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Na Folha
Mais uma vez lama, destruição, morte, desamparo e desolação.
Ora, o bem público é, por definição, reponsabilidade do Estado e o tal do “meio ambiente” é o
mais claro exemplo de um bem estritamente público. Pois se não for o Estado a cuidar de nossos
rios e matas, da qualidade do ar de nossas bacias aéreas e da qualidade das águas fornecidas por
nossos sistemas de abastecimento, quem o fará? É para cuidar desses bens – dos quais depende TOP
fundamentalmente a vida da nossa população – que foram criadas leis e instituições ambientais.
Estas instituições não foram feitas para arrecadar recursos, mas para fiscalizar e regular as
atividades que podem causar danos à vida e à saúde do povo. E mais: como essas atividades são
muitas – é o caso das barragens de resíduos de mineração, por exemplo – essas normas, leis e
instituições, no interesse da população, precisam ser não só cuidadas, mas fortalecidas. Para
cumprir seu papel, tais organismos da máquina pública requerem conhecimento e, sobretudo,
autonomia de decisão ante os poderosíssimos interesses que buscam, sobre eles, exercer sua
forte pressão; interesses que, no fundo, prefeririam talvez que estes órgãos nem existissem.
Desde sua criação nos anos 1980 até o presente, as agências ambientais do Estado brasileiro –
em níveis estadual ou federal – vêm sendo objeto de uma gradual desmontagem. A opção de
seguidos governos pela manutenção do modelo de desenvolvimento neoextrativista, que se
instalou no país a partir dos anos 1990, foi acompanhada por esforços permanentes no sentido
de flexibilizar a aplicação das leis e das normas inicialmente instituídas. Tratou-se, desde então,
de facilitar a instalação no país, a qualquer custo, de empreendimentos intensivos em recursos
naturais, isto é, aqueles que exploram para além dos limites os nossos bens comuns. Entre os
fatores de competitividade das nossas exportações de commodities, sempre estiveram incluídos
componentes que não são contabilizados nos preços, tais como a fertilidade de nossos solos, a
pureza de nossas águas, entre outros. A “vantagem competitiva” para alguns, repousa, em grande
parte, no repasse, sem pagamento, de partes do nosso patrimônio natural comum que viajam
embutidas nas mercadorias exportadas. Mas, devemos somar a isto, também, o afrouxamento
das condições de segurança de empreendimentos e a mudança do traçado de áreas de
preservação, medidas que foram sendo adotadas com o fim de atrair investimentos
internacionais que preferem instalar-se em países com fraco controle ambiental. Alguns
economistas chamam a isto de “competitividade espúria” – aquela baseada na predação do
patrimônio natural e social dos países exportadores (em lugar de uma competividade baseada
em investimentos em educação e na criatividade de nossos cientistas). “Irresponsabilidade
organizada” é, por sua vez, o nome que o sociólogo Ulrich Beck deu a essa submissão sistemática
dos poderes públicos a interesses privados fortemente dependentes de tecnologias perigosas e
intensivas em espaços e recursos naturais. Em nosso caso, espaços e recursos que alguns
representantes dos grandes interesses do agronegócio e da mineração desejam subtrair de áreas
protegidas – terras indígenas, quilombolas ou de unidades de conservação.
A questão do meio ambiente é por excelência de ordem política. Ela diz respeito à capacidade do
Estado controlar as forças que pretendem impor usos privados indevidos aos espaços por todos
compartilhados das águas, da atmosfera e dos sistemas vivos. A estas ações governamentais,
adotadas com o fim de prevenir riscos decorrentes de grandes empreendimentos degradantes e
poluentes, costumamos chamar de políticas públicas de meio ambiente. Nós a chamamos de
públicas porque elas visam prevenir a privatização de fato de tais espaços, cuja integridade é vital
a todos os cidadãos que os compartilham.
A ruptura da barragem da mina Córrego do Feijão, da empresa Vale, foi um desastre político e
não simplesmente técnico. Ele coloca em discussão toda a estrutura de regulação dos grandes
empreendimentos. O que ruiu não foi somente a barragem, mas a fragilidade do processo de
licenciamento. O que se revela, de forma calamitosa, é a indisposição do Estado controlar
grandes empresas. Ao se colocar, direta ou indiretamente, os processos de decisão nas mãos das
próprias empresas, regidas como elas são pela lógica da rentabilidade privada e da remuneração
de seus acionistas, libera-se as corporações para que ela adotem economias temerárias de
custos de manutenção ou opções técnicas que forçam, além da conta, a capacidade das
barragens segurarem os rejeitos. A concepção que vigora nos espaços de poder é de, em nome
de “desburocratizar” e “agilizar”, liberar os negócios privados para que usufruam dos bens
ambientais públicos do modo que melhor lhes convenha. É possível identificar, ademais, a
adoção de esforços destinados a neutralizar o debate público e reduzir a disposição da opinião
pública a ouvir os alertas daqueles que, levantando questões do ponto de vista do interesse geral
da população, procuram acompanhar os processos decisórios e legislativos, cobrando
informações e precaução aos responsáveis pelos empreendimentos. Ora, desde o desastre da
Samarco, fomos bombardeados por uma campanha publicitária milionária da empresa envolvida
naquele e no presente desastre. A população é submetida a campanhas de marketing que só
podem ter por fim reduzir a capacidade da sociedade discutir criticamente os problemas
associados à cadeia da mineração. Mais perturbador é o tamanho de um tal investimento –
destinado a manter o chamado “capital reputacional” ou a “imagem” da empresa – quando o
comparamos ao abandono a que foram relegadas as vítimas do descaso empresarial e
governamental que vivem ao longo do Rio Doce.
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Passados alguns dias, ante a repercussão e o tamanho do sofrimento imposto às centenas de
vítimas, governantes mencionam dimensões políticas e legais. Procura-se ressignificar a
promessa de campanha de flexibilizar os processos de licenciamento – “flexibilizar quer dizer
respeitar regras rígidas”, dizem. Em seu uso corrente, flexibilizar costuma designar o uso de
expedientes que permitam não aplicar normas, alegando-se razões de ordem superior, em geral
de ordem econômica, relativa ao desenvolvimento dos negócios. Quando há a pretensão de se
aplicar regras rígidas, a regra principal é a de “não flexibilizar”. Rebaixar o nível de risco da
barragem da mina córrego do Feijão é um exemplo claro da prática de flexibilização das normas
ambientais. “Decisão abominável que beira a insanidade” – foi a expressão da representante da
sociedade civil na reunião da Câmara Técnica de Atividades Minerárias do Conselho de Políticas
Ambientais do estado de Minas Gerais em 11 de dezembro último quando sua posição, contrária
à flexibilização/agilização excepcional do licenciamento, foi derrotada por 8 a 1.
Ao contrário do que se ouviu dizer, há, sim, muito o que fazer. Mas entende-se também que é
grande o ceticismo quando um governo subordina suas políticas ambientais e de saúde
ocupacional às prioridades do agronegócio e da mineração. Isso já veio acontecendo ao longo de
governos passados, tendo apenas se agravado após o impeachment de 2016; mas nunca antes
um discurso anti-ambientalista explicito foi adotado por agentes governamentais. Este último
episódio dá fortes elementos de razão à tese de que práticas empresariais irresponsáveis,
efetuadas com a complacência do Estado, serão tão mais frequentes e repetidas quanto as
populações atingidas são de baixa renda, trabalhadoras e pertencentes a grupos étnico-raciais
pouco representados na esfera decisória. O que nos cabe esperar é que, enquanto houver
espaço para o debate democrático de ideias, uma discussão crítica do modelo de
desenvolvimento neoextrativista e o respeito aos alertas dos defensores de direitos
socioambientais nos permitam alcançar a punição das empresas responsáveis e uma justa e
eficaz prevenção das práticas até aqui correntes de condescendência do Estado para com a
irresponsabilidade social corporativa.
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