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ARITMÉTICA

DION PASIEVITCH

DION PASIEVITCH

Código Logístico
ISBN 978-65-5821-028-3

I000043 9 786558 210283


Aritmética
Dion Pasievitch

IESDE BRASIL
2021
© 2021 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e
do detentor dos direitos autorais.
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P29a

Pasievitch, Dion
Aritmética / Dion Pasievitch. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021.
144 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-028-3

1. Aritmética. 2. Aritmética - Estudo e ensino. I. Título.


CDD: 513
21-71028
CDU: 511.1

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Dion Pasievitch Doutor e Mestre em Matemática pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Tecnologia
Java pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR). Licenciado em Matemática pela Faculdade
Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da
Vitória. Professor colaborador da Universidade Estadual
do Paraná desde 2017, onde leciona disciplinas das áreas
de álgebra, geometria, análise e estatística.
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SUMÁRIO
1 Teoria elementar dos conjuntos 9
1.1 Conjuntos 9
1.2 Relações binárias 15
1.3 Funções 24
1.4 Relações de ordem 30
1.5 Relações de equivalência 32

2 O conjunto dos números naturais 40


2.1 Axiomas de Peano 40
2.2 Adição e subtração de números naturais 46
2.3 Multiplicação de números naturais 52
2.4 A relação de ordem no conjunto dos números naturais 59
2.5 Princípio da boa ordenação 64

3 O conjunto dos números inteiros 67


3.1 O conjunto ℤ 67
3.2 Adição e subtração de números inteiros 73
3.3 Multiplicação e divisão de números inteiros 78
3.4 Relação de ordem em ℤ 82
3.5 Valor absoluto 86

4 Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 90


4.1 Divisibilidade 90
4.2 Divisão euclidiana 95
4.3 Máximo divisor comum 98
4.4 Mínimo múltiplo comum 106
4.5 Números primos e o teorema fundamental da aritmética 111

5 Congruências 120
5.1 O pequeno teorema de Fermat 120
5.2 Congruências módulo m 123
5.3 Inteiros módulo m 127
5.4 O teorema chinês dos restos 137

6 Gabarito 141
APRESENTAÇÃO
Vídeo
A aritmética aborda conceitos que estão presentes na formação
acadêmica de todas as pessoas, desde o ensino básico. Entre estes
conceitos, os principais são aqueles que envolvem operações algébricas
com números naturais ou inteiros. Igualmente importante é a possibilidade
de comparar esses dois conjuntos numéricos. Todos esses assuntos estão
presentes no dia a dia e, para compreendê-los efetivamente, é necessário
estudar aritmética sob uma perspectiva mais formal.
Esta obra está organizada em cinco capítulos. O primeiro deles trata
de algumas noções preliminares as quais supomos conhecidas, mas que
são desenvolvidas para fixar notações e discorrer com rigor sobre a teoria.
Além disso, são relembrados os conceitos de conjuntos e funções, com
ênfase especial na teoria das relações. Em particular, relações de ordem e
de equivalência são discutidas cuidadosamente, pois constituem aspectos
fundamentais para o bom entendimento da teoria.
O segundo capítulo introduz o conjunto dos números naturais de
maneira axiomática, por meio dos axiomas de Peano. Partindo dessa
abordagem, definimos as operações algébricas usuais do conjunto dos
números naturais – a adição e a multiplicação – e demonstramos suas
propriedades rigorosamente. Em seguida, discutimos a ordem natural do
conjunto dos números naturais e apresentamos os princípios da tricotomia
e da boa ordenação, ambos resultados bastante relevantes do ponto de
vista teórico.
O terceiro capítulo aborda o conjunto dos números inteiros e suas
operações algébricas – adição, multiplicação e subtração –, além de sua
ordem natural, herdada do conjunto numérico apresentado no capítulo
anterior. Adotamos uma abordagem construtiva, em que o conjunto dos
números inteiros é construído com base no conjunto dos números naturais
por meio de uma relação de equivalência específica. Isso permite que a
adição, a multiplicação e a ordenação sejam definidas nos termos presentes
no conjunto dos números naturais. Adicionalmente, é introduzida a
subtração de inteiros. Por fim, discutimos a versão do princípio da tricotomia
para o conjunto dos inteiros e a noção de valor absoluto.
O quarto capítulo aborda a aritmética no conjunto dos números naturais
e inteiros. Em ambos os conjuntos, vamos definir a relação de divisibilidade,
demonstrar suas propriedades e deduzir vários resultados importantes.
Dentre eles, destacam-se o teorema fundamental da aritmética e o teorema
que mostra a existência de infinitos números primos. Esse último resultado
é consequência do teorema da decomposição em fatores primos, o qual é
demonstrado cuidadosamente.
O quinto e último capítulo apresenta tópicos adicionais que ampliam o
escopo e o entendimento da teoria. Destacam-se o pequeno teorema de
Fermat e o teorema chinês dos restos, e a sua conexão com congruências
lineares. Também são abordados os inteiros módulo m. Esse assunto, em
particular, é bastante relevante para outras disciplinas de álgebra, dado que
fornece um modelo de grupo abeliano finito.
Os exercícios foram escolhidos de modo a auxiliar no entendimento dos
tópicos tratados ao longo desta obra. Em geral, apenas a leitura da teoria será
suficiente para respondê-los. Enfatizamos que a resolução de exercícios é
fundamental para aprender novos conceitos em matemática. Sendo assim,
deve-se formar o hábito de praticar a teoria discutida com os exercícios,
pois, além de possibilitar que os tópicos sejam revisados, essa prática
contribui para o desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático-formal.
Esperamos que esta obra contribua com o aprimoramento do
pensamento matemático e que seja suficientemente interessante para
motivar a busca por novos conhecimentos, não somente do campo da
aritmética, mas de outras áreas. Além disso, os tópicos discutidos aqui
configuram em introdução e motivação para o estudo de diversos outros
conteúdos nas teorias de grupo, anéis e corpos, e na teoria de números.
.
1
Teoria elementar
dos conjuntos
A teoria de conjuntos e seus desdobramentos constituem os funda-
mentos da matemática. É por meio da noção de conjuntos que é possível
definir relações, funções e formalizar diversos conceitos. Neste estudo, é
primordial que você adquira uma boa familiaridade com a teoria de con-
juntos, mesmo que no nível mais elementar. Pensando nisso, este capí-
tulo apresentará a teoria ingênua dos conjuntos, com ênfase na teoria
das relações, abrangendo os conceitos de função, relações de ordem e
de equivalência – assuntos fundamentais para o bom entendimento da
aritmética.
Entretanto, cabe destacar que o assunto da teoria de conjuntos não
será encerrado neste capítulo. Tal tarefa seria impossível. O objetivo cen-
tral é relembrar alguns conceitos elementares estudados em outras disci-
plinas e fixar a notação.

1.1 Conjuntos
Vídeo Nesta seção, discutiremos noções básicas da teoria ingênua dos conjuntos. O
qualificador ingênua é utilizado para distinguir essa teoria da teoria axiomática dos
conjuntos. No nível ingênuo, aceitamos a noção de conjunto de maneira intuitiva;
já no nível axiomático, desenvolvemos a teoria rigorosamente desde o princípio por
meio dos axiomas, por exemplo, dos axiomas de Zermello-Frankel. Entretanto, essa
abordagem axiomática foge ao escopo desta obra e, portanto, a exposição feita
abrange exclusivamente a teoria ingênua dos conjuntos.

No ensino básico, somos ensinados que um conjunto é uma coleção ou um


agrupamento de objetos. Este é o entendimento adotado na teoria ingênua dos
conjuntos e é suficiente para os propósitos deste curso. Contudo, para dar início
à discussão, é necessário introduzir algumas terminologias e notações.

Os conjuntos, ao longo deste texto, serão denotados, comumente, por le-


tras latinas maiúsculas. Entretanto, em algumas situações serão utilizadas le-
tras maiúsculas estilizadas. Por exemplo, os conjuntos dos números naturais,
inteiros, racionais, reais e complexos serão denotados, respectivamente, como
ℕ, ℤ, ℚ, ℝ e ℂ.

Teoria elementar dos conjuntos 9


Importante Conjuntos são, usualmente, formados por elementos que dependem da nature-
É importante usar a notação za do conjunto. Por exemplo, o conjunto A, das vogais do alfabeto latino, tem como
de conjuntos corretamente! É
elementos: a, e, i, o, u. Nessa situação, escrevemos
necessário, além de abrir e fechar
as chaves, separar os elementos A = {a, e, i, o, u}
do conjunto com vírgula.
e dizemos que o conjunto A foi descrito listando-se seus elementos.

Caso um conjunto tenha quantidade finita, com muitos elementos, é possível


simplificar a escrita. Para ilustrar, considere B o conjunto dos números naturais
menores que 10. Nesse caso,

B = {1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9}

Como é bastante trabalhoso listar todos os elementos de B, é possível utilizar a


notação alternativa

B = {1, 2, 3, …, 9}

em que os elementos 4, 5, 6, 7 e 8 foram substituídos por reticências. Nesse tipo de


simplificação, devemos exibir uma quantidade adequada de elementos para que
fique claro o padrão seguido.

A simplificação da notação também pode ser aplicada no caso de conjuntos com


infinitos elementos. Por exemplo,

C = {1, 2, 3, …}

denota o conjunto dos números inteiros positivos. Nesse caso, uma quantidade
infinita de elementos foi omitida.

Entretanto, para evitar qualquer tipo de ambiguidade, é conveniente descrever


um conjunto com base na propriedade comum que seus elementos possuem. A
título de ilustração, considere o conjunto X formado pela coleção dos inteiros pares
positivos. É possível denotar esse conjunto por

X = {2, 4, 6, 8, …}

ou, de maneira mais precisa, como


Glossário
X = {x : x é um inteiro par positivo}
A notação “:” indica a expressão
“tal que”. Também podemos Perceba que os elementos x de X são identificados por meio da propriedade de
utilizar o símbolo “|”, o qual será ser um inteiro par positivo. Portanto, qualquer objeto que cumpra essa proprie-
adotado nessa obra.
dade será um elemento do conjunto X. Naturalmente, os únicos elementos que
satisfazem tal propriedade são os números 2, 4, 6, 8 etc. Dessa forma, é possível
escrever

X = {x | x é um inteiro par positivo} = {2, 4, 6, 8, …}

que são maneiras diferentes de representar o mesmo objeto matemático: o con-


junto dos inteiros positivos pares.

Geralmente, é possível formar conjuntos da forma

X = {x | P(x)}

10 Aritmética
que lemos “x tal que P(x)”, sendo P(x) alguma propriedade sobre x. Qualquer objeto
x que torne a propriedade P(x) válida fará parte do conjunto X, ou seja, será um
elemento de X.

A discussão acima será formalizada na definição a seguir.

Definição
Seja X = {x | P(x)} um conjunto e x um objeto, são válidas as afirmações:
I. Se x satisfaz a propriedade P(x), isto é, se P(x) é uma proposição verdadeira, escrevemos x ∈ X
e dizemos que x pertence a X.
II. Se x não satisfaz a propriedade P(x), isto é, se P(x) é uma proposição falsa, escrevemos x ∉ X
e dizemos que x não pertence a X.

Mais precisamente, é necessário especificar um universo do qual os objetos x serão


retirados.

Para enfatizar o universo do qual retiramos os elementos que formam o conjun-


to X, podemos escrever

X = {x ∈ U | P(x)}

sendo U o universo. O universo nada mais é que um conjunto do qual retiramos os


elementos para formar conjuntos determinados. Por exemplo, no caso do conjunto

X = {x ∈ ℝ | P(x)}

está explícito que os elementos de X pertencem ao universo ℝ. Em particular, não


teria sentido indagar se a vogal “a” pertence ao conjunto X, dado que a vogal “a”
não é um elemento do universo ℝ. Quando ficar claro o universo considerado, ele
poderá ser omitido da notação.

Vamos ilustrar a relação de pertinência com alguns exemplos.

Σxemρlo 1

Seja X = {x | x é vogal do alfabeto latino}. Nessa situação, temos, por exemplo,


que a ∈ X, mas b ∉ X, pois “a” é vogal do alfabeto latino, enquanto “b” não é. Nesse
caso, o universo natural a ser considerado é o conjunto de vogais do alfabeto lati-
no. A escolha do universo pode variar de acordo com o contexto, mas, geralmente,
haverá uma escolha mais natural.

É imprescindível compreender que dado um conjunto X = {x ∈ U | P(x)} e um


objeto x ∈ U, é possível que x seja um elemento de X ou que não seja, conforme
satisfaça ou não a propriedade P(x). Na maioria das vezes, é necessário testar a
validade da propriedade P(x) para o objeto x dado, pois em grande parte das si-
tuações práticas e de maior interesse pode não ser claro que o objeto x cumpre a
propriedade P(x) dada. Isso será ilustrado no exemplo a seguir.

Teoria elementar dos conjuntos 11


Σxemρlo 2

Considere o conjunto X = {x ∈ ℝ | x2 – 2x – 3 = 0}.

Dado o objeto x = 1, não é imediato dizer se x ∈ X ou x ∉ X. É necessário testar se


x = 1 satisfaz a propriedade x2 – 2x – 3 = 0. Isso é feito substituindo x = 1 na expres-
são x2 – 2x – 3 e verificando se o resultado é igual a 0 (zero). Vejamos,

x2 – 2x – 3 ⇒ 12 – 2 ⋅ 1 – 3 = 1 – 2 – 3 = –4 ≠ 0

Sendo assim, 1 ∉ X, já que 1 não satisfaz a propriedade que define X. Agora, note
que, por exemplo, se x = 3, temos que

x2 – 2x – 3 ⇒ 32 – 2 ⋅ 3 – 3 = 9 – 6 – 3 = 0

e, portanto, 3 ∈ X, pois satisfaz a propriedade que define o conjunto X.

É importante habituar-se com a ideia do exemplo anterior para que não


ocorra confusão no momento de decidir se dado objeto é elemento de um con-
junto ou não.

Em muitas situações, é necessário verificar que um dado conjunto é igual a ou-


tro. Para isso, devemos definir a igualdade entre conjuntos, que será baseada na
relação de inclusão, definida a seguir.

Definição
Sejam X e Y conjuntos. Dizemos que X está contido em Y e escrevemos X ⊂ Y, se todo elemento
de X é um elemento de Y. Caso X não esteja contido em Y, escrevemos X ⊄ Y.

Dizer que X não está contido em Y significa que existe pelo menos um elemento
de X que não é elemento de Y. O seguinte exemplo ilustra a relação de inclusão.

Σxemρlo 3

Considere os conjuntos A = {1, 2, 3, 4} e B = {1, 2}. Nessa situação, B ⊂ A, pois


todo elemento de B é elemento de A, mas A ⊄ B, pois, por exemplo, 3 é um elemen-
to de A que não é elemento de B.

Muitas vezes, é necessário um raciocínio mais elaborado para verificar que um


dado conjunto está contido em outro, conforme exemplificamos a seguir.

12 Aritmética
Σxemρlo 4

Considere os conjuntos A = {1, 0, –1} e B = {x ∈ ℝ | x2 – 1 = 0}. Nesta situação,


A ⊄ B, pois 0 ∉ B, já que 02 – 1 = –1 ≠ 0. Porém, temos que B ⊂ A, pois se x ∈ B, então
x satisfaz a equação x2 – 1 = 0, ou seja, (x + 1)(x – 1) = 0 e, portanto, x = 1 ou x = –1.
Sendo assim, x ∈ A.

Após compreender a noção de inclusão de conjuntos, podemos definir quando


dois conjuntos são iguais.

Definição
Sejam X e Y dois conjuntos com o mesmo universo. Dizemos que X é igual a Y caso X ⊂ Y e
Y ⊂ X. Neste caso, escrevemos X = Y.

Em outras palavras, a definição anterior enuncia que dois conjuntos são iguais
se, e somente se, eles possuem os mesmos elementos.

Por definição, para demonstrar que um conjunto X é igual a um conjunto Y,


devemos verificar duas inclusões: X ⊂ Y e Y ⊂ X. Para verificar que X ⊂ Y, considera-
mos um elemento qualquer x ∈ X e mostramos que x ∈ Y. Para mostrar a segunda
inclusão, Y ⊂ X, consideramos um elemento qualquer x ∈ Y e verificamos que x ∈ X.
Isto será ilustrado no exemplo a seguir.

Σxemρlo 5

Considere os conjuntos X = {x ∈ ℝ | x2 + x – 2 = 0} e Y = {–2, 1}. Temos que

X=Y

Para demonstrar isso, verificamos inicialmente que Y ⊂ X. De fato, se x ∈ Y, então


x = –2 ou x = 1. Se x = –2, então

x2 + x – 2 ⇒ (–2)2 + (–2) –2 = 4 – 2 – 2 = 0

e se x = 1, então

x2 + x – 2 ⇒ 12 + 1 – 2 = 1 + 1 – 2 = 0

Portanto, em qualquer caso x ∈ X. Perceba que partimos de um elemento arbi-


trário x ∈ Y e deduzimos que x ∈ X. Essa é a forma geral para mostrar a inclusão de
um conjunto em outro. Resta verificar a inclusão contrária X ⊂ Y. Para tanto, tome
um elemento x ∈ X. Nesse caso, pela definição do conjunto X, temos que x é um
número real que satisfaz a equação

x2 + x – 2 = 0
(Continua)

Teoria elementar dos conjuntos 13


Essa é uma equação do segundo grau que pode ser resolvida facilmente por
meio da fórmula de Bhaskara. Uma aplicação desse dispositivo permite deduzir
que x = –2 ou x = 1. Portanto, x ∈ Y, mostrando assim que X ⊂ Y. Uma vez que são
válidas ambas as inclusões X ⊂ Y e Y ⊂ X, resulta que X = Y.

A seguir, serão apresentadas formas de combinar dois conjuntos de modo a


obter um terceiro conjunto.

Definição
Sejam X e Y conjuntos definidos em um mesmo universo U. Definimos:
I. A interseção de X e Y como o conjunto
X∩Y = {x ∈ U | x ∈ X e x ∈ Y}
Lemos o conjunto X∩Y como “x inter y”.
II. A reunião de X e Y como o conjunto
X∪Y = {x ∈ U | x ∈ X ou x ∈ Y}
III. Caso X ⊂ Y, o complementar de X em relação a Y como o conjunto
Y∖X = {x ∈ U | x ∈ Y e x ∉ X}
IV. O complementar de X como o conjunto
Xc = {x ∈ U | x ∉ X}

Em outras palavras, a interseção de dois conjuntos consiste em elementos do


universo que são comuns a ambos os conjuntos. Já a reunião de dois conjuntos
consiste em todos aqueles elementos do universo que pertencem a um ou a outro
conjunto ou a ambos.

O complementar de X em relação a Y consiste em todos os elementos do uni-


verso que pertencem apenas a Y e não a X. Note que, em geral, X\Y é diferente de
Xc, pois esse segundo conjunto consiste em todos os elementos do universo que
não pertencem a X.

A seguir, serão apresentados alguns exemplos envolvendo a definição exposta


anteriormente.

Σxemρlo 6

Considere os conjuntos X = {1, 2, 3} e Y = {1, 2, 4}, no universo U = {1, 2, 3, 4, 5}.


Nesse caso, temos que
• X∩Y = {x ∈ U | x ∈ X e x ∈ Y} = {1, 2};
• X∪Y = {x ∈ U | x ∈ X ou x ∈ Y} = {1, 2, 3, 4};
• Y∖X = {x ∈ U | x ∈ Y e x ∉ X} = {4};
• Xc = {x ∈ U | x ∉ X} = {4, 5}.

14 Aritmética
O próximo exemplo envolve um raciocínio mais elaborado. Livro

Σxemρlo 7

Considere os conjuntos X = {x ∈ ℕ | x divide 10} e Y = {x ∈ ℕ | x é par}. Nesse


caso, temos que
• X∩Y = {x ∈ ℕ | x divide 10 e x é par} = {2, 10};
• X∪Y = {x ∈ ℕ | x divide 10 ou x é par} = {0, 2, 4, 5, 6, 8, 10, 12, 14, 16, …};
O livro Iniciação à lógica
• X∖Y = {x ∈ ℕ | x divide 10 e x não é par} = {1, 5}; matemática é um clássico
utilizado nos cursos de li-
• Yc = {x ∈ ℕ | x não é par} = {1, 3, 5, 7, …}. cenciatura em Matemática.
Nele, podemos encontrar
uma exposição detalhada
das construções lógicas
envolvendo proposições.
É importante se familiarizar com o tipo de raciocínio presente nos exemplos É um bom complemento
para a o estudo da teoria
anteriores, pois é algo que se repete constantemente ao se estudar qualquer disci-
de conjuntos.
plina que envolva conjuntos.
FILHO, E. A. São Paulo: Nobel, 2002.

1.2 Relações binárias


Vídeo Em matemática, ao se estudar determinados tipos de objetos, procuramos com-
preender as relações entre eles. Por exemplo, ao se estudar conjuntos, buscamos
entender as relações entre conjuntos. Ao se estudar espaços vetoriais, na álgebra
linear, tentamos compreender as relações existentes entre espaços vetoriais. Esse
tipo de raciocínio permeia toda a matemática. E o que seriam essas relações? Elas
podem assumir formas bastante distintas: funções, relações de ordem ou de equi-
valência, entre outras possibilidades.

Nesta seção, serão discutidos os tópicos necessários para que seja possível
compreender plenamente os conceitos de funções, relações de ordem e relações
de equivalência. Esses conceitos estarão presentes durante toda sua formação em
Matemática. O ponto de partida é a definição de produto cartesiano de conjuntos.

Definição
Sejam X e Y conjuntos. O produto cartesiano de X por Y é o conjunto
X × Y ≔ {(x, y) | x ∈ X e y ∈ Y}
Os elementos (x, y) deste conjunto são denominados pares ordenados.

Note que, a princípio, um par ordenado (x, y) é apenas um sím- Glossário


bolo. Não o definimos explicitamente. Embora seja possível fazê-lo, O símbolo “≔” significa “igual
não é conveniente para nossos propósitos. Mas como vai ser pos- por definição”.
sível desenvolver a teoria sem efetivamente definir o que é um par
ordenado?

Teoria elementar dos conjuntos 15


Na prática, será suficiente o entendimento de que os elementos de X × Y são
pares (x, y) cuja primeira entrada consiste em um elemento de X e a segunda, em
um elemento de Y. Adicionalmente, é necessário também saber quando dois pares
ordenados são iguais. Isto é definido a seguir.

Definição
Dizemos que dois pares ordenados (x, y) e (z, w) de X × Y são iguais e escrevemos (x, y) = (z, w)
se, e somente se, x = z e y = w, ou seja,
(x, y) = (z, w) ⇔ x = z e y = w

Você pode indagar, e com razão: mas X × Y não é simplesmente o conjunto


{x, y | x ∈ X, y ∈ Y} de todos os elementos possíveis que se pode tomar de X e Y?
Acontece que não. Para compreender isso, note que em X × Y os elementos (x, y) e
(y, x) são diferentes, enquanto ambos dão origem aos mesmos elementos do con-
junto {x, y | x ∈ X, y ∈ Y}.

Para consolidar o entendimento, vamos apresentar alguns exemplos.

Σxemρlo 8

Sejam X = {a, b} e Y = {1}. Nesse caso, X × Y = {(a, 1), (b, 1)}.

Note que, por exemplo, (a, 1) ∈ X × Y, mas (1, a) ∉ X × Y. De fato, (1, a) não poderia
pertencer ao conjunto X × Y, visto que 1 ∉ X. Contudo, note que

(1, a) ∈ Y × X = {(1, a), (1, b)}

Isso também ilustra o fato geral que X × Y ≠ Y × X.

Suponha X e Y dois conjuntos finitos. O raciocínio para obter todos os elementos


de X × Y é simples: fixamos um elemento de X na primeira entrada do par ordenado
e percorremos todo o conjunto Y, formando todos os pares ordenados possíveis
com a primeira entrada que foi fixada.

Em seguida, já esgotados os elementos de Y, fixamos o próximo elemento de X


na primeira entrada do par ordenado e repetimos o procedimento, variando todos
os elementos possíveis de Y na segunda entrada.

Prosseguimos com essa ideia até esgotar todos os elementos de X. Obviamente,


esse raciocínio é aplicável apenas quando X e Y têm um número finito de elemen-
tos. Contudo, também tem sentido formar produtos cartesianos com conjuntos
infinitos, conforme será ilustrado a seguir.

16 Aritmética
Σxemρlo 9

Sejam X = ℝ e Y = {1, 2}. Note que ℝ é um conjunto infinito. Nessa situação, o


produto cartesiano ℝ × Y é dado por

ℝ × Y = {(x, 1), (y, 2) | x, y ∈ ℝ}

Note que, nesse caso, ℝ × Y também é um conjunto infinito.

Naturalmente, é possível formar o produto cartesiano de dois conjuntos infini-


tos, conforme verificamos a seguir.

Σxemρlo 10

Sejam X = ℝ e Y = ℤ. Nesse caso, tanto ℝ quanto ℤ são infinitos e o produto car-


tesiano ℝ × ℤ é dado por

ℝ × ℤ = {(x, y) | x ∈ ℝ e y ∈ ℤ}

Em particular, ℝ × ℤ também possui infinitos elementos.

Mas afinal, qual é a utilidade prática para o produto cartesiano de dois conjun-
tos? A grande utilidade está no fato de que o produto cartesiano permite capturar
relações existentes entre dois conjuntos. Para elaborar a respeito, é necessário de-
finir o que se entende por relação entre conjuntos.

Definição
Sejam X e Y conjuntos. Uma relação de X em Y é um subconjunto
ℛ ⊂ X ×Y
Nesse caso, se (x, y) ∈ ℛ, dizemos que x se relaciona com y por meio de ℛ, e escrevemos xℛy
(lê-se x “erre” y). Caso X = Y, dizemos que ℛ é uma relação em X.

Por definição, uma relação de X em Y é meramente um subconjunto do produ-


to cartesiano X × Y, ou seja, uma escolha de certos pares ordenados pertencentes
a X × Y.

Cabe salientarmos que a notação xℛy significa efetivamente a pertinência (x, y)


∈ ℛ. Em particular, é possível escrever ℛ como o conjunto

ℛ = {(x, y) ∈ X × Y | xℛy}

Teoria elementar dos conjuntos 17


A razão de introduzir a notação xℛy se dá pela praticidade, principalmente
quando estudamos as relações de ordem e de equivalência.

Note que, de acordo com nossa definição, qualquer subconjunto do produto


cartesiano X × Y é uma relação de X em Y. Sendo assim, a noção de relação ainda
não tem qualquer utilidade prática. Para ser útil, é necessário restringir o estudo
a relações que tenham propriedades particulares. Isso será feito ao longo desta
seção. Mas, antes de prosseguir, vamos observar alguns exemplos.

Σxemρlo 11

Sejam X = {a, b} e Y = {1}. Nessa situação,

X × Y = {(a,1), (b,1)}

Em particular, as relações possíveis de X em Y são:


• ℛ1 = ϕ;
• ℛ2 = {(a,1)};
• ℛ3= {(b,1)};
• ℛ4 = X × Y.

Não existem quaisquer outras relações de X em Y, dado que ϕ, ℛ2, ℛ3 e X × Y são


os únicos subconjuntos de X × Y.

Conforme ilustrado no exemplo anterior, o conjunto vazio ϕ e o próprio produto


cartesiano X × Y sempre são relações de X em Y.

Caso um dos conjuntos X ou Y seja infinito não é possível listar todas as rela-
ções possíveis de X em Y, dado que, nessa situação, existem infinitos subconjuntos
de X × Y. No entanto, é possível trabalhar com relações nessa situação, conforme
exemplificado a seguir.

Σxemρlo 12

Sejam X = ℝ e Y = ℝ. Considere

ℛ ≔ {(x, y) ∈ ℝ × ℝ | x + y = 1}

Por definição, ℛ é subconjunto de ℝ × ℝ e, portanto, é uma relação em ℝ. Por


exemplo, temos que 0ℛ1, pois (0, 1) ∈ ℝ × ℝ e 0 + 1 = 1.

Porém, 0 (zero) não se relaciona com 2 por meio de ℛ, mesmo que (0, 2) ∈ ℝ × ℝ.
De fato, temos que 0 + 2 = 2 ≠ 1 e, portanto, (0, 2) ∉ ℛ. É conveniente escrever a
relação ℛ como

ℛ = {(x, 1 – x) | x ∈ ℝ}

pois nesta escrita, é possível determinar diretamente todos os membros da relação


ℛ, bastando percorrer todos os x ∈ ℝ.
(Continua)

18 Aritmética
Em particular, é possível interpretar geometricamente a relação ℛ. Para isso,
desenhe dois eixos ortogonais em um plano. O eixo horizontal representará o con-
junto das primeiras entradas dos pares pertencentes a ℛ, enquanto o eixo vertical
representará o conjunto das segundas entradas dos pares pertencentes a ℛ. A re-
lação ℛ corresponde à reta passando pelos pontos (0, 1) e (1, 0), respectivamente,
conforme ilustramos na Figura 1.
Figura 1
Reta que representa a relação ℛ

0 1 ℝ

Fonte: Elaborada pelo autor.

As relações que aparecem na prática são mais que um mero subconjunto de um


produto cartesiano. Em geral, elas costumam ter determinadas propriedades, que
podem ser variadas; algumas delas serão apresentadas a seguir, principalmente
aquelas que serão úteis em nossos estudos.

Definição
Seja X um conjunto e ℛ uma relação em X. Dizemos que ℛ é uma relação:
I. Reflexiva, se xℛx, para todo x ∈ X.
II. Simétrica, se dados x, y ∈ X, tais que xℛy, então yℛx.
III. Antissimétrica, se dados x, y ∈ X, tais que xℛy e yℛx, então x = y.
IV. Transitiva, se dados x, y, z ∈ X, tais que xℛy e yℛz, então xℛz.

Note que as propriedades I, II e III não teriam sentido no caso de uma relação
ℛ ⊂ X × Y com X ≠ Y. Essa é a razão pela qual restringimo-nos às relações em X.

A seguir, serão apresentados alguns exemplos de relações que tenham as pro-


priedades da definição anterior.

Σxemρlo 13

Considere o conjunto X = {1, 2, 3} e a relação

ℛ = {(1, 1), (1, 3), (2, 2), (2, 3), (3, 3)}

Essa relação é reflexiva, pois 1ℛ1, 2ℛ2 e 3ℛ3, ou seja, xℛx, para todo x ∈ X.

Teoria elementar dos conjuntos 19


A seguir, temos um exemplo de relação simétrica e de uma relação que não é
simétrica.

Σxemρlo 14

Considere X = {1, 2, 3, …} o conjunto dos inteiros positivos e defina

xℛy ⇔ x + y = 12

Note que é possível escrever ℛ como:

ℛ = {(x, y) ∈ X × X | x + y = 12}

mas isso não é estritamente necessário para a discussão. Temos que essa relação
é simétrica, pois se x, y ∈ X são tais que xℛy, então

x + y = 12

e, portanto,

y + x = 12

ou seja, yℛx.

Contudo, a relação

x𝒮y ⇔ x divide y

não é simétrica. De fato, temos que, por exemplo, 3𝒮6, já que 3 divide 6, mas 6 não
se relaciona com 3 por meio de 𝒮, dado que 6 não divide 3.

O próximo exemplo fornece a ilustração de uma relação antissimétrica.

Σxemρlo 15

Considere o conjunto dos inteiros positivos X = {1, 2, 3, …} e

xℛy ⇔ x divide y

Essa relação é antissimétrica, pois, se xℛy e yℛx, temos que x divide y e y divide x.
Isso só pode acontecer caso x = y. No exemplo anterior, mostramos que ℛ não é
simétrica.

Finalmente, o próximo exemplo fornece uma relação que é transitiva.

Σxemρlo 16

Seja X o conjunto de triângulos no plano. Definimos ℛ ⊂ X × X da seguinte forma:

T1ℛT2 ⇔ T1 é semelhante a T2
(Continua)

20 Aritmética
Essa é uma relação transitiva. De fato, se T1, T2 e T3 são triângulos tais que T1ℛT2
e T2ℛT3, então T1 é semelhante a T2 e T2 é semelhante a T3. Logo, utilizando a geo-
metria plana, segue que T1 é semelhante a T3, ou seja, T1ℛT3, mostrando assim a
transitividade.

De fato, ℛ também é reflexiva e simétrica, pois todo triângulo é semelhante a


si próprio e, se um triângulo é semelhante a outro, então este é semelhante ao
primeiro.

Toda relação tem um domínio, um contradomínio e uma imagem. Isso é im-


portante, sobretudo, para que possamos discutir funções injetivas, sobrejetivas e
bijetivas. A definição do domínio, do contradomínio e da imagem de uma relação é
apresentada a seguir.

Definição
Sejam X e Y conjuntos e ℛ ⊂ X × Y uma relação de X em Y. Então:
I. O domínio de ℛ é o conjunto
D(ℛ) ≔ {x ∈ X | ∃ y ∈ Y; xℛy}.
II. O conjunto de partida de ℛ é o conjunto X.
III. O conjunto de chegada ou contradomínio de ℛ é o conjunto Y.
IV. A imagem de ℛ é o conjunto
I(ℛ) ≔ {y ∈ Y | ∃ x ∈ X; xℛy}.

Em outras palavras, o domínio de uma relação é o conjunto de todas as primei-


ras entradas dos pares ordenados que pertencem a ℛ, enquanto a imagem é o
conjunto de todas as segundas entradas de tais pares.

O conjunto de partida é simplesmente o conjunto X do produto cartesiano X × Y,


já o contradomínio é o conjunto Y de X × Y. Geralmente, a imagem de uma relação
pode ser diferente de seu conjunto de chegada, bem como o domínio pode ser
diferente do conjunto de partida. Isso será esclarecido nos próximos exemplos.

Σxemρlo 17

Considere os conjuntos

X = {1, 2, 3, 4, 5} e Y = {1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10}

Definimos a relação ℛ ⊂ X × Y por

xℛy ⇔ y = 2x

Nessa situação,

ℛ = {(x, y) ∈ X × Y | y = 2x} = {(x, 2x) | x ∈ X}

= {(1, 2), (2, 4), (3, 6), (4, 8), (5, 10)}
(Continua)

Teoria elementar dos conjuntos 21


Em particular, temos que

D(ℛ) = {1, 2, 3, 4, 5} = X

I(ℛ) = {2, 4, 6, 8, 10}

Nesse caso, a imagem de ℛ é diferente do contradomínio Y de ℛ.

No exemplo anterior, o domínio da relação ℛ ⊂ X × Y coincidia com todo o con-


junto X. Isso nem sempre é válido para uma relação, conforme exemplificamos a
seguir.

Σxemρlo 18

Considere os conjuntos X = {–2, –1, 0, 1, 2} e Y = {–1, 0, 1}. Definimos a relação


ℛ ⊂ X × Y por

xℛy ⇔ x2 + y2 = 1

Nesse caso,

ℛ = {(x, y) ∈ X × Y | x2 + y2 = 1} = {(–1, 0), (0, 1), (0, –1), (1, 0)}

Consequentemente,

D(ℛ) = {–1, 0, 1} ≠ X

enquanto

I(ℛ) = {–1, 0, 1} = Y

Nessa situação, o conjunto de partida é X, mas o domínio é diferente de X.

Toda relação possui uma relação inversa, conforme definimos a seguir.

Definição
Sejam X e Y conjuntos e ℛ ⊂ X × Y uma relação. A inversa de ℛ é a relação
ℛ–1 ⊂ Y × X
definida por
yℛ–1x ⇔ xℛy
com x ∈ X e y ∈ Y.
Em termos de conjuntos, é possível escrever a relação inversa de ℛ como
ℛ–1 = {(y, x) ∈ Y × X | (x, y) ∈ ℛ}

Em outras palavras, ℛ–1 é obtida por meio de ℛ invertendo-se a ordem dos pares
ordenados pertencentes a ℛ. Vamos ilustrar isso com um exemplo.

22 Aritmética
Σxemρlo 19

Sejam X = {1, 2, 3} e Y = {a, b}. Considere a relação

ℛ = {(1, a), (1, b), (2, a), (3, b)} ⊂ X × Y

Neste caso,

ℛ–1 = {(a, 1), (b, 1), (a, 2), (b, 3)} ⊂ Y × X

Note que, pela definição,


• D(ℛ–1) = I(ℛ);
• I(ℛ–1) = D(ℛ);
• (ℛ–1)–1 = ℛ.

ou seja, o domínio da relação inversa coincide com a imagem da relação dada; a


imagem da relação inversa coincide com o domínio da relação dada; e, finalmente,
a inversa da relação inversa coincide com a relação original dada.

No âmbito das relações, há uma operação entre elas que merece destaque. É a
operação de composição de relações, definida a seguir.

Definição
Sejam X, Y e Z conjuntos e ℛ ⊂ X × Y e 𝒮 ⊂ Y × Z relações. Definimos a composta de ℛ e 𝒮,
denotada por 𝒮 ∘ ℛ (lê-se “s bola r”) como a relação de X em Z definida por
x𝒮 ∘ ℛz ⇔ ∃ y ∈ Y, tal que xℛy e yℛz
com x ∈ X e z ∈ Z.
Em termos de conjuntos, é possível escrever a relação S ∘ ℛ como
𝒮 ∘ ℛ = {(x, z) ∈ X × Z | ∃ y ∈ Y; (x, y) ∈ ℛ e (y, z) ∈ 𝒮}

Note que, por definição, 𝒮 ∘ ℛ é uma relação de X em Z. Além disso, para que te-
nha sentido, é necessário que o conjunto de chegada de ℛ coincida com o conjunto
de partida de 𝒮.

A seguir, exemplificamos a definição de relação composta.

Σxemρlo 20

Sejam X = {1, 2, 3, 4}, Y = {m, n, p, q} e Z = {5, 6, 7, 8}. Considere as relações

ℛ = {(1, m), (1, n), (2, m), (3, q), (4, q)} ⊂ X × Y

𝒮 = {(n, 5), (n, 6), (p, 8), (q, 7)} ⊂ Y × Z

Como o conjunto de chegada de ℛ coincide com o conjunto de partida de 𝒮, é


possível formar a composição 𝒮 ∘ ℛ, que é dada por
(Continua)

Teoria elementar dos conjuntos 23


𝒮 ∘ ℛ = {(1, 5), (1, 6), (3, 7), (4, 7)}

Note que para obter 𝒮 ∘ ℛ basta observar atentamente aqueles pares em ℛ cuja
segunda entrada aparece como primeira entrada dos pares em 𝒮.

Para finalizar esta seção, vamos introduzir uma relação especial, denominada
relação identidade. Ela é importante na discussão de funções.

Definição
Seja X um conjunto. A identidade de X é a relação em X definida por
xℛy ⇔ x = y
sendo x, y ∈ X.
Em termos de conjuntos, idX = {(x, x) | x ∈ X}

Para compreender melhor a definição de relação identidade, acompanhe o


exemplo a seguir.

Livro
Σxemρlo 21
O livro Relações binárias,
escrito Edgard de Alencar
Filho, é excelente para Se X = {a, b}, então idX = {(a, a), (b, b)}.
aprofundar o conhecimen-
to a respeito dessas rela-
ções. A obra é recheada
de exemplos e exercícios,
sendo um complemento
Note que se ℛ ⊂ X × Y é uma relação qualquer, então
perfeito para os tópicos
estudados nessa seção. ℛ ∘ idX = ℛ e idY ∘ ℛ = ℛ
FILHO, E. A. São Paulo: Nobel, 1984.
Em outras palavras, compor uma relação com a identidade não tem qualquer
efeito.

1.3 Funções
Vídeo Anteriormente, apresentamos alguns tipos de relações que existem em um
mesmo conjunto: reflexiva, simétrica, antissimétrica e transitiva. E quanto ao caso
de relações entre conjuntos distintos? Nessa situação, as relações mais relevantes
são as funções. Em particular, toda função é uma relação, conforme será definido
a seguir.

24 Aritmética
Definição
Sejam X e Y conjuntos. Uma função de X em Y é uma relação f ⊂ X × Y tal que:
I. Para todo x ∈ X, existe y ∈ Y tal que xfy.
II. Se x ∈ X, y, y’ ∈ Y são tais que xfy e xfy’, então y = y’.
Nesse caso, escrevemos y = f(x) para significar xfy e a relação f ⊂ X × Y é denotada por f: X → Y.

A definição anterior pode ser resumida ao afirmarmos que uma função f de X


em Y é uma relação que associa a cada elemento de X um único elemento de Y. In-
tuitivamente, devemos pensar em uma função de X em Y como um dispositivo que
pega um elemento x ∈ X e o transforma em um elemento y ∈ Y, sendo y unicamente
determinado.

A seguir serão apresentados alguns exemplos de funções.

Σxemρlo 22

Defina a relação f ⊂ ℝ × ℝ como

xfy ⇔ y = x2

Essa relação representa uma função de ℝ em ℝ. De fato,

I. Dado x ∈ ℝ, temos que x2 = x2, logo xfx2;

II. Se x, y, y’ ∈ ℝ são tais que xfy e xfy’, então y = x2 e y’ = x2, implicando em y = y’.

Portanto, as condições I e II da definição anterior estão satisfeitas e, assim, f


trata-se de uma função. Perceba que, em termos de conjuntos, temos

f = {(x, y) | y = f(x)} = {(x, y) | y = x2} = {(x, x2) | x ∈ ℝ}

Note que, por definição, um elemento x ∈ ℝ está relacionado ao elemento x2 ∈ ℝ


por meio de f e a nenhum outro. Nesse sentido, observamos que f transforma o
elemento x ∈ ℝ no elemento x2 ∈ ℝ.

Na seção anterior discutimos a relação identidade. Essa relação é sempre uma


função, conforme explicamos a seguir.

Σxemρlo 23

Seja X um conjunto e idX a relação identidade. Temos que idX é uma função. De
fato,

idX = {(x, x) | x ∈ X}

e, portanto, D(idX) = X. Além disso, se x, y, y’ ∈ X são tais que (x, y), (x, y’) ∈ idX, então,
pela definição de idX, segue que y = x = y’.
(Continua)

Teoria elementar dos conjuntos 25


Portanto, idX: X → X é uma função. Note que,

xidXy ⇔ (x, y) ∈ idX ⇔ y = x ⇔ x = idX(x)

Portanto, idX(x) = x, qualquer que seja x ∈ X.

É importante ilustrar que nem toda relação constituirá uma função. Isso é feito
no exemplo a seguir.

Σxemρlo 24

Considere a relação f ⊂ ℝ × ℝ definida por

xfy ⇔ x2 + y2 = 1

Nesse caso,

f = {(x, y) ∈ ℝ × ℝ | x2 + y2 = 1}

É possível ilustrar f no plano cartesiano como um círculo unitário centrado em


(0, 0), como na Figura 2.
Figura 2
Círculo unitário centrado na origem

–1 1

Fonte: Elaborada pelo autor.

Embora f seja uma relação em ℝ, f não é uma função. De fato, considerando, por
exemplo, x = –2, não existe y ∈ ℝ tal que xfy. Em particular, a definição de função
não fica satisfeita.

Dentre as funções que aparecem com frequência na matemática, destacamos


as funções injetoras, sobrejetoras e bijetoras. Tais classes de funções serão defini-
das a seguir.

26 Aritmética
Definição
Sejam X e Y conjuntos. Dizemos que uma função f: X → Y é:
I. Injetora, se para todo x, y ∈ X tais que x ≠ y, temos f(x) ≠ f(y).
II. Sobrejetora, se para todo y ∈ Y, existe x ∈ X tal que y = f(x).
III. Bijetora, se f é injetora e sobrejetora.

Dizer que uma função é injetora significa que ela transforma elementos diferen-
tes no domínio em elementos diferentes no contradomínio.

Já a sobrejetividade de uma função significa que todo elemento de seu contra-


domínio é um elemento de sua imagem. Como a imagem é sempre um subcon-
junto do contradomínio, a sobrejetividade significa, precisamente, que a imagem é
igual ao contradomínio.

Em geral, para mostrar que uma função f: X → Y é injetora, costumamos utilizar


a forma contrapositiva da proposição enunciada em I. Em outras palavras, uma
função f: X → Y é injetora se, sempre que x, y ∈ X são tais que f(x) = f(y), temos que
x = y. Isso é esclarecido com o exemplo a seguir.

Σxemρlo 25

Considere a função f: ℝ → ℝ definida por f(x) = 2x – 1. Essa função é injetora, pois


se x, y ∈ ℝ são tais que f(x) = f(y), então

2x – 1 = 2y – 1

Portanto, adicionando 1 a ambos os membros e, em seguida, fazendo a divisão


por 2, resulta que x = y.

No caso de funções numéricas, a sobrejetividade também pode ser verificada


resolvendo uma equação, conforme ilustrado a seguir.

Σxemρlo 26

A função f: ℝ → ℝ definida por f(x) = 2x – 1 é sobrejetiva. De fato, dado y ∈ ℝ


desejamos verificar a existência de x ∈ ℝ tal que y = f(x), ou seja, tal que

y = 2x – 1

Resolvendo essa equação para o y dado, temos que

y 1
x
2
(Continua)

Teoria elementar dos conjuntos 27


Agora, é importante garantir que x pertence ao domínio da função. Neste exem-
plo, é o caso, pois
y 1 ∈ ℝ
x
2
O fato de ter sido possível resolver a equação y = f(x) para um elemento x no
domínio de f assegura a sobrejetividade de f.

Note que a função utilizada nos últimos dois exemplos é bijetiva, pois demons-
tramos que ela é tanto injetora, quanto sobrejetora.

Particularmente, as funções bijetoras são de extrema importância para a


matemática e, certamente, estarão presentes ao longo de todo nosso estudo.
Tais funções possuem a característica de admitirem uma inversa, conforme
demonstramos a seguir.

Teorema

Sejam X e Y conjuntos e f: X → Y uma função. A relação inversa f–1 ⊂ Y × X é uma


função se, e somente se, f é bijetora.

Demonstração

Suponha que f–1 seja uma função. Para verificar a injetividade de f, considere
x, y ∈ X tais que f(x) = f(y). Nesse caso, (x, f(y)) ∈ f e, portanto, (f(y), x) ∈ f–1.

Porém, (y, f(x)) ∈ f e, portanto, (f(x), y) ∈ f–1. Como f(x) = f(y), temos que z = f(x) = f(y)
é tal que (z, x), (z, y) ∈ f–1. Sendo f–1 função, decorre que x = y. Em particular, f
é injetora.

Resta verificar que f é sobrejetora. Para tanto, considere y ∈ Y. Sendo f–1 uma
função e y ∈ D(f–1), existe x ∈ X tal que (y, x) ∈ f–1. Mas isso significa que (x, y) ∈ f, ou
seja, y = f(x). Portanto, f é sobrejetora.

Por outro lado, suponha que f seja bijetora. Para mostrar que f–1 é função é ne-
cessário verificar:
• D(f–1) = Y;
• Se (y, z1), (y, z2) ∈ f–1, então z1 = z2.

A igualdade D(f–1) = Y é imediata, pois como f é sobrejetora, temos que I(f) = Y e,


portanto,

D(f–1) = I(f) = Y
Glossário Suponha então que (y, z1), (y, z2) ∈ Y × X são tais que (y, z1), (y, z2) ∈ f–1. Isso sig-
∎: significa que a demonstracao nifica que (z1, y), (z2, y) ∈ f, ou seja, y = f(z1) = f(z2). Sendo f injetora, deduzimos que
foi encerrada. Isso auxilia a z1 = z2. Portanto, f–1 é função.
leitura, pois separa o argumento
e a demonstracao do restante ∎
do texto.

28 Aritmética
Em resumo, sempre que f: X → Y é uma função bijetora, existe a função inversa
f : Y → X. Cabe destacar que a relação inversa f–1 sempre existe, porém, só é uma
–1

função quando f é bijetora.

O seguinte resultado é bastante útil na prática.

Teorema

Uma função f: X → Y é uma função bijetora se, e somente se, existe uma função
g: Y → X, tal que f ∘ g = idY e g ∘ f = idX. Neste caso, g = f–1.

Demonstração

Suponha que f é bijetora. Neste caso, existe a função g ≔ f–1: Y → X. Além disso,

g ∘ f = f–1 ∘ f = idY e f ∘ g = f ∘ f–1 = idX

Por outro lado, suponha que exista g: Y → X, tal que

f ∘ g = idY e g ∘ f = idX

É necessário verificar que f é bijetora. Vamos mostrar que g = f–1. Para isso, con-
sidere (y, x) ∈ g, ou seja, x = g(y). Nesse caso, temos que

f(x) = f(g(y)) = (f ∘ g)(y) = idY(y) = y

e, portanto, (x, y) ∈ f, ou seja, (y, x) ∈ f–1. Isso mostra a inclusão g ⊂ f–1.

Resta verificar a inclusão contrária f–1 ⊂ g. Para tanto, seja (y, x) ∈ f–1. Isso significa
que x = f–1(y), ou seja, y = f(x). Consequentemente,

g(y) = g(f(x)) = (g ∘ f)(x) = idX(x) = x

Logo, (y, x) ∈ g. Isso mostra a igualdade g = f–1.

O seguinte exemplo mostra como é possível aplicar o resultado anterior.

Livro
Σxemρlo 27 A Coleção Fundamentos
da Matemática Elementar,
em seus vários volumes,
Considere a função f: ℝ → ℝ definida por f(x) = 2x + 1. Essa função é bijetora. Para além de abordar diversos
tópicos que são que são
demonstrar isso, note que g: ℝ → ℝ definida por
contemplados no curso de
graduação em Matemáti-
y 1
g( y )  ca, apresenta discussões
2 detalhadas com muitos
exemplos e exercícios.
é tal que Para complementar o
estudo desse conteúdo,
 y  1  y  1 vale conferir o primeiro
( f  g)( y )  f ( g( y ))  f    2   1  y  1 1  y volume referente a teoria
 2   2  de conjuntos e funções.

IEZZI, G.; MURAKAMI, C. São Paulo:


e Atual, 2004. (Coleção Fundamentos
(Continua) de Matemática Elementar).

Teoria elementar dos conjuntos 29


2x  1  1 2x
( g  f ) (x)  g( f (x))  g  2x  1   x
2 2

Portanto, f ∘ g = idℝ e g ∘ f = idℝ. Em particular, f é bijetora e

y 1
f 1( y )  g( y ) 
2

Além das funções, existem outros tipos de relações que são muito relevantes
para a aritmética. Dentre estas, destacam-se as relações de ordem, objeto de estu-
do da próxima seção.

1.4 Relações de ordem


Vídeo Relações de ordem constituem uma abstração da relação “maior que ou
igual” entre números. São três as propriedades que configuram uma relação
de ordem: reflexividade, antissimetria e transitividade, conforme apresentado
a seguir.

Definição
Seja X um conjunto. Uma relação de ordem em X é uma relação ≼ em X tal que:
• ≼ é reflexiva: para todo x ∈ X, vale x ≼ x;
• ≼ é antisimetrica: se x, y ∈ X são tais que x ≼ y e y ≼ x, então x = y;
• ≼ é transitiva: se x, y, z ∈ X são tais que x ≼ y e y ≼ z, então x ≼ z.

Se x ≼ y, dizemos que x precede y. Caso x ≼ y e x ≠ y, escrevemos x ≺ y e dizemos


que x precede estritamente y.

No lugar de x ≼ y, podemos escrever y ≽ x e dizemos, neste caso, que y sucede


x. Analogamente, a notação y ≻ x significa que y sucede x estritamente, ou seja,
y ≽ x e y ≠ x.

A seguir serão apresentados alguns exemplos de relações de ordem.

Σxemρlo 28

Seja X = ℕ o conjunto dos números naturais. Defina ≼ da seguinte forma

x ≼ y ⇔ x é menor que ou igual a y

Isso define uma relação de ordem em ℕ. De fato,

I. Todo número natural x é igual a si próprio e, portanto, x ≼ x.

II. Se x e y são dois números naturais, tais que x é menor que ou igual a y e y é
menor que ou igual a x, então, necessariamente, x = y.

(Continua)

30 Aritmética
III. Se um número natural x é menor que ou igual um número natural y e y é
menor que ou igual um número natural z, então x é menor que ou igual a z.

Essa argumentação não é precisa o suficiente. Para formalizá-la, é necessário dis- Livro
cutir a construção dos números naturais com bastante cuidado e, com base nisso,
definir o que significa ser “menor que ou igual a” no conjunto dos números naturais.
Esse tipo de formalização faz parte do estudo da aritmética dos números naturais.

A seguir, será apresentado um exemplo que ilustra que relações de ordem po-
dem ser definidas até mesmo para conjuntos não numéricos, isto é, para conjuntos
O livro Álgebra destaca-se
cujos elementos não são números. pela abordagem simples,
clara e direta. Os principais
pontos fortes são os

Σxemρlo 29 muitos exemplos, os


exercícios resolvidos e os
exercícios propostos. Vale
conferir tanto esse título
Seja X um conjunto e P(X) = {A | A é subconjunto de X}. Definimos em P(X) a relação quanto os demais disponí-
veis na mesma coleção.
A≼B⇔A⊂B
SPIEGEL, M. R.; MOYER, R. E. 4.
Essa é uma relação de ordem em X. De fato, ed. Porto Alegre: Bookman, 2014.
(Coleção Schaum)
I. Para todo A ∈ P(X), isto é, para todo subconjunto de X vale A ⊂ A e, portanto,
A ≼ A.

II. Se A, B ∈ P(X) são tais que A ≼ B e B ≼ A, então A ⊂ B e B ⊂ A, de modo que


A = B.

III. Finalmente, se A, B, C ∈ P(X) são tais que A ≼ B e B ≼ C, então A ⊂ B e B ⊂ C,


o que implica A ⊂ C, isto é, A ≼ C.

O exemplo anterior ilustra o caráter abstrato que uma relação de ordem pode ter.
Entretanto, na aritmética, as relações de ordem que aparecem com mais frequên-
cia são aquelas definidas em conjuntos numéricos e, portanto, mais manipuláveis.

O próximo exemplo ilustra que, além da relação menor que ou igual a, a relação
de divisibilidade é de ordem no conjunto dos números naturais.

Σxemρlo 30

A relação ℛ definida por:

xℛy ⇔ x divide y

no conjunto dos números naturais, é uma relação de ordem.

De fato:

I. Todo número natural x divide a si próprio, ou seja, ℛ é reflexiva.

II. Se x e y são números naturais tais que x divide y e y divide x, então, neces-
sariamente, x = y. Portanto, ℛ é antissimétrica.
(Continua)

Teoria elementar dos conjuntos 31


III. Se x, y e z são números naturais tais que x divide y e y divide z, então, x divi-
de z. Isso mostra que ℛ é transitiva.

Novamente, para melhor formalizarmos os argumentos anteriores, é necessá-


rio que estudemos de maneira rigorosa a divisibilidade no conjunto dos números
naturais.

Um dos tipos mais importantes de relações é a de equivalência, que será estu-


dada na próxima seção

1.5 Relações de equivalência


Vídeo Na matemática existem situações em que dois objetos têm propriedades idên-
ticas, tornando-se indistinguíveis na teoria. Por exemplo, na Geometria Analítica te-
mos o conceito de vetor. Quaisquer dois segmentos de reta que possuam o mesmo
comprimento, a mesma direção e o mesmo sentido representam o mesmo vetor e,
portanto, são indistinguíveis do ponto de vista da Geometria Analítica.

Isso acontece em diversas outras instâncias na matemática. A formalização des-


sa ideia passa pelo conceito de relação de equivalência, objeto de estudo desta
seção.

Uma relação de equivalência é uma relação em um conjunto que permite iden-


tificar elementos que tenham determinada propriedade. De maneira precisa, a de-
finição é dada a seguir.

Definição
Seja X um conjunto. Uma relação ℛ ⊂ X × X em um conjunto X é dita uma relação de equi-
valência em X se
I. ℛ é reflexiva, ou seja, se x ∈ X, então xℛx.
II. ℛ é simétrica, ou seja, se x, y ∈ X são tais que xℛy, então yℛx.
III. ℛ é transitiva, ou seja, se x, y, z ∈ X são tais que xℛy e yℛz, então xℛz.
Se xℛy dizemos que “x é equivalente a y módulo ℛ”.

Por definição, dizer que ℛ é uma relação em X significa que ℛ ⊂ X × X, ou seja,


ℛ é um conjunto de pares ordenados de X. Além disso, a notação xℛy significa que
(x, y) ∈ ℛ. Em particular, qualquer subconjunto ℛ ⊂ X × X é um candidato a ser uma
relação de equivalência em X.

Para verificar se ℛ ⊂ X × X é, de fato, uma relação de equivalência, é necessário


testar a validade das propriedades I, II e III da definição anterior.

Mas qual é a relevância de uma relação de equivalência? Isso ficará claro ao


longo do texto, principalmente quando introduzirmos o conjunto dos números in-
teiros. Por enquanto, vamos contemplar alguns exemplos.

32 Aritmética
Σxemρlo 31

Seja L o conjunto das retas no plano. Definimos a relação ℛ em L da seguinte


forma:

ℓ1ℛℓ2 ⇔ ℓ1 é paralela à ℓ2

Isso define uma relação de equivalência em L.

De fato, toda reta no plano é paralela a si própria, ou seja, ℛ é reflexiva. Além


disso, se a reta ℓ1 é paralela à reta ℓ2, então a reta ℓ2 é paralela à reta ℓ1, isto é, ℛ é
uma relação simétrica.

Finalmente, se uma reta ℓ1 é paralela à uma reta ℓ2 e ℓ2, por sua vez, é paralela
a outra reta ℓ3, então, necessariamente, ℓ1 é paralela a ℓ3, mostrando assim, que ℛ
é uma relação transitiva.

Sendo reflexiva, simétrica e transitiva, ℛ é uma relação de equivalência em L.

O exemplo anterior possui caráter geométrico. Em contraste, o próximo exem-


plo tem caráter puramente algébrico.

Σxemρlo 32

Considere o conjunto ℤ dos números inteiros. Definimos

xℛy ⇔ existe k ∈ ℤ tal que y – x = 2k

Esta é uma relação de equivalência em ℤ.

De fato, se x ∈ ℤ, então

x–x=0=2⋅0

e, portanto, xℛx. Isso significa que ℛ é reflexiva.

Suponha então que x, y ∈ ℤ são tais que xℛy. Nesse caso, existe k ∈ ℤ tal que

y – x = 2k

Consequentemente,

x – y = –2 ⋅ k = 2 ⋅ (–k)

Como –k ∈ ℤ, temos, em particular, que yℛx. Isso revela a simetria de ℛ.

Finalmente, ℛ é transitiva. Para demonstrar isso, suponha que x, y, z ∈ ℤ são tais


que xℛy e yℛz. Por definição, existem k, l ∈ ℤ tais que

y – x = 2k e z – y = 2l

Consequentemente,

z – x = (z – y) + (y – x) = 2l + 2k = 2 ⋅ (l + k)

Como l + k ∈ ℤ, deduzimos que xℛz, mostrando assim a transitividade.

Teoria elementar dos conjuntos 33


Existem inúmeros exemplos de relações de equivalência espalhados por toda
a matemática. Por isso, ao longo do texto, alguns exemplos surgirão naturalmente
para esclarecer a teoria abordada. Agora, vamos discutir outros aspectos teóricos a
respeito das relações de equivalências. São eles: as noções de classe de equivalên-
cia e o conjunto quociente.

Dada uma relação de equivalência ℛ em um conjunto X e um elemento qualquer


x ∈ X, é natural indagar quais são os elementos de X que se relacionam com x mó-
dulo ℛ. Esse raciocínio conduz diretamente à definição de classe de equivalência,
apresentada a seguir.

Definição
Seja ℛ uma relação de equivalência em um conjunto X e x ∈ X. O conjunto
[x] ≔ {y ∈ X | yℛx}
é denominado de classe de equivalência de x módulo ℛ. Nesse caso, dizemos também que x é
um representante dessa classe de equivalência.

Neste momento, é necessário fazermos um alerta. Por definição, a classe de


equivalência [x] representada por x ∈ X é um subconjunto de X, ou seja, não é um
elemento de X. Isto será importante posteriormente.

Essa definição parece ser bastante abstrata em um primeiro momento e, para


esclarecer, vamos discutir isso nos exemplos a seguir.

Σxemρlo 33

No Exemplo 31 demonstramos que a relação

xℛy ⇔ existe k ∈ ℤ tal que y – x = 2k

definida em ℤ, é uma relação de equivalência.

Vamos determinar algumas classes de equivalência. Por exemplo,


• A classe de equivalência do 0 (zero):

[0] = {y ∈ ℤ | yℛ0} = {y ∈ ℤ | ∃ k ∈ ℤ tal que y – 0 = 2k} = {2k | k ∈ ℤ}

ou seja, [0] é o conjunto dos inteiros pares.


• A classe de equivalência do 1 (um):

[1] = {y ∈ ℤ | yℛ1} = {y ∈ ℤ | ∃ k ∈ ℤ tal que y – 1 = 2k} = {2k + 1 | k ∈ ℤ}


Portanto, [1] coincide com o conjunto de todos os inteiros ímpares.

• A classe de equivalência do 2 (dois):

[2] = {y ∈ ℤ | yℛ2} = {y ∈ ℤ | ∃ k ∈ ℤ tal que y – 2 = 2k}

= {2 ⋅ (k + 1) | k ∈ ℤ}
e este é o conjunto dos inteiros pares, ou seja, [2] = [0].

34 Aritmética
Vamos explorar um exemplo adicional, a fim de fixar o entendimento.
Desafio
Verifique que [x] = [0] ou [x] =
Σxemρlo 34 [1], qualquer que seja o número
inteiro x.

Considere o conjunto ℝ2 = {(x, y) | x, y ∈ ℝ}, sendo ℝ o conjunto dos números


reais. Definimos a relação

(x, y)ℛ(z, w) ⇔ y = w

Temos que ℛ é uma relação de equivalência em ℝ2. Com efeito, a relação ℛ é


reflexiva, pois se (x, y) ∈ ℝ2, temos (x, y)ℛ(x, y), uma vez que y = y.

A relação ℛ também é simétrica. De fato, se (x, y), (z, w) ∈ ℝ2 são tais que
(x, y)ℛ(z, w), então y = w, de forma que w = y e, portanto, (z, w)ℛ(x, y).

Finalmente, ℛ é transitiva. Para mostrar isso, considere (x, y), (z, w), (u, v) ∈ ℝ2 tais
que (x, y)ℛ(u, v) e (u, v)ℛ(z, w). Nesse caso, y = v e v = w e, por consequência, y = w,
mostrando que (x, y)ℛ(z, w).

Agora, a título de ilustração, note que

[(0, 0)] = {(z, w) ∈ ℝ2 | (z, w)ℛ(0, 0)} = {(z, w) ∈ ℝ2 | w = 0} = {(z, 0) | z ∈ ℝ}

Geometricamente, [(0, 0)] corresponde a todo o eixo das abscissas. Em geral,


qualquer classe de equivalência da forma [(x, 0)] será igual a [(0, 0)].

Generalizando, qualquer classe de equivalência da forma [(x, y)] será igual ao


conjunto {(z, y) | z ∈ ℝ}, ou seja, geometricamente, [(x, y)] é uma reta paralela ao
eixo das abscissas cortando o eixo das ordenadas na altura y.

Toda relação de equivalência ℛ em um conjunto X dá origem ao conjunto das


classes de equivalência representadas pelos elementos de X, definido a seguir.

Definição
Sejam X um conjunto e ℛ uma relação de equivalência em X. O conjunto
X/ℛ ≔ {[x] | x ∈ X}
é denominado de quociente de X módulo ℛ.

Portanto, por definição, os elementos de X/ℛ são determinados subconjuntos


de X. Em particular, X/ℛ não é um subconjunto de X, mas sim um subconjunto do
conjunto das partes de X.

É necessário esclarecer a definição de conjunto quociente por meio de al-


guns exemplos.

Teoria elementar dos conjuntos 35


Σxemρlo 35

Considere a relação de equivalência ℛ em ℤ definida no Exemplo 31, isto é,

xℛy ⇔ ∃ k ∈ ℤ tal que y – x = 2k

Conforme a discussão apresentada no Exemplo 32, temos que

ℤ/ℛ = {[0], [1]}

Lembre-se que [0], nesse exemplo, coincide com o conjunto dos inteiros pares,
enquanto [1] coincide com o conjunto dos inteiros ímpares.

Acompanhe mais um exemplo.

Σxemρlo 36

Considere a relação de equivalência ℛ em ℝ2 definida no Exemplo 33, isto é,

(x, y)ℛ(z, w) ⇔ y = w

Neste caso, conforme a discussão apresentada naquele exemplo, temos

ℝ2/ℛ = {{(x, y) | x ∈ ℝ} | y ∈ ℝ}

Para evitar confusões, é necessário tratar um pouco a respeito desse conjunto.

Primeiro, os elementos de ℝ2/ℛ são subconjuntos de ℝ2 da forma

{(x, y) | x ∈ ℝ}

Segundo, existe um conjunto desse para cada y ∈ ℝ. Em particular, note que


ℝ2/ℛ consiste em infinitas classes de equivalência.

O próximo resultado teórico resume as principais propriedades das classes de


equivalência.

Teorema

Seja X um conjunto e ℛ uma relação de equivalência em X. São válidas as


afirmações
I. Se x ∈ X, então x ∈ [x].
II. Se x, y ∈ X, então [x] = [y] se, e somente se, xℛy.
III. Se x, y ∈ X, então [x] = [y] ou [x]∩[y] = ϕ.
IV. X = ⋃x∈X[x].

36 Aritmética
Demonstração
I. Se x ∈ X, então xℛx, pois ℛ é reflexiva. Portanto, x ∈ [x], já que [x] consiste em Livro
todos os elementos de X que se relacionam com x por meio de ℛ.
II. Se x, y ∈ X são tais que [x] = [y], então x ∈ [x]. Em particular, x ∈ [y] em virtude
da igualdade [x] = [y]. Consequentemente, xℛy, pois [y] consiste em todos os
elementos de X que se relacionam com y por meio de ℛ.
Reciprocamente, suponha que xℛy. O objetivo é demonstrar que vale a igual-
dade de conjuntos [x] = [y]. Para tanto, considere z ∈ [x]. Pela definição de [x],
temos zℛx. Como, por hipótese, xℛy, segue da transitividade de ℛ que zℛy.
Em particular, z ∈ [y]. Isso mostra a inclusão [x] ⊂ [y]. A inclusão contrária é
O livro Álgebra moderna,
demonstrada de maneira análoga. dos autores Hygino H. Do-
mingues e Gelson Iezzi, é
III. Suponha que [x] ≠ [y] e [x]∩[y] ≠ ϕ. Como [x]∩[y] ≠ ϕ, existe z ∈ [x]∩[y]. Conse- uma referência clássica no
quentemente, z ∈ [x] e z ∈ [y]. Disso, segue que zℛx e zℛy. Pela simetria de ℛ, que diz respeito ao ensino
de álgebra abstrata. Entre
temos, especialmente, yℛz. Agora, yℛz e zℛx implicam yℛx, já que ℛ é transiti-
os tópicos abordados, en-
va. Mas, pelo item II, segue que [x] = [y], contradizendo [x] ≠ [y]. Portanto, não contra-se uma exposição
pode valer simultaneamente [x] ≠ [y] e [x]∩[y] ≠ ϕ. Consequentemente, [x] = detalhada de funções e
relações. Em particular,
[y] ou [x]∩[y] = ϕ. relações de ordem e equi-
valência são exploradas
IV. Basta mostrar a inclusão X ⊂ ⋃x∈X[x], pois a outra é imediata, dado que cada
com cuidado.
classe de equivalência [x] é um subconjunto de X. Para verificar a referida
DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. 5. ed.
inclusão, seja x ∈ X um elemento qualquer. Pelo item I, temos que x ∈ [x]. Mas São Paulo: Atual, 2003.
[x] ⊂ ⋃x∈X[x] e, portanto, x ∈ ⋃x∈X[x].

O item III do teorema afirma que duas classes de equivalência ou são iguais
ou são disjuntas. Já o item IV estabelece que o conjunto quociente de X módulo ℛ
forma uma partição do conjunto X, no sentido de que X é uma reunião disjunta dos
elementos de X/ℛ.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria de conjuntos estabelece os conceitos básicos da matemática. Em particu-
lar, deve ser estudada com bastante cuidado e extensivamente. Seu estudo deve ter
início tão logo quanto possível para que se possa estabelecer as conexões existentes
entre as diversas teorias. Essas conexões estão presentes e são abundantes, acredite!
Não é diferente com a aritmética. Desde o início da construção dos números fica evi-
dente que os subsídios se encontram na teoria dos conjuntos. Sendo assim, convém
dedicar um bom tempo de sua formação para dominar o assunto. Isso possibilitará
uma rápida evolução em aspectos como lógica, aritmética, álgebra abstrata etc.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Qual é a importância do estudo da teoria de conjuntos?

2. Qual é a relevância de se estudar funções?

3. Considere o conjunto X = {1, 2, 3, 4}. Encontre uma relação de equivalência ℛ em X


tal que X/ℛ= {{1, 2, 3}, {4}}.

Teoria elementar dos conjuntos 37


REFERÊNCIAS
ALENCAR FILHO, E. Iniciação à lógica matemática. São Paulo: Nobel, 2002.
DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra moderna. São Paulo: Atual, 2003.
IEZZI, G.; MURAKAMI, C. São Paulo: Atual, 2004. (Coleção Fundamentos de Matemática Elementar).
HEFEZ, A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006.

38 Aritmética
Teoria elementar dos conjuntos 39
2
O conjunto dos
números naturais
A existência dos números naturais é justificada pela necessidade
inerente que o ser humano tem de contar. Para a matemática, na quali-
dade de ciência, eles desempenham um papel fundamental, pois é com
base neles que são construídos os números inteiros e, consequente-
mente, os números racionais, reais e complexos. Esse fato explica a
necessidade de entender o significado, a natureza e as nuances dos
números naturais.
Eles estão relacionados à determinada quantidade ou ausência – nú-
mero zero –, estando presentes em nosso cotidiano e nossa jornada aca-
dêmica. Por isso, neste capítulo, vamos estudar as operações e os axiomas
que permitem formalizar esse conjunto numérico.

2.1 Axiomas de Peano


Vídeo Como ponto de partida de nosso estudo, questionamos:
• O que é um número natural para a matemática?

De maneira mais detalhada:


• Como se define, rigorosamente, um número natural?
• Existe de fato uma definição precisa de um número natural ou os números
naturais deveriam ser tratados como conceitos primitivos, isto é, ser aceitos
sem definição?
• Há um conceito matemático preciso o suficiente para esclarecer a natureza
dos números naturais?

As respostas para essas perguntas, produtos de esforços no desenvolvimento


da matemática ao longo dos séculos, serão fornecidas, de certo modo, ao longo
deste capítulo.

A matemática é uma das poucas ciências que pode ser desenvolvida de maneira
axiomática. Usualmente, o primeiro contato com o processo axiomático é feito no
contexto da geometria plana. Embora tenha sido Euclides, em sua obra Elementos,
quem desenvolveu parte significativa da geometria euclidiana, foi David Hilbert
quem realizou a tarefa de formalizar essa teoria de maneira bastante rigorosa por
meio de um processo axiomático.

40 Aritmética
O método axiomático tem origem em pressupostos que devem ser claros e
convincentes o suficiente para que não sejam contestados. Eles são chamados
de axiomas. O método é desenvolvido conforme o esquema a seguir.
Vya
Peace Peace ch
fully fully es
7/S 7/S lav
hut hut i
ter ter
sto

ku
c sto
k ck

s/
Sh
utt
ers
tock
Escolha Apresentação Resultados
A escolha dos axiomas deve ser Depois, cada axioma deve ser apre- Vencida a etapa da escolha dos
mínima, no sentido de que deve conter sentado como uma verdade além de axiomas, iniciamos a laboriosa e mais
estritamente o necessário para o qualquer dúvida razoável. Se esse fascinante tarefa: a descoberta e
desenvolvimento da teoria. não for o caso, a escolha a demonstração dos resultados
dos axiomas não foi decorrentes dos
bem feita. axiomas.

Os resultados obtidos são denominados de proposições ou teoremas e são de-


monstrados por meio de métodos de inferência lógica. Uma vez verificados, com
todo rigor que a lógica matemática possibilita, esses teoremas e proposições po-
dem ser usados em outras demonstrações e, dessa forma, a teoria axiomatizada
é construída e evolui sobre suas próprias bases. Não será diferente no estudo dos
números naturais.

Como essa discussão sobre o método axiomático se relaciona com a temáti-


ca proposta nesta seção? A relação é bastante estreita e justificada pelo fato de
que, para introduzir o conjunto dos números naturais, é necessário abordar os
axiomas de Peano. Estes axiomas fornecem um modelo axiomático para o conjun-
to dos números naturais.

Como em qualquer teoria axiomática, com base nos axiomas de Peano, obte-
mos resultados que naturalmente devem estar de acordo com o entendimento
intuitivo de que se tem dos números naturais. Por exemplo, intuitivamente todo
mundo concorda com o fato de que quaisquer dois números naturais distintos
possuem sucessores distintos ou que existem infinitos números naturais. Para de-
monstrar estes resultados, devemos recorrer aos axiomas de Peano.

Qualquer propriedade a respeito dos números naturais que se tenha contato


no ensino básico pode ser demonstrada por meio dos axiomas de Peano, direta
ou indiretamente. Além disso, diversas outras propriedades podem ser derivadas,
conforme estudaremos neste capítulo.

Para motivar a introdução aos axiomas de Peano, consideremos o conjunto ℕ


dos números naturais, estudado durante o ensino básico. Sem qualquer dúvida, é
fácil aceitarmos as seguintes observações:

I. ℕ é um conjunto.

II. o número natural 0 (zero) pertence a ℕ, isto é, 0 ∈ ℕ.

III. todo número natural n ∈ ℕ tem um, e só um, sucessor, a saber, o número
natural n + 1.

O conjunto dos números naturais 41


IV. 0 (zero) não é sucessor de nenhum outro número natural, isto é, não é pos-
sível escrever 0 = n + 1 para algum n ∈ ℕ.

V. se m, n ∈ ℕ são números naturais diferentes, isto é, se m ≠ n, então, seus


sucessores são diferentes, ou seja, m + 1 ≠ n + 1.

Para explicar como essas cinco observações dão origem aos axiomas de Peano,
precisamos introduzir a função sucessor

s: ℕ → ℕ

que atribui o sucessor de cada número natural de seu domínio, ou seja,

s(n) = n + 1, para todo n ∈ ℕ

Note que a observação IV estabelece que 0 (zero) não pertence à imagem da


função sucessor. Em particular, a função s não é sobrejetiva, pois em seu contra-
domínio existe um elemento que não é imagem de qualquer um dos elementos do
domínio.

Além disso, a propriedade V significa que s é injetiva, pois se m, n ∈ ℕ são tais


que m ≠ n, então s(m) ≠ s(n), isto é, m + 1 ≠ n + 1.

As propriedades apresentadas anteriormente dizem respeito ao par (ℕ, s) e po-


dem ser resumidas como:

(P1) Existe um elemento distinguido 0 ∈ ℕ.


1 (P2)
1
A função s: ℕ → ℕ é injetora e 0 não é um elemento da imagem de s.
As notações (P1) e (P2)
significam “Propriedade 1” e Uma sexta propriedade evidente, porém menos imediata que aquelas expostas
“Propriedade 2”, respectivamente. anteriormente, é a seguinte: seja A um conjunto de números naturais, isto é, A ⊂ ℕ.
Além disso, suponha que A tenha as seguintes propriedades:

(I1) 0 ∈ A.

(I2) Se n ∈ A, então s(n) = n + 1 ∈ A.


Para refletir Nessa situação, não há outra conclusão a ser feita a não ser que A = ℕ.
Nesta etapa, reflitam se a infor- A propriedade (I1) significa que o menor número natural possível – 0 (zero) – é
mação A = ℕ é válida com base
um elemento de A. Já (I2) garante que todos os números que sucedem o zero, ou
nas propriedades (I1) e (I2).
seja, todos os números naturais restantes, também são elementos de A. Em resu-
mo, A contém ℕ e, por isso, A = ℕ.

Essa argumentação utilizada para mostrar que A = ℕ, com base em (I1) e (I2), é
conhecida como princípio da indução finita. Vamos denotar essa propriedade por
(P3). Assim, o par (ℕ, s) junto às propriedades (P1), (P2) e (P3) motivam o enunciado
a seguir.

Definição
Axiomas de Peano
Existe um par (X, sX), sendo X um conjunto e sX: X → X uma função que satisfaz:
I. Existe um elemento e ∈ X que não é elemento da imagem de sX.
II. sX é uma função injetora.
III. Princípio da indução finita: se A ⊂ X é um subconjunto tal que:

(Continua)

42 Aritmética
• e ∈ A;
• x ∈ A ⇒ sX(x) ∈ A.
Então, A = X.
O par (X, sX) é denominado conjunto de números naturais, a função sX é chamada de função
sucessor e sX(x) é o sucessor de x.

Certamente a definição de conjunto de números naturais é uma abstração do


par (ℕ, s) obtida ao substituir ℕ por um conjunto qualquer X, s por uma função
sX e 0 (zero) por um elemento e ∈ X. As propriedades na definição correspondem à
abstração das propriedades (P1), (P2) e (P3) observadas para o par (ℕ, s).

De agora em diante, nas discussões teóricas, devemos nos limitar ao que afirmam os
axiomas de Peano e não ceder à tentação de utilizar propriedades a respeito dos nú-
meros naturais que já conhecemos intuitivamente. Essa abordagem evita “trapaças”
para chegar a conclusões sem antes ter desenvolvido a teoria com base nos axiomas
de Peano.

Uma questão intrigante é que os axiomas de Peano postulam a existência de


um conjunto de números naturais, deixando margem para suposições de que po-
deria existir mais de um conjunto de números naturais. E, de fato, pode existir mais
de um conjunto de número naturais.

Do ponto de vista teórico, todos os conjuntos de números naturais modelam


o par (ℕ, s) e não há nada, na teoria, que permita dizer que devemos escolher
um conjunto de números naturais em detrimento de outro. Em algum sentido,
todos os conjuntos de números naturais são indistinguíveis e conduzem às mes-
mas conclusões.

Fundamentados na exposição do parágrafo precedente, vamos fixar definitiva-


mente um conjunto de números naturais (X, sX) e adotar as seguintes notações:

• ℕ = X;
• s = sX;
• 0 = e.

Essas notações auxiliam a exposição, pois permitem associar o que está sendo
discutido ao conhecimento empírico que se tem do conjunto dos números natu-
rais. Qual a razão disso? O par (X, sX) consiste em dois objetos que podem ser bas-
tante abstratos: X e sX. Portanto, a teoria é feita de modo que X se comporte como o
conjunto ℕ = {0, 1, 2, 3, …} – conforme estudado no ensino básico – e sX se comporte
como a função sucessor s(n) = n + 1.

Vale destacarmos que, apesar da notação (ℕ, s), ℕ e s são modelos abstratos
para o conjunto dos números naturais e para a função sucessor, afinal, interpretan-
do os axiomas de Peano com essa notação, temos que ℕ é apenas um conjunto e s
é apenas uma função s: ℕ → ℕ. Por enquanto, nada se sabe a respeito da natureza
de ℕ ou de s, além do que se enuncia nos axiomas de Peano. Sendo assim, como os

O conjunto dos números naturais 43


símbolos 1, 2, 3, ... entram nesse contexto? Eles são definidos por meio da função
sucessor da seguinte forma:
• 1 = s(0);
• 2 = s(1);
• 3 = s(2).

E assim por diante.

Nomeamos cada um dos símbolos 0, 1, 2, 3, ... como zero, um, dois, três etc.
Desse modo, pela definição temos que:
• um é o sucessor de zero;
• dois é o sucessor do um;
• três é o sucessor de dois; etc.

Entretanto, pode surgir mais uma questão: por que não utilizar a notação x + 1
no lugar de s(x)? Nesse estágio, o emprego do sinal + seria artificial, dado que esse
símbolo deve representar a adição de número naturais, a qual ainda não foi defini-
da. Em um momento oportuno, a adição de números naturais será definida e, com
isso, será o caso que s(x) = x + 1.

Uma última observação sobre os axiomas de Peano diz respeito ao princípio


da indução finita. Ele é estritamente necessário para que possamos demonstrar
as propriedades do par (ℕ, s). Para compreendermos essa questão, suponha-
mos que exista uma propriedade P a qual desejamos demonstrar que é válida
para todo número natural, isto é, para todo elemento de ℕ. Definimos o conjun-
to A = {x ∈ ℕ | x cumpre P}.

Se for demonstrado que A = ℕ, então, temos que a propriedade (P) é válida para
todo número natural, conforme desejado. Justamente nessa etapa entra o princí-
pio da indução finita. Para mostrar que A = ℕ verificamos que:

• 0 ∈ A;
• A é fechado para sucessores, isto é, x ∈ A ⇒ s(x) ∈ A.

Uma vez demonstrados esses dois fatos, aplicamos (P3) para deduzir que A = ℕ.
Esse argumento estará presente em toda a nossa discussão e convém nos habi-
tuarmos a ele desde o início. Essa ideia será utilizada para demonstrar o primeiro
resultado teórico dessa seção e ilustra o potencial dos axiomas de Peano.

Proposição

ℕ = {0}∪{s(n) | n ∈ ℕ} = {0, 1, 2, 3, …}

Demonstração

Precisamos demonstrar a seguinte propriedade:

(P): se x ∈ ℕ, então x = 0 ou existe n ∈ ℕ tal que x = s(n)

44 Aritmética
O conteúdo do enunciado da proposição pode ser traduzido ao afirmarmos que
(P) é uma propriedade válida para todo número natural, ou seja, basta verificar que
o conjunto

A = {x ∈ ℕ | P é válida} = {x ∈ ℕ | x = 0 ou existe n ∈ ℕ tal que x = s(n)}(Continua)

é igual ao conjunto dos números naturais. Para tanto, empregando o princípio da


indução finita, resta verificarmos que:

• 0 ∈ A;
• A é fechado para sucessores, isto é, se x ∈ A, então s(x) ∈ A.

Pela definição do conjunto A, temos que 0 ∈ A, logo, precisamos verificar apenas


que A é fechado para sucessores. Para tanto, tomemos um elemento arbitrário
x ∈ A. Nesse caso, temos que

x = 0 ou x = s(n) para algum n ∈ ℕ

No primeiro caso, em que x = 0, pela definição de A, temos

s(x) = s(0) com 0 ∈ ℕ

mas isso significa que existe o número natural n = 0 ∈ ℕ tal que s(x) = s(n), garantin-
do, assim, que s(x) ∈ A.

No segundo caso, quando x = s(n) para algum n ∈ ℕ, temos que

s(x) = s(s(n))

Isso significa que existe o número natural m = s(n) ∈ ℕ tal que s(x) = s(m), de-
monstrando que s(x) ∈ A.

Portanto, pelo princípio da indução finita, temos que A = ℕ, o que encerra a


demonstração.

Perceba que a igualdade ℕ = {0, 1, 2, …}, usualmente apresentada como uma


definição, foi demonstrada por meio dos axiomas de Peano. Essa igualdade não
era evidente? Acontece que não, pois estes postulam a existência de um conjunto
ℕ do qual, até então, nada se sabia a respeito, além do que constava nos próprios
axiomas de Peano. Portanto, todas as propriedades que consideramos óbvias a
respeito dos números naturais precisam ser demonstradas.

Para finalizar essa seção, convém resumirmos algumas propriedades a respeito


do par (ℕ, s).

Livro
Uma abordagem bastante
agradável para os axiomas
de Peano pode ser encon-
Teorema trada na obra Fundamen-
tos de Aritmética, escrita
São válidas as seguintes afirmações sobre o (ℕ, s): por Hygino Hungueros
Domingues. É uma
I. ℕ ≠ ∅, isto é, ℕ tem pelo menos um elemento. excelente introdução à
aritmética para aprofundar
os tópicos discutidos em
nossos estudos.

DOMINGUES, H. H. São Paulo:


Atual, 1991.
O conjunto dos números naturais 45
II. Se x, y ∈ ℕ e x ≠ y, então s(x) ≠ s(y), ou seja, números naturais diferentes
possuem sucessores diferentes.
III. s(ℕ) = ℕ \ {0}, em outras palavras, o 0 (zero) não é sucessor de nenhum núme-
ro natural. Em particular, s(x) ≠ 0 para todo x ∈ ℕ.
(Continua)
Demonstração

I. Em virtude do axioma (P1), temos que ℕ tem um elemento distinguido, denotado


por 0. Ou seja, 0 ∈ ℕ, garantindo que ℕ não é o conjunto vazio, isto é, ℕ ≠ ∅.
II. Pelo axioma (P2), temos que s é injetora. Então, se x ≠ y, temos que s(x) ≠ s(y),
conforme enunciado.
III. Por definição, s(ℕ) = {s(x) | x ∈ ℕ} e, por (P1), temos que 0 ∉ s(ℕ). Isso significa
que s(ℕ) ⊂ ℕ \ {0}. Por outro lado, se x ∈ ℕ \ {0}, então x = s(n) para algum n ∈
ℕ, ou seja, x ∈ s(ℕ). Provando que s(ℕ) = ℕ \ {0}.

Agora que já temos, ao nosso dispor, um conjunto de números naturais, podemos


introduzir as operações algébricas de adição e de subtração de números naturais.

2.2 Adição de números naturais


Vídeo A grande utilidade de ter números à nossa disposição está no fato de ser possí-
vel realizar operações algébricas com eles. Entre elas, a mais simples e básica é a
adição. Isso não é diferente com números naturais.

Mais precisamente, a operação de adição de números naturais permite combi-


nar dois números naturais, cada um representando uma quantidade contável da
nossa realidade, e obter um terceiro número natural que representa a quantidade
total que se tem.

É conveniente pensarmos na adição de números naturais como um dispositivo


que recebe dois números naturais, efetua determinado procedimento e devolve
outro número natural, conforme ilustrado no seguinte esquema:

a
EmBaSy/Shutterstock

+ a+b

Nesse esquema, a e b representam números naturais, assim como a + b.


Contudo, como podemos definir a + b? Para motivar a definição, vamos observar
algumas adições com o número natural dois:

2+0=2

2+1=3

46 Aritmética
2+2=4

2+3=5

A primeira adição, 2 + 0 = 2, deverá ser aceita como definição.

A segunda adição, 2 + 1 = 3, pode ser obtida com base na primeira. De fato,


note que

2 + 1 = 3 = s(2) = s(2 + 0)

A terceira adição pode ser obtida da anterior:

2 + 2 = 4 = s(3) = s(2 + 1)

Finalmente, a última adição também pode ser obtida por meio da anterior:

2 + 3 = 5 = s(4) = s(2 + 2)

Note que, neste raciocínio, existem dois tipos de adição envolvidas: uma da for-
ma 2 + 0 e outra da forma 2 + s(k), com k ∈ ℕ \ {0}. Sendo assim,

2 + 0 = 2 e 2 + s(k) = s(2 + k) para todo k ∈ ℕ \ {0}

Isso motiva a seguinte definição:

Definição
A adição de números naturais é a função
+: ℕ × ℕ → ℕ
(x, y) → x + y
definida por
x+0=0
x + s(k) = s(x + k)
para todo x ∈ ℕ e k ∈ ℕ \ {0}.

A primeira observação acerca dessa definição é o fato de que ela é coerente


com o que conhecemos a respeito dos números naturais. Por exemplo,

1+0=1

1 + 1 = 1 + s(0) = s(1 + 0) = s(1) = 2

1 + 2 = 1 + s(1) = s(1 + 1) = s(2) = 3

1 + 3 = 1 + s(2) = s(1 + 2) = s(3) = 4

Isso ilustra que a definição de adição de números naturais produz os resul-


tados previstos. Embora seja esperado, há uma barreira: até o momento não é
possível calcularmos 0 + 2, por exemplo, diretamente. De fato, de acordo com a
definição, temos:

0 + 2 = 0 + s(1) = s(0 + 1)

Contudo, até então, não sabemos que 0 + 1 = 1. Tudo o que sabemos, por ora, é que
1 + 0 = 1. Esse problema será facilmente resolvido a seguir.

O conjunto dos números naturais 47


Proposição

Se x ∈ ℕ, então 0 + x = x.

Demonstração

Defina o conjunto de números naturais

A = {n ∈ ℕ | 0 + n = n}

Vamos aplicar o princípio da indução finita para mostrar que A = ℕ. Por defini-
ção, A ⊂ ℕ. Além disso, pela definição de adição de números naturais, temos que

0+0=0

ou seja, 0 ∈ A.

Finalmente, A é fechado para sucessores, pois se n ∈ A, então 0 + n = n e

0 + s(n) = s(0 + n) = s(n)

Como s(n) ∈ ℕ satisfaz 0 + s(n) = s(n), temos s(n) ∈ A. Portanto, que A = ℕ.


Sendo assim, se x ∈ ℕ, então x ∈ A, isto é, 0 + x = x.

Com essa demonstração, é possível determinarmos 0 + 2. De fato,

0 + 2 = 0 + s(1) = s(0 + 1) = s(1) = 2

Esse resultado nos possibilita a demonstrar as propriedades comutativa e asso-


ciativa – dentre outras – que se conhece a respeito da adição de números naturais.
Para isso, precisamos estabelecer o resultado preliminar a seguir.

Glossário
Lema
Lema é uma proposição auxiliar
para a demonstração de outro Se x, y ∈ ℕ, então vale
lema, proposição ou teorema. s(x) + y = s(x + y) = x + s(y)

Demonstração

Novamente empregamos o princípio da indução finita. Para isso, considere o


conjunto:

A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, s(m) + n = s(m + n) = m + s(n)}

Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois 0 ∈ ℕ e

s(m) + 0 = s(m) = s(m + 0) = m + s(0), para todo m ∈ ℕ

Todas as igualdades correspondem à definição de adição de números naturais.


Resta verificarmos que A é fechado para sucessores. De fato, se n ∈ A, então

s(m) + n = s(m + n) = m + s(n), para todo m ∈ ℕ

(Continua)
48 Aritmética
Logo,

s(m) + s(n) = s(s(m) + n)

= s(s(m + n))

= s(m + s(n))

= m + s(s(n)), para todo m ∈ ℕ

Isso nos mostra que s(n) ∈ A. Portanto, A = ℕ. Sendo assim, se y ∈ ℕ, então


y ∈ A, ou seja,

s(x) + y = s(x + y) = x + s(y), para todo x ∈ ℕ

Para esclarecer o conteúdo do lema anterior, consideremos, por exemplo:

s(2) + 1 = 3 + 1 = 4 = s(3) = s(2 + 1) e s(2 + 1) = 2 + s(1)

pela própria definição de adição de números naturais.

O lema anterior será bastante útil para demonstrarmos algumas proprieda-


des da adição de números naturais, sendo as mais básicas a comutatividade e
a associatividade.

A comutatividade da adição mostra-nos que é possível trocar a ordem dos ter-


mos ao se realizar a adição sem, entretanto, alterar o resultado, ou seja, a adição
a + b, com a, b ∈ ℕ, produz o mesmo resultado que a adição b + a.

A associatividade é a propriedade que nos permite trocar os parênteses ao


se fazer a adição envolvendo mais que dois números naturais. Isso é importante,
pois, pela definição, sabemos adicionar apenas dois números naturais de cada vez.
Sendo assim, quando desejamos adicionar os números naturais a, b e c podemos
seguir dois caminhos. O primeiro é efetuar a + b e depois realizar a adição com c,
e o segundo é efetuar a adição de a com o resultado de b + c. Portanto, há duas
alternativas

(a + b) + c e a + (b + c)

A associatividade da adição garante que essas duas maneiras de realizar a adi-


ção produzem o mesmo resultado, ou seja:

(a + b) + c = a + (b + c)

Embora pareçam triviais, essas propriedades são fundamentais para demons-


trar bons resultados dentro da teoria, por isso, vamos formalizá-las a seguir.

Teorema

Se x, y, z ∈ ℕ, então são válidos os itens a seguir.


I. Comutatividade: x + y = y + x.

O conjunto dos números naturais 49


II. Associatividade: (x + y) + z = x + (y + z).

Demonstração
(Continua)
A comutatividade é uma aplicação do princípio da indução finita. Para demons-
trarmos o item I, definimos:

A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, m + n = n + m}

O objetivo novamente é mostrar que A = ℕ. Para tanto, note que A ⊂ ℕ e 0 ∈ A,


pois 0 ∈ ℕ e

m + 0 = m = 0 + m, para todo m ∈ ℕ

Além disso, A é fechado para sucessores, ou seja, se n ∈ A, então s(n) ∈ A. De fato,


se n ∈ A, então n ∈ ℕ e

m + n = n + m, para todo m ∈ ℕ

de modo que s(n) ∈ ℕ e

m + s(n) = s(m + n) = s(n + m) = s(n) + m, para todo m ∈ ℕ

Nesse ponto foi utilizado o lema demonstrado anteriormente para garantir


que s(n + m) = s(n) + m. Com isso, deduzimos que s(n) ∈ A. O princípio da indução
finita garante que A = ℕ, o que é suficiente para mostrar a igualdade x + y = y + x
para todo x, y ∈ ℕ.

Para demonstrarmos a associatividade (propriedade II), o ponto de partida é


definir o conjunto auxiliar

A = {k ∈ ℕ | ∀ l, m ∈ ℕ, (k + l) + m = k + (l + m)}

Por definição, A ⊂ ℕ e, além disso, 0 ∈ A, pois 0 ∈ ℕ e se l, m ∈ ℕ, então

(0 + l) + m = l + m = 0 + (l + m)

Finalmente, resta-nos mostrar que A é fechado para sucessores. De fato, se


k ∈ A, então

(k + l) + m = k + (l + m), para todo l, m ∈ ℕ

de maneira que

(s(k) + l) + m = s(k + l) + m = s((k + l) + m) = s(k + (l + m)) = s(k) + (l + m)

mostrando assim que s(k) ∈ A.

Pelo princípio de indução finita, A = ℕ. Em particular, se x, y, z ∈ ℕ, então


x + (y + z) = (x + y) + z, conforme o enunciado do teorema.

Além da comutatividade e da associatividade, a adição de números naturais tem


outras propriedades interessantes. Dentre elas, podemos citar a Lei do Cancela-
mento: sempre que dois números a, b ∈ ℕ são tais que

x+a=x+b

50 Aritmética
para algum x ∈ ℕ, segue que a = b. É como se fosse possível cancelarmos o x de
ambos os membros da igualdade. Mas como é possível fazer esse cancelamento
sem a noção de subtração? Essa pergunta será respondida a seguir.

Teorema

Sejam x, a, b ∈ ℕ tais que

x+a=x+b

então, a = b.

Demonstração

A ideia novamente é utilizar o princípio da indução finita. Para tanto, definimos

A = {k ∈ ℕ | ∀ l, m ∈ ℕ; k + l = k + m ⇒ l = m}

Note que, por mais estranho que o conjunto A pareça, faz sentido sua definição. Na
pior das hipóteses, A seria o conjunto vazio, embora esteja longe de ser o caso. De fato,
A é um subconjunto de ℕ que contém 0, pois 0 ∈ ℕ e se l, m ∈ ℕ são tais que

0 + l = 0 + m, então l = m

Resta-nos mostrar que A é fechado para sucessores. Com efeito, se k ∈ ℕ e


l, m ∈ ℕ são tais que

k+l=k+m

segue que l = m. Consequentemente, se l, m ∈ ℕ satisfazem

s(k) + l = s(k) + m

então, aplicando o lema demonstrado anteriormente, obtemos:

s(k + l) = s(k + m)

Ao aplicarmos a injetividade de s, temos que k + l = k + m. Como k ∈ A, obtemos


a igualdade l = m. Isso mostra que s(k) ∈ A. Pelo princípio da indução finita, segue
que A = ℕ, o que nos mostra a propriedade desejada.

Artigo

https://www.sbm.org.br/coloquio-centro-oeste-4/wp-content/uploads/sites/2/2016/01/Minicurso_6._A_construcao_dos_Reais.pdf

As publicações dos colóquios de Matemática pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM)


são fonte riquíssima de conhecimento. A publicação A Construção dos Números Reais e suas
Extensões, dos autores Ivan Aguilar e Marina Sequeiros Dias, de 2015, aborda o conjunto dos
números naturais e pode ser utilizada como complemento para o conteúdo desta seção.

Acesso em: 7 mai. 2021.

Após discutirmos a adição de números naturais, é conveniente abordarmos a


multiplicação de números naturais.

O conjunto dos números naturais 51


2.3 Multiplicação de números naturais
Vídeo Nesta seção, estudaremos a multiplicação de números naturais. Esta é uma
operação já conhecida – desde os primeiros anos do ensino básico – que usual-
mente é desenvolvida com base em um entendimento algorítmico e intuitivo.
Entretanto, em nosso estudo, definiremos a multiplicação de números naturais
de maneira bastante rigorosa.

Quando definimos a adição de números naturais, utilizamos a seguinte


estratégia:

Ma
ula
ga

/S
hu
tte
rst
oc k
Zero Sucessor
Inicialmente Em seguida,
definimos a adição definimos a adição de
de um número um número natural
natural com o com o sucessor
0 (zero). de outro.

Isso foi suficiente para determinarmos a adição de números naturais. A mesma


estratégia será utilizada para introduzir a definição da multiplicação de dois núme-
ros naturais, a saber:

Ma
ula
ga

/S
hu
tte
rst
oc k
Zero Sucessor
Definimos a Em seguida, definimos
multiplicação de um a multiplicação de um
número natural por número natural pelo
0 (zero). sucessor de outro.

Essa estratégia determinará a multiplicação de quaisquer dois números


naturais.

É possível chegarmos à definição das multiplicações ao lembrar que um núme-


ro natural y só pode ter uma de duas formas: y = 0 ou y = s(k), para algum k ∈ ℕ.

52 Aritmética
No primeiro caso, definimos x ⋅ 0 = 0, qualquer que seja o número natural x.
Isto garante a coerência com o que sabemos intuitivamente sobre a multiplicação
de números naturais.

Quanto ao segundo caso, é importante lembrarmos que s(k) = k + 1. Logo, a


definição de multiplicação deve satisfazer

x ⋅ s(k) = x ⋅ (k + 1) = x ⋅ k + x ⋅ 1 = x ⋅ k + x

Até o momento, não demonstramos a propriedade distributiva e que x ⋅ 1 = x,


pois a multiplicação não foi sequer definida. Entretanto, deve ficar claro que o ar-
gumento realizado tem apenas caráter motivador e está fundamentado em conhe-
cimentos empíricos sobre os números naturais. Esse tipo de argumento é bastante
comum na matemática, frequentemente usado como ponto de partida para algum
tipo de abstração. A abstração almejada encontra-se na definição a seguir.

Definição
A multiplicação de números naturais é a função
·: ℕ × ℕ → ℕ

(x, y) → x ⋅ y
sendo x ⋅ y o número natural definido como:
x⋅0=0
x ⋅ s(k) = x ⋅ k + x
para todo x ∈ ℕ e k ∈ ℕ \ {0}.

A definição enunciada é coerente com o que conhecemos da multiplicação de


números naturais do ensino básico. Por exemplo,

2⋅0=0

2 ⋅ 1 = 2 ⋅ s(0) = 2 ⋅ 0 + 2 = 0 + 2 = 2

2 ⋅ 2 = 2 ⋅ s(1) = 2 ⋅ 1 + 2 = 2 + 2 = 4

2 ⋅ 3 = 2 ⋅ s(2) = 2 ⋅ 2 + 2 = 4 + 2 = 6

Notemos que cada uma das multiplicações do número dois por um número
natural não nulo é obtida com base no resultado da linha anterior.

Uma vez definida a multiplicação de números naturais, é necessário e conve-


niente demonstrarmos as principais propriedades – já conhecidas de modo intuiti-
vo – dessa nova operação.

Proposição

Se x ∈ ℕ, então é válido

x⋅0=0=0⋅x (Continua)

O conjunto dos números naturais 53


Demonstração

A primeira igualdade é a definição da multiplicação de x pelo número natural


0 (zero). A segunda igualdade deve ser demonstrada. Para tanto, vamos aplicar o
princípio da indução finita ao conjunto

A = {n ∈ ℕ | 0 ⋅ n = 0}

Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, já que

0⋅0=0

Além disso, A é fechado para sucessores, pois se n ∈ A, então n ∈ ℕ e

0⋅n=0

o que implica s(n) ∈ ℕ e

0 ⋅ s(n) = 0 ⋅ n + 0 = 0 + 0 = 0

Pelo princípio da indução finita, A = ℕ, demonstrando a propriedade enunciada.

A fim de apresentarmos outras propriedades de interesse a respeito da multipli-


cação de números naturais, convém discutirmos um resultado auxiliar enunciado
no lema a seguir.

Lema

Sejam x, y ∈ ℕ, então é válido

s(x) ⋅ y = x ⋅ y + y

Demonstração

Vamos aplicar o princípio da indução finita ao conjunto

A = {m ∈ ℕ | ∀ n ∈ ℕ; s(n) ⋅ m = n ⋅ m + m}

Primeiro, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, já que

n ⋅ 0 = 0 = 0 + 0 = n ⋅ 0 + 0, para todo n ∈ ℕ

Além disso, A é fechado para sucessores. Com efeito, se m ∈ A, então m ∈ ℕ e

s(n) ⋅ m = n ⋅ m + m, para todo n ∈ ℕ

de modo que s(m) ∈ ℕ e

s(n) ⋅ s(m) = s(n) ⋅ m + s(n)

= (n ⋅ m + m) + s(n)

= n ⋅ m + (m + s(n))

= n ⋅ m + (s(n) + m)

= n ⋅ m + (n + s(m))

= (n ⋅ m + n) + s(m)

= n ⋅ s(m) + s(m) (Continua)

54 Aritmética
Isso mostra que s(n) ∈ A sempre que n ∈ A. Portanto, A é fechado para sucesso-
res e, assim, A = ℕ, conforme desejado.

Antes de discutirmos as implicações do lema anterior, notemos que ele apre-


senta um resultado coerente. Por exemplo,

3 ⋅ 4 = s(2) ⋅ 4 = 2 ⋅ 4 + 4 = 8 + 4 = 12

Portanto, o lema anterior fornece uma maneira alternativa, mas equivalente, de


multiplicar números naturais.

A primeira consequência do lema recém demonstrado é o fato de que o núme-


ro 1 (um) serve como elemento neutro para a multiplicação de números naturais,
como demonstraremos a seguir.

Proposição

Seja x ∈ ℕ, então é válido

x⋅1=x=1⋅x

Demonstração

Vamos aplicar o princípio da indução finita ao conjunto

A = {n ∈ ℕ | n ⋅ 1 = n = 1 ⋅ n}

Primeiro, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois

0⋅1=0=1⋅0

Além disso, A é fechado para sucessores. Para verificar isso, considere n ∈ A.


Desse modo, n ∈ ℕ e

n⋅1=n=1⋅n

Logo, usando o lema demonstrado anteriormente, temos que

s(n) ⋅ 1 = n ⋅ 1 + 1 = n + 1 = s(n)

Por outro lado,

1 ⋅ s(n) = 1 ⋅ n + 1 = n + 1 = s(n)

Portanto, s(n) ∈ A, garantindo assim a igualdade A = ℕ e a validade da afirmação


enunciada.

Observemos que o lema utilizado na demonstração foi imprescindível para a


validação do resultado. Este também será o caso na demonstração da comutativi-
dade da multiplicação.

O conjunto dos números naturais 55


Essa propriedade afirma que é possível trocar a ordem dos fatores na multipli-
cação de números naturais sem alterar o resultado. Acompanhemos a demonstra-
ção dessa propriedade a seguir.

Teorema

Sejam x, y ∈ ℕ, então é válido

x⋅y=y⋅x

Demonstração

Vamos, mais uma vez, aplicar o princípio da indução finita. Para isso, definimos

A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, n ⋅ m = m ⋅ n}

Com essa definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois

0 ⋅ m = 0 = m ⋅ 0, para todo m ∈ ℕ

Além disso, A é fechado para sucessores. Para verificar isso, considere n ∈ A.


Dessa forma, n ∈ ℕ e

n ⋅ m = m ⋅ n, para todo m ∈ ℕ.

Consequentemente, s(n) ∈ ℕ e, aplicando o mesmo lema usado na demonstra-


ção anterior, temos que

s(n) ⋅ m = n ⋅ m + m = m ⋅ n + m = m ⋅ s(n)

Portanto, s(n) ∈ A, permitindo concluir que A = ℕ.

A propriedade comutativa da multiplicação é utilizada constantemente quando


se faz um produto de dois números naturais na prática. Por exemplo, quando dese-
jamos multiplicar dois por três, fazemos diretamente 2 ⋅ 3 ou 3 ⋅ 2, sem preferência
de uma escolha sobre a outra.

A próxima propriedade a ser demonstrada, seguindo a lógica do que discutimos


com a adição de números naturais, deveria ser a associatividade da multiplicação,
ou seja, a capacidade de trocar parênteses de lugar quando realizamos a operação
envolvendo mais de dois números naturais.

Contudo e, interessantemente, é necessário demonstrarmos primeiro a distri-


butividade da multiplicação em relação à adição. Essa propriedade é utilizada para
justificar, por exemplo, o seguinte raciocínio:

2 ⋅ (3 + 1) = 2 ⋅ 3 + 2 ⋅ 1

56 Aritmética
Ela representa uma relação de compatibilidade entre as duas operações algébri-
cas definidas no conjunto dos números naturais: a adição e a multiplicação.

Teorema

Sejam x, y, z ∈ ℕ, então vale

x ⋅ (y + z) = x ⋅ y + x ⋅ z

(x + y) ⋅ z = x ⋅ z + y ⋅ z

Demonstração

Será demonstrada apenas a primeira igualdade. A segunda pode ser deduzida


de maneira similar. O ponto de partida para demonstrarmos a primeira igualdade
é considerar o conjunto

A = {k ∈ ℕ | ∀ l, m ∈ ℕ, k ⋅ (l + m) = k ⋅ l + k ⋅ m}

Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois

0 ⋅ (l + m) = 0 = 0 + 0 = 0 ⋅ l + 0 ⋅ m, quaisquer que sejam l, m ∈ ℕ

Adicionalmente, A é fechado para sucessores. Para verificarmos isso, considere-


mos k ∈ A, ou seja, k ∈ ℕ e

k ⋅ (l + m) = k ⋅ l + k ⋅ m, para todo l, m ∈ ℕ

Consequentemente, s(k) ∈ ℕ e

s(k) ⋅ (l + m) = k ⋅ (l + m) + (l + m)

= (k ⋅ l + k ⋅ m) + (l + m)

= (k ⋅ l + l) + (k ⋅ m + m)

= s(k) ⋅ l + s(k) ⋅ m

A penúltima igualdade foi obtida ao utilizarmos a associatividade e a comutativi-


dade da adição de números naturais. Em resumo, foi demonstrado que k ∈ A impli-
ca s(k) ∈ A, conforme desejado. Pelo princípio da indução finita, A = ℕ, garantindo a
validade da afirmação enunciada.

Conforme já mencionado, a distributividade da multiplicação em relação à adi-


ção permite demonstrar que a multiplicação de números naturais é associativa.
Esse é o conteúdo do próximo resultado.

Teorema

Sejam x, y, z ∈ ℕ, então é válido

O conjunto dos números naturais 57


x ⋅ (y ⋅ z) = (x ⋅ y) ⋅ z
(Continua)
Demonstração

A ideia é definirmos o conjunto de números naturais:

A = {m ∈ ℕ | ∀ k, l ∈ ℕ, k ⋅ (l ⋅ m) = (k ⋅ l) ⋅ m}

e mostrarmos que A = ℕ. Para tanto, notemos que 0 ∈ A, pois

k ⋅ (l ⋅ 0) = k ⋅ 0 = 0 = (k ⋅ l) ⋅ 0

quaisquer que sejam k, l ∈ ℕ. Adicionalmente, A é fechado para sucessores.


Para apontarmos isso, sejam m ∈ A, isto é, m ∈ ℕ e

k ⋅ (l ⋅ m) = (k ⋅ l) ⋅ m

para todo k, l ∈ ℕ. Consequentemente, s(m) ∈ ℕ e,

k ⋅ (l ⋅ s(m)) = k ⋅ (l ⋅ m + l) = k ⋅ (l ⋅ m) + k ⋅ l = (k ⋅ l) ⋅ m + k ⋅ l = (k ⋅ l) ⋅ s(m)

Portanto, s(m) ∈ A, mostrando, assim, que A é fechado para sucessores.


Consequentemente pelo princípio da indução finita, A = ℕ.

Assim como para a adição de números naturais foi possível demonstrarmos a


regra do cancelamento, mesmo sem definirmos uma subtração, também é possí-
vel demonstrarmos a regra de cancelamento para a multiplicação, mesmo sem ter
sido definida uma divisão. Para enunciarmos e apresentarmos essa regra, é neces-
sário estabelecermos o resultado auxiliar a seguir.

Lema

Sejam m, n ∈ ℕ. Se m ⋅ n = 0, então m = 0 ou n = 0.

Demonstração

Pela forma contrapositiva, temos que mostrar que se m ≠ 0 e n ≠ 0, então


m ⋅ n ≠ 0. Para tanto, escrevemos m = s(k) e n = s(l), com k, l ∈ ℕ. Isso é possível pois
m ≠ 0 e n ≠ 0. Consequentemente,

m ⋅ n = s(k) ⋅ s(l) = s(k) ⋅ l + s(k) = (k ⋅ l + l) + s(k) = s((k ⋅ l + l) + k) ≠ 0

A última afirmação é consequência do fato de que a imagem de s não contém o


número natural 0 (zero), conforme já demonstrado.

Fazendo uso desse lema, é possível demonstrarmos a Lei do Cancelamento


para a multiplicação de números naturais a seguir.

58 Aritmética
Proposição

Sejam x, y, ℕ e z ∈ ℕ \ {0}, tais que x ⋅ z = y ⋅ z. Então, x = y.

Demonstração

O primeiro passo é aplicarmos o princípio da indução finita ao conjunto

A = {n ∈ ℕ | ∀ m ∈ ℕ, p ∈ ℕ \ {0}; m ⋅ p = n ⋅ p ⇒ m = n}

Por definição, A ⊂ ℕ e, adicionalmente, 0 ∈ A, pois se m ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}, são tais que

m⋅p=0⋅p

e, portanto, m ⋅ p = 0, o que implica, pelo lema anterior, m = 0 ou p = 0. Mas p ≠ 0 e,


portanto, m = 0. Sendo assim, temos m = 0 = n, mostrando que 0 ∈ A. Resta-nos veri-
ficar que A é fechado para sucessores. Para tanto, consideremos n ∈ A. Isso significa
que n ∈ A, e se

m ⋅ p = n ⋅ p, para alguns m ∈ ℕ

e p ∈ ℕ \ {0}, então m = n. Suponhamos, então, que Livro

m ⋅ p = s(n) ⋅ p

com m ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}. Como s(n) ≠ 0 e p ≠ 0, pelo lema anterior, s(n) ⋅ p ≠ 0.


Em particular, m ≠ 0. Consequentemente, existe k ∈ ℕ tal que m = s(k). Logo,

k ⋅ p + p = s(k) ⋅ p = m ⋅ p = s(n) ⋅ p = n ⋅ p + p

Pela Lei do Cancelamento da adição, resulta que

k⋅p=n⋅p

Mas, como n ∈ A, k ∈ ℕ e p ∈ ℕ \ {0}, deduzimos que k = n. Portanto, m = s(n). A Construção dos Números,
escrito por Jamil Ferreira,
O que nos mostra que n ∈ A. Pelo princípio da indução finita, A = ℕ, e a propriedade apresenta de maneira
enunciada é válida. rigorosa e precisa a cons-
trução dos conjuntos nu-
∎ méricos, desde o conjunto
dos números naturais até
o conjunto dos números
complexos. É uma leitura
Com respeito ao conteúdo da proposição anterior, é necessário tecermos um aler- que pode complementar
os estudos a respeito da
ta. Diante da igualdade x ⋅ z = y ⋅ z, com x, y ∈ ℕ e z ∈ ℕ – {0}, é muito tentador efetuar- teoria explorada nesta
mos a divisão por z em ambos os membros dessa igualdade. Porém, cuidado, esse seção.

argumento não é aplicável, pois, até o momento, nada se falou de divisão de números FERREIRA, J. 3. ed. Rio de Janeiro:
SBM, 2013.
naturais. A argumentação correta encontra fundamentos na proposição anterior.

2.4 A relação de ordem no conjunto


Vídeo
dos números naturais
No conjunto dos números naturais, além da adição, é possível definirmos a
subtração. Contudo, essa operação é definida apenas parcialmente, ou seja, não é
definida para todos os números naturais. Isso é esperado, visto que, por exemplo,

O conjunto dos números naturais 59


não teria sentido efetuarmos 1 – 2 no conjunto dos números naturais, dado que o
resultado não seria um número natural.

Geralmente só é possível efetuarmos uma subtração da forma x – y, no conjunto


dos números naturais, se x for maior ou igual a y. Isso pressupõe a existência de
uma relação de ordem em ℕ e é justamente o conteúdo desta seção.

Dados números naturais x, y ∈ ℕ, como decidir se x é maior que ou igual a y?


O que permite tomar essa decisão é a existência da adição. Para ilustrarmos esse
fato, consideremos os números naturais dois e cinco. Sabemos que cinco é maior
que dois. O raciocínio implícito é que uma quantidade representada pelo número
natural cinco representa uma quantidade maior que aquela representada pelo nú-
mero natural dois.

Além disso, para obtermos a maior quantidade, podemos partir da menor e


acrescentar unidades. De maneira precisa, consideremos a quantidade dois; é ne-
cessário acrescentar três unidades a fim de obtermos cinco, ou seja, 2 + 3 = 5.
Portanto, o fato do cinco representar um número natural maior que o número
natural dois, fica evidente na igualdade 2 + 3 = 5, a qual revela que é necessário
acrescentar uma quantidade positiva ao dois para resultar o cinco. Isso é generali-
zado na definição a seguir.

Definição
Sejam x, y ∈ ℕ, definimos:
• x é menor que ou igual a y se existe um número natural p ∈ ℕ tal que
y=x+p
Nesse caso, escrevemos x ≤ y e podemos dizer que y é maior que ou igual a x.
• x é estritamente menor que y se x ≤ y e x ≠ y. Nesse caso, escrevemos x < y e podemos
dizer que y é estritamente maior que x.
Outra forma de descrevermos x ≤ y é denotarmos y ≥ x. Uma forma distinta de representarmos
x < y é escrevermos y > x, nesse caso, dizemos que y é estritamente maior que x.

Sempre que se faz alguma definição em matemática, é esperada a dedução de


propriedades a partir dela. Essas propriedades devem corroborar com o conheci-
mento empírico. Se a definição da relação ≤ (menor que ou igual a) foi feita adequa-
damente, será possível, por exemplo, demonstrarmos que todo número natural é
maior que ou igual a zero – fato conhecido desde o ensino básico.

Além disso, espera-se que todo número natural não nulo seja estritamente
maior que 0 e, também, que a ordenação seja preservada a nível de sucessores,
ou seja, se x ≤ y, então s(x) ≤ s(y). Essas são as propriedades mais imediatas que
decorrem da definição de relação de ordem e serão enunciadas e demonstradas
com algumas outras a seguir.

60 Aritmética
Proposição

Sejam x, y ∈ ℕ, então são válidas as afirmações a seguir:


I. x ≥ 0.
II. Se x ≠ 0, então x > 0.
III. Se x ≤ y, então s(x) ≤ s(y).
IV. Se x < y, então s(x) < s(y).
V. Vale x < y se, e somente se, existe p ∈ ℕ \ {0} tal que y = x + p.

Demonstração
I. Se x ∈ ℕ, então x = x + 0. Logo, por definição, 0 ≤ x.
II. Suponhamos que x ≠ 0. Por (a), tem-se 0 ≤ x e como x ≠ 0, resulta, por defini-
ção, que 0 < x.
III. Se x ≤ y, então existe p ∈ ℕ tal que y = x + p. Portanto, s(y) = s(x + p) = s(x) + p.
Logo, por definição, s(x) ≤ s(y).
VI. Se x < y, então x ≤ y e x ≠ y. Por (c) segue que s(x) ≤ s(y), e como a função suces-
sor é injetora, temos que s(x) ≠ s(y). Ao combinarmos essas duas informações,
temos que s(x) < s(y).
V. Se x < y, então x ≠ y e existe p ∈ ℕ tal que y = x + p. Mas, então, p ≠ 0, pois, do
contrário, teríamos y = x + 0 = x, contradizendo x ≠ y. Reciprocamente, su-
ponhamos que y = x + p, para algum p ∈ ℕ \ {0}. Por definição da relação “≤”,
segue que x ≤ y. Agora, y = x + p com p ≠ 0 implica x ≠ y. Mas, x ≤ y juntamente
com x ≠ y significam que x < y.

Vencida essa etapa, é natural indagarmos qual a natureza da relação ≤ (menor


que ou igual a), ou seja, que tipos de propriedades são inerentes a essa relação?
Evidentemente essa relação deveria ser de ordem, dado que sua definição captura
a ordenação dos números naturais que se conhece empiricamente. De fato, esse é
o caso, conforme demonstramos a seguir.

Teorema

A relação ≤ (menor que ou igual a) é uma relação de ordem em ℕ, ou seja, são


válidas as propriedades:
I. Reflexiva: x ≤ x para todo x ∈ ℕ.
II. Antissimétrica: se x, y ∈ ℕ são tais que x ≤ y e y ≤ x, então x = y.
III. Transitiva: se x, y, z ∈ ℕ são tais que x ≤ y e y ≤ z, então x ≤ z.
(Continua)

O conjunto dos números naturais 61


Demonstração

I. De fato, se x ∈ ℕ, então x = x + 0, portanto, x ≤ x, pela definição.


II. Suponhamos que x ≤ y e y ≤ x. Pela definição, existem p, q ∈ ℕ tais que

y=x+pex=y+q

Consequentemente,

x + 0 = x = (x + p) + q = x + (p + q)

Pela Lei do Cancelamento para a adição, segue que

p+q=0
Desafio Mas isso implica p = q = 0. Portanto, y = x + 0 = x.
Na demonstração da propriedade
III. Suponhamos que x ≤ y e y ≤ z. Pela definição, existem p, q ∈ ℕ tais que
antissimétrica (item II), verifique
que p = q = 0.
y=x+pez=y+q

Consequentemente,

z = y + q = (x + p) + q = x + (p + q)

Como p + q ∈ ℕ, deduzimos que x ≤ z.

A relação de ordem ≤ (menor que ou igual a) é denominada de ordem natural de


ℕ. Essa terminologia se justifica pelo fato de que ela está de acordo com a forma
empírica com a qual comparamos números naturais.

Com base no conteúdo desta seção, podemos elaborar um resultado funda-


mental: o princípio da tricotomia. Esse princípio tem um enunciado óbvio, afir-
mando que dados dois números naturais x, y ∈ ℕ, uma, e apenas uma coisa pode
acontecer: x = y, x < y ou y < x. Embora ele pareça bastante simplório, costuma
ser usado com frequência na aritmética de números naturais. Sua demonstração
baseia-se no resultado auxiliar a seguir.

Lema

Sejam x, y ∈ ℕ, então são válidas:


I. s(x) > x.
II. Se y > x, então y = s(x) ou y > s(x).

Demonstração

I. A igualdade s(x) = x + 1 revela que s(x) ≥ x, então resta verificarmos que s(x) ≠ x.
Por contradição, suponhamos que s(x) = x. Nessa situação, teríamos que
x + 1 = x + 0. Mas, a Lei do Cancelamento para a adição permitiria deduzir que
1 = 0, ou seja, s(0) = 0. Isto é impossível, pois 0 (zero) não pertence à imagem
de s. Portanto, temos que s(x) > x.
(Continua)

62 Aritmética
II. Suponhamos que y > x, isto é, y ≠ x, e existe p ∈ ℕ \ {0}, tal que y = x + p.
Mas como p ≠ 0, é possível escrevermos p = s(q) com q ∈ ℕ. Consequentemente,

y = x + p = x + s (q) = s(x) + q

Se q = 0, então y = s(x), e se q ≠ 0, tem-se y > s(x).

Utilizando esse resultado, é possível demonstrarmos o princípio da tricotomia,


como a seguir.

Teorema

Sejam x, y ∈ ℕ. Então, uma, e apenas uma das seguintes afirmações é válida:


I. x > y
II. x = y
III. x < y

Demonstração

A primeira parte da demonstração consiste em verificar que quaisquer duas


das afirmações não podem ocorrer simultaneamente. Todas as verificações são
realizadas por contradição.
• Se fosse possível ocorrer I e II simultaneamente:

Existiria p ∈ ℕ \ {0}, tal que x = y + p, e considerando que x = y, resultaria em:

x+0=x=y+p=x+p
Mas pela Lei do Cancelamento para a adição, seguiria que p = 0, uma contradição.

• Se fosse possível ocorrer II e III simultaneamente:

Existiria p ∈ ℕ \ {0}, tal que y = x + p, e considerando que x = y, resultaria em:

y+0=y=x+p=y+p
Novamente, pela Lei do Cancelamento para a adição, seguiria que p = 0, uma
contradição.

• Se fosse possível ocorrer I e III simultaneamente:

Existiriam p, q ∈ ℕ \ {0}, tais que y = x + p e x = y + q. Consequentemente,

y + 0 = y = x + p = (y + q) + p = y + (p + q)

Então, pela Lei do Cancelamento para a adição, seguiria que p + q = 0, desse


modo, p = q = 0. Logo, uma contradição.
(Continua)

O conjunto dos números naturais 63


Em seguida, resta-nos verificar que pelo menos uma das opções entre I e III
ocorre. A ideia é proceder por meio do princípio de indução finita. Para tanto, defi-
ne-se o conjunto

A = {x ∈ ℕ | ∀ y ∈ ℕ, x > y, x = y ou x < y}

Por definição, A ⊂ ℕ e 0 ∈ A, pois para qualquer y ∈ ℕ temos que y > 0. Para fina-
lizar, temos que verificar que A é fechado para sucessores. Para tanto, seja x ∈ A, ou
seja, x ∈ ℕ e dado y ∈ ℕ, temos:

x > y, x = y ou x < y

Considerando essa informação, demonstraremos que s(x) > y, s(x) = y ou s(x) < y:
• Se y < x, então y < s(y) < s(x), portanto s(x) ∈ A.
• Se x = y, então, pelo lema da multiplicação do sucessor de x por y já demons-
trado, temos que s(x) = s(y) > y. Logo, s(x) ∈ A.
• Se x < y, então, pelo lema da multiplicação do sucessor de x por y já demons-
trado, temos que y = s(x) ou y > s(x). Assim, s(x) ∈ A.

Isso nos mostra que A é fechado para sucessores. Pelo princípio da indução
finita, deduzimos que A = ℕ, demonstrando, desse modo, a propriedade enunciada.

A relação de ordem estudada nessa seção será fundamental em outros está-


gios do estudo da aritmética. Por exemplo, ela servirá como ponto de partida para
definirmos uma relação de ordem no conjunto dos inteiros. Além disso, é possível
demonstrarmos uma das propriedades fundamentais do conjunto dos números
naturais: o princípio da boa ordenação, nosso objetivo de estudo a partir de agora.

2.5 Princípio da boa ordenação


Vídeo Finalmente, apresentamos agora um resultado teórico que tem diversas aplica-
ções, chamado de princípio da boa ordenação.

Embora a demonstração desse princípio seja elaborada, seu enunciado é sim-


ples de ser compreendido. Apesar de ser um argumento que não precise de de-
monstração, a título de rigor, vamos demonstrar. Isso é importante pois lhe confere
maturidade e segurança ao tratar do assunto.

Para motivar a discussão, observemos que qualquer número natural x satisfaz


x ≥ 0. Nesse sentido, e considerando que ≤ (menor que ou igual a) é uma relação de
ordem, podemos dizer que 0 (zero) é o menor elemento do conjunto dos números
naturais. Em outras palavras, o conjunto dos números naturais possui um menor
elemento. Acontece que isso é válido para qualquer subconjunto não vazio de nú-
meros naturais.

Por exemplo, se A = {2k + 1 | k ∈ ℕ}, então A é um conjunto não vazio de nú-


meros naturais que tem 1 (um) como o menor elemento, dado que A = {1, 3, 5, …}.
De maneira geral, todo subconjunto não vazio A ⊂ ℕ possui um menor elemento.
Esse é o conteúdo do princípio da boa ordenação.

64 Aritmética
A demonstração do princípio da boa ordenação é um tanto complexa e, para
simplificar, convém estabelecermos o resultado auxiliar enunciado e demons-
trado a seguir.

Lema

Sejam x, y ∈ ℕ, então x < y se, e somente se, s(x) ≤ y.

Demonstração

Suponhamos que x < y. Nesse caso, existe p ∈ ℕ \ {0}, tal que y = x + p. Mas como
p ≠ 0, é possível escrevermos p = s(q), para algum q ∈ ℕ. Consequentemente,
y = x + p = x + s(q) = s(x) + q. Portanto, s(x) ≤ y.

Por outro lado, suponhamos que s(x) ≤ y. Diante disso, existe p ∈ ℕ tal que
y = s(x) + p. De modo consequente, y = x + s(p). Como s(p) ≠ 0, deduzimos que x < y.

Como aplicação desse resultado auxiliar, vamos demonstrar o princípio da boa


ordenação para o conjunto dos números naturais.

Teorema – O princípio da boa ordenação

Se A é um subconjunto não vazio de ℕ, então existe r ∈ A, tal que r ≤ a para


todo a ∈ A.

Demonstração

Inicialmente, definimos o conjunto auxiliar

X = {x ∈ ℕ | ∀ a ∈ A; x ≤ a}

Então X ≠ ℕ. Para vermos isso, tomemos a0 ∈ A. É possível encontrarmos a0, pois


A ≠ ∅. Mas, então, s(a0) ∉ X, pois, do contrário, seguiria que s(a0) ≤ a0 e, pelo lema
demonstrado anteriormente, resultaria em a0 < a0, contradizendo o princípio da
tricotomia, já que sempre é válido a0 = a0.

Agora, o conjunto X não é fechado para sucessores. Para verificarmos, suponha-


mos que X fosse fechado para sucessores: nesse caso, teríamos, pelo princípio da
indução finita, que X = ℕ, pois X também contém o 0 (zero), uma vez que 0 ≤ a, para
todo a ∈ A. Mas isso contradiz X ≠ ℕ. Portanto, existe r ∈ X, tal que s(r) ∉ X.

Em particular, r ≤ a para todo a ∈ A. A ideia é mostrarmos que r ∈ A. Para isso, se


r ∉ A, então r ≠ a para todo a ∈ A. Logo, pela tricotomia, r < a ou r > a, qualquer que
seja a ∈ A. Combinando isso com o fato que r ≤ a, deduzimos que r < a. Mas, r < a
para todo a ∈ A, junto ao lema demonstrado anteriormente, implicam s(r) ≤ a, para
todo a ∈ A, o que significa que s(r) ∈ X, uma contradição.
(Continua)

O conjunto dos números naturais 65


Portanto, a afirmação r ∉ A é falsa, ou seja, r ∈ A. Logo, r é o menor elemento de
Site
A, conforme queríamos demonstrar.
O Olimpédia é um site
que aborda assuntos de ∎
olimpíadas científicas.
Nele é possível encontrar-
mos uma aplicabilidade
interessante do princípio O princípio da boa ordenação costuma ser usado para mostrar que alguma pro-
da boa ordenação. A
exposição é clara, rigorosa
priedade P é falsa para todo número natural. A estratégia é supor que ela é válida
e interessante. Vale a pena para alguns números naturais. Em particular, o conjunto A = {x ∈ ℕ | x satisfaz P} é
conferir!
um subconjunto não vazio de números naturais.
Disponível em: https://olimpedia.
fandom.com/pt-br/wiki/Princ%- Consequentemente, pelo princípio da boa ordenação, existe um menor elemen-
C3%ADpio_da_Boa_Ordena%-
to x0 ∈ A. Usando-se esse x0 será obtido uma contradição. Isso demonstrará que
C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 7
mai. 2021. a suposição de que P era válida para alguns números naturais é falsa, ou seja, a
propriedade P é falsa para todo número natural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conjunto dos números naturais, embora seja conhecido desde o ensino básico,
não pode ser compreendido de maneira completa sem a discussão de seus aspectos
teóricos. Essa discussão permite um diálogo com veracidade e precisão quando o
assunto é o conjunto dos números naturais. Além disso, a teoria abordada neste
capítulo ilustra como a matemática se desenvolve sobre suas próprias bases, um
resultado derivado de outro e todos alcançados dos pressupostos iniciais.
Esse tipo de desenvolvimento faz com que a intuição seja aprimorada, visto que
é por meio da observação de elementos concretos que chegamos à abstração da
teoria. Nesse caminho, muitas habilidades são desenvolvidas, inicialmente com o
aperfeiçoamento do raciocínio abstrato e culminando com a sofisticação na argu-
mentação. Todos esses elementos, além de serem úteis, são necessários para um
bom domínio do assunto.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Qual seria a estratégia para demonstrar que todo número natural n ≠ 0 é sucessor
de outro natural?

2. Quais são os ganhos propiciados pela abordagem axiomática do conjunto dos


números naturais?

3. Comente a respeito da importância do princípio da indução finita no desenvolvimento


da teoria deste capítulo.

REFERÊNCIAS
DOMINGUES, H. H. Fundamentos de aritmética. São Paulo: Atual, 1991.
DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra Moderna. São Paulo: Atual, 1982.
FERREIRA, J. A Construção dos Números. Rio de Janeiro: SBM, 2011.

66 Aritmética
3
O conjunto dos
números inteiros
Uma vez que conhecemos o conjunto dos números naturais, percebemos
que muitos problemas não podem ser resolvidos por meio desse conjunto.
Por exemplo, a simples equação x + 2 = 1 não pode ser resolvida em  . Então,
é necessário introduzirmos os números que permitem resolver esse tipo de
equação: os números inteiros.
O conjunto dos números inteiros é nosso objeto de estudo neste capítulo.
Por meio do conjunto dos números naturais e de sua adição, definiremos o
conjunto dos números inteiros com base em determinada relação de equiva-
lência. Com essa definição, é possível demonstrar rigorosamente as proprieda-
des da adição, subtração e multiplicação de números inteiros.

3.1 O conjunto ℤ
Vídeo A motivação para estender o conjunto dos números naturais vem da necessida-
de de resolver equações do tipo

x+b=a

com a, b ∈ ℕ. Por exemplo, a equação

x+1=0

não tem solução no conjunto dos números naturais. Entretanto, em muitas situa-
ções é desejável resolvê-la. Para sair desse impasse, é necessário introduzirmos
“números” não pertencentes ao conjunto dos números naturais. Esses novos nú-
meros serão todas as soluções de quaisquer equações da forma x + b = a possíveis
de formar variando a, b ∈ ℕ.

O ponto de partida é notar que equações da forma x + b = a com a, b ∈ ℕ são


parametrizadas por pares de números naturais (a, b) em ℕ × ℕ, ou seja, uma equa-
ção do tipo x + b = a corresponde ao par (a, b), e, reciprocamente, um par (a, b)
corresponde à equação x + b = a.

Por exemplo, temos a correspondência entre a equação x + 2 = 1 e o par (1, 2)


de números naturais. Agora, relembrando o que aprendemos na educação básica,
a solução para a equação x + 2 = 1 é x = –1. Em particular, seria tentador definir

–1 = (1, 2)

O conjunto dos números inteiros 67


já que o par (1, 2) está associado a uma equação cuja solução deveria ser –1. Isso
tem sentido, pois o objeto (1, 2) é bem definido, ou seja, satisfaz a equação. Embora
a ideia seja boa, há um problema de ambiguidade: por que não definir

–1 = (2, 3) ou –1 = (3, 4)

dado que as equações correspondentes

x+3=2ex+4=3

também teriam –1 como solução? De fato, não haveria nenhuma razão para es-
colher (1, 2) em prejuízo dos pares (2, 3) e (3, 4) para representar o –1. A solução
para resolver esse problema de ambiguidade é a mais simples possível. Em vez de
definir –1 como um par ordenado em particular, que corresponde a uma equação
com solução –1, definimos –1 como o conjunto de todos os pares ordenados de nú-
meros naturais que dão origem a uma equação de solução –1. Mais precisamente,
definimos

–1 = {(k, k + 1) | k ∈ ℕ} = {(0, 1), (1, 2), (2, 3), …}

É possível formalizar essa discussão por meio do emprego de relações de equiva-


lência. De fato, o problema da ambiguidade levantado anteriormente é resolvido ao
identificarmos todos os pares ordenados de números naturais que dão origem a uma
equação da forma x + b = a com a mesma solução. Contudo, note que dois pares (a,
b) e (c, d) em ℕ x ℕ dão origem a equações com a mesma solução se, e somente se,

a+d=b+c

De fato, se (a, b) e (c, d) fornecem a solução k para as equações

x+b=aex+d=c

então

k+b=aek+d=c

o que implica

a + d = (k + b) + d = b + (k + d) = b + c

Por outro lado, suponha que os pares (a, b) e (c, d) são tais que

a+d=b+c

Então, nesse caso, as equações

x+b=aex+d=c

têm a mesma solução. Com efeito,

x + b = a ⇒ (x + b) + c = a + c

⇒ x + (b + c) = a + c

⇒ x + (a + d) = a + c

⇒ a + (x + d) = a + c

⇒x+d=c

Portanto, a solução de x + b = a é solução de x + d = c. Analogamente, toda solu-


ção de x + d = c é solução de x + b = a. Essa discussão motiva a proposição a seguir.

68 Aritmética
Proposição

A relação ℜ ⊂ ℕx ℕ definida por

(a, b) ℜ (c, d) ⇔ a + d = b + c

é uma relação de equivalência. Além disso,

[(a, b)] = {(x, y) ∈ ℕ × ℕ| (x, y) ℜ (a, b)} = {(x, y) ∈ ℕ × ℕ| x + b = y + a}

Demonstração

É necessário demonstrar que ℜ é reflexiva, simétrica e transitiva. Com efeito:


• ℜ é reflexiva.

Se (a, b) ⊂ ℕ x ℕ, então

a+b=b+a

já que a operação adição (+) é comutativa em ℕ. Isso nos mostra que (a, b) ℜ(a, b),
ou seja, ℜ é reflexiva.
• ℜ é simétrica.

Se (a, b) e (c, d) são elementos de ℕ x ℕ tais que (a, b) ℜ (c, d), então temos que

a+d=b+c

o que implica, pela comutatividade de + em ℕ,

c+b=d+a

ou seja, (c, d) ℜ (a, b).


• ℜ é transitiva.

Suponha que (a, b), (c, d) e (e, f) são elementos de ℕ x ℕ tais que

(a, b) ℜ (c, d) e (c, d) ℜ (e, f)

Por definição, isso significa que

a+d=b+cec+f=d+e

Logo,

a + f + (c + d) = (a + d) + (c + f) = b + c + d + e = (b + e) + (c + d)

Pela lei do cancelamento da adição em , temos que

a+f=b+e

Portanto, (a, b) ℜ (e, f).

Finalmente, chegamos à principal definição desta seção.

O conjunto dos números inteiros 69


Definição
O conjunto dos números inteiros é o quociente
 x
=
R

sendo ℜ ⊂ ℕ × ℕ a relação de equivalência


(a, b) ℜ (c, d) ⇔ a + d = b + c

Note que todo (a, b) ∈ ℕ x ℕ determina a classe de equivalência [(a, b)] dada por

[(a, b)] = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | (x, y) ℜ(a, b)} = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | x + b = y + a}

Por exemplo,

[(2, 1)] = {(x, y) | x + 1 = y + 2} = {(1, 0), (2, 1), (3, 2), …}

[(1, 2)] = {(x, y) | x + 2 = y + 1} = {(0, 1), (1, 2), (2, 3), …}

Note que [(1, 2)] coincide com o conjunto com o qual definimos o número –1 na
discussão introdutória desta seção.

Existe uma maneira simples de representar as classes de equivalência [(a, b)].


Para compreender isto, note que sempre que dois números naturais a, b ∈ ℕ sa-
tisfazem a ≥ b, é possível definir a subtração a – b. De fato, a ≥ b, por definição,
significa que

a=b+k

para algum k ∈ ℕ. Assim, temos que esse elemento k ∈ ℕ é o único número natural
que cumpre a = b + k. De fato, se l ∈ ℕ também satisfaz a = b + l, então, pela lei do
cancelamento da adição, teríamos que k = l. Em particular, é possível definir

a–b≔k

Note que estamos definindo a subtração de a com b como o único número


inteiro k que satisfaz a = b + k. Novamente, devemos enfatizar que isso apenas
tem sentido quando a ≥ b. Em particular, essa operação de subtração está definida
apenas no subconjunto

{(a, b) ∈ ℕ x ℕ| a ≥ b} ⊂ ℕ x ℕ

e não em ℕ x ℕ, como é o caso da adição. Mas, afinal, qual é a razão dessa discus-
são? Ela permite demonstrar que qualquer classe de equivalência [(a, b)] ∈ ℤ, isto é,
qualquer número inteiro, pode ser representada de uma forma bastante particular,
como demonstrado a seguir.

Teorema

Se (a, b) ∈ ℕ x ℕ, então existe um único c ∈ ℕ, de modo que

[(a, b)] = [(c, 0)] ou [(a, b)] = [(0, c)]

70 Aritmética
Demonstração

Se (a, b) ∈ ℕ xℕ, então a ≥ b ou b ≥ a.


• Se a ≥ b, então temos que

[(a, b)] = [(a – b, 0)]

pois

a + 0 = b + (a – b)

Logo, basta tomar c := a – b ∈ℕ.

Agora, se b ≥ a, então temos que

[(a, b)] = [(0, b – a)]

pois

a + (b – a) = b + 0

Nesse caso, basta tomar c := b – a ∈ℕ.

Finalmente, resta mostrar a unicidade. Para isso, se d ∈ℕ é tal que

[(a, b)] = [(d, 0)]

então

a+0=b+d⇔a=b+d⇒d=a–b

Analogamente, é demonstrada a outra situação.

Para ilustrar o resultado anterior, note que:


• [(1, 2)] = [(0, 2 – 1)] = [(0, 1)]
• [(2, 1)] = [(2 – 1, 0)] = [(1, 0)]
• [(3, 1)] = [(3 – 1, 0)] = [(2, 0)]
• [(1, 3)] = [(0, 3 – 1)] = [(0, 2)]

Com isso, temos que, por exemplo:

[(1, 2)] = [(0, 1)] = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | (x, y) ℜ (0, 1)}

= {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | x + 1 = y + 0} = {(x, x + 1) | x ∈ ℕ}

Analogamente,

[(2, 1)] = [(1, 0)] = {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | (x, y) ℜ (1, 0)}

= {(x, y) ∈ ℕ x ℕ | x + 0 = y + 1} = {(y + 1, y) | y ∈ ℕ}

O conjunto dos números inteiros 71


Novamente, note que o conjunto [(1, 2)] coincide com o conjunto com o qual de-
finimos o –1 no início da seção. A propósito, para esclarecer alguns detalhes, vamos
introduzir as seguintes notações:

O número inteiro zero é definido como 0ℤ = [(0, 0)].


Se k ∈ ℕ, definimos o inteiro positivo k como kℤ = [(k, 0)].
Se k ∈ ℕ, definimos o inteiro negativo k como –kℤ = [(0, k)].

Por exemplo:

• 1ℤ= [(1, 0)]


• –1ℤ = [(0, 1)]
• 2ℤ = [(2, 0)]
• –2ℤ = [(0, 2)]

Com isso, podemos denotar

ℤ = {…, –2ℤ, –1ℤ, 0ℤ, 1ℤ, 2ℤ, …}

Geralmente, como é inconveniente carregar a notação kℤ, escrevemos apenas k


em vez de kℤ. Entretanto, devemos ter em mente que kℤ e k são objetos diferentes.

Então, por que no ensino básico ensinam que todo número natural é um número
inteiro? Isso ocorre pelo fato de existir uma “cópia” do conjunto dos números natu-
rais dentro do conjunto dos números inteiros. Isso significa que existe um subcon-
junto de ℤ que está em bijeção comℕ, como mostra o teorema a seguir.

Teorema

A função f: ℕ → ℤ definida por

f(x) = [(x, 0)]

é injetora. Em particular, ℕ está em bijeção com a imagem de f, isto é, com o


conjunto

ℕℤ= {[(x, 0) | x ∈ℕ}

Demonstração

De fato, se x, y ∈ ℕ são tais que f(x) = f(y), então

[(x, 0)] = [(y, 0)]

Pela definição, vale essa igualdade se, e somente se,

x+0=y+0

ou seja, x = y. Portanto, f é injetora.

72 Aritmética
Portanto, quando escrevemos ℕ ⊂ ℤ, isso significa, efetivamente, ℕℤ ⊂ ℤ. Contu-
do, conjuntos em bijeção são indistinguíveis do ponto de vista da teoria de conjun-
tos, logo, não há razão para qualquer confusão a respeito da escrita ℕ ⊂ ℤ.

Além disso, será demonstrado posteriormente que f é compatível com as ope-


rações algébricas de ℕ e de ℤ– estas ainda serão introduzidas.

3.2 Adição e subtração de números inteiros


Vídeo Agora que você sabe que números inteiros são classes de equivalência, surge
uma pergunta natural: como somar e subtrair números inteiros? A resposta deve
ser fundamentada no conjunto dos números naturais, dado que os inteiros foram
construídos com base nesse conjunto.

Além disso, uma vez presente a adição de números naturais, deve ser possível
“estendê-la” ao conjunto dos números inteiros, de modo que quando adicionamos
dois inteiros não negativos, produzimos o mesmo resultado que obtemos ao adi-
cionar os dois números naturais correspondentes.

Para elaborar a respeito, lembre-se de que se x, y ∈ ℕ, então os inteiros não


negativos correspondentes são

xℤ = [(x, 0)] e yℤ = [(y, 0)]

respectivamente. Gostaríamos que

xℤ + yℤ = (x + y) ℤ

Mas isso vale se, e somente se,

[(x, 0)] + [(y, 0)] = [(x + y, 0)]

Logo, isso define a adição de inteiros para todos aqueles inteiros da forma
[(x, 0)]. Porém, relembre que um inteiro também pode ter o formato [(0, x)]; por
isso, também é necessário definirmos

[(x, 0)] + [(0, y)] e [(0, x)] + [(0, y)]

com x, y ∈ℕ. Seguindo o raciocínio que foi discutido anteriormente, parece natural
colocarmos

[(x, 0)] + [(0, y)] = [(x, y)] e [(0, x)] + [(0, y)] = [(0, x + y)]

Dessa forma, chegamos à definição a seguir.

Definição
A adição de dois números inteiros [(a, b)] e [(c, d)] é o número inteiro
[(a, b)] + [(c, d)] = [(a + c, b + d)]

É necessário verificar se a adição está, de fato, bem definida. Como assim?

Lembre-se de que uma classe de equivalência pode ter mais de um represen-


tante. Suponha então que (a, b) e (a’, b’) representam a mesma classe de equiva-

O conjunto dos números inteiros 73


lência e que (c, d) e (c’, d’) também são representantes dessa classe. Isso pode ser
resumido por meio das igualdades

[(a, b)] = [(a’, b’)] e [(c, d)] = [(c’, d’)]

Mas será que [(a, b)] + [(c, d)] = [(a’, b’)] + [(c’, d’)]?

Se esse não fosse o caso, teríamos que

[(a, b)] + [(c, d)] ≠ [(a’, b’)] + [(c’, d’)]

ainda que

[(a, b)] = [(a’, b’)] e [(c, d)] = [(c’, d’)]

isto é, +: ℤ × ℤ → ℤ não seria uma função, já que um mesmo elemento do domínio


teria duas imagens distintas. Felizmente, isso não ocorre, conforme será demons-
trado a seguir.

Teorema

Se [(a, b)] = [(a’, b’)] e [(c, d)] = [(c’, d’)], então

[(a, b)] + [(c, d)] = [(a’, b’)] + [(c’, d’)]

Demonstração

De fato, por hipótese,

a + b’ = b + a’ e c + d’ = d + c’

e, consequentemente,

(a + c) + (b’ + d’) = (a + b’) + (c + d’) = b + a’ + d + c’ = (b + d) + (a’ +c’)

Essa igualdade significa, precisamente, que

[(a + c, b + d)] = [(a’ + c’, b’ + d’)]

Vejamos na prática que a definição de adição de vetores está coerente com o


que se conhece da adição de inteiros. Lembre-se de que se k ∈ ℕ, então

k = [(k, 0)] e –k = [(0, k)]

Assim, temos que, por exemplo,


• 1 + 2 = [(1, 0)] + [(2, 0)] = [(1 + 2, 0 + 0)] = [(3, 0)] = 3
1 1
• 1 + (–2) = [(1, 0)] + [(0, 2)] = [(1 + 0, 0 + 2)] = [(1, 2)] = [(0, 1)] = –1
A igualdade [(1, 2)] = [(0, 1)]
ocorre pelo fato de que 1 + 1 A princípio, é cansativo trabalhar com as classes de equivalência. Porém, consi-
= 2 + 0. dere que isso acontece apenas no início da teoria. Assim que demonstrarmos a va-
lidade das propriedades algébricas da adição, não vamos mais lidar com as classes
de equivalência, pois são as propriedades que serão utilizadas efetivamente nos
cálculos e nas demonstrações posteriores.

74 Aritmética
Para fechar a discussão teórica da definição de adição de inteiros, vamos de-
monstrar a compatibilidade da adição dos números naturais com a adição dos nú-
meros inteiros não negativos.

Proposição

A função f: ℕ → ℤ definida por f(x) := [(x, 0)] satisfaz

f(x + y) = f(x) + f(y)

para todo x, y ∈ℕ.

Demonstração

De fato,

f(x + y) = [(x + y, 0)] = [(x, 0)] + [(y, 0)] = f(x) = f(y)

para todo x, y ∈ℕ.

Escrevendo xℤ = f(x), a proposição anterior informa apenas que

(x + y)ℤ = xℤ + yℤ

como queríamos.

No ensino básico você aprendeu que a adição de inteiros tem diversas proprie-
dades: associatividade, comutatividade etc. Para demonstrar essas propriedades e
outras, vamos formalizar alguns conceitos.

Definição
I. O inteiro zero é o número inteiro 0 = [(0, 0)].
II. O oposto de um número inteiro x = [(a, b)] é o número inteiro –x = [(b, a)].

Com essa definição, podemos prosseguir e demonstrar um dos principais resul-


tados desta seção.

Teorema

Sobre a adição de números inteiros, são válidas as propriedades:

I. Associatividade: x + (y + z) = (x + y) + z.

II. Comutatividade: x + y = y + x.

O conjunto dos números inteiros 75


III. 0 (zero) é o único inteiro tal que x + 0 = x = 0 + x.

IV. –x é o único inteiro tal que x + (–x) = 0 = –x + x.

V. –(–x) = x.

VI. –0 = 0.

Demonstração

Denotamos x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)] para demonstrar as afirmativas.

I. Pela associatividade da adição em ℕ, temos que

x + (y + z) = [(a, b)] + ([(c, d)] + [(e, f)])

= [(a, b)] + [(c + e, d + f)]

= [(a + (c + e), b + (d + f))]

= [((a + c) + e, (b + d) + f)]

= [(a + c, b + d)] + [(e, f)]

= ([(a, b)] + [(c, d)]) + [(e, f)]

= (x + y) + z

II. Aplicando a comutatividade da adição em ℕ:

x + y = [(a, b)] + [(c, d)]

= [(a + c, b + d)]

= [(c + a, d + b)]

= [(c, d)] + [(a, b)]

=y+x

III. De fato,

0 + x = [(0, 0)] + [(a, b)] = [(0 + a, 0 + b)] = [(a, b)] = x

Analogamente, x + 0 = x. Resta verificar a unicidade.

Se 0’ ∈ ℤ é tal que

0’ + x = x = x + 0’

então

0’ = 0’ + 0 = 0

evidenciando, assim, a unicidade.

IV. Como x = [(a, b)], temos –x = [(b, a)] e, portanto,

x + (–x) = [(a, b)] + [(b, a)] = [(a + b, b + a)] = [(0, 0)] = 0

A igualdade [(a + b, b + a)] = [(0, 0)] ocorre pelo fato de que

a+b=b+a

já que a adição de números naturais é comutativa.

Analogamente, é possível demonstrar que –x + x = 0. Resta mostrar a unicidade:


suponha que x’ ∈ ℤ é tal que

x + x’ = 0 = x’ + x

76 Aritmética
Nesse caso,

–x = –x + 0 = –x + (x + x’) = (–x + x) + x’ = 0 + x’ = x’

V. Com efeito,

–(–x) = –[(b, a)] = [(a, b)] = x

VI. De fato, –0 = –[(0, 0)] = [(0, 0)] = 0.

Até o momento temos a definição precisa do conjunto dos números inteiros e


da adição nesse conjunto. Resta discutirmos a razão para definirmos o conjunto
dos inteiros: a subtração.

Definição
Se x, y ∈ ℤ, definimos a subtração x – y como o inteiro
x – y = x + (–y)

Portanto, por definição, para efetuar a subtração x – y, devemos fazer a adição


de x com o oposto de y. Em termos de classes de equivalência, se

x = [(a, b)] e y = [(c, d)]

então

x – y = x + (–y)

= [(a, b)] + (–[(c, d)])

= [(a, b)] + [(d, c)]

= [(a + d, b + c)]

Por exemplo,

3 – 2 = [(3, 0)] + (–[(2, 0)])

= [(3, 0)] + [(0, 2)]

= [(3, 2)]

= [(1, 0)]

=1

já que 3 + 0 = 2 + 1 em ℕ.

Novamente, a teoria está coerente com o que conhecemos. Para finalizar esta
seção, vamos demonstrar as propriedades da subtração de inteiros.

Teorema

A subtração de números inteiros satisfaz as propriedades a seguir.

O conjunto dos números inteiros 77


I. x – 0 = x.

II. 0 – x = –x.

III. x – x = 0.

IV. A equação x + b = a em ℤ possui como única solução x = b – a.

V. –(x + y) = – x – y.

Demonstração

I. De fato, x – 0 = x + (–0) = x + 0 = x.

II. Com efeito, 0 – x = 0 + (–x) = –x.

III. Realmente, x – x = x + (–x) = 0.

IV. Somando –b a ambos os membros da igualdade x + b = a e utilizando o que


já se demonstrou para a adição de inteiros:

(x + b) + (–b) = a + (–b) ⇔ x + (b + (–b)) = a – b

⇔x+0=a–b

⇔x=a–b

Isso mostra também a unicidade, já que com a equação x + b = a sempre chega-


mos ao mesmo inteiro a – b.

V. Escrevendo x = [(a, b)] e y = [(c, d)], temos:

–x – y = –x + (–y)

= [(b, a)] + [(d, c)]

= [(b + d, a + c)]

= –[(a + c, b + d)]

= –([(a, b)] + [(c, d)])

= –(x + y)

Note que, no teorema anterior, as propriedades de I a V foram demonstradas


sem o uso de classes de equivalência. Isso ilustra que à medida que a teoria é de-
senvolvida deixamos de usar as classes de equivalência e utilizamos efetivamente
as propriedades que já foram demonstradas anteriormente.

3.3 Multiplicação de números inteiros


Vídeo Depois da adição e da subtração, a principal operação algébrica que podemos
realizar com números inteiros é a multiplicação. Esse será o nosso objeto de
estudo.

78 Aritmética
Motivados pela maneira como definimos a adição de números inteiros, seria
tentador buscar definir a multiplicação por meio da igualdade

[(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c, b ⋅ d)]

Embora essa igualdade defina um número inteiro, essa “multiplicação” não teria
as propriedades bem conhecidas dessa operação com números inteiros. A título
de ilustração, não valeria 1 ⋅ x = x para todo número inteiro x como mostrado em

1 ⋅ (-1) = [(1, 0)] ⋅ [(0, 1)] = [(1 ⋅ 0, 0 ⋅ 0)] = [(0, 0)] = 0

Sendo assim, será necessário definir de outra maneira a operação de multiplica-


ção no conjunto ℤ. Isso é feito a seguir.

Definição
Sejam [(a, b)] e [(c, d)] número inteiros. A multiplicação de [(a, b)] por [(c, d)], denotada [(a,
b)] ⋅ [(c, d)], é definida por
[(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)]

Note que a multiplicação (⋅) é definida em termos dos representantes das clas-
ses de equivalência. Como é de praxe nessas situações, é necessário verificar que a
definição não depende da escolha do representante. No entanto, a verificação será
omitida, já que envolve extensos e trabalhosos cálculos. O importante é compreen-
der a necessidade de fazer esse tipo de verificação.

Agora que definimos a multiplicação de números inteiros, é necessário demonstrar


que a definição é coerente com o que aprendemos no ensino elementar. Por exemplo:
• 2 ⋅ 3 = [(2, 0)] ⋅ [(3, 0)] = [(2 ⋅ 3 + 0 ⋅ 0, 2 ⋅ 0 + 0 ⋅ 3)] = [(6, 0)] = 6
• 2 ⋅ (–1) = [(2, 0)] ⋅ [(0, 1)] = [(2 ⋅ 0 + 0 ⋅ 1, 2 ⋅ 1 + 0 ⋅ 0)] = [(0, 2)] = –2

Perceba que as multiplicações produzem os resultados esperados. Vejamos um


caso de um produto de dois números inteiros negativos:
• (–2) ⋅ (–3) = [(0, 2)] ⋅ [(0, 3)] = [(0 ⋅ 0 + 2 ⋅ 3, 0 ⋅ 3 + 2 ⋅ 0)] = [(6, 0)] = 6

Agora que você compreendeu que a definição de multiplicação não é muito


complicada, vamos demonstrar as principais regras operacionais envolvendo
essa operação.

Teorema

Sejam x, y, z ∈ℤ. Então, são válidas as afirmações:

VI. 1 ⋅ x = x = x ⋅ 1

VII. 0 ⋅ x = 0 = x ⋅ 0

VIII. (–1) ⋅ x = –x = x ⋅ (–1)

IX. (–x) ⋅ y = –(x ⋅ y) = x ⋅ (–y)

X. x ⋅ y = y ⋅ x

O conjunto dos números inteiros 79


XI. x ⋅ (y + z) = x ⋅ y + x ⋅ z e (x + y) ⋅ z = x ⋅ z + y ⋅ z
Desafio XII. x ⋅ (y – z) = x ⋅ y – x ⋅ z e (x – y) ⋅ z = x ⋅ z – y ⋅ z
Demonstre os trechos indicados
Demonstração
como análogos nas demonstrações
dos itens II, III, IV e VII. Ou seja, Denotamos x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)]. Então:
mostre que:
• x⋅0=0 I. 1 ⋅ x = [(1, 0)] ⋅ [(a, b)] = [(1 ⋅ a + 0 ⋅ b, 1 ⋅ b + 0 ⋅ a)] = [(a, b)] = x

• x ⋅ (–1) = –x II. 0 ⋅ x = [(0, 0)] ⋅ [(a, b)] = [(0 ⋅ a + 0 ⋅ b, 0 ⋅ b + 0 ⋅ a)] = [(0, 0)] = 0
• x ⋅ (–y) = –(x ⋅ y) Analogamente, é possível verificar que x ⋅ 0 = 0.
• (x – y) ⋅ z = x ⋅ z – y ⋅ z
III. –1 ⋅ x = [(0, 1)] ⋅ [(a, b)] = [(0 ⋅ a + 1 ⋅ b, 0 ⋅ b + 1 ⋅ a)] = [(b, a)]= –x

Analogamente, é possível verificar que x ⋅ (–1) = –x.

IV. Se x = [(a, b)], então –x = [(b, a)] e, portanto,

(–x) ⋅ y = [(b, a)] ⋅ [(c, d)] = [(b ⋅ c + a ⋅ d, b ⋅ d + a ⋅ c)]

Por outro lado,

x ⋅ y = [(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)]

Então, temos que

–(x ⋅ y) = [(a ⋅ d + b ⋅ c, a ⋅ c + b ⋅ d)] = (–x) ⋅ y

Analogamente, é possível verificar que x ⋅ (–y) = –(x ⋅ y).

V. Com efeito,

x ⋅ y = [(a, b)] ⋅ [(c, d)] = [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)]

enquanto

y ⋅ x = [(c, d)] ⋅ [(a, b)] = [(c ⋅ a + d ⋅ b, c ⋅ b + d ⋅ a)]

Encontramos o resultado quando observamos que pelas propriedades de mul-


tiplicação e adição em ℕ temos

a⋅c+b⋅d=c⋅a+d⋅b

e
a⋅d+b⋅c=c⋅b+d⋅a
VI. De fato,
x ⋅ (y + z) = [(a, b)] ⋅ ([(c, d) + (e, f)])
= [(a, b)] ⋅ [(c + e, d + f)]
= [(a ⋅ (c + e) + b ⋅ (d + f), a ⋅ (d + f) + b ⋅ (c + e)]
Por outro lado, note que
x ⋅ y + x ⋅ z = [(a, b)] ⋅ [(c, d)] + [(a, b)] ⋅ [(e, f)]
= [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)] + [(a ⋅ e + b ⋅ f, a ⋅ f + b ⋅ e)]
= [(a ⋅ c + b ⋅ d) + (a ⋅ e + b ⋅ f), (a ⋅ d + b ⋅ c) + (a ⋅ f + b ⋅ e)]
A igualdade desejada ocorre ao observarmos que
(a ⋅ c + b ⋅ d) + (a ⋅ e + b ⋅ f) = a ⋅ (c + e) + b ⋅ (d + f)
e
(a ⋅ d + b ⋅ c) + (a ⋅ f + b ⋅ e) = a ⋅ (d + f) + b ⋅ (c + e)
= (d + f) ⋅ a + b ⋅ (c + e)
80 Aritmética
VII. De fato, combinando as propriedades IV e VI, temos

x ⋅ (y – z) = x ⋅ (y + (–z))

= x ⋅ y + x ⋅ (–z)

= x ⋅ y + [–(x ⋅ z)]

=x⋅y–x⋅z

Analogamente, é possível verificar que (x – y) ⋅ z = x ⋅ z – y ⋅ z.

Assim como ocorre com a adição de números inteiros, a regra do cancelamento


também vale para a multiplicação. Isso é demonstrado a seguir.

Teorema

Sejam x, y, z ∈ ℤ, de modo que z ≠ 0. Se x ⋅ z = y ⋅ z, então x = y.

Demonstração

Inicialmente, suponha que x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, 0)]. Em particular, e ≠ 0
pois, do contrário, z = 0. Agora, note que

x ⋅ z = y ⋅ z ⇔ [(a, b)] ⋅ [(e, 0)] = [(c, d)] ⋅ [(e, 0)]

⇔ [(a ⋅ e + b ⋅ 0, a ⋅ 0 + b ⋅ e)] = [(c ⋅ e + d ⋅ 0, c ⋅ 0 + d ⋅ e)]


⇔ [(a ⋅ e, b ⋅ e)] = [(c ⋅ e, d ⋅ e)]
⇔a⋅e+d⋅e=b⋅e+c⋅e
⇔ (a + d) ⋅ e = (b + c) ⋅ e
Utilizando o cancelamento para a multiplicação de números naturais, temos que

a+d=b+c
Desafio
ou seja, x = y. Analogamente, é possível demonstrar o caso em que z = [(0, e)]. Comprove a forma análoga da
demonstração do teorema do
cancelamento da multiplicação, ou
seja, demonstre o caso em que z
Vale destacar que é convidativo justificarmos a implicação x ⋅ z = y ⋅ z ⇒ x = y = [(0, e)].
expressando que realizamos a divisão de ambos os membros da igualdade por
z. Entretanto, isso não é correto, dado que sequer foi definida uma operação de
divisão no conjunto ℤ.

Uma consequência do teorema anterior é o fato de que ℤ, junto com a multipli-


cação, é um domínio de integridade, como é demonstrado no corolário a seguir.

Glossário
Colorário: é uma proposição
que decorre logicamente de
Corolário outra já demonstrada.

Sejam x, y ∈ ℤ. Se x ⋅ y = 0, então x = 0 ou y = 0.

Demonstração
O conjunto dos números inteiros 81
Suponha que x ⋅ y = 0 e y ≠ 0. Nesse caso,
Desafio x⋅y=0=0⋅y
Comprove a forma análoga da
Aplicando o teorema demonstrado anteriormente, temos que
demonstração do corolário do
domínio de integridade, ou seja, x=0
demonstre o caso em que x ⋅ y =
0 e x ≠ 0. Analogamente, é possível demonstrar o caso em que x ⋅ y = 0 e x ≠ 0.

Neste momento, podemos operar com números inteiros, na maioria das vezes,
sem utilizar classes de equivalência, pois o que utilizamos na prática são as regras
operacionais – comutatividade, associatividade etc. Contudo, agora temos pleno
entendimento das razões de funcionamento daquelas regras.

3.4 Relação de ordem em ℤ


Vídeo Lembre-se de que em ℕ existe a relação de ordem menor que ou igual a, de-
notada por ≤ e definida como

a ≤ b ⇔ ∃ p ∈ ℕ| b = a + p

Será que é possível estender essa relação de ordem ao conjunto dos números
inteiros? Sim! Esse é o conteúdo do nosso estudo agora.

Definição
Sejam [(a, b)] e [(c, d)] dois números inteiros.
• Dizemos que [(a, b)] é menor que ou igual a [(c, d)] e escrevemos [(a, b)] ≤ℤ [(c, d)], caso
a+d≤b+c
• Caso [(a, b)] ≤ℤ [(c, d)] e [(a, b)] ≠ [(c, d)], escrevemos [(a, b)] <ℤ [(c, d)] e dizemos
que [(a, b)] é – estritamente – menor que [(c, d)].
• Em vez de [(a, b)] ≤ℤ [(c, d)] e [(a, b)] <ℤ [(c, d)], podemos escrever
[(c, d)] ≥ℤ [(a, b)] e [(a, b)] >ℤ [(c, d)]
No primeiro caso, dizemos que [(c, d)] é maior que ou igual [(a, b)]; no segundo caso, dize-
mos que [(a, b)] é – estritamente – maior que [(c, d)].

Note que a relação ≤ℤ foi definida em termos da relação ≤ existente no conjunto


dos números naturais.

Agora, vamos exemplificar a definição da relação ≤  .

Σxemρlo 1

Considere os números inteiros –1 = [(0, 1)] e 4 = [(4, 0)]. Nesse caso, temos que

–1 <ℤ 4

pois

0+0=0<5=1+4 (I)

82 Aritmética
e, além disso, [(0, 1)] ≠ [(4, 0)], já que 0 + 0 ≠ 1 + 4.

É convidativo afirmarmos a evidência de que –1 <ℤ 4, porém devemos ter cuida-


do, já que isso é consequência do raciocínio (I), e não de considerações informais.

Contudo, a teoria é feita para que coincida com nosso entendimento empírico
da ordenação de números inteiros.

Agora que ≤ℤ foi definida, cabe o seguinte questionamento: será que ≤ℤ é uma
relação de ordem em ℤ, assim como ≤ é uma relação de ordem em ℕ? A resposta é
afirmativa, conforme demonstramos a seguir.

Teorema

A relação ≤ℤ é uma relação de ordem em ℤ.

Demonstração

É necessário demonstrar que ≤ℤ é reflexiva, antissimétrica e transitiva.

• Reflexiva.

Seja x = [(a, b)] ∈ ℤ . Nesse caso,

a+b=b+a

pois essa soma é realizada em ℕ e a operação de adição (+) é comutativa neste


conjunto. Mas, por definição, a igualdade a + b = b + a revela que [(a, b)] ≤ℤ [(a, b)],
ou seja, x ≤ℤ x.

• Antissimétrica.

Sejam x = [(a, b)] e y = [(c, d)] em ℤ tais que x ≤ℤ y e y ≤ℤ x. Nesse caso,

a+d≤b+ceb+c≤a+d

Pela antissimetria da relação ≤ em ℕ, temos

a+d=b+c

Essa igualdade revela que x = [(a, b)] = [(c, d)] = y.

• Transitiva.

Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)] em ℤ tais que x ≤ℤ y e y ≤ℤ z. Isso significa
que

a+d≤b+cec+f≤d+e

No entanto,

a+f+c+d≤b+e+c+d

Cancelando c + d nessa desigualdade, temos que a + f ≤ b + e, mostrando, as-


sim, que x = [(a, b)] ≤ℤ [(e, f)] = z.

O conjunto dos números inteiros 83


Lembre-se de que uma das principais propriedades da relação ≤ em ℕ é a
tricotomia: se x, y ∈ ℕ, então x < y, x = y ou x > y, valendo uma, e apenas uma, des-
sas proposições. O mesmo vale para o conjunto dos números inteiros, conforme
demonstramos a seguir.

Teorema

Sejam x, y ∈ ℤ. Então, vale uma, e somente uma, das afirmações:

I. x < y

II. x = y

III. x > y

Demonstração

Denotamos x = [(a, b)] e y = [(c, d)], com a, b, c e d ∈ ℕ. Pela tricotomia válida em


ℕ, vale uma, e somente uma, das proposições:

I. a + d < b + c

II. a + d = b + c

III. a + d > b + c

Na situação I, por definição, temos que

x = [(a, b)] <ℤ [(c, d)] = y

Na segunda situação, novamente por definição, vale

x = [(a, b)] = [(c, d)] = y

Finalmente, se vale III, então, por definição,

x = [(a, b)] >ℤ [(c, d)] = y

Perceba que, embora a demonstração da tricotomia para o conjunto dos natu-


rais tenha sido bastante elaborada, para o conjunto dos inteiros a tarefa foi signifi-
cativamente simplificada. Isso ilustra muito bem o fato de que o princípio de uma
teoria matemática tende a ser mais complicado, tendo em vista a existência de
poucas ferramentas teóricas para solucionar os problemas.

A seguir, demonstraremos as relações de compatibilidade entre ≤ℤ e as opera-


ções de adição e multiplicação de números inteiros.

Proposição

A relação ≤ℤ tem seguintes propriedades:

84 Aritmética
I. Se x ≤ℤ y ⇒ x + z ≤ℤ y + z, para todo x, y, z ∈ ℤ.

II. Se x ≤ℤ y e z ≥ 0, então x ⋅ z ≤ℤ y ⋅ z.

III. Se x ≤ℤ y e z < 0, então x ⋅ z ≥ℤ y ⋅ z.

Demonstração

Denotamos x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)], com a, b, c, d, e, f ∈ ℕ.

I. Se x ≤ℤ y, então

a+d≤b+c

Consequentemente,

(a + d) + (e + f) ≤ (b + c) + (e + f)

o que pode ser escrito como

(a + e) + (d + f) ≤ (b + f) + (c + e)

Mas isso significa que

[(a + e, b + f)] ≤ℤ [(c + e, d + f)]

ou seja,

x + y = [(a, b)] + [(e, f)] ≤ℤ [(c, d)] + [(e, f)] = y + z

Para que você pratique as demonstrações, com base na verificação da proprie-


dade I, deixaremos como atividade a prova de II e III.

Esta seção será concluída com a apresentação de um critério bastante útil e


simples para verificar se um número inteiro é maior que ou igual a outro.

Proposição

Sejam x, y ∈ ℤ. Temos:

I. x ≤ℤ y se, e somente se, 0 ≤ℤ x – y.

II. x <ℤ y se, e somente se, 0 <ℤ x – y.

Demonstração

Denotamos x = [(a, b)] e y = [(c, d)].

I. Suponha que x ≤ℤ y. Nesse caso,


a+d≤b+c
Mas
x – y = x + (–y) = [(a, b)] + [(d, c)] = [(a + d, b + c)]

Como a + d ≤ b + c, temos que 0 ≤ℤ x – y, pois

O conjunto dos números inteiros 85


a+d+0≤b+c+0

Por outro lado, suponha que 0 ≤ℤ x – y. Isso significa que

a+d+0≤b+c+0
Desafio
Ou seja, a + d ≤ b + c e, portanto, x ≤ℤ y.
Demonstre o item II da proposição,
ou seja, mostre que x <  y se, e II. A demonstração é análoga ao item I.
somente se, 0 <  x – y.

De agora em diante, para simplificar a escrita, o símbolo ≤ denotará tanto a


relação de ordem dos inteiros quanto a dos naturais, por isso, utilizaremos apenas
os símbolos sem expressar o índice referente ao conjunto. Consideração análoga
vale para os símbolos ≥, < e >.

3.5 Valor absoluto


Vídeo Nesta seção, será definido o valor absoluto de um número inteiro. Muito possi-
velmente, esse conteúdo é familiar para você. Entretanto, a exposição será feita de
maneira bastante rigorosa, para que se desenvolva o domínio do assunto em todos
os seus aspectos.

O ponto de partida é a definição clássica de valor absoluto de um número intei-


ro, apresentada a seguir.

Definição
Seja x ∈ ℤ. O valor absoluto de x é o número inteiro |x|, definido por
|x| = x se x ≥ 0
–x se x < 0

Por exemplo:

• |2| = 2, pois 2 > 0.

• |0| = 0, pois 0 = 0.

• |–2| = – (–2) = 2, pois –2 < 0.

Note que, pela própria definição, o valor absoluto de um número inteiro é sem-
pre um inteiro não negativo.

Como não poderia deixar de ser, o objetivo desta seção é fazer uma discussão
teórica a respeito das principais propriedades do valor absoluto de números intei-
ros. Isso é extremamente importante para a aritmética, dado que o valor absoluto
aparece frequentemente na discussão da teoria.

As principais propriedades do valor absoluto são enunciadas e demonstradas


a seguir.

86 Aritmética
Teorema

Se x, y, z ∈ ℤ, então são válidas as afirmações:


I. |x| = |–x|.
II. –|x| ≤ x ≤ |x|.
III. |x ⋅ y| = |x| ⋅ |y|.
IV. |x| ≤ y se, e somente se, –y ≤ x ≤ y.
V. |x + y| ≤ |x| + |y|.
VI. |x – y| = |y – x|.
VII. |x| – |y| ≤ |x – y|.

Demonstração

Caso x = 0 ou y = 0, as propriedades valem imediatamente. Sendo assim, vamos


supor, inicialmente, que x ≠ 0 e y ≠ 0.

I. Se x > 0, então |x| = x, enquanto |–x| = –(–x) = x, já que –x < 0. Portanto,

|x| = |–x|

II. Se x > 0, então –|x| = x = |x|. Se x > 0, então

–x < 0 < x

Mas –|x| = –x e |x| = x. Consequentemente, –x < x significa que

–|x| < x = |x|

Agora, se x < 0, então –x > 0, logo

x < 0 < –x

Como –|x| = –(–x) = x e |x| = –x, temos que x < –x equivale a

–|x| = x < –x = |x|

III. Este é o item mais trabalhoso, pois é necessário testar muitas possibilida-
des; apesar disso, o raciocínio é simples.
• Se x > 0 e y > 0, então x ⋅ y > 0 e, portanto,
|x ⋅ y| = x ⋅ y = |x| ⋅ |y|
• Se x > 0 e y < 0, então x ⋅ y < 0 e, portanto,
|x ⋅ y| = –(x ⋅ y) = x ⋅ (–y) = |x| ⋅ |y|
• Se x < 0 e y > 0, então x ⋅ y < 0 e, portanto,
|x ⋅ y| = –(x ⋅ y) = (–x) ⋅ y = |x| ⋅ |y|
• Finalmente, se x < 0 e y < 0, então x ⋅ y > 0 e, portanto,
|x ⋅ y| = x ⋅ y = (–x) ⋅ (–y) = |x| ⋅ |y|

IV. Suponha que |x| ≤ y. Se x > 0, então |x| = x e, portanto,

x≤y

O conjunto dos números inteiros 87


Em particular, y ≥ 0 e, por consequência, –y < 0. Sendo assim,

–y < 0 < x ≤ y

Agora, se x < 0, então |x| = –x e, portanto,

–x ≤ y

Isso implica x ≤ –y e y ≥ –x > 0. Consequentemente,

–y ≤ x < 0 < –x ≤ y

Portanto, –y ≤ x ≤ y em qualquer caso.

Por outro lado, suponha que –y ≤ x ≤ y. Se x > 0, então x ≤ y equivale a |x| ≤ y.


Se, porém, x < 0, então –y ≤ x implica –x ≤ y, o que equivale a |x| ≤ y. Em resumo,
|x| ≤ y sempre que –y ≤ x ≤ y.

V. Utilizando o que demonstramos em II, temos que

–|x| ≤ x ≤ |x|

–|y| ≤ y ≤ |y|

Fazendo uso da compatibilidade da relação ≤ com a adição, temos que

–|x| + (–|y|) ≤ x + y ≤ |x| + |y|

Mas note que –|x| + (–|y|) = –(|x| + |y|) e, portanto,

–(|x| + |y|) ≤ x + y ≤ |x| + |y|

Pelo que demonstramos em III, essa desigualdade equivale a

|x + y| ≤ |x| + |y|

VI. De fato, ao notarmos que y – x = –1 · (x – y), temos que

|y – x| = |(–1) · (x – y)| = |–1| · |x – y| = |x – y|

VII. Essa propriedade é uma consequência direta das duas anteriores. A fim de
demonstrá-la, note que x = y + (x – y) implica

|x| = |y + (x – y)| ≤ |y| + |x – y|

Consequentemente,

|x| – |y| ≤ |x – y|

Trocando a ordem de x e y, temos y = x + (y – x), de modo que

|y| = |x + (y – x)| ≤ |x|+ |y – x|

Portanto,

–|x – y| = –|y – x| ≤ |x| – |y|

Logo,

–|x – y| ≤ |x| – |y| ≤ |x – y|

Pelo que demonstramos em IV, temos que

|x| – |y| ≤ |x – y|

A propriedade |x + y| ≤ |x| + |y|, válida para todo x, y ∈ ℤ, é uma das mais im-
portantes e recebe o nome de desigualdade triangular.

88 Aritmética
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O surgimento do conjunto dos inteiros veio da necessidade natural de se resolver
equações da forma x + b = a. Filosoficamente, os números inteiros consistem em todas
as possíveis soluções desse tipo de equação, em que se permite que a, b ∈ ℕ assumam
todos os valores possíveis. A teoria é desenvolvida de maneira que os resultados sem-
pre estejam de acordo com o entendimento intuitivo que se tem dos números inteiros.
De fato, a teoria é bastante coerente e modela a realidade. Esse tipo de desen-
volvimento permite expandir o entendimento pleno das nuances da teoria. Isso, em
particular, conduz a uma maior maturidade e a uma visão mais ampla a respeito do
assunto, o que traz maior segurança para tratar de tópicos mais avançados da aritmé-
tica, conforme o estudo avance.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Demonstre que se x ≤ℤ y e z ≥ 0, então x ⋅ z ≤ℤ y ⋅ z.

2. Demonstre que se x ≤ℤ y e z < 0, então x ⋅ z ≥ℤ y ⋅ z.

3. Mostre que (–x) · (–y) = x · y.

REFERÊNCIAS
ALENCAR FILHO, E. Iniciação à lógica matemática. São Paulo: Nobel, 2002.
DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra moderna. São Paulo: Atual, 2003.
HEFEZ, A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006.
IEZZI, G.; MURAKAMI, C. Fundamentos de matemática elementar: conjuntos e funções. São Paulo: Atual,
2004. v. 1.

O conjunto dos números inteiros 89


4
Aritmética no conjunto dos
números naturais e inteiros
Boa parte da aritmética discute a relação de divisibilidade tanto no conjunto
dos números naturais quanto no conjunto dos números inteiros. Abordá-la de
maneira rigorosa é o objetivo principal deste capítulo.
Entre os assuntos que serão aqui desenvolvidos, destacamos o algoritmo
de divisão de Euclides e o teorema fundamental da aritmética. Compreendê-los
efetivamente propiciará uma visão abrangente de técnicas bastante utilizadas
dentro e fora da aritmética. Daremos um destaque especial aos números pri-
mos, em particular à existência de infinitos deles, com base na demonstração
do teorema fundamental da aritmética.
Um ponto interessante que surgirá repetidas vezes ao longo de nossos es-
tudos é a possibilidade de utilizarmos na prática os argumentos teóricos de-
senvolvidos, pois muitas das demonstrações apresentadas serão construtivas.
Em outras palavras, trata-se de algoritmos que podem ser implementados na
prática, inclusive computacionalmente, como as noções de máximo divisor co-
mum e mínimo múltiplo comum.
Por fim, cabe ressaltar que a compreensão da relação de divisibilidade é
imprescindível para o ensino apropriado da Aritmética na educação básica –
embora nesse ambiente o formalismo exigido seja diferente –, em que o enten-
dimento das estruturas lógico-formais da teoria possibilita o desenvolvimento
de uma visão mais ampla e completa a respeito do assunto, fornecendo ferra-
mental teórico para que façamos discussões mais ricas e claras em sala de aula.

4.1 Divisibilidade
Nesta seção, daremos início à discussão de um dos conceitos centrais da aritmé-
Vídeo
tica: a divisão. O ponto de partida será a divisão de números naturais na definição
a seguir e, posteriormente, a divisão dos números inteiros.

90 Aritmética
Definição
Sejam a, b ∈ ℕ. Dizemos que a divide b se existe c ∈ ℕ tal que
b=a⋅c
Nesse caso, escrevemos
a|b
e lemos a divide b.
Se a|b, dizemos também que:
• a é um divisor de b;
• b é divisível por a;
• b é múltiplo de a.
Se a não divide b, escrevemos a∤b.

Notamos que a definição anterior coincide com a que conhecemos desde o en-
sino básico. Contudo, vamos ilustrá-la.

Σxemρlo 1

O número natural 2 divide o número natural 6, pois existe o número natural 3


tal que
6=2·3

Sendo assim, é possível escrevermos 2|6. Contudo, 2∤3, pois não existe um nú-
mero natural c tal que 3 = 2 · c.

O número natural 1 tem uma característica específica, pois é divisor de todo


número natural, conforme ilustrado a seguir.

Σxemρlo 2

Se a ∈ ℕ, 1|a. De fato, sempre podemos escrever

a=1⋅a

Isso nos mostra que 1|a para todo a ∈ ℕ.

O próximo exemplo demonstra um ponto importante: ser divisor é uma pro-


priedade referente à multiplicação.

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 91


Σxemρlo 3

Se b ∈ ℕ é tal que b ≠ 0, então, 0∤b, pois para todo número natural c ∈ ℕ


temos que

0=0⋅c

Portanto, b ≠ 0 ⋅ c qualquer que seja c ∈ ℕ.

Contudo, se b = 0, então, 0|b, isto é, 0|0. De fato, é possível escrevermos–

0=0⋅1

Isso nos mostra que 0 é um divisor de 0.

Ainda sobre o exemplo anterior, não devemos confundir a relação a|b com a fra-
ção a . Enquanto 0|0 tem um sentido bem definido, 0 é uma forma indeterminada.
b 0
De fato, | (divide) é uma relação de ordem no conjunto dos números naturais
por ser reflexiva, antissimétrica e transitiva, conforme demonstrado a seguir.

Proposição

A relação | em ℕ tem as seguintes propriedades

I. | reflexiva: a|a para todo a ∈ ℕ.

II. | antissimétrica: se a, b ∈ ℕ são tais que a|b e b|a, logo, a = b.

III. | transitiva: Se a, b, c ∈ ℕ são tais que a|b e b|c, então, a|c.

Demonstração

I. Se a ∈ ℕ, então, a = a ⋅ 1 e, portanto, a|a.

II. Suponhamos que a, b ∈ ℕ são tais que a|b e b|a. Então, existem c, d ∈ ℕ
tais que

b=a⋅cea=b⋅d

Se a = 0, b = 0, pois b = a ⋅ c. Admitamos a ≠ 0. Nesse caso, aplicamos a lei do


cancelamento para a multiplicação em ℕ na igualdade

a ⋅ 1 = a = b ⋅ d = (a ⋅ c) ⋅ d = a ⋅ (c ⋅ d)

Segue que c ⋅ d = 1. Logo, necessariamente, c = d = 1. Ou seja

a=b⋅d=b⋅1=b

III. Suponhamos que a, b, c ∈ ℕ são tais que a|b e b|c. Nesse caso, existem c,
d ∈ ℕ, de modo que:

b=a⋅cec=b⋅d

(Continua)

92 Aritmética
Consequentemente, pela associatividade da multiplicação em ℕ temos que

c = b ⋅ d = (a ⋅ c) ⋅ d = a ⋅ (c ⋅ d)

Considerando e = c ⋅ d ∈ ℕ, temos c = a ⋅ e com e ∈ ℕ, ou seja, a|c.

Além de ser uma relação transitiva, antissimétrica e transitiva, | tem outras pro-
priedades que costumamos utilizar com frequência. Elas estão enunciadas e de-
monstradas a seguir.

Teorema

Sejam a, b, c ∈ ℕ, são válidas as seguintes afirmações:

I. Se a|b e a|c, então, a|(bx + cy) quaisquer que sejam x, y ∈ ℕ.

II. Se a|b, então, a|bx para todo x ∈ ℕ.

III. Se a|b e a|c, então, a|(b + c).

IV. Se c|a e c|b e a ≤ b, então, c|(b – a).

V. Suponha b ≤ a e d|b, então, d|a se, e somente se, d|(a – b).

VI. Se a|b e b ≠ 0, então, a ≤ b.

Demonstração

I. Aceitemos que b = a ⋅ k e c = a ⋅ ℓ. Se x, y ∈ ℕ:

b ⋅ x + c ⋅ y = (a ⋅ k) ⋅ x + (a ⋅ ℓ) ⋅ y = a ⋅ (k ⋅ x + ℓ ⋅ y)

Como k ⋅ x + ℓ ⋅ y ∈ ℕ, resultam em a|(b ⋅ x + c ⋅ y).


Desafio
II. Essa propriedade é uma decorrência imediata de I. Basta aplicarmos a pro-
Demonstre as propriedades que
priedade I com y = 0.
são decorrência da propriedade
III. Também é uma consequência imediata da afirmação I. Basta aplicarmos a I, ou seja, mostre que:
propriedade I com x = y = 1. • Se a|b, então, a|bx para todo x
∈ ℕ, aplicando a propriedade
IV. Se a ≤ b, b = a + u para algum u ∈ ℕ. Como c|a e c|b, é possível escrevermos I com y = 0.
a=c⋅keb=c⋅ℓ • Se a|b e a|c, então, a|(b + c),
aplicando a propriedade I com
Notamos que a ≤ b implica, particularmente, k ≤ ℓ. Como b – a = u, segue que x = y = 1.

u = b – a = c ⋅ ℓ – c ⋅ k = c ⋅ (ℓ – k)

Isso significa que c|u = (b – a).

V. Consideremos que d|b e d|a com b ≤ a. Por IV, segue que d|(a – b). No en-
tanto, suponhamos que d|b com b ≤ a e d|(a – b). Aplicando III, temos que

d|b e d|(a – b) ⇒ d|(b + (a – b)) = b|a

(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 93


VI. Por hipótese, b = a ⋅ k para algum k ∈ ℕ. Em particular, k > 0; do contrário,
seguiria que b = 0, contradizendo b ≠ 0. Então, k ≥ 1 e, portanto, k = 1 + ℓ
para algum ℓ ∈ ℕ. Logo,

b = a ⋅ k = a ⋅ (1 + ℓ) = a ⋅ 1 + a ⋅ ℓ = a + a ⋅ ℓ

Isso nos mostra que a ≤ b.

A definição de divisibilidade nos números inteiros é semelhante à que discuti-


mos para números naturais, conforme apresentado a seguir.

Definição
Dizemos que um número inteiro a divide um inteiro b e escrevemos a|b quando b = a · c para
algum c ∈ ℤ. Nesse caso, afirmamos que a é um divisor de b ou que b é divisível por a, ou
ainda que b é múltiplo de a. Se a não divide b, escrevemos a∤b.

Essa definição é a mesma presente no ensino básico. Entretanto, vamos


exemplificá-la para melhor compreendê-la.

Σxemρlo 4

O número inteiro –2 divide o inteiro 6, pois 6 = (–2) ⋅ (–3). Porém, o inteiro 2 não
divide o inteiro –5, pois não existe um número inteiro c tal que

–5 = 2 ⋅ c

Livro A seguir apresentamos as principais propriedades da relação | em ℤ.

Teorema

A relação | em ℤ tem as seguintes propriedades:

I. | é reflexiva: a|a para todo a ∈ ℤ.

II. Se a, b ∈ ℤ são tais que a|b e b|a, então, a = ±b.


O livro Números: uma
introdução à matemática, III. | é transitiva: se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e b|c, então, a|c.
de Francisco César Polcino
Milies e Sonia Pitta Coelho, IV. Se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e a|c, então, a|(b + c).
possibilita um excelente
aprofundamento do tema V. Se a, b ∈ ℤ, então, a|b ⇔ |a| |b|.
da divisibilidade. A leitura é
bastante rica e agradável, Demonstração
valendo a pena conferir.
As propriedades I, III e IV são análogas àquelas válidas para a relação | em ℕ e,
POLCINO MILIES, F. C.; COELHO, S. P. 3.
ed. São Paulo: Edusp, 2013. portanto, não serão demonstradas. Resta demonstrar II e V.
(Continua)

94 Aritmética
II. Por hipótese, a = b ⋅ k e b = a ⋅ ℓ para determinados k, ℓ ∈ ℤ. Se a = 0, então,
b = 0 e não há o que provar. Admitamos a ≠ 0. Nesse caso, Desafio
a = b ⋅ k = (a ⋅ ℓ) ⋅ k = a ⋅ (ℓ ⋅ k) Para verificar que as afirmativas I,
III e IV são análogas àquelas dos
Isso implica ℓ ⋅ k = 1. Consequentemente, ℓ = k = 1 ou ℓ = k = –1. Portanto, números naturais, demonstre essas
a = b ou a = –b. propriedades, ou seja, mostre que:
• | é reflexiva: a|a para todo a
V. Por hipótese, b = a ⋅ k com k ∈ ℕ. Como consequência,
∈ ℤ.
|b| = |a ⋅ k| = |a| ⋅ |k| • | é transitiva: se a, b, c ∈ ℤ são
Em particular, |a|│|b|. Por outro lado, suponhamos que |b| = |a| ⋅ k para tais que a|b e b|c, então, a|c.

algum k ∈ ℕ. Como |a| ≥ 0 e |b| ≥ 0, k ≥ 0. Dessa forma, k = |k| e, portanto, • Se a, b, c ∈ ℤ são tais que a|b e
a|c, então, a|(b + c).
|b| = |a| ⋅ k = |a| ⋅ |k| = |a ⋅ k|

Mas b = ±b e |a ⋅ k| = ±(a ⋅ k) = a ⋅ (±k). Consequentemente, b = a ⋅ (±k), isto


é, a|b.

Até o momento discutimos a relação de divisibilidade no conjunto dos naturais e


dos inteiros. O próximo passo é verificarmos de modo mais aprofundado o caso em
que dois números naturais ou inteiros não se relacionam pela relação |. Esse é um
aspecto bastante importante da teoria que veremos em detalhes a seguir.

4.2 Divisão euclidiana


Vídeo Em muitos casos, um número natural ou inteiro não é divisível por outro. Isso
pode ser verificado em situações cotidianas. Suponha que você e dois amigos
encomendaram uma pizza e ela está dividida em sete fatias. A princípio, cada
um poderia ficar com duas fatias e restaria uma para ser dividida entre os três.
Matematicamente, descrevemos essa situação por meio da seguinte igualdade:

7=2·3+1

No ensino básico, aprendemos que 7 é o dividendo, 3 é o divisor, 2 é o quociente


e 1 é o resto. É exatamente esse o processo de divisão euclidiana que estudaremos
de maneira aprofundada.

A seguir enunciamos e demonstramos o notável algoritmo da divisão euclidiana.

Teorema da divisão euclidiana

Sejam a, b ∈ ℕ e b ≠ 0. Existe um único par de números naturais q e r tal que

a=b·q+rer<b

(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 95


Demonstração

Definimos o seguinte conjunto:

X ≔ {n ∈ ℕ | b ⋅ n > a}

Note que X ≠ ϕ, pois a + 1 ∈ X, já que

b≥1⇒a⋅b≥a

⇒a⋅b+b≥a+b

⇒ b ⋅ (a + 1) ≥ a + b > a

Se a ∈ ℕ, a é múltiplo de b ou está entre dois múltiplos consecutivos de b, isto é:

b ⋅ q ≤ a < b ⋅ (q + 1)

Em particular, q + 1 é o menor elemento do conjunto X. Mas b ⋅ q ≤ a implica a


existência de r ∈ ℕ tal que

a=b⋅q+r

Resta verificarmos que r < b. Se r = a – b ⋅ q ≥ b, então

(a – b ⋅ q) + b ⋅ q ≥ b + b ⋅ q

Consequentemente, a ≥ b ⋅ (q + 1), o que não é possível. Dessa forma

a=b⋅q+r

com r < b. Por fim, devemos checar a unicidade, isto é, suponhamos que

a = b ⋅ q + r = b ⋅ q1 + r1

com r < b e r1 < b. Admitamos que seja possível r ≠ r1, ou seja,

0 < r – r1 < b

Mas a igualdade b ⋅ q + r = b ⋅ q1 + r1 implica

b ⋅ q + (r – r1) = b ⋅ q1

Portanto, b|(r – r1). Como consequência, b ≤ r – r1, um absurdo. Logo, r = r1 e,


dessa forma, q = q1.

O teorema anterior conduz naturalmente à definição a seguir.

Definição
Sejam a, b, q, r ∈ ℕ tais que
a=b⋅q+r
com r < b. Os elementos a, b, q e r são denominados, respectivamente, de divisor, dividendo,
quociente e resto da divisão de a por b.

Vemos que a demonstração do teorema da divisão euclidiana fornece de maneira


explícita e prática como obter o quociente e o resto, conforme ilustrado a seguir.

96 Aritmética
Σxemρlo 5

Consideremos os números naturais a = 25 e b = 7. Percebemos que 25 está en-


tre os múltiplos 21 e 28 de 7, ou seja,

7 ⋅ 3 < 25 < 7 ⋅ (3 + 1)

Logo, q = 3 e r = 25 – 7 ⋅ 3 = 25 – 21 = 4.

Portanto,

25 = 7 ⋅ 3 + 4

Essa discussão da divisão euclidiana pode ser estendida para o conjunto dos
números inteiros, conforme discutiremos na sequência de nossos estudos.

O algoritmo da divisão euclidiana válido em ℕ ainda vale em ℤ, conforme de-


monstrado a seguir.

Teorema do algoritmo de Euclides

Para quaisquer a, b ∈ ℤ, b > 0, existe um único par de inteiros q e r, de maneira


que a = b ⋅ q + r, em que 0 ≤ r < b.

Demonstração

Definimos o conjunto:

X ≔ {n ∈ ℕ | n ≠ 0, n ⋅ b > a}

Percebemos que X ≠ ϕ. De fato, considerando n = |a| + 1 e usando b ≥ 1, temos que

n ⋅ b ≥ n = |a| + 1 > a

Portanto, n ∈ X. Sendo X um subconjunto não vazio de ℕ, existe um menor intei-


ro p ∈ X. Em particular, p ≠ 0 e p = q + 1. Consequentemente,

q ⋅ b ≤ a < (q + 1) ⋅ b

Somando –(qb) em cada parcela das desigualdades, temos

0≤a–q⋅b<b

Definimos r ≔ a – q ⋅ b. Com isso, Desafio


a=q⋅b+re0≤r<b Demonstre que q, r ∈ ℤ são
únicos no algoritmo de divisão
Analogamente à demonstração feita no caso do conjunto ℕ, é possível demons- de Euclides, como feito de modo
trarmos que q e r são unicamente determinados. semelhante no conjunto dos
números naturais.

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 97


Livro Novamente, a demonstração do teorema anterior permite obtermos os inteiros
q e r explicitamente, conforme ilustramos a seguir.

Σxemρlo 6

Consideremos os inteiros a = −25 e b = 7. Note que o primeiro múltiplo de 7 que


supera −25 é −21, portanto,

−21 = (q + 1) ⋅ 7
O livro Introdução à teoria
o que implica q = −4. Consequentemente,
dos números, do autor
José Plínio de Oliveira
r = a – q ⋅ b = −25 – (−4) ⋅ 7 = −25 + 28 = 3
Santos, é impecável
quanto à exposição e ao Portanto, −25 = 7 ⋅ (−4) + 3, sendo −4 o quociente e 3 o resto.
rigor desse tema. É uma
fonte interessante para
aprofundamentos, cuja
leitura pode ser feita em
paralelo com os tópicos Além do algoritmo da divisão euclidiana, existem alguns tópicos relacionados à
aqui discutidos.
divisão de números naturais e inteiros muito presentes no currículo do ensino bá-
SANTOS, J. P. O. 3. ed. [s.l.]: Impa,
2018. sico. Entre eles, destacamos o máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum,
que serão os próximos temas abordados.

4.3 Máximo divisor comum


Vídeo O máximo divisor comum de dois números naturais é o maior número natural
que divide ambos os números com resto zero. Uma maneira de o determinarmos
é listando todos os divisores de cada um e encontrando, se houver, o maior que
divide ambos. Por exemplo, os divisores de 12 são 1, 2, 3, 4, 6 e 12, enquanto os
divisores de 28 são 1, 2, 4, 7, 14 e 28.

Analisando essas duas listas, percebemos que o número 4 é o maior divisor


comum entre 12 e 28. Portanto, o máximo divisor comum entre eles é 4. Embora
seja bastante simples esse procedimento, não é aconselhável, pois se os núme-
ros forem muito grandes, é trabalhoso listar todos os seus divisores. Felizmente,
conforme vamos estudar na sequência, decorre da divisão euclidiana um método
relativamente simples para a determinação do máximo divisor comum.

O ponto de partida da discussão desta seção é a própria formalização da ideia


de máximo divisor comum.

Definição
Sejam a, b ∈ ℕ. O máximo divisor comum de a e b é um número d ∈ ℕ tal que
I. d|a e d|b.
II. Se c é um número natural tal que c|a e c|b, então, c|d.

A seguir vemos um exemplo no intuito de ilustrar essa definição.

98 Aritmética
Σxemρlo 7

Sejam a = 6 e b = 8. Os divisores de a são 1, 2, 3 e 6, enquanto os divisores de b


são 1, 2, 4 e 8. Portanto, os divisores comuns de a e b são 1 e 2. Note que:

I. 2|6 e 2|8.

II. Se c|6 e c|8, então, c = 1 ou c = 2 e, portanto, c|2.

Desse modo, 2 é máximo divisor comum de 6 e 8.

Nesse estágio surgem dois questionamentos naturais:

1. Será que sempre existe o máximo divisor comum de dois números naturais?
2. Se existe o máximo divisor comum de a e b, ele é unicamente determinado por a e b?

Essas questões têm resposta afirmativa. A primeira delas é solucionada na pro-


posição demonstrada a seguir.

Proposição

Sejam a, b ∈ ℕ e d e d’ máximos divisores comuns de a e b, então, d = d’.

Demonstração

Suponhamos que d e d’ sejam máximos divisores comuns de a e b. Neste caso,


d’|d, pois d’|a e d’|b. Além disso, d|d’, pois d|a e d|b, e d’ é, por hipótese, máximo
divisor comum de a e b. Mas d’|d e d|d’ implicam d = d’.

O máximo divisor comum de a e b em ℕ será denotado por:

mdc (a, b)

É necessário mostrar que mdc (a, b) efetivamente existe. Para tanto, será de-
monstrado um resultado preliminar que, por sua importância, deve ser categori-
zado como teorema.

Teorema

Sejam a, b ∈ ℕ. São válidas as afirmações:

I. Se a|b, então, mdc (a, b) = a.


(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 99


II. Se a = b ⋅ q + r, então d = mdc (a, b) se, e somente se, d = mdc (b, r).

Demonstração

I. De fato, sempre a|a e, por hipótese, a|b. Em particular, a cumpre a primeira


condição para ser máximo divisor. Agora, resta verificar que c é um divisor
de a e b, ou seja, c|a. De fato, se c|a e c|b, então, em particular, c|a. Espe-
cialmente, a cumpre a segunda condição para ser o máximo divisor comum
de a e b. Sendo assim, mdc (a, b) = a.
Desafio II. Se d = mdc (a, b), logo, d|a e d|b. Em particular, d|b ⋅ q. Consequentemente,
Demonstre que se d = mdc (b, r) d|(a – b ⋅ q) = r. Portanto, d|b e d|r.
com a = b ⋅ q + r, então, d =
mdc (a, b). Agora suponhamos que c|b e c|r. Assim, c|(b ⋅ q + r) = a. Portanto, c|a e c|b, o
que implica c|d, isto é, d = mdc (b, r). A recíproca é análoga.

É possível demonstrar a existência do máximo divisor comum, como a seguir.

Teorema

Se a, b ∈ ℕ, existe mdc (a, b).

Demonstração

Se a = 0 e b é um número qualquer, b é o máximo divisor comum de 0 e b, pois:

I. b|0 e b|b.

II. Se c|0 e c|b, então, c|b.

Aceitemos que a ≠ 0 e b ≠ 0. Aplicando o algoritmo da divisão euclidiana, temos

a = b ⋅ q1 + r1 (r1 < b)

É possível aplicarmos novamente o mesmo algoritmo usando b e r1. Isso produz

b = r1 ⋅ q2 + r2 (r2 < r1)

Podemos prosseguir com r1 e r2 para obtermos

r1 = r2 ⋅ q3 + r3 (r3 < r2)

Com isso, chegamos à seguinte sequência: b > r1 > r2 > r3 > .... Porém, existe n ∈ ℕ
tal que rn+1 = 0, pois do contrário o subconjunto não vazio {b, r1, r2, …} ⊂ ℕ não teria
um menor elemento. Assim, para algum n temos

rn–2 = rn–1 ⋅ qn + rn

rn–1 = rn ⋅ qn+1

Usando o teorema demonstrado anteriormente, temos

rn = mdc (rn–1, rn) = mdc (rn–2, rn–1) = ... = mdc (b, r1) = mdc (a, b)

Ou seja, rn = mdc (a, b).

100 Aritmética
Percebemos que a demonstração do teorema anterior é construtiva, ou seja,
fornece uma maneira de obter o máximo divisor comum de modo explícito. Isso é
ilustrado no exemplo a seguir.

Σxemρlo 8

Consideremos os números naturais 51 e 14. Nesse caso, para encontrarmos o


máximo divisor comum, fazemos:

51 = 14 ⋅ 3 + 9

14 = 9 ⋅ 1 + 5

9=5⋅1+4

5=4⋅1+1

4=4⋅1+0

Portanto, mdc (51, 14) = 1, pois o último valor de r (resto) antes de obtermos o
resto 0 é o número 1 em destaque.

Vamos ilustrar uma situação em que o máximo divisor comum é diferente de 1.

Σxemρlo 9

Tomemos os números naturais 55 e 22. Para encontrarmos o máximo divisor


comum, fazemos:

55 = 22 ⋅ 2 + 11

22 = 11 ⋅ 2 + 0

Logo, mdc (55, 22) = 11.

A seguir vamos demonstrar algumas propriedades adicionais e importantes do


máximo divisor comum de números naturais.

Teorema

Se d = mdc (a, b), mdc (c ⋅ a, c ⋅ b) = c ⋅ d para todo c ∈ ℕ.

(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 101


Demonstração

Aplicando o algoritmo da divisão, obtemos a sequência

a = b ⋅ q1 + r1

b = r1 ⋅ q2 + r2

r1 = r2 ⋅ q3 + r3

rn–2 = rn–1 ⋅ qn + rn

rn–1 = rn ⋅ qn+1

Agora multiplicamos por c cada uma dessas igualdades para termos

c ⋅ a = (c ⋅ b) ⋅ q1 + c ⋅ r1

c ⋅ b = (c ⋅ r1) ⋅ q2 + c ⋅ r2

c ⋅ r1 = (c ⋅ r2) ⋅ q3 + c ⋅ r3

c ⋅ rn-2 = (c ⋅ rn-1) ⋅ qn + c ⋅ rn

c ⋅ rn-1 = (c ⋅ rn) ⋅ qn+1

Mas,

c ⋅ d = c ⋅ rn = mdc (c ⋅ rn-1, c ⋅ rn) = ⋯ = mdc (c ⋅ b, c ⋅ r1) = mdc (c ⋅ a, c ⋅ b)

O teorema anterior tem consequências importantes, as quais são demonstra-


das no corolário a seguir.

Corolário
a b
I. Se a, b ∈ ℕ \ {0} e d = mdc (a, b), então, mdc  ,  =1 .
d d
II. Se a|b ⋅ c e mdc (a, b) = 1, então, a|c.

III. Se a e b são divisores de c ≠ 0 e mdc (a, b) = 1, então, a ⋅ b|c.

Demonstração

I. Note que

 a b a b
d = mdc (a, b) = mdc  d · , d ·  = d · mdc  , 
 d d d d

Como d ≠ 0, segue que

a b
mdc  ,  = 1
d d

II. Sabemos que mdc (a, b) = 1, logo,


(Continua)

102 Aritmética
mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c

Mas, por hipótese, a|b ⋅ c. Como também vale a|a ⋅ c, temos

a|mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c

III. Como mdc (a, b) = 1, temos que mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c. Mas, a ⋅ b|a ⋅ c, pois b|c
e a ⋅ b|b ⋅ c, dado que a|c. Portanto,

a ⋅ b|mdc (a ⋅ c, b ⋅ c) = c

A discussão do máximo divisor comum também pode ser feita para o conjunto
dos inteiros, conforme explicado a seguir.

Definição
Sejam a e b dois números inteiros. O máximo divisor comum de a e b, denotando mdc (a, b), é
definido por
mdc (a, b) ≔ mdc (|a|, |b|)

Vemos que o máximo divisor comum de dois números inteiros é definido em


termos do máximo divisor comum dos inteiros positivos |a| e |b|. Em particular,
mdc (a, b) com a, b ∈ ℕ existe e é único, pois isso ocorre no máximo divisor comum
em ℕ. Também:

mdc (a, b) = mdc (|a|, |b|) = mdc (|b|, |a|) = mdc (b, a)

para todo a, b ∈ ℤ.

Vamos ilustrar a definição do máximo divisor comum no conjunto dos inteiros


no exemplo a seguir.

Σxemρlo 10 Leitura
Para conhecer mais a
respeito do máximo divisor
Temos que: comum entre o número 0
e outro número inteiro, su-
• mdc (–8, 2) = mdc (|–8|, |2|) = mdc (8, 2) = 2. gerimos a leitura do artigo
O algoritmo euclidiano, da
• mdc (0, –5) = mdc (|0|, |–5|) = mdc (0, 5) = 5. plataforma Khan Academy.

Disponível em: https://pt.khanaca-


demy.org/computing/computer-scien-
ce/cryptography/modarithmetic/a/
Em muitas situações é necessário recorrer à caracterização do máximo divisor the-euclidean-algorithm. Acesso em:
6 maio 2021.
comum em ℤ que vamos demonstrar na sequência.

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 103


Proposição

Um inteiro d é o máximo divisor comum de a e b em ℤ se, e somente se:

I. d ≥ 0;

II. d|a e d|b;

III. c|a e c|b ⇒ c|d.

Demonstração
1 1
(⇒) Inicialmente, supomos que d é o máximo divisor comum de a e b em ℤ para
Nas demonstrações com a propo- validar os itens I, II e III. Por definição, temos que
sição “se, e somente se”, o símbolo
(⇒) ou ⇒ indica que a prova d = mdc (a, b) = mdc (|a|, |b|)
será feita considerando a hipótese
Portanto, d ≥ 0.
(se) para validar a tese (então).
Agora, por hipótese, d│|a| e d│|b|. Em particular, d|a e d|b, pois |a| e |b|
diferem de a e b, respectivamente, apenas por um sinal.

Supomos, então, que c|a e c|b. Logo, |c|│|a| e |c|│|b| e, portanto, |c|│mdc (|a|,
2
|b|) = d.
Nas demonstrações com a propo-
2
sição “se, e somente se”, o símbolo (⇐) Agora consideramos que vale I, II e III para comprovar que d é o máximo
(⇐) ou ⇐ indica que a prova será
divisor comum de a e b em ℤ.
feita considerando a tese (então)
para validar a hipótese (se). Como d|a e d|b, resulta em d│|a| e d│|b|. Admitamos que c│|a| e c│|b|.
Logo, c|a e c|b. Consequentemente, em III, c|d. Isso mostra que

d = mdc (|a|, |b|) = mdc (a, b)

O máximo divisor comum no conjunto dos inteiros tem outras propriedades inte-
ressantes, conforme demonstramos a seguir.

Proposição

Sejam a, b ∈ ℤ, são válidas as seguintes afirmações:

I. Se a|b, então, mdc (a, b) = |a|.

II. Se a = b ⋅ q + r, então, mdc (a, b) = mdc (b, r).

Demonstração

I. Vamos utilizar a proposição anterior. Para tanto, vemos que |a| ≥ 0 e que
a é múltiplo de |a|, uma vez que a = |a| ⋅ (±1). Em particular, |a||a. Além
disso, como a|b, decorre |a||b. Finalmente, se c|a e c|b, logo, c||a|. Isso
mostra que mdc (a, b) = |a|.
(Continua)

104 Aritmética
II. A demonstração é completamente análoga ao resultado já obtido para o Desafio
máximo divisor comum em ℕ. De modo semelhante ao que
∎ fizemos no conjunto dos números
naturais, demonstre que se
a = b ⋅ q + r, então,
mdc (a, b) = mdc (b, r) com a,
O próximo resultado apresentado costuma surgir frequentemente em
b ∈ ℤ.
discussões teóricas.

Teorema

Se d = mdc (a, b), existem x0, y0 ∈ ℤ tais que

d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0

Demonstração

Inicialmente, se a = b = 0, logo, d = 0 e quaisquer x0, y0 ∈ ℤ cumprem a igualdade


desejada. Suponhamos que a ≠ 0 ou b ≠ 0 e definamos o conjunto

X ≔ {a ⋅ x + b ⋅ y | x, y ∈ ℤ}

como

a ⋅ a + b ⋅ b = a2 + b2 ∈ X e a2 + b2 > 0

Assim, X contém elementos estritamente positivos. Ao considerarmos d o me-


nor desses inteiros, demonstramos que d = mdc (a, b). Com efeito, como d ∈ X,
existem x0, y0 ∈ ℤ tais que

d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0

Mas pelo algoritmo da divisão

a=d⋅q+r

sendo 0 ≤ r < d. Consequentemente,

a = (a ⋅ x0 + b ⋅ y0) ⋅ q + r

o que implica

r = a – (a ⋅ x0 + b ⋅ y0) ⋅ q = a ⋅ (1 – x0 ⋅ q) + b ⋅ (q ⋅ (–y0))

Em particular, r ∈ X. Como r > 0 e d é menor inteiro positivo em X, deduzimos


Desafio
r = 0, mas
Considere o seguinte teorema: se
a=d⋅q d = mdc (a, b), existem x0, y0 ∈ ℤ
tais que d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0. Agora
mostrando, assim, que d|a. Com um argumento análogo é possível demonstrar
demonstre que q|b utilizando o
que d|b. Finalmente, como d = a ⋅ x0 + b ⋅ y0, todo divisor c de a e b é divisor de d. argumento análogo usado para
Isso mostra que d = mdc (a, b). demonstrar que d|a.

Finalizamos esta seção com uma consequência direta do teorema anterior.

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 105


Livro

Corolário

Se a|b ⋅ c e mdc (a, b) = 1, então, a|c.

Demonstração

Pelo teorema anterior, existem x0, y0 ∈ ℤ tais que


Fundamentos de aritmética,
escrito por Hygino H. a ⋅ x0 + b ⋅ y0 = 1
Domingues, é um excelente
livro para quem busca Consequentemente,
inúmeros exemplos e exer-
cícios da teoria do máximo (a ⋅ c) ⋅ x0 + (b ⋅ c) ⋅ y0 = c
divisor comum e outros
conteúdos da aritmética.
Como a|(a ⋅ c) ⋅ x0 e a|(b ⋅ c), segue que a|(a ⋅ c) ⋅ x0 + (b ⋅ c) ⋅ y0 = c.
Sua leitura é indicada para
reforçar a compressão da

teoria aqui desenvolvida.

DOMINGUES, H. H. São Paulo: Atual,


Agora que desenvolvemos um entendimento aprofundado a respeito do má-
1991.
ximo divisor comum, é possível prosseguirmos com o estudo do mínimo múltiplo
comum, assunto importante e que está no currículo da educação básica.

4.4 Mínimo múltiplo comum


Vídeo Nesta seção, vamos definir o mínimo múltiplo comum de dois números intei-
ros e apresentar suas principais propriedades. Esse tema, junto do máximo divi-
sor comum, é bastante relevante no contexto do ensino básico, por isso merece
especial atenção.

Definição
Sejam a, b ∈ ℕ. Um mínimo múltiplo comum de a, b ∈ ℕ é um número m ∈ ℕ tal que
I. a|m e b|m.
II. Se a|m’ e b|m’ ⇒ m|m’.

Na definição anterior, a condição I significa que m é múltiplo de a e b simultanea-


mente. Já II enuncia que todo múltiplo simultâneo de a e b também é múltiplo de m.

Naturalmente, surgem as mesmas perguntas levantadas para o máximo divi-


sor comum: será que o mínimo múltiplo comum sempre existe? Se existe, será
que é único? Novamente, as respostas para essas perguntas são afirmativas, con-
forme demonstramos a seguir. Inicialmente, temos a unicidade.

Teorema

Sejam a, b ∈ ℕ, a e b admitem, no máximo, um mínimo múltiplo comum.


(Continua)
106 Aritmética
Demonstração

Suponha que m1 e m2 são mínimos múltiplos comuns de a e b. Nesse caso,

m1|m2

pois m2 é múltiplo de a e b. Além disso

m2|m1

pois m1 é múltiplo de a e b e m2 é mínimo múltiplo comum de a e b. Sendo assim,

m1 = m2

O mínimo múltiplo comum de a e b será denotado:

mmc (a, b)

O teorema anterior mostra que não há qualquer ambiguidade ao introduzir


essa notação, dado que o mínimo múltiplo comum é único.

A seguir demonstramos que mmc (a, b) existe para quaisquer que sejam a, b ∈
ℕ. Para tanto, verificamos um resultado auxiliar.

Proposição

Sejam a, b ∈ ℕ não nulos e d = mdc (a, b), então,

ab
m
d

é o mínimo múltiplo comum de a e b.

Demonstração

Inicialmente, observamos que d| ⋅ (a ⋅ b), uma vez que d|a e d|b. Em particular,
m ∈ ℕ. Agora notamos que

b ab
a  m
d d

Em particular, a|m. De maneira análoga, deduzimos que b|m. Em seguida, su-


pomos que m’ é múltiplo de a e b. Em virtude disso, é possível escrevermos

m’ = a ⋅ k e m’ = b ⋅ ℓ

Consequentemente,

a⋅k=b⋅ℓ

o que implica

a b
k   
d d
a a b b
Essa igualdade revela que k  k     . Mas,
divide
d d d d
(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 107


a b
mdc  ,   1
d d
a
Portanto, | . Logo, é possível escrevermos
d
a
 t
d

para algum t ∈ ℕ. Como m’ = b ⋅ ℓ, resulta em

a ab
m'  b   t   t  m t
d d

Isso mostra que m|m’ e, portanto, mdc (a, b) = m = (a ⋅ b)|d.

A proposição anterior mostra que mmc (a, b) existe sempre que a ≠ 0 e b ≠ 0. Se


a = 0 ou b = 0, mdc (a, b) = 0. De fato, se a = 0 e b é qualquer, por exemplo, então:

I. 0|0 e b|0, pois 0 = b ⋅ 0;

II. 0|m’ e b|m’ ⇒ 0|m’.

Sendo assim, mmc (0, b) = 0. Analogamente, mmc (a, 0) = 0, significando que


existe mmc (a, b) para quaisquer que sejam a, b ∈ ℕ.

A proposição anterior mostra como obter o mínimo múltiplo comum explici-


tamente por meio do máximo divisor comum, procedimento que ilustramos no
exemplo a seguir.

Σxemρlo 11

Para determinarmos o mmc (40, 16), observe que

mdc (40, 16) = 8


Consequentemente,
40  16
mmc (40, 16) =  80
8

Lembre-se de que para o máximo divisor comum é válida a propriedade

mdc (c ⋅ a, c ⋅ b) = c ⋅ mdc (a, b)

Ela é análoga para o mínimo múltiplo comum, conforme demonstramos a seguir.

Proposição

Se m = mmc (a, b), então

mmc (c ⋅ a, c ⋅ b) = c ⋅ m = c ⋅ mmc (a, b)


(Continua)

108 Aritmética
para todo c ∈ ℕ.

Demonstração

Se a = 0 ou b = 0, m = 0 e c ⋅ a = 0 ou c ⋅ b = 0. Mas,

mmc (c ⋅ a, c ⋅ b) = 0 = c ⋅ m

Se c = 0, então, mmc (0, 0) = 0. Suponhamos que a ≠ 0, b ≠ 0 e c ≠ 0. Nessa situa-


ção, temos que

c  ac b c2  a  b ab
mmc (c  a, c  b)    c  c  mmc (a, b)
mdc (c  a, c  b) c  mdc (a, b) mdc (a, b)

Assim como feito para o máximo divisor comum, é possível estendermos o mí-
nimo múltiplo comum para o conjunto dos números inteiros. Comecemos com a
definição do mínimo múltiplo comum nesse conjunto.

Definição
Sejam a, b ∈ ℤ. O mínimo múltiplo comum de a e b é
mmc (a, b) ≔ mmc (|a|, |b|)

Percebemos que na definição anterior o mínimo múltiplo comum dos inteiros


a e b é definido em termos do mínimo múltiplo comum dos inteiros não negativos
|a| e |b|. Em particular, mmc (a, b) existe e é único para quaisquer que sejam a, b
∈ ℤ. Além disso,

mmc (a, b) = mmc (|a|, |b|) = mmc (|b|, |a|) = mmc (b, a)

A seguir descrevemos uma caracterização para o mínimo múltiplo comum de


dois inteiros que costuma ser útil em demonstrações teóricas.

Teorema

Um inteiro m é o mínimo múltiplo comum de a e b em ℤ se, e somente se:


I. m ≥ 0;
II. a|m e b|m;
III. a|m’ e b|m’ ⇒ m|m’.

Demonstração

(⇒) Supomos que m = mmc (a, b) = mmc (|a|, |b|). Em particular, m ≥ 0. Como
m é múltiplo de |a| e |b|, m também é múltiplo de a e b, pois a e b diferem de |a|
e |b|, respectivamente, apenas por um sinal.

(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 109


Finalmente, admitimos que m’ é múltiplo de a e b. Desse modo, m’ também é
múltiplo de |a| e |b|, já que |a| e |b| diferem de a e b, respectivamente, apenas
por um sinal. Consequentemente, m’ é múltiplo de m, pois m = mmc (|a|, |b|) em ℕ.

(⇐) Supomos que m é um inteiro não negativo e múltiplo de a e b, tal que todo
múltiplo de a e b também é múltiplo de m. Mas, então, m é múltiplo de |a| e |b|.
Se m’ é múltiplo de |a| e |b|, m’ é múltiplo de a e b e, portanto, é múltiplo de m.
Logo, m = mmc (|a|, |b|) em ℕ e, como consequência, m = mmc (a, b) em ℤ.

A seguir expomos como é possível calcular mmc (a, b) em termos do máximo


divisor comum de a e b quando a ≠ 0 e b ≠ 0.

Proposição

Sejam a, b ∈ ℤ:

mdc (a, b) ⋅ mmc (a, b) = |a| ⋅ |b| = |a ⋅ b|

Em particular, se a ≠ 0 e b ≠ 0:

| a ⋅ b|
mmc (a, b) =
mdc (a, b)
Demonstração

Com efeito, usando

| a | ⋅ |b |
mmc (|a|,|b|) =
mdc (|a|,|b|)
temos que

|a|  |b|
mmc (|a|,|b|)  mmc (|a|,|b|) = mdc (|a|,|b|)   |a|  |b| = |a  b|
mdc (|a|,|b|)

Com

mdc (|a|, |b|) = mdc (a, b) e mmc (|a|, |b|) = mmc (a, b)

temos que

mdc (a, b) ⋅ mmc (a, b) = |a ⋅ b|

Em particular, se a ≠ 0 e b ≠ 0, por divisão, obtemos

| a  b|
mmc (a, b) 
mdc (a,b)

A proposição anterior fornece uma maneira explícita de calcular o mínimo múl-


tiplo comum entre dois inteiros, conforme ilustramos a seguir.

110 Aritmética
Livro
Σxemρlo 12 A obra Elementos de
aritmética, muito bem es-
crita por Abramo Hefez, é
Para calcularmos o mínimo múltiplo comum entre os inteiros –52 e 16, fazemos: uma leitura essencial para
complementar e aprofun-
mdc (–52, 16) = mdc (|–52|, |16|) = mdc (52, 16) = 4 dar os tópicos desenvolvi-
dos em nossos estudos.
Consequentemente, HEFEZ, A. Rio de Janeiro: SBM,
2005. (Coleção Profmat).
| 52 ||16 | 52  16
mmc (  52, 16) =   208
mdc (  52,16) 4

Boa parte da aritmética ocupa-se da compreensão da estrutura e do funcio-


namento dos sistemas numéricos dos conjuntos dos números naturais e inteiros.
Uma parte importante da teoria é aquela que diz respeito aos números primos,
temática que será nosso objeto de estudo na próxima seção.

4.5 Números primos e o teorema


fundamental da aritmética
Vídeo
Nesta seção, vamos discutir os números primos no conjunto dos números na-
turais. A definição é a mesma que encontramos no ensino básico e será incluída a
seguir, a título de formalização.

Definição
Um número p ∈ ℕ é denominado primo se
I. p ≠ 0 e p ≠ 1;
II. os únicos divisores de p forem 1 e p.
Um número a ∈ ℕ tal que a ≠ 0 e a ≠ 1, que não é primo, é dito composto.

Notamos que se a ∈ ℕ é um número composto, logo, é sempre possível escrever

a=b·c

com b ≠ 1 e c ≠ 1.

Vemos que os números 0 e 1 não são primos nem compostos.

Ilustramos a definição de número primo no exemplo a seguir.

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 111


Σxemρlo 13

• O número 2 é primo.

De fato, se a|2, então, 0 < a ≤ 2 e, portanto, a = 1 ou a = 2.

• O número 2 é o único primo par.

De fato, se a > 2 é par, é possível escrevermos a = 2k, com k > 1. Em particu-


lar, 1, 2 e k são divisores de a, todos distintos.

Os números primos têm propriedades interessantes. Uma delas, e de grande


importância teórica, é apresentada a seguir.

Proposição

Se p é um número primo e p|a ⋅ b, então, p|a ou p|b.

Demonstração

Se a = 0 ou b = 0, o resultado é imediato. Supomos que a ≠ 0 e b ≠ 0 e que p não


divide a. Nesse caso,

mdc (a, p) = 1

De fato, se c|a e c|p, c = 1 ou c = p, devido ao fato de p ser primo. Entretanto,


como p não divide a, decorre c = 1. Aplicando o corolário com as consequências
importantes do teorema da multiplicação do mdc por algum número natural,
deduzimos que

p|b

encerrando, assim, a demonstração.

A proposição anterior pode ser estendida da seguinte maneira: se p é um núme-


ro primo e p|(a1 · ... · an) com n ≥ 1, assim, p|aj para algum j ∈ {1, …, n}. A demons-
tração pode ser feita usando o princípio da indução.

A seguir demonstramos um dos fatos mais importantes da aritmética: todo nú-


mero natural pode ser escrito como um produto de números primos. Além disso,
essa decomposição em fatores primos é única. Para demonstrar o resultado, é ne-
cessário mostrarmos o resultado auxiliar.

112 Aritmética
Lema

Seja a ∈ ℕ tal que a ≠ 0 e a ≠ 1. Então, o menor inteiro do conjunto

X = {x ∈ ℕ | x > 1, x|a}

é um número primo.

Demonstração

Percebemos que a ∈ X, pois a > 1 e a|a. Pelo princípio da boa ordenação dos
naturais, X tem um menor elemento p. Em particular, p ≠ 0 e p ≠ 1. Se p não fosse
primo, existiriam b, c ∈ ℕ tais que b ≠ 1 e c ≠ 1, de modo que

p=b⋅c

Mas, nesse caso, teríamos b < p. Porém, b sendo divisor de p, também divide
a. Logo, b ≠ 1 seria um divisor de a menor que p, e isso é um absurdo. Portanto,
p é primo.

Em posse do resultado anterior, é possível demonstrarmos o conhecido teore-


ma fundamental da aritmética, o qual afirma que qualquer número natural maior
que 1 pode ser fatorado como um produto finito de números primos e, além disso,
o número de fatores é unicamente determinado e a fatoração é única, a menos na
reordenação dos fatores.

Teorema fundamental da aritmética

Para todo número natural a > 1 existem números primos p1, …, pn, n ≥ 1 tais que

a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn

Além disso, se a = q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm, m ≥ 1 com q1, …, qm primos, então

m = n e {p1, …, pn} = {q1, …, qn}

Demonstração

Vamos usar o princípio da indução:

• Se a = 2, a é primo e a afirmação é verdadeira.

• Suponhamos que a > 2 e que o teorema seja válido para todo b tal que

2≤b<a

Pelo lema anterior, existe um divisor primo p1 para a, ou seja,

(I) a = p1 ⋅ a1
para algum a1 ∈ ℕ \ {0}.
(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 113


Se a1 = 1 ou a1 é primo, a demonstração está finalizada. Do contrário, como 2
≤ a1 < a, pela hipótese de indução, existem n – 1 primos p2, …, pn com n – 1 ≥ 1, de
maneira que

a1 = p2 ⋅ p3 ⋅ ... ⋅ pn

Mas, então, substituindo em (I), obtemos

a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn

Resta verificarmos que se

a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn = q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm

com p1, …, pn, q1, …, qm primos, logo, m = n e {p1, …, pn} = {q1, …, qm}. A igualdade

p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn = q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm

implica p1 |(q1 ⋅ q2 ⋅ ... ⋅ qm) e, portanto, p1|qi para algum i. Analisando a numeração,
é possível deduzirmos que i = 1, ou seja, p1|q1. Mas como 1 e q1 são os únicos divi-
sores de q1 e p1 ≠ 1, segue que p1 = q1. Cancelando p1 e q1 na igualdade, obtemos

p2 ⋅ p3 ⋅ ... ⋅ pn = q2 ⋅ q3 ⋅ ... ⋅ qn

Prosseguindo esse raciocínio, chegamos à unicidade da afirmação do enuncia-


do. Vemos que não pode ocorrer algo como 1 = qm ⋅ ... ⋅ qn, pois implicaria qn|1, o
que é impossível, afinal, q1 é primo.

Há um processo prático para determinar a fatoração de números primos forne-


cida no teorema anterior. Isso é ilustrado no próximo exemplo.

Σxemρlo 14

Para encontrar a decomposição de fatores primos, na decomposição de a = 60,


por exemplo, fazemos:

60 2
30 2
15 3
5 5
1

Assim,

60 = 2 ⋅ 2 ⋅ 3 ⋅ 5 = 22 ⋅ 3 ⋅ 5

Na decomposição em fatores primos a = p1 ⋅ p2 ... pn, nem sempre todos os


fatores são diferentes entre si. Em particular, é possível agrupar aqueles repe-
tidos e escrever:

a  p1r1  pr22  pkrk

114 Aritmética
em que ri conta o número de vezes que o fator pi se repete. Observamos que 1 ≤ k
≤ n e pi ≠ pj sempre que i ≠ j e ri ≥ 1 para i = 1, …, k. Quando p1 < p2 < ⋯ < pk, obtemos
a decomposição canônica de a. Por exemplo:

60 = 22 ⋅ 3 ⋅ 5

é a decomposição canônica de 60.

Em algumas situações, ao considerarmos a decomposição em fatores primos


de dois números naturais a e b, é conveniente escrevermos a e b como potências
dos mesmos números primos. Isso é possível porque podemos utilizar expoentes
nulos, como:

60 = 22 ⋅ 3 ⋅ 5 ⋅ 70 e 350 = 2 ⋅ 30 ⋅ 52 ⋅ 7

O teorema fundamental da aritmética tem algumas consequências importan-


tes, as quais enunciamos e demonstramos a seguir.

Corolário

I. Se a  p1r1  pr22  ...  pkrk , então, b|a se, e somente se, b  p1s1  p2s2  ...  pksk com 0 ≤
si ≤ ri para todo i ∈ {1, …, k}.

II. Se a, b ∈ ℕ \ {0} são tais que

a  p1r1  pr22  ...  pkrk e b  p1s1  ps22  ...  pksk

então,

mdc (a, b) = p1t1 ⋅ p2t 2 ⋅ ... ⋅ pksk Glossário


O termo min é a abreviação de
sendo ti = min {ri, si} para todo i ∈ {1, …, k}. mínimo, ou seja, ti é o elemento
mínimo do conjunto {ri, si}.
III. Se a, b ∈ ℕ \ {0} são tais que

a = p1r1 ⋅ pr22 ⋅ ... ⋅ pkrk e b = p1s1 ⋅ ps22 ⋅ ... ⋅ pksk

então, Glossário
mdc (a, b) = p1t1 ⋅ p2t 2 ⋅ ... ⋅ pktk O termo max é a abreviação de
máximo, ou seja, ti é o elemento
máximo do conjunto {ri, si}.
sendo ti = max {ri, si} para todo i ∈ {1, …, k}.

Demonstração

I. Se b|a, pelo teorema fundamental da aritmética, a não possui fatores pri-


mos de b que não sejam fatores primos de a. Contudo, nem todos os fato-
res primos de a precisam estar na decomposição de fatores primos de b.
Por outro lado, considerando

c= p1t1 ⋅ p2t 2 ⋅ ... ⋅ pktk

com ti = ri – si para todo i ∈ {1, …, n}, temos c ∈ ℕ e c ⋅ b = a. Portanto, b|a.


(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 115


II. Com efeito, d|a e d|b. Agora, se c ∈ ℕ é um divisor de a e b, então

c= p1u1 ⋅ pu22 ⋅ ... ⋅ pkuk

com 0 ≤ ui ≤ ri e 0 ≤ ui ≤ si para todo i ∈ {1, …, k}. Mas para cada índice i temos

0 ≤ ui ≤ min{ri, si} = ti

uma vez que min {ri, si} = ri ou min {ri, si} = si.

III. Pelo que discutimos, m é múltiplo de a e b. Além disso, se

m' = p1u1 ⋅ pu22 ⋅ ... ⋅ pkuk

é múltiplo de a e b, logo, ui ≥ ri ≥ 0 e ui ≥ si ≥ 0 para todo i ∈ {1, …, k}. Desse modo,

ui ≥ max {ri, si} = ti

para todo i ∈ {1, … k}. Portanto, m|m’.


O corolário anterior fornece uma maneira simples de encontrar o máximo di-


visor comum e o mínimo múltiplo comum de dois inteiros positivos. Esse procedi-
mento está exemplificado a seguir.

Σxemρlo 15
Curiosidade
Para determinar o máximo divisor comum entre 36 e 52, fazemos:
O teorema de Euclides
enuncia que o conjunto
36 = 22 ⋅ 32 ⋅ 130 e 52 = 22 ⋅ 30 ⋅ 131
dos números primos é
infinito, porém podemos Consequentemente,
questionar: qual é o maior
número primo? Até o mdc (36, 52) = 22 ⋅ 30 ⋅ 130 = 4
momento, o maior já des-
coberto tem quase 25 mi- Analogamente,
lhões de dígitos! Para saber
mais a respeito, sugerimos mmc (36, 52) = 22 ⋅ 32 ⋅ 131 = 468
duas matérias:
• Maior número primo do mundo
é descoberto por engenheiro
voluntário nos EUA. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/ Finalmente, utilizando o teorema fundamental da aritmética é possível demons-
noticia/maior-numero-primo-do- trar que o conjunto dos números primos é infinito. Esse teorema é conhecido como
-mundo-e-descoberto-por-enge-
teorema de Euclides, e será demonstrado a seguir.
nheiro-voluntario-nos-eua.ghtml.
Acesso em: 6 maio 2021.
• Descoberto número primo com
quase 25 milhões de dígitos. Dispo-
nível em: https://impa.br/noticias/
descoberto-numero-primo-com-
Teorema de Euclides
-quase-25-milhoes-de-digi-
tos/#:~:text=H%C3%A1%20 O conjunto dos números primos é infinito.
menos%20de%20quatro%20me-
ses,de%20aproximadamente%20 Demonstração
R%24%2011%20mil. Acesso em:
6 maio 2021. Suponhamos, por absurdo, que o conjunto P dos números primos é finito. Nesse
caso, seria possível escrevermos:

P = {p1, p2, …, pr}


(Continua)

116 Aritmética
para algum r ∈ ℕ. Definimos:

n ≔ p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pr + 1

Como n admite um divisor primo p e p1, …, pr são primos, segue que p = pi para
algum i ∈ {1, …, r}. Sendo assim

p|n e p|(p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pi ⋅ ... ⋅ pr)

Entretanto, isso implica p|1, pois

1 = n – p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pr

O que é um absurdo. Portanto, o conjunto P dos números primos é infinito.

A discussão a respeito dos números primos e do teorema fundamental da


aritmética também pode ser feita para o conjunto dos números inteiros. Esse é
o objetivo do nosso estudo a partir de agora. O ponto de partida é a definição de
número primo no conjunto dos inteiros.

Definição
Um número p ∈ ℤ é um inteiro primo (ou simplesmente primo) se |p| é primo em ℕ.

Vejamos a exemplificação da definição anterior.

Σxemρlo 16

Os números –2, –3, –5, –7 são inteiros primos, pois os números naturais 2, 3, 5
e 7 são primos em ℕ.

Assim como é possível saber se um número natural é primo observando seus


divisores, também é viável fazer o mesmo para os inteiros primos, conforme
explicado a seguir.

Teorema

Seja p ∈ ℤ. Então, p é um inteiro primo se, e somente se:

I. p ≠ 0 e p ≠ 1;

II. os únicos divisores de p sejam ±1 e ±p.

(Continua)

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 117


Demonstração

(⇒) Se p é primo em ℤ, então, |p| é primo em ℕ. Em particular, |p| ≠ 0 e |p|


≠ 1. Portanto, p ≠ 0 e p ≠ ±1. Agora, suponhamos que a|p. Logo, |a|│|p|, e como
|a| = 1 ou |a| = p, temos a = ±1 ou a = ±p.

(⇐) Admitamos p ≠ 0 e p ≠ ±1. Então, |p| ≠ 0 e |p| ≠ 1. Se c ∈ ℕ e c│|p|:

|p| = c ⋅ q

com q ∈ ℕ. Em particular,

|p| = |c ⋅ q|

Então,

p = ±c ⋅ q = c ⋅ (±q)

e, portanto, c|p em ℤ. Por hipótese, c = ±1 ou c = ±p. Como c ∈ ℕ, só podemos ter


c = 1 ou c = |p|. Desse modo, |p| é primo em ℕ, ou seja, p é primo em ℤ.

O teorema fundamental da aritmética continua válido para o conjunto dos nú-


meros inteiros e pode ser enunciado como a seguir.

Teorema fundamental da aritmética em ℤ

Seja a ∈ ℤ tal que a ≠ 0 e a ≠ ±1. Então, existem números primos p1, p2, …, pn ∈ ℤ
com n ≥ 1, todos maiores que 1, tais que

Desafio a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn ou a = –p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn

Demonstre a unicidade da de- conforme a > 0 ou a < 0. Além disso, essa decomposição é única, a menos na ordem
composição a = p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn dos fatores.
ou a = –p1 ⋅ p2 ⋅ ... ⋅ pn, enun-
ciada no teorema fundamental Demonstração
da aritmética no conjunto dos
números inteiros. Basta considerarmos que a = ±|a| e aplicarmos o teorema fundamental da
aritmética válido para ℕ. É possível, ainda, demonstrarmos a unicidade com o
mesmo argumento utilizado na demonstração da unicidade no teorema funda-
Livro
mental da aritmética válido para ℕ.
O livro Introdução à
teoria dos números, escrito ∎
por Ana Maria Amarillo
Bertone, traz uma exposi-
ção da teoria dos números
muito próxima da maneira
A seguir apresentamos um exemplo que ilustra o emprego do teorema anterior.
com a qual desenvolve-
mos nossos estudos até o
momento. Fica o convite
para conferir, sobretudo,
Σxemρlo 17
a exposição a respeito dos
números primos.
O número inteiro –120 decompõe-se em fatores primos da seguinte forma:
BERTONE, A. M. A. Uberlândia UFU,
2014. –102 = –2 ⋅ 3 ⋅ 17

118 Aritmética
O teorema fundamental da aritmética é um dos principais resultados da
aritmética, merecendo, portanto, atenção especial. Certifique-se de que todo o con-
teúdo que estudamos está claro e consulte as referências indicadas ao longo do
capítulo para ampliar seus conhecimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Grande parte da aritmética é dedicada ao estudo de tópicos relacionados à divisão
de números naturais e/ou inteiros. Nesse contexto, destacam-se as noções de máxi-
mo divisor comum, mínimo múltiplo comum e números primos.
O estudo desses conceitos permite melhor compreender a estrutura dos nú-
meros naturais e inteiros e a álgebra elementar como um todo. De modo adicio-
nal, diversas aplicações, tanto teóricas quanto práticas, decorrem do estudo aqui
apresentado. Ainda existem muitos problemas e mistérios a serem explorados, por
exemplo qual é o maior número primo.
Basta uma pesquisa rápida na internet para descobrimos muitas conjecturas en-
volvendo a teoria dos números. Diante disso, destacamos que este capítulo pode e
deve servir como ponto de partida para o estudo de tópicos adicionais.

ATIVIDADES
Vídeo 1. É verdade que se a e b são números naturais não nulos, mdc (a, b) = mdc (a, b – a)?
Justifique sua resposta.

2. Encontre o mdc (600, 252) usando a decomposição em fatores primos.

3. Se mdc (a, b) = 1, o que podemos afirmar sobre mmc (a, b)?

REFERÊNCIAS
ALENCAR FILHO, E. de. Iniciação à lógica matemática. São Paulo: Nobel, 2002.
DOMINGUES, H. H.; IEZZI, G. Álgebra moderna. São Paulo: Atual, 2003.
HEFEZ, A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006.
IEZZI, G.; MURAKAMI, C. Conjuntos/funções. São Paulo: Atual, 2004. (Coleção Fundamentos de Matemática
Elementar, v. 1).

Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros 119


5
Congruências
Neste capítulo, serão apresentados alguns tópicos que pertencem à inter-
seção da aritmética com a teoria dos números. De forma mais precisa, vamos
conhecer o pequeno teorema de Fermat, o teorema chinês dos restos, as con-
gruências lineares e os inteiros módulo m. Esses dois últimos tópicos estão pre-
sentes em cursos de álgebra abstrata. Portanto, agora é um ótimo momento
para consolidar suas bases para as teorias que estão por vir.
Os assuntos foram escolhidos com o intuito de complementar sua formação
e de apresentar conceitos que podem, e certamente, surgirão em outras dis-
ciplinas. Além de serem interessantes por si próprios, os resultados discutidos
neste capítulo ilustrarão como podemos aplicar a teoria em problemas de di-
versas naturezas. Nesta etapa, você está pronto a investigar tópicos adicionais;
sendo assim, sinta-se convidado a buscar conhecer outras exposições, refe-
rências e abordagens. Manter vivo o desejo pelo conhecimento é fundamental.

5.1 O pequeno teorema de Fermat


Pierre de Fermat (1601-1665) é considerado o mais notável matemático francês
Vídeo
do século XVII. Tornou-se famoso por ter enunciado um resultado chamado o últi-
mo teorema de Fermat. O conteúdo desse resultado é simples: se n ≥ 3, não existem
inteiros positivos a, b, c que sejam solução para a equação xn + yn = zn.

A demonstração, notavelmente não trivial, obtida apenas trezentos e cinquen-


Mschlindwein/ Wikimedia Commons

ta anos após o enunciado levantado por Fermat, deve-se ao matemático Andrew


Wiles.

Outro resultado famoso devido a Fermat é o chamado pequeno teorema de


Fermat, nosso objeto de estudo. O enunciado é simples: se p é um número primo e
a é um inteiro não divisível por p, então, ap –1 – 1 é múltiplo de p. A título de ilustra-
ção, aplicando esse resultado com p = 11 e a = 3 deduzimos que

311 – 1 – 1 = 310 – 1 = 59.048

é múltiplo de 11. De fato, temos que

59.048 = 11 ⋅ 5.368

Pierre de Fermat
Com o que discutimos até o momento, é possível demonstrar o pequeno teore-
ma de Fermat sem grandes dificuldades.

120 Aritmética
Teorema – Pequeno teorema de Fermat

Se p é um número primo e a é um inteiro não divisível por p, então ap – 1 é múl-


tiplo de p.

Demonstração

Aplicando o algoritmo da divisão com os dividendos a, 2a, 3a, …, (p – 1)a e p


sendo o divisor, obtemos

a = p ⋅ q1 + r1 (0 < r1 < p)

2a = p ⋅ q2 + r2 (0 < r2 <p)

(p – 1)a = p ⋅ qp – 1 + rp – 1 (0 < rp – 1 < p)

Note que, se i ≠ j, então ri ≠ rj.

De fato, suponha que existam i, j ∈ {1, …, p – 1} tais que i ≠ j e r = ri = rj. Nesse


caso, subtraindo as igualdades

i ⋅ a = p ⋅ qi + r e j ⋅ a = p ⋅ qj + r

temos que

(i – j) ⋅ a = i ⋅ a – j ⋅ a = p ⋅ qi + r – p ⋅ qj – r = p ⋅ (qi – qj)

Isso mostra que p é um divisor de i – j, pois p é primo e não divide a. Mas isso é
possível apenas se i = j, pois |i – j| < p.

Logo, r1, …, rp – 1 ∈ {1, …, p – 1} e ri ≠ rj para todo i ≠ j. Mas, multiplicando as p – 1


igualdades dadas pelo algoritmo da divisão, temos
Leitura
a ⋅ (2 ⋅ a) ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ a = p ⋅ k + r1 ⋅ r2 ⋅ ... ⋅ rp – 1
A dissertação de mestra-
sendo k a soma dos fatores de p do segundo membro. Mas é possível reescrever do intitulada Sobre várias
demonstrações do pequeno
essa igualdade como teorema de Fermat e as
inter-relações entre as áreas
1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ ap – 1 = p ⋅ k + 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1)
da matemática apresenta
diversas demonstrações
Isso implica que
para o pequeno teorema
1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ (ap – 1 – 1) = p ⋅ k de Fermat. É uma leitura
essencial para conhecer di-
Portanto, p é um divisor de 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1) ⋅ (ap – 1 – 1). Como p é primo e não versas formas de verificação
do teorema.
divide nenhum dos fatores em 1 ⋅ 2 ⋅ ... ⋅ (p – 1), pois p é menor que cada um desses
fatores, segue que p divide ap – 1 – 1. OLIVEIRA, F. E. F. 2019. Dissertação
(Mestrado em Matemática) – Centro
Isso significa que p é múltiplo de ap – 1 – 1. de Ciências, Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza. Disponível em: http://
∎ www.repositorio.ufc.br/bitstream/
riufc/44231/1/2019_dis_fefoliveira.
pdf. Acesso em: 28 abr. 2021.

A seguir, mostramos como é possível aplicar o pequeno teorema de Fermat na


prática. Entretanto, esta notação será explicada em detalhes adiante, no momento
em que será explicada sua definição e propriedades.

Congruências 121
Σxemρlo 1

Aplicando o pequeno teorema de Fermat, é possível determinar o resto da di-


visão de 2100.000 por 17. De fato, como 17 é primo e não divide 2, pelo pequeno
teorema de Fermat,

216 ≡ 1 (mod 17)

Mas, note que

100.000 = 6.250 · 16

de forma que

2100.000 = (216)6.250 ≡ 16.250 (mod 17) ≡ 1 (mod 17)

Portanto, o resto da divisão de 2100.000 por 17 é 1.

Acompanhe mais um exemplo.

Σxemρlo 2

Utilizando o pequeno teorema de Fermat é possível verificar que 250 + 350 é divi-
sível por 13. De fato,

250 = 24 · 12 + 2 = (214)4 · 2

de modo que

250 ≡ 22 (mod 13)

Analogamente,

350 = 34 · 12 + 2 = (312)4 · 32

e, portanto,

350 ≡ 32 (mod 13)

Logo,

250 + 350 ≡ 22 + 32 (mod 13)

Concluímos que

250 + 350 ≡ 0 (mod 13)

ou seja, 250 + 350 é divisível por 13.

Pierre de Fermat trouxe muitas grandes contribuições para a teoria dos núme-
ros. Cabe destacar que foi ele quem introduziu sistemas de eixos perpendiculares,
ideia geralmente atribuída a René Descartes. De fato, as coordenadas cartesia-
nas deveriam ser chamadas de coordenadas fermatianas. Além disso, atribui-se a

122 Aritmética
Fermat a descoberta das equações da circunferência, da reta, bem como as mais
simples equações das seções cônicas: elipse, parábola, hipérbole.

5.2 Congruências módulo m


Agora, vamos apresentar uma importante relação de equivalência no conjunto
Vídeo
dos números inteiros: a relação de congruência módulo m. Resumidamente, essa
relação identifica inteiros cuja divisão por m resulta no mesmo resto.

Essa relação dará origem ao conjunto dos inteiros módulo m, importante mode-
lo conceitual de um grupo aditivo abeliano que pode ser encontrado na teoria de
grupos estudada em outras disciplinas de álgebra.

O ponto de partida da discussão é a definição de congruência módulo m, forne-


cida a seguir.

Definição
Sejam a, b ∈ ℤ e m ∈ ℤ \ {0}. Dizemos que a é congruente a b módulo m e escrevemos
a ≡ b (mod m) se m|(a – b)

A notação a ≡ b (mod m) significa, portanto, que existe um inteiro q tal que

a–b=m⋅q

ou, de modo equivalente,

a=b+m⋅q

A título de ilustração, temos

7 ≡ 3 (mod 2)

pois

2|(7 – 3) = 4

Também,

7 ≡ 3 (mod 4)

pois

4|(7 – 3) = 4

A relação congruência (≡) é de equivalência em ℤ, conforme demonstramos


a seguir.

Teorema

Se m ∈ ℤ \ {0}, a relação de congruência (≡) módulo m é uma relação de equiva-


lência em ℤ.

(Continua)

Congruências 123
Demonstração

É necessário verificar que ≡ é reflexiva, simétrica e transitiva. Para isso, temos


que:
• ≡ é reflexiva.

De fato, se a ∈ ℤ, então

m|0 = (a – a)

Portanto, a ≡ a (mod m).


• ≡ é simétrica.

Suponha que a, b ∈ ℤ são tais que a ≡ b (mod m). Isso significa que

m|(a – b)

Mas então,

m| –(a – b) = (b – a)

Portanto, b ≡ a (mod m).


• ≡ é transitiva.

Sejam a, b, c ∈ ℤ tais que a ≡ b (mod m) e b ≡ c (mod m). Nesse caso,

m|(a – b) e m|(b – c)

Consequentemente,

m|(a – b) + (b – c) = a – c

ou seja, m|(a – c) e, portanto, a ≡ c (mod m).

Note que m|(a – b) se, e somente se, |m|│(a – b), logo basta desenvolver a teo-
ria para o caso em que m > 0. Em virtude disso, de agora em diante, será suposto
que m > 0 sempre que se tratar da congruência módulo m.

A seguir, demonstramos uma caracterização interessante da congruência mó-


dulo m.

Teorema

Dois inteiros a e b são congruentes módulo m se, e somente se, têm o mesmo
inteiro como resto da divisão por m.

Demonstração

Aplicando o algoritmo da divisão por m, segue que

a = m ⋅ q1 + r1 e b = m ⋅ q2 + r2

com 0 ≤ r1 < m e 0 ≤ r2 < m.

(Continua)

124 Aritmética
Consequentemente,

a – b = m ⋅ (q1 – q2) + (r1 – r2)

Dessa forma,

m|(a – b) ⇔ m|(r1 – r2)

Mas, como 0 ≤ |r1 – r2| < m, temos que m|(r1 – r2) se, e somente se, r1 – r2 = 0, ou
seja, r1 = r2.

Portanto, a ≡ b (mod m) se, e somente se, r1 = r2.

A seguir, vamos demonstrar que a congruência módulo m é compatível com a


adição, a multiplicação e a potenciação dos inteiros.

Teorema

Sejam m > 0 um inteiro e a, b, c, d ∈ ℤ.

I. Se a ≡ b (mod m), então a + c ≡ b + c (mod m).

II. Se a ≡ b (mod m) e c ≡ d (mod m), então a ⋅ c ≡ b ⋅ d (mod m).

III. Se a ≡ b (mod m), então an ≡ bn (mod m), para todo inteiro positivo n.

Demonstração

I. Suponha que m|(a – b). Observe que

a – b = (a + c) – (b + c)

Logo, m|(a + c) – (b + c), então a + c ≡ b + c (mod m).

II. Suponha que m|(a – b) e m|(c – d). Então é possível escrever

a = b + q1 ⋅ m e c = q + q2⋅ m

para certos q1, q2 ∈ ℤ. Mas então,

a ⋅ c = (b + q1 ⋅ m) ⋅ (d + q2 ⋅ m)

= b ⋅ d + b ⋅ q2 ⋅ m + q1 ⋅ m ⋅ d + q1 ⋅ q2 ⋅ m

= b ⋅ d + (b ⋅ q2 + q1 ⋅ d + q1 ⋅ q2) ⋅ m

Portanto, m|(a ⋅ c – b ⋅ d), ou seja, a ⋅ c ≡ b ⋅ d (mod m).

III. Decorre de II usando indução sobre n. Para verificar isso, defina o conjunto

X = {n ∈ ℕ | an ≡ bn (mod m) ∀ a, b ∈ ℤ}

Nessa situação, é direito que n = 0 ou n = 1 são elementos de X, portanto, deve-


mos começar o procedimento indutivo com n = 2. Para esse valor de n, a afirmação
é válida, pois

a ≡ b (mod m) e a · a ≡ b · b (mod m) ⇒ a2 ≡ b2 (mod m)


(Continua)

Congruências 125
Considere n ∈ X, ou seja, n ∈ ℕ e

an ≡ bn (mod m)

Mas,
an ≡ bn (mod m) e a ≡ b (mod m) ⇒ an + 1 ≡ bn + 1 (mod m)

e, portanto, n + 1 ∈ X. Pelo princípio da indução, temos que X = ℕ.


A congruência módulo m tem a propriedade do cancelamento para a adição,


conforme demonstramos a seguir.

Proposição

Sejam m > 0 um inteiro e a, b ∈ ℤ. Se a + c ≡ b + c (mod m), então

a ≡ b (mod m)

Demonstração

De fato, se a + c = b + c (mod m), então

m|[(a + c) – (b + c)] = (a – b)

Portanto, a ≡ b (mod m).


Será que vale uma propriedade análoga para a multiplicação? Em outros ter-
mos, se a ⋅ c ≡ b ⋅ c (mod m), será que a ≡ b (mod m)? Não, pois, um contraexem-
plo seria
3 ⋅ 3 ≡ 3 ⋅ 5 (mod 6)

Não é verdade que 3 ≡ 5 (mod 6). Contudo, o cancelamento para a multiplica-


ção é válido quando adicionamos uma hipótese conforme explicamos a seguir.

Proposição

Sejam m > 0 um inteiro e a, b, c ∈ ℤ. Se mdc (c, m) = 1, então a ⋅ c = b ⋅ c (mod m)


implica a ≡ b (mod m).

Demonstração

Com efeito, se a ⋅ c ≡ b ⋅ c (mod m), então

m|(a – b) ⋅ c

Logo, m|(a – b) ou m|c. Como mdc (c, m) = 1, segue que m|(a – b), ou seja, a ≡
b (mod m).

126 Aritmética
A seguir, apresentamos um exemplo de natureza prática de um problema que
pode ser resolvido facilmente usando congruências lineares.

Σxemρlo 3

Qual é o resto da divisão de 560 por 26?

Aplicando o algoritmo da divisão temos que Livro


560 = 26 ⋅ q + r A obra Introdução à teoria
dos números, escrito por
sendo 0 ≤ r ≤ 25. Em particular, Ana Maria Amarillo Bertone,
é uma excelente opção
560 ≡ r (mod 26) para complementar os
tópicos estudados sobre
Como 52 = 25, segue que congruências. A autora faz
uma exposição clara, rigo-
52 ≡ –1 (mod 26) rosa e rica em exemplos.

Mas então, elevando ao quadrado ambos os lados da congruência anterior, BERTONE, A. M. A. Uberlândia:
temos UFU, 2014. Disponível em:
https://repositorio.ufu.br/
54 ≡ (–1)2 (mod 26) bitstream/123456789/25317/1/
Introdu%C3%A7%C3%A3o%20
ou seja, a%20Teoria%20dos%20
N%C3%BAmeros.pdf. Acesso em: 17
54 ≡ 1 (mod 26) maio 2021.

Agora, notando que 560 = (54)15, podemos fazer

560 ≡ 115 (mod 26)

e, portanto, o resto da divisão de 560 por 26 é 1.

Na próxima seção, discutiremos como a relação de congruência no conjunto


dos números inteiros dá origem ao conjunto dos inteiros módulo m.

5.3 Inteiros módulo m


Vamos estudar, de maneira aprofundada, o quociente módulo a relação de con-
Vídeo
gruência módulo m definida na seção anterior. Esse conjunto quociente, denotado
por ℤm, é denominado de conjunto dos inteiros módulo m. Esse conjunto ℤm está do-
tado de uma operação de adição e de uma de multiplicação. Nosso objetivo central
é explorar as propriedades de ℤm e de suas operações algébricas. Na seção anterior
demonstramos que se m > 0 é um inteiro, então

a ≡ b (mod m)

é uma relação de equivalência em ℤ. Em particular, cada inteiro a ∈ ℤ possui uma


classe de equivalência associada módulo a relação ≡.

Congruências 127
Explicitamente,

[a] = {b ∈ ℤ | b ≡ a (mod m)}

= {b ∈ ℤ | m|(b – a)}

= {b ∈ ℤ | b – a = q ⋅ m, q ∈ ℤ}

= {b ∈ ℤ | b = a + q ⋅ m, q ∈ ℤ}

= {a + q ⋅ m | q ∈ ℤ}

Essa discussão nos conduz à definição a seguir.

Definição
Seja m > 0 um inteiro e a ∈ ℤ , a classe de congruência de a módulo m é o conjunto
[a] = {a + q ⋅ m | m ∈ ℤ }
Em particular, se a, b ∈ ℤ, então
a ≡ b (mod m) ⇔ [a] = [b]

A seguir, ilustramos algumas classes de congruência.

Σxemρlo 4

Se m > 0 é um inteiro, então são exemplos de classes de equivalência:

[0] = {0, ± m, ± 2 ⋅ m, ± 3 ⋅ m, …}

[1] = {1, 1 ± m, 1 ±2 ⋅ m, 1 ± 3 ⋅ m, …}

[2] = {2, 2 ± m, 2 ± 2 ⋅ m, 2 ± 3 ⋅ m, …}

[m – 1] = {m –1,m –1 ± m, m – 1 ± 2 ⋅ m, …}

Agora,

[m] = {m, m ± m, m ± 2 ⋅ m, …} = [0]

[m + 1] = {m + 1,m + 1 ± m, m + 1 ± 2 ⋅ m, …} = [1]

e assim por diante.

Em particular, existe apenas um número finito de classes de equivalência as-


sociadas à congruência módulo m. Se, por exemplo, m = 6, então as classes de
congruência associadas são

[0] = {0, 6, –6, 12, –12, …}

[1] = {1, 7, –5, 13, –11, …}

[2] = {2, 8, –4, 14, –10, …}

[3] = {3, 9, –3, 15, –9, …}

[4] = {4, 10, –2, 16, –8, …}

[5] = {5, 11, –1, 17, –7, …}

(Continua)
128 Aritmética
Geralmente, para qualquer m fixado haverá apenas um número finito de clas-
ses de inteiros módulo m. Isso é uma consequência do teorema da divisão euclidia-
na conforme explicaremos posteriormente.

Toda relação de equivalência dá origem a um conjunto quociente e, portanto, o


mesmo acontece com a congruência módulo m.

Definição
Seja m > 0 um inteiro, o conjunto dos inteiros módulo m, denotado ℤm, é o conjunto
quociente de ℤ módulo a relação ≡.

A seguir, será demonstrado que ℤm sempre possui um número finito de


elementos.

Teorema

Seja m > 0 um inteiro. Então

ℤm = {[0], [1], …, [m – 1]}

Demonstração

Considere [a] ∈ ℤm. Vamos aplicar o algoritmo da divisão euclidiana com a ∈ ℤ


sendo o dividendo e m o divisor. Dessa forma,

a=q⋅m+r

com 0 ≤ |r| < m. Em particular, m|(a – r), ou seja,

a ≡ r (mod m)

Essa igualdade revela que

[a] = [r]

Resta deduzir que [r] = [x] com x ∈ {0, ..., m}. Mas

|r| < m ⇔ r ∈ {–(m – 1), –(m – 2), …, –1, 0, 1, …, m – 2, m – 1}

Como

[–(m – 1)] = [1]

[–(m – 2)] = [2]

[-2] = [m – 2]

[-1] = [m – 1]

Decorre a igualdade,

[a] = [r] ∈ {[0], [1], …, [m – 1]}


(Continua)

Congruências 129
Isso mostra a inclusão ℤm ⊂ {[0], [1], …, [m – 1]}. A inclusão contrária é direta, pois
[0], [1], …, [m – 1]} são elementos de ℤm. Isso encerra a demonstração.

O conjunto ℤm pode ser dotado de uma adição e de uma multiplicação. A manei-


ra natural de se fazer isso é definindo

[a] + [b] ≔ [a + b]

[a] ⋅ [b] ≔ [a ⋅ b]

em que as operações de adição e multiplicação no lado direito das igualdades ocor-


rem em ℤ.

Naturalmente, é necessário verificar que essas definições não dependem da es-


colha dos representantes, ou seja, vamos demonstrar que + e ⋅ são únicos.

Proposição

Sejam a, b, a’, b’ ∈ ℤ. Se [a] = [a’] e [b] = [b’], então

[a] + [b] = [a’] + [b’]

[a] ⋅ [b] = [a’] ⋅ [b’]

Demonstração

Se [a] = [a’] e [b] = [b’], então

a ≡ a’ (mod m) e b ≡ b’ (mod m)

Mas,

a ≡ a’ (mod m) e b ≡ b’ (mod m) ⇒ a + b ≡ a’ + b’ (mod m)

Agora,

a’ ≡ a’ (mod m) e b ≡ b’ (mod m) ⇒ a’ + b ≡ a’ + b’ (mod m)

Finalmente, pela transitividade da relação de congruência,

a + b ≡ a’ + b (mod m) e a’ + b ≡ a’ + b’ (mod m) ⇒ a + b ≡ a’ + b’ (mod m)

Isso mostra que

[a] + [b] = [a + b] = [a’ + b’] = [a’] + [b’]

De maneira análoga, é possível demonstrar que


Desafio
Demonstre que [a] ⋅ [b] = [a’] ⋅ [b’]
se [a] = [a’] e [b] = [b’],
então [a] ⋅ [b] = [a’] ⋅ [b’]. ∎

É bastante comum apresentar as operações de adição e multiplicação módulo


m por meio de tábuas. Por exemplo, a tábua de adição em ℤ3 pode ser consultada
na Tabela 1 a seguir.

130 Aritmética
Tabela 1
Tábua de adição em ℤ3
+ [0] [1] [2]
[0] [0] [1] [2]
[1] [1] [2] [0]
[2] [2] [0] [1]

Fonte: Elaborada pelo autor.

Note que existe uma simetria em relação à diagonal dessa tabela. Isso ocorre
pelo fato de a adição ser comutativa. Analogamente, podemos construir a tábula da
multiplicação em ℤ3 conforme a tabela a seguir.
Desafio
Tabela 2
Construa as tábuas da
Tábua de multiplicação em ℤ3
adição e da multiplicação
· [0] [1] [2] em ℤ5.
[0] [0] [0] [0]
[1] [0] [1] [2]
[2] [0] [2] [1]

Fonte: Elaborada pelo autor.

Novamente, observe a presença da simetria em relação à diagonal dessa tabela.


Isso ocorre porque a multiplicação é comutativa.

Uma pergunta natural é: o quão similar a adição em ℤm é da adição de inteiros?


Vamos demonstramos a seguir que é muito similar.

Teorema

A adição (+) em ℤm tem as seguintes propriedades:

I. Associatividade: [a] + ([b] + [c]) = ([a] + [b]) + [c].

II. Comutatividade: [a] + [b] = [b] + [a].

III. Existência do elemento neutro: [0] é único elemento de ℤm tal que

[a] + [0] = [a]


para todo [a] ∈ ℤm.

IV. Existência do oposto: [–a] é o único elemento de ℤm tal que

[a] + [–a] = [0]

Demonstração

I. De fato, se a, b, c ∈ ℤ, então usando a associatividade da adição em ℤ resulta


que

[a] + ([b] + [c]) = [a] + [b + c]

= [a + (b + c)]

= [(a + b) + c]

= [a + b] + [c]

= ([a] + [b]) + [c]


(Continua)

Congruências 131
II. Se a, b ∈ ℤ, então usando a comutatividade da adição em ℤ resulta que

[a] + [b] = [a + b] = [b + a] = [b] + [a]

III. Inicialmente, se a ∈ ℤ, então

[a] + [0] = [a + 0] = [a]

Se [x] ∈ ℤm satisfaz

[a] + [x] = [a]

então

[a + x] = [a]

e, portanto,

0 + a ≡ x + a (mod m)

Pela lei do cancelamento,

0 ≡ x (mod m)

Portanto, [x] = [0]. Isso mostra a unicidade.

IV. Se a ∈ ℤ, então

[a] + [–a] = [a + (–a)] = [0]

Agora, suponha que [x] ∈ ℤm satisfaz

[a] + [x] = [0]

Nesse caso,

[a + x] = [0]

e, portanto, a + x ≡ 0 (mod m).

Mas, isso equivale a

x + a ≡ x + (–x) (mod m)

Pela lei do cancelamento, decorre que

a ≡ –x (mod m)

Logo,

–a ≡ x (mod m)

Consequentemente, [x] = [–a]. Isso mostra a unicidade.

Assim como ocorre com a adição em ℤm, a multiplicação tem propriedades aná-
logas às da multiplicação em ℤ, conforme enunciado a seguir.

Teorema

A multiplicação (⋅) em ℤm tem as propriedades a seguir.


(Continua)

132 Aritmética
I. Associatividade: [a] ⋅ ([b] ⋅ [c]) = ([a] ⋅ [b]) ⋅ [c].

II. Comutatividade: [a] ⋅ [b] = [b] ⋅ [a].

III. Existência do neutro: [1] é o único elemento de ℤm tal que

[a] ⋅ [1] = [a]

para todo [a] ∈ ℤm.

IV. Distributividade: [a] ⋅ ([b] + [c]) = [a] ⋅ [b] + [a] ⋅ [c].

Demonstração

As demonstrações decorrem imediatamente da definição da multiplicação e das


respectivas propriedades válidas para a multiplicação em ℤ. Por exemplo:

I. Associatividade:

[a] ⋅ ([b] ⋅ [c]) = [a] ⋅ [b ⋅ c] = [a ⋅ (b ⋅ c)] = [(a ⋅ b) ⋅ c] = [a ⋅ b] ⋅ [c] = ([a] ⋅ [b]) ⋅ [c]

Note que foi utilizado a associatividade da multiplicação em ℤ para escrever a


igualdade

[a ⋅ (b ⋅ c)] = [(a ⋅ b) ⋅ c]

Comutatividade:
Desafio
Utilizando a comutatividade da multiplicação em ℤ para escrever Demonstre as propriedades
da multiplicação (⋅) em ℤm
[a ⋅ b] = [b ⋅ a]
a seguir:
Temos que • Existência do neutro: [1] é
o único elemento de ℤm,
[a] ⋅ [b] = [a ⋅ b] = [b ⋅ a] tal que
[a] ⋅ [1] = [a]
Com o auxílio dessas demonstrações, é possível verificar a existência do neutro
para todo [a] ∈ ℤm.
e a propriedade distributiva da multiplicação (⋅) em ℤm.
• Distributividade: [a] ⋅ ([b] +
∎ [c]) = [a] ⋅ [b] + [a] ⋅ [c].

A seguir, vamos demonstrar propriedades específicas da multiplicação em ℤm.


No conjunto dos inteiros, se x, y ∈ ℤ são tais que x ⋅ y = 0, então x = 0 ou y = 0. Em ℤm
não vale uma propriedade análoga. Para introduzir essa discussão, vamos definir o
que são divisores do zero em ℤm.

Definição

Um elemento [a] ∈ ℤm não nulo, isto é, [a] ≠ [0], é um divisor do zero se existe [b] ∈ ℤm
tal que [a] ⋅ [b] = [0].

A seguir, apresentamos uma caracterização para os divisores do zero em ℤm.

Congruências 133
Proposição

Um elemento não nulo [a] ∈ ℤm é um divisor do zero se, e somente se,

mdc (a, m) ≠ 1

Demonstração

Suponha que [a] seja um divisor do zero e considere [b] ∈ ℤm não nulo, tal que

[a] ⋅ [b] = [0]

Mas

[a ⋅ b] = [a] ⋅ [b] = [0]

significa que

a ⋅ b ≡ 0 (mod m)

ou seja, m|(a ⋅ b).

Supondo por absurdo que mdc (a, m) = 1, segue que m|b e, portanto, [b] = [0],
uma contradição.

Por outro lado, suponha que mdc (a, m) = k > 1. Queremos encontrar [b] ≠ [0] em
ℤm, tal que [a] ⋅ [b] = [0]. Como k divide a e divide m, podemos escrever

a = q1 ⋅ k e m = q2 ⋅ k

sendo 0 < q2 < m, pois k > 1. Em particular, [q1] ≠ [0].

Agora, note que

a ⋅ q2 = q1 ⋅ k ⋅ q2 = q1 ⋅ m

Consequentemente,

[a ⋅ q2] = [q1 ⋅ m] = [0]

Basta considerar b = q2.

O resultado anterior tem uma consequência importante.

Corolário

I. Se p > 1 é um inteiro primo, então ℤp não contém divisores de zero.

II. Se ℤm não contém divisores de zero, então m é um inteiro primo.

(Continua)

134 Aritmética
Demonstração
Desafio
I. Decorre diretamente do teorema anterior.
Demonstre que se p > 1
II. Suponha, por absurdo, que m não seja primo. Então é possível escrever é um inteiro primo, então
ℤp não contém divisores
m = k ⋅ l com 1 < k < m e 1 < l < m de zero.

Mas então

[0] = [m] = [k] ⋅ [l]

Porém, [r] ≠ [0] e [s] ≠ [0], uma contradição.

No conjunto dos números inteiros, é válida a propriedade do cancelamento


para a multiplicação. Entretanto, isso nem sempre é válido para ℤm, conforme de-
monstramos a seguir.

Teorema

Vale a lei do cancelamento para a multiplicação em ℤm se, e somente se, m é


primo.

Demonstração

Suponha que m seja primo e sejam [a], [b], [c] ∈ ℤm com [a] ≠ [0] tais que

[a] ⋅ [b] = [a] ⋅ [c]

Mas então

[a] ⋅ ([b] – [c]) = [0]

Como [a] ≠ [0] e ℤm não têm divisores de zero, segue que [b] – [c] = [0] e, portanto,
[b] = [c].

Por outro, basta demonstrar que ℤm não contém divisores do zero. Para tanto,
sejam [a], [b] ∈ ℤm tais que [a] ⋅ [b] = [0]. Se [a] ≠ [0], então aplicando a lei do cance-
lamento à igualdade

[a] ⋅ [b] = [a] ⋅ [0]

segue que [b] = [0].

Antes de prosseguir a discussão a respeito da multiplicação em ℤm, vamos escla-


recer o que são elementos invertíveis em ℤm na definição a seguir.

Congruências 135
Definição
Dizemos que um elemento [a] ∈ ℤm é invertível se existe [b] ∈ ℤm tal que [a] ⋅ [b] = [1].
Nesse caso, dizemos que [b] é um inverso de [a].

Por exemplo, [1] e [–1] são invertíveis em ℤm, pois

[1] ⋅ [1] = [1 ⋅ 1] = [1] e [–1] ⋅ [–1] = [(–1) ⋅ (–1)] = [1]

Contudo, existem outros elementos de ℤm que são invertíveis. Por exemplo, em


ℤ5 temos

[2] ⋅ [3] = [6] = [1] e [4] ⋅ [4] = [16] = [1]

Entretanto, note que [0] não é invertível em ℤm, qualquer que seja m. De fato,
para qualquer [a] ∈ ℤm temos [0] ⋅ [a] = [0] ≠ [1].

A seguir, apresentamos uma caracterização dos elementos invertíveis em ℤm.

Teorema

Seja [a] um elemento não nulo em ℤm. Então, [a] é invertível se, e somente se,
mdc (a, m) = 1.

Demonstração

Suponha que [a] seja invertível e que mdc (a, m) ≠1. Em particular, [a] é divisor
do zero. Logo, existe [b] ≠ [0] tal que [a] ⋅ [b] = [0]. Nesse caso, [a] não pode ser in-
vertível. De fato, se existisse [c] ∈ ℤm tal que [a] ⋅ [c] = [1], então teríamos que

[b] = [b] ⋅ [1] = [b] ⋅ ([a ⋅ c]) = ([a] ⋅ [b]) ⋅ [c] = [0] ⋅ [c] = [0]

uma contradição.

Por outro lado, se mdc (a, m) = 1, então existem k e l tais que

a⋅k+m⋅l=1

Consequentemente,

[1] = [a ⋅ k + m ⋅ l]

= [a ⋅ k] + [m ⋅ l]

= [a] ⋅ [k] + [m] ⋅ [l]

= [a] ⋅ [k] + [0] ⋅ [l]

= [a] ⋅ [k]

Portanto, [k] é o inverso de [a].

136 Aritmética
Note que a demonstração do teorema anterior fornece uma maneira explícita
de obter o inverso de um elemento em ℤm. Por exemplo, para achar o inverso de [4]
em ℤ37, encontramos a, b ∈ ℤ tais que

a ⋅ 4 + b ⋅ 37 = 1

Nesse caso, a = –9 e b = 1.

Logo, em ℤ37 temos que

[–9] ⋅ [4] = [1]

ou seja, o inverso de [4] é

[–9] = [37 – 9] = [28].

Uma consequência importante e direta do último teorema é apresentada a seguir.

Corolário Livro
Se p > 0 é um inteiro primo, então todo elemento não nulo de ℤp é invertível. Teoria elementar dos nú-
meros, escrito por Edgard
Demonstração de Alencar Filho, é um
excelente livro para quem
Considere [a] ∈ ℤ p um elemento não nulo. Como ℤp = {[0], [1], ..., [p – 1]} e [a] ≠ 0, deseja conhecer mais sobre
podemos supor que 1 ≤ a ≤ p – 1. Porém os únicos divisores de p são 1 e p. Isso, jun- inteiros módulo m.

tamente com a desigualdade 1 ≤ a ≤ p – 1, mostra que os únicos divisores comuns ALENCAR FILHO, E. T. São Paulo:
de a e p é 1 e, portanto, mdc (a, p) = 1. Pelo teorema anterior, [a] é invertível em ℤ p. Nobel, 1992.

5.4 O teorema chinês dos restos


Vídeo Finalmente, vamos apresentar um resultado clássico da teoria de números: o
teorema chinês dos restos. Esse teorema diz respeito à existência de solução de
um sistema de congruências lineares. A demonstração é feita construtivamente e,
portanto, possibilita sua aplicação de maneira concreta.

Teorema chinês dos restos

Sejam n1, n2, …, nk inteiros positivos tais que mdc (ni, nj) = 1, para todo i ≠ j. Então,
o sistema de congruências lineares

x  a1 (mod n1)
x  a (mod n )
2 2

 
x  ak (mod nk )
(Continua)

Congruências 137
admite uma solução simultânea, que é única módulo o inteiro n = n1 ⋅ n2 ⋅ ... ⋅ nk, ou
seja, se x e x’ são soluções para o sistema, então

x ≡ x’ mod (n1 · n2 · ... · nk)

Demonstração

Seja n = n1 ⋅ n2 ⋅ ... ⋅ nk. Para cada r = 1, 2, …, k definimos

n
Nr   n1  n2  ...  nr  1  nr  1  ...  nk
nr

Como mdc (ni, nj) = 1, segue que

Nr ⋅ x ≡ 1 (mod nr)

admite uma única solução, digamos xr, já que mdc (Nr, nr) = 1.

A solução para o sistema será

x = a1 N1 x1+ a2 N2 x2 + ⋅⋅⋅ + ak Nk xk

Para verificar isso, primeiro note que

Ni ≡ 0 (mod nr)

para i ≠ j, pois nr|Nr.

Além disso,

x = a1 N1 x1+ a2 N2 x2 + ⋅⋅⋅ +ak Nk xk ≡ ar Nr xr (mod nr)

Como xr cumpre Nr ⋅ xr ≡ 1(mod nr), segue que

x = ar ⋅ 1 = ar (mod nr)

Resta mostrar que a solução é única e módulo n = n1 ⋅ n2 ⋯ nk. Para tanto, seja x’
outra solução, ou seja,

x ≡ ar (mod nr) ≡ x’

para r ∈ {1, …, k}. Consequentemente, nr divide x – x’, para todo r. Como mdc
(ni, nj) = 1, temos, necessariamente, que

n = n1 ⋅ n2 ⋅ … ⋅ nk |x -x’

Portanto, x ≡ x’ (mod n) , o que encerra a demonstração.

A seguir, ilustramos na prática como empregar o teorema chinês dos restos.

Σxemρlo 5

Considere o seguinte sistema de congruências lineares

x  2 (mod 3)

x  3 (mod 5)
x  2 (mod 7)

(Continua)

138 Aritmética
A solução x para esse sistema de congruências lineares é um inteiro cuja divisão
por 3, 5 e 7 tem como resto 2, 3 e 2 respectivamente. A solução será obtida seguin-
do o procedimento descrito no teorema chinês dos restos. Para tanto, sejam
• a1 = 2;
• a2 = 3;
• a3 = 2.

E
• n1 = 3;
• n2 = 5;
• n3 = 7.

De acordo com a demonstração,

n = n1 ⋅ n2 ⋅ n3 = 3 ⋅ 5 ⋅ 7 = 105

enquanto
• N1 = 5 ⋅ 7 = 35;
• N2 = 3 ⋅ 7 = 21;
• N3 = 3 ⋅ 5 = 15.

Com isso, as congruências

N1 ⋅ x1 ≡ 1 (mod 3)

N2 ⋅ x2 ≡ 1 (mod 5)

N3 ⋅ x3 ≡ 1 (mod 7)

são

35 ⋅ x1 ≡ 1 (mod 3)

21 ⋅ x2 ≡ 1 (mod 5)
Livro
15 ⋅ x3 ≡ 1 (mod 7)
A obra Números: uma
Essas congruências, por sua vez, equivalem a introdução à matemática,
escrita por César Polcino
2 ⋅ x1 ≡ 2 (mod 3) Milies e Sônia Pitta Coelho,
traz diversos exemplos
x2 ≡ 1 (mod 5) e aplicações do teorema
chinês dos restos.
x3 ≡ 1 (mod 7)
MILIES, F. C. P.; COELHO, S. P. 3. ed. São
Portanto, a solução do sistema é dada por Paulo: USP, 2001.
x = 2 ⋅ 35 ⋅ 2 + 3 ⋅ 21 ⋅ 1 + 2 ⋅ 15 ⋅ 1 = 233 (mod 105)

A título de curiosidade, o teorema chinês dos restos recebe esse nome pelo fato
de sua descoberta ser atribuída ao matemático chinês Tzu Suan Ching, aparecendo
na obra Manual de aritmética do Mestre Sun, livro datado entre 287 d.C. e 473 d.C.

Congruências 139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aritmética é uma ferramenta teórica que possibilita a compreensão, principal-
mente, de questões relacionadas aos números naturais e inteiros. Nesse contexto,
uma variedade de problemas e aplicações podem ser encontrados. Isso ficou eviden-
ciado em nosso estudo. Além de aplicações, existem diversos problemas em aberto
envolvendo os números inteiros, sobretudo, em relação aos números primos. Pode-
mos destacar, por exemplo, a conjectura de Goldbach e a hipótese de Riemann.
Além disso, há vários outros aspectos da teoria dos números que podem ser in-
vestigados, cujos tópicos abordados neste capítulo podem servir de base. Encare esse
texto como o ponto de partida para construir outros conhecimentos e aprofundar seu
entendimento das questões teóricas e práticas relacionadas aos números.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Encontre um contraexemplo para mostrar que a recíproca “se an – 1 ≡ 1 (mod n)
para todo inteiro a, tal que mdc (a, n) = 1, então n é primo” do pequeno teorema de
Fermat não é válida.

2. Quais são os elementos de ℤ6 que apresentam inverso multiplicativo?

3. Existe solução para a equação [2] · [x] = [1] em ℤ4? Justifique.

REFERÊNCIAS
ALENCAR FILHO, E. Teoria elementar dos números. São Paulo: Nobel, 1992.
HEFEZ. A. Elementos de aritmética. Rio de Janeiro: SBM, 2006.
MILIES, F. C. P. Números: uma introdução à matemática. 3. ed. São Paulo: USP, 2001.

140 Aritmética
GABARITO

1 Teoria elementar dos conjuntos


1. Qual é a importância do estudo da teoria de conjuntos?
A teoria de conjuntos possibilita o entendimento dos fundamentos da matemática.
Ela permite desenvolver o formalismo necessário para demonstrar rigorosamente
os resultados, além de possibilitar a definição de conceitos que antes eram aceitos
sem esta. Conjuntos permeiam toda a matemática, estando presentes, por exemplo,
na axiomatização da geometria plana e na construção dos números.

2. Qual é a relevância de se estudar funções?


Funções permitem entender transformações de objetos ou quantidades de um
conjunto em objetos ou quantidades de outros conjuntos. Além disso, funções
modelam diversas situações práticas da realidade, como o crescimento de capital
na poupança, o crescimento populacional, o número de pessoas infectadas por
uma doença em cada unidade de tempo etc. Além disso, funções possibilitam a
quantificação de objetos, no sentido de que é possível atribuir números a objetos
abstratos. Esse tipo de raciocínio encontra-se bastante presente na geometria, por
exemplo.

3. Considere o conjunto X = {1, 2, 3, 4}. Encontre uma relação de equivalência


ℛ em X tal que X/ℛ= {{1, 2, 3}, {4}}.
Para construir ℛ, cada elemento dos conjuntos {1, 2, 3} e {4} deve estar relacionado
com todos os demais do mesmo conjunto. Portanto, basta tomar

ℛ = {(1, 1), (1, 2), (1, 3), (2, 1), (2, 2), (2, 3), (3, 1), (3, 2), (3, 3), (4, 4)}.

2 O conjunto dos números naturais


1. Qual seria a estratégia para demonstrar que todo número natural n ≠ 0 é
sucessor de outro natural?
A estratégia é definir o conjunto:

X = {x ∈ ℕ | x = 0 ou ⱻ y ∈ ℕ, tal que x = s (y)}

Em seguida, demonstrar que 0 ∈ ℕ e que se x ∈ X, então, s(x) ∈ X. Finalmente, aplicar


o princípio da indução finita.

2. Quais são os ganhos propiciados pela abordagem axiomática do conjunto


dos números naturais?
Os axiomas de Peano fornecem um modelo sólido sobre o qual toda a teoria a
respeito dos números naturais pode ser desenvolvida. Por meio deles, é possível
demonstrar todas as propriedades que supomos serem válidas com relação
aos números naturais. Além disso, os axiomas permitem que sejam deduzidos
resultados sofisticados, os quais podem ser utilizados em todas as áreas da
matemática, quando necessários.

Gabarito 141
3. Comente a respeito da importância do princípio da indução finita no
desenvolvimento da teoria deste capítulo.
O princípio da indução finita permite demonstrar os resultados fundamentais a
respeito da adição, da multiplicação e da ordenação de números naturais. Todas
as resoluções que decorrem desses resultados estão indiretamente embasadas
nesse princípio.

3 O conjunto dos números inteiros


1. Demonstre que se x ≤  y e z ≥ 0, então x ⋅ z ≤  y ⋅ z.
Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)]. Como x ≤ y, vale

a+d≤b+c

Agora, como [(0, 0)] = 0 ≤ z = [(e, f)], vale

f=0+f≤e+0=e

Em particular, existe p ∈  tal que

e=f+p

Multiplicando a desigualdade a + d ≤ b + c por p, temos que

a⋅p+d⋅p≤b⋅p+c⋅p

Adicionando os termos af, bf, cf e df a ambos os membros, obtemos:

af + ap + bf + cf + df + dp ≤ cf + cp + df + af + bf + bp

Isso equivale a

a ⋅ (f + p) + bf + cf + d ⋅ (f + p) ≤ c ⋅ (f + p) + df + af + b ⋅ (f + p)

ou seja,

a⋅e+b⋅f+c⋅f+d⋅e≤c⋅e+d⋅f+a⋅f+b⋅e

Mas isso significa precisamente que

x⋅z≤y⋅z

pois

x ⋅ z = [(a ⋅ e + b ⋅ f, a ⋅ f + b ⋅ e)]

y ⋅ z = [(c ⋅ e + d ⋅ f, c ⋅ f + d ⋅ e)]

2. Demonstre que se x ≤  y e z < 0, então x ⋅ z ≥  y ⋅ z.


Sejam x = [(a, b)], y = [(c, d)] e z = [(e, f)]. Como x ≤ y, vale

a+d≤b+c

Agora, como z = [(e, f)] < [(0, 0)] = 0, vale

e=e+0<0+f=f

Em particular, existe p ∈  \ {0} tal que

f=e+p

Multiplicando a desigualdade a + d ≤ b + c por p, temos que

142 Aritmética
a⋅p+d⋅p≤b⋅p+c⋅p

Adicionando os termos ae, be, ce e de a ambos os membros, obtemos:

ce + de + dp + ae + ap + be ≤ ae + be + bp + ce + cp + de

Isso equivale a

ce + d ⋅ (e + p) + a ⋅ (e + p) + be ≤ ae + b ⋅ (e + p) + c ⋅ (e + p) + de

ou seja,

c⋅e+d⋅f+a⋅f+b⋅e≤a⋅e+b⋅f+c⋅f+d⋅e

Mas isso significa precisamente que

y⋅z≤x⋅z

pois

x ⋅ z = [(a ⋅ e + b ⋅ f, a ⋅ f + b ⋅ e)]

y ⋅ z = [(c ⋅ e + d ⋅ f, c ⋅ f + d ⋅ e)]

3. Mostre que (–x) · (–y) = x · y.


Escrevendo x = [(a, b)] e y = [(c, d)], temos que

(-x) ⋅ (-y) = [(b, a)] ⋅ [(d, c)]

= [(b ⋅ d + a ⋅ c, b ⋅ c + a ⋅ d)]

= [(a ⋅ c + b ⋅ d, a ⋅ d + b ⋅ c)]

=x⋅y

4 Aritmética no conjunto dos números naturais e inteiros


1. É verdade que se a e b são números naturais não nulos, mdc (a, b) = mdc (a,
b – a)? Justifique sua resposta.
Sim. Para verificarmos isso, temos que um divisor de a e b também é um divisor
de b – a. Agora, como b = a + (b – a), segue que um divisor de a e b – a também é
um divisor de b. Sendo assim, os pares (a, b) e (a, b – a) têm os mesmos divisores e,
portanto, o mesmo mdc.

2. Encontre o mdc (600, 252) usando a decomposição em fatores primos.


A decomposição em fatores primos é:

600 = 2³ · 31 · 5²

252 = 2² · 32 · 7

Logo, considerando os fatores comuns, segue que:

mdc (600, 252) = 2² · 31 = 12

3. Se mdc (a, b) = 1, o que podemos afirmar sobre mmc (a, b)?


Podemos afirmar que mmc (a, b) = a · b, pois é válida a relação:
a·b
mmc (a, b) =
mdc (a, b)

Se mdc (a, b) = 1, temos que:

Gabarito 143
a·b
mmc (a, b) = =a·b
1

5 Congruências
1. Encontre um contraexemplo para mostrar que a recíproca “se an – 1 ≡ 1 (mod
n) para todo inteiro a, tal que mdc (a, n) = 1, então n é primo” do pequeno
teorema de Fermat não é válida.
Por exemplo, o inteiro 561é tal que

a560 ≡ 1 (mod 561)

para todo a inteiro, tal que mdc (a, 561) = 1. Contudo, 561 não é primo.

2. Quais são os elementos de ℤ6 que apresentam inverso multiplicativo?


Os únicos elementos de ℤ6 que apresentam inverso multiplicativo são [1] e [5], pois
a = 1 e a = 5 são os únicos inteiros entre 0 e 5 que satisfazem mdc (a, 6) = 1.

3. Existe solução para a equação [2] · [x] = [1] em ℤ4? Justifique.


Não existe, pois mdc (2, 4) = 2 não divide 1.

144 Aritmética
ARITMÉTICA
DION PASIEVITCH

DION PASIEVITCH

Código Logístico
ISBN 978-65-5821-028-3

I000043 9 786558 210283

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