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Corpo em ruptura, performance em descaptura na lírica do

feminino em “Última moda”, de Elisa Lucinda1


Cuerpo se rompiendo, performance se descapturando en la lírica del
femenino en “Última moda”, de Elisa Lucinda
Disruptive body, uncaptured performance in the feminine lyricism of
“Última moda”, by Elisa Lucinda

Eider Madeiros2
Amanda Ramalho de Freitas Brito3

Resumo

O presente trabalho busca realizar uma leitura sobre a lírica de um corpo feminino resistente às normas do
simbólico no poema “Última moda”, presente na obra Vozes guardadas (2016) da poeta capixaba Elisa Lucinda.
De modo a contribuir com a relação entre arte literária e performatividade do corpo na linguagem poética, dentro
de uma perspectiva que vislumbra a representação da palavra como forma de resistência às normatividades
vigentes, nos baseamos nos conceitos de perlaboração, pela negação, e de subversão, pelo autorreconhecimento,
a fim de perceber, ou reiterar, que a voz lírica, caracterizada pelo que denota o feminino, é figurativamente
desestabilizadora das interdições que atravessam e visam ser incorporadas, ainda que não absolutamente, na
cultura afro-latina-amerindígena.

Palavras-Chave: Corpo; Feminino; Poesia; Afro-latino-americana; Elisa Lucinda.

Resumen

El presente trabajo busca realizar una lectura sobre la lírica de un cuerpo femenino resistente a las normas de lo
simbólico en el poema “Última moda”, presente en la obra Vozes guardadas (2016) de la poeta capixaba Elisa
Lucinda. Para contribuir con la relación entre el arte literaria y la performatividad del cuerpo en un lenguaje
poético, dentro de una perspectiva que visualiza la representación de la palabra como una forma de resistencia a
las normas en vigor, nos basamos en los conceptos de perlaboración, por la negación, y de subversión, por
autorecononicimento, para percibir, o reiterar, que la voz lírica caracterizada por lo que denota lo femenino es
figurativamente desestabilizadora de las interdicciones del patriarcado, del imperialismo, del racismo estrutural,
y de las moralidades que se cruzan y apuntan a ser incorporadas, aunque no absolutamente, en la cultura
afrolatinoamerindígena.

Palabras claves: Cuerpo; Femenino; Poesía; Afrolatinoamericana; Elisa Lucinda.

1
Artigo apresentado no II Congresso Internacional Online de Estudos sobre Culturas, na modalidade online,
2020.
2
Mestre em Letras; Research Fellow do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina –
GEDIC, Ufersa; Mossoró, Rio Grande do Norte, Brasil; Doutoramento em curso no Programa de Pós-Graduação
em Letras – PPGL da Universidade Federal da Paraíba – UFPB; João Pessoa, Paraíba, Brasil;
eidermadeiros@gmail.com.
3
Doutora em Literatura e Cultura; Professora Adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas –
DLCV da Universidade Federal da Paraíba – UFPB; João Pessoa, Paraíba, Brasil;
amandaramalhobrito@gmail.com.

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Abstract

This paper seeks to read the lyricism of a feminine body that resists the norms of the symbolic in the poem
“Última moda”, part of the Brazilian Capixaba poet Elisa Lucinda’s Vozes guardadas (2016). In order to
contribute to the relation between literary art and body performativity in poetic language, within the perspective
that envisions the representation of words as a form of resistance to norms, we base our reflection on the
concepts of perlaboration, by negation, and subversion, by self-acknowledgment, looking forward to perceiving,
or reiterating, that the lyrical voice characterized by what denotates the feminine is figuratively destabilizing of
the interdictions of patriarchy, imperialism, structural racism, and moralities that cross and aim to be embodied,
although not absolutely, in afro-latin-amerindigenous culture.

Keywords: Body; Feminine; Poetry; Afro-latina; Elisa Lucinda.

1. Introdução

A linguagem poética de Elisa Lucinda pode ser, na plêiade da literatura brasileira


contemporânea, e sem a intenção arriscada de reduzi-la, dimensionada por seu caráter
orgânico, ou, como sua própria Escola Lucinda sugere, por seus esforços de materializar-se
como poesia viva, pulsante, de uma natureza que se ancora no dizer, na estilização de um
tecido sígnico que nos soe próximo, familiar e despretensiosamente íntimo com o que nos
cerca e nos faz humanos.

Dentre poemas que exploram o corpo a partir de vieses eróticos, desejantes e repletos
de uma poeticidade sinestésica, encontramos em “Última moda”, uma versificação livre que
dialoga com a permanência desse mesmo corpo, mas um corpo já interpelado por uma voz
lírica resistente aos ditames do que tanto se imporia a ele. Em um exercício de associação que
imagine essa voz corporificada, enunciada que fosse pela autoria que lhe fez letra,
conseguimos perceber nessa lírica resistente, ecos da denúncia contra sua própria vitalidade,
contra as normas, em suas roupagens de linguagem, que lhe presumem cooptável aos
interesses hegemônicos silenciadores.

A título de assimilação, o próprio título da obra geral de antologia, Vozes guardadas,


da qual recortamos o poema de análise, pressupõe uma via contrária a estas imposições,
utilizando do corpo, esse limite absoluto de nossa subjetividade, como guia, como “porta-
voz”, da palavra que não se satisfaz com o emudecimento de sua verdade, portanto, ainda que
“guardadas”, passam a revelar em si mesmas o que não mais lhes é possível manter silente.
Nesse sentido, como bem afirma Cohen (1978, p. 171), a voz “poética é objetivamente falsa,
mas subjetivamente verdadeira”.

Diante disso, o presente trabalho propõe realizar uma leitura do corpo e de sua
performance no poema “Última moda”, de Elisa Lucinda (2016), a partir da relação livre entre
a leitura poética como representação e recepção de uma mensagem lírica que busca no

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conceito de perlaboração, indicar o progresso de ressignificação de interditos a uma
performatividade corporal que preza pela liberdade de ser “toda sua”, ou em outros termos,
pautada pelo feminino que subverte, a seu modo, as “incorporações” do sistema normativo às
quais lhe tentam submeter.

Grosso modo, o conceito de perlaboração é oriundo dos estudos psicanalíticos de


Freud e pretende delinear como os sujeitos, em rota de angústia com a repetição de seus
traumas e resistentes sintomas de sofrimento, trabalham para “dar voz ao não dito, mediante a
incessante tentativa de estabelecer os contornos daquilo que insiste em se apresentar como
impossível de ser colocado em palavras.” (LOPES; KLAUTAU, 2018, p. 312).

Já a performatividade, em sua experiência subversiva, é por nós um modo, tomado de


empréstimo a partir do que aproxima Butler (2003) de sua crítica sobre o gênero, do corpo
operar na sua implicitude de um ato em presença, em repetição, ou em contravenção, ou ainda
em desconstrução diante dos atos que lhe circundam e o mantêm apegado à realidade, à
cultura e aos ideais reguladores do social. Segundo a autora:

Em outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou


substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo
de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio
organizador da identidade [do sujeito do corpo] como causa. Esses atos,
gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no
sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem
expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos
e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo
performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários
atos que constituem sua realidade. (BUTLER, 2003, p. 194, grifos da
autora).

Assim, o corpo-gênero, objeto do feminino a partir do qual se embasa a crítica


butleriana, guardaria as semioses de deslocamento da performance como ação pura, podendo
refazer uma tessitura dessas “fabricações manufaturadas” em contraponto às normas seguidas,
inclusive na dimensão ficcional que enreda o simbólico desses “signos corpóreos”. Assim,
teríamos, em complemento a isso, a noção de que a performance restaria nesse interstício, tal
como nos aponta Hymes (1973 apud ZUMTHOR, 2014, p. 35) ao asseverar que ela “realiza,
concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à atualidade. [...] A performance
se situa num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional: [...] como uma ‘emergência’,
um fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo em que nele encontra lugar.”

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Este corpo, carregado em performatividade, logo, seria interface e artifício para que a
performance se fizesse ato de presença no espaço flutuante da realidade e da identidade e em
sua presença mesma. Temos a intenção de perceber como a voz lírica lançada às teias da
ficção e da resistência no simbólico por Elisa Lucinda, faz falar uma lírica do feminino plena
de um dizer interseccionalizado em uma afro-latino-amerindigeneidade que não deseja mais
se calar.

2. Olhares sobre um corpo em “Última moda” de Elisa Lucinda

A pena feminina é emblemática em se tratando das diversas formas de resistência e


contravenção àquilo que se detém no simbólico cultural em torno das artes literárias. De
modo bastante objetivo, elencamos o poema “Última moda”, de Elisa Lucinda (2016), por ele
partir de um contexto afro-latino-ameríndio que expressa na arte da palavra as inúmeras
subversões que o próprio feminino continua a representar. Em certa medida, esse mesmo
contexto também vem resgatando tradições, cosmovisões e narrativas originárias, sob a égide
do decolonial, de maneira tal que este último termina sendo um topos de indeterminações de
um locus despadronizado – diante das bifurcações referenciais presentes na miscelânea do
atual mundo globalizado –, mas rico, visto que é espaço de diversidades, espaço de busca
pelas compreensões sobre o que formam as identidades locais, malgrado todas as tentativas da
lógica do capitalismo tardio de aplainamento dessas particularidades nos grupos de
resistência, das performances de sujeitos que se mantém deslocados, sem guardar receios
quanto a isso.

O feminino que também se reflete no movimento de encontro à representação do


contexto afro-latino-ameríndio, terra invadida pelo poder fálico estrangeiro, ganha aqui, para
nós, os contornos de um diálogo entre o que percebemos em Lacan (1985), desde o Das Weib
freudiano, em conjunto com Martins (1996). No primeiro, o psicanalista francês traz que o
feminino, caracterizado como não-todo diante do simbólico – em sua ordem totalizante,
masculina, toda – se delineia como aquele que (pode) escapa(r) das próprias delineações
possíveis na/pela linguagem, indicando, em alguns casos, em sua própria forma de
manifestação, poética inclusive, um despertencimento, uma inapreensibilidade, uma
ambivalência fundante, fendida, que parte para um além-fora que escapa pelas vias do
ininteligível. Para a segunda autora, a escritora negra, em sua especificidade dialógica com
suas semelhantes, é disruptiva em sua posição conquistada de autoria, pois preenche uma

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“negrura” que vai tendo de desbaratar suas miragens anteriores, fugidias ao mesmo tempo que
persistentes, resultantes de todo o fardo simbólico-representativo que as tornavam, em alguma
medida, menos mulheres, corpos sem peso, corpos sem desejo próprio, alheias a seu direito de
dar voz ao feminino que lhes competia, ainda que na itinerância que os próprios desejos
pressupõem se firmar.

Ao analisar uma metáfora fluvial da escritora Esmeralda Ribeiro, Martins (1996, p.


114) arremata a presença do corpo da voz lírica como “reencenado em vários lugares e
tempos descontínuos, esse corpo em movimento toma posse da palavra poética e, pelo
processo de deslocamento metonímico, produz-se como signo de autorreconhecimento e
júbilo.” O rio, daquela metáfora supracitada, também surge em “Última moda”, muito por
talvez remeter ao que flui por entre as margens retentoras do simbólico da ordem normativa,
visto que o leito é do feminino, também dos fluxos do feminino da escrita da “negrura” de
mulheres negras.

Para avançarmos na leitura, trazemos a transcrição integral do poema ao qual nos


dedicamos traçar essa lírica do feminino, exponencialmente mais complexa, por, sobretudo,
agregar a “negrura” brasileira e afro-latino-amerindígena de Elisa Lucinda, de maneira mais
ou menos coligada com o feminino não-todo, a esse patamar de desvelamento de
ficcionalizações e ruptura simbólica do que se impôs na ficção e nas narrativas centrais do
panteão literário dominante.

Última moda

Esta roupa não me serve


aquele uniforme não me cai bem
não quero essas regras
não mereço
não quero essas formas
essas ordens
essas normas
esses panfletos
o que pode ser dito
o que não deve ser falado
o importante não dito
o que deve ser feio
o que pode ser bonito.
Algemas nas correntes estéticas
não me interessam
não quero esses boletos
essas etiquetas
esses preços

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esses compromissos.
Não tenho código de barras
não tenho marcas
comportamento,
não caibo nestas caixas
nestas definições
nestas prateleiras.
Quero andar na vida
sendo a vida pra mim
o que é para o índio a natureza.
Assim voo, pedalando solta
na estrada do rio da beleza
nos mares da liberdade alcançada, essa grandeza.
Em tal grandeza meu corpo flutua...
Nos mares doces e nas difíceis águas da vida crua,
minha alegria prossegue, continua.

Despida de armas e de medos


sou mais bonita nua.
(LUCINDA, 2016, p. 273-274).

A voz lírica, situada que possa estar na brasilidade afro-latino-americana através da


pena de Elisa Lucinda, não deixa de apresentar, em sua evidente gradação temática – formal-
conteudística-estética –, o deslocamento a que se vê impelida, posta em uma espécie de
periferia que não só fala com toda a posição marginalizada da escrita de um feminino da
negrura latino-americana-colonizada, como também apresenta a habilidade da arte literária em
fazer surgir a “relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a
realidade” (CANDIDO, 2010, p. 12).

Isto é, a materialidade de uma lírica do feminino, por mais universalizante que se


deseje, apontará para uma imaterialidade de sua própria travessia em indeterminações. Assim,
de um modo específico, não se poderia dizer que, no poema, necessariamente, a lírica seria
fixa como de uma voz negra, afro-latino-americana-indígena, tampouco somente de uma
“escrita de mulher”. Não obstante termos tomado anteriormente esse entendimento
aproximado por sobre o “feminino”, ele, pelos trilhos da arte literária lírica, faz valer mais à
centralidade metafórica de um corpo que, cultural e inadvertidamente, é destino das mais
variadas tentativas de dominação. Em que pese a escrita da “negrura” feminina latino-
americana-indigenista e resistente, suas descapturas ganham notoriedade por registrarem no
simbólico um dizer, uma conquista de voz, que expressa nas palavras o que lhe irrompa como
desejo de significação, deflagrando um ímpeto de liberdade.

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Para além disso, se torna possível convir que, em geral, a voz lírica de “Última moda”
não se satisfaz com o lugar que lhe é imposto, já que, enquanto corpo, do espaço das
flutuações atentas à performance de um tempo, não se subjuga às amarras, às definições, aos
rótulos. Blindando-se de qualquer exterioridade que a regule, anseia a liberdade como
constructo incessante de sua própria autoafirmação, de sua identidade multifacetada.

Assim, é possível qualificar a lírica do feminino no poema como a de uma lírica de


resistência, entremeada por este corpo de “negrura” em ruptura, voraz por uma
performatividade que não o faça capturado pelas ficções que “tendem a apagar a diferença”,
mas “busca rasurar esses vícios de figuração, vestindo a personagem negra feminina com
novos significantes que indicam outras possibilidades de significância e de interferência nos
processos de alçamento do corpo feminino como corpo de linguagem.” (MARTINS, 1996, p.
112).

Quanto ao poema em suas partes, já se observa no próprio título uma ambiguidade que
revisa esse corpo que se submete à “última” moda. Se de modo direto, a locução substantiva
nos traz a semântica do que se poderia tratar como as mais novas tendências de um
determinado universo cultural, por outro lado, pode presumir o que há que derradeiro
declínio, de tardio, de “último”, em fase de desuso no que possa concernir ao que se dita
como “da moda” no campo sociocultural.

Ao não emprestar serventia à roupa, ou ao uniforme, vestimentas que parecem revestir


ou encobrir a real presença deste corpo que deseja desnudar-se, ou, no caso particular do
último, como sendo aquele em que seu portador se iguala aos demais, vendo-se identificado
por uma regra de trabalho, de uni-formidade, a negação vem exercer sua função subversiva. O
“não” do desejo contra “essas formas” (verso 5) se amplia ao conteúdo de quaisquer
discursos, dizeres, falas que sejam atos performativos em seus papeis simbólicos de
determinação do outro sob a lei. Partindo para a expressão dessas duas instâncias, do “não”
como recusa e do “não” como indício da existência de um “sim” oposto e inconcebível, na
própria concepção do que caberia ao “feio” e ao “belo”, por exemplo, nas expressões da arte
que regulamentam-se pelo cânone, pelas medidas de “panfletar” (verso 8), de “cartilhar”, de
“regrar” as vozes que irrompem do corpo, a subversão encontra seu caminho de fronteira,
ainda que não parta, contrária e absolutamente, de um lugar-comum, geral, todo.

Subversivamente imposta nessa relação de desejos que se pretendem desviantes em


princípio, o desinteresse pelas “algemas nas correntes estéticas” (verso 14) traduz a

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performance desse corpo para a dimensão de um corpo de linguagem, que não se pretende
mercadoria, nem produto monetário, pressupostamente naquilo que se deduz dos regramentos
em torno do fazer poético como meio de vida e subsistência. Em complemento opositor nessa
mesma esteira, os valores desse “corpo metafórico do texto [que], em muitos poemas, torna-se
signo do próprio corpo da mulher” (MARTINS, 1996, p. 113), de valores inquantificáveis,
também o fazem mostrar-se não-todo, pois como se anuncia, não cabe “nestas caixas” e
tampouco “nestas definições/ nestas prateleiras” (versos 24-26) postas e expostas pelas
narrativas pregressas.

A alternância entre corpo biopsicossocial que visa transgredir, pela negação, suas
“marcas”, seu “comportamento”, suas “definições”, e o corpo da linguagem, na estética de sua
metapoesia desinteressada em se prender aos ditames, sem “código de barras”, fora de
categorias “caixas”, ou fora de “caixas” encomendas, sem ser um produto em “prateleiras”,
deixam sobressair o corpo como objeto, objeto que, psicanaliticamente, é da economia tanto
dos desejos na psiquê, como dos desejos no mal-estar do real que lhe circunda e delimita. O
feminino, como este objeto-corpo que deflagra a fissura do próprio simbólico, tem neste
poema a capacidade de perlaborar tais imposições. A perlaboração, como passagem pela
negação, está em querer “andar na vida” (verso 26), voar, flutuar, prosseguir, continuar...

Os versos seguintes carregam aquilo que se resvala pela subversão na


performatividade (BUTLER, 2003), pela reviravolta diante da saída às negações – uma
síntese dialética? – no que observamos como autorreconhecimento do self de sua confluência
entre cultura e natureza, entre centro e periferia, entre colônia e ancestralidade nativa. Se o
corpo flutua na “liberdade alcançada” (verso 31) é por não imergir sequer no que se possa
entender como invasivo conceito de “liberdade imposta”. A performance, nesse momento, é a
de reincorporação da natureza tal como ela o é para o nativo índio, não como estrutura
interpelante que descarta, tal como um produto, como a “última moda”, o que se orienta pela
natureza contrária ao sistema – de linguagem, inclusive, desde a forma, o conteúdo e a
expressão que lhe designam.

Sem descartar, entretanto, por seu caráter performativo, a própria substância com a
qual a voz lírica trabalha para demonstrar sua insatisfação diante das regulações simbólicas,
das normatividades, é de se intuir que a navegação pela(s) linguagem(ns) é da ordem das
“difíceis águas da vida crua” (verso 33), luta e angústia, reconhecimento na alteridade que se
busca também na dimensão sociocultural dessas possibilidades que resistem e demandam
alguma liberdade para elas.

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Destituída de todas as roupagens que lhe são imputadas, dos acessórios, das regras,
dos caraminguás objetificantes do colonizador adornado-ordenador de grandezas outras, a voz
lírica busca desnudar-se sem tornar-se produto, senão este resultante de suas próprias
negações. A beleza, “mais bonita nua” (verso 36), há de encontrar regaço na própria
resistência às “armas” e aos “medos” que a sufocam, ao tentar encobri-la, uniformizá-la,
regrá-la, interditá-la e comodificá-la. Caberia a essa performance que se mantém em
descaptura, manter o corpo dos desejos liberto dos revestimentos deterministas, ainda que
aparentemente vulnerável aos olhos de quem não suporta a sua nudez de ressignificações.

3. A considerar alguns finalmentes

O que rompe do corpo de um sujeito histórico dependente, colonizado e deslocado em


seu locus periférico como o corpo da afro-latino-ameríndigena que transborda nas
configurações da voz lírica de Elisa Lucinda? Essa questão nos norteou, para mais ou para
menos, o que buscamos apresentar neste breve ensaio sobre poesia. A escrita, como exercício
que envolve a performance em diversos pontos, apresentou-se a nós, por estas linhas,
sobretudo com a égide da “negrura” e do corpo, em direção à contravenção ritual do sistema.

Diante de um feminino de desejo, composto na identidade de uma voz lírica que diz
“não” e delineia como almeja a sua liberdade a alcançar, conseguimos observar também
inúmeras outras possibilidades de olhar para ele, típico de quando se depara com o que é
mesmo do feminino em suas escapatórias do simbólico. Em se tratando de uma escolha que
tivesse sido feita dentro de contornos mais socioculturais, a ancestralidade, a natureza e a
etnicidade seriam universos amplos de muitos outros diálogos possíveis. Ora, os Brasis e suas
origens, em que liberdades foram sempre e mais cessadas historicamente, se expressariam
grandiosamente no aspecto autoral das margens sociais partilhadas entre os “periféricos dos
periféricos” negros e indígenas excluídos pelo raptor/invasor que estabelece a “última moda”
em voga, das manutenções de seus privilégios às perseguições como via de regra.

A complexa condição afro-latino-americana, no ímpeto do que carrega a voz que não


se cala, apesar dos pesares, encontra e alimenta, pela voz da arte poética, a força necessária
para desestabilizar as interdições e, nas interseccionalidades que demarcam seus corpos em
presença, para desconstruir as incorporações culturais que comumente se apresentam em
formas convenientes, mas que no fundo emudecedor de suas aparências, precisam ser
espantadas a grito, para evitar o risco de menos garantia à rara liberdade. Sussurrados, talvez,

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só os sons dos mares dessa própria liberdade alcançada, da emancipação que nos alerta a
ouvir que a via negativa da dialética precisa, para viver e ter ainda alguma alegria esperançosa
que reside o porvir, escutar as vozes líricas que anseiam revolução.

Referências

BUTLER, Judith. Atos corporais subversivos. In: BUTLER, Judith. Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 119-
201.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 11. ed.
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.

LACAN, Jacques. Letra de uma carta de almor. In: LACAN, Jacques. O seminário, livro 20:
mais, ainda. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 105-120.

LUCINDA, Elisa. Última moda. In: LUCINDA, Elisa. Vozes guardadas. Rio de Janeiro:
Record, 2016. p. 273-274. (Livro primeiro: Jardim das cartas)

MARTINS, Leda Martins. O feminino corpo da negrura. Revista de Estudos de Literatura,


Belo Horizonte, v. 4, p. 111-121, out. 1996.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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