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Curso de

Desenvolvimento
Gerencial
do SUS

CADERNO
DO ALUNO

A Escuta1

Rafael Echeverría

O tema da escuta tenho tratado detalhadamente dele em outros lugares. Há um capitulo de meu livro Onto-
logia del linguagem dedicado a ele. Hoje, sem embargo, volto a este capítulo e devo reconhecer que não me sinto
a vontade, pois sinto que não me interpreta. O considero incompleto e, em muitos aspectos, ambíguo, pouco
concreto e pouco útil. Foi escrito há 14 anos e representava meu primeiro esforço para acometer uma abordagem
sistemática sobre o tema. Retornei examinar o assunto em várias oportunidades, e tenho introduzido novos ângulos
de observação e reconhecendo aspectos que antes passavam despercebidos.
O presente trabalho apresenta o estado atual da minha reflexão sobre este importante tema. Não descarto que,
como aconteceu no passado, no futuro retome algumas vezes mais a ele e em alguns anos mais me sinta obrigado a
produzir um novo trabalho que corrija, contradiga ou amplie o que hoje estou sustentando. Pessoalmente não tenho
problemas em contradizer o que disse antes. Isto resulta dos processos de aprendizagem que a vida nos proporciona.
Descobrir-me equivocado significa que estou vivo e que sigo crescendo. O privilégio de não contradizer-se per-
tence aos teimosos, aos duros de aprendizagem, e aos mortos. Quem se contradiz mostra que é capaz de escutar.
Em um nível geral temos sustentado que a escuta é uma das competências mais importantes do ser humano.
Em função da escuta construímos nossas relações pessoais, interpretamos a vida, nos projetamos para o futuro e
definimos nossa capacidade de aprendizagem e de transformação do mundo. Ela tem um papel determinante tanto
em nossa capacidade de encontrar satisfação na vida como assegura altos níveis de efetividade em nosso atuar.
Não há melhor indicador da qualidade de uma relação que a maneira como evoluímos a escuta que nela se
produz, seja esta uma relação de trabalho ou pessoal. Se alguém nos diz minha esposa não me escuta, meus filhos
não me escutam, meus pais não me escutam, sabemos que estas relações estão deterioradas. Se no trabalho alguém
diz meu chefe não me escuta, meus colegas não me escutam, sabemos que isto significa baixo nível de desempenho
e possivelmente um nível muito baixo de satisfação no trabalho. Porém é mais que isto. É possível que isto esteja
também comprometendo o sentido de vida, a dignidade daquela pessoa que não se sente escutada. Atrás dessa re-
clamação, a pessoa parece estar sustentando algo mais profundo: ela sente que não tem importância para os outros.
Não temos problemas em apontar o dedo aos demais e sustentar que não nos escutam, parecendo que o proble-
ma fosse apenas deles. Atribuímos pouca importância ao fato de que não sabemos nos fazer escutar. Muitas pessoas
procuram-nos buscando ajuda para que falem de forma que garanta uma melhor escuta e uma maior capacidade para

1 Publicado em: ECHEVERRRIA, R. Actos de Lenguaje. Vol I: La Escucha. Santiago de Chile: JC Saez, 2007. Traduzido e adaptado para o Curso de
Desenvolvimento Gerencial do SUS (CDG-SUS).

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influenciar o outro. É inegável que isso possa ocorrer, no entanto, ressalvamos que o modo de alcançá-lo deve ser
buscado por quem declara o problema.
Os problemas da escuta costumam ser recíprocos. Quem não se sente escutado, normalmente também não
sabe escutar os outros. O problema não é necessariamente do outro. O problema está na relação. Para avançar na
solução é indispensável trabalhar a escuta de quem não se sente escutado. Esse é o ponto de partida e se não iniciar-
mos o processo por aí é possível que não cheguemos muito longe. Tudo o que vem depois virá como consequência.
A mudança do outro é resultado da nossa própria mudança. Conseguiremos que nos escute uma vez que tenhamos
aprendido a escutá-lo melhor e que tenhamos também aprendido a falar de uma maneira diferente da que hoje uti-
lizamos. Bem ou mal este é o caminho mais curto rápido e eficaz e não sei se existe outro.
Acreditamos que conseguimos ver o problema dos outros, mas custa-nos reconhecer a nossa participação em
produzi-los. Não percebemos que, muitas vezes, a melhor maneira de intervir na mudança das coisas que tanto
nos incomodam nos outros, é intervir em nós mesmos. Isto acontece porque a mudança em nosso comportamento
muitas vezes conduz a mudança no comportamento dos demais. Outras vezes, entretanto, nossos incômodos com
os outros resultam de dificuldades mais nossas que deles. Portanto, ao modificar nossa atitude para com eles, o que
antes era problema, pode deixar de ser. Em todos estes casos, a mudança dos outros inicia com a mudança em nós
mesmos.

A escuta valida a fala


A escuta é a competência mais importante na comunicação humana. Todo processo de comunicação repousa
nela.
A fala só é efetiva quando produz no outro a escuta que o orador espera. Falamos para sermos escutados. Este
é o propósito da fala. Se o que digo ninguém entende, se digo uma coisa e escutam outra, minha fala não é efetiva.
Se dou uma instrução e fazem algo diferente do que estou dizendo, o desempenho fica comprometido. Se expresso
uma opinião e se entendem algo muito diferente, é provável que tenha problemas em minhas relações.
É possível que cante porque gosto de cantar. Porém, quando falo, normalmente falo porque necessito comu-
nicar-me. Se não conseguimos que nossa fala consiga concretizar-se em uma adequada escuta, a fala simplesmente
mostra que não está sendo efetiva. A escuta, portanto, é o critério de validação e o indicador da qualidade da nossa
fala. Neste sentido, a escuta aparece como o resultado da ação da fala; resultado que nos permite avaliar a efetivi-
dade de dita ação.

A escuta como precondição da fala efetiva


Sem embargo, não é menos certo que nos encontramos com a escuta não só depois da fala, como no seu resul-
tado, mas como um elemento que também precede a fala e que determina o grau de efetividade que a mesma pode
alcançar. Para conseguir conquistar a escuta do outro, um dos fatores mais importantes a ser considerado é se aquilo
que vamos dizer responde as inquietações do ouvinte, ao que lhe interessa. Quem fala somente do que interessa a

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si mesmo, dificilmente conseguirá ser escutado. Para que aquilo que pessoalmente me interessa seja escutado pelo
outro é indispensável que eu seja capaz de mostrar ao outro que o que estou dizendo é também do seu próprio in-
teresse e responde a suas próprias inquietações.
Para fazê-lo, para poder determinar o que interessa ao outro, é fundamental escutá-lo antes de dizer o que
quero dizer. Somente escutando posso saber o que lhe interessa. Algo que me interessa não necessariamente pode
interessar ao outro. A partir do que foi dito, damo-nos conta que a escuta não só aparece como resultado da fala,
uma vez que já falei, senão que é importante também que esteja presente antes da fala para poder conduzi-la para
uma escuta efetiva posterior.

Escutar é interpretar
Para entender o fenômeno da escuta, é importante fazer uma distinção entre ouvir e escutar. Afirmamos que
se trata de dois fenômenos diferentes. Quem acredita que ouviu o que o outro disse e pode repetir o dito pelo outro,
só confirma que ouviu o que o outro disse. Porém isso nada nos diz de sua escuta. E mais, se se pretende que ele
demonstre que escutou, talvez, por isso mesmo, demonstre precisamente o contrário: é muito provável que não
tenha escutado nada.
Os louros são capazes de repetir. Porém isso não implica que escutaram o que havia sido dito. As gravadoras
conseguem repetir o que foi dito, porém não podemos dizer que elas escutam. O ouvir nos permite poder repetir
o que alguém disse. Porém isto não demonstra que necessariamente escutamos. Ouvir é um requisito para escuta,
porém não é uma condição suficiente da escuta. Para escutar falta algo fundamental, algo que se não entendermos
será impossível entender o fenômeno da escuta.
Para escutar não basta ouvir, é necessário interpretar o que o outro diz. Caso não haja interpretação não há
escuta. A interpretação é o coração da escuta. Assim os surdos não podem ouvir, porém podem escutar, pois lhes é
possível interpretar o que os demais querem dizer-lhes. Da mesma maneira quando lemos, mesmo que não ouvimos
a voz do autor, conseguimos escutar sua palavra e interpretar o que procura nos dizer.
Ao relacionar a escuta com a interpretação podemos extrair conclusões importantes.
A primeira delas é o reconhecimento do caráter ativo da escuta. Se a escuta envolve uma ação interpretativa,
deduz-se que cada vez que pratico a escuta, estou ativamente procurando entender o que está sendo dito. A escuta
não tem, portanto, nada de passivo. Através da escuta a palavra do outro desencadeia um complexo processo inter-
pretativo do ouvinte.
Na medida em que o orador avança no seu falar, o ouvinte vai conectando sentidos; junta o que orador disse
no início com o que disse depois; relaciona o dito pelo orador com suas próprias experiências; avalia o sentido que
o mesmo ouvinte deduz; antecipa as possíveis consequências que se deduzem de suas interpretações, etc.
Nesse processo interpretativo que envolve a escuta, manifesta-se o caráter histórico dos indivíduos. Toda in-
terpretação se realiza desde o passado, desde uma tradição de sentido que nos remete tanto a nossa história pessoal,
como a história da comunidade a qual pertencemos e na qual crescemos. Dessa história surgem múltiplos elementos

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que se ativam na escuta. Entre eles há supostos prejuízos, pré-opiniões, modos de valorização, há padrões atuais de
conferir os sentidos, os quais são ativados num processo interpretativo.

Cada um interpreta o dito de sua maneira


O elemento da interpretação nos conduz a extrair uma segunda conclusão de importância. Se nos pergun-
tarmos de que maneira cada um interpreta o que lhe dizem, devemos reconhecer que o fazemos a partir de uma
história particular (passado) que no presente nos faz ser um tipo de observador (intérprete) particular. O sentido
que atribuímos ao dito, remete, portanto, tanto à nossa história, quanto ao tipo de observador em que ela nos
constituiu.
No fenômeno da escuta se sobrepõem dois horizontes de sentido. Por um lado o horizonte de sentido do ora-
dor, que com sua palavra, busca criar uma ponte com o ouvinte. De outro lado, o horizonte do ouvinte que atribui
um significado próprio às palavras do orador. Na escuta convergem e se juntam dois horizontes de sentido, dife-
rentes um do outro, que buscam coincidir em sentidos idênticos. Mas a tarefa não é fácil. De certo modo, a fusão
perfeita é uma tarefa impossível na medida em que cada interlocutor é uma fonte autônoma de entendimento do seu
sentido. Toda escuta está condenada a ser sempre uma aproximação do outro.

A escuta como problema: a brecha inevitável


O falado permite-nos concluir que o sentido conferido pelo ouvinte ao que foi dito pelo orador nunca é igual
ao sentido que o próprio orador confere ao que falou. A escuta, na medida que é uma interpretação que fazemos do
que o outro diz, sempre será uma aproximação, mais ou menos certeira do que o orador tem buscado manifestar.
Mas nunca será mais que uma aproximação. O sentido que o orador busca manifestar e o sentido que o ouvinte lhe
atribui ao que foi dito, são sempre diferentes. Isto implica, portanto, que sempre haverá uma distância, uma brecha
entre o orador e o ouvinte.
Ao reconhecer a brecha, descobrimos que dispomos de duas ferramentas fundamentais para superar o pro-
blema que nos aflige. A primeira delas é aprender a respeitar as diferenças que, inevitavelmente, surgem em toda
relação. Há quem pense que numa boa relação as diferenças desaparecem. Isto não acontece. Uma boa relação é
aquela que respeita diferenças. Essa é a real diferença. Mas podemos fazer mais, recorrendo a nossa segunda ferra-
menta. Na medida em que reconhecemos a existência desta brecha, podemos também cuidar dela, monitorando-a
e administrando-a, evitando que alcance proporções insustentáveis. O respeito pelas diferenças e a responsabilidade
que desenvolvemos ao diminuir a brecha, são as duas grandes ferramentas que dispomos para enfrentar o problema
da escuta.

Alguns mecanismos para diminuir a brecha


A escuta coloca-nos um problema a resolver, obriga-nos a encarar um desafio. Colocado em outros termos,
podemos dizer que provoca um processo de aprendizagem. Trata-se a rigor de aprendizagem que se dá em dois

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níveis diferentes. No primeiro nível algo mais superficial, consiste em identificar algumas ações que permitam de-
tectar a aludida brecha, reconhecendo-a para então reduzi-la. Estamos falando do que em outra ocasião chamamos
de aprendizagem de primeira ordem, um aprendizado dirigido diretamente ao nível da ação.
O segundo nível é, sem dúvida, mais importante. Neste caso não se trata de aumentar nosso repertório de
ações, como acontecia no nível anterior. Trata-se de procurar uma transformação radical do observador que fomos
até agora em face do fenômeno da escuta, de forma a gerar um entendimento diferente e dali produzir uma capaci-
dade autônoma para intervir nela.
O problema da escuta a que nos referimos não pode prescindir da necessidade de mudança por parte do obser-
vador e, portanto, de um aprendizado de segunda ordem. Nenhuma receita, nenhuma ação concreta, mesmo útil,
será suficiente para darmos conta do desafio que nos é apresentado.
Embora insuficientes, existem algumas ações específicas a que podemos recorrer e que podem ser úteis:
a) verificar escutas
Na medida em que reconhecemos o problema da brecha como inerente ao fenômeno da escuta, é importan-
te ficarmos atentos a ele e não supor que por eu ter dito o que disse, o outro interpretou como eu esperava ser
interpretado. Não importa o quanto eu pense ter sido claro, a brecha de sentido pode ter ocorrido. Precisamos,
portanto, verifica-lo. A constatação pode ser feita tanto quando estou na posição de orador, como quando estou na
de ouvinte.
Quando sou orador posso pedir ao meu ouvinte que me diga com suas palavras (o que me interessa não é que
repita as minhas palavras) o que entendeu do que foi dito. É importante que fale com suas palavras. Somente assim
tenho possibilidade de entender a sua interpretação do que foi dito e não o que ouviu. Caso repita minhas palavras
não saberei como as interpretou e, portanto, o que escuta a partir delas.
Quando estou na posição de ouvinte é muito importante que suspeite de minha própria escuta de modo que o
sentido que dou as suas palavras seja aquele que ele quis expressar. O que estamos dizendo que é que a verificação
da escuta deve ser feita sempre, não apenas quando acho que não estou entendendo, mas também quando acredito
estar entendendo. Para ter certeza de que escutei corretamente, dou uma parada na conversação e verifico a minha
própria escuta. Posso dizer ao orador “Espera um segundo. Deixa-me ver se entendi. O que você está falando é...”
e com palavras diferentes das usadas pelo orador, compartilho com ele a interpretação que até então dei às suas
palavras.
Há quem questione que muitas vezes não há tempo para realizar esta verificação de escuta. Evidentemente,
trata-se de priorizar e de fazê-lo quando avaliamos que existe a possibilidade de um mal- entendido.
b) compartilhar inquietações
Sempre que falamos tratamos de algo que nos importa ou incomoda. Problemas em nossa escuta resultam
também de não saber qual a inquietação que faz com que o orador diga o que diz. Escutamos o que diz, entendemos
o significado. Porém não conseguimos relacionar com o que leva o orador a falar. Às vezes, o orador tem o cuidado
de demonstrar a inquietação, a partir da qual está falando. Diz-nos, por exemplo, “Visto que aconteceu tal coisa,

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com tais implicâncias... sugiro que...”, e neste caso entendemos porquê da sua sugestão.
Muitas vezes nos sugerem (continuando com o mesmo exemplo) sem que nos digam claramente quais as in-
quietações que suscitam sua fala. Isto implica que a escuta do ouvinte não disporá de elementos chaves para a sua
interpretação. Quando isso acontece, quando a inquietação que leva o orador a falar não foi apresentada, sugerimos,
como forma de afinar a escuta e reduzir a possibilidade de brechas, perguntar por ela. Uma vez que conhecemos a
inquietação, não só compreendemos melhor o que está sendo dito, como também nos é possível avaliar se o que o
orador nos diz, representa a melhor maneira de responder a sua própria inquietação ou, inclusive, de avaliarmos se
a inquietação do orador é uma inquietação válida. É muito provável que, a partir dos antecedentes de que dispomos,
possamos analisar a pertinência ou validade da inquietação do orador.
c) indagar
Uma das ferramentas mais importantes que dispomos para diminuirmos a brecha em nossa escuta é o questio-
namento. Para isso a solução é perguntar, é pedir ao orador que nos dê mais informações para completar ou corri-
gir o que achamos que estamos escutando. Quando perguntamos, o que estamos fazendo é utilizarmos a fala para
garantirmos uma melhor escuta. Indagando, falamos para escutar melhor, falamos com o propósito de que o outro
explicite sua fala. Se achamos que nossa escuta não é segura, o melhor é perguntar. Se achamos que é ambígua, o
melhor é perguntar. Se achamos que cabe mais de uma interpretação, perguntamos. O objetivo é garantir que a
interpretação que decorre de nossa escuta faça com que essa brecha seja o menor possível. Podemos perguntar de
diversas maneiras e isto dependerá das circunstâncias concretas da conversa. Podemos, por exemplo, perguntar ao
orador sobre a origem do que nos diz. Sobre o presente e a condição do que nos está dizendo. É possível perguntar
sobre as consequências futuras das ações que estão em jogo. Enfim, os caminhos das indagações são múltiplos e
cada situação concreta deverá revelar aqueles que são pertinentes. O que importa é o objetivo: a redução da brecha
na escuta.

ROTEIRO PARA FACILITAR A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO


1. Por que a escuta é uma das competências mais importantes dos seres humanos?
2. Por que o problema da escuta está na relação interpessoal?
3. Por que a escuta precede e valida a fala?
4. Em que se baseia o autor para afirmar que cada um interpreta do seu modo?
5. Por que a brecha da escuta é inevitável?
6. Comente os mecanismos que podemos usar para diminuir a brecha da escuta.

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