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Pontifícia Universidade Católica de Goiás

Escola de Ciências Sociais e da Saúde

Curso de Psicologia

Entrevista: Medida Socioeducativa

PSI2225 - A01

Caio Augusto Machado Borges

Nathália Ribeiro Silva

Prof: Lenise Santana Borges

Goiânia

Outubro de 2023
ENTREVISTA: Alessandra Vieira.

A entrevista foi realizada no dia 30/10/2023 conforme disponibilidade da


entrevistada, a gravação foi feita pelo aplicativo Microsoft Teams, se iniciando às 19:00 e
teve duração de cerca de 35 minutos. Alessandra se mostrou muito solícita a responder as
perguntas e se ofereceu a posterior complementação caso fosse necessário, para mais,
concordou com a gravação da reunião para que essa transcrição fosse possível, no qual as
condições ambientais foram adequadas para uma boa qualidade do áudio. A transcrição
foi feita pelo recurso do próprio aplicativo, com poucas correções ortográficas e de
palavras específicas, que foram possíveis ao assistir a gravação da entrevista que se
encontra armazenada no google drive. Anterior a transcrição, segue abaixo, um breve
currículo da entrevistada:

Psicóloga, mestre em Psicologia Social e doutora em Psicologia Social pelo Programa de


Pós-graduação em Psicologia da UFMG. Especialista em Direitos Humanos na América
Latina pela Universidade Federal da Integração Latino Americana - UNILA. Professora
efetiva na Universidade do Estado de Minas Gerais, lecionando as disciplinas de
Psicologia da Educação, Educação em Direitos Humanos e Educação Inclusiva.
Coordenadora na pesquisa Diagnóstico de Violações e da Rede de Proteção dos Direitos
da Criança e do Adolescente do Município de Ribeirão das Neves, MG e na Comissão de
Política sobre Drogas do Fórum Permanente do Sistema Socioeducativo de Belo
Horizonte.

TRANSCRIÇÃO ENTREVISTA

N: Queria começar perguntando, seu nome, idade e etnia.

A: Alessandra Vieira, 41 anos. É, me considero parda, certo?

N: E aí a primeira pergunta é, como você descreveria o papel e as responsabilidades de um


psicólogo que trabalha com os jovens infratores dentro da medida socioeducativa?
A: Desculpa?

N: Como você descreveria o papel e as responsabilidades de um psicólogo que trabalha com


jovens infratores na medida socioeducativa?

A: Bom. O que é prescrito para o psicólogo atualmente nas medidas socioeducativas é fazer o
atendimento, participar da construção do plano individual de atendimento dele, né? E
geralmente, o que é ouvido do adolescente é incluído nesse relatório. E vai, né? Junto com as
observações da assistente social e da técnica do direito para o juiz, para subsidiar a
continuidade ou não da medida. Esse é o papel prescrito. Para o psicólogo, é a parte do meu
posicionamento, eu critico esse lugar do psicólogo no sistema socioeducativo como um lugar
de reprodução de instituição de castigo. Apesar de ser denominada unidade socioeducativa.
Mas a gente sabe que é uma medida sancionatória e o código de ética do psicólogo diz que é,
que nós não deveríamos participar de nada que culminasse em castigo ou punição. Então é
um lugar contraditório que a gente ocupa. Acredito que se fosse para o psicólogo atuar nesse
campo deveria ser como psicólogo com autonomia e garantindo sigilo dos atendimentos dos
adolescentes. Em que esse atendimento fosse voltado para a promoção dos direitos humanos,
né dignidade e acolhimento desse adolescente não para contribuir para um julgamento ou
para a punição dele.

N: É, tem aquela pergunta que se relaciona muito com isso, que é, se você poderia descrever
alguma situação em que o algum psicólogo que trabalha com esses jovens infratores poderia
estar envolvido justamente com esse processo de medidas disciplinares?

A: Castigo no sentido geral da própria medida, né? Da aplicação da própria medida. Agora é
atualmente, eu não tenho tido mais notícias, mas já vi sim psicóloga, que participava da
comissão disciplinar que julga aquelas pequenas infrações do dia a dia, desde às vezes de
uma brincadeira fora de hora, um palavrão. Uma indisciplina ali do adolescente, no dia a dia,
e sim, tinha psicólogos que participavam.

N: Quais são as habilidades e características pessoais que são mais importantes para ser um
psicólogo eficaz ao lidar com jovens em medidas socioeducativas?
A: Bom, eu acho que o principal é conseguir olhar para essa realidade de forma crítica, né?
Para a gente não ficar ali simplesmente como alguém que está reproduzindo as coisas como
elas são, mas que é capaz também de entender. É que a questão da internação vai para além
da responsabilização individual do adolescente, né? Uma das coisas que eu observo muito é
que nos estudos de caso, acabava pendendo muito para questões psicológicas, familiares, às
vezes até de um viés da psicanálise de entender a participação do adolescente naquela
atividade legal como um resultado da relação com o pai, né? Ou a ausência do pai é coisas
nesse sentido e eu acho que isso é uma despolitização assim do psicólogo. Eu acho que a
gente não pode. É, se a gente entra nesse lugar de entender apenas a responsabilização
individual, a gente está simplesmente reproduzindo. É esse sistema que a gente sabe que
numa análise macrossocial que ele funciona. Como é um instrumento de controlo social, não
é porque não são todos os jovens que são alvo dessa dessa desse sistema são jovens pobres,
na maioria negros, sem escolarização. Então, assim, a gente tem que entender a
corresponsabilidade do estado também no fato desses adolescentes estarem lá, privados de
liberdade, porque há praticamente a grande maioria deles tiveram quase todos ou todos seus
direitos violados antes de chegar a ser privado da liberdade. Inclusive, eu acho que uma das
coisas também que contribui é o conhecimento da criminologia crítica, porque, por exemplo.
Não uso esse termo adolescente infrator. Porque, na visão da criminologia crítica, mas
quando a gente diz, adolescente infrator, a gente está entendendo que ele essencialmente é
infrator, um criminoso. Então a gente está adotando uma perspectiva que naturaliza o crime
no indivíduo e na criminologia crítica, a gente entende que o que é considerado infração ou
crime é definido social e politicamente. É então, quem é? É quem é, e, produz a criminalidade
é quem define quais atos vão ser considerados crime. Quais ações vão ser perseguidas pelo
sistema penal e quais não vão ser. Então, eu digo o ato tipificado como infracional porque,
por exemplo, a questão das drogas, né? É aproveitando para dizer isso. A gente tem todo um
questionamento sobre a questão da criminalização das drogas. É justamente também com
mais um instrumento para perseguição, né? Dos jovens negros e perifericos a gente tem aí,
né? Muita literatura falando sobre a associação da criminalização com questões raciais. E,
especialmente em relação aos adolescentes, a gente tem uma convenção Internacional de
direitos humanos que é a convenção da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil, que
entende o tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho infantil. Então,
dependeria do juiz fazer o controle de convencionalidade. Fazer essa interpretação,
encaminhar ao adolescente para a medida de proteção ao invés de encaminhar para a medida
de internamento, né? Então você vê que simplesmente mudou a interpretação do juiz em
relação à legislação. Ele é taxado como um infrator. Então, é a lei que está produzindo esse
status nele de infrator e não algo inerente ali, da natureza dele. Então eu acho que é isso.
Assim o principal, a gente conseguir ter essa compreensão é dos dispositivos que promovem
a criminalização dos jovens e não apenas olhar a partir dele da história individual dele e
buscar a culpa ou a causa do problema apenas na história individual dele.

N: E quais foram as suas formações e treinamentos até você chegar na medida socioeducativa
de fato?

A: Eu tinha tido a experiência no sistema prisional adulto, né? Eu atuei. Eu comecei na


graduação, atuar no estágio na Apac, que é um modelo de prisão que a gente tem aqui
alternativa onde não tem guardas armados, é o são os próprios presos que tomam conta das
chaves, da cozinha, da limpeza, então é a gente tinha um estágio lá de trabalhar com método
de história de vida. Na perspectiva é da psicologia social crítica. E então isso foi dando a
base, né? Agora no meu curso não teve nada, nada, nada. Sobre o sistema socioeducativo,
nada. E essa foi, e essa professora é a única que trabalhava com o sistema prisional no curso
inteiro também. Então eu tive que buscar tudo de forma autónoma. Quando eu decidi porque
a maioria dos orientandos dela pesquisaram a prisão adulta mesmo. E eu como eu tive
interesse em pesquisar adolescentes, então eu tive que ter mais autonomia para buscar os
conteúdos nesse tema que ela não tinha, não uma experiência com adolescentes, é presos,
não.

N: E como é que é que você descreveria que é uma rotina diária típica de um psicólogo que
atua nessa área?

A: Rotina, isso bom, eu atuo lá como voluntária. Eu não, não fui contratada, né? Fiquei
sabendo que a unidade estava sem psicólogo, né? Precisando de voluntário e me candidatei.
Então eu atendo a 1 ano e meio como voluntária. Então eu não participo de todas as
atividades que um psicólogo da unidade participa, entendeu? Eu fico com a função apenas de
fazer esse acompanhamento de alguns adolescentes, então as minhas funções nesse lugar é
fazer o atendimento semanal do adolescente, participar das reuniões de estudo de casos sobre
esses adolescentes. Elaborar os relatórios, né? É, é. Esses relatórios que vão para para o
sistema de justiça e fazer os encaminhamentos necessários, né? Dentro do plano individual de
atendimento deles. Agora, as psicólogas que são contratadas participavam, por exemplo,
dessa comissão disciplinar.

N: E quais são os desafios mais significativos que você considera que você enfrenta dentro da
medida socioeducativa?

A: Primeiramente, o que é um desafio de, assim, estar numa instituição que eu não, não, não
concordava com a existência dela, mas mesmo assim eu seguia todos os trâmites e tal, porque
eu tenho interesse em compreender como ela funciona, né? Então eu preciso estar lá. É para
entender, por exemplo, por que na entrevista os adolescentes têm um discurso muito
padronizado, de que querem sair dali e voltar a estudar, trabalhar, constituir famílias. E aí,
como eu estou lá, eu tive a oportunidade de entender o que tinha por trás disso, não é? Só que
aí o que é que acontece aí? Mas quando a diretora de onde eu era voluntária foi assistir a
apresentação da minha dissertação que aí ela viu, o que que eu pensava mesmo em relação ao
sistema, e eles tentaram me impedir de continuar atendendo os adolescentes lá. E aí eu tive
que argumentar, usando até a questão do nosso conselho de erros sobre a questão. Assim, o
problema que é você interromper de repente um atendimento de 1 ano e meio, né? Sem ter
nenhum fechamento nem nada. Curioso porque mostra como quem está na gestão
naturalizando tanto aquilo ali que não aceita pensamentos diferentes, né? Embora durante
todo esse tempo eu não tenha tido nenhuma falta na minha conduta. Eu estava seguindo todos
os scripts, né? Mas só de saber como eu pensava, eu deixei de ser bem-vinda ali. Até porque
ela era da psicanálise. Eu coloquei essas essas questões, essas críticas em relação a essa visão
nos estudos de caso né, que é muito individualizante, né? E aí ela não, não gostou nadinha.
Então eu acho que é um desafio para quem assim… Questiona. O sistema está lá dentro
porque você, quando você quer realmente fazer uma diferença na vida dos adolescentes e
você vê que suas mãos ficam muito atadas, você, você tem que tomar muito cuidado para não
adoecer.

N: Qual a sua visão sobre uma psicologia que não vem atingindo esses espaços?

A: Realmente, se você não, não tem acesso aos conhecimentos críticos sobre isso, a tendência
é a reprodução do senso comum, né? E a maioria dos cursos, infelizmente, realmente não se
aprofundam na psicologia mesmo. Cursos de direito às vezes não têm, por exemplo, a é não
se fala sobre criminologia crítica, abolicionismo penal. E agora, mais do que conhecer a
teoria, eu acho que o que mudava a percepção de muitos alunos na minha época era a
oportunidade de participação nesse estágio. Sabe porque era uma oportunidade assim, de
quebra mesmo de paradigma é quando as pessoas chegavam lá e tinha oportunidade de tomar
café com uma pessoa que estava privada de liberdade. Sentar ali na mesma mesa. E conhecer
a família deles, né? E aí desconstruir essa imagem animalesca que a mídia cria, né? E vê que
é um ser humano que tem uma história é e porque essa nessa área a gente não consegue a
mudança de perspectiva só pelo racional, sabe, pela informação, pela teoria, precisa ter uma
pessoa precisa se afetar, por isso, de alguma forma, é ter experiências que façam ela ter uma
mudança, uma ressignificação, né? Em relação a quem são essas pessoas? Porque essas
pessoas estão ali, Iá, eu acho que essa experiência desse estágio foi muito rica por conta
disso.

N: E aí é como a próxima pergunta em relação à saúde mental desses jovens, quais são os
desafios para a implementação de um de um sistema, de uma intervenção que cuide da saúde
mental desses jovens?

A: Pois é no lugar que o psicólogo está, não tem como ele cuidar da saúde mental dos jovens
lá, porque ele faz parte do sistema que pune. Ele é um braço do judiciário, uma vez que eu fui
até no seminário do conselho federal de psicologia, sobre o exame criminológico, que é no
sistema adulto, mas a lógica do exame criminológico, ela funciona no sistema
socioeducativo. Com esses relatórios, né? E o juiz lá ele mesmo falou que ele precisava dessa
muleta. A muleta era o exame, né? E no caso, o relatório no socioeducativo é a muleta
também do do judiciário, porque o juiz vai decidir a partir daquele relatório. Então, enquanto
porque o adolescente só vai falar, né? É, ele tende, assim, com o tempo, quando ele vai
começando a entender como que funciona, ele tende a direcionar a fala dele para o objetivo
dele sair o mais rápido possível dali. Então ele não vai trabalhar as questões dele assim
abertamente, né? É, a psicóloga não vai conseguir assim, ou talvez pode até conseguir, mas
de forma muito limitada, trabalhar as questões dele, porque ele sabe que ela faz parte do
sistema que está punindo ele. Então, se o psicólogo às vezes estivesse fora daquele ambiente
ou não estivesse fazendo parte dessa avaliação jurídica dele, aí sim poderia fazer algum
trabalho mesmo ali de saúde mental. Que é o que é o nosso papel, né? Aí é isso. Assim, a
gente defende a, que a saúde, que o adolescente possa sair da unidade para tratar da saúde,
então que ele tivesse acesso a um psicólogo, com a garantia dos sigilos e tal, tudo fora
daquele ambiente ali da prisão, porque ali não tem como tratar a saúde mental num ambiente
que é totalmente adoecedor, né? Até eu comecei a adoecer lá, né? Todo mundo adoece. Prisão
é um lugar de destruição da saúde mental, não de promover saúde mental, então é um desafio
muito grande, mas é algo que dificilmente vai ser alcançado. Inclusive eu acho que vale a
pena você procurar… Eu não vou saber te falar o número da resolução, porque eu sou
péssima com gravar números, mas tem uma resolução do conselho federal de psicologia
sobre essa questão da atuação do psicólogo no sistema socioeducativo. É, e eles estavam
justamente tentando falar sobre esse lugar e tal, mas acabou que, é como também é um campo
de trabalho e muitas pessoas preferem se agarrar a ele da forma precária que ele está, do que
tentar pensar para além dele, sabe? Então acaba ficando mais do mesmo também.

N: A próxima pergunta é, bem nesse sentido mesmo, como você cuida da sua saúde mental
dentro desse contexto que você vive?

A: A única forma de eu melhorar é sair, né? E eu conheço outras pessoas também que saem.
É muito difícil alguém ficar por muito tempo, sabe? Tem uma rotatividade alta. Eu tenho
amigas que inclusive eram concursadas e saíram tipo assim, depois de 5 anos, chega um
tempo que não tem terapia que resolva. A pessoa precisa sair porque é muito pesado, né?
Assim, teve adolescente que eu atendi que foi assassinado, sabe? Então é não só as
dificuldades que a gente tem lá dentro, porque as oportunidades para os adolescentes são
muito limitadas, então você não consegue garantir o direito. O adolescente é agredido lá
dentro, igual teve um que eu atendi que teve o braço quebrado e aí ele não estava tendo
atendimento de fisioterapia. E aí, a, mulher dele, né? Que na época ele era, apesar de ter só 16
anos, ele tinha mulher e filho. Ela fez a denúncia no Ministério Público. O Ministério Público
foi lá, eles acharam que eu tinha feito a denúncia e falaram que eu estava contra a instituição
e aí você fica assim, poxa, mas não é para garantir o direito? Então, buscar a garantia do
direito é ser contra a instituição, né? Falaram que estava tomando partido do adolescente. O
problema era para a instituição que eu estava tomando partido do adolescente para proteger o
direito dele. E aí gente tem que estar contra eles. Não entendi, né? É então esse esse tipo de
situação, sabe? Você fica impedido, porque o que adoece o trabalhador é esse impedimento
de realizar o trabalho, né? É, de acordo com a saúde mental, né? Essa ação barrada aí, essa
ação impedida, que é o que adoece e é o que a gente tem o tempo todo lá a gente vê ali a
situação, não temos as ferramentas para resolver. Eu cheguei a ter crise de pressão alta na
época enxaqueca.
N: Essa era a última pergunta. Queria te agradecer muito novamente por ter se disposto a
responder. Realmente deu um, foi um acesso do ponto de vista de um terceiro. Seria muito
enriquecedor poder ter um estágio igual você falou, mas te ouvir já me deixou pelo menos um
pouquinho mais perto disso, porque eu acho que nem isso, nem esse pertinho pela fala do
outro, a gente nunca teve, pelo menos dentro da PUC, então, muito obrigada mesmo por ter
compartilhado um pouquinho da sua trajetória.

A: Por nada. A PUC, inclusive, é uma das instituições que compõem a diretoria da PAC aqui
em Minas. Então, na a PUC tem estágios na PAC aqui a PUC aqui de Minas. Interessante
vocês fazerem um intercâmbio com a daqui, né? Vocês poderiam visitar lá.

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