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38 CONJUNTURA

Macroeconômica Abril 2010

Os dilemas
do déficit externo
Liliana Lavoratti, do Rio de Janeiro

Até mesmo depois de os dados oficiais Celso Pastore, Marcio Holland, Pedro Cavalcante e Samuel
evidenciarem que a volta de déficits de Abreu Pessoa mostraram que o tema divide os analistas
na conta corrente do balanço de pa- em posições extremas.
gamentos é uma realidade com a qual De um lado estão os que não veem risco no uso da pou-
o Brasil conviverá, as preocupações pança externa para financiar consumo e investimentos, desde
se dirigem para os possíveis efeitos que o país continue apresentando o “bom comportamento”
desses saldos negativos contínuos e, das duas últimas décadas e torne a composição do passivo
provavelmente, elevados. Durante externo favorável, com baixo endividamento em moeda es-
o seminário “Déficits em conta cor- trangeira. Nesse caso, a poupança externa tem a importante
rente: oportunidade ou ameaça?”, função de complementar a interna, que provavelmente se
promovido pelo Instituto Brasileiro manterá por muito tempo nos níveis baixos observados his-
de Economia (IBRE) da Fundação Ge- toricamente. Os defensores dessa posição admitem, porém,
tulio Vargas, os economistas Affonso a existência de algum grau de incerteza capaz de prejudicar

Saldos em transações correntes (% do PIB)


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1947
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1949
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1951
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1992
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1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração: Ipeadata


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o atual cenário favorável. A visão oposta é a de que essa O ingresso de


estratégia representa uma ameaça à continuidade do cresci-
mento no longo prazo e chega a recomendar uma intervenção capitais externos
no câmbio e no controle de capitais para evitar a excessiva
valorização do real diante do dólar e, com isso, melhorar os
indicadores da vulnerabilidade externa do país.
valoriza o câmbio
Entre tantas divergências, algumas poucas convergências.
Todos concordam em dois pontos: o Brasil está retornando
real, provocando
ao padrão histórico de sucessivos déficits e raros momentos
de superávits em conta corrente, um problema estrutural cuja
o aumento dos
raiz está no baixo nível da poupança interna. Os números de
fevereiro, quando o resultado das transações com o exterior investimentos,
foi o pior para o mês desde 1947, levaram o Banco Central a
ampliar outra vez a previsão de resultado negativo da conta levando ao
corrente para 2010: de US$ 40 bilhões para US$ 49 bilhões,
o equivalente a 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB); e aumento da renda
para 2011, as projeções estão na casa de 4% do PIB. Com
um detalhe: pela primeira vez em nove anos, o ingresso de e do consumo
investimento direto não será suficiente para compensar o
rombo, criando a dependência da entrada de capital de curto Affonso Celso Pastore
prazo e de empréstimos do setor financeiro para equilibrar
a conta. Algo que não acontecia desde 2001.

Pastore, os dados das contas nacionais


Efeito multiplicador mostram que sempre que os déficits em
Políticas econômicas responsáveis e uma trajetória de cres- contas correntes se elevam, crescem,
cimento sustentada diminuem o risco do uso da poupança também, as taxas de investimento.
externa para financiar o excesso de absorção doméstica “Conclui-se que as poupanças exter-
(consumo privado e público, e investimento como proporção nas são predominantemente usadas
do PIB). Segundo esse raciocínio, que leva em conta as pre- para elevar a capacidade produtiva, e
ferências da sociedade brasileira e o sistema político vigente, não o consumo, contribuindo para o
o recurso à poupança externa representa uma oportunidade crescimento econômico”, ressalta.
para acelerar o crescimento pelo aumento da taxa de inves- Para abrir mão dos recursos exter-
timento. “O ingresso de capitais externos valoriza o câmbio nos, o Brasil teria de mudar radical-
real, provocando o aumento dos investimentos, o que, por mente sua política econômica, visando
seu efeito multiplicador, leva à ampliação da renda e do o aumento da poupança doméstica —
consumo e à redução das exportações líquidas. Aí aparece o a começar pelo setor público, cortando
déficit em transações correntes”, afirma o ex-presidente do gastos correntes e transferências de
Banco Central, professor da FGV e presidente do Comitê da renda que estimulam o consumo pri-
Datação de Ciclos Econômicos (Codace), ligado ao IBRE, vado. Como isso não está no horizonte
Affonso Celso Pastore. dos governantes, bem como a volta
O Brasil tem poupança interna baixa, por isso os inves- de uma inflação em níveis capazes de
timentos exigem a complementação da poupança externa, cortar as despesas públicas em termos
importada através dos déficits nas contas correntes. Segundo reais, dificilmente o Brasil trilhará o
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Resta saber
se o mundo BC: mudança estrutural
vai continuar Para o chefe do Departamento Econômico do Banco Central,
Altamir Lopes, é preciso considerar a mudança estrutural no

financiando resultado das transações correntes. O déficit resulta de uma via


de mão dupla — recursos que saem do país na forma de lucros
o déficit em e dividendos, resultado dos investimentos estrangeiros diretos
e do aquecimento econômico. No passado, esse movimento
transações tinha mão única: a saída de capitais não era acompanhada da
entrada de mais recursos, gerando dificuldade de financiar o
correntes do rombo nas obrigações internacionais.
Por isso, ele considera que os fatores responsáveis pelo
Brasil aumento do déficit estão relacionados à recuperação da

Luiz Guilherme Schymura economia brasileira, e não ao endividamento externo do país,


como em momentos do passado em que saldo negativo na
conta corrente era sinônimo de vulnerabilidade. O rombo

caminho chinês — poupança interna cresceu ultimamente por causa do aumento das importações,
de quase 50% do PIB, gastos públicos dos gastos com serviços no exterior e das remessas de lucros.
zero em previdência (totalmente priva- O BC também informa que hoje o resultado das transações
da) e setor privado com poupança alta. representa 20% das reservas internacionais (US$ 252 bilhões)
Já aqui, a poupança interna caiu ano — no começo da década, 65%.
passado para 14,6% do PIB, o menor
“No passado, o passivo decorria do endividamento elevado,
nível desde 2001.
que demandava o pagamento de juros também altos”, afirma
Diante desse quadro, o chefe do
o economista. A dívida pública externa caiu bastante e, além
Centro de Desenvolvimento Econômi-
co do IBRE, Samuel de Abreu Pessoa, disso, o Brasil é credor externo líquido. “Os juros deixaram
acredita que a política econômica não de ser problema no nosso balanço de pagamentos e outro
deve ir contra déficits em conta cor-
rente, mas sim discutir os limites, as
consequências e os riscos dessa opção.
Segundo ele, a política econômica australianos de choques externos, apesar do elevado endivi-
deve induzir a uma estrutura do pas- damento em moeda estrangeira.
sivo externo — inclusive das empresas “Se fizermos essa lição de casa, dificilmente passaremos
privadas —, que não gere problemas por crises no balanço de pagamentos, pois não faltará
para o país, como ensina a Austrália. financiamento externo”, assinalou Pessoa. Na avaliação
A ex-colônia inglesa passou incólume dele, hoje o país tem condições de sustentar o crescimento
por um longo período de déficits em econômico com déficits em transações correntes elevados.
transações correntes altos, devido à “Ao contrário do passado, quando o passivo externo era
montagem de um modelo macroeco- predominantemente em dólar, neste momento cresce a pro-
nômico consistente que protegeu os porção da parcela em real, e isso cria uma dinâmica favorável
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Se fizermos essa
lição de casa,
componente do passivo externo predomina atualmente: os
dificilmente
investimentos, sejam eles diretos ou no mercado de capitais”,
completa Lopes. passaremos por
Sobre os investimentos são pagos lucros e dividendos
quando auferidos. “Se sai dinheiro é porque a economia crises no balanço
está aquecida. E a contrapartida desse processo é a entrada
de mais recursos estrangeiros na forma de investimentos e de pagamentos,
empréstimos. Ou seja, o déficit em transações correntes nessa
situação é perfeitamente financiável. Isso muda a cara das pois não faltará
coisas”, ressalta o dirigente do BC.
Outro ponto destacado por Lopes é que a uma parcela
financiamento
expressiva das importações está associado o aumento do
investimento direto. “As filiais das matrizes lá fora trazem má-
externo
quinas e equipamentos, isso impacta o déficit em transações Samuel Pessoa
correntes. Mas o financiamento é perfeito”, comenta. Da mes-
ma forma, ele considera outra característica do investimento
direto: se destina primordialmente ao setor industrial — es- essa soma representava apenas 29%
pecialmente minerais — e à agropecuária. “Isso vai alavancar do estoque de obrigações externas do
as exportações em breve, e o déficit em conta corrente será país (na época, ao redor de US$ 225
bilhões). Em uma década e meia, a
amenizado”, afirma.
participação dos investimentos em
Para 2011, o BC não tem projeção do rombo em transações
empresas no passivo internacional
correntes, mas Lopes admite que o quadro não deve mudar
brasileiro cresceu mais de 100%.
de forma substancial. Os mecanismos econômico-institu-
cionais para operar com segurança na
via do financiamento externo devem
incluir, além do controle inflacionário,
do equilíbrio fiscal e do câmbio flutu-
ao Brasil, também ajudada pelas reservas cambiais robustas ante, uma atuação governamental no
e pelo fato de o País ser credor externo líquido”, explica o sentido de desestimular as empresas
economista do IBRE. a assumir dívidas em moeda externa
A mudança da estrutura do passivo externo ocorrida nos sem hedge, deixando claro que o setor
últimos 14 anos também fez a parcela relativa a empréstimos público não oferecerá proteção cam-
e financiamentos (endividamento) cair com a ampliação de bial. “É o que dá para fazer, pois já
investimentos diretos e indiretos em participações societá- foram feitas as escolhas políticas que
rias. Juntos, investimentos diretos e a compra de ações via nos levarão a uma longa trajetória de
mercado de capitais, respondiam, no final de 2009, por déficits em conta corrente”, completa
72% do passivo total, segundo o Banco Central. Em 1995, Pessoa. Fazem parte dessas escolhas
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O efeito dos cambial tem impacto negativo sobre crescimento econômico.


Além disso, a valorização de 2002-2008 não teve impacto
déficits em conta forte sobre a indústria e setores mais avançados tecnologica-
mente. Também não há evidência empírica forte de que mo-
corrente sobre vimentos no câmbio afetem a taxa de poupança dos países.
“Portanto, o efeito dos déficits em conta corrente sobre

crescimento crescimento e produto de longo prazo via valorização do


câmbio não é algo que traga grandes preocupações”, concluiu
Cavalcanti. Entretanto, ele faz uma ressalva: a utilização de
e produto de financiamento externo deixa o Brasil sujeito a choques que
podem interromper o fluxo de capitais. Nesse sentido, as
longo prazo via altas reservas cambiais e o câmbio flutuante, aliados a uma
composição adequada do passivo externo — com pouco des-
valorização do casamento entre passivos e ativos em dólar — conseguiriam
fazer os ajustes necessários.
câmbio não é algo
que traga grandes Ameaça e vulnerabilidades
No extremo oposto do debate estão os que veem em déficits
preocupações em conta corrente uma ameaça, devido às vulnerabilidades
potenciais que lhes são inerentes, com implicações negati-
Pedro Cavalcanti vas para a continuidade do crescimento no longo prazo. A
principal fragilidade resultaria da provável ocorrência de
crises no balanço de pagamentos, pela dificuldade de hon-
a ampliação dos programas de redis- rar compromissos no exterior, similares às experimentadas
tribuição de renda e a preferência da no passado. Entre os argumentos subjacentes a essa visão
população por gastar mais no presente está o de que os ingressos pela conta de capital podem ser
em vez de guardar para o futuro. bruscamente revertidos, em razão de mudanças na economia
Para o professor da Escola de Pós- internacional, dificultando o financiamento dos déficits na
Graduação em Economia da FGV, conta corrente, mesmo supondo-se a continuidade do regime
Pedro Cavalcanti Ferreira, não restam de política econômica vigente.
dúvidas de que o caminho mais seguro Nessa interpretação, a crise externa contaminaria rapida-
seria o aumento da poupança interna, mente a economia do país e a flexibilidade do câmbio seria
que eliminaria o risco de não poder insuficiente para acomodar o choque — ou poderia mesmo
financiar o déficit externo e criaria as agravá-lo —, por seu impacto de desorganização econômica
condições para a desvalorização do interna, à semelhança do que ocorreu na “crise dos derivati-
câmbio. “Mas isso não é viável nem vos”, no último trimestre de 2008.
provável no curto e médio prazo; logo, “Todas as projeções para o déficit em conta corrente estão
não existem condições para reverter sendo revistas para pior. Daqui a pouco isso vai afetar o cres-
o déficit em conta corrente, a não cimento e se repetirá a história já conhecida”, afirma Márcio
ser no longo prazo”, acrescenta. E, Holland, professor da Escola de Economia de São Paulo da
para mostrar a complexidade desse FGV. Por isso, ele defende no curto prazo maior intervenção
debate, lembra que é “pouco robusta” da política econômica no câmbio, para impedir a excessiva
a evidência de que sobrevalorização valorização do real. Dentre os temores suscitados pela so-
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brevalorização do real — também é uma das moedas mais Defendo no curto


voláteis do mundo —, a possibilidade de desindustrialização
(devido à “doença holandesa”), que diminuiria o dinamismo prazo maior
da economia; a elevação das remessas de lucros e dividendos; e
a piora dos déficits na balança comercial — estes dois últimos, intervenção
fatores de pressão do déficit em transações correntes.
A segunda providência recomendada por Holland é o
aumento da poupança interna. Embora concorde que essa
da política
situação resulta da expansão dos direitos sociais da Constitui-
ção Federal de 1988, o professor acha que essa situação pode
econômica
ser revertida com forte ajuste fiscal nos gastos governamen-
tais e mudanças constitucionais. Só para citar um exemplo:
no câmbio,
enquanto investe ao redor de 2,5% do PIB, o setor público
gasta 3% do PIB com pensões por morte — nos países da Or- para impedir
ganização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), a média dessas despesas é de 0,5% do PIB. a excessiva
valorização do
Debates paralelos
O leque de preocupações inclui ainda o risco de possíveis real
efeitos de inevitável elevação dos juros mundiais sobre os
fluxos de capital para o Brasil, o comportamento do comér- Marcio Holland
cio mundial — e seus desdobramentos sobre as exportações
brasileiras — e o aumento da competição por parte dos
produtos chineses em mercados tradicionalmente supridos o mundo vai continuar financiando
pela indústria brasileira. “Em meio a isso tudo, talvez seja o o déficit em transações correntes do
caso de questionar se vale à pena deixar a situação chegar a Brasil”, disse. “O que está claro até
um déficit ameaçador”, destaca o coordenador do seminário o momento é que temos poupança
e economista do IBRE, Regis Bonelli. “Diante da impossibi- interna baixa e excesso de consumo,
lidade de medir com antecedência se a flexibilidade cambial além da ampliação de gastos sociais
será suficiente para amortecer os efeitos de mudanças nega- e despesas correntes governamentais.
tivas no cenário externo sem consequências danosas para a Mas um quadro é a continuidade
economia doméstica, poderia ser prudente adotar políticas dos fluxos de capitais estrangeiros,
que evitem a desnecessária volatilidade cambial decorrente outro é a piora da situação mundial,
da entrada excessiva de hoje, seguida de saída desorganizada com interrupção da entrada desses
de amanhã”, ressalta Bonelli. recursos estrangeiros”, completa
Nesse sentido, o presidente do IBRE, Luiz Guilherme Schymura.
Schymura, acrescenta mais um aspecto da questão: avanços “Para Pastore, o momento ainda
institucionais gigantescos ocorreram no país, facilitando o é que os recursos aplicados no Brasil
processo produtivo e mudando a estrutura econômica, mas não sairão tão cedo, nem migrarão
o mundo pós-crise ainda suscita dúvidas. A recuperação é para outros países. Os investimentos
lenta nos países desenvolvidos, com agravamento da situa- no mundo não se revelam muito altos,
ção na Grécia, Portugal e Espanha, que lutam contra dívidas portanto sobra dinheiro para colocar
elevadas e lento crescimento econômico. “Resta saber se aqui”, sublinha. 

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