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Revista 200 - Ano I Número 1 Outubro/dezembro de 2018
Revista 200 - Ano I Número 1 Outubro/dezembro de 2018
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Ministério das Relações Exteriores
Grupo de Trabalho do Bicentenário da Independência.
Capa e quarta capa: “Sessão das Cortes de Lisboa”, de Oscar Pereira da Silva. Sessão de 9 de maio de 1822.
Antonio Carlos, de costas para o observador, discursa enfrentando Borges Carneiro que se acha de pé à sua frente.
À direita Vergueiro volta-se para um comentário com o Padre Feijó. Museu Paulista.
Sumário
Documentos Históricos
Aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, Brasil e Algarves em 1818.
6 Jean-Baptiste Debret
Diplomatas Historiadores
Varnhagen, História e Diplomacia
16 Arno Wehling
Visões do Brasil
Destino de um país mediador
40 Gilberto Freyre
Tema da Capa
Cortes de Lisboa: “a história mais documentada, mais interessante
e mais lógica da independência do Brasil”. Oliveira Lima
Apresentação
Comitê Consultivo
Luiz Felipe de Seixas Corrêa
Marcos Bezerra Abbott Galvão
Eduardo Paes Saboia
Santiago Irazabal Mourão
Manoel Gomes-Pereira
Gonçalo Mourão
Paulo Roberto de Almeida
Secretaria: Miguel Griesbach de Pereira Franco, Orlando Celso Timponi e Erlon Moisa.
Endereço:
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios - Palácio Itamaraty
Gabinete do Ministro de Estado
CEP 70170-900 Brasília, D.F.
www.itamaraty.gov.br/revista 200
200@itamaraty.gov.br
Os artistas das capas
Capa e quarta capa: “Sessão das Cortes de Lisboa”
Oscar Pereira da Silva (São Fidélis RJ 1867 - São Paulo SP 1939), foi pintor,
decorador, desenhista e professor. Em 1882, matriculou-se na Academia Imperial de
Belas Artes onde teve como contemporâneos Eliseu Visconti, Eduardo Sá e João Batis-
ta da Costa. Aluno de Zeferino da Costa, foi o último detentor do prêmio de viagem à
Europa concedido pelo imperador D. Pedro II.
A obra, capa do número 1 da revista “200”, foi encomendada por Affonso d’
Escragnolle Taunay (1876 – 1958), que entre 1917 e 1945, foi diretor do Museu do Ipi-
ranga, atual Museu Paulista da USP. A tela “Sessão das Cortes de Lisboa” está exposta
em frente ao quadro “Independência ou Morte!”, de Pedro Américo, a indicar que o
debate parlamentar preparou a independência.
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Aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, Brasil e Algarves em 1818.
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Jean-Baptiste Debret
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Página anterior: J.-B. Debret. Vista exterior da galeria da Aclamação do Rei D. João VI. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Primeira medalha cunhada no Brasil, em 1820, em comemoração à aclamação de D. João VI. Acervo Banco Itaú.
“Dois grandes serviços D. João VI prestou a este país, que o acolheu lealmente e onde foi poderoso
e feliz: montou, ao chegar, a aparelhagem administrativa dos Estados europeus: e, ao partir, não a
desmantelou”. Pedro Calmon, Itamaraty, 1939.
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Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
Documentos Históricos
Aclamação de D. João VI
como Rei de Portugal,
Brasil e Algarves em 1818.
Jean-Baptiste Debret*
T
anto a timidez natural de D. João VI, herdeiro legítimo da
coroa de sua mãe desde fins de fevereiro de 1816, como a
distância considerável pela qual o Brasil está separado do con-
tinente, foram sem dúvida as causas principais das circunstâncias que
atrasaram em dois anos o reconhecimento do Reino Unido de Brasil,
Portugal e Algarves.
O novo rei precisava, com efeito, obter a ratificação da Regên-
cia portuguesa estabelecida em Lisboa, além da anuência das grandes
potências da Europa, dele separadas por duas mil léguas. Por isso, foi
somente a 6 de fevereiro de 1818 que se realizou, no Rio de Janeiro, o
Ato da Aclamação solene do novo rei D. João VI.
Depois de apresentar uma vista do interior da galeria em que se passam todos os detalhes do
Ato da Aclamação, reproduzo agora o exterior dessa mesma galeria que ocupava todo o fundo do
largo com frente para o mar.
O momento escolhido é o da partida do rei, em que aparece ao balcão central do edifí-
1
cio para mostrar-se ao povo e receber as primeiras homenagens antes de descer para a Capela
Real a fim de assistir ao Te Deum, com que termina a cerimônia da aclamação. Percebe-se, através
da abertura das arcadas, na primeira janela à esquerda, o trono; na segunda, a tribuna da família
real, das damas da corte e das legações estrangeiras; na terceira, antes do fim, vê-se a porta de
comunicação que conduz à Capela Real e pela qual deve passar o cortejo; as duas últimas, final-
mente, servem para clarear o vestíbulo arranjado à entrada da escadaria de que se vê uma parte
do lado de fora.
* Pintor e professor francês, integrou a missão artística francesa (1817) ao Brasil. Publicou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-1839), em que está
incluído o texto aqui publicado. Tomou a iniciativa de realizar, em 1829, a primeira exposição de arte no Brasil.
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Janela na qual os pregoeiros proclamaram publicamente sua nominação real (Ver a descrição no texto).
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Aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, Brasil e Algarves em 1818.
Uma balaustrada erguida no envasamento do balcão de honra serve de coreto para a orques-
tra composta unicamente dos músicos alemães que acompanharam a princesa durante a travessia. O
comandante da praça e dois oficiais de seu estado-maior mantêm-se no centro de um espaço vazio
reservado em torno do balcão. Pelotões de infantaria e de cavalaria distribuem-se entre a massa de
espectadores espalhados pelo largo.
É preciso dizer que o conjunto dessas medidas militares contribuiu bastante para tranquilizar
o novo rei temeroso da explosão de um motim popular fomentado pelo descontentamento dos por-
tugueses enciumados com sua longa permanência no Brasil e isso apesar da promessa feita de voltar
para Lisboa logo após a conclusão da paz geral.
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D. João VI não apareceu com a coroa na cabeça; ela se encontrava sobre uma almofada ao lado dele, pois desde a morte do rei D. Sebastião em combate
na África, em 1578, a coroa e o manto real ficaram em poder dos mouros, senhores do campo de batalha. O orgulho português supõe que D. Sebastião,
salvo por Deus, deve voltar trazendo a coroa de Portugal. Por isso, ainda hoje, certos portugueses abrem religiosamente as janelas durante as tempestades,
na esperança do regresso do rei. Esses supersticiosos são chamados sebastianistas.
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Jean-Baptiste Debret
Às três horas da tarde as forças militares tomaram posição no largo do Palácio. Reuniram-se
aí duas brigadas: a primeira composta do primeiro regimento de infantaria de linha e dos XI e XV de
infantaria de polícia, comandada pelo brigadeiro de cavalaria Luís Paulino de Oliveira Pinto; a segun-
da, composta da cavalaria da milícia e do segundo batalhão de caçadores e granadeiros, comandada
pelo brigadeiro Veríssimo Antônio Cardoso; juntaram-se ainda oito peças de canhão da artilharia
montada. A tropa tinha por comandante em chefe o general Luís Inácio Xavier Palmerim. Havia
ainda duas guardas de honra, uma junto da galeria e outra perto da Capela Real. Colocara-se na praça
do Rocio um corpo de reserva composto de cavalaria de polícia, infantaria de linha e artilharia, co-
mandado pelo brigadeiro José Maria Rebelo de Andrade Vasconcelos.
Às quatro horas as girândolas, os sinos da Capela Real e as salvas de artilharia dos fortes e da
Marinha deram o sinal, entre aclamações do povo que atulhava o largo do Palácio; nesse momento
surgiu o rei saindo dos seus aposentos para entrar na galeria. Acompanhavam-no grandes dignitá-
rios, seculares e eclesiásticos, bem como oficiais de sua Casa; e o cortejo avançou na seguinte ordem:
em primeiro lugar os maceiros e passavantes, os três arautos, os bedéis da Câmara, os vereadores,
os nobres da Corte e outros titulares, os bispos, os oficiais da Casa Real com as insígnias da realeza,
marchando no centro do cortejo; seguiam-se o ministro do Interior, Tomás Antônio de Vila Nova
Portugal, o conde de Viana como meirinho-mor, com sua vara branca, o capelão-mor, conde de Bar-
bacena, carregando o estandarte real; em seguida, o capitão da guarda real, marquês de Belas, o sere-
níssimo infante D. Miguel carregando a espada de condestável e, finalmente, o príncipe real e o rei.
Os brasileiros admiravam D. João VI, vestido pela primeira vez com o soberbo manto real de
veludo carmesim semeado de castelos e quinas, emblemas das armas de Portugal e guarnecido com
a esfera celeste, emblema do Brasil; o manto era seguro por uma presilha de brilhantes. O conde de
Parati carregava a cauda na qualidade de camareiro-mor.
O rei, sentado no trono, recebeu o cetro de ouro das mãos do conde de Parati ao qual fora
o mesmo entregue pelo visconde de Rio Seco. À direita do trono mantinha-se de pé o príncipe D.
Pedro, com a cabeça descoberta, e mais adiante o condestável D. Miguel, de espada na mão. Assistiam
S. M. três gentis-homens do rei: conde de Parati, Nuno José de Sousa Manuel e marquês de Torres
Novas. No grande degrau do trono, à direita, achava-se sua Excelência, o capelão-mor, e atrás dele
vários outros bispos; no mesmo degrau, do lado esquerdo, via-se o marquês de Angeja, mordomo-
-mor; em seguida o ministro do Interior, o meirinho-mor da Câmara e, enfileirados, os condes, vis-
condes, barões e oficiais da Casa Real.
Do mesmo lado, isto é, no canto esquerdo do degrau superior do grande estrado, via-se o
alferes-mor, com o estandarte real enrolado; no segundo degrau se mantinham os ministros do Se-
nado formando o corpo da Câmara; atrás deles a mesa do Desembarco do Paço, e da Consciência e
Ordens, o Conselho de direção da Alfândega e a Casa da Suplicação, o Conselho Supremo Militar, a
Real Junta do Comércio, a Junta dos Arsenais, a da Bula, a do Real Erário e finalmente os represen-
tantes da Universidade de Coimbra. Nos mesmos degraus, do lado direito do trono, colocavam-se
por ordem hierárquica os prelados das ordens religiosas. Na parte mais baixa, antes do primeiro es-
trado do trono, viam-se os arautos, os passavantes, os maceiros e os convidados de destaque. Todas
essas disposições haviam sido tomadas pelo visconde de Asseca, como mestre-sala.
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Aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, Brasil e Algarves em 1818.
Correios. 2018. Emissão postal comemorativa na série 200 anos de Independência: Bicentenário da Aclamação de D. João VI.
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Jean-Baptiste Debret
A primeira tribuna à esquerda do trono fora reservada para a família real; via-se a rainha, em
primeiro lugar, mais perto do trono; em seguida a princesa real e mais adiante as princesas filhas do
rei; todas essas senhoras usavam penas vermelhas, à exceção da princesa real que as usava brancas.
Atrás delas, reservaram-se lugares um pouco mais elevados, no fundo da mesma tribuna, para as da-
mas de honra. As outras três tribunas eram ocupadas por damas da Corte e a quarta, um pouco mais
longe, fora reservada ao corpo diplomático.
Eis agora a cerimônia da aclamação. O rei, de pé, de cetro na mão, saudou a rainha e as
princesas reais e sentou-se no trono. Imediatamente o primeiro ministro fez sinal ao rei das armas
que, colocando-se no centro da sala, debaixo de grande estrado, dirigiu à assembleia estas palavras
pronunciadas em voz alta: “ouvide, ouvide, ouvide, estai atentos”. O desembargador do paço foi
então levado ao estrado perto dos degraus do trono e dirigiu uma oração ao rei, na qual exprimiu os
votos do povo e disse as consequências felizes que este esperava no reinado de sua augusta pessoa,
unanimemente escolhida pelos seus súditos, ao que o rei respondeu: “aceito para felicidade dos meus
povos”. O desembargador retirou-se em seguida, saudando o rei.
Os gentis-homens de serviço apressaram-se em colocar aos pés do rei um escabelo e ao lado
um banquinho guarnecido com uma almofada rica de brocado vermelho e dourado, sobre a qual o
bispo, capelão-mor, colocou o missal aberto com um crucifixo por cima. Ajoelharam-se então o rei,
o capelão-mor e dois outros bispos, o de Azoto, prelado de Goiás e o Leontopoli, prelado de Mo-
çambique e rios de Sena; estes dois últimos como testemunhas do juramento de S. M.. O primeiro
ministro aproximou-se do rei e se ajoelhou ao lado dele para ler a fórmula do juramento, que o rei
repetiu. S. M. passou o cetro para a mão esquerda, a fim de colocar a direita sobre o missal e o cruci-
fixo, enquanto pronunciava o juramento. Terminada a cerimônia, tornou a sentar-se o rei e as outras
pessoas voltaram para os seus lugares; somente o primeiro ministro continuou no meio do grande
estrado para ler à assembleia a fórmula do juramento que devia ser prestado perante o soberano.
Em seguida, o reposteiro-mor e o bispo capelão-mor colocaram o banquinho e o missal mais para a
esquerda do trono, para que os dois príncipes reais pudessem jurar obediência. A mesma cerimônia
recomeçou para o juramento do bispo, do ministro e dos príncipes D. Pedro e D. Miguel. O príncipe
D. Pedro depois de jurar obediência, de acordo com a fórmula indicada pelo ministro, levantou-se
para beijar a mão do rei e voltou para seu lugar. O príncipe D. Miguel fez o mesmo, depois de ter pas-
sado para a mão esquerda a espada que segurava, a fim de poder colocar a direita em cima do missal
e do crucifixo para o juramento; foi também, como seu irmão, beijar a mão do rei e voltou para seu
lugar. Todos os presentes o imitaram.
Nesse momento o alferes-mor desfraldou o estandarte real dizendo em voz alta: “Real, real,
real, pelo muito alto e muito poderoso senhor rei D. João VI, nosso Senhor”, o que repetiram os reis
de armas e as pessoas presentes na galeria, e constituiu sinal para as bandas reunidas nos largos exe-
cutarem os hinos. Depois dessa primeira proclamação interna, o porta-estandarte desceu do estrado,
após saudar o rei, e foi conduzido ao balcão central da galeria pelos maceiros, passavantes, arautos e
reis de armas. Aí se encontrava preparado um pequeno estrado de três degraus, sobre o qual subiram
o porta-estandarte e o rei de armas; depois das três saudações da bandeira, repetiram eles ao povo a
mesma proclamação, a que todos os presentes responderam com demonstrações de alegria e vivas,
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Aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, Brasil e Algarves em 1818.
que se confundiram com a música das bandas, os sinos, os estrondos das girândolas e as salvas de
artilharia dos fortes e da marinha.
Depois dessa proclamação, o rei de armas, novamente no interior do palácio, notificou a
partida do rei; o cortejo se formou e a marcha se iniciou ao som da música das bandas reunidas na
praça. Os vivas repetiram-se com entusiasmo a cada parada do rei nas arcadas para saudar o povo.
Chegando ao centro da fachada, o rei se apresentou ao balcão, tendo, à sua direita, seus dois filhos; e
à esquerda, o porta-estandarte real e o capitão da guarda. Depois de ter saudado o povo várias vezes,
continuou sua marcha para entrar na Capela Real, o que suspendeu durante certo tempo as demons-
trações de alegria pública.
O bispo, capelão-mor, acompanhado de seu clero aguardava o rei à porta interna da capela,
para espargi-lo de água benta e dar-lhe a beijar a relíquia do santo Lenho; o rei foi em seguida con-
duzido sob o dossel até o lugar reservado no coro para assistir ao Te Deum, executado com grande
orquestra, e no fim do qual o bispo distribuiu uma tríplice benção com essa mesma relíquia magnifi-
camente incrustada numa grande cruz de ouro maciço e brilhantes.
Terminado o ofício divino, o cortejo pôs-se novamente em marcha e atravessou de novo a
galeria da aclamação, reconduzindo o rei a seus aposentos; eram então sete horas da noite.
Após uma hora de repouso a Corte tornou a aparecer no balcão, com os membros do corpo
diplomático, a fim de apreciar as iluminações do largo do Palácio, da Ilha das Cobras e de todas as
embarcações de guerra no porto, cujas lanternas habilmente combinadas formavam desenhos va-
riados. Esses contornos luminosos ligavam-se insensivelmente, graças ao efeito do recuo, ao clarão
das fogueiras acesas do outro lado da baía, indicando os diferentes planos do terreno ocupado pelas
propriedades rurais de Praia Grande, somente perceptível em virtude do colorido vigoroso das mon-
tanhas que fecham o horizonte desse lado. 200
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Jean-Baptiste Debret
D.João VI com a insígnia e faixa da Ordem Militar da Torre e Espada, por ele renovada em 1808.
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Varnhagen, História e Diplomacia
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Diplomatas HistoriaDores
Varnhagen, História
e Diplomacia
Arno Wehling*
N
“ atural de Sorocaba”, diz a informação abaixo do nome do autor, nas edições da História
geral do Brasil. A afirmação de naturalidade era compreensível, para quem teve de conse-
guir a nacionalidade brasileira por decreto.
Como os biógrafos de Varnhagen já fixaram, ele foi o sétimo filho do sargento-mor,
depois tenente-coronel de engenheiros Frederico Luís Guilherme de Varnhagen, nascido em
Wetterburg, no principado germânico de Waldeck, de uma família luterana da pequena nobreza,
que se pode rastrear genealogicamente até o século XV.1 Pelo lado materno, era filho da portu-
guesa Maria Flavia de Sá Magalhães, possivelmente ligada a ramos paulistas tradicionais, tema
que permanece obscuro em sua biografia e sobre o qual existe apenas uma referência do próprio
Varnhagen, em polêmica com Abreu e Lima, que o “acusara”, ainda no clima de nacionalismo
exacerbado do período posterior à independência, de ser “filho de alemão e de senhora que não
era brasileira”.2
A história de seu pai em Portugal e no Brasil relaciona-se com a tentativa do governo de
D. João de instalar a metalurgia em seus domínios, para o que foram contratados, além dele, mais
dois alemães, Guilherme Luís de Eschwege, autor do Pluto Brasiliensis e Guilherme Cristiano Feld-
ner. Quando nasceu Francisco Adolfo de Varnhagen, em 17 de fevereiro de 1816, o pai era o dire-
tor da Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, situada a duas léguas do centro de Sorocaba.
*
Doutor e livre docente em História pela USP e pós-doutorado pela Universidade do Porto, sua atividade intelectual desenvolve-se na epistemologia das
ciências humanas/história, da história das ideias políticas e jurídicas e da história do direito/instituições. É presidente, desde 1976, do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e, desde 2017, é membro da Academia Brasileira de Letras.
1
Inocêncio Francisco da Silva, “Francisco Adolfo de Varnhagen, Português-Brasileiro”, Arquivo Pitoresco, Lisboa, 1859, vol. II, p. 356. Augusto Vitorino
Alves de Sacramento Blake, Diccionario Bibliographico Brazileiro, Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970, vol. II, p. 371. Manuel de Oliveira Lima,
“Elogio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro”, Discursos e Orações Acadêmicas, Rio de Janeiro: Academia Brasileira, vol. I, p. 99.
Rodolfo Garcia, “Varnhagen - ensaio bio-bibliográfico”, em Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil, São Paulo: Irmãos Weisflog, 3. Ed, [1926],
vol. II, p. 436. Clado Ribeiro Lessa, “Vida e obra de Varnhagen”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1954, vol. 223, p. 82.
2
José Inácio de Abreu e Lima, Resposta do general J. I. de Abreu e Lima ao Cônego Januário da Cunha Barbosa ou Análise do “Primeiro Juízo” de Fran-
cisco Adolfo de Varnhagen acerca do “Compêndio de História do Brasil”, Recife: M. F. Faria, 1844, p. 10. Varnhagen atribui ao próprio D. Pedro I, então
Duque de Bragança, em Portugal, a afirmação de que possuía “sangue paulista”. Francisco Adolfo de Varnhagen, Réplica apologética de um escritor caluniado e
Juízo Final de um plagiário difamador que se intitula General, Madri: D. R. J. Dominguez, 1846, p. 12. Clado Ribeiro Lessa, “Vida e obra de Varnhagen”, p. 92.
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Varnhagen, História e Diplomacia
Das esperanças que o empreendimento despertava basta lembrar que no ano seguinte o padre Aires
do Casal afirmava que a fábrica haveria “de fazer esta vila mui grande, célebre e famosa”.3
A família permaneceu em São Paulo até dezembro de 1821, quando se mudou para o Rio de
Janeiro. Aí Varnhagen iniciou seus estudos, enquanto o pai, liberado da direção da fábrica, regressava
para a Europa. Em outubro de 1823 todos partiram para Portugal, onde Frederico Luís Guilherme
de Varnhagen fora nomeado administrador das matas do Reino. Entre 1825 e 1832 cursou o colégio
militar (Colégio Real da Luz), em Lisboa, entrando neste último ano para a Academia da Marinha, já
interessado em formar-se engenheiro. Após um período de serviço militar ativo, quando lutou, do
lado liberal, nas tropas de D. Pedro IV, chegando a primeiro tenente, concluiu em 1839 o curso de
engenharia militar na Real Academia de Fortificações.4
Por esse tempo, já possuía grande interesse pela pesquisa histórica, realizando investigações
nos arquivos portugueses. Delas resultou seu primeiro trabalho, Reflexões críticas sobre o escrito do século
XVI impresso com o título “Notícia do Brasil”, lido na Real Academia das Ciências de Lisboa em 7 de
novembro de 1838 e publicado pela instituição no ano seguinte, que também o fez seu membro cor-
respondente.5 Tratava-se da obra de Gabriel Soares de Sousa, para cujo trabalho comparou os onze
apógrafos existentes à época em Portugal e que depois publicaria como Tratado descritivo do Brasil em
1587. No mesmo ano publicou o Diário da Navegação, de Pero Lopes de Sousa, estabelecendo o texto
a partir de três versões manuscritas.6 No ano anterior já identificara o túmulo de Pedro Álvares Ca-
bral, na igreja da Graça, em Santarém.7 Pela mesma época fundou-se o Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro, para o qual logo seria eleito.8
Decidido a vincular-se ao Brasil, sua primeira providência precisava ser a obtenção da na-
cionalidade brasileira, o que requereu ao Imperador em meados de 1840, logo após seu regresso de
Portugal. Obteve-a por decreto imperial de 24 de setembro do ano seguinte.
A decisão de optar pela nacionalidade brasileira e pela entrada no serviço público do país
deve ter sido tomada alguns anos antes, pois fizera boas relações com Antonio de Menezes Vascon-
celos de Drummond, ministro brasileiro em Lisboa. Este, em correspondência de 14 de dezembro
de 1839 dirigida ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Caetano Lopes Gama, falava das qualidades
de Varnhagen como pesquisador, sugerindo sua nomeação para adido da legação em Lisboa, “com
encargo especial de coligir documentos e diplomas para a história do Brasil” e opinando que 800$000
anuais seriam suficientes como remuneração.9
3
Manuel Aires do Casal, Corografia Brasílica, São Paulo: Itatiaia, 1976, p. 114.
4
Clado Ribeiro Lessa, “Vida e obra de Varnhagen”, p. 96. Luis Felipe Vieira Souto, “Os Varnhagens militares”, em Cruz e Espada, Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio, s/d, p. 35.
5
Francisco Adolfo de Varnhagen, Reflexões críticas sobre o escrito do século XVI impresso com o título de “Notícia do Brasil”, Lisboa: Real Academia das Ciências,
1839, 120p.
6
Francisco Adolfo de Varnhagen (ed.), Diário da Navegação da Armada que foi à terra do Brasil em 1530, Lisboa: SPCU, 1839, 130p. O autor promoveria mais
duas edições do Diário, aperfeiçoando o texto com novos documentos, uma publicada em 1861 na Revista do Instituto Histórico, vol. XXIV, e a outra em
1867, por editor do Rio de Janeiro; ver Sacramento Blake, ob. cit, vol. II, p. 373.
7
Clado Ribeiro Lessa, “Vida e obra de Varnhagen”, p. 130.
8
Arno Wehling, “As origens do Instituto Histórico”, em A invenção da história, Rio de Janeiro: UGF-UFF, 1994, p. 224. Clado Ribeiro Lessa, “Vida e obra
de Varnhagen”, p. 111.
9
Ofício reservado de Drummond a Lopes Gama, em Clado Ribeiro Lessa, “Vida e obra de Varnhagen”, p. 108.
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Arno Wehling
Em maio de 1842, já tendo regressado a Portugal e dado baixa no exército do país, foi nome-
ado para o cargo que Drummond sugerira. Mudara de interesse intelectual e profissão, passando da
engenharia militar para a história e a diplomacia.
Essa mudança é significativa de uma conjuntura e um Zeitgeist. Ressalte-se que o ingresso de
Varnhagen na diplomacia brasileira deu-se a partir de algumas credenciais intelectuais, como jovem
pesquisador já bem sucedido no campo da historiografia, com a missão precípua de realizar investi-
gações de interesse para o país. Não se tratava de um diplomata com interesses de historiador, mas
de um historiador que deveria, em sua atividade diplomática, pelo menos nesse primeiro momento,
dedicar-se à pesquisa histórica.
Por que tornava-se tão relevante o estudo da história, a ponto de justificar o ingresso na car-
reira diplomática de um talento promissor?
A explicação mais razoável é a que identifica um grande esforço do governo imperial, ou-
dito de uma perspectiva sociológica - da elite fluminense-mineiro-paulista que controlava o poder
em fins do período regencial e inícios do segundo reinado, para a consolidação do modelo político
existente.10 Esse modelo, definido formalmente na constituição de 1824, reformado pelo Ato Adi-
cional de 1834 e que atingiu seu ponto de equilíbrio com a lei interpretativa deste, de 1841, consistia
no estabelecimento de um regime monárquico constitucional e unitário, baseado, quanto à repre-
sentação política, no sufrágio censitário e, quanto ao equilíbrio de poderes, na fórmula de Benjamin
Constant, do poder moderador.11 Contestada pelas revoltas provinciais, temerosa de uma rebelião
geral de escravos como ocorrera no Haiti, esta elite conservadora - regressista, na expressão da épo-
ca - procurou construir também no plano ideológico a imagem de um país europeu nos trópicos, em
marcha acelerada para a “civilização”. Essa busca de uma identidade pós-colonial, comum a outros
países iberoamericanos, exigia a elaboração de um universo simbólico, no qual a afirmação da história
nacional possuía papel preeminente.
Nesse contexto, fundou-se o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, que desde logo
contou com a colaboração de Varnhagen e buscou-se coligir, nas províncias e no exterior, documentos
que pudessem embasar a historiografia nacional, para além do que haviam conseguido os cronistas co-
loniais. À mera coleção, porém, somava-se a necessidade de elaborar uma “história do Brasil” que, como
sugeriu Karl von Martius na célebre monografia premiada em 1843 pelo Instituto Histórico, fosse redigida
de um ponto de vista unitário, monarquista, constitucional e que reconhecesse a supremacia da contribui-
ção branca portuguesa em relação às demais etnias formadoras do povo brasileiro.12 Varnhagen, embora
não gostasse da ideia de que sua obra fosse interpretada como simples realização do programa de Martius,
efetivamente esposou todos os princípios por ele enunciados.
A sugestão de Drummond, assim, atendia o interesse da alta política nacional, favorecida pela
figura talentosa e promissora do jovem engenheiro.
10
Diferentes perspectivas analisam este período, como aquelas inspiradas nas teses de Oliveira Viana, presentes nas obras de Otávio Tarquínio de Sousa, Hé-
lio Viana e João Camilo de Oliveira Torres; as marxistas, representadas em Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré; e as weberianas, por Raimundo Faoro
e Fernando Uricochea; Arno Wehling, Estado, história, memória - Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 33.
11
Arno Wehling, Pensamento político e elaboração constitucional - estudos de história das ideias políticas, Rio de Janeiro: IHGB, 1994, p. 50.
12
Karl Friedrich Philip von Martius, “Como se deve escrever a história do Brasil”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 229:2, 1953; Arno
Wehling, “A concepção histórica de von Martius”, RIHGB, vol. 385, 1994.
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Varnhagen, História e Diplomacia
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Sua vida diplomática, que se estendeu de 1842 a 1878, pode ser classificada em quatro eta-
pas: a portuguesa (1842-1847), a espanhola (1847-1858), a sul-americana (1859-1867) e a austríaca
(1867-1878). Em todas, a par de sua atividade administrativa, ligada ou não à investigação histórica,
produziu e publicou intensamente. Embora predominassem os estudos e pesquisas históricas, tra-
balhou também nos campos da história literária e edição crítica de textos de literatura, etnografia,
ficção, política, fomento econômico e educação, além das polêmicas em que se envolveu. Em todas
elas perpassa forte inspiração nacionalista, que fazia questão de distinguir do “caboclismo” indianista
que combatia. Mas os condicionamentos de sua vida diplomática estão mais presentes nos estudos e
pesquisas históricas e nos trabalhos de fomento econômico e política educacional, quer pela motiva-
ção que os anima, quer pelas condições de elaboração.
Nomeado em abril de 1842 adido de primeira classe à Legação em Lisboa, permaneceu neste
posto até 1847, tendo exercido interinamente o cargo de secretário. Realizou novas pesquisas nos
arquivos portugueses, até que, em 1846, recebeu a incumbência de coligir nos arquivos espanhóis do-
cumentos relativos aos limites com os países hispano-americanos, o que possivelmente determinou
sua remoção no ano seguinte.
Em janeiro de 1847 foi designado para Madri, sendo promovido a secretário em junho deste
ano. Permaneceu na capital espanhola até 1859, com um intervalo em 1851, quando retornou ao Brasil
a chamado do Ministro dos Negócios Estrangeiros Paulino José Soares de Sousa, para trabalhar na con-
sultoria histórica das questões de fronteiras com as Guianas e os países hispano-americanos.13 Regressou
a Madri promovido a encarregado de negócios. De 1859 até 1867 foi ministro residente sucessivamente
no Paraguai, na Venezuela (cumulativamente com a Colômbia e o Equador) e no Chile (cumulativamente
com o Peru e o Equador), postos nos quais ocupou-se das mesmas questões. Removido para Viena, onde
ficou até morrer, em 1878, recebeu a promoção a ministro plenipotenciário em 1871, mesmo ano em que
recebeu o título de Barão de Porto Seguro. Em 1874 tornou-se Visconde, com grandeza.
Correlacionando-se produção intelectual e atividade diplomática, verifica-se que sua obra
mais importante, a História Geral do Brasil, teve sua primeira edição no período em que se encontrava
na Espanha, e a segunda, revista e aumentada, na Áustria. A história das lutas com os holandeses,
acelerada devido à guerra do Paraguai, teve uma primeira edição durante o conflito e uma segunda,
melhorada, em 1871, quando se encontrava em Viena. Os trabalhos sobre Américo Vespúcio, a edição
da carta de Colombo e outros textos sobre a época dos descobrimentos correspondem à fase final da
Espanha, quando dispunha da facilidade de trabalhar nos arquivos de Madri, Simancas e Sevilha, mas
foram continuados na etapa sul americana e concluídos no início da estada na corte austríaca. A obra
de história e crítica literária concentrou-se nas décadas de 1840 e 1870, isto é, foi majoritariamente
produzida em Portugal e na Áustria. Os temas etnográficos estão presentes nas etapas portuguesa
e espanhola, para reaparecerem com o polêmico L’origine touranienne des américains tupis-caraibes et des
anciens égyptiens na Áustria, em 1876. A incursão no mundo da política nacional aparece somente em
dois momentos, 1849-1850, quando estava na Espanha e onde publicou o Memorial Orgânico, série
de sugestões sobre a organização nacional, inclusive o tema das fronteiras, e na fase final da vida,
quando discutiu a questão da transferência da capital para o planalto de Goiás.
13
Arquivo Histórico do Itamaraty; Francisco Adolfo de Varnhagen, Arquivo de Simancas, XXVII, lata 355.
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Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Rua Direita, gravura. Pintor alemão que viajou pelo
Rio de Janeiro e Minas Gerais entre 1822 e 1825, pintando os povos e costumes nos lugares em que esteve.
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Posição intelectual
Os aspectos principais da posição intelectual de Varnhagen foram o forma historicismo, o
nacionalismo e o estatismo. Como já desenvolvemos de forma mais extensa essas questões em outro
trabalho, limitar-nos-emos a assinalar alguns traços mais diretamente incidentes sobre as relações, em
Varnhagen, entre história e diplomacia.
O historismo, ou historicismo romântico-erudito14, era o principal traço da formação inte-
lectual de Varnhagen. Profundamente imbuído da ideia de que toda a realidade era histórica, con-
cepção extensamente difundida no século XIX euro-americano e que reagia contra o mecanicismo
naturalista do século anterior, Varnhagen, sem ter trazido ao nível consciente nítidas formulações
teóricas, trabalhou com algumas categorias que também foram comuns a outros intelectuais, parti-
cularmente historiadores, de sua época. Assim, essas categorias, com suas características ontológicas,
epistemológicas ou metodológicas, podem ser resumidas em premissas como a da mutabilidade da
natureza humana, contra a ideia de essências filosóficas, a da dualidade do conhecimento da natureza
e do homem, irredutíveis entre si, a da existência de um padrão cultural ou configuração que carac-
teriza o ethos de uma comunidade ou sociedade, dando-lhe organicidade, mas sem o determinismo
das leis sociais, a da teleologia das ações sociais, refutando os extremos de considerá-las caóticas ou
determinadas, a da especificidade cultural das realizações humanas básicas como a língua, a religião,
o direito e a arte, a da ação da Providência na história, embora admitido o livre arbítrio, e a de que a
historiografia é o ponto mais alto da realização cultural de uma sociedade.
O nacionalismo de Varnhagen, se aceitarmos a dicotomia usual de uma versão alemã, telúrica
e inspirada no Volksgeist, e uma visão francesa, de fundo romântico mas balizada pelo voluntarismo,
inclinou-se para a segunda. A construção da nação não era, para ele, pelo menos no caso brasileiro,
um processo que vinha do fundo dos tempos, mas algo que se construíra naquele momento histórico
por sucessivas manifestações de vontade política e cujos antecedentes mais remotos ele identificava
com a literatura arcádica da geração anterior ao romantismo ou, excepcional e regionalmente, com a
reação anti-holandesa.15 Esta questão conduz ao problema do romantismo.
Varnhagen viveu o apogeu do romantismo e foi por ele influenciado. Entretanto, esta influ-
ência, nítida na obra ficcional e na crítica literária, não ocorre na sua produção histórica. Ele não foi
um historiador romântico, como Michelet, por exemplo. Houve apenas um traço comum entre ele e
os historiadores românticos, a concepção da cultura como um organismo. Essa ideia da cultura como
um ser vivo distinguia tais historiadores do mecanicismo da época iluminista, mas a semelhança de
atitudes para aí.
Varnhagen não aceitava a ideia de um gênio do povo, força quase anímica que conduzia os ho-
mens, concepção típica dos autores românticos. Para ele, a história movia-se por uma combinação de
interesses materiais, religiosos e de poder. Tampouco simpatizava com a ideia de que a comunidade lin-
guística e mesmo histórica era motivo suficiente para a constituição de um estado; isto poderia e até deve-
14
Arno Wehling, “A temática do historicismo”, em A invenção da História, p. 34.
15
Varnhagen foi o primeiro historiador a chamar a atenção para o fato de que a palavra “pátria” foi utilizada pelos líderes da Insurreição Pernambucana,
em seu Manifesto, sem entrar em considerações sobre sua precisão semântica, associando-a implicitamente ao sentido nacionalista moderno. Francisco
Adolfo de Varnhagen, História das lutas com os holandeses, Salvador: Progresso, 1955, p. 355.
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Manuel José de Araújo Porto-Alegre (1806 - 1879). Coroação de D. Pedro I (detalhe). Óleo sobre tela 80 x 110 cm.
A obra datada dos anos 1845 e 1846 se encontra no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
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ria ocorrer, mas outras circunstâncias, que identificava com a razão de estado, eram mais decisivas para a
existência histórica dos países - neste sentido, aliás, advogou a reincorporação do Uruguai como província
do Império e durante a guerra do Paraguai chegou a oferecer o alvitre de anexá-lo ao Brasil. Muito menos
admitia a licença com que alguns autores românticos, historiadores ou não, tratavam os fatos históricos,
que achava deveriam ser rigorosamente estabelecidos e respeitados.
A filosofia política de Varnhagen igualmente não foi explicitada de modo sistemático, mas
transparece em suas obras e na correspondência. Na década de 1830 participou das lutas políticas
portuguesas do lado liberal, mas quando estabeleceu os contatos com o Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro e ingressou na diplomacia já parecia convertido ao tipo de conservadorismo “re-
gressista” definido por Bernardo Pereira de Vasconcelos e de que era exemplo o próprio Instituto.16
O clima da Restauração moderada, expressa na monarquia burguesa de Luís Felipe, parecia o melhor
ponto de equilíbrio entre o jacobinismo revolucionário, que começava a encaminhar-se para o socia-
lismo, e o conservadorismo à outrance da época de Carlos X, que tinha a ilusão - senão a esperança
- de retornar a antes de 1789.
Alguns anos depois, já em Madri, Varnhagen aproximou-se das concepções de Donoso Cor-
tez, cuja leitura recomendou a D. Pedro II. A ideia da monarquia aristocrática, inspirada numa Idade
Média estilizada por De Maistre, Bonald e outros pensadores ultra-conservadores, e que assim che-
gava à Espanha, não motivou o pragmatismo cético do Imperador e o historiador-diplomata também
a abandonou.17
No Memorial Orgânico evitou tocar no problema da organização do estado e da representação
política, limitando-se a defender a centralização política e administrativa, contra a tese dos que advogavam
apenas a primeira, que seria neutralizada pela descentralização administrativa. Na correspondência ma-
nifestou-se diversas vezes satisfeito com o modelo constitucional vigente, isto é, os poderes equilibrados
pela ação do moderador e o sufrágio censitário, contra os “excessos democráticos”.
Por detrás, porém, das flutuações ideológicas do seu século, Varnhagen, como Ranke ou
Burckhardt, viu no estado a construção máxima do espírito humano em matéria de organização da
sociedade e do poder. Domingos José Gonçalves de Magalhães, em polêmica com ele sobre os in-
dígenas, chamou-o francamente de hobbesiano18 Hobbesiano-hegeliano, dir-se-ia melhor. Parece o
juízo mais correto, aplicado não só a Varnhagen, como à maioria dos historiadores do século XIX,
para os quais a dicotomia iluminista sociedade-estado soava como uma evidência axiomática. Libe-
rais, conservadores, socialistas, fossem historiadores, juristas ou filósofos, dificilmente escaparam da
ideia hegeliana de que o estado era “a marcha de Deus na terra”19, e o Visconde de Porto Seguro não
foi exceção.
16
Idem, ”As origens do Instituto Histórico”, em Invenção da História, p. 212.
17
Arno Wehling, “Varnhagen e a monarquia aristocrática”, Anais da XIV Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, 1994, p. 150 e segs.
18
Domingos José Gonçalves de Magalhães, “Os indígenas do Brasil perante a história”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 23, 1860, p. 15.
19
Georg Wilhelm Hegel, The Philosophy of Right, Londres: Clarendon Press, 1942, par. 258a.
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Sua presença no estado, como elemento de um de seus ramos, era por ele encarada como
um múnus que ultrapassava a mera atividade profissional, entendendo seus dois aspectos - o trabalho
diplomático propriamente dito e sua obra intelectual - como indissoluvelmente ligados e submetidos
à finalidade maior de afirmação do país e da monarquia. Numa carta extremamente franca, quase
desabrida, ao Imperador, datada de Madri, a 14 de julho de 1857, dizia:
“Sei que não falta gente que insistindo em considerar-me como meio literato (grifo no
original), meio empregado diplomático de cortesias (como dizem) fingem não saber
tudo quanto eu, politicamente, além do grande serviço desta História, tenho trabalha-
do em favor de V.M.I. e do Império; afora os serviços extraordinários nos próprios
cargos por mim exercidos...21
20
Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil, São Paulo: Melhoramentos, 1975, vol. I, p. 52.
21
Idem. Correspondência, p. 245. Referia-se Varnhagen ao segundo e último volume da primeira edição da História geral do Brasil, recém publicado.
22
Clado Ribeiro Lessa expressou idêntica opinião em relação ao período sul-americano; “Vida e obra de Varnhagen”, p. 264.
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sua época, que lhe renderiam as críticas de Domingos de Magalhães e João Francisco Lisboa, entre
outros, foram formuladas com o intuito de resolver o problema dos índios não aculturados. Suas so-
luções, a restauração das bandeiras preadoras e a criação de um sistema semelhante ao das encomiendas
espanholas, atribuindo uma espécie de tutoria ou protetorado por quinze anos sobre os indígenas
capturados, apareceram primeiro no Memorial Orgânico de 1849-1850;23 anos depois, estas ideias
ressurgiram na História geral como uma justificativa ex post facto da ação bandeirante:
“A questão mais espinhosa em São Paulo, como em todo o Brasil, não era a das mi-
nas... era a dos índios, aos quais os religiosos da Companhia tanto queriam amparar...
Os moradores de São Paulo, julgando-se oprimidos por arbítrios que classificavam de
hipócritas e até de interesseiros, e necessitados de braços para a agricultura e a lavra das
minas em vez de fazer contratos com os que estavam sujeitos aos jesuítas, ou de buscar
negros além dos mares com bárbara crueldade nos porões dos navios, assentaram de
valer-se de outro meio, aliás menos vil que este último, por isso mesmo que mediava
uma luta na qual expunham suas vidas - organizaram-se em bandeiras, e começaram a
ir prender índios bravos mui longe e fora da jurisdição dos jesuítas”.24
23
Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico, Madri: Dominguez, 1849-1850, p. 52.
24
Idem, História geral, vol. II, p. 52.
25
Ofício de 20 de junho de 1857, in Clado Ribeiro Lessa (org.), Correspondência, p. 240; Arquivo do Itamaraty, Francisco Adolfo de Varnhagen, XXVIII,
Guiana Francesa- Limites, lata 396.
26
Cartas de 12 de janeiro e 20 de fevereiro de 1855; Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, col. José Antonio Soares de Sousa.
27
Varnhagen, História das lutas, p. 8 e segs.
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mais tarde, esta interpretação, que prejudicaria o país.28 Não sabemos se o fez por motivos políticos,
ou se realmente convenceu-se da justiça da interpretação que beneficiava o Brasil.
De modo geral, defendeu, em relação às fronteiras, o disposto no tratado de Madri e no de
Santo Ildefonso. Revelou-se no assunto, entretanto, um pragmático, preferindo para definir os limites
o critério do divisor de águas ao do curso dos rios, ao contrário da diplomacia do século anterior,
baseado nas melhores condições tecnológicas de sua época. Conhecendo muito bem a geografia e os
antecedentes históricos das áreas de fronteira, admitia contudo concessões políticas, não se aferran-
do apenas à evidência histórica. No caso do Paraguai, por exemplo, coerente com a política brasileira,
em 1851, de fortalecê-lo e com ele manter boas relações, sugeriu que se mantivesse a interpretação
do tratado de 1777, que beneficiava aquela república.29
Embora fosse dos diplomatas mais qualificado em sua época para conseguir definir os limites
do país, não conseguiu fazê-lo quando representou o Brasil, na década de 1860, na Venezuela e nos
países da área do Pacífico, pela falta de condições políticas no primeiro e pela ruptura de relações
com o Peru, que apoiou o Paraguai quando se iniciou o conflito. O assunto permaneceria em aberto
até o início da república.
28
Ofício ao Visconde de Abaeté, Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 5 de abril de 1846; Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, I, 4, 3, 17 n. 3.
29
Francisco Adolfo de Varnhagen, Memória sobre os trabalhos que se podem consultar nas negociações de limites do Império, com algumas lembranças para a demarcação destes,
Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, I- 4,4, 112. Existe transcrição parcial do documento em Clado Ribeiro Lessa, Vida e obra de Varnhagen, p.
128 e segs.
30
Amo Wehling, Estado, história, memória, pp. 50 e segs.
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Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês do Paraná (1801 – 1856). A partir da formação do Partido Regressista, em 1837, que depois se
tornou o Partido da Ordem no início da década de 1840 e o Partido Conservador na década seguinte, Paraná contribuiu para a consolida-
ção da ordem política no Brasil recém-independente.
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Esse papel orientador da história sobre a atuação do homem de estado, recuperando a re-
tórica ciceroniana da historia magistra vitae, foi o traço permanente e mais importante da atuação de
Varnhagen como diplomata e homem de estado.
Nos primeiros trabalhos já aparece esta orientação. Ela se explicita no opúsculo de 1843,
Primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brasil, e será a tônica definitiva daí por diante. Em
1847 é a vez do Florilégio da poesia brasileira, no qual reúne pelo critério da naturalidade brasileira os
autores selecionados, com poucas e justificadas exceções.31 Desde o volume 2 da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, de 1840, contribuiu para a seção “Biografia dos brasileiros distintos por
letras, armas, virtudes”, com pequenos textos, documentados mas de caráter panegírico, como exigia
a publicação, sobre 16 personagens históricas. Do Florilégio e das biografias disse, na citada corres-
pondência ao Imperador, em 1857, reiterando afirmação de seis anos antes ao monarca:
“O motivo principal porque eu empreendera o Florilégio e escrevia biografias de brasileiros de to-
das as províncias era para ir assim enfeixando-as todas e fazendo bater os corações dos de umas províncias
em favor dos das outras, infiltrando a todos nobres sentimentos de patriotismo de nação, único sentimen-
to que é capaz de desterrar o provincialismo excessivo, do mesmo modo que desterra o egoísmo, levan-
do-nos a morrer pela pátria ou pelo soberano, que personifica seus interesses, sua honra e sua glória.”32
Quando foi impresso o segundo volume da História geral do Brasil, Varnhagen tomou a li-
berdade de sugerir sua adoção “nas escolas de direito e militares e nos colégios”, de modo a difundir
seu conhecimento, embora reconhecesse não ser seu o papel de “cronista-mor” do Império.33 Mo-
via-o, entretanto, o mesmo interesse político de consolidar o estado e por seu intermédio a nação.
Tentativa transparente de interferir, por meio de diagnóstico sócio-político e econômico
sobre a vida pública do país foi a elaboração do Memorial Orgânico, escrito nos primeiros anos da
estada em Madri e aí publicado.
Opúsculo, de 51 páginas, impresso na França por editor espanhol, constava de seis proposi-
ções, que tinham o propósito de reestruturar “fundamentalmente” o Brasil. Eram, segundo Varnha-
gen, a definição dos limites hispano-americanos, a transferência da capital para o interior do país, o
estabelecimento de uma rede de comunicações rodoferroviárias, integrando as diferentes províncias,
a redivisão territorial do país, a defesa e a constituição da população.
Na obra, Varnhagen, ainda jovem diplomata em início de carreira e sem obra definitiva, em-
bora visto como um talento promissor, não se furtou a enfrentar temas delicados, numa ótica que o
aproximava das posições dos conservadores brasileiros de meados do século XIX.
As proposições apresentadas por Varnhagen procuraram fundamentar-se na história. Pode-
ríamos repetir, para o Memorial Orgânico, o juízo emitido por Thiers Martins Moreira a propósito
da crítica literária do autor: basicamente historiador, era com esta perspectiva que se aproximava de
toda a criação estética.34 Não seria diferente para a análise política que empreendeu.
31
Francisco Adolfo de Varnhagen, Florilégio da poesia brasileira, Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1987, vol. I, p. 14.
32
Idem, Correspondência, p. 246.
33
Ibidem, p. 243.
34
Thiers Martins Moreira, “Varnhagen e a história da literatura portuguesa e brasileira”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 275: 2, 1967, pp.
155 e segs.
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O primeiro problema enunciado, o das fronteiras, parecia-lhe de mais fácil solução. “Pro-
duto da história”, como afirmou em diferentes circunstâncias, a sua delimitação deveria obedecer a
diferentes critérios. No caso da Guiana francesa, tratava-se apenas de aplicar a convenção de Paris,
de 28 de agosto de 1816, acordo complementar das decisões do Congresso de Viena. No da Guiana
inglesa, propunha acompanhar os cursos fluviais e, na sua ausência, - simplesmente dividir ao meio o
território.36 No caso dos países hispano-americanos, por sua vez, defendeu a aplicação do uti possidetis
e, subsidiariamente, os tratados de Madri e Santo lldefonso, além dos trabalhos dos respectivos de-
marcadores. Como critério norteador, afirmava, contra a opinião dos que propunham um congresso
internacional para resolver as questões de fronteira:
“O que é essencial é estarmos bem inteirados de nossos direitos, e da história e segre-
dos das negociações anteriores, para procedermos com a justiça que tivermos”.37
Por motivos geopolíticos cogitava, entretanto, de alguns ajustes ao princípio, que não seguia
cegamente. Assim, propunha algumas concessões territoriais ao Peru, na área entre os rios Javari e Ju-
taí, em troca da cessão das cabeceiras e vertentes do Purus e de concessões daquele país à Bolívia, por
sua vez compensadas pela entrega por esta ao Brasil de territórios na margem esquerda do Guaporé
e na direita do Jauru. Orientava-o o interesse de manter a aliança boliviana contra as pretensões ar-
gentinas no Prata, que remontava à época espanhola.38
Quanto às república platinas, preferiu não se manifestar, dada a situação de instabilidade nas re-
lações entre o Império e o ditador Rosas. Contudo, não deixou de observar que se a Inglaterra retirasse
seu apoio ao Uruguai, este teria “de voltar ao Brasil, ainda mediante uma nova guerra, e procurando por à
frente de nosso exército um general mais feliz, rogaremos a Deus abençoe nossas armas”.39
No ano seguinte ao da publicação do Memorial Orgânico deu-se o chamado do Ministro
Paulino Soares de Sousa para colaborar, como consultor, considerando a extensão de seus conheci-
mentos históricos, nas negociações com os governos francês, inglês e com as repúblicas hispano-a-
mericanas. Defendeu neste trabalho as teses expostas no Memorial, acrescentando o texto Memória
sobre os trabalhos que se podem consultar nas negociações de limites do Império, com algumas
lembranças para a demarcação destes, datado de 15 de julho de 1851. Eminentemente histórico, o
relatório compreendia um levantamento de mapas existentes em arquivos brasileiros e do exterior so-
bre as fronteiras, a identificação da correspondência de comissários, governadores e vice-reis relativa
35
Varnhagen, Memorial orgânico, p. 3.
36
Arquivo Histórico do Itamaraty, Francisco Adolfo Varnhagen, Limites. Guiana Inglesa e Venezuela, lata 351, II.
37
Ibidem, p. 9.
38
Ibidem, p. 10.
39
Ibidem.
32
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à demarcação dos tratados de Madri e Santo Ildefonso e uma bibliografia sobre o assunto. Comple-
mentava o relatório um mapa com os limites que propunha.40
O texto de Varnhagen revela um adepto da Realpolitik que, embora profundamente im-
buído da necessidade do embasamento histórico para a sustentação de suas teses, era flexível o
suficiente para sugerir soluções de compromisso, sempre que isto melhor interessasse à conso-
lidação da posição de seu país, preferindo um acordo benéfico para as partes do que vantagens
imediatas- mesmo as fundadas em argumentos históricos - que provocassem futuros conflitos
ou reivindicações. Assim, não defendeu o princípio do utipossidetis à outrance, preferindo sugerir
concessões para que as eventuais dissidências, como ele próprio afirmou, não fossem utilizadas
pela França e pela Inglaterra.
Também não se revelou, como já se registrou, um saudosista da diplomacia setecentista, que
optava pelo curso dos rios como critério demarcatório, preferindo o divortia aquorum.41
Mais tarde, em 1859, quando designado para servir no Paraguai, dirigiu-se ao conselheiro
José Maria da Silva Paranhos, que fora enviado anteriormente em missão especial a Assunção, soli-
citando-lhe informações sobre como proceder para resolver as questões de limites então pendentes.
Neste documento reafirmou as posições anteriores, aplicando-as aos limites que acreditava corre-
tos, historicamente justificados e condizentes com os interesses brasileiros. Citando Monthalon e
Napoleão, ponderava que os melhores critérios para a definição de limites eram, sucessivamente, os
desertos de areia, as serras e somente em terceiro lugar os rios, critérios que a experiência histórica
das tentativas anteriores de demarcação justificava:
“Conhecidas são as grandes questões que no século passado tiveram lugar entre os co-
missários demarcadores, para se decidir qual era o verdadeiro braço superior do Ibicuí,
querendo uns, segundo lhes servia aos respectivos países, que fosse o que procedia de
mais longe, outros o que trazia mais águas na junção.”42
As outras questões nacionais apontadas pelo Memorial Orgânico passavam igualmente pelo
crivo historicista do seu autor.
A transferência da capital para o interior era um imperativo geopolítico de defesa, facilitado
pela nova tecnologia representada pelos trens, que permitiam comunicação rápida com os principais
pontos do litoral. Justificando a presença das capitais coloniais na Bahia e no Rio de Janeiro, apelava
também para a experiência histórica de países como a Espanha, a Inglaterra, a França e a Prússia,
cujas capitais encontravam-se no interior. Mesmo os rios que lhes davam acesso, à exceção de Madri,
dizia, eram facilmente bloqueáveis, tornando as capitais efetivas cidadelas mediterrâneas.43
O sistema de comunicações proposto fundamentava-se na ocupação até então existente.
Por motivos econômicos, propunha a construção, com capital privado, de uma única estrada de
ferro axial entre a nova capital e um ponto do litoral a ser definido, articulando-se as demais vias de
40
Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, 1-4, 4, 112.
41
Ibidem.
42
Varnhagen. Correspondência, pp. 266-267.
43
Idem, Memorial, pp. 3 e segs. e 10 e segs.
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Eduardo de Sá (1866-1940). «José Bonifácio, e a fundação da pátria brasileira». Acervo da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. José
Bonifácio, considerado o patriarca da Independência, é ladeado pela figura de D. Pedro I no centro da pintura. A solução formal encontra-
da pelo artista também atesta a importância desses dois personagens no processo de emancipação do Brasil.
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comunicações terrestres (com estradas imperiais e estradas provinciais ou municipais), fluviais (espe-
cialmente as dos rios Tocantins, São Francisco e Paraná) e marítimas.
A redivisão do território que Varnhagen propôs no Memorial Orgânico fundamentou-se, segun-
do dizia, na necessidade de tornar mais equilibradas as províncias e mais eficaz a ação governativa.44 No
entanto, ele a desejava somente administrativa, entendendo que a eclesiástica e a judicial poderiam conti-
nuar como existiam. Amparando-se nos exemplos de Maximiliano da Áustria, no século XVI e da divisão
departamental francesa da época revolucionária, proposta pelo abade Sieyès, justificou-a como indispen-
sável à racionalização das práticas de governo. Os novos departamentos que sugeria obedeciam a critérios
aparentemente apolíticos, considerando a efetiva ocupação histórica, mas não a identidade histórica das
províncias, cujas fronteiras, aliás, ainda estavam vagamente delimitadas em sua maioria. Mas não deixa de
ser significativo que Varnhagen tenha endossado, em sua proposta, o desmembramento de Pernambuco,
consumado anos antes como represália à Confederação do Equador. Com efeito, sua proposta supunha a
criação dos departamentos de São Salvador, Barra do São Francisco, Principal e Ceará (onde se localizaria
a capital, Imperatória), Estrelas do Norte (sic) e Alagoas e Sergipe.
Era o programa de um “antiprovincialista” convicto, que via na consolidação da unidade
nacional a premissa de qualquer consideração sobre a organização estatal.
Para a defesa, entre a alternativa de uma poderosa marinha e um bom exército, preferiu a
este, traçando um plano de fundação de estabelecimentos e postos militares, que garantissem sobre-
tudo as fronteiras e a nova capital.
Quanto à população, defendeu a proibição do tráfico negreiro - na ocasião, vésperas da lei
Eusébio de Queirós que o proibiu, discutia-se com veemência o assunto na imprensa e no parla-
mento -, menos por motivos humanitários e mais para que não fosse africanizado o Brasil. Quanto
aos indígenas não-aculturados, propôs uma ação semelhante à das encomiendas espanholas da época
colonial, louvando a atitude dos bandeirantes paulistas. Essa posição renderia daí por diante diversos
conflitos com os simpatizantes da causa indígena, aos quais ele se referia como “praga de falsos filan-
tropos, graças a Rousseau ou a Voltaire... que produziram os filantrópicos horrores dos Robespierres
e Marats...”45
Defendia, também, a intensificação da colonização europeia, como forma de minimizar os
efeitos do processo anterior de miscigenação social. Foi, assim, um dos precursores da tese do bran-
queamento da população, defendida por Oliveira Viana duas gerações mais tarde.
Embora o Memorial Orgânico tenha obtido repercussão aquém das expectativas de seu au-
tor, Varnhagen não deixou de assinalar em correspondência com D. Pedro II a influência do opúscu-
lo que, segundo ele, contribuiu para que o governo estudasse o assunto das fronteiras e promovesse
as negociações diplomáticas que se seguiram.46
Por ocasião da guerra do Paraguai, há outros exemplos de como as ideias históricas de Varnhagen
moldaram sua atitude política e diplomática. Em ofício ao conselheiro Saraiva, Ministro de Negócios Es-
44
Ibidem, p. 18.
45
Ibidem, pp. 31 e 35.
46
Varnhagen, Correspondência, p. 245.
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Varnhagen, História e Diplomacia
Jean-Baptiste Debret (1768 - 1848). Aclamação de D. Pedro I no Campo de Santana, com D. Leopoldina ao seu lado
e a princesa D. Maria da Glória no colo (detalhe).
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Arno Wehling
No mesmo documento, sugeriu que, finda a guerra com a vitória dos aliados, houvesse en-
tendimentos com a Argentina para que o Paraguai fosse anexado ao Brasil, “como província con-
quistada ou colônia”, invocando para tanto uma justificativa de fundo histórico e étnico, pois “os
paraguaios são mais guaranis que hispano-americanos”.48
Quando adiantou, até em prejuízo da qualidade, como já lembramos, a História das lutas
com os holandeses, sua intenção de comparar duas conjunturas adversas ao ponto de vista nacional
que esposava fundamentava-se na mais historicista das razões: a “lição da história”, que o aproximou
mais dos retóricos ciceronianos do que do rigor rankeano. Entretanto, alguns anos mais tarde publi-
caria, já em Viena, a segunda edição, melhor cuidada.
Toda a pregação nacionalista e patriótica de Varnhagen, bem como sua canalização para os
atos concretos da ação política e diplomática, fundavam-se no argumento historicista de que ao co-
nhecimento histórico cabia, mais do que a qualquer outro setor da cultura ou da vida material, esta-
belecer a identidade e a persona da nação e do seu condutor, o estado. Isso mesmo disse, com outras
palavras, ao Imperador, em 1857:
“o empenho principal que me guiou a pena do Memorial Orgânico foi o de promover
desde já com a maior segurança possível a unidade e a integridade do Império futuro
(grifo no original), objeto constante do meu cogitar.”
Em estudo sobre Varnhagen, concluímos que sua concepção histórica e, coerente com ela,
sua produção, fundaram-se no tripé estado-história-memória, respectivamente baseados no estatis-
mo hobbesiano-hegeliano, no historicismo e no nacionalismo. As relações que podem ser encontra-
das entre a história e a diplomacia, tanto em sua obra, como em sua vida pública, se alicerçaram nos
mesmos pilares.
47
Ibidem, p. 295.
48
Ibidem, pp. 296-7.
49
Ibidem, p. 246.
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Varnhagen, História e Diplomacia
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Destino de um país mediador
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Visões Do Brasil
S
emelhanças excessivas ainda não afetaram o Brasil em relação a seus vizinhos de língua espanhola,
não em relação à Espanha, nem mesmo em relação a Portugal - o Portugal europeu. O Brasil está
progressivamente distanciando-se de Portugal à medida que desenvolve sua própria civilização di-
nâmica e moderna, mas tropical. Aos valores culturais tradicionais da mãe pátria, o Brasil tem acrescen-
tado valores culturalmente harmoniosos de outras origens: ameríndia, africana, francesa, inglesa, italiana,
anglo-americana, alemã, síria, japonesa e polonesa. O Brasil sente-se ligado aos países hispânicos por um
conjunto de semelhanças particulares. No entanto, também se sente diferente deles em decorrência de
uma série de desenvolvimentos peculiares à sua situação e à sua história; à trajetória de suas relações com
outros povos; ao efeito provável de seu atual espírito nacional sobre o futuro - um futuro especificamente
brasileiro em relação a outros países americanos, ou a outros países hispânicos ou ibéricos. Nesse futuro,
o Brasil poderá em breve ser chamado a desempenhar papel importante como mediador entre civilizações
antagônicas, à medida que aumentam suas possibilidades e responsabilidades de país mediador. Nesse
futuro, como uma nação americana que pode, sem deixar de lado suas obrigações continentais, tornar-se
mais estreitamente associada com as novas nações da África e do Oriente do que qualquer uma das outras
nações modernas de origem predominantemente europeia. O Brasil pode contribuir para sua integração
em um novo tipo de civilização, uma civilização que não seja sub-europeia, mas na qual os valores euro-
peus serão assimilados aos dinâmicos valores culturais neo-africanos e neo-asiáticos.
Esses comentários sobre o Brasil como uma nação singularmente capaz de desempenhar, habili-
dosa e sutilmente, a tarefa de mediar antagonismos internacionais reduzindo-os, ou mesmo sublimando-os
sociologicamente, baseiam-se na experiência do povo brasileiro de assimilação bem-sucedida dos diversos
grupos étnicos e culturais em seu próprio vasto país. O desenvolvimento do Brasil como nação americana
tem sido caracterizado, tanto como colônia quanto como nação, pelo fato de que talvez tenha progredido
mais do que qualquer outro país ao unir seus próprios elementos étnicos e culturais amplamente diferentes
em um todo harmonioso e frutífero. Apesar das muitas falhas e imperfeições que podem ser apontadas,
* (Recife, 1900) graduou-se na Universidade de Columbia (NY), sob orientação de Franz Boas. Continuou os estudos de antropologia e etnologia em
museus da Inglaterra, Alemanha, França e Portugal. Instituiu no Brasil as cadeiras da moderna sociologia (Pernambuco) e antropologia (Rio de Janeiro).
Suas obras mais importantes são Casa-Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1957). Faleceu em 1987.
Fonte: Texto publicado originalmente no livreto Brazil (Washington, Departamento de Informação Pública, União Panamericana, 1963). Traduzido por
Miguel Griesbach de Pereira Franco.
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Destino de um país mediador
o Brasil já é uma democracia étnica em vários aspectos exemplares; além de ser uma democracia étnica, é
também uma democracia social em rápido desenvolvimento, tão insuscetível à pura anarquia quanto aos
excessos governamentais que assumem aspecto de totalitarismo.
A formação política do Brasil era incomum na América: deixou de ser colônia de uma mo-
narquia europeia que, aliás, raramente exagerava em seu poder de absorvê-la politicamente, para co-
meçar sua vida independente como uma monarquia - uma monarquia derivada da de Portugal. Esta
solução foi caracterizada por um senso de equilíbrio, de dar e receber e uma aceitação da realidade.
Como conseqüência, o Brasil escapou, na separação de Portugal, do radicalismo republicano e vio-
lentamente anti-europeu - a solução desejada pelos elementos radicais; e, ao mesmo tempo, resistiu
decisiva e energicamente às más políticas de Lisboa no começo do século XIX.
Guiado pelo estadista e eminente cientista José Bonifácio, um protótipo brasileiro de Benjamin
Franklin, o Brasil resistiu às aspirações dos políticos portugueses de reduzir o país novamente a uma
simples colônia. Sua capital, o Rio de Janeiro, já havia atingido o status de sede da monarquia portuguesa,
durante o período em que a corte dos Braganças foi transferida de Lisboa para essa cidade americana,
em decorrência da invasão de Portugal por Napoleão. Contra essas pretensões, o Brasil se rebelou e se
constituiu num império separado de Portugal; ao mesmo tempo manteve os costumes, rituais, tradições
e normas políticas de típica monarquia europeia. Era uma monarquia, no entanto, que desde seu começo
adequou-se ao ideal brasileiro de desenvolvimento nacional capaz de oferecer condições de igualdade e
democracia, nas quais seu povo de sangue mestiço – tanto de origem africana quanto ameríndia - pudes-
sem tornar-se heróis, estadistas, ministros de Sua Majestade e membros da nobreza. Muitos nobres com o
título de barão, visconde, marquês e conde, incluindo alguns que eram puros ou quase puramente brancos
europeus, tinham nomes indígenas como Tamandaré, Itajubá e Irajá. 200
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Gilberto Freyre
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Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821-22)
“Sessão das Cortes de Lisboa” (detalhe), de Oscar Pereira da Silva. Óleo sobre tela, 3,15 x 2,62 metros.
Obra de 1922, localizada no Salão de Honra do Museu Paulista.
44
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tema Da capa
A
s experiências constitucionais ibéricas do início do século XIX foram retomadas por vários
autores nos últimos anos. Os recentes trabalhos sobre o período da independência no Brasil
incluem importantes análises sobre as Cortes Constituintes de Lisboa em 1821 e 1822.1 Para-
lelamente, vários trabalhos de autores de origem hispânica também incluem a reavaliação da primeira
Constituinte realizada na península, em Cádis, entre 1810 e 1814, sob as invasões napoleônicas.2 A
reavaliação da experiência gaditana é esclarecedora para a compreensão de todo o processo anterior às
independências na América, pois esse foi o modelo constituinte utilizado em Portugal e na Espanha
durante os anos 1820 e é referência fundamental para o liberalismo ibérico durante todo o século XIX.
A grande quantidade de estudos realizados sobre o tema não resulta, porém, de sequência de
trabalhos conjuntos ou de amadurecimento preliminar sobre os problemas abordados. Mais do que
resultado de um trabalho comum, essa retomada indica a necessidade atual de compreender tema-
-chave para a formação dos Estados emergentes da crise dos impérios português e espanhol. Nessas
análises, as reuniões de deputados peninsulares e americanos são vistas como fundamentais para a
compreensão de vários aspectos da experiência e do pensamento político português e espanhol, nas
antigas metrópoles e nas colônias, às vésperas das independências. Destacam-se os momentos cru-
ciais e fundadores de uma herança que acompanharia, na península Ibérica e na América, os dilemas
da formação dos Estados nacionais durante todo o século XIX.
* Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorado pela USP (2000) e pela Universidade de Salamanca (2006)
com aperfeiçoamento em História pelo Institut Européen des Hautes Études Internationales (1986).
1
Alexandre, 1993; Lyra, 1994; Neves, 2003; Oliveira, 1999; Souza, 1999; Vargues, 1997; e Verdelho, 1981.
2
Artola et al., 1991; Caballero Mesa et al., 1991; Castillo Meléndez, 1994; Chust, 1999; Garcia Godoy, 1998; Garcia Laguardia, 1994; Martinez de Montaos,
1999; Moran Orti, 1994; Pascual Martinez, 2001; Rieu-Millan, 1990; e Salilas, 2002.
45
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Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821-22)
A ausência de contato anterior entre esses pesquisadores ressalta a coincidência entre algumas de
suas conclusões. Em todos os casos, os autores concentram-se nos apelos nacionais realizados por essas
cortes constituintes. Manuel Chust (1999) destaca a originalidade do processo iniciado em Cádis, em 1810,
que acompanharia as experiências constituintes de Espanha e Portugal no início da década seguinte:
los representantes americanos en Cádiz esperaban conseguir más reformas, especial-
mente autonomistas, el legado de los representantes americanos que estuvieran pre-
sentes en estas Cortes hispanas en la constitución de los nuevos Estados-nación du-
rante los años veinte será trascendental. Toda la praxis política de Cádiz será trasladada
a México, a las repúblicas centroamericanas, Perú, Ecuador y Chile (…) La integración
en sus propias estructuras nacionales de todo un imperio se presentaba sin un prece-
dente histórico, sin modelos que seguir. Los cuatro estados nacionales que se habían
formado con anterioridad - Países Bajos, Inglaterra, Estados Unidos de Norteamérica
y Francia - consumaron sus revoluciones sin imperio detrás.
Sem modelo a seguir, os constituintes reunidos em Cádis tornaram-se uma nova referência
para o mundo ibérico. Os deputados de 1810-14 ou os de Lisboa de 1821-22, eleitos na Europa ou
na América, lidavam com o dilema de construir a unidade de um vasto império, permeado por de-
mandas autonomistas, sobre as bases de um Estado que projetavam como nacional.
Desde a segunda metade do século XVIII, os governos portugueses e espanhóis avançaram
propostas para a unidade dos impérios; elas faziam parte da gama de preocupações que caracterizou
o reformismo ilustrado nos dois países. As propostas de unidade do início do século XIX, porém,
continham elementos diferentes: baseavam-se na ideia da soberania nacional expressa por represen-
tantes eleitos que, em suas reuniões, constituiriam as novas bases políticas e jurídicas para a unidade.
Esse poder constituinte contaria desde o início com representantes da América e, assim, a unidade
seria transformada em novo “pacto político”.
Sob o impacto das invasões napoleônicas, reunidos em Cádis ou em Lisboa, os deputados eu-
ropeus e americanos encontraram-se, então, na defesa da soberania nacional. Quais os significados dessa
união e das concepções sobre nação e soberania são aspectos destacados por quase todos os autores.
Quais as implicações dessas formulações no momento-chave da desintegração dos impérios ibéricos é a
indagação que move a retomada feita por esses pesquisadores. Deve-se ressaltar que todos esses trabalhos
observam as reuniões dos constituintes como apelos pela unidade das nações portuguesa e espanhola.
Nesses termos, as reuniões das cortes não são vistas como prenúncio ou motivo das independências na
América, mas como tentativas de manutenção da unidade das diversas partes do império com a adoção de
novos princípios legitimadores. Tais princípios, baseados na defesa de uma nação soberana representada
por deputados eleitos, destruíam a antiga relação metrópole-colônia e inviabilizavam qualquer projeto para
uma possível “recolonização”, tal como se afirmou no Brasil durante os anos de 1821 e 1822.3
O encontro em defesa da soberania nacional estimulou, porém, a apresentação de vários pro-
jetos diferentes. Todos originavam-se da constatação de uma profunda crise, vivida diferenciadamen-
te nas diversas partes do império e cuja superação se tornava tangível na visualização de um futuro
3
Sobre a origem do vocábulo “recolonização” e sua incorporação pela historiografia brasileira, ver Rocha, 2001. Uma análise mais detida sobre a utilização
da ideia da recolonização pelos deputados do Brasil nas cortes de Lisboa poderá ser encontrada em Berbel, no prelo.
46
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Márcia Regina Berbel
diferente.4 As reuniões constituintes apareciam, então, como espaços privilegiados para a apresenta-
ção das propostas relativas a esses projetos, e são importantes indicadores dos diversos interesses e
perspectivas políticas que marcaram a formação dos Estados independentes da América.
Nas cortes portuguesas de 1821 e 1822, a diversidade dos projetos para a unidade do império
dividiu os deputados do Brasil e também os de Portugal. Conflitos e tentativas de acordos ocorre-
ram entre representantes de províncias do mesmo reino e de reinos diferentes. Todos pretendiam a
unificação de leis, mercados e padrões político-administrativos, ou seja, buscavam integrar pela via
da unidade nacional aquele complexo que o sistema colonial havia soldado anteriormente e cons-
truir um Estado nacional na dimensão do império. Tratava-se de tarefa difícil e, até aquele momento,
inédita. Diante dessas dificuldades, divergiram, como veremos, quanto à forma e aos instrumentos
necessários para a realização da unidade desejada.
4
Jancsó e Pimenta, 2000.
47
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Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821-22)
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva (1773-1845). Deputado brasileiro junto às Cortes, foi juiz, desembargador e político. Irmão de
José Bonifácio, usava o pseudônimo “Philagiosetero” em seus artigos publicados em jornais na época da Independência do Brasil.
48
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Márcia Regina Berbel
liberais portugueses enfrentavam importantes opositores dentro do reino. Assim, esses meses de
incerteza fizeram vir à tona todas as divergências acalentadas nos anos anteriores.
Durante esses meses, os liberais avançaram na defesa da soberania nacional, num embate com
os demais setores que acompanharia todo o trabalho constituinte. No Brasil, porém, a adesão havia
acontecido somente no Pará, já em 1o de janeiro, antes mesmo da reunião dos deputados de Portugal.
Até o mês de março, os deputados de Portugal trabalharam para obter o juramento do rei à Constitui-
ção e acreditaram que, com isso, obteriam também a adesão das províncias a serem formadas no Brasil.
A vitória liberal no Congresso consolidou-se em 9 de março de 1821 com a aprovação das bases
da Constituição da nação portuguesa, onde se definia a soberania da nação, a divisão dos poderes e demais
princípios definidores daquela vitória. No Rio de Janeiro, mediante pressão popular, D. João VI já havia ju-
rado provisoriamente a Constituição de Cádis no mês de fevereiro e havia se submetido às determinações
do Congresso. Assim, definidos os princípios para a nova Constituição e feito o juramento de submissão
do rei, as expectativas com relação às adesões no Brasil tornaram-se ainda maiores.
A notícia da adesão paraense chegou às cortes em 26 de março, após a aprovação das bases
constitucionais. Nesse momento, a antiga capitania do Pará foi transformada em província. Reco-
nheceu-se, então, a junta recém-formada como governo local diretamente submetido às cortes de
Lisboa. Isso significava a extinção do antigo sistema baseado na existência de capitães-generais locais,
nomeados pelo rei, e que se constituíam na única autoridade nas antigas capitanias durante o período
colonial. Esperava-se que esse fato acelerasse o pronunciamento das demais capitanias do Brasil em
favor das cortes constituintes.
D. João VI embarcou para Lisboa em 24 de abril, deixando ao seu filho Pedro “todos os
poderes para a administração da justiça, fazenda e governo econômico”, cabendo-lhe ainda resolver
“todas as consultas relativas à administração pública”.5 Instalado no Rio de Janeiro, D. Pedro deveria
ocupar-se dos negócios do Brasil e, pleno de poderes, estava apto para assegurar a condição de reino
às diversas unidades da América. No entanto, em Lisboa, os deputados temiam que o governo do
regente agisse no sentido de impedir a adesão dos habitantes da América, e isso estimulou a ofensiva
das cortes para a eleição dos deputados das futuras províncias.
Foi somente no mês de abril, após a notícia sobre o juramento feito por D. João VI, que as
bases da Constituição foram remetidas para todas as capitanias do Brasil, juntamente com as instru-
ções eleitorais. Agora não se tratava mais de afrontar os propósitos do monarca. Os deputados de
Lisboa enfatizavam, nesse momento, que a aceitação das bases e a escolha dos representantes no Bra-
sil teriam um duplo significado: cada capitania seria transformada em unidade provincial reconhecida
pelo governo central e seus habitantes partilhariam das condições de igualdade definidas pelo Texto
Constitucional em elaboração. Portanto, a adesão permitiria assegurar alguns direitos e incluir o Bra-
sil na nação portuguesa que se constituiria a partir da reunião das cortes.
A chegada do rei a Lisboa no mês de julho de 1821 anunciou o fim da primeira fase dos tra-
balhos constituintes, pois eliminou as dúvidas sobre as atitudes do monarca. No entanto, a chegada
da corte atualizou as notícias sobre o Rio de Janeiro e fez ver ao Congresso um clima de sucessivas
5
Coleção das Leis do Brasil, v. 1.821, parte 2, p. 10.
50
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6
Alexandre, 1993.
51
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Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821-22)
José Ferreira Borges. Membro da junta provisional do governo supremo do Reino de 1820, advogado na cidade do Porto e deputado às
Cortes Constituintes de 1821. Pertenceu ao sinédrio do Porto. Foi o principal autor do primeiro código comercial português, de 1833, que
ficou conhecido pelo Código Ferreira Borges e vigorou por sessenta anos.
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Márcia Regina Berbel
O projeto integracionista tinha desdobramentos para a América. Esses itens foram transfor-
mados em proposta de decreto, apresentada ao Congresso em agosto de 1821, alguns dias antes do
ingresso da primeira bancada eleita no Brasil: a pernambucana. O conteúdo do projeto foi discutido
durante os meses de agosto e setembro e finalmente aprovado em outubro. Contou com a interferên-
cia dos deputados eleitos em Pernambuco e também com a anuência dos representantes escolhidos
no Rio de Janeiro, presentes nas cortes a partir do mês de setembro.
Sinteticamente, a proposta estabelecia que: a) as capitanias do Brasil seriam transformadas
em províncias; b) os governadores nomeados por D. João estavam depostos, e juntas provinciais
deveriam assumir o controle dos governos regionais; c) as juntas já formadas, como a da Bahia e a
do Pará, eram reconhecidas como legítimos governos provinciais; d) estes teriam seus presidentes
subordinados às cortes e ao rei; e) não teriam qualquer autoridade militar, e um governo de armas
deveria ser formado em cada província, também submetido a Lisboa; f) todos os órgãos de governo
formados no Rio de Janeiro depois da transferência da corte deveriam ser extintos; g) o príncipe
regente deveria voltar para a Europa, retirando do Brasil o estatuto de uma unidade política com
relativa autonomia.7
Os pernambucanos presentes no Congresso subscreveram essa proposta sem qualquer obje-
ção. Aceitaram a implementação do projeto em Pernambuco quando ainda estava em fase de discus-
são preparatória, pois as medidas permitiam a destituição do governador Luís do Rego Barreto, que
se opunha decididamente à formação de uma junta provincial em Pernambuco e voltara a perseguir
os recém-libertos participantes de 1817. Os pernambucanos aceitavam, então, um decreto que, ape-
sar de impossibilitar a unidade do Reino do Brasil - eliminando as funções centralizadoras do Rio de
Janeiro e exigindo o retorno de D. Pedro -, afirmava a existência de governos provinciais relativamen-
te autônomos e escolhidos no nível regional.
Os deputados pernambucanos, em sua maioria patriotas revolucionários de 1817, e flumi-
nenses - a maior parte residente em Portugal e incluindo dois vintistas - alinharam-se ao integracio-
nismo nesse primeiro momento. Mas a proposta desse grupo não foi aceita por todos os deputados
de Portugal.
Os integracionistas de Fernandes Tomás já haviam encontrado vários opositores antes da
chegada dos deputados do Brasil. Na defesa da soberania nacional, eles contaram com o apoio de
outro grupo liberal: o liderado pelo deputado Borges Carneiro, eleito em Lisboa. No entanto, os
dois grupos liberais não tiveram a mesma posição quando se discutiu a proposta organizativa para o
Brasil, aprovada em outubro de 1821. O grupo de Fernandes Tomás apostou na integração político-
-administrativa para controlar as várias partes da América e fazer eleger deputados em todas as pro-
víncias. Borges Carneiro, no entanto, exigia a força das armas. Todos inquietavam-se com a presença
do príncipe herdeiro no Rio de Janeiro, pleno de poderes concedidos pelo rei e a serem exercidos
sobre todo o reino. Temiam que D. Pedro, submetido a pressões, agisse no sentido de impedir ade-
sões às cortes de Lisboa. Assim, informado sobre os protestos no Rio de Janeiro que antecederam
a partida do rei no mês de abril de 1821, Borges Carneiro passou a defender o envio de tropas para
7
Diário das Cortes Constituintes, 29 set. 1821.
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Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821-22)
essa província. O método, utilizado posteriormente em Pernambuco e na Bahia, foi adotado para o
Rio de Janeiro em 25 de agosto de 1821, contra o voto e o parecer dos integracionistas, que insistiam
na via político-administrativa para a integração.
Assim, a adesão de pernambucanos e fluminenses à proposta integracionista teve também a
importante intenção de evitar a intervenção armada nas províncias do Brasil. As divergências apare-
ceram, porém, quando as reações se fizeram sentir entre os habitantes da América. A mais enfática
talvez tenha ocorrido exatamente em Pernambuco, quando a junta provincial finalmente eleita ne-
gou-se a receber o governador das armas indicado pelo governo de Lisboa.8 Mas também ocorreu na
Bahia, onde a indicação do governador das armas acelerou a oposição entre as facções presentes na
província e provocou um enfrentamento armado que se prolongaria até o ano de 1823.9 Em todos
os casos, as divergências entre os integrantes das elites locais fizeram explodir insatisfações entre os
segmentos livres e pobres da população e também entre os escravos, conferindo a essas disputas
caráter de verdadeira guerra civil.
Além disso, o projeto de outubro de 1821 teve de ser detalhado no Congresso, e a necessi-
dade de definir a abrangência dos poderes locais evidenciou inúmeras diferenças entre os deputados
do Brasil.
Nesse contexto, a interferência dos deputados eleitos na Bahia exacerbou as divergências. Os
baianos ingressaram nas cortes quando se realizava o detalhamento do decreto nos itens referentes
ao funcionamento do Judiciário, e depois de decidido o envio de tropas ao Rio de Janeiro. Um dos
integrantes da delegação baiana, Cipriano Barata, propôs suspender todas as decisões do Congresso
referentes à América, enquanto não chegassem os deputados eleitos em suas várias províncias. Re-
correu às bases da Constituição, segundo as quais tais decisões só se tornariam válidas para os habi-
tantes de ultramar quando seus representantes (eleitos nas unidades provinciais) estivessem no Con-
gresso. A proposta contrariava a parte central do projeto concebido pelos integracionistas, para os
quais qualquer deputado eleito, amparado pelos demais, poderia responder pelo conjunto da nação.
Mais à frente, outros dois baianos - Lino Coutinho e Borges de Barros - defenderam a extin-
ção dos poderes do Rio de Janeiro, associando-a à necessidade de total autonomia para as províncias
no que se referia ao Judiciário. De acordo com esses deputados, as últimas instâncias de julgamento
deveriam situar-se nas unidades provinciais, poupando seus habitantes de realizar recursos, pratica-
mente inviabilizados pela distância, quando dirigidos a Lisboa ou ao Rio de Janeiro. Dessa forma,
contrapunham-se, mais uma vez, ao projeto integracionista e centralizador de Fernandes Tomás e,
pelos mesmos motivos, não apoiavam a anuência dos pernambucanos. Chocavam-se também com
as propostas do fluminense Martins Basto, que propôs no mês de setembro que se mantivesse a Casa
de Suplicação no Rio de Janeiro para os últimos recursos de julgamento.
Esboçava-se nesse momento - dezembro de 1821 - uma alternativa ao projeto integracio-
nista, que se apoiava na defesa da autonomia provincial. De formas diferentes, pernambucanos,
fluminenses e baianos reclamavam a concentração de poderes em suas unidades provinciais. Assim,
8
Bernardes, 2002.
9
Wisiak, 2001.
54
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Márcia Regina Berbel
afirmavam os antigos vínculos com suas capitanias, agora refeitos no momento da realização de
uma nova ordem política. Por isso, afirmavam também o pacto político realizado regionalmente
para a eleição dos deputados e para a formação das novas províncias. Os pernambucanos expres-
savam compromisso com os pedidos de afastamento do capitão-general Rego Barreto. Os baianos,
orgulhosos de sua pronta adesão ao sistema constitucional e eleitos após uma longa fase de debates,
destacavam a adesão provincial à Constituinte como expressão de autonomia. E, finalmente, os flu-
minenses defendiam a permanência do Rio de Janeiro como sede de alguns órgãos centrais do Brasil,
expressando as demandas pela permanência da cidade como capital do reino.
No Brasil, as tensões aumentaram na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, eviden-
ciando a insuficiência das propostas constitucionais para solucionar os conflitos nas diversas regiões.
Assim, Borges Carneiro passou a acenar com outra forma de união, que pressupunha relativa auto-
nomia político-administrativa para as províncias: a integração de mercados. Esse novo projeto, de-
fendido posteriormente pelos moderados, parece ter angariado, pelo menos no início, certa simpatia
por parte dos deputados baianos.
As políticas predominantes no Congresso, entre janeiro e junho de 1822, foram as defen-
didas pelos moderados e, como veremos mais adiante, discutiram-se nesse período propostas de
integração econômica.
Em 9 de janeiro, D. Pedro decidiu-se pela permanência no Rio de Janeiro, contrariando as-
sim, frontalmente, o decreto de outubro emitido pelas cortes. Um conflito aberto entre os governos
do Rio de Janeiro e de Lisboa passaria a dominar o cenário político. Dessa forma, as propostas de
Borges Carneiro para a integração de mercados apareciam como alternativa para a união dos domí-
nios da monarquia portuguesa.
Essas ideias podiam ser conciliadas com as propostas dos baianos. Para estes últimos, a pro-
víncias deveriam ter um Executivo eleito, as leis deveriam ser feitas a partir da representação provin-
cial e sua aplicação seria de inteira responsabilidade das autoridades provinciais. Uma proposta de
“confederação nacional” que se opunha frontalmente à “nação integrada” de Fernandes Tomás, mas
que podia ser conciliada com a integração econômica de Borges Carneiro, pois esse projeto admitia
alguma autonomia para as províncias.
Porém, antes que esse acordo se realizasse, a chegada dos paulistas em 11 de fevereiro de
1822, munidos do programa elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva, alterou mais uma vez
o quadro do Congresso de Lisboa. O programa de São Paulo enunciaria, então, uma nova forma de
unidade para a nação portuguesa, que incluiria as demandas pela autonomia provincial.
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Essas posições são verificáveis nas discussões registradas no Diário das Cortes, sessões de 10 a 22 de março.
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“tecido prestes a se descoser” e que só um “milagre” de política poderia garantir a integridade. Esse
milagre era da responsabilidade dos deputados presentes em Lisboa e de sua capacidade política para
realizar um acordo (ou pacto) que pudesse envolver todas as partes integrantes da nação. Esta última
afirmativa levava ao segundo ponto da argumentação: o princípio federativo.
A ideia da integração de uma nação una e indivisível era refutada, então, pela proposição de
uma união federativa. Para o paulista, a união das partes da monarquia portuguesa envolveria a asso-
ciação de “corpos heterogêneos”: alguns compostos por homens livres e outros por homens livres
e escravos e gente de toda cor. A associação não poderia, portanto, basear-se na igualdade entre as
partes, pois cada uma delas necessitaria de legislação específica. Tal reconhecimento levaria à neces-
sidade da delegação de poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário deveriam ser representados nas
unidades provinciais e, também, por intermédio do príncipe herdeiro, no Rio de Janeiro. Refutava,
assim, a ideia da centralização como condição para a unidade da nação portuguesa e, nesse aspecto,
utilizou-se frequentemente do império britânico como exemplo. A independência dos Estados Uni-
dos da América foi lembrada como fantasma separacionista. A nova nação independente ter-se-ia
formado por força da intransigência da monarquia britânica ante as reivindicações de autonomia
apresentadas pelos norte-americanos. Alertava, porém, para o fato de que a organização do impé-
rio britânico, pós-independência americana, baseava-se no reconhecimento das leis locais em seus
domínios e havia incorporado o funcionamento autônomo de suas partes. Finalmente, concluía que
nenhum rei deixava de ser rei quando delegava poderes em suas possessões: esta era uma necessida-
de, implícita à formação de qualquer império.
Esses argumentos podiam ser muito atraentes para os deputados baianos, defensores da to-
tal autonomia provincial. No entanto, as primeiras reações dessa delegação não foram de adesão ao
programa paulista. Cipriano Barata e Lino Coutinho mostraram-se bastante receosos em aceitar a
autoridade do príncipe regente e a permanência do Rio de Janeiro como capital do Reino do Brasil.
Antonio Carlos supunha a autonomia provincial tal como os baianos. No entanto, diferen-
temente daqueles deputados, o paulista enfatizava a necessidade de um poder central no Brasil para
a associação desses poderes autônomos. Os termos referentes ao federalismo, já abertamente dis-
cutido e teorizado em várias partes da América, jamais foram utilizados nos debates das cortes. Mas
é possível pensar que a proposta dos paulistas distanciava-se da ideia americana referente à “confe-
deração” de estados, acrescentando um tom “federalista” a esse projeto: ideário no qual se prevê a
necessidade do poder central. De qualquer forma, distanciava-se ainda mais da “nação integrada”
pensada por Fernandes Tomás.
No primeiro semestre de 1822, o clima de tensão só fez aumentar durante as sessões do
Congresso. No Brasil, D. Pedro passaria do “Fico”, em 9 de janeiro, à convocação da Assembleia
Constituinte, em 5 de junho, acirrando gradativamente a oposição às cortes. Em Lisboa, a maioria
dos deputados respondeu com ameaças, envio de tropas, condenação da junta de São Paulo, em julho
de 1822, e a exigência do retorno imediato do príncipe.
Paralelamente, os deputados do Brasil avançaram em alguns acordos. As reivindicações pela
autonomia provincial foram imediatamente incorporadas ao programa elaborado em São Paulo, o
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que permitiu uma primeira aproximação com os deputados de Pernambuco e da Bahia. Restavam,
porém, as desconfianças quanto aos poderes conferidos ao príncipe regente no Rio de Janeiro.
Entre fevereiro e junho de 1822 ocorreram várias tentativas de acordo entre os deputados
do Brasil. Inicialmente, no mês de março, cogitou-se a extinção do governo central no Rio de Janeiro
e a formação de dois centros governativos: um no Norte e outro no Sul, como forma de diminuir
as desconfianças expressas pelos representantes da Bahia. No entanto, uma medida parece ter sido
decisiva para acelerar a aproximação entre deputados de Bahia, São Paulo e Pernambuco: o envio de
tropas para a Bahia, em 22 de maio de 1822, contra o voto da maior parte dos deputados do Brasil.
Além disso, D. Pedro convocou a Constituinte do Brasil em junho de 1822. A proposta apre-
sentada por Antonio Carlos de Andrada e Silva passou a incluir, também a partir de junho, a reali-
zação de uma Constituinte que, além de legislar sobre assuntos específicos do reino, deveria garantir
a limitação dos poderes conferidos ao príncipe regente e negociar o conjunto das demandas para a
autonomia das províncias.
Na sessão de 17 de junho, a inclusão da Constituinte no Brasil foi um dos itens defendidos
pelos deputados de São Paulo e aprovados por vários deputados do Brasil. Apresentou-se, nesse
momento, uma proposta de ato adicional à Constituição portuguesa. Ela veio assinada pelos pau-
listas Antonio Carlos de Andrada e Silva e Fernandes Pinheiro, pelo baiano Lino Coutinho, pelo
pernambucano Araújo Lima e pelo fluminense Vilela Barbosa. Nesse texto, estabeleciam-se as bases
do acordo para a união da nação portuguesa, de forma a contemplar os representantes do Brasil: um
Congresso reunido em Portugal e outro no Brasil; as províncias da África declarariam a que Con-
gresso pretenderiam se integrar; ao Congresso do Brasil caberia legislar o que lhe dissesse respeito
“sobretudo especialmente às províncias”, e as leis do Brasil seriam sancionadas e publicadas pelo
regente. Vê-se no acordo a previsão da Constituinte no Brasil como forma de negociação das auto-
nomias provinciais e de controle do governo do Rio de Janeiro.
Antonio Carlos de Andrada e Silva foi incansável na defesa da unidade da nação portuguesa,
ainda que contando com dois congressos reunidos em reinos diferentes, e a adesão dos representan-
tes da Bahia e demais deputados parece ter ocorrido com base nesse princípio. Para os deputados de
Portugal, porém, a proposta tinha o significado de separação dos dois reinos e de fundação de uma
outra nação no Brasil. O ato adicional foi recusado pelo Congresso. Um total de 87 votos vetou a
delegação da regência ao príncipe herdeiro, bem como a realização da Constituinte no Brasil. Esse
número incluía alguns dos deputados da América11 mas, entre os derrotados, estava a maioria dos
deputados do Brasil alinhados com o projeto de São Paulo.
Os paulistas haviam conseguido o apoio de boa parte dos deputados do Brasil, acrescentan-
do alguns itens ao texto inicial elaborado por José Bonifácio. Admitiram uma maior esfera de decisão
no nível do Judiciário e do Legislativo pertinente a cada província, associando cada uma dessas defi-
nições à necessidade de permanência de D. Pedro no Rio de Janeiro e à manutenção da unidade do
Reino do Brasil. A mensagem era clara: o governo do Rio de Janeiro aceitava a autonomia provincial,
e o de Lisboa negava-se a fazê-lo. Além disso, a Constituinte no Brasil aparecia como garantia da
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Feijó, Lemos Brandão, Fagundes Varela, Luís Paulino e Grangeiro. Diário das Cortes Constituintes, sessão de 5 de julho de 1822.
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Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, mais conhecido como Senador Vergueiro. Nascido em Portugal, mudou-se para o Brasil, com 25
anos e foi participante da constituinte de 1823 como representante da província de São Paulo. Foi pioneiro na implementação de mão-de-
-obra livre no país ao trazer os primeiros imigrantes europeus para trabalharem na Fazenda Ibicaba, da qual foi proprietário.
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limitação dos poderes do príncipe regente e da negociação das demandas relativas aos poderes das
autoridades provinciais. Esse era o “milagre de política” proposto para o “novo pacto” formador da
nação portuguesa. Ele supunha, portanto, a união federativa e a delegação de poderes.
A recusa do ato adicional selou a separação entre os deputados de Lisboa. À medida que
crescia o número de apoiadores do programa de São Paulo, crescia também a antipatia da maior parte
dos deputados de Portugal pelos defensores dessas ideias. Todas as tentativas de acordo fracassaram
e os dois governos opunham-se irremediavelmente dentro do império. Os debates seguiram for-
malmente até dezembro de 1822, mas, a partir de junho, a separação dos dois reinos já era um fato
incontornável.
Estes já não eram os tempos de vitória dos integracionistas. Desde dezembro de 1821, as
tensões haviam aumentado na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Em Lisboa, comer-
ciantes e demais setores sociais pressionavam os constituintes para que tomassem atitudes mais
enérgicas diante de uma situação que parecia incontrolável. As propostas de integração pela via
institucional, discutidas durante esse período, não pareceram solucionar as tensões e o envio
de destacamentos militares passou a ser exigido. Borges Carneiro foi portador dessas pressões
inúmeras vezes e, além de defender o uso da força militar, passou a anunciar nova forma de
integração: a de mercados. Diferentemente de Fernandes Tomás, mostrava-se flexível na nego-
ciação sobre os diversos níveis de autonomia político-administrativa para as províncias, desde
que a integração econômica fosse garantida, pois esta seria a verdadeira forma da união nacio-
nal. Tratava-se de conceder “grande liberdade” ao Brasil na organização política, tendo em vista
“estabelecer boas relações comerciais com os povos ultramarinos, relações reciprocamente úteis
para todo o Reino Unido”, pois aí estaria a “grande base da união”. O “pacto social” deveria ser
complementado por um “pacto comercial”. Assim, enquanto os deputados discutiam as inúme-
ras decorrências do programa de São Paulo, discutiam também as propostas para a integração
econômica da nação portuguesa.
12
A discussão sobre a nomeação do governador das armas para a Bahia, feita durante esse período, acabou provocando o enfrentamento físico, incluindo
o desafio para um duelo, entre dois deputados baianos: Cipriano Barata e Luís Paulino Pinto da França.
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Diário das Cortes Constituintes, sessão de 23 de março de 1822.
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todo o tipo de contravenção e/ou investida de outros países. Concluía, finalmente, que todas essas
medidas serviriam como salvaguarda da indústria portuguesa, nos dois lados do Atlântico, protegen-
do-a da concorrência com os fabricantes de outros países.
Dessa forma, Borges Carneiro entendia estar formando um verdadeiro mercado nacional
protegido contra a concorrência estrangeira. Em seu entender, essa concorrência certamente preju-
dicaria os comerciantes de Portugal, mas também poderia ser nociva a várias províncias do Brasil.
Em sua opinião, todas as teorias sobre o livre-comércio jamais teriam auxiliado o desenvolvimento
econômico de qualquer nação, porque haviam sido concebidas na Inglaterra, onde o comércio livre
nunca teria existido. A política de proteção estatal teria feito o sucesso do Reino Unido e dos Estados
Unidos da América e poderia garantir a competitividade futura da economia portuguesa plenamente
integrada por um “pacto” de complementaridade.
Na visão de Borges Carneiro, o protecionismo adquiria o estatuto de uma empreitada militar
e, por isso, previa também o fortalecimento da frota portuguesa, que deveria cumprir as funções de
transporte e controle. O mercado brasileiro estaria aberto aos demais países, desde que sob a estri-
ta vigilância do Estado, estabelecendo taxas privilegiadas entre as regiões do império e coibindo as
vantagens dos demais países. Não se tratava, portanto, de restabelecer a exclusividade portuguesa no
acesso aos portos do Brasil. O restabelecimento do exclusivo implicaria o rompimento do tratado
firmado com a Inglaterra em 1810, e este estabelecia sua vigência por prazo ilimitado. Todos sabiam,
então, que seria impossível afrontar os governantes britânicos e restabelecer o monopólio.14 Mas é
certo que o escalonamento de taxas, implícito na proposta, tornava mais vantajosa a compra dos pro-
dutos brasileiros nos portos portugueses, bem como a venda dos produtos europeus para as diversas
regiões da América.
A contraposição feita por Antonio Carlos de Andrada e Silva ao projeto da comissão reco-
nhecia que a proposta não implicaria o retorno à condição de colônia. Mas, em sua opinião, seria
desvantajosa para a maior parte da nação portuguesa. Apresentando-se como defensor do livre-co-
mércio, o paulista recordou as inúmeras vantagens implícitas nos tratados de 1808, que teriam feito
crescer o comércio com a chegada de negociantes de vários países aos portos do Brasil. Tal fato teria
estimulado a produção e as trocas somente em algumas partes do império, mas teria feito crescer as
tendas em toda a nação. Por isso, contrapunha-se também à definição da prioridade portuguesa no
transporte dos gêneros americanos. Em sua opinião, isso equivaleria a uma nova forma de exclusi-
vidade, pois, associada aos privilégios tarifários, impediria o acesso direto ao mercado do Brasil. E,
talvez mais grave, a exclusividade portuguesa no transporte dos gêneros americanos poderia levar ao
estrangulamento do fluxo comercial, na medida em que as províncias do Brasil não possuíam navios
próprios e a frota portuguesa era pequena para atender ao volume de comércio já em andamento nas
diversas partes do império.
14
Um informe do ministro Silvestre Pinheiro às cortes afirmava: “os brasileiros não receiam a volta à categoria de absoluta colônia quanto ao exercício do
seu comércio e indústria. Isso sabem eles e sabe todo mundo que é absolutamente impossível; pois o franco tráfico de um como de outro não depende do
arbítrio do governo: foi uma necessária consequência da natureza das coisas e sua continuação é do mesmo modo independente do capricho”. O ministro
referia-se, seguramente, ao tratado de 1810 com a Inglaterra, onde se lê que: “o comércio dos vassalos britânicos nos seus domínios não será restringido,
interrompido, ou de algum outro modo afetado pela operação de qualquer monopólio, contrato, ou privilégios exclusivos de venda, ou de compra, seja
qual for, mas antes que os vassalos da Grã-Bretanha terão livre e irrestrita permissão de comprar e de vender”. E acrescentava-se que o tratado seria
“ilimitado quanto à sua duração”. Rocha, 2001:25.
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Apoiado nas intervenções dos baianos Borges de Barros e Cipriano Barata, Antonio Carlos
também argumentou contra a preferência na compra dos produtos de Portugal indicados no projeto,
porque isso inibiria um circuito comercial já em andamento nas várias regiões do Brasil e, segura-
mente, afetaria os produtores proprietários de terras e escravos. Além disso, escarnecia da “proteção
à indústria portuguesa” como definida na proposta da comissão, pois ela implicava a “reciprocidade”
de tarifas e privilégios referentes aos manufaturados dos dois reinos. Contudo, todos sabiam que
as manufaturas existiam preferencialmente em Portugal e que a obrigatoriedade de comprar esses
produtos acabaria, sem dúvida, impedindo o crescimento da indústria no Brasil e condenando-o à
eterna dependência. Na expressão de Cipriano Barata, “não havia reciprocidade” nessa proposta de
complementação de interesses, pois a troca que finalmente seria realizada não se referia a produtos
do mesmo gênero.
É necessário ressaltar que, também no nível da integração econômica, prevaleceram as diversas
reivindicações por autonomia das províncias. A proposta da comissão deixava o controle do comércio
a cargo das juntas provinciais e Antonio Carlos jamais contestou esse aspecto da proposta. Defensor da
unidade política do Reino do Brasil e da permanência do Rio de Janeiro como capital e sede de todos
os órgãos centrais da administração, o Andrada não visualizava, porém, qualquer unidade econômica
do reino. Cada província vincularia sua produção ao mercado internacional e seria responsável pela
fiscalização das trocas. Antonio Carlos não propunha qualquer política para a formação de um mercado
interno no reino. Nesse aspecto, concordava com Borges Carneiro. Ambos entendiam que a nação a ser
integrada, com ou sem política protecionista, era ainda a nação portuguesa.
O cerne das divergências encontrava-se, portanto, no tipo de política econômica a ser ado-
tada no conjunto do império e no papel a ser exercido pelo Estado na implementação dessa política.
Antonio Carlos e os demais oradores do Brasil apresentaram-se como defensores do livre-comércio
(leia-se aqui, dos termos do tratado de 1808) em contraposição ao protecionismo de Borges Carnei-
ro. No entanto, a argumentação não parece ter sensibilizado a maioria dos representantes do Brasil.
Foram poucos os que participaram do debate. Além de Antonio Carlos, o principal orador, falaram a
seu favor somente os baianos Borges de Barros, Cipriano Barata e Lino Coutinho, além do pernam-
bucano Manuel Zeferino dos Santos. As votações mostram o alinhamento de parte de algumas ban-
cadas: todos os paulistas, cinco dos sete pernambucanos e seis dos oito baianos. Assim, revelava-se
a concordância da maioria dos deputados do Brasil com as propostas feitas pela comissão apoiada
por Borges Carneiro.
Dessa forma, a última tentativa de integração da nação portuguesa também mostrou-se in-
viável. A aprovação do projeto elaborado pela comissão alijava os principais oradores do Brasil: os
protagonistas dos acordos políticos expressos no ato adicional, discutido basicamente no mesmo
período. Mas as votações referentes aos princípios políticos presentes no ato adicional - autonomia
provincial e Constituinte no Brasil - mostram o alinhamento de um número maior de deputados
eleitos no Brasil. A política econômica defendida pelos paulistas e sustentada por parte dos baianos
e dos pernambucanos não teve igual sucesso. Talvez seja forçoso concluir que a abertura dos portos
definida em 1808 não atraía os representantes das demais províncias e que o protecionismo prome-
tido por Borges Carneiro era, então, muito mais atraente.
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Brasil. Nesse momento, os paulistas Antonio Carlos, Feijó, Vergueiro e Silva Bueno solicitaram à co-
missão de Constituição a anulação de suas representações, pois “as províncias de Minas Gerais, São
Paulo, Rio de Janeiro e algumas outras estão em dissidência com Portugal”.17
Parecer negativo da comissão afirmava não reconhecer “governos dissidentes” no Brasil.
Pela primeira vez, então, Antonio Carlos defendeu a separação dos dois reinos:
Eu não quero por isto fazer mal à união (...). A opinião de um representante de uma
nação pode ser a verdadeira opinião dos povos representados, ou pode ser diversa:
pode a maior parte dos deputados do Brasil pensar que é utilíssima a união do Brasil
com Portugal e podem, no entretanto, ver que as províncias não pensam como eles
(...). Se acaso quiserem ser o espelho do espírito dos povos que representam, devem
dizer, se os povos não quiserem, não queremos esta união, ainda que eles individual-
mente a queiram (...). Mas não creio que se faça mal à união com a separação tempo-
rária, muito pelo contrário. Juntos, aqui, somos como inimigos em linha de batalha.18
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Bahia.22 Do juramento, realizado no dia 30, além dos seis anteriores, também não participaram Lino
Coutinho e Muniz Tavares, apesar de seus nomes constarem entre os signatários da Constituição.
Em 2 de outubro, Antonio Carlos ainda se dirigiria às cortes para solicitar autorização para
sair do reino. A comissão que se dedicou a analisar o pedido não divulgou qualquer parecer a res-
peito. Dessa forma, Antonio Carlos deixou Lisboa, clandestinamente, em companhia dos paulistas
Diogo Antonio Feijó, Antonio Manuel da Silva Bueno, José Ricardo Costa Aguiar Andrada e dos
baianos Lino Coutinho, Cipriano Barata e Agostinho Gomes. Sem retirar seus passaportes, os sete
deputados fugiram para Falmonth, utilizando-se de um barco inglês.
Esses episódios finais revelam, então, enormes discordâncias quanto à unidade da nação
portuguesa, perseguida pelos deputados de Lisboa até o último momento. A defesa da nação inte-
grada e centralizada pelos vínculos político-administrativos permaneceu como princípio inabalável
para a maior parte dos deputados de Portugal até o fim dos trabalhos. Os vintistas talvez voltassem
às suas prioridades originais, a unidade e a soberania da nação eram mais importantes do que a con-
servação do conjunto do império. Soberania, portanto, era entendida como unidade integral que só
se expressaria pela total centralização dos poderes da nação em sua “mãe pátria”: matriz geradora e
preservada em Portugal. Essa prioridade esboçava-se em seus pronunciamentos desde 1815, quando
a propaganda para a afirmação dos princípios liberais contrapunha-se abertamente à definição do
Brasil-Reino e à permanência da corte no Rio de Janeiro. Cogitava-se, desde então, a separação das
partes da monarquia portuguesa e priorizava-se a afirmação da soberania nacional, ainda que esta não
se referisse ao conjunto dos domínios do império. Desse ponto de vista, esta seria a única possibili-
dade para a regeneração do antigo reino europeu.
De seu ponto de vista, Antonio Carlos de Andrada e Silva sintetizou os motivos que teriam levado
à separação dos dois reinos: o “milagre de política” baseado no respeito à diversidade das leis e dos povos
da nação portuguesa havia sido rejeitado pelo Congresso e, como consequência, a dissociação entre as
suas partes tornara-se inevitável. De acordo com as posições por ele defendidas durante todo o trabalho
constitucional, as tentativas de integração, uniformização das leis e centralização administrativa teriam
acelerado o processo de esfacelamento de um tecido apodrecido pelo tempo.
Apesar dessa avaliação do deputado paulista, a maioria dos deputados do Brasil assinou e
jurou o Texto Constitucional. Além disso, o próprio Antonio Carlos declarou-se favorável a uma
“separação temporária” entre as partes da monarquia. Na verdade, a presença do príncipe herdeiro
no Rio de Janeiro, ainda que aclamado como imperador do Brasil, acalentou por muito tempo a es-
perança de reunificação dos antigos reinos da monarquia portuguesa.
Os motivos para a proclamação da independência e para sua posterior consolidação acumu-
lavam-se fora das Cortes Constituintes. No interior dessa assembleia, apesar das inúmeras divergên-
cias, todos os deputados do Brasil lutaram pela manutenção da unidade da nação portuguesa.
José Bonifácio de Andrada e Silva talvez tenha conseguido justificar a separação dos dois rei-
nos em manifesto dirigido às nações amigas no mês de agosto de 1822. Ao afirmar, em termos inédi-
tos, a existência de uma nação brasileira, ele avaliava a política das cortes com relação às províncias do
22
Ver texto constitucional e assinaturas, publicadas no Diário das Cortes Constituintes, sessão de 30 de setembro de 1822.
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Brasil: “quais foram as utilidades que daí vieram para a Bahia? O vão e ridículo nome de província de
Portugal e o pior, os males da guerra civil e da anarquia (...)”. Apresentava, então, uma solução para
a “anarquia”: “só um governo forte e constitucional” poderia coibir “as facções internas”. E alertava
ainda as nações amigas: “sem este centro comum, todas as relações de amizade e comércio mútuo
entre o Reino do Brasil e países estrangeiros teriam mil colisões e combates”.23
Apesar das declarações, o governo do Brasil era ainda muito frágil. Apoiava-se sobretudo em
articulações políticas e grupos de interesse instalados no Centro-Sul do Brasil: Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais. Nas outras províncias, as adesões ocorreriam em meio a enfrentamentos que,
muitas vezes, chegaram à luta armada. Em algumas delas, a dissidência era latente no final de 1822 e
as medidas adotadas mostravam a necessidade de controle da “anarquia”. Expedições dirigidas por
experientes mercenários internacionais eram enviadas para as regiões de maior turbulência: Lorde
Cochrane encarregou-se do Maranhão e do Pará e o francês Labatut se empenharia no controle da
Bahia, onde os enfrentamentos seguiriam até o ano de 1823.
O império do Brasil levaria ainda algumas décadas para se consolidar. Mas, no momento da
proclamação da independência, os acordos realizados em Lisboa pelos deputados de algumas pro-
víncias fundamentais para o Brasil auxiliaram em uma primeira tentativa de unidade. Baseavam-se na
existência de uma assembleia constituinte e no respeito à autonomia provincial, como já mencionado.
Formulação que, apesar de atraente, levaria para o Rio de Janeiro todos os conflitos interiores a cada
uma das unidades provinciais. Como se sabe, a Constituinte do Brasil instalou-se em maio de 1823 e
foi fechada pelo imperador em novembro do mesmo ano, rompendo o acordo firmado em Lisboa.
Mais uma vez, alegou-se a necessidade de fortalecer o poder central para controlar as unidades pro-
vinciais. Porém, tratava-se agora do governo central do Império do Brasil.
Os atrativos oferecidos pelo governo do Rio de Janeiro referiam-se às possibilidades de or-
ganização interna do reino. Os motivos para a “anarquia” associavam-se à permanência da ordem
escravista, tema jamais discutido pelos deputados do Brasil presentes no Congresso de Lisboa. O
silêncio revelava o verdadeiro ponto de encontro entre os seus interesses, quais sejam, manter a es-
cravidão e preservar a ordem social. A associação dessas duas pretensões justificava a instabilidade
dos governos provinciais. Paralelamente, a afirmação dos poderes locais e as dificuldades para estabe-
lecer acordos com o governo central revelavam a imperiosa necessidade de dispor dos instrumentos
legais, inclusive das armas, para o controle das tensões sociais existentes em cada província do Brasil.
As negociações para a obtenção total ou parcial desses instrumentos acompanharam a formação do
Brasil império durante todo o século XIX. 200
23
Silva, 1961.
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A Revolução Constitucionalista
de 1820 - A representação
brasileira às cortes gerais
Raymundo Faoro*
* Graduou-se em Direito pela Universidade do Rio Grande do Sul (1948). Transferiu-se, em 1951, para o Rio de Janeiro, onde advogou e ingressou por
concurso para a procuradoria do Estado. Publicou, em 1958, “Os donos do poder”, em que analisou a sociedade brasileira e a forma de exercício do poder
público no Brasil. Presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil e foi membro da Academia Brasileira de Letras.
Fonte: Este é o VI capítulo da obra intitulada A História da Independência do Brasil, volume I, dirigida por Josué Montello, edição comemorativa do Sesqui-
centenário, produzida pela editora A Casa do Livro Ltda.em 1972.
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
reino de Portugal e Algarves que, concluídos estes trabalhos, de forma que satisfaçam às minhas
paternais vistas, com a dignidade devida, terão na Europa para os governar a minha real pessoa ou
um de meus filhos ou descendentes, assim como também outro no Brasil, para a consolidação, união
e vantagens recíprocas do reino unido, que mutuamente se aumenta e se defende”.1 Não esquecia o
bom soberano de conceder anistia aos sediciosos, ao aprovar, com relutância, o expediente dilatório
das Cortes, proposto por Palmela. Pressentindo os rumos imediatos e as inspirações íntimas do
movimento português, advertia que o reino unido era uma realidade indestrutível. A tergiversação
de nada ajudara a contornar o ímpeto da sedição: a 11 de novembro soubera o Rio de Janeiro que
Lisboa aclamara o ideário liberal do Porto. As Cortes, conservado apenas o velho e obsoleto nome,
seriam, na verdade, uma assembleia constituinte, cercada, na capital, pela flama incendiária da plebe
das ruas. Em torno do rei, lavrou o desânimo, o abatimento, o pessimismo. A terapêutica, tão cara a
D. João VI, de adiar as decisões, de tergiversar, de esperar pelo dia seguinte, revelava-se inoperante,
sem que nenhum alvitre lhe prometesse rápida e pronta saída da perplexidade. “Tão evidente era (a
triste situação do governo), que dela se ia apercebendo perfeitamente o público: também os cartazes
e as diatribes multiplicavam-se espantosamente. Tudo indicava que não tardaria a explosão do vulcão
sobre que se repousava. Medidas tranquilizadoras, ninguém as tomava no meio do torvelinho, ao
Rei competindo aliás adotá-las. Nenhum sistema se procurava seguir no Paço, nem se organizava
um governo forte para conjurar os apuros. O espetáculo era lamentável, de uma tão singular apatia
que não logravam sacudir os inimigos já confessos da situação, muito menos os que ainda andavam
à espreita de um ensejo para lançarem o repto. Na verdade porém o poder só exibia indeterminação,
sujeitando-se a ser dominado pela força dos acontecimentos.”2
A dualidade de poder - Cortes e Rei - agravava-se numa dualidade de centros geográficos
- Lisboa e Rio de Janeiro. Entre um e outro polos projetavam-se, desde o primeiro momento, dispa-
ridades que o tempo iria revelar e acentuar. Atrás do interesse da Corte e dos desígnios dos revolucio-
nários, ardiam reivindicações imediatas, preparadas desde a invasão de Junot, em 1807. A mudança
da Corte, ao deslocar a sede da monarquia, com a abertura dos portos da colônia a todas as nações
amigas, ferira de morte o pacto colonial. Segundo o velho sistema, a metrópole fornecia à colônia
todos os produtos que ela necessitasse, produzindo-os na sua agricultura e na sua indústria, ou bus-
cando-os nos outros países, da Europa, África ou Ásia. Encarregava-se, de outro lado, de colocar
sua produção, sempre com a reserva do transporte e da proibição de manufaturas que concorressem
com as da mãe pátria. Portugal adquiriu, com a ascendência metropolitana, um mercado fechado, pri-
vativo, ao tempo que se tornava um empório mundial, de intermediação e de transporte. Empolgado
com essa missão comercial, marítima e universal, a metrópole se lançou, desde os descobrimentos,
na política do transporte, com o temerário abandono da política de fixação, preocupada, esta, com o
mercado interno, moderadora da expansão sem que as bases econômicas nacionais se constituíssem
em sólidos e competitivos núcleos produtivos. “Este regime social-econômico faz dos empórios do
litoral, como é óbvio, um remoinho de riquezas fátuas que assola e chupa o interior do país, e escon-
de num manto de lantejoulas a realidade mísera de um pobretão.”3 Sistema estruturalmente frágil,
dependente da capacidade de manter as colônias ou conquistas prisioneiras dos interesses, das arma-
1
F. A. de Varnhagen. História da Independência do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos, 3ª ed., pp. 21 e 22.
2
Oliveira Lima. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1945, 2ª ed., 3º vol., pp. 1071 e 1072.
3
Antônio Sérgio de Sousa. Ensaios. Lisboa: Seara Nova, 1928, tomo II, p. 79.
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das ou dos exércitos da metrópole. Transferida a sede da monarquia, em 1808, ocupado o reino pelas
forças francesas, a colônia se convertera em metrópole, necessariamente, com o comércio aberto ao
mundo pelo ato sugerido por Cairu, comércio restrito, logo após, pelo tratado de comércio de 1810,
que favorecera a Grã-Bretanha.
A libertação de Portugal do jugo francês não trouxe o restabelecimento do pacto colonial. O
ano de 1808 projetou, no Brasil, uma realidade não passível de ser desfeita. Integrou a colônia no sis-
tema mundial do capitalismo, sob a hegemonia econômica da Inglaterra, libertando, no país, as forças
econômicas represadas, com a fixação de comércio e manufaturas autônomas. De outro lado, a in-
dústria portuguesa, de caráter rudimentar, nascera e prosperara dentro do mercado cativo, mediante
o privilégio de escoamento certo de seus produtos, incapaz de competir com a inglesa, com artigos
melhores e mais baratos. Um fator político acentuava o alheamento de Portugal: a permanência da
Corte no Rio, quando já afastado, na Europa, o perigo napoleônico.
Portugal definhava, enquanto o Brasil prosperava. O mal-estar daí resultante, que tendia a
inverter os termos da tradicional balança do poder, na qual a metrópole se tornaria a colônia da ex-
-colônia, tornou possível a explosão de 1820. A miséria econômica do reino, com as fábricas em de-
clínio e a agricultura em decadência, provocara o colapso nas rendas públicas, arrastando o atraso nos
pagamentos de ordenados e soldos aos militares e funcionários. Para remediar males de tal gravidade,
o país se encontrava sem governo, entregue o comando político da nação a uma regência de tutela
britânica, enquistada em Lisboa desde a expulsão do invasor, sob o frouxo, distante e desinteressado
patrocínio de D. João VI, que se demorava no Rio de Janeiro, fascinado pelos encantos tropicais da
terra e talvez refugiado da onda liberal que, com intermitências, varria a Europa há quarenta anos,
convulsivamente. Um erro de perspectiva ainda mais acirrava os ânimos em revolta: debitava-se a de-
cadência do reino apenas à teimosa permanência da Corte no Brasil. Os revolucionários queriam um
governo nacional, com a retomada do comando econômico do país, mediante o controle popular. Os
desígnios econômicos se casavam com a implantação da soberania da nação, em golpe que destruiria
a dependência à direção estrangeira e ao absolutismo. Na verdade, Portugal perdera o Brasil - o qual
representava cinco sextos do movimento geral do comércio exterior4 - não apenas em consequência
dos acontecimentos de 1807-1808, que se prolongaram até o retorno de D. João a Lisboa, em 1821.
Estudos recentes, com a visão de maior distância, permitem discernir, na ruptura do pacto colonial, a
presença de agentes mais enérgicos, tornando-o, naquele momento, inviável. Com respeito às manu-
faturas, o envolvimento do Brasil na rede do capitalismo industrial se deu ainda antes da entrada das
tropas de Junot em Portugal. A incapacidade de modernização do reino, seu desajuste à revolução
dos métodos produtivos, condenou-o à decadência industrial, com a progressiva perda dos mercados
coloniais. O declínio da produção portuguesa é anterior a 1808; os quadros das exportações demons-
tram que a queda das exportações ocorre desde 1800.5 “Em 1808, apenas, se amplifica e legaliza uma
situação permitida, a partir de 1800, como exceção. Esta exceção, de um lado, e o descaminho, do
outro, tolerado este, ao menos, pelos funcionários fiscais do Rio de Janeiro, levariam, forçosamente,
4
Julião Soares de Azevedo. Condições Econômicas da Revolução Econômica de 1820. Lisboa: Empresa Contemporânea
de Edições, 1944, p. 130.
5
José Antônio Soares de Sousa. Aspectos do Comércio do Brasil e de Portugal no fim do século XVIII e começo do século
XIX. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 289, Rio de Janeiro, 1971, p. 71 e segs.
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mais cedo ou mais tarde, à legalização de 1808, mesmo que os exércitos de Napoleão não invadissem
Portugal. Para nós não foram os soldados de Junot, nem a retirada de D. João para o Brasil os res-
ponsáveis pela liquidação do pacto colonial, mas, principalmente, as fazendas inglesas, ou melhor, as
indústrias de algodão e lã da Inglaterra que necessitam, para sua sobrevivência, de consumidores.”6
“O contrabando por si somente seria o bastante para aniquilar o monopólio do comércio brasileiro.
Já se não fazia clandestinamente, como todo contrabando que se preza, mas às escâncaras, com o
conhecimento (por assim dizer) oficial, pois fora o governo português cientificado pelos governos
britânico e sueco da existência e continuidade daquele contrabando. Via-se Portugal impossibilitado
de coibi-lo, porque tinha contra si, não só os interesses dos brasileiros, senão também os dos indus-
triais e comerciantes ingleses, que se aliaram no solapar o decrépito pacto colonial. As manufaturas
portuguesas sentiram, desde 1800, as consequências da concorrência das congêneres inglesas, in-
troduzidas no Brasil, clandestinamente ou por uma ou outra concessão, como Teixeira de Morais
várias vezes denunciou. Mas sabia perfeitamente este ilustre funcionário o ponto fraco das indústrias
portuguesas, já percebido pelo francês Helflinger, em 1796, nestas palavras: “la chareté de ses prix.”
Não era possível, portanto, subsistirem as indústrias de Portugal diante dos “cômodos preços” das
inglesas, como o próprio Teixeira de Morais reconheceria alguns anos depois, ao escrever: “Eu já
tenho repetido nas observações das Balanças dos anos passados que o resto das nossas fábricas não
pode subsistir pela concorrência das manufaturas inglesas, pois só no artigo de algodão entraram 9
milhões de cruzados, os seus cômodos preços, é para concluírem o seu sistema, e uma vez que lhes
acabem, todas as nações hão de dar às suas mercadorias os preços que lhes parecerem.”7
Os propósitos mais substanciais da revolução comprometiam-se, por consequência, em objeti-
vos ilusórios. Restaurar a prosperidade portuguesa por meio do retorno da Corte, com a retomada do
mercado brasileiro, seria, no ano de 1820, um programa utópico. Contra ele não se afirmava apenas o
acelerado amadurecimento dos interesses brasileiros, de caráter autonomista, mas a própria presença,
internacionalista por natureza, do capitalismo industrial. Entre um polo e outro do reino - dissociados
econômica e politicamente - atuavam as forças desencadeadas pelas manufaturas inglesas. Os homens
de 1820 sonhavam com fábricas modernas, é certo. Seu modelo era, porém, o da produção com con-
sumidores vinculados, esquema que a concorrência inglesa já desmoralizara. Reconstruir, sem as mer-
cadorias produzidas em fábricas próprias, a política de transporte, seria anacrônico irrealismo. A arqui-
tetura liberal do Estado, desamparada do bem-estar que a prosperidade traria, ruiria por si, depois das
decepções e do malogro da aventura econômica. Este aspecto é particularmente relevante na sequência
do movimento de 1820, dado seu caráter de revolução burguesa, com o alheamento, pelo menos inicial,
da parcela de povo que, desde Fernão Lopes, se convencionou chamar de “arraia miúda”. Os letrados
e juristas do Porto, bem como os sediciosos de Lisboa, tinham seu maior estímulo nos proprietários,
comerciantes e industriais. “A revolução liberal foi obra da burguesia sobre a qual pesavam, principal-
mente, as consequências da residência real no Brasil e o desfalecimento da indústria e do comércio.”8
O constitucionalismo, o sopro liberal seriam, nessa contextura de anseios, interesses e preocupações, o
meio de, apropriando-se da soberania, controlar, dirigir e dominar o governo.
6
Idem, p. 74.
7
Ibidem, pp. 104 e 105.
8
Julião Soares de Azevedo, obra citada, p. 143.
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relações que nos ligam na mesma família, em nome de hábitos que a uns e a outros nos são caros, em
nome finalmente dos mútuos e recíprocos interesses que nos prendem, não tardem a vir cooperar
conosco em um mesmo Congresso na regeneração imortal do Império Lusitano. Extinto para sem-
pre o injurioso apelido de Colônias, não queremos todos outro nome que o título generoso de con-
cidadãos da mesma pátria. Quanto nos deprimiu a uns e a outros a mesma escravidão tanto nos exal-
tará a comum liberdade e entre o europeu, americano, asiático, africano, não restará outra distinção
que a porfiada competência de nos excedermos e avantajarmos por mais entranhável fraternidade,
por mais heroico patriotismo, pelos mais denodados esforços.”10 Não se aludia, por ora, à revolta do
reino de se sentir colônia de uma colônia. Havia o sutil apelo a uma federação, mantido o reino unido
com a igualdade de direitos, sob o comando de um único congresso, meio que, mais tarde, se revelou
o instrumento para a política frustra de dobrar o Brasil aos interesses da burguesia portuguesa. O
ardiloso disfarce não resolvia o impasse original: “ou, negando os princípios, estabelecia que o regime
liberal se aplicava apenas à Metrópole, e descontentava os brasileiros, ou dava ao Brasil todos os
direitos, correndo o risco de uso que ele lhes daria. O problema das colônias era, na realidade, o da
atitude do Brasil...”11. A contradição persistia, enredando-se as pontas do dilema na posição que D.
João VI adotasse. O liberalismo, abstratamente lançado, cobria-se, ao primeiro lance de irradiação,
de um conteúdo concreto: para Portugal servia à reorganização da economia com a submissão do
Brasil; no Brasil, ele se confundiria com a emancipação, aperfeiçoado o estatuto do reino unido.
Enquanto Portugal toleraria o rei, o Brasil precisaria de um centro de autoridade, necessidade que o
levaria a proclamar um imperador. No fundo do problema, portanto, apesar das negaças, desvios e
máscaras, firmava-se uma só interrogação: a sede da monarquia, que, transferida para o velho reino,
converteria o Brasil em país dependente; conservada no Rio de Janeiro, levaria os revolucionários a
tomar outros rumos, os escuros rumos da perda da autonomia. A submissão ideológica a princípios
comuns seria um passo transitório, que não anularia a dinâmica própria das duas vertentes do libera-
lismo, política e economicamente em dissídio progressivo.
D. João VI compreendeu, desde que recebeu as primeiras notícias dos sucessos de Portugal,
toda a amplitude e todas as implicações do drama que se ia desenrolar aos seus olhos. A divergência
de opiniões caracterizou-se, desde logo, no seu conselho, com as posições antagônicas de Tomás
Antônio, seu ministro de maior confiança, e o Conde de Palmela, que chegara ao Rio de Janeiro em
6 de outubro de 1820, para assumir a pasta dos Estrangeiros e Guerra. O debate entre as duas per-
sonalidades reflete o choque das velhas ideias absolutistas contra o liberalismo cauteloso, atilado e
transacional da Europa pós-napoleônica, representada pelo culto, fino e astuto Palmela. Na verdade,
em poucos meses os acontecimentos tornaram inócuas as discussões, com o pronunciamento de 26
de fevereiro de 1821, que obrigou a casa real, sob a ameaça das baionetas, a aceitar a nova realidade.
Tomás Antônio queria que o rei permanecesse no Brasil, para forçar as Cortes a respeitar a dignidade
da coroa, isto é, a acatar a ascendência absolutista do monarca: “Se vos conservais na obediência,
irei”, lembrando que “sempre estará também uma pessoa real no Brasil, pois bem veem que o Bra-
sil não há de já agora ser colônia, e desconfiarão sempre que se deixava o menos pelo mais, e, para
10
José Gonçalo de Santa Rita. As questões Coloniais. Lisboa: Minerva, 1949, p. 10.
11
Idem, p. 15.
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sossegarem, é preciso que se contem com a união do reino do Brasil.”12 Palmela propunha a outorga
de uma Constituição antes que as Cortes a elaborassem - “melhor é dar espontaneamente que por
contrato”, constituição ao molde da de Luís XVIII, com uma Câmara dos Pares, onde a nobreza e o
clero se fizessem representar, facções excluídas das deliberações do movimento de 1820. Para salvar
a união, pretendia que o Brasil tivesse uma constituição brasileira, com representação própria e local,
sob a regência de um ramo da família real. O debate, a princípio circunscrito ao conselho, ganhou as
ruas, por meio da matéria impressa, destinada a demonstrar que, uma vez afastada do Brasil a família
de Bragança, a Independência seria uma realidade, visto que, com a união, só Portugal auferia vanta-
gens. Era o embrião do partido brasileiro, já voltado para algumas reivindicações, todas adversas aos
revolucionários de Portugal: a permanência de uma autoridade real no Brasil, aglutinadora de seus
peculiares interesses, autonomia da representação nacional, predomínio da importância americana
no reino unido.
Os acontecimentos se incumbiram de afastar as resistências de D. João VI à revolução portu-
guesa, fixadas no propósito de enganar as Cortes sobre a realidade brasileira. Enquanto o rei, refu-
giado neste lado do Atlântico, tergiversava, em duelo arguto às exigências portuguesas, quebrou-se o
assento de sua oposição ao movimento liberal. A nação - aparentemente a nação brasileira - acolhia
a obra das Cortes, em repúdio às dilações do Rei. Os revolucionários tiveram a impressão de que, daí
por diante, tinham o Brasil à sua mercê, dispensados de negociar com o monarca e com o príncipe
real. O perigoso problema da adesão - que parecia aos desavisados a submissão americana - sim-
plificava-se: o Brasil era das cortes, também ele apenas tolerava a autoridade absoluta. As Cortes,
reunidas em Lisboa desde 26 de janeiro de 1821, embriagar-se-iam de boas notícias: a 1º de janeiro o
Pará pronuncia-se pela ordem liberal, a 10 de fevereiro a Bahia a aceita, e a 26 de fevereiro o Rio de
Janeiro aclama a revolução, com o juramento da família real. Era o ano do liberalismo português, a
que sucederia o ano do liberalismo brasileiro, como acentua Oliveira Lima,13 liberalismos desde o pri-
meiro momento malcimentados e em procura de órbita própria. Os acontecimentos no Brasil foram
festejados com aclamações e muitos discursos. Não percebeu o congresso que, nos sucessos ameri-
canos, havia, em alguma parcela, o revide à pressão colonial das violências dos capitães-generais, bem
como o ardente desejo de, sem submissões, organizar um império com direitos iguais. A palavra de
Patroni - Felipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente -, emissário dos paraenses, não deixava lugar
a enganos; sua flama liberal era igualmente a fé do afastamento da discriminação entre as duas partes
do reino. “Animados dos mesmos sentimentos - dissera o fogoso orador -, apreciando os mesmos
direitos e vinculados com o mesmo sangue, os parentes queriam fazer um e o mesmo corpo com os
lusitanos.”14 Nessa sessão de 4 de abril, Manuel Fernandes Tomás, o líder da revolução, propõe, para
assegurar a igualdade de direitos, que o Pará não se denomine mais de capitania, senão de província.
Esta era a compreensão de pátria comum dos homens das cortes; a lisonja escondia o plano de tornar
o território ultramarino um conjunto de frações subalternas, sem governo próprio. “Daí promana-
va - na proposta de Manuel Fernandes Tomás - logicamente a desnecessidade de haver no Brasil o
governo central que enfeixava agora as capitanias, e como o Minho, o Algarve, estas ficavam sob a
12
F. A. de Varnhagen, obra citada, p. 22.
13
Oliveira Lima. O Movimento da Independência. O Império Brasileiro. São Paulo: Edições Melhoramentos, 2ª ed., p. 75.
14
Domingos Antônio Raiol. Motins Políticos. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970, p. 18.
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jurisdição da antiga metrópole, vindo desse modo a América portuguesa a perder implicitamente a
graduação do reino. Tal era, porém, a confiança no congresso e nos repetidos protestos de fraterni-
dade dos regeneradores que os brasileiros não divisaram o intuito da recolonização nesse conceito,
que surgia ao primeiro contato dos irmãos mais novos com os mais velhos na obra da reconstituição
da pátria.”15 Os brasileiros, também embriagados de liberalismo, nada percebiam dos rumos subter-
râneos dos compatriotas das Cortes, mas, muito cedo, o véu lhes cairia dos olhos, como aconteceria
com Patroni e, logo, com os patriotas baianos. A notícia da adesão da Bahia ao reino chegou a Lisboa,
com dois meses de atraso, a 15 de abril. O entusiasmo foi delirante: Fernandes Tomás comandou o
espetáculo com um “vivam os baianos”, três vezes repetido na sala, apoteoticamente. Faltava ainda
uma notícia, a da aclamação do Rio de Janeiro e a do juramento da família real à constituição futura,
até agora aprovada nas suas bases. A 27 de abril, o eco de 26 de fevereiro libertou Lisboa da expecta-
tiva febril. As casas se iluminaram, os jornais abriram colunas entusiasmadas, fogos acordaram a ci-
dade: o rei recebeu vivas, com lágrimas de reconhecimento e protestos de fidelidade. Somente agora,
no fim de abril de 1821, as cortes eram realmente soberanas: o perigo da intervenção estrangeira, o
clamor da Santa Aliança, o risco da perda do Brasil - tudo estava conjurado. Estava aberto, também, o
caminho para levar adiante as reivindicações dos inspiradores da revolução, com a recolonização do
Brasil. O regresso de D. João VI, em julho, tranquilizou as impaciências e os temores: ficava ao longe
o sonho de atrelar o trono à Casa de Cadaval ou de alienar a independência à Espanha, liberal desde
março de 1820. O fantasma da Santa Aliança, tão ativa contra Nápoles e a Espanha, estaria desfeito
na lembrança de um pesadelo.
As cortes foram, na verdade, traídas pelos reflexos dos acontecimentos do Brasil, interpre-
tados como se representassem a aclamatória adesão ao movimento do Porto. O apoio do Pará, da
Bahia e do Rio de Janeiro pareceu aos ingênuos deputados portugueses apenas uma réplica das festas
que acolheram a 24 de agosto em Portugal. Esqueceram - uma cegueira que lhes comprometerá a
conduta futura - que o Brasil trazia, com o seu aplauso subversivo, duas incógnitas, não decifráveis
pelos distantes e enervados sonhadores reunidos em Lisboa. O liberalismo que vinha do outro lado
do Atlântico se contaminava de uma cor que desfigurava o liberalismo português ele significava, na
essência e na forma, o cuidado de, modernizando as instituições políticas, extinguir o pacto colonial,
ainda subjacente ao Reino-Unido e na corte absolutista, que, transmigrada, não afeiçoara ao seu siste-
ma os interesses e os anseios americanos. A elevação a reino não extirpara os vícios de mandonismo
dos capitães-generais e a exploração sobre o País, concentrada no nó de víboras plantado no Rio de
Janeiro. De outro lado, a palavra do Pará, da Bahia e do Rio de Janeiro não traduzia, com pureza e
autenticidade, a opinião brasileira, a opinião brasileira já viva, vibrante ao rubro nas manifestações
de Minas Gerais e Pernambuco. As cortes apreenderam a mensagem de superfície, pregada e sus-
tentada pelos portugueses do Brasil, desejosos do retorno, vinculados à burocracia que deixara, no
velho reino, a alma e a família, o lar e as esperanças. Esqueciam os declamadores de Lisboa que o
interesse brasileiro (compreendido aí o interesse dos portugueses radicados no Brasil) já fixara uma
trincheira inexpugnável: a permanência, no Rio de Janeiro, de um ramo da família real. Houve, nos
sucessos de apoio ao constitucionalismo, a obra de portugueses “estranhos aos interesses do Brasil e
15
M. E. Gomes de Carvalho. Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821. Porto: Livraria Chardron, 1912, pp. 19 e 20.
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Padre Muniz Tavares, deputado constituinte por Pernambuco junto às cortes de Lisboa. Em debate com o deputado constituinte portu-
guês Borges Carneiro, na sessão das Cortes de 18 de outubro de 1821, Muniz Tavares pronunciou corajoso e patriótico discurso, comba-
tendo o envio de mais tropas para a Província de Pernambuco e a incômoda presença, ali, da já numerosa guarnição lusitana, que o brioso
povo da sua terra não mais tolerava.
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nele não domiciliados”.16 Preponderante seria o papel da tropa, sempre dirigida e manobrada pelos
oficiais reinóis, com os olhos voltados, ansiosamente, para a pátria distante. Esta seria a face postiça
do liberalismo brasileiro: “constitucionalismo urgente e extorquido. Liberalismo imposto.”17 Passou
despercebido ao vibrante entusiasmo das Cortes, delirantes na aclamação do 26 de fevereiro, que
coube ao Príncipe D. Pedro, cortando as perplexidades do pai, inerte entre conselhos e alvitres dis-
cordantes, assumir a liderança da conservação da coroa. Mediador entre a nação e o rei, arrancou da
monarquia os restos absolutistas, para conservar a autoridade, num ímpeto cesário, em diálogo direto
com o povo. O gesto não seria indiferente: o poder buscava outra fonte de legitimidade, que não era
a da tradição, mas não seria a da soberania apropriada pelas Cortes. Se os brasileiros não tomaram
parte nos acontecimentos, tímidos ou boquiabertos,18 a brecha aberta no sistema de poder viria abri-
gar suas reivindicações futuras.
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um no reino e outro no Brasil, para o fim de ajustar os mandamentos portugueses à realidade brasi-
leira, ideia que, mais tarde, D. Pedro poria em ação, depois de, frustradamente, ter procurado D. João
VI adotá-la.20 Note-se, todavia, que o plano de dois congressos na mesma monarquia não congregara
o entusiasmo dos liberais brasileiros, temerosos que o congresso brasileiro, manipulado pela corte,
não incorporasse as inovações de Lisboa, vistas como mais democráticas.21 O pensamento coincidia
com os receios do Correio Braziliense: entre Antônio Carlos e Hipólito José da Costa havia, sem acordo
prévio, perfeita compreensão, o que demonstra o amadurecimento de um ideário político brasileiro.
As cortes não tinham fixado uma diretriz acerca do assunto, havendo, no curso de seus trabalhos,
mudado de rumo mais de uma vez.
A assembleia de Lisboa dividiu seu trabalho constituinte em duas fases: estabeleceu as bases (9 de
março de 1821), que seriam o roteiro indesviável da constituição. Ao absorver as atribuições legislativas
e administrativas pareceu-lhe necessário assentar um conjunto de princípios capazes de situar, cercar e
limitar o arbítrio do governo. O artigo nº 21 das Bases assentava que as decisões constitucionais só se tor-
nariam comuns ao ultramar se este, pela voz de seus representantes, as aceitassem. Firmava-se o princípio,
portanto, da manifestação separada de vontade - princípio que, negado mais tarde, daria lugar a teses e
contrateses, acerca do problema da validade das manifestações fundamentais. O dispositivo, confuso no
enunciado, sugeria uma câmara autônoma, a ser instalada no Brasil, ou uma seção especial dentro das cor-
tes, com a tomada parcelada de votos, mecanismo de funcionamento difícil.
Desembarque de D. João VI na Praça do Terreiro do Paço, em Lisboa, no dia 4 de julho de 1821, regressando do Brasil.
Gravura, pormenor. Constantino Fontes. Museu da Cidade de Lisboa.
20
F. A. de Varnhagen, obra citada, p. 38.
21
Idem, p. 46.
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22
O número dos deputados sofre dúvidas e incertezas entre os historiadores: Oliveira Lima. O Mov. da Ind., p. 102; F. A. de Varnhagen, obra citada, p. 60.
Seguimos o rol elaborado por Nelson de Sena. Participação dos Deputados Brasileiros nas Cortes Portuguesas de 1821 - in Livro do Centenário da Câmara dos
Deputados. Rio de Janeiro: Empresa Brasil Editora, 1926, p. 13 e segs.
23
M. E. Gomes de Carvalho, obra citada, pp. 88 e 89.
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e Curitiba) designaram, para compor a junta eleitoral da Província, 18 membros, 6 de cada uma. A
junta eleitoral da Comarca de Itu - 3o grau da eleição - iniciou suas reuniões em 17 de maio, encer-
rando-as a 19. “Presidiu-a o ouvidor Medeiros Gomes, secretário Diogo Antônio Feijó, e serviram
de escrutinadores Rafael Tobias de Aguiar e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Compareceram
34 eleitores paroquiais, dentre eles foram escolhidos eleitores da comarca - Vergueiro com 31 votos,
Rafael Tobias com 27, Feijó com 26, Paula Sousa com 26, Antônio Pais de Barros com 23, e José de
Almeida Leme com 18.”24 A junta eleitoral da Província - o último grau do ciclo - presidida por José
Bonifácio, vice-presidente e membro mais influente do governo provincial, com Feijó participando
da comissão especial incumbida de examinar os títulos dos eleitores, elegeu os seguintes deputados (7
de agosto de 1821): Antônio Carlos, 11 votos, Vergueiro, 10; José Ricardo da Costa Aguiar, 17; Paula
Sousa e Fernandes Pinheiro empatados, com a decisão pelo sorteio; e Diogo Antônio Feijó, 9 votos.
Como suplentes: Antônio Manuel da Silva Bueno, 13 votos, e Antônio Reis de Barros, 9.
O sistema, tal como se apresenta na amostra de São Paulo, talvez proporcione alguns escla-
recimentos acerca do método de seleção. Oito eleitos, inclusive os suplentes, indicam o influxo do
governo provincial - desde 23 de junho de 1821 a junta provisória - com a influência de José Boni-
fácio, vice-presidente e o mais destacado membro da situação. Um pequeno grupo, escolhido pelas
comarcas - as fases da freguesia e da paróquia com um influxo muito vago - selecionava os prováveis
eleitos, restritos às pessoas que conciliassem as preferências desse círculo. José Bonifácio e Martim
Francisco seriam escolhidos, se não se desinteressam do pleito, impelidos a permanecer na provín-
cia pelas mais representativas forças de São Paulo. Elegeram, todavia, Antônio Carlos e Antônio
Manuel da Silva Bueno, irmão, o primeiro, e o segundo sobrinho de José Bonifácio, bem como José
Ricardo da Costa Aguiar, também do clã dos Andrada e magistrado. Os três representantes estavam
vinculados à burocracia colonial: magistrados o primeiro e o último, professor e funcionário público
o segundo. Ligado à burocracia, como desembargador era ainda José Feliciano Fernandes Pinheiro
(depois Visconde de São Leopoldo). Os restantes, Vergueiro, Antônio Pais de Barros, Paula Sousa
e Feijó tinham raízes na agricultura, expressões de fortuna imobiliária, vínculo que prendia o pró-
prio Padre Feijó, da família Camargo, reconhecido nessa qualidade, apesar de filho natural. Havia,
às vésperas da Independência, uma camada social, no exercício de funções de governo, quer como
magistrados e militares, quer próxima aos problemas públicos - como os clérigos, padres, cônegos e
bispos, que seria chamada ao primeiro plano da política. Junto a ela, os senhores de terras, agriculto-
res e latifundiários, se intermeavam na mesma direção, sem o predomínio que, mais de uma vez, se
tentou vislumbrar. Essa burocracia local - no nível das comarcas e das sedes das capitanias - ocuparia
o lugar dos funcionários da Corte, próximos ao rei. O deslocamento tem a expressão mais vigorosa
com José Bonifácio e Martim Francisco, nomeados ministros - pela primeira vez aberta a honra a
brasileiros - de D. Pedro. Se levado o inquérito a proporções globais, pode-se observar, num conjunto
de 80 deputados eleitos (deputados e suplentes), excluídos sete que não deixaram vestígios e mate-
riais biográficos, esta distribuição: 23 clérigos, 14 magistrados, 7 militares, seguindo-se os fazendeiros
(10), advogados (10), médicos (6), professores e funcionários. A organização política serviu-se, no
primeiro momento, dos homens influentes, presos ou próximos ao governo, apelando, só em grau
24
Octavio Tarquínio de Sousa. História dos Fundadores do Império do Brasil - vol. VII: Diogo Antônio Feijó. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1960, p. 45.
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menor, aos fazendeiros e advogados. Esta, uma constante que seguirá íntegra nos dois reinados, mal-
percebida e mal-estudada no curso da história brasileira.
Assinale-se, ainda, que as eleições, na ausência de partidos e controladas a partir dos centros
provinciais, não se dilaceravam em disputas. Raros os grupos ou homens que pleiteavam, com ardor,
entusiasmo ou paixão, as candidaturas. No Rio ninguém queria ser deputado. Aos fatores conjuntu-
rais, derivados do processo eleitoral, somava-se o desprestígio do governo, nesse ano de 1821, bem
como não se acreditava que, representado o povo nas Cortes, daí resultasse melhoria aos brasileiros.25
Sentia-se que a viagem a Lisboa era, por si, um extravio ao debate dos assuntos nacionais, desde a
transmigração da Corte, há quinze anos, resolvidos e decididos neste lado do Atlântico. Por isso, o
número de representantes, sobretudo do Rio de Janeiro, se completou com brasileiros estabelecidos
em Portugal. Não se pense, apesar de tudo, que era fácil ao aventureiro se tornar deputado. A estrutu-
ra, apesar de frouxa, não admitia a interferência de ocasionais disputantes. Patroni é bem o exemplo
no seu insucesso de representar o Pará.
Somente a representação de São Paulo levou instruções para fixar a área de seus interesses
e reivindicações dentro da assembleia constituinte. O fato estaria a demonstrar que os deputados
obedeciam ao governo local das províncias, as juntas que as Cortes validaram em cada ex-capitania.
A circunstância de apenas a província dos Andradas fixar essa diretriz em nada nega a tese: as outras
províncias não haviam, ainda, estabelecido governos capazes de representar os interesses locais. As
Lembranças e Apontamentos - tal o nome das instruções da junta paulista, da lavra, ao que tudo indica,
de José Bonifácio -, aprovadas em 22 de agosto de 1821 por todo o colegiado local, traduzem o ro-
teiro dos princípios que, desdenhados e combatidos, se cristalizariam na Independência. Mostram a
realidade de um pensamento político brasileiro, cujo desconhecimento pelas cortes, enganadas pelos
aplausos de seus partidários no Brasil, acelerariam a separação de Portugal, com muitas angústias e
incompreensões. As Lembranças e Apontamentos compreendiam três ordens de reivindicações: negócios
da União, do reino do Brasil e da província de São Paulo. Dominava o documento a preocupação, ao
tempo partilhada pelas influências dominantes, de assegurar a integridade do reino unido, de acordo
com o sistema implantado em 1815. A indissolubilidade do reino se asseguraria mediante a igualdade
de direitos dos brasileiros e portugueses. No Brasil, haveria um governo geral, ao qual ficariam sujei-
tas as províncias, com a divisão clara das competências. Unionismo, vê-se, com centros soberanos de
autoridade em cada uma das duas parcelas do reino. Por sua vez, as províncias teriam vida política e
administrativa próprias, sem que as anulassem o comando nacional. A constituição, que regeria o rei-
no unido, seria liberal, com quatro poderes - já despertando, sem lúcida caracterização, o abandono
do esquema ultraliberal, que então incendiava as imaginações dos congressistas portugueses.
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na Revolução de 1817, que os eleitos, na sua maioria, apoiaram. Duas figuras viriam a se notabilizar
entre os representantes da província: Muniz Tavares (Francisco - 1793-1875), padre e mais tarde
monsenhor, e Pedro de Araújo Lima (1793-1870), doutor em direito e magistrado, futuro Marquês
de Olinda e Regente do Império.
A assembleia, desde a votação das Bases, deliberou não tratar de assuntos brasileiros sem que
chegassem a Lisboa os representantes do ultramar americano. A abstenção se manteve, apesar de
discussões e impaciências, até o retorno de D. João VI, em julho. Daí por diante os revolucionários,
certos da submissão do rei e da fidelidade das províncias, debateram, embora com tênues resistências,
alguns tópicos da reorganização do Brasil, sobretudo relacionados com o movimento de tropas. Fer-
nandes Tomás, líder da revolução e das cortes, afastou o compromisso antigo ao abrigo de uma tese,
juridicamente correta mas politicamente perigosa, que sustentava haver, na assembleia, representan-
tes de toda a nação, e não de Portugal, do Brasil ou de uma província. De outro lado, a quebra do
acordo obedecia a um imperativo de fato e não de direito. As províncias brasileiras - as ex-capitanias
- juntaram-se ao constitucionalismo português, criando juntas provisórias, diretamente vinculadas a
Portugal, desconfiadas da adesão da monarquia aos princípios liberais. Esse germe de organização
política, espontaneamente criado contra as tradições coloniais e contra a absorvente influência do
Rio de Janeiro, animou as cortes a incentivar a divisão do Brasil, sem uni-lo a um foco autônomo de
autoridade central.
A chegada dos representantes brasileiros permitia à assembleia o cumprimento das Bases,
interiormente já minadas com os rumos, senão ainda recolonizadores, pelo menos voltados ao con-
trole do ultramar americano. Ia iniciar-se um período, breve e exaltado, de lua-de-mel dos deputados
brasileiros com as Cortes. Os velhos revolucionários de 1817, reconhecidos como precursores libe-
rais, tiveram a atividade reabilitada, aceitos, em linhas gerais, seus alvitres para organizar o governo
provincial. O clima de entendimento não se altera com a entrada da representação fluminense, a qual
seria enriquecida, em breve, com a posse do suplente Francisco Vilela Barbosa (1769-1846), enge-
nheiro militar, futuro Marquês de Paranaguá, a figura mais alta dos deputados brasileiros antes da
entrada de Antônio Carlos (1773-1845). Durante a calmaria, sem que os brasileiros se mostrassem
particularmente apegados ao princípio de só deliberar sobre assuntos americanos depois de completa
a posse da representação, tomaram as cortes decisões da mais alta gravidade. Os melindres nativistas
ainda não tinham despertado, presurosos todos em afirmar o repúdio à ideia de independência e
não preocupados sequer em constituir um centro de autoridade no Brasil. Depois de separarem do
governo das juntas a força militar, dependente esta diretamente de Lisboa, as outras medidas, lan-
çadas para prender o Brasil à metrópole, seriam inevitável corolário. Não parou aí a pertinácia dos
regeneradores. Arrastados pela lógica de seus propósitos, pretenderam reduzir as províncias ultrama-
rinas à qualidade de províncias portuguesas. Sem força militar, a seção brasileira da monarquia seria
despojada da autonomia judiciária. A Casa de Suplicação e todos os tribunais superiores deveriam
desaparecer do Brasil, suspeitados de focos possíveis de resistência legal. A obra de D. João seria
desmontada, peça por peça, de toda sua grandeza. A mãe pátria tudo comandaria, sem apelo e sem
condescendências. Os governos provinciais se organizaram de acordo com o decreto de 29 de setem-
bro, promulgado a 1o de outubro de 1821. O Brasil deixava de existir, suprimido o governo central,
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sem que os poucos deputados brasileiros, já empossados, percebessem a profundidade do golpe. Hi-
pólito José da Costa, igualmente enganado sobre o conteúdo do ato preliminarmente recolonizador,
chegou a louvá-lo. Viria depois a exigência de retorno de D. Pedro, na verdade despojado de seus
poderes de regente. Habilmente, as juntas provinciais, espontaneamente organizadas ao primeiro
impacto da revolução liberal, foram adotadas para a obra de quebrar a nascente unidade nacional.26
Com a reorganização política, D. Pedro, de regente, passava a governador. Ele próprio (carta de 17 de
julho de 1821) se resignava a voltar a Portugal, entregando o Brasil à discrição das Cortes. O regente,
não só perderia a sua ascendência no novo reino, como deveria percorrer a Europa, para aprimorar
a educação, proclamada ineficiente em plenário do Congresso, onde se lembrou que ele não falava
outra língua senão o português.
Esgotava-se o mês de setembro de 1821 com o pleno domínio do centro do tabuleiro pelos
regeneradores. Faltava apenas, para completar a obra de submetimento do Brasil, o regresso do prín-
cipe, na verdade cercado, no Rio de Janeiro, pela tropa portuguesa. Depois disso, o caminho estaria
aberto às medidas econômicas e financeiras que voltariam a restaurar o regime anterior a 1808. Uma
voz viria a quebrar o marasmo: a voz de Vilela Barbosa, que tomara assento a 16 de outubro, integra-
do na representação fluminense. O ex-capitão do corpo de engenheiros, respeitado professor de geo-
metria na Academia Real de Marinha, apesar de ausente do Brasil há longos anos, delibera associar-se
aos protestos da bancada pernambucana contra um processo instaurado no Brasil, sob o pretexto de
conspirarem os presos a favor da separação do Brasil. Luís do Rêgo governava Pernambuco, com o
apoio das Cortes e sob a desconfiança da opinião liberal. Ergue-se o futuro Marquês de Paranaguá
para advertir o congresso, pela primeira vez, que a independência não seria impossível, se Portugal
pretendesse amordaçar o Brasil por meio de tropas e de medidas despóticas, autorizando a violência
de seus delegados. “Quero conceder - proclama - que naquela província alguns oprimidos levantas-
sem na sua desesperação o grito da independência. Acaso as suas representações, as suas queixas, as
suas súplicas foram ouvidas e satisfeitas? Acaso já se lhes arrancou o jugo de ferro? Não certamente.
Luís do Rêgo ainda lá existe. A liberdade comprimida reage com todos os sentidos e estoura, e todos
os caminhos que trilha para se restituir ao seu devido estado são justos e quando menos desculpáveis.
Removam-se do Brasil os déspotas e opressores, e então a voz da independência, a menor voz, será
crime, e crime atrocíssimo, como ingratidão para Portugal, a quem devem aqueles povos o ser e ora
o maior de todos os bens, a liberdade.” Havia um limite a todas as medidas e reformas da assembleia:
a igualdade dos brasileiros aos portugueses no desfrute da liberdade. A contradição original da revo-
lução mostrava os primeiros traços da precariedade de sua arquitetura. Daí por diante, no exercício
de uma liderança que Antônio Carlos lhe arrebatará, a palavra de Vilela Barbosa aglutinará as descon-
fianças brasileiras. Ele denuncia o monopólio, que as Cortes queriam perpetuar, dos cargos e postos
nas mãos de portugueses, com a exclusão dos brasileiros. A representação da Bahia, empossada a 15
de dezembro, comunica calor, entusiasmo e vibração ao roteiro aberto pelo primeiro Paranaguá. Ci-
priano José Barata de Almeida (1762-1838), médico, liberal exaltado com laivos republicanos, propõe
(17 de dezembro) a suspensão dos debates e a anulação dos projetos votados acerca do Brasil, com
a ausência total da deputação americana. Voltava às Bases - fundamento único que orientaria o pacto
26
Idem, pp. 125 a 129.
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constitucional, visto, inicialmente e agora, como um pacto entre Portugal e o Brasil. A proposição
ficou sem eco - era, contudo, outra advertência, da qual nada aprenderam os regeneradores, fortes
bastante para levarem a cabo a obra de extinguir os tribunais superiores do Brasil.
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ergueram-se como ativos e estrênuos defensores da independência. A ordem para o Príncipe se re-
tirar também produziu viva sensação entre os antigos realistas, que temiam, com justiça, nunca mais
ver restabelecida a monarquia no Brasil.”27 Na verdade, o que restava às Cortes no Brasil? Apenas
a força armada, desejosa de voltar à pátria. Nenhuma outra lealdade de peso se arrolava entre seus
partidários. Nem mesmo os republicanos desejavam a catástrofe, para dela se aproveitarem: com o
Príncipe, os republicanos - mais emancipacionistas que republicanos - viam a possibilidade de fa-
zer a independência sem o apelo às ideias antimonárquicas. No quadro brasileiro, só uma opção se
abriria: a monarquia ou a república, pressuposta sempre a emancipação. O argumento chegou aos
ouvidos do Príncipe, pela palavra de José Clemente Pereira, presidente do Senado da Câmara do Rio
de Janeiro: “Será possível que V.A.R. ignore que um partido republicano, mais ou menos forte, existe
semeado aqui e ali, em muitas das províncias do Brasil, por não dizer em todas elas? Acaso os cabeças
que intervieram na explosão de 1817 expiraram já ?.. E não diz uma fama pública, ao parecer segura,
que nesta cidade mesma, um ramo deste partido reverdeceu com a esperança da saída de V.A.R., que
fez tentativas para crescer e ganhar forças, e que só desanimou à vista da opinião dominante, de que
V.A.R. se deve demorar aqui, para sustentar a união da Pátria?” Entre outubro de 1821 e janeiro de
1822, entre a carta de D. Pedro ao pai, jurando agressiva fidelidade à constituição, e o Fico, o Príncipe
mudara, como mudado estava o país. A política das cortes só contava, para restaurar sua autoridade,
com a tropa militar: frágil esteio, que, no Rio de Janeiro, voaria com um sopro. O tabuleiro que o
congresso ocupava, dominando o centro, não servia ao jogo da realidade: a política se deslocava para
outro cenário, mais amplo, mais profundo, mais enigmático.
Foi a representação de São Paulo que despertou as cortes de seu sono irresponsável. Antô-
nio Carlos, o ex-republicano de 1817, agora atrelado ao carro de José Bonifácio, apareceu diante das
cortes com uma nova doutrina. Até o começo de 1822, os deputados brasileiros procuravam reor-
ganizar o reino unido, considerado um todo. O Andrada partiu de outra base: o Brasil está separado
de Portugal, o país é autônomo e soberano; ligar-se-á, entretanto, ao velho reino se vantajosas forem
as condições da união. A separação não seria, daqui por diante, uma ameaça, mas uma alternativa,
decidida se não houvesse leal compreensão dos portugueses. Sua palavra inicial não deixou dúvida de
seus propósitos: “A respeito de se dizer que os povos, apesar de gozarem os mesmos direitos não hão
de ter as mesmas comodidades, digo que se isto assim fosse, a nossa união não duraria um mês. Os
povos do Brasil são tão portugueses como os povos de Portugal e por isso hão de ter iguais direitos.
Enquanto a força dura, dura a obrigação de obedecer. A força de Portugal há de durar muito pouco,
e cada dia há de ser menor, uma vez que não se adotem iguais comodidades.” O ímpeto do líder, a
arrogância de seus discursos, o tom ameaçador de sua palavra congregou a melhor parte da represen-
tação brasileira. As províncias, até agora distanciadas pelos seus ciúmes e pela desconfiança comum
à corte, se unem. Efeito paralelo, na verdade, ao que se provocava no Brasil, por obra, nos dois lados
do Atlântico, da maioria da assembleia, que via a sua desgraça na liberdade do novo reino, o qual só aí
via sua prosperidade. Ao clamor da batalha - agora seria uma guerra e que se desencadearia nas salas
augustas da Constituinte - acudiram os brasileiros.
27
João Armitage, obra citada, p. 66.
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Manuel Borges Carneiro. Desembargador no Porto em 1820, foi eleito deputado às Cortes portuguesas de 1821,
onde exerceu sua experiência parlamentar em defesa do Estado liberal.
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O Brasil figurava com a qualidade de reino, qualidade concedida a Portugal e negada aos do-
mínios da África e Ásia. Esta homenagem se diluía, todavia, no governo central único e na dependên-
cia das províncias a Lisboa, sede dos poderes executivo, judiciário e legislativo. Única permaneceria
a nação, sem peculiaridades que a diferenciassem e sem que o título de reino importasse qualquer
distinção. Era o que reconhecia, em Londres, Hipólito José da Costa: “Deu-se ao Brasil o nome de
reino, mas ficou isso em aparência; agora o governo constitucional conservou o nome, mas lhe tirou
todas as aparências, abolindo os tribunais superiores do Rio de Janeiro, de maneira a fazer retrogradar
o Brasil da sua dignidade de reino que tinha na aparência. Causando assim uma humilhação desne-
cessária nos ânimos daqueles povos, porque, enfim, ninguém há que se conforme com andar para
trás em dignidade, tanto mais que o trazer o povo do Brasil seus recursos a Lisboa, quando dantes
os tinha no Rio não é só perder em dignidade, mas também perder muito em comodidade” (Correio
Braziliense, n. 165, de fevereiro de 1822, vol. 27). A unidade política só se aperfeiçoaria, em passo
natural e, para a lógica dos constituintes portugueses, o necessário, na unidade econômica. O projeto
de lei, que consubstanciava a medida, estava assim redigido:
“Artigo 1º. O comércio entre os Reinos de Portugal, Brasil e Algarves, será considera-
do como de províncias do mesmo continente.
“Sob uma aparência de igualdade - comenta um analista moderno dos acontecimentos de 1822
- de concessões, criava-se uma situação de desigualdade para o Brasil e garantia-se lá a colocação das ex-
portações portuguesas. Obrigava-se o Brasil a consumir vinho e vinagre da Mãe Pátria quando facilmente
as nações estrangeiras entrando em concorrência colocariam com vantagem os seus produtos. A com-
pensação de Portugal só consumir açúcar, tabaco, café e cacau de produção brasileira não lhe equivalia.
Enquanto a metrópole encontrava meio de colocar aproximadamente 50% da sua exportação de vinhos,
Portugal só consumia 8% do açúcar brasileiro. Além de que dificilmente o açúcar brasileiro, pela sua quali-
dade, perderia o mercado português. Os gêneros estrangeiros introduzidos no Brasil e que podiam ganhar
em concorrência, eram agravados com o dobro do imposto que pagavam as mercadorias nacionais. As
regalias e compensações concedidas ao Brasil não correspondiam, de fato, a privilégios reais. O Brasil
aberto ao comércio das nações, decretando apenas diferenciais para defesa da própria produção, teria tudo
a ganhar. As mercadorias que se comprometia a consumir só portuguesas, lá chegavam, em melhores
condições para o comprador, em barcos estrangeiros, provenientes de países estrangeiros. Por sua vez o
açúcar que mandava para Portugal era uma parte mínima da sua produção total. Para Portugal o decreto
encerrava vantagens evidentes pela colocação que assegurava a certos gêneros nele produzidos. Eis porque
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a revolução de 1820 teria o apoio do corpo do comércio e porque os negociantes, e outra gente de Lisboa,
Porto e mais cidades, acorreram com suas ofertas para as urgências do Estado, depois do 24 de agosto.”28
Era, aprovado o projeto, o restabelecimento da política de transportes, responsável pela grandeza
passada de Portugal. Política de transportes com um traço hipotético de modernização: a captura de um
mercado para o estímulo das indústrias nacionais. Portugal procurava se adequar ao capitalismo industrial
com os processos obsoletos das barreiras alfandegárias, por meio do protecionismo mercantilista. Todo
o edifício a construir assentava sobre pressupostos já votados pelas cortes - pressupostos qualificados
como um “traço de gênio” de Fernandes Tomás.29 Repelido o expediente, não duvidou o líder em reputar
de ilusória a união, fora dela só restava a separação do Brasil - houvesse recusa, “passe o sr. Brasil muito
bem, que nós cuidaremos da nossa vida” (22 de março de 1822). A frase, desabafo sem correspondência
de intenções, vinha a propósito da obediência de São Paulo às cortes, rejeitada com a adesão ao Príncipe,
obediência sem a qual não teria consistência o plano de integração econômica. Outra medida completaria
a retomada do mercado brasileiro, tornando-o cativo da metrópole, restaurada na condição de empório do
império. O novo assalto revogava, na essência, a abertura dos portos, ato que Portugal via como o marco
inicial de sua desgraçada situação. Cogitava-se de onerar os gêneros americanos exportados em navios na-
cionais com a taxa de um por cento, enquanto os transportados por barcos estrangeiros pagariam seis por
cento, salvo o algodão, sujeito a dez por cento. A proteção à marinha nacional, prevista nessa disposição,
se soldava a outra norma, corporificada no mesmo projeto, assegurando aos estrangeiros a carga dos seus
navios com a taxa de dois por cento, se a fizessem em Portugal, enquanto no Brasil sofriam o gravame
de seis por cento. Simplesmente se fechavam os portos brasileiros: ninguém se aventuraria a atravessar o
Atlântico para sofrer uma sobretaxa de quatro por cento, ônus que afugentaria as manufaturas alienígenas,
visto que o retorno do navio se faria sem carga. Antônio Carlos denunciou a manobra, que não passaria
com a mesma facilidade da primeira. “Os brasileiros - bradou o Andrada - tem os precisos conhecimentos
dos seus verdadeiros interesses, estão muito adiantados em civilização e cultura para serem tratados como
selvagens. Eles veem, e todo mundo vê, a tendência oculta desta medida. Portugal viria a ser o depósito
único das produções do Brasil, a ele só concorreriam os estrangeiros a fornecer-se destes produtos, e no
mercado brasileiro até então deserto de outra competência, ditariam leis os negociantes portugueses e
os seus agentes, e deste modo restabelecer-se-ia indiretamente o odioso exclusivo colonial” (17 de julho
de 1822). A proposta, desmascarada na sua extensão draconiana, se devia à pressão dos negociantes,
que declaravam: “Se conseguirmos, em virtude das providências sujeitas ao soberano congresso sobre
o comércio do Brasil que a troca dos produtos do mesmo Brasil, Portugal e Algarves pelas manufaturas
estrangeiras se verifique em a Praça de Lisboa, alcançamos vantagens mui superiores sem dúvida às que
poderíamos esperar das fábricas” (sessão de 17 de julho de 1822). O “traço de gênio” de Fernandes To-
más se reduzia a agenciar os interesses da classe mercantil. Graças à reação brasileira, a votação foi adiada,
anulando-a os sucessos de 7 de setembro. De agora por diante - definidos os termos do antagonismo - a
luta seria clara. De um lado, os portugueses, com alguns deputados brasileiros atrelados a seus planos, e,
de outro lado, Antônio Carlos, Vilela Barbosa e os brasileiros conscientes de sua missão, já em desabalada
marcha para a Independência.
28
Julião Soares de Azevedo, obra citada, pp. 155 e 156.
29
M. E. Gomes de Carvalho, obra citada, p. 233.
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
Cipriano José Barata de Almeida. Foi deputado pela Província da Bahia às Cortes de Lisboa, em 1821, identificando-se com a ala mais
radical da deputação, personificando um nativismo exaltado, o que enfureceu os deputados portugueses.
É considerado um dos mais ativos combatentes em favor da Independência do Brasil.
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A gênese da separação
O Fico, a entrada de José Bonifácio para o ministério de D. Pedro e o afastamento da Divisão
Auxiliar do Rio de Janeiro provocaram o espanto das cortes. José Bonifácio significava o acatamen-
to de uma província à autoridade central e brasileira. O Fico e a expulsão das tropas portuguesas
fixavam, em desafio, a quebra entre Brasil e Portugal, com a frustração da garantia que o congresso
situava na força armada para articular sua política. O dissídio no campo global do império se refletiu
imediatamente nas sessões da assembleia. O momento das indecisões, da timidez, passara: diante da
gravidade dos acontecimentos americanos, a liderança de Antônio Carlos se impôs. Alguns deputa-
dos brasileiros, ainda envolvidos na preocupação de manter o reino unido, assumiram, sem embargo,
conduta conciliatória. Esse grupo estava, na realidade, deslocado no congresso, com a marca de co-
vardia para os brasileiros e de subserviência para os portugueses. Na radicalização dos extremos não
havia mais lugar para o meio termo, a transação ou o compromisso. A plebe lisboeta, ressentida com
o Brasil, dava ardente apoio aos regeneradores, voltados, cada vez mais, para a repressão, repressão
para a qual não tinha meios e instrumentos, com a penúria do País. A delegação brasileira - a que
se identificava, cada hora mais, com a independência - não comparecia às sessões com assiduidade.
Percebia a inutilidade de seus esforços, em outro momento sinceramente empregados na concilia-
ção das duas partes do reino. Um ou outro deputado refugiava-se no silêncio, como Feijó, que só o
quebrou uma vez, para, na derradeira hora, tentar uma solução ao impasse. Propunha-se “fazer parar
o progresso das desgraças”, confessando-se infenso ao medo que o tumulto das sessões poderia
inspirar. Reconhecia - neste ponto infiel às instruções da junta paulista - que as províncias eram in-
dependentes, representando seus mandatários a sua vontade e não a do Brasil: “nós ainda não somos
deputados da Nação, a qual cessou de existir desde o momento que rompeu o antigo pacto social.
Não somos deputados do Brasil de quem em outro tempo fazíamos uma parte imediata, porque cada
província se governa hoje independente”. Seu projeto objetivava, de acordo com esse preâmbulo,
o reconhecimento da independência das antigas capitanias até a publicação da lei constitucional. O
pacto social obrigaria somente aqueles povos que pela maioria de seus representantes o apoiassem;
sem requerimento das juntas, o congresso não mandará batalhões às terras de além-mar. Era a solu-
ção liberal, com o apelo ao voto dos cidadãos, calcada sobre o inconveniente, quase inverossímil no
futuro ministro da justiça e regente, de aceitar a divisão do Brasil. A proposta causou irritação e não
foi apreciada, sem provocar os tumultos que a sessão de 15 de abril de 1822 registraram, quando a
assembleia soube da expulsão das suas tropas leais do Rio de Janeiro.
Nesse mês de abril ainda continuam a chegar deputados do Brasil, contribuindo a tardança
em tornar mais heterogênea a representação americana. Houve representações, como a de Minas
Gerais, que jamais se assentaram no congresso. Encontraram a maioria, já certa do afastamento do
Brasil ao jugo português, preocupada em enviar tropas às províncias ou deslocá-las para assegurar
sua autoridade. As cortes fixam-se no pensamento de fazer da Bahia o acampamento das tropas,
a base que se irradiaria a toda a costa para empreender a submissão. A estratégia tem cinquenta
anos de atraso, com o desconhecimento das virtualidades militares do Sul, onde, com a aliança de
São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, já D. Pedro comandava a reação. O Brasil não era mais o reino
a soldar ao reino de Portugal; não passava, aos olhos de um líder revolucionário, de uma popula-
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
ção inclinada à anarquia, constituída de “negros, mulatos, brancos crioulos e brancos europeus”,
prosseguindo: “A heterogeneidade destas castas põe paixões diversas em efervescência, e esta agi-
tação não pode ser contida nos seus respectivos deveres senão pela força, e a força indígena não
é capaz de os conter: é sim antes capaz de promover as mesmas desavenças porque se compõe
dos mesmos elementos.” Era uma orientação nova nos termos e velha nas intenções: o governo
liberal só era adequado a Portugal, culto, maduro, civilizado, e impróprio ao Brasil, selvagem, mes-
tiço, anárquico. Os oficiais da tropa, os funcionários, na forma da velha tradição, agravada com a
desconfiança recente, deveriam ser portugueses. A essas medidas e sugestões respondia o Rio de
Janeiro com uma doutrina agressiva: o príncipe só obedecia ao rei e não às Cortes, e o rei estava
coato, impedido de exercer suas atribuições. Prisioneiro o rei e ilegítimas as Cortes, o Brasil con-
vocaria sua própria assembleia constituinte, de acordo com a fórmula lançada em 1821 e agora
reforçada, em outra direção, pelas lojas maçônicas. O liberalismo de D. Pedro seria coerente, ao
rejeitar a soberania das cortes e a convocação de uma limitada assembleia constituinte. Aceitava o
congresso deliberativo e não apenas consultivo, como era da velha tradição absolutista, mas sem a
submissão do poder do rei, poder que derivava diretamente da Nação.
No clima cada vez mais denso e ameaçador do congresso, havia ainda um expediente conci-
liatório a explorar. Entre as Bases e o projeto de constituição manifestava-se aguda dissonância de
pensamentos. As Bases prometiam deliberação especial, reservada só aos brasileiros, sobre os assun-
tos americanos. A constituição, tal como vinha sendo discutida, congregava os dois polos do reino.
Passados os tumultos de abril de 1822, aprovada a remessa da tropa portuguesa à Bahia, a maioria,
preocupada em não levar ao extremo as divergências com os deputados de além-mar, propôs fosse
discutido uma espécie de ato adicional, elaborado por comissão composta de deputados brasileiros
para formular “as adições e alterações que julgar necessárias para que a constituição portuguesa
possa fazer a felicidade de ambos os hemisférios” (sessão de 23 de maio). O alvitre foi aceito, ape-
sar do desalento já reinante na delegação brasileira. A comissão se compôs das maiores expressões
brasileiras - Antônio Carlos, Vilela Barbosa, Fernandes Pinheiro, Lino Coutinho e Araújo Lima - a
qual apresentou a 17 de junho o resultado de seus trabalhos. O parecer se orientava nas diretrizes das
instruções da junta paulista aos deputados. A comissão rejeitava a centralização, incompatível com
as distâncias de país a país e com a diversidade de clima, costumes e economia. O regime deveria ser
dualista, com assembleias separadas, uma em Portugal e outra no Brasil, podendo as colônias agregar
sua representação a uma ou a outra. Para deliberar sobre os assuntos comuns se organizariam Cor-
tes Gerais, com cinquenta membros, vinte e cinco para cada seção da monarquia. A esse organismo
incumbia também a decisão dos conflitos entre as duas partes do reino. Haveria no Brasil poder exe-
cutivo próprio, exercido pelo sucessor da coroa e, mais tarde, sempre por um membro da família real,
ou, na sua falta, por uma regência. Os funcionários e dirigentes seriam nomeados pela autoridade
sediada no Brasil. O Regente não podia, entretanto, praticar atos de política internacional, declarar a
guerra e conceder títulos. O projeto, ao contrário de suscitar o entendimento, irritou os portugueses.
“Não é possível - verberava o deputado Girão - que o sangue deixe de ferver nas veias dos lusitanos
perante um projeto que não ousa qualificar em consideração de seus autores.” Via a maioria, nas do-
bras do alvitre, a independência mascarada. “No primeiro dia - exclamara Moura - em que se juntarem
oitenta deputados em um ponto daquele país, será este o dia que acabará a união com Portugal e não
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Pedro de Araújo Lima, Marquês de Olinda. Começou a sua carreira política em 1821, na bancada da então província de Pernambuco às
Cortes Gerais de Lisboa. Posteriormente foi regente e primeiro-ministro do Império do Brasil. Foi presidente da Câmara dos Deputados
por muitos anos e uma figura representativa da aristocracia rural do Nordeste.
101
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
quero tomar sobre mim a tão grande responsabilidade.” Lino Coutinho rebate as acusações, já venci-
do da confiança que lhe permitia votar as medidas desagregadoras das províncias. Protestava com a
união, em grave risco de perecer: “Longe, longe de nós semelhante ideia desorganizadora da unida-
de brasiliense. O Brasil é um reino bem como Portugal; ele é indivisível, e desgraçado daqueles que
tentam contra sua categoria e grandeza, desmembrando as suas províncias para aniquilar o que tão
liberalmente lhe foi concedido pelo imortal D. João VI, baseado em seu desenvolvimento político e
em suas riquezas naturais. Jamais como deputado do Brasil consentirei em tão feio atentado: o nosso
país há de reviver ou morrer com dignidade de um reino único e indivisível” (sessão de 3 de julho).
Era uma conversão à tese insinuada por Antônio Carlos: o Brasil já era soberano, embora não quises-
se ser independente. Os vínculos de união deveriam ser aceitos por ambas as partes, sem imposição
ou superioridade. Aprovado o parecer da comissão, o Brasil - argumentava a maioria - sucumbiria
ao caos, não havendo no ultramar sequer pessoas aptas ao desempenho dos cargos públicos. À afir-
mação da soberania do reino, lembravam que o título era simples honraria, sem conteúdo político.
Apenas três portugueses admitiam o projeto - três homens com senso comum numa assembleia cada
vez mais desvairada. Os ventos novos arrastavam, em favor da tese brasileira, os novos deputados,
recém-empossados, como o do Pará, Francisco de Sousa Moreira. A maioria frustrou a proposição,
adiando o debate e arquivando-a, de dilação em dilação.
O dissídio tornava-se incontornável. O projeto de novo ato adicional não recebeu o apoio
dos brasileiros, já desiludidos da possibilidade de entendimento. No Brasil a situação se alterara to-
talmente: a independência era certa, acelerada pela teimosa cegueira das cortes. O congresso perdia
a autoridade com o governo brasileiro, afastado de Portugal, desde janeiro. Entre março e julho, as
juntas provinciais fixaram sua autonomia, pendendo, a maioria delas, para se aproximar do Príncipe,
no Rio de Janeiro. O maior orador da assembleia, Moura reconhecia: “A junta de São Paulo deso-
bedece, injuria e até nega a autoridade do congresso; a de Minas legisla; a de Pernambuco obedece
numas coisas e desobedece noutras, a da Bahia faz raciocínios; a do Maranhão hesita e a câmara do
Rio reclama a independência...” A maioria só acreditava, diante da separação de fato, na força, nas
tropas de terra e nas armadas. Somente a guerra civil significaria a saída possível do impasse, para
aniquilar as resistências e prender José Bonifácio, o nome mais odiado nas cortes, que situavam na
sua atividade todos os passos que levavam à emancipação. Antes que os brasileiros o consagrassem,
consagraram-no os portugueses com o título de Patriarca da Independência. Não faltaria muito para
que o Príncipe qualificasse as cortes de facciosas, horrorosas e pestíferas, estimulando, por meio de
carta, a liderança de Antônio Carlos. A direção do congresso passou a tratar os brasileiros como se
fossem meninos rebeldes: negava-lhes licença para se ausentarem de Lisboa, para faltarem às sessões,
descrendo do próprio expediente de se darem por enfermos. O compêndio das queixas, com o aban-
dono a toda a colaboração, coube à palavra de Antônio Carlos, defendendo a convocação de cortes
no Brasil e para o Brasil. “A constituição - orava ele - mutilou a realeza para a acomodar aos direitos e
utilidade da Nação. Isto que Portugal tem feito é o que o Brasil pode fazer também, sem ser tachado
de rebelde, e sem que para tolher-lhe o imprescritível exercício da sua liberdade, haja justiça de se
lhe mandarem tropas. A máscara de amor e fraternidade não pode mais escusar semelhante com-
portamento; o véu é muito ralo, traz luz por entre ele e a verdade... Tudo sabemos, conhecemos os
traços com que se pretendem restabelecer as antigas cadeias, e apesar da nossa repugnância juramos
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de antes morrer do que nos sujeitar aos nossos iguais: não temeremos as borrascas da intempestiva
independência, se de outra sorte nos não pudermos salvar da escuridão. Obre-se com franqueza
conosco, declare-se-nos embora a guerra generosamente, cesse de uma vez a burlesca força de uma
ilusória representação. Até quando hão de inimigos estar sentados entre inimigos? Até quando há de
continuar o vergonhoso comércio de falsidades e enganos, que pródigos entornam línguas de mel,
ao mesmo tempo que o coração está ensopado do mais refinado fel. Declare-se enfim a guerra aber-
tamente: deputados haverá, e eu sou um deles, que preferirão a manejar inutilmente a imbele língua o
lançar-se nas fileiras dos seus irmãos, e morrer nelas repulsando a injusta agressão de qualquer parte
que ela venha” (sessão de 22 de julho de 1822). O diálogo se interrompera: os deputados brasileiros
falavam às suas províncias; os portugueses aos seus comitentes da burguesia e à açulada plebe lisbo-
eta, que cobriu os representantes de ultramar de insultos. A preocupação dos deputados passou a
ser a mesma dos promotores da Independência do Brasil: conservar, na separação do velho reino, a
integridade territorial. Alguns meses de combate lograram unir os brasileiros em torno de uma causa
comum, esquecidos os ciúmes das províncias e a luta contra o Rio de Janeiro. O congresso deixou de
ser um centro de debates; reduziu-se a um campo hostil, ao qual pouco compareciam os brasileiros.
As acusações continuavam contra José Bonifácio e contra o Príncipe, chamado desdenhosamente de
“rapazinho”.
O momento da assinatura e juramento da constituição aproximava-se. Feijó impetra licença
para retornar, alegando doença; Barata, o fogoso baiano, entende que não havia mais nada a fazer
nas cortes; Lino Coutinho solicita licença para não jurar a constituição. Outros vibram a mesma cor-
da: nada de compromissos com a carta portuguesa - Feijó declarava que só a juraria, se “obrigado,
violentado e arrastado”. A direção do congresso, certa de sua qualidade de mestre-escola, entendeu
ser obrigatório, sob pena de rebeldia, o juramento, ato que só a liberdade podia legitimar. Dezesseis
deputados - Vilela Barbosa, Alencar e Antônio José Moreira (Ceará), Monteiro da França e Costa
Cirne (Paraíba), Assis Barbosa (Alagoas), Lourenço Rodrigues de Andrade (Santa Catarina) e a depu-
tação de Pernambuco - ao contrário da representação de São Paulo e Bahia, se propunham a assinar
a constituição se os povos ultramarinos não aderissem, por meio da vontade expressa nas urnas, a
corte do Rio de Janeiro. Era esta uma forma de recusa. Lino Coutinho apresentou os motivos da sua
atitude: “Debalde se diz que nos devemos sujeitar às leis da maioria; assinando a constituição, ainda
que tenhamos sido vencidos; mas isto será bem dito quando se trata de negócio particular em que
qualquer deputado emite o seu parecer; mas não quando deputações inteiras do Brasil têm feito suas
representações e têm as coisas necessárias e úteis às províncias a quem pertencem, isto é bem dife-
rente, e a lei da maioria não pode achar aqui cabimento algum. Tais são os motivos que me obrigam
a manifestar segundo o foro íntimo de minha consciência e segundo o caráter de bom representante,
que não posso e nem devo assinar a presente Constituição, a qual ainda que a meu ver, como homem
particular, a julgue obra prima de sabedoria e liberalismo, contudo não a posso julgar admissível no
Brasil, que, segundo o estado em que se acha, a não quer receber sem aquelas emendas e anotações
que lhe são convenientes.” A decisão das bancadas das províncias brasileiras não foi uniforme. Na
própria bancada paulista, Fernandes Pinheiro, o futuro Visconde de São Leopoldo, assinou e jurou
a Constituição. Os que assinaram a constituição todos a juraram, com exceção de Moniz Tavares e
Lino Coutinho, que não mais frequentaram as sessões. Juraram-na, entre as expressões mais altas da
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
representação brasileira, Araújo Lima, Vilela Barbosa, Alencar, Castro e Silva, Borges de Barros e
Manuel Zeferino dos Santos. Os paulistas Antônio Carlos, Bueno, Feijó e Costa Aguiar de Andrada
e os baianos Cipriano Barata, Lino Coutinho e Agostinho Gomes abandonaram o País, clandesti-
namente, sem passaportes, a bordo do Marlborough, numa dramática viagem de volta. Todos es-
ses gestos, alguns tomados com arrogância, junto à pusilanimidade de alguns, protestaram contra a
Constituição de 23 de setembro de 1822. Os representantes das províncias rebeldes, depois que o
7 de setembro atravessou o Atlântico, foram excluídos do congresso constituinte, transformado a
15 de novembro em Cortes ordinárias. São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas, Paraíba e
Ceará perderam seus lugares. Somente dois portugueses e dois brasileiros continuaram a frequentar
as sessões: fim melancólico de uma grande esperança. Antônio Carlos explicava bem, em Londres,
o papel das Cortes na independência do Brasil: “Quando eu me achei no Rio de Janeiro ainda nin-
guém pensava na independência ou em legislatura separada; foi mister toda a cegueira, precipitação e
despejado anúncio de planos de escravização para acordar do sono da boa-fé o amodorrado Brasil e
fazê-lo encarar a independência como o único antídoto contra a violência portuguesa.”
Durou pouco a constituição de 1822. A Santa Aliança, em novembro de 1822, resolveu inter-
vir na Espanha, obra que a França empreendeu no ano seguinte, entregando a Fernando VII a pleni-
tude de sua autoridade, logo empregada para dissolver as cortes e revogar a constituição. O exemplo
e o estímulo promoveram, no reino, pela mão de D. Miguel, a Vila Francada, que restaurou o governo
absoluto. O desprestígio que envolveu os deputados portugueses, cuja obra constituinte e governa-
mental em nada melhorou a vida do país, cada vez mais pobre, acarretou a queda do regime liberal.
Fracassara a burguesia na condução dos negócios do país: sua velha nobreza mostrara mais tato, mais
finura e mais inteligência ao leme dos negócios públicos. Portugal caíra nas mãos inexperientes dos
revolucionários de 1820, afastando a nobreza decadente. “A revolução - escreveu Oliveira Martins
- era, em si própria, um episódio mais de lenta decomposição; não podia tornar-se outra coisa. A
montanha das desgraças dos últimos anos provocara-a; essas desgraças e a fome iam levar a história
às convulsões finais do absolutismo, apresentando ao mundo uma epilepsia social, predecessora do
acabamento. A inópia era uma positiva mendicidade: em outubro as tropas vindas do Brasil com o
rei estavam ainda por pagar, e esmolavam ou roubavam pelas ruas da capital. A anarquia espontânea
revestira até o princípio do século um caráter manso; agora, depois da invasão, depois de 20, depois
da independência do Brasil, a sociedade perdida, rota, nua, faminta, cai numa anarquia feroz. Então,
as altas classes, conservavam um domínio e uma autoridade: era uma doce anarquia aristocrática;
depois, os ataques de 20, a fuga do rei, as sucessivas provas de incapacidade, destruíam no povo o
respeito, sem mudar a paixão.”30 Para remediar os males da nação, o congresso não viu outra empresa
senão a exploração colonial do Brasil, ao velho molde pré-capitalista, sem atentar para o irrealismo
dos planos que procuram atrasar a história. Tinha que fracassar, apressando, no seu malogro, a in-
dependência do Brasil. 200
30
J. P. Oliveira Martins. História de Portugal. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1942, tomo II, pp. 256 e 257.
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Raymundo Faoro
Francisco Gê Acayaba de Montezuma. Depois de se graduar em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1821, retornou à Bahia e
tornou-se ardoroso defensor da independência da Bahia. Em 1823 elegeu-se deputado e foi para as Cortes de Lisboa. De talento reconhe-
cido na oratória, recebeu do Imperador D. Pedro I o título de comendador da Imperial Ordem do Cruzeiro. Em 1837 foi feito Ministro da
Justiça e dos Estrangeiros (5º Gabinete - Regência Feijó), elegendo-se também deputado pela Bahia. Ocupou, ainda, o cargo de “ministro
plenipotenciário” junto ao Império Britânico. Em 1850, foi nomeado Conselheiro de Estado.
105
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
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106
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Paraíba
18. José da Costa Cirne
19. Francisco de Arruda Câmara
20. Francisco Xavier Monteiro da Franca
21. Virgínio Rodrigues Campelo
Pernambuco
22. Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira
23. Inácio Pinto de Almeida e Castro
24. Félix José Tavares de Lyra
25. Francisco Muniz Tavares
26. Manuel Félix de Veras
27. Manuel Zeferino dos Santos
28. Pedro de Araújo Lima
29. João Ferreira da Silva
Alagoas
30. Francisco de Assis Barbosa
31. Francisco Manuel Martins Ramos
32. Manuel Marques Granjeiro
Bahia
33. Cypriano José Barata de Almeida
34. Alexandre Gomes Ferrão
35. Marcos Antônio de Sousa
36. Pedro Rodrigues Bandeira
37. José Lino Coutinho
38. Domingos Borges de Barros
39. Luís Paulino de Oliveira Pinto da França
40. Francisco Agostinho Gomes
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A Revolução Constitucionalista de 1820 - A representação brasileira às cortes gerais
Espírito Santo
41. José Bernardino Batista Pereira de Almeida Sodré
42. João Fortunato Ramos dos Santos
Rio de Janeiro
43. Custódio Gonçalves Lêdo
44. Dom José Joaquim da Cunha de Azevedo Coutinho
45. Dom Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho
46. João Soares de Lemos Brandão
47. Luís Nicolau Fagundes Varela
48. Francisco Vilela Barbosa
49. Luís Martins Bastos
São Paulo
50. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro
51. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva
52. José Ricardo da Costa Aguiar de Andrada
53. Diogo Antônio Feijó
54. José Feliciano Fernandes Pinheiro
55. Antônio Manuel da Silva Bueno
56. Antônio Paes de Barros
57. Francisco de Paula Sousa e Melo
Santa Catarina
58. Lourenço Rodrigues de Andrade
Goiás
61. Joaquim Teotônio Segurado
62. Luís Antônio da Silva e Sousa
Minas Gerais
63. Lúcio Soares Teixeira de Gouvêa
64. José Elói Otôni
65. Belchior Pinheiro de Oliveira
66. Antônio Teixeira da Costa
67. Manuel José Veloso Soares
68. Francisco de Paula Pereira Duarte
69. José de Resende Costa
70. Lucas Antônio Monteiro de Barros
71. José Custódio Dias
72. João Gomes da Silveira Mendonça
73. José Cesário de Miranda Ribeiro
74. Jacinto Furtado de Mendonça
75. Domingos Álvares Maciel
76. José Joaquim da Rocha
77. Manuel Rodrigues Jardim
78. Carlos José Pinheiro
79. Bernardo Carneiro Pinto
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Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
Raymundo Faoro
Os deputados eram em número de 72; os restantes eram suplentes. Apenas treze assinaram
e juraram “a Constituição - maior é o número que assinou e não jurou a carta. Juraram a Constituição.
Alexandre Gomes Fernão, Marcos Antônio de Sousa, Pedro Rodrigues Bandeira, José Lino Couti-
nho (não a assinou), Domingos Borges de Barros, Custódio Gonçalves Lêdo, João Soares de Lemos
Brandão, Luís Nicolau Fagundes Varela, Francisco Vilela Barbosa, Luís Martins Bastos, José Felicia-
no Fernandes Pinheiro, Lourenço Rodrigues de Andrade, Joaquim Teotônio Segurado. Não assinaram
a Constituição nem a juraram: Cipriano Barata, Francisco Agostinho Gomes, Antônio Carlos, Silva Bue-
no, Diogo Feijó, Costa Aguiar, Nicolau Vergueiro. Não a assinaram, mas a juraram: Fortunato Ramos,
Vieira Belfort, Luís Paulino França. Negaram-lhe juramento, embora a houvessem assinado: Lino Coutinho e
Muniz Tavares. Só Mato Grosso não elegeu representantes às Cortes.
Fonte principal: Nelson Coelho de Sena, obra citada.
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Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
“desta tribuna até os reis têm que me ouvir” - sobre o quadro Sessão das Cortes de Lisboa
Oscar Pereira da Silva. Sessão das Cortes de Lisboa - 9 de maio de 1822. 1922. Óleo sobre tela. 310 x 250 cm. Museu Paulista da USP.
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“desta tribuna até os reis
têm que me ouvir” - sobre
o quadro Sessão das Cortes
de Lisboa
Carlos Lima Junior*
No Museu do Ypiranga
Entrei no Museu. Estava deserto. Recebeu-me, porém, amigo e attencioso, o dr. Tau-
nay, seu competente director. Devido ás obras, a entrada era officialmente vedada ao
publico. Mas o que não pode um jornalista?
Ouvira falar de reformas, de melhoramentos, de novas salas inauguradas, e ancioso,
quiz vêr isso.
[...]
No salão de honra onde o imortal Pedro Americo deixou a sua cyclopica téla a fixação
pictural da scena que nos deu uma nação livre, vi, nas paredes até então frias, alvas e
aridas, que, pela pallidez do gesso lembravam a pelle dessangrada dos cadaveres, lindos
paineis representando os vultos maiores da historia da nossa Independencia.
[...]
Nem tudo esta feito, é verdade. Mas, com essa bella orientação, certamente, teremos
no Ypiranga farta documentação sobre a historia da nossa formação nacional, sobre os
nossos usos e costumes, sobre numismatica, sobre todos os aspectos multiformes da
nossa vida, que hoje é violenta e bella e hontem foi heroica e inigualavel.
Helios
E
sse artigo, publicado no jornal Correio Paulistano, de 18 de fevereiro de 1921, consta entre
os recortes de jornais que Affonso d’ Escragnolle Taunay (1876 – 1958) preservou em seus
cadernos de capa verde, organizados por ele, durante o longo tempo em que esteve à frente
da direção do Museu Paulista, entre os anos de 1917 e 1945. Menotti del Picchia, oculto sob o pseu-
* Doutorando em História da Arte pelo Museu de Arte Contemporânea da USP. O presente artigo é uma versão reduzida da sua dissertação de mestra-
do intitulada “Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional.” IEB| USP, 2015.
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“desta tribuna até os reis têm que me ouvir” - sobre o quadro Sessão das Cortes de Lisboa
dônimo de “Helios”, como que num furo de reportagem, informa ao público sobre as modificações
que vinham sendo empreendidas no interior do Museu, cujas portas estavam cerradas desde o ano
de 1921, apenas programadas para serem reabertas em 7 de setembro de 1922, como parte da agenda
das celebrações do Centenário da Independência, em São Paulo.
Em tom de exaltação, destaca a nova decoração, chefiada por Taunay, - toda oposta à gestão
anterior de Hermann von Ihering -, cuja nova “ bella orientação”, sob à benevolência do “Presidente
do Estado”, Washington Luis, indicava mudança no rumo da instituição, antes devota das ciências
naturais e animais embalsamados, voltava-se, a partir de então, para a História pátria. Se naquela al-
tura da visita inesperada “nem tudo estava feito”, ainda que o esforço fosse mesmo de aprontá-lo a
tempo hábil para os festejos do Centenário, sabe-se que o Museu foi apresentado às festas do dia “7
de setembro”, a contragosto do diretor, incompleto. Se a estátua de D. Pedro I, confiada a Rodolpho
Bernardelli, assim como as pinturas encomendadas aos artistas do círculo da Escola Nacional de
Belas Artes, que decorariam a escadaria, chegaram posteriormente a 19221, o Salão de Honra, no se-
gundo andar do edifício, seria um dos únicos espaços do Museu que estava, de fato, preenchido com
todas as pinturas e retratos pensados para ali figurarem, complementando o suntuoso espaço em que
a monumental tela Independência ou Morte! (1888), de Pedro Américo (1843 – 1905), encontrava-se des-
de a abertura do Museu em 1895.2 Foram alocados, portanto, à frente deste, os quadros históricos
O Príncipe D. Pedro e Jorge de Avilez a bordo da Fragata União e Sessão das Cortes de Lisboa. Já no nicho de
cada parede lateral, instalou-se a tela D. Leopoldina e seus filhos, à esquerda, e aquela que homenagearia
Maria Quitéria de Jesus, à direita3. Por fim, encimando a pintura de Américo estão 5 retratos: D. Pedro
I, José Bonifácio, Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira e Diogo Antônio Feijó.
Oscar Pereira da Silva (1865 – 1939), um artista quase sexagenário, fluminense, mas por mui-
tos anos radicado em São Paulo4, foi quem recebeu a incumbência da produção dos dois quadros
históricos, e também dos 5 retratos, entre fins do ano de 1919 e 1922. Sua experiência nas lides da
pintura de história, já demonstrada em trabalhos anteriores, como Proclamação da República (1889), O
Primeiro Desembarque de Pedro Álvares Cabral (1900) e Fundação de São Paulo (1907), e também sua inser-
ção social no meio paulistano5, pôde ter facilitado a cogitação de seu nome para a realização de tais
pinturas, e de tantas outras sob encomenda da diretoria do Museu.6
1
Sobre as encomendas confiadas aos artistas do Rio cf. CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Bandeirantes na contramão da história: um estudo iconográ-
fico. In: Projeto História: artes da história e outras linguagens. São Paulo: PUC-SP, 2005b, n. 24; MARINS, Paulo Cesar Garcez. Nas matas com pose de
reis: a representação de bandeirantes e a tradição da retratística monárquica europeia. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, v. 14, 2007.
2
MATTOS, Claudia Valladão de. Da palavra à imagem: sobre o programa decorativo de Affonso Taunay para o Museu Paulista. In: Anais do Museu Paulista,
ano 6, vol. 7, n. 007. P. 123-148, 2003. 14, 2007.
3
Para uma discussão adensada sobre esses quadros, cf. SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; LIMA JUNIOR, Carlos. Heroínas em batalha: figurações femini-
nas em museus em tempos de centenário: Museu Paulista e Museu Histórico Nacional. In: Revista Museologia & Interdisciplinaridade. Brasília|UNB. v. 7, n.
13, 2018.
4
TARASANTCHI, Ruth. S. Oscar Pereira da Silva. São Paulo: Mercado das Artes, 2006.
5
Para essa questão, cf. MONTEIRO, Michelli C. “Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: trajetórias de uma imagem urbana.” Dissertação
(Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo). FAU-USP, 2012. Orientação: Prof Dr. Paulo César Garcez Marins.
6
Além dessas, Pereira da Silva recebeu ainda uma série de encomendas de pinturas versadas sobre “Antiga Iconografia Paulista”, e os retratos dos “Homens
da Independência” para o alto da escadaria. Sobre a realização de tais obras e os trâmites das encomendas, cf. LIMA JUNIOR, Carlos. “Um artista às
margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do passado nacional.” Dissertação (Mestrado pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Culturas e Identidades Brasileiras). Instituto de Estudos Brasileiros da USP, 2015. Orientação Profa. Dra. Ana Paula Cavalcanti Simioni.
112
Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
Carlos Lima Junior
Vistas como verdadeiros documentos, já que baseados em elementos históricos tidos por au-
tênticos, a produção das pinturas do Museu foram realizadas sob a atenta supervisão de Taunay, que
não hesitava em pedir alterações sempre que achasse necessário7, o que resultou em muitas desaven-
ças com os artistas, sobretudo os do Rio. Deste modo, obras contemporâneas ao assunto que seria
retratado eram tomadas como matrizes para a confecção das pinturas, ainda que quando do preparo
da composição, certos elementos eram “acrescidos, enfatizados ou subtraídos”; discretas alterações,
somente perceptíveis quando comparadas aos originais que lhe deram origem.8
Como bem observou Ulpiano Meneses, no Salão de Honra, “a arquitetura e a pintura se
integram”. Os quadros foram pensados para um lugar específico, destinados a produzir “um espaço
qualificado”, onde a supremacia “cabia ao pictórico”, dentro daquele conjunto visual.9 As telas re-
metiam ao passado, mas com questões impostas pelo momento em que foram produzidas, e por sua
vez, pelo próprio futuro. Sua lógica de produção era, justamente, a permanência naquele espaço para
o qual foram pensadas, visando a sua perpetuação no imaginário. Elas integravam, dentro do Salão,
uma narrativa linear, evolutiva, que desembocaria no “7 de setembro de 1822”, representado ali pela
tela de Pedro Américo que se impunha pelo assunto, mas também, pelas significativas dimensões.
Nas “primeiras ideias” redigidas por Afonso Taunay nos idos de 1919, as “scennas belicas” 10
dariam o tom dos temas a serem apresentados em pinturas dentro do Salão de Honra, com destaque
sobretudo para “os episódios relativos às ações de Guerra ocorridas na Bahia”,11cujo desfecho se
deu em 2 de julho de 1823, a saber: “combate de Pirajá”, o “episódio do assassinato da abadessa da
Lapa (pela soldadesca de madeira?)”, a “retirada de Jorge de Avilez com sua tropa” e, por fim, “os
cachoeiranos atacando a [espaço em branco] portuguesa”.12
Tais ideias seriam, entretanto, abandonadas, fixando o “7 de setembro” como o fim da nar-
rativa que se iniciava no Saguão. A tela Independência ou Morte!, de Pedro Américo, seria então tomada
como o ponto culminante da emergência da nação e da narrativa da Independência.13 Destacar os
feitos da Bahia na Guerra e sua vitória no 2 de julho de 1823, poderia de certo modo eclipsar o “7 de
setembro de 1822”, e todo o discurso simbólico que atrelava essa data ao lugar do “grito”, ocorrido
nas imediações das margens do riacho do Ipiranga, portanto, em terras paulistas. Foram então es-
colhidos por Taunay para serem representados dois episódios antecedentes ao 7 de setembro: Sessão
das Cortes de Lisboa – 9 de maio de 1822, quadro dedicado a uma das sessões das Cortes, convocadas
entre os 1821 e 1822, em que deputados portugueses, mas também do “ultramar”, como os do Brasil,
foram convocados para participarem dos debates que visavam as bases da Constituição portuguesa,
7
BREFE, Ana Cláudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso d’Escragnolle Taunay e a memória nacional. São Paulo: Unesp/ Museu Paulista, 2005.
8
LIMA, Solange Ferraz de. & CARVALHO, Vânia Carneiro de. São Paulo Antigo, uma encomenda da modernidade: as fotografias de Militão nas pinturas
do Museu Paulista. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo: Universidade de São Paulo, nova série, n.1, 1993. p. 147.
9
MENESES, Ulpiano Beserra. O Salão Nobre do Museu Paulista e o Teatro da História. In: Como explorar um museu histórico. São Paulo: Museu Paulista da
USP, 1992, p. 25.
10
TAUNAY, Affonso d’ Escragnolle. Relatório referente ao anno de 1919 pelo Director, em Commissão, do Museu Paulista. In: Revista do Museu Paulista.
São Paulo: Typ. a Vapor de Hennies Irmãos, Tomo XII, 1920.
11
Carta de Affonso Taunay a Basílio de Magalhães. 30 de julho de 1919. APMP| FMP. Série: Correspondências. Pasta 109. SVDHICO – MP-USP. A partir
então, passo a citar esses dados abreviados do seguinte modo: APMP| FMP. Série Correspondências – SVDHICO – MP-USP.
12
Carta de Affonso Taunay a Basílio de Magalhães. 30 de julho de 1919. A partir então, passo a citar esses dados abreviados do seguinte modo: APMP|
FMP. Série: Correspondências. Pasta 109. SVDHICO – MP-USP.
13
Sobre essa questão, cf. LIMA JUNIOR, Carlos. “Um artista às margens do Ipiranga: Oscar Pereira da Silva, o Museu Paulista e a reelaboração do
passado nacional.” Dissertação (Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras). IEB-USP, 2015 (Cap.3).
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Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
“desta tribuna até os reis têm que me ouvir” - sobre o quadro Sessão das Cortes de Lisboa
cujo desafio era o de “construir a unidade de um vasto Império.”14 As reuniões das Cortes, como
afirma Márcia Berbel, podem ser entendidas como tentativas de manutenção da unidade das diver-
sas partes do Império com a adoção de novos princípios legitimadores, sendo que, uma vez estando
“baseados na defesa de uma nação soberana representada por deputados eleitos, destruíam a relação
metrópole-colônia e inviabilizavam qualquer projeto para uma possível ‘recolonização’ durante os
anos de 1821 e 1822” 15. Na interpretação historiográfica seguida por Taunay, a qual a pintura de
Pereira da Silva fazia relação imediata, enfatizava justamente a ideia de desejo de “recolonização” do
Brasil perante os deputados portugueses que estiveram nas bancadas das Cortes.
Entregue por Pereira da Silva em agosto de 192216, a tela Sessão das Cortes de Lisboa chegou
ao Museu junto de outra pintura também de sua autoria, “O Príncipe D. Pedro e Jorge de Avilez a
bordo da fragata União”. Se neste quadro sobre a expulsão das tropas portuguesas do Rio de Janeiro,
o momento crucial dá-se pela contenção dos movimentos, com figuras um tanto estáticas, e apenas o
braço do Príncipe que se impõe na horizontal, nesse outro quadro, os braços ao alto buscam tradu-
zir “agitadíssima sessão”, em que o irmão de José Bonifácio, o paulista Antonio Carlos de Andrada
e Silva, discute com o português Manuel Borges Carneiro, ambos situados em primeiro plano. Os
demais deputados retratados, com os braços elevados, - gesto este cheio de arroubo que nos remete
a uma aproximação possível com o Le Serment du Jeu de Paume (1791), de Jacques Louis-David (1748
– 1825)17 - , acompanham aquele duelo de palavras que se desenrola dentro daquele recinto, no qual
avistamos o trono real posto em elevação, cujo acortinado oculta um possível retrato ali presente,
como demonstraremos adiante. Nela ainda se vê, entre a bancada, Vergueiro, Feijó e Cipriano Barata,
que de fato foram às Cortes, mas estavam ausentes naquela Sessão de 9 de maio, conforme consta
no documento em que ficou registrado as discussões travadas no interior das Cortes daquele ano de
1822.18
Taunay referiu-se à tela apenas em seu Relatório de 1922 à Secretaria do Interior:
[...] representou o artista uma sessão agitada das Cortes. A de 9 de maio de 1822, em
que o Antonio Carlos e os Deputados brasileiros fazem frente ao partido recoloniza-
dor que quer votar medidas oppressivas ao Brasil. Mais de oitenta figuras povoam o
ambiente que reproduz a sala das sessões das Cortes segundo estampas do tempo.
No primeiro plano discutem [ilegível] o tribuno santista e Borges Carneiro. Simula o
quadro o momento em que Antonio Carlos brada: Silêncio! aqui desta tribuna, até os
reis tem que me ouvir!19
14
BERBEL, Márcia Regina. Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa (1821|1822). In: MALERBA, Jurandir (org.). A Independência
brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 182.
15
Idem, ibidem, p. 183.
16
Carta de Affonso Taunay a Secretaria do interior informando a entrega da tela pelo artista. 22 de agosto de 1922. APMP| FMP. Série: Correspondên-
cias. Pasta 117. SVDHICO – MP-USP.
17
Jacques-Louis David. Le Serment du Jeu de Paume à Versailles le 20 juin 1789. Châteaux de Versailles et de Trianon. Imagem disponível em www.
photo.rmn.fr (Agence photographiques de la Réunion des Musées nationaux - RMN - Grand Palais).
18
Refiro-me a obra: “Diário das Cortes, Geraes, Extraordinarias, e Constituintes da Nação Portugueza”. Segundo Anno da Legislatura. Tomo Sexto.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1822. Exemplar consultado na Biblioteca Nacional de Lisboa (Portugal). Fg 4852-4862.
19
TAUNAY, Affonso. Op. cit., 1926. p. 735.
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Carlos Lima Junior
Oscar Pereira da Silva. O Príncipe Regente D. Pedro e Jorge de Avilez a bordo da Fragata União. 1922. 330 x 277 m.
Óleo sobre tela. Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
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“desta tribuna até os reis têm que me ouvir” - sobre o quadro Sessão das Cortes de Lisboa
No pequeno excerto de seu relatório, Taunay enfatizou a data da Sessão que a pintura de Pe-
reira da Silva rememorava: 9 de maio de 1822. Foi nessa data que se deu a leitura, diante do plenário
das Cortes, das importantes cartas redigidas pelo Príncipe D. Pedro ao seu pai, o rei D. João VI, rela-
tando o “Fico”, e inclusive, pedindo a ele que “faça constar ás Cortes este mao modo de proceder”
referindo-se à divisão auxiliadora chefiada por Avilez20. A pintura, nesse sentido, faz referência ime-
diata à tela alocada ao lado, dedicada aos desentendimentos com Jorge de Avilez, o “desobediente”
comandante das tropas portuguesas, expulsas do Rio de Janeiro por ordens do Príncipe.
Entretanto, as discussões travadas entre Antonio Carlos e os deputados portugueses se de-
ram de fato em 22 de maio, quando ocorreu a votação de decretos referentes às relações comerciais
e à interpretação de notícias que chegavam nas províncias do Brasil dando conta da separação. A
pintura, portanto, como bem destacou Cecília Helena de Salles Oliveira, tinha por foco a recriação de
episódios que materializassem um dos eixos interpretativos do processo de separação: o confronto
entre colônia e metrópole, fundindo assim duas datas históricas em uma só pintura.21
Na carta remetida a Taunay para o pintor José Fiuza Guimarães (1868 – 1949), datada de
1925, as matrizes visuais da pintura de Pereira da Silva foram todas explicitadas pelo diretor. 22 Tau-
nay escreve: “A documentação para o ambiente da sala da sessão das cortes obtive de uma estampa
de Roque Gamei[r]o que se encontra num grande album publicado a pouco tempo de historia de
Portugal”23.
Taunay refere-se à estampa As Cortes Constituintes de 182024, do artista português Alfredo
Roque Gameiro (1864 – 1935)25, publicado em Quadros da História de Portugal, de 1917, pertencente à
Biblioteca do Museu Paulista, com anotações do próprio diretor. Não sabemos ao certo se foi Oscar
Pereira da Silva que comentou sobre a existência desta gravura a Taunay, ou se o contrário. De todo
modo, é fato que Oscar se inspirou na obra de Gameiro para ambientar a Sala onde teria ocorrida
a “agitadíssima sessão”, aproveitando, inclusive, a distribuição das personagens sentadas em for-
ma circular de frente para a tribuna. No entanto, também fez algumas alterações significativas, (re)
elaborando e (re)significando a ilustração do artista português de acordo com as demandas de sua
encomenda. Em Gameiro, a figura em destaque que está em pé, que se sobressai no lado esquerdo
da composição, aparece em Pereira da Silva do lado direito, invertida, ainda mais na vertical, inclinan-
do-se para a frente, o que acentua a movimentação da personagem, transfigurada em Antonio Carlos
de Andrada e Silva.
20
DIARIO DAS CORTES Geraes, Extraordinarias, e Constituintes da Nação Portugueza. Segundo Anno da Legislatura. Tomo VI. Lisboa: Na Im-
prensa Nacional, 1822. Biblioteca Nacional de Lisboa, Localização: Fg. 4852-4862. Para uma análise sobre o tema, cf. BERBEL, Márcia Regina.
A Nação como artefato: Deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas (1821 - 1822). São Paulo: Hucitec, 2010.
21
Devo à profa. Dra. Cecília Helena Salles de Oliveira por ter me atentado a esses importantes dados sobre o “9 de maio de 1822” registrado no Diário
das Cortes de 1822.
22
Fiuza fará uma pintura intitulada “O primeiro capítulo de nossa história parlamentar” para o Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, claramente inspi-
rado nessa pintura de Oscar Pereira da Silva. Cf. VALLE, Arthur. Pintura decorativa na 1ª República: Formas e Funções. In: 19&20, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 4, out. 2007. Affonso Taunay foi consultado pela Câmara dos Deputados para o Projeto Iconográfico do Palácio Tiradentes. Cf. Carta de
Taunay a Arnolpho Azevedo. 21 de março de 1924. APMP| FMP. Série: Correspondências. Pasta 121. SVDHICO – MP-USP.
23
Carta de José Fiuza Guimarães a Affonso Taunay. 16 de março de 1925. APMP| FMP. Série: Correspondências. SVDHICO – MP-USP.
24
GAMEIRO, Alfredo Roque. As côrtes constituintes de 1820. In: FRANCO, Chagas & SOARES, João (coord.). Prosa original de Chagas Franco.
Ilustrações de Roque Gameiro e Alberto de Sousa. Quadros da história de Portugal. Lisboa: Edição da Papelaria Guedes, 1917. p. 124. No canto
direito da página consta a seguinte informação “Ilustração de Roque Gameiro”.
25
Cf. LIMA JUNIOR, Carlos. Alfredo Roque Gameiro e Oscar Pereira da Silva: um possível diálogo entre artistas do velho e novo mundo. In: VAL-
LE, Arthur. (et all.). Oitocentos: Intercâmbios Culturais entre Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Seropédica, Ed. da UFRRJ, 2013. Tomo III.
116
Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
Carlos Lima Junior
Alfredo ROQUE GAMEIRO. As côrtes constituintes de 1820. Reproduzido In: FRANCO, Chagas & SOARES, João (coord.). Prosa
original de Chagas Franco. Ilustrações de Roque Gameiro e Alberto de Sousa. Quadros da história de Portugal. Lisboa: Edição da Papelaria
Guedes, 1917. p. 124. Crédito: Carlos Lima Junior.
Sabe-se que na sala onde ocorreram as Cortes, no Palácio das Necessidades, em Lisboa26,
havia um retrato de D. João VI, disposto acima do trono, de autoria de Domingos António Sequeira
(1768 – 1837)27, apenas esboçado na gravura de Gameiro datada de 1917. Desse espaço, fechado
ainda no século XIX, restou-nos um desenho, atribuído a Sequeira28, dificilmente visto por Pereira da
Silva, mas uma referência possível para Roque Gameiro. O curioso é que enquanto Gameiro desvela
o retrato de D. João VI, ainda que realizado um ano depois da reunião das Cortes de 1820, Pereira da
26
CÔRTE-REAL, Manuel. O Palácio das Necessidades. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1983. Agradecimento especial ao Senhor
Embaixador Manuel Corte-Real por toda atenção concedida quando da visita ao Palácio das Necessidades durante o período de pesquisa em Lisboa.
27
Retrato de D. João VI apontando o Livro das Cortes com a Constituição de 1821. 1821. Óleo sobre tela. 2, 27 x 1, 54. Depósito no Palácio da
República, Lisboa, Portugal. AFONSO, Simonetta Luz & MOURÃO, Cátia. Em busca de uma Casa para as Cortes - Do Paço das Necessidades
à instalação no Mosteiro de São Bento da Saúde (1820 - 1828). In: Os Espaços do Parlamento: Da Livraria das Necessidades ao andar nobre do
Palácio das Cortes (1821 - 1903). Lisboa: Assembleia da República, 2003. p. 24
28
Vista do interior da Livraria do Convento das Necessidades, adaptada a Sala das Cortes Constituintes de 1821. N. Ass. [Domingos António de Se-
queira]. N. Dat. (c. 1821). Desenho a pena com tinta bistre e lápis de carvão sobre papel. 665 x 9, 52 mm. Gabinete de Desenhos - Museu Nacional
de Arte Antiga.
117
Revista 200 - número 1 – outubro/dezembro 2018
“desta tribuna até os reis têm que me ouvir” - sobre o quadro Sessão das Cortes de Lisboa
Silva o oculta. Uma explicação possível estaria na especificidade, no sentido visual de cada obra. Na
ilustração do artista português, as Cortes estão reunidas em 1820 contestando o poder absoluto do
soberano. No caso de Pereira da Silva, os deputados brasileiros (paulista em particular) se colocam
contra as cortes de 1822, são essas que “querem colocar medidas opressivas ao Brasil”. A ameaça,
portanto, não era o rei, mas os deputados portugueses.
Os limites do formato do quadro, de mesma dimensão daquele que com o qual faria o pen-
dant sobre a expulsão das tropas portuguesas do Rio de Janeiro, impunham a Oscar o desafio de se
compor a cena histórica dentro de um espaço na vertical, ao contrário de Gameiro, que resolveu o
assunto na horizontalidade. Tal escolha possui algum ponto de contato com a tela Compromisso Consti-
tucional, de Aurélio de Figueiredo (1854 – 1916), datada de 1896. O irmão de Pedro Américo organiza
a cena histórica em um quadro também na vertical, em que apenas um canto de um espaço suntuoso
da arquitetura interna é apresentado. Outra aproximação possível seria ainda com Séance d’ ouverture
des États-Généraux, 5 mai 1789 (1839), de Louis Charles Auguste Couder (1789 – 1873)29, pintura pen-
sada especificamente para a Salle des États-Généraux, do Palácio de Versalhes. Podemos supor que a
ideia da tela de Pereira da Silva para o Salão de Honra do Museu tenha sido inspirada nessa pintura,
já que nela se apresenta um dos episódios dos Estados Gerais durante a Revolução Francesa de 1789,
uma reunião de deputados tida por determinante nos destinos da nação francesa.
A tela Sessão das Cortes de Lisboa, quando situada no âmbito da pintura histórica, parece rea-
firmar aqueles pressupostos tidos por constitutivos da composição de quadros históricos dentro da
tradição acadêmica, a saber: o caráter narrativo, o tom edificante e celebrativo, as personagens em
diferentes posições, os gestos cheios de arroubos, além de se precisar o tempo, o espaço e a ação
que a cena retratada remete diretamente.30 A presença do “herói” concentra a força da narrativa; está
posicionado ao centro, de onde emana todo o discurso visual. Quando da produção desse quadro,
Pereira da Silva, parece estar atento às imposições que Independência ou Morte!, de Pedro Américo, re-
alizada 64 anos antes, demandava em termos compositivos, àquela, de dimensões bem menor, que
deveria produzir para o mesmo espaço do Museu.
Além da consciência da importância dos dados históricos na construção da cena, Pereira da Sil-
va também estava atento aos pressupostos próprios da pintura histórica e sua tradição. Em “Sessão das
Cortes de Lisboa”, as figuras convergem para a ação da personagem principal, a cena demonstra uma
única ação, referendada no tempo e no espaço, onde as pequenas partes se conjugam ao todo, criando
uma só narrativa de fácil identificação. O episódio histórico foi retratado de “modo edificante, de cunho
moralizante, atentos à dimensão de instrução para aquele que o[s] observaria”.31 Taunay, ao encomendar
as pinturas para o Museu, queria não apenas ilustrar os eventos do passado, mas também engrandecê-los.
Ainda que ausente dos planos iniciais de Taunay, a pintura de Oscar foi entregue ao Museu,
corroborando visualmente o discurso presente na historiografia do século XIX e inícios do XX, em
29
Louis Charles Auguste Couder. Séance d’ouverture de l’Assemblée des états généraux, 5 mai 1789. Óleo sobre tela. 4 m x 7, 15 m. Châteaux de
Versailles et de Trianon. Imagem disponível em www.photo.rmn.fr (Agence photographiques de la Réunion des Musées nationaux - RMN - Grand
Palais).
30
COLI, Jorge. Introdução à pintura de História In: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira (org.). Dossiê Pintura de História. In: Anais do Museu His-
tórico Nacional. Vol 39, 2007, p. 51.
31
SÉRIÉ, Pierre. Qu›est-ce que la peinture d› histoire? In: La peinture d’ histoire en France: 1860 - 1900. Paris: Arthena, 2014. p. 22
118
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Carlos Lima Junior
que um suposto desejo de “recolonização” do Brasil pelas cortes de Lisboa encontrava abrigo. Tal
noção explicava a independência do Brasil como reação dos brasileiros a um inimigo comum exter-
no - Portugal32.
Assim, é significativa a escolha do episódio da sessão das cortes para ser figurado em tela,
tendo em vista o projeto de Taunay como um todo para o museu apresentado em 1922. Do hall de
entrada ao salão de h onra, o que se pôs em evidência foi a atuação dos paulistas ao longo da história
do país. Dentro dessa chave interpretativa, se nos tempos da colônia os bandeirantes desbravaram
os sertões e foram os responsáveis pela expansão e povoamento do território, no processo de Inde-
pendência novamente os “bravos paulistas” teriam papel decisivo, pois seriam aqueles que diante dos
deputados portugueses, lutaram pela não “recolonização” do Brasil. Dentro daquele panteão apre-
sentado (parcialmente completo) em 1922, a Independência teria, portanto, São Paulo como cenário,
e os paulistas como protagonistas, imortalizados nas pinturas que celebrariam seus atos tidos por
heróicos na conquista pela separação de Portugal, como claramente Pereira da Silva buscou reafirmar
a partir de seus pincéis em “Sessão das Cortes de Lisboa”. 200
32
ROCHA, Antonio Penalves. A Recolonização do Brasil pelas Cortes: uma invenção historiográfica. São Paulo: Unesp, 2008. p. 9 - 12.
119
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O Museu do Ipiranga em 2022
Fachada do Museu Paulista, inaugurado em 7 de setembro de 1895, cuja sede é um monumento-edifício que faz parte do conjunto arquite-
tônico do Parque da Independência, no bairro Ipiranga em São Paulo.
120
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O Museu do Ipiranga em 2022
Solange Ferraz de Lima *
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Um livro precioso
Capa. Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821, de Manuel Emílio Gomes de Carvalho, Vol. nº 12, Edições do Senado Federal
122
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Um livro precioso
Pedro Calmon*
É
um livro precioso, este que só teve uma edição (Porto, 1912), de M. E. Gomes de Carvalho,
sobre os Deputados brasileiros nas Cortes Gerais.
Tornou-se raridade bibliográfica. Com a circunstância de ter o autor desaparecido
do mundo intelectual, transformando-se numa sombra de esquiva e remota vocação de historiador
(apenas um nome), a que faltava a nacionalidade certa. Um abalizado especialista, no livro sério, che-
gou a chamar-lhe, com evidente engano, escritor luso!
Antes de falarmos, pois, da obra, falemos informativamente do homem, que, com dotes inegáveis
de pesquisador, erudito e escrupuloso, documentando a notícia com as fontes honestamente apontadas
em pé de página, fez a primeira síntese da presença altiva do Brasil na Constituinte portuguesa.
123
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Um livro precioso
ta, cuja biografia, do teólogo Gariou-Lagrange, Vie de Françoise de Rio Negro, Mére Françoise de
Jesus, Paris, 1937, celebra as virtudes da fundadora da ordem Companhia da Virgem. Leia-se Emília
G. de La Rocque, Gente de minha vida. Reminiscências de uma octogenária. Rio de Janeiro, 1977,
p. 84. Ramifica-se em outras famílias, Domingos Teodoro, Vieira Leite Guimarães, Teixeira Júnior,
Monteiro de Barros, Mota Maia, a sólida árvore florescente no segundo reinado (de brasão registrado
em 1867, o lema, Ambitio et invidia sit procul) - a que juntou Manuel Emílio o prestígio, ou o orna-
mento, de dois livros.
Bacharelou-se em São Paulo.
“Seus méritos e suas convicções republicanas (continua Ramiz) chamaram-no sem demora
ao serviço da causa pública: inaugurado o novo regime, e antes que se decretasse a Constituição
da República, o Governo Provisório teve de organizar a administração municipal desta cidade. No
chamado 2o Conselho Municipal de 1o de março de 1890 Gomes de Carvalho teve parte ao lado do
insigne e integérrimo Dr. Ubaldino do Amaral e de outros distintos cidadãos nomeados para aquela
importante missão”. Durou pouco o 2o Conselho. Convulsionou-se a política, entre a crise que iso-
lou, depois demoliu o governo atribulado do marechal Deodoro. Em 1892 viajou o moço advogado
para a Europa, donde não voltou mais. Passou a viver, abastado e solteiro, em Lisboa e em Paris.
Tinha bela biblioteca, hábitos de estudo, a esperança de publicar um dia as investigações históricas,
ora sobre D. João III e os Franceses, livro que afinal saiu no Porto em 1909 (citado, contestado por
Antônio Baião e Malheiro Dias, na História da Colonização Portuguesa no Brasil, III, p. 60 e 69),
ora sobre a bancada americana nas Cortes de 1821, seguindo, nesta ordem de ideias, o movimento
desenvolvido em 1908, centenário da Abertura dos Portos, para valorizar ou revelar os episódios
que precipitaram a Independência, quando, por iniciativa do ministro Miguel Calmon, promoveu
o governo Pena a grande Exposição Nacional, desejou Rio Branco que viesse inaugurá-la o rei de
Portugal, deu-nos Capistrano de Abreu os Capítulos de História Colonial, fustigou Oliveira Lima com
os dois tomos de seu D. João VI os detratores do personagem e da época, abrindo o caminho para a
revisão, senão a retificação da crônica do Império.
Na linha deste pensamento, saltou Manuel Emílio das brumas quinhentistas para a alvorada
legislativa; a golpes de retórica, os idealistas de lá, antepostos aos patriotas de cá, cortando rijamente
os laços do Reino Unido.
O volume ganhou fama. Tanto que, mal as livrarias o anunciaram, já o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro se apressava em incluir o autor na lista dos sócios correspondentes.
Vamos aos arquivos da veneranda entidade.
É de 23 de abril de 1912, a proposta de Max Fleiuss, Manuel Cícero, Artur Guimarães e Carlos
Lix Klett, para que fosse eleito “o Sr. Manuel Emílio Gomes de Carvalho, bacharel em direito, natural
do Rio de Janeiro, residente em Paris, servindo de base desta proposta o seu trabalho denominado Os
Deputados brasileiros às Cortes Portuguesas de 1821, por ele oferecido ao Instituto com dedicatória
autografa”.
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Pedro Calmon
A obra
“Subsídios para a História do Brasil - Os Deputados brasileiros nas Cortes Gerais de 1821 por M.
E. Gomes de Carvalho. Porto, Livraria Chardron, 1912, in-8o, de 426, p. 4 fls. (0m , 143 x 0m ,080).
É a valiosa publicação, em que se compendiam os importantes sucessos da nossa História, de
1821 a 1822, e particularmente o papel que representaram os deputados do Brasil nas Cortes reunidas
em Lisboa em 1821 para a discussão e votação da nova lei constitucional da monarquia portuguesa.
Pela primeira vez se acha reunida em volume e ponderadamente criticada, essa discussão
veemente e lúcida travada entre os delegados brasileiros, que pugnavam pelos direitos da Pátria, e a
corte numerosa dos representantes da metrópole, que sonhavam reduzir o Brasil à antiga condição
subalterna de colônia. Peleja memorável aquela, em que Lino Coutinho, Cipriano Barata, Antônio
Carlos, Vilela Barbosa, Vergueiro, Araújo Lima, Moniz Tavares e outros contrastaram o saber e ar-
gúcia de Fernandes Tomás, Borges Carneiro, Moura, Castelo Branco, Trigoso e seus companheiros!
É sabido que a valorosa corte brasileira não conseguiu ali romper o quadrado da maioria
portuguesa, que aliás contribuiu inconscientemente para apressar a nossa emancipação política;
interessantíssimo é porém o quadro da luta desses belos talentos em defesa de princípios antagônicos,
cuja conciliação era já impossível conseguir depois dos acontecimentos que se seguiram à vinda da
Família Real para o Brasil em 1808. Este grande acontecimento decidiu efetivamente da sorte de
colônia americana, antecipando talvez de meio século a independência e abrindo-nos francamente as
portas do futuro.
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Um livro precioso
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Pedro Calmon
O historiador português Antonio José da Silva Carvalho Vianna (1858 – 1931) é autor de im-
portante obra sobre a história diplomática contemporânea, que além da introdução em um volume, tem
mais dois títulos: “I) A revolução de 1820 e o Congresso de Verona” e “II) A emancipação do Brasil”.
Na obra dedicada à independência do Brasil, o trabalho de Vianna centrou-se na organização
das fontes publicadas, no século XIX, sobre a política luso-brasileira, sendo de enorme valia na pre-
paração de análises deste decisivo período da história tanto do Brasil, como de Portugal. Inspirado
na carta de Vieira e outros documentos, Viana aponta a maturidade e virtudes do Brasil para a eman-
cipação, e evidencia graves equívocos de alguns deputados portugueses das “Cortes” de Lisboa no
trato da relação Portugal - Brasil. Como acentuou, ainda, Oliveira Lima “ a qualidade da representa-
ção brasileira nas Cortes de Lisboa provou que o Brasil se achava maduro para a vida independente”.
Na produção de Antonio Vianna, destaca-se a monumental obra em três volumes, José da
Silva Carvalho e seu tempo, sobre seu avô materno que foi Ministro, Conselheiro de Estado e Vice-Pre-
sidente da Câmara dos Pares, e viveu de 1782 a 1856. 200
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
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Guerra literária: Os panfletos
da Independência brasileira
José Murilo de Carvalho *
Lúcia Bastos **
Marcello Basile ***
A
violência marcou as lutas de independência das colônias britânicas da América do Norte e
das colônias hispânicas das Américas do Norte e do Sul. No primeiro caso, o conflito durou
oito anos, envolveu vários países, e custou cerca de 80 mil vidas. As lutas de independên-
cia das colônias espanholas duraram de 1808, quando José Bonaparte usurpou o trono espanhol,
até 1825, quando Sucre libertou a Bolívia. Teve também alto custo em vidas humanas. Só a batalha
de Ayacucho, em 1824, que deu independência ao Peru, envolveu 14 mil combatentes e deixou um
passivo de cerca de dois mil mortos e 1400 feridos. É certo que houve também violência no caso da
independência da colônia lusa. Houve guerra na Bahia e na Província Cisplatina, de 1820 e 1823. Não
faltaram ainda mortes no Rio de Janeiro, no Maranhão e no Grão Pará. Mas é também certo que esta
violência não se pode equiparar, em termos de duração, vidas perdidas e propriedades destruídas, a
das outras colônias. A presença da corte portuguesa no Brasil e a criação do Reino Unido em 1815
favoreceram uma transição mais rápida e menos violenta.
Na Independência brasileira, predominou outro tipo de guerra. Como disse o Sacristão de
Tambi, em carta de janeiro de 1822, ao Estudante Constitucional (Evaristo da Veiga), publicada no
Revérbero Constitucional Fluminense: “Esta guerra, meu amigo, é mais de pena, que de língua ou de es-
pada”. Falou-se ainda na época de uma “guerra literária” em que as armas eram jornais e panfletos,
*
Doutor em Ciência Política pela Stanford University, é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de
Letras e da Academia Brasileira de Ciências e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
**
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, é professora titular de História Moderna na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pes-
quisadora do CNPq e da Faperj.
***
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor associado de História do Brasil da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro – Instituto Multidisciplinar.
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
Panfletos
A palavra panfleto não existia na língua portuguesa da época. Mas a coisa existia e era cha-
mada por vários nomes: papelinho, papeleta, folheto, pasquim, papel, folha volante. E tinha longa
história no Ocidente. Os panfletos (pamphlets) apareceram na Inglaterra no final do século XVI. Na
França, eram conhecidos como Mazarinades (referência às diatribes contra o cardeal Mazarino). Apa-
receram também na guerra de independência norte-americana, na Revolução Francesa, em Portugal,
durante a luta contra Napoleão, nas colônias espanholas durante as lutas de independência. Sem
terem definição precisa, apresentavam algumas características comuns. Produzidos geralmente em
momentos de turbulência social ou política, ou de ambas as coisas, caracterizavam-se, pelo conte-
údo, pela crítica política e de costumes. Pela forma, usavam linguagem direta, vocabulário acessível
e estilos variados (manifestos, discursos, sermões, poemas, cartas, catecismos e dicionários cívicos).
A ampla e rápida distribuição e o preço acessível completavam suas características. Os fo-
lhetos manuscritos eram colados nas paredes, portas e postes; os impressos eram vendidos, lidos em
saraus domésticos, lojas e praças públicas. Segundo o Mestre Periodiqueiro, personagem de diversos fo-
lhetos, Locke, Grotius, Montesquieu eram discutidos em botequins e “casas de reuniões patrióticas”,
com ardor de “vozes estrondosas”, que retumbavam nas vidraças. Quanto ao preço, os catálogos do
livreiro Paulo Martim os anunciavam por um valor entre 80 e 320 réis. Uma empada de recheio de
ave custava na época 100 réis e uma garrafa de aguardente de cana, 80 réis. Dizia-se que o povo, sem
recursos para ir ao teatro, divertia-se com os “bufões [periodiqueiros] por pouco dinheiro”.
Panfletos manuscritos
Salvaram-se muito poucos panfletos manuscritos. Até o momento, foi possível recuperar 39 de-
les, certamente pequena parcela dos que foram escritos. A maior parte deles foi localizada no Arquivo
Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro, os restantes na Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís
do Maranhão. No Arquivo, estão folhetos que circularam no Rio de Janeiro, na Bahia, em Portugal e em
outros lugares não registrados; na Biblioteca, os que circularam na província do Maranhão.
Dos 39 localizados, 14 foram produzidos na Bahia, 11 no Rio de Janeiro, 7 no Maranhão, 1 em
Portugal e 6 em locais não identificados. A maioria deles (23) foi escrita no ano de 1821. O fato pode de-
ver-se a que só em 28 de agosto desse ano é que foi abolida a censura prévia da imprensa. Na vigência da
censura, o panfleto manuscrito era a forma mais segura de evitar problemas com a polícia. Daí também
que, se comparados com os panfletos impressos, os manuscritos podiam usar, e usavam, linguagem mais
contundente, às vezes chula. É o que se observa, por exemplo, no folheto português intitulado A entrada
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José Murilo de Carvalho – Lúcia Bastos – Marcello Basile
do Careca pela Barra, alusão ao retorno a Portugal de lorde Beresford, logo após a revolta do Porto. Além de
chamar o marechal de “filho da puta” e de “soberbo beberrão”, o folheto acusa os brasileiros de “Bana-
nas” por terem deixado Beresford sair vivo do “País das araras e coqueiros”. Um papelinho que circulou
em plena guerra de independência no Maranhão dizia que os independentes estavam “cagando uma poia
de merda”. É também possível que a linguagem mais destemperada tenha a ver com a origem mais popu-
lar dos autores, evidenciada em erros de ortografia.
Escritos no momento de maior impacto do Vintismo, sua principal preocupação era pregar
a adesão ao constitucionalismo e combater o absolutismo real. A pessoa do Rei era respeitada, mas
não faltaram ameaças, como no folheto que começa citando a Marselhesa, “Às armas, cidadãos”, e
termina dando um ultimato: “Se à força da razão os reis não cedem / Das armas ao poder cedam
os reis”. Outros alertavam o soberano: “Se queres ainda reinar / Olha beato João / Deves ir para
Portugal / E assinar a Constituição”. Ou aconselhavam: “Esta corja que te cerca / Urde a tua perdi-
ção, / Manda enforcá-la toda / Assina a Constituição”. Mas nenhum dos panfletos chegou a pregar
reformas radicais, políticas ou sociais, como seriam a adoção da república e a abolição da escravidão.
Verso de panfleto da Bahia, início de 1821. Reverso do mesmo panfleto, com as marcas de cola.
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Panfletos impressos
Desde Varnhagen, os panfletos impressos da independência vêm sendo mencionados por
historiadores, alguns foram publicados. Nossa contribuição consiste em ter feito um levantamento
cuidadoso deles e os tornado acessíveis aos pesquisadores. Foram levantados e transcritos os panfle-
tos publicados entre 1820 e 1823, no Brasil, Portugal e na Província Cisplatina, então parte do impé-
rio luso. Os critérios de seleção foram o tamanho de no máximo 50 páginas, e o caráter não-oficial
dos textos. Excluímos também os textos de José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, que poderiam ser
considerados panfletos. A razão dessa exclusão foi de natureza editorial: a produção do visconde, em
jornais e folhetos, foi enorme. Reunida, ela formaria por si só um volume. Merece publicação à parte.
Um terceiro critério de seleção foi nos limitarmos aos panfletos publicados no Brasil, Por-
tugal e Cisplatina. No caso de Portugal, foram incluídos apenas os que faziam menção ao império
luso-brasileiro e, posteriormente, ao Império do Brasil, ou que tivessem circulado no lado de cá do
Atlântico. No caso da Cisplatina, incluímos apenas os que diziam respeito à política luso-brasileira.
A pesquisa foi feita, no Brasil, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional, no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, no Arquivo Histórico do Itamaraty, e na Biblioteca José Mindlin;
em Portugal, na Biblioteca Nacional de Portugal e, para a Cisplatina, na Biblioteca Nacional do Uru-
guai. Foram localizados alguns panfletos na Oliveira Lima Library, da Catholic University of Ameri-
ca. Mas não foi possível incluí-los.
Nem todos os panfletos identificados em fontes bibliográficas e em catálogos de bibliotecas
puderam ser localizados. Apesar dessa limitação, foram identificados, localizados e publicados 362
folhetos, que constituem um rico acervo, indispensável para o entendimento da independência bra-
sileira e das relações do país com a antiga metrópole.
Panfletos impressos presumiam, naturalmente, a existência de imprensa, que só foi criada
no Brasil em 1808, data da chegada da Corte portuguesa. Com a Impressão Régia, teve início maior
circulação de documentos oficiais, de obras de cunho literário e científico, de jornais e panfletos. De
início, mais de caráter noticioso, a imprensa começou aos poucos a emitir opinião sobre as questões
políticas, iniciando um debate público, embora ainda tímido devido ao cerceamento exercido pelas
práticas censórias do Antigo Regime. Foi o movimento Vintista que, chegado ao Brasil, deu impulso
à publicação de panfletos. Em junho de 1821, a Impressão Régia publicou o primeiro deles. Dos 362
panfletos encontrados, cinco foram publicados em 1820, 136 em 1821, 170 em 1822, e 46 em 1823.
Cinco deles não estão datados.
Até 1821, havia apenas duas tipografias no Brasil – a Impressão Régia, no Rio de Janeiro
(1808) e a Tipografia Silva Serva na Bahia (1811), considerada a primeira tipografia particular no
Brasil. Com o fim da censura, e como a Impressão Régia não era capaz de absorver a enxurrada
das novas produções, surgiram várias gráficas particulares voltadas, sobretudo, para atender à nova
demanda. Com este argumento, o livreiro Silva Porto pediu, em 1821, licença para criar o que seria
a primeira imprensa particular da Corte. O famoso texto de frei Caneca sobre o que se devia enten-
der por pátria do cidadão, escrito no início de 1822, só pode sair mais tarde “por falta de tipografia
no país”. Mais quatro prelos surgiram logo depois. Outras tipografias surgiram em Pernambuco,
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
Tabela I
Naturalidade dos panfletistas
Pais Número %
Brasil 40 55
Norte 14 35
Sul 26 65
Portugal 18 24
Sem informação 15 21
Total 73 100
138
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Tabela II
Educação superior dos panfletistas
Curso Número %
Coimbra 18 25
Outro 5 7
S/informação 50 68
Total 73 100
Quanto à escolaridade, a única informação que as fontes em geral fornecem é sobre a educa-
ção superior. Encontramos 23 portadores de diplomas, ou 32% do total. Como esses diplomas eram
muito valorizados e, portanto, muito anunciados, pode-se supor que o número reflita corretamente a
presença de bacharéis no grupo. É percentual baixo, se comparado à escolaridade das elites políticas
daquele momento, que era predominantemente universitária. Pode-se concluir que, pela escolarida-
de, o grosso dos panfletistas situava-se entre os setores médios (o termo já era usado na época) da
sociedade. Do grupo de universitários, 18 estudaram em Coimbra (12 brasileiros e seis portugueses).
Desses, doze frequentaram o curso jurídico, dois optaram pela Filosofia, dois pela Matemática e ou-
tros dois pela Medicina.
Entre os coimbrãos brasileiros, pode citar-se Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que es-
creveu umas Reflexões sobre o decreto de 18 de fevereiro deste ano oferecidas ao Povo da Bahia por Filagiosotero,
publicado na Bahia, em 1821. Recém-libertado da prisão motivada por sua participação na revolução
pernambucana de 1817, Antônio Carlos combate no folheto duramente a política do ministério do
Rio de Janeiro. Outro coimbrão foi o incansável polemista Cipriano Barata de Almeida, que frequen-
tou Medicina (embora não tenha chegado a se formar, obtendo apenas o título de cirurgião). Com
o pseudônimo de Desengano, criticou a permanência de resíduos aristocráticos no novo regime, em
um panfleto publicado na Bahia em 1823.
Fora do grupo de Coimbra, há autores que estudaram na Escola Cirúrgica do Rio de Janeiro,
em Escolas Militares e em seminários episcopais. Os últimos, bispos e padres, formam, por si sós,
um grupo de cerca de 20 autores, 27% do total dos identificados. Um exemplo notável é o do frei
Joaquim do Amor Divino Caneca, formado no Seminário de Olinda, autor de um Sermão proferido
na solenidade comemorativa da Aclamação de D. Pedro, no Recife. Outro é frei Francisco Sampaio
que cursou Teologia no convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro. Foi figura influente na época,
autor de sermões, além de redator do periódico o Regulador Brasílico-Luso (1822). Embora a formação
desses militares e clérigos não estivesse à altura da de Coimbra, estava bem acima da média nacional.
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
Tabela III
Ocupação dos panfletistas
Ocupação Número %
Funcionários públicos 53 62
Profissionais liberais 15 17
Negociantes e proprietários 13 15
S/ informação 5 6
Total 86 100
Obs.: o total excede 73 devido a duplas ou triplas ocupações.
Na Tabela III, foram classificados como pertencendo ao setor público os funcionários civis,
militares e eclesiásticos. Foram incluídos no grupo os professores, uma vez que quase todas as esco-
las eram públicas. Profissionais liberais incluem médicos e advogados. O setor, digamos, empresarial
é representado por negociantes e proprietários. Como se vê, há grande predomínio do setor público.
A rigor, os advogados podem ser também aí incluídos porque muitos eram, ou se tornaram, ma-
gistrados, carreira em que vários atingiram a posição de desembargador, como Cassiano Espiridião
de Melo e Matos (Relação da Bahia), José Clemente Pereira e Manoel Pinto Ribeiro Sampaio (Casa
de Suplicação) e Bernardo José da Gama (desembargador e chanceler da Casa de Suplicação). Um
funcionário público que merece destaque é D. Pedro I que, sob o pseudônimo de O Ultra Brasileiro,
defendeu a independência em carta enviada a O Espelho em 1823.
São apenas oito os proprietários de terra. Mesmo assim, quase todos tinham outra ocupação,
às vezes no Estado. É o caso de Domingos Alves Branco Moniz Barreto, que era oficial militar e do
padre Manuel Rodrigues da Costa, herdeiro da fazenda de Registro Velho em Minas Gerais. Nicolau
de Campos Vergueiro, dono de fazendas em Ibicaba, São Paulo, era também advogado. Gonçalves
Ledo, proprietário de terras na província do Rio de Janeiro, interrompera o curso de Direito em
Coimbra e tinha emprego público. Algo semelhante acontecia com os negociantes. José Silvestre
Rebello, comerciante no Rio de Janeiro, era também oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do
Império, e foi o primeiro representante brasileiro nos Estados Unidos, onde negociou o reconheci-
mento de nossa Independência. O acanhamento do mercado fazia com que quase todos buscassem
nos cargos públicos um complemento financeiro de suas atividades, sobretudo literárias. O acúmulo
de ocupações manteve-se por muito tempo como característica básica das elites brasileiras.
A vinculação ao Estado não representava necessariamente posições conformistas. Alguns dos
autores já tinham demonstrado no passado, ou demonstrariam no futuro, índoles polêmicas e inconfor-
mistas. A guerra literária dos panfletos foi, ou seria, apenas uma de suas guerras. O padre Manuel Rodri-
gues da Costa participara da Inconfidência Mineira; Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, Cipriano Barata
e frei Caneca tinham lutado na revolta pernambucana de 1817; o último foi executado por envolvimento
na Confederação do Equador em 1824; Inocêncio da Rocha Galvão presidiu a República da Bahia na
Sabinada, em 1837-38; Jacinto Rodrigues Pereira Reis envolveu-se na sedição de Ouro Preto, em 1833.
Aparecem quatro mulheres como autoras de panfletos: uma portuguesa e três brasileiras.
Entre as brasileiras, está Maria Clemência da Silveira Sampaio, considerada a primeira poetisa do Rio
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José Murilo de Carvalho – Lúcia Bastos – Marcello Basile
Grande do Sul, uma fluminense e uma baiana, ambas anônimas. A baiana, uma jovem de 13 anos,
compôs um comovente poema de protesto contra as violências empregadas pelas tropas portuguesas
que ocupavam Salvador. Há ainda uma representação de mulheres brasileiras ao Imperador Pedro I,
em que pedem por seus maridos portugueses, ameaçados de expulsão. Mais significativamente, rei-
vindicam “certos foros civis” e o estatuto de cidadãs efetivas.
(Estribilho)
As cartas eram a maneira mais direta de polemizar, usando autoria verdadeira ou fictícia.
Foram recuperadas 68 delas. Houve verdadeiros duelos entre “compadres” de um e outro lado do
Atlântico. Uma das trocas mais virulentas deu-se em 1822 entre um “Compadre” de Lisboa e o Filho
do Compadre do Rio de Janeiro (padre Luís Gonçalves dos Santos). O primeiro afirmou que o Brasil
estava reduzido “a umas poucas hordas de negrinhos, pescados nas costas da África”. O segundo
retrucou chamando o luso de “incircunciso filisteu”, e de “charlatão incivil e furioso”. Outra carta
que chama a atenção é a de um ex-inconfidente mineiro, padre Manuel Rodrigues da Costa. Cum-
prida sua pena de exílio voltara a Barbacena, Minas Gerais. Após o Fico, ainda em 1822, escreveu
141
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
a D. Pedro, neto de seu algoz, Dona Maria I, apelando no sentido de que o príncipe apaziguasse os
conflitos entre as províncias que estavam a ameaçar a obra que Deus lhe destinara de fundador de
um Grande Império.
Localizamos 60 textos que podem ser descritos como análises, isto é, ensaios de natureza
mais erudita, escritos em geral por coimbrãos. Discutiam temas mais abstratos como os conceitos de
liberalismo, liberdade e igualdade, sistemas políticos, as Cortes, direitos naturais. Destacam-se entre
elas uma original comparação entre a independência do Brasil e a dos Brasil e os Estados Unidos, es-
crita por Um Amigo da Ordem e uma avaliação histórica das relações entre Portugal e Brasil, escrita
por Raimundo José da Cunha Matos, militar português que aderiu à causa do Brasil e foi mais tarde
um dos fundadores do IHGB. Trata-se de crítica feroz da administração colonial portuguesa.
Sermões, diálogos, manifestos, catecismos, rezas e dicionários políticos formam um conjunto
de 107 textos. Os três últimos, em geral bem-humorados, eram de natureza pedagógica, destinavam-
-se à explicação dos novos conceitos como constituição, representação, cidadania, soberania popular.
Exemplo de um deles é uma Ave Maria Constitucional, escrita em 1821, que rezava:
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
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Manifesto de 9 de janeiro de 1822 com cerca de 8 mil assinaturas dirigido ao Senado da Câmara,
pedindo a permanência de D. Pedro no Brasil (Fico).
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
Foi nesse clima que ocorreu, no Rio de Janeiro, entre 21 e 22 abril, o incidente da praça do Comércio. Na
visão de Silvestre Pinheiro Ferreira, tratava-se apenas da reunião dos eleitores de comarca, com a única
finalidade de sancionar as instruções que deviam ser deixadas a D. Pedro e a indicação dos ministros e
secretários de Estado. Para o autor do panfleto Memória sobre os acontecimentos de 21 e 22 de abril de 1821 na
praça do Comércio, um liberal radical, a assembleia tinha caráter amplamente consultivo e fora convocada
para que todos os cidadãos emitissem seu parecer sobre as instruções de governo a D. Pedro. A reunião,
cheia de “vozeria e alarido horroroso”, resultou em conflito aberto com as tropas do governo, com o saldo
de vários mortos e feridos.
Simultaneamente, outro tema despertou a atenção dos panfletistas, o das eleições dos depu-
tados às Cortes de Lisboa. A posição unânime dos folhetistas era a de esclarecer os cidadãos sobre a
importância e o sentido das eleições e incentivar o voto. É o que se lê no folheto do bacharel Basílio
Ferreira Goulart, compromissário da freguesia da Candelária do Rio de Janeiro, intitulado Discurso
sobre o dia 8 de abril de 1821: “Nós não temos outra arma senão o nosso voto: isto é com que defen-
deremos nossos direitos, nossos foros pelos nossos representantes”. Outros panfletos falavam das
qualidades exigidas dos representantes e faziam sugestões às Cortes.
A 5 de junho, D. Pedro enfrentou uma bernarda promovida pela tropa portuguesa, que o
obrigou a jurar as bases da Constituição portuguesa, fato que foi criticado em um panfleto intitulado
Diálogo político e instrutivo entre dous homens da roça. Ao longo do segundo semestre de 1821, porém, as
notícias das discussões nas Cortes indicavam dois objetivos dos constituintes portugueses: submeter
o rei ao controle do congresso e restabelecer a supremacia europeia sobre o restante do império.
As notícias nessa direção acumulavam-se. Em inícios de dezembro, chegaram os decre-
tos das Cortes referendando as Juntas Provinciais diretamente subordinadas a Lisboa e exigindo
a volta do príncipe regente à Europa. Sob a pressão cruzada das Cortes e dos brasileiros, e diante
de um manifesto assinado por cerca de 8 mil pessoas, D. Pedro decide permanecer no Brasil
(Dia do Fico). As tropas portuguesas ainda procuraram obrigá-lo a embarcar para Lisboa, mas
foram contidas por uma movimentação do povo e de soldados brasileiros. A guerra de palavras
exacerbou-se ainda mais. Para os portugueses, a “aristocracia, o corcundismo e o servilismo”
moviam os defensores da independência, os paulistas à frente. Para os brasileiros, nas palavras
de um Filopátrio (padre Marcelino Pinto Duarte), publicadas em panfleto intitulado O Brasil
indignado, o Brasil já havia saído de sua infância e entrado na madureza, não podia mais aceitar
pacificamente as imposições portuguesas, “Brasil estava em marcha”, não podia retroceder e era
“impossível esmagá-lo”.
O cenário alterava-se. Em 30 de abril, denunciando a incapacidade das Cortes para o diálogo,
Gonçalves Ledo, líder dos brasilienses, levantou abertamente em seu jornal, o Reverbero Constitucional
Fluminense, a proposta da emancipação política do país. Em 23 de maio, o português José Clemente Pe-
reira, presidente do Senado da Câmara, entregou ao príncipe regente uma representação solicitando a
convocação de uma Assembleia brasílica, meio de evitar o esfacelamento do Brasil. Paulatinamente, a
linguagem dos panfletos alterou-se: novos vocábulos surgiram, como separatismo, autonomia, pátria,
nação, brasiliense, Império brasílico. O constitucionalismo transformava-se em separatismo.
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Guerra literária: Os panfletos da Independência brasileira
de governo mais liberal, em que a soberania residisse nos representantes da nação, e a de um governo
mais centralizador, modelado nas monarquias conservadoras da Europa de então, convertia-se em
rivalidade entre brasileiros e portugueses.
A seguir, a Vila Francada em Portugal, de 3 de junho de 1823, pôs fim à experiência liberal
portuguesa, fechando as Cortes, e restabelecendo o poder absoluto de D. João VI. O fato estimulou
D. Pedro a revelar seu lado autoritário. Decretou a dissolução da Assembléia Constituinte em 12 de
novembro. Lido o decreto, sob a ameça de tropas, os deputados retiraram-se. Alguns foram logo
presos, entre eles os Andradas, que foram enviados para o exílio.
No ano seguinte, veio a maior manifestação de oposição contra o governo, mas agora com
cheiro de pólvora. A Confederação do Equador separou Pernambuco do Brasil. Guerra de matar, ela
não deixou de ter seu grande panfletista, frei Joaquim do Amor Divino Caneca.
Conclusão
Os panfletos não são uma crônica da Independência. O que os torna mais relevantes é o
fato de que seus autores foram também atores, personagens da história. Os panfletistas participaram
ativamente de todas as fases da luta, brandindo suas armas literárias e afetando os rumos da história.
Pode-se avaliar o peso de sua atuação verificando que as posições que tomaram e as teses que de-
fenderam coincidem em boa parte com os resultados finais do processo, sobretudo os da Indepen-
dência, da monarquia constitucional e da união nacional. Eles tornaram público o debate político,
doutrinaram os leitores, formularam, interpretaram, combateram e defenderam ideias, propuseram
soluções, representaram interesses. Sem ouvir sua voz, não se pode ter compreensão adequada da-
quele momento histórico e de como ele foi vivido pelos contemporâneos. Ignorar os panfletos é
correr o risco de fazer interpretações anacrônicas.
Nota bibliográfica:
Este artigo baseia-se em dois livros organizados por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos
e Marcello Basile, a saber: Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823).
São Paulo/Belo Horizonte, Companhia das Letras/ Editora UFMG, 2012; e Guerra Literária: Panfletos
da Independência (1820-1823). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, em quatro volumes; e também
no artigo dos mesmos autores “Pelo povo ao Rei, o poder é dado: a linguagem constitucionalista dos
panfletos manuscritos da Independência” in Aline Montenegro Magalhães, Álvaro Marins e Rafael
Zamorano Bezerra (orgs.). D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX. Rio de
Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2016. Para efeito desta publicação, foram omitidas as referências
bibliográficas. 200
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Edição dos panfletos distribuídos na Bahia, no Rio de Janeiro e em Portugal à época da Independência do Brasil.
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O Brasil e as Pátrias da Língua Portuguesa
Painel de azulejos “Comunidade de Bandeiras” (1,87 X 3,74 m), de João Henrique Cunha Rego.
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língua portuguesa e território
O Brasil e as Pátrias da
Língua Portuguesa
Gonçalo Mourão*
J
á há 200 anos, na época de nossa independência, podemos dizer que havia um sentimento la-
tente da existência de uma Comunidade de Língua Portuguesa1.
É bem conhecida aquela ignóbil IIIª cláusula do Tratado do reconhecimento de nossa indepen-
dência por parte de Portugal, de 29 de agosto de 1825, pela qual o Brasil nascente se comprometia a
“não aceitar proposição de quaisquer Colônias Portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil”.
E sabemos que houve, pelo menos em Angola, a veleidade de alguns em tentar aquela incorporação
a nós (veja-se o interessante livro de Manuel dos Anjos da Silva Rebelo, “Relações entre Angola e o
Brasil”, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1970). O que essa cláusula daquele Tratado revela é que
tanto no Brasil quanto em Portugal, há 200 anos, já existia o sentimento de que a comunidade lusó-
fona não se restringia apenas aos dois países mas era uma realidade pluricontinental.
200 anos depois, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, é hoje uma reali-
dade palpável. E é uma enorme construção que nos abriga, calorosamente, a todos.
O mais importante arquiteto desta construção, foi o Embaixador José Aparecido de
Oliveira. Incansável embaixador do Brasil em Lisboa, empregou a maior parte de seu tempo, à
frente daquela embaixada, na faina de modelar essa edificação. Visitou praticamente todos os
países de língua oficial portuguesa, como um peregrino da ideia da criação da comunidade. En-
controu-se com nossos principais mandatários e com as principais cabeças pensantes de nossos
países. Contando com a ajuda de uma equipe competente e com o apoio decidido do presidente
Itamar Franco, encontrou por toda parte o mesmo entusiasmo para a fundação da CPLP e sou-
be, pacientemente, desenhar o esboço maior do que seria o que é hoje a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa.
* Diplomata. Foi embaixador no Reino da Dinamarca e, cumulativamente, na Lituânia (2010 a 2013); diretor-geral do Instituto Rio Branco (2013 a 2016) e
representante permanente do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP, em Lisboa, a partir de 1º de junho de 2016.
1
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi criada em 17 de Julho de 1996 e é integrada por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-
-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
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O Brasil e as Pátrias da Língua Portuguesa
Mas não foi só ele. Muitos foram os que, a seu lado ou após ele, contribuíram para que a
construção dessa realidade não se desfizesse, ao longo deste percurso de 21 anos com que já conta
nossa comunidade. Pelo contrário, contribuíram para que ficasse sempre melhor esboçada e nos abri-
gasse a todos, com toda a amplitude de sua vasta concepção.
Temos hoje, na vitalidade de nossa diversidade, com seus variados aspectos culturais, econô-
micos, sociais, geográficos e humanos, a certeza de que somos, porque estamos juntos; mas juntos
enquanto existirmos juntos como diversidade.
A criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, para a qual tanto contribuiu
a diplomacia brasileira, deve ser considerada uma das mais importantes iniciativas políticas recentes de
nossa chancelaria, um dos mais importantes e singulares passos dados pelo Brasil na afirmação pujante e
singular de nossa presença internacional. Não simplesmente enquanto organização internacional voltada
para a cooperação entre seus membros – cooperação em todos os campos – mas, sobretudo, enquanto
institucionalização de uma transcendência nacional que se firma e se completa e que apoia outras
transcendências nacionais, com base naquilo que o ser humano tem de mais seu. Mais seu, porque
seu e da coletividade em que habita e que, assim, também o habita: seu idioma, essa misteriosa estru-
tura através da qual conhece e inventa o mundo, através da qual imerge em si próprio e emerge para
os outros. Em nosso caso, a doce língua portuguesa.
A importância diplomática para o Brasil da criação e consolidação da CPLP extrapola todos
os níveis de cooperação setorial que a própria CPLP possa contemplar. Fundada com base em três
principais “pilares”, o da promoção da língua e cultura de seus membros, o da concertação política
entre seus governos e o da cooperação para o desenvolvimento de suas sociedades, a CPLP é, para
o Brasil e para cada um de seus membros, muito mais do que a simples implementação de ações
com aquelas finalidades. Não há dúvidas, a consecução de projetos voltados para aqueles objetivos
é fundamental para a existência e permanência da CPLP enquanto organismo institucional. Aqueles
projetos justificam, mesmo, a existência da Comunidade enquanto instituição.
Assim, os esforços de promoção da língua têm levado a um crescimento significativo do ensino do
português no mundo, com o consequente crescimento, também, da divulgação da cultura dos países da
CPLP. São mais de 10 mil os alunos estrangeiros inscritos nos centros culturais e leitorados brasileiros.
Do mesmo modo, a concertação político-diplomática vem assegurando um aumento con-
sistente na adoção de posições comuns, no seio das várias organizações multilaterais, sobre as mais
diversas matérias, reforçando a presença global da CPLP e o prestígio de cada um de seus membros
no cenário internacional.
E a cooperação para o desenvolvimento promove a implementação de projetos comuns e, conse-
quentemente, uma sempre maior aproximação entre os países de língua portuguesa, desenvolvendo nossa
capacidade de estreitar vínculos de cooperação nos variados campos do conhecimento e da tecnologia.
Porém, a importância capital, para a diplomacia brasileira e, portanto, para o Brasil - assim
como, de resto, para a diplomacia dos demais países membros e para eles próprios - não é a simples
consecução daqueles objetivos mas a criação, consolidação e perenização daquela transcendência
intangível a que me referi acima e a que a língua comum dá o mote.
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Gonçalo Mourão
A CPLP foi fundada como manifestação do desejo dos países de língua portuguesa de re-
conhecerem e utilizarem a língua comum enquanto meio comum de expressar um parentesco, en-
quanto identidade comum transcendente a todas as desigualdades e diferenças que nos caracterizam,
enquanto linha que costura firmemente aquelas disparidades.
Mapa-múndi com as bandeiras dos países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
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O Brasil e as Pátrias da Língua Portuguesa
A CPLP foi criada como manifestação do desejo de assumir a perplexidade que o reconhe-
cimento daquele poder da língua comum nos causa. Assim, a chave de abóbada nesta catedral que é
a CPLP, é a língua portuguesa. É ela quem mantém solidamente unidas as demais pedras desta cons-
trução e é dela que pende o lustre maior a iluminar toda a amplidão que ela sustenta.
Mas o que significa isso de extraordinário para a diplomacia brasileira, o que significa isso de
extraordinário para o Brasil? Porque, se olharmos em volta, somos parte de muitas outras organizações
internacionais, globais ou regionais, voltadas para a cooperação e o desenvolvimento, voltadas para a
busca de concertações políticas em prol de um mundo melhor e mais justo. Por que é singular a CPLP
no universo dessa pletora de organizações internacionais e por que é tão relevante para o Brasil?
A singularidade da CPLP provém da concretização da intuição inaugural que lhe deu princí-
pio. A intuição de que um idioma é suficiente e capaz para que povos, sociedades e culturas desiguais
se encontrem em sua diversidade e se reconheçam, dentro daquela diversidade, na transcendência de
um dom comum, o dom da língua portuguesa, dom intangível a partir do qual constroem um espaço
real comum.
Pauta-se, a CPLP, em todas suas decisões, pelo consenso. Consenso não é unanimidade nem
resignação. É a livre construção conjunta de um entendimento comum. O consenso, no caso da
CPLP, é a aplicação prática de um dos princípios basilares de nossa Constituição Federal, no que diz
respeito às relações exteriores do Brasil, o princípio singelo da igualdade entre as nações. A CPLP foi
construída a partir do entendimento da igualdade entre seus membros para a condução de seu des-
tino. E esse entendimento, também ele, fundamentou-se na consciência da partilha fraterna daquele
dom comum que é o nosso idioma e no seio do qual nos consideramos iguais.
Reconhecemos, através da CPLP, que partilhamos, assim, algo de único que nos pertence
a todos e a cada um de nós. Contradizendo o escritor, podemos afirmar, sem susto, não que a
minha pátria é a língua portuguesa mas, pelo contrário, que nós é que somos, nós coletivamente
e cada um de nós individualmente, a pátria da língua portuguesa. Essa propriedade comum é o
que nos une na CPLP, com sua capacidade infinita de ter expressado as culturas de nosso pas-
sado, de estar expressando as de nosso presente e de poder vir a expressar as culturas de nosso
futuro. Essa partilha da expressão de diferentes culturas e experiências humanas foi assumida
pela CPLP, ela também, a partir da língua, como dom comum. Somos uma Comunidade porque
nos reconhecemos em nossa capacidade comum de expressão linguística mas, sobretudo, por-
que nos queremos reconhecer como tal.
Este querermos foi a grande construção da diplomacia de nossos países concretizada na CPLP.
A grande construção não é a CPLP ela própria, como instituição, mas a decisão de a termos querido
e continuarmos a querê-la.
Assim, a relevância dessa construção de desejo, para a diplomacia brasileira, é capital, porque se
reveste, para o Brasil, de uma importância ontológica, que lhe confere projeção internacional. De resto,
confere não somente ao Brasil mas, igualmente, a todos os países que nos juntamos na comunidade.
A CPLP cria, para o Brasil, um espaço internacional de projeção diplomática e um espaço
internacional onde sua cultura se apresenta como cultura integrante daquele espaço maior. É um
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Gonçalo Mourão
fenômeno semelhante ao que ocorre no seio mesmo de nosso país, onde, por ser qualquer Estado
da federação igualmente relevante para a Federação, a cultura peculiar a cada um dos Estados é ao
mesmo tempo e ipso facto, cultura brasileira. E esse aspecto duplo, no âmbito da CPLP, é consolidado,
igualmente, pelo fato de se fundar num mesmo idioma. Somos parte da cultura ocidental mas somos
a expressão em português dessa cultura. Através do português, somos parte do universo das diversas
culturas que se expressam em português e dele faz parte também a nossa cultura.
Nenhuma outra organização internacional ou regional a que nos associamos se funda nesse
dom que é também o que constitui o âmago de nosso ser brasileiro: a língua que falamos. Compar-
tilhá-la com outros países que a têm, do mesmo modo que nós, como dom ontológico, é o que con-
forma essa comunidade, que nos amplia enquanto construtores de cultura e enquanto promotores
de um universo humano comum.
Buscamos, naturalmente, através da CPLP - como através de muitas outras organizações inter-
nacionais - desenvolver atividades, projetos e iniciativas comuns com vista à melhoria das condições de
vida de nossos povos. Mas através da CPLP buscamos, sobretudo e primordialmente, dar testemunho da
possibilidade de uma convivência construtiva e solidária, porque buscada consensualmente, entre países
e povos de diferentes percursos mas que se encontram iguais naquela transcendência da língua comum.
A CPLP, para o Brasil e para seus membros, é a criação de um espaço de demonstração de
possibilidades de instauração de relações internacionais solidárias. É uma construção lenta mas deter-
minada e que, já com mais de duas décadas de existência, vem atraindo crescentemente a atenção e o
desejo de inúmeros outros países de se aproximarem de nossa experiência, numa clara demonstração
de sua vocação para uma relevância de alcance global. Integrada por apenas nove membros plenos,
a CPLP acolhe hoje dezesseis países observadores associados. A simples evocação de seus nomes
dá ideia da amplitude geográfica e cultural aonde chegou a sã provocação da experiência da CPLP:
Andorra, Argentina, Chile, França, Geórgia, Hungria, Japão, Luxemburgo, Maurício, Namíbia, Reino
Unido, República Eslovaca, República Tcheca, Senegal, Turquia e Uruguai - são países espalhados
pelos quatro continentes e, mais do que isso, países falantes de dez línguas diferentes.
O Brasil é, sem dúvida, país singular entre os que integram a CPLP. Essa singularidade,
porém, não significa conforto, antes, significa maior responsabilidade. Mas, por isso mesmo, signi-
fica, ademais, revestir-se o sucesso da comunidade de uma maior importância para o País. Porque
o sucesso da comunidade está intimamente ligado ao desempenho do Brasil: o sucesso da CPLP
será um sucesso do Brasil e um fracasso da CPLP será também um fracasso brasileiro. Sem dúvida,
serão sucesso e fracasso, igualmente, para os demais países membros mas o peso maior, em ambos
os casos, recairá sempre sobre o Brasil. Até porque, aquela experiência única que temos, em nosso
país, a que me referi, de conformação da unidade nacional através da unidade linguística - e que é
a experiência que se desenvolve na CPLP com a conformação de uma comunidade de diversidades
baseadas no uso da mesma língua - é o exemplo maior para a construção da CPLP. E nisso trabalha
a diplomacia brasileira no âmbito da CPLP. Na construção de uma comunidade que se reconheça
como tal a partir da língua comum, a partir da igual capacidade de expressar, pelo mesmo dom com-
partilhado, as diferenças que nos caracterizam mas que não nos separam: não nos separam porque
expressas e contidas na mesma língua.
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O Brasil e as Pátrias da Língua Portuguesa
Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão. Lisboa, 1758.
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Gonçalo Mourão
Finalmente, essa construção única que é a CPLP apresenta um perfil de significação onto-
lógica para a atuação diplomática do Brasil, se considerarmos seus estatutos, suas finalidades e sua
própria atuação. Porque ocorre que aqueles estatutos prevêm, como princípios básicos que regem a
comunidade, praticamente os mesmos princípios que se encontram vertidos no artigo 4º de nossa
Constituição Federal como norteadores das relações internacionais do Brasil: a igualdade sobera-
na dos estados membros, a não ingerência nos assuntos internos de cada Estado, o respeito pelas
identidades nacionais, o primado da paz, da democracia, do estado de direito, dos direitos humanos
e da justiça social, o respeito pela integridade territorial, a promoção do desenvolvimento e a promo-
ção da cooperação mutuamente vantajosa. A CPLP é, assim, o espaço multilateral de que fazemos
parte, que melhor e mais completamente incorpora e reflete os princípios constitucionais que regem
as relações internacionais do Brasil.
Nesses 200 anos de vida independente, temos expressado nossos valores e inquietações na-
cionais, nossa cultura e nossa visão de mundo através da língua portuguesa, que até pouco era nossa
e de Portugal. Por ela, sempre estivemos próximos. Agora, a língua portuguesa é também o idioma
de outros e nos aproximamos todos. Criamos juntos, na CPLP, um espaço peculiar no mundo, com o
qual pretendemos construir uma existência comum de partilha de diferenças e de igualdades, a partir
do fortalecimento da língua comum através da qual nos conhecemos e nos damos a conhecer e nos
sentimos próximos.
É uma construção lenta mas consistente, segura enquanto quisermos continuar juntos a
trabalhar nela. Trabalhar no parentesco fraterno, consolidado pelo dom comum da língua, por cima
de toda e qualquer diversidade. Celebramos, cotidianamente, em português, o fortalecimento da cer-
teza de que estivemos, não importa como, juntos no passado, de que estamos juntos agora e de que
estaremos juntos nesse espaço comum que vamos construindo, de nossa Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa. E isso porque podemos, cada um de nós na Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa, nós há 200 anos e outros há menos tempo mas hoje com a mesma intensidade e certeza,
dizer, alto e bom som: Eu sou a Pátria da Língua Portuguesa! 200
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José Bonifácio e o nascimento da política externa independente no Brasil
Retrato de José Bonifácio por Benedito Calixto (1853-1927). Óleo sobre tela. Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
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estaDo nação: construtores, Fases e temas
“(...) o Senhor d’Andrada vai mais longe e eu o ouvi dizer na Corte, diante de vin-
te pessoas, todas estrangeiras, que se fazia necessária a grande Aliança ou Federação
Americana, com liberdade de comércio; que se a Europa se recusasse a aceitá-la, eles
fechariam os seus portos e adotariam o sistema da China, que se viéssemos atacá-los,
suas florestas e suas montanhas seriam as suas fortalezas, que numa guerra marítima
nós teríamos mais a perder do que eles (...)”
P
oucos são os que identificam José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) como o primeiro
chanceler do Brasil. Menos ainda os que vêem na gestão Andrada (1822-1823) a gênese da
Política Externa brasileira. Foi José Bonifácio, contudo, o responsável pela formulação da po-
lítica exterior do Brasil no processo da independência, ao afastar o estado nascente dos paradigmas
portugueses e estabelecer novas diretrizes e iniciativas.
Com Bonifácio, as prioridades brasileiras passam a ser a aproximação cooperativa com
Buenos Aires, a preservação da autonomia decisória do Estado nascente em relação às potências
europeias, a estruturação de Forças Armadas eficientes na defesa da soberania e o estímulo ao
desenvolvimento da indústria nacional. Em sua busca pela construção da unidade territorial, o
ministro desenvolveu projeto ainda hoje atual pela amplitude e profundidade das medidas suge-
ridas: integração nacional das comunidades indígena e africana com a “civilização” dos índios e
*
Diplomata. Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1997). Autor de “José Bonifácio - Primeiro Chanceler do Brasil”. Bra-
sília, FUNAG, 2008.
1
Correspondência do Barão de Mareschal, In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 80. Rio de Janeiro, 1917, p. 65. A versão
ao português é de responsabilidade do autor.
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José Bonifácio e o nascimento da política externa independente no Brasil
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João Alfredo dos Anjos
nacional. Do mesmo modo, o papel da Grã-Bretanha foi também condenado por Bonifácio, notada-
mente por pretender “engodar o Brasil” com o objetivo de repartir “a carga do agonizante Portugal”,
numa referência à dívida de 2 milhões de libras esterlinas contraída pelo governo português sob o
pretexto de armar-se para submeter o Brasil durante o período subsequente à declaração de indepen-
dência. A dívida contraída em 1825, pelo acordo, passou para o rol das dívidas do “Império nominal
do Equador”, nas palavras do próprio Bonifácio. 4
Congresso de Viena, evento-marco da organização do sistema internacional do século XIX, liderado pelo príncipe de Metternich. Gravura
(1819) reproduzindo pintura de Isabey, em que figura o Conde de Palmela, representante de Portugal. Efígie de D. João VI na parte supe-
rior da gravura e brasão do Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves na parte inferior.
4
Cartas Andradinas, In Anais da Biblioteca Nacional, XIV, 1886-1887. Rio de Janeiro: Tipografia de G. Leuzinger & Filhos, 1890, pp. 10 e 11. A dissolução da
Assembléia é classificada como “coup d´État” na Réfutation des calomnies relatives aux affaires du Brésil, redigida pelos Andrada. Ver Obras Científicas, Políticas e
Sociais, II, pp. 387-446.
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José Bonifácio e o nascimento da política externa independente no Brasil
Leon Tirode. (1873-1956). Reconhecimento do Império do Brasil e sua Independência (entrega de credenciais do Embaixador Charles Stuart).
Óleo sobre painel 50 x 76 cm. Palácio Itamaraty, Brasília.
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ta Hobsbawm, ao afirmar que, em 1820, as importações de tecidos ingleses pelos países latino-ameri-
canos “equivaliam a mais de um quarto das importações européias do mesmo produto”. Já em 1840,
as importações de tecidos pela América Latina chegaram a atingir “quase a metade do que importou
a Europa”. A China, vista por Bonifácio como exemplo de resistência a ser seguido pelo Brasil, seria
do mesmo modo vencida, quando, na Guerra do Ópio (1839-1842), foi obrigada a abrir seu mercado
aos comerciantes britânicos, que contaram, para tanto, com o sempre presente auxílio da Marinha
britânica. Na prática, tanto o Brasil (1808), quanto Buenos Aires (1809) haviam aberto seus mercados
aos produtos ingleses antes mesmo da independência política, ou, nas palavras de Amado Cervo, o
monopólio colonial “desfez-se” antes de “se fazer a independência”. 6
Por outro lado, a França tinha dado início à revolução que viria a alterar as estruturas políticas
europeias, influindo nos Estados em formação na América ibérica. As guerras napoleônicas tinham
levado consigo a estrutura administrativa, o Código Civil e outras instituições francesas, instaladas
agora fora da França. Mesmo derrotado Napoleão, o panorama ficava alterado permanentemente
com a destruição das estruturas feudais e a reforma do Estado. Do mesmo modo, a Revolução Fran-
cesa provara que “as nações existiam independentemente dos Estados, os povos independentemente
dos seus governantes”. 7 Esse aspecto político da revolução liberal-burguesa casava-se perfeitamente
com o seu lado comercial: as duas revoluções, a inglesa e a francesa, comporiam o cerne do liberalis-
mo como entendido no início do século XIX. Industrialização com base no avanço do conhecimento
técnico, comércio mundial apoiado por transportes mais rápidos e seguros – os barcos a vapor e os
trens ainda não tinham uso comercial expressivo – e, por fim, o arcabouço jurídico – a constituição
e a lei civil – como garantia dos direitos e liberdades burguesas.
Contra essa revolução política lutavam a Restauração francesa e o Conservadorismo austrí-
aco e russo, representantes de estruturas que não se haviam modernizado e que viriam a ser derro-
tadas. A França havia provado diversos regimes políticos, desde 1789: a monarquia parlamentar, a
república unicameral da Convenção, a república bicameral do Diretório, a monarquia “plebiscitária”
do Império. Após 1814, tentaria a conciliação da monarquia – apoiada na legitimidade histórica da
dinastia Bourbon – com os princípios constitucionais. A Constituição era vista pelos conservadores
como uma concessão menor para evitar um mal maior, o radicalismo jacobino. 8
Conceitos como liberalismo, constitucionalismo e legitimidade eram frequentemente utiliza-
dos nesse período e estavam no centro da luta ideológica. O princípio da legitimidade, tão repetido
nas conversas com os representantes diplomáticos brasileiros pelo Príncipe de Metternich, chanceler
austríaco, seria fruto de uma necessidade política. 9 Talleyrand, em 31 de março de 1814, em meio
às discussões sobre o modo como os aliados tratariam a sucessão na França, teria argumentado no
sentido de que a “intriga” e a “força” seriam insuficientes para estabelecer um governo estável e
duradouro na França: “(...) il faut agir d´après un principe (...)”. Este princípio, o da legitimidade,
chamaria de volta ao trono francês os Bourbon derrotados pela Revolução, únicos que poderiam ser
6
Hobsbawm, Eric. Ibidem, pp. 51 e 52. Cervo, Amado Luiz. A dimensão regional e internacional da independência, capítulo II de História do Cone Sul. Rio
de Janeiro: Revan; Brasília: Editora da UnB, 1998, p. 84.
7
Hobsbawm, Eric. Ibidem, pp. 108 e 109.
8
Waresquiel, Emmanuel de; Yvert, Benoît. Histoire de la Restauration. Paris: Perrin, 2002, p. 7.
9
Arquivo Diplomático da Independência, IV, a partir da p. 58, correspondência de Teles da Silva a Bonifácio.
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“Fui testemunha ocular e posso asseverar aos contemporâneos que a Princesa Leopoldina cooperou vivamente dentro e fora do país para a
Independência do Brasil. De baixo deste ponto de vista o Brasil deve à sua memória a gratidão eterna.”
Conselheiro Antonio de Meneses Vasconcelos de Drumond
(Rio de Janeiro, 1794 – 1874)
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A gestão das relações exteriores sob Bonifácio teve, já em 1822, duas grandes realizações:
uma de ordem administrativa, com a organização autônoma e a lotação da Secretaria dos Negócios
Estrangeiros e dos postos no exterior; outra de ordem política, com a publicação do Manifesto de 6
de agosto e a emissão das instruções aos representantes brasileiros no exterior, indicando-se o cami-
nho a seguir na nova política externa do Brasil independente. 13
Amado Cervo resume os princípios de política externa que emanam do Manifesto: “1) ma-
nutenção das relações políticas e comerciais, sem dar prioridade a estas ou àquelas; 2) continuidade
das relações estabelecidas desde a vinda da família real; 3) liberalismo comercial; 4) respeito mútuo
ou reciprocidade no trato; 5) abertura para a imigração; 6) facilidades para a vinda de sábios, artistas e
empresários; 7) abertura ao capital estrangeiro”. Pode-se, ainda, depreender do texto o entendimento
de que o Brasil passaria a atuar no cenário internacional sem necessitar do reconhecimento político
de sua condição, uma vez que fora elevado a Reino desde Viena, em 1815, e que não aceitaria ataques
a sua integridade territorial e a sua soberania, nem tampouco medidas que afetassem o seu comércio
externo. O liberalismo comercial deveria ser matizado pelo interesse do Estado, a quem cabe admi-
nistrar as relações comerciais com o exterior, segundo os interesses nacionais. 14
No campo da defesa, Bonifácio organizou o “Exército Pacificador”, comandado por Labatut,
para o cerco às tropas portuguesas do general Madeira na Bahia; contratou os serviços do almirante
Cochrane e de centenas de oficiais ingleses e franceses; organizou as milícias e procurou integrar os
indígenas aos combates em defesa da independência. Com a administração eficiente dos recursos
públicos, o ministro disponibilizou 300:000$000 para a aquisição de 6 fragatas de guerra, com 50
canhões cada uma, além de retomar a construção naval no Arsenal do Rio de Janeiro. Do mesmo
modo, foram adotadas diversas medidas para desenvolver e diversificar a economia brasileira. 15
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Retrato de James Monroe por Samuel F. B. Morse. Óleo sobre tela 75,2 x 65,2 cm. Casa Branca, Washington.
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Em Buenos Aires, Corrêa da Câmara realizou trabalho de aproximação não apenas com
Rivadavia, mas também com o ministro das Finanças, Manuel José García. A seus interlocutores, o
representante brasileiro sugeria a importância de aprofundar os “laços de amizade e boa inteligência”
entre os dois governos. Câmara ponderava que tal aproximação não devia ter “publicidade intempes-
tiva” para evitar “chocar” os países vizinhos, ou atrair a sua oposição “gratuita”. Em visita a García,
a 10 de agosto de 1822, disse: “(...) O Brasil era um gigante, que nem uma força faria, em tempo al-
gum, retrogradar. (...) Convinha comigo de que só uma perfeita e sincera união de todos os Estados
americanos poderia dar a esta parte do mundo (...) a força de que necessitava”. 21
Os esforços diplomáticos teriam como consequência o primeiro reconhecimento formal da
independência do Brasil, por parte da Argentina, com a apresentação da carta credencial do enviado
diplomático Valentín Gómez ao chanceler brasileiro, a 5 de agosto de 1823, no Rio de Janeiro, como
bem o demonstra o diplomata Rodrigo Randig no excelente estudo sobre o reconhecimento da in-
dependência do Brasil.22
Em 1826, Rivadavia chegou à Presidência argentina. Numa tentativa de resolver o impasse
com o Brasil em torno da Cisplatina, enviou Manuel José García para negociar a paz. García assinou
acordo com o Império, em 1827, cedendo a Banda Oriental, o que confirmava a possibilidade de
entendimento vislumbrada por Bonifácio, em 1822. O modo equivocado como se administrou o
acordo fez com que se tornasse mais aguda a crise que se vivia em Buenos Aires, em conseqüência da
Constituição de 1826. Crente na possibilidade de voltar com poderes renovados, Rivadavia rechaça o
acordo e apresenta sua renúncia ao Congresso, que, entretanto, aceita o pedido por 48 votos em 50
totais. Na condição de ex-presidente, Bernardino Rivadavia foi exilado, em 1829. 23
21
Arquivo Diplomático da Independência, V, pp. 261, 262 e 263.
22
Argentina, primeiro país a reconhecer a independência do Brasil. In: Cadernos do CHDD, nº 31. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017. Versão
em espanhol (“Argentina, primer país en reconocer la independencia del Brasil”) publicada em Archivos del Presente, nº 65 (Buenos Aires, 2017).
23
Segundo Raul Adalberto de Campos, em suas Relações Diplomáticas do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & Cia, 1913, pp.
134 e 135, García estivera no Brasil como “agente confidencial, desde 1815 até junho de 1820”, depois Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário,
a 7 de maio de 1827, quando “veio tratar da paz, sob a mediação do governo britânico” e assinou o Tratado de Paz de 24 de maio de 1827, “pelo qual as
Províncias Unidas do Rio da Prata renunciavam sua pretensão sobre o território da Província Cisplatina”, não ratificado pelo governo de Buenos Aires. Floria,
Carlos Alberto; Belsunce, César A. García. Historia de los argentinos, I. Buenos Aires: Ediciones Larousse, 1992, pp. 452, 478 e 479. Bernardino Rivadavia foi
Presidente da Argentina entre 8 de fevereiro de 1826 e 7 de julho de 1827. Ver Floria, Carlos Alberto; Belsunce, César A. García. Ibidem, I, pp. 467 a 471.
173
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24
Os Tratados de 1810 incluíam um Tratado de Comércio e Navegação e um Tratado de Paz e Amizade, ambos com data de 19 de fevereiro de 1810. Em
18 de outubro de 1810, por decreto, as mercadorias britânicas transportadas por embarcações portuguesas também passaram a pagar 15% ad valorem. A
alíquota cobrada das mercadorias portuguesas se igualou à cobrada das mercadorias britânicas em 1818. Ver Lima, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, pp. 255, 256 e 265.
25
Uma das vitórias da Grã-Bretanha no Congresso de Viena havia sido exatamente o fato de ter deixado de fora das deliberações das potências vitoriosas
as questões envolvendo o direito do mar. Kissinger, Henry. A world restored. Boston: Houghton Mifflin Company, 1973, pp. 33 e 34; Nicolson, Harold. The
Congress of Vienna. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1946, passim. Nicolson define “maritime rights”, à p. 282, como “a phrase employed by Great
Britain to designate what other countries called freedom of the seas. The British contention was that a belligerent had the right to visit and search neutral
vessels on the high seas. The opposed contention was that neutrality carried exemption from interference on the principle of ‘free ships, free goods’.
Britain claimed that if this principle were admitted no naval blockade would prove effective since any blockaded country could import goods in neutral
bottoms. The others said that to extend British maritime supremacy to the point of interference with legitimate neutral commerce was against the Law
of Nations”.
26
O tema é objeto de extensa bibliografia especializada e a sua discussão em minúcia não caberia nos limites deste artigo. Destaca-se o estudo de Leslie
Bethell, A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos (1808-1869). Brasília: Senado Federal, 2002. Além
dele e com caráter mais geral, há o volume de Robin Blackburn, A queda do Escravismo Colonial, 1776-1848. Rio de Janeiro: Record, 2002. Nele o autor
passa em revista os mais importantes estudos sobre o tema. Concorda-se, em linha geral, com a tese que aponta para os interesses econômicos e estraté-
gico-militares da campanha britânica contra o tráfico escravo, para além dos justificados elementos humanistas e filantrópicos.
27
Lima, Manuel de Oliveira. Ibidem, p. 283.
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O Imperador D. Pedro I (1798 -1834) e a Imperatriz D. Leopoldina (1797-1826), Arquiduquesa da Áustria. “Nove anos durou a união;
nove filhos (dois abortos) foram gerados, dos quais um, D. Pedro II, seria quase meio século imperador do Brasil, em reinado cujo saldo de
benefícios só cegos poderiam negar, e outra, D. Maria II, subiria ao trono de Portugal e proporcionaria ao pai ensejo de praticar algumas
das mais belas ações de sua vida.” Octavio Tarquinio de Souza.
175
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28
Hobsbawm, Eric. Ibidem, p. 63. “Em teoria, estes empréstimos deviam ter rendido aos investidores 7 a 9% de juros, quando, na verdade, em 1831, ren-
diam uma média de apenas 3,1%”. Em Fodor, Giorgio. The boom that never was? Latin american loans in London 1822-1825. Discussion paper n° 5. Trento:
Università degli Studi di Trento, 2002, p. 22 e 23. Registre-se que o Brasil do Primeiro Reinado não se encontrava entre as nações inadimplentes. Sobre o
tema, ver Bulmer-Thomas, Victor. The Economic History of Latin America since Independence. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
29
Lima, Manuel de Oliveira. Ibidem, p. 257.
30
Manchester, Alan. British Preëminence in Brazil. London: Octagon Books, 1964, pp. 220 e 221.
176
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31
Arquivo Diplomático da Independência, I, pp. lxiv e lxv.
32
Drummond, Antônio de Menezes Vasconcelos de. Anotações de A. M. V. de Drummond a sua biografia. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro, XIII, 1885/86. Rio de Janeiro: Tipografia de Leuzinger & Filhos, 1890, p. 45.
33
Sousa, Octávio Tarquínio de. Ibidem, p. 196. Caldeira, Jorge. A Nação Mercantilista. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 359 e seguintes. Carvalho, José Murilo de.
A construção da ordem/Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 19.
34
Diplomatic correspondence of the United States concerning the independence of the Latin American nations. Ed. William Manning. Nova York: Oxford University Press,
1925, II, pp. 728 a 731.
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Em 13 de agosto de 1822 o príncipe D. Pedro assinou decreto que estabelecia: “Tendo que me ausentar desta capital por uma semana para
visitar São Paulo” deixava o governo “debaixo da presidência da Princesa Real do Reino Unido, minha muito amada e prezada esposa”. D.
Leopoldina sabia que D. Pedro permaneceria ausente por quase dois meses. Da sessão do Conselho de Estado, de 2 de setembro, presidida
por D. Leopoldina, participaram José Bonifácio de Andrada e Silva, Martim Francisco Ribeiro de Andrada (sentado) e Joaquim Gonçalves
Ledo (com as mãos sobre a mesa), ao lado do Patriarca da Independência. Atrás de Martim Francisco está José Clemente Pereira.
Georgina de Albuquerque (1885-1962). Óleo sobre tela, 1922. Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
José Bonifácio e o nascimento da política externa independente no Brasil
virtude de seus tratados com Portugal, poderia tentar submeter o Brasil pela força. Sempre prudente,
Sartoris respondeu estar além dos seus poderes expressar qualquer posição a respeito e mesmo emitir
qualquer opinião pessoal sobre o assunto, alegadamente com o temor de induzir o governo brasileiro
em erro. Entretanto, Sartoris deixou no ar a seguinte frase: “(...) The Government of the U.S. would
always contemplate with pleasure the felicity and independence of the rest of America”. 35
No final de junho de 1822, Sartoris recebeu comunicação da Secretaria de Estado que infor-
mava da mensagem do Presidente Monroe acerca do reconhecimento dos novos Estados indepen-
dentes da América hispânica, o que ele imediatamente comunicou a José Bonifácio. Nas palavras de
Sartoris a Adams, a notícia “appeared to give him particular satisfaction and I have always observed
that a union and good understanding with the U.S. was a matter very near his heart”. A efetiva sepa-
ração do Brasil de Portugal, sublinha o representante norte-americano, poderia ser muito lucrativa
para o comércio estadunidense. 36
Na mesma conversa com o chanceler brasileiro, Sartoris expõe o seu ponto de vista acerca
do envio de agentes diplomáticos brasileiros aos Estados Unidos, o que, segundo ele, deveria ocorrer
após a instalação da Constituinte, o que asseguraria o imediato e incondicional reconhecimento da
independência do Brasil por parte dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, ao que lhe respondeu José
Bonifácio: “My dear Sir, the Brazils (sic) are a Nation and will take its place as such without waiting
for or soliciting the recognition of the other powers. Public agents or Ministers will be sent to them.
Those who shall receive them upon that footing and treat with us as nation to nation will continue to
be admitted in our ports and their trade favored. Those who shall refuse to do so shall be excluded
from them. Such will be our plain and undeviating policy”.
A mensagem era, mais uma vez, clara. O Brasil era uma nação e o estado brasileiro detinha a
soberania sobre o seu território, motivo pelo qual não necessitava esperar pela aprovação ou pedir o reco-
nhecimento dos demais estados. O problema do reconhecimento era, portanto, um falso problema, uma
vez que o Brasil já agia soberanamente e esperava tratamento em termos recíprocos das nações que com
ele desejassem relacionar-se comercial e politicamente. José Bonifácio assumia essa posição em meados
de junho de 1822, quando possivelmente ainda não era conhecido no Brasil o manifesto de Zea às nações
européias, indicando que a Colômbia fecharia seus portos às nações que não reconhecessem a soberania
do seu Estado, publicado em abril daquele ano. Concomitantemente, os Estados Unidos reconheciam
naquele mesmo período a independência colombiana, o que levaria o pragmatismo britânico a aceitar em
seus portos as embarcações das nações independentes do novo mundo com suas novas bandeiras. 37
Pode-se considerar, entretanto, que a gestão de Bonifácio à frente da chancelaria brasi-
leira e a ação do primeiro cônsul brasileiro nos Estados Unidos, Antônio Gonçalves da Cruz,
contribuíram decididamente para aplainar o caminho do reconhecimento da independência pe-
los Estados Unidos, em 1824, dias após a chegada de Silvestre Rebello a Washington. A própria
escolha de Gonçalves da Cruz, o “Cabugá”, para as funções de representação do Brasil trazia
em si uma dupla mensagem: para os brasileiros, resgatava a figura do embaixador enviado pelos
35
Diplomatic correspondence of the United States, II, pp. 732 e 733.
36
Diplomatic correspondence of the United States, II, pp. 737, 738.
37
Diplomatic correspondence of the United States, II, p. 739.
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revolucionários de 1817, nomeado primeiro cônsul do Brasil nos Estados Unidos, em 1823, por
“seu patriotismo”; para os norte-americanos, demonstrava que o sistema monárquico não afe-
tava essencialmente o espírito “constitucional” do novo governo e o seu desejo de estabelecer
relações construtivas na América.
Como observou Manuel de Oliveira Lima, em conferência nos Estados Unidos, em 1913,
“The Brazilian Empire looked in vain for an offensive and defensive alliance with the (...) United
States. Washington’s able policy of no entangling alliances was too much of a political dogma, be-
sides being a political necessity, to allow such an experience”. A ação propositiva do Rio de Janeiro,
contudo, iniciou-se em 1822, e não com a chegada de Rebello a Washington, em 1824. Foi, portanto,
em decorrência da decisão política e da postura internacional adotada pelos Estados Unidos que não
se aproveitou a ocasião para a construção de relação cooperativa mais estreita. 38
181
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Paes de Andrade, o seu líder, foi abrigado em nau inglesa e asilado na Grã-Bretanha, sob os protestos da
diplomacia do Império. Villèle, primeiro-ministro francês, homem prático, observou a Borges de Barros,
representante brasileiro em Paris, que o interesse da Europa era ver a América “retalhada” para assim con-
tinuarem os novos países a ser colônias “debaixo de outros nomes”. 41
Constata-se, ao se estudar o Bonifácio do primeiro Ministério do Brasil independente, que
a atual configuração geográfica brasileira é devida, em boa medida, à sua ação. Seja na organização
das Forças Armadas que impuseram a unidade; seja na sua defesa por meio do estabelecimento de
contatos e negociações internacionais.
41
Arquivo Diplomático da Independência, III, pp. 138, 151, 167-8. Mello, Evaldo Cabral de. A outra Independência. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 223, observa,
contudo, que Londres “era hostil ao carvalhismo, inclusive no temor de que os Estados Unidos fossem o grande beneficiário da sua vitória, mas no Rio
julgava-se que o movimento era incentivado por toda a Maçonaria de língua inglesa e pelo comércio americano”.
42
Freyre, Gilberto. Sobrados & Mucambos. Rio de Janeiro: Record, 1996, capítulo “O Oriente e o Ocidente”. Pedreira, Jorge Miguel. Economia e política na explicação
da Independência do Brasil, In A Independência brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2006, passim. Donghi, Tulio Halperin. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1975, pp. 100 e 101.
43
Lima, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil, p. 239.
44
Guimarães, Samuel Pinheiro. Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
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Estojo confeccionado em 1824 por Jacques Fauginet, com medalha do Imperador e cópia da Constituição. Museu Imperial.
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Considerações finais
O pensamento andradino expressou-se em duas dimensões: uma prática, da ação do ho-
mem público; outra intelectual, a do pensador e formulador de um projeto para a nação brasileira.
Como primeiro-ministro de fato, desde janeiro de 1822 a julho de 1823, Bonifácio foi o responsável
pela preparação do Brasil para assumir a sua condição de Estado soberano. Como chanceler, foi o
responsável pela autonomia operacional da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e pela
elaboração da primeira Política Externa do Brasil independente.
Na busca pelo estabelecimento de relações diplomáticas com as demais nações, procurou
garantir sempre a preservação da capacidade de ação do Brasil e evitar acordos lesivos à soberania
brasileira e aos cofres públicos. A esse propósito, em 6 de fevereiro de 1830, dissera ao conde de
Pontois, no Rio de Janeiro, que “(…) todos esses (Tratados) de comércio e amizade concluídos com
as potências da Europa eram puras tolices; nunca os deixaria ter feito se estivesse aqui. O Brasil é
potência transatlântica, nada tem a deslindar com a Europa e não necessita de estrangeiros; estes, ao
contrário, precisam muito do Brasil. Que venham, pois, todos aqui comerciar; nada mais; porém em
pé de perfeita igualdade, sem outra proteção além do direito das gentes e com a condição expressa de
não se envolverem, seja como for, em negócios do Império; de outro modo é necessário fechar-lhes
os portos e proibir-lhes a entrada no país”. 45
No âmbito interno, organizou e estruturou Forças Armadas propriamente brasileiras, crian-
do as condições não apenas políticas, mas práticas para a instauração da unidade territorial do Impé-
rio, do Amazonas ao Prata. Ele sempre teve clara a relação íntima entre diplomacia e força militar. Os
fatos contingentes da centralização no Rio de Janeiro ou na figura do herdeiro da Monarquia portu-
guesa não podem ser vistos, como se procura demonstrar, como essenciais no pensamento político
de Bonifácio. Na prática, foi ele quem deu início à formação de um corpo legislativo próprio para
o Brasil com a convocação, a 16 de fevereiro, do Conselho de Procuradores das Províncias, depois
transformado em Assembleia Constituinte e Legislativa.
Para Bonifácio, o Brasil era uma “potência transatlântica”. Por isso, não poderia aceitar a
sujeição aos interesses das potências estrangeiras, principalmente as européias que, por seu poderio
econômico e militar, eram as principais inimigas da consolidação do Brasil unido e independente.
Para tanto, fazia-se necessário, no campo internacional: (1) tomar as medidas indispensáveis para
dotá-lo de forças eficazes de defesa (Exército e Marinha); (2) desenvolver economicamente o país,
diversificando sua atividade industrial e comercial; (3) garantir administração pública correta, voltada
para o projeto de construção da nação, organizando e moralizando o serviço público; (4) evitar com-
promissos que limitassem a soberania nacional, criando laços inaceitáveis de subordinação no campo
internacional (os tratados desiguais e os empréstimos).
Para Bonifácio, o reconhecimento diplomático do Brasil imperial independente e unido era
importante, mas não era essencial para a existência prática do país. O primeiro chanceler entendia
que o reconhecimento viria cedo ou tarde, guiado pela própria conveniência dos países que manti-
nham relações comerciais com o Brasil. As normas do “Direito das Gentes” seriam suficientes para
45
Rodrigues, José Honório. O pensamento político e social de José Bonifácio. In: Obras Científicas, Políticas e Sociais, II. p. 25.
184
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dar as garantias ao comércio de estrangeiros no Brasil. O essencial a obter e preservar era a unidade
territorial e a soberania.
Segundo Evaldo Cabral de Mello, “não havia sentimento nacionalista na América portugue-
sa em 1822; o que havia era ressentimento antilusitano, este mesmo limitado às camadas médias e
populares das grandes cidades costeiras: Rio, Salvador e o Recife”. De fato, como também aponta
Hobsbawm, o que havia na América Latina de modo geral era o “embrião da ‘consciência nacional’”.
José Bonifácio procurou dar sentido a essa força latente no país, organizando não apenas a sua ad-
ministração, mas também a visão que a nação teria de si mesma. Se o Brasil “fez-se nacionalista por
haver-se tornado independente”, como quer o autor de Um imenso Portugal, fez-se nacionalista e inde-
pendente em 1822, guiado por um projeto de nação. Esse projeto traduziu-se, por dezoito meses, nas
decisões que tomou José Bonifácio para garantir a unidade do território, a organização do Estado e
sua capacidade de afirmação internacional.46 200
46
Hobsbawm, Eric. A Era das Revoluções, pp. 161, 162. Mello, Evaldo Cabral de. Um imenso Portugal, p. 15. Bonifácio foi estadista com visão do movimento
ativo de construção da nacionalidade brasileira. Nesse sentido, como define Magnoli, em O Corpo da Pátria, p. 12, teve consciência do problema tríplice
que o Brasil enfrentaria: a unidade territorial, a continuidade histórica, a particularização cultural. No campo da cultura, Bonifácio, no relato de contem-
porâneos como Eschwege, ou por suas próprias cartas do exílio, demonstra preocupação na definição de novos valores nos mais diversos campos, da
vestimenta adaptada aos trópicos, da culinária, das manifestações artísticas até a valorização de uma “raça” brasileira e de uma identidade nacional. Ver
Kenneth Maxwell, no artigo Por que o Brasil foi diferente? Os contextos da independência, p. 188.
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Hipólito da Costa: o primeiro estadista do Brasil
Retrato de Hipólito da Costa. Litografia de H.R. Cook (1881), extraído de Correio Braziliense ou Armazém Literário. Londres.
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Hipólito da Costa: o
primeiro estadista do Brasil
Paulo Roberto de Almeida *
H
ipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823), antes de se tornar o cria-
dor, redator, editor e publicista do Correio Braziliense – o “armazém literário” que ele solita-
riamente redigiu, publicou e distribuiu, ao longo de quase três lustros, a partir da Inglaterra,
entre 1808 e 1822 –, foi também uma espécie de Tocqueville avant la lettre, um verdadeiro founding
father do americanismo brasileiro, um pioneiro nessa tribo extremamente rara dentre os estudiosos
brasileiros da grande nação americana. Uma geração antes que Tocqueville publicasse, em 1835, o
seu imediatamente famoso De la Démocratie en Amérique, e alguns anos antes de se estabelecer na In-
glaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar o seu Correio Braziliense, Hipólito deixava
registrado, num diário, ao cabo de uma “viagem de instrução” aos Estados Unidos (1798-1799), suas
precoces observações sobre a nascente democracia americana ao tempo dos primeiros dois presi-
dentes. Elas, no entanto, permaneceram inéditas por um século e meio, até que o texto original fosse
localizado por Alceu Amoroso Lima no catálogo da biblioteca de Évora, que o fez publicar pela
Academia Brasileira de Letras.1
Em sua viagem – recém-egresso de Coimbra na condição de “bacharel formado em leis”,
como se apresentou numa publicação de 1800, e colocado “a serviço de Sua Alteza Real” pelas mãos
de Rodrigo de Souza Coutinho, o grande estadista da crise portuguesa no decorrer das guerras napo-
leônicas–, Hipólito não se contentou em seguir as instruções de Coutinho, no sentido de “adquirir
conhecimentos sobre a preparação de diversas culturas e espécies não cultivadas” (Dias, p. xxxvi), e
* Diplomata, sociólogo e professor do Uniceub. Desde 2016 é o Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag.
1
O Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799 (Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955) foi posteriormente publicado por iniciativa
do sindicato de jornalistas do Rio Grande (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974) e também pelo Senado Federal (Brasília: 2004, com as introduções
da edição de 1955; disponível em formato online: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1094/710315.pdf ?sequence=4); ganhou uma
edição portuguesa, introduzida e anotada pelo historiador Alcino Pedrosa: Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007; ele foi, mais recentemente, objeto
de uma edição crítica por Tânia Dias (Fundação Casa de Rui Barbosa e Editora da UFMG, 2016), com um aparato filológico da melhor qualidade.
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América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no
sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre
as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a
sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econô-
mico das indústrias e do comércio que Coutinho adivinha formavam a base da potência das nações.
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, (Tho-
mas Jefferson), e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de
protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimo-
nial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois
que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre
questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comér-
cio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor
absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses
reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no in-
terior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou,
também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que
ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano.
Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem
em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta
apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada
da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas
e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o
“modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam
o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “so-
ciológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do
que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo
importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter impressionado a mente do jovem Hipó-
lito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos,
comerciais e monetários “brazilienses”.
O diário de viagem de Hipólito constitui, provavelmente, a primeira obra sobre os Estados Uni-
dos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da
América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem
para o engrandecimento de sua pátria de origem.4 Pode-se, portanto, legitimamente enquadrar Hipólito
na condição de primeiro americanista brasileiro, ao ter ele desenvolvido ideias, tirado lições, formulado
propostas e consolidado posturas que orientariam, no plano intelectual, seu trabalho maduro desenvolvi-
do oito anos depois nas páginas do Correio Braziliense. Hipólito não foi como José da Silva Lisboa, o vis-
4
Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Tendências e perspectivas dos estudos brasileiros nos Estados Unidos” in: Paulo R. de Almeida, Marshall C. Eakin e
Rubens A. Barbosa (eds.). O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.
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conde de Cairu, um teórico da economia,5 muito embora não tenha repugnado a entrar em considerações
doutrinárias em seus muitos escritos posteriores da fase do Correio. Ainda antes, e à volta de sua missão
americana, ele verteu para o Português, em 1801 e provavelmente sob a sugestão de Coutinho, a História do
Banco da Inglaterra, de E. Fortune, e os Ensaios econômicos e filosóficos de Benjamin Rumford.6 D. Rodrigo, que
nessa época era ministro da Fazenda e presidente do Erário, o envia nesse ano à Inglaterra e à França, para
“adquirir livros, máquinas e outros materiais para a Imprensa Régia”.7 Esse tipo de literatura, muito volta-
da para as condições econômicas concretas do país mais avançado, então, no plano industrial, e, sobretudo,
sua missão anterior aos Estados Unidos é que devem ter constituído a base do conhecimento empírico e
teórico de Hipólito sobre questões econômicas e comerciais, manancial de conhecimento que sustentaria,
durante anos, as páginas mais relevantes do Correio Braziliense, ao lado das simples notas sobre fatos, per-
sonagens e processos políticos e econômicos, em sua verdadeira crônica sobre os eventos correntes que
constituíram os números sucessivos do primeiro jornal independente de uma imprensa “brasiliense”.
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Foi na Grã-Bretanha – seu refúgio nos 17 anos seguintes e onde empreenderia o ato funda-
dor da imprensa “brasiliense” – que Hipólito continuaria sua obra de tradutor e de comentarista das
atualidades nacionais (portuguesas e brasileiras) e internacionais. Ele foi um compilador das coisas
práticas da vida econômica, política, científica e literária, geralmente sob a forma mais usual da trans-
crição de documentos oficiais, mas muitas vezes fazendo ele mesmo pequenas resenhas e comentá-
rios pessoais, alguns não assinados ou então colocados sob pseudônimo.
Esse ativismo literário e jornalístico do novo exilado português da Inquisição não se refletiu
todavia de imediato na vida de Hipólito, que ainda passa perto de três anos como tradutor e professor
e em diversas atividades comerciais e de intermediação – quase que de subsistência, poder-se-ia dizer
– antes de se lançar na grande aventura de sua vida, a do “Armazém Literário”, que o consagraria, na
história do Brasil, como o primeiro jornalista independente do país, mesmo que ele jamais tenha volta-
do a colocar os pés na sua pátria de origem. Foi Napoleão quem o tirou da modorra e lhe deu a grande
oportunidade de se afirmar como homem de ideias e como crítico das políticas oficiais. De fato, não
fosse a invasão napoleônica de Portugal talvez não tivéssemos tido o empreendimento “literário” que
marcou, mais que qualquer outra folha, gazeta ou pasquim, as políticas domésticas e internacionais de
Portugal e do Brasil, durante os quase 14 anos de residência da corte portuguesa no Rio de Janeiro.10
10
De fato, como afirma Mecenas Dourado, o Correio Braziliense “foi um fenômeno napoleônico”; cf. Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército Editora, 1957, 2 vols., tomo II, p. 580.
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O Correio foi, por certo, mais importante para o Brasil do ponto de vista das lutas políticas
e jornalísticas, pela liberdade de expressão e no controle das autoridades (e também diplomati-
camente), do que como arauto ou porta-voz de políticas ou doutrinas econômicas e comerciais.
Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical e o representante das ideias democráticas
da Revolução Francesa que muitos gostariam de ver. Como diz Mecenas Dourado, “na realida-
de, não era ele senão um discípulo do liberalismo inglês, partidário, em política, da monarquia
limitada e repelindo as tendências revolucionárias e democráticas da igualdade rousseaunista”.12
Não parece deslocado afirmar que, nesse terreno, ele ostentava o mesmo pragmatismo e bom
senso que o caracterizavam na área política, combinando um liberalismo de princípio quanto
ao exercício das atividades econômicas e comerciais, não repugnando, quando fosse o caso, a
aplicação de algumas medidas “industrializantes” (avant la lettre), como tinha observado nos Es-
tados Unidos.
Confirmando sua preeminência na atividade jornalística de Hipólito, a seção sobre po-
lítica sempre foi mais imponente do que a parte comercial nas páginas do Correio. Ocorria fre-
quentemente, também, que muitos instrumentos econômicos ou comerciais, relativos à situação
brasileira e dignos de registro em seu periódico eram por ele transcritos na seção “miscelânea”
do Correio, por vezes em meio a comentários sobre eventos ou decretos de natureza essencial-
mente política, o que confirmaria não apenas a confecção por vezes literalmente artesanal do
seu “armazém literário”, como poderia indicar igualmente o recebimento irregular dos papéis
vindos da corte do Rio de Janeiro.13 De resto, tudo era político naqueles tempos conturbados de
supremacia napoleônica e de imposição crua da hegemonia inglesa, mesmo um simples acordo
comercial ou um tratado de navegação. A abertura do número inaugural do Correio Braziliense
(1808) traz a sua profissão de fé no trabalho do jornalista independente, ao mesmo tempo em
que constitui um verdadeiro programa de trabalho e uma reafirmação dos sólidos princípios que
devem guiar a atividade dos “redatores de folhas públicas”:
O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela, e cada um deve,
segundo suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da mesma, os conhe-
11
Cf. Paula (org.), Hipólito José da Costa, op. cit., p. 18.
12
Cf. Dourado, op. cit., tomo I, p. 302.
13
Em diversos números do Correio, a seção comercial abrigava, ademais da transcrição dos principais textos oficiais nessa área, informações práticas sobre
os preços de mercadorias de interesse do Brasil na praça londrina, dados que constituíam não apenas uma espécie de pesquisa de mercado à intenção dos
comerciantes interessados, como também um levantamento das restrições não tarifárias aplicadas a determinados produtos de produção brasileira que
eventualmente entrassem em competição com mercadorias similares vindas das colônias britânicas do Caribe, por exemplo. Assim, os preços deixavam
de ter sua função indicativa da realidade dos mercados para entrar em jogo o tratamento tarifário diferenciado ou a proibição pura e simples de entrada
nos portos britânicos.
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As razões para isso eram claras, na linha do que já tinha escrito na abertura:
Todo indivíduo particular que se esforça, pelos meios que tem ao seu alcance, para
ilustrar e instruir seus compatriotas nas verdadeiras ideias de governo e nas formas que
mais podem contribuir para a felicidade pública, faz um bem real à sua nação, porque
são essas medidas outros tantos passos para os melhoramentos que se desejam intro-
duzir. (IV, 1810, 313-4)
Mais adiante, refletindo sobre os destinos do Brasil a partir de sua modesta oficina londrina,
ele não hesitava em apontar os caminhos que se abriam à nação que passava a acolher a corte metro-
politana, que ele julgava que deveria aperfeiçoar-se na melhoria dos costumes e da moral pública, as-
sim como empenhar-se imediatamente em livrar-se da nódoa do tráfico e do opróbio da escravidão:
…o povo que deseja ser livre e feliz cuide de assegurar com suas virtudes próprias essa
liberdade, e essa felicidade que deseja, porque enquanto se esperançar noutras nações,
para gozar esses bens, será escravo, será infeliz. Não dispute sobre a forma de governo,
reflita no modo de melhorar seus costumes. Um povo sem moral, se não tem liberda-
de, nunca a obterá; se a tem certamente a perderá. (XXIV, 1819, 27)
A terrível mancha persistiria ainda por muitos e muitos anos depois da morte de Hipólito, e mes-
mo de seu amigo e parceiro de ideias, José Bonifácio de Andrada e Silva, que na sua representação sobre
a escravatura à Assembleia Constituinte de 1823 refletia muitas das ideias que já se encontravam refletidas
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nas páginas do Correio Braziliense. 14 Em sua modesta condição de redator de uma folha pública, não se deve
hesitar em classificar o futuro “patrono da imprensa” no Brasil como tendo sido, igualmente, o “primei-
ro estadista” do Brasil, a despeito mesmo do fato que Hipólito jamais voltou a viver no país, desde seus
estudos superiores, durante toda a sua vida madura, dele nunca ter exercido cargos públicos vinculados à
sua terra natal, e ter tido muito poucas chances, senão através de sua pluma crítica e acerada, de influen-
ciar quaisquer políticas da Coroa portuguesa, e ainda pelo fato de ter permanecido, até praticamente a
independência, um partidário do Reino Unido, como talvez também era José Bonifácio, fossem outras as
circunstâncias criadas após a revolução do Porto e pelos trabalhos das Cortes de Lisboa.
Ele não se opôs, terminantemente, à constituição de um Estado brasileiro, apenas se pronun-
ciava pela unidade do Império, vendo o Brasil como o centro de uma grande unidade de propósitos
entre as diferentes partes dos imensos domínios marítimos de Portugal, a base provável de uma
nação espalhada em vários continentes, podendo colocá-la quase em igualdade de condições com
outros impérios existentes ou em formação. Quando esse Estado se constituiu de forma autônoma
ao governo de Portugal, evolução, aliás, à qual ele não se opôs de maneira definitiva, ele estava pronto
para servir à nova nação, mesmo na condição meramente instrumental de cônsul na Grã-Bretanha,
início provável de uma carreira de estadista que o teria levado de volta à terra natal. A morte colheu-
-o precocemente na capital londrina e seus projetos para o novo país – ainda expressos em cartas a
Bonifácio nos últimos meses de vida – foram legados ao esquecimento de mais de um século.
Pela força de sua atividade como jornalista, pelo vigor de seus argumentos, pela clareza de
suas posições, expressas nas milhares de páginas do Correio Braziliense, pelo contributo geral dado
pelo seu “armazém literário” ao longo de 14 anos, relevante no plano intelectual e dos valores, tanto
quanto no das atitudes e políticas, Hipólito foi, sem sombra de dúvida e de pleno direito, o primeiro
estadista da nação “braziliense”, como ele gostava de se referir aos compatriotas nascidos em solo
brasileiro. O fato de que ele não tenha podido exercer-se plenamente como cidadão brasiliense, e a
partir daí como um construtor da nação, a exemplo de outros pais fundadores, não lhe deveria reti-
rar em nada o título que sua contribuição intelectual certamente lhe assegura de pleno direito. Basta
percorrer as páginas do “armazém literário” para certificar-se disso.
Um ano antes do controverso tratado de comércio entre Portugal e a Grã-Bretanha, Hipólito
já manifestava seu ceticismo quanto aos interesses reais do ponto de vista do Brasil, com argumentos
que poderiam ser classificados como de “política industrial”. Escrevendo em 1809, ao saber dessas
tratativas, ele assim se manifestou:
Um tratado de comércio entre o Brasil [sic] e a Inglaterra é uma das mais delicadas empresas
em que pode entrar o Brasil, porque o negociador brasiliense não tem precedentes que o
guiem. Os tratados que existiam entre a Inglaterra e Portugal eram fundados nos interesses
mútuos de exportação dos artigos portugueses de grande consumo na Inglaterra, tais o
vinho, o azeite etc., e na situação política daquele pequeno Reino, que, ameaçado constante-
mente por seus vizinhos, se via obrigado a solicitar a proteção da Inglaterra, ainda à custa de
14
Representação à Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, por José Bonifacio de Andrada e Silva, deputado à dita Assemblea
pela Provincia de S. Paulo. Paris: na Typographia de Firmin Didot, impressor d’El Rei, 1825, 40 p.; “Esta representação estava para ser apresentada à
Assemblea Geral Constituinte [1823]... quando... ela foi dissolvida e seu autor, entre outros deputados, preso e deportado”. Registro eletrônico de obras
raras n. 22512, na Biblioteca Luiz Vianna Filho, do Senado Federal.
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pesados sacrifícios. Estas duas razões cessam agora porque os produtos principais do Brasil
estão longe de terem grande consumo em Inglaterra, que nela são proibidos, por causa da
competência [concorrência] em que se acham com as colônias britânicas; e quanto à situ-
ação política do Brasil, este imenso território acha-se de tal maneira isolado pela natureza,
que nenhuma potência lhe pode meter susto, nem causar prejuízos consideráveis, salvo a
Inglaterra, embaraçando-lhe o comércio. De onde se segue que, faltando os dois princípios
(do interesse mútuo e do temor) que originaram as principais estipulações dos tratados de
comércio entre Portugal e Inglaterra, não podem aqueles servir de norma a este tratado do
Brasil. (Correio Braziliense, II, n. 9, fevereiro 1809, p. 129-30)
Concluído o acordo, Hipólito analisou o tratado de 1810 não apenas com sua tradicional perspicá-
cia e rigor pelo detalhe, mas também com seu conhecimento muitas vezes pessoal dos próprios negocia-
dores e suas posturas respectivas em relação aos interesses ingleses em Portugal e no Brasil; seus argumen-
tos expressos nas páginas do Correio balizaram praticamente a maior parte da historiografia subsequente.
Oliveira Lima, por exemplo, apoiando-se extensivamente em Hipólito, afirmou:
As condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do proteto-
rado britânico, cuja situação privilegiada na metrópole era consagrada na nossa esfera
econômica e até se consignava imprudentemente como perpétua. A falta de genuína
reciprocidade era absoluta e dava-se em todos os terrenos, parecendo mesmo dificí-
lima de estabelecer-se pela carência de artigos que se equilibrassem nas necessidades
do consumo, sendo mais precisos no Brasil os artigos manufaturados ingleses do que
à Inglaterra as matérias primas brasileiras. Dava-se ainda a desigualdade na importân-
cia que respectivamente representavam suas exportações para os países produtores,
constituindo a Inglaterra o mercado quase único do Brasil, ao passo que aquela nação
dividia por muitos países os seus interesses mercantis.15
Em outros termos, Hipólito, pela agudeza de suas observações críticas, sobre cada um e todos os
atos do “governo do Brasil”, pautou os termos dos debates posteriores em torno dos reais interesses do
país nos temas de relações econômicas internacionais e de políticas setoriais – indústria, comércio, agricul-
tura, etc. –, todavia bem mais na fase independente, do que durante a presença de D. João no Brasil.
15
Cf. Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, 3ª ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 251.
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Retrato de Hipólito José da Costa. Anônimo século XIX. Óleo sobre tela 76 x 63 cm. Palácio Itamaraty, Brasília.
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Palavra frequente do seu apostolado é a defesa das duas raças mais frágeis que servi-
ram para a formação da nacionalidade brasileira – a do índio e a do negro. Hipólito
confrange-se ante a política de destruição com que o Brasil faz desaparecer o índio e
confrange-se ante a escravidão que criamos para o negro.
Mostra que um país que possui escravos só pode possuir uma mentalidade de escravo.
E põe os brasileiros neste duro dilema: ‘Os brasileiros devem escolher entre estas duas
alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter
consigo a escravatura.’ (Correio Braziliense, XXIX, 574)16
Como José Bonifácio, ele pretendia para o Brasil a imigração de agricultores europeus, os
mais adequados à conformação de uma economia próspera baseada na agricultura, que ele conside-
rava, racionalmente, como era o caso de Cairu igualmente, como a grande vantagem comparativa do
país no contexto mundial, numa demonstração de adesão involuntária e precoce às teses ricardianas
sobre o comércio internacional. Nisso ele não deixava tampouco de expressar as concepções típicas
de sua época sobre as vantagens e desvantagens do afluxo de escravos africanos para o Brasil:
Temos por várias vezes indicado a necessidade que há de procurar ao Brasil uma popu-
lação tirada das nações europeias; e isto para fins morais, políticos e físicos; porque, a
não obrar assim, a raça portuguesa se estragará totalmente com a mistura, tão comum
no Brasil, com os negros africanos, cuja compleição e figura viciam o físico das gera-
ções mistas, e cujos costumes devassos e moral estragada pelos maus hábitos inerentes
à condição de escravos, servem de um exemplo fatal à mocidade, que com eles se cria
nos seus mais tenros anos, e adquire assim péssimos costumes, que de tal modo se
arraigam, que duram depois por toda a vida.” (XVIII, 159)
A despeito da prevenção quanto à “mistura” racial, que se estenderia ainda durante várias
décadas – inclusive consolidada em obras de “cientistas” respeitados ao longo do século XIX, como
o conde de Gobineau, ministro de Napoleão III junto à corte de D. Pedro II,17 continuada em escala
tragicamente ampliada no decorrer da primeira metade do século XX – o cuidado de Hipólito se
prendia a razões de ordem eminentemente prática, ou seja, a capacitação adequada da agricultura
brasileira e a seleção do elemento humano melhor preparado para modernizar a economia muito
atrasada da nação sul-americana. Como verdadeiro humanista, ele colocava seu interesse em todas
as questões que lhe pareciam dignas de serem refletidas nas páginas do seu “armazém”. Sem qual-
quer aproximação conhecida aos judeus, sendo um membro esclarecido da maçonaria, ele refletiu,
precocemente, sobre perseguições que, na Alemanha de 1819, se faziam aos membros dessa “raça”,
retirando desses episódios algumas lições para o “governo do Brasil”. Refletindo sobre os ataques a
judeus – “vergonhosos atos de opressão” – que se faziam em diversas cidades do país, ele especula
sobre se esses atos “eram execução de algum plano concertado”, alinhando as possíveis razões reli-
giosas, políticas ou “comerciais”:
16
Cf. Múcio Leão, “Notícia sobre Hipólito da Costa: esboço de uma biografia”, in: Hipólito da Costa, Diário da minha viagem para Filadélfia. Brasília: Senado
Federal, 2004, pp. 23-34, p. 28.
17
Ver, por exemplo, a obra de George Raeders, Le Comte Gobineau au Brésil. Paris: Nouvelles Éditions Latines, 1934; ed. brasileira: O Inimigo Cordial do Brasil:
o conde Gobineau no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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Refletindo sobre a desastrosa experiência histórica da expulsão dos judeus da península ibé-
rica, três séculos antes, e sempre interessado nos benefícios que novas oportunidades de criação de
riquezas em quaisquer outros países pudessem representar para o Brasil, Hipólito especula então
sobre a eventualidade da transferência dessa comunidade para seu país natal, concluindo, no entanto,
que os preconceitos existentes entre os conselheiros do Rei inviabilizariam tal hipótese:
As riquezas dos Judeus, assim como as de todo o outro capitalista, que não tem
outra pátria senão aquela em que reside deve redundar em beneficio do país, dando
emprego a muitos habitantes, e servindo de produzir novas riquezas. Logo o ódio
contra as riquezas dos Judeus, seria dirigido contra o beneficio, que delas resulta
a toda a Sociedade: um ou outro negociante individual poderia entreter este ódio
contra o rico negociante Judeu e seu vizinho, pelo espirito de rivalidade; mas isto
não se podia estender a toda a populaça; nem abranger tantas cidades, desde a
margem do Reno até Copenhague, como são aquelas por que esta perseguição se
tem difundido.
Suponhamos que os Judeus Alemães se retiravam, com seus haveres, daqueles países
em que são perseguidos: nesse caso, não só a população sofreria, mas a falta de seus
capitães traria a ruina a muitas fábricas, e até a mesma agricultura; como bem palpa-
velmente se experimentou em Portugal, que com a expulsão dos Judeus, perdeu os
seus cabedais, e estes foram enriquecer a Holanda, tornando-se ali rivais e ao depois
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Portugal; mas o ciúme de umas províncias a respeito de outras é a verdadeira causa por
que a Bahia quer antes estar sujeita a Lisboa do que ao Rio de Janeiro. (...)
Mas se é que o Brasil tem de ter um governo geral, a cidade do Rio de Janeiro é mui
imprópria sede para tal governo. O Rio de Janeiro está quase em uma extremidade
do Brasil, e é absurdo fazer ir um recurso do Pará ao Rio, ou uma ordem do Rio ao
Pará, navegando contra vento e maré, quando a comunicação com Lisboa é tanto
mais fácil.
(...)
Se o Brasil deve ter um governo geral, e não duvidamos que ele seria de grandíssima
utilidade ao melhoramento daquele país, deveria esse governo existir em um ponto
central, fosse ou não em lugar desabitado presentemente; porque a sede do governo, a
abertura de estradas desse lugar para os principais portos de mar etc. em breve faziam
populoso esse território. (Correio, XXVII, n. 159, agosto de 1821, pp. 159-60)
Confirmando, então, sua posição de que Brasil e Portugal deveriam permanecer unidos, ele
volta a preconizar um entendimento em torno dessa nova organização:
Nem nos faz dúvida que um plano dessa natureza [a mudança da capital] pudesse
inspirar interesses no Brasil opostos aos de Portugal; porque a prosperidade do Brasil
será sempre de recíproco proveito a Portugal, e se isto desse origem a uma subdivisão
de patriotismo, nem assim o julgaríamos desacertado. É preciso evitar as rixas de uma
província com outra que levam aos feudos e oposições; mas pode bem deixar-se obrar
o espírito de rivalidade, que sendo conduzido por um governo sábio, excita o patriotis-
mo, e esporeia a indústria. (idem, p. 162)
No mês de setembro seguinte, Hipólito, a despeito de sua discordância com várias medidas
cogitadas nas cortes, ainda proclamava sua confiança na manutenção da unidade, manifestando que
essa era uma condição de manter a liberdade lá e no Brasil:
Que a maioridade do Brasil deseja continuar em sua união com Portugal é o que se ma-
nifesta pelas declarações de todas as cidades capitais de províncias, que sucessivamente
foram reconhecendo o sistema constitucional; e contudo, pode muito bem haver, e
sabemos que há, algumas pessoas que julgam ser chegado o tempo do Brasil se separar
da sua antiga metrópole. Este partido, porém, o julgamos por ora pequeno; e os que
desse partido forem sinceros facilmente se convencerão que vão errados: os outros
que obrarem assim por motivos menos honrosos do que a persuasão de que obram a
favor de sua pátria não merecem que se argumente com eles.
(...)
A nossa decidida opinião vai exatamente de acordo com a desta maioridade do Brasil;
porque se o Brasil tem de ser um dia independente da Europa, nada lhe pode ser mais
conveniente do que ir de acordo e em união com Portugal, até que ambos tenham con-
seguido estabelecer as suas formas constitucionais de governo; porque se antes disso
se desunirem, seja por que pretexto for, o partido despótico [ou seja, os conservadores
que desejavam a continuidade de uma monarquia absoluta] achará fácil meio nessa
desunião de os vencer a ambos separadamente e calcar aos pés a liberdade nascente.
(Correio, XXVII, n. 160, setembro de 1821, pp. 234-35)
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Alertando contra qualquer decisão das cortes de mandar tropas ao Brasil – “pela bem pen-
sada razão de que não é pela força, mas pela opinião, que se deve manter e fortificar a integridade e
união de todas as partes da monarquia”– Hipólito terminava essa sua peroração deixando bastante
clara qual era sua posição a respeito:
Quando, porém, as decisões das Cortes forem tais que ataquem a união da monarquia,
então será justíssimo que seus deputados levantem a voz, que os povos se queixem e
que se acuse o governo; mas tal momento ainda não chegou, nem há aparências de
que chegue; e portanto dizemos que a menor ideia de separação fará um terrível mal à
nascente liberdade de Portugal, e nenhum bem aos povos do Brasil; e se os argumentos
que temos produzido não têm aquela força que desejamos, sem dúvida deve ter algum
peso a opinião de quem tem sempre mostrado o mais denodado aferro pelos interesses
de seu país. (idem, p. 239)
A questão da unidade do Brasil com Portugal ainda teimava em alimentar seus argumentos
ao início do ano seguinte, a despeito de sinais precursores de que algo não andava bem. Escrevendo
em fevereiro de 1822, Hipólito considerava essa união
... de suma utilidade para ambos os países (...) na suposição de que sendo o Brasil
tão superior a Portugal em recursos de toda a natureza, a objeção para a conti-
nuação desta união provinha de algumas pessoas inconsideradas no Brasil que
desejavam a separação dos dois países antes que ela devesse ter lugar pela ordem
ordinária das coisas.
Nesta suposição, recomendando a união, temos sempre dirigido nossos argumentos
aos brasilienses [que para Hipólito eram os naturais do Brasil, em contraposição ao
“brasileiro”, que seria “o português europeu ou o estrangeiro que vai lá negociar ou
estabelecer-se”], não nos ocorrendo sequer a possibilidade que nos portugueses euro-
peus pudessem existir essas ideias de desunião; porque a utilidade deles, na união dos
dois países, era de primeira evidência.
Mas infelizmente achamos que as coisas vão muito pelo contrário, e que é entre os
portugueses e alguns brasileiros, e não entre os brasilienses, que se fomentam e se ado-
tam medidas para essa separação, que temos julgado imprudente por ser intempestiva,
e que temos combatido na suposição de que os portugueses europeus nos ajudariam
[aos brasilienses] em nossos esforços para impedir, ao menos por algum tempo, essa
cisão. (CB, XXVIII, n. 165, fevereiro de 1822, pp. 165-6)
No mês de março seguinte, Hipólito indignava-se contra uma medida do governo português
proibindo o comércio de certos gêneros – entre eles pólvora e munições – com o Brasil, a partir da
Inglaterra, segundo soube por cartas do cônsul geral de Portugal em Londres. Ele perguntava então,
não deixando de lado a ironia:
Não sabemos se quem inventou essa medida teria gênio para inventar a pólvora, mas
decerto não há medida hostil mais frívola pelo que respeita o Brasil. De que serve
essa proibição?
(...) Força, como tão repetidas vezes temos dito, não tem Portugal para sujeitar o Bra-
sil... (CB, XXVIII, n. 166, março de 1822, p. 280-2)
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Os deputados brasileiros encontravam-se em situação de nítida inferioridade em relação aos representantes portugueses, pois, dos 69 originalmente
eleitos no Brasil, apenas 46 puderam participar dos trabalhos. Nas Cortes de Lisboa, os assuntos brasileiros eram discutidos numa comissão teorica-
mente paritária, mas alguns desses representantes “brasileiros” votavam manifestamente em conluio com os deputados portugueses. Assim, é rejeitada
a Universidade do Brasil, sob o argumento de “ser suficiente a existência de escolas primárias na parte americana da monarquia”; da mesma forma, são
estabelecidas juntas governativas nas províncias brasileiras, que seriam diretamente subordinadas a Lisboa.
19
Cf. Correio Braziliense, vol. XXV, p. 707, citado por Dourado, Hipólito da Costa e o Correio Brasiliense, op. cit., tomo II, p. 331.
20
Cf. José Gabriel de Lemos Brito, Pontos de partida para a história econômica do Brasil, 3ª ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional/INL-MEC, 1980, p.
405. Segundo esse projeto, os produtos estrangeiros que entrassem no Brasil passariam a pagar direitos de 55% ad valorem, ao passo que os impostos de
exportação aplicados a produtos brasileiros vendidos a terceiros países passariam a pagar 12%; idem, p. 403.
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Capa do Correio Braziliense, mensário português publicado por Hipólito da Costa em Londres. Considerado o primeiro jornal brasileiro, circulou
de 1º de junho de 1808 a 1º de dezembro de 1822, contando 175 números, agrupados em 29 volumes, editados durante 14 anos e 7 meses.
203
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21
Cf. Correio Braziliense, vol. XV, pp. 735-39, citado por Dourado, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, op. cit., tomo II, p. 530.
22
Idem, ibidem, Dourado, pp. 532-33.
23
Idem, ibidem, p. 533.
24
Legação do Brasil em Inglaterra, Despachos Ostensivos, 1822-1823, AHD, citado por Dourado, idem, p. 535.
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seções: (a) correios, estradas, pontes, barcos de passageiros; (b) terras, registro de propriedades
de raiz e estatísticas do país; (c) imigração, colonização, cultura de terras e lavra de minas. Re-
conhecendo que talvez fosse difícil ter uma repartição autônoma para esses diferentes serviços,
ele propunha que o encargo ficasse provisoriamente com a secretaria do exterior: “A vasta im-
portância destes objetos, num país tão extenso e tão pouco povoado como é o Brasil, requer o
cuidado de uma repartição exclusiva, mas como por ora as relações diplomáticas sejam as que
menos tempo ocupem, pode este trabalho anexar-se com muita propriedade ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros”.25
Como vários contemporâneos, Hipólito mantinha a crença que se deveria desestimular a vin-
da de comerciantes – preconceito que seria ostentado pelas elites do Brasil até praticamente o final
da Segunda Guerra Mundial –, dando preferência aos agricultores europeus, os únicos que poderiam
realizar o objetivo prioritário: a ocupação do solo. Desde 1813 ele expressava essa opinião: “Os úni-
cos estrangeiros que frequentam agora o Brasil são os negociantes, a pior sorte de população que ali
pode entrar, porque o negociante estrangeiro que ali chega não possui outra pátria senão a carteira e
o seu escritório, chega, enriquece-se e vai-se embora morar no seu país natal ou aonde lhe faz mais
conta”.26 Hipólito recomendava a importação de artistas, mineiros, pescadores, homens de letras, que
viessem ensinar, difundindo a instrução, e, sobretudo, de agricultores, a serem atraídos por medidas
apropriadas. Em seu plano de 1823, ele recomendava criar companhias por ações às quais seriam
distribuídos lotes (sesmarias), nos quais seriam estabelecidos núcleos urbanos, bancos de depósito e
desconto (inclusive com a faculdade de emitir dinheiro válido nesse território) e que contariam com
isenção alfandegária para a importação de instrumentos agrícolas e de mineração, máquinas diversas,
durante um prazo de 25 anos. A companhia pagaria ao governo o dízimo da produção agrícola e o
quinto da mineração e ajudaria na manutenção de estradas e pontes. Finalmente, Hipólito recomen-
dava que se transferisse a capital do Rio de Janeiro para o interior, menos por razões militares do que
para atender objetivos de ordem econômica e demográfica.
25
Idem, loc. cit.
26
Cf. Correio Braziliense, vol. X, março de 1813, pp. 374-76, citado por Dourado, op. cit., tomo II, p. 536.
27
Cf. Dourado, op. cit., tomo II, p. 583.
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Como ainda discute Mecenas Dourado, Hipólito tinha como princípios ordenadores das
soluções práticas que se poderia conceber para responder aos problemas sociais duas grandes
categorias: a educação pública e o ensino e a prática da economia política. Na primeira vertente,
preocupava-se em “apresentar não só as sugestões que facilitassem a difusão do ensino primário
em Portugal e Brasil, como dos princípios pedagógicos que deveriam orientar o referido ensino”.28
Ele tinha sido educado na escola mercantilista, como era o normal em sua época, mas ao passar
à Inglaterra aderiu de forma quase natural às pregações de Adam Smith e à doutrina liberal. Mas,
como vimos pela sua discussão do decreto de abertura dos portos e do tratado de 1810, sua noção
era a de um liberalismo doutrinal corrigido pelo bom senso e por um extremado pragmatismo.
Ele ostentava, sobretudo, uma compreensão muito clara de onde se situava o interesse nacional
brasileiro, acima de quaisquer considerações teóricas ou doutrinais. Nas páginas do Correio, ele
ofereceu um acolhimento especial às ideias do economista suíço Simonde de Sismondi, chegando
mesmo a traduzir e transcrever, em nove volumes do periódico (do vol. XVII ao XXV), com regu-
laridade mensal, largos extratos dos Principes d’économie politique (1813), a ponto de Dourado chamar
a atenção para o fato de que, “a vigorar, na época, uma lei regulando os direitos autorais, Hipólito
teria que pagar essa edição ao autor”.29
Essa transcrição tinha propósitos didáticos claramente afirmados. Como recorda o outro
grande estudioso de Hipólito, Carlos Rizzini, “cinco anos e 400 páginas [do Correio] gastaria [Hipó-
lito] nesse labor dedicado mais a instruir os governantes do que os leitores”.30 Nas próprias palavras
de Hipólito:
Esta obra é elementar e feita sobre os admiráveis princípios que o ilustre inglês Adam
Smith estabeleceu primeiro, mas obscuramente, e o nosso autor [Sismondi] desenvolveu
e dispôs com clareza e método, destinando-a particularmente à França. Por isso, nos
extratos que daremos, traduzidos neste jornal, atenderemos somente aos princípios de
aplicação universal e conformes às circunstâncias de todos os países; e do que disser par-
ticularmente respeito à França (que ainda assim não é muito) referiremos somente o que
também, por algum respeito, nos convier [isto é, ao Brasil] saber. (XVI, p. 338)
Como diz acuradamente Rizzini, “o fim precípuo do Correio Braziliense era o de promover
o progresso do Brasil, erguendo-o de colônia a nação”, ainda que nação portuguesa, unida a Por-
tugal, sob o sistema monárquico-representativo.31 A esse título, Hipólito era contra os privilégios e
monopólios, preferindo o comércio livre ao administrado, defendendo certas isenções tributárias
para estimular determinadas atividades fabris. Concordava em taxar moderadamente as importações
estrangeiras, mas nunca de maneira exagerada, de molde a não estimular o contrabando. Mas ele
também tinha plena consciência das desigualdades estruturais que poderiam colocar em confronto
os interesses respectivos de dois países desigualmente dotados, como verificado no caso dos tratados
“desiguais” negociados pela potência inglesa com os países mais fracos, a começar por Portugal.
28
Idem, p. 586.
29
Idem, p. 588, nota 773; caberia lembrar que o título completo da obra de Sismondi, o que evidenciaria igualmente seu espírito prático, era Princípios de
Economia Política aplicados à Legislação do Comércio (Genebra, 2 vols., 1813), sendo seu autor membro dos Conselho de Comércio, Artes e Agricultura do
Leman, um das regiões da Suíça francesa.
30
Cf. Carlos Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957, Brasiliana Grande Formato nº 13, p. 140.
31
Rizzini, op. cit., p. 143.
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Como afirma ainda Rizzini, Hipólito acreditava que, depois “da triste experiência com o Tratado
de 1810, convinha ao Brasil regular o seu comércio sem novos compromissos, sem se atar em rela-
ção a um futuro ainda mal descortinado. Adotasse medidas mutáveis segundo seus interesses e as
condições gerais das trocas”.32 Na questão da mão-de-obra, o seu “armazém literário” atribuía o
formidável progresso dos Estados Unidos à importação favorecida de braços livres, o que propug-
nava igualmente para o Brasil, sem sucesso porém, uma vez que continuaram por décadas seguidas
o tráfico e a escravidão.
O seu “armazém literário” sempre foi consistentemente partidário do liberalismo político, de
um governo constitucional, irredutivelmente contrário ao Estado absolutista e à censura à imprensa.
Ao concluir sua obra de editor, no final de 1822, Hipólito escrevia no último número do Correio Bra-
ziliense uma espécie de legado intelectual do ponto de vista da economia política:
Quanto às relações comerciais com as demais nações, quer haja quer não a forma-
lidade do reconhecimento [do novo Estado brasileiro independente], o governo do
Brasil terá sempre o direito de prescrever aos estrangeiros que lá forem comerciar os
regulamentos que bem lhe aprouver; e seguramente a prudência desses regulamentos
equivale bem, quando não seja preferível, aos onerosos tratados de comércio, com que
muitas vezes as nações ligam, sem o saberem, as mãos da indústria. (Transcrito em
Rizzini, op. cit., p. 309)
32
Idem, p. 181, que cita o CB, vol. XIII, dezembro de 1814, p. 782.
33
Cf. Adolfo Varnhagen, História Geral do Brasil. 3a edição, vol. V, p. 280.
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… os protestos de sete deputados do Brasil nas Cortes de Lisboa, que recusando jurar
a Constituição [portuguesa] como prejudicial e indecorosa ao Brasil, [e que] se retira-
ram de Lisboa, passando-se à Inglaterra, indo depois para o Rio de Janeiro
Logo adiante, ele proclama toda a sua confiança no futuro do Brasil, inclusive no contexto
diplomático do hemisfério:
Entre os novos Estados que se tem erigido na América meridional, o Brasil é o
mais poderoso e o que promete em mais breve tempo um governo sólido e per-
manente. Portanto, na grande liga americana que se vai a estabelecer, o Brasil deve
ter a maior preponderância; e daquela parte do Atlântico existem todas as suas re-
lações políticas, de maneira que as combinações da Europa lhe ficam sendo objeto
secundário. (...)
O Brasil cheio de todas as produções necessárias à vida, tem sobejos gêneros de que
não precisa para trocar pelos artigos de luxo que as nações manufatoras lhe fornece-
rem, recebendo-os daquelas que os venderem a melhor mercado. (CB, XXIX, n. 174,
novembro de 1822, p. 572)
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Hipólito da Costa: o primeiro estadista do Brasil
Os editores da edição fac-similar, de 2002, do Correio Braziliense, Alberto Dines e Isabel Lus-
tosa, ressaltam, na introdução a esse último volume do “armazém literário”, o sentido geral de sua
atividade, nos 14 anos em que durou a aventura do maior empreendimento jornalístico individual de
toda a história da imprensa brasileira:
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34
Cf. Dines, Alberto; Lustosa, Isabel (orgs.). Correio Braziliense, ou Armazém Literário, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio
Braziliense, 2002; edição fac-similar, vol. XXIX; pp. xi-xviii, p. xvii.
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A Independência do Brasil como processo nacional e, ao mesmo tempo, continental
Jesus de La Helguera. Miguel Hidalgo y Costilla. Óleo sobre tela, 160x125 cm. Museu Soumaya, Cidade do México. Na parte central da obra
observa-se Miguel Hidalgo olhando para um lado. Com o braço direito erguido, ele segura com a outra mão o chamado «fidalgo hidalgo»
com a imagem da Virgem de Guadalupe diante do vôo de uma pomba branca, uma alegoria da paz. A seus pés estão as correntes quebradas,
símbolo da abolição da escravidão. Atrás de Hidalgo, observa-se a vitória da Nike ou alada empoleirada numa espiral, que beija a testa do Pai
da Pátria e está prestes a coroá-lo com louros, símbolo do triunfo.
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inDepenDência nas américas e no munDo
A Independência do Brasil
como processo nacional e,
ao mesmo tempo, continental
Manuel Diegues Júnior *
M
uito me honra esta oportunidade de estar hoje aqui, nesta gloriosa, e não apenas tradicional,
cidade de Belém, cujo nome, em sua ressonância cristã, lembra igualmente os primeiros tem-
pos do Brasil. Os tempos heróicos da ocupação da terra; a defesa lusitana contra invasores
alienígenas; e lembra sobretudo, também a significar seus fundamentos cristãos, o forte do Presépio, por
onde começou o povoamento deste meio tropical. E com o povoamento, a defesa da terra que havia sido
conquistada, não a possíveis adversários, mas aos próprios elementos da natureza: a floresta e o rio.
Porque a grande página dessa ocupação não foi realizada através de batalhas com armas de
fogo, homem contra homem; mas a batalha entre o homem e os elementos naturais, o homem do-
minando o meio, para que pudesse imperar, como de fato imperou, sobre inimigos silenciosos, mas
tremendos como eram o rio e a floresta. Inimigos silenciosos, mas que pareciam fazer eco de um
mundo de mitos e ficções: o saci, o boto, os bichos da floresta, os bichos da água, tantas criações mais
que constituíam justamente as visões com que lutava o espírito do homem.
Carradas de razão tinha Joaquim Nabuco, quando escreveu que «Nada nas conquistas de
Portugal é mais extraordinário do que a conquista do Amazonas». A pequenina pátria alongou-se
além-mar e aqui pôde, rio adentro, vencendo as árvores veneráveis e seculares, implantar os marcos
de uma civilização que, dominando água e floresta, rios e matas, haveria de constituir o elemento
fundamental da formação de uma nova pátria.
E o surgimento desta nova pátria, soberana e autônoma, é o que hoje festejamos no ciclo co-
memorativo dos 150 anos da Independência. Muito me honra – repito - a oportunidade de aqui estar,
nesta evocação de nosso passado que, sendo a recordação de um acontecimento histórico - e sendo
histórico, ficou no tempo - é de igual maneira o testemunho de nossa maioridade. O que alcançamos
em 1822, como conscientização do que já éramos, e sobretudo como expectativa do que seriamos.
E hoje afirmativamente somos.
* Antropólogo, sociólogo e folclorista, nasceu em 1912, em Maceió, e faleceu no Rio de Janeiro em 1991. Foi Diretor do Departamento de Sociologia e
Política da PUC- RJ. e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGB. Autor, entre outros, dos livros “Etnias e Culturas no Brasil”, e “O
Engenho de Açúcar no Nordeste”.
Fonte: o presente texto foi publicado na “Revista Brasileira de Cultura”, ano IV, julho/setembro 1972, número 13.
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A Independência do Brasil como processo nacional e, ao mesmo tempo, continental
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Manuel Diegues Júnior
Capa: Xul Solar (1887 - 1963), nome artístico de Oscar Agustín Alejandro Shulz Solar. Embora influenciado pelo cubismo e pelo surrealismo,
seu estilo original e sua produção artística alçaram-no à condição de um dos maiores nomes das artes plásticas da Argentina no século XX.
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A Independência do Brasil como processo nacional e, ao mesmo tempo, continental
A unidade latino-americana
Num livro muito interessante, em que estuda a evolução brasileira em comparação com a hispa-
no-americana e a anglo-americana, Oliveira Lima 2 acentua que a história da América chamada latina é a
mesma da península ibérica, sendo-lhe novo apenas o ambiente e novos também os elementos humanos
que, fundindo-se ou absorvendo-se numa mistura complexa, a realizaram. Nas tradições ibéricas encon-
trar-se-á o fio mesmo das instituições e das ideias da evolução ibero-americana; não só das colônias espa-
nholas senão ainda do território português, e em grande parte também das colônias inglesas.
Na verdade, mesmo que tentemos isolar a evolução americana da influência ou do contato
europeu, isto é, de Portugal ou da Espanha, é fato indiscutível que o processo histórico da Indepen-
dência brasileira se filia ao mesmo processo histórico em que se ativaram os movimentos de liberta-
ção das colônias espanholas. Estes situam-se no mesmo ambiente de eclosões idealistas e revolucio-
nárias - revolucionárias no sentido da época em que se desenvolvem as agitações emancipacionistas
de Pernambuco, da Bahia, das Minas Gerais, do Maranhão; também no sentido nacional, e ainda no
continental ou americano, o sentimento emancipacionista do Brasil encontra suas raízes com as raí-
zes que fizeram os surtos de idealismo libertador dos séculos XVIII e XIX.
O movimento da independência brasileira, se é nacional em sua forma e em sua finalidade, na-
cional também pelo caráter regional porque às vezes aparece nas interpretações com que se manifestam
algumas áreas culturais e políticas da colônia, é igualmente continental ou americano no sentido em que se
desenvolveu. No sentido também em que, aqui como na área de colonização espanhola, se manifestaram
os ideais de emancipação política: rebeliões, insurreições, influência da libertação das colônias inglesas,
repercussão da revolução francesa, invasão napoleônica na península ibérica. E o mais de fatores externos
que se aliaram a fatores internos levando ao aceleramento do processo emancipacionista.
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Talvez tenha sido essa marginalidade de seu feitio ou de sua formação, o fator preponderante
em ter sido realizada - mas não conquistada - a emancipação nacional sem lutas nem sacrifícios, se
não aquelas ou aqueles que foram impostos pela obra de consolidação do regime implantado, quase
surpreendentemente, a 7 de setembro de 1822. Sem esquecer aquelas lutas e aqueles sacrifícios, ines-
quecíveis, que marcaram no decorrer do século XVIII numerosas manifestações, regionais por vezes,
de sentido geral quase sempre, pronunciadores do ideal de independência que, todavia, somente se
concretizaria em 1822. Tal como, da mesma maneira, sacrifícios e lutas que assinalaram as diferentes
manifestações emancipacionistas em áreas da América hispânica na mesma época — o século XVIII.
Jacques de Lauwe 5 , em estudo sobre a América Ibérica, fixa alguns traços da formação po-
lítica e social dos países americanos de origem espanhola; traços estes, muito deles, semelhantes aos
da nossa formação, país de origem portuguesa, de boa origem lusitana. E numa observação sua ire-
mos situar outro aspecto do caráter de nossa libertação política, a que não é estranho o processo de
emancipação das colônias espanholas: aquela em que se encontra constante no Estado Ibero-ameri-
cano um Estado Federal, com ou sem este nome, mas sempre com suas unidades políticas gozando
de uma autonomia quase completa. Este sentido federal da constituição das colônias espanholas e
portuguesa na América teria efeito, e não apenas influência sensível, no processo de independência.
A característica federalista
Enquanto na América portuguesa, as capitanias se uniam diretamente à metrópole, em Lisboa,
às vezes tendo o Governador Geral como intermediário, este federalismo sui generis contribuiu para
manter a unidade física e política do território. A criação do vice-reinado foi puramente honorífica,
enquanto a sede do governo era na Bahia; tornou-se título constante a partir de 1763, quando a sede
do governo se transferiu para o Rio de Janeiro. Contudo, o vice-rei, apesar de todos os poderes que
lhe eram concedidos, não se tornou uma força capaz de contribuir para o fracionamento da colônia.
Sobretudo, porque era um único, em toda a extensão, não pequena, do território brasileiro.
Ao contrário desta situação, o federalismo implantado na América espanhola contribuiu para
um contínuo fracionamento político do território, que se estendia a um fracionamento físico, tendo
em vista a área territorial de poder dos vice-reis. A criação dos vice-reinados, o de Nova Espanha
(México), em 1535, e o do Peru, em 1545, um ao norte, outro ao sul, se tornou um elemento que
quebrou a unidade política, a que se seguiu o rompimento da própria unidade física do império his-
pano-americano. No século XVIII, dois novos vice-reinados foram criados - o de Nova Granada,
em 1717, e o do Prata, em 1776 - o que contribuiu ainda mais para quebrar o espírito de unidade da
colonização espanhola na América.
5
LAUWE, Jacques de — L’Amérique Ibérique. Paris, Libr. Gallimard, 1937, 224 p. (Documents Bleus, 13).
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Ao lado dos vice-reinados, criaram-se também as Capitanias Gerais, com autonomia política e
administrativa face aos vice-reinados. Foram elas as de Guatemala, Venezuela, Chile e Havana. Uma
Capitania Geral correspondia a um fracionamento da unidade política, ao mesmo tempo que, delimi-
tada a área de ação do Capitão Geral, se dividia também o território.
Duas situações distintas, portanto: a da América portuguesa e a da América espanhola. De
modo que, no encaminhamento do processo de independência das colônias, o resultado representou
uma concretização do que os governos régios haviam realizado administrativa, geográfica e politica-
mente: enquanto o território português se manteve uno, erguendo-se um só Império, o espanhol se
esfacelou em diversas unidades, surgindo várias repúblicas. As respectivas metrópoles, sem dúvida, é
que podem ser apontadas como responsáveis por tal situação.
A diferenciação com que se ultimou o processo emancipacionista, não exclui, todavia, a exis-
tência de fatores comuns que o influenciaram, tornando assim - no caso do Brasil, em particular - a
independência como um fato que, sendo nacional, não deixou de ser igualmente continental. Ou
quando menos, repousando suas origens em causas comuns ou semelhantes que culminariam na
descolonização que, nas primeiras décadas do século XIX, abre um novo período histórico para a
América de formação ibérica.
O século XVIII acentuou, em todo o continente, os ideais de libertação das populações
americanas, já manifestados, embora ainda esporadicamente, desde o século anterior. No XVIII,
e mais destacadamente em sua segunda metade, as manifestações se tornam mais constantes,
reveladas através de insurreições crioulas, de sublevações ou conspirações, de rebeldias indíge-
nas, como foi o caso de Túpac Amaru, na região peruana, de tão significativos efeitos. Ao lado
dessas manifestações de origem interna, fizeram sentir-se também os efeitos de fatores externos,
dois deles de expressiva repercussão na América ibérica: a Revolução Francesa, com seus ideais
de igualdade, e a emancipação das 13 colônias inglesas para constituir a República dos Estados
Unidos da América do Norte.
Juntam-se assim, no final da centúria decimoitava, fatores internos e externos, que vão
contribuir, quase decisivamente, para acelerar o processo emancipacionista. Os primeiros anos
do século XIX constituem um acelerar contínuo de explosão libertadora. As colônias ibéricas,
tanto as de formação espanhola como a de formação portuguesa, como que já estavam prepa-
radas para esta libertação, mercê de sua evolução tanto social como cultural. Vale salientar que,
ainda na primeira metade do século XVIII, México, Guatemala e Peru já possuíam periódicos, o
que indicava a condição de poderem expressar suas ideias; e entre estas ideias, sem dúvida, a da
emancipação. Testemunho de uma maioridade intelectual e também política, que se confirmaria
um século depois com a independência.
Se conspirações e levantes já se registram então, isto é, na primeira parte do século XVIII, mais
se acentuarão os movimentos insurrecionais na sua segunda parte. O historiador Boleslao Lewin 6
nos fala dos movimentos separatistas crioulos em várias áreas da América espanhola; rebeliões e
conspirações que vão expressar o sentido emancipacionista que já se apoderava das populações ame-
6
LEWIN, Boleslao — La rebelión de Túpac Amaru y los origenes de Ia independencia de Hispanoamerica, Buenos Aires, Sociedad Editora Latino Ame-
ricana, 1967. 963 p.
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ricanas. A independência americana, em 1776, mais vai acentuar este espírito, e sob sua influência
crescem os movimentos insurrecionais.
Da Europa chegam à colônia as repercussões da Revolução Francesa, de modo especial a De-
claração dos Direitos do Homem, que a Assembléia Constituinte de Paris promulgara. Os princípios
aí consubstanciados ecoam na América, como se fora a resposta às suas aspirações de liberdade e
de igualdade. O texto da declaração, traduzida ao espanhol por Antonio Nariño, rico proprietário na
Colômbia, admirador de Voltaire, Montesquieu e Rousseau, teve divulgação em quase toda parte da
América, em impressão clandestina, é certo, feita em Bogotá, em 17947.
Aqui ou ali os pronunciamentos revelam as mesmas tendências de aspiração à liberdade, es-
timuladas, de um lado, pelo pronunciamento da Assembléia francesa e pela emancipação das 13 co-
lônias, e, de outro lado, pelo próprio anseio das populações americanas, traduzidas sobretudo, já no
século XIX, pelas insurreições emancipadoras aqui ou ali: no México, na América Central, na Argen-
tina, na Colômbia, no Equador, no Chile, até a vitória final de Ayacucho, 1824. Vencia, na América,
a doutrina da soberania do povo, este fazendo a sua libertação e derrotando a teoria da soberania do
rei; na América triunfava, na existência real dos povos, uma nova teoria política.
O que se verifica na área da colonização espanhola é, de modo geral, o mesmo que vamos
encontrar na área de colonização portuguesa. O Brasil torna-se teatro, no século XVIII, desta mesma
seqüência de pronunciamentos, insurreições ou levantes, quando menos tentativa emancipacionista,
como o grito, embora ainda discutido, de Bernardo Vieira de Melo no Senado de Olinda, em 1710;
tais manifestações acentuam a tendência, se não mesmo o caminho, para a libertação, expressada
em várias partes do território brasileiro. E se surge nos começos do século XVIII, com Filipe dos
Santos, nas Minas Gerais, aí mesmo se traduziria de maneira ainda mais significativa, com a Inconfi-
dência mineira, ou, na Bahia, com a revolução chamada dos Alfaiates. Tais manifestações encontram
suas raízes ainda no século XVII, seja quando se luta, no Nordeste, contra os holandeses invasores,
ou quando Beckman se levanta no Maranhão contra o monopólio comercial. E alongam-se aos co-
meços do século XIX com a Conspiração dos Suassuna, em Pernambuco, ou com insurreições ou
conspirações que procuram acelerar a declaração de Independência.
No caso do Brasil, ao lado desses fatores externos ou internos, tão relevantes como os veri-
ficados na América espanhola, um outro fator vai contribuir para o aceleramento do processo. É a
presença do rei, no Brasil, a partir de 1808. A chegada da Corte é o início da intensificação com que
o processo se desenvolve. Como que se declara a maioridade do Brasil, capaz de acolher o Rei e a
Corte, tornando-se de simples colônia sede do Império português. Nada seria mais expressivo para
abrir ao processo da independência o que poderíamos chamar sua rota final. E na realidade a partir
de 1808 é um caminhar contínuo até alcançar o 7 de setembro de 1822, quando se formaliza o ato
da Independência.
7
UREÑA, Pedro Henriquez — Historia de la cultura en la América Hispánica. 2ed. México, Fondo de Cultura Económica, 1949. 237 p. ilust.
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Capa: Pedro Subercaseaux (1880-1956). Primeira Missa no Chile, 1904. Óleo sobre tela 150x200 cm. Museo Histórico Nacional, Chile; e
Victor Meirelles (1832-1903). Primeira Missa no Brasil, 1860. Óleo sobre tela 268 x 356 cm. Museu Nacional de Belas Artes.
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A Independência do Brasil como processo nacional e, ao mesmo tempo, continental
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ência, capaz de orientar os destinos de sua pátria, o Brasil encontrou em José Bonifácio o autêntico
condutor do seu processo emancipacionista; e graças a ele é que se pode assinalar a preparação do
chamado grito do Ipiranga quando o ambiente era de pacificação, muito embora se pudesse dizer que
os espíritos mais atilados estavam cônscios de que o momento era chegado.
Nicolas Vischer (1618-1679). Novo e atualizado mapa de toda a América (s/d). Brasão com figuras alegóricas e uma legenda com dedicatória
a Cornelius Witsen. Representação da província da Califórnia como ilha. Registrada pela primeira vez em 1625, perpetuou-se na cartografia
por mais de um século.
Não se excluem, e seria carência de visão ocultá-lo, as manifestações com que Portugal reagiu à
independência, sobretudo quando esta se consumou. Prisão de paraenses, lutas na Bahia, insistência
em levar D. Pedro para Lisboa, são aspectos que denotam as explosões dessa reação; mas não são
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A Independência do Brasil como processo nacional e, ao mesmo tempo, continental
suficientes, tudo o indica, para empanar a realização do movimento de maneira pacífica, quase ines-
peradamente quanto ao momento, mas não difícil de ser realizada como uma resposta, que as cartas
de D. Leopoldina e de José Bonifácio sugerem, ou quando menos testemunham, à reação vinda da
corte lusitana. O gesto do Ipiranga não foi impensado, mas evidentemente preparado de modo a
realizar-se sem maiores sacrifícios e em condições a que não se poderia mais fugir.
O caso dos paraenses presos no Forte de São Julião da Barra é bem característico, como ex-
pressão de reação portuguesa ao gesto de independência, a que de logo aderiram as províncias bra-
sileiras. Significou quando menos uma forma de provocação, a que o novo Estado soube responder,
graças ao próprio espírito de nacionalidade, sem medo de sacrifícios, de que estava animado o povo
brasileiro, e não apenas suas classes dirigentes.
Quanto ao caso, em particular, dos paraenses, é bem significativo a respeito o que consignou
o Memorando de Clemente Álvares de Oliveira Mendes e Almeida, divulgado em Publicações do
Arquivo Nacional, vol. IV, 1903, e agora reproduzido em edição especial daquela Instituição, em co-
memoração ao Sesquicentenário8.
Clemente Mendes e Almeida era Cônsul-Geral do Brasil em Portugal, o primeiro a exercer
este posto, e encaminhou aquele documento, consignando «notícia fidedigna e na máxima parte do-
cumentada”, acerca de acontecimentos em Lisboa relacionados com a Independência. Trata do que
se passou naquela capital quando da luta da Independência, relativamente aos brasileiros residentes
em Portugal, ou mandados presos de províncias brasileiras por favoráveis à Independência; dos fatos
ocorridos relativamente à Independência, desde a dissolução do Congresso em 1823 até o reconhe-
cimento da Independência em 1825; e da recepção do primeiro agente do Brasil como nação livre e
independente pelo governo de Portugal.
O caso dos paraenses, em particular, refere-se à prisão, por autoridades portuguesas das Pro-
víncias do Maranhão e do Pará, de pessoas, sobretudo militares, que se manifestavam favoráveis à
Independência do Brasil. Os presos do Maranhão foram levados para o quartel do Algarve, e os
do Pará recolhidos à Torre de S. Julião da Barra, todos sem quaisquer recursos. Era uma forma de
reação, pelas autoridades portuguesas no Brasil, especialmente no Pará, a última província a aderir à
Independência, usando assim de violência contra os próprios brasileiros que apoiavam o movimento
emancipacionista. Os presos somavam 267 pessoas, entre militares de 1ª e de 2ª linhas, capitão, te-
nente, alferes, oficiais inferiores, praças e paisanos — estes em número de 50.
Dadas as condições em que estes presos do Pará se encontravam, atacados de moléstias graves
e perigosas - uma delas, “o mal das bexigas” - o Cônsul brasileiro iniciou providências no sentido de
fazê-los retornar à sua província. Daí as súplicas e representações dirigidas ao Governo de Portugal,
a princípio pelos próprios prisioneiros, em novembro de 1823; em janeiro, abril e junho de 1824. Pelo
que consta do Memorando, verifica-se que tais documentos jamais chegaram às mãos de D. João; em
face dessa suposição, o Cônsul obteve, através da interferência de Theodoro Ferreira de Aguiar, uma
audiência particular com Sua Majestade.
8
ALMEIDA, Clemente Álvares de Oliveira Mendes e — Memorando sobre a Independência. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1903. p. 132-210 (Separata
de Publ. do Arquivo Nacional, 4)
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Nessa audiência, em que conta ele ter sido tratado “com a maior benevolência” expôs a si-
tuação dos paraenses, um grande número já falecido, outros ansiosos por regressar à sua terra pela
carência de recursos com que se pudessem manter. D. João respondeu: “Amo muito os brasileiros,
e não posso querer que sofrão quanto só agora sou informado eles teem soffrido”. E afinal pediu
uma representação escrita, o que foi feito a 2 de agosto de 1824. Nesse documento o Cônsul solici-
tava fosse ordenada a respectiva clemência, ou seja a liberação dos que ainda sobreviviam, pois dos
paraenses número superior a 80 já havia falecido. Daí resultou a ordem do Monarca para o regresso
dos prisioneiros, o que se efetuou ainda no mesmo mês de agosto. Regressaram os que sobreviveram
daquele numeroso grupo aprisionado na Torre de S. Julião da Barra, os que restavam, como se ex-
pressa o Memorando, alguns ainda em estado de convalescença. Anexos ao memorando do cônsul se
encontram relações nominais dos presos, seus postos, a indicação dos mortos, e, quando foi o caso,
o posterior regresso dos ainda vivos.
Ao mesmo tempo o cônsul Mendes e Almeida procurava intervir no sentido de que nada faltasse
aos demais brasileiros, que não podiam sair de Portugal, por circunstâncias diversas: alguns deles conse-
guiu retirar de Lisboa, por meio de fuga, levando-se para fora da barra e os entregando a navios que os
conduziram ao Brasil. Afora o caso dos presos paraenses e maranhenses, avultado número de brasileiros
recebeu, naquela emergência, a ajuda do cônsul, protegendo-os da reação lusitana.
Dessa reação, que chegou às chamadas guerras da Independência, sabe-se que forças portu-
guesas procuraram perturbar a conquista da liberdade, sobretudo na Bahia. A presença de Cochrane,
no comando da armada brasileira, de um lado, e, de outro lado, a adesão de brasileiros incorporan-
do-se às forças militares, alarmaram a corte portuguesa, criando aquela “inquietação do governo” de
Portugal, a que se refere o memorando, que vimos citando; inquietação agravada com a entrada no
Tejo, a 26 e 29 de agosto de 1823, de algumas embarcações conduzindo tropas portuguesas das que
até então ocupavam a Bahia. É que, com a vitória de 2 de julho, tais embarcações abandonaram o
porto do Salvador regressando a Lisboa, muitas delas ainda perseguidas por navios brasileiros.
Tais, foram, a rigor, as lutas que envolveram, no momento da Independência, o território brasi-
leiro. Não se apresentavam com continuidade geográfica, mas esparsamente, concentrando-se apenas o
que se passou em território baiano; nem ofereciam resistência de facções brasileiras, mas sim dos últimos
representantes do governo lusitano no Brasil, como foi, em grande parte, o caso do Pará. Aos baianos
associaram-se, nas lutas, brasileiros de outras províncias, de modo especial das vizinhas. As províncias bra-
sileiras se mantiveram, assim unidas, defendendo com espírito de coesão já nacional, poderíamos dizer, a
independência de sua pátria, a que a partir de então iam ajudar a construir.
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Koki Ruiz San Ignacio, Misiones, Paraguay, 1957. Banda Koygua (detalhe).
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A Independência do Brasil como processo nacional e, ao mesmo tempo, continental
A Independência
A 6 de agosto de 1822 era declarada a Independência do Brasil, fato que o 7 de setembro,
com o grito do Ipiranga, apenas formalizou, para receber sua institucionalização em 1824, com a
Constituição do Império. Naquela data, o 6 de agosto – o príncipe D. Pedro dirigia o Manifesto aos
Governos e Nações amigas, no qual - palavras textuais – o Brasil “proclama à face do universo a sua
independência política, e quer, como reino irmão, e como nação grande e poderosa, conservar ilesos
e firmes seus imprescritíveis direitos”.
Em que pesem as expressões usadas, aqui ou ali, de respeito e de acatamento à pessoa de seu
pai, o rei D. João VI, o príncipe manifesta contínuo repúdio à “tirania portuguesa”, ou aos atentados
de Portugal contra os direitos do Brasil, ou ao acanhamento de vistas de Portugal, para definir a in-
dispensável necessidade de tornar-se o país independente. Contra “a continuação de velhos abusos
e o acréscimo de novos”, o Brasil expressava às nações amigas, de modo particular as do próprio
continente americano, sua reação contra os atos do congresso português, que “despedaçava a arqui-
tetura majestosa do império brasileiro”. Exacerba-se a situação quando chegam ao Brasil os decre-
tos que impõem a retirada do príncipe para a Europa e a extinção dos tribunais do Rio de Janeiro.
Ressentidos os povos do reino face ao desprezo com que eram tratados os cidadãos beneméritos
do Brasil, o Príncipe reagia contra o fato de ver “subjugada a liberdade das províncias, sufocados os
grupos de suas justas reclamações, denunciados como anticonstitucionais o patriotismo e a honra
dos cidadãos”, e à vista de tudo isto – diz o notável documento de 6 de agosto – Sua Alteza anuncia a
convocação de uma Assembleia Constituinte e Legislativa, e se propõe defender os legítimos direitos
e a constituição futura do Brasil. E para que essa independência expresse o espírito de aproximação
com os demais povos, D. Pedro os convida “a continuarem com o Reino do Brasil as mesmas rela-
ções de mútuo interesse e amizade”, prontificando-se a receber os respectivos ministros e agentes
diplomáticos e enviar-lhes os nossos.
Era a proclamação da Independência; era a declaração de emancipação do povo brasileiro,
neste documento, cuja lavra se deve, sem dúvida, a José Bonifácio, cujo excelso talento de cientista,
de político, de estadista se colocou a serviço da liberdade política do povo brasileiro, constituindo, no
continente americano, um novo Estado independente.
Um mês depois, o 7 de setembro constituiria tão-só a formalização de um ato que aquele do-
cumento já expressava claramente, rompendo os laços do então Reino Unido com a metrópole, para
definir-se como nação soberana, acolhendo as representações diplomáticas dos países amigos e man-
tendo abertos os portos do Brasil para o comércio lícito com as nações pacíficas e amigas. O grito
das margens do Ipiranga é a concretização daquele manifesto; expressa, em gesto, o que a palavra já
havia traduzido, na manifestação do sentimento emancipacionista.
Dentro do processo histórico de emancipação das colônias ibéricas nas Américas, a Inde-
pendência do Brasil constitui um de seus aspectos específicos; tem as mesmas raízes, traduzidas em
levantes ou insurreições, revoltas ou conjurações, que o século XVIII e os começos do XIX viram
expressar-se aqui ou ali nas diferentes partes do continente. Traduz o mesmo sentimento que povos
de uma mesma origem, formados sob os amplexos de três fontes humanas idênticas, tanto na área
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espanhola como na área portuguesa, criaram e construíram, na irmanação dos mesmos ideais pelos
quais se revelaram ao mundo, perturbado e inquieto daquela primeira metade do século XIX, não
apenas seu desejo de liberdade, mas sobretudo sua expressão de tornar-se independente; e isto sem
prejuízo de continuar a traduzir, nos novos reinos ou repúblicas, idênticos sentimentos de fraternida-
de humana, de aproximação entre os povos, de união entre todos os homens da terra, e em particular
do continente americano. 200
Colômbia. Silvano Cuéllar. “Alegoria de la Nación”, detalhe (1928). Óleo sobre tela 82x101 cm.
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apresentação
“Quereis a prosperidade de nação? (...) alargai a esfera dos cidadãos que podem tomar
parte nos negócios do Estado; proscrevei o exclusivismo, que manda dar somente im-
portância a um limitado número de pessoas”.
Visconde do Rio Branco (1819-1880), in jornal Novo Tempo, 1844.
* Diplomata. Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Foi embaixador no Reino da Nouega e, cumulativamente, na República da
Islândia. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Foi Decano de extensão e presidente do conselho editorial da UnB. Foi diretor do IPRI.
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inspirado, senão estimulado o lançamento da nova revista. É difícil imaginar que, sem o apoio do
Barão, Araújo Jorge e seus companheiros tivessem os contatos para obter apoio de nomes de prestí-
gio internacional ou mesmo pudessem contar com a de Oliveira Lima e Nabuco, cujas contribuições
aparecem já no primeiro número da nova publicação”.
A primeira frase de apresentação da Revista Americana resume o desafio: “A América conhe-
cemo-la aos fragmentos”. Assim a nova publicação se propõe a “divulgar as diversas manifestações
espirituais da América. (...) Os resultados desta aproximação intelectual são evidentes. O congraça-
mento moral constitui o primeiro passo para uma aproximação política cordial e inteligente”.
Neste editorial do número um, Rio Branco, certamente o autor, assinala com habitual pre-
cisão, que “A Revista Americana (...) se apresenta especialmente como um traço de união”. Feliz defi-
nição sobre o função de uma revista, meio que reúne fragmentos de qualidade de um grande tema,
que embora relevantes estavam separados, ou de difícil acesso, num único corpo físico para fácil,
proveitosa e agradável consulta do leitor.
Constituía esta pioneira iniciativa, provavelmente, a primeira revista editada por um Minis-
tério para difundir e debater temas internacionais ligados à formação e evolução da nacionalidade
brasileira. Conforme sublinha Fernando Vale Castro, “é uma das primeiras, senão a primeira, mani-
festações organizadas por um órgão ligado ao Estado com o objetivo de pensar a cultura e identida-
des nacionais”.
III) Rio Branco, comunicador: uma revista internacional e cento e quarenta artigos de imprensa.
A nova edição das Obras do Barão do Rio Branco, organizada pelo Embaixador Manoel Gomes
Pereira, publicada em 2012, traz em seu volume X “Artigos de Imprensa”. A pioneira e criteriosa
seleção feita pelo organizador revela com clareza “Rio Branco jornalista, comunicador; um aspecto,
senão ignorado, muitas vezes esquecido, da personalidade extremamente rica de um dos mais emi-
nentes estadistas da República”, como assinala Álvaro da Costa Franco.
A coletânea do volume X lista e apresenta 140 artigos de imprensa de Rio Branco. Há que se
acrescentar com destaque à obra editorial de Rio Branco o lançamento de um periódico internacio-
nal, a Revista Americana.
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Carlos Henrique Cardim
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V) As revistas do Itamaraty.
O Itamaraty já editou várias revistas, a saber:
1) Revista Americana, que circulou de 1909 a 1919.
2) Pensamento da América (suplemento do jornal A Manhã, de agosto de 1941 a fevereiro de 1948).
3) Resenha de Política Exterior do Brasil (1974-).
4) Boletim de Diplomacia Econômica (1990-1998).
6) Cadernos do CHDD Centro de História e Documentação Diplomática (2002-).
7) Diplomacia Estratégia Política DEP (2004-2010).
8) Mundo Afora (2004-).
9) Textos do Brasil (1987-2012).
11) Cadernos de Política Exterior do IPRI Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (2015-).
12) Juca. Revista e anuário dos alunos do Instituto Rio Branco (2007-).
Cabe sublinhar o papel fundador de Hipólito José da Costa, editor da primeira revista /
jornal nacional - o Correio Braziliense - que circulou de 1808 a 1822, fundamental instrumento da
Independência do Brasil. Hipólito José da Costa, no final da vida, ia ser nomeado diplomata, como
Cônsul em Londres, em 1822.
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Bibliografia
BERABA, Ana Luíza. América aracnídea. Teias culturais interamericanas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008.
CAPISTRANO DE ABREU, João de. Ensaios e Estudos (crítica e história) primeira série. Rio de Janeiro: Editora Civiliza-
ção Brasileira, 1975.
CASTRO, Fernando Vale. Pensando um Continente. A Revista Americana e a criação de um projeto cultural para a América do
Sul. Rio de Janeiro: Mauad Editora em coedição com a Faperj – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro, 2012.
COSTA FRANCO, Álvaro da. Revista Americana. Uma iniciativa pioneira de cooperação intelectual (1909-1919). Seleção
de textos pelo Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD, da Fundação Alexandre de Gusmão (FU-
NAG). Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2001.
OLIVEIRA LIMA. O movimento da Independência 1821-1822. São Paulo: ed. Weiszflog Irmãos, 1922.
PEIXOTO, Luiz d’Alvarenga. O Visconde do Rio Branco. Rio de Janeiro: Typ. do Imperial Instituto Artístico, 1871.
RIO BRANCO. Obras do Barão do Rio Branco. Volume X: Artigos de Imprensa. Embaixador Manoel Gomes Pereira, or-
ganizador. Brasília: Ministério das Relações Exteriores. Fundação Alexandre de Gusmão, 2012.
RIO BRANCO. Efemérides Brasileiras. Organização de Rodolfo Garcia. Coleção Brasil 500 Anos. Brasília: Senado
Federal, 1999.
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