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O terapeuta quer morrer

“Eu atendia por plano de saúde numa clínica particular. Como os


atendimentos eram curtos e pagavam pouco, eu atendia umas vinte e três
pessoas por dia. A carga era alta, mas era uma boa oportunidade de trabalhar
na clínica”, conta minha colega Amanda, que pediu pra não ser identificada.
“Depois de alguns meses fazendo isso, atendi uma pessoa que estava com
problemas no trabalho por causa de uma carga horária alta demais. Enquanto
ela falava, fui sentindo um aperto no peito, como se eu estivesse sendo
sufocada. Consegui terminar a sessão, mas quando a pessoa foi embora eu caí
no choro. Eu estava exausta. Não tinha como continuar nesse ritmo.”
O relato anônimo da minha colega acima (CRP 08/19698) ilustra bem o
desafio maior da nossa profissão: como tratar de pessoas que não estão bem
quando a gente mesmo não está bem?

Ninguém é um bom psicólogo sem fazer


terapia.
“Isso se resolve fácil”, alguém mais apressado pode responder, “todo
psicólogo precisa fazer terapia”.
Concordo. Ninguém é um bom psicólogo sem fazer terapia.
(Eu ia repetir a frase “Ninguém é um bom psicólogo sem fazer terapia”
quarenta vezes em um parágrafo, mas a Daiana, editora aqui da Academia do
Psicólogo, falou que seria excessivo. Vou reclamar dela pro meu terapeuta
depois.)
Mas deixemos de hipocrisia: terapia ajuda a lidar com os problemas, mas
não faz com que eles desapareçam completamente (o que, por sinal, é
ótimo, senão nossos pacientes nunca voltariam para uma segunda sessão).
“Mas existe a suspensão do eu! Na hora do atendimento, você deixa sua vida
pessoal lá fora!”, diria o mesmo apressadinho.
Positivo e operante. Na hora do vamovê (perdoem o termo técnico) não
interessam nossos problemas. Mas será que sair de si para focar no outro é
realmente possível?
Pense na seguinte situação: você está no consultório e recebe o telefonema de
que sua mãe acaba de falecer. Você consegue suspender tudo o que sente para
fazer os seus atendimentos conforme o previsto?
Sim, é um exemplo extremo, mas não somos nós que acreditamos nas
pequenas sensações e nuances que afetam nossa vida? Então, por que as
pequenas aflições das nossas vidas não afetariam nosso trabalho?
De qualquer forma, esse não é um texto sobre a lida terapêutica com nossos
pacientes.
É sobre olhar no espelho: nossos problemas emocionais, nós com nós
mesmos.

Ninguém que seja bom da cabeça vai estudar


psicologia.
Se você reclamar dessa frase, isso só vai provar que você não é bom da
cabeça.
Mas é verdade: se você é um dos psicólogos bons que faz terapia, em algum
momento você fez contato com aquele trauminha do passado que te fez –
talvez inconscientemente – cometer a sandice de assinalar Psicologia na hora
de prestar vestibular. Sob o disfarce de “entender melhor as pessoas” e
“ajudar o próximo”, ouso dizer que a maior parte de nós procurou o curso
querendo tratar alguma dor profunda que carregava.
Isso quer dizer que estamos inaptos a tratar de outra pessoa? Coisa
nenhuma.
O próprio arquétipo do cuidador ferido, que Jung pariu lindamente, fala sobre
essa capacidade de uma pessoa que tem uma dor muito profunda saber
compreender e tratar da dor de outra. Infelizmente, Chiron, um dos exemplos
mitológicos mais úteis para explicar o arquétipo, é imortal e sua dor é
incurável.
Ser um bom terapeuta também envolve baixar a guarda e respeitar a dor
que tem. Conviver com a dor, sabendo como dói mexer onde ela mora.
Isso ajuda a ter paciência na clínica e evitar aberrações como achar que o
cliente está evoluindo devagar demais. É reconhecendo e permitindo nossos
próprios sentimentos, mesmo os mais sombrios, que conseguimos afiar o
termômetro para compreender melhor o sentimento de quem está na nossa
frente – que, vamos concordar, dificilmente está ali porque se sente
maravilhoso.

Nossa maior hipocrisia como terapeutas


ANTES DE SER UM EXCELENTE PROFISSIONAL
SEJA UM BOM SER HUMANO

A questão é que todos nós, simplesmente por sermos humanos, vez e outra
temos problemas graves para resolver. Temos dores que demoram a passar,
temos dificuldades… e temos problemas psicológicos também. Temos
ansiedade. Temos depressão. Temos desesperança.
Aliás, até por uma questão de equilíbrio, pessoas que dedicam toda a vida a
buscar saúde mental tendem a ter uma sombra imensa nesse sentido. Grandes
terapeutas tendem a visitar suas grandes angústias, sua solidão intensa e seu
pânico do futuro com alguma frequência. De vez em quando, também surtam,
também se perdem e também contemplam (e cometem) suicídio.
Mais ou menos por aí aparece nossa maior hipocrisia como terapeutas:
Quantos de nós nos achamos bons demais para admitir que temos problemas?
Quantos psicólogos você conhece que dizem não precisar de terapia? Ou pior,
que dizem coisas como “Não vou indicar um paciente pra fulana, ela toma
antidepressivo desde a época da faculdade”? Ou “Não conta pra ninguém, mas
ela tentou se matar no tempo da faculdade… Não chama ela não.”?
Burrice. Por preconceito, deixamos de ser e de conviver com ótimos
profissionais.

Quando a loucura é rotina, cada um encontra seu método para se manter são.
Viver com um transtorno mental é ainda mais difícil quando você passa o
dia inteiro cuidando do transtorno dos outros.
Às vezes estamos particularmente vulneráveis. Por mais irresistível que a
gente seja, às vezes até um psicólogo leva um pé na bunda. E é nesse dia que
o paciente vai ter conhecido uma pessoa com o mesmo nome do seu ex, e eles
vão ter ido no mesmo restaurante que você ia com seu ex, e as histórias vão
parecer que aconteceram de propósito para machucar.
É nessa hora que você segura firme até o fim da sessão, se despede do
paciente e vai usar todos os lencinhos da sua sala enquanto cai no choro. Com
pressa, porque a próxima sessão vai começar em dez minutos. E o próximo
paciente vai contar do pé na bunda que tomou.
Não é uma rotina fácil, mas com cuidado e respeito a gente aprende a se
dosar até onde consegue.
Minha amiga do começo do texto precisou reduzir a carga horária no lugar
onde trabalhava (e a quantidade de comida na despensa, porque o salário
diminuiu junto). Outro colega sai para dar uma volta na quadra entre um
atendimento ou outro. Eu aprendi a não marcar ninguém no horário seguinte
toda vez que atendo alguém que tenha sofrido violência sexual.

Quando a loucura é rotina, cada um encontra seu método para se manter são.

Aceitar nossa loucura


Se eu me exponho tanto nesse texto é pra deixar bem claro que não existe um
muro dividindo a saúde mental em que um lado tem as respostas.
Eu não tenho as respostas. Nenhum psicólogo tem.
Não existem respostas.
Negar nossa loucura só enfraquece o trabalho que a gente se propõe a
fazer.
Se eu trabalho com psicoterapia é porque eu acredito que psicoterapia
funciona.
Acredito que funciona porque já tive momentos de depressão em que a corda
esteve perigosamente perto do meu pescoço, e foi fazendo terapia que eu
consegui sobreviver e encontrar (a cada dia um novo) sentido para a vida.
Por isso mesmo que eu sou um bom psicoterapeuta – ainda que a depressão
me derrube de vez em quando.
E se você é psicólogo e convive com um sofrimento emocional… Isso não é
necessariamente ruim. Só é importante que, assim como cuida dos outros,
você se cuide.
Precisando, a gente cuida de você também.

Flávio Voight é psicólogo e escritor. Sócio-fundador da Oriente Psicólogos


Associados, em Curitiba, atua com atendimento clínico e mentoria para
profissionais que queiram ampliar sua presença nas redes sociais. Acredita que
sensibilidade, leveza e bom humor são sempre o melhor caminho para tratar do
ser humano - e para ser um também.

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