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[E-Book]

Desenvolver
Competências
a partir da
Escola?

Philippe Perrenoud
Desenvolver competências
a partir da escola?
Uma introdução sobre currículos orientados para o desenvolvimento
da autonomia e luta contra as desigualdades
2
Philippe Perrenoud
Uma das maiores personalidades mundiais em educação, o suíço Philippe Perrenoud, docente da
Universidade de Genebra, sociólogo especialista em currículo, práticas pedagógicas e formação de
professores, tornou-se referência em nosso país no desenvolvimento do tema “Competências”, em
especial por meio de várias obras editadas e inúmeras palestras proferidas.

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Sumário
As críticas e os receios ........................................................................................................ 5
O conceito de competência, um conceito frágil? ....................................................... 6
As competências contra os saberes? ...................................................................... 10
O regresso do utilitarismo? .................................................................................... 12
A escola ao serviço do capitalismo? ...................................................................... 14
Reformas precoces e superiormente impostas? .................................................... 19
As resistências menos confessáveis ................................................................................. 21
Defesa incondicional de territórios disciplinares ..................................................... 22
Concepção elitista da escola ................................................................................. 23
Visão conservadora da cultura .............................................................................. 25
Medo da mudança ................................................................................................ 27
Falta de competências pedagógicas e didáticas ..................................................... 28
Os problemas abertos ....................................................................................................... 30
Referências bibliográficas .................................................................................................. 31

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Numerosos sistemas educativos desenvolvem um novo currículo orientado para a formação de competências.
Outros objetivam fazê-lo. Este movimento está longe de obter a unanimidade. As críticas apresentadas merecem
uma discussão, mesmo quando escondem, por vezes, algumas restrições menos confessáveis. Neste campo,
o que pode assustar é o excesso de precipitação ou de simplificação e a ausência de debate público.

As críticas e os receios

As críticas expressas são de várias ordens:

1. Conceito de competência não está estabilizado ou teoricamente fundamentado e, por isso, o trabalho seria desenvolvido
em areias movediças.
2. As competências virariam as costas aos saberes, designadamente aos disciplinares.
3. A abordagem por competências levar-nos-ia a um utilitarismo de baixo nível, a uma concepção estreita da cultura.
4. Os novos currículos fariam o jogo da economia, que só se rege pelas competências.
5. As reformas curriculares seriam demasiadamente rápidas, não seriam negociadas e os professores não estariam nem
convencidos nem formados.

Defendo, há já algum tempo, uma abordagem por competências. Isto não me conduz a tomar partido incondicionalmente por qualquer
reforma curricular que apareça. Nem a considerar qualquer crítica como um sinal de “resistência irracional à mudança”. É legítimo
dialogar com os que, de boa-fé, formulam objeções ou inquietações.

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O conceito de É verdade que não existe, hoje em dia, qualquer definição consensual do conceito de
competência. Alguns contestam a sua necessidade, afirmando que a noção de saber é
competência, um suficiente. Outros realçam que a distinção entre competências e capacidades (ou ainda
“savoir-faire”, “skills”, habilidades...) é fraca e varia consoante os autores. A noção de
conceito frágil? competências transversais é questionável (Rey, 1996).

Porque negar o que todos podem observar: o conceito não está estabilizado, a sua
definição é controversa. Para as ciências humanas e as ciências cognitivas, nada é mais
normal. Ainda não conhecemos completamente o espírito humano, a sua gênese, o
seu funcionamento, a conexão entre o conhecimento, o pensamento e a ação. Estamos
reduzidos a modelos parciais e contraditórios, muitas vezes a metáforas (Perrenoud,
2000 b). As da psicanálise são as mais conhecidas e as mais explícitas, mas falar de
transferência ou de mobilização de saberes não é menos metafórico.

Os que evidenciam essas hesitações semânticas e teóricas sugerem, pelo menos


implicitamente, que os programas orientados para os saberes não sofrem da mesma
ambiguidade, que cada um entende a noção de saber e que o único debate se relaciona
com a inscrição de tal ou tal conhecimento identificado no currículo.

O que não é perceptível, geralmente, é que os programas orientados para os saberes não
se arriscam a refletir sobre o modo de integração e de mobilização dos conhecimentos nos
espíritos dos alunos. Os saberes são tratados como componentes da cultura que a escola
tem por vocação “transmitir”. O que advém desses saberes no espírito e ação dos alunos
não depende do currículo, mas da didática ou da psicologia da aprendizagem. O objetivo
da formação resume-se apenas ao domínio de tal ou tal saber disciplinar, sem nunca se
deter um instante em conceituar esse domínio, como se o de um aluno de 13 anos fosse

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comparável ao do físico, do biólogo ou do historiador que “domina” essa disciplina.

À custa dessa cegueira pode-se evitar as incertezas e os conflitos sobre o programa.


Porque, a partir do momento em que nos perguntamos como é que os saberes constroem-
se, conservam-se, articulam-se, transferem-se, generalizam-se, esquecem-se ou se
enriquecem no espírito de uma pessoa acaba a clareza e o consenso. As falsas certezas
dos que põem em causa a fragilidade da noção de competência têm a ver com a
indiferença do que advém dos saberes, quando deixam de ser enunciados nos livros ou nas
palavras magistrais, mas se tornam representações movediças, flutuantes, parciais e, por
vezes, falsas no espírito dos alunos.
“o conceito (de
competências) não Acrescentemos que os que pensam que a noção de “saber ensinar” é clara, contrariamente
à de competência, demonstram uma grande ingenuidade sociológica. Até os saberes
está estabilizado, “científicos” não são tão delimitados, homologados e distribuídos como se supõe. Cada
a sua definição é campo do saber é igualmente um campo de força, com conflitos, dominações, ortodoxias,
hierarquias, exclusões, evoluções, mudanças de paradigma, e até mesmo “revoluções
controversa.” copérnicas”, que marginalizam o que estava no centro e colocam no centro o que era
ignorado ou ridicularizado pouco tempo antes. Quanto aos saberes que não advêm da
pesquisa, mas de outras práticas sociais, os seus contornos são ainda mais fáceis de
delimitar. Cada um reconstrói, à sua maneira, o mapa dos saberes que lhe parecem estar
estabelecidos e fecundados para poderem ser ensinados.

Acrescente-se ainda a arbitrariedade das escolhas curriculares que, no conjunto dos


saberes constituídos, privilegiam disciplinas, teorias, obras, domínios e criam uma fronteira
— nunca inocente — entre os saberes dignos de serem ensinados na escola e os que
dependem de outras instâncias de socialização ou cuja transmissão pode ser deixada à
sorte.

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Em suma, a acusação de fragilidade conceitual não pode estar reservada à abordagem por
competências. Todas as finalidades da educação escolar são enunciadas com a ajuda de
conceitos débeis ou controversos. Mas, como é hábito, os fundamentos conceituais da
tradição não são questionados, enquanto que as inovações devem dar provas de coerência
e de pertinência. Se isso fosse pedido, as práticas em vigor dificilmente conseguiriam
apresentá-las.
“Muitas vezes,
a humanidade A verdadeira questão é saber se é necessário esperar para pensar e repensar a educação
escolar — tanto as suas finalidades como as suas modalidades —, dispor de uma
aprende a andar teoria acabada e partilhada do espírito humano, do seu funcionamento, da sua ligação

caminhando com a ação, da sua formação. Isto seria, sem dúvida, preferível. Contudo, se, sobre
bases parciais e eficazes, as sociedades tomaram a seu cargo a educação das novas
e constrói gerações, é porque lhes parecia necessário e urgente não deixar à educação informal e à

progressivamente socialização, pela família e pelos seus pares, a transmissão da cultura de conjuntos em via
de desenvolvimento, de industrialização e de democratização.
os fundamentos
Pode-se contestar essa necessidade, duvidar da oportunidade de escolarização maciça das
racionais das suas sociedades e da educação. Se subscrevermos essa ideia, com entusiasmo ou pela falta de
práticas.” melhor, devemos assumir o risco que existe em organizar procedimentos educativos dos
quais não entendemos as atenuantes e as agravantes. É o risco de qualquer ação política,
no sentido vasto, mas também o de qualquer prática social ou profissional que tenha uma
certa complexidade. Muitas vezes, a humanidade aprende a andar caminhando e constrói
progressivamente os fundamentos racionais das suas práticas.

Isto não significa que seja necessário criar reformas curriculares sem o mínimo de

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bases conceituais sólidas. As reformas em curso teriam adquirido coerência se tivessem
esperado mais alguns anos antes de fazerem circular novos programas, se tivessem
aguardado, não para resolverem todos os problemas, mas para escolherem opções mais
explícitas e negociadas sobre os dilemas encontrados. Que uma reforma curricular não
possa apoiar-se sobre uma distinção clara entre capacidade e competência, qualquer que
seja e o mais discutível que seja, é dificilmente defensável. O mesmo acontece se ela não
propuser uma resposta clara à questão das competências transversais.
“Uma reforma que
deixa sem resposta Uma reforma que deixa sem resposta séria perguntas incontornáveis enfraquece a sua
credibilidade. Não importa que os ministérios ou os seus peritos tenham respostas para
séria perguntas tudo e ainda menos respostas definitivas e dogmáticas. Pelo contrário, ignorar as perguntas

incontornáveis é uma variante da política da avestruz!

enfraquece a sua
credibilidade.”

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As competências A crítica mais sumária consiste em afirmar que os saberes já não têm lugar num currículo
orientado para o desenvolvimento das competências. Ninguém pode sustentar essa tese de
contra os saberes? boa-fé, ou então seria a favor de uma total incompreensão da própria noção de
competência: não existe competência sem saberes, são ingredientes indispensáveis
da competência, a que Le Boterf (1994) chama recursos. A competência é uma valia
acrescentada aos saberes: a capacidade de utilizá-la para resolver problemas, construir
estratégias, tomar decisões, atuar no sentido mais vasto da expressão.

Será, no entanto, necessário, nos programas escolares, ligar qualquer saber a uma ou
mais competências? Há, a meu ver, outros motivos de saber. Os saberes escolares podem
justificar a sua presença no currículo enquanto:

• Pré-requisito à assimilação de outros saberes;


• Bases da seleção escolar;
• Fontes de ancoragem identitária e cultural;
• Materiais para exercer o “saber-fazer” intelectual;
• Bases de uma reflexão sobre a relação com o saber;
• Elementos para fazer funcionar situações de aprendizagem;
• Elementos de cultura geral;
• Recursos ao serviço das competências.

Reconhecer estas funções, analisadas em outro local (Perrenoud, 1999 c), não dá a
nenhum saber particular o direito incondicional de ser ensinado e avaliado num ciclo
escolar. O currículo discute-se, quanto mais não seja pelo fato da impossibilidade de
ensinar tudo. Mas esses critérios de legitimidade são múltiplos.

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É verdade que alguns dos motivos invocados podem ter o papel de álibi cômodo e
dissimular os piores conservadorismos. Daí a obrigar qualquer saber a tornar-se um
recurso ao serviço de uma ou mais competências identificadas é sem dúvida uma porta
que não deve ser transposta. Neste ponto de vista, os currículos onde só são encontrados
os enunciados das competências não são defensáveis:

• Porque excluem saberes essenciais, por exemplo, no registro da


identidade nacional ou regional ou como elementos de base de um
curso de vários anos;

“A competência • Ou porque obrigam a contorções intelectuais insensatas para apresentar

é uma valia esses saberes como recursos ao serviço de uma competência. Para que
serve, para justificar ensaios localizados, ou inventar uma competência
acrescentada como “saber sentir-se membro da comunidade”?

aos saberes.” O “reduzir tudo” à competência é absurdo e despoja o conceito do seu interesse. O
importante é justificar explicitamente e de maneira dialógica a incorporação de tal ou
tal saber no currículo sem se refugiar atrás da tradição nem ceder ao poder dos lobbies
disciplinares.

A questão de fundo não incide sobre uma oposição conceitual entre saberes e
competências, mas sobre o tempo que é necessário para subtrair a acumulação de saberes
e desenvolver a capacidade de utilizá-los. É aqui que residem os verdadeiros conflitos e os
verdadeiros lutos.

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O regresso do Uma das críticas recorrentes contra a abordagem por competências consiste em associar
as competências a ações muito práticas: preencher a sua declaração de impostos, gerirem
utilitarismo? as suas poupanças, organizar a sua cozinha ou plantar uma árvore no seu jardim.

Pode-se, então, afirmar que as competências estão nos antípodas de uma concepção da
cultura enquanto curiosidade gratuita, enquanto abertura para o mundo, enquanto desejo de
saber para saber, enquanto enriquecimento do espírito sem interesses utilitaristas.

Face a esta crítica, importa dizer primeiro que a escolha entre um utilitarismo estreito e
uma concepção mais vasta da cultura é um desafio curricular desde que a escola existe,
como o mostra Isambert-Jamati (1970). A oportunidade de criar um espaço para trabalhos
manuais, para a educação física ou para saberes do quotidiano (saúde, cozinha, limpeza,
finanças) foi e é regularmente contestada ou afirmada.

A abordagem por competências oferece, sem dúvida, como cada reforma curricular, a
oportunidade de reabrir o debate. No entanto, não existe nenhuma razão de tirar, a priori,
as competências do lado do utilitarismo. A não ser que nos tornemos suspeitos de nos
afundarmos no utilitarismo assim que nos referimos à uma ação humana, ao mínimo
desejo de domínio da realidade.

Tomemos o exemplo das ciências: neutralizar o mecanismo de transmissão da raiva ou


da AIDS, dominar o mundo nuclear ou a demografia de um país, desenvolver a engenharia
genética ou construir uma nave espacial são projetos utilitários que nunca teriam existido
sem uma pesquisa fundamental. Explicar os movimentos dos astros, a vida, a origem e
a evolução das espécies, as transformações da matéria e da energia, o desenvolvimento

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das populações e das sociedades são etapas preliminares ao progresso tecnológico. Mas
estes últimos também alimentam a teoria. Muitos dos investigadores desistiram de fazer
uma dicotomia simplista entre uma ciência pura, desinteressada, movimentada pelo único
desejo de saber e uma ciência estreitamente utilitária.
“A cultura [...]
trata-se de uma O que há, por outro lado, de mais utilitário que o desejo de saber? A psicanálise mostra-
nos que a nossa curiosidade não é “gratuita”, que responde às angústias e aos desejos de
característica da autoridade. Já seria tempo de aceitar a ideia de que a cultura humana, inclusive nas suas

nossa espécie dimensões teológicas e filosóficas, está fundamentalmente ligada à ação, a uma presença
incerta e inquieta no mundo, ao desejo de antecipar e de dominar os acontecimentos.
compreender Deixemos, portanto, de opor saberes desinteressados a saberes instrumentais. Todos os

e dominar a saberes têm por objetivo, cada um à sua maneira, aumentar o nosso domínio teórico e
prático do mundo mesmo se não resultarem em tecnologias e procedimentos.
sua condição,
pela linguagem, A cultura, pelo menos para os antropólogos, não se opõe às práticas sociais, à ação
humana. Pelo contrário, trata-se de uma característica da nossa espécie compreender
pela partilha, e dominar a sua condição, pela linguagem, pela partilha, pela memória coletiva e pela

pela memória conceitualização.

coletiva e pela Falta debater a relação à ação e a relação ao saber que tal ou tal currículo privilegia e estar
atento para que a abordagem por competências não seja reduzida à uma gama limitada de
conceitualização” “saber-fazer” inteiramente práticos.

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A escola ao serviço A moda da noção de competência no mundo empresarial (Ropé e Tanguy, 1994) é
suficiente para que alguns a considerem suspeita. Daí conclui-se que os programas
do capitalismo? escolares orientados para o desenvolvimento das competências não passam de uma servil
resposta a um pedido do patronato vai uma grande distância. Esse simplismo não está
isento de benefícios: para colocar de acordo professores com opiniões políticas e práticas
pedagógicas muito diferentes e para mobilizá-los para além das suas divergências sobre os
currículos orientados para o desenvolvimento das competências basta levantar o espectro
do domínio da economia sobre a cultura e a escola.

A escola não está afastada da sociedade e não pretende preparar para a vida, ignorando
o mundo do trabalho. Como lhe poderiam ser alheias às relações de força que existem
na sociedade e as ideologias dominantes? Se o mundo empresarial julga que a noção
de competência está no coração da “gestão de recursos humanos” nada o impedirá de
pensar que a escola deveria contribuir ainda mais para formar competências. As reformas
curriculares orientadas nesse sentido vão, por isso, agradar aos chefes, aos quadros e aos
profissionais que não têm nenhum desprezo para com as competências.

Será que a economia é a inspiradora das reformas curriculares atuais? Seria mais justo
dizer que existe confluência de duas correntes ideológicas que, ainda que utilizem as
mesmas palavras, não têm necessariamente os mesmos objetivos. Uns desejam que a
escola “produza” indivíduos “adaptados” ao mundo econômico, enquanto consumidores,
trabalhadores, ou até mesmo desempregados. Outros querem uma escola “libertadora”,
que desenvolva pessoas que produzam juízos e ações autônomas. As duas perspectivas
requerem saberes e competências!

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O que embaralha as cartas é que a contradição entre esses objetivos é, hoje em dia, menos
evidente. A economia moderna não sonha com trabalhadores assalariados portadores de
um saber-fazer específico, formados com vista a ocupar por muito tempo um posto de
trabalho bem definido. O que assusta os sindicatos é precisamente a desconexão entre o
diploma e a qualificação, por um lado, e o emprego, por outro lado. As empresas de hoje
necessitam de uma mão de obra móvel, tanto geograficamente como intelectualmente.

Eis o paradoxo: a evolução do capitalismo é ameaçadora porque as empresas reconhecem


a realidade das competências. Não por humanismo mas para assegurar a flexibilidade da
“As empresas de hoje produção e a incessante integração de inovações tecnológicas, assim como a permanente
redefinição dos produtos e da organização do trabalho. Por isso, possuir uma qualificação
necessitam de uma mão formal já não é uma proteção e o futuro dos trabalhadores com qualificação igual depende

de obra móvel, tanto das suas competências efetivas, o que individualiza o futuro de uns e outros, aumenta a
concorrência e enfraquece as solidariedades estatutárias.
geograficamente como
intelectualmente.” Essas evoluções, que são preocupantes para os trabalhadores, não impedem os docentes
e discentes de perceber:

1. Que as empresas não esperam da escola trabalhadores formados “por


medida” para um único tipo de tarefas; afirmam desejar que a escola
forme, em vez de pessoas “adaptadas”, pessoas capazes de se adaptarem
às numerosas e imprevisíveis mutações que os esperam, o que realça
a capacidade de antecipar, de compreender, de aprender, de regular,
de comunicar, de colaborar, de inovar, de contribuir para a melhoria da
qualidade.

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2. Que a importância acordada pelas empresas à noção de competência
manifesta também uma valorização da inteligência no trabalho, um
reconhecimento da ingenuidade, da criatividade e da autonomia necessária,
mesmo nos empregos pouco qualificados, para controlar o fosso entre o
trabalho prescrito e o que é realmente necessário fazer, dia após dia, para
que a produção “saia”.

Essas evoluções não são universais. Nas empresas mais tradicionais, o conformismo e a
adaptação imediata ao primeiro emprego ainda são valores seguros. Mesmo as empresas
“Mesmo as que apostam na inteligência põem limites à autonomia, ao espírito crítico, à colaboração
dos seus empregados.
empresas que
apostam na Podemos certamente duvidar ainda mais de um capitalismo que não tem medo da
inteligência e da cultura dos seus trabalhadores porque isso sugere que domina
inteligência mecanismos de controle bem mais sutis e potentes do que os que passam pelo
põem limites à obscurantismo e pela repressão do pensamento e da fala.

autonomia [...]” Como, sem cair num angelismo ingênuo, nos situarmos relativamente às expectativas
em relação à escola que diz aos seus docentes: formem indivíduos inteligentes, criativos,
autônomos, capazes de aprender? A suspeita ancestral dos docentes quanto ao mundo do
trabalho pode conduzi-los a não ver que, por razões diferentes, até mesmo contraditórias,
a economia espera que a escola faça com finalidades práticas o que promete em nome do
humanismo.

Importa, em segundo lugar, lembrar que o fundamento de qualquer movimento pedagógico

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ou de qualquer política democrática de educação é que os alunos que vão à escola
saibam utilizar o que lá aprendem. Os pedagogos não ficam à espera da onda da noção de
competência no mundo econômico para se preocuparem com a transferência dos saberes
adquiridos na sala de aula (Meirieu, Develay, Durand e Mariani, 1996; Frenay, 1996; Tardif e
Meirieu, 1996; Tardif, 1999; Roegiers, 2000).

Acumular conhecimentos para passar nos exames e ascender finalmente ao ensino


superior só traz proveito aos favorecidos. Para que serve passar horas, durante anos, a

“Valorizar saberes “fazer” História, Geografia, Física, Matemática, Biologia, etc. se não sabemos utilizar esses
saberes no dia a dia ou no trabalho?
vivos, ligados às
práticas sociais, que Valorizar saberes vivos, ligados às práticas sociais, que sejam ferramentas para atuar
sobre o mundo, não é um sonho neoliberal. Esta ideia é o fundamento de uma escola
sejam ferramentas democrática. A abordagem por competências não pretende mais do que permitir a cada um
aprender a utilizar os seus saberes para atuar. Deixar a noção de competência ao mundo
para atuar sobre o empresarial seria renunciar à vocação libertadora da educação escolar e à ideia de que o
mundo, não é um saber dá poder se soubermos utilizá-lo.

sonho neoliberal.” As reformas curriculares atuais não seriam necessárias se a escola cumprisse as
suas promessas, se os saberes escolares, uma vez adquiridos, fossem transferíveis,
mobilizáveis e se tornassem um recurso para a vida, maisvalias nos relacionamentos
sociais. Mas isso apenas funciona na esfera do trabalho, segundo uma formação
profissional específica, abertamente orientada para a aquisição de competências. Face
ao racismo, à AIDS, às crises econômicas, às mutações tecnológicas, à média, à
publicidade, à política, ao desemprego, ao sistema bancário, aos seguros, à medicina, ao

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direito, à área agroalimentar, à genética, à internet, muitos dos nossos contemporâneos,
embora devidamente escolarizados, ficam despojados, dependentes, impotentes para
compreenderem e ainda mais para dominarem os mecanismos que governam as suas
existências, a inflação, a globalização, as concentrações, etc.

“Numa democracia, Deixar às empresas e à formação profissional o monopólio da formação de competências


seria uma escolha desastrosa, porque aqueles campos não contemplariam os setores
o governo ou o julgados “não produtivos” da existência e porque deixariam a porta aberta à cultura
empresarial na definição das competências necessárias no mundo do trabalho.
parlamento têm o
direito de reformar
o sistema educativo
e, em particular, os
programas. Mas
esse direito não traz
consigo o controle
das práticas reais.”

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Reformas precoces Esta crítica parece-me muitas vezes bem fundamentada. É verdade que, numa democracia,
ninguém tem a certeza de ficar com o poder por mais de quatro anos. É, por isso,
e superiormente necessário trabalhar rapidamente, muitas vezes rápido demais. Quando se trata de “fazer
passar” uma lei que se tornará difícil de revogar uma vez posta em prática ou de criar uma
impostas? instituição nova, a mudança rápida é sem dúvida preferível a uma reforma inacabada.

Em matéria de política de educação, a precipitação é raramente benéfica. Não seria melhor


elaborar e negociar uma reforma durante dez anos e pô-la em prática durante mais dez
anos? Muitas vezes há urgência e importa dar um certo ritmo à mudança, impulsionar um
calendário “dinâmico”. Entre demorar o seu tempo e “despachar” uma reforma importante
durante uma legislatura, o desejável é o meio termo.

As contrariedades políticas não são as únicas em questão. A administração subestima


constantemente a capacidade dos docentes conseguirem despojar do seu sentido as
reformas às quais não aderem. Numa democracia, o governo ou o parlamento têm o direito
de reformar o sistema educativo e, em particular, os programas. Mas esse direito não traz
consigo o controle das práticas reais.

Se os docentes não percebem ou não aprovam as reformas curriculares orientadas para


o desenvolvimento das competências, elas acabarão por fracassar e prejudicar a ideia de
competência. Porque, para além dos confrontos abertos entre associações sindicais e
poderes organizadores, o futuro de uma reforma joga-se nas instituições (Gather, Thurler,
2000, 2001) e nas salas de aula. Deixa de haver uma resistência ativa e explícita mas sim
indiferença, deformação, empobrecimento, eufemização ou marginalização das ideias
fortes da reforma. Se bem que acontece uma situação perversa: oficialmente, a reforma

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é feita, enquanto que, no terreno, as práticas pouco mudaram, sem sinais aparentes de
dissidência ou de recusa.

As reformas curriculares atuais são vulneráveis porque atingem as finalidades da escola,


relacionadas com o conhecimento e a ação, ao mesmo tempo em que incidem fortemente
sobre a profissão de aluno e a de professor. Para que serve proclamá-las e ignorar o poder
que os atores no terreno têm para não as porem em prática? Isso só pode satisfazer
um governo que não quer saber da mudança real do sistema educativo e que deseja
simplesmente ser creditado, no mercado eleitoral, por uma reforma desenvolvida
a galope.

“Em matéria de
política de educação,
a precipitação é
raramente benéfica”

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As resistências As críticas à abordagem por competências merecem um verdadeiro debate quando são
de boa-fé. Contudo, por vezes, escondem resistências menos confessáveis que também é
menos confessáveis preciso analisar. Distinguiria cinco:

1. Defesa incondicional de territórios disciplinares;

2. Concepção elitista da escola;

3. Visão conservadora da cultura;

4. Medo da mudança;

5. Falta de competências pedagógicas e didáticas.

Façamos uma análise mais profunda.

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Defesa Os lobbies disciplinares defendem empregos mas também uma identidade, um lugar no
currículo, um peso na seleção e uma conexão com os cursos universitários, para os quais
incondicional espera-se que a escola obrigatória prepare a futura elite.

de territórios Mesmo que as competências não virem as costas aos saberes nem às disciplinas, elas

disciplinares exigem, como vimos, uma fatia do “bolo curricular” — dito por outras palavras, de tempo
para treinar a transferência e a mobilização do que foi assimilado. Por isso, os programas
básicos devem ser aligeirados, o que entra em contradição com os interesses dos cursos
especializados que esperam alunos “tão bem preparados quanto possível” no fim do ensino
obrigatório. Existe aí um conflito de interesses real, mas que não pode ser plenamente
explicado porque iríamos perceber que os programas disciplinares são feitos, em larga
medida, para os que aprofundam a disciplina para além da escolaridade básica. É uma
maneira de evidenciar a pouca importância que é dada à cultura disciplinar dos que não se
destinam ao ensino superior.

A abordagem por competências não exige o desaparecimento das disciplinas mas o


enfraquecimento das suas fronteiras e o desenvolvimento de um trabalho multidisciplinar.
Podemos imaginar, por exemplo, uma escola secundária que funcione pela manhã
segundo um horário disciplinar tradicional e, parte da tarde, com oficinas de projetos
multidisciplinares. De outra forma, as disciplinas perderiam campo, horas e trabalhos
especializados. Essa evolução favoreceria os professores polivalentes, em detrimento dos
peritos num único campo, incapazes de colaborar com os colegas de outras disciplinas.

22
Concepção O sistema educativo foi construído para cima, no qual cada grau de ensino deve ser
preparado na seqüência. De fato, no essencial, a escola prepara os alunos para a escola,
elitista da escola em vez de prepará-los para a vida. Apenas quando já está tudo funcionando é que nos
preocupamos em dar aos alunos dos cursos menos prestigiados algumas armas de
subsistência. E se trata ainda de prepará-los para uma formação profissional curta em
vez de prepará-los para algo maior, insistindo, por exemplo, sobre o cálculo mental e
a aritmética, a ortografia e a sintaxe, o desenho técnico, os trabalhos manuais e os
rudimentos das ciências aplicadas e da tecnologia.

Nessa visão elitista da escola, os que seguirão os cursos mais exigentes até ao fim são a
referência prioritária. Se os outros conseguirem adquirir, durante o seu percurso escolar,
alguns conhecimentos, terão a vantagem de com eles contribuir para a sua “cultura geral”,
mas se prefere não organizar o currículo em função dos seus prováveis destinos.

Os currículos orientados para o desenvolvimento de competências contestam essa lógica


elitista e pretendem preparar todos os alunos para a vida, quaisquer que sejam os seus
destinos ou condições sociais. Tais reformas não podem favorecer os que desejam para
os seus filhos, desde o ensino pré-primário, formação em Medicina, em Ciências ou em
Letras. As suas competências serão construídas durante o ensino universitário ou mesmo
depois. Importa assimilar o máximo de conhecimentos para se preparar para os concursos
ou exames, nada mais.

Os que denunciam a “descida do nível” referem-se, na realidade, ao nível das futuras elites.
É certo que uma escola orientada para o desenvolvimento de competências não preparará
tão bem os futuros matemáticos, químicos, historiadores ou filósofos. E depois? Quiçá seja

23
a única maneira de provocar a emergência de pedagogias universitárias mais eficazes e
com um processo de orientação para os diversos cursos universitários menos aleatórios...

A abordagem por competências não sacrifica as elites. Na pior das hipóteses, abranda um
pouco a sua progressão para a conclusão do segundo e terceiro ciclos escolares. Se isso
permitir que um grande número de alunos fique melhor preparado apenas para a vida, o
preço é razoável.

“[...]a escola
prepara os alunos
para a escola, em vez
de prepará-los para a
vida”

24
Visão “A cultura é o que fica quando já esquecemos tudo”. Esta frase célebre não é desprovida de
sentido. De um ponto de vista antropológico, toca no essencial: a cultura está incorporada,
conservadora é uma “segunda natureza”, inscrita no hábito, na gramática geradora de representações,
dos juízos e das práticas. A sua gênese é esquecida, o seu conteúdo tomado como
da cultura evidente.

Uma parte dos literatos interpreta essa fórmula dando à escola uma missão de socialização
sutil: formar o gosto, a sensibilidade, o espírito, forjar um modo de compreensão do mundo
com uma estética dominante ou discursiva.

A abordagem por competências assusta os que têm essa visão da cultura. Preparar para
agir é renunciar à uma relação contemplativa e estética do mundo, é aproximar-se do
espírito de geometria, da cultura dos técnicos e dos homens de ação, em detrimento do
espírito de requinte, de gosto pelo inefável e pelo implícito.

Não neguemos o conflito de representações da cultura. Mas não deixemos o monopólio


da sua definição aos que só veem as artes e as letras, aos que admitem que as ciências
façam parte da cultura e repudiam tudo o que depende das técnicas, da lutas sindicais e
das políticas ou das práticas do quotidiano.

Tudo o que aprendemos e partilhamos faz parte da cultura humana, desde a Gioconda até à
pintura mais “grosseira” e mais “popular”, da arte de dissertar à de cozer massa ou limpar
o chão. A cultura inclui os componentes mais contemplativos e a mais ativo da nossa
relação com o mundo, as mais metafísicas e as mais pragmáticas.

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As competências não esgotam a cultura, mas fazem parte dela. Não apenas as
competências dos criadores, dos prêmios Nobel, das mulheres e dos homens ilustres, mas
também de todos os trabalhadores, quaisquer que sejam as suas práticas. A abordagem
por competências não é utilitarista, mas não exclui a ação da esfera da cultura. Por isso,
encontra a oposição dos que pensam que a cultura define-se pela gratuitidade, pelo
diletantismo, pelo prazer de saborear a beleza do mundo e das obras.

Não seria inútil que as nossas sociedades tivessem uma imagem menos estreita das
suas próprias culturas do que a que é proposta pela tradição literária, uma imagem mais
inspirada na antropologia cultural e nas ciências sociais do que em definições elitistas e
“As competências conservadoras dos guardiões no templo da Cultura com “C” maiúsculo.

não esgotam a cultura,


mas fazem parte
dela.”

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Medo da Quase todas as pessoas temem mudanças, por razões que são, em grande parte,
racionais. Mudar é desaprender e aprender, enfrentar novas situações, resolver novos
mudança problemas, colaborar com parceiros desconhecidos. Há, por isso, muito trabalho e muitos
riscos.

Se a abordagem por competências não assusta aos que redigem os novos programas,
ela pode muito bem assustar aos que deverão pô-las em prática. Porque não se tratará de
trocar textos por outros textos, mas, para cada docente, muitas vezes numa certa solidão,
operar uma forma de revolução nas suas práticas, na sua ligação com os saberes, na sua
maneira de ensinar.

Mas quem arriscaria, hoje em dia, afirmar que tem medo de mudança? Quem desejaria
parecer imóvel num mundo em movimento? Assustado, quando o futuro pertence aos
que arriscam? Confiante nas suas rotinas quando a modernidade apela a uma evolução
constante?

Num mundo onde a mudança tornou-se um valor central, quem resistir abertamente
desqualifica-se. É, por isso, necessário opor-se não à mudança, mas à uma reforma, não
porque ela obriga a renovar os seus hábitos — a verdadeira razão — mas porque está mal
concebida e não responde às necessidades.

Nos sistemas educativos, o conservadorismo mais “normal” não pode afirmar-se a céu
aberto. É necessário alterar o debate e encontrar argumentos mais apresentáveis para se
oporem às reformas.

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Falta de A maioria dos sistemas educativos que introduzem um currículo orientado para o
desenvolvimento de competências parecem subestimar as implicações pedagógicas.
competências Uma modernização banal dos programas exige dos professores uma atualização dos
seus conhecimentos no que diz respeito aos conteúdos que devem ser ensinados. De
pedagógicas e resto, nada muda no contexto didático, na maneira de preparar as aulas e avaliar os

didáticas conhecimentos dos alunos.

Quando uma reforma curricular modifica a própria natureza dos objetivos de formação,
não é suficiente introduzir novos conteúdos às estratégias pedagógicas que não foram
modificadas. Temos o exemplo das reformas dos anos 1970-80, relacionadas com a língua
materna e as reformas do mesmo gênero do ensino das línguas estrangeiras: quando
foi necessário ensinar não só a analisar a língua mas a utilizá-la, a cultura gramatical
dos professores não pôde ajudá-los, porque lhes foi pedido que criassem “situações de
comunicação” e que os alunos recebessem um domínio prático da língua. Essas reformas
curriculares tiveram resultados medíocres uma vez que os professores não foram formados
para desenvolver concretamente capacidades de comunicação.

Tratando-se de um currículo orientado para o desenvolvimento de competências, o


obstáculo é o mesmo. As competências não se ensina. Só podem ser criadas condições
que estimulem a sua construção. Dar uma excelente aula não cria competências, mas
transmite saberes. O ato de apresentar exercícios bem feitos apenas faz com que os alunos
trabalhem algumas capacidades.

Para desenvolver competências é necessário colocar o aluno em situações complexas,


que exigem e treinam a mobilização dos seus conhecimentos: um enigma que deve ser

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elucidado, um problema que deve ser resolvido, uma decisão a ser tomada, um projeto a
ser concebido e desenvolvido.

Os docentes familiarizados com os métodos ativos, com as novas pedagogias e com as


teorias construtivistas estão “como peixes na água” quando são convidados a desenvolver
competências, o que já fazem, geralmente, da sua própria iniciativa. E os outros?

Se os professores tivessem uma visão construtivista dos saberes, a transposição para as

“Se os professores competências seria mais fácil. As pedagogias transmissíveis são, infelizmente, as mais
utilizadas, o que não espanta, nesse estado de sobrecarga endêmica dos programas e da
tivessem uma fraca formação dos docentes em psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento. Não é

visão construtivista impossível que, para a maioria dos professores do secundário, o nome de Vigotsky lembre
o nome de um guarda-redes eslavo.
dos saberes, a
transposição para
as competências
seria mais fácil”

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Os problemas Se defendo a abordagem por competências é porque as críticas e as dúvidas que indiquei
parecem-me ter resposta, se nos detivermos a ouvi-las e a debatê-las.
abertos
Mas é principalmente porque, a meu ver, os currículos orientados para o desenvolvimento
das competências podem constituir um progresso enorme num triplo registro:

• No das finalidades, porque se trata, fundamentalmente, de dar prioridade


aos saberes úteis na vida das pessoas em vez de preparar uma minoria
para os estudos mais seletivos; é o sentido real de uma escola cidadã e
democrática (Gohier e Laurin, 2001);

• No do sentido do trabalho e dos saberes escolares, relacionados com o


conhecimento e a ação; ligar os saberes às práticas sociais é a maneira
mais segura de fazer com que os alunos percebam que a sua herança
familiar não os prepara para uma grande caminhada abstrata no universo
do conhecimento pelo conhecimento (Charlot, Bautier e Rochex, 1992;
Perrenoud, 1994, 1995 ; Rochex, 1995; Vellas, 1996, 1999);

• No registo didático e pedagógico; se as reformas curriculares vão até


ao fundo da sua lógica, induzirão um desenvolvimento profissional dos
docentes no sentido das visões evolutivas e ativas da aprendizagem, das
estratégias de projeto, de trabalho por problemas (Bassis, 1998; De Vecchi
e Carmona-Magnaldi, 1996; Joannert e Vander Borght, 1999).

Até chegarmos aí falta vencer muitas resistências e ultrapassar muitos obstáculos. As


objeções explícitas e as reticências escondidas que apontei demonstram bem essa ideia.

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Apenas acrescentaria um novo elemento: para conectar os saberes escolares às práticas
sociais conviria saber mais, muito mais, sobre os problemas com os quais as pessoas são
e serão concretamente confrontadas nos diversos domínios da existência.

Quando hoje é concebida uma formação profissional, em princípio é elaborado um


referencial de competências baseadas na análise do trabalho real, da sua diversidade e
“[..] todos da sua evolução. É graças a esse referencial que podem ser identificadas as famílias de
situações, tanto problemáticas como emblemáticas, que necessitam de competências
os currículos específicas. Situações problemáticas porque se não há nada a fazer e se o senso comum
orientados para o é suficiente, nada justifica uma formação. Situações emblemáticas porque é necessário

desenvolvimento limitar-se ao que, estatisticamente, aparecerá com certa probabilidade na experiência dos
trabalhadores.
das competências
apresentam o mesmo O que não é simples para uma profissão identificada torna-se muito difícil quando se
procura identificar as competências para a vida em geral, quer elas se manifestem fora
defeito: nenhum do trabalho ou em situações comuns a muitas profissões. Portanto, se não for iniciado

sistema educativo esse trabalho difícil, com base na observação da vida das pessoas, as hipóteses de uma
transposição didática a partir da prática são pouco prováveis (Perrenoud, 1998).
preocupa-se em partir
das práticas sociais.” Todas as condições estão então preenchidas para que, com o pretexto das competências,
se comece a ensinar os saberes escolares tradicionais e a desenvolver hipotéticas
capacidades gerais (ou transversais), como saber analisar, comunicar ou adaptar-se...

Nesse ponto de vista, todos os currículos orientados para o desenvolvimento das


competências apresentam o mesmo defeito: nenhum sistema educativo preocupa-se em

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partir das práticas sociais. Os lobbies disciplinares não têm nenhum interesse nisso. Para
justificar o estudo da tangente ou do coseno como utensílios práticos na vida das pessoas,
ou ainda do conjuntivo, do quadro de Mendélèieff ou da lei de Ohm, a tática mais segura é
afirmar sem verificar...

Os apoiantes da abordagem por competências são apanhados em flagrante delito de

“Enquanto que incoerência: como pretender levar a sério a mobilização dos saberes como recursos,
limitando-se ao que os autores do currículo possam saber ou imaginar da vida das
os saberes são pessoas? Enquanto que os saberes são defendidos pelos lobbies disciplinares, as

defendidos pelos competências não profissionais não têm representante e não aparecem nas bibliotecas nem
nos congressos. Depende, por isso, dos que defendem a abordagem por competências a
lobbies disciplinares, criação de meios de uma investigação permanente sobre as mais diversas práticas sociais

as competências não e do que elas põem em jogo.

profissionais não
têm representante e
não aparecem nas
bibliotecas nem nos
congressos.”

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Referências bibliográficas
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éducation. Bruxelles: De Boeck, Coll. Raisons Éducatives, pp. 45-60, 2000b. competências a partir da escola? Desenvolvimento da autonomia e luta contra as
PERRENOUD, Ph. La transposition didactique à partir de pratiques: des savoirs aux desigualdades”, págs. 17-40, Editora Melo, Pinhais, PR.

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Philippe Perrenoud é um dos grandes destaques no
6º Seminário Internacional de Educação c om sede em três cidades:

Gramado-RS Manaus-AM Salvador-BA


08 a 10 de março de 2018 15 a 17 de março de 2018 05 a 07 de abril de 2018

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