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Pontos Fundamentais da Análise de

Riscos na Indústria Farmacêutica


Por Marcelo de Valécio. Postado em Indústria Farmacêutica

Todas as atividades produtivas possuem algum tipo de risco envolvido, podendo


impactar mais ou menos na qualidade do produto final. Contudo, se esse abalo
envolver risco à saúde das pessoas torna-se imprescindível sua identificação,
avaliação e controle. Esse é o caso da indústria farmacêutica, que tem por
objetivo precípuo garantir a segurança da saúde do paciente que irá consumir
medicamentos. Um instrumento que permite às empresas a tomada de decisão
sobre determinação de perigos em seus processos é a análise de riscos. “Não é
por acaso que ela é o primeiro documento da validação do processo. A análise
de riscos é imprescindível para dar profundidade ao estudo, pois avalia a sua
criticidade”, esclarece Fernanda de Oliveira Bidoia, diretora técnica da
consultoria Farmacêuticas.

O conceito de análise de riscos foi adaptado da indústria de alimentos e


aeroespacial para o setor farmacêutico há pouco mais de uma década. Em 2003,
a Organização Mundial da Saúde (OMS), em conjunto com outras organizações,
como a International Conference on Harmonisation of Technical Requirements
for Registration of Pharmaceuticals for Human Use (ICH) e a International
Organization for Standardization (ISO), ajustou e integrou a análise e o
gerenciamento de riscos para fabricação de produtos para a saúde humana e
veterinária, estabelecendo parâmetros entre a ocorrência e a severidade de
danos que, aos poucos, foram sendo incorporados pela indústria global.

“Na verdade, todas as ferramentas de análise riscos foram derivadas de


processos envolvendo a corrida espacial dos anos 1950”, revela Azi Maurício
Guerra Ceccopieri, gestor técnico industrial especialista em processos. Em 1959,
a agência espacial norte-americana NASA criou o Sistema de Gestão de
Segurança Alimentar. Esse método foi desenvolvido para prevenir a
contaminação dos alimentos dos cosmonautas.“Imagine o que faria um
astronauta se desse alguma coisa errada no espaço. Todas as derivações e
ferramentas para prever os riscos surgem daí”, completa Ceccopieri.

Análise de riscos no Brasil

As primeiras experiências de adaptações das ferramentas de análise de riscos


para a indústria farmacêutica instalada no País ocorreram a partir da década de
1990. “Tínhamos que prever tudo o que era possível acontecer de problema nos
nossos processos. Nessa época, utilizávamos as ferramentas voltadas para o
mercado alimentício, mas mesmo neste setor havia problemas, a lei ainda era
muito frouxa. Na produção de grãos para o mercado interno, por exemplo, não
era exigido sequer detecção de metais durante o processamento. Só valia para
produtos voltados à exportação”, afirma Ceccopieri, destacando ainda que a
legislação manteve algumas incongruências. “Um dos riscos mais absurdos
previstos em lei é o que permite a produção de ketchup com até três pelos de
rato por frasco produzido. Caso o roedor esteja contaminado, basta um pelo para
transmitir doenças como a leptospirose.”

Análise de riscos no setor farmacêutico passou a ser demandada a partir da RDC


nº 17/2010, que trata das Boas Práticas de Fabricação (BPF) de medicamentos.
Outra resolução − RDC nº 73/2016, que trata das mudanças pós-registro do
medicamento − também incluiu a análise de riscos como exigência pela Anvisa.
As empresas devem apresentar um plano de riscos, condicionado à obtenção
ou renovação de licenças e registros sanitários.

“Deve-se prever o risco a que um


medicamento será submetido durante o
processo de fabricação, considerando três
formas principais: riscos sanitários, riscos
conhecidos e riscos desconhecidos”,
assinala Ceccopieri. Vários tipos de
contaminação possíveis são analisados −
microbiana, cruzada, por resíduos de
agentes de limpeza ou sanitização,
exposição a temperaturas e umidade
prejudiciais à estabilidade do produto e
problemas nas etapas de fabricação, dos
excipientes, passando pelos princípios
ativos, até a embalagem.
Segundo Ceccopieri, dentre os principais riscos, estão a contaminação com
qualquer coisa que não pertence ao processo ou ao fármaco, manuseio
incorreto, equipamentos danificados, embalagens impróprias, processos
inadequados e até sabotagem. Segundo o especialista, dos principais erros de
fabricação, a maioria pode ser atribuída a falhas humanas e de processo, sendo
um número muito pequeno relacionado a problemas de matéria-prima.

Ferramentas da análise de riscos

A análise de risco é um processo sistemático de aplicação de ferramentas de


gestão da qualidade que visa levantar, controlar, divulgar e revisar os
procedimentos e práticas utilizados na fabricação do produto. Isso inclui a
proteção aos trabalhadores das unidades produtoras contra possíveis riscos
causados pelo contato direto (pela pele ou ingestão) de algum componente das
formulações, por contaminantes dispersos no ambiente ou condições climáticas
(temperatura e umidade) inadequadas. Também faz parte do procedimento de
prevenção de riscos a proteção ao meio ambiente, evitando dispersão na água
ou no ar de resíduos sólidos, líquidos ou vapores contaminados. “Análise e
gerenciamento de riscos é sistematizada para controlar todo o ciclo de vida do
produto, da etapa de desenvolvimento até o consumo, considerando todos seus
impactos”, observa Jair Calixto, gerente de Boas Práticas, Inovação e Auditoria
Farmacêutica do Sindusfarma-SP.

De acordo com Calixto, a análise de riscos é um instrumento que auxilia as


organizações na tomada de decisão sobre determinação de riscos em seus
processos internos e externos e permite a implantação do gerenciamento de
riscos na qualidade (GRQ). A utilização do GRQ na indústria farmacêutica tornou
a tarefa mais científica com a publicação do guia ICH-Q9, permitindo a avaliação
do risco em todas as etapas e atividades de fabricação. O guia foi produzido pela
ICH, grupo internacional que reúne autoridades reguladoras e associações de
indústrias farmacêuticas para discutir registro de medicamentos.

Três elementos principais estão indicados no guia da ICH: determinação,


controle e revisão dos riscos, explica Calixto. Na etapa de controle, quatro
resultados possíveis são avaliados para dimensionamento e tratamento do risco.
O primeiro deles é quando se detecta que o risco é alto e a probabilidade de sua
ocorrência também é elevada. Nesse caso devem ser implementadas medidas
para eliminação total do risco encontrado. De risco médio para alto, providências
de redução têm de ser tomadas, de forma a minimizar ou mitigar a sua
ocorrência. Para risco residual de probabilidade reduzida, baixo impacto e alta
detectabilidade permite-se a sua aceitação, recorrendo ao monitoramento. Outra
possibilidade é a transferência do risco para outra empresa, que fica responsável
pelo monitoramento e solução do problema, caso ocorra. “A empresa pode fazer,
por exemplo, um seguro das instalações contra fenômenos naturais ou de outra
ordem”, salienta Calixto.

Dentre as principais ferramentas utilizadas na análise de risco, duas delas se


destacam: Análise de Efeitos e Modo de Falha (FMEA − sigla em inglês para
Failure Mode Effects Analysis) e Análise de Perigos e Pontos Críticos de
Controle (HACCP – Hazard Analysis and Critical Control Points). “Esses são os
dois modelos básicos mais utilizados”, explica Jair Calixto. “Na FMEA é
analisada a graduação do risco (severidade, ocorrência e detecção), enquanto a
HACCP é utilizada para identificar o risco e é também muito aplicada na indústria
alimentícia”, diz.

Para os riscos ligados ao produto em si e ao processo produtivo a FMEA é a


mais completa, observa Fernanda Bidoia. “A HACCP pode ser usada na análise
da segurança do trabalhador e no ambiente em que ele atua”, afirma a
especialista. Outras duas ferramentas − Análise de Operabilidade de Perigos
(HAZOP – Hazard Operability Analysis) e Análise Preliminar de Perigos (PHA –
Preliminary Hazard Analysis) − são também aplicadas, lembra Azi Maurício
Ceccopieri, que, contudo, faz uma ponderação. “É preciso bom senso no
momento de avaliar os riscos, escolhendo as ferramentas mais adequadas a
cada caso. Muitas empresas ainda pecam por desconhecimento do uso dessas
ferramentas ou por não ter profissionais gabaritados para conduzir o processo”,
diz Ceccopieri. Outro ponto importante é que, antes de todos, a direção deve
estar convencida da importância da análise de risco como ferramenta eficiente
de gestão, de forma a tornar os processos mais confiáveis e econômicos.

Mudança cultural

Normalmente, se delega para o setor de garantia da qualidade a condução e


execução do processo, “mas uma postura mais assertiva deve abranger uma
equipe multidisciplinar”, defende Ceccopieri. Todos os setores devem estar
envolvidos na avaliação e gerenciamento de riscos, desde a recepção da
matéria-prima até a saída do produto final. “Algumas pessoas do mundo
farmacêutico ainda creem que a palavra gerenciamento é exclusiva de gerentes,
mas o gerenciamento de um risco em um processo produtivo é responsabilidade
de todos os envolvidos, desde manipuladores, pesadores, operadores técnicos
e gestores”, sublinha o consultor.

Para uma avaliação eficaz das rotinas


principais, limites dos processos e pontos
críticos do controle de fabricação deve-se
montar um time qualificado de especialistas
que conheça bem os riscos inerentes às
atividades executadas pela empresa.
Profissionais de farmacologia, ciências
farmacêuticas, análise laboratorial, química,
biologia, microbiologia, bioengenharia,
engenharia de materiais, sistemas de ar,
automação e mecânica, além da gestão da
qualidade e de outras especialidades,
podem dar o suporte necessário aos
processos de análise de risco.
De forma geral, as etapas e os parâmetros críticos do processo produtivo − como
aqueles que afetam a qualidade do produto − devem ser identificados, assim
como outros estudos relevantes que demonstrem que o processo é capaz de
produzir lotes com a qualidade desejada devem ser conduzidos com base no
conhecimento do produto, do seu ciclo de vida e do processo. “Precisamos ter
em mente que os riscos sanitários e os não sanitários estão presentes em toda
a cadeia do medicamento. O importante é a empresa saber o que pode dar
errado nesse processo e estar pronta para agir e corrigir”, frisa Ceccopieri,
observando que se o medicamento sai do laboratório com qualquer falha as
conseqüências podem ser graves. “Varia de uma interdição da Anvisa à perda
de credibilidade da empresa no mercado. Tudo vai depender do efeito do erro,
que pode resultar na ineficácia do medicamento ou até na morte do paciente.”

Segundo os especialistas, há uma quantidade robusta de instrumentos que


foram testados com sucesso para análise e gerenciamento de riscos. O maior
desafio reside, ainda, no aspecto cultural das organizações, que vem sendo
vencido aos poucos. “Muitas empresas ainda veem a análise de risco como
justificativa para liberação de produtos na Anvisa. O mais oportuno é utilizá-la de
forma a melhorar os processos e ser empregada de forma preventiva, não
apenas quando cobrado pela agência reguladora”, afirma Fernanda Bidoia,
lembrando que o instrumento deve ser parte da rotina da produção.

Com uma ação preventiva de identificação de riscos impede-se que a maioria


das falhas aconteçam e seja mais rápido e econômico eliminá-las ou mitigá-las
quando ocorrem, evitando desvios de qualidade que possam gerar reprovação
do produto ou até a sua retirada do mercado. “Mas, infelizmente, no Brasil, ainda
predomina a atitude reativa. O ideal seria que todos os processos e produtos
tivessem seus riscos analisados todos os anos. Assim, não se veria tantos
recolhimentos de medicamentos”, diz Fernanda. “Na maioria das vezes, as
indústrias só se preocupam quando acontece a fatalidade”, faz coro Ceccopieri.
“Aí vão tentar compreender seus processos internos e externos para poder
reduzir os riscos.”

Análise de riscos não serve apenas para produção, esclarece Jair Calixto. “Ela
pode ser empregada também para assuntos regulatórios e processos
administrativos da empresa, reduzindo as probabilidades de erros, como
problemas no registro de produtos ou pagamento errado de tributos, gerando
consequentemente ganho de tempo, de produtividade e de recursos”, diz. “Sem
dúvida que a prioridade é reduzir os riscos específicos do produto, que pode
comprometer a saúde do paciente. Mas a análise de riscos permite avaliar
processos, a área produtiva inteira ou até a empresa toda”, acrescenta Fernanda
Bidoia.

7 tópicos de destaque da análise de riscos

1. Visa levantar, controlar, divulgar e revisar os procedimentos e práticas


utilizados na fabricação do produto
2. É fundamental para a validação do processo
3. Deve ser empregada de forma preventiva
4. Maiores riscos incluem a contaminação cruzada (quando há troca de
materiais na linha de produção) ou com qualquer coisa que não pertence
ao processo, manuseio incorreto, equipamentos danificados, embalagens
impróprias, processos inadequados e sabotagem
5. É uma recomendação incluída nas RDCs nº 17/2010 e nº 73/2016 da
Anvisa
6. Principais ferramentas de gestão utilizadas: FMEA, HACCP, HAZOP e
PHA
7. Uma equipe composta de especialistas de várias áreas deve executar o
procedimento de análise de riscos

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