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A Crise, a Pandemia e Seu Impacto na Inadimplência
Diante do choque abrupto e severo
gerado pela pandemia desde março
na economia brasileira, fundamen-
tos importantes têm se deteriorado
de forma progressiva – alguns em
maior proporção que outros. Em
geral, todos eles refletem, em al-
guma medida, a redução generali-
zada da atividade em virtualmente
todos os setores da economia. A
mediana do Relatório Focus1 de 5
de junho indica uma queda do PIB
prevista pelo mercado de 6,5%
para o Brasil em 2020 – que seria
a maior retração da economia bra-
sileira na série histórica. Isso sem
considerar que tal projeção parece
ser bastante otimista em compa-
ração àquelas mais recentes de
instituições como o Banco Mundial
(que prevê queda de 8,0% para o
Brasil) ou a OCDE (de 7,4%). 2 3 De
toda forma, a despeito da magni-
tude exata da contração da eco-
nomia, resta saber como variáveis
individuais vão se comportar nesse
contexto – considerando, sobretu-
do, que se trata de uma crise com
poucos precedentes também na
sua natureza e, consequentemente,
na natureza do seu endereçamento
por parte dos governos e do seu en-
frentamento pelos demais agentes.
Entre essas variáveis, uma delas
especialmente importante na com-
junho de 2020
temas de economia aplicada
preensão da forma e do ritmo da
retomada no cenário pós-pande-
mia diz respeito à inadimplência.
Considerando a redução de empre-
go e renda de parte significativa
da população somada ao aumento
das incertezas, a capacidade de
solvência e liquidez dos agentes
será um termômetro fundamental
para entendermos como a dinâmi-
ca de consumo e o investimento
se comportarão no próximo ano.
O mercado de crédito, afinal, tem
atuado como um catalisador rele-
vante para a economia brasileira
nas últimas décadas – a despeito
dos nossos juros historicamente
altos (que, segundo a literatura
mais recente, ref letem gargalos
estruturais – como a baixa infor-
mação de crédito, a relativa alta
concentração bancária, um sistema
tributário distorcido e a custosa
recuperação de crédito).
De acordo com dados preliminares,
o panorama de inadimplência no
Brasil não é animador. Segundo o
SPC Brasil, a inadimplência no co-
mércio aumentou 3% em abril (isto
é, quando apenas do começo da
crise) com relação ao mesmo mês
do ano passado, e o número total
de consumidores negativados em
maio chegou a 62,8 milhões – o que
corresponde a 40,0% da população
Gabriel Brasil (*)
adulta do país. Cada consumidor
negativado deve, em média, R$
3.206 – um patamar notavelmente
elevado, muito acima da média sa-
larial do país, que era de R$2.234
antes da crise segundo dados do
IBGE. Ainda segundo o SPC Brasil,
apenas entre março e abril, o total
de dívidas em atraso no país cres-
ceu 1,4% em relação ao mesmo
período de 2019.
Segundo dados da Confederação
Nacional do Comércio, 25% dos
brasileiros têm atualmente dívidas
ou contas em atraso e, mais alar-
mante do que isso, 11% das famí-
lias se declaram sem condições de
honrar contas e dívidas. É prová-
vel, portanto, que a economia bra-
sileira apresentará deteriorações
ainda maiores nos indicadores de
inadimplência nos próximos meses.
Vale lembrar, ainda, que o enfren-
tamento da pandemia no Brasil
segue uma trajetória errática e
demasiadamente lenta em compa-
ração com a maioria dos países, o
que provavelmente atrasará ainda
mais a retomada do crescimento da
economia – e, portanto, das condi-
ções de adimplência da população.
De modo geral, a inadimplência
continuará refletindo a deterio-
ração dos níveis de emprego – em

que pese o fato de que a avaliação
destes esteja sujeita a algumas
controvérsias nesse momento. De
acordo com dados da PNAD, em
abril a taxa de desemprego che-
gou a 12,6%, o que, por si, já é um
patamar elevado. No entanto, isto
ainda não reflete propriamente a
magnitude da crise. É provável que
essa taxa esteja, em boa medida,
represada pelo programa de pro-
teção de empregos lançado pelo
governo federal nas primeiras se-
manas da pandemia (que, de acor-
do com o Ministério da Economia,
já contemplou cerca de 8 milhões
de postos de trabalho) e também
pelo aumento de trabalhadores
que, diante do cenário de elevadas
restrições e incertezas, suspendem
a procura por oportunidades de
Gráfico 1 - Concessão de Crédito (em R$ Bilhões), Jan-Abr
Fonte: Banco Central. Elaboração do autor.
temas de economia aplicada
emprego e passam a fazer parte
do grupo dos desalentados. Assim,
é razoável supor que os níveis de
adimplência da população estejam
pressionados por uma situação
ainda mais complicada e complexa
do que aquela expressa pela já ele-
vada taxa de desemprego. Conside-
rando ainda que a taxa de desem-
prego é uma variável com notório
delay em comparação a outros in-
dicadores da economia, é provável
que o ambiente de crédito do Brasil
seja marcado por um período ex-
tenso de aumento de inadimplência
mesmo se a retomada da economia
já começar a ocorrer, digamos, no
segundo semestre.
Nesse sentido, vale a pena olhar
também para indicadores de crédi-
junho de 2020
47
to num sentido mais amplo – que,
no mesmo sentido, também con-
tam uma história preocupante.
Dados de abril do Banco Central
indicam aumento substancial da
procura por crédito em março, no
começo da pandemia – refletindo
diretamente a queda abrupta de
receita das empresas da maioria
dos setores. Em abril, no entanto,
embora tal cenário de redução de
faturamento tenha se acentuado, o
nível de concessão de crédito dimi-
nuiu, tornando-se inferior àquele
apresentado em abril de 2019. Tal
fenômeno sugere um processo de
empoçamento de liquidez, pro-
vavelmente refletindo o aumento
significativo do risco de crédito em
função da escalada das incertezas
econômicas no país.
48 temas de economia aplicada
Nos últimos dois meses, ciente de tal desafio, o Banco
Central tem trabalhado para prover o mercado de
crédito com mecanismos que não apenas garantam
a liquidez do sistema bancário, mas também favore-
çam o processo de concessão efetiva do crédito até o
tomador, reduzindo possíveis riscos de empoçamento
– incluindo uma inédita linha direta de crédito entre o
próprio Banco Central e pequenas e médias empresas
para o pagamento de suas folhas de pagamento.
Essas iniciativas provavelmente serão refletidas nos
dados dos meses seguintes, mas terão efeitos limi-
tados na medida em que as incertezas da economia
Gráfico 2 - Taxa Média de Juros, 2016-2020 (em %)
Fonte: Banco Central. Elaboração do autor.
Se há um aspecto mitigador no panorama econômico
no contexto da pandemia, este diz respeito às taxas
de juros. Estas – que já estavam em queda estrutural
desde 2016, provavelmente refletindo sobretudo a
ancoragem fiscal promovida pelo Teto de Gastos, como
ilustrado pelo Gráfico 2 – atingiram patamares ainda
mais baixos em função da significativa redução de
demanda durante a pandemia. Nesse sentido, há uma
junho de 2020
persistem, afetando diretamente o risco de crédito
de pessoas físicas e jurídicas no país. Nesse sentido,
parecem especialmente inoportunos os dois Projetos
de Lei (PL) que tramitam no Congresso (PL 1181/10
e 1182/20) com a pretensão de impedir a inscrição
de consumidores em cadastros negativos durante a
pandemia. Embora tais projetos sejam possivelmente
bem intencionados em termos retóricos, a eventual
aprovação de medidas nessa natureza certamente
prejudicaria ainda mais o processo de avaliação de
risco de crédito por parte das instituições financeiras,
prejudicando diretamente os custos de financiamento
dos tomadores mais vulneráveis.
oportunidade clara de a retomada do crescimento da
economia ser, em boa medida, favorecida por um mer-
cado de crédito bem aproveitado e capaz de prover
liquidez para as empresas com custo estruturalmente
baixo.
Para isso, no entanto, parece necessária uma clara
combinação de políticas, que estabeleça, pelo menos:

(i) um endereçamento do desafio
sanitário menos errático, que dê
ao país um horizonte mais claro
sobre as perspectivas de médio
prazo para uma reabertura efeti-
va e segura da economia; (ii) uma
abordagem regulatória responsá-
vel, que não prejudique ainda mais
o balanço de riscos associados à
concessão de crédito; e (iii) uma
política monetária bem-sucedida
na missão de prover o mercado
com expectativas bem adminis-
tradas que mantenham as taxas
de juros em patamares reduzidos
mesmo depois do fim do perío-
temas de economia aplicada
do mais acentuado de repressão
da demanda. Num cenário como
este, é provável que os níveis de
inadimplência do país se estabili-
zem e possibilitem o uso do crédito
como um motor de retomada para
a economia brasileira – como foi
feito pelo Brasil, por exemplo, na
relativamente bem-sucedida saída
da crise de 2007-2008.
1 Banco Central, Relatório Focus de 6 de
junho. Disponível em: https://www.bcb.gov.
br/publicacoes/focus/05062020
junho de 2020
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2 Banco Mundial, Global Economic Prospects,
junho de 2020. Disponível em: https://www.
worldbank.org/pt/publication/global-
economic-prospects
3 OCED Global Outlook, junho de 2020.
Disponível em: http://www.oecd.org/
economic-outlook/june-2020/
Economista pela Universidade Federal de
Minas Gerais e mestre em economia política
internacional pela Universidade de São Paulo.
(E-mail: gabrielchbrasil@gmail.com).