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Antonio Miguel*
Sobre a encenação
O corpo humano é a melhor imagem da alma humana1
Wittgenstein (1979, IF - Segunda Parte, p. 177)
Quando recebi o convite para produzir um artigo que tomasse como referência
três dentre um conjunto de treze entrevistas pré-textualizadas que haviam sido
realizadas com professores e professoras de Matemática do Ensino Fundamental e
Médio das Redes Estadual, Municipal e Particular de Ensino de Belo Horizonte, na
perspectiva da História Oral e de Pesquisas com Narrativas, aceitei-o quase sem hesitar.
A razão da não hesitação esteve, sem dúvida, ligada ao tom generosamente flexível que
acompanhava o convite, qual seja, o de que "trabalhasse sobre e com as narrativas,
explorando-as e analisando-as conforme o tema, a perspectiva e questões que os
próprios autores convidados desejassem em torno das grandes temáticas da docência,
da docência em Matemática, da Educação Matemática e da Escola".
Diante da flexibilidade da proposta, após a leitura das entrevistas, passei a
precisar, para mim mesmo, a natureza de meu desafio. Ficou-me claro, por um lado, que
eu não gostaria de, a partir dessas narrativas, produzir uma meta-narrativa ou um
discurso cientificista e generalizante, tomando os conteúdos das falas como "dados
objetivos" acerca do exercício da docência, a serem trabalhados e devolvidos, quer sob a
forma de recomendações de melhoria da educação (matemática) escolar ou das
condições de exercício profissional da docência, quer sob a forma de avaliação político-
epistemológica de pesquisas acadêmicas que vêm sendo conduzidas na perspectiva da
história oral e/ou das narrativas. Por outro lado, ficou-me também claro que não seria
minha intenção produzir uma análise ou julgamento das vidas profissionais dos
professores entrevistados, mesmo que tal análise, menos pretensiosamente, se deixasse
∗
Texto a ser publicado, em dezembro de 2011, pela Editora Livraria da Física, como um dos capítulos do
livro Viver e contar: histórias de professores de Matemática, organizado por TEIXEIRA, I. A. C.;
PAULA, M. J.; GOMES, M.L.M.; AUAREK, W. A.
*
Professor do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas (SP) - FE-UNICAMP. Membro do PHALA (Grupo de Pesquisa em Educação,
Linguagem e Práticas Culturais) e do HIFEM (História, Filosofia e Educação Matemática). E-mail:
miguel@unicamp.br
1
"The human body is the best picture of the human soul" (Wittgenstein, PI, 1967, Part II, p. 178).
orientar pelo propósito de estetizar vidas, mantendo-as encapsuladas e incomunicáveis
em suas singularidades ou particularidades.
Então, o desafio que eu me parecia colocar era o de pensar o exercício
profissional da docência escolar a partir de flashes memorialísticos de cenas episódicas
de vidas de professores de matemática, traduzidos e "traídos" por atos orientados de
falas - de suas falas -, re-traduzidos e "re-traídos" por um conjunto escrito de
fragmentos discursivos justapostos que deixava voluntariamente à mostra a sua
desconexão. Havia sido desse modo que as vidas dos professores Roberto, Marina e
Hélio - digitalizadas, nesta ordem, em um único arquivo PDF - entraram em minha vida
de professor. E foi também desse modo que decidi lê-las, isto é, como jogos narrativos
de linguagem pré-traduzidos, pré-interpretados e pré-organizados com base em
propósitos previamente definidos pelos respectivos entrevistadores desses professores.
Sem deixar-me prender rigidamente por um tipo definido - e, menos ainda,
metodicamente positivo e impositivo - de análise discursiva -, ocorreu-me, então, a idéia
de inspirar-me parcialmente na perspectiva filosófica não dogmática do segundo
Wittgenstein a fim de produzir o que denomino uma terapia desconstrutiva desses jogos
narrativos. Na seção seguinte deste texto, essa prática terapêutica se autoesclarece na
própria forma como ela opera sobre esses jogos, tornando-se, ela própria, um jogo
narrativo prospectivo de linguagem. Por mais paradoxal que isso possa parecer ao
leitor, proponho-me a narrar, nas seções seguintes, a conversa que tive com Roberto,
Marina e Hélio em um encontro imaginário que nos proporcionamos, após termos lido
as narrativas uns dos outros. Assim, se as narrativas que me foram enviadas voltam-se
aos passados profissionais efetivamente vividos por esses professores, a narrativa
prospectiva que me propus realizar volta-se a um passado imaginário posterior àquele
em que as entrevistas foram individualmente concedidas.
É importante ressaltar que, da maneira como a estamos aqui concebendo,
realizar uma terapia desconstrutiva de diferentes jogos narrativos de linguagem consiste
em destacar nesses jogos um enunciado comum neles manifesto2, bem como outros com
2
Operar sobre enunciações efetivamente manifestas é uma característica central de uma terapia
desconstrutiva. De fato, segundo Vilela (2010, p. 437 e p. 439, itálico da autora), "a noção de filosofia
que pretende "compreender algo que está manifesto" e de ampliação de significados se insere na ideia
wittgensteiniana de terapia filosófica que, através de descrições gramaticais, pretende dissolver
problemas filosóficos. A finalidade da terapia é contrária àquela que busca estabelecer fundamentos,
contrária à metafísica. [...] Não importa a busca por fundamentos últimos, mas o modo como a
linguagem, entendida como um sistema de símbolos que depende de regras de uso, expõe o mundo. O
fundamento é substituído pela forma como nos inscrevemos na linguagem pública, no hábito de uma
comunidade, que não podem ser justificados, mas apenas descritos. Se houver fundamento, ele se refere a
os quais ele possa estar significativamente enredado, e fazê-los percorrer diferentes
jogos de linguagem, dando-se, assim, por ampliação e variação, visibilidade a suas
diferentes mobilizações e, portanto, a suas diferentes significações, até que se tornem
manifestas e discutidas as relações performáticas desses enunciados sobre os corpos e
sobre as práticas efetivas dos narradores3.
Em minha leitura dos jogos narrativos de Roberto, Marina e Hélio, o enunciado
comum que me chamou imediatamente a atenção foi o do adoecimento dos corpos de
professores de matemática. Mais do que uma presença comum, trata-se de uma presença
performática, isto é, de uma presença densa e tensa cuja materialidade sensorial não só
parece ter exercido o seu poder sobre as falas e os corpos dos narradores, como também,
parece ter conduzido as suas trajetórias profissionais a um termo, qual seja, o
impedimento irreversível da presença de seus corpos no lugar onde efetivamente
praticavam a docência: a sala de aula. Trata-se, então, da presença de um enunciado
performático que se constitui a partir do impedimento da presença efetiva do corpo que
desejaria estar presente, e que fala da prática docente a partir de algo que parece ter
gerado o seu impedimento. Então, na terapia desconstrutiva que vamos praticar na
segunda parte deste texto, é minha intenção colocar-me nos rastros de significados desse
enunciado, bem como nos de outros a ele conectados que, manifestos - de algum modo
e em alguma medida - nas falas dos narradores, parecem ter adquirido não apenas o
poder de dar sustentação e legitimidade a práticas de governo das condutas dos corpos
de (seus) (ex)alunos da escola básica, como também a práticas de autogoverno que esses
professores parecem ter estabelecido sobre as condutas de seus próprios corpos.
Ainda que tenhamos dado ao "terapeuta imaginário" que orienta a sessão o poder
inicial de destacar esse enunciado comum para dar início à terapia, dado o caráter não
dogmático que informa o próprio procedimento, tal poder, ao longo da sessão, se dilui
não só entre os demais participantes "efetivos", como também entre os participantes
"remotos" que a todo momento entram em cena por intermédio das falas de quaisquer
participantes "efetivos". Além disso, o critério que sustenta a escolha e o destaque do
enunciado comum é o de se poder vê-lo como uma espécie de elemento estruturante
algo que não pode estar separado da prática linguística: "Pois o que está oculto não nos interessa"
(Wittgenstein, IF-126, 1979)".
3
Segundo Moreno (2005, p. 263), "o que melhor caracteriza o procedimento de exemplificação, a serviço
da descrição terapêutica, é a variedade e a variação de instrumentos e procedimentos empregados assim
como, por conseqüência, a ausência de um conjunto fixo de regras para produzi-los. A terapia procura um
caminho a partir de cada dificuldade conceitual, em sua peculiaridade, jamais propondo um
procedimento-padrão - o que a aproxima da relação clínica entre médico e paciente, em que cada
dificuldade requer um tratamento específico".
que, à primeira vista, parece dar sentido e legitimidade aos jogos narrativos quando
inseridos, por um lado, no contexto referencial de atividade humana (a atividade
educativa escolar) em que se situam os narradores e, por outro, no contexto referencial
de atividade humana (a atividade de pesquisa científico-acadêmica) que orientou a
constituição das narrativas.
Praticar a desconstrução desse enunciado comum4 e de outros que a ele se
conectam constitui o propósito que deverá orientar a minha leitura dos jogos narrativos
desses professores. Isso significa produzir um novo jogo narrativo de linguagem no qual
buscarei praticar não só uma interdiscursividade entre essas narrativas, como também,
entre elas e outros jogos de linguagem (não necessariamente narrativos), produzidos em
diferentes campos de atividade humana, a fim de se ampliar o horizonte de visibilidade
de efeitos performáticos5 sobre práticas de governo e autogoverno de corpos de sujeitos
que atuaram, ensinando matemática, no contexto de atividade educativa escolar. Nesse
sentido, a palavra performance, dentre outros usos que faço dela neste texto, adquire um
sentido metodológico que, tal como assinala Taylor (2008, p. 30, itálico da autora),
"permite aos acadêmicos analisar determinados eventos como performances",
destacando-se, dentre eles, "certos fenômenos que são ensaiados e reproduzidos
diariamente na esfera pública", tais como, "condutas de sujeição civil, resistência,
cidadania, gênero, etnicidade e identidade sexual", e que dão visibilidade ao conceito de
performance como "prática in-corporada a outros discursos culturais".
Por essas e outras razões, decidi produzir um jogo narrativo dialógico que
intencionalmente se aproxima de um jogo de cena6, de uma performance teatral. Isso
porque, por um lado, penso ser essa forma de praticar a terapia mais próxima àquela
4
Praticar a desconstrução de enunciados efetivos - isto é, que se fazem efetivamente presentes nos atos de
fala dos sujeitos - não significa destruí-los, superá-los, hierarquizá-los, submetê-los a explicações causais,
investigar suas origens, etc. Significa considerá-los e investigá-los no movimento de tensão insuperável e
mutante que eles estabelecem com outros enunciados, de outros jogos discursivos, que poderiam
potencializar uma problematização de seus efeitos performáticos sobre os corpos de sujeitos que atuam
em um campo de atividade humana especificado, em um tempo igualmente especificado.
5
Aqui, o significado de performático vai além daquele manifesto no uso dessa palavra por Austin (1977).
Uso-a no sentido de destacar a concepção do papel operatório efetivo da linguagem em um evento
comunicativo, em que uma enunciação equivale - e não apenas implica a - à realização de uma ação. Mas,
uso-a também em outro sentido próximo àquele proposto por Judith Butler: "ao passo que em Austin o
performativo realça a linguagem que faz, em Butler, ele vai em direção contrária, ao subordinar
subjetividade e ação cultural à prática discursiva normativa" (Taylor, 2008, p. 31-32).
6
A expressão jogo de cena foi cunhada pelo linguista francês Dominique Maingueneau. Segundo ele,
"apoiando-se em modelos emprestados do direito, do teatro ou do jogo, a pragmática tentou inscrever a
atividade da linguagem em espaços institucionais. Na perspectiva pragmática, a linguagem é considerada
como uma forma de ação; cada ato de fala [...] é inseparável de uma instituição, aquela que este ato
pressupõe pelo simples fato de ser realizado” (Maingueneau, 1993, p. 29, itálicos nossos).
praticada pelo próprio Wittgenstein7; por outro lado, ela intencionalmente permite
deixar tênue e difusa a linha de demarcação entre jogos efetivos e jogos fictícios de
linguagem8.
Os "personagens efetivos" que participam da terapia são Roberto (R), Marina
(M), Hélio (H) e o Terapeuta (T). Mas dela também participam, à distância,
"personagens remotos", vivos ou mortos, com os quais os personagens efetivos praticam
a interdiscursividade. Na sessão de terapia, tais personagens - efetivos ou remotos - são
e não são eles próprios. São, porque, de fato, são as suas falas efetivas textualizadas que
fornecem a substância e o substrato para a produção de meu próprio jogo de cena. Não
são, porque, de certo modo, quando falam, falam através de minha fala, dos modos
como eu recrio e trans-crio as suas falas, mesmo quando - mobilizando-as
fragmentariamente no texto produzido - eu as cite literalmente. Sempre que as falas -
literais ou meramente sugeridas - dos personagens tiverem uma autoria da qual eu tenha
ciência, procurarei referi-las em notas de rodapé, a fim de não quebrar a fluência do
jogo de cena.
Devido ainda ao fato de, em minha leitura, as narrativas de Roberto, Marina e
Hélio manifestarem uma ponta de esperança que congela, no presente, a expectativa da
consumação, em um futuro incerto, de um algo que lhes parece difuso e indefinido, o
jogo de cena produzido faz perceptíveis remissões à peça teatral Esperando Godot de
Beckett, que pode ser lida sob um tom wittgensteiniano9.
Talvez, o Godot de nosso jogo de cena pudesse ser identificado com o desejo
nunca correspondido de aprendizagem efetiva da matemática por parte dos (ex)alunos
7
Segundo Grayling (2002, p. 126), "uma coisa que imediatamente salta aos olhos de um leitor crítico dos
trabalhos do segundo Wittgenstein é que seus conceitos nucleares são ou vagos ou metafóricos, ou ambos.
A idéia de "jogos" é uma metáfora; as noções de "uso" e "formas de vida" são pouco específicas. É claro,
isso é intencional; o método de Wittgenstein foi evitar a teorização sistemática e insistir, em vez disso, na
variedade da linguagem (...)".
8
Segundo Moreno (2005, p. 262-263), na terapia filosófica wittgensteiniana, "a descrição dos usos
pretende captar a linguagem em suas aplicações tanto efetivas como as consideradas possíveis e
imagináveis, mas nunca cristalizadas em uma considerada essencial e definitiva. Para tanto, Wittgenstein
recorre à criação de exemplos. Não se trata de descrever propriedades empíricas de objetos e fatos, mas
de descrever relações internas de sentido, para o que a exemplificação fornecerá o ambiente adequado em
que transições de sentido se deixam mostrar ao olhar".
9
Perloff (2008, p. 27) destaca do seguinte modo o tom wittgensteiniano de Esperando Godot: "O
exemplo que Wittgenstein deixa [...] para os escritores - desde Samuel Beckett (que insistia em dizer que
não havia lido nada de Wittgenstein até os anos de 1950, muito antes de ter concluído obras tão
"wittgensteinianas" como Watt e Esperando Godot) até Ingeborg Bachmann e outros mais - é o de que
nunca desistiu de lutar, tanto consigo mesmo como com a linguagem [...]. A linguagem, escreve ele em
seu caderno, arma para todos as mesmas armadilhas... O que tenho de fazer então é erguer postes de
sinalização em todos os entroncamentos onde existem desvios errados, de modo a ajudar as pessoas a
ficarem longe dos pontos perigosos".
de Roberto, Marina e Hélio, isto é, com o desejo de fazê-los compreender um discurso
por eles considerado racional, estruturado e belo. Essa aprendizagem nunca se realiza,
nunca se manifesta, ainda que eles tenham lutado e se esforçado ao máximo para fazê-la
acontecer. Godot poderia também ser identificado com o desejo positivo manifesto por
esses professores de poder compartilhar com seus alunos o deleite e o prazer de se poder
apreciar a beleza inerente à arquitetura racional, lógica e infalível da matemática.
Entretanto, esse desejo sincero, por não ser jamais correspondido, gera a frustração, a
depressão, a não realização profissional e o adoecimento, ainda que tais sintomas nem
sempre sejam por eles vistos como os seus sintomas. Esse desejo de se impor (isto é, de
se investir de mais poder) perante os alunos, impondo-lhes (isto é, ensinando-lhes ou
transmitindo-lhes) um tipo de discurso que lhes foi imposto (isto é, que lhes foi
ensinado ou transmitido), ao qual os alunos resistem (isto é, aprendem algo diferente do
que lhes está sendo ensinado ou transmitido) de diferentes maneiras, jamais é visto
pelos professores como uma prática de aculturação, como uma prática de
disciplinamento, como um desejo de reforçar ou restaurar os poderes constituintes de
discursos epistemológica e politicamente colonizadores que certas comunidades de
prática exercem sobre outras. Nas narrativas dos professores rastros desses discursos
colonizadores, embora manifestos, jamais são percebidos como manifestos, talvez
porque já tenham sido assumidos como naturais e, portanto, verdadeiros e acima de
quaisquer suspeitas. Em nosso jogo de cena, o papel do terapeuta será fazer aflorar
rastros desses (discursos) colonizadores, fazê-los entrar em cena. Por sua vez, os
(discursos) colonizadores, embora colonizem, parece não se mostrarem cientes acerca
dos próprios papéis colonizadores que desempenham no jogo de cena, ou seja, acerca
dos papéis que lhes são reservados a desempenhar no contexto institucional da atividade
educativa escolar. Agem de forma "bem intencionada", segundo uma mistura de crenças
naturalizadas provenientes de discursos pedagógicos humanistas10 que visam a um bem,
10
Com base nas críticas que tanto Wittgenstein quanto Foucault remetem a concepções essencialistas e
metafísicas de "eu" ou de "sujeito", Peters e Marshall (1999, p. 198) se perguntam acerca do que poderia
significar uma "pedagogia do eu", não mais nos marcos de uma perspectiva humanista: "Por uma
pedagogia do eu entendemos um ensino e aprendizagem críticos que envolvam processos não
manipuladores e não dominadores, que nos permitam tornar positivos e nos encorajem a ver
positivamente os processos críticos de perpétua auto-superação. Seria também uma pedagogia crítica e
reflexiva, mas que não operaria com base em pressupostos humanistas que se centrassem, por exemplo,
quer na pessoa como um todo, quer na criança, uma vez que, contrariamente a noções de crítica herdadas
diretamente de Kant ou de Marx, ela oporia a avaliação negativa de Wittgenstein de que o eu não é um
objeto, bem como retiraria a conclusão positiva de que o que requer crítica, antes de tudo, nos discursos
das ciências humanas (e especialmente nos da pedagogia) é o tratamento do "eu" como um objeto a ser
investigado filosoficamente ou cientificamente". Entretanto, pensamos que, se com Wittgenstein, a
a um bom e a um belo comuns, tão difusos quanto inatingíveis; agem, sem ciência de si,
promovendo e reforçando o "poder civilizador da pólis". O terapeuta procura, então,
agir no sentido de se fazer aflorar uma concepção simbólico-discursiva de "identidade"
e de adoecimento profissionais, dado que, sob uma perspectiva wittgensteiniana, do
mesmo modo como não existe uma linguagem privada, não existem também
identidades e adoecimentos privados, subjetivos ou autônomos que tivessem o poder de
se constituir antes ou fora dos domínios de diferentes jogos de linguagem aprendidos
ou, em termos foucaultianos, antes ou fora das ordens de diferentes práticas discursivas.
Nesse sentido, em nosso jogo de cena, o "eu" mutante (a consciência) é sempre, a cada
momento, o resultado de confrontos discursivos explícitos ou anônimos,
contemporâneos ou remotos, que aparecem como flashes memorialísticos fragmentários
que entram, interrompem-se, saem de cena, podendo ou não voltarem à cena. Os
discursos colonizadores sabem explorar em seu benefício o estado de confusão
identitária no qual o professor de matemática se vê enredado por não saber (ainda que
sabendo) com base em quais propósitos ético-políticos a sua ação educativa poderia se
orientar. No final da sessão de terapia, os atores imaginários acabam percebendo isso. O
script da cena final de nosso jogo de cena, transcriado a partir do roteiro da cena final
do filme Polícia, Adjetivo (2009), é o momento em que os atores tentam se desfazer -
isto é, tentam se liberar de suas obrigações de ensinarem matemática euclidiana11, - de
suas crenças pedagógicas humanistas e, consequentemente, de suas doenças -, mas essa
rebeldia é, de pronto, autoritariamente contida pelo (discurso) colonizador em nome do
"poder civilizador da pólis", o qual também deseja aparecer como o poder estético-
racional do discurso euclidiano.
desconstrução da noção de "eu" não pode ser dissociada da desconstrução simultânea por ele feita à noção
de linguagem privada, de onde viria, para uma pedagogia não humanista, a necessidade de ainda se
constituir como uma "pedagogia do eu"? Se subjetividades são e só poderiam ser constituídas pelos usos
públicos da linguagem, isto é, se a linguagem da subjetividade é sempre produto de aprendizagens, então,
pedagogias não humanistas seriam melhor caracterizadas não por "pedagogias do eu", mas por
pedagogias dos jogos de linguagem e sobre os jogos de linguagem. Assim, quando Wittgenstein diz que o
mundo só pode ser dito pela linguagem, é porque praticar a linguagem não é uma prática dentre outras,
mas uma prática junto com outras, dado que nenhuma prática ou experiência humana efetiva poderia
constituir-se ou ser significada sem linguagem. E daí, em particular, as práticas dos cuidados de si só
podem ser vistas como práticas de cuidados dos discursos de si e sobre si. Assim, em uma pedagogia não
humanista tal como a concebemos, o "eu" não está nem no início, nem no centro e nem no final da ação
pedagógica; já os processos de subjetivação (e não propriamente o "eu" enquanto objeto) se constituem e
se transformam nos e juntamente com as práticas escolares de problematização de jogos de linguagem
pautadas em éticas que visem à democratização política, social e econômica de todas as formas públicas
de organização social.
11
Esforços na direção de se pensar a educação escolar, em uma perspectiva não humanista, em que
práticas mobilizadoras de cultura matemática estariam envolvidas de um modo indisciplinar, são feitos
por seus autores na referência (Miguel; Vilela; Moura, 2010).
Em nosso jogo de cena, apropriamo-nos do "nada acontece" do Esperando
Godot como uma analogia intencional ao aforismo wittgensteiniano de que a filosofia
deixa tudo como está (Wittgenstein, 1979, IF-124). Toda a trama e tensão do texto de
Beckett – que, ao se constituir com base na ausência de um personagem sempre
esperado, acaba demonstrando não só a superfluidade de todo o filosofar que se
constitui em função dessa expectativa frustrada, como também a superfluidade do
próprio personagem ausente - perpassa também o nosso jogo de cena, sugerindo um
paralelismo intencional com o aforismo wittgensteiniano (IF-126) de que "a filosofia
simplesmente coloca as coisas, mas não elucida nada e não conclui nada. E como tudo
fica em aberto, não há nada a elucidar"12.
Primeiro ato
(Sala de aula. Sentados em carteiras de alunos, Roberto (R), Marina (M) e Hélio (H) conversam.
No canto de uma das paredes, um armário. Na lousa, o desenho de uma árvore sem folhas,
flores ou frutos. Entardecer. Entra o terapeuta).
T - Aqui estamos nós: nós e os nossos discursos, quero dizer, os nossos discursos e os
nossos discursos...
M - É... achei interessante você ter resolvido nos chamar para esta conversa pós-
entrevistas. Mas você poderia nos narrar sem precisar se incomodar...
T - É que fiquei com muita vontade de conhecê-los pessoalmente. E não sabia também
se vocês já se conheciam...
R - Se não me FALHA A MEMÓRIA ... E olhem que ela costuma mesmo falhar.... eu
acho que
não nos conhecíamos. (Risos generalizados)
12
Nesses aforismos wittgensteinianos acerca da impotência da filosofia em relação à modificação das
práticas efetivas, essa impotência pode, a nosso ver, ser lida, ainda que de uma maneira não usual, como
referindo-se exclusivamente a usos filosóficos da linguagem, mas não a seus outros ilimitados usos. Além
disso, em um outro sentido, essa impotência também poderia dizer respeito à ausência de efetividade da
linguagem quando opera diretamente sobre o mundo material enquanto tal, mas não quando opera
indiretamente sobre esse mesmo mundo. Isso porque, há diferença quando digo diretamente a uma laranja
- "descasque-se" -, e ela não se descasca, ou quando digo a uma pessoa - "descasque esta laranja para
mim" - e a laranja é descascada ou não, como decorrência dessa pessoa obedecer ou não a esse comando
verbal. Assim, uma enunciação, quando opera sobre um sujeito, pode ou não levar a uma modificação
efetiva, direta ou indireta, do mundo, dependendo das circunstâncias e das reações do sujeito à
enunciação. Mas, esses usos filosóficos e não efetivos da linguagem, mesmo que impotentes, são ainda
usos da linguagem, e além de não impedirem que a usemos dessa maneira, mostram-nos que as suas
próprias impotências só podem se tornar manifestas por outros usos considerados potentes da linguagem.
Assim, pensamos que, em uma perspectiva wittgensteiniana, pode-se fazer uma terapia linguística de
jogos filosóficos de linguagem, mas não, a rigor, uma terapia filosófica de jogos de linguagem.
H - Se é que eu ouvi bem... E olhem que meus ouvidos costumam falhar... acho que,
outra vez, Roberto, a sua memória falhou. (Mais risos...). A Marina chegou a falar, em
sua entrevista, que ela e eu já nos conhecíamos.
M - (Com voz rouca e se esforçando para se fazer ouvir). Se minha memória e audição
forem tão confiáveis quanto a minha voz, acho que já conheço todos vocês... (risos e
mais risos).
T - Bem... ouvindo vocês falarem assim... digamos, descontraidamente sobre os
seus próprios problemas de saúde, acho que não me enganei...
H - Não se enganou? Eu nem sabia que você veio para esta nossa conversa com uma
hipótese prévia a ser testada.... Se é assim, diga-nos logo qual é ela. Estou curioso.
T - Não se trata bem de uma hipótese...mas apenas de um ponto de partida para a nossa
conversa. É que vocês foram logo no ponto... naquilo que mais me chamou a atenção na
leitura que fiz das narrativas de vocês. Todos vocês se acham afastados da sala de
aula....e pela mesma razão: problemas de saúde, não é isso? E ouvindo essa troca
entre vocês em relação a esses problemas, concluo que não apenas eu, mas também
vocês desejam que a nossa conversa comece por aí...
R - Acho que você não se enganou... E só para refrescar a nossa memória, repito que
fiquei quase três anos de licença... falhas de memória. O diagnóstico médico foi
amnésia dissociativa.
M - Eu nunca tinha ouvido falar disso, Roberto. Deve ser horrível perder a consciência!
R - Bem, as ausências ou falhas de memória às vezes são apenas momentâneas, coisa de
minutos, e às vezes podem perdurar por horas ou até por dias. Dá um branco
generalizado. É como se eu perdesse o rumo e também a minha identidade. Você não se
lembra mais quem é, o que fez há um segundo, com quem falou, onde está, para onde
vai... é de fato uma sensação perturbadora.
H - Ultimamente, tenho me interessado em estudar os problemas de saúde dos
professores. Tal foi minha curiosidade que fui investigar melhor essa SUA doença,
eu, o que fiz, onde foi, com quem estou falando ou acabei de falar, o que
disse, o que pensei, o que senti? Fiquei sabendo também que, após esses
algum tempo13.
13
Este segmento da fala de H, destacado em fonte agency FB, é uma composição de extratos do Manual
Merck, Biblioteca Médica on line, Secção 7, Capítulo 90: Perturbações Dissociativas
(http://www.manualmerck.net/?id=116&cn=990) e de matéria do site Psicoforum
(http://psicoforum.br.tripod.com/index/artigos/ad2.htm), visitados em 03/04/2011.
14
H está aqui fazendo alusão à referência Leite e Souza (2007).
dissertações de mestrado, 10 são teses de doutoramento e 4 são livros publicados. E o
mais interessante é que, dentre essas pesquisas, há uma cujo propósito foi, justamente,
avaliar o problema da ocorrência de transtornos mentais em professores da rede
municipal de ensino de Belo Horizonte15.
M - E a que conclusões a pesquisa chega?
outra conclusão foi que os transtornos mentais são mais freqüentes nos
T - Bem, não estou querendo, é claro, fechar os olhos para o problema da precariedade
das condições de trabalho dos professores e, muito menos, de negar a relação que isso
tem certamente a ver com o surgimento de doenças profissionais, tais como problemas
vocais, auditivos e, sobretudo, de transtornos mentais. Mas, por outro lado, penso que
não se poderia estabelecer uma relação direta de causa e efeito entre uma coisa e outra.
Se assim fosse, precisaríamos explicar por que, apesar das péssimas condições de
trabalho, grande parte dos professores não adoecem.
15
H faz aqui alusão à referência Gasparini (2005).
16
Este segmento da fala de H, destacado em fonte Agency FB, é uma composição feita a partir de
extratos da referência Gasparini, Barreto e Assunção (2006, p. 2687 e p. 2690).
M - Parece que você está querendo sugerir que a doença não viria nem de dentro para
fora e nem de fora para dentro, mas que seria produzida na relação que certos
professores estabelecem com a atividade de docência. É isso? E que Roberto, Hélio e eu
seríamos representantes típicos desses professores...
T - Sim, é isso mesmo que estou querendo sugerir.
H - É, pensando bem, acho que faz sentido. Mas mesmo que possamos estar de acordo
em que as doenças profissionais de professores sejam produzidas na relação, seria
preciso esclarecer que tipos de relações poderiam ser consideradas doentias e que
outras poderiam ser ditas sãs...
R - Hélio, acho que você mesmo parece ter uma resposta para sua pergunta. Quando li a
sua narrativa, uma coisa me chamou a atenção... Quando você diz que, em sua escola,
todos os professores de matemática estão de laudo médico, por alguma razão,
você próprio parece levantar uma conjectura original em relação às causas do
adoecimento.
H - Não consegui perceber, Roberto, que conjectura seria essa.
R - Vou nomeá-la aqui conjectura disciplinar, uma vez que, segundo ela, o professor
Era um artigo que fazia um relato de uma pesquisa que investigou as causas
de efetivação do eu.
17
H faz aqui alusão à referência Alves e Aredes (2007, p. 1; p. 2; p. 3 e p. 17), a partir da qual foi
composto livremente o segmento de sua fala destacado em fonte Agency FB.
R - (Olhando para o infinito finito das paredes da sala). Será que sabemos pensar?
T - Sim, pensamos!
H - (Dirigindo-se a todos). Existo, logo penso!
plenos pulmões:
quaqua fora do tempo e do espaço que do alto de sua apatia sua divina
athambia sua divina afasia nos ama a todos com algumas poucas
exceções não se sabe por quê mas o tempo dirá e sofre a exemplo da divina
Miranda com aqueles que estão não se sabe por quê mas o tempo dirá
18
Destacamos em fonte Agency FB esta paráfrase baseada na referência Beckett (2005, p. 109).
dente dente o seGUINTE guinte guinte a saber...19. (Enquanto Roberto
reCITA cita cita cita e a cortina descERRA erra erra erra e encERRA erra
erra erra todos estaticaMENTE mente mente mente o olham atonitaMENTE
mente mente).
Segundo Ato
T - Mente! Mente! É o problema da relação entre a mente e o corpo que está aqui em
jogo. Penso ser problemático o modo como vocês usaram ontem a linguagem para se
falar das doenças que levaram vocês a se afastarem da sala de aula.
M - De acordo. O Roberto já chegou a me censurar por isso quando falei que ele
"portava" uma doença. Mas não consigo entender o que isso tem a ver com o problema
da relação entre mente e corpo. Eu nem sei porque que essa relação seria portadora
de um problema. (Risos por Marina ter enfatizado ironicamente a palavra "portadora").
T - É que esse modo de falar da doença parece reforçar a visão cartesiana de que, além
de uma linguagem publicamente compartilhada que utilizamos para nos comunicar,
existiria também uma mente ou um eu pensantes que utilizariam essa linguagem não
apenas para se referir a coisas e eventos comunitários diretamente observáveis - neles
incluídos os comportamentos, as ações e movimentos de nossos próprios corpos -, mas
também, para se referir a entidades ou estados de coisas que não poderiam ser
diretamente observáveis como, por exemplo, uma intenção, um desejo, uma recordação,
uma sensação, uma doença.
H - Estou com Descartes! Confesso que não consigo ver problema algum com esse
modo de pensar. Além disso, ainda que uma doença não possa ser diretamente
observável, ela pode ser inferida com base em sintomas corporais diretamente
observáveis.
R - Tudo bem, mas acho que a percepção desses sintomas por outros é problemática.
Vou falar dos meus... do modo como eu os sinto em meu corpo. Quando meus
surtos ocorrem, é como se houvesse uma perda de memória, uma perda da consciência
do instantâneo, de minhas ações e de meus atos de fala. Embora os médicos costumem
caracterizar esses surtos como PERDA DA MEMÓRIA, PERDA DE CONSCIÊNCIA,
não é bem isso o que sinto. O que sinto é uma espécie de desligamento, de desconexão,
de dissonância ou dissociação entre o que falo, o que faço e o que se passa em minha
mente.
19
Esta fala de R é um extrato literal, recomposto livremente, da referência (Beckett, 2005, p. 85).
M - Já no meu caso, devido ao meu nódulo vocal, foram incontáveis os surtos de
própria garganta, uma outra voz que não a minha própria voz, sobrepondo-
se ao tumulto das vozes dos alunos. Até agora, eu interpretava esses meus
sintomas, como surtos de afonia, isto é, como perda, perda de voz20. Hoje, eu
os vejo de forma diferente. Não só não perdi a minha voz original, como ganhei
muitas outras que desconhecia: nomeio-as diferentemente, conforme as sensações
diferenciadas que faço delas: voz ecoante , voz de emergência, voz interior, voz
depressiva, voz repressiva e tantas outras. A rigor, não perdi nada; ao contrário,
20
O segmento da fala de M destacado em fonte Agency FB foi livremente composto e adaptado com
base em (Souza, D. C. Thaís, 24/03/2010 - http://www.fonoaudiologia.med.br/voz/39).
experimentar. Essa sensação pode ser lida como um ganho, mas eu também a sinto
como uma sensação negativa. Como uma doença. E se resolvi falar dos meus sintomas,
foi porque, só falando deles é que vocês poderiam entender o que sinto, já que vocês
jamais poderiam sentir o que sinto.
T - Você fala, Roberto, como se existisse um eu interno que sente e cujo sentimento
inobservável, que é só dele, poderia apenas ser expresso pela linguagem. E daí, esse
R - Você está querendo dizer com isso que não existe um mundo interior do pensamento
e dos sentimentos, um mundo da subjetividade no qual ocultamos os nossos segredos e
a nossa intimidade?
T - O que quero dizer é que, por um lado, tudo o que é decisivo para a nossa
isso: tudo o que está oculto não tem função na determinação dos sentidos
investigações21. Por outro lado, e dizendo MAIS, com bem menos, digo que O
21
Esta fala de T, destacada em fonte Agency FB, é uma citação direta de Silva (s. d., p. 12).
22
Wittgenstein (1961, p. 82e).
R - Interessante esse seu esclarecimento do aforismo de T, Marina. Mas acho que ele
próprio poderia torná-lo mais transparente a nós.
T - Estou querendo dizer que eu sou meu corpo ... que meu corpo fala e só pode falar
uma linguagem pública. Estou querendo dizer que não existe um outro eu oculto ao qual
o meu corpo biológico se refere quando simplesmente pensa privadamente ou quando
23
(Cf. Peters & Marshall, 1999, p. 192).
24
Grayling (2002, p. 114).
25
Este segmento de fala de T está baseado em Grayling (2002, p. 114-115).
26
Este segmento de fala de T está baseado em Grayling (2002, p. 118 e p. 120).
referissem a coisas e eventos públicos observáveis por todos. Certo dia, um
também, a de que elas poderiam ser verdadeiras ou falsas. Desse modo, José
isto é, aquilo que supostamente estaria passando por sua cabeça e que não
uma palavra e outra passaram a ser vistos como o estágio preliminar onde
estariam ocorrendo processos internos não observáveis em algum lugar na
M - Nossa! Estou chocada com o exemplo! Então, é como se apenas existissem corpo e
linguagem pública? E que apenas poderíamos compreender como os outros praticam a
linguagem "privadamente", isto é, o que pensam e como pensam, com base nos modos
como agem e praticam publicamente a linguagem?
T - Desde que essa relação entre praticar o corpo e praticar a linguagem não seja
entendida como uma relação de causa e efeito e nem como uma relação de inferência
lógica que aspirasse a compatibilidade ou coerência. Penso que ela seria melhor
caracterizada como sendo uma relação mútua de performatividade indiciária. O
enunciado performático do adoecimento insinua-se, inicialmente, sob a forma de
sintomas físicos que se manifestam em seus corpos: amnésia, afonia, distúrbios
auditivos. Mas ele se manifesta também nos discursos das perícias médicas, das
inspeções corporais, dos diagnósticos, dos exames de laboratório, dos laudos técnicos,
dos licenciamentos autorizados, dos atestados de invalidez, dos afastamentos
compulsórios e dos textos especializados.
H - Quer dizer, então, que, em certo sentido, o adoecimento do corpo é também o
adoecimento da linguagem?
T - Sim! Em certo sentido, o discurso da doença é também a doença do discurso. Como
poderia o médico inferir os sintomas de vocês por observação direta? Como poderia ele
inferir que Marina tem dor de garganta, que Hélio está perdendo a audição ou que a
memória de Roberto costuma falhar, se vocês não descrevessem a ele os seus
sintomas? Só após dizerem de seus sintomas por meio de uma linguagem pública é
que um certo tipo de discurso público, isto é o discurso da medicina, produz uma
doença para vocês.
H - O quê? Você está querendo dizer que não temos uma doença? Que nos atribuíram
uma doença?
T - Digo que os discursos indiciários de vocês permitiram que os discursos médicos lhes
atribuíssem uma doença, após o que, vocês acabaram atribuindo-a a vocês próprios! Do
27
Este exemplo fictício que T fornece em sua fala, a fim de sugerir que a noção de mente é uma espécie
de ilusão cultural, foi proposto, na década de 1960, pelo filósofo norte-americano Wilfrid Sellars. A fala
de T, destacada em fonte Agency FB, é uma síntese modificada da explicação que Teixeira (2008, pp.
107-110) fornece do exemplo de Sellars. O "reverendo Jones" de Sellars foi transformado por T em José.
mesmo modo que, na realidade, os seus alunos não têm uma incapacidade de aprender
matemática antes que vocês atribuam a eles essa incapacidade, fazendo, em seguida,
que eles sintam que a possuem, e não que ela os possui.
M - Isso quer dizer que os nossos sintomas que nos exilaram da sala de aula eram
também sintomas de que algo errado se passava com nossos discursos para
respondermos aos desafios de ensinar matemática nas condições dadas?
T - Nas minhas palavras, aqueles sintomas eram sinais de que algo errado se passava
com as práticas de governo de seus próprios corpos e, portanto, de seus próprios
discursos, em decorrência da necessidade a vocês imposta pela docência de praticarem o
governo de outros corpos, isto é, de praticarem o cuidado do outro.
H - Por um lado, se fizéssemos uma leitura de nossas práticas pedagógicas que se
movimentasse das condições contextuais de exercício de nossa atividade profissional
para os nossos corpos, poderíamos dizer que os sintomas de que os nossos corpos
passaram a padecer poderiam ter sido produzidos pela inadequação e precariedade das
condições materiais e institucionais sob as quais os nossos corpos foram submetidos.
Por outro lado, se fizéssemos uma leitura que, contrariamente, se movimentasse dos
modos como praticamos nossos corpos e nossos discursos visando à condução dos
corpos de nossos alunos, poderíamos dizer que os nossos sintomas poderiam ter sido
produzidos pela nossa inaptidão, incapacidade ou mesmo incompetência pessoal e
profissional para o exercício da atividade educativa escolar.
T - Acho que essa dissonância acusada pelo Hélio é procedente. Por exemplo, você,
Marina, em sua narrativa, diz que, devido a um nódulo nas cordas vocais, teve que se
afastar de sala de aula, por mais que solicitasse à junta médica a emissão de um laudo
contrário ao seu afastamento. Diz ainda que chegou até mesmo a entrar com um
processo junto à perícia médica para solicitar a permissão de continuar em sala de aula,
pois, segundo suas próprias palavras a gente que sai da sala de aula fica
gente quer fazer o trabalho com alunos porque é o que a gente se propôs a
princípio. Você também, Roberto, em sua narrativa, diz que a perícia médica da
não tanto o seu desejo. Devo, então, concluir que vocês estão "fora do circuito", ou
de professores não são, a meu ver, nem uma invenção interna da mente que se
projetaria inexplicavelmente sobre seus corpos e nem um mal externo que os escolhe e
os captura, devido exclusivamente às más condições de trabalho. Os corpos dos
próprios professores, de certo modo, também escolhem e se deixam capturar pelos
sintomas que de fato sentem, em função da natureza das relações que estabelecem com
os propósitos compartilhados que orientam a atividade educativa que, a gosto ou a
contragosto, realizam.
M - Mas é preciso também admitir, Hélio, que não é em si o gosto ou o contragosto pela
profissão que estabeleceria uma fronteira rígida entre o corpo assintomático do
professor exitoso e o corpo sintomático do professor que fracassa. Penso que os corpos
sintomáticos precisariam atuar sobre si próprios no sentido de desconstruírem os
enunciados que os constituem como corpos doentes. Um deles, por exemplo, é a própria
28
H faz alusão à referência Alves e Aredes (2007, p. 1 e p. 4).
ensino, bem como a sua aprendizagem, mais complicados. Algo misterioso que se
arremessa para além das práticas humanas, pote de ouro que se oculta para além do
arco-íris, fonte eterna de beleza e prazer a ser buscada e desejada, mas cujo
acesso compulsório estaria condicionado ao exercício ético paciente de um
sofrimento estético consciente. Uma prática da estética inacessível à estética
das práticas!
H - Parece que não só Roberto, mas nós, todos nós - guerreiros de uma guerra boa
- travamos uma luta contra todos em prol da difusão do estético e do noético; uma luta
em prol de uma estética racional que julgamos ser inerente ao discurso matemático, mas
que não resiste nem mesmo à razão da estética. Tornamo-nos docilmente reféns desse
doce enunciado doentio e, com todas as nossas forças e armas, travamos uma
guerra santa para difundi-lo entre nossos alunos, mesmo que, aos poucos, um a
um vá tombando pelo caminho da elevação espiritual e da contemplação estética. Em
algum momento dessa luta inglória, exatamente naqueles momentos em que a memória
da luta se transforma em luta da memória contra o esquecimento, a memória
incompetente que compete nos trai, falha, nos transforma em guerreiros impotentes,
doentes. O medo de perdermos a cabeça nos faz perder a cabeça. O obsessivo cuidado
com o outro transforma-se em descuidado de si.
doce discurso dócil sobre nossos próprios corpos. Talvez, tenhamos optado por
adoecer...
R - Consciência? Como poderíamos tomar consciência de algo que não se manifesta em
nossas narrativas? Seria a consciência o sono da memória?
por todo o dia até que ela vá dormir à noite, entre em coma, morra ou de
algum outro modo se torne, digamos, INCONSCIENTE 29
. Despertado de seu
profundo sono na ALMA do quarto mais oculto de nosso inconsciente, o nosso doce
um ser vivo, VÊ-SE sua alma30. E essa "visão" só é possível porque temos uma
Devo concluir, então, que também não há uma conexão lógica e necessária entre nossa
linguagem privada e nossa linguagem publicamente compartilhada. E se não há, de que
natureza seria, então, essa conexão?
29
Nesta sua fala, destacada em fonte Agency FB, H recita literalmente um extrato da referência Searle
(2010, pp. 1-2).
30
O aforismo destacado em fonte Agency BF é de Wittgenstein (IF-357, 1979, p. 117).
31
Esta fala de T, destacada em Agency FB, está baseada em Searle (2010, p. 17).
feita em chinês. O homem trancado no quarto recebe periodicamente novos textos em
chinês e aplica essas regras de transformação associando as sequências anteriores com
as mais recentes, o que o capacita a escrever mais sequências de símbolos em chinês. O
falante do português preso no quarto não sabe precisamente o conteúdo das informações
que ele próprio está gerando com base nos dois textos e nas regras de transformação.
Após certo tempo, o falante aprendeu a manipular perfeitamente essas regras. Com base
na resposta em chinês à pergunta que lhe é feita em chinês, um observador externo
poderia dizer que o falante do português preso no quarto compreendeu o chinês?32
H - Bem, penso que todos nós aqui, professores de matemática, não hesitaríamos em
dizer que NÃO! Sabemos muito bem como os alunos podem manipular adequadamente
cadeias de símbolos às quais eles não atribuem qualquer significado.
T - Foi a essa mesma conclusão que chegou o autor desse experimento simulado do
quarto chinês, que foi imaginado com a intenção de mostrar que os programas de
32
Este segmento da fala de T é quase uma transcrição literal resumida de Teixeira (2008, pp. 136-137).
33
Este segmento da fala de T, destacado em fonte Agency FB, é quase uma transcrição literal resumida
de Teixeira (2008 p. 137).
H - Mas afinal, onde estamos querendo chegar? O que nos diz o nosso terapeuta
linguístico nada freudiano? (Risos mais esperançosos...).
T - Digo-lhes que um terapeuta wittgensteiniano não costuma lidar com uma questão do
mesmo modo como lida com uma doença34. E daí, o modo como costuma lidar com a
questão da doença não tem como propósito produzir consensos e, muito menos, uma
nova teoria. (Risos generalizados). Talvez, uma alternativa seja tentar ver o
problema de outra maneira.
H - A minha teoria (risos generalizados) é que uma explicação satisfatória dos
processos internos conscientes precisaria ser buscada na atividade social do trabalho
T - O problema que vejo com a SUA teoria da consciência, Hélio, é que ela ainda parece
pressupor um palco interior ao sujeito, no qual se desenrolariam os seus processos
mentais conscientes e um palco exterior ao sujeito - o mundo dos objetos - no qual se
desenrolariam as suas atividades. É por isso que você precisa falar em reflexo e em
interiorização de um exterior em um interior. É como se as luzes de nosso palco interior
só pudessem iluminá-lo DEPOIS que as luzes do palco exterior no qual se desenrolam a
nossa experiência efetiva já estivessem acesas. Mas, a rigor, que experiência humana,
34
Aqui T, com base no aforismo wittgensteiniano “O filósofo trata uma questão como uma doença”
(Wittgenstein, 1979, IF-255, p. 97), procura, tal como o faz Wittgenstein, diferenciar-se do modo como os
filósofos costumam lidar com os problemas que criam.
35
Este segmento da fala de H, destacado em fonte Agency FB, é quase uma transcrição literal resumida
de Leontiev (1983, p. 22-23).
que formas de atividade humana poderiam ter sido constituídas ou vivenciadas e
posteriormente apropriadas, fora do domínio de constituição de qualquer tipo
rudimentar de linguagem, de comunicação simbólica? Então, Hélio, se você quiser levar
a sério a sua própria crença de que a língua é a forma de existência da consciência,
você precisaria também levar a sério a crença de que uma atividade humana é também
uma forma de existência da língua. Nenhuma poderia ter pré-existido à outra. Ambas só
poderiam ter se constituído mutuamente, como o verso e o reverso da medalha, como
uma faixa de Möbius na qual se pode passar do exterior para o interior sem cruzarmos
qualquer fronteira.
R - Concordo com você, T. De novo o problema do interno e do externo.
T – É! Precisamos assumir que, mesmo com toda a nossa ousadia, a nossa encenação
compõem nossa vida mental. Ora, o teatro cartesiano é uma ficção cognitiva,
numa espécie de segunda transcrição que seria operada por algum tipo de
R - Achei bastante sugestivo o modo como esse tal de Dennett fala de consciência...
T - Sim! Dennett sugeriu um modelo explicativo da consciência que a vê como
uma máquina serial virtual produzida pela própria ação desse paralelismo
36
Esta fala de T, destacada em fonte Agency FB, é uma composição quase literal de extratos da
referência Teixeira (2008, p. 160).
tornasse então consciente por entrar na narrativa serial, sendo logo em
37
Esta fala de T, destacada em fonte Agency FB, é uma transcrição quase literal de extratos de Teixeira
(2008, p. 161).
M - Ter consciência do desejo é o desejo da consciência! Por que, então, continuar
insistindo em praticar uma pedagogia humanista?
(Neste momento, um vento inexplicável invade a sala fechando, com violência e ruído,
a única porta aberta que permitia aos que estavam em seu interior olhar para o resto
errante de noite em seu exterior. Uma voz misteriosa entra em cena)38.
usam? Educar não significa nada para vocês? Façam o flagrante de seus
vocês?
R - É o que estamos tentando dizer. É uma coisa que nos daria uma sensação ruim.
Voz - Só isso?
Voz - Tudo bem, não vou pressionar. Mas pensem bem e me digam o que é
R - (Pega um giz e escreve na lousa) - Consciência é uma coisa dentro de nós que nos
impede de fazer coisas ruins.
38
O diálogo que se segue entre "a voz" e os demais personagens é uma montagem propositalmente
transcriada da cena final do filme Polícia, Adjetivo (2009), do diretor romeno Corneliu Porumboiu. No
filme, "a voz" (em fonte Agency FB) é a voz do chefe de polícia (Vlad Ivanov) e as vozes de R, M e H
(em fonte calibri) são a voz do policial Cristi (Dragos Bucur).
Voz - Como assim, "ruins"? Peguem o dicionário no armário e procurem
"consciência".
H - (Procurando e depois lendo em voz alta) - Consciência: Sentimento, intuição que o
homem tem de sua existência. Conhecimento intuitivo ou automático do indivíduo
sobre a sua existência e as coisas ao seu redor. Faculdade de perceber e entender.
Consciência social: conjunto de ideias, concepções, conhecimentos e mentalidade de
um grupo refletindo suas condições de existência assim como a psicologia social das
pessoas. Consciência de classe: parte da consciência social que reflete a existência de
uma determinada classe em oposição à existência material, seu pensamento e espírito.
Noção de responsabilidade em relação à própria conduta. Questão de consciência:
solução de problema moral difícil. Dor na consciência: remorso, arrependimento. Estar
de consciência limpa ou não pesar na consciência: saber que não violou leis morais ou
do Estado. Não ter consciência: não ter escrúpulos. Em sã consciência: com
sinceridade. Liberdade de consciência: o direito dos cidadãos a ter suas visões
religiosas ou filosóficas, etc. Francês, 'conscience'; Latim, 'conscientia'.
R - Isso!
Voz - Se vocês não os flagrarem, vão ter dor de consciência por não estarem
M - Não.
R - Porque esse papel vai mudar. Em poucos anos, não vamos mais flagrar alunos que
não desejam aprender nesse tipo de escola.
Voz - Vocês mudam a legislação à revelia? Vocês não acreditam na lei que,
próprias leis morais. Então, neste momento, vocês terão que escolher... se vão
impor a lei e serem professores, ou se vão seguir suas próprias leis e saírem
"professor".
Referências bibliográficas
39
As palavras destacadas em fonte Agency FB são de Paul Wittgenstein, sobrinho de Ludwig
Wittgenstein no romance autobiográfico de Thomas Bernhard. Entretanto, diz Bernhard, "no enterro de
Paul só estiveram presentes oito ou nove pessoas, como me consta, e eu mesmo estava naquele momento
em Creta, escrevendo uma obra de teatro que, assim que a terminei, aniquilei-a imediatamente. (...) Até
hoje não visitei sua tumba" (Bernhard, 2010, p. 143-144).
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de 2007.
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