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A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA
ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO NO
PODER LOCAL
Lívia Copelli Copatti

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A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO NO PODER LOCAL

A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA


PARTICIPAÇÃO NO PODER LOCAL
The effective citizenship through participation in local government

COPATTI, L. C.

Recebimento: 14/05/2010 – Aceite: 09/07/2010

RESUMO: A necessidade de superação da exclusividade da democracia


representativa pelo desenvolvimento de uma democracia participativa é
cada vez mais patente na realidade em que se vive. O presente artigo objeti-
va demonstrar a importância da concretização e consolidação da cidadania
através da democracia participativa no poder local. Para tanto, inicialmente
apresentam-se algumas idéias acerca do exercício da cidadania possibilitado
pela participação dos cidadãos na tomada de decisões, principalmente pelo
Estado e alguns instrumentos constitucionais para o exercício daquela. Na
sequência, aborda-se o tema do poder local, na concepção do indivíduo como
ator social que modiica sua realidade e o papel dos municípios efetivando
a cidadania e participação dos cidadãos. Por im, realiza-se uma análise de
alguns instrumentos que permitem a participação dos cidadãos em âmbito local
e podem ser tomados como sugestão de implantação em outros Municípios.
Assim, o objetivo primordial do presente trabalho é demonstrar que a cidadania
pode ser efetivada através da participação no espaço local.
Palavras chave: Cidadania. Poder Local. Participação.

ABSTRACT: The need to overcome the exclusivity of representative democ-


racy by developing a participatory democracy is increasingly evident in the
reality in which we live. This article aims to demonstrate the importance of
implementation and consolidation of citizenship through participatory democ-
racy in local government. So, it initially presents some ideas about citizenship
allowed through the participation of citizens in decision-making, primarily by
the state and some instruments for its constitutional exercise. Subsequently, it
approaches the issue of local government in the conception of the individual
as a social actor who modiies his reality and the role of the municipalities
making effective the citizens’ citizenship and participation. Finally, an analysis

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of some instruments that enable citizen participation in local ambit is done.


These instruments can be taken as a suggestion for implementation in other
municipalities. Thus, the primary objective of this work is to demonstrate that
citizenship can be effected through the participation in local space.
Key words: Citizenship. Local Governament. Participation.

coisas que lhe são próximas, pelo desenvol-


Introdução vimento de seu ambiente social, fazendo com
que este interesse possibilite, também, uma
A evolução estatal nos permite veriicar coniança recíproca entre as pessoas e um
que os pilares de um Estado, que se diz de- maior grau de participação social.
mocrático, não podem estar fundados na so- Assim, conforme se poderá veriicar, a
breposição do ente estatal sobre os cidadãos. cidadania está relacionada com a democra-
É preciso que sociedade e Estado interajam, cia, que nos tempos atuais se impõe mais
criem instrumentos que possam atender as necessária nos moldes participativos, tendo
demandas da sociedade de forma mais ei- em vista a insuiciência da democracia di-
ciente e eicaz, onde os cidadãos sintam-se reta e da democracia representativa, porque
responsáveis pelo seu futuro coletivo, pelo possibilita ao cidadão ser fundamental no
futuro de todos e que o Estado entenda que é desenvolvimento social.
através dos próprios cidadãos que poderá ser
um Estado realmente democrático.
A veriicação realizada no presente estudo O exercício da cidadania e a
visa, justamente, demonstrar que os cida- democracia participativa
dãos têm condições de exercer a cidadania
no poder local, através da participação no A evolução dos tempos trouxe alterações
Município, onde a proximidade de suas vidas nas formas dos Estados, passando-se pelo
com a realidade é insuperável e indiscutível. Welfare State, onde o que importava era a
concessão de benefícios sociais aos trabalha-
dores, para que pudessem enfrentar o sistema
Cidadania e perspectiva de produção capitalista (GOMES, 2009), pelo
constitucional Estado liberal e neoliberal, caracterizando-
se o Estado mínimo, da menor intervenção,
É cada vez mais constante a discussão até um modelo pós-neoliberal, onde há uma
acerca da cidadania, emergindo, com mais valorização maior da participação social no
força, o questionamento sobre qual seria a Estado, nas decisões públicas, de modo que,
melhor maneira de torná-la uma cidadania conforme refere Demo (1996, p. 15) [...] “é
ativa, que fosse possibilitada e exercida por a sociedade organizada que deine o papel e
todos, superando a submissão a grupos, a o espaço do Estado, não o contrário”.
governos e interesses de uns poucos. Se a democracia liberal primou pela
Uma cidadania organizada leva ao Estado separação entre político e econômico, a
suas necessidades e possibilita um maior democracia social tentou aproximá-los. A
alcance de conquistas, uma elevação do in- democratização do Estado trouxe consigo
teresse dos indivíduos, agora cidadãos, pelas a necessidade de também democratizar a

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sociedade, sob pena de se icar à beira de um É certo que, em face das grandes e cres-
retrocesso. Surge, assim, segundo Calmon de centes demandas sociais, o Estado atual não
Passos (1998, p. 92), a necessidade de consegue, sozinho, satisfazer a contento as
“pensar e implementar os instrumentos necessidades dos cidadãos sem a adesão
adequados, plasmar as novas instituições, políticocidadã, que deve ser construída em
enim deinir todo o necessário à consecução um meio comunicativo, numa esfera pública,
desse objetivo. E tudo aponta seja esse cami- voltada ao consenso e entendimento social
nho o da chamada democracia participativa”, pela participação dos atores sociais. Ocorre,
assim, a descentralização e o surgimento de
buscando a interação entre o econômico,
sujeitos de poder, não satisfeitos com a ine-
o político, sua formulação jurídica e possibi-
icácia dos poderes representativos estatais,
litando à sociedade, o seu poder de controle . criando para si a consciência do direito a ter
E, neste contexto, a idéia de cidadão passa direitos, buscando sua cidadania em cada
a ser apresentada não apenas como aquele momento (LEAL, 2006, p. 46).
que participa dos negócios da cidade, mas Veriica-se em Habermas, que
como aquele que interage com o meio em
que vive, que se interessa por um melhor [...] na linha da teoria do discurso, o
desenvolvimento, não apenas econômico, princípio da soberania do povo signiica
que todo o poder político é deduzido do
mas, principalmente, social.
poder comunicativo dos cidadãos. O
Importante questionamento feito atual- exercício do poder político orienta-se
mente é o destacado por Bonavides (2003, e se legitima pelas leis que os cidadãos
p. 26) quanto à identidade do povo, ou seja, criam para si mesmos numa formação
“quem é o povo, e onde está o povo, nessa da opinião e da vontade estruturada
forma de organização em que o ente político discursivamente. Quando se considera
é objeto e não sujeito, e se viu privado, pela essa prática como um processo destinado
extorsão política, da titularidade de suas a resolver problemas, descobre-se que
faculdades soberanas”? Tal indagação serve ela deve a sua força legitimadora a um
processo democrático destinado a garan-
para que se possa inserir a democracia partici-
tir um tratamento racional de questões
pativa na perspectiva do exercício da cidada-
políticas. (HABERMAS, 2003, p. 213)
nia e da soberania pelos cidadãos. O modelo
democrático de Estado em que o objetivo da O exercício da cidadania, de forma plena,
democracia é dar poder ao eleitorado para que através da democracia participativa, somen-
eleja seus representantes, não pode mais ser te poderá acontecer se o cidadão entender
tomado como absoluto, porque serve como que a “participação supõe compromisso,
um fomentador de desigualdades, acirra as envolvimento, presença em ações por vezes
competições eleitoreiras e faz com que o arriscadas e até temerárias” (DEMO, 1996,
povo abra mão da sua capacidade decisória, p. 19-20), onde é necessário deixar o como-
entregando-a para um governo, muitas vezes dismo de lado, superar a idéia de que é mais
desconectado da realidade. fácil receber as coisas prontas dos outros do
O exercício da soberania pela democra- que agir, devendo inteirar-se dos assuntos, de-
cia pressupõe participação do indivíduo no senvolvendo o capital social da comunidade
processo decisório político, fazendo “trans- e o empoderamento da mesma, inluenciando
cender a noção obscura, abstrata e irreal de decisões que são de seu interesse, porque com
povo nos sistemas representativos” (BONA- a participação, “os cidadãos tornam-se prota-
VIDES, 2003, p. 27). gonistas da sua própria história, deixam de ser

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objetos das iniciativas de outros e tornam-se qualiicados de discussão e participação da


sujeitos do seu futuro”. (SCHMIDT, 2006, cidadania, em que a idéia de participação
p. 1774). supere a estratégia de aclamação para a cons-
E resume-se a importância da democracia trução de uma sociedade participativa, [...]”.
participativa com os dizeres de Bonavides: (HERMANY, 2007, p. 178)
O substantivo da democracia é, portanto, Os mecanismos constitucionais de exer-
a participação. Quem diz democracia cício de cidadania ativa estão previstos no
diz, do mesmo passo, máxima presença artigo 14, sendo eles: plebiscito, referendo e
de povo no governo, porque, sem parti- iniciativa popular. Grande destaque recebe
cipação popular, democracia é quimera, o art. 1º e parágrafo único da Constituição,
é utopia, é ilusão, é retórica, é promessa porque refere que a soberania e a cidadania
sem arrimo na realidade, sem raiz na são dois dos fundamentos da República Fe-
história, sem sentido na doutrina, sem derativa do Brasil e que todo o poder emana
conteúdo nas leis (BONAVIDES, 2003, do povo, que o exerce diretamente ou por
p. 283).
meio de representantes eleitos, ou seja, tal
A necessidade constante de se aproximar artigo apresenta a titularidade do exercício
Sociedade e Estado, com base nos direitos do poder. Assim, é necessário harmonizar
de participação democrática, fez com que os artigos 14 e 1º, parágrafo único do texto
a Constituição Federal Brasileira, trouxes- constitucional para se compreender e preen-
se, em seu art. 14, alguns mecanismos que cher de sentido cada um dos mecanismos de
facilitam o exercício da cidadania ativa dos participação semidireta do povo e reconhecer
cidadãos, sendo tais mecanismos, objeto de a existência da democracia representativa no
estudo na seqüência. ordenamento constitucional.
Referindo-se ao plebiscito e ao referendo,
Benevides (1991, p. 34) destaca que persis-
Perspectivas constitucionais tem dúvidas quanto à utilização de ambos,
para exercício da cidadania ativa em seus conceitos e práticas, fazendo com
(referendo, plebiscito e iniciativa que haja uma ambiguidade semântica, mas
popular) que não modiica a noção de ambos enquanto
forma encontrada para que os cidadãos pos-
O efetivo exercício da cidadania vincula- sam participar expressando sua vontade ou
se à democracia participativa, que por sua opinião sobre alguma medida adotada pelos
vez encontra-se relacionada à Constituição, poderes constituídos.
seus valores, princípios e regras. Tal correla- A lei nº 9.709/98 que regulamentou os
ção é a essência da legitimidade, e segundo incisos I, II e III do artigo 14 da Consti-
Bonavides (2003, p.36), “o abraço com a tuição Federal estabeleceu em seu art. 2º
Constituição aberta, onde, sem cidadania que “plebiscito e referendo são consultas
não se governa e sem povo não se alcança a formuladas ao povo para que delibere sobre
soberania legítima”. matéria de acentuada relevância, de natureza
A atuação da sociedade está intimamente constitucional, legislativa ou administrativa”.
vinculada à Constituição, onde os instru- (BRASIL, 1998). O plebiscito é a forma
mentos de representação e participação ins- de consulta popular que busca decidir uma
culpidos nela traduzem garantias que podem questão política ou institucional antes que
“contribuir para a construção de espaços seja formulada legislativamente, autorizando

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a formulação da medida, ao passo que o refe- à conclusão de que a aludida participação “se
rendo ratiica ou conirma um projeto de lei dá muito mais com o objetivo de legitimar
ou um ato administrativo que já foi aprovado. decisões dos órgãos governamentais, do que
A lei em estudo somente prevê referendo e para inserir a sociedade como sujeito ativo no
plebiscito de iniciativa parlamentar, mas não processo de deinição das políticas públicas”.
de iniciativa popular, não prevendo nem mes- (HERMANY, 2007, p. 186-187)
mo a possibilidade do referendo por iniciativa A insuiciência dos mecanismos consti-
do Presidente da República ou de iniciativa tucionais de participação popular, tendo em
popular. E isto acarretou a modiicação do vista o procedimento, as matérias e os requi-
artigo 49, inciso XV da Constituição Federal, sitos somente faz com que se busque sempre
uma vez que a competência para autorizar superar a cidadania passiva submissa ao po-
referendo e convocar plebiscito passou a ser der político e eleitoreiro, alcançando-se uma
exclusiva do Congresso Nacional, excluindo
cidadania consciente, organizada e ativa, que
portanto, o Presidente da República e a ini-
atue na construção de uma sociedade melhor,
ciativa popular (SILVA, 2007, p. 223).
com menos complexidades e desigualdades.
O art. 14, III da Constituição Federal
Em tal perspectiva, surge a necessidade de
prevê a iniciativa popular. Tal instrumento é
se construir uma estrutura estatal democráti-
aquele posto à disposição dos cidadãos, que
ca, que se formará através de mecanismos de
de forma conjunta podem iniciar um processo
democracia participativa, regular e efetiva,
de elaboração legislativa. Assim, segundo
“que se potencializa a partir de uma dimensão
Benevides (1991, p. 33) é “um processo de
local, na qual se pode construir um efetivo
participação complexo, desde a elaboração de
processo de formação democrática e legítima
um texto [...] até a votação de uma proposta,
passando pelas várias fases da campanha, co- das decisões públicas, sejam administrativas
leta de assinaturas e controle de constitucio- ou legislativas”. (HERMANY, 2007, p. 183)
nalidade”. A iniciativa popular possibilita aos A análise dos mecanismos constitucio-
cidadãos participar das atividades políticas do nais de participação dá margem para que se
Estado, buscando garantir a apresentação de estudem novas formas da mesma, que sejam
projetos de atos legislativos, reformadores voltadas para a realidade mais próxima das
das leis federais, estaduais e municipais por pessoas. E é este o objetivo do próximo ítem:
grupos de cidadãos. analisar o indivíduo como ator social, no seu
A participação, nos moldes constitucio- espaço local, dando uma ênfase maior para
nais, através dos três instrumentos antes o âmbito municipal de desenvolvimento da
referidos, deve possibilitar ao povo exercer participação cidadã.
o seu poder, de acordo com o previsto no art.
1º da Constituição. Tal situação, na maioria
das vezes, é ilusória. E isto ocorre porque não O poder local: o indivíduo como
se tem uma cidadania realmente livre, para ator social
exercer o poder que lhe foi conferido consti-
tucionalmente, mas sim uma cidadania que é A cidadania, conforme visto, está rela-
dependente dos poderes constituídos para que cionada com a democracia participativa,
possa se manifestar (plebiscito e referendo), e sendo que seu exercício acontecerá quando as
uma cidadania regulada, porque no momento condições para tanto forem favoráveis. Além
em que lhe é conferido o poder de manifestar- das previsões constitucionais de exercício,
se, lhe são limitadas as matérias, chegando-se novos instrumentos podem ser desenvolvidos

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para uma mais eicaz e eiciente cidadania. cidadania” no espaço local? Os cidadãos
Neste contexto, as melhores condições de não se contentam mais em serem passivos,
desenvolver e exercer a cidadania ocorrem submissos; querem ter voz e vez, participar,
quando há a oportunidade de participação ver suas opiniões e desejos respeitados,
do cidadão, possibilitando a ele inteirar-se agindo de forma política e não politiqueira,
dos assuntos que lhe são próximos e que lhe dentro dos limites e possibilidades do Estado
dizem respeito diretamente. E isto ocorre Democrático de Direito.
através do poder local, com a participação Somente será possibilitado ao cidadão
dos cidadãos no seu meio local, não somente o desenvolvimento e exercício da sua ci-
como indivíduos que apenas vivem, mas sim, dadania quando as decisões forem tomadas
como atores sociais, que se interessam pela perto dele, porque estarão conectadas com as
sua realidade, que se engajam, interagem suas necessidades e com o que deseja para
para a paciicação social, o atendimento de o seu futuro, vinculada à descentralização
demandas e o desenvolvimento da sociedade. do poder político e econômico. (DOWBOR,
Na sociedade contemporânea, opiniões e 1999, p. 16)
escolhas das pessoas são tomadas geralmente A participação do cidadão no Estado ge-
por aquilo que elas vivem. A vivência dos ci- ralmente se resume na político-partidária ou
dadãos aumenta o seu poder de inluenciar as na sindical-representativa. Mas é necessário
decisões que são tomadas no espaço público. que se incentive e se formem cidadãos par-
E, com base no debate, na comunicação e nas ticipativos no âmbito local, organizando-se
deliberações dos cidadãos, é possível a ela- comunitariamente, agindo e interagindo no
boração dos juízos de valor destes e tomada seu município. E este processo participativo
de decisões pelo Poder Público. dos cidadãos no espaço local não se dá de
O papel da sociedade civil, segundo Oli- uma hora para outra. Ainda há desconiança
veira (2006) é “o de identiicar problemas, dos cidadãos quanto à sua participação,
captar demandas, dar voz a novos atores, se seu envolvimento será entendido pelas
experimentar, inovar, denunciar, reivindicar, autoridades de maneira séria quanto aos es-
propor, argumentar, persuadir e inluir”. É, cândalos envolvendo os “homens públicos”
também, assim que os atores sociais irão de- que deveriam ser exemplo de honestidade e
senvolver e exercitar sua cidadania. Aumenta probidade. O cidadão, também por este moti-
a cada dia a necessidade de cidadãos que se vo, se desmotiva em participar, por acreditar
preocupem com o local em que vivem e que que “a coisa não vai mudar”, ou porque “os
mais do que isso, façam algo para melhorar políticos são todos iguais, porque eu vou me
sua rua, seu bairro, seu município, para en- meter”.
tão pensar no global. Por isto, um cidadão A democracia é um processo e não re-
pensante, deliberativo serve para revitalizar sultado, estando por isso, em permanente
e valorizar a democracia, principalmente a conlito com as forças que desejam manter os
participativa. seus interesses acima dos interesses do bem
Os indivíduos tornam-se atores sociais comum, gerando acomodação da sociedade,
no espaço em que vivem. O espaço local por ausência de representatividade e descrédito
excelência é o município, sendo que bairros com os resultados (MAGALHÃES, 2006,
e quarteirões também o são. Dowbor (1999, p. 20). Assim, o processo de participação
p. 10) questiona “como é que o cidadão dos indivíduos no espaço local, como atores
recupera uma dimensão essencial da sua sociais capazes de transformar a realidade

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é longo, deve ser conquistado, construído elaboração de decisões que terão relexos no
passo a passo, com articulação e convenci- seu próprio futuro.
mento dos cidadãos de que pode dar certo a Dentro do contexto do espaço local,
sua participação na deinição dos rumos da municípios, bairros e ruas possuem papel
sociedade, do seu meio, pelo espaço local. importante para o desenvolvimento efetivo
A idéia de poder local vincula-se, também, da cidadania pela participação e consolidação
à subsidiariedade. Baracho deine subsidia- da democracia participativa. Assim, a análise
riedade como princípio pelo qual as decisões de algumas ideias acerca do ente municipal
devem ser tomadas em um nível político mais assume relevo diante da proposta de concre-
baixo, ou seja, em um nível que esteja mais tização da cidadania.
próximo da execução das decisões. Assim,
vincula-se com a descentralização política
e administrativa (BARACHO, 1996, p .92). O município e a concretização da
Um Estado subsidiário insere-se entre um cidadania pela participação
Estado-providência e um Estado liberal
como uma posição intermediária, atendendo A importância que o Município tem para
às fraquezas individuais não circunstanciais desenvolver a cidadania no espaço local,
nem permanentes, onde existe uma sociedade é incontestável. A efetiva participação dos
plural, com um sentido mais amplo do que cidadãos no espaço local, na busca de um
a democracia porque visa à diversidade de consenso, tomada de decisões em prol do
opiniões e discussão, a atuação dos cidadãos bem comum, não pode desvincular-se da
para efetivar ins individuais e sociais (BA- Constituição Federal. A preocupação com a
RACHO, 1996, p. 88-89). vinculação da participação no espaço local
a um conteúdo mínimo constitucional para
O que o princípio de subsidiariedade
concretizar direitos sociais, se faz presente
apresenta é a possibilidade de equilibrar
nas palavras de Hermany, quando refere o
poder central e local no momento em que
seguinte:
seja possibilitada a formação do cidadão
municipal, com a repartição de competências Em vista disso, a simples autonomiza-
entre o Estado e a coletividade (BARACHO, ção do poder, se desvinculada de um
1996, p. 32). Isto quer dizer que o espaço conteúdo constitucional mínimo, pode
signiicar um retorno ao contexto do
local deve desenvolver-se com a participação
liberalismo clássico, em que as deci-
dos cidadãos, de modo que eles próprios pos-
sões públicas eram determinadas pelos
sam identiicar os problemas, deliberando, atores que conseguiam influenciar a
enim, ampliando os espaços de articulação vontade da população a partir de um
da sociedade na esfera local, possibilitando pseudo-interesse público. Dessa forma,
a cooperação entre Estado – notadamente o é imprescindível que, além da abertura
Município – e sociedade, para a consecução dos espaços decisórios para a sociedade,
do bem comum. haja instrumentos capazes de garantir a
Assim, o espaço local é o grande propul- observância dos limites constitucionais,
traduzidos especialmente nos direitos
sor do exercício da cidadania pelos cidadãos,
fundamentais. (HERMANY, 2007, p.
de modo que a participação destes se dará
254).
mais facilmente no âmbito local, pela pro-
ximidade de assuntos com suas vidas, pela As garantias constitucionais devem ser
necessidade que terão de envolver-se na respeitadas e mantidas. A participação do

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povo no processo decisório não pode servir grupos que apenas querem mostrar o seu
de escudo para realizarem-se atos que sejam domínio sobre uma sociedade qualquer. Além
contrários à lei, contrários à Constituição e de formas conscientes, é preciso que haja
que violem as suas garantias. A efetivação da políticas de organização para que se possam
cidadania passa, necessariamente, pela noção reduzir os conlitos e as desigualdades que
de federalismo. A Constituição Federal de são sentidas principalmente em um âmbito
1988 restaurou a federação e a democracia, local. É, pois, o município quem pode “asse-
caracterizando-se por um federalismo cen- gurar que cada comunidade, cada bairro tenha
trífugo, que deve buscar a descentralização. o seu posto de saúde, a sua escola, o seu cine-
Assim, é importante compreender o federa- ma, os seus meios de transporte e segurança
lismo centrífugo na efetivação da democracia adequados” (DOWBOR, 1999, p. 62). Tudo
(MAGALHÃES, 2006), de modo que as isto faz com que a sociedade, através da sua
decisões possam ser descentralizadas para organização, possa pensar na garantia da sua
um âmbito menor, mais baixo, ou seja, para sobrevivência, motivando seus membros para
o âmbito municipal, conforme entendimento participarem democraticamente das decisões,
de Baracho, antes salientado, sobre a subsi- deixando de ser instrumento de manipulação
diariedade. e submissão a uns poucos.
É no Município que as pessoas se co- Quando exclusivamente realizado pelo
nhecem, que a sociedade pode articular-se, Estado, o planejamento tem uma tendência
estabelecer suas relações mais próximas a ser tecnocrático, sistêmico e impositivo,
voltadas para o interesse puramente local. É por isso a importância de ser participativo,
no espaço local que é mais fácil de encontrar formulando uma consciência crítica e au-
o consenso, e também por isso que Hermany tocrítica na comunidade, uma estratégia de
(2007, p. 261) refere que “o local adquire enfrentamento dos problemas e uma capaci-
importância signiicativa na ampliação dos dade de organização para poder inluenciar e
espaços de controle social, de concretização ter mudanças em prol da sociedade (DEMO,
do princípio constitucional da cidadania”. 1996, p. 42).
Através da concepção de o Município Educação como formação à cidadania,
ser o espaço local menor, no sentido de pos- no município, é uma das mais importantes e,
sibilitar o melhor contato entre os cidadãos pode-se dizer, mais difíceis tarefas. A educa-
e destes com o próprio Estado, é possível a ção presta-se ao desenvolvimento do país, à
organização e sistematização das potenciali- socialização, à melhora de condições prois-
dades locais. Pedro Demo elenca cinco canais sionais. Para Demo, a função da educação é
de participação que podem ser aplicadas no “de ordem política, como condição à partici-
âmbito local, quais sejam: organização da pação, como incubadora da cidadania, como
sociedade civil, planejamento participativo, processo formativo. Se um país cresce sem
educação como formação à cidadania, cultura educação, não se desenvolve sem educação.
como processo de identiicação comunitária Este efeito qualitativo, que é da ordem dos
e processo de conquista de direitos (DEMO, ins na sociedade, perfaz o cerne do fenômeno
1996, 26). educativo” (DEMO, 1996, p. 52).
A organização da sociedade reporta-se à No entendimento de Demo, a cultura
capacidade de assumir formas conscientes, como um processo de identiicação comu-
para ter conhecimento de quais são os seus nitária é humano, e social. Para que haja
reais interesses, e não apenas interesses de projeto de vida social comum, é necessário

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identidade do grupo, que se cria na cultura se compreenda como se dá a estruturação da


de cada um. Assim, “é condição básica para sociedade, quais são as inluências externas
um grupo social sentir-se comunidade possuir que um município pode sofrer. Os valores
lastro cultural próprio que o identiique. Este globais devem estar aliados aos valores lo-
lastro cultural próprio cristaliza a história da cais, ou seja, deve dar-se atenção para o que
comunidade [...]” (DEMO, 1996, p. 57). ocorre no espaço local, buscando satisfazer
O Município, por ser o espaço mais apro- as necessidades dos cidadãos, possibilitando
priado para desenvolver a cidadania, também que estes mesmos identiiquem quais são as
o é para o desenvolvimento do sentimento de suas necessidades, possibilitando visualizar
pertencimento dos cidadãos (HERMANY, também, quais as inluências globais ou na-
2007, p. 265). Sentir-se membro de um mu- cionais que estão presentes e que podem ser
nicípio, habitante de um bairro, de uma rua, harmonizadas com o poder local.
comunicar-se com as pessoas. Um exemplo Desta forma, o poder local, “implica,
do sentimento de pertencimento é a “Festa portanto, alterações no sistema de organi-
do Vizinho”, no Município de Concórdia, zação da informação, reforço da capacidade
em Santa Catarina, onde os moradores de administrativa e um amplo trabalho de for-
cada rua organizam-se e participam da festa, mação tanto na comunidade, como na própria
decorando as ruas, envolvendo-se em ati- máquina administrativa” (DOWBOR, 1999,
vidades culturais, recreativas e esportivas, p. 72).
que proporcionam, além do sentimento de As peculiaridades de cada Município são
membro, uma integração com membros de fatores determinantes para o atendimento das
outras ruas e bairros. demandas sociais. As concepções atuais de
Por im, Demo destaca que o processo de gestão, superando os modelos burocrático e
conquista de direitos, como último canal de gerencial, passando para um modelo de so-
participação serve, basicamente, para que se cietal, tem muito a contribuir para a criação
coloquem em prática os direitos previstos na dos espaços participativos em âmbito local,
teoria, ou seja, na lei, nas declarações entre onde o desenvolvimento de uma cultura
outros instrumentos (DEMO, 1996, p. 61). participativa acarretará melhor qualidade de
Conforme se veriica, todos os canais vida, melhor desenvolvimento e o efetivo
de participação descritos são possíveis de exercício da cidadania.
implementação no âmbito municipal, onde
o sentimento de pertencimento dos cidadãos
Práticas em participação local
aliado à uma sociedade organizada, seja em
bairros, seja em ruas, tem maiores condições Conforme já visto, é no espaço local que
de planejar o suprimento das demandas e, as- melhor se exercita a cidadania, porque o
sim, concretizar os direitos de cada cidadão. cidadão vive sua realidade ali e assim tem
A idéia que se lança, a partir do Municí- condições de participar e auxiliar na criação
pio, é pensar globalmente, agir localmente. e capacitação de um espaço local desenvol-
Não se trata de tomar uma posição excludente vido. Na sequência serão elencadas algumas
entre os espaços local, nacional ou global, práticas que possibilitam a participação dos
mas sim, compatibilizar tais espaços. Para cidadãos no espaço local, seja bairro, muni-
que se possa agir no espaço local, é necessá- cípio ou região, efetivando a cidadania pela
rio que se tenha conhecimento do todo, que democracia participativa.

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Lívia Copelli Copatti

timentos e serviços além da base geográica


e, nas temáticas, são discutidas e deinidas as
Orçamento Participativo diretrizes e os investimentos que abrangem
toda a cidade. O órgão gestor do Orçamento
Para o presente estudo, serão tomadas
Participativo é o Conselho do Orçamento
como base, as informações acerca do Orça-
Participativo.
mento Participativo implantado no município
de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ou- As temáticas são as seguintes: circula-
tras experiências de orçamento participativo ção, transporte e mobilidade urbana; saúde
serão referidas no decorrer do estudo. e assistência social; educação, esporte e
lazer; cultura; desenvolvimento econômico,
O Orçamento participativo é um meca-
tributação e turismo; organização da cidade
nismo democrático que possibilita ao cida-
e desenvolvimento urbano e ambiental.
dão sua participação direta na construção
da cidadania do seu município. Através do Inicialmente, são realizadas as reuniões
Orçamento Participativo verificam-se as preparatórias, onde são prestadas contas do
necessidades locais, utilizando-se o debate exercício passado, apresentado o plano de
entre os gestores públicos municipais e a investimentos e serviços para o próximo
população, para encontrar prioridades e para ano, apresentação do regimento interno en-
o suprimento daquelas necessidades, através tre outros assuntos. Depois, são realizadas
de atividades realizadas pela Administração as assembleias regionais e temáticas, onde
Pública. a população elege as prioridades temáticas,
Em Porto Alegre, o Orçamento Participa- os conselheiros e o número de delegados
tivo teve sua implantação consolidada no ano da região para, posteriormente, elegerem
de 1989, a partir da experiência do Município os delegados, realizando a deliberação das
de Pelotas, também no Rio Grande do Sul. demandas e a visita dos delegados para que
A mudança de paradigmas estatais foi im- possa ser feita a hierarquização das obras e
portante para que o Orçamento Participativo serviços.
pudesse ser implantado, como refere Leal: A posse dos conselheiros e a discussão
O orçamento participativo de Porto de temas de caráter geral da cidade são o
Alegre foi e é fruto de um processo de próximo passo, quando também é iniciada a
mudanças de paradigmas no âmbito das análise inanceira e técnica das demandas e
políticas públicas de gestão e inclusão montada a matriz orçamentária. Nos meses
social, aliado a uma nova forma de re- de agosto e setembro é discutida e votada a
lexão sobre o Estado e a Sociedade no matriz orçamentária e iniciada a distribuição
País. Suas estruturas funcionais e mesmo dos recursos para as regiões e temáticas. De
de concepção foram se aperfeiçoando ao outubro a dezembro é feito o detalhamento
longo do tempo, notadamente em face de do plano de investimentos e serviços, inali-
demandas, desaios e diiculdades que
zando-se a distribuição de recursos para as
surgiam no percurso de sua efetivação.
regiões temáticas. Importante destacar que
(LEAL, 2006, p. 157).
o Orçamento Participativo em Porto Alegre
A cidade divide-se em dezessete regiões possui um Regimento Interno (PORTO
e seis temáticas, onde os cidadãos podem ALEGRE, 2010) que dá as coordenadas
participar das discussões do Orçamento para o desenvolvimento de todo o processo
Participativo na sua região e na temática. participativo dos cidadãos e para a atuação
Na região são discutidos e deinidos inves- da Administração Pública.

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A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO NO PODER LOCAL

Outros municípios brasileiros que podem de conversas e respeito mútuo e; consenso,


ser referidos como experiência positiva e promovendo projetos e pactos de co-respon-
duradoura de Orçamento Participativo são: sabilidade social. Através do Comitê Gestor
na Região Sudeste - Belo Horizonte - MG, Local se criou a rede governamental que
Osasco - SP, Cariacica – ES; na região Nor- integra os órgãos municipais para estimular
deste - Fortaleza e Sobral – CE, Recife –PE, a governança e agilizar o atendimento das
João Pessoa e Campina Grande – PB; na demandas públicas.
região Norte: Manaus – AM e, na região Sul: A governança traz consigo a idéia de que é
Santa Maria, São Leopoldo, Caxias do Sul, preciso investir nas pessoas, não somente na
Paim Filho – RS, Concórdia e Joinville – cidade, ou seja, é preciso acreditar no capital
SC; Maringá, Curitiba e Campo Largo – PR social, e não somente visar o atendimento das
(BELO HORIZONTE, 2007). A experiência demandas unicamente pela Administração
do Orçamento Participativo foi implantada Pública. O exercício da cidadania se torna
no Estado do Rio Grande do Sul tendo sido, completo quando os cidadãos podem parti-
posteriormente, substituído pela Consulta cipar na deinição dos rumos da sociedade e
Popular, em vigor até o momento. também quando podem co-responsabilizar-se
Assim, o Orçamento Participativo serviu pelas ações públicas, utilizando a cooperação
para a consolidação do processo participati- e ajuda mútua entre instituições públicas, pri-
vo, porque o cidadão exerce sua cidadania vadas, não-governamentais e pessoas volun-
diretamente, direcionando o rumo das de- tárias, fortalecendo o desenvolvimento local.
mandas da sociedade a serem realizadas pelo O Programa GSL prioriza a formação
Estado, onde a partilha de recursos auxilia de redes de participação política; tais redes
para uma nova relação entre o poder público articulam-se em dezessete regiões da cidade
e a sociedade. e nos oitenta e dois bairros e vilas. A im-
plantação ocorreu inicialmente pela Ação
Preliminar ou Passo Zero, quando foi reali-
Governança Solidária Local zada a discussão da proposta de governança
com cada uma das regiões. Após, ocorreu a
O município é o local onde a relação capacitação dos agentes (supervisores, arti-
entre sociedade e Estado se desenvolve. A culadores, comitês gestores locais e gerentes
democracia, no espaço local, se encontra de programas da Prefeitura) e a constituição
melhor realizada. Assim como o Orçamento de equipes de articulação das redes de GSL,
Participativo, a base das informações sobre onde participaram os atores-parceiros da
a Governança Solidária Local é do programa GSL, o comitê gestor local, conselheiros do
implantado pelo Município de Porto Alegre Orçamento Participativo e representantes
(PORTO ALEGRE, 2005). Após o Orçamen- de entidades locais. A primeira tarefa a ser
to Participativo ser implantado no Município desenvolvida foi estimular a construção da
de Porto Alegre, no ano de 2005 surgiu o rede de governança em cada região, na qual
Programa de Governança Solidária Local. participam as lideranças representativas e
O Programa de Governança Solidária informar os demais conectados na rede sobre
Local –GSL – é coordenado pela Secretaria o andamento do programa.
de Coordenação Política e Governança Local A segunda tarefa foi realizar o seminário
e está estruturado sobre três princípios, sendo de visão de futuro, utilizando métodos de
eles: pluralidade, reconhecendo as diferenças participação, onde os participantes foram
sociais; diálogo, estabelecendo um sistema estimulados para o futuro, num horizonte

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.126, p. 85-100, junho/2010 95


Lívia Copelli Copatti

estratégico. Realizada a visão de futuro no Assim, o Programa de Governança Soli-


seminário, ela foi compartilhada com a rede dária Local desenvolvido no Município de
de GSL para ter a sua validação. Logo após Porto Alegre é um exemplo a ser seguido
o seminário, o trabalho foi diagnosticar os por outros municípios, uma vez que seu ob-
ativos e as necessidades de cada região, onde jetivo é, mais do que nunca, romper com a
se veriicaram todas as competências e po- dicotomia Estado x sociedade, superando o
tenciais que cada região possui para atender paradigma de que o cidadão tem o direito de
às suas necessidades. O passo seguinte foi cobrar ações e o Município tem o dever de
elaborar o plano participativo e estabelecer atendê-las, aproximando o cidadão da Admi-
as metas a serem atingidas por cada região. nistração Pública, de maneira que possam ser
Tanto o diagnóstico quanto o plano partici- parceiros, utilizando das potencialidades dos
pativo necessitaram ser submetidos à rede de cidadãos, das empresas, do órgãos públicos
GSL. Na sequência foi formulada, pela rede e capacidade fomentadora da Administração
de articulação, a agenda de prioridades para Pública, voltada para o desenvolvimento do
o ano seguinte. Por im, foi elaborado o Pacto espaço local e a melhor qualidade de vida
pela Governança Solidária Local, onde todos para todos.
os membros da rede e os atores-parceiros
participaram, formalizando os compromissos
assumidos. Associações de moradores dos
Com a realização do último passo ocorre bairros
a implantação efetiva do programa de GSL,
iniciando a realização da agenda de priori- O espaço local, considerado o âmbito do
dades, mobilizando os membros da rede e Município, possui, além dos instrumentos
engajando equipes de trabalho. Com a elabo- anteriormente descritos, outras formas de
ração do diagnóstico de ativos e necessidades permitir a participação dos cidadãos na so-
também coletam-se os dados para a avaliação ciedade e na deinição dos rumos da mesma.
e monitoramento do programa. E uma destas formas são As Associações de
Importante reirir que a implantação da Moradores dos Bairros do Município.
Governança Solidária Local em Porto Alegre O desenvolvimento e expansão urbana, o
contou com a parceria da UNESCO, através crescimento populacional, o individualismo
do Protocolo de Cooperação e também foi das pessoas e as desigualdades, torna cada
possibilitada pelo capital social acumulado vez mais necessária a comunhão de esfor-
do município, onde os cidadãos são vistos ços, para que se superem as diiculdades,
como parceiros do Estado, no sentido de que se supram as necessidades e se possibilite
a realização e suprimento das demandas de- participar mais da vida social. Em grandes
pendem, também, da sua força de vontade, de municípios, os bairros passam a ser peque-
seus esforços, de seu interesse em tornar seu nas cidades, onde as pessoas, seja por força
ambiente, sua cidade melhor e mais desenvol- da organização espacial, seja por absoluta
vida, beneiciando-os direta e rapidamente. impossibilidade de “conhecer” todos os mo-
Tal “projeto chama à baila os cidadãos radores do Município, passam a criar seus
das comunidades para assumirem suas res- vínculos com os moradores do bairro, dando
ponsabilidades, sendo o Estado cooperante na uma certa autonomia para o próprio bairro.
busca do desenvolvimento da comunidade” Cada bairro possui a sua peculiaridade
(COSTA; HERMANY, 2008, p. 2412). e sua diversidade. Um bairro pode ser mais

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A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO NO PODER LOCAL

industrializado, outro pode ter mais atrativos também para ele, mas sobretudo e ca-
culturais, em outro predomina a área residen- racteristicamente o cidadão organizado.
cial. A divisão de um município em bairros Assim, é a cidadania organizada que
não quer dizer que seja um retorno ao indivi- funda a legitimidade de todos os pro-
dualismo e à competição entre os bairros, mas cessos participativos. Dela se parte e
a ela se retorna. Não nasce na cúpula a
sim, um incentivo à organização social e um
legitimidade, pois é apenas delegação.
melhor relacionamento com a Administração
Cidadão é sujeito de direitos, não objeto
Pública e entre os próprios moradores. de espoliação. (DEMO, 1996, p. 120)
A autonomia que os bairros possuem gera,
em seus moradores, um maior interesse na Assim, a união de um grupo de mora-
sua proteção e busca de benefícios para o dores, sob a forma de uma associação toma
ambiente local. A criação de uma associação contornos importantes, principalmente face
de moradores do bairro é o primeiro passo às diiculdades atuais, sejam sociais, econô-
para que este possa se organizar, veriicar micas, políticas ou ambientais, de modo que a
suas prioridades e assim, buscar alternativas articulação dos cidadãos os torna capazes de
para o atendimento das prioridades. preocuparem-se com o futuro em um sentido
coletivo, sempre buscando a melhoria da
Uma associação de bairro tem melhores
condição de vida de todos, exercendo, então,
condições de fazer com que os cidadãos par-
sua cidadania.
ticipem da decisão dos rumos do seu bairro
dentro do contexto do município, melhores
condições de detectar as necessidades mais Outras previsões
urgentes, de veriicar quais as prioridades. E
não é somente isto, através da associação, o
Para o desenvolvimento da cidadania ati-
desenvolvimento do bem-estar da comuni-
va e participativa, outros instrumentos estão
dade, a promoção da assistência social, da
previstos no ordenamento jurídico nacional,
saúde, educação entre outros assuntos perti-
notadamente no Estatuto da Cidade, quando
nentes se torna mais eiciente e eicaz, uma
no art. 40 prevê as audiências públicas e
vez que, os cidadãos podem organizar-se para
debates com a participação da população
reivindicar e também, podem colaborar para e associações para a elaboração do plano
que não ique somente nas mãos do Poder diretor e iscalização da sua implementação
Público a realização de tais prioridades. no Município. Na Lei de Responsabilidade
É importante que uma associação de mo- Fiscal (art. 48), na Lei de Licitações (art.
radores tenha membros, pessoas compromis- 39), na Resoluções 001 (art. 2º) e 009 do
sadas e conscientes e não meros associados, Conselho Nacional do Meio Ambiente e na
porque estes pressupõem uma relação mais Constituição Federal entre outros diplomas
liberal, com maior pertencimento, porque legais também são previstas as audiências
como diz Demo: públicas. Também os Conselhos Municipais
A legitimidade se nutre na defesa da são instrumentos de participação dos cida-
igualdade de oportunidades, pelo menos dãos, como por exemplo, Conselho Munici-
diante da lei. Neste sentido, ser membro pal dos Direitos da Criança e Adolescente.
de uma associação signiica ser genui- Ainda, a título de participação regional dos
namente cidadão. O ator substancial de cidadãos são os chamados Conselhos Regio-
processos participativos é o cidadão, nais de Desenvolvimento do Rio Grande do
menos o individual, embora haja lugar Sul – COREDES – que têm como objetivos

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.126, p. 85-100, junho/2010 97


Lívia Copelli Copatti

formular e executar estratégias regionais, de que é preciso agir, participar, ser cidadão
consolidando-as em planos de desenvolvi- de verdade, ter coragem e vontade de mudar
mento regional, possibilitando a participação para melhor a sociedade.
social e cidadã (CONSELHO REGIONAL Os instrumentos constitucionais para
DE DESENVOLVIMENTO, 2009). A esco- exercício da cidadania – plebiscito, referendo
lha das prioridades da região se faz através da e iniciativa popular – são importantes, mas
Consulta Popular (RIO GRANDE DO SUL, não suicientes para que a cidadania seja
2010), onde os cidadãos votam e escolhem realmente ativa, porque a vinculação de tais
quais são as necessidades que precisam de mecanismos a uma democracia semidireta,
maior atenção do governo. Portanto, com requisitos ou preestabelecidos ou na
são diversos os instrumentos de participação maioria das vezes, quase impossíveis de
direta do cidadão, do exercício da sua cida-
cumprir, os torna insuicientes, urgindo se-
dania ativa; os acima listados, são os mais
jam buscadas novas formas de participação
conhecidos e, talvez, mais utilizados e efeti-
cidadã, de interação entre Estado e sociedade.
vos, nada impedindo que novos mecanismos
de participação no espaço local sejam criados É preciso tomar consciência de que o
e implementados. indivíduo deve passar a ser cidadão, alguém
interessado no seu espaço local. O exercício
da cidadania é muito mais fácil e possível em
Conclusão um espaço mais próximo dos cidadãos, onde
estes poderão deliberar, entender, interagir
O Estado, ao longo das décadas, vem uns com os outros. É pelo poder local no Mu-
passando por constantes modiicações. Ele, nicípio que o cidadão tem mais condições de
por si só, não tem condições de suprir as participar na tomada de decisões, na deinição
demandas originadas no meio social. Esta dos rumos do espaço comunitário e social,
insuiciência fez com que novas formas de que poderá veriicar e buscar a solução para
democracia fossem sendo criadas e implanta- as necessidades da sua comunidade.
das para que se pudesse atender às demandas Para corroborar a idéia de que a cida-
da sociedade com os rumos e prioridades dania ativa melhor será exercitada em um
deinidas por ela própria e, implementando-se âmbito participativo local, foram elencados
inclusive a descentralização estatal, que é um alguns instrumentos, cada um com suas
dos fatores mais importantes para o exercício características, seja na visão mais voltada
da cidadania. para o suprimento das necessidades apenas
Na atualidade, são conhecidas três formas pela Administração Pública – Orçamento
de democracia: direta, indireta ou representa- Participativo –, seja naquela que conta com
tiva e participativa. É por esta última que os a participação do capital social, com a popu-
cidadãos terão a possibilidade de exercer sua lação agindo em comunhão de esforços com
cidadania de forma plena. Assim, veriicou-se o Poder Público para atender às demandas –
que a cidadania pode ser efetivada através da Governança Solidária Local – ou, também,
democracia participativa, onde a participação através das Associações de Moradores dos
dos cidadãos no governo deve ser constante, Bairros, numa visão mais localista ainda,
sendo possibilitada através de uma quebra onde a união dos moradores será benéica
de paradigmas estatais e da população, de para toda a comunidade do Bairro, podendo-
modo que o Estado permita a abertura de um se referir ainda as previsões na Constituição
espaço para o povo e que este se conscientize Federal e em leis esparsas.

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A EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO NO PODER LOCAL

Portanto, o que se constatou é que a que se vive e que é através do Município,


cidadania será uma constante na vida de da participação democrática no espaço local
cada pessoa a partir do momento em que que se criarão as melhores condições e ins-
se compreender que o exercício da mesma trumentos para que a melhora das condições
é condição para transformar a realidade em de vida seja possível.

AUTOR
Lívia Copelli Copatti - Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI Campus Erechim. Mestranda em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul, com ênfase na linha de pesquisa em Políticas Públicas de Inclusão Social.
Membro do Grupo de Pesquisa Poder Local e Inclusão Social e do Grupo de Pesquisas Direito,
Cidadania, Políticas Públicas. Advogada. E-mail: livia_dto@yahoo.com.br

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Lívia Copelli Copatti

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