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1. Introdução
O PL que foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2022, no entanto, não foi aquele
encaminhado pelo governo Bolsonaro em 2019 (PL 2401/2019), mas sim uma subemenda
substitutiva global ao PL 3179/2012, de autoria do deputado federal Lincoln Portela (PL/MG).
Passamos à análise da referida subemenda.
1
Fonte: https://apublica.org/2022/07/homeschooling-brasil-castigo-fisico-bater-aned-hslda/
Texto atual da LDB Texto aprovado na Câmara dos Deputados
Art. 89. As creches e pré-escolas existentes “Art. 89-A. Para o cumprimento do disposto
ou que venham a ser criadas deverão, no na alínea a do inciso I do § 3º do art. 23 desta
prazo de três anos, a contar da publicação Lei pelos pais ou responsáveis legais que
desta Lei, integrar-se ao respectivo sistema formalizarem a opção pela educação
de ensino. domiciliar nos 2 (dois) primeiros anos de
vigência deste artigo, será admitido período
de transição, nos seguintes termos:
I – comprovação, ao longo do ano da
formalização da opção pela educação
domiciliar, de que pelo menos um dos pais ou
responsáveis legais esteja matriculado em
curso de nível superior ou em educação
profissional tecnológica, em curso
reconhecido nos termos da legislação;
II – comprovação anual de continuidade dos
estudos, com aproveitamento, por pelo
menos um dos pais ou responsáveis legais, no
curso de nível superior ou em educação
profissional tecnológica em que estiver
matriculado;
III – conclusão, por pelo menos um dos pais
ou responsáveis legais, do curso de nível
superior ou em educação profissional
tecnológica em que estiver matriculado, em
período de tempo que não exceda a 50%
(cinquenta por cento) do limite mínimo de
anos para sua integralização, fixado pelas
normas do Conselho Nacional de Educação.”
A mudança promovida no art. 1º já desvirtua sobremaneira a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional e o próprio texto constitucional, uma vez que a LDB foi concebida para
disciplinar a educação escolar e que esta integra o direito à educação inscrito na Carta Política.
A mudança promovida no inciso III do § 1º do art. 5º se revela uma tentativa de anular, via
alteração de legislação ordinária, comandos constitucionais em pleno vigor. Por mais que a LDB
preveja a educação domiciliar como alternativa à educação escolar, como propõe a matéria, a
Constituição Federal não prevê essa alternativa e verbaliza categoricamente que: o dever do
Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e
gratuita dos 4 aos 17 anos de idade; o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público
subjetivo; compete ao Poder Público recensear os educandos, fazer-lhes a chamada e zelar,
junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola; na organização de seus sistemas de
ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração,
de forma a assegurar a universalização, a qualidade e a equidade do ensino obrigatório; o Plano
Nacional de Educação e o Sistema Nacional de Educação devem promover a universalização do
atendimento escolar. Não é admissível, portanto, que dispositivos de uma norma
infraconstitucional anulem comandos expressos de modo absolutamente literal na Constituição
Federal.
Dispõe ainda que o Conselho Nacional de Educação editará diretrizes nacionais, e os sistemas
de ensino adotarão providências que assegurem e viabilizem o exercício do direito de opção dos
pais ou responsáveis legais pela educação domiciliar, bem como sua prática; e que os pais ou
responsáveis legais perderão o exercício do direito à opção pela educação domiciliar caso:
incorram no disposto no art. 81-A; a avaliação anual qualitativa, na educação pré-escolar,
evidencie insuficiência de progresso do educando em 2 anos consecutivos; o estudante do
ensino fundamental e médio seja reprovado, em 2 anos consecutivos ou em 3 anos não
consecutivos, na avaliação anual, ou a ela injustificadamente não compareça; a avaliação
semestral evidencie, por 2 vezes consecutivas ou 3 vezes não consecutivas, insuficiência de
progresso do estudante com deficiência ou com transtorno global do desenvolvimento, de
acordo com suas potencialidades.
O texto exige de pelos menos um dos pais ou responsáveis legais, ou ainda de uma terceira
pessoa intitulada “preceptor”, comprovação de escolaridade de nível superior ou em educação
profissional tecnológica, em curso reconhecido nos termos da legislação. A LDB verbaliza que a
formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de
licenciatura plena, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação
infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na
modalidade normal. Isso significa que, na educação domiciliar, diferentemente do que ocorre
na educação escolar, o estudante que esteja cursando o ensino fundamental ou o ensino médio
poderá ter como único professor um de seus pais ou ainda um “preceptor”, desde que tenha
cursado qualquer curso de ensino superior ou qualquer curso de educação profissional
tecnológica, em detrimento de qualquer formação pedagógica e do Plano Nacional de Educação,
que estabelece como meta assegurar que todos os professores e as professoras da educação
básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área
de conhecimento em que atuam.
Exige ainda o cumprimento dos conteúdos curriculares referentes ao ano escolar do estudante,
de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, admitida a inclusão de conteúdos curriculares
adicionais pertinentes, mas ainda que os pais ou responsáveis tenham excelente formação
acadêmica em determinada área, ou que contratem um “preceptor” com excelente formação
acadêmica em determinada área, não é razoável imaginar que alguém pode substituir
professores com formação específica para cada área do conhecimento sem prejuízo à formação
do estudante. Ainda que a família contrate um preceptor com formação específica para cada
área do conhecimento, a formação integral do estudante restará prejudicada, uma vez que o
espaço-tempo escolar não é o lócus apenas do ensino conteudista, mas sim da construção
coletiva do conhecimento de mundo, da socialização, do preparo para o exercício da cidadania.
A proposição prevê a manutenção, pelos pais ou responsáveis legais, de registro periódico das
atividades pedagógicas realizadas e envio de relatórios trimestrais dessas atividades à
instituição de ensino em que o estudante estiver matriculado, bem como o acompanhamento
do desenvolvimento do estudante por docente tutor da instituição de ensino em que estiver
matriculado, inclusive mediante encontros semestrais com os pais ou responsáveis legais, o
educando e, se for o caso, o preceptor ou preceptores. Ou seja, a matéria cria uma nova
categoria, denominada docente tutor, embora não estabeleça que tipo de formação deve ter o
docente tutor. No caso das instituições privadas de ensino, deduz-se que os custos derivados da
contratação de docente tutor serão transferidos para as famílias optantes pela educação
domiciliar; no caso das instituições públicas de ensino, deduz-se que o docente tutor será
contratado com recursos públicos, ou ainda que um docente já pertencente ao quadro de
pessoal da instituição acumulará a função de docente tutor, com ou sem remuneração adicional,
o que acarretará a precarização do trabalho docente.
Ademais, como a avaliação será anual, diferentemente do que ocorre na educação escolar, os
estudantes não terão oportunidade de, através de uma avaliação progressiva, mediada por
profissionais da educação escolar básica, identificarem lacunas na aprendizagem e, com o auxílio
desses profissionais, superarem progressivamente essas lacunas ao longo do ano, de modo que
os estudantes em educação domiciliar serão submetidos a um processo de ensino e
aprendizagem focado na avaliação anual, e a pressão familiar para que sejam aprovados, ano
após ano, pode provocar danos imensuráveis.
A proposição cria mais uma atribuição, dentre tantas outras, para as instituições ou redes de
ensino: a promoção de encontros semestrais das famílias optantes pela educação domiciliar,
para intercâmbio e avaliação de experiências. Cabe destacar que a educação básica é ofertada
predominantemente pelas redes públicas de ensino dos Estados e Municípios, de modo que o
Congresso Nacional, ao aprovar a matéria ora analisada, estará criando novas obrigações para
os entes subnacionais, inclusive uma nova categoria profissional: a figura do professor tutor da
educação domiciliar. Cabe analisar se, ao fazê-lo, respeita ou não a relativa autonomia dos entes
subnacionais.
Os dispositivos que a proposição adiciona ao art. 24 da LDB definem que, para fins de
certificação da aprendizagem, a avaliação do estudante em educação domiciliar, realizada pela
instituição de ensino em que estiver matriculado, compreenderá, na educação pré-escolar,
avaliação anual qualitativa cumulativa dos relatórios trimestrais previstos; no ensino
fundamental e médio, avaliação anual qualitativa cumulativa dos relatórios trimestrais
previstos, bem como avaliação anual, admitida a possibilidade de avanço nos cursos e nas séries
mediante verificação do aprendizado. Na hipótese de o desempenho do estudante na avaliação
anual ser considerado insatisfatório, terá de ser oferecida uma nova avaliação, no mesmo ano,
em caráter de recuperação, pela instituição ou rede de ensino.
As modificações que o texto pretende introduzir nos arts. 31 e 32 da LDB buscam ressalvar a
educação domiciliar das normativas ali expressas, inclusive no que diz respeito à carga horária.
Não há qualquer carga horária prevista para a educação domiciliar na proposição legislativa.
O art. 81-A, que o substitutivo aprovado na Câmara pretende adicionar à LDB, veda a opção pela
educação domiciliar nas hipóteses em que o responsável legal direto for condenado ou estiver
cumprindo pena pelos crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente; na Lei Maria
da Penha; no Título VI da Parte Especial do Código Penal; na Lei de Drogas; e na Lei dos Crimes
Hediondos. Trata-se de uma tentativa de assegurar algum nível de segurança às crianças e
adolescentes em regime de educação domiciliar, embora insuficiente.
De acordo com dados da UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2017 e 2020
foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19
anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil
das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total.
“A grande maioria das vítimas de violência sexual é menina – quase 80%. Para elas, um número
muito alto de casos envolve vítimas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a idade mais
frequente. Para os meninos, o crime se concentra na infância, especialmente entre 3 e 9 anos
de idade. A maioria dos casos de violência sexual contra meninas e meninos ocorre na residência
da vítima e, para os casos em que há informações sobre a autoria dos crimes, 86% dos autores
eram conhecidos.”2
A escola integra a rede de proteção social de crianças e adolescentes e muitas vezes é na escola
que os primeiros sinais de violência contra crianças e adolescentes são identificados e relatados
às autoridades competentes. Embora seja reduzido o número de famílias que praticam,
atualmente na ilegalidade, a educação domiciliar, a regulamentação da modalidade semeará o
mercado da educação domiciliar, incentivando cada vez mais famílias a aderirem à modalidade
e aumentando a vulnerabilidade de crianças e adolescentes privados da educação escolar.
Já o art. 89-A, que a proposição busca adicionar à LDB, prevê que os pais ou responsáveis legais
que formalizarem a opção pela educação domiciliar nos 2 primeiros anos de vigência deste novo
2
Fonte: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/nos-ultimos-cinco-anos-35-mil-
criancas-e-adolescentes-foram-mortos-de-forma-violenta-no-brasil
dispositivo, poderão se submeter a um período de transição para o cumprimento da formação
mínima necessária à opção pela educação domiciliar. Esse período de transição prevê: a
comprovação, ao longo do ano da formalização da opção pela educação domiciliar, de que pelo
menos um dos pais ou responsáveis legais esteja matriculado em curso de nível superior ou em
educação profissional tecnológica, em curso reconhecido nos termos da legislação;
comprovação anual de continuidade dos estudos, com aproveitamento, por pelo menos um dos
pais ou responsáveis legais, no curso de nível superior ou em educação profissional tecnológica
em que estiver matriculado; e a conclusão, por pelo menos um dos pais ou responsáveis legais,
do curso de nível superior ou em educação profissional tecnológica em que estiver matriculado,
em período de tempo que não exceda a 50% do limite mínimo de anos para sua integralização,
fixado pelas normas do Conselho Nacional de Educação.
Trata-se de uma flexibilização absurda, que desconsidera a formação exigida dos professores da
educação escolar, desconsidera o Plano Nacional de Educação no que diz respeito à formação
docente e desconsidera que os pais ou responsáveis em processo de formação terão ainda
menos tempo para acompanhar seus filhos em regime de educação domiciliar.
O art. 3º da subemenda, por sua vez, verbaliza que o disposto no art. 246 do Decreto-Lei nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), não se aplica aos pais ou responsáveis legais
que optarem pela oferta da educação básica domiciliar, ou seja, anula a pena prevista no Código
Penal para crime de abandono intelectual, caracterizado naquele diploma como o ato de
“Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar”. Ocorre que
o crime previsto no Código Penal está sintonizado com o texto constitucional, e que eventuais
mudanças na LDB não anulam os comandos constitucionais que fundamentam o crime de
abandono intelectual.
O art. 4º declara que a Lei entrará em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação
oficial, prazo que não parece razoável, uma vez que a proposição dispõe que o Conselho
Nacional de Educação editará diretrizes nacionais, e os sistemas de ensino adotarão
providências que assegurem e viabilizem o exercício do direito de opção dos pais ou
responsáveis legais pela educação domiciliar, bem como sua prática, nos termos da Lei.
3. Um projeto inconstitucional
O art. 205 da Constituição Federal verbaliza que a educação, como direito de todos e dever do
Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.
O art. 206, por sua vez, reúne os princípios que devem nortear o processo de ensino e
aprendizagem, como a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; a
liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a garantia de padrão de qualidade; dentre
outros. São princípios que devem nortear o ensino nas instituições públicas e privadas.
O inciso I do art. 208 da CF estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, da
pré-escola ao ensino médio, enquanto os parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 208 dispõem que: o
acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo; o não-oferecimento do
ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da
autoridade competente; compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino
fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à
escola.
Isso significa que o texto constitucional vincula “direito à educação” e “frequência à escola”,
atribuindo ao Estado e à família, em consonância com o art. 205 da CF, responsabilidade
solidária para a efetivação desse direito; assim como vincula, conforme dispõe o art. 212, um
percentual mínimo das receitas resultantes de impostos da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios à manutenção e desenvolvimento do ensino.
Ademais, o art. 214 da Constituição, que prevê a adoção, via legislação infraconstitucional, do
Plano Nacional de Educação, estabelece como objetivos fundamentais: a erradicação do
analfabetismo; a universalização do atendimento escolar; a melhoria da qualidade do ensino; a
formação para o trabalho; a promoção humanística, científica e tecnológica do País; e o
estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do
produto interno bruto.
4. A judicialização da matéria
Faz-se importante salientar que os dois votos declarados vencido e parcialmente vencido no
acórdão, proferidos pelo Ministro Roberto Barroso (Relator) e pelo Ministro Edson Fachin,
defenderam o provimento do recurso ou o parcial provimento do recurso, respectivamente.
Enquanto Barroso considerou a educação domiciliar constitucional e chegou a propor regras
para a regulamentação da matéria, homenageando o ativismo judicial, Fachin evocou o princípio
do pluralismo de concepções pedagógicas para considerar a educação domiciliar constitucional,
embora impondo prazo de um ano para que o legislador discipline o exercício do direito.
O acórdão não menciona, no entanto, teses divergentes da tese que embasa o acórdão do STF,
como as teses reivindicadas pelos ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, que negaram
provimento ao recurso, mas em razão da inconstitucionalidade da educação domiciliar, e não
em virtude da ausência de legislação regulamentar.
Em seu voto, o Ministro Luiz Fux, além de considerar que a inconstitucionalidade do ensino
domiciliar já vem traçada nas manifestações da PGR e da AGU, ressalta:
[...]
Não fosse o bastante, também o artigo 208, I, expressamente estabelece, dentre as garantias do
Estado, a “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de
idade”. O mesmo dispositivo estabelece, em seu inciso IV, o dever do Estado de garantir “a
educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”, sem, no
entanto, valer-se da expressão “obrigatória”. A comparação dos dispositivos deixa claro que,
diferentemente do ensino infantil, a educação básica é obrigatória para o Estado e para a
família. O único homeschooling admitido pelo constituinte é aquele que se substitui à creche –
hipótese diversa da presente.
[...]
Quando se trata do melhor interesse da criança e da construção de uma sociedade livre, justa e
plural, por mais razão ainda, a autonomia da vontade dos pais não pode se obstar à proposta
progressista da Constituição. Ao restringir o alcance da liberdade dos pais, deve-se considerar o
caráter relativo dessa liberdade, a vulnerabilidade do menor e a irreversibilidade dos danos
eventualmente causados pelo isolamento. É por tais razões que se deve afastar o argumento de
que haveria um paternalismo em impedir que o ensino domiciliar se substitua ao ensino escolar.
[...]
O ensino domiciliar, compreendido como aquele que se substitui ao escolar, visa a doutrinação
do aluno e/ou seu afastamento do convívio social travado no ambiente escolar. Em ambos os
casos, pretende incutir no menor a visão de mundo dos pais sem lhe oportunizar o contraponto
crítico que seria construído a partir de outras visões existentes. Nenhum livro ou discurso dos
pais vai ensinar à criança o respeito à diferença melhor do que o convívio social com o diferente.
O ensino domiciliar, assim, compromete a formação integral do indivíduo, sobretudo como
integrante de uma sociedade sabidamente plural.
[...]
Some-se, por fim, que há uma faceta anti-isonômica no ensino domiciliar. Por demandar altos
investimentos em contratação de tutores ou professores particulares, quando um dos pais,
geralmente a mãe, não se afasta do mercado de trabalho, o homeschooling se restringe à
parcela mais abastada da sociedade.
No contexto atual, em que crescem vertiginosamente discursos de ódio, gritando mais alto que
as campanhas oficiais de inclusão social de minorias, o contato de crianças e adolescentes com
a diversidade e a tolerância à diferença ganha ainda mais importância. O espaço público da
escola constitui esse ambiente por excelência.
[...]
Não sensibiliza, data venia, o argumento de que o ensino domiciliar se justifica pelas deficiências
porventura existentes na educação regular. Isso porque o ensino público ou privado, autorizado
pelas autoridades educacionais, não se restringe apenas ao lado puramente técnico, ou seja, de
transmissão do saber, mas representa um importante fator de socialização e de integração do
indivíduo na coletividade, aplainando diferenças de renda, cor, gênero, origem, dentre outras.
Penso que o Supremo Tribunal Federal não pode alinhar-se a uma postura individualista,
ultraliberal, que reduz o Estado a um mero gendarme, como se cogitou no já longínquo passado,
sob a influência do pensamento dos fisiocratas franceses, que esgrimiam o mote laissez faire,
laissez passer, le monde va de lui même. Só que o mundo, como se sabe, jamais caminhou por si
mesmo. Até mesmo o planeta Terra, humilde corpo celeste perdido na vastidão do universo, se
move em razão das insondáveis forças gravitacionais.
Entendo que não há razão para retirar uma criança das escolas oficiais, públicas ou privadas, em
decorrência da insatisfação de alguns com a qualidade do ensino. A solução para essa pretensa
deficiência - que, aliás, não atinge as caríssimas escolas privadas frequentadas pela elite - seria
dotá-las de mais recursos estatais e capacitar melhor os professores, inclusive mediante uma
remuneração digna.
[...]
[...]
Dessa forma, afigura-se, a meu ver, que o desígnio dos legítimos representantes do povo
brasileiro foi o de promover a integração de todos os cidadãos mediante a educação. Na situação
sob exame, não vejo razão nenhuma que justifique eventual ação contramajoritária desta Corte,
por não haver direitos ou valores de minorias injustamente ofendidos ou aviltados. Bem por isso,
considero que, em casos como este, emerge o dever de autocontenção do Supremo, em respeito
à vontade soberana do povo, manifestada na Constituinte de 1988.
[...]
Ante o exposto, por entender que o ensino domiciliar, ministrado pela família, não pode ser
considerado meio lícito de cumprimento do dever de prover a educação, previsto no art. 205 da
Constituição Federal, nego provimento ao recurso.
Há, portanto, entendimentos diversos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a revelar que o
julgamento de uma futura Ação Direta de Inconstitucionalidade em face de lei regulamentadora
terá desfecho incerto.
5. A tramitação da matéria no Senado Federal
O Projeto de Lei n° 1338, de 2022 (PL 3179/2012 na Câmara dos Deputados) foi encaminhado
ao Senado em maio de 2022, no último ano do governo Bolsonaro, que viria a ser derrotado nas
urnas. Foi despachado apenas para a Comissão de Educação e Cultura do Senado, em decisão
não terminativa, na qual o Senador Flávio Arns (PSB/PR) foi designado relator.
Na CE, a partir de iniciativa do então Senador Jean Paul Prates (PT/RN), aprovou-se um ciclo de
seis audiências públicas para instrução da matéria, como forma de aprofundar o debate sobre a
educação domiciliar e evitar uma célere deliberação da proposição. Durante o ano de 2022, três
das seis audiências públicas previstas foram realizadas.
Em 2023, eleito presidente da Comissão de Educação e Cultura do Senado Federal, Flávio Arns
(PSB/PR) designou uma Senadora favorável à regulamentação da educação domiciliar como
relatora da proposição: a Senadora Professora Dorinha Seabra (UNIÃO/TO), que foi uma das
relatoras da matéria na Câmara dos Deputados, quando Deputada Federal.
Dorinha Seabra foi designada relatora da proposição em março de 2023, mas desde então não
promoveu uma única audiência pública na CE do Senado para debater a educação domiciliar.
Somente ao término de outubro de 2023 propôs uma única audiência pública para instrução da
matéria, com pouquíssimos convidados.
Por iniciativa da Senadora Teresa Leitão (PT/PE), no entanto, a Comissão de Educação e Cultura
do Senado aprovou um ciclo de três audiências públicas para instrução da matéria, de modo a
permitir a atualização do debate em um novo contexto político e evitar a célere deliberação da
proposição.
As audiências públicas para instrução da matéria já foram agendadas pela Comissão de Educação
e Cultura do Senado para os dias 01, 04 e 12 de dezembro de 2023, numa nítida tentativa de
acelerar o debate e a deliberação, em sintonia com a manifesta intenção da Relatora de colocar
o Projeto de Lei em votação ao apagar das luzes de 2023: quando as atenções da sociedade civil
organizada estão divididas entre o processo legislativo e as celebrações de fim de ano.
Caso seja objeto de modificações de mérito no Senado Federal, a matéria retornará à Câmara
dos Deputados, na qual as modificações serão acatadas ou rejeitadas. Caso seja aprovada sem
modificações no Senado, a proposição será remetida à sanção presidencial, podendo ser objeto
de veto total ou parcial do presidente Lula.
A sociedade civil pode e deve pressionar o Senado Federal para que a proposição seja debatida
também em outras comissões da Casa Legislativa, como a Comissão de Assuntos Sociais (CAS),
a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e a própria Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).
6. Considerações finais
De acordo com a pesquisa nacional Educação, Valores e Direitos, coordenada pelo Cenpec e pela
Ação Educativa, e realizada pelo Datafolha e pelo Centro de Estudos de Opinião Pública
(CESOP/Unicamp), 78,5% da população discorda da ideia de que os pais devem ter o direito de
tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa; 9 em cada 10 pessoas concordam que as crianças
devem ter o direito de frequentar a escola mesmo que seus pais não queiram.
A pandemia de Covid-19, que provocou o fechamento das escolas em todo o país, representou
um laboratório forçado de educação domiciliar, e o resultado foi um déficit de aprendizagem
que o Brasil ainda não foi capaz de superar. 4
O Poder Legislativo deveria estar concentrado em elevar a qualidade da educação básica, que
abrange um universo de 47,4 milhões de estudantes em 178,3 mil escolas. Deveria estar
concentrado em ampliar o acesso à creche para crianças de 0 a 3 anos. Deveria estar
concentrado nas metas e estratégias do Plano Nacional de Educação, inclusive na ampliação do
investimento público em educação pública (Meta 20 do PNE). Ao invés disso, busca responder
aos anseios de um número extremamente limitado de famílias ultraconservadoras que negam
o direito de seus filhos à educação escolar, bem como aos anseios do mercado de produtos
educacionais que já se configura em torno do homeschooling.
_____________________________________________________________________________
3
Fonte: https://www.anped.org.br/news/manifesto-contra-regulamentacao-da-educacao-domiciliar-e-
em-defesa-do-investimento-nas-escolas
4
Fonte: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/09/19/deficit-na-alfabetizacao-dobrou-
com-a-pandemia
ANEXO 1
UNICEF:
https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/unicef-alerta-para-os-riscos-da-
educacao-domiciliar
CENPEC:
https://www.cenpec.org.br/noticias/nao-a-educacao-domiciliar
https://apublica.org/2022/07/homeschooling-brasil-castigo-fisico-bater-aned-hslda/
https://www.anped.org.br/news/manifesto-contra-regulamentacao-da-educacao-domiciliar-e-
em-defesa-do-investimento-nas-escolas
Oito em cada dez brasileiros demonstram rejeição a ensino domiciliar, diz Datafolha:
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/05/oito-em-cada-dez-brasileiros-
demonstram-rejeicao-a-ensino-domiciliar-diz-datafolha.shtml
https://www.cnte.org.br/index.php/menu/comunicacao/posts/noticias/76471-contra-
homeschooling-cnte-reforca-que-lugar-de-aprendizado-e-na-escola