forma espontânea. Esta síndrome consiste na per­
furação transmural do esôfago, o que a distingue da síndrome
de Mallory-Weiss. Esta última também se associa a vômitos,
porém as lacerações do esôfago são restritas à mucosa e sub-
mucosa. A síndrome de Boerhaave deve ser diferenciada da
perfuração iatrogênica, que ocorre em 85 a 90% dos casos de
ruptura esofágica.
O diagnóstico pode ser dificultado pelo fato de que nem sem­
pre os sintomas clássicos estão presentes, retardando a institui­
ção de medidas adequadas. Aproximadamente, 33% dos casos
têm manifestações clínicas atípicas. O pronto reconhecimento
dessa condição potencialmente letal é vital para assegurar o tra­
tamento apropriado. Deve-se considerar que as complicações
graves, tipo mediastinite, septicemia e choque, frequentemente
surgem no curso mais avançado da doença, levando à confusão
no quadro clínico e dificultando o diagnóstico. A mortalidade
desta afecção é estimada em cerca de 35%, representando a
perfuração do trato gastrintestinal com maior letalidade. Para
se obter melhora na evolução e prognóstico, é fundamental
diagnóstico precoce e abordagem cirúrgica dentro das primei­
Figura 13.9 Estudo radiológico contrastado (REED) evidenciando ras 12 h depois da perfuração. Os índices de mortalidade são
hérnia traumática no diafragma esquerdo: o estômago está posicio­ superiores a 50% para intervenções mais tardias (após 24 h),
nado quase completamente dentro do tórax. (Cortesia do Dr. Renato podendo chegar a 90% quando a abordagem cirúrgica acontece
Macedo Rosa.) depois de 48 h da ruptura esofágica.
Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 135

------------------------------------- ▼---------------------------------
■ Fisiopatologia Quadro 13.1 Diagnóstico diferencial na síndrome de Boerhaave
A ruptura esofágica na síndrome Boerhaave é considerada
como consequência de um súbito aumento na pressão intralu- A n e u r is m a d is s e c a n te d a a o rta

minal do esôfago produzida durante esforços de vômitos. Estes H é rn ia s d ia fra g m á tic a s a d q u irid a s
provocam uma incoordenação neuromuscular, levando à falên­ S ín d r o m e d e M a llo r y -W e is s
cia do músculo cricofaríngeo. A síndrome comumente está as­ In fa rto a g u d o d o m io c á r d io
sociada a excessos alimentares e/ou ingestão abusiva de álcool. P a n g a s trite a g u d a
O local mais comum de ocorrer a laceração na síndrome de D o e n ç a u lc e ro s a p é p tic a
Boerhaave é a parede posterolateral esquerda no terço inferior P n e u m o tó ra x
do esôfago, 2 a 3 cm proximalmente à junção esofagogástrica.
H e m a t o m a in t r a m u r a l e s p o n t â n e o d o e s ô fa g o
Apresenta origem barogênica devido ao aumento súbito da
pressão intraluminal contra um músculo cricofaríngeo fecha­
do, e a perfuração tipicamente ocorre no ponto mais frágil do
esôfago, em geral no esôfago inferior à esquerda, abaixo do
diafragma em adultos. Alcoolismo e excessos alimentares são Dentre os achados usuais, podem-se encontrar cianose peri­
fatores de risco primários, e ambos podem levar à hiperêmese, férica, rouquidão (envolvimento do nervo laríngeo recorrente),
a qual é o maior componente na apresentação clássica. desvio da traqueia e mediastino, e obstrução venosa cervical.
O pneumomediastino é um achado muito importante, poden­
■ Epidemiologia do estar presente em 20% dos pacientes e causar sons de es­
talido durante a ausculta torácica. Esses estalidos são ouvidos
Esta síndrome é de incidência relativamente rara. Em uma coincidentemente com os batimentos cardíacos, podendo ser
revisão realizada em 1980 por Kish, são citados 300 casos na confundidos com fricção do pericárdio. Nos estágios avança­
literatura mundial. Em 1986, Bladergroen e Postlethwait des­ dos da doença, podem ocorrer sinais de infecção e septicemia,
creveram 127 casos. Destes, 114 foram diagnosticados em vida, incluindo febre e instabilidade hemodinâmica, com progres­
enquanto os outros em necropsias. Quanto ao sexo, é mais siva deterioração do quadro clínico. Várias doenças podem
comum em homens que em mulheres, variando de 2:1 a 5:1. estar relacionadas com a dificuldade diagnóstica diferencial, e
Quanto à idade, ocorre mais frequentemente em pacientes na as principais estão relacionadas no Quadro 13.1.
faixa etária de 50 a 70 anos, e a maioria dos relatos descritos
é relacionada com homens na faixa etária média dos 60 anos.
Existem casos descritos em crianças e neonatos, bem como em ■ Exames complementares
pessoas acima de 90 anos. ■ Testes laboratoriais
Os índices de mortalidade são altos, estando a sobrevida re­
Os achados laboratoriais são inespecíficos, podendo-se ob­
lacionada com o diagnóstico precoce seguido de intervenção
servar leucocitose com desvio à esquerda. A albumina séri-
cirúrgica imediata. A mortalidade global é em torno de 35% e,
ca é normal, enquanto as frações de globulina estão normais ou
quando os pacientes se submetem à cirurgia dentro das 24 h
ligeiramente elevadas. Muitos pacientes apresentam derrame
após a laceração, as chances de sobrevida são de 70 a 75%. Há
pleural, e a toracocentese pode ajudar no diagnóstico. Frequen­
casos descritos de sobrevida sem cirurgia, porém são relatos
isolados, e esta conduta não é preconizada. temente, são encontradas partículas alimentares e suco gástrico
no líquido pleural. O pH desse líquido pode ser menor do que 6,
e o conteúdo de amilase pode estar elevado. Células escamosas
■ Apresentação clínica da saliva são encontradas com frequência.
A apresentação clínica clássica consiste em episódios de es­
forços de vômitos, tipicamente em homens na idade adulta, ■ Radiografia de tórax
após uso abusivo de álcool e excessos alimentares. Esta situação A radiografia de tórax é útil no diagnóstico, já que 90% dos
é acompanhada de início súbito de dor torácica na parte inferior pacientes revelam alterações após a perfuração. O achado mais
do tórax e abdome superior, irradiando para as costas e ombro comum é o derrame pleural unilateral, comumente à esquerda,
esquerdo. A deglutição frequentemente agrava os sintomas. A fato relacionado com o local mais comum de perfuração, descri­
hematêmese habitualmente não é vista na ruptura esofágica, to anteriormente. Outros achados podem incluir pneumotórax,
o que ajuda a distingui-la da síndrome de Mallory-Weiss. A hidrotórax, pneumomediastino e enfisema subcutâneo. Cerca
deglutição pode desencadear tosse, devido à comunicação do de 10% das radiografias de tórax são normais.
esôfago com a cavidade pleural. Pode ocorrer dispnéia devido
ao derrame pleural associado à dor pleurítica. ■ Esofagograma
A tríade de Mackler define a apresentação clássica, consis­ Este exame ajuda a confirmar o diagnóstico e tipicamente
tindo em vômitos, dor torácica baixa e enfisema subcutâneo. demonstra extravasamento de contraste para a cavidade pleural.
Os achados de alterações pleurais são comuns. Se ocorre enfi­ O estudo radiológico contrastado do esôfago também demons­
sema subcutâneo, este é particularmente útil para confirmação tra a extensão da perfuração e sua localização, o que pode ser
diagnóstica, sendo visto em cerca de 28 a 66% dos pacientes na de ajuda na decisão da abordagem cirúrgica, por via torácica
apresentação inicial, ocorrendo mais frequentemente nas fases ou via abdominal.
tardias. Outros sintomas clássicos foram descritos por Ander- Inicialmente, um contraste aquoso solúvel, como a gastro-
son e Barrett, incluindo taquipneia e rigidez abdominal. Podem grafina, deve ser utilizado. O uso de bário nesses casos pode se
também surgir taquicardia, febre e hipotensão, à medida que a associar à mediastinite grave, não sendo recomendado. Se o
doença progride, porém são achados inespecíficos. estudo radiográfico contrastado inicial é negativo e permanece
136 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas

uma forte suspeita, a mudança de decúbito lateral esquerdo e toracotomia à esquerda é a abordagem de preferência, embo­
direito pode ser útil. ra a laparotomia possa ser necessária quando a laceração se
estende até o esôfago distai. Várias técnicas são empregadas,
■ Tom ografia com putadorizada inclusive com a sutura de omento para ajudar no fechamen­
Pode ser útil nos pacientes gravemente enfermos que não to primário. A vitalidade do tecido circunvizinho é um fator
toleram o esofagograma. A tomografia computadorizada per­ importante durante a seleção do procedimento cirúrgico. Para
mite localizar coleções líquidas para drenagem cirúrgica. A vi- os pacientes com diagnóstico além de 24 h, a sutura primária
sibilização de estruturas adjacentes é possível, permitindo o pode não ser possível. Após 24 h, a ferida encontra-se com
diagnóstico diferencial com as afecções descritas no Quadro edema e áreas de necrose e friabilidade. Várias alternativas à
13.1. A desvantagem da tomografia é não precisar a localização sutura primária estão disponíveis, incluindo a esofagostomia
da perfuração. com desvio do trânsito esofágico, no intuito de favorecer a ci-
catrização por segunda intenção. O uso de tubos em T tem sido
■ Endoscopia digestiva descrito, levando à formação de fístula, controlada com uma
A endoscopia não é útil no diagnóstico, podendo inclusive drenagem dirigida de secreções esofágicas. As complicações
acarretar riscos adicionais, levando ao aumento da extensão da tardias da cirurgia podem incluir empiema, com necessidade
perfuração inicial. A insuflação forçada de ar para o mediastino de drenagem ou decorticação, e fístulas esofagotraqueais ou
e cavidade pleural pode agravar o quadro clínico. A endoscopia esofagobrônquicas.
pode eventualmente ser útil nos casos de suspeita não compro­ Novas técnicas envolvem próteses metálicas autoexpansivas,
vada de ingestão de corpos estranhos, permitindo, neste caso, consideradas alternativas aceitáveis somente quando as opções
possibilidade de terapêutica. cirúrgicas clássicas estão contraindicadas. O uso de próteses em
doenças sem malignidade é altamente controverso, devido aos
■ Complicações riscos associados a sua remoção. Sendo assim, o uso de próte­
se na síndrome de Boerhaave é recomendado para os casos de
A ruptura esofágica pode levar ao desenvolvimento de sep- diagnósticos tardios, com falha no tratamento conservador.
ticemia, pneumomediastino, mediastinite, derrame pleural vo­ Recentemente, têm sido divulgadas as próteses biodegradáveis
lumoso, empiema, ou enfisema subcutâneo. Se a ruptura esten­ com perspectivas promissoras, uma vez que não requerem re­
de-se diretamente até a pleura, a ocorrência de pneumotórax moção. A colocação de próteses a longo prazo na síndrome de
é esperada. Logo após a ruptura, ocorre a entrada de ar para Boerhaave não foi adequadamente avaliada.
o mediastino, podendo espalhar-se por estruturas adjacentes,
levando a abscesso mediastinal. Outras complicações incluem
síndrome do desconforto respiratório do adulto, pneumotórax
e hidrotórax. ■ LESÃO ESOFÁGICA POR COMPRIMIDO
A utilização do tubo digestório como via de administração
■ Tratamento de medicamentos sob a forma de chás, poções e infusões data
do terceiro milênio a.C. As primeiras publicações associando
A abordagem ideal na síndrome de Boerhaave envolve a
o uso de medicações à lesão esofágica surgem a partir de 1970,
associação de ambos os tratamentos conservador e cirúrgico.
por Pembertom. Vários relatos são publicados a partir des­
As medidas a serem tomadas incluem: acesso venoso de gros­
ta data, mas o número certamente subestima esta associação.
so calibre com reposição hidreletrolítica, combate ao choque,
Inúmeras são as drogas hoje reconhecidas como causadoras
administração de antibióticos de amplo espectro e intervenção
de lesões na mucosa esofágica. Existe uma preocupação, por
cirúrgica precoce. Estes são os pilares do tratamento.
parte dos laboratórios, em desenvolver comprimidos com re­
A decisão entre um tratamento conservador e um tratamen­
vestimento externo, que propiciem a liberação do princípio
to mais agressivo com cirurgia depende dos vários fatores; entre
eles, cabendo citar: ativo em outro ambiente que não o esôfago e que “deslizem”
com facilidade sobre a mucosa. Estudos demonstram que um
a) tempo de apresentação dos sintomas até o diagnóstico; comprimido ingerido com certa quantidade de líquido, por uma
b) localização e extensão da perfuração; pessoa sem lesões esofágicas, leva no mínimo cerca de 5 min
c) doenças esofágicas associadas; para atingir o estômago.
d) condições clínicas gerais do paciente. Outro ponto importante é o uso indiscriminado de certas
Quando se faz a opção pelo tratamento conservador, sem medicações sem orientação médica, que comprovadamente
cirurgia, as medidas consistem em: infusão de líquidos IV, anti­ causam lesões no esôfago e que têm seu uso estimulado em co­
bióticos de amplo espectro, aspiração por cateter nasogástrico merciais de televisão, a exemplo do ácido acetilsalicílico.
contínua, drenagem adequada através de toracotomia e suporte O mecanismo de ação para o aparecimento de lesões no esô­
nutricional, incluindo nutrição parenteral. Recentemente, tem fago após o uso de medicações depende de fatores relacionados
se preconizado nutrição enteral através de sondas de jejunos- com o comprimido e o paciente. Os fatores relacionados com
tomia. o comprimido são: natureza química da droga, tempo de con­
Com relação à cirurgia, foi descrito inicialmente por Bar- tato com a mucosa esofágica e grau de solubilidade. Os fatores
rett, em 1947, um caso tratado com sucesso. Antes desse re­ relacionados com o paciente são aqueles ligados ao clearance
lato, os casos de síndrome de Boerhaave eram considerados esofágico. O clearance certamente está alterado na presença
virtualmente letais com 100% de mortalidade. A maioria dos de certas afecções do esôfago, como na acalasia, nas estenoses,
médicos advoga a intervenção cirúrgica se o diagnóstico é rea­ nos tumores, na esclerodermia e em outras. Fatores compor-
lizado dentro das primeiras 24 h após a perfuração. A sutura tamentais interferem no clearance esofágico, como o hábito de
imediata do local de ruptura e drenagem do mediastino e ca­ ingerir comprimidos com pouco ou nenhum líquido ou em
vidade pleural possibilitam melhores índices de sobrevida. A posição de decúbito.
Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 137

de hipertensão portal são mais predisponentes ao sangramento


■ Diagnóstico depois de uma laceração esofágica do que aqueles que apresen­
A queixa clássica é a dor retroesternal súbita, ou em crescen­ tam a pressão portal normal. Estudos relatam a predominância
te, após o uso recente de alguma medicação. Outros sintomas desta afecção no sexo masculino, sendo cerca de 2 a 4 por 1 e
comuns são: odinofagia (74%), disfagia (20%) e aqueles rela­ mais comum entre 40 e 50 anos de idade, podendo ter amplas
cionados com as complicações. Na história pregressa, deve-se variações.
pesquisar a presença de doenças do esôfago, como acalasia, A presença de hérnia hiatal como fator predisponente é en­
estenoses; doenças sistêmicas, como as reumatológicas, doen­ contrada em 35 a 100% dos pacientes com síndrome Mallory-
ça de Chagas, esclerodermia, osteoporose; e, principalmente, Weiss. Durante os esforços de vômitos, o aumento da pressão
o uso recente de comprimidos. transmural é maior dentro da hérnia do que no restante do es­
Mais de 50 tipos de comprimidos estão relacionados com tômago, e essa localização é a que predispõe à ocorrência da la­
a lesão esofágica. Os mais comuns são: antibióticos como do- ceração. Fatores precipitantes incluem náuseas, vômitos, tosse,
xicilina, clindamicina, tetraciclina, ciprofloxacino e lincomi- distensão, soluços e traumas abdominais durante reanimação
cina: anti-inflamatórios esteroides e não esteroides; cloreto de cardiopulmonar. As lesões iatrogênicas são raras, consideran­
potássio; alendronato de sódio; e sulfato ferroso. do-se a frequência com que os pacientes apresentam esforços
A endoscopia é o método de escolha para se estabelecer o de vômitos durante a endoscopia. A prevalência é relatada en­
diagnóstico. A suspeita clínica, associada a achados endoscó- tre 0,7 e 0,49%. Em poucos casos, o fator precipitante aparente
picos de lesões em áreas focais de enantema e edema; erosões pode não ser identificado.
recobertas por fibrina; “ulcerações em beijo”; friabilidade da
mucosa, com áreas de sangramento recente, caracterizam essa ■ Fisiopatologia
associação.
A síndrome de Mallory-Weiss ocorre como resultado de um
rápido aumento do gradiente de pressão transmural ao longo da
■ Complicações junção esofagogástrica. Na distensão aguda ou falta de disten-
A incidência de complicações é rara se comparada ao uso sibilidade do esôfago inferior, produz-se uma laceração linear
exagerado de medicações pela população em geral. A compli­ nessa região. Cerca de 10% de todas as lesões surgem no esô­
cação mais comum é a hemorragia, que pode se manifestar fago. A maioria se localiza à direita na junção esofagogástrica
de forma volumosa com repercussão hemodinâmica e choque ou no estômago, ligeiramente abaixo da junção. Os pacientes
hipovolêmico ou em pequeno volume e autolimitada, passan­ frequentemente apresentam vômitos com sangue avermelhado
do despercebida. As estenoses e as perfurações são ainda mais ou de cor escura. O sangramento pode ser considerável.
raras. Com o aumento rápido da pressão intragástrica devido a
fator precipitante, tais como náuseas ou vômitos, o gradiente
de pressão transmural aumenta dramaticamente ao longo da
■ Tratamento hérnia hiatal, a qual está em contato com a zona de baixa pres­
são torácica. Dentro da hérnia, a laceração mais comumente
Quando as lesões não estão associadas a complicações, o
envolve a curvatura menor da cárdia que é relativamente fixa,
tratamento se baseia na suspensão do uso da medicação ou
comparando-se com o restante do estômago.
na troca da via de administração. Podem ser utilizados inibi­
Outro mecanismo potencial para síndrome de Mallory-
dores da bomba de prótons e analgésicos para o alívio da dor
Weiss é o prolapso violento, ou intussuscepçâo do estômago
retroesternal. O sucralfato é uma droga interessante no alívio
superior para o esôfago, que pode ocorrer mesmo durante os
da dor.
esforços de vômitos durante uma endoscopia.
As orientações comportamentais, como ingerir um volume
de líquido de no mínimo 200 m^ juntamente com os compri­
midos e ingeri-los em ortostatismo, respeitando o prazo de ■ Prognóstico
30 min para o decúbito, devem ser sempre lembradas, quando A síndrome de Mallory-Weiss responde por 1 a 15% dos
se prescreverem drogas potencialmente lesivas ao esôfago. casos de hemorragia digestiva alta. O sangramento cessa espon­
taneamente em 80 a 90% dos pacientes. Com o tratamento con­
servador, a maioria das lesões cicatriza-se dentro de 24 h. Assim,
■ SÍNDROME DE MALL0RY-WEISS a síndrome de Mallory-Weiss pode não ser vista à endoscopia
quando esta é realizada tardiamente. O grau de perda sanguí­
A síndrome de Mallory-Weiss é caracterizada por sangra­ nea varia, e estudos iniciais demonstraram que a proporção de
mento gastrintestinal de origem arterial, secundário a lesões pacientes que necessitavam de transfusão sanguínea oscilava
longitudinais da mucosa gástrica e da cárdia, ao nível da jun­ entre 40 e 70%. Atualmente, estes índices são significativamen­
ção esofagogástrica, representando 5% dos casos de hem or­ te mais baixos. Instabilidade hemodinâmica e choque podem
ragia digestiva alta. A descrição original foi feita por Mallory ocorrer em cerca de 10% dos pacientes. A mortalidade média é
e Weiss, em 1929, e incluía pacientes com náuseas e vômitos de 8,6%, com tendência à queda, devido à melhora dos recursos
persistentes relacionados com o uso abusivo de bebidas alco­ de terapia intensiva, diagnóstico e terapêutica.
ólicas. No entanto, a síndrome de Mallory-Weiss pode ocorrer
após qualquer evento que leve ao aumento súbito da pressão
intragástrica, ou prolapso gástrico para o esôfago. Episódios
■ Apresentação clínica
iniciais de soluços intensos, vômitos, náuseas e esforços de A apresentação clássica consiste em episódio de hematêmese
vômitos são relatados em cerca da metade dos pacientes nos relacionada com náuseas e vômitos, embora essa apresentação
quais essa síndrome é diagnosticada. Os pacientes portadores possa não ser tão comum como se pensava. Graham e Schwartz
138 Capítulo 13 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas

encontraram uma história típica em apenas 30% dos pacien­


tes. Em estudo realizado por Harries e DiPalma, a hematêmese
■ Tratamento
ocorreu no primeiro vômito em cerca de 50% dos pacientes. Os pacientes devem receber reposição hidreletrolítica e, se
Ela está presente em cerca de 85% dos casos, e menos comu- necessário, transfusão sanguínea. Na maior parte dos casos, o
mente ocorrem sintomas de melena, hematoquezia, síncope sangramento cessa espontaneamente. Quando o sangramen­
e dor abdominal. O consumo excessivo de álcool é relatado to não cessa, os pacientes são tratados por meio de injeção de
em 40 a 75% dos pacientes e o uso de ácido acetilsalicílico, em solução de epinefrina ou cauterização do vaso sangrante com
mais de 30%. sondas de calor. Se estes tratamentos não tiverem sucesso, a
Quanto ao exame físico, não existem sinais específicos na cirurgia poderá ser eventualmente indicada.
síndrome de Mallory-Weiss. Os achados físicos estão relacio­
nados com os diferentes graus de perda sanguínea, podendo ■ Cuidados clínicos
ocorrer taquicardia, hipotensão, alterações ortostáticas e até As medidas iniciais consistem em manobras de reanimação
choque hipovolêmico, quando em maior intensidade. apropriadas, realização de endoscopia e triagem dos pacientes
para tratamento intensivo, internação ou acompanhamento em
regime ambulatorial. Esta triagem depende da intensidade do
■ Exames complementares sangramento, comorbidades e risco de ressangramento, bem
■ Exames laboratoriais como da presença de complicações. A maioria dos pacientes
Os níveis de hemoglobina e hematócrito devem ser deter­ para de sangrar espontaneamente. O suporte com medidas con­
minados para avaliar a intensidade do sangramento inicial e servadoras, tais como transfusão de sangue, supressão de ácido
monitorar os pacientes. Provas de coagulação devem ser sem­ e uso de antieméticos, é suficiente na maioria dos pacientes.
pre realizadas nos pacientes que apresentem coagulopatias e Cerca de 35% dos pacientes requerem uma nova intervenção
hepatopatias crônicas. terapêutica, geralmente endoscópica. A necessidade de inter­
venção cirúrgica está reservada para casos refratários ao trata­
■ Métodos de im agem mento endoscópico e arteriografia intervencionista.
Os estudos radiográficos contrastados com bário ou con­
traste iodado devem ser evitados por não serem úteis no diag­ ■ Abordagem endoscópica
nóstico e prejudicarem a terapêutica endoscópica. Eletrocar- A terapêutica endoscópica depende da experiência do en-
diograma e enzimas cardíacas, quando indicados, devem ser doscopista e, em particular, da familiarização com a técnica a
realizados para afastar possibilidade de isquemia miocárdica, ser empregada, com os equipamentos e acessórios disponíveis.
especialmente em pacientes com anemia importante, instabi­ Os pacientes com sangramento ativo, principalmente sangra­
lidade hemodinâmica, doença cardiovascular, dor torácica e mento arterial contínuo, devem ser tratados. Na parada do san­
idade avançada. gramento e nos casos com estigma de sangramento recente,
comumente não há necessidade de tratamento, a não ser que
■ Endoscopia ocorra episódio de ressangramento da lesão ou coagulopatias
A endoscopia está indicada no início dos sintomas, sendo o associadas. Sendo assim, quando o endoscopista encontra le­
procedimento de escolha tanto para o diagnóstico como para sões planas com base limpa ou clara e pigmentos de hematina,
a terapêutica. A endoscopia pode prontamente identificar san­ não há necessidade de qualquer intervenção endoscópica, em
gramento ativo, coágulo aderido, bem como identificação das função de risco mínimo de ressangramento.
lesões. As lacerações na maioria dos casos têm 2 a 3 cm de ex­ A injeção de epinefrina diluída reduz ou interrompe o san­
tensão (podendo variar de 0,5 a 4 cm) e poucos milímetros de gramento através do mecanismo de vasoconstrição e tampo-
profundidade. Em mais de 80% dos pacientes, uma única lesão namento. Esta técnica pode ser empregada como tratamento
é observada à endoscopia. O local mais comum de ocorrência é definitivo ou associando-se com terapia térmica. O uso de es-
logo abaixo da junção esofagogástrica, na curvatura menor do clerosantes, tais como álcool ou polidocanol, tem sido descrito,
estômago, entre 2 e 6 horas na visão endoscópica, com o pa­ mas recomendam-se alternativas mais seguras, já que a injeção
ciente na posição de decúbito lateral esquerdo. A síndrome de de esclerosantes pode levar a danos teciduais, com riscos de
Mallory-Weiss é, em geral, associada a outras lesões de mucosa. aumento da área de necrose e perfuração.
Em cerca de 35% dos pacientes, existe uma outra causa com Tem sido descrito também o uso do plasma de argônio
lesões potencialmente sangrantes, como, por exemplo: úlcera (APC) no tratamento do sangramento ativo. Outra técnica seria
péptica, gastrite erosiva ou varizes esofágicas. a ligadura elástica, eficaz no controle imediato da hemorragia.
Em estudo randomizado de 34 pacientes, com sangramento ati­
vo na síndrome de Mallory-Weiss, não foi evidenciada qualquer
■ Complicações diferença na eficácia ou segurança da ligadura elástica versus
A maioria dos pacientes para de sangrar espontaneamente, e injeção de epinefrina. A ligadura elástica pode ser particular­
as lesões da síndrome de Mallory-Weiss tendem a cicatrizar-se mente útil no sangramento de Mallory-Weiss com hipertensão
rapidamente dentro de um período de 48 a 72 h. As complica­ associada a varizes esofagogástricas, nas quais a terapêutica
ções, como isquemia miocárdica ou infarto, choque hipovolê­ térmica não é recomendada.
mico e morte, são relatadas e estão associadas a sangramentos O uso de hemoclipes também é efetivo nesta afecção, e as
graves e comorbidades importantes. Felizmente, essas compli­ margens da lesão podem ser aproximadas com a colocação de
cações são raras na atualidade, graças às medidas e aos cuida­ sucessivos clipes a partir da sua parte distai em direção à par­
dos citados anteriormente. O agravamento do sangramento ou te proximal. Alternativa possível é a colocação de um único
perfuração pode acontecer como complicação durante a tera­ clipe diretamente no ponto sangrante. A colocação de hemo-
pêutica endoscópica. Isquemia e infarto de órgãos podem ser clipe pode ser dificultada pela posição tangencial no local da
complicações da angiografia terapêutica. erosão.
Capítulo 73 / Corpos Estranhos, Perfurações, Hérnias Diafragmáticas, Síndrome de Boerhaave, Lesões Causadas... 139

Embora existam estudos com uso de tamponamento com Chung, IK, Kim, EJ, Hwang, KY et al. Evaluation of cndoscopic hemostasis in
upper gastrointestinal bleeding relatcd to Mallory-Weiss syndromc. En-
balão, essa técnica deve ser evitada, pois leva a esforços que
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predispõem o paciente a mais lacerações, podendo aumentar Davis, SS Jr. Currcnt controversics in paracsophagcal hcrnia repair. Surg Clin
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dieta líquida restrita e, havendo boa tolerância, progredir gra­ Harris, JM, DiPalma, JA. Clinicai significancc of Mallory-Weiss tears. Am /
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nephrinc injcction for Mallory-Weiss syndromc with active bleeding. Gas-
mente é prescrita pelo período de 1 a 2 semanas para acelerar
trointest Endosc, 2002; 55:842-6.
a cicatrização das lesões, embora, teoricamente, este benefício Kish, GF, Katskc, FA. A case of rccurrcnt Bocrhaavcs syndromc. W V Med J,
não tenha sido comprovado. O uso de antieméticos é útil para 1980 Fcb; 76(2):27-30.
controlar náuseas e vômitos, fatores precipitantes para a sín­ Lansdalc, N, Alam, S, Losty, PD, Jcsudason, EC. Nconatal Endosurgical Congc­
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apresentam sangramento ativo, fatores de risco para ressangra­ ing Mallory-Weiss syndromc: a randomized controllcd trial. Gastrointest
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nâmico, com infusão de líquidos e hemoderivados. A transfu­ Park, CH, Min, SW, Sohn, YH et al. A prospcctivc, randomized trial of cndo­
são sanguínea pode ser necessária para níveis de hemoglobina scopic band ligation vs. cpincphrinc injcction for activcly bleeding Mallory-
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14 Acalasia e Megaesôfago
Eponina Maria de Oliveira Lemme, Paula Amorim Novais e
Vânia Luiza Cochlar Pereira

■ INTRODUÇÃO ----------------------------▼----------------------------
Quadro 14.1 Distúrbios motores primários do esôfago
O esôfago é sede de alterações funcionais que produzem
sintomas, conhecidos como distúrbios motores do esôfago 1. A C A L A S IA

(DME). 2 . E S P A S M O E S O F Á G IC O D IF U S O

Os DME podem ser divididos topograficamente em dois 3. E S Ô F A G O H IP E R C O N T R A T IL


- E s ô fa g o e m q u e b r a -n o z e s
grandes grupos, os distúrbios da musculatura estriada, quando
- EEI h ip e r t e n s o
são consequentes a alterações da faringe e/ou esfíncter esofágico
4 . E S Ô F A G O H IP O C O N T R Á T IL
superior, e os distúrbios da musculatura lisa, quando o acome-
- M o t ilid a d e e s o fá g ic a in e fic a z
timento se situa no corpo esofágico e/ou no esfíncter esofági­ - EEI h ip o te n s o
co inferior (EEI). Tanto os distúrbios de musculatura estriada
como os da musculatura lisa podem ser primários, quando a
alteração motora esofágica é a própria manifestação da doença,
e secundários, se a doença de base é sistêmica e o comprometi­ -----------------------------▼-----------------------------
mento esofágico é apenas uma de suas manifestações.
Quadro 14.2 Distúrbios motores secundários do esôfago
Nos Quadros 14.1 e 14.2, estão relacionados os DME primá­
rios e secundários. A acalasia (AC) e o megaesôfago, denomi­ 1. D O E N Ç A D E C H A G A S
nação habitualmente empregada para a forma da doença con­
2. C O L A G E N O S E S
sequente à doença de Chagas, são, respectivamente, distúrbios - E s d e ro s e s is tê m ic a p ro g re s s iv a
motores primários e secundários. - D e r m a t o m io s it e
- L ú p u s e rit e m a t o s o s is tê m ic o
- S ín d r o m e d e S jô g re n

■ CONCEITO DE ACALASIA E MEGAESÔFAGO 3 . D IA B E T E S M E L IT O

4 . H IP E R E H IP O T IR E O ID IS M O

Estas afecções são conhecidas na literatura por um grande


número de expressões. No início do século, Sir Cooper Perry
cunhou o termo acalasia para ausência de relaxamento (a = au­
sência, e calasia = relaxamento), que foi então introduzido na presente, como nas fases iniciais da doença. Neste capítulo,
terminologia médica. Na literatura inglesa e em vários países empregaremos os termos AC idiopática e AC chagásica, para
do mundo, este termo tem sido o mais usado, embora expresse designar as duas formas da doença. Como se verá adiante, as
somente uma das anormalidades encontradas na doença, que duas entidades apresentam semelhanças clínicas e funcionais,
é a falta de relaxamento do EEI à deglutição. Muito mais tar­ embora pequenas diferenças neste último particular.
de, foi então verificado que na AC havia também ausência de
peristaltismo no corpo do esôfago, sendo então o mais com­
pleto distúrbio motor de musculatura lisa. Pode ser idiopática, ■ HISTÓRICO
encontrada nos países europeus e na América do Norte, e de
natureza chagásica, predominante nos países onde a doença Há mais de 300 anos, Sir Thomas Willis descreveu o quadro
de Chagas é endêmica, entre os quais o Brasil. A maioria dos clínico da AC pela primeira vez, referindo-se também ao trata­
autores nacionais usa o termo megaesôfago como sinônimo mento por ele instituído, o qual visava a empurrar o alimento
de AC de origem chagásica, embora esta seja expressão da al­ retido no esôfago para o estômago. Empregou, na ocasião, um
teração anatômica, que é a dilatação do órgão, nem sempre osso de baleia, que foi posteriormente utilizado pelo próprio pa­

140
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 141
ciente durante longo período. A seguir, vários autores tentaram (Rezende, 2004). Há um predomínio do sexo masculino sobre
elucidar o mecanismo da AC, e seu histórico se confunde com o feminino, sendo encontrada em todas as faixas etárias, com
sua fisiopatologia. Foram descritas teorias como “espasmo na m aior predominância entre os 20 e 40 anos. Tanto no Chi­
porção inferior do esôfago”, “diminuição da contratilidade eso- le como na Argentina, o megacólon parece ocorrer com mais
fágica” e, tempos depois, a “falta de relaxamento da cárdia”, com frequência do que o megaesôfago.
possível anormalidade da ação reflexa responsável pela abertura Portanto, no Brasil, como um todo, há um franco predo­
da cárdia às deglutições. Já no século XX, foi demonstrado o mínio da acalasia chagásica, devido à endemicidade da doen­
substrato anatomopatológico da AC, a degeneração do plexo ça, e as áreas mais acometidas estão nos estados de Goiás, São
de Auerbach, e inúmeras outras pesquisas se seguiram. Paulo, Bahia e Minas Gerais. É pouco conhecida a prevalência
No Brasil, a descoberta da tripanossomíase americana se deu da acalasia idiopática, porém estudos com grandes séries reali­
em 1909 pelo sanitarista Carlos Chagas, mas somente em 1916 zados no Rio de Janeiro (Lemme et ai, 1985; Pereira 8c Lemme,
é divulgada a ideia de que a disfagia conhecida como “mal de 1995; No vais 8c Lemme, 2010) mostram franco predomínio da
engasgo” estaria relacionada com a infecção pelo Trypanosoma acalasia idiopática sobre a chagásica naquela cidade (aproxima­
cruzi. Nos anos que se seguiram, foram descritas lesões no ple­ damente 3 para 1), uma vez que o município não é área reco­
xo mientérico não só no esôfago, mas em todo o tubo digestivo nhecidamente infestada pelo vetor, e os portadores desta última
de portadores de megaesôfago de origem chagásica. A teoria são provenientes de áreas endêmicas.
da etiologia chagásica foi reforçada pelo achado da reação de Por motivos didáticos, abordaremos AC idiopática e cha­
fixação do complemento positiva para doença de Chagas em gásica no mesmo tópico.
mais de 90% dos pacientes portadores de megaesôfago. O pa­
rasito é transmitido ao homem por um inseto hematófago, o
Triatoma infestans, conhecido popularmente pelos nomes de ■ ETI0PAT0GENIA
“barbeiro”, “chupão”, “procotó” e outros. Além da transmissão
pelo inseto, a infecção pelo T. cruzi é transmitida também por
via sanguínea, de mãe para filho (transmissão vertical) e nos
■ Acalasia idiopática
transplantes de órgãos e tecidos. Como o nome indica, a AC idiopática não tem etiologia co­
A relação definitiva entre megaesôfago/megacólon e a doen­ nhecida, e vários fatores são apontados em sua etiopatogenia.
ça de Chagas foi feita por Koeberle e Nador (1955), na Escola Alguns casos familares têm sido descritos, mas, devido à
de Medicina de Ribeirão Preto, e enfatizada posteriormente em raridade, não suportam a hipótese de que a herança genética
inúmeras publicações. seja um fator determinante. Estudos em gêmeos sugerem que
a possibilidade de herança autossômica recessiva, influenciada
por fatores ambientais, poderia predispor à doença.
■ EPIDEMI0L0GIA, INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA Aventou-se também a teoria infecciosa, na qual um vírus
neurotrópico poderia provocar as lesões histopatológicas vis­
A AC idiopática é relativamente incomum, sendo respon­ tas na acalasia, e foram sugeridas associações com os vírus do
sável por 8 a 14% das causas de disfagia nos países em que não sarampo, varicela-zóster e pólio.
existe doença de Chagas. Estudos na Europa e nos EUA esti­ Das evidências a favor de um fator infeccioso como agente
mam uma incidência de um caso novo/ano por 100 mil habi­ desencadeante da AC idiopática, a mais importante é o fato
tantes, com prevalência de cerca de 10 casos por 100 mil ha­ bem estabelecido de que a AC de natureza chagásica (causada
bitantes. pelo Trypanossoma cruzi) tem fisiopatologia muito semelhante
A distribuição quanto ao sexo masculino ou feminino é pra­ à da forma idiopática.
ticamente igual, podendo ser encontrada em qualquer idade, Em poucos casos, é descrita associação com doenças neuro­
porém é diagnosticada principalmente entre 30 e 60 anos. Um lógicas, como Parkinson e ataxia cerebelar. Exposição a toxinas,
estudo retrospectivo conduzido no Hospital Universitário Cle- entre elas, o gás de guerra (iperite), também foi aventada como
mentino Fraga Filho - UFRJ (Pereira, 1994) demonstrou que, possível causa, sem qualquer comprovação.
entre 1978 e 1994, havia 248 pacientes com diagnóstico de AC, Mais recentemente, vem ganhando importância a teoria
idades entre 16 e 80 anos, maior concentração na 5* década imunológica, devido à presença de infiltrado de linfócitos T
(média de idade de 43 anos). Houve franco predomínio do sexo entre as células mioentéricas e a frequente associação entre a
feminino tanto na AC chagásica como na idiopática, embora AC idiopática e o antígeno de histocompatibilidade da classe
trabalhos estrangeiros não demonstrem predominância entre II, DQwl, o que conferiría ao grupo de pacientes estudados
os sexos e na forma chagásica predomine o sexo masculino. um risco relativo de 3,6 a 4,2 para o diagnóstico de AC (Wong
Nos países onde a doença de Chagas é endêmica (Brasil, Ar­ et a l, 1989). Há também relatos de associação da presença de
gentina, Chile, Bolívia, Venezuela, principalmente), observa-se antígenos de histocompatibilidade, com maior prevalência de
elevado número de pessoas acometidas pela doença, cerca de 16 anticorpos antiplexo mientérico (Ruiz de Leon et a i, 2002),
a 18 milhões, segundo dados da Organização Mundial de Saúde dando suporte para uma causa autoimune, porém essas afirma­
de 1993. Entretanto, relatos brasileiros indicam que a doença tivas precisam ser analisadas com cuidado, uma vez que nem
está em descenso em nosso país, relacionado possivelmente à todos os pacientes com AC apresentam identificação desses
erradiação dos vetores por meio de campanhas, desmatamento antígenos.
e urbanização em áreas endêmicas.
O comprometimento do aparelho digestivo na doença de
Chagas ocorre com frequência variável conforme a região geo­
■ AC chagásica
gráfica, o que tem sido atribuído à diferença nas cepas de Trypa­ Coube a Koeberle, em inúmeros trabalhos realizados prin­
nosoma cruzi. A prevalência da esofagopatia em nosso país, cipalmente na década de 1950, demonstrar a correlação ana-
avaliada em metanálise de mais de 3.000 pacientes portadores tomopatológica entre a doença de Chagas e o megaesôfago,
da doença, é em média de 8,8%, com 3% da forma ectásica identificando a forma de leishmânia (amastigota) do T. cruzi
142 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago

na musculatura do esôfago de pacientes com esta alteração,


provenientes de áreas endêmicas de doença de Chagas. A des-
■ DIAGNÓSTICO
nervação que se segue ocorre em vários níveis e de maneira O diagnóstico da AC é suspeitado pela história clínica e
irregular ao longo do tubo digestivo, com redução do número pelo estudo radiológico do esôfago (esofagografia), porém a
de células nervosas do plexo mioentérico, que repercute na comprovação é feita pela esofagomanometria, considerada o
fisiologia motora de vários segmentos. No entanto, sua con­ padrão-ouro para esta finalidade. A EDA é fundamental para
sequência é maior no esôfago e cólon, em função da fisiologia excluir a possibilidade de lesão orgânica.
destes órgãos. A associação de megacólon ou cardiopatia cha-
gásica com megaesôfago é frequente.
São duas as teorias que tentam explicar o fenômeno da des­ > Quadro clínico
truição dos plexos mioentéricos pela atuação dos parasitos: A doença é crônica, de longa duração, havendo pacientes
1) a tteurotóxica, em que substâncias neurolíticas liberadas com queixas de até 50 anos. O tempo médio de sintomas antes
da forma amastigota do T. cruzi destruiríam o neurônio. Esta do diagnóstico é em torno de 3 a 5 anos.
destruição ocorrería na fase aguda da doença, e suas conse­ A queixa mais comum é a disfagia, apresentada por 100%
quências surgiríam meses ou anos após; 2) a autoimune, dos pacientes em algum momento da evolução da doença. A
em que havería liberação de antígenos a partir da forma amasti­ disfagia na AC é inicialmente intermitente e depois lentamente
gota, que se depositariam nas células neuronais, sensibilizando- progressiva, tanto para líquidos quanto para sólidos, podendo
as. A partir daí, se desenvolvería a resposta imunológica com li­ apresentar-se como disfagia paradoxal, isto é apenas para lí­
beração de autoanticorpos contra as células sensibilizadas, com quidos. É percebida principalmente em terço distai da região
sua consequente destruição. Já foram encontrados anticorpos retrosternal, porém alguns pacientes a referem ao nível da fúr-
antineurônio e antimiocárdio no soro de pacientes e de animais cula esternal, quando se diferencia da disfagia orofaríngea,
de experimentação, portadores de doença de Chagas. por ocorrer após o ato da deglutição e não ser acompanhada
de engasgos (disfagia alta referida). Entretanto, por vezes, du­
rante o ato de ingerir grande quantidade de líquidos, estes po­
■ FISIOPATOLOGIA dem retornar “até pelo nariz”, gerando engasgo e desconforto.
Muitos executam manobras para tentar alívio da disfagia, tais
O substrato fisiopatológico da AC, seja chagásica ou idiopá- como elevação dos braços e rotação da cabeça. É notória a in­
tica, é a desnervação esofágica, caracterizada pela destruição do fluência de fatores psíquicos na disfagia, que é agravada por
plexo mioentérico do esôfago, havendo evidências também de ansiedade ou emoções.
degeneração de fibras aferentes vagais e do núcleo dorsal m o­ As regurgitações ocorrem com frequência (80%), no início
tor do vago. No EEI, o relaxamento é ausente ou incompleto (a de material semelhante a clara de ovo, que corresponde à esta-
definição do termo acalasia), com perda dos neurônios inibitó- se salivar. À medida que a doença avança, o paciente regurgita
rios do plexo mioentérico que contém os neurotransmissores alimentos, até horas após a ingestão, principalmente à noite,
óxido nítrico (ON) e peptídio intestinal vasoativo. Além disso, provocando tosse, engasgos, sensação de sufocação, o que des­
um complexo mecanismo envolvendo a coordenação entre o perta o paciente. Outros referem acordar com o travesseiro
sistema nervoso, musculatura lisa, células intersticiais de Cajal manchado de líquidos ou secreção contendo restos alimenta­
e neuromediadores é perdido. res, e alguns evoluem com pneumonias de repetição devido à
Em geral, observa-se aumento da pressão basal do EEI, pois broncoaspiração.
a via excitatória colinérgica está preservada e os mecanismos A perda de peso é referida por 70 a 80% dos pacientes. Pode
inibidores estão ausentes. ser importante em jovens na fase inicial da doença enquan­
Embora estas alterações da motilidade sejam encontradas to, em outros, aponta estágios mais avançados. Entretanto, a
tanto na AC idiopática como na chagásica, estudos revelam que maior parte dos pacientes consegue conservar o estado geral,
existem certas diferenças quanto à expressão da degeneração desenvolvendo adaptação da dieta à disfagia. Ante pacientes de
do plexo mioentérico em uma e outra entidade. Enquanto, na idade mais avançada e com rápido emagrecimento, impõe-se
AC idiopática, a desnervação parece ser predominantemen­ o diagnóstico diferencial com o câncer de esôfago e de fundo
te pré-ganglionar com hipersensibilidade do EEI à gastrina e gástrico, invadindo o órgão em sua porção distai. Pacientes
aumento da pressão basal do EEI, na AC chagásica há hipos- com AC de longa duração também apresentam risco aumenta­
sensibilidade a este hormônio com pressão do EEI menor do do de desenvolvimento de carcinoma epidermoide de esôfago,
que na AC idiopática, sugerindo anormalidades tanto nas vias atribuído à estase alimentar e esofagite crônica, com incidência
inibitórias como nas excitatórias. em 2 a 4% dos casos.
Da mesma forma, a anormalidade decorrente da desner­ Nas fases iniciais da doença, pode haver dor torácica (10
vação intrínseca que se estabelece ao longo do esôfago pode a 60%) que se confunde com a dor anginosa, devido a sua lo­
ser demonstrada pela observação de hipersensibilidade da calização, frequentemente retrosternal irradiada para a man-
musculatura esofágica à ação de substâncias como a metacoli- díbula. Esta dor, em geral, surge espontaneamente e melho­
na e o betanecol, nas duas formas de AC. ra com ingestão de líquidos (principalmente gelados) e com
No corpo do esôfago, ocorre perda da peristalse, traduzida eructação, podendo preceder por meses ou anos o surgimento
por ausência de contrações ou contrações simultâneas. Esta da disfagia.
aperistalse também não é muito bem compreendida e alguns Alguns se queixam de pirose (27-48%), que é, muitas vezes,
a relacionam com a perda do gradiente de latência ao longo do relatada no início da doença e também precedendo a disfagia,
corpo esofágico, processo também mediado pelo óxido nítrico. o que confunde e retarda o diagnóstico. É um fenômeno de
Com o passar do tempo, o esôfago vai se dilatando, surgindo difícil interpretação na AC não tratada, uma vez que a doença
então o megaesôfago, alteração anatômica consequente ao dis­ teoricamente não favorecería o refluxo pela ausência ou difi­
túrbio funcional. culdade de relaxamento do EEI, embora a associação já tenha
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 143

sido descrita em alguns pacientes. Na maior parte dos casos, é detecção da infecção pelo T. cruzi. É ainda o método mais
atribuída à estase e fermentação alimentar no interior do esôfa­ divulgado e amplamente utilizado. Tem elevada sensibi­
go, tornando o resíduo ácido (rico em ácido láctico) em contato lidade (90%) e, como desvantagem, a reação cruzada com
com a mucosa esofágica. as leishmanioses, hanseníase, lues, malária e doenças do
Tosse noturna é apresentada por cerca de 20% dos pacien­ colágeno, gerando falso-positivos.
tes, e a queixa, que, por vezes, leva à procura do médico, não • Reação de imunofluorescência indireta - Tem sido con­
raramente é acompanhada de infecção respiratória. siderada a mais sensível das provas sorológicas para doen­
Sialorreia em grande quantidade é um sintoma menos co­ ça de Chagas, com sensibilidade de até 100%. Utilizam-
mum, surgindo durante a alimentação, acompanhando a dis- se reagentes padronizados assegurando uniformidade e
fagia ou a dor torácica. Nos pacientes com doença de Chagas, positivação mais precoce, quando comparada com outros
observou-se que a sialorreia acompanha-se de hipertrofia das exames. Além disso, é de fácil execução.
glândulas salivares, especialmente das parótidas. Isso se deve • Reação de hemaglutinação indireta - Tem grande sen­
ao fato de que as glândulas, por estarem desnervadas, apresen­ sibilidade e especificidade, comparável às anteriores, com
tam hipertrofia e hiperatividade funcional ao reflexo esôfago- simplicidade de execução. Os resultados falso-positivos
salivar de Roger, exacerbado pela estase alimentar e irritação podem ser contornados empregando-se diluição inicial
constante da mucosa esofágica. de 1:100.
Soluços ou singultos podem ser observados na fase inicial da • Ensaio imunoenzimático (ELISA) - Além de pouco dis­
esofagopatia, durante o ato da alimentação, acompanhando a pendioso, é de execução simples, podendo ser automati­
disfagia. Menos comumente, os soluços têm duração prolonga­ zado para grande número de amostras.
da, em crises de dias ou semanas, e desaparecem ou se atenuam • Xenodiagnóstico - É a pesquisa do parasito no conteúdo
com o tratamento da disfagia. intestinal e nas fezes dos vetores, algumas semanas após
Muitos pacientes referem constipação intestinal, atribuída alimentá-los com sangue dos indivíduos possivelmente
à alimentação inadequada, pobre em fibras devido a disfagia e infectados.
ajuste das consistências alimentares à sua intensidade. Entre­ Os testes sorológicos mais empregados habitualmente são
tanto, na AC chagásica, a constipação intestinal acentuada pode a reação de fixação de complemento de Machado e Guerreiro
ser devida à associação com megacólon. e a imunofluorescência indireta. Pacientes com história epide-
Sintomas decorrentes de distúrbios do ritmo cardíaco e de miológica positiva devem ser submetidos a mais de um teste,
evolução para insuficiência cardíaca, quando referidos pelos em caso do primeiro negativo. Pelo menos três exames devem
pacientes de origem chagásica, devem sugerir associação com
ser solicitados, em caso desta eventualidade.
a cardiopatia.
Não há diferenças no quadro clínico de pacientes com AC
chagásica e idiopática. Isso foi demonstrado em um estudo de ■ Avaliação esofágica
232 pacientes (Pereira & Lemme, 1995) com diagnóstico etio- ■ Esofagografia
lógico definido, sendo 154 (66%) portadores de AC idiopática
O estudo radiológico é de fundamental importância no diag­
e 78 (44%) de AC chagásica. A constipação intestinal foi mais
nóstico da AC, sendo os achados de alta especificidade, quan­
frequente nos chagásicos, devido à associação de 27% de me­
do correlacionados com o estudo manométrico. Os achados
gacólon. A média de idade foi significativamente maior na AC
sugestivos da AC são retardo do meio de contraste, ausência
chagásica do que na idiopática (47 e 39 anos, respectivamente)
de peristalse do órgão com ou sem contrações terciárias, JEG
e também o tempo de doença (5 e 3 anos, respectivamente).
afilada conferindo o aspecto descrito como “rabo de rato” ou
O exame físico em pacientes com AC é pobre, evidenciando-
“bico de pássaro”, e os diferentes graus de dilatação esofágica
se emagrecimento e sinais de desnutrição em alguns. A hiper­ (Figura 14.1).
trofia das parótidas pode gerar aumento do diâmetro da face,
Existem classificações de megaesôfago que são empregadas
bem característico, mas incomum nos pacientes com AC cha­
para definir o grau de avanço da doença por meio da mensu-
gásica. A associação com megacólon pode apresentar-se como
ração do diâmetro distai do esôfago, auxiliando na opção tera­
fecaloma palpável no quadrante inferior esquerdo do abdome,
pêutica e avaliação prognóstica. As mais empregadas entre nós
e anormalidades cardiológicas podem ser observadas quando
são a de Ferreira-Santos (1961) e a de Rezende (1982) (Qua­
existe cardiopatia associada.
dros 14.3 e 14.4). A maioria dos pacientes se apresenta com
megaesôfago não avançado (graus I e II), tanto na AC chagásica
como na idiopática. Os graus III e IV são estágios avançados
■ MÉTODOS COMPLEMENTARES da doença. Algumas vezes, o diagnóstico da AC não é claro nas
fases iniciais, e a sua confirmação requer exame manométrico.
■ Definição de etiologia Entretanto, é incomum que paciente com AC apresente estudo
radiológico inteiramente normal.
O inquérito epidemiológico deve preceder a avaliação la­
boratorial. Indivíduos naturais ou residentes em áreas sabida­ ■ Endoscopia digestiva alta (EDA)
mente endêmicas e/ou casa de pau a pique são considerados
O papel mais importante da endoscopia digestiva é na ex­
possivelmente portadores da forma chagásica. A etiologia da
clusão de alteração orgânica como causa da disfagia e eventu­
AC deve ser confirmada pelo emprego das reações sorológicas,
almente o diagnóstico de complicações da AC. Muitas vezes,
pois a sua negatividade aponta para o diagnóstico da forma
se inicia a avaliação de disfagia pelo método endoscópico e, em
idiopática. As várias reações empregadas para o diagnóstico
caso de normalidade, o paciente deve ser submetido a esofago-
da doença de Chagas são as seguintes:
manometria ou estudo radiológico.
• Reação de fixação de complemento ou reação de Ma­ Na AC, a mucosa em geral é normal (exceto quando existe
chado Guerreiro - Foi o primeiro teste utilizado para a esofagite por estase alimentar ou complicações como associação
144 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago

Figura 14.1 Esofagografias com megaesôfagos graus l a IV (classificação de Ferreira-Santos, 1961).

------------------------------------------------- ▼ ------------------------------------------------------------------------------- A mudança no padrão da disfagia, que se torna rapidamente


Quadro 14.3 Classificação radiológica de Ferreira-Santos (1961) progressiva e com grande perda de peso, deve levar à suspeita do
desenvolvimento de carcinoma epidermoide de esôfago como
M egaesôfago Achados complicação da esofagite de estase secundária à AC, sendo a
EDA fundamental para a confirmação diagnóstica.
G ra u I D iâ m e tr o d o e s ô fa g o d is ta i < 4 c m + in c o o r d e n a ç á o
m o t o r a e re t e n ç ã o d o m e io d e c o n tra s te Monilíase esofágica pode estar presente, resultante da asso­
G r a u II D iâ m e tr o d o e s ô fa g o d is ta i e n tre 4 e 7 c m
ciação de baixa imunidade (causada pela desnutrição) e estase
G r a u III D iâ m e tr o d o e s ô fa g o d is ta i > 7 c m . S e m t o r t u o s id a d e
com esofagite, além de perda das defesas da mucosa.
G r a u IV D iâ m e tr o d o e s ô fa g o d is ta i > 7 c m + t o r t u o s id a d e e
g r a n d e re t e n ç ã o d o m e io d e c o n tra s te
■ Esofagom anom etria (EM )
A esofagomanometria (EM) é método padrão-ouro para o
diagnóstico da AC. Além de confirmar o diagnóstico (em ge­
ral, sugerido pela EDA e/ou esofagografia), é realizada com o
objetivo de avaliar o relaxamento e a pressão do esfíncter eso­
▼ ------------------------------------------------------------------------------
fágico inferior (PEEI) pré- e pós-tratamento, além de orientar
Quadro 14.4 Classificação de Rezende (1982) o local de posicionamento do cateter da pHmetria prolongada,
em casos nos quais este exame for utilizado.
M egaesôfago Achados

G ra u I D iâ m e t r o d o e s ô fa g o n o r m a l, c o m trâ n s ito le n to e
c o lu n a re tid a d e m e io d e c o n tra s te d e n ív e l p la n o

G r a u II P e q u e n a / m o d e r a d a d ila ta ç ã o , r e te n ç ã o e v id e n t e d a
c o lu n a b a rita d a e c o n tr a ç õ e s te rciá ria s

G r a u III G r a n d e d ila ta ç ã o d o ó rg á o , g r a n d e re te n ç ã o d o m e io
d e c o n tra s te , h ip o to n ia o u a to n ia

G r a u IV G r a n d e d ila ta ç ã o c o m t o r t u o s id a d e
(d o lic o m e g a e s ô f a g o )

com carcinoma epidermoide esofágico). A junção esofagogás-


trica (JEG) encontra-se geralmente fechada, com luz virtual e
pode oferecer alguma dificuldade na progressão do aparelho.
O achado de líquidos ou resíduos alimentares no interior do
esôfago, apesar do jejum adequado, é comum e sugere o diag­
nóstico (Figura 14.2). Nos estágios mais avançados, encontra-
se dilatação e/ou tortuosidade esofágica.
Dificuldade excessiva na progressão pela JEG deve fazer sus­
peitar da possibilidade de infiltração tumoral local (pseudoa-
calasia), sendo importante o exame minucioso do fundo gás­
trico para exclusão de massa tumoral. Em casos suspeitos, não Figura 14.2 Endoscopia digestiva alta evidenciando dilatação e es­
esclarecidos pela EDA, a ultrassonografia endoscópica pode tase alimentar em esôfago. (Esta figura encontra-se reproduzida em
identificar mais precocemente a infiltração tumoral. cores no Encarte.)
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 145

Como a AC é doença de musculatura lisa, os achados ma- po controle e portadores de doença de Chagas em um estudo
nométricos ocorrem nos dois terços distais do órgão. Os mais (Dantas et a i, 2000). Com emprego de cateter com transdu-
importantes são: falta de relaxamento ou relaxamento incom­ tor em estado sólido, foi demonstrada pressão do esfíncter
pleto do HEI e aperistalse do corpo esofágico (Figura 14.3). superior semelhante em ambas as acalasias, porém menor do
Relaxamentos ausentes ocorrem quando não existe que­ que no grupo controle, na acalasia chagásica (Abrahão-Junior
da da PEEI após a deglutição. Relaxamentos incompletos são etal.y2001) .
identificados quando a PEEI cai em relação à PEEI basal, mas
a pressão residual não atinge valor menor que 8 mmHg. Por ■ pHm etria esofágica prolongada (p H m )
vezes, os relaxamentos são completos, porém de curta duração A pHm não é um exame habitualmente solicitado para pa­
(tempo de relaxamento < 6 s). cientes com AC virgens de tratamento. Entretanto, ela pode ser
A média da PEEI tende a ser maior em pacientes com AC, empregada para o diagnóstico diferencial de algumas manifes­
quando comparada a grupos controles assintomáticos. A hi­ tações clínicas encontradas na doença e que exijam diagnóstico
pertensão do EEI é encontrada em cerca de 40 a 60% dos pa­ diferencial, por exemplo, com a sensação de refluxo retrosternal
cientes portadores da doença. A forma chagásica geralmente e a queixa de pirose. Como referido, a pirose pode ser observa­
apresenta PEEI menor do que a de pacientes com AC idio- da em 27 a 48% dos pacientes com o diagnóstico de AC. Nos
pática. pacientes com AC sem tratamento prévio, essa queixa pode
Em relação ao corpo esofágico, a perda da peristalse pode ser justificada, na maioria dos casos, pela presença de estase e
ser registrada como ausência de contrações ou contrações si­ fermentação alimentar, levando a alterações características na
multâneas, em geral de baixa amplitude (< 30 mmHg), algu­ pHm. Entretanto, alguns pacientes exibem pHm com padrão
mas vezes de caráter repetido. Mais raramente, as contrações de refluxo gastresofágico (RGE) verdadeiro, não relacionado
simultâneas atingem amplitude mais elevada do que as habi­ com a estase de alimentos, havendo relato de prevalência em
tualmente registradas, sendo esta entidade denominada AC até 20% dos casos (Shoenut et al.t 1997), o que pareceria inicial­
vigorosa. mente um paradoxo, visto que na AC o EEI é frequentemente
Estudos comparativos entre AC idiopática e AC chagásica hipertenso e com falhas no seu relaxamento, o que dificultaria
demonstram que a amplitude e duração das contrações são se­ sua ocorrência.
melhantes em ambas as etiologias (Abrahão-Junior et al.}2001; Por outro lado, o RGE é uma das complicações mais fre­
Dantas et al.y2001). quentes, tanto do tratamento cirúrgico quanto do tratamento
Quanto ao esfíncter superior, há referência à pressão de por dilatação pneumática, com incidência variável de aproxi­
repouso com valores semelhantes na acalasia idiopática, gru­ madamente 13% e 4 a 8% dos casos, respectivamente. O estudo

Figura 14.3 Esofagomanometria de paciente com acalasia. No canal distai (P5),o EEI com relaxamentos incompletos. Nos quatro canais pro-
ximais (PI -P4), aperistalse do corpo esofágico (distância entre os canais 5 cm). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
146 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago

pHmétrico permite avaliar a incidência dessa complicação, as­ ■ AVANÇOS NA INVESTIGAÇÃO/PESQUISAS


sim como analisar alterações gráficas que sugerem permanência
de acúmulo de resíduos alimentares esofágicos nos pacientes
não adequadamente tratados.
■ Manometria de alta resolução (MAR)
Em pacientes com AC, a análise gráfica da pHm pode dife­ Trata-se de um método de alta tecnologia que emprega inú­
renciar o RGE verdadeiro da queda do pH esofágico devido à meros sensores de pressão (até 36), posicionados muito pró­
esta se alimentar. No RGE verdadeiro, a queda do pH para n í­ ximos um do outro, de tal forma que o registro das pressões
veis de refluxo ácido (em geral, pH 1 a 2) acontece de maneira intraluminares se torna um contínuo espacial ao longo de todo
abrupta com retorno lento ao pH normal do esôfago (em tor­ o esôfago. O desenvolvimento de sofisticados algoritmos de
no de 6,5), enquanto, na presença de fermentação alimentar plotagem permitiu exibir dados manométricos como imagens
no interior da luz esofágica (Figura 14.4), essa queda é lenta, topográficas coloridas com o objetivo de evitar a superposição
acontece geralmente no período noturno e o pH não atinge de inúmeras linhas de traçado, facilitando a análise.
valores abaixo de 3,0 (Crookes et al., 1997). Na AC, a MAR permitiu categorizar os pacientes em três
A pHmetria, na maioria dos pacientes com AC não tratada, subtipos: 1) Tipo I AC com mínima pressurização (acalasia
demonstra refluxo fisiológico mínimo ou ausência completa clássica); 2) Tipo II AC com compressão esofágica; 3) Tipo III
de episódios de refluxo, a que chamamos de pHmetria negati­ AC com espasmo. Quando foram comparadas variáveis clínicas
va. Recentemente, foi conduzido um estudo prospectivo (No- e manométricas nos três subtipos, observou-se que a do tipo II
vais & Lemme, 2010) em que foram analisadas pHmetrias de AC responde melhor a qualquer tipo de tratamento (BoTox,
94 pacientes com acalasia não tratada. Demonstrou-se que 82% DPC ou cirurgia) e a do tipo III é a que responde pior, enquan­
apresentavam pHm negativa, 14% exibiam pHm com padrão de to, na do tipo II, os resultados são intermediários em relação
fermentação e em 4% evidenciou-se padrão de RGE verdadeiro. aos anteriores. Isso sugere que a MAR representa um avanço
Cerca de metade dos pacientes apresentava queixa de pirose, na avaliação de pacientes com AC, uma vez que sua estratifi-
mas este sintoma não se correlacionou com qualquer um dos cação em subtipos permite predizer a eficácia do tratamento
padrões de pHm. Analisaram-se também os padrões de pHm (Pandolfino et al.t 2008).
pós-tratamento, em 85 dos pacientes randomizados para dois
grupos de intervenção terapêutica, dilatação pneumática da ■ Ultrassonografia intraluminal
cárdia e esofagomiotomia laparoscópica a Heller com fundo-
plicatura. Foi observado que RGE verdadeiro foi mais comum
de alta frequência (USIAF)
no grupo de pacientes submetidos à dilatação do que à cirur­ A ultrassonografia de alta frequência é um método que per­
gia (31 x 4%) e houve correlação deste padrão de pHm com a mite avaliação de espessura da parede esofágica, podendo ser
presença de hipotensão do EEI (PEEI < 10 mmHg). A pirose acoplada ao registro manométrico simultâneo. Nos diferentes
não foi um bom preditor da incidência de RGE ou fermenta­ distúrbios motores esofágicos de definição conhecida, tem sido
ção alimentar esofágica, uma vez que não se correlacionou com encontrado espessamento da musculatura esofágica, registrado
qualquer padrão pHmétrico. tanto na camada circular como na longitudinal. Este espessa­
Com base nesta e em outras observações, é sugerida a reali­ mento na acalasia é maior do que o observado nos demais dis­
zação de pHmetria prolongada pelo menos no período pós-pro- túrbios motores (Mittal, 2003). Um estudo empregando USIAF
cedimento, com o objetivo de diagnóstico do RGE verdadeiro em pacientes com AC idiopática, AC chagásica, esofagopatia
antes de manifestações clínicas mais exuberantes ou surgimento chagásica e controles assintomáticos demonstrou que nos três
de esofagite. Enfatiza-se esta recomendação principalmente na­ grupos de pacientes existe espessamento da camada muscular,
queles em que a PEEI à manometria pós-procedimento situar- registrada no corpo esofágico distai. Este espessamento é
se abaixo de 10 mmHg. maior na AC idiopática do que na AC chagásica e o de ambas

Twnpo
I ■ Ereto a Refeição □ Pós-Prandd É Oeateio

Figura 14.4 Gráfico pHmétrico de paciente com acalasia apresentando sinais de fermentação alimentar - queda do pH abaixo de 4, de maneira
prolongada, atingindo 3 no período supino (em azul). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 147

é maior do que o encontrado em pacientes com a esofagopatia Metanálise publicada em 2009 (Campos et al.) revisou os
chagásica (Abrahão et al, 2010). Esta técnica tem se mostrado resultados de 315 pacientes submetidos à injeção de toxina bo­
bastante promissora em pesquisa, com amplas possibilidades tulínica, demonstrando que o índice de sucesso foi de 40,6% em
potenciais de aplicação na prática clínica. um seguimento médio de 12 meses. Ainda não existem estudos
randomizados a longo prazo avaliando os possíveis riscos de
injeções repetidas de toxina botulínica no esôfago.
■ TRATAMENTO Sugere-se que os melhores candidatos à BoTox sejam:
1. idosos com comorbidades e pacientes com alto risco cirúr­
Os objetivos de qualquer forma de tratamento na AC são: 1. gico, uma vez que o procedimento é praticamente isento de
aliviar os sintomas; 2. melhorar ou aliviar o esvaziamento eso- riscos; 2. falha no tratamento cirúrgico; 3. falência na resposta
fágico; 3. prevenir o desenvolvimento de megaesôfago e suas a múltiplas dilatações em pacientes com risco cirúrgico alto; 4.
complicações. Não há evidências de que a etiologia idiopática dilatação pneumática com perfuração; 5. associação com di-
ou chagásica tenha influência nas respostas às diferentes for­ vertículo epifrênico.
mas de tratamento empregadas (Herbella et al., 2004). Todas as Vários estudos tentaram estabelecer preditores de resposta
opções terapêuticas, com exceção da esofagectomia, objetivam para a toxina botulínica. Os dados suportam a hipótese de que
diminuir a pressão no esfíncter esofágico inferior (PEEI) para idade maior que 50 anos, sexo feminino e presença de AC vi­
desobstruir o trânsito alimentar, facilitando o esvaziamento do gorosa poderíam apresentar melhor resposta a esta modalidade
esôfago. As diferentes modalidades de tratamento são empre­ terapêutica. Um interessante benefício da injeção de Botox é
gadas para ambas as formas da doença. que também pode ser usada como preditor de resposta a novas
intervenções, por exemplo, em pacientes que não responderam
bem à cirurgia, avaliando se os sintomas persistentes são de­
■ MEDICAMENTOS correntes da hipertonia do EEI ou de tortuosidade decorrente
do megaesôfago (Pehlivanov & Pasricha, 2006).
Na AC chagásica, o emprego da BoTox oferece melhores
■ Nitratos e antagonistas dos canais de cálcio respostas do que as observadas com emprego de placebo a curto
São os medicamentos mais comumente empregados no tra­ prazo. Houve 58% de respondedores (Brant et al., 2003), com
tamento clínico e devem ser administrados em todos os pa­ resultados similares aos da AC idiopática.
cientes que tolerarem o seu uso, uma vez que podem ser em ­ Não há consenso entre cirugiões em relação à dificuldade
pregados como ponte para um tratamento mais duradouro e na realização de miotomia nos pacientes que receberam in­
eficaz, aliviando os sintomas em uma parcela significativa dos jeção prévia de toxina botulínica, alguns referindo que sim,
pacientes. Seu mecanismo de ação é fundamentado na dimi­ enquanto outros não encontraram dificuldades na técnica ci­
nuição da PEEI. rúrgica ou piores resultados em pacientes submetidos ao uso
Os nitratos (dinitrato de isossorbida 5 a 10 mg/dia) aumen­ prévio do BoTox.
tam a concentração de óxido nítrico nas células musculares Logo, a injeção de toxina botulínica é mais bem indicada em
lisas, resultando em relaxamento. Administrados por via su- pacientes idosos e com alto risco cirúrgico que não puderem
blingual, os nitratos reduzem a PEEI dentro de 15 min e seu ser submetidos à DPC ou cirurgia.
efeitos persistem por até 90 min. Os antagonistas do canal de
cálcio, como, por exemplo, o nifedipino (10 a 30 mg/dia), tam ­
bém inibem a musculatura lisa e agem 30 min após sua admi­
■ Dilatação pneumática da cárdia (DPC)
nistração via sublingual, na redução da PEEI. A DPC é o tratamento conservador definitivo mais frequen­
As duas medicações têm efeito variável, melhorando os sin­ temente empregado para o tratamento da AC. Tem como obje­
tomas em 49 a 90% dos pacientes. Entretanto, seus efeitos cola­ tivo romper as fibras musculares do EEI, reduzindo sua pressão
terais, como cefaleia, tonturas e edema de membros inferiores, e a obstrução funcional do esôfago. A consequência é a melhora
muitas vezes limitam seu uso, havendo também taquifilaxia ao do esvaziamento esofágico e da disfagia.
longo prazo. Os dilatadores mais antigos, tais como Brown-McHardy,
Hurst-Tucker, Ridder-Moeller, Mosher e Sippy, foram objeto
de metanálise, considerando-se trabalhos prospectivos e retros­
■ Toxina botulínica pectivos, em acalasia idiopática (Kadakia et al., 2001). Em cinco
A toxina botulínica (BoTox), potente inibidor da acetilco- estudos prospectivos, com 235 pacientes e tempo de seguimento
lina, de ação excitatória no tônus do EEI, tem sido usada em médio de 2,7 anos, respostas boas ou excelentes foram observa­
injeções locais por via endoscópica, com redução dos sintomas das em 85% desses pacientes. Em 15 estudos retrospectivos, in­
do paciente, da pressão do EEI e do diâmetro esofágico. A téc­ cluindo total de 2.183 pacientes, bons resultados foram encon­
nica consiste em 20 a 25 U injetados em cada um dos quatro trados em 71%, ao tempo médio de 5 anos. O balão do dilatador
quadrantes da região do esfíncter inferior. de Witzel é de poliuretano e posicionado na JEG com auxílio
Muitos ensaios clínicos têm demonstrado os benefícios, a do endoscópio, sem necessidade de radioscopia. Seis estudos
curto prazo, da injeção dessa toxina nas camadas musculares (quatro prospectivos e dois retrospectivos, incluindo total de
da JEG. Infelizmente, seu efeito é limitado pelo tempo de ação 266 pacientes) avaliaram os resultados com seu uso, e respostas
com o índice de recorrência maior que 50% em alguns meses. excelentes/boas foram encontradas em 66% dos pacientes com
A ação da medicação dura em média cerca de 6 meses. seguimento médio de 11 anos (Kadakia et al., 2001).
Boa resposta sintomática em 6 meses foi observada em 55% Atualmente, os dilatadores mais utilizados são os balões do
de 147 pacientes de vários centros submetidos a única dose de tipo Rigiflex (Boston Scientific®, Boston, MA, EUA) feitos de
BoTox (Hoogerwert & Pasricha, 2001), porém resposta sus­ polietileno com marcador radiopaco. Disponíveis em diferen­
tentada em 2 anos ocorreu em apenas 24% dos 87 pacientes tes calibres, 30,35 e 40 mm (Figura 14.5), são introduzidos no
acompanhados. esôfago, através de um fio-guia metálico flexível, posicionados
148 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago

na JEG e inflados com ar até que ocorra a dilatação do EEI A fluoroscopia é usada em muitos serviços para guiar o po­
(Figura 14.6). A mais importante vantagem do Rigiflex é a sua sicionamento do balão, mas não é indispensável, uma vez que
baixa complacência (o diâmetro máximo com a insuflação é a visão direta pela EDA também permite avaliar a localização
previsível), e a tentativa de exceder a este diâmetro resulta em adequada. A técnica de insuflação é variável conforme a ex­
ruptura do balão. periência de cada Serviço, em geral utilizando-se pressão de
10 libras por polegada quadrada (psi) em um total de 60 s. A
decisão de escolha do calibre do balão e número de balões in­
flados a cada sessão também varia.
O índice de sucesso da DPC é de 70 a 95%, porém há con­
trovérsias em relação à manutenção de resultados nos primei­
ros 5 anos.
Uma excelente metanálise publicada recentemente (Campos
et a i, 2009) incluiu 1.065 pacientes submetidos à DPC. Foi de­
monstrado que a taxa de sucesso foi de 85% no primeiro mês,
mas reduzia-se para 68% no 12° mês e para 58% após 36 meses.
Concluiu também que o alívio dos sintomas esteve relacionado
com o tamanho e tempo de insuflação do balão.
Certos fatores podem predizer melhor resposta às dilatações;
são eles: idade avançada, doença de longa duração, sexo femi­
nino e queda da PEEI para metade do valor pré-procedimento
ou para <10 mmHg (Katsinelos et a i, 2005). A presença de
PEEI pré-procedimento > 30 a 50 mmFIg, calibre esofágico
maior que 3 cm na esofagografia, sexo masculino e presença
de sintomas pulmonares parecem ser preditores de resposta
Figura 14.5 Foto de balões pneumáticos Rigiflex. insatisfatória à DPC (Pehlivanov & Pasricha, 2006).

Figura 14.6 Fotos da sequência de dilataçào pneumática da cárdia. Passagem do fío-guia (A). Insuflação do balão pneumático (B). Laceraçáo
da JEG (C). Visão endoscópica pós-dilataçào (D). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 149

No Brasil, o emprego da dilatação forçada da cárdia em pa­ do esôfago distai (6 a 8 cm) e da cárdia (2 a 3 cm), em geral
cientes com AC chagásica é referido em trabalhos mais anti­ acompanhada de procedimento antirrefluxo (fundoplicatura
gos, uma vez que, nos maiores centros de referência para o - Fp). É grande a experiência brasileira com cirurgia no mega­
tratamento desta entidade, predomina o tratamento cirúrgico. esôfago chagásico. Pinotti et al. (1974), com técnica própria e
Com dilatação hidrostática, foram encontrados bons resulta­ cardiomiotomia associada à esofagofundogastropexia, acompa­
dos imediatos em 78,4% de 342 pacientes chagásicos (Raia 8c nharam 223 pacientes com megaesôfago chagásico não avança­
Pinotti, 1983). Rezende (1979) obteve bons resultados com a do, por período entre 6 meses e 12 anos, e relataram resultados
DPC em 45% de 103 pacientes acompanhados por período de excelentes ou bons em 95% dos casos.
1 a 5 anos, 28% foram submetidos a outras DPC e 15% foram Outra grande experiência brasileira é a de Barbosa et al.
operados por insucesso da DPC. Melhores resultados foram (1981), que utilizaram procedimento mais complexo, como a
obtidos por Esper et al. (1988), com melhora clínica em 80% de cirurgia de Thal-Hatafuku, com bons resultados no megaesô­
280 pacientes acompanhados por um período médio de 7 anos, fago chagásico.
e apenas 10% necessitaram de nova dilatação. Até alguns anos atrás, o procedimento era feito por via ab­
Na experiência do Hospital Universitário Clementino Fraga dominal ou torácica; porém, atualmente, a via de escolha é a
Filho, da UFRJ, no Rio de Janeiro, centro de referência para pa­ laparoscópica, e um dos procedimentos mais empregados é a
cientes com AC, consta a avaliação dos resultados com a DPC miotomia de Heller com fundoplicatura de Dor (Figuras 14.7
em três estudos, dois retrospectivos e um prospectivo. No pri­ e 14.8).
meiro, 132 pacientes foram submetidos a 175 DPC, com balões Na metanálise já referida (Campos et al., 2009), foram
de Mosher e Witzel. Destes, 85 tiveram a resposta clínica avalia­ incluídos 3.086 pacientes submetidos à miotomia laparoscó­
da por período entre 1 e 15 anos. Em análise estratificada a cada pica. Houve bons resultados em 89% do total deles, em um
5 anos, demonstrou-se a deterioração da resposta à DPC com seguimento médio de 35 meses. Analisando separadamente os
o passar do tempo, porém os resultados foram excelentes ou pacientes que receberam Fp e aqueles em que o procedimento
bons em 46% dos pacientes em período médio de 3 anos. Não antirrefluxo não foi realizado, observou-se melhora em 90,3 e
houve diferenças entre os resultados obtidos nas AC chagásica 89,9%, respectivamente. Os autores concluíram que a cirurgia
ou idiopática (Pereira 8c Lemme, 1995). No segundo estudo, foi o tratamento mais eficaz, quando comparada aos outros
empregou-se o balão Rigiflex em 85 pacientes/125 DPC e obser­ métodos terapêuticos.
vou-se que, em até 1 ano, 80% apresentavam bons resultados, As complicações da esofagomiotomia com fundoplicatura
caindo para 60% entre 1 e 5 anos (Vargas, 2001). Estes achados são raras, mas podem ocorrer, entre elas, perfuração esofágica,
com o balão Rigiflex foram confirmados em estudo prospecti­
vo de 45 pacientes com AC graus 1 a 3, ou seja, bons resulta­
dos precoces (73%), com queda da taxa de resposta ao final do
segundo ano para 54% (Borges, 2010). É importante assinalar
que nestes estudos predominaram fortemente pacientes com
acalasia idiopática, uma vez que, como referido, o município
do Rio de Janeiro não é área de doença de Chagas.
O número de dilatações a que cada paciente pode ser subme­
tido é objeto de controvérsia. Há quem realize 2 ou 3 dilatações
em sessões diferentes ou 1 a 3 em cada sessão, podendo ser re­
petido o procedimento uma vez ou no máximo duas vezes.
A DPC é um método seguro com morbidade e mortalida­
de baixas. Uma das vantagens da DPC é a possibilidade de ser
utilizada antes ou depois de outros procedimentos, sem pre­
judicar a resposta deles.
As principais complicações no ato do procedimento são per­
furação do esôfago e sangramento na região da dilatação, o que Figura 14.7 Desenho esquemático mostrando a visão laparoscópica
pode ocorrer em cerca de 1,3% dos casos. São raras e incluem da área da esofagomiotomia de Heller, 2 cm no estômago e 6 cm no
hematoma intramural, divertículos da cárdia, dor torácica pro­ esôfago (A). Miotomia realizada (B).
longada pós-procedimento e febre.
O RGE verdadeiro após a DPC tem sido registrado na litera­
tura como um todo em torno de 4 a 8% dos pacientes. Entretan­
to, a maioria dos estudos não faz referência precisa à maneira de
diagnóstico, se pela presença de esofagite, de sintomas, e poucos
empregaram a pHmetria. Quando se emprega este exame, o re-
fluxo anormal pode ser encontrado em até 30% dos pacientes
(Shoenut et al., 1997; Novais & Lemme, 2010).

■ TRATAMENTO CIRÚRGICO
O tratamento cirúrgico da AC pode ser feito por meio de
técnicas conservadoras (esofagomiotomias) ou cirurgias mais
invasivas (esofagoplastias e esofagectomias).
A cirurgia conservadora mais empregada é a esofagomioto- Figura 14.8 Desenho esquemático mostrando o aspecto final da fun­
mia de Heller, que consiste na secção das camadas musculares doplicatura de Dor.
150 Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago

mediastinit e,gas/bloat syndrome (dificuldade de eructação, ge­ Portanto, a escolha entre a dilatação pneumática da cárdia e
ralmente associada à Fp apertada, frequentemente autolimita- a esofagomiotomia de Heller ainda gera controvérsias, uma vez
da) e RGE. A presença de RGE após a cirurgia tem incidência que ambas apresentam vantagens e desvantagens. Os estudos
variável, podendo ocorrer em cerca de 6 a 13% dos casos, atin­ realizados para elucidar a questão são, em sua maioria, muito
gindo até 36% quando não há Fp (Vela et al, 2006). Portanto, a heterogêneos quanto à metodologia empregada, e as taxas de
associação de Fp à miotomia tem se mostrado importante fator sucesso relatadas são bastante variáveis. O melhor método cer­
para a diminuição desta complicação no pós-operatório. tamente é aquele com o qual o Serviço tem mais experiência,
Em relação à técnica de Fp, sabe-se que a mais utilizada é a e acredita-se que a conduta deva ser individualizada, baseada
Fp parcial, uma vez que a total está associada à presença de dis- nas características e vontade do paciente.
fagia no pós-operatório, podendo ser anterior ou posterior. A miotomia, em centros especializados, parece ser o trata­
As ressecções esofágicas (esofagectomias) ou esofagoplastias mento de escolha em pacientes jovens e com bom risco cirúr­
(Thal-Hatafuku e Serra Doria) são, habitualmente, indicadas em gico. A DPC está bem indicada, principalmente, em pacientes
alguns casos de falha do tratamento cirúrgico inicial (em geral, idosos, com alto risco cirúrgico ou que não querem ser sub­
resolvidos com nova miotomia) e, raramente, como primeiro metidos a procedimentos mais invasivos, podendo ser o pro­
tratamento do megaesôfago muito avançado. cedimento inicial eficaz em centros economicamente menos
desenvolvidos, porém sua realização também exige treinamen­
to especializado.
■ DILATAR OU OPERAR?
Os estudos mais antigos, comparativos entre a cirurgia con­
servadora aberta e a DPC, demonstram que os resultados do
■ LEITURA RECOMENDADA
tratamento cirúrgico são melhores e, em geral, mais duradouros Abir, F, Modlin, I, Kidd, M, Bell, R. Surgical treatment of achalasia: currcnt
do que os obtidos com a dilatação, em estudos retrospectivos, status and controvcrsics. Dig. Surgery, 2004; 21:165-76,
de grande série de pacientes (85% de bons resultados com a ci­ Abrahão, LJ, Bhargava, V, Lcmmc, EMO et al. Chagas discasc csophagcal in-
volvcmcnt evaluated by high frcqucncy intraluminal ultrasound. AGA abs-
rurgia x 65% com a DPC, Okike et al.y 1979) como de número
tracts, DDW, 2010, p. S 342-3.
menor de pacientes (65% de bons resultados com a cirurgia de Abrahão-Junior, LJ, Lcmmc, EMO, Domingues, GR et al. Manomctric study
Thal-Hatafuku x 45% com a DPC, Pereira, 1994). Estudo pros- of csophagcal body in idiophatic achalasia and Chagas’ discasc relatcd
pectivo (Csendes et al, 1991) também demonstra melhores re­ achalasia. Em: Pinotti HW, Ceconello, I, Fdix, VN, Oliveira, MA. Rcccnt
sultados com a miotomia do que com a DPC (95 x 65%). Advanccs in Discases of thc Esophagus. Bolonha, Itália: Monduzzi, 2001,
p. 227-233.
Campos et al. (2009), em sua metanálise, analisaram
Abrahào-Junior, LJ, Lcmmc, EMO, Domingues, GR et al. Uppcr csophagcal
3.086 pacientes com AC operados por cirurgia laparoscópi- sphinctcr and pharyngcal function in idiophatic and Chagas’ discasc rclatcd
ca e 1.065 manejados com DPC. Concluíram que a cirurgia achalasia. Em: Pinotti, HW, Ccconcllo, I, Felix, VN, Oliveira, MA. Rcccnt
(combinada com o procedimento antirrefluxo) foi o tratamen­ Advanccs in Discases of thc Esophagus. Bolonha, Itália: Monduzzi, 2001,
to mais eficaz. A taxa de sucesso aos 12 meses foi de 89% para p. 235-240.
cirurgia e 68% para DPC, mantendo-se estável para o grupo Anderson, SH, Yadcgarfac, G, Arastud, MH et al. The rclationship bctwccn
gastro ocsophageal rcílux symptoms and achalasia. Eur J Gastroenterol He-
operado após 3 anos e com queda para 56% nos submetidos patolol, 2006; 18:369-74.
à DPC. A necessidade de tratamento adicional nos pacientes Andrcollo, NA, Lopes, LR, Brandalisc, NA et al. AC idiopática do esôfago:
submetidos à DPC foi de 25%. A incidência de RGE foi menor análise dc 25 casos. GED, 1996:15:151-55.
nos pacientes que tiveram Fp associada à miotomia (8,8% com Barbosa, H, Barichcllo, AW, Viana, AL et al. Megaesôfago chagásico. Tratamento
Fp e 31,5% sem Fp). pela cardioplastia a Thal. Rev. Col. Bros. Cir., 1981; 8:16-29.
Bassotti, G & Anncse, V. Revicw articlc: pharmacological options in achalasia.
Alguns trabalhos mostram resultados diferentes. Estudo na­ Aliment Pharmacol 7her, 1999; 13:1391-6.
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tidos em 40 casos de megaesôfago não avançado submetidos 1997; 92:429-33.
à dilatação forçada ou à cirurgia laparoscópica, em período Borges, A. Estudo comparativo da resposta clínica c dc fatores prognósticos na
de 3 anos. Os dois métodos se mostraram igualmente eficazes dilatação pneumática da cárdia c na esofagomiotomia de Heller com fundo-
plicatura por via laparoscópica cm pacientes com acalasia. Rio dc Janeiro,
(Felixeí al, 1998).
2010,91 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade dc Medicina, Universidade
Outro estudo relatou que, depois de 6 meses, ambos os mé­ Federal do Rio dc Janeiro.
todos (DPC e miotomia laparoscópica) ofereceram bons resul­ Brant, C, Moraes-Filho, JPP, Siqueira, E et al. Intrasphinctcric botulinum toxin
tados em 90% dos pacientes, reduzindo-se para 44% (DPC) e injcction in thc treatment of chagasic achalasia. Dis Esophagus, 2003;
57% (miotomia) após 6 anos, sem diferença significativa entre 16:33-8.
Campos, G, Vittinghof, E, Charlottc, RC. Endoscopic and Surgical Trcatmcnts
eles (Vela et a l, 2006).
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Recentemente, no Serviço de Gastrenterologia do Hospital 249:45-57.
Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, foi realizado Cartcr, R & Brcwcr, LA. Achalasia and csophagcal carcinoma. Studics in
ensaio clínico de 5 anos de duração, em que 92 pacientes com carly diagnosis for improved surgical management. Am J Surg, 1975; 13:
AC (sem tratamento prévio) foram randomizados para cada um 114-20.
dos grupos de tratamento (DPC x miotomia de Heller laparos­ Chagas, C. Tripanossomíasc americana (forma aguda da moléstia). Mem Inst
Oswaldo Cruz, 1916;8:37-60.
cópica com Fp). Respostas satisfatórias foram semelhantes nos Crookcs, OS, Corkill, S, Dc Mccstcr, TR. Gastrocsophagcal rcílux in achalasia.
dois procedimentos (HFp 84%, DPC 73% p < 0,05) na avaliação W hcn is rcílux rcally rcílux? Dig Dis Sei, 1997; 42:1354-61.
precoce (3 meses). Os dois métodos apresentaram queda na Csendes, A, Braghcto, I, Burdilcs, P et al. Comparison o f forccful dilatation and
resposta de forma semelhante no período de 2 anos. A taxa de csophagomyotomy in patients with achalasia of thc esophagus. Hepatogas-
troenterology, 1991; 38:501-5.
refluxo determinada à pHmetria foi significativamente maior
Dantas, RO. Uppcr esophagcal sphinctcr pressure in patients with Chagas’ dis­
na DPC do que na cirurgia, demonstrando, possivelmente, a casc and primary achalasia. BrazJ Med Biol Research, 2000; 33:545-51.
importância da FP no procedimento (Borges, Tese de Mestra­ Dantas, RO, Godoy, RA, Oliveira, RB et al. Cholincrgic inervation of thc lowcr
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Capítulo 14 / Acalasia e Megaesôfago 151
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Tumores do Esôfago
José Mauro Messias Franco, Fernando Augusto Vasconcellos Santos
e Marcelo Flenrique de Oliveira

O esôfago é um órgão tubular que cumpre a função de conduzir talmente em um exame radiológico ou endoscopia. Podem estar
o bolo alimentar da boca, passando pela faringe, ao estômago. associados a vago desconforto retroestemal. Os leiomiomas são
Qualquer formação tumoral em seu trajeto tem o potencial de os tumores esofágicos benignos mais comuns.
prejudicar a alimentação do paciente, podendo se manifestar
por desconforto, dor, engasgo, ou mesmo não causar sinto­
mas, sendo encontrada fortuitamente em exames com outro ■ TUMORES EPITELIAIS BENIGNOS
propósito.
Os tumores do esôfago podem ser benignos, mas, quando ■ Papilomas de células escamosas
ocorrem, são, na maioria das vezes, malignos, e originam-se
São raros e representam cerca de 3% dos tumores benignos
principalmente da mucosa de suas diversas camadas. Uma vez
do esôfago. Em geral, são achados casualmente durante exames
feito o diagnóstico de uma turno ração esofágica, impõe-se o
endoscópicos, sendo, na maioria das vezes, pequenos, brancos
esclarecimento de sua origem para uma conduta adequada. O ou rosados e sésseis. A biopsia da mucosa ou a polipectomia
Quadro 15.1 mostra a classificação dos tumores de esôfago. são procedimentos seguros. Não têm tendência a recorrer. Na
maioria das vezes, é lesão única localizada no terço distai do
órgão. A sua transformação maligna é muito rara.
■ TUMORES BENIGNOS DO ESÔFAGO Histologicamente são descritos como projeções digitiformes
da lâmina própria, recobertas por epitélio escamoso hiperplá-
O achado de tumor benigno no esôfago é bastante incomum. sico. Tem-se avaliado a associação do papiloma vírus com o
Caracteristicamente, são assintomáticos e descobertos inciden- papiloma de células escamosas.

T
Q u a d ro 15.1 Classificação dos tumores do esôfago ¥lLíÂh
Tumores epiteliais Tumores não epiteliais

Malignos Malignos
T u m o r e s d e c é lu la s e s c a m o s a s L in fo m a s

A d e n o c a r d n o m a d o e s ô fa g o S a rc o m a s

A d e n o c a r c in o m a d a j u n ç ã o g a s tro e s o fá g ic a T u m o r e s m e ta s tá tic o s

C a r c in o m a v e r r u c o s o

C a rc in o s s a rc o m a

T u m o r d e p e q u e n a s c é lu la s Benignos
M e la n o m a L e io m io m a

Benignos T u m o r d e c é lu la g r a n u la r
' L ES Ã O E L E V A D A E S Ô F A G O
P a p ilo m a e s c a m o s o T u m o r fib ro v a s c u la r
l i h a ‘ i5-v
Adenom a H e m a n g io m a

P ó lip o in fla m a t ó r io fib ro s o H a m a rto m a

Li p o m a Figura 15.1 Papiloma esofagiano. Fonte: Dr. David Corrêa Lima. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

152
Capítulo 15 / Tumores do Esôfago 153

■ Adenomas tamento mais eficaz, com mortalidade operatória de 0 a 1,3%,


e alívio de sintomas em 89 a 94% dos pacientes após 5 anos de
Pólipos adenomatosos verdadeiros brotando em segmen­ cirurgia. Quando o tumor apresenta tamanho superior a 8 cm,
tos do esôfago de Barret são raros. Os adenomas do esôfago na suspeita de malignização, e naqueles de crescimento anu­
são benignos, mas considerados displásicos, com potencial de lar, está indicada a esofagectomia com esofagogastroplastia ou
malignização similar ao dos adenomas em outros segmentos esofagocoloplastia como método de reconstrução do trânsito
do tubo digestivo. Podem ser sésseis ou pedunculados. A poli- alimentar.
pectomia é considerada curativa. Opções por laparoscopia e toracoscopia podem ser tomadas
com menor trauma. Métodos paliativos para pacientes sem con­
■ Pólipos inflamatórios dições cirúrgicas incluem ablação termal por laser ou necrose
de tecidos com a injeção de álcool.
Os pólipos inflamatórios são as lesões benignas que mais fre­
quentemente acometem o esôfago. Parece haver relação causai
com o refluxo crônico. Ocorrem no terço distai ou na junção ■ Tumor de células granulosas
gastresofágica. A ressecção endoscópica permite o seu diagnós­ Os tumores de células granulosas são neoplasias submuco-
tico histológico e a cura. sas, provavelmente originados de células neurais. Ocorrem, em
geral, no terço inferior do esôfago. Endoscopicamente, têm base
■ Cistos esofágicos larga, com superfície mucosa normal, são rosados e de consis­
tência borrachosa. À ecoendoscopia, eles são hipo ou isoecoicos
O esôfago pode também apresentar lesões congênitas, pro­ e alojam-se na camada submucosa.
vavelmente decorrentes do sequestro de células embrionárias
As opções terapêuticas são observação, polipectomia e cirur­
durante o crescimento do mesoderma que separa o trato diges­
gia. As pequenas lesões são acompanhadas conservadoramente;
tivo superior do trato respiratório inferior.
tumores com mais de 4 cm e com crescimento importante são
considerados sob risco de malignização, e a excisão cirúrgica
está indicada.
■ TUMORES BENIGNOS NÃO EPITELIAIS
■ Leiomioma ■ TUMORES MALIGNOS DO ESÔFAGO
O leiomioma é o tumor benigno não epitelial do esôfago mais
comum. Em geral, é único e, em sua maioria, ocorre no terço ■ Incidência
distai. Os pacientes geralmente são assintomáticos, mas podem
queixar disfagia e desconforto retroesternal; o relato de hemor­ Os tumores do esôfago historicamente apresentavam pre­
ragia é pouco comum. valência relativamente baixa, mas, atualmente, a incidência é
Os leiomiomas provêm de células de músculo liso e, menos crescente. Em 2000, não se mencionava o câncer de esôfago
frequentemente, da muscularis mucosae. Nos últimos anos, es­ entre as 17 primeiras neoplasias determinantes de óbito, mas,
tes tumores de origem mesenquimal estão sendo agrupados sob na estimativa do Instituto Nacional do Câncer (1NCA) para
a sigla GIST (Gastrointestinal Stromal Tumors). O risco de sua 2003, já estava em oitavo lugar quanto à mortalidade e ocu­
transformação maligna ainda é desconhecido. pava o terceiro lugar entre os tumores do aparelho digestivo.
Ao exame radiológico têm aparência de um defeito de en­ Estima-se taxa anual de mortalidade de 7 a 8 mil óbitos para
chimento liso com margens deprimidas sem irregularidade de os próximos 4 anos.
mucosa. À endoscopia, a mucosa em geral está intacta e a tu- Estamos assistindo a importantes mudanças no comporta­
moração tem forma arredondada que ocupa a luz do órgão. À mento do câncer de esôfago. Em mais de 90% das vezes, esse
palpação com a pinça de biopsia, tem-se a sensação de massa câncer é carcinoma de células escamosas ou adenocarcinoma:
firme, mas maleável. estamos frente a um grande aumento de incidência do adeno­
A biopsia, com coloração por HE, revela tecido de epitélio carcinoma no mundo ocidental, enquanto no Oriente permane­
esofágico, não sendo diagnóstica. O ultrassom endoscópico é a ce o predomínio do carcinoma de células escamosas. A Figura
ferramenta com maior acurácia para o diagnóstico. Os leiomio­ 15.2 mostra um estudo europeu evidenciando estes fatos.
mas tipicamente advêm da quarta camada (muscular própria) e Uma estatística do INCA, publicada em 2007, revela que,
têm os limites bem definidos; menos comumente, originam-se de 93 pacientes operados com câncer de esôfago entre 1997
da muscularis mucosae. e 2005, 47 apresentavam adenocarcinoma, 44 carcinoma de
A conduta a ser tomada depende da repercussão clínica e células escamosas e apenas dois pacientes tinham tumores de
da presença e intensidade dos sintomas, uma vez que há riscos outra origem.
na ressecção de lesões. As pequenas lesões com características
de leiomiomas podem ser observadas do ponto de vista clínico
e endoscópico. Quando se constata crescimento da tumoração
■ Aspectos patológicos
ou há suspeita de transformação maligna, deve-se proceder à No esôfago, podem aparecer vários tipos de tumores malig­
ressecção cirúrgica. Para tumores originados na muscular da nos: melanomas, leiomiossarcomas, carcinoides, linfomas. En­
mucosa, de crescimento endoluminal, a ressecção endoscó­ tretanto, em mais de 90% das vezes, o tipo histológico encontra­
pica é a mais apropriada, utilizando-se alça de polipectomia. do é o adenocarcinoma e o carcinoma de células escamosas.
Há relato de tratamento de lesões grandes, com tamanho su­ O primeiro, em mais de 3/4 dos casos, localiza-se no terço
perior a 4 cm. distai do órgão; o segundo é mais comum nos terços médio e
Nos tumores originados da muscular própria do órgão, ori­ distai, especialmente nos locais onde há compressão esofágica
gem mais frequente destas lesões, a enucleação cirúrgica com extrínseca pela aorta e pela carina. A ocorrência no terço pro-
reaproximação da musculatura através de toracotomia é o tra­ ximal é menos frequente.
154 Capítulo 15 / Tumores do Esôfago

Incidência de adenocarcinoma na Alemanha


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Tempo em anos

Figura 15.2 Aumento da incidência do adenocarcinoma na Alemanha. (Modificado de Siewert JR e t a í , E s o p h a g u s , 2004.)

■ Fatores etiológicos (a concomitância destes parece ter um efeito de sinergismo) e


a idade avançada. A ocorrência prévia de tum or de cabeça e
Os tumores malignos do esôfago, em nosso meio, são, em pescoço e a radioterapia para tumores de tórax e mediastino,
geral, diagnosticados tardiamente, quando a doença já se en­ também, são considerados fatores predisponentes.
contra em estágio avançado e com pouca chance de tratamento Outros determinantes de irritação crônica estão provavel­
curativo. Embora não se consigam identificar fatores de risco mente ligados à gênese destes tumores, como a acalasia, os di-
em grande núm ero de pacientes acometidos pela doença, o vertículos, o consumo de bebidas muito quentes e passado de
conhecimento de possíveis riscos pode permitir medidas com ingestão de cáusticos. A pobreza está claramente ligada ao au­
o intuito de diagnóstico precoce. mento de risco da doença.
O Quadro 15.2 relaciona e compara os fatores que podem Os fatores ambientais e nutricionais têm sido estudados, pois
estar relacionados com os dois principais tipos histológicos de existe grande variação da doença em regiões distintas. Tem-se
câncer de esôfago. avaliado a contaminação das águas, quer por óleo ou petróleo,
teores de substâncias possivelmente nocivas em mananciais
■ Fatores etiológicos no carcinoma espinocelular hídricos, uso de pesticidas e defensivos agrícolas. Também as
Os principais fatores de risco para o carcinoma espinocelu­ diferenças de dieta, com ou sem o uso de alimentos frescos, e
lar do esôfago são o tabagismo, o consumo exagerado de álcool as maneiras de conservação têm chamado a atenção.
A tilose palmar, condição clínica expressa pelo excesso de
queratina nas mãos e nos pés, é uma condição genética rara liga­
da ao aumento de risco do carcinoma de células escamosas.
------------------------------------------------------------------------------ ▼ -------------------------------------------------------------------------------
■ Fatores etiológicos no adenocardnom a
Q u a d ro 15.2 Fatores de risco para o câncer de esôfago
A ocorrência de refluxo gastresofágico crônico, obesidade
e idade avançada são fatores reconhecidos como capazes de
Ca rcino m a d e células
F a tor de risco
aumentar o risco de adenocarcinoma no esôfago.
Escamosas A d e n o c a rc in o m a O refluxo gastresofágico está associado ao aparecimento de
esôfago de Barrett. Outros marcadores de doença do refluxo
T a b a g is m o +++ ++ gastresofágico, tais como hérnia de hiato, úlcera esofágica, uso
A lc o o lis m o +++ - frequente de medicação antissecretora podem ser considerados
E s ô fa g o d e B a rre tt - ++++ fatores de risco, mas não são fatores independentes.
S in t o m a s d e re flu x o se m a n a is - +++ Também devemos considerar o efeito de drogas que provo­
O b e s id a d e - ++ cam o relaxamento do esfíncter esofágico inferior, tais como
P o b re z a ++ - medicamentos anticolinérgicos, aminofilina, betabloqueadores,
A calasia +++ -
como predisponentes à sequência —» DRGE —» metaplasia —»
-
displasia —» carcinoma esofágico.
L e s ã o c á u s tic a n o e s ô fa g o ++++
Tem-se estudado muito a relação inversa do Helicobacter
T ilo s e p a lm a r ++++ -
pylori com o tum or de esôfago. À medida que a prevalência
S ín d r o m e d e P lu m m e r -V in s o n ++++ -
desta bactéria e do câncer do estômago diminui, a da doença
C â n c e r d e c a b e ç a e p e s c o ç o p ré v io s ++++ -
do refluxo gastresofágico e do câncer da junção gastresofágica
C â n c e r d e m a m a t r a t a d o p o r ra d io te ra p ia +++ +++
e do terço inferior esôfago aumenta.
U s o fr e q u e n t e d e b e b id a s m u it o q u e n te s + - Tytgat et al. fazem uma discussão dos prováveis fatores liga­
U s o d e m e d ic a m e n t o s re la x a n te s d o EEI - ± dos a este aumento de incidência do adenocarcinoma de esôfa­
Modificado de Enzinger, PC & Mayer, RJ N. E n g l.J. M ed , 2003.
go no mundo ocidental. O padrão de aumento parece sinalizar
contra fatores hereditários, e nenhuma influência genética é
Capítulo 15 / Tumores do Esôfago 155

descrita na etiologia destes tumores. Fatores de risco adquiridos ---------------------------▼---------------------------


estariam mais facilmente correlacionados com esta elevação, Q u a d ro 15.3 Estadiamento tumoral segundo o AJCC
e o aumento da doença do refluxo é uma probabilidade mais
aceitável. Um amplo estudo, com controle de casos, mostrou Tumor (T)
uma associação positiva entre uso prévio de medicamentos que T X : T u m o r n ã o a ce ssíve l
relaxam o esfíncter esofágico inferior e elevação do número T 0 : S e m e v id ê n c ia s d o t u m o r p rim á r io
de casos do adenocarcinoma de esôfago. Esta hipótese perma­ T is : C a r c in o m a In s ltu
nece especulativa e não explica a desproporção de ocorrência T I : T u m o r in v a d e lâ m in a p ró p r ia ( T I a ) o u s u b m u c o s a ( T I b )
entre os sexos. T 2 : T u m o r in v a d e m u s c u la r p ró p r ia
Outra especulação que se faz é sobre a obesidade, uma vez T 3 : T u m o r in v a d e a d v e n tíc ia
que esta também eleva o risco de DRGE. A observação de que T 4 : T u m o r in v a d e e s tru tu ra s a d ja c e n te s
está ocorrendo um aumento médio do índice de massa corpo­ Linfonodos regionais (N)
ral no mundo ocidental reforça esta teoria, mas a velocidade N X : L in fo n o d o s n ã o p o d e m ser a ce ssa d o s
desse aumento e a disparidade entre os dois sexos são incon­ N 0 : A u s ê n c ia d e m e tá s ta s e e m lin f o n o d o s re g io n a is
sistentes. Recentemente, postulou-se que a obesidade central e N l : M e tá s ta s e e m lin fo n o d o s re g io n a is
o consequente aumento da pressão intra-abdominal, causados
Metástase (M)
pela postura sedentária e o uso de cintos apertados, seriam um
M X : M e tá s ta s e a d is tâ n c ia n ã o p o d e ser a ce ssa d a
fator de aumento de refluxo gastresofágico.
M 0 : A u s ê n c ia d e m e tá s ta s e a d is tâ n cia
Mudanças no hábito de fumar também foram estudadas,
M l : M e tá s ta s e a d is tâ n c ia
mas este hábito está mais ligado à ocorrência do tum or de cé­
T u m o r e s d o e s ô fa g o to r á c ic o d ista i
lulas escamosas. Além do mais, temos assistido ao declínio do
M i a : M e tá s ta s e e m lin fo n o d o s d e t r o n c o c e lía c o
tabagismo entre os homens, mas é neste grupo em que se nota
M l b : O u t r a s m e tá s ta s e s a d is tâ n c ia
aumento da incidência do adenocarcinoma esofágico.
T u m o r e s d e e s ô fa g o to r á c ic o m é d io
A diminuição da prevalência da infecção pelo Helicobacter
M i a : N â o a p lic á v e l
pylori, que tem sido descrita em vários grupos populacionais, M l b : L in fo n o d o s n ã o re g io n a is o u o u tra s m e tá s ta s e s a d is tâ n c ia
poderia estar contribuindo para este fato, mas o predomínio
T u m o r e s d o e s ô fa g o to r á c ic o s u p e r io r
do adenocarcinoma no sexo masculino não encontra também
M i a : M e tá s ta s e e m lin fo n o d o s c e rv ic a is
uma explicação adequada sob esta ótica.
M l b : O u t r a s m e tá s ta s e s a d is tâ n c ia

Estádio
■ APRESENTAÇÃO CLÍNICA E PROGNÓSTICO I T1N 0M 0
T2N 0M 0

A disfagia é o principal sintoma (75 a 90%), seguido por odi- IIA T3N 0M 0

nofagia. É também comum o relato de hiporexia e perda pon­ T1N 1M 0

derai. Esta é considerada fator de prognóstico sombrio quando IIB T2N 1M 0

ultrapassa 10% da massa corporal. A odinofagia pode sinalizar T3N 1M 0

ulceração do tumor. Dor torácica e dor irradiada para as costas, III T1N 2M 0
em geral, estão associadas à invasão de estruturas nervosas no T2N 2M 0
mediastino, sendo sinônimo de mau prognóstico. IV T 4 , q u a lq u e r N , M 0
O aparecimento de sintomas em geral ocorre quando há Q u a lq u e r T , q u a lq u e r N , M l
obstrução de 2/3 da luz esofágica. Nestes casos, acometimento Adaptado do American Joint Committee on Câncer.
esofágico transmural e metástase linfonodal é a regra, e o trata­
mento curativo é realizado de forma excepcional. A incidência
de metástase linfática é de aproximadamente 25% quando existe
invasão da camada submucosa do órgão.
Perda de peso, estado clínico deteriorado, acometimento O estadiamento clínico, que considera a extensão da doença
tumoral transmural e formação de fístula esofagobrônquica, antes do tratamento, é baseado em história clínica, exame físico,
por sua vez, são determinantes de mau prognóstico. com especial atenção aos gânglios supraclaviculares e cervicais,
biopsia, exames laboratoriais, endoscopia e métodos de imagem
como o ultrassom endoscópico, tomografia computadorizada
■ DIAGNÓSTICO E ESTADIAMENTO e tomografia por emissão de pósitrons.
O esofagograma, apesar de muito útil na determinação topo­
O American Joint Committee on Câncer (AJCC) estabeleceu gráfica da lesão, detecta alterações na fase avançada da afecção.
um sistema de estadiamento dos tumores do esôfago baseado Tipicamente, mostra falha de enchimento e/ou estenose da luz
na descrição da lesão tumoral, dos linfonodos locorregionais, esofágica, desvio do eixo esofágico e fístula esofagobrônquica
e das metástases a distância. O Quadro 15.3 ilustra esta clas­ quando presente.
sificação. Tomografias computadorizadas tanto do tórax como do ab-
Para o estágio T, considera-se somente a profundidade da dome superior estão indicadas para avaliar a lesão e suas rela­
penetração da lesão não se levando em consideração exten­ ções com estruturas adjacentes, tais como aorta, brônquios e
são do tumor, porcentagem da circunferência envolvida ou linfonodos mediastinais, além de possíveis metástases pulmo­
obstrução da luz do órgão. Diferentemente de outros tumores nares e hepáticas. O uso da tomografia pode prever a resseca-
gastrintestinais, o acometimento linfonodal além daqueles pe- bilidade do tum or em 65 a 88% das vezes; ela pode prever o
ritumorais (N l) é considerado doença metastática e não aco­ estágio T em 70% das vezes e o N em 50 a 70%. Na avaliação
metimento linfonodal. dos linfonodos celíacos e na resposta à quimioterapia e radio-
156 Capítulo 15 / Tumores do Esôfago

Figura 15.5 Ecoendoscopia - linfonodo periesofágico. Fonte: Dr. Vitor


Arantes e Dr. Rodrigo Cesar de Carvalho.

ser biopsiada. Pacientes com câncer no terço superior e médio,


especialmente os que apresentam rouquidão ou hemoptoicos,
devem ser avaliados por broncoscopia para determinar se há
envolvimento do nervo laríngeo recorrente ou fístula traqueo-
brônquica.
O ultrassom endoscópico tem lugar de destaque na avaliação
Figura 15.3 Esofagograma de tumor de células escamosas avançado. dos estágios T e N. Ele identifica precisamente a profundidade
de acometimento tumoral da parede esofágica em 80 a 90%
dos pacientes e a extensão do envolvimento dos linfonodos
em 70 a 80% das vezes. A acurácia na detecção de metástases
nos linfonodos pode ser aumentada com o uso da biopsia de
aspiração com agulha, chegando a mais de 90% em certos cen­
tros especializados.
A tomografia por emissão de pósitrons (Pet-scan) é método
promissor para localizar linfonodos metastáticos, determinar
a extensão tumoral e detectar metástases pulmonares. Além
de ainda ser um exame de custo elevado, a proximidade en­
tre a lesão e os linfonodos regionais dificulta a identificação
adequada da extensão tumoral e do acometimento linfonodal.
Desta forma, o Pet-scan não é considerado método rotineiro
no estadiamento do tumor esofágico.
A sobrevida média dos pacientes em 5 anos pós-diagnóstico
é ainda pequena, mas mostrou aumento de 4 para 14% desde
os anos setenta até nossos dias. Depois de ressecção cirúrgica
completa da lesão, a sobrevida em 5 anos é superior a 95% em
Figura 15.4 Adenocarcinoma do esôfago. Fonte: Dr. Vitor Arantes e
tumores no estágio 0, de 50 a 80% nos pacientes em estágio I,
Dr. Rodrigo Cesar de Carvalho. (Esta figura encontra-se reproduzida 30-40% para estágio II-A, 10-30% para estágio II-B e 10-15%
em cores no Encarte.) para estágio III. Pacientes em estágio IV tratados com quimio­
terapia paliativa têm sobrevida média menor que 1 ano.
A análise multivariada mostra que, além da avaliação prog-
nóstica dos estágios, baseada em TNM, também são indicado­
terapia neoadjuvante, a acurácia do estudo tomográfico con­ res independentes de mau prognóstico: a) presença de disfagia;
vencional é pequena. b) perda de mais de 10% da massa corporal; c) tumores muito
A endoscopia digestiva alta permite a coleta de material para grandes; d) idade avançada; e) micrometástases linfonodais.
estudo histopatológico e informações da localização da lesão
quanto à distância dos dentes incisivos e também da junção
esofagogástrica, da extensão tumoral e padrão macroscópico ■ TRATAMENTO
de crescimento, infiltrativo, vegetante, ulcerado ou associação
dos mesmos. A presença de esôfago de Barrett é importante
dado a ser observado. O uso de solução de lugol pode ajudar
■ Tumores de origem epitelial
na identificação de lesões suspeitas, já que cora seletivamente Pacientes com tumores epiteliais, mais especificamente os
a mucosa normal e deixa a mucosa anormal identificada para carcinomas de células escamosas (CCE) e os adenocarcinomas,
Capítulo 15 / Tumores do Esôfago 157

em geral estão na 5“ e 6“ décadas de vida, são frequentemente Estudos comparativos e recente metanálise concluíram que
tabagistas, alcoolistas e apresentam outras comorbidades, que não há diferença significativa entre as técnicas no que diz respei­
os colocam, a princípio, em situação de risco cirúrgico eleva­ to à radicalidade da ressecção tumoral e obtenção de margens
do. O diagnóstico é frequentemente tardio e em cerca de 50% microscópica livres de tumor, à morbimortalidade cirúrgica e
dos casos existem metástases à avaliação inicial. Apesar disso, sobrevida a longo prazo. A opção sobre qual a via de acesso a
a sobrevida a longo prazo melhorou nas últimas décadas, pas­ ser utilizada fica a cargo da preferência do cirurgião e experi­
sando de 4% em 1970 para 14% atualmente. ência do serviço.
O tratamento cirúrgico é, até o momento, o único que pode Com o recente avanço da cirurgia minimamente invasiva,
proporcionar a cura. Neste caso, o estadiamento tumoral (Qua­ alguns autores propõem a toracoscopia e a laparoscopia, com­
dro 15.3), a ressecção cirúrgica sem tumor microscópico resi­ binadas ou não, como alternativas à cirurgia convencional, na
dual (ressecçâo RO), a presença ou ausência de metástases tentativa de reduzir as complicações decorrentes das incisões
linfonodais, a localização tumoral e a experiência da equipe cirúrgicas, especialmente as complicações respiratórias. Po­
cirúrgica são considerados fatores prognósticos importantes. rém, até o momento, e apesar de a radicalidade cirúrgica ser
semelhante, não há nenhum estudo que comprove o benefício
com a utilização dessas vias de acesso, e estudos prospectivos
- Tumor inicial (TisNOMO/TINOMO) e comparativos são necessários para definição de seu papel no
Nota-se avanço considerável da endoscopia no tratamento tratamento do câncer de esôfago.
dos tumores do trato digestivo como um todo, mas especial­ Outro ponto de controvérsia é se a linfadenectomia deve ser
mente no esôfago e estômago. Os tumores restritos à mucosa realizada ou não, e qual a extensão dela. O câncer esofágico dis­
do órgão devem, quando possível, ser tratados por via endos- semina-se precocemente por via linfática e espera-se incidência
cópica. A incidência de complicações graves é baixa, bem como de metástase linfonodal em aproximadamente 25% dos casos
sua mortalidade. na presença de acometimento tumoral da submucosa.
No planejamento do tratamento endoscópico dos tum o­ O acometimento linfonodal é considerado fator indepen­
res esofágicos, é fundamental a utilização da ecoendoscopia. dente de mau prognóstico e, quando presente, a sobrevida em
Desta forma, é possível determinar precisamente a extensão 5 anos é baixa e, em muitas ocasiões, denota estadiamento tu­
do tumor em profundidade na parede do esôfago e o risco de moral avançado e comprometimento sistêmico.
Não há na literatura estudos prospectivos e comparativos
metástase linfática.
entre as técnicas de linfadenectomia no câncer esofágico, e a
A ressecção endoscópica, mucosectomia, está indicada nos
tumores que acometem a mucosa e naqueles que invadem a
camada superficial da submucosa. Nestas situações, a incidên­
cia de metástase linfonodal é muito baixa e os índices de cura
são superiores a 95%.
Apesar de promissor, o tratamento endoscópico possui al­
gumas limitações como necessidade de realização de endosso-
nografia esofágica em todos os casos, disponibilidade de en-
doscopista experiente com as cirurgias endoscópicas, rigor no
preparo da peça ressecada e patologista experimentado para a
análise da peça adquirida com a ressecção endoscópica.
Na impossibilidade de ressecção endoscópica dos tumores
intramucosos, naqueles com acometimento das camadas pro­
fundas da submucosa e na suspeita de metástase linfonodal
periesofágica, o tratamento de escolha é a esofagectomia. Este
tratamento apresenta morbidez elevada e mortalidade que pode
chegar a 20%. Atualmente, se aceita a realização da esofagec­
tomia somente em serviços de alto volume, com o mínimo de
20 esofagectomias ao ano. Assim, espera-se mortalidade ope-
ratória em torno de 2%.
Na programação da esofagectomia, é fundamental o estadia­
mento tumoral pré-operatório, porém mais importante ainda
é a utilização de critérios clínicos rigorosos para a seleção dos
pacientes. Frequentemente, os pacientes estão desnutridos, são
alcoolistas e tabagistas, idosos, estão em tratamento de outras
afecções, tais como diabetes e coronariopatias, portanto não são
bons candidatos ao tratamento cirúrgico. Permanece discutível
qual a melhor via de acesso cirúrgico para o tratamento dos tu­
mores esofágicos, se transtorácica ou transiatal. Na primeira,
realizada por meio de toracotomia direita, é possível melhor
identificação das estruturas mediastinais, dissecção por visão
direta da lesão, ressecção tumoral em monobloco e linfadenec-
tomia intratorácica alargada. Na ressecção transiatal, a linfade-
nectomia intratorácica, especialmente das cadeias linfonodais
mais craniais, é limitada e a dissecção dos tumores de esôfago Figura 15.6 CCE de esôfago distai. (Esta figura encontra-se reproduzida
médio não é, na maioria das vezes, realizada por visão direta. em cores no Encarte.)
158 Capítulo 15 / Tumores do Esôfago

sobrevida a longo prazo semelhante nos dois grupos. A RxT e


QT isoladas ou em combinação são mal toleradas quando uti­
lizadas no pós-operatório e não parecem oferecer benefícios
aos pacientes, mesmo quando a margem cirúrgica encontra-se
comprometida por tumor.

■ Tumor avançado
(T2 N1 M0/T3 N1 M0 /T4 N1 M0/TXNXM1 )
Nesta fase, a cura é excepcional e a recidiva tumoral no me­
diastino posterior ocorre em até 50% dos pacientes no prazo
de aproximadamente 2 anos. O tratamento cirúrgico acarreta
elevada morbidade pós-operatória e o paciente tem sua qua­
lidade de vida extremamente comprometida. A indicação do
tratamento cirúrgico com a mera finalidade de controle da dis-
fagia parece insuficiente para justificar o sofrimento do pós-
operatório.
A associação da radioterapia e quimioterapia, sem a reali­
zação de cirurgia, é capaz de controlar a doença locorregional-
mente, devolver a capacidade de ingestão de alimentos à custa
de morbidade e mortalidade aceitáveis.
A endoscopia assume papel importante como tratamento
paliativo do tumor esofágico, já que é capaz de aliviar a disfagia
e tratar fístulas esofagobrônquicas, eventualmente presentes,
especialmente em pacientes com tumor de esôfago torácico.
Para a disfagia, são muitas as técnicas endoscópicas descritas,
algumas desobstruem o esôfago por meio do deslocamento e
tunelização tumoral, outras utilizam técnicas de ablação do tu­
mor. A dilatação direta da estenose tumoral utilizando cateteres
dilatadores de poiivinil (Savary-Guillard) ou balões endoscópi-
cos foi muito utilizada, com a vantagem de ser barata, relativa­
mente segura, mas com o incoveniente de reestenose precoce
da luz esofágica e da necessidade de repetidas dilatações.
Intubação com prótese esofágica é método atrativo para o
Figura 15.7 Esofagectomia transiatal: peça cirúrgica. (Esta figura en­ alívio da disfagia e fístula esofagotraqueal, por meio da com­
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) pressão tumoral em direção à parede do esôfago por ação me­
cânica direta. Inicialmente, utilizavam-se próteses endoscópi­
cas rígidas, porém estas são difíceis de serem posicionadas e
apresentam alto índice de deslocamento e perfuração do ór­
maioria deles baseia-se na experiência de um único serviço e, gão. Atualmente, existem próteses metálicas autoexpansivas,
mesmo assim, são incluídos pacientes em estágios tumorais e de manuseio mais fácil, que permitem melhor posicionamento
tipos histológicos diferentes. na luz esofágica, com grande força radial e melhor fixação ao
Aparentemente, para os tumores esofágicos distais, de modo esôfago, com consequente redução do risco de deslocamento.
especial, nos casos de adenocarcinoma, a linfadenectomia em Talvez, o maior inconveniente resida no fato de poder ocorrer
dois campos, mediastino inferior e tronco celíaco, é recomenda­ crescimento tumoral para dentro da prótese (5 a 20%), levando
da. A realização de linfadenectomia junto ao nervo laríngeo re­ à necessidade de novas intervenções para a sua desobstrução,
corrente e a linfadenectomia cervical bilateral aumentam a mor- além de seu elevado custo. O alívio da disfagia é imediato e a
bidade operatória sem, a princípio, aumentar a sobrevida. incidência de complicações é pequena. Também, podem ser
A terapia neoadjuvante é atrativa, uma vez que é capaz de utilizadas no tratamento das fístulas esofagobrônquicas. Seu
promover redução do tamanho tumoral e no número de lin- emprego em pacientes com tumor em esôfago cervical não é
fonodos acometidos, aumentando a incidência de ressecções recomendado pelo desconforto torácico provocado por sua
completas (ressecção RO). Em metanálise recentemente publi­ presença, e, naqueles com prótese posicionada próximo à jun­
cada, avaliando radioterapia (RxT) isolada no pré-operatório, ção esofagogástrica, o uso de bloqueador da bomba de prótons
não se observou nenhum ganho de sobrevida a longo prazo. é recomendado.
Fenômeno semelhante acontece quando se utiliza quimiotera­ A fotoablação endoscópica a laser (Nd:YAG = neodymium-
pia (QT) isolada no pré-operatório. yttrium-aluminum-garnet laser) produz vaporização e necrose
O tratamento combinado, utilizando-se RxT e QT neoad­ por coagulação do tumor, sem necessidade de contato direto
juvante, inicialmente difundido por Walsh e cols., foi testado com a lesão. Há alívio da disfagia em 70 a 85% dos pacientes
em dois estudos prospectivos. O estudo americano, que preten­ após 3 a 6 sessões, por período de 3 a 6 semanas. Tumores de
dia avaliar 620 pacientes, foi precocemente interrompido após terço médio, vegetantes e que promovem estenose de até 5 cm
inscrição de 75 pacientes, devido à toxicidade do tratamento, de extensão são os que apresentam melhor resposta. A sua uti­
e, no segundo estudo, proveniente da Austrália, não se obser­ lização é dificultada pelo alto custo para aquisição e manuten­
vou nenhum benefício a favor do tratamento combinado, com ção do equipamento.
Capítulo 15 / Tumores do Esôfago 159

A terapia fotodinâmica utiliza substância citotóxica para as Barbicr, PA, Ludcr, PJ, Schupfcr, G et al. Quality of lifc and pattcrns of rccurrcncc
células tumorais, ativada por meio da luz de laser posicionada following transhiatal esophagcctomy for canccr: rcsults of a prospectívc
follow-up in 50 paticnts. World / Surg, 1988; 12:270-6.
em proximidade com o tumor. Tem como vantagem a possibi­ Blazcby, JM, Farndon, JR, Donovan, JL et al. A Prospcctivc Longitudinal Study
lidade de tratamento de grande extensão tumoral, com relativa Examining the Quality of Lifc of Paticnts with Esophagcal Carcinoma. Cân­
segurança e baixa incidência de perfuração esofágica. Pacientes cer, 2000; 88:1781-7.
submetidos a este tratamento podem apresentar sensibilidade Bossct, JF, Lorchcl, F, M antion, CL Ncoadjuvant trcatmcnt of carly stagc
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cutânea à luz. Como ocorre com o NdrYAG laser, o custo do Dc Palma, GD, Di Matteo, E, Romano, G et al. Plastic prothesis versus cxpand-
método dificulta sua utilização em nosso meio. able metal stents for palliation of inopcrablc csophagcal thoracic carcinoma:
Opção mais econômica e que pode ser utilizada em grande a controllcd prospcctivc study. Castrointest Endosc, 1996; 43:478-82.
número de serviços de endoscopia é a injeção de substâncias Ellis, FH. Standard rcscction for canccr of the esophagus and cardia. Surg Oncol
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aceitação do método é a incapacidade de controlar o grau de Ginsbcrg, GG & Fleischcr, D. Esophagcal Tumors. Em: Fcldman, M et al. Gas-
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Goldminc, M, Maddcrn, G, Lc Pricc, E et al. Ocsophagcctomy by a transhiatal
esofágica. approach or thoracotomy: a prospcctivc randomized trial. Br J Surg, 1993;
A braquiterapia, por meio do posicionamento de bastões 80:367-70.
radioativos em contato direto com o tumor, promove necrose Hagen, JA, DcMccstcr, SR, Pcters, JH et al. Curativc rcscction for csophagcal
tumoral duradoura, com baixa incidência de efeitos colaterais adenocarcinoma. Analysis of 100 cn bloe csophagcctomies. Ann Surg, 2001;
234:520-31.
sistêmicos. Recentemente, em estudo aleatório, comparando
Homs, MYV, Stcybcrg, EW, Eijkcnboom, WMH, Tilanus, HW et al. Single
braquiterapia e stetit endoscópico para paliação da disfagia, dose brachythcrapy versus metal stent placcment for the palliation of dys-
os autores perceberam menor incidência de complicações re­ phagia from ocsophagcal canccr: multiccntrc randomized trial. Lancet,
lacionadas com o procedimento, alívio mais prolongado da 2004; 364:1497-504.
disfagia e melhor qualidade de vida nos pacientes tratados Knyrim, K, Wagner, HJ, Beth, N et al. A controllcd trial of an cxpansible metal
stent for palliation of csophagcal obstruetion due to inopcrablc canccr. N
com braquiterapia. O alívio da disfagia foi mais rápido no Engl J Med, 1993; 329:1302-7.
grupo tratado com stent endoscópico, devendo este procedi­ Koshy, M, Esiashvilli, A, Landry, JC et al. Combincd modality management
mento ser reservado para aqueles pacientes com expectativa approachcs. The Oncologist, 2004; 9:147-59.
de vida mais curta. Koshy, M, Esiashvilli, N, Landry, JC et al. Multiplc management modalities in
csophagcal canccr: cpidcmiology, presentation and progression, work-up,
Infelizmente, em algumas situações o alívio da disfagia não
and surgical approachcs. The Oncologist, 2004; 9:137-46.
é possível, tal como ocorre em pacientes com lesões extensas, Lee, LS, Singhal, S, Brinstcr, GJ et al. Currcnt management of csophagcal lcio-
com desvio patológico do eixo esofágico e estenose completa e myoma. Am Coll Surg, 2004; 798:136-46.
intransponível da luz do órgão. Nesses casos, está indicada gas- Linhares, E, Marques, A, Sardou, L. Câncer do Esôfago. Em: Galvào-Alvcs, J
trostomia ou jejunostomia cirúrgica para que o paciente possa 8c Dani, R. Terapêutica cm Gastrocntcrologia, Rio dc Janeiro, Guanabara
Koogan, 2005.
receber suporte nutricional e também medicamentos, de modo
Lyn, CY, Chcng, YL, Huang, WH et al. Primary Malignant Melanoma of the
especial analgésicos, sempre que necessário. Ocsophagus presenting with massive mclcna and hypovolemic shock. ANZ
J Surg, 2002; 72:62-4.
Moreira, LS, Coelho, RCL, Sadala, R et al. The use of ethanol injcction under
■ Carcinoma de pequenas células cndoscopic control to palliate dyphagia caused by csophagogastric canccr.
Endoscopy, 1994; 26:311-14.
Trata-se de lesão maligna agressiva, de pior prognóstico em Moreira, LS 8c Dani, R. Trcatmcnt of granular ccll tum or of the esophagus
relação ao CCE, rara no esôfago, e, por isso, não existe consenso by cndoscopic injcction of dchydratcd alcohol. Am / Castroenterol, 1992,
na literatura quanto à melhor abordagem terapêutica. 87:659:61.
A presença de linfonodos metastáticos determina sobrevida Munro, AJ. Ocsophagcal canccr: a vicw over ovcrvicws. Lancet, 2004;
curta. Em tumores ressecáveis, a esofagectomia com linfadenec- 364:566-8.
Noguchi, T, Takcno, S, Kato, T et al. Small ccll carcinoma of the esophagus:
tomia parece ser o tratamento de primeira escolha, e a associa­ dinicopathological and immunohistochcmical analisis of six cases. Diseases
ção com Rxt e/ou QT parece não trazer benefícios. o f Esophagus, 2003; 76:252-8.
Oclschlagcr, BK 8c Pcllcgrini, C. A role of laparoscopy and thoracoscopy in
the trcatmcnt of csophagcal adenocarcinoma. Diseases of Esophagus, 2001;
■ Melanoma 74:91-4.
Pinto, CE, Dias, JÁ, Sá, EAM et al. Tratamento cirúrgico do câncer dc esôfago.
Trata-se de doença extremamente rara, comprometendo Rev Bros de Cancerologia, 2007; 53:425-30.
mais frequentemente pacientes idosos. Na maioria das vezes, Poncc, RJ 8c Kimmcy, MB. Endoscopic thcrapy of csophagcal canccr. Surg Clin
o diagnóstico é tardio, já sendo observada a presença de metás- North Am, 1997; 77:1198-216.
tases para o fígado (31%), mediastino (29%) e pulmão (18%). Sicwcrt, JR, von Rahdcn, BHA, Stcin, H J. Currcnt status of csophagcal canccr -
West versus East: the Europcan point of vicw. Esophagus, 2004; 7:147-59.
A grande maioria dos estudos baseia-se em relatos de casos e, Silva, LD, Magalhães, LCR, Reis, LFA et al. Carcinoma dc pequenas células do
nestes, o tratamento cirúrgico é o mais utilizado. A sobrevida esôfago com apresentação múltipla: relato dc caso c revisão da literatura.
média com o tratamento cirúrgico é de 4,25% em 5 anos e 0% GED, 1999;78:113-16.
com outras modalidades terapêuticas. Spcchlcr, SJ. Barrctt s esophagus and csophagcal adenocarcinoma: pathogcncsis,
diagnosis, and thcrapy. Med Clin N Am, 2002; 86:1423-45.
Tytgat, GNJ, Bartcling, H, Bcrnards, R et al. Canccr o f the esophagus and gastric
cardia: rcccnt advanccs. Diseases o f the Esophagus, 2004:77:10-26.
■ LEITURA RECOMENDADA Wayman, J, Irving, M, Russcll, N et al. Intraluminal radiothcrapy and Nd:YAG
laser photoablation for primary malignant melanoma of the esophagus.
Armott, SJ, Duncan, W, Gigmoux, M. Prcopcrativc radiothcrapy in csophagcal Gastroint Endosc, 2004; 59:927:29.
carcinoma: a mcta-analysis using individual paticnt data. Int J Radiot Oncol Wu, Z, Ma, JY, Yang, JJ et al. Primary small ccll carcinoma of esophagus: report
BiolPhys, 1998; 47:579-83. of 9 cascs and rcvicw of litcraturc. World J Castroenterol, 2004; 70:3680-2.
PARTE III
Estômago e Duodeno
Anomalias Congênitas
Marisa Fonseca Magalhães e Maria do Carmo Friche Passos

O estômago se desenvolve durante a quarta semana de vida porção terminal do esôfago, e os pacientes apresentam, logo
embrionária, a partir do intestino primitivo. Nessa época, se após o nascimento, quadro de vômitos, anemia e desnutrição.
apresenta como uma porção dilatada, de forma fusiforme. Nas A microgastria tem sido descrita em associação com asplenia,
semanas seguintes, ocorre a rotação sobre seu eixo longitudinal, cardiopatias e má rotação intestinal, entre outras. O tratamento
em 90°. Esse movimento determina o posicionamento anterior inicial consiste em pequenas e frequentes refeições e alimenta­
da borda direita, formando a parede anterior do estômago; a ção parenteral. Em sua maioria, os pacientes morrem em sema­
borda esquerda origina a parede posterior do órgão. A antiga nas ou meses. Quando o paciente sobrevive, tem sido tentada
parede posterior, agora borda esquerda, apresenta um cresci­ a confecção cirúrgica de uma bolsa jejunal funcionando como
mento maior que a borda direita, o que resulta na forma assi­ reservatório do bolo alimentar.
métrica do estômago, com a diferenciação das duas curvaturas,
pequena à esquerda e grande à direita. O movimento de rotação
explica, ainda, por que a parede anterior é inervada pelo vago ■ ATRESIAS
esquerdo e a posterior, pelo vago direito.
Como o estômago, também o duodeno cresce rapidamente, As atresias são decorrentes da não recanalização do lúmen
formando um arco, que se projeta ventralmente, e, através de gástrico em determinada porção. Sua ocorrência é rara, sendo
rotação para a esquerda, vai se localizar no retroperitônio. O descritos menos de 50 casos. A área de atresia localiza-se no an­
lúmen do duodeno permanece obliterado até a quinta ou sexta tro ou no piloro. Duas são as teorias que explicam a persistente
semana, devido à proliferação rápida do epitélio. A vacuoliza- obliteração do lúmen tubular: a falha da recanalização por não
ção, com degeneração de algumas células, acarretará a recana- vacuolização e a não involução da hiperplasia da mucosa.
lização do duodeno nas semanas seguintes. Polidrâmnio materno e vômitos não biliosos desde o nas­
O endoderma embrionário dá origem aos epitélios gástrico cimento, associados à não eliminação de mecônio, são chaves
e duodenal, e do mesoderma derivam o tecido conjuntivo e as para o diagnóstico. A radiologia mostra distensão gasosa do
camadas muscular e serosa. As alterações do desenvolvimento estômago e opacidade no restante do abdome. O tratamento
embrionário do estômago darão origem às malformações gás­ consiste na ressecção gástrica da porção atrésica. Crianças nas
tricas, que, de maneira geral, são raras, sendo a mais frequente quais foi tentada apenas a ressecção da faixa membranosa, que
delas a estenose hipertrófica do piloro. Casos de agenesia gástri­ causava oclusão da luz do órgão, necessitaram de nova inter­
ca só foram relatados em anencéfalos. É objetivo deste capítulo venção cirúrgica em decorrência de obstrução gástrica.
rever as malformações gastroduodenais do tipo microgastria,
atresias ou estenoses parciais, duplicações, divertículos e defei­
tos de parede muscular. ■ ESTENOSE HIPERTRÓFICA DO PILORO
É a mais comum das malformações gástricas, ocorrendo em
■ MICROGASTRIA cerca de 2 para cada 1.000 nascidos vivos. Em consequência
de hipertrofia e edema da musculatura do piloro, desenvol-
É uma malformação rara, tendo sido descritos, até o mo­ ve-se uma síndrome de obstrução ao esvaziamento gástrico,
mento, menos de 30 casos, com adequada documentação. Em que é responsável pela maioria das cirurgias realizadas duran­
apenas um caso, o diagnóstico não foi feito na infância. É resul­ te as seis primeiras semanas de vida. A etiologia da estenose é
tado da não rotação gástrica, o que determina a interrupção do desconhecida, sendo postuladas algumas teorias como hiper­
desenvolvimento, sem a diferenciação das duas curvaturas. O trofia muscular primária, alterações na maturação das células
estômago permanece com seu eixo longo na região média, no ganglionares e resposta às concentrações elevadas de gastrina
plano sagital, e não há diferenciação em fundo, corpo e antro. circulante; mais recentemente, a ausência de síntese do óxido
A função de reservatório é mantida pela dilatação que se dá na nítrico no tecido pilórico tem sido considerada um dos fatores

163
164 Capítulo 16 / Anomalias Congênitas

responsáveis pelo piloroespasmo. Sua incidência é maior em


membros de uma mesma família, sendo três a quatro vezes
■ DIVERTÍCULOS
mais frequente em homens que em mulheres e, na metade dos O estômago é o segmento do aparelho digestivo com menor
casos, acomete o primogênito. ocorrência de divertículos. Quando presentes, em sua maio­
Os portadores de estenose hipertrófica do piloro em geral ria (75%) estão localizados na região gastresofágica, a cerca de
permanecem assintomáticos até a terceira semana de vida, quan­ 2 cm da pequena curvatura. São assintomáticos, exceto quando
do então desenvolvem quadro de vômito de intensidade cres­ associados a complicações, daí seu diagnóstico ser quase sem­
cente, ocorrendo após a maior parte das refeições, muitas vezes
pre casual. Constitui achado fortuito em exame radiológico
em jato. A criança deixa de ganhar peso, torna-se constipada
ou endoscópico, realizado por outra indicação. O tratamento
e com distensão abdominal. Ao exame físico, é possível palpar
cirúrgico só estará indicado nas complicações.
uma massa na região epigástrica (sinal da oliva), especialmente
com a criança relaxada e com o estômago vazio. Ondas peristál-
ticas gástricas podem também ser visíveis. A radiografia simples
do abdome permite o diagnóstico da obstrução, por demonstrar ■ DEFEITOS NA PAREDE MUSCULAR
uma grande quantidade de ar na cavidade gástrica e pouco ou
Os defeitos decorrentes do desenvolvimento da parede gás­
nenhum ar no intestino. Radiografias contrastadas podem trazer
trica também são raros, mas com consequências graves. Foram
mais dados para o diagnóstico, permitindo evidenciar um canal
pilórico longo e estreito (sinal do cordão), sugerindo a presença já descritos cerca de 30 casos de perfuração gástrica em recém-
de um duplo canal. Em mãos experientes, a ultrassonografia é nascidos. Em sua maioria, ocorrem na grande curvatura, o que
capaz de confirmar o diagnóstico na maioria dos casos. se explica pelo crescimento acelerado dessa região, e, com fre­
No tratamento dessas crianças, adquire importância a repo­ quência, estão relacionados com a prematuridade.
sição hídrica adequada, assim como a correção dos distúrbios
eletrolíticos e nutricionais antes da intervenção cirúrgica. A
correção cirúrgica é realizada através da piloromiotomia ex- ■ LEITURA RECOMENDADA
tramucosa, com excelente prognóstico.
Albcrti, FJJ. Endoscopic appcarancc o f adult gastric duplication cyst. Am J
Gastroenterol, 1994;89:1919-20.
Cooper, S, Abrams, RS, Carbaugh, RA. Pyloric duplications: review and case
■ DUPLICAÇÃO GÁSTRICA OU DUODENAL study. Am Surg, 1995; 6M092-4.
Cunha-Mclo, JR, Castro, LP, Lanna, JCBD et al. Anatomia do estômago c ano­
As duplicações gástricas representam menos de 4% das du­ malias do desenvolvimento. Em: Dani, R & Castro. LP. Gastrocntcrologia
Clinica. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1993.
plicações do trato digestivo, com cerca de 100 casos descritos Eastwood, GL. Stomach: anatomy and structural anomalies. Em: Yamada, T,
na literatura, em que foram identificadas mucosa, submucosa Alpers, DH, Owyang, C, Powell, DW, Silvcrstcin, FE (cds.). Textbook of
e muscular. A duplicação ocorre na região do antro, na grande Gastrocntcrology. Philadclphia, J.B. Lippincott Company, 1995.
curvatura, podendo estar presente também na região do piloro ou Eiscnbcrg, MM, Fondacaro, PF, Dunn, DH. Applied anatomy and anomalies of
próximo à cabeça do pâncreas, na região duodenal. Essas áreas de the stomach. Em: Bcrk, JE, Haubrich, WS, Kaiser, MH, Roth, JLA, Schaífncr,
F (cds.). Gastrocntcrology. Philadclphia, W.B. Saundcrs Company, 1995.
duplicação em sua maioria não mantêm comunicação com a por­
Hochncr, JL, Kimura, K, Sopcr, RT. Congcnital microgastria. J Pediatr Sur,
ção principal do estômago, permanecendo como uma formação 1994; 29:1590.
cística fechada. Setenta por cento das duplicações produzem sin­ Ilce, Z et al. Pyloric atresia: 15-ycar review from a single institution. / Pediatr
tomas, consequentes, muitas vezes, à compressão local e surgin­ Surg, 2003; 38:1581-4.
do precocemente na infância. Podem manifestar-se como massa Quinn, D & Shannon, LF. Congcnital anomalies of the gastrointestinal tract.
Part 1. Neonatal-Netw, 1995; 14:63-6.
abdominal, dor epigástrica, sangramento oculto ou hemorragia
Rcymundc, A 8c Leon, R. Congcnital microgastria in an adult. Am J Gastroen­
manifesta, quando ocorre ulceração. Há relato de perfuração em terol, 1991;89:1095-6.
abdome livre. O tratamento é cirúrgico e consiste em ressecção Tanaka, K, Tsuchida, Y, Hashimune, K et al. Microgastria - case report and
e/ou marsupialização, ou em drenagem por Y de Roux. review of the literaturc. EurJ Pediatr Surg, 1993; 3:290-2.
17 Dispepsia Funcional
Ana Flávia Passos Ramos e Maria do Carmo Friche Passos

2. Éfundam ental a presença de um ou mais dos seguintes


■ INTRODUÇÃO sintomas: a) empachamento pós-prandial; b) saciedade
precoce; c) dor epigástrica; d) queimação epigástrica.
A Dispepsia Funcional (DF) é definida pela presença de dor
3. Éfundam ental a ausência de lesões estruturais (incluin­
e/ou desconforto, persistente ou recorrente, localizada na re­
do a realização de endoscopia digestiva alta) que possam
gião central e superior do abdome (epigástrio), na ausência
justificar os sintomas.
de anormalidades estruturais ou irregularidades metabólicas e
bioquímicas que justifiquem a sintomatologia. Para uma melhor orientação propedêutica e terapêutica, os
Tem sido relatado que cerca de 20 a 40% da população geral pacientes portadores de DF devem ser classificados de acordo
apresenta alguma queixa dispéptica (as cifras mais altas corres­ com o sintoma principal em duas síndromes: 1) Síndrome do
pondem a estudos que incluíram também o sintoma de pirose). Desconforto Pós-prandial (predomina sintoma de empacha­
Entretanto, somente cerca de 30% desses indivíduos procuram mento pós-prandial e/ou saciedade precoce, que ocorre várias
assistência médica: a dispepsia constitui a causa de 3 a 5% das vezes por semana, nos últimos 3 meses e/ou; 2) Síndrome da
consultas ambulatoriais de clínica geral, em um centro de aten­ Dor Epigástrica (predomina dor ou queimação localizada no
ção primária, e de 20 a 40% das consultas em gastrenterologia. epigástrio, moderada a intensa, intermitente e que ocorre, no
Os sintomas dispépticos podem surgir em qualquer idade e são mínimo, 1 vez/semana, nos últimos 3 meses). Critérios especí­
ficos para a classificação desses pacientes também foram esta­
mais prevalentes no sexo feminino. A intensidade da dor e/ou
belecidos pelo Comitê Roma III, como descrito a seguir:
do desconforto e a ansiedade (incluindo o medo de doenças
mais graves) se constituem nos principais motivos de procura
ao clínico e gastrenterologista.
Essa síndrome se constitui em um problema sanitário e so-
■ CLASSIFICAÇÃO DA DISPEPSIA FUNCIONAL
cioeconômico de grande relevância, não apenas por sua alta
prevalência, como também por seu caráter crônico e ausência
■ 1. Síndrome do desconforto pós-prandial
de tratamento satisfatório. Além disso, apesar de sua evolu­ (sintomas desencadeados pelas refeições)
ção benigna, pode afetar de forma significativa a qualidade de • É fundam ental a presença de pelo menos um dos crité­
vida dos pacientes, refletindo em suas relações pessoais, sociais rios seguintes:
e laborais, ocasionando alterações psicológicas, do sono e da ° Empachamento pós-prandial, que acontece necessa­
atividade sexual. riamente após refeições habituais, ocorrendo várias
Um comitê internacional de especialistas estabeleceu, nos vezes por semana, nos últimos 3 meses.
últimos anos, critérios específicos para o diagnóstico e classi­ ° Saciedade precoce, que impossibilita o término nor­
ficação da DF (Consenso Roma I, II e III), trazendo grandes mal das refeições, ocorrendo várias vezes por semana,
avanços no entendimento da síndrome, porém alguns aspectos nos últimos 3 meses.
ainda não foram elucidados, especialmente no que se refere à Outros sintomas que, se presentes, reforçam o diagnóstico:
etiopatogenia e terapêutica específica. distensão do abdome superior, náuseas pós-prandiais ou eruc-
tação; a Síndrome da Dor Epigástrica pode coexistir.

■ CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS PARA DISPEPSIA ■ 2. Síndrome da dor epigástrica


FUNCIONAL (CONSENSO ROMA III) (sintomas de dor ou queimação epigástrica)
1. Queixas dispépticos durante os últimos 3 meses e que se • Éfundamental a presença de todos os critérios seguintes:
iniciaram, no mínimo, 6 meses antes. dor ou queimação localizada no epigástrio, pelo menos

165
166 Capítulo 17 / Dispepsia Funcional

moderada, e que ocorre, no mínimo, 1 vezJsemana, nos


últimos 3 meses; dor intermitente; dor não generalizada ou
■ SECREÇÃO GÁSTRICA DE ÁCIDO
localizada em outras regiões do abdome ou tórax; dor não Tem sido demonstrada a inexistência de relação causai pri­
aliviada pela defecação ou eliminação deflatos. As caracte­ mária entre a secreção gástrica de ácido e a DF. Tanto a secre­
rísticas da dor não preenchem critérios para o diagnóstico ção basal de ácido quanto a secreção máxima de ácido pelo
dos distúrbiosfuncionais da vesícula biliar ou esfíncterde estômago são normais nos dispépticos, quando comparados
Oddi. Outros sintomas que, se presentes, reforçam o diag­ com indivíduos assintomáticos, não havendo evidências de que
nóstico: a dor pode ter características de queimação, mas
haja um subgrupo de hipersecretores. Vários estudos, no en­
sem irradiação retroesternal; a dor é comumente induzida
tanto, sugerem que alguns dispépticos funcionais possam ter
ou aliviada pela ingestão de alimentos, podendo, porém,
uma sensibilidade exagerada a infusões intragástricas de ácido,
ocorrer em jejum; a síndrome do desconforto pós-prandial
enquanto, em outros, a injeção de pentagastrina se associa à
pode coexistir.
maior frequência de episódios dolorosos. Além disso, ensaios
Esses novos critérios objetivam padronizar a linguagem terapêuticos controlados sugerem que alguns pacientes melho­
científica sobre a DF tanto no que se refere à aplicabilidade ram com antiácidos e/ou antissecretores.
clínica, ao se basear em sintomas bem definidos, como em re­
lação à pesquisa científica.
■ MOTILIDADE GASTRODUODENAL
■ FISIOPATOLOGIA Existem inúmeras evidências de que a motilidade gastrin-
testinal é anormal em uma grande parcela de pacientes com
A fisiopatologia da DF permanece desconhecida e, da mes­ DF. Malagelada e Stanghellini encontraram distúrbios de m o­
ma forma que em outros distúrbios funcionais, uma série de tilidade em 72% dos pacientes dispépticos estudados, e mais da
anormalidades fisiológicas e psicológicas tem sido identificada, metade destes pacientes apresentavam dismotilidade gástrica
embora sua real importância seja controversa. Vários fatores isolada; em aproximadamente 40%, observaram-se alterações
etiológicos são considerados como hipersecreção ácida, altera­ gástricas e intestinais associadas.
ções da motilidade gastroduodenal, da sensibilidade visceral, A contribuição de anormalidades motoras na geração de
da acomodação gástrica, fatores psicossociais, além de gastrite sintomas, no entanto, não é completamente estabelecida. Dis­
associada ao Helicobacter pylori. Importante salientar que, em túrbio motor (tipicamente retardo) do esvaziamento gástrico
alguns pacientes, vários desses fatores etiopatogênicos podem de sólidos é a alteração motora mais estudada na dispepsia.
estar presentes e, atualmente, acredita-se que uma combina­ Para responsabilizar as alterações motoras pela sintomatologia
ção de fatores fisiológicos e psicossociais seja responsável pelo dispéptica, seria necessária, no entanto, a observação temporal
quadro clínico. Tabagismo, etilismo e uso de anti-inflamatórios
direta, ou seja, a ocorrência simultânea do distúrbio motor e do
não esteroides (AINEs) não são considerados fatores de risco
sintoma, o que raramente é observado. Além disso, é também
de DF. Contudo, os pacientes portadores de DF apresentam
discutível o fato de a dismotilidade ser constante e os sintomas
maior probabilidade de desenvolver sintomas quando trata­
intermitentes. A importância clínica desses achados é, dessa
dos com AINEs.
Alguns novos mecanismos fisiopatológicos têm sido pro­ forma, muito controvertida, e a presença de sintomas sugesti­
postos, como dispepsia pós-infecciosa (sintomas surgem após vos de dispepsia tipo dismotilidade não indica, com segurança,
episódio de gastrenterite, particularmente depois de surtos de que esses pacientes tenham dismotilidade gastroduodenal e que
salmonelose), presença de inflamação crônica no duodeno (in­ possam beneficiar-se com drogas procinéticas.
filtração eosinofílica) e fatores genéticos. O gene GN beta-3 tem
sido associado com frequência à DF e este é um caminho pro­
missor para o entendimento da síndrome. ■ ATIVIDADE MIOELÉTRICA
A seguir, faremos breves considerações acerca dos principais
fatores etiopatogênicos propostos. A atividade mioelétrica da musculatura lisa do estômago
constitui a base da atividade motora gástrica. O eletrogastro-
grama (EGG), é um método não invasivo e que reflete o ritmo
mioelétrico do estômago. O EGG normal é caracterizado por
■ DIETA variações do potencial elétrico a uma frequência de três ciclos
Muitos pacientes com DF relatam que determinados alimen­ por minuto (2,4 a 3,6 cpm). As disritmias gástricas represen­
tos, especialmente os gordurosos, as frutas cítricas, os condi­ tadas por bradigastria, taquigastria ou associação dos dois rit­
mentos, o café e o álcool, promovem o aparecimento de seus mos (braditaqui) têm sido descritas em um pequeno grupo de
sintomas, porém existem poucas evidências de que esses ali­ pacientes portadores de dispepsia funcional. Alguns estudos
mentos possam sempre originar os sintomas dispépticos. Um sugerem que essas anormalidades mioelétricas possam preceder
estudo envolvendo 12 pacientes cuja sintomatologia dispép- o início do desconforto epigástrico e das náuseas.
tica era diretamente relacionada com a ingestão de alimentos
gordurosos foi incapaz de reproduzir sintomas semelhantes ao
serem oferecidos os mesmos alimentos, mas de forma disfar­ ■ HlPERALGESIA VISCERAL EALODINIA
çada e não identificada.
Nos casos mais refratários, é importante avaliar a possibili­ Nos últimos anos, inúmeros pesquisadores, usando técni­
dade de intolerância à lactose e ao glúten (doença celíaca ou cas modernas e sofisticadas, demonstraram anormalidades da
apenas hipersensibilidade ao glúten), especialmente em pacien­ sensação visceral em pacientes com distúrbios gastrintestinais
tes com sintomatologia agravada pela alimentação. funcionais, resultando em inapropriada resposta à dor.
Capítulo 17 / Dispepsia Funcional 167

De fato, muitos pacientes com DF parecem possuir um li­ motoras e de percepção visceral (hiperalgesia) desses dois gru­
miar reduzido para a dor ou respondem aos estímulos doloro­ pos de dispépticos foi incapaz de detectar diferenças entre eles,
sos com maior intensidade ou duração (hiperalgesia); outras concluindo que as alterações inflamatórias induzidas pelo mi­
vezes, a dor ou o desconforto é produzido por estímulos que crorganismo não são responsáveis pela hiperalgesia observada
normalmente não induzem tais sintomas (alodinia). em pacientes dispépticos.
Vários pesquisadores demonstraram que parcela de pacien­ Os distúrbios de motilidade estão presentes em até metade
tes com DF apresentam uma sensação de desconforto e dor dos pacientes dispépticos, sendo questionada a possibilidade
quando se insufla um balão dentro do estômago e essa hiper- de essas alterações se seguirem a uma infecção bacteriana. En­
sensibilidade se exacerba durante a infusão de lipídios intraduo- tretanto, trabalhos atuais contrariam essa hipótese ao demons­
denais. Esses dados sugerem a possibilidade de uma percepção trarem menor prevalência da infecção pelo H. pylori em dis­
visceral anormal capaz de induzir respostas exageradas nesses pépticos funcionais tipo desconforto pós-prandial.
pacientes, diante de diversos estímulos. Alguns estudos recentes Poucos estudos demonstraram um real benefício com a utili­
sugerem que o SNC processa anormalmente a informação em zação de antibióticos para a erradicação do H. pylori, e a maioria
pacientes com distúrbios gastrintestinais funcionais. dos pacientes permanece sintomática após esse tipo de trata­
Esses achados também são observados em pacientes com ou­ mento. Entretanto, estudos de metanálise, recentemente rea­
tros distúrbios funcionais, como, por exemplo, na síndrome do lizados, demonstram que a erradicação da bactéria resulta em
intestino irritável, na qual tem sido demonstrado um limiar re­ um ganho terapêutico que varia de 4 a 14%, sendo superior ao
duzido à dor quando se insufla um balão intrarretal. As bases placebo, e o tratamento anti-H. pylori é uma opção terapêuti­
das anormalidades da sensação visceral não são bem conhecidas ca para os dispépticos funcionais. Baseando-se nesses dados,
e não parecem estar relacionadas com distúrbios da motilidade os especialistas do Consenso Roma III recomendam que o H.
gastrintestinal. Estudos iniciais sugerem que essas alterações pylori seja pesquisado e, se presente, erradicado nesse grupo de
se restringem à função visceral aferente, e a sensação de dor pacientes. Da mesma forma, o último consenso europeu sobre
somática está preservada. H. pylori (Maastricht III) faz recomendação semelhante com
Nos últimos anos, diversas drogas capazes de atuar nos me­ a justificativa de que o tratamento anti-H. pylori beneficia um
canismos das sensações viscerais, reduzindo a hipersensibili- subgrupo de pacientes dispépticos, com a vantagem de reduzir,
dade do sistema digestivo e, consequentemente, melhorando a longo prazo, o risco de evolução para úlcera péptica, atrofia
a sintomatologia dispéptica, vêm sendo testadas, o que gera e câncer gástrico.
grande expectativa para o aprimoramento da terapêutica dos
pacientes com distúrbios funcionais.
■ ACOMODAÇÃO
■ GASTRITE CRÔNICA E HELICOBACTERPYLORI O esvaziamento gástrico é regulado basicamente por dois
compartimentos do estômago, distintos fisiologicamente. O
O papel da infecção pelo H. pylori em pacientes com DF estômago proximal acomoda os alimentos e regula a transfe­
permanece controvertido, mas os resultados de metanálises rência para o estômago distai. Este, por sua vez, tritura e mis­
recentes sugerem um pequeno benefício com a erradicação da tura o conteúdo intragástrico, além de participar na regulação
bactéria em pacientes infeccionados. da saída dos nutrientes para o duodeno.
Embora o microrganismo seja encontrado em cerca de 50% Muitos estudiosos têm tentado determinar se uma alteração
dos pacientes portadores de dispepsia funcionai, tal prevalência da acomodação gástrica, ou seja, a má distribuição dos alimen­
não é significativamente superior àquela observada em grupos- tos no estômago proximal, poderia levar ao aparecimento de
controles adequadamente pareados. Alguns estudos demons­ sintomas dispépticos. Alguns estudos demonstraram que as
tram que esta infecção é mais prevalente entre os dispépticos tipo alterações da acomodação gástrica são frequentes nos dispép­
úlcera do que entre aqueles com dispepsia tipo dismotilidade ou ticos funcionais.
inespecífica, sugerindo a possibilidade de que existam mecanis­ Em um recente estudo proveniente da Bélgica, foi demons­
mos fisiológicos distintos e que o H. pylori possa ter importância trado que alterações do relaxamento do estômago proximal
na patogenia de subgrupos de dispépticos funcionais. estavam presentes em até 40% dos pacientes dispépticos. Foi
Evidências irrefutáveis responsabilizam hoje esse microrga­ ainda observada uma nítida relação com o sintoma de saciedade
nismo como o principal agente causai da gastrite crônica antral precoce, mas não com hipersensibilidade gástrica à distensão.
e mesmo da pangastrite. A erradicação do H. pylori acompanha-
se quase sempre de normalização histológica da mucosa gástri­
ca, mas o efeito sobre a sintomatologia dispéptica é, no mínimo,
muito controvertido. Há, entre os leigos, e também entre os
■ EROSÕES PRÉ-PILÓRICAS
médicos, uma tendência antiga de relacionar gastrite crônica EDUODENITE CRÔNICA
com dispepsia, continuando o debate de se a gastrite é ou não
importante causa de sintomas digestivos altos. Sabemos, entre­ As erosões pré-pilóricas que podem ser observadas na en-
tanto, que a correta definição clínica, endoscópica e histológica doscopia de pacientes com dispepsia crônica têm a sua etiopa-
de gastrite não se correlaciona com sintomatologia dispéptica. togenia muito controvertida. Essas alterações podem ser en­
A dispepsia funcional é uma entidade clínica, sem marcador contradas em indivíduos normais e em pacientes em uso de
biológico conhecido, e a gastrite crônica é uma entidade histo­ anti-inflamatórios não esteroides.
lógica que evolui, em geral, sem produzir sintomas. É contraditória, também, a possibilidade de a duodenite le­
Até o momento, os estudos têm sido incapazes de estabe­ var a sintomas dispépticos. O número de pessoas com duode­
lecer algum padrão sintomatológico distinto entre os pacien­ nite, isoladamente, é pequeno (menos de 20%), associando-se,
tes dispépticos infectados e não infectados pelo H. pylori. Um na maioria das vezes, à inflamação crônica do antro gástrico.
estudo comparando o comportamento clínico, as alterações No nosso meio, associa-se às parasitoses intestinais, causa co­
168 Capítulo 17 / Dispepsia Funcional

mum de sintomas dispépticos entre nós. Na forma erosiva, é Muito frequente também é o relato de sintomas compatíveis
considerada como variante da doença cloridropéptica. com a síndrome do intestino irritável em pacientes dispépticos
funcionais. Cerca de 30% dos pacientes com diagnóstico de DF
relatam concomitantemente dor na região inferior do abdome,
■ FATORES PSICOSSOCIAIS distensão e alteração do hábito intestinal.

Os fatores psicológicos também são considerados relevantes


nesses pacientes. Diagnósticos psiquiátricos, especialmente an­ ■ AVALIAÇÃO CLÍNICA E PROPEDÊUTICA
siedade e depressão, são comuns em pacientes com DF.
O estresse agudo pode alterar a função gastrintestinal, indu­ O diagnóstico é fundamentalmente clínico, baseando-se nos
zindo sintomas até mesmo em indivíduos normais. Os estudos critérios de Roma III descritos anteriormente. Vários estudos
clássicos de Wolff e Wolff, realizados em um único paciente, recentes demonstram que não é necessário realizar uma exten­
demonstraram dois padrões de alterações funcionais do estô­ sa batería de exames para o diagnóstico de DF, sobretudo em
mago associadas a fatores emocionais: (1) hiperfunção gástrica pacientes com sintomas típicos e que não apresentam sinais
com aumento da secreção gástrica, da motilidade e da vascula- de alarme. É essencial realizar história clínica e exame físico
rização, coincidindo com períodos de sentimentos de hostili­ minuciosos, pois a anamnese bem conduzida servirá como um
dade e ressentimento; (2) hipofunção gástrica com redução da guia ao clínico para inclusão ou exclusão do diagnóstico, sele­
secreção gástrica, da motilidade e do fluxo sanguíneo durante ção dos pacientes que deverão ser investigados e a escolha da
sentimentos de medo, frustração e depressão. Outros estudos terapêutica mais adequada a ser prescrita.
subsequentes confirmaram esses achados, porém é questionável A propedêutica complementar deve ser realizada, portanto,
se tais mecanismos explicam a sintomatologia crônica observa­ de maneira individualizada e, em alguns casos, está indicado
da em dispépticos. Além disso, Camilleri et dl. demonstraram um teste terapêutico antes de se iniciar a investigação diag-
também que pacientes portadores de dispepsia funcional, com nóstica. O conhecimento dos critérios de Roma III associada a
ou sem hipomotilidade antral, apresentam respostas autonô- uma atitude positiva de considerar o diagnóstico precocemen­
mica e humoral normais em situações de estresse. te (diagnóstico de inclusão) pode levar o médico a conduzir o
Alguns estudos revelam alta incidência de neuroses, ansie­ atendimento do paciente de uma maneira mais custo eficiente
do ponto de vista de procedimentos diagnósticos. Vários fatores
dade, depressão e tensão emocional entre os dispépticos funcio­
devem ser considerados como a idade do paciente, a presença
nais quando comparados com voluntários assintomáticos, mas
dos sinais de alarme, a facilidade de acesso à investigação, os
as diferenças absolutas foram pouco significativas, sugerindo
riscos e benefícios do tratamento farmacológico e as conse­
que tais fatores eram de limitada relevância clínica.
quências econômicas desta decisão.
Evidências sugerem também que esses pacientes acham-se
O Comitê Roma III sugere que a abordagem dos pacientes
mais descontentes com o trabalho, com a qualidade de habita­
dispépticos seja separada em dois grupos: aqueles com dispepsia
ção e com a situação financeira do que os controles.
não investigada e aqueles com diagnóstico sugestivo de DF.
Atualmente, vários autores levantam a curiosa possibilidade
de que a ocorrência de eventos estressantes de vida, precedendo
os sintomas, como, por exemplo, a separação dos pais, a perda ■ Dispepsia não investigada
de familiares ou o abuso sexual na infância, é mais prevalente
A literatura atual tem sugerido alguns critérios para a ava­
entre os dispépticos, porém os resultados não têm mostrado
liação dos pacientes com dispepsia e que ainda não realizaram
diferenças significativas quando comparados com os de gru­ propedêutica:
pos-controles adequadamente pareados quanto a sexo, idade
e situação socioeconômica. 1. Avaliação da presença/ausência dos sintomas de alarme
Os fatores psicossociais e de personalidade parecem estar as­ (emagrecimento, vômitos recorrentes, disfagia progressi­
sociados a um contingente expressivo de dispépticos funcionais, va, presença de sangramento, icterícia). A presença desses
porém deve ser ressaltada a necessidade de estudos muito bem sintomas implica imediata investigação para exclusão de
elaborados, objetivando uma melhor quantificação do estresse, doenças orgânicas.
tanto agudo como crônico, e das inter-relações entre função 2. Exclusão do uso de ácido acetilsalicílico e outros anti-
gastrintestinal, sistema nervoso autônomo, limiar de dor e es­ inflamatórios não esteroides.
tresse nessa fascinante e difícil área da Gastrenterologia. 3. Na presença concomitante de sintomas típicos de refluxo,
o diagnóstico provisório deve ser de DRGE. Recomenda-
se, nesses casos, iniciar empiricamente o tratamento com
inibidores da bomba de prótons. Se os sintomas persisti­
■ SOBREPOSIÇÃO DA DF COM A DRGE E COM rem, apesar da adequada supressão ácida, o diagnóstico
A SÍNDROME DO INTESTINO IRRITÁVEL de DRGE será pouco provável.
4. Em pacientes jovens, sem sinais e sintomas de alarme,
A dor epigástrica e o desconforto pós-prandial, que carac­ exames não invasivos para pesquisa do H. pylori (teste
terizam a DF, são queixas muito comuns. O Comitê Roma III respiratório, antígeno fecal ou sorologia) podem ser rea­
recomenda que na presença concomitante de pirose e de ou­ lizados e, nos casos positivos, deve-se iniciar o tratamen­
tros sintomas típicos do refluxo, mesmo com endoscopia di­ to com antibióticos para erradicação do microrganismo.
gestiva normal, o diagnóstico de DRGE deve ser considerado. Essa estratégia - denominada testar e tratar - é muito
Por outro lado, a simples presença de pirose não deve excluir utilizada nos países de menor prevalência da bactéria e
o diagnóstico de DF, especialmente naqueles casos em que os tem sido recomendada uma vez que o tratamento do tf.
sintomas dispépticos persistem a despeito de uma adequada pylori poderia curar os casos de dispepsia relacionados
supressão ácida. com a úlcera péptica e também como prevenção de fu­
Capítulo 17 / Dispepsia Funcional 169

turas doenças gastroduodenais. É preciso ressaltar que Uma boa relação médico-paciente continua sendo funda­
apenas parcela dos pacientes portadores de DF se benefi­ mental. É necessário que os pacientes sejam esclarecidos de que
ciará com a erradicação do microrganismo, ou seja, pou­ seus sintomas são decorrentes de distúrbios funcionais e não
cos pacientes apresentarão melhora clínica significativa caracterizam nenhuma doença grave ou risco de vida, assegu­
após esse tratamento. rando-lhes que o problema será tratado de forma interessada
5. A endoscopia digestiva é recomendada para pacientes e racional.
que apresentam sinais de alarme e para aqueles com ida­ Muitos pacientes obtêm melhora com simples mudanças em
de superior a 40 anos, especialmente naqueles com início seu estilo de vida e adoção de hábitos salutares em seu cotidia­
recente dos sintomas. O limite de idade para recomen­ no como a dieta mais saudável, atividade física regular e exer­
dar endoscopia varia de acordo com a epidemiologia do cícios de relaxamento. Devemos sempre recomendar hábitos
câncer gástrico em cada região. dietéticos saudáveis (comer devagar, mais vezes/dia, menor
quantidade), evitando-se alimentos gordurosos, condimenta­
É importante ressaltar que, no nosso meio, devemos sem­ dos, ácidos, café, cigarro e álcool em excesso. O empachamen-
pre solicitar exames parasitológicos de fezes com o objetivo de to pós-prandial em geral melhora com a retirada de alimentos
excluir parasitoses intestinais, especialmente estrongiloidíase gordurosos da dieta, enquanto a saciedade precoce pode ser
e giardíase, causa frequente de sintomas dispépticos entre nós. aliviada com o fracionamento das refeições.
É preciso realizar exames seriados (no mínimo três amostras), A utilização de medicamentos está indicada para as fases
solicitando ao laboratório os métodos mais apropriados para sintomáticas, cuja duração é variável, esperando-se pelos perío­
o diagnóstico desses dois parasitos, entre os quais aqueles de dos de melhora clínica em que deverão ser suspensos. O tra­
concentração de larvas como o Baermann modificado por Mo­ tamento medicamentoso preconizado visa a aliviar o sintoma
raes e suas variações (para o diagnóstico de estrongiloidíase) e predominante.
o exame direto das fezes ou o método de flutuação em sulfato Os fatores emocionais devem ser abordados em todos os
de zinco (para o diagnóstico de giardíase). grupos de pacientes, através de uma conversa franca e aberta,
tentando também esclarecer ao paciente a provável associa­
■ Pacientes com diagnóstico de ção de seus sintomas com distúrbios emocionais. Muitas vezes,
está indicada a psicoterapia, ou outras técnicas que objetivem
dispepsia funcional a redução do estresse, sendo observada excelente resposta em
alguns subgrupos de pacientes.
O Consenso Roma III não definiu nenhuma estratégia in-
vestigatória de rotina para pacientes com diagnóstico de DF
(síndrome do desconforto pós-prandial e/ou síndrome da dor
epigástrica). A realização da endoscopia digestiva alta duran­ ■ TERAPÊUTICA ATUAL
te um período sintomático e, preferencialmente, sem terapia
O tratamento medicamentoso disponível visa principalmen­
antissecretora é fundamental para o diagnóstico. As biopsias
te a aliviar o sintoma predominante, e a estratégia terapêutica
devem ser realizadas rotineiramente durante o procedimento
vai depender basicamente da natureza e intensidade da sinto­
endoscópico, visando também a detectar o H. pylori. A erradi­
matologia, do grau do comprometimento funcional e dos fa­
cação do microrganismo tem sido recomendada nos casos po­
tores psicossociais envolvidos.
sitivos, como discutiremos a seguir. Inúmeros estudos demonstraram que a melhora clínica, du­
A ultrassonografia não é indicada de rotina, devendo ser rante e após o tratamento medicamentoso tradicional, ocorre
realizada quando houver suspeita de doença pancreática ou em menos de 60% dos dispépticos, e em geral não se observa
de via biliar. Testes de esvaziamento gástrico (cintigrafia, teste resposta uniforme a essa terapêutica. Sabemos que a DF é uma
respiratório com ácido octanoico ou ultrassom) também não síndrome heterogênea e é frequente o relato concomitante de
são em geral recomendados porque os resultados raramente pirose ou sintomas gastrintestinais baixos, o que dificulta ainda
alteram a conduta clínica. mais a real interpretação dos resultados terapêuticos.
Estudos recentes demonstraram que menos de 30% dos pa­ Deve-se lembrar que a resposta ao placebo é, em geral, mui­
cientes dispépticos apresentam retardo do esvaziamento gástri­ to alta. Estudos controlados e duplo-cegos demonstram que o
co, quando se consideram exclusivamente pacientes com dis­ placebo é capaz de promover melhora dos sintomas em um
pepsia funcional tipo síndrome do desconforto pós-prandial. grande número de pacientes (25 a 60%), indicando que a tera­
Da mesma forma, o eletrogastrograma e o barostato gástrico pêutica com drogas nem sempre é necessária.
têm sido de utilidade prática discutível na avaliação propedêu­ Para o tratamento clássico da DF, podem ser utilizados di­
tica desses pacientes. Deve-se afastar também a possibilidade versos medicamentos, destacando-se, entre eles, antiácidos,
de doença celíaca e de intolerância à lactose nos casos em que drogas antissecretoras, procinéticos, antibióticos para erradi­
houver suspeita clínica. Importante avaliar a presença de co- cação do H. pylori, ansiolíticos e antidepressivos, como mostra
fatores psicológicos, ambientais e dietéticos e o uso de medi­ o Quadro 17.1.
camentos que possam ocasionar ou agravar a sintomatologia O Comitê Roma III sugere que os inibidores da secreção
dispéptica. ácida (bloqueadores H2 ou inibidores da bomba de prótons)
sejam a primeira escolha para os pacientes com DF e predo­
mínio de dor epigástrica, e os procinéticos (metoclopramida,
■ TRATAMENTO domperidona, bromoprida) para aqueles com desconforto pós-
prandial.
A maneira mais apropriada de tratar o paciente é através de Os antissecretores são drogas seguras e se constituem em
uma abordagem ampla e global, tentando identificar fatores medicação de primeira linha para os pacientes com síndrome
desencadeantes ou agravantes da sintomatologia, inerentes a da dor epigástrica. Tanto os bloqueadores H2 como os inibi­
cada paciente. dores da bomba de prótons são amplamente prescritos e reco-
170 Capítulo 17 / Dispepsia Funcional

-------------------------------- ▼-------------------------------- na inibição da captação de serotonina dos neurotransmissores


Quadro 17.1 Tratamento farmacológico na dispepsia funcional (fluoxetina, paroxetina, sertralina e citalopram). Esses medica­
mentos têm sido utilizados por apresentarem ação analgésica
Tratam ento de 2* linha central, sendo capazes de bloquear a transmissão da dor do
Tratam ento de V linha
(eficácia a in d a incerta) trato digestivo para o cérebro. Em recente estudo, a venlafexi-
na, no entanto, não se mostrou mais efetiva do que o placebo
In ib id o re s d a b o m b a d e p ró t o n s T r a t a m e n t o a n t i -H . p y lo r i
nesses pacientes.
B lo q u e a d o r e s H , A n tid e p r e s s iv o s
Em metanálise recentemente publicada, demonstramos que
P ro c in é tic o s [e m g e r a l a s s o c ia d o s A g o n is ta s d o s r e c e p to re s 5 -H T 4
a o s a n tis s e c re to re s )
a eficácia e segurança dos antidepressivos são semelhantes às
P s ic o te ra p ia
dos procinéticos e antissecretores no alívio dos sintomas dis­
A c u p u n tu ra
pépticos. Recomenda-se iniciar com doses mais baixas do que
Novos fárm acos prom issores as convencionalmente utilizadas e, caso ocorra melhora clínica,
o tratamento deve ser mantido por 4 a 12 meses.
A n t a g o n is t a s d o s re c e p to re s d a c o le c is to c in in a
A insatisfação com a limitada resposta às terapias conven­
A g o n is t a s o p io id e s
cionais utilizadas para o tratamento da DF tem estimulado,
M o t ilin o m im é t ic o s
nos últimos anos, pacientes e médicos a buscarem terapias não
N o v o s a g o n is ta s S -H T 4
convencionais que possam ser mais eficazes do que aquelas tra­
A g o n is ta s d o s re c e p to re s 5 -H T 1
dicionalmente utilizadas. O tratamento psicológico (hipnose,
A n t a g o n is t a s d o s re c e p to re s 5 -H T 3
psicoterapia e terapia cognitiva comportamental) e/ou as te­
A n á lo g o s d a s o m a to s ta tin a
rapias alternativas (ervas chinesas, japonesas e indianas, acu­
puntura e probióticos) devem ser considerados para pacientes
com sintomas mais graves, para os que não respondem ao trata­
mento farmacológico e para aqueles com doenças psiquiátricas
mendados como terapêutica de primeira linha. Recente me- associadas. A escola de Manchester, na Inglaterra, tem relatado
tanálise sugere que os inibidores da bomba de prótons devem resultados animadores com hipnose no tratamento da DF.
ser os escolhidos, pois se mostram mais eficazes no alívio da É necessário ressaltar que a maioria dos estudos realizados
dor ou queimação epigástrica. Devem ser utilizados na dose empregando esse tipo de intervenção terapêutica não foi ran-
padrão, 1 vez/dia. Tem sido demonstrado que a prescrição de domizada, controlada com placebo e, nem tampouco, apresenta
doses mais elevadas não melhora a resposta terapêutica nos desenho metodológico adequado, o que dificulta qualquer con­
pacientes com DF. clusão sobre a possível eficácia desse tratamento na dispepsia
Os procinéticos se mostram superiores ao placebo em vários funcional. O gastrenterologista deve, no entanto, sempre in­
ensaios clínicos, estando indicados em especial para os pacien­ centivar a prática de atividades ou técnicas que envolvam rela­
tes portadores da síndrome do desconforto pós-prandial. Esses xamento físico e mental, como ginástica, ioga ou caminhadas,
medicamentos (metoclopramida, domperidona, bromoprida, respeitando obviamente as preferências de cada paciente.
cisaprida, neostigmina, ondasetron e tegaserode, além dos mo-
tilíneos derivados da eritromicina) são potencialmente capazes
de melhorar vários parâmetros da motilidade gastroduodenal ■ TERAPIAS FUTURAS
ao aumentar o tônus gástrico, a motilidade antral e, sobretu­
do, a coordenação antroduodenal, além de alguns deles serem Os novos conhecimentos fisiopatológicos têm propiciado o
capazes também de relaxar o fundo gástrico. direcionamento das pesquisas na busca de novos fármacos ca­
A melhora dos sintomas com o emprego dessas drogas tem pazes de atuar sobre a motilidade do TG1 (exercendo um efeito
sido de 20 até 45 pontos percentuais maiores que na do place­ procinético) e/ou sobre a hipersensibilidade visceral (reduzindo
bo, e os procinéticos devem ser indicados, de maneira especial, o limiar de sensibilidade), resultando teoricamente em melhora
para pacientes com sintomas de empachamento pós-prandial. global dos sintomas. É nítida, entretanto, a lacuna ainda exis­
Entretanto, Moayyedi et al, em um estudo de metanálise, ob­ tente entre a pesquisa básica e a prática médica constatada pela
servaram inúmeras falhas metodológicas ao avaliar 19 ensaios escassez de novos fármacos liberados para comercialização.
clínicos que utilizaram procinéticos na DF, o que dificulta con­ Atualmente, as principais drogas em investigação são os no­
clusões sobre a real eficácia dessas drogas no alívio dos sinto­ vos procinéticos, agentes serotoninérgicos, receptores opioides
mas dispépticos. e analgésicos viscerais. Dentre os procinéticos, estudos promis­
Observações recentes sugerem que, em um seleto grupo de sores empregando mosaprida ou tegaserode demonstraram
pacientes com queixa de saciedade precoce, os medicamentos normalização do esvaziamento gástrico nos pacientes com DF.
que relaxam o fundo gástrico como os agonistas da 5-hidro- Metanálise publicada recentemente sugere que a mosaprida é
xitriptamina (sumatriptana e buspirona) podem ser pres­ superior à cisaprida no tratamento da DF. Outras drogas como
critos. o itopride e a levosulpirida mostraram eficácia similar à de
A decisão de erradicar o H. pylori em pacientes dispépticos procinéticos tradicionais em pacientes com dispepsia tipo dis-
funcionais deve sempre levar em consideração o custo/benefí- motilidade. A fedotozina, droga que atua nos receptores káppa
cio dessa opção terapêutica. Em se optando pela erradicação, opioides, foi testada em um estudo multicêntrico preliminar e
o esquema terapêutico mais utilizado continua sendo IBP na se mostrou superior ao placebo no alívio dos sintomas dispép­
dose-padrão, claritromicina (500 mg) e amoxicilina (1 g) antes ticos. Outro agonista káppa opioide, a asimadolina, demons­
do café da manhã e antes do jantar, durante 7 dias. trou ser eficaz em reduzir a plenitude pós-prandial e a sacie­
Resultados bastante promissores têm sido obtidos com o dade precoce em voluntários saudáveis, mas estes achados não
emprego de antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, desipra- foram reproduzidos em pacientes com DF após 8 semanas de
mina e imipramina) e daqueles que atuam predominantemente acompanhamento.
Capítulo 17 / Dispepsia Funcional 171

Uma excelente revisão sobre novos procinéticos foi publica­ nisms, clinicai presentation, and managcmcnt. Am J Castroenterol, 2006;
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da recentemente e trouxe grande otimismo quanto à disponi- Furuta T & Dclchicr JC. Helicobacterpylori and non-malignant discascs. Heli-
bilização de novas drogas capazes de atuar tanto na motilidade cobacter, 2009; 14 Suppl. 1:29-35.
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drogas, a acotiamida, os derivados da motilina e da grelina têm tional dyspcpsia to cradication o f Helicobacter pylori infcction. Eur J Cas­
se mostrado eficazes em ensaios iniciais e poderão se constituir, troenterol Hepatol, 2009; 21:417-24.
Hiyama, T, Yoshihara, M, Matsuo, K et al. Mcta-analysis of thc cffects of proki­
em breve, uma nova classe de procinéticos. nctic agents in paticnts with functional dyspcpsia. / Castroenterol Hepatol,
Novos medicamentos serotoninérgicos também estão sen­ 2007;22:304-10.
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(54% vs. 43%) no alívio dos sintomas em mulheres portadoras with scrotonin agonists: a mcta-analysis of randomized controllcd trials. /
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Gastrite
Luiz Gonzaga Vaz Coelho e Maria Clara Freitas Coelho

dos inflamatórios são tipicamente ausentes ou discretos, mui­


■ INTRODUÇÃO tos autores preferem o termo gastropatia, em vez de gastrite,
Poucos termos em gastrenterologia propiciam maior confu­ nestas eventualidades.
são e ambiguidade do que gastrite. Assim, ela possui diferentes
significados para o leigo, o clínico, o endoscopista e para o pa­ ■ Gastrite aguda por Helicobacterpylori (H. pylori)
tologista. Enquanto o leigo e, mesmo alguns clínicos, a utilizam
Adquirido por via oral, o microrganismo penetra na camada
como sinônimo de sintomas mal caracterizados, hoje engloba­
de muco e se multiplica em contato íntimo com as células epite-
dos sob a denominação de dispepsia funcional ou não ulcerosa,
liais do estômago. O epitélio responde com depleção de mucina,
o endoscopista a emprega para descrever o que seriam apenas
esfoliação celular e alterações regenerativas sinciciais. As bacté­
anormalidades macroscópicas como hiperemia ou enantema de
rias aí assestadas liberam diferentes agentes quimiotáticos que
mucosa, por exemplo, que pode ser secundária a outras causas
penetram através do epitélio lesado e induzem a migração de
que não inflamação da mucosa, como hemorragia subepitelial,
polimorfonucleares para a lâmina própria e epitélio. Os produ­
dilatação capilar e depleção de mucina, sem configurar o real
tos bacterianos também ativam os mastócitos e, através de sua
sentido do termo, ou seja, a presença de inflamação aguda ou
degranulação, há liberação de outros ativadores inflamatórios
crônica da mucosa gástrica. Por outro lado, o exame histológico que aumentam a permeabilidade vascular, a expressão de m o­
de uma mucosa gástrica endoscopicamente considerada normal léculas de adesão de leucócitos nas células endoteliais e também
pode, muitas vezes, revelar inflamação extensa. contribuem para uma maior migração de leucócitos. O H. pylori
estimula o epitélio gástrico a produzir uma potente citocina, a
interleucina-8, cuja produção é potencializada pelo fator de ne-
■ CLASSIFICAÇÃO crose tumoral e pela interleucina-1 liberados pelos macrófagos
em resposta à lipopolissacáride bacteriana. Nos poucos casos
■ Gastrites agudas de infecção aguda estudados, parece haver igual envolvimen­
to do antro e corpo gástricos. Nesta fase, ocorre pronunciada
Embora raramente observadas em biopsias gástricas de ro ­ hipocloridria e ausência de secreção de ácido ascórbico para o
tina, as gastrites agudas são classificadas em três grupos: gas­ suco gástrico. A secreção ácida retorna ao normal após várias
trite aguda por Helicobacter pylori (H. pylori), gastrite supu- semanas, e a secreção de ácido ascórbico para o suco gástrico
rativa ou flegmonosa aguda e gastrite aguda hemorrágica ou persiste reduzida enquanto durar a gastrite crônica.
gastrite erosiva aguda. Esta última, também denominada por Esta fase aguda é de curta duração. Com exceção de algumas
alguns como lesão aguda da mucosa gastroduodenal (LAMGD), crianças que eliminam espontaneamente a bactéria, a resposta
pode ser secundária ao uso de álcool, ácido acetilsalicüico, anti- imune é incapaz de eliminar a infecção e, após 3 a 4 semanas,
inflamatórios, corticosteroides e em situações clínicas como ocorre um gradual aumento de células inflamatórias crônicas.
choque, trauma, cirurgias extensas, queimaduras, septicemia, Como consequência, a gastrite neutrofüica aguda dá lugar a
insuficiência respiratória, hepática ou renal, entre outras. His- uma gastrite ativa crônica.
tologicamente, independentemente da causa (álcool, drogas Embora a primoinfecção por H. pylori passe despercebida
ou eventos estressantes), o quadro acomete todo o estômago, pela maioria dos pacientes, às vezes, após um período de in­
para, a seguir, predominar no antro e duodeno. As alterações cubação variável de 3 a 7 dias, alguns indivíduos desenvolvem
histológicas se localizam apenas em áreas imediatamente ad­ um quadro clínico caracterizado por dor ou mal estar epigás-
jacentes às lesões e se caracterizam, na zona subepitelial, por trico, pirose, náuseas, vômitos, flatulência, sialorreia, halitose,
edema difuso da lâmina própria, congestão capilar e diferentes cefaleia e astenia. Tais casos expressam a ocorrência de gastri­
graus de hemorragia intersticial. Erosões podem ou não estar te aguda à histologia, conforme comprovado em alguns estu­
presentes, já que são rapidamente reparadas. Como os acha­ dos. Os sintomas tendem a permanecer por 1 a 2 semanas. As

172
Capítulo 78 / Gastrite 173

anormalidades macroscópicas são extremamente variáveis à cientes tratados clinicamente evoluindo para o óbito, contra
endoscopia, desde pequeno enantema até erosões, úlceras ou, apenas dois dos 11 tratados cirurgicamente.
mesmo, lesões pseudotumorais. Na maioria dos pacientes, as
alterações concentram-se fundamentalmente no antro, poden­
do, às vezes, comprometer também o corpo gástrico. Embora o
■ Gastrite aguda hemorrágica
quadro clínico seja autolimitado, evoluindo sem sintomas, ou As lesões agudas da mucosa gastroduodenal ou úlceras de
com sintomas persistindo por até 2 semanas, na quase totalida­ estresse se iniciam nas primeiras horas após grandes traumas
de dos casos a infecção, se não tratada, permanece indefinida­ ou doenças sistêmicas graves e acometem as regiões proximais
mente e se acompanha sempre de quadro histológico de gastrite do estômago. Ocasionalmente, podem também envolver o an­
crônica. O diagnóstico laboratorial da infecção aguda pode ser tro gástrico, duodeno ou esôfago distai. São caracterizadas por
feito através de histologia, testes respiratórios com carbono 13 múltiplas lesões hemorrágicas, puntiformes, associadas a altera­
ou 14, cultura e teste da urease. A sorologia também pode ser ções da superfície epitelial e edema. Como complicação clínica,
usada, embora, em pacientes recentemente infectados, possam a gastrite aguda pode exteriorizar-se por hemorragia digestiva
ocorrer resultados falso-negativos. alta. A sua patogenia não é bem conhecida, sendo os mecanis­
mos mais aceitos aqueles relacionados com alterações nos me­
■ Tratamento canismos defensivos da mucosa gastroduodenal. Endoscopias
A abordagem terapêutica, quando decidida, é feita da ma­ realizadas dentro de 72 h após trauma cranioencefálico ou quei­
neira usual. Embora se acredite que a hipossecreção ácida possa maduras extensas mostram anormalidades agudas da mucosa
facilitar a resposta ao tratamento, há relato da necessidade de gástrica em mais que 75% dos pacientes, e, na metade dos casos,
vários cursos de tratamento para obtenção da erradicação neste existem evidências endoscópicas de sangramento recente ou em
estágio do acometimento gástrico pelo H. pylori. atividade. Apesar disso, um percentual mínimo de pacientes
apresentará evidências hemodinâmicas consequentes à perda
aguda de sangue. Estudos epidemiológicos estimam que 1,5 a
■ Gastrite flegmonosa aguda 8,5% dos pacientes internados em unidades de terapia intensiva
É uma entidade rara, às vezes também presente em pacien­ apresentam sangramento gastrintestinal visível, podendo, entre­
tes pediátricos, que se caracteriza por infecção bacteriana da tanto, acometer até 15% daqueles que não recebem tratamento
profilático adequado. É hoje aceito que pacientes internados em
muscularis mucosa e submucosa do estômago, com infiltra­
unidades de terapia intensiva e que apresentem alto risco para
ção de células plasmáticas, linfócitos e polimorfonucleares. Na
o desenvolvimento de lesões agudas da mucosa gastroduodenal
maioria dos casos descritos, a inflamação não ultrapassa o cár-
devam receber tratamento profilático. O Quadro 18.1 apresenta
dia e o piloro, sendo a mucosa gástrica relativamente pouco
as principais indicações para tratamento profilático sugeridas
acometida. O quadro costuma se instalar como complicação
pela The American Society o f Health System Pharmacists.
de doença sistêmica ou septicemia, tendo sido descrita após
empiema, meningite e endocardite pneumocócica, entre outras.
■ Tratamento
Quando causada por agentes formadores de gás, é denominada
Estudos clínicos têm demonstrado que os inibidores de
gastrite enfisematosa. Muitas vezes, podem-se observar alguns
bomba de prótons, antagonistas dos receptores H2 e os antiá-
fatores predisponentes, como cirurgia gástrica prévia, hipoclo-
cidos reduzem a frequência de sangramento digestivo visível em
ridria, câncer gástrico, úlcera gástrica e gastrite. Na maioria dos
pacientes internados em CTI, quando comparados com grupos
casos descritos até hoje, foram isolados germes gram-positivos,
placebo ou sem nenhuma profilaxia. Embora existam estudos
especialmente Streptococcus spp.} embora Pneumococcus spp., comparando as diferentes opções terapêuticas, deve-se salientar
Staphylococcus spp., Proteus vulgaris, Escherichia coli e Clostri- que eles são ainda considerados limitados, seja pelo tamanho
dium welchii também já tenham sido identificados. O diagnós­ amostrai, seja por deficiências metodológicas.
tico clínico é muitas vezes difícil. A evolução clínica é rápida, Um grande estudo duplo-cego e randomizado comparou o
com dor epigástrica, náuseas e vômitos purulentos, constituin­ emprego de omeprazol suspensão (40 mg, duas vezes no primei­
do sintomas comumente observados. Outras vezes, podem-se ro dia, seguidos por 40 mg/dia, nos dias subsequentes, por via
encontrar sinais de irritação peritoneal. A visualização de gás orogástrica ou por sonda nasogástrica) e cimetidina intravenosa
na submucosa gástrica na radiografia simples de abdome sugere (300 mg, em bolus, seguidos por 50 mg/h) por até 14 dias em
a possibilidade de germes formadores de gás, tipo Clostridium
welchii. Com frequência, o diagnóstico é feito através de lapa-
rotomia exploradora ou, mesmo, na necropsia. Leucocitose
com desvio para a esquerda é quase sempre descrita, sendo a ------------------------------------▼------------------------------------
amilase normal. O estudo radiológico do estômago revela es- Quadro 18.1 Indicações de tratamento profilático para lesões agudas
pessamento das pregas gástricas com redução da distensibili- de mucosa gastroduodenal em pacientes internados
dade antral. Sendo a mucosa gástrica habitualmente poupada, em unidades de terapia intensiva*•
a biopsia convencional pode não definir o diagnóstico, sendo
necessário o uso de procedimentos especiais para se obter ma­ • C o a g u lo p a t ia , d e fin id a c o m o c o n t a g e m p la q u e t á r ia in fe rio r
terial da submucosa gástrica. a 5 0 .0 0 0 / m m \ R NI > 1 ,5, o u P T T > 2 v e z e s o c o n tro le .

• V e n tila ç ã o m e c â n ic a p o r m a is q u e 4 8 h.
■ Tratamento • A n t e c e d e n t e s d e u lc e ra ç ã o g a s trin te s tin a l o u s a n g r a m e n t o n o a n o
A terapêutica inclui o emprego de antibióticos de amplo a n te rio r.

espectro associado à drenagem cirúrgica ou endoscópica da • D o is o u m a is d o s s e g u in t e s fa to re s d e risco : se pse, a d m is s ã o n o C T I p o r


m a is q u e u m a s e m a n a , s a n g r a m e n t o d ig e s t iv o o c u lt o p o r m a is d e
parede gástrica. Outras vezes, se torna necessária a realização
6 d ia s e u s o d e c o rtic o s te ro id e s (m a is q u e 2 5 0 m g d e h id r o c o rt is o n a
de cirurgias de ressecção. Na série de 25 pacientes compilada o u e q u iv a le n t e ).
por Miller et a l, a mortalidade geral foi de 67%, com os 14 pa­
174 Capítulo 18 / Gastrite

359 pacientes mecanicamente ventilados por mais que 48 h e Schindler, levaram em consideração os aspectos morfológicos
com pelo menos um fator de risco adicional. Pacientes em uso em especial, além de se dirigirem fundamentalmente para o estu­
de omeprazol apresentaram menos sangramento digestivo visí­ do das formas crônicas, inequivocamente as mais prevalentes.
vel (19 vs. 32%), embora não houvesse diferenças significantes As contradições existentes entre as diversas classificações das
entre sangramento persistente (3,9 vs. 5,5%), necessidade de gastrites e a imperiosa necessidade de se uniformizar a termino­
hemotransfusão (2,8 vs. 2,8%), pneumonia (11,2 vs. 9,4%) ou logia após a identificação e reconhecimento do H. pylori como o
morte (15,2 vs. 11,6%). principal agente etiológico da gastrite crônica determinaram o
Embora o emprego de IBP (omeprazol e pantoprazol) IV desenvolvimento, em 1990, de uma nova classificação denomi­
promova efetiva redução da acidez gástrica, não existem evi­ nada Sistema Sydney para a classificação das gastrites. Em 1994,
dências convincentes que confiram benefícios superiores àque­ 4 anos após sua introdução, o Sistema Sydney foi reavaliado,
les obtidos por outras estratégias terapêuticas menos onerosas, sendo mantidos os princípios gerais e a graduação do que foi
como os antagonistas dos receptores H2IV, na profilaxia das originalmente proposto em 1990, e acrescentada uma escala
lesões agudas da mucosa gastroduodenal. analógica visual com o objetivo de tornar mais homogêneas e
menos subjetivas as graduações das gastrites. A terminologia
da classificação final foi também aperfeiçoada para enfatizar a
■ Gastrites crônicas distinção entre gastrite atrófica e não atrófica. Para o adequado
Em decorrência do desconhecimento da etiologia das prin­ estudo das gastrites, é recomendada a realização de, pelo menos,
cipais formas de gastrite e pelo fato de as gastrites agudas rara- cinco biopsias, sendo uma da grande e outra da pequena cur­
mente constituírem um problema para o patologista, pois habi­ vatura gástrica, a 2 a 3 cm do piloro, uma da incisura angular,
tualmente são afecções transitórias e quase nunca biopsiadas, as uma da pequena curvatura a 4 cm acima do angulus e outra na
diferentes classificações das gastrites propostas, desde 1947, por grande curvatura a 8 cm do cárdia. O Quadro 18.2 mostra a

---------------------------------------------------------------
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ ▼

Quadro 18.2 Classificação das gastrites baseada na topografia, morfologia e etiologia, segundo o Sistema Sydney atualizado

Tipo de gastrite Fatores etioiógicos Sinônim os em pregados

N ã o a t r ó fic a H e lic o b a c t e r p y lo r i S u p e rfic ia l


O u t r o s fa tores? G a s trite a n tra l d ifu sa
G a s trite a n tra l c rô n ic a
In te rs tic ia l-fo lic u la r
H ip e rs e c re to ra
T i p o B*

A t r ó fic a
A u t o im u n e A u t o im u n id a d e T i p o A*
D ifu s a d o c o r p o
A s s o c ia d a a a n e m ia p e rn ic io s a

A tró fic a m u ltifo c a l H e lic o b a c t e r p y lo r i T i p o Ba, t i p o A B "


D ie ta A m b ie n t a l
F a to re s a m b ie n ta is ? M e ta p lá s tic a

F o r m a s e s p e c ia is
Q u ím ic a b Irrita ç ã o q u ím ic a R ea tiva
Bile R e flu x o
A IN E S A IN E S
O u t r o s a g e n te s ? T ip o C

R a d ia ç ã o L e s ã o r a d ió g e n a

Lin fo c ítica Id io p á tic a ? V a r io lifo r m e (à e n d o s c o p ia )


M e c a n is m o s im u n e s
G lú t e n A s s o c ia d a a d o e n ç a c elía ca
H . p y lo r i?
D r o g a (tic lo p id in e )

G r a n u lo m a t o s a s n ã o infe cciosa s D oença d e C ro h n G r a n u lo m a s iso la d o s


S a rc o id o s e
G r a n u lo m a t o s e d e W e g e n e r e o u tra s v a s c u lite s
C o r p o e s tr a n h o
Id io p á tic a

E o s in o fílic a S e n s ib ilid a d e a lim e n t a r A lé rg ic a


O u t r a s a le rg ia s

O u t r a s g a s trite s infe cc io sa s B a c té ria s (n ã o H . p y lo ri) F le g m o n o s a


V íru s C it o m e g a lo v ír u s
Parasitas A n is a k ía se
Fungos

AINES ■ anti-inflamatórios náo esteroides.


•Nomenclaturas e m pregando letras d o alfabeto, já abandonadas no Sistema Sydney inicial, foram aqui tam bém abandonadas. 0 em prego d o term o
"tipo B 'd e n o ta n d o tanto gastrites atróficas com o náo atróficas é considerado particularm ente contundente.
b M uitos investigadores preferem o term o gastropatia em lugar de gastrite para descrever lesões resultantes de agressão quím ica.
Capítulo 18 / Gastrite 175

classificação das gastrites crônicas baseadas na topografia, mor- testinal como células caliciformes, células absortivas, células de
fologia e etiologia, segundo o Sistema Sydney atualizado. Paneth e células endócrinas.
A atrofia da mucosa gástrica associada à gastrite crônica
sinaliza para a possibilidade da existência de metaplasia in­
■ Gastrite crônica associada ao Helicobacter testinal ou torna sua ocorrência mais provável. A associação
pylori (H. pylori) entre metaplasia intestinal e sinais histológicos conspícuos de
atrofia glandular ocorre na maioria dos casos, não oferecendo
O H. pylori é hoje considerado o principal agente etiológico
dificuldade diagnóstica. Como já é conhecido, os pacientes que
em mais de 95% das gastrites crônicas. Essa bactéria coloniza apresentam gastrite crônica que afeta, em graus semelhantes,
a mucosa gástrica humana com mínima competição por parte
tanto o antro quanto o corpo do estômago (pangastrite crôni­
de outros microrganismos e parece estar particularmente adap­ ca) costumam evoluir com atrofia glandular do estômago e são
tada a esse ambiente. Embora a presença do H. pylori evoque exatamente os casos em que o câncer gástrico desenvolve-se
resposta imune local e sistêmica, a infecção, uma vez adquirida, com mais frequência. Em relação ao carcinoma gástrico tipo
persiste para sempre, sendo raramente eliminada espontanea­ intestinal, o elo principal entre estas lesões precursoras é admi­
mente. Mais ainda, é sempre acompanhada por gastrite histo- tido como sendo a metaplasia intestinal. Tendo em vista a alta
lógica, de intensidade variável.
frequência de metaplasia intestinal e a relativa baixa frequência
O antro é tipicamente a primeira região a ser acometida, do câncer gástrico, alguns autores ressaltam que a atrofia da
podendo às vezes predominar o comprometimento do corpo mucosa gástrica seria tão relevante quanto a metaplasia intes­
ou, mesmo, de todo o órgão (pangastrite). A distribuição do tinal, ou mais, em relação à carcinogênese gástrica.
H. pylori no estômago é importante, pois parece ser um indica­ Gastrite atrófica, atrofia gástrica e metaplasia intestinal cons­
dor do padrão de evolução da gastrite. Assim, indivíduos com tituem sequelas frequentes de gastrite crônica secundária à in­
gastrite predominantemente antral terão secreção gástrica nor­ fecção por H. pylori. Um grande estudo multicêntrico japonês
mal ou elevada graças à manutenção de mucosa oxíntica íntegra relatou a presença de gastrite atrófica em 89,2% dos indivíduos
e poderão ter um risco aumentado para úlcera duodenal. Indiví­ infectados e em apenas 9,8% naqueles não infectados. Da mes­
duos com gastrite acometendo de forma predominante o corpo ma forma, metaplasia intestinal foi detectada em 43,1% dos in­
do estômago terão secreção ácida reduzida, em consequência da divíduos H. pylori positivos, enquanto somente 6,2% daqueles
destruição progressiva da mucosa oxíntica. Histologicamente, não infectados apresentavam tal anormalidade.
exibem uma mistura de gastrite crônica superficial e alterações
atróficas com tendências a progredir com o passar dos anos ■ Tratamento
(ou décadas), podendo ocorrer também o desenvolvimento de Como inúmeros indivíduos portadores de dispepsia funcio­
metaplasia intestinal. Estima-se que a gastrite crônica do corpo nal albergam o H. pylori e, portanto, são também portadores de
gástrico, associada a atrofia acentuada, eleva de três a quatro gastrite crônica, muitos clínicos optam pelo tratamento anti-H.
vezes o risco de carcinoma gástrico, do tipo intestinal. pylori nessa eventualidade. Entretanto, as evidências são contro­
A gastrite crônica do antro associada a H. pylori é habitual­ versas no tocante ao benefício da erradicação do microrganis-
mente uma condição assintomática. Apesar de alguns estudos mo na resolução dos sintomas. É estimado que seja necessário
tentarem associá-la à dispepsia funcional, a maioria dos estudos realizar o tratamento em 15 pacientes para obtenção de alívio
não encontrou correlação entre sintomas gastrintestinais e a sintomático em um paciente.
extensão ou intensidade da gastrite. Desta forma, o principal É hoje bem estabelecido que a erradicação do H. pylori pro­
significado clínico da gastrite crônica associada ao H. pylori re­ move remissão da gastrite ativa e reduz, enormemente, a inci­
side em sua estreita associação etiológica com a úlcera péptica dência e/ou recorrência da doença ulcerosa.
duodenal e com o carcinoma e linfoma gástrico. No homem, a gastrite crônica ativa reverte ao normal após
A sequência infecção pelo H. pylori —>gastrite crônica —> a erradicação do microrganismo. Entretanto, há dúvidas sobre
atrofia glandular - » metaplasia intestinal constitui um conjunto uma eventual regressão da atrofia gástrica e da metaplasia in­
de alterações associativas muito frequentemente observado na testinal, lesões consideradas como condições pré-neoplásicas.
espécie humana e desencadeado pela infecção pelo H. pylori ou Alguns estudos sugerem que a regressão possa ocorrer em pa­
tendo como passo inicial essa infecção. Embora a progressão cientes acompanhados por longos períodos, enquanto outros
da atrofia e da metaplasia, associadas ao H. pyloriypossa trazer sugerem que a erradicação da bactéria seja capaz de impedir a
outras consequências fisiopatológicas como a úlcera péptica, progressão das lesões atróficas e metaplásicas. Vale lembrar que,
o ponto de maior interesse está localizado, hoje, no desenvol­ naqueles pacientes nos quais a bactéria não é erradicada, as le­
vimento do câncer gástrico. Entre elas, a mais importante é o sões progridem ou não se alteram. Os resultados obtidos nestes
adenocarcinoma tipo intestinal que, de acordo com muitos, estudos mostram que, em relação às condições pré-neoplásicas
podería ser colocado como a etapa final da sequência evoluti­ - atrofia e metaplasia intestinal -, a erradicação do microrga­
va anteriormente descrita, em um número significativo de pa­ nismo, embora não tenha promovido a sua regressão, parece ter
cientes. Portanto, atrofia glandular e metaplasia intestinal são sido capaz de impedir sua progressão. Em relação ao resultado
consideradas, hoje, como corresponsáveis pelo câncer gástrico do tratamento da bactéria na prevenção do câncer gástrico, o
do tipo intestinal, havendo controvérsias na literatura acerca estudo mais longo e com maior número de pacientes mostrou
do grau de importância de cada uma. que a erradicação do H. pylori é capaz de reduzir a incidência
Metaplasia intestinal no estômago se refere à reposição de câncer gástrico apenas nos indivíduos sem alterações histo-
progressiva do epitélio gástrico pelo epitélio tipo intestinal, ou lógicas (atrofia e/ou metaplasia) prévias.
seja, por um epitélio neoformado que apresenta características Concluindo, o real valor da erradicação do H. pylori na pre­
bioquímicas e morfológicas (tanto à microscopia óptica como venção do câncer gástrico ainda carece de novos estudos envol­
à eletrônica) do epitélio intestinal, tanto do delgado como do vendo grande número de pacientes, acompanhados por longos
cólon. Assim sendo, o epitélio metaplásico pode ser constituí­ períodos de tempo e com controle cuidadoso das condições
do por diferentes linhagens de células próprias da mucosa in­ subjacentes da mucosa gástrica dos pacientes, quando da en­
176 Capítulo 18 / Gastrite

trada, e ao longo do estudo. Importante salientar que, mes­ pode ser detectada através da secreção gástrica basal e estimu­
mo reconhecendo estas limitações e dificuldades, o Consenso lada. A medida isolada do pH gástrico em jejum pode mostrar
Pacífico-Asiático para Prevenção do Câncer Gástrico delibe­ também uma boa correlação com hipocloridria verdadeira ob­
rou, pela primeira vez, em 2008, que é tempo de tentar intervir servada na gastrite do corpo e fundo. As determinações séricas
na prevenção desse câncer, recomendando a pesquisa e tra­ de pepsinogênio, especialmente a relação entre pepsinogênio I
tamento da infecção por H. pylori em toda a população asiá­ e II, constituem testes não invasivos promissores para a detec­
tica moradora em regiões de alto risco, definidas como aquelas ção de gastrite atrófica do corpo e antro.
onde a incidência de câncer gástrico na população é superior a
20/100.000 habitantes.
■ Tratamento
A gastrite crônica autoimune do corpo é assintomática na
■ GASTRITE CRÔNICA AUT0IMUNE maioria dos pacientes e, desta forma, não requer tratamento.
A presença, entretanto, de anemia perniciosa exige a reposi­
Conhecida também como gastrite tipo A, acomete o corpo ção de vitamina B,2, por via parenteral, na dose de 200 |ig por
e fundo gástricos, raramente atingindo o antro. Caracteriza- mês, durante toda a vida. Tal terapêutica corrige as alterações
se por uma atrofia seletiva, parcial ou completa, das glândulas hematológicas, embora não interfira na histologia da mucosa
gástricas no corpo e fundo do estômago, ocorrendo uma subs­ gástrica. A presença de deficiência de ferro obriga a investigação
tituição, parcial ou completa, das células superficiais normais cuidadosa para neoplasias de estômago e cólon antes de mera
por mucosa tipo intestinal (metaplasia intestinal). A mucosa terapêutica de reposição. Diarréias frequentes podem sugerir
antral, por quase não ser acometida nesta entidade, mantém ocorrência de supercrescimento bacteriano.
sua estrutura glandular normal e apresenta células endócrinas Não há ainda consenso sobre como devem ser acompanha­
hiperplásticas. dos, ao longo do tempo, os portadores de gastrite crônica au­
Funcionalmente, a atrofia das glândulas gástricas do cor­ toimune do corpo para se evitar sua complicação mais temida
po se associa com hipocloridria (atrofia parcial) ou, em casos - o câncer gástrico. Pacientes com anemia perniciosa parecem
avançados, acloridria, secundária à redução da massa de cé­ ter um risco para carcinoma gástrico até três a cinco vezes su­
lulas parietais; paralelamente, há um decréscimo também na periores a indivíduos controles. A decisão por seguimento com
secreção de fator intrínseco, podendo ocasionar a redução da exames endoscópicos irá depender dos achados iniciais e sin­
absorção de vitamina B , , e o aparecimento de manifestações tomas: caso a endoscopia inicial, com biopsias realizadas em
clínicas da anemia perniciosa. A preservação funcional da m u­ diferentes áreas do estômago, não observe carcinoma, pólipos
cosa antral resulta em estimulação constante das células G com adenomatosos, tumores carcinoides ou displasia acentuada,
hipergastrinemia. provavelmente não há necessidade de acompanhamento en-
Evidências imunológicas e experimentais sugerem um doscópico, principalmente na ausência de história familiar de
componente autoimune nesta entidade. Assim, a maioria dos câncer gástrico e naqueles procedentes de regiões onde o cân­
pacientes apresenta testes imunológicos positivos, enquanto cer gástrico não é epidêmico. A conduta na presença de dis­
vários evoluem com outras doenças autoimunes, como, por plasia acentuada é também controvertida, com alguns autores
exemplo, as tireoidites autoimunes. Estudos em famílias de sugerindo a repetição anual de endoscopias com biopsias. Por
portadores de gastrite atrófica demonstram uma incidência outro lado, um extenso estudo de acompanhamento a longo
aumentada de gastrite em parentes de primeiro grau, sugerin­ prazo realizado por investigadores da Clínica Mayo, nos EUA,
do uma base genética, sendo a anemia perniciosa, a expressão não observou risco aumentado para carcinoma gástrico em
final da gastrite crônica autoimune do corpo, hoje considerada portadores de anemia perniciosa. Os tumores carcinoides gás­
como determinada por um gene autossômico único. tricos são encontrados em 2 a 9% dos pacientes com anemia
A gastrite autoimune é assintomática do ponto de vista gas- perniciosa, sendo a maioria deles assintomáticos. Microsco­
trintestinal, advindo sintomas hematológicos e/ou neurológicos picamente, são constituídos de células ECL e, à macroscopia,
na ocorrência de anemia perniciosa. Em decorrência da aclo­ apresentam-se habitualmente como lesões polipoides, pequenas
ridria, com a consequente elevação do pH gástrico, tem sido (< 1 cm), frequentemente múltiplas, localizadas no corpo gás­
descrita uma maior suscetibilidade desses pacientes a infecções trico. Tumores pequenos e assintomáticos podem ser removi­
entéricas por bactérias, vírus e parasitos. dos endoscopicamente; tumores sintomáticos, com frequência
O diagnóstico da gastrite crônica autoimune do corpo é emi­ avançados, podem ser removidos cirurgicamente. Alguns au­
nentemente histopatológico. À endoscopia, quando se insufla tores sugerem que a antrectomia isoladamente, ao promover a
ar no estômago, o pregueado mucoso do corpo se desfaz to­ retirada das células G e abolir a hipergastrinemia, propiciaria
tal ou parcialmente e observa-se uma mucosa de aspecto liso, a regressão do tumor, estando assim indicada em portadores
brilhante e delgado, com os vasos da submucosa facilmente de carcinoides gástricos múltiplos. Tal conduta obviamente
visualizados. Deve-se proceder à coleta simultânea de material necessita de maiores estudos.
para exame histopatológico do corpo e antro gástricos, para se
ter certeza da localização do processo inflamatório. Os índices
de concordância da histologia com a endoscopia são confli­ ■ GASTRITES QUÍMICAS
tantes, embora, nos casos mais avançados, a correlação seja
razoavelmente boa. Anticorpos anticélula parietal e antifator Terminologia adotada no lugar de designações encontra­
intrínseco, embora presentes em até 90% dos portadores de das em outras classificações, como gastrites reativas, gastrite
anemia perniciosa, com frequência estão ausentes em porta­ de refluxo ou gastrite tipo C. Engloba os achados observados
dores de gastrite atrófica apenas, sem alterações hematológicas. no refluxo biliar, em associação com certas drogas ou sem rela­
A gastrina sérica acha-se comumente elevada, embora possa ção causai evidente, porém com aspectos histológicos comuns,
estar normal ou reduzida em um pequeno número de casos, constando de hiperplasia foveolar, edema, vasodilatação, fibrose
quando a atrofia atinge também o antro gástrico. A acloridria ocasional e escassez de componente inflamatório.
Capítulo 18 / Gastrite 177

resultados. O ácido ursodesoxicólico tem sido utilizado com o


■ Gastrite química associada ao refluxo biliar objetivo de tornar a bile menos tóxica para a mucosa gástrica,
Refluxo enterogástrico é um fenômeno comum após pro­ ao reduzir a proporção de ácido cólico, desoxicólico e litocólico
cedimentos de ressecção gástrica, independentemente do tipo na bile, embora o número de estudos controlados ainda seja
de reconstituição do trânsito empregada, seja Bilroth I ou II. muito pequeno. Por fim, drogas procinéticas, como metoclo-
Também tem sido observado após vagotomia troncular com pramida e domperidona, têm sido testadas com resultados va­
piloroplastia e, quando presente, é de mínima monta depois de riáveis, não ficando claro se, quando melhoram os sintomas, o
vagotomia superseletiva. Entre os achados histológicos, a hiper- fazem através da resolução da gastrite ou da redução da estase.
plasia foveolar com alongamento e/ou tortuosidade constitui o Naqueles pacientes portadores de gastrite reativa associada ao
achado histológico mais sugestivo de gastrite reativa associada refluxo biliar que não respondem ao tratamento clínico e que
ao refluxo biliar. Na maioria dos casos sintomáticos, o quadro evoluem com sintomas debilitantes como desnutrição grave e
se desenvolve após cirurgia gástrica para úlcera péptica, com a perda de peso importante, diversos procedimentos cirúrgicos
sintomatologia se iniciando dentro de poucas semanas a vários capazes de impedir o refluxo duodenogástrico devem ser cui­
anos depois do ato cirúrgico. A exata incidência é desconheci­ dadosamente considerados.
da, com alguns estudos sugerindo que possa ocorrer em até 9%
dos pacientes operados. Os casos descritos em pacientes sem
cirurgia gástrica anterior estão quase sempre associados à co-
■ Gastrite linfocítica
lecistectomia prévia. Clinicamente, o quadro se caracteriza por Denominada como gastrite varioliforme ou gastrite erosiva
dor epigástrica, vômitos biliosos, perda de peso e anemia. A dor crônica pelos endoscopistas em outras classificações, se carac­
não é aliviada por antiácidos ou outros antiulcerosos, se agra­ teriza pela presença de múltiplas nodulações com erosões cen­
vando com os alimentos e, com frequência, se associando com trais e hiperemia circunjacente. As erosões têm, em média, 0,5
eructações pós-prandiais, distensão abdominal e pirose; menos a 1 cm de diâmetro e se distribuem em filas no topo de pregas
frequentemente, pode ocorrer anemia secundária à perda oculta geralmente espessadas.
de sangue pelas fezes. A correlação entre refluxo duodenogás- A etiologia é desconhecida, e um mecanismo de hiper-
trico, sintomas e a presença de gastrite é incerta. Embora alguns sensibilidade parece estar envolvido. Alguns autores também
estudos demonstrem que a infusão de suco duodenal autólogo postulam que ela possa representar uma forma particular de
no remanescente gástrico possa reproduzir os sintomas em pa­ resposta imunológica a determinados casos de infecção pelo
cientes previamente sintomáticos, a maioria dos pacientes com H. pylori, ou uma manifestação de doença intestinal, tipo celíaca
gastrite e/ou refluxo é, na verdade, assintomática. Desta forma, ou espru, em que a infiltração linfocítica, observada nestas en­
o diagnóstico se baseia na presença de sintomas e na exclusão tidades, pudesse acometer o epitélio gástrico. Sua presença é
de outras afecções como úlcera pós-operatória, obstrução piló- raramente observada. Entre nós, Ribeiro et al., em Belo Hori­
rica, síndrome de alça eferente, síndrome do intestino irritável, zonte, estudando 800 biopsias gástricas de rotina, encontraram
afecções biliopancreáticas, dentre outras. O estudo da secreção apenas seis casos de gastrite linfocítica. A maior parte dos pa­
gástrica normalmente mostra hipo ou acloridria, com mínima cientes é assintomática, alguns podem apresentar sintomatolo­
resposta ao estímulo com pentagastrina. Em alguns pacientes, gia sugestiva de úlcera péptica e/ou evidências de hemorragia
a determinação de gastrina sérica auxiliará na exclusão de esta­ digestiva alta, manifesta ou oculta. O diagnóstico é suspeitado
dos hipergastrinêmicos como a síndrome do antro retido após pelo padrão macroscópico à endoscopia. O exame histológico
ressecção a Billroth II, gastrinoma ou hiperplasia de células G. revela a presença de mais de 30 linfócitos intraepiteliais/100 cé­
O Bilitec 2000, instrumental que inclui eletrodos posicionados lulas epiteliais, enquanto, em estômagos normais, se observam,
no estômago e/ou no esôfago, é capaz de monitorar por 24 h, no máximo, sete linfócitos intraepiteliais/100 células epiteliais
através de propriedades espectrofotoquímicas, a exposição das (Figura 18.1). A história natural é variável, com alguns pacien­
mucosas destes segmentos a material refluído contendo bilirru- tes se tornando assintomáticos em poucas semanas ou perma­
bina. Constitui hoje o melhor método diagnóstico para a pre­ necendo com queixas dispépticas, contínuas ou intermitentes
sença de refluxo alcalino, duodenogástrico ou gastresofágico. por anos.
Finalmente, estudos de esvaziamento do remanescente gástrico,
empregando métodos isotópicos, podem ser necessários para ■ Tratam ento
avaliar distúrbios de motilidade, já que a cirurgia de derivações Bloqueadores dos receptores H2, cromoglicato de sódio e
em Y de Roux pode não beneficiar, ou mesmo agravar, pacien­ corticosteroides são, por vezes, prescritos em casos especiais.
tes com estase apreciável do coto gástrico. Um recente estudo inglês avaliou 11 pacientes com gastrite lin­
focítica e infecção por H. pylori, antes e depois da erradicação
■ Tratam ento do microrganismo, sugerindo que a erradicação proporciona
Nenhum tratamento clínico tem se mostrado eficaz na abor­ uma redução significativa dos linfócitos intraepiteliais e da in­
dagem desta síndrome. A base da terapêutica consiste em re­ flamação da mucosa oxíntica, melhorando também a sintoma­
duzir a exposição da mucosa gástrica aos agentes agressivos tologia dispéptica.
presentes no material refluído, seja por inativação ou impedi­
mento de sua entrada no estômago. O emprego de resinas de
trocas iônicas, como a colestiramina ou colestipol, que se liga
■ Gastrites granulomatosas não infecciosas
aos sais biliares, pode ser tentado, embora os resultados sejam Constituem cerca de 0,3% de todas as gastrites e se caracteri­
quase sempre insatisfatórios e elas possam provocar constipação zam pela presença de infiltrado granulomatoso. Funcionalmen­
intestinal e excesso de gases. Devem ser empregados também te, o granuloma representa uma reação inflamatória localizada
com cautela em pacientes submetidos à vagotomia e com esta­ em resposta a inúmeros fatores desencadeantes, muitas vezes de
se gástrica, pelo risco de desenvolvimento de bezoares. Outros etiologia não definida. Entre os fatores etiológicos conhecidos,
agentes capazes de se ligar aos sais biliares, como os antiácidos encontram-se os granulomas do tipo corpo estranho em reação
contendo alumínio e o sucralfato, não têm apresentado bons à presença de fio de sutura e talco, granulomas secundários a in-
178 Capítulo 18 / Gastrite

■ Tratam ento
O tratamento do acometimento gastroduodenal é semelhan­
te àquele empregado nas formas mais distais, com exceção das
formulações pH-dependentes da mesalazina e da sulfassalazina.
A presença de sintomas de obstrução da via de saída gástrica
pode requerer dilatação com balão ou, mesmo, cirurgia.

■ Sarcoidose
O envolvimento gástrico pela sarcoidose é sempre secundá­
rio à forma sistêmica do processo. Assim, o diagnóstico é rea­
lizado pela presença de granulomas gástricos, frequentemente
múltiplos, associado a evidências de adenomegalias hilares,
doença fibronodular dos pulmões, lesões líticas das falanges,
anergia cutânea ou teste de Kveim positivo. Sarcoidose gástrica
é responsável por 1 a 21% dos casos de inflamação granuloma­
tosa do estômago. A maior parte dos casos é assintomática, e
as anormalidades endoscópicas mais encontradas incluem no-
dularidade mucosa, alterações polipoides, erosões, ulcerações
e, às vezes, rigidez da parede gástrica simulando linite plástica.
Na ausência de acometimento pulmonar ou mediastinal e de
outras possíveis causas de gastrite granulomatosa, a presença
de hipergamaglobulinemia, hipercalciúria, níveis elevados de
enzima conversora de angiotensina, testes de função pulmonar
com padrão restritivo e captação ativa de gálio à cintigrafia são
indicativos de sarcoidose como principal etiologia da gastrite
granulomatosa.

■ Tratam ento
Embora não existam ensaios clínicos disponíveis, a corti-
coterapia parece efetiva nas formas gastrintestinais de sarcoi­
dose. Habitualmente, recomenda-se o uso de prednisona, 20 a
Figura 18.1 Detalhe da mucosa gástrica de paciente com gastrite 40 mg/dia, com redução progressiva. A duração do tratamento
linfocítica. Em A, observa-se visão panorâmica do epitélio gástrico com
irá depender da resposta clínica. Metotrexato, clorambucila,
contagem elevada de linfócitos intraepiteliais (LIE) (HE, x80). Em B
visáo em detalhe de epitélio gástrico com contagem elevada de LIE azatioprina, infliximabe e ciclosporina são alternativas para os
(HE, x500). (Gentileza do Prof. Alfredo J.A. Barbosa, Departamento de casos refratários à prednisona.
Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da UFMG.) (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Gastrite eosinofílica
Eosinófilos e leucócitos são normalmente encontrados na
mucosa e submucosa do trato digestivo superior. A gastrente-
fecções como tuberculose, sífilis, histoplasmose, esquistossomo- rite eosinofílica é uma afecção rara caracterizada por infiltrado
se etc., além daqueles secundários a neoplasias como linfomas eosinofílico denso na parede do estômago e intestino delgado.
e carcinomas e a doenças idiopáticas como sarcoidose, doença Embora sua etiologia seja desconhecida, fatores alérgicos (50%
de Crohn ou gastrite granulomatosa isolada, entre outras. têm história de atopia anterior, como urticária, asma ou rinite),
alimentares (alguns alimentos podem desencadear sintomas
intestinais) e a presença de parasitos têm sido considerados.
■ Doença de Crohn Três formas de apresentação são descritas, considerando a in­
O acometimento gastroduodenal é raro e geralmente acom­ tensidade e localização do infiltrado: acometimento predomi­
panha a doença intestinal. Raramente, se constitui na única nante da mucosa, da parede muscular ou da serosa. Nas formas
manifestação da doença. Um estudo endoscópico e histológi- de acometimento mucoso predominante, o antro é mais fre­
co de 62 pacientes com doença de Crohn ileocolônica encon­ quentemente acometido e, endoscopicamente, as pregas estão
trou gastrite crônica H. pylori negativa em 21 (32%) pacientes espessadas, podendo haver nodosidades, ulcerações ou pólipos
e granuloma em quatro deles. Os granulomas costumam ser gástricos contendo agregados de eosinófilos e linfócitos (Figura
pequenos, escassos e, muitas vezes, não são encontrados. O 18.2). A sintomatologia inclui náuseas, vômitos, diarréia, dor
exame endoscópico pode mostrar úlceras aftosas ou serpigi- abdominal e perda de peso.
nosas, especialmente no antro, e uma mucosa com o aspecto O diagnóstico é estabelecido pela presença de aumento do
clássico de calçamento de rua (cobblestone). Com o progredir número de eosinófilos na parede gástrica, pela infiltração de eo­
da doença, o antro tende a se afunilar, sendo o duodeno contí­ sinófilos nas glândulas gástricas na ausência de envolvimento de
guo também afetado, mas a ocorrência de fístulas é raramente outros órgãos e na exclusão de outras causas de eosinofilia.
observada. Essa entidade é, muitas vezes, assintomática, salvo Eosinofilia periférica pode faltar em 20% dos casos.
naquelas situações de obstrução da via de saída do estômago Quando presente, representa 5 a 35% dos leucócitos, com
ou da presença de ulceração gástrica ou duodenal. valores absolutos em torno de 2.000 células/jii. Anemia ferro-
Capítulo 78 / Gastrite 179

■ Tuberculose
A tuberculose raramente acomete o estômago. Possivelmen­
te, a virtual ausência de folículos linfoides no estômago, o pH
gástrico e a curta permanência de organismos ingeridos no
estômago contribuem para a não frequente associação entre
a forma pulmonar ou intestinal com a gastrite granulomato-
sa tuberculosa. O local mais acometido é o antro gástrico, e o
diagnóstico definitivo irá depender da presença de granulomas
com necrose caseosa ou do bacilo álcool-ácido resistente em
biopsias endoscópicas ou peças cirúrgicas. A demonstração do
bacilo ocorre em menos que 33% dos casos, sendo a etiologia
tuberculosa sugerida, muitas vezes, pela presença da doença
em outros locais. Manifestações atípicas de tuberculose en­
volvendo o trato gastrintestinal têm sido observadas hoje, em
associação com a AIDS.

■ Tratam ento
Tratamento específico clássico geralmente induz remissão
do processo, sendo a cirurgia indicada apenas em casos de obs­
Figura 18.2 Aspecto endoscópico da mucosa antral de paciente com
trução gástrica.
gastrite eosinofílica. (Esta Figura encontra-se reproduzida em cores
no Encarte.)
■ Sífilis
A gastrite granulomatosa luética é rara, sendo observada em
priva, hipoalbuminemia e redução das imunoglobulinas séricas menos de 1% dos pacientes com sífilis. Embora o envolvimento
também são observadas como consequência de perdas pro-
gástrico possa ocorrer em muitos pacientes durante a espiro-
teicas através do epitélio lesado. Nos casos de acometimento quetemia da sífilis primária e, ainda na fase secundária precoce,
predominante da parede muscular, o diagnóstico histológico os sintomas gástricos raramente são presentes, e não ocorre a
pode ser difícil, já que a biopsia convencional é muitas vezes
formação de granulomas. Doença gástrica significante geral­
normal; assim, é necessária a realização de biopsias envolvendo mente se limita aos casos de sífilis secundária tardia e terciária,
toda a parede gástrica. Ao exame radiológico e/ou endoscópico,
em que os achados radiológicos e endoscópicos podem variar
se observam rigidez e estreitamento antral, com mucosa pra­
de gastrite superficial a infiltração transmural mimetizando a
ticamente normal. O acometimento predominante da serosa
linite plástica, sendo o diagnóstico diferencial com carcinoma
é o mais raro, e a ascite que contém alto teor de eosinófilos
e linfoma muitas vezes difícil. Não raramente, alguns pacien­
(12 a 95%) é a principal forma de expressão clínica. Embora
tes são mesmo submetidos a gastrectomia. Se o quadro evolui
a presença de alergia seja difícil de documentar, a eliminação
com estreitamento fibrótico da parede do estômago, podem-
de determinados alimentos suspeitos pode, às vezes, produzir
se encontrar deformidades do tipo “estômago em ampulheta”.
resultados duradouros. A consulta com imunoalergologista e
Com frequência, as estenoses associadas a terciarismo são mais
a realização de testes cutâneos podem auxiliar na identificação
observadas no antro e se estendem até o duodeno. O diagnós­
de alergênios.
tico de acometimento gástrico pode ser feito pelo encontro do
microrganismo em fragmentos de biopsia, pela técnica de imu-
■ Tratam ento
nofluorescência, pela coloração pela prata ou pela pesquisa do
Em algumas situações, a prednisona, em doses iniciais de
treponema em campo escuro, e também, é claro, pelos testes
20 a 40 mg/dia, com redução progressiva, é capaz de induzir
sorológicos para sífilis.
e manter remissões por períodos prolongados. Outras drogas,
como o cromoglicato de sódio, anti-histamínicos e antiespas- ■ Tratam ento
módicos têm sido tentados com resultados precários. Um es­
A terapêutica com penicilina produz resultados favoráveis
tudo sugere que o cetotifeno, um bloqueador dos receptores
especialmente nos quadros de secundarismo, sendo incertos no
H,, pode vir a representar uma alternativa efetiva aos corti-
terciarismo. A sensibilidade do treponema aos antimicrobia-
costeroides. O tratamento cirúrgico pode ser considerado para
nos permanece inalterada mesmo na população de aidéticos,
as complicações como perfuração, estenose pilórica ou doença
embora tratamentos com maior duração sejam propostos nos
refratária.
casos de sífilis precoce.

■ OUTRAS GASTRITES INFECCIOSAS ■ Citomegalovírus (CMV)


(EXCETO POR H. PYLORI) A infecção gastrintestinal por CMV é incomum em indi­
víduos sem comorbidades e ocorre com maior frequência em
Bactérias distintas do H. pylori, bem como vírus, parasitos indivíduos imunossuprimidos em decorrência de reativação de
e fungos, podem, embora raramente, infectar o estômago. A infecção latente como consequência da imunossupressão ou
incidência aumentada de AIDS, assim como o progressivo au­ decorrente de uma nova infecção provocada por hemotransfu-
mento de pacientes transplantados e em quimioterapia anti- são ou contaminação pelo órgão transplantado. Em pacientes
neoplásica têm contribuído para uma maior prevalência deste aidéticos ou transplantados, frequentemente causa infecções
grupo de gastrites. extraintestinais, como retinites, assim como colites e enterites
180 Capítulo 18 / Gastrite

causadoras de diarréia e ulcerações no ceco, que podem san­ albumina marcada por este radioisótopo. O H. pylori tem sido
grar profusamente ou acarretar perfurações. 0 acometimento observado em alguns casos, e sua erradicação muitas vezes se
hepático está muitas vezes associado a febre e mal-estar geral, acompanha de regressão completa do espessamento das pre­
podendo se acompanhar de hipotensão e colapso circulató­ gas. Estudos empregando ecoendoscopia demonstram que o
rio. O acometimento do trato digestivo superior quase sempre espessamento da parede gástrica observado na presença da in­
coincide com infecção sistêmica, podendo estar associado a fecção pelo H. pylori deve-se ao espessamento seletivo das três
sintomas de dismotilidade, especialmente náuseas, distensão camadas internas da parede gástrica (interface mucosa-lúmen,
abdominal, peso epigástrico pós-prandial, vômitos e disfagia. mucosa e submucosa). A não regressão da hiperplasia mucosa
O diagnóstico da infecção por CMV pode ser feito por mé­
após a erradicação do H. pylori exige aprofundamento da pro­
todos sorológicos através de evidências de soroconversão re­ pedêutica para se afastar a possibilidade de neoplasia maligna.
cente ou pela elevação de quatro ou mais vezes nos títulos de
O diagnóstico diferencial inclui síndrome de Zollinger-Ellison,
anticorpos; ainda, pela presença de altos títulos de anticorpos
amiloidose gástrica, linfoma, carcinoma infiltrativo e processos
IgM anti-CMV. Naquelas situações com acometimento gástrico,
granulomatosos do estômago.
a endoscopia pode mostrar uma mucosa nodulosa, irregular,
com erosões ou mesmo ulcerações. A biopsia gástrica consti­
■ Tratam ento
tui o melhor meio diagnóstico para a presença de gastrite por
CMV, pela observação de inclusões virais típicas. As células Como a maioria é assintomática apesar das alterações histo-
infectadas são grandes, com inclusões intranucleares grandes lógicas, nenhum tratamento é indicado, além da manutenção
e inclusões citoplasmáticas pequenas. As inclusões intranu­ de dieta de alto valor calórico e proteico. Alguns estudos suge­
cleares são caracteristicamente circundadas por um halo claro rem que drogas como bloqueadores H2, anticolinérgicos, ácido
(inclusão em olho de coruja). tranexâmico e prednisolona podem corrigir as perdas protei-
cas gástricas através de mecanismos não conhecidos. Recente­
■ Tratam ento mente, foram também relatados casos de remissão espontânea
Estudos preliminares sugerem que o ganciclovir, o foscarnet da doença. Como já mencionado, a erradicação do H. pylori
e, mais recentemente, o valganciclovir possam ser ativos con­ pode ser acompanhada de regressão do quadro clínico e histo­
tra o CMV, embora sejam descritos efeitos indesejáveis, como lógico. Na presença de ulcerações, deve-se proceder ao trata­
leucopenia, trombocitopenia, manifestações neurológicas e al­ mento antiulceroso clássico. A cirurgia é raramente indicada,
terações da função hepática. restringindo-se aos casos de hipoproteinemia não controlável,
sangramentos agudos e crônicos persistentes, obstrução pilórica
■ Gastropatia hipertrófica e câncer gástrico associado.
Também conhecida como gastrite crônica hipertrófica, gas­
trite de pregas gigantes, gastropatia hipertrófica hipersecreto-
ra e doença de Ménétrier, constitui uma entidade específica,
■ LEITURA RECOMENDADA
de origem obscura caracterizada pela tríade de pregas gigan­ Britt, WJ. Infcctions associatcd with human cytomcgalovirus. Hm: Goldman,
tes no corpo e fundo gástricos, hipoalbuminemia secundária L, Ausicllo, D (eds.). Cccil Tcxtbook of Medicine. Philadclphia, Saundcrs,
à gastropatia perdedora de proteínas e quadro histológico de 1993-5,2004.
hiperplasia foveolar com atrofia glandular, dilatação cística e Castro, LP, Coelho, LGV, Barbosa, AJA. Acute Helicobacter pylori infection.
espessamento da mucosa. Embora na doença de Ménétrier clás­ Em: Pajarcs Garcia, JM, Corrêa, P, Pércz Pércz, GI (eds.). Helicobacter pylori
infection in gastroduodcnal lesions. The sccond dccadc, Barcelona, Prous
sica ocorra hipocloridria, uma variante hipersecretora tem sido
Science, 137-48,2000.
descrita, o que obriga, nesta circunstância, o diagnóstico dife­ De Vrics, AC 8c Kuipcrs, EJ. Epidcmiology of premalignant gastric lesions:
rencial com síndrome de Zollinger-Ellison. A doença é mais implications for the devclopment of scrccning and survcillancc strategies.
comumente observada em homens, após os 50 anos, e os sin­ Helicobacter 2007; 2:22-31.
tomas são habitualmente vagos e inespecíficos, consistindo em Dixon, MF, Gcnta, RM, Yardlcy, JH, and the participants in the International
mal-estar epigástrico, diarréia, perda de peso e edema, podendo Workshop on the Histopathology of Gastritis, Houston 1994. Classificai ion
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Fock, KM, Tallcy, N, Moayycdi, P et a i Asia-Pacific conscnsus guidelines on
gantes, tendo em geral 1 cm ou mais de diâmetro transversal, gastric câncer prevention. / Gastroenterol Hepatol, 2008; 23:351-65.
especialmente no fundo e corpo gástricos. São rígidas e, ao Groisman, CM, Georgc, J, Berman, D et a i Resolution of protein loosing hy-
contrário das pregas normais, não se desfazem à insuflação de pcrtrophic lymphocitic gastritis with therapeutie cradication of H. pylori.
ar à endoscopia nem à compressão durante o exame radiológi- Am J Gastroenterol, 1994; 89:1548-57.
co, que também pode mostrar uma aparência espiculada pela Hayat, M, Arora, DS, Dixon, MF, Clark, B et a i Effccts of Helicobacter py­
visualização dos sulcos entre as pregas. Endoscopicamente, lori cradication on the natural history of lymphocytic gastritis. Gut, 1999;
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podem-se ainda observar alterações inflamatórias da mucosa Miller, AI, Smith, B, Rogcrs, AI. Phlcgmonous gastritis. Gastroenterology, 1975;
como hiperemia, edema, friabilidade, erosões e, mesmo, ul­ 68:231-8.
cerações francas. A hipocloridria está quase sempre presente, Moayycdi, P, Soo, S, Dccks, J et a i Systcmatic rcvicw and cconomic evaluation
com a secreção ácida máxima após estímulo com pentagastri- of Helicobacter pylori cradication treatment for non-uleer dyspcpsia. Br
na em torno de 10 mmol/h. A determinação da gastrinemia MedJ, 2000; 321:659-64.
é útil no diagnóstico diferencial entre doença de Ménétrier e Modlin, IM, Lyc, K, Kidd, M. Carcinoid tumors of the stomach. Surg Oncol,
síndrome de Zollinger-Ellison, já que pregas gigantes podem 2002; 12:153-72.
Mottct, C, Juillerat, P, Pittct, V et a i Uppcr Gastrointestinal Crohn’s Diseasc.
ser encontradas em ambas as entidades, mas elevados índices Digestion, 2007; 76:136-140.
de gastrina sérica são encontrados apenas na última. A perda Nixon, MF. Acute Helicobacter pylori gastritis. Em: Grahan, DY, Gcnta, RM,
proteica pode levar à hipoalbuminemia e pode ser estimada Dixon, MF (eds.). Gastritis. Philadclphia: Williams 8c Wilkins, 169-75,
pelo teor de 5,Cr nas fezes, após administração intravenosa de 1999.
Capítulo 18 / Gastrite 181
Rao, YG, Pandc, GK, Sahni, P et al. Gastroduodcnal tubcrculosis managcmcnt Stolte, M, Batz, C, Bayerdõrfer, H, Eidt, S. Helicobacter pylori cradication in the
guidclincs, based on a large cxpcricncc and a review of the literature. / Can treatment and difcrcntial diagnosis of giant folds in the corpus and fundus
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Úlcera Péptica Gastroduodenal
Ricardo P. B. Ferreira e Jaim e Natan Eisig

■ INTRODUÇÃO ■ EPIDEMIOLOGIA
Por mais de um século, a úlcera péptica foi considerada uma A prevalência de úlcera péptica é variável nas diferentes re­
doença de evolução crônica, de etiologia desconhecida, com giões do mundo. As úlceras duodenais predominam em popu­
surtos de recidiva e períodos de acalmia. A identificação e o lações ocidentais, enquanto as úlceras gástricas são mais fre­
isolamento do Helicobacter pylori, há pouco mais de duas dé­ quentes na Ásia, em especial no Japão. Apesar da redução na
cadas, representaram significativo avanço na compreensão, no incidência de doença ulcerosa péptica em países ocidentais ao
diagnóstico e no tratamento da doença ulcerosa péptica. Tal longo do século passado, estima-se que cerca de 500.000 novos
descoberta rendeu a Warren e Marshall, em 2005, o Prêmio casos e 4.000.000 recidivas ocorrem a cada ano nos EUA.
Nobel de Medicina como reconhecimento da importância da A úlcera duodenal é a forma predominante de doença ulce­
erradicação do H. pylori na cura da úlcera péptica. rosa péptica, sendo cinco vezes mais frequente do que a úlcera
Atualmente, obtém-se a cura na imensa maioria dos pacien­ gástrica, em 95% dos casos localiza-se na primeira porção do
tes, mas novos desafios impõem-se, como qual a proposta ideal duodeno e incide na faixa etária de 30 a 55 anos de idade. A
de erradicação do H. pylori, especialmente devido ao aumento localização mais frequente da úlcera péptica do estômago é na
na taxa de falha terapêutica observada em vários países, à bus­ região de antro gástrico (80% na pequena curvatura), no epitélio
ca pela prevenção e recorrência da úlcera péptica em usuários gástrico não secretor de ácido, geralmente próximo à transição
de anti-inflamatórios não esteroides (AINE), bem como aos para o epitélio secretor localizado no corpo do estômago, em in­
avanços no tratamento dos casos não relacionados com AINE divíduos entre 50 e 70 anos de idade. De modo geral, as úlceras
e H. pylori. são mais comuns no sexo masculino (1,5 a 3 vezes).
No Brasil, estima-se que 10% da população têm, tiveram O declínio na prevalência de úlcera péptica observado no
ou terão úlcera. Observa-se, conquanto, que a prevalência da século XX tem sido atribuído à redução das taxas de infecção
doença esteja diminuindo, possivelmente em decorrência dos pelo H. pylori, resultado da melhoria dos padrões de higiene
tratamentos de erradicação do H. pylori e da melhora nas con­ e condições sanitárias urbanas. Embora o baixo nível socioe-
dições higienodietéticas da população, fatores que contribuem conômico e suas consequências estejam relacionados com a
para reduzir a contaminação. infecção pelo H. pylori, a baixa incidência de úlcera gastroduo­
denal, em alguns países com elevada prevalência de infecção
pela bactéria, indica a existência de outros fatores associados à
■ CONCEITO úlcera péptica, como características intrínsecas de virulência e
toxicidade das cepas do H. pylori.
As úlceras pépticas constituem soluções de continuidade As taxas de doença ulcerosa péptica complicada com he­
da mucosa gastrintestinal secundárias ao efeito corrosivo do morragias ou perfurações, por outro lado, não apresentaram
ácido clorídrico (HC1) e da pepsina, estendendo-se através da reduções significativas nas últimas décadas. O fato é que entre
muscularis mucosae, atingindo a camada submucosa e, mes­ populações idosas essas taxas de complicações parecem estar
mo, a muscularis própria. Lesões mais superficiais são definidas aumentando, com destaque para as úlceras gástricas, provavel­
como erosões, não atingem a camada submucosa e, portanto, mente devido ao uso crescente de AINE.
não deixam cicatrizes. O sangramento é a complicação mais frequente da doença
As úlceras pépticas podem se desenvolver em qualquer por­ ulcerosa péptica, ocorrendo em torno de 15 a 20% dos casos,
ção do trato digestório exposta à secreção cloridropéptica em em sua maioria associados às úlceras duodenais e com taxa de
concentração e duração suficientes, mas o termo “doença ul­ mortalidade de 5 a 10%. A doença ulcerosa péptica representa
cerosa péptica” é geralmente empregado para descrever ulce- a causa mais comum de hemorragia digestiva alta, responsável
rações do estômago, do duodeno ou de ambos. por aproximadamente 50% dos casos.

182
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 183

As perfurações são complicações ainda mais graves, obser­ eventos que culminaria, eventualmente, na úlcera. Sugeriu-se,
vadas em até 5% dos pacientes e responsáveis por dois terços inclusive, que o aforismo de Schwartz “no acid no u lcef fosse
das mortes por úlcera péptica. Ocorrem mais frequentemente substituído por “no Helicobacter, no ulcer'*.
na pequena curvatura gástrica e na parede anterior do bulbo
duodenal. As úlceras gástricas perfuradas, com certa frequên­
cia, são bloqueadas pelo lobo hepático esquerdo e as duodenais
■ Atuação multifatorial do ácido, gastrina,
pelo pâncreas e, raramente, pelo cólon. pepsina e H. pylori
Estreitamento e estenose secundária a edema ou cicatriza-
Proteínas, íons Ca~, aminoácidos, histamina e acetilcolina
ção são observados em até 2% dos ulcerosos, comumente rela­
estimulam a célula G a produzir gastrina. A gastrina atinge o
cionados com úlceras do canal pilórico, mas também podem
receptor na célula parietal por via sanguínea, induzindo-a a
ocorrer como complicações de úlceras duodenais.
produzir HC1. A queda no pH intraluminal se difunde e ocupa
o receptor da célula D, produtora de somatostatina, que possui
ação inibitória (via parácrina) sobre a celular G. Trata-se, por­
■ ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA tanto, de um eficiente mecanismo de autorregulação.
O fator genético é, provavelmente, muito importante quanto A secreção de ácido de um indivíduo varia na dependência
ao fenótipo secretório de determinada população, não só pela de vários fatores ambientais. A alimentação, o uso de determi­
variação na população de células parietais, mas, também, pelo nados medicamentos, o hábito de fumar, o estado emocional
limiar de sensibilidade das células envolvidas no processo se­ influenciam a produção de ácido nas 24 h.
cretório gástrico. A produção de ácido está, em geral, aumentada nos por­
O aforismo do médico croata Karl Schwartz, citado em 1910, tadores de úlcera duodenal e normal ou baixa nos indivíduos
“sem ácido, sem úlcera” (“no acid no ulcer"), foi um marco no com úlcera gástrica. A secreção basal de HC1 é 2 a 3 vezes maior
tratamento da úlcera péptica. A teoria cloridropéptica era um nos ulcerosos duodenais, observando-se um intrigante imbri-
consenso, não havendo dúvidas quanto à explicação na gêne­ camento dos valores pós-estímulo máximo. No entanto, ape­
se das úlceras. Não se discutia a importância do ácido clorí­ nas 20 a 30% da população de ulcerosos duodenais apresenta,
drico (HC1) e da pepsina na agressão à mucosa, mas por que após estímulo máximo, uma produção de HC1 acima do limite
alguns ulcerosos apresentavam produção de ácido normal ou superior do normal. O aumento da secreção ácida pode ser ex­
um pouco abaixo do normal. A úlcera duodenal e a gástri­ plicado pelas seguintes observações:
ca eram consideradas, pela maioria dos investigadores, iguais • Aumento da população de células parietais.
do ponto de vista fisiopatológico, ainda que nas primeiras, em • Maior sensibilidade da célula parietal ao estímulo da gas­
geral, se observasse hipersecreção e, nas segundas, normo ou trina.
hipossecreção ácida. A importância dos mecanismos de defesa • M enor sensibilidade da célula G aos mecanismos ini-
da mucosa era lembrada, estabelecendo-se que os indivíduos bitórios.
normais apresentavam equilíbrio entre os fatores agressivos e
os defensivos, quando essa condição era alterada favoreceria a A histamina produzida nas células enterocromafin simile
eclosão da úlcera. (ECL = enterocromaphin cell like), a gastrina nas células G e a
Sabe-se, atualmente, que a úlcera é uma afecção de origem acetilcolina no nervo vago são os primeiros mensageiros quí­
multifatorial. Fatores ambientais seguramente desempenham micos que ativam a célula parietal. A ligação destas aos recepto­
papel importante na eclosão da úlcera nos indivíduos geneti­ res específicos na membrana da célula parietal ativaria o segun­
camente predispostos e, entre eles, a infecção pelo H. pylori é, do mensageiro (AMP-cíclico ou canais de cálcio), culminando
aparentemente, fundamental. Isso explicaria por que a úlcera na produção da ATPase K* ativada no canalículo secretor, con­
ocorre em indivíduos que secretam ácido em níveis próximos siderada a via final para a produção do HC1 (Figura 19.1).
dos normais, e por que indivíduos hipersecretores podem não O principal mediador da secreção ácida estimulada por ali­
apresentar úlcera. mentos é a gastrina; portanto, distúrbios da secreção ácida rela­
O H. pylori é uma bactéria espiralada descrita primeiramen­ cionados com a hipergastrinemia tendem a se exacerbar com a
te por Warren e Marshall. Em 14 de abril de 1982, a 35a placa ingestão de alimentos. O peptídio liberador da gastrina (Gastrin
de cultura da bactéria (denominada Campylobacter pyloridis) ReleasingPeptide - GRP), neuropeptídio presente nos nervos do
demonstrou a presença de colônias transparentes de 1 mm. Em trato gastrintestinal, especialmente no antro gástrico, é liberado
junho de 1984, Marshall e Warren publicavam os resultados do na presença de alimentos no estômago e estimula a secreção de
sucesso da cultura da bactéria, responsável pela mudança radi­ gastrina pelas células G. Atualmente, o GRP é o melhor mé­
cal nos conceitos sobre a etiopatogenia da úlcera péptica, por todo disponível para simular a secreção ácida estimulada pela
décadas considerados intocáveis pela elite de investigadores, alimentação. Após infusões intravenosas de GRP, pacientes
gastrenterologistas e fisiologistas. Atualmente, é incontestável H. pylori positivos apresentam níveis de gastrina e secreção áci­
a atuação do H. pylori na gênese da úlcera péptica, em virtude da 3 vezes maior que os encontrados em voluntários negativos
da inflamação sobre a mucosa e da alteração dos mecanismos submetidos ao mesmo estímulo. Entre os pacientes H. pylori
regulatórios da produção de ácido. Estima-se que cerca de 90 a positivos, os portadores de úlcera péptica produzem até 2 ve­
95% dos ulcerosos duodenais e de 60 a 70% dos portadores de zes mais ácido para os mesmos níveis de gastrina. Tais achados
úlceras gástricas encontram-se infectados pela bactéria. podem estar relacionados com a hipergastrinemia prolongada e
Alguns investigadores acreditam até que o fator ácido não é o o maior número de células parietais, bem como com a redução
mais importante, mas sim a presença da bactéria. A liberação de de mecanismos inibitórios da secreção gástrica, associados ou
citocinas inflamatórias e a resposta imunológica do hospedeiro não a características genéticas do indivíduo.
seriam os moduladores da agressão que determinaria a presença A resposta exagerada da gastrina pode resultar, também, da
e o tipo de doença que o hospedeiro infectado apresentaria. A menor produção de somatostatina, hormônio que inibe a célula
variedade da cepa do H. pylori seria primordial na cascata de G. A razão da diminuição da concentração da somatostatina
184 Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal

Célula enterocromafim
símile

Nervo
vago
V lores H2
Bloqueadores

(-)
t
/

(+)

(-) (+) Adenilato


*
** Célula
ciclase
Atropina parietal ATP

•• Inibidores de
(-)
bomba protônica

Figura 19.1 Fatores que influenciam a secreção ácida pela célula parietal gástrica. A, acetilcolina; H, histamina; G, gastrina; S, somatostatina;
(+), estímulo; (-), inibiçáo/bloqueio.

na mucosa e de seu RN A-mensageiro em ulcerosos infectados gulam o fluxo sanguíneo da mucosa e a capacidade de replica-
não está esclarecida, mas, certamente, deve-se à presença da ção do epitélio. A redução dos níveis de PG resultaria em sério
bactéria, pois se normaliza com a sua erradicação. As citoci- comprometimento dos mecanismos de defesa da mucosa. O
nas localmente produzidas e a elevação do pH consequente à EGF é elemento essencial na reparação da mucosa. O compro­
produção de amônia pela bactéria são mecanismos lembrados metimento de sua produção significa redução na capacidade
como responsáveis pela diminuição da concentração da so­ regenerativa da superfície epitelial. Diminuição da concentra­
matostatina. ção do EGF foi observada em pacientes portadores de úlcera
O pepsinogênio, precursor da pepsina, encontra-se eleva­ gástrica e duodenal.
do na maioria dos ulcerosos. As frações 1 e 3 do pepsinogênio Em suma, a integridade da mucosa ante um ambiente in-
I, que possuem maior atividade proteolítica, estão presentes traluminal extremamente hostil depende de um mecanismo
em porcentagem maior nos ulcerosos. Os ulcerosos duodenais complexo, no qual os elementos responsáveis pela defesa da
apresentam, portanto, aumento no pepsinogênio total e, ainda mucosa devem estar aptos a exercer proteção eficaz contra os
de maior relevância, é o fato de a atividade proteolítica desta fatores agressivos. A Figura 19.2 resume os fatores agressivos,
enzima ser maior nos ulcerosos. defensivos e de reparação da mucosa.
Além das alterações na produção de HC1 e pepsinogênio, Nos pacientes com úlcera duodenal, em geral a inflamação
deve ser lembrada a equação agressão/defesa. A diminuição da está restrita ao antro gástrico e à região do corpo poupada, ou
capacidade de defesa da mucosa é importante, tornando-a mais comprometida por discreta inflamação. Em virtude da infecção
vulnerável aos elementos agressivos. A inflamação da mucosa e e do processo inflamatório antral pela bactéria, a produção de
a diminuição de peptídios envolvidos no estímulo dos elemen­ gastrina está aumentada e, como a mucosa do corpo está pre­
tos que mantém a mucosa íntegra favorecem a lesão. servada, observa-se maior produção de ácido, que é ofertado
O H. pylori atuaria em ambos os lados dessa equação, dimi­ em maior quantidade ao bulbo. Uma das consequências deste
nuindo a disponibilidade endógena de prostaglandinas (PG) fenômeno é maior frequência de metaplasia gástrica no bulbo
e do fator de crescimento epitelial (EGF = Epithelial Growth duodenal. Os locais onde existe metaplasia gástrica são coloni­
Factor), reduzindo a defesa da mucosa, além de aumentar a zados pelo H. pylori, evoluindo com inflamação, tornando-se
produção dos fatores agressivos por mecanismos descritos an- mais suscetível à agressão pelo fator acidopéptico, cujo resul­
teriormente. As PG são responsáveis por estimular a produção tado final é a úlcera.
de muco e de bicarbonato pelas células epiteliais, influenciam Além do distúrbio na secreção de ácido e alteração da defesa
a hidrofobicidade do muco adjacente à superfície epitelial, re­ da mucosa, a própria ação lesiva da bactéria deve ser lembra-
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 185

AGRESSÃO DEFESA REPARAÇÃO

Acido Muco
Pepsina Bicarbonato A n gio gê n e se
A IN Es/AAS Fluxo san g uín eo Proliferação celular
H. pylori Cam ada surfactante Reconstituição epitelial

da como fator importante na etiologia da úlcera. Sabe-se que a presença de úlcera. Estas observações são bastante sugesti­
pacientes ulcerosos estão em geral infectados por cepas cag-A vas de que a simples presença da bactéria não é suficiente para
(cytotoxin-associated gene) positivas que são, também, em ge­ provocar a úlcera.
ral, vac-A (vacuolating cytotoxin A) positivas. A proteína cag-A A Figura 19.3 demonstra uma cascata de eventos, unindo
é um marcador de ilha de patogenicidade envolvendo outras a teoria cloridropéptica à infecciosa, uma hipótese bastante
citocinas importantes em determinar a virulência da bactéria. simpática, para explicar a etiologia das úlceras duodenais rela­
Estudos recentes demonstraram um padrão constante, relacio­ cionadas com o H. pylori.
nando as cepas cag-A positivas com maior produção de gastri-
na e de ácido pós-estímulo. Outros genes, como das proteínas
de adesão BabA e de membrana OipA, têm, também, elevada
■ Com a erradicação do H. pylori, a úlcera deve
frequência nos pacientes com doença ulcerosa, porém com um ser considerada uma doença em extinção?
papel menos relevante na sua patogênese.
Em estudo recente realizado em nosso meio, a comparação
Qual o papel dos AINE/AAS?
entre pacientes ulcerosos e dispépticos não ulcerosos demons­ Tem-se observado, com frequência cada vez maior, a cons­
trou que a positividade de proteínas da ilha de patogenicidade tatação de úlceras H. pylori negativas (Figura 19.4). Especula-se
cag (cag-T, cag-M, cag-A) representa importante fator preditivo que o maior número de pacientes submetidos ao tratamento de
no desenvolvimento de úlcera péptica no Brasil. Em países com erradicação aumente a tendência ao surgimento de úlceras re­
elevada prevalência da infecção pelo H. pylori na população ge­ lacionadas com o uso de AINE/AAS ou a situações raras, como
ral, como o Brasil (70 a 80%), esta poderá ser uma ferramenta gastrinoma, doença de Crohn ou resposta secretória exagerada
de grande importância, para indicação de erradicação da bac­ aos estímulos fisiológicos.
téria em pacientes dispépticos não ulcerosos. A fisiopatologia da lesão induzida por AINE/AAS baseia-
se na supressão da síntese de prostaglandinas. O mecanismo
envolvido nessa situação indica a agregação de neutrófilos às
■ A úlcera é uma doença péptica ou infecciosa? células endoteliais da microcirculação gástrica, diminuindo o
Existem vários argumentos que endossam a teoria infeccio­ fluxo sanguíneo gástrico efetivo, bem como a redução na pro­
sa, tais como, alterações da regulação da secreção, virulência da dução de muco prostaglandina-dependente e o comprometi­
bactéria e demonstração inquestionável de que a erradicação mento da capacidade de migração epitelial de células adjacentes
da bactéria resulta na normalização da alteração fisiológica e na à área lesada. A circulação da mucosa e a capacidade de defesa
cura da doença da maioria dos ulcerosos. A recidiva nos indiví­ celular ficam comprometidas, e a mucosa torna-se vulnerável
duos erradicados ocorre quando há reinfecção, recrudescência à agressão de fatores intraluminares, como ácido clorídrico,
ou o uso de AINE (incluindo-se o AAS). pepsina, sais biliares, H. pylori e medicamentos.
É importante destacar o papel do HC1 na doença ulcerosa, Na década de 1990, a introdução no mercado de inibidores
pois o uso de antissecretores relativamente pouco potentes, seletivos da ciclo-oxigenase-2 (COX-2) representou um avanço
como a cimetidina, ou mesmo antiácidos, é eficaz em promo­ na prevenção de úlceras induzidas por AINE; contudo, sabe-
ver a cicatrização da úlcera. Sabe-se, também, que, felizmente, se hoje que a inibição seletiva da COX-2 não elimina o risco
a imensa maioria dos indivíduos infectados nunca apresentará de desenvolver úlceras gastroduodenais e suas complicações.
úlcera. A ausência de ácido é praticamente incompatível com Pacientes em uso de AINE têm um risco 4 vezes maior de de-
186 C a p ítu lo 79 / Ú lcera P é p tica G a stro d u o d e n a l

senvolver complicações, como sangramentos, quando compa­ • presença de comorbidades;


rados a não usuários. • uso de altas doses de AINE;
São consideradas condições de risco em usuários de AINE: • associação com corticoides, AAS ou anticoagulantes;
• infecção pelo H. pylori.
• antecedente de úlcera;
• idade avançada (> 60 anos); A erradicação da bactéria isoladamente demonstra signifi­
cativa redução na incidência de úlceras pépticas em usuários
crônicos de AINE/AAS; todavia, em indivíduos de alto risco,
como naqueles com sangramento prévio, a erradicação não é
— Helicobacter pylori - « - ► Fato re s g e n é tic o s
suficiente para a prevenção de novo sangramento, devendo-se
associar supressão ácida como medida de prevenção.

M aio r p ro d u ç ã o d e H C I ■ QUADRO CLÍNICO


Os sintomas referidos pelos pacientes não permitem dife­
M ais H C I é o fe rta d o a o b u lb o renciar úlcera duodenal (UD) e úlcera gástrica (UG) e, algu­
mas vezes, são muito discretos, atípicos ou ausentes. Quando
presente, a dor é habitualmente pouco intensa, em queimação,
E sta b e le c e -s e m e ta p la s ia g á s tric a n o b u lb o localizada no epigástrio, circunscrita e descrita como “dor de
fome, queimadura ou desconforto na boca do estômago”. A dor
mantém-se por semanas, de forma rítmica. A ritmicidade é re­
lação íntima da dor com a alimentação: a melhora da dor com a
Á re a s m e ta p lá s ic a s sã o c o lo n iz a d a s
ingestão de alimentos é relativamente frequente nos portadores
p e lo H. pylori de UD (chamada de dor em três tempos: dói-come-passa), ao

\
In fla m a ç ã o d a s áre as
passo que, em portadores de UG, a ingestão de alimentos às
vezes piora ou desencadeia o sintoma (dor em quatro tempos:
dói-come-passa-dói).
m e ta p lá s ic a s — M e n o r v ita lid a d e Outra característica da dor da úlcera péptica é a periodicida­
d a m u c o sa de: períodos de acalmia (desaparecimento da dor por meses ou
mesmo anos) intercalados por outros sintomáticos. O fato de o
paciente ser despertado pela dor no meio da noite ("clocking’)
............... A u m e n to d e H C I e p e p sin a é sugestivo da presença de úlcera, particularmente duodenal. A
pirose ou azia é comum nos pacientes com UD, em virtude da
associação da UD com refluxo gastresofágico. Outros sintomas
D ig e s tã o d e áre a s m e ta p lá s ic a s dispépticos, como eructação, flatulência, sialorreia, náuseas,
vômitos não são próprios da úlcera péptica, mas podem estar
i associados. O exame físico nada acrescenta, a não ser nos casos
de complicações, como hemorragia, estenose ou perfuração.
Ú LCERA D U O D EN A L Muitos pacientes que procuram os hospitais para tratamento
das complicações da doença, como hemorragias ou perfurações,
Figura 19.3 Teoria doridropéptica + infecciosa. nunca apresentaram sintomatologia prévia. Curiosamente, em

Úlcera duodenal Úlcera gástrica


Figura 19.4 Condições associadas à doença ulcerosa péptica. Valores proporcionais referentes a estudos em países ocidentais, que podem
variar entre diferentes populações, idades e níveis socioeconômicos. é importante destacar a frequente coexistência das duas principais etio-
logias, infecção pelo H . p y lo r i e uso de AINE/AAS. SZE, síndrome de Zollinger-Ellison.
C a p ítu lo 79 / Ú lc e ra P é p tic a G a stro d u o d e n a l 187

------------------------------------- ▼--------------------------- fornece excelentes subsídios para o manejo do paciente. Tem


Q uadro 19.1 Etiologia das úlceras gastroduodenais contra si o fato de ser um exame invasivo e de alto custo, mas
é compensado pela sua confiabilidade e pelos excelentes re­
Causas comuns sultados que proporciona. Ela não só estabelece o diagnóstico
In fe c ç ã o p e lo H . p y lo r i
da úlcera, mas também determina a sua natureza e permite a
U s o d e a n t i-in fla m a t ó r io s (A IN E )
definição da etiologia. A retirada de fragmentos de biopsias
Causas infrequentes nos bordos das lesões para exame histológico e do antro e/ou
S ín d r o m e d e Z o llin g e r -E llis o n (g a s t r in o m a )
M a s to c ito s e sistê m ica
corpo para a pesquisa do H. pylori influencia decisivamente no
H ip e r p a tir e o id is m o manejo clínico do paciente.
D o e n ç a s g r a n u lo m a t o s a s (d o e n ç a d e C r o h n , s a rc o id o s e ) As úlceras pépticas podem ser encontradas em qualquer par­
N e o p la s ia s (c a r c in o m a , lin fo m a , le io m io m a , le io m io s s a rc o m a ) te do estômago e duodeno, porém, particularmente nas lesões
In fe c ç õ e s (t u b e r c u lo s e , sífilis, h e rp e s s im p le s , c it o m e g a lo v ír u s )
T e c id o p a n c r e á tic o e c t ó p ic o
gástricas, mais de 80% são localizadas na pequena curvatura,
Id io p á tic a em antro ou incisura angular. Múltiplas úlceras gástricas são
geralmente associadas ao uso de AINE. Mais de 90% das úlceras
duodenais são localizadas no bulbo, particularmente na parede
anterior e menos comumente na parede posterior, superior e
------------------------------------- ▼---------------------------- inferior. Úlceras localizadas distalmente ao bulbo levantam a
Q u a d ro 19.2 Quadro clínico da doença ulcerosa péptica suspeita de síndrome de Zollinger-Ellison.
Um dos pontos mais importantes na classificação de uma
N ã o c o m p lic a d a úlcera é a caracterização quanto à sua fase evolutiva. Com base
- Dor epigástrica em queimação no aspecto do nicho ulceroso, Sakita, em 1973, validou uma
Úlcera duodenal classificação em que diferencia a lesão em três fases: A (active)
- Melhora clara com refeições e uso de antiácidos - ativa; H (healing) - em cicatrização; e S (scar) - cicatrizada.
- Hiperfagia e ganho ponderai
- Despertar noturno pela dor é frequente
Cada uma dessas fases subdivide-se em duas outras (1 e 2). O
- Pode apresentar-se de caráter periódico desenho esquemático, descrito por Sakita, mostra o ciclo evo­
Úlcera gástrica lutivo de uma úlcera péptica (Figura 19.5 e Quadro 19.3).
- Pequena melhora ou piora com refeições Nas úlceras gástricas, sempre são necessárias múltiplas biop­
- Menos responsiva a antiácidos sias no intuito de distinguir lesões benignas de malignas. Sabe-se
- Anorexia e perda ponderai que, em até 20% dos casos, cânceres gástricos podem mimetizar
- Despertar noturno pela dor pode ocorrer
lesões benignas. Por outro lado, sinais que indiquem maligni-
(hemorragia, perfuração, obstrução)
C o m p lic a d a dade (infiltração, friabilidade, pouca distensibilidade, pregas
- Melena
- Hematêmese
espessadas, com interrupção abrupta, aparência de “mordida”,
- Náuseas e vômitos baqueteamento, fusão ou afilamento tipo “pico de montanha”
- Distensão abdominal e “ponta de lápis”) podem estar ausentes no câncer gástrico
- Sinais de peritonismo precoce ulcerado. Nesses casos, o segmento do paciente com
- Instabilidade hemodinâmica exames endoscópicos associados a biopsias serão necessários
para confirmação diagnóstica.
Quanto à obtenção das biopsias, estas devem ser criteriosas,
coletando na porção interna das margens da lesão, nos quatro
10% dos ulcerosos a hemorragia é a primeira manifestação da
quadrantes e em áreas não necróticas. A quantidade de frag­
doença, e, em um terço dos pacientes com úlcera perfurada, o mentos deve ser proporcional ao tamanho da úlcera; porém,
abdome agudo foi o primeiro sintoma da doença. no mínimo, seis espécimes devem ser obtidos.
Na dependência das complicações desenvolvidas, os pacien­ No caso de úlceras gástricas, a regra é realizar novo exame
tes com doença ulcerosa péptica complicada podem apresentar- endoscópico após 6 a 8 semanas de tratamento para avaliar a
se com melena, hematêmese, perda de sangue oculto nas fezes, sua cicatrização e coletar novas biopsias. Se o estudo histológico
náuseas, vômitos, distensão abdominal, sinais de peritonite ou for negativo para malignidade e houver redução significativa do
instabilidade hemodinâmica (Quadro 19.2). tamanho da úlcera (acima de 50% do tamanho inicial), o pra­
Não há, entretanto, sensibilidade ou especificidade suficiente zo de tratamento com a mesma droga poderá ser prolongado,
na anamnese ou no exame físico para a confirmação diagnósti- seguindo-se nova avaliação ao final desse prazo. Se a redução
ca da doença ulcerosa péptica. Neoplasia, pancreatite, colecis- não for significativa (menor que 50% do tamanho inicial), outro
tite, doença de Crohn e insuficiência vascular mesentérica são tipo de medicamento ou aumento da dose deve ser instituído
exemplos de doenças que podem apresentar sintomatologia por mais 45 dias, recomendando-se manter o controle endos­
semelhante à da úlcera péptica. Dessa forma, a confirmação cópico periódico até a cicatrização completa da lesão.
diagnóstica deve ser realizada através de exames específicos, Biopsias não são obtidas rotineiramente de úlceras duode­
discutidos a seguir. nais, já que raramente são malignas. No entanto, quando hou­
ver alterações não habituais (ulcerações com margens irregula­
res, fundo necrótico, bordas infiltradas), deve-se biopsiar com
■ DIAGNÓSTICO E EXAMES COMPLEMENTARES o intuito de descartar causas não pépticas (infecção, medica­
mentos, neoplasias).
■ Endoscopia digestiva alta
A endoscopia digestiva alta continua sendo o exame de elei­
■ Exame radiológico contrastado
ção para o diagnóstico das lesões ulcerosas. É um método efi­ O exame radiológico contrastado é outro método útil para o
ciente, sensível, específico, seguro, que, em mãos experientes, diagnóstico da doença ulcerosa; porém, menos preciso e pou-
188 Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal

Figura 19.5 Ciclo vital das úlceras pépticas (Sakita, 1973). Este ciclo é dividido em três fases: fase inicial, denominada ativa (A - a c tiv e ); fase
intermediária, com úlcera em cicatrizaçào (H - h e a lin g ); fase final, com úlcera cicatrizada (S - scar).

co utilizado, com o advento da endoscopia digestiva (Figura


19.7). Tem como desvantagem o uso de radiação ionizante e a
■ Outros exames complementares
necessidade da realização de exames endoscópicos e biopsias ■ Gastrina
das lesões suspeitas para confirmação diagnostica. Dessa forma, Os pacientes que apresentam quadro clínico atípico, como,
fica indicado apenas em situações em que o exame endoscópico por exemplo, múltiplas úlceras gastroduodenais, úlceras refra-
não está disponível ou quando há indicação cirúrgica. tárias, recorrentes ou localizadas em segunda porção duodenal
e não associadas a H. pylori ou AI NE, úlceras recorrentes pós-
operatórias, associação com diarréia ou cálculo renal e história
------------------------------------- ▼------------------------------------- pessoal ou familiar de tumor de hipófise ou paratireoide, justifi­
Q u a d ro 19.3 Classificação das úlceras pépticas (Sakita, 1973) ca-se a pesquisa de gastrinoma (síndrome de Zollinger-Ellison).
O teste mais sensível e específico para diagnosticar gastrinoma
Fases Descrição da úlcera é a demonstração de gastrina sérica elevada. A concentração
sérica de gastrina em jejum acima de 1.000 pg/m f e hiperse-
A, Base re c o b e r t a p o r f ib rin a e sp e ssa , c o m re stos n e c ró tic o s creção gástrica de ácido têm estabelecido o diagnóstico de gas­
o u d e p ó s it o d e h e m a t in a . B o rd a s b e m d e fin id a s , a p iq u e ,
trinoma. É importante lembrar que elevações importantes da
e s c a v a d a s , e d e m a c ia d a s , c o m h ip e r e m ia ; g e r a lm e n t e , n ã o há
c o n v e r g ê n c ia d e p re g a s p a ra a lesào. gastrinemia ocorrem, também, em estados hipossecretores ou
A2 Base lim p a e cla ra , re c o b e r t a p o r fib rin a ; b o r d a s b e m d e fin id a s ,
acloridria gástrica, como, por exemplo, na anemia perniciosa.
re g u la re s , s e m e d e m a ; h a lo d e h ip e r e m ia e m t o r n o . P o d e Pacientes que apresentam quadro clínico compatível e discreta
a p re s e n ta r c o n v e r g ê n c ia d e p re g a s . elevação da gastrina sérica necessitam realizar os testes provoca­
H. S u p e rfic ia l; fin a c a m a d a d e fib rin a na b a s e ; h ip e r e m ia ; n ítid a tivos com a finalidade de estabelecer ou excluir o diagnóstico de
c o n v e r g ê n c ia d e p re g a s .
gastrinoma. Destes, o de maior valor é o teste da secretina. Em
H, S e m e lh a n t e à fase a n te rio r, c o m c a m a d a d e fib rin a m a is tê n u e indivíduos normais ou com úlcera péptica duodenal, a injeção
n o c e n t ro d a á re a d e p r im id a .
intravenosa de secretina pode provocar discreto aumento na
S, "C ic a triz v e r m e lh a " - n ítid a c o n v e r g ê n c ia d e p re g a s e m t e c id o
gastrinemia. Ao contrário, pacientes portadores de gastrinoma
d e p r im id o , h ip e r e m ia d o , s e m d e p ó s it o d e fib rin a .
apresentam aumentos acentuados na gastrinemia.
S2 "C ic a triz b ra n c a " - á rea o u lin h a e s b r a n q u iç a d a re c o b e r t a p o r
m u c o s a ; c o n v e r g ê n c ia d e p re g a s ; a u s ê n c ia d e h ip e r e m ia .
Uma vez suspeitado o diagnóstico de gastrinoma, torna-
se obrigatório tentar localizar o tumor, com a finalidade de
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 189

Figura 19.6 Imagens endoscópicas de úlceras pépticas. A, Úlcera gástrica, pré-pilórica, plana, de fundo claro, com bordas planas e hiperemia-
das, apresentando convergência de pregas edemaciadas e congestas (atividade). B, úlceras duodenais em atividade, localizadas em paredes
opostas de bulbo duodenal (k is s in g u lce rs). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 19.7 Estudo radiológico contrastado.


A. Lesáo ulcerada gástrica (s e ta ), evidenciada atra­
vés de pequena coleção de ar e bário, na grande
curvatura, com extensão além da parede do estô­
mago. B, Lesáo ulcerada duodenal (se ta), rasa, com
pregas radiadas e deformidade de bulbo.

ressecção cirúrgica sempre que possível. Recomenda-se que a úlcera (uso de AINE, gastrinoma), dispensando a terapêutica
investigação seja realizada em centros de referência com exa­ antibiótica. É necessário lembrar, porém, que podem ocorrer re­
mes que incluam ultrassonografia endoscópica, cintigrafia dos sultados falso-negativos em pacientes que receberam tratamen­
receptores da somatostatina, tomografia computadorizada, res­ to com inibidores da bomba de prótons, bismuto ou antibió­
sonância magnética e arteriografia seletiva. ticos, os quais podem suprimir temporariamente o H. pylori.
Os métodos para diagnóstico do H. pylori podem ser clas­
■ Diagnóstico dos fatores etiológicos sificados em invasivos e não invasivos. Suas características e
aplicabilidade clínica estão resumidas no Quadro 19.4.
■ Helicobacterpylori Os métodos invasivos são aqueles que necessitam de endos-
Os testes para diagnosticar infecção pelo H. pylori são im­ copia acompanhada de biopsia gástrica. Segundo o II Consenso
portantes em pacientes com doença ulcerosa péptica. Exames Brasileiro sobre o Helicobacter pylori, caso haja opção pela pes­
negativos mudam a estratégia diagnóstica para outras causas de quisa de HP durante a endoscopia digestiva, a coleta de material
190 Capítulo 19 / Úlcera Péptica Gastroduodenal

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 19.4 D ia g n ó stic o d e in fe cçã o p e lo H. pylori

Métodos diagnósticos Sensibilidade Especificidade Utilidade Comentários

Invasivos (endoscópicos)
H is to lo g ia 9 0 -9 5 % 9 0 -9 5 % T e s te p a d r õ o - o u r o p a ra d ia g n ó s t ic o N e c e s s á rio p a to lo g is ta e x p e r ie n t e ; d a d o s
n a ro tin a h o s p ita la r a d ic io n a is s o b r e a tro fia e in fla m a ç ã o

C u ltu ra 8 0 -9 0 % >95% P a d r õ o - o u r o a lt e r n a t iv o P e rm ite tes te s d e s e n s ib ilid a d e

U re a s e 90% 90% R á p id o , b o a re la ç á o c u s t o -b e n e f íc io E x ig e te s te a d ic io n a l p a ra c o n f ir m a ç ã o d a
in fe c ç ã o

Não invasivos (não endoscópicos)


T e s te re s p ira tó rio c o m u re ia >95% >95% P a d r õ o - o u r o a lte rn a tiv o M u it o ú til p a ra c o n tr o le d e e rra d ic a ç ã o ;
m a rc a d a p o u c o d is p o n ív e l

P esqu isa d o a n t íg e n o fecal >90% >90% A in d a p o u c o u tiliz a d o N á o c o n fiá v e l p a ra c o n tr o le d e e rra d ic a ç ã o

S o ro lo g ia 8 0 -9 0 % 8 0 -9 0 % M a is u t iliz a d o e m e s tu d o s P o u ca u t ilid a d e n a p rá tic a clín ica


e p id e m io ló g ic o s

para urease deverá ser realizada no corpo e antro gástricos. O doença ulcerosa antes de verificar o seu resultado. Na prática
estudo histológico deve incluir a coleta de cinco fragmentos: clínica, por outro lado, os excelentes resultados divulgados em
dois do antro, dois do corpo e um da incisura angular. trabalhos científicos bem conduzidos nem sempre são observa­
Os métodos não invasivos, que não necessitam de endos- dos, especialmente nos locais onde a resistência é alta ao metro-
copia, são três: nidazol. Neste caso, é possível que 30 a 50% dos pacientes não
erradiquem o microrganismo e, portanto, um número substan­
• Teste sorológico: pode ser realizado em laboratórios de
cial de pacientes possam se beneficiar do exame de controle de
referência ou através de um teste rápido desenvolvido
cura e de uma eventual modificação de conduta. Haverá situ­
para o consultório. Geralmente, a IgG está aumentada em
ação na qual o paciente questionará se a bactéria foi realmente
pessoas contaminadas pelo microrganismo. O achado de
erradicada, já que a confirmação permitirá ao clínico informar
IgG elevada não significa infecção ativa, uma vez que os
que a doença ulcerosa não recidivará. Em algumas condições,
níveis de anticorpos decrescem vagarosamente depois da
a verificação é obrigatória, como, por exemplo, na doença ulce­
erradicação da infecção. Não deve ser utilizado, portanto,
rosa péptica, especialmente na forma complicada (hemorragia,
nos casos em que haja necessidade de controle imediato
perfuração ou obstrução), na recorrência e na refratariedade.
de tratamento, embora uma queda acentuada dos níveis
Após o tratamento com antibióticos, a maior probabilidade
de anticorpos observada 6 a 12 meses após o tratamento
de testes com resultados falso-negativos ou equivocados aconte­
antimicrobiano signifique sucesso na erradicação.
ce se esses testes forem realizados antes de 4 semanas após o tér­
• Teste respiratório com ureia marcada: quando positivo,
mino do tratamento, pois o microrganismo pode estar suprimi­
ao contrário do teste sorológico, sempre significa infec­
do, mas não erradicado. O número de falso-negativos diminui se
ção atual. Pode indicar cura do H. pylori 8 semanas após
os exames forem realizados depois de 6 a 8 semanas. No Brasil,
a terapia antibiótica, período em que os testes com anti­
o II Consenso Brasileiro sobre o Helicobacterpylori recomenda
corpos ainda são positivos. Neste teste, o paciente ingere
o controle somente 2 meses após o término da terapia, em todos
ureia marcada com carbono 14 (radioativo) ou carbono
os casos de UG, UD e linfoma MALT de baixo grau.
13 (não radioativo). Este último, por não ser radioativo,
Ao indicar um teste de controle, deve-se considerar sempre a
é seguro, podendo ser utilizado em mulheres grávidas,
sua sensibilidade, segurança e conveniência para o paciente, isto
crianças e também para transporte de um local para outro
é, facilidade de realização e adequada relação custo-benefício.
(análise laboratorial em outra localidade). Se o organis­
O teste respiratório tem sido o mais recomendado para ve­
mo estiver presente, ele transforma a ureia em amônia
rificar a eficácia do tratamento de erradicação do H. pylori após
e dióxido de carbono marcado. Este pode ser detectado
o tratamento. Nos casos em que se realiza exame endoscópico
e quantificado no ar expirado 30 min mais tarde em um
para controle de cicatrização da úlcera péptica (úlcera gástrica
balão de coleta.
principalmente), torna-se mandatória a realização de testes ba­
• Pesquisa do antígeno fecal: método que identifica, através
seados na retirada de fragmentos de biopsia. Nestas ocasiões,
de reação imunoenzimática, antígenos do H. pylori nas
os resultados falso-negativos podem ser reduzidos através da
fezes dos pacientes. É bastante conveniente para pesquisa
retirada de múltiplos fragmentos de antro e corpo e com a uti­
da bactéria em população pediátrica.
lização de mais de um teste. A combinação de, ao menos, dois
Os testes não invasivos também podem ser utilizados para testes é recomendável (histologia, teste da urease, cultura).
confirmar a negatividade ao H. pylori ao teste da urease em
pacientes ulcerosos nos quais não foram obtidos fragmentos ■ Drogas anti-inflam atórias (AINE)
de biopsia para estudo histológico. Deve-se pesquisar durante a anamnese o uso de drogas anti-
A utilidade de exames para confirmar a erradicação do inflamatórias, particularmente em pacientes idosos nos quais
H. pylori tem sido amplamente discutida. Como a maioria (80 a haja maior consumo devido à elevada prevalência de doenças
90%) dos pacientes tratados é curada pelo tratamento antimi­ osteoarticulares. Pacientes cardiopatas devem ser pesquisados,
crobiano, parece sensato esperar uma recidiva sintomática da pois, nesse grupo, é comum a ingestão regular de doses baixas
Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 191

de ácido acetilsalicílico na profilaxia de enfermidades cardio- vamente, que podem ser administradas em dose única matinal
vasculares isquêmicas. ou noturna, embora, com maior frequência, sejam fracionadas
Quando uma úlcera gástrica for refratária ao tratamento em duas tomadas.
instituído e existir suspeita de ingestão de AINE não admiti­ As medicações da classe IBP bloqueiam diretamente a ATPase
da pelo paciente, o nível sérico dos salicilatos ou a atividade K’ ativada, enzima responsável pela união do H* com o Cl"
da ciclo-oxigenase das plaquetas, se disponível, pode ser so­ no canalículo da célula parietal, origem do HC1. Atualmente,
licitado. no Brasil, os medicamentos disponíveis são: omeprazol, lan-
soprazol, pantoprazol, rabeprazol e esomeprazol. Estes medi­
camentos possuem eficácia semelhante, com cicatrização de
■ TRATAMENTO 70% após 2 semanas e 92 a 100% depois de 4 semanas de tra­
tamento. A dose de IBP é de 20 mg para o omeprazol e o rabe­
O tratamento da úlcera péptica, seja ela gástrica ou duode- prazol, 30 mg para o lansoprazol e 40 mg para o pantoprazol
nal, tem como objetivos: alívio dos sintomas, cicatrização das e o esomeprazol. O medicamento é administrado pela manhã,
lesões e prevenção de recidivas e complicações. em jejum; nos poucos pacientes cuja úlcera permanece ativa
Até a descoberta do H. pylori, os dois primeiros objetivos após 4 semanas de tratamento, observa-se cicatrização com o
eram facilmente alcançados; entretanto, ao final de 1 ano, prati­ aumento da dose.
camente todas as úlceras recidivavam. Atualmente, sabe-se que Os IBP são muitos seguros; entretanto, a polêmica em torno
não basta cicatrizar a úlcera, mas há necessidade de erradicar a de seu uso prolongado advém do risco teórico de cancerização.
bactéria, a título de evitar a recidiva. Em razão de sua potente ação antissecretora, observa-se aumento
Cultivar uma boa relação médico-paciente é fundamental, nos níveis de gastrina plasmática de 2 a 3 vezes a partir das pri­
explicando ao paciente a natureza de sua doença, inclusive do meiras 48 a 96 h, que, em geral, se mantém nesses níveis a des­
ponto de vista emocional. Quanto à alimentação e dieta, nem peito do uso prolongado. A possibilidade teórica de aumento na
o tipo, nem a consistência da dieta afetam a cicatrização da úl­ população das células enterocromafins símile (ECL liké) e o apa­
cera, mas é conhecido que alguns alimentos aumentam e/ou recimento de carcinoide do estômago têm sido apontados como
estimulam a produção de ácido clorídrico e outros são irritantes contraindicação do uso prolongado deste potente antissecretor.
à mucosa gástrica. E importante recomendar aos pacientes que A supressão ácida com tendência à hipo e acloridria poderia fa­
evitem alguns alimentos e que parem de fumar, pois o fumo vorecer o crescimento de bactérias no estômago e a formação
pode alterar o tempo de cicatrização da úlcera. de compostos nitrosos pela ação das bactérias sobre os radicais
As medicações que promovem a cicatrização da úlcera agem nitratos, oriundos de alimentos consumidos; no entanto, vários
por dois mecanismos: fortalecendo os componentes que m an­ estudos sobre pacientes acompanhados por vários anos com estes
têm a integridade da mucosa gastroduodenal (pró-secretores) medicamentos, como nos casos de esofagite ou gastrinoma, não
e diminuindo a ação cloridropéptica (antissecretores). mostraram maior risco de tumor carcinoide ou câncer.
Os pró-secretores atuam estimulando os fatores responsá­
veis pela integridade da mucosa, como muco, bicarbonato, fa­
tores surfactantes, além de favorecer a replicação celular e o
■ Helicobacterpylori e úlcera
fluxo sanguíneo da mucosa. São considerados pró-secretores: As evidências atuais demonstram a importância da erradica­
antiácidos, sucralfato, sais de bismuto coloidal e prostaglandi- ção do H. pylori na prevenção de recidiva ulcerosa, seja ela gás­
nas, mas, na prática, são pouco utilizados. As prostaglandinas trica ou duodenal. Quanto à abordagem terapêutica da úlcera
surgiram na década de 1980 como medicamentos promissores duodenal, embora alguns autores indiquem unicamente a erra­
baseados na ação antissecretora e citoprotetora. O misoprostol dicação da bactéria, independente de tamanho, profundidade
era altamente eficaz na prevenção de lesões agudas de mucosa e número de lesões, acreditamos que tal conduta seja avaliada
provocada por AINE, com eficácia semelhante à do omeprazol. com cautela. Sugerimos que o tratamento da úlcera duodenal
O alto custo, os efeitos colaterais (diarréia e cólicas abdomi­ restrito à erradicação da bactéria seja indicado naqueles casos
nais) e o uso indevido como abortivo, por outro lado, invia­ em que a lesão não é muito profunda, nem múltipla. Nos casos
bilizaram a utilização e eles foram praticamente abandonados em que a úlcera é profunda, com 1 cm ou mais, o bom-senso
na prática clínica. indica a manutenção do IBP por um período de pelo menos 10
Os antissecretores são os medicamentos de escolha para a a 14 dias, após a conclusão do esquema de erradicação.
cicatrização da úlcera, e dois grupos são atualmente utilizados: Numerosos esquemas de erradicação têm sido propostos,
os bloqueadores do receptor H, da histamina e os inibidores mas nem todos mostram a mesma eficácia. São considerados
da bomba de prótons (IBP). aceitáveis índices de erradicação acima de 80%. Os esquemas
O primeiro bloqueador H 2 que nos anos setenta revolu­ monoterápicos ou duplos não devem ser utilizados, pois resul­
cionou o tratamento da úlcera péptica foi a cimetidina, dimi­ tam em índices de erradicação extremamente baixos. Os esque­
nuindo significativamente a indicação de cirurgias. Posterior­ mas tríplices são os mais indicados e os esquemas quádruplos
mente, surgiram no mercado brasileiro ranitidina, famotidina devem ser reservados para situações especiais, como, por exem­
e nizatidina. Esse grupo de medicamentos atua bloqueando o plo, nos casos de falha terapêutica ao esquema tríplice.
receptor H2 existente na membrana da célula parietal, dimi­ Convém lembrar que alguns esquemas apresentam excelentes
nuindo significativamente a ativação da ATPase K* ativada no níveis de erradicação em países desenvolvidos, mas deixam mui­
canalículo secretor, com redução de aproximadamente 70% da to a desejar em nosso meio. Essa constatação justifica-se devido
secreção ácida estimulada pela refeição. Todos eles apresentam à resistência primária a grupos bactericidas (principalmente imi-
eficácia semelhante de cicatrização, em torno de 60 a 85%, com dazólicos, como metronidazol e tinidazol, e claritromicina).
4 semanas de tratamento, com resposta adicional de cerca de Atualmente, o esquema considerado de primeira linha as­
10% após extensão do tratamento por mais 4 semanas. As do­ socia um inibidor de bomba protônica em dose-padrão + cla­
ses preconizadas diárias de cimetidina, ranitidina, famotidina ritromicina 500 mg + amoxicilina 1.000 mg ou metronidazol
e nizatidina são de 800 mg, 300 mg, 40 mg e 300 mg, respecti­ 500 mg, 2 vezes/dia, por um período mínimo de 7 dias. O tempo
192 Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal

de tratamento pode variar de 7 a 14 dias, havendo uma tendên­ Todos esses esquemas apresentam o inconveniente de utili­
cia a se dar preferência por 7 dias, já que a redução do tempo de zar um grande número de comprimidos, dificultando a adesão
tratamento não influencia nos índices de erradicação, favorece do paciente ao tratamento, além de efeitos colaterais, como:
a aderência e torna o custo mais acessível. diarréia, cólicas abdominais, náuseas, vômitos, gosto metálico,
Contudo, devido à prescrição indiscriminada do metrodi- glossite e vaginite, que variam de centro para centro; podem
nazol em nosso meio, deve-se dar preferência ao uso da fu- chegar até 30% de frequência.
razolidona como droga alternativa. O II Consenso Brasileiro Com relação às lesões induzidas por AINE, indubitavel­
sobre o Helicobacter pyloriy realizado em junho de 2004, na mente o melhor tratamento é o profilático. Devem-se utili­
cidade de São Paulo, recomenda a associação de IBP + fu- zar, sempre que possível, os AINE com menor potencial de
razolidona + claritromicina ou tetraciclina, como esquemas agressão (COX-2 seletivos) e instituir o tratamento profiláti­
alternativos de primeira linha para erradicação da bactéria co concomitante (IBP) para aqueles pacientes considerados
(Quadro 19.5). de alto risco a fim de evitar complicações. Em pacientes com
alto risco cardiovascular, recomenda-se que o AINE de eleição
seja o naproxeno em associação a um IBP ou ao misoprostol;
-------------------------▼------------------------- todavia, é importante considerar que mesmo esta associação
Quadro 19.5 Tratamento do H. pylori - II Consenso Brasileiro não é isenta de riscos em pacientes com múltiplos fatores de
risco gastrintestinais. Em pacientes de baixo risco cardiovas­
sobre o Helicobacterpylori
cular, AINE não seletivos podem ser utilizados associados a
a ) IBP + a m o x ic ilin a 1,0 g + c la ritro m ic in a 5 0 0 m g , 2 x / d ia , 7 d ia s
um IBP, naqueles com um ou dois fatores de risco para úlce­
b ) IBP 1 x / d ia + c la r it r o m ic in a 5 0 0 m g 2 x / d ia + fu ra z o lid o n a 2 0 0 m g ra gastroduodenal. Na presença de múltiplos fatores de risco
2 x / d ia , 7 d ia s ou antecedente de úlcera complicada, deve-se optar pelo uso
c ) IBP 1 x / d ia + fu ra z o lid o n a 2 0 0 m g 3 x / d ia + te tra c ic lin a 5 0 0 m g 4 x / d ia ,
criterioso de inibidores seletivos da COX-2 em associação
7 d ia s
com IBP ou misoprostol e avaliar a relação risco-benefício,
R e tr a ta m e n to (d u a s te n ta tiv a s , n ã o se r e p e t in d o o e s q u e m a in ic ia l):
caso a caso.
• S e t r a t a m e n t o in ic ia l c o m e s q u e m a a ) o u b ):
111o p ç ã o : IBP + sal d e b is m u t o 2 4 0 m g + fu ra z o lid o n a 2 0 0 m g + Os AINE são a segunda maior causa de úlcera péptica, e, por­
a m o x ic ilin a 1,0 g (o u d o x ic id in a 100 m g ), 2 x / d ia , 10 a 14 dias tanto, a ação sinérgica entre o H. pylori e os AINE vem sendo
2 * o p ç ã o : IBP 2 x / d ia + a m o x ic ilin a 1,0 g 2 x / d ia + le v o flo x a c in o 5 0 0 m g demonstrada para o desenvolvimento de úlcera. Seu apareci­
1 x / d ia , 10 d ia s; o u IBP + fu ra z o lid o n a 4 0 0 m g + le v o flo x a c in o 5 0 0 m g
1 x / d ia , 10 d ia s
mento é raro em não usuários de AINE e H. pylori negativos. As
• S e t r a t a m e n t o in ic ia l c o m e s q u e m a c ): recomendações do II Consenso Brasileiro sobre o Helicobacter
1* o p ç ã o : IBP + a m o x ic ilin a 1,0 g + c la ritro m ic in a 5 0 0 m g , 2 x / d ia , 7 d ia s pylori para erradicação da bactéria, em usuários de AINE, estão
2-* o p ç ã o : IBP + sal d e b is m u t o 2 4 0 m g + f u ra z o lid o n a 2 0 0 m g + resumidas no Quadro 19.6.
a m o x ic ilin a 1,0 g (o u d o x ic id in a 100 m g ), 2 x / d ia , 10 a 14 d ias
Recentemente, um consenso entre cardiologistas e gastrente-
C o n t r o le d e e rra d ic a ç ã o (ú lc e ra g á s tric a o u d u o d e n a l, lin fo m a M A L T d e
rologistas americanos concluiu que a associação de AAS e IBP,
b a ix o g r a u ):
• N o m ín im o , 8 s e m a n a s a p ó s o t é r m in o d o t r a t a m e n t o
em pacientes cardiopatas com elevado risco gastrintestinal, é
• D e e s c o lh a : te s te r e s p ira tó rio c o m u re ia m a rc a d a , q u a n d o n ã o h o u v e r melhor do que o uso de clopidogrel isoladamente na prevenção
in d ic a ç ã o p a ra n o v a e n d o s c o p ia . S e e x a m e e n d o s c ó p ic o : u re a s e e de úlceras complicadas. Todavia, as evidências recentes de que
h is to lo g ia
o uso concomitante de IBP pode modificar as propriedades an-
• A n tis s e c re to re s d e v e r ã o se r s u s p e n s o s 7 a 10 d ia s a n te s d o c o n tr o le d e
e rra d ic a ç ã o
tiplaquetárias dessas drogas têm sido motivo de preocupação e
aguardam estudos clínicos prospectivos, embora novos estudos

Figura 19.8 Proposta de tratamento da úlcera péptica gástrica.


Capítulo 79 / Úlcera Péptica Gastroduodenal 193

Figura 19.9 Algoritmo de investigação diagnóstica na doença ulcerosa péptica refratária ou recorrente.

--------------------------T--------------------------
Quadro 19.6 Recomendações para pacientes em uso de AINE/AAS - ■ LEITURA RECOMENDADA
II Consenso Brasileiro sobre o Helicobacterpylori Bhatt, DL, Schciman, J, Abraham, NS et al. ACCF/ACCI/AHA 2008 expcrt
conscnsus document on reducing thc gastrointestinal risks of antiplatelet
P es qu is a e t r a t a m e n t o d e in fe c ç ã o p e lo H . p y lo ri: thcrapy and NSAID use: a report of thc American Collegc of Cardiology
• P a c ie n te s q u e in ic ia rã o t r a t a m e n t o c o n t í n u o c o m A IN E n ã o s e le tiv o s Foundation Task Force on Clinicai Expcrt Conscnsus Documcnts. ) Am
• P a c ie n te s d e risco* já e m u s o d e A IN E e / o u A A S , o u q u e in ic ia rã o Coll Cardiol, 2008; 52:1502-17.
t r a t a m e n t o c o m e les, i n d e p e n d e n t e d e t ip o , d o se , t e m p o o u in d ic a ç ã o Coelho, LGV 8c Zatcrka, S. II Consenso Brasileiro sobre Helicobacter pylori.
p a ra o t r a t a m e n t o Arq Gastroentcrol, 2005; 42:128-32.
Crycr, B 8c Spcchler, SJ. Pcptic ulccr discase. Em: Fcldman, M, Fricdman, LS,
U tiliz a ç ã o p ro filá tic a d e IBP:
Brandt, LJ (cds.). Slcisenger and Fordtran’s Gastrointestinal and Livcr Dis-
• P a c ie n te s d e risco , i n d e p e n d e n t e d o s ta t u s H . p y lo r i
casc, 8th cd., Philadclphia: Saundcrs Elsevicr 2006; 1089-110.
"Pacientes de risco para o desenvolvimento de lesões do trato digestório superior:
Eisig, JN, Andrc, SB, Silva, FM, Hashimoto, C, Moraes-Filho, JP, Laudanna, AA.
história prévia de úlcera péptica, idade acima de 60 anos, associação de AINE com Thc impact of Helicobacter pylori rcsistancc on thc efficacy of a short coursc
derivados sallcflicos, corticoides ou anticoagulantcs. pantoprazolc bascd triplc thcrapy. Arq Gastroenterol, 2003; 40:55-60.
Guzzo, JL, Duncan, M, Bass, BL, Bochicchio, GV, Napolitano, LM. Scvcre and
refractory pcptic ulccr discase: thc diagnostic dilemma. Case report and
comprehcnsivc rcvicw. DigDisSci, 2005; 50:1999-2008.
Jcnscn, RT 8c Norton, JA. Endocrinc tumors of thc pancrcas and gastrointes­
tinal tract. Em: Fcldman, M, Fricdman, LS, Brandt, LJ (cds.). Slciscngcr
retrospectivos já contestem esse risco. A recomendação atual é and Fordtrans Gastrointestinal and Livcr Discase, 8th cd.. Philadclphia:
Saundcrs Elsevicr 2006; 625-66.
manter a medicação IBP em pacientes de alto risco gastrintes- Kustcrs, JG, van Vlict, AHM, Kuipcrs, EJ. Pathogcncsis of Helicobacter pylori
tinal em uso de dupla terapia antiplaquetária. infcction. Clin Microbiol Rev, 2006; 19:449-90.
A Figura 19.9 apresenta algoritmo que resume o tratamento Lanas, A, Baron, JA, Sandlcr, RS et al. Pcptic ulccr and bleeding events associ-
da úlcera péptica gástrica. Em consequência à maior incidên­ ated with rofecoxib in a 3-ycar colorcctal adenoma chcmoprcvcntion trial.
Gastroenterology, 2007; 732:490-7.
cia de úlceras H. pylori e AINE/ASS negativas, a proporção de Malfcrthcincr, P, Chan, FKL, McColl, KEL. Pcptic Ulccr Discase. Lancei, 2009;
pacientes com doença ulcerosa péptica refratária ou recorrente 374:1449-61.
tem sido crescente. A correta avaliação, identificação e o trata­ Malfcrthcincr, P, Mcgraud, F, 0 ’Morain, C, Bazzoli, F, El-Ornar, E, Graham, D
mento adequado de fatores associados à refratariedade ou re­ et al. Current conccpts in thc management of Helicobacter pylori infcction:
thc Maastricht III Conscnsus Report. Gut, 2007; 56:772-81.
corrência tornam as taxas de intratabilidade praticamente nulas Marshall, BJ. Helicobacter pylori. Am J Gastroenterol, 1994; 89:S116-28.
(Figura 19.9). Já as úlceras duodenais, no geral, não necessitam Marshall, BJ. Unidcntificd curvcd bacilli on gastric cpithclium in active chronic
de controle endoscópico, recomendando-se apenas o controle gastritis. Lancet, 1983; J:1273-4.
de erradicação do H. pylori após 4 a 8 semanas do término do Marshall, BJ 8cWarrcn, JR. Unidcntificd curvcd bacilli in thc stomach of patients
with gastritis and pcptic ulccration. Lancet, 1984; J: 1311-4.
tratamento e tendo como método de escolha o teste respirató­ Matar, R, Marques, SB, Monteiro, MS, dos Santos, AF, Iriya, K, Carrilho, FJ. He­
rio com ureia marcada. licobacter pylori cag pathogcnicity island genes: clinicai rclcvancc for pcptic
O tratamento de complicações pode ser abordado, primei­ ulccr discase dcvclopment in Brazil. / Med Microbiol, 2007; 56:9-14.
ramente, através de métodos endoscópicos, como nos san- Ray, WA, Murray, KT, Griffin, MR, Chung, CP, Smallcy, WE, Hall, K et al. Out-
comcs with concurrcnt use of clopidogrcl and proton-pump inhibitors: A
gramentos, fazendo a hemostasia endoscópica ou a dilatação cohort study. Ann Intern Med, 2010; 152:337-45.
nas estenoses. Nos casos de perfuração, a conduta é sempre Yuan, Y, Padol, IT, Hunt, RH. Pcptic ulccr discase today. Nat Clin Pract Gas­
cirúrgica. troenterol Hepatol, 2006; 3:80-9.
Úlcera Péptica H e l i c o b a c t e r

negativa
p y l o r i -

Bruno Squárcio Fernandes Sanches, Graziella Mattar Vieira de Alvarenga


e Renato Dani

outras infecções e condições, mas é a prevalência da infecção


■ INTRODUÇÃO o fator de maior impacto envolvido. As circunstâncias rela­
Há mais de um século, a doença ulcerosa péptica é a princi­ cionadas com a aquisição da bactéria, por exemplo, a etnia, as
pal causa de morbidade e mortalidade dentre as doenças gás­ condições socioeconômicas e as condições de vida na infância,
também determinam o percentual de úlceras relacionadas ou
tricas. A partir da década de 1980, após a divulgação dos resul­
não à infecção.
tados de Warren e Marshall, a infecção por Helicobacter pylori
Imaginemos que o número absoluto das úlceras H. pylori-
(HP) foi reconhecida como o principal fator causai, presente
em mais de 95% das úlceras duodenais e em 70% das úlceras negativas permaneça constante ao longo do tempo (o que pode
não ser verdade devido ao uso crescente dos AINEs) e que
gástricas. Vários estudos clínicos comprovaram essa associação
o número das úlceras HP-positivas decline no mesmo perío­
e a recorrência das úlceras, até então o apanágio da doença -
do, refletindo a melhoria das condições de vida da população.
“uma vez ulceroso, sempre ulceroso”, com a erradicação de
Nesse contexto, observaríamos uma redução no número total
H. pylori foi reduzida para menos de 2% ao ano. Na atualidade,
de úlceras, mas um incremento na proporção das úlceras HP-
a terapia anti-H. pylori é a principal estratégia terapêutica contra
negativas, como ocorre nos dias de hoje (Figura 20.1).
a doença ulcerosa péptica. Na ausência da infecção, anti-infla -
Graham elaborou um modelo hipotético para ilustrar a re­
matórios não esteroides (AINEs) e derivados do ácido salicílico lação entre a prevalência das úlceras HP-positivas e negativas.
constituem a segunda causa mais comumente relacionada com Nesse modelo, se a prevalência da infecção cai de 80% para
as úlceras gastroduodenais. Apesar dos conhecimentos acumu­ 40% e o número total de úlceras duodenais por outras causas
lados acerca da fisiopatologia das úlceras pépticas, ainda res­ permanece estável, por exemplo 250 por 100.000 pessoas, o nú­
tam indagações sem resposta. Recentemente, a epidemiologia mero total de úlceras irá declinar de 1.050 para 650 por 100.000,
da doença começou a mudar dramaticamente. Trabalhos de enquanto a proporção das lesões HP-negativas aumentará de
diferentes regiões do mundo revelam aumento na proporção 24% para 38%. Dessa maneira, uma maior proporção de úlceras
de úlceras H. py/orí-negativas. Alguns autores imaginam que H. pylori-negativas seria diagnosticada.
a taxa da infecção relacionada com a úlcera seja menor do a Se a infecção por H. pylori desaparecesse, algumas úlceras,
que foi previamente estimada; outros formulam diferentes hi­ ainda assim, ocorreríam, e, apesar do reduzido número abso­
póteses, tais como resultados falso-negativos e uso sub-reptício luto, a proporção de lesões relacionadas com a infecção deveria
de AINE/salicilato. Entretanto, apesar das divergências, todos ser zero. Muitos trabalhos sugerem que nas próximas décadas
reconhecem a existência de úlceras idiopáticas. será mantida a tendência de redução na prevalência de H. pylori.
Essa mudança epidemiológica pode determinar um impac­ Consequentemente, a proporção de úlceras HP-negativas deve
to no diagnóstico e tratamento das úlceras pépticas no futuro. aumentar. Alguns autores especulam que elas se tornem, inclu­
As estratégias terapêuticas podem mudar, já que as úlceras não sive, o tipo predominante.
relacionadas com a infecção por H. pylori não são curadas com Entretanto, o aparente aumento das úlceras HP-negativas
antibióticos, necessitando possivelmente de supressão ácida não pode ser inteiramente explicado pela redução na preva­
continuada. lência da infecção. Sugiyama et al. demonstraram que o risco
atribuível da infecção na úlcera péptica não foi alterado, mesmo
diante de menor prevalência da infecção. Quando comparados
■ PREVALÊNCIA japoneses nascidos antes e depois de 1950, os autores não en­
contraram diferenças na proporção de úlceras HP-negativas,
A prevalência das úlceras H. py/orí-negativas varia consi­ apesar de a prevalência da infecção ser de 21% nos mais jovens
deravelmente em diferentes regiões do mundo. Parte dessa di­ e de 75% nos mais velhos. Este trabalho sugere que outros fa­
versidade pode ser explicada pelas diferenças de sensibilidade tores, além da prevalência da infecção por H. pylorit devem
dos métodos de diagnóstico da infecção, pelo uso dos AINEs e estar relacionados.

194
Capítulo 20 / Úlcera Péptica Helicobacter py\or\-negativa 195

Número de úlceras Proporção das úlceras

H . p y lo ri -negativas
H. py/or/-negativas

Tempo Tempo

Figura 20.1 Aumemo da proporção das úlceras H.py/oft-negativas. (Extraído de: Peura, AD.The problem of H e lic o b a c te r p y lo r i- n e g a iw e idiopa-
thic ulcer disease. Best Practice & Research, G in . G a s tro e n te ro l., 2000; 14:109-17.)

Na década de 1990, a expressiva consistência dos resultados população geral. Portanto, o aparente aumento na frequência
sobre a associação de H. pylori e úlcera péptica, sobretudo as úl­ de úlceras H. py/orí-negativas não pode ser inteiramente expli­
ceras duodenais, permitiu que alguns estudiosos questionassem cado pela redução na prevalência da infecção.
a necessidade de se comprovar a infecção diante de um exame
endoscópico com o achado de uma úlcera. Entretanto, como
já citado, mais recentemente, registra-se o aumento das úlceras ■ REVISÕES
não infecciosas. Alguns desses trabalhos utilizam dados retros­
pectivos, portanto passíveis de críticas pelas falhas nos métodos Em recente trabalho de revisão, Gisbert et al. estudaram a
de diagnóstico da infecção e de exclusão de anti-inflamatórios prevalência da infecção associada à úlcera duodenal em traba­
e outras medicações. Porém, outras fontes de dados coletados lhos publicados de 1998 até 2008. Nessa análise, foram excluídos
em diferentes países apontam nessa mesma direção. os estudos em que todos os pacientes apresentavam doenças
Em dois ensaios clínicos multicêntricos, o envolvimento de concomitantes (neoplasias malignas, insuficiência renal, cirro­
HP e/ou AINEs não foi comprovado em 20 e 30%, respectiva­ se hepática) ou complicações da doença ulcerosa (hemorragia,
mente, dos pacientes com úlcera duodenal. Os autores presu­ perfuração e obstrução pilórica), pois suas menores taxas de
mem que esses pacientes sejam portadores de úlcera péptica infecção (média de 70%) poderiam ser explicadas por tais con­
idiopática, já que outras causas de úlcera péptica, como uso de dições. A revisão mencionada contabilizou mais de 16.000 pa­
anti-inflamatórios e estados hipersecretórios, foram excluídas. cientes com úlcera duodenal, encontrando uma taxa média de
Um outro estudo norte-americano que envolveu 2.394 pacien­ infecção por H. pylori de 81,2. A prevalência da infecção foi
tes encontrou 27% de úlceras não relacionadas com H. pylori ou maior nos estudos europeus quando comparados aos norte-
AINEs. Apesar do número impressionante de participantes, o americanos (83,9% vs. 72,4%, p < 0,001), e cifras intermediárias
estudo não foi poupado de críticas, especialmente pela suspeita foram encontradas em estudos de outros países americanos,
de que pelo menos 20% dos pacientes tenham usado AINEs, como Brasil, Colômbia e Peru (81,9%). As mais altas taxas de
mesmo com testes negativos para salicilatos. infecção foram encontradas no Japão, com valores médios de
Estudos realizados em outros países mostram resultados 94,3%. Quando analisados somente os estudos publicados entre
semelhantes aos dos norte-americanos quanto ao aumento na 1999 e 2003, a prevalência da infecção foi de 84%, ao passo que,
prevalência das úlceras H. pylori-negativas. Em 1993, McColl no período 2004-2008, foi de 77%, diferença significativamente
et al. identificaram 12 portadores de úlcera péptica HP-nega­ estatística. Tal diferença podería representar a crescente ten­
tiva dentre 435 pacientes com úlcera duodenal atendidos em dência de aumento das úlceras HP-negativas? Esperamos que
um centro de referência na Escócia. Dos 12 pacientes, qua­ futuros estudos respondam a essa pergunta.
tro haviam usado AINEs, um possivelmente tinha doença de Apesar das revisões mais recentes, a real prevalência de úl­
Crohn no duodeno e um preenchia critérios para síndrome cera HP-negativa é difícil de ser determinada, sobretudo pelo
de Zollinger-Ellison. Portanto, apenas seis pacientes, em um desenho retrospectivo da maioria dos trabalhos estudados.
universo de mais de 400, foram considerados como portadores
de úlcera idiopática. Na Austrália, uma análise retrospectiva de
125 pacientes com úlcera duodenal encontrou 56 (45%) casos ■ ESTUDOS PR0SPECTIV0S
de úlceras HP-negativa. Todavia, os autores reconhecem que
o uso de anti-inflamatórios pode explicar uma grande parcela Os estudos prospectivos têm demonstrado que um núme­
desses casos. ro substancial de ulcerosos infectados por HP desenvolvem
No Japão, onde a prevalência da infecção ainda é alta, as úl­ recidiva da úlcera após a erradicação da bactéria. Hirschowitz
ceras HP-negativas também parecem aumentar, mas ainda são et al. relataram que 45% dos pacientes com úlcera duodenal
muito raras. Em um estudo de 2000, Aoyama et al. relataram H. pylori-positiva não associada a AINEs, submetidos com su­
11 pacientes com úlceras HP-negativas (3,6% de 302 pacientes). cesso à erradicação de HP, tiveram recorrência da úlcera em
Desses, dois eram sabidamente usuários de AINEs. Revisões re­ um período de até 6 meses após o término do tratamento. Uma
centes mostram uma clara mudança na prevalência da infecção metanálise norte-americana demonstrou recorrência de úlce­
no país nos últimos 20 anos, com redução de 73% para 39% na ra duodenal de 20% em 6 meses, a despeito da erradicação de
196 Capítulo 20 / Úlcera Péptica HeUcobacter py\or\-negativa

H. pylori e exclusão de AINEs. Uma possível explicação seria o 2. realizar dois testes: urease ou teste respiratório associados
enfraquecimento da mucosa atingida pela úlcera, que, apesar da a pesquisa histológica com pelo menos duas biopsias de
erradicação da bactéria, estaria suscetível a novas lesões. Uma antro e corpo;
outra hipótese é a de que esses pacientes sejam na verdade por­ 3. proceder a um terceiro teste, incluindo teste sorológico,
tadores de úlceras idiopáticas coincidentemente infectados por quando os dois exames anteriormente citados forem ne­
HP. Esses resultados reforçam as teorias sobre a participação de gativos.
outros fatores etiológicos além da infecção por H. pylori. Mesmo diante de exames negativos, existem evidências in­
Contudo, esses achados se contrapõem aos encontrados pe­ diretas de que o H. pylori ainda pode estar associado. Alguns
los japoneses. Em um grande estudo muticêntrico realizado no autores procederam ao tratamento empírico contra a infecção,
Japão, que envolveu 4.940 portadores de úlcera acompanhados observando a cicatrização persistente da úlcera após a terapia e
por 48 meses após a erradicação de HP, a taxa de recorrência foi melhora no padrão de gastrite crônica antral. Portanto, a pre­
de apenas 3,02%, ou 1,6% ao ano. Esse índice foi ainda menor sença de gastrite com lesões histológicas sugestivas na ausência
ao se excluir o uso de AINEs, reduzindo para 1,3% ao ano. A da infecção por H. pylori deve suscitar a hipótese de resultado
recorrência foi significativamente maior entre etilistas, taba- falso-negativo. Além disso, um recente estudo sugeriu que em
gistas e portadores de lesões gástricas. Quanto às úlceras reci- alguns casos de úlcera duodenal a infecção está restrita à m u­
divadas, 83,9% acometiam o mesmo local previamente lesado cosa duodenal, sendo curável com a erradicação da bactéria.
ou áreas adjacentes. Na opinião dos autores, a recorrência das Consequentemente, em pacientes com úlcera duodenal sem
lesões após a erradicação da bactéria é rara, tendendo a ocorrer evidência de H. pylori no estômago, biopsias da mucosa duo­
sobre o mesmo local da úlcera original. denal deveriam ser realizadas.

■ ÚLCERAS COMPLICADAS: HEMORRAGIA, ■ USO DE AINEs E SALICILATOS


ESTENOSE, PERFURAÇÃO Na ausência da infecção, o uso de anti-inflamatórios e sali­
Alguns trabalhos sugerem que úlceras complicadas são m e­ cilatos constitui a principal causa de úlcera péptica, podendo
nos associadas à infecção por H. pylori. Contudo, mais recente­ ocorrer após administração oral ou sistêmica. As estatísticas
mente, após estudos de revisão sistemática e metanálise, houve mostram que 30 a 75% das úlceras H. py/ori-negativas são se­
a demonstração de que grande número desses casos devem-se cundárias ao uso de AINEs, porém o uso não reconhecido des­
a anti-inflamatórios e/ou derivados de salicilatos, ou ainda, que sas drogas pode subestimar esses dados. Ervas medicinais chine­
a pesquisa de H. pylori foi comprometida pelo uso anterior de sas e produtos de terapias alternativas podem conter compostos
inibidor de bomba de prótons. anti-inflamatórios, que não são reconhecidos pelos pacientes.
Por essas razões, alguns autores defendem a dosagem sérica de
salicilatos nos casos de suspeita de uso não reconhecido de áci­
do acetilsalicílico. Na suspeita de uso de AINEs, as dificuldades
■ CAUSAS são maiores, pois os exames laboratoriais são complexos, mais
caros e específicos para cada tipo de anti-inflamatório.
■ Resultados falso-negativos Além dos anti-inflamatórios não esteroides e do ácido ace­
As úlceras pépticas, sejam gástricas ou duodenais, podem tilsalicílico, outras drogas apresentam potencial ulcerogênico.
não se associar à infecção por H. pylori por muitas razões. A Embora motivo de controvérsia, os corticoides não são consi­
mais comum é o erro na detecção do microrganismo. Os testes derados atualmente como fatores de risco independentes para
que identificam infecção ativa, como histologia, cultura, urease úlcera péptica. Contudo, podem potencializar o efeito nocivo
e teste respiratório, são negativamente influenciados pelo uso dos AINEs sobre a mucosa gastroduodenal. Existe ainda o risco
prévio de bismuto, antibióticos e inibidores da secreção ácida, das úlceras provocadas por cloreto de potássio, sais de ferro e
sejam inibidores da bomba protônica (IBP), sejam antagonistas colchicina, bifosfonatos, crack, cocaína, anfetaminas e medica­
de receptores H2. 0 teste da urease e a histologia podem ainda ções imunossupressoras, como o micofenolato. Radioterapia
ser falseados por problemas de amostragem do microrganis­ com foco em abdome constitui outra causa rara de úlcera, que
se situa preferencialmente na segunda porção do duodeno.
mo no segmento biopsiado. Uso recente de IBP ou altas doses
de antagonistas de receptores H2 permitem a migração proxi- Outras causas menos comuns estão agrupadas no Qua­
mal de H. pylori, e as biopsias antrais isoladas não conseguem dro 20.1.
detectar a presença da bactéria. Gastrite atrófica e metaplasia Afastada a possibilidade de erro diagnóstico de H. pylori e
podem também se associar a erros de diagnóstico pela reduzida envolvimento de ácido acetilsalicílico ou AINEs, causas menos
comuns devem ser pesquisadas, com destaque para os estados
densidade de H. pylori nessas áreas. A úlcera péptica hem or­
rágica pode produzir até 25% de resultados falso-negativos no hipersecretórios, como a síndrome de Zollinger-Ellison (SZE),
responsável por cerca de 1% de úlceras duodenais e até 3%
teste da urease, pois a presença de sangue no antro compromete
das gástricas. A referida síndrome é marcada pela hiperacidez
a detecção de mudança no pH do tecido biopsiado. Portanto,
gástrica decorrente da produção excessiva de gastrina por um
antes da conclusão diagnóstica de úlcera H. pylori- negativa,
tumor secretante, por isso a sinonímia de gastrinoma. O mé­
recomenda-se a realização de dois ou mais testes simultâneos
todo mais sensível e específico para o diagnóstico da SZE é a
para aumentar a sensibilidade e o valor preditivo negativo.
dosagem sérica de gastrina em jejum, considerada normal até
Para fins práticos, deve-se:
200 pg/mt Níveis acima de 1.000 pg/m^ são típicos de gastri­
1. retardar os testes diagnósticos de H. pylori por 4 semanas noma, sugerindo doença metastática quando acima de 1.500 pg/
após o uso de antibióticos, preparações com bismuto, IBP m t O gastroacidograma pode ser utilizado para diferenciar es­
e bloqueadores H2; tados de hiper ou hipocloridria. Uma medida de pH gástrico
Capítulo 20 / Úlcera Péptica Helicobacter py\or\-negativa 197

----------------------------- ▼-------------------------- ------------------------------------------------------------------------------ ▼

Quadro 20.1 Causas de úlcera gastroduodenal H.pylori-neqtim Quadro 20.2 Causas de hipergastrinemia

Causas c o m u n s N orm o/Hiperdoridria H ip o do rid ria


Erro s d ia g n ó s tic o s
U s o d e a s p irin a e A IN E s S ín d r o m e d e Z o llin g e r -E llis o n A n e m ia p e rn ic io s a

C a u s a s raras H ip e rp la s ia d e c é lu la s G d o a n tro G a s trite a tró fica


S ín d r o m e s h ip e rs e c re to ra s O b s t r u ç ã o a o e s v a z ia m e n t o g á s tric o P ó s -v a g o t o m ia
G a s tr in o m a
N e o p la s ia g á strica
M a s to c ito s e sistê m ic a
S ín d r o m e c a r n o id e Extraído de: Galváo-Alves, J, Netto, AP, Mendes, AF. Tumores Neuroendócrinos do Pâncreas.
Em: Dani, R. GostroenterologlaEssencial, 2001.Guanabara Koogan, 2 * e d .808-816.
D e s o r d e n s m ie lo p ro life ra tiv a s
P o lic it e m ia ve ra
R essecções e x te n s a s d e in te s t in o d e lg a d o
H ip e rp la s ia d e c é lu la s G d o a n tro
S ín d r o m e d o a n t r o re tid o
hiperplasia da célula G antral. Descrita na era pré-Helicobacter
O b s t r u ç õ e s d u o d e n a is pylori, a hiperplasia das células G do antro tende a ser atual­
D ro g a s mente considerada como uma resposta à hipergastrinemia in­
R a d io te ra p ia duzida pelo microrganismo e, portanto, seria parte do espectro
D o e n ç a s g r a n u lo m a t o s a s
das úlceras HP-positivas. De fato, Kwan e Tytgat mostraram a
C ro h n
supressão dos níveis elevados de gastrina e a cicatrização das
S a rc o id o s e
Sífilis
úlceras em pacientes enquadrados nessa síndrome e portado­
T u b e r c u lo s e res da bactéria quando curados da infecção por HP. Por outro
In fe c ç õ e s lado, embora controversos, estudos recentes descrevem casos
C it o m e g a lo v ír u s de portadores da hiperplasia da célula G sem a infecção por
V íru s H e rp e s S im p le s HP. Nesses casos, a patogênese da hipergastrinemia não pôde
H. hellmanni ser explicada. O diagnóstico é feito por imuno-histoquímica
N e o p la s ia s
S ín d r o m e s h ip e rc a lc ê m ic a s
que revela a hiperplasia das células G em biopsias do antro. O
Is q u e m ia achado laboratorial é a hipergastrinemia em jejum de níveis
P a n c re a tite c rô n ic a moderadamente elevados, mas com exagerada elevação pós-
Id io p á tic a prandial, o que pode simular a síndrome de Zollinger-Ellison.
Todavia, ao contrário do que ocorre no gastrinoma, o teste da
secretina é negativo.
acima de 3 implica hipocloridria, e o diagnóstico de SZE pode Uma síndrome extremamente rara associada à úlcera péptica
ser excluído. recorrente é a síndrome do antro retido. Desenvolve-se após
Como citado no Quadro 20.2, estados de hipercloridria com antrectomia e gastrojejunostomia a Billroth II, quando glându­
valores intermediários de gastrina (200 a 1.000 pg/mf) podem las antrais distais e pilóricas não são completamente ressecadas.
ocorrer em outras situações. Cerca de 40% dos pacientes com Localizadas próximo à alça aferente, as glândulas retidas são
a SZE apresentam valores intermediários de gastrina, impon- expostas à secreção alcalina de forma continuada e, estimuladas,
do-se a realização de testes provocativos, ou seja, dosagem de promovem a liberação de gastrina. Ocorrem a hipersecreção
gastrina sérica após estímulo. O mais recomendado é a infusão ácida pelas células parietais e a possibilidade de úlceras de difí­
venosa de secretina, considerada positiva quando ocorre ele­ cil manejo clínico. No diagnóstico diferencial com gastrinoma,
vação da gastrina de, no mínimo, 120 pg/mf sobre os valores o teste da secretina é negativo. A cintigrafia com pertecnetato
basais, estabelecendo-se o diagnóstico da síndrome. Outros é positiva, demonstrando persistência da atividade glandular
testes provocativos são descritos. no antro. Os pacientes podem necessitar de nova intervenção
No diagnóstico diferencial da síndrome de Zollinger-Ellison, cirúrgica e, quando possível, conversão da reconstrução para
outra condição marcada por hipercloridria é a hiperfunção ou gastroduodenoanastomose (Billroth I).

--------------------------- T---------------------------
Quadro 20.3 Diagnóstico diferencial da hipergastrinemia e hipercloridria

Diagnóstico Frequência Sin ais e sintom as Achados d ín ico s Com entários

S ín d r o m e d e In c o m u m - D o r a b d o m in a l Ú lc e ra p é p tic a T e s te d a s e c re tin a p o s itiv o


Z o llin g e r -E llis o n 1 :1 .0 0 0 .0 0 0 / a n o D ia rré ia E x a m e s d e i m a g e m : 5 0 % p o s itiv o s
P irose

H ip e rp la s ia d e c é lu la s G D e s c o n h e c id a D o r a b d o m in a l Ú lc e ra p é p tic a T e s te d a s e c re tin a n e g a t iv o
d o a n tro H ip e r g a s t r in e m ia m o d e r a d a M a io r n ú m e r o d e c é lu la s G
F r e q u e n t e m e n t e a ss o c ia d a a H . p y lo r i

S ín d r o m e d o a n t r o r e tid o R ara D o r a b d o m in a l Ú lc e ra p é p tic a T e s te d a s e c re tin a n e g a t iv o


C in tilo g ra fia p o s itiv a
H is tó ria d e re s se cç à o g á strica

O b s t r u ç ã o p iló ric a 2 a 5 % d o s p a c ie n te s V ô m it o s S e c u n d á ria a c â n c e re s o u T e s te d a s e c re tin a n e g a t iv o


c o m ú lc e ra p é p tic a D o r a b d o m in a l ú lc e ra p é p tic a

In fe c ç ã o p o r H. p y lo ri Com um A s s in to m á tic a Ú lc e ra p é p tic a T e s te d a s e c re tin a n e g a t iv o


D o r a b d o m in a l H ip e r g a s t r in e m ia d is c re ta

Extraído de: Jensen, RT. Zollinger-Ellison Syndrom e. Em: Bennett, JC & Plum, F. Ceo'/ TextbookofM edicine, 1996. W. B. Saunders C om pany, 20* e d .,674-6.
198 Capítulo 20 / Úlcera Péptica HeUcobacter py\or\-negativa

Ainda pelo mecanismo da hipersecreção, outra causa rara 3. Envolvimento simultâneo de estômago e duodeno.
é a mastocitose sistêmica. Nesse caso, o estímulo secretagogo 4. Presença de fístulas.
provém da histamina. A infiltração de mastócitos em diferen­
O diagnóstico definitivo é feito pela demonstração do bacilo
tes tecidos e órgãos gera um quadro sistêmico de rash cutâ­
álcool-ácido-resistente ou de granulomas caseosos em biop­
neo, prurido, dor abdominal, diarréia, além de dispepsia e úl­
sias endoscópicas. Porém, a positividade das biopsias é baixa,
cera duodenal. A concentração sérica de histamina é elevada,
de apenas 30%, pois os granulomas concentram-se na cama­
particularmente na doença ulcerosa. A síndrome carcinoide
da submucosa, não estando acessíveis às biopsias superficiais.
também pode se manifestar com úlcera péptica pela produ­
Muitas vezes, o diagnóstico só se estabelece após a ressecção
ção ectópica de histamina, assim como outras desordens mie-
cirúrgica.
loproliferativas relacionadas com a basofilia, como leucemia
Outras causas infecciosas que não H. pylori podem rara­
basofílica e leucemia mieloide crônica. Na policitemia vera, os
mente se associar a úlceras. A associação com citomegaloviro-
níveis circulantes de histamina são considerados baixos para
se, inicialmente descrita em transplantados, já foi relatada em
induzirem a formação de úlceras. Provavelmente, o mecanismo
pacientes infectados pelo HIV e mesmo em indivíduos imu-
é a relativa isquemia da mucosa em decorrência da hipervis-
nocompetentes. As úlceras por citomegalovírus são geralmente
cosidade sanguínea.
múltiplas e de localização gástrica. O diagnóstico é feito através
A úlcera péptica por hipersecreção ácida é também descri­
de biopsias da base da úlcera, pois o vírus se localiza no epi-
ta em pacientes submetidos a extensas ressecções do intestino
télio submucoso e vascular. Métodos sorológicos e reação em
delgado, como ocorre, por exemplo, na isquemia intestinal.
cadeia da polimerase podem ser úteis. O possível envolvimento
Nessas situações, o mecanismo exato é ainda desconhecido.
do herpesvírus simples (HSV) do tipo 1 com as úlceras pépti-
Acredita-se que decorra da falta de inibição da secreção ácida
cas deve-se ao aumento nos títulos de anticorpos anti-HSV-1
e liberação da gastrina normalmente controladas pelos peptí-
e detecção de DNA e proteínas virais em material colhido da
dios intestinais.
borda de úlceras tidas como ordinárias. Nesses casos, as úlceras
Alguns casos de úlcera duodenal têm sido relacionados com
parecem se concentrar na região pré-pilórica e, em um trabalho
obstruções duodenais, incluindo membranas congênitas de
de relato de casos, nenhum paciente com marcador do HSV -1
duodeno, estenose hipertrófica de piloro e pâncreas anular.
evidenciava infecção sistêmica ou sinais de comprometimento
Nesses casos, a úlcera duodenal pode se apresentar na infância,
imunológico. Raramente, outras de espécies de HeUcobacter
podendo também incidir em adolescentes e adultos. As lesões
têm sido associadas à úlcera gastroduodenal. Debongnie et al.
são geralmente pós-bulbares e parecem se associar a hipersecre­
descreveram uma possível associação entre H. heilmannii e
ção ácida basal, embora o mecanismo exato seja desconhecido.
úlcera gástrica em 14 pacientes negativos para a infecção por
Doenças da mucosa duodenal constituem um subgrupo que
H. pylori. Contudo, trata-se de infecção mais rara e de menor
cursa com úlceras nos segmentos atingidos. Dentre os represen­
patogenicidade do que a causada por H. pylori. Embora seja
tantes desse grupo, encontram-se doença de Crohn, sarcoidose,
reconhecidamente implicada na patogênese da úlcera péptica
amiloidose, gastrenterite eosinofílica e linfoma.
em animais, mais estudos são necessários para se estabelecer o
A maior preocupação diante de uma lesão ulcerada, sobre­
significado da infecção por H. heilmannii em homens.
tudo das lesões gástricas, é afastar a possibilidade de neoplasia.
Questiona-se o papel das síndromes hipercalcêmicas no de­
As biopsias devem ser obtidas tanto da base quanto da bor­
senvolvimento das úlceras pépticas. O efeito estimulador do
da da úlcera, diminuindo o risco de amostras falso-negativas.
cálcio sobre a liberação da gastrina é bem conhecido, porém a
Nos casos de úlceras gástricas aparentemente benignas, faz-se
importância clínica desse efeito ainda é desconhecida. Dentre
necessária a repetição da endoscopia digestiva 8 a 12 semanas
tais síndromes, a incidência de úlcera péptica é maior em pa­
após seu diagnóstico para comprovar a cicatrização da lesão e
cientes com hiperparatireoidismo primário, mas, exceto nos
confirmar a natureza benigna da úlcera. Além dos adenocar-
casos de associação com gastrinoma, configurando a síndro­
cinomas gástricos, principal neoplasia maligna do estômago,
me da neoplasia endócrina múltipla, não há evidências firmes
há que se fazer o diagnóstico diferencial de linfoma, tum or
de nenhuma relação causai entre úlcera péptica e hiperpara­
carcinoide e sarcomas.
tireoidismo.
Úlceras gástricas sifilíticas devem ser suspeitadas em todo
Em idosos, especula-se que o reduzido fluxo sanguíneo mu-
paciente portador de sífilis não tratada, com lesões de antro sem
coso decorrente de alterações próprias da idade seja fator de ris­
resposta ao tratamento convencional. A biopsia da lesão revela
co para úlcera péptica. Em um trabalho finlandês, cerca de 35%
inflamação granulomatosa, e testes sorológicos treponêmicos e
das úlceras de pacientes geriátricos eram HP-negativas e sem
não treponêmicos confirmam o diagnóstico. O exame micros­
associação com AINEs ou salicilatos... Os autores especulam
cópico de campo escuro é geralmente negativo nessa fase da
se a redução dos mecanismos de defesa da mucosa pela menor
doença (secundária ou terciária).
perfusão tecidual torna-a vulnerável ao ataque ácido.
Tuberculose gástrica ou duodenal pode cursar com úlceras
Em pacientes com pancreatite crônica (PC), observa-se uma
nesses locais. Apesar de raro o acometimento gástrico pela doen­
ça, espera-se um aumento na incidência dessa apresentação maior prevalência da úlcera duodenal. Atribuíam-se como cau­
sa as alterações na secreção pancreática secundárias à doença,
pelo aumento na prevalência da infecção em imunossuprimi-
com menor liberação de bicarbonato e, portanto, menor efeito
dos. A porção mais acometida é o antro, que alberga as úlceras
em 80% dos casos, exceto em pacientes aidéticos, nos quais a neutralizador sobre o ácido gástrico. Porém, resultados de es­
tudos refutaram essa hipótese. Ovensen et al. demonstraram
principal localização é na cárdia. Do ponto de vista topográfico
não haver diferenças significativas na acidez duodenal ejejunal
e endoscópico, assemelha-se à doença de Crohn. O diagnóstico
deve ser considerado em indivíduos com lesões gástricas não entre portadores de pancreatite crônica e indivíduos controles
normais. Em recente estudo realizado em nosso meio, foi de­
responsivas a tratamento clínico convencional e que apresen­
monstrado que o principal fator patogênico envolvido na úlcera
tem uma ou mais das seguintes condições:
duodenal dos portadores de PC é a infecção por HP. Dos 15
1. Tuberculose em outro local. pacientes com pancreatite crônica alcoólica e úlcera duodenal,
2. PPD fortemente reator. apenas um (6,7%) não tinha a infecção por H. pylori.
Capítulo 20 / Úlcera Péptica Helicobacter py\or\-negativa 199

Por fim, excluindo-se a participação de HP, o uso de anti- têm postulado que a presença de secreção ácida aumentada no
inflamatórios e/ou ácido acetilsalicílico e as raras condições já bulbo duodenal torna insolúveis os ácidos biliares conjugados
citadas, a úlcera péptica pode ser classificada como idiopática, (pKaentre 4,3 e 5,2), permitindo que o microrganismo sobre­
assunto de crescentes pesquisas e inúmeras dúvidas. No estudo viva no ambiente duodenal.
de McColl et al., seis casos de portadores de úlcera idiopática Todo fator relacionado com a patogênese da úlcera duodenal
foram encontrados em um grupo de 435 ulcerosos. Comparan­ pode ser compreendido pelo efeito que exerce nos termos da
do estudos de fisiologia, constataram que os níveis de gastrina equação da acidez duodenal. Fatores que aumentam a secreção
sérica e secreção máxima de ácido ao gastroacidograma eram ácida, seja direta (em resposta à gastrina ou ao tabagismo), seja
similares aos encontrados nos portadores de úlceras HP-posi­ indiretamente (perda do feedback negativo da acidificação an-
tivas, sendo superiores aos encontrados em sadios. Contudo, tral sobre a secreção ácida), vão exercer seu efeito no primeiro
os pacientes com lesão idiopática apresentavam esvaziamento termo da equação. Fatores que diminuem a capacidade do duo­
gástrico mais acelerado, sugerindo que a ulceração fosse re­ deno em neutralizar a acidez local vão agir no lado duodenal da
sultado de hipersecreção ácida, rápido esvaziamento gástrico equação. Assim, a úlcera duodenal parece ser mais frequente
e exposição ácida aumentada no duodeno. em pacientes infectados por H. pylori e com cirrose ou com
Harris et al. estudaram a recorrência da úlcera após pelo pancreatite crônica, condições associadas a m enor secreção
menos 6 meses da terapia de erradicação de HP. Excluídos os de bile ou de bicarbonato para o duodeno, respectivamente.
AINEs e as outras raras causas, um grupo de sete homens Por outro lado, a inibição da secreção ácida pelo uso de drogas
foi estudado. Os autores encontraram as mesmas alterações antissecretoras, por vagotomia superseletiva, pela cessação do
descritas por McColl et al. Comparados a voluntários sadios, hábito de fumar, ou por qualquer mecanismo que resulte em
H. pylori-negativos, e a portadores de úlcera duodenal HP-posi­ elevação do pH duodenal, tenderia a inibir o crescimento de
tivos antes e depois de 6 meses da erradicação, os pacientes com HP, favorecendo a cicatrização da úlcera.
úlcera H. pylori- negativos exibiam hipersecreção ácida gástrica. A úlcera duodenal pode ser encontrada em vários pontos
A especulação dos autores é a de que o mecanismo dessa hiper­ do espectro da secreção ácida. O limite extremo da hipersecre­
secreção seja a hiperplasia das células parietais e que talvez a ção ácida é a síndrome de Zollinger-Ellison, com elevada carga
infecção por HP não seja a causa das úlceras duodenais desses ácida no duodeno de forma permanente. Na gastrite crônica
pacientes. Nesses casos, já que a úlcera não pode ser curada pela infecção por HP, o comprometimento dos mecanismos
com antimicrobianos, discute-se a necessidade de algum tra­ de feedback negativo gera hiperacidez gástrica, mas em uma
tamento de manutenção pelo uso de drogas antissecretoras ou intensidade muito menor do que a observada no gastrinoma.
tratamento cirúrgico na prevenção de recorrências. A hiperacidez da úlcera duodenal relacionada com HP esta­
As evidências apontam a provável influência de fatores ge­ ria entre essas duas condições. Pacientes com úlcera duodenal
néticos na patogênese da úlcera péptica. Sabe-se, por exemplo, HP-positivos exibem um aumento no número de células pa­
que o grupo sanguíneo O está, por algum mecanismo, associado rietais que não regride após a erradicação do microrganismo,
às úlceras. No estudo de McColl et al, quatro dos seis pacientes sugerindo que esse aumento celular possa ser geneticamente
(66%) com úlcera idiopática eram do grupo O, enquanto apenas predeterminado e anterior à infecção por HP. Quando a gran­
36% dos controles sadios eram O-positivos. Nenhum dos seis de massa de células parietais associa-se a uma mínima gastrite
pacientes apresentava genes do grupo sanguíneo Al. A maior de corpo gástrico, ocorre hiperacidez superior à observada na
prevalência do grupo sanguíneo O e a menor prevalência do gastrite crônica, mas inferior à da SZE. No extremo final do
grupo A foram igualmente observadas nos portadores de úlcera espectro, contrapondo-se à SZE, encontra-se o paciente com
H. pylori-positivos em relação aos sadios. Esse provável compo­ gastrite de corpo e secreção ácida pouco acima do limiar para
nente genético parece atuar independentemente da influência úlcera duodenal. Nesse caso, a ulceração somente ocorrerá se
genética para a aquisição da infecção por H. pylori. houver acentuado comprometimento da neutralização da carga
ácida no duodeno, por exemplo, pelo tabagismo.
O aumento da carga ácida oferecida ao duodeno induz a
■ EQUAÇÃO DA ACIDEZ DUODENAL formação de metaplasia gástrica, mas essa adaptação tecidual
somente se converterá em úlcera se a carga ácida for excessiva,
A equação que determina a carga ácida presente no duodeno como na síndrome de Zollinger-Ellison, superando a capaci­
tem dois lados: a secreção ácida pelo estômago e a capacidade dade de neutralização do duodeno. Ou se houver a infecção
do duodeno em neutralizá-la. Diversos fatores influenciam os por HP, que coloniza e inflama a área metaplásica, podendo
elementos dessa equação, facilitando ou dificultando o desen­ culminar com a ulceração.
volvimento das úlceras. O tabagismo, por exemplo, exerce uma No caso das úlceras idiopáticas, os trabalhos de McColl e
forte influência nesse binômio, favorecendo a colonização de Harris sugerem uma hiperacidez semelhante à dos pacientes
H. pylori no bulbo duodenal. Ao estimular a secreção ácida e com úlcera HP-positiva, além do esvaziamento gástrico acelera­
inibir a de bicarbonato pelo pâncreas, pode comprometer a do. Harris et al. defendem que essa hipersecreção seja causada
capacidade do duodeno em neutralizar a carga ácida recebida. pelo aumento idiopático das células parietais.
Porém, após a cura da infecção, a persistência do tabagismo
não mais representa fator de risco para recorrência da úlcera,
na demonstração de que a infecção pelo microrganismo é o ■ IMPLICAÇÕES CLÍNICAS
fator crítico para a ocorrência da lesão.
Diversos trabalhos relataram a ação lítica da bile sobre o Os pacientes com úlceras pépticas idiopáticas são candida­
H. pylori, o que teoricamente tornaria o bulbo duodenal um tos a uso crônico de antissecretores. Entretanto, os estudos que
ambiente hostil à bactéria. Contudo, a infecção por HP no antro avaliaram as doses de antagonistas de receptores de H2 e ini­
gástrico induz a hipersecreção gástrica ao bloquear mecanismos bidores de bomba de prótons capazes de prevenir as recorrên­
fisiológicos inibitórios entre as células produtoras de gastrina e cias foram realizados com portadores de úlcera HP-positivos.
as células parietais, resultando no aumento da liberação de gas­ Faltam estudos para avaliar as doses de manutenção a serem
trina e, consequentemente, da acidez gástrica. Graham e outros usadas nesses pacientes. Sabe-se que as drogas antissecretoras
200 C a p ítu lo 2 0 / Ú lcera P é p tica H e U co b a cte r p y lo ri-n e g a tiv a

são menos eficazes no controle do pH intragástrico de indiví­ Hirschowitz, BI, Mohnen, J, Shaw, S. High rccurrcncc rate of duodcnal ulccr
despite H. pylori eradication in a clinicai subsct-rapidly rccurring peptie
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tanto, parece razoável m anter altas doses de antissecretores Hosking, SW, Yung, MY, Chung, SG et ai DifFcring prcvalcncc of HeUcobacter
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Divertículos, Vólvulo, Dilatação
Aguda, Corpos Estranhos
(Bezoares), Ruptura Gástrica
e Crohn
Carlos Henrique Diniz de Miranda e Maria do Carmo Friche Passos

■ DIVERTÍCULOS GÁSTRICOS ■ Diagnóstico


Os divertículos do estômago são raros e, na maioria das ve­ São mais frequentes nas mulheres e, na maioria das vezes,
zes, constituem achados casuais no estudo radiológico do tra­ diagnosticados entre a 3.* e a 6.tt década de vida e assintomáti-
to digestivo alto. Aparecem de forma isolada, com localização cos. Ocasionalmente, surgem manifestaçõe intermitentes de dor
preferencial justacardíaca (75%) e pré-pilórica (15%). torácica, náuseas, vômito e disfagia após a ingesta alimentar,
piorando com o decúbito e melhorando quando se adota uma
posição que permite o esvaziamento do divertículo.
■ Classificação Na maioria das vezes, constitui achado radiológico acidental,
► d i v e r t í c u l o s v e r d a d e i r o s c o n g ê n i t o s . São constituídos por com imagem sacular característica, lisa e uniforme, mostrando
todas as camadas da parede gástrica e localizam-se, preferen­ nível hidroaéreo.
cialmente, na região justacardíaca. Endoscopicamente, assemelham-se a agulheiros, com bor­
► d i v e r t í c u l o s v e r d a d e i r o s a d q u i r i d o s . Não existe ruptura das bem definidas, sem sinais infiltrativos e, às vezes, conten­
das camadas da parede gástrica. São decorrentes de doença do alimento.
orgânica, sendo subdivididos em. O diagnóstico diferencial se faz com hérnias diafragmáticas,
úlcera crônica perfurada e tumores gástricos.
• Divertículos de pulsão, consequentes a aumento de pres­
são intragástrica;
• Divertículos de tração, produzidos por aderência da pa­ ■ Complicações
rede gástrica a estruturas externas, devido a processo in-
São pouco frequentes. A mais grave e mais comum é a he­
flamatório.
morragia maciça com hemoperitônio. Perfuração isolada e tor­
► f a l s o s d i v e r t í c u l o s . Ocorrem quando há alteração na in­ ção com ou sem gangrena podem também ocorrer.
tegridade de uma ou mais camadas da parede gástrica. Podem
ocorrer por pulsão ou tração. ■ Tratamento
O tratamento é conservador. Recomenda-se dieta pobre em
■ Etiopatogenia gorduras, em pequenas quantidades e com intervalos menores.
Acredita-se que os divertículos verdadeiros congênitos de­ Podem-se associar antiácidos, para alívio da pirose, e agentes
corram de fatores relacionados com uma menor resistência da procinéticos para acelerar o esvaziamento do divertículo.
parede gástrica justacardíaca, envolvendo fibras musculares, Nos casos em que não se obtém melhora com o tratamento
com a entrada das ramificações da artéria gástrica e a ausência clínico, ou em vigência de complicações, está indicado o tra­
de peritônio recobrindo essa região, tornando-a mais suscetí­ tamento cirúrgico.
vel a aumentos da pressão intragástrica consequentes a entrada
de alimentos, tosse, vômitos, gravidez ou constipação intes­
tinal prolongada. Isso ocorre com maior frequência quando ■ VÓLVULO
há acometimento inflamatório da parede gástrica, como nas
gastrites e úlceras. Trata-se da rotação do estômago em mais de 180°. O primei­
Processos inflamatórios adjacentes, como colecistite e pan­ ro caso de vólvulo gástrico foi descrito em 1866. A gravidade
creatite, levam à proliferação fibroblástica, com formação de dos sintomas e a deterioração clínica constituem urgência ci­
aderências, originando assim os divertículos por tração. rúrgica (vólvulo agudo).

201
202 C a p ítu lo 21 / D iv e rtíc u lo s, V ólvulo, D ila ta ç ã o A g u d a , C o rp o s E stra n h o s (B ezoa res), R u p tu ra G á strica e C ro h n

gastrostomias endoscópicas percutâneas com fixação por tubos


■ Classificação oferecem bons resultados no tratamento do vólvulo recorrente
A classificação mais utilizada é a de von Haberer, modifi­ primário.
cada por Singleton, que classifica os vólvulos quanto ao tipo
(orgatioaxial, onde ocorre um giro em torno de uma linha que
une longitudinalmente a cárdia ao piloro, e mesenteroaxialy ■ DILATAÇÃO GÁSTRICA AGUDA
onde o giro ocorre em torno de um eixo transversal que pas­
sa em um ponto médio da pequena e da grande curvatura) e O primeiro caso de dilatação gástrica aguda foi descrito por
quanto à extensão (total ou parcial), direção (anterior ou pos­ Rokitansky, em 1842. A seguir, inúmeros relatos com diferen­
terior), etiologia (primário ou secundário) e gravidade (agudo tes sinonímias foram publicados, em sua maioria relacionados
ou crônico). com procedimentos cirúrgicos.

■ Fisiopatologia * Etiologia
No caso de vólvulo primário, a fisiopatologia está relaciona­ Atualmente, aspiração nasogástrica, correção de distúrbios
da com alterações decorrentes de relaxamento ou malforma­ hidreletrolíticos e acidobásicos e melhores técnicas anestésicas
ção de um ou mais dos ligamentos que sustentam o estômago. fazem com que a dilatação gástrica pós-operatória seja menos
O estômago em cascata, a dilatação gástrica e condições que frequente. Outras etiologias incluem oxigenoterapia por más­
promovem o hiperperistaltismo são fatores que predispõem ao cara ou cateter nasal, intubação orotraqueal, difusão do óxido
relaxamento dos ligamentos. nitroso no tubo digestivo durante a cirurgia, manobras de re­
O vólvulo secundário tem sua origem na herniação gástri­ animação cardiorrespiratória, insuflação gástrica na indução
ca consequente a defeito diafragmático, como, por exemplo, a anestésica, traumatismos diversos, peritonites graves e cetoa-
hérnia paraesofágica. cidose diabética, entre outras.

■ Diagnóstico ■ Fisiopatologia
Dor epigástrica ou torácica inferior intensa, acompanhada Relacionada com distúrbio motor do estômago, com com­
de náuseas, esforço de vômito sem eliminação do conteúdo prometimento do marca-passo gástrico, originando um íleo
gástrico e dificuldade para progressão de sonda nasogástrica paralítico segmentar. O estômago se distende, acumulando
são os principais sintomas do vólvulo agudo. Distensão abdo­ aí suas secreções, que são continuam ente estimuladas pelo
minal, dor à palpação e timpanismo são os principais achados aum ento da pressão intragástrica. Há depleção do espaço
ao exame físico. Com frequência, o quadro de vólvulo agudo extracelular e distúrbios hidreletrolíticos. A compressão da
é complicado por obstrução ou estrangulamento, evoluindo veia cava e da veia porta pelo estômago dilatado pode reduzir
para choque. O vólvulo crônico origina mal-estar e distensão o retorno venoso, com alterações hemodinâmicas, inclusive
no andar superior do abdome, que não cedem com eructações choque.
e, às vezes, estão associados a pirose e palpitações.
A radiologia faz o diagnóstico diferencial do vólvulo agu­
do com outras urgências abdominais. A radiografia simples
■ Diagnóstico
mostra víscera cheia de gás, no tórax ou abdome superior, e a Dor abdominal, desconforto epigástrico, náuseas e vômito
contrastada mostra obstrução no ponto de rotação. No vólvulo são os principais sintomas. Distensão epigástrica progressiva e
crônico, a sintomatologia é menos exuberante e quase sempre timpanismo abdominal, desidratação, hipotensão e choque em
intermitente. fases tardias são os principais achados ao exame físico.
A radiografia contrastada durante a ocorrência do quadro A radiografia simples de abdome mostra dilatação gástrica
estabelece o diagnóstico. intensa com nível hidroaéreo. Os raios X contrastados eviden­
ciam dilatação parcial no nível do duodeno proximal. A intro­
dução de sonda gástrica drena grandes volumes de secreção
■ Tratamento gástrica.
O vólvulo agudo constitui emergência cirúrgica. O trata­ Laboratorialmente, evidencia-se distúrbio hidreletrolítico e
mento envolve redução do vólvulo, gastrectomia parcial, nos acidobásico, com alcalose ou acidose, dependendo da quanti­
casos de necrose, e gastropexia ou gastrostomia para fixar o dade de ácido gástrico e secreções biliares e pancreáticas perdi­
estômago em sua posição anatômica correta. Concom itan­ das. O diagnóstico diferencial se faz com peritonite, obstrução
temente, devem-se reparar os fatores predisponentes para intestinal mecânica e doenças vasculares abdominais agudas.
hérnia. O vólvulo secundário requer reparação do diafragma, A ausência de irritação peritoneal, a presença de ruídos intes­
correção de aderências e gastrectomia parcial na presença tinais e de vômitos e os sinais radiológicos permitem, de forma
de carcinoma. A laparotomia é o método mais comum para geral, estabelecer o diagnóstico.
tratamento do vólvulo agudo. Porém, a redução laparoscó-
pica com gastropexia endoscópica percutânea por múltiplos
tubos de gastrostomia pode ser utilizada para tratamento do
■ Tratamento
vólvulo organoaxial. Consiste em drenagem gástrica contínua por sonda, uso de
Nos casos de vólvulo crônico, podem-se obter resultados antieméticos, mudança de posição do paciente em intervalos
com medidas dietéticas, como diminuir o volume alimentar e regulares, hidratação e correção de distúrbios hidreletrolíticos
evitar ingestão concomitante de líquidos. Várias modalidades e acidobásicos. O tratamento cirúrgico está indicado quando
cirúrgicas podem ser empregadas no tratamento do vólvulo há complicações, como infarto gástrico com gangrena ou ne­
crônico. Desfazer a rotação, durante endoscopia, e múltiplas crose.
Figura 21.1 A, Formação sacular com pedículo no fundo gástrico (divertículo gástrico). (Gentileza do Prof. João Paulo Matushita — Belo Ho­
rizonte, MG.) B. Visão endoscópica de divertículo de fundo gástrico. (Gentileza da Dra. Luciana Moretzsohn — 8elo Horizonte, MG.) C, Vólvulo
gástrico organoaxial sem obstrução. Incidência frontal. (Gentileza do Prof. João Paulo Matushita — Belo Horizonte, MG.) D, Vólvulo gástrico
organoaxial sem obstrução. Incidência em perfil. (Gentileza do Prof. João Paulo Matushita — Belo Horizonte, MG.) E, Dilataçáo gástrica aguda
vista aos raios X de tórax. (Gentileza do Dr. J. Laurentys Medeiros — Belo Horizonte, MG.) F, Aspecto de tricobezoar à gastrotomia. (Gentileza
do Dr. J. Laurentys Medeiros — Belo Horizonte, MG.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

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204 C a p ítu lo 21 / D iv e rtíc u lo s, V ólvulo, D ila ta ç ã o A g u d a , C o rp o s E stra n h o s (B ezoa res), R u p tu ra G á strica e C ro h n

m CORPOS ESTRANHOS (BEZOARES) ■ RUPTURA GÁSTRICA AGUDA


Os corpos estranhos gástricos podem ser resultantes de in ­ A ruptura gástrica aguda é rara e constitui um quadro de
gestão acidental ou decorrentes do acúmulo de variadas subs­ abdome agudo cirúrgico que requer tratamento imediato, de­
tâncias no estômago, podendo levar à obstrução ou à ruptura vido ao alto índice de mortalidade.
gástrica.
■ Classificação
■ Classificação A ruptura gástrica aguda pode ser espontânea, não trau­
Os bezoares são classificados, de acordo com seus consti­ mática ou traumática.
tuintes, em:
• Fitobezoares: formados por fibras vegetais. ■ Etiologia
• Tricobezoares: formados por pelos. Espontânea: vômitos, contração forçada do diafragma.
• Tricofitobezoares: formados por vegetais e pelos. Traumáticas: externas (lesões abdominais fechadas e feridas
• Farmacobezoares: formados por medicamentos como penetrantes) e iatrogênicas (endoscopia, intubação, sonda vesi-
hidróxido de alumínio, nifedipino, contraste radiológi- cal, descompressão), tamponamento (balão esofágico), instru­
co etc. mentação (dilatação e próteses), anestesia (hiperinsuflação com
• Concreções: formadas por materiais do tipo sílica, cimen­ gases anestésicos), reanimação cardíaca e respiratória, cirúrgica,
to etc. como fundoplicatura, esplenectomia, embolização terapêutica,
ingestão de corpos estranhos e bezoares.
No homem, os mais frequentemente encontrados são os Excepcionalmente, a ingestão excessiva de bicarbonato de
tricobezoares (55%) e os fitobezoares (40%). Os tricobezoares sódio pode levar à dilatação e ruptura gástrica, pois sua intera­
ocorrem em 90% no sexo feminino, e os pacientes têm menos ção com ácido clorídrico produz dióxido de carbono, que leva
de 30 anos em 80% dos casos, especialmente crianças e adultos à distensão gástrica intensa.
com distúrbios mentais. Outros corpos estranhos podem ser
encontrados no estômago, decorrentes de ingestão acidental,
tais como botões, alfinetes e pequenos ossos de aves ou espi­ ■ Fisiopatologia
nhas de peixes. A contração brusca dos músculos abdominais e do diafrag­
ma determina aumento súbito da pressão intragástrica, em um
■ Etiologia sistema de alça fechada, que leva à ruptura, com maior frequên­
cia na posição proximal da pequena curvatura (73%), área de
Entre os fatores que predispõem à formação de bezoares, menor elasticidade e menor número de pregas.
incluem-se as cirurgias gástricas, que levam à diminuição das Tosse, levantamento de peso, crises convulsivas do tipo gran­
secreções de ácido e pepsina, atonia e estenose gástrica; a estase de mal, trabalho de parto e vômitos incoercíveis são fatores que
gástrica, em decorrência de doenças orgânicas, como diabetes predispõem ao aumento da pressão intragástrica.
melito, hipotireoidismo; a tricofagia, a ingestão de medicamen­
tos e os distúrbios da motilidade gástrica.
■ Diagnóstico
Antecedentes de vômito ou contrações forçadas da
■ Diagnóstico musculatura abdominal e diafragmática, dor abdominal súbi­
Os sintomas são vagos, podendo o indivíduo ser assinto- ta, distensão, peritonismo, enfisema subcutâneo, dificuldade
mático ou apresentar desde sintomas dispépticos leves até respiratória e choque são os componentes clínicos mais im­
sinais de obstrução intestinal ou ruptura gástrica. Ao exa­ portantes.
me físico, podem-se detectar macicez e massa epigástrica A radiologia mostra pneumoperitônio, presença de ar abai­
móvel. xo do diafragma e, em uma fase inicial, distensão do estômago.
A radiologia e a ultrassonografia podem colaborar para A paracentese ajuda a estabelecer o diagnóstico, nos casos de
traumatismo externo, antes que os sinais clínicos se tornem
o diagnóstico, porém a endoscopia é que fornece o diagnós­
evidentes.
tico definitivo. O diagnóstico diferencial se faz com gastri-
tes, úlcera péptica, câncer gástrico e doenças do trato biliar.
As complicações são anemia, obstrução intestinal e ruptura ■ Tratamento
gástrica.
Medidas urgentes de terapia intensiva, conforme cada
caso.
■ Tratamento Tratamento cirúrgico de urgência, com rafia gástrica, lava­
gem e exploração minuciosa da cavidade abdominal, visando
O tratamento conservador baseia-se em reeducação alimen­ a detectar lesões em órgãos adjacentes.
tar, eliminação de vícios alimentares, dissolução de bezoar sus­
cetível a isso, através de enzimas, como a celulase, papaína e
bromelina, uso de mucolíticos como acetilcisteína, agentes pro- ■ DOENÇA DE CROHN D0 ESTÔMAGO
cinéticos, lavagem gástrica, fracionamento e retirada endoscó-
pica. Quando as medidas conservadoras falham ou a massa é Doença caracterizada por processo inflamatório granuloma-
muito grande, determinando obstrução, indica-se o tratamento toso crônico, que pode acometer todo o tubo digestivo, com
cirúrgico. incidência maior na região do íleo terminal. O acometimen-
C a p ítu lo 21 / D iv e rtíc u lo s, V ólvulo, D ila ta ç ã o A g u d a , C o rp o s E stra n h o s (B ezoa res), R u p tu ra G á strica e C ro h n 205

to gástrico é raro. Quando presente, localiza-se preferencial­


mente na região antral e associado a outros segmentos do tubo
■ Tratamento
digestivo. Obedece à mesma abordagem terapêutica do acometimento
de outros segmentos do trato digestivo. O tratamento cirúrgi­
co é reservado para os casos de hemorragia maciça, fístulas ou
■ Diagnóstico estenoses levando à obstrução.
As manifestações clínicas são variadas, podendo o paciente
ser assintomático, apresentar sintomas dispépticos inespecífi-
cos, ou náuseas e vômito relacionados com a síndrome de es- ■ LEITURA RECOMENDADA
tenose pilórica. O sangramento gástrico agudo é raro, e, oca­
sionalmente, pode surgir cólica biliar devido a acometimento Bicalho, SA, Alfredo, MGL, Alfredo, CL. Divertículos, vólvulo, dilataçüo gástrica
inflamatório da papila de Vater. aguda, corpos estranhos (bezoares), infecções crônicas c outras doenças
raras. Hm: Castro, LP & Coelho, LGV. Gastroenterologia. Rio de Janeiro,
As alterações laboratoriais podem constituir-se de anemia Ed. Mcdsi, voL 1,2004.
macrocítica e hipoproteinemia, dependendo do grau e da ex­ Clcarficld, HR. Acute dilatation, volvulus, and torsion of thc stomach. Em:
tensão da doença, e um gastroacidograma é passível de revelar Bockus: Gastrocnterology. 5"’ cd., Philadclphia, W.B. Saunders Company,
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Os achados radiológicos constam de alterações da motilidade, Clcarficld, HR. Trauma, bezoars, and othcr forcign bodies. Em: Bockus: Gastro-
cntcrology. 5* cd., Philadclphia, WB. Saunders Company, vol. 1,1995.
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e/ou de alterações morfológicas, como estenose, aumento da Endoscopy, 1992; 24:555-8.
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lações, pequenas úlceras rasas e, por vezes, formações vario- Gastrocnterology. 5"' ed., Philadclphia, W.B. Saunders Company, vol. 1,
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A endoscopia mostra mucosa nodular, presença de pequenas Jcyarajah, R 8c Harford, WV. Abdominal Hernics and Gastric Volvulus. Em:
Slciscngcr and Fordtrans Gastrointestinal and Livcr Discasc. 8* cd., Phila­
úlceras múltiplas e superficiais, aftoides ou lineares, estenose dclphia, Saunders Elscvicr, vol. 1,2006.
antral em 40% dos pacientes. Devem ser realizadas múltiplas Sandlcr, RS. Misccllancous diseascs of stomach. Em: Yamada, T. Tcxtbook of
biopsias devido à possibilidade de haver lesão histológica em Gastrocnterology. 2"‘1cd., Philadclphia, J.B. Lippincott Company, vol. 1,
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vam-se ulcerações rasas, reação granulomatosa e granulomas
ccss with some ncw twists. The Gastroenterologist, 1997; 5:41-5.
não caseificados. O diagnóstico diferencial se faz com sarcoi- Yardlcy, JH 8c Hcndrix, TR. Gastritis, duodenitis and associatcd ulcerativc lc-
dose, tuberculose, actinomicose, histoplasmose, sífilis gástrica, sions. Em: Yamada, T. Tcxtbook of Gastrocnterology. 2ni ed., Philadclphia,
linfoma e carcinoma. J.B. Lippincott Company, vol. 1, 1995.
Infecções Crônicas:Tuberculose,
Sífilis, Micoses e Herpes
Luciana Dias Moretzsohn e Maria do Carmo Friche Passos

Provavelmente devido à ação esterilizante do suco gástrico, que úlcera ou neoplasia gástricas ou por contiguidade de lesões em
destroi a maioria dos microrganismos deglutidos pelo homem, órgãos vizinhos.
as infecções gástricas são bastante incomuns. Exceção é feita A apresentação clínica da tuberculose gástrica é dividida em
para a infecção causada pelo Helicobacter pylori, que conseguiu três principais grupos: síndrome de obstrução pilórica, hemor­
adaptar-se de forma extraordinária a esse ambiente hostil. Neste ragia digestiva alta e massa simulando neoplasia. Dessa forma,
capítulo, serão abordadas as infecções gástricas causadas por os principais sintomas referidos pelos pacientes são dor ab­
tuberculose, sífilis, fungos e herpes simples. dominal crônica e inespecífica, hematêmese (às vezes maciça),
vômito, perda de peso, febre, além de diarréia ou constipação
intestinal. Clinicamente, a tuberculose gástrica não pode ser
■ I. TUBERCULOSE GÁSTRICA diferenciada de uma úlcera péptica ou de uma neoplasia. Sendo
assim, devemos suspeitar dessa etiologia em pacientes jovens
A incidência da tuberculose em países ocidentais diminuiu que não responderam à terapia antiulcerosa, em portadores de
gradativamente até 1985. Entretanto, estudos recentes têm tuberculose em outros órgãos, quando o teste cutâneo de tuber-
demonstrado um aumento do número de casos de tubercu­ culina for positivo, na presença de massa palpável em epigástrio,
lose no trato gastrintestinal nos Estados Unidos, provavelmente quando o estudo radiológico evidenciar fístulas gástricas e en­
como resultado da grande imigração de estrangeiros para aquele volvimento concomitante do duodeno. Em mais de 50% dos
país, do aparecimento da Síndrome de Imunodeficiência H u­ pacientes, é possível evidenciar tuberculose extragástrica.
mana Adquirida (AIDS) e do uso de drogas imunossupres- Os métodos de imagem e a endoscopia digestiva alta podem
soras. O envolvimento da tuberculose no trato gastrintestinal ser úteis para o diagnóstico. A aparência macroscópica da tu­
acontece mais frequentemente na região ileocecal, seguido por berculose gástrica é dividida em três categorias: tubérculo, úl­
cólon ascendente, jejuno, apêndice, duodeno, estômago, sig- cera e hipertrofia. Em 57 a 95% das vezes, a tuberculose gástrica
moide e reto. Múltiplos segmentos do aparelho digestivo po­ apresenta-se como lesões ulcerativas únicas ou múltiplas, irregu­
dem ser acometidos, entretanto o envolvimento do estômago é lares, com base caseosa ou granular. Acometem principalmente
raro, provavelmente devido à inexistência de tecido linfoide na a pequena curvatura do antro, exceto em portadores de AIDS,
mucosa gástrica normal, seu ambiente ácido, seu esvaziamento onde são mais frequentes na cárdia. A perfuração é rara, visto
rápido, além da imunidade local. que essas lesões raramente ultrapassam a camada muscular. O
A frequência da tuberculose gástrica é variável em diferentes encontro de tubérculos é infrequente e, de um modo geral, é
estudos. Em 1930, Good reportou uma incidência de tubercu­ parte do espectro da tuberculose miliar em fase final. A principal
lose gástrica de 0,003 a 0,21% em necropsias de rotina, e de 0,3 forma de apresentação de um único tuberculoma é como uma
a 2,3% em necropsia de portadores de tuberculose pulmonar. lesão submucosa gástrica.
Em 1950, Palmer encontrou, em necropsias de rotina, uma O diagnóstico definitivo é estabelecido através de estudo his-
incidência de tuberculose gástrica de 0,16%. A frequência de topatológico de amostras de tecido obtidas através de biopsias
tuberculose gastrintestinal guarda uma relação com a presença endoscópicas ou de peças cirúrgicas, onde se observa inflamação
e gravidade do acometimento pulmonar da doença, podendo granulomatosa com caseificação, necrose tecidual, infiltrado lin-
estar presente em até 25% dos pacientes com formas pulmo­ focítico e de células plasmáticas e, ocasionalmente, a presença de
nares graves. O acometimento gástrico da doença é 2 a 3 vezes células gigantes multinucleadas. O encontro de bacilos álcool-
mais comum em homens que em mulheres, atingindo prefe­ acidorresistentes somente ocorre em um terço dos casos e, ra­
rencialmente adultos com idade entre 20 e 40 anos. ramente, há crescimento em cultura de lavado gástrico.
A principal via de disseminação da tuberculose para o es­ Diagnósticos diferenciais incluem sífilis, infecções micóticas,
tômago é a linfática, através de linfonodos celíacos. Outras vias doença de Crohn, sarcoidose, gastrite por contato com cor­
possíveis incluem a invasão direta da mucosa gástrica por bacilo rosivos, gastrite granulomatosa primária, úlcera e carcinoma
deglutido, disseminação hematogênica, superinfecção de uma gástricos.

206
C a p ítu lo 2 2 / In fe cçõ es C rô n ica s: Tub ercu lose, S ífilis, M icose s e H e rp e s 207

Apesar de muitos autores sugerirem que a melhor aborda­ inespecíficos e incluem dor abdominal, náuseas, vômito, perda
gem terapêutica da tuberculose gástrica seja a cirurgia seguida ponderai, hiporexia e sangramento digestivo. Deve-se pensar
por terapia antituberculosa, ainda não existem estudos con­ nesse diagnóstico em pacientes com sorologia positiva para sí­
trolados que definam qual a melhor estratégia. O tratamento filis (VDRL - Venereal Disease Research Laboratory e FTA-ABS
clínico com esquemas terapêuticos clássicos parece oferecer - Fluorescent Treponemal Antibody Absorption) que apresen­
excelentes resultados como em outras formas extrapulmonares tam alterações endoscópicas ou radiológicas principalmente
da doença. Sendo assim, a abordagem cirúrgica seria indicada em antro e que não responderam ao tratamento convencional
apenas em casos especiais como obstrução pilórica, perfuração, para afecções pépticas.
formação de abscessos, hemorragia maciça ou dificuldade no O aspecto endoscópico da sífilis gástrica é variável, poden­
diagnóstico. do apresentar-se como um eritema e edema difusos às vezes
O prognóstico da tuberculose gástrica depende da gravi­ com erosões ou ulcerações rasas, em alguns casos como lesões
dade e da extensão da doença, mas geralmente há uma boa profundas, extensas e ulceradas, sugerindo uma neoplasia e,
resposta ao tratamento antimicrobiano associado a suporte ocasionalmente, como uma hipertrofia mucosa que simula um
nutricional. linfoma ou linite plástica (Figura 22.1).
O estudo histopatológico de fragmentos de mucosa gástri­
ca obtidos através de biopsias endoscópicas geralmente mos­
■ II. SÍFILIS GÁSTRICA tra alterações inespecíficas com processo inflamatório crônico,
com grande infiltrado de células plasmáticas estendendo-se até
O acometimento gástrico é raro na sífilis secundária e ter­ a submucosa. Pode ocorrer também um processo inflamatório
ciária, ocorrendo em aproximadamente 0,1% dos pacientes in­ agudo com grave destruição da mucosa. Vasculite mononu-
fectados. Dessa forma, é necessário um alto grau de suspeição clear envolvendo grandes vasos na submucosa e muscular é
para o diagnóstico desses casos. sugestivo de gastrite sifilítica, e seu encontro deve alertar para
A sífilis gástrica é mais comum em indivíduos jovens, meno­ esse diagnóstico.
res de 30 anos, apesar de poder acometer pacientes mais ido­ O diagnóstico definitivo é feito através da demonstração do
sos. Os principais sintomas relacionados à sífilis gástrica são Treponema pallidum no tecido gástrico, com utilização de co-

Figura 22.1 Aspectos endoscópico e radiológico de lesão antral observada em paciente portador de sífilis secundária. (Arquivo Prof. J. Lau-
rentys Medeiros.) As características endoscópicas são ulcerações, friabilidade e hemorragia da mucosa. Radiologicamente, há perda do padrão
mucoso normal e afunilamento do antro.
208 C a p ítu lo 2 2 / In fe cçõ es C rô n ica s: Tub ercu lose, Sífilis, M i coses e H erp e s

loração com prata, técnicas de campo escuro ou microscopia O diagnóstico é difícil e geralmente ocorre durante a necrop-
imunofluorescente. sia, quando são identificadas hifas compatíveis com mucormi­
O tratamento da sífilis gástrica baseia-se na utilização de cose no tecido gástrico. A cultura para fungos da parede gástrica
penicilina. Alguns autores preconizam o uso concomitante de pode fornecer um diagnóstico de certeza.
drogas antissecretoras que otimizariam a cicatrização das lesões. O tratamento consiste em suporte metabólico, adminis­
O período médio de cura das lesões gástricas é de aproxima­ tração de anfotericina B, além de desbridamento cirúrgico de
damente 1 mês, podendo em alguns casos ocorrer em 10 dias, tecido necrótico.
ou em até vários meses. O processo cicatricial pode deixar uma
deformidade gástrica definitiva.
■ 3. Histoplasmose
É raro o envolvimento gástrico na histoplasmose dissemi­
■ III. MICOSES GÁSTRICAS nada. Após a infecção respiratória inicial, a disseminação da
doença ocorre na minoria dos casos, particularmente em idosos
■ 1.1 nfecção por Candidaalbicans e pacientes imunodeprimidos. O estudo histológico de úlceras
ou lesões que simulam neoplasia em fundo gástrico e cárdia,
Trata-se de um saprófita que reside habitualmente no trato através do Giemsa, da prata ou técnicas de imunofluorescên-
gastrintestinal, estando presente na cavidade oral de 50% das cia, evidencia granulomas não caseificados e o fungo de forma
pessoas hígidas. A candidíase é comum e ocorre frequente­
oval. O tratamento com anfotericina B ou cetoconazol é geral­
mente em pessoas imunodeficientes, alcoólatras, pacientes em
mente eficaz.
uso de antibióticos, corticoides e antineoplásicos. Boca, faringe
e esôfago são as estruturas mais frequentemente acometidas.
De um modo geral, o acometimento gástrico é secundário à ■ 4. Blastomicose Sul-americana
infiltração de lesões ulceradas benignas ou malignas. Excepcio­
nalmente, observa-se candidíase primária da mucosa gástrica Parece ser excepcional a lesão paracoccidioidomicótica no
em pacientes imunodeprimidos. estômago. As raras descrições disponíveis sugerem que o aco­
Nos imunocomprometidos, o fungo pode promover apenas metimento gástrico ocorre por contiguidade de doença gra-
uma colonização superficial ou invadir a parede gástrica. A pre­ nulomatosa estabelecida em gânglios linfáticos e órgãos vizi­
sença de hifas sugere invasão pela C. albicans, pois, nos casos nhos. Clinicamente, apresenta-se como lesões ulceradas ou até
de simples colonização, observam-se apenas esporos. Lesões vegetantes, que simulam neoplasia. A biopsia dessas lesões, de
precoces apresentam-se como pequenas elevações brancacentas um modo geral, mostra apenas processo inflamatório crônico
que tendem a se ulcerar com o progredir da doença. O acometi­ com ausência do parasito. O tratamento é dirigido à micose
mento vascular resulta em trombose e isquemia, com surgimen­ sistêmica.
to de ulcerações largas e serpiginosas. O aspecto radiológico é
de lesões nodulares e úlceras aftoides rasas.
O diagnóstico baseia-se na identificação do fungo através de ■ IV. HERPES SIMPLES
citologia ou biopsia gástrica. De um modo geral, o tratamento
requer o uso de antifúngicos de ação sistêmica, e o prognóstico Doença disseminada pelo herpes simples pode acometer
depende da doença primária do paciente. tanto o esôfago como o estômago de pacientes imunodeficien­
tes. O acometimento gástrico pelo herpes simples determina,
de um modo geral, sintomatologia discreta e inespecífica. O
■ 2. Mucormicose estudo endoscópico pode identificar lesões em diferentes está­
Apesar de haver controvérsias com relação à nomenclatura, gios evolutivos. Inicialmente, observam-se pequenas vesículas
mucormicose é o nome genérico dado a diversas doenças causa­ de base eritematosa que evoluem com uma ulceração no ápi­
das por diferentes tipos de fungos saprofiticos da ordem Muco- ce conferindo-lhes o aspecto de um vulcão e, posteriormente,
rales (Absidia, Mucor, Rhizomucor e Rhizopus). O acometi­ pode ocorrer a coalescência dessas lesões com formação de
mento gastrintestinal é raro na mucormicose invasiva, com ulcerações lineares superficiais. Como a infecção pelo herpes
ocorrência estimada de apenas 7% dos casos. simples ocorre na camada epitelial, as biopsias e escovados en-
A mucormicose gástrica é bastante grave e associa-se a alto doscópicos devem ser realizados nas bordas das lesões. O estu­
índice de mortalidade, ocorrendo principalmente em regiões do histopatológico evidencia as típicas inclusões eosinofílicas
tropicais. Fatores predisponentes ao desenvolvimento da m u­ intranucleares. O tratamento, além da abordagem da doença
cormicose gástrica incluem desnutrição grave, insuficiência de base, consiste na administração de antiviróticos, principal­
renal, diabetes, imunodeficiência, neoplasias hematológicas, mente o aciclovir.
cirurgia gástrica recente e alcoolismo. Esses fungos são encon­
trados em comida apodrecida como frutas e pães e, provavel­
mente, atingem o trato gastrintestinal através da ingestão desses
alimentos. Esses microrganismos podem crescer em ambientes ■ LEITURA RECOMENDADA
anaeróbios e microaerófilos. Athcy, PA, Goldstcin, HM, Dodd, GD. Radiologic spcctrum of opportunistic
Os zigomicetos invadem as paredes dos vasos, nas quais infcctions of thc uppcr gastrointestinal tract. Am. J. Radiol., 1977; 129-A19-
proliferam determinando trombose e necrose isquêmica. Dessa 24.
forma, há hemorragia, necrose e ulceração gástricas. Em raros Butz, WC, Watts, JC et al. Erosivc gastritis as a manifestation of sccondary
syphilis. Am. J. Clin. Pathol., 1975; 63:895-900.
casos, existe o desenvolvimento da gastrite enfisematosa devido Chazan, B & Aitchison, J. Gastric tubereulosis. Br. Med. /., 1960; 2:1288-90.
à penetração de microrganismos produtores de gás na parede Chcmcy, CL, Chutuapc, A, Fikrig, AK. Fatal invasive gastric mucormycosis
gástrica. Pode haver comprometimento contíguo de fígado, occurring with cmphyscmatous gastritis: case report and literature rcvicw.
cólon, esôfago, vesícula biliar e linfonodos. Am. J. Gastroenterol., 1999; 94:252-6.
C a p ítu lo 2 2 / In fe cçõ es C rô n ica s: Tub ercu lose, S ífílis, M icose s e H e rp e s 209
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Polipose Gástrica
Celso Mirra de Paula e Silva

■ Pólipos hiperplásicos
■ PÓLIPOS DO ESTÔMAGO Os pólipos hiperplásicos representam mais de 85% dos pó­
lipos gástricos benignos. Em geral, são múltiplos, sésseis ou
■ Introdução pedunculados, com tamanho variando entre 5 e 15 mm, aco­
Pólipos gástricos são tumores mucosos ou epiteliais benig­ metendo principalmente o antro gástrico, sendo mais comuns
nos, circunscritos, que podem ser sésseis, pedunculados ou se- nos adultos, especialmente na sétima década de vida.
mipedunculados. Estão presentes entre 1 e 2% da população Habitualmente, são assintomáticos, podendo raramente
geral, sendo mais frequentes acima dos 50 anos, e são represen­ se manifestar com dispepsia, dor abdominal ou sangramento
tados principalmente pelos pólipos hiperplásicos e os pólipos gastrintestinal. Podem ser considerados marcadores de mu-
adenomatosos. cosa gástrica anormal, o que pode ocorrer em até 85% dos
Os pólipos gástricos podem ser classificados, macroscopi- casos.
camente, em quatro subtipos, segundo Yamada. O potencial As várias condições associadas ao aparecimento de pólipos
de malignidade pode ser avaliado pelo subtipo macroscópico gástricos hiperplásicos estão relacionadas no Quadro 23.1.
e tamanho do pólipo (Figura 23.1). Há expressiva associação entre as várias formas de gastrite
e o desenvolvimento de pólipos hiperplásicos. Particularmente
forte, é a associação de pólipos hiperplásicos com formas de
gastrite que evoluem com atrofia e metaplasia intestinal, como
Tamanho ocorre com a gastrite pelo Helicobacter pylori (H. pylori) e a
C lassificação
segundo Yamada
gastrite atrófica, em especial a gastrite atrófica autoimune. A
Até 19 mm Acim a de 20 mm
erradicação do H. pylori resulta em regressão dos pólipos hi­
perplásicos em até 70% dos pacientes.
Geralmente Geralmente Existem alguns relatos de casos de pacientes que desenvol­
benigno benigno vem pólipos gástricos hiperplásicos após transplantes de ór­
Ligeiramente elevada
gãos sólidos, principalmente de coração ou de fígado. Surgem,
geralmente, depois de 1 ano da realização do transplante. São
pólipos múltiplos, na maioria das vezes, sésseis e localizados
Maligno abaixo Frequentemente no antro gástrico.
de 50% maligno
Sóssil

Maligno abaixo Frequentemente ----------------------------- ▼---------------------------


de 50% maligno Q uadro 23.1 Condições associadas a desenvolvimento de pólipos
Subpedunculada gástricos hiperplásicos

SL Geralmente 1. G a s trite c rô n ic a p e lo H . p y lo r i

benigno Maligno abaixo de 2. G a s tr o p a tia q u ím ic a o u re a tiva


50%
3. G a s trite a tró fic a a u t o im u n e
Pedunculada
4. E s t ô m a g o p ó s -a n tr e c t o m ia

5. P ó s -te ra p ia la s e r (w a te rm e lo n )
Figura 23.1 Classificação e potencial de malignidade dos pólipos gás­ 6. P ó s -tra n s p la n te d e ó r g ã o s s ó lid o s
tricos. Modificada de Yamada e t o l.

210
Capítulo 23 / Polipose Gástrica 211

O tabagismo aumenta a possibilidade do surgimento de pó- do fundo e corpo gástrico, coalescendo e dando um aspecto de
lipos gástricos epiteliais benignos em pacientes com gastrite tapete à superfície mucosa.
atrófica de corpo. Se menores que 5 mm, o diagnóstico deve ser feito através
Quando associados à gastrite autoimune, os pólipos hiper- de biopsia de apenas um pólipo. Acima de 5 mm, todos os pó­
plásicos tendem a ser múltiplos, acometendo principalmente lipos devem ser biopsiados.
o corpo gástrico. Até 25% dos pólipos de glândulas fúndicas, associados à
Metaplasia intestinal focal do pólipo pode ocorrer em 16% polipose adenomatosa familial, e 1% dos pólipos de glându­
dos casos, e displasia em até 4% deles. Em pólipos hiperplásicos las fúndicas esporádicos podem apresentar displasia epitelial
com mais de 2 cm de diâmetro, têm sido detectadas mutações foveolar.
do gene p53, aberrações cromossômicas e instabilidade mi- Os do tipo esporádico são, em geral, causados por mutações
crossatélite. Raramente, em 0,6% dos casos, pode-se detectar do gene betacatenina, enquanto aqueles associados à polipose
adenocarcinoma no pólipo hiperplásico e no estômago não adenomatosa familial surgem de inativação mutacional do gene
polipoide circunjacente, o que torna difícil definir o ponto de APC. A displasia, em pólipos de glândulas fúndicas, pode ser
origem do carcinoma. observada quando ocorre em pólipos com mutações do gene
O estudo da mucosa gástrica circunjacente ao pólipo hi­ APC. Tal fato justifica a raridade da displasia nos pólipos de
perplásico, que tenha mais de 2 cm de diâmetro, pode eviden­ glândulas fúndicas esporádicos, já que são ligados a mutações
ciar metaplasia intestinal em 37% das vezes, displasia em 2% do gene betacatenina.
e adenocarcinoma metacrônico ou sincrônico em até 4% dos Contudo, o risco de câncer gástrico na polipose adenoma­
casos. tosa familial é da ordem de apenas 0,6%.
Estudo de Muehldorfer et a l, comparando a acurácia diag- H. pylori e pólipos de glândulas fúndicas guardam uma re­
nóstica de biopsia versus polipectomia para pólipos gástricos, lação inversa: a bactéria raramente é identificada em pacientes
observou risco de 3% de adenocarcinoma em pólipos hiper­ H. pylori positivos e, por outro lado, a infecção pode levar à
plásicos. regressão dos pólipos de glândulas fúndicas.
Em presença de pólipos hiperplásicos do estômago, com Tem sido observada correlação entre terapia prolongada
mais de 2 cm de diâmetro, devem-se obter biopsias da mucosa com inibidores de bomba de prótons e a presença de pólipos
não poliposa no antro e corpo gástrico, devido ao risco de car­ de glândulas fúndicas. Nestes casos, os pólipos são múltiplos
cinoma nas áreas adjacentes aos pólipos. e podem desaparecer com a suspensão do uso dos inibidores
da bomba de prótons.
■ Pólipos de glândulas fúndicas
Os pólipos de glândulas fúndicas são sésseis, com tamanho ■ Pólipo inflam atório fíbroide
variando de 1 a 5 mm de diâmetro. Acometem o corpo ou o O pólipo inflamatório fibroide, também conhecido como
fundo gástrico e têm o aspecto da mucosa que os circunda. Es­ tumor de Vanek, é uma lesão que se origina na submucosa do
ses pólipos podem ocorrer de modo esporádico, sobretudo em trato gastrintestinal, principalmente na região antral e pré-piló-
pacientes em uso prolongado de inibidores de bomba protônica, rica do estômago. É composto por tecido fibrótico e estruturas
ou em associação com polipose adenomatosa familial. vasculares com estroma que mostram infiltrado inflamatório
Quando esporádicos, são únicos ou ocorrem em pequeno proeminente, destacando-se a presença importante de inúme­
número. Quando em associação com polipose adenomatosa ros eosinófilos.
familial, ocorre às centenas, podendo cobrir toda a superfície Em geral, é um pólipo semipedunculado, único, recoberto
por mucosa de aspecto normal, podendo ser ulcerado. Pode
estar associado à hipocloridria ou acloridria.
Estudos imuno-histoquímicos desses pólipos afastam a hi­
pótese de natureza neural ou vascular da lesão, indicando, pos­
sivelmente, fases evolutivas de uma reação inflamatória local.
O pólipo inflamatório fibroide não apresenta tendência para
evolução neoplásica.

■ Pólipos adenomatosos
Representam cerca de 10% dos pólipos gástricos e são clas­
sificados histologicamente em adenomas tubulares, vilosos e
tubulovilosos. Podem ser sésseis ou pedunculados. Normal­
mente, são únicos, ou pouco numerosos, e ocorrem mais fre­
quentemente no antro gástrico. O tipo mais comum deles é o
pólipo adenomatoso tubular.
O risco de degeneração maligna é maior nos adenomas vilo­
sos ou tubulovilosos, podendo atingir cerca de 60% dos casos,
especialmente nos pólipos com diâmetro superior a 2 cm.
O adenocarcinoma focal ocorre em 33% dos casos de ade­
nomas vilosos e tubulovilosos do estômago. Adenocarcinoma
sincrônico, em outra área do estômago, pode ocorrer em até
30% destes pacientes. É muito importante salientar a impor­
Figura 23.2 Pólipos gástricos de glândulas fúndicas. Fonte: N a t. Rev. tância do estudo histológico do pólipo por inteiro, já que o
2009. (Esta figura encontra-se reproduzida
G a s tro e n te ro l. & H e p a to l., diagnóstico endoscópico de adenoma não exclui a presença de
em cores no Encarte.) adenocarcinoma focal, na mesma lesão.
212 Capítulo 23 / Polipose Gástrica

Na síndrome de Peutz-Jeghers, entidade autossômica do­


minante, observam-se múltiplos pólipos hamartomatosos no
estômago, no intestino delgado e no intestino grosso, associados
à pigmentação mucocutânea em lábios, cavidade bucal, língua e
pele. O potencial de malignização destes pólipos hamartomato­
sos é baixo. Contudo, degeneração maligna pode ocorrer em até
30% dos casos em que haja pólipos adenomatosos associados.
Existe aumento da incidência de câncer de mama, de cólon, de
pâncreas, de estômago e de intestino delgado nestes pacientes,
o que exige rigoroso acompanhamento médico.
A polipose adenom atosa fam iliar é doença hereditária,
autossômica dominante, caracterizada por desenvolvimento
progressivo de centenas a milhares de pólipos adenomatosos
no intestino grosso. Nestes pacientes, é comum a ocorrência
de pólipos gástricos, que podem ser observados em 30 a 50%
dos casos.
Na maioria das vezes, os pólipos gástricos, nessa síndrome,
não são adenomatosos e sim pólipos de glândulas fúndicas.
São sésseis, com tamanho variando de 1 a 5 mm. Aproxima­
damente 5% dos pacientes com polipose adenomatosa fami­
Figura 23.3 Pólipo gástrico adenomatoso. Fonte: N a t. Rev. G a s tro e n -
liar podem, no entanto, apresentar pólipos adenomatosos em
te ro l. & H e p a to L 2009. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores região do antro gástrico, os quais podem sofrer transforma­
no Encarte.) ção maligna.
A síndrome de Cowden, ou síndrome hamartomatosa múl­
tipla, é uma doença autossômica dominante caracterizada por
inúmeros pólipos hamartomatosos do estômago, do intesti­
no delgado e do intestino grosso, associados a hamartomas
■ PÓLIPOS ASSOCIADOS A SÍNDROMES orocutâneos, câncer de mama e de tireoide. Pode haver re­
P0LIP0I DES gressão importante da polipose gástrica com a erradicação do
H. pylori.
São várias as síndromes polipoides nas quais pode haver A síndrom e de Gardner é uma polipose adenomatosa fa­
acometimento do estômago (Quadro 23.2). miliar autossômica dominante, caracterizada por centenas de
Polipose juvenil gastrintestinal difusa afeta o estômago em pólipos adenomatosos no intestino grosso e múltiplos pólipos
até 13% dos casos. Os pólipos são hamartomatosos, podendo, de glândulas fúndicas no estômago. Difere da polipose ade­
contudo, apresentar focos adenomatosos. O risco de maligni- nomatosa familiar pela presença de osteomas, principalmente
zação chega a superar 15% dos casos. Estes pacientes devem de mandíbula, e tumores de partes moles, como lipomas e fi-
ser seguidos com endoscopia digestiva alta e colonoscopia a brossarcomas.
cada 1 a 2 anos.
A síndrom e de Cronkhite-Canada é uma desordem não ■ Carcinoides
familial que acomete, principalmente, pessoas de meia-idade Os carcinoides representam menos de 2% das lesões polipoi­
ou idosos, e é caracterizada por polipose gastrintestinal, alo- des gástricas e são um tipo de tumor neuroendócrino, derivado
pecia, distrofia das unhas e hiperpigmentação cutânea. Podem de células enterocromafins símile. Podem ser classificados em
ocorrer, também, diarréia crônica e enteropatia perdedora de carcinoides do tipo I, II e III.
proteínas, com má absorção intestinal. O risco de maligniza- Os carcinoides do tipo I representam cerca de 70 a 80% dos
ção dos pólipos nesta síndrome é mínimo. Há relato isolado carcinoides gástricos, sendo, em geral, lesões multicêntricas
de caso mostrando resolução completa da polipose gástrica, da menores de 2 cm. Localizam-se no corpo ou fundo gástrico,
hipoalbuminemia, da anemia e da onicodistrofia após a erra­ são associados à gastrite atrófica autoimune, hipergastrinemia
dicação do H. pylori. e, com frequência, à anemia perniciosa. Afetam mais o sexo
feminino.
Os carcinoides do tipo II estão associados à síndrome de
Zollinger-Ellison e à neoplasia endócrina múltipla tipo I; re­
------------------------------------- ▼ presentam de 5 a 8% dos carcinoides gástricos e são também
Q u a d ro 23.2 Síndromes polipoides do trato gastrintestinal associados à hipergastrinemia.
com envolvimento do estômago Os carcinoides do tipo III são esporádicos, representam 15
a 20% dos carcinoides do estômago, geralmente únicos, invasi-
1. P o lip o s e ju v e n il g a s trin te s tin a l d ifu sa vos e tendem a ocorrer na região pré-pilórica. Afetam mais os
2. S ín d r o m e d e C r o n k h it e -C a n a d a homens e não estão associados à hipergastrinemia. Em geral,
3. S ín d r o m e d e P e u t z -J e g h e r s ao serem detectados, os carcinoides gástricos do tipo III são
4. P o lip o s e a d e n o m a t o s a fa m ilia r
maiores de 1 cm e já apresentam metástases.
5. S ín d r o m e d e C o w d e n
A síndrome carcinoide, caracterizada por flushing cutâneo,
diarréia e broncospasmo, ocorre nos casos de carcinoide do
6. S ín d r o m e d e G a r d n e r
tipo III.
Capítulo 23 / Polipose Gástrica 213

Pólipos adenomatosos, normalmente em pequeno número,


■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS devem sempre ser integralmente removidos.
Os pólipos gástricos, na maioria das vezes, são assintomá- Alguns serviços recomendam que se faça primeiro a coleta
ticos, sendo detectados incidentalmente em endoscopias reali­ de material para estudo histológico e, posteriormente, procede-
zadas para avaliação de sintomas dispépticos inespecíficos. se à realização da polipectomia, especialmente em casos suspei­
Quando sintomáticos, manifestam-se por meio de hemorra­ tos de lesões pré-maiignas ou malignas. A justificativa para esta
gia digestiva, anemia e, ocasionalmente, dor abdominal. A dor conduta é que, ao ser removido, o pólipo pode desprender-se,
abdominal seria devida à obstrução pilórica intermitente, por passar pelo piloro e não mais ser recuperado. Em casos de pó­
pólipo grande e com pedículo longo. Pode ocorrer dor retroes- lipos gástricos adenomatosos e pólipos de glândulas fúndicas
ternal, assim como disfagia intermitente, como consequência não esporádicos, é recomendável a realização de colonoscopia,
do prolapso gastresofágico de pólipo pediculado da região do devido à frequente associação com polipose colônica.
fundo gástrico. Ainda não há posição definida quanto ao acompanhamento
A maioria dos pólipos, quando sangra, o faz através de he­ endoscópico na polipose gástrica.
morragia leve, secundária a erosões da mucosa. O sangramento Em se tratando de pólipo gástrico adenomatoso, é recomen­
mais intenso é bem menos frequente e secundário à ulceração dável o acompanhamento, dado seu alto potencial de maligni­
do pólipo ou de tumor submucoso. zação. Quanto ao pólipo hiperplásico, após vários autores terem
O achado de pólipo gástrico associado a episódios de diar­ relatado alterações displásicas e focos de adenocarcinoma no
réia, flushing cutâneo, broncospasmo e lesões valvulares do pólipo ou na mucosa adjacente, principalmente pólipos com
coração sugerem o diagnóstico de carcinoide gástrico do tipo mais de 2 cm, é também aconselhável o acompanhamento en­
III. doscópico. O primeiro controle endoscópico deve ser feito após
O exame físico não apresenta sinais que despertem a atenção 1 ano, e os controles subsequentes realizados a intervalos de 2 a
para a presença de pólipos gástricos, a não ser quando associa­ 5 anos, dependendo de sinais de alarme e de fatores de risco.
dos a síndromes polipoides. Por outro lado, os pólipos de glândulas fúndicas esporádi­
cos são benignos em praticamente todos os casos e dispensam
o seguimento endoscópico.
■ CARACTERÍSTICAS ENDOSCÓPICAS A conduta no caso de carcinoides vai depender do seu tipo.
O tipo I raramente apresenta metástase, tem crescimento lento
À endoscopia, os pólipos gástricos são muito parecidos. É e é pouco agressivo. Em geral, é feita a excisão endoscópica das
muito importante que seja feita uma descrição pormenorizada, lesões polipoides e seguimento endoscópico anual. No carci­
destacando o número de pólipos, sua localização anatômica no noide do tipo II, a conduta é a excisão endoscópica ou cirúrgica
estômago, sua forma e tamanho, além do aspecto da mucosa do gastrinoma, com acompanhamento endoscópico anual. A
que os recobre e da mucosa adjacente. abordagem do carcinoide esporádico do tipo III é mais agres­
Pólipos hiperplásicos são geralmente pequenos, entre 5 e siva em função do seu caráter mais invasivo e metastático, es­
15 mm de diâmetro, múltiplos, sésseis ou pedunculados, lo­ tando indicada a abordagem cirúrgica, desde excisão da lesão
calizados principalmente no antro gástrico. São frequentes as com margem livre ampla, até a gastrectomia total seguida de
erosões superficiais. quimioterapia.
Pólipos de glândulas fúndicas são numerosos, ocorrem no
corpo e fundo gástricos, são sésseis, apresentam superfície lisa
e diâmetro variando entre 1 e 5 mm. A mucosa que os reco­ ■ LEITURA RECOMENDADA
bre tem a mesma cor e o mesmo aspecto da mucosa gástrica
normal. Abraham, SC, Singh, VK, Yardlcy, JH, Wu. TT. Hypcrplastic polyps o f the stom-
ach: associations with histologic pattcrns of gastritis and gastric atrophy.
Pólipos adenomatosos são, em geral, únicos ou em pequeno
The A m J Surg Pathol, 2001; 25:500-7.
número, sésseis ou pedunculados. São pólipos maiores, atingin­ Amaro, R, Ncff, GW, Karnam, US et al. Acquircd hypcrplastic gastric polyps in
do 2 cm ou mais de diâmetro, e ocorrem preferencialmente na solid organ transplant paticnts. A m J Gastroenterol, 2002; 97:2220-4.
região do antro. Apresentam superfície ligeiramente nodular Carmack, SW, Gcnta, RM, Graham, DY, Lauwcrs, GY. Management of gastric
e eritematosa. polips: a pathology-basc guide for gastroentcrologists. Nat Rev Gastroenterol
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Pólipo inflamatório fibroide é geralmente único, ocorrendo Chen, HN, Lu, CH, Shun, CT et al. Gastric outlct obstruetion due to giant
no antro gástrico e na região pré-pilórica. É semipedunculado, hypcrplastic polyp. / Formos Med Assoe, 2005; i 04:852-5.
e a mucosa que o recobre tem aspecto normal, podendo, con­ Choudhry, U, Boyce, HW Jr, Coppola, D. Proton pump inhibitor-associated
tudo, ser ulcerada. gastric polyps: a rctrospcctivc analysis of their frcqucncy and cndoscopic,
histologic, and ultrastructural charactcristics. Am J Clin Pathol, 1998;
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Dcclich, P, Tavani, E, Ferrara, A et a i Sporadic fundic gland polyps: clinic-
Os pólipos gástricos devem ser retirados endoscopicamente pathologic features and associatcd discascs. Pol J Pathol, 2005; 56:131-7.
e analisados histologicamente. Quando a quantidade de pólipos Di Giulio, E, Lahncr, E, Michclctti, A et a i Occurrcncc and risk factors for
benign cpithclial gastric polyps in atrophic body gastritis on diagnosis and
é muito grande, podem ser necessárias várias sessões endoscó- follow-up. Aliment Pharmacol 7her, 2005; 21:567-74.
picas para a remoção de todos eles. Quando o número deles é Dirschmid, K Platz-Baudin, C, Stolte, M. Why is the hypcrplastic polyp a marker
de tal monta que a remoção de todos não é possível, deve-se for the prccanccrous condition of the gastric mucosa? Virchows Arch, 2006;
proceder à polipectomia dos pólipos maiores e biopsiar o maior 448:80-4.
número possível das lesões menores para estudo histológico. Espcjo, RLH 8c Navarrctc, SJ. Gastric cpithclial polyps. Rev Gastroenterol Peru,
2004; 24:50-74.
Pólipos com diâmetro acima de 2 cm, sejam eles sésseis, pe­ Frccman, HJ. Endoscopic cxcision of a prolapsing malignant polyp which
dunculados ou semipedunculados, devem ser removidos total­ causcd intermitent gastric outlct obstruetion. World J Gastroenterol, 2005;
mente, devido ao alto risco de malignização. 11:5245-7.
214 Capítulo 23 / Polipose Gástrica

Ginsbcrg, GG, Al-Kavas, FH, Flcischcr, DE et al. Gastric polyposis: rclationship Rodrigues, MAG, Nogueira, AMMK Tumores benignos do estômago. Em:
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Tumores do Estômago
Luiz Gonzaga Vaz Coelho, Washington Luiz dos Santos Vieirafe
Rogério Luiz Pinheiro

Nos EUA, a maioria dos casos de CG originava-se no estô­


■ ADENOCARCINOMA GÁSTRICO mago distai, ou seja, antro e corpo, mas, desde 1976, de acordo
com dados da Surveillance Epidemiology and End Result Pro-
■ Epidemiologia gram, tem havido uma redução do número das lesões distais e
Constitui a neoplasia gástrica epitelial mais frequente, res­ um concomitante aumento contínuo e gradativo da incidência
ponsável por 95% dos tumores malignos que acometem o es­ do adenocarcinoma proximal, ou seja, da junção esofagogás-
tômago humano. Embora a incidência do carcinoma gástrico trica e cárdia. A taxa de crescimento desses tumores excede a
(CG) venha declinando de uma maneira contínua e regular de qualquer outro tipo de câncer, incluindo câncer de pulmão
nas últimas décadas, ele constitui a segunda causa de óbito e melanoma, sugerindo que os cânceres da porção proximal
por câncer no mundo, com registro de mais de 900.000 novos do estômago e o da junção esofagogástrica têm patogênese e
casos ao ano. Em geral, sua magnitude é de duas a três vezes epidemiologia partilhadas e, provavelmente, diferentes do ade­
maior nos países em desenvolvimento e é mais prevalente no nocarcinoma distai.
sexo masculino que no feminino. Sua distribuição na população
mundial não é uniforme, apresentando um padrão variável, e ■ Fatores de risco
sua incidência é alta no Japão, China, Chile, Costa Rica, Leste
Europeu, algumas regiões da antiga União Soviética, Améri­ O adenocarcinoma gástrico tem etiologia complexa e mul-
ca do Sul e América Central. No Brasil, o Ministério da Saúde tifatorial. Fatores dietéticos e hábitos de vida tradicionalmente
estimou em 21.500 os novos casos de câncer gástrico no Brasil recebem grande ênfase no estudo do adenocarcinoma gástrico.
no ano de 2010, sendo 13.820 em homens e 7.680 em mulheres. O maior consumo de frutas e vegetais permanece como fator
Estes valores correspondem a um risco estimado de 14 casos capaz de reduzir o risco de desenvolvimento de câncer gástrico,
novos a cada 100 mil homens e 8 para cada 100 mil mulheres. embora estudos prospectivos recentes não tenham sido capazes
A diminuição na incidência de câncer de estômago tem sido de confirmar esse efeito. Tampouco a suplementação de vita­
observada em vários países, inclusive no Brasil, e pode ser ex­ minas na dieta foi capaz de reduzir o risco de câncer gástrico.
plicada por reduções nas taxas de prevalência de fatores de Apesar da enorme quantidade de estudos avaliando o papel do
risco (Quadro 24.1). consumo de álcool e da ingestão de sal e nitratos na dieta na
etiologia do câncer gástrico, não existe consenso estabelecido
no efetivo papel destes fatores no câncer gástrico. O hábito de
fumar constitui um fator de risco estabelecido para o adeno­
------------------------------------- ▼-------------------------------------
carcinoma gástrico. Um extenso estudo europeu recente estima
Q u a d ro 24.1 Fatores associados ao desenvolvimento que 17,6% (IC 95%: 10,5 a 29,5) dos casos de câncer gástrico são
do adenocarcinoma gástrico atribuídos ao tabagismo.
A gastrectomia parcial, geralmente a antrectomia com anas-
H. pylori tomose à Billroth II, empregada antigamente no tratamento
D ie ta da úlcera péptica, está associada ao aumento de incidência de
Fum o câncer gástrico. A associação é mais evidente em gastrecto-
R e flu x o b ilia r (e s t ô m a g o o p e r a d o ) mias realizadas para úlcera gástrica e menos convincente para
G a s trite a u t o im u n e cirurgias em portadores de úlcera duodenal, não sendo essa
H e r e d it a r ie d a d e associação observada com os tumores da região cárdica do es­
H ip o c lo r id r ia tômago. Estudos de metanálises sugerem que o risco de desen­
G a s trite , a tro fia e m e ta p la s ia in te s tin a l
volver adenocarcinoma em estômago operado é relativamente
M is c e lâ n e a
baixo até 15 a 20 anos após a ressecção; a partir desse período,
a possibilidade é de 1,5 a 3 vezes maior do que nos estômagos

215
216 Capítulo 24 / Tumores do Estômago

não operados. Na patogênese desse tipo de neoplasia, assume os estômagos exibiam gastrite ativa associada à presença de
importância a gastrite crônica atrófica, que surge devido ao re- H. pylori; na 26a semana, três dos cinco animais exibiam me-
fluxo duodenogástrico, inevitável nas ressecções à Billroth II. taplasia intestinal; na 52a semana, foi evidenciada metaplasia
A ação detergente dos sais biliares, rompendo a barreira mu- intestinal em todos os cinco animais e três deles apresentavam
cosa, acelera o aparecimento da gastrite crônica atrófica; esta, também pólipos hiperplásicos, e, na 62asemana, foi observado
com seu baixo poder cloridropéptico favorece a proliferação adenocarcinoma do tipo intestinal em 10 (37%) dos 27 animais
de bactérias, que irão transformar os nitratos alimentares em infectados. Como H. pylori não promove tais índices de ade­
nitritos, criando, ao catalisarem a nitrosação das aminas, con­ nocarcinoma gástrico no homem, outros fatores certamente
dições para a síntese de nitrosaminas, substâncias sabidamente devem estar envolvidos.
carcinogênicas. Os mecanismos de carcinogênese gástrica induzidos pela
Associação entre câncer gástrico, gastrite autoimune e ane­ infecção por H. pylori vêm sendo progressivamente aclarados
mia perniciosa é reconhecida há anos. Hsing et a i, em uma e parecem relacionados com a capacidade de promover de­
coorte com 4.517 pacientes portadores de anemia perniciosa e sequilíbrio entre proliferação celular e apoptose, liberação de
acompanhados por até 20 anos, observaram um aumento no citocinas pró-inflamatórias, formação de radicais livres, des-
risco de câncer gástrico de até 3 vezes. regulação da Cox-2, subversão da imunidade e estimulação da
A maior parte dos adenocarcinomas gástricos ocorre espo­ angiogênese. Além disso, é sabido o papel da inflamação crô­
radicamente, enquanto 8 a 10% têm um componente familial nica do trato gastrintestinal na proliferação, adesão e transfor­
envolvido. Carcinoma gástrico pode ocasionalmente se desen­ mação celulares. No ambiente intragástrico, a proteína CagA
volver em famílias com mutações genéticas nos genes p53 (sín- produzida por algumas cepas de H. pylori é hoje considera­
drome de Li-Fraumeni) e BRCA2. É estimado que 1 a 3% dos da como potencial agente oncogênico direto. Esta proteína,
tumores gástricos derivam de mutações no gene codificador produzida pelo gene CagA, é introduzida dentro das células
E-cadherina, proteína de adesão celular, que originam uma epiteliais gástricas através do sistema de secreção tipo IV do
predisposição ao câncer gástrico (câncer gástrico hereditário di­ H. pylori (como uma “seringa molecular”). Uma vez injetada
fuso) com penetrância de 70%. O câncer gástrico pode também no interior da célula epitelial, esta proteína é fosforilada pe­
se desenvolver como parte da síndrome do câncer colorretal las quinases da família SRC e ativa a fosfoquinase SHP2, que
hereditário sem polipose (HNPCC) e de outras síndromes po- atua como oncoproteína humana, e, em conjunto com outras
lipoides gastrintestinais como a polipose adenomatosa familiar quinases, são capazes de subverter a fisiologia celular, gerando
e a síndrome de Peutz-Jeghers. processos pré-neoplásicos como ativação de receptores de fa­
A infecção por Helicobacterpylori (H. pylori) constitui hoje tores de crescimento, proliferação celular aumentada, evasão
o maior fator de risco para o desenvolvimento do adenocar- de apoptose, angiogênese sustentada, dissociação celular e in­
cinoma distai de estômago, e, desde 1994, este microrganis- vasão tecidual, entre outros.
mo é considerado um carcinógeno tipo 1 (definido) para o Também fatores relacionados com o hospedeiro têm sido
desenvolvimento de câncer gástrico no homem. Sua presença estudados no processo de carcinogênese gástrica associada ao
no estômago humano eleva cerca de 6 vezes a incidência desse H. pylori. El-Omar et al., em trabalho memorável, estudando
tipo de tumor. A prevalência exata da infecção por H. pylori pacientes com câncer gástrico e familiares de portadores de
em pacientes com câncer gástrico não é facilmente estimada, câncer gástrico, demonstraram que fatores genéticos do hospe­
já que ela pode ter desaparecido espontaneamente com o pro­ deiro - polimorfismos dos genes que codificam a interleucina
gredir das lesões pré-neoplásicas, dificultando o seu diagnósti­ IL-1(3 - são capazes de aumentar a possibilidade de resposta
co mesmo por métodos sorológicos. Um importante e extenso hipoclorídrica crônica à infecção por H. pylori e o risco de cân­
estudo sueco, ao pesquisar, em portadores de câncer gástrico, cer gástrico, presumivelmente por alterar os níveis de IL- lp no
a presença do microrganismo não apenas por métodos soro­ estômago, sugerindo, assim, por que alguns indivíduos infecta­
lógicos convencionais (ELISA), mas também pela técnica de dos por H. pylori desenvolvem câncer gástrico, enquanto outros
immunoblot CagA, indicador sensível de infecção prévia pelo não o fazem. Sendo esse câncer uma doença multifatorial, ou­
microrganismo, demonstrou que a associação entre a presença tros fatores estão certamente envolvidos, justificando-se, desse
da bactéria e o câncer gástrico é semelhante àquela observada modo, por que nem todos os indivíduos com este genótipo irão
entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão. Outras evidências desenvolver o câncer no estômago.
epidemiológicas convincentes vêm sendo acumuladas. Um es­ Recentemente, estudos experimentais em ratos coloniza­
tudo japonês recente envolveu pacientes (idade média próxima dos por H.felis têm questionado a teoria epitelial para a carci­
de 50 anos) infectados e não infectados por H. pylori, que foram nogênese gástrica. No experimento, a mucosa gástrica infec­
acompanhados por 7,8 anos. Ao término da análise, 2,9% dos tada tornou-se atrófica, sendo colonizada por células-tronco
pacientes infectados desenvolveram câncer gástrico, o mesmo da medula óssea que se diferenciariam em células intestinais,
não ocorrendo em nenhum dos pacientes não infectados. dando sequência à metaplasia intestinal, displasia e câncer in-
Em 1998, Watanabe et ai, no Japão, desenvolveram um m o­ traepitelial.
delo animal de adenocarcinoma gástrico induzido por H. pylori
usando um roedor denominado Mongolian gerbil. Neste es­
tudo, 55 animais foram inoculados com H. pylori humano; 30
■ Anatomia patológica
animais não inoculados serviram como controles. Os estôma­ Segundo Pelayo Corrêa, a carcinogênese gástrica constitui
gos de cinco animais inoculados foram examinados nas 6a, 26a, processo multifatorial que se desenvolve em etapas sucessivas
39a e 52a semanas; os estômagos dos animais não sacrificados ou sequenciais a partir da gastrite crônica induzida pela bacté­
sobreviventes (n = 27) e dos 30 controles foram examinados ria. As lesões evoluiríam progressivamente e culminariam no
na 62a semana. Estômagos do grupo controle, não infectado, adenocarcinoma gástrico do tipo intestinal ou difuso. Naqueles
estavam inalterados ao final do experimento. Por outro lado, os do tipo intestinal, a mucosa assemelha-se, em seu aspecto, ao
estômagos dos animais infectados mostravam alterações pro­ intestino delgado, o adenocarcinoma gástrico localiza-se com
gressivas em direção ao adenocarcinoma. Na 6a semana, todos mais frequência no antro, não está associado a grupos sanguí­
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 217

neos definidos, é mais frequente em homens de idade avançada Entre os sintomas dependentes da disseminação metastática,
e predomina em populações de alto risco. Está ainda relacio­ destacam-se dores ósseas, sintomas pulmonares, hepáticos e
nado com a presença de gastrite crônica com atrofia, metapla- neurológicos.
sia intestinal e displasia epitelial antecedendo o aparecimento O exame objetivo dos pacientes com CG precoce nada apre­
do câncer. Nos tumores do tipo difuso (menos frequente que senta de anormal; apenas nas formas mais avançadas do tumor,
o tipo intestinal), a localização principal é o fundo gástrico, o constatam-se caquexia, icterícia, palidez cutânea com pele de
adenocarcinoma gástrico acomete pacientes mais jovens, é li­ tonalidade amarelo-pálida. Às vezes, evidencia-se a presença de
geiramente mais frequente em homens e pode estar associado
massas palpáveis, dolorosas ou não, no epigástrio, bem como
ao grupo sanguíneo A. Histologicamente, é composto por focos
ascite e edema de membros inferiores. Pode ocorrer a disse­
de células malignas com infiltração inflamatória mínima, em
minação por invasão direta através da parede do estômago,
uma quantidade substancial de tecido fibroso, sendo mais fre­
com adesão ou invasão de estruturas subjacentes, tais como
quente em populações de baixo risco para carcinoma gástrico.
Nestes casos, a gastrite crônica por H. pylori, sob modulação pâncreas, fígado e cólon (Quadro 24.3). Quando a doença se
de fatores genéticos, progrediría mais diretamente a partir de estende para o cólon transverso, podem surgir vômitos feca-
lesões hiperplásicas e talvez displasia para o adenocarcinoma loides e, às vezes, observam-se alimentos recentemente inge­
difuso. Embora, algumas vezes, a classificação dos adenocarci- ridos nas fezes. A doença também pode se disseminar, através
nomas como difusos ou intestinais não seja possível, esses dois dos linfáticos, para os linfonodos intra- e extra-abdominais,
tipos de tumores parecem representar desordens distintas, com destacando-se, dentre estes, os linfonodos palpáveis na fossa
diferentes fatores epidemiológicos e etiológicos. supraclavicular esquerda (gânglio de Virchow-Troisier), nó-
Macroscopicamente, a classificação morfológica de Bor- dulos ou empastamento do fundo de saco de Douglas ao toque
rmann, divide os adenocarcinomas gástricos em quatro grupos:
TipoI: polipoide, exofítico, papilar ou vegetante, correspon­
dente às lesões que se projetam para o lúmen gástrico e que, ----------------------------------- ▼-----------------------------------
variando de tamanho, podem atingir grandes proporções. Q u a d ro 24.2 Sinais e sintomas mais frequentes em 18.365 pacientes
TipoII: são os cânceres ulcerados que medem mais de 3 cm
com câncer gástrico
de diâmetro, bem delimitados, sem infiltração do tecido vizi­
nho. Suas bordas são caracteristicamente elevadas, irregulares
Sin ais/Sin to m as Frequência (% )
e mamelonadas. Apresentam fundo de cor acinzentada, com
tecido necrótico mesclado com coágulos de sangue, podendo P e rd a d e p e s o 61,1

apresentar ilhas de mucosa normal. D o r a b d o m in a l 5 1 ,6

TipoIII: câncer ulcerado e infiltrante, com bordas menos Náuseas 34,3


salientes que no tipo II e com disseminação parcialmente di­ A n o r e x ia 3 2 ,0
fusa. D is fa g ia 26,1
TipoIV: é a infiltração neoplásica difusa de um segmento M e le n a 20,2
da parede gástrica ou de toda essa parede, podendo ocorrer P le n it u d e g á s tric a 17,5
ulcerações de profundidade variável. Quando a infiltração se
D o r t ip o ú lc e ra 17,1
estende por todo o estômago, os limites não são distinguidos
E d e m a d e m e m b r o s in fe rio re s 5 ,9
pela palpação, nem tampouco por métodos radiológicos ou
endoscópicos; é a chamada linitis plasticat na qual as paredes Adaptado de Wanebo etal. Ann. Surg., 1993; 218:583-92.
do estômago tornam-se rígidas e o órgão toma forma tubular
sugestiva de uma bota de couro para vinho.

■ Manifestações clínicas ---------------------------------- ▼-----------------------------------


Q u a d ro 24.3 Câncer gástrico: locais mais frequentes de metástases
O adenocarcinoma gástrico incide mais sobre homens, em
uma proporção de 2:1 homem/mulher, assim como é mais en­ Extensão direta
contrado entre os negros. As manifestações clínicas do adeno­ O m e n t o m a io r e m e n o r
carcinoma gástrico precoce são tipicamente vagas e inespecí- F íg a d o
ficas, raramente provocando sintomas que possam induzir a P â n cre a s
Baço
um diagnóstico precoce da doença, ocasião em que o tum or é
C ó lo n tra n s v e rs o
superficial e potencialmente curável pela cirurgia ou procedi­
mentos endoscópicos. O tumor torna-se sintomático, na grande Linfática
L o c a l: p e rig á s tric a
maioria dos casos, em uma fase avançada da doença, ou quando R e g io n a l: t r o n c o c e lía c o , h e p á tic a c o m u m , g á s tric a e s q u e r d a , e s p lê n ic a
já existem metástases. Perda de peso, desconforto abdominal D is tâ n c ia : s u p ra c la v ic u la r, u m b ilic a l, a x ila r e s q u e rd a
insidioso, acompanhado de plenitude pós-prandial e dor epi- Hematogênica
gástrica tipo úlcera ou incaracterística, de intensidade variá­ H e p á tic a
vel, são os sintomas mais comumente referidos pelos pacientes P u lm o n a r
(Quadro 24.2). Anorexia e náuseas leves são sintomas comuns, Ó ss e a
S is te m a n e r v o s o c e n tra l
mas em geral não são representativos da doença. O vômito pode
ocorrer quando o tum or invade o piloro, enquanto a disfagia Peritoneal
D is s e m in a d a
é o principal sintoma associado à lesão do cárdia. Hematême-
P é lvic a : o v á r io (t u m o r d e K r u k e n b e r g )
se e melena são relatadas em 20% dos casos. Podem ocorrer, R e to (t u m o r d e B lu m e r )
ainda, eructações, flatulência e distúrbios do hábito intestinal.
218 Capítulo 24 / Tumores do Estômago

retal (sinal de Blumer), aumento do volume do ovário ao exame Pelayo Corrêa, constitui o fundamento inicial para os estudos
ginecológico (tumor de Krukenberg). de prevenção do adenocarcinoma gástrico baseado na erradi­
Ocasionalmente, podem ocorrer síndrome paraneoplásica, cação do H. pylori. No homem, a gastrite crônica ativa reverte
anemia hemolítica microangiopática, glomerulopatia membra- ao normal após a erradicação do microrganismo. Entretanto,
nosa, queratose seborreica, acantose nigricans (lesões filiformes há dúvidas sobre uma eventual regressão da atrofia gástrica e
e papulares com pigmentação nas dobras da pele e de membra­ da metaplasia intestinal, lesões consideradas como condições
nas mucosas), coagulação intravascular crônica causando trom­ pré-neoplásicas. Alguns estudos sugerem que a regressão pos­
bose arterial e venosa e, em raras ocasiões, dermatomiosite. sa ocorrer em pacientes acompanhados por longos períodos,
enquanto outros sugerem que a erradicação da bactéria é ca­
paz de impedir a progressão das lesões atróficas e metaplásicas.
■ Diagnóstico Vale lembrar que naqueles pacientes em que a bactéria não é
Nos casos de doença precoce, o diagnóstico é possível apenas erradicada, as lesões progridem ou não se alteram.
quando se realizam programas de rastreamento na população Um ponto fundamental para o estabelecimento de estraté­
assintomática, como é, rotineiramente, feito no Japão e na Co­ gias de prevenção do câncer gástrico é a definição exata do pon­
réia, ou, o diagnóstico se faz por acaso durante exame endos- to, dentro da cascata evolutiva da gastrite crônica, a partir do
cópico em pacientes com outras queixas. Nos casos de doença qual não mais se observa regressão das alterações histológicas
avançada, os exames laboratoriais podem demonstrar anemia com a erradicação do microrganismo. Os resultados obtidos
(42% dos casos), presença de sangue oculto nas fezes (40% dos nos diferentes estudos realizados com o objetivo de analisar as
casos), hipoproteinemia (26% dos casos) e anormalidades das alterações histológicas e ocorrência de câncer gástrico após a
provas de função hepática (26% dos casos). A determinação erradicação do H. pylori mostram que, em relação às condições
dos níveis plasmáticos do pepsinogênio A e C em combinação pré-neoplásicas - atrofia e metaplasia intestinal -, a erradicação
com a soro positividade do H. pylori têm sido sugeridas como do microrganismo, embora não tenha promovido a sua regres­
exames promissores para o rastreamento de lesões pré-malignas são, parece ter sido capaz de impedir sua progressão.
do estômago. Em relação ao câncer gástrico, o estudo mais longo e com
Embora o estudo contrastado do estômago possa contribuir maior núm ero de pacientes mostrou que a erradicação do
para o diagnóstico do adenocarcinoma gástrico, a endoscopia H. pylori é capaz de reduzir a sua incidência apenas nos indi­
digestiva alta constitui o procedimento mais empregado por víduos sem alterações histológicas (atrofia e metaplasia) pré­
sua segurança e especificidade. Quando associada a biopsias vias. Mesmo reconhecendo estas limitações e dificuldades, o
múltiplas, com retirada de múltiplos fragmentos (em torno de Consenso Pacífico-Asiático para Prevenção do Câncer Gás­
10 fragmentos) tanto da base como da borda da lesão para es­ trico deliberou, pela primeira vez, em 2008, que é tempo de
tudo anatomopatológico, a sensibilidade desse procedimento tentar intervir na prevenção do câncer gástrico, recomendan­
ultrapassa 98%. do a pesquisa e tratamento da infecção por H. pylori em toda
Outros métodos de imagem como a tomografia computa­ a população de regiões de alto risco, definidas como aquelas
dorizada do abdome podem delimitar a extensão do tum or onde a incidência de câncer gástrico na população é superior
primário, bem como a presença de metástase para linfonodos a 20/100.000 habitantes.
regionais ou a distância. A comparação entre os achados da No Brasil, do ponto de vista prático, dentro de uma estraté­
tomografia com os da laparotomia exploradora indica que a to­ gia de prevenção, deve-se considerar a erradicação de H. pylori
mografia pré-operatória frequentemente subestima a extensão em pacientes ou grupos de pacientes com risco aumentado de
da doença, sobretudo se existem metástases radiologicamente câncer gástrico, ou seja, pacientes com história familiar positi­
não detectáveis para linfonodos, fígado e omento. O ultrassom va e após gastrectomia subtotal ou remoção de câncer gástrico
endoscópico é capaz de determinar a profundidade e a pene­ precoce através de endoscopia ou cirurgia.
tração do tumor na parede gástrica e revelar a presença de me­
tástases para linfonodos regionais, sendo particularmente útil
no estadiamento de tumores precoces. Apesar do entusiasmo
■ Tratamento
inicial com os marcadores tumorais sorológicos, eles não têm Geralmente, o tratamento dos tumores do estômago é es­
sido de ajuda no diagnóstico dos tumores precoces. O antígeno sencialmente cirúrgico, mas seu resultado está ligado inexora­
carcinoembriogênico (CEA) não tem papel no diagnóstico do velmente ao estágio da doença, pois, na maior parte das vezes,
câncer gástrico, embora possa ser útil para avaliar a possibili­ no momento do diagnóstico, 50% dos tumores são irressecá-
dade de recidiva no seguimento pós-operatório tardio dos pa­ veis e apenas 30 a 50% são passíveis de ressecção com intenção
cientes submetidos a gastrectomia. Os níveis de alfafetoproteína curativa. Uma completa ressecção do tumor e dos linfonodos
e CA 19 a 9 usados comumente como marcadores de tumores regionais é a única chance de cura, e, desde que a ressecção da
hepáticos e pancreáticos, respectivamente, se elevam em 30% lesão primária possa oferecer um recurso a mais para melhora
dos casos de adenocarcinoma gástrico, sobretudo nos pacientes paliativa ou sintomática do paciente, a exploração abdominal
com tumores incuráveis, e, portanto, não são úteis na detec­ com intenção de cura deve ser tentada, a menos que exista uma
ção precoce ou nos casos de tumores curáveis cirurgicamente. clara evidência de doença disseminada ou que outras contrain-
Outras opções propedêuticas utilizadas no estadiamento do dicações clinicocirúrgicas estejam presentes.
tum or gástrico incluem ultrassom ou ressonância magnética
do abdome, PET-scan e laparoscopia. ■ Tratam ento endoscópico
O princípio básico para a ressecção endoscópica da neoplasia
gástrica superficial é quando a possibilidade de comprometi­
■ Prevenção mento linfonodal for mínima ou inexistente. Existem diversas
A sequência carcinogenética de infecção pelo H. pylori —> técnicas endoscópicas para remoção dessas lesões, mas o dese­
gastrite crônica —» atrofia glandular —» metaplasia intestinal—» jável é que o espécime seja removido em monobloco, com mar­
displasia —» adenocarcinoma do tipo intestinal, proposta por gens macroscópicas livres e fixado adequadamente para uma
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 219

avaliação precisa do patologista. Este deverá avaliar a profun­ ■ Tratam ento radioterápico
didade de invasão da lesão, o grau de diferenciação do câncer e O CG é relativamente resistente à radioterapia, requeren­
se há invasão linfovascular, permitindo assim predizer o risco do doses de radiação que excedem a tolerância das estrutu­
de metástase para linfonodo. A análise final desses dados per­ ras vizinhas, como mucosa intestinal, fígado e medula espinal.
mitirá ao médico assistente definir se o paciente está adequa­ Consequentemente, seu emprego habitualmente objetiva pro­
damente tratado por endoscopia ou se ele deverá redirecionar porcionar alívio dos sintomas, e não aumento da taxa de sobre­
para outro tratamento, mais frequentemente uma gastrectomia vivência. O uso de radiação de alta frequência durante a cirurgia
com esvaziamento linfonodal seguida ou não de quimioterapia. começa a ser estudado, mas seu papel nesse tipo de tratamento
Embora não haja consenso sobre o intervalo ideal para o acom­ ainda é incerto. Devido à alta incidência de recidiva local e/ou
panhamento de pacientes tratados por ressecção endoscópica, regional do CG, o uso profilático da radioterapia, após a res­
parece racional a reavaliação anual durante dez anos. secção cirúrgica, tem sido tentado, mas estudos controlados
A erradicação profilática do H. pylori após a ressecção en­ têm falhado em demonstrar algum benefício na sobrevida dos
doscópica por câncer gástrico precoce deve ser empregada para pacientes que recebem somente radioterapia após a ressecção
prevenir o desenvolvimento de carcinoma gástrico metacrôni- cirúrgica curativa do CG.
co. Estudo randomizado recente demonstra que o risco de de­
senvolvimento de um câncer gástrico subsequente foi reduzido
de 4 por cem indivíduos/ano para 1,4 por cem indivíduos/ano ■ Prognóstico
no grupo submetido à erradicação do H. pylori. Um prognóstico favorável do CG depende de um diagnós­
tico precoce, quando a doença é ainda surpreendida em uma
■ Tratam ento drúrgico fase inicial de sua evolução, limitada à mucosa ou submucosa;
O CG é doença primariamente regional. Assim sendo, na porém, a identificação desses casos é dificultada pela ausência
ausência de metástase a distância, está indicada a ressecção ou escassez de manifestações clínicas. Entre os dados clínicos,
cirúrgica que constitui a única forma eficaz de tratamento apenas a duração dos sintomas permite prever a possibilida­
com finalidade curativa. Esta inclui a exérese de tum or com de de ressecabilidade da lesão e a sobrevida pós-operatória. O
margens de segurança proximal e distai, bordas de secção ci­ prognóstico do CG é baseado principalmente nos fatores mor-
rúrgica livres de neoplasia e remoção dos linfonodos locor- fológicos do tumor primitivo, como tipo macroscópico, loca­
regionais, independentemente de serem suspeitos ou não de lização no estômago, características histológicas e a presença
acometimento. Inclui, também, a ressecção, em monobloco, ou não de metástases. As formas invasivas correspondentes aos
de estruturas, órgãos ou segmentos de órgãos eventualmente tipos III e IV da classificação de Borrmann têm pior prognósti­
envolvidos por contiguidade, além da remoção de ambos os co do que as formas I e II, que são formas bem delimitadas. A
omentos, da lâmina anterior do mesocólon transverso e do relação entre a localização do tum or e seu prognóstico é con­
peritônio pré-pancreático. troversa, com alguns investigadores referindo maior sobrevida
A ressecabilidade do CG tem aumentado de forma progres­ após 5 anos para os pacientes portadores de tumores localiza­
siva, alcançando, atualmente, índices que atingem até 85% dos dos no antro e corpo gástrico, ao contrário daqueles situados
casos. Quando se restringe a ressecções com finalidade curati­ no cárdia. Quanto ao tamanho, os tumores com diâmetro su­
va, estes índices caem para, em torno, de 70%. No tratamento perior a 2 cm apresentam um menor índice de cura. Histolo-
do CG avançado, ou seja, de tumores que já infiltraram e/ou gicamente, a relação entre malignidade e grau de anaplasia ou
ultrapassaram a muscular própria do estômago, esses índices atipias parece ser pouco significante em termos de prognóstico
são muito inferiores. do tumor, porém tumores que progressivamente invadem as
Na ausência de ascite ou de doença metastática extensa, mes­ camadas mais profundas da parede gástrica, atingindo a sero-
mo em casos considerados cirurgicamente incuráveis, a ressec­ sa, têm prognóstico mais desfavorável. O comprometimento
ção gástrica total ou uma gastroenteroanastomose devem ser ganglionar satélite nos tumores do estômago é sinal de mau
consideradas, pois tais procedimentos podem aliviar a obstru­ prognóstico, uma vez que a taxa de sobrevivência de 5 anos para
ção, o sangramento e a dor. os pacientes que não apresentaram metástases ganglionares é
Como alternativas ao tratamento cirúrgico, os métodos en- bem maior do que a daqueles que apresentam disseminação da
doscópicos para aliviar a obstrução gástrica podem promover doença para linfonodos.
uma melhora transitória. O implante de próteses plásticas ou
metálicas em pacientes selecionados com tumores da junção
esofagogástrica ou cárdia tem sido associado a um índice de ■ LINFOMA GÁSTRICO
sucesso em torno de 85%, para alívio dos sintomas, especial­
mente disfagia. Os linfomas gástricos constituem as neoplasias do estômago
mais frequentes, depois do adenocarcinoma. Este último chega
■ Tratam ento quim ioterápico a atingir 95% dos tumores gástricos, e os linfomas, por sua vez,
A indicação de tratamento quimioterápico adjuvante ao tra­ perfazem apenas 3% deles. Enquanto se tem notado uma redu­
tamento cirúrgico para pacientes considerados de alto risco ção da incidência dos adenocarcinomas gástricos, a incidência
para recaída tem-se tornado mais consistente, de acordo com dos linfomas tem aumentado.
resultados de estudos recentes. A maioria dos autores sugere Os linfomas gástricos podem ser primários ou secundá­
que, para pacientes de alto risco, um esquema poliquimioterá- rios. Eles são primários quando se originam no estômago, e
pico à base de 5-fluoruracila ou cisplatina seja empregado em esse órgão, com acometimento ou não dos linfonodos regio­
pelo menos quatro ciclos. nais, constitui o único foco da doença. O estômago e o intes­
A quimioterapia primária ou neoadjuvante não tem ainda tino constituem os locais mais frequentes de linfomas primá­
papel estabelecido no tratamento de CG, devendo ser evitada rios, e a maioria se origina no estômago, que, ao contrário do
fora de protocolos de pesquisa. intestino, não possui normalmente tecido linfoide. Os linfo-
220 Capítulo 24 / Tumores do Estômago

mas gástricos primários são quase exclusivamente do tipo não mas MALT de baixo grau se transformam em tumores de alto
Hodgkin, e a maior parte é da linhagem de células B (90%). grau, perdem suas principais características histológicas, e, a
Os de célula T também ocorrem, mas são muito mais raros. menos que haja foco residual de doença de baixo grau, torna-
A doença de Hodgkin raramente se origina no estômago. O se difícil saber se são linfomas de célula B de alto grau do tipo
linfoma é secundário quando invade esse órgão proveniente MALT ou não. Entretanto, há muitas evidências de diferenças
de linfonodos regionais, no curso de sua disseminação. O en­ fenotípicas e genéticas entre linfomas de célula B de alto grau
volvimento gástrico é encontrado em necropsias em 50% dos do MALT e os tipos nodais.
pacientes com linfoma nodal disseminado e leucemia linfo-
cítica. Os linfomas gástricos secundários são mais frequentes
do que os primários. ■ Etiopatogenia
Os linfomas primários do estômago constituem uma enti­ ■ Teddo linfoide associado à mucosa - MALT
dade clinicopatológica distinta dos linfomas nodais. Os estudos Ao contrário dos linfonodos periféricos, adaptados a lidar
têm mostrado que as suas características clinicopatológicas são com antígenos que chegam ao gânglio pelos linfáticos aferentes,
mais relacionadas com a estrutura e função do assim chamado o MALT parece ter evoluído para proteger a mucosa que está
tecido linfoide associado à mucosa (MALT) do que às dos linfo­ em contato direto com antígenos do meio externo. Ele existe
nodos periféricos. Ao que parece, o tecido linfoide associado à em outros locais, como glândulas salivares, pulmões e tireoide,
mucosa (MALT) surge no estômago em resposta à infecção pela mas é mais bem caracterizado no trato gastrintestinal, onde
bactéria Helicobacterpylori. Do MALT, originam-se os linfomas compreende quatro compartimentos linfoides. O primeiro e
também denominados maltomas. Os linfomas MALT podem mais relevante para os linfomas são as placas de Peyer; os outros
ter baixo ou alto grau de malignidade. Acredita-se que os lin­ compreendem os linfócitos intraepiteliais, a lâmina própria e
fomas MALT de alto grau de malignidade possam originar-se os linfonodos mesentéricos.
dos de baixo grau, ou mesmo já nascerem assim. Embora não
se possa afirmar, acredita-se que os linfomas de alto grau tam ­ ■ Placas de Peyer
bém se originam do MALT.
A histologia das placas de Peyer difere da dos linfonodos
Os linfomas tendem a permanecer localizados até tardia­ em vários aspectos importantes. Ao contrário dos linfonodos,
mente no curso da evolução e costumam responder favora­ as placas de Peyer não são capsuladas e não têm linfáticos afe­
velmente à terapêutica. O prognóstico, de um modo geral, é
rentes. O componente de célula B é dominante e consiste em
consideravelmente melhor do que nos tumores nodais de grau
um folículo central circundado por uma proeminente zona
histológico semelhante.
marginal. Esse folículo é coroado por uma cúpula de epitélio
Teoricamente, à exceção do linfoma de célula T cerebrifor-
que contém células B intraepiteliais; essas células B devem ser
me, qualquer linfoma listado nas classificações correntes de
distinguidas de células T intraepiteliais presentes no resto do
linfoma não Hodgkin (LNH) pode originar-se no trato gas-
epitélio intestinal.
trintestinal. Entretanto, tais casos são exceções, e a maioria dos
linfomas gastrintestinais primários são entidades distintas, não
■ Outros com ponentes
se enquadrando nas classificações correntes de linfomas. A clas­
sificação de linfomas gastrintestinais de Isaacson, a mais ade­ A lâmina própria contém uma população heterogênea de
quada e recente, é mostrada no Quadro 24.4. células plasmáticas, linfócitos B e T, macrófagos e células apre­
Os linfomas de célula B do tipo MALT são os linfomas mais sentadoras de antígenos. A população de linfócitos intraepite­
comuns e podem ser de alto ou de baixo grau. Quando os linfo- liais, pouco conhecida, consiste principalmente em células T
CD31, CD81, além de células T de diferentes imunofenótipos.
Os linfonodos mesentéricos formam a interface entre o MALT
e o sistema imune periférico.
------------------------------------- ▼ Embora lembrem linfonodos periféricos, os folículos de cé­
Q u a d ro 2 4 .4 Classificação atualizada de Isaacson de lulas B são em geral pequenos e inativos, podendo ter uma zona
linfoma não-Hodgkin primário gastrintestinal marginal proeminente. A zona paracortical é também pouco
desenvolvida.
— F E N Ô TIP O B
L in fo m a M A L T ■ Propriedades funcionais do MALT
B aixa m a lig n id a d e
Experiências em animais têm fornecido a base para o con­
A lta m a lig n id a d e c o m o u s e m c o m p o n e n t e d e b a ix a m a lig n id a d e
C e n t r o b lá s t ic o
ceito de um padrão específico de células precursoras plasmá­
Im u n o b lá s tic o ticas derivadas do MALT. Antígenos provenientes do lúmen
G r a n d e s c é lu la s a n a p lá sic a s intestinal entram diretamente nas placas de Peyer por um me­
canismo de transporte envolvendo células especializadas "M”.
— L in fo m a , D IP ID (d o e n ç a im u n o p r o lif e r a t iv a d o in t e s t in o d e lg a d o )
Após estimulação antigênica, as células B do MALT deixam a
B aixa m a lig n id a d e
A lta m a lig n id a d e c o m o u s e m c o m p o n e n t e d e b a ix a m a lig n id a d e
mucosa, via linfáticos eferentes, atravessam os linfonodos me­
L in fo m a d o m a n t o (p o lip o s e lin fo m a to s a ) sentéricos e entram na circulação via dueto torácico. Essas célu­
L in fo m a d e B u r k it t e d o t i p o B u rk itt las B voltam, então, à mucosa intestinal, onde passam a compor
as células plasmáticas da lâmina própria. Esse comportamento
— F E N Ô T IP O T
L in fo m a T a s s o c ia d o a u m a e n t e ro p a t ia (L TA E )
das células, de retornarem ao local de origem, podería explicar
O u t r o s t ip o s , s e m e n te ro p a tia a tendência que apresentam os linfomas MALT de permanece­
rem localizados por longo tempo.
— FO R M A S RARAS O MALT não existe normalmente no estômago, o contrário
MALT: tecido linfoide associado è mucosa.
ocorrendo nos intestinos, delgado e grosso, onde é encontrado
normalmente.
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 221

■ MALT, infecção pelo h. pylori e linfoma As células tumorais são, caracteristicamente, de tamanho
Até 1988, a hiperplasia linfoide encontrada na mucosa gástri­ pequeno a médio, com citoplasma abundante e núcleo com
ca foi designada como linfoma linfofolicular ou pseudolinfoma, contorno irregular, lembrando o das células do centro dos fo­
e a patogênese dessas alterações era meramente especulativa. lículos (centrócitos), pequenas células clivadas. Em decorrência
Entretanto, em 1988, Wyatt e Rathbone foram os primeiros a de tal semelhança, as células do linfoma MALT de baixo grau
descrever a propensão da mucosa gástrica para formar folículos foram denominadas por Isaacson células do tipo centrócito
linfoides em gastrites onde era detectada a bactéria Helicobacter (icentrocyte like cells). Embora a denominação célula do tipo
pylori. Eles sugeriram que essa hiperplasia linfoide fosse secun­ centrócito (centrocyte like cell), célula CCL, seja comumente
dária à persistente presença de antígenos do H. pylori. usada para descrever as células do linfoma MALT de baixo grau,
Trabalhos subsequentes vieram confirmar essa associação, suas características citológicas são variáveis e podem lembrar
sugerindo que o desenvolvimento dos folículos linfoides repre­ pequenos linfócitos ou mostrar características da, assim cha­
sentava uma resposta imune ao H. pylori. Não está claro, ainda, mada, célula B monocitoide. Pequeno a moderado número de
porque só alguns pacientes infectados manifestam hiperplasia células blásticas maiores estão em geral presentes.
linfoide. Ela aparece em mais de 54% dos pacientes infectados. Uma característica distintiva das células tumorais é a tendên­
Além da presença do H. pylori, outros fatores podem estar asso­ cia para invadir, em aglomerados, o epitélio glandular e as crip­
ciados: cepas, grau e duração da infecção, certos cofatores am ­ tas e formar lesões linfoepiteliais com degeneração eosinofílica
bientais e/ou uma particular suscetibilidade do hospedeiro. e desintegração do epitélio glandular. A presença dessas lesões
Em 1991, Wotherspoon et al. notaram que, além da forma­ é altamente sugestiva de linfoma MALT de baixo grau.
ção de folículos linfoides no tecido gástrico, alguns desses pa­ Grupos de células B intraepiteliais podem estar presentes
cientes apresentavam células B infiltrando o epitélio e formando na gastrite crônica por Helicobacter pylori, mas a destruição e
grupos sugestivos de linfoma gástrico. Eles examinaram amos­ a eosinofilia de células epiteliais não são características dessa
tras teciduais de 110 pacientes com características de linfoma de condição, e nela não se encontram outras características do
célula B e encontraram o H. pylori presente em 101 pacientes, linfoma.
ou seja, em 92% das amostras. Posteriormente, Parsonnet et al. A diferenciação da célula CCL em células plasmáticas pode
realizaram um estudo caso-controle com 33 pacientes com lin­ ocorrer no linfoma MALT, mas é frequentemente mascarada
foma não Hodgkin (LNH), mostrando, então, que o LNH está por infiltração de células plasmáticas reativas que ocorre carac­
associado à infecção prévia pelo H. pylori, como determinado teristicamente na região subepitelial.
por anticorpo IgG contra H. pylori. Vários trabalhos subse­ Mesmo os menores focos de linfoma são acompanhados
quentes mostraram a relação entre a erradicação do H. pylori de um folículo reativo, sugerindo que a formação do folículo é
e o efeito na extinção do linfoma MALT. uma precondição para o desenvolvimento do linfoma. O lin­
O mecanismo pelo qual a infecção pelo H. pylori leva ao foma por si só também parece induzir a formação de folículo.
desenvolvimento do linfoma MALT não está completamente No linfoma MALT estabelecido, numerosos folículos podem
elucidado. estar presentes.
Assim, está claro que o H. pylori encontra-se associado a A relação entre o infiltrado de células CCL e os folículos rea­
linfoma MALT; entretanto, as etapas da progressão da infecção tivos é complexa. Os folículos podem ser simplesmente invadi­
para o linfoma não estão estabelecidas. É possível que a per­ dos ou seletivamente colonizados pelo linfoma. No último caso,
sistente estimulação do tecido linfoide por citocinas oriundas o centro do folículo é substituído por células CCL, que podem
de células T anti-H. pylori podería levar ao desenvolvimento exibir transformação blástica ou diferenciação em células plas­
de mutação para uma população monoclonal, que, até certo máticas, em geral com preservação da zona do manto.
ponto, é reversível com a remoção do estímulo. No linfoma de alto grau, os linfócitos são maiores e podem
Lesões genéticas em algumas das células poderíam permitir lembrar centroblastos ou, mesmo, imunoblastos. Eles podem
uma proliferação autônoma para ocasionar o surgimento do ser vistos em linfoma MALT de baixo grau, colonizando o cen­
linfoma MALT de alto grau. tro dos folículos reativos, ou em lençóis no meio do infiltrado.
Há casos em que o componente de baixo grau é apenas resi­
dual. Nos casos em que não se detecta componente de baixo
■ Patologia grau, pode-se presumir de novo que o linfoma primário é de
■ Aspectos macroscópicos alto grau.
O linfoma gástrico, assim como o carcinoma, mais frequen­ Devido à mistura de graus, pode ser difícil decidir se o lin­
temente envolve o antro, mas pode ocorrer em qualquer parte foma é de baixo ou de alto grau. Há, em geral, concordância
do estômago. em que a presença de grupos confluentes ou lençóis de células
O linfoma de baixo grau, em geral, aparece como uma lesão transformadas fora dos folículos colonizados permite definir
infiltrativa, às vezes associada a ulcerações e erosões superfi­ um linfoma gástrico como de alto grau de malignidade.
ciais. As massas grandes e profundamente infiltrativas não são Em 2008, a Organização Mundial da Saúde reclassificou os
comuns. Os de alto grau são, em geral, tumores volumosos. linfomas, e aqueles que acometem com mais frequência o es­
tômago são denominados linfoma MALT e linfoma difuso de
■ Histopatologia grandes células B não especificado (LDGCB).
As características histológicas de linfoma MALT de baixo
grau lembram aquelas das placas de Peyer. O linfoma infiltra a ■ Diagnóstico
periferia dos folículos reativos e a área entre eles, envolvendo-os
e espalhando-se difusamente na mucosa circunvizinha. ■ Apresentação clínica
Os três principais componentes que integram a histologia O linfoma gástrico de baixo grau pode ocorrer em qualquer
do linfoma gástrico são as células tumorais, as células plasmá- idade, mas é predominante em indivíduos acima de 50 anos,
ticas e os folículos. com um pico de incidência na sétima década. A proporção
222 Capítulo24 / Tumores do Estômago

------------------------------------- ▼------------------------------------- caso do linfoma do MALT superficial de baixa malignidade, a


Q u a d ro 24.5 Sistema de estadiamento de AnnArbor, modificado por infiltração parietal limita-se à segunda camada; no caso de lin­
Musshoff, para linfomas primários MALT do trato gastrintestinal foma mais invasivo, este mostra uma infiltração hipoecogênica
ou ecogênica, com áreas hipoecogênicas estendendo-se até a
IE E n v o lv im e n t o lo c a liz a d o d e u m o u m a is sítio s g a s trin te s tin a is s e m camada muscular. Esse exame permite avaliar, além da infil­
e n v o lv im e n t o g a n g lio n a r tração da parede gástrica, o estadiamento ganglionar. Estudos
IE, L in fo m a c o n f in a d o à m u c o s a e s u b m u c o s a , c h a m a d o lin fo m a recentes têm avaliado o papel do USE nos linfomas gástricos.
inicia l
IE.. L in fo m a e s t e n d e n d o -s e a lé m d a s u b m u c o s a
Nakamura et a l, estudando 41 pacientes com linfoma MALT
gástrico, sugerem que a presença ou ausência de invasão da ca­
IIE E n v o lv im e n t o lo c a liz a d o d e u m o u m a is sítios g a s trin te s tin a is c o m
e n v o lv im e n t o lin fo n o d a l
mada submucosa profunda ao USE constitui o fator mais crítico
IIE, In filtra ç ã o r e g io n a l d e lin fo n o d o s para predizer a eficácia da erradicação do H. pylori no trata­
IIEj In filtra ç ã o d e lin fo n o d o s a lé m d a á re a re g io n a l mento do linfoma, enquanto Levy et ai, avaliando 48 pacientes
IIIE E n v o lv im e n t o lo c a liz a d o d o t r a t o g a s trin te s tin a l e / o u lin fo n o d o s e m franceses, sugerem que o principal fator preditivo negativo ao
a m b o s o s la d o s d o d ia fr a g m a tratamento anti-H. pylori é a presença de linfonodos perigás-
IVE L in fo m a d e g r a n d e v o lu m e lo c a liz a d o n o t r a t o g a s trin te s tin a l c o m o u tricos ao USE. Entretanto, permanecem ainda indefinidos os
s e m in filtra ç ã o d e lin f o n o d o s a s s o c ia d o s e e n v o lv im e n t o d ifu s o o u
critérios diagnósticos para diferenciar linfonodos inflamatórios
d is s e m in a d o d e ó r g ã o s o u te c id o s n ã o g a s trin te s tin a is
daqueles neoplásicos.

■ Tom ografia com putadorizada (TC)


A TC permite avaliar o envolvimento linfonodal abaixo e
homem:mulher é de 1,5:1. Os sintomas são em geral aqueles acima do diafragma. A precisão da tomografia abdominal para
de uma dispepsia inespecífica, e os achados à endoscopia cos­ estadiamento pré-operatório tem sido questionada em função
tumam revelar gastrite inespecífica com erosões ou ulcerações. de altos índices de falso-negativos. Os linfonodos gástricos re­
Pelo estadiamento, raramente se detecta disseminação extra- gionais são difíceis de avaliar pela TC e, por isso, podem passar
abdominal. Usando o sistema de estadiamento de Ann Arbor, despercebidos. Assim, a TC deverá ser complementada pelo
modificado por MusshofF (Quadro 24.5), observa-se que a ultrassom endoscópico, sempre que possível.
maioria se encontra no estágio IE ou IIE.
Os pacientes que se apresentam com linfoma B de alto grau ■ Histopatologia
têm idade média mais alta que os de baixo grau (64 versus O diagnóstico de linfoma gástrico se faz, na maioria das ve­
55 anos). A apresentação clínica é semelhante à do carcinoma zes, em biopsias gástricas, sendo posteriormente confirmado
gástrico, com dor, náuseas, vômitos, perda de peso e anemia. A
no estudo de peça cirúrgica de gastrectomia (subtotal ou total),
endoscopia em geral revela uma massa tumoral. Como os linfo­
se o paciente for encaminhado à cirurgia. Os fragmentos reti­
mas de baixo grau, a maioria apresenta-se em estágio favorável,
rados à endoscopia são imediatamente fixados e enviados ao
IE ou IIE. Em 10% dos linfomas gástricos, a manifestação inicial
laboratório de anatomia patológica para inclusão em parafina e
pode ser decorrente de perfuração ou hemorragia.
obtenção de cortes histológicos para estudo histopatológico de
■ Exame radiológico rotina em coloração pela HE, ou para técnicas imuno-histoquí-
micas visando a identificar precisamente os linfócitos B e T.
Embora pouco específicas, as seguintes alterações radioló-
Segundo Isaacson, o estudo imuno-histoquímico é capaz de
gicas são sugestivas de linfoma:
definir as lesões linfoepiteliais em casos duvidosos, através de
• hipertrofia difusa de mucosa com espessamento irregu­ expressão de citoqueratinas e da relação de linfócitos B com o
lar de pregas. epitélio foveolar. E ainda capaz de promover a caracterização fe-
• ulcerações múltiplas. notípica do linfoma, onde há positividade CD20, CD21 e CD35
• úlcera única com espessamento difuso da mucosa. e negatividade CD5/CD10, além de determinar a monoclona-
• lesão do tipo massa ou irregularidade da mucosa esten­ lidade da lesão pela imunoexpressão diferencial (restrição) das
dendo-se pelo piloro até o duodeno. cadeias leves de imunoglobulinas.
Atualmente, a endoscopia, pela sua maior precisão diag- Os linfomas gástricos são mais frequentemente de alta ma­
nóstica e por oferecer possibilidade de biopsiar todas as lesões lignidade (60%) e não apresentam dificuldades diagnósticas.
encontradas, vem substituindo a radiologia no diagnóstico dos A maior dificuldade é fazer o diagnóstico diferencial entre os
linfomas. linfomas de baixo grau de malignidade com os infiltrados lin-
focitários da lâmina própria de natureza apenas inflamatória.
■ Endoscopia digestiva Entretanto, a existência de lesões linfoepiteliais (linfócitos le­
Três tipos de anormalidades endoscópicas podem ser en­ sando glândulas), a presença de células do tipo centrócito e a
contrados no LNH gástrico: a forma ulcerada, presente em 3 monoclonalidade de células B são características que distin­
a 50%; a forma de pregas volumosas, polipoides e exofíticas, guem o linfoma MALT do MALT adquirido. O diagnóstico
em 25 a 40%; e a forma infiltrante, em 6 a 25% dos pacientes. histológico de linfoma MALT pode ser auxiliado pelo uso da
No caso particular dos LNH gástricos de baixa malignidade, gradação histológica de Wotherspoon (Quadro 24.6).
em 50% dos casos o aspecto lembra uma úlcera maligna; em A grande maioria dos linfomas gástricos são linfomas B do
outros 50%, os sinais são mais discretos, como simples eritema MALT, seja de pequenas células do tipo centrócito, de baixa
ou pregas um pouco espessadas. malignidade, seja de grandes células centroblásticas (mais fre­
quentes) ou imunoblásticas, ambas de alta malignidade, com
■ Ultrassom endoscópico (USE) ou sem contingente de pequenas células.
O USE completa o exame endoscópico e pode m ostrar a É excepcional encontrar no estômago outros tipos de lin­
profundidade da infiltração linfomatosa na parede gástrica. No fomas.
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 223

----------------------- ▼----------------------- dade localizado. Outros exames: TC de tórax, abdome e pelve,


Q u a d ro 24 .6 Gradação histológica de Wotherspoon para biopsia de medula óssea, hemograma, dosagens de LDH, ele-
o diagnóstico de linfoma MALT troforese de proteínas, beta-2-microglobulina, sorologia para
HIV e provas de função hepática e renal.
Descrição Características histológicas O linfoma gástrico poderá ser classificado em quatro está­
gios, segundo a classificação de Atm Arbor modificada por Mus-
N o rm a l C é lu la s p la s m á tic a s n a lâ m in a p ró p r ia . N à o shoff (Quadro 24.5). Assim, os linfomas localizados (estágios
h á fo líc u lo lin fo id e .
IE e IIE,) têm um melhor prognóstico do que os dos estágios
G a s trite c rô n ic a a tiv a P e q u e n o s g r u p o s d e lin fó c ito s na lâ m in a IIE2>IIIE e IVE.
p ró p r ia . N â o h á fo líc u lo lin fo id e . N à o há
ie sâ o lin fo e p ite lia l.
Uma vez feita toda essa avaliação, é possível ter o diagnós­
tico do linfoma gástrico, se de baixa ou de alta malignidade,
G a s trite c rô n ic a c o m P r o e m in e n te s fo líc u lo s c ir c u n d a d o s p e la
f o r m a ç ã o d e fo líc u lo z o n a d o m a n t o e c é lu la s p la s m á tic a s .
se localizado ou não, informações essas que irão determinar a
lin fo id e flo rid o A u s ê n c ia d e le sõ e s lin fo e p ite lia is. escolha da modalidade terapêutica.
In filtra d o lin fo id e s u s p e ito F o líc u lo s lin fo id e s c ir c u n d a d o s p o r
n a lâ m in a , p r o v a v e lm e n t e
re a tiv o
p e q u e n o s lin fó c ito s q u e in filtra m
d if u s a m e n t e a lâ m in a p ró p r ia e,
■ Tratamento
o c a s io n a lm e n t e , o e p ité lio .
Os recursos terapêuticos atualmente disponíveis para os lin­
In filtra d o lin fo id e s u s p e ito F o líc u lo s lin fo id e s c ir c u n d a d o s p o r lin fó c ito s fomas gástricos são: 1) Tratamento visando à erradicação do
n a lâ m in a , p r o v a v e lm e n t e (t ip o c e n tró c ito s ) q u e se in filtra m
H. pylori; 2) Tratamento locorregional: cirurgia e radioterapia;
lin fo m a d if u s a m e n t e n a lâ m in a p ró p r ia e d e n t r o
d o e p it é lio e m p e q u e n o s g r u p o s .
3) Tratamento geral: quimioterapia e imunoterapia, cujo tipo
L in fo m a d e c é lu la B d e P re se n ça d e in filtra d o d ifu s o e d e n s o d e
é função do grau de malignidade histológica e cujas indicações
b a ix o g r a u lin fó c ito s (t ip o c e n tró c ito s ) n a lâ m in a são amplamente baseadas em resultados obtidos no tratamento
p ró p r ia c o m le sõ es lin fo e p ite lia is dos LNH ganglionares.
p ro e m in e n t e s .

Adaptado dc Lancet, 1993; 342:575-7.


■ Tratam ento visando à erradicação do h. pylori
Publicações recentes têm mostrado regressão do linfoma
gástrico após a erradicação do H. pylori. Zullo et al., em revi­
são sistemática recente envolvendo 32 estudos (1.436 pacientes,
96% deles com linfoma MALT em estágio IE) de erradicação
É necessário pesquisar a presença de H. pylori nas biopsias de H. pylori demonstraram desaparecimento do linfoma em
do antro tanto ao nível da lesão, como também a distância 75% dos pacientes erradicados.
dela.
No tratamento da infecção por H. pylorit é sugerido que se
prolongue a duração desse tratamento para 10 a 14 dias com
■ Estadiamento clínico objetivo de maximizar a resposta terapêutica. Os esquemas te­
rapêuticos recomendados são os mesmos para as outras indi­
Ao contrário de outros tumores digestivos, os linfomas gás­ cações de erradicação da bactéria.
tricos só tardiamente invadem os órgãos vizinhos. No entanto, Como regra, depois de confirmada a erradicação, os pacien­
a extensão linfática é mais frequente e mais precoce; o linfoma tes devem ser acompanhados para reavaliações a cada 3 meses
gradualmente atinge as cadeias ganglionares de drenagem da até 9 a 12 meses. Para o acompanhamento do comportamen­
região. Os linfomas gástricos são bem localizados em 70% dos to histológico do tumor após a erradicação, tem sido sugerida
casos, quando diagnosticados, e permanecem por longo tempo a adoção da classificação histológica do Groupe d ’É tude des
dessa forma, ao contrário da maioria dos LNH ganglionares, Lymphomes de VAdulte (GELA) (Quadro 24.7). Se não houver
que são disseminados com invasão medular (70 a 80% dos ca­ regressão histológica do linfoma neste período, indica-se ou­
sos). De fato, as células imunológicas do tubo digestivo formam tro tratamento complementar (quimioterapia, radioterapia ou,
um compartimento distinto com uma recirculação específica: eventualmente, cirurgia).
elas pertencem ao sistema linfoide comum das mucosas. Isso A não resposta à erradicação do H. pylori nos pacientes com
pode explicar a frequência das localizações múltiplas, quer em tumores de baixo grau habitualmente se deve à presença de
um mesmo segmento, quer em segmentos diferentes (10 a 20%), um componente de alto grau não identificado no estudo his­
como também em outros órgãos contendo MALT (pulmão, tológico, ou à existência de determinadas alterações citogené-
região otorrinolaríngea). Todavia, foi demonstrado recente­ ticas. Entre elas, as translocações cromossômicas, especialmen­
mente, por estudo do clone de proliferação, que os linfomas te t(ll;18)(q21;q21), condicionariam uma independência das
gástricos do MALT, em um dado momento de sua evolução, células do linfoma ao estímulo antigênico, com a consequente
tinham capacidade de se disseminar a distância, particular­ não regressão do linfoma após erradicação do H. pylori. A de­
mente para a medula óssea. terminação da presença destas alterações pode ser realizada
O estadiamento de todo linfoma gástrico deverá comportar em laboratórios de biologia molecular, mesmo em material
uma exploração sistemática do tubo digestivo. Deverão ser fei­ parafinado, e tem implicações clínicas de grande significado.
tas endoscopias do esôfago, estômago, duodeno, com biopsias Assim, um paciente com linfoma MALT de baixo grau, depois
múltiplas do estômago. A presença de infecção por H. pylori de comprovado portar a translocação t( 11;18)(q21;q21), além
deverá ser efetuada por diferentes métodos, se necessário. O de efetuar a erradicação do H. pylori, poderia ser, de imediato,
ultrassom endoscópico constitui bom método para precisar o encaminhado para outra modalidade terapêutica, considerada
grau de infiltração da parede gástrica, pois permite suspeitar eficaz e adequada (cirurgia, quimioterapia e/ou radioterapia),
de acometimento ganglionar. Esse exame é notadamente de não tendo de aguardar, como agora, a resposta histológica do
valor no estadiamento pré-terapêutico e no acompanhamento tumor à erradicação da bactéria, resposta essa que pode levar
pós-terapêutico de pacientes com linfoma de baixa maligni- alguns meses para definição.
224 Capítulo 24 / Tumores do Estômago

----------------------------------------------T----------------------------------------------
Quadro 24.7 Classificação histológica do Groupedítude des Lymphomesdel'Adulte (GELA) para gradação de linfomas da
mucosa gástrica pós-tratamento do H. pylori, com base na presença do infiltrado linfocitário na mucosa e/ou submucosa,
presença de lesão linfoepitelial e alterações do estroma

Grau In filtrad o lin focitário Lesão lin fo e p ite lial Alterações de estrom a

R e m is s ã o h is to ló g ic a c o m p le t a A u s ê n c la / e s c a s s o n ú m e r o d e p la s m ó c ito s / lin fó c ito s A u s e n te N o r m a l e / o u fib ro s e


n a lâ m in a p ró p r ia

P ro v á v e l d o e n ç a re s id u a l m ín im a A g r e g a d o s d e lin fó c ito s o u fo líc u lo s lin fo id e s na A u s e n te N o r m a l e / o u fib ro s e


m ucosa/subm ucosa

D o e n ç a re s id u a l In filtra d o d e n s o , d ifu s o o u n o d u la r e s t e n d e n d o -s e L e s ã o foca l o u a u s e n te F o c o s n o r m a is e / o u fib ro se


e m t o r n o d a s g lâ n d u la s n a lâ m in a p ró p r ia

T u m o r s e m a lte ra ç õ e s In filtra d o d e n s o , d ifu s o o u n o d u la r P re se n te , " p o d e n d o e sta r S e m m o d ific a ç õ e s


a u s e n te " p ó s -t r a t a m e n t o

Adaptado de Cut. 2003; 52:1656.

É ainda pequena a experiência sobre a evolução, a longo completa, com apenas 14 recidivas posteriores (geralmente,
prazo, dos linfomas MALT gástricos associados à infecção por em órgão contralateral ou locais MALT distantes). Nenhuma
H. pylori. Morgner et a l, na Alemanha, descreveram três ca­ recidiva foi observada nos casos de linfoma primário de es­
sos, entre 120 pacientes acompanhados por longo tempo, que tômago. Em outro estudo, 17 pacientes com linfoma gástrico
desenvolveram adenocarcinoma gástrico precoce, 4 a 5 anos estágio clínico IE ou IIE, sem infecção por H. pylori ou com
após a erradicação de H. pylori e completa remissão do tumor persistência do tum or após a erradicação da bactéria, foram
inicial. Tais achados reforçam a necessidade de seguimento tratados locorregionalmente apenas com 30 Gy durante 4 se­
clínico e endoscópico destes pacientes mesmo após um trata­ manas. No seguimento (mediana de 27 meses), todos perma­
mento bem-sucedido. neciam vivos e livres de doença. Apesar do pequeno número
Embora considerados como tumores independentes da infec­ de estudos, tem sido sugerido que a radioterapia locorregional
ção por H. pyloriy há relatos de regressão de linfomas de alto grau, com doses baixas representa alternativa a ser empregada em
especialmente em estágio IE após terapêutica anti-H. pylori. Por pacientes com linfoma MALT localizado que não respondem a
isso, a erradicação de H. pylori tem sido preconizada como parte antibióticos e/ou em idosos e/ou com contraindicação a outras
da estratégia terapêutica dos linfomas de alto grau. modalidades terapêuticas.
Para os linfomas de alta malignidade, a necessidade de doses
■ Cirurgia e radioterapia mais altas e o risco de sequelas digestivas têm limitado o seu
Historicamente, a cirurgia tem sido o tratamento de escolha emprego, ficando restrito apenas para tratamento de resgate de
para os linfomas gástricos. Mais recentemente, observa-se uma massas abdominais residuais após quimioterapia.
tendência crescente pelo tratamento conservador. Constituem,
ainda, boa opção terapêutica nas seguintes situações: ■ Quimioterapia (QT)
• dúvida diagnóstica, em que o exame detalhado da peça A QT é hoje um recurso terapêutico essencial para LNH
cirúrgica permite estadiamento preciso, orientando a te­ de alta malignidade. Estudos prospectivos randomizados têm
rapêutica oncológica ideal a ser empregada; demonstrado, em seguimento de até 10 anos, que a quimio­
• tumores complicados com obstrução, sangramento ou terapia isoladamente é tão efetiva como a cirurgia seguida de
perfuração; quimioterapia. O esquema terapêutico mais utilizado é o CHOP
• falha terapêutica, com a gastrectomia agindo como te­ (ciclofosfamida, oncovin, adriamicina, prednisona) associado
rapêutica de resgate ou para o controle locorregional da ou não a imunoterapia empregando o anticorpo monoclonal
doença; anti-CD-20, rituximabe. O tratamento dos linfomas avança­
• linfomas gástricos distais, de baixo grau, IE,, IIE,, com dos de alto grau deve ser realizado conforme recomendado
baixo risco operatório e que preferem o procedimento ci­ por consensos nacionais ou internacionais, como aquele da
rúrgico à quimioterapia, em associação à radioterapia. National Comprehensive Câncer Network (www.nccn.org), e
A radioterapia tem sido proposta em duas situações: como foge ao escopo deste capítulo.
terapia principal para linfoma localizado e como terapia adju- Para os linfomas de baixa malignidade, são escassos os tra­
vante após ressecção cirúrgica completa ou paliativa. balhos mostrando a validade ou não da QT. A utilização de mo-
A radioterapia pode curar certos LNH ganglionares locali­ noquimioterapia com alquilantes orais, como o clorambucila,
zados, mas sua eficácia não foi avaliada de forma prospectiva pode ser considerada para os pacientes que não respondem ao
nos linfomas digestivos. As doses de radioterapia preconizadas tratamento do H. pylori ou para os que apresentem recidiva,
(30 a 35 Gy) nos LNH de baixa malignidade localizados são como alternativa à radioterapia.
feitas em administrações fracionadas para diminuir os riscos
dos efeitos secundários sobre a medula óssea e o trato digesti­
vo. Em um estudo recente, 85 pacientes com linfoma MALT ■ LEI0MI0SSARC0MAS
de diferentes locais, incluindo 17 linfomas MALT gástricos,
foram tratados com radioterapia exclusiva na dose de 30 Gy. Os leiomiossarcomas representam 1 a 3% de todos os tu­
Oitenta e quatro dos 85 pacientes alcançaram resposta clínica mores malignos do estômago. Surgem em qualquer região do
Capítulo 24 / Tumores do Estômago 225

estômago, são bem delimitados, localizados na submucosa, dos tumores gástricos primários, por ter seu tratamento com­
possuem consistência elástica e seu tamanho pode ser difícil pletamente diferente, e raramente o tratamento cirúrgico será
de estimar, uma vez que, tanto endoscópica como radiologi- necessário para controlar um sangramento maciço ou perfura­
camente, a maior porção do tumor pode estender-se da parede ção nas metástases gástricas de outras neoplasias.
do estômago para a cavidade peritoneal. Histologicamente, al­
gumas vezes, é difícil a diferenciação entre leiomiossarcoma e
leiomioma benigno, mas lesões com grande número de mitoses, ■ LEITURA RECOMENDADA
grau de pleomorfismo aumentado e com tamanho superior a
6 cm são quase sempre malignas. Armitagc, JO. Mauch, PM, Harris, NL, Bicman, P. Non-Hodgkins lymphomas.
Em: DeVita, VT, Hellman, S, Roscnbcrg, SA (cds.). Canccr. Principies and
Os leiomiossarcomas são mais comuns nos homens do que
Practicc of Oncology. 6 ed., Philadclphia: Lippincott Williams and Wilkins,
nas mulheres, na proporção de 2:1, e são encontrados em to­ 2001:256-98.
das as idades, especialmente a partir da sexta década de vida. Bcrthc, MP, Alcman, BM, Haas, RL, van der Maazen, RW. Role of radiothcrapy
A manifestação clínica mais comum é a hemorragia gastrintes- in thc treatment of lymphomas of lhe gastrointestinal tract. Best Pract &
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Boland, CR 8t Schciman, MJ. Tumors of thc stomach. Em: Yamada, T et a i
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Tcxtbook of Gastroentcrology, 2nd ed., Philadclphia, JB Lippincott Com-
febre, devido à abscedação de áreas de necrose do tumor, po­ pany, vol. 1,1995.
dem ocorrer. Ocasionalmente, os leiomiossarcomas perfuram, Coelho, LCÍ & Zatcrka, S. II Consenso Brasileiro sobre Helicobacter pylori. Arq.
provocando hemoperitônio. Radiologicamente, ao estudo bari- Castroenterol, 2005; 42:128-32.
tado, os leiomiossarcomas aparecem como falhas do enchimen­ Ekstrom, AM, Hcld, M, Hansson, LE et al. Helicobacter pylori in gastric canccr
cstablishcd by CagA immunoblot as a marker of past infcction. Gastroen-
to semelhantes às outras neoplasias. A endoscopia com estudo terology, 2001; 121:784-91.
histológico e/ou citológico esclarece a natureza submucosa da El-Omar, EM, Carrington, M, Chow, WH et a i Interlcukin-1 polymorphisms as-
lesão. O tratamento de escolha para os leiomiossarcomas é, sociatcd with incrcascd risk of gastric canccr. Nature, 2000; 404:398-402.
sem dúvida, o cirúrgico e consiste na ressecção completa do Fischbach, W. Long-tcrm follow-up of gastric lymphoma after stomach conscrv-
tum or e das estruturas acometidas. Tanto a radioterapia como ing treatment. Best Pract & Res Clin Gastroenterol, 2010; 24:71-7.
Fock, KM, Tallcy, N, Moayycdi, P et a i Asia-Pacific conscnsus guidelines on
a quimioterapia têm pouco valor e normalmente são inefica­ gastric canccr prevention. / Gastroenterol Hepatol, 2008; 23:351-65.
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é importante fator prognóstico, pois os pacientes com tumo­ Gastroenterology, 2006; 20:633-49.
Gonzalez, CA, Pcra, G, Agudo, A et a i Fruit and vegetablc intake and thc risk
res de diâmetro menor que 8 cm têm uma sobrevida média de
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83 meses, ao passo que, naqueles com tumores de diâmetro Invcstigation into Canccr and Nutrition (EPIC-EURGAST). Int J Câncer,
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Os sarcomas gástricos não perfazem mais do que 1 a 2% do Hsing, AW, Hansson, LE, McLaughlin, JK et a i Pcrnicious anemia and subsc-
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principalmente, pelos linfomas malignos (60%) e leiomiossar­ LARC Working Group. IARC working group on thc evaluation of carcinogenic
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comas (20%), já descritos neste capítulo. Outros sarcomas in­ IARC Monogr Eval Carcinog Risks Hum, 1994; 60:1 -560.
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dentre outros. Apesar de o sarcoma de Kaposi ser um tumor Isaacson, PG. Primary gastric lymphoma. BrJBiom Sei, 1995; 52:291-6.
relativamente raro e frequentemente encontrado na pele, sua Isaacson, PG. Rcccnt dcvclopmcnts in our understanding of gastric lymphoma.
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ocorrência em outros sistemas e aparelhos tem aumentado nos Lcvy, M, Copie-Bcrgman, C, Traullc, C et a i Conscrvativc treatment of pri­
pacientes portadores da infecção pelo vírus HIV, imunodepri- mary gastric low-gradc B-ccll lymphoma of mucosa-associatcd lymphoid
midos ou transplantados, e, no tubo digestivo, o estômago é tissuc: predictivc factors of response and outeome. Am J Gastroenterol, 2002;
o órgão mais acometido. Endoscopicamente, apresentam-se 97:292-7.
como lesões múltiplas, avermelhadas, maculopapulares, com Liu, H, Yc, H, Dogan, A et a i T (ll;18) (q21;q21) is associatcd with advanced
mucosa-associatcd lymphoid tissuc lymphoma that express nuclear BCL10.
bordas penetrantes, polipoides ou ulceradas. Em geral, a biop- Blood, 2001;98:1182-7.
sia endoscópica da lesão confirma o diagnóstico de sarcoma Markus Radercr, M 8c de BocrJP. Role of chcmotherapy in gastric MALT lym­
de Kaposi. A quimioterapia é efetiva no tratamento das lesões phoma, diffusc large B-ccll lymphoma and othcr lymphomas. Best Pract &
gástricas, com frequente desaparecimento das lesões. Res Clin, Gastroenterol, 2010; 24:19-26.
Morgncr, A, Michlkc, S, Stoltc, M et a i Dcvclopmcnt of carly gastric canccr
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nomas, carcinoma de ovário, carcinoma de células escamosas ultrasonography for regression of gastric low grade and higer grade MALT
do esôfago e neoplasias do trato respiratório superior. As le­ lymphomas after cradication o f Helicobacter pylori. Gut, 2001; 48:454-
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226 Capítulo 24 / Tumores do Estômago

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Doenças Eosinofílicas
do Aparelho Digestivo
Mauro Bafutto e Joffre Rezende Filho

o fator estimulante de colônias de granulócitos e macrófagos


■ INTRODUÇÃO (GM-CSF) estimulam a sobrevivência de várias linhagens he-
As doenças eosinofílicas do aparelho digestivo se constituem matopoéticas, incluindo os eosinófilos.
em um grupo heterogêneo de doenças caracterizadas por sinto­ AIL-5 parece ser o fator que possui propriedades específicas
de regulação dos eosinófilos mais potentes, tais como: promo­
mas gastrintestinais e por aumento da quantidade de eosinófilos
na mucosa e parede intestinal. ção da proliferação e maturação de eosinófilos na medula óssea
e a liberação dessas células na circulação; manutenção da sobre­
Os eosinófilos são potentes células inatas do sistema imune,
vivência de eosinófilos, evitando a sua apoptose; estimulação da
capazes de exercer diversas funções efetoras. Habitam o trato
degranulação e resposta aos sinais quimiotáticos responsáveis
gastrintestinal, onde participam da resposta imunológica a pató-
pelo recrutamento dos eosinófilos para os tecidos.
genos luminais, sobretudo na resposta imune a helmintos, e con­
Estudos em ratos demonstraram que na falta de IL-5 foi ob­
tribuem na manutenção da homeostasia epitelial intestinal.
servada menor quantidade de eosinófilos na mucosa gastrintes­
Recentemente, essas células foram reconhecidas como as res­ tinal e que, por outro lado, a superexpressão da IL-5 resultou
ponsáveis por fúnções-chave na patogênese de inúmeras outras
em aumento da quantidade de eosinófilos.
doenças do trato gastrintestinal, incluindo a doença eosinofí-
O recrutamento de eosinófilos para a mucosa gastrintesti­
lica gastrintestinal primária, distúrbios funcionais, tais como nal também é extremamente dependente da produção local de
a dispepsia funcional, e, também, em afecções gastrintestinais fatores quimiotáticos, especialmente quimocinas. O eotaxin-1
em pacientes com doença alérgica. (CCL11) é o fator quimiotático mais importante e seletivo dos
Neste capítulo, serão apresentadas as principais funções dos eosinófilos, sendo responsável pelo recrutamento fisiológico de
eosinófilos e sua participação nas doenças eosinofílicas primá­ eosinófilos para o trato gastrintestinal em indivíduos saudáveis.
rias e secundárias do aparelho digestivo. Esta quimocina é expressa normalmente como constituinte da
lâmina própria intestinal. Na ausência de eotaxin-1, ou de seu
■ Distribuição normal dos eosinófilos receptor em eosinófilos - CCR3, estas células param de migrar
para o trato gastrintestinal.
Os eosinófilos são gerados a partir de células-tronco pluri- Os eosinófilos também expressam a integrina a 4p7 em sua
potentes da medula óssea, de onde migram para a mucosa atra­ superfície celular, que é responsável por dirigir seletivamen­
vés do sangue periférico. O local principal para a migração de te estes leucócitos para a mucosa do trato gastrintestinal, em
eosinófilos é o trato gastrintestinal, onde são encontrados em vez de outros tecidos. A integrina a 4p7 se liga ao seu ligante
indivíduos saudáveis, como constituintes normais da lâmina específico, MadCAMl (molécula de adesão celular da muco­
própria no estômago, intestino delgado e cólon. Em indivíduos sa vascular adressina 1), que é preferencialmente expresso no
saudáveis, geralmente os eosinófilos estão ausentes do epitélio endotélio vascular de vênulas da lâmina própria intestinal. Por
escamoso do esôfago. conseguinte, leucócitos circulantes que expressam a integrina
A migração dos eosinófilos para o trato gastrintestinal (TGI) a 4p7 são seletivamente recrutados e destinados à mucosa in­
parece não depender da presença de bactérias comensais, uma testinal. No cólon, o recrutamento de eosinófilos parece ser
vez que tanto o recrutamento como a distribuição de eosinófilos mais dependente da expressão da molécula de adesão 1CAM-1
está normal no trato gastrintestinal de mamíferos no período (molécula de adesão intercelular 1), do que de a 4p7.
pré-natal, antes da colonização microbiana do cólon.
■ Funções fisiológicas dos eosinófilos
■ Recrutamento para o aparelho digestivo Os eosinófilos contribuem de forma importante para o sis­
O recrutamento e a sobrevida dos eosinófilos no TGI são tema imunológico e para a manutenção homeostática da bar­
regulados por citocinas e quimocinas. A interleucina (IL) 3 e reira intestinal contra bactérias luminais. Após a exposição aos

227
228 Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo

componentes da parede celular de bactérias gram-negativas, os Os eosinófilos contêm numerosos mediadores inflamatórios
eosinófilos são ativados e promovem a liberação de mediado­ e proteínas tóxicas. Eles também secretam citocinas, quimocinas
res tóxicos, incluindo o DNA mitocondrial, que é um potente e produtos neuroquímicos. Proteínas granulares derivadas dos
bactericida. Além disso, ao contrário dos eosinófilos no sangue, eosinófilos, principalmente a proteína básica principal (MBP), e
eosinófilos gastrintestinais são altamente suscetíveis à ativação, outros mediadores solúveis, como o fator de célula tronco, indu­
mesmo em mucosa não inflamada, tornando-se prontos para zem a ativação dos mastócitos humanos, o que leva à liberação de
uma resposta imediata às bactérias da luz, em caso de perda da triptase, histamina e prostaglandinas D2. Os eosinófilos também
integridade epitelial. secretam um fator neurotroíflico, o que, além dos seus efeitos
As funções fisiológicas dos eosinófilos também dependem neuronais, também aumenta a sobrevida dos mastócitos.
da sua capacidade de interação coordenada com outras cé­ Os eosinófilos se ligam a células neurais em uma forma espe­
lulas do sistema imunológico. Os eosinófilos interagem com cífica de adesão, molécula-dependente, que resulta em mudan­
células T de forma bidirecional. Nos locais de inflamação alér­ ças na atividade neurotransmissora e na transcrição de genes
gica da mucosa, linfócitos T CD4+ e T auxiliares (T helper) envolvidos no metabolismo do neurotransmissor.
secretam citocinas ativadoras dos eosinófilos, incluindo IL-5, Estudos em humanos e em animais de laboratório têm iden­
que promovem a sobrevivência local e degranulação dos eo­ tificado vários outros mediadores derivados do eixo de eosinó­
sinófilos. filos-mastócitos, com a capacidade de regular a função neuro-
Os eosinófilos são capazes de apresentar antígenos às célu­ nal, incluindo o peptídio intestinal vasoativo, a substância P, a
las T, expressando o complexo de histocompatibilidade classe serotonina, a histamina e os leucotrienos.
II e moléculas coestimulatórias, e de estimular ou modular a Os eosinófilos também podem estar envolvidos na reparação
função das células T. Essas células também interagem direta e do epitélio intestinal. Após danos ou necrose das células epite-
indiretamente com o sistema nervoso entérico, através da sua liais, nota-se potente quimiotaxia de eosinófilos e a secreção
relação com os mastócitos, constituindo-se no denominado de citocinas de reparação tecidual, como fator de crescimento
eixo eosinófilos-mastócitos. transformador p (TGF-p) e fator de crescimento fibroblástico.

Ativação: estresse, alérgenos e patógenos


Luz intestinal
puipjuui iuuui luuuum ÍUUUUUl
O CH oO ° O i O O Epitélio intestinal

Lâmina própria

Permeabilidade Eotaxin-1
O epitelial

Degranulação
MBP SC F. NGF Síntese de proteínas
catiônlcas. quimiocinas
fatores de crescimento
mediadores lipidicos

Serotonina
Histamina O

Estimulação neural
Sintomas e contração da
musculatura lisa

Figura 25.1 O eixo de eosinófilos-mastócitos. Eosinófilos são ativados por eotaxin-1, que está expresso na lâmina própria. Também são ativa­
dos por alergénios e/ou patógenos do lúmen intestinal ao atravessar a barreira epitelial. Eosinófilos podem atuar como APC para os linfócitos
Th2. Citocinas derivadas linfócitos Th2, incluindo IL-4 e IL-13, estimulam a produção de anticorpos pró-alérgicos da classe igE. Eosinófilos tam­
bém são ativados por citocinas (incluindo IL-5, secretada pelas célulasTh2), e degranulação subsequente leva ao aumento da permeabilidade
epitelial e ativação de mastócitos através da secreção pelos eosinófilos de MBP. SCF e NGF. Mastócitos também são ativados pela secreção de
IL-4 e IL-13 a partir de células Th2, e por igE e igG4 secretada pelas células 8. Mastócitos ativados secretam histamina e serotonina (também
um quimiotático para eosinófilos), que, juntamente com fatores de desgranulação de eosinófilos, levam à estimulação neural e contração do
músculo liso, o que leva a sintomas gastrintestinais como dor abdominal e flatulência. Abreviaturas: APC, células apresentadoras de antígenos;
IL-5, IL-13, MBP, a proteína básica principal; NGF, fator de crescimento neural; SCF, fator de célula-tronco; Th2, células T h e lp e r. Adaptado de Po-
well, N, Walker, MM, Talley, NJ. N a t. Ver. G a s tro e n te ro l. H e p a to i, 2010.
Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo 229

Um estudo realizado pelo grupo de pediatria de um hospital


■ DOENÇAS EOSINOFÍLICAS da Filadélfia encontrou EE em cerca de 10% das crianças com
DO APARELHO DIGESTIVO DRGE não respondedoras ao tratamento com IBP. O grupo de
gastropediatria do Hospital Boston Childrens demonstrou que
As doenças eosinofílicas do aparelho digestivo podem dida­ 6% das crianças com esofagite apresentavam EE.
ticamente ser classificadas em: 1) Doença Eosinofílica Gastrin- Estudo observacional realizado na Suíça durante 16 anos
testinal Primária (DEGP) e 2) Doença Eosinofílica Gastrintes- documentou uma prevalência de 1/4.000 em indivíduos adul­
tinal Secundária (DEGS). tos, enquanto na Austrália foi observada uma prevalência de
1/70.000. Outro estudo epidemiológico realizado na Suécia en­
■ Doença eosinofílica gastrintestinal primária volveu mais de 1.000 pessoas da população em geral, que pre­
encheram um questionário sobre os sintomas gastrintestinais
As doenças eosinofílicas gastrintestinais primárias (DEGP) e, posteriormente, foram submetidas à endoscopia digestiva
são afecções em que a presença de sintomas gastrintestinais alta com biopsia da mucosa. Demonstrou-se que 4,8% dos in­
ocorre associada a aumento do número de eosinófilos na mu- divíduos apresentavam eosinófilos no esôfago, e, em 1,1% de­
cosa, na ausência de outras causas reconhecidas de eosinofilia les, encontraram-se > 15 eosinófilos por campo. Embora este
tecidual, tais como drogas alérgicas, câncer e infestações para­ estudo defina uma prevalência significativa de eosinofilia eso­
sitárias. As DEGP incluem esofagite eosinofílica, gastrite eosi­ fágica, é provável que estes dados superestimem a prevalência
nofílica, enterite eosinofílica e colite eosinofílica. A maioria dos de EE, na medida em que correlacionam somente dados his­
pacientes (80%) são atópicos, e mais de 15% dos pacientes têm tológicos com sintomas.
um parente de primeiro grau com uma das formas da doença. Por outro lado, a conscientização e a experiência com o diag­
nóstico clínico em adultos e em centros pediátricos, juntamente
■ Esofagite eosinofílica com um provável aumento real na incidência da doença, são
■ Introdução razões bastante plausíveis para explicar o recente crescimento
A esofagite eosinofílica (EE) é a mais comum e mais estu­ do número de diagnósticos de EE na prática diária.
dada das DEGP primárias. Foi descrita pela primeira vez há
cerca 30 anos em um paciente com disfagia e marcada infiltra­ ■ F is io p a to lo g ia
ção esofágica por eosinófilos. Até recentemente, a eosinofilia A estreita correlação com atopia, em combinação com o au­
esofágica foi atribuída, especialmente, à esofagite de refluxo mento de imunoglobulina E (IgE) específica positiva no soro
ácido, mas, nos últimos 5 anos, a EE (também conhecida como ou em testes cutâneos alergenioalimentares, sugere que há um
esofagite alérgica primária ou esofagite eosinofílica idiopática) processo inflamatório alérgico patológico na EE. A inflamação
tem sido considerada uma importante e prevalente entidade alérgica é caracterizada pela ativação de um subgrupo de célu­
clínico-patológica independente, ocorrendo tanto em crianças las T auxiliares (Th), denominadas células Th2, que definem os
como em adultos. perfis específicos de citocinas pró-alérgicas, incluindo IL-4, IL-5
Os principais sintomas são disfagia e impactação alimentar, e IL-13, que promovem a formação de anticorpos IgE e recru­
e, em crianças, dor epigástrica e vômitos são também comuns. tamento, maturação e ativação de mastócitos e eosinófilos.
Alguns pacientes podem desenvolver estenose esofágica. O nú­ Além de uma abundância de eosinófilos no esôfago, a EE
mero de eosinófilos no esôfago necessários para o diagnóstico também é caracterizada pela infiltração de células T e uma
da EE é discutível e esta definição tem sido dificultada por di­ maior expressão de citocinas Th2, incluindo IL-5. A im por­
versos estudos utilizando diferentes critérios histológicos. No tância potencial de IL-5 tem sido destacada em estudos prelimi­
entanto, uma recente reunião de consenso recomendou que nares em que o antagonismo específico do IL-5 com o anticorpo
>15 eosinófilos por campo de alta definição (CAD), na ausên­ monoclonal mepolizumabe resultou em redução expressiva no
cia de doença do refluxo gastresofágico (DRGE), são suficientes número de eosinófilos no sangue periférico e no esôfago. Per­
para o diagnóstico. fis de expressão gênica a partir de biopsias do esôfago também
têm demonstrado que a eotaxin-3 (CCL26) está presente em
■ Definição maior quantidade em pacientes com EE, em comparação com
A EE é uma doença na qual os sintomas digestivos altos es­ pacientes de controle. Além disso, em um modelo animal de
tão associados a infiltração eosinofílica do epitélio escamoso EE, a ausência do receptor eotaxin-3 (CCR3) nos eosinófilos
ou dos tecidos mais profundos do esôfago, e nem os sintomas impede o acúmulo dessas células no esôfago e protege ratos de
nem a eosinofilia respondem à administração de um inibidor desenvolver a doença.
de bomba de prótons (IBP). Os principais alergênios alimentares relacionados são leite,
soja e ovo. Existem evidências de que alergênios ambientais
■ Epidemiologia também podem estar envolvidos.
A EE é uma doença que tem distribuição mundial, com pre­ A patogênese dos anéis da mucosa associados à esofagite
valência ainda não conhecida, mas que parece ser crescente. É eosinofílica é desconhecida. Especula-se que a liberação de his-
mais comum no sexo masculino, contudo pode acometer pa­ tamina, fator quimiotático eosinofílico, ou a liberação do fator
cientes de todas as faixas etárias. de ativação plaquetária pelos mastócitos na parede do esôfago,
Em um estudo populacional realizado entre 2000 e 2003, foi em resposta aos alergênios, podem contribuir para formação
demonstrado que a incidência anual (diagnosticada por pedia­ destas estruturas anelares. Tem sido demonstrado que essas
tras) da EE foi aproximadamente de 1/10.000, com uma pre­ substâncias promovem liberação e ativação da acetilcolina que,
valência de 4.296 casos por 10.000 crianças no final de 2003. por sua vez, pode provocar a contração das fibras musculares
Observou-se também um padrão familiar típico, levantando na muscularis mucosa, resultando na formação dos anéis.
a possibilidade de uma predisposição genética ou exposição a ► ANATOM IA PATOLÓGICA. A mucosa esofágica normal é
um fator ambiental comum desconhecido. composta por um epitélio escamoso estratificado que contém
230 Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo

linfócitos, células dendríticas e mastócitos, e habitualmente os e disfagia. Nos adultos, o diagnóstico ocorre habitualmente
eosinófilos não estão presentes. entre a 3a e a 4a décadas de vida, sendo a disfagia o sintoma
Inflamação eosinofílica do esôfago pode ser encontrada em mais característico, geralmente intermitente, e frequentemente
uma série de doenças, incluindo a DRGE, gastrenterite eosino­ acompanhada por impactação alimentar.
fílica, síndrome hipereosinofílica, alergias alimentares, doença Os sintomas podem estar presentes durante muitos anos,
inflamatória intestinal, infecção parasitária e doenças do colá- e sua característica intermitente pode dificultar ou retardar o
geno. Até o momento, nenhum estudo definiu claramente o diagnóstico. Cerca de metade dos pacientes com EE apresentam
limite superior do número de eosinófilos no epitélio de adultos sintomas alérgicos, incluindo eczema, rinite alérgica e bron-
e crianças. Normalmente, esse número é provavelmente infe­ cospasmo. Há também estreita correlação com a história de
rior a cinco por campo, estando limitado ao esôfago distai. Em doenças alérgicas na família.
crianças com DRGE, o número de eosinófilos no esôfago pode Tem sido descrita melhora parcial dos sintomas após o blo­
ser significativamente maior, além de que os eosinófilos esofági- queio da secreção de ácido, o que, frequentemente, dificulta a
cos podem se estender até a mucosa do esôfago proximal. Neste diferenciação com DRGE, mas, nos casos de EE, mesmo após
sentido, é necessário que a DRGE deva ser excluída como causa o uso de altas doses de IBP, a eosinofilia esofágica persiste.
de eosinofilia esofágica antes de fazer o diagnóstico da EE. Diante de uma biopsia esofágica demonstrando um grande
Nos casos sugestivos de EE, algumas alterações histológicas número de eosinófilos por campo (mais de 15 ou 20), além da
características têm sido descritas: DRGE, uma série de outras doenças precisam ser descartadas,
1. Epitélio geralmente contém uma infiltração densa de como doenças inflamatórias intestinais, doenças do colágeno,
mais de 15 ou 20 eosinófilos por campo de alta defini­ reação de hipersensibilidade a drogas, infecções parasitárias,
ção (CAD). condições malignas, síndrome hipereosinofílica e doenças au-
2. Os eosinófilos podem ser encontrados frequentemente toimunes.
ao longo da camada superficial do epitélio. Alguns fatores capazes de diferenciar a EE de DRGE já fo­
3. Microabscessos eosinofílicos (> quatro eosinófilos aglo­ ram descritos: 1) idade jovem; 2) disfagia; 3) alergia alimentar
merados) podem ser vistos em 40 a 50% das seções do documentada; 4) anéis esofágicos; 5) sulcos lineares; 6) placas
tecido afetado. esbranquiçadas ou exsudato; 7) ausência de hérnia hiatal; 8)
eosinófilos aumentados na mucosa; e 9) presença de degranu-
Os abscessos se correlacionam com a presença de exsudato
lação destes eosinófilos. O Quadro 25.1 evidencia as principais
esbranquiçado ou pápulas identificadas, muitas vezes, ao exa­
características que diferenciam EE e DRGE.
me endoscópico.
Esses padrões de eosinofilia estão geralmente associados à ■ Exames complementares
hiperplasia intensa da camada basal. Estas alterações geralmen­
► EXAMES LABORATORIAIS. A presença de eosinofilia é co­
te persistem, apesar do uso de inibidores da bomba de prótons
mum, variando nas diversas séries entre 30 a 100%, assim como
(IBP).
estão aumentados os níveis séricos de IgE em 20 a 60% dos
As anormalidades histológicas podem se estender desde o
pacientes.
esôfago proximal até a parte distai. Os tecidos gástricos e duo-
denais são normais, sendo esta característica a que diferencia Testes cutâneos para alergia e testes RAST (radioallergosor-
esofagite eosinofílica das outras doenças eosinofílicas gastrin- bent) são utilizados para avaliar a sensibilidade aos alergênios
testinais. Esta distinção é importante, tendo em vista que os tra­ de trigo, milho, carne, leite, soja, centeio, ovos, frango, aveia e
tamentos para estas outras doenças podem ser muito diferentes. batata. Entretanto, a evidência definitiva de que um alimento
Além disso, estudos sugerem que a patogênese da EE, quando está causando esofagite eosinofílica depende da resolução dos
associada às outras doenças eosinofílicas gastrintestinais, seja sintomas e da normalização da biopsia com uma dieta de elimi­
diferente, possivelmente mediada pela eotaxin, enquanto, na nação, bem como do retorno dos eosinófilos ao esôfago, após
esofagite eosinofílica isolada, como já descrito, esta mediação a reintrodução do alimento.
é feita preferencialmente pela IL-5. ► ESOFAGOGRAMA. Vários achados radiológicos são suges­
Não se sabe ainda se a inflamação se estende até os níveis tivos de esofagite eosinofílica, mas nenhum deles é considerado
mais profundos dos tecidos esofágicos, porque geralmente as patognomônico. Pode ser visualizada a presença de anéis, di­
biopsias da mucosa são limitadas em sua profundidade. En­ minuição do calibre esofágico, estreitamento da luz e estenoses
tretanto, alguns pesquisadores sugerem que a extensão da in ­ nos casos mais graves.
flamação eosinofílica possa alcançar a submucosa e a camada ► ENDOSCOPIA. A mucosa pode ser normal ou com caracte­
muscular. Essas observações, se confirmadas, podem dar sus­ rísticas inespecíficas de inflamação, tais como eritema, edema
tentação à especulação de que os eosinófilos e seus mediadores e friabilidade. Com base nestes resultados, pode-se imaginar
são capazes de induzir alterações motoras no esôfago, resultan­ a dificuldade em distinguir a EE da esofagite péptica, o que
do em dismotilidade esofágica, presente em parcela significativa enfatiza a necessidade de obtenção de biopsias do esôfago em
desses pacientes. todos os pacientes suspeitos.
Aspectos endoscópicos, tais como granularidade, perda da
■ Características clínicas visualização vascular, sulcos lineares verticais e horizontais, pla­
A EE é mais comum em homens, e a relação homem/mu- cas esbranquiçadas, ulcerações, estenoses, muitas vezes proxi-
lher é de 4:1. mais, e formações anelares dando um aspecto de corrugamento
Os sintomas podem variar com a idade. As crianças peque­ ou “esôfago enrugado” ou “traqueização”, sugerem francamente
nas geralmente são levadas ao médico para avaliação de retar­ o diagnóstico de EE.
do de desenvolvimento e recusa alimentar, enquanto, em fases Embora nenhuma destas características seja patognomônica,
posteriores, queixam-se mais de vômitos, regurgitação, dor re- estes dados tomados em conjunto podem representar evidên­
troesternal e epigastralgia. Adolescentes e adultos apresentam- cias de inflamação eosinofílica aguda (granularidade e exsuda-
se, muito frequentemente, com queixa de pirose retroesternal tos) e inflamação eosinofílica crônica (fissuras verticais).
Capítulo 25 / Doenças Eosinofílicas do Aparelho Digestivo 231
------------------------ ▼------------------------
Q u a d ro 25.1 Aspectos de diferenciação entre EE e DRGE

Aspectos característicos EE DRGE

C lín ic o s
P re v a lê n c ia d e a to p ia M u it o alta N o r m a l (p o s s iv e lm e n t e )

P re v a lê n c ia d e s e n s ib iliz a ç ã o a lim e n ta r M u it o alta N o r m a l (p o s s iv e lm e n te )

S e x o p re v a le n t e M a s c u lin o Nenhum

D o r a b d o m in a l e v ô m it o s Com uns Com uns

Im p a c t a ç á o a lim e n ta r Com um In c o m u m

E x a m e s c o m p le m e n t a r e s
p H m e t r ia e s o fa g ia n a T ip ic a m e n t e n o rm a l A n o rm a l

E ro s õ e s lin e a re s à E D A M u it o c o m u n s O c a s io n a l

H is t o p a t o lo g ia
E n v o lv im e n t o d o e s ô fa g o p ro x im a l S im Não

E n v o lv im e n t o d o e s ô fa g o distai S im S im

H ip e rp la s ia e p ite lia l M u it o a u m e n t a d a A u m e n ta d a

N ív e is d e e o s in ó filo s n a m u c o s a > 20/cam po 0 -7 / c a m p o

T ra ta m e n to
IBP R e s p o sta irre g u la r R e s p o sta a d e q u a d a

G lic o c o r tic o id e s R e s p o sta a d e q u a d a S e m re s p o sta

E lim in a ç ã o d e a n t íg e n o s a lim e n ta re s e s p e cífico s P o r v e z e s , re s p o s ta satisfató ria S e m re s p o sta

D ie ta e le m e n ta r P o r ve ze s, re s p o s ta satisfató ria R e s p o sta in a d e q u a d a

Adaptado de Domingues, GRS. Domingues, AGL. J. Bros. Gastrocntcrol., 2006.

Figura 25.2 Aspectos endoscópicos da esofagite eosinofílica. A. Formações anelares no esôfago. B. Sulcos lineares verticais. C. Placas e exsudato
esbranquiçado. D. Aspecto histológico da infiltração eosinofílica (H & E x 100). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
232 C a p ítu lo 2 5 / D o e n ç a s E o sin o fd ic a s d o A p a re lh o D ig e stiv o

Biopsias do epitélio esofágico após doses altas de inibição de se identifica um alimento alergênio, este deve ser eliminado
bomba de prótons, dadas durante no mínimo 4 semanas, são da dieta. Se a restrição alimentar não melhorar os sintomas,
necessárias para o diagnóstico. Caracteristicamente, há mais pode-se indicar a ingestão exclusiva de uma fórmula baseada
de 15 ou 20 eosinófilos/CAD. Dada a propensão de esofagite em aminoácidos que tem se mostrado eficaz tanto na melhora
eosinofílica afetar o esôfago proximal, as biopsias devem ser dos sintomas como na redução da infiltração eosinofílica. Di­
realizadas em todo o comprimento do esôfago. Além disso, versos autores sugerem que a dieta elementar deva ser usada
um número mínimo de cinco biopsias tem sido sugerido como durante 4 semanas, seguida pela adição de grupos de alimentos
forma de reduzir os erros de amostragem. É interessante tam ­ individuais a cada 5 a 7 dias.
bém realizar biopsias da mucosa do estômago e duodeno, que Estão enumeradas adiante as linhas gerais da orientação die-
estão normais na EE, afastando assim a possibilidade de uma tética para os pacientes portadores de EE, e a conduta na rein-
doença eosinofílica mais extensa. trodução dos alimentos é sugerida no Quadro 25.1.
► pHMETRIA ESOFÁGICA. Vários estudos têm demonstrado
1. Remover os alimentos agressores conforme testes alérgicos
que pacientes com esofagite eosinofílica geralmente apresentam
ou história clínica.
monitoramento do pH esofágico normal. Portanto, a presença
a. Opção alternativa: se nenhum alimento for identificado,
de esofagite grave, intratável, que se encontra após o bloqueio
remover os que mais provavelmente apresentarem aler-
de ácido agressivo, na presença de uma pHmetria normal, é
gênios (leite, soja, ovo, trigo, noz).
virtualmente diagnóstico de esofagite eosinofílica. O mais im ­
2. Repetir biopsia da mucosa esofágica em 4 a 6 semanas.
portante é que o monitoramento do pH normal praticamente
a. Se a biopsia for anormal, iniciar dieta elementar.
elimina a DRGE como uma etiologia da esofagite refratária. Nos
b. Se a biopsia for normal, reintroduzir os alimentos (um
últimos anos, entretanto, tornou-se evidente que há pacientes
por vez) a cada 5 a 7 dias.
com esofagite eosinofílica que apresentam refluxo gastresofá-
c. Se os sintomas recorrerem, retirar o alimento; caso con­
gico subjacente. Este achado pode explicar por que alguns pa­
trário, acrescentar 2 ou 3 alimentos.
cientes podem ter uma resposta parcial após o uso de IBP.
d. Na ausência de sintomas, a repetição da biopsia é neces­
► MANOM ETRIA ESO FÁGICA. A fisiopatologia da disfagia
sária para documentar a continuação da resolução da
associada à esofagite eosinofílica não é bem compreendida.
doença.
Muitos estudos, utilizando manometria estacionária, demons­
e. Repetir biopsias endoscópicas da mucosa esofágica,
traram peristaltismo normal na maior parte dos casos. Algu­
depois de 4 semanas, para evidenciar resolução da
mas séries descrevem a ocorrência de contrações terciárias,
doença.
aperistalse, contrações simultâneas, espasmo difuso e esôfago
f. Após resolução, reintroduzir um novo alimento cada 5
em quebra-nozes. Quando se empregou manometria de 24 h,
a 7 dias (Quadro 25.2).
diversos estudos demonstraram um percentual significativa­
g. Se os sintomas não se desenvolverem, repetir biopsias
mente maior de peristaltismo ineficaz, de contrações de alta
endoscópicas após a reintrodução dos grupos de cinco
amplitude (> 180 mmHg) e contrações isoladas em relação aos
alimentos.
controles. A observação mais importante dos estudos é que a
h. Se houver recorrência da presença de eosinófilos na biop­
atividade peristáltica esofágica anormal estava correlacionada
sia, remover o último alimento introduzido.
com momentos de disfagia. Assim, é possível que o caráter in ­
termitente da disfagia possa, de fato, estar associado a alterações Sempre que possível, deve ser indicado também o acom­
motoras do esôfago. panhamento de um nutricionista para garantir que a relação
► ECOGRAFIA ENDOSCÓPICA. Como os sintomas da doença calórica, de proteínas e de micronutrientes seja adequada. A
sugerem disfunção motora e, em geral, as biopsias permitem nutrição enteral pode ser necessária em casos muito compli­
apenas amostras da mucosa superficial, o ultrassom endoscó- cados e graves da doença.
pico (EUS) pode ser utilizado para determinar se a inflamação Os corticosteroides inibem a síntese e secreção de citoci-
do esôfago se estende para além da mucosa. nas que influenciam a diferenciação de crescimento e ativação
de eosinófilos. Os pacientes que não respondem apenas com
■ Tratamento o tratamento dietético ou aqueles que não toleraram a restri­
Após o diagnóstico, todos os esforços devem ser feitos para ção alimentar podem se beneficiar com o uso de corticosteroi­
identificar os alimentos que estão associados a sintomas e infil­ des sistêmicos ou tópicos. É recomendado o uso do corticoide
tração eosinofílica. Nos pacientes com EE por atopia, devem- VO para os pacientes que apresentam quadros mais graves,
se evitar alimentos e/ou aeroalergênios identificados nos tes­ principalmente quando existe disfagia importante. Na maioria
tes alérgicos. das vezes, indica-se a metilprednisolona na dose de 1,5 mg/kg,
Embora este tipo de dieta melhore os sintomas e seja capaz 2 vezes/dia, por um período de 4 semanas, seguindo-se então
de reduzir o número de eosinófilos em biopsias da mucosa eso­ a redução da dosagem de forma gradual, durante um período
fágica de pacientes com EE, muitas vezes esta medida é insatis­ médio de 6 semanas, até a sua suspensão total.
fatória. A identificação destes alimentos, por vezes, é difícil e os Com o objetivo de se evitarem os efeitos colaterais que re­
pacientes, com frequência, não conseguem correlacionar seus sultam do uso crônico de corticoide sistêmico, a maioria dos
sintomas com a ingestão de alimento específico. Isso ocorre pacientes pode ser tratada com corticoide de uso tópico, sendo
porque a antigenicidade na EE está ligada a uma resposta de o dipropionato de fluticasona o mais utilizado. Dessa forma, o
hipersensibilidade retardada ou mista. A recorrência dos sin­ corticoide é administrado na forma de aerossol pela VO, sendo
tomas após a ingestão de antígenos que causam a EE pode le­ o paciente orientado a não utilizar o espaçador para a realização
var vários dias, ou até semanas, para o seu surgimento. Assim, dos puffs da fluticasona e, ainda, deglutir o medicamento para
apenas a adoção de uma dieta restritiva pode não ser medida promover a sua deposição na mucosa esofágica. A dose pode
terapêutica suficiente para a remissão da doença. variar conforme a gravidade do caso e o nível de resposta do
Muitas vezes, é recomendada uma consulta a um alergista paciente. Tem sido sugerido o uso de dois puffs de fluticasona,
para realização de testes cutâneos e RAST. Nos casos em que 2 vezes/dia, durante um período de 6 semanas.
C a p ítu lo 2 5 / D o e n ça s E o sin o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o 233


Q u a d ro 25.2 Reintrodução dos alimentos em pacientes com EE

A B c D

Vegetais (nâo leguminosos) Frutas cítricas Legumes M ilh o


C e n o u r a , a b ó b o r a , b a t a ta -d o c e , b a ta ta , L a ra n ja , g ra p e fru lt, lim ã o , lim a F e ijà o -d e -lim a , g r ã o -d e -b ic o , fe ijã o
v a g e m , b ró c o lis , alfa ce b r a n c o / p r e t o / v e r m e lh o

Frutas (não cítricas, não tropicais) Frutas tropicais Grãos E rv ilh a


M a ç ã , p e ra , p ê s s e g o , a m e ix a , d a m a s c o B a n a n a , k iw i, a b a c a x i, m a n g a , p a p a ia , A r r o z , a ve lã , c e v a d a , c e n te io
g o ia b a , a b a c a te

Melões Carnes A m e n d o im
C a n t a lo u p o , m e la n c ia C o r d e ir o , fra n g o , p e r u , p o r c o

Bagas Peixe/crustáceos T r ig o
M o r a n g o , a m o r a , f r a m b o e s a , cereja

Tree n u ts C a rn e d e vaca
A m ê n d o a , n o z , a ve lã , c a s t a n h a -d o -p a r á ,
n o z -p e c ã

S oja
O vo
Le ite

Cada novo alimento deve ser Introduzido a cada 5 dias, começando com os alimentos da coluna A. Quando vários alimentos da coluna A foram introduzidos, alimentos
da coluna B podem ser introduzidos da mesma maneira, progredindo para os alimentos das colunas C e D. Alimentos com conhecida sensibilidade devem ser evitados.
Adaptado de Dominguos, GRS, Domingues, AGL. J. Bros. Gastroentcrol., 2006.

Este tratamento é particularmente atraente porque apenas picos. Em pacientes com reconhecida alergia ao ovo, este fár-
1% da droga é absorvida sistemicamente e sofre rápida trans­ maco deve ser evitado.
formação hepática. O principal efeito colateral é a infecção por
Cândida oral ou esofágica. Os pacientes devem ser instruídos ■ Gastrenterite eosinofílica
a evitar alimentos ou líquidos por um período de 30 min após ■ Introdução
a administração da fluticasona e a lavar a cavidade oral para A gastrenterite eosinofílica (GE) é uma doença pouco co­
diminuir o risco da candidíase. mum, de causa desconhecida, caracterizada por infiltração eo­
O montelucaste é um antagonista seletivo que bloqueia o sinofílica de camadas da parede gastrintestinal e, comumente,
receptor D4 de leucotrienos presente nos eosinófilos, comu- acompanhada por eosinofilia no sangue periférico. Muito pou­
mente utilizado em pacientes com asma. Devido ao importante co se sabe sobre essa doença eosinofílica gastrintestinal primária
papel dos leucotrienos no recrutamento e perpetuação dos eo­ (DEGP), bem como acerca do número exato de eosinófilos ne­
sinófilos na mucosa esofágica e contração da musculatura lisa, cessários para diagnosticá-la, o que é difícil de ser estabelecido,
esse medicamento oferece uma nova alternativa ao tratamento pois, ao contrário do esôfago, os eosinófilos são componentes
medicamentoso da HE, sobretudo para aqueles que apresentam normais no restante do trato gastrintestinal. Gastrite eosinofí­
sintomas recidivantes e necessitam de uso crônico de corticoide. lica, enterite eosinofílica e gastrenterite eosinofílica represen­
A dose habitual é de 30 mg/dia e os efeitos colaterais mais fre­ tam um grupo heterogêneo de desordens que com frequência
quentes com essa droga são mialgia e náuseas. Embora a droga se sobrepõem e apresentam variável grau de envolvimento nas
não diminua o número de eosinófilos na mucosa esofágica, tem diferentes camadas do estômago e do intestino delgado. Tendo
se mostrado capaz de reduzir a resposta inflamatória e, em al­ em conta essa apreciável sobreposição, a heterogeneidade e a
guns estudos, foi demonstrada indução da melhora sintomática falta de definição de critérios diagnósticos, o termo gastrenterite
e redução da necessidade da prescrição do corticoide sistêmico. eosinofílica é usado para definir qualquer uma dessas afecções.
Resultados de estudos randomizados, controlados por placebo, Na gastrenterite eosinofílica, além de um aumento do número
com maior número de casos, são aguardados para conclusões de eosinófilos na mucosa, ocorre também ativação de citocinas,
definitivas sobre o real papel deste medicamento na EE. incluindo IL-3, IL-5 e GM-CSF.
Outra droga com grande potencial terapêutico é o mepoli- Não existe prova definitiva de relação causa e efeito com al­
zumabe, um anticorpo monoclonal humanizado contra a in- gum tipo de transtorno alérgico ou hiperimune, embora isso
terleucina-5, uma citocina que regula vários processos associa­ tenha sido demonstrado em alguns estudos. No estômago, a
dos ao eosinófilo. Estudos preliminares bem controlados têm gastrenterite eosinofílica se apresenta muitas vezes como nó-
demonstrado bons resultados. dulos difusos. Esse achado não deve ser confundido com o
Dilatação do esôfago e remoção endoscópica de alimentos granuloma eosinofílico do estômago, também chamado de he-
podem ser necessárias em alguns pacientes com esofagite eo- mangiopericitomüy que é, ao contrário da doença eosinofílica,
sinofílica. A dilatação deve ser conservadora, dado o risco de uma alteração bem localizada.
laceração e mesmo de perfuração. É recomendado que a dilata­
ção seja realizada inicialmente com sondas de pequeno calibre, ■ Anatomiapatológica
com revisão endoscópica do procedimento a cada mudança de A lesão fundamental é representada por extensa infiltração
calibre das sondas. Outra preocupação nos pacientes com EE inflamatória das camadas do estômago e/ou intestino delgado,
se relaciona ao uso de propofol nos procedimentos endoscó- com predominância de eosinófilos. Há espessamento da ca­
234 C a p ítu lo 2 5 / D o e n ç a s E o s in o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o

mada muscular, sobretudo do antro, por vezes do jejuno. Esse pró-inflamatórios, incluindo o aumento da regulação dos sis­
espessamento da muscular gástrica pode simular hipertrofia temas de adesão, a modulação do tráfico celular, os estados de
pilórica e ser responsável, em alguns casos, por obstrução piló- ativação celular, a liberação de citocinas (IL-2, IL-4, IL-5,
rica. O processo tende a ser difuso, formando nódulos mucosos, IL-10, IL-12, IL-13, IL-16, IL-18 e o fator de crescimento trans­
que podem ulcerar. Nos casos de acometimento importante do formador [TGF-alfa/beta]), quimiocinas (RANTES e eotaxin) e
intestino delgado, a diferenciação com doença de Crohn pode mediadores lipídicos (fator ativador de plaquetas e leucotrieno
ser muito difícil, sobretudo em bases clínicas. Já foram descri­ (C4)). Além disso, os eosinófilos podem servir como células
tas infiltrações eosinofílicas no fígado, na vesícula, no cólon, no efetoras importantes, induzindo a disfunção e dano tecidual,
esôfago, no peritônio e em outros órgãos, incluindo o pulmão liberando proteínas tóxicas (proteína básica principal), proteí­
em alguns pacientes com GE. na catiônica eosinofílica, peroxidase eosinofílica, neurotoxina
À microscopia, nota-se aumento do número de eosinófilos derivada de eosinófilos e mediadores lipídicos, que apresentam
(geralmente, > 50 por CAD) na lâmina própria. Frequente­ alta citotoxicidade.
mente, grande quantidade de eosinófilos também é vista nas A atopia está presente em um subgrupo de pacientes, já ten­
camadas muscular e serosa. A infiltração eosinofílica pode cau­ do sido demonstrado aumento total de imunoglobulina E (IgE)
sar hiperplasia das criptas, necrose epitelial e atrofia vilositária. a alimentos específicos, aos testes cutâneos e testes RAST (ra-
Infiltrados de mastócitos e hiperplasia eosinofílica de linfono- dioallergosorbent). Foi observado que as células T da lâmina
dos mesentéricos podem estar presentes. Análise histológica própria do duodeno desses pacientes proliferaram em resposta
pode revelar deposição extracelular da proteína básica principal a proteínas do leite e secretam citocinas Th2 (IL-13). Outros
(MBP) e da proteína catiônica eosinofílica (ECP). estudos sugerem também um possível mecanismo não media­
do pela IgE.
■ Patogênese
A patogênese da GE não é bem conhecida. Existem, no en­ ■ Apresentaçáo clínica ediagnóstico
tanto, inúmeras evidências favoráveis à etiologia imunológica Embora a doença seja encontrada especialmente na popula­
ou alérgica, que compreendem: a) aumento de eosinófilos no ção adulta, casos pediátricos já foram descritos. As apresenta­
sangue periférico e infiltração eosinofílica do trato gastrintesti- ções clínicas dependem do local onde predomina a infiltração
nal; b) incidência relativamente elevada de transtornos alérgi­ eosinofílica.
cos nesses pacientes (rinite sazonal, asma, eczema e urticária); ► PREDOMÍNIO DE INFILTRAÇÃO MUCOSA. Estes pacientes
c) sintomatologia desencadeada por determinados alimentos; relatam náuseas intermitentes ou vômitos, disfagia quando o
d) testes cutâneos para anticorpo sensibilizado de pele correla­ esôfago também está acometido, dor abdominal ou lombar, in­
cionam-se, comumente, com a sensibilidade ao alimento sus­ tolerância a determinados alimentos, diarréia e perda de peso.
peito ingerido pelo paciente; e e) melhora dos sintomas com Pode haver sangramento gastrintestinal, enteropatia perdedora
corticoterapia. Contudo, contrariando esses achados, o ecze­ de proteínas e má absorção, de intensidade variável. Asma ou
ma atópico raramente tem sido observado nesses casos e a eli­ rinite alérgica tem sido observada em até 60% dos casos. O exa­
minação dos alimentos suspeitos não melhora os sintomas, me físico não costuma ser florido, mas podem ser observados
quando os pacientes são acompanhados por longos períodos. eczema atópico, urticária e edema nos membros inferiores.
Além disso, em recente estudo de revisão, foi mostrado que, Os exames laboratoriais podem demonstrar anemia ferropri-
em mais de 50% dos casos de GE, não havia nenhum elemento va, eosinofilia no sangue periférico (20 a 80%), hipoalbumine-
alérgico implicado. mia, redução nos níveis séricos de IgG, IgA e IgM, esteatorreia,
Em um trabalho clássico, foram sugeridos três mecanismos absorção alterada de d-xilose, sangue nas fezes e perdas pro-
para explicar a infiltração eosinofílica do trato gastrintestinal teicas intestinais, que podem ser aferidas através da dosagem
em pacientes sintomáticos e com suposta alergia a alimentos. de alfa-1 antitripsina em amostra de fezes de 24 h. Os valores
A origem parasitária foi aventada por terem sido observados totais da IgE sérica podem estar elevados. As provas inflama-
casos de gastrite eosinofílica associados à infecção por Eustoma tórias estão normais ou pouco alteradas. O exame radiológico
rotundatum, Entamoeba hystolitica e ao Strongyloides sterco- do intestino delgado se apresenta normal na maioria das vezes,
ralis, sobretudo nas regiões costeiras do Mar do Norte, Japão podendo, ocasionalmente, demonstrar espessamento de pregas
e Península Americana. Entretanto, é bastante provável que e edema da mucosa. A biopsia jejunal mostrará infiltração da
esses casos nada mais representem que uma reação a corpos mucosa por eosinófilos.
estranhos ou que estejam relacionados com o granuloma eosi- O diagnóstico vai se basear, sobretudo, na biopsia gastrin­
nofílico e não com a gastrenterite eosinofílica. testinal. Particular atenção deve ser dada aos seguintes itens:
Alguns autores demonstraram a presença de grande núm e­ (1) determinação do número de eosinófilos; (2) localização dos
ro de eosinófilos ativados e desgranulados em pacientes com eosinófilos, especialmente intraepiteliais e/ou nas criptas intes­
síndrome hipereosinofílica e em pacientes com a síndrome de tinais; (3) presença de grânulos eosinofílicos extracelulares; (4)
Churg-Strauss. Nesses casos, estudos in vitro mostraram que anormalidades patológicas associadas; (5) ausência de outras
a proteína catiônica do eosinófilo é tóxica para uma variedade doenças primárias (f.e., vasculites).
de tecidos, responsáveis por lesão tissular, sugerindo que os O diagnóstico diferencial inclui, principalmente, doenças
eosinófilos tenham importante papel patológico na gastren­ que produzem má absorção intestinal ou enteropatias perdedo­
terite eosinofílica. ras de proteínas, doença de Crohn, poliarterite nodosa, síndro­
Pesquisas recentes demonstraram que, além dos eosinófilos, me hipereosinofílica (lembrar-se de esquistossomose aguda),
os linfócitos T helper 2 (Th2), citocinas (interleucina [IL]-3, além de algumas parasitoses.
IL-4, IL-5 e IL-13) e eotaxin são fundamentais na patogênese ► PREDOMÍNIO DE ACOMETIMENTO DA CAMADA MUSCULAR.
da GE. Neste grupo, os pacientes se apresentam com espessamento e
Os eosinófilos funcionam como células apresentadoras de rigidez das paredes do estômago e/ou do intestino delgado, e
antígenos por meio da expressão do complexo de histocom- quadro clínico mais típico é de obstrução pilórica ou do intes­
patibilidade da classe II. Além disso, podem mediar os efeitos tino delgado. É comum dividir este tipo de anormalidade em
C a p ítu lo 2 5 / D o e n ça s E o sin o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o 235

▼ Da mesma forma, para os pacientes que apresentam acome-


Q u a d ro 25.3 Diagnósticos diferenciais de gastrenterite eosinofílica timento da camada muscular gastrintestinal e que podem evo­
luir com quadro de obstrução intestinal, tem sido recomendada
D o e n ç a celía ca G a s tre n te rite b a c te ria n a corticoterapia em doses mais elevadas. Cirurgias de ressecção
S ín d r o m e d e C h u rg -S t r a u s s G a s tre n te rite vira l ou de bypass devem ser evitadas, uma vez que não impedem a
D e r m a t o m io s it e D o e n ç a d o re flu x o g a s tre s o fá g ic o recidiva da doença.
G r a n u lo m a e o s in o fílic o (h is tio c ito s e X) G la rd ía s e
A dieta com restrições muito rigorosas não tem sido indica­
C â n c e r e s o fá g ic o D o e n ç a in fla m a tó ria in te s tin a l
da, já que os estudos mais recentes demonstram que a supressão
L in fo m a e s o fá g ic o D is t ú r b io s d a m o t ilid a d e in te s tin a l
alimentar confere apenas alívio temporário dos sintomas.
O r i g e m e s o fá g ic a (?) P e rfu ra ç ã o in te s tin a l
O prognóstico da GE é favorável tanto para pacientes adultos
E so fa g ite L in fo m a n à o H o d g k in
A le rg ia s a lim e n ta re s M á a b s o rç ã o
como para pediátricos. A resposta aos corticoides é excelente,
C â n c e r g á s tric o P o lia rte rite n o d o s a
embora a doença tenha, como já foi descrito, uma natureza re­
E s te n o s e p iló ric a P o lim io s ite corrente. Raros casos de complicações graves e morte têm sido
Ú lc e ra g á strica E s c le ro d e rm ia descritos na literatura.
G a s trite a g u d a E s tro n g ilo id ía s e
G a s trite c rô n ic a
G a s trite p o r e stresse
S ín d r o m e d e Z o llin g e r -E llis o n
S ín d r o m e h ip e re o s in o fílic a
■ Doença eosinofílica gastrintestinal secundária
As doenças eosinofílicas gastrintestinais secundárias (DEGS)
Outras condições a serem consideradas:
• drogas (ácido acetllsalicílico IAA S], sulfonamldas, penicilina, cefalosporina, carba-
são doenças com reconhecida eosinofilia gastrintestinal secun­
mazeplna, azatioprina, L-triptofano, sais de ouro); dárias a diversas condições clínicas, incluindo DRGE, alergias
• parasitas (Ancylostom a caninum , estrongiloidose, outras zoonoses), ontcropatla ao alimentares, reações a drogas, infecção e infestação gastrintes­
leite de vaca e afins; tinal, doenças inflamatórias intestinais e neoplasias.
• gastrite granulomatosa.

- DRGE
Pacientes com DRGE podem apresentar um ligeiro aumento
de eosinófilos na mucosa do esôfago. Esta infiltração eosino­
fílica pode representar uma resposta normal à lesão tecidual.
duas formas. Uma, chamada “monoentérica”, em que o pro­ Um aumento no número de eosinófilos tem sido observado
cesso encontra-se confinado ao antro e piloro. Outra, denomi­ em até 50% dos pacientes com esofagite. O número de eosinó­
nada “polientérica”, em que há predomínio de infiltração eosi- filos se correlaciona com a gravidade da doença avaliada tanto
nofílica difusa, em lençol, na submucosa, camadas musculares por endoscopia como por anormalidades na pHmetria, mas
e subserosa. em geral é menor do que nos casos de EE. A presença de anéis
Os exames complementares revelam eosinofilia no sangue e de fissuras do esôfago observadas à endoscopia, bem como
periférico na grande maioria dos pacientes, anemia, hipoprotei- a formação de microabscessos eosinofílicos e a expressão au­
nemia secundária à perda de proteínas no intestino, floculação mentada da eotaxin-3 (CCL26) sugerem o diagnóstico de EE
do contraste radiológico, estreitamento concêntrico ou irregu­ e não de DRGE.
lar do antro, e múltipos defeitos de enchimento no estômago
distai (imagens polipoides). O diagnóstico diferencial inclui ■ Alergias alimentares
pólipos e tumores gástricos (adenocarcinoma ou linfossarco- As alergias alimentares, imunologicamente relacionadas,
ma), pólipos gástricos, poliarterite nodosa, enterite regional e podem ser subdivididas em dependentes ou independentes da
granuloma eosinofílico (Quadro 25.3). IgE. Pacientes com alergia alimentar IgE-dependente apresen­
► PREDOMÍNIO DE INFILTRAÇÃO NA SUBSEROSA. Nos casos tam reação de hipersensibilidade imediata. Os anticorpos IgE
de infiltração na subserosa, ascite é um achado frequente, ob­ apresentam alta afinidade aos alergênios alimentares específi­
servando-se eosinofilia acentuada no líquido ascítico. Pode-se cos, o que desencadeia a degranulação de mastócitos e a acumu­
identificar espessamento da serosa no intestino delgado com lação de eosinófilos ativados, basófilos, células T e citocinas na
infiltração eosinofílica da subserosa. Frequentemente, há envol­ mucosa intestinal. Além disso, este processo alérgico é capaz
vimento do estômago e do intestino delgado. Derrame pleural de reativar células T CD4+ presentes no sangue periférico e na
já foi relatado. mucosa intestinal. Estas células T não apenas ativam eosinófilos
Finalmente, tem sido descrita uma forma combinada em que e mastócitos, mas também estimulam a secreção de citocinas,
o paciente apresenta tanto ascite como obstrução intestinal. incluindo IL-4, IL-5 e IL-13.
Estima-se que alergias alimentares possam ocorrer em cerca
■ Tratamento de 1 a 2% da população, considerando os testes sorológicos de
Nas formas com infiltração mucosa ou subserosa da GE, o medição de IgE alergênio-específicos. Os alergênios alimentares
tratamento se faz de forma semelhante, sendo sugerido iniciar mais comuns incluem leite de vaca, amendoim, nozes, ovos de
prednisona na dose de 5 a 10 mg/dia, ou 10 a 15 mg em dias al­ galinha, mariscos e peixes.
ternados. Nas fases de exacerbação aguda dos sintomas, a dose Na alergia alimentar IgE-dependente, o espectro clínico e
deverá ser maior, recomendando-se 20 a 40 mg/dia, durante a gravidade da doença são extremamente variáveis, desde sin­
7 a 10 dias. Em casos muito graves, a duração do tratamento tomas leves e transitórios até manifestações sistêmicas graves,
pode ser prolongada. Como a doença se manifesta de forma incluindo anafilaxia e choque.
intermitente, a terapêutica deverá ser repetida a cada agudiza- As alergias alimentares independentes de IgE se originam a
ção clínica. O uso de corticosteroides tópicos como fluticazona partir de respostas imunes mediadas predominantemente por
e budesonida tem apresentado bons resultados. Outras drogas células. A doença celíaca é um exemplo de uma resposta media­
que foram usadas com bons resultados incluem cromoglicato da por células contra um antígeno alimentar, independente de
de sódio e montelucaste. IgE. Na doença celíaca, células CD4+ TH são inadequadamente
236 C a p ítu lo 2 5 / D o e n ç a s E o s in o fílica s d o A p a re lh o D ig e stiv o

ativadas após a exposição ao glúten, o que resulta na elaboração SHE é uma causa bem reconhecida de gastrite, gastrenterite e
de citocinas Thl, incluindo a interferona. Outras reações media­ colite eosinofílicas, mas, ao contrário das DEGP, observa-se
das por células são dirigidas contra a ingestão de proteínas na infiltração eosinofílica também em outros órgãos, incluindo o
dieta, particularmente do leite, resultando na inflamação eosi- coração, a pele e os nervos periféricos.
nofílica do TG1, proporcionando o surgimento da enterocolite
e proctocolite eosinofílica. Estas doenças ocorrem geralmente ■ Doenças do tecido conjuntivo
em crianças e estão relacionadas com infiltração linfocítica da Eosinofilia na mucosa gastrintestinal é uma característica
mucosa que, em resposta ao antígeno, secreta citocinas. Essas conhecida da vasculite sistêmica, particularmente da síndrome
doenças têm um mecanismo de ação semelhante ao da doença de Churg-Strauss. Nesta afecção, o comprometimento do trato
celíaca e podem ser evitadas retirando-se a proteína específica gastrintestinal indica um prognóstico ruim, estando associado
da dieta. a complicações significativas, tais como: ulceração intestinal,
isquemia, perfuração e hemorragia.
■ Infecção einfestaçãogastrintestinal
Os eosinófilos são considerados células efetoras importan­ ■ Dispepsia funcional
tes na defesa do hospedeiro contra infestação por helmintos, Um estudo populacional realizado na Suécia, envolvendo
e é frequente, nesses casos, o achado de eosinofilia periférica mais de 1.000 pacientes, demonstrou a presença de um número
e tecidual. significativamente maior de eosinófilos na mucosa duodenal
Os eosinófilos também possuem propriedades antibacteria- de pacientes portadores de dispepsia funcional comparados a
nas que no TGI têm fundamentai importância para a manuten­ controles assintomáticos. Estes eosinófilos apresentavam de-
ção da homeostase intestinal epitelial. Essas células produzem granulação, o que é indicativo de ativação. O grau de infiltra­
substâncias que são tóxicas tanto para bactérias gram-positivas ção eosinofílica se correlacionou com o sintoma de saciedade
como para gram-negativas. Os eosinófilos da lâmina própria precoce.
gastrintestinal são rapidamente ativados, o que leva a uma rápi­ Em estudo realizado no nosso meio, observamos um maior
da resposta contra quaisquer microrganismos ou antígenos lu-
número de eosinófilos na segunda porção duodenal de pacien­
minais capazes de romper a camada epitelial intestinal. Apesar
tes dispépticos funcionais, quando comparados a um grupo
dessas interessantes observações, eosinofilia gastrintestinal não
controle. Achados similares foram observados em crianças com
é comum após infecções virais, bacterianas e fúngicas. Algumas
sintomas dispépticos. Aumento do número de eosinófilos na
exceções incluem micobactérias, Isospora belli, Sarcocystis coc-
mucosa também foi documentado em crianças com obstrução
cidiomycosis, Dientamoeba fragilis e HIV.
intestinal funcional.
■ Doenças inflamatórias intestinais As drogas que antagonizam o eixo de eosinófilos-mastócitos,
como anti-histamínicos, cromoglicato e os antagonistas dos
Em pacientes com doenças inflamatórias intestinais (DII),
os neutrófilos são predominantes; contudo, eosinófilos ativados receptores dos leucotrienos, apresentaram efeitos terapêuticos
na lâmina própria da mucosa também estão presentes. nessa população pediátrica com dispepsia funcional.
O exato papel da presença dos eosinófilos na DII ainda é Estes estudos têm estimulado considerável interesse na
controverso. Especula-se que estas células realizem um pa­ possibilidade de que os eosinófilos sejam células efetoras im­
pel de regulação do processo inflamatório ou mesmo funções portantes, em um subgrupo de pacientes diagnosticados hoje
de reparação tecidual. Em pacientes com retocolite ulcerativa como portadores de dispepsia funcional. A replicação destes
(RCUI), um número maior de eosinófilos na mucosa do intes­ estudos, principalmente em adultos, é aguardada com grande
tino associou-se a um curso clínico menos agressivo e a uma expectativa.
resposta favorável ao tratamento clínico. Há também evidências
de aumento da ativação dos eosinófilos na lâmina própria em
pacientes com RCUI durante as fases inativas da doença, suge­ ■ LEITURA RECOMENDADA
rindo que essas células possam estar envolvidas na reparação
Blanchard, C, Wang, N, Rothcnbcrg, ME. Eosinophilic csophagitis: pathogc-
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Outras Doenças do Duodeno
Luciana DinizSilva e Penélope Lacrísio dos Reis Menta

■ INTRODUÇÃO plasmócitos na lâmina própria é maior no bulbo duodenal em


comparação a outras regiões do intestino delgado. Focos de
O duodeno (derivação latina do grego dodekadaktulon, parte metaplasia gástrica normalmente podem recobrir porções da
do intestino com doze dedos de extensão) é um órgão quase superfície mucosa do bulbo duodenal.
todo retroperitoneal e com mobilidade restrita. Inicia-se na al­
tura da primeira vértebra lombar e pode ser dividido em quatro
porções: primeira porção ou bulbo duodenal (5 cm), segunda
porção ou descendente (10 a 11 cm), terceira porção ou trans­ ■ DEFESA DA MUCOSA GASTRODUODENAL
versa (8 a 9 cm) e quarta porção ou ascendente (7 a 10 cm).
O epitélio gástrico é constantemente agredido por vários fa­
No duodeno, desembocam o colédoco e os canais excretores
tores nocivos, inclusive está em contato com o ácido clorídrico
pancreáticos. Dessa maneira, distingue-se do restante do in­
e pepsinogênio/pepsina presentes no lúmen do estômago. Ain­
testino delgado tanto do ponto de vista anatômico como do
funcional e cirúrgico. da, outros fatores se associam à lesão da mucosa gástrica, como
a infecção pelo Helicobacter pylori e a exposição a substâncias
O bulbo duodenal normal é uma estrutura triangular peque­
agressivas, como o etanol e os anti-inflamatórios não esteroides
na com 3 a 7 cm de comprimento e 2 a 3 cm de largura, que
(AINEs). Assim, vários mecanismos entram em funcionamen­
conecta o antro gástrico ao duodeno descendente. O relevo mu-
to com o objetivo de proteger a mucosa gástrica. Entre eles,
coso do bulbo não apresenta pregas de Kerckring, característica
que o diferencia das outras porções do duodeno. Sua superfície destaca-se a camada de muco composta de água, mucinas, bi-
mucosa é relativamente lisa e com fino relevo vilositário do tipo carbonato e peptídios da família trefoil (TFF) que reveste toda
reticular, ocasionalmente com pregas longitudinais paralelas, a mucosa gástrica. Os últimos abrangem três membros: TFF1,
ou mesmo circulares cruzadas, que se desfazem facilmente com também denominado pS2, TFF2 ou spasmolytic peptide (SP/
a insuflação de ar. O ápice é representado pela ponta do bulbo, TFF2), e TFF3 ou intestinal trefoilfactor (ITF). Esses peptídios
onde se nota uma prega transversal, denominada angulus, a par­ são secretados em condições fisiológicas pelas células mucosas
tir da qual começa a porção correspondente ao ângulo duodenal e são responsáveis pela manutenção da integridade do epitélio,
superior, ou flexura superior do duodeno, com as pregas circu­ especialmente o que reveste o trato gastrintestinal. Em adição,
lares de Kerckring. Na porção descendente, ou segunda porção a microcirculação da submucosa, que fornece oxigênio e nu­
duodenal, observa-se também mucosa aveludada de coloração trientes, enquanto remove toxinas, e as junções intraepiteliais
alaranjada e pregas circulares. Na linha que delimita a parede gástricas impermeáveis promovem outras linhas de defesa da
posterior e mediai da porção duodenal descendente, é identi­ mucosa gástrica.
ficada uma saliência da mucosa, cuja extremidade inferior, em No duodeno, a defesa da mucosa é amplamente atribuída à
relevo, representa a papila duodenal maior. Acima da papila secreção de bicarbonato. Essa secreção envolve a troca apical
duodenal maior, encontra-se outro relevo que corresponde à de ânions C17HC03", que é mediada pelo gene regulador da
papila duodenal menor. condução transmembrana da fibrose cística (CTRF). Além deste
À histologia, o duodeno proximal (bulbo duodenal e por­ aspecto, peptídios da família trefoil (TFF), especialmente o SP/
ção descendente do duodeno) também difere do restante do TFF2 que estão localizados nas glândulas de Brunner, interagem
intestino delgado. Em indivíduos saudáveis, sem queixas em com as mucinas e facilitam a polimerização e a estabilidade do
relação ao trato gastrintestinal, o exame histológico pode re­ muco. Essa propriedade favorece a proteção da mucosa contra
velar vilosidades com formas alteradas, ou ausentes, especial- as agressões bacteriana, viral e medicamentosa e em doenças
mente nas áreas em que as glândulas submucosas de Brunner inflamatórias que interferem com a integridade do epitélio.
atravessam a muscular da mucosa para desembocarem junto Em conjunto, os TFF também participam na reconstituição e
ao lúmen das criptas de Liberkühn. O número de linfócitos e regeneração da mucosa.

238
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 239

■ DUODENITES Konorev et al (2003) propõem uma sistematização baseada nos


achados histológicos (achados específicos, inespecíficos e grau
de gravidade), endoscópicos (quanto a localização e caracte­
■ Duodenite aguda rização) e etiológicos (ácido-dependente, droga-dependente,
A duodenite aguda, à semelhança da gastrite aguda, é carac­ tóxica e idiopática). Do ponto de vista histológico, a duodenite
terizada por lesões erosivas e hemorrágicas, planas ou elevadas, crônica pode ser dividida em duas formas principais: primá­
associada aos seguintes fatores etiológicos: álcool, salicilatos, ria ou duodenite não específica, a qual permanece restrita ao
AINEs, estresse, especialmente após cirurgias de grande porte bulbo duodenal e à primeira porção do duodeno, e duodenite
e nas unidades de tratamento intensivo. secundária ou específica. A última associa-se a várias condições,
A duodenite aguda é identificada com relativa frequência como a doença de Crohn, sarcoidose, ingestão prolongada de
em exames endoscópicos. Em geral, observa-se enantema da ácido acetilsalicílico e situações de estresse. Assim, a correlação
mucosa duodenal, que pode ser difuso ou focal e de intensidade entre achados clínicos, endoscópicos e histológicos permitirá
variável, com ou sem achado similar na mucosa do estômago. a identificação de diferentes situações clínicas, como a doença
Outras vezes, encontram-se erosões que podem ser numero­ péptica do duodeno, a doença de Crohn, a doença celíaca e as
sas e acometer não só a mucosa do bulbo duodenal, mas tam ­ parasitoses duodenais. Outras enteropatias difusas, como doen­
bém a da porção correspondente ao ângulo duodenal superior ça de Whipple, amiloidose, mastocitose, gastrenterite eosinofí-
e, mais raramente, a da porção descendente do duodeno. O lica e linfangiectasias intestinais (doença de Waldmann), tam­
diagnóstico da duodenite aguda não pode ser feito somente bém podem causar alterações do duodeno.
pela aparência endoscópica do bulbo duodenal. A análise his-
tológica será necessária para documentar essa condição. Como ■ Metaplasia e heterotopia gástrica no duodeno
dito anteriormente, nos indivíduos saudáveis, identifica-se uma
celularidade aumentada na lâmina própria do bulbo duodenal, e hiperplasia das glândulas duodenais
constituída principalmente por linfócitos e plasmócitos. Base­ A metaplasia gástrica da mucosa duodenal resulta da trans­
ado nesse achado, para o diagnóstico histológico da duodenite formação do epitélio colunar absortivo das vilosidades duode­
são necessários indícios de lesão aguda do epitélio, em geral nais em outro tipo de células adultas, semelhantes às presentes
na forma de infiltrado neutrofílico das criptas ou da superfície no antro gástrico, mais resistentes à secreção hiperácida do estô­
epitelial. As lesões agudas da mucosa gastroduodenal podem mago. Esse fenômeno pode ser interpretado como uma resposta
assumir os seguintes aspectos: erosões ou úlceras agudas, ca­ de defesa à exposição ácida frequente e prolongada. A forma
racterizadas por pequenas soluções de continuidade da m u­ mais comum de metaplasia gástrica é a metaplasia de células
cosa, superficiais, lineares, arredondadas ou irregulares, ge­ gástricas mucosas, com a substituição do epitélio absortivo do
ralmente múltiplas, não ultrapassando a muscular da mucosa; duodeno pelo epitélio gástrico tipo mucoso secretor.
hemorrágicas, sob a forma de petéquias, sufusões, equimoses A metaplasia gástrica é encontrada mais frequentemente em
ou sangramento difuso de grandes extensões da mucosa, não pacientes com úlcera duodenal, do sexo masculino e tabagistas.
associadas a lesões anatômicas evidentes. Esses achados podem Tem sido reproduzida experimentalmente em cães e gatos atra­
repetir-se na duodenite crônica; assim a anamnese com ênfase vés da exposição do intestino delgado, ou do duodeno, a uma
na ingestão de medicamentos ou bebidas alcoólicas, o aspecto secreção hiperácida e é também observada em pacientes com
macroscópico das lesões aliados aos achados histológicos são a síndrome de Zollinger-Ellison. Entretanto, pode ser identi­
dados necessários para a determinação da cronologia do pro­ ficada em pacientes com dispepsia não ulcerosa, assim como
cesso inflamatório. em indivíduos saudáveis. A presença de metaplasia gástrica foi
Aproximadamente 50% dos pacientes que estão em uso de verificada em um ou mais locais no duodeno, em um estudo
AINEs apresentam sintomas dispépticos que podem se associar que envolveu voluntários saudáveis submetidos à endoscopia. A
a lesões da mucosa gastroduodenal. Dentre os fatores de risco metaplasia gástrica duodenal ocorre quase que invariavelmente
implicados nessas lesões, destacam-se idade superior a 70 anos, em associação com processo inflamatório da mucosa duodenal
história clínica e familiar de doença ulcerosa péptica, uso de (duodenite histológica) acompanhada ou não de hiperplasia
AINEs isoladamente ou em associação aos corticosteroides ou das glândulas de Brunner.
anticoagulantes e administração de doses elevadas de AINEs. A metaplasia gástrica pode ser encontrada em qualquer parte
Ainda, a infecção pelo H. pylori pode ser considerada como um do trato gastrintestinal do esôfago ao reto e também nas vias
fator aditivo para a lesão da mucosa gastroduodenal. biliares e no pâncreas. Existem dois tipos de metaplasia gástri­
Os inibidores de bomba protônica (IBP) e os antagonistas ca: superficial e heterotópica, que ainda pode ser subdividida
dos receptores H2, na dose de 20 a 40 mg, a cada 24 h, e 150 em congênita e adquirida. A metaplasia gástrica superficial não
a 300 mg, a cada 12 h, respectivamente, são os medicamen­ apresenta células fúndicas e envolve somente a camada de cé­
tos de escolha para o tratamento das lesões duodenais agudas. lulas epiteliais. A metaplasia gástrica heterotópica é composta
Entretanto, a maioria dos estudos demonstra superioridade por células parietais e principais funcionantes que se apresen­
dos IBPs (20 ou 40 mg/dia) em relação aos antagonistas dos tam macroscopicamente como ilhotas elevadas de mucosa di­
receptores H2 (150 mg 2 vezes/dia) na cicatrização de erosões ferente da duodenal, isoladas ou agrupadas. O tecido gástrico
ou úlceras gastroduodenais, quando administrados por um heterotópico bem estruturado, descrito por James et al. (1964),
período de 4 a 8 semanas. é provavelmente de origem congênita e pode ser identificado
no duodeno em aproximadamente 2% da população geral. A
metaplasia de células epiteliais mucossecretoras superficiais,
■ Duodenite crônica descrita por Taylor (1927), é adquirida durante a vida e, como
O duodeno, como o estômago, está sujeito a uma variedade dito anteriormente, é em geral encontrada em associação com
de condições inflamatórias crônicas. Apesar de não existir um a úlcera duodenal. As áreas de mucosa gástrica metaplasiada
consenso geral em relação à classificação da duodenite crônica, não são, habitualmente, observadas ao exame endoscópico de
240 Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno

rotina. Contudo, com o uso da cromoscopia, especialmente pelo extensão das áreas de metaplasia gástrica do duodeno. Nos se­
azul de metileno, é possível a identificação dessas áreas. res humanos, a bactéria não é encontrada na mucosa duodenal,
Outro mecanismo adaptativo ao ambiente ácido nas porções mas, apenas e exclusivamente, em células da mucosa gástrica. A
mais proximais do duodeno é a hiperplasia das glândulas duo- colonização do duodeno ocorrerá somente nas áreas de epitélio
denais, mais conhecidas como glândulas de Brunner. Essas es­ metaplásico, composto por células epiteliais mucossecretoras,
truturas, que produzem secreção rica em bicarbonato, cujo pH 0 que provavelmente reflete a presença de uma adesina locali­
varia entre 8,2 e 9,3, participam do mecanismo de neutralização zada na superfície apical desse tipo de célula.
do quimo e estabilização do pH do conteúdo duodenal. Foi demonstrado, através da coleta de dois fragmentos de
Geralmente, as glândulas de Brunner estão em maior nú­ cada quadrante do bulbo duodenal, que pacientes com úlce­
mero no bulbo duodenal e duodeno proximal e tornam-se es­ ra duodenal infectados pelo H. pylori possuíam uma extensão
cassas no duodeno distai. A hiperplasia glandular ocorrerá na das áreas de metaplasia gástrica quatro vezes maior quando
presença de hipersecreção gástrica e duodenite péptica. À en- comparados ao grupo controle, constituído por pacientes
doscopia, observa-se aparência nodular, principalmente da mu- H. pylori-positivos assintomáticos. A densidade bacteriana e
cosa do bulbo e, menos frequentemente, naquela do duodeno a frequência de cepas de H. pylori cagA-positivas também fo­
pós-bulbar. Os nódulos apresentam-se únicos ou múltiplos, ram mais elevadas no duodeno dos pacientes ulcerosos. Em
arredondados ou alongados, com diâmetro que varia entre 0,5 relação à análise histológica, a infiltração linfocítica (duode­
e 1,5 cm. À histologia, a hiperplasia das glândulas de Brunner é nite crônica) foi maior nos indivíduos com úlcera duodenal, e
caracterizada por aumento do número e do tamanho dos ácinos a infiltração de neutrófilos (duodenite ativa) foi somente veri­
glandulares presentes na porção basal da mucosa do duodeno ficada nos pacientes ulcerosos. Conclui-se que nessas regiões
(Figura 26.1). A síndrome de Zollinger-Ellison e a insuficiên­ ocorre uma diminuição da resistência da mucosa, o que facilita
cia renal crônica são exemplos de condições clínicas em que se a penetração e ação do suco gástrico e favorece a formação da
verifica a proliferação das glândulas duodenais. úlcera péptica duodenal.

■ Duodenite péptica
■ DUODENITES PARASITÁRIAS
A duodenite péptica está associada à exposição crônica da
mucosa do duodeno à hipersecreção ácida gástrica. As m o­ A OMS estimou, em 2001, que aproximadamente 2 bilhões
dificações adaptativas da mucosa duodenal à hiperacidez são de indivíduos no m undo estavam infectados por helmintos
caracterizadas por graus variáveis de inflamação crônica e agu­ transmitidos pelas fezes. O significado em termos de saúde
da, em geral acompanhadas por metaplasia gástrica e hiperpla­ pública e o impacto econômico dessas infecções são difíceis
sia das glândulas de Brunner. Ao exame anatomopatológico, de quantificar, embora a OMS tenha estimado que mais de
a duodenite péptica é caracterizada pela presença de infiltrado 1 bilhão de pessoas no mundo estejam infectadas por um ou
inflamatório constituído predominantemente por neutrófilos, poliparasitadas pelos seguintes agentes: Ascaris lumbricoides,
mais acentuado nas regiões em que se observa erosão da muco­ Trichuris trichiura, Necator americanus e Ancylostoma duode-
sa. Ocasionalmente, pólipos inflamatórios hiperplásicos, com­ nalis. No Brasil, as doenças intestinais causadas por parasitos
postos por epitélio metaplásico gástrico e glandular também ainda constituem um sério problema de saúde pública, apre­
podem ser identificados. sentando maior prevalência em populações de nível socioeco-
A associação entre duodenite e úlcera duodenal está relacio­ nômico baixo. Em determinadas regiões, encontra-se até 70%
nada com a hiperacidez gástrica e admite-se que a duodenite da população infectada, sobretudo crianças, que geralmente
péptica preceda o aparecimento da úlcera duodenal. O H. pylori são poliparasitadas.
aparece como um fator importante associado à duodenite e à Geralmente, as helmintíases intestinais interferem nas con­
dições nutricionais do hospedeiro e associam-se com atraso
do crescimento e maior prejuízo do aprendizado escolar. En­
tretanto, na minoria de pacientes infectados, sintomas mais
significativos podem ser identificados. Dentre eles, destacam-
se a enteropatia perdedora de proteína, a disenteria crônica, a
anemia e o prolapso retal.
Os protozoários que mais comumente infectam o trato gas-
trintestinal são Giardia spp., Entamoeba hystolitica, Cyclospora
cayetanenensis e Cryptosporidium spp. A giardíase é considera­
da uma das infecções mais prevalentes no mundo. No período
entre 1992 e 1997, foi verificado pelo CDC (CentersforDisease
Control and Prevention) que aproximadamente 2,5 milhões de
indivíduos estavam infectados nos EUA. A OMS identificou,
em 1997, que cerca de 50 milhões de indivíduos no mundo fo­
ram acometidos pela amebíase invasiva.
O endoscopista, ao se deparar com qualquer processo infla­
matório no duodeno, deve colher sempre fragmentos de muco­
sa para análise histológica, bem como aspirar líquido duodenal
para estudo parasitológico. Os parasitos mais frequentemen­
Figura 26.1 Aspecto histológico da hiperplasia das glândulas duo­ te relacionados com a duodenite são os seguintes: G. lamblia,
denais (gentilmente cedida pela Dra. Lúcia Porto Fonseca de Castro). Strongyloides stercoralis, A. lumbricoides, A. duodenale e Schis-
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) tosoma mansoni.
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 241

no epigástrio, que podem simular úlcera péptica duodenal ou


■ Duodenite por Strongyloides stercoralis cólica intestinal. Alguns pacientes podem apresentar síndromes
A estrongiloidíase acomete aproximadamente 30 a 100 mi­ disabsortivas com esteatorreia.
lhões de pessoas no m undo e é endêmica no sul da Ásia, Os achados endoscópicos das lesões estão associados à gra­
América Latina, África e no sudoeste dos EUA. No Brasil, a vidade da parasitose. Nos casos leves, verificam-se edema dis­
estrongiloidíase é encontrada em praticamente todo o territó­ creto, hiperemia e congestão da mucosa. Já nos casos graves,
rio nacional, chegando a comprometer 85% da população em além desses achados, podem ocorrer friabilidade, sangramento,
certas regiões. É considerada uma afecção importante, pois, microulcerações, nodulações e desorganização do relevo muco­
além da sua elevada frequência, pode causar quadros de evo­ so. A presença de ovos e larvas na intimidade da mucosa pode
lução grave e, às vezes, fatal. ser identificada através do exame histológico. Embora alguns
O agente etiológico, S. stercoralis, apresenta dois ciclos evo­ estudos demonstrem que o exame do aspirado duodenal seja
lutivos, denominados indireto, ou de vida livre, e direto, ou muito sensível, esse método invasivo de diagnóstico é reco­
partenogenético. No período de vida livre, as larvas rabditoides mendado somente para crianças, em situações graves, como
chegam ao meio exterior junto às fezes e, alcançando o solo, nos casos de imunossupressão acentuada.
transformam-se em machos e fêmeas de vida livre. Essas formas O método de Baermann-Moraes constitui técnica copro-
realizam a cópula, e a fêmea inicia a ovoposição. São produ­ lógica por excelência para o diagnóstico da parasitose. A sen­
zidos três tipos de ovos que, no solo, tornam-se embrionados sibilidade desse teste varia de acordo com a quantidade de
e poderão dar origem a larvas rabditoides triploides (se trans­ amostras de fezes examinadas, atingindo 100% quando sete
formarão em larvas filarioides, infectantes); larvas rabditoides amostras seriadas são analisadas. Adicionalmente, vários tes­
haploides (irão dar machos de vida livre); larvas rabditoides tes sorológicos têm sido empregados para o diagnóstico da
diploides (irão dar fêmeas de vida livre). No ciclo evolutivo di­ estrongiloidíase. Dentre os métodos usados, destacam-se o
reto ou partenogenético, as larvas filarioides penetram na pele ensaio imunoenzimático (ELISA), a imunofluorescência e o
do hospedeiro, ganham a circulação sanguínea e chegam aos Western blot. Esses testes possuem sensibilidade e especificida­
capilares pulmonares. Podem então ser expelidas junto com a de variáveis de acordo com o antígeno e os isótipos de imuno-
expectoração ou ser deglutidas. A fêmea partogenética parasita globulina usados e a população estudada. Recentemente, com
o intestino delgado do homem, especialmente o duodeno e o o avanço das técnicas de biologia molecular, tem sido possível
jejuno, produzindo ovos que logo dão origem a larvas rabdi­ identificar S. stercoralis pela análise das sequências de DNA
toides que saem dos ovos ainda dentro do lúmen intestinal e só presentes nas fezes.
depois são expulsas com as fezes. Em infecções graves, o verme A ivermectina (200 mcg/kg de peso corporal em dose úni­
pode ser encontrado no estômago e no reto. ca) ou o albendazol (400 mg 1 vez/dia, por 3 dias) são con­
As alterações morfológicas da estrongiloidíase foram descri­ siderados os medicamentos de escolha para o tratamento da
tas por De Paola, que as classificou em formas leve, moderada estrongiloidíase. Em um estudo em Zanzibar, na África, as dro­
e grave. A forma leve é representada por enterite catarral, ca­ gas anteriormente descritas foram comparadas e a taxa de erra­
racterizada por congestão da mucosa, abundante secreção de dicação do S. stercoralis em 301 crianças tratadas foi de 82,9 e
muco e, às vezes, por hemorragia e microulcerações. A forma 45,0% com a ivermectina e o albendazol, respectivamente.
moderada mostra enterite edematosa, com espessamento da
parede intestinal, tumefação de pregas e apagamento do relevo
mucoso do delgado. Nas formas graves, encontra-se enterite
■ Duodenite por Giardialamblia
ulcerada, com rigidez parietal consequente a edema e fibrose, A G. lamblia é um protozoário flagelado cosmopolita e sua
além de atrofia da mucosa e formação de úlceras. prevalência independe de condições climáticas. O ciclo de vida
Esse nematódeo possui a capacidade de replicar no hos­ da Giardia consiste em um cisto infectante e um trofozoíta mó­
pedeiro e causar, assim, ciclos de autoinfecção (penetração vel. O cisto é oval ou elipsoide, medindo 12 pm de comprimento
de larvas infectantes no interior do próprio intestino ou da por 8 pm de largura, e com parede de espessura que varia entre
pele da região perianal), podendo ocasionar a perpetuação 0,3 e 0,5 pm. A via de infecção no ser humano é por meio da
da infecção por período prolongado. As larvas infectantes do ingestão dos cistos. O trofozoíto tem formato de pera, com si­
S. stercoralis na presença de imunossupressão natural ou indu­ metria bilateral, e mede 20 pm de comprimento por 10 pm de
zida, especialmente durante o uso de corticosteroides, podem largura e 1 a 2 pm de espessura. Possui dois núcleos situados
invadir maciçamente a parede do intestino grosso e alcançar os na parte frontal do trofozoíto e quatro flagelos que se originam
pulmões (hiperinfecção) ou todo o organismo (estrongiloidía­ de blefaroplastos situados entre os núcleos.
se disseminada). Os fatores de risco associados às formas dis­ O parasito tem como habitat natural no ser humano o duo­
seminadas estão relacionados com a alteração da imunidade deno e o jejuno proximal, podendo, eventualmente, ser encon­
celular. Terapias imunossupressoras (especialmente o uso de trado na vesícula e nas vias biliares. Após a ingestão dos cistos
corticosteroides), transplantes de órgãos, doenças hematoló- pelo hospedeiro, considerados não infectantes, os trofozoítos
gicas malignas, infecção pelo vírus HTLV-I, desnutrição, dia­ saem dos cistos no duodeno e podem ser encontrados livres
betes melito, insuficiência renal crônica e consumo crônico no lúmen intestinal, aderidos às criptas duodenais e, ocasio­
de álcool são condições que favorecem a sua ocorrência em nalmente, no interior da mucosa.
seres humanos. A maioria dos pacientes adultos parasitados não apresenta
A infecção crônica pelo S. stercoralis pode ser clinicamente sintomas importantes, porém casos de má absorção grave po­
assintomática ou pode causar sintomas cutâneos, gastrintes- dem ser identificados. Os fatores que contribuem para essa va­
tinais ou pulmonares. Como dito anteriormente, as manifes­ riedade de manifestações clínicas incluem a virulência da cepa
tações clínicas são relacionadas com a integridade do sistema de Giardia, o número de cistos ingeridos, a idade e as condições
imunológico do hospedeiro. Em relação ao acometimento do do sistema imunológico do hospedeiro no momento da infec­
trato digestivo, observa-se sensação de plenitude gástrica pós- ção. Patogenicamente, sua ação é mecânica, produzindo uma
prandial, pirose, diarréia e dores abdominais, principalmente irritação considerável das microvilosidades, aderindo à super­
242 Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno

fície da mucosa e formando um revestimento que interfere na dica. O exame endoscópico foi realizado em um período médio
absorção. É frequentemente encontrado em indivíduos com de 9,1 dias após o evento isquêmico, e as lesões mais comumen-
deficiência de IgA secretora, como nas disgamaglobulinemias te detectadas foram úlcera duodenal, úlcera gástrica, gastrite e
com hiperplasia linfoide do intestino delgado. esofagite. Geralmente, o dano da mucosa duodenal associa-se a
Nem sempre são evidenciadas alterações do ponto de vista anormalidades da microcirculação acompanhadas por isquemia
endoscópico, sendo a mucosa, na maioria das vezes, aparente­ e/ou hemorragia. Outras condições, como hiperacidez gástrica,
mente normal. Porém, após um exame mais minucioso, obser- produção diminuída de mucoproteínas e discinesia motora do
va-se que as válvulas coniventes encontram-se espessadas em estômago, que poderiam contribuir para o aparecimento das
número razoável de pacientes. Nos pacientes com hipogama- lesões do duodeno já foram identificadas.
globulinemia, entretanto, a mucosa pode mostrar numerosos
nódulos, indicando a presença de hiperplasia nodular linfoide.
O achado de pontilhado esbranquiçado da mucosa duodenal ■ 0CLUSÃ0 DUODENAL ARTERIOMESENTÉRICA
sugere o diagnóstico endoscópico de giardíase.
Do ponto de vista histológico, as alterações da mucosa va­ INTERMITENTE CRÔNICA
riam de discretas a acentuadas, podendo causar enteropatia
A síndrome da artéria mesentérica superior é uma condição
com lesão do enterócito, atrofia vilositária e hiperplasia das
pouco comum caracterizada por compressão extrínseca das pa­
criptas. O achado mais expressivo é a infiltração aguda e focal
redes do duodeno e suboclusão ao trânsito intestinal. A artéria
das criptas intestinais, associado ao infiltrado de polimorfonu-
cleares na mucosa e lâmina própria. mesentérica superior em geral forma um ângulo de aproxima­
damente 45° (faixa de 38" a 56°) com a aorta abdominal. Dis-
O exame de fezes frescas corados com iodo apresenta uma
talmente à origem da artéria mesentérica superior, a terceira
sensibilidade em torno de 50%, pois cistos e trofozoítos são
porção do duodeno cruza anteriormente a veia cava inferior e a
eliminados de forma intermitente através das fezes. A análise
aorta e permanece entre a artéria mesentérica superior e a aorta.
do aspirado duodenal é outra forma de diagnóstico com sen­
Situações que determinem a redução do ângulo arteriomesen-
sibilidade de 80%. Ainda, a pesquisa de G. lamblia nas fezes
térico podem causar compressão do duodeno. Alguns fatores
pode ser feita por meio de testes que empregam técnicas de
associados ao estreitamento desse ângulo podem ser citados:
imunoensaio (ELISA) e imunofluorescência, que apresentam
lordose lombar acentuada, visceroptoses, alterações anatômicas
sensibilidade e especificidade de 90 e 100%, respectivamente.
da artéria mesentérica superior e rápida perda de peso.
Em adição aos testes que detectam antígenos nas fezes, tem
A oclusão duodenal arteriomesentérica intermitente crô­
sido possível identificar sequências do DNA de G. lamblia pre­
nica, também denominada Síndrome de Wilkie, acomete am­
sentes nas fezes por meio de exames baseados em técnicas de
bos os sexos com predomínio do sexo feminino. A faixa etária
biologia molecular.
mais acometida é dos 10 aos 30 anos. Os pacientes apresentam
O tratamento da giardíase é feito com drogas do grupo dos
dor na metade superior do abdome, provocada pela estase e
nitroimidazóis, especialmente o metronidazol na dose de 250 a
distensão duodenal, náuseas, vômitos alimentares e medo de
500 mg, 3 vezes/dia, durante 5 a 7 dias, ou 2 g, diariamente, em
alimentar-se. O emagrecimento pode provocar visceroptoses
dose única, por 3 dias e o tinidazol 2 g em dose única. Outras
e o agravamento dessa condição. O alívio do desconforto epi-
drogas como o albendazol e a nitazoxanida são também eficazes,
gástrico é obtido com vômitos ou quando o paciente assume
mas devem ser administradas em doses múltiplas.
a posição de decúbito lateral direito ou genupeitoral. A croni-
cidade e a intermitência da sintomatologia digestiva agravam
a irritabilidade emocional. A úlcera péptica, em aproximada­
■ LESÕES DU0DENAIS AGUDAS EM PACIENTES mente 25% dos casos, pode coexistir com a oclusão duodenal
COM INFART0 D0 MIOCÁRDIO arteriomesentérica.
O diagnóstico clínico é, em geral, difícil ou mesmo subesti­
A isquemia miocárdica mostra incidência, mortalidade e mado. Através do estudo radiológico do estômago e duodeno,
morbidade elevadas, podendo ser considerada um dos princi­ observa-se compressão extrínseca de orientação vertical entre a
pais problemas clínicos da atualidade. A hemorragia digestiva é terceira e a quarta porções duodenais e dilatação da segunda e
também uma afecção grave que ameaça a vida, principalmente da primeira porções do duodeno. A distensão da alça intestinal
de pacientes idosos e com comorbidades. Vários estudos têm desaparece quando o paciente adota as posições descritas ante­
demonstrado a presença de duodenite hemorrágica e necrose riormente. A mensuração do ângulo arteriomesentérico pode
entérica em pacientes acometidos pelo infarto do miocárdio. ser realizada através da ultrassonografia e tomografia compu­
A incidência de hematêmese e/ou melena após um evento de tadorizada do abdome.
isquemia miocárdica não é bem determinada, porém existem A maioria dos autores recomenda medidas conservadoras
vários fatores contributivos: insuficiência vascular associada para o tratamento desses pacientes, incluindo, assim, nutri­
ao choque e à insuficiência cardíaca; uso de medicamentos que ção adequada, descompressão do trato gastrintestinal e posi­
poderiam lesar a mucosa gastroduodenal como os anti-inflama- cionamento adequado do indivíduo no período pós-prandial
tórios não esteroides, anticoagulantes e trombolíticos. (decúbito lateral esquerdo ou posição genupeitoral). Nos ca­
Khominskaia et al. (1991) estudaram as alterações histoquí- sos de desnutrição grave e vômito repetido, há necessidade de
micas e morfológicas da mucosa do estômago e duodeno de hospitalização para a correção dos distúrbios hidreletrolíticos
22 pacientes que faleceram devido à insuficiência coronariana e administração de dieta por sonda nasoentérica posicionada
crônica. Foi observado que a mucosa gástrica e duodenal desses distalmente à obstrução ou através do uso da nutrição paren-
pacientes apresentava-se atrófica. Essa anormalidade da mucosa teral total. Raramente, recorre-se ao tratamento cirúrgico com
foi associada à vasoconstrição do território esplâncnico. Em um anastomose jejunoduodenal. A lise do ligamento de Treitz e
estudo conduzido nos EUA, através da endoscopia digestiva alta mobilização do duodeno por via laparoscópica também têm
foram avaliados 200 pacientes com quadro de isquemia miocár­ sido relatadas.
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 243

Os tumores benignos do intestino delgado apresentam-se


■ DIVERTÍCULOS DUODENAIS como lesões isoladas ou múltiplas de vários subtipos que in­
A doença diverticular do duodeno é identificada em apro­ cluem pólipos hiperplásicos, adenomas, tumores estromais,
ximadamente 22% da população geral e em 0,016 a 5,2% dos lipomas, hemangiomas, fibromas, angiomas, linfangiomas e
pacientes submetidos a exames radiológicos do trato digesti­ neurofibromas. Esses tumores são caracterizados por cresci­
mento lento e apresentação clínica tardia. As duas manifes­
vo superior. Os divertículos são mais encontrados na segunda
porção do duodeno; ocasionalmente, na terceira ou na quarta tações clínicas mais comuns são sangramento e obstrução in­
testinal. Raramente, ocorre perfuração da parede do intestino,
porções e, excepcionalmente, no bulbo duodenal. Em geral, são
resultando em formação de abscesso ou de fístulas internas,
únicos, às vezes múltiplos, e de tamanho variado. Essas estru­
peritonite ou pneumatose intestinal. Cerca de um terço dos
turas se formam por evaginação da mucosa através de pontos
pacientes apresenta hemorragia digestiva, geralmente caracte­
de menor resistência da parede intestinal.
rizada por sangramento oculto e intermitente e anemia ferro-
Os divertículos são assintomáticos em 90% dos pacientes,
priva. A hemorragia maciça é extremamente rara. Os liomio-
entretanto em 10% dos casos estão associados aos sintomas de
mas e os hemangiomas são as lesões que mais frequentemente
dor, distensão abdominal e hemorragia digestiva. Quando se
provocam sangramento.
encontram inflamados, configuram quadro de diverticulite e
Através da esofagogastroduodenoscopia, já se identifica­
devem ser considerados no diagnóstico diferencial de abdome
ram lesões elevadas no bulbo duodenal em 36 (0,4%) de 8.802
agudo. Quando grandes, podem provocar esta se duodenal pela
pacientes estudados. Neste estudo, as seguintes lesões foram
demora em seu esvaziamento e produzir desconforto epigástrico
observadas: pólipos hiperplásicos (42%), adenomas (5%), hi-
pós-prandial, ou sintomas que lembram a úlcera péptica e, mais
perplasia das glândulas de Brunner (3%) e heterotopia da m u­
raramente, sinais de suboclusão duodenal. Aproximadamente 70
cosa gástrica (8,3%). Em outro estudo, prospectivo, através de
a 75% dos divertículos duodenais são periampolares ou periva-
endoscopia, verificou-se a presença de pólipos duodenais em
terianos e podem, ocasionalmente, complicar-se mecanicamente
27 (4,6%) de 584 pacientes. Em 16 casos, as biopsias endoscó-
ou por processo inflamatório ou provocar doenças pancreáticas picas demonstraram mucosa gástrica ectópica (sete pólipos) ou
e biliares, inclusive icterícia do tipo obstrutivo. Os divertículos
inflamação (nove pólipos). Em geral, essas lesões eram móveis,
periampolares são frequentemente identificados em pacientes pequenas, múltiplas e localizadas no bulbo duodenal. Três de
idosos submetidos à colangiopancreatografia endoscópica retró­ sete pólipos recobertos por mucosa de aspecto normal foram
grada. O orifício da papila de Vater, observado através da duo- diagnosticados como lipomas. Dois adenomas foram identifi­
denoscopia, pode estar localizado no colo ou mesmo na entrada cados no duodeno descendente (0,4% dos pacientes; 7% dos
do divertículo, o que dificulta sua cateterização. pólipos).
Não há indicação de tratamento de pacientes com divertí­
culos duodenais assintomáticos. As complicações são raras e a
abordagem terapêutica deve ser individualizada. Na literatura, a ■ Adenomas
mortalidade pós-operatória em cirurgias eletivas gira em torno Vários autores, através da endoscopia digestiva alta, de­
de 8 a 12% e pode atingir 20% em cirurgias de urgência. monstraram que 80 a 90% dos tumores duodenais benignos
são adenomas, representando assim a neoplasia benigna mais
comum do duodeno. Esse tumor possui forte potencial de de-
■ TUMORES D0 DUODENO generação em razão do seu índice elevado de proliferação. Em
geral, se apresentam como lesões únicas ou múltiplas, sésseis ou
Os tumores do intestino delgado são raros e representam pedunculadas. À esofagogastroduodenoscopia, a superfície do
1 a 6% das neoplasias do tubo digestivo. O duodeno constitui tumor tem a mesma cor ou é mais pálida do que a mucosa ad­
somente 8% do intestino delgado em extensão, porém é a sede jacente, porém é, em geral, lobulada, aveludada, apresentando
de 10 a 20% de tumores gastrintestinais. Através dos dados ci­ projeções digitiformes, papilas ou franjas. Os prolongamentos
tados anteriormente, observa-se que as neoplasias do intestino digitiformes, às vezes pediculados, são formados por escasso
delgado são raras, principalmente quando comparadas com as estroma conjuntivovascular revestido por epitélio simples ou
do estômago e do cólon. Em relação à escassez de lesões no in­ pseudoestratificado, com graus variáveis de displasia. Com base
testino delgado e à resistência à transformação maligna, várias no seu padrão arquitetural, os adenomas são subdivididos em
teorias foram propostas como possíveis explicações: o tempo três categorias: adenoma tubular (glândulas de aspecto tubular);
rápido de trânsito intestinal diminui o tempo de contato dos adenoma viloso (glândulas de aspecto vilositário); adenoma
carcinógenos com a mucosa; a fluidez do quimo dilui as subs­ tubuloviloso (combinação dos anteriores).
tâncias carcinogênicas; as concentrações aumentadas da enzima O adenoma pode ser removido através da polipectomia
benzopireno hidroxilase eliminam potenciais carcinógenos; a endoscópica, e a vigilância endoscópica é obrigatória nesses
ausência de bactérias passíveis de converter determinados nu­ pacientes. A abordagem cirúrgica é indicada na presença de
trientes ingeridos em carcinógenos; as concentrações elevadas neoplasia invasiva. Através de um estudo retrospectivo, foram
de imunoglobulina A e a presença de tecido linfoide desenvolvi­ analisados 32 pacientes que apresentavam 34 adenomas vilo-
do podem impedir o crescimento e a transformação tumoral. sos. Os adenomas identificados em 22 pacientes (69%) foram
Os tumores do intestino delgado podem ser benignos ou ressecados totalmente. A incidência de transformação malig­
malignos e ser derivados de qualquer célula do tubo digestivo. na foi de 47%.
Através da revisão da literatura, verifica-se que a prevalência
de neoplasias benignas e malignas é semelhante em séries ci­
rúrgicas, porém os tumores benignos são mais frequentes em
■ Leiomiomas
séries de necropsia. Somente 50% dos tumores benignos se tor­ Os liomiomas destacam-se como tumores benignos mais co­
nam sintomáticos, enquanto 70 a 80% das neoplasias malignas muns do intestino delgado e são encontrados, principalmente,
produzem sintomas. no jejuno. São considerados a segunda neoplasia mais frequente
244 Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno

no duodeno. São tumores submucosos mesenquimais, bem de­ neoplasias do intestino delgado no período de 1980 a 2000 e o
limitados, não encapsulados, compostos por células fusiformes. adenocarcinoma foi o tipo histológico mais comumente iden­
Originam-se de células musculares lisas e apresentam marca­ tificado no duodeno (200 casos, 52,7%).
dores imuno-histoquímicos positivos para desmina e actina
de músculo liso e são CD34 e CD 117 negativos. Esses achados
são importantes em relação ao diagnóstico diferencial com os
■ Adenocarcinoma do duodeno
tumores estromais do trato gastointestinal, tema abordado no O adenocarcinoma é o tumor do intestino delgado mais pre-
Capítulo 37. valente, correspondendo a cerca de 50% das neoplasias nesse
Têm localização subserosa e intramural e variam em tama­ local. O carcinoma duodenal primário é raro e, geralmente, é
nho de poucos milímetros a vários centímetros. Os métodos identificado na segunda e na terceira porções do duodeno. É
de imagem, em geral, são importantes para o diagnóstico dife­ mais encontrado em homens do que em mulheres acima de
rencial de tumores da submucosa. Através desses métodos, o 50 anos de idade, tendo pico de incidência aos 60 anos. As le­
liomioma, em particular, apresenta-se como lesão arredondada, sões pré-neoplásicas são semelhantes às do tum or do cólon,
regular, homogênea com áreas de calcificação. sobressaindo-se como fator de risco a doença de Crohn. À ma-
croscopia, observa-se mais frequentemente a forma polipoide
e ulcerativa no duodeno e a forma estenosante no íleo. O tu­
■ Lipomas mor pode originar metástases para linfonodos regionais, fígado,
Os lipomas são mais comuns no íleo e podem ser caracteriza­ pâncreas e pulmões. Como é assintomático por longo tempo, o
dos como lesões intramurais, geralmente pequenas, com menos prognóstico é ruim. Clinicamente, a hemorragia ou a presença
de 4 cm, únicas ou múltiplas, que se localizam na submucosa. de sangue oculto nas fezes é a manifestação mais comum se­
São compostos por tecido adiposo bem diferenciado, envolvido guida por sinais de obstrução (Figura 26.2).
por uma cápsula fibrosa. A aparência endoscópica é similar aos Dentre os exames complementares, a endoscopia digestiva
outros tumores da submucosa. À tomografia computadorizada, alta com biopsias pode ser considerada um exame diagnósti­
o lipoma apresenta o coeficiente de absorção negativo. co inicial. Métodos de imagem da cavidade abdominal podem
auxiliar no diagnóstico da lesão duodenal e na detecção de lin-
fadenomegalias e metástases. Outra ferramenta que pode ser
■ TUMORES MALIGNOS DO DUODENO empregada para o estadiamento da neoplasia é a ultrassono-
grafia endoscópica.
Como descrito previamente, a incidência de tumores malig­ A ressecção tumoral constitui a melhor forma de tratamento
nos no intestino delgado é baixa e representa 1 a 2% das neo- do adenocarcinoma do duodeno. A duodenopancreatectomia
plasias que acometem o trato gastrintestinal e 0,3% das neopla- pela técnica de Whipple é o procedimento de escolha, uma vez
sias em geral. A maioria dos tumores é clinicamente silenciosa que permite a ressecção em bloco com os linfonodos regionais.
por longos períodos ou ocasiona sintomas/sinais inespecíficos, Entretanto, somente 30% desses tumores são ressecáveis. A so­
como plenitude, dor e distensão abdominal, presença de san­ brevida, em cinco anos, de pacientes submetidos a esse proce­
gue oculto nas fezes, náuseas e vômitos. Geralmente, são des­ dimento gira em torno de 40%. Ainda, para tumores pequenos
cobertos em fase avançada, ulcerados, produzindo obstrução da terceira e, especialmente, da quarta porções do duodeno,
intestinal parcial, diarréia crônica, hemorragia digestiva alta pode ser feita a ressecção segmentar com intenção curativa.
ou invasão e metástase em órgãos vizinhos, além de icterícia e A gastrojejunostomia é reservada aos pacientes com doença
comprometimento do estado geral dos pacientes. Os tumores avançada em que não é mais possível a ressecção tumoral. O
malignos do duodeno localizam-se preferencialmente na se­ tratamento adjuvante com quimioterapia e radioterapia deve
gunda porção. Os tipos de neoplasias malignas mais comuns ser individualizado. A sobrevida em cinco e dez anos é de 39 e
do intestino delgado são os adenocarcinomas, os carcinoides, 37%, respectivamente, para as neoplasias primárias do duode­
os linfomas e os sarcomas. no ressecáveis e correlaciona-se com a fase do diagnóstico. Os
Em um estudo conduzido nos EUA, foram analisados 328
casos de neoplasias do intestino delgado no período de 1966 a
1990. A incidência ajustada pela idade foi de 1,4/100.000 indiví­
duos. Os tumores foram classificados como carcinoides (41%),
adenocarcinomas (24%), linfomas (22%), sarcomas (11%) e 1%
não foi classificado. Em relação à localização nos segmentos
intestinais, o adenocarcinoma representou a neoplasia malig­
na mais comum do duodeno. As metástases a distância foram
detectadas em 26 a 33% dos pacientes, sendo mais frequentes
nos indivíduos acometidos por sarcomas e adenocarcinomas.
A ressecção cirúrgica foi realizada em 49 a 79% dos pacientes e
a sobrevida em 5 anos foi de 54%, variando de acordo com tipo
de tumor, carcinoide (83%), adenocarcinoma (25%), linfoma
(62%) e sarcoma (45%). Através de uma revisão do National
Data Base, também realizada nos EUA, foram avaliadas 4.995
neoplasias do intestino delgado. Em relação à localização dos
tumores nesse segmento, foi identificada a seguinte distribui­
ção: duodeno (55%), jejuno (18%), íleo (13%) e não especifi­ Figura 26.2 Lesão tumoral do duodeno. O exame histopatológico
cado (14%). A sobrevida em cinco anos foi menor que a des­ demonstrou adenocarcinoma periampulardo tipo intestinal infiltrante
crita no trabalho anterior, correspondendo a 30,5% (média de em parede duodenal (gentilmente cedida pelo Dr. Fernando Augusto).
19,7 meses). Ainda, nos EUA foram analisados 1.260 casos de (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 26 / Outras Doenças do Duodeno 245

pacientes submetidos à cirurgia paliativa têm sobrevida que, Hatzaras, I, Palesty, JA, Abir, F, Sullivan, P, Kozol, RA, Dudrick, SJ, Longo, WE.
geralmente, não ultrapassa 24 meses. Small-bowcl tumors: cpidemiologic and clinicai charactcristics of 1260 cases
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Em um estudo conduzido na Alemanha, foram avaliados 18 Howc, JR, Karnell, LH, Menck, HR, Scott-Conncr, C. The American Collegc
pacientes (14 homens, quatro mulheres; idade média 58 anos) of Surgeons Commission on Canccr and thc American Canccr Socicty.
com carcinoma primário do duodeno. Os principais sintomas Adenocarcinoma of thc small bowel: rcvicw of thc National Canccr Data
clínicos detectados foram dor no andar superior do abdome Base, 1985-1995. Câncer, 1999; 86:2693-706.
(61%), perda de peso (44%) e anemia (38%). Dez pacientes James, AH. Gastric cpithclium in thc duodenum. Gut, 1964; 105:285-94.
Janoíf, EN, Smith, PD, Blascr, MJ. Acute antibody responses to Giardia lamblia
(56%) foram submetidos a ressecções curativas, oito operações
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ao fim de um, três e cinco anos após a ressecção, foi de 90,66,7 Funch-Jcnscn, P, Krusc A, Thommcscn, P. Prospectivc study of prcvalcncc
e 53,3%, respectivamente. Nos pacientes com tumores irressecá- and cndoscopic and histopathologic charactcristics of duodenal polyps
veis, que foram submetidos à cirurgia paliativa, a sobrevida foi in patients submitted to upper cndoscopy. Scand. J. Gastroenterol., 1994;
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inferior a 25 meses. Em uma revisão realizada na Itália, foram
Khominskaia, MB 8c Dcgtiareva, LV. Structural changes in thc stomach, duode­
avaliados 89 pacientes com adenocarcinoma duodenal, não ori­ num and pancreas in ischcmic hcart disease. Vrach Delo, 1991; 7:53-6.
ginário da papila de Vater, submetidos ao tratamento cirúrgico. Konorcv, MR, Litviakov, AM, Matvecnko, ME, Krylov, Iu, V, Kovalev, AV,
A maioria dos tumores (62,9%) foi detectada na região periam- Riashchikov, AA. Principies of currcnt classification of duodenitis. Klin.
pular. A ressecção curativa foi realizada em 65 (73%) de 89 pa­ Med. (Mosk.), 2003; 81:15-20.
cientes. A mortalidade no período pós-operatório foi de 10,1% Krcuning, J, Bosman, FT, Kuiper, G, Wal, AM, Lindcman, J. Gastric and duo-
dcnal mucosa in ‘hcalthy’ individuais. An cndoscopic and histopathological
e a sobrevida em cinco anos, de 25%. Em geral, a sobrevida dos study of 50 volunteers. /. Clin. Pathoi, 1978; 31:69-77.
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PARTE IV
Intestino Delgado
Anomalias Congênitas de
Intestino Delgado e Grosso
Dorina Barbieri, Maraci Rodrigues e Isaura Ramos Assumpção

As anomalias congênitas de intestino delgado e grosso podem te e grande parte do transverso, e o hindgut, responsável pela
ser, de maneira geral e abrangente, relacionadas com as seguin­ formação do resto do transverso, descendente, sigmoide, reto
tes situações de comprometimento da sua embriogênese: e parte superior do canal anal.
O midgut e seu respectivo mesentério têm um crescimento
a) defeitos de posição do delgado e colo em virtude de pro­
muito grande, formando alças que penetram no cordão umbi­
blemas na rotação do intestino primitivo, ou de ausência
lical (5a semana) por falta de espaço na cavidade abdominal, e
ou de insuficiência na fixação do mesentério à parede
só mais tarde com o desenvolvimento desta (IO4semana) vol­
abdominal posterior; tam à cavidade peritoneal. Simultaneamente a este movimento,
b) defeito de desenvolvimento das paredes do tubo intestinal o midgut realiza um movimento em rotação anti-horária ao
com prejuízo da permeabilidade de seu lúmen, manifes- redor da artéria mesentérica superior, de modo que a porção
tando-se como atresia} estenose e duplicação; cranial do delgado se posiciona atrás da artéria mesentérica
c) defeitos embriogênicos atingindo apenas determinadas
superior, e a parte caudal ou colo se coloca anteriormente a
linhagens celulares, tais como neurônios (megacolo con­ esta artéria e ao delgado até atingir sua posição definitiva (to­
gênito), epitélio (pólipos), fibra muscular lisa (miopatias pografia normal final).
viscerais), tecido conectivo (doença de Ehlers-Danlos), A fixação de algumas partes do tubo digestório à parede
vasos (hemangiomas); posterior do abdome se deve a encurtamento e reabsorção de
d) persistência de restos embrionários (divertículo de Me- seus respectivos mesos. É o que ocorre com o duodeno, ceco,
ckel); ascendente e descendente. O delgado, o transverso e o sigmoi­
e) erros metabólicos moleculares com interferência prima­ de mantêm seus mesos e suas respectivas inserções na parede
riamente a aspectos de funções (doença meconial da mu- posterior do abdome. Importante lembrar a inserção do me­
coviscidose). sentério, que segue uma linha oblíqua desde a altura do ângulo
É importante assinalar que cada uma das anomalias pode de Treitz até o ceco, formando uma espiral ao redor da artéria
estar associada a outras anomalias digestivas ou extradigestivas, mesentérica superior.
inclusive fazendo parte de síndromes clínicas específicas.
As anomalias congênitas de intestino delgado e grosso po­ ■ Conceito
dem se manifestar já ao nascimento (atresia anorretal), ou mais
tardiamente na infância (estenoses) ou adultícia (hamartomas). Má rotação é a modificação da posição normal do intestino
Algumas, por serem assintomáticas, constituem achados oca­ em decorrência de alguma interferência neste processo rotató­
sionais. rio do desenvolvimento do tubo intestinal.
Serão apresentadas, neste capítulo, as situações clínicas mais Defeito defixação é definido como a insuficiente ou ausente
frequentes. fixação do mesentério na parede posterior do abdome.

■ Frequência
■ DEFEITOS DE ROTAÇÃO E DE FIXAÇÃO Muito comum, estimando-se que haja um caso para cada
DO INTESTINO 6.000 nascidos vivos. É mais frequente no sexo masculino, com
relação 2:1.
De maneira sumária, embriologicamente o intestino primiti­
vo se divide em três partes: o foregut, ou intestino anterior, que
dá origem à faringe, esôfago, estômago e duodeno (primeira
■ Etiologia
e segunda porções); o midgut, ou intestino médio, que forma Nos casos isolados ela é desconhecida. Quando associada a
todo o resto do duodeno, todo o delgado, ceco, colo ascenden­ defeitos de diafragma ou de parede abdominal a herniação do

249
250 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

intestino para dentro destes defeitos impede a rotação e fixação


adequadas do intestino.

■ Diagnóstico pré-natal
O diagnóstico de vólvulo do intestino delgado pelo ultras-
som gestacional (USG) é muito difícil. Quando ocorre oclusão
arterial e necrose da parede intestinal, os sinais são mais evi­
dentes pela presença de perfuração e ascite.

■ Diagnóstico
A apresentação clinica é muito variável, desde formas as-
sintomáticas (de achado ocasional) até quadros clínicos gra­
ves, catastróficos. Ela ocorre em 30% no período pré-natal, de
50 a 75% nos primeiros meses de vida e em 90% até o fim do
primeiro ano de vida. Os casos restantes podem aparecer em
qualquer outra idade. Os sintomas apresentados são vômitos
biliosos, dor e distensão abdominal no andar superior. A pal-
pação abdominal pode mostrar massa representada pelo in­
testino edemaciado.
O vólvulo agudo do midgut} ou vólvulo agudo do intestino
médio, é a forma clínica mais grave deste erro de rotação e fi­
xação do intestino. Nesta situação, o mesentério do delgado,
englobando a artéria mesentérica superior, tem uma base bem
estreita, formando um pedículo fino e muito móvel, facilitan­
do a torção das alças em torno da artéria mesentérica superior.
Esta torção ocasiona obstrução da luz duodenal. Os sintomas
Figura 27.1 Radiografia de estômago e duodeno de paciente com
são os já descritos anteriormente. Se a torção for muito intensa,
defeito de rotação e de fixação do intestino, mostrando o duodeno e
ocasiona estrangulamento das artérias com isquemia e necro­ as primeiras alças jejunais em forma de espiral e localizados à direita
se do intestino, traduzindo-se clinicamente por hematêmese, da coluna vertebral.
evacuações com sangue, choque e septicemia. O quadro clínico
agudo é muito sugestivo de obstrução intestinal e o estudo ra-
diológico simples mostra a imagem de bolha dupla (estômago
e duodeno) com ausência de ar no resto do abdome, podendo
ser confundido com atresia duodenal ou outro problema obs-
■ Tratamento
trutivo em duodeno. O estudo radiológico contrastado alto não O tratamento cirúrgico está sempre indicado na má rotação
deve ser realizado para não piorar o sofrimento de alça e afetar intestinal, inclusive nos casos crônicos e pouco sintomáticos,
a sua viabilidade. Pode ser feito um enema opaco que vai mos­ uma vez que não há como se avaliar qual paciente evoluirá para
trar o ceco localizado à esquerda da coluna, mas nem sempre vólvulo, necrose e em qual idade.
este achado é de fácil interpretação. A videolaparoscopia, atualmente, tem permitido, além da
O vólvulo de intestino médio pode ocorrer de maneira crô­ confirmação diagnóstica, a correção total da má rotação, em
nica e intermitente, desenvolvendo crises de quadro doloroso qualquer faixa etária, além de ser possível fazer a distorção do
abdominal e vômitos; eventualmente, má absorção intestinal vólvulo intestinal.
e déficit de crescimento. O estudo radiológico contrastado alto Na forma aguda emergencial, o tratamento é cirúrgico, por
mostra o duodeno e primeiras alças jejunais à direita da coluna laparotomia, para se aliviar a obstrução, não havendo a necessi­
e descrevendo uma espiral ou imagem em Z. dade de preparo do cólon, uma vez que a área de manuseio é ex-
Algumas vezes, há a formação de bridas, denominadas faixas trínseca à luz intestinal. Entretanto, nos casos crônicos, em que a
(“bandas”) de Ladd, ligando o ceco, situado alto, e o duodeno, cirurgia é eletiva, o preparo do cólon pode facilitar a dissecção.
provocando obstrução duodenal. A cirurgia consiste em redução do vólvulo, rodando-se o
O diagnóstico da má rotação intestinal pode ser também intestino quantas vezes forem necessárias até exposição de ceco
realizado pelo ultrassom abdominal focando as posições da e ascendente, que deverão ser fixados.
artéria mesentérica superior e a veia mesentérica superior. Em A cirurgia para correção de vólvulo com isquemia de alça
condição normal, a artéria mesentérica superior está à esquerda é controversa na literatura, no sentido de retirada da alça com
da veia mesentérica superior e, quando ocorre má rotação, a sofrimento imediatamente, ou desfazendo-se o vólvulo e aguar­
artéria mesentérica superior fica à direita da veia mesentérica dando-se por 12 ou 24 h a fim de se avaliar a viabilidade da alça
superior. intestinal acometida. Avaliações criteriosas devem ser feitas no
sentido de se permitir o mínimo de ressecções, impedindo-se a
instalação de síndrome do intestino encurtado, que piora bas­
■ Condições associadas tante o prognóstico.
Várias condições estão associadas à má rotação intestinal, Em geral, o prognóstico é bom, exceto naqueles relaciona­
como hérnia diafragmática, onfalocele, gastrosquise, atresias dos com complicações por isquemia, síndrome do intestino
intestinais múltiplas, malformação do reto e ânus, além de al­ encurtado ou complicações decorrentes do uso de nutrição
terações de trato geniturinário. parenteral.
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 251

va obstrutiva que são: poli-hidrâmnio, aumento da biometria


■ ATRESIA E ESTENOSE DO INTESTINO DELGADO abdominal e retardo do crescimento fetal.
Na atresia jejunoileal, observa-se também dilatação das alças
■ Conceito intestinais, com mudança constante de forma e com movimen­
Atresia é uma anomalia congênita do desenvolvimento do tos peristálticos intensos e incessantes. O diagnóstico pode ser
duodeno e do intestino delgado, resultando em obstrução com­ suspeitado na 26a semana de vida fetal e confirmado na 32a se­
pleta do lúmen do intestino. mana. O USG não permite determinar o local da atresia, nem
se ela é única ou múltipla e também não indica a extensão do
Estenose é quando esta mesma anomalia causa apenas o
intestino não comprometido.
estreitamento do lúmen do intestino.

■ Frequência ■ Diagnóstico
As atresias e estenoses do duodeno e do delgado levam a
A frequência das atresias e estenoses do duodeno e do intes­
processo obstrutivo e subobstrutivo, respectivamente.
tino delgado juntas variam de 1:2.000 a 1:6.000 nascimentos.
Pode-se suspeitar da presença de obstrução do trato alimen­
As atresias são mais comuns do que as estenoses em am ­
tar alto do feto em toda grávida com poli-hidrâmnio, sendo
bas as localizações, duodeno e delgado, e podem ser simples
confirmada pelo ultrassom pré-natal em cerca de 30 a 59% dos
ou múltiplas.
casos, já na 22a semana de gravidez.
Levando-se em conta o total dos casos de atresias e de es­
Ao nascimento, os recém-nascidos com atresia duodenal
tenoses, a distribuição das frequências é a seguinte, respecti­ podem apresentar como primeiro sinal vômitos, frequente­
vamente:
mente biliosos, geralmente poucas horas após o nascimento.
A inspeção mostrará abdome distendido e peristaltismo visível
Duodeno Jejuno íleo apenas no seu andar superior, devido a distensão do estômago,
Atresias 40% 25% 35% enquanto o restante do abdome será escavado. Poderá ocorrer,
também, ausência de eliminação de mecônio. O recém-nasci­
Estenoses 75% 5% 20% do, geralmente, apresenta sinais de desidratação e distúrbios
metabólicos. A colocação de sonda nasogástrica, além de evi­
Classificação segundo Cray e Skandalakis: tar a aspiração, através da saída de material bilioso, confirma
a obstrução intestinal. Cerca de 15% dos casos de obstrução
Tipo I - obstrução do lúmen do intestino delgado, devido à duodenal congênita ocorrem proximalmente ao dueto biliar e
presença de uma membrana constituída das camadas mucosa os vômitos não são biliosos.
e submucosa. A estenose duodenal pode passar despercebida para os pais e
Tipo II - presença de uma fenda separando o intestino del­ para os médicos, até uma fase tardia da infância. Alguns casos
gado em porções proximal e distai, unidas entre si por um li­ de estenose duodenal não são reconhecidos até a vida adulta,
gamento fibroso curto. e essa estenose é diagnosticada devido às complicações tardias,
Tipo Illa - o defeito atinge também o mesentério com au­ tais como megaduodeno, alterações de motilidade, refluxo duo-
sência de tecido de conexão entre os fundos cegos dos segmen­ denogástrico, gastrite, úlcera péptica, refluxo gastresofágico,
tos do intestino. cisto de colédoco, colelitíase e colicistite.
Tipo Illb - atresia do delgado proximal e ausência de artéria O diagnóstico de obstrução duodenal pode ser confirmado
mesentérica superior distai. O intestino delgado distai ao seg­ por raios X simples de abdome, em pé, revelando o sinal clássico
mento atrésico assume uma forma em espiral e recebe o supri­ de dupla bolha da obstrução duodenal. Se não se identificar a
mento sanguíneo da artéria ileocólica e cólica direita inferior. presença de gás abaixo do ligamento de Treitz, provavelmente
Tipo IV - atresias múltiplas do intestino delgado. o diagnóstico será de atresia duodenal. Em alguns casos, é pos­
sível constatar, em raios X simples de abdome, sinal evidente
■ Etiologia de calcificações, que sugerem associação com perfuração duo­
denal intrauterina.
A etiologia da atresia e da estenose do duodeno e do jejuno, Os primeiros sintomas no recém-nascido são vômito bilio­
secularmente aceita como falha na recanalização do lúmen in­ so e distensão abdominal progressiva e ausência ou retardo na
testinal, a partir de seu estágio inicial de cordão sólido, levando eliminação do mecônio, geralmente manifestados nas primei­
a anomalias intrínsecas, incluindo a atresia (em fundo cego), ras 24 h de vida. Porém, em 20% dos casos, esta manifestação
a estenose (estreitamento), ou a formação de uma membrana poderá se desenvolver no 2o ou 3o dia de vida. Em casos de
mucosa, é, atualmente, de validade discutível. diagnóstico mais tardio, o recém-nascido poderá apresentar
Para o duodeno proximal, que é derivado do foregut, a etio­ desidratação, hiperbilirrubinemia não conjugada e pneumonia
logia dessas anomalias não estão, ainda, bem esclarecidas. Para aspirativa. A distensão abdominal é observada em cerca de 78%
o duodeno distai, jejuno e íleo, todos oriundos do midguty a dos casos das atresias jejunais e em 98% das atresias ileais. O
etiologia dessas anomalias seria consequência de acidentes grau de distensão abdominal é determinado pelo nível da obs­
vasculares na vida intrauterina, proposta por vários autores trução: quanto mais baixo o nível da obstrução, mais pronun­
nas últimas quatro décadas. ciada e difusa será a distensão. Nos casos de diagnóstico tardio,
ou na presença de perfuração intestinal, a distensão abdominal
pode ser muito mais intensa, comprometendo a respiração do
■ Diagnóstico pré-natal recém-nascido.
O diagnóstico pré-natal das malformações digestivas pode O diagnóstico de atresia jejunoileal é confirmado por raios X
ser realizado por meio do ultrassom gestacional (USG). Existem simples do abdome, com sinais de obstrução intestinal em cerca
alguns marcadores indiretos dos tipos de malformação digesti­ de 95% dos casos. O diagnóstico de atresia jejunoileal é baseado
252 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

na interrupção da progressão sequencial do ar nas alças intes­


tinais, já na 3d hora de vida, e a presença de alças distendidas
■ AGENESIA DE CÓLON
imediatamente proximal à atresia jejunoileal. Na atresia jejunal,
nota-se diminuição da distribuição gasosa e a presença de nível > Conceito
líquido em alças do intestino delgado. Se o local da obstrução Agenesia é a ausência total de formação de um órgão. A age-
intestinal é completamente preenchido com fluido, o nível lí­ nesia de retossigmoide é a única agenesia do trato gastrintestinal
quido pode ser discreto ou ausente, e só se tornará evidente após descrita no homem compatível com a vida. É rara, ocorrendo
descompressão intestinal com sonda nasogástrica. em 1/50.000 gestações. O sexo masculino é o mais acometido,
O enema opaco pode ser realizado com o objetivo de veri­ na frequência de 2 a 3/1.
ficar o calibre do cólon, excluir presença de atresia colônica e, A agenesia de cólon está sempre associada à anormalidade
também, para localizar a posição do ceco como um indicador caudal (sirenomelia), estando o trato urinário inferior também
de defeito de rotação. ausente.
O quadro clínico de estenose jejunoileal dependerá do nível
e do grau da estenose, e o diagnóstico poderá ser retardado por
muitas semanas ou até anos após o nascimento. Casos de este­ ■ Etiologia
nose acentuada desenvolvem quadro semelhante ao da atresia,
porém aqueles com estenose moderada evoluem com episódios Através de mecanismo não totalmente esclarecido, a por­
intermitentes de quadros suboclusivos, com dor abdominal, ção do trato gastrintestinal irrigada pela artéria mesentérica
vômitos biliosos e dificuldade no crescimento. inferior não se desenvolve, e o cólon descendente termina em
O diagnóstico de estenose será feito se esta possibilidade fundo cego.
for aventada e meticulosamente investigada, através de estudo
radiológico contrastado que revelará a área estenótica.
■ Diagnóstico
A agenesia de cólon está sempre associada a outras malfor­
■ Condições associadas mações graves, levando a prognóstico letal.
As obstruções duodenais congênitas são acompanhadas de
uma ou mais anomalias em cerca de 38% dos casos. Têm sido
descritas as atresias e estenoses duodenais associadas à síndro- ■ Tratamento
me de Down (30-69%), doença cardíaca congênita (35%), atre­ Há o relato de apenas uma criança tratada cirurgicamente,
sia esofágica (8%), pâncreas anular (35%), ânus imperfurado com defeitos típicos de sirenomelia, em que o sistema genitu-
(6%), má formações renais (5%), atresia biliar (2%), duplica­ rinário estava presente, mas fúncionalmente deficiente devido
ção jejunal (1%), má rotações (36%), veia porta anteriorizada a inervação inadequada.
(4%), como também fístula retovesical, obstrução da junção
ureteropélvica, genitália ambígua, sindactilia, síndrome de Cor-
nélia de Lange (2%), anomalias vertebrais (2%) e síndrome de
VACTERL (4%). ■ ATRESIA E ESTENOSE DE CÓLON
Em 5 a 12% dos casos de atresia jejunoileais, há associação
com peritonite meconial. ■ Conceito
Atresia e estenose de cólon são malformações congênitas
■ Tratamento do desenvolvimento deste órgão que levam à oclusão total ou
parcial do lúmem do intestino grosso, podendo atingir múlti­
Embora a atresia duodenal seja uma emergência, o paciente
plas áreas ou uma única área.
deverá ser estabilizado hidroeletroliticamente e a operação será
eletiva. A passagem de sonda nasogástrica é importante para
descomprimir o estômago e afastar atresia esofágica. Deve-se ■ Frequência
iniciar a administração de nutrição parenteral e, a seguir, afastar
as anomalias congênitas associadas mais comuns. As atresias de cólon são mais raras do que as de delgado, mas
A operação de escolha é a ressecção da parte atrésica termi­ são 10 vezes mais comuns do que as estenoses colônicas.
nal com anastomose terminoterminal. É importante a identi­
ficação da localização da papila de Vater, e a compressão com
cuidado da vesícula, para se afastar a atresia biliar concomitante.
■ Classificação
Se houver presença de pâncreas anular, o tecido pancreático não As atresias de cólon podem ser classificadas em quatro tipos,
deve ser dividido, para se evitar a formação de fístula. à semelhança das atresias de delgado:
Nos casos de membranas duodenais, mais recentemente vem
Tipo I - oclusão por membrana de espessura variável.
sendo usada a ablação endoscópica com laser.
Tipo II - dois fundos cegos conectados por um cordão só­
As atresias jej unais e ileais também são corrigidas cirurgi­
lido.
camente com a realização de ressecção da zona atrésica e anas­
Tipo III - dois fundos cegos separados, e conexão mesen­
tomose terminoterminal.
térica descontínua.
A sobrevida dos pacientes após cirurgia das atresias duode­
Tipo IV - atresias múltiplas.
nal, jejunal e ileal é de aproximadamente 90% e depende das
anomalias associadas. Alguns casos complicam com septicemia As atresias tipo I são mais comuns em cólon descendente e
e falência hepática secundária e com a NPP, particularmente sigmoide; as tipo II, em cólon ascendente associadas a vólvulo
aqueles casos associados à síndrome do intestino encurtado. de cólon direito; e as tipo IV são extremamente raras.
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 253

colostomia proximal ou ileostomia. A reconstrução do trân­


■ Etiologia sito intestinal poderá ser efetuada após o segundo semestre
Durante muito tempo, acreditou-se que as atresias ocorriam de vida. A desproporção entre os segmentos proximal e distai
por falta de recanalização do intestino primitivo, entretanto pode ocorrer, mas não acomete o funcionamento do segmen­
hoje essa hipótese foi substituída pela teoria da interrupção to distai.
vascular, que pode ser comprovada através das seguintes obser­ A introdução da dieta com água e glicose poderá ser iniciada
vações: o intestino do embrião não é sólido, a presença de lanu- após cinco dias da cirurgia, a fim de se estimular o peristaltis-
go e pigmento biliar no segmento pós-atresia comprova que mo e se verificar a possibilidade de introdução de alimentação
esse intestino foi pérvio em algum momento da vida embrioná­ líquida. Essa dieta deve, a princípio, ser isenta de lactose ou,
ria e, finalmente, porque a ligação experimental da vasculariza- preferencialmente, do tipo elementar, com aumento lento e
ção mesentérica em fetos de animais leva à atresia intestinal. gradual do volume até a alta hospitalar.
As melhoras tecnológicas que permitem diagnóstico e tra­
tamento adequados além do suporte nutricional, ventilatório e
■ Diagnóstico pré-natal de controle de infecção têm permitido maior sobrevida destas
O diagnóstico de atresia de cólon no período pré-natal é crianças, com grande diminuição da mortalidade, sendo tanto
muito difícil pelo USG. O poli-hidrâmnio costuma ser mode­ melhor o prognóstico quanto mais baixo o acometimento do
rado, pois a absorção do líquido amniótico ocorre suficiente­ órgão. Apesar da baixa mortalidade relacionada com a atresia
mente no delgado. e estenose de cólon, deve-se estar atento para as malformações
associadas que podem complicar o prognóstico.

■ Diagnóstico
Ao nascimento, a criança pode apresentar grau variável de ■ ATRESIA DE RETO E ÂNUS
distensão abdominal, com falência na eliminação de mecônio
e desconforto respiratório variável com o grau de distensão ■ Conceito
abdominal. As anomalias do reto e ânus ocorrem devido à falência da
Raios X simples de abdome na atresia colônica mostram dis­ separação do reto e do sistema urogenital ou à falência da rup­
tensão gasosa das alças intestinais, sendo tanto maior a quanti­ tura da membrana anal durante a fase de desenvolvimento do
dade de alças distendidas e número de níveis hidroaéreos ob­ embrião. Essas anomalias em geral incluem conexões fistulosas
servados, quanto mais baixa a obstrução. Segundo Maksoud, entre o reto e o sistema urogenital. O ânus pode ser imperfura-
o diagnóstico pode ser feito exclusivamente através de raios X do, estenótico ou de localização anômala. As anomalias anor-
simples de abdome, reservando-se o enema opaco para casos retais podem interferir com a continência, e/ou a eliminação
especiais de dúvida diagnóstica com megacólon agangliônico fecal, ou ainda comprometer a integridade do trato urinário e
ou íleo meconial. genital. As anomalias que interferem com a passagem de fezes
Na estenose do cólon, por caracterizar uma síndrome semi- constituem emergência do período neonatal. Suspeita-se das
obstrutiva dependente do diâmetro de abertura da estenose, os outras anomalias pelos distúrbios anatômicos perineais ou pela
raios X simples de abdome demonstram níveis hidroaéreos e o passagem de material fecal através de uretra ou vagina.
enema opaco, alças estenosadas, com distensão das alças a mon­
tante. A colonoscopia pode ser útil no diagnóstico.
O diagnóstico diferencial deve ser realizado com doença de ■ Etiologia
Hirschsprung, síndrome do mecônio espesso, íleo meconial, A atresia anorretal alta resulta da falha na separação da por­
ou qualquer outra síndrome obstrutiva. ção cloacal do intestino primitivo em seio urogenital e reto.
A atresia anorretal baixa resulta da separação incompleta
da parte inferior do seio urogenital do reto, ou da falência da
■ Condições associadas ruptura da membrana anal.
Algumas síndromes genéticas específicas, como a sirenome- As atresias anorretais ocorrem na incidência de 1/5.000 nas­
lia e atresias intestinais múltiplas, têm a atresia de cólon como cidos vivos, com predominância do sexo masculino, em uma
parte integrante. relação de 3/1. A maioria dos casos são esporádicos e, apesar de
A associação com defeitos de parede, vólvulo, má rotação e não haver descrição de hereditariedade, existe recorrência em
anormalidades vasculares ocorre em 1/3 dos pacientes, pois são algumas famílias. A presença de anomalias anorretais é comum
estas, muitas vezes, as causas primárias das atresias. em inúmeras síndromes genéticas, e dois fatores são reconhe­
cidamente teratogênicos para essas anomalias, a talidomida e
o diabetes materno.
■ Tratamento
O tratamento das atresias e das estenoses é cirúrgico. Os ■ Classificação
cuidados pré-operatórios incluem a descompressão abdominal
através de sonda nasogástrica aberta, termorregulaçâo, correção As atresias anorretais têm anatomia bastante variada e são
dos distúrbios hidreletrolíticos e antibioticoterapia, se houver classificadas de acordo com o nível da atresia, e em subgrupos
sinais de infecção. O uso de nutrição parenteral está indicado, dependendo da presença ou ausência de fístulas:
uma vez que a criança deverá permanecer em jejum por tempo • Altas - a atresia ocorre acima do músculo elevador do
prolongado após a cirurgia. ânus e pode apresentar-se sem fístula ou com fístula re-
O tratamento cirúrgico constitui-se na ressecção do segmen­ touretral (mais comum em menino), retovaginal, reto-
to atrésico ou estenosado, com sepultamento do coto distai e vesical ou retocloacal.
2 54 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

• Intermediárias - o reto termina com o músculo puborre-


tal, sem fístula ou com fístula retouretral (mais frequente
■ Frequência
em menino), retovestibular ou retovaginal. As duplicações do delgado são mais encontradas no íleo
• Baixas - a atresia ocorre abaixo do músculo puborretal, (30,5% dos casos) do que no jejuno (13%) e duodeno (4,3%).
sem fístula ou com fístula perineal, anovulvar ou ano- As duplicações múltiplas do delgado ocorrem em 15 a 20%
vestibular. dos casos.

■ Diagnóstico pré-natal ■ Classificação


O diagnóstico, quando possível, é sempre tardio, na 34a se­ Podem ser classificadas em dois tipos (Ver Figura 27.2):
mana. A dilatação do cólon é situação pouco frequente. 1) Duplicações císticas fechadas, mais comuns: não se comu­
nicam com o intestino e são de menor comprimento.
■ Diagnóstico 2) Duplicações tubulares: comunicam-se com o lúmen in­
testinal através de uma ou duas bocas, geralmente não
A simples inspeção do períneo permite detectar atresias ultrapassam 20 cm, embora eventualmente possam aco­
anorretais; entretanto, detalhes dos defeitos anatômicos re­ meter longos segmentos.
querem estudos clínicos e radiológicos posteriores. Os achados
perineais incluem ausência de ânus, localização anômala do A mucosa gástrica está presente em 10 a 20% das duplica­
ânus e fístulas. Em muitos casos, a genitália externa também é ções do delgado.
malformada. O exame perineal pode dar evidências da presença
de inervação do esfíncter retoanal. O estímulo da contração da ■ Etiologia
musculatura perineal seguida de uma contração na área anal
pode indicar esfíncter intacto. A contração do músculo elevador A etiologia da duplicação não está esdarecida.
do ânus tende a empurrar o ponto anal para a frente, a con­
tração do esfíncter externo causa uma retração puntiforme do ■ Diagnóstico pré-natal
ponto anal. A aparência externa perineal pode, em um pequeno
O USG só detecta as duplicações císticas aparecendo como
grupo de crianças com atresia anorretal, simular normalidade,
imagens arredondadas, hipoecogênicas, m udando de forma
requerendo exame clínico minucioso para a detecção da ausên­
nos exames sucessivos.
cia orificial em depressão cutânea no local do ânus.
Raios X com a criança em posição invertida (invertograma)
dão a distância entre o fundo de saco retal e a marca anal, atra­ ■ Diagnóstico
vés do contraste pelo ar. Quando esta distância é inferior a 1 cm Os sintomas clínicos podem ser muito variáveis e dependem
(malformação baixa), a correção perineal é possível. da localização da duplicação, do seu tipo (cístico ou tubular),
e das estruturas adjacentes, estando os sintomas geralmente
■ Condições associadas presentes no primeiro ano de vida, ou, mais raramente, com o
advento de complicações, na adolescência ou adultícia.
As anomalias anorretais podem ocorrer associadas a algu­ As duplicações císticas aumentam progressivamente de ta­
mas malformações urogenitais, esqueléticas, gastrintestinais, manho à medida que ocorre a produção de muco no interior de
cardiovasculares, de parede abdominal, palato fendido, me- seu lúmen, e podem se apresentar com sintomas de obstrução
ningomielocele e outras. intestinal, devido à compressão sobre o intestino adjacente,
ou com sintomas secundários à ulceração péptica da mucosa
■ Tratamento ectópica. Algumas duplicações císticas intramurais podem ser
responsáveis por ocorrência de intussuscepção. Outras dupli­
O tratamento das malformações é cirúrgico, sendo a opção cações císticas pequenas são identificadas acidentalmente du­
cirúrgica definida pela presença ou ausência de fístulas e pelo rante uma cirurgia eletiva ou necropsia.
sexo do recém-nascido. As duplicações tubulares são longas e podem se comunicar
A cirurgia pode ser realizada em um único tempo nas mal­ com o lúmen do intestino adjacente na sua porção distai, pro-
formações baixas, ou em vários tempos nas malformações in­ ximal ou ambas. A duplicação comunicante pode ser assinto-
termediárias e altas, com colostomia no primeiro tempo e, a mática, porém pode apresentar sinais clínicos de obstrução
seguir, correções das fístulas, malformações perineais e genitais intestinal, hemorragia, perfuração e, mais raramente, intus­
até reconstrução do trânsito intestinal em uma última etapa. suscepção.
O diagnóstico poderá ser feito com o auxílio do ultrassom
de abdome com bons resultados, sendo alguns casos diagnosti­
■ DUPLICAÇÃO DO INTESTINO DELGADO cados no período pré-natal. Outros estudos radiológicos como
raios X simples de abdome, enema opaco e trânsito intestinal
■ Conceito podem ser importantes para o diagnóstico diferencial com vól-
vulo, atresia, estenose e outras obstruções congênitas dos in­
A duplicação dos intestinos delgado e grosso é um desdo­ testinos delgado e grosso.
bramento do intestino em determinado segmento do tubo di-
gestório e, morfologicamente, se caracteriza por estar sempre
na borda mesenterial do intestino. Apresenta camada muscular
■ Condições associadas
bem desenvolvida e a camada epitelial semelhante ao epitélio Podem ocorrer associações com defeitos vertebrais, como
de alguma parte do trato alimentar. duplicação da coluna vertebral e espinha bífida. Outras associa­
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 255

ções incluem: retardamento mental, meningomielocele, pulmão


direito bilobar, divertículo de Meckel e duplicidade genital e
■ Frequência
do trato urinário. As duplicações de intestino grosso correspondem de 16 a
30% das duplicações intestinais.
■ Tratamento
O tratamento da duplicação sintomática do intestino del­
■ Classificação
gado consiste na ressecção da duplicação, o que nem sempre é As duplicações podem ser não comunicantes ou comuni­
possível, dependendo de o suprimento sanguíneo ser comum cantes com o lúmen intestinal, conforme Figura 27.2.
ou não ao intestino adjacente. As duplicações não comunicantes formam cistos, cujas pa­
redes contêm todas as camadas habituais do intestino (Figura
27.2A), e ocorrem três vezes mais frequentemente do que as
■ DUPLICAÇÃO DO CÓLON comunicantes.
As duplicações comunicantes podem se constituir de dupli­
cações tubulares que se localizam de forma adjacente ao com­
■ Conceito primento do segmento intestinal ou se estendem ao longo do
As duplicações do cólon, que podem ser comunicantes ou seu comprimento (Figura 27.2B e C), ou ainda por septos que
não, seguem os mesmos padrões estruturais e variações daque­ dividem o cólon em todo o seu comprimento ou em um seg­
las descritas para o intestino delgado. mento localizado (Figura 27.2D e E).

■ Etiologia ■ Diagnóstico
Os mecanismos patogênicos que levam à duplicação intes­ A duplicação colônica atinge principalmente ceco (52%),
tinal ainda são bastante discutidos em literatura. A duplicação seguindo-se sigmoide (28%), transverso e descendente (8% cada
ocorreria na fase inicial do desenvolvimento do tudo gastrintes- um) e ascendente (4%), com igual predileção entre os sexos.
tinal, quando então o intestino primitivo se dividiría em duas Embora 10% das duplicações possam permanecer assinto-
partes. Esse fato é reforçado pela coincidência de duplicação máticas por toda a vida e se constituir apenas de achados ocasio­
de ureter e bexiga nestes pacientes. nais, quando sintomáticas 25% delas se manifestam no primeiro

A - D u p l i c a ç ã o c is tic a B - D u p li c a ç ã o t u b u la r a d j a c e n t e a o C - D u p l i c a ç ã o t u b u la r a o lo n g o d o
in t e s t in o , c o m u n i c a ç ã o d is ta i c o m p r i m e n t o p r o x im a l

D- D u p lic a ç ã o p o r s e p to ,
c o m u n i c a ç ã o d u p la

E - D u p li c a ç ã o p o r s e p t o e s t e n d e n d o - s e
p o r t o d o o c ó lo n

Figura 27.2 Configuração esquemática dos vários tipos de duplicação de intestino grosso (equivale, também, ao delgado).
256 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

mês de vida, 50% até os seis meses de idade e praticamente 90% de ânus bipartido ou acessório, podendo o diagnóstico ser sus­
terão se mostrado sintomáticas aos dois anos de idade. peitado pelo simples exame clínico do períneo. O enema opaco
As duplicações do cólon, além de serem heterogêneas na sua demonstra duplicação quando há comunicação distai, mas não
forma de apresentação, podem ocorrer em qualquer segmento contrasta aquelas duplicações com hóstio proximal, que poderá,
colônico associadas a fístulas ou não, portanto a sintomatolo­ no entanto, ser detectado pelo trânsito intestinal.
gia vai depender da sua forma de apresentação, localização e
presença de fístulas.
Duplicações não comunicantes podem ser assintomáticas
■ Tratamento
ou se apresentar com aumento de volume abdominal e massa Passarg e Stevenson acreditam que, muito embora as dupli­
palpável, uma vez que a mucosa do segmento é funcionante e há cações possam ser e permanecer assintomáticas, e o diagnóstico
acúmulo de secreções intestinais que não podem ser drenadas ocorrer de modo ocasional, a ressecção cirúrgica está indicada,
por falta de comunicação. Se o volume do segmento intestinal devido ao risco de quadro de abdome agudo grave, como perfu­
duplicado for grande, pode haver fenômeno compressivo e obs- ração, vólvulo, sangramento e invaginação. Dois procedimentos
trutivo. O ultrassom de abdome neste caso mostra a presença podem ser adotados: ressecção do septo, se não há evidências de
de massa cística, correspondente ao segmento duplicado não obstrução; ou ressecção da duplicação e do intestino adjacente
comunicante. a partir da inserção no mesentério.
Duplicações comunicantes tubulares adjacentes ao lúmen O prognóstico é bom, devendo-se estar atento às anomalias
(Figura 27.2B) permitem bom esvaziamento do conteúdo se- associadas, à correção e manutenção do equilíbrio hidreletrolíti-
cretado e menor possibilidade de sintomatologia. Entretanto, co e nutricional. Grandes ressecções devem ser evitadas devido
segmentos tubulares maiores que correm de forma adjacente ao risco de síndrome do intestino encurtado.
ao comprimento do cólon (Figura 27.2C) permitem acúmulo
de secreções e entrada de material fecal, com menor possibili­
dade de drenagem, levando mais facilmente à sintomatologia ■ DESORDEM DE DESENVOLVIMENTO
obstrutiva, com massa palpável na região acometida e risco de
perfuração. O orifício de entrada desse segundo segmento fa­ DO SISTEMA NERVOSO ENTÉRICO
vorece a ocorrência de invaginações e sangramento.
Duplicações comunicantes com septo vão apresentar sin­ Estão incluídas neste item três condições: a) displasia neuro-
tomatologia condicionadas à permeabilidade dos lumens (Fi­ nal intestinal; b) parada de maturação dos plexos mioentéricos;
gura 27.2D e E). Se ambos forem pérvios, a possibilidade de e c) doença de Hirschsprung.
fenômeno obstrutivo é rara; no entanto, se um dos lumens As duas primeiras condições são responsáveis por quadro
terminar em fundo cego, a impactação de fezes ocorre, levando clínico semelhante ao da síndrome de pseudo-obstrução intes­
a aumento de volume abdominal, massa palpável correspon­ tinal crônica e serão descritas juntas.
dente ao segmento, e processo suboclusivo que pode evoluir
para oclusão. ■ Pseudo-obstrução intestinal crônica
Duplicações que se comunicam com uretra, bexiga ou vagina
levam à eliminação de material fecal por essas estruturas. Du­ ■ Conceito
plicações podem se comunicar com o períneo por intermédio É uma síndrome caracterizada por episódios recorrentes
de manifestações clínicas sugerindo obstrução intestinal, na
ausência de oclusão mecânica do intestino.

■ Etiologia e classificação
A pseudo-obstrução intestinal crônica pode ocorrer como
uma doença primária ou como manifestação secundária de ou­
tra doença (p. ex., hipotireoidismo, esclerodermia).
As formas primárias são congênitas e, sob ponto de vista
histológico, podem corresponder a uma miopatia visceral ou
a uma neuropatia visceral.
Na displasia neuronal intestinal, observa-se um defeito de
desenvolvimento caracterizado por hiperplasia dos plexos ner­
vosos entéricos e uma anormal distribuição de elementos neu-
rais. Na parada de maturação dos plexos mioentéricos, estes
podem se apresentar com número reduzido de neurônios, ou
com número aparentemente normal, mas com alterações ul-
traestrut urais.
Em ambas as situações, a alteração funcional é a mesma,
induzindo um movimento propulsivo ineficiente e incapaz de
fazer o fluido intestinal progredir distalmente.
Na minoria dos casos, são de caráter hereditário (autossômi-
co recessivo ou dominante), mas frequentemente representam
casos esporádicos.

■ Diagnóstico
Figura 27.3 Enema opaco de criança com duplicação de sigmoide Os pacientes apresentam quadro clínico variado. Em alguns
com comunicação distai. pacientes, a apresentação é leve, com sintomas de desconforto,
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 257

distensão abdominal e hábito intestinal irregular, com longos Há estudos experimentais em cobaias portadoras de pseudo-
períodos de constipação intestinal, intercalados por diarréia. Po­ obstrução intestinal utilizando marca-passo elétrico colocado no
rém, há pacientes com sintomas e sinais graves, representados estômago e intestino, com o objetivo de estudar a indução da mo-
por vômitos de repetição, dilatação de alças intestinais e impos­ tilidade digestiva e sua possível aplicação futura nos pacientes.
sibilidade em tolerar alimentos VO. O início dos sintomas, geral­ Nos casos em que o acometimento é restrito ao cólon, a
mente distensão abdominal, ocorre desde o nascimento. Os sin­ colectomia total pode ser realizada, com cura total. Nos casos
tomas podem melhorar com o aumento da idade do paciente. de pseudo-obstrução intestinal acometendo todo o delgado, e
O exame inicial consiste em raios X simples e contrastados irresponsivos ao tratamento, indica-se transplante intestinal.
do intestino delgado e grosso, que poderão revelar dilatação Lembrar que o comprometimento de outros órgãos como fí­
intestinal segmentar ou generalizada. gado cirrótico por NPP por tempo prolongado, gastroparesia,
Se o estudo radiológico não for esclarecedor, há necessidade principalmente em crianças com gastrostomia por longo tem­
de se realizarem estudos manométricos e biopsias para averi­ po, e acesso venoso limitado por longos anos de NPP podem
guação histológica dos plexos neuronais. Dentro dos recur­ inviabilizar o processo de transplante.
sos disponíveis, a manometria antroduodenal poderá mostrar
alterações sugestivas do processo, assim como a manometria ■ Complicações
anorretal. O estudo histológico de mucosa (obtida por biopsia As crianças com pseudo-obstrução intestinal podem de­
endoscópica ou pinças de sucção) e de peças cirúrgicas é im­ senvolver vólvulo e, às vezes, necessitam de correção cirúrgica
portante para a determinação do tipo de desordem neuronal de urgência.
ou glial do caso em estudo, através de colorações específicas e
por imuno-histoquímica.
■ Megacólon aganglionar
■ Condições associadas ■ Conceito
Anormalidades do trato urinário, em particular bexiga neu- O megacólon aganglionar, também conhecido como me­
rogênica, podem estar associadas a pseudo-obstrução intes­ gacólon congênito ou doença de Hirschsprung, é uma doença
tinal. congênita que se caracteriza por suboclusão intestinal crôni­
ca primária, que ocorre por ausência congênita dos gânglios
■ Tratamento parassimpáticos mioentéricos de Auerbach e submucosos de
Inicialmente, é importante estabelecer o tipo de distúrbio Meissner.
neuronal e a gravidade do caso para se estabelecer o esquema
terapêutico. Este visa a atender o suporte nutricional adequado ■ Etiologia
e a prevenir complicações. O megacólon aganglionar ocorre por interrupção da migração
As complicações mais comuns são esofagite péptica e sobre- craniocaudal dos neuroblastos da crista neural até a parede intes­
crescimento bacteriano. Este último pode ser responsável por tinal, por volta da 12asemana de vida intrauterina, ocasionando
quadro de diarréia crônica e deve ser tratado com antibióticos incoordenação peristáltica e obstrução ao trânsito intestinal.
e metronidazol em intervalos regulares, além de oferecer dieta Estudos recentes demonstram a existência de três genes res­
hipofermentativa. Anorexia, náuseas e vômito são frequentes e ponsáveis pela doença, e 10% dos casos tem características he­
impedem aporte nutricional adequado. Cerca de 50% dos casos reditárias e o restante se apresenta na forma de mutação livre.
em crianças se beneficiam com a dieta oferecida por gastros- Estudos genéticos têm demonstrado casos familiares com gene
tomia e com infusão lenta de fórmulas elementares e semiele- autossômico dominante de penetração incompleta para a forma
mentares, embora a oferta em bolo também seja possível em total e gene recessivo de baixa penetrância na forma clássica.
alguns casos. Se houver comprometimento intenso do estôma­
go, a sonda poderá ser colocada no jejuno. Estes estornas são ■ Classificação
úteis para a descompressão quando a distensão abdominal se De acordo com o comprimento e localização do segmento
tornar exagerada. aganglionar, a doença pode ser classificada em quatro formas
Nutrição parenteral muitas vezes é requerida para a m a­ diferentes:
nutenção do estado nutricional, entretanto uma dieta enteral
mínima deve ser mantida. Lembrar que a morbidade e mor­ • Longa ou clássica - o segmento aganglionar se estende
talidade relacionadas com a nutrição parenteral são elevadas. do reto até o sigmoide.
Os distúrbios metabólicos mais comuns são hipopotassemia e • Total - o segmento aganglionar se estende por todo o có­
hipocalcemia. É frequente os pacientes desenvolverem desnu­ lon, podendo também o íleo terminal ser aganglionar.
trição proteico-calórica e hipovitaminose B12. • Curta - a aganglionose está restrita à porção distai do
Todas as drogas disponíveis atualmente no mercado para reto.
o tratamento da pseudo-obstrução intestinal crônica não são • Ultracurta - a aganglionose restringe-se ao esfíncter in­
eficazes no controle dos sintomas clínicos. O uso de procinéti- terno do ânus.
cos pode ser útil. Eles induzem a liberação de acetilcolina pelos
neurônios entéricos que, por sua vez, vai estimular os músculos, ■ Diagnóstico pré-natal
restabelecendo parcialmente o trânsito intestinal. Não pode ser feito pelo USG. A única possibilidade seria nos
Muitas novas drogas estão sob investigação, tais como ago- casos de aganglinose do colo total, o que provocaria dilatação
nistas da serotonina, agentes antidopaminérgicos, antagonistas do delgado e poli-hidrâmnio.
da colecistocinina, agonistas e antagonistas opiáceos e vários
derivados macrolídeos. ■ Diagnóstico
Os agonistas dos receptores da serotonina são aplicados na O megacólon aganglionar ocorre em 1/5.000 nascidos vi­
pseudo-obstrução intestinal por sua ação específica sobre o es­ vos, havendo predileção para o sexo masculino na proporção
vaziamento gástrico, com destaque o Tegaserode. de 3,9/1 nos casos esporádicos.
258 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

O megacólon aganglionar na forma clássica é a forma mais mento normal, ganglionar, é secundária ao acúmulo de
comum da doença e ocorre em 80% dos casos. O transverso fezes.
e o cólon direito estão acometidos em 10 a 20% das vezes. O • A quantidade de contraste deve ser pequena, pois gran­
megacólon aganglionar total ocorre em apenas 3% dos casos, des quantidades de contraste impedem a individualização
sendo a verdadeira incidência das formas curta e ultracurta dos segmentos.
desconhecida, devido aos critérios diagnósticos não uniformes • O perfil é a melhor posição para se realizar a radiografia,
empregados pela literatura. pois permite melhor visualização do retossigmoide.
O quadro clínico é variável com o comprimento do seg­ • Na presença de estudo radiológico inconclusivo no re­
mento aganglionar. cém-nascido, repetir o exame após uma ou duas sema­
A forma clássica tem manifestação no período neonatal, com nas, pois as imagens típicas nem sempre estão presentes
demora para eliminação de mecônio, distensão abdominal e, ao nascimento.
raramente, vômitos. A eliminação de fezes ocorre nas primeiras
O enema opaco nas formas clássicas demonstra a diferença
24 h após o parto em 94% dos recém-nascidos normais e a ter­
de calibre entre a zona acometida (estreitada) e o segmento co-
mo. A ausência de eliminação de mecônio além desse tempo é
lônico ganglionar a montante (dilatado). Nas formas de agan-
altamente sugestiva de processo suboclusivo ou oclusivo nessas
glionose total, o enema opaco mostra cólon de calibre uniforme
crianças. Realmente, Swenson constatou que 94% das crianças
constante e apagamento das haustrações, não se observando
acometidas com megacólon aganglionar não evacuaram nas
diferenças de calibre entre os segmentos colônicos e a zona de
primeiras 24 h de vida. Entretanto, esse tempo para eliminação
transição, uma vez que todo o cólon está acometido. Nas for­
do primeiro mecônio em recém-nascidos pré-termo deve ser
mas curtas, o enema opaco é incaracterístico.
estendido para até 72 h sem significação patológica. Os recém-
A biopsia do reto e a manometria anorretal são os métodos
nascidos em geral são bastante irritados, com baixa aceitação
mais fáceis e sensíveis para o diagnóstico da doença de Hirs-
alimentar e desnutridos. A manipulação anal pode levar à eli­
chsprung.
minação de mecônio pelo recém-nascido, melhorando a disten­
A biopsia da parede retal cirúrgica ou a biopsia por sucção
são abdominal que, entretanto, logo se reinstala. O padrão de
com coloração pela hematoxilina/eosina e por histoquímica pela
evacuações e distensão abdominal não responde ao tratamento
acetilcolinesterase complementam o estudo, sendo confiáveis e
clínico, com dieta ou laxantes, exceção feita aos clisteres.
seguras. A biopsia cirúrgica da parede retal tem a desvantagem
A forma total tem quadro clínico irregular e paradoxalmen­ de exigir internação e anestesia geral, por se tratar de procedi­
te, em geral, é mais branda que a forma clássica, embora já es­
mento cirúrgico, mas permite a obtenção de fragmento repre­
teja presente no período neonatal. A sintomatologia mais leve
sentativo, contendo submucosa e muscular, o que permite, com
poderia ser explicada porque não há incoordenação peristáltica,
segurança, pesquisar os plexos mioentéricos de Auerbach e os
uma vez que todo o cólon é aganglionar. Assim como na forma
submucosos de Meissner. A biopsia por sucção é mais simples,
clássica, as crianças acometidas apresentam grave comprome­ não requerendo internação e nem mesmo sedação, mas requer
timento ponderai.
patologista experiente, pois o fragmento obtido dessa forma só
As formas curta e ultracurta têm sintomatologia leve, cons-
representa mucosa e submucosa, sendo somente possível a pes­
tituindo-se de constipação intestinal, com pouca ou nenhuma quisa de plexos de Meissner. A presença de acetilcolina devido
repercussão ponderoestatural, fazendo com que o diagnóstico
à hipertrofia de fibras colinérgicas pré-simpáticas que ocorre na
muitas vezes ocorra mais tardiamente. doença é demonstrada através da coloração histoquímica com
A enterocolite é uma complicação grave do megacólon agan­
acetilcolinesterase e foi descrita pela primeira vez por Meier-
glionar, que pode ocorrer no recém-nascido ou mesmo no lac-
Ruge. Em criança maior de um ano, o padrão histológico clássi­
tente jovem e se caracteriza por diarréia profusa, fétida com co consiste em fibrilas nervosas acetilcolinesterase-positivas em
sangue e muco, intensa distensão abdominal e comprometi­
submucosa e muscular da mucosa e clara infiltração de fibras
mento do estado geral.
nervosas finas acetilcolinesterase-positivas em lâmina própria.
Perfuração do cólon ou apendicite podem ocorrer, compli­
De acordo com Brito e Maksoud, no recém-nascido e até o ter­
cando a doença concomitantemente à enterocolite ou não, e
ceiro mês de vida este padrão clássico não é observado. Esses
são bastante sugestivas de megacólon aganglionar. A literatura autores descrevem o padrão de recém-nascido que se caracte­
refere que toda criança abaixo de dois anos com perfuração de
riza por troncos de fibras nervosas acetilcolinesterase-positiva
cólon ou apendicite, mesmo com ausência de constipação in ­ em muscular da mucosa e submucosa, mas com ausência de
testinal deve ser investigada para megacólon aganglionar.
atividade para acetilcolinesterase em lâmina própria. Padrão
O toque retal é de grande importância, pois caracteriza reto
intermediário é encontrado entre essas idades.
vazio. A presença de fezes em ampola retal só ocorre na consti­
A manometria anorretal mede a pressão do esfíncter anal
pação intestinal do tipo funcional ou na forma ultracurta.
interno no momento em que um balão é distendido no reto.
Raios X simples de abdome são inespecíficos, podendo mos­
No indivíduo normal, essa pressão cai, enquanto, no paciente
trar apenas fezes impactadas.
com a doença de Hirschsprung, essa pressão não cai ou, para­
O enema opaco é o exame de escolha, porque permite o
doxalmente, se eleva. A acurácia diagnóstica é de 90%.
diagnóstico pela demonstração de segmento estreitado distai,
A manometria anorretal está indicada principalmente na­
correspondendo ao segmento aganglionar, contrastando com
queles casos de forma curta e ultracurta, para diagnóstico dife­
o segmento dilatado proximal que corresponde ao segmento
rencial com constipação intestinal funcional, pois no megacólon
ganglionar normal, além de permitir avaliação da extensão do
aganglionar não ocorre resposta manométrica de relaxamento
cólon acometido. Entretanto, cuidados técnicos são essenciais
do esfíncter interno ao aumento de pressão retal.
para a realização do enema opaco:
• O exame deve ser realizado sem preparo prévio, pois o ■ Condições associadas
preparo atenua a diferença de calibre entre o segmento O megacólon aganglionar pode ocorrer isoladamente ou as­
acometido e o normal, uma vez que a dilatação do seg­ sociado a diversas síndromes genéticas, principalmente àquelas
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 259

com falência de migração das células da crista neural, como to, uma vez que, cada vez mais, se têm relatos do potencial de
adenomatose endócrina múltipla tipo 3, disautonomia fami­ malignidade desses pólipos.
liar, além de frequente associação com síndrome de Down, Pólipos são tumores epiteliais que se projetam acima da mu­
macro e microcefalia, surdez, ictiose, palato fendido, braqui- cosa. São inúmeras as classificações dos pólipos intestinais utili­
dactilia e outras. zadas em literatura, mas, para o presente capítulo, utilizaremos
a classificação de Cooper, que se baseia nas características his-
■ Tratam ento tológicas dos pólipos, podendo, dessa forma, ser classificados
O tratamento é cirúrgico, estando indicado mesmo nos ca­ em pólipos neoplásicos e não neoplásicos.
sos com evolução clínica favorável, devido ao risco de ente- Os pólipos não neoplásicos podem ser, por sua vez, subdivi­
rocolite. O uso de clister para promover alívio da distensão didos em: hamartomas, pólipos hiperplásticos e pólipos juvenis,
das alças e para preparo cirúrgico deve ser bastante cauteloso, enquanto os neoplásicos são representados por adenomas.
uma vez que o aumento de pressão na luz do cólon pode levar
à ruptura de parede, além de facilitar bacteriemia com conse­
quente septicemia.
■ Hamartomas - síndrome de Peutz-Jeghers
O tratamento cirúrgico tradicional é realizado em dois tem­ Hamartoma é um erro congênito do desenvolvimento tissu-
pos. No primeiro tempo, é realizada colostomia ou ileosto- lar caracterizado pela mistura anormal de tecidos indígenas e
mia, com boca única, dependendo do segmento acometido, que assume aspecto tumoral não neoplásico, primariamente,
na porção mais distai do segmento normal. A reconstrução do e pode estar presente já ao nascimento ou crescer excessiva­
trânsito em segundo tempo está indicada a partir do segundo mente no período pós-natal.
semestre de vida. Os pólipos do tipo hamartomas são formados por tecido
Se as condições clínicas da criança forem boas, assim como glandular normal, entremeado por faixas de tecido muscular
se o preparo do cólon estiver adequado e houver certeza da liso oriundo da muscular da mucosa. Das síndromes clínicas
extensão dos segmentos afetados, a cirurgia pode ser realizada que apresentam pólipos hamartomatosos, a síndrome de Peutz-
em um único tempo. Jeghers é a mais importante pela sua frequência.
A presença de enterocolite contraindica a derivação, pois
aumenta o risco de óbito por infecção, devendo-se manter trata­ ■ Conceito
mento clínico intensivo até que as condições clínicas da criança A síndrome de Peutz-Jeghers é uma doença genética, de
permitam derivação do trânsito intestinal. caráter autossômico dominante, de penetrância variável e alta,
No paciente com aganglionose total, a reconstrução do trân­ que se caracteriza por pólipos hamartomatosos em todo o trato
sito intestinal é feita com a anastomose do íleo com o reto. En­ gastrintestinal e pigmentação mucocutânea (palma das mãos,
tretanto, a fim de se minimizar a diarréia consequente à perda planta dos pés e mucosa oral).
do cólon, pode-se proceder à anastomose longitudinal do íleo
terminal com a porção aganglionar do retossigmoide. Tal pro­ ■ Diagnóstico
cedimento não compromete a motilidade intestinal e permite A pigmentação anômala nos lábios em geral aparece na in­
a absorção de água através da mucosa colônica. fância, e a pigmentação da mucosa da boca está presente em
A anorretomiectomia está indicada para as formas curtas 80% dos portadores desta síndrome, precedendo as lesões cutâ­
de megacólon agangliônico, mas o sucesso terapêutico nestes neas, que são encontradas em menos de 5% dos pacientes.
casos é bastante discutível. Os sintomas digestivos podem ocorrer desde a idade escolar,
Após a reconstrução do trânsito intestinal, é comum a in- porém a grande maioria dos pacientes inicia os sintomas por
continência fecal, que em geral regride com o treinamento es- volta dos 30 anos de idade, com dor abdominal, sangramento
fincteriano. Porém a incontinência fecal pode ocorrer de forma digestivo, oculto ou não, e obstrução intestinal por intussus-
permanente e está em geral relacionada com traumatismos por cepção. A hemorragia oculta a partir da ulceração dos pólipos
ocasião da reconstrução do trânsito intestinal. A intolerância é responsável pela anemia ferropriva dos pacientes.
à lactose é comum nesses pacientes após a reconstrução do O trânsito intestinal e o enema opaco demonstram a presen­
trânsito, estando então indicadas, nestes casos, dietas isentas ça de pólipos em intestino delgado e cólons, respectivamente.
de lactose. O estudo endoscópico do tubo digestivo, alto e baixo, confirma
No momento atual, o tratamento cirúrgico evoluiu muito a presença dos pólipos nesta região, não alcançando o delgado
com a introdução da cirurgia laparoscópica, nos centros que médio. Permite a coleta de pólipos para exame histológico que
dispõem desse recurso. Dessa forma, os passos iniciais e poste­ confirma o diagnóstico.
riores se modificaram, assim como a indicação de colostomia A associação com tumores de pulmão, ovário, mama e úte­
descompressiva, em favor de cirurgia definitiva em tempo pre­ ro ocorre em idade mais jovem em relação à população geral.
coce e com menos complicações. Muitos autores têm preferi­ Embora tenha sido considerada como de baixo risco de malig-
do e obtido melhores resultados com a cirurgia videolaparos- nização, desde 1969 são relatados casos em literatura de câncer
cópica transanal, que consiste no abaixamento transanal com gástrico, de duodeno e cólon em pacientes com síndrome de
mucossectomia. Esfincterectomia parcial do esfíncter interno Peutz-Jeghers.
é importante no resultado final. Neste último decênio, foi introduzido o método de colonos-
copia virtual por tomografia computorizada. Esse exame permite
detectar pólipos com dimensões iguais ou superiores a 1 cm, não
■ POLIPOSES INTESTINAIS requer sedação e é de curta duração (15 min), e fúturamente sua
difusão facilitará o diagnóstico das poliposes colônicas.
Embora os pólipos intestinais não estejam presentes ao nas­
cimento na grande maioria dos casos, algumas condições serão ■ Tratam ento
discutidas neste capítulo devido às características hereditárias, Se não houver complicações decorrentes dos pólipos, como
às vezes presentes, e à sua importância quanto ao seguimen­ sangramento incontrolável clinicamente ou intussuscepção,
260 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

o tratamento é conservador, com seguimento adequado para fase de lactente até a idade adulta, entretanto apenas 15% dos
detecção precoce de transformação maligna. pacientes têm diagnóstico realizado acima dos 18 anos. Existe
A ressecção endoscópica seriada está indicada, porém a gran­ discreta predileção pelo sexo masculino, em uma frequência
de quantidade de pólipos pode tornar o procedimento imprati­ de 1,4 a 2/1. Apesar de acometer principalmente a raça branca,
cável. A ressecção de segmentos do trato gastrintestinal estaria dois casos foram descritos na raça negra. Na experiência das
condicionada às situações em que houvesse comprometimento autoras, foi verificado polipose juvenil colônica em uma meni­
da viabilidade da alça, mas, sempre de modo racional, a fim de na de cor parda. O quadro clínico é variável, podendo ocorrer
se evitar síndrome do intestino encurtado. anemia crônica ferropriva, edema e hipoalbuminemia por en-
O prognóstico é bom, porém controles rígidos para detecção teropatia perdedora de proteína, sangramento digestivo alto ou
precoce de transformação maligna dos hamartomas são neces­ baixo e intussuscepção. São descritas associações com fístulas
sários, assim também como dos outros tumores que podem arteriovenosas em cérebro, pulmões e fígado em aproximada­
estar associados à própria síndrome. mente 15% dos casos, telangiectasias hemorrágicas múltiplas
de trato gastrintestinal e osteoartropatia hipertrófica. O trân­
sito intestinal e o enema opaco demonstram a presença de pó­
■ Pólipo juvenil epolipose juvenil lipos, que também podem ser observados e ressecados através
■ Conceito da colonoscopia e endoscopia digestiva alta. O diagnóstico de
O pólipo juvenil ou pólipo inflamatório é constituído por certeza também aqui só será possível pela histologia. Ultras-
dilatações císticas das glândulas, circundadas por edema e in ­ som de abdome, raios X de ossos longos e tórax e tomografia
filtrado inflamatório, com presença frequente de superfície ul­ computadorizada de tórax são indicados para investigação das
cerada e formação de tecido de granulação. anomalias associadas.
O pólipo juvenil pode ser único e ocorrer isoladamente no
cólon, caracterizando o pólipo juvenil solitário ou múltiplo (po- ■ Tratam ento
lipose), acometendo todo o cólon n apolipose juvenil colônica e O tratamento deve ser conservador, com ressecção endos­
ainda comprometendo todo o trato gastrintestinal na polipose cópica sempre que possível. A ressecção cirúrgica do cólon ou
juvenil generalizada. segmentos de delgado está indicada para os casos de sangra­
A conceituação de polipose também é de extrema impor­ mento e perda proteica incontroláveis clinicamente, devendo-se
tância. Os pólipos juvenis sempre foram considerados lesões ter em mente os riscos da síndrome do intestino encurtado em
benignas quanto ao risco de neoplasias; porém, em 1974, Sa- ressecções amplas. Devido ao risco aumentado de neoplasias, o
chatello et a i chamaram a atenção para a presença de displasias controle endoscópico a cada ano é imprescindível. Alguns auto­
nesses pólipos e a maior incidência de carcinoma de cólon em res discutem a colectomia total a partir da época do diagnóstico
pacientes e familiares com pólipos múltiplos em relação à po­ devido ao risco de neoplasia. Entretanto, principalmente em
pulação em geral. Com base nestes achados, a literatura vem criança, é considerado que o controle rígido por endoscopia e
discutindo o número de pólipos juvenis necessários para se colonoscopia seja o adequado.
caracterizar polipose. Neste sentido, Giardello et al., em 1991,
propuseram que três pólipos juvenis, ou qualquer número de
pólipos em indivíduo com história familiar, fazem o diagnós­
■ Pólipos neoplásicos - polipose cólica familiar
tico de polipose juvenil e propõem rígido controle desses in­ ■ Conceito
divíduos devido ao risco de neoplasias. Os adenomas são os representantes dos pólipos neoplásicos
e podem ser classificados em tubulares, vilosos e mistos. São
■ Etiologia importantes clinicamente, pois são lesões reconhecidamente
Em 1970, Sachatello et al. chamaram a atenção, pela primeira pré-malignas. As síndromes clínicas com pólipos adenomato-
vez, para o caráter hereditário da polipose juvenil, tanto colôni­ sos são a polipose cólica familiar, a síndrome de Gardner e a
ca como generalizada. Aproximadamente 1/3 dos casos de poli­ síndrome de Turcot. A polipose cólica familiar pode ter mani­
pose apresentam caráter autossômico dominante, enquanto os festação precoce na infância, sendo as outras duas, embora de
restantes apresentam-se na forma de mutações livres. Esse fato caráter hereditário, de aparecimento mais tardio. Os pólipos
é de extrema relevância, no aconselhamento genético do casal intestinais não são obrigatórios nestas duas últimas síndromes,
que tem um filho afetado, pois enquanto o risco de recorrência ocorrendo em apenas 35% dos casos.
na herança autossômica dominante é de 50%, na mutação livre A polipose cólica familiar é uma doença de caráter heredi­
o risco é praticamente desprezível. tário autossômico dominante, descrita pela primeira vez por
Menzel em 1821, embora 20% dos casos representem mutações
■ Diagnóstico novas. A criança, porém, não nasce com a doença, apenas herda
O pólipo juvenil solitário é bastante comum na criança e está a tendência das células epiteliais colônicas de se proliferarem
restrito ao cólon. A sintomatologia consiste principalmente em na adolescência ou fase adulta, desenvolvendo pólipos adeno-
sangramento retal, podendo haver protrusão do pólipo através matosos no cólon.
do ânus ou mesmo autoamputação em até 10% dos casos. O
toque retal pode permitir palpação de massa correspondente ■ Diagnóstico
ao pólipo, quando de localização mais distai, e enema opaco A sintomatologia raramente surge antes dos 10 anos de ida­
à visualização de imagem correspondente ao pólipo. Entre­ de; na adolescência e no adulto jovem, os pólipos frequente­
tanto, o diagnóstico de certeza só será firmado pela histologia mente aparecem. A sintomatologia se constitui de diarréia, que
característica após a exérese, por colonoscopia ou retossigmoi- a princípio pode ser leve e intermitente, passando a intensa,
doscopia. com presença de muco e sangue, dor abdominal, emagrecimen­
O diagnóstico da maioria dos pacientes com polipose juvenil to e anemia. Se já existe a presença de carcinoma, pode haver
acontece na idade pré-escolar, embora possa ocorrer desde a obstrução intestinal e perfuração. O toque retal pode revelar a
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 261

presença de inúmeros pólipos. O enema opaco é importante A fragilidade das paredes vasculares leva à formação de
mas, às vezes, não possibilita a visualização de micropólipos. A aneurismas e ruptura de artérias, sendo as mais atingidas as
colonoscopia com ressecção ou biopsia do pólipo é exame obri­ artérias ilíacas, esplênicas e renais.
gatório, pois o diagnóstico de certeza só é dado pelo exame his- A confirmação diagnóstica se faz por biopsia cutânea com a
tológico que deve dar especial atenção à presença de displasias identificação do defeito de formação do colágeno III.
ou alterações para adenocarcinoma. A presença de hipertrofia
do epitélio pigmentar da retina, segundo alguns autores, é um ■ Tratamento
bom marcador da polipose cólica familiar, pois pode anteceder, Não há terapia específica direta do defeito molecular da sín­
em muitos anos, o aparecimento dos pólipos. drome de Ehlers-Danlos. A terapia de suporte inclui a preser­
vação da função articular, através de exercícios planejados e a
■ Tratam ento prevenção da constipação intestinal pelo uso de dieta rica em
O tratamento é essencialmente cirúrgico, uma vez que 60% fibras.
dos pacientes já apresentam carcinoma no momento do diag­ O reparo cirúrgico dos vasos rompidos ou víscera interna é
nóstico. Três abordagens cirúrgicas são possíveis: a) cirurgia extremamente difícil devido à friabilidade dos tecidos.
ampla com proctossigmoidectomia total com ileostomia ter­ O quadro perfurativo intestinal recorrente, de acordo com a
minal definitiva; b) colectomia subtotal com excisão da mucosa experiência das autoras, pode ser tratado, em alguns episódios,
retal e abaixamento transretal do íleo com reservatório; c) co­ clinicamente, de modo expectante com suporte nutricional pa-
lectomia total com preservação do reto e anastomose ileorretal. renteral e antibióticos, ou, em outros, com abordagem cirúrgica
Entretanto, nesta última opção, devido à manutenção do reto adequada ao processo. É aconselhável evitar exercícios intensos,
(e, consequentemente, dos pólipos que podem ser cauteriza- por risco de ruptura de vísceras, assim como evitar gravidez,
dos em seção única ou em várias), o controle colonoscópico a pois o risco de ruptura uterina é grande.
cada seis a 12 meses é imperioso para detecção de transforma­
ção maligna.
■ ANOMALIAS CONGÊNITAS DOS VASOS
■ DESORDEM DE DESENVOLVIMENTO DO INTESTINO DELGADO E GROSSO
DO TECIDO C0NECTIV0 As anormalidades dos vasos do intestino delgado e grosso
incluem hemangiomas e telangiectasias. São responsáveis por
um terço dos casos de perdas sanguíneas crônicas do intesti­
■ Síndrome de Ehlers-Danlos no. Representam um desafio ao médico devido à dificuldade
■ Conceito na sua identificação e suas limitações terapêuticas, principal­
A síndrome de Ehlers-Danlos é resultante de alterações con­ mente em crianças com anomalias vasculares amplas do trato
gênitas do tecido conectivo e se caracteriza por uma variedade gastrintestinal.
de sinais e sintomas, incluindo hipermobilidade articular, fa­
cilidade de adquirir escoriações, hiperextensibilidade da pele, ■ Hemangiomas
algumas vezes escaras atróficas, pseudotumores moluscoides
e epicanto. ■ Conceito
São considerados neoplasias verdadeiras, pois representam
■ Classificação um crescimento do espaço vascular com caráter regenerativo
Há pelo menos 10 tipos da síndrome; no entanto, apenas o e proliferativo.
tipo IV apresenta sintomatologia gastrintestinal.
■ Frequência
■ Etiologia da síndrom e de Ehlers-Danlos - tipo IV Um quarto dos casos de hemangiomas do intestino se ma­
A síndrome de Ehlers-Danlos - tipo IV é uma mutação no nifestam no primeiro ano de vida. A maioria das crianças são
gene COL 3A1 do braço longo do crossomo 2, levando à anor­ diagnosticadas após os 12 anos de idade, depois de anos de
malidade na produção do colágeno tipo III. Doença de herança sangramento intestinal e transfusões sanguíneas, sem esclare­
autossômica dominante. cimento etiológico.
O intestino delgado é acometido isoladamente em cerca de
■ Diagnóstico 35% dos casos e, em conjunto com o intestino grosso, ao redor
Neste tipo IV, a hipermobilidade articular (em extensão e de 45% dos casos.
flexão) e a hiperextensibilidade da pele são menos acentuadas
do que nos demais tipos. A pele é fina e transparente, dando ■ Diagnóstico
ao dorso da mão aspecto senil (acrogeria) e no tronco permi­ Os hemangiomas capilares podem ser assintomáticos ou
te visualizar uma vascularização proeminente. Os cabelos são evoluir com fases de sangramento digestivo, alto ou baixo, in­
esparsos e os olhos, proeminentes. Em membros inferiores, a tercaladas por períodos assintomáticos. Os hemangiomas ca­
presença de hematomas é frequente, notando-se, também, em vernosos costumam se manifestar com hemorragias profusas e,
face anterior do joelhos, numerosas escaras nacaradas. em algumas vezes, com sintomas de dor abdominal em decor­
A fragilidade do tecido colágeno das camadas musculares rência de invaginação intestinal. Apresentam, também, perío­
do tubo digestório condiciona a ocorrência de perfurações es­ dos assintomáticos.
pontâneas, com peritonite tamponada ou não, manifestadas Em ambos os tipos de hemangiomas, pode ocorrer sangra­
como quadro abdominal agudo de repetição e de graus varia­ mento discreto, oculto, de longa duração (anos) com desenvol­
dos de gravidade. vimento de anemia crônica de difícil diagnóstico.
262 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

A confirmação diagnóstica é sempre endoscópica, para os de O divertículo de Meckel pode ser livre (74%), ou ligado
regiões acessíveis por este método. Os hemangiomas capilares (26%) por faixas fibrosas ao umbigo.
se mostram como manchas vermelho-vivas e os cavernosos,
como lesões vinhosas, polipoides ou não. ■ Frequência
A presença de hemangioma cutâneo pode orientar na busca Uma incidência de 1 a 4% é comumente descrita na popula­
de hemangioma intestinal. ção geral e esse divertículo pode ser diagnosticado em qualquer
Se a endoscopia não localizar o local de sangramento, deve- idade. Segundo Soltero e Bill, o risco de o portador de divertí­
se indicar cintigrafia com 99mTc enxofre coloidal (hemorragia culo de Meckel desenvolver sintomas é em torno de 4 a 6% dos
ativa) ou com hemácias marcadas com 99mTc. Outro recurso casos, e este risco diminui com a idade. A incidência no sexo
complementar é arteriografia seletiva, de difícil execução em masculino e no feminino é cerca de 2,7:1.
crianças muito pequenas.
■ Etiologia
■ Tratam ento A falência na obliteração do dueto onfalomesentérico, o qual
Ver adiante. conecta o saco vitelino ao trato intestinal, da 5aà 7* semana in-
trauterina, determina a ocorrência do divertículo de Meckel.
■ Telangiectasia ■ Diagnóstico
■ Conceito Mayo descreveu em 1933 que frequentemente se suspeita do
Não são considerados tumores vasculares, mas ectasias da divertículo de Meckel, e esse divertículo é pouco diagnosticado
vascularização normal, preexistente, sem caráter de prolifera­ e raramente encontrado.
ção e regeneração. Alguns casos de divertículo de Meckel são assintomáticos
e diagnosticados acidentalmente em laparotomia por outras
■ Frequência causas, como, por exemplo, devido à apendicite aguda.
Sua frequência é de 1 a 2 para 100.000 da população geral. Quando manifesto, as formas de apresentação do divertí­
culo de Meckel são:
■ Diagnóstico a) quadro obstrutivo (30% dos casos) em decorrência da
Duas formas clínicas são de caráter congênito, mas de m a­ presença de bandas peritoneais ligando o divertículo ao
nifestação tardia, em geral na 5a década. mesentério ou ao umbigo, e, também, da presença de
Uma delas é representada pela doença de Rendu-Osler- Weber, tecido pancreático ectópico. Em ambas as situações, é
na qual as telangiectasias são localizadas na língua, superfície possível se desenvolver vólvulo ou invaginação;
mucosa dos lábios, na face, conjuntiva, orelhas, dedos, nariz e b) quadro de hemorragia digestiva (27% dos casos) e, destes,
em todo o tubo digestivo. O sangramento digestivo pode ser 60% manifestam-se em crianças menores de dois anos
alto e/ou baixo, sem dor abdominal. Alguns casos são acom­ de idade. A causa da hemorragia em 96% dos casos é a
panhados de cirrose hepática e outros por fístula arteriovenosa presença de mucosa gástrica ectópica que provoca ulce-
pulmonar. ração péptica no próprio divertículo ou na mucosa ileal
A segunda forma congênita é a angiodisplasia que acome­ adjacente. Esta ulceração pode, também, se aprofundar,
te principalmente o delgado alto e pode ter extensões muito ocasionando perfuração e peritonite ou hemoperitônio.
amplas. O uso de anti-inflamatório não hormonal pode agravar
O roteiro diagnóstico é igual ao indicado para os hem an­ a ulceração péptica no divertículo com mucosa gástrica
giomas. ectópica;
c) diverticulite com perfuração ou não;
■ Tratam ento
O tipo de tratamento nas anomalias vasculares intestinais
depende de muitos fatores, incluindo tipo, localização e número
de lesões. Pacientes com poucos hemangiomas em segmento
intestinal bem definido podem ter tratamento cirúrgico. Quan­
do as lesões são múltiplas e limitadas pelo tamanho, poderá ser
realizada fotocoagulação. Algumas vezes, é necessário repetir
o tratamento.

■ PERSISTÊNCIA DE RESTOS EMBRIONÁRIOS


■ Divertículo de Meckel
■ Conceito
É um remanescente do dueto onfalomesentérico, sendo a
mais comum anormalidade congênita do intestino delgado.
Descrito pela primeira vez por Fabricus Hildanus em 1598, e,
mais detalhadamente, por Johann Meckel em 1809. Em cerca
de 90% dos casos, está localizado cerca de 20 a 80 cm da junção
ileocecal. Possui, na sua formação, todas as camadas do intesti­
no e, frequentemente, contém um tecido ectópico, geralmente Figura 27.4 A e B Raios X contrastados de intestino delgado mos­
a mucosa gástrica. trando a imagem do divertículo de Meckel (seta).
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 263

■ Tratam ento
Quando encontrado ocasionalmente na laparotomia explo­
radora, seu tratamento continua controverso, particularmente
na população pediátrica. Ele deverá ser ressecado se houver
suspeita de mucosa ectópica ou se houver ligamento ao umbi­
go ou ao mesentério através de bandas fibrosas, como medida
preventiva.
O divertículo de Meckel complicado por sangramento, pro­
cesso inflamatório, perfuração ou obstrução deve ser sempre
operado.
A diverticulectomia está indicada se a complicação estiver
restrita ao divertículo, sem comprometimento da parede intesti­
nal adjacente. Entretanto, se essa parede estiver comprometida,
está indicada ressecção segmentar da alça com o divertículo e
anastomose terminoterminal. Todos esses procedimentos po­
dem ser realizados com sucesso por via laparoscópica.

■ DOENÇA DOMECÔNIO
São incluídas dentro deste item as doenças resultantes de
Figura 27.5 Imagem cintigráfica do divertículo de Meckel (seta). ação nociva do mecônio que ou bloqueia o lúmen intestinal ou
patologicamente se localiza na cavidade peritoneal.
Embora grande parte dos casos de doença meconial esteja
associada à mucoviscidose, outras condições podem ocasionar
d) quadro umbilical já no período neonatal, com granu- esta doença. Sob ponto de vista clínico, a doença do mecônio
lomas, drenagem de fluidos pelo umbigo e cisto um ­ pode ser dividida em quatro categorias:
bilical. 1- íleo meconial;
A cintigrafia para pesquisa de divertículo de Meckel é posi­ 2- rolha de mecônio;
tiva em 85% dos casos. O uso de pentagastrina endovenosa ou 3- peritonite meconial;
cimetidine VO pode melhorar a positividade do teste. A colo- 4- equivalente tardio do íleo meconial.
noscopia e a endoscopia digestiva alta afastam outras causas de As primeiras três situações manifestam-se logo ao nasci­
sangramento intestinal. mento, mas a quarta pode surgir no paciente mucoviscidótico
A arteriografia e estudos contrastados devem apenas ser rea­ em qualquer período da vida.
lizados se o sangramento persistir e se os exames anteriores
foram normais.
■ íleo meconial
■ Condições associadas ■ Conceito
Situs inversus totalis. É uma obstrução intestinal intraluminal que ocorre no perío­
do neonatal, caracterizada pela presença anormal de mecônio
viscoso e espesso, levando à obstrução do intestino delgado,
geralmente no íleo terminal, descrito pela primeira vez por
Landsteiner em 1905.

■ Frequência
De todos os casos de obstrução intestinal no recém-nascido,
9 a 33% são ocasionados por íleo meconial. Dos pacientes com
íleo meconial, detectou-se mucoviscidose entre 25 e 80% dos
casos; dentre os pacientes com mucoviscidose, 10 a 16% deles
relatam íleo meconial ao nascimento.

■ Classificação
Pode ser classificado em duas categorias: 1) simples, ou não
complicado, quando o mecônio anormal causa uma simples
obstrução no Üeo distai, onde se encontram muitas concreções
de mecônio; 2) complicado, quando a massa de mecônio espes­
so funciona como um fulcro, levando ao desenvolvimento de
vólvulo, perfuração e peritonite meconial cística gigante.
Figura 27.6 Peça cirúrgica de um divertículo de Meckel retirado de
paciente do sexo masculino, de 12 anos de idade, com história de en- ■ Doenças associadas
terorragia intensa e indolor, decorrente de sangramento desse divertí­ Além da fibrose cística, o íleo meconial pode estar associa­
culo. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) do à doença de Hirschsprung, à insuficiência pancreática não
264 Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso

mucoviscidótica, à atresia intestinal e à pseudo-obstrução in ­


testinal crônica.
■ Rolha de mecônio
■ Conceito
■ Etiologia A primeira descrição dessa entidade data de 1956, por Cla-
A análise química do mecônio espessado revela um aumento twothy et al. É definida como uma obstrução intestinal, geral­
de até 50 vezes da albumina deglutida com o líquido amniótico. mente ao nível do íleo terminal e cólon esquerdo, provocada por
Nos casos de íleo meconial em pacientes com mucoviscidose, mecônio anormalmente espessado. Classicamente, é descrita
possivelmente esta superconcentração de albumina se deva à em recém-nascidos com fibrose cística, mas pode ocorrer em
redução do teor de água do lúmen intestinal em decorrência da outras situações como hipomotilidade colônica por hipermag-
não secreção de cloro pelos canais de cloro das criptas intesti­ nesemia, ou por alteração da motilidade colônica, nas miopatias
nais. Não havendo secreção de cloro, não há secreção de água. viscerais, na síndrome pseudo-obstrutiva, na inércia cólica do
Além disso, a água continua sendo absorvida acompanhando recém-nascido e na doença de Hirschsprung.
a absorção de sódio pelas células vilositárias.
No íleo meconial dos não mucoviscidóticos, não se conhece ■ Diagnóstico
a razão desta concentração proteica.
O quadro clínico é de distensão abdominal com nenhuma
■ Diagnóstico pré-natal ou pequena eliminação de mecônio.
O USG pode mostrar sinais sugestivos do íleo meconial a O enema opaco mostra defeitos de enchimento do cólon
partir do 6omês de vida fetal pela presença de imagem de massa devido a uma ou mais rolhas de mecônio, ou cólon esquerdo
hiperecogênica localizada na fossa ilíaca direita. A persistência com obstrução abrupta. O exame pode se tornar terapêutico,
dessa imagem além da 30d semana constitui forte indício na pois, com a eliminação do contraste, pode haver a eliminação
confirmação desse diagnóstico, embora exigindo grande ex­ da rolha de mecônio, embora, por vezes, seja necessária a rea­
periência do examinador. lização de enemas salinos para a desobstrução colônica.
A realização de biopsia retal para se afastar megacólon agan-
■ Diagnóstico gliônico é mandatória, além da dosagem de cloro no suor para
No recém-nascido a termo, a forma de apresentação mais se afastar fibrose cística.
frequente é distensão abdominal, vômitos biliosos e falha na
eliminação do mecônio, mas o recém-nascido é capaz de to ­ ■ Tratam ento
lerar várias refeições antes de desenvolver sinais de obstrução A desobstrução com clister salino ou com Gastrografina é
intestinal e, assim, o diagnóstico pode ser retardado por 24 ou indicada, podendo-se adicionar N-acetilcisteína, que é um mu-
48 h. Raios X simples de abdome mostram sinais de dilatação de colítico, e favorece, através de contato prolongado com o me­
alças, comum a qualquer quadro obstrutivo, mas a presença de cônio, a sua fluidificação e consequente eliminação. Cuidados
imagens em bolha de sabão no quadrante inferior direito, acres­ são necessários com volume e pressão na introdução da solu­
cida da ausência de níveis hidroaéreos na posição ereta, sugere ção de clister, pois pode haver ruptura de parede intestinal e
o diagnóstico de íleo meconial. O enema opaco auxilia na con­ facilitação de disseminação bacteriana, levando à septicemia.
firmação diagnóstica, mostrando a presença de microcólon e, se O tratamento cirúrgico é bastante raro, reservando-se aos ca­
houver refluxo ileal, aparecerá imagem de falha no enchimento sos complicados com perfuração, ou com falência de resposta
ileal compatível com a presença de concreções de mecônio. ao tratamento clínico.

■ Tratam ento
O íleo meconial simples deve ser tratado de modo conser­ ■ Peritonite meconial
vador, conforme esquema instituído por Noblett em 1969, com ■ Conceito
enemas de Gastrografina diluído 3:1 ou 4:1 em água e adminis­
A peritonite meconial é definida como uma peritonite assép­
trados lentamente pelo reto. A maioria dos pacientes necessita
tica e química, causada pela presença de mecônio na cavidade
de quatro ou mais enemas para liberar a obstrução intestinal.
peritoneal devido à perfuração intestinal e calcificação ainda
A solução chega no íleo terminal e se mistura com o mecônio
na fase intrauterina. A primeira descrição foi feita em 1761 por
espesso. Geralmente após 24 a 48 h, ocorre a passagem de m e­
Morgagni, mas a primeira operação bem-sucedida de que se
cônio semilíquido.
tem relato é de 1943, por Agerty.
Há registro de 11% de perfuração relacionada com o uso de
enema com Gastrografina. Alguns autores diluem a Gastrogra­
fina a baixas concentrações, pois, reduzindo a osmolaridade, o ■ Etiologia e patogênese
risco de perfuração também se reduz. A perfuração intestinal ocorre principalmente devido à obs­
Outro método inclui o uso da N-acetilcisteína por sonda trução intestinal, que pode ser causada por íleo meconial, atresia
nasogástrica que permite a desobstrução em 30% dos casos. intestinal, estenose, vólvulo, faixas aderenciais peritoneais con­
Alguns pacientes com üeo meconial, mau estado geral e con­ gênitas, gastrosquise e megacólon aganglionar, embora possa
taminação do abdome com mecônio necessitam de gastrosto- não haver evidências de obstrução intestinal. O mecônio esté­
mia com dupla boca. Os casos complicados com vólvulo e atre­ ril, extravasado através de uma perfuração intestinal, induz a
sia necessitam de ressecção intestinal e anastomose primária. uma peritonite química, devido à ação das enzimas digestivas
nele contidas, levando à adesão fibrosa, aglutinação das alças
■ Prognóstico intestinais e calcificação. O local da perfuração, muitas vezes,
A mortalidade com o tratamento conservador do íleo m e­ não é encontrado devido às adesões. Se, entretanto, não existir
conial é de cerca de 0 a 15%. A mortalidade para pacientes que tamponamento adequado e o mecônio continuar extravasando
apresentam perfuração intestinal é alta, ao redor de 50% dos para a cavidade peritoneal, pode haver formação de aderência
casos. entre as alças do tipo fibrinoso, mais frouxo.
Capítulo 27 / Anomalias Congênitas de Intestino Delgado e Grosso 265

■ Diagnóstico pré-natal Bacrt, AL & Castccls-Van Daelc, B. Gcncralizcd juvenile polyposis with pul-
monary arteriovenous malformation and hypcrtrofic ostcoarthropathy.
Pelo USG, se o examinador estiver atento a essa possibili­
A J R , 1983; 141:661-4.
dade, o diagnóstico pode ser realizado a partir da 26a semana Brito, IA & Maksoud, JG. Evolution with age of thc acctylcholinestcrasc acti-
pela presença de poli-hidrâmnio, ascite, massa hiperecogênica, vity in retal succion biopsy in Hirschsprungs discasc. /. Ped. Surg., 1987;
dilatação digestiva e calcificação. Esses três últimos achados são 22:425-30.
instáveis e não obrigatoriamente simultâneos, e as calcificações, Castro, RRO, Brant, CQ, Ferreira, LEVVC et al. Síndromc de Peutz-Jcghcrs c
por serem minúsculas, exigem exame atento e minucioso. adcnocarcinoma. Arq Gastroenterol, 1994; 31:145-8.
Cooper, HS. Intestinal neoplasms. Em: Stcmbcrg, S. Diagnostic surgicalpatho-
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■ Diagnóstico Cox, KL, Fratcs Jr, RC, Wong, A 8c Ghandi, G. Hercditary gencralized juveni­
A sintomatologia ocorre logo após o nascimento, com gra­ le polyposis associatcd with pulmonary malformation. Gastroenterology,
ve e progressiva distensão abdominal, com eritema e edema 1980;78:1566-70
de parede abdominal. O abdome pode estar tenso e distendi­ Fcnlon, HM, Nunes, DP, Schroy, PC et al. A comparison of virtual convcn-
do, com massa palpável. A distensão abdominal pode levar a tional colonoscopy for thc detcction of colorcctal polyps. N Engl J Med,
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■ Tratam ento Mathias, AL. Moléstia de Hirschsprung. Em: Barbicri, D 8í Koda, YKL. Doenças
Os casos sem sinais obstrutivos devem ter conduta expectan­ Gastroenterológicas em Pediatria, São Paulo, Athencu, 1996.
te, sendo a indicação cirúrgica reservada aos casos com sinais Passarg, E 8c Stevcnson, RE. Small and large intestines. Em: Stevenson, RE;
obstrutivos ou com sinais infecciosos, realizando-se ressecção Hall, JG; Goodma, RM. Human malformations and related anomalies, NY,
Oxford Univcrsity Press, 1996.
dos segmentos atrésicos e inviáveis. O prognóstico é relativa­
Pena, A. Anomalias anorretais. Em: Maksoud, JG. Cirurgia Pediátrica, 2l cd.,
mente bom, embora possam ocorrer novas obstruções. Rio de Janeiro, Rcvintcr, 2003.
Sachatcllo, CR, Pickrcn, JW. 8c Gracc, JT. Gencralized juvenile polyposis: A
hercditary syndromc. Gastroenterology, 1970; 58:699-708.
■ Equivalente do íleo meconial Schufflcr, MD. Pathology of enterie neuromuseular disorders. Em: Hyman, PE
Condição relativamente rara. 8c DiLorcnzo, C. Pediatric gastrintestinal motility disorders. NY, Acadcmy
Profissional Information Services, 1994.
Ocorre em pacientes mucoviscidóticos, com tratamento ina­ Scott-Cornncr, CEH, Hausmann, M, Hall, TJ et al. Familial juvenile polyposis:
dequado em relação às enzimas pancreáticas. O quadro obs- Pattcrns of rccurrcncc and implications for surgical management. J Am Coll
trutivo pode ser mais tardio, na época escolar, descrito como Surg, 1995; i8i:407-13.
equivalente meconial, com sintomatologia de dor abdominal Silva, MM. Duplicação do trato gastrintestinal. Em: Maksoud, JG. Cirurgia
em cólica, vômitos, alteração no hábito intestinal, constipa­ Pediátrica. 2a cd., Rio de Janeiro, Rcvintcr, 2003.
ção intestinal, distensão abdominal e, às vezes, sangramento Smith, S, William, CS, Fcrris, CP. Diagnosis and treatment of chronic gastropa-
resis and chronic intestinal pseudo-obstruetion. Gastroenterol Clin North
retal. Am, 2003; 32:619-58.
O tratamento é igual ao do íleo meconial simples. Touloukian, RJ. Intestinal atresia and stenosis. Em: Aschraft, KW 8c Holdcr,
TM. Pediatric Surgery, 2nd cd., NY, Saundcrs, 1993.
Wesson, D. Thc intestines - Congcnital anomalies. Em: Walkcr, WA, Duric,
■ LEITURA RECOMENDADA PR, Hamilton, JR, Walkcr-Smith, JA, Watkins, JB. Pediatric Gastrintestinal
Disease, Philadclphia, BC Decker, 1991.
Andrassy, RJ 8c Nirgioti, JG. Mcconium discasc of infancy. Em: Aschraft, KW Wrenn Jr, EL. Alimcntary tract duplications. Em: Aschraft KW 8c Holdcr TM.
& Holdcr, TM. Pediatric Surgery, 2nd cd., NY, Saundcrs, 1993. Pediatric Surgery, 2nd cd., NY, Saundcrs, 1993.
Ayoub, AAR. íleo Meconial. Em: Maksoud, JG. Cirurgia Pediátrica, 2" cd., Rio Wyllc, R. Motility disorders and Hirschsprung discasc. Em: Bchrman, RE et al.
de Janeiro, Rcvintcr, 2003. Nelson Textbook o f Pediatrics. 17* cd., Elscvicr, 2004.
Síndrome de Má Absorção
Intestinal
Lorete Maria da Silva Kotze, Luiz Roberto Kotze e Renato Mitsunori Nisihara

A digestão e a absorção normais podem ser divididas em


m DEFINIÇÕES estágios sequenciais:
Os termos “síndrome de má absorção” ou “síndrome disab- • hidrólise na membrana do enterócito;
sortiva” podem ser definidos como qualquer síndrome etiolo- • hidrólise e solubilidade luminais;
gicamente relacionada com alguma anormalidade na absorção • absorção através da membrana do enterócito e proces­
pelo intestino delgado. Com este embasamento, uma grande samento celular;
variedade de condições necessitam ser investigadas e diferencia­ • captação do enterócito para o sangue e a linfa.
das. Adicionalmente, como o conhecimento é contínuo, outras
afecções poderão ser agregadas, no futuro. No estágio luminal, proteínas, carboidratos e lipídios são
hidrolisados por enzimas liberadas pelas glândulas salivares,
Considera-se a má digestão como resultante dos problemas
concernentes à hidrólise do conteúdo luminal e má absorção estômago e pâncreas. A bile do fígado participa do processo,
criando um meio orgânico de solubilização envolvido na di­
ou disabsorção o impedimento ao transporte através da mu-
cosa. Entretanto, na prática clínica, má absorção é usada para gestão dos lipídios. A digestão continua ao nível da membrana
descrever o resultado final de ambos os processos. celular, onde ocorre a hidrólise dos peptídios e dissacarídios
Quando um amplo espectro de nutrientes está envolvido, pelas enzimas da borda estriada. A seguir, há absorção celular de
aminoácidos, pequenos peptídios, monossacarídios, monogli­
denomina-sepan má absorção ou pandisabsorção; e, se apenas
cerídios e ácidos graxos. Já dentro do enterócito, os nutrientes
um ou uma classe de nutrientes está implicado, má absorção
são processados. Água e pequenas moléculas também podem
seletiva ou específica. Tais conceitos podem ser úteis no diag­
ser absorvidas por rota paracelular. Os nutrientes absorvidos
nóstico diferencial dessas doenças.
são então transportados para dentro dos vasos sanguíneos e En­
fáticos e, então, levados a órgãos distantes para armazenamento
e/ou metabolismo. Qualquer alteração que afete algum desses
■ CLASSIFICAÇÕES estágios pode levar à má digestão e/ou má absorção.
Para facilitar o raciocínio, a condição principal é a de se As Figuras 28.1 a 28.3 resumem a digestão, absorção e trans­
incluir o caso sob um título geral da síndrome de má absor­ porte de nutrientes, e também demonstram as principais afec­
ção, como indicado nos quadros do capítulo. As listas não são ções de acordo com a fase alterada. Obviamente, há algumas
exaustivas. Sabendo-se que o conhecimento relacionado com que alteram mais fases do que as assinaladas.
a etiologia de muitos distúrbios pode ser modificado, novas O modelo idealizado por Campos, ao acompanhar os passos
formas de classificação poderão surgir. Além disso, existe a da fisiologia da digestão, absorção e transporte dos nutrientes,
possibilidade de se mudar o enquadramento da afecção. oferece uma sistemática que confere objetividade na aborda­
Estima-se que diariamente as pessoas consumam cerca de gem do caso clínico, consistindo em uma ordenação lógica e
com aplicação didática ímpar. Tais propriedades a elevam ao
2.000-3.000 calorias em alimentos. A maior parte dessa carga
calórica está na forma de polímeros ou outros compostos com­ nível de excelência e contribuem para facilitar o alcance dos
objetivos apontados (Figura 28.4).
plexos que devem ser cindidos em pequenas moléculas para
Assim, do ponto de vista fisiopatológico, as causas de má ab­
serem transportados através da mucosa do intestino delgado.
sorção podem ser divididas em condições clínicas associadas a:
Assim, proteínas são clivadas em oligopeptídios e aminoácidos;
o amido é quebrado em monossacarídios; e as gorduras são • impedimento da hidrólise luminar ou solubilização (ór­
transformadas em ácidos graxos e monoglicerídios. Os pro­ gãos da digestão:
cessos de digestão e absorção são complexos e, muitas vezes, Causas pré-epiteliais ou pré-entéricas;
prejudicados e podem originar cerca de 200 condições associa­ • impedimento da função da mucosa (hidrólise na mucosa,
das a defeitos em tais processos, possivelmente gerando grande captação e empacotamento através do epitélio colunar):
prejuízo ao organismo. Causas epiteliais ou entéricas;

266
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 267

LUM EN IN T E ST IN A L E N T E R Ó C IT O SA N G U E - L IN F A
D IG EST Ã O d i g e s t A o /a b s o r ç Ao c a p t a ç Ao

ENZIMAS PANCREÁTICAS BORDA ESTRIADA TRANSPORTE


H ID R Ó LIS E Llnfangiectasia intestinal
Fibrose cistica D IG E S T Ã O A BSO RÇÃO Doença de Whipple
Síndrome de Shwachman Deficiência de lactase Má absorção de
Deficiência de amilase Deficiência do sacarase glicose e galactose
Deficiência de isomaltase

AM BAS
Agressões à mucosa
Síndrome do Intestino curto
Doença cellaca
Espru tropical

Figura 28.1 Digestão e absorção dos carboidratos da dieta. As etapas principais do processo digestivo e absortivo são mostradas com algumas
afecções que resultam em má digestão e/ou má absorção de hidratos de carbono.

PÂN CREAS FÍG A D O M U CO SA JE JU N A L U N F A T IC O S


A. Lipóllse B. Solubilizaçào C. Absorção D. Transporte
micelar

Aos tecidos
para
utilização

ENZIMAS PANCREÁTICAS SAIS BILIARES BORDA ESTRIADA FORMAÇÃO DE QUILOMlCRONS TRANSPORTE


L IP Ó L IS E S O L U B IL IZ A R M IC ELA R ABSO RÇAO Abetalipoproteinemia Liníangiectasia Intestinal
Fibrose cistica Doença colestática do figado Rossecção iloal Hipobetalipoproteinemia Doença do Whipple
Sindrome do Shwachman Depleçào do pool de ácidos biliares Doença cellaca
Deficiência de enteroquinase Síndrome do intestino curto
Pancreatites

Figura 28.2 Digestão e absorção dos lipídios da dieta. As etapas principais do processo digestivo e absortivo são mostradas com algumas
afecções que resultam em má digestão e/ou má absorção de gorduras.

• impedimento à remoção dos nutrientes da mucosa (vasos mo, hipoparatireoidismo e doença de Addison), Colagenoses
linfáticos e estruturas ganglionares mesenteriais): (esclerodermia, vasculites do lúpus eritematoso disseminado,
Causas pós-epiteliais ou pós-entéricas. poliarterite nodosa) e Amiloidose.
Seguem-se as principais entidades que podem ser classifi­
cadas, predominantemente, em cada uma das etapas anterior­
mente apontadas (Quadros 28.1 a 28.5).
■ DIAGNÓSTICO
É de suma importância o conhecimento das manifestações
digestivas das doenças sistêmicast que, em muitos casos, po­ ■ Diagnóstico da má absorção
dem se iniciar por disabsorção ou cursar com tal síndrome A ordem de raciocínio, primária e essencialmente, consiste
no decorrer de sua evolução clínica. Temos, como exemplos, em caracterizar a situação observada em cada paciente com a
a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, cada vez mais fre­ maior acurácia possível, visando-se a chegar a um diagnóstico
quente; Doenças Endócrinas (diabetes, hiper ou hipotireoidis- definitivo. O tratamento a ser instituído, para ser efetivo, deve
268 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal

LÚM EN IN T E ST IN A L_______ EN TERÓ C1TO S A N G U E - LIN FA


D IG EST Ã O D IG EST A O /A B SO R Ç Â O C A PTA Ç A O

ENZIMAS PANCREÁTICAS BORDA ESTRIADA TRANSPORTE


H ID R Ô LIS E Linfangiectasia intestinal
Fibrose cística D IG E S T Ã O A BSO RÇAO Doença de Whipple
Sindrome de Shwachman Desconhecida Doença de Hartnup
Deficiência de tripsinogènio Intolerância à proteina
Deficiência de enteroquinase com llsinúria
Sindrome de Oasthouse
Sindrome de Lowe

Figura 28.3 Digestão e absorção das proteínas da dieta. As etapas principais do processo digestivo e absortivo são mostradas com algumas
afecçòes que resultam em má digestão e/ou má absorção de proteínas.

se basear nesse diagnóstico, e os efeitos da terapia ajudam a ■ Má absorção secundária a distúrbios constitucionais ou cirurgias
confirmá-lo ou a refutá-lo. O tratamento destas condições é principalmente dependente
O diagnóstico das síndromes de má absorção compreende do reconhecimento da doença primária: Diabetes melito, doen­
quatro estágios: ça de Addison, amiloidose, esclerodermia, tuberculose, neo-
plasias do intestino delgado (linfoma e carcinoide abetalipo-
1. Diagnóstico primário de má absorção;
proteinemia etc.
2. Diferenciação entre estados disabsortivos secundários a
outros distúrbios constitucionais ou secundários a proce­ Más absorções secundárias a operações abdominais: gas-
trectomia, alça cega, fístulas e anastomoses, ressecções intes­
dimentos cirúrgicos e os de origem alimentar primária;
tinais etc.
3. O diagnóstico diferencial dos estados disabsortivos de­
vidos à falta de preparação para a absorção daqueles nos
■ Diagnóstico diferencial das disabsorções por falta de
quais as funções absortivas do intestino delgado parecem preparo à absorção
anormais (enteropatias);
Compreende as falhas na secreção gástrica, deficiência de
4. Diagnóstico diferencial das enteropatias.
enzimas pancreáticas, deficiência biliar.
■ Diagnóstico prim ário de má absorção ■ Diagnóstico diferencial das enteropatias
O diagnóstico de má absorção propriamente dito se baseia
a. Enteropatias altas;
no tripé história, exame físico completo e estudo das fezes do
b. Enteropatias baixas.
paciente.
O Quadro 28.6 sintetiza os dados clínicos e os resultados de
exames, destacando seus prováveis mecanismos.

■ EXAMES COMPLEMENTARES
São usados para confirmar má digestão e má absorção e, mais
importante, ajudam a identificar a causa. Podem ser divididos
quanto a disponibilidade, custos e grau de invasão. Pacien­
tes com pandisabsorção estabelecida tipicamente têm diversas
anormalidades laboratoriais, ao contrário dos portadores de má
absorção isolada que podem não apresentar qualquer alteração
nos exames de rotina (Quadro 28.6).

■ Exames laboratoriais habituais


A maioria dos exames gerais se destina à avaliação do estado
nutricional e para se ter ideia do grau de espoliação e carências.
Figura 28.4 Esquema das estruturas anatômicas envolvidas nos pro­ Servem de base para a devida reposição dos componentes em
cessos de digestão e absorção dos nutrientes. deficiência.
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 269

------------------------------- ▼-------------------------------
Q u a d ro 28.1 Afecções gastrintestinais associadas com má digestão luminal

Doença/Condição Fisio p ato logia

Estômago
D e s n u tr iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a D im in u iç ã o d a p r o d u ç ã o d e á c id o (h ip o c lo r id r ia )

S ín d r o m e d e Z o llin g e r -E llis o n In a tiv a ç à o d e e n z im a s p a n c re á tic a s p o r b a ix o p H d u o d e n a l


D im in u iç ã o d a io n iz a ç ã o d e sais b ilia re s c o n ju g a d o s

A n e m ia p e rn ic io s a D im in u iç ã o d e fa to r in trín s e c o , m á a b s o rç ã o d e v lt . B u

S ín d r o m e d e d u m p in g E s v a z ia m e n t o r á p id o d o c o n t e ú d o g á s tr ic o p a ra o in t e s t in o d e lg a d o
D ilu iç ã o d e e n z im a s

Pâncreas
F ib ro s e cística Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s e b ic a r b o n a t o

S. S h w a c h m a n -D ia m o n d Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s

P a n c re a tite a g u d a / c rô n ic a Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s e b ic a r b o n a t o

D e s n u tr iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s

D e fic iê n c ia d e t r ip s in o g è n io Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s

D e fic iê n c ia d e lip a se Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s

D e fic iê n c ia d e a m ila s e Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e e n z im a s

Fígado
S ín d r o m e s c o le stá tic a s Im p e d i m e n t o d a s e c re ç ã o d e sais b ilia re s c o m d e fic ie n te f o r m a ç ã o d e m ice la s

D o e n ç a o u c iru rg ia ileal M á a b s o rç ã o in te s tin a l d e sais b ilia re s , p o o l d e fic ie n te d e sais b ilia res

Intestino
D e fic iê n c ia d e e n te ro q u in a s e Im p e d i m e n t o d a a tiv a ç ã o d a s e n z im a s p a n c re á tic a s lu m in a is

D e s n u tr iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s
P r o d u ç ã o d e to x in a s
D e s c o n ju g a ç â o d e sais b ilia res

D u p lic a ç ã o a n a tô m ic a S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s

S ín d r o m e d a a lça c e g a S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s

S ín d r o m e d o in t e s t in o c u r t o S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s

P s e u d o -o b s t r u ç â o in te s tin a l S u p e r c r e s c im e n t o b a c t e r ia n o c o m c o n s u m o d e n u trie n te s

----------------------------------------------------------------------- ▼-----------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 28.2 Afecções gastrintestinais associadas com má digestão na membrana do enterócito

Doença/Condição Fisio p ato logia

D e fic iê n c ia c o n g ê n it a d e d is s a c a rid a s e M á d ig e s t ã o d o d is s a c a ríd io e s p e c ífic o c o m f e r m e n t a ç ã o b a c te ria n a n o c ó lo n

Lactase
S a c a ra s e -is o m a lta s e

Tre a la s e

D e fic iê n c ia a d q u irid a / ta rd ia d e d is s a c a rid a s e P e rd a d a a tiv id a d e e n z im á t ic a p o r d a n o à m u c o s a o u p e rd a d a a tiv id a d e c o m


o e n v e lh e c im e n t o

L a cta se

Sacarase-isomaltase
Glicoamilase

■ Exames e testes específicos para • Normal: até 100 gotas/campo; diâmetro m e­


nor que 4 |im
má absorção intestinal • Aumentada: até 100gotas/campo;diâm etrode4a
■ Testes relacionados com gorduras (ver figura 28.1) 8 |im (esteatorreia moderada)
• Muito aumentada: mais que 100 gotas/campo; diâmetro
■ Pesquisa degordura fecal (SudamIII)
de 6 a 75 |im (esteatorreia acentuada)
É procedimento simples que se baseia na detecção microscó­
pica de gordura nas fezes. Os resultados positivos são dados em Podem ocorrer resultados falso-positivos quando o paciente
cruzes, conforme o tamanho e número de gotículas de gordura ingeriu óleo mineral ou, por ocasião da coleta, as fezes foram
em campo microscópico de grande aumento. contaminadas com o uso local de substâncias oleosas. Em mãos
270 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal

------------------------------------------ ▼------------------------------------------
Q u a d ro 28 .3 Afecções gastrintestinais associadas com má absorção no enterócito

Doença/Condição Fisio p ato logia

M á n u t r iç ã o c a ló r ic o -p r o t e ic a D a n o x a d a p t a ç ã o d a a rq u it e t u r a m u c o s a a lte ra d a
D o e n ç a d e H a rtn u p D e fe ito d e t r a n s p o r t e d e a m in o á c id o s n e u tro s

S ín d r o m e d a fra ld a a zu l D e fe ito n o tr a n s p o r t e d e tr ip t o f a n o
S ín d r o m e d e O a s t h o u s e D e fe ito n o tr a n s p o r t e d e m e tio n in a n o in t e s t in o e rim

S ín d r o m e d e L o w e D e fe ito n o tr a n s p o r t e d e lisin a e a rg in in a (lig a d a a o X )


M á a b s o rç ã o d e g lic o s e -g a la c to s e D e fe ito s e le tiv o n o siste m a d e c o t r a n s p o r t e s ó d ic o d e g lic o s e e g a la c to s e
D ia rré ia c lo ríd ric a c o n g ê n it a D e fe ito s e le tiv o n o tr a n s p o r t e d e c lo r e t o

A b e t a lip o p r o t e in e m la A u s ê n c ia d e p r o d u ç ã o d e a p o lip o p r o t e ín a B, lip o p r o t e ín a s e q u ilo m íc r o n s


H ip o b e t a lip o p r o t e in e m ia Im p e d i m e n t o à p r o d u ç ã o d e a p o lip o p r o t e ín a

D o e n ç a c elía ca D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
S ín d r o m e d o in t e s t in o c u r t o P e rd a d a s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a , t r â n s ito a n o r m a l

S ín d r o m e d e d a n o à m u c o s a D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
In to le râ n c ia a o le ite/so ja S ín d r o m e p ó s -g a s t r o e n t e r it e

E s p ru tro p ic a l D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
D o e n ç a d e W h ip p le O b s t r u ç ã o lin fá tica . Im p e d i m e n t o n o tr a n s p o r t e d e lip íd io s (?), e n t e ro p a t ia focal

In fe c ç á o / in fla m a ç â o b a c te ria n a

S h ig e lla D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a , m o t ilid a d e a n o r m a l


S a lm o n e lla
C a m p y lo b a c t e r
C ó le ra P e rd a s e c re tó ria d e á g u a e e le tró lito s
G ia rd ía s e A lte r a ç ã o d a fu n ç ã o e p ite lia l s e c u n d á ria à a d e rê n c ia d o p a ra s ita o u to x in a (?)

D o e n ça de C ro h n D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a . P e rd a c rô n ic a d e s a n g u e
In fe c ç ã o vira l

R o ta v íru s D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a
S ID A D a n o à s u p e rfíc ie d ig e s t iv o -a b s o r t iv a

S u p e r c r e s c im e n t o b a c te r ia n o
In s u fic iê n c ia p a n c re á tic a e x ó c rin a e h e p á tic a

A c r o d e r m a t it e e n te ro p á tic a Im p e d i m e n t o à a b s o rç ã o d o z in c o

----------------------------------------------------- ▼-----------------------------------------------------
Q uadro 28 .4 Afecções gastrintestinais associadas com alterações no transporte para o sangue e a linfa

Doença/Condição Fisio p ato logia

In s u fic iê n c ia c a rd ía c a c o n g e s tiv a D is te n s ã o v e n o s a
E d e m a d a p a r e d e in te s tin a l

L in fa n g ie c ta s ia in te s tin a l O b s t r u ç ã o a o tr a n s p o r t e lin fá tic o d e lip íd io s e v ita m in a s lip o s s o lú v e is


P e rd a in te s tin a l d e p ro te ín a s
L in fo m a in te s tin a l O b s t r u ç ã o a o tr a n s p o r t e lin fá tic o d e lip íd io s e v ita m in a s lip o s s o lú v e is

S ín d r o m e c a r c in o id e O b s t r u ç ã o a o t r a n s p o r t e lin fá tic o d e lip íd io s e v ita m in a s lip o s s o lú v e is

--------------------------------------------- ▼---------------------------------------------
Q u a d ro 28.5 Afecções gastrintestinais associadas com diversas alterações (miscelânea)

Doença/Condição Fisiopatologia

S ín d r o m e s d e im u n o d e fic iê n c ia s F lo ra b a c te ria n a a lte ra d a


G a s t r o e n t e r o p a t ia a lé rg ic a M e c a n is m o im u n o ló g ic o d e s c o n h e c id o

G a s t r o e n t e r o c o lo p a t ia e o s in o fílic a M e c a n is m o im u n o ló g ic o d e s c o n h e c id o
D ro g a s

M e to tre x a te D a n o à s u p e rfíc ie m u c o s a p o r in te rfe rê n c ia na re p lic a ç á o e n te ro c ític a


C o le s tira m in a B lo q u e io n a re a b s o rç ã o d e sais b ilia re s n o íle o

M á a b s o rç ã o d e c á lc io , g o r d u r a , á c id o s b ilia re s e v it a m in a s lip o s s o lú v e is
F e n a n to ín a M á a b s o r ç ã o d e c á lc io e á c id o fó lic o
S u lfa s a la zin a M á a b s o rç ã o d e á c id o fó lic o

A n t a g o n is t a s d o r e c e p t o r H , d a h is ta m in a I m p e d i m e n t o à lib e ra ç ã o á c id o / p ro te o lític a d e v it a m in a B u
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 271
▼ ------------------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 28 .6 Síndrome de má absorção intestinal — dados clínicos, de exames e mecanismos envolvidos

Dados clínicos Dados de exam es M ecanism os

p e rd a m u s c u la r | a lb u m in a sérica a lte ra ç ã o d o m e t a b o lis m o p ro t e ic o


b aix a e s ta tu ra
edem a | a b s o rç ã o e in g e s tã o

d o r e s ósseas raio s X d e s m in e r a liz a ç â o óssea p e rd a p ro te ic a e n té ric a


fra tu ra s d e n s it o m e tr ia ó s se a a lte ra d a
d e f o r m id a d e e s q u e lé tic a

p a restesia s 1 c á lc io s é rlc o a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d e C a e d e v it a m in a D


te ta n ia o s te o m a la c ia

p e rd a d e p e s o e ste a to rre ia a lte ra ç ã o n a a b s o r ç ã o e p e r d a d e g o r d u r a , v ita m in a s


fezes c lara s e v o lu m o s a s 1 c o le s te ro l lip o s s o lú v e is e Ca

s a n g r a m e n t o , e q u im o s e TTA P a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d e v it a m in a K

p a restesia s m a c ro d to s e a lte ra ç ã o n a a b s o r ç ã o d e v it a m in a B ,,
n e u ro p a tia i v it. B , „ m e g a lo b la s to s
g lo s s ite i fo la to s a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d e á c id o fó lic o
a n e m ia m ic ro c ito s e a lte ra ç ã o n a a b s o r ç ã o d e Fe
h lp o c r o m ia

fra q u e z a , te ta n ia , parestesia s i M g s é ric o a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d e M g

d e s id ra ta ç ã o , n ic tú ria ! v o lu m e p la s m á tic o a lte ra ç ã o n o m e t a b o lis m o d a á g u a

c ã ib ra s, a rritm ia s i N a sé ric o a lte ra ç ã o n o m e t a b o lis m o d o s ó d io


fra q u e z a m u s c u la r I K s é ric o a lte ra ç ã o n o m e t a b o lis m o d o p o tá s s io
a lte ra ç õ e s E C G

q u e ilite , n e u rite , g lo s s ite i t r lp t o f a n o u rin á rio a lte ra ç ã o n a a b s o rç ã o d o c o m p le x o B

d is te n s ã o a b d o m in a l | o u a c h a ta m e n t o d a c u r v a g lic è m ic a ? a lte ra ç ã o na h id ró lis e e


d ia rré ia , fla tu lé n c ia la cto se , s a c a ro s e o u m a lto s e i a b s o rç ã o d e h id ra to s d e c a r b o n o

experientes, tais resultados têm sensibilidade e especificida­ ra. Apresenta uma correlação muito boa com o teste de Van
de altas, estando claramente correlacionados com a dosagem der Kamer. Tem sido muito usado para avaliar a redução da
quantitativa de gordura fecal. esteatorreia em pacientes com fibrose cística em resposta à te­
rapêutica com enzimas pancreáticas. Embora não substitua a
■ Balançode gorduranas fezes dosagem quantitativa da gordura fecal, é um teste rápido, viá­
Esta prova consiste na avaliação quantitativa de triglicerí- vel, não oneroso e seguro para a triagem de esteatorreia, prin­
dios e ácidos graxos livres nas fezes. Para a realização do teste, cipalmente para pacientes pediátricos.
administra-se ao paciente, durante seis dias, uma dieta conten­
do aproximadamente 35% das calorias em gordura. A partir do ■ Determinação da elastase-1(EL-1)
quarto dia até o sexto dia, as fezes são guardadas juntas em ge­ Relatos recentes indicam que a determinação da EL-1 nas
ladeira. Ao final da coleta, são homogeneizadas e a quantidade fezes é um teste sensível, específico e não invasivo da função
de gordura fecal é analisada pelo método de Van der Kamer que pancreática. Carrocio et al. compararam a acurácia diagnós-
se baseia na extração e na titulação dos ácidos graxos de cadeia tica da EL-1 fecal com a quimiotripsina fecal (FCT) para dis­
longa com NaOH. O peso de lipídios no espécime é calculado tinção entre má digestão de origem pancreática e má absorção
e expresso em gramas por 24 h. Considera-se normal quando intestinal. As fezes foram coletadas por 72 h em dieta comum
ele for igual ou inferior a 5 g/dia. Valores entre 5 e 7 g/dia são e estes testes comparados com o esteatócrito. A acurácia diag-
considerados sugestivos de esteatorreia e acima de 7 g/dia são nóstica foi de 92% para a EL-1 e 82% para a FCT, concluin­
diagnóstico de esteatorreia. do que a primeira é mais específica para demonstrar provável
Alguns serviços adotam a dosagem da gordura fecal na vi­ causa pancreática.
gência de dieta habitual, pois no Brasil esta já é rica em gordu­
ras. Os valores considerados normais são: ■ Testesrespiratórios
O teste respiratório da trioleína marcada com MC pode tam­
• Crianças: 1,52 - 0,73 g/dia;
bém ser utilizado para estudo da má absorção de gordura, pois
• Adultos: 2,24 - 0,89 g/dia.
esta, depois de hidrolisada e absorvida, libera CO, marcado
O balanço de gordura, pelo método de Van der Kamer, é com HC, permitindo medida da radioatividade no ar expira­
considerado o padrão-ouro para a avaliação da má absorção do. Dispensa o inconveniente da coleta de fezes de 72 h e tem
de gordura, mas apresenta dificuldades técnicas quando feito sensibilidade e especificidade altas. Do mesmo modo que os
em crianças, particularmente naquelas ainda sem controle es- anteriores, esse teste pode levar ao diagnóstico de má absorção,
fincteriano. mas também não localiza em que fase está o distúrbio.
Ponto importante a destacar é que a demonstração de gor­
■ Esteatócrito dura fecal aumentada não discrimina o tipo de esteatorreia,
O esteatócrito é um teste de triagem semiquantitativo, re­ devendo-se lançar mão de dados clínicos e de outras provas
lativamente simples para se avaliar a má absorção de gordu­ para se determinar a causa do problema.
272 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal

■ Testes relacionados com carboidratos (ver Figura 28.2) Recomenda-se sempre analisar concomitantemente o pH
■ Prova dao-xilose fecal e a presença de substâncias redutoras nas fezes. Deve-se
lembrar que, ocorrendo a fermentação completa dos hidratos
A D-xilose é uma pentose que normalmente não é encon­
de carbono não absorvidos, detecta-se apenas alteração do pH
trada no organismo. A sua absorção ocorre principalmente
fecal.
em duodeno e jejuno proximal via mecanismo de transporte
da glicose. No entanto, apresenta baixa afinidade pelos carre­
■ Provas desobrecargacomdissacarídios (lactose, sacarose)
gadores e depende da integridade da mucosa intestinal. Como
A prova de sobrecarga, com doses padronizadas de diferen­
a sua absorção é independente de fatores intraluminares, tais
tes açúcares, baseia-se na alteração da glicemia após a ingestão
como sais biliares, secreções exócrinas do pâncreas ou da pre­
e absorção dos hidratos de carbono. O açúcar a ser investigado
sença de enzimas da borda em escova das vilosidades, a sua má
é administrado por via oral, após jejum de 6 a 8 h, na dose de
absorção é indicativa de lesão da mucosa do intestino delgado 2 g/kg de peso corpóreo para os dissacarídios (lactose, sacaro­
proximal. Uma vez ingerida, metade da D-xilose é absorvida e
se ou maltose), no máximo 50 g, e de 1 g/kg de peso corpóreo
metabolizada no fígado e metade, excretada pela urina. Des­
para os monossacarídios (glicose e frutose), em solução aquo­
sa forma, pode-se avaliar a sua absorção pela quantidade que sa a 10%. A cada 20 min, e até os 80 min, novas amostras de
é excretada na urina, durante um período de 5 h após a sua
sangue são obtidas, e estabelece-se uma curva. As amostras de
ingestão, ou pela D-xilosemia. Devido à dificuldade em se co­ 20 e de 40 min devem estar, no mínimo, 20 mg acima do nível
lher urina, principalmente em crianças pequenas, a avalia­ de jejum. Um aumento da glicemia superior a 34 mg/d^, em
ção da D-xilosúria praticamente não é realizada e prefere-se relação ao valor da glicemia de jejum, é considerado normal
a determinação da D-xilosemia. A D-xilosemia é realizada da e o paciente é classificado como bom absorvedor. Quando o
seguinte forma: após jejum de 8 h, é administrado aos pacientes aumento variar de 20 a 34 m g/dt ou não ultrapassar 19 mg/dê,
0,5 grama por quilograma de D-xilose dissolvida em solução os pacientes serão considerados pobres absorvedores ou não
aquosa a 10% até no máximo 25 g. Sessenta minutos após a absorvedores, respectivamente.
administração da D-xilose, é coletada amostra de sangue ve- Estas provas de sobrecarga são bastante úteis. Entretanto,
noso. A D-xilose sanguínea é determinada pelo método colo- alguns fatores podem interferir no resultado, como, por exem­
rimétrico descrito por Roe e Rice. plo, o tempo de esvaziamento gástrico.
Consideram-se valores normais: Em geral, o paciente com intolerância ao dissacarídio sente-
• Adultos: D-xilosemia: valor menor que 25 mg/d^ é con­ se nauseado, tem borborismos e alguns chegam a apresentar
siderado alterado diarréia do tipo fermentativa logo após o término do teste. Caso
° Acima de 5 g na urina de 5 h; seja determinado o pH das fezes, provavelmente ele estará áci­
• Crianças: D-xilosemia: valores acima de 20 mg/dí para do nessa situação.
crianças até 6 meses ou acima de 25 m g / d t para crian­
ças com mais de 6 meses e adultos indicam boa absor­ ■ Determinação daatividade das dissacaridases
ção intestinal. Em fragmentos de mucosa do intestino delgado, é possível
determinar-se o nível de atividade das enzimas que hidrolisam
Devido à interferência de fatores como hipermotilidade in­ os dissacarídios: lactase, sacarase e maltase. Na literatura, os
testinal, uso de drogas, doença renal, ascite, mixedema etc., fragmentos são colhidos ao nível do ângulo de Treitz, onde há
muitos autores relatam resultados falso-positivos e falso- padronização dos valores. Entretanto, com o advento das biop-
negativos, não mais preconizando a prova como há alguns anos sias endoscópicas, na segunda e na terceira porções do duode­
atrás. no, alguns autores recomendam dosagens a esse nível. Poderá
haver diminuição seletiva de uma enzima ou de mais de uma.
■ Determinação dopH fecal Há necessidade de se estabelecer o padrão histológico para se
A determinação do pH fecal é de fácil execução e é comu- caracterizar o problema como primário (mucosa normal) ou
mente realizada com tiras de papéis indicadores de pH que são secundário (mucosa alterada).
colocadas na parte líquida de fezes recém-emitidas. Normal­
mente, o pH das fezes está entre 6,0 e 7,0. Valores abaixo de ■ Testesrespiratórios: Provadohidrogênio expirado
5,5 são indicativos de má absorção. O pH baixo deve-se à fer­ A prova do hidrogênio expirado é um teste não invasivo,
mentação dos hidratos de carbono que não foram absorvidos de tecnologia simples e acurada, sendo bem tolerada inclusive
na parte proximal do intestino delgado, pela ação de bactérias pelas crianças. Baseia-se no fato de que os açúcares não absor­
anaeróbicas do cólon, com a consequente formação de ácidos vidos, ao chegarem ao cólon, são fermentados por ação da flora
graxos de cadeia curta. Se o paciente estiver recebendo anti­ bacteriana com produção de hidrogênio. Cerca de 16 a 20% do
bióticos que alterem a flora bacteriana, o resultado poderá ser hidrogênio formado durante a fermentação é absorvido e elimi­
falso-negativo. Deve-se também ressaltar que, nos lactentes que nado pelos pulmões, podendo ser medido por cromatografia ga­
recebem leite materno, o pH das fezes geralmente é ácido. sosa. A quantidade de hidrogênio expirado reflete a quantidade
de hidratos de carbono que não foram absorvidos no intestino
■ Pesquisa desubstâncias redutoras delgado. O cólon produz virtualmente todo o hidrogênio cor­
Fezes líquidas não necessitam de diluição, mas fezes pastosas póreo e demonstrou-se que o hidrogênio exalado aumenta após
ou firmes são diluídas em duas partes de água. Dessa mistu­ a introdução de pequenas quantidades de hidratos de carbono
ra, colocam-se 15 gotas em contacto com um comprimido de diretamente no órgão. O aumento correlaciona-se diretamente
Clinitest®. Essa reação é positiva quando há mono ou dissaca- com a quantidade de hidratos de carbono que entram no cólon,
rídios, à exceção da sacarose. Suspeitando-se de intolerância a e uma proporção constante de hidrogênio passa para a corrente
esse dissacarídio, acidifica-se previamente a mistura de fezes sanguínea para ser excretada pela respiração.
com ácido clorídrico, com o intuito de hidrolisar o açúcar em Um indivíduo em jejum normalmente expira pequena
seus componentes redutores. quantidade de hidrogênio devido à fermentação de alimentos
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 273

residuais e das fibras presentes no cólon. O valor basal de hi­ creopatia crônica. Também pode ser de ajuda em situações de
drogênio deve ser menor que 10 ppm (partes por milhão) em emergência, em relação a suboclusões ou oclusões.
condições adequadas de jejum. Após a administração da so­
brecarga do açúcar, a quantidade de hidrogênio aumentará se ■ Trânsito intestinal
o substrato não tiver sido absorvido em intestino delgado. Um A visualização da superfície absortiva do intestino delgado
aumento da concentração de hidrogênio de 20 ppm durante a por meio de raios X contrastado pode ajudar a definir qual a
realização da prova significa má absorção do açúcar. causa da má absorção. Salienta-se que grave má absorção pode
A prova do hidrogênio expirado, se realizada em condições estar presente sem que nenhuma anormalidade seja detectada
técnicas adequadas, é atualmente considerada como o méto­ nas radiografias; por isso, o exame radiológico não deve ser usa­
do de escolha para se avaliar a má absorção dos hidratos de do como substituto dos testes funcionais. Portanto, o radiologis­
carbono. Teste semelhante pode ser feito com lactose-"C, en­ ta pode excluir algumas condições e sugerir outras, mas o diag­
contrando-se o CO, diminuído no ar alveolar quando houver nóstico definitivo vai depender da soma dos dados de história,
deficiência de lactase. exame físico, exames laboratoriais e de anatomia patológica.
Os achados serão, independentemente da etiologia, em geral
■ Testes relacionados com proteínas (Figura 28.3) os que sugerem má absorção: edema de mucosa, floculação e/ou
Devido às dificuldades técnicas, provas de absorção de segmentação do contraste, dilatações de alças, hipo ou hipermo-
proteínas, peptídios e aminoácidos têm sido mais realizadas tilidade. Tais aspectos podem ser verificados na doença celíaca,
em pesquisas, não sendo usadas na prática para diagnóstico. As doença de Whipple, hipobetalipoproteinemia etc.
mais importantes são: determinação do nitrogênio fecal, testes Em contrapartida, existem afecções que podem se apresentar
de perfúsão com macromoléculas e teste utilizando albumina com imagens bem sugestivas. Como exemplos, citam-se:
marcada co m 5'Cr. a) doença de Crohn: espessamento da parede, hiperplasia do
tecido linfoide, nódulos de tamanhos variados, ulcerações
■ Exames específicos para determinadas afecções transversais, lesões tipo "pedra de calçamento”, fístulas,
estenoses, com áreas preservadas e lesões “em salto”;
• Anticorpos antigliadina (AGA IgG e IgA), anticorpos b) linfomas: falhas nodulares de enchimento, irregularida­
antiendomísio (EmA IgA) e antitransglutaminase teci- de na mucosa, ulcerações, aumento da distância entre as
dual são determinados no soro de pacientes com suspeita alças etc.;
de doença celíaca; c) imunodeficiência comum variável: padrão nodular por
• Determinação de eletrólitos no suor é realizada para pes­ hiperplasia linfoide;
quisa de fibrose cística; d) tuberculose intestinal: lesões estenosantes no íleo termi­
• Detecção de proteínas anômalas no sangue ou secre­ nal, lesões no ceco, falhas de enchimento;
ções, como na doença imunoproliferativa do intestino e) estrongiloidíase: sinais de inflamação aguda no intestino
delgado; proximal.
• Dosagem do ácido 5-hidroxindolacético, na suspeita de
tumor carcinoide; ■ Ultrassonografia, tom ografia com putadorizada e ressonância
• Hemoglobina glicosilada, perfil glicêmico ou curva gli- m agnética do abdom e
cêmica para diagnóstico do diabetes melito; Podem ser solicitadas para diagnóstico de causas biliopancreá-
• Dosagens de T3, T4 e TSH e anti-TPO na suspeita de ticas, detecção de massas ou aumento de linfonodos, complica­
doenças da tireoide; ções da doença de Crohn etc.
• Pesquisa de anti-HIV para diagnóstico da síndrome da
imunodeficiência adquirida; ■ Raios X de tórax
• Pesquisa de microrganismos na síndrome da alça estag- Têm importância para diagnóstico de afecções que cursam
nante; também com alterações no mediastino (linfomas, deficiência de
• Pesquisa de parasitos em suco duodenal na suspeita de IgA com timoma), pleura (tuberculose, metástases) parênquima
giardíase ou estrongiloidíase; e árvore brônquica (fibrose cística, tuberculose).
• Testes para estudo da função pancreática, na suspeita de
pancreopatias; ■ Raios X dos seios da face
• Detecção de alfa-1-antitripsina, usada como marcador de São solicitados quando se têm casos de imunodeficiências
perda proteica; que cursam com infecções de vias respiratórias superiores,
• Teste de calprotectina na avaliação de doenças inflama- como deficiência seletiva de IgA ou deficiência imunológica
tórias intestinais; comum variável.
• Pesquisa de lactoferrina fecal na suspeita de doença in-
flamatória intestinal; ■ Raios X de articulações
• Detecção de pANCA e ASCA-IgA e ASCA-lgG para o Quando a má absorção advém de doenças do colágeno, são
diagnóstico diferencial entre doenças inflamatórias intes­ estudadas determinadas articulações, assim como quando há
tinais como colite ulcerativa e doença de Crohn. uma doença inflamatória (doença de Crohn) ou infecciosa
(doença de Whipple), que também mostram artralgias e artrites
■ Exames de imagem nos seus quadros clínicos.

■ Raios X simples do abdom e ■ Raios X de mãos e punhos para idade óssea


De modo geral, este exame é solicitado quando se deseja A determinação da idade óssea é fundamental no estudo da
afastar causa pancreática para a má absorção, pois o encontro má absorção de crianças e adolescentes, tanto por ocasião do
de calcificações em topografia do pâncreas fala a favor de pan- diagnóstico, como no controle evolutivo dos casos.
274 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal

■ Densitom etria óssea • doença de Crohn;


Várias são as afecções que cursam com má absorção e que • colite indeterminada;
determinam alterações no metabolismo do cálcio e da vitami­ • polipose;
na D, levando à osteopenia, osteomalacia e osteoporose, tais • alterações de doenças sistêmicas (AIDS);
como a doença celíaca e a doença de Crohn. Este exame, além • ingestão de AINEs;
de dar uma ideia da massa óssea por ocasião do diagnóstico, • enterite actínica;
serve para conduzir o tratamento no aspecto profilático de al­ • distúrbios funcionais.
terações ósseas futuras. As contraindicações absolutas são consideradas relativas
por muitos.
■ Arteriografia
É solicitada na suspeita de insuficiência vascular ou na pre­ • obstrução intestinal;
sença de tumores vasculares. • pseudo-obstrução intestinal;
• disfagia;
• acalasia;
■ Endoscopia digestiva • divertículo de Zenker;
Na maioria dos centros, se preconiza a endoscopia diges­ • gastroparesia;
tiva alta, com estudo do esôfago, estômago, bulbo duodenal e • estenose pilórica;
a segunda porção do duodeno (no máximo, terceira porção), • cirurgia gástrica;
onde biopsias são realizadas e são diagnósticas em grande par­ • cirurgia intestinal.
te dos casos. Durante o procedimento, pode ser feita aspiração Em geral, não ocorrem complicações com esse método, mas
de suco gástrico e duodenal para a pesquisa de parasitos, prin­ a principal preocupação é a retenção da CE em áreas de es­
cipalmente larvas de Strongyloides stercoralis e trofozoítos de tenose (doença de Crohn, enterite actínica, uso de AINEs e
Giardia lamblia. pós-cirurgias). A CE habitualmente pode ser retida por pouco
Por outro lado, o íleo terminal é visto e biopsiado através tempo, mas, em alguns casos, tal processo é definitivo, embora
da colonoscopia. Apesar desses exames, uma grande extensão normalmente não cause transtorno para o paciente, pois não
do intestino delgado, que pode ser a sede de enfermidades que provoca quadro suboclusivo. Contudo, recomenda-se retirá-la
cursam com má absorção, não é avaliada, a não ser em locais de cirurgicamente. Em certas situações, pode-se colocar a CE com
grandes recursos. A enteroscopia [push enteroscopy) só tem va­ a ajuda de fibroscópios.
lor em cerca de 12% dos casos de pacientes com má absorção de Quanto ao uso da CE em pacientes pediátricos, o consenso
origem incerta e com dados histológicos de biopsias duodenais
inicialmente recomendava apenas naqueles que ultrapassavam
inconclusivos. Shackel et al afirmam que, em sua experiência, o peso de 15 kg. Entretanto, estão surgindo relatos do uso da
somente 50% dos exames indicados por sangramento intesti­
CE em crianças e adolescentes de m enor peso, sem compli­
nal de causa obscura foram positivos. No Brasil, Sobreira et al. cações.
identificaram lesões em 52,1% dos pacientes com sangramento Salienta-se que a cápsula localiza as lesões e pode sugerir
oculto ou obscuro, predominando ectasias vasculares.
sua etiologia. No entanto, não permite biopsia, sendo essa sua
grande desvantagem. Entretanto, pode servir de guia para ex­
■ Cápsula endoscópica
ploração cirúrgica.
Apesar do desenvolvimento de métodos laboratoriais de
imagem e nos estudos de biopsias do intestino delgado, ainda
assim as afecções que cursam com disabsorção podem apresen­ ■ Biopsia peroral do intestino delgado
tar imensa dificuldade para o diagnóstico etiológico. O surgi­ Seja qual for o aparelho utilizado, impõe-se cuidadosa ma­
mento da cápsula endoscópica (CE) tem se mostrado um novo
nipulação dos fragmentos para a devida orientação dos cortes.
método clínico de grande utilidade, devido à visualização di­ Pela natureza “cega” da obtenção dos fragmentos para análise
reta e sugestão diagnóstica das lesões de todo intestino delga­
histopatológica, o diagnóstico de doenças multifocais, porém
do que poderíam ser perdidas pelos métodos anteriormente
não difusas, pode ser prejudicado, e nestes casos um resultado
mencionados. negativo não exclui o diagnóstico. Para a correta interpretação
O preparo do paciente é cômodo, por preconizar dieta sem das preparações histológicas, é imprescindível a atuação con­
resíduos 24 h antes do exame e jejum de 8 h. A ingestão pode junta do clínico e do patologista, para que aspectos estáticos da
ser reiniciada 2 h após a deglutição da cápsula. Recomenda-se
lâmina sejam entendidos em função dos processos dinâmicos
dieta líquida nas próximas 24 h. que representam.
Embora se saiba que, nos pacientes com diarréia o trânsi­
to pelo intestino delgado seja mais rápido, habitualmente não ■ Biopsia transendoscópica
há comprometimento na qualidade das imagens detectadas
Desde os anos oitenta, há aceitação geral da utilização da
pela CE.
biopsia duodenal distai na investigação das doenças entéricas
Várias afecções podem apresentar aspectos macroscópicos
com ou sem má absorção. É possível suspeitar-se de afecções pela
sugestivos que podem ser detectados pela CE. Merece desta­
aparência endoscópica do duodeno. Exemplos: doença celíaca,
que especial a melhoria do diagnóstico da doença de Crohn linfangiectasia, doença de Crohn, doença de Whipple etc.
pela CE. A biopsia endoscópica tem vantagens sobre a biopsia com
As indicações para exame com a CE são:
cápsula pela possibilidade de identificação da mucosa amos­
• hemorragia de causa obscura; trada. Entretanto, o duodeno normal pode apresentar algumas
• diarréia crônica e má absorção intestinal (incluindo alterações de comprimento de vilosidades e na densidade do
doença celíaca); infiltrado inflamatório, mesmo em pacientes normais, o que
• tumores; pode ser erroneamente interpretado como uma “duodenite”.
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 275

T
Q u a d ro 28 .7 Dados de histologia em biopsias do intestino delgado

Condição Achado histológico


Condições em que a biopsia é normal
S ÍN D R O M E P Ó S -G A S T R E C T O M IA

S ÍN D R O M E P Ó S -E N T E R E C T O M I A

H E P A T O P A T IA S

IN S U F IC IÊ N C IA P A N C R E A T IC A E X Ô G E N A
M u c o s a g e r a lm e n t e s e m a lte ra ç õ e s h is to ló g ic a s
IN T O L E R Â N C I A P R IM A R IA A L A C T O S E

R E T O C O L IT E U L C E R A T IV A IN E S P E C ÍF IC A

A N E M I A F E R R O P R IV A

E N TE R O C O L O P A T IA F U N C IO N A L

Condições em que a biopsia pode apresentar alterações não específicas


S ÍN D R O M E D IA R R E IC A P Ó S -E N T E R IT E

G A S T R O E N T E R IT E A G U D A

D E S N U T R IÇ Ã O

A L E R G IA A P R O T E Í N A D O L E IT E D E V A C A
A c h a t a m e n t o d e v ilo s id a d e s ; a u m e n t o d o n ú m e r o d e c é lu la s in fla m a tó ria s n o c ó r io n m u c o s o ; sinais
A L E R G IA A P R O T E Í N A D A S O J A
d e re g e n e r a ç ã o e p ite lia l c o m d im in u iç ã o d a m u c o p r o d u ç ã o ; a u m e n t o d e p la s m ó c ito s ; a u m e n t o d e
S ÍN D R O M E D A A L Ç A E S T A G N A N T E
e o s in ó filo s e e x o c ito s e d e e o s in ó filo s e m a le rg ia s e re a ç õ e s a d r o g a s ; a u m e n t o d is c re to d e lin fó c ito s
DROGAS in tra e p ite lia is

D E F IC IÊ N C IA D E F O L A T O E V IT A M IN A B „

E N T E R IT E S P O R E N T E R O V ÍR U S , R O T A V ÍR U S ,
A D E N O V ÍR U S

E N T E R O P A T IA A U T O I M U N E

Condições em que a biopsia pode apresentar alterações diagnósticas ou achados característicos


E N T E R IT E P O R C IT O M E G A L O V Í R U S In c lu s õ e s v ira is c a ra c te rística s, u lc e ra ç à o

F E B R E T IF O ID E E P A R A T IF O ID E In filtra d o h is tio c itá rio , h lp e rp la s ia d e p la c a s d e P eyer, ú lce ra s p ro fu n d a s

Y E R S IN IA In fla m a ç ã o g r a n u lo m a t o s a o u s u p u ra tlv a , u lc e ra ç ã o , h ip e rp la s ia lin fo id e

C L O S T R ID IU M D IF F IC IL E E ro s ã o d a m u c o s a c o m f o r m a ç ã o d e e x s u d a t o f i b r in o le u c o d t á r io e m "vulcão*; p s e u d o m e m b r a n a s

TUBER CULO SE In filtr a d o g r a n u lo m a t o s o ; p re s e n ç a d e b a c ilo s á lc o o l-a c id o rre s is te n te s à c o lo r a ç ã o d e Z ie h l-N e e ls e n

M IC O B A C T E R IO S E In filtr a d o g r a n u lo m a t o s o o u h is tio c itá rio ; p re s e n ç a d e b a c ilo s á lc o o l-a c id o rre s is te n te s à c o lo r a ç ã o d e


Z ie h l-N e e ls e n

D O E N Ç A D E W H IP P L E D e n s o in filtra d o h is tio c itá rio c o m c é lu la s e s p u m o s a s q u e c o r a m p o s it iv a m e n t e à c o lo r a ç ã o d e PAS

G IA R D ÍA S E A c h a t a m e n t o d e v ilo s , a u m e n t o d o in filtra d o in fla m a t ó r io d o c ó r io n , tr o fo z o íto s n a s u p e rfíc ie

E S T R O N G IL O ID ÍA S E In fla m a ç ã o a g u d a c o m e o s in ó filo s e u lc e ra ç õ e s , fo rm a s a d u lta s e la rva s, in v a siva s n a m u c o s a

E S Q U IS T O S S O M O S E In filtr a d o e o s in o fílic o , p s e u d o p ó lip o s in fla m a tó rio s , o v o s v iá v e is e in v iá v e is , g r a n u lo m a s , a d u lt o s e m


va so s

C R IP T O S P O R ID IO S E , IS O S P O R ID IO S E A tro fia d e v ilo s id a d e s , a b sc e s so s d e c rip ta s , m ic r o r g a n is m o s n a s u p e rfíc ie d a m u c o s a o u


in tra e p ite lia is

M IC R O S P O R ID IO S E In fla m a ç ã o le v e d a m u c o s a c o m a c h a ta m e n t o d e v ilo s id a d e s , v a c u o liz a ç á o d o e p ité lio ,


m ic r o r g a n is m o s a o W a r t h in -S t a r r y

P A R A C O C C I D I O ID O M IC O S E In fla m a ç ã o g r a n u lo m a t o s a , o r g a n is m o s c o m g e m u la ç á o m ú ltip la a o PAS

D OENÇA DE CROHN C r ip t it e , a b sc e s so s c ríp tic o s , in fla m a ç ã o tr a n s m u r a l, ú lce ra s aftosa s, ir r e g u la r id a d e d e v ilo s , a u m e n t o


d o in filtra d o m o n o n u d e a r n o c ó r io n , g r a n u lo m a s d e p a d r ã o s a rc o id e , fib ro s e

L I N F A N G IE C T A S IA IN T E S T IN A L L in fá tic o s d ila ta d o s n as v ilo s id a d e s , e d e m a d o c ó r io n , s e m in fla m a ç ã o

E N T E R IT E E O S IN O F ÍL I C A F o rm a m u c o s a : a u m e n t o d e e o s in ó filo s c o m d e g r a n u la ç ã o , a c h a t a m e n t o d e c rip ta s , a b sce s so s


c ríp tic o s

E N T E R IT E A C T Í N I C A F ib ro s e , a lte ra ç õ e s is q u ê m ic a s , e ctasia s v a s c u la re s , te la n g ie c ta s ia s , a lte ra ç õ e s v a s c u la re s

A M IL O ID O S E D e p ó s ito s d e m a te ria l a m ilo id e e m v a s o s , p o s it iv o às c o lo ra ç õ e s d e v e r m e lh o -c o n g o o u crista l v io le ta

M A C R O G L O B U L IN E M IA D e p o s iç ã o d e m a te ria l h ia lin o a ce lu la r, e o s in o fílic o , e m c a n a is lin fá tic o s n a p o n t a d o s v ilo s e b a s e d a


m ucosa

D O E N Ç A C E L ÍA C A A tro fia p a rcia l o u to ta l d e v ilo s id a d e s , d ifu sa o u fo ca l. A u m e n t o d o n ú m e r o d e lin fó c ito s in tra e p ite lia is

D O E N Ç A D O E N X E R T O -C O N T R A -H O S P E D E I R O D e s t r u iç ã o d e g lâ n d u la s , a p o p t o s e , in filtra ç ã o p o r lin fó c ito s T , u lc e ra ç õ e s

A B E T A L IP O P R O T E I N E M IA E n te ró c ito s v a c u o la d o s p o r a c ú m u lo d e g o r d u r a s c ito p la s m á tic a s , p r in c ip a lm e n t e na p o n t a d o s v ilo s

D E F IC IÊ N C IA S I M U N O L Ô G IC A S P R IM Á R IA S A p a r ê n c ia d iv e rs a d e a c o r d o c o m a cla s sifica çã o d e la , in fe c ç õ e s o p o r tu n ís tic a s

E N T E R IT E P O R A N T I -IN F L A M A T Ó R I O S P o d e s im u la r d o e n ç a d e C r o h n , e ro s õ e s , u lc e ra ç õ e s , f o r m a c o m f o r m a ç ã o d e "d ia fra g m a s "

L I N F O M A S E D O E N Ç A IM U N O P R O L IF E R A T IV A In filtra d o s lin fo c itá rio s d e n s o s e m o n ó t o n o s na m u c o s a , p o d e h a v e r le sõ e s lin fo e p ite lia is ,


D O IN T E S T I N O D E L G A D O n o d u la r id a d e o u f o r m a ç ã o d e p ó lip o s d e a c o r d o c o m o t i p o d e lin fo m a
276 Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal

Atualmente, com a videoendoscopia, pode-se gravar o exame M e d id a d ire ta d a a tiv id a d e d a s d is sa c a rid a se s


em fitas e realizar fotografias, para posterior discussão, o que Te s te s re s p ira tó rio s : H 2 ; C 1 4 o u C 1 3
realmente muito tem contribuído para esclarecimento diag­ Te s te s d e p e r m e a b ilid a d e
nóstico de casos difíceis. 2 .3 R E L A C IO N A D O S A A B S O R Ç Ã O D E P R O T E ÍN A S
D e t e r m in a ç ã o d a alfa-1 -a n tltr ip s ln a
■ Indicação e contraindicação da biopsia peroral do D e t e r m in a ç ã o d o n it r o g ê n io fecal
intestino delgado Te s te s d e p e r fu s à o c o m m a c r o m o lé c u la s
Indica-se biopsia peroral do intestino delgado quando se T e s te d a a lb u m in a -C r 5 1
suspeita de afecções que comprometem a mucosa da porção 3. EXAMES ESPECÍFICOS PARA DETERMINADAS AFECÇÕES
proximal. A contraindicação real é quando o paciente é porta­ A n t ic o r p o s a n t ig lia d in a (A G A Ig A e Ig G ); a n t ie n d o m ís io (E m A Ig A ) e
dor de discrasias sanguíneas graves. a n t it r a n s g lu t a m in a s e te c id u a l (d o e n ç a ce lía ca )
D e t e r m in a ç ã o d e e le tró lito s n o s u o r (fib ro s e c ís tic a )
■ Valor diagnóstico da biopsia peroral D e t e r m in a ç ã o d e im u n o g lo b u lin a s (im u n o d e fic iê n c ia s )

O Quadro 28.7 resume as alterações histológicas possíveis D e t e r m in a ç ã o d e p ro te ín a s a n ô m a la s (d o e n ç a im u n o p r o lif e r a t iv a d o


in t e s t in o d e lg a d o )
de serem detectadas nas principais afecções que cursam com
D e t e r m in a ç ã o d e á c id o 5 -h id r o x iin d o la c é t ic o (s ín d r o m e c a r c in o id e )
má absorção intestinal.
C u r v a g lic è m lc a o u p e rfil g lic è m ic o (d ia b e te s m e lit o )
Seja qual for o aparelho utilizado, impõe-se cuidadosa m a­
D o s a g e n s h o r m o n a is (h ip e r o u h ip o tir e o id is m o )
nipulação dos fragmentos para a devida orientação dos cortes.
P es qu is a d e a n t ic o r p o s (S ID A )
Para a correta interpretação das preparações histológicas, é im ­
P es qu is a d e m ic r o r g a n is m o s (s ín d r o m e d o c r e s c im e n t o b a c te r ia n o
prescindível a atuação conjunta do clínico e do patologista, a
e x a g e ra d o )
fim de que aspectos estáticos da lâmina sejam entendidos, em
P es qu is a d e p a ra s ita s e m a s p ir a d o d u o d e n a l
função dos processos dinâmicos que representam.
Te s te s d e fu n ç ã o p a n c re á tic a (s e c r e t in a -p a n c r e o z im in a , p e n to la u ril,
b e n t ir o m in a )

■ Avaliação cirúrgica Parte II


Eventualmente, esgotados os recursos propedêuticos dispo­ EXAMES DE IMAGEM
níveis e não se conseguindo chegar a um diagnóstico etiológico R aios X s im p le s d e a b d o m e
da má absorção, indica-se laparotomia exploradora. Salienta-se T râ n s ito in te s tin a l
a importância de entendimento prévio entre clínico, cirurgião U ltra s s o n o g ra fia
e patologista, pois, quase sempre, se trata de afecções tumorais, T o m o g r a f ia c o m p u t a d o r iz a d a d o a b d o m e
com ou sem complicações de urgência. Citam-se, como exem­ R e s s o n â n c ia m a g n é t ic a d o a b d o m e
plos, o diagnóstico cirúrgico de um linfoma; e o estadiamento R aios X d e tó ra x
de uma doença imunoproliferativa do intestino delgado. M ui­ R aios X d e seios d a fa ce
tas vezes, o tratamento cirúrgico de determinada enfermidade R aios X d e m ã o s e p u n h o s p a ra id a d e óssea
R aios X d e a rtic u la ç õ e s
pode ser feito neste mesmo ato.
D e n s it o m e t ria óssea
O Quadro 28.8 (Partes I e II) resume a investigação das
A rte rlo g ra fia
principais afecções que cursam com má absorção intestinal.
ENDOSCOPIA
E n d o s c o p ia d ig e s tiv a a lta (d u o d e n o )
E n te ro s c o p ia d ia g n ó s tic a e t e ra p ê u tic a
------------------------------------- ▼-------------------------------------
C á p s u la e n d o s c ó p ic a
Q u a d ro 28 .8 Investigação das principais afecções que cursam
C o lo n o s c o p ia p a ra a v a lia ç ã o d o íle o te rm in a l
com má absorção intestinal
E X A M E D O A S P IR A D O G Á S T R IC O / D U O D E N A L (p e s q u is a d e p ara s ita s)

Parte I BIOPSIA PERORAL DO INTESTINO DELGADO


P E S Q U IS A D E P A R A S IT A S N O F R A G M E N T O M A C E R A D O
HISTÓRIA CLÍNICA
A V A L IA Ç Ã O M O R F O L Ô G IC A
EXAME FÍSICO
E x a m e e s te re o s c ó p ic o
1. EXAMES HABITUAIS PARA AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL E x a m e h is to ló g ic o : h e m a to x illn a -e o s in a , p a S , c o lo ra ç õ e s e spe cia is
E CARÊNCIAS; PARASITOSES INTESTINAIS
M ic ro s c o p ia e le trô n ic a
H e m o g r a m a , fe rro s é ric o , fe rritin a
D E T E R M IN A Ç Õ E S E N Z IM Ã T IC A S
D o s a g e n s b io q u ím ic a s : p ro te ín a s , c o le s te ro l, g lic e m ia , fo la to e tc.
D o s a g e n s d e d is sa c a rid a se s
T e m p o d e a tiv id a d e d e p r o t r o m b in a
E x a m e h is t o q u ím ic o
E x a m e s p a ra s ito ló g ic o s d e fezes
E S T U D O IM U N O L Ó G IC O
2. TESTES ESPECÍFICOS PARA MÁ ABSORÇÃO INTESTINAL Im u n o flu o r e s c é n c ia
2. I R E L A C IO N A D O S A A B S O R Ç Ã O D E G O R D U R A S
Im u n o -h is t o q u ím ic a
P es qu is a d e g o r d u r a fecal (S u d a m III)
F u n ç ã o lin fo c itá ria
B a la n ç o d e g o r d u r a s n as fe ze s (V a n d e r K a m e r)
E S T U D O S B IO Q U ÍM IC O S
Te s te s re s p ira tó rio s : t r io le ín a -C 1 4
T r a n s p o r t e d e n u trie n te s
E s te a tó c rito
C o m p o s iç ã o d e e le m e n to s
P es qu is a d e elastase -1
AVALIAÇÃO CIRÚRGICA
2 .2 R E L A C IO N A D O S A A B S O R Ç Ã O D E H ID R A T O S D E C A R B O N O
D ia g n ó s tic a (lin fo m a s , d o e n ç a d e C r o h n etc.)
P ro v a d a D-xilose
E s t a d ia m e n t o (d o e n ç a im u n o p r o lif e r a t iv a d o in te s tin o d e lg a d o )
p H fecal, p e s q u is a d e su b s tâ n c ia s re d u to ra s
T e r a p ê u tic a
P ro va s d e s o b re c a rg a c o m d is s a c a ríd io s (la c to s e , s a ca ro se , m a lto s e )
Capítulo 28 / Síndrome de Má Absorção Intestinal 277

Em síntese, depois de esmiuçada a anamnese, completo exa­


me físico e conhecimento das características das fezes, devem-se
■ LEITURA RECOMENDADA
solicitar apenas as provas mais relevantes! Bloom, PD, Rosenbcrg, MD, Klein, SD et al. Wirclcss capsulc cndoscopy (CE)
is more informative than ileoscopy and SBFT for thc evaluation of thc small
intestine (SI) in patients with known suspcctcd Crohrís discasc. Gastroen-
terology, 2003; 214(Supl 1):A203.
■ MANEJO E TRATAMENTO Campos, JVM. Estado dinâmico do intestino delgado no processo da absorção.
II. Conccituaçào atual c fisiopatologia da absorção entérica. Classificação
Numerosas são as afecções que cursam com síndrome de má geral das síndromes de má absorção. Rev Ass Méd Bros, 1965; i 1:140-58.
absorção intestinal. O médico necessita de profundo conheci­ Carrocio, A, Vcrghi, F, Santini, B et al. Diagnostic accuracy of fecal clastasc 1
mento da fisiopatologia e da clínica para diagnosticar corre­ assay in patients with pancrcactic maldigestion or intestinal malabsorption:
a collaborative study of thc Italian Socicty of Pcdiatric Gastrocntcrology
tamente a causa do problema. Somente após a caracterização
and Hcpatology. DigDis Sei, 2001; 46:1335-42.
adequada da situação do paciente é que deverá ser instituído Day, WD et al. (cds.). Morson and Dawson Gastrintcstinal Pathology. Blackwcll
o tratamento, cujos resultados irão confirmar ou refutar tal Publishing, 4. Ed., 2003, p. 324-39.
diagnóstico. Grccnbcrg, NJ. Treatmcnt ofmalabsorptivc disorders. Em: Wolfc, MM. lherapy
O tratamento das doenças que cursam com disabsorção se ofDigestive Disorders. Philadclphia, WB Saundcrs, 2000, p. 491-501.
Hasan, M 8c Fcrguson, A. Mcasurcmcnts of intestinal villi in non-spccific and
baseia primeiramente na identificação do processo. Em segundo ulccr-associatcd duodenitis - corrclation bctwccn microdisscctcd villus and
lugar, se há desnutrição calórica/proteica e/ou deficiência de villous cpithclial ccll count. / Clin Pathol, 1981; 34:1881.
vitaminas, sais minerais, deve também ser instituído adequado Kotzc, LMS. Biopsia pcroral do intestino delgado. Em: Castro LP 8c Coelho
aporte nutricional a fim de se manter ou restaurar o crescimento LGV. Gastrenterologia. Mcdsi, Rio de janeiro, 2004, p. 981-1000.
normal (reposição entérica ou parenteral). Kotzc, LMS. Diagnóstico ctiológico das diarréias crônicas. Em: Kotzc LMS.
Diarréias crônicas. Diagnóstico e Tratamento, Editora Mcdsi, Rio de Janeiro,
1992, pp. 55-83.
Kotzc LMS. Doença Celíaca. Em: Lopes AC Tratado de Clínica Médica, Editora
■ CONSIDERAÇÕES FINAIS Roca, 1* edição, São Paulo, 2005, pp. 1036-55.
Kotzc LMS. Doença de Crohn. Em: Dani R. Gastrenterologia Essencial, 3J edição,
Diferentes fatores etiológicos desempenham papel na defla­ Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2006, pp. 333-57.
Kotzc, LMS. O exame das fezes nas diarréias crônicas. Em: Kotzc, LMS. Diarréias
gração e no desenvolvimento de várias síndromes. No Brasil, as Crônicas. Diagnóstico e Tratamento, Rio de Janeiro, Mcdsi, 1992, p. 45-53.
condições socioeconômicas podem expor as pessoas a subnu­ Kotzc, LMS. Síndrome de má absorção. Em: Dani R. Gastrenterologia Essencial,
trição, infecções e parasitoses intestinais de repetição e deve-se 3* edição, Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2006, pp. 257-72.
levar em conta que essas peculiaridades podem modificar as Kotzc, LMS 8c Pisani, JC. Endoscopia c biopsia pcroral do intestino delgado.
Em: Kotzc LMS. Diarréias Crônicas. Diagnóstico e Tratamento. Mcdsi, Rio
manifestações clássicas das doenças descritas nos livros-texto
de Janeiro, 1992, p. 85-112.
estrangeiros. Outro aspecto de grande relevância é a aborda­ Mannick, EE 8c Udall, JN. Maldigestion and malabsorption. Em: Wyllic, R 8c
gem dos problemas emocionais, pois o paciente que tem diar­ Hyams, JS (cd.). Pediatric Gastrintestinal Disease. Philadclphia, Saundcrs,
réia crônica, em geral, apresenta limitações em suas atividades 1999, p. 273-87.
familiares, sociais e sexuais que podem desencadear transtor­ Odzc, RD, Goldblum, JR, Crawford, JM (cds.). Surgical Pathology o f the GI
Tract, Liver, Biliary Tract and Pancreas. Saundcrs, 2004.
nos psicossociais.
Romaldini, CC. Provas de absorção intestinal. Em: Kotzc LMS 8c Barbicri D.
O ponto fundamental é o ajuste da dieta em relação à capa­ Afecções Gastrintestinais da Criança e do Adolescente. Rcvintcr, Rio de Ja­
cidade digestiva e absortiva de cada paciente. De forma geral, o neiro, 1* ed., 2003, p. 465-7.
conhecimento em relação às síndromes de má absorção intesti­ Shackcl, NA, Bowen, DG, Selby, WS. Video push cnteroscopy in the investiga-
nal aumentou significativamente nas últimas décadas; contudo, tion of small bowel discasc: defining clinicai indications and outeomes. Aus.
N. Z. J. Med., 1998; 28:198-203.
novos estudos e pesquisas ainda serão necessários para melhor
Sobreira, RS, Malhciros, APR, Teixeira, MG et al. Técnica de “push“-entcros-
manejo dos pacientes. copia no diagnóstico do sangramento digestivo de origem indeterminada.
Os métodos de investigação têm sido aperfeiçoados e ou­ G.E.D., 2004; 23:143-6.
tros foram desenvolvidos para permitir estas diferenciações e Tricr, JS. Intestinal malabsorption? Differcntiation of cause. Hosp. Pract., 1988;
auxiliam na determinação da etiologia. Tal diferenciação é de 23:195.
Vallc, J, Alcântara, M, Pérez-Grucso, MJ et al. Clinicai features of patients with
suma importância, uma vez que o desenvolvimento de linhas negative rcsults from traditional diagnostic work-up and Crohn’s disease
de raciocínio orientará a terapia: Tudo depende de acurácia findings from capsulc cndoscopy. /. Clin. Gastroenterol., 2006; 40:692-6.
diagnóstica! World Gastrocntcrology Organisation Practice Guidelines
Fibrose Cística, Intolerância a
Dissacarídios e Outros Distúrbios
na Digestão de Nutrientes
Patrícia Barbosa Ferrari, Sandra Beatriz Marion Valarini,
Jean Rodrigo Tafarel e Lorete Maria da Silva Kotze

Entende-se por funções parciais da digestão o conjunto de atos ------------------------------------- ▼--------------------------------


que visam a modificações dos alimentos no aparelho digestivo Quadro 29.1 Anormalidades na fase pré-epitelial ou no lúmen
para serem absorvidos, entregues às células de tecidos e órgãos intestinal, com consequente malabsorção
para serem metabolizados, e ainda outras que têm por objetivo
a expulsão, para o exterior, de detritos não aproveitados. Em Insuficiência exócrina do pâncreas
síntese, trata-se de uma intrincada série de acontecimentos de • Pancreatite crônica
natureza físico-química. As modificações químicas dos alimen­ • Fibrose cística do pâncreas
tos constituem a digestão propriamente dita. • Ressecções pancreáticas
Os processos mecânicos e físicos ocorrem na boca e no es­ • Tumores pancreáticos
tômago: mastigação e prensa no antro gástrico. Da mistura de • Síndrome de Zollinger-Ellison
saliva e suco gástrico, resulta, então, o quimo. No duodeno e Deficiência de sais biliares
jejuno proximal, ocorrem modificações osmóticas, emulsifi- • Redução do reservatório de sais biliares
cação e micelaçâo das gorduras. As primeiras visam a tom ar o Ressecçáo externa do íleo
conteúdo isosmótico em relação ao plasma; as outras duas são Doenças inflamatórias do íleo
realizadas pelos sais biliares, ácidos graxos e monoglicerídios. • Alterações químicas de sais biliares
A sequência harmônica das diferentes fases da digestão leva Síndrome da alça estagnante
os alimentos a uma desintegração em moléculas simples, do­ Gastrectomia Billroth II
tadas de elevado grau de solubilidade e difusão; ou, no caso • Chegada insuficiente de sais biliares ao intestino
Obstrução do colédoco
das gorduras, a um emulsionamento em partículas ultrafinas
• Produção deficiente de sais biliares
capazes de penetrar entre as microvilosidades dos enterócitos Insuficiência constitucional
para serem absorvidas. Hepatopatias
Qualquer perturbação que possa ocorrer nessa sequência
determina oferta ao intestino delgado de massa alimentar mal- Mistura insuficiente de bile com alimentos
• Gastrectomlas
preparada, acarretando rejeição de grande parte do material
oferecido. Os nutrientes, ou seus produtos não aproveitados, Aceleração do trânsito intestinal
serão excretados com as fezes. Fica claro que a malabsorção • Drogas (principalmente catárticos)
resultante não decorre de um efeito primário dos enterócitos. • Doenças sistêmicas (hipertireoidismo, p. ex.)
Secundariamente, em decorrência de fenômenos espoliativos e
carenciais, ou por inadaptação da mucosa às condições anôma­
las, pode haver alterações nas células epiteliais absortivas.
As principais secreções digestivas são: a saliva, o suco gás­ ■ SUCO GÁSTRICO
trico, a bile, o suco pancreático e o suco entérico.
As alterações em volume, concentração e disponibilidade
da secreção cloridropéptica podem estar relacionadas com a
■ SALIVA má absorção intestinal, tanto na sua insuficiência como no seu
excesso.
Não se conhecem afecções que cursem com diarréias crôni­
cas produzidas exclusivamente por alterações na secreção sali­
var. Em determinadas enfermidades, pode haver modificações
■ Insuficiência gástrica
na saliva (p. ex., sialosquese na desnutrição). A ausência ou indisponibilidade de suco gástrico no lúmen
Em relação às demais secreções, o Quadro 29.1 resume as intestinal está relacionada, em geral, a procedimentos cirúr­
principais entidades e mecanismos envolvidos. gicos. A principal anormalidade ocorre na função motora do

278
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 279

esvaziamento gástrico, consequente às ressecções totais e par­ ------------------------------------- ▼------------------------------------


ciais do estômago (com reconstrução a Billroth I ou II), e à Quadro 293 Mecanismos fisiopatológicos da diarréia pós-vagotomia
vagotomia (troncular ou seletiva). Muitas vezes, a diarréia
desaparece com a adaptação anatomofuncional; porém, em Distúrbio da função regulatória do piloro
alguns casos, persiste e pode levar a quadros de malabsorção Esvaziamento rápido do estômago
e desnutrição. Passagem rápida do quimo através do intestino delgado
Digestão e absorção insuficientes
■ Diarréia pós-gastrectomia
Supercrescimento bacteriano
Alterações anatômicas e fisiológicas pós-ressecção gástrica
Aumento do conteúdo osmótico no cólon
podem resultar na síndrome pós-gastrectomia em aproxima­
damente 20% dos indivíduos operados. A gastrectomia a Bil­ Denervaçâo da vesícula biliar
lroth II está mais frequentemente associada a essa síndrome. No
entanto, com o crescente aumento de pacientes submetidos à
cirurgia bariátrica, também tem se verificado aumento de com­
plicações gastrintestinais nesse grupo de indivíduos. A ressecção A vagotomia troncular associada à piloroplastia pode deter­
gástrica causa alteração do reservatório gástrico, compromete a minar diarréia em aproximadamente 25% dos pacientes ope­
função digestiva e a de transporte. Essas alterações podem de­ rados, porém essa complicação é infrequente na vagotomia
terminar esvaziamento gástrico retardado ou rápido. Quando superseletiva. Atualmente, a vagotomia troncular raramente
há retardo do esvaziamento, sintomas como plenitude, náuseas é empregada, porém lesão iatrogênica do nervo vago, sem o
e vômito bilioso são mais frequentes. Quando há esvaziamento propósito de seccioná-lo, pode ocorrer em operações que en­
rápido, temos dumpinge diarréia. Clinicamente, há plenitude, volvam o esôfago ou o estômago, causando complicações. A
desconforto abdominal e diarréia. Quando ocorre liberação de diarréia é o principal sintoma clínico, tendo intensidade e du­
substâncias vasoativas e hormônios, como serotonina, bradi- ração variáveis. Nos casos de diarréia de longa duração, pode
cinina e enteroglucagon, podem existir sintomas gerais como haver emagrecimento e sinais de desnutrição. Os mecanismos
sudorese, taquicardia e lipotimia. Estudo brasileiro conduzido fisiopatológicos implicados na diarréia pós-vagotomia estão
por Coelho-Neto et al. (2005), que avaliou complicações tardias relacionados no Quadro 29.3. O diagnóstico é baseado na his­
em 59 pacientes gastrectomizados, mostrou que a prevalência tória de cirurgia prévia e exclusão de outras alterações que le­
de diarréia foi de 18,6% e de dutnping, 3,4%. A diarréia pós- vem à diarréia. O tratamento clínico é baseado na utilização de
gastrectomia ocorre por vários mecanismos que estão listados colestiramina, antidiarreicos, como loperamida, e, por vezes,
no Quadro 29.2. Devido à hipocloridria, resultante da gastrec­ antibióticos para inibir o supercrescimento bacteriano. O tra­
tomia, pode haver alteração de absorção de ferro, levando à ane­ tamento cirúrgico é pouco utilizado, porém nas diarréias re-
mia, bem como anormalidade da absorção de cálcio e vitaminas, fratárias pode ser tentada a inversão de um segmento do jejuno
especialmente D e B12. 0 diagnóstico da diarréia pós-gastrecto­ que produzirá movimento antiperistáltico e, com isso, redução
mia é clínico, mas o estudo radiológico do esôfago-estômago- do trânsito intestinal.
duodeno (seriografia) pode avaliar alterações anatômicas pós-
cirúrgicas que colaboram para a sintomatologia. A endoscopia
pode ser útil para descartar outras anormalidades.
■ Síndrome de Zollinger-Ellison - Gastrinoma
O tratamento clínico baseia-se em fracionamento das refei­ O gastrinoma é um tumor neuroendócrino produtor de gas-
ções, adequação dietética e utilização de moderadores do trân­ trina, responsável pela síndrome de Zollinger-Ellison (SZE).
sito intestinal como loperamida. A substituição da gordura da Há dois tipos de gastrinoma: o esporádico, mais frequente, e o
dieta por triglicerídios de cadeia média pode ser benéfica, bem hereditário, associado à síndrome de neoplasia endócrina múl­
como a complementação com enzimas pancreáticas. Na pre­ tipla tipo 1 (NEM 1). Geralmente, são tumores muito pequenos,
sença de esteatorreia e supercrescimento bacteriano, devem-se localizados no duodeno ou no pâncreas. A hipergastrinemia
utilizar antibióticos, sendo o metronidazol a primeira escolha, determina aumento da secreção de ácido clorídrico e maior
visto que a população de bactérias anaeróbias é predominante. possibilidade de ocorrer doenças ácido-relacionadas. Estudo
Outros antibióticos utilizados são tetraciclina e quinolonas. Não conduzido por Roy et al. (2000), que avaliou a apresentação clí­
havendo resposta à terapia clínica, deve-se considerar a possi­ nica de 261 pacientes com gastrinomas, observou dor abdomi­
bilidade de tratamento cirúrgico. A conversão da gastrectomia nal em 75% dos casos e diarréia em 73%, havendo coincidência
a Billroth II em gastrojejunostomia em Y de Roux deve ser a dos sintomas em 55% dos pacientes. A perda de peso ocorreu
primeira escolha. em menos de 20% dos casos. Os mecanismos fisiopatológicos
para o desenvolvimento de diarréia são a formação inadequada
das micelas, uma vez que o pH intraluminal é excessivamente
baixo e impede a ativação das proenzimas pancreáticas no duo­
--------------------------- T--------------------------- deno e jejuno proximal, além da redução da absorção de sal e
Quadro 29.2 Mecanismos fisiopatológicos da diarréia pós-gastrectomia água devido à elevada concentração de gastrina.
O diagnóstico é feito pela dosagem sérica de gastrina que
Aumento do potencial osmótico no intestino exercido pelo alimento normalmente apresenta níveis elevados (acima de 1.000 pg/
inadequadamente processado pelo estômago
mt)y e pela detecção do gastrinoma por métodos de imagem
Alteração do sincronismo entre a chegada do bolo alimentar e a secreção como ultrassonografia, tomografia computadorizada ou resso­
biliopancreática na alça intestinal
nância magnética abdominal. A localização do tumor por esses
Hipocloridria e estagnação de alimentos na alça intestinal, levando a métodos nem sempre é fácil, pois a maioria das lesões é menor
supercrescimento bacteriano com consequente desconjugaçáo dos sais
biliares que 1,0 cm. Outros métodos empregados no diagnóstico são
Inadequada formação de micelas
a cintigrafia com somatostatina marcada e a ultrassonografia
endoscópica.
280 Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes

O tratamento baseia-se na utilização de inibidores da secre­ nio-tauro-homocolato), associados a testes terapêuticos com
ção ácida, preferencialmente os inibidores de bomba de pró­ colestiramina, têm demonstrado a importância da participação
tons, em uma dose que varia de 60 a 240 mg/dia durante tempo da MAB na patogênese da diarréia sem, no entanto, excluir a
indeterminado. A eficácia do tratamento pode ser avaliada com existência de outros fatores. O teste do SeHCAT tem se mostra­
a mensuração do débito da secreção ácida, que deve ser m an­ do fundamental para o diagnóstico diferencial entre a diarréia
tida entre 1 e 10 mEq/h, evitando, assim, a acloridria. Após o pós-colecistectomia e a síndrome do cólon irritável. Trata-se
advento dos antissecretores, a gastrectomia tem sido tratamento de exame com custos elevados, sendo, muitas vezes, substituí­
de exceção. Indica-se tratamento cirúrgico para os gastrinomas do por prova terapêutica com colestiramina.
esporádicos, localizados no pâncreas e maiores que 3,0 cm de
diâmetro, sem metástases hepáticas. Os fatores de risco associa­
dos à metástase hepática são o tamanho do tumor, localização ■ Malabsorção de ácidos biliares em pacientes
pancreática e associação com NEM 1. com diarréia crônica
Extensos estudos com o teste do SeHCAT têm sido reali­
zados em pacientes portadores de diarréia crônica sem causa
■ BILE
detectável ou rotulados como funcionais. Embora ainda não
A insuficiência biliar acompanha-se de esteatorreia. Os sais tenha sido possível estabelecer uma identidade fisiopatológica
biliares são os detergentes mais importantes, portanto de fun­ para a má absorção primária de ácidos biliares, foi verificada
damental importância na emulsificação e micelação das gor­ uma incidência razoável de casos em que a MAB está presente,
duras. e o tratamento do quadro diarreico crônico com colestiramina
traz benefícios ao paciente. Um estudo prospectivo em porta­
dores de diarréia crônica associada à AIDS revelou a presença
■ Colestase de MAB em 47% dos casos. Esses achados sugerem fortemente
A falência da excreção biliar que ocorre na colestase, seja a realização desse teste, ou de prova terapêutica, mais precoce­
intra-hepática (parenquimatosa) ou extra-hepática (obstru- mente no curso da investigação da diarréia crônica.
tiva), determina uma queda na concentração intraluminal de
ácidos biliares. O processo de formação de micelas na diges­
tão dos lipídios fica prejudicado, resultando em má absorção ■ SUCO PANCREÁTIC0
de gorduras, inclusive de vitaminas lipossolúveis. Geralmente,
são quadros diarreicos de pequena intensidade. O tratamento A diminuição acentuada, ou ausência, do suco pancreático
deve ser dirigido à doença básica. acarreta muitos problemas, visto conter poderosas enzimas que
exercem ação sobre nutrientes nobres, quais sejam carboidra-
tos, proteínas e gorduras.
■ Ressecção ou disfunção ileal A consequência previsível é a má absorção de todos esses
Indivíduos com doença inflamatória do íleo (doença de nutrientes em graus variáveis, sendo clinicamente mais expres­
Crohn, tuberculose intestinal) ou uma ressecção ileal extensa siva a de gorduras, determinando esteatorreia. As principais
(síndrome do intestino curto) apresentam captação ileal defei­ causas da insuficiência pancreática com apresentação por diar­
tuosa dos ácidos biliares e, portanto, má absorção desses ácidos. réia crônica são as pancreatites crônicas, de etiologia variável,
Tais ácidos passam para o cólon e promovem uma diarréia se- porém mais comumente alcoólica; os tumores pancreáticos, as
cretória mediada por mecanismo dependente do AMP-cíclico. ressecções pancreáticas e a fibrose cística. A diarréia é secun­
Com a perda fecal dos ácidos biliares aumentada, ocorre um dária à insuficiência exócrina do pâncreas que ocorre em 30 a
incremento compensatório da sua síntese, e o pool de ácidos 40% das pancreatites crônicas, 80 a 95% na fibrose cística e é
biliares é mantido. Esses pacientes podem ser tratados com relativamente frequente no câncer de pâncreas, devido à obs­
resinas que se ligam aos ácidos biliares, como a colestiramina, trução do dueto pancreático. A fisiopatologia da insuficiência
para evitar diarréia. Se a perda for muito intensa, pode exce­ exócrina de acordo com a sua etiologia, assim como alterações
der a síntese compensatória e ocorrerá uma redução do pool e, fisiológicas associadas, que afetam a eficácia dos tratamentos
consequentemente, diminuição da concentração intraluminal dietéticos e medicamentosos, estão detalhadas nos capítulos
de ácidos biliares, abaixo da concentração crítica necessária das doenças pancreáticas.
para a micelização das gorduras. Isso resulta em má absorção
de gorduras e de vitaminas lipossolúveis. A reposição de bile
ou ácidos biliares poderia levar a uma piora da diarréia causada ■ Doenças pancreáticas na criança
por sua entrada no cólon. No entanto, existe relato de melhora As doenças pancreáticas na criança geralmente são congê­
importante da esteatorreia, sem piora do quadro clínico, com a nitas.
administração de bile bovina a pacientes com ressecção de íleo
terminal e cólon preservado. 1. Anormalidades anatômicas que causam sintomas pan­
creáticos são, costumeiramente, tratadas por cirurgia;
2. Anormalidades bioquímicas encontradas com deficiên­
■ Diarréia pós-colecistectomia cias enzimáticas, fibrose cística e síndrome de Schwach-
A má absorção de ácidos biliares (MAB) na diarréia pós- man são bem manejadas com medicamentos;
colecistectomia é uma condição clínica bem conhecida, porém 3. Pancreatite aguda tem como causa mais frequente o
seu papel etiopatogênico não está esclarecido. O aumento da trauma;
ciclagem êntero-hepática dos ácidos biliares após a colecistec- 4. Insuficiência pancreática crônica habitualmente ocorre
tomia pode ser responsável pela diminuição de sua captação de modo secundário à fibrose cística do pâncreas. Por
no íleo terminal. Testes diagnósticos com SeHCAT (75 selê- sua importância prática, será discutida em detalhes.
C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trie n te s 281

O diagnóstico da doença leva a aconselhamento genético mundo, porém está presente em apenas 40% dos fibrocísticos
e supervisão pulmonar adequada que podem tomar-se muito brasileiros, provavelmente devido à miscigenação racial. A pre­
importantes como avanço terapêutico e melhora da qualida­ sença da mutação AF508del na forma homozigota está relacio­
de de vida! nada com insuficiência pancreática, colonização precoce pela
Pseudomonas aeruginosa e doença pulmonar mais grave.
As mutações do gene da FC são classificadas em classes de I a
■ Fibrose cística (FC) V, conforme o tipo de defeito encontrado na proteína: ausência
■ Introdução total de síntese (classe I), bloqueio no processamento (classe II),
A fibrose cística (FC), ou mucoviscidose, é uma doença ge­ bloqueio na regulação (classe III), condutância alterada (classe
nética de herança autossômica recessiva, de caráter crônico e IV) e síntese reduzida (classe V). As três primeiras classes estão
progressivo, que compromete as glândulas exócrinas de múl­ relacionadas à insuficiência pancreática e a quadros clínicos
tiplos órgãos e sistemas, tais como o respiratório, o digestivo, o mais graves, enquanto as duas últimas costumar ter sinais e
reprodutivo e o glandular. sintomas mais brandos.
É a doença genética letal mais comum na população cau- Vários pacientes apresentam problemas mais leves, possivel­
casiana, e a principal causa de óbito é o comprometimento mente associados à disfunção da CFTR, tais como infertilidade
pulmonar que ocorre em torno de 90% dos casos. A doença masculina, pancreatite recorrente, sinusite crônica e colangite
se caracteriza por infecção respiratória crônica, insuficiência esclerosante primária. Geralmente, tais pacientes apresentam
pancreática, altos níveis de sódio e cloro no suor e outras com­ concentrações de cloro limítrofes no suor e estes casos são de­
plicações associadas. nominados doenças relacionadas com o CFTR, fenótipos par­
A FC é causada pela mutação de um único gene, o gene da ciais que devem ser diferenciados da fibrose cística.
fibrose cística, denominado CFTR (cystic fibrosis transmem- Nem todas as mutações do CFTR causam doenças como
brane regulator), que codifica uma proteína de mesmo nome, a FC, ou outras doenças relacionadas com o CFTR. Algumas
responsável pelo transporte de eletrólitos pelas células epiteliais. mutações podem não apresentar significado clínico ou ter re­
A doença é decorrente da ausência, deficiência na produção, levância clínica ainda incerta. A presença isolada da mutação
ou defeito da função, do polipeptídio produzido pelo gene de­ do gene CFTR, portanto, não pode encerrar o diagnóstico de
feituoso da fibrose cística. A identificação e o sequenciamento fibrose cística ou das doenças relacionados com o CFTR. O
diagnóstico deve ser sempre baseado na apresentação clínica,
do gene alterado da fibrose cística e o conhecimento dos me­
nas provas de avaliação da função do gene CFTR, tais como
canismos fisiopatológicos da doença são pontos fundamentais
teste do suor e diferença de potencial nasal, e, finalmente, na
para novas estratégias terapêuticas e aconselhamento genéti­
análise genética.
co. O diagnóstico precoce, a partir do screening neonatal, e a
O genótipo de forma isolada também não pode ser usado
melhor abordagem no tratamento da doença pulmonar e do
para estimar a gravidade da doença, especialmente no que se
estado nutricional foram responsáveis pelo aumento da sobre-
refere ao dano pulmonar, já que o fenótipo é afetado por ou­
vida da doença.
tros fatores genéticos e ambientais, além do tipo de mutação
No Brasil, o Programa Nacional de Triagem Neonatal foi encontrada. Gêmeos monozigóticos podem apresentar quadros
criado em 2001, a partir da Portaria n° 822, do Ministério da clínicos bem diferentes, apesar de apresentarem o mesmo tipo
Saúde, e, no mesmo ano, o Paraná foi o primeiro estado a ser de mutação. Esta discrepância entre fenótipo e genótipo ocorre
credenciado e já na fase III, ou seja, para diagnóstico de fenil- provavelmente devido a polimorfismos em outros genes não
cetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e ou­ relacionados com o gene da fibrose cística.
tras hemoglobinopatias e fibrose cística. No Brasil, atualmente
apenas quatro estados estão credenciados na fase III para diag­ ■ Fisiopatologia
nóstico de fibrose cística, a saber: Paraná, Minas Gerais, Santa A proteína CFTR está presente na superfície apical das cé­
Catarina e Espírito Santo. lulas epiteliais onde constitui um canal de cloro dependente de
AMP cíclico. Embora a função da CFTR seja principalmente
■ Incidência relacionada com o canal de cloro, ela também exerce outras
A incidência da fibrose cística é de aproximadamente 1/2.000 funções reguladoras.
a 1/5.000 na população caucasiana da Europa, EUA e Canadá. Em indivíduos normais, a CFTR promove o transporte ade­
É menos comum em outros grupos étnicos, sendo encontrada quado do cloro da célula para o lúmen glandular. Nos indiví­
em 1/17.000 na população negra e em 1/90.000 na população duos fibrocísticos, as glândulas mucosas e as serosas não fun­
oriental. No Brasil, nos estados em que há a triagem neonatal cionam adequadamente. Nas glândulas mucosas dos doentes,
para FC, a incidência é de 1/9.000 a 1/9.500 nascidos vivos. não há transporte adequado do cloro para o lúmen glandular,
impedindo a hidratação adequada do fluido luminal e predis­
■ Genética pondo as secreções viscosas que obstruem os duetos. Já nas
O gene da fibrose cística foi clonado em 1989 e se localiza no glândulas serosas, como são as glândulas sudoríparas, há falha
braço longo do cromossomo 7. Trata-se da doença autossômica na reabsorção do cloro predispondo níveis elevados de cloro
recessiva mais frequente na raça branca, e 5% dos indivíduos no suor. Os órgãos mais acometidos pela FC são o pulmão e
desta etnia são portadores heterozigotos do gene. o pâncreas.
Mais de 1.700 mutações já foram identificadas como respon­ Esta alteração no líquido de superfície das vias respiratórias
sáveis pela fibrose cística. Os tipos de mutações variam em sua promove obstrução das vias respiratórias por rolhas de muco
frequência e distribuição em diferentes populações. A mutação que favorecem a instalação da inflamação, colonização e in­
mais comumente encontrada é a deleção de 3 pares de bases fecção, especialmente por algumas espécies de bactérias. Den­
nitrogenadas que levam à perda da fenilalanina na posição 508, tre os agentes infecciosos mais comumente encontrados, estão
também conhecida como AF508del. Esta mutação é responsá­ Staphylococcus aureus, Pseudomonas aeruginosa, Stenotropho-
vel por aproximadamente dois terços dos portadores de FC no monas maltophiliaybactérias do complexo Burkholderia cepa-
282 C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trien tes

cia, micobactérias atípicas e Aspergillus fumigatus. A infecção ção geográfica. Os sinais e sintomas da doença são sibilância,
broncopulmonar crônica ou recorrente leva à lesão pulmonar infiltrados pulmonares e bronquiectasias centrais.
progressiva da fibrose cística e deve ser prontamente tratada. Quanto ao acometimento do pâncreas, a lesão já se inicia
Os recém-natos nascem com os pulmões anatômica e his- intraútero e se traduz por obstrução e dilatação dos duetos
tologicamente normais e o trato respiratório é colonizado por pancreáticos por secreções viscosas e lesão do epitélio que é
bactérias da flora normal. Inicialmente, ocorrem dilatação e substituído por tecido gorduroso e fibrose. Eventualmente,
hipertrofia de glândulas mucosas seguida de metaplasia esca­ podem ocorrer calcificações intraluminais e formações císti-
mosa do epitélio broncopulmonar, presença de rolhas de muco, cas, alterações que batizaram a doença como fibrose cística do
alterações ciliares secundárias e infiltrados inflamatórios na pâncreas. Já as alterações inflamatórias não são habituais. O
submucosa. Ciclos repetidos de obstrução e infecção desenca­ quadro clínico tradicional é a insuficiência pancreática exó-
deiam a formação de bronquiolectasias e bronquiectasias. Ao crina que ocorre em 90% dos pacientes. A função endócrina é
redor destas lesões, há artérias brônquicas dilatadas e de pare­ menos afetada, já que as ilhotas de Langerhans são inicialmente
des finas que se rompem e causam hemoptise. Com a evolução poupadas nos primeiros anos da doença.
do quadro clínico, a hipoxemia promove vasoconstrição da
artéria pulmonar, hipertrofia da camada média e hipertensão
■ Quadro clínico
pulmonar secundária ou cor pulmonale.
Clinicamente, as manifestações da FC relacionam-se a uma
Com o passar dos anos, os agentes da colonização e infec­
ção são diferentes e seguem uma sequência tradicionalmente disfunção epitelial multissistêmica, em todas as glândulas secre-
toras exócrinas, sejam elas do tipo seroso ou mucoso. As ma­
descrita.
Quando lactente, o paciente portador de FC pode apresen­ nifestações clínicas mais notáveis referem-se, particularmente,
tar exacerbações respiratórias por agentes virais, causadores ao dano progressivo dos pulmões e pâncreas, cujos duetos são
de bronquiolites. obliterados pelas secreções viscosas e espessas desses órgãos.
A partir dos primeiros anos de vida, os pacientes são colo­ Essa obliteração acarreta comprometimentos sequenciais que
nizados por Staphylococcus aureus, seguido por Pseudomonas variam, em cada órgão, com a extensão e o grau de obstrução,
aeruginosa cepa não mucoide, Pseudomonas aeruginosa cepa que partem da inflamação e dilatação ductal à destruição dos
mucoide e complexo Burkholderia cepacia. Estudos demons­ tecidos nobres do órgão afetado.
tram que, aos 3 anos de idade, 98% das crianças são colonizadas As secreções das glândulas serosas, como as sudoríparas e
por Pseudomonas aeruginosa. as salivares, não provocam, na síndrome clínica, alterações ex­
Infecção persistente leva a geração e secreção de citocinas pressivas comparáveis às do pâncreas e dos pulmões. Em con­
quimiostáticas que recrutam grande número de polimorfonu- trapartida, é a determinação da elevação anormal da concen­
cleares para as vias respiratórias. A Pseudomonas libera toxinas tração de sódio e cloro na secreção sudorípara que oferece a
e elastases que clivam os polimorfonucleares, e estes liberam identificação comprobatória da enfermidade.
suas próprias proteases e elastases, ampliando o ciclo de infec­ Além do pâncreas e dos pulmões, os órgãos mais comu-
ção e inflamação. A liberação do DNA dos neutrófilos enve­ mente envolvidos, a FC envolve um largo espectro de sinais e
lhecidos aumenta a viscosidade do muco, trazendo mais dano sintomas descritos a seguir.
ao epitélio.
A via respiratória do paciente portador de FC é propícia ao ■ Viasrespiratórias superiores
crescimento da Pseudomonas, por várias razões: microambiente A totalidade dos pacientes se apresenta com pansinusite
permissivo com nichos hipóxicos de placas de muco, aumento crônica, grande parte dos casos associada à polipose nasal e
da adesão bacteriana ao epitélio e redução do clearance bactéria- recorrente. A polipose nasal acomete 20% dos pacientes e pode
no por mecanismos imunes inatos. Após anos de colonização, ser o sintoma inicial da doença. Podem ocorrer também otite
a Pseudomonas muda seu fenótipo do tipo não mucoide para média crônica ou recorrente, anosmia, rouquidão transitória
o tipo mucoide, momento este que passa a produzir grandes e defeitos da audição.
quantidades de um polissacarídio denominado alginato. O al-
ginato facilita a proliferação bacteriana por estimular a adesão
■ Viasrespiratórias inferiores
e a formação de microcolônias de bactérias, o biofilme, e inibe
o processo imunológico de defesa do hospedeiro por dificul­ A tosse persistente é o sintoma primordial do comprometi­
tar a opsonização, fagocitose e a penetração de anticorpos e mento de vias respiratórias inferiores e costuma se iniciar nos
antibióticos. primeiros meses de vida. Inicialmente, é seca, coqueluchoide,
Pacientes colonizados por Pseudomonas aeruginosa, caracte­ noturna e compromete o sono e a alimentação. Com o passar
rística marcante desta doença, apresentam maior taxa e duração do tempo, a tosse evolui para produtiva matinal com expecto-
de hospitalizações e redução da função pulmonar à espirome- ração variando de mucoide a purulenta.
tria. Apresentam declínio da função pulmonar, alguns evoluem A progressão da doença leva a um quadro de insuficiência
de forma lenta e com pequenos danos e outros evoluem com respiratória, com dispnéia inicialmente durante a atividade fí­
rápidos e grandes danos pulmonares. sica e, depois, ao repouso, inclusive. Pode se manifestar com
O complexo Burkholderia cepacia é um grupo de pelo menos quadro de pneumonia de repetição, bronquiolite persistente ou
nove bactérias extremamente virulentas, transmitidas de pessoa de repetição, sibilância que não responde a broncodilatadores,
a pessoa e com resistência inata à antibioticoterapia. Causam atelectasias e bronquiectasias. A evolução é para insuficiência
rápido declínio da função pulmonar, ou também podem desen­ respiratória crônica e cor pulmonale.
cadear um quadro fulminante invasivo, denominado usíndrome Nos casos iniciais ou leves, o exame físico pode ser total­
da cepacia”, em que há disseminação hematogênica e óbito. mente normal. Nos casos avançados, podem-se encontrar ta-
O Aspergillus fumigatus pode desencadear intensa resposta quipneia, estertores crepitantes localizados ou difusos, tiragem
alérgica a fungos, quadro chamado de aspergilose broncopulmo­ esternal, aumento do diâmetro anteroposterior do tórax, ba-
nar que ocorre em 1 a 15% dos pacientes, conforme a localiza­ queteamento digital e cianose de extremidades.
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Podem ocorrer exacerbações do quadro respiratório e estas O quadro clínico se traduz por esteatorreia devido à má ab­
devem ser reconhecidas para o tratamento imediato. Os sinais sorção intestinal. Os achados clínicos são distensão abdominal,
e sintomas são febre, piora da tosse, surgimento de expectora- diarréia crônica com grande número de evacuações, consis­
ção, mudança no aspecto e quantidade da expectoração, redu­ tindo em fezes amolecidas, pálidas, em grandes quantidades,
ção do apetite, menor tolerância ao exercício, agravamento ou oleosas e fétidas. Como consequência, o paciente se apresenta
surgimento de hemoptise, taquipneia, fadiga, sonolência. Além com desnutrição proteico-calórica, apesar da ingestão calórica
destes, são fortemente sugestivos a presença de esforço respira­ normal ou aumentada, e com deficiência de vitaminas liposso-
tório, aparecimento de ruídos adventícios ou piora da ausculta, lúveis (Figura 29.1).
perda de peso e sinais de aprisionamento de ar. Deficiência das vitaminas A, D, E e K leva a quadros de
A infecção pulmonar crônica, associada à obstrução pro­ acrodermatite, anemia, neuropatia, cegueira noturna, hiper­
gressiva das vias respiratórias, gera maior trabalho respiratório, tensão intracraniana idiopática, osteoporose e desordens he­
aumentando o gasto energético basal mesmo em pacientes com morrágicas.
doença pulmonar leve. A osteopenia inicia-se na infância, mas o quadro clínico
geralmente se manifesta na idade adulta.
■ Pâncreas A osteoporose pode ser secundária à deficiência de vitamina
D, à inflamação crônica sistêmica e ao uso de corticoides.
A insuficiência pancreática ocorre em 60% dos pacientes no
A desnutrição está fortemente associada à deterioração da
período neonatal, em 80% aos 6 meses de vida e em 90% dos
função pulmonar.
bebês com 1 ano de idade.
Vários fatores influenciam o metabolismo da glicose, in­
O suco pancreático dos pacientes é liberado em pequena cluindo gasto energético elevado, infecção crônica e aguda,
quantidade e com baixa concentração de enzimas pancreáticas deficiência de glucagon, disfunção hepática, lentidão do trânsito
e de bicarbonato. A deficiência de enzimas pancreáticas é cau­ gastrintestinal e aumento do trabalho respiratório. As ilhotas
sada inicialmente pela obstrução dos duetos devido à secreção de Langerhans do pâncreas endócrino não são primeiramente
espessa e, posteriormente, pela destruição progressiva da ar­ afetadas na FC, mas, com a evolução da doença, o pâncreas sofre
quitetura pancreática. autólise e as ilhotas são substituídas por tecido gorduroso. O pa­
A insuficiência pancreática decorre da redução, tanto na ciente desenvolve insuficiência de insulina e intolerância à gli­
quantidade, quanto na qualidade, das enzimas pancreáticas. cose, provavelmente coexistindo com resistência insulínica.
Isso porque, além do teor reduzido de enzimas pancreáticas, es­ O diabetes melito associado à FC é bem diferente do diabe­
tas sofrem inativação no duodeno. Isso ocorre devido à deficiên­ tes dos tipos I ou II. Diabetes melito relacionado com a fibrose
cia de bicarbonato, que leva à acidificação do duodeno e inativa cística ocorre em 30% dos pacientes acima de 25 anos, e 40%
enzimas pancreáticas e precipita sais biliares, comprometendo dos adolescentes apresentam alteração do teste oral de tolerân­
a digestão das gorduras. cia à glicose. Existe correlação clínica entre diabetes melito e

Figura 29.1 Paciente portadora de fibrose cística. Suor: sódio, 108,0 mEq/f; cloro, 93,0 mEq/f. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
no Encarte.)
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doença pulmonar mais grave e estado nutricional precário. Os O tratamento é feito com reposição enzimática e melhora do
pacientes com perda de peso inexplicada ou redução da função estado nutricional.
pulmonar devem ser testados para diabetes.
■ Doençadorefluxo gastresofágico (DRGE)
■ fleomeconial Pacientes com FC apresentam incidência aumentada de
Na fase intrauterina, todo o tubo digestivo se encontra co­ DRGE por alterações no esvaziamento gástrico e relaxamento
berto por uma camada de secreção mucosa mais espessa e vis­ inadequado do esííncter esofágico inferior. O quadro de DRGE
cosa do que a habitual no pós-parto. ainda é complicado pelo aumento da pressão intra-abdominal
O mecônio se apresenta excepcionalmente espesso e causa, devido à tosse e pelo rebaixamento do diafragma. A DRGE pode
junto à válvula ileocecal, obstrução do íleo terminal, e o qua­ trazer complicações, agravando ainda mais a função pulmonar
dro clínico é, então, denominado íleo meconial. Ocorre em 10 dos pacientes fibrocísticos.
a 20% dos recém-natos portadores de FC e é o sinal mais pre­
coce da doença. Todo paciente com quadro de íleo meconial é ■ Manifestaçõeshepatobiliares
considerado portador de fibrose cística até que se prove o con­ Assim como acontece nos outros órgãos, a secreção biliar
trário. Este dado é verdadeiro em 90% dos casos. Manifesta- espessa promove obstrução biliar, inflamação, fibrose biliar
se logo ao nascer ou nos primeiros dias de vida com ausência periporta e cirrose biliar focal.
de eliminação de mecônio, distensão abdominal progressiva e Um em cada quatro pacientes apresenta alterações labo­
vômito biliar, evoluindo, eventualmente, para perfuração in ­ ratoriais de dano hepático e colestase, apesar de geralmente
testinal e peritonite. ser assintomático. Podem ser encontradas esteatose hepática e
A radiografia simples do abdome denota sinais de obstrução colelitíase. A cirrose biliar focal geralmente ocorre aos 15 anos
intestinal distai com distensão de alças com níveis hidroaéreos, de idade e acomete apenas 5% dos pacientes que se apresen­
ausência de ar distai e aspecto em vidro fosco ou granuloso, tam com hepatoesplenomegalia, ascite, edema periférico e hi­
representada pela mistura do mecônio espesso com pequenas pertensão porta. O óbito por doença hepatobiliar ocorre em
bolhas de ar. A radiografia contrastada mostra os segmentos 2% dos casos.
do cólon, distais ao bloqueio, vazios e colapsados, revelando o
aspecto de microcólon. O tratamento clínico é sempre a op­ ■ Outras causas de dor abdominal
ção inicial, e o tratamento cirúrgico fica restrito aos casos de Além das já citadas, podem existir intussuscepção intestinal,
falha terapêutica. aderências intestinais decorrentes de procedimentos cirúrgicos,
apendicite, abscesso apendicular, pancreatite (em caso de fun­
■ Síndrome daobstruçãointestinal distai ção pancreática residual) e colecistite.
(equivalenteaoíleo meconial)
Ocorre em 10 a 20% dos pacientes e é causada pela obs­ ■ Manifestaçõesreprodutivas
trução intestinal, geralmente parcial, após o período neonatal, Pode haver atraso puberal nos pacientes com comprome­
em geral em adolescentes e adultos. Assim como no íleo m e­ timento nutricional. A esterilidade masculina ocorre virtual­
conial, há obstrução da região ileocecal. O quadro está asso­ mente em todos os casos devido à azoospermia por obstrução
ciado com fezes volumosas, viscosas e mal digeridas e com a dos canais deferentes, tanto nos pacientes portadores de fibro­
interrupção, ou o uso inadequado, das enzimas pancreáticas. se cística quanto nos pacientes heterozigotos para a mutação
Clinicamente, o paciente se apresenta com dor abdominal CFTR.
recorrente e fecaloma na fossa ilíaca direita, distensão abdo­ Apesar de muitas controvérsias sobre o assunto, mulheres
minal e constipação intestinal. O tratamento do quadro de portadoras de FC apresentam fertilidade normal e podem com­
suboclusão é clínico. pletar uma gravidez a termo se tiverem suporte nutricional
adequado e boa reserva pulmonar.
■ Prolapso reta!
O prolapso retal ocorre em cerca de 20% dos pacientes, em ■ Manifestaçõesglandularessudoríparas
especial nos menores de 3 anos de idade. Lactente com pro­ A perda excessiva de sódio e cloro no suor pode ser perce­
lapso retal deve ser sempre submetido ao teste do suor para bida pelos pais como “beijo salgado”. Especialmente quando
avaliar a hipótese de fibrose cística. O prolapso retal depende expostos a períodos de muito calor ou na presença de vômito e
de vários fatores, tais como diarréia crônica, fezes volumosas, diarréia, o paciente pode apresentar desidratação com alcalose
desnutrição proteico-calórica, tônus muscular diminuído e au­ metabólica hipoclorêmica e hiponatrêmica.
mento da pressão intra-abdominal pela tosse. O tratamento é
clínico com melhora do estado nutricional e o tratamento da ■ Diagnóstico
insuficiência pancreática. Os sinais e sintomas da FC podem ser gerais, independen­
tes da idade, ou específicos para cada faixa etária conforme
■ Constipaçãointestinalcrônica disposto no Quadro 29.4. Na presença de sinais e sintomas
A constipação intestinal pode ocorrer em aproximadamente característicos, os pacientes devem ser submetidos à dosagem
26 a 47% dos pacientes fibrocísticos menores de 18 anos, sejam de cloro no suor.
eles portadores de insuficiência pancreática ou não. Os fatores Deve-se suspeitar de FC em qualquer idade em caso de his­
de risco são secreção intestinal espessa, má absorção, redução tória familiar sugestiva (paciente diagnosticado ou óbitos por
da motilidade intestinal e histórico de íleo meconial. doenças pulmonares), pele salgada, pneumopatias crônicas e/
ou de repetição, baqueteamento digital, distúrbios hidreletro-
■ Edemahipoproteinêmico líticos (especialmente, alcalose metabólica hiponatrêmica e hi­
Ocorre em 5% dos recém-natos portadores de fibrose cís­ poclorêmica) e isolamento casual de Pseudomonas aeruginosa
tica e é secundário à insuficiência pancreática e à desnutrição. de secreções respiratórias.
C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trie n te s 285

------------------------------------- ▼----------------------------------- ------------------------------------- ▼--------------------------


Q u a d ro 29 .4 Sinais e sintomas da fibrose cística Q u a d ro 29.5 Causas de resultados falso-positivos
e falso-negativos no teste do suor
Gerais (qualquer idade)
H is tó ria fa m ilia r p o s itiv a d e fib ro s e cística Resultado falso-positivo
P ele sa lg a d a D e r m a t it e a tó p ic a

B a q u e t e a m e n t o d ig ita l D e s n u tr iç ã o

T o s s e p r o d u t iv a H ip o tir e o id is m o

P n e u m o p a t ia d e r e p e tiç ã o H ip e rp la s ia c o n g ê n it a d a s u p ra rre n a l

Is o la m e n t o d e P s e u d o m o n a s a e r u g in o s a c e p a m u c o id e d e se cre çõ e s In s u fic iê n c ia d e s u p ra rre n a l


re s p ira tó ria s
S ín d r o m e d e M a u ria c
A lc a lo s e m e ta b ó lic a h i p o d o r ê m i c a h ip o n a t r ê m ic a
F u c o s id o s e
Neonatal D is p la s ia e c t o d é r m ic a
íle o m e c o n ia l S ín d r o m e d e K lin e fe lte r
Ic te rícia p ro lo n g a d a D ia b e te s in s íp id o n e f r o g é n ic o

C a lc ific a ç ó e s a b d o m in a is o u e scro ta is D is fu n ç à o a u t o n ô m ic a

A tre s ia in te s tin a l P riv a ç ã o d o a m b ie n t e

E d e m a h i p o p r o t e in ê m ic o S ín d r o m e d e M u n c h a u s e n p o r p ro c u r a ç ã o ( b y p r o x y )

Lactente Resultado falso-negativo


M a n ife s ta ç õ e s re s p ira tó ria s p re c o c e s c o m in filtra d o s p e rs is te n te s D ilu iç ã o d a a m o s tra
a o raio s X d e tó ra x
Q u a n t id a d e in s u fic ie n te d e a m o s tra
D e s n u tr iç ã o
D e s n u tr iç ã o
A n a s a rc a o u h ip o p r o t e in e m ia
E d e m a p e rifé ric o
D ia rré ia c rô n ic a
H ip o p r o t e in e m ia
P ro la p s o reta l
D e s id ra ta ç ã o
D is te n s ã o a b d o m in a l
M u t a ç õ e s C F T R c o m fu n ç ã o d a g lâ n d u la s u d o ríp a ra p re s e rv a d a
C o le s ta s e
Adaptado de 0 ’Sullivan & Freedman, 2009.
P n e u m o n ia p o r S t a p h y lo c o c c u s a u re u s

H ip e r te n s ã o in tra c ra n ia n a id io p á tic a (d e fic iê n c ia d e v it a m in a A )

A n e m ia h e m o lític a (d e fic iê n c ia d e v it a m in a E)

Infância A suspeita diagnóstica pode ser clínica, baseada em sinais


P a n s in u s ite c rô n ic a o u p o lip o s e nasal e sintomas compatíveis, ou pode ser realizada em uma fase
E s te a to rre ia
pré-sintomática, a partir da triagem neonatal. Independen­
P ro la p s o reta l
te do caso, estes pacientes devem ser submetidos a marcado­
D o r a b d o m in a l r e c o rre n te e m a ssa e m fossa ilíaca d ire ita
res bioquímicos ou genéticos que demonstrem a disfunçào do
(s ín d r o m e d a o b s t r u ç ã o in te s tin a l d is ta i) gene CFTR.
In tu s s u s c e p ç ã o
Os critérios diagnósticos utilizados atualmente foram publi­
P a n c re a tite c rô n ic a o u re c o rre n te
cados por Rosenstein e Cutting, em 1998, no consenso da Cystic
Fibrosis Foundation e estão descritos no Quadro 29.5.
H e p a t o p a t ia
O paciente precisa apresentar critérios clínicos e laborato­
Adolescência e fase adulta riais, pelo menos um de cada. Os critérios clínicos são: sinais e
A s p e r g ilo s e b r o n c o p u l m o n a r a lé rg ic a
sintomas compatíveis, ou história de irmão com fibrose cística,
P a n s in u s ite c rô n ic a o u p o lip o s e nasal ou teste de triagem neonatal positivo. Os critérios laboratoriais
B ro n q u ie c ta s ia s são cloro no suor > 60 mEq/f ou mmol/^ em 2 dosagens dis­
H e m o p t is e tintas ou identificação de duas mutações para FC ou demons­
P a n c re a tite re c o r r e n te id io p á tic a tração de diferença de potencial nasal. A diferença de potencial
H ip e r te n s ã o p o rta l nasal pode ser útil nos casos atípicos, entretanto este exame é
A tr a s o p u b e ra l tecnicamente difícil de ser realizado, além de não estar facil­
In fe rtilid a d e c o m a z o o s p e r m ia s e c u n d á ria à a u s ê n c ia c o n g ê n it a b ila te ra l mente disponível.
d e d u e to s d e fe re n te s O diagnóstico neonatal tem vantagens como a melhoria
D ia b e te s ju v e n il d e fácil c o n tr o le do estado nutricional e, indiretamente, a melhora do quadro
Adaptado de 0'Sullivan & Freedman, 2009. pulmonar, já que a função pulmonar aos 6 anos de idade está
diretamente relacionada com o peso para idade. Além disso,
evita várias complicações desencadeadas pelo diagnóstico e
tratamento tardios e previne a mortalidade precoce. O diag­
As crianças também podem apresentar, dentre outros sinto­ nóstico precoce, entretanto, não evita a colonização bacteriana,
mas, üeo meconial, prolapso retal, diarréia crônica, desnutrição porém permite o pronto tratamento das infecções bacterianas
ou déficits de crescimento especialmente se o apetite for voraz. que levam ao dano pulmonar e, consequentemente, à maior
Suspeita-se de FC nos adolescentes e adultos com pansinusite morbimortalidade.
crônica ou polipose nasal, aspergilose, bronquiectasias, pan­ Há controvérsias sobre os custos da triagem neonatal para
creatite, diabetes e infertilidade masculina. o diagnóstico de um caso positivo. Alguns os consideram de-
286 C a p ítu lo 2 9 / F ib ro se C ística , In to le râ n cia a D iss a c a ríd io s e O u tro s D istú rb io s n a D ig e stã o d e N u trien tes

masiadamente elevados e que estes recursos poderíam ser di­


recionados para treinamento e capacitação para o diagnóstico
precoce. Outros consideram que os custos se pagam pelo m e­
lhor controle nutricional, menor prejuízo da função pulmonar,
possibilidade de encaminhamento para tratamento em um cen­
tro de referência e aconselhamento genético, prevenindo novos
casos. Mesmo os países que realizam a triagem neonatal uni­
versal devem estar atentos aos sinais e sintomas da FC, já que
até 10% dos exames triados podem ser falso-negativos.
No Brasil, desde a Portaria n° 822, de 2001, apenas 4 esta­
dos estão credenciados na fase III para realizar a triagem neo­
natal para fibrose cística. Dentre os países que não realizam a
triagem neonatal, a idade ao diagnóstico pode variar bastante.
Nos países desenvolvidos, a idade ao diagnóstico gira em torno
de 60% no primeiro ano de vida. Já no Brasil, a idade ao diag­
nóstico está em torno de 4 anos de idade, dado bem alarmante Figura 29.2 Prova de suor. Passagem de corrente eletroforética (mé­
para um país onde a maior parte dos estados não dispõem da todo de Gibson e Cooke).
triagem neonatal. Nos países que realizam triagem neonatal,
não é comum diagnosticar crianças com FC em idade avança­
da ou com sintomas clássicos de comprometimento pulmonar
e desnutrição.
Os valores de cloro no suor estão discriminados no Qua­
A triagem neonatal no Brasil é feita a partir da medida do
dro 29.6 e as causas de erro no Quadro 29.7.
tripsinogênio (imunorreactive trypsinogen - IRT) do sangue
A concentração de cloro no suor aumenta com a idade; en­
seco coletado em papel-filtro durante o período neonatal. O
tretanto, dois exames independentes com valores acima de 60
valor de corte é de 70 ng/ml. Concentrações de IRT > 70 ng/m^
mmol/^ ou mEq/^ fecham o diagnóstico de FC, independente
sugerem lesão pancreática devido ao refluxo desta enzima por
da idade do paciente. Valores intermediários são considerados
duetos obstruídos, porém não são específicas para fibrose cís­
os que estiverem entre 30 e 59 para bebês abaixo de 6 meses
tica. Mesmo os pacientes com mutações das classes IV e V, que
e entre 40 e 59 para indivíduos mais velhos. Valores normais
são associadas à função pancreática normal, apresentam IRT
para crianças abaixo de 6 meses são os abaixo de 30 mEq/^,
alterado para fibrose cística. A taxa sérica de IRT é 2 a 5 vezes
desde que a coleta do suor seja feita por métodos adequados,
maior nos pacientes portadores de fibrose cística do que em
em crianças maiores de 2 kg, com mais de 36 semanas de idade
indivíduos normais.
Neonatos com o primeiro exame alterado são suspeitos para
fibrose cística e devem ser submetidos a uma nova dosagem de
IRT até o final do primeiro mês de vida, screening IRT/IRT. Al­
guns países optam por realizar imediatamente o teste para um
grupo específico das mutações mais frequentes do gene CFTR Q u a d ro 29 .6 Critérios diagnósticos de fibrose cística
e consideram positivo se houver mutações em ambos os alelos
do gene, screening IRT/DNA. Critérios clínicos M arcadores de d isfu nçâo CFTR

Apesar de a dosagem de IRT ser um excelente método de U m a o u m a is c a ra c te rística s fe n o típ ic a s : C lo r o n o s u o r > 6 0 m E q / í


triagem neonatal, há casos de falso-positivos e de falso-nega­ • S in u s o p a tia o u p n e u m o p a t ia c rô n ic a s o u m m o l/ / e m 2 testes
tivos. Falso-positivos acontecem em recém-natos com grande • A lte ra ç õ e s g a s trin te s tin a is e n u tric io n a is d is tin to s

estresse perinatal (baixo valor de escala de Apgar), prematuros • S ín d r o m e d a p e rd a salina


• A z o o s p e r m ia o b s t r u t iv a
e da raça negra. Os falso-negativos estão associados a íleo me-
H is tó ria d e ir m ã o c o m F C Id e n tific a ç ã o d e 2 m u ta ç õ e s
conial ou idade maior que 30 dias. Uma criança com duas do-
p a ra F C
sagens de IRT alteradas é considerada de grande risco para FC,
T e s te d e t r ia g e m n e o n a ta l p o s it iv o D ife re n ç a d e p o t e n c ia l nasal
mas o diagnóstico será confirmado apenas pelo teste do suor.
D ia g n ó s t ic o d e fib r o s e c ís tic a : z 1 c rité rio c lín ic o + z m a r c a d o r d e d is fu n ç ã o
O teste do suor é realizado desde 1959, pelo método de
d o C FTR
Gibson e Cooke, e é o padrão-ouro para o diagnóstico da FC. É
realizado a partir da estimulação da face palmar do antebraço Cystic Fibrosis Foundation. Rosensteln & Cutting, 1998.
pela pilocarpina, seguida da iontoforese, coleta do suor e de­
terminação quantitativa da concentração de cloro ou sódio. É
um procedimento trabalhoso, porém de baixo custo e de alta
sensibilidade e especificidade, desde que realizado de forma
------------------------------------------------------------------------------ ▼ -------------------------------------------------------------------------------
adequada, contando com período de coleta que dure entre 20
e 30 min e coletando idealmente 75 mg de suor, mas, no míni­ Q u a d ro 29.7 Valores de cloro no suor (em m m ol/^ ou m Eq/^)
mo, 50 mg (Figura 29.2).
Valor de cloro (m m o l/l ou m E q /l) S ign ifica d o clínico
Para simplificar o teste, alguns laboratórios realizam a coleta
do suor por Macroduct® e analisam o teor de eletrólitos pela <30 N o r m a l e m in d iv íd u o s < 6 m e se s
condutividade. Os valores de cloro encontrados no suor na <40 N o r m a l e m in d iv íd u o s £ 6 m e se s
análise por condutividade são compatíveis com a análise tra­ 30 a 60 In t e r m e d iá r io e m in d iv íd u o s < 6 m e s e s
dicional. A vantagem deste teste é a facilidade de realização, o 4 0 a 60 In t e r m e d iá r io e m in d iv íd u o s £ 6 m e s e s
menor tempo de coleta, a menor taxa de amostras insuficientes, >60 In d ic a t iv o d e fib ro s e cística
o menor custo e a maior precisão.
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 287

gestacional e com mais de 2 semanas de idade. Valores abai­ A pesquisa de enzima nas fezes consiste comumente na do­
xo de 40 mEq/^ sâo considerados normais para pacientes com sagem da elastase-1 pancreática fecal. A dosagem desta enzima
6 meses ou mais. é um teste preciso, simples e que não é alterado pela reposição
O teste do suor é positivo em 98 a 99% das crianças com enzimática, entretanto não está disponível de rotina em nos­
fibrose cística. so meio.
Crianças com 2 valores de IRT alterados e teste do suor O método indireto padrão-ouro é o balanço de gordura de 3
intermediário devem repetir o teste do suor. Se persistir in­ dias (método de Van der Kamer) em que se medem a ingestão
termediário, o paciente deve ser encaminhado ao serviço de e a excreção fecal de gorduras. O balanço entre eles correspon­
referência de fibrose cística para pesquisa de mutações CFTR. de à taxa de absorção de gorduras, dado que é utilizado para
O algoritmo de diagnóstico para fibrose cística está descrito definir se o paciente é pancreatossuficiente ou insuficiente. Os
na Figura 29.3. inconvenientes são a coleta e conservação de todas as evacu­
Não existe correlação clínica entre a concentração de cloro ações durante 72 h e o manuseio de grandes quantidades de
no suor e a gravidade da doença. fezes em laboratório.
No caso de pacientes com quadro clínico compatível e teste O método direto padrão-ouro de investigação da função
do suor não conclusivo, a presença de duas mutações conhe­ pancreática é o teste da secretina/pancreozimina. Este teste
cidas firma o diagnóstico de fibrose cística. Se a pesquisa de consiste na administração endovenosa de secretina (ou secre-
mutações for negativa, não se exclui a doença, já que pode ser tina + cecequina) seguida de coleta da secreção pancreática
um caso de mutação nova ou rara. produzida, mas raramente é necessário. É um teste invasivo e
Assim como para IRT, há casos de falso-positivos e falso- de alto custo.
negativos no teste do suor (ver Quadro 29.7). A ultrassonografia de abdome é útil para avaliar colelitíase,
A função pancreática pode ser avaliada por métodos diretos dilatação de duetos biliares e veias hepáticas. Para avaliação do
ou indiretos (Capítulo 28). Os métodos indiretos são mais co- parênquima hepático quanto à presença de fibrose ou cirrose,
mumente utilizados e consistem em pesquisa de gordura nas é necessária a biopsia hepática.
fezes e dosagem de enzimas nas fezes. A radiografia de tórax costuma mostrar comprometimen­
A pesquisa de gordura pode ser realizada pela análise qua­ to pulmonar, especialmente em lobos superiores e no hemi-
litativa a partir do método Sudam III, pelo método semiquan- tórax direito. Os achados mais comumente encontrados são
titativo do esteatócrito ou pelo método quantitativo de Van hiperinsuflaçâo, espessamento de paredes brônquicas, áreas
der Kamer. de consolidação, bronquiectasias, atelectasias e impactações

I R T p o s it iv o ( > 7 0 n g / rrv )*

I
T e s t e s d o s u o r*

< 3 0 m m o l/ ' (n e g a t i v o ) 3 0 - 5 9 m m o l/ ' (in t e r m e d i á r i o ) > 6 0 m m o l/ r (a lt e r a d o )

l
D ia g n ó s t ic o i m p r o v á v e l
l
D ia g n ó s t ic o p o s s í v e l
1
D ia g n ó s t ic o c o n f ir m a d o

í
N o rm a l 4
l
In t e r m e d iá r io ►
i
A lte ra d o

P e s q u is a d e m u t a ç õ e s

* Em duas dosagens.
IRT: Tripsinogènio imunorreativo.

Figura 29.3 Algoritmo diagnóstico para fibrose cística. (Adaptado de Farrel, Rosenstein e ta l., 2008.)
288 Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes

mucoides. A tomografia de tórax é indicada para avaliar os e aumenta a sobrevida. Felizmente, o Ministério da Saúde auxi­
mesmos achados, entretanto é mais sensível e específica nas lia nas despesas com o custo da maioria das medicações.
fases iniciais da doença. O tratamento se baseia em suporte nutricional adequado,
A espirometria demonstra inicialmente um padrão obs- controle de manifestações gastrintestinais, controle da infecção,
trutivo e, com a evolução da doença, um padrão restritivo controle de manifestações respiratórias.
associado.
A pesquisa de microrganismos deve ser realizada de modo ■ Suportenutricional
rotineiro para detecção de patógenos incipientes através da A ingestão energética deve ser aumentada para contraba­
orofaringe, do aspirado traqueal ou do escarro induzido. lançar o maior gasto energético basal e as perdas alimentares
A investigação complementar do quadro de exacerbação pelas fezes.
pulmonar demonstra radiografia de tórax com novos infiltra­ Vários fatores influenciam no ganho de peso, tais como:
dos ou piora dos já existentes, leucocitose e redução da satu­ genética, insuficiência pancreática, ressecção intestinal, perda
ração de oxigênio. de sais biliares, DRGE, inflamação, infecção, diabetes e aspec­
tos emocionais.
■ Diagnóstico diferendal O objetivo do tratamento nutricional é prevenir e tratar dé-
O diagnóstico diferencial da FC deve ser feito com discinesia ficits nutricionais e suas complicações. É realizado a partir de
ciliar primária, bronquiectasias de outra etiologia, bronquiolite dados de anamnese e exame físico à procura de sinais e sinto­
obliterante, síndrome da imunodeficiência humoral, síndrome mas de déficits nutricionais e checar o uso da TRE, medidas
da imunodeficiência adquirida (AIDS), asma e doença pulmo­ antropométricas e testes laboratoriais.
nar obstrutiva crônica (DPOC) no caso de pacientes adultos. O tratamento consiste em educação nutricional, orienta­
ção dietética, suplementação diária de vitaminas A, D, E e K,
■ Seguim ento suplementação de sais, especialmente no verão, e terapia de
O seguimento deve ser realizado durante toda a vida. O pa­ reposição enzimática (TRE).
ciente portador de FC necessita de uma equipe interdisciplinar O aleitamento materno deve ser incentivado, pois confere
e deve ser submetido a consultas a cada 1 a 3 meses, conforme benefícios duradouros.
seu estado clínico. Em todas as consultas, devem ser realizadas a A dieta deve ser hipercalórica, hiperproteica e normo ou hi-
pesquisa de microrganismos e a medida da saturação transcutâ- pergordurosa, atingindo 120 a 150% das necessidades diárias
nea de oxigênio da hemoglobina. recomendadas. Em casos selecionados, quando não for possí­
Devem ser solicitados anualmente os seguintes exames com­ vel ou suficiente a ingestão de calorias pela dieta tradicional,
plementares: radiografia de tórax, ultrassonografia de abdome, pode-se optar por suplementação oral, enteral, gastrostomia
hemograma completo, dosagem de transaminases, glicemia de e nutrição parenteral. O potencial de crescimento das crian­
jejum, cálcio, fósforo, fosfatase alcalina, coagulograma, hemo­ ças com FC é normal e este deve ser o objetivo do tratamento
grama completo e proteína total e frações. No meio brasileiro, nutricional.
exames parasitológicos de fezes devem ser adicionados para
verificar concomitância com parasitoses intestinais, causadoras ■ Controle dasmanifestações gastrintestinais
frequentes de espoliação. O tratamento do íleo meconial é feito à base de enemas de
Pacientes em uso de antibioticoterapia inalatória devem contraste, de preferência hidrossolúveis e não iônicos, e reali­
ser submetidos semestralmente ao exame de rotina de urina e zados sob controle de fluoroscopia. Na falência do tratamento
dosagens de ureia e creatinina. clínico, indica-se o tratamento cirúrgico.
O teste oral de tolerância à glicose deve ser solicitado a O tratamento da síndrome da obstrução intestinal distai
partir dos 7 anos de idade, ou antes se a glicemia de jejum consiste no uso de soluções de lavagem balanceadas de ele-
for alterada. trólitos com polietilenoglicol. A dose de enzimas pancreáticas
A partir dos 6 anos, deve-se proceder à espirometria a cada deve ser reajustada, assim como deve ser estimulada uma dieta
6 meses e à tomografia computadorizada de tórax a cada 2 a rica em fibras e uso de laxativos e mucolíticos para evitar re-
3 anos, ou antes se for necessário. cidivas do quadro.
Além do calendário vacinai habitual preconizado pelo Mi­ O uso do ácido ursodesoxicólico em alta dose (20 mg/kg/dia)
nistério da Saúde, os pacientes também devem receber a vacina deve ser indicado nos pacientes com evolução colestase-fibrose-
antipneumocócica (conjugada a partir de 2 meses e polissaca- cirrose. Apesar da falta de evidências científicas conclusivas, ele
rídica 23-valente a partir de 2 anos) e vacinação anti-influenza aumenta o transporte dos ácidos biliares tóxicos endógenos e
anual. Embora ainda não haja consenso, as vacinas contra va­ inibe sua absorção intestinal, estimula o fluxo biliar e tem efei­
ricela e hepatite A também devem ser recomendadas pelo ris­ tos citoprotetor e imunomodulador no fígado.
co de dano nos órgãos especialmente acometidos pela fibrose A TRE deve ser instituída o mais precocemente possível, as­
cística. sim que for determinado o diagnóstico de fibrose cística com
acometimento pancreático, independente da idade, o que ocor­
■ Tratam ento re em 90% dos pacientes. Alguns sugerem sua utilização nos
O tratamento da FC deve ser realizado em um centro es­ casos de íleo meconial, antes mesmo do diagnóstico confirma­
pecializado de referência, devido ao acometimento multissis- do de fibrose cística, pois a TRE não interfere no diagnóstico e
têmico da doença e com o intuito de prevenir complicações e pode evitar e tratar a desnutrição.
infecções. A equipe deve ser constituída por médico pneumolo- São utilizadas enzimas do tipo pancreolipases, contendo li-
gista, nutricionista, fisioterapeuta, enfermeira, assistente social pase, protease e amilase obtidas de pâncreas porcino ou bovi­
e psicólogo. O tratamento precisa ser individualizado, levando no. São encontradas em preparações comuns ou sofisticadas,
em conta a gravidade e a localização dos órgãos acometidos. muitas delas acidorresistentes, evitando a inativação pelo suco
O tratamento iniciado o mais precocemente possível retarda a gástrico, e com concentrações mais uniformes e padronizadas.
progressão do acometimento pulmonar, melhora o prognóstico As enzimas artificiais possibilitam aumento da absorção de gor-
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 289

-----------------------------▼---------------------------- Os quadros de exacerbação respiratória, primeira cultura


Q u a d ro 29 .8 Enzimas pancreáticas disponíveis no Brasil positiva ou infecção crônica, exigem antibioticoterapia na ten­
tativa de reduzir o declínio da função pulmonar e melhorar o
Apresentação com erdal Lipase/cápsula (UI) prognóstico. A antibioticoterapia deve ser intravenosa por 14
a 21 dias. Nos casos de exacerbação leve, pode ser indicado o
P a n c re a s e ' 4 .0 0 0
uso combinado de antibióticos orais e inalatórios.
C o ta z y m ' 8 .0 0 0
Os antibióticos mais utilizados no controle dos estafilococos
U ltra s e " 4 .5 0 0 4 .5 0 0
sensíveis à meticilina (MSSA) são as cefalosporinas de primeira
U ltra se * M T 1 2 1 2 .0 0 0 e de segunda geração, amoxicilina-clavulanato, macrolídeos,
U ltr a s e ' M T 1 8 1 8 .0 0 0 sulfametoxazol-trimetoprima e oxacilina, e dos estafilococos
U ltra se * M T 2 0 2 0 .0 0 0 resistentes à metilicilina (MRSA), vancomicina, teicoplanina
C r e o n ' 1 0 .0 0 0 1 0 .0 0 0 e linezolida.
C r e o n ' 2 5 .0 0 0 2 5 .0 0 0 Os antibióticos utilizados para a infecção causada pela Pseu­
Adaptado de PRONAP, ciclo X. 2007/2008.
domonas aeruginosa podem ser de uso oral, no caso de cipro-
floxacino, ou endovenoso, associando aminoglicosídio (ami-
cacina ou tobramicina), cefalosporina de terceira ou de quarta
geração (ceftazidima ou cefepime) ou piperacilina/ticarcilina
ou piperacilina-tazobactam, ou carbapenêmicos (imipenem,
duras em 85 a 90% do conteúdo ingerido. O teor de enzimas meropenem).
do tipo lipase de cada preparação comercial está disposto no Um dos esquemas antibióticos mais utilizados no meio bra­
Quadro 29.8. sileiro é a associação de oxacilina, amicacina e ceftazidima para
A dose prescrita das enzimas varia conforme o paciente, a erradicação de Staphylococcus aureus e Pseudomonas aerugino-
dieta ingerida e o grau de acometimento pancreático. Reco- sa, frequente associação nos pacientes com FC.
menda-se iniciar com doses baixas e ajustar a dose conforme Os antibióticos inalatórios são muito utilizados no tratamen­
a necessidade. Lactentes alimentados exclusivamente com fór­ to da FC, porque apresentam boa eficácia, deposição local alta
mulas lácteas devem receber de 500 a 1.000 unidades (U) de e menor toxicidade sistêmica. São utilizados no tratamento da
lipase/g gordura ingerida na mamada. Crianças podem receber Pseudomonas, na erradicação da primoinfecção e na terapia de
de 500 a 2.000 unidades de lipase/kg/refeição. Esta dose pode supressão da infecção crônica. Os antibióticos inalatórios mais
ser ajustada para cada refeição, levando em conta a densidade utilizados são tobramicina, gentamicina, amicacina e colistina.
calórica e quantidade de alimentos consumida, os sintomas do Devem ser utilizados após a fisioterapia através de nebulizador
paciente, o aspecto das fezes e o ganho ponderai. a jato com bocal. Podem ser usados de maneira isolada ou as­
A dose máxima não deve ultrapassar 10.000 U lipase/kg/dia sociados a antibióticos sistêmicos.
O uso de antibióticos profiláticos é contraindicado pela US
pelo risco de colonopatia fibrosante, grave complicação intes­
tinal associada ao uso de altas doses de enzimas, pancreáticas. Cystic Fibrosis Foundation.
As recomendações de higiene e controle de infecção devem
Para pacientes que necessitam de altas doses de enzimas, é reco­
ser seguidas à risca para evitar a propagação de bactérias, espe­
mendável associar inibidores da secreção ácida gástrica, como
cialmente das multirresistentes.
ranitidina ou omeprazol, para aumentar o pH intestinal e oti­
Os profissionais da saúde devem evitar o contato de pacien­
mizar a ação das enzimas.
tes colonizados e não colonizados, segregar em ambulatórios
As enzimas devem ser oferecidas no início de todas as refei­
ou enfermarias os pacientes com bactérias multirresistentes,
ções, e sua duração é de 45 a 60 min, então é recomendado que epidêmicas e viroses respiratórias; lavar as mãos com água e
o paciente evite beliscos fora do horário das refeições. sabão e usar álcool a 70% em todos os atendimentos, utilizar
Os bebês podem receber os grânulos da enzima retirada luvas descartáveis para o atendimento de pacientes com secre­
da cápsula diretamente na boca, oferecendo a amamentação ção, proceder à desinfecção de aparelhos após o uso, utilizar
logo a seguir. lençóis descartáveis.
Pacientes em pós-operatório, com sonda nasogástrica ou Os pacientes devem cobrir a boca e o nariz quando tossir
enteral ou em ventilação assistida devem receber as enzimas na ou espirrar, evitar apertos de mão, não compartilhar escovas
forma de pó diluídas em pequena quantidade de água. de dente ou outros objetos de uso pessoal, lavar as mãos com
O insucesso da TRE pode acontecer por má adesão do pa­ água e sabonete antisséptico líquido em caso de tosse, antes e
ciente, armazenamento inadequado do produto ou por comor- depois das refeições e após contato com equipamentos médico-
bidades associadas, tais como parasitoses intestinais, intole- hospitalares, secar as mãos com papel descartável ou fontes de
râncias e alergias alimentares, diabetes, hepatopatia e doen­ calor, usar máscara, em caso de tosse ou secreção, durante a
ça celíaca. fisioterapia, não compartilhar aparelhos de inalação e desinfetá-
los com frequência.
■ Controle dainfecção
A antibioticoterapia foi um dos fatores que mais contribuí­ ■ Controledasmanifestaçõesrespiratórias
ram para o aumento da sobrevida nas últimas décadas. O esque­ A fluidificação das secreções é de fundamental importân­
ma terapêutico de escolha deve ser direcionado para o diagnós­ cia, pois todas as complicações surgem a partir da presença de
tico microbiológico, ser usado em doses altas, preferencialmente secreções espessas.
bactericida, associando antibióticos com diferentes ações para A inalação com solução salina é um tratamento promissor,
evitar o surgimento de cepas resistentes. A estratégia terapêu­ já que busca corrigir o defeito básico e não apenas tratar os
tica é erradicar a Pseudomonas aeruginosa nas fases iniciais de sintomas. Promove e mantém a hidratação do muco, melhora
colonização, antes da sua conversão para o fenótipo mucoide a depuração mucociliar e reduz as exacerbações respiratórias,
e consequente infecção crônica. melhorando a função pulmonar e aumentando a qualidade de
290 Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes

vida do paciente. Além disso, apresenta poucos efeitos colaterais Outras drogas estão em estudo, tais como agonistas dos re­
e é de baixo custo, permitindo seu uso com sucesso mesmo em ceptores de canal de cloro não CFTR (denufosol), drogas com
países subdesenvolvidos. Antes da inalação com solução sali­ potencial anti-inflamatório (antagonistas da elastase neutro-
na hipertônica (NaCl 7%), é indicado o uso de salbutamol em fílica), produtos que interferem na formação de biofilmes da
spray oral 30 a 60 min antes. Estudos sugerem que a inalação Pseudomonas (dextrana inalatório), novos antibióticos ina-
com solução salina deva ser mais efetiva no início da vida, antes latórios (carbapenêmicos e aztreonam) e a vacina anti-Pseu-
que a doença pulmonar esteja estabelecida. domonas.
A DNAse humana recombinante (rhDNAse, dornase alfa -
Pulmozymect) é um mucolítico que cliva o DNA dos núcleos ■ Prognóstico
de neutrófilos degenerados presentes no muco e reduz a vis­ O prognóstico está associado a vários fatores como genó-
cosidade do muco. É usada por via inalatória por inalador a tipo, idade de instalação dos primeiros sintomas, presença de
jato, através de bocal, na dose de 2,5 mg (1 m g/ml), 1 vez/dia. insuficiência pancreática e grau de envolvimento pulmonar.
Deve ser utilizada de modo contínuo para sustentar os bene­ As complicações costumam acontecer nos pacientes mais
fícios clínicos; apresenta alto custo. É reservada para os casos velhos, devido à evolução da doença. São elas: hemoptises re­
de presença de secreções brônquicas purulentas, espirometria correntes, impactações mucoides brônquicas, atelectasias, em-
com sinais de obstrução e exames de imagem de vias respira­ piema, pneumotórax, enfisema progressivo, fibrose pulmonar,
tórias com alterações estruturais. diabetes melito, pancreatite, osteoartropatia hipertrófica, as-
Em torno de 50% dos fibrocísticos evoluem com hiper-res- pergilose broncopulmonar alérgica, DRGE, osteoporose e cor
ponsividade de vias respiratórias, e o tratamento é similar ao pulmonale.
da asma atópica. A taxa de sobrevida é inversamente proporcional ao acome-
A azitromicina é indicada por apresentar efeitos anti-in- timento pulmonar da doença.
flamatórios, inibição da formação de biofilme e da aderência A insuficiência respiratória é responsável por pelo menos
bacteriana. É provável que estabilize a função pulmonar, di­ 80% dos óbitos. O óbito geralmente ocorre por uma combina­
minua as exacerbações e melhore o estado nutricional. Deve ção de falências respiratória e cardíaca.
ser usada 3 vezes/semana, durante longos períodos, nas doses Quando a fibrose cística foi descrita em 1938, a expectativa
de 250 mg nos pacientes menores de 40 kg e de 500 mg nos de vida era de apenas alguns meses. A média de sobrevida nos
maiores a partir de 40 kg. países desenvolvidos está ao redor dos 35 anos; entretanto, nos
A oxigenoterapia deve ser reservada para os casos de países subdesenvolvidos, como o Brasil, os índices de sobrevi­
insuficiência respiratória hipoxêmica, utilizando os mesmos da são baixos. Nos EUA e no Canadá, 15 a 20% dos pacientes
critérios usados para pacientes portadores de DPOC. Dentre evoluem para óbito antes dos 10 anos de vida.
seus benefícios, estão redução da resistência vascular pulmonar,
correção da policitemia, redução do número de hospitalizações, ■ Conclusão
aumento da sobrevida e melhor qualidade de vida. O objetivo atual é preservar a função pulmonar dos pacien­
A fisioterapia na prática clínica é medida muito eficaz, por tes portadores de FC para que possam beneficiar-se de terapias
auxiliar na depuração das secreções respiratórias, mas infeliz­ futuras que permitam a correção do defeito básico e tornem a
mente ainda não há estudos randomizados controlados para fibrose cística uma doença manejável.
uma metanálise que comprove o seu papel. Deve ser empregada
em todos os pacientes. Existem muitas técnicas empregadas na
fisioterapia, tais como manobras de aceleração do fluxo expi- ■ SUC0ENTÉRIC0
ratório, drenagem postural, expiração forçada eflutter, dentre
outras. As técnicas fisioterápicas devem ser associadas e ajusta­ Enzimas produzidas pelas células do intestino delgado têm
das conforme a idade e a necessidade do paciente. A tosse deve importante papel na complementação da digestão de vários
ser sempre estimulada, já que é o melhor mecanismo conhecido nutrientes, principalmente de dissacarídios (Capítulo 28).
para eliminar as secreções. Atividade física deve ser preconiza­
da, pois também é um estimulante da tosse.
■ Digestão na membrana do enterócito
■ Transplantepulmonar Os carboidratos são hidrolisados por enzimas associadas à
O transplante pulmonar bilateral é a alternativa final para membrana dos enterócitos. O padrão de ingestão dos carboidra­
pacientes com doença pulmonar avançada, ou seja, quando a tos muda com a idade. Durante a infância, a quantidade maior
sobrevida por 2 anos é inferior a 50%. Após o transplante, não da dieta corre por conta da lactose. Já na criança mais velha e
há reincidência da doença no órgão transplantado e a sobrevida em adultos, o amido constitui 60% dos carboidratos ingeridos,
pós-transplante em 5 anos é menor que 50%. a sacarose 30% e a lactose 10%. Tais carboidratos complexos
são hidrolisados a dissacarídios e monossacarídios. Os dissa­
■ Outros tratamentos carídios são hidrolisados a monossacarídios por dissacaridases
A terapia gênica foi motivo de grande entusiasmo, mas en- específicas, localizadas na membrana da borda estriada das cé­
contra-se distante da prática clínica. Um gene CFTR normal é lulas epiteliais intestinais (Quadro 29.9). Os monossacarídios
introduzido dentro das células somáticas a partir de um vetor. O são então transportados através da membrana dos enterócitos.
vetor inicialmente testado foi o adenovírus, porém apresentou Quando há deficiência de dissacaridases da borda estriada, o
resultados ruins devido à imunogenicidade e baixa eficácia em dissacarídio mal digerido chega ao cólon com o conteúdo lu-
introduzir DNA nas células epiteliais. Novos vetores não virais minal, onde é metabolizado por bactérias colônicas. Dióxido de
estão sendo testados; dentre eles, lipossomas e plasmídios. carbono, hidrogênio, gases e ácidos orgânicos são produzidos
Uma nova perspectiva seria o uso de substâncias que estimu­ com consequente distensão abdominal, flatulência e diarréia.
lem o funcionamento da proteína CFTR, tais como genisteína, Embora várias deficiências de dissacaridases tenham sido des­
apigenina e IBMX. critas, a mais comum é a deficiência de lactase.
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 291

------------------------------------- ▼------------------------------------- pois é produzida na região apical da vilosidade intestinal e sua


Q u a d ro 29 .9 Digestão na membrana do enterócito* concentração é inferior à das outras dissacaridases.

D E F IC IÊ N C IA C O N G Ê N I T A D E D IS S A C A R ID A S E S

L a cta se
■ Deficiência de lactase/intolerância à lactose
S a c a ra s e -is o m a lta s e ■ Introdução
T re a la s e O dissacarídio lactose é um carboidrato presente unicamen­
D E F IC IÊ N C IA A D Q U I R ID A O U T A R D IA D E D IS S A C A R ID A S E S
te no leite dos mamíferos. Intolerância à lactose (IL) é a for­
ma mais comum de má absorção de carboidratos. Isso ocorre
La cta se
porque a atividade intestinal da lactase, enzima necessária para
S a c a ra s e -is o m a lta s e
hidrólise da lactose em glicose e galactose, diminui progressiva­
G lic o a m ila s e o u m a lta s e
mente com o passar dos anos em todos os mamíferos, inclusive
"Impedimento da digestão de um dissacarídio específico, levando à fermentação no homem. A população que hoje digere a lactose o faz graças
bacteriana no cólon.
à mutação genética ocorrida há 3.000 ou 5.000 anos e que se
expressa como característica autossômica dominante. Sua pre­
valência é extremamente variável, sendo de 10% no norte da
Europa, 25% nos EUA e 70% na Ásia e na África. No Brasil, a
■ Malabsorção de dissacarídios prevalência varia de acordo com a região e o método diagnós­
Entende-se por deficiência de dissacaridase a absoluta ou re­ tico empregado, mas situa-se entre 45 e 50%.
lativa diminuição na quantidade de uma enzima ativa disponí­
vel para hidrólise de um dissacarídio da dieta. Tais deficiências ■ Tipos de deficiência de lactase
são geralmente seletivas ou específicas, marcadas pela redução A deficiência de lactase pode ser congênita, primária ou se­
da atividade de uma única dissacaridase, como, por exemplo, cundária. A forma congênita é muito rara, possui caráter autos-
no caso da deficiência congênita de lactase. Por outro lado, sômico recessivo e foi descrita pela primeira vez em 1959. Nes­
deficiências de dissacaridases podem ser gerais, com redução tes pacientes, há ausência total da enzima desde o nascimento
na capacidade de digerir a maioria ou a totalidade dos dissa­ devido a alterações localizadas no cromossomo 2q21. Os sinto­
carídios, como, por exemplo, na doença celíaca, onde há lesão mas iniciam-se após a primeira amamentação e caracteriza-se
intestinal difusa. por diarréia grave. A deficiência de lactase primária, também
A lactose predomina na dieta láctea; a sacarose, no açúcar denominada de não persistência da lactase, é a principal causa
comum e nas frutas; e o amido, nos cereais. Para digerir os de IL em todo o mundo, sendo também determinada geneti­
carboidratos, há necessidade de plena atividade das enzimas camente de forma recessiva. Ao nascimento, a atividade enzi­
digestivas, donde a ação da amüase salivar, da alfa-amilase mática é máxima, porém reduz-se gradualmente, chegando a
pancreática e das oligossacaridases (lactase, sacarase e malta­ níveis indetectáveis após alguns anos de vida. A taxa de perda
se) localizadas na borda em escova dos enterócitos. Seus pro­ da atividade da lactase depende da etnia. Os chineses e os ja­
dutos de digestão, os monossacarídios, são absorvidos quase poneses perdem 80 a 90% da atividade da enzima dentro de 3
totalmente pelo intestino delgado. a 4 anos após o desmame.
A deficiência secundária ou adquirida refere-se à perda da
lactase - lactose - » glicose e galactose atividade da lactase em pessoas com persistência da enzima e é
sacarase - sacarose —»glicose e frutose mais comum em adultos. Isso ocorre como resultado de doen­
maltase - maltose —> glicose e glicose ças do trato gastrintestinal, como doença celíaca, gastrenterite
Em resumo, a digestão dos carboidratos completa-se na su­ viral, infestação por Giardia lamblia, cirurgias, medicamentos e
perfície luminal do enterócito sob a ação coletiva de sete car- radioterapia (Quadro 29.10). Estas condições promovem redu­
boidrases. ção ou alteração nas microvilosidades intestinais, local onde se
O destino de um dissacarídio da dieta depende da quanti­ encontra a lactase. O tratamento da doença de base e a melhora
dade ingerida, do tempo de contato com a mucosa intestinal e histológica do epitélio intestinal nem sempre traduzirão uma
do nível da enzima disponível para sua digestão. Exceto para a reversão do quadro de intolerância com melhora enzimática.
lactose, a capacidade para a hidrólise intestinal do dissacarídio,
sob condições normais, é tal que a absorção é completa.
Quando ocorre malabsorção, há sintomas como borborig-
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------
mos, dor abdominal, diarréia e flatulência. A intolerância ao
dissacarídio ê definida, então, como a ocorrência de sintomas Q u a d ro 29 .1 0 Causas secundárias de intolerância à lactose
à ingestão de um determinado dissacarídio. Lembrar que sinto­
In testin o delgado M ultissistêm ica latro gên ica
mas de malabsorção ou intolerância podem ocorrer a despeito
de atividade enzimática normal quando uma quantidade exage­ D o e n ç a celía ca S ín d r o m e c a rc in o id e Q u im io t e r a p ia
rada do dissacarídio é ingerida ou quando o trânsito intestinal D o e n ç a d e C ro h n F ib ro s e cística R a d io te ra p ia
está acelerado. Por tais razões, os termos “deficiência” e "into­ D o e n ç a d e W h ip p Ie E n te ro p a tia d ia b é tic a C iru rg ia s
lerância” não devem ser usados indistintamente. P ara sitose s (g ia rd ía s e ) S ín d r o m e d e Z o llin g e r -E llis o n C o i c h id n a
Também se deve esclarecer que “intolerância ao leite” se G a s tre n te rite vira l A lc o o lis m o N e o m ic in a
refere à intolerância à lactose e é diferente de “alergia ao leite”
E n te ro p a tia d o H IV D e fic iê n c ia d e fe rro C a n a m id n a
quando se trata de problemas relacionados com a proteína do
S ín d r o m e d o in te s tin o
leite de vaca. c u rto
É importante salientar que, após uma agressão ao intestino, a S ín d r o m e d a a lça c e g a
lactase é a primeira enzima a diminuir e a última a normalizar,
292 Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes

IL é diferente de alergia ao leite, pois esta ocorre por reação equivalente a um litro de leite de vaca) e coletam-se amostras
alérgica a proteínas (lactoalbumina e lactoglobulina) ou caseí- do ar expirado a cada 15 min, por 180 min. Nos portadores de
na, e aquela, à má digestão de carboidratos. A alergia ao leite IL, há uma elevação de 20 ppm no hidrogênio expirado, o que
ocorre em 1 a 2% das crianças e pode ser diagnosticada através indica fermentação da lactose pela flora colônica. Resultados
de testes alérgicos cutâneos. falso-negativos ocorrem quando há o uso concomitante de anti­
bióticos, pois nesta situação existe redução da flora bacteriana
■ Fisiopatologia fermentadora. Atualmente, é considerado o melhor teste, pois
A lactose (p-D-galactosil-D-glicose) é um dissacarídio for­ não é invasivo e é mais confiável que outros métodos.
mado pela união de moléculas de glicose e galactose, sendo Dentre os testes fecais, utilizam-se a análise do pH fecal e a
encontrada no leite dos mamíferos. Entre estes, destaca-se o pesquisa de substâncias redutoras. Na IL, o pH fecal cai para
leite humano, pois é o mais rico em lactose (7,2 g/100 m fl. valores inferiores ou iguais a 5,5. Resultados normais não ex­
Para que ocorra sua absorção, é necessária a hidrólise prom o­ cluem o diagnóstico, pois, se as fezes não forem frescas, os
vida principalmente pela enzima lactase, uma p-galactosidase ácidos fecais podem volatilizar-se. A pesquisa de substâncias
localizada na borda em escova das células epiteliais do intesti­ redutoras nas fezes indica má digestão de açúcares e é signifi­
no delgado, com alta expressão no jejuno médio. No feto já é cativa quando possui valores acima de 0,5%. Resultado falso-
possível detectar a presença de lactase, cuja expressão máxima negativo ocorre se houver bactérias colônicas consumidoras
ocorre ao nascimento. Após alguns meses de vida, a atividade de açúcar.
da enzima começa a cair e esse descenso é progressivo até n í­
veis indetectáveis, como consequência da maturidade. Quando ■ Tratam ento
a lactose não é digerida adequadamente, é carreada para o cólon O paciente com IL primária deve ser tranquilizado e orien­
onde será fermentada pela flora local. Este processo produzirá tado de que a base do tratamento é a correção da dieta, pois
ácidos orgânicos, dióxido de carbono, metano e hidrogênio e geralmente são necessários pelo menos 20 a 50 g de lactose para
elevação da osmolaridade do lúmen entérico. O aumento da que apareçam sintomas. Assim, tanto alimentos sem lactose
carga osmótica atrairá água para o interior do cólon, levando (à base de soja), quanto produtos com baixa quantidade deste
à diarréia aquosa ácida. açúcar, como leites de baixa lactose, margarinas e alguns quei­
jos, podem ser consumidos pela maioria dos pacientes. Iogur­
■ Manifestações dínicas tes contendo lactobacilos acidófilos podem ser bem tolerados,
As queixas clínicas ocorrem apenas se houver a ingestão de porque a quantidade de lactose presente no leite é reduzida
produtos contendo lactose. Os sintomas iniciam-se após 15 a através da ação bacteriana. O Quadro 29.11 resume o conteú­
120 min da ingestão deste açúcar, podendo surgir diarréia aquo­ do de lactose nos produtos lácteos mais consumidos no Brasil.
sa, distensão abdominal, flatulência, borborigmo, desconforto Deve ser lembrado que a lactose é amplamente utilizada na in­
abdominal (às vezes, referido como dor tipo cólica ou meteo- dústria farmacêutica, como excipiente de medicamentos, e na
rismo), náuseas e vômito. Destaca-se que alguns pacientes po­ de alimentos, como espessante no preparo de carne de frango
dem ser oligo ou assintomáticos, mesmo com baixa atividade processada, salsicha, hambúrguer e outros produtos. Certos
de lactase. Interessante observar que muitos pacientes não as­ alimentos industrializados podem ter concentração de lactose
sociam seus sintomas com a ingestão de lactose e outros não maior que o próprio leite animal.
melhoram mesmo que a lactose seja excluída. No primeiro caso,
a habilidade da flora colônica em fermentar a lactose, produ­
zindo gases em m aior ou m enor quantidade, pode ser uma
das justificativas da variação da intensidade dos sintomas. No ▼
segundo caso, quando a lactose é excluída e os sintomas per­ Q u a d ro 29.11 Concentração de lactose em alguns produtos lácteos
sistem, deve-se suspeitar da associação com síndrome do in ­
testino irritável. Alim ento % d e lactose por peso

■ Diagnóstico L e ite h u m a n o 7,2

A capacidade de digerir a lactose pode ser aferida através L e ite d e v a c a in te g ra l 4 ,6

de métodos diretos e indiretos. O método direto é a dosagem L e ite d e v a c a s e m id e s n a t a d o 4 ,7


bioquímica da atividade da lactase através de biopsias jeju- L e ite d e v a c a d e s n a ta d o 4,8
nais. No entanto, este método é invasivo, pouco disponível e L e ite d e v a c a e m p ó d e s n a ta d o 5 2,9
menos sensível que o teste respiratório com hidrogênio (ver L e ite d e c a b ra 4 ,4
Capítulo 28). L e ite c o n d e n s a d o 12,3
Os métodos indiretos são o teste de tolerância à lactose, o
C r e m e d e le ite 2,2
teste do hidrogênio expirado e a análise fecal.
Io g u r t e n a tu ra l 4 ,7
O teste de tolerância à lactose exige a ingestão de 50 g de lac­
Io g u r t e c o m fruta s 4 ,0
tose seguida de coletas seriadas de sangue, a cada 15 ou 30 min
(por até 2 h), para mensuração dos níveis sé ricos de glicose. Io g u r t e líq u id o 4 ,0

Uma elevação da glicose plasmática em 20 a 30 m g/dí em re­ Q u e ijo b rie / c a m e m b e r t T ra ç o s

lação ao jejum indica digestão normal de lactose. Q u e ijo m u ç a re la T ra ç o s

A IL é idealmente diagnosticada pelo teste do hidrogênio Q u e ijo c h e d d a r 0,1


expirado, o qual se baseia na fermentação bacteriana da lacto­ Q u e ijo p a r m e s ã o 0,9
se não absorvida e consequente formação do gás hidrogênio Q u e ijo c o tt a g e 3,1
e de ácidos orgânicos. Após jejum noturno, mede-se o hidro­ C re a m c h eese T ra ç o s
gênio expirado através de cromatografia gasosa. Em seguida, S o r v e te d e c re m e 4 ,8
ofertam-se ao paciente 2 mg de lactose/kg (máximo de 50 mg,
Capítulo 29 / Fibrose Cística, Intolerância a Dissacarídios e Outros Distúrbios na Digestão de Nutrientes 293

O consumo de lactose com outros alimentos minimiza os Alvarcz, AE, Ribeiro, AF, Hcsscl, G et al. Fibrose cística cm um centro de re­
ferência no Brasil: características clínicas c laboratoriais de 104 pacientes
sintomas, pois há redução do trânsito intestinal, permitindo
c sua associação com o genótipo c a gravidade da doença. /. Pediatr., 2004;
maior contato do bolo alimentar com a lactase residual. O mes­ 80:371-9.
mo ocorre com o consumo de leite integral em relação ao des­ Borowitz, D, Robinson, KA, Roscnfcld, M et al. Cystic Fibrosis Foundation
natado, pois a gordura do primeiro retarda o esvaziamento Evidencc-Bascd Guidclincs for Management of Infants with Cystic Fibrosis.
gástrico, permitindo lento deslocamento do produto lácteo no /. Pediatr., 2009; 155:73-93.
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delgado e assim maior tempo de digestão. Para os pacientes que coviscidosc). Arq. GastroenteroL (S. Paulo), 1996; 33(supi).
não conseguem seguir a dieta, é possível utilizar a lactase em Castcllani, C, Cuppcns, H, Macck Jr, M et al. Consensus on thc use and inter-
cápsulas, acompanhando a ingestão de alimentos, a qual está pretation of cystic fibrosis mutation analysis in clinicai practicc. J. Cyst.
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Plus ou Fastfii). www.gcnct.sickkids.on.ca/StatisticsPage.html> Acesso cm: 02 maio 2010.
Recentemente, estudou-se o uso de um composto não ab- Farrel, PH, Roscnstcin, BJ, White, TB et al. Guidclincs for diagnosis of Cystic
sorvível, derivado da rifampicina, chamado rifamixina, no tra­ Fibrosis in Ncwborns through oldcr adults: Cystic Fibrosis Foundation
tamento da IL. Este fármaco atua sobre a flora anaeróbica do Consensus Report. /. Pediatr., 2008; i53:S4-S14.
Mattar, ACV, Gomes, EN, Adde, FV et al. Comparison bctwccn classic Gibson
cólon, a qual é a principal formadora de hidrogênio, dióxido de and Cookc tcchniquc and sweat conductivity test in patients with or without
carbono e metano. Doses de 800 mg de rifamixina ao dia, por cystic fibrosis. J. Pediatr., 2010; 86:109-14.
10 dias, conseguiram normalizar o teste do hidrogênio expirado Mayell, SJ, Munck, A, Craig, JV et al. A Europcan consensus for thc evaluation
e reduzir significativamente os sintomas destes pacientes por and management of infants with an equivocai diagnosis following newborn
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até 30 dias. No entanto, ainda não se sabe se a administração
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Doença Celíaca e Outros
Distúrbios na Absorção
de Nutrientes
Lorete Maria da Silva Kotze e Shirley Ramos da Rosa Utiyama

As anormalidades na absorção dos nutrientes, ao nível do en- ■ Epidemiologia


terócito, podem ser classificadas em: A DC acomete indivíduos de qualquer idade e de ambos
A. Alterações múltiplas, não seletivas, quando várias rotas os sexos, predominando no feminino, tanto em séries pediá­
estão comprometidas. Exemplos: doença celíaca, espru tricas como de adultos. É classicamente descrita em indivíduos
tropical, desnutrição, irradiação, drogas etc. de raça branca, ocorrendo, com maior frequência, nos países
B. Alterações únicas, seletivas, quando apenas uma rota está anglo-saxônicos e nórdicos. Pode ser considerada de distribui­
comprometida. Exemplos: síndrome de Hartnup, síndro- ção mundial, pois tem sido relatada recentemente em nativos
me de Menkes, acrodermatite enteropática etc. de diversos países e em minorias étnicas. Entretanto, no sul do
Brasil, Utiyama et al. (2010), em estudo clínico/epidemiológico,
Neste capítulo, serão abordadas apenas as afecções que não não detectaram DC em indígenas Kaingang.
estiverem descritas em outros capítulos e que tenham interesse Estima-se que atualmente a DC acometa cerca de 1% da
na prática médica. maioria das populações. O aumento da incidência da DC nos
últimos anos pode ser explicado pela maior disponibilidade
dos testes sorológicos, principalmente com a determinação dos
■ ALTERAÇÕES MÚLTIPLAS OU NÃO SELETIVAS anticorpos antiendomísio (EmA-IgA) e antitransglutaminase
(antitTG-IgA), e pela facilidade de biopsias através de exames
■ Doença celíaca endoscópicos nos pacientes positivos ou com alterações m a­
croscópicas detectadas durante a endoscopia.
■ Conceitos
Desde que se iniciaram estudos em familiares assintomáticos
Glúten inclui um conjunto de proteínas individuais que se
de celíacos, por métodos não invasivos, até os dias atuais, com
encontram nos cereais e se dividem em poliaminas e gluteni-
a triagem de anticorpos, estima-se que a frequência na popu­
nas. As poliaminas que dão reação aos celíacos são gliadina (tri­
lação geral está entre 1:70 e 1:200 indivíduos. No entanto, essa
go), secalina (centeio), hordeína (cevada) e avenina (aveia). O
incidência varia de país a país e de região a região, inclusive no
glúten é uma substância albuminoide, insolúvel em água que,
junto com o amido e outros compostos, constitui a massa co- Brasil (Quadro 30.1).
esiva que permanece quando a pasta de farinha dos cereais é Estudo recente na Finlândia vem mostrando maior preva­
lavada para se removerem os grânulos de amido. A doença por lência da doença com o aumento da idade, atingindo 1:47 indi­
sensibilidade ao glúten pode ser definida como um estado de víduos na população acima de 52 anos, o que caracterizou índi­
resposta imunológica, tanto celular como humoral, ao glúten ces superiores aos da população geral nessa faixa etária (2,1%).
dos cereais citados, em indivíduos geneticamente suscetíveis. A Dados semelhantes já vêm sendo observados no sul do Brasil
intolerância ao glúten é permanente. Atualmente, esse conceito por Kotze et al. (2010).
ampliou-se, podendo-se incluir pacientes nos quais a interação Nass et al (2008), do grupo das autoras, avaliaram a presença
entre o sistema imunológico e o glúten pode se expressar em do EmA-IgA e antitTG-IgA em 233 familiares de 61 famílias
diferentes níveis. O mais comum e conhecido é a enteropatia de pacientes celíacos do sul do Brasil, através de seguimento
ou lesão intestinal (doença celíaca), mas também o dano pode de 8 a 10 anos, realizado em duas etapas (1997-2000 e 2006-
surgir na pele (dermatite herpetiforme), na mucosa oral (esto- 2007). Na última etapa, com EmA-IgA e já empregando tTG
matite aftosa de repetição), nas articulações (algumas artrites) humana como substrato, encontraram 12,90% de positividade
ou no rim (nefropatia por IgA). nos familiares de primeiro grau e 11,11% nos de segundo grau.
A doença celíaca (DC) é a forma mais frequente de apresen­ Em três famílias, detectou-se positividade em gêmeos. Mais re­
tação. É também conhecida como espru celíaco, espru não tro­ centemente, em um estudo relatando a experiência de 10 anos
pical, enteropatia glúten-induzida, enteropatia glúten-sensível, do mesmo grupo de pesquisa, na triagem de DC em pacientes,
esteatorreia idiopática ou espru idiopático. grupos de risco e populações, foi possível mostrar os familiares

294
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 295

---------------------------- ▼-----------------------------
Q u a d ro 30.1 Dados sobre prevalência da doença celíaca

Autor País Ano N" casos Pre valé nd a

p o p u la ç Ao g er al

C a tassi e t a i Itália 1 99 6 17.201 1 /21 0

K o lh o e t al. F in lâ n d ia 1 99 8 1 .07 0 1/130

K o r p o n a y -S z a b o e t a i H u n g r ia 1 99 9 427 1/85

C a tassi e t a i Saara 1 99 9 989 1/56

R iestra e t a i Espanha 2000 1 .17 0 1 /38 9

C a rls s o n e t a i S u é cia 2001 690 1/77

H o v e ll e t a i A u s trá lia 2001 3.011 1/430

G o m e s e t a l. A r g e n t in a 2001 2 .0 0 0 1/167

C ille r u e lo e t a i Espanha 2002 3 .3 7 8 1/281

A n tu n e s P o rtu g a l 2002 536 1/134

V a n d k o v a et a í R e p .T c h e c a 2002 1.312 1/262

F a s a n o e fa / . EUA 2003 4 .1 2 6 1/133

M aki et a í F in lâ n d ia 2003 3 .6 5 4 1/99

DOADORES DE SANGUE

N o t et a í EUA 1 99 8 2 .0 0 0 1 /25 0

T re v is io l e t a í Itália 1 99 9 4 .0 0 0 1/400

H o v d e n a k e ra / . N o ru e g a 1 99 9 2 .0 9 6 1 /34 0

R o s ta m i e t a l. H o la n d a 1 99 9 1 .00 0 3 /1.0 0 0

S h a m ir e r o / . Israel 2002 1.571 1/157

S h a h b a z k h a n ie r o / . Ira n 2003 2 .0 0 0 1/166

G a n d o lf i e t al. B r a s ília - B R 2000 2 .0 4 5 1/681


M e lo e f al. R ib e ir ã o P r e to - B R 2003 3 .0 0 0 1 /2 7 5
P e r e ira e ta l. C u r it ib a - B R 2006 2 .0 8 6 1 /4 1 7
O liv e ir a e ta l. S ã o P a u lo - B R 2007 3 .0 0 0 1 /2 1 4

de celíacos como o grupo de maior risco ao desenvolvimento • há concordância de 11 a 20% da DC em gêmeos dizi-
da doença (Figura 30.1). Tais dados reforçam a importância góticos;
do rastreamento sorológico em todos os familiares de celía­ • há concordância de 30 a 40% entre irmãos HLA idên­
cos, enfatizando a indicação de biopsia intestinal nos positivos, ticos;
mesmo na ausência de sintomatologia clínica. • ocorrem múltiplos casos da doença dentro da mesma
O que se pode concluir dos dados aqui apresentados é que família;
a DC é um problema de Saúde Pública, mundial, e que neces­ • a doença é rara em determinados grupos étnicos (orien­
sita de atenção pelas autoridades competentes, com progra­ tais e negros).
mas de rastreamento como se faz para fenilcetonúria e outros
defeitos metabólicos, como bem preconizam Rubio-Tapia e A DC resulta de um efeito combinado de produtos de di­
Murray (2010). ferentes genes, HLA e não HLA. O espectro de estágios pa­
tológicos e a heterogeneidade clínica observados na DC são
■ Etiopatogenia compatíveis com sua natureza poligênica, considerando-se que
A Figura 30.2 demonstra o envolvimento de fatores genéti­ diferentes genes de suscetibilidade podem contribuir nos dife­
cos, imunológicos e ambientais na etiopatogenia da DC. rentes estágios para o desenvolvimento final da doença.
► ASSO CIAÇÕ ES COM AN TÍGENOS LEUCO CITÁRIO S HUMA­
■ Fatoresgenéticos NOS (HLA) NA D O EN ÇA CELÍA CA . Os genes do sistema HLA
De acordo com King e Ciclitira, a DC é fortemente heredi­ ocupam uma região de 4 Mb no braço curto do cromossomo
tária, oligogênica e complexa. As doenças complexas consistem 6p21 e contêm aproximadamente 200 genes, dos quais mais
em afecções influenciadas por múltiplos fatores ambientais e da metade tem função imunológica. Três regiões separadas de
genéticos e, potencialmente, por interações entre esses. Estudos genes são reconhecidas: os genes de classe I (HLA-A, B e C); a
com familiares de celíacos gradualmente ressaltaram o papel região de classe II, que inclui os genes para as cadeias ocpa e p
da genética na suscetibilidade à doença: das moléculas apresentadoras de antígenos de classe II (HLA-
• a doença é familial, pois a lesão característica da mucosa DR, DP e DQ), entre outras; e os genes de classe III, que co­
entérica ocorre de 5 a 20% nos familiares dos pacientes, dificam proteínas do sistema complemento (C2, C4A, C4B e
mesmo que os sintomas sejam mínimos ou inexistentes; BF) (Figura 30.2), além do fator de necrose tumoral (TNF) e
• há concordância de 70 a 75% da DC em gêmeos mono- outras. As moléculas de classe I são encontradas na superfície
zigóticos; da maioria das células nucleadas do organismo, enquanto as
296 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

p = 0,084('i r

0 , 1%

Familtarea Diabetes Slndromo Cardiomiopatla Dondoroado Arlrllo PopuInçAo


(N ■ 200) molito do Oown (N ■ 74) banco do roumaloda aadln
(N ■ 104) (N ■ 150) sanguo (N ■ 85) (N • 180)
(N ■ 2000)

Figura 30.1 Positividade de anticorpos antiendomísio IgA em grupos de risco para doença celíaca e população (Utiyama e t o i., 2009).
' Familiares x população sadia: p < 0,001. :J'Diabetes melito x população sadia: p < 0,001. l3,Síndrome de Down x população sadia: p = 0,019.
:/,Cardiomiopatias x população sadia: p = 0,084.

HUMORAIS C E LU LA R E S
Anticorpos FATO R ES CD4+/CD8*
IM U N O L Ó G IC O S
Complemento LIE/TCR y 6
Citocinas M acró fago s

FATO R ES FATO R ES
A M B IE N T A IS G E N É T IC O S
GLÚTEN GENES HLA
Antígenos Tóxicos Classes 1, II e III
GENES NÀO HLA

Figura 30.2 Fatores de patogenicidade na doença celíaca (Kotze, 2003). LIE = linfócito intraepitelial; TCR = receptor de célula T; FILA = antíge-
nos leucocitários do sistema humano.

moléculas de classe II estão expressas na superfície de células ses genes desenvolve a DC (cerca de 2-5%). Esse aspecto mos­
apresentadoras de antígenos, principalmente macrófagos, cé­ tra que a presença de alelos específicos do locus HLA-DQ é
lulas dendríticas e células B. necessária, mas não suficiente para a expressão fenotípica da
A relação entre a DC e os genes I ILA no cromossomo 6p21 doença, e ressalta ainda a influência de genes não I ILA na sus-
(região CELIAC1) representa uma das associações HLA/doen- cetibilidade à DC.
ça mais forte e bem compreendida até o momento. Até 90-95% Os alelos HLA-DQ2 de suscetibilidade à DC podem ser her­
dos pacientes celíacos expressam o heterodímero HLA-DQ2 dados em cis (do cromossomo de um dos pais) ou em trans,
(DQA1*0501/DQB1*0201), enquanto os 5-10% restantes ex­ com um alelo HLA-DQ vindo do cromossomo de cada um dos
pressam HLA-DQ8 (DQA1*0301/DQB 1*0302). Cabe ressal­ pais. Indivíduos com sorologia para DR3 (atualmente designa­
tar, no entanto, que, apesar de esses alelos serem relativamente do DR17) carreiam esses alelos em cis, enquanto os heterozi-
comuns na população geral sadia onde a DC é prevalente (30 gotos para DR5 (atualmente DR11 ou DR12) e DR7 carreiam
a 35%), apenas uma pequena proporção dos que carreiam es­ os alelos em trans.
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 297
DQ2 DQ2

C IS TRAN S

Figura 30.3 Molécula de membrana DQ-DR mais frequente na DC. (Adaptada de Kagnoff, 2005.)

A Figura 30.3 sintetiza a molécula de membrana DQ-DR DC seja praticamente excluído em indivíduos que não apresen­
mais frequente na DC. tem esses alelos (valor preditivo negativo próximo de 100%).
Esses aspectos fizeram com que atualmente a determinação do
• DQA 1*0501, DQB 1*0201: genes localizados no mesmo
HLA-DQ2 e HLA-DQ8 pudesse constituir um exame de rotina
cromossomo (os)/DR3;
na prática clínica.
• DQA1*0501, DQB1*0201: genes em diferentes cromosso­
► O UTRAS ASSO C IAÇ Õ ES HLA NA DC. Além da associação
mos (trans), em indivíduos heterozigotos (DR5/DR7).
HLA-DQ2 e DQ-8 na DC, inúmeras outras associações HLA
Estudos recentes mostram ainda haver duas formas de mo­ foram gradualmente descritas. Destacam-se os genes MICA e
léculas HLA-DQ2, designadas HLA-DQ2.5 e HLA-DQ2.2. En­ MICB, e o gene HLA-G, da região de classe I do MHC, além
quanto HLA-DQ2.5 é um forte fator de risco à DC, o HLA- do gene HLA-DRB4 (HLA-DR53) e DPB1*0301, DPB1*0101
DQ2.2 não predispõe à doença, a menos que se expresse junto e DPB1*0402 da região de classe II.
com HLA-DQ2.5. Dessa forma, indivíduos homozigotos para Na população brasileira, Kotze e Ferreira, em 1977, em
o genótipo HLA-DQ2.5 ou heterozigotos para HLA-DQ2.5/ uma investigação com pacientes celíacos da região sul, detec­
DQ2.2 têm alto risco de desenvolver a doença, enquanto indi­ taram o HLA-B8 em 71% desses em comparação a 6% dos in­
víduos heterozigotos HLA-DQ2.5/não HLA-DQ2.2 apresentam divíduos sadios da mesma área geográfica. Por sua vez, Silva
risco discretamente elevado, decorrente do efeito do número et al.y em estudo com 25 pacientes de Ribeirão Preto, SP, de­
de alelos na suscetibilidade à DC, bem como da magnitude da monstraram que os alelos HLA-DRB1*03, HLA-DRB1*07 e
resposta de células T-glúten específicas. HLA-DQ2.5 liga pep- HLA-DQB 1*02 conferiam suscetibilidade à DC, enquanto o
tídios de glúten com maior afinidade e permite uma apresen­ HLA-DQB1*06 conferiu proteção contra o desenvolvimento
tação mais prolongada do mesmo às células apresentadoras de da doença na população estudada.
Além dos genes HLA de classe II, também os genes da re­
antígenos (APC) do que HLA-DQ2.
gião de classe III apresentam participação na suscetibilidade à
► RELEVÂNCIA CLÍNICA DA ASSOCIAÇÃO DQ2 E DQ8 NA DC.
DC. Entre esses, se encontram os genes que codificam o fator
Embora relatos prévios sugiram que uma vez que a DC se desen­
de necrose tum oral-a (TNF-a), a a citocina pró-inflamatória
volve o curso clínico dela em geral é semelhante, dados recentes
e imunomoduladora envolvida na lesão imune mediada da DC,
mostram possível relação desse aspecto com a população em es­
e as proteínas do sistema complemento (BF, C2, C4A e C4B).
tudo. Karinen et al.yna Finlândia, demonstraram associação da Estudos na população da Sicília detectaram aumento significa­
homozigose para HLA-DQB 1*0201 com uma forma mais grave tivo dos alelos TNFa-308A e IFN-y +874T, sugerindo a presen­
da DC, relacionada com maiores índices de atrofia vilositária, ça simultânea desses como uma combinação genética capaz de
diarréia mais grave, menores níveis de hemoglobina plasmática aumentar a suscetibilidade à DC. Por sua vez, a via alternativa
e idade mais jovem ao diagnóstico, além de regeneração mais do complemento exerce importante papel na patogênese da
lenta da atrofia de vilosidades após dieta isenta de glúten (DIG). DC, considerando que o glúten é um potente ativador da mes­
Dados semelhantes foram descritos em pacientes italianos. ma. O fator B (BF) é a proteína central de ativação dessa via.
Nesse contexto, a genotipagem para HLA-DQ2 e HLA-DQ8 No Brasil, Utiyama et al. (2005), ao analisarem os alótipos de
tem se mostrado clinicamente relevante, além de apresentar BF na DC, caracterizaram a variante BFSF como marcador de
valor preditivo na detecção de familiares de alto risco ou si­ suscetibilidade à doença e a variante BFS como marcador de
tuações de suspeita clínica de DC nas quais o diagnóstico não proteção em familiares de celíacos da população do sul do país,
é claro. A ausência do HLA-DQ2 e HLA-DQ8 permite que o embora não tenham verificado associação com a gravidade da
diagnóstico ou a possibilidade de futuro desenvolvimento da DC e com a presença de autoanticorpos concomitantes.
298 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

► A SSO C IAÇ Ã O COM GENES NÃO HLA NA DC. Embora a esclerose múltipla e asma. Essa região contém os genes CD28,
associação entre DC e os genes HLA (região CELIAC 1) já se CTLA4 e ICOS, que codificam moléculas de superfície regu-
encontre bem estabelecida, a taxa de concordância da doença latórias da atividade de linfócitos T (Figura 30.4), o que faz de
entre gêmeos monozigóticos (70 a 75%) e em pares de irmãos CELIAC 3 forte candidato a um locus de suscetibilidade à DC,
afetados HLA idênticos (30 a 50%) mostra que tais genes são considerando que a ativação de células T glúten-reativas na
parcialmente responsáveis pela predisposição genética à doen­ mucosa intestinal representa um ponto crítico no desenvolvi­
ça. Genes fora do complexo HLA, de diferentes cromossomos, mento da doença. O antígeno 4 associado ao linfócito T citotó-
também podem contribuir significativamente no desenvolvi­ xico (CTLA4) medeia a apoptose de células T e representa uma
mento da DC. Pesquisas direcionadas à caracterização de genes molécula coestimulatória negativa da resposta de células T, isto
adicionais, principalmente com o uso de estratégias de tria­ é, fornece um sinal negativo inibindo a ativação de células T.
gem genômica, têm sido realizadas. Os estudos de Hunt & Van Resultados conflitantes mostram ligação e/ou associação
Heel (2010), bem como os de Dubois e cols. (2010), permitem para DC com CELIAC 3 em algumas populações (francesa, no­
observar o grande número de regiões genéticas recentemente rueguesa, sueca, britânica, espanhola e finlandesa), em oposição
identificadas com envolvimento na suscetibilidade à DC (8 a à ausência de associação em outras (da Itália, Tunísia, Irlanda
13, respectivamente), e a maioria dessas contém genes com ou América do Norte). Dados discordantes podem decorrer
função imunológica. Por sua vez, metanálises dos estudos de do baixo poder estatístico para detectar regiões de baixo risco
triagem genômica têm permitido sintetizar as inúmeras infor­ genotípico, pois milhares de famílias, em vez de centenas, po­
mações disponíveis das investigações baseadas em famílias e dem ser requeridas nesses estudos. É possível que a resposta
identificar as novas regiões de potencial contribuição na pre­ definitiva para o papel desempenhado pelo gene CTLA4 no
disposição à DC. desenvolvimento da DC dependerá de projetos multicêntricos
O polimorfismo dos numerosos genes candidatos testados colaborativos e maiores evidências funcionais para os genes da
na DC permite destacar, dentre outras, as regiões designadas região CELIAC 3.
como CELIAC 2, do cromossomo 5q31-33, CELIAC 3, do cro­ ► R e g iã o C E L IA C 4. Genes notáveis encontram-se nessa re­
mossomo 2q33, e CELIAC 4, do cromossomo 19pl3.1 gião (cromossomo 19pl3.1), destacando-se o da miosina IXB
► R e g iã o C E L IA C 2. Os estudos de triagem genômica têm (MY09B), que codifica uma molécula de miosina não conven­
sugerido o cromossomo 5q31-33 como importante locus de ris­ cional, envolvida no movimento intracelular, que tem um pa­
co para a DC e outras doenças inflamatórias. A região CELIAC pel na remodelação do citoesqueleto de actina dos enterócitos
2 contém genes que codificam moléculas envolvidas na ativação epiteliais. A descoberta de uma ligação genética entre a DC e
de células T, as quais controlam a resposta imunológica e a di­ uma variante da miosina IXB enfatiza a potencial importân­
ferenciação celular, bem como a produção de citocinas e outras cia de um defeito na função da barreira intestinal, como um
moléculas pró-inflamatórias. Koskinen et a i (2009), em um processo primário na etiologia da DC, que permite explicar
minucioso estudo de mapeamento genético em famílias da Fin­ a passagem de peptídios imunogênicos de glúten através da
lândia e da Hungria, demonstraram ligação dessa região com a mesma. Esse poderia representar um fator envolvido nos even­
DC, embora relatos prévios na Irlanda, ao analisar a variação tos iniciais na mucosa, que precedem a resposta inflamatória
genética para IL4, IL5, IL9, IL13, IL17B e NR3CI, genes candi­ na DC, e que vem ao encontro com a recente observação da
datos com função imunológica e/ou inflamatória presentes no permeabilidade intestinal em indivíduos com DC com histo-
cromossomo 5, não forneceram evidências de associação desses logia normal. Pode ser importante ainda no desenvolvimento
loci com a DC. Esse fato ressalta a importância de estudos em de tratamentos alternativos para a rígida dieta isenta de glúten
populações de diferentes origens étnicas e geográficas. usado correntemente.
► R e g iã o C E L IA C 3. Estudos diversos em populações têm A associação com o alelo rs2305764*A, no gene MY09B, foi
evidenciado que a região CELIAC 3, no cromossomo 2q33, relatada por Monsuur et al. (2005), na Irlanda. Forte associação
apresenta ligação com a predisposição à DC, assim como com de MY09B com doença celíaca refratária tipo II (RDCII) e en-
diabetes tipo I, doença de Graves, hipotireoidismo autoimune, teropatia associada ao linfoma de célula T (EATL) foi demons-

Figura 30.4 Marcadores genéticos na doença celíaca. (Adaptada de Louka e Sollid. 2003.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 299

trada por Wolters et al. (2007). A RDC é uma síndrome de má fora da membrana basal, entre as células epiteiiais (Figura 30.5).
absorção caracterizada pela persistência de atrofia vilositária e Os que apresentam os receptores gama/delta são importantes na
presença aberrante de linfócitos intraepiteliais na mucosa intes­ manutenção da integridade epitelial por destruir células infec­
tinal, apesar da aderência do paciente à dieta isenta de glúten. tadas, transformadas ou danificadas. No indivíduo normal, os
Frequência significativamente maior do alelo rs7259292 foi ob­ LIE predominantes não expressam esses receptores, mas, nos
servada em pacientes com RDC II e EATL em relação a pacien­ celíacos, estão significativamente elevados, mesmo após dieta
tes não complicados e a indivíduos sadios. Estudos mostram sem glúten. Seu aumento sugere o diagnóstico de DC, porém
que ambos, MY09B rs7259292 e homozigose para HLA DQ2, podem aumentar na alergia alimentar, com densidade menor
aumentam o risco para tais complicações, sem evidências de do que na DC. Os LIE com receptores alfa/beta são principal­
interação entre os dois fatores, sugerindo que possam ser en­ mente CD8+, estão aumentados nos celíacos não tratados, to­
volvidos no prognóstico da doença. davia normalizam em número nos pacientes aderentes à dieta
► OUTRAS REGIÕES GENÉTICAS ASSO CIAD A S À DC. Dentre isenta de glúten.
inúmeros estudos que avaliam a contribuição de outras regiões
genéticas na suscetibilidade à DC em diferentes populações, o ■ Fatores ambientais
compilamento dos dados em revisões recentes permitem des­ Quanto aos fatores ambientais, embora se descreva o apa­
tacar ainda: recimento da DC após uma infecção, não se comprovou que
• Região CELIAC 6 (4q27): Reino Unido, Holanda, Irlanda, um determinado microrganismo possa ter papel relevante. No
Itália, EUA, Escandinávia; entanto, dados recentes sugerem que a exposição precoce de
• Região CELIAC 7 (lq31): Reino Unido, Holanda, Irlan­ crianças ao glúten, infecção precoce com vírus enteropáticos
da, Itália, EUA; ou uma mudança da flora bacteriana tem mostrado favorecer
• Região CELIAC 8 (2qll-ql2): Reino Unido, Holanda, a evolução de DC clinicamente manifesta na infância.
Irlanda; ► CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CEREAIS E SUAS RELAÇÕES
• Região CELIAC 9 (3p21): Reino Unido, Holanda, Irlan­ TAXONÔM ICAS. Em cada espécie de cereal, há muitas proteínas
da, Espanha; de estoque. O glúten é a fração proteica do trigo, do centeio e
• Região CELIAC 10 (3q25-q26): Reino Unido, Holanda, da cevada que confere a propriedade de viscoelasticidade e que
Irlanda, Itália, EUA; permite a coesão da farinha. O consumo desses cereais faz parte
• Região CELIAC 11 (3q28): Reino Unido, Holanda, Ir­ da dieta tanto pela disponibilidade em termos de agricultura,
landa, Itália, EUA; como pelas propriedades físicas inerentes às suas proteínas.
• Região CELIAC 12 (6q25.3): Reino Unido, Holanda, Ir­ Além de permitir obter o pão fermentado, o glúten isolado pode
landa, Itália; ainda ser usado na preparação de alimentos industrializados
• Região CELIAC 13 (12q24): Reino Unido, Holanda, Ir­ (espessantes), bem como estar presente em bebidas (cervejas,
landa, Itália, EUA. drinques maltados).
Cereais são uma espécie de erva ou grama (Gramineae) que
Embora a contribuição genética como um todo desses poli- são cultivados pelos seus grãos. São classificados em quatro gru­
morfismos combinados seja substancialmente menor, quando pos (Figura 30.6), e o trigo, o centeio e a cevada são cereais in­
comparada à de 30 a 35% conferida pelos alelos HLA-DQ2 ou timamente relacionados (Tribo Triticeae) e tóxicos aos pacien­
HLA-DQ8, a identificação desses genes e de seu papel na sus­ tes com DC. A toxicidade da aveia, taxonomicamente muito
cetibilidade, ou mesmo na proteção à DC, pode trazer avanços próxima a estes cereais (Tribo Aveneae), é controversa. Estes
nos aspectos diagnósticos e terapêuticos, além de servir como são os únicos cereais com grãos tóxicos conhecidos. Por outro
modelo nos estudos de outras doenças autoimunes. lado, o arroz e o milho não apresentam toxicidade.
Os linfócitos intraepiteliais (LIE), considerados também As frações proteicas solúveis em álcool são denominadas
como marcadores genéticos, são células T que se localizam por prolaminas enquanto as insolúveis, gluteninas. Aparentemen­
te, as prolaminas são as principais responsáveis pelo desen-
cadeamento ou exacerbação da DC. No trigo, as prolaminas
são chamadas de gliadinas, enquanto no centeio, na cevada e
na aveia são conhecidas como secalina, hordeína e avenina,
respectivamente. Dados recentes sugerem que as gluteninas
também podem estar envolvidas com o dano na mucosa in­
testinal.

B a m b u s o id e a e P o o id e a e P a n lc o ld e a e C h lo r id o id e a e

1
O ryze a e T ritic e a e
\
Aveneae P a n ic e a o
\
A n d ro p o g o n e a e
1
C y n o d o n te a e

O ryza T ritic u m Avena P a n n is e t u m S o rg h u m E le u s in o


(Arroz) (Trigo) (Aveia) (Milho p.) (Sorgo) (Ragi)
S e c a le P a n ic u m Zea E r a g r o s t is
(Centeio) (Milho p.) (Milho) (Teí)
H o rd e u m
Figura 30.5 Linfócitos intraepiteliais da mucosa do intestino delga­ (Cevada)
do proximal (setas). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
Encarte.) Figura 30.6 Taxonomia dos cereais, segundo Shewry e t a i
300 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

Uma característica comum das prolaminas do trigo, do cen­ ----------------------------------------- ▼ -----------------------------------------


teio e da cevada é o alto conteúdo de glutamina (> 30%) e de Q u a d ro 30.2 Composição dos cereais
prolina (> 15%), enquanto as prolaminas não tóxicas do arroz e
do milho apresentam um baixo teor das mesmas, predominan­ GLÚTEN
do os aminoácidos alanina e leucina. A aveia possui uma com­
posição intermediária de glutamina e prolina, tendo por isso a TRIGO CENTEIO CEVADA AVEIA
toxicidade de suas prolaminas questionada (Quadro 30.2). CEREAISTÓXICOSNADOENÇACELÍACA
Embora alguns autores recomendem o uso de aveia pelos
pacientes celíacos, trabalhos recentes mostram que nem todos CEREAL PR0LAMINA COMPOSIÇÃO TOXICIDADE
os portadores de DC são tolerantes a este cereal, de maneira
Trigo a-Gliadina 36% G, 17-23% P +++
que se recomenda sua proibição.
Tentativas de cultivo de cereais modificados geneticamen­ Cevada Hordeína 36% G, 17-23% P ++
te, visando à depleção dos epítopos imunogênicos do glúten, Centeio Cecalina 36% G, 17-23% P ++
responsáveis pelas agressões à mucosa, têm sido realizadas. No Aveia Avenina T g,4 p +
entanto, em muitas situações, a farinha perde sua capacidade de Milho ? 4- G, í A, L -

formar pasta com a elasticidade e a extensibilidade desejáveis. Arroz ? 4. G, í A, L -


Questiona-se se os celíacos poderiam comer alimentos de trigo
G = glutamina; P ■ prolina; A = alanina; L ■ leucina.
com menor toxicidade, pois se sabe que qualquer quantidade Adaptado de Schuppan, 2000.
causa dano e predispõe ao câncer, com o passar dos anos.

■ Fatoresimunológicos
Os conhecimentos da patogênese da DC tiveram grandes
avanços nos últimos anos. O glúten induz uma resposta imuno- a enzima transglutaminase tecidual (transglutaminase 2 - TG2,
lógica inata que atua em conjunto com a imunidade adaptativa. em geral denominada tTG). Esta é uma enzima intracelular se-
Componentes humorais e celulares participam ativamente no cretada por fibroblastos, leucócitos, células endoteliais de vasos
processo da lesão da mucosa intestinal. De acordo com Schup- sanguíneos, células de músculo liso e de mucosas. Na DC, a tTG
pan et al. (2009), a DC representa uma das doenças ligadas ao tem sido detectada em todas as camadas da parede do intestino
HLA mais bem compreendida, pois constitui uma afecção úni­ delgado, com predomínio de expressão na submucosa. A tTG
ca ao se considerar que tem o “gatilho” definido (proteínas do é liberada das células durante a inflamação ou lesão e promo­
glúten e cereais relacionados), a necessária presença do HLA- ve a ligação cruzada de certas proteínas da matriz extracelular,
DQ2 ou HLA-DQ8, e a produção de autoanticorpos circulantes estabilizando assim o tecido conjuntivo.
contra a enzima transglutaminase tecidual (TG2). Shan et al. (2002) identificaram os peptídios imunogênicos
A DC está associada à resposta autoimune altamente especí­ (33 mer-peptide), presentes exclusivamente nas proteínas do
fica ao endomísio, que faz parte da estrutura da matriz celular glúten da dieta, responsáveis pelo desencadeamento da DC.
do tecido conjuntivo do músculo liso (Figura 30.7). O antígeno Esses peptídios são, em geral, resistentes à degradação por pro-
endomisial foi identificado por Dieterich et al., em 1997, como teases gastrintestinais, fato que favorece sua sobrevivência e

H L A -D Q 2 H L A -D Q 2

i m / n / r tA m .trt.ir

(DR5)
H LA -D Q 2 em e is H LA -D Q 2 em t r a n s

Figura 30.7 HLA-DQ2. (Adaptada de Kagnoff, 2007.)


Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 301

disponibilidade no intestino delgado. Atualmente, esse peptí- a(TNF-a) e interferona Y(IFN-y), que estimulam os fibroblastos
dio é considerado um “superantígeno celíaco” e é usado como intestinais a secretarem metaloproteinases de matriz proteolí-
peptídio modelo em estudos pré-clínicos. Devido ao seu alto ticas (MMP-1 e MMP-3), que causam a destruição da mucosa
conteúdo em glutamina e proximidade com prolina e resíduos pela dissolução do tecido conjuntivo, com consequente atrofia
hidrofóbicos de aminoácidos, as proteínas do glúten, especial­ vilositária e hiperplasia de criptas. A MMP-3 exerce papel cen­
mente a fração solúvel em álcool (gliadina do trigo, cecalina da tral na remodelação da mucosa, visto que degrada componentes
cevada e hordeína do centeio) e também as gluteninas, são o da matriz não colagenosa, glicoproteínas e proteoglicanos, além
substrato específico da enzima tTG. de ativar a MMP-1, responsável pela degradação do colágeno
Os peptídios penetram na lâmina própria no intestino delga­ fibrilar. Por sua vez, as citocinas da resposta Th2 direcionam
do, provavelmente após mudanças ocorridas nas junções ínti­ a ativação e expansão clonal de células B para a produção de
mas intercelulares, que resultam no aumento da permeabilidade autoanticorpos (IgA e IgG) contra o glúten (gliadina), tTG e
intestinal, um evento precoce na patogênese da DC. complexos gliadina-tTG. Outras citocinas como IL-18, IFN-a
Através de um processo de desaminação, a tTG converte a ou IL-21 parecem exercer um papel na polarização e manuten­
glutamina em resíduos de ácido glutâmico (carregados nega­ ção da resposta Th-1. AIL-21, produzida por células Thl CD4',
tivamente), gerando potentes epítopos imunoestimulatórios. foi caracterizada como um fator adicional da imunidade inata,
Devido à carga negativa, a maioria desses peptídios de glúten ao atuar em conjunto com a interleucina (1L)-15. Por sua vez,
resultantes se liga com maior afinidade às moléculas HLA-DQ2 a IL-15 interliga o sistema imune adaptativo à resposta imune
(ou HLA-DQ8) das células apresentadoras de antígenos (APC) inata na fisiopatogenia da DC (Figura 30.8).
e leva a uma intensa ativação de clones de linfócitos T CD4* São recentes os progressos que permitiram compreender
glúten-específicos, presentes na mucosa intestinal de pacientes como linfócitos intraepiteliais (LIE) são ativados pelas proteínas
com DC, induzindo dessa forma a reação autoimune da DC. dos cereais. De forma integrada à resposta imunológica adap-
Os linfócitos B podem ser estimulados porque também tativa, estudos têm mostrado o efeito do glúten na imunidade
atuam como APC, expondo peptídios de glúten desaminado inata na DC, com ativação predominante de LIE e células do
aos linfócitos T específicos. epitélio intestinal. O peptídio a-2-gliadina p31-43, distinto do
Subsequente à ativação das células T CD4’, uma resposta peptídio que induz a resposta adaptativa (33 mer-peptidé)ycons­
Thl e/ou Th2 se estabelece. As células da resposta Thl libe­ titui o gatilho dessa reação no epitélio intestinal, estimulando
ram primariamente citocinas como fator de necrose tumoral as células epiteliais, bem como macrófagos/células dendríticas

L u m o n in te s tin a l

E p it ô h o in to s tin o l

M e m b ra n a ba sa l

IL -1 5 Ativação do LIE L â m in a p r ó p n a
P o p t ld io s d o g lú lo n
r o o g o m n o s u b o p itô lio
d o lô m m a p r ó p r io
^ IL-21 D e g r a d a ç ã o d a m a t r iz o
d e m o d o ta ç à o d a m u c o s a
C o m p o n e n t e s d o s c e r e a is
o O e s tim u la m im u n id a d o in a ta S MMP-1, -3, -12f
9? & e m c é lu la s e p ite lia is e
Fibroblasto
dondnticas IF N -;
TNF'i

P e p t í d i o s d e g lú t e n d e a m in a d o s
s õ o a p r o s o n to d o s p o r A P C p o r o IL-21
c é lu la s T v ln H L A - D Q 2 o u D Q 8

A n t i c o r p o s c o n tr a
O Peptídio» do glúton o g lú t e n e T G 2

O Peptídios do glúten deaminados


<> TG2
Autoanticorpos

A u to a n t ic o r p o s k g a m -s o
nos t o a d o s o u s é o lib e r a d o s
no sangue

Figura 30.8 Patogênese da doença celíaca. (Adaptada de Schuppan e t a í , 2009.)


302 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

a secretar IL-15. A expressão da IL-15 exerce um papel central verificou-se tratar-se de linfócitos T com receptores gama/delta
no direcionamento dos processos que levam ao aumento do (LT- yÔ), considerados como marcadores precoces da DC. Tal
número de LIE, como também nos processos de destruição de fato permite identificar formas latentes de DC, tanto em indi­
células epiteliais e danos na mucosa. víduos com arquitetura mucosa preservada e presença de anti­
A ativação imune inata de LIE pelo glúten induz a expressão corpos positivos, como em familiares de celíacos. Em pacientes
de moléculas HLA classe I não clássicas (MICA) no epitélio in­ com outras expressões de sensibilidade ao glúten, tais como der-
testinal, que serve de ligante para o receptor NKG2D de célu­ matite herpetiforme, aftas recorrentes e artralgias, a presença de
las NK, linfócitos T-yÔ e linfócitos T citotóxicos CD8’. MICA tais células aponta para o correto diagnóstico (Figura 30.5).
epitelial e a produção epitelial ("up-regulated") de IL-15 levam
à ativação de NKG2D nos LIE. Os LIE citotóxicos ativados in ­ ■ Fisiopatologia
duzem aumento da apoptose epitelial e da permeabilidade. As A DC compromete o intestino delgado proximal, afetando
vias da perforina/granzima e/ou Fas/FasL são fundamentais os locais “nobres” da absorção (Figura 30.9).
para essas atividades de citotoxicidade e apoptose dos LIE no O comprimento do intestino lesado na DC varia de paciente
epitélio intestinal na DC. a paciente, correlacionando-se com a gravidade dos sintomas
NKG2D também liga a imunidade adaptativa e inata, ao ati­ clínicos. Quanto mais grave a lesão e maior o segmento atin­
var a citotoxicidade mediada por linfócito antígeno-específico, gido, mais intensa será a má absorção e mais comprometida a
bem como a função citolítica direta independente de receptor saúde do paciente. Entretanto, há pacientes celíacos com altera­
de células T (TCR). ções discretas no intestino proximal. Somente rigorosa análise
Ainda é controverso como os peptídios imunogênicos de é que dará o diagnóstico nesses casos.
glúten alcançam a lâmina própria a partir do lúmen intestinal. O defeito básico da absorção, na forma pura, situa-se na fase
Evidências sugerem a participação de uma via paracelular, por epitelial. À medida que o processo evolui, surgem comprome­
defeitos nas junções íntimas intercelulares, e de mecanismos de timentos secundários: na etapa pré-epitelial, há alterações na
transcitose, especialmente na mucosa inflamada na DC. Mais micelação das gorduras, perda fecal de sais biliares, assim como
recentemente, tem sido sugerida ainda a participação dos an­ redução da enteroquinase devido à redução da borda estriada
ticorpos IgA e IgG antiglúten e antitTG, que, ao ligarem-se aos do enterócito; na etapa pós-epitelial, há bloqueio relativo ao es­
peptídios, favoreceríam o transporte transcelular dos mesmos coamento de nutrientes devido à infiltração do córion. Portan­
do lúmen para a lâmina própria, amplificando a resposta de to, na DC, além da redução da área absortiva, existem alterações
linfócitos T CD4’ glúten-específica. nos mecanismos de digestão e transporte. Consequentemente,
Cabe salientar a importância do aumento do número de lin­ também ocorrem espoliação de vários nutrientes, exsudação de
fócitos intraepiteliais (LIE) na mucosa de celíacos, tanto em ati­ proteínas e oligoelementos para o lúmen intestinal e aumento
vidade como em remissão, como já assinalado. Posteriormente, de secreção pelas células das criptas.

GORDURAS
M O N O SSA C A R lD lO S
ÁGU A INT. D ELG A D O
D IS S A C A R lD IO S
E L E T R Ô L IT O S PRO XIM AL
P E P T ÍD IO S
Ca. Mg. Fe. Zr» AM INO ÁCIDO S
INT. D ELG A D O VIT. LIP O S S O L .
PRO XIM AL VIT. H ID R O S SO L.

AÇUCARES
P E P T ÍD IO S
AM INO ÁCIDO S INT. D ELG A D O
C Á LC IO MEDIANO
ÁGU A
Ag u a E L E T R Ô L IT O S
E L E T R Ô L IT O S
C Ó LO N S

VIT. B t2
S A IS B IL IA R E S
ÁGU A
E L E T R Ô L IT O S
D ISTA L

Figura 30.9 Esquema dos locais de absorção dos nutrientes, segundo Kotze.
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 303

Assim, a diarréia na DC resulta de: Em 1992, Marsh sugeriu um uespectro de sensibilidade ao


glúten” com seu respectivo repertório de alterações na muco­
• grande volume líquido apresentado aos cólons;
sa, advindo da sensibilização dos linfócitos T. Para esse autor,
• aumento de gordura nos cólons, que passa a ácidos graxos
pelo menos quatro padrões distintos, inter-relacionados e se­
por ação bacteriana, tendo efeito catártico;
quenciais de alterações da mucosa poderiam ser reconhecidas
• elevação da secreção de água e eletrólitos, aumentando
(Figura 30.10).
mais o volume no lúmen intestinal;
Em 1970, Barbieri et al. publicaram uma classificação bra­
• diminuição da liberação de hormônios digestivos, da en-
sileira que corresponde à anteriormente descrita.
teroquinase e das secreções pancreáticas;
Na DC a espessura total da mucosa não se altera ou se altera
• redução na circulação êntero-hepática de sais biliares,
pouco, pois, apesar do achatamento na superfície consequente
se houver lesão no íleo terminal, também com efeito ca­
à diminuição da altura das vilosidades, há hipertrofia da zona
tártico.
de criptas, compensando tal achatamento.
Alterações na função de barreira favorecem a penetração de À microscopia óptica, a superfície da mucosa pode exibir
peptídios por falta de especificidade ou simplesmente por dano vilosidades reduzidas em altura e mais alargadas, esboços de
mucoso: proteínas do leite de vaca ou da soja podem determinar vilosidades ou sua ausência (Figura 30.3). Já se pode deduzir
anticorpos circulantes, trazendo implicações dietéticas impor­ que tais alterações por redução da área absortiva acarretam re­
tantes no tratamento. percussões mais ou menos graves para a nutrição do paciente.
Os efeitos decorrentes de tantas modificações resultam em Por outro lado, isso se agrava mais ainda por haver alterações
má absorção, com predominância de um ou vários nutrientes, nas células absortivas de superfície: células normalmente co­
manifestando-se clinicamente por formas monossintomáticas lunares dão lugar a células cuboides, com alterações nas or-
ou até por síndrome carencial global. ganelas, borda estriada e núcleo, dando aspecto pseudoplu-
A mucosa gástrica de celíacos pode apresentar gastrite em riestratificado. Há intensa esfoliaçâo celular, migrando células
maior proporção do que a da população geral e aumento do imaturas para a superfície. Tais alterações são bem detectadas
número de LIE em biopsias gástricas de pacientes não trata­ à microscopia eletrônica. Justifica-se, então, a diminuição de
dos (30%), concluindo-se haver reação imunológica anormal enzimas situadas na borda estriada pelas alterações vistas nas
no estômago, semelhante à descrita nos outros segmentos do microvilosidades.
tubo digestivo. Não se verifica relação com a presença ou não As criptas apresentam-se em maior número, alongadas, ocu­
do Helicobacter pylori. pando quase toda a altura da mucosa. Seu epitélio está preser­
O dano produzido pelo glúten é mais intenso no duodeno vado, embora haja maior número de mitoses, justamente na
e jejuno proximal. Entretanto, ao infundir-se glúten no üeo de tentativa de repor as células das vilosidades em intenso ritmo
celíacos previamente tratados, a lesão é imediata e localizada, de esfoliaçâo.
confirmando a ideia de lesão local direta no local de máxima As células de Paneth e caliciformes são referidas como em
exposição. número normal, parecendo haver hiperplasia das células en-
A mucosa retal pode apresentar alterações discretas, não es­ dócrinas e indiferenciadas.
pecíficas, em alguns pacientes celíacos, com aumento evidente Muitos autores assinalam aumento importante no número de
dos LIE e leucócitos polimorfonucleares na mucosa. Isso evi­ LIE na mucosa de celíacos não tratados. Segundo Kotze (1988),
dencia o papel do agente agressor também na mucosa retal. para cada 100 células epiteliais foi encontrada média de 45 LIE
(45%) e, nos controles, 24 (24%) (Figuras 30.5 e 30.12A). A
■ Anatom ia patológica contagem do número de LIE continua de importância prática,
Nos celíacos não tratados, percebe-se, à estereoscopiaymuco­ e a maior densidade destes linfócitos fica no topo das vilosida­
sa lisa e com orifícios que correspondem à abertura das criptas; des, servindo de marcador funcional de sensibilidade ao glú­
ou aspecto cerebriforme ou em mosaico. ten, principalmente nas biopsias com arquitetura preservada
A mucosa do intestino delgado é a que apresenta alterações (normais). É método relativamente rápido que pode ser feito
importantes, sendo as outras camadas habitualmente normais em amostras das preparações rotineiras (hematoxilina-eosina),
à histologia. pois correspondem às contagens de LIE yÒ que requerem amos­
Atrofia de mucosa está presente em 85% dos pacientes com tras congeladas e maior tecnologia.
DC e a atrofia total é muito mais frequente no duodeno distai A clássica infiltração de células T não seria devida a um au­
ou no jejuno proximal. Em 50% dos casos, há atrofia vilositária mento no número destas células, mas sim a um aumento apa­
idêntica ao longo do duodeno e não existem áreas duodenais rente associado a uma diminuição relativa do número de enteró-
histologicamente normais. Assim, em indivíduos geneticamen­ citos como resultado de alterações na arquitetura da mucosa.
te predispostos com sorologia positiva, o diagnóstico de DC Na lâmina própria, há intenso infiltrado inflamatório
pode ser feito mesmo com biopsias não tomadas do duodeno constituído principalmente por linfócitos e células plasmáticas
distai ou do jejuno. produtoras de imunoglobulinas. As células produtoras de IgA
O desenvolvimento da enteropatia por sensibilidade ao podem estar normais, aumentadas ou diminuídas nos celíacos
glúten é um processo dinâmico em que o dano da mucosa se não tratados; alguns referem aumento das produtoras de IgG;
desenvolve em três fases subsequentes: a) fase infiltrativa, ca­ assinala-se predomínio das de IgM e não se descrevem altera­
racterizada somente por aumento do número dos LIE; b) fase ções significativas em relação às células contendo IgD e IgE.
hiperplástica, caracterizada por hipertrofia de criptas; c) fase Numerosos eosinófilos são observados na mucosa de pacien­
destrutiva, na qual há progressiva atrofia das vilosidades, che­ tes com DC ativa e liberam proteínas citotóxicas, como a proteí­
gando no final ao achatamento da mucosa. na básica maior, que podem contribuir para o dano mucoso.
Alguns pacientes, crianças ou adultos, podem apresentar Comprovou-se a existência de DC em pacientes com mucosa
lesões no duodeno de distribuição focal (patchy); lesões com intestinal normal à histologia e que apresentam anticorpos posi­
atrofia total podem estar adjacentes ou coexistir com atrofia tivos e aumento do número de LJE. Kotze et al. (2001) demons­
leve ou parcial e, possivelmente, com áreas normais! traram tal fato em familiares de pacientes celíacos.
304 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

Figura 30.10 Classificação de Marsh para os achados histopatológicos na doença celíaca. (Esta figura encontra-se reproduzida enn cores no
Encarte.)

-------------------------------------------- ▼--------------------------------------------
Q u a d ro 30.3 Classificação de Marsh para lesões da mucosa entérica na doença celíaca

Tip o L IE % Criptas Vilosidades Aspecto

0 <24 N o r m a is N o r m a is M u c o s a n o r m a l; D C im p r o v á v e l

1 >24 N o r m a is N o r m a is L e s á o in filtra tiv a , D C e p ro g re s s ã o a o 3

2 >24 H ip e rp lá s tic a s N o r m a is L e s ã o h ip e rp lá s tic a ; p o d e in d ic a r D C

3a >24 H ip e rp lá s tic a s A tro fia le v e Le sá o d e s tru tiv a ; e s p e c tro d e a lte ra ç õ e s c a ra c te rís tica s d e D C
n ã o tra ta d a ; p a c ie n te s p o d e m ser o u n ã o s in to m á tic o s
3b >24 H ip e rp lá s tic a s A tro fia g r a v e

3c >24 H ip e rp lá s tic a s A u s e n te s

Classificação Marsh-Oberhuber, adaptada por Kotze, 1988.


Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 305

, l/TTTTTl

IV

Figura 30.11 Classificação de Barbieri e t a l. para os achados histopa-


tológicos nas afecçôes do intestino delgado proximal.

Após suspensão do glúten da dieta, a recuperação começa


imediatamente, mas vilosidades digitiformes podem demorar
meses para aparecer (Figura 30.12). É possível o retorno da
mucosa ao normal ou quase ao normal com dietas rigorosa­
mente isentas de glúten, porém o tempo necessário para que
isso ocorra tem sido descrito como diferente e longo para os
diversos autores.
Figura 30.12 Histologia da mucosa entérica na doença celíaca. A,
Se o tempo para recuperação da mucosa após dieta sem glú­ Padrão celíaco com atrofia de vilosidades, hiperplasia de criptas e au­
ten é variável, também o é a recidiva de alterações depois da mento do número de linfócitos intraepiteliais. B. Mucosa em recupe­
sua reintrodução. Pode haver recidiva histológica em pacientes ração, após dieta isenta de glúten. (Esta figura encontra-se reproduzida
assintomáticos, porém o intervalo de 2 ou mais anos é aceito em cores no Encarte.)
como necessário para a ressensibilização de um indivíduo po­
tencialmente sensibilizado. Nas biopsias sequenciais, notam-
se, já nas primeiras horas de contato com o glúten, infiltração
celular, edema, hipertrofia das células endoteliais e aumento b) se persistir sem tratamento, pode regredir parcialmente
dos LIE. O pico de maiores alterações se dá nas primeiras 96 h, na adolescência; não é comum apresentar-se pela primeira
com dano aos enterócitos, seguindo-se encurtamento das vi­ vez nesta fase, a não ser que haja fator desencadeante;
losidades. c) pode aparecer ou reaparecer na idade adulta, geralmente
na terceira ou na quarta década, principalmente durante
■ Quadro clínico gestações;
O quadro clínico na DC varia muito, dependendo da gravi­ d) pode surgir na idade adulta ou geriátrica, desencadeada
dade e extensão das lesões, bem como da idade do paciente (Fi­ ou não por algum fator, como cirurgias, infecções etc.
gura 30.13A a E). Podem-se encontrar desde sinais e sintomas De modo geral, sabe-se que os sintomas e sinais variam de
de má absorção de apenas um nutriente (anemia, por exemplo); acordo com a idade e com o tempo de exposição ao glúten.
ou pandisabsorção, com repercussões graves à nutrição do indi­ Pensa-se que se correlacionam mais diretamente com a exten­
víduo e ameaça à sua vida. Considerar que em países familiari­ são do comprometimento do que com a gravidade da lesão em
zados com a DC a apresentação clássica com má absorção grave qualquer segmento do tubo digestório.
e caquexia, descrita nos livros-texto, está cada vez mais rara.
Diarréia. Varia de intensidade de caso a caso, dependendo
Os médicos devem lembrar-se deste diagnóstico ao atenderem
do comprometimento intestinal. As fezes podem ser aquosas
pacientes com dispepsia e/ou síndrome do intestino irritável; ou
ou pastosas, volumosas, descoradas ou acinzentadas, oleosas
os especialistas em outras doenças autoimunes.
ou espumosas, fétidas, flutuando ou não na água. Se intensa,
O Quadro 30.4 sintetiza os efeitos do comprometimento dos
leva à desidratação ou a distúrbios do equilíbrio ácido-básico,
principais nutrientes e suas manifestações clínicas. principalmente nas crianças de baixa idade. A imensa maio­
A DC pode ser diagnosticada em qualquer época da vida e
ria dos celíacos tem diarréia, mas pode ocorrer constipação
se desenvolve em ciclos:
intestinal.
a) pode surgir no lactente, relacionando-se com a época do Emagrecimento. Também depende da gravidade e extensão
desmame e/ou introdução de cereais na alimentação; das lesões, reflete a má absorção, dependendo não só das áreas
306 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

T --------------------------------------------------------------------------------------
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q uadro 3 0 .4 Efeitos do comprometimento dos principais nutrientes: aspectos clínicos, laboratoriais e mecanismos envolvidos

D ados d ín íco s D ados de exam es M e canism os

P e rd a m u s c u la r < A lb u m in a sérica A lte r a ç ã o m e t a b o lis m o

B aixa e sta tu ra P ro te ic o

Edem a A b s o r ç á o e in g e s tá o

D o re s ósseas R aios X d e s m in e r a liz a ç á o óssea P e rd a p ro te ic a e n té ric a

Fra tu ra s

D e f o r m id a d e e s q u e lé tic a D e n s it o m e t ria óssea a lte ra d a

Parestesias < C á lc io s é ric o A lte ra ç ã o a b s o rç á o d e C a e v it a m in a D


T e ta n ia O s te o m a la c ia

P e rd a d e p e s o E s te a to rre ia A lte r a ç ã o na a b s o r ç á o e p e rd a d e g o r d u r a e v ita m in a s


Fe ze s c lara s e v o lu m o s a s < C o le s te ro l li p o s s o lú v e is e C a

S a n g r a m e n t o , e q u im o s e <TA P A lte r a ç ã o a b s o rç á o v it a m in a K

P arestesias M a c ro c ito s e A lte r a ç ã o a b s o rç á o v it a m in a B ,j

N e u r o p a tia < V ita m in a B u , m e g a lo b la s to s

G lo s s ite < F o la to s A lte r a ç ã o a b s o rç á o d e á c id o fó lic o

A n e m ia M íc ro c ito s e h ip o c r o m ia A lte r a ç ã o a b s o rç á o d e Fe

F ra q u e z a , te ta n ia , p a restesia s < M g s é ric o A lte ra ç ã o a b s o rç á o d e M g

D e s id ra ta ç ã o , n ic tú ria < V o lu m e p la s m á tic o A lte r a ç ã o m e t a b o lis m o á g u a

C á ib r a s .a r r itm ia s < N a sé ric o A lte r a ç ã o m e t a b o lis m o s ó d io

F ra q u e z a m u s c u la r < K s é ric o A lte r a ç ã o m e t a b o lis m o p o tá s s io


A lte ra ç õ e s E C G

Q u e ilite , n e u rite , g lo s s ite > T r i p t o f a n o u r in á r io A lte r a ç ã o a b s o rç á o c o m p le x o B

D is te n s ã o a b d o m in a l A c h a t a m e n t o c u rv a A lte r a ç ã o na h id ró lis e e a b s o rç á o d e h id ra to s d e
D ia rré ia , fla t u lé n d a G lic é m ic a c o m la cto se , s a ca ro se o u m a lto s e c a rb o n o

íntegras que compensarão a absorção dos nutrientes, como As alterações metabólicas que ocorrem na DC devido à má
também da própria redução da ingestão alimentar do pacien­ absorção de nutrientes, teoricamente, podem atingir qualquer
te (Figura 30.13B a E). Quando há edema, o emagrecimento dos sistemas, daí entender-se por que alguns celíacos se apre­
pode estar mascarado (Figura 30.13F). Em crianças, a incapa­ sentam com sintomas extraintestinais.
cidade de ganho ponderai e atraso no crescimento tornam-se Como os sintomas, os sinais encontrados variam de caso a
muito evidentes. caso, não sendo específicos de DC. Quando a lesão é discreta
O estado nutricional pode agravar-se mais ainda devido à e limitada ao intestino delgado proximal, o exame físico pode
anorexia que muitos pacientes apresentam. Outros têm apetite ser normal ou refletir discreta anemia. Já nos casos graves, evi­
normal ou, mais raramente, hiperfagia. dencia-se grave desnutrição (Figura 30.13).
Fraqueza, Cansaço e Fadiga. Relacionam-se com o estado No exame do paciente celíaco, podem ser observados: hi-
nutricional dos pacientes, que cansam ao executar tarefas ha­ potensão; emaciação, diminuição da massa muscular e do pa-
bituais. As crianças escolhem brincadeiras calmas ou até param nículo adiposo; unhas em vidro de relógio; pele seca e turgor
de brincar. A anemia e a insuficiência suprarrenal podem con­ diminuído; edema de extremidades; pigmentação de pele; equi-
tribuir para estes sintomas, bem como a hipopotassemia. moses; palidez de pele e mucosas; queilite e glossite, língua
Dor Abdominal. Não é frequente e, se presente, sua locali­ despapilada; abdome protuberante e timpânico, com alças pal­
zação corresponde ao intestino delgado. páveis; raramente hepatoesplenomegalia ou ascite; sinais de
Distensão Abdominal. Constitui-se em queixa comum, pode neuropatia periférica com alterações de sensibilidade; sinais
ser a primeira manifestação da doença e chega a caracterizar o de Chvostek ou Trousseau etc. Os achados vão depender do
que, no exame físico, se conhece como hábito celíaco. nutriente comprometido (Quadro 30.4).
Náuseas e Vômito. São encontrados com menor frequência. O modo de apresentação da DC difere com a idade: mais
Distúrbios Psicoafetivos. Os fatores implicados seriam alte­ exuberante na criança e mais discreta no adulto. Raramente, se
rações nas rotas metabólicas da 5-hidroxitriptamina, dopami- apresenta por complicação, como perfuração ou linfoma.
na e norepinefrina, com papel importante na patogênese da Se o início for mais insidioso, os pacientes procuram mais
depressão. Em crianças celíacas, encontram-se irritabilidade, tardiamente o médico, Já com comprometimento do estado
modificações de comportamento e de humor, consideradas si­ nutricional, podendo chegar à caquexia. Muitos só solicitam
nais equivalentes à depressão. Transtornos caracterizados por atendimento quando há intercorrências ou piora acentuada.
ansiedade podem fazer parte do quadro clínico da DC. Even­ Outros podem apresentar-se em estado relativamente bom,
tualmente, os distúrbios apontados podem ser tão graves que com sintomas nem sempre relacionados com o aparelho diges­
necessitem de medicações e/ou psicoterapia. Há correlação di­ tivo, sendo atendidos em outros serviços e nem sempre diag­
reta entre o início dos sintomas e a demora no diagnóstico. nosticados corretamente. Por exemplo, baixa estatura, fraturas,
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 307

Figura 30.13 Apresentações clínicas da doença celíaca. A, Paciente obesa, com dispepsia. B, Paciente desnutrida e com diabetes. C, Paciente
com hipotireoidismo, desnutrição e língua despapilada. D, Paciente com hipotireoidismo, desnutrição e língua despapilada após tratamento
para câncer de mama. E, Graves alterações do sistema musculoesquelético em paciente idosa. F, Desnutrição e edema de membros inferiores
no puerpério do primeiro parto em paciente de 22 anos de idade. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
308 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

infertilidade, déficit de desenvolvimento etc. Podem recorrer e) Endocrinológicos: baixa estatura, atraso de desenvolvi­
a atendimento neurológico e até psiquiátrico. mento sexual.
Várias formas de apresentação da DC podem surgir na clí­ f) Neuropsiquiátricos: irritabilidade, choro fácil, ansiedade,
nica, sendo comparadas com um iceberg: só as sintomáticas depressão, tentativa de suicídio; degeneração cerebroes-
seriam a porção visível desse iceberg. pinal, neuropatia periférica, ataxia.
g) Metabólicos: cãibras, diurese noturna, parestesias, tetania.
a) Forma clássica: decorrente da má absorção de nutrientes,
h) Hematológicos: anemia, hematomas, sangramento.
com quadro de diarréia crônica e desnutrição; encon­
i) Tegumentares: alterações nos cabelos, edema, hemato­
trada tanto em crianças como em adultos. Na criança, a
mas, lesões pruriginosas, lesões bolhosas, pigmentação
distensão abdominal e a intensa redução de massa glútea
de pele, poiquiloníquia, rashes.
são dados que chamam a atenção;
b) Forma não clássica: também denominada forma atípica ■ DCno idoso
que pode ser de dois tipos. Um tipo chamado de atípico
Anteriormente, a DC era considerada rara no idoso, mas,
digestivo com sintomas digestivos mais discretos ou com
com o aumento da longevidade, chega a 27% dos casos de DC
constipação intestinal, e um segundo tipo chamado de
diagnosticada em adultos, embora com grande intervalo entre
atípico extradigestivo com sintomas como baixa estatura,
os sintomas e o correto diagnóstico. Estudo recente na Fin­
anemia, tetania etc.
lândia mostrou prevalência superior à da população geral em
c) Forma latente: em indivíduos com biopsia intestinal nor­ adultos entre 52 e 74 anos (2,7%). Alguns autores informam
mal frente ao consumo habitual de glúten e que, anterior
que a resposta à dieta isenta de glúten é pior do que nos adul­
ou posteriormente, desenvolvem atrofia parcial ou total tos, porém esta não é a experiência da autora que obteve exce­
de vilosidades, retornando novamente ao normal após
lente recuperação de celíacos diagnosticados após os 60 anos
isenção do glúten da dieta;
de idade.
d) Forma assintomática: ocorre entre familiares de celíacos
com anticorpos positivos no soro, com alterações histo- ■ Transição clínica
lógicas mais ou menos graves, mas número aumentado
Muitos pacientes diagnosticados como celíacos na infância
de LIE, revertendo com dieta isenta de glúten.
não recebem orientação médica ou supervisão alimentar após
Alguns autores preferem dividir as formas de apresentação transição para a idade adulta. Cerca de 1/3 não obedece à die­
da DC segundo o Quadro 30.5. ta. O principal motivo para os que aderem à dieta é evitar sin­
Para orientação didática e prática, seguem-se sintomas e tomas mais do que medo de complicações. A prevalência dos
sinais clínicos de DC relacionados com os diversos aparelhos distúrbios preveníveis e tratáveis nos adultos jovens mostra a
e sistemas, seja como manifestações isoladas seja como parte falha nos serviços de saúde após a transição da faixa pediátrica
do mosaico clínico dos pacientes. para os atendimentos para adultos.
Como se deduz, a DC pode cursar com qualquer sintoma
a) Gerais: anorexia, cansaço, emagrecimento, fraqueza, hi-
ou sinal, tornando muitas vezes difícil o diagnóstico. Também
perfagia, mal-estar; baixa estatura, construção delgada,
deve-se considerar a ocorrência de doenças associadas.
desgaste físico, febrícula, hipotensão.
b) Digestivos: dispepsia, distensão abdominal, flatulência, ■ Doenças associadas
fezes gordurosas, náuseas, vômitos, dor abdominal, diar­
Numerosas condições têm sido relatadas com DC, tanto
réia, constipação intestinal; abdome escavado ou globo-
em crianças como em adultos. Geralmente, são afecções com
so, aftas, alças intestinais palpáveis, alterações da língua,
envolvimento de mecanismos autoimunes e/ou ligadas a an-
aumento de ruídos hidroáereos, peristalse visível (Figura
tígenos do sistema HLA. Por ordem alfabética, destacam-se:
30.13A, C e D).
acidose tubular renal, alergia alimentar, alveolite fibrosante,
c) Musculoesqueléticos: artralgia, dor óssea, miopatia pro-
artrite reumatoide, asma e atopia, câncer (do intestino delga­
ximal; alterações da marcha, artrite, deformidades ósseas do, do esôfago e da faringe), cirrose biliar primária, coarctação
(Figura 30.13E), osteomalacia, raquitismo.
da aorta, deficiência de IgA, diabetes melito (Figura 30.13B),
d) Gineco-obstétricos: amenorreia secundária, atraso na me-
doença de Addison, doenças da tireoide (Figura 30.13C e D),
narca, aumento de abortamentos, diminuição da fertili­
epilepsia com calcificações cerebrais, fibrose cística, hemos-
dade, menopausa precoce, podendo ocorrer no puerpério siderose pulmonar, linfoma, lúpus eritematoso disseminado,
(Figura 30.13F); oligospermia, diminuição de caracteres pancreatite crônica, poliomiosite, psoríase, síndrome de Down,
sexuais secundários, diminuição do sêmen, hipogona- síndrome de Sjõgren, síndrome de Turner, síndrome de Williams
dismo. e síndrome do intestino irritável.
O quadro clínico pode ser um mosaico entre os sintomas e
sinais da DC e da entidade associada. O diagnóstico de ambas
T será feito conforme a natureza da comorbidade.
Q u a d ro 30.5 Tipos de doença celíaca ■ Dermatopatias
Na DC pode haver alterações mucocutâneas consequentes à
T ip o S in to m a s An ticorp os En te ro p a tia Ge né tica
má absorção de nutrientes (estomatite, glossite, lesões eritema-
Clássica + + + + tosas e erosivas etc.), mas eczema, dermatite seborreia, psoríase,
P o te n c ia l - - - + ictiose e outras têm sido descritos.
S ile n c io sa - + + + Dermatite herpetiforme (DH) não é considerada como “as­
L a te n te a n te s + + - +
sociação”, mas manifestação dermatológica da doença por sen­
L a te n te a tu a l - - + +
sibilidade ao glúten. Assim, pode preceder os sinais e sintomas
de DC, ou surgir após alguns anos do diagnóstico da doença
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 309

intestinal. A DC e a DH podem aparecer em uma mesma fa­ outro lado, o controle metabólico do diabetes melhora, dimi­
mília. Sua relação é com o mesmo fenótipo de antígenos HLA nuindo o número de hipoglicemias graves.
de classe II, mostrando 90% dos pacientes positividade para Existem controvérsias quanto ao emprego dos marcadores
HLA-DQ2 e os outros restantes HLA DQ8. Pode ou não haver sorológicos, mas atualmente se recomenda que sejam utilizados
lesões intestinais, mas a autora recomenda biopsia em todos os ao diagnóstico do diabetes, anualmente nos 3 anos seguintes
casos, além da determinação dos autoanticorpos. e depois a cada 5 anos ou se houver suspeita de DC. Deve-se,
As lesões são placas urticariformes e vesículas altamente também, realizar rastreamento para DC nos familiares de pri­
pruriginosas de distribuição simétrica, predominando em áreas meiro grau dos pacientes diabéticos, porque apresentam DC
de extensão dos joelhos, cotovelos, dorso e glútea, podendo ser assintomática.
esparsas por todo o organismo (Figura 30.14). O dado mais
valioso para o diagnóstico é a demonstração de depósitos gra­ ■ Doenças da tireoide
nulosos de IgA na derme superior de qualquer ponto do tegu- A doença autoimune da tireoide engloba um conjunto de
mento, através de imunofluorescência direta. O tratamento é alterações tireoideanas com características imunológicas co­
a supressão do glúten e o uso de sulfona VO. A determinação muns e origem etiopatogênica semelhante, mesmo que funcio­
dos anticorpos EmA e antitTG é útil tanto para o diagnóstico nalmente haja eutireoidismo ou hipotireoidismo (tireoidite de
como para a monitoramento da dieta. Hashimoto) ou hiperfunção (Graves-Basedow). A etiologia é
Psoríase tem sido associada à DC, e a DIG pode melhorar desconhecida, há associação com certos haplotipos HLA (DR3-
o quadro clínico. DQ2) ou outros (Figura 30.13C e D)
Alopecia areata tem sido encontrada em 2% dos celíacos. Cerca de 5% dos pacientes com DC podem sofrer hiper ou
A dieta isenta de glúten pode produzir crescimento de pelos hipotireoidismo, e em 14% há doença autoimune na idade in­
em alguns pacientes. fantil. A DC pode ser silenciosa e os marcadores sorológicos
ajudam no diagnóstico. No Brasil, Kotze et al. (2006) encon­
■ Endocrinopatias traram 32% de anticorpos antiperoxidase em pacientes celía­
■ Diabetes melito tipo I cos. Assim, recomenda-se rastreamento para DC em todos os
É uma entidade caracterizada por uma autorresposta contra pacientes com doenças autoimunes da tireoide e vice-versa.
as ilhotas de Langerhans do pâncreas que culmina com a des­ A dieta isenta de glúten tem efeito sobre a glândula e também
truição das células beta. A sua prevalência estimada, na idade sobre a absorção das drogas utilizadas para o tratamento.
pediátrica, é de 1/1.000. As publicações apontam 0,97 a 16,4% Como a suspeita clínica de hipotireoidismo pode ser mas­
de DC em pacientes diabéticos tipo I, aumentando com a idade. carada por quadro de má absorção, recomenda-se determi­
Os testes sorológicos devem ser realizados nos diabéticos, pois nação da função tireoideana, anticorpos antitireoglobulina e
pode haver DC silenciosa e seu tratamento evita o desenvol­ antimicrossomais, de maneira seriada, nos pacientes celíacos,
vimento de processos associados e outras comorbidades. Por principalmente nos refratários ao tratamento.

Figura 30.14 Dermatite herpetiforme. A, Lesões bolhosas e vesículas disseminadas. B, Lesões em áreas de extensáo de cotovelos e joelhos,
locais de maior prevalência das alterações, antes e depois do uso de dapsona. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
310 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

■ Doença de Addison tervalo médio de 21 anos, variando sua incidência global de 6


Cerca de 12,5% dos pacientes com doença de Addison de a 10%. A constatação de complicação maligna é difícil; assim,
origem autoimune apresentam DC. qualquer modificação no quadro clínico faz com que o paciente
deva ser reavaliado. Kotze (2009) refere dois casos de linfomas
■ Doenças neurológicas tipo B em 157 adultos com DC.
Há anos se estabelece uma relação entre DC e diversas al­ Atualmente, aceita-se que a dieta rigorosamente isenta de
terações neurológicas, embora a natureza desta relação seja glúten possa proteger o paciente do desenvolvimento de doen­
desconhecida. Já foram aventadas várias hipóteses implicando ça maligna.
piridoxina e vitamina E, entre outras. Os linfomas associadas à DC são heterogêneos e seu diagnós­
A ataxia tem sido muito enfatizada, tanto que atualmente se tico é difícil. O linfoma associado à enteropatia por células T é
é obrigado a descartar DC em todo paciente com ataxia crônica a mais frequente, agressiva e fatal complicação da DC, porém
de origem indeterminada. não é raro observar a associação com linfomas de células B. A
A presença de epilepsia em pacientes celíacos tem sido en­ quimioterapia é altamente tóxica para estes pacientes. Apesar
fatizada, bem como calcificações occipitais. Estudos recentes do mau prognóstico, sobrevivência longa pode ser obtida em
têm demonstrado alterações na substância branca cerebral, por alguns doentes.
ressonância magnética, em celíacos jovens.
Há aumento de prevalência de cefaleia do tipo migranoso ■ Diagnóstico
(enxaqueca) ou tensional. Fatores bioquímicos, tais como di­ ■ Diagnóstico clínico
minuição da serotonina plasmática, presente tanto na DC como
Uma anamnese detalhada, junto a exame físico cuidadoso
na enxaqueca, poderiam explicar as alterações.
e dados objetivos de exames laboratoriais, leva à suspeita de
DC. Entretanto, o conhecimento das diferentes formas clí­
■ Deficiências imunológicas
nicas da afecção (atípica, silenciosa, latente, potencial) veio
A deficiência seletiva de IgA é 10 vezes maior nos celíacos
demonstrar que um diagnóstico exclusivamente clínico não
do que na população geral. Existem famílias com tal déficit. A
é viável na DC.
DC nestes pacientes é semelhante à dos que têm níveis normais
No Brasil, a coexistência de outras enteropatias ligadas, so­
de IgA. A importância prática é no rastreamento, pois em tais
indivíduos devem ser determinados os autoanticorpos da classe bretudo, à desnutrição e às parasitoses mascara as manifestações
típicas da afecção. Portanto, é possível que, entre as inúmeras
IgG (EmA-IgG e antitTG-IgG).
observações de diarréias persistentes, a DC esteja envolvida.
■ Hepatopatias Não se deve esquecer, porém, que sinais ou sintomas extradi-
São descritas associações entre DC e cirrose biliar primária gestivos podem chamar a atenção para outro sistema ou apa­
pela prevalência, em ambas, de HLA B8; entre DC e hepati­ relho, desviando o raciocínio do médico.
te autoimune, bem como entre DC e hipertransaminasemia,
■ Exames laboratoriais de rotina
que costuma normalizar-se ao longo do tratamento com dieta
isenta de glúten. Na investigação do paciente celíaco, não há necessidade de
se realizarem todas as provas bioquímicas. Devem ser realizados
■ Doenças inflam atórias intestinais apenas os exames compatíveis com o que apresenta o doente e
Embora tenham sido publicados relatos de casos de doenças como base para as reposições no tratamento inicial.
inflamatórias intestinais com DC, não se pode estabelecer ain­ A determinação do tempo de atividade de protrom bina
da uma associação. Os anticorpos antiendomísio são negativos (TAP) ou demais exames de estudo de coagulação podem ser
nestas afecções, como demonstrado por Utiyama et al. (2001), realizados antes da biopsia, quando pertinente.
enquanto o pANCA (anticorpo citoplasmático antineutrófilo
padrão perinuclear) se mostrou negativo na DC. Recentemente, ■ Provas de absorçãointestinal
Theiss et al. (2010), do grupo das autoras, constataram 11,1% As provas de absorção intestinal, disponíveis na grande
de positividade para o antitTG em um estudo com 36 pacientes maioria dos centros brasileiros, restringem-se à prova da d -
com doença de Crohn, demonstrando relação com a presença xilose e à determinação da gordura fecal. Estas provas indicam
de lesão tecidual grave nesta afecção. má absorção intestinal e costumam estar alteradas nos celía­
cos, mas há casos em que uma ou as duas podem estar normais,
■ Síndrom e poliglandular autoim une não afastando o diagnóstico que será sugerido pelos testes so-
Esta síndrome do tipo II foi relatada com DC. Aparece na rológicos e confirmado por biopsia. As alterações verificadas
idade adulta, associa-se aos haplotipos DR3, B8 e DR4. Mais nestas provas gradualmente voltam ao normal após a retirada
frequentemente, os pacientes têm diabetes tipo I. As outras do glúten, mesmo com demora na recuperação histológica da
manifestações são de doença de Addison, doenças tireoideanas mucosa.
autoimunes, miastenia gravis, hipogonadismo primário, vitili- Teste de absorção de lactulose/manitol pode ser feito devido
go, anemia perniciosa. à premissa de que, quando há alteração na mucosa do intes­
tino delgado, há alteração na permeabilidade. Assim, a absor­
■ Complicações da DC ção passiva de moléculas maiores que 0,5 nm (lactulose, por
Complicações do tipo perfuração são raramente descritas. exemplo) está aumentada por edema, inflamação e atrofia vilo-
Entretanto, o potencial de malignidade é maior do que na po­ sitária, enquanto a absorção de moléculas menores que 0,5 nm
pulação geral, tanto para neoplasias intestinais, como para ex- (manitol, por exemplo) não muda nem diminui. Os testes que
traintestinais. Carcinomas (mais no esôfago) e linfomas pode­ usam tais substâncias podem ser úteis no diagnóstico diferencial
riam ser relacionados com a insuficiência imunológica da DC entre DC e controles normais. Entretanto, sua especificidade e
e a maior permeabilidade da mucosa a agentes oncogênicos. sensibilidade não são altas. Servem também para monitorar a
Há evidência de que a DC precede a doença maligna com in­ aderência à dieta isenta de glúten.
C a p ítu lo 3 0 / D o e n ç a C e lía ca e O u tro s D istú rb io s n a A b so rç ã o d e N u trie n te s 311

■ Determinaçãosorológica deanticorpos de fácil obtenção e com qualidades semelhantes à do esôfago


São testes não invasivos que devem ser feitos após determina­ de macaco. O cordão umbilical é rico em fibrilas de reticulina
ção dos níveis séricos de imunoglobulinas, pois cerca de 12% dos (endomísio) contornando as fibras de músculo liso na parede
celíacos apresentam também deficiência de IgA e poderão ter da veia e das duas artérias umbilicais, e permite a detecção dos
resultados falso-negativos. Nestes casos, haverá necessidade de anticorpos EmA-IgA com segurança, por imunofluorescência
se realizarem testes com IgG (EmA-IgG e/ou antitTG-lgG). indireta (Figura 30.15).
► ANTICO RPO S ANTIGLIADINA. Os anticorpos antigliadina O resultado do EmA-IgA é fornecido como negativo ou po­
(AGA) são dirigidos contra a proteína do cereal absorvida pela sitivo, seguido do título de anticorpos detectado, que é definido
mucosa intestinal. São predominantemente das classes IgA e como a mais alta diluição com imunofluorescência presente.
IgG, detectados por meio de técnica imunoenzimática (ELISA). O EmA-IgA constitui um dos testes mais específicos no au­
Apresentam sensibilidade (50 a 60%) e especificidade (60 a 70%) xílio diagnóstico da DC e no monitoramento da adesão da dieta
reduzidas para o diagnóstico da DC. Cada laboratório fornece sem glúten. Kotze etal. (2001) encontraram 100% de sensibili­
seus valores de referência de acordo com o kit utilizado. Es­ dade e 99,3% de especificidade em celíacos brasileiros. O teste
ses anticorpos podem também ser detectados em indivíduos é excelente ainda no rastreamento de familiares de pacientes,
normais, em outras doenças autoimunes, alergia alimentar, conforme referido por Utiyama et al. (2007) e Nass et a l (2008),
infecções e parasitoses intestinais. O valor preditivo dos AGA nas formas atípicas da doença; na detecção de DC como comor-
diminui gradativamente a partir dos 2 anos de idade, podendo bidade de outras doenças autoimunes, demonstrado por Kotze
inclusive negativar-se, apesar de a mucosa estar alterada. Por (2009) e Baptista et al. (2005), bem como em doenças genéticas
outro lado, na população sadia, parece aumentar a positividade como na síndrome de Down, segundo Nisihara et al. (2005). A
para o AGA com a idade. Figura 30.1 reflete tais informações e a experiência do grupo
As concentrações de AGA-IgA reduzem rapidamente com das autoras na detecção clínico-laboratorial da DC.
a dieta sem glúten e voltam a se elevar após um curto interva­ O EmA-IgA apresenta excelente correlação com a gravidade
lo de ingesta de glúten, sendo então marcadores mais úteis no de lesão da mucosa intestinal, principalmente em títulos altos de
controle da dieta. anticorpos (acima de 1:10), conforme demonstrado por Kotze
Por sua vez, os AGA-IgG, depois da retirada do glúten, re­ et al. (2003). Para baixos títulos, os autores detectaram melhor
duzem de valores, apesar de permanecerem sempre em níveis relação do EmA-IgA com o grau de lesão do que o antitTG.
superiores ao normal. ► ANTICORPOS ANTITRANSGLUTAM INASE. Dieterich et al.,
O consenso atual é de que anticorpos AGA são mais indicados em 1997, foram os primeiros autores a descrever a presen­
para crianças até 2 anos de idade e níveis normais do mesmo ça de anticorpos contra a enzima transglutaminase tecidual
não excluem o diagnóstico de DC. 2 (antitTG, ou antiTG-2) na DC. De acordo com os autores,
Mais recentemente, a utilização de kits de antigliadina desa- a tTG é o principal, senão o único, autoantígeno endomisial
minada em testes sorológicos tem-se revelado como um novo alvo envolvido no processo autoimune da DC, o que permitiu
instrumento na detecção da DC, porém não se mostra neces­ esclarecer os principais aspectos da fisiopatogenia da doença,
sariamente melhor do que o antitTG. além de transformar a pesquisa dos anticorpos antitTG-IgA
► ANTICORPOS ANTIENDOMÍSIO. Anticorpos antiendomísio em grande avanço diagnóstico. O uso do método ELISA na
são principalmente da classe IgA (EmA IgA) e reagem con­ investigação desses anticorpos tornou-o acessível aos diversos
tra a substância que envolve as miofibrilas da musculatura lisa laboratórios, possibilitando estudos em larga escala. Cada la­
(endomísio) dos primatas, a qual pode corresponder a uma boratório fornece os valores de referência, dependendo do kit
estrutura semelhante à da reticulina ou à de um componente comercial utilizado.
da superfície das miofibrilas. A primeira geração de testes para pesquisa de antitTG apre­
Os EmA são detectados no soro dos indivíduos por méto­ sentava como substrato tTG extraída de fígado de cobaia (gui-
do de imunofluorescência indireta, e grande parte dos estudos nea pig), sendo menos sensível e específica quando comparada
usava inicialmente cortes criostáticos de esôfago de macaco aos novos testes, que atualmente utilizam tTG humana como
como substrato. Porém, pela dificuldade na obtenção de es­ substrato.
pécimes desse tecido, estudos permitiram a identificação do Em tecidos lesados, os níveis de tTG se elevam, o que pode
cordão umbilical humano como um substrato menos oneroso, levar a resultados positivos para o anticorpo antitTG em outras

Figura 30.15 imunofluorescência indireta para o anticorpo antiendomísio. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
312 C a p ítu lo 3 0 / D o e n ç a C e lía ca e O u tro s D istú rb io s n a A b so rç ã o d e N u trien tes

doenças sistêmicas ou gastrintestinais que não apenas a DC.


Esse aspecto corrobora a positividade de 11,1% para o anti tTG
detectada por Theiss et ai, do grupo das autoras, em pacientes
com doença de Crohn, na ausência de EmA-IgA positivo. Da­
dos semelhantes foram observados em pacientes diabéticos.
O EmA-IgA e antitTG, em altos títulos, correlacionam-se
bem entre si e com o grau de lesão da mucosa intestinal. Po­
rém, em pacientes com baixos níveis de anticorpos, o EmA-IgA
mostra-se superior nesta correlação. Nass (2008), através de
um seguimento sorológico de 8 a 10 anos em 233 familiares de
celíacos (61 famílias), na Região Sul do Brasil, demonstrou que
o emprego do EmA-IgA e antitTG concomitantes representa o
melhor instrumento de rastreamento da afecção nesses indiví­
duos, aliado a triagens repetidas periodicamente, independente
da ausência de sintomas.
Recentemente, lançou-se o Biocard celiac test™ que determi­ Figura 30.16 B io c o rd te st* demonstrando, em A resultado positivo
na anticorpos antitTG em sangue obtido da polpa digital (point- e, em B, resultado negativo. (Esta figura encontra-se reproduzida em
of-care testing). Utiliza tTG endógena encontrada em hemácias. cores no Encarte.)
Quando anticorpos específicos para tTG estão presentes no soro,
eles os reconhecem e formam complexos com a própria tTG li­
berada. Os complexos podem ser detectados em uma superfície pos devem diminuir na circulação, embora só venham a
sólida revestida por proteínas que capturam a tTG. Os comple­ negativar após 12 a 24 meses, variando de um indivíduo
xos antígeno-anticorpo podem ser vistos em reação colorida para outro. Sua elevação significa não aderência à dieta,
com a ajuda de uma solução IgA anti-humana (Figura 30.16). que deve ser reavaliada;
Na experiência de Kotze et al. pode ser realizada em ambulató­ • Nos pacientes com dúvida diagnóstica em que é feita a
rio, para indivíduos de qualquer idade, incluindo crianças. Os provocação com glúten (crianças até 2 anos de idade),
pacientes com suspeita de DC e os de grupos de risco (familiares, os anticorpos se elevam, podendo-se até dispensar no­
portadores de doenças autoimunes etc.), em poucos minutos, vas biopsias;
podem ser triados e encaminhados à biopsia intestinal. • Para rastreamento na população geral;
Por sua vez, a detecção do antitTG em saliva humana já se • No rastreamento em grupos de risco: familiares e por­
tornou viável. De acordo com Bonamico et a l (2008), tal en­ tadores de outras afecções autoimunes, bem como em
saio pode ser utilizado no monitoramento da adesão à dieta pacientes com síndrome de Down.
isenta de glúten, apresentando boa correlação com os níveis
Certamente, a realização simultânea de vários testes sempre
séricos do anticorpo.
será o ideal para rastreamento dos casos que deverão ser sub­
Ainda recentemente, foi demonstrado que anticorpos da metidos à biopsia intestinal.
classe IgA dirigidos contra a transglutaminase epidermal
► CORRELAÇÃO ENTRE OS TESTES SOROLÓGICOS E OS ACHA­
(tTG3) se apresentam elevados em pacientes com dermatite
DOS DE BIO PSIA IN TESTINAL. A correlação entre EmA IgA e
herpetiforme e adultos com DC, por Hull et al. (2008).
antitTG IgA não é total, sendo da preferência dos autores o
► RELEVÂNCIA CLÍNICA DOS TESTES SOROLÓGICOS. Em co n­
primeiro. O Quadro 30.6 corrobora tal acertiva.
clusão, os testes sorológicos são úteis:
Como demonstram Kotze et al. (2003) em pacientes com
• Para detecção de todas as formas de DC, seja em crianças, altos títulos de anticorpos, há excelente correlação entre EmA-
adultos ou familiares de celíacos; e também para esclare­ IgA e antitTG-IgA, sem risco de falso-negativos, com os dados
cimento de formas monossintomáticas; de biopsia. Entretanto, nos níveis baixos de anticorpos, os re­
• No monitoramento do tratamento, os testes são impor­ sultados do EmA-IgA são mais confiáveis e a combinação de
tantes, pois, após 3 meses de dieta sem glúten, os anticor- testes com biopsia está sempre recomendada. Destaca-se ainda

---------------------------------------------------------------- ▼--------------------------------------------------------------------
Q uadro 30 .6 Correlação entre anticorpos séricos e alterações da mucosa duodenal em pacientes celíacos*

N ú m e ro A n titT G Ig A Id ad e dos pacientes


(N = 4 7 ) E m A -Ig A títu lo s m é dia/va riação Biopsia d u o d e n a l m é dia/va riação

7 N e g a t iv o 8 ,1 4 (3 -1 5 ) 7 N 4 2 ,2 8 ( 1 1 -7 3 )

8 1/2,5 1 1 ,8 7 ( 2 -2 1 ) 8 N 4 7 ,7 5 (3 2 -7 1 )

4 1/5 4 1 ,5 0 (6 -1 0 0 ) 2 N , 1 AP, 1 A T 3 4 ,2 5 (2 1 -4 5 )

3 1/10 1 8 1 ,6 7 (6 5 -3 9 0 ) 3AT 4 6 ,3 3 (2 5 -6 5 )

9 1/20 3 5 6 ,3 3 (3 6 -6 4 0 ) 1 N M A P .7 A T 3 9 ,5 5 (3 -5 3 )

8 1/40 3 0 7 ,3 7 (9 1 -6 4 0 ) 8 A T* 3 1 ,1 2 ( 5 -6 0 )

8 1/80 4 3 2 ,7 5 (1 0 2 -6 4 0 ) 8AT 3 9 ,1 2 ( 1 8 -6 3 )

•Criança; N - norm al; AP = atrofia parcial; A T = atrofia total.


S egundo Kotze etal.
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 313

a correlação dos autoanticorpos e o grau de infiltração da mu- Têm muita importância clínica para monitorar a suplementa-
cosa intestinal pelos LIE. ção de cálcio e vitamina D no tratamento.
Somente dados da biopsia intestinal somados aos testes A densitometria óssea, que determina a densidade mineral
sorológicos positivos para DC permitem diagnóstico defini­ óssea, mostra níveis de osteopenia ou de osteoporose em pa­
tivo de DC! Segundo a WGO-OMGE Guidelines (Diretrizes cientes com ou sem ingestão de glúten e serve ainda para mo­
da Organização Mundial de Gastrenterologia), isto éo g o ld nitorar a reposição de cálcio e vitamina D. Deve ser realizada ao
standard! diagnóstico em todos os pacientes a partir de crianças maiores
► Sorologia positiva e histologia negativa. Rever ou re­ (Figura 30.17AeB).
petir a biopsia após 1 a 2 anos. Seguir o paciente.
► Sorologia positiva e histologia positiva. DC confir­ ■ Endoscopia ebiopsiaperoraldointestino delgado
mada. A biopsia do intestino delgado pode ser realizada através
► Sorologia negativa e histologia positiva. Considerar de cápsulas ou durante endoscopia digestiva alta. O que tem
outras causas de enteropatia. Se não encontrar, tratar como importância é o correto manejo do fragmento, para adequada
DC. Genotipagem HLA. orientação dos cortes e análise acurada do espécime. Para tal,
► Sorologia negativa e histologia negativa. DC excluída. recomenda-se colocá-lo em papel de filtro embebido ou não em
soro fisiológico e com a superfície vilositária para cima. Inde-
■ Genotipagem HLA pendentemente do aparelho ou local da biopsia, o diagnóstico
A sua determinação pode ser de valor no monitoramento de DC pode ser feito em todos os casos de DC, corroborando o
de casos suspeitos ou quando os dados sorológicos e/ou his- fato, há muito conhecido, de que essa enfermidade comprome­
tológicos são ambíguos. Recentemente, foi relatado o uso de te mais o duodeno e o jejuno proximai justamente segmentos
um método rápido e sensível para detecção de antígenos HLA em que se visualiza a mucosa com os endoscópios e nos quais
classe II através de kits. se podem colher, sob visão direta, quantos fragmentos forem
►DETECÇÃO DE OUTROS AUTOANTICORPOS. Independente necessários para exames.
do tempo da sintomatologia ou diagnóstico de DC e também Biopsias duodenais são comparáveis às obtidas na região do
da aderência ou não à dieta isenta de glúten, preconiza-se a ligamento de Treitz com aparelhos convencionais, fato também
determinação de outros autoanticorpos, principalmente para assinalado na literatura.
doenças da tireoide, do fígado e do tecido conectivo, devido à Com o advento das modernas técnicas de endoscopia di­
alta prevalência dessas associações com a DC. gestiva, novos conhecimentos surgiram para o diagnóstico de
Amplo perfil de autoanticorpos foi realizado em indivíduos
de uma área geográfica da Região Sul do Brasil por Utiyama
et al. (2001), com 25% de positividade para os pacientes celíacos
L 2 -L 4 Comparação com referência
(16,1% de anticorpo antimicrossomal da tireoide, 8,9% para
fator antinuclear) e 17,8% para familiares de celíacos (9,3% de
anticorpo antimicrossomal da tireoide, 5,1% de fator antinu­
clear), com diferença significativa em relação aos controles.
Tais dados reforçam as características autoimunes, concomi­
tantes tanto nos indivíduos com doença celíaca como em seus
familiares próximos. Nass (2008) corroborou tais achados em
um estudo com 233 familiares de celíacos do Sul do Brasil, com
destaque para a significativa positividade detectada para os an­
ticorpos antitireoideanos e anticélula gástrica parietal nesses
familiares em relação a indivíduos da população geral.
Em contrapartida, portadores das afecções listadas anterior­
mente deverão ser rastreados para doença celíaca, com ou sem
sintomatologia digestiva.

■ Exames de imagem
Trânsito Intestinal. Os dados radiológicos encontrados na IN TEIRO Comparação com referência
DC são semelhantes aos observados em afecções que cursam
com má absorção intestinal. DilataçÕes, pregas alargadas, frag­
mentações e floculação do contraste são os achados mais co­
muns, sendo mais evidentes no intestino proximal. Raramente,
há rigidez e perda do padrão mucoso.
Cerca de 12% dos celíacos têm raios X de intestino delgado
normais, e pacientes com DC grave podem apresentar apenas
discretas alterações radiológicas. Assim, o exame serve somente
para se ter ideia global, para diagnóstico diferencial com ou­
tras afecções e para excluir ou detectar a presença de linfoma.
Pode haver dilatação dos cólons nos celíacos com constipação
intestinal.
A idade óssea atrasada em relação à cronológica pode ser
IDADE (anos) b
detectada em alguns pacientes e serve para avaliar a evolução.
Raios X ósseos podem demonstrar desmineralização com di­ Figura 30.17 Densitometria óssea em paciente celíaca aos 21 anos.
minuição da densidade, osteoporose, fraturas e pseudofraturas. A, Osteoporose em fêmur. B, Osteopenia em coluna lombar.
314 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

DC. Brocchi et al. relataram perda das pregas de Kerkring no mia ferropriva, hipertransaminasemia, gastrenteropatia perde­
duodeno descendente como característica de pacientes com dora de proteínas etc. Portanto, pacientes não diagnosticados
DC (Figura 30.18B). Acham que tal aspecto endoscópico tem como celíacos estão sujeitos a desenvolver linfomas, inclusive
88% de especificidade. Outros aspectos descritos são perda da como primeira manifestação da DC.
granulosidade, padrão mosaico (Figura 30.18C), pregas mais Nesta enfermidade, as possíveis indicações para a CE são:
espessadas e proeminentes, concêntricas (Figura 30.18A) e va­
• pacientes com sintomatologia típica ou atípica com dú­
sos sanguíneos visíveis (Figura 30.18C). Observa-se perda ou
vida diagnóstica pelos métodos tradicionais;
redução na proeminência das pregas duodenais em aproxima­
• no estudo e valorização das complicações em pacientes
damente 70% dos celíacos.
refratários ao tratamento;
►CROMOENDOSCOPIA DE MAGNIFICAÇAO. Através da en-
• no rastreamento de familiares;
doscopia e com o uso de 5 a 10 m^ de solução de índigo-car-
• no rastreamento de grupos de risco para DC (diabéti­
mim a 1%, podem-se predizer áreas de atrofia vilositária. Tal
cos, síndrome de Down, doenças autoimunes, tireoido-
visão tem importância para dirigir as biopsias, principalmente
patias etc.);
quando há áreas de alterações focais {patchy) e revela doença
• suspeita de linfoma em celíacos;
persistente (Figura 30.18C).
• seguimento de pacientes com maior risco de desenvolver
Demonstrou-se que, quando os endoscopistas olham aten­
linfomas, como nos diagnosticados como celíacos acima
tamente a mucosa duodenal, há aumento significativo do nú­
de 50 anos de idade;
mero de casos diagnosticados como DC, sugerido pela ma-
• no diagnóstico diferencial com outras causas de SMA e
croscopia e confirmado pelos achados histológicos nas várias
processos associados.
biopsias realizadas.
Com o advento da cápsula endoscópica (CE) (Wireless Cap- Concordância de 100% entre os achados com a CE e a his-
sule Endoscopy — WCE), tem sido possível determinar melhor a tologia de fragmentos duodenais obtidos por endoscopia na
extensão da atrofia das vilosidades intestinais na DC, reconhecer atrofia vilositária foi assinalada.
complicações como ulcerações e, mais importante ainda, excluir
tumores, principalmente nos casos de refratariedade ao trata­ ■ E x a m e a n a to m o p a to ló g ic o
mento. O diagnóstico por este método chega a ser de 87%. Necessário mesmo com positividade dos anticorpos detecta­
Lembrar que 50% dos pacientes celíacos cursam sem SMA, dos no soro. É importante o estudo da celularidade, para iden­
podendo se apresentar com hemorragia digestiva oculta, ane­ tificação de provável desenvolvimento de linfomas.

Figura 30.18 Aspectos endoscópicos na


doença celíaca. A, Pregas com serrilhamento
(s c a llo p e d ) B, Cromoscopia mostrando áreas de
atrofia e pregas serrilhadas. C, Magnificação de
imagem revelando atrofia de mucosa. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no
Encarte.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 315

■ "Reteste"ou "desafio" siderados os seguintes fatores: situação fisiopatológica e neces­


A autora só preconiza a provocação com glúten quando o sidades nutricionais que se relacionam com a idade do paciente,
diagnóstico de DC foi feito em crianças menores de 2 anos etapa evolutiva da DC e estado de gravidade do doente.
de idade e com dúvida diagnóstica. Como pode haver confu­ A ampliação da dieta deve ser progressiva e individualizada,
são principalmente com diarréia persistente, alergia alimentar, apesar da resposta terapêutica rápida, pois há retrocessos na
desnutrição calórico-proteica, giardíase e deficiências imuno- evolução intimamente ligados a técnicas dietéticas inadequa­
lógicas, o desafio se faz necessário, se o diagnóstico histológico das. Portanto, em uma dieta de exclusão, tem-se que levar em
inicial se baseou em atrofia parcial. Nunca deve ser feita antes conta que ela deverá ser equilibrada para as necessidades do
dos 6 a 7 anos de idade, para evitar que a introdução do glúten paciente. O glúten não é uma proteína indispensável e pode ser
favoreça a hipoplasia do esmalte dentário. substituído por outras proteínas vegetais e animais. Receitas
Atualmente, com a possibilidade de detecção de anticorpos estão no livro “Sem Glúten”.
no soro dos pacientes, pode-se realizar o reteste e, em vez de Assim, o tratamento para DC é basicamente dietético, com
nova biopsia, fazer os testes sorológicos para anticorpos anti- exclusão definitiva de glúten do trigo, do centeio, da cevada e
gliadina, antiendomísio e/ou antitTG. da aveia (Figura 30.6). Medicamentos são utilizados apenas
para correção de carências (vitaminas, sais minerais e proteí­
■ Testeterapêutico nas), como coadjuvantes para facilitar a digestão de gorduras
Para o médico brasileiro, recomenda-se encaminhar o pa­ (enzimas pancreáticas) e para tratamento de infecções conco­
ciente com suspeita de DC à biopsia peroral do intestino delga­ mitantes (antimicrobianos).
do. Lembrar que as cidades de médio e grande portes já dispõem O tratamento tem por objetivos:
de Serviços de Endoscopia, podendo-se solicitar biopsia das • Eliminar as alterações fisiopatológicas intestinais;
porções mais distais do duodeno, onde ocorrem as alterações • Facilitar e favorecer a absorção dos nutrientes;
mais intensas pelo glúten. Se houver possibilidade de dosar os • Normalizar o trânsito intestinal;
anticorpos, o diagnóstico de DC fica então sugerido, e deve ser • Recuperar o estado nutricional do paciente;
confirmado pela biopsia que é o teste gold standard na DC. • M elhorar a qualidade de vida dos pacientes!
Conclui-se que jamais se deve iniciar dieta isenta de glú­
Como a DC não tratada leva a diferentes graus de desnu­
ten antes dos testes sorológicos e a biopsia entérica. Assim,
trição, desidratação, carências vitamínicas e de sais minerais,
não se preconiza “teste terapêutico”.
o tratamento baseia-se nos dados clínicos e laboratoriais para
as devidas reposições.
■ Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial, do ponto de vista clínico, é feito ■ Nutriçãoparenteral
nas crianças, com afecções que cursam com diarréia crônica e
A nutrição parenteral destina-se a casos muito graves em
má absorção, especialmente fibrose cística, alergia alimentar,
que não se consegue controlar a diarréia e quando os distúrbios
desnutrição primária e diarréia persistente. Devido à distensão
hidreletrolíticos e/ou ácido-básicos são graves.
abdominal, e, nos casos com constipação intestinal, o diagnósti­
co diferencial será feito com o megacólon congênito. Cuidadosa ■ Nutriçãoparenteral e enteral
avaliação clínica se faz necessária para saber a época do desma­ Reservada para casos em que haja necessidade de reposição
me e da introdução de cereais na alimentação. Infelizmente, o
rápida de água, eletrólitos, oligoelementos etc., sendo possível,
abandono do aleitamento materno e a introdução precoce de porém, controlar a diarréia e administrar alimentos de fácil
alimento industrializado levam crianças de até 3 ou 4 meses de digestão e absorção, bem como medicamentos. Preparações
vida a apresentar diarréia e vômitos por DC, gerando dúvidas comerciais especiais para dieta enteral podem ser utilizadas.
diagnósticas em relação a outras intolerâncias alimentares bas­
tante comuns nesta faixa etária. ■ Nutrição VO
Em adolescentes e adultos, o diagnóstico diferencial é feito É realizada na grande maioria dos casos. Pode ser dividida
com estas e com outras causas de má absorção intestinal, como em três fases:
doença de Whipple, deficiência imunológica comum variável, Na primeira fase, seguem-se os itens:
gastrenterocolopatia eosinofílica, doença de Crohn, síndrome
da imunodeficiência adquirida, linfomas. a. Dieta isenta de glúten (trigo, centeio, aveia, cevada-malte)
Do ponto de vista histológico, a diferenciação se faz com com utilização de fubá, amido de milho, creme de arroz,
entidades que apresentam encurtamento ou achatamento das fécula de batata, araruta, polvilho, farinhas de mandioca
vilosidades, a saber: alergia alimentar, enterite aguda (viral, bac- e de milho, e trigo sarraceno como substitutos;
teriana, por Giardia lamblia, actínica), enterite crônica (espru b. Dieta isenta de lactose (leite), utilizando-se leite sem lac-
tropical, doença de Whipple, imunodeficiências, gastrenterite tose, leite com lactose reduzida, de soja, caseinatos, fór­
eosinofílica, linfomas, diarréia persistente, doença enxerto ver­ mulas especiais, ou mamadeira de frango, de acordo com
sus hospedeiro) e desnutrição proteico-calórica. Embora estas a tolerência do paciente e recursos financeiros;
entidades possam apresentar-se com vilosidades diminuídas c. Dieta pobre em sacarose, preferindo-se dextrinas e mal-
em altura e mais alargadas, hiperplasia das criptas é observada toses;
marcadamente na DC. Além disso, o número de LIE não sobe d. Gorduras vegetais (óleos de soja, milho, oliva, girassol e
a níveis tão elevados como os habitualmente encontrados na canola), principalmente gordura de coco e babaçu por
DC (Capítulo 28). terem triglicerídios de cadeia média;
e. Carnes de animais e proteínas vegetais;
■ Tratam ento f. Legumes e frutas de poucos resíduos.
Uma vez confirmado o diagnóstico de DC, a dieta sem glúten Em uma segunda fase, variável no tempo de caso para caso,
deverá se manter por toda a vida. Ao planejá-la, deverão ser con­ a alimentação vai se tornando cada vez mais abrangente, até o
316 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

doente receber dieta habitual para sua faixa etária, permane­ grupos de autoajuda. No Brasil, há a federação FENACELBRA,
cendo somente a restrição de glúten. com filiadas em vários estados, como ACELBRA (Associação
A terceirafase, de manutenção da dieta sem glúten, é a mais dos Celíacos do Brasil), em São Paulo, ligada à Pediatria da
difícil, principalmente em relação às crianças. À medida que UNIFESP-EPM; e a ACELPAR (Associação dos Celíacos do
elas crescem e participam de atividades sociais, ressentem-se Paraná), em Curitiba, dirigida por adultos celíacos.
por não usarem os mesmos alimentos que os seus pares. Sabe-se que pequenas quantidades de glúten ingeridas na
O seguimento da dieta pelo paciente celíaco depende, fun­ fase de manutenção podem não dar sintomatologia clínica, o
damentalmente, dos familiares no que tange às substituições que faz com que o paciente não se sinta prejudicado e que a
dos alimentos proibidos. Assim, é extremamente importante família faça concessões. A atitude do médico deve ser firme no
saber educar os doentes. sentido de recomendar que a dieta seja rigorosamente cumpri­
Alguns pontos devem ser considerados quando se preconiza da, explicando que há um período mais ou menos longo, para
dieta isenta de glúten: haver ressensibilização da mucosa, com ou sem sintomatologia
a. A falta de alimentos alternativos já prontos no mercado clínica. Argumentar que pode haver atraso no desenvolvimento
brasileiro, fazendo com que haja necessidade de prepara­ sexual, quando as transgressões antecedem a puberdade.
ções caseiras, o que não é tão difícil de aceitar, pois é cos­ Mesmo tendo conhecimento de que a DC pode cursar com
tume, no Brasil, usar as farinhas permitidas no preparo de quiescência na adolescência e que as transgressões nesta fase e
bolos, bolachas, sobremesas etc. Avisar que os utensílios na idade adulta são muito mais de ordem psicológica, a posi­
utilizados não podem ser os mesmos que os usados para ção correta do médico é a de sempre incentivar a manutenção
preparação de alimentos com glúten, pois podem conter de uma dieta totalmente isenta de glúten.
resíduos!; Holmes et al. (1989) demonstraram que, para o paciente
b. Como as pessoas dispõem de pouco tempo para a pre­ celíaco que segue rigorosamente a dieta, a possibilidade de de­
paração dos alimentos alternativos, devem-se preconizar senvolver câncer é a mesma da população geral. O risco au­
os que não exijam muita manipulação e que venham de menta, contudo, para os que usam quantidades habituais ou
encontro às habilidades culinárias de quem os prepara; reduzidas de glúten. Tais resultados sugerem um papel protetor
c. Considerar os recursos financeiros das famílias para que da dieta isenta de glúten contra malignidade e oferecem subsí­
usem cardápios adequados e baratos, compatíveis com dios para advertir os doentes a aderir a uma alimentação sem
seu orçamento; glúten para o resto de suas vidas.
d. Fazer com que as crianças levem lanches de casa para a
escola e que as que recebem merenda escolar possam ter ■ Medicamentos
atenção especial das professoras para que não transgri- Inicialmente, usam-se medicamentos para correção de ca­
dam a dieta; rências, enfatizando ao paciente e família que o verdadeiro tra­
e. Proibir alimentos industrializados, visto que o trigo é tamento da DC é dietético, sem glúten, permanentemente.
muito usado como ingrediente ou espessante: cafés ins­ a. Ácido fólico e compostos polivitamínicos são utilizados
tantâneos, pós achocolatados, enlatados, cereais pré-cozi- por via parenteral ou oral; vitaminas K, e B12por via pa-
dos, maionese pronta, molhos de tomate, mostarda, salsi­ renteral, quando necessário;
chas, salames, sopas enlatadas ou desidratadas, chicletes, b. Cálcio por via IV nas crises de tetania e VO, no desen­
sorvetes, cerveja etc. Deve-se ensinar à pessoa que faz as rolar do tratamento, pois sabe-se que, mesmo que haja
compras habituar-se à leitura dos ingredientes estam­ melhora da massa óssea nos celíacos tratados, não chega
pados nas embalagens e evitar os que tenham os cereais à normalidade. Ferro parenteral, quando muito necessá­
proibidos. Algumas firmas de alimentos fornecem, a pe­ rio, ou VO, quando tolerado;
dido do usuário, uma lista dos produtos que são isentos c. Enzimas pancreáticas são utilizadas como coadjuvantes,
de glúten, para facilitar a escolha. É lei que haja menção nos primeiros meses, por facilitarem a digestão princi­
se o produto contém glúten ou não contém glúten. Em palmente de gorduras e porque, nos celíacos, como em
alguns países, há o símbolo característico; desnutridos primários, há falta de proteínas para geração
f. Evitar m onotonia do cardápio. e secreção de enzimas pancreáticas digestivas (a determi­
Nem sempre se pode contar com a ajuda de uma nutricio­ nação de quimiotripsina fecal pode ser índice preditivo
nista para a orientação do cardápio. Então, é o próprio médico da recuperação do peso, principalmente em crianças);
quem deve estabelecer o menu, controlar o seu cumprimento e d. Antibióticos ou antimicrobianos (metronidazol) são usa­
instituir as modificações necessárias ao longo do tratamento. dos raramente, mais para certas infecções intestinais as­
Assim, não basta o médico indicar o que o paciente celíaco sociadas;
não pode comer e quais as opções de substituição. Há necessida­ e. Corticosteroides são indicados apenas em insuficiência
de de motivação e composição de cardápio variado e agradável. suprarrenal, necessitando de reposição concomitante de
Kotze reeditou livro (“SEM GLÚTEN”), já indicado na consulta cloreto de sódio por via IV.
em que se vai explicar o diagnóstico. Isso é muito importante
Observação importante: na DC ativa ou parcialmente trata­
para que o paciente e familiares não se sintam “perdidos e desa­
da, há absorção alterada da maioria dos medicamentos VO, o
nimados” com a perspectiva de que não vão dispor de produtos
que exige ajustamento das doses de antitireoideanos, anticon­
industrializados. Bastante estímulo no início do tratamento é
cepcionais, anticonvulsivantes e antibióticos.
fundamental para o seguimento da dieta.
► PROBLEMAS DA OBEDIÊNCIA À DIETA E POBRE RESPOSTA
Mesmo com discussão e ensinamentos sobre os detalhes
NA DC. São eles:
da dieta aos celíacos, levando-se em conta o nível sociocultu-
ral dos pacientes e suas famílias, cerca de 40% não obedecem • alto custo dos alimentos sem glúten;
à dieta apesar de todos os esforços. Para minimizar o proble­ • poucos produtos sem glúten disponíveis no mercado;
ma, surgiram as sociedades de celíacos, no mundo todo, como • palatabilidade pobre;
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 317

• ausência de sintomas quando a dieta não é observada; intestino irritável (22%), DC refratária (10%), intolerância à
• inadequada informação do conteúdo de glúten em ali­ lactose (8%) e colite microscópica (6%). Nestes pacientes, houve
mentos e medicamentos; elevação dos níveis de antitTG. Sexo masculino e perda de peso
• inadequado aconselhamento dietético; foram os fatores preditivos mais significativos para refratarie-
• inadequada informação inicial pelo profissional que fez dade. Chama-se a atenção para o diagnóstico de malignidade
o diagnóstico; nos casos de longa evolução clínica.
• inadequados seguimentos médico e nutricional; ►DOENÇA CELÍACA REFRATÁRIA (DCR). A DCR é uma con­
• falta de participação em grupos de suporte (associações dição rara, geralmente em pacientes acima de 47 anos de idade.
de celíacos); Cellier et al. descreveram a presença de uma população anor­
• informações não acuradas por médicos, nutricionistas, mal de LIE CD3, sugerindo que seja classificada como linfoma
associações, Internet; intraepitelial críptico. As condições clínicas são desfavoráveis
• alimentações fora de casa; e a sobrevida é curta.
• pressões socioculturais pelos companheiros; Daum et al. definem DCR quando há atrofia vilositária com
• transição para adolescência; hiperplasia de criptas e aumento dos linfócitos intraepiteliais
• inadequado seguimento médico após a infância. (LIE) persistindo por mais de 12 meses, apesar da dieta rígi­
►PERSISTÊNCIA DOS SINTOMAS. Quando os sintomas não da sem glúten. Atenção deve ser dada ao desenvolvimento de
desaparecem após o tratamento da DC, a primeira coisa a se linfoma.
pensar é a ingestão consciente ou inadvertida de glúten. DCR tipo I - caracterizada por expressão normal de antíge-
Outras causas: nos para célula T e rearranjo policlonal do gene TCR;
DCR tipo II - caracterizada por fenótipo anormal de LIE
• má absorção de lactose ou frutose da dieta; com expressão intracitoplasmática CD3, CD 103 de superfície,
• outras intolerâncias ou alergias alimentares; e falta dos clássicos marcadores de superfície tais como CD8,
• insuficiência pancreática; CD4 e TCR-alfa/beta.
• supercrescimento bacteriano; Os pacientes devem ser investigados por exames radioló-
• colite microscópica (colagenosa ou linfocítica); gicos, de imagem e endoscópicos (cápsula ou enteroscopia)
• síndrome do intestino irritável; para biopsias, com estudos imuno-histoquímicos. O tratamento
• disfunção esfincteriana anal com incontinência; consiste em uso de antiTNF-alfa (infliximabe) com predniso-
• diagnóstico incorreto; lona e azatioprina.
• jejunite ulcerativa; ►NOVAS POTENCIAIS TERAPIAS. Um futuro sem dieta isenta
• enteropatia por linfoma; de glúten? O Quadro 30.7 resume as pesquisas. Enquanto os
• DC refratária. estudos se desenvolvem, a obediência total à DIG permanece
As causas assinaladas em negrito são consideradas compli­ tratamento seguro e eficaz para a DC.
cações e merecem a devida atenção para o correto diagnóstico
e manejo terapêutico. ■ Tratamento cirúrgico
►DO EN ÇA C ELÍA CA NÂO RESPO N SIVA (DCNR). Define-se O tratamento cirúrgico só está indicado quando ocorre per­
“doença celíaca não responsiva” (DCNR) quando há falha para furação, o que é bastante raro. Pode ser indicado em neoplasias
responder à dieta estritamente sem glúten pelo menos após ou linfomas, conforme localização e estágio.
6 meses de tratamento; ou o ressurgimento de sintomas ou
anormalidades laboratoriais típicas de DC enquanto permane­ ■ Evolução e prognóstico
ce o tratamento com DIG. Para Leffler et al. (2007), as causas Após a retirada de glúten da dieta, a resposta clínica com
mais comuns foram: exposição ao glúten (36%), síndrome do desaparecimento dos sintomas é bastante rápida - dias ou se-

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 30.7 Novas terapias para o tratamento da doença celíaca não complicada

Objetivos e abordagem Tratamento


D im in u iç ã o d a e x p o s iç ã o a o g lú t e n

M a n ip u la ç ã o o u se le ç ã o d e c o m p o n e n t e s M o d ific a ç ã o d e cereais
d ie té tic o s N e u tr a liz a ç ã o e p o lim e r iz a ç ã o d a g lia d in a

D e g r a d a ç ã o e n z im á t ic a d o g lú t e n P r o lil-e n d o p e p t id a s e s d e riv a d a s d o A s p e r g illu s n ig e r

C o q u e t e l d e e n z im a s A L V 0 0 3

P ro b ió tic o s (V S L # 3 )

In ib iç ã o d a p e r m e a b ilid a d e in te s tin a l

In ib iç ã o d a z o n u lin a A c e t a to d e la ra z o tid a

M o d u la ç ã o d a re s p o s ta im u n e

D im in u iç ã o d a a tiv id a d e im u n e B lo q u e io d o s a n t ic o r p o s t T G
a d a p ta tiv a B lo q u e io d o s a n t íg e n o s a p r e s e n ta d o s p o r H L A D Q 2 e D Q 8
V a c in a p a ra o p e p t íd e o d o g lú t e n
In fe c ç ã o c o m N e c a x o r a m e ric a n u s

R e d u ç ã o d a in fla m a ç ã o In te rle u c in a 10
318 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

manas, com evolução extremamente gratificante. Os defeitos A DC só é fatal quando não é reconhecida e o paciente chega
absortivos desaparecem, a diarréia cessa, há perda do edema e à desnutrição muito grave, ocorrendo hemorragias, infecções
surgimento de apetite, às vezes voraz. Inicia-se recuperação nu­ recorrentes ou insuficiência suprarrenal. Com o advento da
tricional com ganho de peso e retomada da velocidade de cres­ nutrição parenteral, doentes podem ser recuperados de estados
cimento, normalizando-se peso/estatura em cerca de 15 meses, extremamente inquietantes.
nas crianças, e estas retornam à deambulação. Os adolescen­ Pode haver quiescência da DC na adolescência, como já foi
tes iniciam ganho ponderai logo a seguir, e muitos até neces­ assinalado, mas não se deve esquecer que a história natural da
sitam de controle em poucos meses; a melhora do psiquismo afecção é de exacerbações intermitentes e remissões relativas.
que passa da irritabilidade, depressão ou apatia à participação Como a incapacidade de tolerância ao glúten é permanente,
na vida familiar e escolar, tomando gosto pelas brincadeiras e entre a terceira e a quarta década a doença pode manifestar-se
trabalho, chegando muitas vezes à euforia. Há uma verdadeira novamente, com qualquer das modalidades apontadas.
mudança no aspecto do indivíduo (Figura 30.19) e revelan­ Nos celíacos cujos sintomas iniciam na idade adulta, o prog­
do melhor qualidade de vida. A fertilidade volta ao normal, nóstico também é favorável, mas as alterações ósseas, se exis­
devendo-se orientar as celíacas quanto a possíveis gestações e tentes, podem não ser totalmente recuperáveis.
planejamento familiar. Como linfomas e outras neoplasias, principalmente de
O prognóstico para os seguidores de dieta sem glúten é bom. esôfago, são descritos nos pacientes celíacos e de difícil diag­
Entretanto, se já houver osteoporose, mesmo com tratamento de nóstico, conclui-se que os doentes devam ser vigiados e que,
reposição de cálcio e vitamina D, pouca é a melhora referida. periodicamente, ou à mínima manifestação clínica e/ou labo­
O risco de desenvolver malignidade é o mesmo da popula­ ratorial, sejam exaustivamente reinvestigados. Nestes casos, o
ção normal para os pacientes aderentes à dieta isenta de glú­ prognóstico é pobre.
ten. Aumenta muito nos não aderentes, mais para linfomas,
neoplasias de esôfago e laringe e adenocarcinoma do intestino ■ Causas de m orte na DC
delgado. Conclui-se que os pacientes devam ser reassegurados A DC refratária é uma condição rara; geralmente, acome­
em relação à dieta adequada e vigiados e reinvestigados a qual­ te pacientes acima de 47 anos de idade, em que se encontram
quer modificação referida. populações anormais de LIE CD3. As condições clínicas são
Inicialmente, o paciente celíaco pode perder peso, se já apre­ desfavoráveis e a sobrevida é curta.
senta edema, mas, em seguida, começa a ganhá-lo mais rapi­ Como assinalado, os celíacos apresentam alto risco de morte
damente que a estatura. por doenças malignas do tubo gastrintestinal e linfomas, mas
A idade óssea vai gradativamente se aproximando da cro­ pouco se sabe das outras causas de morte. Em estudo brasileiro
nológica. recente, publicado por Kotze (2009), em um período de 40 anos
O comprometimento do desenvolvimento neuropsicomo- as causas de morte em 157 celíacos foram uma por complicação
tor, comum em crianças de menor idade, desaparece após tra­ de diabetes tipo 1, uma por suicídio em paciente deprimida e
tamento, não deixando sequelas graves ou permanentes, desde duas por linfomas.
que existam condições adequadas de nutrição e estímulos am ­
■ Recomendações às fam ílias de celíacos
bientais durante a recuperação.
Pais e familiares de pacientes celíacos frequentemente per­
guntam se seus filhos poderão desenvolver a doença. A DC ocor­
re nas famílias, mas não de modo predizível. Se uma pessoa na
família tem DC, a chance de outro membro tê-la é de 1 em 10.
Familiares agora podem ser triados facilmente através de testes
sorológicos, e biopsia intestinal é recomendada nos positivos. A
falta de HLA DQ2 ou DQ8 praticamente exclui a possibilidade
de DC se desenvolver em indivíduos com história familiar.
Quando nasce uma criança em uma família com DC, os pais
devem ser avisados de introduzir o glúten na época habitual (6
a 9 meses). É importante que os bebês sejam alimentados nor­
malmente e não dar quantidades baixas de glúten, por receio,
pois, se há DC, esta vai se manifestar. Isso permite o diagnós­
tico precoce e o pronto tratamento.

■ As sete chaves da palavra "Celíaca"


Consulta com nutricionista preparado;
Educação acerca da doença;
Levar a sério a obediência à dieta;
Identificação e tratamento das deficiências nutricionais;
Acesso a Associações de Celíacos;
Contínuo seguimento por equipe multiprofissional;
Atendimento periódico para detecção de associações e com­
plicações.

■ Conclusão
Figu ra 30.19 Paciente com a forma clássica de doença celíaca. Enquanto se aguardam novas pesquisas, segue o consenso de
A, Antes do tratamento. B, Após dieta isenta de glúten. Observar que a DC é causada por intolerância permanente ao glúten, o
recuperação do estado nutricional e mudança de aspecto geral. (Esta diagnóstico é feito pela sorologia + biopsia do intestino delgado,
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) e seu tratamento é a exclusão definitiva do glúten da dieta!
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 319

Mecanismos fisiopatológicos variados, isolados ou associa­


■ Espru tropical dos, determinam espoliação de nutrientes ou perdas de subs­
O espru tropical é considerado somente em zonas tempera­ tâncias nobres, endógenas, constituintes de matérias-primas
das. O caráter epidêmico das crises, a frequência do precedente elaboradas pelo organismo.
de diarréia aguda infecciosa e a excelente resposta a antibióticos Do ponto de vista didático, enfatizam-se:
levam à ideia de uma etiologia infecciosa: múltiplas bactérias no a. Situações de intensa vulnerabilidade funcional relacio­
lúmen intestinal, atingindo o intestino delgado alto e a compe­ nadas com atrofia total ou subtotal das microvilosidades
tição com os fatores nutricionais do hospedeiro. entéricas, com consequente disabsorção, redução de en­
Os achados histopatológicos não são específicos. Há vários zimas (dissacaridases, principalmente) e agravamentos
graus de achatamento das vilosidades, com hiperplasia de crip­ imunológicos (função de “barreira”);
tas associada e infiltração de células epiteliais com linfócitos. b. Alta suscetibilidade a infecções;
Após o tratamento, tais alterações revertem ao normal. c. Complexas alterações imunológicas.
Há semelhanças com a doença celíaca: pobre absorção de
Nos meios sociais menos favorecidos, o somatório de carên­
ácido fólico, diminuição da absorção de água e sal; aumento de
cia proteico-energética, infecções de repetição e poliparasitis-
secreção intestinal; esteatorreia; hipoalbuminemia.
mo constante leva a múltiplas alterações do aparelho digestivo,
Geralmente, o espru tropical começa quando a pessoa che­ tanto de ordem funcional como estrutural e ecológica. Tais
ga a uma zona endêmica e, cerca de 3 a 15 meses, começa a ter modificações explicam a gama de achados em biopsias intesti­
diarréia leve intermitente e perda de peso. Dispepsia, anore- nais, variando desde imperceptíveis até atrofia de vilosidades.
xia, dor abdominal se seguem. Poucas semanas depois surgem Todos os fatores ou mecanismos agravantes mencionados, iso­
deficiências nutricionais. A perda de peso é rápida. lada ou associadamente, atuam na fisiopatologia do fenômeno
O teste terapêutico é o primeiro e o melhor meio diagnós­ diarreico. Quanto mais prolongada a diarréia, mais sujeita ao
tico. A biopsia do intestino delgado confirma as alterações já acréscimo de mecanismos diarreicogênicos classicamente co­
descritas. nhecidos: osmótico, secretor, disabsortivo, exsudativo, motor,
além do crescimento bacteriano anômalo ao nível do jejuno,
■ Tratam ento com todas as suas consequências. Por outro lado, o espectro
1. Ácido fólico, 5 mg 3 vezes/dia durante 1 semana, seguidos de gravidade que vai acentuando-se, com o passar do tempo,
de 5 mg/dia. Habitualmente, há remissão em poucos dias. evolui sempre para a espoliação ou perda nutricional. Fecha-se,
2. Antibióticos, especialmetne tetraciclina ou oxitetraciclina. então, um círculo vicioso em que os componentes fisiopatogê-
nicos estabelecem complexa inter-relação de fatores.
Recaída não acontece até que o paciente retorne aos tró ­
picos.
■ Diagnóstico
Do ponto de vista prático, é útil fazer um plano básico de
■ Desnutrição aferição do estado carencial, considerando-se os índices de ava­
liação de risco:
Qualquer afecção que determine problemas na ingestão, ab­
sorção ou aproveitamento de nutrientes pode levar a alterações 1. História Dietética
nutricionais. As doenças que cursam com diarréia crônica de • hábitos alimentares;
maior ou menor grau determinam espoliações ou perdas que • preferências e aversões;
comprometem o estado nutricional, exceção feita às diarréias • anorexia;
funcionais e à síndrome do intestino irritável. Em geral, trata- • padrão alimentar e ingestão de nutrientes básicos.
se, portanto, de um complexo fisiopatológico multifatorial. A 2. Intensidade do Fenômeno Diarreico
análise deste complexo precisa, antes de tudo, passar pelos es­ 3. Relação Peso/Estatura
treitos vínculos que unem funções digestivas e processos nu­ • perda de peso em relação ao tempo;
tricionais como um todo. • consideração de possível edema ou ascite.
Tais vínculos remontam à ontogênese do aparelho diges­ 4. Perfil Bioquímico e Provas Auxiliares
• albumina sérica;
tivo que, primariamente, se desenvolveu para atender às de­
• hemograma completo (atenção para hemoglobina, he-
mandas estruturais e energéticas do organismo. Do ponto de
matócrito, desvio do leucograma) e VHS;
vista biológico, a nutrição incorpora ao seu desempenho vital,
• glicemia;
fundamentalmente, a fisiologia digestiva, e esta responde, em
• ureia;
contrapartida, pela integridade anatomofuncional das estrutu­
• ferro sérico e ferritina;
ras que dela participam e que se distinguem por sua dinâmica • respostas a testes cutâneos para imunidade mediada por
massa tecidual ativa. células (PPD, dermatofitina, candidina, varidase etc.).
Deduz-se, pois, que as relações digestivas/nutricionais obe­ 5. Avaliação da Capacidade Absortiva (Capítulo 28)
decem a uma ordem indissociável bidirecional. • D-xilosemia (1 h);
Dentro do que foi exposto, a desnutrição deve ser encarada • testes de tolerância à lactose;
sob dois níveis conceituais: como responsável primária pelas • determinação da gordura fecal etc.
alterações digestivas e como consequência de enfermidades 6. Biopsia Peroral do Intestino Delgado (Capítulo 28)
diversas, digestivas ou sistêmicas. Assim, como bem destaca
Pela importância do intestino delgado nos processos finais
Zubiran, é possível ocorrer:
de digestão, na absorção dos nutrientes e pelas funções imu­
1. Má nutrição secundária à doença gastrintestinal ou sistê­ nológicas, este órgão tem sido bastante estudado em relação
mica; aos estados nutricionais, principalmente através da coleta de
2. Alterações gastrintestinais resultantes da má nutrição. fragmentos de mucosa por biopsia peroral.
320 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

Diversos autores salientam uma diferente gama de altera­ 6. Pâncreas


ções, geralmente não encontrando correlação entre tais altera­ • redução da massa tecidual ativa e atrofia;
ções e o grau de desnutrição. No Brasil, Barbieri, na desnutrição • redução da síntese de enzimas;
proteico-energética, encontrou relevo vilositário em variados • redução da secreção de bicarbonato;
graus de altura, mas não o achatamento descrito na doença • redução da resposta à secretina.
celíaca. Patrício, em marasmáticos brasileiros, refere também 7. Fígado
atrofia parcial, alterações no epitélio e aumento no infiltrado • descompensação das rotas de adaptação bioquímica;
inflamatório do córion. Já Kotze verificou certa relação entre • dificuldade de metabolização de lipídios (esteatose).
as modificações da altura das vilosidades intestinais, alterações 8. Vesícula biliar
em suas formas e a presença de células cuboides no epitélio de • redução da resposta motora à pancreozimina e à cole-
superfície, conforme a intensidade da desnutrição de primeiro cistocinina.
ou de segundo grau; e, além destes dados, número aumenta­
do de linfócitos intraepiteliais (LIE) na desnutrição de tercei­ ■ Tratam ento
ro grau, porém sem atingir as graves alterações verificadas na Em uma primeira etapa, levar em conta, minuciosamente,
doença celíaca. a correção de distúrbios hidreletrolíticos, bem como o compo­
Tanto na criança como no adulto, é sempre útil tomar m e­ nente infeccioso quase sempre presente. Em uma segunda eta­
didas da circunferência do braço no seu ponto médio, dobra da pa, de recuperação nutricional, o objetivo é restaurar calorias
pele sobre o tríceps ou da pele subescapular. Quanto ao peso, e proteínas, atento a situações de deficiência de dissacaridases.
no adulto, a perda de 20% em relação ao peso corporal médio Neste caso, sobrecarga de carboidratos, sobretudo de lactose,
indica limite preocupante. Para as crianças, valem os padrões pode precipitar secreção osmótica volumosa, intensa fermen­
de aferição de peso que se aplicam à desnutrição energético- tação bacteriana e agravamento da diarréia.
proteica, isto é: Deve-se, pois, atender criteriosamente às fases de correção
Gravidade Padrão esperado p/idade e recuperação. As perdas de fluidos e, sobretudo, de potássio
precisam ser corrigidas cuidadosamente, pois hidratação sobre­
1 grau (leve) 89 a 75%
carregada em líquidos e sódio pode precipitar edema pulmonar
2 grau (moderado) 74 a 60%
ou insuficiência cardíaca, até mesmo pela possível coexistência
3 grau (intenso) 59% ou menos
de uma deficiência de excreção renal de sódio. A depleção de
No adulto, leva-se em conta o emagrecimento; na criança, magnésio pode apresentar-se assintomática, subclínica, sendo a
além da perda de peso, a parada do crescimento e do desen­ suplementação oral preventiva em torno de 1 a 2 mEq/kg/dia.
volvimento. Quando as necessidades nutricionais não puderem ser su­
O exame físico mostra desde alterações discretas até com­ peradas pelas correções habituais, isto é, por dietas orais, mes­
pleta caquexia. Segundo Martins Campos, os achados no apa­ mo que especiais, dietas enterais e/ou parenterais devem ser
relho digestivo podem ser assim sumarizados: criteriosamente cogitadas.
As interações entre desnutrição e infecção, que costumam
1. Região bucodental
estar presentes em casos graves, merecem muita atenção, pois
• boca seca (sialosquiese por redução ao estímulo da se­
o paciente, pela sua anergia, não apresenta febre ou leucoci-
creção salivar);
• inapetência; tose. Nestes casos, antibioticoterapia preventiva, embora não
• redução da acuidade gustativa e olfatória; universalmente aceita, encontra razões nas constatações pós-
• dano dos microvilos das células sensoriais gustativas; morte de infecções como otite, broncopneumonia ou abscessos
• atrofia de papilas linguais; generalizados.
• cáries dentárias. Em todas as situações mais graves, um quadro hipercata-
2. Esôfago bólico se instala, seja por infecção sistêmica seja por dispên-
• esofagite superficial e/ou erosiva; dio excessivo de calor dinâmico-específico. Tal acréscimo ao
• espasmos na síndrome de Plummer-Vinson. catabolismo obriga sempre que se estabeleça um regime nu­
3. Estômago tricional de recuperação de alta energia, impondo-se critérios
• redução da massa epitelial ativa e atrofia da mucosa; de escolha ao acesso de nutrientes: oral, nasogástrico, enteral
• hipossecreção ácida parietal; ou parenteral.
• hipotonia da musculatura lisa. Nutrição parenteral total (NPT) fica reservada ao tratamento
4. Intestino delgado de situações extremamente graves, em que a rota gastrintestinal
• atrofia total ou subtotal de vilosidades e microvilosidades; se torna inoperante ou inviável. Devem-se levar em conta os
• predominância de células cuboides imaturas no epitélio custos e taxas de complicações do procedimento.
luminar com alta vulnerabilidade a estímulos secretores; Como os diversos fatores envolvidos criam, em cada caso,
• comprometimento das enzimas da bordadura estriada, momentos metabólicos variáveis, é aconselhável que os proce­
em particular da lactase; dimentos enterais e parenterais tenham supervisão de profis­
• fermentação de carboidratos e putrefação de proteínas sionais experientes. Quando bem conduzidos, tais tratamen­
pela flora anômala ao nível de jejuno; tos induzem mudanças benéficas relevantes para os enfermos
• redução ou ausência de complexos motores mioelétricos. graves.
5. Cólons
• redução da massa epitelial ativa; ■ Enterocolite actínica
• redução da capacidade de reabsorção e reciclagem de flui­
dos e eletrólitos para o meio interno; ■ Introdução
• produção e perda de sais biliares (desconjugação), com Todas as modalidades de tratamento do câncer estão asso­
consequente redução do pool sistêmico. ciadas a efeitos tóxicos, de menor ou maior amplitude, visto
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 321

atingirem as células neoplásicas e também as células normais. • Cólicas intestinais - sintoma mais comum, geralmente
Com o aumento da sobrevida, a detecção dessas complicações decorrente de obstrução intestinal;
cresce em importância. Aproximadamente, dois terços dos so­ • Náuseas e vômitos - decorrentes de obstrução intestinal;
breviventes de câncer na infância irão apresentar ao menos uma • Diarréia crônica e/ou esteatorreia - decorrentes de vá­
complicação tardia do tratamento. rios fatores, incluindo má absorção, supercrescimento
A ocorrência e gravidade dos efeitos tóxicos aparentam es­ bacteriano, diminuição da motilidade e desenvolvimen­
tar diretamente relacionadas com os efeitos cumulativos das to de fístulas;
drogas utilizadas na quimioterapia, com a dose (total e fracio- • Fecalúria ou pneumatúria - decorrentes de fístulas;
nada) da radioterapia e com a idade da criança no momento • Tenesmo, fezes com muco, hematoquezia, constipação
do tratamento. intestinal e diminuição do calibre das fezes - decorrentes
As complicações gastrintestinais da radiação são bem do­ do envolvimento retal;
cumentadas em adultos, mas em crianças os relatos não são • Hemorragia digestiva maciça - evento raro;
tão abundantes. Os efeitos crônicos da radioterapia no trato • Peritonite e toxemia - eventos raros, decorrentes de per­
gastrintestinal podem ser encontrados em cerca de 36% dos furação.
pacientes com longa sobrevida e incluem enterocolite actínica
O exame físico é variável e dependente das complicações
com má absorção, estenoses e obstrução.
associadas:
■ Patogênese • Perda de peso e desnutrição - consequentes à má ab­
A alteração mais importante na célula é a produção de ra­ sorção;
dicais livres que impedem a replicação, transcrição e translado • Palidez cutaneomucosa - consequente à anemia;
do DNA. As células que mais rapidamente se dividem são as • Aumento de sensilbilidade abdominal;
mais vulneráveis ao dano da radiação, como o são as células da • Sinais de peritonite - resultantes de perfuração intes­
mucosa gastrintestinal. tinal;
Os efeitos agudos da radiação são proporcionais à veloci­ • Massa palpável - possível consequência de resposta in-
dade com que a radiação se faz. Se é feita em alta velocidade, flamatória;
a renovação das células perdidas não consegue ser suficiente. • Aumento de ruídos hidroaéreos, borborigmo - conse­
As vilosidades se encurtam. Diarréia e má absorção advêm no quente à obstrução intestinal;
intestino delgado, e anemia pode se desenvolver. Tais efeitos • Dor retal e hematoquezia - resultantes de comprome­
são notados enquanto se faz radiação e permanecem por mais timento retal.
algumas semanas.
Já os efeitos tardios da radiação estão relacionados com a ■ Fatores de risco
dose total e variam. A variabilidade está relacionada com: a) a Embora a radiação seja a maior responsável pelos danos ao
maneira com que a dose total foi dividida; b) o estado nutricio­ trato gastrintestinal, alguns fatores predisponentes aumentam
nal do paciente; c) a presença de doença vascular; d) a cirurgia o risco de lesões. São eles:
prévia que possa ter fixado o intestino na pelve. Isquemia e
depósito de colágeno são os dois fatores mais importantes que • Cirurgias prévias: causa desenvolvimento de adesões que
contribuem para os efeitos tardios da radiação. podem fixar alças intestinais;
• Dose de radioterapia administrada: é determinada pela
■ Quadro clínico intenção da terapia (curativa ou paliativa), quimiotera­
Os sintomas podem aparecer muito precocemente, até mes­ pia associada ou não, histologia do tumor, estadiamento,
mo em poucas horas após a primeira sessão; ou tardiamente, idade da criança, condições gerais do paciente;
anos depois do término da terapia. Na apresentação precoce, na • Quimioterapia associada: algumas drogas aumentam sen­
maior parte dos casos, os pacientes têm sintomas 2 a 3 semanas sibilidade à radiação, como actinomicina D, 5-fluoracil,
após início do tratamento. Sintomatologia geralmente cessa em bleomicina;
2 a 6 meses, os sintomas são habitualmente moderados e ten­ • Idade: crianças menores tendem a apresentar mais sin­
dem a ser autolimitados, necessitando apenas de tratamento tomas precoces.
sintomático. A correlação com a gravidade dos sintomas e da­
nos à mucosa parece ser pobre. Os sintomas incluem: ■ Diagnóstico
O diagnóstico é geralmente estabelecido por achados suges­
• Anorexia; tivos em exames de imagem em pacientes com clínica compa­
• Náuseas - mais comuns após irradiação do abdome su­ tível que tenham sido expostos a radioterapia prévia. Achados
perior; laboratoriais são inespecíficos e habitualmente transitórios:
• Vômitos - mais comuns após irradiação do abdome su­ anemia por sangramento ou má absorção, azotemia, anorma­
perior; lidades eletrolíticas e alteração dos parâmetros nutricionais
• Cólicas - decorrentes do envolvimento de delgado; decorrentes de vômitos e má absorção.
• Diarréia - mais comum depois de irradiação pélvica; Os exames de laboratório não são nem sensíveis nem espe­
• Tenesmo e fezes com muco - decorrentes do envolvi­
cíficos, mas má absorção de lactose, esteatorreia, má absorção
mento do reto; de vitamina BI2 e perda de sais biliares são comuns no dano
• Hematoquezia - decorrente do envolvimento do reto. agudo.
Na apresentação tardia, geralmente os sintomas são insidio- Na fase crônica, além dos citados, podem aparecer super­
sos e se desenvolvem meses ou anos após o término da terapia. crescimento bacteriano secundário à estase ou fístula. Linfan-
Muitos dos pacientes com enterocolite actínica crônica não giectasia secundária resulta em enteropatia perdedora de proteí­
apresentaram quadros agudos na sua evolução. Os sintomas nas com diminuição das proteínas séricas, linfopenia, aumento
incluem: dos níveis de alfa-l-antitripsina e linfócitos nas fezes.
322 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

A radiografia simples de abdome não é específica, pode de­ ■ Cuidados cirúrgicos


monstrar achados consistentes com íleo nas apresentações pre­ Intervenções cirúrgicas geralmente são necessárias como úl­
coces, alças dilatadas sugestivas de oclusão intestinal. timo recurso aos casos de complicações (perfuração, obstrução,
Exames contrastados do intestino delgado e cólon podem drenagem de abscessos, fístulas). A abordagem cirúrgica deve
dar mais detalhes de mucosa do que a radiografia simples de ser a mais conservadora possível. Fibroses e aderências entre
abdome. alças tornam o procedimento tecnicamente desafiador.
Tomografia computadorizada pode mostrar espessamento
de segmentos de alças intestinais, demonstrar presença de abs- ■ Prevenção
cessos e delinear fístulas. Prevenção é o elemento mais importante no manejo da ente­
Colonoscopia tem vantagem sobre exames de imagem por rocolite actínica. Algumas modificações na radioterapia podem
possibilitar comprovação histológica através de biopsias. Na diminuir o risco de desenvolvimento da enterocolite actínica:
apresentação aguda, deve ser realizada com cautela devido ao • Cálculo preciso da dose de radiação;
risco de perfuração. • Radioterapia conformacional;
• Técnica de radioterapia em 3D;
■ Achados histológicos • Estudos contrastados do intestino delgado pré-radiação;
As alterações da mucosa entérica, à microscopia, variam • Distensão vesical;
conforme a época da apresentação. Alterações agudas incluem • Posição do corpo durante irradiação;
vasos ectásicos, edema do córion e infiltração por células infla- • Pneumoperitônio temporário.
matórias, abscedação de criptas, encurtamento de vilosidades e
ulceração. Pode haver atipia dos enterócitos e células estromais. Um grande número de terapias farmacológicas tem sido es­
Nesta fase, não se observa aumento da atividade mitótica. tudado na tentativa de reduzir as complicações gastrintestinais
Em fase subaguda e crônica, há alterações epiteliais regene­ da quimiorradiaçâo. Infelizmente, a maior parte dos estudos é
rativas. O endotélio pode estar degenerado e trombos de fibrina em modelo animal ou em adultos:
podem estar presentes nos capilares. O achado de macrófagos • Antioxidantes na forma de vitamina E;
subintimais, com citoplasma espumoso, é uma característica • Amifostine (Ethylol);
altamente sugestiva de dano por radiação. Em córion e submu- • Glutamina;
cosa, pode haver fibrose, obliteração de vasos, o que pode levar • Fator de crescimento epitelial;
à isquemia e, consequentemente, à ulceração e necrose. • Sucralfato.
Algumas técnicas de profilaxia cirúrgica têm sido propostas:
■ Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial de enterocolite actínica crônica é • Sutura da bexiga ao sacro;
extenso. Outras possibilidades diagnósticas incluem bridas pós- • Transposição de retalho do omento;
operatórias, síndromes de má absorção, metástases abdominais, • Omentopexia abdominopélvica;
linfoma, doença inflamatória intestinal, quadros infecciosos e • Envelopamento das alças de delgado com omento;
pseudo-obstrução intestinal. • Uso de expansores pélvicos;
• Malhas sintéticas biodegradáveis (separando alças na
■ Tratam ento pelve).
Uma vez estabelecida a enterocolite, o tratamento deve ser
o mais conservador possível e focado no alívio dos sintomas. A ■ Complicações
maior parte dos tratamentos médicos específicos é derivada de O manejo dos pacientes com enterocolite é desafiador; ape­
estudos clínicos com pequena casuística e relatos de caso. Uma sar do tratamento individualizado, as complicações não são
equipe multiprofissional é importante para a melhor aborda­ infrequentes. As mais comuns são: obstrução de cólon ou de
gem destes pacientes. intestino delgado; sangramento gastrintestinal; desenvolvi­
mento de fístulas enterovaginais, enterovesicais, retovesicais
■ Cuidados clínicos ou enterocólicas; má absorção, anormalidades eletrolíticas e
O tratamento das lesões agudas depende da sintomatologia; desidratação; perfuração e estenoses.
já o tratamento das lesões crônicas depende principalmente do
local da lesão.
Para controle dos sintomas, considera-se o uso de antidiar- ■ ALTERAÇÕES SELETIVAS NA ABSORÇÃO
reicos, antieméticos, derivados 5-ASA (apenas relatos de caso e DOS NUTRIENTES
estudos conflitantes), antibióticos (podem reduzir sintomas em
crianças que apresentam supercrescimento bacteriano). Entre as afecções decorrentes de alteração na absorção de
Considerar esteroides tópicos em pacientes com envolvi­ apenas um nutriente, destacam-se, pela sua importância e fre­
mento retal. Oxigenoterapia hiperbárica pode ser considerada quência, as referentes aos carboidratos, em especial a relacio­
em pacientes refratários. nada com a lactose (Capítulo 29). As demais são mais raras na
prática médica.
■ Recomendações dietéticas
Com base em estudos animais, recomenda-se dieta pobre
em gordura, com poucos resíduos e sem lactose. Estudos su­
■ Má absorção de carboidratos
gerem que suplementos de glutamina podem ser protetores ■ Má absorção de glicose-galactose
contra lesões actínicas. Conforme a situação clínica, considerar A má absorção congênita de glicose-galactose é uma condi­
dieta elementar ou NPT. O uso de probióticos está ainda em ção rara, autossômica recessiva, caracterizada por um defeito
estudos controlados. seletivo na absorção destes monossacarídios que implicam um
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 323

único sistema de transporte. A morfologia da mucosa é normal, Moynahan e Barnes, em 1973, descreveram associação dos
bem como o transporte de frutose. O defeito está localizado na achados clínicos com níveis baixos de zinco no plasma e grande
borda-em-escova dos enterócitos. melhora com a ingestão oral de zinco. Atualmente, o tratamento
Crianças se apresentam com diarréia aquosa profusa e desi­ com zinco tem sido utilizado em diversos centros e assume-se
dratação já na primeira semana de vida. As fezes têm pH baixo, que o seja indefinidamente. Felizmente, nada emergiu que pro­
e a presença de substâncias redutoras é positiva. Melhoram à vasse que o zinco, a longo prazo, possa trazer qualquer compli­
introdução de fórmulas com frutose e sem glicose e galactose. cação. Em 2001, Wang et al.}em mapeamento de homozigotos
Embora o defeito seja genético, crianças maiores chegam a de­ com AE, localizaram o gene na região do cromossomo 8p24.3 e,
senvolver alguma tolerância à glicose, mais tarde. no ano seguinte, o gene SLC39 A 4 .0 gene codifica uma proteí­
na rica em histidina que foi referida como “hZIP4”, membro de
■ Má absorção de frutose uma grande família de proteínas de transmembrana, algumas
A frutose é um importante carboidrato encontrado em for­ das quais são conhecidas como proteínas captadoras de zinco.
ma livre nas frutas e também é um monossacarídio resultante SLC39A4 está expressa abundantemente na região apical da
da cisão da sacarose. Xaropes de milho com altas concentra­ membrana dos enterócitos de ratos, sugerindo que o trans­
portador hZIP4 seja responsável pela absorção intestinal do
ções de frutose são usados como adoçantes na manufatura de
zinco. No mesmo ano, Küry et al. postularam que SLC39A4
bebidas. Quando há intolerância, surgem diarréia crônica e
esteja centralmente envolvida na AE, após estudos em famí­
dor abdominal, associadas ao consumo exagerado de frutas ou lias da Tunísia com esta entidade. A despeito dos progressos,
excesso de ingestão de seus sucos. o defeito básico permanece ainda desconhecido. Na literatu­
ra brasileira, encontraram-se apenas trabalhos de Guimarães
■ Má absorção de am ido
e Viana (1959), Campos et a l, (1969), Perafán-Riveros et al.
Embora se acredite que o amido seja bem absorvido, em (2002) e Kotze et al. (2010).
certas condições pode haver má absorção com trigo, milho,
centeio, batata e feijões. O amido refinado e preparações sem ■ Patogênese
glúten são mais completamente absorvidos, sugerindo que A deficiência de zinco pode ser dividida em dois grupos:
complexos de fibras sejam menos tolerados. A melhora dos forma congênita e forma adquirida, decorrente de diversos dis­
sintomas após a restrição de glúten em pacientes com alterações túrbios básicos, como uso de drogas, nutrição parenteral to­
funcionais dos intestinos pode ser explicada pela incompleta tal ou prematuridade. Outras causas de lesões-AE like incluem
absorção do amido. nutrição parenteral total sem suplementação de zinco, doença
de Crohn, procedimentos de bypass intestinal, gastrectomias,
■ Intolerância ao sorbitol AIDS, anorexia nervosa e fibrose cística.
O sorbitol é um açúcar encontrado naturalmente nas frutas. AE em geral se manifesta à época do desmame - ou antes -
Devido à sua pequena fermentação pela flora oral e incomple­ nas crianças alimentadas com leite materno, podendo ser fatal
ta absorção pelo intestino, tem sido usado como adoçante em se não tratada. O ácido picolínico é produzido no pâncreas e
produtos dietéticos e nos chamados produtos livres de açúcar. carreia o zinco para o lúmen intestinal. O leite humano contém
Em doses elevadas, produz diarréia osmótica. este ácido que não é encontrado no leite bovino. A explicação
de a AE se manifestar após o desmame é a alta concentração de
■ Má absorção iatrogênica de carboidratos zinco no leite bovino semelhante ao humano, mas não propicia
O uso de lactulose e manitol, carboidratos não absorvíveis, condição para capacitar a absorção do zinco.
usados para efeito laxativo, produz gás e distensão abdominal, O zinco é um mineral essencial para humanos, presente em
possivelmente por fermentação colônica. ao menos 100 metaloenzimas (incluindo a fosfatase alcalina),
com importante papel no metabolismo de proteínas, carboi­
dratos e vitamina A. Por sua vez, tem importância no cresci­
■ Má absorção de minerais mento, desenvolvimento e proliferação celular, cicatrização e
■ Acroderm atite enteropática reparo tecidual. As doses diárias variam com a idade, pois 30%
do zinco ingerido é absorvido, principalmente no duodeno e
A acrodermatite enteropática (AE) é um distúrbio recessivo
no intestino delgado proximal. Sua excreção é primariamente
e raro do metabolismo do zinco que habitualmente se apresenta
intestinal com pequena excreção pelo suor. O homem necessita,
à época do desmame, com a tríade de alopecia, diarréia e der-
em média, de 10 mg/dia; gestantes, de 30 mg/dia.
matite com lesões periorificiais e de distribuição acral, indefi­
A maior concentração de zinco está localizada nos rins, os­
nidamente. Outros achados incluem conjuntivite, fotofobia,
sos, músculos, olhos, esperma, pele, cabelos e unhas. É encon­
distrofia ungueal, anormalidades em fâneros, baixa estatura,
trado em diversos componentes regulares da dieta, a maioria
estomatite e queilite, além de distúrbios emocionais. Sua inci­ de origem animal, e também presente no leite humano e nas
dência é baixa, cerca de 30% em irmãos, embora descrita em secreções pancreáticas. Está presente em carne vermelha, fígado
diversos países com distintas mutações. de boi, carne de peru, frutos do mar, germe de trigo, amendoim,
Em 1942, na Alemanha, o professor Niels Danboldt des­ nozes e água potável. A grande fonte é a ostra: 85 g de ostra
creveu a condição em colaboração com o bioquímico Karl crua contêm 65 mg de zinco. Fitatos encontrados em diversos
Closs, nomeada como akrodermatitis enteropathicay conhe­ vegetais podem dificultar a absorção de zinco; a deficiência de
cida também como síndrome de Danboldt-Closs. Em 1952, absorção de ferro interfere na absorção de zinco. Álcool, es­
em Chicago, uma criança foi tratada com uma variedade de tresse ou consumo excessivo de zinco (mais que 150 mg/dia)
desinfetantes e se percebeu que a di-iodo-hidroxiquinoquina podem causar náuseas, febre, suor excessivo e problemas na
(Diodoquin®) teve efeito surpreendentemente favorável nas coordenação motora.
lesões de pele. Mas, a longo prazo, podería causar retinopatia A mais séria complicação na AE está associada à im uno­
e atrofia óptica. deficiência, resultando em morbidade e mortalidade à infecção.
324 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

Apontam-se comprometimento da função imune e redução da Na literatura, há descrição de erupções eczematosas algumas
resposta humoral, e celular pelas células T. Há também dimi­ vezes vesicobolhosas ou pustulares. Infecções intercorrentes
nuição da fagocitose pelos macrófagos. Isso poderia explicar com bactéria e fungos, provavelmente relacionadas com qui-
infecções secundárias e a necessidade de antibióticos precoce­ miotaxia comprometida. Podem complicar o quadro clínico.
mente na vida. Ao contrário, períodos curtos de suplementa- A deficiência de zinco pode ocorrer em associações com
ção de zinco melhoram substancialmente a reposta imune e a outras doenças do intestino delgado, como doença celíaca, en-
defesa dos indivíduos com deficiência de zinco. teropatias perdedoras de proteínas, em pacientes em nutrição
Assim, na AE os parâmetros imunológicos podem ser resu­ parenteral total com administração insuficiente de zinco, em
midos como segue: atrofia do timo, linfopenia, diminuição da crianças em uso do leite de soja com baixo teor de zinco.
resposta mitógena, diminuição da resposta mediada por célu­
las (hipersensibilidade tardia), diminuição dos níveis de imu- ■ Diagnóstico
noglobulinas, aumento de infecções recorrentes (pneumonia, O diagnóstico é confirmado pelo nível de zinco diminuído
sepse, candidíase, influenza, resfriados). no plasma; em alguns casos, também nos cabelos e nas unhas.
Em resumo, o zinco é uma molécula sinalizadora intrace­ Mais recentemente, foram descritos casos de AE com níveis
lular nos monócitos, células dendríticas e macrófagos, tendo séricos normais de zinco, dando os autores importância à biop-
papel importante na função imunológica mediada por células sia intestinal no sentido de que se podem verificar alterações
e no estresse oxidativo. O zinco também é um agente anti- nas células de Paneth justamente associadas à deficiência de
inflamatório. zinco. Existem casos de AE com aumento nos níveis de zinco,
devendo-se isso ao zinco circulante unido a outras substâncias,
■ Manifestações clínicas formando união mais estável do que com o ácido picolínico,
Geralmente, os pacientes se tornam sintomáticos dos 3 aos mas não o liberando em níveis periféricos onde deva ser utili­
18 meses. Eliminam fezes diarreicas profusas e aquosas, perdem zado, desencadeando a sintomatologia da afecção.
peso, têm anorexia e dermatite característica. As lesões de pele ► Dados de laboratório. Embora a deficiência de Zn seja
são mais proeminentes nas junções mucocutâneas, tais como a característica da doença, os níveis totais de Zn são difíceis de
as regiões perioral e perianal, e nas mãos e nos pés, áreas de serem determinados porque refletem o Zn-ligado à albumi-
flexuras, áreas expostas à fricção. As lesões podem abrir feri­ na, e os pacientes geralmente têm hipoproteinemia. Assim, Zn
das ou hiperqueratose, erupções eritematosas. Estomatite ou menor que 6 mol/^ é significante somente se a albumina séri-
queilite podem acompanhar as lesões de pele. Queratite e xe- ca estiver normal. A determinação de Zn em cabelo ou unha
roftalmia também podem aparecer, tanto quanto alopecia ou se correlaciona mal com os sinais clínicos. Mas níveis séricos
onicodistrofia (Figura 30.20). baixos de zinco com dados clínicos sustentam o diagnóstico de
Portanto, as manifestações clínicas envolvem justamente os AE. O diagnóstico diferencial deve ser feito com situações de
tecidos com grande renovação celular: pele e epitélio intestinal. grandes perdas por diarréia ou inadequada suplementação de
Apresentam como peculiaridades: Zn em nutrição parenteral.
• Diarréia iniciando-se caracteristicamente por ocasião do Testes de função imunológica podem estar alterados, devido
desmame; às funções do Zn na estimulação de células T, produção de Ig
• Lesões mucocutâneas ao redor da boca e do ânus; e fagocitose de bactérias.
• Dermatite nos dedos e artelhos; Como o Zn é o maior cofator para muitas enzimas intrace­
• Unhas distróficas; lulares, a deficiência de Zn se associa com níveis baixos de fos-
• Paroníquia; fatase alcalina, gamaglutamil transpeptidase e 5-nucleotidase.
• Alopecia; ► Histologia. O exame anatomopatológico da pele não é
• Desnutrição; específico. As alterações variam com a idade da lesão. Nas pri­
• Alterações de crescimento. meiras, há paraqueratose confluente, ausência da camada gra-

Figura 30.20 Paciente com acrodermatite enteropática. Observar lesões periorificiais e de pele. A. Ao diagnóstico. B, Após tratamento. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 325

nulosa e discreta espongiose e acantose. Lesões vesicobolhosas crônica de zinco pode contribuir para distúrbios do SNC como
são intradérmicas e resultam de alteração vacuolar citoplasmá- alterações cerebelares, parkinsonismo e atrofia cortical. Assim,
tica com baloneamento maciço e alteração reticular produzindo recomenda-se supervisisão clínica cuidadosa para toda a vida
citólise de queratinócitos. Necrose confluente leva ao alarga­ em pacientes com AE.
mento das vesículas. Nas lesões posteriores, há paraqueratose
confluente. Achados menos comuns incluem células apoptó-
ticas, poucas células acantolíticas nas lesões vesicobolhosas e
■ Má absorção de ácidos graxos e monoglicerídios
neutrófilos dentro da epiderme. Infecções secundárias podem ■ Abeta/hipobetalipoproteinem ia
complicar este quadro. Os ácidos graxos de cadeia longa e os monoglicerídios absor­
A microscopia eletrônica mostra gotas lipídicas e múltiplos vidos para dentro da célula epitelial são reesterificados para tri-
vacúolos citoplasmáticos nos queratinócitos da derme superior. glicerídios. Estes são envolvidos por um revestimento de proteí­
Desmossomos podem estar diminuídos, associados frequente­ na (apoproteína), éster de colesterol e fosfolipídio para formar
mente com alargamento do espaço intercelular. os quilomícrons que aparecem na linfa e, depois, são transpor­
Biopsias jejunais não são rotineiramente requisitadas. Ne­ tados para o sangue através do canal torácico.
nhuma anormalidade consistente é observada na microscopia A maioria dos triglicerídios na dieta é de cadeia longa, mas
óptica. Na eletrônica, contudo, revela-se inclusão anormal de os de cadeia média (com 6 a 12 átomos de carbono) são absor­
corpos nas células de Paneth. Desde que haja alto conteúdo vidos por processo diferente. Têm hidrossolubilidade maior
de zinco normalmente nestas células e boa resposta ao tra­ que os de cadeia longa, são hidrolisados mais rapidamente e
tamento com zinco, cogita-se de anormalidade na célula de não dependem tanto da lipase pancreática. Uma vez absorvidos
Paneth na etiologia da AE. no enterócito, são reesterificados, mas se dirigem diretamente
ao fígado através da veia porta.
■ Tratamento As apoproteínas têm a propriedade de formar complexos
O tratamento com zinco é efetivo na AE presumivelmente com lipídios, tornando-os mais solúveis no plasma, permitindo
devido ao aumento da concentração do mineral na luz pro­ que sejam transportados pela corrente sanguínea para desem­
piciar estimulação do seu transporte. A remissão dos sinais e penhar suas funções.
sintomas ocorre em cerca de 1 mês. Contudo, mesmo perío­ A apoproteína B é essencial na síntese de quilomícrons pela
dos curtos de interrupção da ingestão (7 a 10 dias) resultam mucosa intestinal e de pré-betalipoproteínas pelo fígado. As
em praticamente imediata recorrência, com reaparecimento betalipoproteínas responsáveis pelo transporte do colesterol
das lesões de pele. e apoproteína B no plasma derivam do catabolismo intravas-
O tratamento consiste em 8 a 10 vezes o requerimento diário cular das pré-betalipoproteínas. Na doença, estas estarão au­
de 15 mg: 100 mg de Zn/dia corrigem as manifestações da AE. sentes também.
Suplementação extra deve ser mantida até a puberdade para A falta de síntese de quilomícrons acarreta prejuízo na en­
homens e durante toda a vida para mulheres. trada de gordura do tubo digestivo ao plasma, provocando es-
Recomenda-se tratamento por toda a vida, pois, quando se teatorreia e má absorção de vitaminas lipossolúveis.
faz a prova de supressão do medicamento, a grande maioria Bassen e Kornzweig, em 1950, descreveram uma síndrome
dos pacientes sofre recorrência clínica logo em seguida. Pode- que tinha como característica aparência anormal das hemácias,
se complementar o tratamento VO, usando-se preparados tó­ retinopatia e alterações no sistema nervoso central. Posterior­
picos com sulfato de zinco. mente, novos casos foram descritos, sendo o diagnóstico dife­
O tratamento com pomada com óxido de Zn 25% nas áreas rencial feito principalmente com doença celíaca.
afetadas pode ser de algum benefício. Logo após, foi possível, por técnica eletroforética, imunoquí-
O mecanismo de transporte de zinco é comum ao cobre. mica ou de ultracentrifugação, estabelecer que as concentra­
Assim, no tratamento com zinco oral, é necessário determinar- ções de betalipoproteínas estão diminuídas no plasma destes
se a concentração sorológica de ambos para evitar intoxicação. pacientes.
Há relação inversa entre zinco e cobre que pode ser detectada Abetalipoproteinemia é uma doença metabólica rara com
nos cabelos da cabeça dos pacientes. É útil monitorar a inges­ frequência < 1 em 100.000, caracterizada pela ausência vir­
tão de cobre em indivíduos que usam altas doses de zinco por tual de lipoproteínas do plasma contendo apolipoproteína B
longos períodos. (apoB).
Para monitorar as doses orais de zinco, devem-se determi­ É causada por mutações no gene MTP localizado no braço
nar seus níveis nos cabelos e nos eritrócitos, mas não refletem longo do cromossomo 4 (4q22-24) que codifica uma proteí­
acuradamente o estado no organismo todo. Portanto, os níveis na de 894 aminoácidos denominada microsomal triglyceride
plasmáticos são os mais utilizados no controle. Outro dado transfer protein. Até o momento, três mutações foram identi­
laboratório frequente é o nível de excreção urinária do zinco. ficadas, explicando as diferentes manifestações clínicas. Existe
Níveis baixos da fosfatase alcalina, metaloenzima zinco-depen- uma forma de transmissão genética autossômica recessiva e,
dente, pode ser de valor para indicar deficiência de zinco. mais raramente, autossômica dominante. Predomina no sexo
masculino em cerca de 70% dos casos.
■ Evolução eprognóstico Portanto, é decorrente da ausência de apoproteína B no
Pouca informção está disponível em relação ao prognós­ plasma, necessária para a síntese e integridade estrutural das
tico a longo prazo da AE. Alguns pacientes param de tomar frações pré-beta (VLDL), betalipoproteínas (LDL) e quilomí­
suplementos de zinco na adolescência e podem não necessitar crons que deverão estar ausentes no plasma dos indivíduos
de supervisão médica. Mas nestes casos a deficiência crônica portadores da afecção.
de zinco pode não ser reconhecida sem nehuma ou leve mani­ Os pacientes com abetalipoproteinemia têm falta, em seu
festação dermatológica. plasma, de todas as lipoproteínas que contêm apolipoproteí­
Entretanto, manifestações neurológicas ou neuropsiquiá- na B-100 e B-43. Entretanto, o defeito não parece envolver o
tricas como sequelas podem ocorrer. Em adultos, a deficiência gene da apolipoproteína, nem a síntese, nem a glicosilação da
326 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

apolipoproteína, mas, em vez disso, parece comprometer algum Do ponto de vista anatomopatológico, ocorrem desmielini-
aspecto da formação ou secreção da lipoproteína. zação e perda de axônios em nervos periféricos.
Na mucosa intestinal, normalmente as gotículas de triglice- Em resumo, essas doenças são caracterizadas por enterócitos
rídios estão rodeadas por retículo endoplasmático e aparelho cheios de gordura, má absorção intestinal, acantocitose, ausên­
de Golgi, cujas cisternas contêm grupos de quilomícrons. Estes cia ou diminuição de apobetalipoproteínas e grave deficiência
são sintetizados pela mucosa intestinal e juntam-se à gota de de vitamina E.
lipídio para formar um quilomícron completo. Na abetalipo-
proteinemia, as cisternas estão vazias, e grandes gotículas de ■ Diagnóstico
lipídios encontram-se livres no citoplasma. Usando-se técnicas 1. Biopsia peroral do intestino delgado mostrando (Figura
de anticorpo fluorescente, percebe-se que não há apoproteína 30.21):
quilomícron-demonstrável (apoB) na mucosa intestinal nem • arquitetura mais ou menos preservada, a não ser por al­
lipoproteínas de baixa densidade (Figura 30.21). terações decorrentes de desnutrição;
Existe acantocitose, cujo mecanismo exato permanece incer­ • enterócitos ingurgitados com gotículas de gordura, dan­
to. São hipóteses: alterações passivas nas membranas lipídicas, do aspecto claro ao citoplasma, mais bem evidenciado do
interações entre os receptores de membrana e suas ligações e meio ao topo das vilosidades;
um defeito primário na membrana. • lâmina própria com espessura e celularidade normais.
A hipobetalipoproteinemia é uma condição rara, autos- 2. Raios X: intestino delgado com padrão disabsortivo.
sômica dominante, caracterizada por baixas concentrações de 3. Exames de sangue:
colesterol no soro. O exato defeito bioquímico não é conhecido, • hemograma.
embora formas truncadas de ApoB tenham sido descritas.
Heterozigotos tendem a ser assintomáticos, e os homozigo- Acantocitose pode ser detectada algumas vezes no sangue
tos apresentam-se com alterações neurológicas semelhantes às periférico. Para reconhecê-la, é essencial examinar o sangue
da abetalipoproteinemia. fresco e não diluído quando a aparência espiculada é carac-

■ Quadro clínico
Há associação de acantocitose no sangue periférico com re-
tinite pigmentosa atípica e ataxia.
Infância: predomina quadro de má absorção intestinal, com
esteatorreia, carências vitamínicas e de minerais como hipo-
protrombinemia, raquitismo e anemia; sinais de retinite pro­
gressiva e neuropatia atáxica em torno dos 5 anos de idade;
retardamento mental pode aparecer em alguns casos.
Adulto: má absorção menos pronunciada; paciente cada vez
com limitações maiores, principalmente na marcha, podendo
surgir alterações cardíacas. Comprometimento do estado nu­
tricional (Figura 30.22).
Achados neurológicos (reversíveis com vitamina E):
• retinopatia pigmentar;
• disartria;
• ataxia;
• arreflexia;
• extensor plantar; e
• perda da sensibilidade da coluna dorsal.

Figura 30.21 Aspecto da mucosa entérica na hipobetalipoproteine­ Figura 30.22 Paciente com hipobetalipoproteinemia, desnutrida e
mia, revelando enterócitos ingurgitados com gotículas de gordura. com alterações neurológicas. (Esta figura encontra-se reproduzida em
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) cores no Encarte.)
Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes 327

terística, não se formando rouleaux. No sangue corado, essa 5. Vitamina K IM, se necessário.
anormalidade é facilmente mal interpretada como crenação. A 6. Vitamina D VO, se houver sinais de carência.
velocidade de hemossedimentação (VHS), extremamente baixa,
A combinação de suplementação oral de vitaminas A e E
confirma a falha na formação do rouleaux. Os acantócitos têm
iniciada antes dos 2 anos de idade pode atenuar, de modo mar­
sobrevida normal ou diminuída, aumento de suscetibilidade
cante, a degeneração retiniana grave que se associa.
ao trauma e hemólise, que se reverte com a suplementação de
vitamina E. ■ Prognóstico
• colesterol total diminuído (abaixo de 60 mg/100 mf) (Fi­ A regra é haver um processo progressivo de deteriorização
gura 30.21); neurológica e retiniana. Os sintomas são debilitantes e a expec­
• fosfolipídios diminuídos; tativa de vida fica reduzida.
• triglicerídios diminuídos;
• betalipoproteína ausente ou diminuída;
• quilomícrons ausentes (após refeição gordurosa);
■ Outras afecções
• vitamina E ausente; O Quadro 30.8 mostra as principais características de doen­
• carotenoides ausentes; ças que são decorrentes de outras alterações na rota de absorção
• vitamina A diminuída; de um nutriente em particular.
• TAP normal ou aumentado em % (vitamina K).
4. Exame de fezes: esteatorreia (aumento da gordura fecal).
■ LEITURA RECOMENDADA
■ Tratam ento
■ Restrição detriglicerídios ■ Doença celíaca
1. Dieta hipogordurosa (20 g/dia): reduzem-se os lipídios Amundscn, SS, Naluai, AT, Aschcr, H et al. Gcnetic analysis of thc CD28/CTLA4/
ICOS (CELLAC3) rcgion in cocliac discasc. Ttssue Antigens, 2004; 64:593-9.
de cadeia longa saturada, mas proporcionam-se ácidos Baptista, ML, Koda, YK, Nisihara, RM et al. Prcvalcncc of ccliac discasc in
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Q u a d ro 30 .8 Defeitos seletivos da absorção dos nutrientes

Substratos afetados Doença Aspectos clínicos

A m in o á c id o s
C is tin a , Usina, o rn it in a e a rg in in a C is tin ú ria F o rm a ç ã o d e c á lc u lo s
A u s ê n c ia d e s in to m a s G l

U s in a , o rn it in a e a rg in in a A m i n o a d d ú r i a h ip e rd ib á s ic a In to le râ n c ia fa m ilia l à p ro te ín a , d ia rré ia e v ô m it o , m á a b s o r ç á o d e
Usina, p a ra d a d e c re s c im e n to

A m in o á c id o s n e u tro s D oe nça d e H a rtn u p R a s h t ip o p e la g ra , a ta x ia c e re b e la r, s e m s in to m a s c o m d ie ta rica e m


p ro te ín a s

T r ip t o f a n o S ín d r o m e b lu e d ia p e r H ip e r c a lc e m ia , d e s c o lo ra ç ã o a z u l d a á re a d ia p e r

M e t io n in a M á a b s o rç ã o d e m e tio n in a R e ta rd o m e n ta l, d ia rré ia e s p o rá d ic a , o d o r a d o c ic a d o d a u rin a

M o n o s s a c a r íd lo s
G lic o s e -g a la c t o s e M á a b s o rç ã o d e g lic o s e -g a la c to s e D ia rré ia , d e s id ra ta ç ã o c o m a c id o s e

E le t r ó lit o s
C lo re to s C lo r id o rr e ia c o n g ê n it a D ia rré ia , a lca lo se , h ip o c a le m ia

M in e r a is
M a g n é s io H ip o m a g n e s e m ia fa m ilia l T e ta n ia n o p e r ío d o n e o n a ta l

C á lc io R a q u it is m o d e p e n d e n t e d e v it a m in a D A m i n o a d d ú r i a , ra q u it is m o , h ip o c a lc e m ia

P s e u d o -h ip o p a r a t ir e o id is m o R e ta rd o m e n t a l, b a ix a e s ta tu ra , te ta n ia

S ín d r o m e d e M e n k e s R e ta rd o m e n t a l, c a b e lo r e t o rc id o , in s ta b ilid a d e d e t e m p e r a t u r a

Z in c o A c r o d e r m a t it e e n te ro p á tic a Le sõe s e m á re as p ró x im a s a m u c o s a s , a lo p e c ia

V it a m in a s
V ita m in a B ,? M á a b s o rç á o d e v it a m in a B -, A n e m ia m e g a lo b lá s tic a , fra q u e z a , d ia rré ia , v ô m it o , a n o re x ia , fa lha
d e c re s c im e n to

Á c id o f ó lic o M á a b s o rç á o d e á c id o fó lic o A n e m ia m e g a lo b lá s tic a , c o n v u ls ã o , re t a r d o m e n ta l


328 Capítulo 30 / Doença Celíaca e Outros Distúrbios na Absorção de Nutrientes

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Doença Imunoproliferativa
do Intestino Delgado, Doença
de Whipple e Outros Distúrbios
no Transporte de Nutrientes
Maria de Lourdes de Abreu Ferrari, Aloísio Sales da Cunha e
Lorete Maria da Silva Kotze

à mucosa (MALT) intestinal, geralmente com grau de diferen­


■ INTRODUÇÃO ciação celular que os classifica como linfomas de baixo grau,
Os distúrbios pós-entéricos da absorção são decorrentes de mas que podem evoluir, no decorrer da sua história natural,
alterações no transporte de nutrientes após sua adequada di­ para linfomas de alto grau. Possuem características epidemio­
gestão e absorção pelos enterócitos. As estruturas da mucosa lógicas marcantes, pois se trata de doenças do adulto jovem,
intestinal envolvidas são a lâmina própria ou córion, os vasos em população de baixo nível socioeconômico e com discreta
linfáticos e sanguíneos e o mesentério. O material absorvido predominância para o sexo masculino. Manifestam-se clinica­
pelas células absortivas permeia os interstícios do estroma re- mente por diarréia crônica, na maioria das vezes associada a
ticular, chega ao córion e, na zona central das vilosidades, onde má absorção intestinal, dor abdominal, baqueteamento digital
se encontra a rede de capilares linfáticos e arteriovenosos, é e, ocasionalmente, linfadenomegalia periférica. Estes achados
são atribuídos, primariamente, a extensa e difusa infiltração da
conduzido ao sistema porta ou circulação linfática, por dife­
rentes mecanismos. mucosa por linfócitos e plasmócitos, principalmente das por­
ções proximais do intestino delgado e linfonodos mesentéricos.
Tendo a lâmina própria e as estruturas mesenteriais origem
comum mesenquimal, as bases fisiopatológicas das afecções Estas células, variavelmente, sintetizam uma imunoglobulina
anormal, principalmente da classe IgA, que é constituída por
que as comprometem podem ser semelhantes. Ocorrendo ex­
uma cadeia pesada incompleta e sem cadeias leves. A boa res­
pansão da celularidade no córion, haverá aumento de pressão
posta à antibioticoterapia é observada em determinada fase da
com perturbação do trânsito dos nutrientes, tensão na base dos
doença. Hoje, reconhece-se que a DIPID foi a primeira neopla-
enterócitos e bloqueio do seu escoamento pela lâmina própria.
sia maligna a responder ao tratamento com antibióticos.
De maneira secundária, o próprio enterócito poderá ser afeta­
do, prejudicando a fase de absorção. Geralmente, ocorre perda
■ Epidemiologia
proteica do meio interno para o lúmen intestinal, o que levou
A real incidência e prevalência da DIPID não são conheci­
alguns autores a classificarem as afecções com essas caracterís­
das. Não há dúvida de que a doença é observada com maior
ticas como enteropatias perdedoras de proteína.
frequência nos países do Oriente Médio e em áreas do Mediter­
Do ponto de vista didático, abordar-se-ão as doenças de
râneo. No entanto, esse tipo de linfoma intestinal foi reconheci­
acordo com a topografia do distúrbio ou predominante, ou seja,
na lâmina própria, nos linfáticos e nos linfonodos mesentéricos. do em diferentes regiões do mundo e não apresenta predileção
para determinado grupo racial ou étnico. Existem caracterís­
Salienta-se que, na prática, duas ou mais estruturas anatômicas
ticas comuns às populações mais suscetíveis, caracterizadas
podem estar comprometidas simultaneamente.
pelo baixo nível socioeconômico associado às más condições
sanitárias e de higiene, situações propícias à alta frequência de
enterites de repetição e à grande prevalência de infecções pa­
■ ANOMALIAS DA LÂMINA PRÓPRIA rasitárias. Mesmo nas áreas de maior incidência, a população
desprivilegiada é a que mais sofre com a doença. Estas carac­
■ Doença imunoproliferativa do intestino terísticas epidemiológicas são de tal importância que motivou
alguns autores a considerarem a DIPID como o “câncer do
delgado (DIPID) terceiro mundo”.
A Organização Mundial de Saúde recomenda o termo doen­ É doença do adulto jovem, com pico de incidência na segun­
ça imunoproliferativa do intestino delgado (DIPID), para de­ da e terceira décadas de vida. A frequência parece ser semelhan­
signar um espectro de doenças que inclui o linfoma do tipo te em ambos os sexos, embora alguns autores apontem discreta
Mediterrâneo (LTM) e a doença de cadeia alfa pesada (DCAP). predominância para o sexo masculino, na razão de 3:2.
São entidades que se caracterizam por serem linfomas extrano- O Brasil possui condições epidemiológicas semelhan­
dais, com origem nos linfócitos B do tecido linfoide associado tes àquelas observadas nas áreas de maior incidência, porém

331
332 C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva do In te stin o D elg a d o , D o e n ça d e W h ip ple e O utro s D istú rb io s n o Transporte d e N utrientes

são poucos os casos descritos na literatura nacional. Durante maioria dos pacientes. Nas fases iniciais da doença, estas mani­
16 anos, os autores estudaram e acompanharam o perfil epi- festações podem ser intermitentes, alternando-se com períodos
demiológico, clínico e evolutivo de 24 pacientes com DIPID. de melhora espontânea.
Trata-se da maior casuística do Continente Americano e um A dor abdominal é inicialmente descrita como difusa, ou
dos períodos mais longos de acompanhamento de pacientes pode apresentar-se como desconforto epigástrico ou perium-
registrados na literatura mundial. Dentre as características epi- bilical. À medida que a doença progride, esse sintoma tende
demiológicas avaliadas, os autores observaram que a doença a assumir o caráter de cólica e tornar-se mais intenso e per­
predominou na quinta década. No entanto, os outros aspectos sistente.
mostraram-se semelhantes aos descritos na literatura. A diarréia crônica pode preceder o diagnóstico da doen­
ça por poucos meses ou até anos. No início da doença, tende
■ E tio p a to g e n ia a ser aquosa e, com o evoluir do processo, instala-se o quadro
O mecanismo etiopatogênico da doença permanece desco­ de franca má absorção intestinal. Este se caracteriza por um
nhecido, mas sabe-se que existe forte interação entre fatores grande número de evacuações, diurnas e noturnas, chegando,
ambientais e genéticos na sua gênese. em casos extremos, a 30 dejeções diárias, com fezes volumosas
As evidências epidemiológicas associadas à boa resposta à que podem superar 5 kg/dia. O aspecto das fezes pode variar de
antibioticoterapia, nas fases iniciais da doença, fazem supor que pastosas a líquidas, fétidas, amareladas, de aspecto brilhante e,
antígenos intraluminais, provavelmente, bactérias, vírus e/ou por vezes, com restos alimentares, caracterizando esteatorreia
parasitos, representem potente estímulo proliferativo crônico e ocasionando grande espoliação de água e eletrólitos.
e sustentado ao sistema MALT intestinal. Estes estímulos an- Perda de peso é observada com relativa frequência. Muitas
tigênicos locais parecem ser o gatilho direto para proliferação vezes, é rápida e de grande intensidade, com relato de redução
clonal ou agir de maneira indireta, predispondo os imunócitos ponderai de até 30 kg em curto período de tempo. Astenia,
a estímulos não específicos, que potencializa o efeito oncogêni- anorexia, náuseas e vômitos podem estar presentes em boa por­
co, por exemplo, de certos vírus, à semelhança do que ocorre centagem dos casos.
no linfoma de Burkitt. No entanto, a natureza do agente esti­ Devido à natureza neoplásica da DIPID, quadros de obstru­
mulante é desconhecida. ção, perfuração e intussuscepção intestinal podem ser encon­
Estudos genéticos têm demonstrado clara associação da trados com menor frequência, principalmente nas fases mais
doença com antígenos de histocompatibilidade HLA-AW19, tardias, e geralmente associados à presença de massas tumo-
HLA-B12 e HLA-A9, assim como translocação dos cromos­ rais. A pseudo-obstrução intestinal determinada pela intensa
somos 9 e 14 (D14+q). A ocorrência de DIPID em familiares infiltração linfoide do intestino delgado foi descrita em poucos
de pacientes que residem fora da região de maior incidência, a casos e evolui com períodos de melhora temporária, sem a ne­
maior frequência da DIPID em indivíduos com grupo sanguí­ cessidade de procedimento cirúrgico.
neo B e o nível elevado de fosfatase alcalina em membros sadios Dentre os sinais físicos mais comuns, destaca-se o baque-
da família de pacientes com DIPID podem indicar predisposi­ teamento digital, que está presente em uma frequência muito
ção herdada para esta doença. maior do que a observada nas outras doenças do intestino del­
A sequência de eventos que provavelmente explica o de­ gado. Sinais de desnutrição e desidratação, alterações distróficas
senvolvimento da DIPID pode ser compreendida da seguinte da pele caracterizadas pela descamação lamelar, hipercromia
forma: a transformação maligna ocorre em um clone de linfó- e ressecamento, associados à redução da tela subcutânea e ca-
citos do folículo central e/ou zona marginal em resposta à es­ quexia. Edema, principalmente de membros inferiores, e ascite
timulação imunoproliferativa crônica. Como resultado, pode são manifestações que se relacionam a enteropatia perdedora
ocorrer o desenvolvimento de células plasmáticas produtoras de proteína, tornando-se mais evidentes naqueles pacientes que
da imunoglobulina anormal, principalmente a cadeia alfa pe­ têm obstrução do fluxo da linfa, ao nível dos linfonodos me-
sada; entretanto, este fenômeno pode não estar presente em sentéricos. Tetania, sinais de Chvostek e de Trousseau são, por
todos os casos de DIPID. A intensidade do infiltrado das célu­ vezes, observados, em especial quando ocorre diarréia muito in­
las plasmáticas na mucosa intestinal e sua redução em resposta tensa, acarretando distúrbios hidreletrolíticos (Figura 31.1).
ao uso de antibióticos fazem supor que as células malignas re­ A febre é sinal pouco comum; habitualmente, surge mais
presentadas pelos linfócitos do folículo central são responsivas tardiamente na história natural da doença e tende a ser baixa
aos antígenos luminais, possivelmente bacterianos. A imuno­ e intermitente. São raras as descrições de sudorese noturna
globulina anormal é ineficaz na neutralização dos antígenos associada a DIPID.
presentes. Como resultado, mais células plasmáticas chegam à A linfadenomegalia periférica e a hepatomegalia são encon­
mucosa e mascaram os linfócitos malignos do folículo central tradas em uma frequência menor e estão, na maioria das vezes,
até o curso final da doença. Estas observações sugerem que associadas à doença de curso mais longo. Esplenomegalia ra­
tanto as células plasmáticas que infiltram a mucosa quanto os ramente é observada. Massas abdominais, que correspondem
linfócitos malignos são formados a partir do mesmo clone ce­ ao aumento dos linfonodos mesentéricos, podem fazer parte
lular. Desta maneira, parece existir um processo contínuo lin- do quadro clínico.
foproliferativo, modulado por uma complexa interação entre Amenorreia, alopecia e retardo de crescimento nas crianças
infecção, imunidade e oncogênese, sobre o qual o diagnóstico e nos adolescentes têm relação com o tempo e a gravidade da
e tratamento precoces vão interferir de forma significativa na má absorção intestinal. O Quadro 31.1 sumariza as principais
evolução da doença. manifestações clínicas.

■ D ia g n ó s t ic o
■ Q u a d r o c lín ic o
As manifestações clínicas da DIPID são, em geral, uniformes ■ Exames delaboratório
e constantes, diferenciando-se consideravelmente das outras Os exames de laboratório, realizados de forma rotineira, não
formas de linfoma primário do trato gastrintestinal. Dor ab­ se constituem em elementos diagnósticos, mas contribuem para
dominal e diarréia crônica são sintomas observados na grande avaliar a repercussão sistêmica da doença.
C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva d o In te stin o D e lgado, D o e n ça d e W h ip p le e O utro s D istú rb io s no Transporte d e N utrientes 333

Figura 31.1 Pacientes com DIPID estágio 8, evidenciando acentuado emagrecimento e desnutrição (A). Em B, observa-se baqueteamento
digital (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

--------▼--------------------------------------------------- faixa normal; porém, discreta a moderada leucocitose pode ser


Q uadro 3 1 .1 D IP ID - P rin c ip a is m a n if e s ta ç õ e s c lín ic a s observada, além de, mais raramente, leucopenia. O mielograma
é frequentemente normal.
Inddénda Casuística dos autores Esteatorreia é um dos achados laboratoriais mais comuns.
Manifestações dínicas n = 517(%)* n = 24 (%) São relatados valores de perda diária de gordura fecal que va­
ria de 6 a 35 g em 24 h. O teste D (+) xilose mostra geralmente
Diarréia 464 (83,8) 22(91,7)
excreção reduzida. O nitrogênio fecal pode estar aumentado. O
Dor abdominal 407 (73,5) 21 (87,5)
teste do hidrogênio expirado, utilizando-se lactose como subs­
Perda ponderai 317(57,2) 23 (95,8)
trato, pode revelar hipolactasia, bem como é observada curva
Vômitos 119(21,5) 9 (37,5) plana de tolerância à glicose.
Anorexia 95(17,1) 8(33,3) A hipoalbuminemia é decorrente da síndrome de má ab­
Febre 81 (14,6) 6 (25,0) sorção e da enteropatia perdedora de proteína. Hipoglobuli-
Baqueteamento digital 147 (28,4) 18(75,0) nema ou aumento das globulinas séricas estão presentes com
Massa abdominal 131 (25,3) 3(12,5) frequência variável nos diversos estudos. Níveis séricos das
Edema 127(24,6) 5 (20,8) imunoglobulinas IgM, IgA e IgG podem ser normais, altos ou
Sinais de desnutrição 86(16,6) 21 (87,5) baixos. A hipocolesterolemia é outro dado que tem sido en­
Hepatomegalia 29 (5,6) 5 (20,8) contrado em determinado número de pacientes. Níveis eleva­
Linfadenomegalia periférica 28(5,4) 2(8,3) dos de fosfatase alcalina, principalmente da fração intestinal,
são ocasionalmente notados. Dos distúrbios eletrolíticos, hi-
Distensão abdominal 28 (5,4) 6(25,0)
popotassemia, hipomagnesemia e hipocalcemia são os mais
DIPID - Doença imunoproliferativa do intestino delgado. observados e estão diretamente relacionados com as perdas
"Dados referentes à revisão da literatura no período de 1961 a 2005. intestinais pela diarréia.
A infecção parasitária intestinal é descrita em aproxima­
damente 33% dos pacientes. Os parasitos mais identificados
são Giardia latnblia, Strongyloides stercoralis e Trichocephalus
trichiurus.
Nas fases iniciais da DIPID, poucas alterações laboratoriais O diagnóstico da DCAP baseia-se na identificação de imu-
estão presentes. Entretanto, com o evoluir do processo, anorma­ noglobulina anormal, da classe IgA, que é formada por uma
lidades principalmente associadas a má absorção, perda entérica cadeia pesada incompleta e não tem cadeias leves. Marcador
de elementos e desnutrição tornam-se presentes. considerado específico dessa entidade pode ser identificado no
Anemia, de leve a moderada intensidade, pode ser observada soro, urina, saliva, secreção intestinal, gástrica e líquido sino-
em até 50% dos pacientes. Deficiência de ácido fólico, de vita­ vial, bem como no interior de células linfoplasmocitárias que
mina B12, níveis séricos baixos de ferro e a anemia de doença infiltram a mucosa intestinal.
crônica são elementos que, agindo de forma isolada ou conco­ Na DCAP, a eletroforese das proteínas do soro pode estar
mitante, contribuem para o aparecimento dessa alteração. A normal. Em aproximadamente 50% dos pacientes, algumas
contagem global dos leucócitos habitualmente encontra-se na anormalidades, muitas vezes difíceis de serem identificadas,
334 C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva do In te stin o D elg a d o , D o e n ça d e W h ip ple e O utro s D istú rb io s n o Transporte d e N utrientes

podem estar presentes. Estas se caracterizam por larga faixa suficientes para fornecer uma classificação segura do tipo his-
de precipitação de proteínas que se estende da região a 2 à p2. tológico do linfoma, o que deve ser obtido por meio de outros
Outra alteração é o aumento da a2 globulina, associado à re­ métodos propedêuticos.
dução de albumina e das outras gamaglobulinas. A cadeia alfa
pesada é considerada uma imunoglobulina monoclonal, mas ■ M é to d o s d e im a g e m
apresenta heterogenicidade eletroforética, que não permite o Os métodos de imagem auxiliam mas não se constituem
aparecimento do pico agudo como observado no traçado ele- exames diagnósticos, uma vez que não existem alterações con­
troforético das outras imunoglobulinas monoclonais. sideradas patognomônicas.
Os métodos utilizados para pesquisar a cadeia alfa pesada A radiografia simples de abdome em ortostatismo pode re­
no soro são: imunoeletroforese, com a utilização dos antissoros velar níveis hidroaéreos no intestino delgado e mais raramente
específicos para cadeias pesadas e leves, e imunosseleção, que é nos cólons.
o método mais sensível e específico (Figura 31.2). A pesquisa O estudo morfológico da alças do intestino delgado mostra
da imunoglobulina na mucosa intestinal se faz pela técnica da alterações extensas, difusas e contínuas, localizadas principal­
imunoperoxidase. mente no duodeno, jejuno e íleo proximal. A intensidade das
alterações radiológicas, em geral, se correlaciona diretamente
■ Endoscopiadigestiva com a gravidade do infiltrado da parede intestinal.
A endoscopia digestiva com visualização de todo o duodeno As alterações radiológicas mais comumente observadas
e das porções iniciais do jejuno constitui-se em exame de grande são:
valor diagnóstico. Cinco padrões endoscópicos são observados 1) segmentação e floculação do bário, que traduz a presença
na DIPID (Figura 31.3): de líquido estagnado no interior das alças intestinais. Este
1) pregas da mucosa espessadas presentes de forma isolada; dado é encontrado com maior frequência nos pacientes que
2) padrão nodular, definido pela presença de nódulos de ta­ apresentam dilatação de segmentos intestinais;
manhos variados; aqueles maiores que 1 mm foram deno­ 2) alargamento e espessamento das pregas da mucosa são ob­
minados de nódulos e os menores de micronódulos; servados em graus que variam de discreta intensidade a um
3) padrão infiltrativo, caracterizado pela redução da motilidade pregueamento grosseiro, simétrico e difuso, que confere um
das paredes intestinais, que não se distenderam à insuflação aspecto bem transversal das pregas da mucosa, característica
e se apresentaram firmes à pressão da pinça de biopsia; nesta esta mais facilmente observada na presença de dilatação das
alças intestinais;
região, as pregas da mucosa eram grosseiras e desorganiza­
das ou estavam ausentes; 3) aspecto nodular é uma consequência da infiltração linfo-
plasmocitária da lâmina própria, que faz projeção para o
4) padrão ulcerativo, várias úlceras de tamanho e profundidade
lúmen intestinal. Os nódulos formados podem variar de 2
variados;
a 3 mm a nodulações grosseiras de 8 a 10 mm, com aspec­
5) padrão em mosaico.
to tipo polipoide, que leva a grandes distorções no padrão
Além de fornecer o aspecto endoscópico, a endoscopia di­ mucoso normal do intestino delgado;
gestiva alta permite a coleta de fragmentos de mucosa sob visão 4) irregularidades e espiculações na periferia da mucosa intesti­
direta da lesão. As alterações histopatológicas da DIPID estão nal conferem à alça intestinal aspecto rendilhado, tipo “papel
localizadas, principalmente, na lâmina própria da mucosa in­ rasgado”, semelhante ao observado na retocolite ulcerativa.
testinal. A biopsia das porções distais do duodeno é diagnós- Este aspecto denuncia a presença de ulcerações na mucosa
tica em 85% dos casos. Entretanto, estes fragmentos não são intestinal;

A r c o d e p r e c ip it a ç ã o d a
c a d e ia g a m a p e s a d a - M IC

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Figura 31.2 Imunoeletroforese do soro de paciente com DIPID, estágio C, mostrando migração anormal da cadeia alfa pesada (A). Em B,
imunosseleção demonstrando arco de precipitação da cadeia gama pesada do soro de paciente com DIPID (arquivo dos autores). N = normal;
P = paciente. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva d o In te stin o D e lgado, D o e n ça d e W h ip p le e O utro s D istú rb io s no Transporte d e N utrientes 335

Figura 3 1.3 Endoscopia duodenal de paciente com DIPID, estágio C. A mucosa apresenta-se com nodulações grosseiras e variáveis em tama­
nho (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

5) presença de segmentos estenosados, que podem ser transi­ ■ C a r a c t e r ís t ic a s a n a t o m o p a t o l ó g i c a s


tórios ou permanentes; estes últimos, mais observados nas As alterações macroscópicas geralmente se associam ao está­
fases avançadas da doença, constituem-se em alterações que gio evolutivo da doença. Os segmentos intestinais mais acome­
ocorrem em menor frequência; tidos são a segunda, a terceira e a quarta porções do duodeno e
6) dilatação segmentar, às vezes conferindo aspecto aneurismá- jejuno proximal. Nas fases iniciais, as alças intestinais podem ter
tico aos segmentos intestinais, que podem ser periódicos ou o aspecto macroscópico normal, porém, à palpação, percebe-se,
permanentes, tem sido descrita por alguns autores e surge geralmente, textura aumentada. Com o evoluir do processo, as
habitualmente como resultado de uma infiltração maciça da pregas da mucosa tornam-se espessadas e uma difusa nodulari-
submucosa intestinal; dade é observada. Posteriormente, ocorre espessamento difuso
7) raramente descrita, mas pode ocorrer a presença de pseu- das paredes intestinais. Lesões ulceradas, perfurações, fístulas
dodivertículos, em geral encontrados nas porções média e enteroentéricas e massas tumorais circunscritas são observadas
distai do intestino delgado. em menor frequência.
O tam anho dos linfonodos mesentéricos pode variar do
Presença de nodulações grosseiras, serrilhamento periféri­ normal a grandes aglomerados, formando massas volumosas.
co e espiculações das alças intestinais talvez sejam os aspectos O comprometimento de outros linfonodos intra-abdominais,
radiológicos mais característicos. Estes achados, associados ao retroperitoneais, mediastinais e periféricos é menos frequente.
quadro clínico e epidemiológico, constituem-se em forte evi­ A infiltração celular pode estar presente no estômago, cólons,
dência diagnóstica. Entretanto, é importante ressaltar que o fígado e baço, bem como na tireoide, anel de Waldeyer e me­
estudo radiológico do intestino delgado normal não afasta a dular óssea.
doença (Figura 31.4). Na presença de evidências clínicas, epidemiológicas e labo­
O ultrassom e a tomografia computadorizada de abdome ratoriais, mesmo que o estudo radiológico do intestino delgado
são métodos que auxiliam na avaliação da presença de linfa- seja normal, é mandatória a realização de biopsias do duode­
denomegalias mesentéricas e/ou retroperitoneais, bem como no distai ou jejuno proximal, para estudo histopatológico da
podem evidenciar massas intestinais; entretanto, apresentam mucosa intestinal, pois as características histológicas desses
pouco valor no estadiamento da doença. A ressonância mag­ segmentos configuram-se em um dos marcadores de maior
nética é técnica pouco estudada nessa enfermidade. importância no diagnóstico da DIPID.
336 C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva do In te stin o D elg a d o , D o e n ça d e W h ip ple e O utro s D istú rb io s n o Transporte d e N utrientes

submucosa superficial, enquanto, em outras, invade a muscular


e serosa, levando à perfuração intestinal. As células presentes
no infiltrado podem invadir e levar à destruição das criptas
intestinais, o que caracteriza a lesão linfoepitelial, aspecto típi­
co do linfoma MALT. As vilosidades geralmente mostram-se
atrofiadas com enterócitos cuboidais.
O mesmo padrão celular infiltra linfonodos, levando à com­
pleta subversão da arquitetura. No fígado, os espaços portais
podem exibir o mesmo tipo de infiltrado.
Estágio C: o infiltrado celular invade difusamente todas as
camadas da parede intestinal. As células são atípicas, frequen­
temente binucleadas, algumas vezes lembrando as células de
Reed-Sternberg. Os linfonodos vão apresentar infiltração ho­
mogênea, por células com características semelhantes às obser­
vadas no intestino, que levam à subversão total da arquitetura
linfonodal. O fígado, o baço e a medula óssea podem encontrar-
se infiltrados pelo mesmo padrão celular (Figura 31.5).

■ E s t a d ia m e n t o
A adequada classificação dos pacientes com DIPID, dentro
dos três estágios descritos, é necessária e deve ser feita mais
precocemente possível, uma vez que a terapêutica baseia-se
neste dado, que interfere diretamente no prognóstico da doen­
ça. A maioria dos autores é concordante em afirmar que os
métodos propedêuticos existentes são incapazes de fornecer
um estadiamento adequado. Isso se baseia principalmente nas

Figura 31.4 Estudo radiológico do intestino delgado de paciente com


DIPID. Observa-se extenso processo infiltrativo, caracterizado por alar­
gamento e distorção das pregas da mucosa, acometendo o segmento
jejunal (A). Em B, detalhe de A onde se observam áreas de defeito de
enchimento, do tipo nodular, lembrando o aspecto faveolar (arquivo
dos autores).

Com base nas alterações histopatológicas, a DIPID é classi­


ficada em três estágios distintos, que vão orientar a terapêutica
e o prognóstico da doença.
Estágio A: caracteriza-se por extensa infiltração da lâmina
própria do intestino delgado por células plasmáticas e/ou lin-
foplasmocitárias de aparência benigna. Esse infiltrado acarreta
distorção das vilosidades, com alterações que vão desde atrofia
parcial a total. As alterações são mais acentuadas no duodeno
e jejuno proximal e mostram paralelismo com o grau de in ­
filtração da lâmina própria. Os enterócitos variam de aspecto
semelhante ao normal à forma cuboidal, com núcleo central,
borda em escova pobremente visível e citoplasma eosinofílico.
As criptas têm aspecto morfológico normal. É achado marcante
o distanciamento entre as criptas. Os linfonodos mesentéricos
exibem infiltrados semelhantes ao descrito na mucosa intesti­
nal, podendo ou não apresentar discreta desorganização arqui­
tetural. Outros órgãos, como cólon, estômago e fígado, podem
mostrar-se infiltrados pelo mesmo padrão celular.
Estágio B: o infiltrado da lâmina própria é denso e forma­
do por células plasmáticas maduras, que habitualmente se lo­
calizam na superfície do epitélio e plasmócitos atípicos, que
Figura 31.5 Histologia de paciente com DIPID, estágio C, mostrando
ocupam preferencialmente as camadas mais profundas da m u­ acentuada infiltração da lâmina própria (A), por linfócitos e plasmócitos
cosa, sobretudo a submucosa e muscular. A profundidade do atípicos (B), determinando alargamento e hipotrofia das vilosidades
infiltrado varia ao longo do intestino. Em algumas áreas, pode intestinais (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se reproduzida
permanecer confinado à mucosa, exibindo herniações para a em cores no Encarte.)
C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva d o In te stin o D e lgado, D o e n ça d e W h ip p le e O utro s D istú rb io s no Transporte d e N utrientes 337

observações de que as atipias celulares são encontradas inicial­ histológicas de infiltração neoplásica. Macroscopicamente, o
mente nas camadas mais profundas da parede intestinal e/ou aspecto pode ser infiltrativo, nodular, polipoide, com lesões,
nos linfonodos mesentéricos, locais inacessíveis aos procedi­ às vezes, ulceradas, ou áreas de estenose anular com dilatações
mentos tradicionais de biopsias. Também é reconhecido que aneurismáticas. Predomina o linfoma originário da célula B,
existe certo assincronismo das lesões, no que se refere aos graus tipo MALT, principalmente os de baixo grau, com os de alto
de malignidade, que podem variar em segmentos diferentes de grau sendo observados em menor frequência. Clinicamente,
um órgão ou em órgãos diversos, em um mesmo indivíduo, no manifestam-se principalmente por dor abdominal, hemorragia,
mesmo momento da doença. perfuração intestinal e sintomas obstrutivos. Diarréia com má
Estadiar um paciente é constatar o grau de disseminação absorção intestinal é manifestação rara.
da doença. Assim, vários autores consideram a laparotomia Algumas entidades como a doença celíaca e os estados de
exploradora como o método mais adequado para o correto imunodeficiência, congênitos, adquiridos ou de natureza iatro-
estadiamento dos pacientes. Um protocolo proposto por Ga- gênica, podem mimetizar quadros clínicos e histológicos seme­
lian et a l, 1977, foi recomendado pela Organização Mundial lhantes a DIPID e se constituem em diagnósticos diferenciais
de Saúde e tem sido o mais utilizado com essa finalidade e está importantes. Outras doenças intestinais, como espru tropical,
representado no Quadro 31.2 (Figura 31.6). espru refratário, enterite ulcerativa não granulomatosa, doen­
ça de Crohn, hiperplasia nodular linfoide do intestino delgado,
■ D ia g n ó s t ic o d i f e r e n c ia l doença de Whipple, síndrome de supercrescimento bacteriano
Pacientes que cursam com quadros de diarréia crônica, sín- intestinal e tuberculose intestinal, são entidades clínicas que,
drome de má absorção intestinal e/ou uma perda inexplicável também, devem ser levadas em consideração no diagnóstico
de peso requerem avaliação diagnóstica, que frequentemente diferencial da DIPID.
inclui biopsia da mucosa das porções iniciais do intestino del­
gado. A presença de alterações histopatológicas, caracterizadas ■ Tra ta m e n to
pelo aumento do número de linfócitos e/ou plasmócitos na A resposta favorável da DIPID aos antibióticos tem sido
lâmina própria que, consequentemente, alteram a arquitetura observada desde as descrições iniciais. A antibioticoterapia é
das vilosidades, impõe a necessidade do diagnóstico diferencial, considerada como tratamento de escolha para o estágio A. A
entre uma série de doenças intestinais, que podem apresentar
estas alterações histológicas e que devem ser avaliadas dentro
de um contexto clínico-epidemiológico, associada a uma per­
feita integração entre o clínico e o patologista.
É de grande importância no nosso meio que o diagnóstico
diferencial seja feito com os linfomas primários localizados do
intestino delgado, por se tratarem de entidades mais frequentes
no mundo ocidental. Geralmente, este não possui distribuição
geográfica ou socioeconômica específica. Tem dois picos de
incidência, sendo mais frequente em crianças com idade infe­
rior a 10 anos e na quinta e sexta décadas de vida. Possui certa
predominância para o sexo masculino. Uma de suas caracterís­
ticas mais marcantes é manifestar-se através de massa tumoral
definida, única, e em cerca de 20% as lesões podem ser múlti­
plas. O segmento intestinal mais acometido é a região ileocecal,
em 60% dos casos, seguida pelo jejuno em aproximadamente
30% e duodeno em 10% dos pacientes. As áreas do intestino
delgado fora da região do tum or não apresentam evidências

----------------------------- ▼------------------------------
Q u a d r o 3 1 2 P r o to c o lo p a ra e s t a d ia m e n t o d a D IP ID p o r la p a r o t o m ia

Ressecçào de possíveis áreas com alterações macroscópicas do intestino


delgado ou ressecçào de 10 cm de jejuno proximal.”
Trés biopsias, transmural e em cunha ao longo do intestino delgado;
uma sempre 15 cm acima da válvula ileocecal.
Biopsias de vários linfonodos mesentéricos, mesmo que
macroscopicamente normais.
Biopsia de linfonodos aumentados na cavidade abdominal e/ou
retroperitònio
Biopsia hepática
Esplenectomia só nos casos de lesões macroscópicas
Biopsia de crista ilíaca

"A ressecçào dos 10 cm do segmento jejunal pode ser substituída por duas biopsias em
Figura 31.6 Estadiamento cirúrgico de paciente com DIPID, estágio
cunha e transmural do mesmo segmento, se as condições do paciente nâo permitirem B. Em A, observam-se linfonodos mesentéricos muito aumentados e,
este procedimento (Galian era/., 1977). em B, detalhe de A (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se re­
produzida em cores no Encarte.)
338 C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva do In te stin o D elg a d o , D o e n ça d e W h ip ple e O utro s D istú rb io s n o Transporte d e N utrientes

introdução dessa medicação é acompanhada por acentuada Os esquemas terapêuticos mais utilizados são: CHOP (ci-
melhora da diarréia e síndrome de má absorção intestinal. No clofosfamida, doxirrubicina, vincristina e prednisona), reco­
entanto, no início do tratamento, não é observado paralelismo mendado pela literatura atual; MOPP (mostarda nitrogenada,
entre melhora clínica, histológica ou imunológica. vincristina, procarbazina e prednisona); m-BACOD (meto-
Entre os antibióticos, a tetraciclina, em doses que variam de trexato, bleomicina, adriamicina, ciclofosfamina, vincristina e
1,0 a 2,0 g ao dia, tem sido a droga de escolha. Não existe con­ dexametasona) e COPP. Resultados obtidos com esses esque­
senso por quanto tempo ela deva ser mantida. Alguns autores mas são variados, sendo descritos em média 50% de remissão
recomendam período mínimo de 6 meses, enquanto outros completa e sobrevida em 3 anos de 58 a 64%.
acreditam que o antibiótico deva ser administrado por perío­ A literatura tem mostrado que a taxa de sobrevida, em 5 anos,
do de até 2 anos. A quimioterapia antineoplásica, com esque­ na análise dos três estágios apresenta variações de 20 a 67%.
ma terapêutico semelhante ao empregado no tratamento dos Abordagem cirúrgica está indicada nos quadros de obstrução
estágios mais avançados, está indicada naqueles pacientes do intestinal por massas tumorais, bem como para diagnóstico e
estágio A, que não respondem à tetraciclina, após 3 a 6 meses estadiamento da doença. A radioterapia abdominal estaria in­
de início do tratamento, ou quando a remissão completa não é dicada na presença de disseminação abdominal da doença, com
observada depois de 9 a 12 meses do uso de antibióticos. relatos de remissões. No entanto, é procedimento acompanhado
Outros regimes terapêuticos que usam antibióticos, como de significativa morbidade e efeito terapêutico questionável.
metronidazol, ampicilina e ciprofloxacino, foram utilizados, Naturalmente, em qualquer estágio da doença, o tratamento
porém a experiência com essas drogas é pequena. A taxa de suportivo deve ser realizado. A correção dos distúrbios hidre-
remissão completa da doença no estágio A em resposta à te­ letrolíticos, instalação de suporte nutricional, reposição das
traciclina varia de 25 a 70%, com média de 50%. carências vitamínicas e derivados de sangue, melhora o prog­
Os estágios B e C são tratados com quimioterapia anti­ nóstico e favorece a resposta ao tratamento.
neoplásica; vários são os esquemas utilizados, sem que exista Na casuística dos autores sumarizada no Quadro 31.3, dos
consenso de qual é mais eficaz. Estudos têm demonstrado que 24 casos estudados, em 18, a avaliação do tratamento pôde ser
esquemas quimioterápicos com antraciclina mostraram-se su­ feita de forma satisfatória. Remissão completa foi alcançada em
periores, quando se comparam o tempo de sobrevida livre da 10 (55,5%) pacientes e remissão parcial, em dois (11,1%). Assim,
doença e a taxa de remissão completa. ao término do estudo, com tempo médio de acompanhamento

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Q u a d r o 3 1 . 3 R e s p o s ta t e r a p ê u t ic a , e v o lu ç ã o e t e m p o d e a c o m p a n h a m e n t o d e 2 4 p a c ie n te s c o m d o e n ç a
im u n o p r o lif e r a t iv a d o in t e s t in o d e lg a d o . C a s u ís tic a d o s a u to re s

Acompanhamento
Pacientes Tratamento Resposta (meses) Estágio
MIC Tetraciclina Remissão completa 180 A
MFS Tetraciclina Remissão completa 84 A
ARB Tetraciclina Remissão parcial 120 A
MGS Tetraciclina Perda do seguimento 1 A
GLFC Óbito" 4 A
RAS CHOP Remissão completa 105 B
RLF CHOP-Bleo Remissão completa 110 B
SNV CHOP-Bleo Remissão completa 99 B
MJB CHOP-Bleo Perda do seguimento 3 B
AC CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 57 B
JSF CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 16 C
LFC CHOP-Bleo Remissão completa 72 C
JRP CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 53 c
APS CHOP-Bleo Perda do seguimento 31 c
SDR CHOP-Bleo Remissão completa 76 c
MSS CHOP Remissão parcial 36 c
VBA CHOP Perda do seguimento 20 c
NRC CHOP Fracasso terapêutico 4 c
MJF CHOP Sem avaliação 8 c
LAS COP + CHOP-Bleo Remissão completa 196 c
ODS COP + CHOP-Bleo Fracasso terapêutico 29 c
MAS Miscelânea Remissão completa 164 c

"óbito nâo associado a DIPID.


CHOP — ciclofosfamida, vincristina. adriamicina, prednisona; CHOP-Bleo — cidofosfamida, vincristina, adriamicina,
prednisona, sulfato de bleomicina; COP — ciclofosfamida, vincristina, prednisona; Miscelânea — adriblastina, ciclofosfamida,
dtarabina, bleomicina, vincristina, metotrexato.
C a p ítu lo 31 / D o e n ç a Im u n o p ro life ra tiva d o In te stin o D e lgado, D o e n ça d e W h ip p le e O utro s D istú rb io s no Transporte d e N utrientes 339

de 66,7 meses, com limites de 1 a 196 meses, 12 (66,6%) pacien­ que a sequência do RNA da porção 16S ribossômico do bacilo
tes encontravam-se vivos. O fracasso terapêutico, que resultou mostrava-se altamente constante, ambos os grupos codificaram
em óbito, foi observado em seis (33,3%) casos. A análise da curva o primer e compararam-no com sequências de outras bactérias,
de sobrevida, realizada através do estimador de Kaplan-Meier, evidenciando íntima relação deste com bactérias gram-positivas
mostrou que todos os óbitos da série em estudo ocorreram antes do grupo dos actinomicetos. A sequência 1.321 presente no
dos 60 meses. A sobrevida encontrada para os casos do estágio primer mostrou-se ser específica para os pacientes com diag­
B foi de 75%, enquanto, para os pacientes do estágio C, foi de nóstico de DW.
55%, após os 5 anos de acompanhamento. Não foi constatado Estabelecidas as relações filogenéticas e a tendência de a
óbito associado à DIPID entre os pacientes do estágio A. doença cursar com má absorção, foi proposta a denominação
de Tropheryma whippelii para o agente etiológico da doença,
que do grego significa trophe nutrição e eryma, barreira.
■ Doença de Whipple No ano de 2000, o bacilo de Whipple foi finalmente culti­
■ In tro d u ç ã o
vado. Utilizando-se uma linhagem de fibroblastos humanos,
sem qualquer meio de cultura específico, foi possível o cultivo
Descrita em 1907 por George Hoyt Whipple, a doença de
e isolamento do T. whippelii, além da detecção de anticorpos
Whipple (DW) é afecção sistêmica rara, de etiologia infecciosa,
específicos. Assim, como acontece com o Mycobacterium leprae,
causada por uma bactéria gram-positiva do grupo dos actino-
o Helicobacterpylori e espécies de bartonela, o crescimento do
micetos, denominada Tropheryma whippelii. A doença pode T. whippelii é lento, levando aproximadamente 18 dias.
afetar virtualmente qualquer órgão, e o intestino delgado é a
A identificação do agente etiológico foi um grande avanço
víscera acometida com maior frequência. Tem curso clínico
em direção à melhor compreensão da patogênese da DW. En­
insidioso e manifesta-se principalmente por meio de diarréia,
tretanto, muitas questões permanecem ainda sem respostas.
perda de peso, dor abdominal, que muitas vezes é precedida
Está bem estabelecido que os diversos tecidos acometidos,
por poliartralgias e poliartrites. O diagnóstico é sugerido pela
principalmente a mucosa do intestino delgado, mesmo quando
presença de macrófagos corados pela reação de Schiff, em ma­
não existam sintomas relacionados com este órgão, estão infil­
terial de biopsia, em geral mucosa jejunal, e confirmado pela
trados pelo T. whippelii durante a fase ativa da doença. Como
visualização, por microscopia eletrônica, de um bacilo que tem também, é observada melhora clínica dramática, que ocorre de
a parede celular envolvida por uma membrana, conferindo a ela
forma paralela à redução e mesmo desaparecimento do agente
o aspecto trilaminar, ou quando se reconhece a sequência do etiológico dos tecidos após antibioticoterapia eficiente. Estas
RNA da porção 16S ribossômico do agente, através da reação evidências não deixam dúvidas sobre o importante papel do T.
em cadeia da polimerase (PCR). A resposta à antibioticoterapia whippelii na patogênese da doença. No entanto, a existência de
é boa e quase que invariavelmente permanente, levando à cura. organotropismo das diferentes cepas, bem como a via pela qual
Entretanto, quando não tratada, é doença fatal. o T. whippelii penetra no organismo são desconhecidas.
Características individuais, relacionadas com o hospedeiro,
■ E p id e m io lo g ia
também estão implicadas na etiopatogênese. Alguns trabalhos
A raridade da doença dificulta uma precisa avaliação so­ têm demonstrado que a doença é três vezes mais frequente entre
bre a sua prevalência. A incidência anual parece ser inferior a os indivíduos com a subclasse I do antígeno de histocompatibi-
1/1.000.000 habitantes. Acredita-se que não mais de 1.000 ca­ lidade HLA-B7. Reconhecem-se possíveis alterações primárias
sos tenham sido descritos na literatura mundial e poucos são nos mecanismos de defesa do indivíduo suscetível à doença.
os relatos na literatura nacional. Os EUA e a Inglaterra são os Em relação à imunidade humoral, observa-se diminuição
países responsáveis pelo maior número de casos. dos níveis séricos de IgG2, a despeito de os níveis da IgG total
Apesar de não se ter padrão epidemiológico definido, a e a resposta dos anticorpos a agentes específicos estarem pre­
doença parece não ser contagiosa, pois a frequência de pacientes servados na maioria dos pacientes. Na imunidade celular, algu­
com DW na mesma família ou entre indivíduos que residem mas alterações foram descritas e se caracterizam pelo aumento
em áreas geograficamente próximas é rara. Não há relato de da expressão do CD45RO, que é um marcador de memória
transmissão epidêmica ou inter-humana. Observa-se nítida das células T; ocorre ainda aumento da expressão do CD25 e
predominância na raça branca, e a doença é cinco vezes mais CD58 nas células T, que estão relacionados diretamente com
frequente no sexo masculino. A faixa etária mais acometida está a ativação celular; existência de diminuição da reação de hi-
entre os 45 e 55 anos. A prevalência entre fazendeiros e traba­ persensibilidade tipo retardada, como também diminuição da
lhadores ao ar livre parece ser maior. Este dado foi corroborado produção de interleucina 12 (IL-12) e da secreção de interfe-
pelos estudos que evidenciaram a presença do T. whippelii em rona gama (ITF-y).
amostras de material coletado em unidades de tratamento de A diminuição da produção de IL-12 e de ITF-y pelas células
esgoto. Estudos têm demonstrado que o T. whippelii pode estar mononucleares parece assumir papel importante relacionado
presente na saliva, placa dentária, amostras de fezes e espécimes com a presença de grânulo mas na doença. A IL-12 é media­
de mucosa intestinal de indivíduos sadios. A predisposição ge­ dor central na imunidade celular e induz a produção do ITF-y
nética para a DW é discutida, embora nenhum fator de risco pelos linfócitos T tipo 1. Ao mesmo tempo, ocorre diminuição
específico tenha sido reconhecido. da concentração sérica de IgG2 e consequente associação na for­
mação dos granulomas na DW. O acúmulo de bactérias intactas
■ E tio p a to g e n ia ou de seus produtos dentro dos macrófagos por longo período
A despeito da experiência acumulada com a boa resposta de tempo, associado à ausência de dano celular ou à existên­
terapêutica aos antimicrobianos, a etiologia infecciosa da DW cia de pequeno dano celular, reflete diminuição da função dos
sempre foi questionada ao longo dos anos. No entanto, no início macrófagos, que se mostram capazes de digerir as bactérias,
da década de 1990, dois grupos distintos identificaram o bacilo mas não de destruí-las. Essa incapacidade funcional dos ma­
de Whipple, até então não cultivado, e utilizaram para isso a crófagos está relacionada com reduzida expressão do CD 11b,
técnica de reação em cadeia da polimerase, PCR. Sabendo-se baixa produção da IL-12, aumento na liberação da IL-16,
340 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes

e redução da apoptose dos macrófagos na mucosa intestinal. artralgia, nesta ordem de frequência. O Quadro 31.4 sumariza
Os níveis sé ricos da IL-16 e marcadores de apoptose estão re­ as manifestações clínicas de casuísticas diferentes, sendo duas
lacionados com a gravidade da doença, e a redução dos níveis de autores brasileiros. Existe certo predomínio das manifesta­
séricos é observada em resposta ao tratamento antimicrobiano ções gastrintestinais no momento do diagnóstico. Este acha­
eficaz. Estudos têm demonstrado que a inativação da IL-16 por do contrasta-se, em muitos casos, com os sintomas das fases
anticorpos específicos inibe a proliferação do T. whippelii no iniciais da doença, quando acometimento articular, febre, ou
interior dos macrófagos, ressaltando a importância desta cito- mesmo sintomas neurológicos, podem dominar o quadro; en­
cina na replicação da bactéria. tretanto, nessa circunstância, o diagnóstico é geralmente difícil
Pacientes com DW apresentam redução da reposta Thl na de ser realizado.
lâmina própria da mucosa intestinal e no tecido periférico, em Os sintomas gastrintestinais não são específicos e se asseme­
especial das células T CD4+ específicas para o T. whippelii. Por lham aos observados em qualquer doença que cursa com má
outro lado, observa-se aumento da reposta Th2, tanto na muco­ absorção intestinal. A diarréia geralmente é crônica e reflete o
sa intestinal quanto nos tecidos periféricos. Este desequilíbrio acometimento do intestino delgado; o número de evacuações
da resposta imunológica cria condições favoráveis à replicação varia entre 5 e 10 episódios por dia. As fezes são aquosas ou
do T. whippelii no interior dos macrófagos. semipastosas, e comumente ocorre importante perda de gor­
A presença de grandes macrófagos, contendo no seu interior dura. Distensão e dor abdominal difusa, associada à anorexia,
os corpúsculos PAS positivos, que infiltram os diversos tecidos são sintomas frequentes. A gravidade da diarréia e o grau da
do organismo, contribui diretamente para os variados sinto­ anorexia correlacionam-se diretamente ao emagrecimento, po­
mas clínicos observados na doença. No intestino delgado, por dendo levar à caquexia. Fadiga e fraqueza estão presentes em
exemplo, a infiltração da lâmina própria determina distorção grande número de pacientes e, também, resultam da espolia­
da arquitetura das vilosidades, interferindo diretamente com a ção crônica. A consequente perda de albumina, principalmente
absorção intestinal, e é responsável pela diminuição do trans­ quando acompanhada de obstrução linfática pelo envolvimento
porte dos nutrimentos para os canais linfáticos de drenagem. de linfonodos mesentéricos, resulta em edema periférico, pre­
Os vasos linfáticos da mucosa e submucosa intestinal podem dominantemente dos membros inferiores e ascite. O sangra-
estar dilatados e, consequentemente, depósitos de gordura são mento intestinal não é comum, mas pode ocorrer sob forma de
observados com certa frequência no meio extracelular da lâ­ melena, hematêmese e sangue oculto nas fezes.
mina própria. Tais achados provavelmente refletem a obstru­ Entre as manifestações extraintestinais e sistêmicas, a ar­
ção linfática causada pelo aumento de linfonodos e infiltração tralgia, a artrite e a febre são as mais comuns. Os sintomas ar­
celular do mesentério. ticulares são observados em aproximadamente 66% dos pacien­
Como referido, a DW é afecção sistêmica e os outros órgãos tes. A artralgia caracteriza-se pelo envolvimento de pequenas
mais comumente comprometidos são coração, cérebro, fígado, e grandes articulações. É migratória, simétrica e não erosiva.
baço, articulações, pulmões e rins. O T. whippelii está ainda A gravidade varia de paciente para paciente e pode ser acom­
associado a amiloidose secundária, nefropatia por IgA, linfoma panhada de calor e edema, principalmente quando acomete
não Hodgkin e, mais recentemente, a uma forma de sarcoidose joelhos, tornozelos e punhos. Com a progressão da doença, os
na qual os granulomas, a princípio PAS-negativos, contêm, em períodos sem dor diminuem e o paciente evolui com artralgia
sua estrutura, pouquíssimos microrganismos intercelulares que contínua. Pelo fato de não ser erosiva, a deformidade perma­
são observados apenas por microscópicos de alta resolução. nente é rara, diferente do que ocorre na artrite reumatoide.
Artrite axial, sacroileíte e espondilite ancilosante são formas
■ Quadro clínico raras de apresentação da doença. A natureza inespecífica do
A apresentação clínica varia na dependência do sistema aco­ quadro articular, na fase inicial, é responsável pelo atraso no
metido. Os principais sintomas são emagrecimento, diarréia e diagnóstico. Habitualmente, este não é suspeitado até o surgi-

--------------------------- ▼---------------------------
Q u a d ro 3 1 .4 Doença de Whipple: principais manifestações clínicas

M a ize l et a i F le m in g ef al. Fe rrari et a i K o tze et a i S c h n e id e re fo /.'

n = 19 n = 29 n= 5 n= 4 n = 764

M a nifestações clínicas % % % % %

E m a g r e c im e n t o 95 89 80 100 92

D ia rré ia 78 75 80 100 76

A rtra lg ia 65 82 40 33,3 67

H ip o te n s ã o a rte ria l 70 - - - -
D o r a b d o m in a l 60 - 80 - 55

L in fa d e n o m e g a lia 55 54 60 6 6 ,6 60

F e b re e c ala frios 40 54 40 33,3 38

A lte ra ç õ e s n o S N C * " - 43 20 - «<•«

"Dados referentes à revisão de literatura.


""SNC — Sistema nervoso central.
"••Nâo especificado pelo autor.
Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes 341

mento dos sintomas gastrintestinais. A febre normalmente é livres e não dolorosos. Massas abdominais consequentes à lin­
baixa e intermitente, podendo durar vários anos. Com o evoluir fadenomegalia mesentérica podem se constituírem achado do
do processo, a temperatura pode tornar-se mais alta e não raro exame físico. A hepatoesplenomegalia é observada em pequena
assume o caráter remitente. frequência.
O padrão do acometimento do sistema cardiovascular é am­ Os sopros cardíacos podem estar associados às lesões val­
plo, pois todas as três camadas do músculo cardíaco, bem como vulares ou se constituem em sopros funcionais, relacionados
as artérias coronárias, podem estar infiltradas pelo T. whippe- com a anemia, que ocorre com relativa frequência. O exame
lii. O paciente pode apresentar-se com insuficiência cardíaca das articulações pode revelar sinais flogísticos. O atrito pleu-
congestiva, angina ou pericardite. Lesões valvulares vegetan- ral e/ou pericárdico é observado quando existe acometimento
tes ou perfurativas também podem ocorrer, principalmente destas membranas serosas.
em câmaras esquerdas. Estima-se que 30% dos pacientes com Atenção especial, como monitoramento cuidadoso, deve ser
DW tenham algum tipo de lesão cardíaca. No entanto, ape­ dada ao paciente após o tratamento, pois o aparecimento de
nas uma pequena parcela é sintomática. O ecocardiograma, alterações neurológicas pode ser os primeiros sinais de recaí­
preferencialmente transesofágico, deve ser realizado de rotina da da doença.
nesses pacientes.
O envolvimento do sistema nervoso central (SNC) é obser­ ■ Diagnóstico
vado em 21 a 43% dos casos. Os sintomas neurológicos podem Muitas das anormalidades laboratoriais encontradas na DW
preceder outras manifestações clínicas ou originar-se junto com são consequência da má absorção intestinal. Anemia é comum
elas. Entretanto, a presença desses sintomas, de forma isolada, e, na maioria das vezes, está associada à deficiência de ferro;
é situação rara. O diagnóstico de recorrência da doença após entretanto, anemia de doença crônica, bem como anemia se­
tratamento clínico aparentemente eficaz pode ser suspeitado cundária à deficiência de ácido fólico e/ou de vitamina B,, tam­
perante os sintomas neurológicos. Virtualmente, qualquer seg­ bém podem estar presentes. Leucocitose com neutrofilia são
mento cerebral e da medula espinal pode estar comprometido observadas em 33% dos pacientes, principalmente quando há
pelo T. whippelii. Assim sendo, grande variedade de manifes­ febre. A trombocitose é rara.
tações neurológicas se fazem presentes. Os sintomas incluem Esteatorreia, redução da excreção da d(+) xilose e diminui­
demência, com desorientação e perda da memória, cefaleia, ção dos níveis séricos de caroteno e colesterol são frequente­
letargia, que pode progredir até o coma, convulsões, fraqueza mente observadas. Nos pacientes com quadros mais graves de
muscular, alterações no sensório, incoordenação motora, po- diarréia, deve-se atentar para os sintomas relacionados com
lidpsia, parkinsonismo e outros sintomas relacionados com o hipocalcemia, hipopotassemia, hipomagnesemia e hipoalbu-
acometimento dos nervos cranianos, como surdez, disartria, minemia.
diplopia e redução da acuidade visual. Classicamente, a tríade O estudo do liquor, nos pacientes que apresentam sintomas
composta por demência, oftalmoplegia e mioclonia é observada neurológicos, pode mostrar aumento do teor proteico, pleoci-
em 33% dos pacientes. Segundo alguns autores, uma anormali­ tose e presença de células PAS. Entretanto, estas alterações não
dade de movimento da musculatura ocular denominada mior- são observadas em todos os pacientes.
ritmia oculomastigatória, que se caracteriza por nistagmo con­ O estudo radiológico contrastado do intestino delgado é
vergente associado à movimentação da mandíbula e da língua, importante para avaliação morfológica do órgão e geralmente
concomitantemente, é suficiente para o diagnóstico de DW. encontra-se alterado. A subversão da arquitetura do relevo mu-
A grande maioria das alterações oftalmológicas é secundá­ coso e espessamento das pregas, principalmente localizadas no
ria ao comprometimento do sistema nervoso central, sendo duodeno e jejuno proximal, sugerindo doença infiltrativa, são
descritas em 2 a 3% dos pacientes com DW. As mais comuns achados compatíveis com o diagnóstico de D W, mas não espe­
são nistagmo, oftalmoplegia e ptose palpebral, dentre outras. cíficos. São descritas, à esofagogastroduodenoscopia, algumas
Manifestações intraoculares têm sido relatadas com ou sem alterações duodenais como espessamento do pregueamento
envolvimento do sistema nervoso central e incluem uveíte, vi- mucoso, presença de placas amarelo-esbranquiçadas e erosões,
trite, hemorragia vítrea, papiledema e queratite. Em 34 casos de por vezes formando mosaicos e linfangiectasia (Figura 31.7).
acometimento ocular publicados na literatura, apenas quatro Na suspeita de acometimento neurológico, a ressonância
apresentavam lesão ocular exclusiva. nuclear magnética é o método de escolha, pois pode evidenciar
Tosse crônica e dor pleurítica, quando presentes, refletem o áreas de alta densidade em T2. Outros métodos complementa­
acometimento pulmonar da doença. Outras manifestações me­ res, como o ecocardiograma e a radiografia de tórax, também
nos comuns são hipotensão arterial e sintomas urinários. são úteis na avaliação global do paciente.
As alterações observadas ao exame físico estão diretamente Os manifestações clínicas e laboratoriais induzem a suspeita
relacionadas com a presença e gravidade da má absorção intes­ diagnóstica, que deve ser confirmada ou afastada. Para isso, a
tinal, bem como com o acomentimento dos diferentes sistemas. literatura recomenda a combinação de exames considerados
Assim, são observados sinais de emagrecimento, como perda da clássicos com aqueles alternativos, conforme esquematizado
massa muscular, palidez, edemas periféricos e, mais raramente, no Quadro 30.1.
ascite, baqueteamento digital, queilite, glossite, púrpura, au­ O intestino delgado está comprometido na maioria dos pa­
mento da pigmentação e descamação lamelar da pele, aumento cientes, desde as fases iniciais da doença, mesmo naqueles ca­
da excitabilidade muscular, chegando, em alguns casos, a teta- sos em que não são observados sintomas relacionados com este
nia causada pela hipocalcemia e alterações na sensibilidade das órgão. A biopsia endoscópica do duodeno ou jejuno proximal
extremidades, secundárias à neuropatia periférica. Estes sinais se constitui em procedimento de importância na avaliação da
refletem os mais variados graus de deficiências a que estes pa­ doença. Para evitar erros de amostragem, no mínimo cinco
cientes estão sujeitos ao longo de sua enfermidade. fragmentos de mucosa devem ser obtidos.
A linfadenomegalia periférica é observada com relativa fre­ A mucosa intestinal revela vários graus de atrofia vilosi-
quência e está presente em algumas séries em 55% dos pacien­ tária. As células epiteliais normalmente colunares tornam-se
tes. Os linfonodos apresentam aumento moderado, são firmes, cuboidais, e certo grau de redução da borda em escova pode
342 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes

Figura 31.8 Histologia de biopsia jejunal de paciente com doença de


Whipple antes do tratamento. A mucosa jejunal apresenta vilosidades
alargadas, a lâmina própria encontra-se infiltrada por numerosos ma­
crófagos contendo material PAS positivo e dilatação de vasos linfáticos
(arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
Figura 31.7 Endoscopia digestiva alta de paciente com doença de no Encarte.)
Whipple, mostrando placas amarelo-esbranquiçadas e espessamento
das pregas de mucosa (arquivo dos autores). (Esta figura encontra-se
reproduzida em cores no Encarte.)

estar presente. Na lâmina própria, evidenciam-se macrófagos


aumentados de tamanho, contendo no seu interior grânulos
com material PAS-positivo e negativo na coloração de Ziehl-
Nielsen. Acúmulo de leucócitos polimorfonucleados pode ser
observado. Outros elementos celulares como linfócitos, célu­
las plasmáticas e eosinófilos, são substituídos pelo grande nú­
mero de macrófagos. É importante salientar que o material de
biopsias do intestino delgado, quando superficial, pode não ser
suficiente para se evidenciarem as células PAS-positivas, pois,
ocasionalmente, estas são encontradas em regiões mais profun­
das da submucosa. Os vasos linfáticos da mucosa e submucosa
encontram-se dilatados e, não raro, há gotículas de gordura no
espaço extracelular. A dilatação dos linfáticos e o acúmulo de
gordura, provavelmente, refletem a obstrução linfática causada
pela linfadenomegalia mesentérica (Figura 31.8). Granulomas Figura 31.9 Microscopia eletrônica de mucosa jejunal de paciente
semelhantes aos encontrados na sarcoidose podem estar presen­ com doença de Whipple antes do tratamento. Numerosos T ro p h e ry -
m a w h ip p e lii sáo vistos entre os elementos celulares da lâmina própria
tes no intestino delgado, linfonodos, fígado, pulmão e sinóvia.
(arquivo dos autores).
Após tratamento eficaz, a mucosa do intestino delgado tende
a voltar ao normal de forma gradual. O T. whippelii desapa­
rece dos espaços intercelulares, dentro de poucos dias. Em 4 a
8 semanas, apenas organismos degenerados podem ser encon­ central. São encontradas também, no interior das células epite-
trados no interior do citoplasma de macrófagos. O número de liais, endoteliais, neutrófilos e macrófagos, que contêm no seu
macrófagos PAS-positivo gradualmente vai reduzindo e ocorre interior os grânulos PAS-positivos (Figura 31.9).
o retorno dos constituintes normais da lâmina própria. Con­ A imuno-histoquímica utilizando-se de anticorpos específi­
comitantemente, as vilosidades vão adquirindo sua estrutura cos contra o T. whippelii é exame de grande sensibilidade, capaz
normal. Entretanto, em muitos pacientes, mesmo naqueles que de identificar o T. whippelii em tecidos, nos quais a pesquisa do
evoluem assintomáticos, a aparência histológica da mucosa material PAS foi negativa.
pode manter-se alterada por muitos anos. Este fato faz com A determinação da sequência do RNA da porção 16S ribos-
que o aspecto à microscopia óptica não seja considerado bom sômico do T. whippelii, pela técnica de PCR, é exame de alta
parâmetro para se avaliar resposta terapêutica. sensibilidade e especificidade. A presença de portadores do T.
O estudo do material de biopsia por microscopia eletrônica whippelii, que não desenvolvem a doença, limita seu uso como
mostra a presença de grande quantidade de T. whippelii, que exame de triagem, que deve ser utilizado apenas nos casos com
pode estar presente em qualquer lugar da lâmina própria; en­ clínica sugestiva de DW.
tretanto, é mais abundante próximo à superfície absortiva e ao Anticorpos séricos da classe IgG específicos para o T. whip­
redor dos vasos sanguíneos. Estas bactérias caracterizam-se por pelii têm sido identificados na maioria dos pacientes com D W.
serem pequenas, medem 0,25 jim de largura por 1 a 2,5 Jim de No entanto, tal positividade é observada em 70% de controles
comprimento e tem a parede celular envolta por membrana, o sadios. Quando comparada à IgG, a imunoglobulina IgM é
que confer a elas o aspecto trilamelar, além de um claro nucléolo mais específica. Recentemente, o reconhecimento de alguns
Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes 343

antígenos do T. whippelii, como as proteínas 84kDA, 134kDA, realizado. Entretanto, deve ser levado em consideração como
60kDA e 68kDA, em poucos pacientes com DW e sua ausência diagnóstico diferencial de uma série de síndromes neurológicas.
em controles sadios, abre a perspectiva futura para seu uso no Recentemente, um maior número de casos com acometimento
diagnóstico da doença. ocular e pulmonar têm sido descritos, o que torna esta afecção
um importante diagnóstico diferencial.
■ Diagnóstico diferencial Doença de Crohn, sarcoidose, linfoma difuso do intestino
A DW pode se apresentar por meio de várias manifesta­ delgado, doença celíaca e enteropatia crônica resultante da sín-
ções clínicas inespecíficas, inclusive aquelas relacionadas com drome de imunodeficiência adquirida são algumas das doenças
o sistema gastrintestinal. Assim, para a suspeiçâo diagnósti- que cursam com má absorção intestinal e que sempre devem
ca precoce da doença, torna-se de fundamental importância ser aventadas na abordagem propedêutica. No entanto, a par­
atenção a determinadas manifestações clínicas, como artralgia, tir do momento em que é realizada a biopsia intestinal, pou­
que normalmente antecedem as manifestações clínicas asso­ cas são as afecções que apresentam corpúsculos PAS-positivos
ciadas aos outros sistemas, por meses ou anos. Nessa situa­ nos macrófagos, alterando a arquitetura vilositária do epitélio
ção, a abordagem inicial da doença geralmente é realizada nos intestinal. Esta apresentação histológica pode ser encontra­
ambulatórios de Reumatologia, e a presença, por exemplo, de da em algumas situações, como nos pacientes com síndrome
sacroileítes sorológico-negativas constitui-se em importante de imunodeficiência adquirida, que desenvolvem infecção in­
diagnóstico diferencial. O mesmo pode ser observado quando testinal pelo complexo Mycobacterium avium-intracelullare.
as alterações neurológicas surgem como manifestações clínicas Nestes casos, a clínica e o padrão histológico são semelhantes;
isoladas, sem haver concomitância das queixas digestivas. Esta entretanto, este complexo cora-se positivamente na pesqui­
é uma situação em que o diagnóstico da DW é difícil de ser sa de bacilo álcool-ácido resistente, o que não é observado na

Testes diagnósticos - clássicos

Figura 31.10 Organograma para diagnóstico da doença de Whipple. (Modificado de Schneider.T, Moos, V, Loddenkemper, C, MarthT, Fenollar,
F, Raoult, D. L a n c e t In fe c t. D is. 2008; 8:179-90.)
344 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes

DW. A macrogamaglobulinemia e a histoplasmose dissemi­ Passou-se então a recomendar que o tratamento não deva ser
nada são outras entidades que apresentam quadro histológico feito por período inferior a 12 meses.
semelhante. No entanto, nessas duas afecções, os corpúsculos Não existe consenso sobre o tempo de duração do tratamen­
PAS-positivos localizam-se apenas ao redor dos macrófagos e, to. Aparentemente, esquemas terapêuticos com duração de no
na histoplasmose, o agente corado pelo PAS apresenta-se mais máximo 3 meses estão associados a índices de recaídas maiores.
arredondado. Outro método propedêutico que pode auxiliar Os esquemas mantidos por 12 ou 24 meses associam-se a maior
no diagnóstico diferencial é a eletroforese de proteínas, pois índice de resposta completa, isto é, sem recidivas.
esta apresenta pico monoclonal na macrogamaglobulinemia. O esquema terapêutico recomendado, por vários anos, foi a
Alguns outros microrganismos como Bacillus cereus, Coryne- administração da penicilina G procaína ou penicilina cristalina,
bacterium spp, Histoplasma e Rhodococcus equi, anteriormente na dose de 18 milhões de unidades ao dia, associada a um ami-
denominado Corynebacterium equi, podem ser corados pelo noglicosídio. Classicamente, tem se utilizado a estreptomicina,
ácido periódico de Schiíf. na dose de 1 g ao dia; entretanto, esta droga pode ser substituída
pela amicacina ou gentamicina. Atualmente, utiliza-se ceftria-
■ Tratam ento xone 2,0 g ao dia, ou meropeném 3,0 g ao dia, por 14 dias. A
No período de 1907 a 1952, todos os casos publicados evoluí­ terapia de manutenção é feita com sulfametoxazol (800 mg) +
ram invariavelmente para o óbito. A introdução dos antibió­ trimetoprima (160 mg), 2 vezes/dia. O tempo ideal para se fazer
ticos na abordagem dessa enfermidade foi acompanhada por a terapia de manutenção é questão em aberto. O uso da anti-
mudança radical no curso e prognóstico da doença. Vários anti- bioticoterapia por 2 anos pode não ser suficiente para prevenir
microbianos foram empregados ao longo dos anos; dentre eles, a recaída em alguns pacientes, enquanto outros permanecem
são citados cloranfenicol, tetraciclina, doxiciclina, sulfonamidas livres da doença após 1 ano de tratamento.
e penicilinas, com resultados variáveis. Esquema terapêutico alternativo é a associação da doxici­
Inúmeros trabalhos tentaram padronizar o tratamento com clina 100 mg 2 vezes/dia com a hidroxicloroquina 600 mg/dia,
antibióticos, baseando-se na melhora clínica dos pacientes. No por período de 1 a 2 anos.
entanto, a dificuldade de se cultivar o T. whippelii impossibilitou A interferona gama está indicada, nas recaídas, a despeito de
a realização de estudos bacteriológicos in vitro ou in vivo deste antibioticoterapia adequada, terapêutica que só deve ser indica­
microrganismo, por vários anos. Este fato associado à falta de da quando não há evidências de lesões inflamatórias no SNC.
estudos prospectivos controlados com maior número de casos O início da antibioticoterapia pode ser acompanhado por
se constituíram em fatores impeditivos para a padronização de manifestações sistêmicas como febre alta. Nessa situação, a
um esquema ideal de tratamento. No manejo destes pacientes, corticoterapia deve ser considerada, principalmente se houver
três questões devem ser levantadas: Qual o tratamento ideal? acometimento do SNC, pois a redução da inflamação local, do
Qual a duração do regime terapêutico? E como o paciente deve edema e do dano endotelial, à semelhança do que ocorre na
ser monitorado? O recente cultivo do T. whippelii pode abrir neurotuberculose, melhora o prognóstico da doença.
caminho para a padronização de um esquema de tratamento O monitoramento clínico e laboratorial dos pacientes após
que forneça ao gastrenterologista maior segurança na aborda­ o tratamento é fundamental para confirmação da cura ou no
gem terapêutica. diagnóstico precoce das recidivas.
A partir do trabalho de Keinath et al., publicado em 1985, A pesquisa de PCR é método de escolha no acompanhamen­
alguns preceitos passaram a nortear a terapêutica da DW. Estes to dos pacientes e mostra-se superior ao estudo histológico. A
autores acompanharam 88 pacientes durante pelo menos 1 ano negativação do PCR em 2 a 6 meses após o início do tratamen­
após o tratamento, ou 2 anos após o diagnóstico. No período to correlaciona-se com evolução clínica favorável. O substrato
de estudo, foram constatados 37 casos de recidivas da doen­ tecidual a partir do qual é feita a análise depende da forma de
ça, sendo 16 recidivas clínicas, cinco reumatológicas e apenas apresentação da doença e deve se constituir do mesmo material
uma gastrintestinal (estas recidivas ocorreram até 2 anos após a ser analisado após o tratamento. Habitualmente, recomenda-
o término do tratamento, sendo assim consideradas precoces). se a análise de fragmentos do intestino delgado, combinada com
Já as recidivas observadas no SNC, 13 casos, e cardíacas, dois o estudo do sangue periférico, aumentando-se dessa forma a
pacientes, foram constatadas em um período de tempo superior confiabilidade do resultado dos exames. Nos pacientes com
a 2 anos e chamadas de recidivas tardias. A comparação das doença neurológica, o PCR do liquor, frequentemente, torna-se
características das recidivas, com os esquemas de tratamento negativo nas duas primeiras semanas de tratamento. No entan­
utilizado, fez com que estes autores chegassem a algumas con­ to, poucos pacientes permanecem com PCR positivo, por vários
clusões que hoje sustentam o tratamento da doença. anos, após a terapêutica ter sido descontinuada. A permanên­
No referido trabalho, todos os pacientes que tiveram re- cia do material PAS-positivo em fragmentos de biopsia após o
cidiva tardia a partir do SNC fizeram uso de tetraciclina, que tratamento não indica falha terapêutica e não deve ser utilizada
sabidamente é um antibiótico incapaz de penetrar na barreira na avaliação da resposta antimicrobiana, pois essas alterações
hematencefálica. Acrescido ao fato de que a introdução do sul- podem persistir por mais de 20 anos depois do tratamento.
fametoxazol + trimetoprima aos esquemas terapêuticos, droga,
que têm a capacidade de atravessar a barreira hematencefálica,
foi acompanhada por uma evidente redução do número de re­
■ Gastrenteropatia eosinofílica (ver Capítulo 25)
cidivas a partir do SNC. Assim sendo, o esquema terapêutico
deve basear-se, de preferência, nos antimicrobianos que têm a ■ ANORMALIDADES DOS VASOS LINFÁTIC0S
propriedade de atravessar a barreira hematencefálica, a fim de
evitar a recidiva tardia da doença, pois reconhece-se que o SNC
é importante fonte residual da bactéria, sendo responsável, em
■ Linfangiectasia intestinal
parte, pelas recidivas que ocorrem após 2 anos de tratamento. A drenagem linfática do intestino delgado tem início em
As recidivas precoces foram mais frequentes nos pacientes sub­ vaso linfático que ocupa a região central da vilosidade intesti­
metidos ao tratamento por período de tempo inferior a 1 ano. nal. Essa estrutura tem a extremidade voltada para o ápice da
Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes 345

vilosidade e recebe a linfa normal e nutrimentos absorvidos, que


são conduzidos para a rede linfática da lâmina própria, onde
está presente sistema valvular que direciona o curso da linfa.
A linfa da região das criptas também é drenada para a rede da
lâmina própria através dos capilares. Seguem-se a esses ramos
minúsculos vasos, que ultrapassam a muscularis mucosae e vão
formar a rede linfática da submucosa. A partir daí, canais linfá-
ticos mais calibrosos, que recebem a linfa proveniente das ou­
tras camadas da parede do intestino delgado, se dirigem para o
ponto de inserção do mesentério, penetram entre os dois folhe­
tos serosos, formando uma grande rede que converge para os
grandes canais na raiz do mesentério, e conduzem a linfa para
a cisterna de Pecquet, que é o ponto inicial do dueto torácico.
Os vasos linfáticos do duodeno seguem, na maioria das vezes,
o trajeto dos vasos até os grupos ganglionares regionais.
A rede linfática do mesentério é intercalada por um grande
número de linfonodos, que formam o maior agregado de nódu-
los linfoides do organismo e que se tornam maiores e mais nu­
merosos à medida que se aproximam da raiz do mesentério. Figura 31.11 Linfangiectasia intestinal. Observa-se dilatação de vaso
As linfangiectasias intestinais podem ser caracterizadas linfático e a presença de linfócitos no seu interior (arquivo dos autores).
como enteropatias exsudativas, secundárias a anormalidade (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
do fluxo linfático. A dilatação dos vasos linfáticos resulta em
rompimento desses para o lúmen intestinal, acarretando per­
da proteica, linfopenia, hipoalbuminemia e hipogamaglobuli- ticos ectasiados. A enteroscopia ou cápsula endoscópica está
nemia. Quando o fluxo linfático é alterado por anormalidades indicada na presença de linfangiectasias localizadas, não diag-
congênitas dos vasos, a linfangiectasia é dita primária; caso a nósticas à endoscopia digestiva alta.
dificuldade da drenagem ocorra como consequência de outras O estudo histológico da mucosa intestinal revela vilosidades
afecções, chama-se a linfangiectasia de secundária. É o que pode distorcidas, com dilatação dos vasos linfáticos. Há edema na
ser visto, por exemplo, na presença de obstruções inflamató- lâmina própria e submucosa. Macrófagos mais claros e ocasio­
ria ou tumorais, na paracoccidioidomicose e tuberculose com nalmente células multinucleadas são observados permeando
comprometimento linfonodal. Também, nas situações em que a lâmina própria. À microscopia eletrônica, podem ser vistas
existe aumento da pressão venosa central, como na insuficiência gotículas de gordura entre as células epiteliais e no córion.
cardíaca congestiva direita ou na pericardite constritiva. O tratamento baseia-se na retirada dos triglicerídios de ca­
A linfangiectasia intestinal primária é doença rara. Geral­ deia longa da dieta. A redução da pressão exercida pelos qui-
mente, é diagnosticada antes dos 3 anos, mas pode ser obser­ lomicros no interior dos vasos linfáticos minimiza a ruptura
vada em qualquer idade. Possui distribuição semelhante entre dessas estruturas e, consequentemente, a perda entérica de pro­
os sexos. teínas. A suplementação dietética com triglicerídios de cadeia
As principais manifestações clínicas são edema e diarréia, curta está indicada. Nos casos que não respondem às medidas
consequência da má absorção e perda entérica de proteínas. dietéticas iniciais, deve-se instituir o suporte nutricional com
O edema inicialmente pode ser intermitente, para mais tarde nutrição enteral e, em casos graves, a nutrição parenteral torna-
tornar-se constante. Está presente em 95% dos pacientes. Ra­ se necessária.
ramente, é assimétrico e pode assumir o caráter de linfedema. Associado aos cuidados dietéticos, o octreotídio, na dose de
Derrame pleural, pericárdico e ascite quilosa são observados em 150-200 pg, 2 vezes/dia ou sua formulação de liberação lenta,
até metade dos casos, durante o evoluir da doença. Esteatorreia, tem se mostrado eficaz na melhora de parâmetros clínicos, la­
distensão abdominal, emagrecimento e anemia são manifesta­ boratoriais e histológicos. O uso do ácido tranexâmico, 1 a 3 g
ções que podem estar presentes. ao dia, é preconizado por alguns autores, com melhora parcial
As principais alterações laboratoriais são hipoalbuminemia, das manifestações clínicas.
associada à hipogamaglobulinemia e linfocitopenia. A hipo- A suplementação intravenosa de albumina é tratamento sin­
calcemia em especial é particularmente acentuada. Aumento tomático para redução de quadros graves de edema.
da gordura fecal e alterações dos outros testes que avaliam a O tratamento cirúrgico está restrito a poucos casos de lin­
má absorção estão na dependência do comprometimento in­ fangiectasia segmentar localizada no duodeno.
testinal. A perda entérica de proteína pode ser comprovada
através da albumina marcada com o s,Cr ou dosagem de alfa-
1-antitripsina fecal. ■ ANORMALIDADES MÚLTIPLAS
A radiografia do intestino delgado mostra áreas nodulares
de defeito de enchimento e aspecto irregular no contorno das
alças jejunais. Alças intestinais dilatadas, com paredes espessa­
■ Tuberculose intestinal (ver Capítulo 44)
das, são alterações observadas à tomografia e ao ultrassom de
abdome. A cintigrafia com albumina sérica marcada com 99mTc
■ Paracoccidioidomicose
pode mostrar perda proteica para o interior da alça intestinal. A paracoccidioidomicose é a micose profunda mais frequen­
A linfocintigrafia periférica é método eficaz para avaliação das te, que ocorre apenas nos países latino-americanos, notada-
alterações da rede dos vasos linfáticos periféricos. mente no Brasil. É causada pelo Paracoccidioides braziliensis,
À endoscopia digestiva alta, observam-se, no duodeno, le­ fungo dismórfico que, à temperatura ambiente, apresenta-se
sões branco-opalescentes, que correspondem aos vasos linfá- sob a forma micelial e a 37°C assume a forma leveduriforme.
346 Capítulo 31 / Doença Imunoproliferativa do Intestino Delgado, Doença de Whipple e Outros Distúrbios no Transporte de Nutrientes

Parece ter no solo ou nos detritos vegetais o seu habitat natural. Nassar, VH, Salem, PA, Munib, JS et al. Meditcrrancan abdominal diseasc or
immunoprolifcrativc small intestinal diseasc. Part II: pathological aspccts.
É doença sistêmica, polimórfica, com grande variabilidade na
Câncer, 1978; 41:1340-54.
frequência de diferentes quadros clínicos. Pode assumir duas Pricc, SK. Immunoprolifcrativc small intestinal diseasc: a study of 13 cases with
formas principais: a paracoccidioidomicose aguda, tipo juvenil, alpha hcavy-chain diseasc. Histopathology, 1990; 17:7-17.
ou a paracoccidioidomicose crônica, tipo adulto. Rambaud, JC, Bogncl, C, Prost, A et al. Clinico-pathological study of a patient
O acometimento do sistema digestivo é observado com with “meditcrrancan” type of abdominal lymphoma and a ncw typc of IgA
abnormality (“Alpha chain diseasc”). Digestion, 1968; 1:321-36.
maior frequência na forma juvenil. Lesão na cavidade oral e
Salem, PA, Nassar, VH, Shahid, MJ et al. Meditcrrancan abdominal diseasc
orofaringe são mais frequentes, e as lesões do esôfago, estômago or immunoprolifcrativc small intestinal diseasc. Part I: clinicai aspccts.
e duodeno são raras. Alguns autores relatam comprometimento Câncer, 1977; 40:2941-7.
intestinal em aproximadamente 80% dos casos. Os segmentos Tabbanc, F, Mourali, N, Cammoun, M, Najjar, T. Rcsults of laparotomy in im­
intestinais mais acometidos são íleo, ceco e cólon. Dor abdo­ munoprolifcrativc small intestinal diseasc. Câncer, 1988; 61:1699-706.
W HO-Mcmorandum. Alpha-chain diseasc and rclated small intestinal lym­
minal, crônica, de localização variável, contínua ou em cólica, phoma a memorandum. Bull World Health Organ, 1976; 54:615-24.
associada a alterações no trânsito intestinal, são as queixas mais
comuns. A lesão intestinal parece ser secundária ao comprome­
timento do sistema linfático abdominal e da enterite específica ■ Doença de Whipple
causada pelo P. braziliensis. A diarréia pode manifestar-se como Durand, DV, Lccomtc, C, Cathcbras, P et al. Whipplcss diseasc - clinicai rcvicw
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1209-19.
se com quadros de semiobstrução ou obstrução intestinal, em Ferrari, MLA, Vilela, EG, Faria, LC et al. W hipples diseasc. Rcport of five
decorrência de processos estenosantes, bridas ou compressão cases cases with dilTcrcnt clinicai features. Rev Inst Med Trop São Paulo,
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Doença de Crohn
Lorete Maria da Silva Kotze, Paulo Gustavo Kotze e Luiz Roberto Kotze

A prevalência da DC parece mais alta em áreas urbanas que


■ INTRODUÇÃO nas rurais e nas classes sociais mais elevadas. Uma hipótese
A doença de Crohn (DC) é uma doença inflamatória trans- para esta diferença em incidência entre nações desenvolvidas
mural e recidivante que pode acometer qualquer segmento do e em desenvolvimento é a de higiene, que sugere pessoas me­
nos expostas a infecções na infância ou a condições sanitárias
tubo digestório, da boca ao ânus, caracterizada por inflamação
descontínua dos segmentos digestivos acometidos, com formas de maior contaminação com organismos “amigos”, ou com
organismos que promovem o desenvolvimento de células T;
distintas de manifestações em cada indivíduo (luminal, pene­
trante ou fistulizante). É também considerada uma doença sistê­ ou, ainda, que não desenvolvam repertório imune suficien­
te porque não experimentaram organismos nocivos. Estes in­
mica, pois apresenta manifestações extraintestinais que podem
divíduos estariam associados a maior incidência de doenças
ou não estar ligadas à atividade da doença digestiva. Desde a
imunológicas crônicas, incluindo-se a DII. No Brasil, não há
sua descrição inicial em 1932, por Crohn, Ginzburg e Oppe-
associação com classe social, segundo relatos de diversos au­
nheimer, esta afecção tem se comportado como um verdadeiro
tores em diferentes estados.
enigma para gastroenterologistas e cirurgiões. Com o desen­
volvimento de modernas e minuciosas técnicas laboratoriais,
associadas ao avanço da pesquisa clínica, novos caminhos fo­
ram percorridos no conhecimento de sua etiopatogenia. Como ■ ETI0PAT0GÊNESE
consequência, surgiram novas formas de tratamento clínico e A DC é considerada idiopática, pois não se identificou até o
cirúrgico, com bons resultados no controle da atividade da do­ momento um agente patológico específico. Não há dúvida de
ença. Entretanto, apesar desses notáveis avanços, a descoberta que a predisposição genética e os dados epidemiológicos são
de sua cura parece estar muito distante. mais consistentes e relacionados com doença poligênica.

■ ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS ■ Fatores ambientais


Em relação aosfatores ambientais, amamentação, infecções
A retocolite ulcerativa (RCU) e a doença de Crohn (DC) intestinais, higiene, agentes microbianos, dieta, cigarro, ocupa­
são doenças inflamatórias crônicas idiopáticas e heterogêneas, ção, poluição e estresse são os mais comumente citados como
comuns também entre crianças e adolescentes, constituindo envolvidos na DC. Dados clínicos e experimentais reforçam o
cerca de 25% dos casos de doença inflamatória intestinal (DII). papel da flora intestinal normal na iniciação ou perpetuação da
Tem havido aumento na incidência da DC, enquanto a RCU inflamação intestinal. Não está claro se um fator ou vários fa­
permanece estável. Explica-se este fato, pelo menos em parte, tores ambientais são necessários para desencadear e/ou manter
pela tendência geral do pediatra em ter alto índice de suspeição a doença (Quadro 32.1).
em pacientes com dor abdominal crônica, ou história familiar Pensa-se que a DII seja o resultado de uma inter-relação
positiva para DII. No adulto, a DC apresenta distribuição bimo- entre um ou mais fatores ambientais em indivíduos genetica­
dal em relação à idade: maior pico entre 20 e 40 anos, e menor mente predispostos. Estudos epidemiológicos sugerem que a
de 60 a 80 anos. Predisposição familiar é, sem dúvida, o fator de DC seja mais encontrada em países industrializados e que seja
risco mais importante para o desenvolvimento da DC. rara nos em desenvolvimento. O consumo de açúcar refinado
Segundo a World Gastroenterology Organization Practice e gorduras polinsaturadas poderia ser uma explicação, mas não
Guidelines (2009), a incidência da DC é < 1/100.000 na Ásia e há provas. Ao contrário, sanitarismo precário e exposição o
América do Sul, mas, provavelmente, esteja aumentando. Na parasitos intestinais poderiam influenciar a imunidade intes­
Europa e África do Sul, 1 a 2/100.000; 16/100.000 na Nova Zelân­ tinal e reduzir a suscetibilidade nos indivíduos geneticamente
dia e Austrália; 14/100.000 no Canadá; e 7/100.000 nos EUA. predispostos. Diagnóstico de novos casos em pacientes que

347
348 Capítulo 32 / Doença de Crohn

----------------------------- ▼--------------------- O início precoce da DC e sua gravidade podem ser genetica­


Q u a d ro 32.1 Possíveis fatores ambientais envolvidos mente determinados e ligados à suscetibilidade em locus do
na doença de Crohn cromossomo 16. Em 2001, mutações no domínio de oligome-
rização de nucleotídio (NOD) 2 e recrutamento 15 (CARD) no
H á b it o d e fu m a r cromossomo 16 foram os primeiros genes de suscetibilidade
A p e n d e c t o m ia para a DC a ser identificados.
F a to re s a lim e n ta re s (v á rio s )
Ahmad et al. (2002) foram os primeiros a estabelecer corre­
lação genótipo-fenótipo para a DC. Demonstraram que a pre­
In fe c ç õ e s (a n te s d o s 2 0 a n o s )
M y c o b a c te r iu m . P a r a t u b e rc u lo s is disposição para doença do intestino delgado estava associada a
S a ra m p o alelos variantes NOD2, enquanto pacientes homozigotos para
G a s trin te s tin a is re c o rre n te s
NOD2 tinham alto risco relativo para doença isolada no íleo
D ro g a s
terminal. Embora nenhuma correlação fosse encontrada entre
A n t i-in f la m a tó r io s n à o e s te ro id e s
A n tib ió tic o s NOD2 e o desenvolvimento de fístulas, correlação significativa
C o n t r a c e p t iv o s o ra is foi encontrada na incidência de cirurgia para doença estenosan-
Estresse te nos pacientes que eram também positivos para NOD2. Até
o presente momento, os polimorfismos associados à DC estão
no gene NOD2/CARD15. Mutações no NOD2 resultam em
diminuição na resposta de ativação de células imunes ao lipo-
polissacarídio, corroborando o papel da responsividade bacte­
recentemente emigraram de países em desenvolvimento para riana aberrante em pacientes com DC. NOD2 está associada ao
países industrializados pode corroborar tal fato.
fenótipo clínico específico no qual os pacientes são mais jovens
A questão fundamental em relação à patogênese da DC per­
no início da enfermidade e apresentam a doença no intestino
manece: a resposta inflamatória reflete uma resposta imune delgado, além de predisposição ao desenvolvimento de fibro-
apropriada a um estímulo anormal persistente? Ou uma res­ estenose. O NOD2 não é apenas um gene de suscetibilidade: é
posta anormal a mais de um estímulo corriqueiro? também gene modificador de doença, com efeitos fenotípicos
Ultimamente, o papel das bactérias endógenas e patogê­ “dose-dependentes”.
nicas no desencadeamento da resposta inflamatória tem sido Alguns genes específicos podem interagir com os fatores
ressaltado. Vários modelos animais têm sido desenvolvidos. ambientais, incluindo, provavelmente, patógenos bacterianos,
A flora intestinal é diferente conforme as culturas dos países: ou seus produtos, componentes da dieta, infecções na infância,
nas que dependem menos de alimentos refinados, os indiví­ bem como uma variedade de possibilidades. O problema básico
duos armazenam uma flora rica em bifidobactérias e lactoba- parece ser um estímulo na mucosa intestinal, em um indivíduo
cilos; nas que adotam dieta mais ocidentalizada, predominam geneticamente predisposto, seguido de uma resposta do sistema
os bacterioides. Tais fatos deram ideia do uso de terapias pré e imune isenta de autocontrole.
probióticas para os pacientes com DII. Os probióticos modi­ Os estudos iniciais dos genes na DII se concentraram na
ficariam favoravelmente a flora bacteriana colônica, o estado pesquisa do complexo maior de histocompatibilidade (MHC) e
imunológico e a inflamação, mas estudos randomizados ainda revelaram achados discordantes entre os autores, sugerindo in­
estão em andamento. fluência nas diferenças étnicas entre as diferentes populações.
Eventos perinatais têm sido associados a alto risco para o O estudo genético também está sendo proposto para cor­
desenvolvimento de DII, tais como infecção pré-natal da mãe; relação do genótipo com a resposta ao tratamento da DC. No
complicações da gestação como pré-eclâmpsia, ameaça de abor­ Japão, um subtipo de HLA, DQA1*0102 está relacionado com
to e diabetes gestacional; exposição perinatal ao vírus do sa­ a DC resistente ao tratamento. Os pacientes com DC não apre­
rampo. sentam tolerância oral à flora autóloga, como ocorre no indi­
víduo normal, e, portanto, estão expostos à inflamação crôni­
■ Fatores genéticos ca, pela perpetuação da resposta imune da mucosa ao agente
bacteriano autólogo.
História familiar positiva para RCU ou DC é o fator mais
importante. O risco de descendentes apresentarem DII é de 1,6
e 5,2%, respectivamente, nas duas doenças. Em descendentes ■ Avanços genéticos na doença de Crohn
de judeus Askenazi, chega a 10 a 12,6%. A alta concordância Na última década, vários estudos de análise de ligação, segui­
em gêmeos monozigóticos enfatiza este ponto. Além disso, a dos por estudos de análise sistêmica do genoma, demonstraram
associação da DC com outras doenças de caráter genético (es- evidências de polimorfismos genéticos associadas à DC em mui­
pondilite ancilosante, síndrome de Turner etc.) evidencia o tos genes. Esforços conjuntos em vários centros de pesquisa têm
caráter genético. Estudos familiares evidenciam famílias em alcançado sucesso na identificação de genes na DC, incluindo
que há casos de RCU e DC, sugerindo que estas duas entidades CARD 15 (NOD2): DLG5, SLC22A4 e SLC22A5, CARD4, IL-23R,
podem ter um ou mais genes em comum ou que representem ATG16L1, PHOX2B e NCF4. No entanto, nenhum dos loci des­
pleiomorfismo. tes genes confere risco relativo maior que 2, comprovando que
Fatores genéticos e familiares são mais óbvios em casos que a DC é um distúrbio poligênico complexo, segundo Rioux et
se iniciam antes dos 20 anos de idade. Presumivelmente, em al. (2007) e Hugot e Jung (2006).
pacientes mais velhos, fatores ambientais desempenham papel A identificação do gene CARD 15 (Caspase recruitment do-
importante na patogênese da DC. main-containingprotein 15), em 2001, redirecionou a atenção
Aspectos genéticos podem antecipar dados epidemiológicos: para o importante papel da imunidade inata na DC. A proteína
por exemplo, filhos de pacientes com DC iniciarem a doença CARD 15 induz apoptose e a ativação da via de sinalização do
em idade mais precoce. Isso também está associado a doença fator de transcrição nuclear kappa beta (NF-Kp). O NF-Kp de­
mais extensa e estenótica do íleo, com necessidade de cirurgia. sempenha função importante na manutenção da homeostasia
Capítulo 32 / Doença de Crohn 349

da mucosa e também age como mediador nas respostas especí­ -------------------------- ▼--------------------------
ficas a patógenos (Bonen et al., 2003; Vermeire et al., 2006; Ba- Q u a d ro 32.2 Resposta inflamatória e imune na doença de Crohn
mias e Cominelli, 2007). Os principais polimorfismos do gene
CARD15 (R702W, G908R e 3020insC) podem ser encontrados Im u n id a d e h u m o r a l A s s o c ia ç ã o fra ca c o m d o e n ç a s a u t o im u n e s
(tir e o id ite d e H a s h im o t o , LE S )
em até 33% dos pacientes com DC nas populações caucasia-
nas. Indivíduos portadores de um destes polimorfismos têm R ara p r o d u ç ã o d e a u t o a n t ic o r p o s (a n tic ó lo n ,
pANCA)
um risco aumentado de 2 a 4 vezes para o desenvolvimento da
DC, enquanto portadores homozigotos ou heterozigotos com­ Im u n id a d e m e d ia d a In filtra d o m u c o s o g r a n u lo m a t o s o (p r e d o m ín io
p o r c é lu la s d e c é lu la T )
postos têm um risco de 20 a 40 vezes. Estudos de análise entre
A u m e n t o d a re a tiv id a d e d e c é lu la s T
os principais polimorfismos do gene CARD15 e manifestações
fenotípicas da DC têm encontrado associação com a idade de P r o d u ç ã o d e c it o c in a s R e s p o sta T h 1 (IL -2 , IF N , IL -1 2 , T N F - a )

início precoce da doença, localização ileal e forma estenosante, O u t r a s c ito c in a s : IL -1 , IL -6

conforme Acosta e Pena (2007). IFN » Interfcron; IL ■ Interleucinas; pANCA - Anticorpo citoplasmátlco perinudear
A descoberta do gene ATG16L1 (autophagy-related 16-like antineutrófilo; Th ■ Célula T auxiliadora: TNF = Fator de necrose tumoral; LES » Lúpus
1) salienta a participação da resposta imune inata na DC. Para critematoso sistêmico.

Hampe et al. (2007), a autofagia representa um recurso no res­


tabelecimento da homeostasia diante de vários patógenos e to­
xinas bacterianas e, quando este mecanismo está prejudicado,
a apoptose pode ser desencadeada. cinas pró-inflamatórias: fator de necrose tum oral-a (TNF-a)
Recentemente, as descobertas do gene receptor da inter- e interleucina-12, induzindo resposta Thl.
leucina 23 (IL-23R) eA T G ló L l (autophagy-related 16-like 1) As células CD4+ ativadas podem se diferenciar em células
também propiciaram avanços no conhecimento da imunopa- Thl ou Th2, que diferem no tipo de citocinas liberadas e em
togênese da DC e apontaram novos rumos na investigação da sua função. As células 'Thl produzem grande quantidade de
imunologia da mucosa intestinal. AIL-23 promove, junto com citocinas IL-2 e interferona (IFN-gama), enquanto as células
o TGF-pl e IL-6, a expansão de células secretoras de IL-17 pró- Th2 produzem IL-4, IL-5 e IL-10. Com a cronicidade do pro­
inflamatórias. Acredita-se que a IL-23 seja responsável pela cesso inflamatório da mucosa intestinal, há progressão em di­
manutenção ou estabilização da resposta Th 17 e, junto com reção ao perfil Thl, caracterizado por aumento significativo de
seu receptor, o IL-23R, são apontados como importante via de IL-2, de IFN-À. e de citocinas inflamatórias (IL-1, IL-8, TNF-a).
sinalização na imunopatogênese da DC. Nas lesões crônicas, IFN-y desempenha papel importante ao
Vários estudos populacionais mostram que polimorfismos estimular o macrófago que irá produzir TNF-a, daí a importân­
nos genes CARD15, IL-23R e ATG16L1 apresentam diferenças cia dos anticorpos anti-TNF-a, que não somente neutralizam
entre os diversos grupos étnicos. Um estudo brasileiro recente, o TNF-a, mas, sobretudo, provocam a lise das células que têm
conduzido por Baptista et al. (2008), avaliando 187 pacientes, o TNF-a em sua superfície.
crianças e adultos com DC, e 255 controles, todos procedentes Em síntese, a hipótese atualmente aceita sugere que indi­
dos estados do Paraná e de São Paulo, confirmou a associação de víduos geneticamente predispostos apresentam resposta imu-
polimorfismos dos genes CARD15 (R702W/3020insC)eIL-23R nológica inadequada na mucosa intestinal perante diferentes
(rsl004819, rsl 1209026, e rsl088967) nestes pacientes, mas não estímulos ambientais. Infecções entéricas bacterianas ou virais,
foi encontrada correlação genótipo-fenótipo. toxinas ambientais e drogas anti-inflamatórias não esteroides
(AINEs) induzem habitualmente à lesão transitória na muco­
sa intestinal. Em indivíduos normais, com supressão eficiente
■ FATORES IMUN0LÓGIC0S da cascata imunológica, opera-se rápida resolução do processo
inflamatório, com reparação completa do dano tecidual. Já no
Em relação aos aspectos imunológicos, muitos avanços foram hospedeiro geneticamente suscetível, falha na imunorregula-
obtidos através de estudos com novos anticorpos (monoclonais ção leva à amplificação da resposta inflamatória, resultando em
e policlonais) e técnicas sofisticadas envolvendo elementos celu­ inflamação crônica, destruição tecidual, fibrose e, consequen­
lares e mediadores inflamatórios participantes da reação imune temente, ocorrência de danos irreversíveis.
da mucosa intestinal (Quadro 32.2). Com base na compreensão dos mecanismos inflamatórios
A inflamação da mucosa característica da DC é o resultado da lesão, têm-se obtido avanços na estratégia terapêutica.
de uma cascata de eventos iniciados pelo antígeno, ainda in­
determinado. Há possibilidade de que componentes habituais
da flora intestinal possam desencadear ou contribuir para a ■ FISI0PAT0L0GIA
enfermidade.
O epitélio intestinal pode participar da resposta imune ini­ O aumento da permeabilidade intestinal tem sido implicado
cial da mucosa de três formas: na patogênese da DC com consequente aumento da carga de
antígenos pelo sistema imune da mucosa que inicia e perpetua
a) aumentando a permeabilidade e a absorção do antígeno,
a inflamação. Tal fato ocorre no início da recaída do paciente
possivelmente de origem bacteriana, intensificando o es­
e pode normalizar após cirurgia, implicando que possa ser um
tímulo imune;
fenômeno secundário à inflamação da mucosa intestinal. No
b) inflamação pela liberação de citocinas, quimiocitocinas,
entanto, permeabilidade aumentada pode estar presente em
e outras substâncias inflamatórias;
familiares saudáveis de primeiro grau dos pacientes com DC,
c) atuando como célula apresentadora de antígenos.
permanecendo em discussão se o defeito nos familiares é gene­
O macrófago é a primeira célula a receber o antígeno e o ticamente predeterminado e ocorre na ausência da inflamação
apresenta ao complexo maior de histocompatibilidade (MHC), intestinal, ou representa um estado subclínico da enfermidade,
para a célula CD4+. Os macrófagos ativados elaboram as cito- com inflamação intestinal assintomática.
350 Capítulo 32 / Doença de Crohn

A DC pode afetar qualquer área do intestino. Tipicamente, 1. Predisposição genética


há áreas descontinuamente afetadas (lesões em salto). A pri­ 2. Início ou deflagração
meira anormalidade visível é o aumento dos folículos linfoides 3. Progressão ou perpetuação
com um anel de eritema em volta (sinal do anel vermelho). Isso 4. Regulação
leva à ulceração aftoide que, por sua vez, progride a ulcerações 5. Cicatrização
profundas, fissurando, com aspecto de “pedra de calçamento”,
O quadro clínico é muito variado, pois depende da duração,
fibrose, estenose e fistulização. Inflamação e fibrose predispõem
localização, extensão, atividade da doença, e presença ou não
a estenoses intestinais, apresentando-se com sintomas obstru-
tivos e perfuração local da parede intestinal, levando à forma­ de complicações. Às vezes, especialmente nas fases iniciais da
doença, a extensão das lesões é tão pequena que o paciente per­
ção de abscesso.
manece assintomático e a doença é descoberta acidentalmente;
Na DC a dor abdominal, no início da doença, decorre de
ou são tão extensas que provocam intensas manifestações clí­
obstrução funcional, por espasmo e edema, e, posteriormente,
nicas. Em algumas crianças, a evolução pode ser muito grave,
a obstrução se torna orgânica por fibrose e estenose. O com­
em forma fulminante, principalmente naquelas com início da
prometimento seroso, pela inflamação transmural lesando ter­
doença antes do primeiro ano de vida, nos doentes com grande
minações nervosas, vai intensificar e perpetuar a dor com a
extensão da doença e também nas situações de comprometi­
evolução da doença.
A inflamação da mucosa, o edema, a fibrose, a obstrução mento extraintestinal.
linfática, quando localizados no intestino delgado, podem pro­ A dor abdominal é o sintoma mais comum, geralmente em
vocar diferentes fenômenos disabsortivos. A extensão e a locali­ caráter de cólica, intensa e mais presente do que na RCUI. Em
zação anatômica da lesão determinam o grau de má absorção, algumas ocasiões, é caracterizada como cólica periumbilical,
assim como a especificidade do nutriente envolvido. Compro­ pós-prandial, mas geralmente tende a se localizar em quadrante
metimento do duodeno e jejuno proximal leva à má absorção de inferior direito, devido à grande frequência do comprometi­
folatos, vitaminas, ferro, glicídios e lipídios; comprometimento mento do íleo terminal. O desconforto abdominal tende a se
do íleo distai provoca má absorção de gorduras e de aminoá- iniciar após as refeições em pacientes com envolvimento do
cidos; e comprometimento do íleo terminal, má absorção de intestino delgado, particularmente do íleo terminal. A cólica
vitaminas B,, e de lipídios. aumenta antes da defecação, relacionada com o trânsito do
Depleção de potássio ocorre com certa frequência por falta conteúdo intestinal através do segmento intestinal inflamado
de ingestão e por perda excessiva através das fezes. Hipopotas- e/ou estenosado. A dor abdominal pode acordar o doente du­
semia, acompanhada às vezes de hipomagnesemia, pode ser rante o sono noturno.
observada em alguns pacientes em consequência à hipoalbumi- Em alguns pacientes com comprometimento do trato diges-
nemia, à esteatorreia e à má absorção de vitamina D. tório superior, a dor abdominal pode ser epigástrica, mimeti-
A hipoalbuminemia é frequente e pode ser explicada pela zando doença péptica. Odinofagia, disfagia, pirose e anorexia
ingestão reduzida consequente à anorexia, pela diminuição estão presentes quando há envolvimento do esôfago. A DC de
de síntese nos casos com lesões hepáticas, pela má absorção esôfago é rara, menos de 80 casos na literatura, geralmente se
dos aminoácidos e pela perda proteica através do intestino localiza no terço distai, é sempre sintomática e em geral está
inflamado e ulcerado, que pode ser observado na maioria dos associada ao comprometimento do intestino delgado e grosso.
casos. O trato digestório superior deve sempre ser avaliado nos pa­
A anemia é frequente e múltiplos fatores concorrem para o cientes com queixas digestivas altas.
seu aparecimento. Habitualmente, é do tipo microcítica hipo- Pacientes com envolvimento ileocolônico têm maior risco
crômica por depressão tóxica da medula, pelo processo infla- de formação de fístulas e, frequentemente, apresentam dor em
matório crônico e/ou carência de ferro por ingestão reduzida, quadrante inferior direito e massa abdominal palpável. A dor
e pelas perdas sanguíneas através do intestino inflamado. Even­ abdominal pode ainda apresentar-se de forma aguda e acom­
tualmente, pode ser megaloblástica nas lesões extensas do íleo, panhada de febre, simulando quadro de apendicite aguda.
por déficit de vitamina B12. A progressão do processo inflamatório, particularmente do
Esses fenômenos disabsortivos somados à ingestão insufi­ intestino delgado, pode resultar em segmentos intestinais este-
ciente de calorias levam ao grande déficit de crescimento, ob­ nosados com obstrução intestinal parcial ou total. Tais pacientes
servado em 20 a 30% dos pacientes pediátricos, especificamen­ reclamam de dor abdominal tipo cólica progressiva e frequen­
te nos que apresentam comprometimento do jejuno e de íleo temente acompanhada de borborigmos, distensão abdominal e
(Prancha 32.1 A). vômito, necessitando de monitoramento clínico, pois há risco
Nas lesões do intestino grosso, ocorre perda de proteínas potencial de perfuração intestinal com formação de abscessos,
por exsudação devido ao processo inflamatório e alteração da peritonite ou fístulas (Prancha 32.2).
função absortiva, especificamente de sódio e água. Deficiência A febre aparece em 20 a 50% dos casos, seja pelo processo
de zinco pode acompanhar esta excessiva perda entérica. inflamatório em si, seja pelas complicações do tipo supurativo
(abscessos, fístulas), podendo ser manifestação única ou pre­
dominante, levando, muitas vezes, à investigação exaustiva de
■ QUADRO CLÍNICO febre de origem indeterminada.
A diarréia pode acompanhar o sintoma principal (dor ab­
O médico deve incluir na anamnese perguntas sobre m ani­ dominal), é de intensidade moderada, geralmente intermiten­
festações extraintestinais, distúrbios de humor, recentes pro­ te, ocorrendo com maior frequência nos casos de comprome­
blemas médicos ou infecções, história passada de tuberculose, timento difuso do intestino delgado ou isolado do cólon. No
viagens, medicações (antibióticos e AINEs), história familiar de primeiro caso, tem mais características de esteatorreia e, no
DII, doença celíaca, câncer colorretal e uso de tabaco. segundo, as fezes, por serem mucossanguinolentas, confundem-
A DC apresenta fases e, nestas, o quadro clínico pode ser se com as da RCU. O sangramento retal na DC, de modo ge­
totalmente diferente (Prancha 32.1). ral, é menos frequente do que na RCU, mas, quando presente,
Capítulo 32 / Doença de Crohn 351

Prancha 32.1 Manifestações clínicas de pacientes com doença de Crohn. A. Déficit de crescimento (12 anos); B. Atraso de desenvolvimento
sexual (17 anos); C. Quadro de oclusáo intestinal aguda, diagnóstico de DC; D. Paciente adulta com diarréia crônica e desnutrição, diagnóstico
diferencial com linfoma. Laparotomia sem ressecções; E. Paciente antes e depois de nutrição parenteral total; F. Adolescente com efeitos da
corticoterapia; acne e m o o n face.
352 Capítulo 32 / Doença de Crohn

Prancha 32.2 Lesões perineais na doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A. Lesões orificiais graves
com distorção da anatomia anorretal; B. Lesões graves da pele perineal, alterações orificiais. Observar lesões de vasculite na pele das nádegas;
C. Enduraçáo em períneo estendendo-se à região escrotal, com vários orifícios fistulosos; D. Lesões orificiais, abscesso com orifício drenado
secreção; E. Aumento de volume dos grandes lábios e orifícios fistulosos (se tas); F. Leucorreia e orifícios fistulosos para períneo e região peri­
neal (setas).
Capítulo 32 / Doença de Crohn 353

traduz comprometimento dos colos. O Quadro 32.3 mostra os A doença perianal (Prancha 32.2) é observada em 15 a 40%
mecanismos e o tratamento para a diarréia na DC. dos pacientes e pode se destacar como a primeira manifestação
A perda de peso pode ser o sintoma inicial da DC. Os me­ da DC, segundo Buchmann & Alexander-Willians. A doença
canismos são vários: redução da ingestão de alimentos, perdas perianal pode se apresentar nas seguintes formas:
proteicas para o lúmen intestinal, aumento das necessidades
alimentares não atendidas, estado de catabolismo. A desnutri­ a) lesão de pele: maceração, erosão, ulceração e abscessos,
ção cobra um pesado ônus, sobretudo nas crianças. Felizmente, pregas;
algumas dessas alterações podem ser corrigidas com suporte b) lesão do canal anal: fissura, úlcera, estenose com indu-
alimentar adequado (Prancha 32.1, D). ração;
O déficit de crescimento e o retardo de maturação sexual c) fístula: baixa (canal anal para a pele), alta (reto para a
ocorrem em cerca de 6 a 50% dos casos de crianças (Prancha pele), retovaginal.
32.1, A e B). Os distúrbios de crescimento:
a) afetam os pacientes com DC; ■ Manifestações extraintestinais
b) podem preceder a doença por vários anos;
As manifestações extraintestinais da DC são bastante fre­
c) são fáceis de reconhecer;
quentes. Muitas se relacionam com exacerbações da afec-
d) mas ainda não são valorizados;
e) são irreversíveis se não tratados a tempo. ção, cedendo quando a doença básica se torna inativa; outras,
uma vez estabelecidas, seguem curso independente e, con­
Sua avaliação pode ser feita pelas curvas de percentis. Tam­ forme sua gravidade, podem levar o paciente ao óbito (Qua­
bém a determinação da idade óssea serve para detectar qualquer dro 32.4).
retardo na ossificação (discrepância entre a idade biológica e Manifestações sistêmicas, como fadiga, febre e emagreci­
a cronológica) ou desmineralização e permite calcular o com­ mento, são notadas na maioria dos pacientes com DC. Pode
primento ósseo esperado.
haver comprometimento de vários órgãos, mas os chamados
Tais efeitos são devidos à desnutrição, por aporte nutricio­
órgãos-alvo costumam ser articulações, pele e mucosas, olhos,
nal insuficiente, uma vez que são revertidos com a recuperação
fígado e rins (Prancha 32.3).
nutricional e o controle da doença. Tais alterações podem ser
muito sutis no início e frequentemente precedem as manifes­
tações gastrintestinais. A corticoterapia e a inflamação crôni­
ca intestinal agravam o déficit de crescimento. O TNF-a pode ----------------------- ▼-----------------------
também ser importante mediador da falência de crescimento,
Quadro 32.4 Associações extraintestinais e complicações
pois estudos experimentais comprovam seu efeito inibidor di­
reto sobre o condrócito da placa de crescimento. Não há bene­ na doença de Crohn
fício com uso de hormônio de crescimento.
Osteoarticulares A r t r o p a t ia e n te ro p á tic a "
Nas DII, devem ser excluídas outras entidades que causam
S a c ro ile íte
déficit de desenvolvimento sexual, tais como retardo constitu­
E s p o n d ilite a n q u ilo s a n t e
cional, doença celíaca, fibrose cística, anorexia nervosa, hipo-
gonadismo e má nutrição. Na DC, um em cada cinco pacientes Clubbing
apresenta distúrbios de maturação puberal que podem prece­ O s te o p o ro s e '
der claramente o aparecimento de sintomas gastrintestinais Oculares E p is d e r it e "
(Prancha 32.1, A e B). Assim, a DC deve entrar no diagnóstico U v e ít e "
diferencial de puberdade atrasada (cerca de 1,5 ano em meni­
Dermatológicas E rite m a n o d o s o
nas e 1 ano em meninos).
P io d e r m a g a n g r e n o s o
Alguns autores referem aceleração do crescimento e desen­
volvimento após ressecções cirúrgicas. Já há relatos após uso Urinárias C á lc u lo s d e á c id o ú ric o (p a n c o lit e , ile o s t o m ia )'

de infliximabe em terapia de manutenção. C á lc u lo s d e o x a la to ( D C ile o te rm in a l, ressecçào)*

Pulmonares A lv e o lit e fib ro s a n te

Hepáticas F íg a d o g o r d u r o s o

----------------------------- ▼----------------------------- H e p a t it e c rô n ic a a tiv a

Quadro 32.3 Mecanismos e tratamento da diarréia na doença de Crohn H e p a t it e g r a n u lo m a t o s a

C irro s e

M ecanism os Tratam ento A m llo id o s e

In fla m a ç ã o D r o g a s a n ti-in fla m a tó ria s


Vias biliares C á lc u lo s d e c o le s te ro l ( D C ile o te r m in a l, ressecçáo)*

C o la n g it e e s d e r o s a n t e
S u p e r c r e s c im e n t o b a c te r ia n o A n t ib ió t ic o s
n o in t e s t in o d e lg a d o C o la n g io c a r c in o m a

D ia rré ia p o r sais b ilia res C o le s tira m ln a Bucais U lc e r a ç à o a fto id e

D e fic iê n c ia d e sais b ilia re s D ie ta p o b r e e m g o r d u r a s Hematológicas A n e m ia (Fe , fo la to , B ,2)M

D e fic iê n c ia d e la cta se E v ita r la cto se , u s o d e la cta se e x ó g e n a T r o m b o s e v e n o s a e a rte ria l’

S ín d r o m e d o in te s tin o c u r t o D e p e n d e d e s e g m e n t o re s s e c a d o Constitucionais P e rd a d e p e s o " '

Fístula in te rn a C ir u r g ia R e ta rd o d e c r e s c im e n t o ”

R e la c io n a d a a a n tib ió tic o s C e ssa r a n tib ió tic o s


•Piora na doença ativa.
O u t r a s a fe c çõ e s C o n f o r m e a e n t id a d e 'Complicação mais que associação.
354 Capítulo 32 / Doença de Crohn

Prancha 32.3 Manifestações extraintestinais da doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A. Lesão aftoide
grande e profunda no lábio inferior; B. Acne e lesões na pele da face; C. Aumento de volume dos joelhos, hiperemia. Calor e dor em artrite
reativa; D. Conjuntivite e anemia, com língua despapilada; E. Lesões na pele escrotal; F. Vasculite e eritema nodoso.
Capítulo 32 / Doença de Crohn 355

■ Exames de fezes
■ Complicações 1. Rotina para parasitos, bactérias, vírus
■ H e m o r ra g ia 2. Clostridium difficile e toxina, pesquisar mesmo na ausên­
É menos comum na DC do que na RCU e é mais por doença cia de uso de antibióticos
no íleo. Cerca de 5 a 10% dos pacientes com DC têm ulcerações 3. Pesquisa de leucócitos e/ou sangue oculto
no estômago ou duodeno, e, nas crianças, o comprometimento 4. Pesquisar citomegalovírus, principalmente em pacientes
do intestino delgado proximal é mais frequente. com uso de imunossupressores
• Perfuração intestinal; 5. Pesquisa de alfa-1-antitripsina, calprotectina ou lactofer-
• Abscesso intrabdominal; rina para determinar atividade da doença (Capítulo 28)
• Estenoses; A dosagem de alfa-1-antitripsina fecal pode ser útil no con­
• Suboclusão e obstrução intestinal (são as mais frequentes, trole da atividade da doença, pois, como mede a perda proteica
surgem em consequência de inflamação aguda ou edema, intestinal, a elevação de seus títulos traduz aumento nas fases
ou fibrose crônica); de aumento da permeabilidade intestinal e atividade da doen­
• Fístulas e doença perianal; ça; e sua diminuição reflete acalmia do processo inflamatório
• Megacólon tóxico (relativamente raro, associado a grave intestinal.
estado toxêmico dos pacientes); A determinação da calprotectina fecal também pode ser uti­
• Malignidade (maior risco de câncer de cólon após 8 anos lizada no monitoramento da atividade da DC. A calprotectina
de doença, principalmente com grande área do cólon é uma proteína neutrofílica abundante extremamente estável
comprometida. Maior risco conforme duração da DC, nas fezes. Reflete a inflamação intestinal em crianças com DII.
idade precoce de começo, ou história familiar de cân­
Como é um teste simples, seguro e não invasivo, tem o potencial
cer colorretal. Há também risco aumentado para adeno-
de reduzir o número de procedimentos invasivos na criança.
carcinoma do intestino delgado. Colangite esclerosante
Seu nível plasmático aumenta de 5 a 40 vezes em condições in-
primária pode ocorrer na DC e aumenta o risco para
fecciosas/inflamatórias, porém nas fezes a calprotectina pode
colangiocarcinoma;
ser determinada facilmente por ELISA. As fezes podem ser co­
• Complicações extraintestinais (Quadro 32.4).
lhidas em domicílio e entregues no laboratório, repetindo-se o
teste quantas vezes forem necessárias.
Outro teste que pode servir de marcador para se conhecer a
■ DIAGNÓSTICO atividade da DC é a determinação fecal de lactoferrina, também
Aumento da suspeita clínica pelo pediatra e pelo clínico por ELISA. A lactoferrina é considerada marcador sensível e
das manifestações intestinais e extraintestinais tem diminuído específico da inflamação, tanto para diagnóstico, como para
o intervalo entre sintomas e diagnóstico da DC. Apesar dos m onitorar a manutenção, pois seus níveis se correlacionam
avanços tecnológicos, o diagnóstico da DC permanece emi­ bem com os escores de atividade e com a PCR.
nentemente clínico.
Diversos autores de centros diferentes afirmam, unanime­ ■ Exames de sangue
mente, que o diagnóstico de DC é feito após grande intervalo 1. Hemograma
desde o aparecimento de sintomas e sinais compatíveis com a 2. Eletrólitos
afecção, principalmente em se tratando de crianças e adoles­ 3. Proteínas e frações
centes. No Brasil, os dados são semelhantes: 1 a 6 anos para 4. Ferritina (pode estar elevada na DC ativa e pode estar nor­
Kotze, Kotze et a i (2006) e 1 mês a 11 anos para Barbieri et mal mesmo na vigência de deficiência grave de ferro)
a i (2003). 5. Transferrina deve ser feita para avaliar anemia
O diagnóstico da DC ainda depende da experiência clínica 6. Dosagem de vitamina B12
do gastrenterologista, combinada à do endoscopista e do pato­ 7. Provas de função hepática
logista, através de dados macroscópicos e histológicos do trato 8. HIV
gastrintestinal alto e baixo, e exclusão de todas as outras possi­ 9. Velocidade de hemossedimentação ou proteína C reativa
bilidades diagnósticas. Como a doença pode ser grave, lembrar ultrassensível
que os exames invasivos podem piorar as condições emocionais
O hemograma, na fase aguda, mostra leucocitose com des­
dos pacientes e de seus familiares.
vio à esquerda, linfopenia, eosinofilia moderada ou acentuada,
História Clínica. Queixa de dor abdominal intensa, noturna
e associada a diarréia constituem os dados mais valorizáveis plaquetose. Pode ainda revelar anemia microcítica, enquanto
na anamnese. a anemia megaloblástica é mais rara, mas pode ser observa­
Exame Físico. Dados antropométricos e de desenvolvimen­ da na DC, por alterações na absorção de vitamina BI2 no íleo
to sexual relacionados com a idade; dor à palpação principal­ terminal.
mente no quadrante inferior direito do abdome com ou sem A hemossedimentação está elevada na fase inicial e se reduz
massa palpável; presença de fissuras, abscessos ou fístula na com o tratamento, sendo um dos indicadores de atividade da
região perianal e lesão perineais são importantes, podendo ser doença, bem como a proteína C reativa (PCR). Entre os pa­
o único achado de exame. cientes tratados com azatioprina ou 6-mercaptopurina, a PCR
ultrassensível parece ser um indicador inflamatório negativo
melhor do que a velocidade de hemossedimentação, segundo
■ Exames laboratoriais Barnes et al. (2004).
São utilizados alguns exames laboratoriais habituais com os As alterações das frações proteicas, principalmente a acen­
objetivos de avaliar a atividade, o prognóstico, as manifestações tuada redução da albumina, o aumento da alfa-2-globulina (su­
hepáticas ou pancreáticas, os fenômenos disabsortivos, o estado postamente sintetizada nos cólons) são muito importantes na
nutricional dos pacientes ou ainda afastar outras doenças. avaliação do prognóstico e prenúncio da recidiva da doença.
356 Capítulo 32 / Doença de Crohn

As transaminases, afosfatase alcalina, a gama glutamiltrans- A determinação de anticorpos antineutroíílicos citoplasmá-


ferase e a função pancreática com a dosagem da amilase e lipase ticos (pANCA) mostra 82% de sensibilidade e 90% de especi­
séricas podem estar alteradas, traduzindo comprometimen­ ficidade para pacientes com RCU. A presença de anticorpos
to hepático e pancreático, mas não têm valor diagnóstico ou anti-Saccharomyces cerevisiae (ASCA) tem sido proposta como
prognóstico. marcador sensível e específico para DC, principalmente se for
O encontro de baixos níveis de ferro e zinco séricos podem em combinação com ANCA negativo. Nos casos de colite in­
ser secundários à pobre ingestão alimentar, perda pela mucosa determinada, tais marcadores parecem de ajuda. Salienta-se
inflamada do intestino ou pelo sangramento intestinal. O cálcio que a positividade de marcadores não implica que se deixe de
e o magnésio podem estar baixos devido à baixa ingestão e/ou submeter o paciente à colonoscopia ou a estudos de imagem.
perda através das células epiteliais descarnadas ou de sangra­ Considerar, também, que a positividade dos anticorpos é baixa
mento intestinal. em crianças com menos de 5 anos.
Lembrar-se de diagnosticar e/ou prevenir infecções opor­ Interessante é o relato de Vasiliauskas et al. (2000) de que,
tunistas, cada qual por seu método próprio. semelhante a NOD2, a presença de ASCA está associada ao
Vírus: citomegalovírus, vírus Epstein-Barr, hepatite B, her- início precoce da DC. Também, altos títulos de ASCA IgG e
pes simples, influenza, varicela, papilomavírus. IgA estão associados à DC complicada, principalmente com
Bactérias: Clostridium difficile, exclusão de tuberculose. ressecções intestinais. Em oposição, pANCA não se associou à
Teste cutâneo de Mantoux = PPD (no Brasil, positivo doença agressiva. Dubinsky et al. (2006) demonstraram a alta
> 10 mm). probabilidade de doença estenosante em pacientes com NOD2
Fungos: histoplasmose, Pneumocystis jiroveci (carinii) e ASCA. Tais estudos permanecem ao nível de investigação e
ainda não são totalmente empregados na rotina.
■ Novas m odalidades diagnósticas Em conclusão, os testes sorológicos dão suporte clínico para
A utilização de outros métodos não invasivos tem sido es­ diagnóstico e categorização de pacientes com DII e podem ser
tudada como rastreamento para o diagnóstico. O método mais de valor na tomada de decisões terapêuticas. Novos estudos
utilizado é a cintigrafia com leucócitos marcados com Tc99, que são necessários com o objetivo de alcançar novos marcadores
se mostrou útil em crianças na avaliação da localização e de­ diagnósticos sensíveis e específicos para cada uma das doenças,
terminação da intensidade da lesão quando comparado com a relacioná-los à atividade e extensão da enfermidade e predição
radiologia e a colonoscopia, mas não define detalhes anatômi­ das manifestações extraintestinais, ou complicações.
cos como estenoses, dilatação pré-estenótica ou fístula, como
o faz o enema opaco.
■ Exames de imagem
■ Testes sorológicos específicos (ASCA/pANCA) Minimizar o uso da radiologia convencional devido ao po­
Perinuclear antineutrophil cytoplasmic autoantibodies tencial risco de irradiação para o desenvolvimento de maligni-
(pANCA) tem sido reconhecido como bom marcador de RCU. dade.
Anticorpos para epítopos oligomanosídicos do fungo Saccha- Têm muita importância a determinção da idade óssea (raios
romyces cerevisiae (Sc) (ASCA) são novos marcadores para DC. X de punhos) em crianças e a densitometria óssea (DEXA) em
Ambos estão implicados no diagnóstico diferencial entre as todas as idades, pois revelam comprometimento do metabo­
duas entidades. A combinação dos dois pode ajudar nesta di­ lismo do cálcio (Prancha 32.4, F).
ferenciação. São testes realizados por técnicas padronizadas de A rotina de raios X simples de abdome (em pé, deitado e
imunofluorescência indireta (ANCA) e ELISA (ASCA). em decúbito lateral com raios horizontais) é essencial se hou­
A presença de ASCA em pacientes com DC está associada a ver suspeita de obstrução intestinal. Pode delinear presença
comprometimento do intestino delgado. As evidências sugerem e extensão da colite, diagnóstico de obstrução ou perfuração,
que, assim como o pANCA, a expressão de ASCA não seja um oclusão de megacólon tóxico. Litíase urinária ou da vesícula
epifenômeno de agressão intestinal (alteração da permeabili­ biliar pode ser detectada.
dade), e, sim, um reflexo de resposta específica imunomediada Raios X contrastados não são recomendados em casos gra­
pela mucosa. ves. O exame contrastado do esôfago, estômago e duodeno
O ASCA é marcador altamente específico para DC e é mais pode revelar algum sinal de espessamento da mucosa ou estrei­
frequentemente expresso em pacientes com DC de início preco­ tamento da luz nos casos suspeitos de DC.
ce (até 70%) do que com início tardio (25% dos pacientes com O trânsito intestinal, com estudo detalhado do íleo terminal
DC iniciada após os 40 anos de idade). Já que os antígenos self sob fluoroscopia, é de importância central no diagnóstico da DC
não reagem com o ASCA, este marcador imune sérico não é do intestino proximal ao íleo terminal, mostrando estenoses,
considerado um autoanticorpo. ulcerações e fistulizações. O comprometimento do intestino
O teste ASCA positivo em familiares de pacientes com DC delgado está presente em mais de 90% dos pacientes com DC
sugere que seja um marcador subclínico da afecção. Mas, se (Prancha 32.4, A e B).
reflete fatores ambientais ou genéticos, ou a combinação de O estudo radiológico através do enema opaco, convencional
ambos, ainda não se sabe. ou de duplo contraste, está contraindicado na fase aguda, pelo
Baseado em estudos e observações, pode-se concluir que risco de perfuração ou dilatação (megacólon tóxico). Pode ser
o ASCA e o pANCA provavelmente não são marcadores m á­ totalmente normal em casos leves ou apresentar redução das
gicos para o diagnóstico da DII. Além disso, a prevalência do haustrações, contraste disposto como vidro fosco ao longo do
ASCA na população saudável estudada está ao redor de 10%, cólon, em espículas e irregularidade no contorno do cólon, na
e eles também podem estar presentes em outras doenças au- presença de microulcerações. Algumas vezes, podem ser en­
toimunes. Na doença celíaca, o ASCA pode ser detectado em contradas imagens de aspectos muito irregulares pela presen­
porcentagem elevada, pois surge em afecções com alterações ça simultânea de ulcerações e de formações de pseudopólipos,
da permeabilidade intestinal, não só na DC. Kotze et al. (2010) sinais de espessamento da mucosa, ulcerações, pseudopólipos
demonstraram estar elevado nos familiares de celíacos. e estreitamento do lúmen intestinal (Prancha 32.4, E) e, ou-
Capítulo 32 / Doença de Crohn 357

Prancha 32.4 Exames radiológicos e de imagem na doença de Crohn. A. Padrão disabsortivo do intestino delgado, com síndrome de má
absorção intestinal; B. Lesões estenosantes no íleo terminal; C. Ultrassonografía abdominal mostrando espessamento das alças intestinais;
D. Comprometimento do jejuno em paciente já operado, tendo desenvolvido fístulas internas; E. Lesão em cólon ascendente; F. Densitometria
óssea de paciente em uso crônico de corticosteroides, denotando necessidade de atenção para metabolismo do cálcio.
358 Capítulo 32 / Doença de Crohn

tras vezes, dilatações de alças e trajetos fistulosos. As lesões são Enterografia por TC ou RM mostra detalhes da morfologia
descontínuas na DC, descritas como lesões em salto. das alças intestinais e faz melhor avaliação do processo infla­
Outros exames de imagem são muito úteis não só para ava­ matório e do grau de fibrose, além de analisar estenoses com
liação, mas também para drenagem percutânea de coleções maior sensibilidade.
localizadas. Colangiorressonância quando há evidência de colestase.
A ultrassonografia (US) pode ser útil na identificação de
espessamento da mucosa intestinal (Prancha 32.4, C) e presen­ ■ Exames endoscópicos
ça de adenomegalia e líquido na cavidade abdominal. É eco­
O exame endoscópico é de suma importância no diagnóstico
nômica, largamente disponível, não envolve radiação e avalia
e acompanhamento evolutivo da DC, inclusive com obtenção
complicações periviscerais e extraintestinais. Soma-se a isso a
de fragmentos de mucosa para exame histopatológico.
possibilidade de se conhecer a atividade da doença ao se moni­ Enteroscopia de duplo balão ou videopush enteroscopyé uti­
torar o volume do fluxo na artéria mesentérica superior.
lizada para acessar áreas do intestino delgado altamente suspei­
A ultrassonografia endorretal é útil no caso de fístulas, mas tas, quando outras modalidades diagnósticas foram negativas,
restrita devido à dor. ou para atingir áreas estenosadas para dilatação com o balão.
A tomografia computadorizada de abdome (TC) pode de­ A enteroscopia tem sido indicada na localização de sangra-
finir precisamente a anatomia de fístulas e cavidades na DC; mento digestivo proveniente do intestino delgado quando ou­
ou ser útil para identificar abscesso ou linfoma. É uma técnica tros métodos diagnósticos falham. Também pode ser indicada
rápida, bastante disponível, bem tolerada e que permite com­ para estudo de afecções, inclusive no diagnóstico da DC. A tole­
pleta avaliação do cólon quando a endoscopia é incompleta. rância é boa e não são relatadas complicações. Tem a vantagem
Contudo, associa-se à grande exposição de radiação ionizan- de permitir biopsias. Entretanto, poucos centros dispõem de
te. Ambas, US e CT, são cada vez mais usadas para identificar aparelhos e profissionais treinados para este método. Assim, a
anormalidades intrínsecas da parede abdominal, como áreas de colonoscopia, com estudo de todos os segmentos dos cólons e
espessamento ou aderências das alças intestinais. reto, e possibilitando visualização da válvula ileocecal e do íleo
A ressonância magnética (RM) não requer radiação ioni- terminal, tem sido o exame endoscópico de escolha (Prancha
zante, dá excelente contraste dos tecidos moles e pode ofertar 32.5, B e C). Está indicada na falta de resposta à terapia habi­
imagens sequenciais. Consequentemente, é superior à US na tual, quando se pretende afastar citomegalovírus em pacientes
identificação de fístulas e estenoses, e na localização de segmen­ crônicos em uso de imunossupressores, e para verificar colite
tos afetados, principalmente no intestino delgado proximal. O por Clostridium difficile em exames duvidosos.
uso de contraste com gadolínio, endovenoso, melhora a técnica As úlceras são as alterações endoscópicas mais frequentes,
e permite separar doença da mucosa (RCU) da doença trans- com tamanhos e formas variáveis, recobertas por fibrina, bor­
mural (DC), além de identificar comprometimento do intestino dos elevados, limites nítidos, sendo poupada a mucosa entre
delgado proximal. Há excelente concordância com o diagnós­ as lesões. Podem localizar-se em todos os segmentos do trato
tico histológico (sensibilidade 96% e especificidade 90%). Pode digestivo, da boca ao ânus, sendo mais frequentes, porém, em
ser usada para se conhecer a atividade da DC, pois se correla­ cólon e íleo terminal, preservando o reto na grande maioria das
ciona com o índice de atividade (CD AI = Crohris DiseaseActi- vezes. Os casos crônicos, de longa duração, podem apresentar
vity Index). É um exame que permite escanear todo o abdome mucosa espessada, com aspecto em “paralelepípedo”, associada
dentro de um curto período de tempo. É particularmente útil a estenoses segmentares únicas ou múltiplas, fístulas comple­
na detecção de fístulas e estenoses. Em relação a abscessos, Ma- xas (peritoneais, perineais e retovaginais) de difícil controle
ruyama et al. (2000) relatam sua utilidade na diferenciação de clínico-endoscópico.
abscessos isquirretais e pelvirretais. Permite visualizar infiltra­ Endoscopia virtual do intestino delgado e colonoscopia
ção do tecido adiposo e espessamentos significativos na parede virtual não mostraram grande vantagem, mas podem ser úteis
intestinal, ambos fatores evidentes de processo inflamatório em casos de estenoses, principalmente se intransponíveis aos
agudo. Outra vantagem do método é a de permitir localizar colonoscópios.
“zonas quentes”, isto é, áreas de inflamação particularmente ■ Cápsula endoscópica (CE)
graves, em atividade da DC. Como não requer radiação ioni-
Recentemente, foi introduzida na prática médica a cápsu­
zante, é indicada para casos em que há necessidade de repetições
la endoscópica (wireless capsule-enteroscopy = WCE) que vem
do exame, principalmente em crianças e adolescentes.
contribuindo de maneira significativa para o esclarecimento de
Assche et a l (2003) desenvolveram score para determinação afecções comprometendo o intestino delgado. Na DC fornece
da gravidade da DC perianal através da RM: informação sobre o tipo de lesões e a extensão da enfermida­
• Número de trajetos fistulosos: nenhum, único sem ramos, de, principalmente em casos de difícil diagnóstico pelos outros
ou ramificado, múltiplos; métodos. Entretanto, salienta-se a importância da realização
• Localização: extra ou interesfinctérico, transesfinctérico, prévia de um trânsito intestinal a fim de se evitar a retenção da
supraesfinctérico; CE em áreas de estenose. Já está disponível para crianças e tem
• Extensão: infraelevador ou supraelevador; se tornado a modalidade diagnóstica de escolha para pacientes
• Hiperintensidade em imagens T2: ausente, discreta, pro­ com suspeita de DC no intestino delgado proximal.
nunciada;
• Coleções (cavidades > 3 mm de diâmetro): ausentes ou
■ Indicaçõesna DC
presentes; • avaliação do envolvimento do intestino delgado em pa­
cientes com DII e colite isolada;
• Comprometimento retal: normal ou espessado.
• determinação da extensão da DC do intestino delgado;
De acordo com o tratamento com infliximabe ou cirur­ • suspeita diagnóstica de DC;
gia, comparações podem ser feitas para tomada de novas de­ • seguimento dos pacientes com DC;
cisões. • monitoramento do tratamento.
Capítulo 32 / Doença de Crohn 359

■ Vantagens da doença são marcados por glândulas distorcidas e ramifica­


• potencial de visibilizar diretamente toda a superfície mu- das e a presença de metaplasia das células de Paneth no cólon.
cosa do intestino delgado; A criptite (neutrófilos dentro do epitélio) e abscessos crípticos
• capacidade de detectar lesões superficiais sutis, evidentes (neutrófilos na luz da glândula), assim como a redução da mu-
ou não em radiografias tradicionais com contraste ou fora cina, estão presentes em menor proporção do que na RCUI. A
do alcance dos endoscópios tradicionais; mucosa entre as áreas afetadas pode mostrar infiltrado linfo-
• menor invasividade que a endoscopia tradicional; plasmocitário na parte profunda da lâmina própria. A DC ati­
• ausência de sedação ou anestesia; va é caracterizada por infiltrado de neutrófilos e monócitos no
• aceitação geral pelos pacientes; epitélio intestinal e na lâmina própria, na superfície exsudato
• 60.000 imagens geradas em cada exame, compactadas fibrinoleucocitário, abscessos crípticos e agregados de linfoi-
em um vídeo! des ao longo dos linfáticos em toda a espessura do epitélio. São
também observadas vasculites e hiperplasia e hipertrofia dos
■ Desvantagem plexos neurais autônomos. Os granulomas epitelioides, não
A desvantagem é que, infelizmente, não permite coleta de caseosos, algumas vezes contendo células gigantes multinu-
fragmentos para estudo histológico. cleadas, são encontrados em cerca de 25% dos casos de pa­
As lesões que podem ser observadas são (Prancha 32.5, D): cientes investigados com biopsias colonoscópicas; e em 60%
• aftas mucosas, constituídas por áreas de mucosa erite- dos com ressecção cirúrgica intestinal (Figura 32.1, B). Embora
matosa com zona central esbranquiçada; não essenciais para o diagnóstico, quando presentes são con­
• placas eritematosas e/ou despapiladas, focais; siderados como marcadores histológicos para o diagnóstico
• erosões; definitivo e diferencial entre a DC e a RCUI. Com marcadores
• úlceras lineares ou irregulares; imunológicos utilizando o anticorpo monoclonal CD68, mar­
• fissuras. cador de todos os tipos de macrófagos, observou-se que este
facilita o encontro dos microgranulomas. Há risco aumentado
Na população infantil, em que cerca de 85% dos casos apre­ de câncer em áreas cronicamente inflamadas da mucosa do in­
sentam comprometimento do intestino delgado, podendo cur­ testino delgado, colorretal ou anorretal.
sar com sintomas inespecíficos, que provocam atraso de desen­ Infere-se que os achados histológicos têm maior valor pre-
volvimento ponderoestatural, a CE é de muita utilidade. Além ditivo do que os achados endoscópicos no diagnóstico de DC
disso, este grupo etário tem baixa tolerância a procedimentos do trato digestório superior, o que significa que a biopsia é
invasivos, e a CE é bem tolerada. O único problema pode ser obrigatória nas endoscopias altas dos pacientes.
a ingestão da cápsula.
Colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPER)
pode ser útil na suspeita de colestase e/ou colangite.
■ COMPORTAMENTO BIOLÓGICO
■ Exame anatomopatológico Quanto ao comportamento biológico, há subgrupos de pa­
cientes com:
O comprometimento histológico gastroduodenal ocorre em
mais de um terço dos pacientes, exclusivamente no delgado em • forma fibroestenosante (não perfurante);
30 a 35%, no íleo terminal e em alguns segmentos do cólon, • forma fistulizante (perfurante);
principalmente no ascendente, em 50 a 60%; e a doença limitada • forma inflamatória.
ao cólon em 10 a 15% das crianças e adolescentes.

■ Aspectos macroscópicos
■ Alterações totais da parede do intestino
Nos locais do intestino afetado, observa-se o envolvimen­ A partir de peças cirúrgicas, observam-se úlceras cicatriza­
to total da parede, com hiperemia e depósito de exsudato no das causando distorção da arquitetura, proliferação do tecido
peritônio visceral, com aspecto rugoso e nodular, propician­ conjuntivo e fibrose da submucosa e muscular da mucosa. Na
do aderência entre as alças, entre estas e outras vísceras e até submucosa, pode-se observar dilatação de linfáticos. Toda a
com a parede abdominal. Em fases mais avançadas da doen­ extensão da parede intestinal apresentará, à microscopia, infil­
ça, toda a parede e, em especial, a válvula ileocecal tornam-se trado inflamatório rico em plasmócitos, linfócitos, macrófagos,
fibróticas, espessadas e rígidas. A lesão da mucosa é represen­ mastócitos, eosinófilos e neutrófilos.
tada por úlceras aftoides que se unem, aumentando de tam a­
nho, formando lesões irregulares e serpiginosas, intercaladas ■ Acúmulo de gordura no mesentério na DC
com áreas normais, chamadas de “lesões em salto”. A muco­
sa preservada, mas com edema, entre as áreas com úlceras, Em peças cirúrgicas de portadores da DC, encontra-se es-
pode apresentar aspecto polipoide, chamado de pseudopólipo, pessamento e endurecimento da borda mesentérica com hiper­
podendo também estar presentes os pólipos inflamatórios. O trofia significativa do tecido adiposo. Tais acúmulos aparecem
conjunto de achados: úlceras aftoides, ulcerações serpigino- também à TC e à RM. Constitui uma “característica” da DC
sas, edema, ulcerações lineares (aspecto em ucobblestone,p) e (Figura 32.1, A).
os pseudopólipos são importantes para o diagnóstico de DC A origem desta gordura excessiva é desconhecida. Não apa­
(Figura 32.1, A). rece em pacientes obesos. Ao contrário, os acúmulos ocorrem
mais frequentemente em pessoas com índice de massa cor­
■ Aspectos microscópicos poral normal e parecem ser consequência, a longo prazo, de
As alterações epiteliais variam de discretas a intensas, ao inflamação crônica. Podem ser uma expressão da interação
lado de áreas de processo reparativo. Os sinais de cronicidade entre tecido adiposo e mediadores da resposta imune. Parece
360 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

Prancha 32.5 Imagens endoscópicas na doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A . Endoscopia diges­
tiva alta com lesões no antro gástrico. B. Lesáo aftoide em válvula ileocecal. C. Colonoscopia mostrando lesões "em pedra de calçamento*.
D. Imagens obtidas pela cápsula endoscópica: Lesões aftoides de pequena monta em intestino delgado.
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 361

Figura 32.1 Patologia na doença de Crohn. A, Peça cirúrgica com mucosa tipo pedra de calçamento. Notar espessamento da parede por
intensa fibrose e a gordura em serosa. B, Exame histológico demonstrando granuloma nào caseoso. (Esta figura encontra-se reproduzida em
cores no Encarte.)

provável que os adipócitos sejam im portantes no sistema


imune, possivelmente produzindo citocinas, particularmente
■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
TNF-alfa. Antes de submeter o paciente a métodos invasivos, des­
cartar causas infecciosas e parasitárias!
Devido às variadas manifestações clínicas da DC, muitas
■ COMPARAÇÃO DE MÉTODOS DIAGNÓSTICOS afecções podem ser aventadas no diagnóstico diferencial:
• A CE é mais precisa na detecção de lesões mucosas, en­ a) Afecções ileocecais: Ileítes agudas, adenites mesentéricas,
quanto a TC mostra patologia intra e extraluminal. hiperplasia nodular linfoide, linfossarcoma, tuberculose,
• Comparando a CE com os testes sorológicos pANCA yersiniose. Entretanto, a apendicite aguda é a situação
IgG, ASCA IgA e IgG, eles não foram capazes de predizer mais frequentemente confundida. Tem importância, pois
os achados da cápsula, que foram superiores. o índice de fistulização é elevado quando se procede à
• A CE permite diagnosticar lesões mais precoces que as ressecção do apêndice;
tradicionais. b) Doenças cólicas: RCU, disenteria bacteriana ou parasitá­
• A colite indeterminada aparece entre 10 e 23% dos casos ria, tuberculose, síndrome do intestino irritável;
de DII. Os estudos sorológicos com pANCA e ASCA po­ c) Afecções psicogênicas: Anorexia nervosa;
dem ser úteis na diferenciação entre RCU e DC, mas estes d) Doenças febris: Febre de origem indeterminada, bruce-
pacientes tendem a ser negativos para ambos os testes. lose, colagenoses;
Tem-se utilizado gamagrafia com leucócitos marcados e
e) Doenças endócrinas: Retardo de crescimento inexplicado,
enterotomografia computadorizada para tentar diferen­
hipopituitarismo;
ciação, mas tais métodos não estão disponíveis em todos
f) Distúrbios do trato digestório superior: Gastrenterites,
os centros. A CE pode identificar cerca de 61% dos casos
doença celíaca, insuficiência pancreática, úlcera péptica,
de DC com lesões no intestino delgado nestes pacientes
jejunoileítes agudas;
com implicações terapêuticas importantes.
g) Afecções geniturinárias: Infecção urinária, litíase etc.;
Fireman et al. (2003) avaliaram a acurácia diagnostica da CE h) Obstrução intestinal de diferentes etiologias;
em pacientes adultos (média de idade 40 anos, 18-69) com i) Outras: doença de Behçet, púrpura de Henoch-Schõnlein.
suspeita de DC do intestino delgado (ID) não detectada pelas
modalidades convencionais. Dos 17 pacientes suspeitos (ane­ Quando a DC é de comprometimento colônico, o diagnós­
mia, dor abdominal, diarréia ou emagrecimento), 12 (70,6%) tico diferencial com a RCU nem sempre é fácil.
foram diagnosticados como tendo DC no intestino delgado,
demonstrando que a CE é uma modalidade efetiva no diagnós­
tico de DC não detectada por outras metodologias. As imagens ■ RELAÇÃO NOCIVA ENTRE CL0STRIDIUM
encontradas foram erosões mucosas, úlceras e diminuição de DIFFICILEE DII
luz. A distribuição das lesões foi mais na parte distai do ID,
variando de leve a grave. A comorbidade com Clostridium difficile pode causar re­
Em geral, os pacientes com DC, após avaliação pelos diver­ tardo no diagnóstico de casos novos de DII, desencadear re­
sos métodos, podem ser divididos em grupos, de acordo com corrência na doença já estabelecida, confundir tratamentos e
a distribuição anatômica das lesões: servir como indicador de um defeito subjacente na imunida­
• com doença exclusiva no intestino delgado; de inata. O Clostridium difficile é a causa mais frequente de
• com ileocolite (compreendem a maioria); diarréia por infecção hospitalar em países desenvolvidos. Os
• com doença envolvendo apenas o cólon; fatores de risco para a infecção incluem exposição a antibió­
• com doença restrita à área anorretal; ticos, hospitalização, idade avançada e cirurgias gastrintesti-
• com acometimento do esôfago e do estômago. nais. Estudos recentes apontam para o surgimento de uma
362 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

cepa altamente virulenta, caracterizada como resistente à fluo-


roquinolona que produz maiores quantidades de toxina, e a
■ Determinando a atividade da DC
doença que provoca é mais refratária ao tratamento. Também As decisões terapêuticas são determinadas por uma avalia­
relatos demonstram que é contraída fora do hospital, em fontes ção inicial da localização primária da doença e da sua gravidade
comunitárias. Essas bactérias podem ser isoladas em amostras estabelecida segundo parâmetros clínicos:
de fezes e as toxinas nos sobrenadantes de cultura utilizando- • localização da inflamação;
se imunoensaios enzimáticos. Como salientam Clayton et al. • estenose (obstrução);
(2009), a doença colônica pode ser um fator de risco inde­ • processos fistulosos;
pendente para aquisição de Clostridium diflicile, sabendo-se • manifestações sistêmicas e extraintestinais.
que o papel dos antibióticos e das drogas imunossupressoras
não está claro. Assim, podem-se definir:
► D C le v e -m o d e ra d a . Pacientes de ambulatório capazes de
tolerar alimentação VO, sem manifestações de desidratação e
■ PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO de toxicidade (febre alta), sem dor abdominal, massa dolorosa
ou obstrução.
Vários índices foram propostos para avaliação da gravidade ►D C m o d e ra d a -g ra v e . Pacientes com falha na resposta ao
de cada caso de DC, indicação de tratamento e seu m onitora­ tratamento para doença leve-moderada, ou aqueles com sinto­
mento. A maioria destes tem base em manifestações clínicas e mas mais proeminentes, como febre, emagrecimento importan­
laboratoriais. O Crohn’s Disease Activity Index (CDAI) é um te (mais de 10% do peso), dor abdominal e dor à palpação sem
dos mais utilizados, desde 1976, tanto em pesquisas como em sinais de irritação peritoneal, náuseas e vômito intermitentes
ensaios clínicos. Para crianças e adolescentes, recomenda-se o (sem sinais de obstrução), ou anemia significativa.
Pediatric Crohn’s Disease Activity Index (PCDAI) semelhante ►D C g ra v e -fu lm in a n te . Pacientes com sintomas persis­
ao usado em adultos. tentes a despeito da introdução de corticosteroides, como pa­
índices endoscópicos têm sido usados para verificação de cientes não hospitalizados; ou doentes com febre alta, vômito
resultados terapêuticos em ensaios clínicos, pois a cicatrização persistente, evidência de obstrução intestinal, sinais de irritação
endoscópica de lesões faz parte de vários protocolos. peritoneal, caquexia ou evidência de abscesso.
►D C em re m issão . Pacientes assintomáticos ou sem seque­
las inflamatórias, ou que responderam à intervenção aguda de
■ TRATAMENTO medicamentos, ou que foram submetidos a ressecções cirúrgi­
cas sem doença residual macroscópica. Pacientes que necessi­
Como a DC não tem etiologia conhecida, carece de terapêu­ tam de corticosteroides não são considerados “em remissão”.
tica específica. As medidas preconizadas atualmente não são
curativas nem alteram a história natural da doença, na maioria
dos casos conseguindo apenas aliviar os sintomas e prevenir ■ TRATAMENTO CLÍNICO
complicações.
Os objetivos do tratamento incluem: PARAR DEFUMAR COM URGÊNCIA!
a) indução e manutenção da remissão clínica;
b) promoção da cicatrização da mucosa intestinal; ■ Medidas gerais
c) recuperação do estado nutricional; Nas formas leves, o tratamento é ambulatorial, com retira­
d) profilaxia e tratamento das complicações, caracterizadas da de lactose, sacarose e dieta hipoalergênica, com diminuição
na infância e adolescência principalmente pelo déficit de de fibra vegetal.
crescimento; Nas formas moderadas desde o início ou em sequência a
e) diminuição das intervenções cirúrgicas; um surto grave, mas superado, as bases terapêuticas são re­
0 promoção da qualidade de vida; e pouso relativo, regime hospitalar ou não, dieta líquida e depois
g) minimização do impacto emocional da doença sobre o pastosa, isenta de lactose, sacarose e hipoalergênica, e reduzida
paciente e a família. em fibra vegetal.
QUALIDADE DE VIDA (QDV): Assunto muitas vezes ig­ Nas formas graves, em surto inicial ou reagudizado, com
norado na prática médica rotineira! hemorragia maciça ou megacólon tóxico, o paciente deve ser
QDV reflete não somente a experiência subjetiva do paciente mantido em cuidados intensivos a fim de monitorar e corrigir
sobre sua doença, mas também como isso afeta sua vida diária. a anemia aguda, hipotensão, distúrbios eletrolíticos, especial­
Os doentes são afetados tanto por suas limitações físicas e fato­ mente de potássio. Hidratação correta, transfusões de sangue e
res psicossociais, como pela percepção de si mesmos! plasma, reposição de albumina, pausa alimentar, nutrição pa-
As limitações mais relatadas pelos pacientes em respostas a renteral total, sondagem nasogástrica contínua e repouso são
questionários sobre QDV incluem: medidas essencias. O paciente deve ser vigiado constantemente,
pois, conforme a evolução, torna-se obrigatória a indicação de
• evacuações frequentes; cirurgia de urgência.
• dor abdominal;
• fadiga;
• distúrbios do sono; ■ Tratamento nutricional
• tendência a recolhimento social; Nenhum alimento ou substância, em particular, demonstrou
• ansiedade pessoal e raiva por estar doente; deflagrar ou piorar a DC. Assim, devem-se respeitar intolerâncias
• frustração devido à progressão crônica da enfermidade. individuais, sem restrições, para se evitar desnutrição.
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 363

■ Dieta Fatores desencadeantes (bacterianos, virais, imunológicos e


O impacto da dieta na atividade da DII é pouco entendido, tóxicos) seriam impedidos de ativar a produção de IFN-gama
mas algumas considerações merecem ser feitas: através do efeito inibitório de TGF-beta2, não induzindo CMH
II a desencadear a inflamação.
• Durante aumento da atividade, é apropriado diminuir a Indicações: crianças com DC e retardo de crescimento; adul­
quantidade de fibras e manter produtos lácteos se forem tos corticodependentes ou corticorresistentes.
bem tolerados
• Dieta de baixo resíduo pode diminuir a frequência das ■ Agentes bioterapêuticos
evacuações Os probióticos não são considerados "remédios”, mas ali­
• Dieta com grande quantidade de resíduos pode ser indi­ mentos. O conceito de que a presença e o tipo de bactéria no
cada em casos de constipação intestinal intestino são importantes na DC é bem fundamentado, pois
estudos da flora encontrada na luz e parede intestinais suge­
■ Suplem entação nutricional nos casos com sub ou desnutrição ou rem que os pacientes com esta afecção são diferentes dos in­
durante os períodos de restrição da ingestão oral divíduos normais.
Medidas nutricionais podem ser utilizadas como terapêuti­ Agente bioterapêutico (ABT) ou probiótico é um microrga-
cas primárias ou adjuvantes. Os principais objetivos são: nismo vivo que, após sua ingestão em certo número, contribui
a) Corrigir déficits nutricionais específicos, repondo para aumentar a saúde do hospedeiro ao tratar ou prevenir in­
perdas; fecções causadas por cepas patogênicas, melhorar a função de
b) Proporcionar fonte energética e proteínas suficientes para barreira e alterar a resposta da citocina normalmente suscitada
por agentes patogênicos.
manutenção de balanço nitrogenado positivo, favorecen­
do a cicatrização adequada das lesões; Globalmente, podem ser divididos em dois grupos:
c) Promover um ritmo de crescimento comparável ao que a) microrganismos bacterianos:
o paciente teria no período anterior à doença; Lactobacillus acidophilus
d) Preservar o potencial de crescimento para que o paciente, Lactobacillus casei G
ao atingir a puberdade, possa ter seu próprio estirão de Bifidobacterium longum
crescimento. Bifidum bacterium bifidum, usado com Streptococcus
thermophilus
Como as dietas elementares não são palatáveis, especialmen­
b) leveduras (levedos):
te em crianças, muitas vezes necessitam ser administradas por Sacharomyces boulardii
sondas de infusão. As sondas colocadas por gastrostomia são
seguras e mais bem toleradas do que as sondas nasogástricas de Embora a patogênese das DII continue evasiva, a flora in­
uso prolongado. Preconizam-se 50-75% do requerimento ca- testinal residente na luz parece ser fator importante no desen­
lórico por infusão contínua noturna, encorajando os pacientes volvimento e cronicidade das afecções. A DC ocorre em locais
a se alimentarem regularmente durante o dia. com altas concentrações de bactérias anaeróbicas e é, até certo
Lembrar que a nutrição parenteral total (NPT), por ser tra­ ponto, tratável com antibióticos e repouso intestinal.
tamento transitório, é reservada para situações especiais (pré- Diversos mecanismos de ação dos probióticos, relacionados
operatório, obstrução parcial na DC), não se esquecendo de com as DII, foram elucidados:
seu efeito deletério sobre o intestino, induzindo à atrofia. A a) competição exclusiva, e os probióticos competem com
glutamina, aminoácido fundamental para o metabolismo das microrganismos patogênicos;
células intestinais, minimiza tal efeito. b) imunomodulação e/ou estimulação da resposta imune;
A nutrição enteral não mantém remissão, e recaída ocorre c) atividade antimicrobiana e supressão do crescimento dos
em 60 a 70% dos casos. Entretanto, é superior ao tratamento patógenos;
com corticoides. Estudos ainda são necessários para se conhe­ d) melhora da atividade de barreira;
cerem os fatores que influenciam a eficiência, a duração, o local e) indução de apoptose das células T.
da inflamação intestinal e a relação com as composições das Há evidências que sugerem que as DII possam represen­
fórmulas disponíveis. tar uma resposta imunológica agressiva à flora luminal, mais
A nutrição parenteral não é superior à enteral. Contudo, do que propriamente uma alteração de flora normal. Bactérias
nutrição intermitente noturna mantém a DC em remissão. probióticas têm sido eficazes no manejo de algumas doenças
Recentemente, foi lançada no mercado brasileiro uma fór­ diarreicas agudas, e pesquisadores referiram que certas cepas
mula nutricional específica para portadores da DC (Modulen de Lactobacilli parecem exercer papel protetor imunomodu-
IBD®). É um produto de nutrição oral ou enteral, apresentado lador, aumentam a secreção de IgA e de certas citocinas anti-
em pó de reconstituição instantânea. Apresenta 14% do valor inflamatórias.
calórico total em proteínas, 42% em lipídios e 44% de glicídios Uma combinação de Lactobacillus sp, Bifidobacterium sp e
(sem lactose, sem glúten e sem resíduo). Streptococcus sp preveniu crise de DII. O efeito imunogênico
O “fator transformador do crescimento beta2” (TGF-beta2) da Escherichia coli não patogênica e parasitos está em estudo.
é uma citocina naturalmente presente no leite materno e no lei­ Alguns parasitos aumentam a resposta Th2 com diminuição da
te de vaca, com propriedades anti-inflamatórias, de regulação Thl. Pesquisas futuras devem esclarecer melhor o assunto.
do crescimento celular e de resposta imune. Demonstrou-se O uso de Sacharomyces boulardii na enterocolite induzida
que a atividade anti-inflamatória do TGF-beta2 seria devida à por antibióticos ou colite pseudomembranosa já é bem reco­
inibição da expressão das proteínas do CMH Classe II através nhecido. Estudo com a dose de 1 g/dia associado à mesalazina
da inibição da atividade da interferona-gama (IFN-gama). Fo­ reduziu as recidivas da DC.
ram observadas concentrações de CMH II nas membranas dos Atualmente, apenas o nível 1 de evidência dá suporte ao
enterócitos de pacientes com DC. uso terapêutico de alguns probióticos no tratamento de ma­
364 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

nutenção da bursite (pouchitis); níveis 2 e 3 de evidência são -------------------------------------------------▼ -------------------------------------------------


reservados para RCU e DC. Q u a d ro 32.5 Corticosteroides na doença de Crohn
Na DC pode ocorrer diminuição dos índices de atividade,
ou maior tempo de manutenção da remissão, ou maior tempo Mecanismos da ação
de remissão endoscópica após cirurgia, em alguns pacientes. Leucódtos Diminuição da migração, ativação, sobrevida
Diminuição da ativação NFkB
Entretanto, muitas comparações carecem de resultados esta­
Inibição da fosfolipase A2
tisticamente significativos.
Diminuição da indução de COX-2 e NOS
Os pré-bióticos são ingredientes alimentícios não digeríveis, Células endoteliais Diminuição da produção de citodnas
que promovem seletivamente o crescimento ou as atividades Diminuição da produção de mediadores
de bactérias benéficas no intestino. Em geral, são carboidratos lipídicos
de baixo peso molecular encontrados naturalmente em m ui­ Aumento da degradação de cininas
tos alimentos. Os simbióticos têm conteúdo tanto pré-biótico Diminuição da expressão de moléculas de
adesão
quanto probiótico.
Diminuição da permeabilidade capilar
Indicações Doença moderada, grave ou fulminante
■ Tratamento medicamentoso Efeitos colaterais
■ M edicam entos sintomáticos Gerais Fácies cushingoide
• antidiarreicos somente se não houver doença fulminante; Ganho ponderai
• colestiramina para ressecções ileais; Disforia
Metabólicos Insuficiência suprarrenal
• analgésico, como acetaminofeno, ou até codeína, se ne­
Hiperglicemia
cessário; Hipocalemia
• suplementação de vitamina B12e/ou vitamina D se hou­ Cardiovasculares Hipertensão
ver deficiência; Retenção de líquidos
• cálcio e vitamina D como rotina nos usuários de corti- Infecções Oportunistas
costeroides; Reativação de tuberculose
• suplementação de multivitaminas para todos; Dermatológicos Acne
• suplementação de ferro oral e, se não tolerado, ferro IM Pigmentação
Estrias
ou IV nos casos de anemia crônica ferropriva.
Hirsutismo
Oculares Catarata
■ Corticosteroides Glaucoma
Os corticosteroides são drogas capazes de induzir a remissão Musculoesqueléticos Osteoporose
da grande maioria dos pacientes com DC, independentemente Osteonecrose avascular
da distribuição das lesões. Entretanto, são ineficazes na m anu­ Miopatia
tenção da remissão. A sua habilidade em controlar o processo Crianças Retardo de crescimento
inflamatório intestinal justifica-se pelo profundo efeito sobre o Monitoramento Pressão arterial
sistema imunológico e resposta inflamatória (Quadro 32.5).
Sangue: glicose e potássio
Embora os corticosteroides sejam eficazes para o tratamen­
Contraindicações Diabetes ou hipertensão pouco controlados
to a curto prazo, são ineficientes para prevenir recorrências e é (relativas) Osteoporose
comum surgir dependência. Na população pediátrica, seu uso
está associado a problemas psicossociais e de crescimento. Em Úlcera péptica ativa
crianças, lembrar que não há vantagem em se ter um paciente Infecções graves concomitantes
sem sintomas gastrintestinais, mas cushingoide! COX = Ciclo-oxigenase; NF = Fator dc transcrição nuclear; NOS ■ Síntese de ácido
Prednisona reduz a velocidade de crescimento das crianças nftrico.
com formas leves a moderadas. A budesonida oral tem seu pico
de liberação no intestino delgado distai e cólon ascendente, mas
seu uso mostra índice de remissão baixo em relação à predni­
sona. Ponto importante: o tratamento com corticosteroides não A corticoterapia parenteral é reservada para os casos ful­
está associado a melhora endoscópica! minantes, usando-se metilprednisolona, 1 a 2 mg/kg/dia, ou
Outro inconveniente do tratamento com corticoides é a per­ hidrocortisona, ou mesmo ACTH, substituindo-se pela pred­
da óssea, já nas primeiras semanas de tratamento. Assim, fratu­ nisona oral tão logo a melhora clínica permita.
ras osteoporóticas ocorrem em 30 a 50% dos pacientes tratados O tratamento tópico pode ser utilizado isoladamente na
com estas drogas. Outros efeitos tóxicos se verificam: meta- doença localizada, restrita ao retossigmoide, ou como coad­
bólicos, musculoesqueléticos, gastrintestinais e neuropsiquiá- juvante, para alívio rápido dos sintomas de urgência e descon­
tricos. forto retal. Enemas artesanais com 50 a 100 mg de hidrocor­
Os corticosteroides são reservados para as formas modera­ tisona diluídos em pequenos volumes de soro fisiológico são
das e graves de DII e, particularmente, quando há envolvimento utilizados por médicos brasileiros. A hidrocortisona enema,
do intestino delgado na DC. Estas drogas estão disponíveis em diluída em 100 m í de soro fisiológico levemente aquecido, em
muitos países para uso oral, parenteral e tópico (enema de re­ gotejamento lento, pode ser administrada por sonda retal fina
tenção, supositório e espuma). A dose oral inicial preconizada e longa e equipo de soro. Em domicílio, a administração pode
é de 1 a 2 mg/kg/dia de prednisona ou prednisolona (máximo ser feita por meio de frasco plástico usado no comércio para
de 40 a 60 mg/dia). Uma vez alcançada a remissão, a retirada é acondicionar enemas evacuadores. O doente permanecerá em
gradual (5 mg a cada 1 ou 2 semanas) até se chegar a doses em posição de Trendelenburg, de preferência à noite, em decú-
dias alternados de 0,2 a 0,5 mg/kg. O ideal é cessar seu uso. bito lateral esquerdo. Deve-se manter este enema por muitas
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 365

semanas, em aplicações diárias ou alternadas. Considerando- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ▼ -----------------------------------


se que, por esta via, a ação local é muito eficiente e que a ab­ Q u a d ro 32 .6 Aminossalicilatos na doença de Crohn
sorção do medicamento é inferior a 30%, há risco menor de
efeitos colaterais. Mecanismos de ação
O uso crônico de corticosteroide, ainda que apenas tópico, Leucócitos Diminuição da migração e citotoxicidade
associa-se a efeitos colaterias sistêmicos significativos (Qua­ Diminuição da ativaçáo de NFkB
Diminuição da síntese de IL-1 e mediadores
dro 32.5). Tais situações podem ser evitadas ou com a coad-
lipídicos
ministração de anti-inflamatórios, ou de imunomoduladores, Diminuição da degradação de prostaglandinas
que atuam como agentes “poupadores” de corticosteroides, ou, Antioxidante
eventualmente, pela indicação precoce de cirurgia nos casos Antagonista de TNF
refratários ao tratamento clínico. Diminuição do antagonista receptor FMLP
A budesonida é 100 vezes mais potente que a cortisona. So­ Diminuição da expressão MHC Classe II
mente 10% ficam disponíveis, devido à sua alta extração pela Indução das proteínas de calor
primeira passagem pelo fígado. É comercializada em prepara­ Diminuição da apoptose
ções de 3 mg, protegidas e de liberação entérica lenta. A dose Epitélio Diminuição da expressão MHC Classe II
Indução das proteínas de calor
de 9 mg de budesonida é tão eficiente quanto 40 mg de pred-
Diminuição da apoptose
nisona para induzir remissão da DC, mas não é indicada para
manutenção. Em enemas, é eficaz na RCUI distai e equivale à Indicações Doença ativa; inativa?
eficácia dos enemas com hidrocortisona, porém difere dos ene­ Efeitos colaterais
mas de mesalazina. Mostrou-se eficiente em induzir remissão Gerais Cefaleia"
na DC em íleo e cólon, em adultos e em crianças. Febre*
Gastrintestinais Náuseas, vômito"
Diarréia
■ Recomendaçõesgerais
Hematológicos Hemóllse"
1. Não administrar subdoses; Deficiência de folato"
2. Reduzir lentamente as doses iniciais; Agranulocitose"
3. Avisar sobre efeitos adversos; Trombocitopenia"
4. Monitorar uso pelo próprio paciente e dependência. Anemia aplástica*
Metaemoglobinemia"
■ Aminossalicilatos Urinários Urina alaranjada"
O mecanismo de ação dos compostos contendo ácido Nefrite interstidal
5-aminossalicílico (5-ASA) na DII não está totalmente escla­ Dermatológicos R ash

Síndrome de Stevens-Johnson
recido (Quadro 32.6).
Perda de cabelos
A sulfasalazina foi a primeira formulação oral do 5-ASA,
Outros Oligoespermia"
tendo sido criada na década de 1930, pela combinação de 5-ASA Pancreatite aguda
à sulfapiridina (carreador, por uma ligação azo). Esta droga tem Hepatite
sido utilizada por longo tempo e é terapia de eleição das formas Síndrom e lu p u s -llk e
leves de RCUI e DC envolvendo o cólon, sendo também efetiva Miocardite
na manutenção de remissão da RCUI. Fibrose pulmonar
Seus efeitos colaterais (Quadro 32.6) são provocados, em Monitoramento
grande parte, pela sulfapiridina. Sulfasalazina Cada 3 meses: hemograma, folato, ureia,
As doses utilizadas em adultos estão indicadas no Qua­ Creatinina, testes de função hepática
dro 32.8 e, em crianças, são de 50 a 75 mg/kg/dia (máximo de Mesalazina Cada 6-12 meses: ureia e creatinina
3 a 4 g/dia) VO, divididas em três tomadas. Eventualmente, Contraindicações
a introdução da droga pode ser feita de modo gradativo, ini­ Sulfasalazina Sensibilidade a salicilato ou sulfonamida
ciando-se com 25 a 40 mg/kg/dia. Sua retirada também é feita Mesalazina Sensibilidade a salicilato
lentamente, até ser atingida a dose ideal para a manutenção. Insuficiência renal
Como a sulfasalazina interfere na absorção de folato, recomen­ •Consequente à sulfonamida da sulfasalazina.
da-se suplementação com dose diária de 1 mg de ácido fólico NF ■ Fator de transcrição nuclear; TNF = Fator de necrose tumoral.
FMLP « Proteína.
para crianças e 5 mg para adultos, com a finalidade de se evitar
anemia megaloblástica.

■ Mesalazina
Com o objetivo de serem eliminados os efeitos da porção tudos comprovam que a mesalamina é tão eficiente quanto a
sulfa, desenvolveram-se compostos, já disponíveis no comércio, sulfasalazina no tratamento da DC afetando o cólon, além de
nos quais as moléculas de 5-ASA se apresentam de forma livre, manter a remissão.
sendo designados de mesalamina nos EUA e de mesalazina na Em crianças, a DC é tipicamente subtratada. A mesalazina,
Europa. Para se evitar que o 5-ASA seja absorvido nas porções dos compostos 5-ASA, é a preparação mais frequentemente
superiores do trato digestivo e que alcance, assim, os locais de usada. As preparações cuja mistura proporciona liberação no
inflamação, um dos recursos utilizados foi o de “recobrir” a intestino delgado são de preferência; também têm biodisponibi-
mesalazina com resina acrílica sensível a pH maior de 7, o que lidade para liberação no íleo distai e cólon. As preparações que
permite sua liberação no íleo distai e cólon. Tais modificações dependem da liberação do pH são consideradas inadequadas
aumentariam a tolerância à droga, e 80 a 90% dos pacientes para tratar DC de comprometimento delgado, pois são efetivas
intolerantes à sulfasalazina aceitam bem a mesalazina. Entre­ no íleo terminal e cólon. As mesalazinas com pontes dissulfí-
tanto, tais compostos não são isentos de efeitos colaterais. Es­ dicas (olsalazina, sulfasalazina, balsalazida) não têm indicação
366 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

para DC do intestino delgado, com base no seu mecanismo de -------------------------------------------------▼ -------------------------------------------------


liberação baixa. Q u a d ro 32.7 Azatioprina e 6-mercaptopurina na doença de Crohn
A mesalazina está associada à baixa incidência de efeitos
colaterais, incluindo diarréia, cefaleia, náuseas, dor abdominal, Mecanismo de ação Inibição da síntese de DNA da célula T
dispepsia, vômito e rash. Cerca de 80% dos pacientes intoleran­ Indicações Doença refratária
tes à sulfasalazina podem tolerar 5-ASA. Em alguns pacientes, Doença dependente de corticosteroides
pode se associar nefrotoxicidade. Doença fistulizante
A mesalamina é encontrada em várias apresentações (com­ Doença perianal
primidos, sachês, enemas e supositório), que estão disponíveis Efeitos colaterais
no Brasil (Quadro 32.8). Nas crianças, recomenda-se iniciar Gerais Náuseas, vômito
com 30 a 50 mg/kg/dia. Estas doses podem ser bem toleradas, Cefaleia
mas necessitam de monitoramento frequente pelo maior risco Febre
de nefrotoxicidade. Nos pacientes com DC envolvendo o íleo Artralgia
terminal, podem ser úteis os compostos nos quais o 5-ASA é Rash
liberado parcialmente nesta região, evitando-se o uso de cor- Sanguíneos Agranulocitose
ticosteroide ou imunossupressores. Trombocitopenia
Macrocitose
Recentemente, foi verificado que a mesalamina na dose de
Infecções Oportunistas (citomegalovírus, herpes zoster)
3 g/dia, em adultos, diminui o número de recorrências pós-
Hepatobiliares Hepatite colestática
operatórias em 27% dos casos. Está sendo lançada no mercado Pancreatite aguda
brasileiro a mesalazina em sachês de 1 e 2 g. Malignidade Linfoma
Enemas de 5-ASA são efetivos na obtenção de remissão Pele (possível)
clínica ou melhora em 90% dos pacientes com colite no có­
Cada 2 semanas nos primeiros 2 meses e depois
lon esquerdo, leve ou moderada. Recomenda-se usá-los por a cada 2-3 meses: hemograma, testes de
14 dias. Também são eficazes na prevenção de recorrência se Monitoramento função hepática
usados regularmente. Lembrar que o tratamento tópico não Contraindicações Gravidez
é adequado nos pacientes com doença se estendendo mais de Deficiência de 6-TPMT
40 cm acima do ânus. Alopurinol concomitante
Supositórios de 5-ASA (250 a 1.000 mg/dia, 1 a 3 vezes/
TPMT = Tiopurlna metiltransferase.
dia) são bem tolerados e efetivos na manutenção da remissão
na proctite quiescente.

■ Im unom oduladores
■ Azatioprina e 6-mercaptopurina (Quadro 32.7) O metotrexato não tem boa absorção quando administrado
Azatioprina (AZA) e 6-mercaptopurina (6-MP) têm efei­ por via oral e parece não dar bons resultados para fechamento
to imunossupressor e propriedades linfocitotóxicas. O tempo de fístulas. Alguns estudos preconizam seu uso SC. É um anta­
para alcançarem o efeito metabólico ativo é de diversos meses, gonista do ácido fólico. Com objetivos de redução de toxicidade
explicando a demora na resposta clínica de 3 a 4 meses. O me­ e aderência à terapia, doses semanais intramusculares podem
canismo de ação destas drogas parece estar relacionado com a ser administradas. Tem indicação para refratariedade ao trata­
inibição da função dos linfócitos, primariamente das células T. mento com corticoides e azatioprina. Efeitos colaterais: altera­
Como tais efeitos são observados apenas 2 meses após a intro­ ção de transaminase pirúvica (7%), náuseas (1%) e rash (1%).
dução de 6-MP ou AZA, estes medicamentos não são adequa­ Os antimetabólicos parecem ampliar a resposta à terapia
dos para o tratamento das formas agudas. Todavia, são indica­ biológica, estando associados à menor incidência de anticor­
dos para o tratamento de corticodependência, refratariedade pos contra infliximabe.
ao tratamento ou fistulização grave na DC. Estudos mostram
que pacientes tratados com estas medicações podem se livrar ■ Quandosuspender ouso deimunossupressores?
do uso de corticosteroides. Até o presente, não se tem a resposta.
As drogas imunomoduladoras atualmente representam op­
ções para o tratamento a longo prazo em casos selecionados de ■ Tracolimus
DC. A 6-m ercaptopurina (6-MP) e a azatioprina (AZA) po­ Embora o tracolimus tenha um mecanismo de ação seme­
dem ser usadas em pacientes que se tornaram dependentes de lhante ao da ciclosporina, sua absorção VO é boa, mesmo na
corticosteroides e refratários ao tratamento com estes compos­ DC do intestino delgado. Alguns estudos demonstraram fe­
tos ou com aminossalicilatos. De modo similar, pacientes com chamento de fístulas em núm ero pequeno de pacientes. As
DC nos quais os corticosteroides não podem ser descontinuados doses preconizadas são de 0,15 a 0,31 mg/kg/dia; entretanto,
ou que apresentam doença perianal ou fístulas persistentes, po­ os doentes recebiam, concomitantemente, AZA ou 6-MP por
dem se beneficiar do uso destes imunomoduladores. 22 semanas antes de esta droga ser interrompida. Em crianças,
As doses preconizadas são de 1 a 1,5 mg/kg/dia de 6-MP e 0,5 mg/kg/dia.
de 1,5 a 2 mg/kg/dia de AZA (Quadro 32.8). Entre os efeitos
adversos relacionados com estes fármacos, cita-se a supressão ■ Mofetila micofenolato
da medula óssea, particularmente neutropenia e plaquetopenia, O mofetila micofenolato foi indicado para pacientes que
disfúnção hepática e pancreatite, que respondem bem à retirada não toleraram AZA e 6-MP. Esta droga inibe a síntese de pu-
da droga. Recomenda-se controle periódico com hemograma rinas nos linfócitos T e B. Parece agir mais rapidamente que a
e provas de função hepática pelo menos quatro vezes ao ano. AZA e a 6-MP. A dose de 2 g/dia, com poucos efeitos colaterais,
Estas drogas têm se mostrado seguras em crianças e adultos e foi indicada. Como é usada em transplantes, doenças imuno-
existe evidência crescente de sua segurança na gestação. proliferativas têm sido descritas em alguns pacientes.
Capítulo 32 / Doença de Crohn 367

----------------------------▼---------------------------- BIOLÓGICOS
Q u a d ro 32 .8 Medicamentos utilizados no tratamento da doença de IN F L IX IM A B E

Crohn, disponíveis no mercado brasileiro R e m ic a d e * : fra sco s d e 100 m g , E V


In d u ç ã o 5 m g / k g p e s o : z e ro , 15 d ia s e 3 0 d ia s

Parte I M a n u te n ç ã o : 5 m g /k g a cada 8 sem anas

CORTICOIDES A D A L IM U M A B E

P R E D N IS O N A H u m lra • : a m p o la s d e 4 0 m g , S C
M e t ic o r t e n ®, P r e d n is o n a • : c o m p r im id o s d e 5 e 2 0 m g In d u ç ã o : 160 m g s e m a n a 1; 8 0 m g s e m a n a 2 , S C

D o s e in ic ia l: 4 0 -6 0 m g / d ia , V O , a té re m is s ã o ; d im in u ir g r a d a t iv a m e n t e a té M a n u t e n ç ã o : 1 a m p o la d e 4 0 m g e m s e m a n a s a lte rn a d a s , S C

e x c lu s ã o
VO ■ Via oral; EV ■ Via endovenosa; SC » Subcutânea.
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : n ã o é in d ic a d a p a ra m a n u te n ç ã o
•Alguns autores recomendam dose de manutenção semelhante à Inicial.
B U D E S O N ID A

E n t o c o r f : c o m p r im id o s d e 3 m g ; fra s c o p a ra e n e m a
D o s e in ic ia l: 9 m g e m d o s e ú n ic a m a tin a l, V O , p o r 8 s e m a n a s

D o s e d e m a n u t e n ç ã o : n ã o é in d ic a d a p a ra m a n u te n ç ã o
■ Antim icrobianos (Quadro 32.8, Parte II)
E n e m a : c o m p r im id o s d is p e rs ív e is d e 2 ,3 m g e m 115 m l d e s o lu ç ã o ;
1 fra sco /d ia , 7 a 14 d ia s
Os antimicrobianos são efetivos em algumas situações, par­
ticularmente na doença perianal. São de algum beneficio na
H ID R O C O R T IS O N A
doença do intestino delgado, mas de uso principal na doen­
S u c c in a to s ó d ic o : C o rt iz o l* e S o lu - C o r t e f K a m p o la s d e 1 0 0 e 5 0 0 m g ; u s o E V
ça dos cólons. Alteram a flora intestinal e diminuem a esti­
S u c c in a to : F le b o c o r tid * : f r a s c o -a m p o la s d e 1 0 0 ,3 0 0 e 5 0 0 m g ;
mulação antigênica ao sistema imune da mucosa do intestino,
H id r o c o r t iz o n a C o r t is o n a l* fr a s c o -a m p o la s d e 1 0 0 e 5 0 0 m g ; u s o E V
sendo usados como tratamento primário ou de infecções in-
AMINOSSALICILATOS tercorrentes.
S U L F A S A L A Z IN A O metronidazol mostra-se efetivo no tratamento da doen­
A z u lf im * e S a la z o p r im ®: c o m p r i m i d o s d e 5 0 0 m g ça fistulosa perianal, provavelmente por ser um potente agente
D o s e in ic ia l: 2 -4 g / d ia , V O , a té re m is s ã o
antianaerobiose por afetar a capacidade dos neutrófilos para mi­
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : 1 -2 g / d ia , V O , t e m p o p r o lo n g a d o "
grar aos locais da inflamação. A dose utilizada é de 10 a 15 mg/
M E S A L A Z IN A (5 -A S A : Á C I D O 5 -A M I N O S S A L IC ÍL IC O ) kg/dia (máximo de 1,5 g/dia). O tratamento prolongado (4 a
A s a llt 9 : c o m p r im id o s d e 4 0 0 m g 6 meses) acarreta risco de neuropatia periférica, especialmen­
S u p o s itó rio s : 0 ,5 g , 3 v e z e s a o d ia , p o r 14 a 21 d ia s te nos pacientes recebendo mais que 10 mg/kg/dia. Essa droga
M e s a c o l * : c o m p r im id o s d e 4 0 0 e 8 0 0 m g não é efetiva na ileíte da DC, isolada. Efeitos colaterais: náuseas,
D o s e in ic ia l: 1,6 g / d ia , V O , a té re m is s ã o gosto metálico e risco de neuropatia periférica. O paciente deve
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : 8 0 0 m g / d ia , V O , t e m p o p ro lo n g a d o " evitar o uso de álcool.
E n e m a d e r e te n ç ã o : 3 g /d ia , 14 d ia s O ciprofloxacino tem sido apontado como opção terapêutica
S u p o s itó rio s : 0 ,5 g , 3 v e z e s a o d ia , p o r 14 a 21 d ia s para pacientes adultos intolerantes ao metronidazol.
P e n t a s a *: c o m p r im id o s d e 5 0 0 m g Lembrar que o metronidazol, como o ciprofloxacino, exer­
D o s e in ic ia l: 3 -4 g / d ia , V O , a té re m is s ã o ce efeito sobre a flora intestinal, mas ambos têm propriedades
D o s e d e m a n u t e n ç ã o : 1 ,5 -2 g / d ia , V O , t e m p o p r o lo n g a d o " imunomoduladoras.
S a c h ê : 1 e 2 g , in ic ia l 3 -4 g ; m a n u t e n ç ã o 1 ,5 -2 g / d ia
S u p o s itó rio s : 0 ,5 g , 3 v e z e s a o d ia , p o r 14 a 21 d ia s ■ Antibióticos
E n e m a d e r e te n ç ã o : 1 a o d ia , 14 d ia s Há risco aumentado para colite associada a C. difficile quan­
do se usam antibióticos, concluindo-se que pacientes com surto
Parte II de diarréia devem ser checados para este e outros patógenos.
IMUNOSSUPRESSORES
A Z A T IO P R IN A
■ Terapia biológica
Im u r a n •: c o m p r im id o s d e 5 0 m g Com a introdução da terapia biológica no armamentário
D o s e : 2 m g / k g / d ia , V O , p o r t e m p o p r o lo n g a d o do tratamento da DC, principalmente nas suas formas graves,
6 -M E R C A P T O P U R IN A
houve grande empolgação, mas deve-se ponderar, com muito
M e r c a p tin a * , P u r i-N e t h o f * : c o m p r im id o s d e 5 0 m g
cuidado, a sua indicação, pois a ocorrência de sérios efeitos ad­
D o s e : 1,5 m g / k g / d ia , V O
versos pode aumentar o risco do tratamento, apesar do benefí­
cio que possa ser alcançado. Portanto, algumas perguntas são
M E TO TR E X A TE
inevitáveis: em quais pacientes devemos usar a terapia biológica
M e th o tre x a te ®, M e to tre x a te K e M o tre x • : c o m p r im id o s d e 2 ,5 m g
na DC? Quando devemos utilizar estes medicamentos? Quando
D o s e : 2 5 a 5 0 m g / s e m a n a , V O , 12 s e m a n a s
não podemos utilizá-los? Por quanto tempo?
ANTIMICROBIANOS
M E T R O N ID A Z O L ■ Infliximabe (anti-TNF-a)
F la g y l *, M e t r o n id a z o l e M e tro n ix * : c o m p r im id o s d e 2 5 0 e 4 0 0 m g ; Infliximabe (Remicade®) é um anticorpo monoclonal qui-
s o lu ç ã o in je tá v e l d e 5 0 0 m g
mérico antifator de necrose tumoral. É geneticamente produzi­
D o s e in ic ia l: 1,2 g / d ia , V O , e m 3 t o m a d a s , a té re m is s ã o
do através de uma linhagem celular recombinante e na qual as
C IP R O F L O X A C IN O regiões variáveis de ligações do anticorpo monoclonal murino
C iflo x * , C ip r o * , P r o c ln 9, Q u in o flo x ®: c o m p r im id o s d e 2 5 0 e 5 0 0 m g específico para o fator de necrose tumoral humano são ligadas
P ro fla x * : c o m p r im id o s d e 2 5 0 ,5 0 0 e 7 5 0 m g às regiões constantes da imunoglobulina humana da subclasse
D o s e in ic ia l: 5 0 0 -7 5 0 m g / d ia , V O ; t e m p o ? IgGlk. Este tipo de construção reduz a possibilidade de uma
368 Capítulo 32 / Doença de Crohn

reação imunológica à imunoglobulina inteiramente murina. A eficácia do ADA foi semelhante com, ou sem, o uso de
O infliximabe é capaz de neutralizar o TNF-a e não há dúvi­ imunossupressores associados; provavelmente, o uso exclu­
da de que exerce atividade anti-inflamatória e induz apoptose sivo de ADA seja mais conveniente, na intenção de reduzir
de células T ativas. Três polimorfismos nos genes da apoptose efeitos adversos. Destes, a longo prazo, deve-se estar atento às
potencialmente influenciam a resposta ao infliximabe em pa­ infecções, principalmente nos pacientes em uso concomitante
cientes com DC luminal ou fistulizante. de imunossupressores ou que tenham necessidade de corti-
A resposta ao infliximabe pode ser determinada por con­ costeroides.
dições fisiológicas e/ou genéticas. Os genes do polimorfismo
NOD2 não predizem a resposta do tratamento anti-TNF-a. ■ Certolizumabe-pegol
Parece que a dose de manutenção a cada 8 semanas é supe­ É outro anti-TNF humanizado e peguilado, de adminstração
rior a 12 semanas. Os dados sugerem que os efeitos do trata­ subcutânea, mas ainda não disponível no Brasil.
mento com infliximabe em crianças são melhores do que para
adultos, tanto na indução da remissão como para o tratamento ■ Natalizumabe
de manutenção. É droga anti-integrina-alfa 4, que inibe a migração leucoci-
Retardo de crescimento é uma complicação comum na DC tária através do endotélio vascular, reduzindo o processo infla-
da criança e do adolescente, sendo seu restabelecimento um matório. É usada no tratamento da esclerose múltipla. Também
marcador de sucesso terapêutico bem aceito. Até agora, há evi­ não está disponível no Brasil.
dências de que o tratamento com infliximabe melhora o cres­
cimento em crianças com retardo causado pela DC. ■ Talidomida
Por outro lado, relato de casos assinalam melhora das mani­ A talidomida parece ser potente inibidor do fator de necro­
festações extraintestinais da DC não responsivas às terapêuticas se tumoral-alfa (TNF-alfa). Dois trabalhos mostraram uso de
convencionais após o uso de infliximabe. 50 a 100 mg e 200 a 300 mg, em dose única noturna, com boa
Recentemente, foram relatados casos do desenvolvimento resposta no fechamento de fístulas (64 e 70%, respectivamen­
de linfoma hepatoesplênico-células T, que é uma forma rara te). Em crianças, 1,5 a 2 mg/kg/dia. Os efeitos colaterais são
de linfoma não Hodgkin, ocorrendo mais frequentemente em teratogenicidade, neuropatia periférica, dermatite, constipação
intestinal e sedação excessiva.
adolescentes e adultos jovens masculinos. Os pacientes estavam
também recebendo azatioprina ou 6-mercaptopurina. Perma­
■ Indicaçõesgerais dos agentes anti-TNF
nece a dúvida sobre o desenvolvimento da neoplasia estar re­
Tanto o infliximabe (IFX) como o adalimumabe (ADA)
lacionado com os imunossupressores ou o infliximabe.
foram mais tardiamente utilizados em Gastrenterologia, so­
Outros eventos adversos incluem infecções oportunistas,
mente usados após experiência acumulada na Reumatologia,
reativação de tuberculose e ocorrência de doenças malignas.
principalmente no tratamento da artrite reumatoide (AR), que
foi a doença desbravadora que permitiu utilizar estes medi­
►Imunogeniddade
camentos na prática clínica diária. Algumas indicações, den­
Reações adversas podem ocorrer à infusão da droga, mesmo
tre elas a AR e a própria DC, são atualmente consagradas,
com uso de pré-medicação (antipiréticos, anti-histamínicos ou
e constam em bula. Entretanto, há outras indicações, como
corticoides), provavelmente pelo desenvolvimento de autoanti- uveíte, iridociclite, hidrosadenite supurativa e artrite reuma­
corpos ao infliximabe, chamados de anticorpos antiquiméricos toide juvenil, que ainda não estão liberadas para uso pelos
humanos. Sua presença está associada ao aumento do número órgãos reguladores, apesar de significativas evidências cien­
de reações a infusões, reações de hipersensibilidade retardada tíficas comprovando a eficácia destes agentes. Estas indica­
e curta duração da resposta ao tratamento. A imunomodula- ções, denominadas off-labelypor não constarem em bula oficial
ção funciona sinergicamente com o infliximabe e parece dimi­ dos medicamentos, tornam o acesso ao IFX e ADA difícil no
nuir o risco da formação de anticorpos e o risco para reações cenário público e privado de saúde, pois nem as Secretarias
de infusão. Pacientes menores de 14 anos tendem a ter menos de Saúde, nem os convênios médicos autorizam sua libera­
anticorpos. Se ocorreu reação à infusão em uma sessão, pré- ção para este fim. As principais indicações, que constam em
medicação pode prevenir reação subsequente. bula, dos agentes anti-TNF são: artrite reumatoide, doença de
Crohn (crianças e adultos), espondilite ancilosante, psoríase
■ Adalimumabe (anti-TNF-a) e artrite psoriásica.
Adalimumabe (Humira®) é um anticorpo monoclonal, total­
mente humano, antagonista do fator de necrose tumoral (anti- ■ Indicações dos biológicosna doença de Crohn
TNF), liberado para uso na DC de adultos. Mostrou-se mais Em Gastrenterologia, é no campo da DC que os prim ei­
efetivo do que o placebo na indução da remissão em pacientes ros conhecimentos sobre a terapia biológica foram aplicados,
que não haviam recebido previamente anti-TNF, bem como inicialmente com o IFX e posteriormente com o ADA. Para
nos que deixaram de responder, ou mostraram intolerância melhor se entenderem as indicações mais consagradas, uma
ao infliximabe. leitura detalhada das bulas destes medicamentos evidencia es­
Esquema de indução: 160 mg na semana zero, 80 mg na tes dados.
semana dois. No Brasil, o IFX foi liberado para uso na DC no ano 2000,
Esquema de indução: 40 mg a cada 2 semanas, a partir da inicialmente para o tratamento das formas moderadas a graves
semana quatro. da doença, que não respondiam à terapia convencional com
Os dados sobre a formação de anticorpos contra o adalimu­ corticoides e/ou imunossupressores. Os estudos definiram
mabe (ADA) na artrite reumatoide registraram 5,5% de positi- doença moderada a grave baseando-se no CD AI (Crohn’s di-
vidade, mas na DC estes dados ainda são limitados. Anticorpos sease activity index) entre 220 e 450. Inicialmente, o IFX foi uti­
monoclonais totalmente humanos tendem a ser menos imu- lizado para a forma luminal da DC, entretanto, outros estudos
nogênicos do que os quiméricos. evidenciaram a forma fistulizante como outra grande indicação
Capítulo 32 / Doença de Crohn 369

■ Estratégia de tratam ento descendente ( top-down)


G ra ve Esta estratégia é baseada no uso precoce de terapia biológica
em pacientes selecionados, que teriam critérios de agressivi­
dade da DC, conforme será visto a seguir. Nestes casos, o uso
precoce de biológicos, aventado por alguns autores, pode tra­
zer benefícios com um tratamento preventivo de complicações
M o d e ra d a
da DC, diminuindo-se internamentos e cirurgias. Trata-se de
utilização de IFX ou ADA logo após o diagnóstico da DC, sem
a necessidade prévia de intratabilidade ou intolerância ao tra­
tamento convencional com antibióticos, corticoides, derivados
Leve do 5-ASA ou imunossupressores. Esta estratégia deixa a cirurgia
como alternativa para os casos mais graves, em fases mais tar­
dias da DC ou na falha da terapia biológica. Um detalhe desta
(to p - d o w n ). estratégia de tratamento, surgida nos países baixos (Bélgica e
Holanda), encontra-se ilustrado na Figura 32.3.

■ Critérios de agressividade
desta terapia. Mais recentemente, passou-se a se utilizar o IFX Alguns estudos procuraram estudar quais os fatores que in­
no manejo da DC na faixa etária pediátrica, com bons resulta­ dicariam doença com pior prognóstico e maior possibilidade
dos. Ultimamente, fala-se na utilização do IFX após ressecções de complicações na DC. Em um destes trabalhos, procurou-se
intestinais, para prevenção da recorrência. Entretanto, estudos estudar quais os fatores de risco para cirurgia precoce nestes
com maior amostragem devem ser publicados antes de se acei­ pacientes. Após a análise de 345 pacientes, Sands et al. (2003)
tar esta como uma indicação precisa do tratamento. concluíram que tabagismo, doença de intestino delgado sem
O ADA foi liberado para uso na DC, no Brasil, no ano de acometimento do cólon, náuseas, vômito e dor abdominal à
2007, com seus estudos focando, da mesma forma que para o
IFX, as formas moderadas a graves da doença, seja de forma
luminal seja fistulizante. Neste mesmo ano, provou-se a eficá­
cia do ADA em pacientes que apresentaram perda de resposta
ou intolerância ao uso do IFX. Portanto, o ADA tem indicação
precisa tanto em pacientes virgens de outros agentes anti-TNF,
como na falha ao tratamento prévio com IFX.

■ Estratégia de tratam ento ascendente ( step-up)


Trata-se de uma abordagem mais conservadora, sendo a ma­
neira mais frequentemente utilizada no uso dos agentes bioló­
gicos, atualmente. Consiste na utilização sequencial de classes
de medicamentos, dando-se tempo para que sua ação possa ser
comprovada. É iniciada com a budesonida oral, derivados do
5-ASA e antibióticos, e, caso os pacientes venham a apresentar
maior gravidade na evolução do tratamento, passa-se a utilizar
imunossupressores e corticoides sistêmicos. Reserva-se, com
esta forma de terapia, os agentes biológicos para um último
momento, na falha de ação dos medicamentos previamente uti­ --------------------------------▼--------------------------------
lizados, ou na presença de complicações apesar do tratamento Q u a d ro 32 .9 Drogas disponíveis no Brasil recomendadas para
realizado por período de cerca de 6 meses. É a maneira mais doença de Crohn, em relação à forma da enfermidade
exaustivamente estudada, principalmente no início da experi­
ência com os biológicos nas DII. Leve S u lfa s a la zin a o u o u t r o 5 -A S A p a ra d o e n ç a d ô n ic a
Entretanto, sabe-se atualmente que cerca de 20 a 30% dos M e t r o n id a z o l o u d p r o f lo x a c in o p a ra d o e n ç a p e ria n a l
B u d e n o s id a p a ra d o e n ç a ileal o u d o c ó lo n d ir e it o
pacientes são dependentes de corticoides, e uma porcentagem
semelhante não tolera os imunossupressores ou não responde Moderada C o r t ic o id e s o ra is
Im u n o s s u p re s s o re s (A Z A o u 6 -M P , o u M T X )
a eles. Nestes casos, uma demora no tratamento pode acarretar A n t i-T N F (in flix im a b e o u a d a lim u m a b e )
uma evolução da DC para complicações, e um pior prognóstico Grave C o r t ic o id e s ora is o u E V
em determinados casos pode ser observado. Para se evitar este M T X s u b c u t á n e o o u IM
A n t i-T N F
tipo de problema, recentemente aventou-se na literatura a pos­
sibilidade de se realizar uma conduta ascendente mais rápida, Refratária A n t i-T N F (in flix im a b e o u a d a lim u m a b e )

o step-up acelerado. Esta estratégia intermediária consiste em Quiescente Im u n o s s u p re s s o re s (A Z A o u 6 -M P o u M T X )

realizar a estratégia ascendente com menor período de tempo Perianal A n t ib ió t ic o s o ra is (m it r o n id a z o l e / o u c ip ro flo x a c in o )


Im u n o s s u p re s s o re s (A Z A o u 6 -M P )
para se observar a resposta do paciente aos medicamentos em­ A n t i-T N F (in flix im a b e o u a d a lim u m a b e )
pregados. Um período de cerca de 3 meses é citado, como mais
5-ASA = Ácido 5-aminossalicílico; 6-MP ■ 6-mercaptopurina; AZA ■ Azatioprina; BUD
adequado para determinados pacientes. Os detalhes do step-up ■ 8udesonida; MTX = Metotrexato.
são ilustrados na Figura 32.2.
370 Capítulo 32 / Doença de Crohn

apresentação inicial, aumento na contagem de neutrófilos, e ■ Com entários dos autores do capítulo
uso de corticoides nos primeiros 6 meses do diagnóstico foram O estudo top-down versus step-up foi realmente um estudo
fatores com influência significativa em operações abdominais revolucionário no que diz respeito a indicações mais precoces
precoces. Em outro estudo, Lakatos et al. (2009) acrescentam a de utilização de terapia biológica. Entretanto, este estudo apre­
estes a doença perianal e o uso precoce de imunossupressores senta algumas limitações importantes. Primeiramente, não foi
e biológicos. Outros trabalhos procuraram identificar pacien­ um estudo duplo-cego, o que pode trazer um viés na análise
tes que se beneficiariam da estratégia descendente (top-down) das variáveis. Além disso, a terapia biológica empregada foi
na DC pela maior agressividade de doença. Nestes, ficou claro somente o regime de indução de IPX (0, 2 e 6 semanas), não
que pacientes com diagnóstico abaixo de 40 anos, com doen­ seguido de manutenção da remissão a cada 8 semanas. Isso pode
ça fistulizante, tabagistas, com perda de mais de 5 kg antes do ter colaborado para que as taxas de remissão se equilibrassem
diagnóstico e com uso de corticoides como primeira forma de após as 52 semanas. Ressalta-se que, mesmo assim, os dados de
tratamento apresentam reais possibilidades de benefício com cicatrização da mucosa mostram superioridade importante na
formas mais agressivas de tratamento. Portanto, pacientes com terapia biológica mais precoce. Se a estratégia descendente não
estas características, ilustradas nos trabalhos descritos, passa­ pode ser recomendada para todos os pacientes, este trabalho
riam a ter doença com curso mais grave e poderíam se bene­ afirma que há definitivamente lugar para este tipo de terapia
ficiar de indicações de terapia biológica mais precoce, com o em alguns pacientes com DC.
benefício de redução das taxas de complicações da DC e suas
consequências. As principais características de agressividade ■ Contraindicações da terapia biológica nas DII
da DC encontram-se resumidas no Quadro 32.10. Nem todos os potenciais candidatos à utilização de agentes
biológicos nas DII podem ser beneficiados com estes medica­
■ Resultados: step-up versus top-down mentos, e isso vale tanto para DC quanto para RCU1, até mes­
Apenas um trabalho randomizado comparando as duas es­ mo para outras indicações de agentes anti-TNF fora do sistema
tratégias de tratamento da DC, ascendente versus descendente, digestório. A segurança nos estudos de fase II e III, somada à
foi publicado na literatura. Trata-se do famoso estudo de top- experiência principalmente da Reumatologia, além dos acha­
down publicado pelo professor Geert DTlaens, da Bélgica, e seu dos pós-marketing destas drogas, mostra que algumas situações
grupo. Este estudo foi publicado no Lancet, em 2008, e incluiu tornam impossível a utilização de IPX e ADA com segurança.
133 pacientes oriundos de 18 centros de referência em DII da Como os agentes anti-TNF são potentes imunossupressores,
Bélgica, Holanda e Alemanha. O desenho deste trabalho divi­ nenhuma infecção deve estar vigente no início do tratamento.
diu os pacientes em dois grupos: um que recebeu imunossu- Portanto, infecções ativas, em qualquer sistema do organismo,
pressão combinada de azatioprina e IFX como primeira terapia tornam-se contraindicações importantes e devem ser comple­
(top-down) e outro com tratamento convencional, iniciando-se tamente erradicadas antes da exposição do paciente aos bioló­
com corticoides, passando posteriormente para azatioprina e gicos. Neste contexto, entra importante alerta: observaram-se
utilizando o IPX mais tardiamente (step-up). O principal ob­ índices significativos de reativação de tuberculose durante o
jetivo foi analisar taxas de remissão sem corticoides entre os tratamento biológico em alguns casos. A infecção prévia por
dois grupos. Ao final de 26 semanas, houve maiores taxas de tuberculose e/ou uma exposição a contatos recentes torna a
remissão sem corticoides nos pacientes com imunossupres- investigação prévia com detalhada anamnese, PPD e radio­
são combinada precoce (top-down) em relação ao outro grupo grafia de tórax essencial para se afastar qualquer possibilidade
(60% versus 35,9%; p = 0,006). Esta diferença diminuiu um de problemas, antes do tratamento. Pacientes com PPD reator,
pouco após 52 semanas de seguimento (61,5% versus 42,2%; p acima de 10 mm (ou até 5 mm em algumas situações), tornam-
= 0,028). Entretanto, após 2 anos de seguimento (104 semanas), se impossibilitados de serem tratados por biológicos, sem um
não houve diferença estatística nas taxas de remissão entre os tratamento específico prévio de erradicação da tuberculose. O
dois grupos. Um importante dado deste trabalho, que foi um Quadro 32.11 ilustra as principais contraindicações da utiliza­
dos objetivos secundários do estudo, mostrou que ao final de ção de inibidores do TNF-alfa encontradas na prática clínica
2 anos, uma maior taxa de cicatrização da mucosa no grupo diária e na literatura.
que seguiu a estratégia top-down foi encontrada em relação
ao grupo de tratamento convencional (73,1% versus 30,4%;
p = 0,0028). ----------------------------- ▼-----------------------------
Q u a d ro 32.11 Principais contraindicações dos agentes anti-TNF
no cenário da DC e da RCUI
-------------------------- T
P R IN C IP A IS C O N T R A I N D IC A Ç Õ E S D A T E R A P IA B IO L Ó G I C A N A S D II:
Q u a d ro 32.10 Critérios de pior prognóstico (maior agressividade)
1. In fe c ç õ e s a tiv a s d e q u a lq u e r n a tu re z a , lig a d a s o u n ã o à D C o u R C U I
da DC, que definem potenciais candidatos à terapia descendente
2. A b s c e s s o s a b d o m in a is o u p e ria n a is lig a d o s à D C
[top-down) no manejo da DC
3. T u b e r c u lo s e a tiv a , re c e n te o u p ré v ia , c o m P P D re a to r o u ra d io g ra fia d e
t ó ra x c o m a c h a d o s s u g e s tiv o s
C rité rio s d e m a io r a g re s s iv id a d e (p io r p r o g n ó s t ic o ) n a D C :
4. N e u r it e ó p tic a
1. Id a d e m e n o r q u e 4 0 a n o s a o d ia g n ó s t ic o
5. E s d e ro s e m ú ltip la
2. D C n a f o r m a fis tu liz a n te (p e r ia n a l o u a b d o m in a l)
6. N e u r o p a t ia p e rifé ric a c o m b lo q u e io d e c o n d u ç ã o
3. T a b a g is m o
7. In s u fic iê n c ia c a rd ía c a g ra u s III e IV p e lo s c rité rio s d a A m e r ic a n H e a rt
4. U lc e ra ç ó e s p ro f u n d a s n o c ó lo n
A s s o c ia tio n
5. G r a n d e e x te n s ã o d a d o e n ç a (c o m p r im e n t o d e in t e s t in o a c o m e t id o )
8. A le r g ia o u h ip e rs e n s ib ilid a d e a os c o m p o n e n t e s d o IFX o u A D A
6. U s o d e c o r tic o id e s n a s p rim e ir a s crises
9. L in fo m a o u o u t r a s n e o p la s ia s p re v ia m e n t e tra ta d a s (c o n t r a in d ic a ç ã o
7. E m a g r e c im e n t o m a io r q u e 5 k g a n te s d o d ia g n ó s t ic o d a D C re la tiv a )
Capítulo 32 / Doença de Crohn 371

■ Com entários dos autores do capítulo pares da mesma faixa etária, seja na escola, seja no trabalho,
As contraindicações dos agentes biológicos devem ser sem­ enfim, na sociedade.
pre exaustivamente investigadas, em anamnese detalhada e exa­ O uso de ansiolíticos e antidepressivos fica reservado para
mes complementares. Os pacientes e familiares devem ser aler­ situações em que a avaliação mostre necessidade. Cuidado com
tados de que nem todos podem utilizar estas medicações com os efeitos anticolinérgicos dos tricíclicos, pois podem favore­
segurança, para que uma imensa decepção não atrapalhe o se­ cer megacólon tóxico. Psicoterapias são indicadas conforme
guimento destes doentes após este momento. A segurança do o caso clínico.
tratamento depende de uma pesquisa minuciosa da lista de con­
traindicações. Especificamente, como exemplo, no caso de neo-
plasias previamente tratadas, apesar do receio da utilização dos
■ Manutenção da remissão na DC
biológicos, os oncologistas recomendam o uso deste tratamento ►S u lfa sa la zin a . Estudos multicêntricos demonstraram que
se a quimioterapia estiver finalizada, em período posterior ao esta droga não é eficaz na manutenção da DC;
tratamento do câncer. Recomendam-se bom-senso e análise de ►5 -A S A . Metanálise demonstrou que houve redução de re­
cada caso para definições sobre este controverso tema. corrência em 50% dos pacientes com doença ileal ou ileocolô-
Atenção para as vacinas em imunodeprimidos.* nica. Não se sabe se doses altas (4 g) podem ser mais efetivas
► C o n tra in d ic a d a s . Vacinas vivas (tríplice, sarampo, ca­ na manutenção da remissão ou se facilitariam a retirada dos
xumba, rubéola, varicela, sabin, febre amarela) para pacientes corticoides;
imunodeprimidos e em uso de corticoides em dose equivalente ►C o rtic o ste ro id e s. As drogas-padrão não são usadas para
a 2 mg/kg/dia de prednisona durante 2 semanas ou mais (ou manutenção, mas são de ajuda as novas, de ação tópica, sem
20 mg/dia para crianças com > 10 kg). Consideram-se contrain­ maiores efeitos colaterais. Budesonida não foi eficaz para m an­
dicadas as vacinas vivas durante 1 a 3 meses após o término ter a remissão. Entretanto, pulsoterapia com 9 mg em dose úni­
da corticoterapia. ca matinal é preconizada nas exacerbações da DC;
► V a c in a s in d ic a d a s. Salk, influenza, pneumocócica (para ►Im u n o s s u p re s s o re s . AZA/6-MP são as únicas drogas
crianças com 2 anos ou mais, com asplenia anatômica ou fun­ que induzem remissão clínica, embora não haja conhecimen­
cional, hemoglobinopatias, imunodeficiência congênita ou ad­ to de quanto tempo devam e possam ser administradas, porém
quirida, pessoas HIV+). 6 meses seria o tempo mínimo. Relatou-se que, após 4 anos
de uso, pode desaparecer sua tendência de manter a DC em
remissão;
■ Tratamento de problemas psicoemocionais ►Imunomoduladores. Há grande esperança de que drogas
Os aspectos psicológicos representam um componente im­ imunomoduladoras mudem o tratamento da DC a longo prazo.
portante nas DII, mas não são a causa das doenças. Vários es­ Os resultados com infliximabe têm sido bons e promissores,
tudos indicam que o estresse exerce efeito adverso diretamente podendo o benefício ser alcançado até por 1 ano. A droga é bem
sobre o trato gastrointestinal, alterando os mediadores inflama- tolerada e retratamento é possível, mesmo que não se saiba o
tórios e neurotransmissores. Para se saber como o paciente está potencial de desenvolvimento de linfomas.
se sentindo em relação à doença, é preciso incorporar informa­ O desenvolvimento de farmacogenômicos será a melhor op­
ções psicológicas e não só testes laboratoriais que determinam ção, no futuro!
a gravidade da afecção. É importante se saber quais os fatores
positivos e negativos que influenciam a adaptação à doença
crônica, incluindo-se aqui o suporte social, a autoconfiança e • OUTROS TRATAMENTOS
a presença de comorbidade psiquiátrica. Questionários relacio­
nados com o conhecimento da qualidade de vida do paciente
ajudam o clínico a identificar áreas problemáticas. Com conhe­
■ Oxigenoterapia hiperbárica
cimento holístico, firma-se mais a relação médico-paciente e A oxigenoterapia hiperbárica é a inalação de oxigênio medi­
há melhora no estado de saúde do doente. cinal com pressão acima da ambiente, necessitando, para isso,
Como qualquer doença crônica, a DC tem significativo im­ de uma câmara denominada hiperbárica. O aumento do oxi­
pacto sobre o paciente e sua família. Embora haja evidências gênio no meio é letal para as bactérias anaeróbicas. Também
de início da sintomatologia ou recorrência sob situações de provoca melhora na atividade bactericida dos leucócitos e oti­
estresse, percebem-se mais problemas emocionais em doentes miza proliferação de fibroblastos.
que apresentam doença anorretoperineal. O desconforto, a dor Na DC é indicada quando há fístulas, lesões refratárias e in­
e, principalmente, a incontinência de gases e/ou fezes causam fecções necrosantes dos tecidos moles, após drenagem, se neces­
embaraços sociais, levando a sequelas psicossociais que incluem sária. Seu alto custo faz com que seja empregada para pequeno
perda da autoestima, declínio no desempenho escolar e profis­ número de pacientes com doença grave refratária.
sional, problemas sexuais e depressão.
Na adolescência, fase caracterizada pela necessidade de au-
toafirmação e desligamento de vínculos familiares, os pacientes
■ Ovosdehelmintos
entram em conflito com os pais, pois se recusam, muitas vezes, a Uma proposta terapêutica do uso de ovos de helmintos e do
seguir regimes alimentares e uso ininterrupto de medicações. próprio parasito tem base na hipótese da higiene, já citada. O
O médico atendente deve estar preparado para dar suporte Trichuris suis é helminto parasito de suínos, não acarreta qual­
emocional ao paciente e à família, tanto durante as crises, como quer lesão no homem, mas consegue resposta imune do orga­
nas fases de quiescência. Deve fazer o possível para melhorar a nismo. Summers et al. (2005), em 29 casos de DC, referem que
qualidade de vida dos doentes para conviverem bem com seus 79% apresentaram melhora clínica e 72%, remissão completa.
Não houve efeitos colaterais ou complicações, concluindo-se
•Centro dc Referência de Imunobiológicos Especiais (CRIE), Sociedade Brasi­ por tratamento efetivo e seguro. Outros estudos são necessários
leira de Pediatria c Manual dc Normas dc Vacinação, Ministério da Saúde. para inclusão deste tratamento na prática.
372 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

A operação ideal para cada paciente deve ser indicada após


■ TRATAMENTO CIRÚRGICO minuciosa análise individual de cada caso. A morbidade dos
DA DOENÇA DE CROHN procedimentos, assim como a possibilidade de recorrência da
doença variam de acordo com inúmeros fatores. Um diagnós­
Quando Crohn, Ginzburg e Oppenheimer, em 1932, ini­ tico preciso e detalhado, associado a um conhecimento adequa­
cialmente descreveram seus 14 pacientes portadores de ente- do do estado nutricional do paciente e das técnicas cirúrgicas
rite regional, pensava-se que tal entidade era de tratamento utilizadas, pode trazer o benefício real da cirurgia para esta
eminentemente cirúrgico. Na época, prevalecia o conceito de complexa entidade.
que, quanto maiores as margens cirúrgicas livres de inflamação,
maior o sucesso do tratamento. Era comum a presença de pa­
tologistas nas salas operatórias, para um estudo de congelação,
■ Indicações cirúrgicas
que mostrava se as margens apresentavam inflamação micros­ Os objetivos do tratamento cirúrgico da DC são variados.
cópica. As operações iam se ampliando até que tal inflamação Alívio dos sintomas, correção de complicações, prevenção do
não mais aparecesse nas peças ressecadas. desenvolvimento de carcinoma, melhora da qualidade de vida
Atualmente, após quase 80 anos de estudos sobre a DC, e retirada de medicamentos com toxicidade conhecida (como
muitos conceitos mudaram. A ocorrência da síndrome do in ­ os corticoides, por exemplo) são alguns deles. Sabe-se que a
testino curto, de dificuldade na manutenção do aspecto nutri­ recorrência da doença é frequente e que pode ocorrer em qual­
cional dos pacientes, aliadas às altas taxas de recorrência após quer segmento do sistema digestório. Por este motivo, devem-se
o tratamento cirúrgico dos portadores de DC, fizeram os cirur­ sempre analisar as vantagens e desvantagens da cirurgia antes
giões “pisarem no freio”, sendo cada vez mais econômicos na de optar por procedimentos invasivos, de pequeno ou grande
extensão dos tecidos ressecados. Hoje é comum a realização porte.
de anastomoses sobre tecidos nitidamente inflamados, e a ci­ As indicações de tratamento cirúrgico na DC variam em
rurgia para a DC ficou quase que reservada às complicações, grau de dificuldade na análise de cada caso. Quadros graves da
como se verá adiante. doença geralmente são evidentes, com sintomas exuberantes,
As formas de apresentação da DC são consideravelmente e, nestas situações, a decisão pela cirurgia é facilitada. Quadros
complexas. Muitas são as regiões anatômicas do sistema di- mais obscuros, com sintomatologia mais discreta, envolvendo
gestório que podem estar acometidas, em diversos momentos cronicidade, em geral são mais desafiadores para o cirurgião.
de evolução da doença. Há também diferentes características As indicações cirúrgicas nos pacientes portadores de DC de­
da inflamação: algumas mais leves (acometimento luminal não pendem basicamente de duas situações: intratabilidade clínica
complicado) e outras mais graves (estenoses por fibrose conse­ ou complicações da doença. As complicações, por sua vez, po­
quente a inflamações de repetição, assim como fístulas e per­ dem ser divididas em agudas ou crônicas (Quadro 32.12).
furações). Por este motivo, não é fácil definirem-se condutas
cirúrgicas de forma simples. A variada gama de sintomas faz ■ Biológicos e cirurgia na DC
com que diferentes opções de tratamento cirúrgico sejam cada
vez mais estudadas. Não há dúvidas de que a maior novidade no tratamento da
Apesar dos avanços na terapia clínica (medicamentos bioló­ DC nos últimos 10 anos foi a introdução da terapia biológica
gicos) e nas formas menos invasivas de tratamento da DC (en­ na prática clínica diária. Inicialmente, foi liberado para uso
doscópicas e guiadas por imagem), a cirurgia ainda desempenha no Brasil o infliximabe (IPX), em 2001. Trata-se de um anti­
papel fundamental no tratamento destes pacientes. Estima-se corpo monoclonal quimérico, que inibe o TNF-alfa, causando
que cerca de 70 a 90% dos pacientes necessitarão de alguma apoptose das células inflamatórias, reduzindo-se desta forma
forma de tratamento cirúrgico no decorrer de sua vida, que a atividade da doença. Sua administração é realizada de forma
varia desde simples drenagens de abscessos anais até complexas endovenosa, sob monitoramento, na dose de 5 mg/kg nas se­
ressecções de segmentos intestinais. manas 0,2 e 6 (indução) com manutenção programada a cada
Durante anos, as taxas de ressecções intestinais na DC não ti­ 8 semanas. Já em 2007, foi liberada no Brasil a utilização do
veram sua incidência alterada, provavelmente por não existirem adalimumabe (ADA), um agente anti-TNF totalmente huma­
medicações que mudassem a história natural da doença. Nem no, de administração subcutânea. Sua dosagem de indução é de
mesmo os imunossupressores, como a azatioprina, largamente 160 mg na semana 0,80 mg na semana 2 e 40 mg a cada duas se-
utilizados para manutenção da remissão da doença, alteraram
a necessidade de tratamento cirúrgico nestes pacientes no de­
correr dos anos. Por outro lado, há evidências científicas con­

cretas de que a utilização dos medicamentos biológicos (prin­
cipalmente o IPX e o ADA) pode reduzir as taxas de operações Q u a d ro 32.12 Indicações cirúrgicas na doença de Crohn
abdominais ligadas à DC ao longo do tempo. A mudança da
Intratabilidade clínica A b s c e s s o s a na is
história natural da doença, com prevenção da ocorrência de A b s c e s s o s a b d o m in a is
complicações através de uma terapia mais agressiva, pode jus­ P e rfu ra ç ã o livre
tificar esta redução. Além disso, o desenvolvimento de novas Complicações agudas da O d u s ã o in te stin a l
técnicas endoscópicas de dilatações de estenoses (em qualquer doença de Crohn M e g a c ó lo n tó x ic o
segmento do sistema digestório) e de punções de coleções ab­ H e m o r r a g ia m a c iç a
Fístulas in te rn a s
dominais guiadas por técnicas de imagem contribui para redu­
Fístulas e n te ro c u tâ n e a s e c o lo c u tâ n e a s
ção nas taxas de operações abdominais ligadas à DC. Assim, há
indicações para cirurgias tradicionais e para as menos invasivas Complicações crônicas da M a n ife s ta ç õ e s e x tra in te s tin a is
doença de Crohn R e ta rd o n o c re s c im e n t o
no tratamento da DC, como as operações por laparoscopia, as N e o p la s ia
endoscópicas e aquelas por radiologia intervencionista.
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 373

manas para manutenção do tratamento, a partir da semana associação pode ser utilizada, com a ideia de que os biológicos
4. A eficácia destes dois agentes foi amplamente comprovada podem reduzir a intensidade da inflamação e assim facilitar al­
em estudos clínicos randomizados, controlados com placebo, gumas operações. Outros acreditam que estes dois tratamentos
com índices de remissão clínica em cerca de 1/3 dos pacientes. não podem ser misturados, sob risco de haver prejuízo ao pós-
Ambas as drogas são potentes imunossupressores, com poten­ operatório destes pacientes. Segundo o consenso europeu de
cial de ocorrência de efeitos adversos, que variam desde infec­ DC, não existe concordância sobre o tema, e ainda não foi defi­
ções simples do trato respiratório superior até situações mais nido o intervalo seguro para se usarem ou não os biológicos em
complexas, como reativação de tuberculose e desmielinização períodos próximos das operações. Não há estudos prospectivos
central ou periférica. randomizados comparando-se a utilização ou não de biológi­
Tanto o tratamento cirúrgico quanto a utilização dos me­ cos em pacientes cirúrgicos, somente estudos retrospectivos,
dicamentos biológicos convergem para o controle das formas de séries de casos. Deve-se, portanto, analisar cada paciente, e
graves da doença, situações com extensa inflamação, e geral­ discussões interativas entre os clínicos e cirurgiões devem de­
mente associadas a fístulas. Por este motivo, não raramente es­ terminar as vantagens de se usarem as medicações ou não nas
tas terapias acabam sendo utilizadas em um mesmo momento, situações em que os dois tratamentos sejam indicados em um
em alguns pacientes. Uma questão acabou sendo relevante nos mesmo momento.
últimos anos no tratamento da DC: será que os medicamentos Ressecção intestinal é a maior complicação e a maior fonte
biológicos, se usados simultaneamente com o tratamento ci­ de morbidade na DC pediátrica. Gupta et al. (2006) assinalam
rúrgico, por serem potentes imunossupressores, aumentariam o risco cumulativo de cirurgia descrevendo 5,7% em 1 ano, 17%
os índices de complicações cirúrgicas? Será que estas formas de em 5 anos e 28,4% em 10 anos após o diagnóstico, fato corro­
tratamento podem realmente ser utilizadas conjuntamente? borado pelos autores deste capítulo.
Há evidências concretas de que tanto o tratamento com Preditores positivos para cirurgia são: sexo feminino; mar­
infliximabe quanto o com adalimumabe reduzem as taxas de cadores clínicos de gravidade, incluindo pobre crescimento;
internações e necessidade de cirurgia abdominal ao longo do presença de abscesso, fístula ou estenose intestinal. Raça, etni-
tempo, se usados continuamente. Na doença perianal, a terapia cidade, localização e gravidade ao diagnóstico não são fatores
combinada traz múltiplas vantagens para os pacientes. Entre­ preditivos de resultados da cirurgia. Por outro lado, fato inte­
tanto, nas operações abdominais mais alargadas, com ressecções
ressante é que a presença de granulomas, ou tratamentos com
intestinais e anastomoses, na vigência do uso dos anti-TNF, a 5-ASA ou infliximabe são preditores negativos para cirurgia.
dúvida a respeito da segurança dos biológicos no pós-operatório
Amre et al. (2006), em 139 pacientes pediátricos, verifica­
persiste sendo extremamente relevante.
ram ASCA IgA positivo em 48,2%, IgG em 42,4% e ANCA em
Alguns trabalhos defendem que estas terapias podem ser 21%. Títulos elevados de ASCA aumentavam a possibilidade
utilizadas conjuntamente, sem problemas. Um estudo retros­
de complicações, mas nem sempre associadas à cirurgia. A pri­
pectivo em um grande centro europeu de tratamento de doen­
meira complicação foi observada em pacientes com ASCA IgA
ças inflamatórias intestinais analisou retrospectivamente uma
elevado ou tanto ASCA IgA ou IgG, o que também é a experi­
coorte de pacientes submetidos a ressecções intestinais. Houve
ência dos autores deste capítulo.
uma divisão destes indivíduos em dois grupos, um com uso
Sabe-se que cerca de 70% dos pacientes portadores de DC
de infliximabe previamente à cirurgia, e outro sem este tipo
de tratamento. Após a análise de 313 prontuários, os auto­ serão submetidos a, pelo menos, uma cirurgia no decorrer de
res concluíram que não houve diferença significativa entre os suas vidas, como terapia de sua doença. As indicações emer-
grupos em respeito a complicações pós-operatórias precoces genciais, como oclusão intestinal, perfuração com peritonite e
e tardias, e, da mesma forma, não houve diferença no tempo abscessos abdominais, são mais óbvias. Ocorrem em cerca de
de internamento. Kunitake et al. (2008), do grupo de Boston - 20% dos casos. Entretanto, pacientes portadores de DC crôni­
EUA, analisaram retrospectivamente 413 pacientes com doen­ cos podem ter indicação de tratamento cirúrgico mais discutí­
ças inflamatórias intestinais submetidos a ressecções cirúrgicas. vel. Entre estes, citam-se intratabilidade clínica, manifestações
Destes, 188 eram portadores de DC e foram analisados quanto extraintestinais de difícil controle, distúrbios do crescimento e
ao risco de complicações pós-operatórias relacionadas com o corticodependência. Estenoses e fístulas internas identificadas
uso de infliximabe. Estes autores igualmente concluíram que em exames radiológicos tornam certa a indicação de tratamen­
a utilização pré-operatória do infliximabe não trouxe maio­ to cirúrgico em pacientes sintomáticos. Abscessos perianais
res complicações no pós-operatório. Concluíram ainda que múltiplos devem ser drenados. Fístulas complexas, incluindo
a utilização de corticoides trouxe maior prejuízo aos pacientes, as retovaginais, podem ser tratadas também de maneira cirúr­
como variável isolada. Por outro lado, um outro estudo publi­ gica em casos selecionados.
cado pelo grupo da Cleveland Clittic de Ohio, EUA, demons­ Os fatores de risco para recorrência após ressecção intestinal
tra diferentes achados. Em uma análise também retrospectiva, nos pacientes pediátricos com DC não são bem estabelecidos.
Appau et al. (2008) revisaram os dados de 389 pacientes sub­ Em pacientes com doença ileocolônica, reoperação em 5 anos
metidos a ressecções ileocólicas por DC, 60 dos quais com utili­ varia entre 25 e 60% e atinge 91% após 15 anos. A recorrência
zação pré-operatória do infliximabe. Os autores demonstraram após reanastomose colônica é menor. Um grande preditor de
que o uso da droga em período menor que 3 meses da data da recorrência de doença é o comportamento da afecção. Pacien­
operação é fator de risco e aumenta as taxas de complicações tes com doença perfurante são mais suscetíveis a nova cirurgia.
infecciosas (sepse e abscessos abdominais) e readmissões hos­ É apropriado colocar os pacientes com doença mais agressiva,
pitalares. Ainda não há trabalhos na literatura analisando estes dependendo até do fenótipo, em terapia imunomoduladora
riscos com a utilização do adalimumabe. após cirurgia.
Pode-se concluir, por estes estudos, que não há consenso Estenoplastia foi um grande avanço no manejo cirúrgico
na literatura quanto à utilização dos biológicos neste contex­ da DC no intestino delgado proximal, pois evita ressecções e a
to, se é benéfica ou prejudicial para os pacientes em momen­ consequente síndrome do intestino encurtado. Sua morbidade
tos próximos da ressecção cirúrgica. Alguns advogam que esta é menor que 15%.
374 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

As implicações cirúrgicas da pancolite em pacientes pediá­ Nas oclusões intestinais do íleo terminal, a ressecção deve
tricos com colite indeterminada ou DC grave carecem de maio­ ser acompanhada de ileostomia terminal se houver dilatação de
res avaliações, mas são tão graves e difíceis de manejar como as alças proximais, e se o estado geral e nutricional dos pacientes
decorrentes de operações para RCU {pouchitis, sepse pélvica, não for o ideal. Hipoalbuminemia, uso prévio de corticoides
fístulas etc.). e imunossupressores fazem com que o risco de deiscência de
anastomoses nesta situação seja elevado. A reconstrução do
trânsito é então realizada após a recuperação nutricional do
■ Cuidados pré- e transoperatórios paciente (período mínimo de 3 meses).
Os portadores de DC que se enquadram na indicação cirúr­ A economia no comprimento do intestino a ser ressecado
gica eletiva necessitam de cuidados que visam a menores taxas nos portadores de DC fez com que algumas técnicas se tornas­
de complicações e melhor prognóstico. O aspecto nutricional é sem particularmente úteis no tratamento de estenoses múlti­
importante, e pacientes com desnutrição grave são beneficiados plas, associadas ou não a ressecções. As estenoplastias, ver­
por nutrição parenteral total (NPI), geralmente realizada por dadeiras anastomoses sobre áreas fibrosadas ou inflamadas,
algumas semanas antecedendo o procedimento. Antibioticote- apresentam bons resultados, com índice de fístulas semelhan­
rapia deve ser utilizada, sendo o esquema mais comum o cipro- tes às ressecções. As estenoses curtas devem ser tratadas pela
floxacino associado ao metronidazol. O cólon destes pacientes técnica de Heineke-Mikulicz, semelhante à piloroplastia, com
deve ser sempre preparado mecanicamente, para que se evitem abertura longitudinal e fechamento transversal da alça intestinal
surpresas em casos de fístulas internas, mesmo que a doença com pontos separados. Estenoses longas são mais bem trata­
supostamente acometa apenas o intestino delgado. A utilização das pela técnica de Finney, verdadeira anastomose laterolateral
de imunossupressores (comumente azatioprina) pode ser inter­ ampla da região estenosada dobrada sobre seu próprio eixo.
rompida, com resultados questionáveis na literatura. Através destas, técnicas há menor ressecção e risco menor de
Vale lembrar que os pacientes com diagnóstico firmado de desnutrição e síndrome do intestino curto. São particularmente
DC, que se apresentam com abdome agudo, devem ser trata­ úteis nos casos de acometimento difuso jejunoileal.
dos como tal: sondagem vesical para melhor monitoramento As derivações internas (bypasses) são operações raramente
da diurese, reserva de sangue e vaga de UTI; bom acesso venoso utilizadas nos dias de hoje e ficam reservadas aos casos de en­
(de preferência, central) deve ser realizado. volvimento do ureter do processo inflamatório, com risco de
Pacientes que utilizaram corticoides em um período de pelo lesão desta importante estrutura.
menos 1 ano antes da operação devem ser tratados com repo­ Sem dúvida, os melhores resultados ocorrem quando há
sição intraoperatória. A hidrocortisona utilizada na dose de ressecção do extenso processo inflamatório, com anastomose
100 mg IV na indução anestésica, complementada se o proce­ no mesmo tempo cirúrgico. A utilização de estornas e outras
dimento tiver duração maior que 2 h, deve ser seguida de es­ técnicas devem ser particularizadas para cada caso, e o cirurgião
quema de manutenção com retirada gradual. Evita-se, assim, deve sempre “pensar com a razão, nunca com o coração”. Um
insuficiência adrenal no transoperatório, causa de hipotensão estorna pode salvar uma vida, e depois ser reconstruído. Nunca
de origem obscura. se arrepender de realizá-lo, apenas de não o fazer!

■ Operações sobre o trato digestório alto ■ Estornas


O acometimento do duodeno pela DC ocorre em cerca de Como citado previamente, pacientes com oclusão intestinal
4% dos casos, geralmente com extensão secundária ao piloro por processo inflamatório na DC, com dilatação de alças e mau
e antro gástrico. Os pacientes são comumente assintomáticos. estado nutricional têm indicação plena de estornas de desvio,
Indicações cirúrgicas nestes pacientes ficam reservadas a obs­ pelo alto risco de deiscências anastomóticas. Sempre que um
trução alta, dor epigástrica recorrente, que não melhora com paciente portador de DC é submetido a uma operação abdomi­
bloqueadores de bomba de prótons, e surtos de pancreatite. A nal, um estorna deve estar entre as possibilidades de resolução
operação mais descrita é a derivação gastroenteral (para duo­ do caso. Ileostomias, terminais ou em alça, são os estornas mais
deno ou jejuno proximal), associada à vagotomia seletiva para comumente utilizados. A proteção de anastomoses distais de
se evitar o risco de úlcera de boca anastomótica. Estenoplastias risco também é indicação plena de desvio com estornas.
duodenais são usadas mais raramente, com bons resultados. A presença de doença perianal grave é igualmente causa de
estornas de desvio. Se o intestino delgado estiver acometido por
processo inflamatório, as preferenciais ileostomias em alça de­
■ Operações sobre o intestino delgado vem ser substituídas por colostomias em alça. Estornas em alça,
A localização mais comum da DC é no íleo terminal, válvula desviando o trânsito fecal do períneo, podem facilitar a cicatriza -
ileocecal e ceco. Tais pacientes em geral evoluem com massas ção de lesões perineais, associadas ou não a drenagens múltiplas
palpáveis, cólicas fortes e até quadros de obstrução intestinal. perianais. Pacientes com doença anorretoperineal grave são can­
É clássica a descrição da ileocolectomia direita com ileo- didatos a proctectomias, com colostomias terminais nos casos
transverso e anastomose para o tratamento desta situação, com de cólon esquerdo livre de doença, como se verá à frente.
excelentes resultados. Em alguns estudos, os pacientes apresen- Teixeira et al. (1999), na Universidade de São Paulo, em
taram-se assintomáticos por vários anos após a ressecção. A estudo de 82 estornas em portadores de DC, concluíram que,
utilização de anastomose manual vem sendo atualmente substi­ além do alto número de complicações de confecção, a maioria
tuída pela anastomose laterolateral, terminoterminal funcional, dos estornas inicialmente temporários acabam sendo definiti­
com grampeadores lineares cortantes de tamanho maior que vos. Neste mesmo estudo, de todos os pacientes operados por
8 cm. Apesar do índice de recidivas no local da anastomose ser DC, 38% necessitaram de estornas no ato cirúrgico. Portanto,
o mesmo, supõe-se que a amplitude desta boca anastomótica aviso prévio ao paciente sobre a possibilidade da necessidade
reduza a necessidade de reoperações sobre o mesmo local, no eventual de estornas, e demarcação prévia de possíveis locais
futuro, por menor risco de estenose sintomática. para essas estomias.
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 375

■ Operações sobre o cólon ■ Operações emergenciais


As colectomias por colites na DC podem ser realizadas com Faria et al. (2004) descrevem em sua análise de 100 pacien­
preparo adequado e geralmente são segmentares e econômicas. tes que cerca de 20% deles têm como primeira manifestação
O megacólon tóxico, situação extremamente rara na DC, ne­ da DC o abdome agudo.
cessita de colectomia total e ileostomia terminal para seu trata­ A mais comum emergência abdominal nos pacientes porta­
mento. Na fase crônica, estenoses colônicas e fístulas internas dores de DC é a oclusão intestinal, geralmente por doença no
para outros órgãos (comuns do sigmoide para íleo, jejuno ou íleo terminal e no ceco. Em pacientes diagnosticados previa­
bexiga) igualmente necessitam de ressecções segmentares para mente com DC, a indicação cirúrgica fica mais evidente, sendo
o sucesso do tratamento. Não são raras as situações de doença a ressecção do íleo terminal e do ceco a operação de escolha.
grave no íleo terminal e ceco, com fistulização para o sigmoide. Condições gerais do paciente (estado geral, uso de corticoides,
Nestes casos, além da ileocolectomia direita, ressecção segmen­ aspecto nutricional) e das alças intestinais (dilatação a montan­
tar do sigmoide acometido, com anastomose primária, é ne­ te, edema de alças) geralmente preconizam ileostomia terminal
cessária para a completa ressecção das áreas doentes. Pacientes com posterior reconstrução de trânsito.
portadores de doença grave, acometendo todo o cólon, reto e Abscessos abdominais podem se formar secundariamente
períneo, são candidatos à proctocolectomia total e ileostomia a perfurações bloqueadas no retroperitônio dos pacientes com
terminal definitiva, como descrito adiante. DC no delgado e no cólon. A drenagem cirúrgica por laparo-
tomia ou por punção guiada por exames de imagem deve ser
■ Operações perineais precoce. Esta última manobra, útil em pacientes graves, ajuda
na compensação do quadro para posterior laparotomia e tra­
As operações mais comuns no paciente portador de DC pe- tamento definitivo da lesão causadora do abscesso.
rineal são as drenagens de abscessos múltiplos. Estes devem Abscessos perianais devem ser sempre precocemente drena­
ser sempre drenados; já as fístulas, cuidadosamente estudadas. dos, com incisões pequenas, o mais próximo possível da mar­
Eventualmente, a colocação de reparos esfincterianos frouxos, gem anal. O procedimento deve essencialmente ser o mais
com drenos de borracha finos, mantém a área livre de infecção. econômico, mas a indicação de drenagem jamais deve ser pos­
Fístulas perianais superficiais, e fístulas retovaginais baixas, em tergada, para se evitar sepse perineal complicada.
pacientes com doença controlada clinicamente, podem ser ope­
radas da maneira convencional.
Um dos conceitos mais claros na literatura das cirurgias ■ Videolaparoscopia
perineais da DC é o de se evitarem grandes áreas abertas de O acesso videolaparoscópico vem sendo cada vez mais uti­
ferida. Sabe-se que a cicatrização é deficiente nestes pacientes
lizado em operações sobre o intestino delgado e grosso, prin­
e o fechamento destas feridas pode levar meses. Além disso, a
cipalmente na última década. Ressecções de segmentos de in­
indicação cirúrgica nestes pacientes deve ser agressiva, sendo o
testino delgado e cólon são comumente realizadas para outras
procedimento realizado o mais conservador possível.
afecções, como doença diverticular, câncer colorretal e grandes
Em um estudo realizado por Kotze et al. (2001), analisando
pólipos colorretais.
34 pacientes portadores de DC anorretoperineal, concluiu-se
que a operação mais comumente utilizada foi a drenagem de abs­ Pacientes com diagnóstico de DC podem ser tratados de
cessos perianais (38%), seguida por fistulotomias (20%), reparos forma laparoscópica, desde que compensados (cirurgias eleti­
esfincterianos (11%) e correção de única fístula retovaginal. vas) e devidamente selecionados. As principais indicações para
Como citado previamente, a utilização de estornas de pro­ o uso da laparoscopia, segundo revisão de Campos (2003), são
teção para pacientes com doença anorretoperineal grave é ma­ as criações de estornas de desvio por doença perianal, ressecção
nobra útil no controle da inflamação local do períneo. ileocolônica no tratamento da ileíte terminal, estenoplastias
Atualmente, a evolução do tratamento clínico, com alta para doença jejunoileal, e ressecções segmentares do cólon. As
disponibilização de imunossupressores, uso do infliximabe e principais contraindicações para estes pacientes são extensas
oxigenoterapia hiperbárica, tem colaborado para tornar o tra­ massas inflamatórias, fístulas internas complexas, perfuração
tamento local da doença anorretoperineal menos agressivo. livre em cavidade com peritonite e múltiplas aderências. Como
Salienta-se que a utilização dos medicamentos associada à ci­ muitos pacientes com indicação cirúrgica para tratamento da
rurgia traz melhor evolução nestes casos. DC são jovens, o aspecto cosmético é obviamente importante,
Pacientes com DC perineal grave, com destruição perineal, sendo muito vantajoso nas operações laparoscópicas. Retorno
incontinência e múltiplas fístulas, têm indicação de proctecto- mais precoce às atividades e menor tempo de internação são
mia com estorna definitivo para melhor qualidade de vida. Se o vantagens também importantes para a utilização desta via de
cólon estiver livre de lesão, pode-se preservar o intestino grosso, acesso.
e uma colostomia terminal do sigmoide é realizada. Nos casos A seleção do melhor caso pode, sem dúvida, ser o princi­
de pancolite ou colite segmentar, a proctocolectomia total com pal aspecto na indicação desta via de acesso para o tratamento
ileostomia terminal é a melhor opção de tratamento. cirúrgico. A curva de aprendizado para esses casos é longa, e
Teixeira et al. (2002), em estudo de 183 pacientes operados cirurgiões experientes em videolaparoscopia colorretal estão
por DC, descreveram os resultados de 31 submetidos à proc­ cada vez mais aprimorando sua experiência.
tocolectomia total por doença perianal grave. Salientam que “Cutting does not always mean cure!”, como diriam os ame­
a opção pela proctocolectomia deve ser inicial nos pacientes ricanos. ..
com doença perianal com ou sem associação colônica, com
bons resultados e menores índices de recidivas e internamentos ■ Recorrência pós-operatória
futuros. Pacientes com enterocolite de Crohn, em que as reci­
divas são mais frequentes, devem ser tratados de forma mais Desde as descrições das primeiras séries de casos de DC
conservadora. na literatura, notou-se que os índices de recorrência após as
376 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

ressecções cirúrgicas eram significativos, o que demonstra


a característica incurável e recidivante desta entidade. Estes
■ Profilaxia da recorrência
dados podem ser ilustrados por um estudo que demonstrou Discutidos os tópicos anteriores, a decisão de se iniciar ou
que, após 1 ano das ressecções de segmentos acometidos pela não o tratamento para prevenção da recorrência não deve ser
DC, os índices de recidiva endoscópica chegaram a 80%, a somente baseada em sintomas. Tabagistas devem ser orientados
recidiva clínica ocorreu entre 10 e 20% dos casos, e a necessi­ a abandonar este hábito. Pacientes com múltiplas ressecções,
dade de nova cirurgia foi documentada em 5% dos pacientes com doença penetrante e fístulas perianais devem ter tratamen­
operados. to com imunossupressores iniciado depois de 2 semanas da ci­
Alguns fatores de risco para recorrência da doença após res­ rurgia. A utilização da terapia biológica fica reservada para os
secções foram identificados na literatura. Há consenso de que casos com piora após 1 ano no escore endoscópico, e em casos
o tabagismo é um hábito que aumenta significativamente os de complicações ou intratabilidade clínica com a azatioprina.
índices de recidiva pós-operatória, assim como a presença de Novamente, o bom-senso e a pronta análise individual de cada
doença perianal e ressecções intestinais prévias. Há evidências caso, associados à experiência de cada centro de tratamento
de que a doença penetrante (fístulas) no momento da opera­ com determinadas terapias, devem nortear as condutas.
ção apresenta maiores riscos de recorrência do que doença não Depois de ressecções com anastomoses ileocolônicas, a DC
penetrante, com risco de reintervenções mais precoces. O u­ recorre em poucos meses no novo íleo terminal. As lesões mais
tros fatores, como sexo, idade no momento da operação, tem­ precoces são ulcerações aftosas que podem evoluir para infla­
po do diagnóstico, transfusões sanguíneas no transoperatório, mação mais grave, dando sintomas e complicações. Há nítida
comprimento da área ressecada e presença de inflamação nas relação entre a gravidade da inflamação recorrente e a subse­
margens de ressecção, foram exaustivamente estudados. Entre­ quente evolução clínica da afecção. Assim, a prevenção de recor­
tanto, não há consenso de se apresentam influência nas taxas rência precoce deve ser a maior meta das medidas terapêuticas
de recidiva, e há ampla controvérsia a respeito destas variáveis nos pacientes operados!
analisadas. Nas ressecções ileocólicas, o tipo de anastomose A própria passagem das fezes e a flora bacteriana do intes­
parece ter influência sobre a necessidade de reintervenções ci­ tino podem ter papel importante na recorrência. Antibióticos,
rúrgicas por recidiva. Há relativo consenso na literatura de que 5-ASA, corticoides tópicos e imunossupressores podem ser usa­
as anastomoses laterolaterais, manuais ou mecânicas, realizadas dos. A administração de metronidazol (20 mg/kg/dia) durante
3 meses pode ser útil e deve ser iniciada na primeira semana
com boca ampla de cerca de 10 cm, são mais indicadas na DC
por atrasarem mais a indicação de reoperações por recorrên­ depois de ressecção ileal com colectomia parcial ou anastomose
ileocolônica. No primeiro ano, a resposta é melhor que após
cia no local. McLeod et al. (2009), em estudo prospectivo com
139 pacientes submetidos a ressecções por DC, demonstraram mais tempo da cirurgia (3 anos).
Surpreendentemente, descreveu-se bom resultado com a
não haver diferença nas taxas de recorrência endoscópica e sin­
sulfasalazina e operações não radicais, com uso de até 3 anos.
tomática após 1 ano de seguimento. Nesta análise, um número
Outros autores obtiveram bons resultados com 5-ASA na pre­
maior de ressecções prévias foi considerado um fator de risco,
venção de lesões endoscópicas.
e tratamento com imunossupressores após as ressecções foi
Fato importante a lembrar é que os pacientes relutam em
considerado um fator redutor da recidiva. O consenso euro­
tomar, por vários anos, grande quantidade de drogas que não
peu de doenças inflamatórias intestinais recomenda a anasto­
foram eficazes para controlar a doença antes da cirurgia! A AZA
mose mecânica laterolateral nas ressecções ileocólicas na DC. parece ser, até agora, a droga de benefício para estes pacientes,
Talvez este tipo de anastomose não influencie na presença da
mesmo que tenha que ser usada por 2 anos ou mais.
recorrência endoscópica. Entretanto, traz menor necessidade Terapia agressiva, aliada a diagnóstico precoce, pode preve­
de tratamento cirúrgico ao longo do tempo se comparado às nir muitas complicações, como destruição anal, fístulas e es­
anastomoses terminoterminais, por menor risco de estenoses tenoses.
a longo prazo.
O tratamento clínico após as ressecções, com o intuito da
prevenção da recidiva, é recomendado pela maioria dos auto­ ■ Evolução
res. Dentre os medicamentos utilizados, há maior eficácia com Enfatiza-se a alta porcentagem de recorrências. Pode-se con­
o uso de imunossupressores (azatioprina e 6-mercaptopurina), cluir, do ponto de vista de prognóstico, que, quanto mais jo­
pois os derivados do 5-ASA e antibióticos apresentam graves vem o paciente no momento do diagnóstico, maior chances de
limitações para este fim. Regueiro et al. (2009) publicaram um evolução tumultuada por exacerbações e complicações, prin­
estudo randomizado que mostrou significativas vantagens com cipalmente cirúrgicas.
o uso do infliximabe associado à azatioprina durante 1 ano após O curso clínico da DC é imprevisível. Para a grande maioria
ressecções em relação à monoterapia com azatioprina. Na análi­ dos pacientes, o curso é através de exacerbações e remissões.
se endoscópica deste estudo, os índices de recidiva endoscópica, Infecções oportunistas intercorrentes constituem os fatores
bem como sua gravidade, foram significativamente menores precipitantes mais comuns. A atividade da doença deve ser
no grupo que utilizou a terapia biológica. Os autores recomen­ avaliada pelos sintomas, sinais e testes de laboratório. Sinais e
dam que, em pacientes com características de pior prognóstico, sintomas de surto da DC nem sempre requerem reestadiamento
como doença perianal, diagnóstico abaixo de 40 anos e taba- da doença, a não ser que o manejo médico falhe, a doença se
gistas, o tratamento deve ser agressivo, com terapia biológica. interrompa ou que se antecipe a cirurgia.
Todo paciente submetido a ressecções cirúrgicas deve ser exa­ Para os que apresentam a doença nos cólons, de longa du­
minado por ileocolonoscopia depois de 1 ano, para se avaliar a ração, o risco de câncer é de 3 a 20 vezes maior que na popu­
presença de ulcerações e a eficácia do tratamento da prevenção lação geral, e m enor que na RCU, mas devem-se monitorar
de recidiva. Nos casos de piora do escore endoscópico, uma os pacientes também com colonoscopia e biopsias. O uso de
mudança no tratamento deve ser efetuada, para melhor con­ imunossupressores e cirurgias conservadoras diminuiu muito
trole da doença. a incidência de complicações a longo prazo.
C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n 377

■ PodeaDCaparecerpelaprimeira vezdurantegestação?
■ QUESTÕES PERTINENTES À FERTILIDADE Sim, pode, mas, em geral, o comportamento da doença não
E ALTERAÇÕES GINECOOBSTÉTRICAS EM é mais grave do que nas pacientes não grávidas.
PORTADORES DA DC* ■ As drogas usadas no tratamento daDCpodemser usadas durante
agestação?
■ Podemamulher e ohomemcomDll se tornarempais?
Sim, conforme os esquemas já mencionados.
Em geral, a resposta é “sim”. Dar preferência quando a doen­
ça estiver inativa. ■ As drogas sãoperigosaspara ofeto?
Não, de acordo com os esquemas. A DC inadequadamente
■ ComoaDll afeta afertilidade feminina emasculina e quais as tratada é mais perigosa para a mãe e para o feto!
chancespara umagravidez bem-sucedida? A budesonida não trouxe dano para a mãe ou para o fetoy
Na DC a fertilidade não se afeta nos períodos de quiescência, mas são poucos os estudos realizados a esse respeito.
mas na DC ativa ou após extensa cirurgia pode diminuir por As mães em uso de infliximabe devem pensar em concepção
alterar o ciclo menstrual-amenorreia-sintoma que se segue à pelo menos depois de 3 meses da interrupção da droga.
perda significativa de peso. O uso de fibras (Plantago ovata, Ispaghula husks) pode ser
A fertilidade masculina não é afetada na DC. Entretanto, abs- útil em casos de diarréia.
cessos e fístulas na pélvis e região anal podem causar distúrbio de
ereção e ejaculação; ou quando há cirurgia extensa, particular­ ■ Oscontraceptivos oraispodemcausar ou agravarDC?
mente seguida de bolsa ileoanal. Quando o paciente está usando Embora estudos controversos, não parece haver contrain-
sulfasalazina, pode haver infertilidade temporária que se norma­ dicação para seu uso. Lembrar que no caso de diarréia grave,
liza em 2 meses após interrupção da droga ou troca pelo uso de sua absorção pode ser pequena e a paciente não estar devida­
5-ASA. As razões incluem diminuição na contagem dos esperma­ mente protegida.
tozóides, redução de fluxo seminal, anormalidades na estrutura e
motilidade das células espermáticas. Tais anormalidades ocorrem ■ Azatioprina ou 6-mercaptopurinapodemser usadas antes ou
em cerca de 80% dos homens tratados com esta droga. duranteagestação?
Ver os esquemas.
■ ComoaDll afeta ocurso dagravideze asaúde do bebê?
Cerca de 85% das mulheres com DC têm gravidez normal. ■ 0 uso de corticosteroides éseguro durantegestação e
Malformações nos fetos ocorrem somente em 1%. Não parece amamentação?
haver maior risco de abortamento espontâneo. Lembrar que Sim, mas o recém-nascido pode apresentar apatia e redu­
em mulheres sadias 15% das gestações cursam com problemas ção de sua atividade por baixos níveis de cortisona pelas suas
ou complicações. Concepção em fase de quiescência é sempre suprarrenais. Às vezes, o neonatologista necessita prescrever
recomendável. esta droga para a criança. Isso geralmente ocorre quando a mãe
Se a concepção ocorre em período de grande atividade da precisa de altas doses de corticosteroides.
doença, o número de abortos, prematuridade dos fetos e outras Como a cortisona passa pelo leite materno, as mesmas con­
complicações surgem em maior risco. siderações devem ser feitas.
Com a budesonida, tais efeitos não têm sido detectados.
■ Queexames médicos sáoimportantes antes doplanejamentode
umagestação?
Os exames são os habitualmente recomendados, dependen­ --------------------------------- ▼---------------------------------
do da fase da DC. A administração de ácido fólico é indicada, Q u a d ro 32.13 Curso da gestação em mulheres sadias e pacientes
como em qualquer gravidez, principalmente quando há uso com doença de Crohn (estudos europeus e americanos)
de sulfasalazina.
N o rm al M a lform açõe s P re m a tu ro s A b o rto
■ Comoacirurgiapara otratamento da DCpode afetar agestação?
P o p u la ç ã o g e ra l 83 2 6 9
Gestações sem complicações são vistas após cirurgias intes­
D C e m re m is s ã o 82 1 7 10
tinais extensas, inclusive quando há colectomia ou ileostomia.
Recomenda-se que se espere 1 ano após o procedimento cirúr­ D C e m fase a tiva 54 1 25 20

gico para se recomendar gravidez. No caso de ileostomia, pode


haver prolapso ou oclusão durante a gestação. Se for necessá­
ria cirurgia no decorrer de uma gestação, raramente ocorrerá
aborto ou outra complicação. ----------------------------- ▼-----------------------------
Q u a d ro 3 2 .1 4 Efeito da gestação na atividade da doença
■ Agravidez trazimpacto aocursonaturaldaDC? de Crohn seguida de concepção durante remissão
Em geral, não haverá impacto sobre a atividade da DC.
As drogas usadas para manutenção da remissão podem ser M a n u t e n ç ã o d a re m is s ã o -8 5 %

mantidas durante a gravidez. In íc io e m c rise d e a g u d iz a ç ã o -1 5 %

Por outro lado, piora dos sintomas em uma gestação não • d u r a n t e o p r im e ir o trim e s tre -1 3 %
implica que isso possa ocorrer em gestações subsequentes. • d u r a n t e o s e g u n d o trim e s tre <1%

• d u r a n t e o te r c e ir o trim e s tre <1%


•Instruções da Sociedade Britânica de Doenças Inflamatórias Intestinais c ex ­ • d u r a n t e o p u e r p é r io -2 %
periência dos autores do capítulo.
378 C a p ítu lo 3 2 / D o e n ç a d e C ro h n

■ Deve-se interromper ouso de5-ASA por ocasiãodoparto? descoberta de agentes terapêuticos específicos e mais potentes
Em geral, não é necessário, particularmente porque os ní­ para a DC que é tão debilitante e que implica ajustes e adapta­
veis sanguíneos de 5-ASA são baixos e não causam alterações ções familiares, sexuais, sociais e emocionais!
na coagulação nem na agregação plaquetária. Enquanto se aguarda a cura para a DC, as terapias disponí­
veis visam à manipulação dos estímulos enterais e regulação,
■ Quais examespodemserfeitos duranteagestação? cada vez mais sofisticada, da resposta imune!
Em geral, a ultrassonografia. Complementada ou não pela
ressonância magnética, são de grande valia. Métodos que en­
volvam radiação devem ser deixados para após o parto ou para ■ LEITURA ALTAMENTE RECOMENDADA
situações de emergência. Só realizar qualquer tipo de endosco-
pia em mãos de examinador experiente. SECOND EUROPEAN EV1DENCE-BASED CONSENSUS ON CROHN*S
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Parto vaginal geralmente é preferível, mas episiotomia perma­ Inflamm Dowel Dis, 2010; 16:112-24.
nece assunto controverso, se há ou não maior risco de DC peria-
nal. Em pacientes com ileostomia, pode-se prefeir cesariana, para
evitar contrações abdominais que causem prolapso intestinal. ■ LEITURA RECOMENDADA
■ Hádieta especialpara amulhergrávida comDO Acosta, MB & Pena, AS. Clinicai applications of NOD/CARD15 mutations in
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pode ser suspenso de 6 a 8 semanas antes da data provável do
Barbicri, D, Kotze, LMS, Rodrigues, M. Doença inflamatória intestinal crônica
parto. Deve-se ponderar que, se o risco da atividade da doença inespccíflca. Em: Kotze, LMS 8c Barbicri, D. Afecções Gastrointestinais da
for grande, a medicação, com o nível de segurança que oferece, Criança e do Adolescente, 1' cd., Rcvinter, Rio de Janeiro, 2003. p. 298-329.
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Síndrome do Intestino Curto
Paulo Cesar Andriguetto

tentam ratificar o uso de elementos favorecedores de regene­


■ INTRODUÇÃO ração tecidual, tais como aminoácidos específicos (glutamina)
A Síndrome do Intestino Curto (SIC) é caracterizada por um e hormônio do crescimento (GH - growth hortnone).
complexo quadro de sinais e sintomas, decorrentes da incom­ Intervenções cirúrgicas, utilizando-se transecções de intesti­
no delgado e loopings, no intuito de retardar o tempo de trânsito
pleta absorção de nutrientes, causada pela abrupta diminuição
anatômica da área absortiva intestinal, consequente a ressecções intestinal e facilitar a absorção de nutrientes, foram descritas
nos anos sessenta e setenta do século passado, embora nem sem­
maciças do intestino delgado, e, por vezes, também do cólon.
pre essas intervenções demonstrassem resultados favoráveis.
Considera-se, da mesma forma, como SIC condições nas
Nas duas últimas décadas, o transplante de intestino delga­
quais, embora o intestino delgado possa estar anatomicamen­
do, isolado ou combinado, tem se consolidado como alternativa
te presente, suas funções absortivas estejam comprometidas,
terapêutica ideal, visando à autonomia do paciente e suspensão
como, por exemplo, nas extensas afecções inflamatórias do in­
da terapia nutricional parenteral.
testino, presentes na doença de Crohn ou na enterite actínica.
Outros fatores coadjuvantes, como a existência de comorbida-
des e a idade do paciente no momento da ressecção, também
determinam a evolução da SIC. ■ ETI0L0GIA (QUADRO 33.1)
A primeira ressecção intestinal seguida de sucesso foi rela­ A ressecção maciça do intestino delgado, decorrente de
tada por Koeberle, em 1881, embora, só em 1888, tenha sido trombose ou embolia dos vasos mesentéricos (Figura 33.1),
estabelecida a relação entre magnitude da ressecção intestinal e continua sendo a causa mais comum da SIC, embora outras
sobrevida. Em 1935, Haymond relatou uma série de 250 casos afecções possam levar a maciças ressecções do intestino (Qua-
de ressecção intestinal, concluindo que as funções normais de
absorção eram resguardadas, conquanto a exérese intestinal não
ultrapassasse os limites de um terço do órgão, ficando tais fun­
ções deterioradas assim que a ressecção ultrapassasse 50%.
Durante o século XX, centenas de trabalhos demonstraram
que o intestino delgado pode adaptar-se após grandes ressec­
ções, embora se exija um período de tempo, nisto incluindo
dilatação do intestino delgado restante, alongamento de vilosi-
dades, hiperplasia celular epitelial, migração celular mais rápida
e aumento da capacidade de absorção. Nas décadas de 1969 e
1970, diversos pesquisadores, notadamente Wilmore e Dudrik,
demonstraram que pacientes submetidos a extensas ressecções
intestinais podiam sobreviver com terapia nutricional paren-
teral total, até que o intestino delgado remanescente pudesse
regenerar-se e se adaptar à nutrição enteral e posteriormente
à dieta oral. Nas últimas décadas, com o advento da biologia
molecular, estudo do ácido desoxirribonucleico (DNA - deo-
xyribonucleic acid) e replicação celular, demonstrou-se que a
regeneração tecidual e a adaptação intestinal são diretamente
proporcionais ao estímulo de nutrientes intraluminais, assim Figura 33.1 Trombose mesentérica: Comparação entre alças intestinais
como fatores teciduais e humorais que influenciam significa­ normais (róseas) e comprometidas (enegrecidas). (Esta figura encontra-
tivamente a adaptação. Além disso, trabalhos mais recentes se reproduzida em cores no Encarte.)

381
382 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto

------------------------------------- ▼-------------------------- Interessante ressaltar que todos esses passos podem ser subs­
Q u a d ro 33.1 Causas da síndrome do intestino curto tituídos, sublimados ou abolidos, exceto a absorção, tornando
o intestino delgado a área nobre do processo de alimentação.
• T r o m b o s e / e m b o lia d o s v a s o s m e s e n té ric o s Até o presente momento, não existe mecanismo eficiente que
• T r a u m a a b d o m in a l possa manter a vida em um padrão mínimo de qualidade, pres­
• D o e n ç a in fla m a tó ria in te s tin a l (d o e n ç a d e C r o h n ) cindindo do fenômeno de absorção de nutrientes. Mesmo a
• V ó lv u lo d o in t e s t in o d e lg a d o Nutrição Parenteral Total (NPT), infundindo diretamente na
• E n te rite a c tín ic a
veia cava nutrientes vitais à homeostase, não substitui o com­
plexo mecanismo de absorção, transporte, metabolização e uti­
• T u m o r e s d e in t e s t in o d e lg a d o / m e s e n t é r ic o / r e t r o p e r it ô n io
lização dos nutrientes.
• Fístulas e n té ric a s
O tubo digestivo otimiza a absorção de nutrientes por meio
• E s c le ro d e rm ia
de mecanismos estruturais que aumentam a área absortiva. As­
• A fe c ç ó e s c o n g ê n it a s
sim, há as pregas de Kerkring, aumentando esta área em três
• P s e u d o -o b s t r u ç õ e s c rô n ic a s vezes, as vilosidades em 30 vezes e as microvilosidades em
• M ú lt ip la s in t e r v e n ç õ e s c irú rg ic a s a b d o m in a is 600 vezes. O intestino delgado pode medir de 400 a 700 cm,
com extensão média do jejuno de 600 cm e com um diâmetro
interno variando de 1,5 a 3,0 cm. Tais dimensões, multiplica­
das, oferecem uma ideia aproximada da extensão desse manto
absortivo.
dro 33.1). Lembrando a anatomia vascular, o duodeno tem su­ O intestino delgado contém estruturas dinâmicas que com­
primento sanguíneo derivado tanto do tronco celíaco como da
preendem uma variedade de componentes celulares, tais como
artéria mesentérica superior, incluindo tributárias da artéria
células epiteliais, imunológicas, musculares, vasculares e Enfá­
gastroduodenal, parte superior e inferior da artéria pancrea-
ticas. O tecido epitelial apresenta um tumover altamente regu­
toduodenal, da artéria gastrepiploica direita e artérias supra- lado, movendo-se da cripta para a porção apical das vilosidades
duodenais e retroduodenais. Esta rica vascularização preserva entre 5 e 6 dias, e a porção ileal pode apresentar uma migração
o duodeno durante os eventos isquêmicos mesentéricos. Por celular em até 3 dias. A renovação celular sofre influência ne­
outro lado, o jejuno e o íleo dependem exclusivamente das tri­ gativa por diversos fatores, notadamente infecção, inflamação,
butárias da artéria mesentérica superior. Assim como o ceco, desnutrição, ausência de nutrientes intraluminais, químio e ra­
o cólon direito e metade do transverso recebem irrigação da dioterapia. Quando a renovação celular é comprometida, isso se
artéria ileocólica, da artéria cólica direita e da artéria cólica mé­ traduz por alterações morfológicas, principalmente atrofia das
dia, todas oriundas da artéria mesentérica superior. A metade vilosidades, que pode reverter-se com terapia adequada.
distai do transverso, o cólon esquerdo, sigmoide e reto são ir­ A motilidade intestinal também influencia a absorção de nu­
rigados através de tributárias da artéria mesentérica inferior, trientes, reconhecendo-se que o quimoquilo passa mais lenta­
sigmoideana e retais. A potência da artéria mesentérica supe­ mente pelo íleo que em poções altas do jejuno. O trânsito pode
rior fica, desta maneira, sendo a chave da irrigação da grande ficar marcadamente lento através do cólon (24 a 96 h).
e maior parte intestinal. Diariamente, 9 t de água, fluidos e nutrientes percorrem o
O registro espanhol de nutrição domiciliar, referido por tubo digestivo, sendo 2 £ provenientes da ingestão oral e 7 í
Moreno, relata a isquemia mesentérica como causa principal de secreções internas. Em geral, 98% deste contingente é reab-
de SIC (29,7%), seguida de neoplasia (16,2%), enterite actí- sorvido (5,5 t pelo duodeno-jejuno, 2 í pelo íleo e 1,3 t pelo
nia (12,5%), afecçóes de motilidade (8,1%) e doença de Crohn cólon).
(5,4%). Outros estudos referidos por Ladefoged e por Nightin- A absorção de carboidratos, proteínas e ácidos graxos se ini­
gale e Lennard-Jones encontraram na doença de Crohn a causa cia no duodeno e praticamente se encerra nos primeiros 100 cm
mais comum de SIC, acometendo 50% dos casos. do jejuno, assim como a absorção de ferro, cálcio e vitaminas
Trauma abdominal pode ser causa eventual de SIC, nas gran­ hidrossolúveis. Na ausência do jejuno, o íleo pode adaptar-se
des metrópoles. e absorver estes nutrientes, no entanto o íleo não pode com­
Em pediatria, causas neonatais, como a enterocolite ne- pensar a secreção de êntero-hormônios.
crosante, atresia intestinal e vólvulo do intestino delgado são A ressecção jejunal resulta em perda do hormônio polipep-
frequentes determinantes de SIC. Stollman et al. reportaram, tídio inibitório gástrico e polipeptídio vasoativo, o que faz ele­
em um estudo envolvendo 114 crianças com atresia jejunal, var a gastrina e a secreção gástrica, favorecendo a presença de
submetidas a ressecção e anastomose primária (69%) ou com lesões erosivas gástricas e hemorragia digestiva alta.
enterostomia temporária (29,7%), uma frequência de SIC em O íleo, contudo, tem funções singulares, incluindo a ab­
15% dos pacientes. sorção de sais biliares e vitamina B12e vitaminas lipossolúveis.
Atualmente, com o advento progressivo da cirurgia bariá- Quando ressecado, a absorção de ácidos graxos fica prejudica­
trica disabsortiva, relatos de desnutrição grave podem enqua­ da, acentuando a esteatorreia. A presença de sais biliares não
drar-se no conceito de falência intestinal, semelhantes à SIC. absorvidos provoca aumento do estado secretório colônico,
piorando a diarréia.
Para que a absorção fique significativamente diminuída,
■ PATOGENIA deve-se levar em conta a quantidade de intestino delgado res­
secado, a ressecção inclusa de íleo e válvula ileocecal, e a res­
O fenômeno da alimentação depende de volição, ou seja, secção colônica.
da vontade de ingerir alimentos, da ingestão oral e mastiga­ Ressecções de 50% da totalidade do intestino delgado são
ção, deglutição, digestão gastroduodenal com a participação de bem toleradas e acompanhadas de certo grau de má absorção,
órgãos anexos, fígado e pâncreas, absorção intestinal de água, facilmente controlável. Ao contrário, ressecções que ultrapas­
eletrólitos, macro e micronutrientes e, finalmente, excreção. sem 75% da extensão do intestino delgado evidenciam clara­
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 383

mente disabsorção. RessecçÕes menores do intestino delgado,


mas que comprometam íleo e válvula ileocecal, determinam
graus elevados de disabsorção. RessecçÕes incluindo o cólon
trazem importantes perdas de água e eletrólitos, acarretando
sérios distúrbios hidreletrolíticos.
Admite-se que pacientes com SIC devem ter um compri­
mento mínimo de intestino delgado restante de 100 a 150 cm,
mesmo sem o cólon, para ficarem independentes de uso de te­
rapia nutricional artificial. Autores acreditam que a presença
de 60 cm de intestino delgado e cólon intacto são suficientes
para uma sobrevida aceitável. Portanto, na SIC, fluidos, eletró­
litos, macro e micronutrientes não encontram área suficiente
para serem absorvidos ou reabsorvidos; o tempo de trânsito
intestinal é muito curto (sobretudo, se a válvula ileocecal não
existir mais); a presença de sais biliares e ácidos graxos não
absorvidos aumenta a atividade secretória colônica. Além dis­
so, a hipersecreção gástrica reduz o pH intraluminal e inativa
enzimas digestivas (lipase pancreática). Todos esses fenôme­
nos contribuem para a deteriorização do fenômeno absortivo,
ocasionando graves e irreversíveis perdas nutricionais, sendo
as causas principais de falhas terapêuticas e alto índice de mor-
bidade e mortalidade.

■ CONSEQUÊNCIAS DA SÍNDROME
DO INTESTINO CURTO (QUADRO 33.2)
■ Nutricionais (Figura 33.2)
■ Perda de água e eletrólitos
Nos primeiros dias após extensa ressecção intestinal, po­
dem-se observar perdas diárias de até 5 l de água e fluidos,
perdurando até aproximadamente a terceira semana pós-ope­ Figura 33.2 Paciente com síndrome do intestino curto demonstrando
ratório. A tradução clínica de tais perdas é grave quadro de de­ desnutrição grave e alimentação parenteral total.
sidratação e desequilíbrio hidreletrolítico e ácido-básico, além
de hipovolemia, arritmias cardíacas, insuficiência respiratória
e renal. Exames complementares comprovam facilmente tais
desequilíbrios. satisfatório, terá, em muitas fases de sua vida, necessidade de
reposição parenteral adjuvante de micronutrientes, sobretudo
■ Perda de m acronutrientes cálcio, fósforo, magnésio e vitaminas.
A má absorção de proteínas, carboidratos e gorduras é res­
ponsável pela gradativa perda de peso, perda de massa muscular, ■ Hipersecreção gástrica
perda de depósitos de gordura, da arquitetura tecidual e de fun­ A hipersecreção gástrica pode ocorrer em mais da metade
ções vitais (Figura 33.2). A tradução clínica dessa perda é ema­ dos pacientes com SIC, podendo retornar à normalidade após
grecimento, apatia, limitação funcional e infecções secundárias 3 a 6 meses. A hipercloridria determina o aparecimento de le­
pelo comprometimento da imunocompetência. Exames com­ sões da mucosa gastroduodenal, incluindo úlceras pépticas que
plementares denotam alterações na composição das proteínas, podem ser causa de hemorragia digestiva. Além disso, o baixo
com inversão da relação albumina-globulina, transferrina baixa, pFI luminal inativa enzimas digestivas necessárias à digestão
linfopenia e testes alterados de bioimpedância. e absorção de nutrientes, acarretando perdas nutricionais. Es­
tudos mostraram que pacientes portadores de SIC, ao recebe­
■ Perda de m icronutrientes rem bloqueadores de receptores H, da histamina, melhoravam
A perda de cálcio, fósforo e magnésio é notória já nos pri­ a digestão intraluminal e absorção intestinal, reduzindo pela
meiros dias, sendo responsável por alterações clínicas. A perda metade a perda de gordura fecal, em até 22% a perda de nitro­
de ferro, cobre, zinco, molibdênio, vitaminas hidro e lipos- gênio fecal e em ate 34% o volume fecal diário.
solúveis é observada mais tardiamente. Essas perdas condu­ Um interessante estudo dinamarquês comprovou a eficácia
zem a um largo espectro de alterações clínicas, desde anemia do uso de inibidores da bomba de prótons, reduzindo a perda
e neutropenia, alterações neurológicas, acrodermatite, alope- fecal, embora não melhorasse a absorção de nutrientes.
cia, diminuição da imunidade, intolerância glicídica, mialgias,
cardiomiopatias, arritmias cardíacas, alterações visuais, ence- ■ Acidose láctica
falopatia de Wernicke, acidose láctica, parestesias, neuropatia O ácido láctico é produzido pela fermentação de carboidra­
periférica, tetania e outras. tos não absorvidos pelo intestino delgado, dentro do cólon.
A maior parte dos autores acredita que o paciente portador Observa-se acidose metabólica, e sintomas de disartria, ataxia
de SIC, mesmo com boa adaptação funcional e tamanho residual e confusão mental.
384 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto

------------------------------------- ▼----------------------------------- no intestino remanescente melhora gradativamente com o tem­


Q u a d ro 3 3 2 Consequências da síndrome do intestino curto po, atenuando a diarréia e a disabsorção. O processo adaptativo
se inicia nas primeiras horas após a ressecção maciça, podendo
• N u tric io n a is prolongar-se pelos primeiros anos. O processo de adaptação
- P e rd a d e á g u a e e le tró lito s inclui alongamento e dilatação do intestino residual, aumento
- P e rd a d e m a c r o n u t r ie n t e s na altura das vilosidades, aumento no peso intestinal, aumento
■ P ro te ín a s da profundidade das criptas, além do aumento da proliferação
■ C a r b o id r a t o s celular e da atividade enzimática.
■ G o r d u ra s Enquanto alguns autores não observam aumento na ativi­
- P e rd a d e m ic r o n u t rie n t e s dade das dissacaridases e peptidases, sugerindo que a função
■ C á lc io celular não sofre alterações, outros autores encontraram au­
■ Fó s fo ro mento de atividade de dissacaridases e sódio-potássio-adeno-
■ M a g n é s io sina-trifosfatase (Na + K + ATPase) em enterócitos individuais
■ F e rro expostos a nutrientes luminais.
■ C o b re Alterações morfológicas no intestino delgado são mais evi­
■ Z in c o dentes em animais que em humanos submetidos a grandes res-
■ S e lè n io secções intestinais. Porus, em 1965, e 0 ’Keef et aí., em 1994,
■ M o lib d ê n io mostraram que alterações morfológicas, notadamente hiper-
■ V ita m in a s celularidade nas vilosidades, são mais evidentes em humanos
• H lp e r s e c r e ç á o g á strica submetidos a ressecções intestinais extremas.
- Ú lc e ra s p é p tic a s A adaptação intestinal é multifatorial e dependente da pre­
- H e m o r r a g ia d ig e s tiv a sença e da exposição de nutrientes e elementos não nutriti­
- B a ix o p H in tra lu m in a l vos no lúmen intestinal, de hormônios entéricos e da secreção
■ In a tiv a e n z im a s in te s tin a is n ece ss á ria s p a ra d ig e s tá o / a b s o rç à o biliopancreática, além de fatores tróficos extraintestinais, pa­
d e n u trie n te s recendo que a chave central da replicação celular é a ativação
• A c id o s e láctica de poliaminas pela ornitina-decarboxilase. Estudos mostraram
- A c id o s e m e ta b ó lic a que a inibição da ornitina-decarboxilase resulta em supressão
- S in to m a s d e d is a rtria , a ta x ia , c o n f u s á o m e n ta l de 87% da síntese de DNA e na ausência de adaptação funcio­
• N e fro litía se nal após ressecção maciça do intestino.
- A b s o r ç á o c o lô n ic a d e o x a la to livre : h ip e ro x a lú ria c o m fo r m a ç á o d e Nos últimos anos, pesquisas convergem a determinados ele­
c á lc u lo s u rin á rio s mentos que possam ativar e manter a eutrofia intestinal, desta­
- D e s id ra ta ç ã o e a c id o s e : c á lc u lo s d e á c id o ú ric o cando-se os nutrientes intraluminais, as secreções biliopancreá-
• C o le litía s e ticas e hormônios.
- P re c ip ita ç ã o d e c o le s te ro l b ilia r: f o r m a ç á o d e c á lc u lo s b ilia res

■ Nutrientes intraluminais
A preservação e manutenção da estrutura celular intestinal, e
■ Nefrolitíase de suas funções, são altamente dependentes da presença de nu­
trientes intraluminais, estimulando diretamente a proliferação
Normalmente oxalatos da dieta ligam-se ao cálcio no lúmen
celular e, indiretamente, a produção de peptídios e hormônios
intestinal, formando complexos insolúveis que são excretados
entéricos, além da regulação do fluxo esplânico.
nas fezes. Em pacientes com S1C, o cálcio liga-se a ácidos gra-
xos não absorvidos, induzindo a absorção colônica de oxalato A atrofia intestinal em animais e humanos, submetidos a
jejum e NPT, é fato comprovado. Por outro lado, demonstrou-
livre. Da mesma forma, sais biliares não absorvidos aumentam
se que nutrientes intraluminais ofertados na fase adaptativa da
a permeabilidade intestinal, permitindo maior absorção de oxa­
SIC melhoram a capacidade absortiva intestinal, reduzindo a
lato. A hiperoxalúria resultante contribui para a formação de
dependência à NPT. Animais tratados com terapia nutricional
cálculos urinários. Por outro lado, desidratação crônica e acido­
enteral tiveram um efeito trófico acentuado, tendo inclusive
se, aliadas à diminuição de inibidores de formação de cálculos,
aumento na hipercelularidade, ganho na altura das vilosida­
como citrato e magnésio, aumentam o índice de formação de
des intestinais, na profundidade das criptas e no conteúdo de
cálculos urinários de ácido úrico.
DNA intracelular.
Os nutrientes específicos (aminoácidos, proteínas, triglice-
■ Colelitíase
rídios, ácidos graxos, carboidratos e fibras) têm papel impor­
Em geral, pacientes com SIC têm aumento na incidência de tante nesta regulação.
cálculos biliares, de 25 a 30%. Os sais biliares não reabsorvidos,
devido à ressecção do íleo, diminuem a concentração na bile,
acarretando precipitação do colesterol e formação de cálculos ■ Proteínas e aminoácidos
biliares. Além disso, pacientes permanentemente dependentes A proteína intacta tem efeito trófico primordial quando in­
de NPT promovem estase na vesícula biliar, proporcionando fundida no intestino delgado residual. A dieta polimérica in­
formação de cálculos de bilirrubinato de cálcio. fluencia mais a adaptação e a capacidade absortiva que a dieta
hidrolisada.

■ ADAPTAÇÃO INTESTINAL ■ Glutamina


Durante o século XX, autores demonstraram, em animais e A glutamina é um aminoácido não essencial (primariamen­
humanos, que a capacidade de adaptação funcional e absorção te, derivado da proteína muscular) e constitui a maior fonte
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 385

precursora da síntese de DNA intestinal. Durante fases críticas vam em animais alimentados com óleos não saturados. Outras
de lesão intestinal, a glutamina pode tornar-se um aminoácido observações sugerem que a hiperplasia celular após ressecções
condicionalmente essencial. maciças do delgado, estimulada com uso de uma mistura de
A glutamina é essencial para manutenção do trofismo do 50% de ácido oleico e 50% de ácido linoleico, age tão efetiva­
enterócito e parece também exercer papel preponderante nas mente quanto o uso de triglicerídios de cadeia longa.
funções imunológicas. Pacientes com graves queimaduras, Os ácidos graxos de cadeia curta (acetato, propionato e bu-
nos quais existia redução na capacidade efetiva dos neutrófi- tirato) são bioprodutos de fermentação colônica de fibras e
los contra estafilococos, ao serem submetidos à nutrição ente- carboidratos resistentes à digestão. Os ácidos graxos de cadeia
ral acrescida com glutamina, melhoravam substancialmente curta são rapidamente absorvidos pela mucosa colônica e uti­
esta capacidade. lizados como fonte de energia, estimando-se que, diariamente,
A maior parte dos estudos com glutamina foi realizada com em indivíduos sadios, essa fonte possa suprir entre 5 e 10% do
animais de laboratório, e um estudo precursor demonstrou que requerimento energético, podendo elevar-se em indivíduos que
a infusão de glutaminase em animais reduzia sensivelmente consomem altas taxas de fibras ou em portadores de afecções
a concentração sérica de glutamina, a qual era acompanhada disabsortivas.
por diarréia, atrofia vilositária, ulcerações da mucosa digestiva Os ácidos graxos aumentam a absorção de água e sódio, re­
e necrose intestinal. duzem a atrofia intestinal causada pela NPT e influenciam a
A atrofia vilositária e o aumento da permeabilidade intesti­ adaptação trófica do intestino delgado e cólon remanescentes.
nal favorecem a translocação bacteriana e a bacteriemia. Neste As fibras proveem o cólon de substratos para produção de
caso, a adição de glutamina à nutrição parenteral ou enteral ácidos graxos de cadeia curta. Em modelos experimentais, as
pode reverter a atrofia intestinal, estimulando a celularidade e fibras solúveis têm efeito benéfico, marcadamente a pectina,
as funções da mucosa intestinal. A glutamina é um substrato no controle da diarréia, diminuindo o número de evacuações
essencial para a recuperação do intestino remanescente após líquidas, melhorando a adaptação intestinal, o peso da muco­
ressecções maciças, tendo alguns estudos demonstrado que a sa, o conteúdo de DNA e a atividade das disacaridases, além
suplementação nutricional com glutamina acelera a hiperplasia de aumentar a absorção colônica de água e a solidificação das
do intestino residual, embora tais resultados de hipercelulari- fezes.
dade não tenham sido reproduzidos no nosso brasileiro.
Em humanos, ensaios terapêuticos com a glutamina na SIC
não são extensos, sendo mais comuns na Europa, onde pacien­
■ Carboidratos
tes recebem NPT enriquecida com soluções de dipeptídios de Além de prover as calorias necessárias ao metabolismo ener­
glutamina. Em pacientes depletados, a glutamina normaliza os gético, os carboidratos não digeridos podem ser substrato para
níveis séricos e da mucosa intestinal, melhorando a capacidade a produção de ácidos graxos de cadeia curta no cólon. Demons­
absortiva e revertendo alterações morfológicas devido à priva­ trou-se que pacientes com SIC beneficiam-se com dietas ricas
ção proteica. Em pacientes graves, após grandes ressecções do em carboidratos e baixas em gordura, em uma proporção de
intestino, a adição de glutamina na solução de NPT atenua a 60 a 20%.
permeabilidade intestinal induzida pelo jejum e NPT, induzin­
do efeito trófico e regenerativo do intestino. Contudo, existem
resultados controversos em relação à toxicidade da glutamina
■ Secreções biliopancreáticas
infundida via parenteral. Altas taxas de glutamina podem ele­ Em animais submetidos a grandes ressecções intestinais, as
var metabólitos putativos tóxicos, como o ácido carboxílico secreções biliopancreáticas demonstraram importância evi­
1-pirrolidona, e aumentar a produção de amônia. Portanto, dente para a manutenção da altura das vilosidades e da massa
pacientes com insuficiência hepática ou renal devem ter indi­ de mucosa intestinal, sobretudo no íleo. Ao que parece, tais
cação judiciosa e monitoramento rígido de seu uso. secreções seriam estimuladas por colecistoquinina e secretina,
Nos pacientes com SIC, a glutamina deveria ser administra­ as quais seriam influenciadas pelo enteroglucagon.
da preferencialmente pelo trato digestivo, pois teoricamente seu
efeito seria mais benéfico, tendo em vista o contato imediato
com a mucosa digestiva. Observou-se que pacientes críticos sob
■ Hormônios
NPT acrescida de glutamina mantêm a troficidade intestinal, Podem-se enumerar como fatores tróficos as proteínas ana-
embora, quando a glutamina é administrada por via enteral, a bolizantes, as quais têm papel no crescimento e no desenvolvi­
absorção de glicose é maior pelo delgado, e estudos experimen­ mento celular, destacando-se, entre eles, hormônios intestinais,
tais de diarréia demonstraram melhor absorção de sódio com enteroglucagon, GH, hormônio de fator de crescimento epi­
uso de glutamina enteral. Além disso, a glutamina administrada dérmico (EGF - epidermal growth factor), hormônio de fator
por via oral pode aumentar o nível sérico de GH, tendo efeito de crescimento similar à insulina-I (IGF-I insuline-likegrowth
positivo na manutenção do trofismo intestinal. factor-I), insulina, testosterona e neurotensina.
O hormônio de crescimento (somatotropina) é um hormô­
nio pituitário, com comprovada atuação na troficidade intes­
■ Triglicerídios, ácidos graxos e fibras tinal. O GH acelera a utilização de aminoácidos pelo jejuno e
Resultados atuais de pesquisas mostram que os ácidos gra­ íleo. Os efeitos positivos compreendem aumento do peso da
xos são importantes mantenedores da troficidade intestinal. mucosa intestinal, aumento na altura das vilosidades e na pro­
A administração de ácidos graxos de cadeia longa promove fundidade das criptas, além de estímulo à hipercelularidade
adaptação intestinal mais intensa que a de ácidos graxos de após ressecções maciças intestinais. Em interessante trabalho,
cadeia média, e o grau de saturação dos ácidos graxos parece comprovou-se a eficácia do uso de GH e outros nutrientes na
ser o elemento principal para tal adaptação. redução de NPT em pacientes portadores de SIC.
Estudos demonstraram que o peso da mucosa intestinal, o O horm ônio polipeptídio IGF-I apresenta similaridades
conteúdo de DNA e o conteúdo proteico intestinal aumenta­ à proinsulina: primariamente produzido no fígado, pode ser
386 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto

sintetizado no intestino delgado, sendo mediador de cresci­ O exame físico denota emagrecimento global, apatia, astenia,
mento, da divisão e da diferenciação celular. A administração distensão abdominal, hematomas e escaras devido à imobilida­
exógena de IGF-I aumenta a hiperplasia e hipertrofia intestinal de e diminuição dos coxins gordurosos periarticulares. Pelo
após ressecção extensa jejunoileal. Além dos efeitos tróficos, o déficit imunológico, infecções são frequentes, notadamente res­
IGF-1 aumenta o transporte de água e sódio no cólon, pare­ piratórias, agravadas pela disfunção diafragmática ocasionada
cendo também regular a absorção intestinal de aminoácidos pela desnutrição, por atelectasias eventualmente presentes no
em modelos animais e humanos, provavelmente estimulan­ pós-operatório e pela necessidade de ventilação assistida. Este
do carreadores funcionais existentes na borda em escova das período pode estender-se a um prazo médio de 2 a 3 meses,
membranas celulares. com alta taxa de mortalidade devido a complicações imediatas,
O EGF, em condições normais, é produzido nas glându­ sobretudo se ocorrerem novos episódios cardiocirculatórios, ou
las de Brunner, e, na vigência de afecções intestinais, sua pro­ se a infecção não for passível de controle. Icterícia e colestase
dução pode situar-se em outros locais do trato digestivo. O são comuns, em quadros infecciosos ou pelo uso prolongado
EGF é considerado potente mitógeno para as células da mu- de NPT.
cosa intestinal. O EGF também está presente no leite materno, Neste período, as modificações morfológicas já são demons-
acreditando-se ser importante regulador do crescimento e do tráveis, existindo aumento do comprimento intestinal de 25% e
desenvolvimento do trato gastrintestinal. Em animais subme­ da circunferência intestinal de 30%. À microscopia eletrônica,
tidos a ressecções maciças intestinais, o EGF aumentou signi­ observam-se aumento na profundidade das criptas, aumento
ficativamente a absorção de nutrientes, tendo papel marcante no número e na largura das vilosidades.
na regeneração tecidual.
A glutamina é um nutriente essencial para estímulo do EGF « Segundo período: adaptação progressiva
e proliferação celular, tendo-se demonstrado em trabalhos que
a administração de glutamina e EGF têm efeito aditivo no tro- Neste período, vencido o primeiro momento de hipercatabo­
fismo intestinal. lismo, o paciente tende a apresentar certa estabilização clínica.
Ocorre redução progressiva da diarréia, e a perda de peso ten­
de a estacionar em um baixo patamar. Raramente, observa-se
ganho ponderai. A cólica abdominal e os vômitos tornam-se
■ QUADRO CLÍNICO ocasionais. A diarréia tende a limitar-se entre seis e oito depo­
sições diárias, e as fezes podem ficar pastosas, embora ainda
A SIC apresenta sinais e sintomas característicos pela perda
de grande área absortiva. Diarréia e perda de peso são sinais possa persistir esteatorreia.
preponderantes. O paciente pode apresentar mais de 20 depo­ Ao exame clínico, o paciente encontra-se seriamente des­
nutrido, mas temporariamente adaptado a seu novo biotipo.
sições fecais por dia, e, em breve espaço de tempo, perder de
Aparecem sinais e sintomas de desnutrição crônica de micro­
20 a 30% de seu peso habitual.
nutrientes e vitaminas, com dermatite, alopecia e alterações
Na fase aguda, a perda de massa magra e reserva lipídica
de fàneros.
é notável, conferindo ao paciente aspecto desnutrido, seme­
Quando o paciente apresentar hipercloridria, quadros dis-
lhante ao aspecto de refugiados, prisioneiros de guerra ou a
pépticos e mesmo hemorragia digestiva podem estar presentes.
sobreviventes de grandes períodos de penúria (Figura 33.2).
Edema de membros inferiores é frequente.
Em fase mais tardia, quando o metabolismo do indivíduo adap­ Antropometria e exames laboratoriais comprovam o estado
ta-se lentamente a esse estado crônico e irreversível de desnu­
carencial grave, com hipoproteinemia, hipoalbuminemia e que­
trição calórico-proteica, começam aparecer sinais e sintomas da nos valores séricos de micronutrientes e vitaminas.
decorrentes da privação de micronutrientes. Desse modo, o Esse período pode estender-se de 6 meses a 2 anos.
paciente pode apresentar modificações em seu quadro clínico, Exames radiológicos contrastados do tubo digestivo mos­
dependendo da fase ou do período pós-operatório em que se tram diminuição do tempo de esvaziamento gástrico e aumento
encontra, embora o limite temporal desta fase não seja m ui­ do calibre do intestino remanescente (Figura 33.3).
to preciso.
Podem-se dividir temporalmente três períodos distintos:
■ Terceiro período: estabilização
■ Primeiro período: pós-operatório imediato Dependendo da extensão do intestino remanescente e da
qualidade de sua área absortiva, o paciente pode estabilizar-se
O primeiro período inicia-se imediatamente após a inter­ após, em média, 2 anos. O emagrecimento pode atingir 30%
venção cirúrgica. Além do hipercatabolismo intenso prove­ do peso habitual e estabilizar-se definitiva e irreversivelmen-
niente da magnitude do ato operatório e, eventualmente, de te. Tentativas de terapia nutricional agressiva e insistente são
comorbidades existentes (cardiopatias e vasculopatias), não é ineficazes para o retorno ao peso habitual. A diarréia varia em
infrequente a bacteriemia causada pela translocação bactéria- torno de seis deposições pastosas diárias, necessitando indefini­
na através das paredes necrosadas do intestino. Existe grande damente de terapêutica medicamentosa. Em tal período, com­
depleção hidreletrolítica, desequilíbrio acidobase e hipovole- plicações tardias como litíase biliar e nefrolitíase podem surgir,
mia, culminando com instabilidade hemodinâmica. Some-se a assim como complicações metabólicas oriundas de deficiência
diarréia profusa iniciada nas primeiras 24 h, tendendo a piorar de micronutrientes, sobretudo a hipocalcemia e a hipomag-
se tentativas errôneas de alimentação oral forem forçadas. As nesemia.
fezes são líquidas ou semilíquidas, de coloração amarelada e O paciente pode ser considerado controlável, mas não está­
textura oleosa, acompanhadas, por vezes, de cólicas abdomi­ vel, conquanto um mínimo de absorção de nutrientes continue
nais e, também, de náuseas e vômitos. Nas primeiras semanas, a existir e a alimentação oral possa ser recomendada. Pacientes
o paciente perde rapidamente suas reservas calóricas, proteicas dependentes de NPT apresentam seguidamente complicações
e de sais minerais. metabólicas, vasculares e infecciosas.
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 387

e derivados de sangue devem ser infundidos se houver neces­


sidade.
Atenção especial é dada ao aparelho respiratório, com fisio­
terapia efetiva e ventilação assistida se existir queda significativa
da saturação ou pressão de oxigênio.
Oligúria e sinais de falência renal devem ser observados,
mantendo-se hidratação e diurese adequada.
No intuito de reduzir complicações advindas da hiperclori­
dria, infundir via parenteral, inibidores da bomba de prótons,
em doses duplas, podendo ainda utilizar antiácidos VO e outros
protetores da mucosa gastroduodenal.
Antibióticos de largo espectro, visando, sobretudo, a gram-
negativos e anaeróbios, os quais frequentemente são responsá­
veis por locais infecciosos, oriundos de translocação bacteriana,
devem ser administrados.
Se o paciente apresentar um estorna, cuidados eficazes de­
vem ser tomados ao seu redor, evitando-se erosões e infecções
dérmicas secundárias.
A diarréia pode ser minimizada com uso de anticolinérgicos
e antidiarreicos, quando o paciente já apresentar um mínimo de
estabilização hemodinâmica. Codeína, hioscina, difenoxilato e
loperamida podem ser prescritos, evitando-se excesso, para que
efeitos indesejáveis, como a distensão abdominal, não piorem
o desconforto. Somatostatina e análogos têm seu papel como
drogas antissecretoras, sobretudo em pacientes portadores de
estorna. A colestiramina também pode ajudar como quelante
de sais biliares.
A terapia nutricional deve ser, inicialmente, indicada por
via parenteral. Essa medida, contudo, não deve ser tomada
nos primeiros dias de pós-operatório, ou seja, imediatamente
depois da ressecção maciça intestinal, devido a instabilidade
Figura 33.3 Raios X contrastados do aparelho digestivo mostrando hemodinâmica e graves distúrbios metabólicos. Passado esse
segmento curto de intestino delgado. período, a NPT pode ser iniciada, com aporte calórico inicial
de 1.000 kcal/dia, aumentando-se gradativamente, de acordo
com os limites impostos pelo grande trauma e pela assimilação
do paciente, controlando-se rigidamente o metabolismo, so­
bretudo a glicemia, pois a maior parte dos pacientes apresenta
■ TRATAMENTO resistência periférica à insulina.
Nos primeiros dias, não se deve tentar corrigir matematica­
O tratamento é complexo e depende de numerosas variá­ mente as perdas calórico-proteicas, tampouco reverter o balan­
veis, sendo necessário tratar o paciente sequencialmente, de ço nitrogenado negativo, pois tal atitude aumenta sensivelmen­
acordo com o período que se encontre, além das complicações te a probabilidade de complicações metabólicas e infecciosas.
inerentes a cada período, não esquecendo as causas básicas que O acesso à veia central para NPT deve ser realizado de acor­
originaram a maciça ressecção intestinal. do com rígidos preceitos de antissepsia e assepsia, se possível
Dessa maneira, há que se tratar sempre a desnutrição, a diar­ em centro cirúrgico. Esse acesso e a linha central de infusão
réia, a infecção, a hipercloridria, as complicações oriundas do deveriam ser utilizados apenas para infusão da NPT. Tendo
próprio tratamento relacionadas, boa parte das vezes, à terapia em vista que a NPT será prolongada, um acesso mais definiti­
nutricional, e prevenir novos eventos. vo (dissecção de veia jugular interna e colocação de cateter de
silicone, através de túnel subcutâneo) seria mais confortável
■ Período pós-operatório imediato ao manuseio, tanto para a equipe de enfermagem e nutrição,
quanto para o próprio paciente.
Primordialmente, suporte hidreletrolítico e acidobase e he- As soluções de nutrição parenteral além de macronutrien-
modinâmico. Monitoramento em ambiente de cuidados inten­ tes (carboidratos, proteínas e lipídios) podem conter adição de
sivos. Prevenção e tratamento de infecção e da hipercloridria. eletrólitos, micronutrientes e vitaminas, levando-se em conta
Início mediato da terapia nutricional. reações e precipitações indesejáveis.
Neste período, as perdas de fluidos e eletrólitos são muito Com relação ao aspecto cirúrgico, lembrar que, muitas ve­
grandes, atingindo um débito diário de 5 indicando uma re­ zes, a demarcação da necrose intestinal, durante a intervenção
posição hidreletrolítica vigorosa obrigatória, mas monitorada cirúrgica inicial, nem sempre é satisfatória, exigindo, em algu­
rigidamente, evitando-se sobrecarga cardiovascular indesejada. mas ocasiões, revisões cirúrgicas no período pós-operatório.
São mandatórios um acesso central para reposição volêmica Por outro lado, situações cirúrgicas difíceis, com anastomoses
e um controle da pressão venosa central. Controle rígido de precárias ou ostomias tensas, podem redundar em complica­
efluentes, sobretudo se existir estorna. A reposição deve ser ções PO imediatas, necessitando de observação acurada, como
realizada com solução salina isotônica, solução de bicarbona- as fístulas digestivas, que, na maior parte das vezes, não têm
to, suplemento de potássio, cálcio e magnésio. Concentrados fechamento espontâneo.
388 Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto

Passados os primeiros dias de PO, e não sendo observadas Análogos da somatostatina promovem aumento na absorção
complicações imediatas, é possível oferecer, VO, pequenas e de sódio, água e cloro, além de reduzir a atividade secretória
fracionadas quantidades de líquidos isotônicos. Podem-se, ain­ digestiva e o volume fecal, podendo ter seu uso indicado.
da, utilizar preparados à base de farinha ou mingau de aveia, Glutamina e GH também se mostraram eficazes para melho­
arroz, batatas cozidas ou mesmo massas simples, dependendo rar a adaptação intestinal e diminuir o uso de NPT, e a utilização
da tolerância individual, e se isso não acarretar piora da diar­ deve ser considerada. Por outro lado, outros hormônios, como
réia, vômitos ou distensão abdominal. a neurotensina, a bombesina, peptídio-II similar ao glucagon e
A nutrição enteral pode ser iniciada da mesma forma, gra­ IGF, estão em fase de pesquisas, e resultados definitivos ainda
dativamente, se o paciente não tem condições de deglutição, ou devem ser confirmados.
qualquer outra incapacidade de ingestão suficiente de alimentos Os apoios psicológico, médico, familiar e, sobretudo, da
VO. A terapia nutricional enteral utilizará, preferencialmen­ equipe de terapia nutricional são de fundamental importância
te, dietas semielementares com dipeptídios e ácidos graxos de para que o paciente aceite as modificações dietéticas impostas
cadeia média, os quais são bem tolerados, absorvidos e trans­ por seu quadro.
portados diretamente pela via porta, embora não apresentem a
mesma capacidade de estímulo à regeneração tecidual intestinal
que os ácidos graxos de cadeia longa.
■ Período de equilíbrio
Convém observar que portadores de SIC e ausência de vál­ Nesta fase, o paciente tem emagrecimento, diarréia e disab­
vula ileocecal não apresentam desconjugação de sais biliares sorção estabilizados. Acostuma-se à nova fisiologia digestiva,
e redução na absorção de gorduras, agravando a esteatorreia. usa medicamentos independentemente e consegue readapta­
Em tais casos, o uso de colestiramina pode ser benéfico. A nu­ ção em seu ambiente domiciliar, familiar e até profissional,
trição enteral pode ser infundida através de sondas de silicone, dependendo da quantidade e qualidade do intestino restante
dentro do estômago ou jejuno, colocadas via nasogástrica ou definitivo.
por gastrostomia ou jejunostomia, menos frequentemente. A Neste período, o paciente faz de seis a dez pequenas refei­
infusão, em geral, é auxiliada por bombas infusoras próprias ções diárias, introduzindo novos alimentos conforme a acei­
à nutrição enteral. tação, podendo adicionar soluções e suplementos nutricionais
VO, com alto teor de eletrólitos, sais minerais e vitaminas. O
■ Período de adaptação paciente deve ser orientado a revisões sistemáticas, a contro­
le antropométrico e metabólico contínuo, já que comumente
Quando o paciente com SIC apresenta área absortiva resi­ se observa deficiência de micronutrientes, traduzida por uma
dual adequada, pode-se reduzir o uso de NPT paulatinamen- miríade de sinais e sintomas, incluindo fadiga, dermatite, alo-
te, aumentando o aporte da nutrição enteral e estimulando a pecia, taquicardia, mialgia, cardiomiopatias, encefalopatia de
dieta oral. Wernicke, acidose láctica, tetania, cegueira noturna e outros.
Os módulos de nutrição enteral não devem ultrapassar o Muitas vezes, o internamento e a reposição destes nutrientes,
dobro da osmolaridade plasmática, evitando agravamento da temporariamente, se fazem obrigatórios.
diarréia e disabsorção. O uso de triglicerídios de cadeia média Aparentemente, pacientes que apresentam extensão mínima
não deve ultrapassar o aporte calórico diário de 450 kcal, pois de 100 cm de intestino delgado remanescente podem atingir
doses elevadas desses triglicerídios (TCM) causam náuseas, esta fase com certo conforto e ter sobrevida satisfatória. Por ou­
vômitos, distensão abdominal e diarréia osmótica. O aporte tro lado, aqueles que têm menos que 60 cm de intestino delgado,
lipídico deve limitar-se a 30 g por dia, totalizando uma mé­ ou apenas o duodeno, raramente conseguem ficar independen­
dia de 15% das calorias totais, sendo razoável uma relação de tes de NPT, e, a estes, apenas o transplante intestinal poderá
2:3 de ácidos graxos de cadeia curta e 1:3 de ácidos graxos de devolver a esperança de sobrevivência e qualidade de vida.
cadeia longa.
Os peptídios (fórmulas oligomonoméricas) são mais bem
absorvidos, e de maneira mais rápida, que os aminoácidos li­
vres ou a proteína intacta. O aporte proteico deve ser ofertado
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO PARA SÍNDROME
na razão de 1,2 a 2 g/kg/dia. Suplemento de glutamina diário, D0 INTESTINO CURTO
na ordem de 25 g/dia.
As vitaminas hidrossolúveis (ácido ascórbico, ácido fólico O uso contínuo e crônico de NPT no tratamento da SIC
e vitaminas do complexo B, excetuando a vitamina B12) são provoca morbidade elevada. Devido a inúmeras dificuldades na
absorvidas no intestino residual e devem ser prescritas. Na au­ manutenção destes pacientes, idealizaram-se no passado recen­
sência de válvula ileocecal, a vitamina Bl2 deve ser prescrita por te, vários procedimentos cirúrgicos com o intuito de melhorar
via parenteral, através de injeção intramuscular, a cada 2 ou a qualidade de vida destes indivíduos.
3 meses. Vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) necessitam de A tentativa destes procedimentos era retardar o tempo de
reposições mais frequentes, em geral 2 vezes/semana. Micro- trânsito intestinal, permitindo maior tempo de contato do ali­
nutrientes e oligoelementos como cálcio, zinco, ferro e mag­ mento com a mucosa intestinal remanescente, e, consequente­
nésio deverão, da mesma forma, ser infundidos, com controle mente, melhorar a absorção. Técnicas propostas de confecções
metabólico. de válvulas, interposição de segmentos intestinais, construção
Dependendo da tolerância, a alimentação VO pode ser esti­ de segmentos anisoperistálticos e marca-passos intestinais fo­
mulada, e quantidades de alimentos podem ser ofertadas pro­ ram descritas, e enteroplastia longitudinal e alongamento in­
gressivamente, tendo-se em conta a proscrição do uso de leite testinal são bem consagrados.
e derivados, naqueles com deficiência de lactase. Neste perío­ Nos últimos 10,20 anos, a proposta de transplante intestinal,
do, os pacientes começam a identificar determinados alimen­ isolado ou combinado, vem ratificando-se como a alternativa
tos que melhoram ou pioram sua nova condição fisiológica ideal aos portadores de SIC. É indicada primordialmente a pa­
digestiva. cientes com complicações graves da falência intestinal, dentre as
Capítulo 33 / Síndrome do Intestino Curto 389

quais se destacam hepatopatia (acometendo 50% dos pacientes Dowling, RH, Fullcr, R, Ulshcn, MH, Zimmcrmann, E, Lund, PK. Small and
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Insuficiência Vascular
Mesentérica
Ricardo Cesar Rocha Moreira

As lesões oclusivas dos vasos mesentéricos são, felizmente, rede colateral é formada pelas arcadas duodenopancreáticas.
problemas relativamente raros na prática clínica. No entanto, Entre as artérias mesentérica superior e inferior, existem arté­
quando ocorrem, essas lesões se apresentam de forma dramá­ rias comunicantes que recebem epônimos: a artéria marginal
tica: o diagnóstico é difícil, o tratamento, em geral, tardio e o de Drummond (que acompanha a borda mesentérica do cólon
prognóstico desfavorável. O médico que assume a responsa­ esquerdo) e a arcada de Riolano (que percorre o mesocólon).
bilidade de tratar estes pacientes tem que dispor dos conhe­ Quando ocorre lesão oclusiva de uma das artérias mesentéricas,
cimentos básicos sobre as doenças dos vasos mesentéricos e as artérias comunicantes podem se dilatar, servindo de eficien­
aplicá-los com presteza, para reduzir a alta morbimortalidade tes vasos colaterais. A colateral dilatada que pode ser demons­
destas afecções. trada por angiografia é denominada artéria do meandro.
A circulação venosa colateral mesentérica é tão desenvolvida
quanto a circulação colateral arterial. Apesar de terminar em
■ CONSIDERAÇÕES BÁSICAS uma única veia, a veia porta, o sistema venoso mesentérico apre­
senta numerosas veias colaterais, tanto dentro do mesentério,
■ Anatomia quanto ao redor do fígado (a chamada circulação periporta).
A circulação mesentérica (ou esplâncnica) é formada pelo
conjunto de artérias, veias e capilares que irrigam e drenam a ■ Fisiologia
parte abdominal do tubo digestivo e órgãos sólidos anexos (fí­ O fluxo sanguíneo esplâncnico em um indivíduo adulto hí-
gado, pâncreas e baço). O eixo da circulação mesentérica é a gido, em repouso e em jejum corresponde a cerca de 20% do
artéria mesentérica superior, ramo da aorta que irriga todo o débito cardíaco. A circulação esplâncnica se caracteriza por
intestino delgado e parte do intestino grosso, do ceco à flexu- ser regulada por fatores extrínsecos (pressão arterial e débito
ra esplênica do cólon. Dois outros ramos da aorta abdominal
cardíaco) e pela autorregulação intrínseca, isto é, pela influên­
também fazem parte da circulação mesentérica: o tronco celía-
cia de fatores locais, como hormônios da parede intestinal e a
co, que irriga o estômago, o duodeno e as vísceras sólidas do
presença de alimento na luz do estômago ou do intestino del­
abdome superior (fígado, pâncreas e baço) e a artéria mesen­
gado. Em condições fisiológicas, os fatores intrínsecos fazem
térica inferior, que supre parte do intestino grosso, do cólon
descendente ao reto. Essas três artérias garantem um abundante com que o fluxo sanguíneo varie muito, devido aos fenômenos
suprimento sanguíneo para todos os órgãos abdominais. de dilatação e constrição do leito vascular mesentérico.
A circulação venosa do intestino é igualmente abundan­ A vasodilatação provoca aumento acentuado do fluxo
te. A veia esplênica drena o baço, o estômago e o pâncreas. A sanguíneo para o trato gastrintestinal e para os órgãos anexos.
veia mesentérica superior drena o intestino delgado e a parte Após a alimentação, por exemplo, o fluxo sanguíneo para os
do cólon irrigados pela artéria mesentérica superior. A veia intestinos pode aumentar até 60%, como consequência da va­
mesentérica inferior drena o segmento do cólon irrigado pela sodilatação mediada por hormônios da parede do tubo diges­
artéria correspondente. A veia porta, formada pela confluência tivo, como a gastrina e a colecistoquinina; e do pâncreas, como
das três veias anteriores, percorre um trajeto curto, da base do o glucagon. O aumento fisiológico do fluxo sanguíneo se torna
mesentério ao hilo hepático, drenando todo o sangue da cir­ necessário para que o intestino exerça suas funções de digestão
culação mesentérica para o fígado. e absorção dos alimentos. Em condições patológicas, como,
Uma vasta rede de vasos colaterais interliga as três artérias por exemplo, uma oclusão da artéria mesentérica superior, a
da circulação mesentérica. Os ramos jejunais, ileais e cólicos vasodilatação do leito mesentérico não é acompanhada por
da artéria mesentérica superior formam uma complexa rede de aumento do fluxo sanguíneo. O resultado é um desequilíbrio
arcadas vasculares no mesentério e na própria parede intesti­ entre a demanda e o aporte de sangue para a parede intestinal,
nal. Entre o tronco celíaco e a artéria mesentérica superior, a fenômeno conhecido como isquemia funcional

391
392 Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica

■ Métodos diagnósticos
O diagnóstico das afecções vasculares mesentéricas depende
não apenas do exame clínico, mas principalmente de métodos
de imagem. Atualmente, existem pelo menos quatro métodos
para investigar lesões dos vasos mesentéricos: a ultrassonografia
Doppler, a angiorressonância magnética, a angiotomografia e
a angiografia com cateter.
A ultrassonografia Doppler é geralmente o exame inicial de
triagem, por ser um método totalmente não invasivo que tem
se revelado altamente acurado na avaliação de lesões no tronco
celíaco e na origem da artéria mesentérica superior. No entanto,
a ultrassonografia Doppler tem utilidade apenas como exame
diagnóstico, que permite confirmar a suspeita clínica, mas não é
precisa e detalhada o suficiente para se planejar o tratamento.
A angiorressonância magnética e a angiotomografia são mé­
todos pouco invasivos de se obterem imagens angiográficas dos
vasos mesentéricos. Ambas são bastante acuradas, dependendo
da qualidade do aparelho onde o exame é executado. Aparelhos
de ressonância magnética de 1,5 Tesla (ou mais) e tomógrafos
helicoidais de múltiplos canais (multislice) fornecem imagens
de alta qualidade da aorta abdominal e das três artérias que
irrigam o trato gastrintestinal, bem como do sistema venoso
mesentérico. Estes métodos permitem confirmar o diagnósti­
co da isquemia mesentérica e da trombose venosa, bem como
planejar o tratamento cirúrgico ou endovascular, na grande
maioria dos casos.
O exame definitivo para o diagnóstico e planejamento tera­
pêutico da isquemia mesentérica aguda e crônica é a arteriogra­
fia com cateter. O exame arteriográfico deve obrigatoriamente
incluir aortografia em posição lateral, além de injeções seletivas
no tronco celíaco, artéria mesentérica superior e inferior. A ar-
teriografia com cateter é essencial no diagnóstico da isquemia
Figura 34.1 Arteriografia mostra artéria do meandro.
mesentérica aguda, onde o cateter também pode ser o veículo
para administração de drogas vasodilatadoras ou trombolíticas.
A arteriografia com cateter também é essencial no diagnóstico e
tratamento endovascular da isquemia mesentérica crônica.
Do ponto de vista fisiopatológico, o mais im portante fe­
nômeno da circulação mesentérica é a vasoconstrição, que é
desencadeada por qualquer redução do fluxo sanguíneo para
os intestinos. A redução pode ser de causa local (oclusão da ■ ISQUEMIA MESENTÉRICA AGUDA
artéria mesentérica superior) ou sistêmica, por redução acen­ A forma clínica mais comum de insuficiência vascular me­
tuada do débito cardíaco, como acontece nos estados de choque sentérica é a isquemia intestinal aguda. A isquemia aguda -
ou na insuficiência cardíaca. A redução de fluxo desencadeia queda do fluxo sanguíneo arterial para níveis abaixo das ne­
uma constrição intensa dos vasos mesentéricos. Essa resposta, cessidades metabólicas do intestino - é uma das catástrofes
mediada pelo eixo renina-angiotensina, pode se prolongar por abdominais, resultando na morte da maioria das suas vítimas.
muitas horas depois que cessou o estímulo desencadeante. A va­ Apesar dos avanços recentes no diagnóstico e manejo dos pa­
soconstrição do leito vascular mesentérico tem importantes im­ cientes com isquemia intestinal aguda, a mortalidade e as com­
plicações na fisiopatologia da isquemia aguda dos intestinos. plicações tardias (síndrome do intestino curto) destes pacientes
permanecem desalentadoramente elevadas.
■ Farmacologia
Como mencionado anteriormente, a circulação mesenté­ ■ Etiologia e patogênese
rica tem grande capacidade de autorregulação, respondendo O mecanismo básico da isquemia intestinal aguda é a queda
a estímulos sistêmicos e locais. Da mesma forma, a circulação abrupta do fluxo sanguíneo mesentérico - por oclusão aguda
mesentérica é afetada por diversas drogas, tanto lícitas quanto e/ou por vasoconstrição prolongada dos vasos mesentéricos.
ilícitas. Das drogas lícitas, devem ser mencionados os digitáli- As causas de isquemia mesentérica aguda são: trombose, em­
cos, a vasopressina e algumas drogas vasoativas adrenérgicas, bolia e a isquemia não oclusiva. Outra causa de insuficiência
como a epinefrina e a dobutamina em doses altas. Essas dro­ mesentérica aguda, discutida na terceira seção deste capítulo,
gas induzem vasoconstrição prolongada e podem provocar ou é a trombose venosa mesentérica.
agravar a isquemia intestinal. Das drogas ilícitas, é importante
ressaltar os efeitos vasoconstritores da cocaína, que pode pro­ ■ Trom bose arterial
vocar dor abdominal por isquemia do intestino delgado e até A causa subjacente à maioria das tromboses agudas mesen­
mesmo necrose isquêmica do cólon. téricas é a aterosclerose. Quase todos os pacientes são idosos
Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica 393

e apresentam evidências clínicas da doença aterosclerótica em À medida que a isquemia persiste, a mucosa se torna permeá­
outros territórios, como nas coronárias, nas carótidas e nas vel às enzimas digestivas e às bactérias do lúmen intestinal.
artérias dos membros inferiores. A trombose aguda em geral Ocorre então o fenômeno de translocação bacteriana, com a
se instala em uma placa de ateroma no óstio da artéria mesen­ migração de bactérias através da parede isquêmica para a ca­
térica superior. O trombo se propaga distalmente, ocluindo vidade peritoneal e corrente sanguínea. Na submucosa, apare­
sucessivamente os ramos duodenais, a artéria cólica média e ce edema intenso, com hemorragias esparsas e pouca reação
os ramos jejunais e ileais. A trombose pode se propagar até o inflamatória. As alterações patológicas se estendem a todas as
ramo terminal da artéria mesentérica superior, a artéria ileo- camadas da parede intestinal. Os músculos da parede intesti­
cólica. Outras doenças sistêmicas infrequentes, como dissecção nal começam a sofrer o processo de infarto e apresentam cor
aguda da aorta, poliarterite nodosa, lúpus eritematoso sistê­ arroxeada característica.
mico, púrpura de Henoch-Schônlein, arterite de Takayasu e A isquemia que se prolonga por mais do que algumas horas
hiper-homocisteinemia, podem provocar trombose aguda das acaba por provocar necrose hemorrágica do intestino. O seques­
artérias mesentéricas. tro maciço de plasma e fluidos na parede e na luz dos intestinos
provoca hipovolemia e queda do débito cardíaco, reforçando o
■ Embolia arterial ciclo vicioso hipovolemia-vasoconstrição-isquemia. Nos está­
A embolia arterial é a causa mais comum de isquemia me­ gios finais do processo, a necrose hemorrágica envolve toda a
sentérica aguda, correspondendo a cerca de 50% dos casos nas parede intestinal, permitindo a livre passagem de bactérias para
grandes séries publicadas. Como as embolias arteriais em ou­ a cavidade peritoneal {peritonite) e para a corrente circulatória
tros territórios, os êmbolos mesentéricos quase sempre têm (bacteriemia e choque séptico).
sua origem no coração. As causas de embolia cardiogênica são Paradoxalmente, as graves alterações provocadas pela is­
fibrilação atrial crônica e infarto do miocárdio nos idosos e quemia podem ser agravadas pelo tratamento bem-sucedido.
valvulopatia reumática nos mais jovens. Enquanto a trombose Quando se consegue restabelecer o fluxo sanguíneo mesentérico
oclui a artéria mesentérica superior no seu óstio, na embolia antes da necrose intestinal, ocorre o fenômeno da reperfusão. Os
o coágulo geralmente se aloja alguns centímetros distalmente tecidos isquêmicos são inundados pelo fluxo pulsátil de sangue
à origem da artéria mesentérica superior, na altura da artéria oxigenado, o que provoca novos danos celulares pela liberação
cólica média. Devido a essas diferenças de local de oclusão, na de substâncias citotóxicas (os chamados radicais livres) e por
trombose aguda todo o intestino delgado e o cólon direito so­ complexas interações entre o endotélio e os neutrófilos do san­
frem isquemia, enquanto na embolia as alças jejunais proximais gue. O resultado é a virtual destruição de membranas celulares
e o cólon esquerdo são poupados. já lesadas pela isquemia e, eventualmente, o aparecimento de
resposta inflamatória sistêmica, com lesões de outros órgãos,
■ Isquemia não odusiva como os rins e o pulmão.
Uma causa peculiar de isquemia mesentérica aguda é a is­
quemia não oclusiva, na qual não se observa oclusão mecânica
das artérias mesentéricas e sim vasoconstrição intensa nas pe­
■ Quadro clínico
quenas artérias e arteríolas do leito mesentérico. Várias situações O(A) paciente apresenta dor abdominal, cuja principal ca­
clínicas podem desencadear isquemia intestinal sem oclusão racterística é ser fora de proporção com os achados do exame
vascular: insuficiência cardíaca, hipotensão, hipovolemia e de­ clínico do abdome. Portanto, a apresentação clínica é de um
sidratação. Em todas essas situações, ocorrem queda do débito abdome agudo e deve ser investigada como tal. A dor pode ter
cardíaco e o fenômeno reflexo de vasoconstrição intensa dos início abrupto ou gradual, dependendo da causa da isquemia in­
vasos mesentéricos. A vasoconstrição, aliada ao estado de baixo testinal aguda. Como as apresentações clínicas variam de acor­
fluxo sanguíneo sistêmico, resulta em provocar isquemia intes­ do com a causa, Bergan sugeriu classificá-las em síndromes:
tinal. Os pacientes com isquemia não oclusiva tipicamente estão ► 1. Sín d ro m e da e m b o lia arte ria l. O paciente se queixa se
internados em Unidade de Terapia Intensiva, em tratamento dor abdominal difusa e intensa, de início abrupto. A dor pode
de uma doença grave subjacente. Um fator agravante é o uso ser contínua ou em cólica e ser seguida por náuseas e vômitos.
de drogas que induzem vasoconstrição mesentérica, como os Pode ocorrer um episódio de esvaziamento intestinal. O pa­
digitálicos e as drogas vasopressoras usadas para tratar hipo­ ciente invariavelmente tem cardiopatia embolígena: arritmia
tensão. Nos trabalhos recentes, a isquemia não oclusiva vem cardíaca (mais comum é a fibrilação atrial); infarto do mio­
sendo cada vez mais diagnosticada como causa de isquemia cárdio recente; doença valvular com sopro cardíaco ou mio-
intestinal aguda. cardiopatia (no Brasil, doença de Chagas). Cerca de 30% dos
pacientes têm história pregressa de embolia arterial. A tríade
clínica: dor abdominal intensa de início abrupto, esvaziamento
■ Patologia intestinal e doença cardíaca embolígena é altamente sugestiva
Na fase inicial da isquemia, a camada da parede intestinal de embolia mesentérica.
mais afetada é a mucosa. O metabolismo energético das células ► 2. S ín d ro m e da tro m b o se a rte ria l. O paciente é geral­
epiteliais cessa completamente. A função absortiva da mucosa mente idoso, com manifestações clínicas de aterosclerose, como
se perde, permitindo a passagem bidirecional dos fluidos or­ história de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral is-
gânicos. Os achados macroscópicos nesta fase podem ser sutis, quêmico ou doença arterial obstrutiva dos membros inferiores.
como palidez das alças intestinais e edema da parede. Micros­ Alguns pacientes apresentam uma história prolongada de dor
copicamente, observam-se perda das vilosidades intestinais e abdominal pós-prandial e perda de peso, sugerindo isquemia
edema das camadas internas (mucosa e submucosa). A hipoxia intestinal crônica. O quadro pode ter início insidioso, com dor
dos músculos da parede intestinal manifesta-se inicialmente abdominal vaga, inapetência, náuseas e vômitos. Pode haver eli­
como aumento do peristaltismo e esvaziamento intestinal, se­ minação de fezes com sangue visível ou oculto. A apresentação
guido por paralisia e distensão das alças intestinais. clínica lembra o quadro de uma oclusão intestinal aguda. Ao
394 Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica

exame físico, o abdome se apresenta distendido, mas os ruídos bose aguda, a artéria mesentérica superior e seus ramos estão
hidroaéreos são hipoativos ou ausentes. ocluídos e a circulação colateral é pobre. Na embolia, a porção
► 3. Sín d ro m e da isq u e m ia não o c lu siv a . Os pacientes são inicial da artéria mesentérica superior se enche de contraste, e
invariavelmente cardiopatas graves, quase sempre em uso de tromboêmbolos obstruindo parcial ou totalmente o leito dis­
digitálicos. Comumente, já estão internados por piora recente tai podem ser demonstrados (Figura 34.2). Na isquemia não
da cardiopatia ou por intercorrência grave (infecção aguda, pio­ oclusiva, o tronco da artéria mesentérica superior e seus ramos
ra de insuficiência cardíaca ou cirurgia de grande porte). Mais principais estão normais, mas notam-se múltiplas estenoses,
da metade dos pacientes têm evidência de intoxicação digitá- oclusões segmentares e espasmo difuso das pequenas artérias
lica. No início do quadro, a dor pode estar ausente ou, quando do leito mesentérico. Na fase visceral da arteriografia, nota-se
presente, ser apenas moderada. Os sintomas iniciais podem ser escassez ou ausência de contraste em segmentos do intestino.
passagem de fezes sanguinolentas e/ou melena. Ao exame, o A introdução da angiografia por tomografia computadori­
abdome está distendido e pouco doloroso à palpação, sugerin­ zada de alta resolução (a chamada angiotomografia multislice)
do íleo paralítico. Uma situação particular é o aparecimento de veio facilitar o diagnóstico da dor abdominal aguda de causa
isquemia intestinal não oclusiva no pós-operatório de cirurgia vascular, especialmente quando existe trombose venosa mesen­
cardíaca, o que ocorre em cerca de 1% dos casos. térica. Na isquemia arterial, a angiotomografia tem sensibilida­
de apenas razoável, embora seja altamente específica, quando
demonstra trombos nas artérias mesentéricas.
■ Diagnóstico Outros exames: ultrassonografia Doppler, endoscopia di­
Em todo paciente com dor abdominal intensa e prolongada, gestiva e angiografia por ressonância magnética também são
mas com o exame clínico do abdome normal, deve ser levan­ usadas no diagnóstico de dor abdominal aguda. No entanto,
tada a suspeita de isquemia intestinal aguda. A suspeita deve quando existe a suspeita de isquemia mesentérica aguda, é mais
aumentar se o paciente for idoso, com história de cardiopatia apropriado encaminhar o paciente para laparotomia explora­
grave, arritmia cardíaca ou sinais de aterosclerose avançada. dora (ou para laparoscopia diagnóstica) do que perder tempo
O paciente com suspeita de isquemia aguda intestinal deve ser com estes exames, cuja utilidade é limitada.
internado em hospital e submetido à rotina diagnóstica para
abdome agudo. Desta rotina inicial, devem constar hemogra-
ma, amilase/lipase, exames metabólicos, provas de função he-
■ Tratamento
pática, radiografias simples e ultrassonografia do abdome. Os A grande maioria dos pacientes com isquemia mesentérica
exames têm como finalidade excluir causas mais comuns de aguda se apresenta com abdome agudo. Como existem causas
dor abdominal aguda, como perfuração de uma víscera, obs­ muito mais frequentes de dor abdominal aguda, o diagnóstico
trução intestinal e pancreatite. Na isquemia intestinal aguda, de isquemia mesentérica não é considerado. Nas palavras de
esses exames estão invariavelmente alterados. O hemograma Bergan, “o paciente é tratado conservadoramente, enquanto o
revela precocemente leucocitose acentuada (15.000 a 25.000 intestino morre”. Somente um alto grau de suspeita que desen­
leucócitos/mm3), com desvio para formas imaturas. O hema- cadeie uma investigação dirigida pode levar ao diagnóstico e ao
tócrito pode estar elevado, refletindo a perda de plasma no tratamento precoce de isquemia intestinal aguda.
intestino isquêmico. A amilase sérica está elevada em cerca da
metade dos casos, mas não nos níveis encontrados nos porta­
dores de pancreatite aguda. Acidose metabólica é um achado
precoce e constante, que tende a se acentuar com a progressão
da isquemia intestinal. Enzimas que refletem destruição teci-
dual (creatinofosfoquinase, desidrogenase láctica e as transa-
minases) somente se alteram na fase tardia de necrose intesti­
nal. Outros exames rotineiros, como eletrólitos e glicemia, são
úteis no manejo metabólico dos pacientes, mas não auxiliam
o diagnóstico específico. Os únicos exames laboratoriais cujas
alterações são especificamente sugestivas de isquemia mesen­
térica são a dosagem de fosfato sérico e o exame de dímero-D.
Infelizmente, ambos são raramente solicitados em pacientes
com dor abdominal aguda.
Na fase inicial da isquemia mesentérica, radiografias simples
do abdome são úteis apenas para excluir outras causas de ab­
dome agudo. Na fase tardia, com necrose intestinal já presente,
as radiografias podem mostrar distensão e edema das alças, e
a presença de gás na parede intestinal, em ramos da veia porta
e na cavidade peritoneal.
Caso os exames iniciais não revelem outra causa, deve-se
proceder imediatamente à investigação vascular armada. O exa­
me tradicional nestes casos é a arteriografia com cateter. Todo
paciente com suspeita clínica de isquemia mesentérica aguda
deve ser submetido a arteriografia de emergência, antes de lapa-
rotomia exploradora. O exame arteriográfico adequado deve ser
feito com cateter seletivo, nos planos anteroposterior a lateral e
mostrar as diversas fases da circulação mesentérica. Cada causa Figura 34.2 Aspecto arteriográfico típico da embolia da mesentérica
de isquemia aguda apresenta achados característicos. Na trom ­ superior.
Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica 395

Uma vez que o diagnóstico foi confirmado, o tratamento


deve ser iniciado sem demora. O objetivo do tratamento é res­
tabelecer a perfusão intestinal o mais rapidamente possível,
para minimizar a extensão da necrose intestinal. O manejo do
paciente com isquemia mesentérica aguda se baseia em três
princípios: (1) reanimação e tratamento suportivo; (2) correção
da causa vascular; e (3) ressecção do intestino necrosado.
► 1. R e a n im a çã o e tra ta m e n to su p o rtivo . A isquemia me­
sentérica aguda provoca profundas alterações metabólicas nas
suas vítimas. Os pacientes, geralmente idosos e cronicamente
enfermos, desenvolvem distúrbios clínicos graves, como hipo-
volemia, choque, acidose metabólica e oligúria, que devem ser
identificados e corrigidos, enquanto se confirma o diagnóstico.
Os pacientes em estado mais grave necessitam de internamen­
to em unidade de terapia intensiva. Medidas suportivas, como
acesso venoso central, infusão intravenosa de fluidos, passagem
de sondas nasogástrica e vesical, monitoramento e correção
dos distúrbios hidreletrolíticos são implementados, enquanto
se prepara o paciente para arteriografia ou operação. Antibió­ Figura 34.3 Alças intestinais necrosadas. (Esta figura encontra-se re­
ticos efetivos contra os germes gram-negativos entéricos devem produzida em cores no Encarte.)
ser administrados precocemente. Nos pacientes com suspeita
ou diagnóstico confirmado de embolia arterial ou de trombo­
se venosa mesentérica, deve ser iniciada anticoagulação com
heparina intravenosa. ►Isq u e m ia n à o oclusiva. O tratamento de escolha é clíni­
► 2. C o rre çã o d a ca u sa v a sc u la r. O tratamento cirúrgico co, consistindo na infusão de vasodilatadores e otimização das
da isquemia intestinal aguda depende do diagnóstico preciso da condições hemodinâmicas do paciente. Se o diagnóstico foi
causa. Em condições ideais, a causa deve ser definida pela arte­ confirmado por angiografia, deve-se fazer infusão intra-arterial
riografia, antes da operação. Nos hospitais onde não é possível de papaverina através do próprio cateter de arteriografia, di­
se obter arteriografia de emergência, justifica-se laparotomia retamente na artéria mesentérica superior, por um período de
precoce, baseada apenas na suspeita clínica. O cirurgião deve 24 a 72 h. A dose recomendada de papaverina é de 30 a 60 mg
estar preparado para fazer uma revascularização do intestino, por hora. Se o cateter de arteriografia foi retirado ou se o diag­
se os achados operatórios a indicarem. A conduta operatória nóstico é apenas clínico, pode-se iniciar glucagon intravenoso,
se baseia nos achados angiográficos e cirúrgicos. na dose de 1 |ig/kg/min, aumentando-se gradualmente a dose
►E m b o lia arterial. O tratamento ideal é a embolectomia para 10 pg/kg/min, se o paciente permanecer hemodinamica-
mesentérica. À operação, a artéria mesentérica superior é dis­ mente estável. Durante a infusão de vasodilatadores, o paciente
secada na raiz do mesentério. Através de arteriotomia trans­ deve ser monitorado continuamente, em unidade de terapia
versal, os tromboêmbolos são removidos com um cateter de intensiva. A volemia e os distúrbios hidreletrolíticos devem ser
Fogarty. As artérias distais são irrigadas com soluções diluídas corrigidos. Digitálicos e vasopressores devem ser suspensos.
de heparina e papaverina. Durante a operação e no período Deve-se tentar otimizar a função cardíaca pelo manejo judi-
pós-operatório, são administrados anticoagulantes (heparina, cioso de fluidos intravenosos e drogas adrenérgicas, que não
seguida por anticoagulante oral). agravem o vasospasmo mesentérico (dopamina ou dobutami-
Alguns autores recomendam o tratamento angiográfico, com na em dose baixa).
infusão de droga trombolítica diretamente na artéria mesenté­ O abdome do paciente em tratamento de isquemia não oclu­
rica através do cateter de arteriografia. O paciente é monitorado siva deve ser examinado frequentemente (cada 2 a 3 h). Os
intensivamente e levado à operação somente se a trombólise não critérios de exame clínico do abdome são os mesmos que se
for efetiva, permanecendo ocluídas as artérias intestinais, ou se usam em qualquer caso de abdome agudo. Se houver sinais de
o paciente desenvolver sinais de irritação peritoneal. irritação peritoneal, o paciente deve ser levado à laparotomia
►T ro m b o se arterial. Praticamente todos os pacientes com exploradora, enquanto se continua a infusão intravascular de
trombose mesentérica aguda devem ser operados. Em geral, papaverina ou glucagon. Nestes casos, não há necessidade de
a laparotomia confirma os piores receios do cirurgião: todo o se abordarem as artérias mesentéricas e sim de se avaliar a via­
intestino parece estar necrosado (Figura 34.3). Mesmos nessas bilidade das alças intestinais.
circunstâncias desesperadoras, deve-se tentar a revascularização ►S e m d ia g n ó stic o a rterio g rá fico . Esta é a situação mais
mesentérica. A artéria mesentérica superior é aberta através de comum enfrentada pelo cirurgião geral, que leva o paciente
incisão longitudinal e os trombos de propagação distais são re­ à laparotomia, com o diagnóstico de abdome agudo. Trata-se
movidos com o cateter de Fogarty. Uma ponte aortomesentéri- de situação difícil do ponto de vista cirúrgico, pois o diagnós­
ca com safena ou material sintético é realizada. Recentemente, tico de isquemia intestinal somente é feito após a laparotomia.
tem sido proposto o tratamento híbrido da trombose mesentéri­ Mesmo nestas circunstâncias desfavoráveis, os princípios de
ca: depois da trombectomia aberta do leito arterial distai, é feita revascularização intestinal, seguida de ressecção do intestino
angioplastia retrógrada da artéria mesentérica superior, através inviável, devem ser seguidos. O problema é que já pode ter
da própria arteriotomia. Após restabelecer o fluxo sanguíneo ocorrido necrose de todo o intestino delgado, restando ao ci­
arterial, as alças são retornadas à cavidade peritoneal, cobertas rurgião duas opções: (1) fechar o abdome, sem ressecar as alças
com compressas úmidas em soro fisiológico morno e observa­ gangrenadas, sabendo que o paciente esta condenado a morrer
das por um período de 30 a 45 min. Depois desse período, as dentro de algumas horas; ou (2) fazer uma ressecção intestinal
alças claramente inviáveis são ressecadas. maciça. Esta segunda opção pode salvar o paciente da morte
396 Capítulo 34 / Insuficiência Vascular Mesentérica

imediata, mas o condena às graves complicações metabólicas a hipótese de que a dor abdominal podería ser causada por is­
e nutricionais da chamada síndromedointestinocurto. Essa quemia intestinal pós-prandial. Com este conceito em mente,
síndrome é discutida detalhadamente em outro capítulo desta Dunphy observou em necropsias que a maioria dos pacientes
obra (Capítulo 33). com trombose aguda da artéria mesentérica superior relatavam
► 3. R e sse cção d o in te stin o n e cro sa d o . Pode ser extrema­ episódios recorrentes de dor abdominal pós-prandial meses
mente difícil a definição intraoperatória de quais os segmen­ ou anos antes. Sua conclusão - “a importância clínica da dor
tos intestinais ainda são viáveis e quais já estão necrosados. abdominal de origem vascular reside no fato de ser precursora
Os critérios clínicos tradicionais: cor das alças, pulsações dos de oclusão mesentérica vascular fatal” - estabeleceu definiti­
vasos mesentéricos, presença de peristaltismo e sangramento vamente a correlação clínica entre dor abdominal, oclusão das
da parede intestinal à secção podem ser inconclusivos e mes­ artérias digestivas e necrose intestinal. Mikkelsen, em 1957,
mo enganosos. Estas dificuldades levaram ao desenvolvimento em uma feliz comparação com a isquemia miocárdica, popu­
de métodos objetivos para auxiliar na decisão de quais os seg­ larizou o termo “angina intestinal” e sugeriu que as oclusões
mentos que devem ser ressecados e quais devem ser preserva­ crônicas das artérias mesentéricas poderiam ser tratadas por
dos. Os métodos mais estudados são: o fluxômetro Doppler técnicas cirúrgicas. Um ano depois, Shaw e Maynard relata­
ultrassônico; a medida do gradiente de temperatura entre as ram a primeira operação bem-sucedida para tratamento da is­
bordas mesentérica e antimesentérica do intestino; a infusão quemia intestinal crônica: a tromboendarterectomia da artéria
intravenosa de fluorosceína, seguida do exame das alças com mesentérica superior.
uma lâmpada ultravioleta; e o uso do laser Doppler. Os qua­ Desde então, diferentes técnicas cirúrgicas: endarterectomia,
tro métodos são bastante acurados em estudos de laboratório derivações com veias ou enxertos sintéticos e reimplante da
e têm sido usados clinicamente. Na prática, o simples exame artéria mesentérica na aorta têm sido utilizadas no tratamento
clínico do intestino, após revascularização, tem sido o método da isquemia intestinal crônica. Mais recentemente, o advento
mais usado pela grande maioria dos cirurgiões no Brasil, que de técnicas endovasculares como a angioplastia, com ou sem
geralmente não dispõem dos métodos sofisticados descritos implante de stentsy tem simplificado o tratamento das lesões
anteriormente. oclusivas das artérias intestinais.
Nos casos em que persistem dúvidas quanto à viabilidade
intestinal, pode-se proceder à ressecção das alças claramente
necrosadas e reoperar o paciente 12 a 24 h depois, para reexa­
■ Etiologia e patogênese
minar as alças intestinais remanescentes e as anastomoses. Essa A aterosclerose da aorta e das artérias viscerais é um acha­
conduta de se reoperar o paciente deliberadamente, chamada do universal na população idosa do mundo ocidental. Porém,
second-lookoperation na literatura de língua inglesa, tem sido na grande maioria das vezes, as lesões ateroscleróticas das ar­
utilizada por muitos cirurgiões experientes. Embora sua lógi­ térias que suprem as vísceras abdominais são assintomáticas.
ca não possa ser questionada, um estudo recente mostrou que Geralmente, a lesão aterosclerótica é ostial, isto é, na origem
os pacientes submetidos à laparotomia second-look tiveram da artéria, e se instala lentamente, o que permite o desenvolvi­
mortalidade significativamente maior (80% x 35%) do que os mento de uma circulação colateral eficaz distalmente à lesão.
pacientes que foram tratados apenas com o melhor suporte A rede colateral entre as artérias digestivas é tão rica que pelo
clínico possível. menos duas das três artérias têm que apresentar estenoses gra­
ves ou oclusões, para que o intestino venha a sofrer isquemia.
No indivíduo com isquemia intestinal crônica, o fluxo sanguí­
■ Prognóstico neo durante o jejum em geral é suficiente para as necessidades
Embora tenha havido avanços recentes no diagnóstico e do intestino. Durante a digestão, quando aumentam as neces­
tratamento da isquemia intestinal aguda, a mortalidade tem sidades metabólicas do intestino, o fluxo sanguíneo se torna
sido extremamente elevada. Os pacientes com embolia mesen­ insuficiente, desencadeando a dor isquêmica. Embora pareça
térica operados precocemente têm o melhor prognóstico, com um mecanismo simples, na realidade a resposta fisiológica da
a mortalidade variando de 30 a 50%. Por outro lado, trombose circulação intestinal durante a digestão é bastante complexa.
mesentérica apresenta péssimo prognóstico. Como esses pa­ A causa mais comum de isquemia intestinal crônica é, de
cientes são quase sempre operados tardiamente, a mortalida­ longe, a aterosclerose. Causas raras incluem: estenoses congê­
de fica acima de 85%, chegando a 100% em algumas séries. A nitas (coarctação da aorta abdominal), displasia fibromuscular,
isquemia não oclusiva tem prognóstico intermediário, graças arterites (doença de Takayasu) e sequelas de irradiação sobre o
ao tratamento clínico intensivo e ao uso de vasodilatadores. abdome (arterite actínica).
No entanto, mesmo em condições ideais de tratamento, cer­
ca da metade dos pacientes morrem durante o tratamento,
por complicações da doença cardíaca subjacente. A maioria
■ Quadro clínico
dos pacientes que sobrevivem a ressecções intestinais maci­ Os pacientes com isquemia intestinal crônica se queixam de
ças sucumbe tardiamente por complicações da síndrome do dor abdominal e perda de peso. Dor abdominal pós-prandial
intestino curto. (a chamada “angina mesentérica”) é o sintoma característico da
isquemia intestinal crônica. A dor se inicia de 30 a 60 min de­
pois da refeição, é contínua ou em cólica, se localiza no epigás-
■ ISQUEMIA INTESTINAL CRÔNICA trio ou na região periumbilical e pode durar de 1 a 4 h. Alguns
pacientes referem alívio da dor adotando a posição de cócoras
Desde o final do século XIX, já se sabia que alguns pacientes ou de prece maometana. Os episódios repetidos de dor levam
com dor abdominal crônica tinham oclusão das artérias que ir­ o paciente a ter medo de se alimentar, o que resulta em per­
rigam o intestino. No entanto, autoridades médicas da época, da de peso em praticamente 100% dos casos. Alguns autores
como William Osler, atribuíam a dor abdominal a formas atípi­ até afirmam que o diagnóstico de isquemia intestinal deve ser
cas de anginadepeito. Em 1933, Conner levantou novamente questionado se o paciente não tiver perda de peso. No entan­
C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V a scu la r M ese n térica 397

to, alguns pacientes não relacionam a perda de peso com a dor revascularização intestinal. Em particular, o achado arterio­
abdominal e têm que ser questionados especificamente sobre gráfico de uma artéria do meandro deve alertar o cirurgião
o momento que a dor aparece e sua relação com as refeições. para a necessidade de revascularização profilática, no decur­
Náuseas ou vômito são sintomas infrequentes. Alterações de so de operações sobre a aorta abdominal (por aneurisma ou
hábito intestinal, como constipação intestinal ou diarréia, po­ doença oclusiva).
dem estar presentes. A técnica mais popular de revascularização intestinal é a
No exame físico, além de emagrecimento e sinais de desnu­ ponte aortomesentérica. Uma única ponte para a artéria me­
trição, pode-se auscultar sopro abdominal em cerca de 50% dos sentérica superior é suficiente para aliviar a isquemia na gran­
casos. A maioria dos pacientes é fumante e apresenta sinais de de maioria dos casos, mesmo quando há doença oclusiva em
aterosclerose avançada em outros territórios. duas ou nas três artérias digestivas. Ocasionalmente, duas pon-

■ Diagnóstico
Os sintomas de dor abdominal e perda de peso sugerem o
diagnóstico de neoplasia maligna oculta. Os pacientes são qua­
se sempre submetidos a uma série de exames de imagem e a
endoscopias do trato digestivo, com resultados evidentemente
negativos. Os sintomas são então rotulados como funcionais e
os pacientes tratados sintomaticamente. Alguns são até envia­
dos a psiquiatras para tratamento de seus distúrbios “emocio­
nais”. A tríade dor abdominal, medo de se alim entar e perda
de peso deve levantar a suspeita clínica de isquemia intestinal
crônica. A partir desta suspeita, devem ser solicitados exames
de imagem das artérias mesentéricas.
A ultrassonografia Doppler é geralmente o primeiro exame
a ser solicitado, por ser não invasivo, sem riscos ou desconforto
para o paciente. Nos ambientes que dispõem de ultrassonogra-
fistas experientes, a suspeita de isquemia intestinal crônica pode
ser confirmada pelo achado de lesões oclusivas na origem das
artérias mesentéricas. Porém, os achados da ultrassonografia
Doppler devem ser sempre confirmados por exames mais pre­
cisos, que permitem planejar o tratamento.
Os métodos pouco invasivos de angiografia mesentérica -
a angiotomografia e a angiorressonância magnética - podem
ser úteis no diagnóstico das oclusões crônicas das artérias me­
sentéricas, especialmente quando envolvem a porção proximal
destas artérias. Nos aparelhos modernos de alta resolução, a
acurácia se aproxima do método “padrão-ouro”, a angiografia
com cateter.
O exame definitivo para o diagnóstico e planejamento te­
rapêutico da isquemia mesentérica crônica é a arteriografia. O Figura 34.4 Arteriografia mostra odusão do tronco celíaco e das ar­
exame arteriográfico deve obrigatoriamente incluir aortografia térias mesentéricas superior e inferior.
em posição lateral, além de injeções seletivas no tronco celía-
co, artéria mesentérica superior e inferior. Para se confirmar
o diagnóstico de isquemia mesentérica crônica, a arteriografia
tem que mostrar estenoses graves e oclusões de pelo menos
duas das três artérias anteriores (Figura 34.4).
Ocasionalmente, os exames de imagem podem mostrar este-
nose isolada do tronco celíaco. Este achado é bastante contro­
vertido como causa de dor abdominal crônica e somente deve
ser levado em conta se nenhuma outra causa, vascular ou não,
for encontrada para explicar a dor abdominal do paciente.

■ Tratamento
O tratamento tradicional da isquemia mesentérica crônica é
cirúrgico, consistindo na revascularização intestinal por meio
de uma derivação, endarterectomia ou reimplante arterial. A
indicação para o tratamento cirúrgico é absoluta nos pacientes
sintomáticos, de bom risco cirúrgico, não apenas para aliviar
os sintomas, como também para prevenir necrose intestinal no
futuro. Em pacientes com poucos sintomas, ou assintomáticos,
mas cujos exames de imagem mostram estenoses graves ou Figura 34.5 Ponte aortomesentérica superior. (Esta figura encontra-se
oclusões das artérias mesentéricas, há indicação relativa para reproduzida em cores no Encarte.)
398 C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V ascu la r M ese ntérica

tes podem ser necessárias As pontes podem ser feitas com um


enxerto sintético de Dacron ou PTFE, com veia safena autólo-
ga ou com enxerto da artéria hipogástrica (Figura 34.5), e sua
configuração pode ser anterógrada (saindo da aorta torácica
distai) ou retrógrada (saindo da aorta infrarrenal ou da artéria
ilíaca comum).
Uma controvérsia, que ainda não foi resolvida após 30 anos
de experiência, é quantas artérias devem ser operadas em uma
revascularização mesentérica. Alguns autores defendem o pon­
to de vista de que basta uma única ponte na mesentérica su­
perior para aliviar os sintomas. Outros argumentam que a du­
rabilidade da revascularização depende no número de artérias
operadas. De fato, quanto mais artérias são revascularizadas na
operação inicial, melhores são as taxas de perviedade tardia e
menor o número de pacientes que necessitam de reoperação.
Endarterectomia, isto é, a retirada cirúrgica da placa de ate-
roma, foi a técnica original de revascularização intestinal. As
dificuldades técnicas e as complicações dessa operação, no en­
tanto, levaram ao seu virtual abandono. Uma variante técnica, a
endarterectomia transaórtica, tem sido preconizada por alguns
cirurgiões. Essa operação de grande porte requer clampeamento
prolongado da aorta ao nível do diafragma, o que limita seu uso
a pacientes de bom risco cirúrgico. Outras variantes técnicas,
utilizadas por alguns cirurgiões em circunstâncias anatômicas
especiais, são o reimplante da artéria mesentérica superior na
aorta infrarrenal e a revascularização exclusiva da artéria m e­
sentérica inferior.
Ocasionalmente, o cirurgião se defronta com doença oclu-
siva extensa das artérias mesentéricas durante operações sobre
a aorta abdominal. A presença de uma artéria do meandro,
isquemia intestinal durante o clampeamento da aorta infrar­
renal e ausência de fluxo retrógrado pela artéria mesentérica Figura 34.6 Angioplastia com s te n t na artéria mesentérica superior.
inferior são achados indicativos de circulação intestinal defi­ (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
ciente. Nessas circunstâncias, está indicado o reimplante da
artéria mesentérica inferior na aorta ou em uma prótese, em
caráter profilático. veias: esplênica, mesentérica superior e mesentérica inferior
Atualmente, alguns autores defendem o uso da angioplas- convergem para formar a veia porta, que drena o sangue venoso
tia com cateter-balão, com ou sem implante de stent, como do trato gastrintestinal, do baço e do pâncreas para o fígado.
tratamento inicial da isquemia mesentérica crônica (Figura A anatomia peculiar do sistema porta faz com que a trombo­
34.6). Pacientes idosos, que apresentam alto risco para a ope­
se neste sistema resulte em diferentes manifestações clínicas,
ração aberta tradicional, são candidatos ideais para a revascu­
de acordo com o local da trombose e a rapidez com que esta
larização por técnicas radiológicas. Os resultados precoces são
acontece. Outra característica da trombose venosa mesentérica
melhores que os resultados da revascularização aberta, porém
é ser, na maioria das vezes, segmentar, isto é, envolver apenas
os resultados tardios são inferiores. Caso ocorra reestenose ou
um ramo da veia mesentérica superior. Isso faz com que as con­
oclusão após a angioplastia, a artéria pode ser tratada por nova
angioplastia ou pode ser feita uma revascularização por técni­ sequências da trombose venosa sejam limitadas ao segmento
ca cirúrgica aberta em um paciente com melhores condições drenado pela veia trombosada e não envolvam todo o intestino,
clínicas e nutricionais. como acontece na trombose arterial.

■ Prognóstico ■ Etiopatogenia
O prognóstico dos pacientes submetidos à revasculariza­ A trombose da veia mesentérica superior pode ser aguda,
ção intestinal eletiva é geralmente satisfatório. Por outro lado, subaguda ou crônica, dependendo da sua causa. A trombose
pacientes com isquemia crônica não tratada que desenvolvem aguda da veia mesentérica superior geralmente acomete apenas
isquemia aguda e necessitam de tratamento de urgência têm esta veia e seus ramos, mas pode se estender proximalmente
um péssimo prognóstico, como mostrado na seção anterior para a veia porta, provocando hipertensão portal aguda. As
deste capítulo. tromboses subaguda e crônica geralmente acontecem como
consequência de hipertensão do sistema porta por doença do
parênquima hepático (hepatite crônica e cirrose). O processo
■ TROMBOSE VENOSA MESENTÉRICA de trombose se propaga de forma retrógrada da veia porta para
suas principais tributárias.
A trombose da veia mesentérica superior e/ou de um dos Atualmente, sabe-se que a causa mais comum de trombose
seus ramos é causa infrequente de isquemia e necrose intesti­ venosa mesentérica é trombofilia (ou seja, hipercoagulabilidade
nal. Como descrito na seção inicial deste capítulo, três grandes sanguínea). As causas de trombofilia podem ser congênitas
C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V a scu la r M ese n térica 399

ou adquiridas. As congênitas são relativamente raras, como


a deficiência de antitrombina III, de proteína C e de proteína
■ Diagnóstico
S. As adquiridas incluem alguns tipos de câncer ou a presença O paciente com suspeita de trombose venosa mesentérica
de reações autoimunes, como os anticorpos antifosfolipídios e aguda se apresenta da mesma forma que o paciente com is­
o anticoagulante lúpico. O uso de estrogênios orais para con­ quemia mesentérica de causa arterial. A investigação inicial é
tracepção ou tratamento de câncer tem sido associado a um a mesma: rotina de abdome agudo, seguida de exames de ima­
risco aumentado de trombose venosa mesentérica. Condições gem mais sofisticados, como a arteriografia ou a angiotomogra-
inflamatórias abdominais, como pancreatite aguda, apendicite fia. Nos ambientes onde estes exames não estejam disponíveis,
com peritonite e as doenças inflamatórias intestinais (Crohn deve-se proceder à laparotomia ou à laparoscopia diagnóstica,
e retocolite ulcerativa), podem ser complicadas por trombose sem muita hesitação.
das veias mesentéricas. A ultrassonografia Doppler tem se mostrado útil na inves­
O mecanismo de necrose hemorrágica do intestino na trom­ tigação de trombose venosa mesentérica subaguda ou crônica.
bose venosa mesentérica é falta de perfusão arterial, provocada Quando se conseguem imagens de trombos em uma das veias
por congestão vascular intensa no segmento do intestino dre­ mesentéricas, a ultrassonografia Doppler confirma o diagnósti­
nado pela veia trombosada. co (Figura 34.7). Porém, nos casos agudos, a presença de gases
nos intestinos dificulta muito a execução da ultrassonografia
■ Quadro clínico Doppler. Nestas circunstâncias, é melhor proceder diretamente
a exames de imagem mais invasivos.
Clinicamente, a trombose venosa mesentérica pode se apre­
Atualmente, o melhor exame diagnóstico de trombose veno­
sentar de forma aguda, subaguda e crônica. A forma aguda se
manifesta como uma isquemia mesentérica de causa arterial. A sa mesentérica é a angiotomografia. Com os modernos apare­
dor abdominal é intensa, tipicamente fora de proporção com lhos de múltiplos canais (chamados de tomografia multislicè),
os achados do exame físico. O exame físico do abdome pode a acurácia do exame de aproxima de 100%. A angiotomografia
ser normal ou revelar apenas dor à palpação das alças intesti­ mostra a presença de trombos nas veias mesentéricas e as alças
nais congestas. intestinais congestas. A angiorressonância magnética também
O curso clínico da trombose venosa mesentérica pode ser é bastante acurada, mas menos útil pelo seu alto custo e pouca
subagudo, com o paciente apresentando dor abdominal que se disponibilidade no Brasil.
prolonga por dias ou semanas, antes de o diagnóstico ser feito Devido ao fato de os pacientes apresentarem dor abdominal
por exames complementares ou à laparotomia. Na sua forma aguda inespecífica, com frequência o diagnóstico de trombose
crônica, a trombose venosa mesentérica pode ser assintomáti- venosa mesentérica somente é feito durante laparotomia ou
ca, encontrada incidentalmente em exames de imagem ou em laparoscopia diagnóstica. Os achados operatórios são de um
necropsias. Mas pode também fazer parte da trombose do siste­ segmento intestinal extremamente edemaciado e cianótico. O
ma porta, causando hipertensão portal, que se manifesta como mesentério apresenta edema e áreas hemorrágicas, e coágulos
ascite e hemorragia digestiva por varizes gastresofágicas. podem ser espremidos das veias mesentéricas.

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Figura 34.7 Imagens ao ecodoppler da trombose da veia mesentérica superior. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
400 C a p ítu lo 3 4 / In su ficiê n cia V ascu la r M ese ntérica

O diagnóstico de trombose venosa mesentérica subaguda sem anastomose. Pode-se então recorrer a uma reoperação de­
ou crônica pode ser feito pelos métodos anteriores e também liberada (second-look operation) 12 a 24 h depois da operação
pela ultrassonografia Doppler. inicial, para ressecar segmentos intestinais claramente inviáveis
e para restabelecer o trânsito intestinal.
■ Tratamento
A medida terapêutica mais importante é a administração de
■ Prognóstico
heparina, tão logo o diagnóstico seja confirmado por exames Apesar dos avanços recentes no diagnóstico por imagem e
de imagem ou à operação. O uso rotineiro de heparina na fase no tratamento anticoagulante, a mortalidade da trombose ve­
aguda, seguida de anticoagulante oral por tempo prolongado, nosa mesentérica permanece relativamente alta. Isso se deve
tem reduzido substancialmente a progressão, a recidiva e a mor­ ao diagnóstico frequentemente tardio, à progressão e recidiva
talidade da trombose venosa mesentérica. Alguns autores têm do processo trombótico e à necessidade de ressecções intesti­
advogado o tratamento clínico (heparina, antibióticos e trata­ nais maciças.
mento suportivo) para todos os casos de trombose venosa me­
sentérica, cujo diagnóstico seja feito por exame de imagem.
Recentemente, têm sido publicadas séries pequenas de trata­ ■ LEITURA RECOMENDADA
mento trombolítico da trombose venosa mesentérica. A injeção
da droga trombolítica (em geral, o ativador tissular do plasmi- Acosta, S, Nilsson, TK, Bjorck, M. Prcliminary study of D-dimcr as a possiblc
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diagnóstico seja incerto ou que, no decurso do tratamento, ve­ a bridgc to succcssful surgical rcvascularization for chronic mcscntcric
nham a apresentar sinais de peritonite, pela necrose transmural ischcmia. Am Surg, 2004; 70:994-8.
do intestino (Figura 34.8). O tratamento cirúrgico consiste na Bjorck, M, Acosta, S, Lindbcrg, F et al. Rcvascularization of thc superior
mcscntcric artery after acutc thrombocmbolic oedusion. Br J Surg, 2002;
ressecção do segmento intestinal necrosado. Como é sempre 89:923-7.
difícil definir os limites do segmento a ser ressecado, a conduta Bradbury, MS, Kavanagh, PV, Bechtold, RE et al. Mcscnteric vcnous thrombosis:
inicial do cirurgião deve ser conservadora, ressecando-se ape­ diagnosis and noninvasive imaging. Radiographics, 2002; 22:527-41.
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Supercrescimento Bacteriano
no Intestino Delgado
Ahmed Abu-Shanab, Rodrigo M. Quera e Eamonn M. M. Quigley
(Tradução: Lorete Maria da Silva Kotze)

■ INTRODUÇÃO EEPIDEMIOLOGIA do lúmen intestinal, é essencial para a liberação de meios m o­


leculares ativos.
No hospedeiro saudável, bactérias entéricas colonizam o Embora o SBID seja habitualmente definido em termos
trato alimentar logo após o nascimento, e a composição da quantitativos, como o número de colônias formando unida­
flora intestinal permanece relativamente constante através da des por (CFU), a interpretação destas definições deve levar
vida. Devido à peristalse e aos efeitos antimicrobianos da aci­ em conta, primeiramente, a localização no intestino de onde a
dez gástrica, o estômago e o intestino delgado proximal con­ amostra foi obtida e, secundariamente, o fato de que a maioria
têm relativamente pequeno número de bactérias. As culturas das espécies bacterianas do intestino permanecem não cultivá-
jej unais podem não detectar nenhuma bactéria em até 33% de veis. Dessa forma, técnicas moleculares, tais como genômicas
indivíduos sadios. Quando espécies bacterianas estão presentes, e metabólicas, sugerem que tanto quanto 60% da flora normal
geralmente são lactobacilos, enterococos, estreptococos orais, não é identificada por métodos baseados em cultura. Alternati­
e outros gram-positivos aeróbios ou anaeróbios facultativos, vamente, o diagnóstico pode ser baseado na presença de conse­
refletindo a flora bacteriana da orofaringe. quências do SBID, tais como má absorção intestinal, combinada
No suco jejunal, as contagens bacterianas de coliformes ra­ com um resultado positivo de métodos não invasivos, como os
ramente excedem 103 CFU/m^ (colony forming units). A mi- testes respiratórios. Não obstante estas restrições, o SBID é, em
geral, dependente da validação de mais de uma metodologia
crobiologia do íleo terminal representa uma zona de transição
acurada baseada em microbiologia molecular, definida como
entre a relativamente escassa e predominante flora aeróbica
a presença de £ lO^CFU/m^ de bactérias no intestino delga­
bacteriana do jejuno e a densa população de anaeróbios encon­
do proximal. Outros autores aceitam o diagnóstico de SBID
trada no cólon. As contagens bacterianas colônicas podem ser
na presença de baixas contagens de colônias (£ 103CFU/mfl,
tão elevadas como 109CFU/m^ no íleo terminal, imediatamen­
desde que as espécies bacterianas isoladas no aspirado jejunal
te proximal à válvula ileocecal, com predominância de gram- sejam uma das que normalmente colonizam o intestino gros­
negativos e anaeróbios. Já no interior do cólon, a concentração
so, ou que estas mesmas espécies estejam ausentes da saliva e
e variedade da flora entérica mudam drasticamente. Concen­
do suco gástrico.
trações tão altas quanto 1012 CFU/m^ podem ser encontradas, A prevalência do SBID é diretamente dependente das carac­
compostas principalmente de aeróbios, tais como bacteroides, terísticas da população estudada e do método diagnóstico em­
porfiromonas, bifidobacteria, lactobacilli e clostridia. Ao con­ pregado para detectar ou definir o supercrescimento bacteriano.
trário, a flora contaminante no supercrescimento bacteriano do Se um teste respiratório é empregado como teste diagnóstico, a
intestino delgado (SBID) comumente mostra tanto bactérias prevalência variará adicionalmente, dependendo da natureza e
da orofaringe quanto bactérias tipo-colônicas, tais como Strep- da dose do substrato usado. Embora muitos estudos de preva­
tococcus (71%), Escherichia coli (69%), Staphylococcus (25%), lência do SBID em larga escala estejam ainda por serem feitos,
Micrococcus (22%) e Klebsiella (20%). o SBID tem sido descrito em 0 a 12,5% com base no teste res­
A flora bacteriana normal influencia uma variedade de fun­ piratório com glicose, em 20 a 22% pelo teste respiratório com
ções intestinais. Açúcares da dieta não absorvidos são desdo­ lactulose e em 0 a 35% pelo teste respiratório com MC D-xilose
brados pelas dissacaridases bacterianas, convertidos em ácidos entre indivíduos aparentemente sadios. O idoso pode ser espe­
graxos de cadeia curta, e usados como fonte de energia pela cialmente mais suscetível ao SBID devido tanto à falta de ácido
mucosa colônica. Vitaminas e nutrientes, como folato e vita­ gástrico, quanto ao consumo de um desproporcional número
mina K, são produzidos pelas bactérias entéricas. de drogas que podem causar hipomotilidade. Embora SBID
A relação entre o sistema imune do hospedeiro e a flora não tenha sido diagnosticado em cerca de 35% de idosos aparen­
patogênica é importante na proteção do hospedeiro contra a temente sadios com hipocloridria pelo teste respiratório com
colonização pelas espécies patogênicas. O metabolismo bacte­ HC D-xilose, outros têm descrito SBID como uma importante
riano de alguns medicamentos (como sulfassalazina), dentro causa oculta de má absorção intestinal no idoso.

402
C a p ítu lo 3 5 / S u p e rc re sc im e n to B a c te ria n o n o In te stin o D e lg a d o 403

■ CAUSAS E PATOGÊNESE ■ APRESENTAÇÃO CLÍNICA


Os fatores defensivos mais importantes contra SBID são o As consequências clínicas do SBID se relacionam com nu­
ácido gástrico e a motilidade do intestino delgado. No estôma­ merosos fatores, incluindo metabolismo bacteriano, lesão direta
go, o ácido mata e suprime o crescimento da maioria dos or­ da mucosa, efeitos na motilidade pós-prandial, e com o im ­
ganismos que entram pela orofaringe. No intestino delgado, a pacto da ingestão alimentar alterada, secundária aos sintomas
ação de limpeza das forças propulsivas e, especialmente, a fase gastrintestinais induzidos pelo SBID. Os sintomas resultantes
III do complexo motor migratório interdigestivo limitam a ca­ variam muito e dependem da gravidade do SBID, bem como
pacidade da bactéria de colonizar o intestino delgado. Outros da causa subjacente. Embora os sintomas possam não ser es­
fatores de proteção incluem a integridade da mucosa intestinal pecíficos, alguns, como a combinação de diarréia, esteatorreia,
e sua camada protetora de muco, as atividades enzimáticas das borborigmos pós-prandiais e deficiência de vitaminas, podem
secreções intestinal, pancreática e biliar, os efeitos protetores ser altamente sugestivos de SBID. Investigações laboratoriais
de alguns elementos da flora comensal, como os lactobacilos e podem revelar anemia, que habitualmente é macrocítica devi­
as propriedades mecânica e fisiológica da válvula ileocecal. A do à má absorção de vitamina B12como resultado de ligação e
dismotilidade do intestino delgado, mais do que a hipoclori- incorporação desta vitamina dentro da bactéria. Níveis de am­
dria de jejum ou a imunodeficiência, é, provavelmente, o maior bos, folato e vitamina K, são, contudo, comumente normais ou
contribuinte ao SBID em idosos. elevados no contexto do SBID devido à síntese bacteriana destas
vitaminas. A anemia microcítica pode resultar de sangramen-
Distúrbios que levam a alterações de um ou mais destes siste­
to de úlceras ou erosões. Em casos avançados, deficiências de
mas defensivos podem estar associados ao SBID. Os distúrbios
micronutrientes e evidência de má nutrição podem também
mais comuns associados ao SBID são as síndromes de dismo­
estar presentes.
tilidade intestinal e a pancreatite crônica. A causa de SBID na
pancreatite crônica é multifatorial e inclui uma diminuição da
motilidade intestinal consequente ao processo inflamatório, o
efeito de narcóticos na motilidade intestinal e a obstrução in­ ■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
testinal. Estagnação e/ou recirculação dos conteúdos intestinais
resultante de fístulas, enterostomias e anastomoses também É óbvio pelo exposto anteriormente que o diagnóstico dife­
predispõem ao SBID, daí explicar-se a frequente associação de rencial do SBID é potencialmente vasto e, por um lado, inclui
SBID com a doença de Crohn, a enteropatia por radiação e a as muitas causas da síndrome de má absorção, e, por outro
cirurgia de reconstrução. lado, também as muitas situações em que os distúrbios levem
Divertículos no jejuno ocorrem em 0,07 a 2% da população a diarréia, borborigmos ou desconforto abdominal. Em muitos
e tendem a ser grandes e múltiplos, enquanto os do íleo são casos, os sintomas relacionados com o SBID não são específicos
pequenos e únicos. SBID tem sido relatado entre 10 e 40% e e são prontamente confundidos com os relacionados com sín­
de 6 a 40% em divertículos do jejuno e íleo, respectivamente. drome do intestino irritável, dispepsia funcional, doença celía­
Os divertículos do jejuno são duas vezes mais frequentes no ca e doença de Crohn.
homem e são observados predominantemente entre indiví­
duos acima de 60 anos de idade. Estudos morfológicos suge­
rem que distúrbios de motilidade intestinal, tais como escle-
rose sistêmica progressiva, miopatias viscerais e neuropatias, ■ INVESTIGAÇÃO DIAGNÓSTICA
desempenham papel importante na formação de divertículos
O diagnóstico de SBID deve ser aventado em qualquer pa­
do intestino delgado.
ciente com condição clínica conhecidamente associada ao SBID
Recentemente, SBID tem sido associado a enfermidades,
e que tenha sintomas gastrintestinais compatíveis. O diagnósti­
como síndrome do intestino irritável, doença celíaca, doença
co de SBID permanece problemático. Diversos métodos diag­
gordurosa do fígado não alcoólica (NASH) e peritonite bacte- nósticos invasivos e não invasivos de diferentes sensibilidade
riana espontânea; a verdadeira participação dessas associações e especificidade estão disponíveis.
permanece incerta. A maioria das controvérsias dizem respei­
Embora o aspirado e cultura direta do conteúdo jejunal se­
to à ligação entre a síndrome do cólon irritável e SBID (SCI).
jam considerados por muitos como gold standard para o diag­
Enquanto relatos iniciais, usando o teste respiratório com lac- nóstico de SBID, tal método tem diversas limitações, incluindo
tulose, descrevem SBID em até 84% dos indivíduos com SCI, potencial para contaminação pelas bactérias da orofaringe du­
muitos estudos subsequentes usando uma variedade de meto­ rante o próprio procedimento, a observação de que o supercres­
dologias têm falhado em confirmar esta associação. Quigley cimento bacteriano pode ser focal e então ser perdido por uma
(2007) acredita que a SCI, per se, não esteja ligada ao SBID, única aspiração, e a possibilidade de que o supercrescimento
mas SBID pode levar a sintomas SCI-like, e a resposta positiva possa envolver somente as porções mais distais do intestino
a antibiótios na SCI mais provavelmente reflete os efeitos na delgado, fora do alcance das técnicas convencionais de intu-
flora colônica do que no SBID. bação. Por outro lado, a cultura de anaeróbios requer técnicas
SBID tem sido implicado como uma das causas da falta de microbiológicas meticulosas, e a maioria da flora intestinal não
resposta à dieta isenta de glúten em pacientes celíacos. Erradi­ é cultivável. Além disso, a reprodutividade do aspirado jejunal
cação de SBID pode levar ao desaparecimento dos persistentes e da cultura tem sido relatada tão baixa quanto 38% em com­
sintomas, tanto nos estudos experimentais quanto nos clínicos. paração com 92% dos testes respiratórios.
SBID tem sido referido em associação com hipertensão portal O princípio básico para o uso de testes respiratórios é que
e cirrose, e ligado ao desenvolvimento de encefalopatia portos- a administração de uma dose de carboidrato (d-xilose, lactu-
sistêmica e peritonite bacteriana espontânea. lose ou glicose) quando metabolizado pelo conteúdo da flora
404 C a p ítu lo 3 5 / S u p e rc re sc im e n to B a c te ria n o n o In te stin o D e lg a d o

leva à produção de hidrogênio, que é absorvido e finalmente terapia antibiótica efetiva deverá cobrir bactérias aeróbicas e
excretado pela respiração. Como a produção de hidrogênio é anaeróbicas. Diferentes esquemas têm sido sugeridos. Em ge­
um fenômeno normal, a preparação do paciente é vital para ral, um curso de 7 a 10 dias de antibióticos pode melhorar os
a acurácia do teste. Assim, a ingestão de certos alimentos - sintomas até por diversos meses em cerca de 46 a 90% dos pa­
tais como pão, fibras e massas o fumo, as ações das bacté­ cientes com SBID e tornar os testes respiratórios negativos em
rias orais e a presença de doença pulm onar podem afetar a 20 a 75% dos casos. Devido à recorrência de sintomas, alguns
acurácia diagnóstica. Nestes testes, o diagnóstico de SI3ID é pacientes necessitarão de repetição (p. ex., nos 5 a 10 primeiros
estabelecido quando a concentração do H, exalado aumenta dias de cada mês) ou cursos contínuos de tratamento antibió­
mais que 10 partes por milhão (ppm) em relação ao basal em tico. Para estes últimos, regimes rotatórios de antibióticos são
duas amostras consecutivas, ou se o hidrogênio respiratório de recomendados para prevenir resistência bacteriana. As decisões
jejum excede 20 ppm. A fermentação do carboidrato residual de manejo devem ser individualizadas e devem-se considerar
pelas bactérias da orofaringe pode também contribuir para n í­ os riscos de esquemas a longo prazo, como diarréia, infecção
veis elevados de hidrogênio e, assim, para uma superestimação por Clostridium difficile, intolerância, resistência bacteriana, e
do nível do hidrogênio respiratório de jejum. Limpeza da boca os custos. Nós recomendamos o uso de antibióticos com me­
com água contendo clorexidina antes da coleta do teste pode nos toxicidade e de baixa absorção sistêmica. Regimes de 7 dias
resolver este problema. incorporando ciprofloxacino, norfloxacino, amoxicilina-
A interpretação dos testes respiratórios pode ser especial- ácido clavulínico, ou metronidazol podem parecer boas opções.
mente problemática no contexto das doenças associadas a re­ Quando disponível, a minimamente absorvível rifaximina pa­
tardo do esvaziamento gástrico (resultados falso-negativos) rece oferecer uma excelente opção. Até o momento, não há
ou trânsito intestinal rápido (resultados falso-positivos). Além boa evidência da eficácia dos probióticos na terapia primária
disso, entre 15 e 27% da população não produzirá hidrogênio, do SBID. O conceito de que os probióticos poderiam prevenir
e a credibilidade nos testes respiratórios apenas pode, então, a recorrência após tratamento bem-sucedido com antibióticos
proporcionar um significativo núm ero de resultados falso- é atraente, mas ainda não provado.
negativos. A combinação da determinação de hidrogênio e me­ O papel de agentes procinéticos em casos com estase e dis-
tano, produtos finais do metabolismo bacteriano anaeróbio no motilidade também não está provado e o alcance das opções
intestino, pode evitar este problema. presentemente é limitado. Como o octreotídio estimula a fase
Dentre os vários substratos disponíveis, a sensibilidade e propagativa 3 no intestino delgado, baixas doses (50 pg por dia)
especificidade do teste respiratório com D-xilose parecem ser foram evocadas para pacientes que não respondem aos antibió­
melhores. Como a adminstração de MC está associada à expo­ ticos, ou que não os toleraram, ou que desenvolveram compli­
sição à radiação, o teste com ,;,C D-xilose, usando um isótopo cações a eles relacionadas. Soluções purgativas não absorvíveis
estável, tem sido utilizado como alternativa, tanto em crianças podem melhorar os sintomas gastrintestinais em crianças com
como em mulheres em período fértil. O teste respiratório com a síndrome do intestino curto e SBID.
lactulose é seguro, fácil de ser feito e aplicável a crianças e m u­ Suporte nutricional é um importante componente do ma­
lheres em idade de procriar. Como a lactulose não é absorvida nejo do SBID e pode incluir modificações dietéticas, tais como
pelo intestino normal, em indivíduos sadios, deveria produzir dieta livre de lactose, reposição das deficiências vitamínicas
um pico em 2 a 3 h, refletindo a chegada do substrato ao cólon, (especialmente as lipossolúveis) e correção de deficiência de
assumindo-se que a flora colônica esteja intacta. No SBID, outro nutrientes, como cálcio, magnésio e vitamina B12. Se houver
pico ocorre dentro de 1 h da ingestão e é menos proeminente dano mucoso, este poderá persistir por algum tempo, mesmo
que o pico colônico. Como a glicose é rapidamente absorvida após a completa erradicação do supercrescimento bacteriano,
no intestino delgado proximal, somente supercrescimento pro- e o suporte nutricional será necessário por um período pro­
ximal pode ser detectado pelo teste respiratório com glicose. longado.
O fato de que qualquer pico é anormal neste teste é a sua prin­
cipal vantagem sobre os que usam substratos não absorvíveis
como a lactulose.
■ COMPLICAÇÕES E SEU MANEJO
O comprometimento da absorção de nutrientes pode ser
■ TRATAMENTO E PREVENÇÃO atribuído aos efeitos intraluminais da proliferação bacteriana
combinado com lesão à mucosa. Má absorção de carboidratos
Há três componentes para o tratamento do SBID: primei­ resulta da combinação da sua degradação pelas bactérias e da
ramente, tratar a doença básica; em segundo lugar, erradicar o perda da atividade das dissacaridases da borda estriada resul­
SBID; e, por fim, corrigir qualquer deficiência nutricional asso­ tante do dano ao enterócito.
ciada. O objetivo principal deve ser o tratamento ou correção A má nutrição proteica é também multifatorial e resulta
de qualquer doença ou defeito básico, quando possível. de utilização intraluminal da proteína da dieta pelas bactérias,
Infelizmente, diversas condições clínicas associadas ao SBID, impedimento da absorção, e desenvolvimento de enteropatia
tais como miopatias viscerais e divertículos jejunais múltiplos, perdedora de proteínas. Em um terço dos pacientes, o SBID é
não são prontamente reversíveis. O manejo, então, se baseia em grave o suficiente para causar deficiência de vitaminas, como
terapia antibiótica. Seu objetivo não é o de erradicar a flora bac- de B12 e de lipossolúveis (A, D e E). Embora os principais as­
teriana, mas alterá-la de modo a conseguir melhora sintomática. pectos histológicos do intestino delgado estejam normais ha­
Embora, de modo ideal, a escolha dos agentes antimicrobianos bitualmente, o SBID pode estar associado à redução da altura
devesse refletir a suscetibilidade in vitro, isto em geral é impra­ das vilosidades, à profundidade das criptas e à espessura da
ticável, pois coexistem muitas diferentes espécies bacterianas, mucosa, com aumento dos linfócitos intraepiteliais e áreas fo­
com diferentes sensibilidades aos antibióticos. O tratam en­ cais de ulceração e erosão. Tais alterações são reversíveis após
to antibiótico permanece, assim, primariamente empírico. A tratamento antibiótico bem-sucedido.
C a p ítu lo 3 5 / S u p e rc re sc im e n to B a c te ria n o n o In te stin o D e lg a d o 405

Albcrdi, J, Laughlin, R, Lichcn, WU. Influcncc of thc critically ill State on host-
■ PROGNÓSTICO COME SEM TRATAMENTO pathogen intcractions within thc intestine: gut-dcrivcd sepsis redefined.
Critic Cart Med, 2003; 31:598-607.
Pouco se conhece sobre a história natural do SBID, a não Attar, A, Flourié, B. Rambaud, JC et al. Antibiotic cíficacy in small intestinal
ser seu potencial de levar a complicações e enteropatia perde­ bacterial ovcrgrowth-rclatcd chronic diarrhca: a crossovcr, randomized
trial. Gastroenterology, 1999; 117:794-7.
dora de proteínas, como descrito anteriormente. Devido ao Baucr, T, Stcinbrückncr, B, Brinkmann, F et ai Small intestinal bacterial over-
potencial metabólico da flora, alguns questionaram a conve­ grovvth in patients with cirrhosis: prcvalencc and rclation with spontancous
niência da erradicação do SBID no contexto da síndrome do bacterial peritonitis. Am J Gastroenterol, 2001; 96:2962-7.
intestino encurtado, por exemplo, a menos que sintomas ou Bouknik, Y, Alain, S, Attar, A. Bacterial populations contaminating thc upper
gut in patients with small intestinal ovcrgrowth syndromc. Am / Gastro­
complicações diretamente relacionados com o SBID estejam enterol, 1999; 94:1327-31.
presentes. Corazza, GR, Menozzi, MG, Strocchi, A et a i Thc diagnosis of small bowcl
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Gunnarsdottir, S, Sadik, R, Shcv, S et a i Small intestinal motility disturbanccs
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Khloloussy, AM, Yang, Y, Bonacquisti, K et a i Thc compctencc and bactcrio-
logic cffect of the tclcscoped intestinal valvc after small bowcl rcscction.
Apesar do atual aumento de interesse no papel da flora Am Surg, 1986; 52:555-9.
na saúde e na doença, além do reconhecimento, por mais de Krishnamurthy, S, Kelly, MM, Rohrmann, CA et a i Jejunal divertieulosis: A
50 anos, de que um excesso de flora do tipo “colônico” no in­ hctcrogcncous disorder causcd by a variety of abnormalities of smooth
testino delgado poderia levar a uma síndrome de má absorção, musclc or myenterie plexus. Gastroenterology, 1983; 85:538-47.
McEvoy, A, Dutton, J, James, OF. Bacterial contamination of the small intes­
o supercrescimento bacteriano no intestino delgado permanece tine is an important cause of occult malabsorption in thc cldcrly. Br Med
pobremente definido. Esta falta de clareza deve-se muito às di­ J, 1983; 287:789-93.
ficuldades que surgem quando se tenta chegar a um consenso Pimcntcl, M, Chow, EJ, Lin, HC. Normalization o f lactulosc breath testing
no que concerne ao diagnóstico desta condição. Não há presen­ correlates with symptom improvement in irritablc bowcl syndromc: a
doublc-blind, randomized, placebo-controllcd study. Am } Gastroenterol,
temente nenhum gold standard e as metodologias comumente
2003; 98:412-9.
disponíveis - a cultura de aspirados jejunais e uma variedade Quiglcy, EM. Bacterial; a ncw player in gastrointestinal motility disorders -
de testes respiratórios - sofrem de uma considerável variação infections, bacterial ovcrgrowth, and probioties. Gastroenterol Clin North
em sua realização e interpretação, dessa forma levando a uma Am, 2007; 36:735-48.
ampla variação da prevalência do supercrescimento em uma Riordan, SM, Mclvcr, CJ, Wakcficld, D et a i Mucosal cytokinc produetion
in small-intestinal bacterial ovcrgrowth. Scand } Gastroenterol, 1996;
variedade de contextos clínicos. O tratamento, por sua vez, é 31:977-84.
apoiado por uma pobre base de evidências e os esquemas anti­ Romagnuolo, J, Schiller, D, Bailcy, R. Using breath test wiscly in a gastroen-
bióticos mais comumente utilizados devem-se mais à expe­ tcrology practice: an evidencc-bascd rcvicw of indications and pitfalls in
riência clínica do que a ensaios clínicos controlados. interpretation. Am J Gastroenterol, 2002; 97:1113-26.
Simon, GL & Gorbach, SL. Thc human intestinal microflora. Dig Dis Sei, 1986;
31:147-62.
Toskcs, PP. Bacterial ovcrgrowth of thc gastrointestinal tract. Adv Int Med,
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■ LEITURA RECOMENDADA Tursi, A, Brandimartc, G, Giorgctti, G. High prcvalencc of small intestinal bac-
tcrial ovcrgrowth in ccliac patients with pcrsevcrancc of gastrointestinal
Abu-Shanab, A & Quiglcy, EM. Diagnosis of small intestinal bacterial over- symptoms after glutten withdrawal. Am / Gastroenterol, 2003; 98:839-43.
growth: thc challcngcs persists! Expert Rev Gastroenterol Hepatol, 2009; Vantrappen, G, Jansscns, J, Corcmans, G et a i Gastrointestinal motility disor­
3:77-87. ders. Dig Dis Sei, 1986; 3i:5S-25S.
Tumores do Intestino Delgado
Lorete Maria da Silva Kotze, Luiz Roberto Kotze e Paulo Gustavo Kotze

ocasião do tratam ento definitivo. Apesar de a detecção ter


• CONSIDERAÇÕES GERAIS melhorado com os atuais métodos de diagnóstico, essas neo­
As neoplasias primárias do intestino delgado são raras, cons­ plasias permanecem um dilema clínico. São corretamente
tituem grupo heterogêneo de tumores, sendo responsáveis por diagnosticadas no pré-operatório somente em cerca de 53%
mais ou menos 5% de todos os tumores malignos do trato gas- dos casos.
trintestinal (Gl). Embora o intestino delgado (ID) represente Alguns fatos merecem destaque na abordagem diagnóstica
75% de todo o comprimento e 90% da superfície absortiva Gl, destas neoplasias:
a média anual de incidência é pequena em relação ao câncer a) Baixa incidência desses tumores;
colorretal. Entretanto, quando malignas, seu prognóstico é dos b) Falta de sintomas e sinais específicos à apresentação;
piores. c) Baixa sensibilidade das técnicas diagnósticas habituais;
Nos EUA, a incidência é maior em negros quando compa­ d) Preponderância de doença avançada dos tumores malig­
rada à em brancos. Fatores dietéticos, ambientais e genéticos, nos, em parte devido à demora no diagnóstico.
ou a combinação de vários destes fatores, podem desempenhar
papel etiológico. Salienta-se este último item, pois:
A raridade relativa do câncer do ID, em comparação com o 1. O tempo que o paciente demora para contar os sintomas
do cólon e do estômago, resultaria de mecanismos protetores? está em torno de 2 meses;
Fatores a serem considerados: 2. O tempo que o clínico leva para estabelecer o diagnóstico
a) Trânsito rápido pelo intestino delgado, limitando a expo­ correto é de, mais ou menos, 8 meses;
sição da mucosa aos carcinógenos, explicando também 3. O tempo de demora para o diagnóstico radiológico é de
a maior presença de tumores no íleo terminal, que apre­ cerca de 12 meses.
senta estase ao nível da válvula ileocecal; A excelente revisão de Ciresi & Scholten, em 49 tumores
b) Menor concentração de carcinógenos no conteúdo mais primários do intestino delgado, detectados no período de 1981
líquido do intestino delgado; a 1993, mostra os principais tópicos concernentes ao assunto
c) Sistemas enzimáticos mais ativos na detoxificação dos car­ (Quadros 36.1 a 36.3). Esses autores consideram tum or benig­
cinógenos no intestino delgado, mais que no estômago e no aquele sem evidência histológica de potencial maligno de
no cólon (benziprene-hidroxilase); invasão; e tum or maligno quando há confirmação histológica
d) Presença de poucos microrganismos no intestino delga­ de invasão da membrana basal da parede intestinal, ou confir­
do, principalmente bactérias anaeróbicas que convertem mação histológica de doença metastática. Para esses mesmos
ácidos biliares em carcinógenos; autores, os tipos histológicos estão apontados no Quadro 36.2
e) Poderoso sistema imune celular e humoral no intestino e refletem a experiência de diversos autores.
delgado: as células reconheceríam as células neoplásicas Foram relatados 144 casos, observados de 1970 a 1996, com
como estranhas, eliminando-as com muita eficiência; seguimento médio de 39 meses, sendo 47% adenocarcinomas,
f) Proliferação celular rápida exercería efeito protetor contra 28% carcinoides, 13% liomiossarcomas e 12% linfomas. Predo­
o crescimento de neoplasias. A cinética característica da minou o sexo masculino (64%), e a idade média foi de 56 anos.
mucosa entérica poderia explicar a baixa velocidade de Quanto à apresentação clínica, o Quadro 36.3 mostra os prin­
alteração neoplásica; cipais sintomas e sinais.
g) pH alcalino-, Os tumores benignos mais comumente se apresentam com
h) Presença de imunoglobulina A.
sangramento agudo gastrintestinal, sendo quase sempre assin-
Além de raras, as neoplasias do ID notoriamente são di­ tomáticos (53%); os malignos, com dor abdominal e perda de
fíceis de diagnosticar e, quase sempre, estão avançadas por peso em 94% dos casos.

406
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 407

--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Q u a d ro 36.1 D a d o s c lín ic o s e lo c a liz a ç ã o d o s tu m o re s d o in te s tin o d e lg a d o *

Tipo do tumor Idade Homens Mulheres Duodeno Jejuno íleo Total

Benigno 66 9 8 4 7 6 17
Maligno 60 17 15 10 10 12 32
Sintomático 61 21 18 10 12 17 39
Assintomático 67 5 5 4 5 1 10

"Segundo Ciresi & Scholten, 1995.


Q u a d ro 3 6 2 T ip o s h is to ló g ic o s d o s tu m o re s d o in te s tin o d e lg a d o *

Benignos Frequência Malignos Frequênda

Liomioma 7(41%) Adenocarcinoma 17(53%)


Carcinoide 2(12%) Liomiossarcoma 6(19%)
Adenoma 2(12%) Carcinoide 9(28%)
Hamartoma 2(12%)
Neurofibroma/fibroma 2(12%)
Mucosa gástrica ectópica 1 (6%)
Pólipo hiperplásico 1 (6%)

"Ciresi & Scholten, 1995.

------------------------------------▼------------------------------------
Q u a d ro 36.3 A p re se n ta çã o c lín ic a d o s tu m o re s d o in te s tin o d e lg a d o *

Apresentação Benignos Malignos Sintomáticos

Assintomáticos 8 (47%) 2(6%) -

SangramentoGI agudo 5 (29%) 2(6%) 7(18%)


Sangramento Gl crônico 5(29%) 11 (34%) 16(41%)
Hemorragia franca 8 (47%) 12(38%) 20 (51%)
Dor abdominal 4 (24%) 20 (63%) 24 (62%)
Perfuração 0(0%) 3(9%) 3(8%)
Obstrução 2(12%) 11 (34%) 13(33%)
Massa palpável 0(0%) 5(16%) 5(13%)
Emagrecimento 0(0%) 12(38%) 12(31%)

"Segundo Ciresi & Scholten. 1995.


Gl ■ gastrintestinal.

A maioria dos tumores do intestino delgado apresenta ma­


nifestações clínicas inespecíficas, além de uma fase silenciosa ■ PROCEDIMENTOS DIAGNÓSTICOS
de duração variável. Os sintomas mais comuns são hemorragia
digestiva oculta, dor abdominal, emagrecimento e diarréia (es­ ■ Trânsito intestinal
pecialmente nos linfomas). Outros sintomas como intussuscep-
ção, melena e perfurações são menos comuns. A presença de O trânsito intestinal continua sendo o único exame dispo­
massa abdominal palpável é achado tardio que se diagnostica nível em centros menores e pode ser útil na investigação das
em cerca de 40% dos casos. Já a síndrome carcinoide aparece afecções do ID, por ser de baixo custo e praticamente sem com­
em uma minoria dos tumores metastáticos. Assim, o diagnós­ plicações. Entretanto, depende muito da técnica empregada e
tico clínico é difícil e tardio, muitas vezes somente à exploração do examinador. Alguns dados podem ser indicativos do tumor,
cirúrgica ou até em necropsias. segundo Francisco et al.
408 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado

■ T u m o r e s b e n ig n o s
■ Tomografia computadorizada
Adenoma: tumor benigno mais comum no duodeno e je-
juno, geralmente pequeno, lobulado, assintomático e intralu- A tomografia computadorizada (TC) é indicada para diag­
minal. Podem ser sésseis ou pediculados (podendo causar obs­ nosticar ou sugerir a presença de um tum or no ID, bem como
trução por intussuscepção) e desenvolver pequenas ulcerações para avaliar a extensão e as complicações de um tumor detec­
superficiais, quase imperceptíveis. tado por radiografias convencionais. Tecnicamente, deve ha­
Lipoma: segundo tumor benigno mais comum, em homens, ver uma boa opacificação do lúmen intestinal e boa distensão
da parte distai do íleo, localizando-se na submucosa e com cres­ durante o scanning, a fim de se evitar resultado falso-positivo
cimento intraluminal. Podem exibir ulcerações profundas e ou falso-negativo.
facilmente reconhecíveis.
Liomioma: terceiro tum or benigno mais comum do ID,
mais frequente no jejuno e, depois, no íleo, tipos submucosos
■ Enterografia por TC
ou serosos. Geralmente, apresentam lesão única e pequena, A enterografia por TC combina o aumento de resolução es­
podendo ser apenas intramurais, intraluminais ou ambos. O pacial e temporal do multidetector da TC com grandes volumes
sangramento é comum e frequentemente pronunciado. de contraste neutro para o intestino e permite a visualização da
Fibroma e neuroíibrom a: apresentam defeitos nodulares parede do ID e sua luz. A distensão luminal adequada pode ser
de enchimento na margem mesentérica do intestino, podendo conseguida com hiper-hidratação. Além de doença de Crohn
causar efeito de massa com compressão extrínseca, vólvulo ou e doença celíaca, pode ser alternativa diagnóstica para neopla-
ulcerações. Se são neurofibromas generalizados, constituem a sias do ID.
doença de von Recklinghausen.
Hemangioma: geralmente no jejuno, lesão única, formada por
espaço endotelial cheio de sangue, ou massa capilar, ou mistura de ■ Ressonância magnética
ambas. Às vezes, pode haver calcificação persistente, semelhante As vantagens do uso da ressonância magnética (RM) in­
a flebólito, na margem intestinal. Causa anemia persistente. cluem a falta de radiação ionizante, a capacidade de prover
informação dinâmica em relação à distensão e motilidade in­
■ T u m o r e s m a lig n o s
testinal, melhorar o contraste dos tecidos moles, e o uso de
Tum or carcinoide: provém de células enterocromafins e os contraste intravenoso relativamente seguro. Como limitações,
tumores produzem serotonina, podendo ocorrer em qualquer podem-se citar custo, acesso à imagem, variação na qualida­
parte do trato GI, exceto no esôfago. No ID são diagnosticados
de do exame e baixa resolução espacial e temporal comparada
30 a 40% deles, a maioria no íleo e apêndice. Aos raios X, de­ com a TC. É útil para determinação de complicações de doen­
feito de enchimento nodular bem delimitado, frequentemen­
ça inflamatória, mas pode ser alternativa para diagnóstico de
te múltiplo (ver capítulo sobre tumores carcinoides do trato
tumores e suas complicações.
gastrointestinal).
Adenocarcinoma: é o segundo tumor maligno do ID, con­
siderado raro, aparecendo no duodeno (45%), no jejuno (45%) ■ Enterografia por RM
e no íleo (10%). A lesão é predominantemente infiltrante, de
pequena extensão, destruindo a mucosa e com bordas marginais Enterografia por RM é método recente e parece promissor
de transição abruptas. Evolui com reação fibrótica e estenose da para detecção de tumores do ID.
luz. Pode se apresentar como lesão polipoide séssil e raramente
como grande massa ulcerada, ou lesão polipoide pediculada. ■ Endoscopia convencional
Linfoma: incomum, mais em porção distai do ID devido
às placas de Peyer. Mais comumente se apresenta como lesão A endoscopia digestiva alta (EDA) tem pouca acurácia no
infiltrante e estenosante extensa com espessamento e ulcera­ diagnóstico dos tumores do ID. Pode demonstrar lesão em mas­
ções. Pode se apresentar em forma difusa ou como múltiplos sa, defeito da mucosa ou intussuscepção. Pode diagnosticar tu­
pequenos pólipos. Pode constituir nódulo único e grande, cau­ mores do duodeno. A colonoscopia pode adentrar 10 a 60 cm
sando obstrução ou intussuscepção. do íleo terminal e detectar lesões tumorais.
Leiomiossarcoma: lesão única, incidindo em qualquer por­
ção do ID, intramural ou intramural pediculado. A maioria ■ Cápsula endoscópica
dos liomiossarcomas cresce para a cavidade peritoneal. Afasta,
muitas vezes, alças intestinais, mas a obstrução é rara e a intus­ [WCE= wireless capsule endoscopic)
suscepção ocorre em 50% dos casos. Os métodos endoscópicos tradicionais e os de imagem nem
■ T u m o r e s m e t a s t á t ic o s
sempre podem estabelecer o diagnóstico. Neste leque de possi­
bilidades, sem um método diagnóstico ideal, surge a possibili­
Clinicamente, podem apresentar dor abdominal, obstrução,
dade de diagnóstico através da cápsula endoscópica (CE) que
sangramento e massa abdominal. Tumor primário, em ordem
decrescente: ovário, pâncreas, estômago, cólon, mama, pulmão traz sensibilidade e especificidade elevadas sem as complica­
e útero. À radiologia, múltiplas apresentações. A disseminação ções dos métodos invasivos e sem a necessidade de hospitali­
pode ser hematogênica (êmbolos tumorais), intraperitoneal, zação. Tem o potencial de mostrar o ID inteiro, inclusive em
linfática ou por contiguidade (frequente fistulização). áreas não alcançadas pela endoscopia tradicional. Foi iniciada
no final de 2001.
Na série de 86 pacientes relatada por Schwartz & Barkin
■ Enterografia com 87 tumores provados histologicamente, a endoscopia con­
Estudo de duplo contraste realizado após passagem de sonda vencional e os métodos radiológicos falharam em chegar ao
até o ID proximal e injeção de bário e metilcelulose; acurácia correto diagnóstico. Os 86 pacientes foram submetidos a 395
em torno de 96%. procedimentos negativos antes do uso da CE: média de 4,6
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 409

exames negativos por paciente. Tais procedimentos incluíram flamação ileal, nódulo submucoso e sangramento ativo em 4.
137 colonoscopias, 131 EDA, 40 trânsitos intestinais, 26 ente- A histologia mostrou linfoma (3), metástase de câncer de có­
roscopias, 24 TC, 16 enterografias, 6 scans por sangramento, 6 lon (3), carcinoide (3), GIST (2), adenocarcinoma primário
angiografias, 5 raios X simples de abdome, 2 scans para divertí- do ID (1).
culo de Meckel, 1 ultrassonografia abdominal e 1 laparoscopia. No Brasil, Saul & Torresini relatam que a CE foi eficaz em
Pacientes com tumores duodenais realizaram uma média de 2 demonstrar a lesão/fonte de sangramento em pacientes com
procedimentos negativos prévios, enquanto tumores jejunais e sangramento gastrintestinal obscuro em 77% dos casos. Qua­
ileais foram submetidos a uma média de 5,3 e 4,1 procedimen­ tro casos de tumores malignos do ID (2 adenocarcinomas e 2
tos negativos, respectivamente. As indicações para a CE foram tumores estromais - GIST) foram adequadamente diagnosti­
sangramento GI obscuro (69%), anemia (21%), dor abdominal cados (11,7%).
(8%) e história de polipose (2%).
Embora a CE não permita biopsia das lesões, os achados ■ C E e m p a c ie n t e s c o m r is c o p a ra t u m o r e s d o ID
macroscópicos sugerem o tipo de tumor e, principalmente, sua Muitas síndromes com polipose GI incluem o ID como parte
localização para orientação de tratamento. Alguns exemplos de sua apresentação clínica. A polipose adenomatosa familiar
com indicação cirúrgica e histologia: (PAF), com prevalência estimada de 1 caso para 5.000-7.500 pes­
• lesão elevada, polilobulada, coloração enegrecida: me- soas, apresenta pólipos em trato GI de 60 a 90%. Adenocarcino­
lanoma; ma duodenal é a causa de morte prevalente após a colectomia
• lesão polipoide com sangramento recente: linfoma; profilática; adenomas jej unais têm sido detectados em 40% dos
• lesão ulcerada infiltrativa: adenocarcinoma; pacientes e ileais, em 20%.
• área saliente com vasos tortuosos na superfície: tumor Na síndrome de Peutz-Jeghers pólipos hamartomatosos po­
estromal ulcerado; dem ser detectados no ID, podendo ser a causa de obstrução
• lesão polipoide: tum or carcinoide; através de intussuscepção e sangramento agudo ou crônico.
• lesões estenosantes e áreas de mucosa ulcerada: implantes Numerosos estudos têm sugerido a CE como procedimento
peritoneais de adenocarcinoma metastático. seguro e bem tolerado nos pacientes com polipose. Barkay et
al. encontraram prevalência de pólipos detectados por CE em
Como pacientes com tumores do ID podem apresentar 59% dos pacientes. Comparando com os outros métodos, a CE
sangramento oculto, anemia ferropriva ou então sangramen­
pode detectar maior número de pólipos e de menor tamanho,
to com melena, e ter normais seus estudos radiológicos, a CE
servindo de triagem.
é uma boa opção para diagnóstico. Por outro lado, considerar
Contraindicações absolutas para o emprego da CE na sus­
que, além da possível iatrogenia dos diferentes procedimentos,
peita de tumor do ID são a obstrução intestinal ou a pseudo-
para os pacientes os custos da investigação para sangramento
obstrução intestinal; e relativas são marca-passo cardíaco, dis-
também são elevados, segundo Lewis e Goldfarb. O uso da CE
fagia, gravidez e diverticulose.
traz conforto ao doente, redução dos gastos e maior acurácia
Conclusão, a CE é segura e, a despeito da incapacidade de
diagnóstica.
colher fragmentos de biopsia, o que representa sua principal
O estudo da patologia tumoral do ID tem sido proposto
limitação, é procedimento que provê informações importan­
como uma das indicações desta nova técnica. Caunedo et al. a
indicaram para determinar a extensão do tumor, como, ainda, tes nas doenças do ID não diagnosticadas pelos métodos con­
para verificar a resposta à quimioterapia. O papel da CE nos vencionais.
tumores infiltrativos do ID depende da suspeita diagnóstica do
médico, da escolha da técnica mais apropriada, do estadiamento ■ Angiografia
ou do conhecimento da resposta à quimioterapia.
A angiografia visceral é útil para os casos de sangramento
Experiência de Caunedo et al. em 92 exames com a CE em
pacientes com EDA; nesses pacientes, a colonoscopia e o trân­ GI com avaliação endoscópica negativa, apresentando sensibi­
sito intestinal foram não conclusivos: lidade de 50 a 67%. Pode demonstrar um enovelado vascular
tumoral em casos específicos de subtipos de tumores malignos,
• diarréia crônica = 33; mais em carcinoides, liomiossarcomas e hemangiomas (Pran­
• dor abdominal de etiologia desconhecida = 29; cha 36.1 - E e F ) .
• sangramento GI oculto ou anemia ferropriva =13;
• desconforto abdominal em usuários de AINE = 7;
• estadiamento de tumores GI = 4; ■ Laparoscopia e laparotomia
• controles assintomáticos = 2. São indicados quando há fortes indícios de tratar-se de neo-
Resultados: plasia, e os métodos anteriormente apontados não corroboram
este diagnóstico.
• aftas e ulcerações jejunoileais = 29;
• malformações vasculares = 13;
• neoplasias = 6.
■ Comparação de métodos
Os grupos com maior concordância entre os achados e a in­
dicação propedêutica foram os de sangramento oculto (76,9%) Na experiência de Hara et al., o exame radiológico com bá-
e diarréia crônica (67,8%). rio foi positivo em 1 de 40 pacientes (3%), a CE em 22 (55%) e
Spada et al., na Itália, relatam 13 casos de tumores do ID. a TC em 4 (21%). Encontraram tumores com a CE em 3 de 5
Indicações para a CE foram sangramento obscuro em 9 (70%), casos confirmados cirurgicamente (carcinoide, intussuscepção,
dor abdominal, doença celíaca, febre de origem indeterminada linfangioma). Ocorre que, em pacientes sem lesões estenosantes
e metástase hepática. Detectaram, por CE, 6 pólipos (46,2%), ao estudo radiológico, mais doenças do intestino delgado foram
lesão estenosante ulcerada em 3 (23,5%), erosão, estenose, in­ encontradas com a CE do que aos raios X e à TC.
410 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado

A CE e a enteroscopia podem ser consideradas métodos sinais de obstrução: cólicas, náuseas e vômitos, distensão abdo­
complementares. minal agravada pela alimentação. Anorexia e emagrecimento
Após essas considerações gerais, serão abordados alguns acompanham sangramento oculto, ou sangramento óbvio pode
tumores primários, da experiência dos autores, divididos em ocorrer. Perfuração com peritonite é rara. Icterícia obstrutiva
grupos. surge quando há envolvimento da ampola de Vater. Como os
sintomas não são específicos, há demora no diagnóstico.

■ NEOPLASIAS EPITELIAIS ■ D ia g n ó s t ic o
Não há sintomas específicos para quaisquer tipos de neopla-
sia comprometendo o intestino delgado. O exame físico costu­
■ Adenocarcinoma ma ser normal. Hepatomegalia surge por metástases.
■ Epidemiologia O exame radiológico a ser feito é o trânsito intestinal que
O adenocarcinoma é o tumor maligno do ID mais preva- mostrará deformidades (wanel de guardanapo”, “caroço de
lente no mundo e correlaciona-se com a prevalência do câncer maçã”), diferente de adenomas que aparecem como falhas de
do cólon. Não parece haver diferença de acometimento entre a enchimento polipoide. Os tumores malignos enrijecem a pa­
população rural e a urbana. É mais encontrado em homens do rede intestinal.
que em mulheres com mais de 50 anos, tendo pico de incidência À tomografia abdominal apresentam-se como massa focal
aos 60 anos, mais em negros do que em brancos. Na revisão do excêntrica ou circunferencial, assimétrica, com espessamento
National Câncer Data Base (NCDB), dos EUA, em 4.995 casos irregular da parede intestinal; estreitamento da luz e dilatação do
descritos de 1985 a 1995,55% dos tumores eram de duodeno, segmento proximal são comuns. Geralmente, os tumores com
18% do jejuno, 13% do íleo e 14% em locais não especificados. mais de 3 cm têm crescimento extraluminal; os menores de 2 cm
A sobrevida, em 5 anos, foi de 30,5% (média 19,7 meses), sendo podem não ser vistos à TC. Esse exame também está indicado
reduzida nos pacientes com mais de 75 anos. para detectar recorrência após cirurgia. Também é necessário
Constituem maior risco para adenocarcinoma no intestino para estadiamento, detectando extensão local e metástases.
delgado: A endoscopia digestiva alta pode detectar e confirmar o diag­
nóstico por permitir biopsias até a terceira ou quarta porções
• Doença celíaca do duodeno.
° 80 vezes mais que na população geral; Tumores do íleo terminal podem ser alcançados por colo-
° mais comum no duodeno e jejuno proximal (Figura noscopia, através da válvula ileocecal.
36.1); O advento da “push”-enteroscopia, com longos instrumen­
° tumor pode ser multifocal; tos ou com sondas, torna possível a identificação de todo o in­
° associação com displasia; testino delgado, principalmente em casos de sangramento de
° risco maior após 2 anos da doença; diagnóstico obscuro.
° pacientes em dieta sem glúten e que se apresentam com A CE tem-se mostrado extremamente útil para diagnóstico
cansaço, anorexia, náuseas, diarréia, anemia ou pesqui­ e indicação cirúrgica.
sa de sangue oculto positivo são altamente suspeitos. A angiografia pode ser de ajuda ao demonstrar foco de neo-
• Doença de Crohn vascularização.
° 86 vezes mais que na população geral; O uso de hemácias marcadas também localiza uma lesão
° mais no sexo masculino; sangrante, porém não permite diagnóstico específico.
° correlação maior com a duração da doença e extensão
do processo inflamatório; ■ P a t o lo g ia
° mais frequente em alças excluídas cirurgicamente; Adenocarcinomas esporádicos do intestino delgado podem
° mais comum em portadores de doença fistulosa; ser macroscopicamente planos, ulcerados, infiltrativos, estenó-
° mortalidade de 80% quando há associação; ticos ou polipoides. Seu tamanho varia em média entre 1,2 e
° 30% dos tumores localizam-se no jejuno e 70% no 15 cm ao diagnóstico, e os maiores são, em geral, localizados
íleo; distalmente no delgado, pois causam menos sintomas e estão
° displasia como antecedente (Figura 36.2). mais avançados ao diagnóstico.
• Síndrome de Peutz-Jeghers Histologicamente, os adenocarcinomas de delgado são simi­
o A síndrome de Peutz-Jeghers caracteriza-se por pó- lares aos que se desenvolvem em outras partes do tubo digesti­
lipos hamartomatosos no intestino delgado e cólon, vo. Entretanto, como a maior parte deles se desenvolve a partir
com manchas de melanina na mucosa oral, lábios e de adenomas, em geral pode-se observar displasia residual na
dedos. É de transmissão autossômica dominante. Ge­ mucosa adjacente ou suprajacente ao tumor. O encontro de al­
ralmente, são benignos, mas pode ocorrer degenera- terações intraepiteliais é um dado que corrobora o diagnóstico
ção maligna (2,4%). de local primário da lesão em intestino delgado.
• Síndrome da polipose familial À microscopia, os adenocarcinomas são caracterizados por
o Adenomas do duodeno são descritos em pacientes pleomorfismo celular e nuclear, perda da polaridade epitelial,
com esta síndrome, mas adenocarcinoma é raro, apa­ perda da arquitetura glandular com glândulas cribriformes, e
recendo mais na região periampolar. invasão de tecidos adjacentes. A maioria deles é moderadamen­
te diferenciada, e cerca de 20% são pouco diferenciados e podem
■ Quadro clínico conter células isoladas tipo “anel de sinete”. Outros tumores
O quadro clínico varia de acordo com o tamanho, a loca­ podem conter áreas mucinosas e lagos de mucina extracelular,
lização, a situação dentro da parede intestinal, o suprimento e, quando estas áreas perfazem mais que 50% do tumor, a de­
sanguíneo e a tendência a ulceração e necrose. Alguns abran­ signação de adenocarcinomas mucinosos deve ser empregada.
gem toda a parede, gradativamente estreitam a luz e produzem Adenocarcinomas mucinosos possuem prognóstico pior que
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 411

tumores não mucinosos. Células neoplásicas com diferenciação Tumores na papila de Vater são geralmente menores ao
neuroendócrina e células de Paneth podem estar presentes, as­ diagnóstico e seu grau de invasão é menor, devido à apresen­
sim como focos de diferenciação escamosa, e nenhuma destas tação clínica ser geralmente mais precoce.
características altera o prognóstico da neoplasia. Carcinomas hepatoides, coriocarcinoma, carcinomas de
Adenocarcinomas do intestino delgado possuem expres­ pequenas células, carcinomas adenoescamosos e carcinoma
são imuno-histoquímica semelhante à dos adenocarcinomas de células escamosas podem ocorrer no delgado, porém são
de cólon, com usual expressão de citoqueratina 20 e negativi- bastante raros e possuem características patológicas e prog­
dade para citoqueratina 7, expressão de CEA, CDX-2 e vilina. nóstico distintos.
Tumores associados à síndrome de Lynch podem apresentar
ausência de expressão das proteínas de reparo de DNA hMLH 1 ■ T ra ta m e n to
e hMSH2, ligadas à instabilidade de microssatélites. Ainda, al­ Ressecções extensas devem ser evitadas, e operações repeti­
guns tumores podem apresentar expressão aberrante de p53, das podem levar à síndrome do intestino curto. O tratamento
como seus pares colorretais. cirúrgico dos adenocarcinomas e os cuidados com os linfono-
O estadiamento é feito segundo o sistema TMN e é seme­ dos regionais devem ser preconizados (Figura 36.1). Infeliz-
lhante ao aplicado a carcinomas de cólon, para os carcinomas mente, pode haver comprometimento da artéria mesentérica
de delgado que ocorrem longe da papila de Vater. Para os úl­ superior e do retroperitônio.
timos, há uma classificação específica devido à anatomia com­ Nos raros adenocarcinomas do íleo distai, preconiza-se he-
plexa regional e diferenças no prognóstico. micolectomia direita (Figura 36.2).

Figura 36.1 Adenocarcinoma do jejuno


proximal em paciente portadora de doença
celíaca. (Esta figura encontra-se reproduzida
em cores no Encarte.)

Figura 36.2 Adenocarcinoma do íleo terminal


em paciente portadora de doença de Crohn.
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores
no Encarte.)
412 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado

Estima-se a ressecabilidade dos adenocarcinomas em 50% Linfomas podem aparecer em casos de lúpus eritematoso
dos casos, com sobrevida de 5 anos em torno de 20%. Em dois sistêmico, doença de Crohn, pós-quimioterapia e em síndro-
terços dos pacientes, a ressecção é curativa após extirpação com­ mes de imunodeficiências, inclusive AIDS.
pleta ao tumor.
Rádio e quimioterapia sâo de benefício mínimo. Cerca de
15% dos pacientes com doença metastática têm um breve be­
■ Linfomas primários do tipo ocidental
nefício com 5-fluoruracila. Sua classificação permanece polêmica, porém a tendência
é usar a morfologia para imunotipar o tumor. Ocorrem mais
comumente no íleo, mas podem desenvolver-se em qualquer
■ NEOPLASIAS LINFOIDES segmento. Apresentam-se como infiltração difusa, nódulos, le­
sões polipoides ou massas ulceradas. Cerca de 20% dos pacien­
tes desenvolvem múltiplas lesões. O padrão de disseminação é
■ Linfomas para o tecido adjacente e linfonodos regionais e, depois, para
Os linfomas do intestino delgado são considerados como linfonodos mais distantes e diferentes órgãos.
entidade rara (1,6/1 milhão de pessoas). São classificados como
primários e secundários. Há algumas controvérsias quanto ■ Quadro clínico
a tal divisão. Para alguns autores, o linfoma primário seria Os sintomas não são específicos e podem incluir manifes­
aquele com predominância de comprometimento gastrintes- tações sistêmicas, como febre e suores noturnos. Costumam
tinal e restrito à linfadenomegalia regional. Linfadenopatias surgir de modo insidioso e inespecífico, incluindo sintomas
superficiais ou mediastinais, junto com envolvimento do baço de cólicas abdominais, náuseas e vômitos, quando com obs­
e fígado, classificariam o linfoma como secundário. Por essa trução parcial, e mal-estar e fadiga, também com presença de
definição, ficariam excluídos os linfomas intestinais primários sangue oculto ou sangramento macroscópico, quando há lesões
que se disseminassem. Para outros pesquisadores, os linfomas ulceradas. Alguns se apresentam com quadro agudo e neces­
com comprometimento predominantemente do intestino del­ sitam de cirurgia de emergência (obstrução, intussuscepção
gado, ou manifestando-se por sintomas mais GI, poderiam ser ou perfuração).
denominados primários; os secundários seriam os que afe­
■ Diagnóstico
tassem o intestino delgado, mas com origem sabidamente de
outro local. Nos exames de rotina, pode-se encontrar anemia.
O trânsito intestinal pode demonstrar falhas de enchimen­
Os linfomas primários podem ser divididos nos tipos Oci­
to, ulcerações, estenoses, dilatações ou segmentos aperistálti-
dental e do Mediterrâneo. O primeiro caracteriza-se por dis­
cos. Enfatiza-se que apenas 10% dos tumores podem ser diag­
cretas lesões em mucosa intestinal normal, de fundo; o segundo
nosticados por esse exame, principalmente no início (Prancha
se associa à doença imunoproliferativa do intestino delgado
36.1- A e C ) .
(DIPID), ou doença da cadeia alfa. Perda de mucosa normal
A tomografia computadorizada abdominal evidencia aumen­
e proliferação de células B ocorrem ao longo de todo o intes­
to da espessura da parede intestinal ou comprometimento de
tino delgado.
linfonodos. Pode mostrar tecido mole envolvendo concentrica-
mente um segmento relativamente longo do intestino delgado.
■ Epidemiologia
A luz é quase sempre dilatada, a obstrução é rara, pois o tumor
Os linfomas primários do intestino delgado constituem cerca enfraquece a muscularis própria. Quando a parede aparece as­
de 18% de todos os tumores malignos do mundo ocidental. A simétrica, o linfoma pode mimetizar uma lesão inflamatória
maioria deles é do tipo não Hodgkin. Por outro lado, os lin­ ou isquêmica. Podem-se detectar adenopatias e comprometi­
fomas primários intestinais constituem menos de 5% dos lin­ mento mesentérico na parede já espessada. Formas cavitárias
fomas não Hodgkin e somente 7,5% dos extranodais. Afetam são comuns, resultantes de ulcerações.
duas vezes mais o sexo masculino que o feminino, e mais os Há uma forma mesentérica resultante de um linfoma que se
indivíduos de raça branca. A apresentação é bimodal: um pico desenvolve nos linfonodos mesentéricos com extensão direta
abaixo dos 15 anos de idade (predominância ileocecal), e outro para a parede intestinal. As alças ficam deslocadas e podem ser
acima de 50 a 60 anos. obstruídas por massas arredondadas, nodos lobulados ou gran­
des massas que envelopam os vasos mesentéricos e a gordura
■ Etiologia e fatores de risco circunjacente, típico “sinal do sanduíche”.
A etiologia/patogênese dos linfomas é desconhecida. Pro­ A endoscopia digestiva alta pode ser útil na localização e
põe-se que infecções crônicas do trato gastrintestinal produzam identificação das lesões, bem como na obtenção de fragmentos
estímulo antigênico aumentado para as células plasmáticas e para exame histológico; ou no íleo terminal, à colonoscopia.
linfócitos, o que, por sua vez, leva a mutações e transformação Muitas vezes, o diagnóstico final depende de exploração ci­
maligna. rúrgica.
Pacientes com doença celíaca apresentam um risco de 11
a 14% para desenvolver linfoma, e a doença celíaca precede ■ Patologia
o aparecimento da neoplasia em dois terços dos casos, locali- Como já dito, estes linfomas são classificados em geral
zando-se mais no jejuno proximal e menos frequentemente no por suas características morfológicas e fenotipagem imuno-
duodeno. Em 20% dos casos, apresentam-se simultaneamente, histoquímica. São linfomas ditos do tipo ocidental:
e má absorção intestinal torna-se evidente após o diagnóstico
de linfoma em 15%. A dieta isenta de glúten parece exercer
papel protetor contra a instalação de neoplasias.
■ Linfomas B
Em geral, o linfoma é do tipo enteropathy-type T-cell lym- Linfoma MALT (linfoma de células B extranodal da zona
phoma. marginal): tipo mais comum, com morfologia semelhante à do
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 413

seu colega gástrico, porém lesões linfoepiteliais são mais raras. ■ NE0PLASIAS NEUROENDÓCRINAS
A morfologia é, em geral, composta por linfócitos pequenos,
em meio a restos de folículos linfoides não neoplásicos. Estes
tumores podem evoluir para tipos mais agressivos de linfoma. ■ Tumores carcinoides
São CD20+, CD5-, CD 10-, BCL-2+ e possuem baixo índice Ver capítulo sobre tumores carcinoides do trato gastrin-
proliferativo (ki-67 com baixa expressão). testinal.
Linfoma B difuso de grandes células: tipo mais agressivo
de tumor com morfologia difusa, composto por linfócitos neo­
plásicos maiores. Seu índice proliferativo é alto (alta expressão ■ TUMORES MESENQUIMAIS
de ki-67. São CD20+, CDS-, CD 10- e BCL-2.
Linfoma do manto: este tipo, geralmente, se apresenta com
padrão nodular e infiltração difusa do segmento acometido, ■ Tumores estromais
com aparência macroscópica de múltiplos pólipos, a chamada Ver capítulo sobre tumores estromais gastrintestinais.
polipose linfomatosa múltipla do intestino. São CD20+, CD5+,
CD43+, CD10- e CiclinaDl-K
Linfoma folicular: este tipo possui histologia que pode va­ ■ OUTROS TUMORES
riar de completamente nodular a difusa, com quantidade variá­
vel de blastos nos centros germinativos neoplásicos. São CD20+,
CD 10+, BCL2+ e BCL6+. Podem evoluir para forma difusa mais
■ Tumores benignos
agressiva (linfoma difuso de grandes células B). Os tum ores benignos mais comuns são os adenomas, lipo-
Linfoma de Burkitt: tum or altamente agressivo, de alto mas e liomiomas.
grau, com crescimento rápido. Pode ser endêmico ou esporá­
dico e está ligado à infecção pelo HIV. Possui morfologia com ■ Adenomas
células pequenas a medianas, com cromatina grosseira ou sal­ São os tumores benignos mais comuns no ID, mais em duo-
picada, entremeadas por macrófagos, o que dá aparência ca­ deno e jejuno. Do ponto de vista radiológico, trânsito intestinal,
racterística dita de “céu estrelado”. São CD20+, CD10+, CD5-, se apresentam geralmente pequenos, lobulados e intraluminais,
BCL2-, e possuem expressão de ki-67 de virtualmente 100%. podendo desenvolver pequenas ulcerações superficiais, quase
imperceptíveis; ou podem ser sésseis ou pediculados, podendo
causar obstrução por intussuscepção.
■ LinfomasT
Linfoma T intestinal tipo ligado à enteropatia: possui mor­ ■ Adenom a tubular simples
fologia em geral difusa, pode ser ulcerado, e acometer um único Surge mais no duodeno e tem baixo potencial de malignidade.
segmento ou múltiplos segmentos do intestino. Eosinófilos e O carcinoma das glândulas de Brünner é extremamente raro.
macrófagos podem estar presentes em meio às células neoplá-
sicas, que são CD3+, CD20-, CDS-, CD1- CD57. Alguns tu­ ■ Adenom a viloso
mores com morfologia anaplásica podem ser CD30+. Este tumor, que aparece mais no duodeno, muitas vezes de­
senvolve carcinoma superficial e invasivo. Cerca de um terço
■ Tratam ento contém focos de adenocarcinoma. Cresce para mais de 5 cm e
A ressecção cirúrgica é a primeira escolha em muitos casos geralmente é solitário. Embora mole, pode obstruir a luz. Não
(Figura 36.2) que podem, também, ter indicação de radiotera­ costuma ocasionar sangramento, nem diarréia pela produção
pia, indicada em alguns. Pacientes com lesões ressecáveis têm de muco e eletrólitos, provavelmente devido à capacidade ab-
chance de 40 a 50% de sobrevida em 5 anos. sortiva do intestino delgado. Se ocorrer icterícia, sugere infil­
Quimioterapia (QT), mais do que radioterapia, é uma op­ tração maligna. Aos raios X, tem aspecto de bolhas de sabão.
ção a ser considerada. Pode ser efetiva no controle de lesões Quando o tumor é acessível à endoscopia, a biopsia confirma
localizadas. Por sua vez, os pacientes com doença disseminada o diagnóstico.
recebem QT da mesma maneira que portadores de linfoma sis­
têmico. Preconizam-se drogas como ciclofosfamida, vincristina, ■ Lipomas
doxorrubicina e prednisona. Muitas vezes, devido ao risco de Constituem segundo tum or benigno mais comum no ID,
perfuração consequente à QT, ressecções localizadas são reali­ incidindo mais em homens. Geralmente, são tumores peque­
zadas de maneira prévia. nos, com menos de 4 cm, únicos ou múltiplos. Têm crescimento
Quando há associação com doença celíaca, o prognóstico é lento, são compostos por tecido adiposo bem diferenciado, en­
pobre, refletindo o diagnóstico tardio e o comprometimento volvido por uma cápsula fibrosa. São submucosos em 90-95%
do estado geral por ocasião da apresentação. Os tratamentos dos casos e tendem a prolapsar para a luz. Quando ocorrem
preconizados e as altas doses de quimioterapia são eficazes em ulcerações, estas são profundas e facilmente reconhecíveis. Le­
pequena porcentagem dos casos. sões com mais de 2 cm causam dor, diarréia, constipação in­
testinal ou sangramento quando a mucosa se úlcera. Quando
se localizam no íleo, podem determinar intussuscepção por
■ Linfomas do tipo mediterrâneo: serem pediculados. À TC, aparecem como massa homogênea
doença imunoproliferativa do intestino de baixos valores de atenuação.
delgado — DIPID ■ Leiom iom as (Prancha 36.2)
Ver capítulo sobre doença imunoproliferativa, doença de Constituem terceiro tum or benigno mais comum no ID.
Whipple. Ocorrem mais no jejuno e causam mais dor e mais sangra-
414 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado

E
Prancha 36.1 A, linfossarcoma do intestino delgado. Trânsito intestinal mostrando maior distância entre as alças e “impressões digitais" (finger
correspondentes à hiperplasia linfoide. B( Biopsia correspondente à Figura A, denotando comprometimento de toda a mucosa e atrofia
p r in t)
das vilosidades. C, Trânsito intestinal em doença de Hodgkin com rechaço de alças intestinais e impressões digitais. D, Biopsia correspondente
à Figura C com comprometimento da mucosa e presença de células de Reed-Stenberg. E, Arteriografia mostrando massa com grande vas-
cularizaçâo à esquerda da coluna vertebral, sugerindo tumor vascular (hemangioma). F, Tumor vascular em alça jejunal logo abaixo do ângulo
deTreitz, extramucoso, responsável por hemorragia de grande monta ao se ulcerar para o lúmen intestinal.
Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado 415

Prancha 36.2 L e io m io m a . A, Laparoscopia revelou tumor de 8 cm na bacia, à direita, em nítida dependência e continuidade com alça jejunal.
B, À cirurgia, tumor jejunal distai, continuando-se com o lúmen intestinal. C, Exame anatomopatológico revelou leiomioma (Gentileza do Pro­
fessor Renato Dani). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

mento, por serem do tipo polipoide. Têm localização sub- sarcomas, dependendo de crescerem primariamente para a luz
serosa e intramural, com baixa sensibilidade aos raios X. À (intussuscepção) ou de fazerem extrusão para a superfície se-
tomografia, apresentam-se arredondados, regulares, hom o­ rosa (massa palpável).
gêneos ou com calcificação e necrose. São mais bem diag­
nosticados por arteriografia, pela grande vascularização que ■ Hem angiom as
apresentam. Geralmente, são múltiplos e podem envolver o trato gas-
trintestinal difusamente. Variam de tam anho desde “ponta
■ Fibromas de alfinete” até grandes tum ores cavernosos. O casional­
Aparecem como defeitos nodulares de enchimento na mente, são polipoides e dão imagem de falha de enchim en­
margem mesentérica do intestino, mas podem causar efeito to. Produzem desde sangram ento oculto até hemorragias
de massa com compressão extrínseca, vólvulo ou ulcerações. maciças. À angiografia, há padrão característico (Prancha
Produzem sintomas semelhantes aos dos liomiomas e liomios- 36.1-EeF).
416 Capítulo 36 / Tumores do Intestino Delgado

Barkay, O, Moshkowitz, M. Fircman, Z et a i Initial expcricnce of video capsule


Podem ser classificados em:
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O dilema dos tumores malignos do intestino delgado re- Gastroenterology, 5th ed. Philadclphia, Saunders, p. 1274-90,1996.
laciona-se à baixa sobrevida após sua ressecção (21 a 35% em Lowenfcls, AB. An ovcrvicw of adcnocarcinoma of the small intcstinc (com-
5 anos). Isso se deve tanto à dificuldade de identificação quanto ment). Oncology, 1997; 11:545.
Ncgri, E, Bosctti, C, La Vccchia, C et al. Risk factors for adcnocarcinoma of the
à atividade biológica dessas neoplasias: 60 a 70% já têm metás-
small intcstinc. Int.}. Câncer, 1999; 82:171-4.
tases por ocasião da cirurgia. A despeito do mau prognóstico, North, JH 8c Pack, MS. Malignant tumors of the small intcstinc: a rcvicw of 144
uma combinação de abordagem precoce gerada por alto grau cases. Am. Surg., 2000; 66:46-51.
de suspeita, avaliação diagnóstica agressiva e ressecção cirúrgica Paulscn, SR, Huprich, JE, Flctchcr, JG et a í CT cntcrography as a diagnostic
formal proporcionará oportunidade de melhor sobrevida aos tool in evaluation of small bowel disorders: rcvicw of clinicai cxpcricncc
over 700 cases. Radiographics, 2006; 26:641-57.
pacientes portadores de tumores desta localização. Saul, C 8c Torrcsini, RJS. Sangramento gastrintestinal obscuro: resultados com
Apesar dos avanços, o intestino delgado permanece uma área o emprego da cápsula cndoscópica. G.E.D., 2006; 25:71-5.
do trato gastrintestinal relativamente invisível às modalidades Schwartz, GD 8c Barkin, JS. Small-bowcl tumours. Gastrointest. Endoscopy Clin.
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■ LEITURA RECOMENDADA Spada, C, Riccioni, ME, Familiari, P et a i Video capsule cndoscopy in small-
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Tumor Estromal Gastrintestinal
Mounib Tacla

tino delgado (25%), reto (5%), esôfago (2%) e 5% em outros


■ INTRODUÇÃO locais, incluindo apêndice cecal, vesícula biliar, pâncreas, me-
Os tumores estromais gastrintestinais (TEG), conhecidos sentério, epíploon e retroperitônio.
na literatura inglesa como Gastrointestinal Stromal Tumours O encontro de células KIT-positivas no grande omento su­
(GIST), representam uma complexa categoria de neoplasmas, gere que estas células estão mais disseminadas do que se con­
cujo grau de malignidade ainda não se encontra devidamente siderava, quando da localização visceral do TEG.
estabelecido. Constituem os mais comuns tumores mesenqui-
mais da musculatura lisa do aparelho digestivo, com prolife­
ração de células imaturas fusiformes e/ou epitelioides, poden­ ■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E DIAGNÓSTICO
do ser encontrados em qualquer segmento do tubo digestivo,
As manifestações clínicas dos TEG estarão diretamente rela­
desde o esôfago até o reto e, eventualmente, em localizações
cionadas com as suas localizações, sem qualquer especificidade.
extraintestinais. Assim, sintomas de dor abdominal, náuseas, vômito, suboclu-
Nesta denominação, estão incluídos os leiomiomas (benig­ são, melena, massa palpável não caracterizam necessariamente
nos), os leiomiossarcomas (malignos), para os tumores forma­ a presença de TEG e estão na dependência da localização da(s)
dos primariamente por células fusiformes (spindle-shaped cells), lesão(Ões) que, muitas vezes, são múltiplas. A presença de ane­
e os leiomioblastomas, também estes tanto benignos quanto mia poderá ocorrer em decorrência de ulceração da mucosa na
malignos, compostos por células epitelioides, que apresentam área comprometida, com consequente perdas sanguíneas.
um fenótipo miogênico ou neural mínimo, ou incompleto, de­ Lesões menores do que 2 cm geralmente são assintomáticas e
finidos por estudos de imuno-histoquímica ou microscopia ele­ detectadas durante procedimentos cirúrgicos. No entanto, cerca
trônica. Estes tumores expressam também um receptor do fator de 50% dos TEG, no momento do seu diagnóstico, já se apre­
de crescimento com atividade de tirosinoquinase, denominado sentam sob a forma de metástases, principalmente no fígado
“KIT”. Mutações do KIT são comuns nos TEG malignos e con­ e/ou no peritônio. Outra manifestação clínica é o aparecimento
duzem a uma ativação da função tirosinoquinase, promovendo de hiperpigmentação cutânea.
uma proliferação celular com resistência à apoptose. Devido a A investigação diagnóstica é consequente às manifestações
este fenômeno, os TEG são pouco responsivos à quimioterapia, clínicas que conduzem a uma localização topográfica da lesão.
até a recente introdução de uma nova droga, o imatinibe, que Assim, poderemos utilizar métodos de captação de imagens
promove a inibição do KIT, permitindo uma efetiva terapia nas (ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada, res­
formas avançadas e metastáticas da doença. sonância magnética) ou utilização de métodos de visão direta
(endoscopia digestiva alta, colonoscopia, cápsula endoscópica).
Mais recentemente, a introdução de uma nova tecnologia, as­
■ EPIDEMIOLOGIA sociando a tomografia com a medicina nuclear (PET-SCAN),
permitiu o diagnóstico precoce de metástases.
Os TEG representam a maioria dos tumores mesenquimais O diagnóstico final é determinado pela análise histopatoló-
do aparelho digestório, constituindo cerca de 5% de todas as gica de material obtido através de procedimentos cirúrgicos,
neoplasias, com incidência mundial de cerca de 15 casos por ou de biopsias obtidas por endoscopia ou punção.
milhão de pessoas. Sua maior incidência ocorre na idade adul­
ta, na faixa etária dos 60 anos, sendo extremamente rara a sua
ocorrência abaixo de 40 anos, inclusive apenas 2,7% antes da ■ PATOLOGIA
idade de 21 anos e 9,1% antes dos 40 anos. Não existe incidência
predominante com relação ao sexo dos pacientes. Referente à Os tumores estromais do aparelho digestivo, geralmente
localização, sua ocorrência é maior no estômago (60%), intes­ considerados como neoplasias de musculatura lisa, eram ge­

417
418 Capítulo 37 / Tumor Estromal Gastrintestinal

nericamente chamados, até os anos sessenta, de “liomiomas, também positivos focalmente para actina de musculatura lisa,
liomiossarcomas, liomioblastomas e liomiomas bizarros. Com o porém negativos para desmina.
desenvolvimento da microscopia eletrônica e, posteriormente, Estudos mais recentes, como foi mencionado, demonstram
com a introdução da imuno-histoquímica na década de 1980, que as células tumorais dos TEG expressam um receptor de fa­
demonstrou-se que muito dessas lesões careciam de caracte­ tor de crescimento com atividade tirosinoquinase, denominado
rísticas imunofenotípicas na diferenciação da musculatura lisa, “KIT”, detectado por imuno-histoquímica para CD 117.
recebendo, assim, uma denominação mais genérica de “tum o­ A positividade para KIT (CD117), encontrada em cerca de
res estromais”. 91% dos casos, representa uma característica específica para
Os TEG representam cerca de 2,2% de todas as neoplasias os TEG, o que, no entanto, poderá ser também observado em
digestivas, 13,9% dos tumores de delgado e 0,1% dos colorre- outros tumores que não incidem sobre o aparelho digestivo.
tais. Estas neoplasias podem se localizar extraintestinalmente, A incidência familiar de TEG, com mutação do KIT, tem sido
principalmente no mesentério, epípioon e retroperitônio e, ex­ relatada, inclusive associada à hiperpigmentação cutânea.
cepcionalmente, na vesícula biliar e bexiga. A expressão imuno-histoquímica do CD117 é semelhante à
Com relação ao seu tamanho, é extremamente variável, en­ das células intersticiais de Cajal e, em 60 a 70%, ao CD34, que
contrando-se lesões desde 1 a 2 cm até maiores do que 20 cm é um marcador de células intersticiais fibroblásticas dendríti-
de diâmetro. cas, com variáveis positivas para SI00 e geralmente negativas
Macroscopicamente, são lesões bem delimitadas, não cap- para desmina.
suladas, podendo, no entanto, observar-se o aparecimento de
uma pseudocápsula. Comprometem as camadas submucosa,
muscular própria e serosa, provocando, ocasionalmente, o apa­ ■ TRATAMENTO
recimento de ulcerações na mucosa.
A análise microscópica das lesões demonstra uma compo­ O tratamento eletivo para os TEG consiste na sua remoção
sição de 60 a 70% de células fusiformes e epitelioides. Atipias cirúrgica, “em bloco”, com margens amplas de ressecção e, in­
nucleares, celularidade acentuada, morfologia mista de célu­ clusive, de estruturas adjacentes comprometidas pelo processo.
las fusiformes e epitelioides, e índice mitótico acima de 5 por É pouco frequente o comprometimento ganglionar nas formas
50 campos, invasão mucosa e necrose estão diretamente rela­ malignas dos TEG e não existe qualquer evidência de que a
cionados com a malignidade do processo. No entanto, nem remoção além da massa tumoral promoverá maior sobrevida
sempre os TEG são claramente identificáveis como benignos e/ou o retardo da recorrência.
ou malignos, e muitos são denominados como sendo de baixo A completa remoção dos TEG primários apresenta uma so­
potencial maligno. brevida média de 5 anos em 48 a 65% dos pacientes operados.
Esta complexa e indefinida situação poderá ser mais bem Muitos pacientes com GIST primário poderão ser beneficiados
avaliada conforme exposto no Quadro 37.1, proposto por Fle- com ressecções limitadas, através de procedimentos minima­
tcher et al. e modificado por Connoly et ai, em que são estabe­ mente invasivos.
lecidos critérios para verificação de riscos dos TEG. O tratamento clínico dos TEG e de suas manifestações me-
Em cerca de 82% dos casos, os TEG apresentam positivida- tastáticas representa uma situação extremamente complexa,
de para o CD34 imunorreativo, antígeno celular, e poderão ser pela falta de resposta satisfatória à químio e radioterapia. No
entanto, o advento do imatinibe (Glivec®), que atua diretamen­
te na inibição da mutação do KIT, atingindo cerca de 90% das
T lesões malignas, representou a única terapia sistêmica para os
Quadro 37.1 Avaliação de risco dos TEG TEG inoperáveis e metástases, sem, contudo, ter-se podido,
ainda, avaliar seus resultados a longo prazo.
Tam anho (cm) índice m itótico para 50 cam pos
Os resultados clínicos do tratamento com o imatinibe são
extremamente rápidos, com melhora dos sintomas logo nos
R isco m u it o b a ix o <2 <5 primeiros dias. A duração do tratamento não está devidamen­
R isco b a ix o 2 -5 <5 te estabelecida, porém admite-se que a droga deverá ser admi­
R isco in t e r m e d iá r io <5 6 -1 0 nistrada de forma continuada. O mecanismo de resistência à
5 -1 0 <5 terapia com o imatinibe é desconhecido, no entanto admite-se
A lt o risco >5 >5 a atuação de múltiplos mecanismos moleculares, devendo-se
>10 Q u a lq u e r v a lo r
considerar também a possibilidade de efeitos hepatotóxicos
Q u a lq u e r t a m a n h o > 10
colaterais. A dosagem usual é de 400 a 600 mg/dia, em toma­
da única.

-------------------------------▼-------------------------------
Quadro 3 7 2 Diagnóstico diferencial dos TEG (Fletcherefo/.)

H isto lo gia c-KIT CD34 Desm ina S I 00

G IS T C é l. fu s ifo rm e s , e p ite lio id e s o u m ista s + + (6 0 -7 0 % ) + (1 -2 % ) + (5 % )

N e o p la s m a s d a m u s c . lisa C é l. fu s ifo rm e s , a tip ia s v a riá v e is 2 + (1 0 -1 5 % ) + (m a io r ia ) R a ro

Schw anom a C é l. fu s ifo rm e s 2 + 2 +


F ib ro m a to s e C é l. fu s ifo rm e s ? R aro R a ro 2
Capítulo 37 / Tumor Estromal Gastrintestinal 419

Estudos recentes têm demonstrado que o tratamento com Gcballos, KM, Francis, JA, Mazurka, JL. Gastrointestinal strom al tum or
o imatinibe apresenta ação realmente efetiva nas formas local­ presenting as a rccurrcnt vagin mass. Arc. Pathol. Lab. Med., 2004:
128:1442-4.
mente avançadas, irressecáveis ou metastáticas dos TEG, com Connolly, EM, Galíhcy, E, Reynolds, JV. Gastrointestinal stromal tumours. Br.
uma substancial resposta em cerca de 50% de todos os casos. J. Surg., 2003; 90:1178-86.
Seguimento a longo prazo dos pacientes comprova que mais Corless, Cl, Flctchcr, JA, Hcinrich, MC. Biology of gastrointestinal stromal
de 50% dos TEG primários apresentam recorrência em 5 anos tumors. /. Clin Oncoi, 2004; 22:3813-25.
e, em 10 anos, a reincidência é menos frequente. Desta forma, DeMattco, RP, Lcwis, JJ, Lcung, D, Mudan, SS, WoodruíT, JM, Brcnnan, MF. Two
hundred gastrointestinal stromal tumors: rccurrcncc patterns and prognos-
é recomendável um seguimento cuidadoso e permanente destes tic factors for survival. Ann. Surg., 2000; 23i:51 -8.
pacientes, uma vez que a recorrência poderá se dar mesmo após Emory, TS, Sobin, LH, Lukcs, I, Lee, DH, 0 ’Lcary, TJ. Prognosis of gastroin­
muitos anos da remoção do TEG primário. Para a eventualida­ testinal smooth musclc (stromal) tumors. Depcndcncc on anatomic site.
de da ocorrência da recidiva e/ou de metástases, encontra-se Am. J. Surg. Pathol., 1999; 23:82-7.
disponibilizada uma terapia efetiva através do imatinibe. Flctchcr, CDM, Bcrman, JJ, Corless, C et al. Diagnosis of gastrointestinal stromal
tumours: A conscnsus approach. Hum. Pathol., 2002; 33:459-65.
Cerca de 40 a 50% dos pacientes, após remoção do tumor Flctchcr, CDM, Path, FRC, Bcrman, JJ, Corless, C, Gorstcin, F, Lasota, J, Lonng-
primário, poderão desenvolver recorrência do processo, prin­ ley, BJ, Micttinen, M, 0 ‘Lcary, TJ, Rcmotti, H, Rubin, BP, Shmookler, B,
cipalmente no fígado e peritônio. Antes da utilização do imati­ Sobin, LH, Wciss, SW. Diagnosis of gastrointestinal stromal tumours: A
nibe, a sobrevida média destes pacientes era de 19 meses, com consensus approach. Int. J. Surg. Pathol., 2002; i 0:81-9.
25% vivos em 5 anos. Gcrvaz, P, Huber, O, Morei, P. Surgical management of gastrointestinal stromal
tumours. Br. J. Surj», 2009; 96:567-78.
A utilização do imatinibe, a partir de 2002, como medica- GunJi, Y, Nikaidou, T, Okazumi, S, Matsubara, H, Shimada, H, Nabeya, Y, Aoki,
ção-padrão nos casos de recorrência dos GIST promoveu uma T, Makino, H, Miyazaki, S, Ochiai, T. Evaluation of Ki-67 and p53 expres-
extraordinária melhoria nos resultados terapêuticos. Porém, a sion in primary and repeated metastases of GISTs. Hepato-Gastroenterology,
maior limitação no uso deste medicamento é representada pela 2005; 52:829-32.
possibilidade do aparecimento de um tum or secundário resis­ Langcr, CL Gunawam, B, Schulcr, P, Huber, W, Fuzesi, L, Bccker, H. Prognostic
factor inilucncing surgical management and outeome of gastrointestinal
tente, consequente ao desenvolvimento de mutação no c-KIT, stromal tumours. Br. J. Surg., 2003; 90:332-9.
necessitando de abordagem múltipla, com ressecção do tumor Lcv, D, Karis, J, Issakov, J, Mcrhav, H, Bcrger, E, Mcrimsky, O. Gastrointestinal
residual. Há melhora da resposta cirúrgica com o posterior tra­ stromal sarcomas. Br. J. Surg., 1999; 86:545-9.
tamento com os inibidores da tirosinoquinase. Medeiros, F, Corless, Cl, Ducnsing, A, Hornick, JL, Oliveira, AM, Hcinrich,
Tentativas de uma terapia neoadjuvante com imatinibe é de­ MC, Flctchcr, JA, Flctchcr, CDM. KIT-Ncgativc Gastrointestinal Stromal
Tumors. ProfFof Conccpt and Therapcutic Implications. Am. J. Surg. Pathol.,
pendente de um diagnóstico pré-operatório, o que nem sempre
2004; 28:889-94.
é possível pela dificuldade na obtenção de biopsias destas lesões. Micttinen, M, Sobin, IH, Lasota, J. Gastrointestinal stromal tumors of the
Inclusive, admite-se que a tentativa de obtenção de biopsias por stomach: A clinicopathological, immunohistochcmical, and molecular
punção aspirativa poderá ocasionar a ruptura do tumor, com gene study of 1765 cases with long-tcrm follow-up. Am. J. Surg. Pathol.,
disseminação intra-abdominal ou sangramento. 2005:29:52-68.
Morgan, BK, Compton, C, Talbcrt, M, Gallaghcr, WJ, Wood, WC. Bcnign
A estratégia para a abordagem dos GIST seria o reconhe­ smooth musclc tumors of the gastrointestinal tract. Ann. Surg., 1990;
cimento dos fatores de prognóstico, permitindo uma atenção 211:63.
individualizada conforme a localização do tumor e de suas ca­ Parreira, JG, Freitas W, Rasslan, S. Uppcr gastrointestinal hemorrrhagc duc to
racterísticas morfológicas, e, também, oferecendo a oportuni­ duodcnal stromal tumor. Arq. Gastroenterol., 2003; 40:188-91.
dade do tratamento clínico medicamentoso. Sakano, AI, Brcsciani, CJC, Habr-Gama, A, Alves, VAF, Gama-Rodrigues, J.
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relação com sobrevivência. ABCD Arq. Bros. Cir. Dig., 2003; J6:10-13.
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Schippcr, JP, Liem, RSL, Van Dcn Ingh, HFGM, Van Der Harst, E. Rcvi-
Ayoub, WS, Geller, AS, Tran, T, Martin, P, Vicrling, JM, Poordad, FF. Imatinib sion of gastrointestinal mescnchymal tumours with GDI 17. EJSO, 2004;
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PARTE V
Intestino Grosso
Colite Microscópica,
Colite Pseudomembranosa e
Colite Radiógena
Mounib Tacla e Renato Dani

■ COLITE MICROSCÓPICA (COLITE COLÁGENA (tireoidite, doença celíaca, artrite e outras) naturalmente su­
geriu a possibilidade da autoimunidade. Uma associação rela­
E COLITE LINFOCITÁRI A) tivamente comum entre CM e doença com fundo autoimune
é com a doença celíaca, especialmente com a CL e menos com
Podemos definir as colites microscópicas (CM) como in­ a CC. Também a asma é mais frequentemente associada à CL
flamação crônica do cólon, que se manifesta por modificações
do que à CC.
histológicas ao nível de uma mucosa radiológica e endoscopica- Pensou-se em etiologia infecciosa, mas sem comprovação,
mente normal. Esta entidade foi inicialmente descrita por Lin- ou, em outros casos, como um processo reacional a drogas.
dstrom, em 1976, ao estudar uma mulher portadora de diarréia A similitude de alterações anatomopatológicas entre a coli­
crônica com proctoscopia normal e alterações histológicas na te microscópica e a doença celíaca, especialmente o infiltrado
mucosa retal. Observou também que havia uma faixa sube- inflamatório na lâmina própria e na superfície epitelial, evo­
pitelial de colágeno depositada no reto e no cólon, que seria cou a alguns pesquisadores a possibilidade de uma reação a
produzida por fibroblastos após imunoestimulação. A colite um antígeno alimentar, como a gliadina para a doença celía­
microscópica engloba as colites colágena (CC) e linfocitária ca. Também se descreve a associação dessas colites com certos
(CL). É uma denominação mais antiga, substituída hoje, na medicamentos, especialmente com os anti-inflamatórios não
literatura inglesa, pelo título watery diarrhea-colitis syndrome. hormonais e com a ticlopidina, o que lembra um relaciona­
Essas doenças dependem de exame histopatológico de fragmen­ mento causa/efeito. Também o lanzoprazol, o omeprazol e o
tos colhidos no cólon para que se faça o diagnóstico, e, embora, esomeprazol foram relacionados com a colite microscópica,
por vezes, não seja fácil desmembrá-las, é preferível, sempre que sobretudo em idosos.
possível, individualizá-las para fins epidemiológicos. Sua inci­ Associação da doença com antígenos leucocitários huma­
dência é difícil de ser estabelecida, mas dados suecos dão conta nos (HLA-DQ2, HLA-DQ1,3 e subtipos), semelhante ao que
de 1,8/100.000 habitantes para a CC, e um estudo da Espanha, ocorre na doença celíaca, sugere um especulativo mecanismo
referente à CL, mostrou incidência de 3,4/100.000 habitantes. imune similar.
Acredita-se que até 10 a 15% dos pacientes com diarréia crônica Em resumo, a CC e a CL se comportam clinicamente de ma­
sejam portadores de colite microscópica, e esta seria, provavel­ neira muito similar, mas há diferenças na ocorrência de condi­
mente, causa frequente de diarréia aquosa em idosos, acompa­ ções de origem autoimune e de asma, o que podería significar
nhada geralmente de emagrecimento e dor abdominal. Certa­ diferenças na imunopatologia. Tal como está, ainda não foi
mente, sua prevalência é subavaliada. devidamente estabelecido se a colite microscópica é uma enti­
dade distinta ou somente um epifenômeno de outras doenças
■ Etiologia que levam a alterações na camada de colágeno.

A etiologia das colites linfocitária e colágena é desconhe­


cida, podendo ser considerada, de uma forma ampla, como ■ Diagnóstico
uma alteração inflamatória inespecífica do cólon. A inflamação A queixa é de diarréia, em geral aquosa e profusa, com vários
aguda seria interpretada como uma benéfica e inespecífica res­ episódios diários e sem sangue nem pus. Cólicas acompanham
posta tissular frente a um agente agressor, levando, geralmente, ocasionalmente a diarréia. O conteúdo de eletrólitos nas fezes
a um resultado final de restauração da estrutura anatômica e sugere diarréia secretória. Não há repercussão sobre o estado
funcional do cólon. geral. O exame físico não aporta nenhum dado positivo. A co­
Para alguns, constituiríam etapas evolutivas de um mesmo lite colágena é sete vezes mais comum nas mulheres do que nos
processo patológico, embora essa progressão tenha sido am ­ homens, incidindo, em geral, na sexta década da vida. Há casos
plamente comprovada apenas em duas observações da litera­ diagnosticados na infância. A colite linfocitária é igualmente
tura. A associação de alguns casos com doenças autoimunes distribuída entre homens e mulheres, também mais frequente

423
424 Capítulo 38 / CoUte Microscópica, Colite Pseudomembranosa e Colite Radiógena

na sexta década da vida, embora surgindo um pouco mais cedo a 5-ASA, 1 a 4 g/dia, em doses divididas, associada, se neces­
do que a anterior (em média, aos 59 anos de idade para a CC sário, à loperamida. Em caso de insucesso ou de repercussão
e 54 anos para a CL). grave da doença, acrescentar corticosteroides. A resposta da CM
Os exames de laboratório servem para excluir outras doen­ aos antidiarreicos é, em geral, desapontadora, mas justifica-se,
ças. Não há contribuição do enema opaco. sobretudo, em pacientes com diarréia ainda em fase de estudo
A colonoscopia mostra uma mucosa macroscopicamente para o diagnóstico da CM.
inalterada, mas as biopsias são o elemento-chave para o diag­
nóstico correto. De fato, é o exame anatomopatológico que
permite diferenciar a colite colágena da colite linfocitária e de
■ Prognóstico
um cólon sadio. Este fato alerta os médicos para a indispen- A CC e a CL são doenças crônicas, de curso benigno. En­
sabilidade de biopsias apropriadas de reto e cólon para que tretanto, um número significativo de doentes pode apresentar
não se deixe passar o diagnóstico dessas doenças. Na CC, de- diarréia intermitente, ou diarréia contínua, exigindo medica­
posita-se colágeno sob a mucosa, levando a um espessamento ção prolongada.
significativo e não contínuo da camada basal subepitelial, mas
que respeita a basal periglandular. Esse colágeno é sobretudo
dos tipos 1 e III, fibrilar, e um pouco de colágeno de tipo VI, ■ COUTE PSEUDOMEMBRANOSA
portanto diferente do colágeno que constitui a camada sube­
pitelial do cólon sadio, que é do tipo IV, não fibrilar. A colite A ocorrência de diarréia em pacientes sob antibioticoterapia
linfocitária, por sua vez, caracteriza-se por um aumento das é fenômeno comum na prática diária, particularmente quando
células inflamatórias mononucleadas - monócitos e linfóci- se utilizam ampicilina e clindamicina. Habitualmente, a diarréia
tos - que se distribuem pelo córion e, sobretudo, pelo epitélio ocorre na vigência da utilização dos antibióticos, com resolução
superficial. Aqui, o aumento de linfócitos deve ser superior a espontânea após a interrupção das drogas. Na maioria das ve­
20/100 células epiteliais, contra um máximo de 6/100 no cólon zes, a diarréia se manifesta com pouca intensidade, não neces­
normal. Várias características histológicas são comuns às duas sitando de nenhum tratamento específico, e o exame de fezes
formas de colite, tais como o aumento de linfócitos intraepite- não demonstra a presença de leucócitos e não cresce nenhum
liais, lesões no epitélio de superfície e infiltrado mononuclear germe na coprocultura. A colite pseudomembranosa (CP), tam­
no córion. Na colite colágena, as lesões predominam no cólon bém denominada colite induzida por antibióticos, é geralmente
direito, daí a necessidade de retirar fragmentos de diferentes ocasionada pelo Clostridium difficile, através da liberação de
níveis do cólon. É preciso que o patologista separe bem a colite suas toxinas e em decorrência da superpopulação desse agente
colágena da esclerodermia, o que se faz, inclusive, em bases clí­ infeccioso, consequente ao uso de antibióticos. Poderá, também,
nicas. A amiloidose também pode gerar dúvidas, mas técnicas ser encontrada em pacientes imunodeprimidos, portadores de
apropriadas de coloração orientarão o diagnóstico. Atualmente, colopatias crônicas, sem história de uso de antibióticos, e, com
têm sido observadas evidências de doenças alérgicas ou alergias maior frequência, em aidéticos. O sistema digestório poderá ser
alimentares em pacientes com colite microscópica, podendo- totalmente envolvido no processo, desencadeando grave surto
se, desta forma, aventar a possibilidade de uma conexão entre infeccioso sistêmico, que necessita de pronto reconhecimento
esta entidade e alergia alimentar. e imediatas atitudes terapêuticas. O Clostridium diffiàle, reco­
nhecido como agente entérico endêmico em 1977, é encontrado
nas fezes de 15 a 25% dos pacientes com diarréia induzida pelos
■ Diagnóstico diferencial antibióticos, e em 5 a 10% dos que, apesar de estarem recebendo
O principal desafio é separar essas entidades do cólon irritá­ antibióticos, não apresentam diarréia. Essa porcentagem muda
vel. Muitas vezes, apenas a biopsia da mucosa do cólon permiti­ para 75% nos doentes que desenvolvem colite, e em quase 100%
rá que se chegue ao diagnóstico correto. Outras doenças, como se há pseudomembranas no cólon. O processo compromete
colite aguda, parasitoses, doenças inflamatórias intestinais, diar­ geralmente o reto e o cólon, e, mais raramente, o intestino del­
réia por laxativos, amiloidose cólica e colite isquêmica, também gado. Pode apresentar-se de maneira localizada ou difusa, com
deverão ser consideradas no diagnóstico diferencial. formação de placas exsudativas que se agregam, constituindo
as chamadas pseudomembranas, que vêm a ser uma resposta
inespecífica da mucosa intestinal frente à endotoxina A pro­
■ Tratamento duzida pelo agente bacteriano agressor. As colites associadas
A doença não se cura de maneira espontânea e evolui entre­ aos antibióticos representam importante situação clínica, com
meando crises e períodos de acalmia. Apesar de haver algumas incidência maior nos pacientes hospitalizados, estando presen­
diferenças entre CC e CL, o tratamento é o mesmo para ambas tes em 20% dos que receberam essas drogas, desencadeando
as formas. As duas formas respondem muito bem à sulfassa- alteração no equilíbrio da flora intestinal e permitindo, assim,
lazina, com ou sem corticoides, tanto VO quanto por clister. o desenvolvimento da bactéria anaeróbia. O C. difficile é facil­
Os índices de sucesso com o tratamento clínico alcançam 80 a mente encontrado nas enfermarias e banheiros dos hospitais,
90%. Recentemente, usou-se subsalicilato de bismuto em do­ sendo transmitido de paciente para paciente ou, então, através
ses altas, por 8 semanas, com resultados positivos tanto sobre do pessoal da enfermagem. Essas colites representam a maior
a diarréia quanto sobre as alterações histológicas. Na verdade, causa de diarréia em pacientes hospitalizados por período su­
vários medicamentos foram propostos, tais como loperamida (2 perior a 3 dias, com incidência de 7:1.000 pacientes. Apesar de
a 16 mg/dia) ou difenoxilato (2,5 a 10 mg/dia) para a diarréia, qualquer antibiótico poder induzir essas colites, assumem maior
octreotídio (100 mg TID), metronidazol (800 mg/dia), coles- importância a ampicilina, a clindamicina e as cefalosporinas.
tiramina (até 16 g/dia), mepacrina, corticosteroides sistêmicos Os sintomas poderão desenvolver-se logo no início da antibio­
e tópicos (incluindo a budesonida), 1 a 2 g de 5-ASA/dia e me- ticoterapia, ou, então, mais tardiamente, até após algumas se­
totrexato, e relata-se até um caso de remissão com omeprazol. manas. Assim, na vigência de quadros diarreicos, é importante
Do ponto de vista prático, como primeira tentativa, sugerimos a pesquisa da utilização pregressa de antibióticos.
Capítulo 38 / Colite Microscópica, Colite Pseudomembranosa e Colite Radiógena 425

Há uma peculiaridade envolvendo os recém-nascidos: 80% 10 mm de diâmetro, intercaladas com áreas de intensa hipere-
deles poderão ser portadores do C. difficile, muitos com cepas mia (Figura 38.1). Ao exame histológico do material colhido
toxigênicas, mas não desenvolvem a doença porque faltam re­ por biopsia, evidenciam-se ulcerações epiteliais, exsudato de
ceptores colônicos para as toxinas, que surgem apenas após fibrina e neutrófilos (Figura 38.2). Em cerca de 10% dos casos,
1 ano de vida. o processo é restrito ao cólon proximal e, portanto, não atingí­
vel pela retossigmoidoscopia. Nessas situações, é extremamente
importante a colonoscopia, procurando-se chegar ao ceco.
■ Quadro clínico
A maioria desses doentes apresenta diarréia aquosa mode­ ■ Ultrassonografia
rada, associada a desconforto abdominal no baixo ventre. Nas A ultrassonografia abdominal poderá ser de utilidade no
formas graves, a dor é tipo cólica, no baixo abdome, seguida de diagnóstico da CP. O achado ultrassonográfico é o de espes-
evacuações líquidas profusas, até 30 vezes/dia, com muco e, às samento grosseiro da parede intestinal com estreitamento da
vezes, sangue. Pacientes muito graves, podem desenvolver me- luz, mas é inespecífico. Entretanto, dentro do contexto clínico,
gacólon e até perfuração intestinal. Há febre e alterações hidre- esses dados poderão corroborar o diagnóstico.
letrolíticas, moderadas ou acentuadas. A palpação do abdome
desperta dor no baixo ventre, e, eventualmente, notam-se sinais ■ Tom ografia com putadorizada (TC)
de irritação peritoneal. A TC do abdome apresenta características próprias na CP,
Em algumas situações, o quadro poderá encaminhar-se para revelando o segmento intestinal comprometido, geralmente
uma forma chamada fulminante da colite, com toxemia cau­
sada pela sepse, manifestando-se com dor, febre, taquicardia e
distensão abdominal.
Lesões extensas da mucosa intestinal podem causar perda
significativa de proteínas e consequente hipoalbuminemia.

■ Exames complementares
■ Bioquím ica
O leucograma mostrará leucocitose expressiva, dependendo
da intensidade do processo. É importante monitorar as dosa-
gens séricas de eletrólitos, especialmente de sódio e potássio,
além de outros parâmetros, como ureia, creatinina, proteínas
séricas, gasimetria e outros que se fizerem necessários para ava­
liar o doente e promover as devidas reposições.

■ Exame de fezes
O C. difficile produz dois tipos de toxina: A, que é uma ente-
rotoxina, e B, que é uma citotoxina. O diagnóstico da CP poderá
ser afirmado pelo encontro, nas fezes, da toxina B, com especi­ Figura 38.1 Colite pseudomembranosa. Aspecto endoscópico de
ficidade de até 99% e sensibilidade de 95%. Porém, esse teste de cólon sigmoide, com formações pseudopolipoides e placas de fibrina.
detecção das toxinas por anticorpos e cultura de células pode (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
demorar até 48 h, e, em uma emergência, podemos optar pelo
teste ELISA para verificação das toxinas A e B, que apresenta
sensibilidade menor, entre 70 e 85%, mas é mais rápido.
A cultura para o C. difficile é dispensável, pois, além de ser
demorada, não identifica a presença de cepas toxigênicas.
A presença de leucócitos nas fezes é verificada em apenas 50%
das situações, não sendo fundamental para o diagnóstico.

■ Radiografias simples de abdom e


Quando o acometimento é mais grave, a radiografia sim­
ples do abdome é importante no sentido de avaliar possível
distensão do cólon e/ou formação de megacólon tóxico, ou de
pneumoperitônio.

■ Endoscopia
O exame endoscópico, através da retossigmoidoscopia
e/ou da colonoscopia, permitirá uma avaliação diagnóstica mais
rápida e, consequentemente, uma pronta ação terapêutica. Nos
doentes com sintomatologia moderada, o aspecto endoscópico
Figura 38.2 Colite pseudomembranosa. Aspecto panorâmico micros­
da mucosa do reto e cólon poderá ser normal ou, então, evi­ cópico mostrando necrose da mucosa e substituição por pseudomem-
denciar processo inflamatório difuso, moderado e inespecífico brana de fibrina, exsudato de neutrófilos e restos de células epiteliais,
da mucosa. Nas formas graves, encontramos a típica CP, com conforme indicação das setas. (Esta figura encontra-se reproduzida
a presença de placas amareladas aderentes à mucosa, com 2 a em cores no Encarte.)
426 Capítulo 38 / CoUte Microscópica, Colite Pseudomembranosa e Colite Radiógena

reto e cólon esquerdo, com suas paredes espessadas e aspecto formas recorrentes da colite pseudomembranosa, com resul­
sanfonado, além de acusar ascite e edema pericolônico. Essas tados imunogênicos satisfatórios.
alterações são identificadas também na criança, não só no adul­
to. Os seguintes achados da TC são mencionados: espessamen-
to circunferencial da parede do cólon em 78%; espessamento ■ COUTE RADIÓGENA
nodular das haustrações em 44%; edema pericolônico em 33%;
e ascite em 11% dos pacientes avaliados. A colite radiógena resulta de agressão à mucosa retossigmoi-
deocólica por irradiação terapêutica de cânceres em geral locali­
■ Diagnóstico diferendal zados na bexiga, no reto e ginecológicos. Ocorre em 2 a 20% dos
Devemos considerar outros processos infecciosos que pode­ pacientes submetidos à radioterapia pélvica. Considera-se que
ríam provocar diarréia em pacientes hospitalizados. As doenças a quantidade de radiação necessária para lesar o intestino varia
inflamatórias intestinais, nas suas manifestações agudas, par­ de doente para doente e com o tipo de tratamento. Entretanto,
ticularmente a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa, além é pouco usual doses de até 4.000 cGy causarem lesão, mas, na­
da colite isquêmica, também deverão ser consideradas. queles acima de 5.000 cGy, essa possibilidade é elevada. A lesão
pode ser aguda ou crônica e desenvolve-se rapidamente após o
■ Complicações início da irradiação. Entretanto, pode manifestar-se meses ou
As formas fulminantes de CP, com intensa desidratação, anos após a radioterapia, e o início da sintomatologia é estima­
perda de eletrólitos e sepse, poderão evoluir muito rapidamen­ do, em média, em 6 a 12 meses. Caso se suspeite de lesão da m u­
te para uma dilatação aguda do cólon (megacólon tóxico), se­ cosa logo de início e o tratamento radioterápico seja suspenso,
guida de perfuração, peritonite e, por sua extrema gravidade, há recuperação total sem terapêutica especial. Se o médico in­
caminhar para óbito. Pacientes portadores de psoríase, em uso siste com a irradiação, então tanto poderá desenvolver-se uma
de drogas como fluouracil ou metotrexato, poderão apresentar forma aguda quanto uma forma crônica. Esta não só pode surgir
colite pseudomembranosa, e estudos têm demonstrado a pre­ em continuidade imediata ao processo agudo como manifestar-
sença da toxina do Clostridium. As formas crônicas evoluem se até meses, ou anos, depois de cessada a irradiação. Como,
com emagrecimento e poderão evidenciar uma enteropatia per­ em geral, o tratamento é indicado por tumores que se assentam
dedora de proteínas. na bacia, a maioria das lesões localiza-se no sigmoide e reto,
mas o cólon proximal e mesmo o intestino delgado também
■ Tratam ento podem ser atingidos (Figura 38.3). De fato, o intestino delgado
é comprometido em cerca de 1 a 5% dos pacientes submetidos
Nas formas moderadas, a suspensão da antibioticoterapia
à radioterapia pélvica, representando uma complicação de ex­
geralmente é suficiente para a pronta resolução do processo,
trema gravidade, com mortalidade elevada (10 a 20%). Nessas
sem necessidade de qualquer terapêutica específica.
situações, o tratamento é cirúrgico, consistindo na remoção
Nas formas mais graves, é importante a reposição hidrele-
do segmento intestinal afetado. Todavia, pela ação deletéria da
trolítica, além de suporte metabólico através de nutrição pa-
radioterapia, há maior incidência de deiscência de anastomose
renteral. A terapêutica medicamentosa consiste basicamente
na administração endovenosa de metronidazol (500 mg a cada
8 h), associado a vancomicina (500 mg a cada 6 h). A vanco-
micina é um remédio caro, e há grupos que aconselham do­
ses de 125 mg, 4 vezes/dia VO (o medicamento é ineficaz IV),
sendo atualmente preconizada a sua utilização VR. A melhora
é notada após 72 h. A duração é de 10 a 14 dias. Não há oferta
de vancomicina oral no mercado brasileiro, mas podemos nos
servir da forma parenteral VO (Vancocina®, Vancomicinal>;).
As drogas antidiarreicas, particularmente a loperamida, de­
vem ser evitadas, pois atuam diminuindo a motilidade do có­
lon, permitindo uma exposição mais prolongada da mucosa ao
agente agressor. Essa redução da motilidade, inibindo o peris-
taltismo, poderá levar, também, à formação de dilatação aguda
do cólon. A colestiramina, na dose de 4 g, 3 ou 4 vezes/dia, como
resina de troca aniôntica, tem a propriedade de se ligar à toxi­
na bacteriana, reduzindo, assim, a sua capacidade de agressão.
É preciso lembrar que a resina se liga também à vancomicina,
diminuindo os níveis do antibiótico no cólon.
Cerca de 20% dos pacientes apresentam recorrência dos
sintomas após 1 a 2 semanas do término do tratamento, seja
devido à reinfecção, seja à falha de erradicação do C. difficile.
Nessas situações, poderemos reintroduzir a terapêutica com
metronidazol e vancomicina VO, durante até 4 semanas. Não
há necessidade da troca dos antimicrobianos, pois não existe,
senão raramente, resistência a eles. Foi sugerido tratamento
complementar com Lactobacillus (1 a 2 g VO, 4 vezes/dia) ou Figura 38.3 Estudo radiológico contrastado do intestino delgado
com Saccharomyces boulardii em casos recorrentes de colite mostrando segmento de alça distai estenosado pela açáo da radiote­
pseudomembranosa. Vacina de uso parenteral, contendo to- rapia em uma paciente previamente operada por neoplasia de ovário
xoide A e toxoide B, tem sido considerada no tratamento das direito.
C a p ítu lo 3 8 / C o lite M icro scó p ica , C o lite P se u d o m e m b ra n o sa e C o lite R a d ió g e n a 427

e consequente formação de fístulas, que, muitas vezes, exigem


repetidas intervenções, agravadas por alta morbidade. Por isso,
em algumas condições, e para evitar a possibilidade de fístula,
indica-se a realização de derivações do trânsito intestinal, não
removendo o segmento comprometido.

■ Anatomia patológica
Do ponto de vista histológico, notam-se sinais inflamatórios
representados por infiltrado celular e abscessos de criptas, com
eosinófilos na fase aguda. Como o tumover das células intes­
tinais é rápido, os efeitos da radiação aguda sobre a mucosa e
submucosa tendem a ser limitados, manifestados por diarréia,
má absorção e dor abdominal. Na fase crônica, o processo pa­
rece decorrer de vasculite e endarterite. Nessa fase, todas as
camadas do intestino são atingidas, inclusive a serosa. Como
há isquemia decorrente de trombose arteriolar ou venosa, pode Figura 38.4 Peça cirúrgica da paciente da Figura 38.3. Segmento de
haver hipoxia tissular, que vai manifestar-se como espessamen- intestino delgado distai irradiado, com espessamento da parede e
to de várias camadas do intestino. Estenoses no reto e fístulas mucosa de coloração esbranquiçada e superfície lisa. (Esta figura en­
interintestinais, com a bexiga ou com a vagina, são notadas em contra-se reproduzida em cores no Encarte.)
variável número de casos.

■ Diagnóstico O sangramento é causado por telangiectasias, e, como m en­


cionado, os tratamentos endoscópicos por eletrocoagulação
Os doentes se queixam de diarréia, tenesmo, dores em có­ ou por formalina tópica, nessa eventualidade, são os mais in­
lica e sangue nas fezes. Os sintomas mais frequentes são san- dicados. A endoscopia pode utilizar três procedimentos: laser;
gramento retal (71%) e alteração do hábito intestinal (27%). eletrocoagulação multipolar; eletrocoagulação com plasma de
Dependendo da intensidade do processo, haverá repercussão argônio. Esta forma de tratamento (argônio) não requer con­
sobre o estado geral, com emagrecimento, anemia e hipoprotei- tato do aparelho com a mucosa, atinge apenas as camadas su­
nemia. O enema demonstra alterações, tais como modificações perficiais da mucosa, as complicações são raras e o custo não
da mucosa, perda de haustrações, estreitamentos, ulcerações e é elevado.
fístulas. Essas alterações são também encontradas à endosco- A coloproctite radiógena é decorrente de várias alterações
pia do cólon, além de se evidenciarem friabilidade da mucosa arquiteturais, como já se mencionou: inflamação crônica (in­
e telangiectasias. As biopsias podem não ser muito evocativas, filtração celular por linfócitos e células plasmáticas), abscessos
porque as lesões mucosas não são específicas. eosinofílicos de criptas e alterações vasculares. Estas incluem
edema de células endoteliais, trombos de fibrina, destruição de
■ Tratamento arteríolas, neovascularização, angiectasias localizadas na m u­
cosa, friáveis e cercadas por epitélio atrófico. Essas alterações
As formas leves são tratadas sintomaticamente. A hemorra­ contribuem para a isquemia da parede intestinal, e esta induz
gia recorrente é muitas vezes refratária ao tratamento médico e fibrose difusa na lâmina própria e na submucosa, que, por sua
pode exigir transfusão de sangue. Tenta-se tratar as lesões mais vez, piora a isquemia. Por tudo isso, percebem-se as dificul­
graves com sulfassalazina, ou 5-ASA, e corticoides tópicos (ene­ dades do tratamento. Entretanto, os resultados dos métodos
ma) ou sistêmicos, com muitos insucessos em casos graves. A terapêuticos mencionados anteriormente têm sido considera­
eletrocoagulação ou a formalina tópica são as opções modernas dos razoavelmente bons, especialmente com o uso de plasma
mais interessantes (ver adiante), e o emprego do plasma de ar- de argônio.
gônio ou a formalina tópica é considerado como procedimento A cirurgia pode ser necessária em alguns casos complicados
de primeira linha, especialmente quando há hemorragia. A for­ ou incontroláveis clinicamente (Figuras 38.3 e 38.4), mas é bom
malina tem o inconveniente de ser um tratamento longo para lembrar que é acompanhada por elevada incidência de com­
o processo inflamatório, embora de custo baixo. O mecanismo plicações e insucessos, além de significativa morbidade. Cerca
pelo qual a formalina faz cessar o sangramento não é claro, mas de 50% dos doentes que sobrevivem à sua primeira operação,
se acredita que ela provoque necrose por coagulação na mucosa indicada pela enterite radiógena, serão submetidos a outras
superficial e um exsudato de fibrina, que, juntos, formam uma cirurgias. Desses pacientes, 25% morrerão em decorrência da
camada de restos necróticos, que induzem a hemostasia. enterite radiógena e suas complicações.
Para a diarréia, usam-se antiespasmódicos e antidiarreicos
(loperamida).
Alguns casos, com obstrução ou fístula interintestinal, de­
senvolvem um quadro de supercrescimento bacteriano, que
■ LEITURA RECOMENDADA
exigirá antibióticos. Amico, EC, Nahas, SC, Cancdo, LF, Bovc, CR, Bringcl, RW, Araújo, SEA. Tra­
Descreveu-se o tratamento de proctite radiógena com su- tamento cirúrgico da complicação actínica crônica do intestino delgado.
cralfato oral, 3 a 4 g/dia, por 1 a 3 meses. O resultado foi con­ Rev. Bros. Coloproct., 1999; i 9:172-6.
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Constipação Intestinal e
Fecaloma
José Alves de Freitas e Mounib Tacla

pleta como sinônimo de constipação intestinal. Considerando


■ CONSTIPAÇÃO INTESTINAL que se trata de uma sensação subjetiva, torna-se muito difícil
De todas as funções corporais do homem, a defecação talvez uma definição adequada. Devido a isso, foram desenvolvidos
seja a menos compreendida e menos estudada. A maioria dos critérios objetivos baseados na frequência das evacuações para
dados publicados refere-se aos hábitos intestinais de enfermei­ se chegar a uma definição satisfatória. Estudos populacionais
ros, estudantes, prisioneiros e pessoas idosas. Poucos são os es­ revelaram que 94 a 100% das pessoas sadias apresentam entre
tudos em que se avaliou criteriosamente a população adulta em 3 evacuações por dia e uma exoneração 3 vezes/semana. Es­
geral. É uma situação que acomete tanto crianças como adultos, ses achados permitiram definir constipação intestinal, de uma
notadamente mulheres, e, na grande maioria dos casos, não se maneira simplista, como a evacuação intestinal abaixo de 3
encontra nenhuma causa orgânica, sendo, por isso, rotulada vezes/semana. A tentativa de padronizar a definição iniciou-
de constipação intestinal funcional. se em 1992, com a publicação dos critérios de Roma. Assim
A frequência das evacuações constitui um dado de fácil aces­ mesmo, não se conseguiu um consenso; basta observar que
so, porém de pouca relevância em termos de função colônica, foram atualizados em 1998 (Roma II) e 2006 (Roma III). De
apresentando pouca ou nenhuma relação com o tempo de trân­ acordo com estes critérios, não devemos nos fixar apenas no
sito intestinal e com o peso fecal diário. número de evacuações, mas também na qualidade delas. Um
Constipação intestinal não é uma doença, mas meramente grupo de estudo criado recentemente pelo Colégio Americano
um sintoma. Isso ocasiona confusão entre médicos e pacientes, de Gastrenterologia, denom inado"Chronic constipation task
acarretando falhas na terapêutica. Como sintoma, pode indicar force”, sugere a seguinte definição para constipação intestinal:
várias doenças. O diagnóstico tem um espectro tão amplo quan­ defecaçãoinsatisfatóriacaracterizadaporreduzidonúmero
to o da dor abdominal. Apresenta diferentes significados para deevacuaçõesedificuldadeparaevacuar,pelomenosnosúl­
diferentes pacientes, dependendo do que cada um considera timos3meses. A mencionada dificuldade para evacuar inclui:
padrão normal de defecação. O paciente pode estar queren­ • fezes endurecidas ou em cíbalos;
do dizer que as fezes são muito pequenas, muito duras, muito • necessidade de esforço para evacuar;
difíceis de serem expelidas, ou que as evacuações são pouco • sensação de evacuação incompleta;
frequentes, ou, ainda, que persiste sensação de evacuação in­ • sensação de obstrução anorretal; ou
completa após a defecação. • necessidade de usar manobras manuais para facilitar a
Trata-se de uma das principais queixas em Medicina, cons­ evacuação.
tituindo a segunda causa mais frequente de visita ao gastren-
terologista. Nos EUA, estima-se em 2,5 milhões de consultas A utilização dos Critérios de Roma tem sido muito criticada,
anuais devido à constipação intestinal. pois consideram constipação intestinal funcional e síndrome do
intestino irritável como distúrbios distintos. Estudos recentes
realizados nos EUA demonstraram que é impossível distin­
■ DEFINIÇÃO guir síndrome de intestino irritável e constipação intestinal
funcional através dos critérios de Roma III. Além do mais, a
Definir constipação intestinal é uma tarefa difícil, pois não classificação ficou muito detalhada, dificultando sua utilização
dispomos, até hoje, de critérios objetivos universalmente acei­ na prática clínica.
tos. Em um amplo inventário sobre hábitos intestinais realizado
nos EUA, em que fora solicitado a adultos aparentemente nor­
mais que definissem constipação intestinal, 52% disseram que ■ CARACTERÍSTICAS FÍSICAS DAS FEZES
se tratava de “dificuldade para evacuar”; 44%, de "fezes duras”;
32%, de “diminuição na frequência das evacuações”. Várias ► t a m a n h o . O calibre das fezes não pode ser dimensionado
pessoas incluíram desconforto abdominal e evacuação incom­ adequadamente devido à deformação do bolo fecal pelas estru­

429
430 C a p ítu lo 3 9 / C o n stip a ç ã o In te stin a l e F e ca lo m a

turas constituintes da região anorretal e pela força da gravidade gicos realizados nos EUA estimam mais de quatro milhões de
durante o ato da defecação. Pacientes constipados relatam fezes pessoas constipadas apenas nesse país. Levantamento epide-
finas como um lápis, ou volumosas, ou fragmentadas em vários miológico feito na Inglaterra revelou que 29% da população
tamanhos, como fezes de cabra. toma laxativos, mas somente 1/5 é constipado. Na França, são
► c o m p r i m e n t o . Noventa por cento das pessoas normais es­ vendidos anualmente 36 milhões de comprimidos laxativos.
vaziam apenas o reto quando defecam; os outros 10% esvaziam Em nosso meio, estudo realizado por Kingma, em Belo Hori­
0 cólon, desde a flexura esplênica até o ânus. zonte, revendo 1.000 prontuários de sua clínica gastrenteroló-
► p e s o f e c a l . O peso normal das fezes pode variar de 35 a gica, revelou que:
450 gramas por evacuação, nos homens, e de 5 a 335 gramas, nas
1. °) de 500 pacientes do sexo masculino, 37 (7,4%) apresen­
mulheres. Estudos realizados em diferentes países demonstra­
tavam constipação intestinal, e, em 17 destes (45,9%), essa era
ram que o peso médio das fezes foi de 100 gramas na Inglaterra
a queixa principal;
e nos EUA, 300 gramas na índia e 500 gramas em Uganda. Essa
2. °) de 500 pacientes do sexo feminino, 104 (20,8%) apre­
ampla variação deve-se ao teor de fibras na dieta.
sentavam constipação intestinal, sendo, em 45 (43,3%), a quei­
► c o n s i s t ê n c i a . A consistência das fezes pode ser determina­
xa principal.
da objetivamente através da força necessária para fazer passá-las
por um tubo fino, ou observando-se a profundidade de penetra­ A incidência pode variar na dependência de vários fatores,
ção de um objeto no bolo fecal. Existem variações apreciáveis incluindo os citados a seguir.
► i d a d e . A ocorrência de constipação intestinal aumenta
de indivíduo para indivíduo e do homem para a mulher.
muito após os 60 anos. Estatísticas revelam que 21 a 34% das
► f r e q u ê n c i a . É, sem dúvida, o parâmetro mais fácil de quan­
mulheres e 9 a 26% dos homens, após 65 anos, são constipados.
tificar e o de maior aplicação clínica. A grande maioria das pes­
É interessante ressaltar que isso não representa uma conse­
soas normais, em várias amostras da população geral, evacua
quência fisiológica do envelhecimento. A etiologia nestes casos
1 vez/dia, e raramente alguém evacua menos de 5 vezes/sema-
é multifatorial, incluindo comorbidades, diminuição da moti-
na. Entretanto, essa frequência pode ser alterada por inúmeros
lidade, defecação e medicamentos.
fatores, tais como cultura, hábitos alimentares, atividade física,
► s e x o . Meninos em geral apresentam maior incidência do
educação e fatores emocionais.
Uma maneira prática de se avaliarem não só as característi­ que meninas. Essa situação se inverte na idade adulta, sendo
cas das fezes, mas também a correlação com o tempo de trân­ até duas vezes mais frequente na mulher.
► s e d e n t a r i s m o . Pessoas sedentárias têm maior dificuldade
sito, é a utilização da Escala de Bristol para o formato das fezes
(Figura 39.1). para evacuar e o fazem com menor frequência.

■ EPIDEMI0L0GIA ■ ETI0PAT0GENIA
A constipação intestinal é um dos sintomas mais comuns Do ponto de vista etiopatogênico, podemos classificar a
em Medicina. Constitui a segunda queixa mais frequente na constipação intestinal em três grupos:
gastrenterologia atrás apenas da dor abdominal. Entretanto, • primária;
devido às dificuldades para definir exatamente o que é hábito • secundária ou orgânica;
intestinal normal, torna-se muito difícil, também, avaliar a in ­ • idiopática ou funcional.
cidência real. Em inquérito realizado em um hospital geral, en­
volvendo grande número de pacientes, somente 38% disseram
nunca terem tido constipação intestinal. Estudos epidemioló- ■ Constipação intestinal primária
Também chamada de constipação intestinal simples, é aque­
la provocada por situações inerentes aos hábitos de vida do pa­
ciente ou por outras circunstâncias, geralmente banais (Qua­
dro 39.1). Neste caso, a anatomia do órgão está preservada.
Trânsito lento
Ex^lOO h
P o d a ç o s s o p n rn d o s , ■ I n g e s t a a l i m e n t a r in a d e q u a d a
■ Tipo 1 d u ro s c o m o a m e n d o in s
o % ° 0 °
A anamnese cuidadosa de pacientes constipados que não
F o r m a d o s a ls ic h a , m a s
Tipo 2 s o g m o n tn d a
apresentam causa orgânica revela ingesta reduzida de fibras, ou
F o r m a d o s a ls ic h a c o m
Tipo 3 fis s u ra s s u p o rfic ia ls

F o r m a d o s a ls ic h a o u
Tipo 4 c o b ra lis a o m o lo -----------------------▼-----------------------
P o d a ç o s m o lo s , m a s Q u a d r o 3 9 .1 H á b it o s d e v id a q u e p r o v o c a m c o n s tip a ç ã o
Tipo 5 c o n to r n o s n ítid o s
P o d a ç o s fofo s o
Tipo 6 c o n to r n o s o s g a rç a d o s
Ingesta alimentar inadequada
A q u o sa , som podaços Sedentarismo
Tipo 7 s ó lid o s L íq u id a Gravidez
Trânsito rápido Perda do reflexo da evacuação
Ex j 10 h Postura
Viagens
Figura 39.1 Escala de Bristol para o formato das fezes. Adaptada de Pouca disponibilidade de sanitários
Heaton.KWera/., 1992.
C a p ítu lo 3 9 / C o n stip a ç ã o In te stin a l e F e ca lo m a 431

até mesmo desnutrição, em 90% dos casos. Como sabemos, a cossociais. As situações mais frequentes são: doenças do cólon,
presença de fibras vegetais na dieta acelera o trânsito colorretal, doenças neurológicas, distúrbios endócrinos, medicamentos e
aumenta o peso das fezes e a frequência das evacuações. distúrbios psiquiátricos.
Além da dieta pobre em fibras, é frequente a ingesta de quan­
tidade inadequada de líquidos. ■ D o e n ç a s d o c ó lo n
Qualquer condição que provoque estreitamento anatômico
■ S e d e n t a r is m o ou bloqueio mecânico do lúmen intestinal pode produzir cons­
A vida sedentária, em si, não constitui fator importante na tipação intestinal. As principais enfermidades responsáveis por
etiopatogenia da constipação intestinal. Em estudo realizado essa situação estão listadas no Quadro 39.2. Devemos lembrar
nos EUA, demonstrou-se que a frequência das evacuações não sempre que a constipação intestinal, sobretudo se acompanha­
é influenciada por exercícios físicos. Entretanto, a inatividade da de hemorragia, pode ser o primeiro sintoma de câncer do
física, notadamente nos idosos, associada à postura antifisio- cólon ou do reto.
lógica para defecar, colabora para a ocorrência de constipação As lesões extraluminais e, em certos casos, até extraintes-
intestinal. Além disso, os músculos diafragmáticos, abdominais tinais, como cistos ovarianos, miomas, tumores da próstata,
e pélvicos atuam na fase expulsiva da evacuação, e a inatividade dependendo do tamanho, podem ocasionar constipação intes­
física debilita esses músculos. tinal por compressão extrínseca, ao passo que hérnias, vólvulos
e invaginação o fazem por obstrução intestinal.
■ G ra v id e z As lesões luminais em geral ocupam espaço, reduzindo a luz
A mulher grávida pode ficar constipada por dois motivos: do órgão, produzindo, dessa forma, constipação intestinal.
alterações hormonais e compressão extrínseca que o útero gra- O dolicocólon é uma alteração muito frequente, podendo
vídico faz sobre o intestino. atingir 14% dos indivíduos adultos. Caracteriza-se pelo alon­
gamento do intestino grosso, especialmente do cólon esquerdo
■ P e r d a d o r e f le x o d a e v a c u a ç ã o e sigmoide. Nem sempre apresenta sintomas e, em geral, cons­
A manutenção da continência dos esfíncteres anais interno titui achado radiológico.
e externo é complexa e de grande importância, pois permite ao A doença diverticular, embora muito frequente, sobretu­
indivíduo controlar a evacuação, contraindo voluntariamente do nos indivíduos acima de 60 anos, é assintomática. Não só
esses esfíncteres, e, portanto, defecar em hora e local adequa­ a doença diverticular em si, mas também suas complicações
dos. Algumas pessoas condicionam o ato de defecar a rituais os
mais diversos, entre eles: ingerir água ou café em jejum; fumar
logo ao se levantar; ler jornais ou revistas etc. Entretanto, na
maioria das pessoas, o desejo de evacuar ocorre após a primeira -------------------------------------------------▼ -------------------------------------------------
refeição do dia, podendo se repetir após as outras refeições. É Q u a d r o 3 9 . 2 D o e n ç a s d o c ó lo n a s s o c ia d a s à c o n s tip a ç ã o
o chamado reflexo gastrocólico. Estudos recentes de fisiologia
demonstraram que o bloqueio voluntário e repetido do desejo Extraluminais
de evacuar provoca alterações, por vezes definitivas, nos me­ • Tumores
canismos sensoriais, de tal forma que a chegada de mais fezes • Vólvulos crônicos
• Hérnias
no reto não é capaz de provocar o desejo de evacuar.
Em pacientes com a síndrome do cólon irritável, podem Luminais
ocorrer alterações do limiar de sensibilidade à pressão provo­ • Tumores
• Estenoses
cada pela distensão retal, e, portanto, eles apresentam hipoati- • Diverticulite
vidade do reflexo da defecação. • Linfogranuloma venéreo
. Sífilis
■ P o s iç ã o • Tuberculose
• Colite isquêmica
A posição ereta adotada pelo homem na sua evolução reduziu a • Endometriose
velocidade de progressão do bolo alimentar, devido às angulações • Cirurgias
formadas no estômago e alças intestinais, através dos ligamentos
e flexuras, que funcionam como um obstáculo mecânico. Alterações da Musculatura e da Inervação
• Dolicocólon
• Miopatia visceral familial
■ V ia g e n s • Doença diverticular
Durante viagens, é comum a mudança do hábito intestinal, • Distrofia miotônica
consequente à alteração na dieta habitual e no hábito evacua- • Distrofia muscular de Duchenne
• Dermatomiosite
tório do indivíduo. Entretanto, essa situação geralmente é tran­ • Amiloidose
sitória, normalizando-se com a volta à rotina.
Lesões do reto
• Prolapso interno do reto
■ P o u c a d i s p o n i b i l i d a d e d e s a n it á r io s
• Retocele
A inexistência de locais adequados para defecar pode inibir • Proctite ulcerativa
o reflexo da evacuação. Geralmente, ocorre com crianças em • Tumores
idade escolar ou com pessoas que trabalham em locais públicos, Estenose anorretal
com sanitários anti-higiênicos. Tumor pré-sacral
Deformidade do sacro
Lesões do canal anal
■ Constipação intestinal secundária • Estenoses
• Fissura anal
Neste caso, a constipação intestinal é ocasionada por uma • Prolapso da mucosa anal
doença sistêmica, por iatrogenia ou, então, por problemas psi-
432 C a p ítu lo 3 9 / C o n stip a ç ã o In te stin a l e F e ca lo m a

podem produzir constipação intestinal por estase intestinal, --------------------------- T---------------------------


decorrente da hipertrofia da musculatura do cólon ou de pro­ Q u a d r o 3 9 . 4 D o e n ç a s e n d ó c rin a s e m e t a b ó lic a s q u e g e r a m c o n s tip a ç ã o
cessos inflamatórios. in te s tin a l
Certos tipos de enfermidades neuromusculares, tais como
miopatias, distrofias e doenças escleroatróficas, podem aco­ Endócrinas Metabólicas
meter as estruturas da parede colônica e ser responsáveis por
Hipotireoidismo Hipercalcemia
constipação intestinal. Felizmente, tais doenças são raras.
Qualquer lesão, quer seja do reto ou do ânus, que provoque Pseudo-hipoparatireoidismo Hipopotassemia
dor durante a evacuação pode gerar obstipação, pois a pessoa Feocromocitoma Addose
evita evacuar. Se esse bloqueio voluntário do reflexo da evacu­ Glucagonoma Desidratação
ação se prolonga, pode condicionar o indivíduo a não evacuar. Diabetes Uremia
As lesões que mais frequentemente ocasionam esse problema
são abscessos, fissuras, prolapsos, retocele e tumores. Em algu­
mas circunstâncias, pode ocorrer estenose anorretal, sobretudo
após operações nessa região, dificultando a evacuação.
acometidos tornam-se atônicos e muito dilatados. Pode ocor­
■ D o e n ç a s n e u r o ló g ic a s rer acúmulo de material fecal em todo o cólon. Há casos de
As lesões do sistema nervoso, tanto central quanto peri­ pacientes que passam 20 ou mais dias sem evacuar.
férico (Quadro 39.3), frequentemente produzem constipação Inúmeras lesões do sistema nervoso central ou medular po­
intestinal. dem evoluir com obstipação intestinal. Quando a lesão é central,
O Hirschsprung é uma afecção congênita caracterizada pela a constipação intestinal se deve ao comprometimento do siste­
ausência, ou redução, dos plexos nervosos em determinados ma neuromotor intestinal. Já nas lesões medulares, a magnitude
segmentos do intestino. A região afetada torna-se espástica, do problema está na dependência do segmento acometido.
acarretando estenose funcional. A ausência de inervação in­
terrompe o estímulo nervoso nesse segmento. Essa doença é ■ D is t ú r b io s e n d ó c r in o s e m e t a b ó lic o s
responsável por 1/3 dos casos de obstrução intestinal neonatal. Constipação intestinal pode ser a queixa principal de inúme­
A forma localizada no cólon e no reto é mais comum na infân­ ros distúrbios endócrinos e metabólicos (Quadro 39.4). Assim,
cia, mas, em alguns casos, pode se apresentar após a segunda pacientes com pseudo-hipoparatireoidismo apresentam, em
década de vida, apesar de ser congênita. geral, constipação intestinal grave como único sintoma, que
Tanto a diminuição quanto o aumento da concentração desaparece com a normalização da calcemia. Constitui, tam­
neuronal no intestino (hipo e hiperganglionose) podem cau­ bém, queixa frequente nos casos de infiltração mixedematosa,
sar constipação intestinal. Em geral, constituem situações de feocromocitoma e glucagonoma. Cerca de 15% dos diabéticos
difícil diagnóstico, pois não conhecemos a concentração neu­ são constipados. Nesse caso, o mecanismo provável é a neuro­
ronal normal. Em algumas situações, o número de neurônios patia autonômica.
é normal, mas sua função é ineficaz. Os distúrbios metabólicos geram, quase sempre, uma dimi­
Muitos casos de constipação intestinal nos quais não se en­ nuição de água no organismo, além de redução no peristaltis-
contra uma causa evidente podem ser devidos à neuropatia mo. Dessa forma, evoluem com obstipação intestinal.
autonômica, isto é, alterações do sistema nervoso autônomo.
Não sabemos se as alterações neuronais, nesses casos, são cau­ ■ M e d ic a m e n to s
sas ou consequências da constipação intestinal. O diagnóstico Um grande número de drogas, por diversos mecanismos,
é sempre muito difícil. pode induzir a constipação intestinal (Quadro 39.5). Até mesmo
A doença de Chagas constitui uma das causas mais frequen­
tes de constipação intestinal em nosso meio. Caracteriza-se
por destruição dos plexos neuronais da musculatura lisa do
intestino, especialmente o plexo de Auerbach. Os segmentos ----------------------------- ▼-------------------
Q u a d r o 3 9 . 5 D r o g a s q u e in d u z e m c o n s tip a ç ã o

Analgésicos
----------------------------- ▼ Anestésicos
Q u a d r o 3 9 . 3 C o n s tip a ç ã o d e o r ig e m n e u r o g ê n ic a *• Antiácidos (à base de cálcio e alumínio)
Antiarrítmicos
Periférica Anticolinérgicos
• D o e n ç a d e H ir s c h s p r u n g
• H i p o o u h ip e r g a n g lio n o s e
Antidepressivos
• N e u r o p a t ia a u t o n ô m ic a Anti-hipertensivos
• D oença de Chagas Antiparkinsonianos
Bismuto
Central (Cerebral e Medular)
Bloqueadores ganglionares
• Tu m o re s
• A c id e n t e v a s c u la r c e re b ra l Diuréticos
• P a rk in s o n Hematínicos (especialmente à base de ferro)
• Tabes dorsalis Inibidores da MAO
• E s d e r o s e m ú lt ip la
Intoxicação por metais pesados
• T r a u m a r a q u im e d u la r
• T u m o r d a c a u d a e q u in a
Opiáceos
• M e n in g o c e le Parassimpaticol (ticos
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 433

o uso abusivo de laxativos tem sido implicado como causador de


constipação intestinal orgânica, presumivelmente por lesar as
estruturas nervosas do cólon. Entretanto, estudos a esse respeito
são retrospectivos, e, portanto, as conclusões são discutíveis.

■ Distúrbios psiquiátricos
Pacientes que sofrem de depressão, ansiedade e, sobretudo,
aqueles com distúrbios psiquiátricos mais sérios (psicose, neu­
rose, anorexia nervosa, entre outros) geralmente apresentam,
entre suas queixas, constipação intestinal. Nesses casos, é pre­
ciso atenção especial, pois, muitas vezes, a queixa é constipação
intestinal, mas, na verdade, o paciente não se sente satisfeito
com a evacuação, quer seja quanto ao volume de fezes, quer
seja na consistência, ou até mesmo na sensação da evacuação
em si.
Muitas vezes, são pacientes fóbicos e, nas suas fantasias,
creem ser portadores de grave doença intestinal.
Nos pacientes com anorexia nervosa, a reduzida ingesta de
água e alimentos é a causa da constipação intestinal. Na sín-
drome do cólon irritável, com predomínio de constipação in­
testinal, não existe correlação entre as queixas subjetivas e os
exames objetivos. Esses pacientes apresentam, quase sempre,
um distúrbio de sensibilidade visceral e, consequentemente, to­
leram mal qualquer distensão do cólon. Além disso, geralmen­
te ocorrem alterações motoras em todo o trato gastrintestinal,
mediado pelo sistema nervoso central.

■ Constipação intestinal idiopática ou funcional Figura 39.2 Constipação intestinal com trânsito lento. Retenção dos
marcadores 5 dias após a sua ingestão. Baseada em Santos, SL er a l.
Nesta situação, não há nenhuma alteração estrutural ou me- B raz. J. M e d . B io l. Res., 2000.
tabólica, nem qualquer alteração na rotina diária do paciente
que possa justificar o sintoma. Geralmente, o problema é crô­
nico, muitas situações remontam à infância, e responde mal ao
tratamento convencional. Do ponto de vista fisiopatológico, ■ Defecação dissinérgica ou obstrutiva
pode ser dividida em três subgrupos: Nesta situação, existe uma falência do mecanismo de co­
• constipação intestinal com trânsito normal; ordenação da evacuação. Este defeito funcional tem recebido
• constipação intestinal com trânsito lento; vários nomes: obstrução da via de saída, defecação obstrutiva,
• obstrução anorretal. disquesia anorretal, anismus; dissinergia do assoalho pélvico.
Esta pletora de nomes expressa o nosso desconhecimento dos
Estudo envolvendo 1.000 ou 1.009 pacientes constipados
mecanismos envolvidos neste importante distúrbio. Do ponto
revelou que 59% apresentavam trânsito intestinal normal; 25%,
de vista prático, o que ocorre é uma contração da musculatura
disfunção pélvica; 13%, trânsito lento; 3%, ambos (trânsito len­
da pelve, em vez de relaxamento, durante a evacuação, resul­
to e disfunção).
tando em acúmulo do bolo fecal na região retossigmoidiana
(Figura 39.3).
■ Constipação intestinal com trânsito norm al
Em algumas ocasiões, podem-se observar os dois mecanis­
É a forma mais comum na prática clínica. Neste caso, o
mos em um mesmo paciente, notadamente em conjunto com
trânsito colônico e a frequência das evacuações são normais.
a síndrome do intestino irritável. A presença de constipação
Entretanto, os pacientes consideram-se constipados. Sentem
intestinal com dor sugere esta possibilidade.
dificuldade para evacuar e/ou apresentam fezes endurecidas.

■ Constipação intestinal com trânsito lento ■ Outros distúrbios da evacuação relacionados


Também chamada inércia colônica, caracteriza-se por um
prolongado tempo no trânsito das fezes através do cólon.
com a constipação intestinal
Esta lentidão do trânsito pode ser devida a uma disfunção da ■ Incontinência fecal e encoprese
musculatura colônica (miopatia), ou na inervação intrínseca A perda involuntária de fezes em crianças incomoda muito
(neuropatia). Estas alterações acarretarão uma diminuição na não só as crianças, mas principalmente os pais, que, por isso,
peristalse normal, em decorrência de uma redução no número e buscam auxílio médico. Algumas vezes, o problema é decor­
amplitude das contrações que são responsáveis pelo movimento rente de constipação intestinal. O termo encoprese deve ser re­
de massa. A ausência ou diminuição destes movimentos resulta servado para a perda involuntária de fezes inteiras na roupa
em prolongada permanência do bolo fecal no interior do cólon, íntima, ao passo que incontinência fecal refere-se a perdas de
sobretudo ascendente (Figura 39.2). Outro mecanismo possível pequenas quantidades de fezes, geralmente líquidas ou pasto-
é a incoordenação da atividade motora no cólon distai, acarre­ sas. Não existe distinção ciara, em termos de fisiopatologia, en­
tando uma barreira ou resistência ao trânsito normal. tre as duas situações. Pela definição, encoprese provavelmente
434 Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma

pação intestinal devido a doenças congênitas, tais como Hirs-


chsprung, meningocele etc., o sintoma existe, em geral, desde
o nascimento. Constipação intestinal de início recente sugere
doença orgânica, e, nesse caso, devem-se ter sempre em mente
patologias malignas. História de sintomas há mais de 2 anos
é mais tranquilizadora. Algumas vezes, o início dos sintomas
coincide com problemas emocionais. Indagar sempre sobre
os hábitos alimentares, incluindo a qualidade e a quantidade
de alimentos consumidos no dia a dia. Verificar, também, se o
paciente pratica esportes, e com que frequência.
Pacientes constipados apresentam, conforme mencionado,
uma constelação de sintomas que incluem: sensação de eva­
cuação incompleta, necessidade de esforço para evacuar; fezes
endurecidas, às vezes cíbalos; necessidade de manobras manuais
para facilitar a evacuação. Além disso, referem diminuição na
frequência das evacuações (em geral, menos de 3 evacuações
por semana), desconforto abdominal ou retal, meteorismo, fla-
tulência, estufamento e dor abdominal.
É importante deixar o paciente bem à vontade para que se
consiga uma boa história, pois, frequentemente, ele sente vergo­
nha de dizer, por exemplo, que necessita de manobras manuais
de facilitação da evacuação. Solicitar ao paciente que descreva
o ato da evacuação.
Se, além da constipação intestinal, o paciente se queixa de
dor, é preciso definir claramente a sua natureza, intensidade e
localização. Esta é mais comum nos quadrantes inferiores do
abdome e pode ser consequente à distensão dos cólons por gases
Figura 39.3 Constipação intestinal dissinérgica. Retenção do contraste ou por contrações prolongadas. Outras vezes, a dor localiza-se
no sigmoide 5 dias após sua ingestão. Baseada em Santos, SL e t a l. Braz.
J .M e d .B io l.R e s ., 2000.
nos hipocôndrios, com intensidade branda, quase constante.
Frequentemente, melhora com a evacuação ou com a elimi­
nação de gases.
Em alguns casos de constipação intestinal crônica, o paciente
não se relaciona à constipação intestinal. Em uma investigação apresenta queixas gerais, como cefaleia, irritabilidade, distensão
envolvendo um grande número de crianças com incontinên- abdominal, anorexia, desânimo, entre outras.
cia fecal, quase todas apresentavam constipação intestinal e, A utilização da Escala de Bristol fornece importantes infor­
frequentemente, eliminavam fezes tão duras e de calibre tão mações sobre o formato e a consistência das fezes e correlacio-
grosso que necessitavam ser quebradas antes de se dar descar­ na-se muito bem com o tempo de trânsito intestinal.
ga no vaso sanitário.
■ Exame físico
■ Abuso sexual e constipação intestinal Embora frequentemente normal, um minucioso exame físi­
Metade das mulheres com distúrbios funcionais do aparelho co, incluindo exame neurológico, deve ser sempre realizado no
digestivo é, ou foi, vítima de abuso sexual. Embora o diagnóstico sentido de excluir doença orgânica que possa ser responsável
mais comum nesses casos seja de cólon irritável, o sintoma pre­ pela constipação intestinal. A boca deve ser examinada, verifi­
dominante é a constipação intestinal. Cerca de 20% das crianças cando-se o estado dos dentes e buscando-se lesões na cavidade
submetidas a abuso sexual são levadas ao médico não por essa oral que possam interferir com a alimentação.
razão, mas por dor abdominal e constipação intestinal. O exame do abdome pode revelar distensão, hérnias, massas
palpáveis ou sinais de fecaloma. Este deve ser pesquisado em
todo paciente constipado, inclusive naqueles com incontinência
■ DIAGNÓSTICO fecal. Mais de 20% das crianças portadoras desse sintoma apre­
sentam fecaloma e geralmente estão tomando antidiarreicos.
O estudo diagnóstico de pacientes portadores de constipação O toque retal, portanto, não pode ser omitido.
intestinal deve ser realizado em três planos: A ausência de sensações cutâneas ao redor do ânus pode
• orgânico; indicar lesão neurológica. A inspeção da região perianal per­
• funcional; mite identificar escoriações na pele, hemorroidas, fístulas, fis­
• psicológico. suras, doenças sexualmente transmissíveis, e, em crianças com
incontinência fecal, procurar sempre traum a consequente a
abuso sexual.
■ Avaliação orgânica O toque retal fornece informações sobre o tônus dos esfínc-
■ Quadro clínico teres, o calibre do canal anal e a presença de lesões como abs-
A anamnese cuidadosa, como em toda a Gastrenterologia, cessos, tumores e fístulas. É possível, ainda, através do toque,
é fundamental. O ponto-chave da história é saber a respeito avaliar estruturas extrarretais, como a próstata, no homem, e
do início dos sintomas. Nos pacientes que apresentam consti­ o colo do útero, na mulher.
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 435

■ Exames bioquím icos e microbiológicos uma vez que as informações fornecidas pelo paciente não são
A escolha de qual ou quais exames realizar depende da ava­ acuradas.
liação clínica meticulosa de cada caso, tendo sempre em mente Várias técnicas têm sido descritas, entretanto a mais usada
a exclusão de doenças orgânicas. Nesse sentido, o hemograma, consiste na administração, por via oral, de um marcador radio-
a determinação de glicemia em jejum e testes para avaliar a fun­ paco (cápsulas contendo bário, pedaços de sonda nasogástrica
ção da tireoide devem ser realizados rotineiramente. Devido radiopaca etc.). Seguem-se radiografias seriadas diariamente.
à frequente associação entre constipação intestinal e infecção Em geral, considera-se patológica a retenção de 20% do contras­
do trato urinário, exame do sedimento urinário e urocultura te ao final do 5odia. Nesse período, o paciente não poderá usar
também devem fazer parte da rotina. laxativos, e sua dieta deverá ser a habitual. Para maior precisão,
basta conhecer o número de marcadores ingeridos e realizar a
■ Retossigmoidoscopia contagem daqueles recuperados nas fezes durante os 5 dias.
Observação da mucosa retal através da retossigmoidoscopia Este estudo poderá revelar um de três padrões (Figura 39.4):
é indicada com o intuito de afastar doenças orgânicas. Pode ser ► 7u- t r A n s i t o n o r m a l . Quando, ao final do 5o dia, restaram
realizada tanto com aparelho flexível quanto com rígido. Este menos de 20% dos marcadores no cólon.
último tem a vantagem de não necessitar de insuflação de ar e ► 2u- t r A n s i t o l e n t o o u i n é r c i a c o l ô n i c a . Observam-se, após
permitir demonstrar prolapso retal interno. o 5o dia, mais de 20% dos marcadores espalhados pelo cólon
ou concentrados no cólon ascendente.
■ Colonoscopia ► 3 o- p a d r A o o b s t r u t i v o . Retenção de mais de 20% dos mar­
Poderá ser necessária naqueles casos em que se suspeita de cadores na região retossigmoidiana com um trânsito pratica­
malignidade. mente normal no restante do cólon.
Dois terços dos pacientes com dissinergia anorretal podem
■ Exames radiológicos exibir um padrão misto, isto é, trânsito lento e padrão obstru­
■ Enemaopaco tivo simultâneos.
Na constipação intestinal de aparecimento recente, o enema Quando disponível, a cintigrafia colônica também constitui
opaco é obrigatório, no sentido de afastar a possibilidade de um um bom método para avaliar o tempo de trânsito.
carcinoma. Nos casos crônicos, permite avaliar o tamanho do
intestino, a presença ou não de divertículos, megacólon, este- ■ M anom etria anorretal
noses, entre outros achados. Ultimamente, vem sendo progres­ Existem várias técnicas para medir a pressão na região anor­
sivamente substituído pela colonoscopia. retal. Embora qualitativamente os resultados obtidos com as
várias técnicas sejam superponíveis, há necessidade de padro­
■ Defecografía nização. Na prática, a principal indicação desse exame restrin-
Nos últimos anos, a defecografía vem sendo realizada com ge-se à diferenciação entre constipação intestinal idiopática e
muita frequência. Esse exame permite avaliar a anatomia e a doença de Hirschsprung, nas quais nem a radiologia nem a
dinâmica da evacuação. A técnica do exame varia entre os dife­ histopatologia chegaram a uma conclusão.
rentes centros, mas, de uma maneira geral, usam-se 150 m^ de
uma pasta espessa de bário, imitando a consistência das fezes. ■ Eletrom iografia do cólon
Isso pode ser facilmente conseguido adicionando-se ao bário ce­ O registro da atividade elétrica do cólon fornece elementos
lulose, ou batata cozida amassada. O exame permite diagnosticar importantes a respeito da fisiopatologia da constipação intes­
prolapso retal, enterocele, prolapso de mucosa, peritoniocele, tinal. Contudo, do ponto de vista prático, é muito trabalhoso.
retocele, queda do períneo e reação paradoxal do esfíncter, e A maneira mais adequada de realizar esse exame consiste na
ainda permite estudar o esvaziamento do reto e do canal anal. introdução de eletrodos na forma de anel, via colonoscopia.
O formato dos eletrodos permite captar os sinais pelo simples
contato com a parede intestinal.
■ Avaliação funcional
■ Determ inação do tem po de trânsito colônico ■ Eletrom iografia do esfíncter anal
O estudo do tempo de trânsito colônico permite ao médico Pode ser realizada utilizando-se eletrodo em agulhas, per­
entender melhor o movimento do bolo fecal através do cólon, mitindo detecção de dissinergia em um músculo isoladamente.

Figura 39.4 Padrões de trânsito intestinal.


436 Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma

Através desse método, é possível investigar também o reflexo físico que se estabelece a relação médico-paciente. Em geral,
entre a pele perineal e a musculatura pélvica, determinando a são pacientes com alto grau de frustração, pois já ouviram que
integridade da inervação proveniente da cauda equina. não estão doentes, ou que seu problema é psicológico, ou então
que nada pode ser feito. Devemos lembrar que doenças funcio­
■ Avaliação dinâm ica da evacuação nais não significam que não haja doença. A melhor conduta é
Pode ser feita através da defecografia (como descrito ante­ fazer um diagnóstico positivo, mostrando que algo está errado,
riormente), ou, então, pelo teste de expulsão de balão. Consiste e relacionar isso à avaliação funcional. Dessa forma, é possível
na introdução de um balão de silicone, com formato de fezes, conseguir uma aliança terapêutica com o paciente.
preenchido com 50 m^ de água morna VR e na observação da
dinâmica da evacuação enquanto o paciente evacua o balão. ■ Orientações gerais ao padente
Permite avaliar o comprimento e a pressão de abertura do ca­ Chamar a atenção para eventos que induzam constipação
nal anal e, ainda, estudar o ângulo anorretal. intestinal.
• necessidade de aderência ao tratamento;
■ Avaliação psicológica • atentar para a variabilidade das funções intestinais, e que
não é obrigatório evacuar diariamente;
Devemos lembrar sempre que o cólon está dentro de uma
• importância de se estabelecer uma rotina evacuatória;
pessoa. Nesse sentido, é necessário levar em conta os elementos
imaginários que o paciente tem de sua configuração corporal. • investigar causas específicas de constipação intestinal e
Constipação intestinal não é somente a evacuação pouco fre­ tratá-las;
quente e/ou com fezes duras, mas, também, a sensação subjetiva • esclarecer sobre o abuso e o uso inadequado de laxa-
que o paciente apresenta. O constipado com frequência passa tivos.
de médico a médico, pois nem sempre aceita realizar os exames
■ Reeducação dos hábitos evacuatórios - Ritualizar a defecação
propostos, gerando frustração, desprazer ou mesmo raiva no
médico, e rompendo a relação médico-paciente. Procurar manter um horário para evacuar, de preferência
É essencial obter uma história de vida do paciente, no sen­ após uma refeição. Procurar defecar ainda que não tenha desejo.
tido de detectar “traumas emocionais” e conflitos não resol­ Com o passar do tempo, torna-se um reflexo condicionado. Essa
vidos. medida isoladamente é tão eficaz quanto o uso de laxantes.
Aqueles que querem ser rigorosos podem lançar mão de Sempre que possível, não deixar de atender ao desejo de
testes psicológicos, mas, na prática, de um modo geral, os pa­ evacuar.
cientes constipados não aceitam bem a ideia de que seus pro­ Adequar a ingestão de líquidos, procurando beber pelo me­
blemas possam ter origem emocional. nos 1 1 de água por dia.
É necessário atenção especial para detectar ocorrência de Postura no vaso sanitário. Infelizmente, a modernidade e
abuso sexual, notadamente na infância e adolescência. comodidade dos vasos sanitários atuais nos tiraram da posição
ideal para evacuar (de cócoras) para uma posição sentada, pou­
co fisiológica. Nos casos mais graves, pode-se lançar mão de um
tablado ou qualquer outro artifício que eleve os pés e, mesmo
■ TRATAMENTO no vaso sanitário, conseguir uma posição mais fisiológica.
Não existe nenhum medicamento ou esquema terapêutico Tratar as afecções anorretais (hemorroidas, fissuras, fístulas,
único para todos os pacientes ou situações. A melhor estraté­ retocele etc.), quando existirem.
gia é personalizar o tratamento, levando-se em conta a história Praticar exercícios físicos regularmente, sobretudo os abdo­
clínica, a causa e aspectos emocionais. minais. Essa medida visa a reforçar o diafragma e a musculatura
abdominal, que participam ativamente no processo da eva­
cuação.
■ Medidas gerais Coibir o uso abusivo de laxantes, especialmente os drás­
O tratamento baseia-se em melhorar os sintomas, sempre ticos.
que possível atuando nos mecanismos fisiológicos que regu­
lam as funções do trato gastrintestinal. Não existe nenhum es­ ■ Aum ento da ingestão de fibras
tudo controlado sobre qualquer tipo de tratamento, levando- O aumento do teor de fibras na dieta deve ser sempre in­
se em conta a história natural da constipação intestinal. Para centivado, notadamente naqueles pacientes em quem a cons­
se ter uma ideia da importância desse fato, em uma série de tipação intestinal não tem uma causa evidente. Isso pode ser
200 pacientes com queixas abdominais tidas como funcionais, conseguido através da utilização de alimentos ricos em fibras
34 tinham a constipação intestinal como sintoma. Somente um como farelo de trigo, verduras, frutas e leguminosos. Algumas
tornou-se assintomático após 2 anos de seguimento. vezes, podem-se adicionar à dieta fibras medicinais naturais
Dentre as medidas gerais, destacam-se: como psílio, plantago e sene, e fibras sintéticas representadas
pela policarbofila.
■ Relação m édico-padente As fibras dietéticas estão disponíveis em diversas fontes
O tratamento começa no momento exato em que o paciente naturais, como: frutas, vegetais e cereais. Do ponto de vista
entra no consultório pela primeira vez. Cerca de 80% têm as nutricional, são melhores do que os suplementos com fibras
mãos frias e úmidas e, quase sempre, um abdome doloroso e o purificados. Por outro lado, aconselhar os pacientes a come­
cólon palpável. Cicatrizes abdominais são quase sempre uma rem mais frutas, vegetais e cereais frequentemente é perda de
regra. Devemos prestar muita atenção na comunicação não tempo, pois a maioria deles não segue esta orientação, ou, se o
verbal. Geralmente, apresentam comportamento e expressões faz, é por pouco tempo. Quando se prescrevem suplementos de
inapropriados, com preocupações que não correspondem às fibras industrializados, a aderência dos pacientes é maior. As
expressões faciais e corporais. E durante a anamnese e o exame fibras podem ser solúveis ou insolúveis. As primeiras consis­
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 437

tem em pectinas, gomas e algumas hemiceluloses insolúveis ------------------------------------------------------------------------------ ▼

em água; são encontradas na aveia, cevada, em legumes e al­ Q u a d ro 39 .6 Conteúdo de fibras de alguns vegetais,
guns vegetais e frutas, metabolizadas pelas bactérias do cólon, frutas e cereais
formando um gel lubrificante que é incorporado ao bolo fecal,
amaciando-o e facilitando a sua progressão. Vegetais Porção Fibras (g)
As fibras insolúveis são constituídas de celulose, ligninas e
A lfa c e 1 xíca ra 0 .9
algumas hemiceluloses. As principais fontes destas fibras são
A s p a rg o s 1/2 xíca ra 1,0
grãos integrais (trigo, cereais, arroz), nozes, sementes e vege­
tais. Atuam retendo água, aumentando o volume e o peso do B ata ta 1 (m é d ia ) 2.5

bolo fecal. Estimulam a motilidade e aumentam o tempo de B ró c o lis 1/2 x ícara 2,2

trânsito intestinal. C e n o u ra 1/2 x ícara 2,3


Historicamente, a Revolução Industrial trouxe enormes be­ Couve 1/2 x ícara 1.4
nefícios, permitindo uma maior conservação dos alimentos, C o u v e -f lo r 1/2 x ícara 1,1
mas, em contrapartida, deixou-os desprovidos de fibras. Es­
E sp in a fre 1/2 x ícara 2,1
tudos realizados no Reino Unido demonstraram que o peso
R e p o lh o 1/2 xíca ra 1.4
médio das fezes dos ingleses foi de 150 gramas nas 24 h, com­
parado a 450 gramas nos indianos (que têm uma dieta basica­ To m a te 1 (m é d io ) 1,5

mente vegetal). Vagem 1/2 x ícara 1,6

Dados recentes obtidos por metanálise permitem afirmar


que a dieta rica em fibras não constitui uma panaceia no tra­ Frutas Porção Fibras (g)
tamento da constipação intestinal. Em alguns casos, pode até Abacaxi 1/2 x ícara 1,1
mesmo piorar os sintomas. Pacientes que são constipados desde A m e ix a fresca 5 u n id a d e s 0.9
o nascimento e aqueles que apresentam inércia colônica ou dis-
Banana 1 (m é d ia ) 2,4
função do assoalho pélvico em geral não respondem à dieta.
La ra n ja 1 (m é d ia ) 2.6
Ao contrário do que se pensava até recentemente, a eficiên­
M a ç à (c o m casca) 1 (m é d ia ) 3,5
cia da dieta de fibra deve-se não ao estímulo mecânico de dis­
tensão, mas sim aos estímulos químicos, através da liberação M a ç á (s e m casca) 1 (m é d ia ) 2,7

de ácidos graxos voláteis, como acético, butírico e propiônico, M am ão 1 fa tia m é d ia 1.2


enquanto o gás carbônico, o hidrogênio e o metano produzem U v a passa 1/2 x ícara 3,1
amolecimento das fezes.
Dos alimentos ricos em fibras, o farelo de trigo é o que tem Cereais, pães e massas Porção Fibras (g)
o maior poder de aumentar o peso fecal. Para se ter uma ideia, A rro z b ra n co 1/2 x ícara 0 ,2
esse aumento, no caso do farelo, é de 127%; no do repolho,
A r r o z in te g ra l 1/2 x ícara 1,0
60%; no da cenoura, 59%; e no da maçã, 40%. O ideal é reco­
M a ssas c o m t r ig o in te g ra l 1 xíca ra 3,9
mendar uma dieta com diferentes tipos e teores de fibras, esti­
mulando sempre o uso de farelo de trigo, trigo integral, além M a ssas e m g e ra l 1 xíca ra 1,0

de frutas, verduras e cereais, preferentemente crus e, se possí­ Pão b ra n c o 100 g 0,2

vel, com casca, perfazendo um total de 30 gramas de fibras por P ã o in te g ra l 100 g 1,5
dia. No Quadro 39.6, encontra-se relacionado o teor de fibras
dos principais alimentos. Alguns pacientes queixam-se de pro­ Modificado de: Pontes. JF & Freitas. JA. 1985.
dução excessiva de gases e distensão abdominal com o uso de
fibras. Para amenizar estes efeitos, aconselhamos iniciar com
doses subterapêuticas, aumentando o teor, semanalmente, até
atingir o efeito ideal.
Quando o paciente não tolera o aumento de fibras natu­

rais na dieta, pode-se lançar mão das fibras medicinais ou das
sintéticas. Q u a d ro 39.7 Classificação dos laxativos e principais
substâncias laxativas
■ Abordagem farmacológica
Á g a r -á g a r
Infelizmente, o uso de laxativos tornou-se popular em nos­
M e tilc e lu lo s e
so meio, sustentado por propagandas na mídia que, de ma­
F o rm a d o r e s d e m a ssa C a r b o x im e t ilc e lu lo s e
neira impune, divulgam benefícios cosméticos e de bem-estar
S e m e n te s d e p la n t a g o
provocados por laxativos; às vezes, em situações indevidas, até
mesmo por orientação médica, acarretando significantes ma­ ^ F a re lo d e t r ig o

lefícios ao paciente. Fórmulas magistrais e “pílulas mágicas” E m o lie n t e s o u s u r f a c t a n t e s ------------S u lfa to o u d o c u s a t o d e s ó d io

para tratar constipação intestinal são vendidas livremente nas L u b r if ic a n t e s ------------------------------------------ ô l e o m in e r a l o u p a ra fin a líq u id a

farmácias, na maioria das vezes orientadas pelos balconistas, Sais d e m a g n é s io o u s ó d io


que não têm noção alguma dos efeitos deletérios daquilo que — F e n o lfta le ín a
estão comercializando. E s tim u la n te s — -------------- B is a c o d il
Se as medidas gerais juntamente com a dieta não alcança­ C á s c a ra s a g ra d a
rem efeitos satisfatórios, torna-se necessária a prescrição de A n t r a q u in ô n ic o s ^ -— Sene
agentes laxativos. Para esse fim, existem inúmeras substâncias
Ô le o d e ríc in o
com diferentes mecanismos de ação (Quadro 39.7). Ao pres-
438 Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma

crever laxantes, deve-se respeitar a tolerância e a preferência no lúmen intestinal e atuam estimulando o plexo nervoso. Seu
do paciente. uso indiscriminado e a longo prazo pode lesar definitivamente
Os agentes formadores de massa, como o próprio nome os plexos, provocando o chamado “cólon catártico”.
indica, atuam aumentando o bolo fecal. São constituídos por Outras drogas usadas isoladamente ou em associação com
derivados da celulose e polissacarídios semissintéticos, entre laxativos têm sido testadas no tratamento da constipação in­
eles: metilcelulose, carboximetilcelulose, semente de plantago, testinal. O betanecol foi estudado em pacientes com trânsito
ágar, farelo e polímeros sintéticos como a policarbofila. Podem colônico lento, mas sem sucesso. A cisaprida, um agonista de
exacerbar os sintomas, se a causa da constipação intestinal for 5-hidroxitriptamina, aumenta a liberação de acetilcolina sem
orgânica. De qualquer forma, são os mais indicados para o provocar efeito antidopaminérgico, incrementando dessa forma
tratamento a longo prazo. Todos os outros laxativos devem a motilidade intestinal. Em estudo duplo-cego utilizando 10 mg
ser usados apenas nos casos agudos, ou por curto período de em três tomadas diárias, demonstrou ser efetiva nos casos de
tempo, ou, ainda, quando houver necessidade de limpeza in ­ constipação intestinal leve, com diminuição da dor abdominal,
testinal para a realização de qualquer procedimento (exames, da distensão, da consistência das fezes e aumento da frequência
cirurgias etc.). das evacuações. Mostrou-se útil também nos pacientes porta­
As fibras sintéticas são substâncias inertes, resistentes à ação dores de constipação intestinal de origem orgânica, tais como
bacteriana. São substâncias osmoticamente ativas, com capaci­ trauma raquimedular e lesões do SNC. Estudos com cintigrafia
dade hidrófila de 40 a 60 vezes o seu peso. colônica revelaram que a cisaprida melhora não só o tempo de
Os surfactantes ou emolientes são usados com o propósito trânsito no cólon, mas também a sensibilidade retal.
de facilitar a mistura de água e gordura na massa fecal, amo-
lecendo-a. Provavelmente, dificultam a absorção de água pela ■ Agentesneuromusculares
mucosa intestinal. São constituídos de docusato de sódio, cál­ A maioria dos medicamentos para tratar constipação intes­
cio ou potássio. Podem provocar ruptura dos epitélios gástri­ tinal vem sendo utilizada desde a antiguidade, sem ser testada
co e intestinal. em estudos bem conduzidos. Na era moderna, seu uso depende
Os lubrificantes são representados pelo óleo mineral e pela mais do costume do que da ciência.
parafina líquida. Agem lubrificando a parede intestinal e dimi­ Os conhecimentos adquiridos nos últimos 20 anos acerca
nuindo a absorção de água pelo cólon. Seu uso crônico acarreta da neuroanatomia, neuroquímica e propriedades elétricas do
diminuição de absorção de vitaminas lipossolúveis. sistema nervoso entérico (SNE) vêm permitindo uma melhor
Os laxantes osmóticos incluem os salinos formados por sais compreensão da fisiopatologia da constipação intestinal e a
de magnésio ou de sódio. Praticamente, não são absorvidos e, sua manipulação farmacológica. Nesse sentido, as substâncias
com isso, produzem um fluxo osmótico de água para o lúmen mais promissoras são:
intestinal. Seu uso prolongado pode ocasionar distúrbios hidre- ► AGONISTAS DOS RECEPTORES 5-HT4. Os receptores 5-HT.,
letrolíticos, sobretudo em pacientes renais crônicos. desempenham importante papel, tanto fisiológico quanto fi-
Também são laxantes osmóticos os açúcares de baixa ab­ siopatológico, na regulação das funções gastrintestinais. A ati­
sorção, como: a lactulose, a lactose, o sorbitol, o manitol e a vação neural desses receptores resulta em ativação procinética
glicerina. ao longo do trato gastrintestinal (TGI). A liberação de neuro-
Estes carboidratos não absorvíveis constituem substratos transmissores a partir dos nervos entéricos resulta em aumento
para a fermentação bacteriana no cólon, resultando na produ­ da contratilidade e estimulação do reflexo peristáltico. O papel
ção de hidrogênio, metano, dióxido de carbono, água, ácidos e exato dos neurotransmissores na sensibilidade visceral ainda
ácidos graxos voláteis. Além do efeito osmótico, essas substân­ é desconhecido. Várias substâncias agonistas dos receptores
cias estimulam a motilidade intestinal e a secreção de água. 5-HT, estão sendo investigadas, destacando-se o tegaserode, a
A lactose é um laxante suave e seguro para os casos de cons­ prucaloprida e a renzaprida.
tipação intestinal moderada. A produção de gás poderá causar O tegaserode é um agonista parcial dos receptores 5-HT, e
dor abdominal e flatulência. O sorbitol é um açúcar pouco ab- representa uma tentativa mais factível de estimulação destes
sorvível e geralmente utilizado para limpeza dos cólons. A gli­ receptores com finalidade terapêutica.
cerina não pode ser utilizada por via oral, pois é prontamente Foi desenhado para mimetizar a estrutura química da seroto-
absorvida no intestino delgado. nina, mas modificada de tal forma que não atravessa a barreira
Mais recentemente, têm sido utilizados agentes osmóticos hematencefálica, limitando a sua atividade ao sistema nervoso
sintéticos à base de polietilenoglicol (PEG). Esta substância é periférico.
um polímero de alto peso molecular com intensa atividade os- Apesar de ter sido comercializado, com grande expectativa,
mótica. Em nosso meio, está sendo comercializado o macrogol em várias partes do mundo, foi retirado do mercado devido a
3350. Trata-se de um polímero quimicamente inerte associa­ seus efeitos adversos no sistema cardiovascular.
do a uma solução eletrolítica que não contém qualquer sal que A prucaloprida faz parte de uma nova classe de drogas co­
possa ser absorvido. É atóxico mesmo em altas doses, podendo nhecidas como benzofurancarboxamidas, atuando como ago­
ser utilizado em idosos, mulheres grávidas e crianças. Infeliz- nista completo dos receptores 5-HT.,.
mente, o seu custo limita o seu uso. Em dois amplos estudos randomizados e bem controlados,
No grupo de laxativos estimulantes, encontramos os deriva­ envolvendo mais de 1.200 indivíduos, observou-se que a pru­
dos difenilmetânicos, entre eles a fenolftaleína e o bisacodil, e caloprida, na dose de 2 e 4 mg/dia, aumentou o número de eva­
os derivados antraquinônicos, como cáscara sagrada, sene, óleo cuações completas no período de 12 semanas de observação,
de rícino, entre outros. A fenolftaleína inibe a absorção ativa quando comparada ao placebo.
de sódio. Seu uso está restrito a alguns países subdesenvolvi­ Apesar dos resultados de ensaios clínicos recentes terem de­
dos, ou em desenvolvimento, pois pode provocar sérias lesões monstrado eficácia e efeitos colaterais até então desprezíveis, a
hepáticas. O bisacodil estimula o plexo nervoso da mucosa do sua similaridade com a cisaprida, que foi retirada do mercado
cólon, causando contrações e diminuindo a absorção de água. por causar arritmia cardíaca, tem retardado a comercialização
Os derivados antraquinônicos são desconjugados por bactérias da droga.
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 439

A renzaprida é uma mistura de agonista 5-HT., e antago­ Entretanto, existem poucos estudos a respeito de sua eficácia
nista 5-HT3 que apresenta efeito estimulante da motilidade e no tratamento da constipação intestinal crônica.
do trânsito gastrintestinal. Apesar de comprovados efeitos sa­ Vale ressaltar que a maioria, dos probióticos comerciali­
tisfatórios em melhorar não só a constipação intestinal mas zados em nosso meio, se não todos, sobretudo nas gôndolas
também a dor abdominal, a droga, assim como a mosaprida e de supermercados, podem não conter organismos vivos, ou
outros serotoninérgicos, permanece em investigação. os organismos podem não sobreviver às condições de estoca-
► ANTAGONISTAS OPIOIDES. Outro alvo de pesquisa de dro­ gem, incluindo temperatura e tempo. Nem sempre os efeitos
gas que atuam no SNC para o tratamento da constipação intes­ benéficos propagados foram testados de maneira científica e,
tinal envolve os neurônios secretores de opiáceos endógenos finalmente, alguns produtos podem conter, até mesmo, orga­
e seus receptores. Sabe-se que a liberação destas substâncias e nismos patogênicos.
sua interação com receptores pós-sinápticos diminuem a pe-
ristalse. Este é o mecanismo pelo qual os opiáceos exógenos ■ Medicina alternativa ou com plem entar
causam constipação intestinal. O aspecto crônico da constipação intestinal e os resultados
Fundamentado nestas observações, sugeriu-se que antago­ insatisfatórios obtidos com as medidas terapêuticas habituais
nistas opioides poderíam melhorar os sintomas de constipação induzem o paciente a experimentar as mais diversas formas
intestinal crônica. A primeira droga utilizada foi o naloxone. de alívio de seu sintoma. Dentre estas, as mais comuns são as
Entretanto, devido ao fato de a droga atravessar a barreira he- ervas, especialmente as chinesas.
matencefálica e agir nos receptores opioides do sistema ner­ Existem poucos trabalhos científicos bem conduzidos a res­
voso central, a sua utilização com finalidades terapêuticas foi peito de medidas alternativas para o tratamento da constipação
interrompida. Recentemente, iniciaram-se estudos com dois intestinal. Na maioria deles, não há critérios científicos aceitá­
novos antagonistas opiáceos que não atravessam a barreira he- veis, como grupo-controle, tamanho da amostra e padronização
matencefálica, são eles: metilmatroxeno e alvimopam. Estudos de diagnóstico e terapêutica.
em animais sugerem que as drogas são eficazes no tratamento Em recente revisão da literatura, encontraram-se apenas 18
de constipação intestinal induzida por opiáceos e no íleo adi- trabalhos considerados de boa qualidade. Destes, apenas 8 de
nâmico pós-cirúrgico. alta qualidade. Os resultados destes estudos mostram que pa­
► OUTRAS DROGAS QUE ESTÃO SENDO INVESTIGADAS. N eu- rece haver benefícios na utilização da acupuntura e, sobretudo,
ro tro fin a 3. A neurotrofina 3 é um peptídio que aumenta o de­ de certas ervas no manejo da constipação intestinal. Entretan­
senvolvimento de neurônios in vitro. A tentativa de tratamento to, não se pode extrair nenhuma conclusão definitiva devido à
de doenças degenerativas, como Parkinson e Alzheimer, com heterogeneidade entre estes estudos.
esta substância apresentou como principal efeito colateral a
diarréia. Com base nisso, iniciaram-se os estudos (ainda não ■ Reeducação fun d o n a l - Biofeedback
conclusivos) da utilização desta substância para o tratamento Numerosos estudos demonstram que o uso de técnicas de
da constipação intestinal. relaxamento pode, até mesmo, curar a constipação intestinal.
► A tiv a d o re s d o s ca n a is d e clo ro . Uma classe de drogas O princípio do biofeedback é reativar um reflexo preexisten­
que, sem dúvida, atua no sistema de transporte através da mu- te, reeducando o paciente. Todas as modalidades de biofee­
cosa são os agentes que abrem os canais de cloro. A secreção dback ensinam os pacientes a relaxar, em vez de contrair, a
de fluidos pelo intestino depende da secreção de cloretos que é musculatura pélvica durante o esforço para evacuar. Pode ser
mediada pelos canais de cloro existentes na membrana apical realizado através de eletromiografia, ou manometria anorretal,
dos enterócitos. Este é o mecanismo pelo qual várias toxinas com sinais auditivos e visuais, reforçados verbalmente. Outra
bacterianas produzem diarréia. Com fundamento nestas obser­ técnica consiste na introdução de um balão VR e pedir ao pa­
vações, vêm sendo estudados o lubiprostone, linaclotide, entre ciente que o evacue. Pela própria natureza da técnica, é claro
outros. Aguardam-se com grande expectativa novos estudos. que ela não se aplica a muitos pacientes, sobretudo a mulheres
com história de abuso sexual. Tem sido utilizada com sucesso
■ Farmacobióticos nos casos de dissinergia do assoalho pélvico.
A flora existente no TG1 humano é um complexo ecossis­
tema com aproximadamente 300 a 500 espécies de bactérias, ■ Psicoterapia
com cerca de dois milhões de genes (microbioma). Quando A maioria dos estudos controlados relativos à psicoterapia
alterada, apresenta uma incrível capacidade de se autorres- para tratamento de constipação intestinal mostra resultados de­
taurar, retornando exatamente ao mesmo estado anterior. A cepcionantes. Relatos de bons resultados, inclusive com melho­
flora bacteriana intestinal normal influencia uma variedade ra do tempo de trânsito colônico, foram descritos isoladamente
de funções, principalmente motoras, envolvidas na gênese da e necessitam de confirmação. O efeito benéfico da psicoterapia
constipação intestinal; entretanto, não existem provas cabais seria a diminuição da ansiedade e o consequente relaxamen­
de que alterações na flora bacteriana possam provocar consti­ to da musculatura pélvica. Além disso, auxiliaria na correção
pação intestinal. de conceitos distorcidos a respeito dos hábitos intestinais e da
O conceito de farmacobiótica vem sendo utilizado recente­ imagem corporal. Contudo, os resultados, quando existem, só
mente na tentativa de abranger as várias maneiras de manipu­ se fazem notar a longo prazo e a um custo proibitivo.
lação da flora com fins terapêuticos. Nesse sentido, podemos Terapia de grupo também já foi avaliada e resultou em me­
utilizar: a) suplementação com organismos comensais (probi- lhora da constipação intestinal em apenas 15% dos pacientes.
óticos); b) estímulo seletivo a certas espécies comensais (pré- Em crianças, a constipação intestinal pode fazer parte de
bióticos); e c) produtos ou componentes purificados, biologi­ uma constelação de problemas familiares. Com frequência, são
camente ativos, a partir da flora comensal. constipadas apenas em casa, sugerindo um conflito com um ou
A farmacobiótica, especialmente pré- e probióticos, tem sido ambos os pais. Há necessidade de habilidade especial por parte
estudada nas doenças inflamatórias intestinais e na síndrome do médico, que tem uma tendência de se aliar aos pais, em de­
do intestino irritável, especialmente em indivíduos constipados. trimento do paciente, no caso a criança. É preciso convencer
440 Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma

os pais de que o que eles pensam ser um problema físico é, na • Doenças venéreas.
verdade, emocional. Nesse caso, a terapia da família é funda­ • Doenças sistêmicas, como: diabetes, Parkinson, hipoti-
mental, tirando dos pais o sentimento de culpa e frustração. reoidismo etc.

■ Medicamentosas
■ Tratamento cirúrgico • Opiáceos e derivados fenotiazínicos.
Em casos muito bem selecionados, pode ser necessária uma • Antiácidos à base de sais de Al e Ca.
intervenção cirúrgica. Destacamos, em seguida, algumas situa­ • Laxativos à base de cáscara sagrada e sênicos.
ções em que a intervenção do cirurgião se faz desejável. • Anticolinérgicos.
• Sulfato de bário usado como meio de contraste.
■ Doença de Hirschsprung ■ Psicogênicas
Em algumas situações, conseguem-se bons resultados com São mais comuns em criança. São chamadas de encoprese
a miotomia anorretal, que consiste na secção de uma faixa e caracterizam-se pela presença de fecaloma, mas com passa­
muscular na face posterior da junção anorretal sobre o esfínc- gem intermitente de pequenas quantidades de fezes, sujando
ter anal interno e as duas camadas da parede posterior e infe­ as vestes da criança.
rior do reto.
■ Outras causas
■ Constipação intestinal grave • Dolicocólon.
• Estenoses do cólon.
Colectomia, total e parcial, com ileorretoanastomose já foi • Doenças inflamatórias intestinais.
realizada por vários autores para o tratamento dos casos gra­ • Tumores.
ves. Entretanto, mostrou-se ineficaz na totalidade dos casos, e,
o que é pior, em muitos ocorreram complicações graves, como
incontinência fecal, disquesia retal e diarréia, entre outras. Em ■ Diagnóstico
uma série de 246 pacientes submetidos à colectomia total com ■ Quadro clínico
ileorretoanastomose, 25% permaneceram constipados, 22%
Os sintomas habituais devido à presença de fecaloma são dor
ficaram com diarréia e 11% com incontinência fecal.
no baixo ventre, tenesmo retal, distensão abdominal e perda
de pequenas quantidades de fezes líquidas ou pastosas, simu­
lando incontinência e sujando a roupa íntima do paciente. No
■ FECALOMA homem, acompanham-se frequentemente de retenção urinária,
por compressão prostática e vesical. Em alguns casos, ocorre
■ Conceito perda de sangue e muco pelo reto, consequente ao esforço para
evacuar. Dependendo do tamanho, o fecaloma pode acarretar
Consiste na formação de uma massa de fezes, grande, dura
e imóvel, que se localiza em geral no reto e sigmoide. Pelo seu obstrução intestinal com todo o seu cortejo sintomático.
volume e consistência, o fecaloma não pode ser eliminado pelo
■ Exame físico
paciente através do esforço da evacuação. Em geral, resulta da
evacuação fecal incompleta, por longo período de tempo, po­ Ao exame, geralmente deparamos com um paciente idoso,
dendo ocasionar obstrução parcial ou total do intestino. debilitado, com aspecto de abandono, ou então com uma crian­
ça com evidente distúrbio psicológico. A inspeção do abdome
pode revelar alças intestinais dilatadas, e a ausculta revela ruí­
■ Fatores predisponentes dos hidroaéreos com timbre metálico, caracterizando peris-
A formação de fecaloma é uma situação quase exclusiva de taltismo de luta, ou, então, silêncio abdominal, em uma fase
crianças portadoras de megacólon ou problemas psicogênicos, mais tardia. O toque retal, em geral, confirma o diagnóstico.
de idosos debilitados, sedentários, usuários de narcóticos, e, em A palpação simultânea do abdome é importante nos casos em
nosso meio, de pacientes chagásicos. que o fecaloma não está na ampola retal.

■ Retossigmoidoscopia
■ Etiologia Permite identificar com clareza o fecaloma. É importante,
De uma maneira didática, podemos dividir as causas de feca­ especialmente nos casos em que a massa fecal não está ao al­
loma em: anatômicas, medicamentosas, psicogênicas e outras. cance no toque retal.

■ Anatômicas ■ Radiologia
• Deficiência de prensa abdominal. De um modo geral, a radiografia simples do abdome con­
• Lesões anatômicas: estenoses e fístulas perianais, pós- firma o diagnóstico. Em alguns casos, poderá haver confusão
cirúrgicas etc. entre fecaloma e tumores malignos do intestino. Nessa situa­
• Lesões neurológicas centrais e medulares. ção, recomendamos a realização de enema opaco utilizando
• Deficiência mental. contraste hidrossolúvel, em vez de bário, injetado lentamente,
• Lesões do plexo mioentérico: Chagas, Hirschsprung. sem muita pressão.
• Compressões extrínsecas: tumores ovarianos, uterinos,
prostáticos etc. ■ Outros exames
• Lesões anais dolorosas: papilites, proctites, fissuras, he- A ultrassonografia abdominal, a tomografia computadoriza­
morroidas. da, a defecografia e, eventualmente, o estudo manométrico da
Capítulo 39 / Constipação Intestinal e Fecaloma 441

região anorretal poderão ser necessários nos casos complexos,


ou para definir a causa do fecaloma.
■ LEITURA RECOMENDADA
Araghizadch, F. Fecal Impaction. Constipation and Functional Bowcl Discasc.
Clinics in Colon and Retal Surgery, 2005; J8:l 16-9.
■ Profilaxia Chmielewska, A 8c Szajcwska, H. Sistcmatic revicw of randomizcd controlled
Conhecendo-se as principais situações clínicas que favore­ trials: Probiotics for functional constipation. World J Castroenterol, 2010;
16:69-75.
cem a formação de fecaloma, é fundamental a adoção de me­ Cook, IJ Tallcy, NJ, Beninga, MA et al. Chronic Constipation: OverView and
didas visando a preveni-lo. Dentre essas, destacam-se: challcngcs. Neurogastroenterol Motil, 2009; Suppl. 21,1-8.
David, EL. Fecal impaction and stcrcoral ulccr. Em: Slcisengcr, MH 8c Fordtran,
• Tratar a constipação intestinal, sobretudo nos pacientes JS. Gastrointestinal Disease, 2na cd., Philadclphia, W.B. Saundcrs, 1978.
com lesões neurológicas e em todas as situações que le­ Dcvrocde, G. Constipation. Em: Slcisengcr, MH 8c Fordtran, JS. Gastrointestinal
vem o paciente a ficar acamado por tempo prolongado. Disease. Philadclphia, W.B. Saundcrs, 1993.
• Alertar os pacientes usuários de drogas psicotrópicas de Di Palma, JA. Current treatment options for chronic constipation. Rev Gastro-
enterol Disord, 2004; 4(Suppl. 2J:S43-S51.
que não se descuidem do intestino. Drossman, DA et al. Romc II. The Functional Gastrointestinal Disorders, Pa-
• Prescrever laxantes suaves VO, ou na forma de suposi- thophysiology and Treatment: A multinational conscnsus. 2r*J McLcan, VA:
tórios, aos pacientes que se submeterem a exame radio- Degnon Associates; 2000.
lógico contrastado. Drossman, DA, Sandlcr, RS, McKcc, DC, Lovitz, AJ. Bowcl patterns amongsub-
jccts not sccking hcalth carc. Use of a questionaire to identify a population
with bowcl dysfunction. Gastroenterology, 1982; 83:529-34.
■ Tratamento Emmanucl, AV, Tack, J, Quidcy, EM, Tallcy, NJ. Pharmacological management
of constipation. Neurogastroenterol Moti, 2009; 21 (suppl.).
Uma vez estabelecido o diagnóstico de fecaloma, o trata­ Freitas, JA 8c Mineis, M. Constipação Intestinal. Em: Mineis, M. Gastroente-
mento deve ser imediato e realizado por profissional treinado, rologia & Ilepatologia. Diagnóstico c tratamento. 3' cd., Lemos Editorial,
de preferência o próprio médico. Considerando que 98% dos 2002.
Hcaton, KM, Radvan J, Cripps, S et al. Dcfccation frcqucncy and timing,
fecalomas situam-se na ampola retal, a terapêutica consiste na and stool form in thc general population: prospcctivc study. Gut, 1992;
manipulação digital, através do toque retal. Previamente ao to­ 33(6):818-24.
que, injeta-se VR, uma substância lubrificante e laxativa à base Kingma, JJ, Alves Filho, JN, Silva, J, Santos, HFT, Kingma, RG. Constipação,
de óleo mineral ou mesmo glicerina, no intuito de facilitar a fibra alimentar c fecaloma. Em Dani, R 8c Paula Castro, L. Gastroenterologia
Clínica, 3.* cd., Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1993.
eliminação do material fecal. Durante o manuseio, procurar Kokoszka, J, Nelson, R, Falconio, M, Abcarian, H. Treatment of fecal impac­
fragmentar a massa de fezes sempre contra a parede posterior tion with pulscd irrigation enhaneed evacuation. Dis Colon Rectum, 1994;
(sacral). Nos casos em que o fecaloma está fora do alcance dos 37:161-4.
dedos, fazer enemas com soro fisiológico e glicerina na pro­ Lin, LW, Fu, YT, Dunning, T, Zhang, AL, Ho, TH, Duke, M, Lo, SK. Efíicacy of
traditional Chincsc medicine for thc management of constipation: a syste-
porção de 5:1.
matic review. J Altern Complement Med, 2009; 15:1335-46.
Dependendo do tamanho, da consistência e da localização, Mcllgrcn, A. Diagnosis and treatment of constipation. Eur J Surg, 1995;
poderá ser necessária a intervenção instrumental com o re- 161:623-34.
tossigmoidoscópio. Passa-se, através do aparelho, um tubo de Pontes, JF 8c Freitas, JA. Rev Bros Med, 1985; 24:212-25.
borracha e procede-se à irrigação contínua com água ou soro Rao, SS. Constipation: Evaluation and treatment. Gastorenterol. Clin N Am,
2003; 32:659-83.
fisiológico, quebrando a massa fecal. Quando o paciente apre­ Rcad, NW, Celik, AF, Katsinclos, P. Constipation and incontincncc in thc eldcrly.
senta doença, na região anal, que provoque dor, é necessária I Clin Castroenterol, 1995; 20:61-70.
a analgesia e, raramente, anestesia. Excepcionalmente, haverá Santos, SL, Barcelos, IK, Mesquita, MA. Total and segmentai colonic transit
necessidade de cirurgia. time in constipatcd patients with Chagas discasc without mcgacsophagus
or megacolon. BrazJ Med Biol Res, 2000, 33:43-9.
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Stachcr, G. Psychc personality and gut function. / Gastrointest Motility, 1993;
As complicações, embora raras, podem ser graves, nota- 5:67-76.
damente em um paciente já debilitado. As mais comuns são: Thompson, WG, Crced, F, Drossman, DA et al. Functional bowcl discasc and
functional abdominal pain. Gastroenterology International, 1992; 5:75-91.
hérnia, vólvulo sigmoidiano recorrente, megacólon, prolapso Wrenn, K. Fecal impaction. N EnglJ Med, 1989; 321:658-62.
retal, crise hemorroidária, ulceração intestinal com hemorragia, Yoshioka, K 8c Kcighlcy, MRB. Clinicai rcsults of colcctomy for severe consti­
perfuração e obstrução intestinal. pation. Br J Surg, 1989; 76:600-4.
Síndrome do Intestino Irritável
Maria do Carmo Friche Passos

“The bowels are at one time constipated, another lax, in the ----------------------------- ▼
same person. How the disease has two such different Q uadro 40.1 Diagnóstico da SII de acordo com o Consenso ROMA III*•
symptoms I do not profess to explain.”
(C u m m in g W„ 1849) Sintomas iniciados pelo menos 6 meses antes do diagnóstico
1. S in to m a s p re s e n te s , n o m ín im o , 3 d ia s p o r m ê s n o s ú lt im o s 3 m e se s

2 . D o r e /o u d e s c o n f o r t o a b d o m in a l, c o n tín u o s o u re c o rre n te s , q u e

■ INTRODUÇÃO a p r e s e n t a m p e lo m e n o s 2 d as 3 s e g u in te s cara c te rística s:

a ) A lív io d o s s in to m a s c o m as e v a c u a ç õ e s ;

A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio fun­ b ) In íc io d o q u a d r o a s s o c ia d o à a lte ra ç ã o d a fre q u ê n c ia d as


cional do trato digestivo para o qual não se demonstrou, até o e vacuações;

momento, qualquer alteração metabólica, bioquímica ou estru­ c ) In íc io d o q u a d r o a s s o c ia d o c o m a lte ra ç ã o n a fo rm a (a p a r ê n c ia ) d as


fezes.
tural da(s) víscera(s) envolvida(s), expressando-se através da
acentuação, inibição ou simplesmente modificação da função • S in t o m a s q u e , q u a n d o p re s e n te s , r e fo r ç a m o d ia g n ó s t ic o d a
SII, p o r é m n õ o s ã o c o n s id e r a d o s c o m o e le m e n to s d o s c rité rio s
intestinal. Tem evolução crônica e clinicamente manifesta-se d ia g n ó s tic o s :
por dor ou desconforto abdominal, associado à alteração do
a . F re q u ê n c ia d a e v a c u a ç ã o a n o r m a l ( s 3 e v a c u a ç ó e s / s e m a n a o u
hábito intestinal - constipação intestinal, diarréia ou alternân­ > 3 e v a c u a ç ô e s / d ia );
cia de uma e de outra. Outros sintomas frequentes são muco nas b . F o rm a t o a n o r m a l d a s fe ze s (fra g m e n ta d a s / c íb a lo s , d u ra s /
fezes, urgência retal, distensão abdominal e flatulência. só lid a s, p a sto sa s o u líq u id a s / a q u o s a s );
A SII acomete entre 10 e 20% da população, com predomí­ c. D if ic u ld a d e p a ra d e fe c a r (a u m e n t o d o e s fo rç o e v a c u a t ó r io );
nio no sexo feminino (2 a 3 mulheres a cada 1 homem). Sua d . U r g ê n c ia e v a c u a tó ria o u s e n s a ç ã o d e e v a c u a ç ã o in c o m p le t a ;
incidência anual é estimada em 1%. Ocorre mais comumente e . P re se n ça d e m u c o n as fe ze s;
em grupos etários mais jovens (15 a 44 anos) do que naque­ f. D is te n s ã o a b d o m in a l.
les com idade mais avançada (45 anos ou mais). Essa síndro­
me é responsável, segundo alguns autores, por quase metade
dos atendimentos ambulatoriais em gastrenterologia, sendo
também muito comum nos atendimentos de clínica médica,
SII com constipação intestinal (SII-C), SII com diarréia (SII-D),
implicando necessidade de uma constante atualização desse
SII mista (SII-M) ou SII de forma indeterminada (SII-I).
tema por parte dos médicos, tanto generalistas como gastren-
terologistas. O diagnóstico da SII é, portanto, essencialmente clínico e,
De acordo com o comitê internacional de especialista do de acordo com os especialistas do Consenso Roma III, é fun­
Consenso Roma III, a SII é definida pela presença de dor e/ou damental que seja estabelecido um diagnóstico positivo, e este
desconforto abdominal, contínuos ou recorrentes, geralmen­ deve ser transmitido ao paciente com confiança e otimismo.
te localizados no abdome inferior, que ocorrem, no mínimo, É necessário realizar história clínica e exame físico minucio­
3 dias por mês nos últimos 3 meses e que apresentam pelo me­ sos, pois a anamnese bem conduzida servirá como um guia
nos 2 das 3 seguintes características: a) alívio com as evacuações; ao clínico para inclusão ou exclusão do diagnóstico da SII. É
b) início associado às mudanças na frequência das evacuações;
importante a investigação dos sinais de alarme (idade acima
e c) início da dor associado a alteração na forma e na aparência
das fezes (Quadro 40.1). de 50 anos, emagrecimento, anemia, sangramento, mudança
O Consenso Roma III classifica os pacientes portadores da do calibre das fezes, febre, massa palpável, início recente dos
SII em quatro subgrupos e também propõe os critérios especí­ sintomas) que, se presentes, implicam a realização de pro­
ficos para a alocação dos pacientes em cada um desses grupos: pedêutica apropriada.

442
Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável 443

Nos pacientes portadores de SII, em todas as suas formas ferem na motilidade e na transmissão dos estímulos sensoriais
(SII-C, SII-D, SII-M), tem sido recomendado afastar a possi­ permanece desconhecido.
bilidade de doença celíaca e intolerância à lactose. Devemos Estudos mais recentes sugerem que a ativação imunológica
ainda lembrar a possibilidade de supercrescimento bacteriano e a inflamação da mucosa também possam estar associadas às
intestinal e microcolite inflamatória e proceder a esta investi­ alterações neuropáticas relatadas na fisiopatologia da síndro­
gação em casos selecionados. A colonoscopia deve ser realizada me e justificam o conceito da SII pós-infecciosa (SII-PI). Um
quando há suspeita de neoplasia ou doença inflamatória e nos estudo realizado pelo grupo da Universidade de Los Angeles
pacientes com mais de 50 anos. conseguiu evidenciar associação entre a presença de supercres­
No nosso meio, devemos sempre pesquisar parasitoses in­ cimento bacteriano e redução das células intersticiais de Cajal,
testinais, sobretudo giardíase e amebíase, que podem algumas 0 que poderia explicar o desenvolvimento da SII pós-infecciosa.
vezes simular o quadro da SII, especialmente na forma com Foi demonstrado em alguns estudos que 7 a 31% (média de
diarréia ou mista. 9,8%) dos pacientes desenvolvem a síndrome após um episó­
dio de diarréia aguda infecciosa causada por diversos agentes
microbianos. Alguns fatores são considerados de risco para o
surgimento da SII pós-infecciosa: pacientes jovens, sexo femi­
■ FISI0PAT0L0GIA nino, enterite prolongada, ausência de vômitos e presença de
O modelo fisiopatológico proposto pelos especialistas do eventos estressantes durante o curso da infecção.
Consenso Roma III sugere que os sintomas sejam entendidos Os fatores psicossociais, ambientais e genéticos também pa­
dentro de um pluralismo fisiológico: simultaneamente, podem recem contribuir de maneira determinante para a expressão
interagir distúrbios motores, aumento da sensibilidade visce­ dos sintomas, em geral.
ral, alteração das conexões do sistema nervoso central com o A Figura 40.1 mostra os aspectos fisiopatológicos mais atuais
intestino, ao mesmo tempo eventos socioculturais e influências para a SII, de acordo com o Consenso Roma III.
psicossociais parecem modular a percepção dos sintomas.
Alterações na motilidade gastrintestinal e na percepção vis­
ceral, bem como fatores psicossociais contribuem para a ex­ ■ GASTRENTERITE AGUDA E A SII PÓS INFECÇÃ0
pressão dos sintomas em geral.
Estudos atuais demonstram que os pacientes com SII-PI
Nos últimos anos, ocorreu um grande avanço no entendi­
diferem daqueles com SII não infecciosa pela presença de m ar­
mento da patogenia da SII com base nos novos conhecimen­ cadores de inflamação crônica e de infecção intestinal aguda,
tos de fenômenos biológicos que ocorrem no sistema nervoso disbiose e supercrescimento bacteriano do intestino delgado.
central (SNC) e sistema nervoso entérico (SNE). As alterações Trabalhos prévios evidenciaram aumento de células inflama-
da regulação das conexões do SNC com o SNE têm sido muito tórias e enterocromafins na mucosa do cólon de pacientes com
pesquisadas nos últimos anos e é provável que centros neurais gastrenterite por Campylobacter jejuni. Dunlop et al. observa­
superiores modulem a atividade motora e sensorial gastrintes­ ram, em biopsias retais de pacientes com diagnóstico de SII-PI,
tinal, e vice-versa. Acredita-se que o SNC funciona como um aumento das células enterocromafins e de linfócitos quando
filtro da percepção dos sinais periféricos aferentes, variando comparado ao de um grupo-controle. Estes autores também
o limite da percepção visceral de acordo com o estado emo­ demonstraram aumento dos níveis plasmáticos pós-prandiais
cional e cognitivo. Por outro lado, a ansiedade e o estresse po­ de serotonina (5-HT) nesse grupo de pacientes. Sabendo-se
dem aumentar a percepção da dor, e o relaxamento é capaz de que a serotonina desempenha importante papel na regulação
reduzir esta percepção. da motilidade digestiva e na percepção visceral, sua liberação
Assim como no SNC, mensageiros moleculares são respon­ aumentada poderia contribuir para os sintomas pós-prandiais
sáveis pela ativação neuronal seletiva no SNE. Inúmeros neu- desses pacientes e proporcionar uma base lógica para pesquisa
rotransmissores e neuropeptídios já foram identificados, entre de antagonistas da serotonina no tratamento dessa síndrome.
eles a proteína receptora do gene da calcitonina, substância P, Spiller observou aumento das células enterocromafins até
peptídio intestinal vasoativo, óxido nítrico, acetilcolina e sero- 1 ano após a infecção inicial na SII-PI. Esse autor sugere que
tonina. O mecanismo íntimo pelo qual estas substâncias inter­ a infecção aguda provavelmente ocasione a ativação de cito-

Figura 40.1 Adaptada de Drossman. G a s tro e n te ro lo g y , 2006.


444 Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável

cinas intestinais capazes de alterar a permeabilidade capilar


intestinal e a secreção de eletrólitos pela mucosa. Os prováveis
■ SII-PI e síndrome do supercrescimento
mediadores dessas alterações seriam interleucinas, interferona, bacteriano do intestino delgado
prostaglandinas e fator de necrose tumoral. Como resultado
A síndrome do supercrescimento bacteriano do intestino
final, ocorreríam, muito provavelmente, sensibilização de vias
aferentes sensoriais, aumento da atividade propulsiva e secre­ delgado (SCBID), geralmente definida pela presença de uma
ção de água e eletrólitos para o lúmen intestinal. população bacteriana no ID que excede 105-106 UFC (unida­
des formadoras de colônia)/m^, tem sido descrita com bas­
Dois trabalhos descreveram um aumento da expressão da
tante frequência em pacientes com SII. O supercrescimento
interleucina-p (IL-lp) na SII-PI, sendo obtidas informações
muito interessantes relacionadas com as alterações regionais da no ID surge quando os mecanismos homeostáticos habituais
mucosa colônica que se seguem à infecção por Shigella. Através de controle da população bacteriana entérica estão alterados.
de biopsias realizadas durante procedimento colonoscópico, Os dois principais fatores predisponentes são a diminuição da
foi demonstrado aumento da expressão do RNA de IL-lp na secreção de ácido gástrico e a presença de alteração da moti-
região retossigmoide e no íleo apenas em pacientes com SII-PI lidade intestinal.
(comparado com o grupo de SII não infecciosa). Alguns autores acreditam que a SII-PI se acompanha fre­
Os mastócitos parecem desempenhar também um papel fun­ quentemente de supercrescimento de bactérias no intestino
damental como mediadores do aumento da permeabilidade delgado. Existe, na verdade, uma grande sobreposição de sin­
intestinal em pacientes com SII-PI. O aumento da permeabi­ tomas nas duas síndromes - diarréia, constipação intestinal,
lidade implica uma desorganização da barreira normal, possi­ dor abdominal, flatulência e distensão abdominal - e, por isso,
bilitando o acesso de produtos bacterianos da lâmina própria, tem sido questionada a possibilidade de os pacientes com SII
propiciando, dessa forma, um mecanismo de perpetuação da apresentarem SCBID subjacente.
inflamação crônica. Um relevante estudo realizado pelo grupo da Universidade
Inúmeros estímulos, como citocinas, estresse e alergênios, de Los Angeles evidenciou nítida associação entre presença
são capazes de ativar os mastócitos com consequente liberação de supercrescimento bacteriano e redução das células intersti-
parácrina de substâncias químicas que incluem inúmeros me­ ciais de Cajal, o que poderia explicar o desenvolvimento da SII
diadores (histamina, serotonina, leucotrienos, dentre outros). pós-infecciosa.
A interação desses mediadores com receptores presentes nos É preciso salientar que a grande discrepância entre os estudos
neurônios das terminações aferentes sensoriais induzirão o SNE se deve, pelo menos em parte, aos métodos empregados para o
a se reprogramar, e, dessa forma, originando, possivelmente, diagnóstico, às diferentes definições de SCBID e aos critérios
o quadro clínico da SII ao ocasionarem alterações na fisiologia distintos de inclusão dos pacientes com SII (Roma I/II/III).
intestinal e aumento da percepção visceral. Diversos mecanismos têm sido propostos para justificar o
Wang et al. observaram elevação no número de mastócitos aumento da população bacteriana no ID em pacientes com SII,
na mucosa do íleo terminal de todos os pacientes portadores da especialmente observada em pacientes com SII-PI: a) aumen­
SII (SII-PI e SII não infecciosa). Eles demonstraram uma estrei­ to na produção e alteração na distribuição do gás ao longo do
ta relação entre o número de mastócitos e as fibras nervosas da intestino; b) distúrbios na motilidade do ID; c) alterações no
mucosa intestinal, relacionando com a intensidade e frequência metabolismo da serotonina; d) produção de citocinas, asso­
da dor abdominal. Foi evidenciada também uma maior densi­ ciada à desregulação entre citocinas anti- e pró-inflamatórias,
dade de fibras nervosas em torno de mastócitos em pacientes determinada por fatores genéticos.
com SII, comparando-se com controles assintomáticos. De fato, foi demonstrado que pacientes com SII apresentam
diminuição no número e na duração da fase III do complexo
motor migratório, quando comparados a grupos de controles
■ Evidências de inflamação crônica sadios. Observou-se dismotilidade entérica em 86 e 39% dos
Até recentemente, a maioria dos estudos incluía pacientes pacientes com SII, com e sem supercrescimento bacteriano,
com SII como controles negativos de inflamação crônica, con­ respectivamente (p = 0,02).
tudo evidências recentes demonstram que pelo menos um sub­ Outros mecanismos também considerados essenciais são a
grupo dos pacientes com SII apresentam altos níveis de media­ integridade da mucosa intestinal, a camada de muco, as secre­
dores inflamatórios na mucosa intestinal. Um estudo avaliou ções intestinais, pancreáticas e biliares; o efeito protetor da flora
a concentração de mieloperoxidase e outros mediadores de comensal (Lactobacillus)\ e a válvula ileocecal.
neutrófilos em biopsias intestinais de pacientes com SII, reto- Na prática, os testes respiratórios, empregando lactulose ou
colite ulcerativa e controles assintomáticos. Os autores obser­ glicose como substrato, são os mais utilizados para o diagnósti­
varam que os níveis desses mediadores em pacientes com SII co de supercrescimento bacteriano e apresentam uma boa sen­
eram muito similares àqueles encontrados na retocolite sem sibilidade e especificidade. Esses testes indiretos e não invasivos
atividade, porém significativamente maiores do que os acha­ são capazes de quantificar no ar expirado a concentração de H2
dos em controles. e/ou metano, produzidos a partir do metabolismo bacteriano
A etiologia da inflamação nesses pacientes é desconhecida, intestinal. O tipo de flora metanogênica e/ou produtora de H2
mas poderia refletir uma falha na regulação dos mediadores in­ poderia determinar o ritmo predominante do trânsito intes­
flamatórios induzida por um episódio de gastrenterite aguda. Um tinal (constipação intestinal ou diarréia, respectivamente) e
estudo genético encontrou que o polimorfismo de interleucina ocasionar sintomatologia digestiva, na dependência da reação
10 (IL-10), associado à produção de IL-10 (homozigoto- 1082'G), do indivíduo à presença de uma flora bacteriana excessiva no
era significativamente menor na SII ao se comparar com contro­ intestino.
les saudáveis (21% vs. 32%). Minderhound et al. demostraram A melhor maneira de demonstrar que a SII-PI se associa
a presença de sintomas típicos da SII em até 33% dos pacientes às anormalidades inflamatórias da mucosa e mesmo presença
com retocolite ulcerativa e em 42% dos pacientes com doença de de supercrescimento intestinal seria a melhora dos sintomas
Crohn em remissão, sugerindo que a inflamação crônica pode da SII após a utilização de drogas que teoricamente poderiam
ocasionar um déficit permanente na função intestinal. melhorar a inflamação e equilibrar a flora intestinal.
Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável 445

geral, reflete um momento de exacerbação dos sintomas e, por­


■ Diagnóstico tanto, necessidade do uso de medicamentos capazes de aliviar
O diagnóstico é fundamentalmente clínico, baseando-se nos a dor e regularizar a função intestinal.
critérios Roma III descritos anteriormente, e a grande parte Uma boa relação médico-paciente é fundamental. É neces­
dos pacientes não necessita de qualquer propedêutica com ­ sário que os pacientes sejam esclarecidos de que seus sintomas
plementar. É essencial realizar história clínica e exame físico são decorrentes de distúrbios funcionais e não caracterizam
minuciosos, pois a anamnese bem conduzida servirá como um nenhuma doença grave ou risco de vida, assegurando-lhes que
guia ao clínico para inclusão ou exclusão do diagnóstico de SII e o problema será tratado de forma interessada e racional. A ten­
para seleção dos pacientes que deverão ser investigados. Vários dência do médico é, com frequência, subestimar queixas de
fatores devem ser considerados, como a presença dos sinais caráter funcional provavelmente por um desconhecimento da
de alarme (idade acima de 50 anos, emagrecimento, anemia, atual fisiopatologia da síndrome e da importância dos eventos
sangramento, mudança do calibre das fezes, massa palpável, psicossociais a ela associados.
início recente dos sintomas), a facilidade de acesso à investi­ Nenhuma dieta específica é recomendada, mas é muito im­
gação, os riscos e benefícios do tratamento farmacológico, e portante respeitar as intolerâncias peculiares a cada paciente.
as consequências econômicas dessa decisão. Essencialmente, a dieta deve ser pobre em gorduras e em ali­
A colonoscopia deve ser sempre realizada quando houver mentos sabidamente produtores de gás, sobretudo se há quei­
suspeita de neoplasia ou doença inflamatória e em pacientes xa de distensão abdominal e flatulência. Recomenda-se uma
com mais de 50 anos. Deve ser afastada a possibilidade de doen­ maior ingestão de fibras e líquidos (de maneira especial para
ça celíaca e intolerância à lactose nos casos em que houver sus­ os pacientes que têm constipação intestinal predominante). As
peita clínica. Importante avaliar a presença de cofatores psico­ fibras devem ser ingeridas de maneira equilibrada, sem grandes
lógicos, ambientais e dietéticos e o uso de medicamentos que excessos, sobretudo se houver relato de piora da flatulência. Al­
interferem na frequência evacuatória. No nosso meio, devemos guns vegetais, como feijão, repolho, couve-flor, cebola crua, uva
pesquisar a presença de parasitoses intestinais, especialmente e ameixa, podem causar dor ou distensão abdominal em alguns
giardíase e amebíase, que podem algumas vezes simular o qua­ pacientes e, nesse caso, devem ser evitados ou reduzidos da dieta.
dro de SII, especialmente em pacientes com a forma diarreica Intolerâncias específicas, como, por exemplo, ao glúten e à
ou mista. lactose, devem ser reconhecidas.
Alguns pacientes podem obter melhora com mudanças sim­
ples em seu estilo de vida e adoção de hábitos salutares em seu
■ Tratamento cotidiano, como a realização de atividade física regular e téc­
O tratamento da SII, especialmente de suas formas graves, nicas de relaxamento.
representa um dos grandes desafios para o gastrenterologista A utilização de medicamentos na SII está indicada somente
e, até o momento, não existe uma terapêutica que seja verda­ nas fases sintomáticas, cuja duração é variável, esperando-se pe­
deiramente eficaz. A utilização de medicamentos está indica­ los períodos de melhora clínica em que deverão ser suspensos.
da apenas para as fases sintomáticas, cuja duração é variável, O tratamento medicamentoso disponível visa a aliviar o sinto­
esperando-se os períodos de remissão clínica em que as drogas ma predominante (Quadro 40.2). É preciso sempre ressaltar a
poderão ser dispensadas. A ida do paciente ao especialista, em elevada resposta ao placebo observada nesses pacientes.

-----------------T-----------------
Q uadro 40 .2 Modalidades terapêuticas da SII

1 I
A n t id ia r r e ic o s
I
L a x a t iv o s
I
A n t id e p r e s s iv o s
A n t ie s p a s m ó d i c o s
M e n t h a p ip e r it a (f ib r a s o u o s m ó t i c o s ) A lo s e t r o n * ( S I I c o m d i a r r é ia )
A n t id e p r e s s iv o s
A lo s e t r o n * L u b ip r o s t o n e * Te g a s e ro d e * *
M e n t h a p ip e r it a
C ila s e t r o n * Te g a s e ro d e * * (S I I c o m c o n s t ip a ç ã o )
P s ic o t e r a p ia
T e r a p i a s a lt e r n a t iv a s

"Medicamento nâo disponível no Brasil.


""Medicamento com prescrição restrita.
446 Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável

A classificação clínica dos pacientes (sugerida pelo Consen­ maneira especial, para pacientes com sintomas mais graves ou
so de Roma III) auxilia a decisão terapêutica. As opções tera­ refratários e quando se observa nítida associação com depres­
pêuticas para os pacientes com SII com diarréia incluem anti- são ou crises de pânico. Para que seja avaliado o real benefício
diarreicos e, ocasionalmente, colestiramina. O alosetron, um do antidepressivo, devemos prescrevê-lo por, no mínimo, 3
serotoninérgico antagonista 5-HT„ está disponível em poucos a 4 semanas e, caso seja considerado eficaz, mantido por 3 a
países, e está indicado em casos mais refratários. 12 meses. Os tricíclicos devem ser evitados nos pacientes com
Nos casos de SII com constipação intestinal (SII-C), os laxa- constipação intestinal predominante, pelo risco de agravamen­
tivos podem ser prescritos, mas sempre de maneira criteriosa to do quadro.
e, se possível, por curtos períodos. Utilizamos preferencial­ Os ansiolíticos também podem ser prescritos para alguns
mente os que aumentam o bolo fecal (fibras insolúveis e solú­ pacientes com SII pela frequência dos sintomas de ansiedade e
veis), os agentes osmóticos (macrogol/PEG ou lactulose) e os relato de agravamento do quadro intestinal desencadeado por
emolientes/lubrificantes (docusato, óleo mineral). Os laxan­ fatores emocionais. Alguns estudos corroboram a eficácia dos
tes estimulantes/irritantes (antraquinônicos, difenilmetano) benzodiazepínicos na SII, mas a diferença entre droga e placebo
apresentam rápido início de ação, porém devem ser evitados é relativamente pequena. Em virtude do potencial de depen­
a longo prazo devido aos seus conhecidos efeitos colaterais, dência e de interação com outros medicamentos, essas drogas
especialmente cólica abdominal e risco de lesão do plexo mio- devem ser sempre utilizadas com bastante prudência.
entérico colônico. Terapias alternativas e/ou complementares têm sido cada
A utilização de outros medicamentos capazes de estimular o vez mais utilizadas para pacientes com SII, destacando-se, en­
trânsito colônico tem sido tentada com eficácia clínica variável, tre elas, ervas asiáticas, suplementos nutricionais (probióticos,
como os procinéticos, a colchicina e a trimebutina. O tegasero- prebióticos, fibras especiais), dietas que eliminam alimentos
de, um agonista 5-HT.,, mostrou-se bastante eficaz para os pa­ capazes de aumentar os anticorpos anti-IgE (ovos, leite, tri­
cientes com constipação intestinal predominante, mas a recente go, carnes vermelhas), acupuntura e homeopatia. A maioria
observação de efeitos colaterais cardiovasculares limita muito dos estudos empregando essas terapias, no entanto, apresenta
a sua prescrição. Recentemente, o lubiprostone, um ativador falhas metodológicas, o que obviamente dificulta conclusões
dos canais de cloro, foi liberado pela PDA para o tratamento definitivas sobre o real benefício dessa nova abordagem te­
da SII-C. Teoricamente, essa droga é capaz de promover a se­ rapêutica.
creção de fluidos e acelerar o trânsito intestinal.
Para alívio da dor, estão indicados os antiespasmódicos, que
representam a classe de medicamentos mais utilizada na síndro­
me e apresentam grau B de evidência na literatura. Entre eles, ■ TRATAMENTO DA SII-PI
estão os bioqueadores de canais de cálcio (brometo de pinavério
Alguns estudos, de ótima qualidade metodológica, têm de­
e de otilônio), derivados da papaverina (cloridrato de mebeve-
monstrado que até 75% dos sintomas da SII podem melhorar
rina), relaxantes musculares (hioscina, dicloverina) e derivados
com antibioticoterapia, de modo especial nos pacientes que
opioides (trimebutina, lopramida). Em várias metanálises e na
apresentam supercrescimento bacteriano intestinal associado.
Cochrane (16 estudos), tem sido confirmada a eficácia clínica
Pimentel, em um estudo duplo cego e randomizado, compa­
dos antiespasmódicos, tanto em relação à melhora global como
em relação ao alívio da dor e distensão abdominal. rou rifaximina e placebo em 87 pacientes com SII e evidenciou
melhora global dos sintomas, especialmente da flatulência no
Estudos recentes demonstraram significativa melhora da dor
grupo que recebeu a droga ativa. Este medicamento ainda não
abdominal e da flatulência com a utilização da mentha piperita.
Tem sido descrito que o óleo de menta apresenta ação relaxante está disponível no Brasil.
na musculatura lisa mediada via bloqueio do canal de cálcio e No nosso meio, os antibióticos rotineiramente empregados
parece ter uma eficiente ação antiespasmódica. para o tratamento do SCBID são as quinolonas (ciprofloxacino,
O tratamento psicológico deve ser considerado para os pa­ norfloxacino, levofloxacino), metronidazol, amoxicilina-ácido
cientes com SII e sintomas mais graves que não respondem ao clavulânico, cloranfenicol e tetraciclina. A duração do trata­
tratamento farmacológico e para aqueles com doenças psiquiá­ mento não está estabelecida, mas a maioria dos autores reco­
tricas associadas, como depressão ou transtorno da ansiedade. menda cursos de antibióticos durante 7 a 10 dias. Um estudo
As intervenções psicológicas mais estudadas no tratamento da demonstrou que um tratamento único por 7 dias pode melho­
SII são controle do relaxamento e do estresse, terapia cognitivo- rar os sintomas da SII em 46 a 90% dos pacientes e normalizar
comportamental, hipnoterapia, e psicoterapia psicodinâmica o teste respiratório em 20 a 75% das vezes.
ou interpessoal. A maioria dos estudos corrobora o tratamen­ Alguns autores sugerem também que os probióticos apre­
to psicológico na redução de estresse, ansiedade e depressão sentam efeitos anti-inflamatórios e de normalização da flora
e, em muitos casos, alívio da dor e do desconforto abdominal intestinal. A justificativa para a sua utilização seria que a infla­
associado à SII. mação do intestino aparece como uma reação à flora comensal,
Os antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, imipramina, e a possibilidade de modificá-la com estes medicamentos tem
desipramina, doxepina) ou os inibidores da captação da seroto- sido bastante atrativa nos últimos anos.
nina (fluoxetina, sertralina, paroxetina), que apresentam como Dessa forma, inúmeros estudos atuais têm avaliado o efei­
mecanismo de ação uma provável analgesia central e bloqueio to dos probióticos na SII, e os primeiros resultados têm sido
da transmissão da dor do trato digestivo para o cérebro, podem promissores. Um estudo controlado com placebo demonstrou
ser utilizados no tratamento. Essas drogas têm propriedades redução consistente nos níveis do H, expirado após 21 dias de
neuromoduladoras e analgésicas, independentes da ação psi- tratamento no grupo que recebeu Lactobacillus. Outros autores,
cotrópica, e esses efeitos ocorrem mais precocemente e com no entanto, não encontraram os mesmos resultados, e novos
doses mais baixas do que aquelas em geral empregadas para o estudos bem elaborados e rigorosos do ponto de vista meto­
tratamento da depressão (p. ex., 10 a 50 mg de amitriptilina e dológico se fazem necessários para esclarecer o real valor dos
10 a 20 mg de fluoxetina, 1 ou 2 vezes/dia). Estão indicadas, de probióticos no tratamento dos pacientes com SII.
Capítulo 40 / Síndrome do Intestino Irritável 447

■ TERAPIA FUTURA ■ LEITURA RECOMENDADA


Atualmente, inúmeras drogas estão sendo testadas em vários American Gastrocntcrological Association medicai position statement: irritablc
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Receptores K-opioides (asimadolina), antagonistas do recep­ Camillcri, M. Evolving conccpts of thc pathogcncsis of irritablc bowcl syn­
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41 Doença Diverticular do Cólon
José Alves de Freitas e Mounib Tada

um fenômeno de pulsão intraluminal que enfraquece a parede


■ INTRODUÇÃO E CONCEITO da víscera, permitindo a herniação nos pontos mais fracos, ge­
Divertículos são herniações da mucosa e da submucosa atra­ ralmente nos locais de penetração dos vasos sanguíneos (Figura
vés da camada muscular da parede do tubo digestivo. Podem 41.1). Merecem destaques os fatores descritos a seguir.
ocorrer em qualquer parte do trato gastrintestinal, porém são
muito mais frequentes no cólon. Podem ser congênitos ou ad­ ■ Resistência da parede colônica
quiridos. Os primeiros são raros, geralmente únicos, e são con­
siderados divertículos verdadeiros, pois são formados por todas Diferente de outras partes do trato gastrintestinal, o cólon
as camadas do órgão. Os adquiridos são os mais frequentes e é o único local onde a camada muscular externa não envolve
considerados pseudodivertículos, pois somente a mucosa e, às totalmente a víscera. Na verdade, as fibras musculares desta
vezes, a submucosa se herniam. camada coalescem formando bandas musculares chamadas de
A diversidade de nomenclatura usada tanto por leigos como tênias que percorrem todo o comprimento do cólon.
por alguns médicos causa muita confusão. O termo diverticu- Embora os achados histológicos típicos da doença diverticu­
lose refere-se à presença de divertículos assintomáticos no có­ lar seja o espessamento da camada muscular, o encurtamento
lon, enquanto diverticulite indica inflamação do divertículo e, da tenia coli e a contração muscular, nem sempre ocorre hiper­
comumente, é acompanhada de sintomas (geralmente com dor trofia muscular. Estudos utilizando-se microscopia eletrônica
e febre). Hoje há uma tendência universal em empregar a deno­ revelaram que a estrutura da parede do divertículo consiste
minação genérica doença diverticular do cólon (DDC), já que, em células musculares normais, porém nota-se aumento de
muitas vezes, é difícil diferenciar diverticulose de diverticulite. até 200% na deposição de elastina nas tênias em comparação
Mesmo a palavra diverticulite, que significaria inflamação e/ou ao tecido normal. A elastina é depositada de forma tal que re­
infecção do divertículo, não é muito apropriada, uma vez que o sulta em encurtamento da tênia e deixa a musculatura normal
processo infeccioso pode ser muito mais pericólico e, portanto, altamente contrátil, contribuindo para o aumento da pressão
uma peridiverticulite. intraluminar. Alterações na deposição do colágeno consequente
Quanto à localização, a DDC pode ocorrer em qualquer par­ ao envelhecimento parecem exercer um papel crucial na resis­
te do cólon, mas acima de 95% dos casos ocorrem no descen­ tência da parede.
dente e sigmoide. É interessante observar que a distribuição
anatômica dos divertículos varia com a geografia: nos países ■ Distúrbios da motilidade
industrializados ocidentais, os divertículos predominam no
sigmoide e cólon esquerdo, enquanto, no Oriente, o lado di­ Estudos manométricos realizados em pacientes com e sem
reito é a sede mais comum. doença diverticular evidenciaram aumento na pressão intralu­
minal em repouso, pós-prandial e estimulado por neostigmina
nos portadores de divertículos. Estudos simultâneos de pressão
■ ETIOPATOGÊNESE intraluminal e cinerradiografia confirmaram esses achados.
Partindo destas observações, surgiu a teoria da segmentação,
Até hoje não conhecemos o mecanismo exato de formação segundo a qual a contração do cólon origina pequenas câma­
do divertículo. Alguns acreditam que a sua presença constitui ras, o que proporciona um aspecto segmentar no cólon. Esta
um processo normal do envelhecimento. Outros dizem que são segmentação tem papel fisiológico no transporte e absorção de
consequentes a distúrbios da musculatura colônica, da função água. Entretanto, em algumas circunstâncias, há aumento de
motora do cólon, ou da dieta pobre em fibras e rica em car- pressão dentro destas câmaras, favorecendo a herniação. Este
boidratos. Parece ser consenso que o divertículo é proveniente efeito pode ser amplificado pela deficiência de fibras na dieta.
de alterações nas estruturas anatômicas do cólon associado a Recentemente, verificou-se que, além do aumento da pressão

449
450 Capítulo 47 / Doença Diverticular do Cólon

intraluminar, pacientes com DDC sintomática apresentam altos Do ponto de vista anatomopatológico, o divertículo é for­
índices de motilidade quando comparados a assintomáticos e mado por um óstio e uma parte sacular ou corpo. Seu tamanho
indivíduos normais. Contudo, é ainda discutível se o aumento é variável, podendo chegar a 5 cm de diâmetro. A sua secção
da pressão intraluminal e a alteração de motilidade represen­ mostra que é formado por mucosa e serosa. Algumas vezes, po­
tam causa ou consequência da doença. demos encontrar também parte da submucosa ou da muscularis
mucosae. Na doença diverticular do sigmoide, ambas as cama­
das musculares estão espessadas. Há encurtamento das tênias e
■ Teor de fibra na dieta contrações musculares, produzindo uma deformidade chama­
A revolução industrial, com suas máquinas cada vez mais da de miocose, que estreita e, algumas vezes, oblitera o lúmen
modernas, removeu mais de dois terços do conteúdo de fibras intestinal, criando compartimentos temporariamente isolados.
dos alimentos. A diminuição no teor de fibras na dieta humana As tênias aparecem espessadas e encurtadas, adquirindo consis­
após este período correlaciona-se muito bem com o surgimento tência quase cartilaginosa. À microscopia, a camada muscular
da doença diverticular sintomática. A variabilidade geográfica está espessada, porém sem hipertrofia ou hiperplasia celular. A
da DDC e a correlação com a dieta ocidental sugerem que o musculatura circular apresenta-se septada, formando fascículos
teor de fibra e o alto teor de carboidratos na dieta exercem um bem demarcados, separados uns dos outros por tecido conjun-
papel fundamental na patogênese de doença. Esta dieta produz tivo. Nos casos em que ocorreram surtos múltiplos de infla­
um bolo fecal pouco volumoso, retendo menos água, alteran­ mação, pode-se evidenciar tecido fibroso envolvendo o cólon.
do o trânsito colônico e aumentando a pressão intraluminal. Nessa situação, a alça torna-se rígida e com estenose da luz.
Painter e Burkitt, ao estudarem o tempo de trânsito intestinal
e o peso das fezes de 1.200 indivíduos na Inglaterra e em uma
zona rural de Uganda, verificaram que os pacientes ingleses in­ ■ EPiDEMIOLOGIA
geriam pouca fibra e apresentavam tempo de trânsito de 80 h e
110 gramas de fezes/dia em comparação a 34 h e 450 gramas de A DDC é muito comum em países desenvolvidos, e a sua
fezes/dia nos ugandenses que têm uma dieta basicamente vege­ frequência aumenta com a idade. O aumento na prevalência
tariana. Em vista disso, os autores rotularam a DDC de doença da doença reflete o aumento na longevidade. Estudos basea­
carencial. Acreditava-se que o pequeno volume de fezes aliado dos em necropsias, colonoscopia e radiologia indicam preva­
ao prolongado tempo de trânsito predispunha a herniação. lência de:
Apesar desta hipótese bastante convincente, estudos em po­ • 5 a 10% dos indivíduos abaixo de 50 anos
pulações ocidentais comparando-se o peso das fezes e o tempo • 30% entre 50 e 70 anos
de trânsito em pacientes com e sem doença diverticular não • 50% entre 70 e 85 anos
evidenciaram nenhuma diferença significativa. • 66% após 85 anos
Não obstante, estudos em animais, sobretudo em ratos ali­
Quanto ao sexo, há predomínio nas mulheres, na propor­
mentados com dieta pobre em fibras, desenvolveram DDC em
ção de 3:2. Complicações são relativamente frequentes, po­
45% dos casos comparados a 9% daqueles que receberam dieta rém a mortalidade em consequência da doença não ultrapassa
com altos teores de fibra. 1: 10. 000.

■ Outros fatores
Outros fatores que, de alguma forma, contribuem para o
■ ABORDAGEM CLÍNICA
surgimento de divertículos são sedentarismo, obesidade, cons­ A DDC pode-se apresentar de forma assintomática, sinto­
tipação intestinal, fumo e tratamento com anti-inflamatórios mática e complicada. Por este motivo, e por motivo puramen­
não esteroides. te didático, abordaremos o quadro clínico, os procedimentos
diagnósticos e o tratamento de cada forma separadamente.

Vnxo xungufnco Divwtkulo ■ Doença diverticular assintomática


A simples presença do divertículo ao longo do cólon não
ocasiona sintomas. A grande maioria dos pacientes (75-80%)
permanecerá assintomática a vida toda. Neste caso, a doença
será diagnosticada casualmente através de enema opaco (Figu­
ra 41.2), colonoscopia (Figura 41.3), laparotomia por qualquer
outra razão ou pelos métodos de imagem.
Esta forma de apresentação não requer tratamento nem
qualquer seguimento médico, contudo alguns estudos recen­
tes sugerem que o aumento no teor de fibras, notadamente
solúveis, na dieta parece diminuir o risco de aparecimento de
sintomas. Para tanto, basta que o paciente aumente o consumo
de frutas e vegetais.

> Doença diverticular sintomática


Figura 41.1 Mecanismo de formação do divertículo. (Esta figura en­ Nos pacientes com DDC não complicada, o principal sin­
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) toma é a dor abdominal. Esta geralmente é em cólica, inter-
Capítulo 41 / Doença Diverticular do Cólon 451

■ Doença diverticular complicada


O espectro da DDC complicada inclui: diverticulite ou abs-
cesso peridiverticular (pericólico); perfuração com peritoni-
te, fistulização para dentro de vísceras adjacentes, obstrução
e hemorragia.

■ Diverticulite
Diverticulite é a complicação mais comum, acometendo
10-25% dos pacientes com DDC. O mecanismo de formação
da diverticulite é semelhante ao da apendicite, ou seja, o diver-
tículo é obstruído por fezes endurecidas que provocam abrasâo
da mucosa do saco diverticular (Figura 41.4), causando infla­
mação e proliferação da flora bacteriana local, acarretando di­
minuição do fluxo venoso e isquemia localizada. A infiltração
bacteriana rompe a mucosa e o processo pode se estender por
toda a espessura da parede, algumas vezes ocasionando perfu­
ração. A extensão e localização desta perfuração é que vai esta­
belecer o quadro clínico. Microperfuração poderá permanecer
Figura 41.2 Enema opaco - DDC.
bloqueada pela gordura pericólica e mesentérica, ocasionando
um pequeno abscesso pericólico. Grandes perfurações podem
resultar em abscessos algumas vezes envolvendo toda a parede
cólica, formando uma grande massa inflamatória ou estender-
se para órgãos vizinhos. Perfuração em peritônio livre é um
quadro grave que causa franca peritonite e acarreta risco de
morte. Felizmente, esta situação é rara.
A gravidade da diverticulite pode ser graduada de acordo
com a classificação de Hinchey (Quadro 41.1).
Clinicamente, o paciente com diverticulite quase sempre se
apresenta com dor no quadrante inferior esquerdo, uma vez
que a DDC predomina no sigmoide, contudo indivíduos com
sigmoide redundante podem apresentar dor suprapúbica ou
até mesmo na fossa ilíaca direita. A dor pode ser intermitente
ou constante e, algumas vezes, associa-se com mudanças no
hábito intestinal. Hematoquezia é rara, entretanto anorexia,
náuseas e vômitos são frequentes.
O exame físico geralmente revela sensibilidade localizada
e eventualmente massa palpável. A ausculta mostra ruídos
hidroaéreos tipicamente diminuídos, podendo ser normais nos
Figura 41.3 Colonoscopia - DDC. Óstios diverticulares. (Esta figura casos leves e exacerbados nos casos com obstrução do lúmen.
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) O toque retal geralmente é doloroso e nos abscessos pélvicos
revela massa palpável. A maioria dos pacientes desenvolve fe­
bre. Hipotensão e choque podem ocorrer, mas são raros. Leu-
cocitose está quase sempre presente.
mitente, com intensidade variável, mas frequentemente leve a
moderada, localizada quase sempre na fossa ilíaca esquerda ou
na região infraumbilical. Costuma acompanhar-se de flatulên-
cia, distensão abdominal e alteração do hábito intestinal (cons­
tipação intestinal ou diarréia). A dor geralmente é exacerbada
pela alimentação e aliviada com a defecação ou eliminação de
flatos, sugerindo tensão na parede colônica devido ao aumen­
to da pressão intraluminal. Muitas vezes, é difícil estabelecer
uma relação causai entre os sintomas e a doença. O exame fí­
sico pode revelar um abdome distendido, sensível à palpação,
notadamente na fossa ilíaca esquerda; os exames laboratoriais
em geral são normais.
O diagnóstico definitivo pode ser obtido através do enema
opaco ou da colonoscopia.
O tratamento nestes casos consiste apenas na orientação
com relação à possibilidade de complicações da doença, ade­
quar a ingesta de fibras e líquidos e prescrever antiespasmódicos
quando necessário. Não há qualquer fundamento científico na Figura 41.4 Diverticulite. Nota-se reaçáo inflamatória em volta de
utilização de antibióticos e analgésicos potentes (narcóticos) um óstio diverticular. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
nestes pacientes. no Encarte.)
452 Capítulo 47 / Doença Diverticular do Cólon

----------------------------- ▼------------------------------
Quadro 41.1 Classificação de Hinchey para diverticulite

I - D iv e r tic u lit e c o m a b s c e s s o p e ric ó lic o , p ro c e s s o in fla m a t ó r io lo c a liz a d o .

II - D iv e r tic u lit e c o m a b sc e s so s p e rito n e a is .

III - D iv e r tic u lit e c o m p e r it o n it e p u r u le n t a g e n e r a liz a d a .

IV - D iv e r tic u lit e c o m p e r it o n it e fecal g e n e r a liz a d a .

O diagnóstico diferencial deve ser feito com apendicite agu­


da, especialmente nos asiáticos (nos quais a DDC predomina
no cólon direito) e nos indivíduos com sigmoide redundante,
doença inflamatória intestinal e carcinoma do cólon. Nas m u­
lheres, distúrbios ginecológicos, como cisto de ovário roto, tor-
çáo ovariana, gravidez ectópica e doenças inflamatórias pélvicas
podem se confundir com diverticulite. Nestes casos, geralmente
Figura 41.5 Ultrassonografia mostrando espessamento da parede
a ultrassonografia auxilia muito.
intestinal (A) e divertículo (B).
Do ponto de vista diagnóstico, o quadro clínico da diverti­
culite em geral é suficiente para se instituir empiricamente o
tratamento. Contudo, exames laboratoriais básicos, tais como
leucograma e urina tipo I, devem ser realizados. Outros exames abscessos maiores, pode-se utilizar a drenagem percutânea diri­
são reservados para os pacientes nos quais exista alguma dúvida gida por ultrassom ou tomografia computadorizada. As formas
em relação ao diagnóstico ou quando a terapêutica empírica não leves recebem antibióticos por 7 dias; as graves, por 14 dias ou
está funcionando e ainda quando há suspeita de complicações. até mais, dependendo da evolução. Analgésicos e antiespasmó-
Neste sentido, os principais exames a serem realizados são os dicos devem ser utilizados rotineiramente.
Raios X de tórax e simples de abdome. Devem ser realizados em Recentemente, baseado na teoria de que na DDC existe in­
pacientes com dor abdominal importante. Os raios X de tórax flamação crônica na parede intestinal, vem sendo empregada
permitem visualizar pneumoperitônio (se existir) e avaliar o a mesalazina associada à antibioticoterapia para o tratamento
estado cardiopulmonar. Os raios X simples de abdome estão al­ de formas moderadas. Os trabalhos iniciais revelam que a me­
terados em 30-50% dos pacientes. Os achados radiológicos mais salazina diminuiu o curso da diverticulite e, possivelmente,
frequentes são: dilatação do intestino delgado, íleo adinâmico, diminuiría as recidivas.
pneumoperitônio, obstrução intestinal ou massa de densidade O papel dos probióticos no manejo da DDC, complicada ou
de partes moles no abdome sugerindo abscesso. não, está sendo investigado. Nos casos em que há constipação
Enema opaco deve ser evitado, não só pelo risco de perfura­ intestinal associada, os resultados iniciais são animadores. En­
ção, mas também pela limitação de informações obtidas, uma tretanto, esta opção terapêutica não está ainda padronizada.
vez que a diverticulite é um processo extraiuminal.
Ultrassonografia e tomografia computadorizada constituem, ■ P e rfu ra ç ã o
hoje, exames de primeira escolha para o diagnóstico de diverti­ As formas graves (Hinchey III e IV) geralmente cursam com
culite por se tratar de métodos não invasivos e de alta resolução. perfuração. Esta pode ser espontânea ou iatrogênica (durante
Permitem identificar espessamento da parede intestinal pelo a realização de exames radiológicos ou endoscópicos). Se a in­
processo inflamatório, abscessos e eventualmente o próprio fecção originada de um divertículo perfurado não é imediata­
divertículo (Figura 41.5). mente selada pelas defesas peritoneais habituais, pode ocorrer
A tomografia computadorizada (TC) é ainda melhor do que peritonite generalizada (Figura 41.6). Os pacientes queixam-se
o ultrassom, pois este é prejudicado com a presença de gás no de dor acentuada, o abdome a princípio é sensível, logo evo­
cólon. Através deste exame, pode-se evidenciar e dimensionar luindo para defesa em todos os quadrantes, e até rigidez da
infiltração no tecido gorduroso pericólico, espessamento da parede abdominal. Há leucocitose, embora quadros muito gra­
parede cólica e abscessos. A sensibilidade do exame varia de ves possam cursar com leucopenia. Ao estudo radiológico, a
93-98%, enquanto a especificidade atinge 75-100%. Estes resul­ presença de ar livre na cavidade peritoneal é muito sugestiva,
tados são significativamente mais acurados e seguros do que mas a ausência de ar não elimina o diagnóstico. O tratamento
aqueles dos exames contrastados. é cirúrgico, de urgência.
A colonoscopia deve ser realizada com cautela pelo risco A perfuração de um divertículo pode gerar um abscesso. A
de perfuração. dor se localiza no quadrante inferior esquerdo do abdome. Por
O tratamento da diverticulite não complicada (Hinchey I) vezes, palpa-se uma tumefação, e, se o abscesso é profundo, o
pode ser feito ambulatorialmente e inclui dieta branda e anti- toque retal pode evidenciá-lo. O melhor exame complementar
bioticoterapia de largo espectro. Se o tratamento ambulatorial é a TC. O tratamento preferencial é a drenagem transcutânea,
falha, ou o paciente é imunossuprimido, deverá ser hospitaliza­ ou, se o abscesso é muito baixo, a drenagem pode ser execu­
do. Passado o surto agudo, voltar à dieta rica em fibras. tada através da parede do reto, por via transanal ou transvagi-
As formas moderadas (Hinchey II) também podem ser tra­ nal. Abscessos multiloculados, ou inacessíveis, serão drenados
tadas clinicamente, mas com o paciente internado. Prescreve- cirurgicamente.
se dieta leve, com o intuito de manter o cólon em repouso, e Conforme mencionado, as fístulas são consequentes a abs­
antibioticoterapia sistêmica de largo espectro. Na presença de cessos que se estendem para órgãos adjacentes ou perfuração.
Capítulo 41 / Doença Diverticular do Cólon 453

Em geral, elas se formam entre o cólon e a bexiga. Nesse caso, ■ Hem orragia
além dos sintomas inflamatórios, o paciente poderá apresen­ Constitui uma das principais causas de enterorragia, res­
tar disúria, pneumatúria e fecalúria. São mais frequentes no pondendo por 40% dos casos. Acomete 5 a 10% dos pacientes
homem na proporção de 2:1 em relação às mulheres devido à com DDC. Na metade dos casos, a hemorragia poderá ser grave,
proteção da bexiga pelo útero. Poderão ocorrer também fístulas colocando em risco a vida do paciente. Não se conhece o meca­
colovaginais e colocutâneas. nismo exato da hemorragia. Estudos histológicos demonstram
que não há inflamação, o que se vê é um enfraquecimento da
Cistoscopia, cistografia, radiografias contrastadas utilizan­
parede dos vasos com um espessamento da íntima e adelgaça-
do-se constrastes dissolvidos em água ou azul de metileno po­
mento da camada média. Sabe-se que o sangramento é arterial e
dem demonstrar o trajeto fistuloso. ocorre, provavelmente, em consequência de erosão da mucosa
As fístulas diverticulares são, em sua maioria, tratadas ci­ do divertículo e dos vasos subjacentes. É interessante observar
rurgicamente. que estudos recentes demonstraram que os anti-inflamatórios
Após a resolução de um episódio de diverticulite aguda, é não esteroides (AINEs) acarretam risco de sangramento no
necessário investigar o cólon inteiro no sentido de excluir si­ paciente com DDC na mesma proporção que nos pacientes
tuações que mimetizem inflamação, principalmente câncer e com úlcera duodenal.
doença inflamatória intestinal. Cerca de 3 a 5% dos casos ini­ Estudos angiográficos demonstram que, apesar de os di-
cialmente diagnosticados como diverticulite são, na verdade, vertículos serem encontrados com muito maior frequência no
adenocarcinoma. A colonoscopia ou a tomografia computado­ hemicólon esquerdo, 70% dos sangramentos provêm de diver-
rizada são os exames de escolha. tículos localizados no cólon direito.
O sangramento por DDC é caracteristicamente indolor, com
■ Obstrução intestinal sangue vermelho-vivo (Figura 41.7), quase sempre em grandes
volumes. Em 80% dos casos, cessa espontaneamente, e 25%
Dependendo da intensidade e da frequência dos surtos de
destes apresentarão recidivas. É raro um divertículo do cólon
inflamação, poderá surgir estenose do lúmen intestinal, acar­ causar sangramento crônico.
retando quadros de suboclusão ou, até mesmo, de oclusão in­ Do ponto de vista clínico, o sangramento em geral tem iní­
testinal. Felizmente, essa complicação é rara e de fácil diagnós­ cio abrupto e sem dor. O paciente às vezes tem cólicas abdomi­
tico. A obstrução aguda, durante um episódio de diverticulite, nais discretas e urgência para evacuar, segue-se a evacuação de
em geral é autolimitada e responde bem ao tratamento clíni­ sangue vivo, vermelho-rutilante, que assusta o paciente e seus
co. Raros casos exigem cirurgia. As estenoses crônicas devem familiares. A hemorragia cessa espontaneamente em 70-80%
ser submetidas a colonoscopia para se afastar câncer. Quando dos pacientes com ressangramento em 22-38% dos casos. A
sintomáticas, podem ser tratadas por via endoscópica (dilata- chance de um terceiro episódio de hemorragia é em torno de
ção por velas, por balão, pela eletrocoagulação, ou laser), ou 50%, levando a maioria dos médicos a indicar cirurgia após o
cirurgicamente. segundo episódio.
O diagnóstico do local exato do sangramento é importante,
mas nem sempre fácil. O procedimento inicial é, na maioria
das vezes, a retossigmoidoscopia flexível, mesmo sem preparo,
no sentido de identificar lesões no reto e/ou no sigmoide. Se
nenhuma causa for identificada, e se as condições do paciente
permitirem, o próximo passo é a colonoscopia, que, além de
localizar o sangramento, possibilita, algumas vezes, o controle
da hemorragia através de esclerose do vaso roto.
Muitas vezes, é difícil identificar o local exato do sangramen­
to. Nesta situação, a cintigrafia com hemácia marcada constitui
um método bastante eficaz, não invasivo e sensível, detectan­
do sangramento tão pequeno como 0,1 m^/min. Além disso, a

Figura 41.6 Raios X de cólon (enema opaco). Doença diverticular


em cólon esquerdo, com perfuração bloqueada de divertículo em
sigmoide, demonstrada pelo extravasamento do meio de contraste Figura 41.7 Divertículo hemorrágico identificado à colonoscopia. {Esta
para fora da luz do intestino. figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
454 Capítulo 41 / Doença Diverticular do Cólon

hemácia permanece marcada por 24 h, permitindo repetição matório grave, não ocorrendo melhora após 72 h de tratamento
de pesquisa várias vezes. clínico, deverão ser avaliados para abordagem cirúrgica.
A angiografia, embora não seja tão sensível quanto a cinti- O tratamento cirúrgico nos pacientes com DDC consiste,
grafia, tem a vantagem de identificar o local exato do sangra- basicamente, em remoção do segmento intestinal comprome­
mento, permitindo uma hemicolectomia seletiva, se necessá­ tido, controle da sepse e eliminação de outras complicações,
rio. Algumas vezes, pode-se atuar terapeuticamente, durante o como fístulas e/ou obstrução, restaurando a continuidade do
exame, através da administração intra-arterial de vasopressina. trânsito intestinal.
Este procedimento cessa a hemorragia em 90% dos casos, en­ Nas complicações inflamatórias agudas, poderá haver ne­
tretanto é temporário. cessidade de dissecção pélvica dificultosa, envolvendo, muitas
Durante o procedimento de investigação, o paciente deve vezes, ureteres, além da feitura de colostomia temporária.
estar com uma boa via de acesso para receber fluidos e repo­ Nas cirurgias eletivas, é indispensável um preparo mecâ­
sição sanguínea. Não podemos esquecer que geralmente são nico do cólon para a sua limpeza, além da utilização de anti­
pacientes idosos e com uma ou mais comorbidades. bióticos para a redução da flora intestinal, propiciando, assim,
melhor segurança na feitura das anastomoses e reduzindo a
possibilidade de fístulas e/ou deiscências, além de intercor-
rências sépticas.
■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Indicação para cirurgia emergencial inclui perfuração livre,
Em algumas circunstâncias, o diagnóstico diferencial pode com peritonite e grandes abscessos peridiverticulares. Nessas
ser muito difícil, pois várias doenças apresentam quadros clí­ situações, o procedimento cirúrgico consiste, basicamente, na
nicos bem semelhantes. Dentre estas, destacam-se: remoção do segmento colônico comprometido e na colosto­
mia temporária, além de proceder-se à limpeza e drenagem da
cavidade abdominal. Representam situações muitas vezes de
■ Carcinoma de cólon grande gravidade e morbidade, requerendo a utilização de anti­
Além do quadro clínico similar, o câncer do intestino e a bióticos de largo espectro, com atuação em flora gram-negativa.
DDC podem coexistir. Nesta situação, o aspecto radiológico é Posteriormente, após a resolução da fase aguda e recuperação
das condições do paciente, o segundo tempo cirúrgico recons­
dúbio, e a colonoscopia, por dificuldades técnicas, pode não ser
tituirá o trânsito intestinal.
esclarecedora. O diagnóstico será feito na peça cirúrgica.
Nas situações de hemorragia pela DDC, em cerca de 90%
dos casos ocorre resolução espontânea, sem necessidade de
■ Doença inflamatória intestinal qualquer abordagem terapêutica específica, além da reposição
volêmica. Em pacientes com sangramento contínuo e/ou per­
Tanto a doença de Crohn como a retocolite ulcerativa po­
sistente, poderá haver indicação de cirurgia, com remoção do
dem apresentar sinais e sintomas superponíveis aos da DDC. O
segmento de cólon envolvido, ou, então, através de arteriografia
exame radiológico ou endoscópico permitirá a diferenciação.
mesentérica, a embolização do vaso sangrante. A opção ficará
na dependência da disponibilidade dos recursos existentes. Po­
■ Colite isquêmica rém, na eventualidade da opção cirúrgica, é sempre importante
a localização do local de sangramento, através da colonosco­
Incide na mesma faixa etária da DDC. Além disso, as duas pia, da arteriografia ou, então, de estudos cintigráficos. Mais
entidades podem coexistir, dificultando o diagnóstico. Algu­ recentemente, a cirurgia videolaparoscópica também passou a
mas vezes, além do enema opaco, há necessidade de realizar ser utilizada para a abordagem do cólon, com reais benefícios,
arteriografia seletiva para o diagnóstico. como a redução da dor no pós-operatório e do íleo paralítico,
assim como menor internação hospitalar. No entanto, para ob­
■ Outras doenças tenção dessas vantagens, deverá haver uma criteriosa seleção
dos pacientes, uma vez que a taxa de conversão do procedimen­
A angiodisplasia intestinal hemorrágica pode simular san- to laparoscópico é superior a 20%. Habitualmente, a laparos-
gramento por divertículo. Nessa oportunidade, a colonoscopia copia é utilizada para a liberação do cólon, porém a ressecção
decide o diagnóstico e pode ser terapêutica. A angiodisplasia e a anastomose são realizadas externamente, exteriorizando o
é uma alteração adquirida, raramente diagnosticada antes dos cólon através de pequenas incisões.
40 anos, e aumenta com a idade. As lesões são mais comuns A cirurgia videolaparoscópica é hoje amplamente utilizada
no ceco, mas cerca de 20% das angiodisplasias localizam-se nos para a reconstituição do trânsito em pacientes submetidos a
cólons descendente e sigmoide. Em alguns casos, pode haver cirurgias de urgência, com fechamento do coto intestinal dis­
dificuldade no diagnóstico diferencial com apendicite, espe­ tai e colostomia proximal (cirurgia de Hartmann). Nessas si­
cialmente se o sigmoide ultrapassa a linha mediana, ou se a tuações, o segmento proximal do cólon é liberado por vídeo e
diverticulite se assenta no cólon direito. a anastomose com o coto distai é realizada por grampeadores
Quase todas as doenças do trato geniturinário, especialmen­ introduzidos VR.
te em mulheres, podem simular DDC. Contudo, são entidades Finalmente, não considerando um quadro agudo de diverti­
de fácil diagnóstico. culite complicada por sepse, fístula ou obstrução, quais seriam
os candidatos ao tratamento cirúrgico? São os pacientes com
episódios recorrentes de diverticulite, aqueles que são insuces­
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO so da terapêutica clínica, ou doentes nos quais uma estenose
colônica é de causa duvidosa (câncer? estenose cicatricial in­
Cerca de 20 a 30% dos pacientes portadores de DDC que flamatória?), pacientes sintomáticos com sanfonamento acen­
desenvolvem crises de diverticulite serão encaminhados para tuado do sigmoide (e espessamento da parede intestinal). Para
tratamento cirúrgico. Quadros evolutivos com processo infla- esses casos, devemos considerar o tratamento cirúrgico. Entre­
Capítulo 41 / Doença Diverticular do Cólon 455

tanto, pacientes que apresentam fatores de risco, ou aqueles Lctwin, ER. Divcrticulitis of the colon. Clinicai review of acute presentations
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Apendicite Aguda e Outras
Doenças do Apêndice
Mounib Toda

■ ANATOMIA E FISIOLOGIA DO APÊNDICE Nos países da África e Ásia, em decorrência de alimentação


rica em resíduos vegetais, a incidência de processo inflamatório
O apêndice é uma formação diverticular cilíndrica, locali­ agudo no apêndice é significativamente menor.
zada no ápice do ceco, na sua porção dorsal e lateral, cerca de
2,5 cm abaixo da válvula ileocecal. Mede de 8 a 10 cm e repre­ ■ Etiopatogenia
senta o subdesenvolvimento da porção distai do ceco, de gran­
des dimensões nos animais. As tênias do cólon convergem para Em cerca de 70% dos casos de inflamação aguda do apên­
a base do apêndice, facilitando a sua localização por ocasião de dice, a obstrução do lúmen proximal do órgão, provocada por
procedimentos cirúrgicos. Em cerca de 16% dos casos, o apên­ fecalito, parasitos, tumores ou corpo estranho, representa o fa­
dice está fixado em posição retrocecal. tor desencadeante do processo, com consequente proliferação
Nos jovens, o apêndice é caracterizado pela grande con­ bacteriana, e, nos 30% restantes, o fator desencadeante pode ser
centração de folículos linfoides; porém, com a passagem dos a hiperplasia linfoide ou, então, um processo catarral.
anos, essas estruturas linfoides são gradativamente substituídas O processo infeccioso é iniciado no interior do apêndice, e
por fibrose da parede e total ou parcial obliteração da sua luz. a suplência sanguínea local é alterada pela atividade bacteriana
na sua parede; na sequência, há distensão do lúmen pela for­
A presença concomitante dos folículos linfoides caracteriza a
mação de secreção purulenta. Gangrena e perfuração poderão
função fisiológica do apêndice, com participação nos mecanis­
ocorrer dentro das 24 h após o início do processo, levando a
mos imunológicos.
quadro de peritonite, localizada junto ao apêndice ou, então,
O relato de maior incidência de câncer do cólon em pacien­
difusa pelo extravasamento do conteúdo intestinal em peritônio
tes submetidos anteriormente à remoção cirúrgica do apêndice livre, levando a situações de extrema gravidade.
não foi ainda devidamente comprovado.

■ Manifestações clínicas
■ APENDICITE AGUDA ■ Sintom as e sinais
Habitualmente, o processo de apendicite inicia-se com dor
■ Epidemiologia periumbilical ou epigástrica, com posterior localização na fossa
ilíaca direita, piorando com a movimentação e deambulação,
Aproximadamente 7% dos indivíduos de países ocidentais podendo também ser acompanhada de náuseas e desconforto
apresentam, ao longo de sua existência, processo de inflamação epigástrico. Nessa fase, aparece a constipação intestinal e, pela
do apêndice. Nos EUA, são realizadas cerca de 200.000 apen- indefinição do quadro, é comum a administração de laxativos,
dicectomias anualmente, representando, sem dúvida, a mais no sentido de aliviar os sintomas. Febre moderada, de até 38°C,
frequente urgência abdominal cirúrgica. A sua incidência é é também manifestação típica, e a presença de temperaturas
maior na faixa etária de 10 a 20 anos, com preponderância em mais elevadas poderá sugerir outros diagnósticos ou, então,
indivíduos do sexo masculino, na proporção de 1,4:1. O risco perfuração do apêndice.
de incidência, ao longo da vida, nos EUA, é de 8,6% para o sexo O exame físico do abdome revela sensibilidade dolorosa jun­
masculino e de 6,7% para o feminino. to ao quadrante inferior direito, e, em formas mais avançadas,
A apendicite aguda representa também a mais comum das poderemos perceber massa palpável no local, consequente ao
urgências na gravidez, com incidência de 0,15 a 2,10% por bloqueio do processo pelo epíploo; a descompressão brusca
1.000.0 deslocamento do apêndice pelo útero grávido poderá dolorosa decorre do comprometimento peritoneal local.
levar a dificuldades e retardo no diagnóstico, com consequente Complementando o exame do abdome, é também impor­
letalidade para o feto, com mortalidade fetal de 20 a 35% nos tante o toque retal, para avaliação de eventual coleção em fundo
casos de apendicites com perfuração. de saco, percebida pelo abaulamento local.

456
Capítulo 42 / Apendicite Aguda e Outras Doenças do Apêndice 45 7

Em algumas situações, devido a variações na localização do derando que a apendicectomia desnecessária cria morbidade e
apêndice, as manifestações clínicas poderão apresentar-se de aumenta custos, há muito interesse em otimizar a acurácia diag-
forma atípica. Assim, uma localização retrocecal poderá mini­ nóstica. Estudos recentes mostraram que o exame ultrassono-
mizar a sensibilidade dolorosa na parede anterior do abdome, gráfico tem uma sensibilidade de 81% e uma especificidade de
referindo-a então à região do flanco direito. A posição pélvica 96%, o que ajuda bastante no diagnóstico correto da apendicite.
provocará sintomas urinários e retais, e, nas grávidas, a mani­ A TC, embora em alguns estudos apresente números melhores
festação clínica poderá ser no quadrante superior direito ou que a ultrassonografia, é um exame mais caro e, na maioria das
periumbilical, decorrente do deslocamento do apêndice pelo vezes, pode ser dispensado, pois os métodos clínicos e de exa­
útero grávido. Uma apendicite retrocecal ascendente pode­ mes subsidiários mais simples já fecharam o diagnóstico. A TC
rá mimetizar colecistite aguda. É importante também consi­ estaria mais indicada em casos de difícil diagnóstico.
derar, no indivíduo adulto, o diagnóstico diferencial com a
diverticulite do cólon direito que, mesmo sendo doença me­ ■ Diagnóstico diferencial
nos frequente, apresenta as mesmas manifestações clínicas da Em face das mais diversas formas na sua apresentação, a
apendicite aguda. apendicite deverá ser considerada no diagnóstico diferencial
O conjunto de sintomas clínicos, associado ao exame do de qualquer paciente com quadro abdominal agudo, indepen­
abdome, permite a suspeita do quadro infeccioso agudo, que dentemente de idade e sexo.
deverá ser devidamente confirmado pelos exames complemen­ Cerca de 5 a 10% dos pacientes com o diagnóstico de apen­
tares. Entretanto, no idoso, que muitas vezes evolui sem febre dicite aguda apresentam resultado negativo quando submeti­
e sem leucocitose, há necessidade de elevado nível de suspeita dos a laparotomia, ou então é encontrada uma outra doença
para não deixar passar uma apendicite. cirúrgica. A utilização de rotina da ultrassonografia e da tomo­
grafia computadorizada tem reduzido muito a possibilidade de
■ Exames subsidiários diagnósticos incorretos; porém, em muitas situações, somente
■ Laboratoriais através de laparotomia ou de laparoscopia haverá a confirma­
ção da doença abdominal realmente presente.
A leucocitose moderada (10.000 a 20.000 leucócitos/mm3),
As afecções mais frequentemente confundidas com a apen­
associada à neutrofilia, juntamente com a elevação de basto-
dicite aguda são os processos pélvicos ginecológicos ou, en­
netes, segmentados e da velocidade de hemossedimentação
tão, gastrenterite, cólica renal ou pielonefrite agudas. A endo-
(VHS), caracteriza o chamado hemograma infeccioso, situ­
metriose do apêndice também poderá simular um quadro de
ação característica nos processos agudos do apêndice. A as­
apendicite aguda, assim como outra afecção ginecológica, a
sociação de leucocitose, neutrofilia e elevação da proteína C
salpingite aguda, por contiguidade, também poderá envolver
reativa representa também um parâmetro para a identificação
o apêndice.
do processo de apendicite aguda, e a normalidade destes testes
O comprometimento ileocecal da doença de Crohn, em sua
obrigará a uma melhor avaliação do diagnóstico.
forma aguda, com manifestações no quadrante inferior direi­
O exame de urina também é importante, no sentido de afas­
to do abdome, deverá também ser considerado no diagnóstico
tar eventual processo infeccioso de vias urinárias, ou litíase re­ diferencial.
nal (cólica nefrética direita).
A diverticulite de Meckel, com localização junto ao íleo dis­
tai, representa outra situação que poderá levar à confusão diag-
■ Exames de imagem nóstica, sendo praticamente impossível a diferenciação entre os
Não existe especificidade nos exames de imagens para afir­ dois processos infecciosos. Porém, trata-se de situação irrele­
mação do diagnóstico da apendicite aguda, mas deverão ser vante, pois ambas as doenças são de abordagem cirúrgica.
analisados em conjunto com as manifestações clínicas. Uma outra afecção que, às vezes, apresenta grandes dificul­
Os raios X simples do abdome poderão mostrar alça intes­ dades na elaboração do diagnóstico diferencial é a linfadenite
tinal sentinela bloqueando o processo apendicular, além do mesentérica. Em relação às mulheres, é preciso estabelecer o
velamento da margem direita do músculo psoas, decorrente diagnóstico diferencial entre abscesso periapendicular e con­
do comprometimento peritoneal. dições como abscesso tubo-ovariano, cisto do ovário torcido,
A ultrassonografia abdominal, associada à abordagem com o gravidez ectópica rompida e ruptura de cisto folicular do ová­
transdutor transvaginal, poderá levar a uma positividade diag- rio. Em situações de vasculite sistêmica, poderá também ocorrer
nóstica de até 85%, com a grande vantagem de permitir o diag­ o comprometimento do apêndice, bem como a incidência de
nóstico diferencial com outras doenças pélvicas. proliferação neural na síndrome de Van Recklinghause, em que
A tomografia computadorizada pélvica é de grande valia na a ocorrência de neuromas poderá obliterar a luz apendicular e
demonstração de processos perfúrativos e/ou de abscessos pe- desencadear o processo infeccioso agudo.
riapendiculares. A utilização da tomografia computadorizada
helicoidal com administração do contraste venoso e VR repre­ ■ Complicações
senta um método rápido e de grande eficiência no diagnóstico A perfuração do apêndice ocorre em cerca de 20% dos casos e
da apendicite aguda. A não opacificação do apêndice representa deverá ser sempre considerada em casos com evolução superior
um critério maior para a sua confirmação do diagnóstico, ou, a 24 h, além da presença de dor persistente e contínua, com febre
então, o encontro do órgão espessado (diâmetro superior a elevada e sinais de irritação peritoneal. A perfuração poderá estar
6 mm) e/ou processo periapendicular. A tomografia apresenta, bloqueada, constituindo abscesso localizado junto ao apêndice,
de modo geral, sensitividade de 86% e especificidade de 81%. ou, então, poderá ocorrer a perfuração livre em cavidade ab­
Atualmente, em muitos centros, preconiza-se a realização da dominal, com consequente processo de peritonite supurativa e
tomografia sem uso de qualquer contraste, como suficiente para concomitante quadro de toxemia desencadeado pela sepse.
a determinação do diagnóstico da apendicite aguda. Outras complicações da apendicite aguda são a peritonite, o
O diagnóstico de apendicite em adultos, puramente em ba­ abscesso periapendicular localizado, a pileflebite com trombose
ses clínicas, pode ser alcançado em até 80% dos casos. Consi­ da veia porta, o abscesso hepático e a septicemia.
458 Capítulo 42 / Apendicite Aguda e Outras Doenças do Apêndice

■ Tratam ento 5% e, nas complicadas com perfuração e/ou gangrena, chega a


O tratamento das formas não complicadas da apendicite 20%. O uso de antibióticos reduzirá esta incidência.
aguda é sempre cirúrgico, podendo ser realizado através de Poderá ocorrer o aparecimento de abscessos intra-abdo-
laparotomia por incisão de McBurney ou, então, por videola- minais ou pélvicos no período pós-operatório, consequente à
paroscopia. O tempo de realização do procedimento cirúrgico contaminação da cavidade abdominal pelo processo apendicu-
deverá ser o mais breve possível, porém não havendo diferença lar infectado. O diagnóstico poderá ser formado pelo quadro
de incidência de complicações na indicação cirúrgica precoce clínico (dor local, febre, sepse) e confirmado por ultrassono-
(menos de 12 h do início de sintomas) ou tardia (de 12 a 24 h). grafia ou tomografia, com abordagem por nova laparotomia,
Após 36 h de evolução clínica, o índice de perfuração do apên­ ou, então, por punção transcutânea.
dice varia de 16 a 36%.
A apendicectomia por via laparoscópica, apesar de ter sua
metodologia introduzida no início de 1990, ainda não se tor­ ■ OUTRAS DOENÇAS DO APÊNDICE
nou procedimento-padrão na abordagem da apendicite aguda.
Pesquisa realizada pelo Royal College of Surgeons of England, ■ "Apendicite crônica"
em 1996, demonstrou que, na Inglaterra, somente em 1 a 2%
dos pacientes operados por apendicite aguda a via utilizada O aparecimento de dor abdominal crônica, no quadrante
foi a laparoscópica. Essa pouca utilização da via laparoscópica inferior direito do abdome, sempre levanta a suspeita de um
talvez se deva ao fato de a operação a céu aberto ser realizada eventual quadro de apendicite crônica. No entanto, deveremos
geralmente por residentes, pouco afeitos ainda à cirurgia vi- considerar a existência, na realidade, de crises recorrentes de
formas brandas, ou frustas, de apendicite aguda, com resolução
deolaparoscópica, ou então porque a operação é realizada em
espontânea. O reaparecimento das crises dolorosas, em reagu-
horários fora da rotina do centro cirúrgico, quando há redução
dizações do processo, muitas vezes se repete em intervalos de
de pessoal habilitado a manipular os equipamentos de vídeo.
meses, ou até de anos. Assim, a melhor denominação para esse
Outro fator limitante, também, é o custo do procedimento la-
processo seria “apendicite aguda recorrente”.
paroscópico, nem sempre coberto pelos seguros de saúde, além
A persistência da dor, antes de levantar a possibilidade de
de o tempo operatório ser superior ao gasto em técnica con­
uma forma “crônica” de apendicite, deve induzir o médico a
vencional por laparotomia. Com relação à morbidade, estudos
pesquisar outras situações, particularmente a doença de Crohn,
randomizados de 1997 não demonstraram qualquer diferença
cuja localização mais frequente é justamente na região do íleo
significativa entre os dois procedimentos. Entretanto, conside­
distal-ceco, ou então descartar processos pélvicos ginecológicos
rando as dificuldades eventuais para o diagnóstico da apendicite ou de vias urinárias, ou, ainda, o cólon espástico e neoplasias.
aguda, a laparoscopia representa uma possibilidade diagnóstica
Em algumas eventualidades, o diagnóstico diferencial é
que pode assumir grande importância em casos selecionados. bastante difícil, e, nessas situações, a laparotomia e a apen­
Se confirmada, o apêndice é removido na mesma sessão. A dicectomia poderão ser benéficas. Entretanto, a laparotomia
maior incidência de abscessos pélvicos pós-cirurgia laparoscó­ para elucidação de processos dolorosos crônicos é geralmente
pica continua sendo matéria de discussão; porém, atualmente, improdutiva na ausência de dados objetivos (dor localizada,
admite-se que esta situação não seja influenciada pelo proce­ massa palpável, leucocitose). Com o advento dos procedimen­
dimento técnico, mesmo em casos de perfuração do apêndice. tos minimamente invasivos, através da videolaparoscopia, por
Trabalho de Duhamel et al. (1998), em análise retrospectiva de exemplo, esses pacientes poderão ser devidamente avaliados
200 exames histopatológicos de apêndices removidos cirurgica­ para definir a dor crônica/persistente na região apendicular,
mente, constatou que, quando foi utilizada via laparoscópica, reduzindo assim os casos de falso-positivos. Atualmente, este
43% dos casos não demonstraram reação inflamatória aguda, procedimento de abordagem laparoscópica de dor persistente
contra 16% na técnica de laparotomia aberta, verificando um em fossa ilíaca direita encontra-se plenamente estabelecido,
impacto na utilização da via laparoscópica de alta incidência encontrando-se, em grande parte dos casos, a presença de um
de apendicectomias em que o apêndice se mostrou histologi- processo responsável pelos sintomas.
camente normal.
A utilização de antibioticoterapia sistêmica, precedendo a
realização da cirurgia, é procedimento já devidamente padro­ ■ Tumores do apêndice
nizado, reduzindo o índice de complicações pós-operatórias, ■ Tum ores benignos
principalmente com relação à infecção de parede abdominal. Os tumores benignos representam cerca de 4% das altera­
Nas formas não complicadas com perfuração, não há necessi­ ções surpreendidas em apêndices removidos e submetidos a
dade de antibioticoterapia prolongada, evitando assim as in- exame histopatológico, podendo originar-se de qualquer ele­
tercorrências pelo uso mais intensivo destas drogas. mento celular. Ocasionalmente, a neoplasia poderá obstruir a
Nas formas complicadas, com perfuração e/ou formação de luz apendicular, desencadeando o processo de apendicite agu­
abscesso pélvico, é sempre recomendada a via aberta, através da da, requerendo assim uma abordagem cirúrgica de urgência. A
laparotomia. Nessas situações, além de remover o apêndice e incidência de tumores apendiculares, de natureza benigna ou
drenar coleções, a via aberta facilita a limpeza da cavidade pél­ maligna, é extremamente baixa e geralmente diagnosticada em
vica, através do banho com solução fisiológica. É sempre con­ procedimentos cirúrgicos de urgência, quando a decisão sobre
veniente a manutenção da antibioticoterapia no pós-operatório a melhor conduta poderá estar prejudicada, obrigando, muitas
nos casos em que o peritônio foi infectado. vezes, a uma nova intervenção.
O prognóstico das formas de apendicite não complicadas,
operadas, é ótimo; a mortalidade é igualmente baixa. No entan­ ■ Tum ores m alignos
to, nas formas perfuradas, sobretudo em pacientes idosos, o ín­ Tumores primários malignos do apêndice são encontra­
dice de mortalidade poderá chegar a 15%. O índice de infecções dos em cerca de 1% dos casos, e os carcinoides representam a
na incisão cirúrgica, nas formas não complicadas, é inferior a maioria dos casos.
Capítulo 42 / Apendicite Aguda e Outras Doenças do Apêndice 459

O apêndice representa o local mais frequente onde se implan­ Bowman, CIA & Rosenthal, D. Carcinoid tumors of thc appcndix. Am. J. Surg.,
ta o carcinoide no aparelho digestivo. Em cerca de 3% dos casos, 1983; 146:700-3.
Cançado, JR. Apendicite aguda c outras afccçòcs do apêndice. Em: Dani, R
encontramos comprometimento ganglionar periférico junto ao & Paula Castro, L. Gastroenterologia Clínica. Rio de Janeiro, Guanabara
meso (ver Cap. 100). Nessas condições, a colectomia direita é Koogan, 1993.
mandatória, juntamente com limpeza ganglionar do meso. Carr, NJ & Sobin, IH. Ncurocndocrine tumors of thc appcndix. Semin. Diagn.
O adenocarcinoma é outra neoplasia passível de originar-se Pathoi, 2004; 21:108-19.
também no apêndice, com invasão dos linfonodos regionais, Duhamcl, P, Chapuis, F, Ncidhardt, JP, Lauro, C, Isaac, S, Caillot, JL, Voiglio,
EJ. Appendiccctomy: evaluation of medicai file management in a series of
ou, então, comprometendo estruturas vizinhas, como o ovário 200 cases. Ann. Chir., 1998; 52:896-904.
e o peritônio parietal, e de maneira extremamente rápida. Ha­ Eastcr, DW. The diagnosis and treatment of acute appcndicitis with laparoscopic
bitualmente, o diagnóstico é intraoperatório, a operação quase mcthods. Em: Minimally Invasive Surgery. USA, McGraw-Hill, 1993.
sempre indicada por se acreditar tratar-se de apendicite aguda. Elangovan, S. Clinicai and laboratory findings in acutc appcndicitis in thc el-
Uma vez observada a infiltração neoplásica, a conduta consiste dcrly. /. Am. Board Fam. Prací., 1996; 9:75-8.
Franz, MG, Norman, J, Fabri, PJ. Incrcascd morbidity of appcndicitis with
na colectomia direita, removendo-se as estruturas adjacentes advancing age. Am. Surg., 1995; 61:40-4.
comprometidas. A sobrevida de 5 anos é da ordem de 60% dos Frazcc, RC, Robcrts, JW, Symmonds, RE, Snydcr, SK, Hcndricks, JC, Smith,
casos submetidos a colectomia, e de somente 20% daqueles em RW, Custcr, MD, Harrison, JB. A prospcctivc randomized trial comparing
que se realizou unicamente apendicectomia, ou que já apresen­ opcn versus laparoscopic appcndcctomy. Ann. Surg., 1994; 219:725-31.
tavam metástases a distância. Poderemos também encontrar Gallcgo, MG, Fadriquc, B, Nicto, MA, Callcja, S. et al. Evaluation of ultraso-
nography and clinicai diagnostic scoring in suspectcd appcndicitis. Br. J.
a infiltração do apêndice por tum or estromal gastrintestinal
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(GIST) ou por sarcoma de Kaposi e, nas crianças, o linfoma de Hinson, FL 8t Ambrosc, NS. Pscudomyxoma pcritonci. Br. J. Surg., 1998;
Burkitt. A maioria dos pseudomixomas que comprometem a 85:1332-9.
cavidade peritoneal têm origem no apêndice e, nas mulheres, Humcs, DJ & Simpson, J. Acutc Appcndicitis. B.M.J., 2006; 333:530-4.
poderão também se estender aos ovários. Kouwcnhovcn, FA, Van Dricl, OJ, Van Erp, WF. Fcar for thc intraabdomi-
nal abscess after laparoscopic appendiccctomy: not rcalistic. Surg. Endosc.,
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■ Mucocele Lo, NS & Sarr, MG. Mucinous cystadcnocarcinoma of thc appcndix. Thc con-
troversy persists: a rcvicw. Hepatogastroenterology, 2003; 50:432-7.
A mucocele é um termo que descreve a presença anormal de Lujan-Mompcan, JA, Robles-Gampos, R, Parrilla-Paricio, P, Soria-Aledo, V,
muco na luz do apêndice. Conforme a etiologia, as mucoceles Garcia-Avallon, J. Laparoscopic versus opcn appendiccctomy: a prospcctivc
classificam-se em forma cística, cistadenoma e cistadenocarci- assessment. Br. J. Surg., 1994; 81:133-5.
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preenchido por mucina, resultando em obstrução crônica de
McQuad, KR. Diseascs of thc small intestine, and Appcndicitis. Em: Tierncy Jr,
sua luz proximal. Se o conteúdo mucoso é estéril, a contínua LM: McPhec, SJ 8c Papadakis, MA. Current Medicai Diagnosis and Treat­
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situações, a apendicectomia leva à resolução dos sintomas e da work-up. Postgrad. Med., 2010; 122:189-95.
doença. Mais raramente, a mucocele é decorrente de um cista­ Minné, L,Varncr, D, Burnell, A, Ratzcr, E, Clark. J, Haun, W. Laparoscopic vs
opcn appendiccctomy. Prospcctivc randomized study of outeomes. Arch.
denoma, estando a luz apendicular preenchida por mucina, e Surg., 1997;132:708-11.
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projeções papilares. Esse tipo de tum or não terá metástases, Semin. Diagn. Pathoi., 2004;21:151-63.
porém poderá recorrer localmente após a apendicectomia. Esta Nalfaa, IN, Ishak, GE, Haddad, MG. Thc value of contrast-enhanccd hclical
última forma constitui a apresentação mais comum de muco­ CT scan with rcctal contrast enema in thc diagnosis of acutc appcndicitis.
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cele do apêndice. Em algumas situações, o processo degenerará Nitccki, SS, WolfT, BG, Schilinkcrt, R, Sarr, MG. Thc natural history of surgically
em cistadenocarcinoma mucinoso e a conduta cirúrgica deverá treated primary adenocarcinoma of thc appcndix. Ann. Surg., 1994; 219:51-7.
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A mucocele do apêndice é mais comum nas mulheres, em a prospcctivc non randomized long-tcrm follow-up study. /. Clin. Castro-
uma proporção de 4:1 em relação aos homens. Pode dar origem enteroL, 2005; 39:110-4.
Pahlavan, OS 8c Kanthan, R. Goblct cell carcinoid of thc appcndix. World J.
à dor abdominal crônica ou apresentar-se agudamente. Em Surg. Oncoi, 2005; 3:36-41.
50% dos casos, palpa-se massa na fossa ilíaca direita, em geral Paredes Estcban, RM, Salas Molina, J, Ocana Losa, JM, Expin, JB. Indication
móvel. Quando o apêndice se rompe para a cavidade abdomi­ of appendiccctomy in thc recurrcnt abdominal pain. Cir. Pediatr., 2004;
nal, dá origem a pseudomixoma peritoneal e ascite mucinosa. 17:65-9.
A ultrassonografia e a tomografia computadorizada auxiliam Pritchctt, GV, Lcvinsky, NC, Ha, YP, Dembe, AE, Stcimbcrg, SM. Management
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no diagnóstico. O tratamento é cirúrgico. O prognóstico do
Coll. Surg., 2010; 210:699-705.
cisto de retenção e do cistadenoma é de cura, mas o do cista­ Sabiston Jr, DC. Appcndicitis. Em: Sabiston Jr, DC 8c Lycrly, HK. Textbook of
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mixoma peritoneal, sobretudo quando evolui com obstrução Schulcr, JG, Shortslccvc, M, Goldcnson, RS et al. Is there a role for abdo­
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tico é, naturalmente, ruim se o tum or é maligno. A retirada
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do apêndice, associada à quimioterapia intraperitoneal, pode Acutc appcndicitis or divcrticulitis of thc right colon? Diagnostic problcm
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Retocolite Ulcerativa
José Alves de Freitas, Adérson Omar Mourâo Cintra Damião e Mounib Tacla

Retocolite ulcerativa (RCU), ou colite ulcerativa, é uma doença importante papel na etiologia da doença. É incomum na Ásia,
inflamatória que atinge preferencialmente a mucosa do reto e mas estudos recentes demonstram aumento tanto na incidên­
do cólon esquerdo, mas, eventualmente, todo o cólon. Trata-se cia como na prevalência. Exceções incluem Austrália e Nova
de uma doença crônica, com surtos de remissão e exacerbação, Zelândia, onde a ocorrência segue padrão americano e euro­
caracterizada por diarréia e perda de sangue. Surge principal- peu. Números recentes mostram incidência de 0,4 a 2,1 por
mente em pessoas jovens ou de meia-idade. Além das alterações 100.000 habitantes na Ásia, em oposição a 6-15,6 na América
locais, frequentemente apresenta complicações sistêmicas. Aco­ do Norte e 10-20,3 na Europa. Já a prevalência é de 6,30 por
mete milhões de indivíduos ao redor do mundo, com sintomas 100.000 habitantes na Ásia comparada a 37,5-229 na América
debilitantes e sério comprometimento da qualidade de vida. do Norte e 21,4-243 na Europa. Em nosso meio, ainda há pou­
cos dados e poucos estudos populacionais.
A doença acomete ambos os sexos, na mesma proporção,
■ ASPECTOS HISTÓRICOS embora com tendência de ocorrer mais em mulheres. Há uma
distribuição etária bimodal para homens, com picos entre 15 e
A RCU foi descrita pela primeira vez em 1875, por Wilks 35 anos e 60 e 70 anos. Por sua vez, em mulheres, a faixa mais
e Moxon, na Inglaterra. A relativa demora na sua descoberta acometida é dos 15 aos 35 anos.
deveu-se ao fato de que todo quadro diarreico era tido como de
Classicamente, se diz que a RCU afeta mais as pessoas bran­
origem infecciosa. Durante muitos anos, foi considerada como
cas e jovens. Contudo, estudos recentes demonstram um au­
uma doença exclusiva da América do Norte e da Europa. Sua
mento na incidência entre negros, equiparando-se aos brancos.
incidência vem apresentando um crescimento aparente nas
Em 10 a 15% dos pacientes, há uma história familiar positiva
Américas do Sul e Central à medida que aumenta a capacida­
para a doença. É interessante notar a alta frequência da doença
de dos médicos em diagnosticar a doença. Hoje está claro que
entre não fumantes comparados a fumantes.
é uma doença universal.
Com a descrição da enterite regional por Crohn e colabo­
radores, em 1930, a separação entre as duas doenças parecia
muito fácil. Hoje, oito décadas depois, observamos uma su­ ■ ETI0PAT0GÊNESE
perposição entre as duas entidades, tanto do ponto de vista
patológico como do anatômico, principalmente nos casos em Nos últimos 10 anos, houve maior compreensão da etiopa-
que a doença de Crohn (DC) compromete apenas o intestino togênese da RCU, e os investigadores concordam que fatores
grosso. Estatísticas recentes demonstram que isso ocorre em ambientais, genéticos, a flora intestinal e o sistema imune estão
27% dos casos, dificultando muito o diagnóstico. envolvidos e funcionalmente integrados na gênese da reação
inflamatória crônica que caracteriza as doenças inflamatórias
intestinais (DII). Dessa forma, ao que tudo indica, a RCU re­
sulta de uma resposta imunológica exagerada da mucosa do
■ EPIDEMI0L0GIA
cólon a antígenos luminais, possivelmente microbianos, em
A RCU é uma doença de ocorrência mundial, com uma in­ indivíduos geneticamente predispostos.
cidência de 3 a 20 novos casos por ano para cada 100.000 habi­
tantes. Sua incidência vem aumentando com nítido paralelismo ■ Fatores ambientais
entre o desenvolvimento social e econômico da população e
a ocidentalização do estilo de vida. A incidência é 3 a 5 ve­ ■ Dieta
zes maior nos EUA e países do Norte da Europa em relação A observação de que uma alimentação isenta de leite poderia
aos países do sul. Este gradiente norte-sul sugere que fatores diminuir o índice de recidivas da doença fez com que se aven­
ambientais e, consequentemente, estilo de vida desempenham tasse a possibilidade da participação de elementos da dieta na

460
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 461

sua etiologia, possivelmente por meio da geração de antígenos ■ Fumo


na mucosa intestinal. Essa hipótese não foi comprovada. Em 1982, quase que por acaso, um grupo de pesquisado­
Outras substâncias, como as bebidas à base de cola, cho­ res britânicos observou que, de 230 pacientes com RCU, ape­
colate, açúcar refinado e dietas pobres em fibras e ricas em nas 8% eram fumantes, comparados com 44% de controles. A
gorduras, como é o caso do chamado fast food, também têm partir daí, inúmeros estudos foram realizados, chegando-se às
sido relacionadas com a RCU, representando um universo de seguintes conclusões:
produtos utilizados na alimentação, que poderiam representar
fatores de risco. Alguns autores argumentam que a substitui­ • A RCU é 2 a 6 vezes mais frequente em não fumantes.
ção do leite materno por leite de vaca logo após o nascimento • Setenta e cinco por cento dos pacientes desenvolveram
sua doença após pararem de fumar.
poderia acarretar o desenvolvimento de DII possivelmente por
mecanismo de hipersensibilidade. Estudos recentes mostram • Pacientes com RCU, fumantes intermitentes, têm rea­
que a falta de leite materno parece estar associada ao apareci­ tivação da doença em geral nos períodos em que não
mento de RCU. O aumento do número de pacientes acome­ estão fumando.
tidos pela doença observado no Japão durante as últimas três • Os possíveis mecanismos pelos quais o fumo participaria
décadas correlaciona-se ao aumento no consumo de gordura na gênese da doença são:
0 Redução do fluxo sanguíneo na mucosa retal
per capita, que passou de 39,7% g/dia, em 1966, para 56,9 g/dia,
em 1985, sugerindo que fatores ambientais são importantes na ° Diminuição na produção de radicais livres
gênese da doença. Entretanto, há necessidade de amplos estudos ° Diminuição na secreção de eicosanoides
prospectivos para comprovar esta associação. ° Alteração na aderência da camada de muco
° Efeitos imunossupressores
■ Infecção ° Efeitos ansiolíticos
A teoria infecciosa da RCU é muito atraente devido à sua Duas décadas após estas observações, estudos recentes con­
natureza inflamatória e porque, em vários aspectos, lembra a firmam o efeito protetor do fúmo não só no surgimento da
reação tecidual causada no intestino por patógenos conhecidos. doença, mas também no seu curso clínico e no aparecimento
Entretanto, a exaustiva pesquisa microbiológica e de micros- de manifestações extraintestinais da doença.
copia eletrônica para vírus, bactérias e fungos não foi capaz Apesar de todas essas observações, o emprego de nicotina no
de demonstrar uma relação de causa e efeito entre qualquer tratamento de pacientes com a doença tem se mostrado inútil.
agente e a doença.
Por outro lado, em modelos experimentais de RCU, não
houve desenvolvimento da doença em animais que cresceram
■ Fatores genéticos
e foram mantidos em ambiente livre de bactérias. Mesmo bac­ Após um período de quiescência, a procura por uma melhor
térias saprófitas foram suficientes para o surgimento da doença. compreensão dos mecanismos responsáveis pelo aparecimento
Além do mais, diferentes padrões fenotípicos de colite sugiram e a manutenção da RCU em atividade vem produzindo resul­
em modelos animais com espécies bacterianas específicas. Bac­ tados animadores. Esta retomada das pesquisas acerca da par­
térias comensais também podem exercer um efeito protetor ticipação de fatores genéticos na patogênese das DII ganhou
na mucosa. fôlego com o surgimento do projeto genoma. Desta forma, nos
Estudos de casos comparando crianças que nasceram em últimos anos um grande número de pesquisas tem sido reali­
ambientes contaminados e com baixas condições higiênicas zado na busca de genes que predisponham à doença inflama­
àquelas que sempre viveram em ambientes higiênicos demons­ tória intestinal.
traram que a doença inflamatória, especialmente doença de Pesquisas que utilizam técnicas de amplificação de genoma
Crohn, é muito mais frequente no segundo grupo. A partir daí, para identificar “Loews” de suscetibilidade têm obtido êxito.
criou-se o conceito de que a exposição do indivíduo a bactérias Desta forma, foi possível identificar o gene IBD1 (Locus 1 da
ou helmintos poderia prevenir o aparecimento da doença. doença inflamatória) denominado grau NOD-2. Estudos po­
Apesar de não ser possível identificar cepas bacterianas es­ pulacionais confirmam a correlação entre este gene e a doença
pecíficas da RCU, existe um grande número de bacteroides e de Crohn. Esta descoberta originou o que poderiamos chamar
enterobacteroides sp aderentes à mucosa nos segmentos cólicos de “caça aos genes”, e extensos mapeamentos dos cromosso­
comprometidos pela doença. mos têm sido realizados. Na RCU, foi encontrado apenas um
possível Locus chamado de IBD2 localizado no cromossomo
■ Apendicectom ia 12, mas ainda carece de confirmação a sua ligação com a doen­
Há cerca de 20 anos, foi sugerida uma intrigante associação ça. Até hoje, foram identificados trinta Locus, e pelo menos 5
entre apendicectomia e baixo risco de surgimento de RCU. Es­ deles preenchem os critérios preestabelecidos de probabilidade
tudos recentes demonstraram que indivíduos acometidos de de ligação com as doenças inflamatórias.
apendicite ou linfadenite mesentérica na infância ou na juven­ Inúmeras evidências sugerem que realmente fatores genéti­
tude têm, sim, menor probabilidade de desenvolverem a doen­ cos estão envolvidos na etiopatogênese da RCU, dentre eles:
ça. A explicação mais aceitável para este fato é que a resposta
inflamatória evocada por estas doenças no passado induziría • História familiar e ocorrência da doença em gêmeos,
principalmente monozigóticos.
alterações imunológicas duradouras com efeito protetor contra
RCU. Fatores genéticos, a flora e fatores constitucionais tam ­ • A associação com síndromes ou doenças comprovada-
mente genéticas.
bém parecem envolvidos.
• A correlação com marcadores genéticos, tais como sis­
É preciso deixar claro que a apendicectomia em si, como se
tema HLA, autoanticorpos, entre outros.
pensava até recentemente, não apresenta nenhum efeito pro­
tetor. Indivíduos que tiveram os apêndices removidos e nos A alta incidência de RCU em judeus e o fato de que a doen­
quais não havia inflamação têm o mesmo risco de desenvolver ça praticamente não existe entre os beduínos árabes, além do
RCU que a população em geral. aumento de até 15% na incidência entre os descendentes de
462 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

primeiro grau dos doentes, direcionam a maioria das pesquisas entre as necessidades de tolerância imunológica em relação à
para os fatores genéticos. Vários marcadores genéticos, como flora com a necessidade de defesa contra patógenos. A caracte­
sistema HLA, autoanticorpos, aumento na permeabilidade in ­ rística principal do processo inflamatório na RCU é a pronun­
testinal, anormalidades da mucina, têm sido estudados, mas, ciada infiltração, na lâmina própria de células imunes inatas
por enquanto, não forneceram elementos suficientes para im ­ (neutrófilos; macrófagos, células dendríticas e células T (natu­
plicar definitivamente os fatores genéticos como responsáveis ral killer) e células adaptativas (B e T). O aumento do número
pela gênese da RCU. destas células na mucosa acarreta aumento do fator de necrose
alfa, da interleucina-l-p do interferon gama e de citocinas.
A resposta imune inicial à flora é regulatória, determinan­
■ Fatores imunológicos do tolerância ou defesa. Desequilíbrio nesta resposta pode ser
A associação entre RCU e outras doenças imunológicas, tais a chave para o surgimento da doença inflamatória.
como uveíte, anemia hemolítica autoimune, eritema nodoso, O braço inato do sistema imune provê resposta inicial rápi­
lúpus eritematoso sistêmico, a presença de autoanticorpos an- da secretando muco, peptídios antimicrobianos, imunoglobina
ticólon no soro de pacientes com a doença, e a boa resposta A e outras proteínas. A seguir, entram em cena outras células
terapêutica aos corticosteroides sugerem que a doença tem na como células T helper (Th,, Th2 e Th17) e outros subgrupos de
sua etiologia um componente imunológico. Porém, a impossi­ células regulatórias como CD.,. O resultado é a secreção de vá­
bilidade de reprodução da doença em animais de experimen­ rios tipos de citocinas e interleucinas.
tação e a grande dificuldade em distinguir entre fenômenos Este complexo arsenal de armas imunológicas associado a
imunológicos primários e secundários à inflamação bloqueiam não menos complexos componentes genéticos constitui sem
o avanço das pesquisas. Sabemos, à luz dos conhecimentos atu­ dúvida a chave para entendermos a patogênese desta intrigante
ais, que os principais elementos imunológicos envolvidos na doença e a chance de intervenção terapêutica através de anti­
patogênese da RCU são: a) o microbioma; b) o epitélio intesti­ corpos monoclonais.
nal; e c) a resposta inflamatória.

■ M icrobioma ■ Fatores sociopsicossomáticos


O microbioma, ou flora intestinal, consiste em uma diver­ Fatores psicológicos e psicossociais têm sido implicados na
sidade de microrganismos que afeta o desenvolvimento do gênese da RCU há vários anos. Historicamente, Alexander, em
sistema imune intestinal, fornece energia e modula o meta­ 1950, descreveu a doença como resultado de um conflito in­
bolismo energético. É adquirido ao nascimento, mas se altera consciente específico. Seria um conflito entre o desejo de fazer
rapidamente durante o primeiro ano de vida. No adulto, cada certa obrigação que necessitasse de concentração e a relutância
indivíduo tem uma população própria de flora fecal que é re­ ou a inabilidade de realizar tal tarefa. Quando esse conflito fos­
lativamente estável com o tempo, mas que flutua em resposta se ativado, o paciente regrediría ao tempo em que ele ocorreu
a fatores ambientais e na doença. pela primeira vez. Por exemplo: na época do desenvolvimento
A interação entre o microbioma e o hospedeiro pode ser do controle esfincteriano. Mais tarde, Engel, estudando 39 pa­
benéfica ou deletéria, incitando inflamação intestinal. Obser­ cientes com RCU, descreveu o que ele chamou de defeitos na
vações em pacientes com DII e em modelos animais mostram estrutura da personalidade associados a uma dificuldade de
que certos antibióticos são efetivos em alguns casos e o desen­ relacionamento com outras pessoas, e a presença de psicopa-
volvimento de colite em ratos necessita de bactérias para que tologia nas mães desses pacientes.
ocorra inflamação. Apesar de um grande número de agentes Os estudos de Alexander e Engel, entretanto, foram rea­
microbianos terem sido incriminados na gênese da DII, ne­ lizados em pacientes altamente selecionados, e sua validade
nhum foi confirmado. não foi confirmada. Outros autores advogam que o início e
a exacerbação da doença estão sempre relacionados com um
■ Epitélio intestinal evento estressante.
O epitélio da mucosa do intestino, na interface entre o mi- É universalmente aceito, hoje, que fatores emocionais e so­
crobiona e o tecido linfoide do sistema gastrintestinal, desem­ ciopsicossomáticos interferem com a motilidade gastrintestinal;
penha papel fundamental na formação de resposta imune da com a função secretora; com a irrigação sanguínea das vísceras
mucosa. As células da mucosa intestinal constituem uma bar­ e com os mecanismos imunológicos e inflamatórios, provavel­
reira contra a entrada excessiva de bactérias e outros antígenos mente mediados por neuro-hormônios, tais como VIP, gluca-
do lúmen para a circulação. A barreira mucosa intacta depende gon, substância P entre outros. Todavia, em revisão recente de
das junções intercelulares que ajudam a selar o espaço entre as 138 trabalhos da literatura relativos à associação entre RCU e
células epiteliais adjacentes (espaço paracelular) e as junções fatores psiquiátricos, encontrou-se que, em 130, existiam inú­
firmes que constituem os elementos chaves para este selo. meras falhas metodológicas, como amostragem insuficiente,
Na DII o espaço paracelular apresenta um aumento da per­ falta de grupo-controle etc. Quanto mais falha metodológica
meabilidade, e a regulação da junção firme é defeituosa. Estas havia, maior a relação entre RCU e fatores psiquiátricos. Por
alterações podem ser devidas a defeito primário da barreira ou outro lado, todos os 7 trabalhos com metodologia científica
consequência da inflamação. adequada não demonstraram qualquer associação.
Existem ainda células especializadas, como, por exemplo,
as células de Paneth, que auxiliam na proteção contra invasão
bacteriana, secretando peptídios antimicrobianos, tais como ■ CLASSIFICAÇÃO
as defensinas alfa.
Nos anos 1950, Truelove e Witts desenvolveram um esquema
■ Resposta inflam atória de classificação para a gravidade da RCU, que, mais recente­
A lâmina própria da mucosa intestinal contém uma com­ mente, foi adaptado de acordo com os novos conhecimentos
plexa população de células imunes que controlam o equilíbrio adquiridos (Quadro 43.1). Usando esta classificação, observou-
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 463

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ▼ -------------------------------------------------------
Q u a d ro 43.1 índice de gravidade da RCU

Sinal ou sintoma Doença leve Doença moderada Doença grave

Albumina (g/t) Normal Entre 3,0 e 3,5 <3,0


Temperatura corporal (°C) Normal 37,2-37,8°C > 37,8°C
N° de evacuaçòes/dia < 4 vezes 4-6 >6
VHS (mm/h) <20 20-30 >30
Hematócrito (%) Normal 30-40 <30
Pulso (bpm) <90 90-100 >100
Perda de peso (%) Nenhuma 1-10 >10
Adaptado de Chang, IC & Cohen RD. Medicai management of severe Ulcerative Colitis. Gastrocnterol. Clln. Nonh Am., 2004; 33:236.

se que 54% dos pacientes apresentavam doença leve; 27%, mo­ podem ocorrer mesmo após colectomia total. Várias outras
derada; e 19%, grave. Avaliar a gravidade da doença é impor­ lesões de pele, como vitiligo, vasculites, rosácea, alopecia, po­
tante no planejamento terapêutico, pois, quanto mais grave é dem ocorrer.
a doença, pior é a resposta. Manifestações oculares acometem 1 a 10% dos pacientes,
sendo as mais comuns episclerite, uveíte e irite. As duas últimas
são graves, pois podem levar à cegueira. Os sintomas mais co­
■ CURSO CLÍNICO muns são dor ocular, fotofobia, borramento da visão e cefaleia.
Essas lesões podem preceder o início dos sintomas intestinais e
O curso clínico da RCU varia muito de um paciente para não guardam relação com a atividade da doença.
outro. Em recente estudo de base populacional realizado na O envolvimento hepático é relativamente frequente. De 15 a
Noruega, 1/5 dos pacientes não apresentaram recidivas após 50% dos pacientes apresentam alterações das provas de função
10 anos do diagnóstico e, na metade dos casos, a doença per­ hepática. Entretanto, pela sua gravidade, a manifestação mais
maneceu quiescente por 5 anos. preocupante é a colangite esclerosante. Ocorre em 1 a 5% dos
A localização da doença correlaciona-se estreitamente com a pacientes com RCU. Caracteriza-se por astenia, prurido, icte­
evolução. Desta forma, colite extensa está associada a aumento rícia, dor abdominal e febre. Laboratorialmente, nota-se eleva­
do risco de colectomia e câncer de cólon, assim como aumento ção dos níveis séricos das enzimas indicadoras de colestase. O
na mortalidade. diagnóstico definitivo é dado pela colangiografia endoscópica
retrógrada.
Os prováveis mecanismos responsáveis pelas manifestações
■ MANIFESTAÇÕES EXTRAINTESTINAIS extraintestinais são:
• Imunocomplexos circulantes.
Aproximadamente 20% dos pacientes com RCU apresen­ • Antígenos bacterianos.
tarão manifestações extraintestinais. A artrite ou artralgia é a • Crioproteínas circulantes.
mais frequente, acometendo 10 a 20% dos casos. Geralmente, o • Reações imunes que envolvem anticorpos contra antíge­
envolvimento articular não produz deformações, é migratório, nos de células epiteliais intestinais.
assimétrico, ocorrendo preferencialmente nas articulações dos
joelhos, quadris, tornozelos e cotovelos. Em alguns casos, po­
dem ocorrer sacroiliite e espondilite ancilosante, muitas vezes
como primeira manifestação da doença. Por outro lado, em
■ DIAGNÓSTICO
algumas circunstâncias, essas alterações não apresentam sin­ A despeito dos avanços no conhecimento genético dos fato­
tomas e são descobertas apenas com o emprego de técnicas de res ambientais e imunológicos que participam da etiopatogê-
diagnóstico mais sensíveis, como, por exemplo, a tomografia nese da RCU, não existe nenhum marcador patognomônico da
computadorizada. Em todo paciente com artropatia soronega- doença; desta forma, o diagnóstico é, em geral, feito por meio
tiva para doença reumática, deve-se pesquisar RCU. da avaliação conjunta do quadro clínico, dos achados labora­
O envolvimento da pele e da mucosa oral ocorre em 4 a 20% toriais, radiológicos, endoscópicos e histológicos.
dos pacientes. Na boca, as lesões são as aftas e acompanham a
atividade da doença intestinal. O eritema nodoso ocorre em 2 a
4% dos casos. Caracteriza-se por lesões nodulares, avermelha­ ■ QUADRO CLÍNICO
das, dolorosas, não ulceradas, com diâmetro de 1 a 5 cm, mais
comumente nas regiões anteriores das pernas. A sintomatologia da RCU é variável e depende da extensão
Em alguns casos, pode aparecer o pioderma gangrenoso. e intensidade das lesões. O início da doença pode ser insidioso
Surge em qualquer parte do corpo, sendo, entretanto, mais fre­ ou abrupto, e a evolução é, em geral, crônica, com surtos de
quente nas áreas de maior trauma e de punção por agulhas. São exacerbação intercalados com períodos de acalmia. O sintoma
úlceras grandes, profundas, com centro necrótico e geralmente predominante é a diarréia, com inúmeras evacuações por dia,
infectadas. Em geral, dependem da atividade da doença, mas geralmente com fezes líquidas misturadas com sangue, muco
464 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

e pus. Na fase aguda, em geral há dor em cólica no abdome, ■ Anticorpos contraestruturas citoplasmáticas dos neutrófilos
febre, perda de peso e mal-estar geral. Setenta e cinco por cento Os anticorpos antiestruturas citoplasmáticas dos neutrófi­
dos pacientes irão apresentar sintomas intermitentes e com ­ los (ANCA) foram descritos primariamente nas vasculites e na
pleta remissão entre os ataques. Em 5 a 15%, os sintomas se­ granulomatose de Wegener. Posteriormente, percebeu-se que
rão contínuos, sem remissão, e 5 a 10% apresentarão apenas poderiam relacionar-se a outras doenças. No caso da RCU, o
um surto sem sintomas subsequentes por mais de 15 anos. A padrão de ANCA mais encontrado nas colorações é o perinu-
gravidade do surto inicial irá ditar a conduta terapêutica; por clear, daí surgiu a sigla pANCA. Este anticorpo é produzido
isso, é essencial uma avaliação meticulosa para dimensionar pelas células (3p na mucosa intestinal e pode refletir a resposta
adequadamente a doença. local a antígenos, próprios da mucosa ou a bactérias. O isola­
mento e purificação destes anticorpos em pacientes com RCU
■ Exame físico permitiram a identificação de vários alvos antigênicos, dentre
eles a histona H l. Esta é uma pequena proteína intimamente
O exame físico cuidadoso é fundamental. Deve ser direcio­ envolvida em espiralar o DNA dentro do núcleo das células.
nado não só ao trato gastrintestinal, mas, sobretudo, à pesquisa Outras proteínas também já foram identificadas.
de manifestações extraintestinais (aftas, pioderma, eritema no- A frequência de pANCA em pacientes com RCU varia de 23
doso, artrites, uveítes etc.), para demonstrar alterações sistêmi­ a 89%, comparada a 4% em indivíduos normais. Há também
cas, nas formas graves da doença (febre, taquicardia, desidrata­ uma maior positividade em parentes de primeiro grau de pa­
ção), e auxiliar na detecção de complicações, como megacólon cientes com RCU quando comparados a controles.
tóxico e perfuração intestinal, entre outras. Nas formas leves e Em nosso meio, a prevalência de pANCA em pacientes com
moderadas da doença, o exame, em geral, é normal. RCU variou de 47 a 66%. Possivelmente, diferenças genéticas e
metodológicas limitam a utilização deste marcador.
■ Alterações laboratoriais
■ Anticorpos o/?f/-Saccharomyces cerevisiae
Apesar de inespecíficos, os exames laboratoriais são utiliza­ Anticorpos anti-Saccharomyces cerevisiae (ASCA) referem-
dos não só para uma avaliação global do paciente, mas também se ao anticorpo contra o fermento de padaria. Têm sido en­
para estabelecer o grau de atividade da doença e, portanto, ava­ contrados em 50 a 70% dos pacientes com doença de Crohn e
liar a resposta terapêutica. As alterações mais frequentes são somente em 6 a 14% na RCU. Recentemente, observou-se que
anemia ferropriva, leucocitose, aumento do número de pla-
este anticorpo ocorre também em várias outras doenças como
quetas, hipoalbuminemia, elevação da velocidade de hemos-
hepatite autoimune, colangite esclerosante e cirrose biliar pri­
sedimentação, dos níveis sanguíneos de proteína C reativa e
mária, diminuindo a sua especificidade e, portanto, limitando
alfa-1-glicoproteína ácida. Distúrbios eletrolíticos como hipo-
o seu uso.
potassemia, hipocloremia, hiponatremia, alcalose ou acido-
se metabólica são frequentes, sobretudo nas formas graves da ■ Anticorpos antibacterianos
doença. Em nosso meio, é sempre importante o exame para- Partindo da hipótese de que a doença inflamatória intestinal
sitológico e a cultura das fezes no sentido de eliminar outras
resulta de uma resposta imune aberrante direcionada à flora mi-
causas de diarréia. Além destes exames laboratoriais, exis­
crobiana intestinal, pacientes com estas doenças poderiam for­
tem outros que vêm sendo testados, sobretudo para avalia­
mar anticorpos contra proteínas bacterianas. Estes anticorpos
ção de atividade inflamatória, mas que ainda não fazem parte
podem significar perda de tolerância às bactérias ou resposta do
da rotina. Dentre estes, destacam-se: calprotectina sérica,
hospedeiro a um agente patológico. Um aspecto ainda mais in­
P2-microglobulina sérica, interleucina-6, eotaxina 2, dipeptidil
teressante é que estes anticorpos podem ajudar na identificação
peptidase IV.
de subgrupos de pacientes nos quais a inflamação é perpetuada
■ Marcadores sorológicos por bactérias existentes no lúmen intestinal e podem responder
à terapêutica direcionada em alterar a flora.
A utilização de marcadores sorológicos para prognosticar,
monitorar e tratar determinada doença é uma prática bem es­
tabelecida em Medicina. Nos últimos anos, inúmeros novos ■ Exames radíológicos
marcadores da doença inflamatória intestinal têm sido reco­
nhecidos e provocado um debate sadio na comunidade de gas- ■ Raios X simples do abdom e
trenterologistas a respeito de sua utilidade. Uma radiografia simples do abdome deve ser sempre reali­
Estudos em animais e em seres hum anos dem onstram zada, especialmente nos pacientes com formas graves da doen­
que o paciente com RCU tem um distúrbio no mecanismo ça. Se o cólon estiver cheio de ar, podemos observar encur­
normal de regulação da resposta im une direcionada à flo­ tamento do órgão, perda das haustrações e, eventualmente,
ra intestinal. A utilização de marcadores sorológicos (p. ex., alterações grosseiras do relevo mucoso. Outras informações
anticorpos) fundamenta-se na hipótese de que a presença des­ importantes que podem ser obtidas por meio desse exame são
tes anticorpos séricos refletiria este desequilíbrio do sistema os sinais de complicações, como dilatações extremas no me­
imune. Tais marcadores são úteis, sobretudo para monitorar gacólon tóxico, presença de pneumoperitônio nas perfurações
o tratamento. intestinais e alterações consequentes às manifestações extrain­
Mais de 20 anticorpos diferentes já foram identificados no testinais, ou seja, sacroiliite e espondilite ancilosante.
soro de pacientes com doença inflamatória intestinal. Estes an­
ticorpos parecem refletir uma resposta anormal a proteínas es­ ■ Enem a opaco
tranhas, pois não são encontrados em indivíduos sadios nem É um exame muito útil, principalmente quando feito com a
em pacientes com outra doença intestinal. Dentre os anticorpos técnica do duplo contraste (bário e ar). Permite não só estabe­
com possível aplicação clínica, destacam-se: lecer o diagnóstico, mas também avaliar a extensão da doen­
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 465

ça. Não deve ser realizado nos casos graves devido ao risco de e sangramento. A microscopia revela infiltrado inflamatório
perfuração intestinal. agudo e crônico com distorção e perda da arquitetura das crip­
A alteração mais precoce ao enema opaco é o aspecto gra­ tas, microabscessos, depleção de células caliciformes, congestão
nuloso da mucosa, consequente ao edema que a infiltra. Com a vascular, hemorragias focais e ulcerações. Nas formas graves,
progressão da doença, podemos notar erosões e ulcerações, que poderão ocorrer necrose da mucosa, ulcerações e pólipos in-
conferem ao órgão um aspecto característico “em papel rasgado, flamatórios.
ou borda de selo” (Prancha 43.1). Quase sempre, há perdas das
haustrações e afilamento e encurtamento do cólon.
Deve-se realizar sempre uma radiografia em perfil para es­ ■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
tudar o espaço pré-sacral. Normalmente, esse espaço tem me­
nos de 1,0 cm e, em mais da metade dos pacientes com RCU, O diagnóstico diferencial deve ser feito com as principais
está aumentado devido à diminuição do diâmetro retal. Nesse doenças intestinais que cursam com diarréia, como DC, sín-
caso, o espaço é preenchido por tecido adiposo ou fibrótico. drome de má absorção, doenças infecciosas e parasitárias, colite
Com a modernização e a disponibilidade dos exames endoscó- isquêmica, colite actínica, mucoviscidose, síndrome do cólon
picos, tanto o Colégio Americano de Gastrenterologia quanto irritável, entre outras. De uma forma geral, é muito fácil dife­
a Sociedade Britânica de Gastrenterologia só recomendam o renciar entre RCU e outras doenças, excetuando-se a DC, que
enema opaco quando a colonoscopia não está disponível pron­ pode ser muito difícil, até mesmo para o gastrenterologista mais
tamente, ou quando existir estenose no cólon que impeça uma experiente. No Quadro 43.2, encontram-se listadas as principais
avaliação endoscópica. diferenças entre essas duas afecções.

■ Outros m étodos de exames por im agem


Ultrassonografia e tomografia computadorizada são exames ■ TRATAMENTO CLÍNICO
que não fazem parte da propedêutica de rotina da RCU. En­
tretanto, podem ser usados em casos selecionados em que há Antes de tratarmos um paciente com retocolite ulcerati­
suspeita de coleções intra-abdominais. va inespecífica (RCU), é fundamental que conheçamos a gra­
vidade e a extensão da doença, a fim de individualizarmos o
tratamento e escolhermos as melhores opções em cada grupo
■ Exames endoscópicos terapêutico.
■ Retossigmoidoscopia
A colonoscopia ou a retossigmoidoscopia constituem os exa­ ■ Medidas gerais
mes de escolha para o diagnóstico de RCU. A retossigmoidos­
Em se tratando de uma enfermidade de natureza crônica,
copia é um exame fundamental, sobretudo porque o reto está
com períodos variáveis de acalmia e recaídas, é fundamental que
quase sempre comprometido nesta doença. Deve ser realizada
o médico informe o paciente sobre o caráter crônico da RCU e
na primeira consulta, mesmo sem preparo intestinal. O exa­
a necessidade de controles periódicos, que forneça o devido su­
me inicia-se com uma cuidadosa inspeção da região perianal,
porte emocional e estimule a boa relação médico-paciente. Ha­
pesquisando-se fissuras, fístulas, abscessos ou outras lesões. Os bitualmente, não há necessidade de acompanhamento psiquiá­
achados endoscópicos dependerão da cronicidade e da intensi­ trico e/ou psicológico concomitante, nem tampouco a utilização
dade da doença. As lesões mais precoces são eritema e edema de agentes antidepressivos e tranquilizantes; porém, em certas
da mucosa, com apagamento da trama vascular. O edema é situações, algumas dessas medidas podem ser indicadas.
caracterizado por um aspecto granuloso da mucosa. Durante o Pacientes com doença grave devem, preferencialmente, ser
exame, notam-se, também, friabilidade da mucosa, sangrando internados. Reposição hidreletrolítica, transfusão de sangue e
facilmente ao toque do aparelho, e exsudato mucopurulento, suporte nutricional (nutrição enteral e, eventualmente, paren-
com ou sem sangue. Com a progressão da doença, podem surgir teral) devem ser individualizados e são também úteis no pre­
erosões, ulcerações superficiais e pseudopólipos. paro do paciente para eventual cirurgia. Em pacientes na fase
A colonoscopia é muito útil, para estabelecer a extensão da de atividade da doença, é recomendável a orientação dietética,
doença, para o diagnóstico diferencial com a DC e nos pro­ pois ela pode auxiliar na redução dos sintomas. Suplementos
gramas de vigilância preventiva contra o câncer do cólon. Não podem ser utilizados. A dieta, na fase ativa da RCU, deve ser
deve ser realizada se houver suspeita de megacólon tóxico, per­ obstipante, evitando-se alimentos irritantes e/ou apimentados,
furação intestinal e/ou peritonite. Apesar da utilidade da re­ frutas laxativas, raízes vegetais e os carboidratos produtores de
tossigmoidoscopia, ela pode deixar de diagnosticar lesões no gás (leite e grãos em geral). Assim que a remissão da doença
cólon ascendente e transverso, sobretudo na DC. Desta forma, for alcançada, o paciente deve receber uma dieta normal, bem
sugere-se que se realize colonocopia em todo paciente em que balanceada.
a retossigmoidoscopia evidenciou DII. Tem sido nossa conduta a utilização de antibióticos nos ca­
sos graves, em virtude do aumento da permeabilidade intestinal
e da possibilidade de translocação bacteriana, acrescidos dos
■ Histopatologia
distúrbios imunológicos que costumam acompanhar os pacien­
A RCU é uma doença caracteristicamente da mucosa do có­ tes. Os esquemas podem ser: a) ceftriaxona (1 a 2 g IV, cada
lon. Inicia-se no reto e pode estender-se até o ceco. Na maioria 24 h); b) imipeném (1 g IV, cada 6 ou 8 h); c) ciprofloxacino
dos casos, entretanto, limita-se ao reto e sigmoide. As alterações (500 mg VO ou IV, 12/12 h) + metronidazol (400 a 500 mg VO
histológicas mais encontradas nesta doença são tipicamente ou IV, cada 8 ou 12 h); este último esquema tem a vantagem
confinadas à mucosa e são as mesmas observadas nas colites de permitir o tratamento VO.
ativas. Os achados macroscópicos habituais são: hiperemia, Medicações antidiarreicas (p. ex., opiáceos) e anticolinér-
congestão, edema, friabilidade, ulcerações, exsudato fibrinoso gicas (p. ex., antiespamódicos) devem ser administradas com
466 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

Prancha 43.1 Aspectos radiológicos e cirúrgicos da RCU. A, Retocolite ulcerativa. Raios X do cólon (enema opaco). Observa-se o aspecto "pi-
cotado”da mucosa intestinal, com perda de haustrações e comprometimento generalizado do cólon, a partir do reto. B, Retocolite ulcerativa.
Peça cirúrgica do cólon, observando-se os aspectos da forma crônica. Comprometimento difuso da mucosa, já com a forma pseudopoiiposa.
C, Retocolite ulcerativa. Peça cirúrgica do cólon mostrando a associação do processo inflamatório crônico com o carcinoma. D, Retocolite ul­
cerativa. Paciente operado com colectomia total e ileorretoanastomose. Controle radiológico pós-operatório, verificando-se o segmento retal
remanescente com a anastomose ileal. E, Retocolite ulcerativa. Radiografia simples do abdome em paciente com megacólon tóxico. Observa-
se distensão do cólon, com maior intensidade junto ao transverso. F, Retocolite ulcerativa. Peça cirúrgica de megacólon tóxico. Observa-se a
distensão do órgão. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 467
T
Q u a d ro 43 .2 Diferenças entre RCU e DC

RCU DC

Achados clínicos
Dor Ocasional Frequente
Vômito Raro Frequente
Diarréia Frequente Frequente
Sangue nas fezes Comum Incomum
Tenesmo Comum Incomum
Perda de peso Comum Rara
Achados macroscópicos Predomina no cólon distai Predomina no cólon proximal
Envolvimento retal frequente Envolvimento retal é raro
Lesões contínuas Lesões segmentares
Úlceras superficiais Úlceras profundas
Aspecto polipoide Aspecto em mosaico (cobblestone )
Achados microscópicos Inflamação difusa Inflamação segmentar
Frequentes abscessos de criptas Raros abscessos
Mucosa atrófica Mucosa sem atrofia
Ausência de granulomas Granulomas sâo frequentes
Pronunciada depleçào de células caliciformes Raramente depleçào de células caliciformes

cautela, pois podem desencadear o megacólon tóxico. Da mes­ o 5-ASA agiria primariamente, impedindo a transformação
ma forma, o consumo de anti-inflamatórios não esteroides, neoplásica celular, e secundariamente, reduzindo o processo
mesmo os mais modernos, devem ser evitados, uma vez que inflamatório. Convém ressaltar que, em alguns casos, a dose
podem exacerbar a doença. Lembrar que, na doença de Crohn, do derivado salicílico, suficiente para manter o paciente com
0 tabagismo, ao contrário da RCU, piora a doença e aumenta RCU em remissão, pode ser semelhante à necessária para in­
a frequência de recaída pós-operatória. duzir a remissão.
Efeitos colaterais com a SSZ têm sido relatados em até 45%
■ Derivados salicílicos dos pacientes. São geralmente dose-dependentes, relaciona­
Neste grupo de medicamentos, incluímos a tradicional sul- dos com altos níveis séricos de sulfapiridina, ocorrendo prin­
fassalazina (SSZ) e os novos derivados salicílicos. A SSZ foi cipalmente nos indivíduos com baixa capacidade genética de
desenvolvida no final dos anos 30 para o tratamento da artrite acetilação hepática da droga (acetiladores lentos), e incluem:
reumatoide, pela Dra. Nana Svartz, e, casualmente, mostrou- dor abdominal, náuseas, vômitos, anorexia, cefaleia, hemólise,
se eficaz na RCU. Quando ingerida, a SSZ é desdobrada, no infertilidade masculina etc. Menos frequentemente, os efeitos
cólon, por ação bacteriana, em sulfapiridina (grandemente ab­ colaterais com o tratamento com a SSZ podem ser por hiper-
sorvida) e ácido 5-aminossalicílico (5-ASA ou mesalazina ou sensibilidade (alergia ou idiossincrasia): febre, rash cutâneo,
mesalamina - pouco absorvido). Este último é o princípio ati­ linfadenopatia, Stevens-Johnson, agranulocitose, hepatite, pan­
vo do medicamento, agindo de forma tópica. Entre os vários creatite, exacerbação da diarréia etc. Assim, em virtude dos
mecanismos de ação do 5-ASA, estão a inibição da produção efeitos colaterais da SSZ, foram desenvolvidas estratégias de
de leucotrienos e de anticorpos, além da capacidade de assimi­ liberação do 5-ASA (mesalamina nos EUA ou mesalazina na
lação de radicais livres. Estudos bem controlados nos anos 60 Europa) no trato digestivo, a saber: a) revestimento do 5-ASA
revelaram melhora clínica e endoscópica em cerca de 80% dos em microgrânulos com etilcelulose (liberação do 5-ASA ao lon­
pacientes com RCU ativa (formas leves e moderadas), com 2 a go de todo o trato digestivo); neste caso, em idosos e crianças
6 g/dia de SSZ por 3 a 4 semanas. A melhora no grupo placebo com dificuldade para ingerir cápsulas e comprimidos, as cáp­
foi de 40%. Na RCU, após a fase aguda, a dose de manutenção sulas podem ser abertas e os microgrânulos de 5-ASA, também
de 2 g de SSZ/dia foi suficiente para manter aproximadamen­ recobertos com etilcelulose, ingeridos; b) conjugação de duas
te 80% dos pacientes em remissão clínica e endoscópica após moléculas de 5-ASA (olsalazina) com liberação do 5-ASA no
1 ano. No grupo placebo, este valor foi de apenas 28%. Assim, cólon (diarréia em 10 a 15% dos casos por sua ação secretago-
nos pacientes com RCU leve ou moderada, e que toleram bem ga sobre o intestino delgado e cólon); c) cobertura do 5-ASA
a SSZ, à dose de 2 a 4 g/dia na fase aguda deve seguir-se a de com resinas acrílicas (p. ex., Eudragit S, L etc.) com liberação
2 g/dia de manutenção, por tempo indefinido. Ácido fólico (2 do 5-ASA a partir do íleo proximal (Eudragit L) ou distai (Eu­
a 5 mg/dia) deve ser dado concomitantemente à SSZ, pelo ris­ dragit S). A maioria dos pacientes intolerantes ou alérgicos (80
co de desenvolvimento de anemia macrocítica, um dos efeitos a 90%) à SSZ tolera bem o 5-ASA; contudo, alguns pacientes
colaterais da SSZ. (10 a 20%) reproduzem os efeitos colaterais com a SSZ ao uti­
Mais recentemente, constatou-se que a chance de desen­ lizarem o 5-ÁSA, corroborando o fato de que alguns efeitos
volvimento do câncer colorretal em pacientes com RCU pode colaterais da SSZ são ocasionados pelo 5-ASA e não pela sul­
ser substancialmente reduzida com o uso dos derivados salicí­ fapiridina. Mais recentemente, Foram desenvolvidas prepara­
licos (p. ex., SSZ, mesalazina), como manutenção. Neste caso, ções contendo concentrações mais elevadas de 5-ASA por com­
468 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

primidos ou sachês. Tais medicamentos podem ser oferecidos de evitar recaídas, podendo-se utilizá-lo 2 ou 3 vezes/semana
1 vez/dia para o paciente, o que favorece consideravelmente a ou até menos.
aderência dele ao tratamento. As preparações estão resumidas A combinação de 5-ASA oral (2,4 g/dia) e 5-ASA enema
no Quadro 43.3. (4 g/dia) foi melhor do que cada um isoladamente na RCU
Hoje, completados 20 anos de pesquisas sobre o 5-ASA, lan­ ativa distai. Também, a associação de 5-ASA enema (4 g/2 ve­
çamos mão de metanálises, que agrupam os vários trabalhos zes/semana) e 5-ASA oral (1,6 g/dia) revelou-se melhor do
sobre o assunto, segundo critérios preestabelecidos, em uma que a administração isolada de 5-ASA oral, em pacientes com
análise estatística global, fornecendo, assim, dados sobre sua RCU em remissão e alto risco de recaídas (2 ou mais recaídas
eficácia e indicações. Apesar das limitações das metanálises no último ano e remissão alcançada nos últimos 3 meses). Se­
(p. ex., diferentes metodologias e critérios de remissão etc.), melhantemente, a associação de mesalazina oral (> 2 g/dia) e
observou-se que, na RCU ativa, formas leves e moderadas, doses mesalazina tópica (1 a 4 g/dia) foi melhor que cada uma delas
maiores que 2 g/dia de 5-ASA oral são superiores ao placebo e isoladamente na RCU esquerda, leve/moderada. Finalmente,
tão eficazes quanto a SSZ. Na RCU em remissão, 5-ASA e SSZ a associação de mesalazina oral (4 g/dia) e mesalazina enema
são equivalentes. As doses recomendadas de 5-ASA para a RCU (1 g/dia) mostrou-se mais eficaz que mesalazina oral isolada­
ativa e em remissão acham-se representadas no Quadro 43.4. mente na RCU extensa, leve/moderada.
A mesalazina também pode ser empregada na forma de ene-
ma ou supositórios, 1 a 4 g/dia. Está indicada na RCU ativa ■ Corticoides
distai (proctite e proctossigmoidite) com índices de melhora Em 1955, Truelove & Witts publicaram os resultados finais
clínica, endoscópica e histológica em 60 a 90% dos casos nas do estudo controlado, comparando cortisona oral (100 mg/dia)
primeiras semanas de tratamento. Nestas condições, é equiva­ e placebo na RCU ativa. Ao final de 6 semanas, cerca de 70%
lente aos enemas tradicionais, ou até melhor que eles (p. ex., dos pacientes apresentaram remissão (40%) ou melhora clínica
enema de hidrocortisona etc.), e tão eficaz quanto a SSZ, via (30%). No grupo placebo, os valores para remissão e melhora
oral, com a vantagem de promover melhora mais rápida e com clínica foram 16 e 25%, respectivamente. Pacientes com o pri­
menos efeitos colaterais. Na RCU distai em remissão, o 5-ASA meiro quadro de agudização da RCU responderam melhor do
tópico apresentou eficácia semelhante à da SSZ oral no sentido que aqueles com recaída da doença. Os autores também obser­
varam que os valores para remissão (30%) ou melhora (22%)
endoscópica foram um pouco menores do que os obtidos para
a remissão ou melhora clínica.
----------------------------- ▼----------------------------- De maneira geral, na RCU ativa, de intensidade moderada a
Q uadro 43 .3 Novas preparações de mesalazina, com maior grave, iniciamos prednisona oral (0,75 a 1 mg/kg/dia, sem ul­
concentração de mesalazina por unidade posológica (em breve, trapassar 60 mg/dia) até a remissão clínica, quando então pas­
algumas formulações estarão disponíveis no Brasil) samos a diminuir o corticoide (10 mg/semana, até 0,5 mg/kg/
dia e, a seguir, 5 mg/semana, até retirada completa). Se, durante
1. Mesalazina MMX 1,2 g (M u ltlM atrix System) comp. - Lialda*, Mezavant* o “desmame”, houver recaída da doença, pode-se aumentar o
2. Mesalazina 800 mg comp. - Mesacol*, Asacol® corticoide para a penúltima dose que precedeu aquela em que
3. Mesalazina microgrânulos sachês 1 e 2 g - Pentasa® ocorreu a recaída. Havendo nova recaída com o desmame, reco­
4. Mesalazina m icropellet sachês 1,5 g - Salofalk Granu-Stix8, Apriso® menda-se a utilização de medicação imunossupressora (p. ex.,
5. Mesalazina grânulos sachês 3 g - Salofalk*
azatioprina, 6-mercaptopurina etc.) com o intuito de deixar o
paciente sem corticoide. Em casos graves, internados, hidrocor­
6. Balsalazida 1,1 g comp. - Colazide*
tisona, 100 mg IV a cada 6 ou 8 h, pode ser administrada e, em

------------------------------------------------------------▼ --------------------------------------
Q uadro 4 3 .4 Derivados salicílicos no tratamento da RCU

Doses
Droga Nome comercial
RCU ativa RCU em remissão
5-ASA tópico Asalit (suposit. 250 mg; enema 3 g),
1 g/dia
Rowasa, Salofalk,
ou
Mesacol (enema 4 g), 1-4 g/dia
1-4 g
Pentasa (suposit. 1 g),
a cada 2 ou 3 dias
Chron-ASA 5 (enema 2 e 3 g), Mesacol (suposit. 250 e 500 mg)
Sulfassalazina (oral) Azulfin (500 mg) 2-4 g/dia 2-4 g/dia
Olsalazina (oral) Dipentum (500 mg) 2-3 g/dia 1-3 g/dia
Balsalazida (oral) Colazal, Colazide (750 mg) 2,25-6,75 g/dia 2,25-6,75 g/dia
5-ASA microgrânulos (oral) Pentasa (500 mg) 2-3 g/dia 1,5-3 g/dia
5-ASA Eudragit-S (oral) Asacol (400 mg),
Asalit (400 mg), 2,4-4,8 g/dia 0,8-4,8 g/dia
Mesacol (400 e 800 mg), Chron-ASA 5 (400,500 e 800 mg)
5-ASA Eudragit L (oral) Rowasa, Salofalk, Claversal, Mesacol (250 e 500 mg) 2-3 g/dia 0,75-3 g/dia

Obs.: Comercializados no Brasil: Asacol, Asalit, Azulfin, Chron-ASA 5. Mesacol e Pentasa.


Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 469

seguida, substituída por prednisona oral tão logo o estado do ou 6-MP. De maneira geral, o uso de AZA e 6-MP está indicado
paciente assim o permita. Os corticoides não devem ser usados nas formas corticoide-resistentes (ou refratárias) e corticoide-
como droga de manutenção, mesmo em doses baixas (< 10 a dependentes, facilita a redução/suspensão do corticoide (cor-
15 mg/dia) em virtude de seus efeitos colaterais. ticoid sparing effect), promove manutenção da remissão, é útil
Os efeitos colaterais dos corticoides tradicionais são bem na DC penetrante (fistulizante) e no pós-operatório da DC para
conhecidos, particularmente quando utilizados por tempo se evitarem recaídas.
prolongado, ainda que em baixas doses: aumento do apetite e Os efeitos colaterais da AZA e da 6-MP ocorrem em torno de
do peso, edema, insônia, labilidade emocional, psicose, acne, 15% e podem ser: a) de natureza alérgica, como febre, rash cutâ­
Cushing, osteoporose, osteonecrose, retardo de crescimento, neo, mal estar, náuseas, vômitos, dor abdominal, diarréia, hepa­
supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, infecções, mio- tite e pancreatite, ou b) não alérgica, como depressão medular
patia, catarata, atrofia de pele, estrias, equimose, fígado gordu­ (leucopenia, neutropenia, trombocitopenia, anemia), infecções,
roso, diabetes, hipertensão, glaucoma e pancreatite aguda. Por alterações de enzimas hepáticas e neoplasia. A frequência de
causa dos efeitos colaterais dos corticoides tradicionais, foram infecções (7%) e de neoplasia (3%) (p. ex., câncer de cólon, de
desenvolvidos novos corticoides em uma tentativa de reduzir mama, testicular, melanoma e leucemia) é semelhante à espe­
tais efeitos. O mais estudado tem sido a budesonida, rapida­ rada na população com DII sem uso de AZA ou 6-MP. Alguns
mente metabolizada (cerca de 90%) em produtos inativos logo autores, entretanto, têm mostrado um risco 4 vezes maior de
após sua primeira passagem pelo fígado. É comercializada sob desenvolvimento de linfoma não Hodgkin em pacientes que
a forma de enema (2 m g/100 m^) e comprimidos (3 mg). Na fazem uso de AZA ou 6-MP. Assim, o risco de neoplasia com
RCU distai ativa, a budesonida na forma de enema é equivalen­ AZA ou 6-MP, nas doses habitualmente usadas na DII, deve
te ao 5-ASA tópico e tão eficaz, ou mais, quanto os corticoides ser contraposto às complicações, limitações, incapacitações e
tópicos tradicionais (p. ex., hidrocortisona, fosfato de predni- efeitos deletérios da DII em atividade. Semelhantemente, AZA
solona), com a vantagem de provocar menos efeitos colaterais e 6-MP são seguras durante a gravidez e podem ser mantidas
(p. ex., menor inibição do cortisol plasmático). caso o médico julgue a indicação necessária.
Na RCU ativa, a budesonida oral é tão eficaz quanto a pred- AZA e 6-MP costumam ser usadas por pelo menos 4 anos,
nisolona oral na melhora endoscópica e histológica do cólon se não houver contraindicação. No entanto, a DII tende a recair
direito, porém no cólon esquerdo é inferior à prednisolona. Tal após suspensão da droga, justificando-se a conduta mais atual
fato está relacionado com a formulação da budesonida, pro­ de mantê-la indefinidamente.
gramada para liberar o princípio ativo no íleo e cólon direito. Cloroquina, um reconhecido agente contra a malária com
Portanto, nessas situações, um tratamento tópico, na forma de propriedades anti-inflamatórias e imunomoduladoras, foi tão
enema, é recomendável em conjunto com o tratamento com eficaz quanto a SSZ (3 g/dia), na dose de 500 mg/dia, VO, no
budesonida oral, para agir no cólon esquerdo. tratamento da RCU ativa. Com o uso prolongado (> 6 meses),
Os corticoides tradicionais como a prednisona não devem pode haver retinopatia ou depósitos na córnea.
ser empregados como drogas de manutenção pelos já m en­ Ciclosporina é um peptídio extraído do fungo Tolypocla-
cionados efeitos indesejáveis que geram. Tão logo o paciente dium inflatum que, sem dúvida, revolucionou os transplantes
configure dependência do corticoide (necessita do corticoide de órgãos e o tratamento de doenças autoimunes. Seu principal
para manter remissão) ou refratariedade (não responde ao cor­ mecanismo de ação é a redução na produção de interleucina-2
ticoide na dose de 0,75 a 1 mg/kg/peso de prednisona por 4 a (IL-2) pelas células T auxiliadoras (T-helper). Na DII, mostrou-
7 semanas), outras alternativas (p. ex., imunomoduladores) se razoavelmente eficaz na RCU grave, não responsiva após 5
devem ser instituídas. a 10 dias de corticoterapia e na DC refratária e fistulizante. As
doses normalmente usadas são 2 a 4 mg/kg/dia IV, infusão
■ Im unom oduladores (ou imunossupressores) contínua, por 1 a 2 semanas, seguidas da administração oral
Neste grupo de medicamentos, comumente incluímos a aza- da droga na dose de 6 a 8 mg/kg/dia. Os resultados, a curto
tioprina (AZA) e a 6-mercaptopurina (6-MP), a cloroquina, a prazo, são favoráveis e oscilam entre 60 e 80%. Em médio ou
ciclosporina e o metotrexato. Mais recentemente, tacrolimus longo prazos, a droga não produz bons resultados, a menos que
(FK 506) e micofenolatomofetila têm sido testados. seja acrescentado um imunossupressor do tipo AZA ou 6-MP.
Sem dúvida, os imunomoduladores mais estudados, e com Durante o desmame da ciclosporina oral, haverá um período
os quais há considerável experiência acumulada, são a AZA e em que o paciente utilizará corticoide, ciclosporina e AZA ou
a 6-MP. Após absorção, a AZA é rapidamente convertida em 6-MP. Nestas condições, está indicada a profilaxia da pneumo­
6-MP nas hemácias, havendo geração de metabólitos ativos do nia por Pneumocystis carinii com sulfametoxazol/trimetoprima.
grupo dos 6-tioguanina nucleotídios (6-TGN). AZA e 6-MP Os grandes óbices à terapêutica com ciclosporina são alto custo,
são potentes imunossupressores, inibindo a atividade de lin- necessidade de monitoramento rígido dos seus níveis séricos,
fócitos T e B, além de células NK (natural killer). AZA e 6-MP interação com outras drogas e toxicidade. Níveis sanguíneos
também induzem apoptose celular, o que é benéfico para os entre 150 e 300ng/m^, medidos por radioimunoensaio com
pacientes com DII, cujos linfócitos e monócitos têm redução anticorpo monoclonal ou HPLC (high-performance liquid chro-
de apoptose. Em altas doses, AZA também inibe a síntese de matography) são considerados uma faixa segura. Ciclosporina
prostaglandinas. Na DII, AZA e 6-MP têm sido utilizadas na é metabolizada no citocromo P-450 no fígado e, desta forma,
dose de 2 a 3 mg/kg/dia e 1 a 1,5 mg/kg/dia, respectivamen­ drogas que o induzem (p. ex., cimetidina, rifampicina, trime-
te. Ambas são drogas de ação retardada, sendo necessário um toprima, carbamazepina, fenobarbital, fenitoína, octreotídio)
tempo de uso de 3 a 6 meses antes de qualificarmos a situação podem dim inuir a concentração sanguínea da ciclosporina,
como insucesso terapêutico. e as que o inibem (p. ex., verapamil, fluconazol, cetoconazol,
Estudos bem controlados e metanálises têm revelado a im­ claritromicina, eritromicina, corticoides, metoclopramida, clo­
portância da AZA e da 6-MP no tratamento da DII. Com ex­ roquina) podem aumentá-la. Os efeitos colaterais são relativa­
ceção das formas graves da DII, todas as situações envolvendo mente frequentes, podendo chegar a 50%. São relacionados, em
RCU e DC podem ser beneficiadas com o tratamento com AZA geral, à dose e regridem, na maioria das vezes, com a redução
470 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

ou suspensão da droga. São eles, em ordem de frequência: pa- eficácia do bloqueio seletivo de mediadores inflamatórios, bem
restesia, hipertensão arterial, hipertricose, insuficiência renal, como do incremento da imunidade inata. Esta nova abordagem
cefaleia, infecções oportunistas, hiperplasia gengival, tonturas é, genericamente, denominada terapia biológica, uma vez que
e anafilaxia. Convulsões do tipo “grande maT podem ocorrer age sobre mediadores e fenômenos naturais e fisiológicos. A
em pacientes com níveis séricos baixos de colesterol (< 120 mg/ terapia biológica pode ser dividida em quatro grandes grupos:
df). Finalmente, existe a rara possibilidade de a ciclosporina 1) agentes que incrementam o efeito de barreira da mucosa
provocar colite ou jejunite e até mesmo linfoma. Assim, o seu gastrintestinal, incluindo a estimulação da imunidade inata;
emprego deve ser reservado aos centros com experiência no 2) agentes que inibem ou modulam citocinas; 3) agentes que
manejo da droga e com infraestrutura para acompanhar o pa­ bloqueiam a atividade de células T (imunidade adquirida); 4)
ciente e tratar as complicações. Uma boa perspectiva é a utiliza­ agentes que bloqueiam a adesão e migração de células inflama-
ção de uma nova formulação da ciclosporina VO, sob a forma tórias (p. ex., neutrófilos).
de microemulsão (Neoral). Sua biodisponibilidade é maior e
os resultados iniciais, na dose de 5 mg/kg/dia, são equivalentes ■ Agentes que incrementam oefeito de barreira da mucosa
aos obtidos com ciclosporina intravenosa, porém com menos gastrintestinal, incluindo a estimulação daimunidadeinata
efeitos colaterais. Fatores de crescimento (p. ex., fator epidérmico de cresci­
Metotrexato (MTX) é um antagonista do folato e interfere na mento, fator trefoil, TGF-p, hormônio de crescimento, fator de
síntese de DNA. Age sobre a atividade de citocinas e mediado­ crescimento do queratinócito etc.) têm sido testados no sentido
res inflamatórios, bloqueando a ligação da IL-1 ao seu receptor de melhorar a defesa do trato digestório (incremento sobre o
e reduzindo a síntese de IL-2, IL-6, IL-8, interferona-gama e efeito da barreira intestinal). Alguns deles (p. ex., TGF-p) têm,
leucotrieno B ,. Na dose semanal de 15 a 25 mg IM ou subcutâ- além da ação anti-inflamatória, efeito sobre o processo de re­
nea, o MTX promoveu remissão em cerca de 60% dos pacientes paração tissular.
com DC refratária, após 12 a 16 semanas de tratamento. As re­ Os prebióticos, probióticos e simbióticos modificam a flora
ações adversas ocorreram em 10 a 25% dos pacientes e incluí­ intestinal e normalizam o conteúdo de Bifidobacteria e Lacto-
ram: náuseas, diarréia, estomatite, leucopenia, queda de cabelo, bacilli, alterações estas que acabam por reduzir o contingente
elevação de transaminases, pneumonia por hipersensibilidade, antigênico imposto às células imunológicas da lâmina própria
fibrose ou cirrose hepática. A administração concomitante de intestinal. Além disso, estimulam a secreção de mucina e de
ácido fólico (1 a 2 mg/dia VO) ajuda na prevenção da estoma­ TGF-p, aumentando assim a capacidade de defesa do trato gas­
tite, diarréia e toxicidade medular. Quando MTX é dado em trintestinal. Também ações imunomoduladoras como redução
conjunto com sulfametoxazol/trimetoprima, AZA ou 6-MP, o de citocinas pró-inflamatórias (p. ex., IL-1 ,1L-8, TNF etc.) e
risco de leucopenia grave torna-se ainda mais elevado. MTX é aumento de citocinas anti-inflamatórias (p. ex., IL-10) têm sido
teratogênico e pode causar aborto, sendo, portanto, contrain- demonstradas para os probióticos.
dicado em mulheres que desejam engravidar. Na RCU, o MTX O fator estimulador de colônias de granulócitos e macró­
não parece trazer benefício. fagos (GM-CSF, sargramostim) consiste em outra forma de
Tacrolimus (FK 506), um antibiótico macrolídico com pro­ melhorar a imunidade inata do organismo.
priedades imunomoduladoras e eficaz na prevenção de rejeição
após transplante hepático, foi recentemente testado em três ■ Modulação decitocinas
pacientes com formas graves de DC. O resultado foi satisfató­ No caso da imunidade adquirida, é possível bloquear
rio nos três pacientes, com resposta rápida (< 3 semanas). Em IL-12/23 (anticorpos humanizados ABT-874, CNTO 1275 e
pacientes com RCU, tacrolimus em altas doses (o suficiente molécula STA-5326 mesilato), a interferona-y(anti-IFN-y, an­
para manter níveis séricos de 10-15 ng/mé) VO e por 14 dias ticorpo humanizado fontolizumabe ou HuZAF), a IL-6 (anti­
foi benéfico em pacientes internados com quadro grave, cor- corpo humanizado atlizumabe) e, finalmente, o fator de necrose
ticoide-dependentes ou corticoide-refratários. Nefrotoxicida- tumoral (TNF-a) através do infliximabe (75% humano), certoli-
de foi observada em 5% dos pacientes. A droga age de forma zumabe pegol (anticorpo humanizado CDP-870,95% humano)
semelhante à ciclosporina, porém sua ingestão oral é seguida e adalimumabe (anticorpo 100% humano). Por outro lado, é
de melhor absorção, mesmo diante de mucosa lesada. Estudos possível oferecer citocinas anti-inflamatórias como a IL-10.
controlados são aguardados para estabelecimento da dose ideal Recentemente, a capacidade de secretar IL-10 ou fator trefoil
e dos efeitos colaterais, que parecem ser semelhantes aos des­ foi incorporada ao probiótico Lactococcus lactis, por engenha­
critos para a ciclosporina. ria genética, fazendo com que, além dos benefícios inerentes
Micofenolatomofetila (MMF) é um éster do ácido micofe- ao probiótico, se obtenha ação direta anti-inflamatória, imu-
nólico com ação imunossupressora, reduzindo a produção de nomoduladora e reparadora sobre a mucosa inflamada. Tam­
interferona-gama e a proliferação de linfócitos. Trabalhos ini­ bém IL-10 foi utilizada sob forma de microesferas gelatinosas
ciais revelaram que o MMF (1 a 2 g/dia VO) poderia ser útil (GM-IL-10). Tais estratégias de liberação direta na mucosa au­
nos pacientes com DC refratária, grave e intolerantes à AZA ou mentaram a eficácia da IL-10 e se mostraram melhores que a
6-MP. Todavia, o mais recente estudo sobre MMF, conquanto oferta sistêmica de IL-10.
não controlado, questionou sua eficácia na DC. Na RCU, MMF
não foi superior à AZA. ■ Bloqueio decélulas Tativadas
A ativação das células T na mucosa intestinal constitui eta­
■ Terapia biológica pa importante no processo inflamatório na DII. Dessa forma,
O sucesso da pesquisa de bancada - em laboratório - en­ foram desenvolvidos anticorpos humanizados contra recepto­
sejou novas opções terapêuticas na DII. A descoberta de que res da superfície de células T ativadas. É o caso do anti-CD3,
na DC existe prejuízo na imunidade inata (células dendríticas, visilizumabe ou HuM291 e dos anticorpos monoclonais contra
neutrófilos, macrófagos) e consequente hiperestimulação da receptores CD25 (receptor de IL-2), como no caso do anticorpo
imunidade adquirida (células T) descortinou novas perspectivas humanizado daclizumabe e do anticorpo quimérico basilixima-
terapêuticas. Hoje, os estudos clínicos têm por objetivo avaliar a be. Outra estratégia consiste em bloquear sinais de coestimu-
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 471

lação para a ativação de células T (CTLA-4-Ig ou abatacepte). e histológica e não somente clínica. Dessa forma, teremos de
Trabalhos controlados com essas modalidades terapêuticas es­ reconsiderar os métodos atuais de avaliação da resposta te­
tão em andamento na DII. rapêutica na DII, como os índices de atividade, que, por ve­
zes, não levam em conta a condição macro e microscópica da
■ Bloqueio deadesão emigração de células inflamatórias mucosa intestinal. O mesmo se aplica à capacidade de induzir
Inibidores seletivos de moléculas de adesão (p. ex., inte- apoptose e de reduzir o processo inflamatório do tecido adipo-
grinas, ICAM) também se mostraram inicialmente úteis no so mesentérico. Provavelmente, esses métodos tradicionais de
tratamento da DC, particularmente naqueles com elevação da avaliação da remissão da doença darão lugar a exames labora­
proteína C reativa (PCR). Nesse grupo, incluímos: o anticorpo toriais (p. ex., dosagem fecal de calprotectina e de lactoferrina
humanizado natalizumabe, contra a integrina a 4, o anticorpo etc.), endoscópicos (p. ex., cápsula endoscópica, enteroscopia
humanizado MLN02 ou LDP02, contra a integrina a 4(57), e com duplo-balão etc.), ultrassonográficos, tomografia compu­
o oligonucleotídio antissenso alicaforseno ou ISIS 2302, con­ tadorizada com multidetector (enterografia multislice com TC),
tra ICAM1. ressonância nuclear magnética, colonoscopia virtual etc., que,
Muitas dessas modalidades terapêuticas ainda estão em fase com o tempo, deverão ter seus custos mais reduzidos, possibi­
experimental ou carecem de maior confirmação clínica. Entre­ litando abordagem mais rotineira.
tanto, os resultados preliminares são encorajadores. No Brasil, Finalmente, associações de terapia biológica que ajam si-
duas drogas biológicas já foram aprovadas: infliximabe e ada- nergicamente melhorando a imunidade inata e minimizando
limumabe. Infliximabe mostrou-se útil no tratamento da DC a resposta inflamatória adaptativa (p. ex., sargramostim + anti-
e da RCU. Os estudos ACT 1 e ACT 2, para RCU não respon- TNF-a) talvez sejam utilizadas a fim de se obter melhor efeito
siva aos tratamentos habituais, revelaram nítida vantagem do terapêutico, evitando-se assim o uso de corticoides. No Qua­
infliximabe sobre o placebo. Após indução com 5 mg/kg nas dro 43.5, resumimos as perspectivas no tratamento da RCU.
semanas 0,2 e 6 IV, a droga foi mantida a cada 8 semanas. Ao
final de 30 semanas, a resposta clínica com IPX foi de 52 versus
30% no grupo placebo (p < 0,001), a remissão clínica foi de 34
(IPX) versus 16% (placebo), p < 0,001, e a remissão endoscó-
■ COMPLICAÇÕES E PROGNÓSTICO
pica foi de 50 (IFX) versus 25% (placebo), p < 0,001. A remis­
são clínica sem corticoide foi de 24% no grupo IPX e 10% no ■ Megacólon tóxico
grupo placebo (p < 0,03). Adalimumabe, em um estudo-piloto,
O megacólon tóxico ocorre em 3 a 5% dos pacientes com
também mostrou-se útil na RCU.
RCU. Caracteriza-se por uma dilatação progressiva do cólon as­
Os efeitos colaterais dos anti-TNF ocorrem em uma frequên­ sociada a manifestações tóxicas sistêmicas, com estiramento da
cia menor que 10% e em alguns trabalhos não foram superiores
parede da víscera, podendo ocasionar perfuração. O paciente,
aos constatados para o grupo placebo. Os efeitos colaterais men­
em geral, apresenta-se toxemiado, com febre, taquicardia, dor
cionados para o anti-TNF incluem: a) mais comuns: reações à
e distensão abdominal. O leucograma revela intensa leucocito-
infusão (prevenidas e tratadas com redução da velocidade de in­
se. Essa complicação exige colectomia urgente, assim mesmo a
fusão, difenidramina 25 a 50 mg IV ou VO, hidrocortisona 100
mortalidade é alta e atinge metade dos pacientes.
a 200 mg IV, ou prednisona 40 mg VO e acetaminofeno 650 mg
VO), infecções de vias respiratórias superiores, bronquite, farin-
gite, febre, cefaleia, náuseas, dor abdominal; b) menos comuns: ■ Displasiaecarcinoma do cólon
tontura, dor torácica, artralgia, reações de hipersensibilidade
Não há dúvidas de que a incidência de displasia e câncer do
tardia, abscessos (abdominais ou perianais), pneumonia, fu-
runculose, obstrução intestinal, anemia hemolítica, disfunção cólon é maior nos pacientes com RCU do que na população
cardíaca, lúpus induzido por droga (anti-DNA positivo); o risco geral e, obviamente, é a complicação mais temida. Acredita-se
de linfoma não Hodgkin é sugerido por alguns autores, porém que a inflamação persistente poderá progredir para displasia e
parece relacionar-se mais com o uso do corticoide ou com a câncer na seguinte sequência: colite sem displasia > displasia
associação entre terapia biológica e imunossupressor. Alguns de baixo grau (DBG) > displasia de alto grau (DAG) > carci-
pacientes desenvolvem anticorpo contra o próprio anti-TNF noma. Estudos recentes sugerem que a DBG pode evoluir para
(4 a 35% dos pacientes), porém o seu significado ainda não câncer sem passar por DAG. Em vista disso, alguns autores têm
está totalmente esclarecido. Tais anticorpos desenvolvem-se sugerido colectomia profilática neste ponto. Entretanto, não há
em uma frequência menor nos que consomem, concomitan­ consenso sobre esta questão.
temente, um imunossupressor (p. ex., azatioprina, 6-mercap- Os fatores determinantes do risco de degeneração malig­
topurina, metotrexato etc.). Alguns pacientes podem reativar na são a duração e extensão da doença e a gravidade da in­
tuberculose latente, o que justifica a realização do PPD e raios X flamação.
de tórax antes da infusão. Assim, pacientes com PPD negativo Com relação à duração, sabe-se que o risco cumulativo de
ou < 5 mm e raios X de tórax normal podem ser submetidos à desenvolver câncer de cólon, após 15 anos de doença, é de 5 a
terapêutica com anti-TNF. Nos casos de PPD > 5 mm, os pa­ 8%; após 20 anos, de 12%; e, após 25 anos, de 25 a 30%. Caso
cientes devem ser tratados com isoniazida profilática (300 mg/ a doença se limite ao reto, a chance de malignização é seme­
dia, 6 meses), e a terapia anti-TNF deve ser iniciada somente lhante à da população normal. Por outro lado, o risco, quando
após 1 mês de isoniazida. A droga também deve ser evitada a doença é universal (ou seja, atinge todo o cólon), é de 13%,
em cardiopatas. após 15 anos de doença; de 23%, após 20 anos; e de 42%, após
A pesquisa com terapia biológica certamente continuará de 25 anos.
forma célere, na busca de medicamentos mais eficazes, de fácil Geralmente, o tumor que se desenvolve em um paciente com
administração, com menos efeitos colaterais e com impacto RCU é extremamente agressivo. As lesões são planas, infiltra-
sobre a história natural da doença. Os estudos com terapia bio­ tivas, e, na maioria dos pacientes, já se encontram metástases
lógica também têm revelado o valor da remissão endoscópica durante a laparotomia.
472 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

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Q u a d ro 43 .5 Perspectivas no tratamento da retocolite ulcerativa inespecífica (RCU)

Tera pia Resultados in id a is na RCU

T e r a p i a b io ló g i c a

1) G o li m u m a b e - a n t ic o r p o m o n o c lo n a l lg G 1 , h u m a n o , c o n t r a T N F .......................................................................... . .........E m a n d a m e n t o

2 ) C D P -5 7 1 - a n t ic o r p o h u m a n iz a d o c o n tra T N F , m o n o c lo n a l, l g G 4 ..................... ..................................................... ................................ F a v o rá v e is

3 ) N a t a liz u m a b e - a n t ic o r p o m o n o c lo n a l c o n tr a a lfa -4 in te g r in a , h u m a n iz a d o , lg G 4 , in ib e a d e s ã o le u c o c it á r ia ............. F a vo rá v e is

4 ) M L N -0 2 - a n t ic o r p o h u m a n iz a d o , I g G I , m o n o c lo n a l, c o n tr a a lfa -4 b e t a -7 in te g r in a , in ib e a d e s ã o le u c o c it á r ia ........... F a vo rá v e is

5 ) A lic a fo rs e n (Isis 2 3 0 2 , a n tis s e n s o c o n tr a m o lé c u la d e a d e s á o I C A M - 1 ) ............................ .....................................................................Q u e s tio n á v e is

6 ) R D P 5 8 - in ib e via s in tra c e lu la re s d e a tiv a ç ã o e fo r m a ç á o d e c ito c in a s p ró -in f la m a t ó r ia s (T N F , IF N , IL -1 2 ) ..................... D e s c o n t in u a d o s

7 ) D a d i z u m a b e (h u m a n iz a d o ) e B a s ilix im a b e (q u im é r ic o ) - b lo q u e io d e I L - 2 ............................................................................. ..........M


. a is fa vo rá v e is p a ra B a s ilix im a b e

8 ) V is iliz u m a b e - a n t ic o r p o m o n o c lo n a l h u m a n iz a d o c o n tra C D 3 ........................................................... .....................................................Q u e s tio n á v e is

9 ) E n e m a d e fa to r d e c re s c im e n t o e p i d é r m i c o .................................................... ................. ..................................................................................F a vo rá v e is

1 0 ) R e p ife rm in a - fa to r d e c re s c im e n t o f ib r o b lá s tic o 10 o u fa to r q u e r a t in ó c it o d e c re s c im e n t o 2 ..................................... ......... N á o f a v o rá v e is

1 1 ) T e t o m ila s t (O P C -6 5 3 5 ) - in ib e p r o d u ç á o d e s u p e r ó x id o e c ito c in a s p e lo s le u c ó c it o s ........................................................ ..........Q


. u e s tio n á v e is

1 2 ) A b a t a c e p t - b lo q u e io d e C T L A -4 (m o lé c u la c o e s t im u la d o r a , im p o r t a n t e na a tiv a ç ã o d e lin f ó c it o s )......................... ......... F a vo rá v e is

1 3 ) A n t if a t o r d e a g r e g a ç ã o p la q u e t á r ia ................................................................................................................................................................. ... ....... N á o fa vo rá v e is

1 4 ) In t e r f e r o n a -a ..................... ............................. .............. ......... ..................................................................................................................................... ......... Q u e s tio n á v e is

1 5 ) ln t e r f e r o n a -0 -1 ...................................................................................................................................................................................................................... N á o fa v o rá v e is

1 6 ) In t e r le u c in a -1 0 ................................................... .................................................................................................................................... ................... .........N á o fa v o rá v e is

M is c e lâ n e a

1) 4 -a m in o s s a lic ílic o ................................................................................................................................ .......................... .... F a vo rá v e is

2 ) N ic o t in a t r a n s d é r m l c a .....................................„ ................................................................................. ...................... .... F a v o rá v e is (a lta s d o s e s )

3 ) H e p a r i n a ............................................................................................................................................................................. .... N á o fa vo rá v e is

4 ) Á c id o s g ra x o s d e c a d e ia c u r ta ( e n e m a ) ................................ ............................. .............................................. . ... Q u e s tio n á v e is

5 ) ô m e g a - 3 (ó le o d e p e i x e ) ........................................................................................................................................... .... Q u e s tio n á v e is

6 ) A n t ib i ó t i c o s ............................................................................... ...... - .................................................... ................. ........ ... Q u e s tio n á v e is

7 ) Z ile u t o n e o u t r o s in ib id o r e s d e le u c o t r ie n o s ........ ......................................................................................... .... N á o fa v o rá v e is

8 ) R id o g r e l (in ib id o r d e t r o m b o x a n o ) ...................................................... „ ............... ....................................„ ....... .... N á o fa v o rá v e is

9 ) A l o p u r i n o l ................................................................................................................... ..................................................... ... N á o fa v o rá v e is

1 0 ) B is m u t o ( e n e m a ) ........................................... ...... - .................................................... .................................................. . ... F a vo rá v e is

1 1 ) L id o c a ín a / ro p iv a c a ín a ( e n e m a ) ............................................................................................................................. ... F a vo rá v e is

1 2 ) R o s ig lita z o n a (lig a n te d e P PA R g a m a - p e r o x is o m e p r o lif e r a t o r - a c t iv a t e d r e c e p t o r g a m m a ) . .... F a vo rá v e is

1 3 ) L e v a m is o le ........................................................................................................................................................................ .... N á o fa v o rá v e is

1 4 ) C r o m o g lic a t o d is s ó d i c o .............................................................. .................................................... „ ....................... ... Q u e s tio n á v e is

1 5 ) A fé re s e (g r a n u ló c it o s e m o n ó c i t o s )...................................................... ............ .......................................... ...... .... Q u e s tio n á v e is

1 6 ) A lo e v e r a .............................................................................................................................................................................. .... N á o fa v o rá v e is

1 7 ) P r o b ió t ic o s .............................. ..................................................... ............ ~ ...... ........................................... ......... . .... F a vo rá v e is

1 8 ) D e s id r o e p ia n d r o s t e r o n a (D H E A ) - a ç ã o a n t i-in f la m a t ó r ia ..................................................................... . F a vo rá v e is

1 9 ) A P C 2 0 5 9 (in ib id o r d e trip ta s e ) - b lo q u e ia d e g r a n u la ç â o d e m a s t ó d t o s ......... ............................ .... F a vo rá v e is

Outros fatores considerados de risco são: doença colestática 2 anos a partir de 8 a 10 anos do início da doença na pancoli-
no fígado (p. ex., colangite esclerosante primária) e, possivel­ te e 15 a 20 anos nas formas localizadas. Sugere-se colectomia
mente, o uso de drogas imunomoduladoras, tais como: azatio- profilática em pacientes com doença universal com mais de
prina e 6-mercaptopurina. 10 anos de duração.
A alta incidência de malignização impõe medidas de vigi­ Infelizmente, muitas questões ainda não estão respondi­
lância em todos os pacientes com RCU. Infelizmente, não dis­ das, entre elas: Quando iniciar a vigilância? Qual é o número
pomos, até hoje, de um método ideal de vigilância. Os possíveis de biopsias? Quais locais deverão ser biopsiados? Além disso,
marcadores de pré-malignidade, como antígeno carcinoem- existe muita discrepância de resultados entre os patologistas
brionário (CEA), a excreção fecal de ácidos biliares e a presença Em razão da falta de estratégia de vigilância universalmen­
de displasia, entre outros, não se mostraram confiáveis. te aceita, têm-se procurado novos métodos de m onitorar os
Nos EUA e na Europa, vêm sendo testados vários protocolos pacientes com RCU. Nesse sentido, destacam-se: a cromoen-
envolvendo marcadores sanguíneos e teciduais, colonoscopia doscopia e a “quimioprofilaxia” com aminossalicilatos. A cro-
anual ou bianual e colectomia profilática, mas, até agora, não moendoscopia consiste na utilização de corantes por meio da
existe consenso sobre a questão. Recomenda-se, entretanto, colonoscopia com ou sem magnificação de imagem. A utili­
a realização de colonoscopia com biopsia pelo menos a cada zação de corante permitiría identificar com maior precisão as
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 473

lesões planas e também as polipoides, indicando o melhor lo­ acima de 100 bpm, temperatura superior a 38°C e albumina
cal para a biopsia. sérica inferior a 3 mg/d^. Considera-se, também, que aqueles
Estudos realizados na Dinamarca demonstraram que a inci­ doentes que apresentam ilhotas de mucosa no cólon, ou nos
dência de displasia e câncer em pacientes com RCU é muito me­ quais se evidenciam mais de três alças de delgado distendidas,
nor naquele país. Da mesma forma, a realização de colectomia ou, ainda, dilatação do cólon, notada à radiografia simples de
foi muito menor. A explicação para isso foi a maior utilização abdome, possivelmente terminarão por exigir tratamento ci­
de aminossalicilatos. Mais recentemente, estudos realizados no rúrgico de urgência.
Reino Unido demonstraram que o uso regular de aminossali­ ► Complicações agudas. As mais importantes são sangra­
cilatos na dose mínima de 1,2 g/dia reduziu em até 75% o risco mento incontrolável por medidas clínicas, megacólon tóxico e
de desenvolvimento de câncer e displasia. perfuração do cólon.
A despeito destes excelentes resultados com estas novas es­ ► Riscos de câncer. Essa situação é mais frequente quan­
tratégias, a cromoendoscopia ainda é um método caro e a uti­ do o surto inicial da doença ocorre na juventude, naqueles em
lização de aminossalicilatos por tempo prolongado necessita que todo o cólon está comprometido, e quando o processo
de estudos prospectivos em escala convincente. se prolonga por mais de 10 anos. Após a primeira década de
doença, cerca de 2% dos pacientes desenvolverão o câncer co-
lônico a cada ano.
■ PROGNÓSTICO ► Retardo de desenvolvimento somático nas crianças.
Essa situação é dependente da lesão intestinal. A cirurgia de­
O prognóstico depende da extensão e gravidade da doença verá ser realizada antes do fechamento do espaço epifisário e,
na época do diagnóstico inicial. Estatísticas indicam que 45% portanto, em condições de a criança retornar ao seu desenvol­
dos pacientes apresentam doença limitada ao cólon distai, 35% vimento físico.
têm uma forma moderada e 20% exibem doença universal. ► Complicações extraintestinais. As complicações extrain­
O acompanhamento dos pacientes a longo prazo demons­ testinais não constituem indicações para colectomia. A indica­
tra que, em média, 50% ficam livres dos sintomas, mas quase ção de operação dependerá da situação da doença colônica, da
todos irão apresentar, pelo menos, uma recidiva nos próximos resposta ao tratamento e do tempo de duração da RCU. Essas
10 anos. complicações poderão, todavia, reforçar a decisão de operar.
Apesar do caráter crônico, a proctite e a proctossigmoidite As complicações extraintestinais são divididas em dependentes
apresentam baixa incidência de complicações, e as manifestações e independentes da lesão intestinal.
extraintestinais ocorrem em menos de 10% dos pacientes. ► Dependentes da lesão intestinal: pioderma gangrenoso,
Pacientes jovens tendem a apresentar doença mais grave, eritema nodoso, estomatite aftoide, irites, artrites periféricas;
com manifestações extraintestinais e sangramento intenso no independentes da lesão intestinal: colangite esclerosante, es-
primeiro episódio, além de evoluírem, em geral, para formas pondilite ancilosante, nefropatias crônicas e amiloidose.
mais graves.
■ Procedimentos cirúrgicos
■ TRATAMENTO CIRÚRGICO Os procedimentos cirúrgicos para o tratamento da RCU
sofreram transformações ao longo dos anos, com o desenvol­
O momento da indicação cirúrgica para a RCU é geralmen­ vimento de novas técnicas e com o melhor conhecimento da
te protelado devido à preocupação de clínicos e pacientes com fisiopatologia da doença. Assim, a abordagem cirúrgica inicial
relação à feitura de ileostomias e/ou colostomias, temporárias consistia em simples desvio do trânsito intestinal, através de
ou definitivas, com suas consequências do ponto de vista físico colostomia ou ileostomias, que logo se mostraram inadequadas,
e de convívio social. Assim, para esses pacientes receberem a uma vez que mantinham o segmento intestinal doente, com to­
orientação cirúrgica no momento adequado, sempre é necessá­ das as suas consequências. O mesmo acontece quando se pra­
rio o acompanhamento por uma equipe multiprofissional com ticam, nas formas localizadas da doença, colectomias parciais,
a importante participação de um cirurgião. uma vez que, nesses casos, o processo ressurgirá no segmento
As indicações para o tratamento cirúrgico da RCU são, clas- do cólon remanescente.
sicamente, as seguintes: Atualmente, os procedimentos cirúrgicos utilizados para a
► In tra ta b ilid a d e c lín ic a . Apesar de persistente e adequada RCU são os seguintes:
terapia, ocorre a manutenção da doença, tornando difíceis as
condições de vida dos pacientes. E quais são esses casos? Em ■ Proctocolectomia com ileostomia
geral, são pacientes que se apresentam em episódios graves de Procedimento proposto por Brooke, em 1952, que é indicado
diarréia com sangue, febris, taquicárdicos e anemiados. A con­ para as formas difusas e mais graves, com grande comprome­
duta clínica inclui internação, hidratação e corticoterapia ve- timento do reto. Consiste na remoção de todo o cólon e reto,
nosas. Não há evidência de que a nutrição oral, líquida ou pas- com feitura de ileostomia em caráter definitivo, apresentando
tosa, agrave a diarréia, mas doentes desnutridos devem receber a grande vantagem de realmente curar a doença, além de re­
nutrição parenteral total. Se o paciente continua a deteriorar, solver, também, as manifestações extraintestinais dependentes
pode-se tentar ciclosporina intravenosa, na dose de 4 mg/kg/ da lesão intestinal.
dia. Se, ainda assim, e ao fim de 7 dias, não houver melhora, No entanto, por ser procedimento extremamente mutilan-
com o doente mantendo-se febril, taquicárdico e sem diminuir te e com a ileostomia definitiva, leva a grandes implicações do
a diarréia, indica-se operação de urgência. Esses doentes, que ponto de vista psicossocial, como a reclusão do paciente.
acabarão operados durante a crise inflamatória, correspondem
a 20 ou 30% dos casos graves de RCU. Há sinais que ajudam ■ Proctocolectomia com ileostomia continente
ao médico prever mau prognóstico, quando o doente se apre­ No sentido de reduzir as consequências da ileostomia defi­
senta: com mais de nove episódios de diarréia no dia, pulso nitiva nas proctocolectomias, Kock, em 1976, propôs a reali­
474 Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa

zação de ileostomias continentes, dotadas de reservatório for­ endoscópica. Esse processo nada tem a ver com a doença in­
mado por segmento de intestino delgado distai com sistema flamatória inicial, apresentando alterações bacteriológicas e
valvulado. Esse reservatório, de feitura complexa, era esvazia­ histopatológicas, com consequentes repercussões funcionais,
do pelo próprio paciente, por meio da introdução de sondas manifestando-se por dor pélvica, febre, diarréia aquosa e san-
pela ileostomia. guinolenta. A sua etiologia ainda não está devidamente estabe­
Com o desenvolvimento de novas técnicas, essa conduta foi lecida, considerando-se a possibilidade de estase fecal prolon­
praticamente abolida, devido principalmente a complicações gada no reservatório, com decorrente proliferação bacteriana
na sua manipulação (perfuração do reservatório pela sonda ou, por isquemia da mucosa ou má absorção. Esses processos res­
então, pela perda de continência do sistema valvular). pondem de modo satisfatório ao uso de metronidazol, poden­
do, em algumas situações, haver necessidade de reconstrução
■ Colectomia total com ileorretoanastomose cirúrgica do reservatório ileal.
Em 1952, Aylett divulgou técnica originariamente propos­ Outras complicações pós-operatórias são representadas
ta por Devine, em 1943, e Corbett, em 1952, que consistia na por insuficiência anastomótica, fístula, sepse pélvica (17,6%),
remoção de todo o cólon e preservação do reto e dos esfíncte- estenose de anastomose (14,7%), obstrução intestinal (8%) e
res por uma anastomose ileorretal na altura do promontório incontinência (11%), exigindo, na maioria das vezes, reinter-
sacral. Esse procedimento só poderá ser indicado em situações venção cirúrgica para a resolução dessas situações, que, inclu­
especiais, em que não ocorra um maior comprometimento do sive, estão associadas ao aumento da incidência das manifesta­
reto, com suas funções preservadas, sem doença ativa intensa ções extraintestinais. Complicações tardias são a bolsite, como
ou estenoses, ausência de displasias na mucosa e com esfíncter mencionado, a incontinência anal e a disfunção sexual, prin­
anal adequado para controlar fezes líquidas. cipalmente nas mulheres, caracterizando-se por dispareunia.
A manutenção do reto torna essa técnica discutida, pois, A julgar por um relatório da Clínica Mayo, as complicações
nessa porção remanescente, poderá surgir um processo de de- per e pós-operatórias da PTAIBI chegam a 70%. Esse núme­
generação neoplásica, requerendo, dessa forma, revisões locais ro, aparentemente assustador, não desanima os que precisam
a cada 6 meses. O risco do surgimento de um processo neoplá- de uma colectomia total e não desejam permanecer com uma
sico no reto residual é de 5% em 20 anos. colostomia definitiva.
Pelo seu baixo índice de morbidade e pelas excelentes con­
dições de vida propiciadas aos pacientes, essa técnica tem, sem
dúvida, um lugar de destaque e de grande valia em casos de­ ■ Megacólon tóxico
vidamente selecionados. Sempre existe a possibilidade de, em Na fase inicial de instalação do megacólon tóxico, a conduta
situações de recrudescimento da atividade inflamatória no reto deverá ser clínica e expectante. É importante o controle dos si­
e/ou encontro de graves displasias nos controles periódicos, re­ nais vitais, além de reposição hidreletrolítica, utilização de anti­
verter esse procedimento para a remoção do reto e feitura de bióticos de largo espectro e controle radiológico a cada 12 h.
reservatório ileal, ou, então, ileostomia definitiva. A alteração de sinais vitais (febre, taquicardia, toxemia),
do exame clínico (distensão abdominal, dor e irritação perito-
■ Proctocolectomia total com anastom ose ileoanal
neal), juntamente com a falta de resposta às medidas clínicas
e bolsa ileal (PTAIBI) nas primeiras 24 h, ou então à mudança no quadro radioló­
Essa técnica consiste na remoção de todo o cólon, dissecção gico (aumento da distensão do cólon), são sinais indicativos
do reto e secção deste cerca de 1 cm acima da linha pectínea. para um pronto procedimento cirúrgico, antes da ocorrência
É realizado um reservatório utilizando-se o segmento distai de perfuração.
do íleo, que deverá ser anastomosado junto ao coto do reto. A
A conduta cirúrgica ideal seria a colectomia total, com fe­
bolsa poderá ser realizada de diferentes formas, porém a mais
chamento do coto retal e ileostomia, para uma reconstituição
utilizada é aquela em formato de J, proposta por Utsunomya
do trânsito em procedimento posterior.
em 1980, que forma um reservatório com cerca de 15 a 20 cm.
Em circunstâncias de maior comprometimento das condi­
A extremidade distai do J é anastomosada ao coto retal, utili­
ções do paciente, ou então na presença de perfuração intestinal,
zando-se grampeadores.
a conduta cirúrgica, na impossibilidade de remoção do cólon,
O procedimento cirúrgico é realizado em dois estágios, dei­
deverá ser a feitura de colostomias descompressivas múltiplas,
xando inicialmente uma ileostomia de proteção da anastomose,
além de limpeza e drenagem da cavidade abdominal.
que, posteriormente, deverá ser fechada.
Em algumas situações, poderemos m anter um coto retal
maior, no qual é removida a mucosa (mucosectomia), facili­
tando a anastomose com a bolsa ileal. ■ LEITURA RECOMENDADA
Apesar da complexidade dessa técnica, ela, sem dúvida, nos Abraham, C. & Cho, JH. Mccanisms of Discasc. Inflamatory Bowcl Discasc. N
últimos anos, promoveu uma revolução no tratamento cirúrgi­ Engl J Med, 2009; 365:2066-78.
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A morbidade desse procedimento cirúrgico é relativamente Damião, AOMC. Doença Inflamatória Intestinal. Em: Farmacologia. Silva, P
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alta, e a complicação mais frequente é a inflamação do reserva­ 903.
tório ileal, denominada “bolsite” ou pouchitis, que pode ocorrer Damião, AOMC'. Doença Inflamatória Intcstinal-Tcrapia Biológica: o momento
em até 50% dos casos operados, inclusive com comprovação c o lugar. / Bros Casíroeníerol, 2009; 9:4-7.
Capítulo 43 / Retocolite Ulcerativa 475
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Tuberculose Intestinal
Mounib Toda

■ INTRODUÇÃO As complicações poderão ocorrer sob a forma de quadro


obstrutivo intestinal, hemorragia, fístulas internas por conti-
A tuberculose intestinal (TBI) é encontrada mais comumen- guidade com outras estruturas e má absorção consequente ao
te em países pouco desenvolvidos e, nos EUA, é mais incidente extenso comprometimento da mucosa intestinal.
em grupos de imigrantes. A sua incidência em países do Oci­ O comprometimento abdominal pelo processo tuberculoso
dente tem aumentado, em decorrência dos fluxos migratórios ocorre em cerca de 2% dos pacientes que apresentam a doen­
provenientes de países do terceiro mundo, além do maior aco- ça pulmonar, podendo envolver o peritônio, grande omento,
metimento de infecções virais em imunodeficientes, represen­ fígado, baço, sistema digestório ou órgãos pélvicos na mulher.
tando importante causa de morbidade e mortalidade. Com o Em cerca de 95% dos casos, esse envolvimento abdominal é
aparecimento da AIDS, houve um aumento significativo da sua acompanhado de ascite, que poderá ser facilmente detectada
incidência no grupo de pacientes imunodeprimidos devido a clinicamente e/ou pela ultrassonografia.
essa síndrome. A TBI é decorrente da ação do M. tuberculosis
e do M. bovis, existindo, em 50% dos casos, um comprometi­
mento pulmonar primário inicial, com a bactéria atingindo o ■ DIAGNÓSTICO
sistema digestório pela deglutição do escarro contaminado.
Nos outros pacientes, o processo primário é intestinal e, ge­ Além do quadro clínico e de antecedentes de contaminação
ralmente, a via de contaminação é através da ingestão de leite pelo uso do leite não pasteurizado, poderemos acrescentar os
bovino não pasteurizado. seguintes procedimentos diagnósticos. A suspeita de tubercu­
Qualquer porção do sistema digestório poderá estar compro­ lose intestinal deverá ser considerada no diagnóstico de dor
metida pelo processo, porém a sua incidência maior é na região abdominal crônica, principalmente em indivíduos imunode­
ileocecal. No segmento envolvido, encontramos ulcerações da ficientes.
mucosa, fibrose com espessamento da alça e estreitamento da
luz, além de envolvimento de linfonodos na região do meso. ■ Teste cutâneo do PPD
O aspecto macroscópico é bastante semelhante ao encontrado
Esse teste apresenta-se positivo em cerca de 70% dos casos de
na doença de Crohn (DC).
tuberculose. Porém, em pacientes imunodeprimidos, inclusive
Em países em que a tuberculose é endêmica, como na índia, a pela AIDS, poderemos ter um resultado falso-negativo.
diferenciação com a DC é importante, uma vez que a orientação
terapêutica é totalmente diferente nas duas entidades. Dentro
de um contexto mais geral, a DC é processo de longa evolução, ■ Raios X de tórax
com diarréia crônica, sangue nas fezes, doença perianal, ma­ Esse exame é importante para o reconhecimento de um com­
nifestações extraintestinais, ulcerações aftoides, comprometi­ plexo pulmonar primário.
mento de cólon esquerdo. Por outro lado, obstrução intestinal
parcial, obstipação, presença de lesões nodulares juntamente
com grande número de granulomas são mais frequentes na ■ Raios X contrastados
TBI. Apesar das similaridades entre estas duas patologias, po­ O estudo radiológico contrastado do delgado, com particular
derão ser bem diferenciadas na combinação de manifestações atenção para a região ileocecal e do cólon, deverá demonstrar
clínicas, endoscópicas e histopatológicas. não somente o local do comprometimento intestinal, mas tam­
A manifestação clínica geralmente é representada por febre, bém a sua extensão e a existência ou não de fenômenos subo-
dor abdominal, emagrecimento e diarréia. Na vigência de um clusivos. O aspecto radiológico encontrado na TBI é semelhante
maior estreitamento do lúmen intestinal, poderemos observar a ao achado na doença de Crohn. Entretanto, na tuberculose, o
ocorrência de sintomas de suboclusão, com distensão abdomi­ ceco costuma estar contraído e o segmento ileal atingido é mais
nal e eventual encontro de massa abdominal palpável local. curto do que o habitual para a doença de Crohn.

476
Capítulo 44 / Tuberculose Intestinal 477

■ Paracentese ■ Cápsula endoscópica e enteroscopia


Na presença de ascite, a paracentese mostra um líquido de O advento recente da cápsula endoscópica permitiu uma
coloração citrina, e a sua análise bioquímica revela um elevado melhor investigação do intestino delgado, principalmente nos
número de linfócitos (250.000-400.000 células m^). A cultura casos duvidosos em que não se conseguia fazer o diagnóstico
desse material somente será positiva em cerca de 20% dos ca­ diferencial com a doença de Crohn. O fator limitante para o
sos, com o encontro do M. tuberculosis. seu uso seria a presença de quadros de suboclusão, impedindo
a passagem da cápsula pelo local.
A enteroscopia com duplo balão, apesar das dificuldades no
■ Videolaparoscopia e colonoscopia seu emprego de rotina, é também procedimento importante
A videolaparoscopia é um método definitivo para o estabe­ no diagnóstico da TB, pois, além da identificação das lesões,
lecimento do diagnóstico, especialmente porque o peritônio permite também a obtenção de fragmentos para o estudo his-
pode estar comprometido, e, às vezes, o fígado, permitindo topatológico.
uma afirmação presuntiva visual na maioria dos casos, além da
remoção de material para estudos histopatológicos. A certeza
diagnóstica poderá, outrossim, ser obtida pelo exame histopa-
tológico do material obtido através de procedimentos endos-
■ TRATAMENTO
cópicos, ou, então, através de material cirúrgico, observando-se O tratamento clínico com as drogas antituberculosas é bas­
granuloma com necrose de caseificação central com ou sem a tante eficiente. O esquema básico inclui rifampicina + isonia-
presença dos bacilos (Figuras 44.1 e 44.2). zida + pirazinamida, durante 6 meses; a pirazinamida apenas
nos dois primeiros meses. Nos pacientes HIV positivos, o tra­
tamento deve ser seguido por 9 meses.
A abordagem cirúrgica, com remoção do segmento intesti­
nal comprometido, somente é utilizada na vigência de compli­
cações locais, como obstrução e fístulas. Em algumas situações
de perfuração espontânea no intestino delgado, o procedimento
cirúrgico deverá ser sempre o de ressecção da área comprome­
tida e nunca a simples sutura do local rompido.

■ LEITURA RECOMENDADA
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Megacólon
José Alves de Freitas, Mounib Tacla e Renato Dani

Megacólon é um termo meramente descritivo. Refere-se ao estar envolvidos com as formas longas do MC, enquanto um
aumento do diâmetro dos diversos segmentos do cólon, ve­ modelo multifatorial explicaria as formas curtas. Um grupo
rificado ao exame radiológico, sem levar em consideração a parisiense, do Hôpital des Enfants Malades, mostrou a ligação
etiologia, desde que não seja devido à obstrução mecânica do entre o proto-oncogene RET com o MC; esses e outros tra­
cólon. O diâmetro desta víscera é variável. Considera-se m e­ balhos indicaram que as mutações daquele gene caracterizam
gacólon quando o diâmetro do ceco ultrapassa 12 cm, o do có­ 50% das formas familiais e 15% das formas esporádicas da
lon ascendente 8 cm e o do cólon descendente 7 cm. Quando doença.
o retossigmoide supera 7 cm, diagnostica-se megarreto. Neste Em 1982, esta doença foi classificada em três grupos:
capítulo, serão discutidos ligeiramente o megacólon congênito • MC clássico: Envolve o reto e o sigmoide, estendendo-se
(doença de Hirschsprung) e, mais extensamente, o megacólon até a flexura esplênica;
chagásico. Não serão abordados o megacólon que acompanha • MC ultracurto: Limitado aos 2 a 3 cm distais do reto; e
a constipação intestinal crônica ou a pseudo-obstrução intes­ • MC ultralongo: Neste caso, mais da metade do cólon
tinal, nem doenças neurológicas (distrofia miotônica, Parkin- está envolvido.
son, neuropatia diabética, distrofia miotônica etc.), doenças da
musculatura lisa intestinal (escleroderma, dermatomiosite e Na verdade, a extensão do segmento aganglionar pode va­
polimiosite, por exemplo), ou decorrente de doenças metabó- riar desde o esfíncter anal interno, inferiormente, até as últimas
licas (porfiria, hipotireoidismo), nem o megacólon causado por alças do intestino delgado, superiormente.
drogas, assim como não comentaremos o megacólon tóxico. A doença se manifesta geralmente na infância, mas também
pode surgir na vida adulta.
O leitor deve consultar o Capítulo 27 para obter outras in­
formações sobre a doença de Hirschsprung.
■ MEGACÓLON CONGÊNITO (MC) OU
DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG
A doença de Hirschsprung foi descrita pela primeira vez em
■ MEGACÓLON CHAGÁSICO (MCH)
1886 pelo médico dinamarquês Harold Hirschsprung. Trata- A doença de Chagas, ou tripanossomíase americana, é uma
se de uma malformação congênita, relativamente frequente, zoonose causada por um protozoário flagelado, denominado
que se manifesta em 1/5.000 nascimentos. Hoje sabe-se que o Tripanosoma cruzi (Carlos Chagas, 1909). É transmitido ao
MC é um representante de um grupo de distúrbios do sistema homem por um inseto hematófago da família Triatominae, co­
nervoso entérico, distúrbios esses caracterizados pela ausência nhecido popularmente no Brasil como barbeiro ou chupança.
de células ganglionares dos plexos mioentéricos de Meissner e A doença é uma endemia exclusiva do continente americano,
de Auerbach, que são responsáveis pela atividade muscular in­ estendendo-se desde o sul dos EUA ao sul da Argentina. A Or­
trínseca do intestino. Como essas células se originam da crista ganização Mundial de Saúde estima em 12 a 14 milhões as pes­
neural, a doença é uma neurocristopatia. Resulta de anomalia soas parasitadas e em 90 milhões aquelas vivendo em condições
que se manifesta na migração, na divisão ou na diferenciação de adquirir a doença. No Brasil, um amplo inquérito sorológico
dos neuroblastos intestinais primitivos, o que acontece entre coordenado pelo Ministério da Saúde entre 1975 e 1980, abran­
a 7.“ e a 12.* semana do desenvolvimento embrionário. A pre­ gendo 3.026 municípios e 1.352.197 amostras de sangue, reve­
dominância da doença entre o sexo masculino (1,8 a 3,6:1) e a lou a prevalência em 4,2% da população rural, o que permite
existência de 15 a 20% de casos familiais sugerem a possibili­ estimar em 5 a 6 milhões os chagásicos só no Brasil.
dade de fatores genéticos implicados em sua origem. De fato, Estudos recentes demonstram que, apesar da progressiva
estudos de segregação comprovaram que um ou vários genes melhora do Sistema Único de Saúde, assim como medidas pro-
autossômicos dominantes, de penetração incompleta, podem filáticas adotadas em áreas de grande endemicidade, a doença

478
Capítulo 45 / Megacólon 479

continua sendo um grave problema de Saúde Pública. Cons­ pacientes a utilizarem laxativos cada vez mais potentes. Em 70%
titui a quarta causa de morte no Brasil entre as doenças infec- dos casos, o intervalo entre as evacuações é superior a 10 dias
toparasitárias. e mais de 30 dias em 15%. Outro sintoma muito frequente é a
Dados recentes fornecidos pela Organização Mundial de distensão abdominal, devido à grande retenção de fezes e gases
Saúde revelam que, nas últimas duas décadas, ocorreu aumento ocasionada pela não propulsão e pela acalasia do esfíncter anal
na detecção da doença nos EUA, no Canadá, em vários países interno. Devido ao baixo nível socioeconômico da maioria dos
europeus e nos países asiáticos. Isso foi ocasionado principal­ portadores de MCH, estes pacientes não se preocupam com o
mente pela mobilidade da população entre a América Latina funcionamento intestinal, acarretando, com muita frequência,
e o resto do mundo. a formação de fecaloma. Disfagia é frequente e traduz com­
Uma vez infectado, o indivíduo poderá apresentar a forma prometimento esofágico concomitante. Tontura, palpitações e
clínica aguda ou a crônica, bastante distintas entre si. A aguda perda transitória da consciência indicam cardiopatia chagásica.
pode ser aparente ou inaparente e, em geral, tem duração limi­ Frequentemente, a colopatia chagásica se associa à esofagopatia
tada. A crônica persiste indefinidamente, e, como se trata de (83,5%) e à cardiopatia (21,7%) chagásicas.
infecção sistêmica, os mais diversos órgãos podem ser atingidos.
Entretanto, os mais afetados são o coração e o trato digestório, ■ Diagnóstico
caracterizando as formas cardíaca e digestiva da doença. O diagnóstico de MCH é, em geral, simples devido à sinto­
O acometimento do trato gastrintestinal constitui a segun­ matologia típica e à procedência do paciente.
da manifestação mais frequente. Do ponto de vista patológico, O exame físico poderá evidenciar diferentes graus de dis­
caracteriza-se por uma denervação autonômica intramural, que tensão abdominal, geralmente assimétrica. O estado nutricio­
pode atingir todo o tubo digestivo. Neste capítulo, trataremos nal dependerá do comprometimento ou não do esôfago. Fre­
apenas do comprometimento do cólon. quentemente, detecta-se também arritmia cardíaca. Quando há
O megacólon chagásico (MCH), no Brasil, acomete 2 a 5% grande retenção de fezes, pode-se provocar o sinal do cacifo,
dos indivíduos infectados pelo tripanossoma, atingindo geral­ comprimindo-se o sigmoide cheio de fezes e passando-se, em
mente pessoas de meia-idade. Constitui a forma mais grave da seguida, a mão sobre esse local da parede abdominal. O toque
doença, depois da cardiopatia, produzindo muito desconforto retal deve ser sempre realizado. Quando há necrose intesti­
e levando à morte um grande número de doentes. nal, a dor em cólica torna-se contínua, há sinais de peritonite,
a distensão abdominal passa a ser simétrica e o estado geral
deteriora-se rapidamente.
■ Incidência O exame radiológico consiste na radiografia simples do ab-
O MCH pode ocorrer isoladamente ou associado ao mega- dome e no enema opaco. Os raios X simples permitem, muitas
esôfago, o que é mais comum. Nesse caso, em geral, o paciente vezes, comprovar a existência de ectasia do cólon sigmoide,
procura o médico com disfagia. A incidência global de MCH distensão gasosa e, eventualmente, fecaloma.
não é conhecida. Admite-se que seja ligeiramente menor do que O enema opaco é essencial para confirmação do diagnóstico
o megaesôfago. Este fato é explicado pelas dificuldades em se de casos duvidosos, assim como para determinar o grau de di­
detectar o megacólon, talvez devido à sua evolução mais lenta, latação e os segmentos que estão comprometidos (Figuras 45.1
com sintomas brandos, ou, ainda, porque o paciente suporta a 45.3), mas é preciso ser realizado cuidadosamente.
mais os sintomas de constipação intestinal do que a disfagia e O exame proctológico evidencia dilatação luminal e fezes
procura o médico mais tardiamente. É mais comum entre 30 e no reto. Eventualmente, podem-se observar ulcerações da mu-
60 anos, seja porque a doença se manifesta mais tardiamente, cosa.
seja porque o doente demora para procurar o médico, como Do ponto de vista laboratorial, os exames mais importantes
mencionado. Além disso, como assinala U. Meneghelli “.. .nas são a reação de fixação do complemento para doença de Chagas,
últimas décadas houve notável redução na transmissão da doen­ a reação de Machado-Guerreiro e o eletrocardiograma.
ça por meio do inseto vetor, graças a medidas profiláticas ado­
tadas em grandes áreas onde a doença de Chagas era de alta
endemicidade. Em consequência da contenção do surgimento
■ Complicações
de novos casos, a maioria dos chagásicos que se apresenta aos As principais complicações do MCH são o fecaloma, a im-
ambulatórios e hospitais é composta por pacientes com mais pactação fecal, o vólvulo do sigmoide, as úlceras por estase fe­
de 50 ou 60 anos de idade, ao contrário do que acontecia até cal e as perfurações.
há três ou quatro décadas”. Atinge ambos os sexos na mesma O fecaloma ocorre em 59% dos pacientes. Forma-se qua­
proporção. se sempre por descuido do paciente em promover o esvazia­
mento intestinal. As fezes acumuladas no segmento dilatado
se desidratam, aumentando cada vez mais a sua consistência.
■ Patologia Localizam-se, quase sempre, no retossigmoide e, portanto, ao
Na grande maioria dos casos, os principais aspectos his- alcance do dedo no toque retal. O diagnóstico de fecaloma é
topatológicos são espessamento e dilatação da parede colôni- fácil. O paciente apresenta história de vários dias sem evacuar,
ca, notadamente do reto e do sigmoide. Microscopicamente, e palpa-se massa moldada, geralmente no sigmoide. A radio­
a doença caracteriza-se por uma neuropatia inflamatória do grafia simples do abdome confirma o diagnóstico.
plexo mioentérico, com hiperplasia das células musculares li­ A impactação fecal consiste na obstrução aguda por fecalo­
sas, infiltração do plexo mioentérico por linfócitos e células ma. Nesse caso, além da história de obstipação de longa dura­
plasmáticas, degeneração e destruição neuronal. ção, o paciente refere piora súbita, com distensão abdominal
e dor no baixo ventre.
■ Quadro clínico Quanto ao vólvulo do sigmoide, devem-se distinguir duas
O principal sintoma do MCH é a constipação intestinal. situações: torção com alça viável e torção com necrose de alça.
Geralmente, instala-se lenta e progressivamente, obrigando os No primeiro caso, o quadro clínico é o de obstrução intestinal
480 Capítulo 45 / Megacólon

baixa, com dores em cólica de forte intensidade, parada de eli­


minação de gases, além de distensão abdominal assimétrica.
Geralmente, não há sinais de peritonismo, nem grande com­
prometimento do estado geral. O diagnóstico é feito com base
no quadro clínico e no estudo radiológico simples do abdome,
que evidenciam o sigmoide muito dilatado, contrastando com
o reto, que se acha vazio (Figura 45.4). O enema opaco deve ser
evitado. Está indicado apenas nos casos de dúvida quanto ao
diagnóstico. Nesse caso, deve-se tomar muito cuidado na reali­
zação do exame devido ao risco de perfuração intestinal (Figura
45.5). A retossigmoidoscopia permite confirmar o diagnóstico
e avaliar o estado da alça no ponto de torção.
Devemos suspeitar de torção com necrose de alça, se o pa­
ciente referir história de cólicas que passam a ter caráter con­
tínuo, com grande comprometimento do estado geral e sinais
evidentes de toxemia. A distensão é generalizada e há sinais
de peritonismo.
A complicação mais grave é a perfuração do megacólon em
peritônio livre, ocasionada por ruptura de úlceras, causada pela
estase fecal. O quadro clínico é de peritonite generalizada com
toxemia grave.

■ Tratamento
■ Megacólon não complicado
Quando procura o médico, o paciente com MCH apresenta,
Figura 45.1 Raios X de cólon (enema opaco). Grande dilataçào do reto em geral, constipação intestinal de longa data e já experimentou
e do cólon sigmoide, caracterizando o megacólon. vários tipos de laxantes, em geral sem orientação adequada.
Os casos com ritmo intestinal normal não requerem trata­
mento. Já os pacientes oligossintomáticos necessitam de acom­
panhamento clínico, pois a história natural da doença mostra
que a constipação intestinal é de instalação lenta e, na maioria
das vezes, permanece estável por vários anos. Vale lembrar que
a maioria dos pacientes convive muito bem com o problema e
que a simples presença de constipação intestinal não é motivo
de cirurgia, além do que o tratamento cirúrgico não é totalmen­
te satisfatório e nem isento de complicações.
A orientação clínica fundamenta-se em medidas compor-
tamentais higiênico-dietéticas, uso de laxativos e lavagens in­
testinais, objetivando eliminar as fezes, evitando a formação
de fecaloma e prevenindo a dilatação do cólon, como admitem
alguns autores.
As medidas comportamentais e higieno-dietéticas consistem
na orientação do paciente quanto à natureza de sua doença e
à necessidade de evacuar o intestino. Tentar ritualizar o ato
evacuatório, comparecendo ao vaso sanitário diariamente, de
Figura 45.2 Fotografia intraoperatória do caso da Figura 45.1. Ob­ preferência no mesmo horário, de tal forma que isso possa se
servam-se o alongamento e o grande diâmetro do cólon sigmoide. tornar um hábito. Adequar a ingestão de líquidos e evitar o uso
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) de alimentos e medicamentos constipantes.

Figura 45.3 Peça cirúrgica do mesmo paciente da


Figura 45.2. Verifica-se o grande diâmetro do cólon
sigmoide e do reto proximal. (Esta figura encontra-
se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 45 / Megacólon 481

Em relação aos laxativos, devemos ter o cuidado de utilizar


a menor dose efetiva, com a menor frequência possível.
Não há nenhum estudo clínico comparativo entre as drogas
laxativas que possa indicar a conveniência deste ou daquele me­
dicamento. Ao prescrever tais drogas, devemos levar em con­
sideração o seu mecanismo de ação, os seus efeitos colaterais
e a necessidade de utilização por tempo prolongado por um
paciente que apresenta intensa denervaçâo do cólon.
Para mais detalhes sobre laxativos, o leitor poderá consultar
o Capítulo 39 referente à constipação intestinal.

■ Fecaloma
Na maioria dos casos, pode ser eliminado manualmente,
quando estiver ao alcance do dedo ao toque retal, ou, então,
através de gotejamento retal de soro fisiológico ou solução de
bicarbonato a 10%. Com essas medidas, promovem-se o amo­
lecimento progressivo e a eliminação do fecaloma através de
dejeções sucessivas.
Em algumas situações, para remover a porção distai do fe­
caloma impactado na ampola retal, é necessária a complemen-
tação com raquidianestesia, para produzir relaxamento dos es-
fíncteres com maior facilidade, visando à remoção das fezes.

■ Vólvulo
O vólvulo é formado pela rotação de um segmento do cólon
em eixo formado pelo seu próprio mesentério e poderá resultar
em obstrução parcial ou total do lúmen.
Figura 45.4 Raios X simples de abdome em vólvulo do sigmoide. No MCH, o alongamento e aumento do calibre da alça intes­
Observa-se a grande distensão gasosa dos cólons descendente e trans­ tinal, principalmente na região do sigmoide, juntamente com o
verso, por torção do sigmoide. volume fecal retido, representam as condições predisponentes
para a ocorrência do vólvulo. A obstrução do lúmen ocorre
quando a rotação é de 180° e, quando chega a 360°, promove
também a obstrução da circulação local, com gangrena e per­
furação decorrentes de isquemia, caso não ocorra uma pronta
intervenção.
A manifestação clínica do vólvulo é a parada de eliminação
de gases e fezes, com dor súbita e intensa manifestada no qua-
drante inferior esquerdo do abdome, juntamente com disten­
são, podendo-se, em algumas situações, palpar a alça colônica
distendida.
O diagnóstico é realizado através de radiografias simples do
abdome, que demonstram distensão do sigmoide, com afila-
mento do local da rotação e ausência de ar na ampola retal. O
enema opaco só é realizado em caso de dúvida, cuidadosamen­
te, visando a evitar perfuração intestinal. A imagem clássica é
comparada ao “ás de espadas” ou a um "bico de pássaro”.
O tratamento inicial do vólvulo do sigmoide é a descompres-
são da alça pela inserção de colonoscópio ou de sonda passada
pelo retossigmoidoscópio, desfazendo a torção e promovendo
o esvaziamento da alça. Devemos sempre preferir a utilização
do colonoscópio para esse procedimento, pois permite a sua
execução sob visão direta, além de detectar possíveis alterações
isquêmicas locais. O tratamento cirúrgico fica reservado para
os casos de torção completa (acima de 180°) e na suspeita de
sofrimento de alça.
É importante o diagnóstico e tratamento precoce do vólvu­
lo para evitar perfuração, gerada pela alteração da circulação
local, levando a situações de extrema gravidade e morbidade.
Retardos podem ocorrer por diagnósticos incorretos ou, então,
em tentativas infrutíferas de descompressão por procedimen­
tos endoscópicos.
Figura 45.5 Raios X de abdome após administração de contraste. Ocorrendo sucesso nos procedimentos endoscópicos, o pa­
Vólvulo de sigmoide, observando-se distensão do cólon descendente ciente poderá ser preparado para posterior procedimento ci­
(contrastado) e distensão gasosa no transverso. rúrgico eletivo.
482 Capítulo 45 / Megacólon

atualmente facilitadas pela utilização das suturas mecânicas.


■ Tratamento cirúrgico A técnica de abaixamento mais utilizada em nosso meio é a de
O tratamento cirúrgico do MCH está indicado, de forma Duhamel, modificada por Haddad, e, como não libera a face
eletiva, nos pacientes com evolução prolongada, para os quais anterior do reto, proporciona melhores resultados funcionais
medidas de ordem dietética e medicamentosa não conseguiram e m enor morbidade. No vólvulo do sigmoide, a abordagem
promover uma satisfatória evacuação intestinal, com conse­ cirúrgica de emergência é indicada na falha da descompressão
quente desconforto. endoscópica, ou, então, em situações de estrangulamento ou
Historicamente, o tratamento cirúrgico eletivo do MCH não perfuração do segmento rodado. Nessas condições, o procedi­
chegou a um consenso com relação ao melhor procedimento, mento consiste na ressecção da porção do cólon comprometida,
e persiste a utilização de numerosas técnicas, sem haver qual­ sem anastomose e com colostomia terminal temporária (opera­
quer padronização. Essa situação decorre não somente de fal­ ção de Hartmann). Se houver comprometimento generalizado
ta de um completo conhecimento da fisiopatologia do MCH, do cólon pelo MCH, este poderá ser totalmente removido para
mas também do variado índice de morbidade apresentado pe­ posterior íleo ou cecorretoanastomose. Esses mesmos proce­
las diferentes técnicas. Além disso, a patologia é endêmica, de dimentos são indicados em situações de perfuração provocada
ocorrência em regiões mais pobres, e os pacientes operados pelas úlceras isquêmicas consequentes à estase fecal prolongada
nos grandes centros retornam às suas origens, impossibilitan­ em alça dilatada.
do a correta avaliação dos resultados cirúrgicos a longo prazo,
considerando as diferentes técnicas. Dessa forma, é importante
também o estabelecimento de técnicas cirúrgicas mais simples, ■ LEITURA RECOMENDADA
de execução possível em centros com menos recursos, e que
apresentem baixo índice de morbidade, uma vez que a cirurgia Badncr, JA, Sicbcr, WK, Garvcr, KL, Chakravarti, A. A gcnctic study of Hirs-
não visa a curar a doença, mas unicamente a sua intercorrência chsprung discasc. Am. ]. Hum. Genet., 1990; 46:568-80.
Bidaud, C, Salomon, R, Edcry, P, Van Camp, G, Pelet, A, Bonduellc, M, Ni-
no intestino grosso.
houl-Fékété, C, Wlllcms, PJ, Munnich, A, Lyonnct, S. Mutations du gènc
Inicialmente, o procedimento cirúrgico consistia na reali­ dc lcndothélinc 3 dans des formes isolécs et syndromiqucs de la maladic
zação, por via endorretal, de esfincterotomias internas (anor- de Hirschsprung. Gastroenterol. Clin. Dioi, 1997; 21:548-54.
retomiectomias) que, apesar de sua simplicidade, se mostraram Bolandc, RP. The ncurocristopathics; A unifying conccpt of discasc arising in
pouco eficientes, e seus resultados deixaram muito a desejar. Em ncural crest maldcvclopmcnt. Hum. Pathoí, 1973; 5:409-29.
Cruz, GMG. Megacólon chagásico. Rev. Brasil. Colo-Proctol., 1984; 4:87-98.
1934, trabalho pioneiro do Prof. Alipio Corrêa Neto mostrou Gcrshon, MD. Genes and lincages in thc lormation of thc enterie nervous
a necessidade da remoção do cólon sigmoide dilatado, junta- system. Curr. Opin. Neurobiol., 1997; 7:101-9.
mente com a porção alta do reto, procedimento chamado de Guimarães, AS, Aprilli F, Monteiro dos Santos Jr, JC, Ribeiro da Rocha, JJ. Me­
“retossigmoidectomia”, pois, dessa forma, removia-se também gacólon chagásico. Em: Cintra do Prado, F, Ramos, J, Ribeiro do Vale, J:
a porção mais denervada, com melhores resultados funcionais. Atualização Terapêutica, 15.* cd., São Paulo, Editora Artes Médicas, 1991.
Habr-Gama, A, Gofli, FS, Rais, A. Tratamento cirúrgico do megacólon. Opera­
A retossigmoidectomia poderá ser realizada por via abdominal, ção dc Duhamcl-Haddad. Rev. Col. Brasil. Cir., 1982; 9:25-31.
com anastomose colorretal terminoterminal, podendo, quan­ Habr-Gama, A, Kiss, DR, Bocchini, SF, Teixeira, MG, Pinotti, HW. Megacólon
do houver desproporção de calibres entre o cólon e o reto, ser chagásico. Tratamento pela retossigmoidectomia abdominal com anasto-
terminolateral. Essas anastomoses poderão ser executadas de mosc mecânica colorretal término-lateral. Resultados preliminares. Rev.
forma manual ou então facilitadas pela utilização de suturas Hosp. Clin. Fac. Med. S. Paulo, 1994; 49:199-203.
Lyonnct, S, Bolino, A, Pelet, A, Abel, L et al. A gene for Hirschsprung disea-
mecânicas. se maps to the proximal long arm of chromosome 10. Nat. Genet., 1993;
A colectomia esquerda, associada ou não à anorretomiecto- 4:346-50.
mia, constitui técnica de simples execução e baixa morbidade, Martuccicllo, G. Hirschsprung’s Discasc. One of thc most difficult diagnoscs in
porém de resultados pouco efetivos a longo prazo, com taxas pediatrie surgery: A rcvicw of problcms from clinicai practicc to thc bcnch.
elevadas de recidiva. Eur. J. Pediatrie Surg., 2008; 18:140-9.
Mcncghelli, U. Megacólon (Megacólon Chagásico). Em: Galvão-Alvcs, J & Dani,
Outra técnica indicada é a colectomia total, com ceco ou R: Terapêutica em Gastroenterologia. Rio dc Janeiro, Guanabara Koogan,
ileorretoanastomose, que tem sido pouco utilizada devido a 2005.
sua morbidade e resultados funcionais precários. Rezende, JM. Doença dc Chagas c aparelho digestivo. Em: Mineis, M: Gas­
Procedimentos de abaixamento consistem na ressecção do troenterologia e Hepatologia. Diagnóstico e Tratamento. São Paulo, Lemos
cólon esquerdo dilatado, juntamente com remoção de gran­ Editorial, 1997.
Rezende, JM. Manifestações digestivas da Doença dc Chagas. Em: Dani. R &
de parte do reto; são acompanhados de elevados índices de Paula Castro, L: Gastroenterologia Clínica, 3 / cd., Rio dc Janeiro, Guana­
complicações, além de difícil execução técnica. As anastomoses bara Koogan, 1993.
colorretais ou coloanais são efetuadas em dois tempos, sendo World Health Organization. Chagas disease. Fact sheet N'1340. Junc 2010.
Tumores Benignos
Colorretais
Mounib Tacla

■ INTRODUÇÃO intestinal, podendo apresentar-se sob a forma séssil ou pedicu-


lada. Representam um amplo espectro de alterações, do ponto
Os tumores benignos colorretais (TBCR) são, em sua maio­ de vista anatômico, histológico e patológico.
ria, de origem epitelial e, pelas suas consequências, representam A classificação histológica dos pólipos proposta por Morson
o mais importante grupo dessas afecções. é universalmente aceita. Esse autor considera quatro grupos
Os pólipos merecem atenção especial, particularmente os principais, podendo ocorrer de forma solitária ou, então, como
adenomatosos, porque, em sua maioria, apresentam potencial múltiplas lesões (Quadro 46.1).
elevado de malignização. O câncer colorretal leva um longo período de tempo para
O câncer colorretal representa a segunda causa de mortes se desenvolver, como resultado da interação entre predisposi­
por neoplasias nos EUA, e cerca de 90% destas são provenientes ção genética e fatores ambientais e, desta forma, é possível a
de pólipos adenomatosos. Assim, a sequência “adenoma-carci- identificação de lesões pré-neoplásicas e/ou lesões neoplásicas
noma” é amplamente aceita como paradigma para o desenvol­ precoces, levando a uma grande melhora nos índices de sobre-
vimento do câncer colorretal. No Brasil, segundo os Registros vida. A rápida proliferação de conhecimentos das características
de Câncer de Base Populacional, do Ministério da Saúde, para biológicas e moleculares do câncer colorretal e dos mecanismos
o ano de 2006, a incidência foi de 13,69 por 100.000 homens moleculares envolvidos na sua evolução tem promovido o de­
e de 14,60 para 100.000 mulheres, abrangendo todos os tipos senvolvimento de idéias sobre a sua patogênese, permitindo,
de neoplasias. atualmente, a realização de um diagnóstico molecular indivi­
A incidência estimada de pólipos na população geral varia dual de risco para aqueles indivíduos provenientes de grupos
de 9 a 60%, sendo esse valor maior correspondente a peque­ familiares de maior incidência.
nos pólipos encontrados em necropsias. Na época em que o
exame radiológico do cólon (enema opaco) era procedimento ■ Pólipos neoplásicos
de rotina, pólipos foram encontrados em cerca de 5% dos pa­
cientes, e a idade média de incidência era de 55 anos, cerca de É plenamente reconhecido que os pólipos neoplásicos re­
5 a 10 anos menos do que a média dos portadores do câncer presentam uma condição pré-cancerosa, e que o seu potencial
colorretal. Cerca de 50% dos pólipos ocorrem no cólon sigmoi-
de e reto, 50% dos pacientes apresentam mais de uma lesão, e
15%, duas lesões, sendo a distribuição desses pólipos do cólon ------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------
similar à do câncer. Quadro 46.1 Classificação histológica dos pólipos intestinais
Em decorrência da alta prevalência do câncer colorretal, me­
didas de prevenção têm sido adotadas no sentido da detecção Tipo So litário s M últiplos
precoce de lesões pré-neoplásicas e/ou neoplásicas precoces,
N e o p lá s ic o s A d e n o m a t u b u la r P o lip o s e fa m ilia r a d e n o m a t o s a
a fim de removê-las por via endoscópica ou cirúrgica. Outra
(P F )
forma de prevenção seria na correção de hábitos de vida, in­
A d e n o m a p a p ila r
troduzindo dieta rica em fibras naturais, além do consumo de
P a p ilo m a v ilo s o
cálcio, vitamina D, folatos e combatendo o sedentarismo e in­
gestão de excessos de carne vermelha. H a m a rto m a to s o s J u v e n is P o lip o s e ju v e n il

P e u t z -J e g h e r s S ín d r o m e d e P e u tz -Je g h e r s

In fla m a tó rio s P ó lip o linfoide b e n ig n o P o lip o s e b e n ig n a lin fo id e

■ PÓLIPOS N à o c lassifica do s M e ta p lá s ic o s M ú lt ip lo s p ó lip o s m e ta p lá s ic o s

Morson, 8C. Disease s o ftheColon, Rectum a nd Anus. London, William Heinemann Medicai
A palavra “pólipo” é um termo clínico-morfológico utilizado Books, 1969.
para descrever pequenos tumores que se projetam da mucosa

483
484 Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais

de malignização está na dependência direta do seu tamanho, contar na progressão tardia do adenoma para o câncer. Esse
padrão de crescimento e grau de atipia celular. O câncer é en­ gene localiza-se no cromossomo 17p. Um mecanismo que pa­
contrado em 1% dos adenomas com menos de 1 cm de diâme­ rece importante é representado por mutações em qualquer uma
tro, em 10% com 1 a 2 cm e em 45% nos maiores de 2 cm. das muitas enzimas que controlam o sistema de reparo de erro
Os pólipos adeno matosos e o papiloma viloso apresentam- no pareamento de DNA (DNA mismatch repair system). Essas
se de formas diferentes na aparência microscópica, porém são mutações deságuam em um fenótipo característico, proces­
decorrentes do mesmo processo patológico. Formas interme­ so chamado de instabilidade de microssatélite (microsatellite
diárias entre o adenoma e o papiloma viloso são comuns, e, para instability), muito comum em pacientes portadores de câncer
essas situações, poderá ser utilizada a denominação de adenoma colorretal não polipoide hereditário associado a adenoma. Es­
papilar ou tubuloviloso} sendo muitas vezes difícil situar qual ses adenomas apresentam particular tendência para progredir
desses tipos estaria envolvido em determinado tumor. Seriam, até carcinoma.
na realidade, denominações para indicar diferentes padrões de A PFA, como se viu, está envolvida no processo de carcino-
desenvolvimento de um mesmo processo patológico, denomi­ gênese do câncer colorretal, e estudos genéticos realizados iden­
nado “neoplasias do epitélio intestinal”, muito bem estabelecido tificaram o cromossomo 5q21 como local implicado na gênese
pelos trabalhos de Morson. de lesão nesses pacientes. O gene de polipose adenomatosa foi,
O típico adenoma pediculado é de pequenas dimensões, esfé­ subsequentemente, identificado nesse mesmo local.
rico, com superfície lisa e, às vezes, lobulada. Os tumores vilosos Cerca de 200 mutações foram observadas no gene APC, e,
são geralmente de base larga e sésseis, superfície felpuda, forma­ através da reação de cadeia da polimerase, poderemos identi­
da por centenas de pequenos pólipos pediculados, dando um ficar os membros de uma família que apresentam a mutação
aspecto cerebriforme. Os três padrões histológicos do adenoma do gene APC antes de desenvolverem o pólipo. A possibili­
são variações do mesmo processo neoplásico, e, dessa forma, dade da identificação dessas alterações hereditárias no gene
cerca de 5% dos adenomas tubulares, 22% dos tubulovilosos e APC permitirá a detecção pré-sintomática da PFA, podendo,
40% dos vilosos se transformam em carcinomas. assim, prevenir a eventualidade do câncer colorretal, até com
Histopatologicamente, os adenomas têm origem em células a efetivação de uma colectomia total profilática. Apesar de as
imaturas localizadas junto ao fundo das criptas intestinais, que síndromes hereditárias serem responsáveis por menos de 15%
persistem no processo proliferativo celular, ultrapassando as dos casos de câncer colorretal, e a PFA por apenas uma fração
necessidades da reparação normal do epitélio. As células epi- desse índice, genes APC mutantes foram encontrados em 50
teliais não conseguem restringir a síntese do DNA; como con­ a 60% de todos os carcinomas colorretais. A mesma mutação
sequência, o processo proliferativo atinge a mucosa e, pelo seu do APC mencionada foi anotada, em porcentagem similar, em
acúmulo, formam os pólipos, que, na sua progressão, atingem pequenos adenomas e lesões displásicas que apresentam eleva­
a forma displásica. O ciclo celular e as alterações quantitativas dos riscos de progredir para o carcinoma invasivo, e também
do conteúdo de DNA do núcleo celular poderão ser estudados poderemos encontrar mutação do K-ras em pequenas lesões
através da citometria de fluxo, recurso já disponível na rotina não displásicas. A PFA juntamente com a síndrome de Lynch
de laboratórios de patologia. representam duas importantes condições hereditárias que
Com relação à distribuição dos tipos, o adenoma tubular ocasionam o aparecimento do câncer colorretal, e foram iden­
ocorre em 75% dos casos, o papiloma viloso em 5%, e a forma tificadas três vias de eventos genéticos responsáveis: a via de
intermediária ou tubulovilosa, em 20%. Como foi dito, aceita-se instabilidade cromossômica (CIN+), a de instabilidade de mi-
hoje que a maioria dos cânceres do cólon origina-se de adeno­ crossatélites (MSI+) e a combinação das duas vias: CIN-MSI.
mas. Os argumentos que sustentam essa afirmação partem de A via MSI+ promove um aumento significativo nas alterações
documentos epidemiológicos, clínicos, patológicos e, moderna­ súbitas do DNA, enquanto a CIN+ aumenta a velocidade em
mente, da contribuição da biologia molecular. A progressão de que ocorrem as alterações grosseiras durante a divisão celular.
adenoma para carcinoma abrange, pois, alterações de genética O câncer colorretal causado por suscetibilidade hereditária re­
molecular, entre estas a ativação de oncogenes e a inativação de presenta uma pequena parcela de cerca de 5% do total de casos,
genes supressores de tumor. O mais estudado desses oncoge­ estando a PFA responsável por até 1% dos casos e a síndrome
nes é o K-ros. Sabe-se que apenas 9% dos pequenos adenomas de Lynch por até 5% dos casos na população em geral.
apresentam mutações no gene K-ros, enquanto essa cifra é da Através de estudos oncogenéticos, afirma-se que a mutação
ordem de 58% nos adenomas maiores de 1 cm, e de 47% nos do K-ras apresenta importante papel na formação de criptas
cânceres do cólon. Essas mutações permitem ao gene transfor­ aberrantes, porém essas lesões não progridem para os adeno­
mar células e, portanto, induzir neoplasias. Entretanto, como mas, com displasia, sem a presença de outras alterações gené­
muitos adenomas não exibem alterações do gene K-ras, deve ticas, como a mutação do gene APC. Junto com a PFA, encon­
haver outras alterações genéticas envolvidas no fenômeno de traremos também associação de manifestações extracolônicas,
transformação tumoral. O gene APC, um gene supressor de benignas e malignas. A síndrome de Gardner associa a PFA com
tumor, localizado no braço longo do cromossomo 5, é, prova­ tumores desmoides, osteomas da mandíbula, ou de outras par­
velmente, um elemento importante nessa cadeia de eventos. tes do esqueleto, e cistos sebáceos. A síndrome de Turcot cor­
Mutações ou perdas desse gene permitem maior suscetibilidade responde à PFA com meduloblastoma ou gliomas do sistema
em desenvolver neoplasia nos portadores de polipose familiar nervoso central. Essas duas síndromes são exemplos da PFA
adenomatosa (PFA), assim como em pacientes com adenomas com manifestações extracolônicas. A manifestação clínica do
esporádicos. Segundo a hipótese geral de Knudson, os pacientes pólipo é pouco significativa e poderá se dar através da perda de
com PFA nascem com mutação em um alelo do gene APC e sangue e/ou muco junto com as fezes. A intensidade da perda
adquirem uma mutação somática no outro alelo, o que permite estará em relação com o número e tamanho dos pólipos, po­
a manifestação fenotípica. Outros genes supressores de tumor, dendo variar desde a ausência de perdas sanguíneas até situa­
como o DCC (deleted in colon câncer), que está localizado no ções de enterorragia mais intensa, levando à anemia. Os póli­
cromossomo 18q, podem estar envolvidos no processo cance- pos retais pediculados poderão exteriorizar-se no momento da
rigênico. A mutação no gene p53 é outra alteração que pode evacuação. A perda de muco, misturado com sangue ou não, é
Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais 485

a manifestação característica dos pólipos vilosos. Estes chegam, Outras drogas foram avaliadas, e, particularmente, o ácido
em algumas situações, a apresentar grandes volumes de per­ acetilsalicílico se mostrou efetivo em estudos experimentais,
das, com consequente depleção hidreletrolítica. Pólipos mais reduzindo o carcinoma colorretal em modelos animais. Estu­
volumosos poderão ocupar espaço dentro do lúmen intestinal, dos epidemiológicos com a utilização do ácido acetilsalicílico
levando a episódios de suboclusão intestinal. demonstraram a redução do risco de todos os tumores colorre­
O diagnóstico é realizado através de procedimentos endos- tais. Drogas anti-inflamatórias do grupo de inibidores da COX 2
cópicos (retossigmoidoscopia e colonoscopia) e radiológicos também foram utilizadas com esta finalidade e, no momento,
(enema opaco). A retossigmoidoscopia com tubo rígido detecta questionando-se os seus efeitos colaterais em aumentar o risco
cerca de 30% dos pólipos, e, através da colonoscopia, esse valor de eventos cardíacos, sem dúvida, estudos a longo prazo deve­
atinge 90%. O exame radiológico (enema opaco) consegue de­ rão ser abandonados.
tectar cerca de 80% dos pólipos, porém apresenta dificuldades Apesar de plenamente demonstrado o papel desses medica­
no encontro de lesões com menos de 0,5 cm, havendo, muitas mentos na prevenção do câncer colorretal, quando de uso con­
vezes, resultados falso-positivos provocados por fecalitos ade­ tinuado, não se sabe, ainda, o que seria a dose ideal, a duração
ridos à parede intestinal. Assim, na realidade, esses dois méto­ da terapia, além da necessária precaução com seus efeitos co­
dos propedêuticos se complementam e devem ser utilizados em laterais, principalmente sobre o aparelho digestivo (hemorra­
conjunto para a completa detecção dos pólipos. Em exame de gias, úlceras, perfurações e progressão de doenças inflamatórias
rotina, o encontro de sangue oculto nas fezes indicará a reali­ intestinais). O mecanismo de sua ação seria na redução da sín­
zação de procedimentos endoscópicos. O tratamento consiste tese das prostaglandinas através da inibição da ciclo-oxigenase
na remoção de qualquer pólipo encontrado, e a via de eleição (COX). Porém, como provocam alteração na proliferação celu­
são os procedimentos endoscópicos, que permitem o enlaça- lar, ainda não está devidamente estabelecido como agem. As­
mento do pólipo através de alças e sua ressecção com eletroful- sim, um melhor esclarecimento dos mecanismos de ação dessas
guração da sua base. Pólipos maiores, sésseis e com base larga drogas irá representar importante contribuição à terapêutica
são removidos em partes, através de procedimentos sucessivos, no controle do crescimento dos pólipos.
muitas vezes em mais de uma sessão.
Na impossibilidade da remoção endoscópica de pólipos, pelo ■ Pólipos hamartomatosos
seu volume ou base extremamente larga, a conduta passará a
ser cirúrgica, com laparotomia e colotomia. Nessas situações, O hamartoma é definido como um tumor não neoplásico,
em casos suspeitos, a cirurgia poderá ser ampliada com a rea­ formado pela proliferação anormal de tecido normal, disposto
de forma desorganizada, não existindo qualquer evidência de
lização da colectomia parcial.
que representa alterações pré-cancerosas.
Mais recentemente, tem sido utilizada a fotocoagulação pelo
O pólipo juvenil é mais comumente encontrado em crianças
YAG-laser para a remoção de volumosos pólipos vilosos. Po­
e, ocasionalmente, em adultos. Apresenta-se de forma esférica e
rém, esse procedimento está limitado pelo alto custo da apa­
superfície lisa, diâmetro médio de 1 a 2 cm, com pedículos lon­
relhagem.
gos e finos, contendo inúmeros cistos preenchidos por mucina,
Cerca de 2 a 4% dos pólipos removidos endoscopicamente
daí também a denominação “pólipo de retenção”. Ao contrário
apresentam carcinoma invasivo, e, nessas condições, deverá ser
dos adenomas, não apresenta qualquer alteração epitelial. Em
tomada a decisão de operar e remover o segmento de cólon ou, 70% dos casos, localiza-se no reto, em 15% no sigmoide e, nos
então, acompanhar o paciente através de endoscopias progra­ 15% restantes, ao longo do cólon. Em 75% das vezes, são póli­
madas. A presença do carcinoma in situ, que representa uma pos únicos e, quando múltiplos, variam, na maioria das vezes,
anormalidade citológica equivalente a uma displasia grave, não em número de 2 a 12.
necessita de qualquer outro tratamento após a remoção endos­ A formação desses pólipos está diretamente ligada à inflama­
cópica do pólipo, a não ser revisão endoscópica posterior. ção e ulceração da mucosa colônica. Essas situações obliteram
Uma vez removido o pólipo por via endoscópica, nova colo­ pequenas glândulas, que se dilatam e proliferam, formando
noscopia deverá ser realizada após 1 a 2 anos e, depois, a, pelo inúmeros cistos de conteúdo mucinoso, fazendo, na sequência,
menos, cada 3 anos em pacientes do grupo de risco. A introdu­ a protrusão do lúmen intestinal. O movimento do bolo fecal
ção de novos métodos de imagem, através da tomografia com­ traciona essa protrusão, formando então o pedículo, desprovido
putadorizada em aparelhos multislice de alta resolução, realiza de muscularis mucosae. Por essa razão, poderá sofrer processo
a chamada “Colonoscopia Virtual”, que poderá ser utilizada no de torção e/ou necrose, com sua eliminação espontânea.
acompanhamento de pacientes submetidos a remoção endos­ A manifestação clínica mais importante é a perda de sangue
cópica de pólipos ou por ressecção de câncer colorretal. Porém, junto com as fezes. Como a maioria desses pólipos são de lo­
esta metodologia só consegue identificar lesões maiores do que calização baixa, o sangue é de coloração clara. Alguns pólipos
0,5 cm, prejudicando assim o nível de sua eficácia. retais, de pedículo longo, poderão exteriorizar-se pelo ânus du­
Nos últimos anos, foi devidamente estabelecido o valor da rante a evacuação. Em situações de múltiplos pólipos, poderá
utilização de drogas anti-inflamatórias não hormonais, par­ acontecer o aparecimento da diarréia.
ticularmente o Sulindac, na redução do número dos pólipos, O diagnóstico é realizado através de procedimentos endos­
com observação de seus resultados após 6 meses de tratamento. cópicos, e, pela retossigmoidoscopia, poderemos detectar cer­
Porém, findo o tratamento, ocorre novamente o aumento do ca de 75% desses pólipos, e os restantes, pela colonoscopia. O
número e tamanho dos pólipos. Recentemente, foi demonstra­ método endoscópico permite não somente o diagnóstico deles,
do que a ação do Sulindac estimularia a apoptose no epitélio co- mas também sua remoção, através do seu enlaçamento com
lônico de pacientes com PFA, indicando o potencial mecanismo alças ligadas a eletrocautério.
de regressão dos pólipos na vigência de sua administração. Foi O enema opaco poderá ser avaliado para o diagnóstico dos
também demonstrada a redução dos pólipos retais em pacien­ pólipos, porém, com a disseminação do uso da colonoscopia,
tes com PAF submetidos a colectomia total, com anastomose com sua vantagem terapêutica de excisão dos pólipos, este re­
ileorretal, que passaram a utilizar essa droga. curso praticamente deixou de ser utilizado.
486 Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais

A polipose juvenil, que é a presença difusa de hamartomas, específica, uma vez que estão relacionados diretamente com o
poderá apresentar-se sob a forma de três síndromes: poliposeju ­ processo inflamatório de base.
venil colônica, polipose juvenil gastrintestinal difusa e síndrome
de Cronkhite-Canada (polipose juvenil com lesões ectodérmi-
cas). As duas primeiras são de caráter hereditário autossômico
■ Pólipos metaplásicos
recessivo, e os pólipos hamartomatosos apresentam baixíssimo Os pólipos metaplásicos, ou hiperplásicos, são bastante fre­
potencial de malignização. Porém, existe um risco maior do quentes no reto e achado comum em exames retossigmoidos-
câncer colorretal nos portadores da forma familiar juvenil e em cópicos. Apresentam-se como pequenas lesões com poucos
seus familiares. Poderemos encontrar a presença simultânea de milímetros de diâmetro, recobertas por mucosa normal, sés-
adenomas junto com hamartomas, e somente através de estudos seis, com aspecto nodular ou mamelonado. Esses pólipos são
histopatológicos é possível a sua diferenciação. formados a partir de alterações na divisão celular no interior
A remoção dos pólipos através da endoscopia é o procedi­ da cripta de Lieberkühn, com expansão da zona de replicação
mento eletivo inicial. Em algumas situações, o volume dos pó­ celular em sua base, resultando na elevação polipoide, e sem
lipos poderá levar à invaginação intestinal e, nessas condições, qualquer evidência de atipia.
ou na impossibilidade da remoção de todos os pólipos por via Em algumas situações, esses nódulos, na realidade, já seriam
endoscópica, é indicada a colectomia total. Atualmente, tem adenomas, coexistindo com uma estrutura de pólipo hiperplá-
sido demonstrado que a cirurgia intestinal, feita através da vi- sico. É necessário exame microscópico para a devida remoção
deolaparoscopia, tem apresentado resultados melhores do que dessas lesões, no sentido da prevenção do câncer local. Os ver­
a cirurgia convencional aberta, com menos ileoparalítico no dadeiros pólipos metaplásicos, simples ou múltiplos, são assin­
pós-operatório, redução do tempo de internação hospitalar, tomáticos e não requerem qualquer terapêutica específica.
melhores resultados estéticos e o mais breve retorno do pa­
ciente às suas atividades.
O pólipo de Peutz-Jeghers manifesta-se de forma solitária,
mais comumente no intestino delgado, podendo também ser
■ OUTROS TUMORES COLORRETAIS
encontrado no reto e no cólon, e, do ponto de vista histológi- Os tumores não epiteliais colorretais são de ocorrência mais
co, apresenta malformação da muscularis mucosae, recoberta rara, sendo a maioria constituída por pequenas lesões sésseis,
por mucosa normal, sem qualquer atividade de proliferação subserosas ou submucosas, projetando-se no lúmen intestinal.
celular anormal. A síndrome de Peutz-Jeghers é forma pou­ Os tumores a serem considerados são os seguintes: lipomas,
co comum de uma entidade autossômica dominante, em que leiomiomas, carcinoides, linfomas, endometriomas e neurofi-
múltiplos pólipos hamartomatosos são encontrados no estôma­
bromas.
go, intestino delgado e cólon. Há concomitante aparecimento
de pigmentação mucocutânea junto aos lábios, mucosa bucal,
língua, genitais e períneo. O potencial de malignização desses ■ Lipomas
pólipos é extremamente baixo, e eles poderão ser removidos
Representam, após os adenomas, a neoplasia benigna mais
por via endoscópica. Nesses pacientes, o carcinoma incide de
comumente encontrada no intestino grosso, sendo de incidên­
forma elevada em outros órgãos, como estômago, duodeno,
cia maior no sexo feminino, com localização mais frequente
pâncreas, intestino delgado e pulmões.
no ceco e, mais raramente, na parte digestiva alta, podendo se
apresentar sob a forma de lesões solitárias múltiplas.
■ Pólipos inflamatórios Habitualmente, originam-se na submucosa, mostrando for­
mas arredondadas ou ovaladas, consistência amolecida pelo
O pólipo linfoide benigno é mais frequentemente encontrado
no terço distai do reto e no íleo terminal. É formado por tecido seu conteúdo de tecido gorduroso, fazendo protrusão no lú­
linfoide, constituindo estrutura de linfonodo, porém sem sinuo- men intestinal.
sidades, localizando-se na submucosa e recoberto de mucosa A manifestação clínica estará na dependência do seu tama­
normal. Representa uma lesão inflamatória em fase de regenera­ nho, com os grandes volumes podendo levar à situação de su-
ção, que deve ser diferenciada do linfoma maligno solitário. boclusão ou, então, à intussuscepção intestinal, desencadeando,
Habitualmente, esses pólipos são assintomáticos, sendo en­ assim, sintomas específicos dessas complicações.
contrados devido à patologia inflamatória associada; a sua ex- O diagnóstico poderá ser feito através do exame radiológico
cisão representa o tratamento correto. (enema opaco), que, em algumas situações, não permite a dife­
A polipose inflamatória, também erroneamente chamada de renciação com as neoplasias. Nessas condições, a colonoscopia
pseudopolipose, uma vez que os pólipos são verdadeiros, ocorre poderá confirmar o diagnóstico, inclusive com a obtenção de
como resultado de ulceração que compromete toda a espessura material para estudo histopatológico.
do epitélio intestinal, principalmente em processos disentéricos Outros métodos de imagem, como a ultrassonografia e a to-
crônicos do cólon, como os encontrados na doença de Crohn e, mografia computadorizada, permitem, também, a identificação
particularmente, na retocolite ulcerativa. Esses pólipos se apre­ da massa representada pelo lipoma.
sentam, em grande número, sob a forma de apêndices mucosos, O tratamento estará na dependência do volume do tum or e
contendo alterações de caráter inflamatório. suas consequências sobre o trânsito intestinal. Assim, na vigên­
Não há evidências de que a polipose inflamatória estaria di­ cia de complicações (suboclusão, invaginação intestinal), essas
retamente relacionada com o aparecimento do câncer colorretal lesões deverão ser removidas por via endoscópica e, na sua im­
nos processos inflamatórios crônicos do cólon. possibilidade, através de procedimentos cirúrgicos. A cirurgia
Do ponto de vista radiológico e endoscópico, a diferencia­ consiste na remoção da lesão por laparotomia e colotomia, ou,
ção entre a polipose inflamatória e a adenomatosa poderá ser então, na ressecção segmentar do cólon.
difícil, sendo necessário o exame histopatológico de biopsias As lesões subserosas podem ser removidas sem a abertura do
para o correto diagnóstico. Esses pólipos não requerem terapia lúmen intestinal e, eventualmente, pela via laparoscópica.
Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais 487

estenose, impõem tratamento cirúrgico, com ressecção do seg­


■ Leiomiomas mento intestinal comprometido.
A incidência maior dos leiomiomas é no estômago e intesti­
no delgado, sendo de pouca ocorrência no cólon e reto. Habi­
tualmente, são lesões pequenas, submucosas e assintomáticas,
■ Neurofibromas
sendo encontradas no decorrer de procedimentos endoscópi- Os neurofibromas, no aparelho digestivo, ocorrem em cer­
cos ou radiológicos. Eventualmente, podem alcançar volume ca de 25% dos portadores da doença de von Recklinghausen ou
maior, ocasionando quadros de suboclusão ou, então, de in- neurofibromatose e, geralmente, são de pequenas dimensões e
vaginação intestinal. assintomáticos, localizando-se junto à submucosa e muscular,
É reconhecido o potencial de malignização dos leiomiomas ou, então, fazendo protrusão na serosa, podendo apresentar-se
e, dessa forma, uma vez identificados, devem ser removidos por sob forma séssil ou pediculada.
via endoscópica ou cirúrgica. O diagnóstico é realizado através de procedimentos endos­
cópicos ou radiológicos (enema opaco) nos pacientes portado­
res da neurofibromatose.
■ Carcinoides
Os tumores carcinoides colorretais são pouco frequentes,
em geral de ocorrência no reto, com aparecimento de lesões de
até 2 cm de diâmetro e assintomáticas, podendo ser removidas
por via endoscópica.
Em algumas situações, essas lesões atingem dimensões maio­
res, sediadas no reto ou cólon direito, ocasionando sintomas,
e podendo metastatizar, necessitando, assim, de procedimen­
tos cirúrgicos oncológicos. A síndrome carcinoide aparece em
menos de 5% dos pacientes com lesões metastásticas de carci­
noides colorretais.
A realização do mapeamento abdominal e torácico pela so-
matostatina sintética marcada (octreotídio) poderá identificar
possíveis focos de metástases de carcinoide colorretal. O leitor
é enviado ao Capítulo 100 para maiores detalhes.

■ Linfomas
Representam os mais frequentes tumores malignos não car-
cinomatosos do cólon, sendo raro o aparecimento de uma po-
lipose linfomatosa difusa.
Os linfomas não Hodgkin e o sarcoma de Kaposi são duas
condições ligadas à AIDS que podem afetar o cólon e o reto.

■ Endometriomas
Figura 46.1 Colonoscopia. Pólipo adenomatoso solitário em cólon
Os endometriomas são representados por massas ectópi-
sigmoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
cas de tecido endometrial, implantadas na superfície serosa
do reto, sigmoide, apêndice cecal, ceco ou delgado distai, po­
dendo invadir localmente até a camada muscular ou submu-
cosa. Essas massas são hormônio-dependentes e, na vigência
do ciclo menstruai, apresentam sangramento, que poderá ser
escoado através do lúmen intestinal, ou, então, na falta de dre­
nagem, esse sangue menstruai poderá ficar retido em forma­
ções císticas.
O diagnóstico é firmado pelas manifestações clínicas (dor
pélvica, alteração no hábito intestinal), que se acentuam no H
rL
ciclo menstruai, além da eventual perda de sangue intestinal
nesse período.
Essas massas poderão ser identificadas no lúmen intestinal
através de métodos endoscópicos, ou pelo exame radiológi- 1
co (enema opaco), ou, então, quando extraluminares, pela ul-
trassonografia pélvica. A videolaparoscopia também poderá 1
ser extremamente importante na identificação de localização
extraintestinal das lesões endometriais em pacientes do sexo
feminino, com dor pélvica crônica.
O tratamento básico consiste no controle das massas atra­
vés da hormonioterapia. Massas volumosas que promovem Figura 46.2 Raios X de cólon (enema opaco). Pólipos adenomatosos
quadros de suboclusão, ou na ocorrência de áreas extensas de (ia s s in a la d o s ) em cólon sigmoide.
488 Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais

As manifestações clínicas são de perdas sanguíneas, subo-


clusão por invaginação e, em algumas situações, isquemia e
perfuração intestinal decorrente de compressão dos vasos me-
sentéricos pelos neurofibromas.
O tratamento consiste na remoção cirúrgica dessas massas.
Outras lesões colorretais de incidência rara são os teratomas,
linfangiomas, melanomas e hemangiomas cavernosos.

Figura 46.6 Peça cirúrgica de cólon. Leiomioma removido em có­


lon descendente. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
Figura 46.3 Peça cirúrgica de cólon. Dois pólipos adenomatosos {a ssi­ Encarte.)
(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
n a la d o s ).

Figura 46.4 Peça cirúrgica de cólon. Adenocarcinoma infíltrativo e Figura 46.7 Peça cirúrgica. Inúmeros tumores carcinoides em mucosa
estenosante em sigmoide, com pólipo adenomatoso satélite. (Esta intestinal. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

■ LEITURA RECOMENDADA
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Capítulo 46 / Tumores Benignos Colorretais 489

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Tumores Malignos Colorretais
Mounib Tada e Arnaldo José Pontello Neves*

■ CONSIDERAÇÕES GERAIS rede retal, o índice de sobrevida em 5 anos é de cerca de 70% e,


quando a doença é detectada em fase assintomática, este índice
O câncer, de uma forma geral, representa hoje um impor­ alcança até 90%. Dessa forma, é extremamente importante a
tante problema de saúde pública. Uma avaliação do Instituto instituição, pelos poderes públicos e sociedades médicas da es­
Nacional do Câncer (INCA) calculou em cerca de 500.000 os pecialidade, de programas de prevenção do TMCR. No Brasil,
novos casos surgidos em 2009, e a maior parte deles, infeliz­ em 2004, foi fundada a Associação Brasileira de Prevenção do
mente, são diagnosticados já em fase tardia de evolução. Ape­ Câncer do Intestino (ABRAPRECI), sob a liderança da Prof1
sar da complexidade na sua origem, estudos epidemiológicos Angelita Habr-Gama, que já colocou em prática programas de
afirmam que cerca de 90% dos tumores de maior incidência na conscientização e prevenção em todo o território nacional, com
população adulta estão relacionados com o estilo e hábitos não apoio da Sociedade Brasileira de Colo-proctologia e do Colégio
saudáveis de vida (alto consumo de gorduras e baixo de fibras, Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD).
sedentarismo), além de agressões ambientais. Cerca de 95% dos TMCR são adenocarcinomas, tendo como
Nos países ocidentais, os tumores malignos colorretais lesão precursora o pólipo adenomatoso, e o processo de trans­
(TMCR) representam a segunda causa de óbitos por neopla- formação adenoma-carcinoma ocorre em tempo médio de 12 a
sias, após o tum or pulmonar. Cerca de 150.000 novos casos 15 anos. Assim, o reconhecimento e a remoção das lesões poli-
são diagnosticados anualmente nos EUA, com cerca de 60.000 poides adenomatosas do cólon, interrompendo a sequência de
óbitos devidos a essas neoplasias. Nos últimos 30 anos, ocorreu transformação, promoverão a profilaxia dos TMCR.
uma redistribuição da frequência da localização dos TMCR, O aparecimento de lesões sincrônicas, representadas pela
com aumento da incidência no cólon sigmoide e ceco-ascen- presença simultânea de duas ou mais neoplasias no cólon, ocor­
dente e redução da localização no reto. A presença no cólon re em cerca de 5% dos pacientes. O câncer metacrônico, ou seja,
direito é mais frequente na mulher, e a retal, no homem. O uma nova lesão primária em paciente com tumor previamente
Quadro 47.1 mostra a frequência da distribuição dos TMCR. No removido do cólon, apresenta incidência de 2%. Atualmente, é
Brasil, o câncer colorretal encontra-se entre as seis localizações reconhecido o câncer de novo, que teria sua origem diretamente
mais frequentes de neoplasias, e, segundo os Registros de Cân­ da mucosa intestinal, sem a lesão adenomatosa precursora.
cer de Base Populacional Brasileiros - 1997/1998, detectou-se É conhecida a predisposição genética para os TMCR, sendo
em São Paulo maior incidência do câncer de cólon em pessoas a polipose familiar uma das condições de maior importância
do sexo masculino (21,73/100.000) e, no Distrito Federal, de como fator predisponente. No entanto, atualmente é admitida
15,16/100.000 para o feminino. A menor incidência foi detecta­ uma condição familiar hereditária, com o aparecimento dos
da em Manaus e Belém, com taxas padronizadas de incidência TMCR sem que ocorra a polipose, sendo denominada síndrome
de 1,62/100.000 e 4,16/100.000, respectivamente, entre homens de Lynch, incidindo em, aproximadamente, 5 a 10% dos casos.
e mulheres. Registros de Mortalidade do Ministério da Saúde
demonstram uma incidência de mortalidade muito discrepan-
te entre as regiões brasileiras, com o sul-sudeste apresentan­
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------
do taxas semelhantes às dos países do primeiro mundo, sendo
de 1,98/100.000 para o sexo masculino em Porto Alegre e de Quadro 47.1 Distribuição do câncer colorretal
15,89/100.000 em Manaus, conforme dados de 2001. A porcen­
R e to s s ig m o id e d ista i 30%
tagem média de sobrevida de 5 anos permanece estável em 50%,
S ig m o id e 20%
podendo chegar a 70% quando a cirurgia é realizada em centros
especializados. Quando o tumor encontra-se circunscrito à pa­ D e s c e n d e n te 15%

Tra n s v e rs o 10%

C e c o a s c e n d e n te 25%
*0 Dr. Neves escreveu a parte sobre rastreamento do câncer colorretal.

490
Capítulo 47 / Tumores Malignos Colorretais 491

------------------------------------- ▼----------------------------------- A identificação de anormalidades genéticas encontradas co-


Quadro 47.2 Critérios de Amsterdam para avaliação clínica mumente nos TMCR esporádicos ou hereditários inclui o gene
de grupos de risco paraoCHNP APC, cuja mutação seria responsável pelo aparecimento da
polipose familiar adenomatosa (PFA). O local e o tipo de m u­
A m s te rd a m I tação do APC determinarão o número de pólipos e a idade do
N o m í n i m o trê s fa m ilia re s d ire to s c o m c â n c e r c o lo rre ta l aparecimento da adenomatose. O fenótipo de pacientes com
P e lo m e n o s u m d e v e r á ser p a re n te d e p r im e ir o g r a u d o s o u t r o s d o is
mutação do gene APC poderá variar amplamente, com desen­
A o m e n o s u m d o s c â n c e re s c o lo rre ta is d e v e r á se r d ia g n o s t ic a d o a n te s
volvimento de poucos pólipos até centenas, recobrindo toda a
d a id a d e d e 5 0 a n o s mucosa colônica. Esses pacientes requerem a realização de co-
P e lo m e n o s d u a s g e r a ç õ e s su ce ssivas d e v e m a p r e s e n ta r c â n c e r
lectomia total para evitar o aparecimento dos TMCR.
c o lo rre ta l Pacientes com mutações idênticas no gene APC podem apre­
C a s o s d e p o lip o s e a d e n o m a t o s a fa m ilia r n á o d e v e m se r c o n s id e r a d o s sentar diferentes fenótipos, insinuando que outros genes pode­
rão afetar o fenótipo resultante da mutação do APC.
A m s t e r d a m II
Outro fator genético considerado refere-se à presença de
M í n i m o d e trê s fa m ilia re s d e v e m a p re s e n ta r n e o p la s ia a sso c ia d a a o
C H N P (c o lo rre ta l, e n d o m é t r io , d e lg a d o , via s u rin á ria s )
oncogenes que, em geral, são dominantes e cuja ativação pro­
move o crescimento e proliferação celular. Nos TMCR, o on-
U m d o s p a c ie n te s d e v e r á ser p a re n te d e p r im e ir o g r a u d o s o u t r o s d o is
cogene mais frequentemente ativado é o Kirsten-ras ou K-ras,
M í n i m o d e d u a s g e ra ç õ e s su ce ssiva s d e v e m e s ta r c o m p r o m e t id a s
que apresenta mutação em 50% dos adenocarcinomas e em
U m d o s caso s d e C H N P d e v e r á ser d ia g n o s t ic a d o a n te s d a id a d e d e
50% dos adenomas com mais de 1 cm.
50 anos
Em 1984, identificou-se uma forma alternativa de carcinogê­
C a s o s d e p o lip o s e a d e n o m a t o s a fa m ilia r n á o d e v e m se r c o n s id e r a d o s
nese responsável pelo câncer hereditário não polipoide colorretal
(CHNP), denominada síndromes de Lynch (I e II). Esses pacien­
tes geralmente apresentam tumores com anormalidades difusas
na replicação do DNA. Na síndrome de Lynch I, o câncer geral­
Esta síndrome é também chamada de Hereditary Non Polypo- mente se situa no cólon proximal, é local-específico dentro de
sis Colorectal Câncer, nos países anglossaxônicos, ou então de uma mesma família e constitui o único tipo de tumor que esses
Câncer Hereditário Não Polipoide (CHNP), entre nós, e a iden­ pacientes desenvolvem. No Lynch II, desenvolvem-se tumores
tificação de indivíduos de risco permite uma prevenção desta colorretais, do endométrio, gástricos, do ovário, trato urinário e
situação. Em publicação de Vasen e ta l, em 1991 e 1999 foram outros. Foram identificados pelo menos quatro genes que par­
estabelecidos critérios clínicos para avaliação de grupos de ris­ ticipam dessas alterações do DNA: hMSH2 (localizado no cro­
co, que foram denominados, respectivamente, “Amsterdam I” mossomo 2p), hMLHl (cromossomo 3p), hPMSl (cromossomo
e “Amsterdam II”. Estes critérios encontram-se discriminados 2q) e hPMS2, localizado no cromossomo 7p. Os genes MSH2 e
no Quadro 47.2. MLH1 representam 40 e 35% dessas mutações. Os portadores
dessas transformações apresentam risco aumentado de desen­
volver carcinoma colorretal (78%) ou câncer do endométrio
(43%), assim como o risco de surgir um câncer extracolônico
■ ETI0L0GIA também está aumentado nesses indivíduos. Mutações de ge­
nes têm sido identificadas em muitos familiares dos portadores
A etiologia dos TMCR é extremamente complexa e não de­
do CHNP, bem como maior incidência de tumores extracolô-
vidamente definida. Porém, é reconhecida a importância de
nicos, incluindo o câncer gástrico, do útero, ovário, intestino
condições genéticas predisponentes e de fatores ambientais
delgado, vias biliares e urinárias, sem, contudo, apresentarem
desencadeadores.
risco maior de câncer de mama (o tumor de mama tinha sido
Há maior incidência dos TMCR em países ocidentais, onde
incluído a princípio).
a dieta é excessivamente composta de gorduras e proteínas de
Apesar de o CHNP ter sido identificado há cerca de um
origem animal e pobre em fibras. Esse padrão dietético favorece,
século, somente agora as suas manifestações clínicas estão sen­
a partir da fermentação de ácidos biliares e graxos pela ação de
do devidamente definidas. O CHNP é caracterizado por trans­
bactérias anaeróbias, a formação de substâncias carcinogênicas, missão genética autossômica dominante, os tumores tenden­
que atuariam no lúmen intestinal, alterando o DNA das células do a localizar-se no cólon proximal. Surgem cerca de 20 anos
e promovendo a sequência adenoma-adenocarcinoma. Esse antes dos tumores esporádicos do cólon, em idade média de
mesmo padrão dietético é também pobre em substâncias an- 45 anos. Tumores múltiplos do cólon são encontrados em cer­
tioxidantes, que possuem ação reconhecidamente inibidora do ca de 35% dos portadores, enquanto esse número varia de 4 a
processo carcinogênico. Atualmente, considera-se como con­ 11% nos doentes com cânceres esporádicos. Os tumores que
dições predisponentes ao aparecimento do TMCR o consumo surgem nesses indivíduos são, em geral, pouco diferenciados,
diário de carnes vermelhas e alimentos defumados. apresentam o sinal do anel de sinete mais frequentemente e
A utilização de dietas ricas em fibras, através da ingestão de são mais produtores de mucina do que se nota nos tumores
frutas e legumes, além da liberação de substâncias antioxidan- esporádicos colorretais.
tes, promove também o aceleramento do trânsito intestinal e,
dessa forma, reduz o tempo de contato das substâncias carci­
nogênicas com o lúmen intestinal. ■ EPIDEMIOLOGIA
A genética dos TMCR tem sido extremamente estudada, e
o trabalho pioneiro de Vogelstein et al., em 1988, estabeleceu Os TMCR apresentam maior incidência nos EUA, na In­
que a carcinogênese progride através do acúmulo “em cascata” glaterra e na Nova Zelândia. No Brasil, representam a quarta
de defeitos genéticos, tornando esse postulado um modelo para neoplasia em prevalência, sendo a sua ocorrência ligeiramente
o estudo de outras neoplasias. maior nos indivíduos do sexo masculino. É reconhecido que
492 Capítulo 47 / Tumores Malignos Colorretais

indivíduos de uma mesma família, com PFA ou CHNP, apre­


sentam elevado risco para os TMCR, e que somente uma fra­
■ Câncer hereditário não polipoide (CHNP)
ção do total de casos de neoplasias ocorre nesses pacientes. O CHNP representa um fator de grande risco para o desen­
Inúmeros estudos têm mostrado que a existência de um pa­ volvimento dos TMCR, como foi mencionado anteriormente.
rente de primeiro grau, particularmente jovem, com TMCR, O diagnóstico “formal” dessa situação é baseado em três crité­
aumenta significativamente o risco da incidência da neoplasia rios: 1) três ou mais familiares de primeiro grau com TMCR;
em familiares. A presença de familiar com pólipos adenoma- 2) TMCR envolvendo pelo menos duas gerações; e 3) pelo menos
tosos também aumenta o risco para parentes de primeiro grau. um caso de TMCR diagnosticado antes da idade de 50 anos.
Trabalho de Neves et al. demonstra diferenças marcantes nos Os indivíduos representativos desses grupos devem ser sub­
índices de mortalidade padronizada por TMCR entre as re­ metidos a vigilância através da colonoscopia, iniciada aos 25 a
giões brasileiras, com maiores taxas observadas no sul e su­ 30 anos, e, se possível, realizar estudos genéticos para avaliar o
deste, valores intermediários no centro-oeste e menores taxas grau de alteração cromossômica.
no norte-nordeste. Estas variações de índices de mortalidade
poderão ser atribuídas a diferentes hábitos alimentares e cul­
turais, diferenças socioeconômicas e de estilo de vida, além de
■ Doença inflamatória intestinal
outros aspectos relevantes, como o acesso aos serviços de saú­ O risco dos TMCR em pacientes com retocolite ulcerativa é
de e a qualidade e diferenciação no atendimento hospitalar, e reconhecido e aparece depois de cerca de 10 anos do início da
também na instituição de programas de prevenção. Apesar de doença inflamatória, sendo de 5 a 10% após 20 anos e de 20%
as regiões sul-sudeste apresentarem taxa de incidência maior após 30 anos de atividade do processo. Assim, é altamente re­
do TMCR do que outras regiões brasileiras, a taxa de mortali­ comendável a realização de colonoscopias anuais, a partir de 8 a
dade é cerca de três vezes menor, devido, provavelmente, a uma 10 anos do início da doença, com feitura de múltiplas biopsias.
melhor diferenciação na qualidade do atendimento médico- O encontro da displasia celular é indicativo do risco de apare­
hospitalar disponibilizado. cimento dos TMCR, sendo recomendada, nessas situações, a
colectomia profilática.
O risco dos TMCR na doença de Crohn é extremamente
■ FATORES DE RISCO PARA 0 CÂNCER COLORRETAL baixo, talvez pelo fato de muitos pacientes serem submetidos
mais precocemente à cirurgia em decorrência das complicações
Inúmeros fatores podem aumentar o risco do desenvolvi­ da doença, não se tendo, assim, uma evolução prolongada (pois
mento dos TMCR. O seu devido conhecimento é extremamente segmentos intestinais foram retirados) que facilite o apareci­
importante para a profilaxia e/ou detecção precoce do processo. mento da neoplasia.
Os fatores a serem considerados são os seguintes: Outros fatores de risco são representados por dietas de ele­
vado teor de gorduras e pouca fibra, história familial de síndro-
mes, tais como de Gardner, polipose colônica familiar, síndro-
■ Idade me de Turcot, síndrome de Muir, síndrome de Peutz-Jeghers e
A incidência dos TMCR aumenta significativamente após polipose familiar juvenil.
a idade de 40 anos, e cerca de 90% dos casos ocorrem em indi­
víduos acima de 50 anos.
■ PATOLOGIA
■ História pessoal de neoplasia O crescimento dos TMCR é de forma circunferencial, po­
A existência pregressa de pólipos adenomatosos, particular­ dendo envolver completamente o lúmen intestinal e originar,
mente se múltiplos e/ou com mais de 1 cm, aumenta o risco de como consequência, quadros oclusivos. Essa situação é mais
aparecimento de outros adenomas e carcinomas, necessitando evidente no cólon esquerdo, que apresenta menor calibre que
de vigilância periódica através de colonoscopia. o direito e, habitualmente, é necessário cerca de 1 ano para a
Os pólipos inflamatórios (hiperplásicos) não representam lesão ocupar três quartos da circunferência intestinal. Ocorre
fator de risco. também uma infiltração da submucosa com invasão da cadeia
linfática inframural. A extensão radial da lesão também infiltra
outras camadas da parede intestinal, podendo, por contiguida-
■ História familiar de, atingir estruturas vizinhas.
A existência de antecedentes familiares está presente em O tumor poderá infiltrar também os vasos colônicos e, pela
cerca de 25% dos pacientes com TMCR, sendo a incidência veia porta, conduzir células neoplásicas que desenvolverão me-
proporcional ao número de parentes de primeiro grau que apre­ tástases hepáticas. Através das veias lombares e vertebrais, le­
sentaram a neoplasia. vam a focos metastáticos nos pulmões e no cérebro. O câncer
É recomendável que pessoas com dois ou mais familiares retal é disseminado através das veias hipogástricas. A invasão
com TMCR sejam orientadas a realizarem colonoscopia de venosa está presente em até 50% dos casos, mesmo não produ­
controle a partir da idade de 30 anos, independentemente de zindo metástases a distância.
quaisquer sintomas. A manipulação cirúrgica do tumor deve ser extremamente
cuidadosa, no sentido de evitar a liberação de metástases he-
matogênicas.
■ Polipose familiar adenomatosa (PFA) A disseminação mais frequente dos TMCR é através do com­
Esta condição aumenta dramaticamente o risco do desen­ prometimento ganglionar, sendo a disseminação longitudinal
volvimento dos TMCR, representando, no entanto, somente pela cadeia linfática extramural um importante mecanismo des­
cerca de 1% do total de casos. se processo. Assim, nos procedimentos cirúrgicos, é necessária
Capítulo 47 / Tumores Malignos Colorretais 493

a complementação com remoção dos gânglios comprometidos, a procedimentos de rotina, sempre na expectativa de detecção
o que é encontrado em cerca de 50% dos casos. precoce de um TMCR.
Em algumas situações, células neoplásicas extravasam do lú- O diagnóstico dos TMCR é estabelecido basicamente
men intestinal para a cavidade peritoneal, produzindo implan­ através de história clínica, exame físico e procedim entos
tes locais ou, então, carcinomatose abdominal generalizada. subsidiários.
Células tumorais poderão ser liberadas e levadas pela cor­
rente fecal para serem implantadas, a distância, em mucosa
normal. Esse tipo de situação é de ocorrência rara, e grande
■ História clínica
parte das recidivas junto às anastomoses é devida a células pro­ É importante a tomada da história clínica, com judiciosa
venientes de fora da parede intestinal, principalmente de lin- avaliação de todos os sintomas, tais como alteração do hábi­
fáticos do mesocólon. to intestinal com mudança das características do bolo fecal,
Com base na patologia do processo tumoral, procurou-se presença de sangue e/ou muco nas fezes, dor abdominal pre­
estabelecer o estadiamento da doença para que fosse possível cedendo evacuação e sintomas gerais, como astenia, anemia e
não só avaliar a perspectiva de sobrevida do paciente, mas tam ­ emagrecimento.
bém a necessidade de uma terapia adjuvante. Os sintomas dos TMCR estão na dependência da localização
A classificação de Dukes, proposta em 1932 e posteriormente anatômica da lesão, seu tipo e extensão, bem como da even­
modificada por Astler-Coller com a inclusão de subgrupos, é tual presença de complicações, como perfuração, obstrução e
utilizada de forma universal. Porém, atualmente, a classificação hemorragias.
TNM passou a ser preferida, pois permite um melhor estadia­ O tempo médio para a feitura do diagnóstico dos TMCR, a
mento do processo. partir dos sintomas relatados, é de 7 a 9 meses. A responsabili­
O Quadro 47.3 apresenta o estadiamento dos TMCR con­ dade desse tempo prolongado é dos pacientes, que minimizam
forme a classificação TNM e a de Dukes modificada (Astler- os sintomas e protelam a procura do profissional, ou, então, do
Coller). próprio médico que não valoriza as queixas relatadas.
No cólon direito, que apresenta maior calibre, paredes fi­
nas e distensíveis, com conteúdo fecal líquido, a presença de
■ DIAGNÓSTICO neoplasia manifesta-se mais tardiamente, atingindo as lesões
grandes volumes antes de serem diagnosticadas. Os pacientes
O desenvolvimento de uma neoplasia colorretal até alcan­ apresentam queixas vagas de astenia, debilidade física e anemia,
çar o volume suficiente para desencadear sintomas é de, pelo com sensação de desconforto no abdome direito. A presença
menos, 5 anos. Assim, nessa fase assintomática, o diagnósti­ de anemia hipocrômica microcítica é sinal importante na pes­
co ficaria na dependência de um achado casual em exame de quisa da neoplasia de cólon direito. Geralmente, não ocorre
rotina, e o seu encontro precoce traria grandes benefícios em alteração do hábito intestinal, e, em cerca de 10% dos casos, a
termos de sobrevida para o paciente. Os indivíduos incluídos primeira evidência é de massa palpável na região onde está o
nos grupos de risco teriam que ser submetidos periodicamente tumor, observada pelo paciente ou pelo médico.

---------------------------------------------▼---------------------------------------------
Quadro 47.3 Estadiamento do câncer colorretal pela classificação TNM e de Dukes modificada (Astler-Coller)

TNM DUKES

Estágio 0
— C a r c in o m a / n s / r u T is NO M0

Estágio 1
— T u m o r i n v a d in d o s u b m u c o s a T1 NO M0 Dukes A

— T u m o r i n v a d in d o m u s c u la r p ró p r ia T2 NO M0 Dukes BI

Estágio II
— T u m o r in v a d e a s u b s e ro s a o u t e c id o p e r ic o lô n ic o o u T3 NO M0 D u k e s B1 o u D u k e s B2
p e rirre ta l n ã o p e r it o n iz a d o s

— T u m o r u ltra p a s s a o p e r it ó n io v is ce ra l, o u in v a d e o u t r o s T4 NO M0 D u k e s B2
ó rg ã o s o u e s tru tu ra s

Estágio III
C o m p r o m e t i m e n t o d e lin fo n o d o s e d e t o d a a p a r e d e
in te s tin a l

— 1 a 3 lin fo n o d o s e n v o lv id o s (1 ,2 ,3 ) T NI M0 D u k e s C1

— 4 o u m a is lin fo n o d o s (n.°) T N2 M0 D ukes C2

— M e tá s ta s e s p a ra lin fo n o d o s e m t r o n c o s v a s c u la re s (n.°) T N3 M0

Estágio IV
P re se n ça d e m e tá s ta s e s a d is tâ n c ia (n.°) T N4 M1 Dukes D

T:Tumor; N: linfonodos; M: metástases; 0: ausência; n.°: número de linfonodos comprometidos.


494 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is

No cólon esquerdo, o calibre do lúmen intestinal é menor e tecção precoce de metástases após procedimentos cirúrgicos. O
o conteúdo fecal é formado por material semissólido. Assim, o CEA encontra-se alterado em cerca de 70% dos pacientes com
crescimento das neoplasias nessa região, com oclusão progres­ TMCR, porém eleva-se em menos da metade dos portadores
siva do lúmen, leva a alterações mais precoces da evacuação. da forma localizada do processo tumoral.
Essa situação poderá evoluir para uma obstrução parcial ou A persistência do CEA elevado, mesmo após a ressecçâo
completa do local. A presença de sangue nas fezes é frequente, cirúrgica de um TMCR, é indicativa de péssimo prognóstico.
porém não sob a forma de perdas maiores, geralmente de co­ Se ocorrer normalização dos níveis de CEA após a cirurgia e,
loração escurecida e associada a muco. no período de seguimento, eles voltarem a apresentar elevação
No câncer retal, o sintoma mais frequente é a perda de san­ progressiva, isso é sinal indicativo de recorrência da doença.
gue claro, juntamente com as fezes, associada ou não à pre­ A avaliação do antígeno CA 19 a 9 em conjunto com o CEA
sença de muco. Outra manifestação relatada com frequência é poderá melhorar a acurácia para a detecção de neoplasia, reci-
a sensação de evacuação incompleta e “puxos” no canal retal, divas e/ou metástases.
independentemente da movimentação intestinal.
■ Exames radiológicos
A radiografia de tórax deve ser considerada como procedi­
■ Exame físico mento de rotina, em pacientes com TMCR, para avaliação de
O exame físico é importante para avaliar o local e extensão metástases pulmonares.
da doença, ou então detectar metástases a distância e/ou com­ O estudo contrastado do cólon (enema opaco) representa
prometimento de outros órgãos ou sistemas que, inclusive, po­ importante método diagnóstico para revelar TMCR. O carci-
derão influenciar no tratamento. noma do cólon esquerdo aparece como imagem de “defeito de
A palpação da região inguinal e supraclavicular é importante enchimento”, com extensão de 2 a 6 cm e aspecto de “anel de
para a verificação de nódulos metastáticos. O exame do abdome guardanapo”, conforme demonstrado nas Figuras 47.1 e 47.2.
poderá revelar presença de massa, hepatomegalia ou circulação No cólon direito, a lesão apresenta-se sob forma de constri-
colateral em parede, indicando obstrução portal. ção ou, então, de massa intraluminar (Figura 47.3). Nos locais
O câncer retal poderá ser identificado através do toque digi­ comprometidos, a parede intestinal torna-se rígida, com des­
tal, não somente pela percepção da massa tumoral, mas também truição do relevo mucoso. Atualmente, com a disseminação
pela presença de sangue na luva do exame. A avaliação gineco- do uso de colonoscopia, o exame de enema opaco passou a ser
lógica poderá detectar comprometimento regional e, também, pouco utilizado.
permitir palpar gânglios retrorretais. Em situações de quadros obstrutivos, a radiografia simples
do abdome poderá mostrar a distensão das alças, além de per­
mitir a localização do local obstruído, facilitando a abordagem
■ Procedimentos subsidiários cirúrgica. Atualmente, com a facilidade do acesso ao exame
■ Exames de laboratório colonoscópico e pelas dificuldades técnicas na realização do
Não existe especificidade de exames laboratoriais para o estudo radiológico, este procedimento deixou de ser a primeira
diagnóstico dos TMCR. Porém, através do hemograma, pode­ opção na avaliação do cólon.
remos detectar a anemia, e uma fosfatase alcalina alterada pode­
rá significar a presença de metástases hepáticas. A avaliação das
proteínas séricas indicará a situação nutricional do paciente.
A pesquisa de sangue oculto nas fezes poderá ser im por­
tante na detecção precoce de pólipos e/ou neoplasias em fase
assintomática, principalmente quando utilizada em pacientes
pertencentes a grupos de risco ou, então, na presença de ane­
mia. Esses testes (Hemocult, Hemocult II) estão disponíveis
com facilidade, são baratos e fáceis de realizar. Entretanto, a
eficiência dependerá do grau de hidratação fecal, que aumen­
ta a sensibilidade, do volume da degradação de hemoglobina,
que diminui a sensibilidade, e da ausência de substâncias que
interferem com a oxidação do corante indicador, tais como o
ácido ascórbico. Lembrar que alimentos que contêm atividade
de peroxidase, ou pseudoperoxidase, podem provocar reações
positivas (brócolis, couve-flor, melão, entre outros).
O antígeno carcinoembriogênico (CEA) é uma glicoproteína
encontrada na membrana celular de muitos tecidos, inclusive
nos cânceres do cólon e reto, e os antígenos são detectados no
sangue através de técnicas de radioimunoensaio, sendo encon­
trados, também, em outros fluidos, como urina e fezes.
A elevação do nível sérico do CEA não é específica para
os TMCR, podendo acontecer também em outras neoplasias,
gastrintestinais ou não, além de esse nível se apresentar também
alterado nas doenças inflamatórias e nos indivíduos tabagistas.
Assim, o CEA não é um método acurado para o diagnóstico
dos TMCR, porém tem valor como teste preditivo, para ava­ Figura 47.1 Radiografia de cólon (enema opaco). Lesáo subesteno-
liação de resultados terapêuticos e, principalmente, para a de­ santeem sigmoide distai.
C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is 495

nos tomógrafos de alta resolução tipo multi-slice permitiu a


elaboração da chamada “colonoscopia virtual”, realizada com
a insuflação de ar no cólon e a obtenção de imagens virtuais
tridimensionais do cólon, permitindo também a detecção de
lesões maiores do que 0,5 cm. O mesmo acontece para a ultras-
sonografia abdominal, que, pela sua facilidade e baixo custo,
poderá ser utilizada com mais frequência na avaliação desses
pacientes.

■ Ultrassonografia endorretal
Esse procedimento, cuja utilização tem sido mais divulga­
da com o aparecimento de novos equipamentos, permite uma
acurada avaliação do grau de comprometimento da parede in­
testinal no câncer retal, além da demonstração da presença de
linfonodos aumentados. Porém, não é capaz de distinguir se o
aumento do linfonodo é decorrente de processo reativo ou por
infiltração neoplásica.

■ Retossigmoidoscopia
A retossigmoidoscopia com tubo rígido permite o diagnós­
tico de cerca de 20% dos TMCR. Porém, a utilização do retos-
sigmoidoscópio flexível com extensão de 30 cm permite diag­
nosticar 30 a 40% desses tumores, e, com os de 60 cm, chega-se
Figura 47.2 Radiografia de cólon (enema opaco). Lesão subesteno- a identificar 50 a 60% de todos os TMCR.
sante em cólon descendente.
■ Colonoscopia
A colonoscopia permite o exame de toda a extensão do có­
lon, obtendo-se não somente a detecção precoce de pólipos
(Figura 47.4) e sua remoção através de alças diatérmicas, mas
também o diagnóstico dos TMCR (Figuras 47.5 e 47.6). Mes­
mo nas situações em que o exame radiológico (enema opaco)
já tenha fornecido o diagnóstico de um TMCR, a colonosco­
pia deverá ser realizada no sentido de confirmar a natureza
da lesão, além de detectar a presença de pólipos e/ou tumores
sincrônicos. O enema opaco poderá não identificar lesões de
até 5 mm em cerca de 20% dos casos, mas também a colonos­
copia poderá deixar passar pequenas lesões junto às flexuras
e/ou dobras do cólon, e o ceco nem sempre é alcançado em to­
dos os pacientes. Dessa forma, uma colonoscopia incompleta
ou inconclusiva deverá ser completada pelo enema opaco com
duplo contraste.

Figura 47.3 Radiografia de cólon (enema opaco). Lesão infiltrativa e


subestenosante em cólon ascendente.

■ Tomografia computadorizadaeressonânciamagnética
Esses dois procedimentos não são importantes para o diag­
nóstico dos TMCR, porém servem para avaliar o comprome­
timento extramural no câncer do reto e para a detecção de
metástases. A tomografia poderá ser realizada também com
a administração do contraste VR, permitindo, desta forma, Figura 47.4 Colonoscopia. Pólipo adenomatoso em cólon ascendente.
também o estudo do lúmen intestinal. O advento de moder­ (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
496 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is

(FDG), que é um análogo da glicose. As imagens obtidas refle­


tem a penetração da glicose nas células tumorais, em virtude
de estas células apresentarem uma atividade de glicólise maior
do que nos tecidos normais. Uma vez nas células, a molécula é
fosforilizada pela hexoquinase.
A sensibilidade do PET-SCAN é excelente para captação
de lesões a partir de 1cm, porém esta sensibilidade poderá ser
alterada pela hiperglicemia e os pacientes deverão estar em je­
jum para a realização do exame.
Para o câncer colorretal, o PET-SCAN com FDG apresenta
uma sensibilidade superior à da tomografia computadorizada
ou da ressonância magnética para detecção de focos metastáti-
cos. A sensibilidade e especificidade para detecção de metásta-
ses hepáticas pelo PET-SCAN é de 95 a 100%, respectivamente,
comparados com 74 e 85% da tomografia computadorizada.
Poderá ser utilizado de rotina no acompanhamento periódico
dos pacientes operados, porém com limitação decorrente do
seu elevado custo.
Figura 47.5 Colonoscopia. Lesáo tumoral infiltrativa em reto. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

■ TRATAMENTO
t ■ Ressecção cirúrgica
A remoção cirúrgica do segmento comprometido representa
o tratamento básico para todos os pacientes com TMCR. Mes­
.\ mo na presença de metástases, a ressecção é indicada, evitan­
do a possibilidade de obstrução ou sangramentos. No câncer
colônico, as ressecções são seguidas de anastomoses primárias
para reconstituição do trânsito intestinal.
Nas situações de emergência, com perfuração ou obstrução,
e na impossibilidade do preparo intestinal adequado, a cirurgia
poderá ser feita em dois tempos: ressecção com colostomia e
posterior reconstituição do trânsito.
A abordagem laparoscópica para o câncer do cólon tem sido
amplamente discutida. Estudos têm demonstrado a ocorrên­
cia de metástases no local de introdução dos trocartes, além da
* impossibilidade da feitura do procedimento dentro de rígidas
normas oncológicas, bem como a dificuldade da ligadura de
vasos junto à sua emergência. Assim, esse tipo de cirurgia esta­
Figura 47.6 Colonoscopia. Lesáo tumoral subestenosante em cólon ria indicado apenas nas formas em que já ocorreu a metástase,
sigmoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) permitindo uma menor manipulação do paciente, com recu­
peração pós-operatória mais rápida e menor tempo de hospi­
talização. No entanto, com a passagem do tempo, houve um
aprimoramento da técnica laparoscópica que passou a ser uti­
■ Colonoscopia virtual lizada de rotina em inúmeros Centros, obtendo-se resultados
Trata-se de um procedimento já disponível, em que o colo- semelhantes aos da cirurgia aberta, com melhor recuperação
noscópio é substituído por um programa de software acoplado pós-operatória e resultados estéticos e menor morbidade.
a tomógrafo de alta resolução. O programa de computador con­ Trabalhos recentes acrescentam a técnica robótica para a
segue produzir, através do tomógrafo, imagens tridimensionais realização das cirurgias videoassistidas, porém o elevado cus­
em tempo real de todo o trajeto colônico, com detecção de le­ to dos equipamentos seguramente limitará a sua ampla utili­
sões com menos de 0,5 cm. Estudos comparativos têm demons­ zação.
trado resultados semelhantes aos da colonoscopia tradicional, No câncer retal, o procedimento cirúrgico estará na depen­
porém com a vantagem de não introduzir qualquer instrumento dência da extensão da lesão e, principalmente, do nível acima
no paciente, além de não ser necessária a utilização de sedação. da margem anal. As lesões pequenas e sem qualquer invasão
A necessidade de tomógrafos de alta resolução com o sistema detectada pela ultrassonografia endoanal e por tomografia po­
multi-sliceyainda não disponibilizado de forma mais generali­ derão ser removidas por ressecção transanal. Na maioria das
zada, tem limitado também a indicação deste método. situações, é desejável a remoção do segmento retal comprome­
tido, com anastomose colorretal ou coloanal. Em comprometi­
■ PET-SCAN mentos mais extensos e lesões baixas, é preferível uma conduta
A tomografia por emissão de pósitrons (PET-SCAN), mais mais radical, com a amputação abdominoperineal do reto e
recentemente introduzida no arsenal diagnóstico, obtém ima­ colostomia terminal em sigmoide. Nos tumores infiltrativos e
gens do metabolismo celular com a utilização de um radio- irressecáveis do reto, a conduta é a feitura de colostomia des-
marcador, sendo mais utilizado o 2-fluoro-2-deoxi-D-glicose compressiva, e, nos pacientes em situação clínica delicada, po­
C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is 497

deremos utilizar a eletro ou laserfulguração da lesão, mantendo


aberto o lúmen intestinal e evitando hemorragias.
Em casos avançados da doença neoplásica iressecável do
reto, já com disseminação, poderão ser também utilizadas,
como procedimento paliativo, as próteses expansivas do tipo
Wallstent, colocadas por via endoanal, impedindo e aliviando
quadros obstrutivos locais e evitando a feitura de colostomias,
permitindo uma melhor qualidade de vida a esses pacientes.
Na presença de metástases hepáticas, o tratamento “padrão-
ouro” seria a sua ressecção cirúrgica, com sobrevida de 35 a
60% após 5 anos. Infelizmente, nem todos os pacientes apre­
sentam condições para o tratamento cirúrgico, decorrente da
condição da doença metastática ou então da situação geral do
paciente, podendo, nestas condições, optar por um tratamento
local de ablação por radiofrequência, principalmente nas lesões
menores de 3 cm e que não estejam próximas de grandes vasos
ou da via biliar principal.
Nas Figuras 47.7 a 47.9, observamos, em peças cirúrgicas,
lesões localizadas no reto, cólon sigmoide e ascendente, res­
pectivamente.

Figura 47.9 Peça cirúrgica. Lesão neoplásica infiltrativa e subesteno­


sante em cólon ascendente. (Esta figura encontra-se reproduzida em
cores no Encarte.)

■ Quimioterapia
Em pacientes selecionados, a quimioterapia tem demonstra­
do melhorar a sobrevida, e a sua utilização deverá ser procedida
conforme a classificação TNM:
Estágio I: Devido à excelente expectativa de sobrevida de
5 anos (80 a 100%), não é indicada terapia adjuvante nesses
pacientes.
Estágio II: A expectativa de sobrevida de 5 anos é de 50 a
75%. A utilização da quimioterapia, com ausência de compro­
Figura 47.7 Peça cirúrgica. Lesão neoplásica em reto. (Esta figura en­ metimento ganglionar, é discutível e, por ora, a quimioterapia
contra-se reproduzida em cores no Encarte.) não deve ser utilizada.
Estágio III: A sobrevida de 5 anos é de cerca de 30 a 50%.
O tratamento adjuvante com fluoruracila e levamisol tem de­
monstrado redução em 33% de mortalidade, além de aumentar o
período de ausência de doença, em 42 meses, de 47 para 63%.
Para o câncer retal, a combinação de rádio e quimioterapia
é recomendada nos estágios II e III, melhorando a sobrevida e
reduzindo a incidência de infiltração pélvica.
Trabalhos recentes demonstram, em estudos randomizados,
a importância da radioterapia pré- e pós-operatória no câncer
do reto em reduzir de forma significativa a recorrência local e
o número de óbitos relacionados diretamente com a doença.
A combinação rádio-quimioterapia apresenta resultados supe­
riores aos da radioterapia aplicada de forma isolada.
Preconiza-se, atualmente, a utilização da radioterapia no
pré-operatório do câncer retal, uma vez que o seu emprego
no pós-operatório poderá ser retardado em muitas situações,
em decorrência de complicações cirúrgicas. Em nosso meio,
conforme relatado por Habr-Gama et al (1998), 118 pacientes
com adenocarcinoma de reto distai, e sem metástases a distân­
cia, foram submetidos, no pré-operatório, a radioterapia com
Figura 47.8 Peça cirúrgica. Lesão neoplásica subestenosante em cólon dose de 5.040 Gy por 6 semanas, e quimioterapia com leuco-
sigmoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) vorin e 5-fluoruracila nos três primeiros e três últimos dias da
498 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is

radioterapia. Em seguimento médio de 36 meses, observou-se vem mais que 30% em 1 ano e 2% em 3 anos. Esses números
incidência de recorrência local de 4,3%, e local, associada a me- mudam para 40% em 3 anos e 25% em 5 anos, se as metástases
tástases distantes, em 6,7% dos doentes. Esses resultados foram são ressecadas, o que tem sido possível, cada vez mais frequen­
considerados animadores. temente, em virtude da melhora das técnicas cirúrgicas e dos
Cerca de 20% dos pacientes com TMCR apresentam metás- procedimentos auxiliares. Entretanto, na prática, essa ressecção
tases por ocasião do diagnóstico, e outros 30% vão desenvolver só tem sido realizada em 5 a 15% dos doentes. Até pouco tempo,
metástases a distância, com sobrevida média aos 5 anos de 5%. os critérios de inclusão limitavam os candidatos àqueles com
A ressecção de metástases isoladas do fígado aumenta a sobre­ menos de 4 metástases, inferiores a 5 cm de diâmetro, sem dis­
vida aos 5 anos para 30%. seminação extra-hepática, e com antígeno carcinoembrionário
Recentemente, nova droga quimioterápica foi apresentada: inferior a 5 ng/m l. Estudos mais recentes, todavia, ampliaram
o irinotecan (CPT 11), desenvolvido na França, com resultados as indicações; para alguns, os critérios decisivos seriam apenas
favoráveis em 24% dos casos em que não houve resposta ao fluo- a possibilidade de realizar a ressecção total das lesões tumorais
ruracila, e de 32% quando foi utilizado como droga primária. visíveis (em toda a cavidade abdominal) e de avaliar bem os ris­
Esquemas terapêuticos utilizam o irinotecan em doses sema­ cos da operação, de maneira a alcançar mortalidade operatória
nais em pacientes previamente submetidos a tratamento com muito baixa ou nula. Do ponto de vista prático, essas decisões
fluoruracila e que não obtiveram resultados e que apresentam devem ser tomadas sempre por uma equipe multiprofissional
a doença em forma avançada, conseguindo, desta forma uma (clínico, cirurgião, oncologista). O doente deve ser amplamente
resposta objetiva em até 20% dos casos. A dose utilizada é de informado dos riscos e vantagens, cabendo a ele escolher, em
100 mg/m2, em infusão venosa com duração de 60 min, por última análise, operar ou não.
4 semanas consecutivas, com posterior descanso de 2 semanas Em alguns casos de metástases hepáticas, quando pequenas
para avaliação de resultados e de efeitos colaterais. ou em situações de elevado risco para indicação de ressecção
Outra droga utilizada, inibidor específico da sintetase do local, poderá ser utilizado o procedimento de ablação por ra­
timidilato, denominada Tomudex, mostrou resultados seme­ diofrequência, por laparotomia ou via laparoscópica, obtendo-
lhantes aos da associação do fluoruracila com leucovorin, po­ se também excelentes resultados.
rém com menos toxicidade.
Mais recentemente, novo produto foi lançado, com grande
esperança nos casos avançados de câncer colorretal com m e­ ■ PREVENÇÃO D0 CÂNCER COLORRETAL
tástases. É o bevacizumabe (Avastin:<-Roche), um anticorpo
monoclonal humanizado recombinante, produzido por tecno­ A hipótese de que numerosos fármacos poderíam atuar de
logia de DNA recombinante, que tem apresentado resultados forma preventiva nos TMCR abriu perspectivas bastante atra­
altamente satisfatórios quando utilizado como tratamento de entes. Inúmeras drogas foram avaliadas, e, até o momento, ape­
primeira linha em combinação com quimioterapia à base de nas algumas do grupo dos anti-inflamatórios não hormonais
fluoropirimidina. e o ácido acetilsalicílico mostraram-se eficientes. A primeira
Mesmo com a introdução de novas drogas e variados esque­ evidência de sua ação foi relatada por Waddel e Loughry, em
mas, a combinação mais utilizada para o tratamento quimiote- 1983, que observaram o desaparecimento de pólipos retais em
rápico dos TMCR continua sendo o fluoruracila, potencializado pacientes com polipose familiar adenomatosa em uso de Sulin-
com o leucovorin e imunoestimulado com o levamisol. dac. A partir dessa evidência, longos estudos epidemiológicos
passaram a ser realizados, utilizando-se os anti-inflamatórios
e o ácido acetilsalicílico (AAS), e demonstrando firmemente a
■ SEGUIMENTO PÓSCIRURGIA redução do risco dos TMCR.
A ação dessas substâncias seria resultante da inibição de
Pacientes operados em decorrência dos TMCR deverão ter ciclo-oxigenase, a enzima-chave na síntese das prostaglandi-
acompanhamento programado, no sentido de detectar preco­ nas. Foi descoberta também uma forma de ciclo-oxigenase
cemente qualquer recorrência e/ou metástase. (COX-2), cujos níveis elevados foram observados em tumores
A colonoscopia poderá ser realizada após 6 meses a 1 ano da experimentais e humanos. Dessa forma, esses fármacos atua­
cirurgia, para verificar recorrência local. Na ausência de tumor riam não somente inibindo a COX-2 na mucosa colônica, mas
ou de pólipos, deverá ser realizada a cada 2 anos, no sentido de também induzindo a apoptose e aumentando o gene APC (ver
procurar pólipos ou tumores metacrônicos. Capítulo 100). Estudos com a utilização de anti-inflamatórios
Na presença de um nível elevado do CEA por ocasião da ci­ que atuam inibindo a ação da COX-2 demonstraram uma efe­
rurgia, esse exame deverá ser repetido a cada 3 meses no primeiro tiva redução no aparecimento de novos pólipos colônicos. No
ano e, depois, a cada 6 meses por mais 4 anos. A elevação do CEA entanto, o reconhecimento de efeitos colaterais destas subs­
é sugestiva de recorrência do tumor, requerendo a realização de tâncias, aumentando o risco de eventos cardíacos, sem dúvida
colonoscopia e tomografia do abdome e tórax, por vezes laparos- não permitirá estudos a longo prazo para uma melhor e efetiva
copia, no sentido de localizar metástases. De fato, a determinação avaliação do seu valor.
seriada do CEA é recomendada como rotina de vigilância. Mais
recentemente, a introdução de nova tecnologia (PET-SCAN),
em que há uma combinação de tomografia computadorizada ■ RASTREAMENT0 D0 CÂNCER D0 CÓLON
de alta resolução com mapeamento corporal por radiofármacos
captados por tumores, permite a detecção precoce de metástases Os TMCR constituem uma doença comum, letal quando não
e poderá ser utilizada no acompanhamento dos pacientes opera­ diagnosticada a tempo, porém prevenível. A sobrevida de 5 anos
dos, quando ocorre elevação do marcador tumoral. estimada nos portadores de TMCR é de, aproximadamente,
O fígado é a sede mais frequente de metástases do câncer co­ 90% nos pacientes com doença localizada, de 60% naqueles com
lorretal em mais de 50% dos casos. Na falta de uma terapêutica doença regional e de cerca de 5% naqueles com metástases a dis­
agressiva, os pacientes com metástases hepáticas não sobrevi­ tância. Há evidências indicando que a detecção dos TMCR em
C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is 499

estágio assintomático precoce, através do rastreamento, pode adesão atribuída à recusa do paciente, às dificuldades técnicas e
melhorar o índice de sobrevida (prevenção secundária). Além à ausência de sintomas. Dois por cento dos pacientes com teste
da detecção precoce, o rastreamento é efetivo na prevenção pri­ positivo são portadores de câncer.
mária do câncer, através da remoção de pólipos adenomatosos
benignos, precursores do câncer do cólon. ■ Sigmoidoscopia flexível
Pessoas que apresentam sintomas sugestivos de TMCR, ou O aparelho de 60 cm alcança a flexura esplênica, identifican­
de pólipos, devem ser submetidas a uma completa e apropriada do, portanto, cerca de metade das lesões colônicas. Os exames
avaliação diagnóstica, e não apenas às técnicas de rastreamento. anormais, principalmente se detectarem tumores, deverão ser
A recomendação de rastreamento deve levar em consideração complementados com colonoscopia ou enema opaco. O exa­
vários fatores, incluindo a patogênese da doença, fatores de ris­ me realizado por profissional bem treinado apresenta taxa de
co e as características dos vários testes disponíveis. Além disso, perfuração intestinal de 1 a 2/100.000 e mortalidade rara. Há
deve-se estimular a participação do paciente, oferecendo-lhe evidência de que esse exame reduz a mortalidade por TMCR
informações adequadas sobre a doença e os riscos e benefícios em 66%, considerando o trajeto colônico examinado. Custo,
dos procedimentos. Naturalmente, o médico deve ficar atento desconforto e medo são as principais causas da baixa adesão
à relação custo/benefício. O propósito do rastreamento é iden­ muitas vezes observada, situações estas que deverão estar logo
tificar indivíduos que apresentam maior probabilidade de ter superadas, uma vez que este exame passou a ser colocado em
a doença não reconhecida, especialmente dentre aqueles sem check-ups empresariais.
sinais ou sintomas, para selecionar os que serão submetidos à
avaliação diagnóstica completa do cólon. ■ PSOF e sigmoidoscopia flexível
A patogênese dos TMCR permite duas oportunidades para A PSOF é pouco sensível na detecção de lesões distais, en­
prevenir o seu aparecimento: descobrir e remover pólipos para quanto a sigmoidoscopia pode examinar cuidadosamente a
prevenir o início do câncer, e descobrir e remover o câncer pre­ mucosa da metade distai do intestino grosso. Os dados sobre
coce para melhorar o prognóstico. A intervenção preventiva o uso combinado desses exames são limitados, mas a principal
transcorre em três fases: evidência valorizando essa prática é um estudo não randomiza-
do, que demonstrou redução de 43% na mortalidade por TMCR
• Rastreamento de pessoas sem sintomas, para identificar quando comparado com a sigmoidoscopia isolada.
aquelas com maior probabilidade de doença.
• Testes diagnósticos para determinar se pacientes apre­ ■ Estudo contrastado do cólon (enem a opaco)
sentam, ou não, pólipos ou câncer. O exame com duplo contraste é mais sensível do que o
• Vigilância das pessoas de alto risco, incluindo as síndro- enema com coluna única de bário. Identifica lesões no con­
mes familiais e hereditárias, e pacientes com pólipos ade­ torno da alça e diagnostica boa parte dos pólipos e cânceres
nomatosos grandes, nestes procurando novas lesões após
grandes, mas é pouco sensível para pólipos menores que 1 cm.
remoção das anteriores. Exames falso-positivos podem ser induzidos por irregularida­
des da mucosa ou retenção de fezes. Apesar de ser usado há
■ Testes de rastreamento m uito tempo, não há estudos comprovando sua eficácia na
redução da mortalidade por TMCR. Do mesmo modo, não se
■ Toque retal comprovou ganho importante na sensibilidade ao se adicio­
O seu valor como teste de rastreamento para TMCR é limi­ nar sigmoidoscopia ao enema opaco. Com a disseminação do
tado pela extensão do dedo do examinador. O tamanho médio uso da colonoscopia, atualmente o exame de enema opaco é
do dedo varia de 6 a 8 cm e não alcança toda a profundidade pouco indicado.
retal, que varia de 11 a 12 cm. Além disso, somente 10% dos
TMCR têm origem no reto, e menos de 10% deles são diagnos­ ■ Colonoscopia
ticados pelo toque retal, quando usado isoladamente. Entretan­ Há forte evidência de que a colonoscopia pode reduzir a
to, o exame deve ser rotineiramente feito, não só como técnica mortalidade por TMCR. Entretanto, não há evidência dessa
de rastreamento, mas também pela sua facilidade de detectar redução em pacientes assintomáticos ou sem pólipos. O pro­
anormalidades retais e prostáticas. cedimento acrescenta um benefício adicional por permitir a
remoção, ou biopsia, de lesões porventura existentes. Apresenta
■ Pesquisa de sangue oculto nas fezes (PSOF) como desvantagem, além do seu custo, o fato de ser um exame
Sua sensibilidade tem melhorado com as novas gerações de complicado, com taxas de perfuração, sangramento e mortali­
testes baseados na pesquisa de hemoglobina humana (Heme- dade, respectivamente, de: 1/1.000, 3/1.000 e 1-3/10.000. Em­
Select'?;)> reduzindo o número de exames falso-positivos, sem, bora seja desconfortável, a adesão está em torno de 90%.
contudo, perder valor na sua especificidade. Estimativas de sua
sensibilidade/especificidade têm variado amplamente, desde ín­ ■ Outros
dices de 92 e 98%, respectivamente, até valores de sensibilidade A colonoscopia virtual, testes genéticos e testes para detec­
abaixo de 30%. Como rastreamento, não é um exame particular­ ção de antígenos tumorais nas fezes parecem promissores; no
mente bom para a detecção de pólipos, que habitualmente não entanto, ainda não estão disponíveis para uso na prática diária
sangram. Apresenta ainda, como desvantagem, o baixo impacto na maioria dos centros médicos.
na incidência e na redução da mortalidade por TMCR. Pacien­ O rastreamento da população de risco habitual se inicia aos
tes em uso do anticoagulante varfarina não necessitam inter­ 50 anos de idade. Essa recomendação se baseia na incidência
romper o seu uso para a realização do exame de sangue oculto, etária dos TMCR e na eficácia do rastreamento. Esses tumores
uma vez que foi devidamente demonstrado que o seu uso não apresentam baixa incidência antes dos 50 anos, e, dessa manei­
reduz o valor preditivo de positividade do teste. ra, somente 10% dos casos não serão identificados.
A adesão ao exame é bastante variável, tendo relatos de ín­ Nenhum teste de rastreamento isolado é ideal. O rastrea­
dices de 92 a 94% ou tão baixos quanto 15 a 30%, sendo a baixa mento é baseado no conhecimento da biologia dos TMCR:
500 C a p ítu lo 4 7 / Tum ores M a lig n o s C o lo rre ta is

• Se o paciente é de risco para início precoce dos TMCR, a mutação é encontrada no caso índice, a acurácia nos outros
o rastreamento deve ser iniciado mais cedo (ver fatores membros também é próxima a 100%. O rastreamento é reali­
de risco, anteriormente). zado com colonoscopia a cada 1 ou 2 anos, iniciando-se entre
• Se o paciente é de risco para lesões que progridem mais 20 e 30 anos de idade, e anualmente após os 40 anos, ou, ainda,
rapidamente, o rastreamento deve ser mais frequente. 10 anos mais cedo que a idade do caso mais precoce na família.
• Se o paciente é de risco para lesões mais proximais, o Sigmoidoscopia é insuficiente, pois a maior parte dos tumores
rastreamento deve ser realizado com colonoscopia ou é proximal, e a PSOF mostra sensibilidade muito baixa para
enema opaco. detecção de pólipos.
• Se o paciente é de risco para uma incidência muito alta ► 4. H istó ria p e sso a l d e n e o p la sia . Estes pacientes devem
da doença, os testes mais sensíveis devem ser utilizados ser submetidos ao exame de todo o cólon, à época do diagnós­
(colonoscopia ou enema opaco). tico, para excluir lesões sincrônicas e pólipos. Colonoscopias
subsequentes devem ser realizadas a cada 2 a 3 anos para de­
Como se vê, o primeiro passo para iniciar o rastreamento
tectar novos cânceres ou pólipos.
é determinar se o paciente é de alto risco para TMCR, pois as ► 5. D o e n ç a in fla m a tó ria in te stin a l. É comum indicar-se
atitudes serão realizadas de maneira diferente da que se propõe colonoscopia a cada 1 ou 2 anos após 8 anos de doença nos
para aqueles de risco para câncer esporádico.
pacientes com pancolite, ou depois de 10 a 15 anos naqueles
com colite envolvendo apenas o cólon esquerdo. No entanto,
■ Pacientes comrisco habitual (câncer esporádico) não há evidência direta de que essa prática reduza a mortalidade
• Iniciar rastreamento aos 50 anos de idade. por TMCR, nem há dados sólidos de que tal atitude seja mais
• A decisão do método a ser utilizado deve ser tomada em efetiva que a colectomia, esta baseada somente na extensão e
conjunto, médico/paciente, levando em consideração a duração da doença. Há necessidade de estudos randomizados
eficácia, a conveniência, a segurança e o custo de cada e de longa duração visando a essas particularidades.
exame.
• Rastreamento com pesquisa de sangue oculto nas fezes
anual.
• Rastreamento com sigmoidoscopia flexível a cada
■ LEITURA RECOMENDADA
5 anos. Baigric, RJ & Stupart, D. Introduction oflaparoscopic colorcctal canccr surgcry
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O rastreamento com esses dois exames (PSOF ou sigmoi­ Benamouzig, R, Uzzan, B, Littlc, J, Chaussadc, S. Low dose aspirin, COX-inhi-
doscopia) apresenta forte evidência de eficácia. bition and chemoprevcntion of colorcctal canccr. Curr. Top. Med. Chem.,
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colonoscopia a cada 10 anos, não é uma conduta aconse­ blood testing in person taking warfarin. Br. J. Surg., 2010; 97:396-403.
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PFA) tem o teste positivo, os outros membros podem ser testa­ terol. Clin. Biol., 1998; 22:1048-55.
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vo exclui PFA somente se o membro afetado da família possui Morcno-Azcoitc, M, Lozano, R. Sclf-cxpanding prosthcscs as a pal-
liativc m ethod in treating advaneed colorcctal canccr. Int. Surg., 1999;
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Obstrução Intestinal
Renato Rocha Passos, Augusto Paulino Nettó 1e Paulo Villar do Valle

Obstrução intestinal é uma das causas mais frequentes de emer­ Podemos classificar ainda a obstrução intestinal como sim­
gência. Aproximadamente 20% das internações por doença ab­ ples ou com estrangulamento, relacionadas à existência ou não
dominal aguda ocorrem por obstrução intestinal. A desatenção de comprometimento da irrigação sanguínea do segmento in­
ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado ocasiona o testinal comprometido.
fato de a mortalidade ainda permanecer acima do desejável, A obstrução simples não apresenta risco à vitalidade da alça
embora já tenha declinado de 60%, que prevalecia em meados envolvida porque não há restrição do fluxo sanguíneo. A obs­
do século passado, para os atuais 6 a 8%. É fundamental assi­ trução com estrangulamento representa risco para a vitalidade
nalar a importância de se fazer o diagnóstico de localização da da alça porque há restrição do fluxo sanguíneo. Será de maior
obstrução, principalmente nos casos menos evidentes, em que ou menor gravidade, dependendo da extensão de meso e da
a causa não é facilmente identificável. alça envolvidos.
Há ainda um tipo especial de obstrução que é a obstrução em
alça fechada, quando o mesmo segmento intestinal está obstru­
■ DEFINIÇÃO ído em dois pontos. Exemplos clássicos são o tumor obstrutivo
da sigmoide com válvula ileocecal competente, a torção do del­
Obstrução intestinal é uma condição em que há falha na gado e a torção de alça aferente num paciente gastrectomizado
progressão normal do conteúdo intestinal. O conteúdo do tubo com anastomose a Billroth II. Nesta situação, há grande proli­
digestivo percorre um trajeto da boca em direção ao ânus. Obs­ feração bacteriana e aumento da virulência, grande produção
trução intestinal estará presente a partir do momento em que de toxinas e comprometimento da irrigação sanguínea. São
qualquer obstáculo impeça esta progressão, seja por uma bar­ estes fatos que tornam esse tipo de obstrução grave, porque o
reira física ou por distúrbio funcional da força propulsora da segmento envolvido rapidamente caminha para necrose e es­
musculatura intestinal. facelamento, rotura e peritonite.
Podemos, ainda, classificar a obstrução de acordo com o
ponto em que se estabeleceu a barreira física: obstrução alta,
quando ocorre próximo ao ângulo de Treitz, e obstrução baixa,
■ CLASSIFICAÇÃO quando ocorre no cólon. Entretanto, clinicamente, é possível
Podemos dividir a obstrução intestinal em dois grandes gru­ dividir o quadro obstrutivo em três grupos: obstrução alta do
pos: obstrução mecânica e obstrução reflexa. delgado, obstrução baixa do delgado e obstrução do cólon. É
Na obstrução mecânica, há uma barreira física com m a­ importante frisar que o delgado está envolvido em aproximada­
nutenção da força propulsora da musculatura intestinal. Isto mente 60 a 80% dos casos de obstrução intestinal e a obstrução
significa que o peristaltismo estará presente e que, auscul- mecânica é a mais frequente.
tando o abdome, poderemos não só ouvir os ruídos peristálti-
cos como também perceber os detalhes dos sons, que poderão ■ Obstrução mecânica
ser fortes, exacerbados, de luta, com timbre metálico (ver Capí­
tulo 111). O obstáculo pode estar na luz intestinal, como no íleo biliar;
pode acontecer na parede intestinal, como no carcinoma obs­
Na obstrução reflexa, ou íleo paralítico, não há barreira físi­
trutivo da sigmoide, ou, ainda, fora da parede intestinal, como
ca. O que há é um distúrbio da força propulsora da musculatura
nas grandes massas abdominais, nas bridas e hérnias.
intestinal. Podemos encontrar duas situações: íleo adinâmico,
Na investigação de um paciente com quadro clínico suges­
em que a ineficiência é resultante do relaxamento da musculatu­
tivo de obstrução intestinal, temos que responder às seguintes
ra, e íleo dinâmico, em que a ineficiência é resultante de espas­
perguntas:
mo da musculatura. Isto significa que, auscultando o abdome,
há silêncio abdominal porque o peristaltismo estará ausente ou • Há obstrução?
é ineficiente. Vale assinalar que o íleo dinâmico é raro. • Há estrangulamento?

502
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 503

• Há desidratação importante? para o estômago e é eliminado, apresenta-se bilioso; quanto


• Qual a causa da obstrução? mais tempo durar a obstrução e mais baixo for, no tubo di­
• Qual o nível da obstrução? gestivo, o material eliminado, mais se aproximará do aspecto
fecaloide: marrom, espesso e fétido, observado na obstrução
Para responder à primeira pergunta, teremos que fazer o
baixa do delgado.
diagnóstico diferencial entre as causas de dor abdominal em
A distensão é o resultado do acúmulo de líquido e gás den­
cólica. Somente as estruturas de musculatura lisa produzem dor
tro das alças acima do ponto de obstrução. Os líquidos ficam
em cólica: estômago, intestinos, ureter, trompas, útero. A partir
retidos na luz intestinal, sem nenhuma utilidade para o meio
do momento em que se identifica a dor tipo cólica, imediata­
interno, perdidos no chamado terceiro espaço.
mente a investigação deve concentrar-se nestes órgãos.
A parada da eliminação de gases e fezes é resultado da in­
O diagnóstico de estrangulamento poderá ser obtido com terrupção da progressão do conteúdo intestinal e, dependen­
boa probabilidade de acerto se a história e o exame físico forem
do do ponto de obstrução, poderá levar algum tempo para se
colhidos com detalhes. A constatação da mudança das caracte­ tornar evidente.
rísticas da dor, que passa de dor em cólica para dor contínua;
o aumento da sensibilidade cutânea e a dor localizada; uma
leucocitose acima de 15.000, com desvio importante para a es­ ■ Obstrução alta do delgado
querda, principalmente com o aparecimento de formas jovens,
Na obstrução alta, a dor não é tão intensa, porque, estando
e o agravamento do estado geral, tudo isso adverte o médico. próxima ao ângulo de Treitz, ao menor esforço o conteúdo fa­
Os exames de imagem poderão mostrar fixação da alça com­
cilmente reflui para o estômago e é eliminado. Os vômitos são
prometida, modificação do arcabouço anatômico, modificação incoercíveis e biliosos. A distensão é insignificante, porque há
do padrão da mucosa, alteração da estrutura tecidual. poucas alças envolvidas e são facilmente esvaziadas com o vô­
Todo paciente obstruído perde líquido. Em outras palavras, mito. A proximidade do Treitz deixa grande extensão do tubo
perde volemia. E perde líquido porque não ingere, vomita, se­ digestivo com gases e fezes, e o paciente poderá eliminar ga­
questra dentro da luz, com infiltração e edema da parede intesti­ ses e fezes mesmo já estando obstruído. Na obstrução alta, os
nal. A perda volêmica pode ser avaliada verificando-se a pressão vômitos são o sintoma predominante e poderá levar 48 horas
arterial, pulso e volume urinário; quanto maior a desidratação, para ser completa e evidente.
maior será a repercussão na volemia e pior o estado geral.
A causa da obstrução, embora, naturalmente, muito impor­
tante, não é o alvo principal da investigação inicial. O diag­ ■ Obstrução baixa do delgado
nóstico da obstrução é mais im portante que o diagnóstico Na obstrução baixa, a dor é típica. Pelo vômito, o paciente
da causa da obstrução. Esta afirmação assume grande im por­ elimina conteúdo das partes mais baixas do delgado, poden­
tância nos quadros obstrutivos atípicos em que a causa da obs­ do chegar ao vômito fecaloide. O fato de o local da obstrução
trução é de difícil identificação. Nesta situação, o paciente será situar-se na parte distai do intestino delgado faz com que o
operado e a causa da obstrução só será identificada durante a aparecimento dos episódios de vômito leve algum tempo para
laparotomia. acontecer. O intervalo entre o início da dor e o aparecimento do
As causas mais frequentes de obstrução são: hérnia exter­ vômito orienta o diagnóstico do ponto de obstrução. O doente
na, bridas, câncer, invaginação e hérnia interna. Essas causas pode apresentar grande distensão abdominal, que em certos ca­
variam de lugar para lugar e com a idade dos pacientes. Como sos chega a criar dificuldade respiratória. Note-se que, à medida
a hérnia externa e a brida são as duas causas mais frequentes que a obstrução é de localização mais distai no delgado, mais
no nosso meio (70% das obstruções intestinais), o diagnóstico se aproxima do quadro da obstrução do cólon.
é facilitado, porque a simples inspeção mostrará a presença da
hérnia ou da cicatriz cirúrgica abdominal. ■ E x a m e f ís ic o
O diagnóstico de obstrução intestinal é clínico. Com a Antes de iniciar o exame, é importante que o paciente in­
ajuda dos métodos de imagem, podemos obter informações forme o lugar exato do início da dor, seu deslocamento, sua
sobre o tipo de alça envolvida, a extensão do comprometimen­ intensidade, irradiação característica e se existe um lugar onde
to, assim como o melhor acesso para uma abordagem cirúrgica é mais intensa. O abdome deve ser amplamente exposto de
confortável do ponto de obstrução. maneira que os orifícios herniários sejam visíveis. Devemos
usar todos os nossos sentidos procurando colher o máximo de
■ Obstrução do delgado informação. Na inspeção, observar a presença de distensão,
tipo de respiração, abaulamento da parede, deformidade, pe­
■ D ia g n ó s t ic o c lín ic o ristaltismo visível, cicatrizes cirúrgicas. Os orifícios herniários
Os sinais e sintomas clássicos de dor, vômito, parada de devem ser cuidadosamente examinados, principalmente nos
eliminação de gases e fezes e distensão correspondem à obs­ pacientes obesos, em que o panículo adiposo pode ocultar uma
trução do meio do delgado e são influenciados pelo ponto de pequena hérnia. As cicatrizes devem ser valorizadas mesmo
obstrução e tempo de doença. que sejam pequenas, como nas incisões usadas na cirurgia por
A dor é a clássica, em cólica, representando o esforço do in­ videolaparoscopia. Apoiar a mão espalmada e aquecida sobre o
testino para vencer a barreira física. O período de exacerbação abdome e procurar perceber a movimentação das alças, sentir
dolorosa é o melhor momento para auscultar o abdome e per­ o borborigmo produzido pelo peristaltismo exacerbado, assi­
ceber o peristaltismo com suas características especiais. nalar pontos dolorosos e a presença de peritonite. A percussão
Os vômitos são inicialmente reflexos, consequentes à in­ será usada para verificar o timpanismo das alças distendidas,
tensidade da dor. Posteriormente, representam o mecanismo a macicez de declive, a bexiga cheia e para substituir a des-
pelo qual o organismo tenta se livrar da sobrecarga de conteúdo compressão dolorosa na pesquisa de peritonite. Auscultar o
intestinal que não consegue progredir. O material eliminado abdome, no momento de exacerbação dolorosa para perceber
do estômago inicialmente é claro; quando reflui do duodeno o peristaltismo com suas nuanças. Assinale-se que a presença
504 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal

de peritonite significa doença avançada, grave, e certamente Se o intestino contém ar e líquido, formará as imagens de
haverá silêncio abdominal. níveis líquidos.
Se o intestino contém muito líquido e pouco ar, formará
■ D ia g n ó s t ic o p o r i m a g e m imagem semelhante às contas do rosário.
Iniciar com radiografia (RX) simples do abdome, que é efi­ Se o intestino só contém ar, transmitirá as imagens das dis­
ciente em 60% dos casos. As incidências clássicas são: RX de tensões intestinais sem níveis líquidos, frequente nas incidências
tórax, RX simples de abdome em ortostatismo, com a opção em decúbito dorsal em que os níveis não se tornam aparentes.
do decúbito lateral esquerdo, com raios horizontais, quando A identificação do gás intraluminal permite o reconhecimento
o paciente não puder ficar de pé, e RX simples de abdome em dos diferentes segmentos do tubo digestivo.
decúbito dorsal. Atualmente, com a evolução tecnológica, pas-
3. Reconhecer, pela topografia e pelo aspecto morfológico,
sou-se a usar a tomografia computadorizada helicoidal, às vezes
quais são os segmentos do tubo digestivo comprometi­
associada à reconstrução em 3D, principalmente nos casos mais
dos, o que poderá permitir o diagnóstico de obstrução
difíceis e complicados, mas que exige um especialista mais bem
mecânica e também o diagnóstico diferencial entre íleo
qualificado na interpretação das imagens. Nos casos de subo-
adinâmico e as desordens da parede intestinal.
clusão, indefinidos, arrastados, sem urgência, podemos lançar
mão dos exames contrastados. O objetivo de todos esses exa­ Os cólons posicionam-se como que fazendo uma moldu­
mes é procurar evidenciar o ponto de obstrução, que é o alvo ra para o delgado: ascendente e descendente verticalizados e
da intervenção cirúrgica. ocupando as goteiras parietocólicas, e o transverso cruzando
Para entender os achados dos exames de imagem, é preciso: da direita para a esquerda e de baixo para cima em direção ao
diafragma esquerdo. É reconhecido pelas saculações, chama­
1. Conhecer os cinco padrões clássicos de densidade de ima­
das de haustrações, que são dilatações em forma de crescente,
gem radiológica. Os padrões são: ar, gordura, água (ou
delimitadas pelas plicas semilunares.
de partes moles), cálcio e metal.
O delgado ocupa uma posição central. As pregas mucosas
2. Conhecer as modificações do tubo digestivo a partir do
orientam-se transversalmente, colocando-se paralelamente,
momento em que se estabelece a obstrução.
próximas umas das outras, distanciadas com intervalos regu­
As modificações do tubo digestivo na presença de obstrução lares e estendendo-se de uma parede a outra da luz intestinal a
são variáveis. Há acúmulo do seu conteúdo acima do local da um ângulo de 90°. Em condições normais, seu calibre não deve
obstrução, ao mesmo tempo em que, abaixo, fica vazio. Este exceder 3 cm e a espessura da prega deve ser inferior a 3 mm.
acúmulo tem múltiplas variáveis responsáveis pelas diferentes Quando distendido, o delgado é reconhecido pelas pregas de
apresentações. O diagnóstico de obstrução torna-se progres­ Kerkring. O delgado não tem gás, ao contrário do cólon, que
sivamente menos difícil à medida que o ponto de obstrução sempre tem gás. Este é o padrão radioiógico normal. Toda vez
situa-se mais distalmente no delgado, porque o envolvimento que observarmos inversão do padrão radioiógico normal, ou
de maior quantidade de alças faz com que o quadro radioiógico seja, delgado distendido, cheio de gás, e o cólon vazio, estare­
fique mais facilmente identificável. mos diante de um quadro de obstrução mecânica.
Se o intestino está repleto de líquido, transmitirá a imagem Em determinadas condições, poderemos lançar mão dos
do padrão água e de pseudotumor. exames contrastados do intestino delgado, com bário ou com

Figura 48.1 A. RX simples de abdome em posição ortostática. Obstrução do delgado mostrando os níveis líquidos em diferentes alturas. Ob­
servar a opacidade abaixo dos níveis, representando alças cheias de líquido. Não há gás nos cólons. B. RX simples de abdome em ortostatismo.
Obstrução do delgado. Observar o padrão da mucosa com as pregas de Kerkring. Ausência de gás nos cólons.
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 505

Figura 48.2 A. RX simples de abdome em ortostatismo mostrando níveis aéreos no intestino delgado. As setas mostram bolhas de gás, em
série, retidas dentro da alça, que representam o sinal das contas do rosário, significando que o paciente está realmente obstruído. B. RX simples
de abdome em decúbito dorsal mostrando o gás retido no intestino delgado. As setas assinalam o gás na forma de faixas sequenciais, que
representam o sinal ó o * s tr e c h s ig n * significativo de que o paciente está realmente obstruído.

Figura 48.3 A. RX simples de abdome, em decúbito dorsal, mostrando delgado distendido com gás. Nào é possível a percepção de níveis
hidroaéreos devido à incidência dos feixes de RX, em relação à posiçáo do paciente. B. RX simples de abdome em decúbito dorsal mostrando
a apresentação em escada na obstrução do delgado.

contraste hidrossolúvel. Para usar o bário, é necessário preen­ A tomografia computadorizada (TC) é um exame que não é
cher determinadas condições: não pode haver a menor sus­ acessível a todos, mas, quando disponível, deve ser usado nos
peita de estrangulamento, peritonite ou perfuração. O con­ casos em que a radiologia convencional não forneça as infor­
traste hidrossolúvel está indicado quando existe suspeita de mações desejadas. É capaz de mostrar detalhes que a radiologia
perfuração. Enfatizamos que se deve usar o exame contrastado convencional não consegue captar, como aqueles da estrutura
somente diante da dúvida. A presença de pneumoperitônio da parede intestinal, tanto do lado da luz, quanto da parte ex­
confirma a existência de perfuração, que dispensa o exame terna da parede, o que o torna de grande utilidade para o diag­
contrastado. nóstico de obstrução por torção do meso e de estrangulamento.
506 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal

Figura 48.4 Exame contrastado do intestino delgado. Observar a di­ Figura 48.5 RX simples de abdome em decúbito dorsal mostrando
ferença de calibre - maior no jejuno que no íleo - e da conformação a escassez de gás no intestino delgado e o cólon delineado pela pre­
das pregas, transversais no jejuno (Kerkring) e longitudinais no íleo, sença de gás.
assim como sua posiçào central no abdome.

Figura 48.6 A. Exame contrastado do delgado mostrando o local de estreitamento responsável pelo quadro de suboclusão intestinal. B. Exame
contrastado do delgado mostrando o local do estreitamento responsável pelo quadro de subodusào intestinal.

Tem a grande vantagem de não ser “operador-dependente”, da mudança de calibre das alças: alças distendidas acima e va­
como é o ultrassom. Embora seja um exame cada vez mais zias abaixo do ponto de obstrução e, na ausência de outra causa
empregado, principalmente a TC helicoidal pela sua rapidez que seja responsável pelo quadro obstrutivo, podemos deduzir
de execução, seu uso indiscriminado não é recomendável. Os que se trata de uma brida. Este raciocínio tem seus oponentes,
exames devem ser individualizados e particularizados, com in­ que preferem fazer o diagnóstico de maneira direta e não por
dicação dos objetivos, para que possam orientar o radiologista exclusão.
e racionalizar os custos. Nos centros mais desenvolvidos, que pesquisam e compa­
Mesmo com a utilização dos novos equipamentos, a chave ram os pacientes com a realização dos dois exames, já existe
para o diagnóstico de obstrução continua sendo a observação uma tendência de iniciar a investigação com a TC e, mesmo
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 507

nos casos em que não há dúvida, realizam a TC para obter o


máximo de informações possíveis, principalmente quando a
pretensão é fazer tratamento conservador.
A ressonância magnética é um avanço diagnóstico bem-
vindo, mas não tem indicação na investigação de pacientes com
obstrução intestinal. Uma condição em que pode ser útil é na
suspeita diagnóstica de oclusão vascular mesentérica, demons­
trando, de maneira confiável, a vascularização mesentérica.
Finalmente, a ultrassonografia (US) é de valor limitado na
obstrução intestinal devido ao acúmulo de gases no intestino,
dificultando a formação de imagens.

■ Obstrução do cólon
■ D ia g n ó s t ic o d í n i c o
Figura 48.7 TC de abdome após administração de contraste oral e A sintomatologia da obstrução do cólon difere da do delgado
venoso. Observar alça ileal com distensão e redução do calibre em bico por condições anatômicas e fisiológicas: o cólon está preparado
de pena, sem espessamento da parede (obstrução por brida). para reter gases e fezes, está distante do estômago e muito pró­
ximo do orifício de esvaziamento, o ânus. A complacência do
cólon, a ausência de dor forte, que poderia desencadear vômitos
reflexos, e a distância do estômago fazem com que a ocorrência
de vômito seja rara. A distensão pode assumir grandes propor­
ções. A parada de gases e fezes poderá ser o primeiro sintoma,
desde que interpretada corretamente, porque, na maioria dos
casos, ocorre em pacientes idosos com história de constipação
crônica. Na obstrução do cólon, a grande distensão abdominal
é o sinal predominante.

■ E x a m e f ís ic o
A mesma conduta utilizada para a obstrução do delgado
deve ser mantida quando a suspeita é de obstrução do cólon.
A grande distensão será evidente, com timpanismo aumenta­
do, dor fraca referida ao hipogástrio, ceco facilmente palpável,
o que já nos dará informações do problema atual, preditivo
da possibilidade de rotura do ceco, antes mesmo do exame
Figura 48.8 TC do abdome revelando que a causa da obstrução é
recidiva de tumor e não brida. Observar a presença de massa intralu- radiológico.
minar e espessamento parietal.

Figura 48.9 RX simpies de abdome em ortostatismo. Observar a gran­ Figura 48.10 RX simples de abdome em decúbito dorsal. Observar a
de dilatação dos cólons e o delgado sem gás. Imagem habitual da grande dilatação dos cólons, o delgado sem gás e a parede da coluna
obstrução da alça sigmoide com válvula ileocecal competente. de ar na altura do ilíaco esquerdo.
508 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal

■ D ia g n ó s t ic o p o r i m a g e m
A imagem radiológica do cólon é influenciada pelo local e
duração da obstrução, composição do conteúdo intestinal e
pela competência da válvula ileocecal.
O cólon sempre tem gás. Na ocorrência de obstrução, ob­
servamos uma exacerbação do quadro radiológico normal: o
cólon extremamente distendido e o delgado sem gás. O cólon
apresenta haustrações, que são pregas espessadas da mucosa
que não atingem os dois lados da luz intestinal, separadas por
grandes recessos; contém material sólido e apresenta partes fi­
xas no retroperitônio facilmente identificáveis: o ascendente e o
descendente são segmentos tipicamente orientados no sentido
cefálico, junto à parede lateral do abdome, e o reto encontra-
se no meio da pélvis.
Na fisiologia normal o conteúdo intestinal passa continua­
mente do delgado para o cólon através da válvula ileocecal.
Aproximadamente 75% dos pacientes têm a válvula ileocecal
competente. Podemos antever três situações diante de uma
obstrução do cólon:
1) A válvula é competente. Neste caso, teremos a situação
clássica de obstrução em alça fechada. É o quadro mais
comum. Nesta situação existe possibilidade de rotura do Figura 48.11 Clister opaco em tumor obstrutivo do cólon descen­
ceco quando, no RX simples, identificarmos o ceco com dente. Há distensão do delgado em consequência da válvula ileocecal
diâmetro aproximado de 12 cm. É uma emergência ci­ incompetente.
rúrgica.
2) A válvula é competente, porém a grande pressão den­
tro do ceco bloqueia a progressão do conteúdo. Situação
igual à anterior, com os mesmos problemas, mas com a
participação do delgado distai, o que pode trazer alguma
indecisão com a presença do delgado distendido.
3) A válvula ileocecal é incompetente. Neste caso a pressão
aumentada dentro do ceco será transmitida para o íleo
terminal, que ficará distendido, e o risco de rotura do
ceco será pequeno. A participação do íleo terminal, com
sintomatologia compatível com obstrução baixa do del­
gado, pode mascarar o diagnóstico correto, entretanto o
cólon sempre estará muito distendido.
O exame contrastado do cólon deve obedecer a algumas
regras básicas:
• Não pode haver suspeita de perfuração, real ou iminente;
• Não pode haver suspeita de isquemia;
• O ceco não deve apresentar-se com diâmetro maior que
10 cm.
As principais indicações para o uso do exame contrastado
do cólon são:
• Determinar o local da obstrução com precisão;
• Fazer o diagnóstico diferencial entre pseudo-obstrução Figura 48.12 Clister opaco mostrando a interrupção da coluna de
e obstrução mecânica; bário na sigmoide por tumor obstrutivo.
• Ocasionalmente, reduzir o volvo da sigmoide ou inva-
ginação intestinal.
O exame contrastado de emergência é realizado sem prepa­ a intenção de, com a precisão diagnóstica, executar o menor
ro do intestino, porque a informação desejada é limitada, sem procedimento cirúrgico no momento em que o paciente se en­
necessidade de ver detalhes da mucosa, somente identificar contra no estágio mais delicado de sua doença.
o ponto de obstrução. Na suspeita de perfuração, o contraste
hidrossolúvel é o indicado, se um diagnóstico preciso for es­ ■ Exames laboratoriais
sencial. Em se tratando de abdome agudo, os exames laboratoriais
A TC pode trazer contribuição importante, particularmente serão os necessários para se ter uma avaliação geral do paciente.
quando executada com administração de contraste hidrossolú­ Eles devem ser objetivamente orientados para o tipo de procedi­
vel por via retal e associada com contraste venoso. mento a que irá se submeter. Quanto mais longo o tempo de obs­
Na obstrução do cólon, sempre podemos confirmar a sus­ trução, mais grave o caso; quanto mais idoso e maior a evidência
peita diagnóstica com quaisquer dos exames relacionados, com de doenças associadas, mais elaborados serão os exames.
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 509

é fundamental que a recuperação seja iniciada precocemente.


Este procedimento é igual para todos. A individualização do
tratamento dependerá dos achados clínicos. A inobservância
desta disciplina é um dos fatores que mantêm a mortalidade
elevada. A correção dos distúrbios hidreletrolíticos continuará
durante a operação e no pós-operatório.
Inicia-se o tratamento clínico com aspiração nasogástrica,
reposição hídrica, medida do volume urinário, monitorização
do pulso, pressão venosa central (PVC) e pressão arterial. A
escolha do momento certo para operar o paciente é a deci­
são mais importante que o cirurgião deve tomar. O momen­
to ideal para iniciar o procedimento cirúrgico dá-se quando
o paciente apresentar pressão normal e estável, diminuição
da frequência do pulso e eliminar, pela primeira vez, 30 m f
de urina em 1 h.
Os pacientes dividem-se naturalmente em dois grupos:
1. Pacientes diagnosticados precocemente - quando o diag­
Figura 48.13 TC da pelve após contraste oral, venoso e retal. Observar nóstico é feito em menos de 24 h após o início da sintoma­
lesão estenosante decorrente de tumor na junção retossigmoide com
tologia.
acentuado espessamento da parede intestinal.
• São facilmente hidratados e repostos;
• Submetem-se a procedimentos cirúrgicos sem comple­
xidade;
• Apresentam os melhores resultados.
2. Pacientes diagnosticados tardiamente - quando o diagnós­
tico é feito com mais de 24 h do início da sintomatologia.
• Apresentam complicações progressivas: desidratação se­
vera, hipotensão e choque;
• Sinais clínicos de estrangulamento, perfuração e peri-
tonite;
• Estado geral deteriorado;
• Necessitam de um planejamento mais elaborado de re­
posição hidreletrolítica;
• Têm indicação para tratamento em unidades de terapia
intensiva;
• Submetem-se a operações mais longas e complexas;
• Apresentam os piores resultados, com mortalidade ele­
vada.
O tratamento desses pacientes deve obedecer a um critério
Figura 48.14 TC da pelve após contraste venoso. Divertículos da sig-
moide. Observar o aspecto sacular da mucosa, o espessamento da de prioridades. Para que o esforço em colocá-los no sentido
parede e a infiltração da gordura mesentérica que se apresenta com da recuperação obtenha o máximo de eficiência, o tratamento
maior densidade. deve seguir uma disciplina e ordem. Se toda a água e eletrólitos
perdidos forem repostos ao mesmo tempo, o resultado poderá
ser desastroso: o paciente pode desencadear descompensação
cardíaca e edema pulmonar, principalmente nos idosos. Por ou­
A desidratação é a complicação habitual, consequentemente tro lado, se nada for feito, permanecerá hipovolêmico, chocado,
os exames estarão alterados e poderão dar informação da gra­ sem condições clínicas para submeter-se à operação.
vidade da desidratação. Leucocitose associada a modificação Outro ponto importante, para a tomada de decisão, é o re­
do quadro clínico pode revelar a presença de estrangulamento. conhecimento do fato de que, quando há obstrução completa
Não devemos ter confiança excessiva nos exames laboratoriais do intestino, o curso da doença é inevitável e fatal, a não ser
para não sermos induzidos a erro. Exames “normais” em um que a obstrução seja aliviada. Há três possibilidades:
paciente desidratado são enganosos.
• A obstrução se desfaz, possivelmente com a ajuda da aspi­
ração nasogástrica;
■ T r a ta m e n to d ín ic o
• Forma-se uma fístula;
O bom êxito do tratamento depende do conhecimento do
• Realiza-se uma intervenção cirúrgica.
fato de que é tão importante tratar os efeitos quanto a causa da
obstrução. Isto significa que todo paciente obstruído necessi­ Concordamos que, diante de uma obstrução sem alívio, a
ta receber reposição hidreletrolítica antes de tratar a causa da melhor solução é uma intervenção cirúrgica. Entretanto, em
obstrução, pois todo paciente obstruído perde líquido, ou seja, algumas situações, não seria desejável operar: pacientes com
perde volemia. A partir de 20% de perda volêmica, começa a história de infarto do miocárdio recente, cardiopatia descom-
apresentar alteração hemodinâmica: o volume urinário dimi­ pensada, arritmias, diabetes descompensado, múltiplas ope­
nui, a frequência do pulso se eleva e a pressão arterial cai. A rações anteriores por obstrução, pós-operatório imediato, su-
experiência já mostrou que, para o bom êxito do tratamento, boclusão intestinal. Entenda-se que não se trata de tratamento
510 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal

clínico de obstrução intestinal. Obstrução intestinal é uma do­


ença cirúrgica.
É condição fundamental que não haja a menor suspeita de
estrangulamento. Dentro deste raciocínio, a utilização da TC,
por sua habilidade em revelar alterações da estrutura da pare­
de intestinal e maior segurança na avaliação de que realmen­
te não há estrangulamento, é atualmente indicada. Inicia-se o
tratamento clínico e acompanha-se atentamente a evolução do
quadro obstrutivo, com reavaliações a cada 2 a 3 h.
São indicadores de que o tratamento está sendo eficiente:
• Diminuição da distensão, provavelmente por redistri-
buição dos gases.
• Diminuição da drenagem gástrica. Não só quanto ao vo­
lume, mas também pela modificação das características
da drenagem (fica cada vez mais clara).
• Interrompe-se a aspiração nasogástrica e observa-se a
Figura 48.15 TC em pós-operatório de cirurgia abdominal, eviden­
tolerância do paciente. Se na próxima avaliação não hou­ ciando alça de intestino delgado fixa na parede abdominal ao nível
ver fatos novos, podemos admitir que o tratamento está da cicatriz cirúrgica mediana.
sendo eficiente.
• O próximo passo é levar o paciente para uma nova in ­
vestigação radiológica e observar se a boa evolução tem
correspondência na distribuição dos gases. Do ponto de vista técnico, o maior procedimento sobre o
Entretanto, se na reavaliação, após a interrupção da aspi­ intestino delgado é uma ressecção intestinal com anastomose
ração nasogástrica, houver recidiva da sintomatologia inicial, primária. Entretanto, alguns pontos merecem ser enfatizados
significa que a melhora clínica era devida à aspiração naso­ para que a sequência do tratamento seja harmônica e com o
gástrica. Não há necessidade de nova investigação radiológica. máximo de eficiência. É mais fácil manusear as alças vazias do
Interrompe-se a tentativa de tratamento sem operação e, com que as distendidas e friáveis; todos os acotovelamentos em ân­
os cuidados necessários, operamos o paciente. gulo fechado devem ser desfeitos; evitar desperitonização, aber­
Alguns autores, diante de um paciente com obstrução por tura do intestino e contaminação da cavidade peritoneal; não
brida sem evidência de complicações, apoiados na TC, tentam fechar o abdome sob grande tensão. É uma ilusão pensar que a
o tratamento clínico por tempo mais longo, entre 48 e 72 h, abertura do intestino para aspiração do conteúdo sequestrado
antes de decidir pela intervenção cirúrgica. O que se observa será benéfica e facilitará o fechamento da parede.
é que, quando a obstrução é completa, a porcentagem de su­ As complicações estão relacionadas à gravidade do quadro
cesso é pequena. Nas obstruções incompletas, os resultados obstrutivo. A ocorrência de necrose, perfuração e peritonite
são melhores. Neste tipo de conduta, há sempre o risco de is- inevitavelmente levarão a um quadro de íleo paralítico, em que
quemia e necrose da alça comprometida, e consequentemente o suporte clínico adequado será de fundamental importância.
agrava-se o quadro, que passa a ser como se fora um paciente Outras complicações que podem surgir são abscessos, fístu-
de diagnóstico tardio. las, deiscência de anastomose, evisceração e má avaliação da
viabilidade intestinal. A prevenção das complicações é objeti­
■ T r a t a m e n t o c i r ú r g ic o vo importante em toda laparotomia, que deverá ser delicada,
Os procedimentos cirúrgicos têm como alvo a causa da obs­ precisa e exangue.
trução e suas complicações. A cirurgia videolaparoscópica não é a ideal e só deverá ser
realizada por cirurgiões com grande experiência com o método
■ Hérnia estrangulada e com a doença. Em princípio, é desaconselhável pela grande
Estatisticamente, é a causa mais frequente de obstrução in ­ distensão, que dificulta a exploração abdominal, tornando pos­
testinal em nosso meio. Este fato obriga o médico a sempre sível falha de identificação de aderências, às vezes múltiplas.
examinar os orifícios herniários, com paciência e cuidado nos
pacientes obesos, em que o grande panículo adiposo associa­ ■ Obstrução do cólon
do a pequenas hérnias pode trazer alguma dificuldade para se O segmento mais envolvido é o cólon descendente, e 70%
estabelecer o diagnóstico quando a causa da obstrução não é dos casos ocorrem na junção retossigmoidiana, onde os tumo­
facilmente identificável. A técnica cirúrgica segue as regras bá­ res são infiltrantes e estenosantes, classicamente referidos como
sicas da cirurgia das hérnias. em anel de guardanapo.
Quando o segmento envolvido é o cólon, o comportamento
■ Bridaseaderências do cirurgião deve ser modificado para adaptar-se às suas par­
É a segunda causa mais frequente de obstrução intestinal ticularidades. O cólon é um reservatório de fezes e as paredes
em nosso meio. Quando toda a parede abdominal está exposta adelgaçadas pela distensão não se prestam para uma boa anas­
à inspeção, teremos aproximadamente 75% de probabilidade tomose. Além disso, na vigência de obstrução, há aumento da
de identificar a causa da obstrução: o paciente terá uma hérnia proliferação e da virulência das bactérias. A sequência tradicio­
externa ou uma cicatriz cirúrgica abdominal, independente do nal do tratamento cirúrgico consiste em três tempos; o primeiro
tamanho. O delgado é o segmento intestinal mais envolvido, e será descomprimir e derivar, realizando-se uma colostomia; o
estes dois elementos - cicatriz abdominal e obstrução do del­ segundo será o procedimento definitivo para ressecar o tumor;
gado - indicam, com grande probabilidade de acerto, o diag­ o terceiro, por fim, será fechar a colostomia. Nos casos com­
nóstico de obstrução por brida. plexos em que há rotura do ceco, é necessário que se aborde a
Capítulo 48 / Obstrução Intestinal 511

perfuração para evitar a perpetuação da contaminação perito- diagnóstico pré-operatório, do tipo de procedimento realizado e
neal. O tratamento realizado em três tempos é acessível tanto da probabilidade de complicações é importante para se correla­
ao iniciante quanto ao cirurgião experiente. Quando houver a cionar com os sintomas atuais. A suspeita ocorrerá se o paciente
associação de cirurgião experiente, recursos materiais e pacien­ apresentar uma recuperação retardada; os novos sintomas ou
tes selecionados, é possível reduzir o número de operações. a perpetuação do íleo merecem ser investigados com atenção.
Quando se tratar de diverticulite do sigmoide, com obstru­ Deve-se manter o paciente hidratado, aspirado e monitorizado,
ção, o melhor exame para investigar o estado da alça é a TC, pela sob vigilância constante, até a resolução dos problemas.
sua habilidade de revelar o que está acontecendo na luz, na pa­
rede e fora da parede intestinal. Quando há indicação cirúrgica,
o melhor procedimento é aquele em que se retira o segmento
■ Obstrução recorrente
doente, inflamado e abscedido de dentro do abdome, habitual­ O paciente com recidivas frequentes de obstrução por bridas
mente a colostomia de duas bocas ou a cirurgia de Hartmann. e aderências torna-se um problema de difícil solução. Apesar
dos avanços na compreensão do processo de cicatrização, ainda
não conhecemos meios de controlá-lo; nem temos como ante­
■ PROBLEMAS E DIFICULDADES ver quais pacientes apresentarão tais recidivas, assim como não
sabemos explicar por que alguns pacientes criam múltiplas ade­
As dificuldades surgem na medida em que estamos investi­ rências e outros não. O paciente operado por bridas tem uma
gando casos complexos e tardios. O diagnóstico de obstrução probabilidade 20% maior de apresentar nova obstrução do que
intestinal é clínico e, neste caso, a história e exame físico, re­ o paciente operado por outras razões; e, quanto mais vezes é
alizados com o máximo de detalhes, fornecerão os elementos operado, maior a probabilidade de novos episódios. A tentativa
para o raciocínio clínico. A compreensão da fisiopatologia da de evitar novos episódios com procedimentos que acomodam
doença, como apresentada, permite que o médico encontre o de maneira organizada as alças intestinais, como as operações
caminho correto para atuar de maneira eficiente. de Noble e Philips, tem resultados controversos.
Alguns pontos merecem ser enfatizados: o alvo da investiga­
ção é o local da obstrução, a partir deste ponto as alças estarão
dilatadas, cheias de gás e líquido a montante e vazias a jusante;
■ Obstrução na mulher grávida
a magnitude da dilatação e a quantidade de líquido e gás são Quando tratamos uma mulher grávida, é importante o co­
aleatórias; a ausência de peristaltismo significa que o intestino nhecimento preciso das particularidades anatômicas e fisioló­
entrou em estafa ou que há necrose da alça envolvida, a pre­ gicas que acompanham a gravidez: ela é fisiologicamente hiper-
sença de peritonite pode ter outra causa que muitas vezes será volêmica e anêmica e estamos tratando de duas pessoas.
difícil de esclarecer somente com o RX simples. Nestes casos, Para tratar corretamente de ambas, devemos tratar bem da
a TC assume grande importância, porque poderá esclarecer mãe, porque em situações de risco de vida a natureza tende
a causa real da peritonite. Um dos problemas difíceis do pré- a preservar a mãe; o grande útero, apoiado sobre a veia cava,
operatório é afirmar com segurança se existe ou não estrangu­ pode dificultar o retorno venoso, com consequente redução
lamento, principalmente na fase inicial: temperatura acima de
38°C, dor constante, pulso elevado, leucocitose acima de 15.000
e silêncio abdominal ajudam, mas não são definitivos. A TC é
de grande ajuda nesses casos. A presença de sinais de peritonite
não deixa dúvidas da gravidade do caso.
A avaliação da viabilidade da alça comprometida é um pon­
to difícil durante a operação. Deve-se observar atentamente o
retorno da coloração ao normal, dos batimentos arteriais, do
brilho da superfície peritoneal e do peristaltismo e avaliar a
textura dos tecidos. Se persistir a dúvida, deve-se ressecar o
segmento comprometido.
Portanto, a terapêutica da obstrução intestinal é cirúrgica.
Qualquer tentativa de tratamento clínico, a não ser em casos
muito especiais, já descritos, pode levar o paciente à morte.
Há, entretanto, que se realizar um preparo pré-operatório me­
ticuloso e adequado, sem apressar ou retardar o momento da
intervenção cirúrgica. É a “hora H” de Forgue. O clínico e o
cirurgião devem estar atentos para isso. Aguardar para operar
um paciente com perfuração ou necrose intestinal pode ser fa­
tal. Ao mesmo tempo, operá-lo com desidratação grave, sepse,
choque, com má perfusão tecidual e anúria, também. O bom
senso é a melhor arma de um bom médico.

■ PROBLEMAS COMPLEXOS Figura 48.16 RX simples de abdome em decúbito dorsal. Observar o


feto a termo comprimindo o ângulo esplênico do cólon. Transverso e
■ Obstrução no pós-operatório ceco (> 12 cm) muito distendidos, com pneumoperitônio consequente
à rotura do ceco. Sinal de Riegler presente no canto superior esquer­
O diagnóstico de obstrução intestinal no pós-operatório é um do, demonstrando a espessura da alça porque há ar dentro e fora do
grande desafio para o cirurgião. O conhecimento detalhado do tubo digestivo.
512 Capítulo 48 / Obstrução Intestinal

Figura 48.17 RX simples de abdome em decúbito dorsal. Observar Figura 48.18 Trânsito intestinal evidenciando perda da distensibili-
o delgado distendido e com perda do padráo da mucosa. As alças dade da alça com aspecto espiculado das bordas. Enterite actínica.
estão'carecas". Achado habitual nas lesões isquêmicas agudas como
o infarto enteromesentérico.

do débito cardíaco e hipotensão. Esta visão da paciente grávi­


da deve ser levada em consideração durante o tratamento clí­
■ OUTROS TIPOS DE OBSTRUÇÃO
nico. A tríade formada por dor abdominal em cólica, vômito
e parada de eliminação de gases e fezes levanta a suspeita de ■ íleo paralítico
obstrução intestinal tanto na paciente grávida como na não
Aparece como complicação de outras doenças, principalmen­
grávida. Diante da suspeita, não se deve hesitar em prosseguir
com a investigação, da maneira tradicional com o RX simples. te peritonites, sepse grave, distúrbios metabólicos e problemas
Entretanto, alguns autores preferem a TC helicoidal, embora neurológicos. A sequência é clássica: primeiro, aparece a doen­
tenha maior carga de radiação, apoiados na rapidez, precisão e ça básica seguida do surgimento da complicação. A ausculta do
habilidade em mostrar o ponto de obstrução e detalhes, como abdome mostrará ausência de ruídos peristálticos. Os exames de
a presença ou não de isquemia. imagem mostrarão delgado e cólon distendidos com gás.
O atraso entre o início dos sintomas e o tratamento definitivo
contribui efetivamente para a mortalidade elevada. Postergar a ■ íleo colônico (síndrome de Ogilvie)
investigação radiológica, devido à preocupação dos seus efei­
tos adversos para o feto, pode ser desastroso, pela possibilida­ Ocorre com maior frequência em pacientes no pós-opera­
de real de permitir o aparecimento de complicações. O risco tório, acamados e idosos. A dilatação mais acentuada acontece
de mortalidade materna e fetal sobrepuja o risco potencial da no ceco e no cólon ascendente. Comporta-se de maneira mui­
exposição do feto à radiação. to semelhante à da obstrução mecânica, inclusive com rotura
do ceco, entretanto não há barreira física detectável pela in­
vestigação direta do cólon tanto pelo clister opaco como pela
■ FATORES QUE INFLUENCIAM A MORTALIDADE colonoscopia. A colonoscopia é a melhor opção tanto para o
diagnóstico como para o tratamento.
A aspiração nasogástrica, que impede o aumento indesejável
do conteúdo do tubo digestivo obstruído; a reposição hidrele-
trolítica, com a intenção de corrigir a volemia, e a administração ■ Pseudo-obstrução intestinal
criteriosa de antibióticos, objetivando o tratamento de possível Simula a obstrução do delgado, entretanto o paciente não
contaminação peritoneal, são elementos que influenciam posi­
tem hérnia externa, nunca foi operado e relata episódios se­
tivamente na diminuição da mortalidade.
melhantes anteriores. As imagens são inespecíficas: na obs­
O atraso no diagnóstico, seja porque o paciente chegou tar­
de ao hospital, seja pela dificuldade em identificar a presen­ trução mecânica, não há gás abaixo do ponto de obstrução,
ça de estrangulamento, o desconhecimento do fato de que é enquanto no íleo paralítico e pseudo-obstrução aparece gás em
fundamental fazer reposição hidreletrolítica antes de operar todo o intestino. Quando estes pacientes são operados com o
e os erros de técnica cirúrgica, inclusive deixar de ressecar o diagnóstico equivocado de obstrução mecânica e há recidiva,
segmento de alça envolvido quando houver dúvida da viabi­ haverá dúvida entre pseudo-obstrução e brida. Neste caso, a
lidade da alça, são elementos que contribuem para manter a TC poderá esclarecer por que utiliza recursos inexistentes na
mortalidade elevada. radiologia convencional.
Capitulo 48 / Obstrução Intestinal 513
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Pseudo-obstrução Intestinal
VictorB. Koehne

Pseudo-obstrução intestinal é uma síndrome clínica caracteri­ e substância P, de receptores opioides ji e k, assim como a pro­
zada por sinais e sintomas de obstrução do trânsito gastrintes- dução de citocinas por células inflamatórias teciduais e circu­
tinal sem obstáculos mecânicos. Pode ocorrer de forma aguda lantes.
ou crônica e acometer todo o tubo digestivo ou partes dele, O quadro clínico típico se apresenta imediatamente após
desde o esôfago até o reto. Essa síndrome pode acompanhar a uma laparotomia através de distensão abdominal, dor discre­
terapêutica com certas drogas ou fazer parte do quadro clíni­ ta e mal localizada, náuseas, vômito e parada da eliminação de
co de algumas doenças, especialmente da esclerose sistêmica gases e fezes. O exame revela um abdome distendido e timpâ-
primária, de síndromes paraneoplásicas, da doença de Chagas, nico, com diminuição dos ruídos peristálticos e dor discreta e
do diabetes melito e da amiloidose. Quando tais doenças são difusa à palpação. A radiografia simples costuma evidenciar
excluídas, a possibilidade de miopatia ou neuropatia primária alças intestinais dilatadas principalmente no delgado, mas tam­
visceral deve ser considerada. bém no cólon.
Sendo assim, a pseudo-obstrução intestinal pode ser classi­ Não havendo intercorrências, o peristaltismo retorna espon­
ficada como secundária, quando fa z parte de uma doença sub­ taneamente em 2 a 3 dias, notando-se inicialmente a recupe­
jacente reconhecida como responsável pelo quadro, ou quando ração da motilidade do intestino delgado em cerca de 24 h,
causada pelo uso de drogas, ou primária, quando não há causa seguindo-se a do estômago em 24 a 48 h, e, por fim, a do có­
extraintestinal envolvida. lon, em 48 a 72 h, havendo, então, eliminação de flatos e fezes
Podemos ainda classificá-la como crônica, quando persiste pelo paciente. Alguns autores chamam de íleo paralítico ou adi-
além de 6 meses, ou quando se manifesta ao nascimento, per­ nâmico o quadro de inibição da motilidade que perdura além
sistindo após 2 meses de vida, ou aguda, correspondendo aos desse período.
demais casos. Dentre as formas agudas, destacam-se o íleo e a Quando isso ocorre, suspeita-se de complicações cirúrgicas,
pseudo-obstrução colônica aguda. tais como formação de abscessos e coleções, deiscências de su-
turas, hemorragia e lesões vasculares. Outros fatores também
devem ser investigados e corrigidos quando presentes, des­
■ ÍLEO tacando-se distúrbios eletrolíticos, metabólicos, endócrinos
e infecções locais, ou a distância. O emprego de analgésicos
Caracteriza-se pela hipomotilidade acentuada do trato gas- opioides, antidepressivos, antagonistas de canais de cálcio, fe-
trintestinal na ausência de obstrução mecânica ao trânsito, sen­ notiazinas e anti-histamínicos pode também contribuir para
do habitualmente consequente a um procedimento cirúrgico, o agravamento do quadro. Nos quadros de instalação tardia,
principalmente quando realizado na cavidade abdominal. Pode com rápida progressão dos sintomas e dor acentuada em có­
também ocorrer em situações clínicas diversas, destacando-se: lica, deve-se pensar em obstrução mecânica, que pode surgir
doenças neurológicas; infecções graves, abdominais ou não; em até 1% dos pacientes nos primeiros 30 dias após a cirurgia
infarto do miocárdio; distúrbios metabólicos como: descom­ abdominal.
pensação diabética, uremia, hipoparatireoidismo e distúrbios
eletrolíticos; pancreatite aguda; cólica ureteral.
O íleo pós-operatório é considerado uma resposta fisioló­
■ Prevenção e tratamento
gica à cirurgia do abdome, tendo-se evidências de que a inci­ A prevenção do íleo paralítico depende da técnica cirúrgica,
são cirúrgica, a manipulação das alças e o derrame de conteú­ devendo-se evitar grandes incisões e a manipulação excessiva
do irritante sobre o peritônio ativem vias neuronais e liberem das alças, preferindo-se, se possível, a via laparoscópica. O tra­
mediadores inflamatórios que inibem a motilidade intestinal. tamento é basicamente suportivo, envolvendo a correção dos
Supõe-se que o mecanismo fisiopatológico envolva a ativação distúrbios mencionados anteriormente, a reposição de água e
do eixo hipotalâmico-hipofisário, de neurônios adrenérgicos e eletrólitos IV e o uso criterioso de sonda nasogástrica em ca­
liberadores de óxido nítrico, peptídio intestinal vasoativo (VIP) sos de distensão do abdome e vômitos. Há uma tendência em

514
Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal 515

se reintroduzir dieta líquida oral mais precocemente, respei- a ausculta de ruídos hidroaéreos. A febre pode estar presente,
tando-se sempre a tolerância do paciente. A substituição total associando-se às doenças de base. No entanto, quando essa se
ou parcial dos analgésicos opioides no período pós-operatório acentua, e quando surgem sinais de irritação peritoneal ou rigi­
por anti-inflamatórios não esteroidais ou por anestesia epidural dez abdominal, deve-se supeitar de isquemia ou perfuração.
prolongada aplicada ao nível torácico tem benefício preventivo Uma vez instalada a síndrome, o acúmulo de gases, pro­
comprovado. Por outro lado, os trabalhos científicos não são duzidos pela flora colònica ou deglutidos pelo paciente, leva
uniformes quanto à demonstração da eficácia na redução do à distensão do cólon. Segundo a lei de Laplace, a tensão na
íleo com o incentivo à deambulação precoce do paciente ope­ parede intestinal depende do diâmetro da alça e de sua pres­
rado, salientando-se, contudo, sua importância comprovada são interna (tensão = diâmetro x pressão intraluminal). Sendo
ao prevenir atelectasias, tromboses venosas e pneumonias. Da assim, o ceco, submetido a maior tensão, devido ao seu maior
mesma forma, é questionável o uso de goma de mascar após a diâmetro, e também por apresentar parede menos espessa, é
cirurgia, apesar da segurança dessa prática. A base teórica para o segmento mais propenso a sofrer ruptura. Os estudos mais
tal prática está no estímulo vagai e na liberação de hormônios recentes sugerem que o risco de ruptura torna-se considerável
intestinais através da refeição-simulada (sham feeding) pro­ quando o diâmetro cecal atinge 12 cm, principalmente se a di-
porcionada ao se mascar a goma. Apesar de serem amplamen­ latação já dura alguns dias. No entanto, são citados casos em
te utilizados no tratamento de náuseas, os procinéticos, como que a perfuração se deu com diâmetros menores, assim como
eritromicina, domperidona, metoclopramida e cisaprida, não casos em que a distensão atingiu o dobro desse valor, havendo
mostraram eficácia no restabelecimento do trânsito intestinal. recuperação total. Sugere-se, mesmo, que a duração da dilata-
Mais promissores têm sido os estudos realizados com neostig- ção seja mais importante para determinar esse risco do que o
mina, um inibidor da acetilcolinesterase, e alguns novos anta­ tamanho total atingido pelo ceco. Ocorrendo perfuração, sur­
gonistas periféricos seletivos de receptores opioides p, como a gem os sinais de peritonite, quando então a mortalidade atinge
metilnaltrexona e o alvimopam. cifras superiores a 50%, não só pelo quadro abdominal, como
também pelo estado geral precário do paciente e pelas comor-
bidades habitualmente presentes.
■ PSEUDO-OBSTRUÇÃO AGUDA DO CÓLON O quadro radiológico caracteriza-se por distensão colònica,
principalmente dos cólons direito e transverso, que apresen­
(SfNDROME DE OGILVIE) tam diâmetro superior ou igual a 9 cm, podendo haver níveis
hidroaéreos. O delgado costuma apresentar dilatação devido
Apresenta denominação incorreta, uma vez que os dois casos à incompetência da papila ileal, pela deglutição de ar pelo pa­
descritos por Sir William Heneage Ogilvie, em 1948, referiam- ciente ou por peritonite. A presença de ar no retossigmoide
se a pacientes com quadro clínico crônico recorrente sugestivo permite o diagnóstico diferencial com quadros de obstrução
de obstrução colònica. Nesses pacientes, à laparotomia, não se mecânica, mas isso nem sempre ocorre. Em caso de dúvida
demonstrou obstrução mecânica do intestino, mas sim uma quanto ao diagnóstico diferencial, principalmente quando não
invasão tumoral do plexo celíaco, o que provocara, segundo se vê ar no cólon distai, pode-se realizar enema com contraste
esse autor, um predomínio do tônus parassimpático visceral hidrossolúvel ou colonoscopia, sempre com bastante cuidado
pela desnervação simpática decorrente da lesão. Supõe-se, hoje, devido ao risco de perfuração. A tomografia computadorizada
que os pacientes eram portadores de tumores primariamente helicoidal apresenta excelente acurácia diagnóstica nesses ca­
pulmonares. sos, com sensibilidade e especificidade acima de 90%, sendo de
Essa síndrome caracteriza-se por sinais e sintomas, habitu­ grande valia também na detecção de complicações.
almente transitórios e reversíveis, de obstrução do cólon, sem Os exames laboratoriais podem mostrar alterações hidrele-
causa mecânica. É pouco frequente, acometendo geralmente trolíticas e metabólicas, além de leucocitose discreta, condições
pacientes hospitalizados e com idade superior a 50 anos. A etio- comuns em pacientes com doenças que requerem tratamento
logia é obscura, ligando-se às mais diversas condições clínicas, hospitalar.
destacando-se: pós-operatório, insuficiência cardíaca conges­ O tratamento inicial dos casos mais brandos consiste em
tiva, acidente vascular cerebral, alcoolismo, sepse, infecções correção dos distúrbios hidreletrolíticos, passagem de sonda
abdominais e doença de Parkinson. Menos frequentemente, nasogástrica nos casos de vômitos, restrição da VO e incentivo
relaciona-se a infarto agudo do miocárdio, politraumatismo, à movimentação do paciente. Deve-se mudar, com frequência,
uremia, distúrbios hidreletrolíticos e queimaduras. Há ainda sua posição no leito, dando-se preferência aos decúbitos laterais
relatos de casos idiopáticos, que não atingem 6% do total. e ao decúbito ventral com travesseiros sob a pelve. É importante
Sabe-se que sua patogênese provavelmente envolve um de­ a suspensão das drogas que possam diminuir o peristaltismo,
sequilíbrio entre os tônus simpático e parassimpático do sis­ principalmente narcóticos e drogas com efeito anticolinérgi-
tema nervoso autônomo e, possivelmente, uma diminuição co. O uso de sonda retal é discutível. Esses cuidados levam à
da liberação de óxido nítrico de neurônios inibitórios e uma regressão da distensão em poucos dias, na maioria das vezes.
excessiva estimulação de receptores opioides p periféricos por Deve-se, sempre, monitorar o paciente com exames clínicos e
opioides endógenos ou exógenos. de sangue e com radiografias simples de abdome diárias ou a
A síndrome caracteriza-se pela distensão abdominal pro­ cada 12 h.
gressiva e acentuada, que se instala em poucos dias. Normal­ Se o diâmetro de ceco persiste acima de 9 cm e não se reduz
mente, ocorre a parada de eliminação de gases e fezes, mas após essas medidas em 72 h, deve-se lançar mão de tratamento
muitos pacientes ainda mantêm a capacidade de eliminar um farmacológico por via venosa. Procinéticos como eritromicina,
pouco de flatos, podendo mesmo apresentar diarréia. Descon­ cisaprida ou metoclopramida já foram usados no passado, sem
forto abdominal e dor difusamente localizada estão quase sem­ eficácia conclusiva, todavia. A naloxona, contudo, mostrou ser
pre presentes, muitas vezes associados a cólicas, às vezes acom­ útil em alguns casos induzidos pelo uso de opioides. Excelen­
panhadas por náuseas e vômitos. O exame do abdome revela tes resultados têm sido obtidos com o uso da neostigmina, um
timpanismo, com dor leve a moderada à palpação, mantendo-se inibidor da acetilcolinesterase de baixo custo, que atua compe­
516 Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal

tindo com a acetilcolina em sua ligação com essa enzima nos nuição do tônus simpático abdominal, favorecendo-se assim a
locais de transmissão colinérgica. A administração dessa droga atividade procinética do parassimpático. Resultados prelimina­
resulta assim em maior disponibilidade da acetilcolina na jun­ res com a técnica anestésica mostraram resultados semelhantes
ção neuromuscular, aumentando a contratilidade do músculo aos da colonoscopia, porém com menos efeitos colaterais.
liso. Sua eficácia varia entre 53 e 96% dos casos, a maioria dos Nas poucas ocasiões em que há insucesso com todos os tra­
trabalhos mostrando uma taxa de sucesso superior a 80%. tamentos descritos anteriormente, ou quando ocorre mais de
Em vista dos efeitos colinérgicos produzidos, as contraindi- uma recorrência com o tratamento endoscópico, deve-se ava­
cações para o uso da neostigmina incluem: frequência cardíaca liar a indicação de uma cecostomia descompressiva, que pode
abaixo de 60 bpm, pressão arterial sistólica inferior a 90 mmHg, ser realizada por via cirúrgica, percutânea transperitoneal ou
presença de broncoconstrição, acidose, sinais de perfuração in­ por via endoscópica. Essa cecostomia pode ser usada ainda em
testinal, creatinina sérica acima de 3 mg/d^, infarto do miocár- casos selecionados de perfuração cecal puntiforme, que pode
dio recente, terapia com betabloqueadores, gravidez e obstrução ocorrer, por exemplo, durante a colonoscopia.
mecânica. A dose usual é de 2 mg, ministrada lentamente (em A presença de sinais de irritação peritoneal, dor abdominal
3 a 5 min) em bolo endovenoso, ou, preferencialmente, em acentuada ou leucocitose progressiva levanta a hipótese de is­
infusão com 100 m^ de solução salina, em 1 h. A estimulação quemia acentuada ou perfuração, que ocorre em 3 a 15% dos
parassimpática decorrente de seu uso pode induzir bradicardia, pacientes, necessitando-se então de tratamento cirúrgico, que
sialorreia, náuseas e cólicas abdominais e, menos frequente­ em geral implica hemicolectomia direita.
mente, vômitos, assistolia, hipotensão, convulsões, inquietude, A mortalidade da síndrome situa-se entre 15 e 30%, elevan-
tremor, miose, broncoconstrição e sudorese. do-se até 50% quando ocorre perfuração intestinal, refletindo
Sendo assim, o paciente deve ser mantido em m onitora­ a presença de múltiplas comorbidades e o atraso frequente no
mento eletrocardiográfico e pressórico durante, e pelo menos, seu diagnóstico e tratamento.
uma hora após a administração venosa, utilizando-se atropina
ou glicopirolato para tratamento de possíveis efeitos colaterais
colinérgicos, havendo autores que sugerem seu uso profilático ■ PSEUDO-OBSTRUÇÃO INTESTINAL
rotineiro. A grande maioria dos enfermos responde em alguns
minutos com eliminação de flatos e/ou fezes e diminuição da CRÔNICA (P0IC)
distensão abdominal. Alguns deles necessitam de mais uma
ou duas doses da medicação após 4 h da primeira infusão, no > História e exame físico
caso de ausência de resposta inicial, ou havendo recorrência do
quadro, o que pode acontecer em até 35% dos casos. Os sinais e sintomas desta síndrome, em geral recorrente,
Se o tratamento farmacológico falha e o paciente ainda não variam conforme a localização e a intensidade do acometimen-
tem sinais de irritação peritoneal, deve-se proceder à colonos- to, que pode ir do esôfago ao reto.
copia descompressiva, na qual se aspira o máximo possível de ar A dor abdominal é frequente, ocorrendo não só pela dis­
da luz colônica, diminuindo-se assim sua pressão interna. Com tensão intestinal, mas também por espasmos musculares e pela
ela, pode-se ainda fazer o diagnóstico diferencial com outras hiperalgesia visceral.
doenças, tais como megacólon tóxico, colite por Clostridium O envolvimento do esôfago pode ser assintomático ou pode
difficile, isquemia mesentérica, neoplasias e vólvulo, sendo ain­ manifestar-se por disfagia, dor precordial e regurgitação, ou
da muito útil em caso de dúvidas sobre a presença de obstrução como pirose causada pelo refluxo gastresofágico.
mecânica. Deve-se lembrar que a colonoscopia traz o risco real A gastroparesia pode apresentar-se com vômitos, plenitude
de perfuração, devendo ser realizada com cuidado, utilizando- gástrica e saciedade precoce.
se a mínima insuflação de ar possível à introdução do aparelho. A predominância de acometimento do intestino delgado
A eficácia do método aumenta quando se consegue progredir leva ao supercrescimento bacteriano e à síndrome de alça cega,
o aparelho além da flexura hepática, a despeito de o preparo havendo esteatorreia, diarréia, distensão abdominal e desnu­
ser realizado apenas com enemas salinos de pequeno volume. trição. O acometimento predominante do cólon manifesta-se
A média de sucesso com o método é de, aproximadamente, por constipação intestinal acentuada, enquanto o estado nu­
70%, havendo recidiva da dilatação em até 40% das vezes e uma tricional do indivíduo tende a ser preservado. Em pacientes
taxa de perfuração de cerca de 3%. Para diminuir a recidiva, a com o intestino difusamente afetado, pode haver alternância
maioria dos autores preconiza a introdução e manutenção de desses sintomas.
uma sonda longa posicionada no cólon direito, o que promove O acometimento urinário simultâneo pode mostrar-se com
uma descompressão mais prolongada. infecções de repetição, disúria e retenção de urina.
A observação de mucosa isquêmica durante a colonoscopia Muitos pacientes apresentam história de laparotomias ex­
não indica, obrigatoriamente, uma laparotomia, já que a isque­ ploradoras que não evidenciaram obstrução mecânica, o que
mia pode ser reversível e parcial, ou seja, pode não atingir toda pode, desde então, levar a confusão diagnóstica devido à sus­
a espessura da parede. O sucesso deve ser avaliado clinicamente, peita da participação de aderências nas crises subsequentes. A
não podendo ser visibilizado radiologicamente de imediato, já sintomatologia costuma surgir na infância ou adolescência,
que o diâmetro cecal permanece aumentado, habitualmente, algumas vezes mais tarde, havendo história familiar positiva
logo após o procedimento. Em caso de recorrência, que ocorre em até 30% dos casos.
principalmente quando não é posicionada uma sonda descom­ A história clínica do paciente é, sem dúvida, o principal ele­
pressiva na primeira colonoscopia, pode-se repetir mais uma mento para o diagnóstico, devendo guiar os exames comple­
vez a terapia endoscópica. mentares. O quadro típico é de um paciente jovem com meses
Vários estudos mostraram também boa eficácia do trata­ a anos de sintomas insidiosos, terminando por apresentar epi­
mento da pseudo-obstrução colônica aguda utilizando-se blo­ sódios intermitentes de obstrução intestinal incompleta, com
queio anestésico epidural contínuo com bupivacaína ao nível evidências de desnutrição, distensão e dor abdominal, náuseas
do tórax. Tal procedimento promovería teoricamente a dimi­ e vômitos. Podem-se observar, às vezes, alterações neurológicas
Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal 517

ou do trato urinário, bem como evidências de doenças subja­ Na POIC primária miopática, podem-se observar, muitas
centes causadoras da síndrome. vezes: dilatação duodenal, acentuada hipocontratilidade, perda
de haustrações e aumento do diâmetro do cólon. Já na forma
neuropática, notam-se contrações abundantes, porém desor­
■ Diagnóstico ganizadas e ineficazes, muitas vezes com dilatação leve a mo­
■ Exames laboratoriais derada do delgado. A diferenciação segura entre essas formas,
Além dos exames usados na avaliação do estado nutricio­ contudo, não pode ser feita comumente pela radiologia.
nal e metabólico do paciente, deve-se solicitar, criteriosamen­ A urografia excretora pode mostrar alterações urinárias as­
te, e guiando-se sempre pela avaliação física e pela anamnese, sociadas, sendo citada a presença de disfunção da bexiga (me-
a realização de testes para doenças sistêmicas possivelmente gabexiga) em até 85% das crianças com a forma miopática pri­
causadoras de pseudo-obstrução intestinal crônica, tais como: mária da síndrome e em 15% daquelas com a forma neuropática
anticorpos antinucleares séricos (lúpus eritematoso sistêmico, primária.
esclerose sistêmica, poli e dermatomiosite), anti-SCL-70 (es- A tomografia computadorizada helicoidal tem boa indica­
clerose sistêmica), glicemia de jejum (diabetes melito), testes ção quando persiste a dúvida com o diagnóstico diferencial de
de função tireoidiana (hipotireoidismo), sorologia para doen­ quadros obstrutivos mecânicos.
ça de Chagas, dosagem de paratormônio e cálcio sérico (hipo-
paratireoidismo), creatinofosfoquinase (doenças musculares), ■ M anom etria
porfirinas (porfirias), lactato e piruvato séricos (doenças mi- Além da manometria esofágica, que tem se mostrado o me­
tocondriais) etc. Na síndrome paraneoplásica do carcinoma lhor método para estudo da motilidade desse segmento, dis­
pulmonar de pequenas células, pode-se detectar a presença de põe-se, em alguns centros especializados, da manometria in­
anticorpos anti-Hu (anticorpo antineuronal nuclear). testinal.
Na POIC, esse exame pode diferenciar os casos de miopatia
■ Radiologia (que se caracterizam por ondas peristálticas de pequena ampli­
As radiografias simples normalmente revelam níveis hidroaé- tude) dos casos de neuropatia (com ondas de amplitude nor­
reos e/ou presença de alça sentinela, podendo não haver qual­ mal, porém incoordenadas). Nesta última, observam-se ainda
quer alteração em períodos assintomáticos. Raramente, pode anormalidades ou mesmo inexistência da fase III do complexo
haver pneumatose intestinal e pneumoperitônio benigno (sem motor migratório em jejum. Uma resposta motora normal à
perfuração de alça), o que se explica, talvez, pela entrada de ar alimentação denota integridade tanto dos sistemas de controle
no intestino causada pelo aumento de pressão intraluminal e neural quanto da musculatura lisa gastrintestinal. Da mesma
pela presença de bactérias formadoras de gás. forma, alterações dessa resposta podem advir tanto de causas
Os estudos radiológicos contrastados mostram, muitas ve­ neurais quanto de musculares. Na presença de dilatação intes­
zes, o acometimento simultâneo de diversos segmentos do tubo tinal acentuada e duradoura, os registros manométricos podem
digestivo, vendo-se normalmente órgãos dilatados, sem evidên­ ser inespecíficos, com redução acentuada da atividade contrátil,
cias de obstrução mecânica. Para afastar esta última, e para que o que limita a sua utilização nesses casos.
se planeje adequadamente o tratamento, é importante que se Os estudos científicos têm mostrado ainda a utilidade de exa­
avalie radiologicamente todo o trato gastrintestinal. Deve-se mes de manometria antroduodenal para a avaliação do prog­
ter em mente que indivíduos em estágios iniciais da síndrome, nóstico e da possibilidade de resposta ao tratamento. Sendo
com alterações manométricas e clínicas sugestivas de pseudo- assim, pacientes que apresentem complexo motor migratório
obstrução intestinal, podem apresentar-se inicialmente sem têm boa possibilidade de tolerar dieta enteral, e aqueles em que
dilatação de alças. está presente a fase III desse complexo têm maior possibilidade
Na POIC primária, mais da metade dos pacientes apresenta de resposta ao uso de procinéticos.
alterações da motilidade esofágica, podendo mimetizar quadros A manometria pode ser utilizada também para detecção de
de acalasia ou espasmo esofágico difuso. segmentos intestinais afetados que devem ser contornados por
Não é incomum a presença de estômagos distendidos e com desvios cirúrgicos. Por exemplo, em casos de acometimento
esvaziamento retardado, e o estudo radiológico contrastado isolado do estômago, a alimentação por jejunostomia pode ser
ajuda a excluir uma causa obstrutiva mecânica para tal, porém considerada. Já quando há dismotilidade acentuada e isolada
sua correlação com o estudo cintigráfico é baixa, permanecen­ do cólon, uma ileostomia pode permitir a descompressão in­
do esse último como o método de escolha para o diagnóstico testinal e possibilitar a alimentação do paciente.
de gastroparesia.
A presença de megaduodeno é característica da forma au- ■ Biopsia intestinal
tossômica dominante de miopatia visceral, sendo ela muitas Apesar de o diagnóstico da POIC ser baseado no quadro
vezes diagnosticada erroneamente como “síndrome da artéria clínico e radiológico do paciente, algumas vezes a exclusão de
mesentérica superior”. obstruções mecânicas pela endoscopia e radiologia não é pos­
Para estudo do delgado, o método radiológico mais acura­ sível, devendo-se então recorrer à laparotomia exploradora.
do é a enteróclise, que consiste na introdução de uma sonda Quando a suspeita de uma obstrução mecânica não se confir­
no delgado proximal por onde se injeta contraste e ar, permi­ ma, devem-se realizar biopsias de espessura total do intestino,
tindo-se estudar a motilidade e a distensibilidade do órgão à colhendo-se material tanto da área dilatada quanto de uma
fluoroscopia. Esse exame, contudo, é bem mais trabalhoso e área de aspecto normal.
desconfortável que o estudo do trânsito intestinal VO, sendo Os fragmentos devem ter pelo menos 2 cm por 2 cm quan­
pouco usado em nosso meio. do abertos, possibilitando seu exame por colorações habituais
A observação radiológica de diverticulose intestinal difusa (hematoxilina-eosina e tricrômio de Masson) e especiais (técni­
pode estar associada tanto à POIC miopática quanto à neu- ca de coloração pela prata de Smith, imuno-histoquímica para
ropática. a pesquisa de c-kit etc.), a fim de se estudar adequadamente
518 Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal

sua camada muscular, plexo mioentérico e células intersticiais ---------------- T----------------


de Cajal. Quadro 49.1 Classificação clinicopatológica
Devem-se avaliar os reais benefícios advindos com a coleta da pseudo-obstrução intestinal
de biopsias por laparoscopia ou laparotomia, já que, a partir
daí, a formação de aderências pode confundir ainda mais o A F E C Ç Ó E S D A M U S C U L A T U R A L IS A
diagnóstico, sobrepondo um fator mecânico ao quadro. • P rim á ria s:
A biopsia endoscópica do esôfago e estômago não tem valor a ) F a m ilia re s:
diagnóstico. Quando há associação de supercrescimento bacte- - T ip o I

riano, a biopsia duodenal pode mostrar áreas de atrofia vilositá- - T i p o II


- T i p o III
ria semelhantes a casos de doença celíaca. Já a biopsia retal pode
b ) M io p a tia v is ce ra l e s p o rá d ic a
ser útil no diagnóstico de amiloidose, na doença de Hirschs-
c ) C o n g ê n ita s : t ip o s I e II
prung, em que se nota a ausência de neurônios na submucosa,
• S e c u n d á ria s :
e na neuropatia visceral familiar mais comum, caracterizada
a ) E sc le ro se s is tê m ic a p ro g re s s iv a
pela presença de inclusões eosinófilas nos neurônios. b ) D is tro fia m u s c u la r p ro g re s s iv a
c ) P o lim io s ite
■ Outros exames d ) S ín d r o m e d e E h le rs -D a n lo s
Como métodos de grande utilidade, podemos citar o estudo e ) M io p a tia m it o c o n d r ia l
do esvaziamento gástrico por cintigrafia e o estudo do trânsito f ) A m ilo id o s e

colônico pela ingestão de marcadores radiopacos, este último g ) O u tra s

de grande valia na avaliação da constipação intestinal. A F E C Ç Õ E S D O P L E X O M IO E N T É R IC O


A diarréia é muitas vezes causada pela estase do conteúdo • P rim á ria s:
intraluminal levando ao supercrescimento bacteriano, o que a ) F a m ilia re s:

pode ser confirmado com testes respiratórios com hidrogênio - D o e n ç a d a in c lu s ã o i n t r a n u d e a r n e u ro n a l


- E s te a to rre ia fa m ilia r c o m c a ld fic a ç õ e s d o s g â n g lio s b asais e
ou carbono marcados.
r e t a r d a m e n t o m e n ta l
Se há sinais de disfunção neurológica, pode ser necessário
- S ín d r o m e P G U P (p o lin e u r o p a t ia , o ft a lm o p le g ia ,
realizar tomografia computadorizada do sistema nervoso cen­ le u c o e n c e fa lo p a tia , p s e u d o -o b s t r u ç ã o In te s tin a l)
tral, eletromiografia ou testes do sistema nervoso autônomo. - N e u r o p a t ia fa m ilia r v is ce ra l c o m p a d r ã o d e h e ra n ç a d o m in a n t e
Em caso de sintomas urinários, devem-se solicitar urografia - O u tra s

excretora e cistografia retrógrada, pesquisando-se a presença de b ) E s p o rá d ic a s (d e g e n e r a t iv a s n ã o in fla m a tó ria s )

dilatações da bexiga ou do ureter, o que sugeriría um distúrbio • S e c u n d á ria s :


difuso da musculatura lisa. a) D e g e n e r a t iv a s in fla m a tó ria s :

A radiografia ou tomografia do tórax pode mostrar um cân­ - P a ra n e o p lá s ic a s


- In fe cc io sa s (d o e n ç a d e C h a g a s , d t o m e g a lo v ir o s e , A ID S )
cer pulmonar de pequenas células levando a uma síndrome
- Id io p á tic a s
paraneoplásica.
- A x o n o p a t ia iso la d a
A critério clínico, pode-se indicar ainda a realização de ele-
• A n o r m a lid a d e s d o d e s e n v o lv im e n to :
trocardiograma (doença de Chagas), biopsia de músculo e pele
a ) A g a n g lio n o s e c o lô n ic a to ta l (às v e z e s a sso c ia d a a a g a n g lio n o s e d o
(esclerose sistêmica progressiva, doenças musculares) e exames in te s t in o d e lg a d o )
endoscópicos. b ) D is t ú r b io d e m a tu r a ç ã o n e u ro n a l:
- Is o la d a d o p le x o m io e n t é r ic o

■ Classificação da pseudo-obstrução -
- C o m r e t a r d a m e n t o m e n ta l
C o m o u tra s a lte ra ç õ e s n e u ro ló g ic a s

intestinal crônica c ) D is p la sia in te s tin a l n e u ro n a l:


- Is o la d a d o in te s tin o
A motilidade digestiva depende da contratilidade da - C o m n e o p la s ia e n d ó c r in a m ú lt ip la t ip o II B
musculatura lisa e da atividade de marca-passo realizada pelas - C o m n e u ro fib r o m a t o s e

células intersticiais de Cajal, sendo ambas ajustadas de forma D O E N Ç A S E N D Ó C R IN A S E M E T A B Ô L IC A S


precisa pela inervação intrínseca (sistema nervoso entérico) ou a ) D ia b e t e s m e lito
extrínseca (sistemas nervosos simpático e parassimpático). b ) H ip o p a r a t ir e o id is m o
Pode-se deduzir daí que a POIC pode surgir como conse­ c ) H ip o t ir e o id is m o
quência de anormalidades que afetem esses fatores, isoladamen­ d ) P o rfiria a g u d a in t e r m it e n t e

te ou em conjunto, como é mostrado no Quadro 49.1. e ) F e o c r o m o c ito m a

DROGAS
O p io id e s , c lo n id in a , fe n o tia z in a s , a n tid e p r e s iv o s t r ic íd ic o s , a lc a ló id e s d a

■ MIOPATIAS VISCERAIS v in c a , a n tip a r k in s o n ia n o s , is o n ia z id a , a n t a g o n is ta s d e ca n a is d e c á lc io ,


la x a tiv o s c a tá rtic o s e tc.

Caracterizam-se por fibrose, atrofia e degeneração vacuo- miscelAnea


lar da muscular própria, podendo afetar a musculatura lisa de a ) D iv e r tic u lo s e d o in t e s t in o d e lg a d o
outros órgãos, como útero, íris ou bexiga. b ) D o e n ç a celíaca

As miopatias viscerais primárias familiares parecem ser ra­ c ) B y p a s s je ju n o ile a l


d ) T u m o r e s e in fa rto s d o siste m a n e r v o s o c e n tra l
ras, caracterizando-se atualmente três tipos, com base nos seg­
e ) D o e n ç a d e P a rk in s o n
mentos acometidos e no padrão de hereditariedade. O tipo I é
f ) D is fu n ç ã o a u t o n ó m ic a fa m ilia r
transmitido por um gene autossômico dominante, acometendo
g ) T r a u m a r a q u im e d u la r
principalmente o duodeno, levando à sua dilatação, além de po­ h ) O u t r a s causas
der associar-se ainda a aperistalse esofágica, dilatação jejunal,
Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal 519

cólon redundante e megabexiga. Midríase ocorre em mais de idiopática. Dentre os agentes infecciosos envolvidos, podemos
50% dos pacientes. Alguns casos essencialmente assintomáticos citar: o Trypanosoma cruzi da doença de Chagas, o citomegalo-
nessas famílias podem receber o diagnóstico de “megaduodeno vírus, o HIV, o vírus Epstein-Barr e o herpes-zoster.
idiopático” ou “síndrome da artéria mesentérica superior”. O Nas neuropatias não inflamatórias degenerativas, observam-
tipo II representa forma autossômica recessiva, envolvendo of- se, dentre outros aspectos: diminuição da população neuronal,
talmoplegia, múltiplos divertículos no delgado, que se apresenta corpos celulares edemaciados, alterações dendríticas, núcleos
dilatado, e atonia gástrica. Os pacientes do tipo III apresentam vacuolizados, axônios fragmentados, proliferação das células
dilatação de todo o trato gastrintestinal, desde o estômago até gliais, fibrose do plexo nervoso e hipertrofia da muscular pró­
o reto. Sua forma de transmissão ainda é incerta, sendo prova­ pria. Como exemplos, temos a maior parte das neuropatias
velmente autossômica recessiva. esporádicas e familiares.
Os sintomas e o estudo histológico da miopatia primária Em lactentes e crianças, a POIC normalmente resulta de
não familiar são idênticos aos da familiar, ressaltando-se aí a um desenvolvimento anormal do sistema nervoso entérico. Na
dependência da anamnese para diferenciá-las. Há ainda uma maior parte dos casos, os neurônios dos plexos estão presentes
forma congênita de miopatia visceral, habitualmente fatal nos em número usual, porém são qualitativamente anormais, com
primeiros anos de vida. deficiência de neurofilamentos. No outro extremo, há casos em
Dentre as miopatias ligadas às colagenoses, a mais frequen­ que se nota a ausência da formação de plexos, ou aganglionose.
te é a da esclerodermia, em que cerca de metade dos pacientes Podemos citar, como exemplos de desenvolvimento anormal, a
apresenta distúrbios motores durante a evolução da doença. doença de Hirschsprung e a estenose hipertrófica do piloro.
O órgão mais acometido é o esôfago, observando-se disfagia e A neuropatia visceral primária familiar mais frequente é a
refluxo gastresofágico acentuado, com consequente esofagite doença da inclusão intranuclear neuronal, caracterizada pela
e formação de estenose. O intestino delgado é frequentemen­ presença de inclusões nos neurônios dos plexos submucoso e
te acometido, o que leva a um quadro de dilatação com estase mioentérico, que sofrem posterior degeneração e desapareci­
intestinal, supercrescimento bacteriano e esteatorreia. Apesar mento, o que pode ser verificado no material obtido através de
da dilatação, as válvulas coniventes dispõem-se junto umas das biopsia retal. Essa doença é de transmissão autossômica reces­
outras. No cólon, a pressão intraluminal exercida sobre os fo­ siva, e os sintomas podem incluir déficit mental e disfunção
cos de deposição de colágeno produz sua protrusão, formando autonômica. Outras formas primárias familiares são citadas
divertículos de óstio amplo. As dilatações colônica e gástrica no Quadro 49.1.
também ocorrem com frequência. Entre as doenças que acometem difusamente o sistema ner­
A dermatomiosite e a polimiosite podem envolver a voso, devem-se ressaltar a doença de Parkinson e a polineuro-
musculatura lisa do trato gastrintestinal além da esquelética, patia diabética. Na primeira, deve-se considerar sempre, além
com os pacientes podendo apresentar disfagia, distensão ab­ da doença em si, o uso de drogas de ação anticolinérgica, que
dominal e constipação intestinal. podem agravar a gastroparesia e a constipação intestinal comu-
Na distrofia miotônica, são afetados o esôfago, principal- mente vistas. No diabetes melito, o acometimento do sistema
mente, e, menos frequentemente, o cólon. Nos casos de lúpus nervoso autônomo pode provocar vários sintomas, sendo a
eritematoso envolvendo pseudo-obstrução, descrevem-se como constipação intestinal o mais frequente. Além desta, podemos
achados a dilatação gástrica e duodenal e a diarréia. Acredita-se citar dor abdominal, náuseas, vômito, disfagia leve, diarréia e
que o quadro resulta da vasculite de vasos abdominais gerando incontinência fecal. Chama atenção a gastroparesia diabética,
isquemia intestinal. que pode criar sérios problemas de nutrição e de controle da
As infiltrações da musculatura lisa são bastante raras, ha­ glicemia.
vendo dúvida, no caso da amiloidose, se as alterações da moti-
lidade se devem à deposição de amiloide na musculatura ou à
lesão do sistema nervoso. ■ DROGAS
Várias são as drogas que podem comprometer a motilidade
■ NEUROPATIAS VISCERAIS do trato digestivo, seja por exercerem uma ação parassimpa-
ticolítica temporária, como no caso dos antidepressivos, dos
A POIC neuropática pode ser classificada em duas formas: bloqueadores dos canais de cálcio e dos antiparkinsonianos e
a) neuropatias inflamatórias, nas quais o sistema nervoso en- opioides, seja por provocarem lesão neuronal, como os catár-
térico é afetado por um mecanismo de resposta imunitária e ticos, a isoniazida e os alcalóides da vinca.
inflamatória; b) neuropatias degenerativas, nas quais se observa
degeneração neuronal sem resposta inflamatória evidente.
As neuropatias inflamatórias caracterizam-se histologica- ■ DISTÚRBIOS METABÓLICOS
mente pela presença de um denso infiltrado inflamatório lin-
foplasmocitário envolvendo os axônios e plexos nervosos, es­ A constipação intestinal e a distensão abdominal estão fre­
pecialmente os mioentéricos, com subsequente degeneração e quentemente associadas ao hipotireoidismo, sendo o vômito
desaparecimento das células nervosas ganglionares. Ao lado da pouco comum. Alguns casos podem sugerir uma obstrução
resposta imunitária celular, evidenciada pela presença predo­ mecânica do delgado (“íleo mixedematoso”), quadro que pode
minante no infiltrado de linfócitos CD4 (T helper) e CD8 (T ser totalmente revertido com a administração de hormônio
supressor), observa-se uma resposta humoral caracterizada por tireoidiano.
anticorpos antineuronais, como os anticorpos antinucleares A pseudo-obstrução como manifestação do hipoparatireoi-
neuronais (ANNA-1) e anti-Hu. Normalmente, essa forma de dismo, ou do feocromocitoma, é muito rara, sendo descrita
neuropatia é secundária a outras doenças, ocorrendo, por exem­ em casos isolados. Também cada vez mais raros são os casos
plo, na síndrome paraneoplásica, nas doenças do tecido conjun- de dilatação intestinal e náuseas em pacientes urêmicos des-
tivo e nas doenças infecciosas, podendo, contudo, ter origem compensados.
520 Capítulo 49 / Pseudo-obstrução Intestinal

Na porfiria intermitente aguda, os pacientes podem apre­ IV, não persistindo seu efeito quando usada de forma contínua
sentar dor abdominal em cólica, náuseas, vômito e constipação devido à taquifilaxia.
intestinal como consequência da neuropatia que se desenvolve A cisaprida teve um sucesso limitado, de forma geral, tendo
nas exacerbações. sido retirada do mercado por seus efeitos cardiovasculares.
O octreotídio é um análogo da somatostatina de ação pro­
longada. Em doses de 50 pg SC, estimula o peristaltismo do
■ OUTRAS CONDIÇÕES intestino delgado e inibe o esvaziamento gástrico. Sendo as­
sim, deve ser ministrado apenas à noite, pois pode dificultar a
Tumores e infartos do sistema nervoso central podem dar digestão das refeições ingeridas durante o dia. Seu uso parece
origem a distúrbios da motilidade gastrintestinal, uma vez que mais justificado em casos de esclerose sistêmica progressiva,
esta é modulada pela formação reticular ascendente, pelo tron­ associado ou não à eritromicina.
co cerebral (núcleo ambíguo) e pelo núcleo motor dorsal do Aqueles pacientes que não respondam ao tratamento clínico,
vago. e que tenham alterações segmentares, devem ser encaminha­
O trauma raquimedular pode também levar a anormalidades dos à cirurgia. Deve-se lembrar sempre que, antes de operar, é
da motilidade colônica e anorretal e, menos frequentemente, imprescindível um estudo adequado, minucioso, do tubo di­
do delgado e do estômago, estas últimas como consequência gestivo, já que o segmento a ser operado pode não ser o úni­
da desnervaçâo simpática decorrente. co ou principal responsável pelos sintomas do paciente. Além
Outras causas de pseudo-obstrução intestinal crônica citadas disso, uma vez realizada a cirurgia, o diagnóstico diferencial
na literatura são diverticulose jejunal, doença celíaca, radiação com obstruções mecânicas causadas por aderências dificulta
e bypass jejunoileal. bastante o seguimento do caso.
O tratamento cirúrgico pode significar uma colectomia para
casos de pseudo-obstrução isolada do cólon, duodenojejunos-
■ TRATAMENTO tomia para o megaduodeno, ressecção ou desvio do trânsito de
segmentos disfuncionais isolados, confecção de estornas para
Sendo uma síndrome de causas e manifestações tão varia­ nutrição enteral e para descompressão do trato gastrintestinal.
das, procura-se sempre basear o tratamento em diagnósticos Em alguns centros avançados, tem-se realizado o transplan­
individuais precisos. Deve-se tentar descobrir todos os fatores te intestinal em pacientes com acometimento intestinal acen­
causadores relacionados com o quadro, procurando-se atuar tuado, sem doenças de base graves, que dependam de nutrição
naqueles passíveis de correção, o que pode significar uma m e­ parenteral prolongada, e que apresentem complicações como
lhora significativa para o paciente. perda de acesso venoso central, infecções recorrentes desse
Um exemplo disso é o tratamento das crises de supercres- acesso, ou insuficiência hepática.
cimento bacteriano com antibióticos como levofloxacino, ci-
profloxacino, amoxicilina-ácido clavulânico, riafaximina e me-
tronidazol, muitas vezes possibilitando o controle do quadro
■ LEITURA RECOMENDADA
de diarréia e má absorção nos casos de estase intestinal. O uso Alves, JG & Stanziola, IP. Pseudo-obstrução intestinal. Em: Alves, JG & Dani,
contínuo de antibióticos deve ser evitado, pois promove o cres­ R. Terapêutica em Gastroentcrologia, Rio de Janeiro, Editora Guanabara
cimento de cepas resistentes sem alterar o curso da doença de Koogan, 2005.
Batkc, M & Cappcll, MS. Adynamic ileus and acutc colonic pseudo-obstruetion.
base. Em caso de retorno da diarréia, deve-se instituir novo tra­ Med Clin N Am, 2008; 92:649-70.
tamento, podendo-se ainda usar um esquema de administração Camilleri, M. Dismotility of thc small intestine and colon. Em: Yamada T, Alpcrs
de antibióticos de 7 a 10 dias a cada mês, variando-se a medica­ DH, Kaplowitz N et ai, Textbook o f Gastroenterology, 4th cd.. Philadclphia,
ção a cada vez, naqueles casos de recorrência frequente. J.B. Lippincott Gompany, 2003.
Connor, FL & Di Lorcnzo, C. Ghronic Intestinal pseudo-obstruetion: asscssmcnt
Devem-se sempre corrigir os distúrbios hidreletrolíticos, and management. Gastroenterology, 2006; 130:S29-S36.
tratar as doenças endócrinas e retirar as drogas agravantes por­ De Giorgio, R, Sarnclli, G, Gorinaldcsi R, Stanghclini, V. Advanccs in our un-
ventura em uso. derstanding of thc pathology of chronic intestinal pseudo-obstruetion. Gut,
A manutenção satisfatória do estado nutricional deve ser 2004;53:1549-52.
Delgado-Aros, S & Camilleri, M. Pseudo-obstruetion in thc critically ill. Best
uma preocupação constante. Dependendo das condições do Pract Res Clin Gastroenterol, 2003; 17:427-44.
paciente, pode-se utilizar desde uma dieta normal VO, até nu­ Eiscn, GM, Baron, TH, Dominitz, JA et a i Acute colonic pseudo-obstruetion.
trição parenteral total. Casos intermediários tendem a tolerar Gastrointest Endosc, 2002; 56:789-92.
melhores dietas líquidas, com pouco ou nenhum resíduo, pouca Fazei, A & Vcrnc, N. New Solutions to an old problem: acutc colonic pseudo-
obstruetion. J Clin Gastroenterol, 2005; 39:17-20.
gordura e sem lactose, com proteínas hidrolisadas e suplemen- Gannon, RH. Currcnt strategies for preventing or ameliorating postoperative
tação de vitaminas e oligoelementos. ileus: a multimodal approach. Am J Health Syst Pharm, 2007; 64:S8-12.
O uso de estornas pode ser necessário não só para possibi­ Kahi, CJ & Rcx, DK. Bowcl obstruetion and pseudo-obstruetion. Gastroenterol
litar a administração da dieta, como também para permitir a Clin N Am, 2003; 32:1229-47.
Melo, JRC, Procópio, RJ, Polizzi, RJ. Pseudo-obstrução intestinal. Em: Paula-
drenagem de gases e secreções digestivas nos episódios de es­ Castro, L, & Coelho, LG. Gastroenterologia. Rio de Janeiro, Mcdsi Editora
tase (ventostomias). Médica c Científica Ltda., 2004.
Drogas procinéticas têm mostrado resultados pouco satisfa­ Pcrlcmutcr, G, Cacoub, P, Wcchslcr, B et a i Pseudo-obstruetion intcstinalc
chroniquc sccondairc aux conncctivitcs. Gastroenterol Clin Biol, 2001;
tórios até o momento. Ensaios clínicos com drogas colinérgicas
25:251-58.
e anticolinérgicas, metoclopramida, domperidona, cisaprida, Ramagc, JI 8c Baron, TH. Pcrcutancous cndoscopic cecostomy: a case series.
indometacina, prostaglandinas, lidocaína, serotonina, somatos- Gastrointest Endosc, 2003; 57:752-5.
tatina e colecistocinina, entre outras, têm sido realizados, sem Saundcrs, MD. Acutc colonic pseudo-obstruetion. Best Pract Res Clin Gastroen­
terol, 2007; 22:671-87.
grande sucesso de uma forma geral. Constitui exceção, talvez, Smith, DS, Williams, CS, Fcrris, CD. Diagnosis and treatment of chronic gas-
o uso da eritromicina em quadros de exacerbação aguda da troparesis and chronic intestinal pseudo-obstruetion. Gastroenterol Clin
gastroparesia diabética, sendo mais eficaz quando ministrada N A m , 2003; 32:619-58.
PARTE VI
Ânus e Reto
Doenças Anorretais
Flávio Antonio Quilici e Lisandra Carolina Quilici

Em relação à evacuação, devem-se pesquisar mudanças do


■ INTRODUÇÃO hábito intestinal quanto à sua forma, o tipo das fezes e frequên­
As doenças anorretais estão presentes em toda a história da cia da evacuação; presença de constipação intestinal, diarréia ou
humanidade, aparecendo seus primeiros relatos na Babilônia descarga intestinal; e o aparecimento de muco e/ou pus junto
e no antigo Egito, há mais de 3.000 a.C. às fezes ou separados delas.
Os hábitos de vida no mundo moderno, porém, parecem Havendo incontinência fecal, avaliar se está relacionada
ter contribuído para que elas adquirissem uma importância com a perda de fezes sólidas, líquidas ou somente a gases e sua
sempre crescente, em especial nas últimas décadas. associação a partos, cirurgias ginecológicas, proctológicas ou
Não há dados epidemiológicos confiáveis sobre sua real in­ urológicas.
cidência no Brasil, mas calcula-se que, aproximadamente, 30% Pesquisar, também, a presença ou não de anorexia, perda
da população brasileira, em algum momento da vida, deverá de peso, histórico pessoal e/ou familiar de pólipos adeno-
apresentar qualquer uma delas, utilizando os mais diferentes matosos colorretais, doenças malignas, enfermidades infla-
tratamentos. matórias intestinais, em especial a retocolite ulcerativa e a
Outro fato importante é que a maioria desses tratamentos doença de Crohn, e atitudes erradas adquiridas em relação
não atuará diretamente nas causas destas enfermidades, não à evacuação.
as eliminará e proporcionará, apenas, um breve alívio dos sin­
tomas. ■ Exame proctológico
O exame físico criterioso do doente, sobretudo, do abdome
■ Anamnese e das regiões inguinais, deverá preceder o proctológico. É im­
A anamnese detalhada é fundamental para o diagnóstico das portante evidenciar que a inspecção e palpação do ânus, além
afecções anorretais. Após as questões gerais habituais, a anam­ do toque retal, fazem parte do exame físico de rotina.
nese deverá ser pormenorizada para as características próprias O exame proctológico completo deverá ser realizado sempre
das doenças proctológicas. que o paciente referir qualquer queixa relacionada com doenças
Os principais sintomas e sinais a serem pesquisados na re­ coloproctológicas e nos assintomáticos, pertencentes a grupos
gião anal e perianal são: sangramento, exsudação, prurido, pro- de risco, para doenças malignas (Quadro 50.1).
lapso, ardor, tumor e/ou presença de dor. Avaliar, também, a A sala de exame deverá ter uma mesa para se posicionar o
evacuação, a continência fecal, a presença ou ausência de te- paciente e outra para o equipamento necessário: luvas descar­
nesmo e sensação de corpo estranho no reto. táveis, pomada lubrificante, porta-gaze, recipiente para expur­
Com relação ao sangramento anorretal (enterorragia), ava­ go do material, anuscópio, retossigmoidoscópio, pinças para
liar suas características quanto à cor, se rutilante (provável ori­ biopsias e para limpeza retal, frasco com formol a 10% para
gem arterial), escuro (provável origem venosa) ou na forma de colocarem-se fragmentos de biopsias.
melena (sangue digerido); sua frequência, quantidade e relação O primeiro objetivo do examinador será o de minimizar as
com o ato defecatório. Todos esses aspectos são importantes preocupações do paciente com relação a este exame, em especial
porque contribuem para localizar sua origem e para orientar nos acometidos de afecções anorretais dolorosas, por causa do
os exames complementares. temor de que ele poderá provocar piora da dor.
A dor anorretal, tanto pode surgir, espontaneamente, sem Nas enfermidades agudas, causadoras frequentes de sofri­
relação com a evacuação, ou durante o ato defecatório, ou após mento, tais como a trombose hemorroidária, a fissura anal ou
a evacuação. Pode ser discreta ou intensa, contínua ou inter­ o abscesso anorretal, ele deverá limitar-se, em um primeiro
mitente, latejante ou cortante, e/ou associada à febre e à secre­ momento, ao necessário para confirmar o diagnóstico, sendo
ção perianal. completado somente após analgesia da área afetada.

523
524 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

----------------------------- ▼----------------------------- brificação, no orifício anal, aguardando o relaxamento esfinc-


Quadro 50.1 Grupos de risco para câncer colorretal teriano. Em seguida, deverá palpar as seguintes estruturas:
► Espaço interesfincteriano. Assemelha-se a um sulco lo­
Risco básico; p a c ie n te s c o m id a d e a c im a d e 4 0 a n os. calizado entre os dois esfíncteres anais e o anel anorretal, com
Risco médio: p a c ie n te s c o m h is tó ria fa m ilia r d e c â n c e r, d e a d e n o m a s o u a identificação do músculo puborretal na parede posterior do
d e s ín d r o m e s p o lip o id e s a d e n o m a to s a s . reto. Pedindo-se ao doente que contraia esses músculos em
Risco alto: p a c ie n te s c o m h is tó ria p re g re ss a d e a d e n o m a s e / o u c â n c e r, e esforço para não evacuar, avaliam-se as alterações da tonici-
p o r t a d o r e s d e d o e n ç a in fla m a tó ria in te s tin a l c rô n ic a . dade muscular.
► Ampola retal. Deslizando o dedo, lentamente, pelas pa­
redes do reto, podem-se identificar pontos dolorosos, sentir
irregularidades ou endurecimentos, definindo sua localização e
O exame proctológico deverá obedecer à seguinte se­ extensão, quando existentes. Na ampola retal, podem-se encon­
quência: trar fezes, em maior ou menor quantidade, de consistência va­
riável, que devem ser diferenciadas dos achados patológicos
■ Posição do paciente ► Estruturas extrarretais. Por meio desse toque, avalia-se,
Ela é essencial para sua realização. As posições mais utiliza­ também, a próstata no homem, e o colo uterino na mulher,
das são a genupeitoral e a de decúbito lateral esquerdo. além da possível presença de tumores ou abscessos.
A posição genupeitoral é desconfortável para o doente, po­ Terminado o toque retal, o examinador deverá observar sua
rém permite ótima condição para se realizar a retossigmoidos- luva na busca de materiais aderidos, como secreções purulentas,
copia, pois provoca a queda do cólon sigmoide de encontro à pa­ sangue e tipo de fezes existentes.
rede anterior do abdome, retificando sua angulaçâo e facilitando
a passagem do aparelho rígido pelo ângulo retossigmoidiano. ■ Anuscopia
A de decúbito lateral esquerdo (posição de Sims) é mais utili­
Não há necessidade de qualquer preparo para realizá-la. O
zada por ser mais confortável ao paciente, sobretudo em idosos,
anuscópio, depois de lubrificado, será seguro firmemente pela
gestantes e pacientes artríticos. O doente deita-se em decúbito
mão direita do examinador que, com sua mão esquerda, tra-
lateral esquerdo, com as nádegas projetadas para a margem
cionará a nádega direita do paciente, com o intuito de expor
lateral da mesa de exame, do mesmo lado que se encontra o
o ânus.
médico examinador. As coxas devem fletir-se sobre o abdome
Deve-se introduzir o anuscópio, suavemente, sabendo-se
com as pernas formando um ângulo de 90°. Nessa posição, o
que haverá, inicialmente, uma resistência, por causa da con­
paciente sente-se menos constrangido e todos os procedimentos
tração dos esfíncteres anais, mas que, mantendo-se a pressão
anorretais podem ser efetuados em boas condições.
para sua introdução, ocorrerá o relaxamento, possibilitando
■ Inspecção anal sua progressão.
O anuscópio alcança, facilmente, o limite superior do canal
Para sua realização, é necessária uma boa iluminação. Inicia-
anal, porém seu eixo de introdução deverá ser mudado, logo
se pela inspecção estática seguida pela dinâmica, após coloca­
após a sua introdução, da direção anterior para a posterior do
rem-se as luvas de proteção.
► Inspecção estática. A simples inspecção da região anal ânus, no intuito de evitar o traumatismo da sua parede ante­
e perianal permite diagnosticar com frequência e com alguma rior. Após a introdução, será retirado o mandril do aparelho e,
facilidade: hemorroidas externas, trombosadas e/ou prolabadas, por meio de adequada iluminação, observam-se a mucosa do
hematomas, fissuras, abscessos, orifícios fistulosos, dermatites, canal anal, de coloração rósea, lisa, brilhante, e a vasculariza-
condilomas etc. Nessa inspecção, avaliam-se o aspecto da pele ção da submucosa.
perianal e a presença de secreção, cicatrizes ou retrações. Nos Sua retirada deverá ser, sempre, lenta e cuidadosa. No limite
doentes que referem incontinência fecal, devem-se observar a inferior do canal anal, existindo a presença de doença hemor-
presença de resíduos fecais e o fechamento completo ou não roidária, essa se projetará para o interior da luz do aparelho e,
do ânus. Afastando-se a pele perianal com ambas as mãos, exa­ quando se necessita torná-la mais evidente, deve-se procederá
mina-se melhor o ânus propriamente dito e assim pode-se ver manobra de Valsalva, por meio do esforço evacuatório. Ao che­
a presença ou não da fissura anal. gar à linha pectínea, podem-se ver papilas hipertróficas, lesões
► Inspecção dinâmica. É realizada solicitando-se ao pacien­ fissurárias, orifícios fistulosos ou criptas inflamadas.
te que faça força para evacuar, quando se podem observar: pro-
lapso de mamilos hemorroidários internos, procidência retal, ■ Retossigmoidoscopia
exteriorização de papilas hipertróficas, eliminação involuntária É realizada depois da limpeza do reto, por meio da eva­
de fezes etc. Essa inspecção torna-se mais eficiente quando feita cuação estimulada por um enema ou mesmo sem qualquer tipo
após esforço evacuatório, com o paciente sentado no vaso sa­ de preparo intestinal, durante a consulta de rotina. Semelhante
nitário e, em seguida, retornando à mesa de exame. ao anuscópio, o retossigmoidoscópio será introduzido com o
mandril, inicialmente em direção anterior (à cicatriz umbilical)
■ Palpação e em seguida mudando-se para o sentido posterior, em direção
O examinador deverá realizar a palpação cuidadosa de toda ao osso sacral. Nesse momento, retira-se o mandril, e a sua pro­
a região perianal, visando a identificar regiões onde a palpação gressão será feita sob visão direta, sem insuflação exagerada de
provoque dor e/ou a presença de áreas amolecidas ou endure­ ar e com cuidado, para não aumentar o desconforto do pacien­
cidas, relacionadas com abscessos ou tumorações. te. A passagem pelo ângulo retossigmoidiano dá-se com certa
dificuldade com os aparelhos rígidos; porém, após vencê-lo,
■ Toque retal torna-se fácil sua introdução no cólon sigmoide.
Após a palpação perianal, o examinador deverá introduzir Existindo qualquer tipo de resistência à sua introdução ou
cuidadosamente o dedo indicador da mão direita, após sua lu­ qualquer dificuldade de visão de seu lúmen, o exame deverá ser
Capítulo 50 / DoençasAnorretais 525

parado. A observação é melhor quando feita durante a retirada sistema portal pela veia retal superior, tributária da veia me-
do anuscópio, devendo-se observar: sentérica inferior.
Em 1963, Stelzner criou o termo “corpos cavernosos” para
• O conteúdo do retossigmoide, se está vazio ou com fezes
descrever essa estrutura angiocavernosa que constitui o plexo
(observando suas características);
hemorroidário interno do canal anal. Esses corpos cavernosos
• A presença de sangue, muco e/ou pus;
são sustentados, segundo Thomson, pelas fibras da musculatura
• Se o lúmen intestinal apresenta-se espástico ou esteno- lisa localizada na submucosa do canal anal (descrito por Treitz,
sado; em 1853) e que auxilia, também, a fixá-los nessa localização.
• As características da mucosa - de coloração rósea, su­ Esses corpos cavernosos permanecem continuamente preen­
perfície lisa e brilhante, permitindo a visão do padrão chidos com sangue e murcham apenas no ato evacuatório, para
vascular da submucosa ou se se apresenta inflamada, in- facilitar a passagem das fezes, e, como consequência, também
tumescida e/ou sangrando fácil ao toque do aparelho; e contribuem para a continência fecal, em especial para gases e
• A presença de ulcerações, lesões polipoides ou vegetantes fezes líquidas.
da mucosa retal.
Identificada qualquer afecção anorretal, deve-se medir sua ■ Plexo hem orroidário externo
distância em relação à linha pectínea, para definir sua exata Situa-se no espaço subcutâneo do canal anal, abaixo da li­
localização, e biopsiá-la, para confirmação histopatológica do nha pectínea (sentido distai), sendo vascularizado pelos ramos
diagnóstico. Os fragmentos retirados deverão ser colocados terminais das artérias retais inferiores, e drena para a circula­
em recipiente com solução de formol a 10% e encaminhados ção sistêmica (veia cava inferior), pelas veias retais inferiores,
para exame. tributárias das veias pudendas e ilíacas internas.
As complicações da retossigmoidoscopia (hemorragia ou Ambos os plexos se comunicam, por apresentarem anasto-
perfuração) são raras. moses arteriovenosas entre si.
Há indicação de se prosseguir a propedêutica, em especial
com a colonoscopia, nos enfermos que: ■ Etiopatogenia
• Apresentarem perda de sangue pelo ânus ou nas fezes; A natureza da doença hemorroidária não é, ainda, com­
• Tiverem resultado positivo no teste de sangue oculto nas pletamente conhecida. Vários fatores são importantes na sua
fezes; etiopatogenia:
• Apresentarem presença de pólipos ou alterações infla- ► Veia varicosa. Representada pela dificuldade do esvazia­
matórias da mucosa retossigmoidiana; mento sanguíneo do canal anal no ato defecatório, com con­
• Sentirem dor abdominal, diarréia e/ou constipação in­ gestão e dilatação dos corpos cavernosos.
testinal; ► Degenerativa. Presença de prolapso anormal do plexo
• Possuírem antecedentes pessoais e/ou familiares de doen­ hemorroidário interno, durante a evacuação, por deficiência
ças neoplásicas; de sua fixação pela musculatura longitudinal da submucosa
• Forem pertencentes a grupo de risco para câncer color- (músculo de Treitz).
retal (ver Quadro 50.1). ► Mecânica. Caracterizada pelo excessivo esforço defecató­
rio e/ou pela dieta pobre em resíduos (fibras) e pouca ingestão
de líquidos, que pode acarretar o endurecimento das fezes e
■ DOENÇA HEM0RR0IDÁRIA aumentar ainda mais o esforço evacuatório.
► Hiperplasia vascular. A presença de hiperplasia dos cor­
É afecção das mais frequentes, sendo, porém, impossível pre­ pos cavernosos do canal anal que poderá ocasionar sua dila­
cisar sua real prevalência. Incide em ambos os sexos, em todas tação e aumento.
as raças e idades, com maior incidência na quarta década de ► Hemodinâmica. Pela presença das comunicações arterio­
vida, ocorrendo raramente na infância e adolescência. venosas, muito calibrosas, na submucosa do canal anal, facili­
A doença hemorroidária surge quando há congestão, dilata- tando o aumento e dilatação dos corpos cavernosos.
ção e aumento dos corpos cavernosos do canal anal formando ►Disfunção do esfíncteranal interno. Hiperatividade do
grandes emaranhados vasculares, submucosos e/ou subcutâ- esfíncter anal interno do ânus com hipertonia ocasionando
neos, flexíveis, que se enchem de sangue, constituindo os ma­ distensão dos corpos cavernosos.
milos hemorroidários. Na etiopatogenia da doença hemorroidária, é importante
considerarem-se, também, seus fatores desencadeantes e agra­
vantes.
■ Anatomia Os agravantes estão relacionados com hábitos defecatórios
A vascularização da região anorretal é constituída por uma errôneos, tais como: insistência em evacuar todos os dias, es­
rica rede de arteríolas e vênulas que se comunicam diretamente, forçar-se para defecar em um determinado horário por con­
formando os corpos cavernosos e chamados de plexos hemor­ veniência ou forçar o esvaziamento total do conteúdo retal de
roidários, um interno e outro externo no canal anal. uma só vez.
Seus fatores desencadeantes são: constipação intestinal, abu­
■ Plexo hem orroidário interno so de laxativos (em especial, os catárticos), diarréia crônica,
Localiza-se no espaço submucoso do canal anal, acima da gravidez (pelo aumento da pressão intra-abdominal), e a posi­
linha pectínea (sentido proximal), sendo formado por uma rede ção bípede do ser humano.
de vasos sanguíneos calibrosos. É vascularizado pelos três ra­ Não há remissão espontânea para a doença hemorroidá­
mos terminais da artéria retal superior, dois à direita (um an­ ria; uma vez manifestada e sem tratamento, sua evolução é
terior e outro posterior) e um lateral esquerdo. Drena para o progressiva.
526 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

terno. Esse mamilo interno é subclassificado, de acordo com a


■ Classificação presença ou ausência de seu prolapso para o exterior do canal
A classificação mais utilizada está relacionada com a locali­ anal, em:
zação do mamilo hemorroidário no canal anal e com a presença ► 1o GRAU. Mamilo hemorroidário interno que não prola-
ou não de seu prolapso. ba pelo canal anal quando da evacuação ou aos esforços (Fi­
Os mamilos podem ser: internos, externos ou mistos no gura 50.2);
canal anal. Apresentam consistência amolecida e forma abau­ ► 2o GRAU. Quando ele prolaba através do canal anal duran­
lada. Devido à ramificação arterial da retal superior, pode haver te o esforço evacuatório, exteriorizando-se pelo ânus, porém
três mamilos internos, de localização anterior direita, posterior retraindo-se, espontaneamente, cessado esse esforço (Figura
direita e lateral esquerda, denominados principais, e os demais, 50. 3);
quando existentes, são ditos secundários (Figura 50.1). ►3o GRAU. Mamilo que prolaba à evacuação e/ou aos esfor­
ços e não retorna espontaneamente, necessitando ser recoloca­
■ M am ilo hem orroidário interno do digitalmente para o interior do canal anal (Figura 50.4);
O mamilo hemorroidário situado acima da linha pectínea, ► 4o GRAU. Mamilo interno permanentemente prolabado
na parte interna ou proximal do canal anal, é chamado de in ­ pelo canal anal (lado externo), sem possibilidade de ser reco-

Figura 50.1 Esquema da localização no canal anal dos três mamilos hemorroidários internos principais: anterior e posterior direitos e lateral
esquerdo.

Figura 50.2 Visão à anuscopia, acima da linha pectínea ou proximal Figura 50.3 Mamilo hemorroidário interno de 2° grau, prolabado para
a ela, de mamilo hemorroidário interno de 1° grau que não prolaba à o exterior do canal anal ao esforço evacuatório, porém retraindo-se,
evacuação ou aos esforços. (Esta figura encontra-se reproduzida em espontaneamente, cessado esse esforço. (Esta figura encontra-se re­
cores no Encarte.) produzida em cores no Encarte.)
Capítulo 50 / DoençasAnorretais 527

Figura 50.4 Presença de mamilos hemorroidários internos de 3° grau, Figura 50.6 Presença de mamilos hemorroidários externos (abaixo da
proiabados para o exterior do canal anal ao esforço evacuatório, porém linha pectínea ou distai a ela) no canal anal. (Esta figura encontra-se
não retornando, espontaneamente, cessado esse esforço, e necessitan­ reproduzida em cores no Encarte.)
do ser recolocados digitalmente. (Esta figura encontra-se reproduzida
em cores no Encarte.)

Figura 50.5 Mamilo hemorroidário interno de 4Ugrau prolabado, per­ Figura 50.7 Presença de mamilos hemorroidários, internos e externos,
manentemente, para o exterior do canal anal, sem possibilidade de chamados de mistos. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores
ser recolocado para seu interior. (Esta figura encontra-se reproduzida no Encarte.)
em cores no Encarte.)

locado para o interior do canal anal (Figura 50.5). Alguns auto­


res limitam-se a classificar os mamilos internos em três graus,
■ Quadro clínico
unificando o 3° e o 4o graus. A enfermidade hemorroidária pode ser assintomática e só
diagnosticada ao exame físico. Porém, a maioria dos enfermos
■ M am ilo hem orroidário externo apresenta diferentes sintomas e sinais, com vários graus de in­
O mamilo localizado abaixo da linha pectínea, no anoderma tensidade. São eles: sangramento, prolapso, exsudação perianal
(porção externa ou distai do canal anal), é denominado externo e desconforto anal.
(Figura 50.6). Caracteriza-se por dilatações dos vasos subcutâ-
neos do anoderma, formando um abaulamento de consistência ■ Sangram ento
mole, indolor e, às vezes, de coloração vinhosa. É o principal sinal, além de ser o mais frequente, e, às ve­
zes, o primeiro a manifestar-se. O sangue pode ser observado
■ M am ilo hem orroidário misto somente no papel higiênico durante a higiene anal e/ou gote­
Na existência, concomitante, de mamilos internos e externos, jando ou ocorrendo em jato no vaso sanitário durante e/ou
a doença hemorroidária é chamada de mista (Figura 50.7). imediatamente após a evacuação. Caracteriza-se pela sua cor
Essa classificação é importante para orientar a escolha dos vermelho -ru tilan te.
vários tratamentos existentes para a doença hemorroidária, Está associado à passagem de fezes endurecidas pelo canal
objetivando sua melhor eficácia. anal que podem traumatizar o mamilo hemorroidário ou pelo
528 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

tipo de higiene anal utilizado pelo enfermo, como, por exem­ tites, papilites ou abscessos), doenças inflamatórias, tumores
plo, o uso de papel higiênico. benignos ou malignos do canal anal e tumores retais prolaba­
Esse sangramento ou enterorragia é, com frequência, inter­ dos benignos.
mitente e, não raro, a principal causa da consulta médica. Ele
é esporádico, em geral acontecendo em crises curtas de dias,
pouco volumoso e relacionado com a evacuação. Essa perda
■ Tratamento
sanguínea, discreta e contínua, quando frequente, pode acar­ O tratamento da doença hemorroidária depende de haver
retar anemia ferropriva. A enterorragia volumosa causada pela sintomas e de seu tipo e gravidade. A que não ocasiona sinto­
doença hemorroidária é rara. mas ao paciente não necessita de tratamento específico, mas
Por serem bastante similares, é fundamental diferenciar esse somente de cuidados higiênico-dietéticos.
sangramento originado da doença hemorroidária daquele oca­ Para o sucesso do tratamento da doença hemorroidária, é
sionado pelos tumores colorretais, pelas doenças inflamatórias fundamental que o médico tenha conhecimento adequado da
intestinais, pela fissura anal etc. sua fisiopatologia, de suas várias formas de apresentação clínica,
grande familiaridade com a anatomia do canal anal, habilidade
■ Prolapso técnica e, sobretudo, experiência e competência com as várias
Caracteriza-se pela exteriorização do mamilo hemorroidário técnicas para sua abordagem.
interno, para fora do canal anal, durante o ato evacuatório ou
durante as atividades físicas. Ele deve ser diferenciado da papila ■ T r a t a m e n t o c lín ic o
anal hipertrófica prolapsada, do pólipo retal baixo que se exterio- O tratamento clínico pode ser indicado quando a doença
riza pelo canal anal e da procidência retal que se caracteriza pela hemorroidária acarreta sintomas discretos e esporádicos ao pa­
protrusão de todas as camadas do reto para o exterior do ânus ciente, com longos períodos de acalmia. Está indicado, também,
(no prolapso, há apenas a exteriorização da mucosa retal). nas gestantes com doença hemorroidária não complicada, em
especial no terceiro trimestre. Em doentes terminais, cirróti-
■ E x s u d a ç ã o p e r ia n a l cos, cardiopatas graves ou com importante comprometimento
Corresponde à umidade da pele perianal causada pela pre­ do estado geral.
sença de muco nessa região, decorrente, sobretudo, da irritação Ele compreende os seguintes cuidados:
da mucosa dos mamilos hemorroidários internos prolabados. ► Medidas higiênico-dietéticas. Orientar os hábitos eva­
Acompanha-se, em geral, pela dermatite e pelo prurido anal. cuatórios do paciente, tais como o fato de evacuar sempre que
sentir desejo. Provocar amolecimento das fezes e diminuição
■ D e s c o n fo rto a n a l do tempo de trânsito intestinal, evitando o trauma local e o
Durante ou após a evacuação, pode haver uma pressão anal, esforço evacuatório. É importante a proibição do uso de laxa­
definida pelo paciente como um desconforto, porém sem dor tivos, em especial dos catárticos. Orientar a utilização de uma
anal, porque a simples presença de doença hemorroidária não dieta rica em fibras (farelos, germe de trigo etc.) na dose diária
dói. de 20 a 30 g, também incluindo verduras cruas e cozidas, legu­
A presença de dor no canal anal concomitante à doença mes, frutas (mamão, laranja com bagaço etc.). Indicar a inges­
hemorroidária ou é causada pelas suas complicações, como a tão abundante de líquidos (aproximadamente 2 ^/dia) e evitar
trombose vascular (endoflebite), o hematoma, ou pela presença bebidas alcoólicas, pimentas e condimentos pela ação irritante
concomitante de outras enfermidades dolorosas dessa região, sobre a mucosa do canal anal.
como a fissura anal, a infecção perianal (criptite, papilite ou Nos pacientes com constipação intestinal, devem-se acres­
abscesso), as lesões inflamatórias ou tumorais. centar auxiliares da evacuação, tais como: mucilagem, metil-
celulose e semente de plantago.
■ Diagnóstico ► Cuidados locais. Deve-se proibir a utilização de papel
higiênico para limpeza anal, substituindo-o por banhos de as­
É realizado por meio de anamnese pormenorizada dos sin­ sento com água morna.
tomas e sinais anteriormente mencionados, além da avaliação ► Medicação tópica. É indicada para aliviar o desconforto
dos hábitos evacuatórios e alimentares dos pacientes, do uso de local, fazendo-se uso de pomadas e/ou supositórios à base de
laxativos, da existência de doenças anteriores ou de cirurgias anestésicos e anti-inflamatórios.
no trato digestivo. Deve-se questionar, também, a existência ► Drogas vasoativas. A administração oral de drogas va-
de doenças gastrintestinais nos familiares. soativas na doença hemorroidária está indicada para comple­
Nas enfermidades agudas e dolorosas, como na trombose mentar o tratamento clínico e, muitas vezes, também, nas crises
hemorroidária, o exame proctológico deverá limitar-se ao mí­ de agudização.
nimo necessário para confirmar o diagnóstico, sem agravar o
sofrimento do paciente. ■ T r a t a m e n t o c i r ú r g ic o
O exame proctológico deverá seguir a sequência indicada O tratamento curativo da doença hemorroidária é cirúr­
anteriormente. gico. No entanto, para a obtenção de bons resultados é ne­
cessária a combinação de uma indicação cirúrgica criteriosa,
■ D ia g n ó s t ic o d i f e r e n c ia l de técnica operatória apurada e de cuidados pós-operatórios
Visto que para os leigos, sob a designição de “hemorroi- adequados.
das”, é incluída, com frequência e erroneamente, uma gran­ Vários métodos terapêuticos podem ser utilizados, desde os
de variedade de doenças anorretais, é importante proceder-se, mais conservadores aos mais radicais.
com especial cuidado e atenção, ao diagnóstico diferencial da O tratamento cirúrgico tem como objetivo a realização de
doença hemorroidária com as seguintes enfermidades: proci­ um procedimento que seja de execução simples, que acarrete
dência retal, papila anal hipertrófica, hemangiomas perianais, mínima ou nenhuma dor, que permita uma evacuação fisio­
condiloma, plicomas, fissura anal, processos infecciosos (crip- lógica, tenha baixa morbidade e mínima mortalidade, além de
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 529

apresentar rápida recuperação, possibilitando o precoce retorno • Dor anorretal;


do enfermo às atividades diárias, com baixo custo e sem neces­ • Sangramento anal;
sitar de hospitalização. • Infecção local;
Pacientes portadores de outras doenças anorretais conco­ • Fissura residual; e/ou
mitantes e com indicação cirúrgica, tais como: fístula, fissura, • Recidiva dos sintomas.
papila hipertrófica etc., podem ser operados na mesma abor­
Segundo Reis Neto e Quilici, em um trabalho prospectivo
dagem, na sua maioria.
e randomizado, com três métodos ambulatoriais para o trata­
mento de pacientes com mamilos hemorroidários internos de
■ Tratamento ambulatorial de hemorroidas internas
2o grau (crioterapia, fotocoagulação e ligadura elática), ficou
É procedimento que não necessita de anestesia, permitindo
evidenciado que todos foram eficazes, com alta taxa de cura
o tratamento de vários mamilos hemorroidários internos em dos sintomas. Em vários enfermos deste estudo, realizou-se o
uma mesma sessão, podendo-se, inclusive, associar diferentes
tratamento simultâneo, de mais de um mamilo, em uma mes­
métodos em um mesmo paciente. ma sessão, sem influenciar os resultados ou a incidência das
Entre os métodos terapêuticos mais utilizados, para o trata­ complicações.
mento ambulatorial das hemorroidas internas, estão:
Nossa preferência de abordagem ambulatorial em portado­
• Escleroterapia; res de doença hemorroidária interna é:
• Crioterapia; • Io grau: crioterapia ou fotocoagulação;
• Fotocoagulação; e
• 2o grau: fotocoagulação ou ligadura elástica;
• Ligadura elástica. • 3o grau: ligadura elástica; e
► E scle ro te ra p ia . Foi um método muito utilizado em ma­ • 4° grau: ligadura elástica ou hemorroidectomia (gram-
milos hemorroidários internos de Ioe 2o graus. É de realização peamento).
simples, com boa eficácia quando bem indicado. Consiste na in­
jeção perivasal de óleo fenolado a 5%, cranialmente ao mamilo, ■ Técnicas de hemorroidectomia
provocando sua fixação à submucosa, por fibrose, que impede Nos enfermos que apresentam mamilos hemorroidários ex­
a estase sanguínea no plexo hemorroidário varicoso. ternos ou mistos, a melhor opção é a hemorroidectomia. Este
► C rio te ra p ia . O congelamento com nitrogênio foi um mé­ procedimento pode ser realizado em ambulatório ou com o
todo idealizado por Fraser e Grill, em 1967, em substituição à paciente hospitalizado. Em nosso serviço, somente indicamos a
escleroterapia para hemorroidários internos de Io e 2o graus. hospitalização para a cirurgia na doença hemorroidária mista de
Baseia-se no fato de toda célula, ao ser submetida a um rápido grandes proporções em que para sua realização seja necessária
e intenso congelamento, ter solidificado seu líquido intracelular a anestesia por bloqueio ou em situações especiais do enfermo.
que rompe a membrana celular, provocando sua destruição. Quando realizamos a hemorroidectomia, sempre indicamos o
Essa técnica consiste na aplicação sobre o mamilo hemorroi­ uso de antibioticoprofilaxia.
dário interno de nitrogênio líquido, à temperatura de -196°C Durante a dissecção dos mamilos hemorroidários, é impor­
negativos, por meio de uma haste metálica, durante 2 min, tante a correta delimitação do plano anatômico entre eles e o
provocando sua necrose por congelamento. esfíncter anal interno, pois sua lesão poderá acarretar graus
► Fo to c o a g u la çã o . É um método muito prático e de feitura variáveis de incontinência fecal.
rápida, para a abordagem dos mamilos hemorroidários internos O uso rotineiro da esfincterotomia é preconizado por alguns
de Io e 2° graus, que foi desenvolvido por Nath e colaboradores, autores, por julgarem que haverá menor dor pós-operatória
em 1977. Utiliza-se um aparelho de raios infravermelhos que, pela diminuição do espasmo muscular. Esta não é a nossa ex­
aplicado sobre a mucosa e submucosa, provoca suas necro- periência e, por isso, só a executamos nos casos em que há hi-
ses pela evaporação dos líquidos intracelulares, consequente à pertonia esfincteriana pela concomitância de fissura anal.
coagulação de suas proteínas. Esses raios devem ser aplicados ►Hemorroidectomia aberta. Existem várias técnicas des­
ao redor do mamilo interno que se pretende tratar, como uma critas para a hemorroidectomia denominada aberta. Seu prin­
coroa em seu ápice, produzindo vários pontos de necrose que cípio básico é a excisão de todo o mamilo hemorroidário com
ocasionam uma fibrose até a submucosa, a qual impedirá o ligadura do seu pedículo vascular, mantendo-se a área de dis­
aporte sanguíneo ao plexo vascular varicoso. Os raios infraver­ secção aberta para a sua cicatrização por segunda intenção.
melhos são gerados neste aparelho por uma lâmpada halógena A descrita por Milligan e Morgan (1937) é a mais utilizada
de wolfrânio, alimentada com 15 volts, e o calor gerado em sua pelos cirurgiões. A cicatrização da ferida operatória se faz por
extremidade atinge aproximadamente, 100° centígrados posi­ segunda intenção e, em geral, acontece entre 3 e 4 semanas.
tivos na mucosa e 60° positivos na submucosa. Um princípio técnico é fundamental na hemorroidectomia
► L ig a d u ra e lá stica . É método de feitura bastante simples, aberta: a manutenção de pontes cutaneomucosas intactas entre
seguro e de baixo custo para o tratamento de mamilos hemor­ os locais de excisão dos mamilos (áreas cruentas), evitando-se a
roidários internos de 2° e 3o graus e, em casos selecionados, retirada excessiva de anorderma e, desta maneira, diminuindo-
para mamilos de 4o grau. Ele é o método ambulatorial mais se o risco de estenose anal pós-operatória.
utilizado na atualidade. Foi idealizado por Blaisdell, em 1954, A técnica aberta é de feitura rápida, segura, eficaz e com
e largamente difundido por Baron, a partir de 1962. Consta bons resultados quando bem executada.
de um aparelho aplicador de anéis de borracha que traciona o ►Hemorroidectomia fechada. Seu princípio é o fechamen­
mamilo hemorroidário interno para dentro dele, permitindo to das feridas operatórias com sutura contínua, tendo como
colocar em sua base um anel elástico, sempre longe da linha vantagens a cicatrização mais rápida (2 semanas), com pouca
pectínea (5 mm), provocando sua necrose por isquemia. secreção local e menor incidência de defeitos cicatriciais. Foi
A incidência de complicações com esses métodos ambulato- idealizada por Ferguson (1959).
riais para tratamento das hemorroidas internas é pequena. Em ►Hemorroidectomia por grampeamento. Objetiva redu­
nossa casuística, ela é de 6% e caracterizada por: zir o prolapso hemorroidário mediante a excisão de uma faixa
530 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

transversal de mucosa localizada entre a ampola retal e o canal ■ D ia g n ó s t ic o


anal proximal, com anastomose mucomucosa mecânica. Com É simples, fácil e realizado pela inspeção do ânus, onde ob­
esta técnica, faz-se a interrupção das ramificações terminais serva-se a presença de processo inflamatório agudo nos plexos
das artérias hemorroidárias com consequente redução do fluxo hemorroidários, caracterizado por uma tromboflebite com in­
sanguíneo para os corpos cavernosos e ressecção do prolapso tenso edema, necrose e/ou ulceração.
mucoso. Como este local tem poucos receptores sensoriais, a Nos casos em que se realiza a cirurgia de urgência, o exame
dor pós-operatória é, em geral, mínima. Está indicada para os retossigmoidoscópico pré-operatório é dificultado e o cirur­
portadores de hemorroidas internas de 3Ue 4ograus e contrain- gião deverá completar a propedêutica proctológica no intrao-
dicada nos enfermos com trombose hemorroidária. Deve-se peratório, após a anestesia, pelo risco de doença concomitante
enfatizar que esta técnica não é indicada para os pacientes por­ grave.
tadores de doença hemorroidária externa e de plicomas.
■ Tra ta m e n to
► Complicações pós-operatórias das hemorroidecto-
mias. As mais importantes são: O edema intenso que a trombose hemorroidária acarreta
é irredutível e qualquer manobra para reduzi-lo, mesmo sob
• Dor; analgesia, pode agravar o processo inflamatório.
• Sangramento; Seu tratamento é, sobretudo, cirúrgico, pois o tratamento
• Fecaloma; conservador é demorado, permanecendo o enfermo muito in­
• Retenção urinária; comodado com os sintomas e, com frequência, impossibilitado
• Estenose anal; para suas tarefas diárias. No entanto, o receio de complicações
• Fissura anal; e pós-operatórias, sobretudo de estenose anal ou de sepse peria­
• Infecção da ferida operatória. nal, tem levado alguns cirurgiões a adotar o tratamento conser­
vador. Ele é feito por meio de banhos de assento mornos, bolsa
quente perianal, uso de analgésicos e inflamatórios tópicos, na
■ Trombose hemorroidária
forma de pomadas, e parenterais, auxiliares da defecação, como
Alguns pacientes podem apresentar estase sanguínea, aguda mucilagens e fibras, e repouso físico.
e volumosa, nos plexos hemorroidários, tanto externos quan­ Optado pelo tratamento cirúrgico, a técnica operatória a ser
to internos, que, com frequência, evoluem para um processo empregada deverá ser aquela na qual o cirurgião tenha maior
inflamatório endoflebítico, desencadeando uma trombose he­ experiência. A hemorroidectomia na fase aguda da trombose
morroidária (Figura 50.8). hemorroidária tem apresentado resultados muito bons quando
Quando a trombose hemorroidária é extensa, também pode são respeitadas as bases técnicas para as cirurgias proctológicas.
ser chamada de pseudoestrangulamento hemorroidário. Carac­ A cirurgia nesta fase é segura e curativa, tendo como vantagens:
teriza-se por apresentar, além do processo inflamatório endofle­ rápido alívio dos sintomas; cura dos mamilos hemorroidários;
bítico, intenso edema e necrose. Sem tratamento correto, pode diminuição do tempo de recuperação do enfermo; e menor
evoluir para ulceração e dor intensa da região afetada. período de inatividade do paciente. Os cuidados e as compli­
cações pós-operatórias são as mesmas da cirurgia da doença
■ Quadro clínico hemorroidária não trombosada.
Seu aparecimento é abrupto. Causa, frequentemente, dor
local intensa, contínua e latejante, que impede as atividades ■ Hematoma perianal
cotidianas dos enfermos. Há, também, importante edema lo­
cal e sensação de tenesmo retal. Poderá haver secreção perianal O hematoma perianal é uma coleção sanguínea subcutânea
com mau cheiro associado, ou não, ao sangramento do m a­ (extravasai) decorrente da ruptura de um ou mais vasos da
milo trombosado. Poderá provocar dificuldade evacuatória e pele perianal. Os hematomas ficam confinados ao anoderma,
retenção urinária. não ultrapassando a linha pectínea em direção à mucosa do
canal anal.
É uma das doenças anorretais mais comuns, apresentan­
do alta incidência em todas as faixas etárias e sem preferência
quanto ao sexo. Tem aparecimento abrupto, caracterizado pela
presença no anoderma do canal anal de um ou mais nódulos
dolorosos de tamanhos variados e que, na sua maioria, tem a
coloração azulada (Figura 50.9).
A etiologia dos hematomas perianais está associada a várias
causas, tais como: constipação intestinal; diarréia; esforço eva-
cuatório; exercícios físicos exagerados e maus hábitos higiêni­
cos, como a limpeza anal com papel.

■ Q u a d r o c lín ic o
A dor local é o principal sintoma, de aparecimento abrupto,
com intensidade variável, frequentemente contínua e que rara­
mente se altera com a evacuação. Essa dor costuma permanecer
por 2 a 3 dias consecutivos, quando, então, tende a diminuir,
concomitante à dissolução do hematoma, que acaba por desa­
Figura 50.8 Presença de trombose hemorroidária com extenso pro­ parecer após 7 a 10 dias.
cesso inflamatório endoflebítico e intenso edema local. (Esta figura Os hematomas perianais, em especial os com nódulos maio­
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) res que 2 cm, permanecem, em geral, por um período maior
C a p ít u lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 531

riação no epitélio do anoderma, ela pode acarretar dor intensa


e espasmo anal com dificuldade evacuatória.

■ Anatomopatologia
Caracteriza-se por uma lesão ulcerada linear situada no ano­
derma do canal anal, que raramente ultrapassa a linha pectínea
e a anocutânea. Sua localização predominante é na região pos­
terior do canal anal, correspondendo a 85,5% em nossa casuís­
tica. A fissura anterior ocorre em cerca de 10,5% dos enfermos
e a simultaneidade de ambas, anterior e posterior, em 4% deles,
sendo sua localização lateral rara.
Essas localizações estão relacionadas com fatores anatômi­
cos do canal anal, tais como, a elasticidade reduzida em algu­
mas de suas regiões, sobretudo na comissura posterior, fato
Figura 50.9 Visão de hematoma perianal como nódulo no anoderma que impede sua adequada dilatação à evacuação, e a vascula-
do canal anal de coloração azulada. (Esta figura encontra-se reprodu­ rização menos intensa, também na região posterior, que pode
zida em cores no Encarte.) ocasionar isquemia ou dificuldade de cicatrização nesta região
do canal anal.
A fissura anal pode acarretar um processo inflamatório lo­
e, após dissolverem-se, podem resultar em um excesso de pele cal, em cerca de 30% dos enfermos, e este fato pode provocar
perianal, denominado plicoma residual. alterações secundárias, tais como edema e/ou infecção discreta,
Às vezes, pode ocorrer ulceração da pele que recobre o he­ que levam à formação de um plicoma sentinela na borda da pele
matoma, e essa ruptura provoca a eliminação espontânea dos e de uma papila anal hipertrófica na linha pectínea. Quando
coágulos extravasais, aliviando de imediato seus sintomas. Este simultâneas, os enfermos são portadores da “tríade fissurária”
sangramento perianal, no entanto, pode preocupar o paciente, (Figura 50.10).
fazendo-o procurar orientação médica. Com o tempo, a lesão fissurária vai se aprofundando no
anoderma, até alcançar o músculo esfíncter anal interno, que
■ D ia g n ó s t ic o
passa a ser seu assoalho. Isso agrava a dor local, acarretando o
A anamnese é bem característica, com o paciente referindo a espasmo esfincteriano reflexo contínuo e responsável pela di­
presença de um ou mais nódulos dolorosos na região perianal, ficuldade evacuatória subsequente.
de aparecimento abrupto.
A infecção da lesão pode ocorrer em qualquer momento e
À inspeção estática, observa-se um ou mais nódulos, dolo­ estender-se para os tecidos adjacentes, formando um abscesso
rosos ao toque, de tamanhos variados, em geral de cor azulada.
interesfincteriano ou perianal. Quando esse abscesso drena es­
O exame proctológico deverá ser completo, embora, em alguns
pontaneamente, produz uma fístula baixa.
enfermos, a dor o impeça. Nesses casos, ele deverá ser comple­
tado após a melhora dos sintomas.
■ Etiopatogenia
■ Tra ta m e n to
Embora controversa, apresenta vários fatores que são cau­
Pela tendência de os hematomas perianais dissolverem-se ou
romperem-se espontaneamente, seu tratamento é conservador, sais, desencadeantes e agravantes.
objetivando a diminuição da dor local, a eliminação do nódulo
(hematoma) e evitando sua recidiva. Prescrevem-se banhos de
assento mornos, analgésicos e anti-inflamatórios tópicos e orais,
correção da higiene anal e auxiliares da evacuação.
Os nódulos maiores, com dor anal intensa e que não dimi­
nuem após 48 h de abordagem clínica, devem ter tratamento
cirúrgico. A excisão do hematoma perianal poderá ser feita
em regime ambulatorial, sob anestesia local. As complicações
pós-operatórias são raras, os cuidados da ferida cirúrgica são
simples (limpeza local e uso de pomada analgésica tópica) e a
recuperação do enfermo é rápida.

■ FISSURA ANAL
Abordaremos neste tópico, somente, as fissuras anais ines-
pecíficas associadas a traumas do anoderma e hipertonia do
esfíncter anal interno reflexa (estímulo simpático). Sua incidên­
cia é universal, benigna, acometendo ambos os sexos e todas as
faixas etárias. Das enfermidades proctológicas, porém, poucas Figura 50.10 Lesão ulcerada posterior acompanhada por plicoma
causam tanta dor e sofrimento, a despeito do seu pequeno ta­ sentinela e papila hipertrófica (interna) caracterizando a "tríade fissu-
manho. Mesmo na fase aguda, quando não passa de mera esco­ rária". (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
532 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

► Fator traumático. É considerado o mais importante e re­ ► S a n g r a m e n t o . A lesão fissurária produz um sinal comum,

lacionado com o esforço evacuatório, a constipação intestinal o sangramento anal, de cor vermelho-rutilante, sempre rela­
crônica, a passagem de fezes endurecidas ou diarreicas, o uso cionado com a evacuação, podendo ocorrer por meio do seu
de papel para higiene local que pode produzir uma ruptura do gotejamento no vaso sanitário, visível no papel higiênico ou
epitélio de revestimento do ânus, ou seja, a lesão fissurária. Essa depositado nas fezes. É mais frequente na fissura aguda, dimi­
lesão provoca a estimulação das terminações sensoriais do ano- nuindo com a fissura crônica. Esse sangramento associado à
derma do canal anal, levando à contínua excitação reflexa do dor no ânus costuma preocupar o enfermo e induzi-lo a pro­
esfíncter anal interno, acarretando espasmo e, em consequên­ curar auxílio médico.
cia, sua hipertonia. Essa hipertonia do esfíncter anal interno é ► Irritação perianal. Poderá haver irritação perianal asso­
bem caracterizada na eletromanometria anorretal. ciada ou não ao prurido local, resultantes da presença de se­
A passagem das fezes pelo canal anal, durante o ato defe- creção advinda da eliminação de muco pela lesão fissurária
catório, produz a distensão das fibras musculares lisas desse inflamada.
esfíncter e estimula a sensibilidade dolorosa local. A conscien­ ► Infecção local. Na fissura anal, às vezes, surge uma com­
tização da evacuação dolorosa inicia um mecanismo reflexo, plicação - a infecção do leito fissurário - resultante de um
tanto voluntário quanto involuntário, de inibição da evacuação, processo inflamatório pela passagem das fezes. Essa infecção
provocando o ressecamento das fezes, que, quando expelidas do leito fissurário poderá atingir as criptas anais e, como con­
endurecidas, podem traumatizar ainda mais o anoderma. Este sequência, contaminar as glândulas mucossecretoras anais
fato agrava a lesão fissurária, dificultando sua cicatrização. (glândulas de Chiari), originando um abscesso perianal. Esses
► Fator anatômico. No quadrante posterior do canal anal, abscessos quando drenados, espontaneamente ou não, permi­
há um ponto de fraqueza chamado “espaço de Brick”, formado tem a formação de uma fístula perianal. Realmente, no exa­
pela confluência das fibras do músculo esfíncter anal interno e me proctológico de muitas fistulas anais, pode-se identificar
das fibras transversas do músculo esfíncter anal externo, local o processo inflamatório como tendo iniciado em uma fissura
onde pode haver a ruptura do anoderma durante o ato eva­ anal cicatrizada.
cuatório. Quando o ânus se abre para a passagem das fezes, é
■ C la s s if ic a ç ã o d a f is s u r a a n a l
nesse ponto onde há a menor distensibilidade, tornando-o mais
vulnerável ao trauma, fato que justifica a maior incidência da É classificada, de acordo com a duração de seu quadro clí­
nico, em aguda ou crônica.
lesão fissurária na região posterior do canal anal.
► Fator vascular. A comissura posterior é menos vascu- ► Fissura anal aguda. Caracteriza-se por uma lesão em for­
ma de fenda, estreita e superficial, sem elevação das bordas e
larizada, quando comparada às outras regiões do ânus, como
com curto período de sintomas, variando de dias a 2 ou 3 me­
demonstraram diversos autores, tais como, Klosterhalfen et al.,
ses (Figura 50.11).
por meio de dissecções anatômicas em 85% dos casos; Schouten
et a l, pela avaliação do fluxo sanguíneo da sua circulação com
► Fissura anal crônica. À medida que a fissura anal apresen­
ta sintomas por períodos prolongados ou recidivantes, a lesão
o uso de “ecodoppler a laser” e Klug et al. (apud Quilici, FA),
torna-se mais profunda, com bordos bem definidos e salientes,
por meio da medida da pressão parcial de oxigênio do canal
caracterizando sua fase crônica, em geral com mais de 6 meses
anal. Essa redução do fluxo sanguíneo pode levar à isquemia da de duração. Nesta, há perpetuação da hipertonia do esfíncter
região posterior, contribuindo para o aparecimento da fissura
anal interno e, algumas vezes, podem-se até observar as suas
anal, em seu quadrante posterior com maior frequência. Deve- fibras musculares transversais no fundo da ulceração de colo­
se salientar que a hipertonia esfincteriana nos pacientes com ração branca (Figura 50.12).
fissura anal também reduz o fluxo sanguíneo na linha poste­
rior do anoderma. É por isso que a esfincterotomia, reduzindo
a pressão anal, melhora a vascularização na região posterior e
possibilita a sua cura.

■ Quadro clínico
O quadro clínico da fissura anal caracteriza-se por:
► Dor anal. Seu principal sintoma é a dor anal intensa, pe­
netrante e aguda, do tipo latejante ou em queimação, durante e
após as evacuações. Ela produz a sensação de estar rasgando ou
cortando o ânus de forma aguda durante a passagem das fezes.
Muitas vezes, essa dor se estende de forma espasmódica até a
região genital, às costas ou aos membros inferiores, podendo
manter-se por horas depois da evacuação. A dor apresenta in ­
tensidade máxima durante ou imediatamente após a evacuação
ou a distensão do canal anal, pela grande sensibilidade do ano­
derma a estímulos dolorosos, em vista de suas inúmeras termi­
nações nervosas e frequente exposição das fibras do músculo
esfíncter anal interno pela lesão.
► Obstipação intestinal. O receio da defecação doloro­
sa causada pela “dor antecipada” faz o paciente não evacuar,
adiando a defecação sempre que possível e, com isso, induzindo Figura 50.11 Lesão fissurária do canal anal em forma de fenda, estreita
a obstipação e, em consequência, o uso abusivo de laxativos, e superficial de localização posterior (aguda). (Esta figura encontra-se
ambos agravando seu quadro doloroso. reproduzida em cores no Encarte.)
C a p ít u lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 533

► Doenças sexualmente transmissíveis (DST). O mesmo


acontece com as lesões provocadas pelas doenças sexualmen­
te transmissíveis, como as ulcerações da sífilis primária e as
herpéticas.
► Doenças inflamatórias intestinais. Doenças inflama-
tórias, tais como a doença de Crohn e a tuberculose, podem
também causar lesões fissurárias no canal anal que necessitam
ser diferenciadas da fissura anal.
► Prurido anal. As lesões causadas pelo prurido anal tam­
bém podem confundir-se com a fissura anal. Essas lesões dife­
rem da fissura anal por apresentar, com frequência, ulcerações
mal delimitadas, com as bordas pouco definidas ou grosseiras,
não respeitando o canal anal, sem localização preferencial e sem
hipertonia esfincteriana. Não doem e têm intensa exsudação
(purulenta ou fétida) e incômodo anal.
Nos casos duvidosos, os exames histopatológicos e/ou so-
rológicos são necessários, pois eles fazem o diagnóstico dife­
rencial, bem como naqueles diagnosticados como fissura anal
e que não respondem ao tratamento. A biopsia local também
deve ser realizada.

■ Tratamento
Na Antiguidade, Hipócrates (460 a.C), para diminuir a dor
Figura 50.12 Fissura ulcerada com bordos bem definidos, com expo­
da fissura anal, recomendava o tratamento local com banhos de
sição das fibras brancas transversais do músculo esfíncter anal interno
(crônica). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) água quente e a proibição de pimentas na dieta. Não obtendo
melhora, indicava sua cauterização com ferro em brasa.
A cauterização local com solução de nitrato de prata, ou por
meio de injeções esclerosantes, foi utilizada até recentemente,
O exame histopatológico da fissura anal nesta fase mostra assim como as dilatações digitais forçadas, todas com resulta­
infiltrado inflamatório crônico inespecífico com áreas necró- dos insatisfatórios.
ticas, além de tecido fibrótico na sua base.
■ T r a t a m e n t o c lín ic o
Atualmente, na presença de fissura anal aguda, quando a hi­
■ Diagnóstico pertonia do músculo esfíncter anal interno não é muito intensa,
Seu diagnóstico é, com frequência, fácil e simples. Na anam- propõe-se o tratamento conservador. Para tal, atua-se sobre as
nese, a queixa de dores anais intensas, durante e/ou imediata­ causas da dor da fissura, obtendo-se, em consequência, o rela­
mente após a defecação, do tipo latejante e/ou em queimação, xamento anal e a cicatrização da lesão.
já permite essa suspeição. A introdução de dieta rica em fibras e água em quantidades
Mediante o afastamento das nádegas e da exposição cuida­ adequadas para manter as fezes macias e bem formadas e au­
dosa do canal anal para inspeção, observa-se lesão ulcerada no xiliares da defecação, tais como sementes de plantago e muci-
anoderma, de forma elíptica, medindo, em geral, 10 a 20 mm lagens, estão indicados. Proíbe-se o uso de papel higiênico na
de extensão, no eixo longitudinal do canal anal. Pode haver limpeza local, condimentos, bebidas alcoólicas e a utilização
associação, ou não, de plicoma sentinela. A fissura anal, em de laxativos catárticos.
geral, é única. Nos casos em que são múltiplas ou localizadas Na fase aguda, os banhos de assento em água morna produ­
fora da linha média, deve-se afastar sua relação com afecções zem o relaxamento do esfíncter anal interno, melhorando sig­
sistêmicas de manifestação no canal anal. nificativamente a dor e o espasmo reflexo com alívio imediato.
O exame digital do ânus é, também, muito doloroso e o to­ Emprega-se a aplicação de pomadas tópicas, que são superio­
que retal, com frequência, só é possível após analgesia local. Ao res ao uso de supositórios, para combater a dor, o prurido e a
realizá-lo, deve-se observar a presença ou não de papila hiper- infecção. Pode-se associar o uso de anestésicos endoanais, na
trófica e verificar a intensidade do espasmo esfincteriano. forma de enemas. Evita-se o emprego de pomadas contendo
É importante lembrar que o exame proctológico completo corticoides, por possuírem propriedades inibidoras da prolife­
deve sempre ser realizado na procura de enfermidades anor­ ração celular que alteram a cicatrização e epitelização.
retais associadas, em especialmente nos pacientes idosos, po­ Ainda com o objetivo de evitar seu tratamento cirúrgico,
rém, apenas, após analgesia local ou posteriormente, quando que, apesar de simples, não é isento de complicações, novas
da melhora do quadro doloroso. terapêuticas têm possibilitado a cicatrização de até 70% das
fissuras anais agudas, segundo nossa experiência e semelhan­
■ D ia g n ó s t ic o d i f e r e n c ia l te à dos dados da literatura. É a denominada "esfincterotomia
Algumas enfermidades anorretais podem assemelhar-se, química”, que visa ao relaxamento esfincteriano temporário,
morfologicamente, à fissura anal, sendo importante realizar apenas para permitir a cura da fissura, sem a ruptura perma­
seu diagnóstico diferencial. As principais são: nente da função esfincteriana normal.
► Carcinomas do canal anal. O diagnóstico diferencial com Os conhecimentos da fisiologia do canal anal e dos meca­
os carcinomas do canal anal, embora de incidência rara, é mui­ nismos de controle da contração muscular lisa permitiram a
to importante. manipulação farmacológica do tônus esfincteriano. O relaxa­
534 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

mento da musculatura lisa anal é inibido por estimulação dos ■ Esfincterotomia posterior
plexos entéricos não colinérgicos e não adrenérgicos, de recep­ É realizada no próprio leito da fissura anal. A técnica, descri­
tores muscarínicos parassimpáticos, de beta-adrenorreceptores ta por Eisenhammer (1951), consiste em seccionar-se o músculo
simpáticos e pela inibição da entrada de cálcio na célula. O esfíncter interno do ânus, por meio de uma incisão na linha
bloqueio da liberação dos receptores da acetilcolina ocasiona média da parede posterior do canal anal, diretamente no leito
inibição da contração do músculo esfíncter interno do ânus, da fissura, deixando a ferida aberta para cicatrização por se­
inibindo seu espasmo e consequente hipertonia. gunda intenção.

■ óxido nítrico ■ Esfincterotomia lateral


Foi estudado por 0 ’Kelly et al. (apud Quilici, FA), demons­ Essa técnica preserva a ferida fissurária, realizando a esfinc­
trando ser ele o neurotransmissor que medeia o reflexo ini- terotomia anal na região lateral do ânus. A técnica, descrita por
bitório retoanal. Com este efeito, tem-se empregado seu uso Parks (1975), consiste na secção parcial do músculo esfíncter
para a esfincterotomia química, em especial nas fissuras agudas. anal interno, por meio de uma incisão, de 2 cm de extensão, na
Utiliza-se a pomada tópica de glicerila trinitrato (GTN) a 0,2%, pele da região posterolateral esquerda do canal anal, distante
2 vezes/dia, durante o mínimo de 4 semanas, ou a solução cre­ cerca de 2 a 3 cm da linha pectínea, e, sob visão direta, faz-se a
mosa do dinitrato de isossorbida a 1 ou 2%, 3 vezes/dia, tam ­ esfincterotomia, em uma extensão de 1 a 2 cm, com posterior
bém durante 4 semanas. O óbice desse tratamento é a cefaleia fechamento da pele.
moderada que pode ocorrer em, cerca de, 20% dos pacientes e Outra possibilidade técnica para a esfincterotomia lateral foi
a hipotensão ortostática que pode surgir em até 5% dos casos. publicada, originalmente, por um cirurgião brasileiro, Milton
Ambas melhoram, apenas com a suspensão do uso da droga. César Ribeiro (1958). Ele propôs a realização de uma pequena
incisão (0,5 cm) na pele, também localizada na região posterola­
■ Nifedipino teral esquerda do ânus, pela qual o cirurgião aborda o músculo
A administração da difedipino oral, um bloqueador dos ca­ esfíncter interno do ânus “às cegas”. O músculo esfincteriano
nais de cálcio, também diminui a pressão anal, podendo levar é identificado por meio do toque do dedo indicador da mão
à cura da fissura anal. É utilizada na dose de 20 mg, 2 vezes/ esquerda, que reconhece, também, o degrau existente entre os
dia, por 8 semanas. esfíncteres interno e externo do ânus. Após essa identificação,
realiza-se a secção do esfíncter anal interno, por meio de bisturi
■ Toxina botulínica de lâmina fria ou de tesoura. O leito fissurário não é atingido e
Essa toxina provoca uma desnervação química do esfíncter sua cicatrização acontece após 8 a 14 dias. Essa técnica, porém,
anal interno, impedindo sua contração efetiva e permitindo a ficou conhecida, em todo o mundo, como sendo de outro au­
cura da fissura. É administrada por meio de injeções com 20 tor, Notaras, que a copiou e publicou somente em 1969, porém
U de toxina botulínica (volume total de 0,4 m^) no interior com maior divulgação.
do esfíncter interno, em uma única sessão. Essa técnica não Essa técnica da esfincterotomia lateral, por ser fechada, tem
requer hospitalização e é bem tolerada. Suas vantagens são a a vantagem de proporcionar maior conforto ao paciente, rápida
ausência dos riscos inerentes aos procedimentos cirúrgicos e cicatrização, menos dor e ausência de secreção mucosa.
a incidência reduzida de incontinência, que, quando ocorre, é Em nossos enfermos com fissura anal crônica, temos utiliza­
transitória, desaparecendo ao redor de 6 meses. A desvantagem do essa intervenção, em ambulatório, sob anestesia local, com
é seu alto custo. acesso anal em região lateral esquerda, subcutâneo-mucosa,
sem remoção da lesão fissurária. Apresenta baixa incidência
■ Indoramina de dor e complicações pós-operatórias e há precoce retorno
A ação do esfíncter anal interno é estimulada pela inervação do paciente às suas atividades diárias
simpática dos alfa-adrenorreceptores. Sua inibição pelo uso de
seu antagonista, a indoramina, em dose única de 20 mg, po­ ■ Crioterapia
derá provocar o relaxamento esfincteriano pela diminuição da Outra opção, mais recente, com bons resultados, é a “es­
pressão do canal anal e a cura da fissura. fincterotomia física”, em que fazemos o congelamento do leito
fissurário com nitrogênio líquido a -196°C, durante 2 min. A
■ Tratam ento cirúrgico crioterapia produz uma esfincterotomia anal interna parcial
Como há recorrência dos fatores desencadeantes da fissura por agente físico e promove a cicatrização da lesão fissurária
anal, tais como, endurecimento das fezes, hipertonia esfincte- em, aproximadamente, 2 semanas.
riana e tensão emocional, a lesão, com frequência, torna a abrir,
dificultando uma nova cicatrização. Por isso, na fissura anal crô­ ■ Fissurectomia e esfincterotomia
nica, cujo componente fisiopatológico principal é a hipertonia A esfincterotomia anal interna, associada à fissurectomia
intensa do músculo esfíncter anal interno, a melhor conduta (excisão da ferida fissurária), foi descrita por Gabriel (1919).
é a cirúrgica. Ela tem como objetivo a eliminação dessa hiper­ Está indicada, somente, na fissura anal infectada, quando é ne­
tonia, por meio de uma esfincterotomia anal interna parcial, cessário realizar-se a remoção da lesão fissurária e do tecido
com cura definitiva da fissura. infectado circundante, incluindo a região afetada das criptas
Os seus resultados pós-operatórios fazem-na uma das opera­ anais, permanecendo a ferida cirúrgica aberta para cicatriza­
ções mais gratificantes aos pacientes e cirurgiões, pelo desapare­ ção por segunda intenção, semelhante ao tratamento dos abs-
cimento rápido dos sintomas, alta porcentagem de cura (cerca cessos perianais.
de 98% dos casos), baixa morbimortalidade e com incidência
de complicações menor que 5%. ■ Pós-operatório das esfmcterotomias
As técnicas cirúrgicas para a esfincterotomia parcial mais O pós-operatório é conduzido com anti-inflamatórios ad­
utilizadas são: ministrados por via oral, mucilagens e/ou fibras e cuidados
C a p ít u lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 535

locais com banhos de assento com água morna, pomada anti- -----------------------▼----------------------
inflamatória e analgésica, além da proibição do uso de papel Q u a d ro 50.2 A fe c ç õ e s c r ip t o g la n d u la r e s : e t io p a t o g e n ia
higiênico para limpeza local, uso de bebidas alcoólicas e de
alimentos condimentados. 1. Criptite
Trauma na cripta anal
2. Abscesso anorretal
Contaminação da glândula anal
■ PROCESSOS INFLAMATÓRIOS E INFECCIOSOS 3. Ffstula anorretal
Drenagem do abscesso
Os processos inflamatórios e/ou infecciosos acometem, com
frequência, a região anorretal, independentemente da idade ou
do sexo do enfermo. Têm como fatores predisponentes seu es­
tado geral, a presença de doenças associadas, como o diabetes A criptite e o abscesso perianal, portanto, são as fases agu­
melito, ou enfermidades que alteram seu sistema imunológi- das e, a fístula, a fase crônica de um mesmo processo infeccioso
co, tais como, a AIDS, os linfomas, a leucemia, ou, mesmo, os anorretal (Quadro 50.2).
pacientes transplantados ou submetidos à quimioterapia e à
radioterapia. ■ Papilites
A fase aguda de um processo inflamatório da papila anal
■ Etiopatogenia poderá acarretar o aumento de seu volume, com alargamen­
Suas causas mais frequentes são: to de sua base, em decorrência do edema e da congestão. De
► Doenças intestinais. Processos inflamatórios e/ou infec­ acordo com a duração desse processo, ela poderá cronificar-se,
ciosos podem ocorrer na região anorretal decorrentes de en­ originando a papilite crônica, em geral com aumento do seu
fermidades sistêmicas que acometem os intestinos, tais como, tamanho e, por isso, denominada papila hipertrófica.
doença de Crohn, retocolite ulcerativa, tuberculose intestinal
e actinomicose ■ Quadro dínico
► Traumas. Lesões anorretais provocados por empalamen- Seus sintomas são geralmente vagos e relatados pelo pacien­
tos, corpos estranhos (osso de galinha, espinha de peixe etc.), te como um incomodo anal, discreto ardor ou, mesmo, dor na
quedas a cavaleiro sobre o canal anal, agressões sexuais etc. região anal, que pioram com a defecação. Quando o tamanho
podem ocasionar processos infecciosos desta região, por vezes da papila ultrapassar 10 mm, ela poderá prolabar à evacuação.
com alta morbidade. Esse fato confunde-se com doença hemorroidária.
► Complicações pós-operatórias de cirurgias anorretais.
A falta de cuidados pós-operatórios, tais como, a limpeza local, ■ Diagnóstico
com as feridas cirúrgicas realizadas no canal anal pode causar Na fase aguda da papilite, seu diagnóstico é realizado pelo
quadros infecciosos, às vezes graves, desta região. toque retal, no qual se palpa, na região da linha pectínea, a pre­
► Doenças malignas. Tumores, como o carcinoma, o lin- sença de formações mamelonadas, únicas ou múltiplas, sensí­
foma etc., podem manifestar-se como lesões infecciosas anor­ veis ao toque. À anuscopia, poderá se ver e confirmar a presença
retais. dessas papilas edemaciadas e congestas, em geral com volume
► Radioterapia. As lesões actínicas provocadas pela irradia­ aumentado (Figura 50.13).
ção pélvica e/ou perineal também podem ocasionar processos
infecciosos anorretais.
► Criptoglandular. A inflamação da região criptoglanduiar
do canal anal é a causa mais comum dos processos infecciosos
anorretais. Por ser a mais importante e frequente, responsável
por cerca de 80% de todas as infecções anorretais, será o que
abordaremos com mais detalhes. No entanto, a maioria dos con­
ceitos que serão relatados valerá para as suas demais causas.

■ Infecções criptoglandulares
As infecções anorretais de origem criptoglandular têm como
seu fator desencadeante o traumatismo local, como, por exem­
plo, a passagem de fezes endurecidas pelo canal anal, por quadro
diarreico intenso ou pelo uso de papel higiênico para limpeza
local. Esse trauma poderá acarretar uma lesão com solução de
continuidade nessa região, propiciando um processo inflamató-
rio e sua consequente invasão por microrganismos da microbió-
tica colônica, originando um processo infeccioso agudo local.
Quando a inflamação/infecção acometem as papilas anais,
originam as papilites e, quando acometem as criptas anais, cau­
sam as criptites.
Se, durante a criptite, esse processo alcançar também o dueto
de uma das glândulas anais, poderá contaminá-lo, com forma­
ção de um abscesso perianal. Havendo ruptura desse abscesso, Figura 50.13 V is á o à a n u s c o p ia d e p a p ila s a n a is e d e m a c ia d a s , c o n ­
espontaneamente ou por drenagem cirúrgica, isso poderá oca­ g e s t a s e a u m e n t a d a s d e t a m a n h o . (E sta fig u ra e n c o n t r a - s e r e p ro d u z id a
sionar uma fístula perianal. e m c o r e s n o E n c a r te .)
536 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

As papilas hipertróficas, pelo tamanho que podem atingir, É im portante acompanhar a evolução do enfermo, pois,
poderão exteriorizar-se pelo ânus, à evacuação, facilitando seu não havendo melhora do quadro clínico, no máximo até 7 dias
diagnóstico. Entretanto, o diagnóstico diferencial das papilites, de tratamento clínico, deverá ser indicada a cirurgia. Nestes
especialmente da papilite hipertrófica (crônica), deverá ser feito casos, deverá realizar-se a exploração das criptas anais com
com a doença hemorroidária e os pólipos retais prolabados. A estilete cirúrgico, sob anestesia local ou bloqueio medular. As
diferenciação se faz pelo aspecto característico das papilas e sua criptas que estiverem pérvias à introdução do estilete deverão
localização na linha pectínea do canal anal, junto às bordas das ser cauterizadas ou ressecadas. Havendo a presença concomi­
criptas anais e nas bases das colunas de Morgagni. tante de plicomas perianais, papilas hipertróficas ou mamilos
hemorroidários, eles poderão ser ressecados no mesmo ato
■ Tratam ento cirúrgico.
Na fase aguda da papilite, seu tratamento é clínico, por meio
de anti-inflamatórios orais, de pomadas ou supositórios anal­
gésicos e anti-inflamatórios, calor local por bolsa quente e/ou
■ Abscessos
banhos de assento em água morna. Nestes casos, deve-se auxi­ Os abscessos são processos infecciosos agudos, supurativos,
liar a evacuação, sobretudo nos pacientes idosos, que são fre­ caracterizados por coleções purulentas na região anorretal. Sua
quentemente constipados, por meio de dieta rica em fibras etiologia principal é a criptoglandular, pela infecção de uma
e/ou com uso de mucilagens, plantago e proibindo-se a higiene cripta anal e consequente contaminação glandular.
anal com papel. As glândulas anais, também chamadas de glândulas de
O tratamento cirúrgico é indicado, somente, para a papilite Chiari, localizam-se no canal anal, no espaço existente entre
hipertrófica (crônica) que causa sintomas importantes. Consiste os músculos esfincterianos anais, interno e externo. Elas são em
na sua ressecção, que poderá ser efetuada, sob anestesia local, número de oito a doze, e seus duetos desembocam nas bases
em regime ambulatorial ou em ambiente hospitalar. das criptas anais. É por esses duetos que ocorre a contaminação
glandular, originária de uma criptite preexistente. A infecção
glandular pode espalhar-se, do espaço interesfincteriano do
■ Criptites canal anal às mais variadas direções adjacentes. A classifica­
A cripta anal predispõe-se aos traumatismos no canal anal ção dos abscessos é feita, conforme sua localização anatômica,
por causa de sua forma anatômica e da fragilidade de suas pa­ em perianais, isquiorretais, submucosos, interesfincterianos e
redes, fatos que facilitam a infecção. pelvirretais (Figura 50.14).
Suas principais características são:
■ Quadro clínico ► Abscessos perianais. São os de diagnóstico, em geral,
Caracteriza-se por desencadear desde discreto ardor até dor mais fácil, os mais frequentes, menos agressivos e de tratamento
na região anal. Essa dor, quando intensa, é do tipo pulsante e cirúrgico mais simples.
contínua, piorando à evacuação, sendo, às vezes, acompanhada ► Abscessos isquiorretais. Propagam-se ao lado oposto
da eliminação de secreção perianal de muco ou mesmo purulen- pelo espaço retroesfincteriano e, quando drenados, originam
ta, nas formas mais graves. Poderá ocorrer, também, a sensação as fístulas denominadas “em ferradura”, tornando seu trata­
de peso no canal anal e de evacuação incompleta. mento cirúrgico mais complexo. Nesses casos, deve-se sempre
diferenciá-los das doenças inflamatórias, como da doença de
■ Diagnóstico Crohn anorretal.
Poderá ser realizado se, à inspeção anal, houver a presença ► Abscessos submucosos. São processos infecciosos, em
de secreção de muco ou de pus. O toque retal contribui pouco geral, pouco agressivos. Provocam, com frequência, um abau-
para o diagnóstico, pois a dor que acarreta provoca contratura lamento na mucosa da ampola retal e, por isso, podem ser diag­
esfincteriana reflexa, que dificulta o exame proctológico. nosticados ao toque retal. Seu tratamento cirúrgico é realizado
A anuscopia, quando possível, ou seja, quando a dor duran­ pela via transanaJ.
te sua realização for suportável pelo enfermo, poderá mostrar
congestão, enantema e edema em uma região da linha pectínea.
A passagem do anuscópio pelo canal anal poderá, também, pro­
vocar a eliminação de pus pela cripta infectada, o que poderá ser
observado durante esse exame. A retossigmoidoscopia deverá,
sempre que possível, completar o exame proctológico, permi­
tindo avaliar a presença de enfermidades concomitantes.
Seu diagnóstico diferencial deverá ser efetuado com as ou­
tras infecções do canal anal.

■ Tratam ento
As criptites agudas, com frequência, têm regressão espon­
tânea. Entretanto, as mais intensas levam o paciente a procu­
rar atendimento médico. Seu tratamento é clínico, na maioria
dos pacientes, mediante antibioticoterapia oral (ciprofloxacino,
500 mg oral, 2 vezes/dia, durante 7 dias), pomadas ou suposi­
tórios analgésicos e anti-inflamatórios, calor local com bolsa
quente e banhos de assento em água morna. Deve-se, também,
auxiliar a evacuação com dieta rica em fibras e/ou com plantago, Figura 50.14 L o c a liz a ç ã o e s q u e m á t ic a d o s a b s c e s s o s a n o rre ta is . (E sta
mucilagens, além da proibição da higiene anal com papel. f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a r te .)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 537

► Abscessos interesfincterianos. Seu diagnóstico e tra­ O diagnóstico diferencial dos abscessos criptoglandulares
tamento cirúrgico são, com frequência, mais complexos por­ deve ser feito com os originários de outros processos infecciosos
que eles envolvem e dissecam o plano intermuscular da região originados por doenças como carcinoma epidermoide do canal
anorretal. anal, doença de Crohn anorretal e tuberculose perianal.
► Abscessos pelvirretais. Pela sua localização, acima dos
músculos elevadores do ânus e abaixo da reflexão peritoneal, ■ Tratam ento
são os mais difíceis de diagnóstico e de tratamento cirúrgico. O tratamento dos abscessos anorretais é essencialmente ci­
Felizmente, são os abscessos menos frequentes. rúrgico. Os abscessos, depois de diagnosticados, deverão sem­
Os abscessos anorretais podem, também, ser classificados, pre ser drenados de imediato.
de acordo com a sua profundidade no canal anal, em superfi­
ciais, como os perianais e isquiorretais, e em profundos, como ■ Drenagemsimples
os submucosos, os interesfincterianos e os pelvirretais. Uma de suas opções operatórias é a drenagem simples da
coleção purulenta, por meio da incisão do local do abscesso,
■ Quadro clínico para permitir sua ampla drenagem, impedindo o fechamento
A dor é o sintoma mais importante e característico, sendo, prematuro da ferida e, com isso, a sua recidiva.
em geral, contínua e latejante, de intensidade variável de acor­ Nos processos superficiais e pequenos, essa drenagem pode
do com o volume da coleção purulenta, piorando à deambu- ser realizada, sob anestesia local, ambulatorialmente. Já nos
lação, ao sentar-se e até mesmo à evacuação. Sintomas como abscessos profundos e amplos, ela deverá ser efetuada, sob blo­
febre, calafrios, tenesmos retal e urinário e tumoração perianal queio medular, em centro cirúrgico. A ferida cirúrgica na pele
associam-se, frequentemente, ao quadro clínico. deverá permanecer aberta até a total limpeza pós-operatória da
cavidade do abscesso. Outra opção é sua drenagem orientada
■ Diagnóstico pela ressonância magnética.
É realizado pela inspeção que, nos abscessos superficiais, Ocorrendo a cicatrização total do abscesso, o paciente será
pode revelar os sinais flogísticos de tumoração, hiperemia, dor considerado curado.
e calor local (Figura 50.15) e pela palpação perinal que, nos Entretanto, com frequência (90% dos casos), depois da dre­
abscessos purulentos profundos, permite notar sua flutuação nagem simples do abscesso, haverá a persistência de um trajeto
e seus limites perianal ou intrarretal.
(fistuloso) entre a cripta infectada (orifício interno) e o local
Nos abscessos profundos, a inspeção e a palpação podem da drenagem perianal do abscesso (orifício externo), caracteri­
nada revelar. Ao toque retal, podem-se palpar abaulamentos
zando uma fístula perianal. Pelo orifíco externo, poderá ocor­
bastante dolorosos. A anuscopia costuma nada revelar; no en­ rer eliminação, contínua ou não, de secreção purulenta, o que
tanto, em alguns enfermos, poderá observar-se a presença de
exigirá nova cirurgia para a correção desta fístula.
secreção purulenta no reto. A retossigmoidoscopia deve sempre
ser realizada para avaliação de doenças concomitantes. Nos en­
■ Drenageme fistulotomia
fermos com dor intensa, o exame proctológico terá de ser reali­
Outra tática operatória para o tratamento cirúrgico dos abs­
zado sob analgesia, de preferência em centro cirúrgico.
cessos anorretais consiste em realizarem-se, em um mesmo ato
Naqueles pacientes com diagnóstico difícil ou duvidoso,
operatório, a drenagem do abscesso e a pesquisa da cripta in­
deve-se efetuar ressonância magnética pélvica, exame padrão-
fectada ou do seu orifício interno, origem do abscesso cripto-
ouro para demonstrar a presença de abscessos e/ou trajetos
glandular. Sendo identificada essa cripta ou seu orifício interno,
fistulosos. A tomografia computadorizada e a cintigrafia não
apresentam a mesma especificidade diagnóstica. deve-se efetuar uma ampla abertura de todo o trajeto fistuloso,
desde a cavidade do abscesso até a cripta infectada no canal anal,
com sua curetagem, deixando-se a ferida operatória aberta até
sua completa cicatrização. Com esta tática, pretende-se evitar
a recidiva do abscesso ou a necessidade de nova cirurgia para
a correção da fístula residual.

■ Pós-operatório
O uso profilático de antibióticos como rotina é muito impor­
tante, sendo administrados previamente à drenagem cirúrgica
dos abscessos, à exceção dos pacientes imunocomprometidos,
debilitados, idosos ou diabéticos etc., quando os antibióticos
deverão ser utilizados como terapia (ciprofloxacino oral ou
parenteral).
Analgésicos e anti-inflamatórios orais ou parenterais são,
também, sempre empregados. Auxilia-se a evacuação com dieta
rica em fibras e/ou mucilagens.
Os cuidados locais pós-operatórios são fundamentais para
a cura. Indicam-se curativos diários, inicialmente até 5 vezes/
dia, com limpeza exaustiva da ferida operatória de drenagem,
mediante sua lavagem com água corrente e sua proteção com
gazes e pomadas analgésicas e anti-inflamatórias, até sua cicatri­
Figura 50.15 A b s c e s s o a n o rre ta l c a r a c t e r iz a d o p e la p r e s e n ç a d e t u ­ zação total. Associam-se banhos de assento com permanganato
m o r a ç ã o p e r ia n a l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o de potássio, na diluição de 1:40.000, como solução antisséptica,
E n c a rte .) após cada evacuação, nos primeiros 7 dias de pós-operatório.
538 Capítulo 50 / DoençasAnorretais

São também classificadas, conforme a sua localização no


■ Fístulas perianais canal anal, em interesfincterianas, transesfincterianas, extra-
São caracterizadas por um ou mais trajetos que comunicam esfincterianas e supraesfincterianas (Figura 50.17).
o canal anal e/ou o reto (mucoso) ao períneo (cutâneo). No ca­
nal anal, é onde se localiza o orifício interno do trajeto da fístula
e, no períneo, o orifício externo (Figura 50.16).
A etiologia da fístula anorretal é, também, criptoglandular
em 80% dos enfermos decorrente da drenagem (ruptura) es­
pontânea de um abscesso.
Nas fístulas perianais, pode haver um ou vários orifícios
(externos e/ou internos) em variadas localizações no canal anal
ou, até mesmo, vários trajetos fistulosos relacionados com uma
ou múltiplas criptas anais infectadas.

■ Classificação das fístulas anorretais


A fístula é denominada completa quando é possível reconhe­
cer seu orifício externo (cutâneo), o trajeto fistuloso e o orifício
interno, geralmente na cripta anal comprometida. Não sendo
identificado um dos orifícios, a fístula é denominada incom­
pleta. Quanto à profundidade do seu trajeto fistuloso, super­
ficial ou profunda. Estas fístulas são chamadas de simples ou
complexas, de acordo com o tipo de seu trajeto fistuloso, com Figura 50.16 Visão de uma fístula perianal, vendo-se seu orifício in­
o número de orifícios (internos ou externos) e com a muscu­ terno junto à linha pectínea e o externo na região cutânea do canal
latura esfincteriana envolvida. anal. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 50.17 A. B. C e D. Esquema segundo a localização das fístulas anorretais: interesfincteriana em A, transesfincteriana em 8, supraesfinc-
teriana em C e extraesfincteriana em D.
Capítulo50 / DoençasAnorretais 539

■ Quadro clínico excisão e a da fistulectomia onde realiza-se a ressecção de todo


Os pacientes referem, frequentemente, dor anorretal latejan- o trajeto da fístula, incluindo o orifício externo e o interno com
te, com a presença ou não de um abscesso anorretal prévio. O a cripta infectada correspondente e a ferida é deixada aberta até
sinal mais comum do quadro clínico da fístula é a eliminação a sua cicatrização total, por segunda intenção.
de secreção purulenta perianal, relativamente indolor. A dor Em ambas, a identificação cuidadosa do trajeto fistuloso é
ou a febre poderão estar presentes nos casos de fístulas com fundamental, podendo ser realizada com estilete ou, mais rara­
recidiva do processo infeccioso supurativo. mente, com injeção, em seu orifício externo, de água oxigenada
À inspeção perianal, pode-se constatar a presença de um ou de corante como o azul de metileno.
ou mais orifícios externos, com bordas endurecidas, que, em ► Pós-operatório. Os cuidados pós-operatórios das fístulas
geral, localizam-se próximo ao canal anal. Os situados a mais perianais são os mesmos adotados para a cirurgia dos absces-
de 5 cm da linha pectínea são raros. sos anorretais.
Nas fístulas superficiais, pode-se palpar o trajeto fistuloso
subcutâneo, entre seu orifício externo e o canal anal. Ao toque ■ Gangrena gasosa
retal, bidigital, pode-se identificar o tecido fibroso na região
anorretal. Essa compressão palpatória, com frequência, permite É uma das complicações mais temidas dos processos infec­
a saída de secreção pelo orifício da fístula e pode causar algum ciosos anorretais. Caracteriza-se pela sua alta morbimortalida-
desconforto ao enfermo. de, especialmente em pacientes debilitados, imunocomprometi-
Em alguns pacientes, é possível reconhecer o orifício inter­ dos e diabéticos. Sua principal causa é nos enfermos submetidos
no da fístula pela anuscopia, inclusive com a saída de secreção à drenagem insuficiente de abscessos ou consequente à falta de
purulenta. A exploração instrumental do trajeto fistuloso, com cuidados locais no pós-operatório de cirurgias anorretais.
estilete, deverá ser extremamente cuidadosa para não provocar A gangrena gasosa ocorre quando os processos infeccio­
dor ou falso trajeto, induzindo a erro quanto à localização da sos anorretais espalham-se para fora de seus limites anatômi­
cripta comprometida. cos e invadem o períneo, atingindo a gordura, as fáscias e os
músculos adjacentes, e, não raro, alastram-se para as nádegas,
■ Diagnóstico coxas, região inguinal, parede abdominal e espaço retroperi-
toneal (Figura 50.18).
É estabelecido, com certa facilidade, pela história e pelo exa­
Esses processos têm especial predileção, entretanto, para
me físico do paciente. A fistulografia (de menor especificidade)
se estender à região anterior ao períneo, alcançando, com fre­
não tem grande valia. A ultrassonografia endorretal apresenta
quência, a genitália do paciente. Quando o escroto é atingido
boa especificidade, porém o padrão-ouro é a ressonância mag­
pela infecção, denomina-se síndrome de Fournier.
nética da pelve.
Esse processo supurativo necrosante é causado pela asso­
ciação de vários microrganismos da microbiótica colônica, em
■ Diagnóstico diferencial
Deverá ser realizado com todas as enfermidades específicas
ou não que ocasionam fístulas anorretais e com os tumores
desta região.

■ Tratam ento
Muito embora a preferência do tratamento das fístulas anor­
retais seja cirúrgica, em algumas fístulas complexas sua corre­
ção pode acarretar o risco de sequelas, como as alterações da
continência fecal e dificuldade cicatricial, como as estenoses
anais. Este fato é relevante, especialmente para as fístulas da
doença de Crohn.
Para abordagem conservadora, podemos utilizar a cola de
fibrina (selante) injetada no seu trajeto, possibilitando a sua
cicatrização. As vantagens são não provocar danos à muscula­
tura esfincteriana e, como consequência, nenhum risco de in-
continência fecal. Ela apresenta rápida cicatrização, sem o des­
conforto do pós-operatório tradicional. O mecanismo de ação
destes selantes, biológicos ou sintéticos, é formar um coágulo
no trajeto fistuloso, servindo de suporte para a neoformação
vascular, possibilitando a proliferação fibroblástica e formação
de colágeno, elementos fundamentais para a cicatrização das fe­
ridas fistulosas. O material biológico combina um concentrado
de fibrinogênio e trombina, misturados somente no momento
da sua aplicação. Por serem autólogos, não oferecem o risco de
contaminação viral. Os melhores resultados com o selante são
obtidos nas fístulas interesfincterianas e transesfincterianas de
origem criptoglandular de trajeto longo (maior que 3,5 cm).

■ Tratamento cirúrgico Figura 50.18 Gangrena gasosa originária de abscesso anorretal,


Há duas opções táticas para as cirurgias das fístulas: a téc­ atingindo, além do períneo, o escroto, caracterizando a síndrome de
nica da fistulotomia onde faz-se a abertura do trajeto sem sua Fournier. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
540 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

especial os bacilos anaeróbios e as bactérias gram-negativas,


responsáveis pela sua alta morbimortalidade. Quando sua ori­
■ Etiopatogenia
gem é, primariamente, causada pelo Clostridium perfringens, Ambos estão, diretamente, relacionados com a falência da
seu quadro é ainda mais fulminante e grave. fixação do reto na pelve. Sob o ponto de vista cirúrgico, os me­
canismos de fixação do reto são:
■ Quadro clínico
• Meios de suspensão formada pelo peritônio pélvico, me-
Seu início é caracterizado pelo aparecimento de uma celulite
perineal de rápida evolução, com crepitação, manchas escuras sentério vascular e seus vasos;
(pela necrose) e invasão para as regiões vizinhas. O paciente • Meios de fixação pela fáscia pélvica; e
apresenta sintomas retais vagos e súbita e intensa deterioriza- • Meios de sustentação formada pelos músculos elevadores
ção do estado geral, com sinais de toxemia grave. do ânus, esfíncter anal externo e fáscia perineal.

■ Diagnóstico ■ Etiologia do prolapso mucoso


A identificação da gangrena gasosa do períneo, em geral, não A etiologia mais comum do prolapso mucoso é o afrou­
é difícil pelas suas características locais e pela rapidez evolutiva xamento da fixação da mucosa na submucosa do reto, possi­
do quadro clínico. Este fato é fundamental para iniciarem-se bilitando seu deslizamento. Pode ser ocasionada por: doença
as medidas terapêuticas emergenciais necessárias para tentar hemorroidária de 3o grau; hipotonia esfincteriana senil; diar­
diminuir sua alta morbimortalidade. réia crônica; constipação intestinal grave; esforço defecatório
excessivo e/ou fraqueza relativa da musculatura do assoalho
■ Tratam ento pélvico.
Deverá sempre ser emergencial, utilizando-se antibiotico-
terapia de amplo espectro, reequilíbrio hidreletrolítico e várias ■ Etiologia da procidência retal
operações subsequentes para desbridamentos, radicais e agres­ Está diretamente relacionda com o enfraquecimento da
sivos, de toda a área gangrenada ou necrótica (Figura 50.19). musculatura do assoalho pélvico. Para esse enfraquecimento,
Há necessidade de repetirem-se os desbridamentos da fe­ são descritos vários fatores predisponentes: constipação intes­
rida gangrenada por vários dias e, às vezes, mais de uma vez tinal grave; diarréia crônica; mesocólon longo; posição inade­
no dia. Em casos mais graves, associa-se a derivação fecal por quada para defecação; esforço evacuatório excessivo; parasitoses
meio de uma sigmoidostomia, que impede o trânsito intestinal retais; prolapso genital; multíparas; desnutrição grave; e pólipos
pelo canal anal, facilitando a limpeza local da ferida perineal. na região retossigmoideana.
Alguns cirurgiões costumam associar o uso de câmara hiper- Martin e cols. admitiram como causa inicial da procidên­
bárica de oxigênio nas áreas com a gangrena gasosa causada cia retal a presença de um mesocólon longo, que permitia uma
por infeccção anaeróbica. mobilidade anormal retossigmoideana e sua invaginação. Se­
ria essa invaginação a causa do enfraquecimento dos meios de
fixação retal.
■ PR0LAPS0 MUC0S0 E PROCIDÊNCIA RETAL
O prolapso mucoso caracteriza-se pela exteriorização somen­ ■ Quadro clínico
te da mucosa do reto pelo ânus, enquanto a procidência retal, Caracteriza-se pela presença da eversão ou “saída” de “algu­
pela eversão e protrusão de todas as camadas retais pelo canal ma coisa”, em geral chamada de “hemorroidas”, pelo ânus do
anal. A procidência retal é, também, chamada por vários auto­ paciente. Nos enfermos com prolapso mucoso, há exterioriza­
res de prolapso total e o prolapso mucoso, de prolapso parcial. ção pelo canal anal somente da mucosa (prolapso parcial) e, nos
Ambos, prolapso e procidência, podem estar presentes em
com procidência retal (prolapso total), ocorre a exteriorização
qualquer fase da vida humana, sendo, porém, mais frequentes em
de todas as camadas do reto ao esforço evacuatório. Em alguns
seus extremos. Há pequena predominância no sexo feminino.
pacientes, essa exteriorização pode acontecer, até mesmo, após
movimentos simples, como a deambulação. Os enfermos infor­
mam que costumam recolocar, digitalmente, para o interior do
reto, esse prolapso ou procidência, após cada eversão.
O quadro clínico apresenta: exteriorização da mucosa; in-
continência fecal; desconforto local; sangramento e/ou exsu-
dação perianal. Em geral, há, também, secreção de muco e,
raramente, dor local. A dor acontece quando há um processo
inflamatório na mucosa prolabada que dificulta sua redução
para o interior do canal anal.
A este quadro, pode associar-se, também, certo grau de in-
continência fecal, causada pela hipotonia dos esfíncteres anor­
retais da continência e pela diminuição ou perda da angulação
anorretal. Outra causa para essa incontinência seria, segundo
Parks (1975), a desnervação esfincteriana decorrente da tração
do nervo pudendo provocada pela exteriorização do reto.
Suas complicações mais frequentes são: processo inflama­
Figura 50.19 Desbridamento radical e agressivo de toda a área gan­ tório na mucosa evertida; edema local; escaras na mucosa ex-
grenada e necrótica do períneo e regiões vizinhas. (Esta figura encontra- teriorizada; hemorragia; ruptura da mucosa; estrangulamento
se reproduzida em cores no Encarte.) mucoso; suboclusão ou obstrução intestinal e peritonite.
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 541

sistentes, podem ser feitas injeções de substâncias esclerosantes


■ Diagnóstico na submucosa do reto.
É, essencialmente, clínico, por meio de anamnese criteriosa No adulto, ele deverá ser corrigido de acordo com suas cau­
e dos exames físico e proctológico cuidadosos. sas, podendo-se utilizar diferentes técnicas cirúrgicas; entre as
A inspeção estática evidencia, com frequência, um ânus en­ mais utilizadas, a de Delorme. Uma nova opção para sua corre­
treaberto e hipotônico. A exteriorização da mucosa já poderá ção, nos casos em que o prolapso não apresenta grande exten­
estar presente. Caso contrário, solicita-se que o enfermo faça são, é a cirurgia por grampeamento (técnica de Longo).
força, como que para defecar, e o prolapso ou a procidência retal Em relação à procidência retal, sempre que as condições
poderá, então, exteriorizar-se pelo canal anal. Na procidência gerais do enfermo permitirem, seu tratamento será cirúrgico.
retal, esse esforço provocará a protrusão de todas as camadas Em geral, a operação tem como objetivo a correção, de forma
do reto, que apresenta um pregueamento radial (circular), em isolada ou associada, dos seguintes fatores: encurtamento do
geral de 3 a 4 cm de extensão, de superfície irregular, às vezes fundo de saco peritoneal; impedimento da invaginação do re-
edemaciada e com ulcerações ou sufusões superficiais (Figura tossigmoide por meio da sua fixação ou suspensão; reforço da
50.20). musculatura do assoalho pélvico e/ou diminuição do diâme­
A procidência retal, às vezes, pode atingir grande tamanho, tro do canal anal.
com eversão de todo o reto e até do cólon sigmoide, com 30 cm Com o desenvolvimento da cirurgia videolaparoscópica,
ou mais, de extensão. Nas mulheres, poderá haver concomi­ essa correção pode ser realizada, também, por essa tática, com
tância de cistocele, uterocele e/ou retocele. excelentes resultados. Alguns cirurgiões têm realizado a fixa­
Quando o prolapso mucoso ou a procidência retal apresen­ ção do retossigmoide ao sacropromontório por meio do uso
tam exteriorização (eversão) de pequeno tamanho, é im por­ de material sintético (telas), como uma faixa de 15 a 20 cm de
tante diferenciá-los. Para tal, deverá ser solicitado ao enfermo extensão com 4 a 5 cm de largura que abraça esse segmento in­
que faça o esforço defecatório no próprio vaso sanitário ou na testinal, com bons resultados. Nos idosos que não apresentam
posição de “cócoras” antes de ser examinado. Outros diagnós­ condições cirúrgicas ou nos que, após a fixação do reto, persiste
ticos diferenciais serão com as enfermidades que também se a incontinência fecal no pós-operatório (depois de, aproxima­
exteriorizam pelo ânus, como doença hemorroidária, papila damente, 6 meses), estará indicada a cerclagem anal por meio
anal hipertrófica, tumores benignos e malignos etc. de fio não absorvível, circundando todo o canal anal, ao nível
A realização da retossigmoidoscopia é importante para ex­ dos esfíncteres anais (técnica de Thiersch).
cluir a presença de doenças concomitantes, especialmente o
câncer retal ou os pólipos.
■ INCONTINÊNCIA FECAL
■ Tratamento Incontinência fecal é a perda da capacidade voluntária de
O prolapso na infância é tratado, conservadoramente, por reter o conteúdo intestinal. Pode ser parcial quando ocorre
meio da regularização do hábito intestinal, pela terapêutica perda de gases e fezes de consistência líquida, e total quando
antiparasitária e/ou pela correção da desnutrição. Quando per- há perda de fezes formadas.
O número de doentes portadores de incontinência fecal ten­
de a aumentar como consequência do aumento da longevidade
humana e tem grande importância porque piora a qualidade de
vida destes pacientes que acabam, com frequência, afastados do
convívio social ou, até mesmo, isolando-se voluntariamente.

■ Etiopatogenia
A incontinência fecal é resultante do enfraquecimento e/ou
destruição, total ou parcial, da musculatura pélvica, podendo
associar-se a: neuropatia do nervo pudendo; alterações do ân­
gulo anorretal (com a idade, ele torna-se mais obtuso); sequelas
de traumas cirúrgico ou consequente a doenças inflamatórias.
Outro fator a considerar é a alteração sensorial da mucosa re­
tal que ocorre no processo de envelhecimento no idoso e/ou
pelo uso prolongado e abusivo de laxativos que provocam a
degeneração neuronal da mucosa retal. Ambos causam a perda
de sensibilidade para a presença de fezes na ampola retal, não
havendo a contração dos músculos da continência voluntária,
ou seja, do esfíncter anal externo, dos elevadores do ânus e do
puborretal.

■ Quadro clínico
Caracteriza-se pela incapacidade de retenção fecal volun­
Figura 50.20 Procidência retal com exteriorização pelo canal anal tária. Em suas fases iniciais, a incapacidade é para gases e fe­
de todas as camadas do reto com pregueamento circular da mucosa zes líquidas (incontinência parcial). Os casos mais avançados,
que é sua característica. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores quando há perda de fezes formadas, são chamados de incon­
no Encarte.) tinência total.
542 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

Ambos ocasionam problemas sociais, econômicos e psicoló­ condições físicas e operatórias dos pacientes. Várias técnicas
gicos aos enfermos, de maneira mais ou menos importante. de esfincteroplastias para reconstrução da musculatura anor­
A história clínica é de grande importância, pois permite esta­ retal e outras tantas de anoplastias poderão ser utilizadas para
belecer o grau da incontinência e o quanto ele prejudica as ativi­ sua correção.
dades cotidianas do enfermo. Devem-se questionar o tempo e o
modo de aparecimento da incontinência fecal, se há consciência
da vontade evacuatória, urgência defecatória e as características ■ ESTENOSEANAL
das fezes, além da frequência de sua ocorrência.
A estenose anal é uma alteração da fisiologia do canal anal
caracterizada pela dificuldade de sua abertura durante o ato
■ Diagnóstico defecatório. Origina-se nas deformidades anatômicas do ânus,
A inspeção da região perianal pode demonstrar a presença com consequente diminuição de sua elasticidade e/ou de seu
de fezes ou de escaras. A inspeção estática do ânus permite a diâmetro circunferencial (Figura 50.22).
observação da forma do canal anal, a presença de cicatrizes Sua importância está no grande desconforto e dor à eva­
e/ou a existência de algum grau de hipotonia anal esfincteriana cuação que provoca nos pacientes, sobretudo quando ocorre
(Figura 50.21). no pós-operatório de cirurgias anorretais, constituindo-se a
A inspeção dinâmica do canal anal pode evidenciar o pro- iatrogenia mais temida pelos cirurgiões. Apresenta incidência
lapso mucoso, a procidência retal ou, até mesmo, o abaula- pequena na população em geral, não havendo prevalência en­
mento perineal. tre sexo e faixa etária.
O toque retal permite a avaliação da tonicidade dos músculos
esfincterianos e sua capacidade de contração, para fechar e abrir
o ânus. A retossigmoidoscopia deverá ser, sempre, realizada
■ Etiopagenia
para afastar enfermidades que alteram o hábito intestinal e que A estenose anal tem várias causas. As principais são: pós-
possam contribuir para essa incontinência fecal. operatória (iatrogênica); congênita; neoplásica; traumática e
Para a adequada avaliação da incontinência fecal, realizam- inflamatória.
se exames, especializados e precisos, tais como, defecograma, Sua causa mais frequente é a iatrogênica, consequente a ci­
manometria anorretal e/ou eletromiografia. rurgias anorretais realizadas sem os cuidados técnicos neces­
sários e pelas ressecções extensas da pele perianal, que podem
acarretar cicatrizes defeituosas e alterar a configuração anatômi­
■ Tratamento ca do canal anal. Dentre as cirurgias anorretais que propiciam
A maioria dos enfermos com incontinência fecal é trata­ o aparecimento da estenose anal cicatricial, estão hemorroidec-
da com medidas conservadoras, de acordo com sua etiologia tomia, fistulectomias e excisões de condilomas perianais.
e de suas condições físicas. Pode-se utilizar o retreinamento Nas hemorroidectomias, particularmente quando se utiliza
da evacuação (biofeedback) e/ou a estimulação elétrica anal. a técnica aberta, nas quais as feridas cutâneas cicatrizarão por
Esse tratamento não cura o paciente, porém melhora seus sin­ segunda intenção, essas áreas precisam de cuidados especiais;
tomas. caso contrário, é neste local que poderá ocorrer a estenose anal
A indicação do tratamento cirúrgico varia de acordo com cicatricial. Havendo incisões cutâneas muito amplas, as pontes
a causa da incontinência, da intensidade dos sintomas e das de anoderma entre elas poderão tornar-se estreitas e insuficien­
tes, originando a estenose.
Ela poderá ocorrer, também, como complicação pós-ope­
ratória das cirurgias de fístulas e/ou abscessos perianais, quan­
do houver excisão mucocutânea excessiva. O mesmo é válido
para a eletrocauterização de condiloma acuminado perianal
extenso.

Figura 50.21 inspeção estática do canal anal demonstrando discreta


abertura do ânus e caracterizando a hipotonia esfincteriana anal. (Esta Figura 50.22 C a n a l a n a l a p r e s e n t a n d o e s t e n o s e a n a l c ic a tr ic ia l. (E sta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a r te .)
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 543

sinusal crônica, eventualmente abscedada e secretante. Esta


■ Quadro clínico cavidade não possui parede própria, sendo, portanto, um pseu-
Os principais sintomas observados são: dor ao evacuar e docisto, e é reacional ao processo inflamatório com formação
dificuldade defecatória. A intensidade da dor é variável e dire­ de tecido de granulação decorrente da presença de pelos no
tamente proporcional ao calibre do canal anal e à presença de seu interior. Foi descrita por Anderson e Hodges (1847), sen­
lesão fissurária no anoderma. Ela ocorre durante o ato defeca- do sua denominação pilonidal derivada do latim: pilus - pelo
tório, piorando após este, podendo prolongar-se por horas. e nidus - ninho.
A dificuldade à defecação caracteriza-se pelo esforço neces­ Incide, preferencialmente, em adultos jovens do sexo
sário para a eliminação das fezes. Este fato leva ao uso frequente masculino (proporção de 2:1), na raça branca e em indivíduos
de laxativos, agravando ainda mais sua dor (pela mudança do hirsutos.
pH das fezes que os laxantes ocasionam).
Pode haver, também, perda de sangue rutilante à evacuação
e eliminação de fezes de pequeno calibre (em fita). ■ Etiopatogenia
Há várias hipóteses para explicar sua etiopatogenia adqui­
■ Diagnóstico rida. Entre elas:

É feito pelo quadro clínico e pelas modificações anatômicas • A doença pilonidal seria resultado da sucção de pelos
do canal anal, observadas à sua inspecção. Os critérios para o da pele para o subcutâneo por pressão negativa das ná­
diagnóstico da estenose anal cicatricial são definidos pelas se­ degas, formando uma cavidade recoberta por tecido de
guintes alterações do canal anal: deformidade anatômica do granulação, com pelos aprisionados em seu interior, que
ânus (modificando sua configuração normal); diminuição de atuariam como corpo estranho (Patey e Scarff);
elasticidade do canal anal; diminuição do seu diâmetro cir- • Causada pelo atrito da região interglútea, provocado pe­
cunferencial; solução de continuidade no anoderma (fissura los movimentos de deambulação e/ou por traumas locais
pós-cicatricial); e fibrose no anoderma, em forma de barra, lo­ que propiciariam a justaposição de pelos em feixes. Estes
calizada na região posterior e/ou anterior, que possibilita uma migrariam, por sucção, para o tecido celular subcutâ­
configuração triangular ao ânus. neo, por causa da pressão negativa que se forma no teci­
O exame proctoiógico nos pacientes com estenose anal (to­ do subcutâneo da região, pelo estiramento da pele, nos
que retal, anuscopia e retossigmoidoscopia), embora im por­ movimentos de sentar e levantar, aliados à elevação da
tante na propedêutica de todos os pacientes, com frequência fáscia sacrococcígea (Brearley).
acarreta dor e nem sempre é realizado no momento da con­
sulta. Os enfermos com estenoses importantes serão submeti­ ■ Quadro clínico
dos a esse exame sob analgesia, muitas vezes durante a própria
cirurgia corretiva. A fase aguda da enfermidade caracteriza-se pela presença
de tumoração sacrococcígea associada a dor intensa e febre,
indicativas de processo supurativo abscedado. Na crônica, o
■ Tratamento enfermo relata a presença de tumoração na região sacrococ­
Nas alterações cicatriciais do canal anal que acarretam dis­ cígea, em geral acompanhada por orifício único ou múltiplo,
cretas modificações anatômicas e fisiológicas, pode-se realizar com secreção e dor. Pode haver, também, eliminação de pelos
o tratamento clínico por meio de dilatações, digital e/ou instru­ por orifícios da lesão. Alguns enfermos relatam ter ocorrido
mental (com velas de Hegar), progressivas e periódicas. algum trauma local, antecedendo os sintomas.
Nas deformidades cicatriciais em que há tecido fibroso en­
volvendo a pele, o subcutâneo, a mucosa e, às vezes, alcançando ■ Diagnóstico
parte do anel esfincteriano, tornando o canal anal inextensível
e deformado, o tratamento clínico é de pouco valor e sua cor­ É realizado pela história clínica e pelos achados ao exame
reção é cirúrgica. físico da região sacrococcígea, pela presença de tumoração
A técnica operatória para correção da estenose cicatricial por subcutânea de forma, tam anho e consistência variáveis, de
meio de um (ou mais) enxerto de retalho retangular de pele, acordo com a fase em que se encontra a enfermidade.
colocado sobre a área fibrótica, previamente excisada e suturada Na maioria, há um orifício primário, em geral de pequena
à mucosa retal, descrita por Sarner, apresenta bons resultados. dimensão, situado na linha interglútea. Outros orifícios secun­
Seu maior problema é o tempo necessário para a cicatrização dários podem estar presentes, nesta mesma linha ou lateral­
da ferida operatória, de 4 a 6 semanas. Quilici e Reis Neto ela­ mente a ela, com ou sem eliminação de secreções purulentas
boraram uma nova técnica cirúrgica para a estenose anal cica­ ou mucossanguinolentas, ou com a presença de pelos saindo
tricial (anoplastia) com a utilização de dois ou mais retalhos de seu interior (Figura 50.23). Estes achados caracterizam a fase
pediculados, cutâneo e mucoso, no canal anal após excisão do crônica da doença pilonidal.
tecido fibroso cicatricial. Um fato significativo dessa técnica é Algumas vezes, ele manifesta-se na forma de um abscesso
a feitura dos retalhos, cutâneo e mucoso, que, inseridos sobre a sacrococcígeo, que pode ou não drenar espontaneamente.
área excisada de fibrose cicatricial, permitem uma cicatrização O diagnóstico diferencial deve ser feito com as seguintes
mais rápida e mais eficaz. enfermidades: foliculites, hidroadenite supurativa, fístula anor-
retal e tumores benignos e malignos da região.

■ DOENÇA PILONIDAL ■ Tratamento


É uma infecção na região sacrococcígea e manifesta-se de O tratamento da doença pilonidal sacrococcígea é, essencial­
várias maneiras, em especial pela formação de uma cavidade mente, cirúrgico. Várias técnicas são utilizadas para a cura da
544 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

calor, pela umidade e pela contaminação por fezes, podendo


ocasionar uma dermatite, com inflamação que ocasiona o pru­
rido anal.

■ Etiopatogenia
As dermatites perianais, a despeito da patogenia diversa,
têm manifestações clínicas semelhantes, sendo o prurido anal
seu sintoma mais evidente. Nos casos de etiologia conhecida,
o tratamento específico cura a enfermidade e soluciona o pru­
rido anal. Entretanto, em geral, a dermatite é inespecífica e seu
tratamento é realizado mediante abordagem local com medi­
camentos tópicos e conduta higiênica e dietética.

■ Quadro clínico
Figura 50.23 Orifícios da doença pilonidal na região sacrococcígea
Manifesta-se de maneiras variáveis, continuamente ou com
com a presença de pelos saindo de seu interior (doença na fase
crônica). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) períodos de acalmia e paroxismos, geralmente mais intensos à
noite. A intensa necessidade de coçar-se pode provocar escoria­
ções na pele, agravando a lesão e perpetuando o prurido.

lesão, todas objetivando a retirada dos pelos e do tecido de gra- ■ Diagnóstico


nulação que a circunda. A ferida resultante poderá ficar aberta,
cicatrizando por segunda intenção, ou ser fechada por meio de A inspecção perianal poderá evidenciar uma pele normal ou
suturas ou plásticas com retalhos cutâneos. Nossa preferência revelar um simples eritema da região, com ou sem exsudação.
é pela utilização de duas técnicas operatórias, ambas de grande Na presença de uma dermatite perianal liquenificada (crôni­
simplicidade e de fácil execução. O critério de escolha se dá de ca), o prurido anal poderá ser intenso e provocar insônia, an­
acordo com a fase de manifestação da doença: siedade e depressão.
► D o e n ç a p ilo n id a l n a fa se a g u d a . Há, em geral, a pre­
sença de abscesso na região sacrococcígea e utilizamos a téc­ ■ Tratamento
nica denominada de incisão simples, com abertura de toda a
tumoração e curetagem do tecido de granulação do subcutâ- Abordagem higiênico-dietética com remoção de todo agente
neo. Apresenta a vantagem de preservar os tecidos inflamados, irritante ou sensibilizante da região anal. Corticosteroides tó­
permitindo sua rápida cicatrização. picos, preferencialmente na forma de creme, para não agravar
► D o e n ça p ilo n id a l na fa se crô n ic a . Optamos pela excisão a maceração da pele, devem ser usados em pequena quanti­
da lesão, em que efetuamos a sua completa ressecção, incluindo dade, só no local lesado, por curto período e não de maneira
todos os trajetos fistulosos presentes e identificados. contínua. Na fase inflamatória aguda, indica-se um ou dois
Ambas são técnicas abertas e a ferida cicatriza por segunda banhos de assento diários de permanganato de potássio na di­
intenção. Podem ser realizadas em ambulatório ou com curto luição de 1:40.000, em água morna. Na presença de prurido
período de hospitalização (8 a 12 h), sob anestesia locorregio- anal intenso, podem-se indicar anti-histamínicos orais para
nal ou até mesmo local. seu alívio. Estão contraindicados os tratamentos locais mistos
Suas vantagens são: indicação em todos os casos; preservação de antimicóticos e antimicrobianos, o uso de cáusticos tópicos
da fáscia e do perióstio sacral; preservação do tecido normal e antibióticos orais.
circunvizinho à lesão; mínimo desconforto pós-operatório e Outro cuidado deverá ser o de lavar a região perianal após
baixa recidiva (ao redor de 7%) tanto na fase aguda como na cada evacuação, com água e, eventualmente, sabonete neutro,
crônica. enxugando-a cuidadosamente com toalha de algodão. É impor­
Os curativos pós-operatórios são muito importantes e de­ tante proibir o uso de papel higiênico, para limpeza ou mesmo
vem ser realizados, diariamente, com limpeza da ferida com para enxugar o ânus, a ingestão de alimentos condimentados, de
antissépticos tópicos e sua proteção com gaze umedecida para pimentas, de bebidas alcoólicas e de laxativos. Corrigir a obesi­
evitar aderência e contribuir para a hidratação da ferida. É fun­ dade, caso presente, evitar que o paciente permaneça sentado
damental, também, que se faça a raspagem ou a retirada dos por longos períodos e faça atividades que possam traumatizar
pelos circunvizinhos à lesão, periodicamente, até sua completa a região perianal, como cavalgar e andar de bicicleta.
cicatrização.

■ HIDRADENITE SUPURATIVA
■ PRURIDO ANAL
É doença crônica, recidivante, da pele e do tecido celular
As doenças dermatológicas da região anal e perianal, no subcutâneo, caracterizada pela formação de abscessos e trajetos
adulto, são causa frequente de consulta ao dermatologista, ao fistulosos, acometendo, inicialmente, as glândulas sudorípa-
clínico geral e, não raro, ao coloproctologista e serão abordadas ras apócrinas. A hidradenite supurativa localizada nas regiões
mais adiante neste capítulo. perineal, inguinal e glútea é pouco frequente, porém ocasiona
As condições de normalidade da pele na região anal e pe­ intenso sofrimento aos enfermos, com repercussões psicológi­
rianal são facilmente deterioráveis por falta de ventilação, pelo ca, familiar e profissional.
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 545

Foi descrita pela primeira vez pelo cirurgião francês Velpeau


(1839) e feita sua associação às glândulas sudoríparas por
Verneuil (1854).
As glândulas sudoríparas apócrinas são glândulas tubulares
compostas, situadas no tecido subcutâneo profundo, maiores
e muito menos numerosas do que as écrinas, em íntima rela­
ção com os folículos pilosos. Sua localização é restrita, princi­
palmente, ao dorso do pescoço, axilas, aréola mamária, região
inguinal, púbis, nádegas, regiões perianal e perineal, incluindo
vulva e escroto, e coxas. Seus duetos excretores desembocam no
folículo piloso ou diretamente na pele, perto dele. Só se ativam
na puberdade, regredindo gradualmente com a idade, sendo,
dessa maneira, consideradas glândulas sexuais, com produ­
ção de 5-alfa testosterona-redutase e com secreção espessa e
de composição complexa (protoplasma).

■ Etiopatogenia
Havendo oclusão do orifício glandular por tampão queratí-
nico, pode ocorrer infecção secundária que, com sua ruptura,
provocará a propagação da infecção aos tecidos e glândulas
adjacentes. A influência de fatores genéticos (doença autossô-
mica dominante), alterações imunológicas ou dos hormônios
sexuais ainda são controversas. Figura 50.24 Hidradenite supurativa com a presença de vários abs­
cessos e orifícios fistulosos perianais, perineais e nas nádegas. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Quadro clínico
A enfermidade tem curso crônico e recidivante. Os pacien­
tes apresentam vários orifícios fistulosos nas regiões perineal, ■ TRAUMA ANORRETAL
inguinal, glútea, na raiz das coxas, no escroto ou na vulva,
com queixa de supuração crônica e dor. Há endurecimento Os ferimentos anorretais podem acontecer por contusão,
da pele e do tecido celular subcutâneo e palpam-se nódulos denominados de trauma fechado, e/ou por lesão penetrante ou
hipodérmicos e trajetos fistulosos múltiplos e serpiginosos. perfurante, chamados de trauma aberto. Causam lesões intrape-
As cicatrizes deixadas pelos abscessos e fístulas têm aspecto ritoneais, perianais e/ou perineais, podendo afetar o reto intra
de queloide. e/ou extraperitoneal, bem como a sua vascularização.

■ Diagnóstico ■ Etiologia
É feito essencialmente pelo seu quadro clínico, que se carac­ Os traumatismos anorretais são classificados, de acordo
teriza pela presença de vários orifícios fistulosos nestas regiões, com a sua origem, em os de causa acidental, os iatrogênicos,
com endurecimento da pele e celular subcutâneo e supuração os criminosos, provocados por autoerotismo ou por objetos
crônica (Figura 50.24). deglutidos.
Seu diagnóstico diferencial será com a fúrunculose, a tuber­
culose, o linfogranuloma venéreo, a actinomicose, o cisto pilo- ■ Traum as acidentais
nidal, a doença de Crohn, os abscessos e as fístulas perianais. Os mais comuns são os provocados por acidentes de trân­
sito, sobretudo os de motocicletas e bicicletas. No entanto, os
acidentais, em ambiente de trabalho ou domiciliar, por “queda
■ Tratamento a cavaleiro” sobre muro, telhado, ou sobre objetos pontiagudos
O tratamento clínico com antimicrobianos é utilizado no etc., são muito importantes por ocasionar traumatismos anor­
combate da infecção local, porém é ineficaz para a erradicação retais e/ou fraturas dos ossos da bacia com laceração do reto.
da moléstia. Os traumas pelo disparo acidental de armas de fogo, e mais
Sua excisão cirúrgica é a única opção para a cura definitiva. raramente com arma branca, são menos frequentes.
Deverá ser ampla e radical, incluindo toda a área comprome­
tida, com margem segura e profundidade suficiente, até atingir ■ Traum as iatrogênicos
os tecidos normais e, sempre que possível, preservando a pele A iatrogenia pode ocorrer devido a vários procedimentos
perianal. De acordo com a extensão e complexidade das áreas médicos, em especial os proctológicos, tocoginecológicos, uro-
cruentas resultantes dessa excisão, a excisão poderá ser tratada lógicos, endoscópicos e radiológicos. O trauma ginecológico
pela sutura primária, pela cicatrização por segunda intenção pode acontecer durante as cirurgias de dilatação e de curetagem
ou pelos enxertos livres de pele, imediatos ou tardios, após o uterina ou de uma episiotomia extensa durante o parto vaginal.
controle da infecção. Os proctológicos podem resultar de procedimentos como di­
Sua recidiva pode ocorrer, segundo a literatura, entre 5 e 30% latação de estenose anastomótica, inflamatória ou tumoral do
dos enfermos, independentemente do método optado para o reto, ressecção local de tumoração retal ou durante a realização
tratamento da ferida resultante. de biopsias. Os urológicos durante as prostatectomias, no mo-
546 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

mento da enucleação da próstata e mais raramente durante sua aproximadamente, 10,Ja 101!por grama de fezes, sendo algumas
ressecção transuretral. A perfuração do reto durante a introdu­ de alta morbidade.
ção de sonda uretral é rara. Lesões iatrogênicas no reto podem, Suas consequências clínicas estão diretamente relacionadas
também, ocorrer durante a realização de retossigmoidoscopia com a anatomia da região destes traumas e os cuidados tera­
rígida ou na colonoscopia devido a manobras intempestivas, pêuticos específicos a cada um deles.
dilatação de estenose e/ou nas polipectomias em reto intrape- Quando a lesão é perfurante, em reto intraperitoneal, há
ritoneal, em especial de adenomas vilosos. extravasamento do conteúdo fecal para a cavidade abdominal,
ocasionando uma peritonite estercorácica (bacteriana) extre­
■ Traum as de origem criminosa mamente grave.
Os traumas ditos criminosos acontecem, geralmente, nos Os ferimentos do reto extraperitoneal e do canal anal, no
assaltos com agressão sexual; nos ferimentos intencionais por entanto, raramente atingem a cavidade abdominal. Contudo,
arma de fogo ou por arma branca. como também estão em contato direto com o conteúdo fecal,
podem ocasionar quadros infecciosos importantes e, caso não
■ Traum as provocados por autoerotism o haja tratamento adequado, evoluem, com frequência, para a
Traumatismos anorretais ocorrem em pacientes com al­ formação de graves abscessos pélvicos e/ou perianais. Quando
teração do comportamento sexual, sobretudo homossexuais atingem os espaços pelvirretais e/ou retrorretal, caracterizam-
masculinos, e são causados pela introdução, via anorretal (em- se pela dificuldade diagnóstica e por quadro toxêmico de alta
palamento), dos mais variados objetos, tais como, vibrador, morbimortalidade.
lâmpada, frasco de fluido de isqueiro, frasco de desodorante
(Figura 50.25), bico de esguicho, cabo de vassoura, vela, garrafa,
ovo, copo, caneta e legumes (cenoura, pepino etc.).
■ Quadro clínico
Uma anamnese pormenorizada e criteriosa é fundamental
■ Traum a por objetos deglutidos para se estabelecerem o quadro clínico e o diagnóstico do pa­
O trauma retal pode originar-se de objetos deglutidos, na ciente com lesão anorretal. Estando ele alerta e cooperativo,
sua maioria, inadvertidamente. Os adultos, em especial os que poderá ser questionado a respeito das circunstâncias do trauma.
usam dentadura, não percebem pequenos fragmentos, de osso Entretanto, se o paciente apresenta politraumatismo e/ou lesão
de galinha, espinha de peixe ou prótese dentária, e as crianças cerebral, pode haver impossibilidade de comunicação. Sendo
podem deglutir pequenos objetos como moedas, agulhas, alfi­ assim, é necessário, sempre que possível, o depoimento de uma
netes ou pregadeiras. testemunha que tenha assistido à cena, para a composição da
Contudo, há pacientes com distúrbios psiquiátricos, que história. O relato do tipo e modo do ferimento, além do tem­
deglutem objetos de propósito, como agulhas, parafusos, pre­ po decorrido do ato até o atendimento médico, é importante
gos, grampos etc. para a sua avaliação.
Todos eles podem ferir o reto ou o canal anal ao sair junto Nas lesões criminosas com agressão sexual ou por autoe­
com as fezes, no momento da defecação. No entanto, o trau­ rotismo, as informações, em geral, são difíceis de obter e, não
ma mais frequente pelos objetos deglutidos é a perfuração do raro, até escondidas pelo paciente, pois o fato acarreta gran­
intestino delgado e, quando isso ocorre, em 75% das vezes, a de constrangimento. Isso ocasiona demora no diagnóstico e o
lesão acontece na sua passagem pela válvula ileocecal. agravamento do quadro clínico, piorando o prognóstico.
Com relação ao empalamento, a maioria dos enfermos, so­
bretudo os homossexuais masculinos, não confirma a histó­
■ Fisiopatologia ria da introdução de objetos pelo ânus, a não ser quando esse
A microbiótica colorretal normal é o principal fator da mor- fica retido no reto e/ou cólon sigmoide. Quando admitem o
bimortalidade das lesões traumáticas anorretais. Ela é com­ fato, com frequência, negam que tenha sido voluntário, crian­
posta, nos adultos, por uma grande população bacteriana de, do narrativas envolvendo acidentes fantásticos, com detalhes
engenhosos.
Os principais sintomas relacionados com o trauma anorretal
são: dor, tenesmo retal e sangramento.

■ Dor
É o mais importante. O trauma isolado anorretal provoca
dor contínua, às vezes latejante, localizada nas áreas envolvidas:
períneo, canal anal, reto e/ou abdome.
Nas lesões do reto intraperitoneal, a dor localiza-se no ab­
dome, em geral, na região infraumbilical. A dor difusa pelo
abdome é rara; no entanto, sua presença caracteriza um qua­
dro de peritonite generalizada e grave. Ela é, com frequên­
cia, intensa, contínua e acompanhada com sinais de reação
peritoneal.
Quando há lesão da linha pectínea, a dor localiza-se no ca­
nal anal, inicia-se no momento do trauma e piora com as eva­
cuações.
Figura 50.25 E m p a la m e n t o p o r a u t o e r o t is m o : o b je t o (d e s o d o r a n t e ) A dor poderá ser discreta ou inexistente, somente nos en­
s e n d o re tira d o d o re to p e la v ia t r a n s a n a l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e re ­ fermos com pequenas lesões do reto extraperitoneal ou em-
p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .) palados.
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 547

■ Tenesm oretal
■ Tratamento
Pode ocorrer nesses traumatismos, especialmente na pre­
sença de abscesso anorretal ou de empalamento. A abordagem de todo paciente com traumatismo está pa­
dronizada em três fases de atendimento:
■ Sangram ento
Ia) Está indicada apenas para os pacientes graves, em geral os
Acontece quando há lesão de canal anal e/ou da mucosa politraumatizados, nos quais se utilizam todos os cuidados
retal. Tem como características a cor rutilante e sua perda em para manutenção da vida.
pequena quantidade. As hemorragias copiosas são raras, es­ 2a) Inicia-se a fase da avaliação das lesões anorretais, após es­
tando associadas, sobretudo, à presença de abscesso, piorreia
tar o paciente com seus dados vitais regulares e mantidos,
e/ou mucorreia
em venóclise, com sondagem nasogástrica e vesical. Deve-se
identificá-las se são isoladas na região anorretal ou se asso­
■ Diagnóstico ciadas a outros traumas, tais como do períneo, pélvicos
e/ou abdominais, envolvendo ou não outros órgãos. O fato
É necessário realizar-se um minucioso exame físico. No
de não serem restritas ao reto e ao canal anal agrava seu
paciente politraumatizado, são imperativos os procedimentos
prognóstico.
para manutenção da vida.
3a) Efetuados os procedimentos diagnósticos, passa-se à sua
O paciente com trauma anorretal deverá ser submetido aos terapêutica, realizada, em geral, por meio de cirurgia para
exames descritos a seguir.
reparação e/ou desbridamento do ferimento.
■ Exame abdom inal Nos traumas anorretais, não há o tratamento ideal. O que
Na palpação abdominal, a constatação de irritação abdo­ ocorre é a busca da melhor conduta terapêutica, cirúrgica ou
minal com rigidez da parede e descompressão brusca dolo­ não, para os diferentes ferimentos, de cada enfermo.
rosa, além da presença de febre e sinais gerais de toxemia, faz Os fatores mais importantes que influem no tratamento
o diagnóstico de peritonite bacteriana. A febre não é sintoma são:
frequente, porém, quando presente e alta (acima de 39°C), é
• Estado geral e idade do paciente;
indicativa de quadro infeccioso grave.
• Localização e extensão do trauma;
• Número de lesões e sua proximidade;
■ Exame proctológico
• Conteúdo intestinal no momento da lesão;
É fundamental para a avaliação dos ferimentos anorretais.
• Tempo decorrido entre o trauma e a terapêutica;
Todos deverão ser submetidos à inspecção estática e dinâmica
• Presença de choque ou instabilidade hemodinâmica;
do ânus e períneo, ao toque retal, à anuscopia e à retossigmoi-
• Presença de contaminação peritoneal;
doscopia. Na maioria, por causa da dor local, há necessidade
• Lesão mesenterial do cólon ou do reto; e
de realizá-lo sob analgesia e, de preferência, em centro cirúr­
• Presença de ferimentos em múltiplos órgãos.
gico, para ser cuidadoso e completo. A presença de sangue
na ampola retal, sua perda pelo canal anal ou sua presença No trauma anorretal, o emprego de antibioticoterapia é con­
na luva, após o toque retal, é sinal de lesão anorretal. A pre­ duta obrigatória. São utilizados os antibióticos de largo espec­
sença de muco e/ou pus indica a existência de abscesso ou de tro, sendo nossa opção as associações com ação nas bactérias
fístula na região. anaeróbias e gram-negativas. Deve ser realizada, também, a
profilaxia do tétano.
■ Exame ginecológico e do trato urinário Havendo traumatismo retal, é importante saber se o feri­
Pela possibilidade da associação das lesões anorretais com mento é extraperitoneal, intraperitoneal ou de ambos os tipos.
órgãos adjacentes, realiza-se rigoroso exame ginecológico e do Quando há lesão concomitante, as condutas para o trauma se­
trato urinário, concomitante ao proctológico. rão individualizadas para cada um dos segmentos comprome­
tidos, como descritas a seguir:
■ Exames por im agem
► R a d io lo g ia s im p le s d e a b d o m e . Deverá ser realizada ■ T r a u m a n o re to in tra p e rito n e a l
sempre em três posições: ortostática, decúbito horizontal dor­ Nos pacientes com diagnóstico, ou mesmo à suspeita de
sal e de cúpulas frênicas. É importante para avaliação da pre­ traum a no reto intraperitoneal, está indicada a laparotomia
sença de pneumoperitônio, nas perfurações cólicas e do reto exploradora para sua confirmação, sua avaliação e, se possível,
intraperitoneal. Pode diagnosticar, também, fraturas dos os­ o reparo cirúrgico do ferimento. Confirmado o trauma no reto
sos da bacia e fornece a localização de objetos introduzidos intraperitoneal, as várias técnicas operatórias que podem ser
no reto. empregadas para seu reparo são:
► R a d io lo g ia co n tra s ta d a d e c ó lo n . Nos primeiros mo­
• Sutura primária da lesão do reto intraperitoneal e feitura
mentos da suspeita de lesão anorretal, ela é contraindicada,
de sigmoidostomia (terminal ou em alça) de proteção;
pois pode provocar o extravasamento do contraste pelos fe­
• Sutura primária do ferimento do reto intraperitoneal sem
rimentos perfurantes, agravando-os. Passada a fase aguda do
colostomia de proteção; ou
trauma, poderá ser realizada, com os cuidados necessários, para
• Ressecção do segmento de reto com o ferimento e reali­
identificar trajetos fistulosos.
zação de sigmoidostomia terminal proximal com fecha­
► E c o g ra fia , to m o g ra fia e/o u re s s o n â n c ia m a g n é tic a
mento do reto distai, pela técnica de Hartmann.
(a b d o m in a l e/ou p erin e al). São muito importantes para detec­
tar-se a presença de hematomas ou abscessos anorretais, depen­ De acordo com a literatura, a melhor conduta é a sutura pri­
dendo da gravidade e da dificuldade de cada caso. O diagnóstico mária da lesão com reavivamento prévio de suas bordas. Con­
de corpo estranho no reto também poderá ser observado. tudo, para realizá-la, são necessárias as seguintes condições:
548 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

• O ferimento deverá ser menor que a metade da circun­ Entretanto, estará indicada a laparotomia exploradora sem­
ferência do reto; pre que o cirurgião não estiver seguro de que o trauma no reto
• Deverá apresentar boas condições locais de vasculari- extraperitoneal manteve a integridade peritoneal.
zação;
• Paciente jovem e em bom estado geral; ■ Traum a no canal anal
• Ausência de lesões múltiplas ou próximas; Nos ferimentos restritos ao canal anal, também é preciso
• Ausência de lesão de órgão adjacente; definirem-se sua profundidade e extensão.
• Curto período de tempo transcorrido entre o trauma e a A lesão anal pode ser superficial, quando não atinge o es-
cirurgia (menor que 6 h); e fíncter anal externo, e profunda, quando o atinge e/ou o ul­
• Ausência de sinais de peritonite bacteriana. trapassa.
• A colostomia de proteção deverá ser realizada sempre Quando o ferimento anal compromete menos da metade
que ocorrer uma das seguintes condições: do esfíncter anal externo, é considerado pequeno. Entretan­
• Longo período de tempo transcorrido entre o trauma to, quando atinge mais da metade desse esfíncter e/ou com­
retal e a realização da cirurgia (mais de 12 h); promete, também, órgãos adjacentes, como vagina, uretra ou
• Presença de peritonite fecal; bexiga, é extenso.
• Lesões do tipo explosivas, lacerantes ou amplos ferimen­ Nas lesões do canal anal, superficiais e/ou pequenas, a con­
tos estrelares; duta será o desbridamento da ferida, com remoção dos tecidos
• Destruição tecidual com hematoma intramural extenso; não viáveis, sutura para reconstrução anatômica da musculatura
• Traumatismo na vascularização mesentérica; do esfíncter externo (quando necessária), associando-se uma
• Presença de grande hematoma retrorretal ou retrope- área perianal (cutânea) de drenagem.
ritoneal; e São necessários o acompanhamento rigoroso desses cura­
• Lesões de múltiplos órgãos. tivos e a observação minuciosa da presença de áreas de necro-
se e/ou gangrena na ferida operatória, pois, quando presente,
A intenção desta colostomia, dita de “proteção”, é a deriva­ devem-se indicar novos desbridamentos até o ferimento per­
ção do trânsito fecal da área reparada do ferimento, com o intui­ manecer limpo, vascularizado e sem infecção.
to de diminuir a morbimortalidade das possíveis complicações Nas lesões do canal anal extensas e/ou profundas, a tera­
pós-operatórias, tais como, deiscência ou fístulas da sutura. pêutica, em geral, será em três etapas cirúrgicas:
Nossa opção é pela colostomia terminal em cólon sigmoi-
1*) Faz-se o desbridamento do ferimento, com remoção dos
de, sempre que possível, e, após 2 ou 3 meses, estando a sutura
tecidos não viáveis, e realiza-se uma área de drenagem cutâ­
íntegra, confirmada pela radiologia contrastada do reto, efetua­
mos a reconstrução do trânsito intestinal com o fechamento nea. Associa-se a essa limpeza uma colostomia terminal,
se possível no cólon sigmoide proximal, para derivação do
da colostomia.
trânsito intestinal;
Com relação à drenagem da região do segmento retal sutu-
2“) Completada a cicatrização da ferida operatória do canal anal,
rado ou seccionado, poder-se-á fazê-la com o intuito de diag­
geralmente 2 a 3 meses após a primeira intervenção, reali­
nosticar precocemente as possíveis complicações locais, embora
za-se uma esfincteroplastia anal, para reconstrução esfinc-
sabendo que essa drenagem não as impeça. Nossa conduta, no
teriana e preservação da continência fecal. O enfermo ainda
entanto, é pela colocação de drenos somente nas regiões con­
deverá permanecer com a colostomia derivativa; e
taminadas pelo trauma, onde poderá haver acúmulo de secre­ 3*) Passados mais 2 ou 3 meses, estando a função esfincteriana
ções, sempre após limpeza exaustiva dessas áreas, lavando-as normalizada, finalmente efetua-se a reconstrução do trânsito
com soro fisiológico. intestinal, por meio do fechamento da sigmoidostomia.
■ T r a u m a n o re to e x tra p e r ito n e a l
■ Em palam ento
O tratamento das lesões retais extraperitoneais foi, duran­ Em relação aos objetos introduzidos no reto, é importante
te anos, por meio da realização de uma colostomia proximal conhecer alguns cuidados para sua remoção pelo ânus, para
(sigmoidostomia) para a derivação do trânsito fecal. O advento evitar a laceração do canal anal e/ou do reto durante esse pro­
dos antibióticos e o melhor conhecimento da fisiopatologia dos cedimento. Esses cuidados são:
ferimentos infectados alteraram este procedimento.
Por isso, havendo uma ou mais lesões no reto extraperito­ • Escolha da melhor posição, se litotomia ou de Sims (de-
neal, devemos, de início, separá-las em: cúbito lateral esquerdo), de acordo com o objeto a ser
►P e q u e n a , ú n ica e s u p e rfic ia l. A lesão do reto extrape­ removido;
ritoneal pequena é a que tem até 3 cm de extensão, única e • Lubrificação do segmento intestinal distai e do canal
superficial, ou seja, atinge até a camada muscular circular do anal;
reto, sem lesá-la. A conduta nessas lesões será sua limpeza, • Delicadeza de movimentos nas manobras para sua re­
reavivamento das bordas e sutura primária, sem necessidade tirada; e
de colostomia de proteção. • Bloqueio anestésico (se necessário).
►E xte n sa , p ro fu n d a e/ou m ú ltip la s. O ferimento exten­ Não se devem administrar laxativos, bem como usar ene-
so é aquele maior que 3 cm, profundo - ou seja, que agride mas, pois a evacuação forçada poderá provocar lesão intestinal
ou mesmo ultrapassa a camada muscular circular do reto - pelo próprio objeto.
e/ou múltiplo. Tendo o cirurgião diagnosticado a integridade Copos, jarros, garrafas etc., quando empalados no reto, por
peritoneal, faz-se o desbridamento da lesão e sua sutura ou a apresentarem uma abertura em uma de suas extremidades e
reparação muscular, associando-se uma sigmoidostomia, na um espaço vazio interno, podem provocar pressão negativa
fossa ilíaca esquerda, sem necessidade de exploração da cavi­ em seu interior e, como consequência, poderão ficar aderi­
dade abdominal. dos à mucosa retocólica, por causa da aspiração desta mucosa
Capítulo 50 / Doenças Anorretais 549

para o interior do recipiente. Por isso, para sua retirada pela


via transanal, é necessário colocar um cateter ou sonda até a
extremidade do objeto, onde há vácuo, e, por meio de injeção
de ar, produzir-se uma pressão positiva, conseguindo-se sua
liberação. Outra possibilidade é perfurar o fundo do objeto
para soltá-lo.
Em alguns casos, não há possibilidade da retirada do objeto
através do ânus e, para tal, é necessário fazer uma laparotomia
para sua extração por meio da ordenha do objeto em direção
ao reto, até atingir o canal anal. Quando isso não é possível,
deve-se extraí-lo por meio de uma colotomia. Realizando-se
essa colotomia com sua consequente colorrafia, haverá, tam ­
bém, alto risco de deiscência dessa sutura, por causa da con­
taminação, devendo-se considerar a necessidade da feitura de
uma colostomia derivativa de proteção
Figura 50.26 Lesáo ulcerada do canal anal, irregular, com margem de­
■ Complicações finida e endurecida, de difícil cicatrizaçâo, caracterizando a leucoplasia
As principais complicações do tratamento dos ferimentos perianal. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
anorretais são:
► G a n g re n a g a s o sa . É consequência da infecção local, em
geral por anaeróbios, por causa de lesão indevidamente dre­
nada, limpa, desbridada e acompanhada. O quadro mimetiza geral de difícil cicatrizaçâo (Figura 50.26), que, quando biopsia-
a síndrome de Fournier, apresentando alta morbimortalidade. das, apresentam, ao exame histopatológico, áreas de metaplasia
Nestes casos, é necessária a reintervenção cirúrgica de urgência, com hiperqueratose, com ou sem displasia.
com amplo desbridamento cirúrgico. ► Tratamento. Excisão local da ulceração e acompanha­
► D e iscê n cia e fístu la . Podem ocorrer quando é realizada a mento pós-operatório até sua completa cicatrizaçâo.
sutura primária dos ferimentos, sem observação das condições
necessárias a esse procedimento. ■ C o n d ilo m a a c u m in a d o
► A b sc e ss o p eria n a l e/ou p é lv ic o . A conduta é sua drena­ É enfermidade causada pelo vírus do papiloma humano
gem imediata e ampla. (HPV), grupo Papova, com prevalência de transmissão por
A feitura de desbridamentos extensos nos traumatismos contato sexual, de alta incidência e com localização nas regiões
perianais e/ou pélvicos pode ocasionar, depois de cicatriza­ genital, perineal e retal. Quando lesão benigna, será abordada
dos, estenose anal. Os traumatismos extensos da musculatura ainda neste capítulo com as DST.
pelvirretal podem ocasionar, também, incontinência, tanto a É considerada afecção pré-maligna, pois pode degenerar,
gases quanto a fezes. Após o tratamento do trauma, com sua embora raramente, para o carcinoma epidermoide perianal. O
completa cicatrizaçâo e constatada a incontinência, haverá a condiloma acuminado associado ao carcinoma epidermoide é
necessidade da reconstrução da musculatura esfincteriana le­ também denominado tumor de Buschke-Lõewenstein.
sada (esfincteroplastia). ► Quadro clínico. Há queixa de crescimento de um tumor
verrucoso, com áreas endurecidas, desconforto, umidade na
região e odor característico, ocorrendo, raramente, ulceração
■ TUMORES DO CANAL ANAL e sangramento.
► Diagnóstico. É feito pela presença perianal de lesão ver-
O canal anal é embriologicamente complexo e sede de tumo­ rucosa, geralmente múltipla, e, quando extensa, poderá ter
res diversos. Têm grande importância por sua morbimortalida­ área de transformação maligna (carcinoma epidermoide) (Fi­
de e pela relação com a continência fecal devido à proximidade gura 50.27). O exame histológico (biopsia) confirma o diag­
com os esfíncteres anorretais. nóstico.
► Tratamento. Deverá ser o mesmo dos tumores epidermoi-
■ Tumores pré-malignos do canal anal des do canal anal, relatados, a seguir, neste capítulo.

■ Leucoplasia
É uma lesão pré-maligna caracterizada por ulceração su­
■ Tumores malignos do canal anal
perficial de diversas formas e tamanhos, podendo ocorrer na A incidência de lesão maligna no ânus é baixa — de 1 a 2%
mucosa de transição da boca (gengiva) e na do ânus. É mais co­ dos tumores do trato digestivo — e apresenta, na maioria, bom
mum no sexo masculino e ocasionalmente associada a retardo prognóstico. Segundo a classificação histológica proposta pela
na cicatrizaçâo de feridas perianais pós-operatórias, tais como: Organização Mundial da Saúde, cerca de 80% dessas neoplasias
hemorroidectomia, fissurectomia e ressecção de condilomas. são do tipo epidermoide, subdivididas em tumores espinoce-
Embora sua simples presença não represente uma condição lulares ou de células escamosas, basaloides (cloacogênicos) e
maligna, há sempre a possibilidade de haver displasia com o mucoepidermoides.
risco de desenvolvimento de carcinoma epidermoide. Os demais 20% incluem: adenocarcinomas originários da
► Q u a d ro c lín ic o . Consiste em sangramento, geralmente mucosa do tipo retal que pode invadir o canal anal, das glân­
rutilante (vivo), prurido e secreção perianal. dulas anais ou das fístulas anorretais preexistentes; linfomas;
► D ia g n ó stic o . É realizado pela presença de ulcerações su­ melanoma; sarcoma de Kaposi; doença de Bowen; e doença de
perficiais no canal anal, de tamanho e formato variados, em Paget (Quadro 50.3).
550 Capítulo 50 / DoençasAnorretais

e, menos, pela via hematogênica. Sua progressão direta aos


músculos esfincterianos, à parede retal e à pele perianal é pre­
coce em mais da metade dos pacientes. A invasão da mucosa
vaginal é mais comum que a da loja prostática. Nos tumores
avançados, pode haver invasão dos ossos do sacro, cóccix e pa­
redes laterais da pelve. Metástases inguinais estão presentes em
20% dos enfermos e metástases a distância ocorrem em cerca
de 10%, principalmente para fígado e pulmões, por ocasião do
diagnóstico.
Algumas enfermidades inflamatórias crônicas predispõem
seu aparecimento, como a doença de Crohn, a retocolite ulce-
rativa e as fístulas anorretais.
► Q u a d ro c lín ic o . Suas manifestações clínicas são incarac-
terísticas e, não raro, atribuídas à doença hemorroidária, re­
tardando, na maioria das vezes, seu diagnóstico. Os sintomas
mais frequentes são: sangramento, dor, prurido e presença de
nódulo anal de forma e tamanho variados ou de ulcerações de
margens irregulares e endurecidas.
O sangramento, geralmente vermelho-rutilante (vivo), em
Figura 50.27 Condiloma gigante do canal anal com extensa área de pequena quantidade, ocorre durante a evacuação, ocasionado
carcinoma epidermoide. (Esta figura encontra-se reproduzida em co­ pela ulceração.
res no Encarte.) A dor relaciona-se à infiltração tumoral e, inicialmente,
associa-se às evacuações. Com seu crescimento, ela torna-se
persistente e, às vezes, insuportável. Com frequência, o exame
----------------------------- ▼------------------ proctológico só é possível sob analgesia. Pode haver inconti-
Quadro 50.3 T u m o r e s m a lig n o s d o c a n a l a n a l nência anal e secreção com odor fétido.
Com certa frequência, a linfadenopatia inguinal é seu pri­
1. Epidermoides: meiro sinal. Os nódulos são endurecidos, indolores, tendendo à
E s p in o c e lu la re s (e s c a m o s o s ),
coalescência. O paciente pode confundir invasão inguinal com
B a sa lo íd e s (d o a c o g ê n ic o s ), e
M u c o e p id e r m o id e s .
hérnias. O edema de membro inferior pode ocorrer pelo blo­
2. Adenocarcinomas: queio venoso causado pelo tumor ao nível dos vasos femorais
G lâ n d u la s a na is, e, em geral, é unilateral.
Fístulas a n o rre ta is , e ► D ia g n ó s tic o . Nas fases precoces, esses tumores podem
M u c o s a retal.
apresentar-se como lesões papulosas, com tamanhos variados
3. Melanomas e endurecidos, fixas ou não aos planos musculares. A falta de
4. Sarcoma de Kaposi um componente vascular, sua localização abaixo da linha pec-
5. Doença de Bowen tínea e a frequente fixação do nódulo aos planos mais profun­
6. Doença de Paget dos permitem distingui-los facilmente de um mamilo hemor-
roidário.
O aspecto mais comum, à inspecção, porém, é o de lesão ul­
cerada de bordas elevadas, irregular, granulosa, que, ao toque,
Sua concomitância com doenças benignas do canal anal se mostra sangrante, dolorosa e endurecida (Figura 50.28).
é muito comum, além de poder ocasionar lesões, facilmente O diagnóstico diferencial com fissura anal crônica pode ser
confundidas com essas afecções. Por isso, deve-se proceder a realizado não só pela inexistência da dor após a evacuação (típi-
cuidadoso exame proctológico, pois esses tumores podem ser
diagnosticados precocemente, ainda com dimensões reduzidas
pela facilidade de acesso da região, permitindo melhor prog­
nóstico.

■ Carcinoma epiderm oide do canal anal


Os tumores espinocelulares ou escamosos são os mais fre­
quentes entre os carcinomas epidermoides do ânus, represen­
tando entre 80 e 85% deles. Originam-se no epitélio pluries-
tratificado queratinizado do canal anal. Sua maior incidência
está entre a 5a e a 7a décadas de vida, com predomínio no sexo
masculino.
Os basaloides ou doacogênicos ocupam o segundo lugar em
incidência (15 a 20%) e são originários do epitélio de transição
existente no canal anal, sendo, por isso, pouco diferenciados.
Têm maior incidência após a 4a década, sem predominância
de gênero. Figura 50.28 L e s ã o u lc e r a d a d o c a n a l a n a l, a m p la , ir r e g u la r c o m b o r ­
Os tumores epidermoides do canal anal se propagam, com d a s e le v a d a s (c a r c in o m a e p id e r m o id e ) . (E sta fig u ra e n c o n t r a - s e r e p r o ­
frequência, por continuidade e/ou por metástases linfáticas d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 551

ca da fissura), como pela localização atípica da ulceração, pois,


em aproximadamente 80% dos casos de fissura anal, a lesão é
posterior, enquanto, no câncer, pode ocorrer em qualquer po­
sição. O plicoma sentinela é raro no câncer do canal anal.
Nos casos mais avançados, as lesões são ulcerovegetantes
extensas, avançam para o períneo, com secreção malcheirosa e
intensa dor, não só para evacuar como para urinar e andar.
Nas lesões infiltrantes, o comprometimento esfincteriano
anorretal leva à estenose progressiva. Quando o tum or inva­
de a pele perianal, há um aspecto característico denominado
“pele-de-laranja”: a pele torna-se brilhante, endurecida e fina­
mente granulosa. O estudo histopatológico, através de biopsias
da lesão (sob analgesia), confirma o diagnóstico e sua origem
epitelial.
► T ra ta m e n to . Para o tratamento, é fundamental estabe­
lecer:
Figura 50.29 Ulceração de bordas elevadas, irregular e granulosa
• Sua posição em relação à linha pectínea; de canal anal (adenocarcinoma invadindo o canal anal). (Esta figura
• Sua extensão circunferencial; encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
• O grau de infiltração aos planos profundos; e
• O comprometimento linfático locorregional e dos linfo-
nodos inguinais. ► Quadro clínico. O prurido crônico generalizado constitui
manifestação inicial inespecífica, com intensidade variável, às
A cadeia linfática inguinal interna é a primeira a ser invadida
vezes é intenso, podendo preceder em meses os sinais especí­
(15 a 30%). A disseminação venosa é menos frequente e ocorre
comumente nos tumores avançados. Sua abordagem deverá ser ficos do tumor, tais como, sangramento e dor local
multidisciplinar, sempre que possível, envolvendo: cirurgião, ► Diagnóstico. Sua lesão característica é o nódulo ou placa
clínico, oncologista etc. nódulo-infiltrativa, eritematosa ou eritematopigmentada com
Seu tratamento-padrão é com radioterapia pélvica associada fundo em geleia. Pode ser lesão isolada ou múltipla. Progride
à quimioterapia (esquema de Nigro, modificado). A necessi­ para o aparecimento de tumores de cor vermelho-castanha,
dade da ressecção da lesão residual pós-radioterapia é pouco com dimensões variáveis e que ulceram com frequência (Figura
frequente. As cirurgias alargadas, como as amputações abdo- 50.30). O diagnóstico deverá ser pelo exame histológico obtido
minoperineais, estão limitadas aos casos de falha na rádio e na pela biopsia da lesão.
quimioterapia. ► Tratamento. A radioterapia associada à quimioterapia
constitui o tratamento de escolha para o linfoma fungoide
■ Adenocarcinom a do canal anal (cutâneo). Nas lesões residuais à radioterapia, faz-se sua res­
O adenocarcinoma é um tumor raro no canal anal e se ori­ secção cirúrgica.
gina: quando a mucosa retal atinge o ânus; nas glândulas anais
(Chiari); nas glândulas apócrinas ou em fístulas anorretais crô­ ■ M e la n o m a
nicas, preexistentes. O melanoma ou melanoblastoma é tumor maligno de ori­
Em vista da ausência de barreira epitelial, os adenocarci- gem ectodérmica que acomete, frequentemente, a pele e a retina
nomas do ânus podem provocar metástases precocemente e, e, raramente, o canal anal, embora seja sua terceira localização
por isso, seu prognóstico é pior que o dos adenocarcinomas mais comum. Incide na faixa etária da 5* e 6a décadas de vida
colorretais.
e tem a mesma distribuição por gênero. Há mau prognóstico
►Q u a d ro c lín ico . É semelhante ao dos tumores epidermoi-
des do canal anal, tendo como principais sintomas: sangra-
mento vermelho-rutilante, geralmente associado a defecação,
dor e prurido.
►D ia g n ó stic o . Os adenocarcinomas do ânus são, com fre­
quência, confundidos com afecções benignas, principalmente
com a doença hemorroidária. Seu aspecto mais comum, à ins-
pecção, é a ulceração de bordas elevadas, irregular e granulo­
sa (Figura 50.29). Ao toque, apresenta-se sangrante, dolorosa,
endurecida e fixa aos planos profundos.
► T ra ta m e n to . É cirúrgico e, quando avançado, faz-se a am­
putação abdominoperineal do canal anal e do reto associada à
ressecção ampla dos tecidos perirretais.

■ Linfoma
É doença maligna relacionada com a proliferação neoplási-
ca de células do sistema linfoide-reticular e rara no canal anal.
O linfoma fungoide é a forma que afeta primariamente a pele.
Atinge, preferencialmente, adultos masculinos, acima dos 40 Figura 50.30 L e s ã o v e g e t a n t e e x t e n s a d e c o r v e r m e lh o - c a s t a n h a
anos de idade, com sobrevida média de 5 anos, quando não e x t e r io r iz a n d o - s e p e lo c a n a l a n a l (lin fo m a ). (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e
tratada. r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .)
552 Capítulo 50 / DoençasAnorretais

Figura 50.32 Lesão plana e vermelho-escura de canal anal (Kaposi).


(Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Figura 50.31 Melanoma perianal caracterizado por tumor polipoide
com pigmentação escura. (Esta Figura encontra-se reproduzida em
cores no Encarte.) ■ Doença de Bowen
O carcinoma intraepitelial de células escamosas foi descri­
to por John Templeton Bowen (1912) e é raro. Suas áreas de
pela sua alta malignidade e rapidez com que metastatiza para
predileção são: face, tronco e mãos. A de localização perianal é
linfonodos.
rara, sendo comum sua associação com outros tumores. Inci­
► Q u a d ro c lín ic o . Manifesta-se comumente com sangra-
de, principalmente, na 6J década, sem predominância entre os
mento, dor e nódulo perianal identificado pelo paciente.
sexos. Vários autores classificam a doença de Bowen como um
► D ia g n ó stic o . O exame físico oferece poucos sinais e sin­
carcinoma epidermoide intraepitelial, com tendência de infil­
tomas que contribuem para o seu diagnóstico, devendo-se, po­
tração intraepidérmica e de crescimento muito lento; a longo
rém, sempre pesquisar adenopatia inguinal e hepatomegalia.
prazo, 33% dos pacientes podem desenvolver um carcinoma
O tumor polipoide é o mais frequente, mas pode ser plano ou
invasivo com metastatização locorregional e a distância. Alguns
ulcerado. Caracteriza-se pela pigmentação escura da lesão (Fi­
autores sugerem que essa doença representa a manifestação
gura 50.31), que ocorre em até 60% dos casos (devido à presença
cutânea de uma predisposição ao carcinoma
intracitoplasmática de melanina). Quando não apresenta sua
► Q u a d ro c lín ic o . Prurido, umidade da região perianal e
pigmentação característica, pode retardar o diagnóstico, sen­
do os sintomas imputados a doenças benignas do canal anal. queixa de desconforto anal. Sangramento é raro
► D ia g n ó s tic o . Constitui-se de lesões eczematosas desca-
O estudo histológico por meio de biopsias permite a compro­
mativas de limites nítidos, com polimorfismo, eritematosas e
vação diagnóstica.
raramente ulceradas ou com pseudofissuras (Figura 50.33). Ao
► T ra ta m e n to . É cirúrgico, mediante amputação abdo-
exame histológico, observam-se células com hiper e paraquera-
minoperineal do canal anal e do reto, quando se objetiva a
tose, e as células de Bowen, de núcleo grande, hipercromático,
cura. Como a maioria dos pacientes, porém, já apresenta, no
com um halo não corado que as diferencia da célula de Paget.
momento do diagnóstico, metástases a distância para fígado,
A biopsia deve ser múltipla para confirmar o diagnóstico e ex­
pulmões e/ou gânglios, a amputação só deverá ser indicada
cluir a presença de carcinoma epidermoide invasivo, psoríase
após rigoroso estadiamento da neoplasia. Associam-se químio
ou doença de Paget.
e imunoterapia.

■ Sarcoma de Kaposi
É um sarcoma da pele de crescimento lento, originário das
células endoteliais. Atualmente, é diagnosticado, com frequên­
cia, em pacientes com AIDS, podendo ocorrer não só na pele,
como em qualquer local do trato gastrintestinal, aí incluído o
canal anal e a pele perianal.
► Q u a d ro c lín ico . As lesões do sarcoma de Kaposi são, com
frequência, assintomáticas.
► D ia g n ó stic o . Presença de várias lesões pequenas e sepa­
radas, de 5 a 20 mm de diâmetro, de cor púrpura ou negra as­
sintomáticas (Figura 50.32). A biopsia deve ser realizada para
confirmar o diagnóstico.
► T ra ta m e n to . Por causa do imunocomprometimento dos
pacientes com AIDS, a terapia daqueles com sarcoma de Ka­
posi é mais paliativa e, na maioria das vezes, sem qualquer tra­
tamento. No entanto, como essas lesões são muito sensíveis à Figura 50.33 Lesão ulcerada e eczematosa descamativa, de limites
rádio e à quimioterapia, em casos selecionados elas poderão nítidos, polimorfa e eritematosa de canal anal (Bowen). (Esta figura
ser empregadas. encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 553

► T ra ta m e n to . É cirúrgico, com ressecção ampla da lesão,


com margens seguras para sua radicalidade e acompanhamen­
■ DOENÇAS SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS
to rigoroso dos pacientes pela possibilidade de associação de ANORRETAIS
outros carcinomas. Nos casos avançados, deverá realizar-se o
mesmo tratamento do carcinoma epidermoide. As doenças sexualmente transmissíveis (DST) constituem
um grupo de enfermidades endêmicas, de múltiplas causas, as
■ Doença de Paget quais incluem as venéreas, conceituadas como infecciosas, pro­
É um adenocarcinoma intraepitelial de localização perianal vocadas por agentes rotineiros das estruturas genitais humanas
rara. James Paget (1884) descreveu a doença como sendo da que, pelo menos no início da doença, determinam sintomas
aréola mamária que poderia preceder o carcinoma da mama. e sinais na esfera genital. A Organização Mundial de Saúde
Sua manifestação extramamária é pouco comum e pode ocorrer (OMS) calcula que 350.000 novos casos de DST ocorram dia­
em regiões como bolsa escrotal, pênis, vulva, axila, pelve, boca, riamente no mundo.
coxas e nádegas. Segundo vários autores, a maioria dos pacien­ Essas moléstias apresentam um número crescente de enti­
tes com essa afecção pode apresentar um carcinoma associado, dades clínicas e síndromes cujo traço comum é a transmissão
resultantes de respostas diferentes ao mesmo estímulo carci- durante a atividade sexual, sendo divididas em três grupos em
nogênico. Quando a lesão dérmica degenera, é definida como relação ao contato sexual: as essencialmente transmitidas por
um carcinoma in situ, ou seja, intraepitelial, podendo, a longo ele, as de transmissão frequente e as de contágio eventual.
prazo, evoluir para câncer invasivo envolvendo as glândulas O estigma da promiscuidade sexual acompanha as DST des­
apócrinas, com metástases para linfonodos e outros órgãos. Na de os tempos mais remotos. Escritos bíblicos tratam a gonor-
forma anal, afeta adultos dos 30 aos 70 anos, particularmente reia como impureza, e a própria sífilis, em 500 a.C., já tinha o
na 6a década, com predomínio do sexo feminino. significado de amor imundo. Ao tempo das invasões romanas,
► Q u a d ro c lín ic o . Prurido anal, exsudação serossanguino- eram chamadas de Morbus indecens, e os soldados, para sua
lenta perianal provocando sensação de umidade, dor e/ou des­ prevenção, já usavam um preservativo feito de tripa de carneiro
conforto perianal. O sangramento é menos frequente denominado camisa-de-vênus.
► D ia g n ó s tic o . Seu diagnóstico clínico é difícil, pois as Até há pouco tempo, alguns aspectos epidemiológicos ca-
lesões são frequentemente confundidas com as de dermatite racterizavam-nas: eram basicamente relacionadas com prosti­
eczematosa. A doença de Paget perianal (Figura 50.34) carac- tuição, predominantes no sexo masculino, na faixa etária dos
teriza-se por lesão eczematosa, plana, de margens nítidas, com 20 aos 30 anos e apresentavam relação inversa com a escolari­
polimorfismo, úmida, eritematosa, às vezes esbranquiçada, en­ dade e com o nível econômico. Entretanto, as grandes trans­
durecida, com tamanho variável de 0,5 a 15 cm de extensão e formações socioeconômicas, em escala mundial, nas últimas
sua ulceração é rara. décadas, ocasionaram profundas modificações no comporta­
Ao exame histológico, encontram-se as células de Paget, em mento sexual e o ressurgimento das DST, em caráter endêmico,
anel de sinete, contendo uma mucoproteína, a sialomucina, as­ com características clínicas e epidemiológicas diferentes. No­
sociada à hiperqueratose e acantose. Dada a frequência da sua vas doenças, como a síndrome da imunodeficiência adquirida
associação com o carcinoma retal ou perianal, é importante um (AIDS), foram descritas e foram incluídas enfermidades dís­
rigoroso exame proctológico. pares, como a amebíase e a hepatite B, no grupo das DST, em
► T ra ta m e n to . A doença de Paget pode permanecer sem populações cada vez mais jovens, à custa, principalmente, do
sinais de malignização por anos, e não existe terapia específica. componente feminino. A prostituição perdeu sua importância
A melhor opção, quando existe malignização, é cirúrgica, com na transmissão, sendo substituída pela ligação eventual e pelo
ressecção local de toda a lesão perianal. Quando há recidivas homossexualismo masculino. Deixaram de ter importância a
frequentes, indica-se a amputação do canal anal e do reto, se­ escolaridade e o nível econômico. O modo de transmissão e
guindo-se os critérios de radicalidade oncológica. os fatores epidemiológicos das DST implicam a possibilidade
de os pacientes estarem contaminados por mais de uma delas,
obrigando a investigação clínica e laboratorial de maneira mais
complexa, além do aumento de sua atipia clínica. Nesses pa­
cientes, são importantes o controle epidemiológico e o acom­
panhamento terapêutico.
Nas relações sexuais anais (sodomia), homo ou heterosse­
xual, uma flora intestinal mista e abundante é colocada em
contato com a mucosa uretral, ocasionando uretroprostati-
te. Tornam-se frequentes o condiloma acuminado, a sífilis, o
cancro mole, o herpes simples genital e a gonorreia, todos de
localização anal. O contato oroanal (anolinguismo), hétero ou
homossexual, cria condições da transmissão de amebíase, sal-
monelose, shigelose, hepatite B etc.
Nos países ocidentais, a relação sexual anal é o vetor mais
comum de transmissão das DST anorretais, que são classifica­
das, de acordo com a sua localização, em:
• Perianais: lesões infecciosas ou inflamatórias, específicas
ou não, entre a região sacra, o sulco interglúteo, o períneo
Figura 50.34 Lesáo eczematosa, plana, de margens nítidas, com po­ anterior até a fúrcula vaginal e a margem anal;
limorfismo, úmida, eritematosa e com ulceraçòes rasas no canal anal • Anites: afecções do canal anal; e
(Paget). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) • Proctites: afecções do reto.
554 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

um carcinoma epidermoide: o tumor de Buschke-Lõewenstein,


■ Condiloma acuminado como descrito no item dos tumores anorretais neste capítulo.
O condiloma acuminado tem etiologia em um DNA vírus, Seu diagnóstico diferencial é com o condiloma plano da sífilis
pertencente ao grupo Papova, o Papillomavirus humano (HPV), secundária e algumas neoplasias benignas e malignas anorre­
autoinoculável, que tem como transmissão mais comum o con­ tais.
tato sexual direto, havendo, porém, outras possibilidades de ► T ra ta m e n to . Para as lesões pequenas, aplicação local diá­
contaminação não venéreas. Em alguns casos, a infecção con- ria de agentes citotóxicos, como a podofilina a 20% em solução
dilomatosa, cuja incidência vem aumentando nos últimos anos, alcoólica, ácido tricloroacético a 90% ou 5-fluoruracila a 5%,
pode apresentar displasia e transformação maligna. Seu período em creme, até seu desaparecimento, e nova observação após
de incubação varia de 2 semanas a 8 meses, com média em torno 4 semanas. Por serem substâncias potencialmente tóxicas, essas
de 3 meses. No entanto, a existência de lesões subclínicas per­ aplicações devem ser efetuadas sob controle médico.
mite aos portadores um estado de latência por muitos anos. Nas lesões extensas, o uso local de métodos destrutivos, como
Atinge, na mulher, a vagina, os grandes lábios e o períneo, crioterapia, laserterapia e eletrofulguração, sob anestesia local,
incluindo o canal anal, e, no homem, o pênis, a região perianal em ambulatório, apresenta bons resultados. Nos condilomas
e o ânus. Seu aparecimento, no reto, está relacionado com o gigantes, pode haver necessidade de excisão cirúrgica sob anes­
sodomismo e, na cavidade oral, à prática sexual oropeniano- tesia peridural. É importante lembrar que as eletrofulgurações
anal. É mais comum entre homossexuais masculinos. Ocorre, em áreas extensas ou repetitivas podem ocasionar estenose anal.
também, em indivíduos imunocomprometidos, mesmo sem O tratamento imunológico à base de autovacinas ainda não de­
história de relação anal, como naqueles submetidos a trans­ monstrou resultados satisfatórios. É importante ressaltar que o
plantes de órgãos. tratamento é, por vezes, longo, cansativo e frustrante, para mé­
► Q u a d ro clín ico . O condiloma acuminado da região peria­ dicos e pacientes, com recidivas frequentes. Essas dificuldades
nal e do canal anal caracteriza-se por uma ou múltiplas lesões devem ser explicadas ao paciente logo no início do tratamento,
de aspecto verrucoso, que podem desaparecer espontaneamente para não haver desgaste na relação médico-paciente. Devem-se
ou evoluir, fundindo-se nas bases, até formar grandes massas proibir as relações sexuais até a cura da afecção, e o tratamento
vegetantes, semelhantes à couve-flor, avermelhadas ou esbran­ requerer avaliação clínica do(s) parceiro(s).
quiçadas. A autoinoculação pode ocorrer, observando-se as
chamadas lesões em espelho, que aparecem em ambos os lados
da região perianal. Pode haver um desconforto perianal, pro­ ■ Gonorreia
porcional ao tamanho e ao número das lesões, associado ou não Também chamada de blenorragia, seu agente etiológico é a
com secreção, prurido e, mais raramente, com sangramento. bactéria Neisseria gonorrhoeae, um diplococo intracelular gram-
► D ia g n ó s tic o . É clínico, pela simples inspecção quando negativo aeróbio (gonococo) descrito por Albert Neisser (1879).
se observa a presença de lesões verrugosas típicas no períneo, De transmissão essencialmente por contato sexual, apresenta
canal anal e/ou reto (Figura 50.35). A anuscopia é necessária alta incidência epidemiológica e período de incubação entre
para localizar lesões no canal anal e a retoscopia, para as no reto. 2 a 10 dias.
A histopatologia confirma o diagnóstico nos casos duvidosos. A gonorreia anorretal é comum em mulheres e homosse­
Recentes técnicas de detecção do vírus HPV confirmaram a xuais masculinos.
existência de infecções microscópicas do condiloma acumina­ ► Q u a d ro c lín ic o . A gonorreia anorretal é frequentemente
do, o que explicaria a dificuldade da sua erradicação. assintomática. Quando presentes, os sintomas e sinais são de
Quando o condiloma é de grandes proporções, denominado uma proctite inespecífica e, isoladamente, insuficientes para o
gigante, é importante avaliar a presença, associada à lesão, de diagnóstico. No entanto, em alguns pacientes, pode produzir
uma criptite aguda purulenta associada a uma proctite intensa,
geralmente restrita ao reto baixo, com ulcerações rasas da mu-
cosa e abundante secreção mucopurulenta, às vezes acompa­
nhada de sangue, e com tenesmo. Há casos extremos de sepse
gonocócica (entre 0,5 e 3%), causada pela sua disseminação
hematogênica e caracterizada por artrite, pericardite, endocar-
dite, infecção da orofaringe, epididimite, estado febril, mal-estar
generalizado e lesões cutâneas em forma de pústulas, mais acen­
tuadas nos membros, podendo, raramente, evoluir com menin­
gite, denominada síndrome de Waterhouse-Friderichsen.
► D ia g n ó stic o . A inspeção da região perianal, apesar de bá­
sica nos pacientes com história de sodomia, pode nada revelar.
O toque retal é, com frequência, doloroso, com a presença de
pus ou sangue na luva. A anuscopia e a retossigmoidoscopia
podem mostrar intenso enantema da mucosa do canal anal e
do reto, com graus variáveis de friabilidade e de secreção pu­
rulenta ou, raramente, sanguinolenta e, nos casos mais graves,
a presença de ulcerações (Figura 50.36).
Não é raro encontrar pacientes com normalidade endoscó-
pica, nos quais o diagnóstico se faz por meio do quadro clínico
Figura 50.35 M ú lt ip la s le s õ e s p e r ia n a is d e a s p e c t o v e r r u c o s o ( c o n ­ e achado laboratorial que é realizado mediante bacterioscopia
d ilo m a a c u m in a d o ) . (E s t a f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s direta pelo método de Gram e da cultura em meio de Thayer-
n o E n c a r te .) Martin do material obtido da secreção anorretal.
Capítulo50 / DoençasAnorretais 555

Figura 50.37 Sífllis primária do canal anal apresentando-se na forma


de pápula eritematosa (cancro duro). (Esta figura encontra-se repro­
Figura 50.36 Gonorreia de canal anal ocasionando abundante se­ duzida em cores no Encarte.)
creção mucopurulenta perianal. (Esta figura encontra-se reproduzida
em cores no Encarte.)

Seu diagnóstico diferencial deverá ser efetuado com as in­


fecções inespecíficas ou com as provocadas por Salmonella,
Yersinia ou Shigella.
► T ra ta m e n to . Utiliza-se a penicilina benzatina, na dose de
2.400.000 UI IM, semanalmente, durante 2 semanas. Nos pa­
cientes alérgicos à penicilina, faz-se a substituição pela eritro-
micina ou tetraciclina VO, na dose de 500 mg, de 6 em 6 horas,
durante 15 dias. Para confirmação da cura, todos os pacientes
devem ser reexaminados após 7 dias do término do tratamen­
to. O risco de transmissão é alto e a contaminação do parceiro
sexual ocorre em mais de 90% dos casos, devendo ser proibidas
as relações sexuais.

■ Sífilis
Seu agente etiológico é o Treponema pallidum, espiroqueta
aeróbia, com período de incubação de 2 a 6 semanas após o
contato sexual. Essencialmente venérea e endêmica nos cen­
tros metropolitanos, com incidência crescente, sobretudo, em
homossexuais masculinos, a sífilis acomete principalmente o
sistema vascular, com edema e proliferação endotelial e infil­
tração perivascular, após a inoculação do treponema Figura 50.38 Sífilis primária do canal anal com lesões ulceradas, de
tonalidade vermelha forte, fundo liso, margens náo proeminentes e
■ Quadroclínico indolores. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Desde o início, a sífilis é infecção sistêmica. Depois da pene­
tração do treponema, que se multiplica já no local da inoculação,
a disseminação ocorre em horas, pela circulação sanguínea e um endurecimento. Decorridos 10 dias da contaminação, pode
linfática. Caracteriza-se por três estágios clínicos sequenciais: associar-se adenopatia inguinal bilateral, dura, indolor e não
► S ífilis p rim á ria (a g u d a ). É a fase na qual há os sinais e inflamatória.
sintomas localizados da doença. Quando a lesão inicial é anor- ► S ífilis se c u n d á ria (su b a g u d a ). É a fase clínica sistêmica,
retal, acomete, principalmente, a região perianal através da pele que se dá entre 1 e 2 meses após a fase localizada, quando essa
e, raramente, o canal anal ou a mucosa retal, atingindo os lin- não foi tratada corretamente. O treponema entra na circulação
fonodos regionais após 10 dias. À inspecção, no local da ino­ e multiplica-se, disseminando-se por todo o corpo, ocasionando
culação, observa-se uma pápula eritematosa, geralmente única, um exantema epidérmico generalizado com lesões chamadas
indolor, base dura, chamada de cancro duro (Figura 50.37), que de roséolas, mais acentuadas nas regiões plantares e palmares.
sofre necrose isquêmica e origina uma ulceraçâo vermelha forte, Surgem pequenos pontos maculares de cor cúprea, opacos, sem
fundo liso e com acantose na epiderme das suas margens, que prurido, que são facilmente confundidos com reação alérgica.
não são proeminentes (Figura 50.38). Essas lesões também aparecem nas mucosas, disseminadamen-
Seu sintoma é um discreto incômodo na região perianal, te, e, por não possuírem camada córnea, são mais infectantes
com certo grau de umidade pelo exsudato da ulceraçâo sifilíti- que as cutâneas.
ca. Essa lesão desaparece espontaneamente, após 1 ou 2 meses, Nessa fase, pode ocorrer o condiloma plano sifilítico na re­
sem deixar cicatriz, podendo ficar em seu lugar um eritema e gião perianal (Figura 50.39), com secreção de odor fétido, ex-
556 Capítulo 50 / DoençasAnorretais

■ Donovanose
É infecção bacteriana crônica, pouco contagiosa e de evolu­
ção progressiva, com destruição da área genital, classificada, em
geral, como venérea. Seu agente causai descoberto por Charles
Donovan (1905) é o Donovania granulomatis. Com os conhe­
cimentos atuais, esse agente foi definido como uma bactéria
gram-negativa do gênero Klebsiella e denominada Calymmato-
bacterium granulomatis. Seu período de incubação varia entre
8 e 80 dias. A doença é conhecida, também, como granuloma
venéreo ou tropical.
► Q u a d ro c lín ic o . A enfermidade começa com nódulos
subcutâneos múltiplos ou isolados, que ulceram através da pele,
inclusive perianal, produzindo lesões indolores, que sangram
com facilidade, aumentam gradativamente e são, quase sem­
pre, associadas a infecções secundárias, com tecido necrótico
Figura 50.39 Condiloma plano da sífilis secundária perianal. (Esta fi­ na base das úlceras, intensa secreção purulenta e odor fétido,
gura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) formando pústulas. Associa-se adenopatia inguinal, igualmente
com secreção fétida.
► D ia g n ó stico . É feito mediante as características clínicas da
tremamente contagioso, associado ao enantema e à friabilidade lesão, que se inicia como um nódulo subcutâneo que úlcera e
da mucosa retal. ocasiona uma lesão granulomatosa exuberante, vegetante e que,
► S ífilis te rc iá ria (crô n ica ). É sua fase tardia, de 2 a 5 anos progressivamente, alastra-se por coalescência e autoinoculação,
após a sistêmica, sendo, contudo, rara, dado o tratamento pré­ preservando o aspecto ulcerovegetante (Figura 50.40).
vio ou a autoimunidade (30% dos casos) que leva à cura espon­ A extensão do processo inflamatório ocasiona fibrose dos
tânea. Pode manifestar-se como: tecidos, que, quando acomete o canal anal, pode levar à este-
• Forma tegumentar, com lesões nodulares na derme (go­ nose (diagnosticada ao toque retal), semelhante à encontrada
mas sifilíticas); no linfogranuloma venéreo.
• Forma cardiovascular com estreitamento do óstio das As biopsias permitem o diagnóstico histológico, caracte­
coronárias, insuficiência da válvula aórtica e aneurisma rizado por extensa acantose e denso infiltrado dérmico, com
da aorta torácica; plasmócitos e histiócitos. Os corpúsculos de Donovan, carac­
• Forma neurológica, tanto meníngea, parenquimatosa terísticos da enfermidade, são encontrados no interior dos ma-
quanto congênita, com paralisia e ataxia locomotora; ou crófagos.
• Como lesões ósseas e viscerais. ► T ra ta m e n to . As tetraciclinas e as gentamicinas são os
antibióticos mais eficazes. A tetraciclina é a primeira escolha,
■ Diagnóstico na dose de 500 mg VO, de 6 em 6 horas, durante, no mínimo, 10
Para o diagnóstico, é importante evidenciar que a sífilis apre­ dias. A gentamicina deverá ser usada na dose de 80 mg (1 mg/
senta mais sinais que sintomas, e o paciente pouco se queixa, kg de peso corporal) IM, de 12 em 12 horas, pelo mesmo perío­
tendo que ser rigorosamente examinado, incluindo o exame do. O paciente deverá ser acompanhado, semanalmente, até a
proctológico completo. cicatrização das lesões, com cura prevista ao redor de 3 sema­
O diagnóstico é confirmado, na fase primária, mediante o nas. Em casos de lesões muito extensas, devem-se extirpá-las
exame direto da secreção perianal em campo escuro, com im ­ cirurgicamente.
pregnação pela prata, coloração pelo Giemsa ou pela tinta da
China, todas possibilitando a identificação das espiroquetas,
ou mesmo por meio de biopsias das lesões para exame histo-
patológico.
A sorologia pela floculação (VDRL) ou da reação de comple­
mento (Wasserman) positivam-se na fase secundária; por não
serem específicas, dá-se preferência à prova FTA, com antígenos
treponêmicos (IgM) de alta sensibilidade e especificidade.
A diferenciação diagnóstica é feita com a fissura anal, o con­
diloma acuminado e o carcinoma anorretal.

■ Tratamento
Penicilina benzatínica, na dose semanal de 2.400.000 unida­
des IM, durante 4 semanas. Como segunda opção, eritromi-
cina ou tetraciclina, na dose de 500 mg VO, de 6 em 6 horas,
durante 15 dias.
Os pacientes e seus companheiros sexuais devem ser acom­
panhados e orientados, necessitando-se de abstenção sexual du­ Figura 50.40 D o n o v a n o s e c o m n ó d u lo s s u b c u t â n e o s m ú lt ip lo s n a s
rante o tratamento. Os pacientes assim tratados devem tomar- r e g iõ e s p e r ia n a l e p e r in e a l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m
se soronegativos em 12 semanas, caso não haja reinfecção. c o r e s n o E n c a rte .)
Capítulo50 / DoençasAnorretais 557

► Q u ad ro clín ico . A lesão inicial é uma infecção granuloma-


■ Cancroide tosa no local da inoculação, que quase sempre passa despercebi­
Também denominado cancro mole, é causado por pequenas da. É observada com o aspecto de vesícula, erosão, exulceração
bactérias aeróbias (cocobacilos) gram-negativas chamadas de ou pápula (Figura 50.42). Sua propagação é linfática, estenden-
Haemophilus ducreyi, descritos por Ducrey (1889). Seu período do-se aos linfonodos regionais e causando adenites (abscessos).
de incubação é curto (entre 2 e 7 dias) e autoinoculável, sendo Essa adenopatia abscedada drena espontaneamente, formando
considerado como doença essencialmente venérea. vários orifícios fistulosos, com secreção de pus espesso e fétido,
► Q u a d ro c lín ic o . A lesão anal inicial é representada por caracterizando o estágio avançado da enfermidade.
mácula, vesícula ou pústula, que rapidamente se rompe, evo­ A lesão inicial pode ocorrer no canal anal ou no reto, quando
luindo em 2 a 3 dias para ulceração dolorosa, rasa, com bordas inoculada diretamente na mucosa retal por relação sexual anal.
bem delimitadas, escavadas, fundo purulento, base mole, ge­ Pode ocasionar grave comprometimento regional, em especial
ralmente múltipla e localizada na genitália externa, podendo, no reto, com adenopatia perirretal, da cadeia ilíaca profunda
também, ser encontrada no ânus (Figura 50.41). e hipogástrica. Pode haver, também, comprometimento dos
Por vezes, apresenta adenopatia inguinal, denominada gânglios inguinais superficiais.
“bubão”, geralmente unilateral, de aspecto supurativo (amo­ Existe dor anal, por vezes intensa e febre. O comprometi­
lecido e tumefato). As lesões cancroides não desaparecem es­ mento dos linfonodos regionais evolui com a formação de fís-
pontaneamente como as da sífilis. tulas, estenoses e abscessos perianais. A proctite apresenta-se
► D ia g n ó s tic o . O quadro clínico do cancroide perianal é com inflamação aguda da mucosa, ulcerações e secreção mu-
fundamental para o diagnóstico, pois os exames complementa­ cossanguinolenta ou mucopurulenta fétida, acompanhada de
res para confirmar a presença do agente etiológico apresentam tenesmo. Evolui para estenose de extensão variável, com obs-
alta incidência de falso-negativos. O exame bacterioscópico e tipação e fezes finas. São frequentes as fístulas retovaginais. A
a cultura da secreção são muito utilizados. O teste imunológi- adenopatia inguinal é bilateral e supurativa.
co de intradermorreação, conhecido como teste de Ito-Reens- ► D ia g n ó stic o . O quadro clínico de lesão ulcerada perianal,
tierna, apresenta positividade somente após 12 dias do início com adenopatias satélites, comprometimento sistêmico com
da enfermidade. lesões granulosas nos linfonodos que evoluem para abscessos
Seu diagnóstico diferencial deverá ser feito com a sífilis, o perianais, fístulas e estenoses anorretais, associados à história
linfogranuloma venéreo e a donovanose. de relação sexual anal, é indicativo de linfogranuloma venéreo.
► T ra ta m e n to . Tetraciclinas na dose de 500 mg VO, de 6 em Devem-se realizar o exame bacteriológico direto, o teste intra-
6 horas, durante 10 dias. O cuidado local faz-se com limpeza dérmico de Frei (inoculação de cultura da secreção purulenta
das lesões, 2 a 4 vezes/dia, com solução antisséptica, como o das lesões) e o teste imunológico de fixação de complemento.
permanganato de potássio, na diluição de 1:40.000. Quando positivos, confirmam a doença, sendo necessários de
Não se deve incisar e drenar a adenite, pois, dessa forma, 12 a 40 dias para sua positividade depois do aparecimento da
prolonga-se seu tempo de evolução. Pode-se esvaziá-la através lesão inicial. É importante saber que esses testes podem falhar
de punção com agulha e aproveitar o material para exame. em mais de 30% dos pacientes.
O diagnóstico diferencial do linfogranuloma venéreo anor-
■ Linfogranuloma retal deverá ser feito com o cancroide, a sífilis, a doença de
Crohn, a tuberculose, o carcinoma e o abscesso críptico.
Doença sistêmica, de transmissão essencialmente venérea,
► T ra ta m e n to . Tetraciclinas na dose de 500 mg VO, a cada
causada pelo Chlamydia tracomatis, bactéria intracelular com
6 horas, no mínimo por 20 dias. Esse tratamento deve ser ini-
predileção pelos linfonodos. É gram-negativa, com período
de incubação de 7 a 10 dias, também denominada doença de
Nicolas-Favre-Durand.

Figura 50.41 L e s ã o in ic ia l d e c a n c r o m o le c o m p ú s t u la s n o c a n a l Figura 50.42 Linfogranuloma venéreo com lesões granulomatosas


a n a l (c a n c r o id e ) . (E s t a f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o perianais, grande ulceração e secreção purulenta. (Esta figura encontra-
E n c a rte .) se reproduzida em cores no Encarte.)
558 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

ciado imediatamente após a suspeita do diagnóstico. As ade-


nopatias e os abscessos devem ser drenados, porém os proce­
dimentos cirúrgicos devem ser bem avaliados e restritos. Nas
fístulas perianais e retovaginais, fazem-se ressecções econômi­
cas e cuidadosas, tendo-se que associar, posteriormente, plásti­
cas reconstrutivas. As estenoses anorretais poderão ser tratadas
com dilatações e, em casos extremos, com derivação do trânsito
intestinal por meio de colostomias ou, até mesmo, amputação
do reto e canal anal.

■ Herpes simples genital


O herpes simples genital pertence ao grupo das doenças ve-
néreas frequentemente transmitidas por contágio sexual. Pela
liberação sexual de hoje em dia, vem apresentando um crescen­
te aumento. Por ser praticamente incurável e sujeito a recidi-
vas, tem grande importância. Foi descrito por Richard Morton Figura 50.44 Ulcerações perianais do herpes simples genital. (Esta
(1694) e reconhecido como virose em 1941, sendo causado por figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
vírus DNA pertencentes à família Herpes viridae, subfamília
Alphaherpesvirinae, na qual se incluem os Herpesvirus homi-
nis (HVH). Estes apresentam dois tipos antigênicos: o HVH infecção inicial e manifesta-se, quase sempre, no mesmo lugar,
1, encontrado principalmente em lesões dos lábios, faces e re­ com os mesmos sintomas e sinais.
giões expostas à luz solar, e o HVH 2, observado nas regiões O herpes simples genital, embora seja doença benigna, pode
genitais e considerado como doença sexualmente transmissível. ser grave e até fatal em pacientes imunocomprometidos.
Estímulos variados, como febre, traumas mecânicos, tensão ► Diagnóstico. É clínico e precedido de rigorosa anamnese.
emocional, baixa imunidade e infecções diversas, provocam A presença perianal das lesões vesiculares agrupadas umas em
sua recorrência. torno das outras, as ulcerações ou as crostas fazem o diagnós­
► Quadro clínico. Cerca de 24 h depois do contágio sexual tico. Impõe-se a pesquisa de doenças sexualmente transmis­
anal, surgem as primeiras manifestações, com lesões eritema- síveis associadas, como a sífilis e o cancroide. O diagnóstico
tosas acompanhadas de ardor, prurido e dor. Sobre essa lesão sorológico, mediante a fixação do complemento do HVH 2,
eritematosa, aparecem vesículas agrupadas (Figura 50.43), umas deixa a desejar. Nos centros mais avançados, os métodos diag­
em torno das outras, por 4 a 5 dias; após isso, ulceram na re­ nósticos utilizados são o imunológico (IgM) ou a cultura viral
gião perianal ou no canal anal (Figura 50.44) e formam crostas, em células embrionárias humanas, ambos de alta sensibilidade
havendo reparação entre 2 e 3 semanas. e especificidade.
Às vezes, acompanha-se de febre, cefaleia, mal-estar e mial- ► Trata mento. Visa a minimizar os efeitos, o tempo de du­
gias. Em 75% dos casos, observam-se adenopatias inguinais ração e o espaço entre as crises, pois é ineficaz para a cura.
ou femorais e, em 15%, há inoculação extragenital, como em Consiste no uso do agente antiviral aciclovir (inibidor da poli-
nádegas, dedos e olhos. merase do DNA viral) VO na dose de 200 mg, 4 a 6 vezes/dia
A existência de infecções subclínicas permite aos portadores e tópico (diretamente sobre as lesões herpéticas) com pomada
um estado de latência por muitos anos e explica o porquê de a 5%, também com 4 a 6 aplicações por dia, no período de 5 a
um paciente, há muito convivendo com parceiro(a) único(a) 10 dias (até a remissão dos sintomas). Quando falha a resposta
sem herpes, possa manifestar a enfermidade após anos de re­ terapêutica oral, pode utilizar-se o aciclovir intravenoso.
lacionamento. A recorrência tem a mesma história natural da
■ Candidíase
É uma infecção causada por um fungo oportunista, Can-
dida albicans, que vive como comensal na mucosa do sistema
digestivo, e sua incidência, nos últimos anos, vem aumentando.
Apresenta fatores predisponentes, como a gravidez, o diabe­
tes, a imunodepressão e o uso prolongado de corticoides e de
antibióticos de amplo espectro. Atualmente, aceita-se como
doença frequentemente transmitida pelo contágio sexual e que,
com baixa frequência, acomete a região perianal, o canal anal
e o reto.
► Quadro clínico. Na pele da região perianal, pode produzir
lesões intertriginosas, com eritema, maceração e exsudação com
intenso prurido (Figura 50.45). No canal anal e reto, caracteriza-
se pela presença de proctite purulenta com placas brancas sobre
mucosa enantematosa e edemaciada, com secreção do tipo “leite
coalhado”. Sua disseminação ocorre por via hemática, poden­
Figura 50.43 Herpes simples genital com vesículas perianais agrupa­ do ocasionar, em pacientes portadores de enfermidades gra­
das, localizadas na região perianal. (Esta figura encontra-se reproduzida ves, em geral imunocomprometidos, endocardites, meningites
em cores no Encarte.) e/ou septicemias, comumente fatais.
C a p ít u lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 559

Figura 50.46 Lesões vesiculares endurecidas, de superfície lisa, translú­


cidas e umbilicadas, características do molusco contagioso. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 50.45 Candidíase com lesões intertriginosas, com eritema,


maceração e exsudaçáo localizadas na região perianal. (Esta figura
■ Síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS)
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) A AIDS é, na atualidade, o maior problema de saúde pú­
blica mundial, em vista de seu contágio fácil, rápida expansão
e disseminação descontrolada, além de ser considerada uma
► Diagnóstico. As manifestações clínicas, com prurido in­ DST de transmissão frequente pelo contato sexual, sobretudo
tenso e secreção esbranquiçada e espessa, na região perianal e pelo contato anal. É uma doença infecciosa grave provocada
no canal anal, são típicas. O exame citológico da secreção pode pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), pertencente à
confirmar a presença do fungo. Se o exame a fresco for negativo, família dos Retrovírus, subfamília dos Lentivírus, tendo sido
sob suspeita clínica, deve-se realizar a cultura da secreção. isolados, até o momento, dois tipos de vírus RNA: o HIV 1 e o
► Tratamento. Para uso local (perianal), a violeta de gen- HIV 2, com período de incubação variando de alguns meses a
ciana em solução aquosa a 2% apresenta grande eficácia e baixo vários anos. Apresenta grande variação genética, grande capa­
custo, podendo ser aplicada pelo próprio paciente ou, quando cidade de replicação e ação citolítica para as células que infecta
necessário, no consultório médico. Associa-se a nistatina VO, com cepas de diferentes virulências. Pode ser encontrado no
na dose de 500.000 UI, 3 vezes/dia, por 10 dias. No acometi- organismo humano, tanto no meio extra como no intracelular.
mento do canal anal e do reto, emprega-se, também, nistatina Depois de penetrar na célula, o HIV perde o envoltório e o seu
tópica, na forma de creme. A anfotericina B é utilizada nas RNA é liberado no citoplasma celular. A transcriptase rever­
formas disseminadas, por via parenteral. sa transcreve o RNA em DNA, e este genoma viral integrado,
denominado pró-vírus, pode permanecer latente durante pro­
■ Molusco contagioso longado período. Fatores ainda mal conhecidos ativam o pró-
vírus e dão início à síntese dos componentes virais (protease)
É uma infecção da pele, sobretudo de localização genital, que produzirão novos HIV. O ciclo completa-se com a lise da
considerada, eventualmente, como de transmissão sexual, au- célula hospedeira e a liberação dos vírus capazes de infectar
toinoculável, causada por um poxvírus (Juliusberg, 1905), que outras células. No sistema hematopoético, o tropismo mais
apresenta um período de incubação de 1 semana a 6 meses. Sua acentuado dos HIV é para os linfócitos T indutores (TH), que
ocorrência é mundial, com maior incidência na infância e no representam 60 a 80% das células T circulantes. Nessas células,
adulto sexualmente ativo. estão presentes receptores específicos, denominados CD4, que
► Quadro clínico. Caracteriza-se pelo aparecimento na pele, participam do reconhecimento dos antígenos e são essenciais à
inclusive perianal, de erupções vesiculares endurecidas típi­ manutenção da competência imunológica humana. Os macró-
cas, de superfície lisa, translúcida e com umbilicação central fagos são capazes de fagocitar o HIV, mas são refratários ao seu
(Figura 50.46). Tem crescimento rápido, podendo atingir até efeito citopatogênico, permitindo que o vírus sobreviva e possa
10 mm. Em geral, é assintomático ou pode produzir discre­ ser transportado pela corrente circulatória a diversos órgãos,
to prurido. Apresenta involução natural em até 2 meses, sem como os pulmões, o cérebro e o trato digestivo.
deixar cicatriz. As principais alterações imunológicas encontradas na AIDS
► Diagnóstico. Seu diagnóstico é pelas suas características são causadas pela penetração dos vírus HIV nos linfócitos TH,
clínicas, que tornam fácil sua identificação. O exame histopato- com sua destruição, impossibilitando a manutenção da com­
lógico de uma vesícula biopsiada confirma o diagnóstico. petência imunológica, além de bloquear os receptores CD4,
► Tratamento. É realizado pela curetagem das vesículas, de­ impedindo o reconhecimento dos antígenos para as outras in­
vendo-se alertar o paciente para a possibilidade do aparecimento fecções. Dessa maneira, os indivíduos, depois de contaminados
de novas lesões pelo curso natural da infecção, durante vários me­ pelo vírus da AIDS, têm o reconhecimento dos outros antíge­
ses. Como o molusco contagioso involui espontaneamente, não nos prejudicados e se tornam incapazes de combater células
se justifica qualquer tratamento que possa causar cicatrizes. neoplásicas, fungos, protozoários e outros vírus.
560 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

A epidemiologia da AIDS é cosmopolita, disseminada por significativo da sua incidência em nosso meio. Afeta ambos os
todo o planeta e se transmite pelo esperma, nos contatos sexu­ sexos, na mesma proporção, em todas as idades, com máxima
ais, pelo sangue e hemoderivados, nas transfusões, ou pelo uso entre a 2a e a 4a décadas, e com prevalência para a raça branca.
compartilhado de agulhas de injeção de tóxicos venosos, além Apresenta quadro clínico variável, com frequência crônico e
da via transplacentária. Outras maneiras de contaminação, os com ritmo evolutivo incerto, ocasionando importantes reper­
humores corpóreos, são acidentais. cussões biopsicossociais.
Desde sua primeira descrição, em 1979, por Weisman e Got- Suas manifestações anorretais e perianais são frequentes, em
tlieb, tem-se mantido mais restrita aos denominados “grupos geral associadas à doença no cólon e/ou reto, em cerca de 70%
de risco”: homens homo e bissexuais, heterossexuais promíscu­ dos enfermos, e com as formas ileais em 30%. Ocorrem como
os, usuários de drogas injetáveis, pacientes transfundidos com o primeiro sinal da doença em cerca de 4% dos enfermos, po­
sangue e hemoderivados, filhos gerados de mães com HIV ou dendo preceder qualquer sintoma intestinal em muitos anos.
viciadas em drogas injetáveis, e parceiros sexuais de pacientes O curso evolutivo dessas lesões anorretais é variável, podendo
portadores de HIV. regredir ou evoluir, com consideráveis modificações das estru­
► Quadro clínico. É complexo, pois inclui as manifestações turas do canal anal, independentemente da presença e/ou da
causadas pelo HIV e pelas infecções associadas. A OMS clas­ intensidade das lesões intestinais.
sifica as várias formas clínicas da AIDS como: assintomática,
infecção aguda, linfadenopatia persistente, manifestações sistê­
micas, neurológicas e neoplásicas e infecções relacionadas com
■ Quadro clínico
a AIDS. Nem todas as formas clínicas estão presentes em todos As lesões anorretais da DC manifestam-se como plicomas,
os pacientes e podem não ocorrer consecutivamente. O sarco- escoriações, fístulas, abscessos, estenoses, fissuras e/ou ulcera-
ma de Kaposi, relacionado com a AIDS, tornou-se epidêmico, ções no canal anal. Os sintomas mais comuns são dor, em espe­
sendo a lesão inicial em 30% dos enfermos. cial às evacuações, ardor, secreção purulenta que suja a roupa,
► Diagnóstico. O diagnóstico laboratorial inclui a pesquisa prurido e/ou incontinêncial anal. Os plicomas são frequentes,
do HIV ou dos anticorpos anti-HIV, sendo os mais utilizados, apresentando-se inflamados e edemaciados, com 1 a 2 cm de
em nosso meio, o ELISA, com especificidade de 99,8%, e, para tamanho (Figura 50.47). Costumam provocar incomodo, às
confirmação de resultados duvidosos, o teste de Western blot e vezes até dor e dificuldade na higiene anal. Podem persistir
a imunofluorescência (IF). Confirmado o diagnóstico, efetua-se por 10 anos ou mais. Em geral, são acompanhados de úlcera-
uma avaliação da quantidade de HIV presente no plasma (carga ções anais (Figura 50.48), fístulas (Figura 50.49) e/ou papilites
viral) e do sistema imunológico do paciente, por contagem das (Figura 50.50).
células TH (CD4), além da identificação das possíveis infecções As lesões fissurárias ou ulceradas são comuns e caracteri-
ou neoplasias associadas. zam-se pela presença de ulcerações amplas, atípicas e profun­
O diagnóstico diferencial deverá ser feito com: imunodeficiên­ das no anoderma, localizadas em qualquer quadrante do ânus,
cias congênitas ou adquiridas; terapias com imunossupressores; únicas ou múltiplas, de margens irregulares e edemaciadas, en­
neoplasias malignas e quadros infecciosos graves. durecidas ao toque. São, geralmente, indolores pela ausência
► Tratamento. A terapia anti-HIV baseia-se na contagem de hipertonia do esfíncter anal interno.
das células TH (CD4), na quantidade de vírus presente no plas­
ma (carga viral) e/ou na situação clínica do enfermo. Assim,
todos os pacientes com AIDS e com a doença manifesta (sin­
tomáticos), ou os assintomáticos, porém com contagem de TH
(CD4) menor que 500 céls./mm3, devem ser tratados. Aqueles
com contagem de TH (CD4) acima de 500 céls./mm3devem ser
tratados somente se tiverem carga viral superior a 30.000 cópias
de RNA/ml. As drogas disponíveis para o tratamento são re­
guladas pelo Ministério da Saúde, Programa Nacional de DST
e Aids (2008, 7a edição) e fornecidas através do SUS (medica­
mentos de alto custo). A terapia combinada de drogas tem como
objetivo controlar melhor a replicação viral, diminuindo a sua
carga e reduzindo a seleção de drogas resistentes ao HIV.

■ DOENÇA DE CR0HN AN0RRETAL


Sua etiologia é desconhecida e os estudos epidemiológicos
atuais sugerem não haver um agente transmissível responsável.
Há trabalhos indicando a influência de fatores genéticos como
predisponentes (relacionados com a transmissão multigênica).
Os fatores patogênicos mais importantes da doença de Crohn
(DC) estão relacionados com inativação do sistema imunológi­
co da mucosa de todo o trato digestório, com aumento de sua
permeabilidade e alterações do conteúdo intestinal. Tem maior
incidência nas populações de regiões mais industrializadas, que
ingerem pouca fibra, fumam muito e usam anticoncepcionais Figura 50.47 P lic o m a s p e r ia n a is in f la m a d o s e e d e m a c ia d o s d a d o e n ­
VO. Apesar de serem precários os dados de estatística sanitária ç a d e C r o h n d e c a n a l a n a l. (E s t a f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m
no Brasil, a literatura nacional vem registrando um aumento c o r e s n o E n c a rte .)
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 561

Os abscessos decorrentes da DC são extremamente dolo­


rosos, evoluindo com febre alta e não diferindo da maioria
dos processos supurativos anorretais. Podem drenar esponta­
neamente, desestruturar o canal anal e períneo (Figura 50.51),
podendo atingir o escroto ou os grandes lábios vaginais, pro­
vocando grave quadro séptico.
As fístulas anorretais, com frequência, são complexas, apre­
sentando orifício externo único ou múltiplo. Em geral, ocasiona
importante incomodo perianal, alterando a qualidade de vida
dos enfermos, em especial quando essas fístulas são retovagi-
nais (Figura 50.52).
A escoriação e maceração da pele perianal e do períneo não
são próprias da enfermidade, mas consequência da diarréia e da
infecção secundária por bactérias e fungos. Estas lesões podem
ocorrer concomitantes ou em sequência, ocasionando a des­
truição anatômica e funcional do canal anal, podendo evoluir
Figura 50.48 Doença de Crohn anorretal com ulceraçáo fissuroide para a estenose anal cicatricial e a suboclusão.
localização anal atípica (lateral equerda). (Esta figura encontra-se re­
produzida em cores no Encarte.)
■ Diagnóstico
O diagnóstico da DC anorretal é clínico e facilitado quando
se tem o conhecimento prévio de o paciente ser portador desta

Figura 50.49 Fístula complexa da doença de Crohn com dois orifí­ Figura 50.51 Processo supurativo extenso da doença de Crohn, en­
cios externos, trajeto em'ferradura" e ulceraçáo posterior. (Esta figura volvendo todo o períneo, desestruturando o canal anal. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 50.50 Papilas hipertróficas exteriorizadas no canal anal em Figura 50.52 Estilete colocado no trajeto flstuloso existente entre
enfermo com doença de Crohn. (Esta figura encontra-se reproduzida o reto e a vagina, em paciente com doença de Crohn. (Esta figura
em cores no Encarte.) encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
562 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

enfermidade. Entretanto, quando estas lesões são as primeiras


manifestações da enfermidade, o diagnóstico pode tornar-se
muito difícil.
Manifestações extraintestinais da enfermidade, também,
poderão estar presentes, tais como: artrites não supurativas,
pioderma gangrenoso, eritema nodoso etc.
Alguns achados, à inspecção do canal anal, são sugestivos: le­
sões múltiplas, fissuras de localização lateral, fístulas complexas
e ulcerações amplas e profundas, todas de difícil cicatrização.
Sua confirmação é dada pela presença, ao exame histopatológi-
co, de reação inflamatória granulomatosa não caseificante. De-
ve-se ressaltar, porém, que os fragmentos obtidos por biopsias
nem sempre fazem o diagnóstico definitivo, sendo necessário
associar-se a história clínica com os achados macroscópicos e,
até mesmo, o teste terapêutico.
Confirmado o diagnóstico da DC anorretal, deve-se proce­
der à investigação completa do trato digestório. O exame da Figura 50.53 Fístulas complexas anorretais pela doença deCrohn com
cavidade oral e a esofagogastroduodenoscopia deverão, sem­ comprometimento extenso dos esfíncteres, submetidos à limpeza dos
pre, ser realizados. A radiologia contrastada digital do delga­ vários trajetos e à feitura da anodaçào com sedenho (drenos de pen-
rose). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
do (trânsito intestinal) ou o exame da cápsula endoscópica e a
colonoscopia completarão esta avaliação. Nos enfermos com
lesões fistulosas complexas, a ressonância magnética contribui
para sua avaliação e extensão.
será sua fistulotomia e curetagem. Nos processos supurativos
O diagnóstico diferencial é feito, em especial, com a tuber­
extensos, com grave desfiguração estrutural (anatômica e fun­
culose, a retocolite ulcerativa perianal, o herpes simples, o can­
cional) do canal anal, a preferência é realizar, somente, drena­
cro sifilítico, as ulcerações específicas (clamídia, ameba etc.) e
gem e limpeza das lesões, tentando preservar ao máximo a pele
o carcinoma.
perianal e os esfíncteres anais. Nas fístulas perianais crônicas,
com comprometimento amplo dos esfíncteres, deve-se proce­
■ Tratamento der somente à limpeza do trajeto e à feitura da anodação de seu
trajeto pela técnica do sedenho (Figura 50.53).
O tratamento é clínico, exceção feita às lesões supurativas
É importante ressaltar que, nas fissuras e ulcerações da DC, a
(abscesso). Os riscos de uma cicatrização lenta da ferida cirúr­
gica associada ao risco de iatrogenia dos esfíncteres da conti­ cirurgia está contraindicada, pois, ao contrário de melhorá-las,
nência anorretal justificam a preferência para esse tratamento estas são agravadas e colostomia derivativa pouco alivia essas
conservador. O uso tópico de soluções antissépticas, como o afecções. Quando há manifestações da DC no cólon associadas a
permanganato de potássio na diluição 1:40.000, para limpeza lesões anorretais, a ressecção cólica não cura as do canal anal.
das lesões ou como semicúpios costumam auxiliar na melhora.
A mesalazina (ácido 5-aminossalicílico) é empregada tanto por
via entérica (oral), na dose de até 2,4 a 4,8 g/dia, quanto tópica ■ DOENÇAS DERMATOLÓGICAS PERIANAIS
(retal), na forma de supositórios e enemas. Associam-se tam ­
bém corticosteroides convencionais (glicocorticoides), como As doenças dermatológicas da região anal e perianal, no
a prednisona, por via enteral e tópica (retal), na dose entre 20 adulto, são causas frequentes de consulta ao dermatologista,
e 60 mg/dia, ou os novos corticoides, de ação exclusiva tópica, ao clínico geral e, não raro, ao coloproctologista.
como a budesonida, utilizada na forma de enemas retais, na A pele é composta, anatomicamente, por três partes: a epi-
dose de 9 mg/dia, durante 8 a 16 semanas. O uso de antimi- derme, de estrutura eminentemente celular, de fina espessura
crobianos apresenta bons resultados, cicatrizando 60 a 70% das e constituída das camadas, de fora para dentro, córnea, gra­
lesões. Emprega-se o metronidazol, na dose oral de 20 mg/kg, nulosa, espinhosa e basal ou germinativa; a derme ou cório,
2 ou 3 vezes/dia, durante 60 a 90 dias, ou o ciprofloxacino, na formada por tecido conectivo, com fibras colágenas, elásticas
dose oral de 1,0 a 1,5 g/dia, pelo mesmo período. e reticulares, vasos e nervos; e a hipoderm e ou subcutâneo,
As drogas imunoativas, como a azatioprina (pró-droga) caracterizada pela presença de tecido gorduroso. As condições
ou seu radical ativo, a mercaptopurina, na dose oral de 100 a de normalidade da pele na região anal e perianal são facilmente
150 mg/dia, ou a ciclosporina, na dose oral de 2 a 5 mg/dia, e deterioráveis por falta de ventilação, pelo calor, pela umidade
o metotrexato, na dose parenteral de 25 a 50 mg por semana, e pela contaminação por fezes, podendo ocasionar uma der-
também são empregadas com bons resultados. matite, definida pela presença de um processo inflamatório
Nas lesões anorretais graves e/ou extensas, os melhores re­ ou infeccioso.
sultados, inclusive com a sua cicatrazação, são obtidos com as De acordo com sua etiologia, são chamadas de:
terapias biológicas que utilizam um aAntiTNFa, o infliximabe,
• primárias: quando são dermatites provenientes da pró­
por infusão endovenosa, ou o adalimumabe SC.
pria pele perianal; e
O tratamento cirúrgico está indicado na presença de absces­ • secundárias: quando são lesões de outros órgãos ou siste­
so perianal, com incisão e drenagem, em caráter de urgência,
mas que se manifestam por alteração da pele perianal.
transformando-o, com frequência, em uma fístula simples, que
pode ser controlável clinicamente e mais tolerável aos pacientes. A despeito da patogenia diversa, suas manifestações clínicas
Nessa drenagem, identificando-se um trajeto fistuloso pequeno são frequentemente semelhantes, estando o prurido anal pre­
e superficial, com orifício interno ainda no canal anal, a conduta sente na maioria delas, de maneira variável, contínua ou com
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 563

períodos de acalmia e paroxismos, geralmente mais intensos à


noite. A necessidade de coçar-se pode provocar escoriações na
pele, agravando a lesão e perpetuando o prurido. Enfermidades
coloproctológicas ou ginecológicas podem estar envolvidas,
bem como reações metabólicas ou psicológicas. Em todos os
casos, portanto, são necessários anamnese criteriosa, exame clí­
nico, proctológico, ginecológico e dermatológico completos e,
quando indicadas, uma investigação laboratorial complementar
e biopsia das lesões.
Nos casos de etiologia conhecida, o tratamento específico
cura, frequentemente, a enfermidade e soluciona a lesão der­
matológica. Entretanto, em geral, a dermatite é inespecífica e
seu tratamento, realizado mediante abordagem local com me­
dicamentos tópicos e conduta higiênica e dietética.

■ Doenças dermatológicas primárias Figura 50.54 Dermatite perianal aguda e superficial com eritema pe­
rianal. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ Derm atite de contato
É o mecanismo básico que proporciona o quadro derma­
tológico mais comum de reação inflamatória da região anal e
perianal. Caracteriza-se, inicialmente, pela presença de eritema
e, com sua evolução, pode apresentar edema, infiltração, vesi-
culação, secreção, crostas, escamas e liquenificação. De acordo
com a presença ou predominância das lesões, o quadro pode
ser agudo, subagudo ou crônico. Com sua cronicidade e em
decorrência da coçadura, surge liquenificação e, às vezes, me-
lanodermia regional e perda de pelos.
Sua etiologia pode resultar do contato com substâncias irri­
tantes, o que é denominado dermatite por irritante primário, ou
por desenvolvimento de sensibilização à substância não irritan­
te, chamado de dermatite de contato por sensibilizante.
A dermatite de contato por irritação primária desenvolve-se
súbita ou gradualmente pela exposição ao irritante, de acordo
com a concentração deste, o tempo de ação e a tolerância indi­
vidual. Limita-se à área constatada, e o simples afastamento da
substância responsável determinará a melhora do quadro. Suas
Figura 50.55 Dermatite de contato perianal complicada por infecção
causas perianais mais frequentes são: uso de papel higiênico,
secundária estafilocócica decorrente de escarificaçáo por coçadura
perfume, sabonete, desodorante, talco, pomada ou pó antimi- local. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
cótico; trauma local durante a higiene do ânus com material
inadequado; ingestão de alimentos condimentados, pimentas
ou álcool; passagem frequente de fezes líquidas, abuso de laxati-
vos de contato e contato através das roupas íntimas ou não, com escroto ou à região vulvar, particularmente nos casos de longa
náilon, seda, raiom, laicra, corantes de tecido ou borracha. duração ou por tratamentos impróprios. O prurido anal, nessa
A dermatite de contato por sensibilização alérgica surge pelo fase, tem um começo gradual ou abrupto, manifestando-se, ge­
desenvolvimento de um estado de sensibilização que pode ocor­ ralmente, pelo desejo de coçar, com maior intensidade à noite.
rer em algumas semanas ou somente depois de alguns anos. Esse sintoma é, por vezes, intermitente, podendo persistir por
Estabelecido o quadro, a reação cutânea perianal surgirá após longos períodos com grande intensidade.
algumas horas da nova exposição. Entretanto, toda a pele está A fase crônica pode apresentar uma dermatite perianal li-
sensibilizada. Essa dermatite pode ser causada por alergênios quenificada, caracterizada por um espessamento cutâneo co­
químicos ou imunológicos, tais como as reações a sulfas, anti­ berto por pedaços brancos macerados (Figura 50.56), o qual
bióticos (neomicina, penicilina etc.), antissépticos, antimicó- pode atingir progressivamente a pele adjacente. Nessa fase, o
ticos (Figura 50.54) e anestésicos. prurido anal é intenso, podendo provocar insônia, ansiedade
e depressão.
■ Quadro clínico e diagnóstico A infecção secundária pode surgir como complicação da
O quadro inicial pode ser agudo, fúndamentalmente erite- fase aguda exsudativa ou por coçadura na crônica. É causada
matoso, e a inspecção perianal revelará um simples eritema da por bactéria piogênica (estafilococos ou estreptococos) ou pe­
região, com ou sem exsudação. las bactérias intestinais.
Sua evolução é para uma dermatite subaguda, dita ecze-
matosa. Apresenta-se, à inspecção, como lesões congestivas, ■ Tratamento
microerosivas ou exsudativas, raramente vesiculares, escoria­ É realizado mediante abordagem local com medicamentos
ções provocadas pela coçadura da região (Figura 50.55) e com e conduta higiênica e dietética. Remove-se todo agente irri­
formação de rágades perianais direcionadas ao canal anal. Em tante ou sensibilizante, procurando-se esclarecer o paciente. É
alguns casos, podem estender-se às nádegas, ao períneo, ao importante notar que, nas dermatites de contato crônicas, de
564 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

■ Líquen simples crônico


É uma neurodermatite circunscrita de evolução crônica e
progressiva, mais comum em mulheres e em indivíduos de etnia
oriental. Há predisposição individual e fatores desencadeantes;
entre outros, picada de inseto e fricção de roupa.

■ Quadro clínico e diagnóstico


Caracteriza-se pela presença de uma placa liquenificada,
com acentuação dos sulcos, espessamento da pele e aumento
da pigmentação (Figura 50.58). O prurido é intenso e, com a
evolução, aumenta gradualmente a liquenificaçâo. Os locais
de localização preferencial são as regiões cervical posterior, sa-
cral, genital, e os membros, atingindo, eventualmente, a região
perianal e perineal. O prurido inicial provoca coçadura, e esta
acarreta a liquenificaçâo que o exacerba, formando um círculo
Figura 50.56 Dermatite de contato crônica com espessamento cutâ­
vicioso, com agravamento progressivo do quadro.
neo coberto por pedaços brancos macerados (liquenificaçâo). (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

longa duração, depois de instituído o tratamento, as alterações


cutâneas regridem lentamente.
Corticosteroides tópicos, preferencialmente na forma de
creme, para não agravar a maceração da pele, devem ser usados
em pequena quantidade, só no local lesado, por curto período e
não de maneira contínua. Na fase inflamatória aguda, indica-se
um ou dois banhos de assento diários de permanganato de po­
tássio na diluição de 1:40.000, em água morna. Na presença de
intenso prurido anal, podem-se administrar anti-histamínicos
para seu alívio. Estão contraindicados os tratamentos locais
mistos de antimicóticos e antimicrobianos, o uso de cáusticos
tópicos e antibióticos orais.
Lavar a região perianal, após cada evacuação, com água e,
eventualmente, sabonete neutro, enxugando-a, cuidadosamente
com toalha de algodão. Proibir o uso de papel higiênico, para
limpeza ou para enxugar o ânus, de alimentos condimentados,
de pimentas, de bebidas alcoólicas e de laxativos. Corrigir a Figura 50.57 Dermatite seborreica perianal com eritema e escamas.
obesidade, caso presente, evitar permanecer sentado por longos (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
períodos e atividades que possam traumatizar a região perianal,
como cavalgar e andar de bicicleta, fazem parte das medidas
preventivas a serem tomadas com o enfermo.

■ Derm atite seborreica


É comum, crônica, recorrente, não contagiosa, e se localiza
preferencialmente em áreas onde há maior desenvolvimento
das glândulas sebáceas, o que sugere a existência de uma dis-
função sebácea, associada ou influenciada por outros fatores,
inclusive fúngicos, ligados à patogenia. Atinge particularmente
o couro cabeludo, a face, o sulco nasogeniano, a região retro-
auricular, porções medianas do tórax, a região axilar, pubiana,
genital e perianal.

■ Quadro clínico e diagnóstico


Caracteriza-se pela presença de escamas com discreto erite-
ma, que é acompanhada de prurido. O quadro é crônico, com
períodos de melhora e de agravamento (Figura 50.57), provo­
cados por perspiração, calor, fricção e fatores psicossomáticos.
A obesidade parece favorecer seu aparecimento.

■ Tratamento
Uso local de corticoides tópicos, na forma de creme. Nos
quadros em que há reação inflamatória intensa, utilizam-se,
simultaneamente, banhos de solução de permanganato de po­ Figura 50.58 L íq u e n s im p le s c r ô n ic o p e ria n a l. (E sta fig u ra e n c o n t r a - s e
tássio na diluição de 1:40.000. r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a r te .)
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 565

■ Tratamento
Aplicação tópica de corticosteroides na forma de creme; nos
casos graves, infiltrações intradérmicas de corticoides, 1 vez/
semana. Eventualmente, podem-se administrar antiprurigino-
sos sistêmicos. É importante esclarecer ao paciente que evite
coçar-se, no intuito de interromper o círculo vicioso que agrava
o quadro da doença.

■ Intertrigo
As condições de falta de ventilação, de calor e umidade na
região perianal podem ocasionar essa dermatite, mais comum
no verão. Ela é agravada por obesidade, transpiração excessiva,
roupas justas, falta de higiene e ocupações sedentárias.

■ Quadro clínico e diagnóstico


Caracteriza-se por eritema, maceração, fissuração e esco­
Figura 50.60 Psoríase perianal com placas eritemoescamosas bem
riação (Figura 50.59). O prurido é variável, em geral mais in­ limitadas e escamas secas. (Esta figura encontra-se reproduzida em
tenso à noite. Frequentemente, atinge o períneo, o escroto ou cores no Encarte.)
a vulva.

■ Tratamento
estado emocional, o prurido e a queimação atingem intensi­
É fundamental combater suas causas e evitar a coçadura, dade variável.
para impedir a liquenificação e progressão da dermatite. A con­
duta é sintomática, com banhos de solução de permanganato ■ Tratamento
de potássio, na diluição de 1:40.000, e creme de corticosteroi­
Apesar da falta de medicamentos para sua cura definitiva,
des tópicos.
o uso tópico de corticoides possibilita o controle da enfermi­
dade.
■ Psoríase
Sua etiologia é desconhecida, atingindo ambos os sexos, par­ ■ Vitiligo
ticularmente na 2ae na 3adécadas de vida. Raramente, é encon­
trada em crianças e indivíduos da raça negra. Está relacionada Leucodermia adquirida que surge, geralmente, em vista da
com uma queratinização defeituosa, provavelmente em virtude diminuição da melanina, na 2adécada da vida. Sua causa é des­
de um distúrbio enzimático das células epidérmicas, não afe­ conhecida; ocasionalmente, há ocorrência familiar. Pode per­
tando os órgãos internos. manecer estacionária por anos ou progredir, atingindo áreas
extensas.
■ Quadro clínico e diagnóstico
São lesões caracterizadas por placas eritemoescamosas ■ Quadro clínico e diagnóstico
bem delimitadas, com escamas secas (Figura 50.60), distribui­ É caracterizado por manchas hipocrômicas, depois acrô-
ção quase sempre simétrica, e afetando inclusive as regiões micas, marfíneas, de limites nítidos e, em geral, com bordas
perianal e genital. A existência de tais placas em outras loca­ hiperpigmentadas, com forma e extensão variáveis (Figura
lizações, como dobras inguinocrurais, cotovelos, joelhos, pal- 50.61), não pruriginosas. Há predileção pelas seguintes áreas:
moplantares e dorso, faz seu diagnóstico. A evolução é crônica, periorbital, maleolares, punhos, pernas, mãos, pescoço, geni-
com períodos de exacerbação e de acalmia. De acordo com o tália e perianal.

Figura 50.59 in t e r t r ig o p e r ia n a l c o m m a c e r a ç ã o , f is s u r a ç ã o e e s c o ­ Figura 50.61 V it ilig o p e r ia n a l e p e r in e a l c o m m a n c h a s h ip o c r ô m ic a s


r ia ç ã o d a p e le . (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n ­ d e lim ite s n ít id o s e b o r d a s h ip e r p ig m e n t a d a s . (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e
c a rte .) r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .)
566 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

■ Tratamento
Obtêm-se resultados favoráveis pela aplicação local de cor-
ticosteroides tópicos, na forma de creme.

■ Acanthosis nigrans
Dermatite melanodérmica, com manchas hipercrômicas,
por aumento da melanina.

■ Quadro clínico e diagnóstico


Há o tipo benigno, com maior incidência na infância e boa
evolução, e o maligno, associado a câncer interno, ocorrendo
geralmente após os 40 anos de idade. Apresenta manchas de cor
castanho-escura, com liquenificação e vegetação em áreas inter-
triginosas, tais como: axilas, pescoço, dobras inguinocrurais e
região perianal (Figura 50.62). O diagnóstico é histopatológico,
com hiperqueratose, acantose e aumento da melanina.
Figura 50.63 Doença de Darier, com crescimento anormal da pele
perianal, queratinização e aspecto verrucoso. (Esta figura encontra-se
■ Tratamento
reproduzida em cores no Encarte.)
A forma benigna não necessita de tratamento. Na maligna,
associada a câncer interno, é fundamental realizar completa
investigação, particularmente do trato gastrintestinal.
■ Quadro clínico e diagnóstico
■ Doença de Darier Caracteriza-se por erupções papuloesbranquiçadas, de super­
Também chamada de queratose folicular, é uma dermatite fície lisa, brilhante e cor vermelho-violácea, pruriginosas, de cur­
genética primária da pele que pode afetar a região perianal. so crônico (Figura 50.64), podendo comprometer as mucosas.

■ Quadro clínico e diagnóstico ■ Tratamento


Caracteriza-se pelo crescimento anormal da epiderme, com Corticosteroides tópicos, na forma de creme ou de infiltra­
queratinização precoce e acantólise. Na região anal, pode m a­ ções intradérmicas, nos quadros graves. O prurido pode ser
nifestar-se por formações vegetantes verrucosas (Figura 50.63), aliviado com anti-histamínicos VO.
com frequência infectadas secundariamente. O diagnóstico ba-
seia-se nos achados macroscópicos cutâneos e é corroborado ■ Pênfigo
pela histologia por biopsias locais. Compreende um grupo de dermatites de etiologia desconhe­
cida, relacionadas, provavelmente, com reações autoimunes.
■ Tratamento Caracteriza-se por erupções bolhosas, decorrentes de alterações
Está baseado no uso oral de vitamina A (retinol). patológicas das pontes intercelulares da camada de Malpighi,
com diminuição ou perda da união entre as células. Essa con­
■ Líquen plano dição constitui a acantólise.
De etiologia desconhecida, a maioria dos casos ocorre após
os 30 anos de idade. Tensões nervosas ou estados emocionais ■ Quadro clínico e diagnóstico
alterados, como a síndrome do intestino irritável, podem atuar Na fase inicial, surgem manchas eritematosas, sobre as quais
como seus fatores desencadeantes. Quando acomete a região se desenvolvem bolhas que, geralmente, são flácidas e se rom ­
perianal, deve ser diferenciado da leucoplasia e da sífilis secun­ pem com facilidade. Com a evolução da doença, as bolhas tor­
dária, por meio de biopsias. nam-se evidentes, sendo substituídas por eritema e descamação,

Figura 50.62 A ca n th o sis n igrans p e r ia n a l c o m m a n c h a s h ip e r c r ô m i­ Figura 50.64 Líquen plano com erupções papuloesbranquiçadas, de
c a s , liq u e n if ic a ç ã o e v e g e t a ç ã o in t e r t r ig in o s a . (E sta fig u r a e n c o n t r a - s e superfície lisa, brilhante e cor vermelho-violácea. (Esta figura encontra-
r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .) se reproduzida em cores no Encarte.)
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 567

Figura 50.66 Acne vulgar perianal com a presença dos comedões


(cravos). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

medida tópica é limpeza, com água morna e sabonete neutro,


várias vezes no dia. A cirurgia é eficiente e consiste na extra­
ção dos comedões com extrator apropriado e na drenagem das
lesões pustulosas.

■ Histiodtose
Figura 50.65 ^ênfigo perianal com eritema e descamaçào, atingindo o É doença de causa desconhecida, relacionada com a altera­
períneo. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) ção do sistema reticuloendotelial. Acomete, sobretudo, adoles­
centes; quando ocorre em crianças, porém, é, frequentemen­
te, grave.
atingindo o períneo (Figura 50.65). Há contínua sensação de
■ Quadro clínico e diagnóstico
ardor e calor, febre irregular e sensibilidade ao frio exagerada.
As lesões cutâneas são erosões ou úlceras localizadas na boca,
O diagnóstico é citológico, revelando células epiteliais acanto-
na genitália e na região perianal (Figura 50.67). Pode haver
líticas no material obtido por raspagem da lesão.
diabetes insípido, febre e leucocitose. A histopatologia revela
granuloma formado por histiócitos, células gigantes tipo corpo
■ Tratamento
estranho, e eosinófilos.
Corticoterapia, com administração oral de prednisona - 40 a
100 mg, por dia - até o controle das manifestações, quando então
se reduz, gradativamente, essa quantidade até a menor dosagem
de manutenção. As medicações tópicas têm pouca influência na
evolução da doença, porém são indicadas para melhorar o bem-
estar do paciente. Empregam-se banhos de assento com solução
de permanganato de potássio, na diluição de 1:40.000.

■ Acne vulgar
Enfermidade de causa desconhecida. Há aumento de ta­
manho e atividade da glândula sebácea, formando-se massa
vermiforme de queratina e sebo que obstrui o folículo pilosse-
báceo, constituindo o comedão (cravo). Bactérias, aeróbias e
anaeróbias, podem-se desenvolver nos comedões, ocasionando
reações inflamatórias e pústulas.

■ Quadro clínico e diagnóstico


Caracteriza-se pela presença dos comedões (cravos), bem
como pelas pústulas e, eventualmente, cistos e abscessos (Figura
50.66). Localizam-se nas áreas de maior número de glândulas
sebáceas, como face, ombros, porções superiores do tórax e,
com certa frequência, na região perianal. Eventualmente, atinge
as regiões glúteas, onde deixa cicatrizes indeléveis.

■ Tratamento
Deve ser orientado para eliminar e prevenir os comedões, Figura 50.67 H is t io d t o s e p e r ia n a l c o m e r o s õ e s e u lc e r a ç õ e s m ú lt i­
evitar e reduzir a infecção, exacerbações e recidivas. A primeira p la s . (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s n o E n c a rte .)
568 C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is

■ Tratamento
É cirúrgico, com ressecção das lesões, associada à radiote­
rapia.

■ Craurose
Lesão cutânea, de etiologia desconhecida, denominada, tam­
bém, líquen escleroso ou atrófico. As localizações mais frequen­
tes são nuca, ombros, genitália e região perianal.

■ Quadro clínico e diagnóstico


Caracteriza-se por lesões brancas atróficas, isoladas ou agru­
padas com rolha córnea central (Figura 50.68). Deve ser d i­
ferenciada da leucoplasia e da doença de Paget, por meio de
biopsia.

■ Tratamento
Uso de corticosteroides tópicos na forma de creme ou mes­ Figura 50.69 Tinha crural perianal com lesões eritemoescamosas,
mo por meio de infiltrações intradérmicas. bordas nítidas atingindo ambas as nádegas. (Esta figura encontra-se
reproduzida em cores no Encarte.)

■ Doenças dermatológicas secundárias


■ Micoses
■ Candidíase
Micose abordada anteriormente.

■ Tinha crural
Micose superficial comum no homem e rara na mulher.
Atinge a face interna da coxa ou da região glútea com frequen­
te comprometimento bilateral e propagação para as regiões
perianal e do períneo. Pode ser causada pelo fungo Epidermo-
phyton.
►Q u a d ro c lín ic o e d ia g n ó s tic o . As lesões são eritemato-
escamosas, com bordas nítidas onde se observam, às vezes, pe­
quenas vesículas (Figura 50.69). As afecções antigas tornam-se
escuras e liquenificadas, por causa do prurido.
►T ra ta m e n to . Emprego local de antifúngicos sob forma
líquida.
Figura 50.70 Blastomicose sul-americana perianal apresentando le­
■ Blastomicose são verrucosa, vegetante e bem delimitada. (Esta figura encontra-se
Causada pelo fungo Paracoccidiodes brasiliensis que habita reproduzida em cores no Encarte.)
saprofitamente a natureza e que pode infectar a região peria­
nal pelo contato, durante a higiene local, sendo doença mais
► Quadro clínico e diagnóstico. As formas clínicas da blas­
do meio rural.
tomicose são as seguintes: tegumentar, linfática, visceral e mista.
As lesões cutâneas, incluindo as perianais, são muito variadas
e polimorfas. Encontram-se pápulas, nódulos, úlceras, vegeta­
ções, placas papulosas e abscessos. Normalmente, existe mais
que um tipo de lesão. Sua quantidade é também variável, desde
única até centenas (Figura 50.70). O diagnóstico laboratorial é
feito mediante a demonstração do fungo no material colhido
por raspagem ou pela biopsia da lesão.
► Tratamento. Para a blastomicose sul-americana, há duas
medicações ativas: as sulfas e a anfotericina B.

■ Actinomicose
Encontrada nas regiões tropicais e subtropicais, atingindo,
principalmente, trabalhadores rurais. Em nosso meio, a doen­
ça é determinada por um actinomiceto aeróbio, o fungo No-
cardia brasiliensis.
► Quadro clínico e diagnóstico. As lesões são represen­
tadas por nódulos, gomas e fístulas, drenando material seroso
Figura 50.68 C r a u r o s e p e r ia n a l c o m le s õ e s b r a n c a s a tr ó fic a s d a p e le ou seropurulento; a temperatura local pode estar ligeiramente
e ro lh a c ó r n e a c e n tra l. (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s elevada, sendo característica a dureza, geralmente lenhosa, da
n o E n c a r te .) pele (Figura 50.71).
C a p ítu lo 5 0 / D o e n ç a s A n o rre ta is 569

Figura 50.71 Actinomicose perianal caracterizada por lesões nodu-


lares, ulceradas, com fístulas. (Esta figura encontra-se reproduzida em
cores no Encarte.)

► T ra ta m e n to . As sulfas têm ação em doses altas, durante


vários meses. Os modernos antibióticos, antifúngicos, anfote-
ricina B e nistatina não têm mostrado efeito.
Figura 50.73 Escabiose provocando dermatite na regiáo perianal e
■ Esporotricose glútea, com lesões secundárias pela escarificaçáo por coçadura. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
Micose profunda, comum em nosso meio, de evolução suba-
guda ou crônica, causada pelo Sporotrichum schencki. O fungo
introduz-se no organismo humano por inoculação direta na preferencialmente, em região de pilificação, com as seguintes
pele e, eventualmente, nas mucosas. localizações eletivas: púbis, nádegas, axilas, espaços interdigitais
► Q u a d ro c lín ic o e d ia g n ó s tic o . Apresenta-se com múl­ e cintura. Extremamente comum há alguns anos, sua frequência
tiplas lesões cutâneas papulonodulares, ulceradas, verrucosas vem diminuindo. É transmitida por contato pessoal.
ou mistas (Figura 50.72). O diagnóstico laboratorial é feito pela ► Quadro clínico e diagnóstico. Acarreta intenso prurido,
cultura da secreção ou do raspado da lesão, e, a partir do 5o dia, principalmente noturno, e pode provocar lesões secundárias
é possível encontrar colônias do fungo. por escarificação e afecções piodérmicas (Figura 50.73).
► T ra ta m e n to . O iodo constitui o tratamento específico da ► Tratamento. Realizado por meio de banhos, com água e
esporotricose. É administrado por via oral, como iodeto de po­ sabão de coco, deixando-se o corpo ligeiramente úmido, e de
tássio, iniciando-se com doses de 1 g e aumentando-se, gradu­ solução alcoólica de benzoato de benzila a 30%, repetindo-se
almente, até atingir 6 g, no adulto. A dose deverá ser mantida o mesmo procedimento por 4 dias consecutivos, sempre m u­
até a cicatrização das lesões. dando a roupa por outra limpa.
■ Escabiose ■ Infecciosas
Ocasionada por lesão dermatológica provocada pela presen­
ça do parasito Sarcoptes scabiei hominis na região perianal, mas, ■ Infecções bactérianas

►SÍFILIS, DONOVANOSE, CANCROIDE, LIN FO G R ANU LO M A.


Abordados anteriormente neste capítulo.
►TUBERCULOSE. As lesões cutâneas da tuberculose resultam
da colonização do bacilo de Koch na pele ou de processo de hi-
persensibilidade a foco tuberculoso ativo localizado em outro
local do organismo. No primeiro caso, as lesões são bacilíferas
e, no segundo, não. O contato inicial com o bacilo de Koch
ocorre, quase sempre, na infância. A priminfecção tuberculosa
pode ocorrer na pele, mas é excepcional.
► Quadro clínico e diagnóstico. Os tipos clínicos de le­
sões são relacionados, até certo ponto, ao estado imunológico
do indivíduo. Quando a lesão é resultante da inoculação di­
reta do bacilo sobre a pele, desenvolve-se o complexo primá­
rio tuberculoso: a lesão inicial é pápula ou papulopústula no
ponto de inoculação do bacilo, evoluindo, lentamente, para
ulcerações regulares de bordas elevadas. Essas lesões podem,
também, evoluir, transformando-se em verrucosidades (tuber­
Figura 50.72 E s p o r o t r ic o s e p e r ia n a l, c o m m ú lt ip la s le s õ e s p a p u lo n o ­ culose verrucosa) ou formando abscesso cavernoso. Quando
d u la r e s e v e r r u c o s a s . (E sta f ig u r a e n c o n t r a - s e r e p r o d u z id a e m c o r e s na região anal, podem ser resultantes da propagação à junção
n o E n c a rte .) cutaneomucosa da infecção em portadores de tuberculose in-
570 Capítulo 50 / Doenças Anorretais

Figura 50.75 Dermatite actínica perianal causada por irradiação do


Figura 50.74 Tuberculose perianal com a presença de abscessos ca­ períneo posterior para o tratamento de tumor uterino. (Esta figura
vernosos e grande secreção. (Esta figura encontra-se reproduzida em encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
cores no Encarte.)

testinal, caracterizando-se por lesões ulceradas. São manifesta­


ções de hipersensibilidade a distância por foco de tuberculose
(Figura 50.74).
O diagnóstico é confirmado pelo exame bacteriológico com
isolamento e identificação do bacilo de Koch. A histopatologia
pode fornecer subsídio para o diagnóstico, particularmente pelo
achado de granuloma tuberculoide e necrose de caseificação.
Havendo a suspeita ou confirmado o diagnóstico, deve-se pro­
curar foco de tuberculose interno e verificar hipersensibilidade
tuberculínica.
►Tratam ento. Em indivíduos com boa imunidade, pode Figura 50.76 Doença de Behçet perianal e perineal caracterizada por
ocorrer a cura espontânea na fase inicial. 0 tratamento da tu ­ múltiplas ulcerações e pústulas. (Esta figura encontra-se reproduzida
berculose cutânea é semelhante ao da interna, indicando-se o em cores no Encarte.)
esquema tríplice: estreptomicina na dose diária de 1 g, por 30
dias, e administração da associação isoniazida (400 a 600 mg/
dia) e paraminossalicilato (10 a 20 g/dia), durante 6 meses. Frequentemente, apresenta uma colite que, também, ocasio­
na múltiplas úlceras de aparência e extensão variáveis localiza­
■ Infecções virais das em qualquer região do intestino grosso, às vezes envolvendo
► HERPES SIMPLES, MOLUSCO CONTAGIOSO. Abordados an­ até o íleo terminal.
teriormente neste capítulo.

■ Doenças ginecológicas ■ LEITURARECOMENDADA


A leucorreia provocada por infecções ginecológicas, como,
Aronoflf, JS, Korclitz, BI, Sohn, B, Ky, A, Cohen, FS. Anorcctal Crohns Discase.
por exemplo, as causadas pela candidíase, tricomoníase ou Surgical and Medicai Management. Diodrogs, 2000; 13:95-105.
gonococcíase, podem originar uma dermatite secundária pe­ Arruda-Alves, PR, Vieira, MJF, Habr-Gama, A. Exame proctológico - técnica.
rianal. Em: Laudana, AA. Gastrcntcrologia Clínica. São Paulo, Santos Co., 1990.
Bcck, DE & Wcxner, SD. Fundamentais of Anorcctal Surgcry. Philadelphia,
■ Lesões actínicas McGraw-HiU, 1999.
Bonardi, RA & Oliveira Jr, O. Doença de Crohn Anorrctopcrineal. Em: Habr-
São dermatites ocasionadas pela irradiação do períneo (Fi­ Gama, A. Doença Inflamatória Intestinal. Athcncu, São Paulo, 1997.
gura 50.75) durante o tratamento radioterápico de algumas Cintron, JR, Park, JJ, Orsay, CP et al. Rcpair of fistulas-in-ano using fibrin
neoplasias uterinas, prostáticas ou retais. adhcsivc: long-tcrm follow-up. Dis. Colon Rectum, 2000; 43:944-50.
Committcc on Trauma Research. Washington, D.C., National Academy Press,
1, 1985.
■ Doenças sistêmicas Cooncy, TG & Ward, TT. AIDS and medicai problcms. Philadelphia, W.B.
As enfermidades sistêmicas, tais como diabetes melito, ane­ Saundcrs, 1997.
mia ferropriva, doença de Behçet, doença de Hodgkin, e pa­ Cordeiro, F. Tratamento cirúrgico em regime ambulatorial da fissura anal crônica
por esfincterotomia lateral interna subeutânea. Tese de Mestrado, Unicamp,
cientes imunocomprometidos pela AIDS ou pós-transplantados Campinas, 1989.
também podem apresentar dermatites perianais. Corman, ML. Colon and Rcctal Surgcry, 6lh J.B. Philadelphia, Lippincott,
2008.
■ Doença deBehçet Cruz, CMC. Coloproctologia, Propedêutica Geral (I), Propedêutica Xosológica
(II) e Terapêutica (III). Rio de Janeiro, Rcvintcr, 1999-2000.
Caracteriza-se por pústulas cutâneas, artropatias e lesões Dcnis, J. Practical Proctology. Paris, Daniel-Brunct, 1994.
ulceradas múltiplas, localizadas nas regiões bucal, genital e no Cordon, PH & Nivatvongs, S. Principies and Practicc of Surgcry for thc Colon,
canal anal (Figura 50.76). Rcctum and Anus. St. Louis, QMP, 3n,i, 2004.
Capítulo50 / DoençasAnorretais 571
Kcighlcy, MRB & Williams, NS. Surgcry of thc Anus, Rcctum and Colon. Lon- Quilici, FA. Doenças Anorretais. São Paulo, Lemos, 2002.
don, W.B. Saunders, 2nJ, 2003. Quilici, FA, Cordeiro, F, Quilici, LCM. Doenças Anorretais. Em: Galvâo-Alves,
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14(1):43-5. LP, Savassi-Rocha, PR, Laccro F A, Conceição, SA. Tópicos cm Gastro­
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rologia Hoje e Amanhã. FAPEGE cd., 1996. p. 415-45.
Quilici, FA. Trauma Colorrctal. Em: Moreira, H. Coloproctologia - Atualidades. Wolf, BG, Flcshman, JW, Bcck, DE, Wcxncr, SD. ASCRS Tcxtbook of Colon
Fundo Byk, São Paulo, 1996. and Rcctal Surgcry. Ncw York, Springer, 2007.
PARTE VII
Fígado
Conduta Diagnostica em
Pacientes com Doença
Hepatobiliar
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle, Taiane Costa Marinho e
Leonardo Reuter Motta Gama

que se abrem nos sinusoides hepáticos. Revestindo os sinusoi-


■ IMPORTÂNCIA des, encontramos as células endoteliais típicas e as de Kupffer
O fígado ocupa posição anatômica estratégica, entre a cir­ (células do sistema reticuloendotelial, capazes de fagocitar 99%
culação portal e a sistêmica, assumindo importante papel nos das bactérias que chegam via sistema porta). Entre as células
endoteliais e os hepatócitos, existe o espaço de Disse, que apre­
sistemas de defesa orgânica e execução de diversas funções me-
senta ligação direta com a drenagem linfática. As substâncias
tabólicas. Pesa de 1.200 a 1.500 g e representa, em geral, cerca de
do plasma movimentam-se livremente pelo espaço de Disse
1/50 do peso corpóreo. Caracteristicamente, é perfundido por
devido aos grandes poros do revestimento endotelial.
sangue proveniente da veia porta, cujos ramos se prolongam
O fluxo de sangue que atravessa os sinusoides hepáticos vindo
até as veias hepáticas. Recebe ainda suprimento a partir da ar­
do sistema porta chega a 1.100 m l por minuto, e a 350 m l a par­
téria hepática, rica em 0 2, porém pobre em solutos. Esta dupla
tir da artéria hepática, com um total aproximado de 1.450 m l/
irrigação leva à ocorrência de um sistema típico de circulação,
min. A pressão na veia hepática é próxima de 0 mmHg, e a da
conferindo ao órgão: 1. heterogeneidade funcional, traduzida
veia porta, em média, 9 mmHg, demonstrando a baixa resistên­
por hepatócitos morfologicamente semelhantes, porém funcio­
cia ao fluxo de sangue, resistência esta que se altera nos casos
nalmente diversos, segundo se encontrem dispostos nas zonas
de cirrose hepática, consequência da fibrose dos sinusoides, ou,
periportais e perivenosas do ácino hepático; 2. elevada capa­ mesmo, bloqueio completo e destruição da arquitetura hepática,
cidade metabólica de produtos intermediários, gerando oferta elevando a pressão portal até 20 a 40 mmHg.
de solutos para órgãos distantes, como cérebro, coração, rins e Todas essas características conferem importância a esse vas­
músculos; 3. capacidade de participar da circulação êntero- to sistema de condução e distribuição responsável pelas trocas
hepática, através da qual secreta substâncias que, posteriormen­ de substâncias entre sangue e elementos hepáticos. A partir de
te, serão excretadas através da bile. seu início de distribuição peri-hilar e subcapsular, forma ramos
A execução funcional desses passos é realizada a partir de pe­ de primeira, segunda e terceira ordens, responsáveis também
quenas e múltiplas unidades funcionais e um sistema sofisticado pela manutenção de m icroarquitetura do fígado. Todo esse
de interfaces formando a microanatomia do fígado humano. sistema drena o sangue dos sinusoides hepáticos para vênulas
Toda essa arquitetura depende ainda de um sistema contínuo hepáticas terminais, sublobulares, as quais se reúnem forman­
de anastomoses entre lâminas formadas pelos hepatócitos e os do as veias hepáticas.
espaços sinusoidais, os quais guardam relação com a oferta de Por sua vez, a artéria hepática contribui com 25% do fluxo
sangue (artéria hepática e veia porta) e complexo sistema de hepático sanguíneo, voltado à adequada perfúsão do parênqui-
canais biliares de drenagem. ma hepático, encerrando sua distribuição através das arteríolas,
as quais terminam nos sinusoides ou nas veias hepáticas. Essa
distribuição também ocorre ao penetrar em dúctulos e duetos
■ ANAT0M0FISI0L0GIA D0 FÍGADONORMAL biliares, participando, assim, da perfúsão do sistema biliar.
Na dependência desses aspectos hemodinâmicos, definem-se
O lóbulo hepático (LH) é considerado unidade funcional bá­ topograficamente zonas, sendo a zona 1periporta (responsável
sica, sendo cilíndrico, com vários milímetros de comprimento pelo metabolismo energético, liberação de glicose e utilização
e 0,8 a 2 mm de diâmetro, constituído de lâminas hepatocelu- de aminoácidos, formação de ureia, colesterol e bile), a zona
lares em torno da veia central, que se ligam às veias hepáticas, 2 intermediária (maior captação de sais biliares e geração da
e estas à veia cava. Cada lâmina tem a espessura aproximada fração de bile canalicular dependente de sal biliar), e a zona
de duas células adjacentes, encontrando-se entre estas os cana- 3 perivenosa (captação de glicose e lipogênese, formação de
lículos biliares, que formam os duetos biliares terminais (que glutamina, cetogênese). Resumidamente, o fígado exerce pa­
se originam no septo entre os lóbulos hepáticos). Nos septos, pel no metabolismo: dos carboidratos (armazenar glicogênio,
encontramos pequenas vênulas portais e arteríolas hepáticas, converter galactose e frutose em glicose, manter níveis normais

575
576 Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar

de glicemia); da gordura (oxidaçào beta dos ácidos graxos para ------------------------------------- ▼------------------------------------
produção de colesterol, sendo 80% deste convertidos em sal bi- Quadro 51 2 Características da membrana hepatocelular
liar e fosfolipídios); da conversão de carboidratos e proteínas em
gordura; das proteínas (desaminação de aminoácidos, formação 1. C o m p o s t a p o r fina s p e líc u la s lip íd ic o -p r o te ic a s u n id a s p o r in te ra ç õ e s
de ureia para eliminação da amônia, produção de proteínas plas- n á o c o v a le n t e s

máticas); dos fatores de coagulação (fibrinogênio, protrombina, 2. E n v o lv e os h e p a tó c ito s , d e f in in d o lim ite s e n t r e c ito s o l e e s p a ç o
fator VII, globulina); além disso, tem função no armazenamento e x tra c e lu la r

de vitaminas (A, D e B12), na metabolização de drogas e hormô­ 3. C o m p o s t a p o r 5 4 % d e p ro te ín a s , 3 6 % d e lip íd io s e 1 0 % d e


c a r b o id ra to s
nios, e na excreção de bilirrubina (fígado no processo digestivo
e na excreção de substâncias pela bile) (Quadro 51.1). 4. M o s tr a -s e im p e r m e á v e l à p a s s a g e m d e m o lé c u la s h id ro s s o lú v e is

Além dessa típica organização vascular e celular, há outros 5. M o lé c u la s p ro te ic a s se v o lt a m à c a ta lis a ç à o d e re a ç õ e s v o lta d a s à


sín te s e d e ATP , lig a n d o -s e a o c lto e s q u e le to , à m a tr iz e x tra c e lu la r e às
componentes, os quais estão representados pelos hepatócitos e
c é lu la s a d ja c e n te s
suas organelas, duetos biliares e estroma de sustentação, todos
6. C e rc a d e 1 3 % d a su a s u p e rfíc ie é o c u p a d a p o r m ic r o v ilo s v o lt a d o s
inter-relacionados anatômica e funcionalmente. à s e c re ç ã o b ilia r, e n q u a n t o 5 0 % c o n t é m d e s m o s s o m o s , m o lé c u la s
Os hepatócitos são poligonais em sua forma e medem 20 a ju n c io n a is , e n q u a n t o 3 7 % in t e r a g e m c o m o s a n g u e e s e c re ta m
30 |im de diâmetro, arranjados em coluna de uma célula. Aque­ p ro te ín a s p la s m á tic a s
les que se situam próximo aos espaços portais distribuem-se de
forma contínua, interrompida apenas pela penetração dos vasos
ou duetos biliares que deixam o espaço portal. Seu citoplasma
está envolvido por uma membrana, denominada hepatocelu-
lar (Quadro 51.2). ----------------------- ▼-----------------------
São essas membranas que atuam no encerramento de or­ Quadro 51.3 Características das mitocôndrias
ganelas, tais como mitocôndrias (Quadro 51.3), retículos
1. O r g a n e la s re s p ira tó ria s q u e c o n s t it u e m 2 0 % d o v o lu m e
endoplasmáticos rugoso e liso, além do aparelho de Golgi c it o p la s m á t ic o d o s h e p a tó c ito s
(Quadro 51.4), lisossomos (Quadro 51.5), peroxissomos (Qua­
2. V a ria m d e fo rm a e t a m a n h o , e n c e r r a m d u a s m e m b r a n a s d ife re n te s
dro 51.6) e núcleo. e s tru tu ra l e f u n c io n a lm e n t e
Toda essa estrutura depende da integridade anatômica e 3. A t u a m c o n s e r v a n d o e n e r g ia , o x id a n d o A T P a p a r t ir d e a tu a ç à o d o
funcional da matriz extracelular, representando cerca de 5-10% o x ig ê n io
do peso do fígado normal, cerca de 30% da massa proteica 4. E n c e r r a m e n z im a s re s p o n s á v e is p e lo c ic lo d o á c id o tric a rb o x ílic o ,
total, constituída de moléculas de colágeno (Quadro 51.8), d e s ín te s e e o x id a ç à o d e á c id o s g ra x o s d a fo s fo rila çà o o x id a tiv a ,
enquanto os restantes 70% são constituídos de glicoproteínas g lu c o n e o g ê n e s e e c o n c e n t r a ç õ e s in tra c e lu la re s d e c á lc io

(Quadro 51.9). Atuam regulando e modulando funções dos he­ 5. E x e rc e m p a p e l n a re s p o s ta c e lu la r a e s tím u lo s a m b ie n t a is tó x ic o s

patócitos, ao promover coesão e indução de polarização entre


células, comunicações intercelulares e expressão gênica.

------------------------------------- ▼
▼ Quadro 51.4 Características dos retículos endoplasmáticos rugoso,
Quadro 51.1 Modelo do zoneamento metabólico liso e do aparelho de Golgi
(heterogeneidade funcional) do ácino hepático
Retículo endoplasmático rugoso (RER)
S ín te se , tra n s lo c a ç à o e d is p o n ib ilid a d e d e p ro te ín a s , d e líp id e s , d a
Zona periportal Zona perivenosa c o m p a r t im e n t a liz a ç à o d o n ú c le o , tr a n s p o r t e n u d e o c it o p la s m á t ic o e
lig a ç à o c o m lâ m in a s
Metabolismo oxidativo energético
O x id a ç à o d e á c id o s g ra x o s Retículo endoplasmático liso
C ic lo d o á c id o c ítric o S ín te se d e líq u id o s , d e to x ific a ç â o , a r m a z e n a m e n t o e lib e ra ç ã o d e C a ?'

C a d e ia re s p ira tó ria
Aparelho de Golgi
Metabolismo de carboidratos Glicólise R e c e b e m a te ria l d o RER, p ro ce ssa e fosforila g lic o p r o te ín a s , m a s a d ic io n a

G lic o n e o g é n e s e S ín te s e d e g lic o g ê n io a p a rtir d a líp id e s e g lic o p r o t e ín a s se cre to ra s , a t u a n d o n a g lic o s ila ç á o , su lfa ta ç ã o


d e tiro s in a , d iv a g e n s p ro te o lític a s , o r d e n a n d o lis o s s o m o s e m e m b r a n a s
S ín te se d e la c ta to g lic o s e
p la s m á tic a s
D e g r a d a ç ã o d o g lic o g ê n io a g lic o s e D e g r a d a ç ã o d o g lic o g ê n io a la c ta to

Metabolismo de lipídios Cetogênese


S ín te se d e c o le s te ro l S ín te s e d e á c id o s g ra x o s

Metabolismo de aminoácidos Detoxificaçâo da amônia


C o n v e r s ã o p a ra g lic o s e F o rm a ç ã o d e g lu t a m in a ---------------- T----------------
D e g r a d a ç ã o d e a m in o á c id o s M e t a b o lis m o d e x e n o b ió tic o s
Quadro 51.5 Características dos lisossomos
F o rm a ç ã o d e u re ia M o n o -o x ig e n a ç ã o
U s o d e g lu ta m in a F o rm a ç ã o d e á c id o m e r c a p t ú r ic o
1. D is p o n ib iliz a r p ro te ín a s p ro c e s s a d a s n o a p a re lh o d e G o lg i
G lic u r o n id a ç à o
Metabolismo de proteção 2. E n c e r r a m m a is d e 5 0 e n z im a s h id ro lític a s , e m P H 4 ,5 -5 ,0 e u m a b o m b a
P e ro x id a ç à o d e g lu t a t io n
d e t r a n s p o r t e a tiv o q u e e n c e rra H * -A T P a s e , m a n t e n d o a cid ifica d a s
C o n ju g a ç ã o d e g lu t a t io n
essas o rg a n e la s
Formação de bile 3. D e s e u f u n c io n a m e n t o , p a r t ic ip a m t a m b é m g r u p o s d e e n z im a s
E x c re ç ã o d e á c id o c ó lic o m a n o s e -6 -fo s fa t o , p a r t ic ip a n d o d o tr a n s p o r t e u n id ir e c io n a l d e
E x c re ç ã o d e b ilirru b in a h id ro la s e s
Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar 577

------------------------------------- ▼------------------------------------ As lesões que se estabelecem sobre essas estruturas consti-


Quadro 51.6 Características dos peroxissomos tuem-se na base das doenças hepatobiliares, as quais se tradu­
zem por manifestações agudas ou crônicas, síndromes colestá-
1. E n v o lv id o s p o r d u a s m e m b r a n a s , d o t a d a s d e 3 .0 0 0 a 4 .0 0 0 p o ro s , a ticas ou não diagnosticadas através de sintomas e sinais típicos,
e x te rn a c o n e c ta d a a o RER achados do exame físico, expressão laboratorial, ou através de
2. E n c e r r a m n u c lé o lo , m a tr iz fib ro sa e c o m p le x a d e D N A , p ro te ín a métodos de imagens e estudo histológico, os quais serão co­
r ib o n u d e a r , c ro m o c e n t r o s e c ro m a t in a p e r in u d e a r
mentados adiante.
3. A t u a m n a c o d ific a ç ã o e sín te se d e p ro te ín a s , n a d e p e n d ê n c ia d e R N A
r ib o s s ô m ic o e R N A tra n s fe rid o r e n a d u p lic a ç ã o d e c ro m a t in a s c o m o
p a r t e d a re p lic a ç ã o c e lu la r

4. T r a n s p o r t e n u d e o c it o p la s m a b id ir e c lo n a l, v a le n d o -s e d e e n z im a
■ SINTOMAS E SINAIS TÍPICOS DE
(G T P a s e )
DOENÇAS HEPATOBILIARES
Algumas doenças podem cursar assintomáticas durante lon­
gos anos. Este comportamento pode ser observado nas hepati­
tes crônicas ou na colangite esclerosante primária, e na cirrose
■ OUTRAS ESTRUTURAS biliar primária, bem como em afecções metabólicas, como he-
mocromatose hereditária, ou na doença de Wilson, mesmo nas
As células sinusoidais são representadas por: I. endoteliais, fases cirróticas. Outras vezes, expressam-se por quadro agudo,
fenestradas e responsáveis pela formação de uma barreira en­ traduzido por adinamia, náuseas, vômito, febre, calafrio e ma­
tre sinusoides e espaço de Disse; 2. células de Kupffer, de for­ nifestações sistêmicas típicas, tal como se observa nas hepatites
ma estelar, grandes, móveis e responsáveis por fagocitose de aguda viral e autoimune. Ascite, encefalopatia ou distúrbios
células mais velhas, tecidos tumorais, vírus, parasitos e bac­ da coagulação ocorrem nas fases descompensadas da cirrose,
térias; 3. lipócitos ou células de Ito, precursores inativos dos mas podem constituir sinais de instalação rápida nas necroses
fibroblastos, mais numerosos nas áreas pericentrais, encerram fulminantes do parênquima hepático, típicas da redução da re­
gotículas de gordura ricas em retículo endoplasmático rugo- serva funcional parenquimatosa. A avaliação desses pacientes
so. Contêm actina e miosina, produzem colágenos tipos I, III, obedece a uma sequência típica (Quadro 51.7).
IV e laminina, além de inibidores das metaloproteinases; 4.
células p it} linfócitos NK, atuantes contra células neoplásicas
ou proteínas virais. ■ ASPECTOS D0 EXAME FÍSICO
O espaço de Disse estende-se entre hepatócitos contíguos,
encerrando lipócitos, microvilos dos hepatócitos e plasma. A icterícia é um sinal importante na suspeita de doença he­
Além disso, contém fibras de reticulina, com diâmetro entre patobiliar. Pode evoluir silenciosamente ou acompanhada de
5 e 10 |im. Tem a função de condução da linfa formada no fí­ sinais típicos agudos, como náuseas, vômito e adinamia, como
gado a partir da filtração do plasma originário dos sinusoides. ocorre nas hepatites virais. Também pode ser encontrada na­
Continua-se pelo espaço de Mall, tendo seu livre fluxo facilita­ queles doentes que cursam com febre, calafrio e prurido, com­
do por fibras colágenas, as quais penetram junto com vênulas portamento observado nas obstruções de vias biliares intra- ou
e arteríolas na placa limitante. extra-hepáticas (Capítulo 52). A sua acentuação com rápida
O sistema de canais biliares intralobulares tem 1 a 2 jim progressão, quando acompanhada de aranhas vasculares, des-
de diâmetro, dispostos entre hepatócitos, os quais se ligam às
membranas de sua porção apical. Distribuem-se pelos lóbulos,
penetrando nos canais de Hering. Esses duetos são, portanto, -------------------------- ▼--------------------------
estruturas típicas voltadas para a secreção e condução da bile Quadro 51.7 Comportamento diante de suspeita de
no interior do parênquima até o intestino. São representados
doença hepatobiliar
pelos: I. colangíolos, revestidos por células epiteliais, com nú­
cleos ovais; 2. duetos interlobulares, com diâmetros entre 15 e I. Identificação de fatores de risco
80 |im, revestidos também por células epiteliais que repousam C a r a c t e r iz a ç ã o d o s a s p e c t o s d e m o g r á f ic o s (id a d e , s e x o e r a ç a )
sobre a membrana basal, e envolvidos por tecido colágeno; 3. Im p o r t a n t e , p o is d e t e rm in a d a s d o e n ç a s s â o m a is c o m u n s e n tre
os jo v e n s (h e p a tite s v ira is ), e n q u a n t o o u tra s e n t r e o s m a is id o s o s
duetos septais, também revestidos por células colunares epite­
(c â n c e r). P o r su a v e z , m u lh e r e s s â o m a is a fe ta d a s p o r p ro c e s s o s c o m o
liais e envolvidos por feixes colágenos.
h e p a tite a u t o im u n e e c irro s e b ilia r p rim á r ia , e n q u a n t o h o m e n s p e la
O sistema linfático, por sua vez, volta-se à drenagem de linfa h e m o c r o m a t o s e h e re d itá ria e c o la n g it e e s c le ro s a n te p rim á ria
dotada de elevado teor proteico, a partir do espaço perissinusoi- II. História familiar
dal de Disse e dos espaços portais, assumindo disposição periarte- E x t r e m a m e n t e i m p o r t a n t e n a c a ra c te riz a ç ã o d e d o e n ç a s h e rd a d a s ,
rial, alargando-se seus diâmetros quando em tomo de veias porta c o m o h e m o c r o m a t o s e h e re d itá ria , d o e n ç a d e W ils o n , d e fic iê n c ia d e
o c -1 -a n titrip s in a , fib ro s e cística e tc.
e tubulárias dos duetos biliares, até atingirem gânglios celíacos,
ligamento falciforme, gânglios paresternais, e aqueles dispostos III. Hábitos pessoais
N e ste s c aso s, se m o s t r a m im p o r t a n t e s as h istó ria s d e a lc o o lis m o ,
ao longo da gástrica esquerda e mediastinais posteriores. in g e s ta d e fá rm a c o s , u s o d e d r o g a s ilícitas p a re n te ra is ,
Além disso, o fígado tem ricas inervações parassimpática e c o m p o r t a m e n t o s e x u a l p ro m ís c u o , p a rc e iro s e x u a l p o r t a d o r d e
simpática. Essas últimas fibras formam um rico feixe perivascu- h e p a tite p e lo v íru s B o u C , tra n s fu s õ e s d e s a n g u e o u c iru rg ia p re té rita s

lar, envolvendo também células perissinusoidais e hepatócitos. IV. História de surtos ictéricos pregressos
Fibras nervosas parassimpáticas ou colinérgicas, por sua vez, P o d e in d ic a r h e p a tite d e e v o lu ç ã o in s id io s a , c o le d o c o litía s e (s e m p r e

inervam ramos extra-hepáticos e intra-hepáticos da artéria he- a c o m p a n h a d a d e d o r a b d o m in a l, fe b re e ca la frio s) o u o b s t r u ç ã o b ilia r


n o s caso s d e c iru rg ia b ilia r p ré v ia . Esse c o m p o r t a m e n t o p o d e t a m b é m
pática, veias porta e hepática, participando das junções rígidas ser o b s e r v a d o e m p a c ie n te s c o m c o la n g it e e s c le ro s a n te p rim á ria
dos duetos biliares.
578 Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar

Quadro 51.8 Testes bioquímicos úteis na avaliação de doenças hepatobiliares

Testes bioquím icos Valores norm ais Lesão hepatocelular Colestase

A s p a rta to a m in o tra n s fe ra s e (5 -4 0 U I//) > 8 x LS N < 3 x LSN


A la n in a -a m in o tr a n s fe r a s e (5 -3 5 U I//) > 1 0 x LS N < 3 x LSN
B ilirru b in a to ta l (0 ,5 -1 m g / d / ) > 1 5 xLSN > 20 x LSN
B ilirru b in a d ire ta (0 ,2 -0 ,4 m g / d / ) < 10 x LS N > 1 5 x LSN
Fo sfata se a lca lin a (3 5 -1 5 0 U I//) > 3 x LS N > 4 x LSN
G a m a g lu ta m iltra n s fe ra s e (1 0 -4 8 U I//) > 3 x LS N > 5 x LSN
A lb u m in a (3 ,5 -5 ,0 g / f l N e x c e to cirro s e N
T e m p o d e p r o t r o m b in a (1 2 -1 6 " ) A la r g a d o . N ã o re s p o n s iv o à v it a m in a K A la r g a d o . R e s p o n s iv o à v it a m in a K

Doenças m etabólicas Teste in id a l Teste de confirm ação Teste d efin itivo

H e m o c ro m a to s e F e rritin a sérica ín d ic e d e s a tu ra ç ã o ín d ic e F e / id a d e 2 2
> 400 pg// 55%
D e fic iê n c ia d e a -1 -A T > N ív e l s é ric o a - 1 - A T F e n ó t ip o PI B io p s ia h e p á tic a c o m g ló b u lo s
PAS ( x ) p o s itiv o s
D o e n ç a d e W ils o n C e r u lo p la s m in a C u U :C u S B io p s ia h e p á tic a
< 10 m g/d/ > 80 ng/24 h C u > 5 0 p g / g d e t e c id o s e co

LSN = limite superior normal; a-1 -A T = a-1-antitrlpslna; Cu ■ cobre; Fe ■ ferro; C u U = cobre urinário; CuS ■ cobre sérico; N » normal.

nutrição, eritema palmar, ginecomastia, atrofia testicular, perda caracterizarão as doenças autoimunes (Quadro 51.10), e o com­
de pelos corpóreos, petéquias, hematomas, edema periférico e portamento da coagulação sanguínea (Quadro 51.11) poderá
ascite, é mais observada na cirrose, em decorrência da redução ser indicativo de diferentes formas de doenças hepatobiliares,
da população de hepatócitos. participando juntamente com outras provas que quantificarão
Circulação colateral abdominal e torácica, ascite e edema, a reserva funcional do órgão (Quadro 51.12).
esplenomegalia e hemorroidas traduzem existência de hiper­
tensão portal. Outras manifestações físicas são a contratura de
Dupuytren e o aumento de volume das parótidas, identificados
em alcoólatras. Pele bronzeada, artropatia, testículo doloroso -------------------------------▼-------------------------------
e reduzido de volume, além de sinais de insuficiência cardíaca Quadro 51.9 Testes imune-sorológicos úteis na avaliação de
são identificados em doentes com hemocromatose hereditária. doenças hepatobiliares
Distúrbios da movimentação, tremores, espasticidade, rapidez,
disartria são próprios do envolvimento neurológico na doença Hepatites virais Aguda Crônica

de Wilson. Enfisema faz parte do quadro clínico de pacientes A A n t i- V H A Ig M -


com deficiência de a-l-antitripsina.
B A g H B s , A g H B e , A n t i-A g H B c I - A g H B s ( + ) D N A V H B (+ )
Icterícia, colúria, acolia, prurido cutâneo, febre e calafrio são Ig M e D N A V H B I I - A g H B s (+ ) A g H B e ( - )
identificados, sobretudo, nas colestases intra- ou extra-hepáti- DNAVHB (-)

cas. Também tais sinais são típicos de pacientes submetidos à III - A g H B s ( + ) A g H B e ( - )


D N A V H B (+ )
cirurgia hepatobiliar ou transplante de fígado, cursando com
D A g H B s ( + ), A n t i- V H D Ig M (+ ) A g H B s ( + ) A n t i - V H D Ig G (+ )
estenose de anastomose biliodigestiva, seguindo fenômenos de
C R N A V H C (+ ) R N A V H C (+ )
rejeição, ou naqueles com doença venoclusiva por transplante
E R N A V H E (+ ) R N A V H E Ig G (+ )
de medula óssea.
A palpação abdominal pode evidenciar hepato e/ou esple­ G R N A V H G (+ ) R N A V H G (+ )

nomegalia, como na forma hepatosplênica da esquistossomose. + « positivo; - ■ negativo.


Metástases hepáticas e hepatocarcinoma podem ser palpáveis,
assim como outras tumorações. O estudo da direção da cor­
rente sanguínea na circulação colateral no abdome permite
classificá-la. Ascite é identificável pelos sinais de macicez m ó­
------------------------------- ▼-------------------------------
vel e do piparote.
Quadro 51.10 Anticorpos nas doenças hepáticas autoimunes

Doenças h ep áticas autoim unes Autoanticorpos


■ EXPRESSÃO LABORATORIAL
H e p a t it e a u t o im u n e
Pacientes com lesão hepatocelular ou doença colestática po­ T ip o l A n t in ú c le o e / o u a n t im ú s c u lo liso
T i p o II A n t im ic r o s s o m a l f íg a d o -r im
dem ser avaliados através do emprego de múltiplos testes. Os
(A n t i -L K M -1 )
testes bioquímicos poderão expressar agressão hepatocelular e T i p o III A n t íg e n o s o lú v e l d e fíg a d o
a etiologia das doenças metabólicas (Quadro 51.8). C irro s e b ilia r p rim á ria A n t im it o c ô n d r ia
Testes imune-sorológicos definirão os marcadores das he­ C o la n g it e e s e c le ro s a n te p rim á ria p -A N C A (6 0 % )
patites virais (Quadro 51.9), anticorpos não órgãos específicos
Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar 579

■ MÉTODOS DE IMAGENS
Quadro 51.11 Comportamento da coagulação sanguínea
Nos últimos anos, diferentes métodos de imagens ganharam
S ín te s e r e d u z id a d o s fa to re s d e c o a g u la ç ã o
acesso na avaliação diagnóstica das doenças hepatobiliares,
M e n o r m a ssa d e h e p a tó c it o s f u n c io n a n te s
D e fic iê n c ia d e sín te s e o u a b s o rç ã o d e v it a m in a K (e s te a to rre ia ) sobretudo o ultrassom (US), com ou sem Doppler colorido;
S ín te s e r e d u z id a d o s in ib id o r e s d a c o a g u la ç ã o tomografia computadorizada (TC), com ou sem portogra-
P r o d u ç ã o d e p ro te ín a s a n o rm a is fia (TCPG); ressonância magnética (RM); colangiografia por
M a io r a tiv id a d e fib rin o lític a RM (CRM); colangiografia endoscópica retrógrada (CER) ou
C la r e a m e n t r o r e d u z id o d e a tiv a d o re s d e fib rln ó lis e a transparieto-hepática (CTPH); e mapeamento com enxofre
P r o p o r ç ã o r e d u z id a d e in ib id o r e s d e fib rin ó lis e
coloidal, marcado com tecnécio (9!>Tc) ou índio ( mIn) (Qua­
R e d u z id o d a r e a m e n t o h e p á tic o d e fa to re s a tiv a d o s d e c o a g u la ç à o
dro 51.13).
C o a g u la ç ã o in tra v a s c u la r d is s e m in a d a (m u ltifa to r ia l)
As Figuras 51.1 a 51.13 exemplificam o alcance dos métodos
A n o r m a lid a d e s p la q u e tá ria s
de imagem no diagnóstico das doenças hepatobiliares.

--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Quadro 51.12 Provas de quantificação da reserva funcional parenquimatosa

Sítio Substrato Função Técnica

C ito s o l G a la c to s e G a la c t o q u in a s e (F o s fo rila ç á o ) In je ç ã o e n d o v e n o s a p a ra s a tu ra ç ã o d o s is te m a e n z im á t ic o r e s p o n s á v e l p e la e lim in a ç ã o

M ic r o s s o m o A m in o p ir in a N -d e m e t ila ç ã o A m in o p ir in a m a rc a c o m ’* C a d m in is tr a d a V O . R e s u lta d o a c a d a 2 h , t r a d u z id o p e lo
(C it P 4 5 0 ) d e s a p a r e c im e n t o d a r a d io a t iv id a d e p la s m á tic a

C a fe ín a N -d e m e t ila ç ã o C o rr e la c io n a m -s e c le a ra n c e s s é ric o e d a saliva


In te rfe rê n c ia d a id a d e e f u m o c o m o re s u lta d o d a p ro v a
C o n c e n t r a ç õ e s sé ricas d o s m e ta b ó lit o s d e lid o c a ín a (M E G x ) r e d u z e m -s e na c irro s e
a vançada

A n t ip ir in a H id ro x ila ç á o / M e tila ç à o V id a m é d ia u ltra p a s s a 3 0 h n a c irro s e g ra v e

-------------------------------------- ▼--------------------------------------
Quadro 51.13 Métodos de imagens no estudo das doenças hepatobiliares

Doenças hepatobiliares A valiação in icial A valiação com plem entar (se necessária)

C o le s ta s e U S - d e f in in d o á rv o re b ilia r S e d ila ta d o s o u le sã o s u s p e ita d a á rv o re b ilia r o u h e p á tic a


T C - d o e n ç a p a r e n q u im a to s a o u m a ssa C R M p a ra d e fin iç ã o d a s e d e d a le sã o
C T P H o u C ER , se n e c e s s á rio a tu a ç ã o t e ra p ê u tic a

D o e n ç a p a r e n q u im a to s a US D o p p le r c o lo r id o o u R M , se a n o r m a lid a d e v a s c u la r é s u s p e ita d a

C a r a c te riz a ç ã o d e m a ssa h e p á tic a

M a lig n a (?) U S o u T C - c o m o u s e m b io p s ia d ir ig id a T C P G o u RM
B e n ig n a (?) U S o u T C - e ritró c ito s m a r c a d o s c o m °°TC U S in t r a o p e r a t ó r io
U S o u T C - c o m a s p ira ç ã o R M o u a n g io g r a fia
M a p e a m e n t o c o m g á lio o u c o m e ritró c ito s m a r c a d o s c o m ' " I n

Figura 51.1 Ultrassom evidenciando volumosa lesão isoecogênica no Figura 51.2 Tomografia computadorizada evidenciando, na fase sem
lobo hepático direito (setas) promovendo distorção e compressão das injeção de contraste intravenoso, volumosa lesão hipodensa no lobo
veias hepáticas média e direita. hepático direito, segmento VIII.
Figura 51.6 Ressonância magnética com imagem ponderada em T I,
axial, evidenciando discreto hipossinal da volumosa lesão hepática de
Figura 51.3 Tomografia computadorizada na fase pós-injeção de con­ lobo direito definida ao ultrassom e à tomografia computadorizada.
traste intravenoso, fase precoce (arterial), demonstrando impregnação
intensa e homogênea de volumosa lesáo hepática, exceto a área da
cicatriz central. Mesmo caso da Figura 51.2.

Figura 51.4 Tomografia computadorizada na fase pós-injeçáo de con­ Figura 51.7 Ressonância magnética com imagem ponderada em
traste intravenoso, fase venosa portal, demonstrando a lesáo do lobo T2, axial, evidenciando discreto sinal da lesáo hepática, porém com
direito já com menor impregnação do que o parênquima hepático hipersinal da cicatriz central. A lesáo estabelece contato e comprime
circundante. Mesmo caso da Figura 51.3. as veias hepáticas média e direita.

Figura 51.5 Tomografia computadorizada, na fase tardia pós-injeçáo Figura 51.8 Angiorressonância magnética axial após injeção intrave-
de contraste intravenoso, demonstrando que a lesáo se tornou prati­ nosa do gadolínio, evidenciando lesáo com sinal semelhante ao do
camente isodensa em relação ao parênquima hepático circundante. fígado circundante, a qual está em contato com as veias hepáticas e
Mesmo caso anterior. a cava inferior.
Figura 51.9 Angiorressonância magnética axial após injeção intra- Figura 51.12 Ressonância magnética com sequência ponderada em
venosa do gadolínío com sinal semelhante ao do fígado circundan­ TI (s p in e c h o ), com imagem em plano axial. A lesão do lobo esquerdo
te, mostrando leve compressão sobre as veias hepática direita e cava apresenta-se hipointensa em relação ao parênquima hepático circun­
inferior. dante, com ligeira impressão sobre ramo portal esquerdo.

Figura 51.10 Tomografia computadorizada do fígado, pré-injeção de


contraste intravenoso, mostrando lesão hipodensa no lobo esquerdo,
com discreta compressão do ramo esquerdo da veia porta.

Figura 51.13 Ressonância magnética com sequência ponderada em


TI (s p in e c h o ), com imagem em plano sagital. Lesão hipointensa no
lobo esquerdo no segmento lateral II.

Figura 51.11 Tomografia computadorizada do fígado pós-injeção de


contraste intravenoso, não se promovendo grande impregnação da lesão
presente no lobo esquerdo, a qual mantém praticamente as mesmas
características do parênquima adjacente.
582 Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar

• LESÕES HEPÁTICAS FOCAIS ■ Lesões benignas


Expressam-se, em geral, sob forma de nódulos sólidos ou Entre estas se incluem, sobretudo, cistos simples, hemangio-
de aspecto cístico. Constituem achado frequente, sobretu­ ma cavernoso, hiperplasia nodular focal, adenoma hepatocelu-
do a partir do emprego fácil e generalizado do ultrassom e lar, pseudotumor inflamatório. Características clínicas e de ima­
da tomografia computadorizada de fígado. A caracterização gens são vistas, respectivamente, nos Quadros 51.14 e 51.15.
dessas lesões e o diagnóstico histológico preciso, na maioria
das vezes, têm sido possíveis associando-se outros métodos
de imagem, tais como ressonância magnética, angiografia de
■ Lesões malignas
tronco celíaco e, sobretudo, biopsia percutânea dirigida. São Entre estas se incluem, sobretudo, o carcinoma hepatocelu-
representadas predom inantem ente por lesões benignas ou lar, o colangiocarcinoma e as lesões metastáticas. Características
malignas, as quais merecerão, neste capítulo, considerações clínicas e de imagens são mostradas, respectivamente, nos Qua­
em separado. dros 51.16 e 51.17, e exemplos, nas Figuras 51.14 e 51.15.

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Quadro 51.14 Características clínicas das lesões hepáticas focais benignas

Lesões hepáticas C aracterísticas d ín ic a s

C is to s s im p le s In c id e m e m t o r n o d e 2 - 7 % d a p o p u la ç ã o , s e n d o is o la d o s o u m ú lt ip lo s , a s s u m in d o d iâ m e t r o s v a riá v e is . S in to m a s típ ic o s
sã o d o r s u rd a n o h ip o c ô n d r io d ir e it o e e p ig á s trio , e s e n s a ç ã o d e m a ssa a b d o m in a l p a lp á v e l

H e m a n g io m a c a v e r n o s o In c id e e m t o r n o d e 5 - 7 % d a p o p u la ç ã o , s e n d o is o la d o o u m ú lt ip lo , c o m d iâ m e t r o v a riá v e l. E v o lu ç ã o , e m g e ra l,
a s s in to m á tic a , c o n s t it u in d o , na m a io ria d a s v e z e s , a c h a d o in c id e n ta l. S u a p re s e n ç a p o d e t r a d u z ir -s e p e la q u e ix a d e
d o r n o h ip o c ô n d r io d ir e it o e e p ig á s trio . F e b re e h ip o te n s ã o a rte ria l c o m s u d o re s e p o d e m ser id e n tific a d a s c a s o exista
r u p t u r a in tra p e rito n e a l. M a is c o m u m e n t r e p a c ie n te s d o se x o f e m in in o

H ip e rp la s ia n o d u la r foca l T r a t a -s e d o t u m o r b e n ig n o m a is fr e q u e n t e m e n t e id e n tific a d o n o h o m e m . S u r g e e m c o n s e q u ê n c ia d e u m a m a lfo r m a ç ã o


v a s c u la r, a p r e s e n t a n d o -s e c o m o le sã o só lid a , c o m lim ite s e m g e ra l p re c is o s , d e lo c a liz a ç ã o s u b c a p s u la r. P o d e a s s u m ir
e v o lu ç ã o a s s in to m á tic a o u ser d ia g n o s t ic a d a a p ó s q u e ix a d e d o r s u rd a n o h ip o c ô n d r io d ir e ito o u e p ig á s trio , s e n d o o u
n ã o p a lp á v e l a o e x a m e físico. M a is fr e q u e n t e e n tre m u lh e r e s

A d e n o m a h e p a to c e lu la r M a is fr e q u e n t e e n tre m u lh e r e s q u e u s a ra m o u a in d a u s a m a n t ic o n c e p c io n a l o ra l. P o d e fa ze r p a rte d o q u a d r o d e
g lic o g é n e s e t i p o I, o u id e n tific a d o n a q u e le s e m u s o d e e s te ro id e s a n d r o g é n ic o s . D o t a d o d e p o t e n c ia l te n d ê n c ia à
tra n s fo r m a ç ã o m a lig n a , o q u e re fo rça a in d ic a ç ã o d o t r a t a m e n t o c ir ú r g ic o

P s e u d o t u m o r in fla m a tó r io F o rm a rara d e a p re s e n ta ç ã o d e le sã o h e p á tic a focal, d e p a t o g ê n e s e d e s c o n h e c id a . M a is c o m u m e n t r e m u lh e re s ,


e x t e r io r iz a n d o -s e p e la p re s e n ç a d e d o r a b d o m in a l, a c o m p a n h a d a d e fe b re . A b io p s ia p e r c u t â n e a d ifu s a a d e fin e b e m , e
a te ra p ê u t ic a e n v o lv e a n tib io t ic o t e r a p ia e, e x c e p c io n a lm e n t e , a re m o ç ã o c irú rg ic a

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Quadro 51.15 Características aos métodos de imagens das lesões hepáticas focais benignas

C is to s sim p les * U S - N ó d u lo a n e c o ic o o u h ip o e c o ic o
T C - C o n t o r n o s sã o b e m d e fin id o s . T e m v a lo r d e a te n u a ç ã o b a ix o ig u a l a o d a á g u a (0 -1 0 U H )
N ã o so fre im p r e g n a ç ã o d o c o n tra s te e n d o v e n o s o
R M - A p r e s e n ta -s e h ip o in t e n s o e m T1 e h ip e r in t e n s o e h o m o g ê n e o e m T 2 . N ã o sofre re a lc e p ó s -in je ç ã o d e g a d o lín io

H e m a n g io m a c a v e rn o s o * U S - E m g e ra l, a p re s e n ta -s e h ip e r e c o g ê n ic o , m a s p o d e ser h ip o o u is o e c o g è n ic o , c o m fo rm a re g u la r o u lo b u la d a
T C - H ip o d e n s o e m re la ç ã o a o fíg a d o n o r m a l. P ó s -in je ç ã o d o c o n tra s te e n d o v e n o s o so fre im p r e g n a ç ã o p e rifé ric a , c o m
re a lc e p ro g r e s s iv o e m d ir e ç ã o a o c e n t ro d a lesão. P o d e se id e n tific a r fib ro s e c e n tra l
R M - C a r a c te r is tic a m e n te h ip o in t e n s o e m T 1 e h ip e r in t e n s o e m T 2 , m e s m o n o s t e m p o s d e e c o ( T E ) lo n g o

H ip e rp la s ia n o d u la r focal U S - E m g e ra l, a p re s e n ta -s e iso o u d is c r e ta m e n t e h ip o e c o ic o , s e m o u c o m c ic a triz c e n tra l


(F ig u ra s 51.1 a 5 1 .9 ) T C - L e s ã o c o m m a r g e n s b e m d e lim ita d a s , s o fr e n d o im p r e g n a ç á io in te n s a n a fase a rte ria l, c o m d e s a p a r e c im e n t o
(la v a g e m ) r á p id o d o c o n tra s te , p e r m a n e c e n d o t a r d ia m e n t e (fase d e e q u ilíb r io ) a c ic a triz c e n tra l
R M - Le sã o h ip e rin te n s a o u is o in te n s a e m T 1 e c o m d is c r e to h ip e rs in a l e m T 2 , c o m c ic a triz c e n tra l e x ib in d o s inal
h ip e r in t e n s o

A d e n o m a h e p a to c e lu la r " U S - Le s ã o h e t e r o g ê n e a o u h o m o g ê n e a c o m á re a s c e n tra is o u p e rifé rica s d e h e m o r r a g ia o u in fa rto


T C - N ó d u lo h o m o g ê n e o , iso o u h ip o a t e n u a n te na fase p ré , t o r n a n d o -s e h ip e r in t e n s o , c o m o u s e m h a lo p e rifé ric o , na
fase p ó s -in je ç ã o d e c o n tra s te e n d o v e n o s o
R M - S in a l v a riá v e l, d e p e n d e n d o d a p re s e n ç a d e g o r d u r a o u d e f o c o s d e h e m o r r a g ia . P ó s -in je ç ã o d e g a d o lín io , t e m o
m e s m o c o m p o r t a m e n t o d e s c r ito n a T C

P s e u d o t u m o r in fla m a tó rio * U S - Le s ã o b e m d e lim it a d a , h ip o e c o ic a

"Serão comentados com fotos nos capítulos correspondentes.


US: ultrassom: TC: tomografia computadorizada: RM: ressonância magnética.
Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar 583
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Quadro 51.16 Características clínicas das lesões hepáticas focais malignas

C a r d n o m a h e p a to c e lu la r P e q u e n o t u m o r { < 2 ,0 c m ) - e m g e ra l, e v o lu i a s s in to m á tic o , s e n d o m a is f r e q u e n t e m e n t e d ia g n o s t ic a d o
d u r a n t e se u r a s tre a m e n to , ra s t r e a m e n t o a tra v é s d e u ltra s s o m o u t o m o g r a fia c o m p u t a d o r iz a d a d e p a c ie n te s
d r r ó t ic o s
G r a n d e t u m o r (> 3 ,0 -4 ,0 c m ). P r e d o m in a e m p a c ie n te s d o s e x o m a s c u lin o a lc o ó la tra s , f u m a n t e s e, s o b r e t u d o ,
n o s p o r t a d o r e s d o s v íru s B o u C d a h e p a tite . T r a d u z -s e c lin ic a m e n t e p e lo a p a r e c im e n t o d e d o r c o n t ín u a e m
a b d o m e s u p e rio r, a n o re x ia , a ste n ia e e m a g r e c im e n t o . A sc ite , h e m o r r a g ia d ig e s tiv a a lta e icte ríc ia p o d e m ser
o b s e rv a d a s

C o la n g io c a r c in o m a N ã o é m u it o fre q u e n t e . S e g u n d o su a lo c a liz a ç ã o , d iv id e -s e e m in t r a -h e p á t ic o o u p e rifé ric o e h ila r o u d is ta i. A


e x p re s s ã o c lín ic a d e p e n d e d e su a e x p re s s ã o to p o g r á fic a , v a r ia n d o d e s d e d o r a b d o m in a l fo rte , e m c ó lic a o u
s u rd a , e fe b re , n o s tip o s h ila r e d ista i, p o r ic te ríc ia , c o lú ria , a co lia fecal e sinais d e c o la n g it e . M a is c o m u m e n tre
5 0 e 70 a n o s . P re s e n te , s o b r e t u d o , e m p o r t a d o r e s d e c o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á ria , fib ro s e h e p á tic a , d o e n ç a
d e C a ro li, c is to d e c o lé d o c o , f íg a d o p o lic ís tic o , o u n o s p o r t a d o r e s d e c o m p le x o d e v o n M e y e n b u r g

M e tá s ta s e s O b s e r v a d a s , s o b r e t u d o , n o c â n c e r c o lo rre ta l. M e tá s ta s e s s in c rô n ic a s o c o r r e m e m 1 5 -3 0 % , e essa m e s m a
fre q u ê n c ia é o b s e r v a d a a o fim d e 3 a n o s d a re s se cç â o d o t u m o r p rim á r io . O s caso s n ã o tra ta d o s s o b r e v iv e m
a p e n a s 6 -1 8 m e s e s e 2 5 m e s e s c o m le sã o so litá ria . H e p a t e c t o m ia p o d e ser re a liz a d a e m a p e n a s 1 0 % d o s casos,
c o m m o r t a lid a d e e m t o r n o d e 1 -2 % , c o m s ig n ific a tiv a p r o p o r ç ã o d e le s p e r m a n e c e n d o livres d a d o e n ç a p o r
m a is d e 2 0 a n o s . P r e d o m in a m n o s h o m e n s , q u e se q u e ix a m d e d o r n o a b d o m e s u p e rio r o u p o d e m c u rs a r c o m
m a ssa p a lp á v e l. Ic te rícia e sin ais d e Irre s s e c a b ilid a d e p o d e m ser o b e r v a d o s . Essas m e s m a s c a ra c te rís tic a s sã o
o b s e r v a d a s n o s t u m o r e s d e p â n c re a s , d e p u lm ã o , n e u r o e n d ó c r ln o s e G IS T

T
Quadro 51.17 Características aos métodos de imagens das lesões hepáticas focais malignas

C a r d n o m a h e p a to c e lu la r P e q u e n o t u m o r (< 2 ,0 c m ) - p r e d o m in a irrig a ç ã o v e n o s a e, p o r v e z e s , a rte ria l


(F ig u r a s 5 1 .1 0 a 5 1 .1 5 ) U S - L e s ã o h ip e re c o ic a (d ife re n c ia r d o h e m a n g io m a ) o u h ip o e c o ic a , c o m o r i g e m h a lo p e rifé ric a , p re s e n te ,
s o b r e t u d o , e m fíg a d o d r r ó t ic o . R e p re s e n ta d o p o r n ó d u lo s o litá rio e, m e n o s fr e q u e n t e m e n t e , m ú lt ip lo
T C - Le sã o h ip o d e n s a . A l g u n s sã o h lp o v a s c u la re s

C a ra c te rís tic a s %

D e fe ito d e p e rfu s ã o

P re s e n te 64
A u s e n te 36

R M - C a ra c te rís tic a s %

T I (A ) T 2 (B ) 13
T 1 ( A ) T 2 (N D ) 44
T I (B ) T 2 (A ) 6
T I ( N D ) T 2 (A ) 6
T 1 (A )T 2 (H ) 0
T I ( l ) T 2 (N D ) 31

C o la n g io c a r c in o m a " U S - L e s ã o h ip o e c o ic a ú n ic a o u m u ltif o c a l (p e rifé ric a ). M e s m o a s p e c t o n o t u m o r d is ta i o u n o hilar, p o d e n d o


a s s u m ir a s p e c t o c ís tic o o u p o lip o id e in tr a d u c ta l. A tro fia lo b a r o u s e g m e n ta r. D ila ta ç á o d e via s b ilia re s a
m o n ta n te
T C - Le sã o d e n s a , c o m b a ix a c a p ta ç ã o p ó s -c o n t r a s t e e in te n s a re a ç ã o d e s m o p lá s ic a e m t o r n o d o t u m o r .
D e m a is c a ra c te rística s s e m e lh a n te s às d o U S
R M - L e s ã o h ip o in t e n s a e h ip o c a p t a n t e d o c o n tra s te , s o fr e n d o im p r e g n a ç ã o ta rd ia . D e m a is c a ra c te rística s
s e m e lh a n te s às d o U S e d a T C

M e tá s ta s e s " U S - L e sõ e s h ip o e c o ic a s e m a lv o , h ip o v a s c u la r e s e m 5 0 % d o s p a c ie n te s . Ú n ic a s o u m ú ltip la s
T C - L e sõ e s h ip o d e n s a s c o m im p r e g n a ç ã o p e rifé ric a p ó s -in je ç ã o d e c o n tra s te , s e n d o e ste e lim in a d o
r a p id a m e n t e . P o d e m c o m p r i m i r va so s. S e n s ib ilid a d e d ia g n ó s t ic a a u m e n t a c o m p o rto g ra fia
R M - L e sõ e s h ip o in t e n s a s e m T 1 , c o m m o d e r a d o h ip e rs in a l e m T 2 . P ro c u ra r d ife re n c ia r d e o u tra s lesões;
q u a n d o m u it o v a s c u la riz a d a s , s ã o m a is b e m d e fin id a s a p ó s in je ç ã o d e g a d o lín io

"Serão comentados com fotos nos capítulos correspondentes.


A = hiperintenso; 8 = hipointenso; ND = não definido.
584 Capítulo 51 / Conduta Diagnóstico em Pacientes com Doença Hepatobiliar

Figura 51.14 Fase parenquimatosa da arteriografia hepática pós- Figura 51.15 Fase parenquimatosa da arteriografia hepática pós-
injeçáo de lipiodol, evidenciando, pelo menos, quatro grandes nódulos injeçáo de lipiodol, evidenciando um grande e múltiplos pequenos
tumorais hipervasculares, típicos do carcinoma hepatocelular. nódulos hipervasculares, típicos de carcinoma hepatocelular.

e C da hepatite. Este último vírus pode ser ainda caracteriza­


■ ESTUDO HISTOLÓGICO do pela técnica de PCR. Marcadores específicos, como CEA
O valor do estudo histológico na investigação das doenças e alfafetoproteína, são úteis para a caracterização, respectiva­
hepatobiliares encontra-se bem definido. Essa caracterização mente, de carcinoma metastático e hepatocelular, assim como
realiza-se através da análise de um pequeno fragmento de fíga­ testes de biologia molecular, identificando genes hipoexpressos
do, obtido a partir de biopsia hepática empregando-se agulha. ou hiperexpressos.
O espécime obtido representa aproximadamente 1:50.000 do
volume total do órgão, o que pode representar um risco poten­
cial de erro de amostragem, menos importante nos casos em ■ LEITURA RECOMENDADA
que ocorre comprometimento parenquimatoso difuso (hepatite
Baker, AL. Livcr chcmistry. Em: Kaplowitz, N. Liver and Biliary Disease, 2th
aguda ou crônica viral ou não, e/ou cirrose hepática). cd., Baltimore, Williams & Wilkins, 1996.
Há limitações do procedimento, como: 1. obtenção de biop­ Bodily, KO & Fitz, G. Approach to thc patients with suspcctcd livcr disease.
sia subcapsular, sem representatividade da profundidade do Em: Grcndcll, JH, McQuaid, KR, Fricdman, SL. Current Diagnosis and
parênquima; 2. possibilidade de punção de macronódulo, o Treatment in Gastroenterology. Londres, Prcnticc-Hall International Inc.,
lst cd., 1995.
qual exibe estrutura similar à do fígado normal, dificultando o
Fan, GG & Stcer, CJ. Cellular biology of thc normal livcr. Em: Bacon, BR,
diagnóstico de cirrose (esse inconveniente é evitado desde que 0'Grady, JG, Di Bisccglic, AM, Lake, JR (cd.). Comprehensive Clinicai He­
a punção seja realizada sob visão laparoscópica); 3. punção do patology. Londres, Mosby Elsevicr, p. 17, 2006.
tecido fibrótico denso, gerando espécime de pequena extensão Fricdman, LS, M artin, P, Munoz, SJ. Livcr function tests and thc objectivc
e pouco representativo; 4. biopsia obtida das cercanias de uma evaluation of thc patients with livcr disease. Em: Zakim, D & Boycr, TD.
Hepatology. A Texíbook o f Liver Disease, 3rd cd., Philaddphia, Saundcrs
lesão neoplásica; 5. limitação eventual na separação entre coles-
Co., 1996.
tase intra- e extra-hepática; 6. análise de material mal preparado Howdle, PD. History and physical examinations. Em: 0 ‘Grady, JG, Di Bisccglic,
(artefatos) e de pequeno tamanho. AM, Lakc, JR (cd.). Comprehensive Clinicai Hepatology. Londres, Mosby
Além disso, o hepatologista deve se lembrar de que nem Elsevicr, p. 61, 2006.
sempre o estudo histológico do fígado leva ao diagnóstico Imperial, JC & Kccffc, EB. Laboratory tests. Em: 0 ’Grady, JG, Di Bisccglic,
AM, Lakc, JR (cd.). Comprehensive Clinicai Hepatology. Londres, Mosby
completo. Para evitar esse inconveniente, recomenda-se que Elsevicr, p. 73,2006.
os aspectos morfológicos sejam avaliados através de múltiplas Katz, N & Jungcrmann, K. Mctabolic hctcrogcncity of thc livcr. Em: Tavoloni,
colorações, não se restringindo apenas ao uso da hematoxilina- N & Bcrk, PD. Hepatic Transport and Bile Secretion. Nova York, Ravcn
eosina (HE). Ampliando-se essa exigência na rotina, devem-se Press, lst cd., 1993.
incluir também colorações como Masson, para avaliar fibras de Klatskin, G & Conn, HO. The normal livcr. Em: Klatskin, G & Conn, HO. His-
topathology of the Liver. Nova York, Oxford Univcrsity Press, 1993.
reticulina, e PAS com diástase, visando a identificar glóbulos Luxon, BA. Functions of thc livcr. Em: Bacon, BR, 0 ’Grady, JG, Di Bisccglic,
intracitoplasmáticos em hepatócitos periportais, como se ob­ AM, Lakc, JR (cd.). Comprehensive Clinicai Hepatology. Londres, Mosby
serva na síndrome de deficiência de a-l-antitripsina. Depen­ Elsevicr, p. 43,2006.
dendo de cada caso, usa-se o azul-da-prússia (Gomori) para Portmann, BC. Dcvclopmcnt and anatomy of thc normal livcr. Em: 0 ’Grady,
identificação de hemossiderina, o Perls para evidenciar depósito JG, Di Bisccglic, AM, Lakc, JR (cd.). Comprehensive Clinicai Hepatology.
Londres, Mosby Elsevicr, p. 1,2006.
de ferro, rodanina para caracterização da presença de cobre, e Shcrlock, S & Doolcy, J. Asscssmcnt of livcr function. Em: Shcrlock, S & Doolcy,
vermelho-sírio para tecido colágeno. Métodos de hibridização J. Diseases o f the Liver and Biliary System, lOth cd., Oxford, Blackwcll Sci­
in situ são utilizados para citomegalovírus e para os vírus B, D ence, 1997.
A Icterícia como Síndrome:
Não Colestática e Colestática
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Leonardo ReuterMotta Gama,
Celso Marques Raposo Júnior, Cristiane Maria de Freitas Ribeiro,
Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Fábio Rosa Moraes,
Raul Carlos Wahle

Icterícia significa coloração amarelada de pele e mucosas, con­ P-450. Ela se liga fortemente à albumina plasmática, a fim de
sequente ao acúmulo de bilirrubina no soro e tecidos. Repre­ ser transportada para o polo sinusoidal do hepatócito, e a liga­
senta sinal clínico de extrema importância no diagnóstico e ção é do tipo covalente, ocorrendo em dois locais, sendo um
estadiamento das doenças hepatobiliares, podendo ocorrer de alta e outro de baixa afinidade (Figura 52.1).
também como consequência de doenças extrínsecas a essas Alterações na forma e função dos eritrócitos e situações que
estruturas. Manifesta-se clinicamente quando os níveis séri- interferem no seu transporte levam a um aumento da oferta do
cos de bilirrubina excedem 2,5 mg/d^, no adulto, e 8 a 9 mg/ pigmento, resultando em hiperbilirrubinemia indireta. Assim,
d f, no neonato. a hemólise congênita ou adquirida, considerada como principal
As síndromes ictéricas podem estar ou não associadas à co- causa de icterícia não colestática, as deficiências nutricionais
lestase. As não colestáticas são causadas pela maior oferta de que cursam com hipoalbuminemia, drogas que competem com
bilirrubina ao fígado, por deficiência de captação pelo hepa- a bilirrubina no seu local de menor afinidade de ligação com a
tócito, ou por defeito no seu transporte extracelular e/ou na albumina, as síndromes que determinam baixo débito cardíaco
conjugação, caracterizando-se por hiperbilirrubinemia indireta.
De forma inversa, quando ocorre por déficit na excreção hepa-
tocitária, existe predomínio da bilirrubina direta.
A colestase, por sua vez, consiste em uma alteração da for­ H e m o p r o t e ín a s d o s e ritró c ito s O u t r a s h e m ip r o t e ín a s
mação e excreção da bile, alteração que pode estar localizada (± 7 0 % ) (F íg a d o ± 3 0 % )

desde o hepatócito até a ampola de Vater. Compreende a gran­


de maioria das síndromes ictéricas, e há importância na reali­
zação precoce do diagnóstico etiológico e introdução da tera­
pêutica adequada. A colestase é classificada em intra-hepática I
e extra-hepática. B ilirru b in a in d ire ta

i
■ ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS L ig a -s e à a lb u m in a

I
■ Icterícia não colestática C o m p le x o c o n d u z i d o n o p la s m a

O acúmulo de bilirrubina no plasma e tecidos resulta de


alteração ou bloqueio nos processos de metabolização, que in­ H e p a t ó c it o s e m d ife re n te s p assos
cluem as fases de formação, transporte, captação, conjugação
e excreção do pigmento. Assim, ao final de 120 dias, as he-
mácias senis são fagocitadas pelo sistema reticuloendotelial, 1. P e rm e a ç ã o e tr a n s p o r t e t r a n s m e m b ra n a v a le n d o -s e d e u m â n io n
principalmente do baço, onde a hemoglobina é degradada a o r g â n ic o tr a n s fo r m a d o r ;

heme, monóxido de carbono e bilirrubina sob ação da enzima 2. D if u s ã o p e lo c ito s o l p o r lig a n d in a s c o n ju g a n d o -s e n o re tíc u lo
hemioxigenase. Essa bilirrubina formada é dita indireta ou não e n d o p la s m á t ic o v a le n d o -s e d a e n z im a g lic u ro n iltra n s fe ra s e ;
conjugada e tem como propriedades ser lipossolúvel, atraves­ 3. F o rm a -s e e n t ã o m o n o e d ig lic u r o n íd e o s d e b ilir r u b in a s e x p o r t a d o s
sar facilmente as membranas lipoproteicas (em particular, a p e lo c a n a l biliar, v a le n d o -s e d e u m a p ro t e ín a tr a n s p o r t a d o r a M R P 2
barreira hematoliquórica) e não ser excretada pelos rins. A sua (d e fic iê n c ia r e s p o n s á v e l p e la s ín d r o m e d e D u b in -J o h n s o n ) .
produção diária é de cerca de 300 mg, sendo 70 a 75% prove­
nientes do sistema reticuloendotelial e os restantes 25 a 30% do Figura 52.1 Formação, metabolismo e excreção da bilirrubina (Lidofsky,
heme hepático e de hemoproteínas, sobretudo do citocromo 2000) .

585
586 C a p ítu lo 5 2 / A Icte rícia c o m o S ín d ro m e : N ã o C o le stá tica e C o le stá tica

e a nutrição parenteral prolongada no recém-nato, todas são ------------------------------ ▼------------------------------


condições em que ocorre icterícia com predomínio da fração Q u a d ro 52.1 Icterícia nâo colestática consequente à maior
não conjugada (Quadro 52.1). Também defeitos hereditários, oferta de bilirrubina
como síndromes de Lucey-Driscoll, Crigler-Najjar tipos I e II
e de Gilbert, determinam icterícia com predomínio da fração I - Hemólise
indireta por ausência ou deficiência da atividade da UDP- 1. C o n g ê n ita s
glicuroniltransferase (Quadro 52.2). A icterícia fisiológica do A n o r m a lid a d e s d a m e m b r a n a e ritro c itd ria
neonato, por sua vez, relaciona-se com a imaturidade do siste­ — M ic ro e s fe ro c ito s e h e re d itá ria
— E lip to c ito s e h e re d itá ria
ma imunoenzimático do fígado e deficiência da ligandina. Algu­
— E s to m a to c ito s e h e re d itá ria
mas doenças metabólicas traduzem-se por hiperbilirrubinemia H e m o g lo b in o p a t ia s
à custa da elevação da fração conjugada, tal como ocorre nas — A n e m ia fa lc ifo rm e
síndromes de Dubbin-Johnson e Rotor. Apesar desse compor­ — T a la s s e m ia
A lt e ra ç õ e s e n z im d tic a s
tamento bioquímico, não são consideradas como colestáticas,
2. A d q u irid a s
pois, caracteristicamente, são normais os níveis séricos de fos-
A u t o im u n e s
fatase alcalina e gamaglutamiltransferase (Quadro 52.3). — P rim á ria
— S e c u n d á ria

■ Icterícia colestática —

D ro g a s
H e p a t o p a t ia c rô n ic a
— In fe cç ã o
A captação da bilirrubina pela membrana sinusoidal do he- — D o e n ç a d o c o lá g e n o
patócito é dependente da sua concentração sérica, de sua força — Id io p á tic a
de ligação com a albumina, do fluxo sanguíneo do sinusoide, F r a g m e n ta ç ã o e ritro c ità ria
dos mecanismos de difusão passiva e da existência de substân­ — V a lv u lo p a tia
— M a lá ria
cias captadoras e transportadoras. É facilitada pela presença de
3. O utras
fenestrações na membrana plasmática das células sinusoidais, o
H e m a to m a s
que permite a passagem de proteínas para o espaço de Disse e o
II - Redução do transporte de bilirrubina
acoplamento do complexo albumina-bilirrubina à membrana In s u fic iê n c ia c a rd ía c a c o n g e s tiv a
hepatocitária. Uma vez no interior do hepatócito, o pigmento Choque
liga-se à ligandina, proteína que participa ativamente de seu H ip o x ia
D e s id ra ta ç ã o
transporte para o microssomo, facilita sua difusão para o re-
H i p o a lb u m in e m ia
tículo endoplasmático e impede seu refluxo para o sinusoide. N u t r iç á o p a re n te ra l p ro lo n g a d a
Por sua vez, a conjugação ocorre no microssomo hepático, sob

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q uadro 5 2 2 Defeitos hereditários como causas de hiperbilirrubinemia indireta

Lucey-D riscoll C rig le r-N a jja r I C rig le r-N a jja r II G ilb e rt

H e ra n ç a — A u to s s ô m ic a recessiva A u to s s ô m ic a d o m in a n t e A u to s s ô m ic a d o m in a n t e

D e fe ito m e ta b ó lic o R e d u z id a a tiv id a d e da A u s ê n c ia d e a tiv id a d e d a A c e n tu a d a re d u ç à o da A t iv id a d e r e d u z id a d e


U D P -g lic u r o n iltr a n s fe r a s e U D P -g lic o r o n iltr a n s fe r a s e U D P -g lic u r o n iltr a n s fe r a s e U D P -g lic u r o n iltr a n s fe r a s e

Q u a d r o c lín ic o Icte rícia p o r m a is d e 1 s e m a n a Ic te rícia a c e n tu a d a Ic te rícia m o d e r a d a A s s in to m á tic o


n o n e o n a to a te rm o k e r n ic te r u s (im p r e g n a ç ã o k e r n ic t e n js é ra ro Ic te rícia d is c re ta
d o s n ú c le o s d a b ase )

D ia g n ó s t ic o S u s p e n s ã o d o a le it a m e n t o A u s ê n c ia d e re s p o s ta a o R e s p o sta a o fe n o b a rb ita l A tra v é s d o te s te d e re s triç ã o


m a te r n o fe n o b a r b it a l c a ló ric a

T ra ta m e n to — T r a n s p la n t e h e p á tic o F e n o b a r b it a l, fo to te ra p ia , N à o se m o s tra n e c e ss á rio


re a s s e g u r a m e n t o e m o c io n a l re a s s e g u r a m e n t o e m o c io n a l

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 52.3 Causas metabólicas de hiperbilirrubinemia conjugada

D u b in -Jo h n so n R otor

H e ra n ç a A u to s s ô m ic a rec e s siva c o n s a n g u in id a d e A u to s s ô m ic a recessiva

D e fe ito m e ta b ó lic o R e d u z id a e x c re ç ã o d a b ilirru b in a E x c re ç ã o b ilia r re d u z id a

Q u a d r o c lín ic o A s s in t o m á t ic o o u icte ríc ia s e m p r u r id o Ic te rícia s e m p r u r id o

D ia g n ó s t ic o C o le c is t o g r a m a o ra l e c o la n g io g r a fia v e n o s a n e g a tiv o s C o le c is t o g r a m a o ra l p o s itiv o


F íg a d o d e c o r e scu ra F íg a d o d e c o lo r a ç ã o n o r m a l à b io p s ia . C u rv a d e e x c re ç ã o d a
D e s a p a r e c im e n t o in ic ia l le n to d a c u r v a d a BSP, c o m e le v a ç ã o BSP c o m d e s a p a r e c im e n t o le n to , s e m e le v a ç ã o s e c u n d á ria
s e c u n d á ria N ã o existe . D e s n e c e s s á rio
B io psia m o s tra fíg a d o c o m p ig m e n t o típ ic o
E v ita r e s t r ó g e n o s

T ra ta m e n to E v ita r e s tró g e n o s N â o existe . D e s n e c e s s á rio


C a p ítu lo 5 2 / A Icte rícia c o m o S ín d ro m e : N ã o C o le stá tica e C o le stá tica 587

a ação da enzima UDP-glicuroniltransferase, com os grupos O citoesqueleto, por sua vez, é formado pelos microtúbulos e
carboxila das cadeias laterais do ácido propiônico sendo es- microfilamentos que envolvem o canalículo biliar. Os primeiros
terificados com o ácido glicurônico, resultando na formação são constituídos de tubulina, uma proteína polimerizada, e têm
de mono e diglicuronídio de bilirrubina. O pigmento passa a a função de secretar albumina e lipoproteínas. Já os microfila­
ser, então, transportável até o polo canalicular do hepatócito, mentos, constituídos de actina, envolvem os canalículos e têm
onde é excretado para a bile através de processo ativo, com a a função de manter o tônus e a integridade das microvilosida-
participação do complexo de Golgi e dos lisossomos, sob forma des, sendo responsáveis por sua atividade contrátil, em nível
de complexo micelar juntamente com colesterol, sais biliares e canalicular na colestase. São estes os mais lesados na colestase.
fosfolipídio. Tem a característica de ser hidrossolúvel, o que o Nessa situação, ocorre edema dessas estruturas, com conse­
torna facilmente excretável pelos rins. Uma vez no intestino, quente hipertrofia e hipocontratilidade, levando à dilatação
ao nível do íleo terminal e cólon, a bilirrubina sofre degradação canalicular e estagnação da bile.
pela ação da flora bacteriana local, transformando-se princi­ São definidos três tipos de vesículas de membrana: 1. homo­
gêneas, idênticas em tamanho, atuantes no transporte de proteí­
palmente em urobilinogênio, cuja maior parte é reabsorvida
nas; 2. similares, constituídas por membranas do mesmo tipo,
pela mucosa intestinal, ganha a circulação êntero-hepática e
diferindo no tamanho e densidade da proteína carreadora; 3.
retorna ao fígado, enquanto pequena fração é eliminada jun­
heterogêneas, compostas de membranas altamente diferentes,
tamente com as fezes.
com transportadoras distintas para o mesmo substrato. A atu­
A bile, formada principalmente por ácidos biliares, lecitina, ação dessas vesículas no transporte e na secreção da bile rela­
colesterol e bilirrubina, tem a função de excretar substâncias ciona-se com a presença de enzimas, como Na', K*-ATPase, ou
lipossolúveis, participar no processo da digestão e exercer papel bomba de trocas Na' -K’, ou de cálcio dependente de Ca*-ATPa-
imunológico, na medida em que transporta IgA para o intesti­ ses e das forças de fluxo direcional, certamente ligadas à parti­
no. É armazenada e concentrada na vesícula biliar e eliminada cipação de outros cofatores, organelas e nucleotídios.
para o duodeno através da ampola de Vater. A sua produção O complexo de Golgi está relacionado com a secreção e trans­
por complexo sistema de transporte localizado no hepatócito porte de lipoproteínas, e com as vesículas de transferência, in-
e nas células epiteliais biliares depende do estabelecimento de vaginações da membrana que têm função de transporte de vá­
gradientes osmóticos entre o sangue, as células hepáticas e o rias substâncias.
espaço intercelular, bem como do livre movimento de água e Na colestase intra-hepática, ocorre um desequilíbrio entre os
solutos através das membranas canaliculares. O substrato ul- gradientes osmóticos que participam do processo de secreção
traestrutural de sua formação é denominado aparelho secretor biliar, levando à alteração na fluidez da membrana plasmática,
da bile, constituído pela membrana sinusoidal do hepatócito, redução da atividade da Na*, K*-ATPase, com consequente au­
complexo juncional, retículo endoplasmático liso, citoesquele- mento de síntese das enzimas aí localizadas, tais como fosfatase
to, vesículas de membrana plasmática e do complexo de Golgi, alcalina, gamaglutamiltransferase e 5-nucleotidase. Em geral,
os quais serão descritos a seguir. relaciona-se com alteração nos sistemas de transporte e secre­
A membrana sinusoidal corresponde a cerca de 70% da su­ ção da bile pelos hepatócitos, ou com um processo obstrutivo
perfície hepatocitária e é responsável pelo transporte bidirecio- das vias biliares intra-hepáticas (Quadro 52.4).
nal de várias substâncias; entre elas, sais biliares, bilirrubina, Colestase extra-hepática (CEH) significa obstrução mecâ­
colesterol e outros ânions orgânicos. Possui em sua superfície nica ao fluxo normal da bile, localizada em algum ponto entre
receptores para a enzima N a \ IO-ATPase, enquanto a cana­ a emergência do dueto hepático comum e a ampola de Vater.
licular tem a função de excretar bile e solutos para os canalí- Pode originar-se na própria árvore biliar ou ser extrínseca a ela,
culos biliares. Tem composição lipídica, portanto resistente à ter caráter benigno ou maligno, instalação aguda ou crônica,
ação detergente dos ácidos biliares. Sua superfície de absorção como se observa nos casos de tumores ou estenose benigna de
é aumentada pela presença dos microvilos. colédoco, ou, ainda, ser transitória, a exemplo do que ocorre
nos casos de migração de cálculos (Quadro 52.5).
O complexo juncional representa uma diferenciação da
membrana celular, cuja função é manter a união entre as célu­
las, compondo-se de três zonas: 1. de união máxima, localizada
------------------------------------- ▼-------------------------------------
entre o canalículo biliar, o espaço intercelular e o sangue, regula
o fluxo de água e solutos através da membrana canalicular; 2. Q u a d ro 5 2 .4 P rin c ip a is c a u s a s d e c o le s ta s e in t r a -h e p á t ic a *

intermediária, onde se inserem os microfilamentos, dispostos


I - M e t a b ó l ic a s
ao longo do canalículo; 3. de comunicação celular, que permite 7. Com le sã o h e p a to ce lu la r
a passagem de pequenos constituintes celulares entre hepató- — H e p a t it e p o r v íru s
citos, sendo cálcio-dependente. Alterações na sua integridade — H e p a t it e a u t o im u n e
— Á lc o o l
acarretam aumento da permeabilidade do espaço intercelular
— D ro g a s
e canalículo sinusoidal, com consequente regurgitação de água, — D o e n ç a s c o le stá tic a s c rô n ic a s , d u c to p ê n ic a s
solutos e dos componentes da bile, principalmente sais bilia­ — C irro s e b ilia r p rim á r ia (C B P )
res, bilirrubina, colesterol e lipoproteínas, para o interior dos — C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á r ia (C E P )
— A p ó s tr a n s p la n te o r t o t ó p ic o d e f íg a d o
hepatócitos e para a corrente sanguínea. Como consequência,
esses pacientes evoluem com icterícia e prurido, resultantes da 2. Sem Le sã o H e p a to citá ria
— G r a v id e z
deposição de bilirrubina conjugada e de sais biliares na pele. Já — T ra n s in fe c c io s a
o acúmulo de colesterol tecidual leva à formação de xantomas — P e río d o p ó s -o p e r a t ó r io
e xantelasmas, frequentes nas colestases crônicas. — R e c o rre n te B e n ig n a

O retículo endoplasmático liso é a sede da biotransforma- I I - M e c â n ic a s


ção das drogas, exercendo a função de oxidação mista com a — T u m o r e s p rim á r io s e m e ta s tá tic o s

presença do citocromo P-450. Contém a 7-hidroxilase e a gli- •Todas merecerão considerações em capítulos específicos deste livro.
curoniltransferase.
588 C a p ítu lo 5 2 / A Icte rícia c o m o S ín d ro m e : N ã o C o le stá tica e C o le stá tica

-------------------------------- ▼-------------------------------- opiáceos endógenos e compostos serotonina-símile. Mostra-se


Q u a d ro 52.5 C a u s a s m a is c o m u n s d e c o le s ta s e e x t r a -h e p á t ic a * caracteristicamente difuso; entretanto, a grande maioria dos
pacientes refere predomínio nas regiões palmar e plantar, so­
I - C o n g ê n ita s bretudo no período noturno. Pode ser intenso e desesperador,
1. A tre s ia d a s via s biliares
levar a escoriações, a infecção secundária e ser fator desenca-
2 . D ila ta ç á o cística d a s via s b ilia re s (cistos d e c o lé d o c o )
3. C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á r ia
deador de distúrbios psicológicos. É de pior controle nos por­
II - A d q u i r i d a s
tadores de colestase crônica (cirrose biliar primária, colangite
1. C o le d o c o l i t i a s e esderosante primária, colestase induzida por drogas, hepatite
— P rim á ria autoimune e doença hepática alcoólica).
— S e c u n d á ria
A dor praticamente inexiste na colestase intra-hepática.
— R e s id u a l
— R e c id iv a n te Quando está presente, é do tipo surda, em peso e constante. É
2. In fía m a tó ria s mais comum na colestase extra-hepática, tipo cólica, localizada
— C irro s e b ilia r p rim á r ia (C B P ) preferencialmente em hipocôndrio direito, podendo irradiar-
— C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á r ia (C E P ) se para dorso e ombro direitos e epigástrio, como ocorre na
— E s te n o s e c ic a tric ia l ia tro g ê n ic a
colelitíase, coledocolitiase e nas doenças pancreáticas. Quando
— P a n c re a tite c rô n ic a
se associa a febre e calafrio, caracterizando a tríade de Charcot,
3. N e o p lá slca s
— S ín d r o m e s h íb r id a s (h e p a t it e a u t o im u n e + C B P + C E P )
é sinal patognomônico de colangite.
— P rim á ria (p â n c re a s , v e s íc u la biliar, p a p ila d u o d e n a l, d u e to s A hepatomegalia é mais frequente na colestase extra-hepá­
b ilia res) tica, sendo o fígado de consistência endurecida à palpação e,
— m e ta s tá tic a
por vezes, doloroso, sobretudo na coexistência de colangite e
4. F o rm a s A típ ica s
abscessos. A vesícula palpável, distendida e tensa, pode signi­
"Todas merecerão considerações em capítulos específicos deste livro. ficar tumor da região periampular, sinal clássico de Courvoi-
sier-Terrier, consequência de uma vesícula hidrópica, devido
a cálculo impactado no seu infundíbulo, ou síndrome de Mi-
rizzi (ver Capítulo 80). Esplenomegalia ocorre apenas nos casos
decorrentes de doenças colestáticas crônicas, como na cirrose
■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS biliar primária e na colangite esderosante, como consequência
da hipertensão portal.
Nas síndromes não colestáticas, os pacientes podem ser Nas colestases benignas crônicas, ocorre má absorção de vi­
assintomáticos, apenas apresentando leve icterícia em algum taminas A, D, E e K, totalmente dependente dos sais biliares,
momento da vida, como na maioria dos defeitos hereditários levando a déficits nutricionais, com osteodistrofia, osteoporose
(Quadro 52.2) e nas causas metabólicas (Quadro 52.3). No en­ e hipoprotrombinemia. Há, ainda, esteatorreia, que resulta da
tanto, podem apresentar quadros gravíssimos, com acometi- deficiente digestão das gorduras, sendo proporcional ao grau de
mento neurológico (kemicterus), consequente à impregnação icterída. O metabolismo do cobre encontra-se prejudicado, uma
dos núcleos de base, e morte neonatal, como na síndrome de vez que, quase em sua totalidade, o metal absorvido é excretado
Crigler-Najjar tipo I e na beta-talassemia grave, traduzida pela juntamente com a bile e eliminado nas fezes (Figura 52.2).
hidropisia fetal, causando elevados índices de mortalidade nos
recém-natos. Não cursam com colúria, acolia fecal ou prurido.
A hepatomegalia em geral é observada nos quadros hemolíti-
C o le s ta s e
cos, nos quais, caracteristicamente, os doentes também podem
exibir úlceras maleolares, cálculos biliares, dores articulares,
deformidades ósseas e anemia.
Suspeita-se clinicamente de colestase na presença de icterí­ A c ú m u lo d e p r o d u t o s biliares: R e d u ç á o in te s tin a l d e á c id o s
cia, hipocolia/acolia fecal e prurido, associados à elevação dos b ilia re s c o m m á -a b s o r ç â o d e
B ilirru b in a
níveis séricos de fosfatase alcalina, gamaglutamiltransferase e
Á c id o s b ilia res G o r d u ra
5-nucleotidase, em desproporção com os níveis séricos das ami- S u b s tâ n c ia s p ru r ito g è n ic a s V ita m in a s A , D, E, K
notransferases. Paralelamente, elevam-se os valores da fração Lipldios C á lc io
conjugada da bilirrubina, mais acentuados nas formas crôni­ C o b re s
cas. A colestase pode ser de instalação abrupta ou insidiosa e, E n z im a s h e p á tic a s
quando associada a dor, febre, calafrio, perda ponderai e idade
avançada, sugere neoplasia maligna.
O prurido, termo derivado do latim prurire, é atribuído à E s te a to rre ia
deposição de sais biliares na pele. Sua patogênese, porém, não E m a g r e c im e n t o
está completamente estabelecida, pois não existe correlação en­ C e g u e ir a n o t u r n a
tre os níveis séricos e teciduais de ácidos biliares e a gravidade O s te o m a la c ia
do processo. Segundo algumas teorias, a secreção deficiente de A s te n ia

ácidos biliares pode levar à lesão hepática, induzindo a produ­ F ra q u e z a n e u ro m u s c u la r

ção de pruritógenos, substâncias que atuariam, então, sobre o T e n d ê n c ia h e m o r r á g ic a

sistema nervoso central ou periférico, provocando a sensação


do prurido. Outras teorias levantam a hipótese de que o pruri­ Figura 52.2 Manifestações clínicas da síndrome colestática (Lidofski,
do depende, na sua instalação, da participação patogenética de 2000, modificado).
Capítulo 52 / A Icterícia como Síndrome: Não Colestática e Colestática 589

O acúmulo crônico de lipídios, sobretudo do colesterol, leva


à formação de xantomas, principalmente localizados na região
■ Laboratoriais
palmar, abaixo dos seios, no tórax, dorso, pescoço e ao redor As icterícias não colestáticas traduzem-se, em geral, por
dos olhos, quando é denominado xantelasma. As lesões tube- hiperbilirrubinemia indireta, exceção feita às síndromes de
rosas aparecem mais tardiamente nas superfícies extensoras e Dubbin-Johnson e Rotor. Quando está associada a anemia,
pontos de pressão. reticulocitose, fragilidade eritrocitária, aumento do ferro sérico,
O desenvolvimento de cirrose e de insuficiência hepática da concentração da fração 2 da desidrogenase láctica, de elevada
processa-se de forma insidiosa, acompanhada desde o início contagem de reticulócitos e baixa dos valores de haptoglobina,
por icterícia e, posteriormente, evoluindo com acentuação da traduz ocorrência de doença hemolítica.
pigmentação amarelada da pele, acrescida do aparecimento Nas icterícias colestáticas, há hiperbilirrubinemia à custa
de ascite, edema de membros inferiores e hipoalbuminemia. da fração conjugada, e esta é acompanhada de aumento dos
A intensidade do prurido tende a aumentar, sendo, muitas níveis séricos das enzimas canaliculares, fosfatase alcalina, ga-
vezes, critério de indicação de transplante ortotópico de fí­ maglutamiltransferase e 5-nucleotidase. Na presença de lesão
gado. Os distúrbios da coagulação tornam-se, cada vez mais, hepatocelular, há elevação das aminotransferases, diminuição
vitamina K-dependentes. Na fase terminal, ocorre encefalo- da atividade de protrombina e hipoalbuminemia. A leucocitose
patia hepática. é frequente nas colangites e neoplasias. O colesterol sérico to­
A depender da causa e do tempo de instalação da colestase, tal está elevado nas colestases extra-hepáticas e diminuído nas
ocorrem repercussões sistêmicas importantes, principalmente icterícias hemolíticas (Figura 52.3).
sobre as funções hepática e renal. Além disso, o acúmulo de bile
no interior da árvore biliar leva a um estado de hipertensão,
com consequente dilatação das vias biliares intra e extra-he- ■ Métodos de imagens
páticas, hepatomegalia, reduzido aporte de sais biliares para o O ultrassom (US) é o primeiro exame a ser solicitado, sendo
intestino, prejudicando a etapa relacionada com a emulsificação esclarecedor nas síndromes ictéricas. Trata-se de método não
das gorduras, redução da absorção dos triglicerídios, gerando invasivo, de fácil execução e ausente de complicações. Orienta
esteatorreia, além de déficits nutricionais. Como consequên­ a sequência diagnóstica e terapêutica. Nas colestases, permite
cia da alteração da homeostase intestinal, ocorre translocação definir quadros obstrutivos da via biliar, presença de litíase co-
bacteriana, com ascensão contínua de bactérias, principalmente ledociana ou textura e existência de lesões expansivas do parên-
gram-negativas, ricas em endotoxinas para a árvore biliar, com quima hepático, vesícula biliar ou ampola de Vater e pâncreas.
o fígado colestático, tendo, em decorrência do precário poder
As limitações da ecografia estão principalmente na detecção de
de clareamento do seu sistema reticuloendotelial, sobretudo das
cálculos pequenos localizados na porção distai do colédoco,
células de Kupffer, capacidade de detoxificar. Assim, atinge a
bem como nas outras doenças tumorais desse segmento. A se­
circulação sistêmica e leva à endotoxemia, podendo desenca­
quência diagnóstica leva em conta a presença (colestase extra-
dear complicações sépticas, coagulação intravascular dissemi­
hepática) ou não (colestase intra-hepática) de dilatação das vias
nada (CIVD) e insuficiência renal (Figura 52.1).
biliares intra-hepáticas. Um avanço importante no auxílio ao
Apresentações atípicas se expressam sob duas situações clí­
diagnóstico foi a ultrassonografia endoscópica, útil principal­
nicas: a. colestase intra-hepática da gravidez, observada no ter­
ceiro trimestre da gestação, geralmente involuindo cerca de mente no diagnóstico e estadiamento de tumores de colédoco e
2 semanas após delivramento; b. transinfecciosa, identificada na detecção de pequenos tumores dos canais biliares, pâncreas
nos infectados, sobretudo em hipovolêmicos, e cursando com e da papila de Vater (Figura 52.3).
baixa perfusão hepatocelular; c. no período pós-operatório,
relacionado com lesões induzidas por anestesias, isquemia he­
patocelular, transfusões sanguíneas, sem evidências de lesões
necróticas hepatocelulares, que se traduzem por hipertransa-
minasemia.

■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS
■ Clínicos
Exigem-se uma precisa anamnese e adequado exame físi­
co. A definição da época do surgimento dos sintomas e sinais
mostra-se importante. Assim, icterícia no recém-nato leva a
pensar nas formas hereditárias e anomalias do desenvolvimento
das vias biliares. No adulto jovem, são mais comuns proces­
sos infecciosos agudos e crônicos do fígado e vias biliares, que,
quando presentes nas mulheres de meia-idade, sugerem cir­
rose biliar primária, enquanto, nos homens em torno dos 10 a
40 anos, associados a febre e calafrios, despertam a suspeita de
colangite esclerosante primária. Nos pacientes que se encon­
tram além dos 40 a 50 anos, referindo dor abdominal cursando
febre ou não e astenia, torna-se necessário pensar em doença Figura 52.3 Resumo dos aspectos diagnósticos na icterícia coles­
neoplásica maligna (Figura 52.2). tática.
590 Capítulo 52 / A Icterícia como Síndrome: Não Colestática e Colestática

A tomografia computadorizada, por sua vez, permite definir


com maior precisão lesões parenquimatosas presentes no fíga­ A c h a d o s c o m u n s a c o le s t a s e e x t r a -h e p á t i c a

do, vesícula biliar e pâncreas, especialmente se for utilizada a T r o m b o s b ilia re s e m c a n a líc u lo s


P ig m e n t o b ilia r e m h e p a tó c it o s o u c é lu la s d e K u p ffe r
tomografia helicoidal, método que combina a emissão contínua
de raios X em um tubo de rotação helicoidal e o processamen­ A c h a d o s " s u g e s t i v o s " d e o b s t r u ç ã o b il ia r
to das imagens realizado por computadores de alta velocidade, D e g e n e r a ç ã o p lu m o s a d o s h e p a tó c ito s
permitindo a reconstrução tridimensional de imagens da área E d e m a d o e s p a ç o p o rta l
em estudo. Com esse método, é possível detectar tumores pe­ P ro life ra ç ã o d e d u e to s b ilia res
F lb ro s e p e r id u c t u la r
quenos (de 1 cm) e fornecer suas relações anatômicas com os
vasos sanguíneos (Figura 52.3).
A c h a d o s " d i a g n ó s t i c o s " d e o b s t r u ç ã o b il ia r
A colangiografia por ressonância nuclear magnética (CRM), In fa rto b ilia r
método não invasivo, fornece imagens similares às obtidas pela L a g o b ilia r
colangiografia endoscópica retrógrada ou transparieto-hepá- N e u tró filo s e m lú m e n d e d u e to s in te rlo b u la re s
T r o m b o s b ilia re s e m d u e to s in te rlo b u la re s
tica, sem que seja necessário uso de contraste oral ou intrave-
noso. Revela elevada acurácia na detecção de dilatação biliar
ductal, com sensibilidade de diagnóstico de coledocolitíase va­ Figura 52.4 Anormalidades vistas à biopsia hepática na icterícia co­
riando entre 71 e 100%. Tem importância na identificação de lestática (Lidofski e t a i , 2000).
estenoses não inflamatórias do dueto biliar comum, colelitíase,
tumores pequenos do pâncreas, colangiocarcinoma, ampulites,
tumores de papila de Vater, estenoses inflamatórias de colédoco
terminal, além de esclarecer a situação precisa da árvore biliar ■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
intra-hepática na colangite esclerosante primária ou doença de
Caroli (Figura 52.3). ■ Icterícia não colestática
Colangiografia transparieto-hepática (CTPH) representa mé­
Em recém-natos, está indicada a fototerapia, e, quando há
todo invasivo, não isento de risco, voltado à punção percutâ-
altos níveis de bilirrubina indireta, a exsanguineotransfusão
nea da árvore biliar, através de agulha de Chiba, com injeção
tem indicação formal a fim de se evitar o desenvolvimento de
de contraste. Indicada nos casos em que há dilatação das vias
kernicterus. Tentativa de reverter o quadro baseia-se na ad­
biliares intra-hepáticas, sobretudo quando dispostas acima do ministração do fenobarbital, indutor da síntese e atividade da
hilo hepático, permitindo definir o local e a natureza da obstru­ UDP-glicuroniltransferase, principalmente quando há ausência
ção. A realização desse método exige antibioticoterapia prévia, ou diminuição da atividade dessa enzima. Por sua vez, o trans­
adequadas condições de coagulação, lembrando que a equi­ plante de fígado deve ser realizado nos portadores da síndrome
pe cirúrgica deverá estar pronta para a execução de qualquer de Crigler-Najjar tipo I.
medida terapêutica que, logo após, se faça necessária. Através As icterícias hemolíticas podem representar um quadro ex­
desse método, nas doenças malignas irressecáveis, é possível o cessivamente grave. Não raro, em função das hemotransfusões
estabelecimento de drenagem interna-externa e implante de e da lise eritrocitária, tais pacientes cursam com complicações
próteses metálicas autoexpansíveis. como litíase biliar, risco maior de infecção pelos vírus B e C
Colangiografia endoscópica retrógrada (CPER) é realizada da hepatite e intensa deposição hepatocelular de ferro, com
através da injeção de contraste na via biliar após cateteriza- cirrose macronodular por hemocromatose secundária, cau­
ção da papila de Vater por via endoscópica. Tem indicação sa de insuficiência hepática e hipertensão portal. Não raro, os
no diagnóstico diferencial da colestase, da dor abdominal alta pacientes desenvolvem hipertensão pulmonar, insuficiência
de origem desconhecida, da síndrome pós-colecistectomia e cardíaca direita, vindo a falecer por falência de múltiplos ór­
no estudo das pancreatites agudas e crônicas. Sua indicação gãos. Em alguns casos, como na p-talassemia, deverão ser es-
torna-se cada vez menor, suplantada pela acurácia e ausência plenectomizados.
de invasividade da CRM. Mostra-se, no entanto, útil para to­
mada de atitudes terapêuticas como papilotomia, retirada de ■ Icterícia colestática
cálculos, implante de dreno nasobiliar ou de próteses metálicas
O tratamento clínico visa, sobretudo, a combater o pruri­
autoexpansíveis.
do, muitas vezes desesperador e incapacitante. Para tal, devem
Biopsia hepática está indicada nos casos em que há dúvida
ser administrados fármacos que agem ao nível central, como
diagnóstica e no estadiamento das doenças crônicas do fígado.
o fenobarbital e os antagonistas opioides, ainda não disponí­
A forma mais frequentemente realizada é a biopsia percutânea
veis para uso rotineiro (Quadro 52.6). Mais frequentemente,
às cegas, de fácil realização e de baixo custo, executada à beira os doentes devem ser manipulados através dos quelantes dos
do leito, com o inconveniente de não permitir a vistoria da su­ sais biliares, como colestiramina, e ácido ursodesoxicólico. Os
perfície hepática, nem biopsiar áreas específicas. A realização déficits nutricionais podem ser minimizados com a adminis­
do procedimento guiado por US tem indicação quando se de­ tração de dieta rica em triglicerídios de cadeia média e repo­
seja puncionar pequenas lesões nodulares sólidas, ou, ainda, sição vitamínica.
nos casos em que o paciente não tenha condições clínicas de O tratamento endoscópico (CPRE) estará indicado quando
ser submetido à anestesia. Na via laparoscópica, há a vantagem existir coledocolitíase, com ou sem sinais de colangite hiper-
de estudar macroscopicamente o parênquima hepático, defi­ tensiva. Nesses casos, deve-se proceder à papilotomia e retirada
nindo a presença ou não de hipertensão portal e de tumores dos cálculos. Outra indicação reside na obstrução da via biliar
dispostos sobre o peritônio. Resumo desses aspectos está ex­ por neoplasia irressecável, visando à colocação de próteses. Essa
presso na Figura 52.4. mesma atitude pode também ser realizada valendo-se da CTPH.
Capítulo 52 / A Icterícia como Síndrome: Não Colestática e Colestática 591
▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q uadro 52 .6 Terapêutica farmacológica do prurido na icterícia colestática (Lidofski, 2000)

Fárm acos Condução Eficácia Efeitos adversos

A n t i-h is ta m ín ic o s
D if e n id r a m in a , h id ro x iz in a 2 5 -5 0 m g , 6/6 h P o u c o e ficaze s S o n o lê n c ia
2 5 m g , 8/8 h

C o le s tira m in a 4 -6 g , 3 0 m in a n te s d a s re fe içõ e s B e n é fic a e m m u it o s p a c ie n te s C o n s t ip a ç ã o


M á -a b s o r ç à o in te rfe re c o m a b s o rç ã o d e o u tro s
m e d ic a m e n t o s
H e p a t o t o x ic id a d e p o t e n c ia l in te rfe re c o m
m e t a b o lis m o d e fá rm a c o s

Á c id o u rs o d e s o x ic ó lic o 1 0 -1 5 m g / k g / d ia B e n é fic o e m c irro s e b ilia r p rim á ria S in t o m a s o p io id e s


C o le s ta s e d a g r a v id e z

N a ltr e o x o n e 5 0 m g / d ia B e n é fic o e m c irro s e b ilia r p rim á ria

A escolha de qualquer dessas modalidades baseia-se na dispo­ Oliveira c Silva, A de, Meta, CRR, Almeida, FAS, Amaral CHA, D Albuquerque, LAC.
nibilidade material e humana, nos serviços e no técnico mais Síndromes que determinam alterações na função cxcrctora biliar cm recém-
nascidos, crianças c adultos. Em: Oliveira c Silva, A de & DAlbuqucrque,
habilitado à manipulação de qualquer delas. LAC. Síndromes Ictéricas, l 4 cd., São Paulo, Fundo Editorial BYK, p. 29-
Na presença de neoplasias obstruindo a via biliar, a ressecção 35. 1996.
tem indicação formal. Quando a neoplasia for irressecável, a Oliveira e Silva, A de, Mcniconi, MT, Copstcin, JLM, Santos Jr, ED, Manccro,
terapêutica baseia-se na realização de cirurgia paliativa, através JMP, Quirczc Jr, C, Paula Filho, U, DAlbuqucrque, LAC. Colcstasc extra-
hepática. Em: Síndromes Ictéricas, 1.* cd., São Paulo, Fundo Editorial BYK,
de anastomose biliodigestiva. Em alguns casos de litíase intra-
p. 70-108,1996.
hepática, está indicada hepatectomia regrada. Portadores de Oliveira c Silva, A de, Rosa, H, Carvalho, HA, Ferreira, ACS, Melo, CRR,
cirrose biliar primária ou secundária ou síndromes híbridas DAlbuqucrque, LAC. Colcstasc intra-hcpática. Em: Oliveira c Silva, A de
(hepatite autoimune + CEP ou CBP) deverão ser levados ao 8c DAlbuqucrque, LAC. Síndromes Ictéricas, 1.* cd., São Paulo, Fundo Edi­
transplante de fígado. torial BYK, p. 36-69, 1996.
Oliveira c Silva, A de, Santos, TE, Cardoso, ES, Teixeira, ACS, Marques, CP,
DAlbuqucrque, LAC. Metabolismo da bilirrubina c síndromes que de­
term inam hiperbilirrubinemia indireta. Em: Oliveira c Silva, A de 8c
■ LEITURA RECOMENDADA DAlbuqucrque, LAC. Síndromes Ictéricas, 1.* cd., São Paulo, Fundo Editorial
BYK, p. 13-28, 1996.
Chowdhury, JR & Chowdhury, NR. Bilirrubin metabolism and its disordcrs. Pereira Lima, J 8c Pereira Lima, J. Diagnóstico diferencial das icterícias do
Em: Kaplowitz, N. Liver and Biliary Disease, 2*dcd., Baltímorc, Williams & adulto. Em de Mattos, AA 8c Dantas, W. Compêndio de Hepatologia. São
Wilkins, p. 154-70,1996. Paulo, Fundo Editorial BYK, p. 87-99, 1995.
Galizzi Filho, J & Antuna, IT. Metabolismo da bilirrubina c seus distúrbios Shcrlock, S 8c Dooley, J. Jaundice. Em: Shcrlock, S 8c Doolcy, J. Diseases of
hereditários. Em: de Mattos, AA & Dantas, W. Compêndio de Hepatologia. the Liver and Biliary System, 10,h ed.. Oxford, Blacwell Science, p. 201-16,
São Paulo, Fundo Editorial BYK, p. 15-29, 1995. 1997.
Lidofski, SD. Jaundice. Em: Bacon, BR, 0'Grady, JG, Di Bisccglic, AM, Lakc, JR Silveira, TR. Icterícia na infância. Em: de Mattos, AA 8c Dantas, W. Compêndio
(cd.). Comprehcnsivc Clinicai Hcpatology. Londres, Mosby; 2000, p. 51. de Hepatologia. São Paulo. Fundo Editorial BYK, p. 100-25, 1995.
Lidofski, SD. Jaundice. Em: Fcldman, M, Friedman, M, Brandt, LJ. Gastrintes- Suchy, FJ. The use membrane vesiclcs to study hepatic transport. Em: Tavo-
tinal and Liver Disease, Vol. 1, Saundcrs-Elscvicr, Philadclphia, PA, 2010, loni, N 8c Berk, PD. Hepatic Transport and Bile Secretion. Physiology and
p. 323. Pathophysiology. Nova Iorque, Raven Press, p. 211-24,1993.
Ncuberger, J 8c Farrant, M. Cholcstatic liver disease. Em: Williams, R, Port- Suchy, FJ 8c Shncidcr, BL. Nconatal Jaundice and cholcstasis. Em: Kaplow­
mann, B, Tan, KC. The Practice o f Liver Transplantation, l ‘:cd., Edimburgo, itz, N. Liver and Biliary Disease, 2nd cd., Baltimorc, Williams 8c Wilkins,
Churchill Livingstonc, p. 29-34,1995. p. 495-510,1996.
Hepatite Aguda Viral
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Leonardo ReuterMotta Gama,
Celso Marques Raposo Júnior, Naísa Oliveira Alvim Mattedi,
Lucas Cagnin, Gerusa Náximo de Almeida, Flávia Costa Cardoso,
Raul Carlos Wahle

A hepatite aguda viral representa a causa mais comum de doen­ por Hollinger, em 1994. Comentaremos, em seguida, certas
ça hepática infecciosa, ictérica ou não, no Brasil. Causada, pelo peculiaridades de alguns desses vírus.
menos, por cinco vírus A, B, C, D e E, traduz-se por sintomas, O vírus A é um vírus RNA, pertencente à família Picorna-
sinais clínicos e laboratoriais superponíveis nas diferentes etio- viridae, a qual inclui os enterovírus e rinovírus. Tem a forma
logias. Divergem, no entanto, no que diz respeito às caracterís­ icosaédrica, com 28 nm de diâmetro, seu genoma é de fita única,
ticas dos agentes etiológicos, tendência evolutiva, estratégias de composto de 30% de RNA e 70% de proteínas, senso positivo,
manipulação e, inclusive, na incidência das formas fulminantes, e encerra 7,48 kbRNA. Produz uma poliproteína com 22,27
quando muitos pacientes deverão ser conduzidos ao transplante resíduos de aminoácidos, relativamente estável ao calor, e é
de fígado. Outros vírus podem infectar o fígado, mas este ó r­ inativado quando exposto a autoclave, radiação ultravioleta,
gão não é nem o local primário de suas replicações, nem o seu formalina e iodo. Existe apenas um serotipo e quatro genótipos.
alvo principal. Nessa condição, incluem-se o citomegalovírus, Seu período de incubação se situa entre 14 e 50 dias. A viremia
o herpes simples, o Epstein-Barr, o vírus da febre amarela e da não ultrapassa 7 dias, daí porque a transmissão parenteral é rara.
dengue, assim como outros flavivírus. Ainda contam-se os ví­ Não evolui para hepatite crônica, embora raríssimos casos com
rus do sarampo, da rubéola, da influenza e do herpes genital, essa evolução tenham sido descritos.
capazes de causar hepatite de gravidade variável, os quais não Revela-se diretamente citopático, transmitido pela rota oral-
merecerão considerações neste capítulo. fecal, replicando no intestino, indo ao fígado, valendo-se do
sistema venoso portal, onde replica, atingindo por essa via o
intestino, sendo então eliminado pelas fezes.
■ AGENTES VIRAIS MAIS FREQUENTES O vírus B é um vírus DNA, pertencente à família Hepadna-
virus com vírion completo, a partícula de Dane tendo 42 nm
Os vírus das hepatites humanas representam um grupo de de diâmetro, com genoma circular, composto de dupla fita de
patógenos dotados da capacidade de causar necrose em hepa- DNA com aproximadamente 3.200 pares de base de exten­
tócitos e inflamação no fígado. Na maioria das vezes, tais casos são. Tem quatro aberturas de leitura, codificando o envelope
são devidos à participação dos vírus A, B, C, D, E, definidos (preS/S) sintetizadora do AgHBs, core (precore/core) respon­
como hepatotrópicos. A taxonomia, os genótipos e serótipos, sável pela formação do AgHBc, a DNA polimerase, catalisado-
as propriedades dos vírions, dos genomas e biológicas estão ra da replicação viral; e uma proteína X, que parece implicada
representados nos Quadros 53.1 a 53.4, segundo foi proposto na replicação de outros vírus, como o vírus da AIDS (HIV).

------------------------------------------ ▼------------------------------------------
Q uadro 53.1 Taxonomia, genótipos e serótipos dos vírus humanos hepatotrópicos

Vírus das h epatites hum anas

A E B C D

Fa m ília Picornaviridae Caliciviridae o u Togaviridae Hepadnavirldae Flavlvlrldae Deltavirldae


G ê n e ro H e p a t o v ír u s In d e fin id o O rthohepadnavirus In d e fin id o D e lta v íru s

E sp écies V íru s d a h e p a tite A V íru s d a h e p a tit e E V íru s d a h e p a tite B V íru s d a h e p a tite C V íru s d a h e p a tite D

G e n ó t ip o s 7 3 5 >6 3

S e ró tip o s 1 1 1 ? ?

592
Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira! 593

--------------------------------▼--------------------------------
Q u a d ro 53.2 Propriedades dos vírus humanos hepatotrópicos

Vírus das hep atites hum anas


rro p n e a a a e s
A E B C D

F o rm a Esférica Esférica Esférica Esférica Esférica

T a m a n h o (n m ) 28 32 42 3 8 -5 0 43
E n v e lo p e Nào Nâo S im S im S im

S im e tria c a p s íd ic a Ic o sa é d rica Ic o sa é d rica Ic o sa é d rica D e s c o n h e c id a Ic o sa é d rica

P ro te ín a s c a p s íd ic a s 3 1 1 1 1
Lo ca l d a m o n t a g e m C ito p la s m a D e s c o n h e c id a C it o p la s m a D e s c o n h e c id a C it o p la s m a

--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Q u a d ro 53.3 Propriedades dos genomas dos vírus hepatotrópicos humanos

Vírus das hep atites hum anas


Propriedades
A E B C D

Á c id o n u c le ic o RNA RNA DNA RNA RNA

L in e a r o u c irc u la r L in e a r Lin e a r C irc u la r L in e a r C irc u la r

S e n t id o 1 1 ND 1 2

T a m a n h o (K B ) 7,5 7,8 3,2 9,4 1,7

S e g m e n ta d o Nâo Não Nâo Nâo Nâo

L o ca is d e re p lic a ç á o C ito p la s m a D e s c o n h e c id o N ú c le o D e s c o n h e c id o N ú c le o

ND - Nâo definido.


Q u a d ro 53 .4 Propriedades biológicas dos vírus hepatotrópicos humanos

V írus das hep atites hum anas


Propriedades
A E B C D

T ít u lo s m á x im o s 10“ 7 g m ? 10” 7 n V 1 0 ° -7 m t lO ^ V m i

T ra n s m is s ã o O ra l-fe c a l O ra l-fe c a l P a re n te ra l/se xu a l P a re n te ra l P a re n te ra l

C ro n ic id a d e N â o (? ) Não S im S im S im

O n c o g e n ic id a d e Nâo Nâo S im S im (?)

C u rs o fu lm in a n t e R a ro G e s ta ç ã o R a ro R a ro In c o m u m

S o ro lo g ia

A n t íg e n o S im 4 S im 4 Nâo Não Slm °

A n t ic o r p o S im 4 S im 4 S im b S im b S im 6

Á c id o n u c le ic o S im 4* S im 4* S im b S im b Slm °

V a c in a c o m e rc ia l S im Nâo S im Não Não

a ■ Nas fezes; b = No sangue.

Apresenta quatro subtipos antigênicos: adw, ayw, adr e ayr, transativador transcripcional. Inicia sua ação deletéria sobre o
que mostram distribuição geográfica peculiar. Variações do fígado ao se ligar às membranas dos hepatócitos replicando via
genoma geram as mutações que podem ocorrer nas regiões transcrição e produção de RNA pregenômico, gerando nucleo-
do core, pré-core, pré-S, ou no gene da polimerase ou no X, capsídio, polimerase e partículas ccc (closed circular) DNA em
as quais podem induzir à hepatite fulminante, reduzir a res­ nível nuclear após envelopamento de proteínas; suas expressões
posta ao interferon, facilitar a perpetuação da doença ou a sua dependem de elementos cis e trans promotores de pré-S 1, pré-
recorrência após transplante hepático. A partir da atuação da S2 e X, reguladas pela metilação de ilhas CpG identificada em
proteína HBX, tem atuação oncogênica se associando à evo­ fígados humanos dos portadores desse agente. Nestes, a lesão
lução para o carcinoma hepatocelular, ao atuar como potente hepatocelular induzida se relaciona com linfócitos T citotóxi-
594 Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira!

cos, ao reconhecer antígenos específicos em associação com A partir daí, foi clonado, e classificado como um RNA vírus
antígenos HLA classe I, causando apoptose de hepatócitos in ­ da família Flaviviridae, mantendo 29% de homologia com o
fectados. É transmitido pelo sangue, por via sexual, por agulhas VHC. Sua detecção em soro ou outros fluidos e tecidos depende
contaminadas e verticalmente da mãe para o filho, com período do emprego de reação em cadeia de polimerase (PCR), técni­
de incubação entre 14 e 90 dias. ca sem sensibilidade e especificidade bem definidas. A partir
O vírus C é um vírus RNA pertencente à família Flaviviri- da proteína E2 do envelope do seu genoma, empregada como
dae, composto de genoma de fita única, com aproximadamen­ antígeno, utiliza-se o método de ELISA para identificação de
te 10.000 nucleotídios em sua composição. Tem apenas uma anticorpos específicos.
abertura de leitura, replicando através de uma RNA polimerase Tudo indica que sua transmissão seja predominantemente
codificada pelo gene NS 5B. Apresenta seis grupos filogenéticos parenteral, existindo dúvidas quanto à importância das rotas
e seis genótipos principais, com inúmeras variantes. Os genóti- oral e sexual. Período de incubação, porcentagens de formas
pos lb e 4 são os mais agressivos, associados à baixa resposta ao sintomáticas e evolução para cronicidade ou existência de por­
tratamento com interferon, e o resultado deste tratamento é tadores assintomáticos são aspectos que não se encontram ain­
melhor com os portadores de genótipos 2a e 2b. Os vírus RNA da bem definidos. Tem sido identificado entre 0,4 e 1,6% dos
mostram misturas heterogêneas de genomas mutantes, decor­ doadores voluntários de sangue, em associação com 15% dos
rência de taxas elevadas de erro na replicação do RNA. Isso portadores crônicos do VHC, em 20% dos doentes com cir­
constitui as quasiespecies, cuja importância reside no fato de rose criptogênica, em 26 a 31% dos dialisados e, finalmente,
que elas respondem heterogeneamente ao interferon-padrão ou em 9 a 24, 43,6 e 31% dos transplantados de coração, fígado
peguilado. Uma menor heterogeneidade favorece a terapêutica e rim, respectivamente. Apesar desses avanços, não se definiu
antiviral, e vice-versa. A quantidade de partículas C no sangue ainda se se trata de um vírus realmente hepatotrófico, sendo
circulante é muito menor do que a observada na infecção pelo recomendável pesquisá-lo naqueles pacientes que apresentam,
vírus B. Atualmente, o vírus C é o maior responsável pelas he­ sobretudo, hepatite pós-transfusional do tipo não A-E. Apesar
patites pós-transfusionais. Assim, o contágio pode ser feito por desse aspecto, sabe-se que está associado a hepatite aguda, e a
sangue transfundido, por agulhas contaminadas e, significativa­ lesão hepatocelular instalada é, na maioria das vezes, de leve
mente menos do que na hepatite B, e quase negligenciável, por intensidade. Este fato tem levado alguns autores a insistirem
contato sexual, ou de forma vertical. Curiosamente, entretanto, em que raramente existem formas mais graves de necrose hepa­
no maior número de casos de hepatite crônica por vírus C o tocelular com esse vírus. Entretanto, a participação do vírus G
contágio não é identificado, constituindo a chamada infecção foi advogada na insuficiência hepática fulminante. Nestes raros
esporádica. O vírus C é considerado um vírus oncogênico, as­ casos, é possível que a presença do vírus G pudesse ser conse­
sociando-se à instalação do carcinoma hepatocelular. quente ao uso de sangue contaminado, empregado durante a
O vírus D é um pequeno vírus RNA, com seu genoma com­ terapêutica de urgência pré-transplante de fígado.
posto de fita única. Pode replicar de maneira autônoma, mas,
em geral, necessita, para tal, da presença do B, de quem usa,
para exercer tal função, o excesso da proteína proveniente do
■ Vírus da hepatite TT
AgHBs, levando a que cursem com dupla infecção. Assume À semelhança do vírus GB-C, o vírus da hepatite TT recebe
distribuição característica em indivíduos residentes em países essa denominação em referência às iniciais TT do paciente in­
do Mediterrâneo, Oriente e da região Amazônica, tais como fectado em que esse agente foi identificado pela primeira vez.
Colômbia, Venezuela e Brasil, com a coinfecção sendo respon­ Inicialmente, foi caracterizado como pertencente à família dos
sável pelo advento de hepatite aguda. Parvovirus (não envelopados). Logo em seguida, passa a ser
O vírus E, por sua vez, é um vírus RNA, sem envelope, ente- definido como sendo um DNA-vírus, com genoma circular,
ricamente transmitido, similar aos pertencentes à família Gali- de sentido negativo, encerrando 3.739 pares de base, fazendo,
civiridae, tendo seu genoma com 7,5 kb, codificando proteínas então, parte da família dos circivírus humanos. Sua identifica­
estruturais e não estruturais, com oito diferentes genótipos sen­ ção em sangue tem sido realizada através da técnica PCR, a qual
do identificados em diferentes regiões da África, Ásia, Oriente tem limitações, pois subestima a prevalência da infecção, já que
Médio e América Central, assim representados: tipo 1 em Bur- tem sua atuação baseada na presença de anticorpos, com melhor
na, 2 no México, 3 na América do Norte, 4 na China, 5,6 e 7 na capacidade de detecção dos genótipos 2 e 3, não do 1.
Europa e 8 na Argentina, com uma outra variante descrita entre No início, acreditava-se que a forma de infecção mais co­
austríacos. Transmissão pessoa-pessoa é a regra; no entanto, mum era após a transfusão de sangue e de derivados. Tem sido
reservatórios animais, como suínos, têm sido identificados (o identificado diversamente: entre 1 e 10% (EUA e Europa), 7 e
que podería significar que a hepatite por vírus E seria uma zo- 14% (Ásia), e em 62% dos brasileiros doadores voluntários.
onose). Apresenta um período de incubação de 2 a 9 semanas, Sua positividade também tem sido observada entre 24 e 45%
em média de 40 dias. A infecção por este agente no Brasil não dos portadores crônicos do VHC e em 47% dos portadores
parece ser comum. de insuficiência hepática fulminante não A-G. A sua frequên­
cia varia, conforme se considerem categorias de pacientes, tais
como os toxicômanos intravenosos, os homossexuais e prosti­
■ AGENTES VIRAIS MENOS FREQUENTES tutas, e indivíduos não incluídos nessa classificação (5 a 13% x
4,5%). Existem evidências de que a contaminação não se pro­
cessa intraútero, mas pode ocorrer pós-parto. Ela também pode
■ Vírus da hepatite G se dar através da rota oral-fecal, diferindo, todavia, das hepatites
Esse agente viral foi identificado em 1955, a partir da in­ virais A e E, pela possibilidade aparente de evoluir para doença
jeção do sangue de um cirurgião em um sagui. As iniciais do hepática crônica, o que não acontece com as hepatites A e E.
cirurgião, GB, foram utilizadas para a denominação do agente. Aumenta sua prevalência após transplante hepático de 10 para
Isolaram-se dois tipos GBV-A e GBV-B em animais de experi­ 20%. Casos comunitários têm sido descritos, ampliando-se a
mentação, e o GBV-C, ou simplesmente G, em seres humanos. presença do TTV com o aumento da idade. O vírus apresenta
Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira! 595

tendência ao hepatotropismo, comprovado por: 1. são 10 vezes se celular. Na hepatite crônica, o mecanismo de lesão depende
mais elevados os títulos no tecido hepático do que no sangue; 2. de linfócitos T citotóxicos que atacam o complexo molecular
existe paralelismo entre infecção e necrose hepatocelular, tra­ composto por antígenos virais e HLA (de histocompatibilidade)
duzida pela elevação dos valores séricos de aminotransferases: dispostos na superfície do hepatócito. É possível que outros fa­
3. existe paralelismo entre clareamento viral e normalização tores intervenham, como lesão celular por citocinas. Na hepatite
dos valores enzimáticos. por vírus C, o mecanismo de lesão celular não é bem entendido,
A maioria dos indivíduos com TTV é constituída por por­ mas acredita-se que também seja imunológico. Não se sabe se
tadores assintomáticos, com pequena proporção desenvolven­ o vírus é citopático. É possível, ademais, que uma exagerada
do hepatite aguda. Há dúvidas sobre o papel causai na doen­ variação de proteínas do envelope viral facilite uma evasão à
ça crônica do fígado, não existindo evidências de que o vírus resposta imunológica do hospedeiro, levando à persistência da
possa causar carcinoma hepatocelular. Esses aspectos levam a infecção pelo vírus C.
uma interrogação sobre a real capacidade de esse vírus lesar
o fígado.
Desde a descoberta do TTV, vários vírus com pequeno ge- ■ ASPECTOS ANAT0M0PAT0LÓGIC0S
noma DNA foram descritos no Japão. Esses vírus foram deno­
minados Sanban, Yonban e TTV-similar minivírus. Nenhum A hepatite aguda viral é uma doença difusa necroinflama-
deles provou, até o presente, provocar doença em humanos. tória do fígado, que, em geral, evolui com menos de 6 meses
de duração. Pode ser histologicamente não distinguível da he­
patite crônica, o que torna o tempo de doença um critério di-
■ MECANISMOS DE LESÃO CELULAR ferenciador muito importante, além do que as maiores modi­
ficações são lobulares e não de espaços portais. Caracteriza-se
Aceita-se que a magnitude da lesão celular, nas hepatites por comprometimento panlobular, acentuada celularidade e
agudas, dependa da carga viral e da capacidade de multiplicação pleomorfismo de hepatócitos e necroses focais. Degeneração e
do agente viral. Por sua vez, tem importância a resposta des­ eosinofilia ou corpos apoptóticos e balonizados dos hepatócitos
pertada pelo hospedeiro, classificada como: 1. não específica, levam à necrose lítica. A regeneração traduz-se pela presença
dependente da participação de interferon, complemento e lin- de mitose e/ou multinucleação dos hepatócitos, com variações
fócito NK; 2. de células killer, como neutrófilos e macrófagos, de tamanho, forma e qualidade de coloração dos hepatócitos.
as quais requerem anticorpos para sua atuação; 3. especificidade O infiltrado inflamatório é constituído por células sinusoidais
exercida pelos linfócitos T citotóxicos (CTC). Esses mecanismos ativadas, sobretudo de Kupffer, enquanto nos espaços portais
atuam visando a eliminar o agente viral, precipitando a lise ce­ predominam linfócitos, plasmócitos e eosinófilos, com poucos
lular. Quando essas respostas se revelam eficientes e precoces, neutrófilos. Casos mais graves traduzem-se por necrose multi-
propiciam a cura sorológica e restituição total do parênquima, lobular, em ponte ou submaciça. Colestase citoplasmática ou
não facilitando a instalação de estado de portador ou de hepa­ intracanalicular faz parte do quadro.
tite crônica. Além desses efeitos, o vírus pode lesar a célula do
hospedeiro ao interferir diretamente com o seu maquinismo,
ou exercer toxicidade a partir de seus produtos. ■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS
Na hepatite por vírus A, a lesão do hepatócito provavelmente
decorre de citotoxicidade mediada por células imunocompe-
tentes. Uma resposta imune exagerada pode gerar a hepatite
■ Etiológicos e sorológicos
fulminante. Na hepatite por vírus B, o dano maior é causado Encontram-se sumariados no Quadro 53.5.
pela reação do hospedeiro. A resposta imunológica é mediada Os marcadores virais constituem chave importante para o
por células e dirigida contra o antígeno core, que se expressa na diagnóstico das hepatites, razão pela qual devem ser bem co­
superfície do hepatócito. A reação elimina o antígeno e o hepa­ nhecidos.
tócito. No estado de hospedeiro sadio, a resposta imunológica O anti-VHA IgM é um indicador de hepatite aguda por
é inadequada e há tolerância ao vírus. Esse estado de tolerância vírus A. Aparece precocemente e persiste por 3 a 6 meses. O
pode ser ultrapassado a qualquer momento, com a emergência anti-VHA IgG é marcador de infecção passada, prestando-se
de clones de células T reativas levando à inflamação e à necro­ mais para inquéritos epidemiológicos.

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Q uadro 53.5 Diagnóstico sorológico das hepatites agudas virais

Marcadores sorológicos

Significados Anti-AgHBC Anti-VHC Anti-VHE Anti-VH


Anti-VHA AgHBs AgHBe
(IgM) (IgG) (IgM) (IgG) RNAVHC IgM IgM
H e p a t it e A + - - - - - - - - -

H e p a t it e B - + + + - - - - - -

H e p a t it e C - - - - - ± - + - -
H e p a t it e E - - - - - - - - + +
H e p a t it e D - + + + - - - - - +
596 Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira!

O antígeno de superfície do vírus B (AgHBs) corresponde à ral, náuseas, vômito, anorexia, artralgia e febrícula. Icterícia
proteína do envelope do vírus B. Indica infecção aguda ou crô­ colestática faz parte do quadro, acompanhando-se de colúria,
nica. Quando desaparece do soro, significa clareamento viral. acolia fecal e prurido, mais comum entre idosos. Essa forma de
O anti-HBc, ou AcHBc (anticorpo anticore do vírus B), é apresentação mostra-se mais leve na C e mais florida na A e na
uma proteína que circunda o DNA do vírus B. Por sua vez, é B, sendo as manifestações extra-hepáticas mais comuns nesses
cercada pelo AgHBs na partícula viral completa, ou partícula de dois tipos. Predomina, no entanto, a evolução assintomática,
Dane. Há três formas: a IgG, a IgM e a total. A positividade da expressa algumas vezes apenas por manifestações gastrintesti-
total indica contato presente ou passado com o vírus B. A IgM nais sutis, em geral não valorizadas. A recuperação se processa
indica infecção aguda, ou reativação do vírus na dependência entre 2 e 8 semanas. A evolução para a cronicidade traduz-se
de imunossupressão. Pode positivar-se também no curso de he­ pela ausência de sinais e sintomas típicos, caracterizada apenas
patite crônica, significando uma reagudização. O anti-HBc IgG pela persistente elevação de níveis séricos de aminotransferases
representa infecção passada, ou, quando associada ao AgHBs, e expressão sorológica típica. Nas fases iniciais, além da icterícia,
sinaliza o estado de portador crônico. O antígeno “c”, AgHBc, notam-se outros sinais, hepatomegalia dolorosa e, eventualmen­
não é secretado no soro. te, esplenomegalia. Necrose maciça ou submaciça revela-se por
► AgHBe e o AcHBe (antígeno e anticorpo "e" do vírus colestase acentuada, distúrbios de coagulação e da consciência,
B). O antígeno “e” faz parte do core viral e indica replicação. insuficiência renal, pré-coma e coma hepático, sinais de exaus­
Pode ser detectado na hepatite aguda e na replicação viral no tão funcional do parênquima hepático, definido como hepatite
curso de hepatite crônica. Quando presente em doente crôni­ aguda fulminante (Capítulo 56). A hepatite A costuma invo-
co e associado ao AgHBs, ajuda a indicar tratamento antiviral. luir rapidamente na criança, mas pode demorar a resolver no
Seu anticorpo surge quando há resolução da hepatite aguda, ou adulto (hepatite aguda prolongada), sem que isso tenha uma
quando cessa a fase replicativa em hepatite crônica. significação ominosa. As hepatites por vírus B, C e D podem
O AcHBs, ou anti-I IBs, é o anticorpo contra o antígeno de cronificar, mas a por vírus A nunca o faz. O vírus E manifesta-
superfície do vírus B. É um anticorpo neutralizador e indica se, sobretudo, em epidemias, mais comumente em países em
infecção jugulada, ou resulta de vacinação contra hepatite B desenvolvimento. O curso clínico assemelha-se ao da hepatite
bem-sucedida, sobretudo se em título superior a 10 mUI/mf. A. É responsável por elevada mortalidade entre grávidas, so­
► DNA polimerase do vírus B. Indica presença do vírus B. bretudo aquelas que estão no terceiro trimestre de gestação. O
É pouco sensível. diagnóstico é comprovado pela presença de anti-VEH IgM (e
► Ensaios de hibridização. Utilizam várias técnicas e de­ IgG para fins epidemiológicos) e testes de hibridização para o
terminam partes específicas do DNA do genoma do vírus B. VHE RNA. Não há relato de evolução para a cronicidade.
São bastante sensíveis e detectam o DNA no soro em faixa de
1,5 a 20 pg/m^. Excelentes para distinguir uma fase replicativa
da não replicativa. ■ ASPECTOS LABORATORIAIS
► Ensaios bDNA (branched-chain DNA). São testes m ui­
to mais sensíveis do que os anteriores e indicam replicação Classicamente, em qualquer dos tipos de hepatite aguda
viral. viral, ocorre elevação de níveis séricos de aminotransferases,
► Testes por PCR (polymerase chain reaction) do DNA vi­ sempre acima de 500 a 1.000 U l/f, com valores maiores de
ral. São extremamente sensíveis para detectar o DNA do vírus. alanina-aminotransferase (ALT). Acentuam-se também as con­
Essa elevada sensibilidade acaba por tornar esses testes pouco centrações plasmáticas de gamaglutamiltransferase e, sobretu­
confiáveis em separar estados replicativos e não replicativos, do, de fosfatase alcalina, principalmente nas formas colestáticas.
porque algum DNA será sempre surpreendido. Há uma ele­ Hiperbilirrubinemia, quando presente, ocorre sempre à custa
vada relação entre a positividade desses testes e a presença de da fração direta, em geral não ultrapassando 20 m g/dl. São
AgHBs no soro. normais a atividade e tempo de protrombina, mesmo naque­
O teste ELISA para hepatite C detecta a presença de anti­ les mais acentuadamente ictéricos. Agravamento da icterícia
corpo em duas regiões do genoma do vírus. É muito sensível, e alargamento do tempo de protrombina significam sempre
mas pouco específico, com relativamente grande incidência necrose hepática mais extensa, que pode acompanhar-se de
de falso-positivos. O anticorpo detectado não é um anticorpo hipoglicemia e baixa síntese do fator V. Recomenda-se a repe­
neutralizador, isto é, não significa imunidade, cura da doença. tição de provas bioquímicas a cada 15 dias, até que ocorram
O teste recombinante RIBA é menos sensível do que o anterior, normalização dos parâmetros laboratoriais e a seroconversão
mas é mais específico. Outros testes para diagnosticar o VHC antigênica. O diagnóstico etiológico será sempre confirmado
são o bDNA quantitativo para o RNA do vírus C e o PCR. O pela sorologia, conforme já foi explicitado.
C-RNA pode ser pesquisado no soro e no tecido hepático e
constitui o padrão-ouro no diagnóstico da hepatite C.
A hepatite por vírus D é diagnosticada por teste ELISA, que
■ Diagnóstico diferencial
determina anticorpo contra o vírus D tanto no soro quanto no Os vírus não hepatotrópicos primariamente infectam outros
plasma. Esses anticorpos são das classes IgM (fase aguda) e IgG órgãos e tecidos, antes de envolverem o fígado como parte de
(infecção crônica). Há teste tipo PCR para surpreender o RNA uma infecção disseminada. Essas hepatites são causadas por
do vírus D no soro e no tecido hepático. vírus Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simples, varicela-
A hepatite E é pesquisada por teste ELISA, que detecta o zoster, adenovírus, vírus do sarampo e da rubéola. Menos fre­
anticorpo ao vírus E. quentemente, são responsáveis os vírus da febre amarela, das
febres de Lassa, Marburg, ebola e dengue, além dos reovírus,
rotavírus, hantavírus, influenza (síndrome de Reye), paramo-
■ Sintomas e sinais xivírus (hepatite de células sinciciais gigantes), e, talvez, o ví­
Os vírus A, B, C, D, E costumam apresentar o mesmo cur­ rus da imunodeficiência humana. A febre Q pode simular uma
so clínico, que se traduz pelo aparecimento de mal-estar ge­ hepatite viral.
Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira! 597

sobretudo no período em que os doentes evoluem ictéricos.


■ TERAPÊUTICA Recomenda-se suspensão de medicações hepatotóxicas e de
ingesta alcoólica, além de uma dieta nutritiva, mas respeitan­
■ Medidas preventivas do a tolerância do paciente. Internação hospitalar encontra-se
São fundamentais, nas hepatites virais A e E, de transmissão indicada quando ocorrem distúrbios hidreletrolíticos em con­
oral-fecal, a melhora das condições de higiene e saúde, sobretu­ sequência de vômitos incoercíveis, ou hipoprotrombinemia
do de saneamento básico, e de conservação e manipulação de (40 a 50%), e nos casos que evoluem para a forma fulminante,
alimentos, e o monitoramento dos pacientes já infectados. Es­ traduzida pelo aparecimento de encefalopatia dentro de 8 se­
pecificamente nos casos das hepatites B, C e D, é indispensável manas do início da icterícia. Esses deverão ser avaliados para
melhorar a qualidade das hemotransfusões, privilegiar doado­ um eventual transplante de fígado (Capítulo 77).
res voluntários e negativos para aqueles agentes virais. Deve-se
promover orientação aos grupos de risco, combater as ativida­ ■ Tratamento medicamentoso (interferon a)
des homossexuais promíscuas e alertar a população quanto a
parceiros sexuais contaminados. Os narcoadictos devem ser Cerca de 5% dos pacientes com hepatite aguda viral B evo­
exaustivamente informados sobre a utilização de agulhas e se­ luem por mais de 12 semanas com sinais clínicos, laboratoriais
ringas descartáveis e de uso próprio, individualizado. e sorológicos que traduzem persistência da doença e replicação
Encontram-se bem definidos os candidatos à imunização, viral. Certamente, são os que tendem para a hepatite crônica.
através de vacinas, disponíveis no comércio, contra os vírus Visando a encurtar a evolução daqueles doentes com esse curso
das hepatites A e B (Quadros 53.6 e 53.7). Da mesma forma, protraído da doença, alguns têm sido tratados com interferon
há esquemas vacinais especiais para situações específicas (Qua­ a nas doses de 3 ou 10 MU, 3 vezes/semana, durante 3 meses,
dros 53.8 e 53.9). o que permitiu a recuperação e interrupção do processo em
todos os casos assim manuseados.
A hepatite crônica desenvolve-se em 60% ou mais dos pa­
■ Medidas de suporte cientes cursando com hepatite aguda pelo vírus C. Cerca de
São comuns a todos os tipos de hepatites virais. Baseiam-se 50% desses evoluirão com doença estacionária, não progressi­
exclusivamente no repouso nas fases sintomáticas da doença, va, enquanto a outra metade caminhará insidiosamente para

------------------------------- ▼------------------------------- ------------------------------- ▼-------------------------------


Q u a d ro 53 .6 Candidatos à imunização contra hepatite viral A Q u a d ro 53.7 Candidatos à imunização contra hepatite viral B

Vacina para hepatite A, vírus inativado Vacina para h epatite B, recom bínante

Imunização de rotina Imunização de rotina


C ria n ç a s v iv e n d o e m c o m u n id a d e d e a lt o risco T o d o s os r e c é m -n a t o s
C ria n ç a s n ã o v a c in a d a s a té id a d e d e 11 a n o s
Grupos de risco
T r a b a lh a d o r e s d e s lo c a d o s p a ra re g iõ e s e n d ê m ic a s Grupos de risco
H o m o s s e x u a is m a s c u lin o s c o m m ú lt ip lo s p a rc e iro s In d iv íd u o s c o m m ú lt ip lo s p a rc e iro s se xua is
U tiliz a d o re s d e d r o g a s p a re n te ra is ilícitas P a rc e iro s se x u a is d e c o n ta to s c o m in d iv íd u o s A g H B s
T ra n s fu s õ e s d e fa to r VIII H o m o s s e x u a is m a s c u lin o s a tiv o s
In d iv íd u o s e x p o s to s a p rim a ta s n ã o h u m a n o s U tiliz a d o re s d e d r o g a s p a re n te ra is ilícitas
S ta ffs d e u n id a d e s in te n s iv a s d e r e c é m -n a t o s o u e x c e p c io n a is T r a b a lh a d o r e s d e s lo c a d o s p a ra re g iõ e s e n d ê m ic a s (> 6 m e se s )
E x p o s to s a s a n g u e e d e r iv a d o s
Risco > de hepatite fulminante
C lie n te s o u s ta ffs d e c o m u n id a d e s fe c h a d a s
> 3 0 a n o s c o m h e p a to p a t ia c rô n ic a
P a c ie n te s c o m in s u fic iê n c ia re n a l c rô n ic a
Risco > de transmissão P a c ie n te s r e c e b e n d o c o n c e n t r a d o s d o s fa to re s d e c o a g u la ç á o
M a n ip u la d o r e s d e a lim e n to s

-------------------------------------------- ▼--------------------------------------------
Q u a d ro 53.8 Dosagens e esquemas de vacinação anti-hepatite viral A (intramuscular)

Esquem a Esquem a
Grupo HA V R IX * ( 2 -1 8 A) VAQTA® (2-27 A)
(m eses) (m eses)

C ria n ç a s 7 2 0 E L IS A 0 e 6 -1 2 25 U / m / 0 e 6 -1 8

U / 0 ,5 m *

ou

3 6 0 E L IS A 0,1 e 6 - 1 2

U / 0 ,5 m *

(> 1 8 A )

A d u lt o s 1 .4 4 0 U / 1 ,0 m Z 0 e 6 -1 2 50 U / m / 0 e 6 -1 2

A = Anos; U = Unidades.
598 Capítulo 53 / Hepatite Aguda Vira!

------------------------------------------
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------▼

Q u a d ro 53 .9 Dosagens e esquemas de vacinação anti-hepatite viral B (intramuscular)

Vadnas para hepatite B


Grupos Esquemas (meses)
Recombivax HB® Engerix B®

M ã e s A g H B s (2 ) 0 -2 ,1 ; > 4 e 6 - 1 8 2 ,5 m g / 0 ,5 m l 10 m g / 0 ,5 m l

M ã e s A g H B s (1 ) N a s c im e n t o < 1 2 h : H B IG ;
1 ís 2 e 6

5 ,0 m g / 0 ,5 m l 10 m g / 0 ,5 m l

C ria n ç a s ( 1 - 1 0 a n o s ) 0,1 i 2 e 4 - 6 2,5 m g / 0 ,5 m l 10 m g / 0 ,5 m l

A d o le s c e n t e s ( 1 1 - 1 9 a n o s ) 0,1 i 2 e 4 - 6 5 ,0 m g / 1 0 ,5 m l 10 m g / 1 0,5 m l

A d u lt o s (£ 2 0 a n o s ) 0,1 i 2 e 4 - 6 1 0 m g / 1 ,0 m l 2 0 m g /1 f0 m l

Im u n o s s u p r im id o s a d u lto s 0,1 e 6 4 0 m g / 1 ,0 m l 4 0 m g / 2 ,0 m l

HBIG = gam aglobulina hiperim une; h » horas.

cirrose, dentro de 20 a 25 anos. Visando a impedir essa tendên­ sitivo, antes do aparecimento dos sintomas?; 2. por ocasião do
cia, existem 11 estudos controlados empregando interferona a pico de elevação da ALT?; 3. quando os títulos do RNAVHC
ou p, na condução desses pacientes. Resultados encontram-se estão declinando?; 4. ou, mesmo mais tarde, após esperar o
discriminados no Quadro 53.10. Um estudo por metanálise de­ clareamento espontâneo do RNAVHC, de forma que apenas
monstrou uma resposta completa das transaminases em 69% os pacientes virêmicos sejam tratados?; 5. persistem também
dos pacientes que receberam interferon contra apenas 29% dos dúvidas se aqueles com genótipos 2 ou 3 deverão ser tratados
controles. Embora esses resultados pareçam reconfortantes, obedecendo ao mesmo esquema proposto para aqueles com
é preciso que se note que apenas uma pequena proporção de hepatite crônica?; 6. e, sobretudo, indaga-se sobre qual atitude
casos de hepatite aguda por vírus C são sintomáticos, e menos deverá ser tomada naqueles usuários de drogas intravenosas,
ainda são reconhecidos clinicamente. ou com infecção concomitante pelos HIV ou VHB?
Mais recentemente, procurou-se avaliar a eficácia da inter­
ferona peguilado a 2b (1,5 jig/kg/semana), administrado por
24 semanas a pacientes alemãs. Os resultados obtidos foram
similares àqueles com interferon padrão, com índices de res­
■ LEITURA RECOMENDADA
posta virológica ultrapassando 90%. Barreiros, AP, Sprinzl, M, Rossct, S et al. EGF and HGF leveis are incrcascd
Apesar desses avanços, persistem dúvidas sobre a manipula­ during active HBV infcction and cnchancc survival signaling through cx-
ção desses pacientes, a propósito de qual o momento de iniciar tracellular matrix interactions in primary human hcpatocytcs. Int} Câncer,
a terapêutica: 1. quando o paciente tornou-se RNAVHC-po- 2009; 124:120-9.
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Hepatite Viral Crônica
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Leonardo ReuterMotta Gama,
Celso Marques Raposo Júnior, Cristiane Maria de Freitas Ribeiro,
Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Maria Elizabeth Calore Neiva,
Gerusa Máximo de Almeida, Raul Carlos Wahle

Manifestações de agressão hepatocelular traduzidas, sobretudo, Aproximadamente, 500.000 desses pacientes morrerão ao ano
por elevação de níveis séricos de aminotransferases persistin­ em consequência da instalação de cirrose e carcinoma hepato­
do por 6 ou mais meses, conduzem ao diagnóstico de hepatite celular, e outros 40.000 de hepatite aguda fulminante em todo
crônica. A confirmação alicerça-se, no entanto, em um padrão o mundo.
histológico bem definido, em geral heterogêneo, e também em As vias clássicas de infecção pelo VHB relacionam-se ao
expressão clínico-laboratorial variável. contato com sangue infectado ou secreções corpóreas. Nessas
condições, o agente penetra o corpo via mucosas ou soluções
de continuidade cutâneas, vias abertas, como consequência do
■ ASPECTOS ETIOLÓGICOS uso de agulhas, ou de seringas contaminadas, ou via oral. A
detecção do antígeno de superfície (AgHBs) no sangue pode
Diferentes agentes ou doenças podem levar a que pacientes ocorrer em 4-10 semanas pós-contato. A transmissão sexual
evoluam com hepatite crônica. Neste capítulo, estudaremos se mostra prevalente, predom inando entre homossexuais
apenas as formas relacionadas aos vírus B, D, C e G, com a
masculinos, mas, também, identificada entre heterossexuais.
evolução do processo podendo desaguar na cirrose e no carci- Por sua vez, a via perinatal mostra-se responsável por 90%
noma hepatocelular (Quadro 54.1). dos casos de mães que são AgHBe positivos, mas essa via de
contaminação pode se dar durante o parto, ou no período
pós-natal, pelo contato estreito m aterno-recém nato. Essa
■ INFECÇÃO PELO VÍRUS DA HEPATITE B evolução também se identifica entre crianças e adolescentes,
O vírus da hepatite B (VIIB) é um hepadnavírus, circular, via escovas de dentes ou barbeadores e mesmo brinquedos
envelopado, que replica via RNA, usando transcriptase rever­ contaminados.
sa. A infecção crônica induzida por esse agente atinge 400 m i­
lhões de pessoas em todo o mundo, predominando, sobretu­
do, entre habitantes da Ásia e África, onde a transmissão se -------------------------------------▼-------------------------------------
processa mais frequentemente por via vertical (matemo-fetal), Q u a d ro 54.2 Fatores predisponentes à evolução para hepatite crônica B1
mas, também, horizontal, comportamento observado entre
crianças, adolescentes e adultos. Os fatores predisponentes que 1. Idade do início da R e c é m -n a t o s n á o im u n iz a d o s 9 0 -1 0 0 %
contribuem para tal evolução estão dispostos no Quadro 54.2. infecção R e c é m -n a t o s im u n iz a d o s 1 0 -2 0 %
C ria n ç a s 2 0 -3 0 %
A d u lt o s 5 -1 0 %

2. Sexo - estado de H o m e n s : 5 - 1 0 % se t o r n a m c rô n ic o s
T portador do AgHBs M u lh e re s : 1 - 3 % se t o r n a m c rô n ic o s

Q uadro 54.1 Etiologia das hepatites crônicas 3. Outros relacionados Id a d e m a is a v a n ç a d a a o d ia g n ó s t ic o


ao portador G r a v id a d e d a d o e n ç a , s u rto s re c o rre n te s d e

Viral T ip o s B, D , C G n e c ro s e h e p a to c e lu la r {fia re s), n o r m a liz a ç ã o


s u s te n ta d a d e a la n in a -a m in o tr a n s fe r a s e (A L T )
Idiopática C r ip t o g ê n ic a
A u t o im u n e
4. Estado imunológico M a is fr e q u e n t e m e n t e o b s e r v a d a e m p a c ie n te s
c o m c â n c e r, s u b m e t id o s a q u im io t e r a p ia , n os
Induzida porfármacos O x ife n is a tin a , m e t ild o p a , is o n ia z id a ,
d ia lis a d o s e p o r t a d o r e s d e s ín d r o m e d e D o w n ,
n itr o fu r a n t o ín a , a s p irin a , fe n ilb u t a z o n a ,
d e lin fo m a s o u le u c e m ia s
s u lfo n a m id a , d a n t r o le n e e o u tr o s
5. Relacionado ao vírus R e p lic a ç ã o d u r a n t e s e g u im e n t o , v a r ia n t e e
Metabólica D o e n ç a d e W ils o n
g e n ó t ip o s d o V H B , c o in fe c ç ã o c o m V H D ,
D e fic iê n c ia d e a -1 -a n t it r ip s in a
V H C e H IV , in g e s ta a lc o ó lic a e xc e s siva , fu m o ,
Alcoólica c o n ta m in a n t e s a m b ie n ta is c o m o a fla to x in a

600
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 601

■ ASPECTOS CLÍNICOS ■ Definições de estágios evolutivos


Classicamente, 60-70% dos infectados pelo VHB não m a­
e critérios diagnósticos
nifestam quadro clínico agudo bem definido, evoluindo de Encontram-se discriminados no Quadro 54.3 e os padrões
forma subclínica. Cerca de 5-10% destes desenvolvem in­ de marcadores sorológicos nas diferentes fases da infecção no
fecção crônica, traduzida pela persistência sérica do AgHBs, Quadro 54.4.
O comportamento evolutivo também guarda relação com a
bem como de outros marcadores virais, tais como o AgHBc e
expressão de diferentes genótipos, classificados de A-H, segun­
AgHBe, ou DNA VHB identificados no sangue e também no do diferenças identificadas na sequência do DNA. Assumem
fígado. Fatores predisponentes a essa evolução encontram-se distribuição geográfica variável (Quadro 54.5), tendo caracte­
discriminados no Quadro 54.2. Nesses pacientes, persistem rísticas específicas (Quadro 54.6).
no soro, pelo menos por 6 meses, esses produtos virais. Não
raro, alguns são anti-AgHBe e DNA VHB positivos, tradução ------------------------------------- ▼-------------------------------------
da presença de um vírus que sofre mutações, que ocorrem nos Q u a d ro 54.3 Definições e critérios diagnósticos usados na infecção
genes precoce, assim como na região promotora do core, além pelo vírus da hepatite B (Keefe etal., 2004)
do gene tirosina - metionina - aspartato - aspartato (m uta­
ção YMDD). Nessa fase crônica, são comuns níveis séricos Definições de estágios evolutivos Critérios diagnósticos
elevados de alanina-aminotransferase (ALT) e gamaglutamil-
H e p a t it e c rô n ic a 1. A gH B s (+ )> 6 m e s e s
transferase (GGT), bem como são normais as concentrações D o e n ç a n e c ro in fla m a tó ria 2. D N A V H B sé ric o > 1 0 s c ó p ia s / m í
das globulinas, de bilirrubina total e sua fração direta, da al- d e f íg a d o 3. P e rsiste n te s o u in t e rm ite n te s

bumina e a atividade de protrombina. Na maioria das vezes, e le v a ç õ e s sé ricas d e A S T o u A L T


4. B io p s ia c o m p a t ív e l (e s c o re £ 4 )
os pacientes referem sintomas inespecíficos, tais como dor
abdominal, digestão lenta, flatulência, anorexia, náuseas e fa­ S u b d iv id e -s e e m : 1. A g H B e ( + ), A n t i-A g H B e ( - )
2. A g H B e ( - ) , A n t i-A g H B c (+ )
diga fácil. Não se identificam sinais físicos, tais como aranhas
E s ta d o d e p o r t a d o r A g H B s 1. A g H B s (+ ) > 6 m e se s
vasculares, palma hepática, icterícia ou ginecomastia, e, ex­ in a tiv o 2. A g H B e ( - ) , A n t i-A g H B e (+ )
cepcionalmente, exibem hepato e/ou esplenomegalia. Pode, In fe c ç ã o p e rs is te n te 3. D N A V H B sé ric o < 1 0 s c ó p ia s / m /

no entanto, haver manifestações extra-hepáticas da doença, p e lo V H B 4. N ív e is p e rs is te n te s > d e A L T e A S T

como artralgia, púrpura de Henoch-Schõnlein, glomerulo- Sem doença 5. B io p s ia h e p á tic a c o m e sco re


n e c ro in fla m a tó ria n e c r o in fla m a t ó r io (< 4 )
nefrite, derrame pleural, pericardite, edema angioneurótico
H e p a t it e re s o lv id a 1. H is tó ria p ré v ia d e h e p a tit e a g u d a
e anemia aplástica. Cerca de 10% apresentam cura sorológica In fe c ç ã o p ré v ia s e m e v id ê n c ia o u c rô n ic a
espontânea, permanecendo alguns com o AgHBs, tornando- b io q u ím ic a , h is to ló g ic a o u 2. P re se n ça s d o s a n t i-H B c o u a n ti-H B s

se anti-AgHBe e anti-AgHBc IgG positivos. O curso clínico v ir o ló g ic a d e d o e n ç a o u 3. A g H B s e A g H B e n e g a tiv o s


in fe c ç ã o v ira l e m a tiv id a d e 4. D N A V H B ( - )
ou história natural da hepatite viral se encontra discriminado
5. V a lo re s n o r m a is d e A S T e A L T
na Figura 54.1.

Figura 54.1 Curso clínico ou história natural da hepatite viral B (Fattovich, Zagni, Scatollini, 2004).
602 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q uadro 54.4 Padrões comuns de marcadores sorológicos nas diferentes fases da infecção pelo vírus da hepatite B

Diferentes marcadores sorológicos

Anti-AgHBe

Fases da infecção AgHBs Anti-AgHBs IgM IgG AgHBe Anti-AgHBe

P e r ío d o d e in c u b a ç ã o + - - - + -

In fe c ç ã o a g u d a + - + - + -
C o n v a le s c e n ç a o u re c u p e ra ç ã o
C o m im u n id a d e - + + ± - +

Ja n e la im u n o ló g ic a o u r e c u p e r a ç ã o -

S e m im u n id a d e - - + ± - -

P o r t a d o r c rô n ic o
[ i 6 m eses) + - + ± - +
(s 6 m eses) + - + ± + -

Im u n iz a ç ã o p ó s -v a c in a ç ã o + - - -

♦ * Presente; - = Ausente; £ ■ Maior ou igual; á ■ M enor ou igual.

▼ --------------------------- T
Q u a d ro 54.5 Distribuição geográfica dos diferentes genótipos do vírus Q u a d ro 54 .6 Características especiais dos genótipos
da hepatite B (Keefe etal., 2004) do vírus da hepatite B

Ge nó tip os D is trib u içã o g eo grá fica 1. S e r o c o n v e r s á o A g H B e p a ra a n t i-A g H B e n o s m a is jo v e n s e p o r t a d o r e s


d o g e n ó tip o C
A A m é r ic a d o N o r t e , E u ro p a O rie n t a l, ín d ia e Á frica 2. G e n ó t ip o s A e B r e s p o n d e r a m m e lh o r à te ra p ê u tic a c o m in te rfe ro n a
BeC Á sia 3. S e u p a p e l, d o p o n t o d e v is ta d e e v o lu ç ã o d a d o e n ç a h e p á tic a , re q u e r
D E u r o p a O c id e n t a l, O r ie n t e M é d io , ín d ia e s tu d o s m a is a p r o f u n d a d o s

E Á fric a O c id e n t a l, Á frica d o Sul 4 . P o u c o p e s q u is a d o na p rá tic a c lín ic a d iá ria . O n e r o s o , c o n tr o v e r s o e d e


In c e rta im p o r t â n c ia
F A m é r ic a s d o S ul e C e n tra l

G E s ta d o s U n id o s e E u ro p a

H A m é r ic a C e n tra l e C a lifó rn ia

T dependentes, ou independentes, voltado contra o AgHBe. Na


dependência desse processo, emergem mutações, comporta­
mento que se traduz por positividade do AgHBe, DNA VHB
■ Mecanismos patogenéticos e hipertransaminasemia, gerando lesões histológicas típicas.
Essencialmente, aceita-se que, diante da presença do VHB, Assim é que a maioria dos pacientes com hepatite crônica pelo
disparem-se duas respostas a partir do sistema imunológico VHB entra em uma fase inativa, gerando o AgHBe que é clarea­
dos portadores. A mais importante delas é a destruição das cé­ do, ocorrendo seroconversão para anti-AgHBe, com nível baixo
lulas albergadoras do vírus, via apoptose. A outra vertente se ou indetectável do DNA VHB. Nesses, mostra-se baixo o risco
baseia no reconhecimento dessas células, promovendo-se seu de progressão para doença hepática grave e de evolução para o
clareamento a partir de linfócitos T citotóxicos competentes. carcinoma hepatocelular, com risco de que aqueles imunode-
Uma terceira perspectiva se relaciona com o efeito citoprotetor primidos possam cursar com reativação da doença. Os pacientes
exercido a partir de hiperexpressões de fatores de crescimento são mais propensos ao desenvolvimento de formas mais gra­
epidérmico (EGF) e dos hepatócitos (HGF), na busca de ativar ves quando infectados na infância ou adolescência, sobretudo
fatores de regeneração. No entanto, pode ocorrer escape dos aqueles do sexo masculino que cursam com AgHBe positivo,
hepatócitos infectados, mediado pela molécula de adesão CD95, com títulos elevados do DNA VHB, ou que se encontram coin-
contribuindo para instalação de um fenótipo de resistência. fectados pelos vírus das hepatites D e C, ou pelo HIV.
A ineficácia nessa atuação exercida pelos mecanismos corpó- Ultimamente, aceita-se que a infecção persistente pelo vírus
reos de defesa gera quatro fases cronológicas, típicas da infecção da hepatite B relaciona-se ao comportamento de fatores gené­
crônica pelo VHB, baseadas no comportamento do AgHBe/ ticos do hospedeiro. O alicerce clínico dessa hipótese se baseia
anti-AgHBe, nível de replicação viral e valores séricos de alani- na comprovação de que são pacientes do sexo masculino, e pa­
na-aminotransferase. Essas fases incluem imunetolerância, imu- rentes em primeiro grau das mulheres infectadas, que exibem
neclareamento, baixa ou ausência de replicação (fase inativa do maior chance de desenvolver sequelas crônicas, tais como cirrose
portador) e, finalmente, de reativação. A duração dessas fases é e carcinoma hepatocelular. A relação com esse comportamen­
extraordinariamente variável e grandemente influenciada pela to foi inicialmente atribuída a variantes genéticas em genes do
inter-relação vírus-hospedeiro, correlacionando-se morbidade complexo maior de histocompatibilidade (MHC), aos genes não
e mortalidade com esses aspectos. Esse comportamento tam ­ MHC, codificadores do fator a de necrose tumoral, e ao receptor
bém se correlaciona com o poder de ataque exercido por células 1 estrogênico. Outros pesquisadores propõem que essa evolução
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 603

se alicerce na resposta imune adaptativa, com fracas respostas


exercidas por células T CD4, específicas do vírus da hepatite B.
■ Aspectos clínicos do VHD
Ampliam-se esses conceitos com a identificação de 11 polimor- Varia desde o estágio de portador crônico assintomático
fismos de nucleotídeo único localizados nas regiões HIÃ-DPA1 até aquele em que cursa para doença progressiva. Em outros,
e HLA-DPB1, sendo de risco maior a não resolução do pro­ pode se manifestar sob forma aguda benigna ou assumir um
cesso (DPA 1*0202 = DPB1*0501 e DPA1*0202 - DPB1*0301), aspecto avassalador de hepatite fulminante. Essa última evo­
enquanto os voltados à resolução da produção do clareamento lução se observa na coinfecçâo, quando ambos os agentes são
exibem os haplótipos (CDPAr0103-DPBl*0402 e DPA1*0103- inoculados no mesmo momento, ou na superinfecção (quando
DPBr0401). Certamente, a esses marcadores incorporam-se o VHD é inoculado naqueles já com doença hepática crônica
fatores virológicos e imunológicos, ao mesmo tempo em que se causada pelo VHB).
ampliam as perspectivas de novas formulações de drogas alvos, Importante ressaltar que, nos indivíduos que fazem uso de
ou geração de novas formulações de vacinas. Assim, será possí­ drogas injetáveis, a infecção pode ter curso bifásico, dependen­
vel prevenir ao mesmo tempo em que ampliam a capacidade do te do estado de coinfecçâo, estes com risco maior de evolução
sistema imunológico em bloquear a replicação desse agente. para doença crônica, ocorrendo inexorável e progressiva insu­
ficiência hepatocitária.

■ INFECÇÃO PELO VÍRUS DA HEPATITE ■ Aspectos diagnósticos


DELTA (VHD) Baseiam-se no emprego de método de radioimunoensaio,
Este agente se comporta como um vírus defeituoso que re­ tendo um comportamento típico expresso pela presença de:
quer a função auxiliadora do VHB, ou de outro hepadnavírus, 1. anti-VHD IgM transitório e de apresentação retardada ocor­
atuando como auxiliador, uma exigência para que se processe rendo no curso de hepatite aguda autolimitada, com a persis­
sua secreção e disponibilidade. Apresenta-se como um vírus tência se correlacionando com nível de replicação e gravidade
de genoma RNA, de fita única, tendo seu envelope envolvido da doença hepática; 2. altos títulos de anti-VHD IgG estão pre­
por outro proveniente do VHB e de algumas de suas proteínas. sentes na forma crônica; 3. aqueles coinfectados com VHB na
É endêmico na bacia Mediterrânea, afetando principalmente doença aguda cursam com anti-AgHBc IgM e, quando existe
crianças e adultos jovens. Mostra-se prevalente também em superinfecção, são elevados os valores de RNA VHD, com su­
algumas regiões da América do Sul, como no Brasil, sobretu­ pressão de marcadores de replicação do VHB, inclusive sendo
do no delta do Rio Purus e na Colômbia, restrito, portanto, à anti-AgHBc IgM negativos.
Amazônia Ocidental. Nessas regiões subtropicais, permanece
e se comporta como um reservatório importante, comporta­
mento relacionado com ausência de programas de vacinação ■ INFECÇÃO PELO VÍRUS DA HEPATITE C (VHC)
anti-VHB, com a principal rota de transmissão ocorrendo por
via inaparente, ou percutânea. Esse comportamento leva a que Estima-se que no mundo existam cerca de 180 milhões de
5% daqueles portadores do VHB o sejam também do VHD, indivíduos cronicamente infectados pelo VHC, constituindo
chegando a cerca de 15 milhões de pessoas no mundo porta­ problema significativo de saúde pública, sobretudo para habi­
dores desses dois agentes. Também se mostra prevalente no tantes dos países ocidentais. O agente responsável é um RNA
leste europeu e norte da África. vírus, cujo genoma é composto por 10.000 nucleotídeos em ex­
tensão, com uma única abertura de leitura codificada por uma
proteína maior, clivada em outras menores, por proteases virais
■ Mecanismos patogenéticos e do próprio hospedeiro, as quais constituem a própria estru­
A patogênese do processo de lesão hepatocelular induzi­ tura do vírus (proteínas estruturais do core El e E2), comple­
da pelo VHD se relaciona com o efeito lesivo despertado por tada pelo maquinário replicativo desse agente, as proteínas não
linfócitos T citotóxicos, os quais atuam ao reconhecer antí- estruturais NS2, NS3, NS4, NS5. A última dessas é responsável
genos de histocompatibilidade classe I, o que acontece mais pela sua migração transmembrana, penetração hepatocitária e
frequentemente sobre hepatócitos albergadores do AgHBe, ligação aos ribossomos, replicando através de uma enzima de­
cujo clareamento depende dos níveis elevados de interleucina pendente de RNA polimerase.
12. Esses acontecimentos cursam com níveis séricos elevados A presença desse agente nos hepatócitos dispara uma série
de alanina-aminotransferase, cujo comportamento evolutivo de eventos intracelulares, modulados via receptores específicos,
depende também da participação lesiva exercida a partir das resultando em produção aumentada de interferon a e p, me­
atuações do fator a de necrose tumoral e do interferon y. Essa diadores da resposta antiviral despertada no hospedeiro. São
evolução, no entanto, apenas ocorre quando a carga do VHB essas duas moléculas que ativam transdutores de sinais pela
se mostra elevada, o que se expressa sorologicamente por ele­ via Janus-cinase, ativando também a transcrição em células
vados níveis séricos de DNA VHB. Isso também sucede ao ní­ infectadas e não infectadas, essas limitadoras da disseminação
vel intra-hepático. célula a célula, com uma poliproteína ácida composta de 3.000
Com a associação VHB/VHD, o espectro da doença estende- aminoácidos, passando a ser processada por proteases virais e
se desde portadores assintomáticos até doentes que apresen­ do próprio hospedeiro. Produzem-se assim dez diferentes po-
tam forma grave de hepatite, cirrose e carcinoma hepatocelular lipeptídios, tendo a serina NS3 papel essencial na replicação, ao
(CHC). Na maioria das vezes, cursa de forma aguda benigna e mesmo tempo em que se envolve na evasão da resposta exercida
autolimitada. Por sua vez, naqueles com mutações do gene S, pelo hospedeiro, levando à persistência da infecção viral.
bem como acontece em ratos transgênicos, a agressão hepato­ Também desse processo de replicação participa uma en­
celular gera hepatócitos com aspecto em vidro fosco, encerran­ zima, RNA polimerase, codificada pelo gene NS5B, pronto a
do gotículas de gordura que envolvem o núcleo, sendo essas evoluir sob forma mutante. Variabilidade nessa sequência gera,
formações denominadas células em mórula. pelo menos, 6 diferentes genótipos predominando no Brasil,
604 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

Hepatite aguda Progressão de hepatite crônica a cirrose 10 a 30 anos (6 meses)

Figura 54.2 Curso clínico ou história natural da hepatite viral C.

no Japão e na Austrália, os 1, 2 e 3 na África, o 4 no Egito e o hepática com finalidade de: 1. avaliar o grau das lesões necroin-
6 no Oriente Médio. São todos hepatotróficos, replicando em flamatórias (AO-3); 2. estadiar a fibrose (FO-4); 3. identificar
primatas não humanos e entre os humanos, não sendo citopá- cofatores que contribuem para evolução crônica, tais como,
ticos diretos, porém com a lesão hepatocelular, como vimos sinais de doença hepática alcoólica ou de esteato-hepatite não
anteriormente, sendo imunemediada via linfócitos T-helper alcoólica e sobrecarga de ferro, definidos se valendo do escore
(CD4) e T citotóxicos que se envolvem no reconhecimento de META VIR. Mais recentemente, tem sido proposto avaliá-los
antígenos virais dispostos em superfícies celulares, atuando em usando o método de elastrografia por impulsos (FicroScan),
conjunto com proteínas do complexo MHC classe 1. com a elasticidade hepática sendo mensurada por ondas ul-
trassonográficas. Ressalte-se que o estudo histológico possibi­
■ Aspectos clínicos do VHC lita identificar ainda agressão de duetos biliares e existência de
agregados linfocitários e folículos linfoides, além de esteatose
A infecção aguda pelo VHC, na maioria das vezes, cursa as- macro e microvesicular, além de ser possível, em futuro pró­
sintomática e sem precipitar o aparecimento da icterícia. Cerca ximo, definir a expressão de certos genes ou do micro-RNA,
de 50-80% desses pacientes, no entanto, evoluem para hepatite abrindo-se perspectiva para definir, valendo-se desses marca­
crônica, metade dos quais não manifesta sintomas, enquanto dores, a previsão sobre resposta ao tratamento com interferon
os outros apresentam sintomas inespecíficos, tais como aste- peguilado e ribavirina.
nia, mal-estar geral ou náuseas. Esses terão um curso clínico e
história natural típicos, conforme expresso na Figura 54.2, com
fatores influentes sobre índice de progressão para cirrose e car-
cinoma hepatocelular, traduzindo as tendências apresentadas
■ INFECÇÃO PELO VÍRUS DA HEPATITE G (VHG)
na Figura 54.2 e no Quadro 54.7. Neste território, parece interessante fazer um relato histó­
rico. Este vírus foi identificado em 1955, a partir da injeção do
■ Aspectos diagnósticos sangue de um cirurgião em um sagui. As iniciais do cirurgião,
GB, foram usadas para a denominação do agente. Em 1995,
A doença revela-se bioquimicamente por elevação persis­ cientistas dos Laboratórios Abbott, retomando estudos inicia­
tente e flutuante dos níveis séricos de ALT e AST. Diante da dos na década de 1960 por Deinhardt, valendo-se de um soro
suspeita clínica, se pesquisa no sangue a presença do anti-VHC. daquele cirurgião GB, clonaram e sequenciaram dois vírus, de­
Positiva implica a busca de identificação do RNA VHC (técnica nominados, então, GBV-A e GBV-B. O primeiro, quando in­
PCR), seguida da determinação da carga viral e do genótipo, jetado, infectava pequenos saguis, mas não causava hepatite.
sobretudo quando se busca iniciar o tratamento específico para Por sua vez, o segundo provocava hepatite aguda autolimitada
tais pacientes. Complementa-se esse início se valendo da biópsia naqueles primatas. Nenhum deles, no entanto, foi encontra­
do ulteriormente em outros seres humanos, permanecendo
ainda inexplicável de que forma o cirurgião se infectou com
------------------------------------- ▼------------------------------------- eles. Logo em seguida, outro vírus foi descoberto e isolado em
Q u a d ro 54 .7 Cofatores influentes sobre índice de progressão para indivíduos com comportamento de alto risco para hepatite,
cirrose (Albertitffl/., 2004) valendo-se da técnica de PCR por transcrição reversa, logo de­
signado de GBV-C. Concomitantemente, em outro laboratório,
E tn ic id a d e foi descrito um quarto agente, isolado de pacientes portado­
V ire m ia d e base
res de hepatite não A-E, nomeado HGV. Subsequentemente,
G e n ó t ip o 1 b
comprovou-se que tanto este quanto o GBV-C eram variantes
de um mesmo vírus, rarissimamente encontrando-se associados
Quasispecies
a hepatite. Apesar dessa comprovação, cerca de 10 a 20% dos
Id a d e a o d ia g n ó s t ic o
pacientes com hepatite não A-E estão infectados pelo GBV-C/
Im u n o g e n é t ic a (P o lim o r fis m o d o g e n e IL 2 8 B )
HGV, responsável por pequena, porém distinta, proporção de
S o b r e c a r g a d e fe rro casos de hepatites pós-transfusionais, causando doença hepá­
Este a to s e h e p á tic a tica aguda leve, gerando discreta elevação dos níveis séricos de
C o in fe c ç ã o c o m H IV o u v íru s d a h e p a tite B aminotransferases. Forma mais agressiva verifica-se entre he-
O b e s id a d e e re s is tê n cia à in s u lin a modialisados, e a sua presença tendo sido descrita em 6% dos
Falta d e re s p o s ta à t e ra p ê u tic a a n tiv ira l pacientes com hepatite crônica anteriormente definida como
H ip o r r e g u la ç ã o d e g e n e s h e p á tic o s e s tim u la d o s p e lo in te rfe ro n
criptogênica e, em alguns japoneses, evoluindo como forma
fulminante da doença.
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 605

de alanina-aminotransferase, bem como coinfecção com VHD


■ CLASSIFICAÇÃO HISTOLÓGICA DAS HEPATITES ou VHC e associação com síndrome metabólica. Desses, 3%
CRÔNICAS VIRAIS cursarão com sinais de descompensação da cirrose ao ano, com
sobrevida de 5 anos sendo de apenas 14-28%, bem diferentes
A partir de 1981, tomando por base critérios que incluem dos 84% identificados naqueles sem sinais de descompensação
inflamação, necrose, fibrose e modificação da arquitetura, as hepatocelular.
alterações histológicas passaram a ser graduadas e definidas Objetiva-se o bloqueio dessa tendência evolutiva através
através de sistema de escore que define atividade inflamatória da administração de drogas que reduzam morbidade e m or­
(Quadro 54.8) e intensidade da fibrose ou presença de cirrose talidade, ao promoverem o clareamento do AgHBe, com se-
(Quadro 54.9). roconversão para anti-AgHBe, gerando normalização do valor
sérico de ALT e desaparecimento do DNA VHB avaliado pela
■ Aspectos terapêuticos técnica de hibridização (dot blot). Necessário que o fárma-
co provoque involução histológica da hepatite crônica, típi­
■ Hepatite crônica pelo VHB co comportamento observado naqueles que se encontram na
Preocupa nesses pacientes com hepatite crônica pelo VHB a fase imunoativa da infecção crônica. Encontra-se, sobretudo,
presença das formas replicativas do DNA VHB, definidas como indicado o tratamento naqueles em que a seroconversão es­
cccDNA (covalentely closed circular), mantidas viáveis desde o pontânea não ocorreu e que se encontram em torno de 35 ou
início da contaminação no núcleo dos hepatócitos infectados, no início dos 40 anos de idade. Também assim deverão ser
dotados de longa vida média, com interferências ou análogos conduzidos aqueles que cursam com reativação da agressão
nucleosídicos se mostrando incapazes de inibir a persistente vi- hepatocelular, sobretudo os pertencentes ao sexo masculino,
remia, pois essas moléculas cccDNA atuam como reservatório, ou que portam genótipo C, fazendo uso abusivo de etanol, com
promovendo consistente replicação do genoma viral, responsá­ história familiar de carcinoma hepatocelular ou coinfectados
vel pela recorrência do quadro inflamatório após interrupção com HIV, VHC ou VHD.
da terapêutica. Nesses doentes, também ocorre emergência de Uma vez iniciada a terapêutica, medidas de monitorização
quasispecies com seleção de diferentes mutantes em resposta da resposta precisam ser adotadas, segundo o seguinte esque­
imunológica despertada pelo hospedeiro, cujos hepatócitos têm ma: 1. mensuração dos títulos de VHB DNA e ALT a cada 12
vida média entre 30 a 100 dias. semanas e de AgHBe/Anti-AgHBe a cada 24 semanas; 2. a
Assim é que, nos adultos portadores do VHB, 40-70% têm negativação desses marcadores orienta para a interrupção da
evidência de replicação viral, sendo AgHBe e DNA VHB posi­ farmacoterapia após 6 a 12 meses; 3. monitorização periódica
tivos, 15-20% dos quais desenvolvem cirrose dentro de 5 anos, obrigatória dos AgHBe e DNA VHB a cada 4-6 meses, pois
com incidência anual em torno de 0,7%. Fatores de risco para uma recorrência é possível com a interrupção da terapêuti­
que ocorra essa evolução incluem, além da presença desses mar­ ca, o que nunca deverá ser feito naqueles que são cirróticos.
cadores, idade avançada, níveis séricos elevados e persistentes Atuando-se dessa forma, tenta-se retardar a evolução para um
possível carcinoma hepatocelular, embora não se tenha ainda
definido a estratégia de rastreamento desse tipo de neoplasia
nesses pacientes. As opções terapêuticas a serem empregadas
------------------- T ------------------- na condução desses infectados se encontram expostas logo
Q u a d ro 54.8 Sistema de escore para definir atividade em seguida.
necroinflamatória na hepatite crônica
■ Interferons peguilados
Escore
Disponíveis sob duas apresentações: a2a (Pegasys®) ou a2b
(graus) A tivid ad e portal/periportal Atividade lobular
(Pegintron®), nas doses recomendadas, respectivamente, de
0 N e n h u m a o u m ín im a Nenhum a 180 mcg e 100 mcg/semana, durante 6 meses. Não podem ser
1 In fla m a ç ã o p o r t a l (H C P ) In fla m a ç ã o s e m n e c ro s e
administrados em cirróticos, sobretudo quando se encontram
2 N e c r o s e p e rifé rica le ve N e c ro s e fo ca l e c o r p ú s c u lo s
em fase de insuficiência hepática, pois, nesses, o risco de cla­
a c id ó filo s reamento rápido dos AgHBs, AgHBe e DNA VHB pode induzir
3 N e c ro s e p e rifé rica m o d e r a d a In te n s a le sà o c e lu la r
o aparecimento de necrose hepatocelular extensa e morte.
(H C A m o d e r a d a ) local Essa modalidade terapêutica tem sido recomendada como
4 N e c r o s e p e rifé rica in te n s a L e s ã o in c lu i n e c ro s e e m p o n t e
primeira linha de tratamento para aqueles que são portadores
de hepatite crônica AgHBe negativos. Essa forma se caracteriza
pela tendência à evolução progressiva da lesão hepatocelular,
relacionada à abolida expressão do AgHBe. Tem pior prog­
--------------------T-------------------- nóstico, pois são raros os índices de clareamento espontâneo,
Q u a d ro 54 .9 Sistema de escore para fibrose e cirrose com prevalência preocupante se ampliando pelo mundo. Assim
conduzidos durante 48 semanas, 28% evoluem com níveis de
Escore
DNA VHB abaixo de 10.000 cópias, enquanto 8,7% eliminam
(grau s) Fibrose
o AgHBs, comportamento observado 3 anos após a interrup­
ção da administração, quando tratados pacientes com menos
0 Nenhum a de 40 anos de idade. Essa evolução se relaciona à potente ati­
1 E s p a ç o s p o rta is a la rg a d o s , fib ró tic o s vidade imunomoduladora despertada pela sua ação antiviral,
2 S e p to s p o r t a -p o r t a o u p e rip o rta is , c o m a rq u it e t u r a p re s e rv a d a sem que os pacientes desenvolvam resistência ao fármaco. Al­
3 F ib ro s e c o m d is to rç ã o d a a rq u it e t u r a , s e m c irro s e guns afirmam que essa evolução seja melhor naqueles doentes
4 C irro s e p ro v á v e l, o u b e m d e fin id a
portando alguns fatores preditivos definidos como positivos
(Quadro 54.10).
606 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

------------------------------------- ▼---------------------------------- jam preferencialmente tratados pela administração de análogos


Q u a d ro 54 .1 0 Possíveis fatores preditivos positivos relacionados à nucleos(t)ídeos (ANIT), vários deles já disponíveis no mercado
resposta ao interferon peguilado a2a em pacientes com hepatite brasileiro, conforme se verá a seguir.
crônica B, AgHBe negativo
■ Análogos nudeos(t)ídeos (ANIT)
N ív e is sé ric o s e le v a d o s d e A L T p r é -t r a t a m e n t o Entre esses, incluem-se lamivudina, adefovirdipivoxil, ente-
B aix o n ív e l sé ric o d e D N A V H B p r é -t r a t a m e n t o cavir, telbuvidine e tenofovir, usados em monoterapia ou com­
D o e n ç a h e p á tic a a tiv a
binados com interferons peguilados. Naqueles pacientes com
reserva hepática preservada, os cinco medicamentos citados
C o n t a m in a ç ã o c o m o V H B o c o r r e n d o n a id a d e a d u lta
são administrados oralmente por tempo indeterminado, e a
C u rt a d u r a ç ã o d a in fe c ç ã o
suspensão prematura podendo ocasionar elevação dos níveis de
A n t i-H IV e a n t i -V H D n e g a tiv o s
DNA VHB com reativação da hepatite. Outros inconvenientes
S e x o f e m in in o
gerados por esses fármacos são toxicidade renal, mitocondrial
Estilo d e v id a h e te ro s s e x u a l
e muscular, cada um deles merecendo considerações em sepa­
rado neste capítulo.
► LAMIVUDINA. Administrada na dose de 100 mg/dia, pro­
move clareamento sustentado de DNA VHB em 80%, do AgHBs
Preocupação com esses pacientes que são tratados através em 20%, com normalização dos valores de alanina-aminotrans-
da administração de interferon peguilado ocorre, sobretudo, ferase em 67% e melhora histológica em 70%. Preocupante se
quando aqueles assim manipulados cursam com vigorosa res­ mostra a recorrência do DNA VHB em 90% dos pacientes após
posta imunológica, gerando aumento de carga viral, causando suspensão da terapêutica. Encontra-se definido que os bons
exacerbações inflamatórias agudas, visando a promover o clare- resultados são obtidos naqueles pacientes que são AgHBe e
amento do DNA VHB. Traduzem-se esses surtos por elevação DNA VHB positivos, reduzindo-se naqueles AgHBe negativos
acentuada dos níveis séricos de aminotransferases, hiperbilirru- e DNA VHB positivos, ou seja, que exibem mutação pré-core.
binemia e queda dos valores da atividade de protrombina e fator A boa tolerância e o efeito antiviral marcante têm levado a que
V, associados ao reaparecimento sérico do anti-AgHBc IgM. Tal esses pacientes sejam assim manuseados, mesmo quando se
comportamento relaciona-se à acentuada necrose induzida nos encontram em estágio final da cirrose. Além disso, torna-se
hepatócitos, na dependência da resposta induzida pelos linfóci- recomendável a permanência de seu uso tanto no pré- quan­
tos T voltada contra hepatócitos que albergam o AgHBe. Essa to no pós-operatório imediato daqueles doentes submetidos
evolução pode ser grave, tendo também sido observada quando ao transplante de fígado, pois se revela eficaz no clareamento
existe reativação espontânea ou induzida naqueles com hepatite do DNA VHB e seroconversão AgHBe para anti-AgHBe e do
crônica ou em uso de medicações imunossupressoras e imuno- AgHBs para anti-AgHBs. Esses marcadores séricos podem
moduladoras, tais como quimioterápicos, drogas antirrejeição voltar a reaparecer uma vez suspensa a administração da la-
e/ou corticosteroides. Também esse fenômeno ocorre quando mivudine, preocupando, sobretudo, a emergência de cepas
existe indução de variação nos genótipos virais, motivada por mutantes.
mutações em diferentes sítios precore, core e da polimerase ► ADEFOVIRDIPIVOXIL. Tem sido proposto que seja admi­
DNA VHB, ou quando existem infecções superimpostas pelos nistrado na dose de 10-30 mg/dia por 48 semanas, sendo ca­
vírus das hepatites A, C, D ou HIV. paz de promover redução acentuada dos títulos de DNA VHB
O domínio desses conhecimentos serve para reforçar que, (> 3,5 logs10) com seu clareamento em 21% dos casos. Observa-
se valendo de interferon peguilado a2a ou 2b, deve-se buscar se também negativação do AgHBe em 12% e normalização de
tratar pacientes cursando com a forma compensada da doença. valores de ALT em 48%, tendo a vantagem de mostrar-se ativo
Prudente, portanto, não administrá-lo àqueles com carga viral naqueles resistentes à lamivudine. Recomenda-se, no entanto,
muito elevada, ou cirróticos cursando com reserva hepática que os pacientes recebam acompanhamento rígido da função
mais baixa, expressa por hiperbilirrubinemia, hipoalbuminemia renal, pois sinais de agressão glomerular podem ser observa­
e hipoprotrombinemia. São esses pacientes que, por ocasião do dos. Alguns pacientes assim conduzidos poderão apresentar
clareamento do DNA VHB, desenvolvem surtos de necrose acidose lática, e os obesos, com peso corpóreo acima de 20%
submaciça ou maciça do fígado, levando ao aparecimento de do normal, têm risco maior de cursarem também com sinais
ascite, de confusão mental, de peritonite bacteriana espontânea, de hepatotoxicidade.
de encefalopatia hepática e óbito. Além disso, a resposta e a efi­ ► ENTECAVIR. Revela-se como um inibidor seletivo da po­
cácia terapêutica aos interferons peguilados podem ser afetadas limerase do DNA VHB. Preconizam-se doses de 0,5 a 1,0 mg/
pelo desenvolvimento de efeitos colaterais clínicos adversos, tais dia, mostrando-se eficazes em cerca de 80% daqueles assim
como febre, calafrios, dores musculares, insônia, depressão, adi- tratados, exibindo excelente tolerância. A sua administração
namia e exames laboratoriais expressivos, mostrando anemia, deve estender-se entre 24 e 48 semanas, promovendo redu­
leucopenia, neutropenia e plaquetopenia. Preocupa, também, ção do título de DNA VHB e normalização do valor sérico
o aparecimento de psoríase, de hiper ou hipotireoidismo, de da ALT. Desses doentes, 3% desenvolvem hipertransamina-
hipertensão arterial, de dores precordiais e arritmias, alterações semia. Constitui-se em uma população especialmente sensível
essas que, se preexistentes, podem se exacerbar durante o tra­ aqueles que são AgHBe negativos, anti-HBe positivos e DNA
tamento. São comuns também infiltrados pulmonares, pneu­ VHB, além de 7 x 105 cópias/ml. Esses, conduzidos durante
monias e pneumonites. Na dependência da intensidade des­ 48 semanas, cursam com baixa do DNA VHB de -5,04 logs,
sas complicações, ocorre baixa aderência dos pacientes, que se 78% com normalização de valores de ALT, 1% evoluindo com
expõem a doses subótimas; lembrar que a resposta terapêutica hipertransaminasemia.
está também relacionada com a variação genética individual e ► TELBUVIDINE. Deve ser administrado na dose de 400 mg/
desenvolvimento de cepas virais resistentes. Visando a limitar dia, durante 48 semanas, induzido a redução de 3,6-4,0 logs^ do
esses inconvenientes, torna-se prudente que esses doentes se­ DNA VHB, com seu clareamento e do AgHBe sendo observado
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 607

em 28% dos pacientes assim conduzidos, com o inconveniente ------------------------------------- ▼-------------------------------------


de geração de mutações em 21% deles. Q uadro 54.12 Fato res de risco p a ra d e s e n v o lv im e n to da
►TENOFOVIR. Recomendável ser administrado na dose de re sistê n cia a o s a n á lo g o s n u c le o s (t)íd e o s (A N IT )
300 mg/dia, durante 48-52 semanas, propiciando seroconversão
do AgHBe em 21%, DNA VHB indetectável em 74% e normali­ 1. A lto s títu lo s d e D N A V H B e d o s n ív e is sé rico s d e A L T
zação de nível sérico de ALT em 69%. Naqueles que são AgHBe 2 . ín d ic e d e m a ssa c o r p ó r e a e le v a d a
negativos, o DNA VHB é clareado no mesmo período em 91%, 3. T e r a p ia p ré v ia c o m a n á lo g o s n u c le o s (t )íd e o s
com normalização dos valores de alanina-aminotransferase em 4 . T r a n s m is s ã o d e m u ta n t e s re s is te n te s a o s fá rm a c o s e m n o v o s p a c ie n te s
77%, com índices de resistência nos pacientes monoinfectados in fe c ta d o s
sendo ainda desconhecidos.
►CLEVUDINE. É um análogo pirimidínico capaz de inibir a Zoulim & Locarnim, 2009.
polimerase do DNA VHB, eficaz em marmotas e bem tolerado
por voluntários saudáveis e com AgHBe positivos. Tratados
durante 28 dias em doses diárias variáveis de 10, 50, 100 ou
200 mg, tiveram redução de 2,48 logs dos níveis de DNA VHB, ►NÃO RESPOSTA PRIMÁRIA. Definida pela incapacidade de
mantendo resposta sustentada por mais de 6 meses, sem efeitos
reduções de 1-log10cópias/m^ ou 1,0 log1(1U l/m f nas primeiras
colaterais adversos sérios.
12 semanas de tratamento, relacionada a: a. falta de aderência
►ENTRICITABINE. Trata-se de um análogo nucleosídico com
à tomada da medicação; b . resposta subótima - efeito farma-
atividade antiviral contra os vírus da hepatite B e da im uno­
cológico; c. deve-se mudar a terapêutica por drogas mais po­
deficiência adquirida. Preconizam-se doses de 100,200 ou 300
tentes. Tem sido mais observada (10-20%) naqueles tratados
mg/dia por 48-96 semanas, causando perda de AgHBe em 40%
com adefovir, exigindo-se que esse fármaco seja substituído
daqueles assim conduzidos. Cerca de 6% desenvolvem resistên­
por tenofovir ou entecavir. Esse comportamento é raramente
cia à droga, mesma evolução observada naqueles que são anti-
observado naqueles conduzidos por lamivudina, telbuvidina,
AgHBe positivos e cursando com baixa dos títulos dos DNA
VHB (> 2 logs10), facilitando o desenvolvimento de mutações, entecavir ou tenofovir.
►RESPOSTA PARCIAL. Quando existe incapacidade em decli­
com taxa de resistência de 18%.
nar a carga viral ao nível recomendável (< 1.000 cópias/mf ou
■ Emergência de resistência aos análogos nucleos(t)ídeos (ANIT) 200 Ul/mf), com DNA permanecendo detectável sem resposta
Inicia-se pela indução de mutações no gene polimerase, se­ histológica ao fim de 24 semanas de terapêutica. Valendo-se
guida pelos aumentos na carga viral e nos níveis de alanina- de Entecavir1* ou T e n o fo v ire sse fenômeno não se observa
aminotransferase (ALT) semanas ou meses após o início da em, respectivamente, 33, 26 e 74% daqueles que são AgHBe
terapêutica, com progressão da doença hepática. A incidência positivos e negativos, comportamento sobretudo observado
anual cumulativa de resistência com ANST está representada naqueles com carga viral elevada. Essa evolução pode ser iden­
no Quadro 54.11. tificada com qualquer dos ANST, exigindo-se sempre emprego
Esse comportamento da resistência se relaciona a fatores de de drogas mais potentes na busca também de não induzir resis­
risco, conforme expresso no Quadro 54.12. tência cruzada, o que nos leva à combinação na administração
desses fármacos.
■ Como definir os aspectos clínicos da resistência ►REBOUND VIRAL. Traduz emergência de resistência viral
Deve-se, durante o tratamento, buscar determinar títulos traduzida por > 1,0 log10 Ul/m f, comum na resistência fenotí-
de DNA VHB a cada 3 meses. A falência da terapêutica se tra­ pica ou emergência de mutações resistentes. Diante dessas con­
duz por: dições de resistência, são necessárias adaptações da terapêutica,


Q u a d ro 5 4 .1 1 1ncidência c u m u la tiv a a n u a l d e re sistê n cia a o s a n á lo g o s n u c le o s (t)íd e o s

Resistênda em anos de terapia


Expressa por percentagens

V 2o 3o 4o 5o 6o

Drogas População Anos

L a m iv u d in a 23 46 55 71 80 -

T e lb u v id in a A g H B e (+ ) 4 ,4 21 - - - -

T e lb u v u d in a AgHBe (-) 2 ,7 8 ,6 - - - -

A d e f o v ir AgHBe (-) 0 3 6 18 29 -

A d e fo v ir R e s is te n te a la m iv u d in a >20 - - - - -

T e n o f o v ir 0 0 - - - -

E n te c a v ir N a iv e s 0,2 0,5 1,2 - 1,2 1.2

E n t e c a v ir R e s is te n te a la m iv u d in a 6 15 36 1,2 51 57

Z oulim & Locam inl. 2009.


608 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------- tais como discriminadas no Quadro 54.13. Essa situação deve
Q u a d r o 5 4 .1 3 Adaptações da terapêutica à resistência cruzada ser identificada o mais precocemente possível, valendo-se da
monitorização dos níveis de DNA VHB, antes que se desen­
Resistência Adaptações da terapêutica volva hipertransaminasemia.
L a m iv u d in a A d ic io n a r t e n o f o v ir o u a d e fo v ir d ip iv o x il
■ Estratégias de tratamento
A d e fo v ir d ip iv o x il S u b s t it u ir p o r t e n o f o v ir e u m a s e g u n d a d r o g a ,
Podem ser adotadas de forma prática segundo exposto nas
la m iv u d in a o u e n te c a v ir, o u t e lb u v id in e o u
t e n o f o v ir c o m e n te c a v ir
Figuras 54.3 e 54.4.
Os resultados obtidos com essas opções estão expostos segun­
T e lb u v id in e A d ic io n a r t e n o f o v ir o u a d e fo v ird ip iv o x il se t e n o f o v ir
do os fármacos usados, avaliando a melhora histológica, a norma­
n ã o fo r d is p o n ív e l
lização de ALT, a negativaçâo do AgHBe e a redução dos níveis
E n te c a v ir A d ic io n a r t e n o f o v ir
de DNA VHB, conforme mostrado nas Figuras 54.5 e 54.6.
T e n o f o v ir N ã o t e m s id o d e s c rita res is tên cia p rim á ria , p o d e n d o
h a v e r c ru z a d a , s e n d o re c o m e n d á v e l a d ic io n a r, a p ó s ■ Novas drogas emdesenvolvimento
g e n o t ip a g e m , e n te c a v ir, t e lb u v id in e , la m iv u d in e
o u e n tric it a b in e
São poucas as novas drogas em desenvolvimento visando a
tratar pacientes com VHB. No entanto, permanece a pesquisa

Figura 54.3 Recomendações para tratamento de hepatite crônica B AgHBe positivo. Doença compensada.

Figura 54.4 Recomendações para tratamento de hepatite crônica B AgH8e negativo. Doença compensada.
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 609

■ Lam ivudina ■ A d e fo v ird ip iv o x il □ E n tricita b in e

M elhora N orm alização de Negativaçào Baixos níveis


histológ ica ALT AgHBe DN AVHB
Figura 54.5 Hepatite crônica viral B. Resultados do tratamento em pacientes AgHBe positivos.

■ Lam ivudina ■ A d e fo v ird ip iv o x il □ E n tricita b in e

■ In te rfe ro n p e g u ila d o □ Entecavir

M elhora h istológica N orm alização de ALT Baixos níveis DNA VHB


Figura 54.6 Hepatite crônica viral B. Resultados do tratamento em pacientes AgHBe negativos.

voltada a entender na intimidade mecanismos de patogênese formação do nucleocapsídeo. Outras se impõem como candi­
e resistência, na busca de identificar e interferir, nos diferentes datas, ao buscar a modulação da resposta inata e adaptativa, ao
mecanismos patogenéticos. Assim tem sido proposto tratá-los ativar células dendríticas, ou que deverão atuar na capacidade
valendo-se de pequenas moléculas que impeçam o acesso do de replicação de mutantes VHB. Selecionam-se assim moléculas
agente viral aos hepatócitos. Com esse objetivo, se pesquisam que permitam a adoção de medidas terapêuticas personalizadas
atuações dos peptídios pré-Sl, isolados ou combinados aos aná­ a cada indivíduo, ampliando a supressão e o clareamento viral,
logos nucleos(t)ídeos, prevenindo a infecção de novos, e clarea- prevenindo a eclosão de resistência e suas complicações.
mento dos hepatócitos infectados. Outros agentes definidos A falência da terapêutica instituída e a evolução para cir­
como candidatos se voltam ao bloqueio e processamento do rose, com sinais de insuficiência hepatocelular, hipertensão
cccDNA, modificando sua regulação epigenética. Também têm portal ou carcinoma hepatocelular, indicam que esses doentes
sido gerados fármacos que se envolvem na encapsulação e for­ devam ser conduzidos pelo transplante de fígado, represen­
mação do capsídeo, bem como moléculas heterocry-pirimiáims tando cerca de 5-10% dos candidatos a serem submetidos a
têm sido experimentalmente empregadas. Também se buscam esse tipo de tratamento, cujas indicações nas hepatites B, C e
fármacos que atuem na dimerização do AgHBe, prevenindo a D encontram-se expressas no Quadro 54.14. As perspectivas
610 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

----------------------------------- ▼-------------------------------- 2. DNA VHB < 10‘ cópias/m^ ou < 2.000 Ul/m* e VHD
Indicações de transplante de fígado em pacientes
Q u a d r o 5 4 .1 4 RN A negativo e/ou anti-VHD IgM negativo. Para esses,
com hepatite crônica ou cirrose pelos vírus das hepatites B, C e D propõe-se monitorizar níveis séricos de aminotransfe-
rases a cada 6 meses, enquanto marcadores virais, tais
I-Qualidade de vida como VHD RNA ou HVD IgM a cada 12 meses.
A s te n ia 3. HBV DNA > 10» cópias/mf ou 2.000 Ul/m* e VHD RNA
S u rto s re p e tid o s d e e n c e fa lo p a tia
negativo e anti-VHD IgM não reagente. Deverão ser
In fe c ç õ e s re c o rre n te s
tratados segundo algoritmo de monoinfectados AgHBe
II - Gravidade da doença
e/ou anti-AgHBe (Figuras 54.3 e 54.4).
A lb u m in a sérica < 2,5 g / d f
T e m p o d e p r o t r o m b in a > 5" (a la r g a d o )
B ilirru b in a sé rica > 5,0 m g / d f. - Coinfecção VHB/HIV
S ín d r o m e h e p a to rre n a l Nestes pacientes, ocorre aumento da replicação do VHB,
P e rito n ite b a c te ria n a e s p o n tâ n e a
gerando formas mais graves de doença hepática, com baixas
S a n g r a m e n t o p o r h ip e r t e n s ã o p o rta l
taxas de seroconversão para anti-AgHBs, anti-AgHBe e títu­
los elevados de DNA VHB. Preocupantes também são aqueles
que cursam com VHB oculto, forma expressa por DNA VHB
em títulos baixos e AgHBs não reagente. Em qualquer dessas
------------------------------------- ▼------------------------------------- expressões, a resposta ao tratamento com interferon a é menor,
Perspectivas evolutivas da infecção pelo vírus
Q u a d r o 5 4 .1 5 com risco maior de evoluírem com síndrome da reconstrução
da hepatite B pós-transplante de fígado (Berenguer, 2008) imune (TARV), gerando necrose hepatocelular extensa e redu­
ção da capacidade de síntese hepática. Do ponto de vista prático,
1. S e m e fe tiva s t e ra p ê u tic a s p ro filá tic a s , V H B re c o rre e m 1 5 - 9 0 % d o s segundo orientação do Ministério da Saúde do Brasil, deverão
c aso s, m a is c o m u n s n a q u e le s A g H B e e D N A V H B p o s itiv o s .
ser tratados aqueles pacientes com as seguintes características:
2. Essa h is tó ria m u d a c o m a d m in is tr a ç ã o n o in tra e n o p ó s -o p e r a t ó r io d e 1. com evidências de replicação viral (AgHBe positivos, DNA
d o s e s e le v a d a s d e H B IG (g a m a g lo b u lin a h ip e r im u n e a n t i-V H B ). A s s im
se r e d u z e m os ín d ic e s d e re c o rrê n c ia p a ra 1 7 -3 8 % . Esta, q u a n d o o c o rre ,
VHB £ 10‘ cópias/m^ ou > 2.000 UI/mQ, além de hipertran-
le va à c irro s e e m 2 a n o s d e p ó s -o p e r a t ó r io . O u t r a s lim ita ç õ e s e x is te n te s
saminasemia; 2. sem evidências de replicação viral, porém com
a o se u u s o sá o: (1 ) a lg u m a s re in fe c ç õ e s c o m p e rd a d o e n x e r t o ; (2 ) fibrose F1 a F4, ou sem fibrose, mas com atividade necroinfla-
t e ra p ê u tic a o n e ro s a u lt r a p a s s a n d o a R S 2 5 .0 0 0 -3 0 .0 0 0 rea is/a no . matória > 2 (Metavir); 3. com cirrose; para esses, o tratamento
3. O u t r a d ific u ld a d e n a im u n iz a ç ã o c o m H B IG re s id e n o fa to d e q u e e m será definido de acordo com a contagem de linfócitos T-CD4 ',
a lg u n s o c o r r e re s p o s ta in e fic a z : in d u ç ã o d e b a ix o s títu lo s d e a n t i-H B S segundo Quadros 54.16 a 54.18.
(< 1 0 0 U l/ Q , a lé m d e s u p e r p r o d u ç ã o d e m u ta ç õ e s .

4. A lte rn a tiv a s te ra p ê u tic a s a o H B IG d e v e m ser: (a ) in íc io d e t e ra p ê u tic a ■ H e p a t i t e c r ô n ic a p e lo V H C


a n tiv ira l c o m la m iv u d in a (1 0 0 m g / d ia ) o u a d e fo v ir d ip iv o x il
(1 0 m g / d ia ) e c o n tin u a ç ã o n o p ó s -o p e r a t ó r io ; (b ) a s s o c ia ç ã o desses
A infecção crônica é observada em mais de 60% dos infec­
a n á lo g o s n u d e o s íd ic o s , c o m b aix as d o s e s d e H B Ig (4 0 0 -2 .0 0 0 U l/ m é s ). tados pelo VHC. A manipulação terapêutica destes pacientes
5. A te ra p ê u tic a c o m v a c in a s m o s tr a re s u lta d o s d is p a ra ta d o s .
é complexa, pois, muitas vezes, evoluem assintomáticos e de
6. R e tra n s p la n te se m o s tra ra ro e d e v e se r e v it a d o d e re a liz a r-s e na
forma lenta, eventualmente de maneira rápida. No entanto, cer­
fase m a is a v a n ç a d a d a c irro s e h e p á tic a o u n a q u e le s c o m h e p a tite ca de 10% desenvolvem cirrose após 20 anos e 10%, carcinoma
c o le s tá tic a fib ro s a n te . hepatocelular no período. Essa tendência poderá ser abortada
caso se consiga promover a supressão da replicação viral e a mo­
dulação da resposta imune. Para tal, ainda são utilizados alguns
fármacos, cujos objetivos são o clareamento viral e a indução de
imunidade mantida, perene, contra o vírus. Atualmente, têm
evolutivas no pós-operatório dos portadores do vírus B são
sido tratados com associação interferon peguilado a2a ou 2b,
descritas no Quadro 54.15.
associados à ribavirina como proposto na Figura 54.7, obede­
- Coinfecção VHB/VHD cendo à orientação segundo genótipo do paciente.
Essa orientação se baseia na comprovação de que: 1. interfe-
O diagnóstico se confirma pela detecção de anticorpos anti-
rons representam citocinas naturais que têm um amplo espectro
VHB IgG e IgM. O primeiro já pode ser identificado no sangue
de propriedades antivirais, antitumorais e imunomoduladoras.
entre 2 e 4 semanas de infecção, evoluindo com baixos títulos,
São proteínas produzidas naturalmente pelo corpo como parte
até clareamento ao fim de 2 anos. Persistência do segundo (IgM)
de sua resposta defensiva à ação lesiva exercida por vírus, bacté­
traduz viremia. Esquemas terapêuticos propostos na condução
rias e células tumorais. Visando a proporcionar tais benefícios
desses pacientes se apresentam em número reduzido, e os re­
e maior disponibilidade corpórea, propõe-se administração do
sultados são pouco convincentes. Recentemente, o Programa
tipo peguilado a2a ou 2b, por via subcutânea, em dose única
Nacional para prevenção e controle das hepatites virais no Brasil
semanal pelo período de 6-12 meses. Com essa nova fórmula,
(em 2009), considerando aqueles pacientes que são anti-VHD
a ampliação de resposta viral sustentada foi possível, pois se
total positivos, cursando com DNA VHB > 10‘ cópias/mí ou mostra capaz de degradar o mRNA viral, tornando possível a
> 2.000 U l/m l, propõe que eles sejam tratados com a associação
indução de uma proteína cinase que fosforila e inativa o fator E2
de interferon peguilado e lamivudina por 48 semanas, seguindo (E2F), pré-requisito para início de síntese proteica. Promove-se
três opções em função da carga viral:
assim uma otimização biológica se comparado a proteínas na­
1. DNA VHB > 10‘ cópias/m t ou 2000 Ul/m* e VHD RN A tivas, não peguiladas, com a comodidade de ser necessária sua
positivo e/ou anti-VHD IgM reagente. Para esses, deve-se administração para infectados crônicos pelo vírus da hepatite
considerar interferon convencional na dose de 9 milhões C, a apenas uma vez por semana, também por via subcutânea;
de U por via subcutênea em dias alternados, ou seja, 3 2. amplia-se a sua eficácia se combinado à ribavirina (1-P-D-
vezes por semana: ribofíiranosil-lH-l,2,4-triazol-3-carboxamida), molécula não
Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica 611
--------------------------------- ▼----------------------------------- ----------------------------------- ▼----------------------------------
Tratamento de pacientes assintomáticos coinfectados
Q u a d r o 5 4 .1 6 Q u a d r o 5 4 .1 8 Tratamento de pacientes assintomáticos coinfectados
HIV/VHB e contagem de linfócitos (T-C D 4 ') > 500 células/mm3 HIV/VHB com LT-CD4 < 350 e 500 células/mm3

A ssintom áticos com Status clínico im unológico Tratam ento de escolha Com entários
LF-C D 4+ > 500
A s s in t o m á t ic o s e v ir g e n s T e n o f o v ir + la m iv u d in a
células/m m 1 V escolha A lte rn ativa
deTAR V + IT R N N o u IP/n

H B e p o s it iv o In te rfe ro n a T e n o f o v ir + L a m iv u d in a A s s in to m á tic o s já tra ta d o s S u b s titu iç ã o o u in c lu s ã o A d e fin iç ã o


+ IT R N N o u IP/n com TA R V d e t e n o f o v ir + d e v e r á ser d a d a
la m iv u d in a n o e s q u e m a p o r m é d ic o s
H B E A g n e g a t iv o e D N A M o n it o r a m e n t o c o m
a n tirre tro v ira l c o m e x p e riê n c ia
V H B > 2 .0 0 0 U l / m f o u D N A V H B a cada
n o m a n e jo d e
1 0 -* c ó p la s / m / 6 m e ses
a n tirre tro v ira l o u
re fe rê n c ia e m
ITRNN - Nucleotideos da transcriptase reversa; IP/n ■ Inibidores de protease
g e n o t ip a g e m
potencializados com ritonavir.
V H B D N A < 2 .0 0 0 U l/ m / M o n it o r a r V H B D N A
o u lO ^ c ó p ia s / m /

TARV = Terapia antirretroviral; ITRNN <= Nucleotideos da transcriptase reversa; IP/n ■


Inibidores de protease potencializados com ritonavir.
-------------------------------------▼-------------------------------------
Q u a d r o 5 4 . 1 7 Tratamento de pacientes assintomáticos coinfectados
HIV/VHB e contagem de linfócitos (T-C D 4 ') entre 350 e 500 células/mm3

A ssintom áticos com L T C D 4 f (NS 5B) e da expressão de proteínas estruturais do vírus da he­
entre 300 e 500 células/m m 1 V escolha Com entários patite C. Atua também bloqueando a proliferação de linfócitos
T iti vitro e aumentando secreção de citocinas Thl e redução de
V H B D N A > 2 .0 0 0 W m f In e rfe ro n a o u te n o fo v ir C a s o a c o n ta g e m
o u 1 0 “ c ó p ia s + la m iv u d in a + IT R N N d e L T -C D 4 ‘ Th2, com estratégia proposta de tratamento que está disposta
o u IP / k esteja p ró x im a a no Quadro 54.18, enquanto cuidados ou vigilâncias maiores
5 0 0 c é lu la s / m m \
durante o uso combinado desses dois fármacos estão discri­
p o d e -s e o p t a r
p o r IF N a minados no Quadro 54.19.
V H B D N A > 2 .0 0 0 U l / m í T e n o f o v ir + la m iv u d in a
o u 10 4 c ó p ia s e p re s e n ç a + IT R N N o u IP/n ■ Fatorespreditivos deresposta ao tratamento cominterferon
d e c irro s e h e p á tic a peguiladoa2a ou2b
V H B D N A < 2 .0 0 0 U l / m f M o n it o r a r V H B D N A Estão expostos no Quadro 54.20.
o u 1 0 'c ó p ia s / m /
Recentemente, surgiram novas perspectivas quanto a certos
ITR N N - Nucleotideos da transcriptase reversa; IP/n ■ Inibidores d e protease marcadores genéticos indicadores de quais pacientes respon­
potencializados com ritonavir. derão à terapêutica clássica envolvendo interferon peguüado
a. Entre estes, incluem-se os que exibem polimorfismos de nu-
cleotídeo único em região IL- 18B codificadora de interleucina-
28B ou interferon lambda 3. Também a interleucina IL-28 se
higroscópica, solúvel em água e pouco solúvel em álcool, de­ encontra envolvida nessa resposta, codificando superfamília
vendo ser tomada na dose de 15 mg/kg de peso e em total de da IL-10, interferons tipo III ou X, disparando sinais via JAK1/
800-1.200 mg/dia, distribuída em duas tomadas. Tem ação an- STAT. Abre-se uma perspectiva importante, com impacto so­
tiviral e imunomoduladora, promovendo, quando combinada bre o prognóstico e as novas estratégias terapêuticas, selecio-
ao Pegasys® ou ao Peg-Intronl?;, inibições de replicação do RNA nadoras de fármacos indutores de mutações com resistência e
subgenômico, do RNA VHC dependente da RNA polimerase ausência de resposta ao esquema instituído. Além disso, será

Figura 54.7 Estratégia proposta de tratamento da hepatite crônica viral C com interferon peguilado e ribavirina (Pawlotsky, 2004).
612 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

----------------------------- ▼------------------------------
Q u a d r o 5 4 .1 9 Cuidados ou vigilâncias maiores durante o uso combinado ■ PERSPECTIVAS: FUTUROS ANTIVIRAIS
de interferon peguilado e ribavirina Acredita-se que o genoma do VHC é dotado de extrema
complexidade, com genes codificando proteínas estruturais,
1. P re se n ça d e re a ç õ e s p s iq u iá tric a s , tais c o m o d e p re s s ã o , id é ia s o u os quais se combinam com o core e o envelope para formar a
te n ta tiv a s d e s u ic íd io p re té rita s o u na v ig ê n c ia d o t r a t a m e n t o . estrutura da partícula e das proteínas não estruturais voltadas à
2. P re se n ça d e e le v a ç õ e s p ro g re s s iv a s d o s n ív e is sé ric o s d e a la n in a - replicação. Pensando nesses fatores, os futuros fármacos deve­
a m in o tra n s fe ra s e .
rão ser altamente efetivos e ser administrados por via oral, sem
3. P re se n ça d e in filtra d o p u lm o n a r , p n e u m o n it e , p n e u m o n ia o u induzir efeitos colaterais indesejáveis, comprometendo a qua­
d is p n é ia .
lidade de vida daqueles assim conduzidos. Além disso, devem
4 . P re se n ça d e d is tú r b io s e n d ó c r in o s c o m o h ip e r o u h ip o g lic e m ia ,
estar voltados a interferir sobre os passos que se estabelecem
h ip e rc o le s te ro le m ia o u h ip e r t rig lic e r id e m ia , h ip e r o u h ip o tir e o id is m o .
durante o ciclo de vida desse agente infeccioso, tais como:
5. E x a c e rb a ç ã o d e d o e n ç a a u t o im u n e e d a p so ría s e .

6 . P re se n ça d e f e n ô m e n o s d e h ip e rs e n s ib ilid a d e , tais c o m o u rtic á ria ,


a n g io e d e m a , b r o n c o s p a s m o e a n a fila x ia . * Internalização viral
7. P re se n ça d e e v e n t o s c a rd io v a s c u la re s , tais c o m o h ip e rte n s ã o , Relaciona as participações de diferentes moléculas dispostas
a rritm ia s , in s u fic iê n c ia c a rd ía c a c o n g e s t iv a , in fa rto d o m io c á r d io .
na superfície dos hepatócitos, tais como CD81, removedores do
8 . P re se n ça d e m ie lo s s u p re s s á o , c o m v a lo re s d e n e u tró filo s , p la q u e ta s e receptor B tipo 1 (SR-B1), molécula 3-não integrina específica
h e m o g lo b in a a b a ix o , r e s p e c t iv a m e n t e , d e 1 .5 0 0 c é lu la s / m m J, 9 0 .0 0 0
das células dendríticas (L-SIGN ou CD290L), receptor de lipo-
c é lu la s / m m J e 1 2 g / d í .
proteína de baixa densidade (LDL-R) e, finalmente, receptor
9 . P re se n ça d e d is tú r b io s o f t a lm o ló g ic o s , tais c o m o le sõ es h e m o r r á g ic a s
de asialoglicoproteína (ASGP-R), além de ICAM-3, molécula
e a lg o d o n o s a s d a re tin a , e d e m a d e p a p ila , p e r d a d a vis á o .
de adesão intercelular fígado-linfonodo específico, promotoras
10. P re se n ça d e e fe ito s te ra t o g ê n ic o s p e r t e n c e n te s à a tu a ç á o da
rib a v irin a . N à o tra ta r g rá v id a s , p o is n â o há d e fin iç ã o d e e sse fá r m a c o
da internalização do VHC.
ser e lim in a d o p e lo le ite m a te r n o . T a m b é m d e v e se r a d m in is tra d a
c o m c u id a d o n a q u e le s c o m c le a r a n c e d e c re a tin in a < 5 0 m f / m in o u
q u a n d o c re a tin in a sé rica > 2 m g / d f .
■ Processamento viral pós-translacional
Nesta fase, o genoma VHC sofre translação e divagem, for­
mando as proteínas El e E2 glicoproteínas do envelope, p7 gera­
dora de canais iônicos na membrana do retículo endoplasmáti-
co, além das NS3, NS4A, NS4B, NS4B-NSSA e NSSA-NSSD.
---------------------------- ▼----------------------------
Fatores preditivos de boa resposta ao tratamento com
Q u a d ro 5 4 2 0
■ Replicação viral
interferon 2a ou 2b recombinante padrão em pacientes com hepatite
Nela se encontram envolvidas proteínas virais, componen­
crônica pelo vírus C
tes celulares e RNA formando um complexo, na dependência
Fatores ligados aos pacientes de atuações de NS5B-RNA dependente e RNA polimerase. São
S e x o f e m in in o atuantes na síntese e disponibilidade das novas partículas virais,
Id a d e jo v e m na dependência de atuação de NS3 helicase.
C o n t a m in a ç ã o n à o tra n s fu s io n a l
A u s ê n c ia d e d é fic it i m u n o ló g ic o
A u s ê n c ia d e c o n s u m o e x c e s s ivo d e á lc o o l ■ Liberação viral
Fatores ligados à doença Origina-se e estabelece-se no interior dos hepatócitos, mais
In fe c ç ã o re c e n te
precisamente no retículo endoplasmático e aparelho de Golgi,
B aixos n ív e is sé rico s d e g a m a g lu ta m iltr a n s fe r a s e
F e rritin a b aix a
onde se processa a maturação e ocorre exportação dos vírions
C o n c e n t r a ç ã o sé rica b a ix a d e p r ó -c o lá g e n o t ip o III maduros para o espaço pericelular.
A u s ê n c ia d e c irro s e Baseando-se no desenvolvimento dos sistemas, replicam as
Fatores ligados ao vírus pseudopartículas e de vírus infectantes, tornou-se possível não
V ire m ia b a ix a {< 0 ,3 5 x 1 0 6 g e n o m a s / m í ) apenas o entendimento dos diferentes passos envolvidos no ci­
G e n ó t ip o n à o 1 b
clo viral como vimos anteriormente, identificando anticorpos
neutralizadores, novas drogas alvos atuando em diferentes pas­
sos da cinética viral, as quais serão comentadas a seguir:
1. inibidores de enzimas virais, tais como, de helicase NS3
possível personalizar a conduta, valendo-se de diferentes m o­ em avaliação pré-clínica, de polimerase (J1K-003, JTK-
léculas antivirais. 109, NM-283, HCV-796 e R-803): a. de p7 (derivados
Também o polimorfismo genético da região promotora do de imunosugar de cadeia alquil longa; b. de ribozimas
receptor-1 de interferon se associa com a evolução da tera­ (Hepatazyme); c. de oligonucleotídeos antisense (ISIS-
14803); d. baseada em RNA, como siRNA e aRNA (fase
pêutica com interferon em pacientes com hepatite crônica C.
pré-clínica); e. de protease serina NS3 (BILN-2061);
Possivelmente, esse comportamento guarda relação com inter­
VN950 e CSH503034; f. de glicosidase (Celgosivir) e UT-
ferência que exerce sobre moléculas envolvidas no clareamento 231B; 2. ativadores imunes não específicos como albufe-
viral, existindo evidências de que dois polimorfismos de nucleo- ron e interferons ômega e gama por via oral; 3. indutores
tídeo único, sobretudo o ts379 2323 em MAPKAPK3 (cinase de interferon oral como imiquimod e sesiquimod; 4. dos
envolvida nas respostas mitogênicas), que se encontra hiperex- ligantes de receptores Toll-like como ANA245 (satoribi-
pressa, inibem o gene da transcrição envolvido na transcrição, ne), ANA975 e Adilon; 5. análogos nucleosídicos, como
inibindo a atividade antiviral induzida pelo IFN-a. levovirin e ciramidine; 6. inibidores de IMPDH como
Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica 613

VX-947 (merimepodib) e micofenolato mofetil; 7. anti- tem se baseado em um novo membro pertencente a essa classe
virais de amplo espectro, como amantadina e rimantadi- de medicamentos, VX-950 ou telaprevir, um reversível seleti­
na); 8. outros imunemoduladores como dicloridrato de vo, de ingesta oral, atuando como inibidor de protease VHC
histamina, timosina alfa-1, IL-10, IL-12; 9. imunização NS3/4A, enzima requerida para que ocorra replicação viral.
passiva HCIg e, finalmente; 10. vacinação terapêutica: Assim conduzidos, definiu-se redução de, pelo menos, 2 log10
a. administrando El; b . E1-E2; c. proteína de fusão do em 28 pacientes tratados com telaprevir. Naqueles com títulos
core encerrando NS3-NS4-NS5 e; d. vacina sintética IC41 mais elevados, a dose de 750 mg ao dia baixou títulos em 4,4
(Quadros 54.21 a 54.23). logI0 e clarearam definitivamente o agente, com alguns agindo
Baseiam-se seus desenvolvimentos e aplicabilidades nos di­ breakthrough viral, relacionado à seleção de variantes virais
ferentes passos que estão envolvidos no ciclo vital do VHC, que expressam menor sensibilidade ao fármaco. Tal compor­
eventos ordenados de formas independentes, tais como: tamento e a necessidade de estimulação de, pelo menos, uma
centena de genes resultando em efeitos imunomoduladores
levaram a que tais pacientes fossem conduzidos valendo-se de
■ PERSPECTIVAS MAIS SÓLIDAS ATUAIS associação com interferon-a 2a peguilado e ribavirina. Ba­
seados nessa combinação, já foram realizados dois estudos
No momento, em uso clínico bem definido em seres hu­ randomizados cujos resultados estão discriminados nos Qua­
manos, a terapêutica-alvo antivírus da hepatite C (STAT-C) dros 54.24 a 54.27.

T
Q u a d r o 5 4 .2 1 Tipos de fármacos e compostos com várias fases de desenvolvimento clínico

Fases de
desenvolvim ento
Tipos de fárm acos Com postos clínico Com entários

In ib id o re s d e e n z im a s vira is
(p e q u e n a s m o lé c u la s )
In ib id o re s d e h e lica se N S 3 1e p r é -d í n i c a D e s e n v o lv im e n t o d e u m a g e n t e s e m d o s e d e fin id a a in d a
In ib id o re s d e p o lim e ra s e N S 5 B J T K -0 0 3 1e II In ib e re p lic a ç á o e m c u lt u r a d e c é lu la s
J T K -1 0 9 P r é -d ín ic a In ib e re p lic a ç á o e m c u ltu ra d e c é lu la s in t e r r o m p id a
N M -2 8 3 1 e II < 4 ,5 lo g .0 d o R N A V H C e m 4 s e m a n a s a ss o c ia d a a o P E G IFN
H C U 796 1 A t iv id a d e a n tiv ira l e m c u ltu ra d e c élu la s
R -8 0 3 l-H I P o b re d e d is p o n ib ilid a d e

In ib id o re s d e P7 D e r iv a d o im u n e g lic íd io II E fica z e m d ia rré ia v ira l b o v in a . In d e f in id o n o V H C

R ib o z im a s H e p a ta zy m e 1e II T o x ic id a d e e m a n im a is . In t e r r o m p id o

O li g o n u d e o t í d e o s a n tis e n s e IS IS -1 4 8 0 3 II P ré -c lín ic a < 1 lo g VJ e m h u m a n o s > A L T (tra n s itó rio )

s iR N A e e iR N A P r é -d ín ic a H ip o e x p r e s s á o p ó s -tra n s la c io n a l d e g e n e s . M ú lt ip lo s fá rm a c o s
e m a v a lia ç ã o

In ib id o re s d e p ro te a s e N S 3 B IL N -2 0 6 1 P ré -c lín ic a C a r d io t o x ic id a d e a n im a l. Eficá cia e m h u m a n o s .


l-H I D o s e id e a l (?)
V X -9 5 0 II < P re c o c e d e 2 lo g .0. N e c e s s á rio a sso c ia r P E G IF N e rib a v irin a .
S C H 5034 l-H I < 1 lo g ,0 e m m o n o t e r a p ia . P o te n c ia liz a c o m P E G IFN

In ib id o re s d e g lic o s id a d e C e lg o s iv ir II B lo q u e ia m a tu r a ç ã o d e v ír io n s in e fic a z e m < l o g !0


U t-2 3 1 b II

PEGIFN » Intcrferon peguilado; < = Redução; > ■ Aumento.

------------------------------------- ▼-------------------------------------
Q u a d r o 5 4 .2 2 Tipos de fármacos e compostos com várias fases de desenvolvimento clínico

Fases de
desenvolvim ento
Tipos de fárm acos Com postos clínico Com entários

Im u n e a t iv a d o r e s in e s p e c ífic o s A lb u f e r o n II In e fic a z e m < l o g . r


(in te r fe r o n s ) ôm ega II A t iv id a d e a n tiv ira l s im ila r a IF N 1. Efe ito s c o la te ra is s im ila re s
Gam a II In e fic a z

In d u t o r e s o ra is d e in te rfe ro n Im iq u im o d P ré -c lín ic a A p r o v a d o p a ra u s o t ó p ic o e m d e r m a t o lo g ia
R e s iq u im o d II S e m e fe ito a n tiv ira l o u in d u ç ã o d e c ito c in a

L ig a n te s d e re c e p to re s T o ll-lik e A N A 2 4 5 (is a to rib in e ) 1 A n á lo g o n u d e o s íd ic o o ra l. R e s p o sta T h 1


ANA975 H ip e r -r e g u la a g o n is ta T L R -7 . R e d u z l o g !0
P r ó -d r o g a is a to rib in e . > b io d is p o n ib ilid a d e o ra l
A c t ilo n IB A g o n is ta T L R -9 c o m s e q u ê n c ia s re p e tid a s C p G < l o g 10. I n d u z sín te se
d e IF N . E s tu d o s e m fase II p a ra re c o rre n te s e n á o r e s p o n d e d o r e s
614 Capítulo 54 / Hepatite Viral Crônica

--------------------------------------------------------------▼ ------------------------------------------------------------------------------------------------------
Q u a d ro 54.23 Tipos de fármacos e compostos com várias fases de desenvolvimento clínico

Fases de
desenvolvimento
Tipos de fármacos Compostos clínico Comentários
Análogos nudeosídicos Levovirin _ Retardado desenvolvimento. Absorçáo e liberação indefinidas
Viramidine III Pró-droga da RBV captaçáo hepática dominante. Trlals com PEG IFN
em evolução
IMPDH VX-497 (Merimepodib) II Inibidor específico da IMPDH. Sem hemólise. Trials com PEG IFN e RBV
em evolução
Micofenolato mofetil II Combinado a PEG IFN. Estudo em evolução
Atividade de amplo espectro Amatadina II Trials em evolução com PEG IFN e/ou RBV em "virgens" e não
respondedores
Rimantadina II Trials = amantadina
Outros imunomoduladores Didoreto de histamina II Ativador NK. Trials com PEG IFN e RBV em não respondedores
Timosinaal II e III Associada a PEG IFN ou isolada em não respondedores
IL-10 II e III < ALT não interfere na fibrose. < Inflamação. > log,0
IL-12 II e III Falta de significado antiviral. Toxicidade significativa
Imunização passiva IgVHC lie III Trial. Pós-T x F
Vacinação terapêutica E1/E2 Pré-clínica e I Previne infecção em chimpanzés
NS3-NS4-NSS Fasel Combinada com adjuvante. > Resposta CD4'. CD8’
IC41 II Induz resposta T helper

----------------------------- ▼----------------------------- ------------------------------------ ▼------------------------------------


Q uadro 5 4 2 4 Esquema e resposta ao tratamento com e sem telaprevir Q u a d ro 54 .2 6 Grupos, esquemas propostos e resposta viral sustentada

Tempo Resposta viral Tempo Resposta viral


Grupos Esquemas propostos (semanas) sustentada (%) Grupos Esquemas propostos (semanas) sustentada (%)

1 (N = 75) com IFNP«2a + RBV + PLAC 12 41 KT12PR24) TPV + IFNPa2a + RBV 12 69


controle IFNPa2a +RBV 36 II (T12PR12) TPV + IFNPa2a + RBV 12 60
2 (N = 17) sem IFNPu2a + RBV + TPV 12 35 IIKT12P12) TPV + IFNPa2a 12 36
controle
IV (PR48) PLAC + IFNP + RBV 12 46
3 (N = 79) IFNPa2a + RBV + TPV 12 61
IFNPa2a + RBV 12 Hézode era/., 2009.
IFNPa2a = Interferon peguilado a2a (180 mcg/semana); RBV « Ribavirina (1.000-1.200
4 (N = 79) IFNPa2a + RBV + TPV 12
IFNa2a + RBV 36 67 mg/dia); TPV = Telaprevir (1.250 mg (10dia) e 750 mg, 8/8 horas, nos dias seguintes].

McHutchinson et oC 2009.
IFNPa2a ■ Interferon peguilado a2a (180 mcg/semana); RBV » Ribavirina (1.000-1.200
mg/dia); TPV ■ Telaprevir (1.250 mg (1o dia) e 750 mg, 8/8 horas, nos dias seguintes).

----------------------------------▼----------------------------------
Q u a d ro 54 .2 7 Efeitos colaterais nos dois estudos segundo grupos
▼ Grupos
Q uadro 54.25 Frequência de nível indetectável do RNAVHC
durante e após tratamento (%) Prove 1 (norte-americano) Prove 2 (europeu)

Grupos Efeitos Grupo com Grupo sem Grupo com Grupo sem
colaterais TPV (%) TPV (%) TPV (%) TPV (%)
Semanas (%) 1 2 3 4
Rash 59 41 52 35
4a 11 59 81 81 Prurido 14 59 35
12a 45 71 68 80 Náuseas 53 29 42 40
24 a 57 - 57 71 Vômitos 22 12 _ _

48 a 47 - - 65 Diarréia 36 28 27 28
24 a (após tratamento) 41 35 61 65 Anemia 33 27 21 19

McHutchinson etaC 2009. McHutchinson era/., 2009; Hézode, 2009.


Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica 615

de inflamação e fibrose leve ou ausente, e tendência à progres­


■ Prove 1 (estudo norte-americano) são mais rápida de sua doença histológica inexiste. Tem sido
Resultados expostos nos Quadros 54.24 e 54.25. recomendado que a manipulação terapêutica desses pacientes
deva ficar restrita à motivação dos pacientes, avaliada em fun­
ção do tempo de duração da infecção, da idade dos pacientes
■ Prove 2 (estudo europeu) (não tratar maiores de 65 anos de idade), dos portadores do
Resultados expostos nos Quadros 54.26 e 54.27. genótipo 1 e com títulos séricos elevados do RNA VHC. Mais
recentemente, definiu-se que essa decisão também deverá ser
tomada com melhor conhecimento sobre a história natural e o
■ GRUPOS ESPECIAIS E DE PORTADORES significado desse comportamento bioquímico. Tem essa última
atitude a busca de predizer a evolução da doença. Frise-se, no
DE COMORBIDADES GRAVES entanto, que relatos convincentes quanto à condução desses
pacientes com administração isolada dos interferons a2a ou 2b,
■ Grupos especiais em infectados crônicos com ou, ainda, combinada com ribavirina, são inexistentes. Indefi­
nição ainda existe quanto ao comportamento com relação ao
vírus da hepatite C curso desses, em função da expressão hepática de certos ge­
A discriminação desses grupos se encontra disposta no Qua­ nes, tais como IL28B, de outras citocinas, do polimorfismo de
dro 54.28, os quais merecerão descrição, em separado, a seguir: MAPKAPK3, IFNAR1, IFNAR2, JAK1, tirosinacinase 2,
STAT1, além das cinases, MAPKAPK2 e MAP cinase p38.
■ Crianças
Nos EUA, a prevalência é de 0,2 e 0,4%, respectivamente, ■ Usuários de drogas injetáveis
para crianças com menos de 12 e entre 12 e 19 anos de idade. Cerca de 80-90% dos pacientes são anti-VHC positivos. A
No início, essa forma de contaminação nessa faixa etária ocor­ opção de terapêutica deve envolver uma relação adequada mé-
ria a partir de hemotransfusões e, embora baixa, observada em dico-paciente e do grupo interdisciplinar envolvido na condu­
menos de 5% dos pacientes, pode ocorrer durante a gestação. ção dos pacientes. Tratados com interferon alfa e ribavirina, o
Apesar desses baixos índices em população norte-americana índice de aderência à conduta situa-se entre 33 e 96% e tole­
socioeconomicamente elevada, ela pode atingir 14,5% dos des- rância e eficácia em torno de 20-36%. Recomendável sempre
validos habitantes de Camarões. Tais crianças deverão ser tra­ que estrategicamente se preserve a sua individualidade, m a­
tadas com associação de interferon oc2a e ribavirina, pois elas ximizando cuidados contínuos e prevenindo reinfecção, com
têm: 1. índices de respostas virológicas sustentadas tão altos eficácia do interferon peguilado a2a ou 2b, isolados ou combi­
quanto adultos; 2. toleram bem a associação de fármacos; 3. nados à ribavirina, sendo maiores do que os conduzidos com
são melhores respondedoras quando apresentam forma leve da interferon-padrão.
doença; 4. não deverão assim ser conduzidas quando tenham
menos de 2-3 anos de idade; 5. na dúvida sobre esse aspec­ ■ Alcoolistas
to recomendável, que se programem estudos randomizados, Diferentes pesquisadores têm demonstrado prevalência do
abrindo-se perspectivas para conduzi-los pela administração vírus da hepatite C variando entre 11 e 46% daqueles com do­
dos interferons peguilados a2a ou 2b, sob forma de monotera- ença hepática alcoólica. Esses índices são confirmados pelas
pia ou combinada com ribavirina naqueles mais velhos (acima positividades séricas do anti-VHC e do RNA VHC, população
de 10 anos?). em que não estão incluídos pacientes de risco maior, tais como
hemotransfundidos ou narcoadictos. Tem-se definido que in-
■ Níveis séricos norm ais de aminotransferases gesta de álcool acima de 50 g/dia aumenta em 34% a intensidade
Este comportamento tem sido observado em 30% dos porta­ da fibrose hepática, e, entre esses, são maiores os títulos de RNA
dores do vírus da hepatite C, com cerca de 40% deles cursando VHC séricos e de emergência de quasispecies, com mais baixos
com valores de alanina-aminotransferase que não ultrapassam índices de resposta à terapêutica instituída. Nessa população,
duas vezes o limite superior normal. Em geral, têm baixo grau ainda não há definição quanto à eficácia do interferon peguilado
a2a ou 2b, isolados ou combinados à ribavirina.

■ Esteatose hepática não alcoólica


------------------------------------- ▼-------------------------------------
Trata-se de um subgrupo de pacientes que cursam associa­
Q u a d ro 54.28 G ru p o s e sp e c ia is e m in fe c ta d o s crô n ico s com
damente com obesidade, diabetes melito tipo 2 e fibrose he­
v íru s d a h e p a tite C
pática, quadro que é mais grave quando eles estão infectados
pelo vírus da hepatite C. Dados relativos à evolução e melhor
G r u p o s e s p e c ia is
opção terapêutica nesses pacientes não se encontram ainda dis­
1. Crianças
poníveis na literatura. Sabe-se, no entanto, que merecem uma
2. Níveis séricos normais de aminotransferases monitorização clínico-laboratorial mais rígida, pois são propen­
3. Usuários de drogas injetáveis sos a cursarem com cirrose e até carcinoma hepatocelular em
4. Alcoolistas fase mais precoce de sua evolução. Visando a evitar que assim
5. Esteatose hepática nào alcoólica evoluam, exige-se que todos eles reduzam o peso corpóreo e
6. Hemofílicos tenham tratado doenças associadas, tais como diabetes melito,
7. Talassêmicos hipertensão arterial e hiperlipidemias.
8. Reclusos
9. Hepatite aguda
■ Hemofílicos
10. Expressão de hepcidina
No Brasil e, certamente, em todo o mundo, os hemofílicos
tratados com concentrados de fatores de coagulação, antes de
616 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

1991-1992, foram infectados pelo vírus da hepatite C. Todos --------------------------- T------------------


cursam com distúrbios da coagulação sanguínea, o que limita Q u a d ro 54.29 Portadores de vírus da hepatite C
a realização de biópsia hepática. Tratamento combinado, inter- exibindo comorbidades graves
feron a padrão e ribavirina, leva à negativação do RNA VHC
em cerca de 35%, com efeitos colaterais incidindo em aproxi­ 1. C o in fe c ç â o c o m H IV-1
madamente 70% deles, abrindo perspectivas para que sejam 2. C o in fe c ç â o c o m V H B
conduzidos pelo interferon peguilado a2a ou 2b, isolados ou 3. C r io g lo b u lin e m ia e c irro s e
combinados à ribavirina, sem que resultados de sua eficácia 4 . A u t o im u n id a d e
encontrem-se ainda disponíveis na literatura.
5. C a rd io p a ta s

6 . N e fro p a ta s
■ Talassêmicos
7. M ie lo s s u p re s s â o
Entre estes pacientes, submetidos a múltiplas transfusões
sanguíneas, a prevalência da infecção pelo VHC é muito alta. 8. N e u r o p s iq u iá tr ic a s

Caracteristicamente, eles podem apresentar múltiplos episó­ 9. P u lm o n a re s

dios de hepatite aguda e elevada morbimortalidade em con­ 10. C r io g lo b u lin e m ia m ista

sequência da tendência evolutiva da doença hepática crônica 11. T r a n s p la n t e d e f íg a d o


que apresentam, agravada pela maior deposição hepatocelular 12. E le v a d o s n ív e is s a n g u ín e o s d e c o le s te ro l
de ferro. índice de resposta viral sustentada observada pós- 13. O u t r a s e x p re s s õ e s d e c o m o r b id a d e s
tratamento com interferon a padrão em monoterapia atinge
28% e, combinada à ribavirina, entre 46 e 72%, respectivamente
entre pacientes ingleses e asiáticos, experiência ainda indefinida
com interferon peguilado a2a ou 2b, isolados ou combinados
à ribavirina. ■ Comorbidades graves em infectados crônicos
comvírus da hepatite C
■ Reclusos
Nos EUA, cerca de 38 a 39% dos reclusos do sexo masculino Este é um capítulo importante que envolve a vida de por­
são anti-VHC positivos, sem definição sobre a viabilidade de tadores infectados crônicos com vírus da hepatite C, exibindo
tratá-los ou qual o índice de resposta a qualquer modalidade comorbidades graves (Quadro 54.29), as quais merecerão con­
terapêutica. siderações em separado.

■ Hepatite aguda ■ Coinfecçâo com HIV-1


Clareamento espontâneo do vírus da hepatite C ocorre em Essa eventualidade representa um grande problema de saúde
cerca de 10-25% dos indivíduos com infecção aguda. A maioria pública. índice de prevalência da coinfecçâo se situa entre 7 e
desses pacientes cursa de forma assintomática, com período de 57%, ultrapassando 80% nos usuários de drogas ilícitas, 2% nos
incubação de 6-28 e média de 10 semanas, sendo menos graves homossexuais e 15,2% nos bissexuais, e 98% dos infectados são
aqueles com baixa carga viral e genótipo não 1. Controle desse hemofílicos. Nesses, é maior o risco de evolução para cirrose,
quadro naqueles evoluindo com hipertransaminasemia deverá com índice de mortalidade de 17,5% maior para coinfectados,
ser feito pela administração subcutânea precoce e em doses ele­ mais elevado naqueles com contagem de CD4 menor do que
vadas do interferon oc padrão sob forma de monoterapia, não 500 células x 1 0 % idosos e alcoolistas e carga viral elevada do
existindo ainda relatos quanto à eficácia do interferon peguilado vírus da hepatite C. Esses cursam com perspectiva maior de
a2a ou 2b, isolados ou combinados à ribavirina. evoluírem para carcinoma hepatocelular, em idade mais tenra.
O interessante nesses pacientes se prende ao comportamento São de risco maior para progressão mais rápida de infecção pelo
dos portadores crônicos do vírus da hepatite B que cursam com HIV-1 aqueles com elevadas concentrações de IgA e p2micro-
infecção aguda (superinfecçâo) pelo VHC, que se traduz por: globulina e contagem de CD8, cursando com hipoalbumine-
1. supressão da replicação do vírus da hepatite B expressa em li­ mia. Manipulação pré-transplante envolve antivirais altamente
nhagens especiais de cultura celular; 2. redução na expressão em ativos (HAART) e interferon a sem definição ainda quanto aos
hepatócitos do AgHBs ou, inclusive, encerramento da doença interferon peguilado a2a ou 2b, isolados ou combinados à ri­
hepática crônica que apresentavam após clareamentro viral. bavirina, com a realização do transplante de fígado não sendo
possível em alguns centros de hepatologia.
■ Expressão de hepcidina
Hepcidina é um peptídio composto de 25 aminoácidos pro­ ■ Coinfecçâo com VHB
duzidos no fígado, representando o produto do gene HAMP. Não existem, no momento, guias de orientações ou algo­
A expressão desse hormônio é estimulada em resposta aos li- ritmos conclusivos na literatura que respondam à terapia de
possacarídios e na presença de interleucina 6, uma citocina consenso nesses pacientes. No entanto, a Secretaria de Vigilân­
inflamatória. Atua também na hiporregulação da ferroporti- cia em Saúde do Ministério da Saúde no Brasil recomenda: 1.
na, comportamento mediado a partir de vilos dos enterócitos, em casos de AgHBe reagentes, os pacientes devem ser tratados
macrófagos reticuloendoteliais e hepatócitos, o que confere a segundo esquema clássico de interferon peguilado a2a ou 2b,
ela papel importante na homeostase do ferro. Seus níveis sé- associados à ribavirina, independentemente do genótipo do
ricos se associam com intensidade dos depósitos desse metal VHC, por 48 semanas.
no fígado, os quais se encontram significativamente aumen­
tados em portadores do vírus C em fase de hepatite crônica, ■ Crioglobulinem ia e cirrose
associando-se de forma significante com a idade mais avançada Cerca de 40% dos infectados pelo vírus da hepatite C cursam
dos pacientes e de forma menos rígida com níveis séricos de com crioglobulinas séricas, poucos com sinais clínicos de crio­
aminotransferases. globulinemia, com risco maior para que desenvolvam cirrose,
Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica 617

gamopatia monoclonal, artrite, glomerulonefrite e linfomas. ■ Neuropsiquiátricas


São pouco responsivos ao interferon a 2a, obtendo-se melhor Quadros depressivos, idéias e tentativas de suicídio são dis­
pespectiva de tratá-los pela administração isolada de interferon túrbios neuropsiquiátricos que acompanham pacientes com
peguilado a2a ou 2b ou combinada à ribavirina. Certamente, hepatite crônica e cirrose viral C, tratados com interferon a
serão pacientes que merecerão uma mais rígida monitorização padrão ou interferon peguilado a2a ou 2b, associados à ribavi­
dos aspectos bioquímicos do fígado e da mielossupressão. rina. É recomendável que esses pacientes sejam, então, subme­
tidos à avaliação de suas condições neuropsiquiátricas previa­
■ Autoim unidade
mente a instituições dessas medicações. Nos casos mais graves,
Cerca de 1 a 2% dos pacientes com hepatite crônica C e recomenda-se a interrupção da administração dos fármacos,
tratados com interferon a , sobretudo aqueles com anticorpo ao mesmo tempo em que se promove assistência psiquiátrica
antiperoxidase, desenvolvem hipo ou hipertireoidismo. Tais especializada.
modificações desaparecem com suspensão da medicação ou
adoção de terapêuticas específicas. Autoanticorpo antinuclear ■ Pulmonares
também pode ser encontrado nesses pacientes, ao mesmo tem­
É baixa a prevalência da fibrose pulmonar em naives infec­
po em que o uso do im unomodulador pode agravar outras
tados pelo vírus da hepatite C. Sintomas pulmonares, incluindo
doenças autoimunes, tais como, psoríase, diabetes tipo 1, lúpus
dispnéia, infiltrado pulmonar, pneumonia e pneumonite, têm
eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, hepatite autoimune
sido observados quando da administração de interferon pegui­
e outras. Recomendável que tais pacientes nessas condições,
lado a2a ou 2b isolados ou combinados à ribavirina. Nesses,
atualmente, não sejam ainda tratados com interferon peguilado
a2a ou 2b, isolados ou combinados à ribavirina. essa terapêutica deverá ser descontinuada.

■ Cardiopatas ■ Crioglobulinem ia mista


Percentual importante de portadores do vírus da hepati­ Definida também como tipo II, em 70% dos pacientes de­
te C foi infectado durante cirurgia cardíaca, sobretudo quan­ corre da presença do vírus da hepatite C, podendo cursar as­
do submetidos à revascularização do miocárdio, com ou sem sociada à glomerulonefrite membranoproliferativa, gerando
circulação extracorpórea, porém recebendo transfusões san­ proteinúria com síndrome nefrótica, hipertensão arterial e in­
guíneas no intra e no pós-operatório. Esses podem cursar no suficiência renal. Mais raramente, mostra-se responsável pela
correr dos anos com eventos cardiovasculares, tais como hi­ instalação de neuropatia periférica, de linfomas e presença de
pertensão arterial, arritmias supraventriculares, insuficiência altos títulos de fator reumatoide.
cardíaca congestiva e infarto do miocárdio. Tais distúrbios,
embora não se constituam em contraindicações formais, de­ ■ Transplante de fígado
verão ser monitorados mais rigidamente, durante tratamento Os objetivos, quando são tratados pacientes com hepatite
com interferon peguilado a2a ou 2b, isolados ou combinados crônica ou cirrose induzida pelo vírus da hepatite C, são: 1.
à ribavirina, buscando debelar o aparecimento de anemia ou impedir a progressão para cirrose expressa à biopsia hepática
elevação de valores séricos de triglicérides, colesterol, ou causar (escore de fibrose 5 ou 6); 2. impedir a descompensação hepá­
exagerada retenção hídrica. tica comprovada pelo aumento no escore Child-Turcotte-Pugh
para 7 ou mais e os consequentes aparecimentos de varizes
■ Nefropatas esofagogástricas hemorrágicas, ascite, síndrome hepatorrenal,
Prevalência elevada de vírus da hepatite C identifica-se em peritonite bacteriana espontânea, encefalopatia hepática e/ou
candidatos ao transplante de rim, sobretudo naqueles em curso carcinoma hepatocelular. Quando essa tendência inexorável se
mais longo de hemodiálise, desenvolvendo mais rápida progres­ observa, deverão ser conduzidos pelo transplante de fígado.
são para cirrose. Esses, quando têm um novo órgão implantado, Reinfecção do novo fígado é a regra nesses pacientes com
apresentam risco maior de disfunção renal se tratados com as­ manifestações clínicas, sendo de expressão variável, estenden­
sociação de interferon peguilado a2a ou 2b e ribavirina, embora
do-se desde ausência de sintomas com valores séricos normais
existam relatos de resposta aceitável quando tratados pelo uso de alanina-aminotransferase, à progressão para cirrose ou he­
combinado desses fármacos. No entanto, alguns recomendam
patite colestática acentuada, com resultados desapontadores
que deverá ser evitado o uso de ribavirina naqueles com clea-
pós-retransplante. Tentativa de reversão dessa tendência se
rance baixo de creatinina, quando a dose deverá ser reduzida
baseia na administração precoce, já na fase aguda da infecção,
para 100 a 300 mg, via oral por dia.
de interferon peguilado ot2a ou 2b padrão combinado à riba­
■ Mielossupressão virina pelo período de 6-12 meses, com resultados menos pro­
Pacientes tratados com interferon-padrão ou interferon pe­ missores naqueles com o genótipo 1.
guilado a2a ou 2b isolados ou combinados à ribavirina podem A evolução dessa infecção em fígados transplantados tem
cursar, em geral, com redução nas contagens no sangue peri­ apresentação variável, podendo assim ser expressa: a. fase agu­
férico de eritrócitos, leucócitos, neutrófilos e plaquetas. Essas da ou lobular; b. fase crônica; c. fase de hepatite colestática fi-
alterações são mais evidentes naqueles com doença hepática brosante; d. de variante autoimune, características expressas,
avançada, sendo a anemia mais frequente quando em uso de respectivamente, nos Quadros 54.30 a 54.33.
ribavirina. Cerca de 20-25% evoluem com esse comportamento,
sendo estas a razão principal de reajustes de doses naqueles tra­ ■ Elevados níveis sanguíneos de colesterol
tados com Pegasys ”'. Consegue-se a reversão do quadro através Pacientes cursando com hipercolesterolemia, sobretudo os
da administração subcutânea de Granulokine^ e da trombo- mais velhos (> 60-65 anos), fiimantes, obesos e hipertensos
citopenia pela embolização radiológica parcial do baço. Dessa arteriais cursam com maior risco de instalação de doença co-
forma, promove-se o resgate e restabelecem-se os valores para ronariana e morte. A redução desse risco ocorre com controle
além de 190-200.000 plaquetas, ampliando-se as chances de farmacológico, gerando diminuição em 30% dessa tendência
tratamento dessa população mais grave de pacientes. evolutiva nefasta. Estatinas mostram-se como fármacos efica-
618 Capítulo 54 / Hepatite Vira! Crônica

------------------------------------- ▼---------------------------------- recebam fluvastatina, na dose de 20-30 mg por dia, ou lovas-


Q u a d ro 54 .3 0 Fase aguda ou lobular de infecção do fígado tatina, promotoras de inibição da replicaçâo viral, via depleção
transplantado. Expressões de pirofosfato geranil geranil pirofosfato, com baixa dos níveis
séricos de AST e da carga viral ao fim de 6-12 meses.
• S u r g e c o m u m e n t e e n t r e 4 e 12 s e m a n a s , p o d e n d o ser d e t e c t a d a já
e n tre 10 e 14 d ia s d e p ó s -o p e r a t ó r io

• D e s a rra n jo lo b u la r, h ip e rtro fia d a s c é lu la s d e K u p ffe r, a p o p to s e


h e p a to c e lu la r, lin fo c ito s e s in u s o id a l m o d e r a d a , m o d e r a d o in filtra d o
■ LEITURARECOMENDADA
p o r ta l ( m o n o n u d e a r ) , e s te a to s e m a c r o g o t ic u la r p e r ip o rta l e
Badcr, T. Fazili, J, Madhoun, M et al. Fluvastatin inhibitis hcpatic C replication
h e p a to c itá ria , a lé m d e c o la n g it e lin fo c ític a e a lte ra ç õ e s re a d o n a ls d o
in humans. Am J Gastroenterol, 2008; 103:1388-9.
e p ité lio b illa r, as q u a is , q u a n d o p re s e n te s , sá o m o d e r a d a s e focais,
Barreiros, AP, Sprin/J, M, Rosset, S et al. EGF and HGF leveis are incrcascd
e v id e n c ia n d o -s e re a ç á o im u n e c o m p re s e n ç a d e lin fó c ito s T fie / p e r
Turing active HBV infcction and cnhancc survival signaling through extra-
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Hepatite Crônica Não Viral
Luiz de Souza e Silva Júnior, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle, Taiane Costa Marinho,
Leonardo ReuterMotta Gama, Celso Marques Raposo Júnior,
Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas Gagnin, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin,
Paula Hugueney Cruz, Maiza da Silva Costa, Adávio de Oliveira e Silva

A primeira classificação de hepatite crônica data de 1969. A A HAI relaciona-se com a resposta exacerbada exercida pe­
partir de então, outras e diversas definições têm sido propos­ los linfócitos B, gerando elevação acentuada dos níveis séricos
tas, sendo a última e mais bem aceita aquela organizada em de IgG e intensa infiltração de plasmócitos em espaços portais,
Cancun, México, durante o Encontro Internacional para Es­ com indução de fibrose, cirrose hepática e até carcinoma hepa­
tudo do Fígado, em 1994. A hepatite crônica foi definida, en­ tocelular. Essa tendência pode ter sua evolução mais lenta com
tão, como síndrome clínico-patológica decorrente de múltiplas o uso de imunossupressores, como prednisona ou azatiopri-
etiologias, caracterizada por diferentes estágios de inflamação na, mas, também, pode assumir, ao longo dos anos, inexorável
e necrose hepatocelular. Por sua vez, conceituou-se que a cro- evolução, apenas abortada naqueles pacientes submetidos ao
nicidade associa-se à persistência de atividade inflamatória, transplante de fígado, aspectos esses que serão considerados
traduzida por elevação de níveis séricos de aminotransferases neste capítulo.
por mais de 6 meses. As causas dessa tendência evolutiva se Nos últimos anos, busca-se definir qual é o gatilho do desar­
encontram no Quadro 55.1 e serão comentadas isoladamente ranjo imunológico verificado em linfócitos TCD4' e CD8', os
neste capítulo. quais infiltram o fígado, associados a plasmócitos, com geração
de anticorpos séricos. Alguns autores acham que este gatilho é
acionado a partir da participação de vários fármacos (estatinas,
■ HEPATITE AUTOIMUNE (HAi) anticorpos monoclonais, interferona (5), toxinas e agente infec­
ciosos. Dessa forma, sensibilizam-se os indivíduos predispostos
Representa uma doença inflamatória crônica hepatocelular, geneticamente a desenvolver a hepatite autoimune, evolução
relacionada com a ruptura dos fenômenos da autotolerância, que se relaciona com a presença de curtas sequências antigêni-
desregulados entre jovens, afetando, em geral, pacientes do cas comuns, frequentemente encontradas nesses agentes dispa-
sexo feminino, que cursam com hepatite agressiva de interfa­ radores, responsáveis pela quebra da autotolerância periférica
ce, identificada em crianças ou adultos jovens, com 20% dos que normalmente apresentam. Como consequência, instala-se
casos acometendo indivíduos com mais de 60 anos de idade. resposta exacerbada contra antígenos expressos no fígado, sufi­
Testes sorológicos, indispensáveis para o diagnóstico, incluem ciente para induzir uma agressão de natureza autoimune, a qual
o anticorpo antinuclear (ANA), anticorpos antimúsculo liso pode ocorrer sem existência de prévia lesão hepatocelular. Essa
(SMA) e anticorpos para microssomo de fígado e rins tipo 1 evolução relaciona-se com o recrutamento que o fígado seletiva­
(anti-LKM-1). mente realiza, induzindo a apoptose de linfócitos TCD8+ após
uma resposta imune. Nesse processo de sequestro dessas célu­
las, ocorre hiperexpressão de citocinas e moléculas de adesão,
iniciando-se e perpetuando-se assim a agressão hepatocelular.
------------------------------------- ▼------------------------- A partir desses acontecimentos, surge a perspectiva do adven­
Q uadro 55.1 Causas de hepatite crônica não viral*• to de novos agentes terapêuticos bloqueando especificamente
essas vias. Nessa cascata, é importante também a atuação das
• H e p a tite a u t o im u n e células T reguladoras, moduladoras da proliferação de CD8 f e
• D o e n ç a d e W ils o n supressoras da produção de IFNy.
• H e m o c r o m a t o s e g e n é tic a Esses avanços nos conhecimentos permitiram a identifica­
• D e fic iê n c ia d e a 1 -a n titrip s in a ção de diferentes expressões de hepatite autoimune. Assim, a
• F á rm a c o s HAI tipo 1 traduz-se pela presença no soro de autoanticor-
• In g e s ta a lc o ó lic a e xcessiva pos antinuclear, antimúsculo liso e antiactina, geradores de
• C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á ria
formação de imunocomplexos causadores de lesões submem-
• P ó s -tra n s p la n te d e fíg a d o
branosas em hepatócitos, facilitando fenômenos ADCC e lise
celular. Associam-se, por regulação genética, ao HLA de classe

620
C a p ítu lo 5 5 / H e p a tite C rô n ic a N ã o Vira! 621

II, sendo mais prevalentes os haplótipos HLA DR3 e DR4 na lores séricos normais de ferritina e de saturação de transferrina
Europa e nos Estados Unidos, e HLA DR13.01 no Brasil e na em pacientes que não fizeram uso de drogas hepatotóxicas. São
Argentina, em pacientes que cursam com baixos níveis de fator esses que têm valores sanguíneos normais de alfa-l-antitripsina
4 do complemento. e ceruloplasmina e que apresentam lesões histológicas típicas,
A HAI tipo 2 aparece, na maioria das vezes, ainda na infân­ tais como necrose periférica, lesão inflamatória lobular, necro-
cia com o autoanticorpo antimicrossomal fígado-rim presente, se em ponte, hepatócitos em roseta e plasmócitos infiltrando o
cujo antígeno pertence à família do citocromo-mono-oxigenase fígado, sem agressão aos duetos biliares. Critérios diagnósticos
P450IID6 (CyP2D6), o qual surge na superfície dos hepatóci- internacionais reforçam que, para que tal se confirme, deve-se
tos dispostos em cinco sítios diferentes. Alguns desses pacien­ empregar um escore proposto pela Associação Internacional
tes podem portar o autoanticorpo anticitosol hepático (LC1), para Estudo do Fígado, discriminado no Quadro 55.2.
com o anticorpo antirreceptor de asialoglicoproteína (ASPG-R) Existe uma predisposição genética determinante do início
podendo ser identificado em qualquer dos outros tipos de he­ e progressão dessa doença, conforme discriminado no Qua­
patite autoimune. Por sua vez, a HAI tipo 3 é identificada pela dro 55.3.
presença do anticorpo antiantígeno solúvel do fígado (SLA/LP), Deve-se frisar que, em qualquer desses pacientes, doenças
exibindo forte tendência de progressão para cirrose hepática. autoimunes concorrentes podem obscurecer ou ofuscar a pre­
Nos últimos anos, tem-se observado que portadores dos an- sença de hepatite autoimune. Nos adultos, relata-se, sobretudo,
tígenos antimicrossomal fígado e rim, e também do anticitosol esclerose sistêmica e polimiosite, neurite multiplexa e síndrome
hepático, são mais jovens e exibem maior atividade inflama- pluriglandular tipo 3, autoimune. Uma síndrome sequencial
tória e elevados valores séricos de bilirrubina e aminotransfe- pode ser observada quando pacientes que cursam com hepatite
rase. Estes cursam com índice maior de apresentação aguda autoimune, alguns anos depois, desenvolvem colangite escle-
e maior prevalência de cirrose. Os mais idosos são, em geral, rosante primária. Essa evolução se observa em crianças, mas
antinúcleo-positivos. também em adultos. Similaridades entre as duas condições in­
A confirmação do diagnóstico de hepatite autoimune baseia- cluem parâmetros clínicos e bioquímicos e baixa frequência do
se: 1. na ausência sérica dos marcadores dos vírus das hepatites haplótipo HLADR4. Outros parâmetros relevantes: 1. doença
B e C; 2. na inexistência de ingesta alcoólica excessiva; 3. nos va­ inflamatória intestinal mais comum na colangite esclerosante

---------------------------------------------▼---------------------------------------------
Q u a d ro 55.2 Sistema de escore recomendado para diagnóstico de hepatite autoimune

Autoanticorpos
Aspectos clínicos Escore Escore
Títulos
Sexo: M a s c u lin o 0 F A N , A M L o u K L M -1 3
F e m in in o +2 > 1:80 +3

D o e n ç a s im u n o ló g ic a s +1 1 :80 +2

Aspectos epidemiológicos 1 :40 +1

H e m o tr a n s fu s á o / d r o g a s < 1 :4 0 < 1:40 0


S im -2 AM A
Não + 1 P re s e n te -2

In g e s ta d e á lc o o l (A ju s t e / Q u a n t id a d e ) A u s e n te 0
-1 Aspectos histológicos
-2 N e c r o s e p e rifé rica +3
2 H e p a t it e lo b u la r

A n t i- V H A (Ig M ) -3 N e c r o s e e m s a c a -b o c a d o s +2
A g H B s o u A n t i-H B c (Ig M ) -3 R osetas +1
RNAVHC -3 P la s m ó c ito s +1
A n t i-V H C -2 L e sõ e s e m d u e to s b ilia re s (le v e s ) -1

O u t r o s m a rc a d o re s vira is -3 A lte ra ç õ e s g r a v e s e m d u e to s b ilia res -3

Aspectos laboratoriais R e s p o sta t e ra p ê u tic a

H L A B8 DR3 o u DR4 +1 C o m p le t a +2

G lo b u lin a , I g A o u IgB R e c o rrê n c ia +3


2 x n o rm a l +3 In e fic a z -2
1 ,5 -2 x n o r m a l +2 P arcial 0
1 ,1 -1 ,5 x n o r m a l +1
1,1 x n o r m a l 0

F A :A L T
< 3 x n o rm a l +2
> 3 x n o rm a l -2

Diagnóstico Antes da terapêutica Depois da terapêutica


D e fin it iv o >15 > 17

P ro v á v e l 1 0 -1 5 1 2 -1 7

FA = Fosfatase alcalina; ALT = Alanina-aminotransferase; FAN = Fator antlnudean KLM-1 = Anticorpo antifigado liso; AMA = Anticorpo antimitocôndria;
AML = antimúsculo lisa
622 C a p ítu lo 5 5 / H e p a tite C rô n ica N ã o Viral

------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------- ------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 55.3 Predisposição genética à hepatite autoimune Q u a d ro 55 .4 Aspectos terapêuticos iniciais da hepatite autoimune

Origens Haplótipos Prednisona e azatioprina


Intervalos Prednisona isolada
E u r o p e u s e n o r t e -a m e r ic a n o s H L A D R B r 0 3 0 1 .D -3 0 1 0 l.D R 5 2 , (semanas) (mg/dia)
Prednisona Azatioprina
D R B1 0401 (D R 4 )

J a p o n e s e s e a rg e n t in o s D R B T 0 4 0 4 (D R 4 ) 1 60 30 50

M e x ic a n o s D R B1 * 04 04 (D R 1 3 ) 2 40 20 50

B rasileiros H LAD RB1*13 e HLADR*8103 3 30 15 50

4 20 10 50

U s o p e r e n e e c o n t ín u o 20 10 50

C o n t r a in d ic a ç õ e s D o e n ç a óssea L e u c o p e n ia
re lativas P sicose A n e m ia
autoimune, acompanhada de modificações histológicas biliares;
O b e s id a d e P la q u e to p e n ia
2. coagulopatia, hipoalbuminemia, hepatite periportal e presen­ D ia b e te s G r a v id e z
ça do HLADR3 na hepatite autoimune. A predileção quanto à H ip e r te n s ã o a rte ria l M a lig n id a d e
distribuição do gênero é interessante e não totalmente explicá­ G la u c o m a H e p a tite c o le s tá tic a

vel, mas alguns dados merecem registros: a. doença se mostra C a ta ra ta D o e n ç a v e n o -o c lu s iv a


H ip e r te n s ã o a rte ria l P a n c re a tite
autolimitada nas mulheres e progressiva nos homens, fato não
D e p re s s ã o M ie lo s s u p re s s á o
confirmado por todos os pesquisadores; b. mulheres exibem N e c r o s e v a s c u la r D o e n ç a v e n o -o c lu s iv a
melhor resposta à terapêutica imunossupressora; c crianças fe m o ra l
com colangite esclerosante primária dominante não respon­ H e p a t it e c o le stá tic a

dem bem à terapêutica imunossupressora, sendo significativo


mencionar que a sobrevida de 10 anos reduz-se de 100 para
65% quando predominam sinais histológicos e radiológicos de
agressão biliar. Mais preocupante ainda é a intensificação do compensada. É recomendável o acompanhamento clínico des­
desajuste imunológico que apresentam quando concomitan­ ses pacientes, conforme discriminado no Quadro 55.5.
temente evoluem com outras doenças autoimunes, tais como: Admite-se a falência da terapêutica quando: a. níveis séricos
vitiligo, tireoidite, diabetes melito dependente de insulina, ur- de aminotransferases e de bilirrubina encontram-se acima dos
ticária pigmentosa, hipoparatireoidismo, doença de Crohn ou valores do pré-tratamento; b. a atividade histológica apresenta-
de Addison, e plaquetopenia. se mais acentuada; c. existe desenvolvimento de sinais de des­
A HAI diagnosticada em suas fases iniciais tem excelente compensação, como ruptura de varizes esofagogástricas, ascite,
prognóstico, uma vez que se promova a remissão da ativida­ encefalopatia e/ou carcinoma hepatocelular.
de inflamatória do fígado, com administração associada de Recorrência ou relapso define-se quando: a. o nível sérico de
corticosteroide e azatioprina, segundo discriminado no Qua­ aspartato-aminotransferase encontra-se maior do que 3 vezes
dro 55.4. o valor normal, associado à acentuação da hipergamaglobuli-
Define-se que houve remissão da doença quando o nível nemia; b. comprova-se que a hepatite de interface e a fibrose
sérico de aspartato-aminotransferase encontra-se abaixo de 2 são mais intensas que a inicial.
vezes o valor de referência, ao mesmo tempo em que os valores Em virtude dessas limitações, torna-se recomendável que
de bilirrubina e gamaglobulina estão normais, e a histologia de esses pacientes sejam manuseados, indefinidamente, com pred-
controle se apresenta normal ou próxima ao normal, ou, ain­ nisona nas doses de 7,5 a 10 mg/dia, associada à azatioprina na
da, se traduz pela inatividade da cirrose mantida em sua forma dose de 50-75 mg/kg/dia.

---------------------------------------- ▼----------------------------------------
Q u a d ro 55.5 Acompanhamento clínico de pacientes com hepatite autoimune

Antes do Durante tratamento, Sem remissão, Com remissão, Remissão pós-terapêutica,


Exames
tratamento cada 4 semanas cada 3-6 meses cada 3 semanas (4 x) cada 1-6 meses
Físico + - + + +

B io p s ia h e p á tic a + - ± - -

H e m o g ra m a + + + + +

A m in o tra n s fe ra s e s + + + + +

G G tra n s fe ra s e + + + - -

G a m a g lo b u lin a + + + - -

B ilirru b in a + + + + +

C o a g u lo g r a m a + + + + +

A u to a n t ic o r p o s + ± - - -

F u n ç ã o t ire o id e + ± - - -

GGtransferase = Gamaglutamiltransferaso.

+ ■ sim; - «= náo; ± = talvez.


Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Vira! 623

Naqueles doentes com manifestações colaterais graves, refe­ hepatoesplenomegalia, 40-60% têm cirrose compensada ou des-
rentes ao uso combinado de prednisona e azatioprina, é reco­ compensada, 20% mostram varizes esofagogástricas e 50% ma­
mendável redução com reescalonamento das doses, evitando- nifestações autoimunes extra-hepáticas, situações que agravam
se administrar esses medicamentos em doentes com intensa a evolução pós-operatória. Conceitua-se hoje que, nesses, o im­
citopenia, doença maligna associada, rash cutâneo e infecções, plante de um novo fígado permitirá uma sobrevida mais longa,
com risco maior naqueles com deficiência da enzima tiopuri- além dos 90% em 10 anos. O transplante também se impõe, uma
nametiltransferase e, certamente, no advento de gravidez. Nes­ vez que os pacientes desenvolvam sinais clínicos e laboratoriais
sa última eventualidade, existem riscos de malformação fetal de agravamento. A sobrevida de 5 anos chega a ultrapassar
e naquelas grávidas com anticorpos anti-SLA/LP e RO/SSA, 90%, mas descreve-se risco maior de evoluírem com surtos de
ou com síndrome antifosfolipídios, 9% delas evoluindo para rejeição, ou de recorrência da doença, facilmente controladas
complicações maternas graves. Nessas gestantes, recomenda- pela administração de corticosteroides. Essa última tendência
se a redução da dose de azatioprina, pois a placenta se mostra pode ocorrer em 20 a 30% dos doentes, traduzida por elevações
como a única barreira protetora aos efeitos lesivos exercidos dos níveis séricos de aminotransferases e de gamaglobulina e
pelos metabólitos 6-tioguaninanucleotídios. Não se recomenda positivação de autoanticorpos. Confirma-se pelo encontro de
formalmente interromper a terapêutica nessas mulheres, pois alterações histológicas, como hepatite portal com plasmócitos
tal comportamento, quando adotado, se associa à reativação da e acentuada atividade inflamatória de interface. Tem sido re­
doença e consequente hiperatividade do sistema imunológico, lacionada essa tendência à imunossupressão inadequada, mais
presente e detectado logo após o parto. comum entre receptores HLADR3 positivos recebendo fígado
Em casos nos quais inexista resposta bioquímica, ou diante de doador HLADR3 negativo, sobretudo naqueles com hepatite
da existência de efeitos colaterais graves com uso desses fárma- autoimune do tipo I, ou que estavam evoluindo no pré-opera-
cos, deve-se valer de drogas opcionais no tratamento da hepatite tório com atividade necroinflamatória intensa, ou expressavam,
autoimune, conforme disposto no Quadro 55.6. no fígado, a forma fulminante da doença. Naqueles que exibem
Alguns autores ressaltam que essas últimas opções farma- essas características específicas, mostra-se maior o retorno da
cológicas são medidas empíricas, traduzem o desespero de clí­ doença após o transplante.
nicos e pacientes, não são isentas de risco. Além disso, não se
encontram definidas claramente as doses e esquemas a serem
empregados. Nesses doentes, o custo-benefício deve ser anali­ ■ DOENÇA DE WILSON
sado, sobretudo quando se sabe que o procedimento ainda não
se encontra consagrado, nem definida a população-alvo a ser Descrita por Samuel Alexander Kinnier Wilson em 1912, é
tratada com esses imunossupressores. Acresce que a eficácia considerada doença de herança autossômica recessiva, secun­
está ainda indefinida e repleta de riscos, tais como: 1. evolução dária a um defeito genético ligado ao cromossomo 13, com um
com efeitos colaterais graves; 2. do ponto de vista financeiro, gene-candidato, designado ATP7B, presente, naquele cromos­
os medicamentos são cerca de 10 vezes mais onerosos do que a soma, na região onde se situa o locus do retinoblastoma. Tem
combinação terapêutica clássica, com o agravante de que pode recebido as denominações de degeneração hepatolenticular,
postergar erroneamente a realização do transplante de fígado, ou doença de Wilson. Caracteriza-se pelo depósito excessivo
que será apenas executado em fases mais avançadas, ou seja, de cobre em vários órgãos e tecidos, resultante da redução da
no momento em que cerca de 30-80% dos doentes apresentam excreção deste metal pela bile. Os principais tecidos acometidos
são fígado, cérebro, hemácias, rins, córnea. Tem caráter familial,
sendo a prevalência variável no mundo, com a consanguinidade
contribuindo para sua instalação.
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------ A etiopatogenia da doença permanece obscura, mas sabe-se
Q u a d ro 55 .6 Drogas opcionais no tratamento da hepatite autoimune que, nesses pacientes, o gene ATP7B codifica uma enzima trans­
portadora de cátions, a adenosina trifosfatase, que se expressa
Drogas Doses Ações no fígado, nos rins e na placenta. Encontra-se ainda indefinida
onde se localiza essa proteína no hepatócito, supondo-se que
C ic lo s p o rin a 5 -6 m g / k g / d ia In ib e lib e ra ç ã o d e lin fo d n a s
seja na rede trans-Golgi. Mutações que nesse gene se instalam,
S u p r im e e x p a n s ã o d o n a l
d e lin f ó c it o s T h e lp e r e
resultam em transtornos do transporte do cobre do fígado para
e x p re s s ã o d e re c e p to re s a bile, e consequente acúmulo do metal nas células parenquima-
d e IL -2 tosas do fígado, com o mRNA sendo encontrado em coração,
T a c r o lim u s 3 m g (2 v e z e s / d ia ) In ib e g e r a ç ã o d e lin fó c ito s músculos, cérebro, pulmões e pâncreas.
T c ito tó x ic o s e s ín te s e d e A idade do aparecimento desses distúrbios se mostra variá­
á c id o s n u d e ic o s
vel, ocorrendo predominantemente entre 15 e 20 anos. Existe
M ic o fe n o la to m o fe t il 1 g (2 v e ze s /d ia ) R e d u z p ro life ra ç ã o d e
um caso de paciente que, por ocasião do diagnóstico, tinha 76
lin f ó c it o s T c ito tó x ic o s
anos. Esses distúrbios podem ser observados entre extremos de
6 -M e r c a p t o p u r in a 1,5 m g / k g / d ia M e t a b ó lit o a tiv o d a
6 e 50 anos de idade. No entanto, a exteriorização sob formas
a z a tio p rin a , q u e in ib e
sín te se s d o D N A e d a in o s in a
de insuficiência hepática aguda fulminante ou hepatite crôni­
m o n o f o s f a t o -d e s id r o g e n a s e ca ocorre mais frequentemente entre 8 e 18 anos, com cirrose
Á c id o 1 3 -1 5 m g / k g / d ia A lte ra e x p re s s ã o H L A -I, in ib e podendo ser identificada já antes dos 15 anos. Esses doentes
u rs o d e s o x ic ó lic o IL -2 e 4 e in te rfe ro n a y e cursam com mal-estar generalizado, anorexia, sintomas ab­
r e d u z p r o d u ç ã o d e ó x id o dominais vagos, artralgias, amenorreia, puberdade retardada
n ítric o
e icterícia discreta. Nessa fase, não se identifica o anel de Kay-
B u d e s o n id a 3 m g (3 v e z e s / d ia ) S e g u n d a g e ra ç ã o d e
ser-Fleischer, e a biópsia mostra infiltrado expandindo espaços
c o rtic o s te ro id e s , c o m b a ix a
d is p o n ib ilid a d e sistê m ica
portais, necrose periférica e fibrose, com ou sem regeneração
nodular. A apresentação clínica pode revelar-se também através
624 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral

de manifestações neurológicas ou psiquiátricas, exteriorizando- lamina e observar se a taxa do cobre urinário se eleva, sem que
se, em mais de 33% dos casos, em pacientes que são crianças, tenha especificidade bem definida. Associação desses aspectos
adolescentes ou adultos jovens. O acometimento neurológico tornou possível que diferentes pesquisadores em Leipzig, em
traduz-se principalmente por anormalidades da fala, deglutição, 2001, construíssem um escore diagnóstico, conforme exposto
coordenação, tremor de extremidades e da cabeça, corioatetose, no Quadro 55.7.
riso espástico, déficit de atenção. Podem ocorrer também altera­ Objetiva-se no tratamento desses pacientes tomar atitudes
ções psiquiátricas, isoladas ou associadas aos quadros hepático que reduzam os estoques corpóreos teciduais de cobre, reco­
e neurológico, como mania, ansiedade, depressão, esquizofrenia mendando-se diminuir a ingesta de alimentos que contenham
e psicose, não sendo infrequentes crises de hemólise, tubulo- elevados teores do metal, tais como moluscos, legumes, cogu­
patias renais e, principalmente, a presença do anel comeano melos, nozes, chocolate e fígado. Nesse momento, já nas fases
de Kayser-Fleischer, completando o quadro clínico complexo iniciais do tratamento, pode haver certa acentuação dos sinto­
dessa doença metabólica. Não infrequentemente, desenvolvem mas, quando a D-penicilaminay um quelante de cobre, passa
hipercalciúria e nefrocalcinose, arritmias, cardiopatia, disfun- a ser administrada. Esse comportamento provoca um grande
ção autonômica, fibrilação ventricular e morte. balanço negativo inicial, consequente à mobilização intensa
Do ponto de vista laboratorial, diante da suspeita de doença dos depósitos do metal, podendo gerar a eclosão de sintomas
de Wilson, deve-se pesquisar o nível sérico de ceruloplasmina, neurológicos. Esse fármaco deve ser administrado na dose de
que, em 90% dos pacientes, está abaixo de 20 mg%, exigindo- 1-2 g/dia, 1 h antes ou 2 depois das refeições. Caso ocorra exa­
se, como atitude imperativa, mensurar a excreção urinária de cerbação dos sinais e sintomas clínicos, exige-se redução dessa
cobre, geralmente superior a 100 mg/24 h, sendo a normal até dose, sobretudo quando se acentua a proteinúria, que alguns
30 mg/24 h, não sendo esse considerado como o melhor teste pacientes mostram, consequente à síndrome nefrótica que eles
diagnóstico. Quando possível, deve-se definir a concentração têm. Além disso, são frequentes deficiência de piridoxina, in­
de cobre no tecido hepático seco, em geral com valores acima terferência com formações de colágeno e elastina, muitas ve­
de 50 mg/g de tecido, habitualmente ultrapassando 250 mg/g, zes sem precipitar manifestações cutâneas típicas. Preocupa
enquanto em pessoas normais não atinge 10 mg/g. também a eclosão de manifestações imunológicas, tais como
O anel de Kayser-Fleischer, identificado em pacientes com plaquetopenia, lúpus eritematoso sistêmico, nefrite complexa,
baixos níveis séricos de ceruloplasmina e cobre urinário alto, pênfigo, ulcerações orais, miastenia gravis, neurite óptica e sín­
praticamente define o diagnóstico. Em geral, está presente em drome de Goodpasture, ocorrendo cerca de 90 dias após início,
pacientes com manifestações neurológicas e em 50% daqueles exigindo-se interrupção do uso do remédio, pois há risco de
com doença hepática. Frise-se que a sua ausência, sobretudo hepatite fulminante.
quando se considera um paciente jovem, sem evidência de obs­ Doentes com manifestações colaterais próprias da intole­
trução biliar, porém evoluindo com alterações do metabolis­ rância, alternativamente, podem ser tratados pelo trientine, na
mo do cobre, não afasta a possibilidade de doença de Wilson. dose de 1,0 a 1,5 g/dia, também um quelante do cobre, o qual,
Caso existam dúvidas, recomenda-se administrar D-penici- embora seja eficiente, produz balanço negativo, traduzido por

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------▼ ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 55 .7 Sistema de escore diagnóstico de doença de Wilson

S in a is e sinto m as típicos Outros testes

A n e l d e K a y s e r-F le is c h e r Esc o re C o b r e h e p á tic o (s e m c o le s ta s e ) Esc o re

P re se n te 2 > 5 x L S N (> 2 5 0 jjg / g ) 2

A u s e n te 0 5 0 -2 5 0 p g / g 1

S in to m a s n e u ro ló g ic o s N o r m a l (< 5 0 p g / g ) -1

G ra v e s 2 R o d o n in a p o s itiv a 1

M o d e ra d o s 1 (G r â n u lo s )"

A u s e n te s 0 C o b r e u r in á r io (s e m h e p a tite a g u d a )

C e r u lo p la s m in a sérica N o rm a l 0

N o r m a l ( > 0 ,2 g / f ) 0 1 -2 x L S N 1

0 ,1 -0 ,2 g / f 1 > 2 x LSN 2

< 0,1 g/f. 2 N o r m a l m a s > 5 x L S N (p ó s -D P ) 2

C o o m b s n e g a t iv o : a n e m ia h e m o lít ic a A n á lis e s d a s m u ta ç õ e s c ro m o s s ô m ic a s

P re se n te 1 2 m u ta ç õ e s 4

A u s e n te 0 1 m u ta ç ã o 1

S e m m u ta ç õ e s 0

E s c o re to ta l A v a lia ç ã o

4 o u m a is D ia g n ó s t ic o fir m a d o

3 D ia g n ó s t ic o p o ssív e l, m a is tes te s n e ce ss á rio s

2 ou m enos D ia g n ó s t ic o im p r o v á v e l

•Caso disponível, cobre hepático quantitativo; LSN ■ Limite superior norm al; DP = D-penicilam ina.
Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Vira! 625

progressiva redução da cupriurese, mantendo esses pacientes desse distúrbio ainda permanece obscura, sendo, no entanto,
clinicamente bem, com a sobrevida descrita para aqueles assim mais prevalente entre ocidentais europeus, descendentes de an­
conduzidos da ordem de 2 a 15 anos. cestrais nórdicos célticos. Merece, por ocasião do diagnóstico,
Ausência da resposta a essas opções leva a que os pacientes ser diferenciada de outras doenças relacionadas à sobrecarga
sejam tratados com sulfato ou acetato de zinco, variáveis de 75 a de ferro, assim classificadas: 1.familiares ou hereditárias - não
250 mg/dia, com possibilidades de promover balanço negativo relacionada ao HFE, expressa nas formas juvenil ou neonatal,
de cobre e reequilíbrio funcional. No entanto, após suspensão sendo autossômica dominante predominante entre habitantes
da administração, alguns doentes faleceram em consequência das ilhas Solomon; 2. anemias com sobrecarga de ferro - indi­
da instalação de necrose maciça do fígado. Esta complicação, vidualizada na talassemia sideroblástica ou hemolíticas crôni­
no entanto, foi raramente descrita. cas; 3. por sobrecarga dietética; 4. ou identificada naqueles com
Outra perspectiva reside na administração do tetratiomoli- hepatite viral C, doença hepática alcoólica e esteato-hepatite
bedato de amônia, administrado na dose de 60-100 mg/dia, em não alcoólica.
duas tomadas, sendo até os dias de hoje empregado em pequeno Acomete geralmente homens que se encontram em torno
número de doentes. Atua interferindo com a absorção intes­ da quinta década, de vida, mais raramente mulheres após a
tinal do metal, além de formar complexos com o cobre sérico menopausa, com manifestações clínicas variáveis, traduzidas
e torná-lo não tóxico. É necessária maior experiência com sua por acometimento multissistêmico, dependente do acúmulo do
administração antes de consagrá-lo como arma importante do metal em vários órgãos e tecidos. As principais manifestações
arsenal terapêutico. Na falência dessas medidas, e nos casos de são artropatia, hiperpigmentação cutânea, sinais de hepatopa-
hepatite fulminante que não melhoram com a terapia medi­ tia crônica, insuficiência cardíaca, diabetes, impotência sexual
camentosa proposta, deve-se indicar o transplante de fígado, e hipogonadismo. As agressões hepatocelulares variam desde
visando à reversão das graves manifestações decorrentes da alterações dos níveis séricos de aminotransferases (AST, ALT),
precária síntese hepatocelular, com a taxa de sobrevida de 1 até sinais de franca insuficiência parenquimatosa. Esses extre­
ano sendo de 79%, com o implante de um órgão que expresse mos serão evitados, se o diagnóstico e a instituição da terapêu­
a mutante ATP7B, por um órgão que expressa o produto nor­ tica correta forem estabelecidos precocemente. A doença deve
mal da proteína do gene da doença de Wilson podendo corri­ ser aventada em todo paciente com cirrose de etiologia obscura,
gir o defeito no metabolismo de cobre. Entretanto, a reversão principalmente do sexo masculino e acima de 40 anos, cursan­
das manifestações extra-hepáticas da doença não é observada do com diabetes melito ou não, com a incidência de carcinoma
em todos os casos, e há pacientes vivos entre 2,5 e até 20 anos hepatocelular variando de 15 a 20%, sempre que cirrose já se
de pós-operatório. encontre instalada.
Diante dessa grave tendência evolutiva, torna-se recomen­ O diagnóstico é baseado nos aspectos clínicos, bioquímicos
dável que se promova nos parentes mais próximos o rastrea- e histológicos. Nos achados laboratoriais, observa-se aumento
mento da doença, baseando-se nas dosagens do cobre sérico e discreto do nível sérico das aminotransferases e do ferro; o nível
urinário, do nível sanguíneo da ceruloplasmina e, se possível, de saturação de transferrina é significativo quando se encon­
pela mensuração dos depósitos hepáticos do metal e definindo- tra acima de 50%, para mulheres, e de 60%, para os homens,
se o sequenciamento genético do gene mutante ATP7B para podendo a ferritinemia estar elevada ou normal. A histologia
início mais precoce das adequadas recomendações dietéticas, identifica, nas fases iniciais, deposição de ferro nos hepatócitos
medicamentosas e monitorização progressiva. periportais, sem quase nenhum comprometimento das regiões
centrolobulares, com posterior acúmulo no lóbulo, duetos bilia-
res e células de Kupffer. Raramente, se observa necrose celular
■ HEM0CR0MAT0SE GENÉTICA ou infiltrado inflamatório, com tendência evolutiva inexorável
para hepatite crônica e cirrose, se os doentes não são adequa­
É uma das doenças metabólicas do fígado mais comuns, damente tratados. Outros métodos utilizados no diagnóstico
identificadas na prática da hepatologia. Foi descrita pela pri­ são a ressonância magnética e a tomografia computadorizada
meira vez em 1889, por Von Recklinghausen, em necropsias de abdome, com ou sem mensuração hepática de ferro, ambas
de indivíduos cirróticos do sexo masculino, cursando com a sem sensibilidade suficiente para rastreamento de pacientes as-
maciça deposição de ferro nos hepatócitos. Trata-se de doença sintomáticos. Recomendável que essa sequência de avaliações
genética, herdada de forma recessiva autossômica, consequente seja feita nos familiares de primeiro grau de pacientes porta­
à mutação gênica instalada no braço curto do cromossomo 6, dores desse distúrbio metabólico, ou em indivíduos que sejam
comportamento observado em 70% dos pacientes com antíge- surpreendidos em exames de rotina com elevação dos valores
no de histocompatibilidade HLA A3. Um gene candidato para de AST, ALT, hepatomegalia ou astenia. São esses que, diag­
a hemocromatose foi chamado HFE (antigamente HLA-H). A nosticados em fases iniciais, deverão ser submetidos à rápida e
principal mutação disponível para avaliação do gene da HFE é segura remoção de ferro, com seguimento vigilante dos resul­
resultante da substituição da tirosina por cistina no aminoácido tados da terapêutica adotada, buscando-se adotar algoritmos
282 na alça alfa 3, abolindo a ponte dissulfídica nesse domínio, de condução (Figuras 55.1 e 55.2).
sendo denominada C282Y. Frise-se que cerca de 85% desses O tratamento consiste em reduzir os estoques corpóreos
pacientes são homozigóticos para essa mutação, com 40 a 70% de ferro, através da realização semanal de flebotomias de 450
desenvolvendo manifestações orgânicas típicas da sobrecarga mé (200-250 mg de ferro), até os estoques se exaurirem, o que
de ferro. A segunda mutação é marcada pela substituição do ocorre, em média, por volta de 1-3 anos. O monitoramento deve
ácido aspártico pela histidina na posição H63D. Contribui para ser feito pela determinação da taxa de hemoglobina, que deve
a hemocromatose hereditária em pequena porcentagem (1,5%), estar abaixo de 11 g/%, e a ferritina abaixo do, ou no, limite in­
em geral em pacientes heterozigóticos para C282Y e H63D. ferior da normalidade. Outra alternativa de manuseio naqueles
A doença caracteriza-se pelo aumento na absorção intestinal sem doença isquêmica do coração é manter a continuação das
do ferro e seu consequente acúmulo no fígado, pâncreas, cora­ sangrias, desde que o hematócrito pré-sangria esteja acima de
ção, suprarrenais, testículos, pituitária e rins. A etiopatogenia 35%, buscando manter o nível sérico de ferritina abaixo de 50
626 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral

A causa da doença hepatocelular é desconhecida, aceitando-


se atualmente que existe no homozigótico PiZ um bloqueio no
final dos estágios de processamento de a,-AT, resultando em
seu acúmulo no retículo endoplasmático dos hepatócitos onde
sofre polimerização aberrante, não sendo degradada. Formam-
se então agregados geradores de inclusões solúveis intracelula­
res, indutores de intensa resposta autofágica dos hepatócitos,
com consequentes lesões mitocondriais e excessivas expressões
de caspase (proteases mediadoras de morte celular), causando
hepatite crônica e cirrose. Nas crianças, esse processo se exa­
cerba na dependência de infecções frequentes, complementadas
N L b N o rm al; T = M aior; I S T = índice de sa tura çã o transíerina.
por fatores adicionais genéticos e ambientais. Desse processo,
Figura 55.1 Hemocromatose genética (HG). I. Algoritmo de condução participa no retículo endoplásmico uma série de chaperones
(Tavill. 2001). (mediadores de autofagia celular seletivos para a degradação
de proteínas citosólicas alteradas nos lisosomas) disparadora
de um processo ordenado de glicosilação, com formações de
pontes de enxofre, as quais, em conjunto, daí migram para o
aparelho de Golgi, para membranas plasmáticas e vesículas.
Assim, a a,-AT é secretada como uma glicoproteína de 35 kDa,
em índice aproximado de 34 mg/kg/dia, induzindo conjuga­
ção com ubiquitina, sendo exportada para ser degradada em
proteossomos. Quando não excretados e se avaliando por meio
de microscopia eletrônica, é identificada sob forma de glóbulos
PAS positivos, diástase resistente.
O tratamento inicial da deficiência de a,-A T é apenas sin­
tomático. A amamentação materna parece ser importante, ao
menos até 1 ano de idade, assim como se crê que diminua as
manifestações de doença colestática. Suplementação de vitami­
nas lipossolúveis, quando necessária. Evitar tabagismo, direto
ou indireto.
O tratamento farmacológico envolve: 1. administração de
chaperones; 2. experimentalmente, hepatócitos de ratos expos­
tos às presenças de glicerol e ácido 4-fenilbutírico cursam com
níveis aumentados de secreção de a,-AT, acentuando os níveis
plasmáticos em 20 a 50%; 3. também fenilbutarato de sódio
e/ou cicloexamida, um inibidor de translação de proteína, e,
M L = alteradas.
finalmente, só a administração de lactasina leva à restauração
Figura 55.2 Hemocromatose genética (HG). II. Algoritmo de condu­ do transporte e secreção; 4. alternativamente, valendo-se ex­
ção (Tavill 2001). perimentalmente da administração de inibidores de glicosida-
se e monosidase ou da administração intravenosa de a,-AT,
nem sempre possível de ser realizada, consegue-se bloquear
|ig/L. Recomendável evitar ingesta de suplementos de vitami­ o distúrbio instalado. A terapêutica substitutiva com ct,-AT
na C e, uma vez atingidos esses resultados, devem-se espaçar purificada é a única medida aprovada pela FDA para a doen­
as sessões para cada 30 ou 60 dias. O uso de quelantes, como ça pulmonar associada. Este tratamento não beneficiará um
a deferroxaminat mostra-se ineficaz. O prognóstico depende paciente hepatopata porque a doença não resulta de uma per­
da da função da a,-AT, mau processamento dessa substância.
basicamente da época do diagnóstico e início do tratamento,
Outra tentativa até agora aparentemente pouco útil foi usar
com sobrevidas longas em pacientes precocemente diagnosti­
chaperones, como o ácido fenilbutírico visando a aumentar a
cados e tratados. A evolução para insuficiência hepatocelular
secreção de a,-AT. Entretanto, nenhum aumento significativo
implica a realização do transplante de fígado, com a sobrevida da a,-A T foi observado.
de 1 ano sendo de 50-60%. As manifestações clínicas, por sua vez, relacionam-se com
a faixa etária dos pacientes, com doença hepática sendo a rea-
tividade para 10-20% dos homozigóticos portadores do alelo
■ DEFICIÊNCIA DEa-1-ANTITRIPSINA 2 (Pi22). No recém-nato, a apresentação mais comum traduz-
se por quadro de colestase, que geralmente regride até os 6
Alfa-1-antitripsina (a,-AT) é uma glicoproteína com ativi­ meses de vida, com evolução para doença hepática já na in­
dade antiprotease, sintetizada primeiramente no retículo endo- fância, nos primeiros meses de vida, evidenciada por icterícia
plásmico dos hepatócitos, mas também produzida em fagócitos e hepatomegalia, excepcionalmente, em idade mais avançada;
mononucleares e neutrófilos. Tem a função de inativar elasta- esse jovem paciente apresenta ascite, hepatoesplenomegalia,
se, tripsina e outras enzimas proteolíticas. Deficiência sérica varizes hemorrágicas, manifestações próprias daqueles com
se deve às várias mutações gênicas com combinações homo e cirrose hepática. São nesses que cursaram com hepatite neo-
heterozigóticas gerando alto risco de sua retenção em hepa­ natal, que, quando adultos, entre 20 e 50 anos, vai predominar
tócitos e células pulmonares, gerando enfisema pulmonar ou o quadro respiratório de enfisema pulmonar e, naqueles mais
doença hepática. idosos, o de hepatite crônica, cirrose hepática e/ou de carci-
Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Vira! 627

noma hepatocelular. Mais raramente, são encontradas mani­ entretanto, sugere-se reação de hipersensibilidade ou ação
festações clínicas de doença respiratória e hepática, associadas lesiva exercida por um metabólito. Os achados morfológicos
nessa faixa etária. são variáveis, podendo predominar hiperplasia de células
Identificação e confirmação diagnóstica baseiam-se em ní­ de Kupffer e infiltrado linfoplasmocitário, seguidos, poste­
vel sérico baixo de a,-AT, confirmam o diagnóstico em recém - riormente, de necrose em ponte e nódulos de regeneração.
natos ictéricos ou naqueles com hepatite crônica, ou cirrose, Os sintomas instalam-se dentro de 7 a 180 dias de uso, com
traduzindo-se histologicamente por acentuada necrose perifé­ período médio de 90 dias a partir da administração. São
rica dos hepatócitos, presença de glóbulos intracelulares PAS pacientes que referem adinamia, desconforto abdominal,
positivos e a,-AT identificada por imunoperoxidase, predomi­ mal-estar geral e, nos casos mais graves, letargia e icterícia.
nantemente naqueles que são genótipos PiZ ou PiSZ. O reconhecimento precoce da agressão exige interrupção da
Recém-natos devem receber leite materno. Polimerização exposição e, nos casos de insuficiência hepática, tratamento
dessa proteína anormal (a,-AT) tem sido bloqueada valendo- suportivo e intensivo, sem administração de corticoide.
se de chaperones, moléculas competitivas, na tentativa de se 2. Nitrofurantoína constitui outra droga capaz de causar lesão
impedir a formação do acúmulo dos agregados de proteínas hepática crônica. A evolução é assintomática, mas traduzida
mutantes nos hepatócitos. Falência dessa atitude leva a que, do bioquimicamente por alterações de níveis séricos de AST
ponto de vista evolutivo, defina-se que: I. apenas uma minoria e ALT, com a frequência da lesão hepatocelular sendo de
de crianças portadoras da doença são levadas ao transplante 1:3.000 pacientes expostos, cerca de 33-67% evoluindo para
de fígado, sendo importante que elas, em geral no momento hepatite crônica, o que já se observa após 6 meses de exposi­
de serem assim conduzidas, ainda sejam jovens, sem doença ção. Cerca de 90% dos agredidos são mulheres acima dos 40
pulmonar ou insuficiência renal, não diferindo o per e pós- anos de idade, com mortalidade em torno de 8%. Relatam,
operatório do observado em pacientes na mesma faixa etária, em geral, astenia, fadiga, mal-estar, náuseas, anorexia e vô­
porém com insuficiência hepática ou hipertensão portal, de mito. Icterícia e hepatomegalia são identificadas nos casos
outra causa; 2. adolescentes ou adultos, no entanto, mostram graves. Deve-se a lesão a um fenômeno de hipersensibilidade
tendência a evoluírem com complicações, tais como hemorragia que, histologicamente, se traduz por necrose periférica e em
digestiva, ascite, edema, encefalopatia, distúrbios da coagula- ponte, hepatite crônica e cirrose em 20% dos expostos. Esses
ção, peritonite bacteriana espontânea, encefalopatia e síndrome cursam com hipertransaminasemia e hipergamaglobuline-
hepatorrenal e com menor incidência de enfisema pulmonar. mia, incluindo-se também positividade de autoanticorpos
Obrigatoriamente nessa fase, esses doentes deverão ser con­ (antinúcleo e antimúsculo liso). A terapêutica envolve sus­
duzidos ao transplante de fígado, que, quando bem-sucedido, pensão da administração, excepcionalmente indicando-se
faz com que o nível sérico e tecidual de a,-AT retorne ao nor­ corticoide.
mal e a sobrevida de 5 anos ultrapasse 80%. 3. Dantrolene, um derivado da hidantoína, é capaz de causar
Uma grande esperança para esses doentes repousa na tera­ lesão hepática principalmente em mulheres com mais de
pia gênica, esperando que se consiga uma substituição genética 30 anos de idade que utilizam dose igual ou superior a 300
para a deficiência de a,-AT. mg/dia, com incidência que varia de 0,8 a 1,9%. Casos fa­
tais relacionam-se ao uso prolongado desse fármaco, com
os sintomas iniciando-se entre 1 e 6 meses, com período as-
■ FÁRMACOS sintomático fazendo parte do quadro. Icterícia é observada
em 50%, e morte em 28%, causada por hepatite crônica ou
O fígado desempenha papel fundamental no metabolismo de insuficiência hepática fulminante. A recuperação histológica
fármacos e se constitui alvo frequente de lesões decorrentes da ocorre em 1-5 meses após interrupção de seu uso, restando
ação lesiva exercida por eles e seus metabólitos, que haviam sido sinais de cirrose inativa. Não há indicação de corticoidete-
ministrados com intenção terapêutica. Essa evolução se traduz rapia.
evolutivamente desde a instalação de discretas manifestações de 4. Isoniazida, droga usada rotineiramente no tratamento da
colestase e necrose hepática até formas mais graves, tais como tuberculose, induz aparecimento de alterações hepáticas
hepatite aguda, insuficiência hepática fulminante e até doença variadas, expressando-se desde simples elevações de níveis
hepática crônica. Essa evolução última, motivo de nossa pre­ séricos de AST e ALT e hiperbilirrubinemia até alterações
ocupação nesse capítulo, ocorre entre 5,7 e 33%, com 2 a 3% histológicas que se estendem desde a necrose lobular fo­
deles requerendo admissão hospitalar. São mais susceptíveis os cal até necrose periférica, excepcionalmente sendo maciça
idosos, por apresentarem reduzida atividade do sistema enzi- multilobular. São menos frequentes hepatite crônica grave
mático citocromo P450 e reduzida excreção renal, com maior e cirrose. A descontinuação do fármaco é a terapêutica de
tempo de circulação. Também as mulheres são particularmente escolha, com o mecanismo da lesão parecendo ser por idios­
predispostas, a mesma tendência observada naqueles indiví­ sincrasia.
duos com depleção dos estoques de glutation nos hepatócitos.
5. Propiltiouracil, agente antitireoidiano, que raramente cau­
O mesmo mecanismo é também observado entre desnutridos, sa hepatite crônica. Quando ocorre, existe uso prolongado,
alcoólatras crônicos e com síndrome da imunodeficiência ad­ com os pacientes referindo sintomas como anorexia, astenia,
quirida. Nestes, a incidência de hepatite crônica, resultante dos
artralgia e hepatomegalia. Laboratorialmente, revela-se por
efeitos lesivos por certos fármacos, mostra-se preocupante e
elevação de níveis séricos de AST, ALT, fosfatase alcalina
merecerá comentários de forma isolada:
e bilirrubina total. São baixos os títulos de autoanticorpos
1. Alfametildopa, droga anti-hipertensiva, introduzida para uso (antinúcleo e antimúsculo liso). Histologicamente, se tra­
clínico em 1960. Evolução de agressão hepatocelular cursa duz por alargamento de espaços portais, necrose periférica
desde quadro típico de hepatite aguda até cirrose, incidin­ e fibrose, com ou sem regeneração nodular. A terapêutica
do mais frequentemente em mulheres obesas, além dos 50 envolve descontinuação do medicamento e administração
anos de idade. O mecanismo etiopatogênico é desconhecido; de corticosteroides.
628 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral

6. Oxifenisatina foi empregada durante anos como laxante de ferase se observa em 90% dos casos, sempre acompanhado de
uso amplo e baixo preço. A partir de 1971, passou a ser iden­ macrocitose. À biópsia hepática, observam-se, dependendo do
tificada como causa de hepatite aguda e crônica, algumas estádio, algumas peculiaridades, como infiltrado inflamatório
vezes de grave intensidade, evoluindo para cirrose. As m u­ constituído por polimorfonucleares, corpúsculos de Mallory,
lheres são afetadas quatro vezes mais que os homens, rela­ esteatose, podendo apresentar esclerose da veia centrolobular,
tando que fizeram uso deste fármaco pelo período de 12-36 com ou sem nódulos de regeneração. O tratamento se baseia
anos, com média de 9 meses. Os pacientes referem astenia, na interrupção da ingesta do álcool e boa nutrição, além de
mal-estar, anorexia, náuseas e icterícia, evoluindo com ele­ medidas de suporte. Em casos mais avançados, já cirrotizados,
vação de níveis séricos de AST e ALT, cerca de 50-70% de­ tem sido indicado transplante hepático, devendo ser realizado
les evidenciando anticorpos (antinúcleo e antimúsculo), e apenas para aqueles com, no mínimo, 6 meses de abstinência,
30% com células LE positivas. Anatomopatologicamente, a e amplo apoio psiquiátrico associado.
lesão traduz-se por necrose periférica e em ponte, fibrose e
regeneração nodular. Esta evolução se relaciona a fenômeno
imunológico, tipo hipersensibilidade. A interrupção do me­ ■ COLANGITE ESCLER0SANTE PRIMÁRIA
dicamento leva a desaparecimento dos sintomas, regressão
da agressão histológica, com permanência de leve fibrose. A colangite esclerosante primária é uma forma de doença
7. Diclofenaco, derivado do ácido fenilacético, pode causar he­ biliar menos comum que a cirrose biliar primária e a hepatite
patite, sempre acometendo mulheres acima dos 65 anos de autoimune, porém mais frequente que as síndromes híbridas.
idade, que referem icterícia após 3-11 meses do início da Diferentemente do observado nas outras doenças hepáticas au-
terapêutica. Todos os casos evoluem com elevação de níveis toimunes, tem predileção pelo sexo masculino (2:1), não exis­
séricos de AST, ALT e de bilirrubina. Necrose em ponte tindo uma explicação plausível que justifique esse comporta­
pode ser identificada, relacionando-se com fenômeno de mento preferencial.
autoimunidade. A terapêutica envolve suspensão da droga De etiologia desconhecida, o processo inflamatório é pre­
e medidas de suporte. dominantemente linfocitário, com toda evolução relacionada
8. A evolução para hepatite crônica pode também ser obser­ com a agressão que essas células causam sobre o epitélio dos
vada entre pacientes em uso crônico de sulfonamidas, clo- duetos biliares, alvos dos linfócitos T CD8+, o que lhes confere
metacinay halotanot paracetamol e aspirina, drogas que potencial patogenético. Tudo indica que essa evolução guarde
merecem ser lembradas como causadoras de lesão hepa- relação com uma resposta imunológica TH2 pró-inflamatória
tocelular prolongada. Tal tendência relaciona-se ao fato de exacerbada, sendo a natureza do alvo ainda incerta. São eles
que as drogas e/ou os xenobióticos são lipofílicos, absorvi­ que evoluem com expansões dos espaços portais ocupados por
dos no trato gastrintestinal, requerendo ser transformados linfócitos CD8+, dispostos ao nível das células epiteliais dos
em compostos solúveis a serem eliminados na urina e na duetos biliares, uma forma de expressão dependente de uma
bile. Nesse processo, se encontram envolvidos o sistema resposta à hipersecreção de citocinas originárias da flora bacte-
misto de oxidase ou mono-oxigenase presente no retículo riana intestinal anormal que apresentam. Em geral, cursam, em
endoplásmico do hepatócito, complexos citocromo c-re- associação, com aumento significativo da relação CD4+:CD8+
dutase e P-450, estando duas fases envolvidas na biotrans- no sangue periférico, como consequência de uma acentuada
formação. São mais suscetíveis as crianças ou os idosos, as redução de células CD8+, comportamento relacionado à pre­
mulheres, os portadores de doença renal ou hepática, os sença de TN Fa e baixas respostas proliferativas a mitógenos.
infectados pelo HIV, bem como os obesos ou desnutridos, São elevados os níveis séricos de IL-8 e IL-10 e IgG, com cerca
os alcoolistas ou aqueles que exibem um polimorfismo ge­ de 60-70% deles sendo anticorpos anticitoplasma de neutró-
nético. filos (p-ANCA) positivos. Epifenômeno dessa cascata infla-
matória se traduz pela identificação de outros autoanticorpos
inespecíficos, tais como antinúcleo (7-77%), anticardiolipina
■ INGESTA ALCOÓLICA EXCESSIVA (4-66%), antimúsculo liso (13-20%), antiperoxidase tireoidia-
na (16%) e fator reumatoide (15%). Toda essa complexidade
Ingesta alcoólica excessiva se constitui em uma das princi­ depende ainda da participação de alguns alelos do complexo de
pais causas de doença hepática crônica em todo o globo. Mos­ histocompatibilidade (HLA) e de polimorfismos, que também
tra-se mais frequente em grupos socioeconômicos mais baixos, se identificam em genes reguladores da resposta imunológica,
mas presente também naqueles em classes afluentes. Nesses tais como ICAM-1 e CR5A32. Apesar dessas evidências, alguns
pacientes, o etanol excessivamente ingerido pode causar des­ ainda não aceitam que existam provas irrefutáveis de que o
de quadro benigno de esteatose hepática até cirrose e carcino- sistema imune-humoral exerça qualquer interferência na pa-
ma hepatocelular. O sexo feminino mostra-se mais propenso togênese da colangite esclerosante primária. Outros definem
em relação à ingesta, com a evolução para a doença hepática que tal evolução se relaciona com a presença de espécies de
crônica geralmente sendo observada entre homens quando a Helicobacter, de citomegalovírus, de reovírus tipo 3, bactérias
dose ultrapassa 40 a 80 g/dia por mais de 5 anos. Esses núme­ e até fungos como Cândida.
ros são bem mais inferiores para as mulheres, 20-30 g/dia; elas Clinicamente, esses pacientes cursam com surtos de dor ab­
caminham para as complicações graves em tempo mais curto dominal em cólica, no andar superior do abdome ou hipocôn-
de etilismo. Fatores predisponentes a essa evolução nefasta são drio direito, acompanhada de febre, astenia, calafrios, icterícia,
de ordem genética, nutrição deficiente e associação com vírus prurido, colúria e acolia, tendo-se hoje a certeza de que cerca
das hepatites B ou C. de 20-25% dos que apresentam essas características as desen­
Na hepatite crônica do alcoólatra, os exames bioquímicos volveram mesmo quando existia comprometimento apenas
não diferem muito dos das outras hepatopatias, porém com al­ de pequenos duetos biliares. Achados comuns são hepatome-
gumas peculiaridades, predominando o nível sérico de AST so­ galia e esplenomegalia identificadas ao exame físico, respecti­
bre as taxas de ALT. Aumento de valores de gamaglutamiltrans- vamente em 44-55% e 20-30% dos casos em diferentes séries.
Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Vira! 629

Hipertensão portal se instala progressivamente, com 2-4% dos plantados, sendo reconhecida em torno de 8 a 12, ou 25 me­
doentes cursando com ascite, enquanto 2,6-6% sangram por ses de pós-operatório, expressando-se histologicamente por
varizes esofagogástricas rotas, varizes que são identificadas em atividade necroinflamatória e, algumas vezes, por infiltrado
7-36% deles. inflamatório portal constituído de plasmócitos e fibrose, com
O quadro laboratorial é de colestase, traduzida por elevação potencial evolutivo até cirrose. Em alguns, se expressa labo­
sérica dos níveis de bilirrubina total e da fração direta, além da ratorialmente por elevação de níveis sanguíneos de fosfatase
fosfatase alcalina e da gamaglutamiltransferase. A histopato- alcalina, sem que perda do enxerto faça parte da perspectiva
logia pode se expressar sob forma de hepatite autoimune, so­ evolutiva desses pacientes.
bretudo quando acomete crianças, antes que elas exibam sinais Recentemente, alguns grupos têm descrito um tipo particu­
típicos de colangite esclerosante primária, quando ainda a co- lar de disfunção tardia do enxerto, identificado em pacientes
langiografia endoscópica retrógrada ou por ressonância mag­ cursando com aspectos sorológicos e histológicos típicos de
nética mostram-se normais. Farmacologicamente, esses doentes hepatite autoimune, sem que essa doença fosse a causa de seu
têm sido conduzidos de forma errática, imprecisa, baseando-se transplante de fígado. Essa evolução se relaciona com infecções
nas administrações de ácido ursodesoxicólico em dose mais ele­ induzidas por citomegalovírus, vírus Epstein-Barr ou parvoví-
vada, D-penicilamina e opções ainda mais ineficazes, tais como rus, os quais precipitam mecanismos, tais como estímulo po-
emprego de penicilamina, prednisona, azatioprina, colchicina, liclonal, aumento e indução de expressão de antígenos classes
pentoxifilina, nicotina oral, metotrexate e até ciclosporina A e I e II do sistema HLA, interferindo também com células imu-
tacrolimus (FK 506). De forma alternativa e desesperada, alguns nerreguladoras. Difere do ponto de vista anatomopatológico
têm tentado bloquear o aparecimento de surtos de colangite, da rejeição celular, recebendo a denominação de hepatite au­
realizando dilatações endoscópicas com balão e implante de
toimune e de novo instalada 2 a 4 anos de pós-operatório.
próteses, por via radiológica ou endoscópica, visando a reduzir
as incidências de febre, calafrios e queda do estado geral. Aque­
les assim manuseados deverão ser tratados profilaticamente e,
após o procedimento, receber ciprofloxacina por via oral ou pa- ■ LEITURA RECOMENDADA
renteral. Irracionalidade maior na condução de tais pacientes é Alia, V, Abraham, J, Siddiqui, J et al. Autoimmune hepatili» triggered by statins.
a realização de hepatectomias, visando a ressecção de estenoses / Gastroenterol, 2006; 40:757.
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modalidade deverá ser empregada, sobretudo, naqueles que já
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630 Capítulo 55 / Hepatite Crônica Não Viral

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Hepatite Aguda Fulminante
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin,
Paula Hugueney Cruz, Taiane Costa Marinho,
Maria Juliana Louggio Cavalcanti, Maria Elizabeth Calore Neiva,
Arnaldo Berna! Filho, Raul Carlos Wahle

Hepatite aguda fulminante (HAF) define-se como síndrome


clínica, grave, que se caracteriza por sua súbita instalação, em
■ Insuficiência hepática subfulminante
pacientes com fígado previamente normal, ou em alguns por­ Traduzida como de instalação aguda, complicada por coma
tadores de doença hepática crônica. Em geral, assume evolu­ hepático, que se instala entre 2 semanas e 3 meses do apare­
ção rápida, levando à insuficiência hepatocelular, traduzida cimento de icterícia, sempre acompanhado dos comemorati­
por hipoglicemia, falência de múltiplos órgãos, coagulopatia e vos clínicos típicos, identificados nos pacientes que cursam
distúrbios do sistema nervoso central, estes representados por com fígado devastado pela necrose hepatocelular severa que
letargia, sonolência e coma. O índice de mortalidade chega a apresentam.
80%. Vem ocorrendo uma reversão nessa triste história natural
com o advento do transplante de fígado, a sobrevida atingindo
80-90% dos pacientes transplantados. Os aspectos evolutivos e ■ Insuficiência hepática hiperaguda,
terapêuticos serão comentados neste capítulo. aguda ou subaguda
Essa é a forma mais recentemente proposta de conceituação
■ CONCEITUAÇÕES DA SÍNDROME da hepatite aguda fulminante. Baseia-se no tempo de instala­
ção de sinais neurológicos característicos da falência cerebral,
A conceituação original de hepatite aguda fulminante foi respectivamente entre 0 e 7,8 e 28 ou de 29 dias a 12 semanas,
feita por Lucke & Mallory, em 1946. Descreveram que ela se com índices de sobrevida de 36,7 e 14%. Características destes
caracterizava “pelo agudo aparecimento de icterícia progressi­ subgrupos estão dispostas no Quadro 56.1.
va, redução volumétrica do fígado e coma hepático. Todos os
doentes cursavam com alargamento do tempo de protrombina,
hipertransaminasemia, além de aumentos nos valores sanguí­
neos de bilirrubina, nitrogênio e amônia, com insuficiência he­
■ DIVERSAS ETI0L0GIAS
pática grave instalando-se dentro de 8 semanas desde o início Diversas etiologias responsáveis pela instalação de hepati­
do quadro clínico”. te aguda fulminante encontram-se discriminadas no Quadro
Cerca de 65 anos após, apresentaremos os avanços obtidos 56.2.
com o diagnóstico mais precoce e terapêuticas modernas, vol­
tados à interrupção da avassaladora evolução, que pode ser
observada nessa doença, sobre a qual diferentes grupos de pes­
quisadores estabeleceram diferentes conceituações, baseando- ■ HEPATITES AGUDAS VIRAIS MAIS FREQUENTES
se no intervalo do tempo entre o aparecimento de icterícia e a
A hepatite pelo vírus A representa a causa mais frequente de
instalação da encefalopatia, conforme discriminado adiante.
hepatite aguda fulminante, com incidência maior entre expos­
tos ao vírus em fase mais avançada da vida. Observa-se entre
■ Insuficiência hepática fulminante 0,01 e 1% dos infectados, diagnosticada pela presença sérica do
Indicativa de necrose parenquimatosa extensa grave, ocorre anti-VHAIgM, com sobrevida média em torno de 40%. Essa é
na ausência de doença hepática preexistente. Acompanha-se a melhor evolução entre pacientes com doença induzida por
sempre de coma, estágios III ou IV, observado dentro de 8 se­ vírus hepatotróficos. Um escore prognóstico desenvolvido para
manas do início clínico da hepatite. Mais recentemente, esse essa forma de doença inclui quatro aspectos tradutores de maior
conceito foi modificado e aplica-se desde que o tempo de ins­ gravidade: alanina-aminotransferase < 2.600 UI/Í, creatinina
talação do quadro neurológico ocorra dentro de duas semanas > 2,0 m g/dí e necessidade de assistência ventilatória sob entu-
a partir do aparecimento da icterícia. bação orotraqueal, e uso de drogas vasopressoras.

631
632 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ ▼ -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 56.1 Características dos subgrupos dos pacientes com hepatite aguda fulminante

Subgrupos de in su ficiê n d a hepática


Características
H iperaguda Aguda Su baguda

E n c e fa lo p a tia S im S im S im

D u r a ç ã o d a icte ríc ia (d ia s) 0 -7 8 -2 8 2 9 -7 1

E d e m a c e re b ra l Com um Com um In fre q u e n te

T e m p o d e in s ta la çã o P r o lo n g a d o c o m o a g u d o P r o lo n g a d o c o m o h ip e r a g u d o M e n o s p r o lo n g a d o

B llirru b in a M e n o s e le v a d a E le v a d a c o m o s u b a g u d a E le v a d a c o m o a g u d a

P r o g n ó s t ic o M o d e ra d o R u im R u im

▼ te desconhecido associado). O diagnóstico é confirmado pela


Q u a d ro 56.2 Diversas etiologias da insuficiência hepática fulminante presença sérica dos anti-HBcIgM e anti-VHDIgM e RNAVHC,
quando esses outros agentes participam da lesão hepatocelular.
H e p a tite s a g u d a s v ira is m a is fre q u e n te s Essa evolução relaciona-se ao rápido clareamento dos AgHBs,
• H e p a t it e p e lo v íru s A (V H A )
pré-Sl e pré-S2 e o precoce aparecimento de seus anticorpos,
• H e p a t it e p e lo v íru s B (V H B )
• H e p a t it e p e lo v ír u s C (V H C )
quando tipicamente tais marcadores tornam-se indetectáveis
• H e p a t it e p e lo v íru s D (V H D ) no soro. Essa evolução é mais comum entre aqueles que exibem
- C o in fe c ç ã o c o m V H B frequentes mutações no gene precore/core. Forma fatal de he­
- S u p e rin fe c ç ã o c o m V H B patite aguda fulminante pode ocorrer naqueles pacientes que já
• H e p a t it e p e lo v íru s E
cursavam com hepatite crônica, ou encontravam-se recebendo
H e p a tite s p o r o u tr o s a g e n te s v ira is doses elevadas de quimioterápicos ou imunossupressores e que
H e p a tit e a u t o im u n e são AgHBs positivos. Estes podem apresentar desde a forma
H e p a tit e s q u ím ic a s assintomática da doença até sinais clínicos e laboratoriais con­
• E n v e n e n a m e n t o p e la a m a n it a P h a lo id e e s o lv e n te s in d u s tria is
dizentes com exaustão funcional do parênquima hepático. São
• T o x ic id a d e p e lo a c e ta m in o f e n o e h a lo t a n o
• R ea çõ es id io s s in c rá tic a s a o u tr o s fá rm a c o s
dúbios os resultados expostos na literatura voltados à manipu­
- Is o n ia z id a c o m r i f a m p ld n a , t r im e t o p r lm a c o m s u lfa m e to x a z o l, lação desses pacientes, valendo-se de análogos nucleosídicos.
b a rb itú ric o s , a c e ta m in o f e n o , a lfa m e tild o p a , te tra c id in a s , O papel do VHC na hepatite aguda fulminante é controver­
q u in o lo n a s , a m io d a r o n a , a n t i-in fla m a t ó r io s n à o h o r m o n a is , so em diferentes séries avaliadas. Mostra-se como responsável
a n t id la b é t ic o s o ra is, a n tirre tro v ira is
por índices baixos nos EUA e na Europa, variando de 0 a 12%,
M is c e lâ n e a porém mais elevado entre asiáticos, em que atinge 43-59%.
• R e je iç ã o h ip e r a g u d a a o f íg a d o tra n s p la n t a d o
• P ó s -d r u r g ia b a riá trica
Por sua vez, a frequência descrita de coinfecção ou superin-
• Is q u e m ia h e p á tic a fecção de pacientes positivos para RNAVHC (PCR) e AgHBs
• G e sta d o n a l evoluindo para hepatite aguda fulminante estende-se, por sua
• D o e n ç a s lin fo p ro life ra tiv a s vez, entre 18 e 47%, sendo mais elevada entre asiáticos, em que
• S ín d r o m e d e B u d d -C h ia r i
atinge 43-59%.
• A n o r m a lid a d e s v a s c u la re s c a rd ía ca s
• P ó s -e s fo rç o físico e x c e s s ivo s o b c o n d iç õ e s a d v e rs a s
Hepatite pelo vírus E ocorre sob forma epidêmica em
M e t a b ó lic a s (p r e v a le n te s e m c ria n ç a s )
países em desenvolvimento, sobretudo afro-asiáticos. Nesses,
• S ín d r o m e d e R eye a hepatite aguda fulminante caracteristicamente ocorre 9 vezes
• M it o c o n d r io p a tia s mais entre grávidas do que entre homens e não gestantes. Tem
• G a la c to s e m ia gravidade maior naquelas que se encontram no terceiro trimes­
• T ir o s in e m ia h e re d itá ria t i p o 1
tre da gestação. É causada por um vírus não envelopado de 32
• D o e n ç a d e W ils o n
• P ro to p o rfiria e ritro p o é tic a
nm, de transmissão oral-fecal, com período de incubação de
• H e m o c r o m a t o s e n e o n a ta l 209 semanas, média de 40 dias, incidindo mais frequentemente
In d e te r m in a d a s o u c r ip t o g e n é t ic a s em pacientes entre 15 e 40 anos de idade, com índice de casos
fatais atingindo 0,2 a 4% na população geral, podendo atingir
8%, quando gestantes são acometidas.

Estima-se que, no mundo, trezentos milhões de indivíduos ■ HEPATITES POR OUTROS AGENTES VIRAIS
são portadores do AgHBs, com cerca de 1% evoluindo com
hepatite aguda fulminante. Essa forma grave de necrose do pa- A infecção disseminada pelo vírus do herpes simples pode
rênquima hepático observa-se em diferentes situações, como: ser identificada no soro pela técnica HSVDNA, valendo-se de
1. pacientes que se apresentam apenas com infecção pelo VHB; reação em cadeia de polimerase; é capaz de levar à instalação
ou 2. quando existe coinfecção pelo VHC e VHD; 3. menos de hepatite aguda fulminante, exigindo realização urgente de
frequentemente, quando se superimpõe um outro agente viral transplante de fígado. É recomendável que estes pacientes, no
desconhecido. A prevalência respectiva dessas condições entre pós-operatório imediato, recebam altas doses de antivirais. En­
italianos se situa em 39% (infecção única pelo VHB), 25% (coin­ tretanto, frise-se que, mesmo assim sendo tratados, taxas subs­
fecção pelo VHC), 23% (coinfecção pelo VHD) e 13% (agen­ tanciais de morbimortalidade têm sido observadas. Em crian­
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 633

ças, a doença ocorre mais comumente nas primeiras 2 semanas


de vida e, quase sempre, associada a doença sistêmica.
■ Hepatites químicas
Outros agentes virais, tais como citomegalovírus, adenoví- As hepatites agudas medicamentosas citolíticas lembram
rus, varicela e parvovírus B19, podem precipitar necrose extensa clínica e laboratorialmente as virais. Quando sintomáticas, re-
do parênquima com hepatite aguda fulminante, mais frequen­ velam-se pela presença de sintomas inespecíficos como astenia,
temente observada em imunodeprimidos. Essa evolução pode anorexia, rash cutâneo, vômito, icterícia ou não e, mesmo entre
também ser vista na presença de echovírus, dos vírus do saram­ os assintomáticos, pela elevação dos níveis séricos de alanina-
po, NHV-6, da leptospirose, da febre amarela, da dengue, na aminotransferase. Histologicamente, expressa-se por necrose
febre de lassa e SEN-V, na doença causada pelo vírus Epstein- hepatocitária, predominantemente difusa, acompanhada de
Barr, que também pode ser identificado nesses pacientes, em infiltrado inflamatório lobular e portal constituído por poli-
geral cursando com anemia hemolítica e síndrome hemato- morfonucleares, linfócitos e eosinófilos. Quando essa agressão
fagocítica. Autores japoneses mostraram que pacientes com acentua-se e torna-se mais extensa e difusa, instala-se encefalo-
hepatite aguda pós-transfusional causada por esse DNA-vírus, patia, evolução neurológica que costuma ocorrer em menos de
com estrutura genômica similar à dos parvovírus, podem evo­ 15 dias desde o aparecimento de icterícia. Esse comportamento
luir para insuficiência hepática fulminante. Entretanto, ainda se observa mais frequentemente entre aqueles em uso de drogas
é difícil definir com precisão sua participação na indução da de ação hepatotóxica previsível, como o paracetamol, ou idios­
necrose maciça dos hepatócitos. Para que se conheçam os de­ sincráticas, identificadas naqueles em uso de anti-inflamatórios
talhes fisiopatológicos, necessita-se ainda de melhores sistemas hormonais, ou recebendo anestésicos halogenados, tais como
de marcadores de antígenos e de anticorpos, além da realização halotano, enflurano e metoxiflurano. Mais recentemente, essa
de estudos experimentais infectando chimpanzés ou outros ani­ evolução tem sido observada em doentes tratados com leveti-
mais suscetíveis. Tal como estamos, inexistem evidências cien­ racetan, sinvastatina-ezetimiba, bicalutamide, sunitinibe, flu-
tíficas válidas documentando a replicação viral intra-hepática darabina-ciclofosamida/rituximabe.
ou evidenciando uma resposta excessiva desenvolvida por lin- Preocupantes entre esses pacientes, são aqueles com hepa­
fócitos T citotóxicos, ou, ainda, a ação de citocinas capazes de tite aguda fulminante induzida pelo acetaminofeno, nos quais
promover a agressão hepatocelular extensa que alguns desses a toxicidade medicamentosa se identifica entre 36 e 72 h após
pacientes apresentam. ingesta inadvertida, ou como tentativa suicida, sempre asso­
ciada ao uso combinado de doses elevadas de álcool. Cursam
Em torno de 40% dos portadores de paramixovírus apre-
rapidamente com edema cerebral com hipertransaminasemia
sentam-se com insuficiência hepática subaguda, enquanto os
variável entre 800 U l/f a 8.850 U l/f e bilirrubina sérica total
outros 60% evoluem com hepatite crônica ativa não responsiva
entre 10 m g/df e 24 mg/df. Confirma-se o diagnóstico pela
à corticoterapia. Esse tipo de agressão ao fígado assume aspecto
identificação de adutos APAP-Cys presentes na circulação.
peculiar à microscopia eletrônica, ao serem identificados, no
Este quadro grave também é observado entre aqueles que
citoplasma dos hepatócitos, partículas pleomórficas de 150-250
consomem mais de 50 g de cogumelo do gênero Amanita
nm, filamentos e outras partículas de 14-17 nm, com espículas
phalloides, quando a hepatite aguda fulminante instala-se 4-8
perifericamente expostas, lembrando nucleocapsídio de para­
dias após a ingesta, precedida pelo aparecimento de vômito e
mixovírus, possível agente etioiógico responsável pela agressão.
diarréia. Também essa evolução se observa entre manipuladores
Outros pesquisadores, no entanto, afirmam que essa evolução
de solventes industriais e agentes químicos, tais como tetraclo-
não se relaciona a um único tipo de agente etioiógico e não sig­
reto de carbono, tricloroetílico e 2-nitroproprano.
nifica obrigatoriamente prognóstico reservado. No entanto, na
descrição dos primeiros casos dessa entidade, 50% dos acome­
tidos vieram a falecer em IHF, enquanto os outros 50% foram
conduzidos ao transplante de fígado e sobreviveram.
■ MISCELÂNEA
■ Rejeição hiperaguda ao fígado transplantado
■ Hepatite autoimune Este quadro é observado quando a barreira ABO é violada.
Esse tipo representa menos de 5% dos casos de hepatite agu­ Nesses casos, anticorpos pré-formados presentes na circulação
da fulminante. Em geral, o diagnóstico do distúrbio imunoló- do receptor no período pré-transplante dirigem-se contra antí­
gico já era previamente conhecido, identificado em pacientes genos expressos em células endoteliais do fígado transplantado.
do sexo feminino jovem, portadoras de autoanticorpos séricos Como consequência, instala-se fixação e ativação do comple­
(antimúsculo liso, anticitosol hepático, anti-LKM-1 e FAN). mento, ocorrendo também progressão para IHF.
Eles podem, no entanto, faltar e o diagnóstico pode se base­ De etiologia desconhecida, afeta gestantes que se encontram
ar em aspectos histológicos e em uso de corticosteroides. Em no terceiro trimestre de gestação.
uma fração menor, se define por ocasião da instalação de um A tireotoxicose identifica-se em pacientes com hipertireoi-
quadro que se traduz por apresentação subaguda, com níveis dismo, em consequência da maior demanda metabólica que
séricos em geral não muito elevados de aminotransferases ou apresentam e da hipoxia centrolobular relativa; pode evoluir
de bilirrubina. Ocorre em consequência da perda da tolerância com sinais típicos de isquemia hepatocelular grave, com hiper-
contra proteínas teciduais autólogas, denominadas autoanticor­ bilirrubinemia e elevação dos valores séricos de aminotransfe­
pos. A destruição celular maciça se observa quando linfócitos rases e fosfatase alcalina. Associadamente, esses pacientes po­
T e B autorreativos são impropriamente regulados, linfócitos dem exibir, nas formas mais graves, febre, delírio, taquicardia,
esses responsáveis pela tolerância aos antígenos que são pró­ hipotensão, vômito e diarréia. Histologicamente, evidenciam-se
prios dos indivíduos. Em qualquer situação em que indivíduos acentuada inflamação hepática, esteatose, necrose hepatocitária
suscetíveis sejam expostos a um agente disparador (ambien­ extensa, vacuolização de hepatócitos, presença de glicogênio
te, vírus, fármacos) de autorreatividade a antígenos hepáticos, nuclear, com ou sem cirrose. A não interrupção dessa evolução,
produzem-se necrose inflamatória hepatocelular e exaustão através da administração de propiltiouracil, hidrocortisona e
funcional parenquimatosa. propranolol, pode levar à instalação de quadro de HAF.
634 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante

drio direito, identificando-se massas hepáticas aos métodos de


■ Pós-cirurgia bariátrica imagens ou infiltração sinusoidal microscópica à histologia.
Essa evolução nefasta pode se instalar após cirurgia bariá­
trica. Uma vez que a gordura visceral (omental e mesentérica)
atua como mediadora da síndrome metabólica, sendo conside­
■ Síndrome de Budd-Chiari
rada fonte de moléculas, geração de citocinas proinflamatórias Caracterizada pela obstrução ao fluxo venoso hepático de
e adipocinas, promove, após cirurgias, sobretudo pelas técnicas drenagem, situada em pequenas e grandes veias hepáticas ou
de Scopinaro e Fobi Capela, um acesso maior dessas moléculas segmentos sub hepáticos da veia cava inferior. Instala-se quan­
via drenagem venosa portal. Como consequência, ocorre ex­ do existem lesões tumorais invasivas desse território (carci-
cessivo acúmulo herpático de lipídios, precipitando excessivo noma hepatocelular, de rins ou adrenais, liomiossarcomas ou
estresse oxidativo, peroxidação lipídica e disfunção mitocon- mixomas, hiperplasia nodular focal volumosa, cistos hepáti­
drial, ou intensa inflamação. Nesses pacientes, e certamente cos ou doença hidatídica alveolar). Relaciona-se também com
naqueles predispostos (dependência genética?), a doença cur­ síndromes protrombóticas, fibrose ou estenose por membrana
sa com necrose hepática maciça, colapso difuso do arcabouço congênita, ou até uso de anticoncepcionais orais em pacien­
reticulínico, aproximação de estruturas vasculares, metaplasia tes com deficiências de proteínas S e C, mutações do fator V
ductular regenerativa, múltiplos aglomerados de hepatócitos e do gene da protrombina. Tem sido descrita em associação
remanescentes, intensa atividade inflamatória, colestases intra­ com doenças inflamatórias, tais como venulite granulomatosa,
celular e canalicular difusas e siderose graus III ou IV. doença de Behçet, abscesso amebiano e como intercorrência
evolutiva das doenças inflamatórias intestinais. Consequên­
cia dessa modificação hemodinâmica, traduz-se por aumento
■ Isquemia hepática da pressão sinusoidal responsável por congestão hepática, hi­
Redução ou interrupção da perfusão sanguínea aos hepa­ pertensão portal e linfática. Dependendo da extensão desses
tócitos precipita quadro de isquemia. Esse comportamento se eventos, são mais ou menos intensas dor abdominal surda de
observa nas lesões de artéria hepática e veia porta, e em pacien­ forte intensidade, localizada no hipocôndrio direito ou andar
tes com insuficiência cardíaca. Em qualquer dessas situações, o superior do abdome, ascite e hemorragia digestiva alta. Todas
baixo fluxo consequente à redução na pressão de perfusão leva cursam com elevações de níveis séricos de aminotransferases,
à necrose hepatocelular. Esse comportamento também se iden­ gamaglutamiltransferases e a gravidade pela redução da síntese
tifica naqueles com arritmias graves, com doença venoclusiva, hepatocelular (hiperbilirrubinemia, hipoalbuminemia, hipo-
no choque hipovolêmico e em outros estados de baixo débito. protrombinemia, com INR alargado e fator V baixo). Todos
Também pode ser observada em paciente que faz uso de dro­ esses aspectos bioquímicos se relacionam com congestão hepá­
gas hipotensoras, ou de cocaína (com resultantes infartos de tica, focos hemorrágicos e extensão da necrose hepatocelular.
miocárdio, dos rins e isquemia hepática), ou em pós-colapso Confirma-se o diagnóstico, não apenas pelos aspectos histoló-
vascular seguindo-se ao uso de heroína; nessa eventualidade, gico-laboratoriais, mas também pela identificação do obstáculo,
sempre acompanhada de sofrimento pulmonar. valendo-se de ultrassonografia com Doppler, angiorressonância
magnética ou angiotomografia computadorizada.

■ Gestacional
Duas formas de apresentação de hepatite aguda fulminante ■ ANORMALIDADES VASCULARES CARDÍACAS
podem ser identificadas em gestantes, uma expressa sob for­
ma de plaquetopenia (síndrome HELLP) própria daquelas em São requerimentos básicos para funcionamento do fígado o
excessiva produção de tirosina-cinase-1 (sftl), um fator an- adequado fluxo sanguíneo e a boa oferta de oxigênio. A redu­
tiangiogênico gerador de distúrbio placentário, disfunção en- ção da perfusão sanguínea, arterial e/ou venosa portal costuma
dotelial, hipertensão e proteinúria. A outra se relaciona à dis­ induzir a hipóxia centrolobular, gerando necrose hepatocitá-
função mitocondrial consequente a distúrbios de p-oxidação ria, congestão sinusoidal e colestase. Esse processo é mais fre­
de ácidos graxos materno-fetais gerando infiltração gordurosa quentemente observado entre pacientes infectados, hipotensos
microvesicular, que se acompanha de insuficiência hepatoce­ (choque) e portadores de insuficiência cardíaca congestiva e
lular. Esta é observada mais no terceiro trimestre de gravidez, com manifestações respiratórias. Eles desenvolvem elevação
em torno de 34,5 semanas, média de 28-39 semanas. Tais pa­ dos valores séricos de aminotransferases, bilirrubina total e
cientes cursam com eclâmpsia, prenhez gemelar, o concepto é desidrogenase lática, podendo, com o agravamento hemodi-
feto masculino, sendo mais comum entre nulíparas. Não infre­ nâmico, evoluir para HAF.
quentemente, desenvolvem necrose hepática com hemorragia
intraperitoneal, exigindo embolização da artéria hepática, em
caráter de urgência. ■ PÓS EXERCÍCIO FÍSICO EXCESSIVO
SOB CONDIÇÕES ADVERSAS
■ Doenças linfoproliferativas Alguns casos de doença hepática aguda com expressão leve
Doenças linfoproliferativas, tais como, infiltração leucêmica, ou moderada têm sido descritos em pacientes que realizam um
ou durante invasão metastática maciça, geram isquemia e défi­ grande esforço físico. As formas mais graves também ocor­
cit funcional hepatocelular ocasionado pela maciça presença de rem. A patogênese do processo relaciona-se com exercício fí­
células tumorais, capaz de ser acompanhada de hepatite aguda sico excessivo, sob condições adversas, tais como temperatura
fulminante. Quadro semelhante se observa também em porta­ e umidade elevadas, e, possivelmente, uso concomitante de
dores de câncer de mama, melanoma, próstata e pulmão. Todos ecstasy. A baixa perfusão sanguínea hepatocelular e a condição
cursam com volumosa hepatomegalia e dor forte no hipocôn- de hipermetabolismo geram degeneração microvesicular dos
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 635

hepatócitos centrolobulares, causando congestão, hemorragia ma, com comprometimento associado de rins, coração e sis­
e presença de hemossiderina, além de sinais de colestase. Isso é tema nervoso central.
acompanhado por elevação dos valores séricos de aminotrans-
ferases, alargamento de tempo de protrombina e aumento do
INR. Rabdomiólise ocorre em 25% dos doentes, acompanhada
■ Doença de Wilson (DW)
de insuficiência renal. Na maioria dos casos, observa-se reso­ Também denominada degeneração hepatolenticular. Doen­
lução dentro de semanas a poucos meses. Casos mais graves ça metabólica genética, autossômica recessiva, que se caracte­
são tratados pelo transplante de fígado, com maus resultados riza por deposição de cobre em diferentes órgãos, como rins e
precoces e tardios. olhos, mas, sobretudo, no cérebro e no fígado. Neste último, o
excesso do metal leva ao aparecimento de hepatite crônica, fi­
brose ou cirrose e até IHF. Nesta última forma de apresentação,
■ DOENÇAS METABÓLICAS ocorre lesão extensa, com deterioração acentuada da função
hepática. É chamada de forma fulminante da DW. Laboratorial­
(PREVALENTESEM CRIANÇAS) mente, se expressa por baixos níveis séricos de cobre e de fosfa-
tase alcalina, além de elevadas concentrações de cobre na urina
■ Síndrome de Reye de 24 h. Os doentes evoluem com valores aumentados de ami-
notransferases e das proporções fosfatase alcalinaibilirrubina
Trata-se de uma doença rara que se instala predominante­ total e aspartato aminotransferase:bilirrubina total, abaixo de
mente em crianças, com história de ingestão de aspirina, visan­ 2,0 e acima de 4,0, respectivamente. Quando presente, a ane­
do a combater sintomas gripais. A patogênese é multifatorial, mia hemolítica é Coombs-negativa. Os pacientes muitas vezes
relacionada possivelmente à predisposição genética, envolven­ apresentam história familiar e podem evidenciar anel corneano
do anormalidades de enzimas mitocondriais, sem que evolução de Kayser-Fleischer, identificado pela lâmpada de fenda. Exige-
mais grave se correlacione com níveis séricos de salicilatos. se diagnóstico precoce, com realização, em caráter de urgência,
Traduz-se histologicamente por esteatose microgoticular, de transplante de fígado. Quando não conduzidos dessa forma,
sem infiltrado inflamatório, quadro que precede o aparecimento a mortalidade atinge 100%.
da hepatite aguda fulminante, expressa níveis muito elevados O curso prodrômico varia de 5 dias a 7 semanas, sem que
de bilirrubina, ultrapassando a 15 mg/df, acompanhada de en- a verdadeira duração possa ser rigidamente precisada. Todos
cefalopatia e síntese hepatocelular comprometida. exibem sinais histológicos de grave inflamação, com expansão
de espaços portais e necrose periférica. Distribuição celular
■ Mitocondriopatias parenquimatosa, cirrose, acúmulo hepatocitário de cobre e em
septos periportais, colestase, todas essas alterações podem ser
Mitocôndrias encerram mais que uma cópia de DNA, repli- evidenciadas.
cação e codificação dependente de genes nucleares. Depleção
nessas cópias leva ao aparecimento de distúrbios mitocondriais,
gerando depleção energética dessas organelas intracelulares ■ Protoporfiria eritropoética
que afetam a cadeia respiratória, de oxidação e transporte de Doença genética de herança autossômica recessiva, depen­
ácidos graxos, e deficiências de acilcoenzima desidrogenase ou dente de defeito na enzima ferroquelatase, resultando na ex­
das cadeias longas e curtas de 3-hidroacilcoenzima A. Como cessiva deposição de cristais birrefringentes de protoporfirina
essas alterações podem precipitar evolução para hepatite aguda nas células parenquimatosas do fígado. Quando ocorre de for­
fulminante, é necessário que haja transplante de fígado. ma excessiva, pode causar exaustão funcional do parênquima
hepático e leva fatalmente à morte, evolução que poderá ser
■ Galactosemia interrompida caso os doentes sejam submetidos a transplan­
te de fígado. Esses pacientes transplantados podem exibir, no
Doença rara, de herança autossômica, consequente à defi­ pós-operatório imediato, disfunção autonômica traduzida por
ciência de galactose-1 -fosfato uridiltransferase. Nessas crian­ dor abdominal, hipertensão, taquicardia, retenção urinária,
ças, ocorre, após introdução do leite de vaca na alimentação, constipação, náuseas e vômitos. Cursam ainda com neuropa-
acúmulo hepático de galactose-1-fosfato, gerando esteatose, tia periférica, manifesta por paresia e paralisia, parestesias e
proliferação periportal de duetos biliares e deposição de ferro. extremidades dolorosas. O sistema nervoso pode apresentar-se
Persistência na ingestão desse leite leva ao aparecimento de comprometido, com estado mental preservado. Pode ocorrer
fibrose e cirrose hepática. É necessário o diagnóstico precoce, paralisia progressiva com degeneração axonal de nervos moto­
baseado na detecção de substâncias redutoras na urina e ativi­ res, evoluindo para mioclonia e coma. Hemólise intraoperatória
dade baixa da enzima em eritrócitos, antes que haja instalação faz parte do quadro.
de hepatite aguda fulminante.
■ Hemocromatose neonatal
■ Tirosinemia hereditária tipo 1 Trata-se de doença grave e geralmente fatal. É consequente
Também uma doença herdada de forma autossômica reces­ à maciça e rápida deposição de ferro no fígado, precipitando
siva, consequência de funcionalidade comprometida da hidro- a instalação de quadro de HAF no período neonatal. O trans­
lase do fumarilacetoacetato. O gene dessa enzima se localiza no plante é a única forma de terapêutica eficaz, acompanhando-se,
braço curto do cromossomo 15, com geração de mutações le­ no entanto, de risco elevado de insucesso. Nesses pacientes, a
vando a formações de compostos altamente reativos, tais como distribuição do metal nos órgãos se assemelha ao que ocorre
maleilacetoacetato e fumarilacetoacetato e succinilacetona, que, na hemocromatose genética, com envolvimento também do
depositando-se no fígado, geram necrose maciça do parênqui- pâncreas, miocárdio e baço.
636 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante

do colapso sinusoidal, morte de células parenquimatosas, com


■ Indeterminadas perda da capacidade funcional de síntese pelo fígado. Também
■ Criptogenética experimentalmente em ratos, são elevadas as expressões e ativa­
Em cerca de 50% dos casos de crianças com hepatite aguda ções de enzimas sintetizadoras de C4 (LTCH) e de glutation-S-
fulminante, o agente responsável pela necrose maciça do pa- transferase microssomal 2, responsáveis pela síntese e acúmulo
rênquima hepático não é identificado. Essa frequência é mais de cisteinil leucotrieno no interior dos hepatócitos, contribuin­
baixa em adultos, definindo-se que essa evolução pode estar do para instalação de hepatite aguda fulminante.
relacionada a etiologias diversas irreconhecíveis induzidas por
infecções, doenças metabólicas, ações lesivas exercidas por
fármacos ou toxinas e/ou geradas a partir de distúrbios imu- ■ ASPECTOS ANAT0M0PAT0LÓGIC0S
nológicos.
Caracterizam-se pela perda de parte expressiva dos hepa­
tócitos, ou de todos eles, com consequente colapso das fibras
■ ASPECTOS PAT0GENÉTIC0S. de reticulina e aproximação dos espaços portais, sem necro­
se de coagulação, conforme observado nas necroses tóxicas
BIOLOGIA MOLECULAR e no fígado isquêmico. Os sinusoides apresentam-se repletos
de eritrócitos, linfócitos e macrófagos. Infiltração inflamatória
O funcionamento normal de hepatócitos e células não pa-
identifica-se em áreas lobulares e espaços portais. Sinais de rege­
renquimatosas do fígado envolve perfusão sanguínea adequada, neração iniciam-se a partir de hepatócitos periportais, os quais
integridade de organelas presentes no interior dos hepatócitos, se apresentam balonizados, quando são visíveis formações de
bem como da matriz extracelular. Todo esse sistema funcio­ neodúctulos e neocolangíolos nos lóbulos colapsados.
na sob a égide de fatores de crescimento, citocinas, proteínas
pró-apoptoicas e antiapoptoicas. Desequilíbrio desse ambien­
te ocorre quando hepatite aguda fulminante se instala como
consequência de extensa e universal morte dos hepatócitos e
■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS
reduzida proliferação dessas células parenquimatosas e de suas
organelas. Os mecanismos precipitadores dessa devastação não ■ Clínicos
se encontram ainda completamente esclarecidos. No entanto, É aceito que, durante quadro de hepatite aguda fulminante,
atualmente se sabe que mantêm similaridades com o observa­
ocorra perda de 80-85% da massa de hepatócitos, precipitando
do em pacientes cursando com choque séptico, síndrome que um estado hipermetabólico dependente da atuação de citoci­
se expressa clinicamente por aspectos de inflamação sistêmica
nas, fatores de crescimento, hormônios e mediadores lipídicos.
e progressão para insuficiência funcional de múltiplos órgãos
Acentuam-se as concentrações de catecolaminas sanguíneas e
e imunoparesia funcional. Resultado desse comportamento se do consumo corpóreo de oxigênio. Nessas condições, todos
traduz morfologicamente pela morte dos hepatócitos, que pode
evoluem com icterícia, febre elevada, vômitos, taquicardia e
ser de origem apoptoica ou necrótica, ou expressa como uma vasodilatados, sobretudo nas fases mais tardias, quando cursam
combinação dessas duas modalidades.
com hipoglicemia, insuficiência renal, infecção pulmonar e aci-
A cascata de eventos responsáveis pela precipitação de apop-
dose metabólica. Tornam-se irritadiços, desinteressados, com
tose está representada pela presença do neoantígeno M30, for­ raciocínio lento, letárgicos e sonolentos, evoluindo com hálito
mado a partir da divagem proteolítica de citoqueratina 18 na hepático, flappinge, finalmente, coma hepático. Esse quadro de
posição Asp396 executada pela ação lesiva da caspase 3. Tal encefalopatia estende-se do grau I ao IV (Quadro 56.3).
fenômeno se instala em qualquer membrana das organelas dos
hepatócitos, com a morte dessas células se iniciando pelo en­ ■ Manifestações extra-hepáticas
volvimento lisossomal, consequente a estímulos intracelulares
Encontram-se discriminadas no Quadro 56.4.
despertados pela presença de ácidos graxos, radicais livres de
oxigênio, ceramida, aminas básicas e agentes lisossomotróficos,
aumentando o pH interno da organela, com ativação de caspase ■ Laboratoriais
3. Concomitantemente, se envolvem membranas externas mi-
Todos esses pacientes deverão ser avaliados periodicamente,
tocondriais permeabilizando-as com participações de proteínas
segundo parâmetros laboratoriais (Quadro 56.5).
proapoptoicas BH3 de domínio único (Bid, Bim, Puma, Noxa,
Bad, Bik, Bmf ou Hrk) ou de multidomínio (Bax, Bak, Bok, Bcl-
x,) ou antiapoptoicas (Bcl-xL, Mcl-1, Bcl-w, Bcl-2, Al, Boo). No
predomínio de BH3, instala-se a morte por apoptose celular. --------------------------------------------------------------▼ ------------------------------------------------------------------------------
Participam ainda do processo receptores específicos de TNFa Q u a d ro 56.3 Classificação da encefalopatia
e ligandes indutoras de apoptose (TRAIL), as quais se associam na hepatite aguda fulminante
na ativação da ligande Faz (CD95/Apo-l) expressa em linfó-
citos e células natural killer (NK) e NKT. De forma sumária, Graus Aspectos clínicos e vo lutivo s
pode-se definir que, nessa situação, os pacientes cursam com
1 C o n s c ie n te , p o r é m d e s a te n to , in c a p a c id a d e p a ra r e a liz a ç ã o d e
níveis circulantes elevados de Fas, TNFa/TNFRl e JNK, ativa­
s im p le s testes a ritm é tic o s
ção intra-hepática de caspase e níveis circulantes e teciduais do
II L e ta rg ia , d e s o rie n ta ç ã o , m u d a n ç a s d e p e r s o n a lid a d e , fla p p in g
neoantígeno M30, cuja presença orienta para a necessidade de
III S o n o lê n c ia , n ív e l d e c o n s c iê n c ia d e p r im id o , a in d a re s p o n s iv o a
esses pacientes serem levados ao transplante de fígado.
e s tím u lo s d o lo ro s o s
Participam ainda desse processo as células hepáticas estelares
IV C o m a , a g o ra n ã o r e s p o n s iv o s a e s tím u lo s d o lo ro s o s ,
que, induzidas por IL-1, levam à produção maior de metalo- d e c o r t ic a d o s , c o m p o s t u r a d e d e s c e re b ra ç ã o
proteinases, as quais se precipitam no espaço de Disse, induzin­
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 637

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Q uadro 56 .4 M a n ife s ta ç õ e s e x tra -h e p á tic a s n a h e p a tite a g u d a fu lm in a n te

M anifestações In cid ên cia ( % ) Patogénese

E d e m a c e re b ra l >80% A tra v é s d e m e c a n is m o s v a s o g é n ic o s , r o m p e -s e a b a rre ira h e m o liq u ó r ic a c o m e x t r a v a s a m e n t o d e p la s m a a o


líq u id o e s p in a l. C o n c o m it a n t e m e n t e , c ir c u la m to x in a s c a rre a d o ra s d e le sà o c e lu la r, m a io r c a p ta ç à o d e á g u a ,
c o m f o r m a ç ã o d e e d e m a e e le v a ç ã o d a p re s s á o in tra c ra n ia n a . Esse f e n ô m e n o é o b s e r v a d o a p e n a s n o s g ra u s III
e IV d a e n c e fa lo p a tia , q u a n d o o c o r r e p e rd a d a a u t o r r e g u la ç à o d o f lu x o s a n g u ín e o c e re b ra l, c o m c o n s e q u e n te
h ip o x ia . S á o p a c ie n te s q u e c u rs a m c o m h ip e r t e n s ã o sistó lica , c o m m o v im e n t o s n á o h a rm ô n ic o s d o s o lh o s e
e m p o s tu r a d e d e s c e re b ra ç á o .

C o a g u lo p a t ia >90% In s ta la -s e n a d e p e n d ê n c ia d a r e d u z id a sín te se d o s fa to re s d e c o a g u la ç á o . T r a d u z -s e , s o b r e t u d o , p o r
a la r g a m e n t o d o s t e m p o s d e p r o t r o m b in a d o IN R e d e t r o m b o p la s t in a p a rcia l a tiv a d a . R e d u z e m -s e o n ú m e r o e
fu n ç á o d as p la q u e ta s e a tiv id a d e d o fa to r V, c o m a p a r e c im e n t o d a c irc u la ç ã o d o s p r o d u t o s d e d e g r a d a ç ã o d o
f ib r in o g è n io (P D F ). T a is d is tú r b io s sá o re s p o n s á v e is p e lo s e le v a d o s ín d ic e s d e s a n g r a m e n t o s d ig e s tiv o s .

C a rd ía c a s >90% D e p e n d e n te s d a e le v a d a p re s s á o in tra c ra n ia n a q u e a p r e s e n t a m , t r a d u z in d o -s e p o r r e d u z id a resistên cia v a s c u la r


s is tê m ic a , h ip o te n s á o d e p e n d e n t e d a v a s o d ila ta ç á o s is tê m ic a e b a ix o s n ív e is d e s u b s tâ n c ia s in o tró p ic a s . S á o
fr e q u e n te s as a rritm ia s .

In s u fic iê n c ia re n a l 4 0 -6 0 % R e la c io n a -s e c o m a fa lê n c ia h e p a to c e lu la r c a u s a d o ra d e c o n c e n t r a ç õ e s séricas m a io re s d e su b s tâ n c ia s
v a s o c o n s trito ra s e m e n o r e s d a s v a s o d ila ta d o ra s . T e m cará te r, p o r t a n t o , f u n c io n a l, p re c ip it a d o r a d e b aix a
p e r fu s á o re n a l. In sta la -se , m a is f r e q u e n t e m e n t e , n a q u e le s e m faixa e tá ria m a is a v a n ç a d a , n o s q u e p r e e n c h e m
na t o t a lid a d e o s c rité rio s p ro g n ó s t ic o s K in g 's C o lle g e H o s p it a l, n o s h ip o te n s o s , in fe c ta d o s , o u e m q u a d r o
m a is e x a c e r b a d o d e s ín d r o m e sistê m ic a à re s p o s ta in fla m a tó ria e c o m le sá o h e p a to c e lu la r in d u z id a p e lo
p a ra c e ta m o l.

In fe c ç ã o - sépsis 90% Esse ín d ic e e le v a d o re la c io n a -s e c o m : 1. m e n o r c a p a c id a d e f u n c io n a l d o SR E; 2. b a ix o s n ív e is c irc u la n te s


d e fib ro n e c t in a , o p s o n in a s e q u im io a tr a c t a n t e s . P r e d o m in a m o r g a n is m o s g r a m -p o s it iv o s , s o b r e t u d o
e s ta filo c o c o s e e s tr e p to c o c o s e, m e n o s fr e q u e n t e m e n t e , g r a m -n e g a t iv o s . C e rca d e 3 0 % a p r e s e n t a m in fe cç õ e s
p o r fu n g o s .

M e ta b ó lic a s 4 0 -5 0 % T r a d u z e m -s e , m a is f r e q u e n t e m e n t e , p o r h ip o g lic e m ia , h ip o p o t a s s e m ia e h ip o n a t r e m ia . N a d e p e n d ê n c ia d a
a c id o s e lática, h lp e r v e n t ila m e e v o lu e m c o m a lc a lo s e o u a c id o s e re s p ira tó ria c o m e le v a ç õ e s d a p re s s á o
in tra c ra n ia n a , d e p re s s ã o re s p ira tó ria e in fe c ç ã o p u lm o n a r .

P a n c re a tite a g u d a 25% H e m o r r á g ic a e n e c r o tiz a n te . P ro v a v e lm e n t e , d e e tio lo g ia is q u ê m ic a .

------------------------------------- ▼
Q uadro 56.5 Avaliação laboratorial na hepatite aguda fulminante
■ ASPECTOS PROGNÓSTICOS
Pacientes com hepatite aguda fulminante excepcionalmen­
H e m a to lo g ia
te sobrevivem, exceto quando ocorre restauração da massa de
H e m o g r a m a c o m p le t o
hepatócitos fúncionantes. Quando esse comportamento não
B io q u ím ic a
se observa, falecem em alguns poucos dias. Avaliação de pa­
N ív e is séricos d e g lic o s e , b ilir r u b in a to ta l e fra çõe s, a m in o tra n s fe ra s e ,
g a m a g lu ta m iltra n s fe ra s e , fosfata se a lca lin a , d e s id r o g e n a s e lática, râmetros clínicos, etiológicos, laboratoriais e, sobretudo, da
a m ila s e , a lb u m in a , c e r u lo p la s m in a , g lo b u lin a , a lfa -fe to p ro te ín a , coagulação permite distinguir aqueles que se recuperarão ape­
i m u n o g lo b u lin a , u re ia , c re a tin in a nas com medidas não cirúrgicas e os que se tornam candidatos
M e t a b ó lic a ao transplante de fígado de emergência (Quadro 56.6).
N ív e is sé rico s d e s ó d io , p o tá s s io , c lo ro , c á lc io , c o b re , b ic a r b o n a t o p H e
g ase s, á c id o lá tic o , c o n c e n t r a ç ã o u rin á ria d e e le tró lito s

C o a g u lo g r a m a
A t iv id a d e e t e m p o d e p r o t r o m b in a , t e m p o d e t r o m b o p la s t in a p a rcia l
■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
a tiv a d o , fib r in o g è n io , p la q u e ta s , t e m p o d e lise d e e u g lo b u lin a e
p r o d u t o s d e d e g r a d a ç ã o d a fib rin a A condução terapêutica desses pacientes exige atitude mul-
V iro lo g ia
tidisciplinar voltada inicialmente ao equilíbrio e manutenção
P e s q u is a s d o a n t i-V H A Ig M , A g H B s , a n t i-A g H B c Ig M , a n t i-V H D Ig M , da estabilidade hemodinâmica. Baseia-se na passagem de son­
a n t i-V H E Ig M , c it o m e g a lo v ír u s , v ír u s E p s te in -B a rr, h e rp e s s im p le s . da nasoenteral e vesical, acesso arterial, se possível, através do
N o s n e g a t iv o s p a ra esses, ra s tre a r as p re s e n ç a s d e p a r v o v ír u s B I 9 ,
implante do balão de Swan-Ganz, monitorização cardiológica,
e c h o v ír u s , fe b re a m a re la , d e n g u e , S e n -v e Lassa
eletroencefalográfica e da pressão intracraniana. Associada­
C u ltu r a s
H e m o c u lt u r a (a e ró b ia e a n a e r ó b ia ), u re ia , fe ze s, e sc a rro
mente, devem ser submetidos à entubação endotraqueal, as­
sistência ventilatória e oxigenação adequada aqueles pacientes
com encefalopatia grau III, bem como à descontaminação se­
letiva intestinal, administração de manitol e furosemide, e po­
sicionamento com ângulo cefálico de 20°, visando a manter a
A essa avaliação laboratorial, deve associar-se realização pressão intracraniana < 30 mmHg.
de ultrassom e mapeamento do fígado, com objetivo de defi­ A manipulação das complicações extra-hepáticas realiza-se
nir volume e reserva parenquimatosa. Avaliam-se condições segundo discriminado no Quadro 56.7.
neurológicas através de eletroencefalograma e monitorização Falência dessas medidas e progressão para encefalopatia,
da pressão intracraniana. Necessário estudo radiológico do coma, vasodilatação sistêmica, insuficiência hepatocelular e
tórax. pulmonar têm levado a que, em alguns Serviços de Hepato-
638 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante

logia, esses pacientes sejam conduzidos, valendo-se de siste­ Ias de mercaptanas, ácido gama-aminobutírico, aminoácidos
mas de suporte ao fígado. Experiência nesse campo se iniciou de cadeia ramificada, e ácidos graxos. A inquietação dos pes­
com emprego do sistema de hemodiálise, usando membranas quisadores diante dos precários resultados obtidos leva a que
voltadas ao clareamento da amônia, capaz de melhorar a in­ se busque fornecer condições de restauração desses pacientes,
tensidade do distúrbio neurológico, sem redução nos índices conduzindo-os através de perfusão extracorpórea a partir de
de mortalidade. Estende-se essa experiência histórica através um fígado auxiliar proveniente de porco, babuíno ou de cadá­
de realizações de exsanguíneo-transfusões e/ou plasmaférese. ver humano, com resultados precários, o que, no momento,
Avanço maior se consegue com sistema de hemoperfúsão em­ impede a adoção dessa medida terapêutica.
pregando-se carvão ativado, na busca de remoção de molécu- Ampliam-se os avanços nessa área com o emprego de siste­
ma de diálises, valendo-se de fígados bioativados, absorvedo-
res de moléculas. Inicia-se a experiência com esse método em
------------------------------------- ▼ 2004, com o sistema encerrando coluna de hemoperfúsão com
Q u a d ro 56 .6 Aspectos prognósticos para realização do transplante carvão e hepatócitos de porco e 2% de células parenquimatosas
humanas. Avanço técnico com outro dispositivo ocorreu com
de fígado na hepatite aguda fulminante
hepatologistas, hemodinamicistas, fisiologistas, tratando seus
K in g 's C o lle g e pacientes com o “Sistema Recirculante Absorvedor de Molécu­
A c e t a m in o f e n
las” (MARS), valendo-se de sessões terapêuticas de, pelo menos,
p H < 7,3 (I n d e p e n d e n t e d o g r a u d e e n c e fa lo p a tia ), o u t o d o s o s trê s d o s 6 h, repetidas a cada 24 a 36 h, empregando-se um dialisador
s e g u in te s G r a u s III - IV d a e n c e fa lo p a tia de alto fluxo de 150-200 mf/min, dotado de membrana com
T P > 1 0 0 " o u (IN R > 7,7)
poros de 50 a 60 kDa, impermeável à albumina. Essa proteína
C re a tin in a sé rica > 3,4 m g / d /
está presente no lado oposto da membrana em volume de 600
N â o a c e t a m in o fe n
T P > lO O s o u IN R > 7 ,7 (I n d e p e n d e n t e d o g r a u d e e n c e fa lo p a tia ), o u três
m^ a 10%, tornando possível, assim, dialisar moléculas tóxicas
d o s s e g u in te s circulantes. Assim tratados, a sobrevivência pós-transplante
Id a d e < 10 o u > 4 0 a n o s atinge 94%, reduzindo-se para 77% no grupo não tratado por
E tio lo g ia n ã o A n ã o B, h a lo ta n o , re a ç ã o id io s s in c rá tic a a fá rm a c o s ,
esse sistema artificial de suporte.
d o e n ç a d e W ils o n
P e río d o d e icte ríc ia e e n c e fa lo p a tia > 7 d ia s
Recentemente, outro sistema, também se valendo de colunas
T P > 5 0s o u IN R > 3,85 de carvão e resinas trocadoras de ânions, tem sido empregado.
B ilirru b in a sé rica > 17 m g / d / Denominado na Europa, Prometeus, dotado de uma m em ­
C lic h y (n â o a c e t a m in o fe n ) brana de 250 kDa, disposta entre dois sistemas, valendo-se da
Id a d e < 3 0 a n o s + F a to r V < 2 0 %
própria albumina do paciente em tratamento, com medidas de
ou
Id a d e > 3 0 a n o s + F a to r V < 3 0 %
anticoagulação sendo necessárias, administrando-se heparina
e citrato. Dados da literatura se baseiam apenas em estudos
TP: tempo de protrombina.
pH: pH do sangue arterial.
não controlados ou retrospectivos, surgindo, no entanto, como
perspectiva de conduta para tão graves pacientes.

T
Q u a d ro 56.7 Manipulação terapêutica das complicações extra-hepáticas nas hepatites agudas fulminantes

Com plicações M anipulação terapêutica

E d e m a c e re b ra l A d m in is t r a ç ã o d e q u a t r o u n id a d e s d e p la s m a e tra n s fu s ã o d e p la q u e ta s v is a n d o a im p la n t e d o m o n i t o r d e p re s s ã o
In tra c ra n ia n a . M a n u t e n ç ã o e m â n g u lo d e 20° p a ra m o n it o r iz a ç ã o d e p e r fu s ã o c e re b ra l. O s a g ita d o s e e n c e fa lo p a ta s d e v e m
ser s e d a d o s c o m fe n ta n il e c u ra riz a d o s . D ú v id a s e x is te m q u a n t o à n e c e s s id a d e d e h ip e r v e n tila ç á o , v is a n d o a m a n te r
p e r fu s ã o s a n g u ín e a c e re b ra l. E x ig ê n c ia p re n d e -s e a o m a n it o l, na d o s e d e 0 ,5 m g / k g e m b o lo , in f u n d id o e m 10 m in , d e fo rm a
q u e a o s m o la lid a d e n ã o u ltra p a s s e a 3 2 0 m O s m . O s n â o re s p o n s iv o s a essa a tit u d e d e v e m ser c o n d u z id o s p e la a d m in is tr a ç ã o
t io p e n ta l e / o u d e x a m e ta s o n a .

C o a g u lo p a t ia E n v o lv e in fu s ã o d e p la s m a fre sco , q u a n d o IN R > 10, e d e p la q u e ta s se o n ú m e r o e stiv e r a b a ix o d e 3 0 .0 0 0 -5 0 .0 0 0 / m m \

C a rd io v a s c u la r D e v e m ser m a n t id o s c o m p re ss ã o c a p ila r p u lm o n a r e n t r e 12 e 14 m m H g , c o m p re s s ã o a rte ria l m é d ia d e 5 0 -6 0 m m H g . D r o g a


v a s o p re s s o ra e n v o lv e n o r a d r e n a lin a n a q u e le s c o m d é b it o c a rd ía c o e le v a d o e b a ix a resistên cia v a s c u la r s is tê m ic a , n a d o s e
d e 0,1 n g / k g / m in . A lte r n a t iv a m e n t e , d e v e m se r c o n d u z id o s p e la in fu s ã o d e e s o p r o t e n o l (5 m g / k g / m in ) o u a ce tilcis te ín a
(1 5 0 m g / k g / 3 0 m in ) e m a n u t e n ç ã o d e 150 m g / k g / 2 4 h . V isa -se a m a n t e r o c o n s u m o d e 0 ? > 1 5 0 m / (m i n / m ; ) e ín d ic e d e
e x tra ç ã o > 1 5 0 m * / m ln / m 2.

In s u fic iê n c ia ren a l M a n u t e n ç ã o d as c o n d iç õ e s d e p e r fu s ã o re n a l n o s h ip o v o lê m ic o s , n â o se a d m in is t r a n d o a n t ib ió t ic o s e a n tifú n g ic o s


n e fro tó x ic o s . A lte r n a t iv a m e n t e , d e v e r ã o ser c o n d u z id o s p e la a d m in is tr a ç ã o d e d o p a m in a e /o u p ro s ta g la n d in a .
H e m o filtra ç ã o , h e m o d iá lis e e / o u p la s m a fé re s e , q u a n d o n ece ss á ria s , d e v e r ã o ser re a liza d a s.

In fe c ç ã o M o s tr a -s e m a is fr e q u e n t e e n tre a q u e le s c o m in s u fic iê n c ia re n a l e e m u s o d e tio p e n ta l. D e v e -s e c o m b a t e r in fe c ç ã o p o r


S. a u re u s e f u n g o s s e g u n d o c u ltu ra s e a n t ib io g r a m a s e sp e cífico s.

M e ta b ó lic a s H ip o g lic e m ia d e v e ser v ig ia d a e c o m b a t id a p e la in fu s ã o c o n tín u a d e d e x tr o s e a 5 0 % a c a d a h o r a , se n e c e s s á rio . M o n it o r iz a ç ã o


a d e q u a d a d e n ív e is s é ric o s d e fó s fo ro e m a g n é s io , c o m a d e q u a d a c o rre ç ã o . A c id o s e c o m p H < 7 ,1 , d e v e n d o ser tra ta d a
c o m in fu s ã o d e N a H C O ,, m o n it o r a d a a n e c e s s id a d e d e r e g u la ç ã o a tra v é s d a p H m e t r ia , la c ta c id e m ia e n ív e l sé ric o d e s ó d io ,
v is a n d o a e v ita r a h ip e r n a t r e m ia .

H ip e rp o ta s s e m ia D e v e ser c o m b a t id a p e la a d m in is tr a ç ã o d e resin a t r o c a -ío n s e a té h e m o d iá lis e .

P a n c re a tite a g u d a E n v o lv e re s ta u ra ç ã o d e c o n d iç õ e s h e m o d in â m ic a s , s o n d a n a s o e n te ra l e in fu s ã o d e b lo q u e a d o re s d e b o m b a d e p ró to n s .
Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante 639

Alternativa a essa atitude baseia-se no emprego dos siste­ ------------------------------------- ▼-------------------------------------


mas de fígado bioartificiais, valendo-se de hepatócitos prom o­ Q uadro 56 .8 Exclusão da lista de transplante de fígado para tratamento
tores de suporte metabólico. Tem sucesso limitado diante da de pacientes com hepatite aguda fulminante
carência ou falta dessas células parenquimatosas em número
viável. Perspectivas surgem agora, a partir do conhecimento Id a d e a c im a d e 7 0 a n o s (re la tiv a )
dos mecanismos moleculares básicos, envolvidos e relaciona­ E x istê n cia d e a lg u m a s d o e n ç a s m a lig n a s e x tra -h e p á tic a s
dos à morte dos hepatócitos. Identificando-se, então, as vias In s u fic iê n c ia s e ve ra d e m ú lt ip lo s ó rg ã o s , tais c o m o rins, c o ra ç ã o , p u lm á o
de sinalizações responsáveis pela destruição, essas poderão ser C h o q u e s é p tic o n á o c o n tr o la d o
então interrompidas, permitindo a restauração funcional dos
M o r t e c e re b ra l
hepatócitos e de suas organelas lesadas. Um desafio particular
nesse sentido será a capacidade de inibição dos mecanismos
precipitadores de apoptose e necrose, sem inibir o potencial
regenerativo do fígado na busca de restaurar suas funções pleio-
trópicas, valendo-se de moléculas específicas. ------------------------------------- ▼-----------------------------------
Perseguindo o proposto anteriormente pelo grupo aus­ Q uadro 56 .9 Insuficiência hepática fulminante. Transplante
traliano de pesquisadores, investigadores da Universidade de de fígado intervivos. Justificativas
Hokkaido, em Saporo, no Japão, propõem uma nova criação de
hepatócitos humanos imortalizados. Para tal, ativam telômeros 1. In s u fic iê n c ia h e p á tic a f u lm in a n t e r a p id a m e n t e p ro g re s s iv a

dessas células, pela introdução da enzima humana telomerase 2 . ín d ic e d e m o r t a lid a d e na fila d e e s p e ra p o r fíg a d o d e d o a d o r c a d á v e r
reverse transcriptase (hTERT)> inativação da via pl6/RB ou do e n tre 4 0 e 6 2 %

p53, valendo-se de proteínas estruturais E6/E7 provenientes do 3. In s u fic iê n c ia h e p á tic a f u lm in a n t e e n tre n á o tra n s p la n t a d o s e n t r e 8 0 e
85%
papiloma vírus humano tipo 16 (HPV16E6/E7 e hTERT), esta­
belecendo duas linhagens celulares HHE6E7T-1 e HHE6E7-2. 4 . T r a n s p la n t e in t e r v iv o s situ a -s e c o m o a le rn a tiv a d e s d e 1992

Essas têm sido injetadas por via subcutânea, não induzindo de­
senvolvimento tumoral, com apenas a primeira linhagem sendo
introduzida por via intraesplênica em ratos com insuficiência
fulminante induzida por acetaminofeno. Abrem-se e ampliam-
técnicas que permitem a repopulação do fígado, com hepató­
se, assim, as perspectivas de que tais linhagens possam servir
como possível fonte de transplante de hepatócitos. citos maduros ou fetais, melhorando no momento o distúrbio
neurológico que apresentam; esse certamente será um novo
A inviabilidade dessas novas propostas e a falência das
medidas anteriormente empregadas e descritas, bem como o capítulo da moderna hepatologia.
aprofundamento da encefalopatia graus III ou IV, resultam em
indicação de transplante de fígado de emergência. Sobrevida
desses pacientes assim conduzidos amplia-se de menos de 20 ■ EXISTEM NOVAS PERSPECTIVAS
para 56-92%, segundo diferentes experiências. Respondem e
sobrevivem mais aqueles não infectados e com nível sérico de TERAPÊUTICAS?
creatinina normal no período pré-operatório. Evolução pós-
Na impossibilidade de executar tais procedimentos, tem sido
operatória com índices maiores de mortalidade mais precoce
ocorre quando índice de massa corpórea do doador ultrapassa proposto tratá-los adotando-se métodos alternativos, como o
a 25 kg/m2, um possível marcador de esteatose hepática. Essa transplante de hepatócitos, conforme discriminado no Qua­
tendência também se observa quando receptor ou doador têm dro 56.10.
mais de 60 anos de idade, ou se encontram em ventilação me­
cânica por ocasião da cirurgia e nível sérico de creatinina > 2
m g/dl. Essa tendência também se observa quando se utilizam
----------------------------------- ▼----------------------------------
enxertos ABO incompatíveis ou de tamanho reduzido. Nesses
graves pacientes, o risco de retransplante atinge 13%, evolução Q uadro 56 .1 0 Insuficiência hepática fulminante. Outras alternativas
relacionada a não funcionamento primário do fígado, precipi­ terapêuticas. Transplante de hepatócitos
tação de estenoses biliares intra-hepáticas, complicações em
1. D e v e m se r in je ta d o s , p e lo m e n o s , 3 0 0 g d e h e p a tó c it o s v iá v e is a tra v é s
geral relacionadas com a qualidade do enxerto ou implante de
d o s iste m a v e n o s o p o r t a l p ó s -p u n ç à o tra n s ju g u la r
órgão ABO incompatível.
2 . A d o ç à o dessa m o d a lid a d e te r a p ê u t ic a b a s e ia -s e e m :
Recomenda-se que deverão ser excluídos da lista de trans­ а. In s ta la ç ã o d a fa lê n c ia rá p id a d e m ú lt ip lo s ó rg ã o s
plante de fígado para tratamento de pacientes com hepatite б. R á p id a in s ta la ç ã o d e h ip e r t e n s ã o in tra c ra n ia n a e m o r t e d o s
aguda fulminante aqueles que apresentam os parâmetros dis­ p a c ie n te s
postos no Quadro 56.8. c P r o lo n g a d o t e m p o e m lista d e e s p e ra d e n o v o ó r g à o , e m t o r n o d e
4 -8 d ias
A principal limitação tomada dessa atitude terapêutica se
relaciona com a baixa oferta de órgãos-cadáveres. Nesse caso, 3 . S e u e m p r e g o vis a a:
a. R e m o ç à o se le tiv a d e m o lé c u la s n e u ro tó x ic a s
deve-se optar pela doação de lobo direito, intervivo, valendo-se b. F o r n e c im e n t o d e fa to re s d e c re s c im e n t o a o s h e p a tó c it o s n a tiv o s
de um parente próximo. Essa medida pode ser aplicada visan­
4 . L im ita ç ã o a o su c e s s o d a te ra p ê u tic a :
do a tratar pacientes adultos e crianças, com justificativas à sua а. H e p a tó c ito s s à o o rig in á rio s d e fíg a d o s n á o a c e ito s p a ra tra n s p la n te
realização estando discriminadas no Quadro 56.9. б. A d v e n t o d e c o m p lic a ç õ e s (4 8 h a p ó s )
Diante desses avanços e premida pela carência de órgãos, a H ip o x e m ia p o r e m b o liz a ç â o p u lm o n a r

busca desesperada de salvar vidas que se encontram no limite S u s c e tib ilid a d e m a io r a in fe c ç õ e s fú n g ic a s e b a c te ria n a s
c o n s e q u e n te s à im u n o s s u p re s s à o
tem levado a que sejam conduzidas, valendo-se do transplan­ c S o b r e v id a a in d a c u r t a d o s p a c ie n te s : e n t r e 2 4 h e 52 d ia s
te de células-tronco adultas, ou originárias de medula óssea,
640 Capítulo 56 / Hepatite Aguda Fulminante

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Cirrose Hepática
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Taiane Costa Marinho,
Leonardo ReuterMotta Gama, Lucas Cagnin,
Rafael Hygino Rodrigues Cremonin, Paula Hugueney Cruz,
Guilherme Tarameli dos S. Cecílio, Maria Juliana Louggio Cavalcanti,
Francisco César Nassar Tribulato, Raul Carlos Wahle

Cirrose hepática resulta da inter-relação entre diversos fatores quente acúmulo de proteínas da matriz extracelular. Desse pro­
etiológicos, que atuam ao longo dos anos, tais como, morte e cesso, participam células endoteliais, células de Kupffer, células
regeneração celular, degradação e formação anormal da matriz estelares e perissinusoidais do espaço de Disse. Na vigência da
extracelular. Trata-se de um processo que se caracteriza por perpetuação da agressão, ocorre capilarização dos sinusoides,
formações de fibrose difusa, além de micro e macronódulos, onde se depositam continuamente laminina, colágeno tipo IV
estabelecendo perversão da arquitetura normal do parênquima. e perlecans. Nessa situação, reduzem-se os microvilos dos he-
O diagnóstico confirma-se por meio de dados clínicos, labo­ patócitos, instalam-se modificações fenotípicas das células de
ratoriais, anatomopatológicos, ou valendo-se de métodos de Ito, as quais assumem aspecto miofibroblástico. Participam
imagens como ultrassonografia, tomografia computadorizada, ainda do processo fatores liberados de macrófagos ativados,
ressonância magnética, videolaparoscopia ou até pela cintigra- sobretudo IL-1, fator de necrose tumoral, prostaglandinas e
fia. Representa a principal causa de morte em muitas partes do substâncias inflamatórias outras, como fator de crescimento
mundo, comportamento que se relaciona com a participação derivado de plaquetas, além de radicais livres de oxigênio in­
de diferentes causas e manifestações clínicas, gravidade das termediários, responsáveis pela ativação de lipócitos, os quais
lesões histológicas, reserva funcional parenquimatosa e oferta se encontravam quiescentes (Figura 57.1).
de possibilidades terapêuticas.

■ CLASSIFICAÇÃO ANATÔMICA
■ ASPECTOS PATOGENÉTICOS
Baseia-se em alguns parâmetros, mas, sobretudo, no diâme­
A maioria das doenças crônicas do fígado associa-se a contí­ tro dos nódulos de regeneração e espessura dos septos fibrosos,
nua fibrogênese, resultante da lesão dos hepatócitos, com conse­ gerando três tipos de cirrose: a. micronodular, representada por

F ib r o b l a s t o s p o rt a is
T o x i n a s , c o le s t a s e ,
A t i v a m - s e v ia
v ír u s , a u t o im u n id a d e ,
e s tre s s e C é l u l a s e s t e la r e s q u i e s c e n t e s e
d o e n ç a s m e t a b ó lic a s
m io f ib r o b la s t o s

Fatores de crescimento
Integrinas
Citocinas
Colágenos T
TIMP-1 t
Colagenase 1
Radicais livres de 0 2

P r o lif e r a ç ã o fib r ó t ic a c o m
r e g e n e r a ç ã o n o d u la r

Figura 57.1 Prováveis mecanismos envolvidos na flbrogênese na cirrose hepática.

643
644 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

nódulos pequenos, com pouca variação de tamanho, uniformes,


com até 3 mm de diâmetro, sendo sempre observados septos
finos de até 2 mm, que os separam e envolvem todo o lóbulo; b.
macronodular, representada por septos de tamanhos variados,
com nódulos atingindo diâmetros entre 3 e 30 mm, multilobu-
lares, com deformação grosseira do fígado. Representa evolução
da cirrose micronodular, uma vez que se perpetua a ação lesiva
exercida pelo agente etiológico; c. mista, representada pela co­
existência, em um mesmo paciente, de micro e macronódulos
(Figuras 57.1 a 57.6).

Figura 57.3 Visão microscópica de espaço portal alargado, com septos


fibrosos insulando hepatócitos e originando a regeneração nodular.
Presença de macro e microvacúolos de gordura. (Esta figura encontra-
se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 57.2 Visão de fígado explantado. Observa-se cirrose mista do


ponto de vista macroscópico, expressa pela presença de macro e micro-
nódulos. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

-----------------------------▼----------------------------
Q u a d r o 5 7 .1 Classificação etiológica da cirrose hepática

Infecciosa
H e p a tite s B e D
H e p a tite C

Hepatite autoimune
Figura 57.4 Visão microscópica de um macronódulo de regeneração
Alcoólica envolvido por um processo inflamatório durante hepatite crônica viral
Obstrução biliar C. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte)
C o la n g it e c rô n ic a d e s tru tiv a n ã o s u p u ra tiv a
C o la n g it e e s d e r o s a n te p rim á ria
A tre s ia d e via s b ilia res
F ib ro s e cística
H ip o p la s ia in tra -h e p á tic a
D is p la sia a rt é r io -h e p á tic a (s ín d r o m e d e A la g ille )
S a rc o id o s e

Fármacos
Metabólica
D o e n ç a d e W ils o n
H e m o c r o m a t o s e h e re d itá ria
D e fic iê n c ia d e a ,-a n t it r ip s in a
G a la c to s e m ia
G lic o g e n o s e s
T ir o s in e m ia
P orfirias
E s te a to -h e p a tite n ã o a lc o ó lic a
C irro s e d a c ria n ç a in d ia n a

Vascular
S ín d r o m e d e B u d d -C h ia r i
D o e n ç a v e n o c lu s iv a
T e la n g ie c ta s ia h e m o r r á g ic a h e re d itá ria Figura 57.5 Visão microscópica de necrose periférica, com infiltrado
Criptogènica inflamatório do parênquima e formando nódulos. (Esta figura encontra-
se reproduzida em cores no Encarte.)
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 645

---------------------------------- ▼-----------------------------------
Q u a d r o 5 7 .2 Características evolutivas nas hepatites crônicas virais

1. A p ó s d ia g n ó s t ic o , in c id ê n c ia d e c irro s e in d u z id a p e lo v íru s d a h e p a tite


B se situ a e n t r e 8 e 2 0 % , c o m ín d ic e d e d e s c o m p e n s a ç ã o h e p á tic a a o
fim t a m b é m d e 5 a n o s s e n d o d e a p r o x im a d a m e n t e 5 % ;

2. N a in fe c ç ã o p e lo v íru s d a h e p a tite D e m 5 a n o s , c irro s e se insta la


e m 7 0 % d o s c aso s, d e fin id a e m to d a s as faixas etá rias, e v o lu ç ã o já
o b s e r v a d a e m 4 0 % d a s cria n ç a s ;

3. A s p e c t o d iv e rs o o c o r r e c o m o s in fe c ta d o s p e lo v íru s d a h e p a tit e C.
A s s im , a lg u n s se t o r n a m c irró tic o s e m m e n o s d e 5 a n o s , e v o lu ç ã o
id e n tific a d a e m o u t r o s a p e n a s a p ó s 2 0 a n o s d e d o e n ç a . F o rm a m a is
g r a v e se ins ta la n a q u e le s q u e fo r a m c o n t a m in a d o s já e m fase m a is
a v a n ç a d a d a v id a , e n tre a lco o llsta s, p o r t a d o r e s d o s v íru s B o u H IV,
n a rc o a d ic to s e o b e s o s .

Figura 57.6 Visào microscópica da cirrose hepática, com um macro-


nódulo de regeneração envolvido por um espesso septo fibrótico. (Esta -------------------------------- ▼--------------------------------
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) Q u a d r o 5 7 .3 Características evolutivas na hepatite autoimune

1. C e rc a d e 3 0 % d o s a d u lt o s já se a p r e s e n t a m c o m c irro s e p o r o c a s iã o d o
d ia g n ó s t ic o ;

■ CLASSIFICAÇÃO ETIOLÓGICA 2 . D a q u e le s q u e , h is t o lo g ic a m e n te , e v o lu e m c o m h e p a tit e p e r ip o rta l,


n e c ro s e e m p o n t e o u m u lt ilo b u la r , r e s p e c t iv a m e n t e 17 e 8 2 % e v o lu irã o
p a ra c irro s e a o fim d e 5 a n o s ;

■ Infecciosa 3. N o e n t a n t o , a p re s e n ç a d e c irro s e n ã o in flu e n c ia o ín d ic e d e s o b re v id a


d e 10 a n o s , q u e se situ a a p r o x im a d a m e n t e 9 2 % ;
A perpetuação, durante alguns anos, de lesão celular imu- 4 . P re s e n ça d e c irro s e já se id e n tific a e m t o r n o d e 5 0 % d a s c ria n ç a s a o
nemediada mostra-se responsável pela instalação de hepatite s e re m d ia g n o s tic a d a s c o m o p o r t a d o r a s d e h e p a tit e a u t o im u n e , c o m
crônica e cirrose em portadores dos vírus das hepatites B, D e c e rc a d e 1 5 % d e la s s e n d o c o n d u z id a s p e lo tr a n s p la n te d e fíg a d o a n te s

C, com características dessa tendência evolutiva discriminadas d o s 18 a n o s d e id a d e ;

no Quadro 57.2. 5. C irro s e se id e n tific a e m 3 0 % d o s id o s o s , c o m p o s s ib ilid a d e d e re m is s ã o


o c o r r e n d o e m 9 0 % d e le s , q u a n d o c o n d u z id o s p e la t e ra p ê u tic a
im u n o s s u p re s s o ra .
■ Hepatite autoimune
Esta é uma forma de doença que se traduz por inflamação do
fígado de causa desconhecida, que se caracteriza por hepatite
periporta (necrose periférica), proeminente infiltrado inflama- ------------------------------------- ▼-------------------------------------
tório e infiltração dos espaços portais por plasmócitos. Toda Q u a d r o 5 7 .4 Características evolutivas na doença hepática alcoólica
essa evolução se relaciona com citotoxicidade imunecelular,
1. N a s fases iniciais, s ã o p a c ie n te s a s s in to m á tic o s o u q u e c u rs a m c o m
mediada por anticorpos, que se dirigem contra proteínas nor­
fa d ig a d is c re ta ;
mais de membranas hepatocíticas, onde autoantígenos especí­
2. P ro g re s s ã o d a c irro s e tr a d u z id a p o r h ip e rtro fia d o lo b o e s q u e r d o
ficos encontram-se hiperexpressos, sendo de risco maior a essa d o fíg a d o , b a ç o n e m s e m p r e p a lp á v e l, m a s já se id e n tific a m
evolução pacientes HLA Dr3 e Dr4 positivos. Destes, mesmo a ra n h a s v a sc u la re s, e d e m a p e rifé ric o , a scite, c o n s u m o m u s c u la r,
tratados com imunossupressores (corticosteroides e azatio- h ip e r b ilir r u b in e m ia , e le v a ç õ e s d e n ív e is sé ric o s d e a m in o tra n s fe ra s e s ,

prina), cerca de 36% evoluirão para cirrose dentro de 6 anos a g a m a g lu ta m iltr a n s fe r a s e , h ip o a lb u m in e m ia e h ip o t r o m b in e m la ;

partir do diagnóstico, aspecto discriminado no Quadro 57.3. 3. R isco d e e v o lu ç ã o re la c io n a -s e c o m in g e s ta e tílic a m a io r d o q u e 5 0 -8 0


g / d ia e e n tre in fe c ta d o s c o m v íru s d a s h e p a tite s B o u C , c o m c a r c in o m a
h e p a to c e lu la r in c id in d o e m a p r o x im a d a m e n t e 1 5 % d e le s.
■ Alcoólica
Mecanismos patogenéticos de agressão hepatocelular em
pacientes com ingesta alcoólica excessiva (> 80 g de etanol/dia)
relacionam-se com predisposição genética, estado hipermeta-
bólico de hepatócitos centrolobulares, em que se acumula mais
■ Obstrução biliar
acetaldeído, além de maior produção de colágeno pelas célu­ A colangite crônica destrutiva não supurativa é uma doença
las de Ito. Fazem parte desse processo radicais livres de oxigê­ crônica do fígado resultante do insulto imunológico desenvolvi­
nio, peroxidação lipídica, reduzidas defesas antioxidantes e de do por linfócitos citotóxicos sobre o epitélio dos duetos biliares,
formação de glutation, e agressão exercida por citocinas, com causando lesão hepatocelular e colestase progressiva. Mais de
ação mediada pelas células de Kupffer. Na dependência desses 90% desses pacientes são mulheres de meia-idade, portadoras
fatores, os doentes evoluem com lesões necróticas focais dos do anticorpo sérico antimitocôndria, com características evolu­
hepatócitos, inflamação, acúmulo de proteínas celulares, estea- tivas para cirrose estando discriminadas no Quadro 57.5.
tose, fibrose e regeneração micro e, menos frequentemente, A colangite esclerosanteprimária é uma doença crônica, de
macronodular, com instalação de cirrose e risco de evolução etiologia desconhecida, cujos aspectos histológicos são repre­
para carcinoma hepatocelular ao fim de 20 ou mais anos, com sentados por inflamação de dueto biliar e fibrose. O diagnóstico
características evolutivas dispostas no Quadro 57.4. confirma-se através da identificação de sinais colangiográficos
646 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

típicos, como estenose e dilatações de duetos intra e extra-he- -------------------------------- ▼---------------------------------


páticos. Predomina entre homens em torno dos 30 anos, sendo Q u a d r o 5 7 .7 Características evolutivas das duas formas clínicas
também observada em crianças. Em geral, 5-50% desses pacien­ de atresia de vias biliares
tes apresentam colite ulcerativa, com características evolutivas
discriminadas no Quadro 57.6. Tipo embriônico ou fetal (35%)
A atresia de vias biliares é uma doença idiopática, represen­ 1. A p a r e c im e n t o p re c o c e s o b fo rm a d e c o le sta s e n e o n a ta l;
2. S e m p e r ío d o liv re d e c o le s ta s e a p ó s icte ríc ia fis io ló g ic a ;
tada por obliteração completa, localizada ou difusa, dos duetos 3. A u s ê n c ia d e r e m a n e s c e n te s d e d u e to s b ilia re s p o r t a h e p a tis ;
biliares a partir do hilo até o duodeno. Essa obstrução ao livre 4 . A n o m a lia s c o n g ê n it a s a sso c ia d a s e m 1 0 - 2 0 % d o s casos.
fluxo biliar leva aos aparecimentos de fibrose gradual, destrui­
Tipo perinatal (65%)
ção de estruturas biliares intra- e extra-hepáticas. São anormali­ 1. A p a r e c im e n t o m a is t a r d io d e c o le sta s e n e o n a ta l;
dades estruturais associadas à trissomia 18 e ao subtipo B12 do 2. In t e r v a lo liv re d a icte ríc ia a p ó s icte ríc ia fis io ló g ic a ;
sistema antigênico leucocitário (HLA) humano. Os pacientes 3. R e m a n e s c e n te s d e e s tru tu ra s d e d u e to s b ilia re s n a p o r t a h e p a tis ;
4 . S e m a n o m a lia s c o n g ê n it a s a sso c ia d a s .
são crianças nascidas a termo, com icterícia já presente no se­
gundo dia de vida, exibindo níveis séricos elevados de fosfatase
alcalina (> 600 Ul/é), gamaglutamiltransferase (> 100 Ul/é) e
discretos de aminotransferases (100 a 200 UIl£). A histologia
hepática revela transformação gigantocelular dos hepatócitos, A fibrose cística é desordem generalizada das glândulas exó-
proliferação e expansão de espaços portais, proliferação de due­ crinas, herdada como padrão autossômico recessivo, com gene
tos biliares, edema e fibrose portal. Expressa-se sob duas formas defeituoso localizado no meio do braço longo do cromosso­
(Quadro 57.7), com características evolutivas específicas. mo 7q31, produzindo um regulador anormal de condutância
Obrigatoriamente, esses pacientes devem ser operados pela transmembrana. Todos os doentes cursam com frequência au­
técnica de portoenterostomia de Kasai, cuja falência implica a mentada de antígenos HLA A2, C7, DR2 (DRW15) e DQW6,
realização do transplante de fígado, visando a tratar colestase controladores da resposta imune mediada por linfócitos. Nesses
e colangite refratária, não impossível de ser realizado mesmo pacientes, ocorrem produção e acúmulo excessivo de muco,
naquelas crianças que cursam com síndrome poliesplênica, fibrose biliar focal e, eventualmente, cirrose, com hipertensão
anomalias da veia cava inferior, veia porta duodenal e situs in- portal em todos os casos. Cursando dessa forma, e com hiper­
versus abdominal. tensão portal, deverão ser submetidos ao transplante de fígado,
antes que desenvolvam insuficiência pulmonar, quando será
necessário se associarem implantes de coração e de pulmão.
Hipoplasia biliar intra-hepática, de etiologia desconhecida.
------------------------------------- ▼-------------------------------------
Os recém-natos doentes cursam com sinais de colangite, coles­
Q u a d ro 57.5 Características evolutivas na colangite crônica tase e cirrose de rápida instalação, sendo identificadas em porta­
destrutiva não su pura ti va dores de doenças hepáticas, como deficiência de a,-antitripsina,
anormalidades cromossômicos, tais como síndrome de Down,
1. P ro g re s s ã o p ro g re s s iv a p a ra c irro s e se c a ra c te riz a p e la s p re s e n ç a s
ou nas infecções intrauterinas por citomegalovírus.
p ré v ia s h is to p a to ló g ic a s d e le sõ e s p e rip o rta is , p ro life ra ç ã o d u c tu la r ,
d u c t o p e n la , s e p to s n e c r o in fla m a t ó r io s e fib ro s e ; Displasia artério-hepática ou síndrome de Alagille é doen­
2. D ia g n o s t ic a d a e m su a fase in ic ia l d e e v o lu ç ã o n a q u e le s q u e
ça genética, herdada como autossômica dominante, de pene-
c u rs a m c o m n ív e is s é ric o s e le v a d o s d e fosfata se a lca lin a e trância variável, com os portadores cursando com rarefação de
g a m a g lu ta m iltr a n s fe r a s e , c o m p o r t a m e n t o q u e p e r d u r a e m t o r n o d e 6 duetos biliares intra-hepáticos, com incidência de 1:100.000
a n o s , c o m s o b r e v id a d e 5 a n o s e m a p r o x im a d a m e n t e 9 0 % , ín d ic e q u e
nascimentos. São pacientes com fácies típica e acometimento
se r e d u z p a ra 3 0 -7 0 % n a q u e le s c o m cirro s e ;
multissistêmico, traduzido por estenose pulmonar periférica,
3. S o b r e v id a d e 4 ,2 e 1,4 a n o s se id e n tific a n a q u e le s q u e c u rs a m c o m
lesão ocular com envolvimento do embriotoxo posterior e vér­
n ív e l d e b illr r u b in a sérica s e n d o , r e s p e c t iv a m e n t e , d e 2 ,0 ,6 ,0 e 10,0
m g / d f , c o m tr a n s p la n te d e fíg a d o p e r m it in d o s o b r e v id a d e 71 - 7 5 % a o
tebras em asa de borboleta. Colestase inicial faz parte do quadro
fim d e 5 a n o s d e p ó s -o p e r a t ó r io . e se traduz por: bilirrubina direta além de 6 mg/d^, fosfatase
alcalina e gamaglutamiltransferase ultrapassando, respectiva­
mente, 600 Ul/£ e 200 Ul/é, bem como hipertransaminasemia
e hipercolesterolemia. O quadro histológico é traduzido por fi­
▼ brose, duetopenia e cirrose inativa, com aspecto colangiográfico
Q u a d r o 5 7 .6 Características evolutivas na colangite de colangite esclerosante primária. A resolução pode ocorrer na
esclerosante primária adolescência, com prognóstico dependendo das malformações.
As indicações do transplante de fígado são cirrose e hiperten­
1. S o b r e v id a m é d ia d e ss e s p a c ie n te s a p ó s d ia g n ó s t ic o e n t r e 9 e 17, e são portal, prurido intratável e comprometimento evolutivo.
m é d ia d e 12 a n o s ; Alguns são operados antes e recebem transplante cardíaco.
2. C e rc a d e 7 6 % a o fim d e 6 a n o s se t o r n a m c irró tic o s e 3 1 % d e s e n v o lv e m Sarcoidose é uma doença crônica, sistêmica, com envolvi­
in s u fic iê n c ia h e p á tic a . S ã o m a is g ra v e s a q u e le s c o m id a d e a lé m d e 5 0
mento hepático em 60 a 90% dos pacientes, traduzindo-se his-
a n o s , q u e c u rs a m c o m h e p a t o e e s p le n o m e g a lia ;
tologicamente por granulomas não caseosos presentes ao nível
3. C e rc a d e 6 - 3 0 % c u rs a m c o m c o la n g io c a r c in o m a , c a r c in o m a
do espaço portal. Durante longos anos, eles cursam assintomá-
h e p a to c e lu la r e /o u a d e n o c a r c in o m a d e v e s íc u la b ilia r o u d e c ó lo n a o
fim d e 1 0 -3 0 a n o s ;
ticos, alguns evoluindo com destruição progressiva de duetos
4 . A n te s q u e a tin ja m esse q u a d r o e v o lu t iv o m a is g r a v e , d e v e r ã o ser
biliares intra-hepáticos. São jovens caucasianos, geralmente
c o n d u z id o s p e lo tr a n s p la n te d e fíg a d o , c o m s o b r e v id a d e 1 e 5 a n o s do sexo feminino, que evoluem com cirrose do tipo biliar, e os
s e n d o , r e s p e c t iv a m e n t e , d e 9 0 - 9 7 % e 8 5 - 8 8 % . Ne sses, e xiste o risco pacientes são anticorpo antimitocôndria negativos. Progressi­
m a io r d e c u r s a r e m c o m e s te n o s e s d e v ia b ilia r e d a a rté ria h e p á tic a vamente, aqueles com mais de 40 anos de idade desenvolvem
o u re c o rrê n c ia d a d o e n ç a a p ó s a lg u n s a n o s d e p ó s -o p e r a t ó r io , s e n d o
cirrose, 25% com hipertensão portal e colangite, com perspec­
n e c e s s á rio c o n d u z i-lo s p e lo r e tra n s p la n te .
tivas evolutivas de necessitarem de transplante de fígado.
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 647

fígado e gerando quadros anatomopatológicos semelhantes.


■ Fármacos Todos devendo ser conduzidos à semelhança do descrito ante­
Diferentes fármacos e seus metabólitos podem produzir he­ riormente para os portadores do gene HFE, antes que cursem
patite crônica ativa e cirrose, sobretudo a-metildopa, isoniazida, com diabetes, insuficiência cardíaca congestiva e também com
nitrofurantoina, dantrolone, diclofenaco e alguns outros. His- neoplasia primária do fígado.
tologicamente, essa hepatite se traduz por infiltrado inflama- Deficiência de a,-antitripsina (a,-AT), um inibidor de pro-
tório periporta, composto por linfócitos e plasmócitos, e com tease sérica, bloqueadora de elastase neutrofílica, relaciona-se
necrose periférica, existindo ou não granulomas não caseosos, com a mutação que se instala no gene específico, disposto no
A colestase ductopênica pode fazer parte do quadro, e um as­ cromossomo 14q3, com alelo M sendo normal e expressões mu-
pecto de cirrose biliar pode se observar naqueles pacientes em tantes ocorrendo nos alelos S e Z, gerando acentuada deficiência
uso de clorpromazina. Por sua vez, metotrexato e vitamina A, sérica da enzima, causando enfisema pulmonar e doença hepá­
arsenicais e cloreto de vinil podem levar à instalação de fibrose. tica. Forma mais grave entre esses pacientes acontece com os
Cirrose pode ser identificada em pessoas que usam também por que expressam o genótipo PiZZ relacionado com mutação iden­
tempo prolongado coralgil e tamoxifeno, amiodarona, maleato tificada no códon 342, resultando na troca de ácido glutâmico
de perexilina, cobloqueadores de canal de cálcio, cetoconazol, por lisina. Nessa última eventualidade, as crianças acometidas
griseofulvina, nimesulida, fenilbutazona, ibuprofeno, guinidina cursam com colestase neonatal e, quando adultos, desenvol­
e outros. Relaciona-se essa evolução com a continuada exposi­ vem hepatite crônica e cirrose. Essas formas são histologica­
ção, levando a que cursem nas fases mais avançadas com sinais mente definidas pela presença de glóbulos intracitoplasmáticos
de redução funcional da síntese parenquimatosa e hipertensão (PAS+) revelados por imuno-histoquímica, progressiva evolu­
portal, sendo necessário conduzi-los ao transplante de fígado. ção para a cirrose, expressa sob forma de nódulos regenerativos
envolvidos por espessas faixas de fibrose, com as características
expostas no Quadro 57.8.
■ Metabólica A galactosemia é representada por uma série de doenças
A doença de Wilson é um erro inato do metabolismo, ca­ transmitidas por herança autossômica recessiva, expressão de
racterizado por defeito na excreção biliar do cobre, com con­ deficiências celulares de três enzimas, galactose-1-fosfato uri-
sequente acúmulo do metal no fígado, cérebro e córnea. São diltransferase, galactoquinase e uridina difosfato (UDP) ga-
acometidos pacientes jovens, que evoluem com deterioração lactose-4-epimerase. Os defeitos de atividade dessas enzimas
intelectual, tremor, disartria, distonia, anemia hemolítica, he- decorrem do estabelecimento de mutações em aminoácidos,
matúria e amenorreia. A doença hepática manifesta-se por gerando distintas expressões clínicas, que se revelam por des­
insuficiência hepática fulminante, hepatite crônica ativa, e/ou nutrição, retardo e precário crescimento somático, formação
cirrose, compensada ou não, observada, em geral, em pacientes de catarata, doença hepática progressiva, retardamento mental,
que não responderam ao tratamento com penicilamina, trien- resultado de deficiências enzimáticas eritrocitárias, acarretan­
tine ou tetratiomolibdato de amônia. Insuficiência hepatoce- do intolerância à galactose da dieta. Modificações histológicas
lular, tradução de necrose maciça presente nos cirróticos, sem aparecem já nos primeiros 10 a 11 dias de nascimento, traduzi­
ou com hipertensão portal avançada, leva-os ao transplante de das por hepatoesplenomegalia e hipertensão portal, o que pode
fígado, com sobrevida de 1 ano atingindo 79% deles, com me­ levá-las a atingir a puberdade, cursando com insuficiência ova-
lhora da qualidade de vida e alguns cursando com regressão riana, déficits menstruais e da fala. A confirmação diagnóstica
dos sintomas psiquiátricos e neurológicos que apresentavam se processa pela excessiva presença urinária de galactose, além
no pré-operatório. de 60 mg/d£, exigindo-se mensuração de atividade eritrocitária
A hemocromatose hereditária (HH), doença herdada, rela­ de transferase, a qual pode ser caracterizada também por testes
cionada no gene HFE (6 p21.3) identificada pela ocorrência de, genéticos envolvendo cDNA, ou definindo mutações Q188/2.
pelo menos, duas mutações, gerando pacientes positivos para O tratamento envolve retirada dietética da galactose. Já nas
fenótipos C282Y, H63D, homozigotos ou heterozigotos com­ primeiras semanas de vida, identificam-se esteatose, prolifera-
postos. Todos cursam com níveis séricos elevados de ferritina
(> 1.000 ng/m£) e índice de saturação de transferrina (> 40%),
devendo ser tratados por flebotomias periódicas, até que índi­
ces de saturação de transferrina e de ferritina estejam, respec­ ------------------------------------- ▼------------------------------------
tivamente, abaixo de 5% e de 50 ng/m l. Falência dessa resposta Q u a d ro 57 .8 Características evolutivas na deficiência de
leva-os a cursar histologicamente com excesso de ferro sendo 0 ,-antitripsina (genótipo PiZZ)
depositado nos hepatócitos distribuídos na zona 1 posterior­
mente periporta, gerando fibrose e cirrose hepática. Esse quadro 1. Cerca de 10-15% desenvolverão doença hepática sintomática na
é de evolução mais rápida naqueles com esteato-hepatite não infância;
alcoólica e portadores de vírus da hepatite C, com maior pro­ 2. Cerca de 5% das crianças acometidas permanecerão ictéricas e
progredirão para cirrose descompensada e morte ao fim do primeiro
pensão ao desenvolvimento de insuficiência hepatocelular ou, ano de vida;
até, carcinoma hepatocelular, levando-os a serem conduzidos
3. Cerca de 25% morreráo de complicações de cirrose entre 6 meses e
pelo transplante de fígado. Nos últimos anos, tem-se definido 17 anos de vida, tendo cursado com hipertensão portal, colestase e
que vários outros genes/proteínas, que não apenas o HFE, estão retardo de desenvolvimento;
envolvidos na regulação da homeostase do ferro. Entre esses, 4. Outros 25% sobrevivem durante anos sem evidências de
incluem-se hemojuvelina, hepcidina (HAMP, 19 ql3.1), recep­ descompensação hepatocelular ou presenças de hemorragia digestiva
tor 2 de transferrina (TfR2) e ferroportina 1 (SLC40A1.2q32). alta, ascite ou síndrome hepatorrenal;
Nesses, existe também um aumento na absorção duodenal do 5. Tentando evitar ou combater complicações advindas, deveráo ser
metal, sob forma iônica, com heme, cruzando sob essa forma conduzidos pelo transplante de fígado com receptor adquirindo
fenótipo do doador, restaurando concentrações séricas normais de
a membrana apical, transferindo-se para o sangue através da a,-antitripsina.
membrana basolateral, tendo acesso a veia porta atingindo o
648 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

ção colangiolar periporta, transformação pseudoacinar, com a cos elevados de aminotransferases e gamaglutamiltransferases
progressão para cirrose podendo ocorrer em 6 meses. de pacientes atendidos em ambulatórios ou consultórios de
As glicogenoses constituem-se em grupo heterogêneo de clínicas privadas; 2. é mais observada entre obesos, sobretudo
doenças, consequentes a distúrbios do metabolismo do glico- naqueles com hipertensão arterial, hiperglicemia, hipertrigli-
gênio, cuja formação e degradação são reguladas por processo ceridemia (> 150 mg/à£) e com valores de HDL abaixo de 40
que envolvem, pelo menos, oito enzimas, cujas deficiências ge­ e de 50 mg/d£, respectivamente, para homens e mulheres. São
ram, pelo menos, 12 formas reconhecidas de doenças de arma­ estes que demonstram risco maior de desenvolver essa síndro-
zenamento desse carboidrato com apenas três tipos induzindo me plurimetabólica, que traduz resistência à insulina. De me­
evolução para agressão hepatocelular, conforme discrimina­ canismo patogenético complexo, instala-se em consequência
do adiante: I. cursam todos com hipoglicemia, acidose láctica, de: 1. redução da oxidação mitocondrial de triglicerídios; 2.
hiperuricemia, hipofosfatemia, hiperlipidemia, neutropenia e baixa exportação hepática de ácidos graxos e lipídios; 3. síntese
disfunção plaquetária, com desenvolvimento de adenoma he­ hepática maior de fosfolipídios e ésteres de colesterol; 4. acen­
patocelular em consequência da hiperglucagonemia que apre­ tuadas produções de radicais livres de O,; 5. hipersecreção de
sentam; II. evoluem com déficit de crescimento, ausência de leptina e grelina, as quais hiperestimulam células estelares do
hipoglicemia, progressiva fraqueza muscular, aumento volu- fígado e da matriz extracelular. Com história natural indefini­
métrico dos rins, enquanto no fígado evoluem com esteatose, da, tem estabilidade histológica entre 1 e 9 anos de evolução,
septos fibrosos, alguns evoluindo para cirrose; e III. conhecido comportamento notado em 54% dos pacientes. A cirrose é mais
como amilopectinose ou doença de Andersen, com crianças frequentemente observada na presença de infiltrado inflama-
evoluindo em 3 a 5 meses, com distensão abdominal, sintomas tório, com a sobrevida de 5 a 10 anos nesses pacientes sendo,
dispépticos, hipotonia, atrofia muscular, com o fígado exibindo respectivamente, de 67 e 59%, mostrando tendência à expansão
depósitos citoplasmáticos PAS positivos, núcleo deslocado por para carcinoma hepatocelular, levando-os a serem conduzidos
inclusões glicogênicas, fibrose e cirrose micronodular, não in ­ pelo transplante de fígado.
frequentemente conduzidos pelo transplante de fígado. A cirrose da criança indiana tem sido também descrita entre
Tirosinemia, desordem do metabolismo dos aminoácidos, norte-americanos e em habitantes de outros países, inclusive
representação do reduzido catabolismo de tirosina, um aminoá- europeus. São acometidos entre 1 e 3 anos, mas também com
cido aromático essencial às sínteses de catecolaminas, melanina 10 anos de idade, predominando no sexo masculino, na pro­
e hormônios tireoidianos. Representada por quatro erros inatos porção 3:1. A doença manifesta-se em três estágios; a. inicial,
autossômicos recessivos definidos pelas seguintes síndromes: expresso por anorexia, irritabilidade, quadro febril, hepatome-
tirosinemia hereditária tipos 1,2 e 3, e alcaptonúria. São crian­ galia e distensão abdominal; b. intermediário, que se traduz por
ças que evoluem com níveis séricos elevados de tirosina (30 mg/ icterícia, esplenomegalia e sinais de hipertensão portal, com
á£) e excreção acentuada do composto tirosil. A forma aguda cirrose instalando-se entre 1 e 8 meses; e c. tardio, definido por
ocorre já no recém-nato, expressa por vômito, diarréia, anemia, sinais de descompensação expressos por colestase, hemorragia
com morte ocorrendo no primeiro ano de vida por insuficiência digestiva, infecções repetidas, edema, encefalopatia hepática e
hepática. A forma crônica define-se pela presença de hepato- morte. Essa evolução ocorre entre 4 e 6 meses. Fatores patoge-
esplenomegalia, colestase, fibrose pericelular e periporta, além néticos são ingesta de alimentos contaminados por aflatoxina
de cirrose micro e, posteriormente, macronodular, com focos e de leite encerrando cobre. Esse metal é identificado nas biop-
de displasia celular eventualmente complicada por carcinoma sias hepáticas em concentrações que ultrapassam 4.788 pg/g
hepatocelular. A terapêutica se baseia em medidas dietéticas e, de fígado seco, bem acima dos 1.400 pg/g presentes em indiví­
nas fases avançadas da doença hepática crônica, por meio do duos normais. Histologicamente, expressa-se por: 1. necrose
transplante de fígado. hepatocelular; 2. corpúsculo de Mallory ocupando mais de 15%
As porfirias são, por sua vez, doenças causadas por anor­ dos hepatócitos; 3. fibrose pericelular; 4. expansão dos espaços
malidades na síntese do heme, resultado da deficiência de di­ portais por células mononucleares e alguns neutrófilos; 5. pro­
ferentes enzimas relacionadas com deficiências enzimáticas liferação ductular; e 6. cirrose micronodular. Tratados na fase
específicas, herdadas de formas recessiva ou dominante, en­ compensada com 20 pg/g/kg/dia de d-penicilamina, reduz-se
volvendo dois grupos dependendo do tecido acometido, tais a mortalidade de 93 para 53% em 18 meses de evolução. Reco­
como eritrócitos ou hepatócitos. Doenças hepáticas resultam mendável terapêutica antioxidante e, para aqueles em estágios
dessa desorganização, cinco delas localizadas exclusivamente mais avançados, o transplante de fígado pode ser realizado.
nos hepatócitos, em duas outras, de modo combinado, encon­
tra-se comprometida a medula óssea, estrutura lesada apenas
na última delas. São pacientes que cursam com manifestações
■ Vascular
clínicas neuropsiquiátricas, cutâneas ou hepáticas. Dessas, a A síndrome de Budd-Chiari instala-se em consequência
mais frequente é a protoporfiria eritro-hepática, na qual o exces­ de obstáculo ao livre fluxo sanguíneo secundário a trom bo­
so de produção de protoporfirinas não sofre eficaz clareamento se de veias hepáticas ou de veia cava inferior supra-hepática.
hepatobiliar, levando à instalação de agregados insolúveis, que É mais frequentemente observada em situações de hipercoa-
se depositam nos duetos biliares, promovendo colestase, fibro­ gulabilidade (policitemia rubra vera, hemoglobinúria paro-
se e cirrose micronodular. A conduta envolve transplante de xística noturna e síndromes neoplásicas, deficiências de an-
fígado, com sobrevida e melhor qualidade de vida, porém com titrombina III e proteína C), em mulheres que se encontram
persistência de distúrbios bioquímicos e a recorrência da lesão em uso de anticoncepcional oral, durante ou após a gestação,
hepatocelular podendo ser observada. e na presença de anticorpos anticardiolipina. Pacientes cursam
com volumosa hepatomegalia, ascite tensa, como outros sinais
típicos de hipertensão portal, instalando-se de forma aguda ou
■ Esteato-hepatite não alcoólica (EHNA) crônica. Histologicamente, traduz-se por dilatação e colageni-
Tem características típicas que assim podem ser resumidas: zação dos sinusoides, desaparecimento de veias centrolobula-
1. é responsável por cerca de 60 a 80% dos casos de níveis séri­ res, lobulação reversa e cirrose. O diagnóstico confirma-se por
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 649

meio de ultrassom com Doppler, angiorressonância magnética sanguíneo para o córtex renal em consequência da vasoconstri-
ou tomografia computadorizada e estudo histológico do fíga­ ção das arteríolas aferentes, com consequente desvio de sangue
do. Esse mesmo distúrbio de drenagem venosa observa-se na para a medular. Tais modificações resultam em importante di­
insuficiência cardíaca direita crônica. minuição da filtração glomerular, maior reabsorção tubular de
A doença venoclusiva, por sua vez, é uma síndrome clínica sódio e água e retenção azotada culminando com a síndrome
caracterizada por icterícia, hepatomegalia e ascite, em geral pre­ hepatorrenal, um indicativo de mau prognóstico.
sente em pacientes submetidos a quimioterapia com bussulfan, Distúrbios hematológicos são frequentes na cirrose hepáti­
ciclofosfamida, carmustina e etoposide, associada a irradiação ca, tais como: 1. anemia, multifatorial causada por hemólise,
corpórea total. Instala-se também em alguns pacientes cerca deficiência na síntese de ácido fólico e absorção do ferro, ob­
de 3 semanas após o transplante de medula óssea. O quadro servada sobretudo nos desnutridos; 2. leucopenia e plaquetope-
clínico e histológico assemelha-se aos anteriormente citados, nia geradas a partir do hiperesplenismo; 3. redução na síntese
em consequência da obstrução ao fluxo sanguíneo de deságue dos fatores que compõem o complexo protrombínico (II, VI,
que apresentam. IX, X), representada por baixa na atividade e alargamento no
Telangiectasia hemorrágica hereditária, doença herdada com tempo de protrombina. Em geral, esses cursam também com
caráter autossômico dominante, com frequência estimada de baixos valores séricos de fator V, associadamente responsáveis
1 a 2:100.000 nascidos vivos. Os pacientes exibem telangiecta- pelo aparecimento de sangramentos espontâneos, equimoses e
sias de pele e mucosas, com cerca de 30% apresentando fístulas hematomas presentes ao menor trauma.
hepáticas A-V. Como consequência, eles cursam com dor no Por sua vez, o fígado normal produz cerca de 10 g de albu-
hipocôndrio direito, hepatomegalia e insuficiência cardíaca de mina/dia, nível que se reduz para 4 g/dia nos cirróticos. Essa
débito elevado. A angiografia hepática é típica e, histologica- hipoalbuminemia altera a pressão coloidosmótica plasmática, a
mente, traduz-se por estruturas vasculares portais e periportais qual, associada à hipertensão portal e à presença de substâncias
dilatadas, volumosas e com paredes delgadas. Tem tendência vasoconstritoras, leva à menor excreção renal de sódio e água,
a evoluir com fibrose secundária e trombose, e a coalescer for­ com formação de ascite. Nessa situação, encontra-se compro­
mando traves até as veias centrais. Desenvolve-se como res­ metido o transporte plasmático de diversas substâncias de baixo
posta uma regeneração nodular, formando cirrose atípica, ou peso molecular, dependentes da atuação dessa proteína.
também definida como pseudocirrose, sempre acompanhada As alterações nos aminoácidos plasmáticos, na cirrose hepá­
de hipertensão portal e insuficiência hepatocelular. tica, dependem do grau de comprometimento celular e da ex­
tensão das anastomoses portocavas. Geralmente, as concentra­
ções plasmáticas de citrulina, metionina, tirosina, fenilalanina
■ Criptogênica estão aumentadas, e as de leucina, isoleucina e valina, diminuí­
Constitui um grupo heterogêneo, de etiologia desconheci­ das. A redução dos níveis séricos desses últimos aminoácidos
da, representando cerca de 5 a 15% das cirroses. São pacien­ de cadeia ramificada, os quais são degradados na musculatura,
tes negativos para todos os marcadores séricos, radiológicos e deve-se a uma baixa da insulina - hormônio que acelera a cap­
histológicos que definem as anteriores etiologias. Mecanismos tação desses aminoácidos pela musculatura e fígado. Também a
patogenéticos são desconhecidos, e, histologicamente, a doença queda da capacidade de síntese hepática leva à incapacidade de
representa-se por ausência de espaços portais, arranjos vascula­ conversão de amônia em ureia, ocasionada pela diminuição da
res anormais, septos fibrosos e regeneração nodular. Predomina atividade da carbamoil-fosfato-sintetase e da argininossuccina-
entre mulheres, não infrequentemente nas fases avançadas da to-sintetase, com consequente menor clareamento da amônia
doença, sendo conduzidos pelo transplante de fígado. e geração de hiperamoniemia.
A alta incidência de infecções bacterianas em cirróticos pode
ser explicada pela existência de importantes alterações nos me­
■ ASPECTOS FISI0PAT0LÓGIC0S canismos de defesa contra as bactérias, dependentes da depres­
são funcional do sistema reticuloendotelial e dos granulócitos,
A instalação da fibrose e da regeneração nodular no fígado baixos níveis de complemento e deterioração da imunidade
acaba por determinar o aparecimento da hipertensão portal, celular. São pacientes que exibem diminuição de alguns cons­
definida pelo aumento dos níveis pressóricos no sistema venoso tituintes do plasma que estão envolvidos com a resposta imune,
portal acima de 5 mmHg da pressão da veia cava inferior. Com como zinco, albumina e transferrina. A síntese desses aspectos
a instalação desse distúrbio hemodinâmico, forma-se extensa fisiopatológicos encontra-se representada no Quadro 57.9.
rede de circulação colateral, na tentativa de aumentar o retor­
no venoso para a circulação cardiopulmonar e aliviar o sistema
portal, formando-se, assim, desvios da circulação portal para a ■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
sistêmica, representados, sobretudo, pelas varizes esofagogás-
tricas. Apesar dessa desestruturação, o fluxo hepático deve ser A magnitude das manifestações clínicas está, obviamente,
mantido, como tentativa de garantir o funcionamento hepáti­ na dependência do grau de comprometimento celular hepá­
co, o que se traduz pelo aumento do débito cardíaco com re­ tico e da intensidade da fibrose. Alguns pacientes, sobretudo
dução na resistência arteriolar esplâncnica (aumento do fluxo nas fases iniciais da doença, não apresentam quaisquer sinais
sanguíneo para os órgãos abdominais) e acentuação da resis­ ou sintomas, o que torna possível dividi-la em: 1. cirrose he­
tência oferecida pelos vasos colaterais. São pacientes que evo­ pática compensada, muitas vezes pobre em sinais e sintomas,
luem ainda com anastomoses arteriovenosas intrapulmonares e suspeitando-se da doença pela identificação de alterações fí­
portopulmonares (sistema ázigo-pulmonares, ao nível do hilo sicas, como hepatoesplenomegalia e hipertransaminasemia,
pulmonar), levando à diminuição da pO, no sangue arterial e detectadas durante realização de exames físicos e laboratoriais
da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio. de rotina. Nesses doentes, mostra-se comum a existência de
Por outro lado, a circulação renal, dependendo do estágio história mórbida pregressa de hepatite sem etiologia definida,
clínico, pode estar alterada, ocorrendo diminuição do fluxo uso crônico de álcool ou sintomatologia vaga, tal como astenia,
650 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

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Q u a d ro 57 .9 Esquema simplificado das alterações fisiopatológicas na cirrose

epistaxe, edema, lentidão de raciocínio, emagrecimento, sen­ (que adquirem forma ginecoide no homem e, na mulher, ten­
do também encontrados febrícula, aranhas vasculares, eritema dem a desaparecer), ginecomastia, atrofia testicular, petéquias
palmar e referências a episódios de diarréia, além de sintomas e equimoses, tremor de extremidades ou flapping. No abdome,
dispépticos diversos, tais como plenitude epigástrica ou flatu- detectam-se ascite e sinais de circulação colateral, esta podendo
lência. Esses pacientes podem manter-se nessa fase por toda ser: a. tipo porta, rede venosa vicariante localizada nas regiões
a sua vida, vindo a falecer por causas diversas, porém alguns, periumbilical, epigástrica e face anterior do tórax, com fluxo
em poucos meses ou anos, geralmente evoluem para falência do abdome para o tórax; b . tipo cava inferior, formada atra­
hepatocelular e hipertensão portal. Prever essa evolução é m ui­ vés das veias retais, com o fluxo da mesentérica inferior, por
to difícil, sendo seu curso considerado individual, dependen­ contracorrente, atingindo a cava inferior. O fígado pode estar
te de inúmeros fatores, bem como da etiologia da doença; 2. aumentado, de volume, endurecido ou, então, diminuído e não
cirrose hepática descompensada: não raramente, nessa fase o palpável. Esplenomegalia pode ser evidenciada pela ocupação
paciente é levado ao médico por apresentar complicações da do espaço de Traube, ou palpação do órgão abaixo do rebordo
cirrose hepática, tais como ascite, encefalopatia e hemorragia costal esquerdo.
digestiva alta. Em geral, apresenta fraqueza progressiva, perda
ponderai, com evidentes sinais de comprometimento de seu
estado nutricional e diminuição de massa muscular. Pode ha­ ■ ASPECTOS LABORATORIAIS
ver episódios de bacteriemia, com febre causada por bactérias
gram-negativas, necrose celular ou instalação de carcinoma he­ Alguns destes estão representados no Quadro 57.10.
patocelular. Comumente, os doentes exibem hálito hepático e O comportamento de alguns outros parâmetros merece ser
icterícia, do tipo hepatocelular ou causada por hiper-hemólise. citado neste capítulo, sobretudo no que diz respeito às proteí­
Ao exame, identificam-se hiperpigmentação da pele (hemo- nas e enzimas séricas, tratadas logo adiante.
cromatose hereditária), dedo hipocrático com unhas esbran­ A albumina apresenta composição homogênea, sendo sin­
quiçadas, telangiectasias aracniformes (na face e no tronco), tetizada exclusivamente no fígado; portanto, na cirrose hepá­
eritema palmar, alteração na distribuição dos pelos pubianos tica, encontramos baixos níveis séricos. Em geral, os doentes
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 651

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Q u a d ro 57 .1 0 Aspectos laboratoriais diagnósticos nas cirroses

Etiologias Aspectos laboratoriais

Infecciosa
Hepatites B e D AgHBs e Anti-VHD IgM e IgG (sorológicos e no tecido)
Hepatite C RNAVHC (técnica PCR - sorologia e tecido)
H epatite autoim une Hipergamaglobulinemia e autoanticorpos séricos específicos
Obstrução b ilia r
Cirrose biliar primária Hipergamaglobulinemia, anticorpo antimitocôndria
Colangite esclerosante primária VHS elevada e p-ANCA positivo
Fibrose cística Teste de suor
Metabólica
Doença de Wilson Cobre e ceruloplasmina séricos, excreção de CUUnas 24 h, concentração de Cu no fígado
Hemocromatose hereditária índice de saturação da transferrina e ferritina elevados
Deficiência de a,-AT Nível sérico de a,-AT, fenótipo PiZZ
Galactosemia Açúcar redutor urinário náo glicose, nível eritrocitário de galactose-1 -fosfato uridil-
transferase
Glicogenose Acido láctico, glicemia de Jejum, nível enzimático muscular e hepático
Tirosinemia Nível sérico elevado de tirosina
Porfiria eritro-hepática Nível sérico de porfirinas, vírus das hepatites B e C

CUU= Cobre urinário.

evoluem com aumento da fração gamaglobulina e uma fusão


beta-gama, consequente a elevados valores das imunoglobu-
■ MÉTODOS DE IMAGENS
linas. Na cirrose biliar primária, ocorre aumento isolado de Métodos de imagens têm sido empregados, visando à de­
IgM; na alcoólica, de IgG e IgA e, em menor grau, de IgM; e tecção de complicações, como redução volumétrica do fígado,
de IgM nas fases iniciais das hepatites agudas. Concentrações sinais de hipertensão portal e carcinoma hepatocelular, segundo
reduzidas de a,-antitripsina (< de 0,4 m g/mf de soro) ocorrem a sequência discriminada adiante.
na doença hepática por deficiência dessa proteína. Valores de
alfa-fetoproteína, proteína oncofetal, encontram-se em níveis
elevados no soro e em baixa concentração (4 a 10,5 ng/m í) nos ■ Ultrassonografia
indivíduos normais. Pode estar elevada por ocasião da regene­ A cirrose hepática é caracterizada por um padrão ecográfico
ração hepática, podendo sugerir hepatite viral, e serve de alerta heterogêneo e grosseiro, com hiperecogenicidade do parênqui-
para os casos com carcinoma hepatocelular. ma, aumento da atenuação sonora e nodularidade na superfí­
As aminotransferases, representadas pela alanina-amino- cie do órgão (sinal mais específico) (Figura 57.7). Esse mesmo
transferase (ALT) e aspartato-aminotransferase (AST), são en­ padrão pode ser visto na infiltração gordurosa, CHC (Figura
zimas intracelulares, sendo a pirúvica exclusiva do citoplasma, 57.8), linfoma hepático e nas metástases hepáticas. A anatomia
enquanto a oxalacética está presente em 70% dessa estrutura, hepática está frequentemente alterada devido à atrofia do lobo
enquanto os outros 30% distribuem-se pelas mitocôndrias. Por­ hepático direito (segmentos V e VIII) e do segmento mediai do
tanto, a alteração sérica delas caracteriza agressão e compro­ lobo esquerdo (IV), com hipertrofia do lateral do lobo esquerdo
metimento hepatocelular. No cirrótico, poderemos encontrar (II e III) e do lobo caudado.
valores flutuantes dos seus níveis nas reagudizações da doen­ Os sinais ultrassonográficos de hipertensão portal incluem
ça, porém, de maneira geral, permanecendo em torno de 5 ve­ esplenomegalia, ascite e presença de circulação colateral por-
zes o LSN (limite superior de normalidade), predominando tossistêmica (sendo este o sinal ecográfico mais específico). A
valores de AST sobre ALT. recanalização da veia paraumbilical é evidenciada pela US com
Gamaglutamiltransferase (GGT) e fosfatase alcalina (FA), Doppler e está presente em 35% dos casos. Outros plexos veno-
enzimas canaliculares, têm valores alterados em processos de sos demonstrados são: esplenorrenal, retroperitoneal, espleno-
envolvimento do sistema biliar, tal como ocorre na cirrose bi­ peritoneal, gástricos curtos, veias mesentéricas, que distalmente
liar primária e colangite esclerosante primária. Valores mais fazem comunicação com a rede venosa da parede abdominal.
elevados de GGT são encontrados na cirrose alcoólica. A trombose da veia porta é sugerida pela presença de imagens
Comumente, os cirróticos cursam com níveis séricos au­ ecogênicas intraluminares e confirmada pelo emprego combi­
mentados de bilirrubina direta (ou conjugada), nível que se nado com Doppler colorido. O carcinoma hepatocelular pode
relaciona ao grau de reserva parenquimatosa. Diminuição da invadir as veias hepáticas, particularmente a porta e as hepá­
fração esterificada do colesterol total pode ocorrer caso a lesão ticas, determinando uma redução do fluxo, precipitando di-
hepatocelular seja extensa ou grave. Bilirrubinúria e urobilinú- latação desses vasos, comportamento que não é observado na
ria estão aumentadas em pacientes ictéricos. A excreção uriná­ trombose não maligna. Esse tipo de neoplasia apresenta padrão
ria de sódio está diminuída na presença de ascite, chegando a ecográfico variável e não específico. Pequenos tumores (< 2 a
casos graves de eliminação menor que 4 mEq de sódio por dia. 5 cm) tendem a ser hipoecogênicos e de aparência uniforme,
Pode haver albuminúria e oligúria. enquanto os maiores geralmente são heterogêneos.
652 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

neração, ou da fase inicial de desenvolvimento do carcinoma


hepatocelular. Atualmente, aceita-se que a caracterização do
suprimento sanguíneo do nódulo ajudaria na identificação de
lesões malignas. Assim, à medida que aumenta o grau de indi-
ferenciação histológica, acentua-se a perfusão arterial e diminui
o seu suprimento venoso portal. O contrário ocorre com as le­
sões displásicas. De maneira geral, o carcinoma hepatocelular
apresenta-se como massa solitária (Figura 57.9) ou múltipla
(Figura 57.10), ou sob forma de neoplasia infiltrativa difusa
(Figura 57.11). Ressalte-se que a detecção dessa neoplasia pri­
mária é complicada ou confundida pela presença de nódulos
de regeneração, infiltração gordurosa, fibrose e necrose do pa-
rênquima. Esse método de imagem, nesses casos, apresenta
sensibilidade em torno de 63%, o que reforça a sugestão de que
tais pacientes sejam avaliados pela ressonância magnética ou
TC helicoidal com dupla varredura, podendo ser biopsiada a
Figura 57.7 Ultrassom definindo um padrào heterogêneo e grosseiro, lesão em caso de dúvida (Figura 57.12).
com nodularidade na superfície do fígado: cirrose hepática.

Figura 57.8 Ultrassom de fígado definindo um padráo heterogêneo Figura 57.9 Tomografia computadorizada mostrando fígado redu­
e grosseiro com uma lesáo nodular hipoecoica, tradução da presença zido de volume com aspecto heterogêneo do parênquima. Presença
de um carcinoma hepatocelular de pequeno diâmetro (2,0 cm). de um pequeno nódulo que pode representar desenvolvimento de
carcinoma hepatocelular de pequeno diâmetro.

■ Tomografia computadorizada (TC)


Em estágios iniciais de cirrose hepática, mostra-se normal,
porém, com o progresso da doença, identificam-se nodulari-
dades sobre superfície do fígado, com o padrão heterogêneo
do parênquima definido principalmente após a injeção de con­
traste. As alterações anatômicas, atrofia e hipertrofia de lobos, e
os achados para hipertensão portal são os mesmos já descritos
na ultrassonografia. Resultados melhores podem ser obtidos
com emprego da tomografia computadorizada helicoidal, que
permite obter imagens da injeção de contraste desde a fase ar­
terial até a sua passagem para a venosa, ampliando a eficácia
do método. Apesar dessa vantagem, estudos mais amplos são
necessários para otimizar os protocolos de imagem e elucidar a
real importância do procedimento nesses pacientes. Pseudole-
sões que podem ser evidenciadas na fase arterial, causadas por
variações focais de perfusão da artéria hepática, são em geral
esclarecidas na fase venosa, quando alguns tumores mais fre­
quentes são detectados. Figura 57.10 Tomografia computadorizada mostrando fígado hetero­
Na tomografia computadorizada clássica, pode ser impossí­ gêneo, evidenciando-se múltiplos nódulos hipervasculares. Esta ima­
vel distinguir lesões nodulares displásicas de nódulos de rege- gem ocorreu após injeção de lipiodol durante arteriografia hepática.
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 653

toyr

Figura 57.13 Angiorressonância magnética de fígado mostrando dis­


tribuição vascular intra-hepática em fígadocirrótico já reduzido. Início
de circulação colateral no hilo esplênico.

Figura 57.11 Tomografia computadorizada deixando observar um


aspecto infiltrativo difuso do parênquima hepático. Presença de restos
de contraste no interior da lesão, consequência da injeção de lipiodol
intra-artéria hepática.

Figura 57.14 Angiorressonância magnética evidenciando fígado de


morfologia alterada, com distribuição rarefeita dos ramos venosos
Figura 57.12 Tomografia computadorizada do fígado mostrando lesão portais e com veias hepáticas direita, média e esquerda presentes,
nodular isolada em lobo esquerdo, possivelmente com dois nódulos- porém irregulares.
satélite.

■ Ressonância magnética (RM) bem como suas complicações, como a hipertensão portal, de­
finidas por técnica específica, a angiorressonância magnética
As alterações morfológicas características da cirrose detecta­ (Figuras 57.13 a 57.17).
das por esse método assemelham-se às descritas anteriormente.
A ressonância magnética tem sido usada para detectar lesões
hepáticas focais em pacientes com cirrose hepática e, de manei­ ■ Angiografia de tronco celíaco
ra geral, para investigar, de forma não invasiva, as formações O cateterismo seletivo da artéria femoral e do tronco celíaco
vasculares intra e extra-hepáticas. Dependendo da técnica uti­ permite uma definição precisa da arquitetura de ramos arteriais
lizada em relação ao tempo (TI e T2) e à densidade do próton, e venosos do fígado cirrótico (Figuras 57.18 a 57.22).
um mesmo tecido pode apresentar diferentes imagens, fugindo
ao nosso objetivo enumerá-las. De maneira geral, a ressonância
magnética nos fornece uma descrição anatômica detalhada e
■ Supra-hepatovenografia
informações importantes em relação a lesões focais e difusas do O cateterismo de veias hepáticas assume importância, pois
fígado. Pacientes com cirrose hepática podem ser identificados, as medidas de pressão ocluída (com cateter impactado) e livre
654 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

Figura 57.15 Angiorressonância magnética 3D, com injeção de gadolínio com reconstrução tridimensional. Observa-se recanalização da
veia paraumbilical. A, Visão coronal; B. Visão sagital; C, Visão coronai oblíqua; D, Visão axial. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no
Encarte.)

(com cateter solto na luz do vaso) (Figura 57.23) definirão o tica cirúrgica visando a tratamento da hipertensão portal (Fi­
verdadeiro gradiente hepatoportal. Assim, o nível acima de gura 57.25).
12 mmHg, resultado da diferença entre esses valores, atua como
fator preditivo de risco de sangramento e servirá de orienta­
ção a medidas terapêuticas a serem adotadas nos hipertensos ■ Endoscopia digestiva alta
portais com varizes de esôfago de médio e grande calibres, com Tem importância na definição da presença de varizes eso-
risco maior de ruptura. fágicas, gástricas (Figuras 57.26 e 57.27) e gastropatia hiper-
tensiva portal (Figuras 57.28 e 57.29). Por meio desse método,
■ Angiorressonância magnética identifica-se a sede das lesões hemorrágicas, podendo-se atuar
Técnica de avaliação recente das condições anatômicas do terapeuticamente na interrupção do sangramento adotando-
sistema venoso portal. Tem indicação na caracterização: a. das se medidas como escleroterapia e ligadura das varizes rotas,
mensurações volumétricas de fígado e baço e distribuição da ou injeção de cola biológica no interior das varizes gástricas
vasculatura portal (Figura 57.24); b. e definição sobre terapêu­ (Figuras 57.30 e 57.31).
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 655

Figura 57.18 Arteriografia de fígado mostrando ainda artérias prati­


camente normais na sua distribuição intra-hepática. Discreto aumento
Figura 57.16 Angiorressonância magnética 3D, com injeção de gado- do calibre extra-hepático. Fase inicial da cirrose.
línio (coronal), demonstrando acentuada esplenomegalia, observando-
se veias esplênica e porta pérvias. com rarefaçâo vascular intra-hepá-
tica. Evidencia-se, ainda, intensa circulação colateral periesplênica e
através de veia gástrica esquerda, demonstrando a presença de varizes
gástricas e esofágicas.

Figura 57.17 Angiorressonância magnética 3D, com injeção de gadolínio (coronal-MPVR). Demonstração de imagens peroladas do terço
distai, constituindo as varizes esofágicas.
656 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

Figura 57.19 Arteriografia de fígado mostrando artérias hepáticas


tortuosas, reduzidas em número em fígado diminuído de volume. Pre­
ocupa nesse paciente a presença de um b lu s h periférico.

Figura 57.20 Venografia de fígado pós-arteriografia, evidenciando


intensa pobreza venosa e circulação colateral.
Figura 57.22 Aspecto mais tardio da angiografia hepática. Observa-
se volumoso b lu s h após injeção de contraste (lipiodol) na artéria he­
pática.
■ PROGNÓSTICO
Pode assim ser enumerado: 1. sob revida de 1 e 5 anos após
o primeiro episódio de ascite está estimada, respectivamente, hepático portal (> 12 mmHg) e baixo índice de clareamento
em 50 e 20%; 2. pacientes com síndrome hepatorrenal tipo 2 do verde de indocianina; 6. a sobrevida é mais curta naqueles
falecem dentro de algumas semanas a poucos meses após o pacientes com ingesta alcoólica diária, baixa atividade de pro-
aparecimento de insuficiência renal; 3. para aqueles com ascite, trombina e hipoalbuminemia, além de maiores valores de fos-
icterícia e hematêmese, a sobrevida média de 5 anos situa-se fatase alcalina e bilirrubina total. São mais graves também os
entre 7 e 19%; 4. cerca de 100% das cirroses descompensam- desnutridos, pacientes com idade avançada, ou os que exibem
se ao fim de 1 ano, baixando a sobrevida de 6 anos de 54 para ascite refratária, encefalopatia e hemorragia digestiva alta, tra­
21%; 5. risco maior de sangramento ocorre naqueles doentes dução da baixa reserva parenquimatosa do fígado e do elevado
com varizes de esôfago de grosso calibre, com elevado gradiente grau de hipertensão portal que apresentam.
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 657

P .V .H .L . = 12f 5

Figura 57.23 Pressão de supra-hepática em cirrose hepática inicial


(Child A). Observar o baixo nível pressórico, de 12,5 mmHg.

Figura 57.25 Angiorressonância magnética definindo anastomose


esplenorrenal distai pérvia.

Figura 57.24 Angiorressonância magnética definindo redução volu-


métrica do fígado, esplenomegalia e intensa circulação colateral.
Figura 57.26 Visão à endoscopia digestiva alta revelando apenas um
cordão varicoso de fino calibre. Nessa situação, os pacientes, em geral,
não apresentam sangramento por ruptura do pequeno cordão. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)
■ TERAPÊUTICA
■ Cirrose hepática não complicada
O diagnóstico precoce e a manipulação do cirrótico em fase
■ Cirrose hepática complicada
compensada envolvem a adoção de dieta balanceada e combate Essa situação é identificada em pacientes que, em geral, se
aos fatores etiológicos responsáveis pela evolução da doença. encontram ou não ictéricos, mas exibindo sinais e complica­
Não há indicação para administração de hepatoprotetores ou ções típicas da hipertensão portal, e baixa reserva hepatocelular.
de aminoácidos de cadeia ramificada entre os bem-nutridos e Merecerão considerações em separado:
estáveis. Tem indicação formal o combate à fibrose, voltado à
remoção do estímulo lesivo e à adoção de estratégias específi­ ■ Hem orragia digestiva alta
cas (Quadro 57.11). Esse tipo de complicação incide pela primeira vez em
A falência dessas atitudes significa que os pacientes deverão 12-30% dos casos, e em 5—61% ao fim de, respectivamente, 1 e
ser conduzidos ao transplante de fígado (Quadro 57.12), exis­ 2 anos nos portadores de varizes esofagogástricas e/ou gastro-
tindo contraindicações à sua execução (Quadro 57.13). duodenopatia congestiva. Essa evolução ocorre em consequên-
658 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

Figura 57.27 Visáo à endoscopia digestiva alta revelando vários cor­ Figura 57.30 Visáo à endoscopia digestiva alta mostrando, à retro-
dões varicosos com sinais premonitórios de sangramento. (Esta figura versáo, início de formação de varizes de fundo gástrico. (Esta figura
encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 57.28 Visáo à endoscopia digestiva alta de gastropatia con- Figura 57.31 Visáo endoscópica de injeçáo de histoacril (cola bioló­
gestiva inicial. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no En­ gica) em variz de fundo gástrico sangrante. (Esta figura encontra-se
carte.) reproduzida em cores no Encarte.)

cia de redução volumétrica do fígado, distorção da arquitetura


vascular do sistema portal e esplenomegalia.
O manuseio desses doentes envolve algumas fases: 1. pre­
venção do aparecimento dessa complicação; 2. interrupção na
vigência do surto hemorrágico; 3. e, finalmente, bloqueio de
novo surto (Quadro 57.14).

■ Ascite e repercussões renais


Como consequência da hipertensão portal, baixa síntese de
K + f* albumina, associada à hipertensão linfática e hiperatividade dos
%
sistemas renina-angiotensina-aldosterona e nervoso simpático,
os pacientes passam a apresentar retenção renal de sódio e água,
com formação de edema de membros inferiores e ascite.
A conduta terapêutica nesses pacientes obedece a certos
princípios, segundo a ascite seja considerada não complicada
(Quadro 57.15) ou complicada (Quadro 57.16).

Figura 57.29 Visáo à endoscopia digestiva alta de gastropatia con- ■ Encefalopatia hepática
gestiva em fase mais avançada. (Esta figura encontra-se reproduzida A combinação de insuficiência hepatocelular, consequente a
em cores no Encarte.) redução volumétrica do fígado, com a desestruturação da arqui-
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 659

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Q u a d ro 57.11 Estratégias de tratamento da fibrose hepática

Estratégias (terapêutica atual)


R e m o ç ã o d o e s t ím u lo le siv o M e c a n is m o s
In t e r r o m p e r in g e s ta d e á lc o o l e to x in a s , d e s c o m p r e s s á o b ilia r
F le b o t o m ia , q u e la ç á o (s o b re c a rg a d e m e ta l)
T e r a p ê u t ic a a n tiv ira l

A g e n t e s a n t i-in fla m a tó rio s C o r tlc o s te ro id e s


P ro s ta g la n d in a
C o l c h i d n a (?)

Estratégias (terapêutica futura)


C o n t r o le d a a tiv a ç ã o d e lip ó c ito s In te rfe ro n a re tin o id e s

N e u tr a liz a ç ã o d e m e d ia d o r e s p ro life ra tiv o s d a fib ro se A n t ic o r p o s a n tifa to r d e c re s c im e n t o d e r iv a d o d e p la q u e ta s e (11


C ito c in a s re c o m b in a n te s q u e se lig a m a p ro te ín a s
A n t a g o n is t a s d e r e c e p to re s d e c ito c in a s

In ib iç ã o d a s ín te s e d a m a triz In ib id o r e s d a p ro lil 4 -h id r o x ila s e

A m p lia r d e g r a d a ç ã o d a m a tr iz P ro te a se s e x ó g e n a s o u e n d ó g e n a s

------------------------------------- ▼--------------------------------- ------------------------------------- ▼-------------------------------


Q uadro 57.12 Indicações clínicas e bioquímicas na cirrose para o Q u a d ro 57.13 Contraindicações para o transplante de fígado
transplante de fígado
Absolutas
A. Doenças hepatocelulares, criptogênicas e metabólicas S e p s e a tiv a fo ra d a á rv o re b ilia r

A lb u m in a sé rica < 2 ,5 g / d í M e tá s ta se s e x t ra -h e p á tic a s

E n c e fa lo p a tia h e p á tic a A ID S

T e m p o d e p r o t r o m b in a > 5 s a lé m d o c o n tr o le C o la n g io c a r c in o m a

B. Doenças colestáticas Relativas


B ilirru b in a sé rica > 1 0 - 1 5 m g / d í In s u fic iê n c ia re n a l c rô n ic a a v a n ç a d a
P r u r id o in tra tá v e l Id a d e > 6 5 a n o s (?)
A s te n ia a c e n tu a d a T r o m b o s e d e v e ia p o rta
O s te o p a tia in tra tá v e l H ip o x e m ia a c e n tu a d a (a n a s to m o s e s in t r a p u lm o n a re s
C. Fatores comuns a ambos os tipos de doenças d ir e it a -e s q u e r d a )

S ín d r o m e h e p a to r r e n a l A g H B s (+ ) s o b r e t u d o A g H B e ( + ) e D N A V H B (+ )

P e rito n ite b a c te ria n a e s p o n t â n e a re c o rre n te A n a s to m o s e p o r t o c a v a p ré v ia (?)

A s c ite in tra tá v e l C ir u r g ia b ilia r c o m p le x a s o b re h ilo h e p á tic o

E p is ó d io s re c o rre n te s d e se p s e b ilia r In g e s ta a tiv a d e á lc o o l e d r o g a s ilícitas

E p is ó d io s re c o rre n te s d e s e p tic e m ia e s p o n tâ n e a H IV p o s it iv o s e m A ID S clín ica


D e s e n v o lv im e n t o d o c a r d n o m a h e p a to c e lu la r M a n u te n ç ã o avançada

tetura vascular, presença de circulação colateral e anastomoses ser identificada naqueles com ou sem doença cardiopulmonar
naturais, cirúrgicas ou radiológicas, constituem-se no substrato intrínseca, tais como obstrução ao livre fluxo aéreo induzido
anatomofúncional para que substâncias proteicas de origem in­ pelo fumo. Difere da hipertensão pulmonar, constituindo um
testinal atinjam a circulação sistêmica e alterem o estado m en­ problema hemodinâmico que se traduz por elevação da pres­
tal desses pacientes. De uma forma simplificada, define-se que são arterial pulmonar ultrapassando a 25 mmHg em repouso.
tal evolução relaciona-se com a presença de neurotoxinas, tais Separação entre ambas obedece a alguns critérios diagnósti­
como amônia, citocinas, benzodiazepínicos “naturais”, neu- cos (Quadro 57.18) e a conduta terapêutica a certos princípios
roesteroides, manganês, glutamina-glutamato e substâncias (Quadro 57.19).
dopaminérgicas, responsáveis pelos distúrbios neurológicos
que tais cirróticos apresentam. ■ Hidrotórax hepático
Conduzi-los do ponto de vista terapêutico inclui impedir o Definido pela presença de derrame (efusão) pleural, ultra­
aparecimento de distúrbios do sono, sintomas extrapiramidais e passando, em geral, mais de 500 m^, identificado em cirrótico
o coma hepático, conforme esquematizado no Quadro 57.17. sem doença cardiopulmonar primária. Predomina entre alcoó­
latras e relaciona-se com transferência de líquido intraperito-
■ Síndrom e hepatopulm onar - hipertensão pulm onar neal ao tórax por meio de comunicações transdiafragmáticas.
Tem sido observada em cirróticos de qualquer etiologia, cur­ Instala-se, sobretudo, no hemitórax direito e apresenta mani­
sando com intensa hipoxemia. São pacientes que evoluem com festações clínicas e laboratoriais, conforme exposto no Qua­
difusão gasosa pulmonar alterada, gerando hipoxemia arterial, e dro 57.20. Para tratá-lo, é recomendável seguir o algoritmo
com evidências de dilatações vasculares intrapulmonares. Pode mostrado no Quadro 57.21.
660 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 57 .1 4 Conduta terapêutica na hemorragia digestiva alta (HDA) do cirrótico (Shahi&Sarin, 1998; NorthItalianEndoscopicCIub, 1988)

Fases Definições

De prevenção P -b lo q u e a d o r e s (p r o p r a n o lo l) 4 0 -3 0 0 m g / d ia o u n a d o lo l
D e v e r e d u z ir d é b it o c a rd ía c o e m 2 5 % d o s e u ín d ic e inicia l
E fica z n as v a riz e s d e g r a n d e c a lib re

D e v e r e d u z ir g ra d ie n te h e p a t o p o r t a l p a ra < 12 m m H g
S e g u ro s , p o u c o o n e ro s o s , e fic a ze s n a p ro fila xia

C o n t r a in d ic a ç õ e s : in s u fic iê n c ia c a rd ía c a c o n g e s t iv a , d o e n ç a v a s c u la r p e rifé ric a o u p u lm o n a r o b s t r u t iv a c rô n ic a , a s m a ,


d ia b e te s t i p o I, e n c e fa lo p a tia
N itra to s — eficácia ig u a l à d o n a d o lo l. D e v e ser m e d id a a lte rn a tiv a

E s d e r o t e r a p ia — r e d u z a in c id ê n c ia d e H D A e a m p lia a s o b r e v id a n o s C h ild A e B, m a s n ã o n o C
L ig a d u r a e n d o s c ó p ic a — s u p e r io r à e s d e r o t e r a p ia n a p re v e n ç ã o a o p r im e ir o s u r to h e m o r r á g ic o

T r a t a m e n t o c ir ú r g ic o — n ã o d e v e r á se r e m p r e g a d o

De interrupção R e e q u ilíb rio h e m o d in â m ic o

In fu s ã o d e d r o g a s e n d o v e n o s a s D oses

V a s o p re s s in a 0 ,4 p / m in — 0 8 p / m in

V a s o p re s s in a + n itr o g lic e r in a (n e ) A s s o c ia r N E s u b lin g u a l o u in tr a d é r m ic a

Te rlip re s s in a 2 m g E V c a d a 4 h o ra s

S o m a to s ta tin a In je ç ã o e m b o lu s d e 2 5 0 p g //

M a n u t e n ç ã o n as 2 4 h (2 5 0 p g //)

T r a t a m e n t o e n d o s c ó p ic o E s d e r o t e r a p ia o u lig a d u ra

T1PS N a fa lê n c ia d as m e d id a s a n te rio re s
C o m o p o n t e p a ra tr a n s p la n te d e f íg a d o

D e r iv a ç ã o c irú rg ic a d e s c o m p re s s iv a A n a s to m o s e p o r t o c a v a o u m e s e n t é r ic o -c a v a , se n ã o fo r p o s s ív e l T IP S

T r a n s p la n t e d e fíg a d o D e f in it iv o - > c u r a t iv o

De bloqueio de novo surto M a n t e r T IP S o u a n a s to m o s e c ir ú r g ic a p é rv io s

M a n t e r sessões d e lig a d u ra e n d o s c ó p ic a
P -b lo q u e a d o r e s + n itra to s p o d e m se r ú te is
T r a n s p la n t e d e f íg a d o

----------------------------------------------------- ▼----------------------------------------------------
Q uadro 57.15 Conduta terapêutica na ascite não complicada do cirrótico (Moreau & Lebrec, 1999)

Não complicada Conduta terapêutica

Moderada (não restritiva) D ie ta h ip o s s ó d ic a (< 3 ,0 g d e sal/dia)

D iu r e tic o te r a p ia : a s s o c ia ç ã o e m d o s e ú n ic a

In íc io M a is re s is te n te

F u r o s e m id a 4 0 m g / d ia 8 0 -1 2 0 m g / d ia

E s p ir o n o la c t o n a 1 0 0 m g / d ia 3 0 0 -4 0 0 m g / d ia

Definição de resistência terapêutica

P e rsistê ncia d o s e d e m a s

P e rd a d e p e s o c o r p ó r e o < 5 0 0 m g / d ia

E x c re ç ã o d e N A ' u r in á r io < 1 0 0 m m o l/ d ia

C le a r a n c e d e c re a tin in a < 4 0 m E q / d ia

E le v a ç ã o d e n ív e is sé ric o s d e u re ia e c re a tin in a
Capítulo 57 / Cirrose Hepática 661
-------------------------------------------------▼-------------------------------------------------
Q u a d ro 57.16 Conduta terapêutica na ascite complicada do cirrótico (Moreau & Lebrec, 1999)

Complicada Conduta terapêutica

Volumosa (restritiva) P a ra c e n te s e e v a c u a d o r a + e x p a n s o r d e v o lu m e

< 5 ( - > in f u n d ir d e x t r a n 7 0
> 5 £ - > in f u n d ir a lb u m in a h u m a n a a 2 0 %

Falência dessa terapêutica (ascite refratária)


Im p la n t e d e v á lv u la d e Le V e e n

T IP S
T r a n s p la n t e d e f íg a d o

Peritonite bacteriana Fatores de risco


In s u fic iê n c ia h e p á tic a g r a v e (C h ild B e C )
H e m o r r a g ia d ig e s tiv a

T r a t a m e n t o e n d o s c ó p ic o
P ro te ín a n a a scite (á 1,0 g/£ )

S u r t o a n te rio r
O u t r a in fe c ç á o v ig e n t e

Antibioticoterapia preventiva
N o r f lo x a d n o 4 0 0 -8 0 0 m g / d ia

O flo x a c in o 4 0 0 m g / d ia

C ip r o flo x a c in o 750 m g/sem ana

S u lf a m e t o x a z o l-t r im e t o p r im a 1 6 0 -8 0 0 m g / 5 d ia s /s e m a n a

Antibioticoterapia curativa
C e fo ta x im a 2 g -8 / 8 h

C e ftria x o n a 2 g / d ia

A m o x id lin a 1 g 6 /6 h

A c id o d a v u lín ic o 2 0 0 m g 6/6 h

O flo x a c in o 4 0 0 m g 1 2/1 2 h

--------------------------------------- ▼---------------------------------------
Q u a d ro 57.17 Conduta terapêutica na encefalopatia hepática do cirrótico
(Seym our&W helan, 1999; Soulby & Morgan, 1999; Bustamante ero/.# 1999)

In t e r r u p ç ã o d o e ix o i n t e s t in o -c é r e b r o p o r m e io d a r e m o ç ã o p ro te ic a e n v o lv e n d o e s v a z ia m e n t o c o lô n ic o p o r c listere s g lic e r in a d o s ( 1 - 2 v e z e s / d ia ), c o m
o u s e m a d iç ã o d e s u lfa to d e n e o m ic in a . D e v e -s e t a m b é m p r o m o v e r a s s o c ia ç ã o d e in g e s ta d e su lfa to d e n e o m ic in a ( 2 - 3 g / d ia ) c o m la c tu lo s e (2 0 m / ,
2 - 3 v e z e s / d ia ), s e m c a u s a r d ia rré ia .

C o m b a t e a os fa to re s d e s e n c a d e a n te s in d u z id o s p o r d o s e s e le v a d a s d e d iu ré tic o s , h e m o r r a g ia d ig e s tiv a alta, u s o d e b e n z o d ia z e p ín ic o s , in fe c ç õ e s , d ie ta


h ip e r p r o te ic a .

R e s ta u ra ç ã o p ro te ic a in ic ia l e n v o lv e n d o 2 0 g d e p ro te ín a s / d ia , a s c e n d e n d o 10 g a c a d a 3 - 4 d ia s, a té to le râ n c ia d e 0 ,8 -1 ,0 g / k g d e p e s o c o r p ó r e o . In d u z -
se, a ssim , a u m b a la n ç o p o s itiv o , m e lh o r a n d o as c o n d iç õ e s n u tric io n a is . D e v e b a s e a r-s e n a o fe rta d e a m in o á c id o s d e c a d e ia ra m ific a d a (v a lin a , le u c in a
e i s o le u d n a ) c o n s titu íd a p o r le ite o u b ife d e so ja , p ro t e ín a te x tu riz a d a d e so ja , le ite d e o v e lh a e p e ix e c o n g e la d o . E v ite -s e in g e s ta d e c a r n e v e r m e lh a ,
b a n a n a e c h o c o la te . R e s trin ja m -s e s ó d io e á g u a n o s h ip o n a t r é m ic o s e c o m a scite . N o s a lc o ó la tra s o u n o s a n o ré tic o s , n a u s e a d o s e e m e s ta d o
h ip e r m e t a b ó lic o , p r o m o v a -s e n u t r iç ã o e n te ra l c o m b a ix a p re s e n ç a d e a m in o á c id o s a ro m á tic o s .

T e r a p ê u tic a s a lte rn a tiv a s d e eficácia in d e f in id a e n v o lv e m a a d m in is tr a ç ã o d e b e n z o a t o d e s ó d io e g lu t a m a t o c a r b a m o il, v is a n d o a r e d u z ir


h ip e r a m o n ie m ia , e d e a n ta g o n is ta s b e n z o d ia z e p ín ic o s (f lu m a z e n il) o u e rra d ic a ç ã o d o H .p y lo r i.

E v it e m -s e a s c o le c t o m ia s (m o r b im o r t a lid a d e e le v a d a ).

B lo q u e ie m -s e , p o r v ia r a d io ló g ic a , n o s c aso s re fra tá rio s as p ro p o s ta s te ra p ê u tic a s a n te rio re s , as a n a s to m o s e s p o rto s s is tê m ic a s c irú rg ic a s e o T IP S , q u e


p o r a c a s o t e n h a m s id o c o n s t r u íd o s . N e ss e c a so , e x is te risco m a io r, g e r a n d o e le v a ç õ e s d a p re s s ã o p o r t a l, c o m p o s s ív e l re in s ta la ç ã o d e a scite e s u rto s
h e m o r r á g ic o s .

S o b r e v id a c u m u la t iv a d o s c irró tic o s , a p ó s p rim e ir o s u r to d e e n c e fa lo p a tia h e p á tic a , a tin g e 2 0 - 4 0 % e 1 5 % , r e s p e c t iv a m e n t e a o fim d e 1 a n o e a os 3 a n o s


d e s e g u im e n t o . P r o m o v e -s e re v e rs ã o d essas e x p e c ta tiv a s p e lo tr a n s p la n te d e fíg a d o .
662 Capítulo 57 / Cirrose Hepática

------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------- ------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------

Q u a d ro 57.18 Síndrome hepatopulmonar e hipertensão pulmonar. Q u a d ro 57.20 Aspectos clínicos e laboratoriais do hidrotórax hepático
Critérios diagnósticos (Krowka, 1999; Krowka, 2000) (Strauss & Boyer, 1997, Sahn, 1988, Lazaridis e t a l . , 1999)

Síndrome hepatopulmonar Distribuição no tórax (% )


D o e n ç a h e p á tic a
H e m it ó r a x d ire ito 85
H ip o x e m ia a rte ria l

PAO? < 70 m m H g ou H e m it ó r a x e s q u e r d o 13

G r a d ie n t e d e A A O , > 2 0 m m H g B ilate ral 2

D ila ta ç á o v a s c u la r in t r a p u lm o n a r Aspectos laboratoriais Expressão


Hipertensão pulmonar C o n t a g e m d e c é lu la s < 1 .0 0 0 c é lu la s / m m '

P ressão m é d ia d e a rté ria p u lm o n a r (P M A P ) > 2 5 m m H g (e m r e p o u s o ) C o n c e n t r a ç ã o d e p ro te ín a to ta l < 2,5 g / d /

H ip e r te n s ã o p o r t o p u lm o n a r P r o p o r ç ã o p ro t e ín a líq u id a p le u r a l: so ro < 0 ,5

P M A P > 25 m m H g e P r o p o r ç ã o D H L líq u id o p le u ra l: so ro < 2 :3

RVP > 120 d ynes/s/cm J e G r a d ie n t e a lb u m in a líq u id o p le u ra l: so ro > 1,1 g / d /


P C P O < 15 m m H g (n o r m a l) C o n c e n t r a ç ã o a m ila s e líq u id o p le u ra l < c o n c e n t r a ç ã o d e a m ila s e
sérica
PAOj ■ Pressão parcial d c oxigênio arterial (ar ambiente); Gradiente de A A O ; = Gradiente
PH 7 ,4 0 -7 ,5 5
de oxig ên io arterioalveolar; RVP ■ Resistência vascular p ulm o na r; P CP O ■ Pressão
capilar p ulm o na r od ufda ; PMAP ■ Pressão na artéria pulmonar. D HL ■ Desidrogenase lática.

------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------ ------------------------------------------------------------------------------ ▼ -----------

Q uadro 57.19 Conduta terapêutica na síndrome hepatopulmonar e Q u a d ro 57.21 Algoritmo visando a diagnóstico e manuseio terapêutico
hipertensão pulmonar do cirrótico (Abram s& Fallon, 1997;Tarek et ai, do hidrotórax hepático (Lazaridisef 0/., 1999)
1997; Krowka etai, 1997; Krowka, 1999)
Hidrotórax hepático
Síndrome hepatopulmonar (sem doença cardíopulmonar primária)
Resultados precários com administração de análogos da
somatostatina, fenilefrina, isoproterenol, indometacina, -¥ Restrição de sódio
plasmaférese, azul de metileno e quimioterapia — prednisona -♦ Diurético
-♦ Toracocentese terapêutica
Novas perspectivas
In g e s ta d e d u a s c á p s u la s (5 0 0 m g ) d e a lh o a p ó s café d a m a n h ã e ja n ta r.
A m p lia r p a ra 3 ,0 g / d ia , c a s o P A O , sofra in c r e m e n t o d e 10 m m H g .
1----------------- T
R e s u lta d o s b o n s e m 4 0 % d o s tra ta d o s . E m v ir t u d e d o s e u c o n t e ú d o d e
e n x o fre , p e r m it e m e lh o r a tu a ç á o s o b r e t ô n u s v a s c u la r a d e s p e it o d o s
n ív e is d e ó x id o n ítric o , m e lh o r a n d o r e d is trib u iç á o d o flu x o s a n g u ín e o Seguimento T1PS
p e lo s 2/3 m é d io e s u p e r io r d o p u lm à o .

Resultado alvissareiro
O b t é m -s e a tra v é s d a e m b o liz a ç á o r a d io ló g ic a d a s c o m u n ic a ç õ e s
a rte rio v e n o s a s .
Seguimento Avaliar efeitos diafragmáticos
Transplante de fígado
V o lt a d o p a ra a q u e le s c o m P A O , < 5 0 m m H g . A c im a d e ss e n ív e l, a
m o r t a lid a d e p ó s -o p e r a t ó r ia a tin g e 7 0 % .
i ---------------
Presente Ausente
r
Hipertensão pulmonar
Terapêutica temporária
A d m in is t r a ç ã o d e is o p ro te n o l e m in fu s à o v e n o s a (c o m b o m b a ).

Terapêutica definitiva
V o lta d a a p e n a s p a ra a q u e le s c o m p re s s ã o d e a rté ria p u lm o n a r a b a ix o Sucesso Insucesso Sucesso
d e 4 0 m m H g . C a s o tal c u id a d o n à o se ja t o m a d o , a m o r t a lid a d e a tin g e
7 0 % a o s 3 a n o s d e p ó s -o p e r a t ó r io . Seguimento Seguimento Seguimento

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Encefalopatia Hepática
Adávio de Oliveira e Silva, Raul Carlos Wahle,
Verônica Desirée Samudio Cardozo, Evandro de Oliveira Souza,
Maria Ermelinda Camilo, Ana Beatriz de Vasconcelos,
Marcela Mendes Assumpção, Francisco César Nassar Tribulato,
Taiane Costa Marinho, Dan L. Waitzberg

A encefalopatia hepática (EH) é uma síndrome neuropsiquiá-


trica decorrente de complicação da cirrose e das hepatopatias
agudas que se acompanham de necrose celular extensa, causa
de acentuado comprometimento funcional do parênquima. Na
história da Medicina, existem diversas descrições a propósito
da inter-relação fígado-cérebro. Assim, por exemplo, os babi­
lônios (2000 a.C.) correlacionavam o fígado com a alma, vida e
humor. Posteriormente, Hipócrates (410 a 370 a.C.) descreveu
o quadro clínico de paciente com hepatite que “latia como um
cão, não podia ser contido e dizia coisas incompreensíveis”.
Posteriormente, Frerichs, pai da hepatologia moderna, des­
creveu alterações mentais em doentes cirróticos terminais, os
quais evoluíram para coma. Nas duas últimas décadas, com o
aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos, principalmente de
imagens, associados ao melhor entendimento funcional hepá-
tico e da história natural da hipertensão portal, houve maior
esclarecimento dos possíveis mecanismos fisiopatológicos da
EH e sua correlação com modificações anatômicas e funcionais
do sistema nervoso central (SNC).
As características, no entanto, da EH são heterogêneas, po­
dendo o paciente apresentar manifestações variáveis, possi­
velmente reflexo de diferentes mecanismos causais. Embora
frequentemente seja mais caracterizada pelos distúrbios do n í­
vel de consciência, pode também se manifestar através de de­
terioração cognitiva, ou pela presença de alterações motoras
em pacientes com nível de consciência normal. Tais aspectos Figura 58.1 Angiorressonância magnética 3D com gadolínio (corte
merecerão considerações neste capítulo. coronal). Sinais de fluxo livre através do tronco venoso portal e me-
sentérica inferior. Fígado de tamanho reduzido e volumosa espleno-
megalia.

■ FISI0PAT0L0GIA
O fígado normal responsabiliza-se pela metabolização e
clareamento de substâncias proteicas neurotóxicas, de origem ■ Amônia
intestinal. Essas substâncias, em consequência da redução da Vários estudos, nos últimos 50 anos, comprovam que 50%
massa dos hepatócitos funcionantes, como ocorre na insuficiên­ dos cirróticos com EH evoluem com hiperamonemia, aceitan­
cia hepática fulminante (1HF), ou na cirrose, pela existência de do-se que a concentração necessária para provocar inibição
anastomoses portossistêmicas (Figuras 58.1 e 58.2), circulam sináptica seja de 0,5 mmol/g. Uma vez ultrapassada a BHL, a
livremente, ultrapassando a barreira hematoliquórica (BHL), amônia é detoxificada nos astrócitos através da amidação do
causando alterações cerebrais. As substâncias que mais fre­ glutamato e formação da glutamina, e baixa dos níveis do mio-
quentemente estão envolvidas na indução da EH merecerão inositol. Esse comportamento bioquímico observa-se mesmo
comentários, a seguir. naqueles pacientes com encefalopatia subclínica. Recentemen-

664
Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática 665
------------------------------------ ▼------------------------------------
Q u a d ro 58.2 Argumentos desfavoráveis à participação da
hiperamoniemia na gênese da encefalopatia hepática (Blei etal., 1996)

• A u s ê n c ia d e m u d a n ç a n o e s ta d o m e n t a l d e c irró tic o s a lim e n t a d o s c o m


a c e ta to d e a m ô n ia ;

• A u s ê n c ia d e c o rre la ç ã o e n t r e n ív e is s a n g u ín e o s d e a m ô n ia e g ra u s d e
e n c e fa lo p a tia h e p á tic a

• In to x ic a ç ã o a g u d a p o r a m ô n ia p r o d u z c o n v u ls õ e s e m a n im a is , a s p e c to
n à o o b s e r v a d o n o h o m e m c o m e n c e fa lo p a tia h e p á tic a .

tes as concentrações séricas elevadas de triptofano, fenilalanina


e metionina, e baixas de valina, leucina e isoleucina. Também
quanto a esse aspecto, existem argumentos favoráveis (Qua­
dro 58.3) e desfavoráveis (Quadro 58.4) à participação dessas
moléculas na gênese da EH.
Figura 58.2 Angiorressonáncia magnética 3D com gadolínio (corte
coronal). Fase mais avançada da cirrose hepática, demonstrando-se
acentuação da esplenomegalia e presença de circulação colateral ■ Mercaptanas e ácidos graxos de cadeia curta
proeminente, com tronco portal pérvio, e mais intensa rarefaçáo dos Essas substâncias interferem no ciclo da ureia e agem em
ramos venosos intra-hepáticos.
ação sinérgica com a amônia, deslocando o triptofano livre da
albumina, potencializando seu efeito neurotóxico e precipi­
tando o desenvolvimento da EH. Essa evolução relaciona-se
também com a participação sinergística dos fenóis, gerando
te, tem-se demonstrado que a amônia aumenta a capacidade inibição de atividade da Na**-ATPase (ácido octanoico) e trans­
de ativação do complexo ácido gama-aminobutírico (GABA) ferência mitocondrial de elétrons (mercaptanas).
e de receptores benzodiazepínicos, causando inibição da neu-
rotransmissão cerebral normal. Esses pacientes também evo­
luem com síntese maior de neuroesteroides moduladores po­
sitivos dos receptores GABA. Esse quadro metabólico torna-se ▼
mais grave entre os cirróticos que evoluem com hiponatremia. Q u a d ro 58.3 Argumentos favoráveis à participação do
Apesar dessas evidências, aceita-se que outras substâncias tam ­ desequilíbrio de aminoácidos plasmáticos na gênese da
bém participem da gênese desse processo, levando a que sejam encefalopatia hepática (Blei etal., 1996)
listados argumentos favoráveis (Quadro 58.1) e desfavoráveis
(Quadro 58.2) à importância da hiperamoniemia na instalação • A ç à o d e b a c té ria s in te s tin a is na p r o d u ç á o d e fa lso s n e u ro tra n s m is s o re s ,

desse grave quadro neurológico. c o m o a o c t o p a m in a ;

• E x istê n cia d e u m p a d r á o s a n g u ín e o típ ic o d o a m in o g r a m a p la s m á tic o :

■ Desequilíbrio de aminoácidos plasmáticos o > A m in o á c id o s d e c a d e ia a ro m á tic a ;

o < A m in o á c id o s d e c a d e ia ra m ific a d a .
O desequilíbrio de aminoácidos plasmáticos é observado, • N ív e is e le v a d o s d e a m ô n ia e d e falsos n e u ro tra n s m is s o re s d e t e r m in a m
sobretudo, nos cirróticos, que evoluem com níveis séricos e ce­ m a io r p e r m e a b ilid a d e d e b a rre ira h e m o liq u ó r ic a ;

rebrais elevados de aminoácidos de cadeia aromática, e baixos • P r o d u ç á o c e re b ra l m a io r d e ss e s falsos n e u ro tra n s m is s o re s a p a rtir d o s

de cadeia ramificada. Dessa forma, eles ultrapassam facilmente a m in o á c id o s d e c a d e ia a ro m á tic a ;

a BHL, agindo como precursores dos falsos neurotransmissores, • N ív e is e le v a d o s d e falsos n e u ro tra n s m is s o re s t a m b é m n o p la s m a e


u rin a d ess es c irró tic o s .
precipitando o surgimento da EH. Predominam nesses pacien-

------------------------------------- T ------------------------------------- ----------------------------- ▼-----------------------------


Q u a d ro 58.1 Argumentos favoráveis à participação da hiperamoniemia Q uadro 58 .4 Argumentos desfavoráveis à participação do
na gênese da encefalopatia (Blei etal., 1996) desequilíbrio de aminoácidos plasmáticos na gênese da
encefalopatia hepática (Blei etal., 1996)
• O u t r a s s ín d r o m e s n e u ro ló g ic a s q u e e v o lu e m a p r e s e n t a n d o n ív e is
e le v a d o s d e a m ô n ia n o líq u id o c e fa lo r r a q u id ia n o ; • M e d id a s te ra p ê u tic a s c lín ic a s n á o n o r m a liz a m o a m in o g r a m a
p la s m á tic o e n ã o r e v e r te m o q u a d r o c e re b ra l;
• A d m in is t r a ç ã o d e a m ô n ia a a n im a is p r o d u z a lte ra ç õ e s a stro cístic a s
d o t ip o A lz h e im e r t ip o II. M o d ific a ç ã o tà o c o m u m n a e n c e fa lo p a tia • A d m in is t r a ç ã o in tra c e re b ra l d e o c t o p a m in a a a n im a is n à o p re c ip ita
h e p á tic a d o c irró tic o ; e n c e fa lo p a tia h e p á tic a ;

• N ív e l c e re b ra l e le v a d o d e g lu t a m in a , u m p r o d u t o d e r iv a d o d o • M e n s u r a ç õ e s c e re b ra is d e falsos n e u ro tra n s m is s o re s p ó s -m o r t e d o s
m e t a b o lis m o d a a m ô n ia ; c irró tic o s m o s t r a m -s e n o rm a is ;

• M e lh o r a d a e n c e fa lo p a tia h e p á tic a a tra v é s d e m e d id a s r e d u to ra s d o s • A u s ê n c ia d e c o rre la ç ã o e n tre m e lh o r a d o q u a d r o n e u r o ló g ic o e in fu s á o


n ív e is sé ric o s e liq u ó ric o s d a a m ô n ia . d e d r o g a s d o p a m in é r g ic a s .
666 Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática

■ Ácido gama-aminobutírico ■ EM QUAIS SITUAÇÕES CLÍNICAS ESSES


A descarboxilaçâo de glutamato-glutamina leva à formação DISTÚRBIOS METABÓLICOS OCORREM
de ácido gama-aminobutírico (GABA). Gerado no interior das
células do sistema nervoso central, promove a entrada de clore­
NOS CIRRÓTICOS?
tos, causando hiperpolarização e diminuição da excitabilidade. Durante a história natural da cirrose hepática, ocorre ou
Essa atuação relaciona-se com a sua maior produção intestinal não a participação de fatores precipitantes da geração de EH,
e disponibilidade cerebral de receptores específicos, a partir de os quais se encontram discriminados no Quadro 58.5.
maior permeabilidade da barreira hemoliquórica.

■ Metabolismo oxidativo cerebral ■ FATORES PRECIPITANTES


Distúrbios oxidativos no SNC ocorrem em consequência O desenvolvimento da EH no cirrótico está ligado à presença
das alterações da neoglicogênese e glicogenólise instaladas de diversos fatores precipitantes, causadores da maior oferta de
nas lesões agudas ou crônicas do fígado, prom ovendo um substâncias proteicas neurotóxicas ao cérebro, a partir da bai­
desequilíbrio na homeostase cerebral pela baixa oferta local xa capacidade de metabolização hepatocelular e das existentes
de glicose. anastomoses portossistêmicas.
Essa evolução neurológica relaciona-se com: 1.presença de
hemorragia digestiva alta: quando aproximadamente 100 mf
■ Ácido quinolínico de sangue presentes no lúmen intestinal produzem 15 a 20 g de
Tem ação neuroexcitadora, é derivado do triptofano e en- proteínas, as quais, uma vez degradadas pelas enterobactérias,
contra-se elevado no plasma dos cirróticos, estando relacio­ geram substâncias neuroativas, como amônia e outras, atuan­
nado com os distúrbios neuropsiquiátricos desses hepatopa- tes como depressoras do SNC. São pacientes que cursam com
tas crônicos. hipovolemia, baixa de perfusão renal e elevação dos níveis sé-
Diante da existência desses múltiplos fatores, atualmente se ricos de uréia, facilmente transformada em amônia; 2. diuréti-
aceita que todas essas substâncias participem de forma sinérgi- cos: os cirróticos evoluem com ascite, necessitando ser tratados
com diuréticos, causa de graves distúrbios metabólicos como
ca, e nunca isolada, na gênese da instalação dos distúrbios da
hiponatremia, hiper- e/ou hipopotassemia e alcalose hipopo-
neurotransmissão que se instalam nesses pacientes.
tassêmica, geradoras da inibição da neurotransmissão cerebral
normal; 3. infecções: a redução da atividade imunológica nas
■ Hipertensão intracraniana doenças hepáticas agudas ou crônicas leva ao desenvolvimento
de infecções, principalmente de vias urinárias e respiratórias,
Recentemente, tem-se descrito que edema cerebral com re­
de peritônio e, em menor frequência, do SNC. Essa evolução
sultante hipertensão craniana ocorre não apenas nas necroses está relacionada com a redução da capacidade funcional do sis­
agudas maciças ou submaciças do parênquima, mas, também, tema reticuloendotelial (SRE), não clareamento hepático das
nas doenças crônicas do fígado, geradoras de deterioração neu­
rológica. Essa tendência nos cirróticos observa-se após inserção
do TIPS (anastomose portossistêmica intra-hepática por via
transjugular), também se relacionando com a resposta infla- --------------------------------▼--------------------------------
matória sistêmica que apresentam (Figura 58.3). Q uadro 58.5 Grrose hepática com e sem fatores precipitantes
da gênese da encefalopatia hepática•
Cirrose com fatores precipitantes
• P e lo e x c e s so d e p r o d u ç ã o d e p r o d u t o s n it r o g e n a d o s

o D ia n te d e in g e s ta a lim e n t a r h ip e r p r o t e ic a n o s q u a d r o s in fe cc io s o s e
sé p tico s

o C o n s t ip a ç ã o in te s tin a l

o H e m o r r a g ia d ig e s t iv a alta

o H e m o tr a n s fu s õ e s

o In s u fic iê n c ia re n a l (u r e m ia )

• Q u a n d o o c o r r e r e d u ç ã o d o in tra v a s c u la r e is q u e m ia h e p á tic a

0 D iu re s e e xcessiva

0 P a ra c e n te s e v o lu m o s a

0 D ia rré ia s e v ô m it o s p ro fu s o s

o H e m o r r a g ia d ig e s t iv a alta

• U s o d e s e d a tiv o s (b a r b it ú r ic o s e b e n z o d ia z e p ín ic o s )

• H ip o p o t a s s e m ia c o m a lca lo se m e ta b ó lic a

• P ó s -c iru rg ia s d e s c o m p re s s iv a s p o rta is e im p la n t e d o T IP S

Cirrose sem fatores precipitantes


Figura 58.3 Mecanismos patogenéticos de encefalopatia hepática
• In s u fic iê n c ia h e p a to c e lu la r p ro g re s s iv a (e x a u s tã o f u n c io n a l d o
na insuficiência hepática aguda e na cirrose. Importância da resposta p a r ê n q u im a )
inflamatória sistêmica.
Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática 667

endotoxinas, diminuída atividade, com baixos níveis de opso- ------------------------------------------------------------------------------ ▼ -------------------------------------------------------------------------------

nização dos macrófagos, e redução da atividade dos linfócitos Q u a d ro 58.7 Diagnóstico nutricional do hepatopata crônico
T e B. Nessa situação, acentuam-se o catabolismo proteico e a
produção de substâncias nitrogenadas, com aumento da ureia V a lo r do índice de risco n u tricio n a l In te rp reta çõe s

e amônia, causas de EH; 4. constipação intestinal: muito fre­


>100 A u s ê n c ia d e d e s n u t r iç ã o
quente em cirróticos com ascite e edema de alças, mostra-se
9 7 ,5 a 100 L e v e m e n t e d e s n u t r id o
como condição favorável à maior produção entérica de subs­
8 3 ,5 a 9 7 ,4 M o d e r a d a m e n t e d e s n u t r id o
tâncias neurotóxicas, como a amônia, inibidoras do SNC; 5.
< 8 3 ,5 G r a v e m e n t e d e s n u t r id o
uso de drogas como hipnóticos e ansiolíticos: em consequência
da redução da reserva funcional hepática e intensa circulação
colateral, essas drogas não sofrem adequada metabolização he­
pática. Têm, portanto, vida média mais longa, o que facilita sua
ação GABA-érgica, modificadora da neurotransmissão cerebral Alternativamente, têm sido estudados, medindo-se a do­
e estabelecimento da EH; 6. anastomoses portossistèmicas: a rea­ bra cutânea tricipital (DCT), a circunferência muscular do
lização de cirurgias descompressivas do sistema porta, como braço (CMB) e a avaliação subjetiva global, ou pelo índice de
a mesentericocava ou portocava, e o emprego do TIPS favore­ Maastricht (IM), construindo-se, nesse último, uma equação,
cem o desenvolvimento da EH em cirróticos, principalmente utilizando-se valores plasmáticos de albumina, pré-albumina,
naqueles classificados como CHILD “C”, sobretudo quando linfócitos totais (LT), e o percentual do peso ideal, conforme
idosos. São esses desvios que facilitam o acesso ao interior da exposto adiante:
BHL das substâncias proteicas neurotóxicas.
IM = 20,68 - [2,4 x albumina plasmática (g/dl)
- 0,1922 x pré-albumina (mg/dl) - 0,00186 x Linfócitos T
■ MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS (células/mm') - 4 e (peso atual/peso ideal)
(22 x altura) (m2)], definindo-se:
A apresentação da EH mostra-se variável, podendo evoluir IM > 0 a 3 - Pacientes levemente desnutridos.
desde forma subclínica, quando não são identificados distúrbios IM > 3 a 6 - Pacientes moderadamente desnutridos.
neuropsiquiátricos grosseiros, até coma profundo. Por sua vez, IM > 6 - Pacientes gravemente desnutridos.
nos doentes com IHF as manifestações são mais intensas, com
evolução rápida para estupor e coma. Diferentemente, os cirró­ Esses dados são importantes na construção de esquema die-
ticos que descompensam apresentam distúrbios progressivos, tético que reequilibre os pacientes no ponto de vista neurológi­
que variam desde a perda da memória, mudança do compor­ co, sem agravar desnutrição que por acaso eles apresentem.
tamento habitual, alterações da personalidade, deterioração
intelectual, flapping, demência, paraparesia e coma. A gradação
clínica varia do grau 1 ao 5, como mostra o Quadro 58.6. ■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS
A avaliação desses pacientes baseia-se não apenas nos dados
■ ASPECTOS NUTRICIONAIS clínicos, mas também em aspectos laboratoriais, complementa­
dos pela realização de eletroencefalograma, testes neuropsiquiá­
Preocupam muito esses pacientes, pois cursam com ingestão tricos, potenciais evocados visuais e auditivos, e, mais recen­
dietética inadequada, alterações dos indicadores antropométri- temente, através do emprego da ressonância magnética com
cos, bioquímicos e clínicos, indicadores de comprometimento espectroscopia do encéfalo, além do monitoramento da pressão
nutricional. Essa característica se relaciona ao fato de que esses intracraniana, importante apenas naqueles com IHF.
pacientes, cursando com hepatopatia descompensada, exibem Do ponto de vista laboratorial, define-se que cerca de 50%
excessiva retenção hídrica, com ascite e edema de membros dos cirróticos com EH evoluem com níveis séricos arteriais ele­
inferiores, exigindo-se que sejam avaliados pelo índice de risco vados de amônia. Esses valores, no entanto, não guardam corre­
nutricional (IRN) calculado pela aplicação da equação: lação com o grau de distúrbio neurológico, reduzindo sua im­
portância na avaliação desses pacientes. Por sua vez, a dosagem
IRN = [1,519 x albumina plasmática (g/dl) + 417 x (peso da glutamina no liquor é considerada como melhor parâmetro
atual/peso normal) (esse mais estável nos últimos 6 meses)],
laboratorial para diagnóstico da EH; entretanto, nem sempre
segundo exposto no Quadro 58.7.
possível de realizá-la, pois tais pacientes costumam evoluir com
graves distúrbios de coagulação, o que limita a perspectiva de
realização da punção medular. Mostra-se fundamental a iden­
tificação de hipoglicemia, causa de importante déficit energé­
------------------------------------- ▼------------------------------------- tico cerebral. Necessitam ser também definidos os distúrbios
Q uadro 58 .6 Gradação clínica dos pacientes com encefalopatia hepática hidreletrolíticos e ácido-básicos que apresentam, traduzidos por
hipopotassemia, alcalose respiratória ou metabólica e hipona-
Graus Aspectos d ín ico s tremia, fatores considerados como precipitantes da EH.
1 C o n fu s ã o m e n t a l, a lte ra ç õ e s d o h u m o r o u d o c o m p o r t a m e n t o e Ao eletroencefalograma, identifica-se lentidão difusa do tra­
d é fic its n o s tes te s p s ic o m é tric o s çado, principalmente nas faixas alfa e delta, com frequência
2 S o n o lê n c ia e c o m p o r t a m e n t o in a d e q u a d o abaixo de 4 Hz. Deve-se lembrar que esses aspectos também
3 E s tu p o r, o b e d e c e a o r d e n s s im p le s , fala d e s a rtic u la d a são observados nos doentes com hipoglicemia, uremia, hiper-
4 C o m a , c o m re s p o s ta a e s tím u lo s d o lo r o s o s
capnia e deficiência de vitamina B12.
5 C o m a , a u s ê n c ia d e re s p o s ta a e s tím u lo s d o lo ro s o s
A aplicação dos testes neuropsiquiátricos, como o de cone­
xão numérica de Reitan, quantifica e analisa a função mental
668 Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática

dos pacientes com EH. Consiste no emprego de fichas com dências que tornam esses métodos de diagnóstico e graduação
sequências numéricas desordenadas, graduadas segundo cres­ da intensidade dessa síndrome neuropsiquiátrica em desvan­
cente nível de dificuldade. Analisa o tempo gasto em segundos tagem, pois se alicerçam também na subjetividade, exigindo-
para que o paciente realize a conexão dos números. Diversos se, para tal, critérios mais objetivos, buscando diagnosticá-la e
trabalhos da literatura demonstram correlação entre grau de en­ monitorá-la evolutivamente.
cefalopatia, presença de flapping e teste de Reitan (Quadro 58.8 Foi por isso que pesquisadores tentaram vencer essa limita­
e Figura 58.4). Embora seja considerado o procedimento padrão ção, valendo-se do potencial visual evocado, que se baseia no
para o diagnóstico, tem inconvenientes de baixa especificidade, emprego de flashes de luz como estímulo. Traduz a atividade
para detecção dessa síndrome, sofrendo, sobretudo, influências, do potencial celular pós-sináptico, refletindo a sucessão de al­
tais como idade, sexo e capacidade intelectual. terações dos potenciais de membranas dos neurônios situados
Mais recentemente, tem-se adotado um índice resultante no córtex cerebral. É um método de grande importância no
de um sistema composto de contagem, baseado no estado de diagnóstico da EH subclínica. A neurotransmissão também
consciência, sinais eletroencefalográficos, intensidade do flap- pode ser definida pelo potencial visual auditivo.
pingyconcentração arterial de amônia e teste de conexão. Tem A ressonância magnética revela que tais pacientes evoluem
a desvantagem principal de misturar diferentes possíveis me­ com sinal de hiperintensidade em T l, ao nível do núcleo pálido.
canismos patogênicos com manifestações de EH. São tais evi- Esse sinal mostra-se prevalente, sendo mais acentuado naque­
les com baixa reserva funcional e mais elevado nível de pressão
portal (Figuras 58.5 e 58.6). Parece que sua presença depende
do acúmulo cerebral de manganês, sendo incerta sua relação
-------------------------------- ▼--------------------------------- com os sintomas neurológicos que os cirróticos apresentam,
Q uadro 58 .8 Correlação entre grau de encefalopatia, flapping e e desaparece após o transplante de fígado. Quando avaliados
teste de conexão numérica pela espectroscopia empregando 31P, definiu-se que no pós-
operatório cursam com redução nos níveis de fosfocreatinina
Grau de Teste de conexão num érica e fosfato inorgânico. Essa técnica não invasiva permitirá definir
e nce falo patia Flapping (segundos)
com exatidão, em futuro próximo, quais os metabólitos relacio­
0 (a u s e n te ) A u s e n te 1 5 -3 0 nados com a EH que se encontram alterados ao nível cerebral
1 (le v e ) R a ro 3 1 -5 0 (Figuras 58.7 a 58.10). Através desse método, se definem quali­
II (m o d e r a d o ) F re q u e n te 5 1 -8 0
tativa e quantitativamente os desarranjos metabólicos que ocor­
III (g r a v e ) C o n tín u o 8 1 -1 2 0
IV (c o m a ) S e m c o n d iç ã o d e p e s q u is a In c a p a z d e re a liza r o teste rem na EH, sobretudo do cirrótico, traduzindo-se por redução
nos valores cerebrais do mioinositol creatinina (mlns/Cr) e de
colina/creatinina (Cho/Cr), bem como de elevação dos valores
cerebrais de glutamina + glutamato/creatinina (Glx/Cr). Tais
modificações são mais intensas naqueles com doença hepática
crônica mais avançada, reversíveis com a terapêutica medica­
mentosa, bem como pelo transplante de fígado.
O monitoramento da pressão intracraniana (PIC) não assu­
me importância na avaliação da EH nos cirróticos, tendo im-

Figura 58.5 Ressonância magnética de encéfalo em sequência pon­


derada em T I, demonstrando-se hiperintensidade do sinal em globos
pálidos (sagital).
Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática 669

Figura 58.8 Espectroscopia de prótons correspondente a substância


cinzenta bioccipital. identificam-se aumentos dos picos de a, 3 e y
glutamato-glutamina (Glx) e redução dos picos de mucoinositol.

Figura 58.6 Ressonância magnética de encéfalo em sequência pon­


derada em T I, demonstrando-se hiperintensidade do sinal em globos
pálidos (axial).


M*

Figura 58.7 Ressonância magnética de encéfalo. Voxel no nível da Figura 58.9 Ressonância magnética de encéfalo. Voxel no nível da
substância cinzenta bioccipital. Técnica p r o b e S. substância branca parietal E. Técnica p r o b e S.

portância apenas naqueles com IHF, quando a elevação de seus de descerebração quando a PIC ultrapassa 30 mmHg, parâme­
níveis é a principal causa de mortalidade nesses pacientes. A hi­ tro importante na indicação do transplante de fígado.
pertensão intracraniana decorre do aumento agudo da permea­ Todos esses parâmetros diagnósticos em geral não guardam
bilidade da BHL e dos distúrbios hemodinâmicos e eletrolíticos correlação com o aspecto anatomopatológico cerebral. Assim,
que apresentam. Geralmente, o paciente se encontra obnubila- em necropsias de pacientes com EH, o cérebro pode ser normal
do, com convulsões focais, pupilas fixas, comatoso, com sinais ou apresentar edema difuso do córtex, com ou sem herniação
670 Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática

■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
Baseiam-se em atitudes bem definidas, que se traduzem por:

■ Durante o surto de encefalopatia hepática


Envolvem a adoção de medidas gerais e, sobretudo, bloqueio
de fatores desencadeantes do quadro de EH, tais como exposto
no Quadro 58.9.
Nessa fase, alguns se encontram sob intubação orotraqueal,
corrigindo-se eventuais desequilíbrios ácido-básicos, tais como
alcalose ou acidose metabólica ou respiratória, ou eventuais
elevações de níveis séricos de ureia e creatinina. Necessário
que permaneçam com sonda nasoenteral, recebendo sulfato
de neomicina (4 a 5 g/dia/5 a 7 dias) ou metronidazol (400 a
800 mg/dia, IV). Exige-se mensuração de pressão venosa central
e antibioticoterapia adequada, em geral envolvendo ampicilina
(1 g IV de 8/8 h), isolada ou associada a ImipenémK(500 mg
F ig u ra 5 8 .1 0 Espectroscopia de prótons correspondendo à substância
branca parietal e definindo-se também aumento dos picos de Glx e
IV de 6/6 h) ou Vancomicina* (1 g IV de 8/8 h). Diante de iso­
redução dos picos de mioinositol. lamento de fungos, prescreve-se Fluconazol* (200 mg IV de
6/6 h) ou Ambisome^ (500 mg/dia IV). Os doentes necessitam
de avaliação diária, visando a definir a ocorrência de sinais de
nefropatia e ototoxicidade, esta levando à redução da acuidade
do tronco, principalmente naqueles com IHF. Nas hepatopatias auditiva ou à surdez.
crônicas, ocorrem atrofia cortical, alargamento de ventrículos, Se os doentes mostrarem persistência do quadro neurológico
perda neural, proliferação dos astrócitos protoplasmáticos (Al- e risco de cursarem com acentuação de déficits nutricionais, é
zheimer tipo II) e desmielinização neural, sinais não observados recomendável conduzi-los via infusão intravenosa de aminoá-
em nenhum cirrótico. cidos de cadeia ramificada (valina, leucina e isoleucina), os quais
se encontram presentes em níveis baixos nesses cirróticos, que
evoluem com predomínio dos aminoácidos de cadeia aromática
■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL (triptofano, fenilalanina e metionina). Agindo-se dessa forma,
reequilibra-se o pool e se impede a ultrapassagem da BHL por
A EH deve ser diferenciada de alguns distúrbios esses aminoácidos que atuam como precursores dos falsos neu­
neuropsiquiátricos exibidos pelos cirróticos, tais como: 1. hi- rotransmissores. Dessa forma, preenchem-se os requerimentos
ponatremia: uma complicação comum observada principal­ energéticos desses pacientes, que se situam em torno de 28 a
mente nos doentes com hipoalbuminemia e ascite, que se en­ 40 kcal/kg/dia. Desse total, deve-se administrar uma parte como
contram em uso de diuréticos e submetidos a paracenteses de glicose (4 a 5 g/kg/dia, com limites entre 2,7 g/dia). Seguindo-se
repetição. Clinicamente, manifesta-se por sonolência, apatia
progressiva, cefaleia, náuseas e hipotensão arterial, geralmente
quando os níveis séricos se encontram abaixo de 130 mEq/cM;
------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------
2. etilismo agudo: é um problema difícil distingui-lo da EH, ao
manifestar-se sob a forma de delirium tremens, o qual se traduz Q uadro 58 .9 Bloqueio de fatores desencadeantes
por atividade motora contínua e por hiperatividade autonô- de encefalopatia hepática
mica, insônia, alucinações e tremor fino rápido de extremida­
Fa tore s d e se n ca d e a n te s B loq u eio
des, sempre acompanhando sinais de neurites periféricas; 3.
encefalopatia de Wernick: comum nos pacientes etilistas com H e m o r r a g ia d ig e s t iv a alta R e s ta u ro d e c o n d iç õ e s h e m o d in â m ic a s
intensa desnutrição calórico-proteica, secundária à deficiência U s o d e d r o g a s v a s o a tiv a s r e d u to ra s da
p re s s ã o p o rta l, tais c o m o te rlip re s s in a o u
de vitamina B6; 4. degeneração hepatolenticular (doença de Wil­
s o m a to s ta tin a
son): encontrada em pacientes jovens, com história familiar, L ig a d u r a e n d o s c ó p ic a d e v a riz e s e so fá g ic a s
resultante do distúrbio do metabolismo de cobre no SNC ao rota s
nível do putame. Caracteriza-se por movimentos coreatetoides, In je ç ã o d e c o la b io ló g ic a e m v a riz e s
g á strica s
sem flappingy com espasticidade; 5. psicoses funcionais laten­
In fe cç õ e s B a s e a d o s e m h e m o c u lt u ra s , u ro c u ltu ra s ,
tes: traduzem-se por distúrbios da personalidade, tais como
c u ltu ra d e líq u id o a scítico , p le u ra l o u
paranóia e depressão; 6. infecção e sepseyquadro preocupante s e c re ç ã o b r ô n q u ic a c o m a n t ib io g r a m a .
que leva a rebaixamento e precipitação da EH, promovendo A d m in is t r a ç ã o d e a n t ib ió t ic o s e
rápida deterioração das condições hemodinâmicas e circulató­ a n t ifú n g ic o s

rias desses cirróticos, os quais cursam com aumentado débito D is t ú r b io s h id re le tro lític o s C o r r e ç ã o d e h ip e r e h ip o n a t r e m ia e
h ip o p o ta s s e m ia
cardíaco, circulação portal hiperdinâmica e reduzidos fluxos
D is t ú r b io s d a c o a g u la ç á o E n v o lv e n d o a d m in is tr a ç õ e s d e s a n g u e e
sanguíneos, renal e cerebral. Nessas condições, citocinas pró-
p la s m a fre sco o u fa to re s s in té tic o s
inflamatórias e óxido nítrico têm seus níveis secretórios acen­
F á rm a c o s d e p re s s o re s d a In t e r r o m p e n d o se u u s o
tuados, exacerbando o afluxo de falsos neurotransmissores ao a tiv id a d e c e re b ra l
interior dos astrócitos.
Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática 671

esse esquema, deve-se realizar aumento progressivo da oferta pH através da produção de ácido láctico e acético, promovendo
desses nutrientes. Exige-se monitorar o possível aparecimen­ efeito catártico, com aumento da excreção fecal de nitrogênio.
to de hiperglicemia, a qual deverá ser corrigida com insulina Deve ser administrada por via oral, ou através de sonda naso-
simples na dose de 1 UI/10 g do açúcar. gástrica, em doses iniciais fracionadas no total de 60 a 80 g/dia.
Com a progressiva melhora dos pacientes, traduzida por Outros preferem, com o mesmo objetivo, a utilização de lacti-
superficialização e manutenção de contato racional com en­ tol. Porém, quando não há resposta à monoterapia com esses
volvidos no tratamento, pode-se interromper a administração dissacarídios, deve-se utilizar a associação com sulfato de neo-
intravenosa dos aminoácidos, passando-se sonda nasoenteral micina e/ou metronidazol nas doses anteriormente propostas.
de fino calibre e valendo-se de bomba de infusão, injetar dietas Em algumas ocasiões, torna-se necessária a limpeza dos cólons
enterais industrializadas, com maior densidade calórica (1,2 a através do emprego de substâncias catárticas, como manitol a
1,5 caloria/mí), contendo aminoácidos essenciais e micronu- 20%, sulfato de magnésio ou lactulose, ou valendo-se de ente-
trientes, com teor de sódio inferior ou igual a 40 mEq/dia, sem­ roclismas, compostos de soluções glicerinadas associadas ao
pre em pequenos volumes para não ampliar o desconforto que sulfato de neomicina (2 g), 2 ou 3 vezes/dia, tendo efeito bené­
apresentam aqueles com ascite volumosa. fico, principalmente naqueles com HDA. Deve-se ter cuidado
nesses pacientes para não precipitar aumento da osmolaridade
plasmática, hiponatremia ou hipopotassemia graves.
■ Fora do surto de encefalopatia hepática Outra opção reside na administração de antagonistas dos
Neste período, visando à restauração das precárias condições receptores centrais de benzodiazepínicos, fazendo com que as
nutricionais, recomendam-se legumes e verduras e peixe con­ chamadas “endozerpinas” circulantes sejam conduzidas ao ní­
gelado. Do cardápio, não deverão fazer parte carne vermelha, vel dos receptores GABA. O flumazenil tem essas características
chocolate, amêndoa, amendoim e goiaba, e os pacientes são e, quando administrado por via intravenosa, promove melhora
orientandos para ingerirem dietas ricas em proteínas lácteas neurológica em 40% dos pacientes com EH grau 4. Outros es­
(leite, iogurtes, queijos, requeijão cremoso) e vegetais (soja, tudos em andamento demonstram a tentativa de reversão do
feijão, grão de bico, frutas secas, nozes, massas, pães integrais quadro neurológico através do uso de fármacos que interferem
e peixe congelado). É recomendável, então, consumir em tor­ na neurotransmissão dopaminérgica e serotoninérgica. A fa­
no de 150 a 200 calorias por dia, em quatro pequenas refeições lência dessas medidas envolve a adoção de atitudes cirúrgicas,
diárias e um lanche noturno. Assim conduzidos, 80% cursam as quais se baseiam na exclusão ou ressecção colônica, pouco
com redução significativa do nível de amônia plasmática, me­ empregadas nos dias atuais, pois apresentam elevada morbi-
lhorando o quociente respiratório, mantendo-se neurologica- dade e mortalidade, em torno de 25 a 50%.
mente estáveis e ampliando o balanço nitrogenado positivo. Infelizmente, alguns desses cirróticos cursam com sinais
Recomenda-se que, para tal, ingiram cerca de 0,25 a 0,75 g de de infecção e sepse promotoras de rápida deterioração das
proteínas/kg de peso corpóreo ao dia. Nova perspectiva tera­ condições hemodinâmicas e circulatórias, aumentando o dé­
pêutica, mais recente, envolve prescrever a ingesta de cápsulas
bito cardíaco, provocando maior formação das anastomoses
de probióticos que encerram Bifidobacterium, Lactobacillus
portossistêmicas, evoluindo com baixas expressões dos fluxos
acidophilus, Enterococcus, ou Bacillus subtilis e Enterococcus
sanguíneos, renal e cerebral. Nessas condições, citocinas pró-
fecium, por 14 dias. Esses microrganismos vivos não patogê­
inflamatórias e óxido nítrico têm seus níveis secretórios acen­
nicos fermentam açúcares, reduzindo a biodisponibilidade de
tuados, exacerbando o afluxo de outros falsos neurotransmis-
substratos, criando um ambiente não favorável para o desen­
sores ao interior dos astrócitos. Modificações desses distúrbios
volvimento de bactérias patogênicas, ao gerarem CO, e ácido
ocorrem através de administração de anticorpos anti-TNFot e
láctico. Importante ressaltar que aqueles pacientes inapetentes
podem ser tratados com fórmulas enterais industrializadas, com antibioticoterapia, promovendo-se assim modulação da flo­
ra e da permeabilidade intestinal, atitudes que podem exigir
maior densidade calórica (1,2 a 1,5 cal/mO» contendo aminoá­
cidos essenciais e micronutrientes, com teor de sódio inferior associarem-se medidas terapêuticas anteriormente propostas
ou igual ao 40 mEq/dia. neste Capítulo.
Alguns avanços recentes têm se concentrado na manipu­ Prudente afirmar que essa complexa arquitetura terapêutica
lação dos cirróticos com encefalopatia hepática envolvendo o não deva ser repetida em vários surtos de EH, exigindo-se, por­
uso de droga bloqueadora do ciclo de ureia, como o acetato de tanto, que tais pacientes devam ser conduzidos ao transplan­
zinco na dose de 800 mg/dia, promotora de melhora nos testes te de fígado, única modalidade terapêutica curativa definitiva
neuropsiquiátricos desses pacientes. Outros pesquisadores têm para esses doentes classificados como CHILD B ou C, ou seja,
proposto administração de L-ornitina-L-aspartato na dose de com reserva hepática precária, expressa também pelo índice do
18 a 27 g/dia, enquanto a ampliação da excreção do nitrogênio MELD, em geral além de 25 a 30. Recomendável entender-se
é provocada através do uso de benzoato de sódio (dose de 10 que será prudente que o implante do novo órgão não seja rea­
g/dia), cujo metabólito é o hipurato, que passa a ser excretado lizado naqueles com avançada agressão neurológica, pois auto­
na urina associado ao nitrogênio. Outra droga com ação seme­ res japoneses recentemente descreveram que pacientes, nessa
lhante é o fenilbuturato de sódio, empregado na dose de 10 a fase, já cursavam com lesões das substâncias cerebrais branca
20 g a cada 3 dias, tendo ambos os fármacos o inconveniente e cinzenta, demonstradas em imagens de RM ponderadas em
de aumentar o índice de retenção corpórea de água, agravando T2, todos com degeneração cortical espongiforme pseudola-
a ascite. Alternativamente, podem ser conduzidos valendo-se minar, atrofia cerebral e cerebelar, perdas mielínicas e axonial.
da administração de um fármaco bloqueador do ciclo da ureia, São essas anomalias consideradas como causadas pelo bombar­
como o acetato de zinco na dose de 800 mg/dia, promotor de deamento contínuo de substâncias neurotóxicas sobre o cérebro
melhora nos testes neuropsiquiátricos de pacientes com EH. desses pacientes, gerando recuperação incompleta das funções
É recomendável que todos sejam conduzidos pelo uso de lac- neuropsicológicas após o transplante de fígado, presentes em
tulose, um dissacarídio sintético que age no cólon, reduzindo o pacientes já cursando com dano cerebral irreversível.
672 Capítulo 58 / Encefalopatia Hepática

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Ascite Hepatogênica
Adávio de Oliveira e Silva, Evandro de Oliveira Souza,
Verônica Desirée Samudio Cardozo, Briane André Vertuan Ferreira,
Leonardo ReuterMotta Gama, Celso Marques Raposo Júnior,
Naisa Oliveira Alvim Mattedi, Lucas Cagnin, Rafael Hygino Rodrigues Cremonin,
Paula Hugueney Cruz, Francisco Leôncio Dazzi, Raul Carlos Wahle

Depois de 10 anos do diagnóstico estabelecido de cirrose, pelo insuficiência cardíaca. De forma sintética, podemos definir que
menos 50% dos pacientes desenvolverão ascite. Essa evolução toda essa evolução guarda relação com precipitação da redução
guarda relação com a instalação de hipertensão portal, com a do volume sanguíneo central na dependência de substâncias
redução da capacidade de síntese hepatocelular e com a dificul­ vasodilatadores, conforme mostrado no Quadro 59.1.
dade que esses pacientes manifestam na manipulação renal de As tentativas de explicação desses distúrbios hemodinâmicos
sódio e água. Esses pacientes estarão predispostos a cursarem e humorais baseiam-se nas teorias clássicas: a. do subenchimen-
com peritonite bacteriana espontânea, hemorragia digestiva to (underfill), alicerçada na comprovação de que a maioria dos
alta, icterícia e encefalopatia hepática. Além disso, eles exibirão pacientes com cirrose avançada apresenta grande dificuldade
alterações, tais como elevação pressórica sinusoidal, vasodila- em manter o volume líquido extracelular dentro dos limites da
tação sistêmica, vasoconstrição arterial renal, ascite refratária e normalidade. Além disso, o baixo volume intravascular cola­
síndrome hepatorrenal. Também, nessa fase mais avançada da bora fortemente para sequestro de líquido para o interior da
doença, desenvolvem mecanismos compensadores de aumento cavidade peritoneal, com formação de ascite, derrame pleural
do volume intravascular, relacionado com secreção estimulada e acúmulo de líquido no tecido intersticial, além de retenção
de vasopressina, desenvolvem elevada resistência vascular intra- renal de sódio e água, que, eventualmente, os leva a cursar com
hepática, apresentam mudanças na microcirculação esplâncni- hiponatremia dilucional; b. também se propõe que todo o pro­
ca, produção excessiva de linfa nesse território e maior volume cesso se inicia pela expansão do volume intravascular (teoria do
de extravasamento abdominal de plasma. Ativam-se também overflow), quando a avidez renal por sódio e água vai depen­
barorreceptores, sistemas vasoconstritores antinatriuréticos, der mais da maior pressão intrassinusoidal, de modificações
sobretudo renina-angiotensina-aldosterona, sistema nervoso da arquitetura do fígado e da menor população de hepatócitos
simpático e vasoconstritores renais. Paralelamente, dilata-se o funcionantes; c. finalmente, alguns advogam que a tentativa de
leito arterial na busca de reequilibrar esse sistema vasocomu- restauração do equilíbrio das leis de Starling envolve vasodilata­
nicante em desorganização. ção arterial periférica e liberação de mediadores neurormonais,
Embora cursem assintomáticos, desenvolvem distúrbios com o objetivo de melhorar o tônus vascular, essa hipótese mo-
cardiovasculares expressos por débito cardíaco aumentado,
reduzida resistência vascular periférica e hipotensão arterial.
Essa evolução se relaciona com hiporregulação de receptores ---------------------------------▼---------------------------------
beta-adrenérgicos, lesões de membranas dos cardiomiócitos, Quadro 59.1 Fatores que contribuem para a instalação de ascite
dificultando ou bloqueando atuações do complexo entre proteí­
na G estimuladora e complexo ligande-receptor p adrenérgico, Precipitação d a redução do volum e
resultando em contratilidade cardíaca anormal, mais graves nos sangu ín eo central Su bstân cias vasodilatadoras
ictéricos, cursando com baixas concentrações de membrana
V a s o d ila ta ç ã o a rte ria l p e rifé rica P ro s ta g la n d in a s
da enzima adenilatociclase. Concomitantemente, desenvolve-
C a p a c itâ n c ia v e n o s a a u m e n t a d a Falso s n e u ro tra n s m is s o re s
se aumento dos níveis de AMP cíclico, consequência de efei­
M a io r p re s s ã o c a p ila r e s p lâ n c n ic a P e p t íd e o v a s o in te s tin a l
tos inibitórios que se processam a partir das atuações do fator
alfa de necrose tumoral e monóxido de carbono, promovendo A n a s to m o s e s a rte rio v e n o s a s S u b s tâ n c ia P

menores influxo de íons cálcio e funcionalidade dos recepto­ S e q u e s tr o h íd r ic o e x tra v a s c u la r C a lic r e ín a -d n in a

res canabinoides. Geram-se, então, alterações funcionais dos S e n s ib ilid a d e a o s v a s o c o n s trito re s F a to r n a t r iu r é tic o atrial
canais de potássio, alargando o intervalo QT e deprimindo a B aix a p re s s ã o o n c ó tic a G lu c a g o n
contratilidade cardíaca nesses pacientes. O significado clínico R e d u z id a c o n tr a t ilid a d e m io c á r d ic a F a to r a tiv a d o r d e p la q u e ta s
desses distúrbios, em geral, é sublimado, uma vez que neles A u m e n t a d a v a s o p e r m e a b ilid a d e Ó x i d o n ítric o
predomina associadamente a vasodilatação periférica, voltada M a io r f o r m a ç ã o d e linfa P e p t íd e o re la c io n a d o a c a lc ito n in a
à redução da pós-carga, suprimindo as manifestações típicas de

673
674 Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ▼ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Quadro 59.2 Conceitos de formação de ascite na cirrose hepática

Underfilling Overfíow Vasodilatation


(Subenchim ento) (H iperfluxo ) (V asodilataçâo)

C irro se C irro se C irro se


i i i
M o d ific a ç ã o nas forças d e S ta rlin g e m va so s
R e te n ç ã o p rim á r ia re n a l d e s ó d io V a s o d ila ta ç â o a rte ria l p e rifé rica
e s p là n c n ic o s

1 i i
A s c ite A u m e n t a d o v o lu m e s a n g u ín e o R e d u ç ã o d o v o lu m e s a n g u ín e o e fe tiv o

1 i i
M o d ific a ç õ e s n as fo rç a s d e S ta rlin g e m v a s o s
R e d u ç ã o n o v o lu m e s a n g u ín e o e fe tiv o A t iv a ç ã o d e h o r m ô n io s r e te n to re s d e v o lu m e
e s p là n c n ic o s

i i i
A t iv a ç ã o d e h o r m ô n io s re te n to re s d e v o lu m e A scite R e te n ç ã o re n a l d e s ó d io

i i
R e te n ç ã o ren a l d e s ó d io A scite

derna definida como da vasodilataçâo arterial periférica, com No início, ao exame físico, comprovam-se macicez nos flan­
esses conceitos dispostos no Quadro 59.2. cos e sinal do piparote positivo. Esse quadro inicial já é detec­
tado quando, na cavidade peritoneal, existem 2 f de líquido, ou
até menos. A progressão traduz-se por ascite tensa, acentuação
■ OUTROS ASPECTOS HUMORAIS ENVOLVIDOS da circulação colateral, além de hérnia umbilical e hidrotórax.
A tendência ao desenvolvimento de bloqueio funcional da veia
O cirrótico apresenta hipervolemia, hiponatremia e déficit cava inferior leva ao edema de membros inferiores. Todos os
de excreção de água, essas alterações provavelmente associadas pacientes evoluem com circulação hipercinética, traduzida por
aos efeitos do hormônio antidiurético (HAD) sobre os recep­ hipotensão arterial, aumento do débito cardíaco e fluxo sanguí­
tores V2 (receptores 2 da vasopressina), ao nível dos túbulos neo tecidual aumentado, traduzido por hiperemia de face e
renais. Promove-se assim a liberação de uma aquaporina re­ mãos, podendo haver dispnéia e cianose, esses quando existe
nal (AQP-2), a partir de uma proteinoquinase dependente de hipertensão pulmonar. Obrigatória a avaliação do sistema de
cAMP (monofosfato cíclico de adenosina), responsável por coagulação sanguíneo, em geral traduzindo-se por alargamento
alterar a permeabilidade do dueto coletor renal, interferindo dos tempos de protrombina e de tromboplastina parcial e do
com a excreção de água livre. Nesse processo, mais recente­ INR, baixos níveis séricos do fator V, do fibrinogênio e con­
mente, tem-se atribuído importância à urotensina II, um oli- tagem de plaquetas, valores que guardam relação com hipo-
gopeptídio mediador da vasodilataçâo esplàncnica participan­ albuminemia e hiperbilirrubinemia à custa da fração direta.
do, assim, da redução da filtração glomerular e aumento da Todos expressam síntese hepática reduzida. No início, cursam
retenção renal de sódio, na dependência de seu acoplamento
com níveis séricos normais de ureia e creatinina, os quais pro­
à proteína G, formando óxido nítrico e ativando células da
gressivamente se elevam em paralelo à queda dos valores do
musculatura lisa vascular. Correlacionam-se seus níveis plas-
clareamento de creatinina, em pacientes com concentrações
máticos com o grau de hipertensão portal, formação da ascite
plasmáticas elevadas de renina e norepinefrina.
e negativamente com a pressão arterial média. Tais parâmetros
modificam-se experimentalmente quando ratos cirróticos são A punção abdominal revela líquido ascítico transparente ou
tratados com seu antagonista, o palosuran, reversor dessas mo­ amarelo-citrino. A concentração de proteína total, de leucócitos
dificações anatomofuncionais do sistema venoso portal. Essa e eritrócitos atinge, respectivamente, menos de 2,5 g/df, 300 cé-
inter-relação anatômica fígado-rim pode ser demonstrada nas lulas/mm3e 10.000 elementos/mm3. Valores mais elevados do
Figuras 59.1 a 59.6. que esses traduzem complicações, tais como carcinoma hepa-
tocelular, com ou sem síndrome de Budd-Chiari (trombose
de veia cava inferior), tuberculose peritoneal, carcinomatose
peritoneal ou peritonite bacteriana espontânea. O diagnóstico
■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS diferencial é feito através do emprego de métodos de imagem,
Ascite representa o acúmulo de líquido no interior da cavi­ mas, sobretudo, pela videolaparoscopia com biopsia dirigida
dade peritoneal, instalando-se de modo súbito, ou desenvol- sobre lesões intra ou extra-hepáticas.
vendo-se lentamente, ao curso de alguns meses, inicialmente Todos esses pacientes cirróticos com ascite devem ser sub­
traduzida pela sensação de flatulência iminente e distensão ab­ metidos a exame ultrassonográfico, com ou sem Doppler, ou
dominal. Algumas vezes, a detecção inicial ocorre após um sur­ tomografia computadorizada. Essa conduta visa a afastar a pre­
to de necrose extensa do parênquima, tal como se observa na se- sença de diagnósticos de carcinoma hepatocelular (ascite asso­
roconversão do AgHBe para anti-AgHBe, em surtos infecciosos, ciada a 25% dos casos) e de trombose portal (contraindicação à
após libação alcoólica ou ingesta de alimentos ricos em sódio e, realização de transplante hepático), e espessamento peritoneal,
sobretudo, após episódio de hemorragia digestiva alta. além de descartar doença renal.
Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica 675

IM »»2

Figura 59.1 Angiorressonância de aorta, veia cava, artérias renais e sistema venoso portal. Observar, nesta sequência de oito fotos, a inter-
relaçáo nítida anatômica e, como consequência, funcional do fígado e rins.
676 Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica

Figura 59.4 Angiorressonância magnética do sistema venoso portal,


mostrando intensa rarefaçào da vascularização portal intra-hepática,
redução volumétrica do fígado e circulação colateral.

Figura 59.2 Endoscopia digestiva alta. Observar, no sentido horário,


sinais clássicos de hipertensão portal, traduzidos pela presença, em
r
sequência, de varizes gástricas, varizes duodenais, varizes esofágicas
e, novamente, varizes duodenais. (Esta figura encontra-se reproduzida
em cores no Encarte.)

t .

L . / Â
Figura 59.5 Supra-hepatovenografia evidenciando cateterismo de
veia hepática esquerda; ausência de ramos de 2 ° e 3.a ordens, com o
cateter impactado medindo a pressão de veia hepática ocluída.

Figura 59.3 Angiografia revelando intensa rarefaçào de ramos arteriais


intra-hepáticos, com redução volumétrica do parênquima hepático.

Figura 59.6 Tomografia computadorizada do fígado e baço, após


injeção de contraste intravenoso, definindo redução volumétrica do
parênquima hepático e esplenomegalia.
Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica 677

■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS
■ Fase de pré-instalação de ascite
A homeostase de sódio em cirróticos sem ascite (Child A) já R e d u ç ã o d o s v a s o d il a t a d o r e s
A u m e n t o d o s v a s o d il a t a d o r e s
( Ó x i d o n ít r ic o ,
se apresenta alterada. Nestes, a oferta de uma dieta encerrando ( Ó x i d o n ít r ic o e C o )
a m a n d a m id a e o u tro s )
mais de 200 mmol de sódio por dia modifica a capacidade de
manipulação orgânica desse íon, fenômeno observado, sobre­
tudo, ao nível do túbulo contorcido proximal. Essa avidez por
+ 1
V a s o d i la t a ç ã o d e a r t é r ia s
sódio é maior com o paciente em posição supina, sugerindo que A u m e n to d e
e s p l â n c n ic a s
os sistemas renina-angiotensina-aldosterona e nervoso simpá­ v a s o c o n s t r it o r e s
F lu x o p o rt a l e l e v a d o + e l e v a d a
(E n d o t e l in a s ,
tico encontram-se hiperativos. Nesses doentes, eleva-se também p r e s s ã o d e c a p ila r e s in t e s tin a is
p r o s t a n o id e s e o u t r o s )
a produção de receptores de angiotensina II, localizados em glo- D é b ito c a r d ía c o a u m e n t a d o

mérulos, túbulos e vasculatura renal. O bloqueio desse distúrbio


hemodinâmico intrarrenal tem sido obtido administrando-se
losartanüy na dose de 7,5 mg/dia, capaz de produzir acentuada
natriurese sem causar hipotensão sistêmica, nem mudanças no
volume sanguíneo central ou cardíaco. Aspectos práticos dessa
forma de conduta estão expressos no Quadro 59.3.
Nessa fase, já assume importância o sistema endócrino re-
nina-angiotensina, regulador da homeostase e da pressão ar­
terial, na dependência da presença de angiotensinógeno nos
hepatócitos. A partir daí, é secretado para o sangue onde se
transforma em angiotensina I (ANG I) pela ação da renina i
de produção mesangial e cardíaca, posteriormente lisada por A S C IT E
uma ectoenzima denominada ACE, abundante em células en-
doteliais. Gera-se, dessa forma, angiotensina II (ANG II), a
qual atuará em receptores das células glomerulosas, liberando Figura 59.7 Eventos vasodilatadores e vasoconstritores na formação
da ascite.
aldosterona, promovendo reabsorção ávida de sódio e água, e
acentuação da fibrogênese. Participam ainda desse processo
enzimas conversoras da angiotensina, óxido nítrico, receptores
mineralocorticoides, endotelinas 1 e 3, causando vasodilatação
esplâncnica e vasoconstrição intra-hepática, conforme exposto ereção não osmótica de hormônio antidiurético e o hiperaldos-
na Figura 59.7. teronismo que apresentam. Nesses pacientes, a absorção maior
de água instala-se pela presença de hipersecreção de arginina-
vasopressina e síntese menor de prostaglandina.
■ Fase de instalação de ascite Diante dessas modificações hemodinâmicas e humorais, to­
A ascite é observada em cerca de 30 a 50% dos cirróticos. A dos os doentes evoluem, na fase inicial do processo, com au­
manipulação terapêutica desses doentes constitui-se em uma mento do volume sanguíneo total e do débito cardíaco, com
exigência clínica, visando, sobretudo, a ampliar a liberação do diminuição na resistência vascular sistêmica total, mantendo
filtrado até os segmentos de diluição do néfron e ramo ascen­ normal a pressão arterial. Há sinais de circulação hiperdinâ-
dente da alça de Henle. Procura-se, também, inibir a hiperse- mica, em uma tentativa de redistribuição volumétrica para o
sistema esplâncnico, inibindo a ativação dos barorreceptores
centrais redutores do fluxo sanguíneo renal, com intensificação
da pressão portal sinusoidal.
Nessa fase, a terapêutica vai incluir baixa oferta nutricional
---------------------------------▼--------------------------------- de sódio e água, mesmo para aqueles que não são hiponatrêmi-
Quadro 59.3 Aspectos práticos para administração da losartana cos. É observação comum que responderão melhor à restrição
aos cirróticos em fase de pré-instalação de ascite de ingesta dietética de sódio e diureticoterapia os pacientes
que apresentam níveis séricos de ureia e creatinina abaixo de
1. A n g io t e n s in a II a tu a c o m o p o t e n t e m e d ia d o r d a h ip e r t e n s ã o p o rta l
20 mg/d^ e 1,0 mg/dí, respectivamente, e excreção urinária de
in tr a -h e p á tic a ;
sódio acima de 10 mEq/dia. A manipulação desses pacientes
2 . A a d m in is tr a ç ã o d e a n g io t e n s in a II e le v a o s v a lo re s d a p re s s ã o p o rta l.
envolve uma sequência de eventos na fase definida como de
Esse a c ú m u lo o c o r r e p o r q u e p r o m o v e in flu ê n c ia c o n tr á t il d ire ta s o b re
c é lu la s d e Ito , r e g u la d o r a s d o flu x o s a n g u ín e o s in u s o id a l;
diurese espontânea, conforme avaliação clínico-hemodi-
3 . A a d m in is tr a ç ã o d e a n g io t e n s in a II e s tim u la s e c re ç ã o d e a ld o s te ro n a ,
nâmica (Quadro 59.4) e metabólica (Quadro 59.5). O trata­
a c e n t u a n d o a d ific u ld a d e d e m a n ip u la ç ã o d e s ó d io e á g u a p e lo rim , mento propriamente dito envolve fase de pré-diureticoterapia
r e d u z in d o a n a triu re s e ; (Quadro 59.6), seguida daquela definida como de diureticotera­
4 . A lo s a r ta n a a tu a c o m o a n ta g o n is ta d e re c e p to re s d e a n g io te n s in a pia (natriuréticos) (Quadro 59.7), a qual pode acompanhar-se
II, i n d u z i n d o e fe ito s v a s o d ila to re s s o b r e a rté ria s e v e ia s ren a is, de algumas complicações típicas (Quadro 59.8). A tendência
a c e n t u a n d o a n a triu re s e ;
à hiponatremia dilucional, que os pacientes progressivamente
5 . A d o s e id e a l d iá ria d e lo s a r t a n a é d e 7,5 m g , d e sta m a n e ir a a tu a n d o apresentam, relaciona-se à excreção anormal de água, cuja pa-
d e fo rm a s e g u ra e e fe tiva n o t r a t a m e n t o d a h ip e r t e n s ã o p o r ta l d o s
togênese encontra-se bem definida (Quadro 59.9), assim como
c irró tic o s .
as suas manifestações clínicas.
678 Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica

----------------------------- ▼------------------------------ ------------------------------- ▼-------------------------------


Quadro 59.4 Fase de diurese espontânea (I) — avaliação Quadro 59.8 Manuseio das complicações da diureticoterapia
dínico-hemodinâmica (natriuréticos)

• P es qu is a d e icte ríc ia , h e p a to e s p le n o m e g a lia , e n c e fa lo p a tia Complicações M anuseio


• P es qu is a d e e d e m a p e rifé ric o e spiders (a ra n h a s v a s c u la re s c u tâ n e a s )
H lp e rp o ta sse m la S u s p e n s ã o d e d iu r é t i c o s T C D
• P es qu is a d e v a riz e s e s o fa g o g á s tric a s R esin a d e tro c a d e ío n s
• M e d id a d iá ria d e d iu re s e , p e s o c o r p ó r e o e m je ju m C o m b a te a SHR

• M e d id a d iá ria d e p re s s ã o a rte ria l H ip o p o ta sse m ia S u s p e n s ã o d e d iu r é tic o s T C P


A d m in is t r a ç ã o d e p o tá s s io
• M e d id a d e g ra d ie n te h e p á t ic o -v e n o s o p o rta l
A m p lia ç ã o d e d iu ré tic o s T C D

En ce fa lo p a tia h e p á tlca S u s p e n s ã o d e d iu ré tic o s


M e d id a s d e c o n tr o le n e u ro ló g ic o
------------------------------------ ▼------------------------------------ S ln d ro m e h e p a to rre n a l S u s p e n s ã o d e d iu ré tic o s
Quadro 59.5 Fase de diurese espontânea (II) — avaliação metabólica M e d id a s d e e x p a n s ã o d e v o lu m e
Le V e e n - > im p la n t e d o T I P S
• N ív e is sé ric o s d e b ilir r u b in a , a lb u m in a , a tiv id a d e d e p r o t r o m b in a H ip o n a tre m la d ilu d o n a l C o r r e ç ã o d e v e ser le n ta
• N ív e is sé ric o s d e re n in a , n o r e p in e fr in a , e n d o te lin a s A c o r r e ç ã o d e v e se r r á p id a d e s d e q u e , n a fase d e p ré -t r a n s p la n t e ,
• N ív e is sé ric o s d e s ó d io , p o tá s s io , u re ia, c re a tin ln a a c o n c e n t r a ç ã o sérica seja < 120 m E q / í , v is a n d o a im p e d ir o
a p a r e c im e n t o d e m ie lin ó lis e p o n t in a c e n tra l.
• E s t u d o d e s e d im e n t o u r in á r io
Acidose metabólica grave - A lta s d o s e s d e e s p ir o n o la c t o n a r e d u z e m a
• N ív e is u rin á rio s d e s ó d io e p o tá s s io
s e c re ç ã o d is ta i d e H *
*, b a ix a n d o n ív e is d e p H s a n g u ín e o .
• D e fin iç ã o d o ín d ic e d e filtra ç â o g lo m e r u la r
TCP ■ Túbulo contorcido proximal; TCD ■ Túbulo contorcido distai; SHR ■ Síndrome
• F ra ç ã o d e e x c re ç ã o u rin á ria d e s ó d io e lítio
hepatorrenal.

--------------------------- T-------------------------
Quadro 59.6 Fase de pré-diureticoterapia (natriuréticos)
----------------------------------- ▼---------------------------------
• R e p o u s o n o le ito m o s tr a -s e d e s n e c e s s á rio
Quadro 59.9 Excreção anormal de água na cirrose — patogênese
• R e s triç ã o h íd ric a

N o r m o n a t r é m ic o s , 8 0 0 -1 .0 0 0 m í/ d ia
I. Níveis séricos elevados de vasopressina (HAD)
H ip o n a t rè m ic o s , 6 0 0 -8 0 0 m í/ d ia
• H ip e r s e c r e ç ã o n ã o o s m ó tic a
• D ie ta h ip o s s ó d ic a
• > R e d u z id o v o lu m e in tra v a s c u la r e fe tiv o (D e m e d o c ld in a )
1 0 -2 0 m E q / d ia (5 0 0 -6 0 0 m g / d ia )
II. Síntese < de prostaglandina E2 causada pelo uso de drogas anti-
• S e , a p ó s essa fase d e d iu re s e e s p o n t â n e a ( 4 - 5 d ia s ), h á p e rd a d e p e s o inflamatórias não hormonais
< 2 k g , e x ig e m -s e m a n ip u la ç ã o c o m n a triu ré tic o s e re fo rç o d a m e d id a
III. <Acesso do filtrado ao túbulo contorcido distai
d e re s triç ã o d e s ó d io
< ín d ic e d e filtra ç â o g lo m e r u la r ren a l

> R e a b s o rç ã o d e N a n o t ú b u l o c o n t o r c id o p ro x im a l

------------------------------------- T
Quadro 59.7 Fase de diureticoterapia (natriuréticos)

• In icia r c o m b lo q u e io d e t ú b u l o c o n t o r c id o d ista i

Espironolactona — 200 mg VO/dia


Esses pacientes costumam evoluir com anorexia, cefaleia,
letargia, náuseas e vômito, convulsões ocasionais, resultantes
• S e , a p ó s 3 d ia s, a p e r d a d e p e s o fo r m e n o r d o q u e 1 kg
do clareamento (clearance) de água livre abaixo de 6 mf/min.
Espironolactona, 200 m g VO/dia
Tal evolução guarda relação com o emprego excessivo de diu­
+ réticos, realização de paracenteses volumosas, sem expansão
Furosemida, 40 m g VO/dia volumétrica, e administração de análogos da vasopressina, ou
• S e , a p ó s 3 - 4 d ia s, a d iu re s e e s tiv e r b a ix a e o p e s o a u m e n t a r : com episódio de hemorragia digestiva alta, ou devido ao uso
OPÇÃO A de anti-inflamatórios não esteroides. Durante os últimos anos,
Espironolactona -» 30 0 -400 m g VO/dia definiu-se que, nessa situação, os cirróticos deverão ser tratados
+ através da restrição na ingesta hídrica, evitando-se as infusões
Furosem ida - > 80 m g VO/dia
de solução hipertônica de NaCl, sempre se interrompendo a
administração dos natriuréticos. Associadamente, aconselha-se
OPÇÃO B o uso dos aquaréticos, envolvendo os antagonistas do receptor
Espironolactona -> 40 0 -600 m g VO/dia V2 (Quadro 59.10), ou de agonistas K-opioides (Quadros 59.11
+ e 59.12). Nessa fase mais avançada da cirrose, acentuam-se as
Bum etanida -> 1-2 m g VO/dia anormalidades circulatórias (Quadro 59.13).
OPÇÃO c Nesses pacientes, passa a assumir importância o endotélio
Triantereno -» 100-300 m g VO/dia vascular, interface exclusiva, estrutura complexa que regula o
+ fluxo e as trocas entre sangue e tecidos. A regulação desse me­
Am ilorida -> 10-30 m g VO/dia
canismo obedece à presença de endotelina e prostaglandinas.
Mais recentemente, demonstrou-se que os cirróticos têm o fun-
Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica 679

----------------------------------- ▼----------------------------------- ------------------------------------- ▼------------------------------------


Q u a d ro 59 .1 0 T r a t a m e n t o d a h ip o n a t r e m ia d ilu c io n a l — a d m in is t r a ç ã o Q u a d ro 59.13 A n o r m a lid a d e s c irc u la tó ria s e s p lâ n c n ic a s , s is tê m ic a s e
d e a n t a g o n is t a s d a v a s o p re s s in a (a q u a r é tic o s ) e s p e c ífic a s d e le ito s v a s c u la re s n o c irró tic o c o m a s cite
(B a t a lle r & U r iz , 1 9 9 9 )
•Antagonistas do receptor V2 — derivado benzodiazepínico
(OPC-31260) Circulação esplâncnica
Aumenta o volume urinário e OSMy P re ss á o m a io r n o sis te m a v e n o s o p o r ta l
Maior potência que a furosemida V a s o d ila ta ç à o d e a rté ria s e s p lâ n c n ic a s
Aumento da OSMOLy e NAy F lu x o v e n o s o p o r t a l a u m e n t a d o

D oses > V o lu m e u r in á r io V id a m é d ia E le v a d a p re s s á o d e c a p ila re s in te stin a is


3 0 -2 0 0 m g 2 -4 vezes 1- 4 h D e s e n v o lv im e n t o d e c irc u la ç ã o c o la te ra l p o rta l
6 0 -2 0 0 m g > 4 vezes 4 -8 h
Circulação sistêmica
OSMu = Osmolaridade urinária; OSMOLU ■ Osmolaridade urinária; NAII = Sódio B a ix o v o lu m e s a n g u ín e o e fe tiv o

urinário. D é b i t o c a r d ía c o a u m e n t a d o

R es is tê n cia v a s c u la r s is tê m ic a to ta l r e d u z id a

H ip e r a t iv id a d e d e sis te m a s v a s o a tiv o s

H ip o t e n s á o a rte ria l
------------------------------------- ▼-------------------------------------
Q u a d ro 59.11 T ra ta m e n to da h ip o n a tre m ia d ilu c io n a l — a d m in is tra ç ã o Leitos vasculares específicos
V a s o c o n s trlç â o ren a l
d e a g o n is ta s K -o p io id e s (m o r f in a e d e riv a d o s ) •
R es is tê n cia c e re b ro v a s c u la r a u m e n t a d a

E fe ito s fa rm a co ló g ico s V a s o c o n s trlç â o b ra q u la l e fe m o ra l

• E s tim u la ç ã o d o s p -r e c e p t o r e s Fístu la s a rte rio v e n o s a s p u lm o n a r e s

A n a lg e s ia , c o n s t ip a ç ã o , e u fo ria , d e p re s s ã o re sp ira tó ria , d e p e n d ê n c ia fís ic a


• E s tim u la ç ã o d o s x -r e c e p t o r e s

A n a lg e s ia , a ç õ e s p s ic o t ró p ic a s , a c e n t u a d o s e fe ito s a q u a r é t ic o s
----------------------------------- ▼----------------------------------
Agonistas K-opioides Q u a d ro 5 9 .1 4 C rité rio s d ia g n ó s tic o s p a ra d e f in ir a s c ite re fra tá ria
• K e ta z o c in a , e t ilk e t a z o d n a , b r e m a z o d n a , R -8 4 7 6 0 , E -2 0 7 8 e U -6 2 .0 6 6 E (R u n y o n , 1 9 9 7 ; R u n y o n , 1 9 9 8 ; A r r o y o etal., 1 9 9 6 )
• > F lu x o u r in á r io ; < O S M O L 0; E x c re ç ã o d e e le tró lito s n á o >

Complicações induzidas por diuréticos


i _______________ i ______________ À.
E n c e fa lo p a tia h e p á tic a s e m o u t r o fa to r d e s e n c a d e a n te
E F E IT O S A Q U A R É T I C O S
In s u fic iê n c ia re n a l f u n c io n a l c o m a c e n t u a ç ã o d o n ív e l sé ric o d e
• > N ív e is s é ric o s d e V P ; > PA; > F G R
c re a tin in a e m m a is d e 1 0 0 % a c im a d o s v a lo re s iniciais
• C e fa le ia , r u b o r fa cial, to n tu r a s
H ip o n a t re m ia (N a s é ric o < 1 2 5 m m o l/ Q

H i p o (< 3 m m o l/ l ) o u h ip e r p o ta s s e m ia (> 6 m m o l/ Q a p e s a r d e a d o ç ã o
d e m e d id a s c o rre tiv a s

Conceituação obedece à ausência de resposta ao tratamento


cionamento desse sistema dependente também da presença de diurético em doses máximas e instituído por 7 dias:
catecolaminas ou de serotonina e, sobretudo, do óxido nítrico. E s p ir o n o la c t o n a (4 0 0 m g ) e f u ro s e m id a (1 6 0 m g )
Esta última molécula, juntamente com endotoxinas geradas a Ausência de resposta terapêutica expressa por:
partir de bactérias intestinais e citocinas, escapa ao metabolis­
P e rd a d e p e s o m e n o r d o q u e 2 0 0 g n o s ú lt im o s 4 d ia s d e t r a t a m e n t o
mo hepatocelular, participando da gênese da ascite refratária. in te n s iv o , e n a triu re s e < 50 m m o l/ d ia , a p e s a r d a d iu re tic o te ra p ia
Os critérios diagnósticos típicos dessa forma de apresentação
Recidiva precoce da ascite dentro de 2-4 semanas após paracentese
e a conduta terapêutica estão expostos, respectivamente, nos evacuadora
Quadros 59.14 e 59.15.

---------------------------------------------------------------▼---------------------------------------------------------------
Q u a d ro 59.12 T r a t a m e n t o d a h ip o n a t r e m ia d ilu c io n a l c o m a n t a g o n is t a s d e re c e p to re s A V P V 2 e a n t a g o n is t a s K -o p io id e s

• A n ta go n istas do receptor V2 — derivado b enzodiazepínico (OPC-31260)

Au to r (1°) Ano Com posto Dose N Resultados

In o u e 1 99 8 O P C -3 1 2 6 0 30 m g /V O T D iu re s e e d o c le a r a n c e d e H , 0 livre
(D o s e ú n ic a ) 8 1 O s m o la r id a d e u rin á ria
G uya 2002 V P A -9 8 5 2 5 -3 0 0 m g / V O T D iu re s e , c le a ra n c e d e H 20 livre, N A , s e m e fe ito s c o la te ra is
(D o s e ú n ic a ) 22

W ong 2003 V P A -9 8 5 5 0 -5 0 0 m g / d ia T D iu re s e , c le a r a n c e d e H ?0 livre. D e s id ra ta ç ã o , s e d e e in t e r r u p ç ã o d a


p o r 7 d ia s 44 a d m in is tr a ç ã o e m 2 7 %

G e rb e s 2003 V P A -9 8 5 1 0 0 -2 0 0 m g / d ia T N a , b a ix a o s m o la r id a d e u rin á ria e p e s o c o r p ó r e o . S e d e n a q u e le s


p o r 7 d ia s 60 u s a n d o 2 0 0 m g / d ia
680 Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica

---------------------------------------------- ▼----------------------------------------------
Q u a d ro 59.15 Conduta terapêutica temporária no paciente cirrótico com ascite refratária

1. O s p a c ie n te s d e v e m ser tra ta d o s p e la re a liz a ç ã o d e p a ra c e n te s e e v a c u a d o r a a c a d a 2 s e m a n a s , a sso c ia d a à in fu s ã o d e a lb u m in a a 2 0 % , v is a n d o a


im p e d ir o a p a r e c im e n t o d e h ip o v o le m ia c o m in s u fic iê n c ia ren a l.

2. A n a s to m o s e p e r it o n e o v e n o s a (v á lv u la d e L e V e e n ). P r o m o v e rá p id a r e d is tr ib u iç á o d o v o lu m e in tra v a s c u la r c o m m e lh o r p e r fu s â o ren a l e a c e n tu a ç ã o
d a n a triu re s e . In c o n v e n ie n t e s : in s ta la ç ã o d e d is tú rb io s d a c o a g u la ç á o (1 0 % ) , o u o b s t r u ç ã o d o sis te m a (2 0 % ) , n e c e s s ita n d o , e n tà o , d e r e in te rv e n ç â o .

3. D r o g a s v a s o a tiv a s . T e n ta tiv a s v is a n d o a m e lh o r a r a p e r fu s â o re n a l t ê m s id o feitas c o m a a d m in is tr a ç ã o d e te rlip re s s in a (0 ,5 -1 ,0 m g e n d o v e n o s o


a c a d a 4 h o ra s , a u m e n t a n d o p a ra 2 m g a c a d a 4 h o ra s , e m c a d a 2 a 3 d ia s, d e s d e q u e n á o o c o rra r e d u ç ã o d o n ív e l sé ric o d e c re a tin in a o u
n o r a d r e n a lin a (0 ,5 a 3 m g / h e m in fu s á o c o n t ín u a ), o u m i d o d r in e (7 ,5 m g v ia o ra l, 3 v e z e s / d ia , e le v a n d o p a ra 12,5 m g , 3 v e z e s a o d ia , c o m in je ç ã o
s u b c u t â n e a d e o c t r e o tíd io n a d o s e d e 1 0 0 m g , 3 v e z e s / d ia , a m p lia n d o p a ra 2 0 0 m g , t a m b é m 3 v e z e s /d ia , se n á o b a ix a r a c o n c e n t r a ç ã o d e
c re a tin in a ), m is o p r o s to l e o rn ip re s s in a (a n á lo g o d a v a s o p re s s in a , c o m a ç á o v a s o c o n s trito ra s o b r e v a s c u la tu ra e s p lâ n c n ic a ), c o m o u s e m in fu sá o ,
a ss o c ia d a d e a lb u m in a , 2 0 -4 0 g / d ia .

4. H e m o d iá lis e e d iá lise p e r ito n e a l. M o s t r a m -s e in e fica ze s, a m p lia n d o o risco d e in s ta la ç ã o d e h ip o te n s á o g ra v e , in fe c ç ã o e h e m o r r a g ia . P o d e ser ú til a


h e m o d iá lis e n o p e r ío d o p ré o u in t r a -o p e r a t ó r io d o tr a n s p la n te d e fíg a d o .

5. A n a s to m o s e p o r t o c a v a in t r a -h e p á t ic a (T IP S ), v is a n d o à r e d u ç ã o d a p re s s ã o in tra s s in u s o id a l. D e v e r á ser a p lic a d a a p e n a s n o s C h ild B, f u n c io n a n d o


c o m o p o n t e p a ra o tr a n s p la n te d e fíg a d o .

6. T r a n s p la n t e h e p á tic o , fo rm a d e t r a t a m e n t o d e fin itiv a d o s p a c ie n te s c o m a scite re fratária .

A ascite refratáriafoi definida como "aquela que não pode ser renal. Mostram, então, dificuldade em manipular sódio e água,
mobilizada, ou cuja recorrência precoce (após paracentese tera­ com formação inexorável de edema periférico e ascite, a qual,
pêutica) não pode ser satisfatoriamente prevenida por terapêutica progressivamente, torna-se tensa e refratária ao tratamento
apropriada”. A maioria dos doentes com ascite refratária apre­ clássico, envolvendo dieta hipossódica e diureticoterapia. Essa
senta acentuada retenção de sódio e grave incapacidade de excre­ ausência de resposta deve-se a: 1. hiperatividade do sistema ner­
tar água, esta podendo causar hiponatremia dilucional. O fluxo voso simpático; 2. redução progressiva do volume sanguíneo
renal e a filtração glomerular diminuem acentuadamente. A as­ circulante; 3. baixa pressão de enchimento do átrio direito, com
cite não é mobilizada nem com o correto emprego de diuréticos. menor produção de fator natriurético atrial (FNA); 4. vasocons-
Ela também pode ser intratável porque os pacientes desenvolvem trição de arteríolas renais, levando a baixos índices de filtração
sistematicamente complicações com o uso de diuréticos em do­ glomerular e de excreção de sódio urinário; 5. associação de hi­
ses corretas. Essas complicações são: encefalopatia; insuficiência potensão arterial, menor resistência vascular sistêmica e elevado
renal induzida por diuréticos; hiponatremia diurético-induzida; débito cardíaco; 6. hiporreatividade arterial a vasoconstritores
hipopotassemia ou hiperpotassemia resistentes às medidas cor­ endógenos, como norepinefrina, vasopressina, angiotensina II,
retoras. Convém atentar para a falsa ascite refratária, o médico endotelina-1, tromboxane A2; 7. produção aumentada de vaso-
devendo se certificar se o seu paciente faz correta restrição de dilatadores, como óxido nítrico, prostaglandinas ou glucagon,
sódio, se não está tomando anti-inflamatórios não hormonais ácidos biliares, endotoxinas e/ou urodilatina.
ou se já se instalou peritonite bacteriana espontânea. Não há nenhum tratamento específico para a hiponatremia
A síndrome hepatorrenal incide em 10% desses pacientes, re­ dilucional. Tem-se procurado avaliar a eficiência de agentes
lacionada com modificações dos sistemas vasoativos. Tipicamen­ aquaréticos (substâncias que inibem a secreção ou os efeitos
te, se instala resistência arterial renal acentuada, acompanhada
do hormônio antidiurético), mas ainda não se chegou a uma
de vasodilatação arterial da circulação esplâncnica. Definem-se
definição.
os tipos: 1. tipicamente pela rápida instalação da débacle, que se
expressa laboratorialmente por valor de creatinina sérica ultra­
passando a 2,5 mg/dê e clearance de creatinina em 24 h abaixo ■ Medidas especiais
de 20 m^/min, acompanhados de rápida e progressiva oligúria,
■ Paracentese de grande volum e associada à infusão de
retenção de sódio em TCP e TCD e hiponatremia dilucional,
modificações que se estabelecem em menos de 2 semanas; 2. tais
expansores plasmáticos
modificações instaladas no tipo 1 são observadas mais lentamen­ É realizada com o objetivo de promover homeostase volu-
te, com nível sérico de creatinina não ultrapassando 1,5 mg/df, métrica, melhor perfusâo renal, acentuada natriurese, redução
com índice de filtração glomerular além de 30 mf/min, presentes de produção de renina-angiotensina-aldosterona e melhor
naqueles com reserva hepatocelular mais preservada. resposta ao uso de diuréticos. Obtêm-se esses benefícios rea-
Essas tendências inexoráveis acompanham-se de fatores pre- lizando-se paracenteses de grandes volumes (4 a 20 f/sessão),
ditivos adversos, tais como: l. físicos (ausência de hepatomega- com adequada reexpansão do intravascular infundindo albumi­
lia, estado nutricional precário, hipotensão arterial, icterícia); na humana, Dextrana 70 ou Rheomacrodex nas doses de 10 g,
2. bioquímicos (hiperbilirrubinemia, hipoalbuminemia, hipo­ 8 g ou 150 mf, respectivamente, por litro de ascite drenada. Os
natremia, elevação de valores de ureia e creatinina, de ativida­ resultados parecem semelhantes. As duas últimas substâncias
des plasmáticas de renina, de aldosterona e de norepinefrina, utilizadas apresentam, no entanto, o inconveniente de uma vida
e baixo valor de sódio urinário). média plasmática mais curta, mas têm a vantagem de ser me­
nos onerosas. Entretanto, trabalhos recentes têm insistido em
que havería vantagem no emprego da albumina sobre os outros
■ OUTRAS MEDIDAS TERAPÊUTICAS expansores plasmáticos. Complicações ligadas às punções, tais
como, peritonite bacteriana secundária, hematoma parietal ou
Cirróticos, sobretudo em fase de insuficiência hepatocelu­ intra-abdominal e hemoperitônio, são raramente observadas.
lar grave, cursam com síndrome hipercinética e hipoperfusão Mais graves são os estrangulamentos herniários, hiponatremia,
Capítulo 59 / Ascite Hepatogênica 681

hipertensão arterial e insuficiência renal ou encefalopatia hepá- ------------------------------------- ▼-------------------------------------


tica. Estas últimas são observadas apenas quando são realizadas Q u a d ro 59 .1 6 Resultados do implante do TIPS no tratamento de
grandes drenagens, sem adequada reposição volumétrica. Es­ cirróticos com ascite refratária e síndrome hepatorrenal
ses aspectos, aliados à necessidade de sessões terapêuticas re­
petidas, às frequentes admissões hospitalares e à incapacidade F o ra m in c lu íd o s 3 5 8 p a c ie n te s e m 14 e s tu d o s c o n tr o la d o s
em modificar o pobre prognóstico desses cirróticos, limitam a E x tr e m o s d e id a d e s n o s e s tu d o s c ita d o s : 4 8 - 6 4 a n o s
aplicabilidade dessa opção, sabidamente temporária. C e rc a d e 5 3 % e ra m p a c ie n te s C h ild B, e 4 3 % , C h ild C

E m t o r n o d e 4 6 % t in h a m a p r e s e n t a d o p e lo m e n o s 1 s u r to d e
■ Anastomose portocava transjugular (TIPS) e n c e fa lo p a tia , e 4 2 % a p r e s e n t a v a m in s u fic iê n c ia re n a l (c re a tin in a sérlca
Visando a evitar os elevados índices de mortalidade que se > 1,5 m g / d -0

seguem à cirurgia de descompressão do sistema porta, têm-se O im p la n t e d o T IP S p r o p o r c io n o u :


manipulado pacientes através de uma atitude menos invasiva, R e d u ç ã o n o g r a d ie n te p o r t o c a v a e m 1 0 0 % (2 0 ,9 p a ra 10,9 m m H g )
ou seja, pelo implante do TIPS. O procedimento tem-se mos­ R e d u ç ã o n a p re s s ã o d a v e ia p o r t a e m 1 0 0 % (2 9 ,4 p a ra 2 1 ,8 m m H g )
trado eficaz no tratamento das varizes sangrantes de esôfago, D e s a p a r e c im e n t o p a rcia l o u to ta l e m 6 9 % (2 4 7 p a c ie n te s )
da ascite refratária e em pacientes apresentando síndrome he- A p e n a s 1 0 % (3 6 p a c ie n te s ) n ã o r e s p o n d e r a m s a tis fa to ria m e n te
patorrenal do tipo 2, ou seja, de lenta instalação.
T e m p o d e re s o lu ç ã o d a a scite d e 1 a 3 m e se s
Ocorre a reversão da hipertensão portal porque o método
D iu r é t ic o p o d e ser n e c e s s á rio p a ra tra ta r e d e m a , o u a lg u n s d o e n t e s q u e
propicia aumento tanto do índice de excreção do sódio urinário
r e s p o n d e r a m p io r
quanto da filtração glomerular, e reduz a atividade plasmática
E n c e fa lo p a tia h e p á tic a o c o r r e u e m 4 6 % , o u s e u a g r a v a m e n t o e m 2 8 %
de renina-angiotensina-aldosterona, com normalização das
T e m p o d e s e g u im e n t o v a r io u e n tre 7,6 e 1 5,5 m e se s
concentrações séricas de ureia e creatinina. Recompõe-se, dessa
D is fu n ç ã o d a p ró te s e : p re c o c e (8 % ), ta rd ia (2 7 % )
forma, o mecanismo de natriurese, promove-se a diminuição
M o r t a lid a d e : m e n o s d e 3 0 d ia s (1 2 % ) ; m a is d e 3 0 d ia s (4 0 % )
da pressão portal, descomprimem-se sinusoides, melhora-se o
balanço das forças de Starling, reduz-se a produção de linfa he- P r o b a b ilid a d e d e s o b r e v id a (> 1 a n o ): b aix a

pática e intestinal, e revertem-se distúrbios hormonais graves,


responsáveis pelo desequilíbrio hemodinâmico. A limitação
do procedimento é representada pelo fato de que cerca de 25
a 32% dos doentes evoluem com encefalopatia, motivada pela A implantação do dispositivo de Le Veen proporciona a
diversão maior do fluxo portal e aceleração da insuficiência instalação de uma expansão volumétrica sustentada, supressão
hepática. Na maioria das vezes, diferentemente do que ocorre da síntese exacerbada de renina, aldosterona, norepinefrina e
com o implante de válvula de Le Veen, não há mais necessi­ hormônio antidiurético. Dessa forma, restabelece-se a perfúsão
dade de usar diuréticos. Apesar desses aspectos, sabe-se que, e o funcionamento renal, com ampliação da diurese e melhor
nos pacientes Child C, a resposta é muito pior, ou ausente; ou controle da ascite.
seja, os doentes com grave redução da reserva parenquimatosa Deve ser evitado seu emprego em pacientes com história de
hepática apresentam resultados precários. Diferentes autores, ruptura de varizes de esôfago e não tratados adequadamente
no entanto, advertem que a inserção do TIPS acentua a circu­ pela esclerose endoscópica, naqueles com insuficiência cardía­
lação hiperdinâmica sistêmica, aumentando o débito cardíaco ca ou graves distúrbios de coagulação e em hepatopatas com
em consequência do maior volume efetivo circulatório e do grande atividade inflamatória histológica do fígado. Além des­
melhor retorno venoso. Expande-se, portanto, o intravascular, ses parâmetros, níveis séricos elevados de fibrinogênio, fosfata-
perfunde-se melhor a artéria renal e atenuam-se os efeitos va- se alcalina, ureia, gamaglutamiltransferase, bilirrubina e baixa
soconstritores. A sobrevida atuarial aos 6,12 e 24 meses atinge, atividade de protrombina constituem fatores importantes para
respectivamente, 75,75 e 63%. Seguramente, funciona como se determinar o prognóstico da sobrevida imediata desses pacien­
fosse uma “ponte” para a realização do transplante de fígado, tes: quando três ou mais destes se encontram alterados, deve-
pois evita a feitura de quaisquer modalidades de descompressão se contraindicar essa atitude terapêutica cirúrgica, sob risco de
cirúrgica, que costumam ser acompanhadas de elevada morbi- elevado índice de mortalidade pós-operatória.
dade e mortalidade pós-operatória. Além disso, evita a violação Estudos controlados, no entanto, não têm demonstrado be­
da cavidade abdominal, fato que notoriamente aumenta as difi­ nefícios da anastomose peritoniovenosa, quando comparada
culdades técnicas quando do implante do novo órgão. Ressalte- com a terapêutica clínica convencional ou com as paracente-
se, no entanto, que próteses mal implantadas podem tornar o ses volumosas, com expansão de volume plasmático. Ressalve-
transplante mais difícil, ou até impossibilitar sua realização. se, entretanto, que o número de readmissões foi considerado
Os resultados do implante do TIPS em pacientes com ascite significativamente mais baixo em pacientes com a válvula de
refratária podem ser apreciados no Quadro 59.16. Le Veen. O índice cumulativo de ascite recorrente situa-se em
torno de 22% aos 3 anos, dependente, sobretudo, da oclusão
■ Anastomose peritoniovenosa (válvula de Le Veen) do cateter venoso, complicação atenuável com a adição de ti­
A importância do implante da válvula de Le Veen em cir­ tânio na confecção da extremidade distai do cateter. A sobre­
róticos é inquestionável, mas o preciso momento de realizá-lo vida atinge 72% ao fim de 2 anos, desde que os pacientes não
é de difícil definição. Não deve ser tão precoce que exponha o apresentem sangramento por varizes, nem peritonite bacteriana
paciente a tratamento cirúrgico desnecessário, quando a ascite espontânea. Recomenda-se que doentes com essas característi­
responde à terapêutica convencional, nem tão tardio que colo­ cas, sobretudo antes dos 50 anos, sejam submetidos ao trans­
que em risco a vida do paciente. Encontra-se indicado, sobre­ plante de fígado.
tudo, no tratamento da ascite refratária e suas complicações, Atualmente, a aplicação da válvula tem sido reservada para:
como hidrotórax, hérnias umbilicais, incisionais ou inguinais e 1. doentes com ascite refratária; 2. pacientes que não são can­
síndrome hepatorrenal. Na ascite refratária, o uso desse método didatos ideais ao transplante de fígado, por exibirem múltiplas
é limitado por causa de frequentes complicações. cicatrizes abdominais cirúrgicas.
682 C a p ítu lo 5 9 / A scite H e p a to g ê n ic a

■ Transplante de fígado e com binado fígado-rim ------------------------------▼------------------------------


Cirróticos hemodinamicamente instáveis evoluem com asci­ Q u a d ro 59.18 Estágios funcionais de doença renal crônica
te, e a probabilidade de sobrevida de 1 a 5 anos após a primeira
apresentação atinge, respectivamente, 50 e 20%. Metade sobre­ índice de filtra çã o glo m eru lar
vive mais de 28 meses, quando se encontra normal a atividade Estágios renal (m í/m in ) Interpretações
de renina plasmática, ou a excreção urinária de sódio é superior 1 >90 L e s ã o re n a l c o m fu n ç ã o o rg â n ic a
a 10 mEq/dl. Outros sinais prognósticos negativos são pressão p re s e rv a d a (IF G n o r m a l)
arterial média inferior a 80 mmHg, concentração plasmática II 6 0 -9 0 L e v e r e d u ç ã o d o IFG
elevada de norepinefrina, parênquima hepático com volume III 3 0 -5 9 R e d u ç ã o m o d e r a d a d o IF G
reduzido, hipoalbuminemia, elevado gradiente hepatoportal e
IV 1 5 -2 9 G r a v e r e d u ç ã o d o IF G
hiperbilirrubinemia. Nesses, a infecção espontânea do líquido
V <15 In s u fic iê n c ia renal
ascítico representa a complicação mais grave detectada durante
a evolução natural da doença. Observada em 10 a 15% desses IFG ■ índice de filtração glomerular.
pacientes, leva à morte, em algumas séries, 36 a 90% dos aco­
metidos. Entre os que escapam do primeiro episódio, surtos
de recidiva dentro de 1 ano atingem 70%. Ocorre tal evolu­
ção porque existe reduzida atividade fagocítica do sistema re-
ticuloendotelial, baixas concentrações de proteína na ascite e envolvendo a administração de Simulecte e inibidores de cal-
menor atividade opsônica. Entre esses doentes, mostra-se maior cineurina. Atenção maior deve se voltar no pós-operatório ao
o índice de hemorragia digestiva alta por ruptura de varizes eso- controle rígido dos níveis pressóricos arteriais e das condições
fágicas e insuficiência renal funcionante. Todo esse processo se funcionais de ambos os órgãos (fígado e rim), sobretudo quan­
mostra reversível com o transplante de fígado, restaurando uma do diz respeito a pacientes em estágios 3 ou 4 da doença renal
melhor qualidade de vida e ampliando a sobrevida. crônica. Visando a evitar essa limitação, propõe-se técnica al­
Preocupante também se mostra a definição sobre exis­ ternativa envolvendo apenas o transplante de fígado, segui­
tência de lesões renais complicadoras da evolução da cirrose do posteriormente do renal, evitando-se a ação deletéria de
(Quadro 59.17). imunossupressores sobre o novo rim, a ser implantado poste­
Nesses casos, exige-se uma participação associativa, envol­ riormente. Preocupa nessa opção a carência de órgãos a serem
doados, mesmo valendo-se de doador vivo, calculando-se que
vendo hepatologista, nefrologista, radiologista e anatomopa-
tologista. Esse time estará envolvido em definir a gravidade da esse tempo de espera possa ultrapassar 5 anos.
insuficiência renal que apresentam os doentes, baseando-se no
índice de filtração glomerular (Quadro 59.18).
São, em geral, pacientes cujos rins, à ultrassonografia, são ■ LEITURA RECOMENDADA
hiperecogênicos e menores do que 9 cm de tamanho. Existin­
Angcli, P, Volpin, R, Piovan, D et al. Acutc eflfects of thc oral administration of
do dúvidas quanto a essa característica, é necessário proceder midodrimc an alpha-adrcncrgic agonist on renal hemodynamics and renal
à biopsia renal, e, na existência de distúrbios de coagulação e/ fúnction in cirrhotic patients ascite*. Hepatology, 1998; 28:937-43.
ou plaquetopenia, deve-se valer do acesso transjugular. Assim Arroyo Pérez, V. Cirrhosis and its complications: Ascites dilutional hypona-
estudados e comprovadas lesões renais definitivas, os pacientes tremia, and hcpatorenal syndrome. Em: Galvào Alves, J (cd.). Temas dc
Atualização em Gastrenterologia. Rio dc Janeiro, p. 3, 2005.
deverão ser submetidos ao transplante combinado fígado-rim. Arroyo, V. Fisiopatogcnia da ascite na cirrose. Em: Terra, C, Alves de Mattos, A
Eles deverão ser conduzidos em regime de imunossupressão, (ed.). Complicações da Cirrose. Ascite e Insuficiência Renal. Rio dc Janeiro:
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Síndrome Hepatorrenal e
Síndrome Hepatopulmonar
Heitor Rosa e Américo de Oliveira Silvério

periférica. Segundo essa teoria, a hipoperfusão renal resulta da


SÍNDROME HEPATORRENAL diminuição progressiva do volume sanguíneo efetivo, provoca­
do por uma progressiva ativação dos sistemas renina-angioten-
■ INTRODUÇÃO sina e nervoso simpático, mediados por barorreceptores. Em
fases avançadas, ocorre também a liberação não osmótica da
Aproximadamente 8% dos cirróticos com ascite são pro­ arginina-vasopressina pela neuro-hipófise que contribui para
pensos a desenvolver um tipo especial de insuficiência renal, retenção de água livre. Esse hormônio não participa diretamen­
denominada síndrome hepatorrenal (SHR). Essa síndrome não te do desenvolvimento da SHR, mas é fundamental na gênese
se acompanha de evidências clínicas, laboratoriais e histoló- da hiponatremia dilucional que prenuncia a ocorrência da SHR.
gicas comuns às outras formas de insuficiência renal em pa­ Assim, há vasoconstrição não somente na circulação renal, mas,
cientes não cirróticos. Apresenta prognóstico sombrio, sendo também, em outros leitos vasculares (membros superiores e
uma importante causa de óbito nos pacientes que aguardam o inferiores e circulação cerebral). A circulação esplâncnica es­
transplante hepático (TH). capa da ação dos agentes vasoconstritores, podendo persistir
A SHR é uma insuficiência renal funcional que ocorre em uma marcada vasodilatação, provavelmente pelo aumento na
pacientes em fase avançada de insuficiência hepática e hiper­ produção local de substâncias vasodilatadoras - como o óxi-
tensão portal. A síndrome é decorrente de uma vasoconstrição do nítrico.
arterial renal na ausência de uma nefropatia subjacente. Essa Nos eventos que surgem logo após a instalação da hiperten­
importante vasoconstrição arterial resulta em diminuição da são portal (HP), a perfusão renal mantém-se em níveis normais
taxa de filtração glomerular, enquanto, na circulação extrar- ou próximos ao normal, tanto pelo aumento na síntese quanto
renal, há um predomínio de vasodilatação arterial, resultando pela atividade de fatores vasodilatadores renais, por exemplo,
em diminuição da resistência vascular sistêmica e hipotensão a produção de prostaglandinas. Essas substâncias promovem
arterial. Embora a SHR ocorra predominantemente em pacien­ a vasodilatação das arteríolas aferentes, mantendo o ritmo de
tes com cirrose avançada, ela também pode desenvolver-se em filtração glomerular. Todavia, nas fases avançadas da HP, a
outras hepatopatias associadas a grave insuficiência hepática e perfusão renal pode não se manter, em decorrência de uma
hipertensão portal, como a hepatite alcoólica e a insuficiência extrema diminuição do volume sanguíneo efetivo, causando
hepática aguda ou fulminante. uma ativação máxima dos sistemas vasoconstritores e/ou dimi­
nuição da atividade dos fatores vasodilatadores renais e, assim,
podendo desenvolver a SHR. Essa vasoconstrição renal já pode
■ FISIOPATOGENIA estar presente semanas, ou mesmo meses, antes do surgimento
das manifestações clínicas, ou da elevação dos níveis séricos de
Uma acentuada vasoconstrição renal é o principal elemen­ ureia e creatinina.
to na fisiopatogenia da SHR, cujo mecanismo ainda não está Também é válido considerar a vasoconstrição renal na SHR
completamente esclarecido. Possivelmente, resulta de inúme­ como o resultado de uma relação direta entre o fígado e o rim,
ros fatores, que culminam na diminuição do volume sanguí­ e não necessariamente como uma relação patogênica com os
neo efetivo, que, por sua vez, é secundário à vasodilatação es- desequilíbrios hemodinâmicos sistêmicos. Essa inter-relação
plâncnica e vasoconstrição compensatória do leito vascular poderia ser efetivada por um reflexo hepatorrenal, causando
extraesplâncnico. vasoconstrição renal, ou pela diminuição na síntese ou na li­
Dentre as diversas teorias propostas para explicar a relação beração de um fator vasodilatador renal pelo fígado doente.
entre as alterações na circulação renal, a ativação de agentes Entretanto, não há comprovação desse suposto fator vasodila­
vasoconstritores e a presença de alterações hemodinâmicas sis­ tador, e a existência de um reflexo direto hepatorrenal é descrita
têmicas, a mais aceita é aquela referente à vasodilatação arterial somente em animais, mas não em humanos.

684
Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar 685

Em aproximadamente 50% dos pacientes, a SHR desenvolve-


■ ACHADOS CLÍNICOS E LABORATORIAIS se sem que se possa identificar qualquer fator desencadeante,
A incidência de SHR em cirróticos hospitalizados para o tra­ sendo implicada a própria evolução da doença-base. Os pacien­
tes que apresentam ascite de difícil controle e queda progressiva
tamento de ascite varia de 7 a 15%. As manifestações clínicas da
da concentração sérica de sódio são aqueles considerados de
síndrome são decorrentes da combinação de insuficiência renal
alto risco para desenvolverem a SHR. Entretanto, em outros,
e alterações hemodinâmicas. Os pacientes que desenvolvem a
há uma clara relação cronológica com algumas complicações
SHR, na sua maioria, apresentam disfunção hepática avançada,
clínicas, tais como as infecções bacterianas, uso de anti-infla-
sendo os achados periféricos da insuficiência hepática frequen­
matórios não esteroides ou intervenção terapêutica, como para-
tes, exceto nos casos de insuficiência hepática aguda e hepatite
centese sem reposição volumétrica. Das infecções bacterianas, a
alcoólica. A insuficiência renal pode ter um início rápido ou
peritonite bacteriana espontânea (PBE) é o fator desencadeante
insidioso, com acentuada retenção de sódio e água, resultando de SHR mais comum. Aproximadamente 33% dos pacientes
em ascite, edema e hiponatremia dilucional; e anormalidades com PBE apresentam diminuição da função renal na ausência
hemodinâmicas (Quadro 60.1). A presença dos sinais e sinto­ de choque e sem uso prévio de antibióticos nefrotóxicos. Em
mas clássicos da IR não é a regra, e os níveis de creatinina, ureia, cerca de 10% desses pacientes, a função renal não se norma­
hiperpotassemia, edema pulmonar e acidose metabólica não são liza após a resolução da infecção, e a metade destes apresenta
tão marcantes quanto na IR de outras etiologias. critérios diagnósticos do tipo I da SHR. Nesses pacientes, a
São descritos dois diferentes tipos de SHR, de acordo com administração de albumina na dose 1,5 g/kg no momento do
a intensidade e a forma de início da insuficiência renal (Qua­ diagnóstico e 1 g/kg após 48 h mostrou-se eficaz em reduzir a
dro 60.2). piora hemodinâmica e evolução para SHR. No manejo da as­
Como a SHR é uma forma de insuficiência renal funcional, cite tensa, recorre-se à realização de paracentese total; nessas
as características de urina são as mesmas observadas nos pa­ circunstâncias, a administração de albumina na dose de 8 g por
cientes com azotemia pré-renal, ou seja, pequeno volume, baixa litro de ascite removida mostrou-se eficaz em reduzir a evolução
concentração urinária de sódio e um aumento da osmolalidade para SHR. Estudos controlados demonstram a superioridade da
urinária e da taxa de osmolalidade urinoplasmática. Em alguns reposição com albumina em relação a outros expansores.
pacientes, essas alterações urinárias podem não estar presentes, A hemorragia digestiva pode precipitar quadros de falência
sendo as características semelhantes às de pacientes com ne- renal após choque hipovolêmico, e, na maioria desses pacientes,
crose tubular aguda. Por isso, essas alterações são consideradas a causa primária é a necrose tubular aguda, não sendo conside­
como critérios menores no diagnóstico. rada como SHR. Por outro lado, a hemorragia pode complicar-
se com PBE, fator precipitante de SHR.
Como citado anteriormente, a hepatite alcoólica pode evo­
luir com SHR; em casos selecionados, a administração de pen-
------------------------------------- ▼----------------------------------- toxifilina na dose de 400 mg TID por 28 dias pode reduzir a
Q u a d ro 60.1 Alterações hemodinâmicas encontradas em incidência dessa complicação.
pacientes com síndrome hepatorrenal

Fatores au m en tado s Fatores dim inuídos ■ DIAGNÓSTICO


D é b it o c a rd ía c o P ressão a rte ria l
O diagnóstico da SHR é de exclusão, não havendo qual­
V o lu m e s a n g u ín e o R esistên cia v a s c u la r sistê m ica
quer teste comprobatório específico. Para o diagnóstico, deve-
S is te m a s v a s o c o n s trito re s R esistên cia v a s c u la r e s p lâ n c n ic a
se demonstrar a diminuição do ritmo de filtração glomerular.
P ressão p o r ta l Tendo como ponto de partida a elevação da creatinina, pro­
S h u n t p o rto s s is tè m ic o cura-se descartar como causa: hipovolemia (diurético, vômito,
R esistên cia v a s c u la r re n a l diarréia e hemorragia); presença de infecção em atividade em
R esistên cia d a s a rté ria s b ra n q u ia is e qualquer local, lembrando a grande predisposição à infecção
fe m o ra is desses pacientes; uso atual ou recente de drogas nefrotóxicas;
R esistên cia v a s c u la r c e re b ra l doença renal parenquimatosa, necrose tubular aguda ou fator
pós-renal (uropatia obstrutiva). A demonstração de creatini­
na inferior a 1,5 mg/dí não significa a ausência de disfunção
renal (Quadro 60.3).
------------------------------------- ▼-----------------------------------
Q u a d ro 60.2 Classificação clínica da síndrome hepatorrenal
■ TRATAMENTO
S í n d r o m e h e p a t o r r e n a l t ip o I
A integridade hepática restaura a doença renal funcional;
1. D u p lic a ç ã o d o s v a lo re s inicia is d a c re a tin in a sé rica a n ív e is m a io re s
q u e 2 ,5 m g / d l ; o u
assim, o transplante hepático (TxH) é o tratamento ideal para
pacientes selecionados. Não obstante, a realização do trans­
2. R e d u ç ã o d e 5 0 % d o s v a lo re s inicia is d e d e p u r a ç ã o d e c re a tin in a d e
2 4 h a n ív e is m e n o r e s q u e 2 0 m / / m in , e m m e n o s d e 2 s e m a n a s .
plante nem sempre é possível em decorrência da pequena ex­
pectativa de vida dos pacientes com SHR.
S í n d r o m e h e p a t o r r e n a l t ip o II
O TxH no paciente com SHR evolui com maior morbidade
1. A in s u fic iê n c ia ren a l n ã o a p re s e n ta u m c u r s o r a p id a m e n t e
e mortalidade precoces que os indivíduos sem SHR pré-trans-
p ro g re s s iv o . O s v a lo re s d e c re a tin in a sé rica p e r m a n e c e m e n t r e 1,5 e
2 ,5 m g / d í; o u
plante. Cerca de 33% dos pacientes necessitarão de hemodiá-
2. R e d u ç ã o d a d e p u r a ç ã o d a c re a tin in a d e 2 4 h a b a ix o d e 4 0 m £ / m in
lise, em comparação com apenas 5% dos pacientes transplan­
tados sem SHR; mesmo assim, a sobrevida após 3 anos é em
686 Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar

------------------------------------- ▼------------------------------------- --------------------------- T--------------------------


Q u a d ro 60.3 C rité rio s p ro p o s to s p e lo InternationalAscites Club Q u a d ro 60 .4 R e c o m e n d a ç õ e s pa ra tra ta m e n to
pa ra o d ia g n ó s tic o d a s ín d ro m e h e p a to rre n a l fa rm a c o ló g ic o n a S H R tip o I

Critérios maiores • D u r a ç ã o d e n o m í n i m o 5 d ia s e n o m á x im o d e 14 dia s.

1. B aixa ta x a d e filtra ç ã o g lo m e r u la r , in d ic a d a p o r u m a c re a tin in a sérica • O b je t iv o : r e d u ç ã o d a c re a tin in a sérica a b a ix o d e 1,5 m g / d * .


> 1,5 m g / d / o u p e la d e p u r a ç ã o d e c re a tin in a < 4 0 m í / m i n .
• F á rm a c o s e d o s e s r e c o m e n d a d o s :
2. A u s ê n c ia d e c h o q u e , in fe c ç ã o b a c te ria n a e m c u rs o , d e s id r a ta ç ã o e
T e rlip re s sin a : 0 ,5 -1 m g , EV, a c a d a 4 h ; p o d e -s e a u m e n t a r a d o s e p a ra
t r a t a m e n t o a tu a l c o m d r o g a s n e fro tó x ic a s .
2 m g d e 4/4 h a p ó s 2 a 3 d ia s se n ã o h o u v e r q u e d a d o s v a lo re s da
3. A u s ê n c ia d e m e lh o r a d u r a d o u r a d a fu n ç ã o re n a l (d im in u iç ã o na c re a tin in a .
c re a tin in a sé rica p a ra 1,5 m g / d * o u m e n o s , o u a u m e n t o n a d e p u r a ç ã o
M id o d r in a : 7 ,5 m g , V O , d e 8/8 h, a ss o c ia d a a o o c t r e o tíd io 1 0 0 m g , S C ,
d a c re a tin in a p a ra 4 0 m í / m i n o u m a is ) a p ó s a re tira d a d o s d iu r é tic o s e
d e 8 /8 h ; p o d e -s e a u m e n t a r a d o s e p a ra 12,5 m g d e 8 /8 h e 2 0 0 m g d e
a e x p a n s ã o d o v o lu m e p la s m á tic o c o m 1,5 í d e e x p a n s o r p la s m á tic o .
8/8 h d a m id o d r in a e d o o c t r e o tíd io . r e s p e c t iv a m e n t e , a p ó s 2 a 3 d ia s,
4. P ro te in ú ria , 5 0 0 m g / d l. se n ã o h o u v e r re s p o sta .

5. A u s ê n c ia d e e v id ê n c ia s u ltra s s o n o g rá fic a s d e u ro p a tia o b s t r u t iv a o u N o r a d r e n a lin a e m in fu s ã o v e n o s a c o n t ín u a n a d o s e d e 0 ,5 -3 m g / h .


d e d o e n ç a p a r e n q u im a to s a re n a l.
• A lb u m in a h u m a n a , EV , na d o s e d e 2 0 -4 0 g / d ia (a s s o c ia d a a t o d o s os
Critérios menores ou complementares* fá rm a c o s ).

1. V o lu m e u rin á rio , 5 0 0 m / / d ia .

2. S ó d io u rin á rio , 1 0 m E q / ( .

3. O s m o la r id a d e u rin á ria m a io r q u e o s m o la r id a d e p la s m á tic a .

4. U r in a a p r e s e n t a n d o 5 0 h e m á d a s p o r c a m p o d e g r a n d e a u m e n t o . A recorrência da SHR deve ser tratada da mesma forma, sen­


5. C o n c e n t r a ç ã o d e s ó d io sé rico, 1 3 0 m E q /* . do as taxas de sucesso semelhantes às do primeiro tratamento
(Quadro 60.4).
■ Esses critérios nào sào necessários, mas estào habitualmente presentes.
As informações sobre o uso do shunt portossistêmico intra-
hepático transjugular (TIPS) para o tratamento de pacientes
com SHR são bastante limitadas. Algumas publicações suge­
rem que o TIPS melhora a perfusão renal e a taxa de filtração
torno de 60%. Os pacientes listados, ou candidatos a TxH, glomerular, além de reduzir a atividade dos sistemas vasocons-
devem ter, se possível, a SHR revertida por medidas farmaco- tritores. Em pacientes com SHR tipo II, a melhora na perfusão
lógicas antes do TxH. Estudos demonstram que pacientes nos renal está associada a um aumento na excreção renal de sódio
quais a SHR foi revertida previamente apresentam os mes­ e melhora na resposta renal ao uso de diuréticos. Em pacientes
mos resultados iniciais dos pacientes que nunca tiveram essa com SHR tipo I, o uso do TIPS está associado a um moderado
complicação. A sobrevida em 3 anos, considerando os casos aumento do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glo­
de SHR e os pacientes transplantados sem SHR, é de, respec­ merular e à redução dos níveis séricos de creatinina em alguns
(mas não em todos) pacientes. Ainda é incerto se a melhora na
tivamente, 70 e 80%.
função renal está associada a um aumento na sobrevida. Além
É fundamental melhorar a função renal e prolongar a sobre­
dessas dúvidas, acresce que o TIPS está relacionado com uma
vida até que o paciente faça o transplante. Muitos tratamentos
grande frequência de efeitos colaterais, sendo o principal a en-
farmacológicos já foram utilizados na SHR. Alguns medica­
cefalopatia hepática.
mentos têm demonstrado algum sucesso nos pacientes com
As derivações peritônio-venosas, em pacientes com SHR
SHR tipo I. O uso de drogas isoladas, como a dopamina e as
tipo I, parecem prevenir a progressão da insuficiência renal,
prostaglandinas, tem apresentado pouco ou nenhum efeito
mas não prolongam a sobrevida quando comparadas com as
sobre a função renal. Recentemente, o uso de alguns fármacos
medidas de suporte. No momento, não há indicação desse pro­
com atividade vasopressora mostrou-se eficaz na reversão da
cedimento na prática clínica.
disfunção hemodinâmica e, consequentemente, na melhora Em alguns centros, a hemodiáiise é utilizada para o controle
da função renal. O mais estudado e utilizado é a terlipressina, da azotemia e manutenção do equilíbrio hidreletrolítico nos pa­
um análogo da vasopressina, que apresenta taxa de sucesso em cientes com SHR, enquanto aguardam o TxH, mas essa indica­
torno de 75%. Outros fármacos utilizados são a midodrina, ção não é rotineira. Muitos pacientes também necessitaram de
um agonista alfa-adrenérgico, associado ao octreotídio (anta­ diálise após o TxH por um período de tempo variável. Estudos
gonista do glucagon) e à norepinefrina. Todos esses fármacos não controlados sugerem que a diálise não é muito eficaz no
devem ser administrados associados à albumina (Quadro 60.4). tratamento da SHR, pois é alta a incidência de paraefeitos gra­
O impacto do tratamento farmacológico na história natural ves, incluindo hipotensão arterial, coagulopatia e sangramento
da SHR ainda deve ser mais bem avaliado, através de estudos digestivo. Além disso, o prognóstico dos pacientes submetidos
prospectivos; todavia, a reversão observada na SHR está as­ à diálise sem TxH é desalentador.
sociada à melhora da sobrevida. Essa terapia é oferecida por, Cabe ressaltar que os pacientes com SHR devem ser encami­
no mínimo, 5 dias até, no máximo, 14 dias, com objetivo de nhados para o TxH e que, principalmente pela escassez de doa­
reduzir a creatinina para valores inferiores a 1,5 m g /d l Devi­ dores, tanto o tratamento farmacológico como o TIPS devem
do a efeitos colaterais importantes, e não infrequentes, essas ser empregados como uma “ponte” para o transplante.
drogas não são indicadas na SHR tipo II. Nesses pacientes, a
piora da função renal de modo rápido pode caracterizar-se
como SHR tipo I, sendo indicada a terapia farmacológica. Os ■ PROGNÓSTICO
efeitos colaterais mais comuns são eventos isquêmicos, como
angina, infarto do miocárdio, dor abdominal e isquemias pe­ O prognóstico da SHR é reservado. Os pacientes com diag­
riféricas, por isso deve ser evitado em pacientes vasculopatas. nóstico de SHR tipo I apresentam sobrevida média de 2 se­
Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenale Síndrome Hepatopulmonar 687

manas se não são tratados; os pacientes com SHR tipo II so­ estão localizados nas superfícies pleurais e assemelham-se a
brevivem por alguns meses sem terapêutica dirigida. No tipo “aranhas vasculares”. Funcionam como um shunt, desviando do
II, a função renal está relativamente conservada, e a principal alvéolo o sangue desoxigenado, podendo justificar a hipoxemia
consequência clínica é a ascite refratária. No tipo I, os doentes e muitos dos fenômenos fisiológicos observados na SHP.
geralmente apresentam sinais de insuficiência hepática avança­ A fisiopatogenia da vasodilatação intrapulmonar permanece
da. A piora progressiva de uma ascite e a hiponatremia anun­ incerta; vários mecanismos têm sido postulados para explicá-
ciam a evolução para SHR. A hiponatremia não deve ser tratada la, incluindo um desequilíbrio entre as substâncias vasodila-
de forma rotineira, repondo-se soluções salinas hipertônicas, tadoras e vasoconstritoras normalmente presentes na circu­
pois, além de serem ineficientes, aumentam a retenção de só­ lação, resultando em um predomínio das vasodilatadoras ou
dio e água, podendo precipitar o óbito em edema pulmonar. A em aumento na sensibilidade ao nível do endotélio pulmonar
combinação de hiponatremia, uremia e hipotensão é prenuncio a um fator vasodilatador produzido ou não metabolizado pelo
de desenlace fatal. fígado doente, ou em uma hiporresponsividade às substâncias
vasoconstritoras.
Alguns estudos têm demonstrado que o leito vascular de
SÍNDROME HEPATOPULMONAR animais ou de pacientes com hipertensão portal é hiporres-
ponsivo a substâncias vasoconstritoras exógenas, incluindo
norepinefrina e angiotensina II. Essa hiporresponsividade pa­
■ INTRODUÇÃO rece ser decorrente de uma alteração na resposta pós-receptor,
Os pacientes com cirrose podem apresentar uma grande provavelmente por uma diminuição na atividade dos mensa­
variedade de doenças pulmonares, tais como bronquite crôni­ geiros celulares. É descrito aumento no nível de AMP-cíclico
ca, derrame pleural e complicações ventilatórias secundárias à e GMP-cíclico e diminuição no cálcio iônico intracelular em
ascite tensa. Certos tipos de cirrose podem estar associados a animais com hipertensão portal. Essas alterações podem justi­
doenças específicas do pulmão, como é o caso da cirrose biliar ficar a diminuição do tônus vascular e a atenuação da resposta
primária e alveolite fibrosante, ou a deficiência de alfa-l-anti- vasoconstritora pulmonar à hipoxia.
tripsina, e ao enfisema pulmonar. Recentes achados fortalecem a teoria de que o óxido nítrico
A síndrome hepatopulmonar (SHP) pode ser caracterizada (NO) (anteriormente chamado de fator relaxante derivado do
pela tríade clínica que inclui doença hepática. anormalidades endotélio) seja o principal agente mediador responsável pela
nas trocas gasosas (aumento no gradiente alvéolo-arterial de vasodilatação intrapulmonar observada na SHP. O NO é um
oxigênio, com ou sem hipoxemia) e a presença de dilatações potente vasodilatador pulmonar, sintetizado via um processo
vasculares pulmonares (Quadro 60.5). Outras anormalidades oxidativo que envolve a conversão da L-arginina em NO e citru-
pulmonares (p. ex., derrame pleural, doença pulmonar obstru- lina, pela ação catalítica de uma família de enzimas, as sintetases
tiva crônica) podem coexistir com a SHP, dificultando o seu do NO (NO-S). Estudos com modelos animais demonstram
diagnóstico (Quadro 60.5). que a atividade das NO-S pode ser induzida por endotoxinas
bacterianas e citocinas. A sua síntese pelo endotélio vascular é
responsável pelo tônus vasodilatador, sendo importante para
a regulação da pressão sanguínea.
■ FISIOPATOGENIA Postula-se que a endotoxemia observada nos cirróticos in­
O diâmetro normal dos capilares pulmonares é de aproxima­ duziría, diretamente, a atividade das NO-S ou, indiretamente,
damente 8 a 15 pm. Os pacientes com SHP podem apresentar através da liberação de citocinas, com consequente aumento
capilares com até 500 fim de diâmetro, localizados preferen­ da síntese de NO, e que este seria o mediador responsável pelo
cialmente na periferia e nas bases pulmonares. Essas dilatações estado hiperdinâmico e pela vasodilatação pulmonar observa­
permitem desequilíbrio na relação entre a ventilação/perfusão dos nesses pacientes. Se essa teoria é correta, a inibição da sín­
pulmonar, contribuindo, dessa forma, para a hipoxemia. tese de NO poderia restaurar a capacidade de vasoconstrição
Outras alterações vasculares que foram observadas nos cir- pulmonar em resposta à hipoxia. Certamente, o NO não pode
róticos são as comunicações vasculares diretas entre a artéria explicar todos os achados da SHP nos pacientes com comuni­
pulmonar e as veias pulmonares. Esses canais normalmente cações arteriovenosas anatômicas. Outros fatores angiogêni-
cos podem ser importantes no desenvolvimento das dilatações
vasculares.

------------------------------------- ▼----------------------------------
Q u a d ro 60.5 Critérios diagnósticos da síndrome hepatopulmonar ■ ACHADOS CLÍNICOS E LABORATORIAIS
Doença hepática A dispnéia, que é o sintoma pulmonar mais comum, pode
- C irro s e ser agravada por exercício. Alguns pacientes podem apresentar
- H ip e r te n s ã o p o r t a l n ã o c ir r ó t ic a
platipneia, ou seja, dispnéia quando assumem a posição supina,
- H e p a t it e a g u d a fu lm in a n t e
que é aliviada com o decúbito dorsal, e/ou ortodeoxia, carac­
- R e je iç ã o d e tra n s p la n te
terizada pela dessaturação da oxigenação arterial (hipoxemia
Hipoxemia
- P aO , < 70 m m H g
arterial) maior que 3 mmHg, quando o paciente assume a po­
- A u m e n t o d o g ra d ie n te a lv é o lo -a r t e r ia l d e o x ig ê n io (> 2 0 m m H g ) sição ereta. A presença desses sintomas reflete a gravidade da
Dilatação vascular intrapulmonar dilatação vascular pulmonar, a qual predominaria nos terços
- D e m o n s tr a d a p e la e c o c a rd io g ra fia c o m c o n tra s te , d n t ilo g r a f ia inferiores de ambos os pulmões.
p u lm o n a r o u a rte rio g ra fia p u lm o n a r A ortodeoxia é um achado clínico característico, mas não é
PaO, = pressão parcial de oxigênio arterial. patognomônico da síndrome. Acomete até 88% dos pacientes
com SHP, tanto quando eles se encontram respirando ar am­
688 Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenale Síndrome Hepatopulmonar

biente, quanto respirando 0 2 a 100%. Cinco de sete (71,4%)


pacientes com ortodeoxia, acompanhados por 5 anos pela
■ DIAGNÓSTICO
Mayo Clitiic, apresentaram piora progressiva, e, destes, qua­ A apresentação clínica é geralmente pobre, mas a SHP deve
tro faleceram, evidenciando a necessidade de intervenção nos ser considerada em cirróticos com dispnéia progressiva, ciano­
estágios iniciais em doentes que demonstram um declínio na se, hipocratismo digital, platipneia e ortodeoxia. É importante
oxigenação. lembrar que as manifestações pulmonares podem preceder o
A hipoxemia é um achado clínico relativamente comum nos diagnóstico da doença hepática e que a ortodeoxia e a platip­
pacientes com doença hepática avançada, acometendo cerca da neia não são achados clínicos exclusivos da SHP.
metade dos cirróticos submetidos ao TxH. Entretanto, a inci­ As alterações nos gases arteriais são indicadores utilizados
dência de hipoxemia (Paü2< 70 mmHg) associada a dilatações para auxiliar o diagnóstico da síndrome. As gasometrias arte­
vasculares pulmonares é relativamente incomum, variando de riais obtidas com o paciente em repouso podem evidenciar uma
5 a 24%. A presença de hipoxemia grave (P a02< 50 mmHg), P a0 2, < 70 mmHg, ou saturação de hemoglobina < 92%.
em um paciente com hepatopatia, sugere fortemente o diag­ A administração de oxigênio em uma concentração de 100%,
nóstico de SHP. com o uso de grampos nasais e adaptador bucal, fornece impor­
Em verdade, a hipoxemia nesses pacientes é multifatorial, tante informação e pode ou não ser realizada com o paciente
sendo causada não só pelas dilatações vasculares intrapulmo- nas duas posições. O Quadro 60.6 resume as respostas da P a0 2
nares, mas também por alterações na difusão alvéolo-capilar à administração de oxigênio a 100% e seus significados.
e por desequilíbrio na relação ventilação/perfusão alveolar A determinação do gradiente alvéolo-arterial permite, de
(VA/Q). uma forma mais acurada, determinar anormalidades na oxi­
A hipoxemia ainda pode ser agravada pela circulação hiper- genação tecidual nos pacientes com SHP, visto que a simples
dinâmica observada nas doenças hepáticas avançadas, ou pelo determinação da PaO, pode subestimar o verdadeiro grau de
exercício, pois, com o aumento do débito cardíaco, haverá um déficit de oxigenação. Isso porque, comumente, os cirróticos
menor tempo disponível para o O, alcançar as hemácias no apresentam-se em estados hiperdinâmicos, nos quais a hiper-
centro do capilar pulmonar. ventilação e a taquicardia mascaram uma verdadeira hipoxe­
Não há evidência de correlação entre a SHP e medidas mia, que pode, à custa desse estado hiperdinâmico, estar dentro
bioquímicas de função hepática (tempo de protrombina, al- dos valores bioquímicos de referência.
bumina, bilirrubina, enzimas hepáticas), nem, tampouco, com As medidas da Capacidade Vital Forçada e do Volume Ex-
a presença de ascite ou sangramento gastrintestinal. Entretanto, piratório Forçado, no primeiro segundo, são essencialmente
parece haver uma associação direta entre a hipoxemia e o grau normais, ou seja, não existem sinais de obstrução de vias res­
das varizes esofágicas. piratórias ou de restrição (naturalmente, sempre considerando
pacientes sem outras doenças cardíacas ou pulmonares asso­
Dentre os achados de exame físico, destacam-se as presenças
ciadas). A medida do Volume Residual também não demonstra
de hipocratismo digital, aranhas vasculares e cianose; todavia,
alteração significativa nessa síndrome.
não são achados constantes. No exame físico do tórax, nenhuma
A medida da difusão de gases, em especial do monóxido de
particularidade é observada em relação à síndrome.
carbono, pode estar reduzida, mesmo após correção dos valo­
A presença de aranhas vasculares cutâneas é um achado res obtidos de acordo com a quantidade de hemoglobina. O
frequente e tem forte correlação com a síndrome. Essas ara­
emprego da técnica de EMGI permite avaliar o papel dos me­
nhas têm sido consideradas como marcadores de envolvimen­
canismos básicos que podem determinar hipoxemia arterial
to extra-hepático em paciente com cirrose hepática. Embora
na cirrose hepática.
as aranhas vasculares cutâneas possam ser encontradas em O radiograma simples de tórax é normal. A tomografia com­
pacientes não portadores da SHP, há uma correlação entre a putadorizada de tórax pode evidenciar a presença de espessa-
sua presença e a existência de comunicações vasculares intra- mento pleural e de dilatações vasculares pulmonares. Entre­
pulmonares. tanto, esses métodos não acrescem maior esclarecimento na
Alguns autores admitem que a presença de hipertensão por­ identificação dessa síndrome.
tal associada ao hipocratismo digital e às aranhas vasculares Atualmente, a presença das vasodilatações pode ser con­
cutâneas sugere SHP. firmada pela ecocardiografia com contraste (ECC), cintigrafia
com macroagregados de albumina radiomarcados, ou pela ar-
teriografia pulmonar.
■ CLASSIFICAÇÃO
Krowka e Cortese propuseram uma classificação para a SHP,
baseada nos níveis de oxigenação arterial e nos achados angio- -------------------------- ▼--------------------------
gráficos: Q u a d ro 60 .6 Respostas da Pa02 à administração de
Tipo I - pacientes com dilatações pré-capilares difusas que oxigênio a 100% e seus significados
apresentam uma resposta quase normal à administração de
Resposta (m m H g ) S ign ificad o
oxigênio a 100%. Nesse tipo, podem ser percebidas finas rami­
ficações vasculares, lembrando as aranhas vasculares cutâneas. <100 P re se n ça d e u m v e r d a d e ir o SIP o u S IC
Nos casos mais avançados, as dilatações podem assumir um 1 0 0 -3 0 0 C o n s id e r a r a p re s e n ç a d e SIP
aspecto difuso, semelhante a esponja ou manchas, em ambos 3 0 0 -5 0 0 N á o e x c lu i a p re s e n ç a d e SIP
os campos pulmonares, principalmente nas bases; >500 E x c lu i a p re s e n ç a d e SIP
Tipo II - pacientes com pequenas e localizadas vasodilata-
PaO, - pressão parcial de oxigênio arterial; SIP = shunt intrapulmonar; SIC = shunt
ções - malformações arteriovenosas - que apresentam pobre intracardíaco.
resposta ao oxigênio a 100%. Esse tipo é pouco comum.
Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar 689

Figura 60.1 Ecocardiograma bidimensional com contraste (EGBC) de um paciente com dilatação vascular intrapulmonar. A, Câmaras cardía­
cas normais. B, Presença de microbolhas no átrio e ventrículo direito. C , Opacificaçáo tardia, pelas microbolhas, do átrio e do ventrículo es­
querdo.

A ECC é considerada como o método não invasivo de esco­ a seis ciclos cardíacos após o seu aparecimento nas câmaras
lha para a detecção das dilatações vasculares intrapulmonares. cardíacas direitas (Figura 60.1). O seu aparecimento antes do
Permite excluir a presença de comunicações intracardíacas, terceiro ciclo sugere a presença de comunicação intracardíaca.
quantificar o grau de opacificação do ventrículo esquerdo e, por A prevalência de ECC positiva (com dilatação vascular intra­
intermédio da ecocardiografia transesofágica, pode localizar o pulmonar) em hepatopatas crônicos é de 5 a 47%.
maior local de dilatações vasculares (lobo superior ou inferior, A cintigrafia pulmonar com macroagregados de albumina
direito ou esquerdo). marcada com 99mTc é outro método utilizado para a detecção
Esse método utiliza indocianina verde, dextrose a 5% ou da vasodilatação intrapulmonar, sendo mais específico que a
solução salina, as quais, quando agitadas, formam microbo­ ECC. A maioria dos macroagregados de albumina apresenta
lhas, que são maiores que o leito capilar pulm onar normal diâmetro superior a 20 |im, sendo, portanto, maior que o diâ­
(8 a 15 p.m). Logo após a injeção dessas substâncias na veia metro do leito capilar pulmonar normal. Em condições nor­
antecubital, pode ser detectada a presença das microbolhas, mais, o pulmão capta a maioria dos radioisótopos, permitindo
que são ecogênicas, nas câmaras cardíacas direitas. Em condi­ a passagem de apenas 3 a 6% dos macroagregados. Na presença
ções normais, essas microbolhas ficam retidas no leito capilar de comunicações vasculares intrapulmonares ou intracardía­
pulmonar. Todavia, em pacientes com dilatações vasculares cas, os radioisótopos não são totalmente captados na circula­
intrapulmonares ou anastomoses broncopulmonares, as mi­ ção pulmonar, podendo ser detectados no cérebro, nos rins e
crobolhas podem ser identificadas no átrio esquerdo em três no fígado (Figura 60.2). O método permite quantificar o grau
de dilatação vascular, pela determinação da porcentagem de
radioisótopos que escaparam da circulação pulmonar, e é par­
ticularmente importante para avaliar a contribuição da SHP na
hipoxemia em cirróticos com pneumopatia. Entretanto, esse
método é incapaz de distinguir as comunicações vasculares
intrapulmonares das intracardíacas, além de possuir baixa sen­
sibilidade quando comparado com a ECC.
A arteriografia pulmonar é o mais invasivo dos três méto­
dos e, por essa razão, o menos utilizado (Figura 60.2). Não é
necessária para o diagnóstico, porém pode ser útil na escolha
do tipo de tratamento.

■ TRATAMENTO
Nas fases iniciais, a hipoxemia, em pacientes com a SHP,
geralmente responde bem à suplementação de oxigênio, em
fluxo baixo (2 a 4 é/min), através de um cateter nasal. Poste­
riormente, uma suplementação progressivamente maior passa
a ser necessária, e, então, pode-se oferecer o oxigênio através
de cânula transtraqueal.
Vários agentes terapêuticos têm sido utilizados no tratamen­
to da SHP, todavia sem uma melhora substancial. O objetivo da
terapia farmacológica é limitar a vasodilatação pulmonar pelo
uso de substâncias que inibem a vasodilatação ou que poten­
cializam a vasoconstrição.
Figura 60.2 Arteriografia pulmonar evidenciando extensas vasodila- Foram relatados casos de pacientes tratados, com sucesso
tações arteriovenosas. limitado, utilizando análogos da somatostatina, drogas anti-
690 Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar

inflamatórias, almitrina ou inibidores das prostaglandinas, ini­


bidores da NO-S. Até o presente, não há nenhum tratamento
■ PROGNÓSTICO
farmacológico que, inequívoca e consistentemente, melhore O prognóstico da SHP é reservado com uma mortalidade
a oxigenação e altere a vasodilataçâo pulm onar associada à de cerca de 40% após 2,5 anos. Apenas o transplante de fí­
SHP. gado oferece uma melhor esperança em casos selecionados.
Ao longo da última década, o TIPS tem se consolidado como De maneira geral, pacientes com PO,, superior a 60 mmHg
um tratamento eficaz em algumas complicações da hiperten­ devem receber transplante tão cedo quanto possível. Aqueles
são portal, como na prevenção do ressangramento por varizes com PO, inferior a 60 mmHg merecem uma avaliação rigo­
esofágicas e no controle da ascite refratária. O seu uso em ou­ rosa pela equipe de transplante, que julgará o risco-benefício
tras situações associadas à hipertensão portal ainda necessita cuidadosamente. Finalmente, convém insistir em que não há
de estudos controlados. O papel do TIPS no tratamento palia­ no momento nenhuma droga que tenha provado ser eficiente
tivo da SHP ainda é controverso. Embora a maioria dos casos por longos períodos.
relatados de SHP que utilizaram o TIPS tenha experimentado
melhora, existem relatos de insucesso dele.
A oclusão de malformações arteriovenosas pulmonares con­ ■ LEITURA RECOMENDADA
gênitas através do uso de cateter transcutâneo proximal à fístula
é um procedimento já estabelecido. Essa técnica é uma opção
terapêutica para o manejo do shutit arteriovenoso intrapulmo-
■ Síndrome hepatorrenal
nar, dito verdadeiro, como o presente na síndrome de Rendu- Angcli, P. Rcvicw artide: prognosis of hepatorrenal syndrome - has it
changcd with currcnt practice? Aliment. Pharmacol. 'Iher.., 2004; 20 (Su-
Osler-Weber. Portanto, aplica-se especialmente nos pacientes ppi 3J.44-6.
com o tipo II da SHP. Arroyo, V. Cirrhosis and its complications: ascitcs, dilutional hyponatrcmia
O emprego destes dois métodos, TIPS e embolização, no and hcpatorcnal syndrome. Em: Galvâo Alves, J. Temas de atualização em
tratamento da SHP parece ser apenas uma medida paliativa, Gastroenterologia, XV Jornada de Gastroentcrologia da Santa Casa de Mi­
sericórdia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 3-24,2005.
servindo como uma ponte para o TxH. Eles devem ser mais bem
Arroyo, V, Gincs, P, Cierbcs, A, Dudlcy, FJ, Gcntilini, P, Laffi, G, Reynolds, TB,
avaliados, especialmente nos pacientes com PaO,< 50 mmHg, Ring-Larscn, H, Scholmerich, J. Definition and diagnostic critcria of re-
que sabidamente apresentam maior morbidade e mortalidade fractory ascitcs and hcpatorcnal syndrome in cirrhosis. Hepatology, 1996;
pós-transplante. 23:164-76.
Batallcr, R, Ginès, P, Gucvara, M, Arroyo, V. Hcpatorcnal syndrome. Semin.
Até pouco tempo atrás, a presença de grave hipoxemia ar­ LiverDis., 1997; 17:233-47.
terial era contraindicação absoluta ao TxH; todavia, com os Cardenas, A. Hcpatorcnal syndrome: a dreaded complication of end-stage liver
relatos de melhora da hipoxemia pós-transplante, a SHP é atu­ discasc. Am. J. Gastroenterol., 2005; 100:460-7.
almente considerada uma indicação para a realização do TxH. Ginès, A, Escorscll, A, Ginès, P, Saio, J, Jimcncz, W, Inglada, L, Navasa, M,
A normalização da hipoxemia pode ocorrer em poucos dias ou Ciaria, J, Rimola, A. Arroyo, V, Rodes, J. Incidcncc, prcdictivc factors, and
prognosis of hcpatorcnal syndrome in cirrhosis. Gastroenterology, 1993;
demorar até cerca de 14 meses após o transplante. 105:229-36.
A morbidade e a mortalidade após o TxH parecem estar Ginès, P & Arroyo, V. Hcpatorcnal syndrome. /. Am. Soc. Nephrol., 1999;
aumentadas neste subgrupo de pacientes. Arguedas e colabo­ 10:1833-9.
radores acompanharam prospectivamente 24 pacientes, com Ginès, P, Torre, A, Terra, C, Gucvara, M. Rcvicw articlc: pharmacological treat-
ment of hepatorrenal syndrome. Aliment. Pharmacol. Ther., 2004; 20 (Suppl
SHP, submetidos a transplante. Destes, 7 (29%) morreram no 3):57-62.
pós-operatório, 5 dos quais por complicações cardiopulmona- Runyon, BA. Management of adult patients with ascitcs duc to cirrhosis. He­
res, e todos os óbitos ocorreram dentro de um período de 10 se­ patology, 2004; 39:1-16.
manas depois do transplante. Uma PaO,< 50 mmHg isolada Schrier, RW, Arroyo, V, Bcrnardi, M, Epstein, M, Hcnrikscn, JH, Rodes, J. Pe-
ripheral arterial vasodilation hypothcsis: a proposal for thc initiation of renal
ou em combinação com uma fração de shunt intrapulmonar sodium and water rctention in cirrhosis. Hepatology, 1988; 8:1151-7.
> 20%, estimado pela cintigrafia pulmonar com macroagrega- Sort, P, Navasa, M, Arroyo, V'. Aldcgucr, X, Planas, R, Ruíz-dcl-Arbol, L, Castclls,
dos de albumina marcada, foram fortes preditores de mortali­ LL, Vargas, V, Soriano, G, Gucvara, M, Gincs, P, Rodes, J. Effect of intrave-
dade pós operatória, sugerindo que aqueles pacientes com grave nous albumin on renal impairment and mortality in patients with cirrhosis
and spontancous bactcrial peritonitis. N. Engl. J. Med., 1999; 341:403-9.
hipoxemia e um significativo shunt intrapulmonar, caracterís­
ticas apresentadas pelos pacientes com SHP tipo II, devem ser
mais bem avaliados no pré-operatório. ■ Síndrome hepatopulmonar
Não obstante, existem relatos contrários, como o de Kim e Abrams, GA, Jaffc, CC, Hoffcr, PB, Bindcr, HJ, Fallon, MB. Diagnostic utility
colaboradores, que compararam as características pré-opera- of contrast cchocardiography and lung perfusion scan in patients with hc-
tórias e o seguimento após o transplante de 13 pacientes com patopulmonary syndrome. Gastroenterology, 1995: 109:1283-8.
SHP e 65 controles, e não observaram diferenças significativas Abrams, GA, Nanda, NC, Dubovsky, EV, Krowka, MJ, Fallon, MB. Uscof ma-
croaggrcgatcd albumin lung perfusion scan to diagnosc hcpatopulmonary
entre os dois grupos no que se refere a tempo de intubação syndrome: a ncw approach. Gastroenterology, 1998; 114:305-10.
orotraqueal, permanência na UTI, duração da hospitalização, Agustí, AGN, Roca, J, Rodrigucz-Roisin, R. Mcchanisms of gas cxchangc im ­
taxa de complicações pulmonares e sobrevida em 3 meses. Su­ pairment in patients with liver cirrhosis. Clin. Chest Med., 1996:17:49-66.
geriram que a presença de SHP não afeta de forma significativa Arguedas, MR, Abrams, GA, Krowka, MJ, Fallon, MB. Prospcctivc evaluation
of outeomes and prcdictors of mortality in patients with hcpatopulmonary
os resultados do TxH em cirróticos. syndrome undergoing liver transplantation. Hepatology, 2003; 37:192-7.
Portanto, embora, atualmente o TxH permaneça como a Castro, M & Krowka, MJ. Hcpatopulmonary syndrome. A pulmonary vascular
única terapia real para a SHP, a reversibilidade desta síndrome, complication of liver discasc. Clin. Chest Med., 1996; 17:35-48.
após o transplante, ainda não é passível de previsão. Dentre as Crawford, ABH, Rcgnis, J, Laks, L. Pulmonary vascular dilatation and diffu-
sion-dependent impairment of gas cxchangc in liver cirrhosis. Eur. Respir.
perspectivas futuras para o TxH na SHP, caberá uma melhor /., 1995;8:2015-21.
identificação do subgrupo de pacientes com melhores condi­ Ferreira, CAL 8c Dani, R. Síndrome hepatopulmonar: relato de caso. GED,
ções de beneficiar-se depois do procedimento. 1998; 17:185-90.
Capítulo 60 / Síndrome Hepatorrenal e Síndrome Hepatopulmonar 691
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Peritonite Bacteriana Espontânea
Ângelo Alves de Mattos e Ângelo Zambam de Mattos

As infecções bacterianas permanecem como uma das compli­ diversas; no entanto, a via hematogênica parece ser a mais
cações mais frequentes e preocupantes nos pacientes com cir­ aceita.
rose. A quebra de barreiras mucosas ou epiteliais (trato respirató­
Sendo a hepatopatia crônica, provavelmente, uma das for­ rio, trato urinário e a pele) pode servir como porta de entrada
mas mais comuns de imunodeficiência adquirida, no senso para o organismo infectante; contudo, a maioria dos microrga-
genérico do termo, não é de surpreender que as infecções bac­ nismos que causam a PBE são de origem entérica. Desta forma,
terianas sejam eventos comuns em sua história natural. Quando o principal fator que desencadeia o surgimento da PBE parece
avaliamos 541 internações consecutivas em nosso hospital, dos ser a quebra da barreira mucosa intestinal, e o mecanismo pro­
426 pacientes com cirrose hepática, observamos a presença de posto, a translocação de bactérias entéricas para os linfonodos
infecção em 25% dos casos. Destas, as mais frequentes foram mesentéricos e daí para a circulação sistêmica. Os três principais
infecção do trato urinário, peritonite bacteriana espontânea mecanismos para explicar a translocação bacteriana, que não
(PBE), broncopneumonia e infecções de pele. No entanto, den­ podem ser excluídos em um paciente com hipertensão portal,
tre as infecções que acometem os pacientes com hepatopatia são: alteração da flora intestinal, alteração da permeabilidade
crônica a de maior importância é a PBE. da mucosa intestinal e diminuição das defesas do hospedeiro.
Entende-se por PBE a infecção do fluido de ascite sem Assim, em decorrência da translocação bacteriana, poderá so­
que haja um foco intra-abdominal aparente causador da in­ brevir um quadro de PBE devido à incapacidade do fígado em
fecção. remover as bactérias da corrente sanguínea, pois os shunts por-
É importante salientar que, já nas primeiras séries de pa­ tossistêmicos, tanto intra quanto extra-hepáticos, permitem que
cientes descritas na literatura, observava-se o que poderiamos as bactérias realizem um “curto-circuito”, fugindo à captação
considerar variantes dessa doença. Assim, em alguns casos, do sistema reticuloendotelial, que provavelmente é o maior
tínhamos quadros em tudo semelhantes à PBE, porém com local de remoção das bactérias.
exame bacteriológico no líquido de ascite negativo (ascite neu- A presença de líquido peritoneal, de ascite portanto, é par­
trofllica - AN); em outros, tínhamos quadros silenciosos, com te crítica nesta síndrome, sendo condição sine qua non para o
pequena resposta celular no líquido de ascite, embora com cres­ surgimento da PBE.
cimento de bactérias quando cultivado (bacterioascite - BA). O líquido peritoneal, que normalmente tem uma atividade
antimicrobiana, perde parte dessa capacidade no doente cir-
rótico, tornando-se, assim, excelente meio de cultura. A opso-
■ INCIDÊNCIA nização, processo que envolve a superfície do microrganismo
invasor com imunoglobulina ou com o complemento, funda­
A PBE e suas variantes constituem uma complicação que se mental à fagocitose, está prejudicada no cirrótico, podendo ser
desenvolve frequentemente em pacientes cirróticos com ascite, baixo o índice opsônico do fluido de ascite.
principalmente quando de etiologia alcoólica. A sua incidência Também foi demonstrado que a concentração de proteí­
oscila entre 4 e 27%. Têm um prognóstico ainda reservado, va­ nas no líquido de ascite é menor naqueles pacientes com PBE,
riando a mortalidade de 20 a 30%, mesmo nas séries mais atuais. havendo uma estreita correlação entre a atividade opsônica, a
Em nosso meio, na última década, a prevalência da PBE girou concentração de proteínas e os níveis de complemento. Assim,
ao redor de 11%, com uma mortalidade de 22%. pacientes com concentração de proteínas no líquido de ascite
inferior a 1 g/d^ têm maior risco de desenvolver PBE.
Em resumo, poderiamos afirmar que, na patogênese da PBE,
■ Patogenia há o envolvimento de bactérias a colonizar uma ascite suscetí­
A patogenia da PBE ainda não está bem estabelecida. As vel à infecção por déficit de sua atividade antimicrobiana en-
rotas prováveis para que a bactéria chegue ao peritônio são dógena (Figura 61.1).

692
Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea 693

‘ Infecção d o trato respiratório


“ Infecção d o trato urinário

F ig u ra 6 1.1 Fisiopatologia da peritonite bacteriana espontânea.

■ DADOS CLÍNICOS apresenta, caso não seja tratada de forma precoce, é muito
importante que seu diagnóstico seja feito de forma rápida e
A forma de apresentação clínica da PBE é extremamente pleo- adequada. Para tanto, é fundamental o estudo do líquido de
mórfica, variando desde os pacientes assintomáticos até aqueles ascite, motivo pelo qual todo paciente com ascite admitido
com quadro de peritonite franca. No entanto, a maior parte com­ em hospital deva submeter-se à paracentese diagnóstica. Em­
preende aqueles casos com manifestações oligossintomáticas. bora, por motivos óbvios, o esclarecimento diagnóstico esteja
Classicamente, a PBE é caracterizada por febre de início centrado no exame bacteriológico, em decorrência dos resul­
abrupto, calafrio, dor abdominal, sinal de Blumberg presente e tados falso-negativos e da demora em obtermos seu resulta­
diminuição dos ruídos hidroaéreos. Náuseas, vômito e diarréia do, é im portante que tenhamos, a princípio, outros índices
são achados comuns. diagnósticos.
Este quadro se sobrepõe àquele encontrado em um paciente Dos parâmetros bioquímicos, parece-nos relevante a dosa­
com hepatopatia crônica descompensada. gem de proteínas. Os pacientes com níveis de proteínas inferio­
A gravidade dos sintomas parece estar diminuindo nos re­ res a 1 g/dêy pela dificuldade em destruir as bactérias, parecem
latos mais recentes, presumivelmente em decorrência de um ter 10 vezes mais chances de desenvolver infecção do líquido
maior índice de suspeita clínica e do uso mais rotineiro da pa- ascítico. Assim, sua determinação pode selecionar possíveis
racentese diagnóstica nos últimos anos. candidatos a desenvolverem um quadro de PBE, permitindo,
Com frequência, os pacientes se apresentam com manifes­ então, que, nesta população, sejam utilizadas medidas profilá-
tações frustras do tipo febre sem foco definido, encefalopatia ticas, como consideraremos mais adiante.
portossistêmica, dor abdominal incaracterística, falta de res- Na realidade, o grande parâmetro prático no diagnóstico da
ponsividade da ascite à terapêutica utilizada ou, simplesmente, infecção do líquido peritoneal parece ser o exame citológico do
um quadro de deterioração clínica. fluido de ascite, através da contagem dos polimorfo nucleares
(contagem igual ou superior a 250 células por mm3). Recente­
mente, foi publicado um estudo, sugerindo um papel de im­
■ TESTES DIAGNÓSTICOS portância para as fitas que detectam esterases leucocitárias no
exame de urina, quando estas fitas são utilizadas no exame do
Tendo em vista as manifestações clínicas da PBE serem, liquido ascítico. Assim, este exame proporcionaria um diagnós­
muitas vezes, atípicas, bem como o prognóstico reservado que tico extremamente ágil de PBE, permitindo o início da antibio-
694 Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea

ticoterapia empírica. No entanto, como foi demonstrado que a mes do líquido de ascite revelarem infecção já nos primeiros
contagem automatizada de células, à semelhança do que ocor­ 3 dias de hospitalização; caso contrário, é considerada como
re no sangue, proporciona resultados semelhantes ao método nosocomial.
manual clássico, é possível que a utilização de testes de triagem Do ponto de vista prático, consideramos PBE aqueles casos
não ganhe um maior prestígio. Ressalte-se a necessidade da va­ em que o exame citológico mostra contagem de PMN superior
lidação destes resultados por outros autores. Da mesma forma, ou igual a 250 células por mm 3 e na ausência de fonte intra-
entendemos ser de interesse um aprofundamento na utilização abdominal de infecção. Consideramos AN aqueles em que não
de técnicas de biologia molecular na avaliação diagnóstica do há crescimento bacteriano na cultura do líquido de ascite, po­
líquido de ascite. rém a contagem de PMN é igual ou superior a 250 células por
Um outro critério que deve ser levado em conta no diagnós­ mm3, na ausência de fonte intra-abdominal de infecção. Nestes
tico da infecção do líquido de ascite é a diminuição do número casos, não deve haver evidência do uso de antibiótico nos úl­
de PMN com a terapêutica instituída. timos 30 dias que precederam a paracentese e deve ser excluí­
O exame bacteriológico é realmente o gold standard da PBE. da a possibilidade de tuberculose e carcinomatose peritoneal,
É surpreendente o fato de uma única espécie de bactéria causar pancreatite e de ascite hemorrágica, com base em estudos apro­
a infecção em 90% das situações. Outro aspecto interessante é priados do líquido de ascite. BA é considerada quando um mi-
a baixa população bacteriana nestas situações, havendo uma crorganismo é isolado no líquido de ascite com uma população
concentração média de 1 a 2 bactérias por m^, o que inclusive de PMN inferior a 250 células por mm 3, sem haver evidência
podería explicar os frequentes resultados falso-negativos das de fonte de infecção intra-abdominal.
culturas.
A maior parte dos microrganismos responsáveis pela PBE
são integrantes da flora aeróbica normal do intestino; 60 a 80%
são bactérias aeróbicas Gram-negativas. A bactéria que mais
■ DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
frequentemente é isolada nos casos de PBE é a E. coli. Bacté­ É fundamental que a PBE seja diferenciada da peritonite
rias como K. pneumoniae, S. pneumoniae e outras espécies de bacteriana secundária (PBS). Embora ambas possam ser infec­
estreptococos são também encontradas com relativa frequên­ ções letais, uma conduta conservadora em paciente com víscera
cia, sendo descrito, no entanto, um espectro muito grande de oca perfurada ou uma conduta cirúrgica em um paciente com
bactérias. PBE são catastróficas.
É interessante notar que os anaeróbios não têm um papel A PBE ocorre com uma frequência 10 vezes maior do que
de destaque na PBE, embora dominem a flora intestinal, em a PBS. Em 10 a 15% dos pacientes com infecção peritoneal, é
particular os bacteroides. A frequência dos anaeróbios nas cul­ encontrado um foco intra-abdominal de infecção.
turas gira ao redor de 5%. A explicação para isso poderia estar
Duas formas de PBS podem ser reconhecidas, dependendo
baseada no fato de esses germes não atravessarem a barreira
da existência de perfuração de uma víscera oca (úlcera péptica
mucosa intestinal, não sobreviverem à passagem pela corrente
perfurada, ruptura de um divertículo de cólon) ou não (abs-
circulatória ou não proliferarem no líquido de ascite.
cesso perinefrítico, apendicite aguda).
A infecção peritoneal com múltiplos microrganismos, ou
Clinicamente, não é possível a diferenciação entre a PBE e
com anaeróbios, muitas vezes estará na dependência de uma
peritonite bacteriana secundária. a PBS. A análise inicial do derrame peritoneal e a resposta de
determinados parâmetros do líquido de ascite ao tratamento,
Em vista de um terço de pacientes com PBE morrerem em
porém, têm mostrado valor para definir se trata-se de PBE ou
até 7 dias após o diagnóstico, a velocidade com que a bacté­
ria é identificada pode ser crucial, já que a terapêutica poderá PBS.
então ser reorientada. Por outro lado, torna-se fundamental Peritonite associada a perfuração pode ser identificada com
que a sensibilidade das culturas aumente, evitando uma inter­ base na análise bioquímica do líquido de ascite, sendo caracte­
rupção prematura da antibioticoterapia, com sérios danos ao rizada por preencher, no mínimo, dois dos seguintes critérios:
paciente. Em decorrência desses fatores, alguns autores, tendo níveis de proteínas superiores a 1 g/d^; de glicose inferiores a
o grupo de Runyoncomo incentivador, apregoam a realização 50 m g/dí e atividade de desidrogenase láctica superior ao seu
do exame bacteriológico com inoculação do material coletado limite máximo normal no soro. Este critério peca pela baixa
em frascos de hemocultura. O exame bacteriológico, quando especificidade. No entanto, um antígeno carcinoembrionário
feita a inoculação de 10 m^ de líquido peritoneal em meio de na ascite maior do que 5 n g lm t ou uma fosfatase alcalina no
hemocultura, à beira do leito, possibilitaria uma positividade líquido peritoneal superior a 240 \Jl/£ apresentam uma elevada
que gira ao redor de 60 a 90% dos casos. acurácia no diagnóstico da PBS decorrente de perfuração.
Parece ser fundamental que a inoculação seja feita à beira do Uma amilase elevada no líquido peritoneal pode sugerir a
leito, já que teoricamente as bactérias poderíam ser destruídas perfuração de víscera oca. Em regra, a contagem de PMN é mais
no trajeto do material ao laboratório, em decorrência da refri­ elevada na PBS. Embora, nestes pacientes, a infecção geralmente
geração inadequada ou pela atividade antimicrobiana endógena seja causada por mais de um microrganismo e com frequên­
continuada do fluido de ascite. cia anaeróbios, o resultado das culturas, sendo tardio, pouco
Quando analisamos a globalidade dos casos por nós avalia­ auxilia nesta avaliação. Observe-se que o exame bacterioscó-
dos de PBE e de suas variantes, obtivemos um exame bacterio­ pico é mais frequentemente positivo na PBS, demonstrando
lógico positivo em 63% dos casos. múltiplos microrganismos. O isolamento de Candida albicans,
na ausência de candidíase sistêmica ou de intervenção abdo­
minal, é sugestivo de perfuração intestinal.
■ DIAGNÓSTICO Na opinião de alguns autores, uma resposta após 48 h de
tratamento, com diminuição do número de PMN e negativação
Recentemente, os termos PBE comunitária e nosocomial do exame bacteriológico, seria de valor na diferenciação entre
têm sido utilizados. A PBE é tida como comunitária se os exa­ a PBE e a PBS sem perfuração.
Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea 695

Na realidade, esses critérios são utilizados não para indicar sintomáticos. Quando avaliamos a sobrevida de pacientes com
ab initio a necessidade de laparotomia, mas sim para que o bacterioascite, sem a utilização de antibioticoterapia, observa­
clínico decida se deve ou não realizar uma investigação mais mos que ela foi semelhante à dos pacientes com ascite estéril.
detalhada. Nos casos assintomáticos, a paracentese deve ser repetida, sendo
Pacientes com PBS devem receber cobertura com antibió­ introduzido o tratamento medicamentoso quando houver um
ticos para anaeróbios em adição à cefalosporina de terceira ge­ aumento significativo do número de PMN.
ração antes do tratamento cirúrgico. Embora seja de fundamental importância no tratamento da
PBE a utilização de antibioticoterapia adequada, diversos auto­
res têm demonstrado a importância da função renal como fator
■ TRATAMENTO preditivo no prognóstico desses pacientes. Quando avaliamos
mais de 100 episódios de PBE, observamos uma mortalidade
Em reunião do International Ascites Club (IAC), foi esta­ de 36 e 6,8% nos pacientes com e sem insuficiência renal, res­
belecido, como consenso, que deveriam ser tratados todos os pectivamente.
pacientes com hepatopatia crônica que tivessem 250 ou mais Baseados no fato de que a PBE pode estar associada a um
polimorfonucleares (PMN) por m m 3 no líquido de ascite. Pa­ déficit da função renal e, ao partirem da premissa de que a ex­
cientes assintomáticos, em acompanhamento ambulatorial, pansão do volume plasmático preveniría esta disfunção, foi rea­
mesmo que com celularidade elevada no líquido de ascite, por lizado um estudo multicêntrico, prospectivo e randomizado,
apresentarem melhor prognóstico, poderíam ser considerados utilizando infusão de albumina endovenosa (1,5 g/kg de peso no
exceção a esta regra. 1° dia e 1,0 g/kg de peso no 3° dia) na profilaxia da insuficiência
A droga de eleição no tratamento é uma cefalosporina de renal desses doentes. Constataram não só uma menor presença
terceira geração, preferencialmente a cefotaxima. de hipovolemia e de déficit da função renal, como também uma
A duração usual da antibioticoterapia em infecções graves queda na taxa de mortalidade no grupo que usou albumina,
varia de 10 a 14 dias. Na PBE, a duração do tratamento tem quando comparado ao grupo-controle. Embora se necessite de
sido empírica. A PBE é caracterizada pela baixa concentração outros estudos para confirmar esses achados, é provável que a
de bactérias e pela falta de invasão tecidual ou de um foco de sobrevida desta população de pacientes possa ser aumentada
infecção. Assim, tratamentos de curta duração têm sido ava­ com a utilização de expansores plasmáticos. Os pacientes com
liados. Em um estudo randomizado, demonstrou-se não haver bilirrubina elevada (superior a 4 m g/dl) e aqueles com déficit
diferença na eficácia do tratamento ou na recorrência da PBE de função renal seriam os mais beneficiados. A utilização de
quando foram utilizados cursos curtos (5 dias) de cefatoxima. expansores plasmáticos sintéticos, comparados com albumina,
Tem sido nossa rotina a manutenção da antibioticoterapia por em um estudo-piloto, não se mostrou eficiente em prevenir a
um período de 7 dias. A dose preconizada é de 2 g de 8/8 h; deterioração hemodinâmica sistêmica.
nos pacientes com creatinina sérica superior a 3 m g/dí, o in­ Quando um quadro infeccioso, relacionado ou não à PBE,
tervalo de administração pode ser prolongado para 12 h. A leva um cirrótico ao choque séptico, parece mais comum que,
despeito de eventuais variações na conduta, a dose mínima em outras populações de pacientes, sobrevenha uma situação
a ser utilizada seria de 2 g de 12/12 h, e a duração mínima do de insuficiência adrenal relativa e choque refratário associado
tratamento, de 5 dias. a ela. Em cirróticos com choque séptico e insuficiência adrenal
Nos casos de PBE não complicada, que não estivessem em relativa diagnosticada pelo teste da corticotropina, pode haver
uso profilático de quinolonas, baseado no estudo capitaneado benefício quanto à resolução do choque e quanto à sobrevida
pelo grupo de Barcelona, podería ser utilizado o ofloxacino na quando se utilizam corticosteroides em dose de estresse, em­
dose mínima de 400 mg de 12 em 12 h. Entendem-se por PBE bora mais estudos possam ser necessários.
não complicada aqueles casos em que a creatinina não ultra­ No que tange ao tratamento, é importante salientar que a
passa 3 mg/d^, que não tenham sangrado, que não apresentem sobrevida observada nos pacientes com PBE é substancialmen­
encefalopatia portossistêmica graus II-IV, sem sepse e sem íleo te mais curta do que aquela relatada em pacientes com cirrose
paralítico. Outra proposta de terapia oral poderia ser com o uso submetidos ao transplante hepático. Assim, esse transplante
de ciprofloxacino. No entanto, o surgimento de um grande nú­ deve sempre ser considerado naqueles pacientes que sobrevi­
mero de infecções com bactérias resistentes às quinolonas torna vem a um episódio de PBE.
seu uso discutível como droga de primeira linha.
Tem sido descrito, entre outras cefalosporinas, que o cef-
triaxone, em uma dose de 2 g/24 h, é efetivo no tratamento da ■ PROFILAXIA
PBE. Da mesma forma, a associação da amoxacilina com o ácido
clavulânico parece ser uma opção viável e bastante econômica Como a infecção contribui para piorar o prognóstico dos
no tratamento destas infecções. pacientes hepatopatas, entendemos ser fundamental o estabe­
Seja qual for a droga utilizada no tratamento, assim que o lecimento de medidas profiláticas para evitar sua ocorrência.
microrganismo for identificado, o programa de antibiotico­ A prevenção da PBE pode ter maior impacto na sobrevida dos
terapia, se necessário, deverá ser adequado aos resultados das pacientes com cirrose do que o tratamento daquela compli­
culturas. cação.
A resposta ao tratamento deve ser avaliada pela repetição A PBE, a bacteriemia e outras infecções tendem a ocorrer
da paracentese 48 h após o início do tratamento. Quando este com mais frequência nos cirróticos após hemorragia digestiva.
foi eficiente, a contagem de PMN deve cair em 25 a 50%, e as Por outro lado, a probabilidade de recorrência da PBE em cir­
culturas tornam-se negativas. róticos é de 69% em 1 ano, e os pacientes com doença hepática
Os pacientes com AN devem ser tratados obedecendo aos mais grave e/ou concentração baixa de proteínas no líquido de
mesmos preceitos aplicados àqueles com PBE. Nos casos de ascite são aqueles que apresentam maior risco de desenvolver
BA, o tratamento deve ser instituído apenas naqueles pacientes um episódio de PBE.
696 Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea

A profilaxia da PBE pode ser resumida da seguinte maneira: tente à meticilina, a adição de vancomicina deve ser considerada
quando há falha terapêutica. A dose preconizada é de 500 mg
A. Cirróticos com sangramento gastrintestinal recebem anti­
de 6/6 h, em infusão lenta, no mínimo em 60 min.
biótico por 7 dias. Ressalta-se que nas recomendações da
Na tentativa de buscar uma profilaxia menos dispendiosa,
Associação Americana para o Estudo das Doenças do Fí­
tem sido proposta a utilização da sulfametoxazol-trimetoprima
gado (AASLD), poder-se-ia utilizar uma quinolona por
na prevenção da PBE. Utilizando dose dupla em cinco admi­
via parenteral enquanto o paciente estivesse sangrando
nistrações por semana, foi observada uma menor incidência
de forma ativa.
de infecção, sem que, com isso, houvesse se constatado a pre­
B. Cirróticos em recuperação de episódio de PBE recebem
sença de efeitos colaterais. Em recente estudo por nós reali­
antibiótico cronicamente até o transplante ou até o de­
zado, quando randomizamos uma população de pacientes para
saparecimento da ascite.
a realização de profilaxia, observamos não haver diferença na
C. Para os cirróticos com ascite e com níveis baixos de
prevenção da infecção e na sobrevida quando a sulfametoxazol-
proteína no líquido ascítico, isto é, abaixo de 1,0 g/d^
trimetoprima foi comparada com o norfloxacino. Assim, ela
(alguns autores consideram 1,5 g/dé), a vantagem de se
poderia ser uma opção viável a considerar-se, uma vez que, por
instituir a antibioticoterapia profilática encontra-se in­
ser menos onerosa e por ser disponível gratuitamente na rede
definida. pública, poderia contribuir para maior adesão ao tratamento
Apesar dessa simplificação, alguns comentários são neces­ e estender o benefício da profilaxia a uma maior parcela da
sários. Na reunião de consenso do IAC, ficou acordado que a população. A dose preconizada é de 160 mg de trimetoprima
profilaxia deveria ser sempre realizada nos pacientes cirróti­ + 800 mg de sulfametoxazol, 1 vez/dia, por 5 dias na semana.
cos com hemorragia digestiva e naqueles que já tiveram um No entanto, recente estudo sugere que a norfloxacina, ao con­
episódio de PBE. A droga de escolha para a profilaxia foi o trário da sulfametoxazol-trimetoprima, tem importante efeito
norfloxacino. imunológico, tanto ao nível hormonal quanto ao celular, além
Classicamente, a dose preconizada para doentes que apre­ do efeito bactericida intestinal amplamente conhecido.
sentaram PBE e para pacientes com baixas taxas de proteína
no líquido ascítico é de 400 mg/dia, e, para aqueles que apre­
sentaram hemorragia varicosa, de 400 mg 2 vezes/dia, durante ■ LEITURA RECOMENDADA
7 dias.
Um estudo comparando o papel do norfloxacino e da cef- Angcloni, S, Lcboffc, C, Parente A et al. Eflicacy o í currcnt guidelines for thc
triaxona em pacientes com cirrose avançada com sangramento treatment of spontaneous bactcrial peritonitis in the clinicai practice. World
digestivo demonstrou ser esta droga a mais efetiva em prevenir J Gastroenterol, 2008;14:2757-62.
a infecção. Os autores sugerem a utilização de ceftriaxone 1 g/dia Arroyo, V & Navasa, M. Ascitcs and spontaneous bactcrial peritonitis. Em:
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durante 7 dias em pacientes com sangramento digestivo e dois
Philadclphia. Lippincott-Ravcn, 527 a 568,2007.
ou mais critérios de gravidade da cirrose, quais sejam: ascite, Conn, HO & Fesscl, JM. Spontaneous bactcrial peritonitis in cirrhosis: varia-
desnutrição importante, encefalopatia hepática e bilirrubina tions on a theme. Medicine, 1971; 50:161-97.
superior a 3 mg/dl. Coral, GP & Mattos, AA. Renal impairment after spontaneous bactcrial perito­
Na publicação do IAC, para os pacientes com um nível de nitis: incidence c prognosis. Can } Gastroenterol, 2003;17:187-90.
proteínas no líquido de ascite inferior a 1 g/d^, não houve con­ Coral, GP, Mattos, AA, Damo, DF et al. Prevalência c prognóstico da peritonite
senso sobre realizar ou não a profilaxia. O uso de antibióticos, bacteriana espontânea. Arq Gastroenterol, 2002; 39:158-62.
de forma rotineira, nestes casos, poderia favorecer o surgimento Fasolato, S, Angcli, P, Dallagncsc, L et al. Renal failure and bactcrial infcctions
in patients with cirrhosis: cpidcmiology and clinicai features. Hepatology,
de resistência bacteriana. Esta matéria, no entanto, é polêmi­
2007;45:223-9.
ca. Nas recomendações da AASLD, é indicada a profilaxia em
Fcrnándcz, J, Del Arbol, LR, Gómcz, C et al. Norfloxacinc vs Ceftriaxone in thc
tais circunstâncias. Existe estudo que, ao avaliar pacientes com Prophylaxis of Infcctions in Patients with Advanced Cirrhosis and Hcmor-
proteínas baixas no líquido de ascite, demonstrou que aqueles rhage. Gastroenterology, 2006; 131:1049-56.
com hiperbilirrubinemia e com plaquetopenia eram os que ti­ Fcrnándcz, J, Navasa M, Gómcz J et al. Bactcrial infcccion in cirrhosis: epide-
nham maior risco de desenvolver PBE. Talvez, então, seja esta miological changcs with invasive proccdurcs and norfloxacinc prophylaxis.
a população que se beneficiaria com a antibioticoprofilaxia. Hepatology, 2002; 35:140-8.
Recentemente, foi publicado um estudo controlado com pla- Garcia-Tsao, G. Bactcrial infcctions and antibioties in cirrhosis. Em: Arroyo,
cebo, demonstrando ser a profilaxia primária com norfloxacino V, Forns, X, García-Pagan, JC, Rodes, J (cds.). Progress in the treatment of
liver diseases. Ars Medica, Barcelona, 2003; 43-50.
400 mg/dia benéfica em pacientes com ascite com proteína in ­
Ginès, P, Cárdcnas, A, Arroyo, V, Rodés, J. Management of cirrhosis and ascitcs.
ferior a 1,5 g/d^ e hepatopatia grave (Child > 9 com bilirrubina
N Engl J Med, 2004; 350:1646-54.
> 3 mg/d^) ou disfiinção renal (creatinina >1,2 mg/d^, nitrogê­ Guarncr, C, Solà, R, Soriano, G. Risk of a first community-acquircd sponta-
nio ureico sanguíneo > 25 mg/d^ ou Na' sérico ^ 130 mEq/í), ncous bactcrial peritonitis in cirrhotic with low ascitic fluid protein leveis.
com redução da incidência de PBE e de síndrome hepatorrenal Gastroenterology, 1999; 117:414-9.
em 1 ano e, inclusive, aumentando a sobrevida desses pacientes. Hocfs, JC 8c Runyon, BA. Spontaneous bactcrial peritonitis. Dis Mon, 1985;
Um outro estudo recente, comparando a profilaxia primária 31:1-48.
com ciprofloxacino 500 mg/dia contra placebo em uma popu­ Jcpscn, P, Vilstrup, H, Mollcr, JK et al. Prognosis o f patients with liver cir­
lação de cirróticos com ascite com proteína inferior a 1,5 g/d^, rhosis and spontaneous bactcrial peritonitis. Hepato-Gastroenterol, 2003;
50:2133-6.
demonstrou redução da incidência de infecções e aumento da
Mattos, AA, Coral, G, Menti, E et al. Infecção bacteriana no paciente cirrótico.
sobrevida no grupo-intervenção.
Arq Gastroenterol, 2003; 40:11-5.
Naqueles casos que desenvolvessem PBE na vigência da anti­ Navasa, M. Advanccs in thc treatment o f spontaneous bactcrial peritonitis.
biótico-profilaxia, a droga a ser utilizada seria a cefotaxima. No Em: Arroyo, V, Bosch, J, Brugucra, M, Rodés, J (cds.). 7herapy in liver
entanto, em decorrência de uma maior frequência de bactérias diseases. The pathophysiological basis of therapy. Barcelona, Masson S.A.,
gram-positivas, particularmente de Staphylococcus aureus resis­ 407 a 410,1997.
Capítulo 61 / Peritonite Bacteriana Espontânea 697

Nousbaum, J-B, Cadrancl, J-F, Nahon, P et al. Diagnostic accuracy of thc Mul- Salerno, F, Gcrbcs, A, Ginès, P, Wong, F, Arroyo, V. Diagnosis, prevention and
tistix 8 SG rcagcnt strip in diagnosis of sponlancous bactcrial pcritonitis. treatment o f hepatorenal syndrome in cirrhosis. Gut, 2007; 56:1310-8.
Hepatology, 2007; 45:1275-81. Sort, P, Navasa, M, Arroyo, V et al. Eflcct of intravenous albumina on renal
Rimola, A, Garcia-Tsao, G, Navasa, M et al. Diagnosis, trcatmcnt and prophy- impairment and mortality in patients with cirrhosis and spontancous bac­
laxis of spontancous bactcrial pcritonitis: a conscnsus documcnt. J HepatoU tcrial pcritonitis. N EnglJM ed, 1999; 34i:403-9.
2000; 32:142-53. Such, J, Guarncr, C, Runyon, BA. Spontancous bactcrial pcritonitis. Em: Arroyo,
Runyon, BA. Low-protcin conccntration ascitic fluid is prcdisposed to sponta­ V, Ginès, P, Rodés, J, Schricr, RW (cds.). Ascites and renal dysfunction in liver
ncous bactcrial pcritonitis. Gastoenterology, 1986; 91:1343 a 6. disease. Massachusctts, Blackwcll Science, 99 a 115, 1999.
Runyon, BA. Management of adult patients with ascitcs duc to cirrhosis. He­ Tandon, P 8f Garcia-Tsao, G. Bactcrial infcctions, sepse, and multiorgan failurc
patology, 2004; 39:841-56. in cirrhosis. Sem Liver Dis, 2008; 28:26-42.
Hemorragia Digestiva
Alta no Cirrótico
Adávio de Oliveira e Silva, Verônica Desirée Samudio Cardozo,
Evandro de Oliveira Souza, Raul Carlos Wahle, Taiane Costa Marinho,
Renato Ferrari Letrinta, Arnaldo BernaI Filho, Paula Fluhueney Cruz,
Briane André Vertuan Ferreira, Fauze Maluf Filho

Durante a evolução natural da cirrose hepática, ocorrem m o­ belecido entre potentes vasoconstritores, como endotelina-1,
dificações anatômicas e anatomofimcionais do parênquima leucotrienos, tromboxane A2, além de outros, e da presença de
hepático e do sistema venoso portal, responsáveis pela drena­ moléculas vasodilatadoras, como óxido nítrico, anandamida,
gem do sangue proveniente do trato gastrintestinal, pâncreas, ou monóxido de carbono. Todos atuando sobre microvascu-
vesícula biliar e baço, em direção ao fígado. Mensurações de­ laturas hepática, esplâncnica e sistêmica, conforme disposto
finem que o fluxo sanguíneo portal é de aproximadamente na Figura 62.1.
1 £ por minuto e a pressão média, de 7 mmHg, facilitando o Complicações próprias desse distúrbio apenas instalar-se-
afluxo de cerca de 70% do oxigênio e da totalidade de fatores ão, desde que a pressão portal, mensurável por cateterismo de
hepatotróficos necessários ao perfeito funcionamento do pa­ veias hepáticas, ultrapasse 10 a 12 mmHg. Nessa ocasião, de­
rênquima hepático. senvolverão varizes esofagogástricas e ascite de pequeno ou
Cirróticos cursam com acentuada resistência intra-hepática, grande volume, resistente ou não ao tratamento com diuré-
consequência mecânica da distorção da arquitetura hepática ticos administrados, isolados ou associados às paracenteses.
que eles apresentam, causada por fibrose, formações de nódu- Cada uma dessas formas de apresentação tem características
los, remodelação sinusoidal e oclusão vascular. Associam-se a próprias comentadas logo adiante em outros capítulos, e mais
esses eventos um componente dinâmico, dependente da ativa graves nos pacientes com baixa reserva parenquimatosa de fí­
contração de miofibroblastos portais/septais, células hepáticas gado, classificados como Child B ou C.
endoteliais ativadas e as células da musculatura lisa de vênulas Além disso, observa-se que, seguindo-se o desenvolvimento
portais. Também esse comportamento e o do fluxo sanguíneo de hipertensão portal, ocorre abertura de microvasos e de co­
aumentado, que se processa pelo território esplâncnico, têm laterais venosas voltada a descomprimir o território hiperten­
intensidade e magnitude dependentes do balanceamento esta­ so para a circulação sistêmica, hipotensa. Formam-se, assim,

Figura 62.1 Eventos sequenciais precipitando hipertensão portal (Groszmann, 2002).

698
Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico 699

C irro s e

Figura 62.2 Eventos sequenciais observados na instalação da hipertensão portal (Grozsmann, 2002).

as varizes esofagogástricas, além de ectasias venosas dispostas renciação do valor entre as duas deve atingir, no máximo, 7 a
também no duodeno, cólon, reto, parede abdominal e retro- 10 mmHg. Observa-se risco maior de cursarem com ascite e
peritônio. Tais modificações também têm sido descritas em ruptura de varizes esofagogástricas quando essa pressão ultra­
doentes com forma leve de cirrose, com fibrose não cirróti- passa 12 mmHg.
ca (esquistossomose mansônica), fibrose congênita hepática e
doenças autoimunes, tais como colangite esclerosante primária
e cirrose biliar primária, ou nos que evoluem com trombose ■ IMPORTÂNCIA DESSES ACHADOS
venosa portal, com, ou sem, transformação cavernomatosa.
Também se formam colaterais em torno da vesícula biliar e HEMODINÂMICOS E M0RF0LÓGIC0S
duetos biliares, as quais podem causar necrose dessas últimas
estruturas, formando áreas de estenose, com dilatações colan- Clinicamente, pode-se definir com bastante certeza que: 1.
30% daqueles pacientes com cirrose compensada têm varizes
giectásicas semelhantes às observadas na colangite esclerosante
primária. Toda essa evolução gera fenômenos hemodinâmicos, esofagogástricas, índice que se amplia para 60% naqueles com
a forma descompensada da doença; 2. risco anual de desenvol­
conforme exposto na Figura 62.2.
ver novas ectasias venosas é de 8% e de ruptura entre 2 e 70%,
comportamento que depende da gravidade da doença hepática
e do nível pressórico portal; 3. sangram mais aquelas varizes de
■ ASPECTOS DIAGNÓSTICOS grosso calibre, azuladas, tortuosas e que apresentam sobre sua
superfície sinais endoscópicos, como manchas hematocísticas
O diagnóstico dessas manifestações se baseia no emprego da
e do vergão vermelho. São mais graves as hemorragias desen­
endoscopia digestiva alta, constituindo-se no método respon­
cadeadas a partir da ruptura das varizes de fundo gástrico; 4.
sável, geralmente, pela primeira caracterização de hipertensão
gastropatia hipertensiva portal tem sido conceituada como uma
portal. Através desse método, identificam-se varizes esofágicas
síndrome relacionada com as modificações da mucosa gástrica,
de pequeno, médio e grande calibres, lisas ou retilíneas. Preo­
observadas entre 7 e 98% dos cirróticos, sendo responsável por
cupa quando se evidenciam tortuosidade e sinais que indicam
cerca de 4 a 38% dos episódios agudos hemorrágicos que tais
risco maior de sangramento, como manchas hematocísticas, ou
pacientes apresentam, com ressangramento incidindo entre
sinais de cor vermelha. As varizes subcárdicas, em geral, com­
62 a 75%, com outras características típicas encontrando-se
portam-se como as esofágicas, porém aquelas de fundo cursam
discriminadas no Quadro 62.1.
com mais episódios hemorrágicos, mesmo naqueles pacientes
com baixa pressão portal, com índice maior de episódios de
ressangramento. Gastropatia hipertensiva portal traduz-se pela
presença do padrão em mosaico da mucosa gástrica, merecendo ------------------------------------- ▼-------------------------------------
preocupação maior quando essas ectasias venosas também se Q u a d ro 62.1 Outras características típicas da gastropatia
distribuem pelo duodeno. hipertensiva portal
Vasos intra-abdominais, como veia esplênica, mesentérica
1. H is t o lo g ic a m e n t e , id e n tific a m -s e d ila ta ç õ e s d e c a p ila re s e v ê n u la s d a
superior e inferior, além do tronco e ramos venosos portais di­
m u c o s a g á s tric a ín te g ra e s e m in fla m a ç ã o ;
reito e esquerdo, são identificados através da angiorressonância
2 . M a is c o m u m e n t e o b s e r v a d a n a q u e le s s u b m e t id o s a e s d e r o t e r a p ia o u
magnética ou angiotomografia computadorizada. São métodos lig a d u r a e n d o s c ó p ic a ;
capazes de identificar também perviedade de veias gástricas e 3. S à o in o p e r a n t e s t r a t a m e n t o s c o m d r o g a s a n tis s e c re to ra s , ta is c o m o
da umbilical, além de anastomoses espontâneas ou cirurgica­ in ib id o r e s d e b o m b a s d e p ró to n s ;
mente construídas, visando a descompressão desses territórios 4 . R e la c io n a d a à h ip e r t e n s ã o p o rta l, o q u e fa z c o m q u e tais p a c ie n te s
potencialmente hemorrágicos. s e ja m c o n d u z id o s p e la s a d m in is tr a ç õ e s d e (J -b lo q u e a d o r e s , c o m o u

Mensuração de gradiente pressórico portal, definindo ver­ s e m n itra to s a s s o c ia d o s ;

dadeira pressão portal, é obtida através de angiografia inva- 5 . N a fa lê n c ia d a a tit u d e 4 , t ra tá -lo s a tra v é s d e im p la n t e d o t ip s o u
r e a liz a ç ã o d e c iru rg ia s d e s c o m p re s s iv a s clássicas d o s is te m a v e n o s o
siva, valendo-se do acesso pela veia jugular com definição de p o rta l.
valores conseguidos em veia hepática oeluída e livre. A dife­
700 Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico

to de substâncias vasodilatadoras, tais como, glucagon, pros-


m MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS taglandinas, óxido nítrico, fator natriurético atrial, ácidos bi-
A apresentação clínica da hemorragia digestiva alta depende liares, e vasoconstritoras como endotelinas e tromboxane A2.
da intensidade do sangramento. Hematêmese e melena são os Como consequência, esses pacientes evoluem com alterações
sinais clínicos mais frequentemente observados, acompanhados hemodinâmicas sistêmicas, caracterizadas por hipoxemia arte­
ou não de instabilidade hemodinâmica (lipotimia, taquicardia rial, síndrome hepatopulmonar, aumento do débito cardíaco,
e hipotensão). Nesses pacientes, mostra-se fundamental carac­ hipotensão arterial, redução da resistência vascular periférica,
terizar o número e intensidade dos episódios de sangramento, hipoperfusão com acentuada retenção renal de sódio e água,
a reserva funcional parenquimatosa e o uso por esses pacientes típicos do estado hiperdinâmico que apresentam.
de drogas potencialmente hemorrágicas. Geralmente, a m a­
nifestação inicial é de melena, acompanhada de palidez cuta- ■ Fatores preditivos de sangramento
neomucosa, sinais clínicos de encefalopatia portossistêmica,
com ou sem repercussões hemodinâmicas importantes. A cada ■ Endoscópicos
novo surto, em consequência da menor perfusão sanguínea 1. Cerca de 65 a 70% dos cirróticos com VEG não sangram
aos hepatócitos, reduz-se a reserva funcional hepática, insta­ dentro dos próximos 2 anos a partir do diagnóstico, porém
lando-se ascite, infecções, distúrbios de coagulação, icterícia e 50% deles poderão falecer no primeiro episódio; 2. cerca de
insuficiência renal. Na vigência da hemorragia, considera-se o 73-76% desses doentes exibindo VEG de grande calibre e si­
sangramento clinicamente significativo, quando existe neces­ nais vermelho-cereja à endoscopia (cherry-red spots) sangram,
sidade de transfusão de pelo menos duas unidades de sangue, versus 6% daqueles que não apresentam esses sinais, embora
ou mais, no período de 24 h, a partir da hora zero ou quando com varizes gástricas presentes. Tais aspectos são vistos na
a pressão sistólica se situe abaixo de 100 mmHg, ou a m udan­ Figura 62.3.
ça postural provoca queda pressórica superior a 20 mmHg,
e/ou a frequência do pulso excedendo 100 bpm, já no início ■ Métodos de im agens
do atendimento. 1. Através do ultrassom com Doppler, se define que aqueles
Esses graves pacientes merecem ser tratados valendo-se do cursando com um elevado índice congestivo (proporção entre
monitoramento de condições cardiovasculares. São esses que área da veia porta e o fluxo sanguíneo portal) têm maior risco
apresentam circulação sistêmica hiperdinâmica, que se traduz de apresentarem sangramento, bem como a trombose portal,
por débito cardíaco elevado, reduzida resistência vascular peri­ e varizes gástricas, com evidências de fluxo hepatofugal con­
férica e hipotensão arterial. Associam-se resposta contrátü sis­ figurando também maior risco; 2. funciona como importante
tólica e diastólica comprometida durante estresse, prolongado fator preditivo de sangramento a ultrapassagem de 12 mmHg
intervalo QT e aumento de câmaras cardíacas. São distúrbios do GHP, medido através de cateterismo ao nível de veias hepá-
graves, responsáveis pela instalação de insuficiência cardíaca ticas, traduzindo essa mensuração a verdadeira pressão portal
pós-implante de T1PS, ou de cirurgias maiores e, inclusive, do (Figuras 62.4 a 62.7).
transplante de fígado. Mecanismos patogênicos responsáveis
por essa evolução incluem mudanças biofísicas em membra­
nas dos cardiomiócitos, atenuação do sistema p adrenérgico ■ C0M0 DEFINIR A IMPORTÂNCIA D0
estimulador e hiperatividade de sistemas inotrópicos negati­
vos, mediados via GMPcíclica, os quais contribuem para que SANGRAMENTO DIGESTIVO N0 CIRRÓTICO
cursem também com síndrome hepatorrenal. Acresce que, não
infrequentemente, aqueles com síndrome metabólica e obesos Esses aspectos foram definidos no encontro de Baveno so­
cursam com elevações de níveis pressóricos arteriais, diabetes bre hipertensão portal, realizado em 1996, e obedece a certos
melito, hiperlipidemia e doença coronariana, mesmo em uso parâmetros:
de betabloqueadores, drogas sensibilizadoras de insulina, es-
tatinas e diuréticos que atuam em túbulos contorcidos próxi­ ■ Significado clínico do sangramento
mos e distais. Além desses distúrbios hemodinâmicos, evoluem
com enfermidades tromboembólicas, resultantes de deficiên­ a. Requerimento de duas unidades de sangue nas primeiras
cias de proteínas S e C e antitrombina III, além das presen­ 24 h; b. pressão arterial sistólica menor que 100 mmFIg, ou fre­
ças de anticorpos antifosfolipídios e elevadas concentrações quência cardíaca além de 100 bpm e outros sinais de hipovole-
de hemocisteína identificadas no sangue periférico. São esses mia ou choque traduzem quadro hemorrágico grave.
doentes que cursarão com tromboses venosa portal e de veias
profundas, ou com tromboembolismo pulmonar. ■ Sangramento agudo sem controle dentro de 6 h
a. Administração de quatro ou mais unidades de bolsas de
■ ASPECTOS FISI0PAT0LÓGIC0S sangue; b. incapacidade de elevar a pressão sistólica além de
20 mmHg da medida basal, ou acima de 70 mmHg; c. incapa­
A veia porta se forma a partir da junção das veias mesenté- cidade de redução da frequência cardíaca a menos de 100 bpm;
rica superior e esplênica, com cerca de 70% do fluxo sanguíneo d. eclosão de novo surto hemorrágico expresso por hematême­
hepático derivando desse sistema, rico em fatores hepatotró- se; e. hematócrito abaixo de 27%, ou hemoglobina menor que
ficos. No cirrótico, a hipertensão portal é classificada como si- 9 g/dL Enquadramento nesses itens exigirá estadiamento da
nusoidal, consequente à desorganização da arquitetura hepá­ gravidade da doença hepática, segundo critérios de Child-Pugh
tica causada pela necrose dos hepatócitos, fibrose e formação ou MELD, sendo recomendável associar avaliação da função
de nódulos de regeneração. A essas modificações anatômicas, renal e existência de sinais neurológicos que definam encefa­
associam-se alterações funcionais que levam ao não clareamen- lopatia hepática.
Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico 701

Figura 62.3 Observar bem, no sentido horário, as varizes esofágicas e gástricas, com sinais premonitórios ou preditivos de sangramento. (Esta
figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 62.4 Arteriografia de tronco celíaco mostrando artérias he- Figura 62.5 Portografia arterial evidenciando tronco porta e esplênica
páticas irregulares, tortuosas, porém com distribuição normal até a pérvia, com circulação colateral bem visível.
periferia do órgão.

cromatose pela realização de sangrias; 3. quelação do cobre na


■ ASPECTOS TERAPÊUTICOS doença de Wilson; 4; corticoides, azatioprina e outros imunos-
supressores na hepatite autoimune; 5. buscando melhorar o
■ Profilaxia prim ária
fluxo biliar com ácido ursodesoxicólico, administrado naqueles
Baseia-se em medidas terapêuticas que melhorem a arquite­ com cirrose biliar primária e colangite esclerosante primária;
tura hepática, revertendo a fibrinogênese e suas consequências, e 6. abstinência alcoólica nos etilistas. Ampliam-se esses ob­
valendo-se de: 1. tratamento específico das hepatites crônicas e jetivos ao atuarmos melhorando a produção de óxido nítrico,
suas consequências, induzidas pelos vírus B e C, administrações valendo-nos de estatinas, suplementando tetra-hidrobiopterina,
de interferons peguilados e ribavirina e/ou análogos nucleosí- na busca de inibir o sistema vasoconstritor via COX-1/TXA2,
dicos; 2. depleção dos estoques corpóreos de ferro na hemo- medidas ainda consideradas experimentais.
702 Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta noCirrótico

Figura 62.6 Venografia hepática com cateter impactado, visando a Figura 62.7 Venografia hepática com cateter livre na luz do vaso, vi-
medir pressão de supra-hepática ocluída. sando a medir pressão de supra-hepática livre.

No entanto, na vida prática diária, deve-se levar em consi­ ------------------------------------▼------------------------------------


deração que os cirróticos que nunca sangraram, ao apresenta­ Q uadro 62.2 Profilaxia primária da hemorragia por varizes esofàgicas
rem sinais de hipertensão portal, caracterizados por achados com isosorbide-5-mononitrato (IS 0-5-M T)
endoscópicos de VEG de grosso calibre com risco iminente de
sangramento (presença de manchas vermelhas e GHP acima de 1. R e s u lta d o s n o c o t e ja m e n t o c o m p ro p r a n o lo l:
a. 2 a n o s — re s u lta d o s s im ila re s (s o b re v id a e s a n g r a m e n t o )
12 mmHg), deverão ser tratados profilaticamente com betablo-
b. 5 a no s — ín d ic e d e m o r t a lid a d e . C o m I S O -5 -M T s o b r e t u d o d e
queadores. Nesses casos, deve-se administrar, VO, proprano- p a c ie n te s c o m < 5 0 a n o s d e id a d e (A n g é lic o e t a i , 1 9 9 7 )
lol na dose inicial de 20 a 40 mg/dia, na tentativa de promover 2 . R e s u lta d o s n o c o t e ja m e n t o c o m n a d o lo l (p a c ie n te s c o m a scite):
redução da pressão portal e vasoconstrição esplâncnica. Acei­ a. I S O -5 -M T m e n o s e fic a z e g e r a n d o m a is e fe ito s c o la te ra is

ta-se que os pacientes se encontram betabloqueados, e poten­ b. S e m s ig n ific à n c ia e statística q u a n t o à m o r t a lid a d e


c. I S O -5 -M T n ã o d e v e se r u s a d o (S a le rn o e r a l., 1 9 9 6 )
cialmente protegidos do risco de HDA, quando a frequência
3. P re v e n ç ã o d o r e s s a n g ra m e n to :
cardíaca é reduzida em 15-20% de seu valor inicial. Quando
a. I S O -5 M - T + b e t a b lo q u e a d o r m e lh o r q u e :
esse comportamento não é observado, deve-se ampliar a dose, a l . E s c le ro te ra p ia e m C h ild C (V illa n u e v a e t a i , 1 9 9 6 )
a cada semana, em 10 mg, que pode provocar efeitos colaterais, a 2 . E s c le ro te ra p ia + a n a s t o m o s e d e s c o m p re s s iv a e m p a c ie n te s
C h ild B (F e u e fo / .,1 9 9 5 )
tais como lipotimia e hipotensão arterial, comportamento que
a 3 . N ã o há d ife re n ç a e sta tística e n t r e o s g r u p o s
se encontra diretamente relacionado com a reserva funcional
4. O u tra o p çã o :
hepática e com a existência ou não de miocardiopatia, sobre­ N a d o lo l x n a d o lo l + e s p ir o n o la c t o n a : re s u lta d o s s im ila re s e n tre os d o is
tudo alcoólica. Atuando-se dessa forma, promove-se redução g r u p o s (A b e c a s is e t a i , 1 9 9 7 )
de hemorragia por ruptura dos vasos de grosso calibre em 40%,
principalmente nos pacientes Child A e B. Alternativamente,
aqueles que evoluem com complicações próprias desse fármaco
deverão ser medicados com os nitratos em doses de 20 a 40 mg/
------------------------------- ▼-------------------------------
dia (Quadro 62.2).
Q u a d ro 62.3 Agentes redutores da resistência intra-hepática
Mais recentemente, advoga-se o uso contínuo de vasodi-
(Turnes, Abraldes, Bosch, 2003)
latadores dotados da capacidade de reduzir a pressão portal,
mantendo a perfusão sanguínea ao fígado, melhorando a fun­ D o a d o r e s d e ó x id o n ítrico -' ls o s o r b id e -5 -m o n o n it r a t o n
ção hepatocelular. Inconveniente desse uso reside na compro­ V -P Y R R O / N O
vação de que tais efeitos estendem-se à circulação sistêmica, N C X -1 0 0 0

promovendo hipotensão arterial e baixa perfusão renal. Entre A g e n t e s a n tia lfa -a d re n é rg ic o s -' P ra z o s in 1’
C lo n id in e 0
essas drogas, incluem-se os doadores de óxido nítrico, agentes
C a r v e d ilo l6
antialfa-adrenérgicos, bloqueadores do sistema renina-angio-
B lo q u e a d o re s d o siste m a re n in a -a n g io t e n s in a L o s a rta n b
tensina e dos canais de cálcio e dos receptores de endotelina, Irb e s a rta n *
conforme apresentado no Quadro 62.3. B lo q u e a d o r e s d o s re c e p to re s d e e n d o t e lin a B o s e ta n
Nessa fase, discute-se o emprego associado da escleroterapia R 0 4 8 -5 6 9 5
ou da ligadura elástica das varizes esofagogástricas. Embora al­ LU 135252
F R 139317
guns estudos demonstrem que os pacientes assim conduzidos
B lo q u e a d o re s d o s c a n a is d e c á lc io V e r a p a m ilb
evoluem com redução na incidência de hemorragia digesti­
N ife d ip in e b
va alta, outros estudos caracterizam índices mais elevados de N ic a r d ip in e b
morbidade e mortalidade em relação ao tratamento efetuado
4Nào há dados disponíveis para seu uso combinado com betabloqueadores náo seletivos.
na vigência do sangramento, naqueles pacientes manipulados L Testados em humanos.
por via endoscópica.
Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico 703

■ Vigênda do sangram ento ------------------------------------------------------------------------------ ▼ ------------------------------------------------------------------------------

Os cirróticos com HDA deverão ser internados na unida­ Q u a d ro 62 .4 Drogas usadas de forma isolada visando o controle da
de de terapia intensiva, monitorados e procurando-se melhor ruptura de varizes esofagogástricas em cirróticos
e mais rápida estabilização hemodinâmica. Para tal, deve-se (McCormick & McCormick, 1999)
conseguir acesso venoso central, através de cateter central ou
promovendo-se dissecção venosa naqueles em que a ativida­ D rogas D osagem e a d m in is tra çã o
de de protrom bina se encontre abaixo de 50%, TTPA alar­ S o m a to s ta tin a 2 5 0 p g /h . In fu s ã o e n d o v e n o s a p o r 5 d ia s
gado e contagem de plaquetas inferior a 50.000/mm3. A re­
O c t r e o t íd io 5 0 p g /h . In fu s ã o e n d o v e n o s a p o r 5 d ia s
posição volêmica deverá ser realizada através da infusão de
T e rlip re s s in a 1 -2 m g e m b o lo a c a d a 4 h/2 d ia s
fluidos coloides e/ou hemoderivados de acordo com a neces­ 1 m g p a ra p a c ie n te s c o m < 5 0 kg
sidade clínica. Exige-se monitoramento laboratorial através 1,5 m g p a ra p a c ie n te s e n t r e 5 0 e 7 0 kg
do controle seriado de hemoglobina, hematócrito, eletrólitos, 2 ,0 m g p a ra p a c ie n te s c o m > 7 0 kg
Te rlip re s s in a 1 - 2 m g e m b o lo a c a d a 4 - 6 h
provas de função renal e de reserva parenquimatosa hepática
(albumina, bilirrubinas e parâmetros da coagulação). Todos N itra to s 10 p g d e n it r o g lic e r in a , a d e s iv o t r o c a d o a p ó s 2 4 h

os pacientes receberão antibióticos, principalmente as cefa- V a s o p re s s in a 2 0 u n id a d e s (U S ) p o r 15 m in (0 ,4 U / m in )


In fu s ã o in tra v e n o s a a té 12 h p ó s -in t e r r u p ç ã o d o
losporinas de terceira geração, sobretudo doentes com ascite, +
s a n g ra m e n to
visando-se a profilaxia da peritonite bacteriana espontânea. O
N itra to s 10 p g d e n it r o g lic e r in a , a d e s iv o t r o c a d o a p ó s 2 4 h
exame endoscópico só deverá ser realizado, após se restaurar
o equilíbrio hemodinâmico, objetivando definir a sede da he­
morragia e promover o tratamento local imediato nos casos
de ruptura de VEG.
Atualmente, no CETEFI, tratamos tais pacientes através da Quaisquer das técnicas endoscópicas empregadas, na com-
administração de terlipressina, um vasoconstritor arteriolar e plementação da terapêutica vasopressora, mostra-se eficaz, pro­
esplâncnico, propiciando potente e rápido efeito, interrom ­ movendo efetiva e imediata parada do sangramento em 80 a
pendo a HDA por ruptura de VEG. É recomendável aplicar a 90% dos pacientes, permitindo adequado reequilíbrio hemodi­
terlipressina em bolo intravenoso, na dose de 2 mg, seguindo- nâmico e menor volume de hemotransfusão, com redução do
se aplicações a cada 4 a 6 h, reduzindo-se para 1 mg, a cada 4 h, número de episódios de ressangramento nos próximos 5 dias.
caso o sangramento tenha sido interrompido. Atua após trans­ Algumas complicações relacionadas com a escleroterapia en­
formar-se em seu metabólito lisina-vasopressina, reduzindo sig- doscópica (EE) chegam a 2-3%, caracterizadas por ulcerações,
nificantemente pressões intravarizes e portal e o fluxo em veia estenoses esofágicas ou ressangramento, que ocorrem até 6 me­
ázigos e nas varizes esofágicas, permitindo o desenvolvimento ses após a parada do tratamento. Por outro lado, a ligadura
do equilíbrio hemodinâmico. Atuando dessa forma, reduz a (LE) promove erradicação mais precoce das varizes, redução
mortalidade em pacientes Child-Pugh C, com a vantagem de da incidência de ressangramento e menor extensão em profun­
preservar a função renal, mas com o inconveniente de poder didade da lesão tecidual esofágica. Tem, no entanto, algumas
induzir complicações em caso de choque hipovolêmico grave, desvantagens, tais como índice maior de recorrência, risco de
sendo contraindicada naqueles com coronariopatia e nos que perfuração e estrangulamento de mucosa esofágica, complica­
cursam com arritmias cardíacas, doença vascular de extremi­ ções que estão relacionadas, sobretudo, com a experiência do
dade e com história de prévio acidente cerebral. endoscopista. Nessa técnica, são menos frequentes os espasmos
Na ausência de interrupção da hemorragia ou existência e obstruções esofágicas distais, embora possam ser observados
de contraindicações à terlipressina, deve-se optar pela admi­ já nas primeiras semanas.
nistração de somatostatina, um peptídio endógeno que, em O balão de Sangstaken-Blakemore deverá ser empregado
infusão intravenosa contínua, promove vasoconstrição arte­ como última opção, ou seja, quando não se consegue a inter­
riolar esplâncnica, reduzindo o fluxo sanguíneo portal e, nas rupção do sangramento ativo em pacientes com instabilidade
colaterais, diminuindo o GHP de forma muito segura. A dose hemodinâmica grave, e diante da indisponibilidade do endos­
utilizada é de 250 fig, intravenosa em bolo, seguida de infusão copista ou das drogas redutoras do GHP. Para que exerça sua
contínua de 250 pg/h, por 2 a 5 dias; induz potente redução eficácia terapêutica, após sua colocação deve-se injetar ar o sufi­
da pressão portal, das varizes e no fluxo ázigo. Na ausência de ciente para mantê-lo fixado no fundo gástrico, promovendo-se
resposta, dobra-se a dose, sendo raros os eventos colaterais in­ pressão de 15 a 25 mmHg no dispositivo esofágico. Ressalte-se
duzidos pela terlipressina, devendo se associar a escleroterapia que ele deverá ser mantido implantado não mais do que 24 h.
endoscópica (EE). Esse procedimento permite controle da HDA em 45 a 90%,
Recentemente, como alternativa, temos utilizado um aná­ sendo frequentes os surtos de ressangramento precoce, ocor­
logo sintético, o octreotídio, o qual apresenta vida média mais rendo logo após sua retirada. São comuns complicações como
longa (1 a 2 h), sendo menos oneroso quando comparado à ulcerações isquêmicas da mucosa esofágica, necrose da asa do
somatostatina, esta de vida média mais curta (1 a 2 min). O nariz e perfurações, complicações observadas em 10-20% da­
octreotídio é capaz de promover a interrupção do sangramento queles assim manipulados por mais de 72 h, com mortalidade
em 80-90% dos casos. Infunde-se uma primeira dose, em bolo, de 70% em algumas séries estudadas, sobretudo quando assim
de 50 a 100 pg/h IV, e continua-se com dose de manutenção de são tratados pacientes Child C.
25 pg/h, por 24 a 48 h. Poucos efeitos adversos são observados,
e a eficácia é semelhante à de tamponamento com balão, uso ■ Profilaxia do ressangramento
de vasopressina, escleroterapia ou ligadura endoscópica (LE) Essas medidas visam a impedir o aparecimento de novos
realizados de emergência, com complicações sendo raramente surtos hemorrágicos e deverão ser tomadas logo após o con­
observadas. A administração de vasopressina, associada a ni­ trole da HDA. Baseiam-se na realização de sessões de EE ou LE
tratos, tem sido menos frequente (Quadro 62.4). em intervalos de 15 dias, associadas à administração de dro-
704 Capítulo 62 / Hemorragia Digestiva Alta no Cirrótico

gas betabloqueadoras, nitratos e/ou octreotídio. Apesar dessas a muscularis mucosae do estômago, sobretudo quando o GHP
medidas, a recorrência do sangramento pode ocorrer cerca de se encontra além de 12 mmHg. A incidência geralmente se
5 dias após interrupção do tratamento, relacionando-se esse acentua após sessões repetidas de EE ou LE das VEGR. Res­
comportamento ao GHP > 20 mmHg, concomitância com in ­ ponsável por 10-20% das FIDA em cirróticos, expressa-se ini­
fecção bacteriana, existência de trombose venosa portal, evo­ cialmente sob forma de perdas microscópicas nas fezes, mas
lução em choque, e naqueles Child-Pugh B ou C, e com níveis pode acentuar-se, evoluindo para situação de difícil controle,
séricos elevados de alanina-aminotransferase (ALT). Também aspecto clínico que não raramente se observa também naqueles
pode ser observado em 30-70% dos pacientes no primeiro com colopatia hipertensiva (Figura 62.9). Apresenta resposta
sangramento, ampliando-se, além desses números, a partir de terapêutica baixa à infusão de drogas vasoativas. Nesse caso, a
2 anos após interrupção do sangramento. Advogamos iniciar, terapêutica ideal não cirúrgica consiste no implante do TI PS,
logo em seguida ao prim

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