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fe

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Do universo de “Os Irmãos dos Olhos Carmesim”

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Para aqueles que viram essa história crescer aos poucos
Sejam amigos distantes
Ou próximos
À Biblioteca
Ao Daniel
E a um verme.

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☽ Prólogo ☾
— Tem certeza que quer fazer isso?
A noite chegara, trazendo consigo um frio desagradável. Uma chuva
fina caía das nuvens para a pele cinzenta de dois garnazianos que repousavam
no telhado amadeirado de um humilde chalé. No céu, miríades de estrelas
brilhavam serenamente; elas rodeavam a Lua cinza-claro, que cativava os
pequenos com sua solene presença.
— Com certeza! — respondeu o mais velho, enquanto encarava o céu
estrelado que era, aos poucos, obstruído por nuvens carregadas. — Por que eu
não iria querer?
O outro sentou-se, desviando a visão do céu para o pátio abaixo:
dezenas de casebres cercavam uma grandiosa estátua de mármore; garnazianos
circulavam de um lado para o outro e, enrolados em suas caudas, caminhavam
até seus abrigos.
— Eles dizem que é muito perigoso, Lerluh — disse o mais novo.
— E é para isso que somos treinados — respondeu Lerluh, sentando-
se e olhando para o irmão.
Eram muito iguais: a pele cinza, os quatro olhos, os cabelos brancos,
a listra no rosto, que só não era idêntica por conta do tracejado que a do irmão
mais velho possuía; as caudas, também semelhantes, mostravam para todos de
qual família eram.
— Não estou dizendo que você não vai conseguir — justificou o mais
novo, antes que o irmão sequer dissesse algo. — Somos os Ap... Sempre
conseguimos.
— Eu realmente não entendo o motivo da sua preocupação, Krëff —
começou Lerluh, pondo a mão no ombro do outro. — Olha, eu não irei sozinho.
Papai estará junto e... E Nōanni também!
— Sim, eu sei, mas...
Krëff procurou alguma palavra em sua mente, mas nada encontrou. A
frase, incompleta, se fez ouvir mais uma vez, bem baixo, ecoando pelo átrio e
morrendo assim.
Deixaram o som monótono da noite tomar seus ouvidos. O tilintar dos
sinos dos ventos que dependuravam do teto da varanda dos casebres ecoava

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por todo o local. Lá embaixo, o pátio tornava-se vazio. Os bancos, que antes
comportavam traseiros de garnazianos civis, agora recebiam as álgidas gotas
que desciam vagarosamente das nuvens.
— Gostaria de ficar resfriado antes de ir em sua primeira expedição?
— brincou Krëff, usando de sua cauda para cobrir a cabeça. Seu irmão fez o
mesmo.
— Não é bem uma expedição — disse. — Me contaram hoje que é
mais uma... guerra.
— Guerra? — repetiu Krëff, olhando de Lerluh para a telha
escorregadia do chalé. Os quatro olhos tremeram de apreensão.
O pequeno não sabia ao certo o que tanto lhe assustava. Seria a
possibilidade de perder seu irmão? Ou o medo egoísta de um dia ter de passar
pela mesma situação? Não sabia o que esperava Lerluh para além das margens
do Círculo de Garnaz, mas imaginar que sua raça estaria em uma suposta
guerra causava-lhe arrepios.
A chuva piorava aos poucos. Ao longe, um relâmpago clareou o céu,
seguido por um trovão que fez ambos sobressaltarem. Uma fraca corrente de
água passava entre os dedos de seus pés. Krëff se ajeitou, melhorando o atrito
do calcanhar na madeira resvaladiça.
— Estamos em guerra desde antes do meu nascimento, Krëff —
murmurou o rapaz de quinze ciclos.
— Contra aqueles bichos que o papai fala? — indagou o garnaziano
de dez ciclos. A voz afinava a cada palavra. Sua boca se transformara em uma
linha. Apreensivo quanto a resposta que receberia, mordeu os lábios inferiores.
— Aquelas corujas bizarras? Exatamente — confirmou Lerluh,
tirando a cauda da cabeça e deixando a chuva encharcar seus cabelos. — Nós
protegemos Zirgut desses seres... Eles querem o mal dos moradores de lá. Em
troca, o Rei nos deixa viver aqui no Círculo sem que ninguém incomode a
gente.
Krëff lembrou-se da estridente voz do senhor seu pai bravejando
maldições e insultando toda a árvore genealógica daqueles caras-de-coruja.
“Malditos! Mil vezes malditos!”, a voz do patriarca dos Ap lhe causava
calafrios.
— O que houve? Um binzone te picou, foi?

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O pequeno chacoalhou levemente a cabeça, projetando borrifos de
água dos seus longos cabelos prateados. Por algum motivo, Lerluh, que estava
completamente encharcado, se encolheu para desviar dos respingos.
— Eu não entendo... — Krëff abraçou os joelhos e, com a voz fraca,
continuou: — Por que nós somos obrigados a fazer isso?
— Você diz: nós, eu e você?
— Nós, garnazianos... — respondeu com um olhar distante.
Lerluh repousou a cabeça no ombro do irmão.
— É uma questão de proteção, eu acho — começou. — Nós os damos
proteção e eles retribuem.
— Não conseguimos nos proteger sozinhos?
— Estamos sozinhos, Krëff, todos nós.
— Eu não entendi... — Krëff admitiu, entoando sua voz como se fosse
chorar.
Lerluh se ajeitou de frente para o irmão.
— Olhe ao redor — indicou o amontoado de casebres com as mãos.
— Somos só nós, garnazianos. Se não sairmos, ficamos sem a proteção do Rei,
e se isso acontecer, não só as “corujas”, mas toda Zath’oru vem direto atrás de
nós e... — Cortou o pescoço com o polegar direito e finalizou: — todos
morremos.
A imaginação aguçada de Krëff o pregou uma peça. Ele arregalou os
olhos quando viu a cabeça do irmão rolar telhado abaixo, mas assim que os
piscou viu que ela ainda estava no lugar.
— Cacete... — O jovem deixou escapar.
— Não deixe a mamãe te pegar falando isso — gracejou Lerluh,
sorrindo para o irmão mais novo. — Enfim, não estou querendo te assustar
nem nada do tipo.
— Eu não estou assustado! — exclamou Krëff, claramente assustado.
— Bem, o que eu quero dizer é que temos que sair e, provavelmente,
lutaremos. Mas não é certo que isso aconteça. Por isso que somos silenciosos:
para evitar o máximo de conflitos.
— Você não é muito silencioso, Lerluh — zombou Krëff.
A voz infante do irmão mais novo aqueceu o coração de Lerluh,
mesmo que essa voz caçoasse dele. O garnaziano pôs uma das mãos na orelha
pontuda de Krëff e começou a brincar com ela, como sempre fazia. Krëff
escondeu o rosto nos joelhos. Ainda abraçando-os, sentiu a água fria da chuva

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se misturar com outro líquido, um mais quente, talvez salgado, que pingava
dos olhos até suas coxas.
— Tome cuidado... — murmurou com a voz trêmula. Recebendo um
súbito abraço de seu irmão, o jovem desatou a chorar, encobrindo o rosto e
apertando a boca contra os joelhos. O abraço era quente e aconchegante.
Talvez nunca mais fosse ver seu irmão de novo. Talvez nunca mais o
poderia abraçar. Então, tinha que aproveitar cada segundo.
E ele aproveitou.
Em pouco mais de um minuto, eles desfizeram o abraço, e Krëff já não
mais chorava. Os garnazianos entressorriram um para o outro.
A chuva ainda caía. As telhas rugiam com o impacto das gotas. Os
jovens se arrepiavam a cada pingo que era projetado das nuvens. Do pátio, algo
se fez ouvir. Era a voz de Osarii, e ela bradava:
— Garotos! Garotos, desçam daí! — Mesmo irritada sua voz era doce
como mel.
— Mamãe!? — Ambos se levantaram em um átimo e se aprumaram.
— Querem ficar doentes ou o quê? — brigou.
Enquanto esperava os filhos descerem do telhado, batia os pés
freneticamente em cima de uma poça d’água, não parecendo se importar se
sujava ou não a sua calça.
Eles foram até a mãe. Krëff segurou uma de suas mãos e olhou para
Lerluh, que andava cabisbaixo mais ao lado. O pequeno viu o irmão limpar
algo no rosto, “Está chorando?”, perguntou para si. Qualquer que fosse a
resposta, não importava agora. Só importava que teriam uma refeição deliciosa
quando chegassem em casa; uma última noite antes de seu irmão se tornar, de
fato, um Ap.

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- PARTE I -

BANHO DE SANGUE ESMERALDA

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☽ Capítulo I ☾
A Caça e o Caçador

A
“ baixo desta maravilhosa aurora púrpura, percebo que
minha odisseia será longa. Pergunto-me se fiz a coisa certa ao
invadir aquela embarcação luxuosa. Pergunto-me se daqui a
centenas ou milhares de ciclos esses seres agirão como nós; se eles
pensarão como nós. Eles terão uma religião? A quem irão culpar
quando as coisas não correrem como o esperado?”

Tábua Fygi recuperada entre os destroços da Cidade


Despedaçada

A
CIDADE ESTAVA CHEIA COMO SEMPRE .
Seres de diferentes raças perambulavam pelas bizarras e
irregulares ruas onduladas da média província de Mezd'a.
Semelhantes a formigas, seguiam em direções diversas,
sendo analisadas uma a uma pelos quatro olhos de um garnaziano.
Krëff Ap sentava-se solitário num banco posto burramente em um
declive. O jovem de vinte e sete ciclos forçava sua perna direita contra o chão
para não escorregar pelo assento. Ele segurava em suas mãos um jornal, o qual
encobria um folheto de procurado: um desenho esmerado esculpira um ser de
rosto magro, com um aspecto gosmento e um olhar cativante — não pela
beleza, mas sim pela estranheza que o Ap sentia ao ver aquela bizarra criatura
—, que parecia encarar irritada o caçador.
Tão distante de seu lar, mordanniano desgraçado…
Seus dois olhos inferiores estudavam a suposta aparência do meliante,
grafitada por uma pena pigmentada em tinta âmbar no papel de cor levemente
mais clara. Os superiores perambulavam em cada rosto novo que aparecia em
seu campo de visão.

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Abaixo do declive em que se situava havia uma planície rodeada por
lojas, e na rua que levava para cima caminhavam dezenas em direção ao famoso
mirante de Mezd'a; a aparição da outra Lua era a suposta atração. Moveu seus
olhos superiores da multidão até o luar e fitou, admirado, o fenômeno.
Gigantescas, Yirieda e Y'zaprūda mostravam-se como verdadeiros
deuses. Gêmeas fascinantes, entretanto, totalmente diferentes. Em um cinza-
claro, Yirieda simbolizava a paz e a prosperidade; ao contrário de sua irmã
viajante que, mesmo em um azul anil lindo, simbolizava a guerra, agonia e o
infortúnio.
Prestes a se distrair, Krëff, com seus olhos inferiores, avistou um ser
semelhante ao desenhado na folha suspensa pelas suas magras mãos. Ele
inclinou sua cabeça para o alto por completo e, encarando Y'zaprūda, pôs uma
feição mista de ódio e nojo em sua face. Enquanto se levantava do banco, o
rapaz cuspiu no chão e rapidamente vestiu sua máscara.
A figura era dotada de uma aparência peculiar, digna de um ser vindo
de Monmorath. Por trás do gigantesco olho central, artérias e sulcos cerebrais
eram visíveis, pulsando conforme os impulsos sanguíneos de seu coração, que
também se fazia ver para além da fina camada de sua pele diáfana. Krëff
hesitou por um instante, mas seguiu, relutante, em direção àquele ser.
Quinze passos…
Estava a quinze longos passos do seu alvo que, com um evidente estado
de alerta estampado em seu semblante esquisito, olhava os arredores com o
gigante olho central, notando todos, menos o seu assassino.
Dez passos…
O coração do caçador entrou em uma constante elevação de
batimentos. Sua respiração, em frenesi, acalorava seu rosto coberto pela
máscara em formato de lobo, que era enegrecida pelo capuz de seu longo
manto. Ele mirava a figura, tentando ao máximo não a perder em meio aos
transeuntes que se esgueiravam por aquela lotada rua inclinada.
Cinco passos…
Krëff começou a se preparar. O rapaz, com a mão direita escondida,
realizou um rápido e imperceptível movimento circular com o pulso. Assim
que sentiu uma fraca onda de vento se formar ao redor de seu braço, ele
estendeu os dedos anelar e médio; conferindo, pôde vislumbrar uma mancha
de energia caótica que, como uma chama púrpura, circundava, em formato de
lâmina, sua manopla de pano.

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Desculpe-me, criatura.
Ele segurou o ombro esquerdo do mordanniano com seu braço inócuo,
mas antes que seu alvo conseguisse reagir, o Ap, em reflexo, se atirou contra o
chão assim que notou um pequeno vulto se acercar de sua face. Caído, escutou
um ruído seco às suas costas e, quando olhou para trás, notou que há poucos
metros de onde caíra, enfiada em um palanque de madeira, sacudia uma flecha,
a qual, se não fosse por alguns milésimos, certamente estaria cravada no rosto
do caçador.
— Merda! — gritou alguém; o Ap não conseguiu discernir de onde. —
Você errou, seu imbecil!
Após o grito, um silêncio generalizado se instaurou no local. Todos
olharam na direção do brado da voz estridente, o que ajudou Krëff Ap a
localizar o seu suposto assassino. Procurando com seus “tetra-olhos” acima das
cabeças dos cidadãos, ele viu, repondo a flecha de sua balestra, um ser
humanoide com rosto de coruja. O Ap o encarou incrédulo, se perguntando
como haviam o encontrado. Ele se pôs entre algumas cabeças e buscou uma
rota de fuga, tendo dois olhos no aglomerado e os outros dois naquela estranha
criatura.
O ornteff estava de joelhos. Suas pernas se envergavam para trás de
maneira bizarra. O olhar era monótono. Usava um manto verde com uma
presilha, a presilha dos caras-de-coruja. Krëff provavelmente tinha algo que
lhes interessava, mas não conseguia imaginar o que poderia ser.
Ao notar o ornteff recarregando sua arma letal, inevitavelmente o
aglomerado se desesperou. Alguns começaram a correr, outros paralisaram,
outros se deitaram no chão... Um verdadeiro caos se iniciou. O Ap ergueu-se
um pouco e ficou agachado. Ele partiu, silenciosamente, em um trajeto rumo a
uma extremidade onde fosse possível escapar. Escondido pela multidão, descia
a rua enquanto recebia empurrões desajeitados; mas, aos solavancos, resistia.
Mas quedou ao escutar um tiro.
— QUIETOS!!! — Outro berro se fez ouvir do mesmo local. Dessa
vez, uma voz penetrante e grave.
A multidão milagrosamente se silenciou após o disparo, trazendo ao
local uma estranha sensação moribunda. Mais pessoas se jogaram no chão,
dificultando a tentativa de fuga despercebida do caçador, que se imobilizou.
— Vou perguntar só uma vez… — A figura abaixou o braço que
apontava a pistola para o alto e soprou a fina fumaça que ascendia do cano da

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arma. — Abaixado entre vocês, há um indivíduo… Um garnaziano. Ele usa
uma máscara de lobo e roupas com detalhes roxos. Algum de vocês certamente
o vê, não?
O Ap olhou de relance para o local onde a voz se projetava: três figuras
se localizavam ao canto da rua, saindo de um tipo de beco entre duas casas
construídas de forma a não ficarem inclinadas no declive, o que trazia uma
semelhança a um palco. Dois ornteffs completamente quietos estavam ao lado
do que falava; esse transmitia um ar de liderança. Ele novamente engatilhou a
pistola e disse:
— Se algum de vocês o vê, ordeno que me digam agora.
Por Yirieda, isso não pode estar acontecendo.
O caçador abaixou a cabeça, não parecendo notar que sua máscara se
desprendia lentamente. Ele cerrou os olhos enquanto imaginava estar em um
lugar melhor. No Círculo? Talvez. Seria bom se estivesse lá agora, com sua
família e com seus amigos. Sua imaginação o levou por um instante, mas logo
Krëff retornou à realidade, notando que sua máscara havia caído. Ele a tentou
segurar, mas em vão. Ao se chocar contra as pedras, o objeto soltou um ruído
fraco que fez o jovem por uma careta no rosto, torcendo para que ninguém
tivesse percebido o seu deslize.
— Ei! — Aos ouvidos do Ap, uma voz infante ressoou. — Você é um
garnazi…
Ele se projetou rapidamente para a direção do som e pôs a mão na boca
da criança humana, que o olhou assustada, enrugando algumas de suas
cicatrizes faciais.
— Shh!
— Então — continuou o ornteff líder —, se vai ser dessa forma,
matarei um por um até encontrá-lo.
O pistoleiro agarrou, com uma de suas patas em formato de gancho,
quem estava mais próximo dele.
Segurando a cabeça gosmenta de um pyinlon, ele posicionou a grande
arma no rosto do cidadão, que antes de conseguir se defender com um de seus
tentáculos, recebeu o disparo em cheio, tendo uma fração de sua parte superior
estourada. Logo após o estampido, a multidão tornou a correr para todos os
lados, em gritarias que abafaram o baque do corpo inerte ao chão pavimentado
com pedras irregulares.

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O Ap sentiu um arrepio na espinha e tornou a engatinhar para longe
com toda furtividade que conseguira, deixando sua máscara rachada repousar
no solo.
Se eu me entregar agora talvez menos pessoas morram… Não, o que
estou pensando? Eu preciso fug…
A audição do caçador foi tomada por outro tiro, logo após, respingos
de um líquido que, como uma chuva, banhava os inocentes desesperados;
sangue.
Fuja.
Não!
Agora.
Em um impulso, o Ap se levantou com as mãos para o alto e gritou:
— Parem!
Os cidadãos continuaram em fuga; os assassinos, notando a rendição
de seu alvo, pararam de atirar.
— Ora, ora, decidiu dar a cara, foi? — disse uma ornteff fêmea de voz
irritante.
O caçador manteve-se em silêncio por um tempo, procurando palavras
sãs em meio ao desespero que o assolava. Não podia morrer... Ainda não.
— Olha, eu… Eu sei porque me querem — ele arquejava —, mas eu
não trabalho com a minha família. E-eu não atrapalho o negócio de vocês, eu
só… quero um pouco de dinheiro. — Em partes, dizia a verdade, mas ainda
havia algo maior que o mantinha no posto de “caçador de recompensas”. Jurou
tê-lo enganado, entretanto.
O aglomerado se dissipou quase que por completo. Ao mirante,
curiosos mudaram a atenção de Y'zaprūda para o caos que ocorria logo abaixo
deles. Mortes são mais interessantes que deuses para vocês? Vermes...,
pensou, olhando para a uma dúzia de cabeças fofoqueiras que miravam, do alto,
a rua inclinada.
No local, somente quatro figuras restaram; e o Ap se pôs a pensar em
uma forma de escape. O caçador estava quase na parte plana da rua e, achava
ele, que seguindo por um caminho conhecido, alcançaria o estábulo mais
próximo antes dos caras-de-coruja, assim, roubaria um cavalo e fugiria com
maior facilidade. Mas no instante que ele deu um passo para trás, correram os

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três para a viela de onde haviam saído, sumindo da vista de Krëff. De súbito,
ele se virou e correu para a planície, a caminho do estábulo.
O aglomerado de lojas e tavernas havia fechado, mas alguns olhos
ainda podiam ser vistos espiando pelas janelas da maioria dos
estabelecimentos. O caçador corria pela rua, onde subiam, agora, duas figuras
fardadas.
Um c’leckapureano gordo e um magro acercavam-se apressados pela
calçada, tropeçando em suas pernas e titubeando por todo o caminho. As luzes-
chamas dos postes aclaravam o suor de suas testas. Eles se dirigiram para o
caçador.
— O-o que aconteceu? — indagou o gordo enquanto arquejava. —
Ouvimos disparos e… Ei!
Krëff ignorou o chamado do oficial, mantendo-se em impulso. O
policial magro engatilhou sua arma, suspendeu-a com duas de suas quatro
mãos, e urrou:
— PARE!
O rapaz, ainda correndo, olhou para trás a tempo de ver os dois terem
as cabeças decepadas pela espada da ornteff fêmea. De onde ela surgiu?
Boquiaberto, o rapaz fitou as cabeças desprendidas iniciarem uma corrida rua
abaixo.
— Hahah! Você é meu, caçador de recompensas! — Aquela voz
irritante novamente perfurou os ouvidos do garnaziano.
Krëff fugia em passos cuidadosos, tentando não tropeçar nas
irregularidades e ondulações da rua. Ele realizou novamente o movimento
circular com o pulso; a lâmina púrpura tornou a rodear seu braço direito.
A espadachim o perseguia insana, soltando pios e outros sons estranhos
para fora de seu bico riscado. Devido à anatomia de sua espécie, ela corria com
extrema rapidez e, alcançando o caçador com facilidade, preparou um golpe
fatal: segurando com ambas as mãos o punhal da espada, ela tentou perfurar o
Ap.
Merda!
A arma branca da ornteff traçou um caminho reto até a barriga do
rapaz, que por pouco desviou, saltando para o lado e tropicando enquanto ainda
corria.
A estrada continuava até uma encruzilhada; o estábulo estava a cerca
de cem metros virando à esquerda. Assim que Ap se aproximou e dobrou a rua,

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deu de frente com mais dois caras-de-coruja, que apontavam suas armas de
longo alcance para ele, decididos a pôr uma bala — ou uma flecha — em seu
rosto cinza listrado.
Sem olhar, o caçador rodou seu corpo e golpeou para trás com a lâmina
púrpura, tentando acertar a espadachim que o perseguia. Ela se abaixou,
deixando o braço direito do rapaz cortar horizontalmente o ar, e tentou socá-lo;
também sem sucesso.
Enquanto encolhido devido ao desvio do golpe, o Ap deu um chute,
acertando em cheio a barriga da mulher e empurrando-a no chão. Então, ele
tornou a correr.
A adrenalina parecia perfurar seu coração e seu pulmão. Seu cérebro,
dormente, buscava por puro instinto algum meio de sobrevivência. Suas
orelhas escutaram um disparo seco às suas costas. E de seu pescoço, sentiu um
líquido quente escorrer.
Ele pôs a mão esquerda no local atingido: estava amornado e tingia o
membro de verde-esmeralda. Desgraçados! bradou internamente, sentindo o
sangue fluir lentamente para fora de seu corpo. Krëff entrara em desespero. A
dor lhe ardia o local como uma forte queimadura. Não posso morrer, repetia
para si em pensamentos amedrontados.
— Shi'zae o aguarda, homem morto — gritou para o Ap o ornteff que
até então se manteve em silêncio. Sua voz aveludada penetrou os ouvidos do
caçador, e o nome o qual mencionara causou em Krëff uma sensação mista de
desprezo e curiosidade; mas ele a ignorou.
— Homem morto, v-você diz? — O garnaziano o questionou com
dificuldade, tendo a certeza de que receberia o silêncio como resposta.
O Ap teve uma ideia, mas teria que deixá-los se aproximar. O rapaz
reduziu a corrida. Acreditava estar atento o suficiente enquanto olhava para
trás, em intervalos percebia a posição de cada ornteff que o perseguia.
— Exatamente, caçador de recompensas — a espadachim surgiu ao seu
lado sem que ele percebesse —, mortinho!
O rapaz notou, ao canto dos olhos, a lâmina desgastada da espadachim
se aproximar velozmente de sua face. Era o momento ideal. Entreabrindo a
boca, o Ap murmurou:
— Zan'mördaz.
E em sua volta, um campo de força surgiu, e como uma forte explosão,
empurrou a ornteff contra a parede de uma loja, desmaiando-a de imediato. Do

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solo, uma grande quantidade de poeira se levantou e tomou o local por
completo, comprometendo consideravelmente a visão dos atiradores.
Krëff Ap aproveitou a deixa para entrar na primeira viela que viu.
Escutando pios irritados às costas, ele desceu por uma escadaria e atravessou
pelo beco apertado e ladeado por portas de residências e de lojas exóticas; e
empesteado de cheiros desagradáveis.
Percorrendo consideráveis metros até sair pelo outro lado, se
encontrava, agora, em uma rua estranhamente movimentada. A grande maioria
dos que transitavam por ela andavam até uma bifurcação à sua esquerda, e, sem
pestanejar, ele seguiu o fluxo da multidão. Teria de encontrar outra maneira
para fugir.

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☽ Capítulo II ☾
Corujas

“...Nos momentos em que nossa vida está por um fio, é quando nos
damos conta do valor daqueles que deixamos para trás e dos momentos que
compartilhamos, ou mesmo daqueles que deixamos escapar. Por isso, minha
jovem, viva intensamente o presente. Pois algo ainda pior pode estar à
espreita...”

Frigolin, o Vagabundo, para Violla.

L
EVANTE - SE, AP!
Ele sentiu seus pés descalços tocarem em um solo arenoso. O
sol do recente alvorecer abraçava sua pele acinzentada, da
qual escorriam finas gotas de suor que passeavam pelo tronco
desnudo do rapaz até, por fim, pingarem e umedecerem o chão seco.
Ajoelhado, Krëff olhou para uma figura à sua frente: um garnaziano
adolescente empunhava um grande bastão e olhava para o futuro caçador.
Apesar de sua postura confiante e vitoriosa, sua feição pedia desculpas ao rapaz
que acabara de derrotar. Em meio à gritaria que tomava os arredores, uma voz
grave se destacou:
— Krëff, o que você está fazendo?
Seu pai pulou a cerca que circundava o pequeno ringue. Ao olhar para
o lado, o jovem vislumbrou uma multidão de garnazianos que repousavam os
braços na balaustrada de madeira; eles aparentavam comemorar sua humilhante
derrota. No interior da arena, agora, um garnaziano alto se aproximava.
Miymora, o patriarca dos Ap, demonstrava uma raiva que Krëff já vira outras
vezes, mas ainda não havia se acostumado; tampouco sabia como se comportar
diante dele quando estava dessa maneira.
O pequenino tentou se levantar, mas foi suspenso no ar pelas mãos do
ser que, em outros tempos, carinhosamente o chamava de filho. Segurado pelo
pescoço, o rapaz balançava suas pernas, buscando o chão desesperadamente.
— O que você estava fazendo? — Miymora murmurou, entredentes.

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— Eh... Eu jhá íar me lev-ta. — Krëff tentou falar, sendo
impossibilitado pela mão que o suspendia.
— Não seja fraco! — O garnaziano rugiu e o jogou no chão, cuspindo
para o lado e umidificando o solo arisco com sua saliva.
O jovem caiu de costas e rolou por menos de um metro, usando de sua
cauda para se estabilizar. Ofegante, Krëff passou as costas de uma das mãos no
nariz, limpando o filete esmeralda pouco transparente que dele escorria.
— Lerluh, não pegue leve da próxima vez — falou o pai, virando-se e
indo de encontro ao outro filho. — Ele precisa aprender a se defender.
O rapaz viu o pai pôr as mãos sobre os ombros de Lerluh e murmurar
algo em seu ouvido. Subitamente, Krëff se levantou e correu para a floresta,
atraindo olhares confusos da plateia. Ele acelerava, agora, até dezenas de
árvores esquálidas e contorcidas. Tropeçando nas moitas, caminhava em meio
a engasgos e soluços; secando, por vezes, seus olhos transbordantes.
Percorrendo mediante ao bosque, buscava a maior e mais antiga árvore das
redondezas, mas encontrava dificuldades para achá-la.
O local aparentava funcionar de maneira estranha, como se o arvoredo
mudasse a cada nova olhada que o rapaz dava para os lados; ou a cada vez que
ele piscava. Dentre alguns troncos, ele notou uma pequena casa e foi até ela,
mas, enquanto estava a caminho, limpou os olhos marejados, subitamente a
perdendo de vista. Confuso, o garoto olhou ao redor, procurando algum sinal
da pequena construção, porém, o que ele acabou encontrando, na verdade, fora
a grande árvore.
De um solo vívido se projetava um amplo e espesso tronco, que
expunha suas raízes anosas entrelaçadas à superfície da floresta, de maneira a
formarem o habitat perfeito para inúmeras espécies de insetos; e para a
proliferação de cogumelos venenosos. Diversos buracos contornavam toda a
extensão do tronco, como dezenas de tocas que poderiam ou não abrigar um
perigo iminente para Krëff; ele ignorou essa possibilidade.
O rapaz andou calmamente pelo entorno da árvore, procurando um
orifício perto o suficiente para começar a subi-la. Encontrando um ao seu
alcance, avançou em direção a ele. Alçando sobre as grossas raízes, pôs as duas
mãos dentro do primeiro buraco e suspendeu-se no ar, iniciando sua escalada.
Em movimentos calculados, o jovem subia com facilidade, sempre
relembrando as palavras que sua mãe lhe proferia em dias de treinamento:
“Com força e vontade se levanta o mais gordo brugarc, filho.”; e em poucos

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segundos, Krëff chegou a um galho onde, de pé, era possível ver praticamente
todo o bosque de cima. A camada de folhas se assemelhava a um extenso tapete
verde vibrante, contrastado por um lindo céu desanuviado, que acalmava o
coração rancoroso do rapaz. O sol novamente acalentava sua pele, o fazendo
desejar que essa solitude tardasse a passar; mas não demorou muito para que
ele escutasse um farfalhar de folhas logo abaixo.
O garoto se abaixou e, perscrutando a floresta, viu que Lerluh se
aproximava, içando-se pelo tronco com uma rapidez surpreendente. Krëff
bufou assim que notou o irmão.
Sustentado pelo galho, o jovem apoiou as costas na madeira e sentou-
se, abraçando os joelhos. Seu irmão saltou e agarrou o ramo em que o menor
estava suspendendo-se usando sua cauda machucada.
— Krëff, você está bem? — indagou o garnaziano de dezessete ciclos.
Parecia estar aliviado. Lerluh havia posto um belo amuleto: uma joia minúscula
luzia veemente sobre sua pele, deixando o cinza de seu tronco levemente mais
azulado. Krëff manteve-se em silêncio, olhando o objeto com desdém.
— Olha... — começou o mais velho, fazendo uma pequena pausa para
uma bufada — Eu já passei pelo que você está passando, não se lembra?
Entendo que o pai pode ser bem... insensível, às vezes, mas… — parou por um
instante.
O outro permaneceu em sua taciturnidade.
— Você está quase virando adulto — continuou Lerluh, olhando
fixamente nos olhos de seu irmão. — Eventualmente, você vai sair do Círculo
e conhecer o mundo com a gente...
— E eu quero sair — respondeu o garoto de doze ciclos —, mas não
entendo porque eu preciso ser tratado com tanto... desprezo.
— Não é desprezo, Krëff... Eles estão preocupados — murmurou
Lerluh. — O mundo lá fora não é como antes. As pessoas não vão usar bastões
de borracha ou espadas de madeira se verem um garnaziano indefeso, entende?
— Eu sei me defender...
— Mas não o suficiente. — O rapaz engatinhou e parou a poucos
centímetros do irmão, pondo uma mão em seu ombro. — Veja só como estou
machucado. — Lerluh levantou o rosto e mostrou um ferimento cicatrizado no
pescoço; e outros dois na bochecha e no braço que se estendia até Krëff.
— E como está a sua cauda? — indagou o menor, como se,
subitamente, tivesse se lembrado.

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— Ah, sim! Está bem melhor, olhe... — Um objeto cortante aparentava
ter rasgado até a metade da espessura da cauda de Lerluh, algo desesperador
para qualquer garnaziano. Por mais que a entrada fosse visível, faltava pouco
para ficar completamente curado.
— Nossa! — Krëff exclamou.
— Pois é...
O silêncio tomou o local, sendo quebrado somente pelos ocasionais
pios dos passarinhos ao redor e pelo vento batendo contra as árvores, fazendo-
as dançarem em sincronia. Filetes de luz passavam dentre as folhas e aclaravam
a face de ambos. Ficaram os dois ali, inertes e quietos, até Lerluh finalmente
quebrar a monotonia:
— Você melhorou muito desde a última vez, sabia? — Ele se deitou
no galho, deixando sua cauda cortada pender para o lado.
— É sério?
— Sim! Todos comentaram isso.
— Mas estavam sorrindo com a minha derrota... — disse um Krëff
deprimido, abraçando os joelhos com mais força.
Lerluh sentou-se em um átimo. O outro o olhou levemente espantado.
— Um sorriso silencioso, irmão, pode esconder inúmeras coisas:
tristeza, solidão, inveja... orgulho. — O rapaz deu ênfase à última palavra. —
Mas o que demonstraram, e os elogios que te deram, vai além de qualquer coisa
que você ache… Estão orgulhosos de você, Krëff.
— Eles estão… orgulhosos? — repetiu Krëff, como um eco mais
afinado da voz do irmão mais velho. O pequeno soava confuso.
— Se você não passasse o dia inteiro subindo em árvores e caçando
insetos, certamente notaria que estão.
— Mas e o papai?
— A mãe brigou com ele — respondeu dando um sorriso bobo. Krëff
contribuiu com uma risada.
Mais uma vez, silenciaram-se ambos, e Krëff, após um momento,
indagou:
— Acha que Haemï também está orgulhosa?
— Seja lá onde ela esteja, irmão, sem dúvidas está — respondeu com
convicção.
O pequeno sentia-se melhor. Perguntava para si mesmo como Lerluh
conseguia. Como sempre estava com um sorriso no rosto, ou como tinha

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tamanha determinação para proteger seu povo, ou como ele sempre lhe ajudava
a controlar as inúmeras tempestades de sua mente, que lotada de incertezas,
fazia-o tão fraco. Sorriu para o irmão, como se transmitisse toda sua gratidão
através dos olhos purpúreos.
— Ponha isso e vamos voltar, certo? — disse Lerluh, estendendo um
amuleto semelhante ao que usava.
— Certo! — Ao colocar o objeto, estranhamente a floresta pareceu ter
diminuído. Krëff passou a sentir um cheiro estranho, como se algo queimasse.
Notou que as pálpebras de seu irmão estavam arregaladas; uma expressão
desesperada.
Ao Norte de onde estavam, gritos foram ouvidos, assustando os
animais que tinham sua morada na floresta. O bater das asas das diversas aves
que repousavam por entre as ramificações das árvores tomou os ouvidos dos
irmãos. Espantado, o mais velho perguntou:
— O-o que está acontecendo?
Lerluh desceu escorregando pelo tronco da Grande Árvore. Suas
pernas vacilaram com o forte impacto ao solo entrelaçado com raízes.
— Venha, Krëff! Rápido! — bradou o rapaz.
Porém, antes de Krëff sequer tentar descer, sentiu um forte impacto na
nuca. Nos próximos segundos, seu corpo caía quase desacordado para o chão,
escutando os berros desesperados de seu irmão.
Cerca de trinta minutos haviam se passado, mas, para Krëff, nem um
segundo sequer. Sua cabeça doía. Ele contraiu os olhos, preparando para abri-
los, e quando o fez, viu, entre as grossas raízes da Grande Árvore, diversos
insetos brigando por folhas e seiva. Sentia um líquido quente escorrer
fracamente da nuca. Perdido e confuso, olhou os arredores, notando que as
árvores, as moitas e as tocas de pequenos animais mudavam de posição
conforme sua visão perscrutava o bosque. Levou a mão ao pescoço: o amuleto
já não estava mais lá. Pensou em escalar novamente, mas quando olhou para
trás, notou que a Grande Árvore havia desaparecido.
— Lerluh…? — chamou, se assustando com as aves que alçaram voo
de dentro das folhagens. — Lerluh…!
O pequeno olhava ao redor assustado. A floresta estava mais escura,
vazia e mais silenciosa. Sem sons além do estalar do vento batendo contra as
folhas. Sem nenhum sinal de vida. E pior: sem um caminho certo para casa.

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Seus olhos, conforme procurava e nada encontrava, se tornavam
quatro pequenas nuvens carregadas que se preparavam para liberar uma
torrente d’água. Mas de que adiantaria chorar agora? Ademais, tinha um
péssimo pressentimento. Mas, pensou Krëff, poderia ser somente o medo
oferecendo-lhe alguns pensamentos funestos.
Teria que achar o Círculo sozinho. Krëff se dirigiu a uma das árvores
e arrancou o galho mais grosso que encontrara, se virando para uma direção
qualquer e seguindo em frente sem a mínima ideia de onde estava indo.
Sem olhar para trás, Krëff caminhava, se perguntando o que havia
acontecido. “Não se desespere”, tentava acalmar a si. Onde estava Lerluh?
Quem havia roubado o seu amuleto? Por que queriam lhe machucar? indecisões
e dúvidas assolavam a mente do garoto. Queria olhar o bosque de cima, mas
nenhuma árvore era tão grande quanto aquela. Queria correr, mas tinha medo
de se perder ainda mais. Crendo que já havia andado o bastante, o jovem parou
e tentou escutar algo; e ele ouviu, ao longe, um barulho suave… uma
sonoridade deliciosa que lhe tomou a audição maviosamente.
Tomou para si que era água corrente, fluindo serenamente enquanto
beijava de leve os seixos que a ladeavam. Quis se aproximar, somente para se
deitar e cochilar enquanto ouvia aquele doce som. O rapaz procurou, e não
demorou muito para que encontrasse o extenso riacho que atravessava por todo
o bosque; outrossim, por todo o Círculo. Krëff foi até o afluente, alegrando-se
por encontrar uma forma de voltar para casa; também por encontrar algo para
beber.
— Água! — pensou alto, inclinando-se para bebericar a água doce do
riacho. Após terminar, tornou a caminhar, seguindo as margens da afluente,
dessa vez certo de onde estava indo.
Mas, conforme se aproximava, sentia uma sensação brotar em seu
âmago, e não gostava nada dela. Continuou em frente, descobrindo que sua
ideia se tornava verdade, seu medo se tornava real, e o seu pressentimento
estava correto.
O desespero culminou no coração de Krëff.
Podia sentir o cheiro de sangue no ar. Podia escutar o estalar das
chamas na madeira dos casebres de sua raça… E podia ouvir, entre tantos sons,
o que menos gostaria.

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— Sai de perto do meu filho! — Osarii bradava, com uma fúria quase
palpável. Estava contra a parede, protegendo Lerluh, que estava caído
desacordado no chão.
Sua mãe tinha um punhal em mãos. Em seu rosto, sua listra vertical e
quebradiça estava acesa, luzindo em púrpura. Ela mostrava os dentes, expondo
dois imensos caninos superiores. Arquejando, demonstrava sinais de fraqueza,
mas mantinha-se de pé enquanto pressionava a coxa esquerda com uma das
mãos.
Defronte a ela, uma coruja humanoide estava parada, segurando uma
lança ensanguentada. Era tão bizarra, enorme e forte que Krëff paralisou ao vê-
la.
— Nós… — O ornteff se aproximou mais um pouco — não queremos
matar vocês. Se vocês não resistissem nada disso aconteceria. — Sua voz era
inexpressiva.
— Sai de perto de mim — murmurou Osarii, com a voz apertada.
— Venha comigo. Prometo que não morrerá… O que vamos fazer será
bom, você entenderá.
Conforme a criatura se aproximava, Osarii apertava o punhal com
maior força. O brilho em seu rosto oscilava, junto disso, expressões doloridas
a tomavam. Mas ela mantinha-se de pé.
— Osarii — bradou Miymora —, fuja logo! — E tossiu sangue. Sua
voz custava a sair. Ao olhar, Krëff viu que seu pai estava soterrado por
destroços de um chalé.
O ornteff tentou novamente:
— Vamos, pequena, e traga seu filho conosco. — Ele estendeu a mão.
— Vocês são monstr… — A perna esquerda de Osarii vacilou. Ela caiu
de joelhos e urrou com uma dor tremenda. O cara-de-coruja chutou a mão a
qual ela agarrava fortemente o punhal, jogando-o longe; um som metálico e
agudo se fez ouvir quando o aço se chocou com veemência contra o pavimento.
Ele a pegou pelo pescoço.
— Eu não disse, pequena, que se vocês não resistissem nós não os
mataríamos? — indagou, retoricamente. — É mesmo uma pena que eu tenha
que fazer isso. — Ele sorriu e a empurrou em cima do rapaz caído, visando
atravessar ambos com sua grande lança.
Krëff assistia àquilo tudo inerte, sentindo a água fria do rio abraçar os
seus calcanhares; percorrendo até sabe-se lá onde iria desaguar. Sentia ódio de

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si por não conseguir fazer nada. Ele hesitava a cada mísero movimento; até
respirar era difícil. Até tentou planejar uma forma de chamar atenção da
criatura, mas o esforço que seu cérebro fazia para pensar era o inverso da
vontade que seu corpo tinha de se mover.
— Shi’zae os aguarda, crianças. — O ornteff balançou sua arma
pontiaguda no ar, e com um breve movimento, jogou-a à barriga dos dois, mas,
antes que sua lâmina os trespassasse, recebeu um forte impacto na lateral do
rosto, que o fez tropeçar para o lado e perder o equilíbrio por completo. O cara-
de-coruja se virou e olhou para quem tinha o ferido.
Krëff estava na frente de Osarii e de Lerluh, segurando o grosso galho
que arrancara da árvore. A listra em ípsilon em sua face brilhava vividamente
em púrpura. O rapaz arquejava insanamente, enquanto mostrava seus caninos
e babava como um animal.
— Olha só o que temos aqui! — comentou o ornteff, passando a mão
no local onde recebera o golpe. Ele aprumou-se novamente à postura confiante,
mas não pareceu assustar Krëff. — O que planeja fazer, criança? Me derrubar?
Me matar? — A criatura gargalhou.
O rapaz nada disse, apenas olhou para onde Osarii estava caída, junto
de Lerluh, e para Miymora, que se deitava quase imóvel sob os escombros de
madeira. De qualquer modo, não havia nada que gostaria de dizer à coruja.
Somente a queria morta, com seu sangue espalhando-se e manchando de
escarlate as tinturas embranquecidas das paredes dos chalés. E à Estatua, daria
como prêmio a cabeça daquele maldito, sim.
— O que há? Não sabe falar? — indagou o cara-de-coruja,
entressorrindo.
Krëff partiu em disparada, empunhando fortemente o galho com uma
das mãos. Veias saltavam latejantes de seu braço fino, pulsando freneticamente
com o bater de seu coração aflito. Surdo quanto aos arredores, o rapaz corria
não tão confiante na direção do inimigo. Ele preparou um golpe, mirando
novamente a lateral de seu rosto.
E com um crack, madeira e madeira se chocaram; seu oponente havia
defendido o ataque. A colisão fora tão intensa que o braço de Krëff vacilou e
ele quase largou sua “arma”. Tão intensa que uma fração do galho se desfez,
explodindo em farpas com o impacto.
O cara-de-coruja deu um golpe com a haste da lança, acertando em
cheio o tronco do pequeno garnaziano e o forçando a recuar alguns passos.

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Buscando o ar que a pancada o tirou, Krëff expôs seu pescoço, mas girou para
o lado pouco antes da lâmina cruzar-lhe a garganta.
O garnaziano enlaçou a haste com os braços e tentou arrancar a lança
das mãos do seu oponente. Usou das pernas para puxar a arma, mas ela estava
estática como uma enorme rocha. E todo o seu corpo gritou em sobrecarga.
Talvez ele realmente era fraco demais. Nada poderia mudar esse fato,
nem a sua determinação em salvar aqueles que amava. Puxava sozinho uma
rocha, e seus músculos fracos inutilmente tentavam arrastá-la à força para fora
de seu posto eterno. Eles ardiam e latejavam; e enrijeciam e fraquejavam.
Lágrimas escorriam de seus olhos para as bochechas, mas Krëff não tinha
certeza do motivo. Ele gritou em fúria, mas calou-se quando sentiu seu corpo
ceder e deslocar-se para perto do ornteff, junto com a lança.
Experimentou seus braços quase serem arrancados com o puxão. Seus
pés já não tocavam mais o solo. Ele involuntariamente rodopiou no ar até ficar
de barriga para cima, com total visão do rosto do ser que poderia o finalizar
com um mero golpe. Vá em frente, pensou, mostre para todos o quão fraco
sou. E recebeu um forte golpe à barriga, caindo de costas no chão.
O ornteff piou alto; o habitual gargalhar ensandecido de seu povo
desprezado. Ele pôs a pata sobre Krëff e o empurrou, deixando-o de costas para
ele.
— Gostaria de lhe parabenizar pela coragem, pequeno — disse. — É
uma pena que tenha sido em vão. — O ornteff suspendeu a cauda do garnaziano
caído e a rasgou com a lâmina de sua lança.
Krëff berrou dolorosamente, mas, tão súbito quanto a dor lhe alcançara,
ela parou; e junto foram os seus sentidos, diminuindo conforme o sangue
jorrava. Escutava ao fundo os berros de Osarii e de Miymora, distantes e
abafados; conflitando com o estalar das chamas e com o piar do ornteff, que se
demonstrava deliciado com o berro desesperado da família Ap. Já não sentia
mais nada. Entretanto, antes de apagar por completo, Krëff viu minúsculas
esferas surgirem.
Saindo das sombras e até das chamas, elas se aproximavam. Cobalto,
verdes, prateadas e douradas, brilhavam na escuridão. E as esferas, Krëff
arriscou, eram olhos; olhos de outras famílias de garnazianos: os Werg, os
Frull, os Kihr e os Tirhaô.
Poderia estar imaginando coisas, mas, se fosse tal, preferiria morrer
com a ilusão de que todos eles se puseram em risco para salvar sua família.

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E, com sorriso esperançoso em sua face, apagou.

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☽ Capítulo III ☾
O Circo Dente-de-Leão

“Fujam... Fujam até encontrar o horizonte. Lá, talvez, não sejam


pegos.”

Senteq Nackle, em “Os Irmãos dos Olhos Carmesim.

O
GARNAZIANO CAMINHAVA AOS SOLAVANCOS na
direção da multidão. Impressionantemente, nenhum ser dali
parecia se importar com o recente tiroteio; nem com o fato
de ele estar claramente baleado. O sangue do ferimento fluía
como cascata, manchando seu roupão marrom escuro e tingindo-o de preto.
Cambaleando, o rapaz se meteu entre o aglomerado e percorreu a
alameda de concreto por consideráveis metros, incerto de como ainda se
mantinha de pé. Sentia-se padecido, sem saber exatamente para onde olhar ou
o que pensar; somente abria caminho por entre os cidadãos, empurrando para
o lado os seus pesados corpos e recebendo xingadelas sutis como resposta, que
para ele pouco importavam no momento.
Um pouco mais à frente, transeuntes dobravam rudemente em uma rua
transversal em que, ao final, uma grande e colorida tenda havia sido construída.
Esvoaçando pelo ambiente, um som se fazia ouvir, na calçada da retilínea via,
ecoando como se saísse de um megafone:
— Venham ver! — bradava um humano bem vestido, sobre um palco
improvisado com caixas de bebidas. — Somente hoje, Chamuc Dandellion! —
Dezenas de pessoas encaravam o rapaz, parecendo babar para o adorno chique
de sua veste de seda; um rico não deveria estar por aquela parte da cidade, a
não ser que houvesse certa segurança pelos arredores do circo. E Krëff torceu
para que houvesse.
O caçador aproximou-se de onde estava o rapaz, tirando as pessoas da
frente como se estivesse em uma selva extremamente densa. A entrada para o
grande circo estava logo adiante, pouco ao lado do jovem rico, acima de um

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pequeno lance de escadas, sendo guardada por três pequenos seres empilhados
um sobre o outro.
Krëff Ap avançou rapidamente, olhando assustado para trás. Rezava
para que nenhum daqueles caras-de-coruja surgissem em sua retaguarda. Ele
subiu os poucos degraus do circo e dirigiu-se para a grande porta, notando,
agora, que haviam dez ao invés de três nirnäp.
Mas somente três se puseram a defrontar o garnaziano:
— Não tão rápido, cidadão! — Um ser pequenino, de voz rouca e fina,
chamou-o a atenção. Falava na língua comum. Com seus grandes pés, tentava
se equilibrar sobre os outros dois nirnäp, que se escalaram para ficar numa
altura mais condizente.
Tinham aproximadamente sessenta centímetros. Seus cabelos,
desgrenhados e de cores vivas, apresentavam-se com penteados intrigantes e
acessórios exagerados. A pelugem, em tons pastéis, fazia com que se
parecessem com esquisitos brinquedos de pelúcia.
Krëff prendeu a atenção no que estava mais acima:
— E-eu preciso de ajuda! — falou com a mão no local ferido.
— E como podemos ajudá-lo, ser da Matriarca Pálida? — perguntou o
mais abaixo. A voz saía apertada por conta da força que fazia para sustentar
seus dois colegas.
— Vocês têm algum curandeiro? — Krëff indagou. Ele retirou a mão
de cima do ferimento e o indicou com um leve movimento no pescoço. —
Estou sangrando e…
— Curandeiro? — O nirnäp ao topo o interrompeu, inclinando-se para
olhar o machucado. — Pelos Seis, garoto, o que você andou fazendo? — Sua
orelha tremelicou freneticamente.
O caçador manteve-se quieto, sentindo sua consciência se esvair aos
poucos. Estava perdendo tempo. Eventualmente, as corujas o alcançariam, mas
queria tardar o reencontro o máximo que conseguisse. Infelizmente, da forma
que as coisas estavam indo, sua vida se aproximava apressadamente do fim.
— Rápido, por favor!
O pequeno virou seu corpo para trás, quase escorregando e caindo da
cabeça do colega carrancudo sob seus pés.
— Nn'ena, T'atoto, chamem o Chamusco Dente-de-Leão! — ordenou.
Dois nirnäp, que se encontravam sentados mais ao canto, responderam, e com
um bufar entediado, concordaram e correram para dentro do circo.

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E Krëff esperou o retorno deles. O rapaz arfava, pressionando o
pescoço latejante. O sangue dimanava por entre seus dedos, quente e devagar,
como a lambida de um lobo filhote. Lobo, lembrou-se; havia deixado sua
máscara, Canis, para trás. Mas não se atormentou tanto quanto devia, afinal,
estava passando por maus bocados e, por mais importante que a máscara fosse,
sua vida valia mais, certo?
— Abrōvoa! — proclamaram os nirnäp em um coral agudo. Dirigiam-
se para alguns amontoados de seres que se aproximavam da entrada: famílias,
moradores, viajantes solitários, grupos de amigos, mercadores... e, aos poucos,
o circo lotava.
O caçador incessantemente varria a rua com os olhos, analisando o
topo das casas que a ladeavam, e torcendo para que nenhuma figura estivesse
o observando. Ele não notou nenhuma movimentação estranha, então pôs-se de
cócoras e ficou admirando o ornamento da travessa, tentando se distrair da dor.
Quase de maneira inconsciente, ele olhou para as Luas, e seus quatro
olhos se perderam. Yirieda o observava serenamente, flutuando em meio às
nuvens que a obstruíam com um passear mórbido. Um pouco mais ao lado, a
outra, com sua caótica superfície azulada poluindo o céu e enojando aqueles
que detestavam a sua presença. Seus Ecos, pensou o caçador, São os seus Ecos,
não são?
— As coisas ficam estranhas, não é? — comentou um dos nirnäp,
aproximando-se do rapaz. A idade elevada estava estampada em seu rosto na
forma de diversas fendas e rugas.
O pequeno vestia uma longa jaqueta de lã azul escura, adornada com
botões de prata e com três tecidos sobrepostos entre si, que pendiam do ombro
e caíam até os cotovelos. Pomposo, quedou ao lado do garnaziano e fitou-o,
segurando as mãos por trás do corpo.
— C-como? — Despertando-se de um transe, o caçador perguntou,
chacoalhando levemente a cabeça e olhando para o orador.
— Quando Ela retorna…
— Ah, sim! — exclamou, olhando do baixinho para a Lua azul anil. —
Sinto que… que as coisas não acontecem como deveriam, entende?
— Oh, sim! Entendo! — O nirnäp concordou. — Como se chama,
garnaziano? É um garnaziano, não? — indagou, procurando algo nas costas do
caçador.

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— Krëff... — respondeu, esquivando-se da visão que o pequeno dava
para o seu traseiro. — E, sim, sou um garnaziano.
— O que houve com a sua cauda? Aliás, me chamo Kōoja. Muito
prazer.
— Eu sou do Leste... Não temos caudas lá — mentiu.
— Está longe de casa, rapaz. Muito longe.
O caçador assentiu com desdém e voltou a olhar para o céu.
Durante poucos segundos, permaneceram inertes, encarando seus
deuses; até o pequeno Kōoja ser suspenso nos ombros de um ser quatro vezes
maior que ele.
— CHAMUSCO DENTE-DE-LEÃO!!! — berrou um c'leckapureano,
com os quatro braços para o alto e o nirnäp nas costas.
— Me solta, seu animal! — Kōoja resmungou. — Me solta!!!
— Hahah! Não seja tão chato, Kōoja.
De um tronco musculoso saíam quatro fortes braços, com unhas tão
pontudas que chegavam a ser perigosas. A pele, em tons quentes, mais puxados
para o escarlate, mudava levemente em degradê dependendo da direção que
Krëff olhava para aquele ser. Assemelhava-se a um monstro, e Krëff se
intimidou ao estudar o filho de C'leckapur que, agora, fazia cócegas em um
Kōoja mal-humorado.
— Eu vou arrancar os seus olhos e dar de comer às raposas! — Kōoja
rugiu, dando cascudos na cabeça do anfitrião do circo.
— Está todo murcho, Kōoja — caçoou Chamuc. — Não consegue nem
matar um mísero Lanúmeo.
Desistindo da ideia de se soltar dos ombros do c’leckapureano, Kōoja
deteve-se a rir. Ambos haviam se esquecido do garnaziano ferido.
A consciência do caçador havia vacilado, deixando-o tonto e fazendo
com que ele procurasse algum apoio próximo, mas como não havia nenhum,
deitou-se no chão. O c’leckapureano alarmou-se e caminhou a passos largos
para onde jazia o garnaziano, indagando como se já soubesse a resposta:
— É você que está machucado, não?
O Ap concordou com a cabeça. Estava bastante tonto.
Sem aviso prévio, o ser de quase dois metros e meio de altura foi para
cima do rapaz, agarrando-o com dois de seus braços e o levando com facilidade
para dentro da grande tenda; fugindo da multidão que se formava ao redor de
Dandellion.

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— Eu tenho que ir junto mesmo? — Kōoja questionou o
c'leckapureano, cruzando seus bracinhos de bebê humano.
— Por que não? — Ele respondeu. — Você é meu guarda-costas, não
é?
O nirnäp bufou.
O caçador balançava como um boneco de pano nos ombros de
Chamuc. Sentia o cabelo dele fazer cócegas em seu rosto: era branco e
espetado, como um dente-de-leão.
Krëff era levado por um picadeiro circular e cheio de assentos quase
lotados, atraindo olhares do público que ansiava por um pouco de
entretenimento naquela cidade perdida. Infelizmente, não eram todos que
conseguiam pagar pelo espetáculo, mas nem todos precisavam pagar. E o Ap
viu, ao canto de um de seus olhos, três ornteffs adentrando, desarmados, o local.
— Não! — Ele deixou escapar.
— O que houve, rapaz? — indagou o c'leckapureano, empurrando um
pano que servia de porta para um cômodo improvisado. O caçador não
respondeu. Como não obteve resposta, Chamuc deixou o silêncio prosperar
entre os três. Ele deitou o garnaziano no chão, apanhou uma flanela e a passou
cuidadosamente no ferimento. Após alguns segundos, perguntou:
— Você tomou um tiro?
— Sim…
— Deu sorte que não acertou em cheio, garoto.
— Por favor, s-seja rápido… — Com dificuldade, Krëff murmurou.
O c’leckapureano paralisou. Olhava-o com uma expressão confusa no
rosto, e ao lado, o pano pendia quase imóvel de sua mão.
— Olha, rapaz — Chamuc começou —, eu não tenho a mínima ideia
do que fazer.
— C-como é que é? — O caçador externou, arregalando os olhos.
— Eu não sou um curandeiro… O que você achou? Eu sou o Chamusco
Dente-de-Leão!
— Você… Você não pode… tentar fazer algo?
— Bem, eu posso, mas… — Chamuc levantou seus quatro braços e
continuou: — c'leckapureanos não são muito carinhosos, sabe?
— Kōoja não pode t-tentar? — O Ap olhou para o pequeno como se
ele fosse sua última esperança.

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— Não pode! — O nirnäp exclamou. — Kōoja desmaia quando vê
sangue!
— Eu faço! — Dandellion finalizou. A criatura avermelhada estalou
os dedos e os colocou sobre a ferida. — Espere… — murmurou, franzindo o
cenho. — Parece estar brilhando.
Sem pensar duas vezes, Chamuc inseriu um de seus dedos dentro do
ferimento, buscando às cegas o misterioso e fraco lume que se projetava dele.
O caçador berrou, sentindo o c'leckapureano mexer dentro de seu pescoço;
entretanto, aos poucos, a dor parecia parar.
— Está quase, campeão! — exclamou o Dente-de-Leão.
Krëff foi reduzindo o volume de seus gritos gradativamente, até o
objeto brilhoso ter sido retirado por completo. Abrindo os quatro olhos, ele
vislumbrou Chamuc, que, de cenho franzido, analisava um pedaço da bala que
há pouco fora disparada contra o caçador.
— Isso é… interessante — segredou o c'leckapureano, admirado.
Krëff sentou-se e, levando inconscientemente a mão ao ferimento,
sentiu uma irregularidade em sua pele, que provocou em sua fértil imaginação
uma possibilidade otimista.
— Está cicatrizado…? — externou, boquiaberto.
— O que está acontecendo? Kōoja está confuso.
O caçador dirigiu-se para perto de Dandellion e pegou a fração que
restou do projétil. A bala aos poucos perdia o brilho, dando lugar à uma runa
de energia que fora rabiscada minuciosamente. O símbolo se projetava em duas
ondulações idênticas, desenhadas em dois extremos que levavam até um
círculo central; e, ao estudá-lo cuidadosamente, o Ap constatou:
— Regeneração…
— O que? — Kōoja questionou.
— Não estou entendendo, garoto. — Chamuc admitiu, evidentemente
confuso.
— Eu estava sendo perseguido e recebi o disp…
— Sendo perseguido? — Ambos questionaram, preenchendo o
ambiente com tons de vozes completamente distintos.
— Porquê? — Solitário, Chamuc perguntou.
— Os caras-de-coruja querem a minha cabeça — começou o caçador,
olhando para o grande ser avermelhado —, é só isso que sei. Creio que seja por
causa da minha família.

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O anfitrião arregalou os olhos em um círculo perfeito, súbito como se
tivesse acordado de um terrível pesadelo. Começou a caminhar em passos
lentos na direção do caçador, com seu rosto transbordando em confusão e
surpresa; incertezas esculpidas em uma face, ora escarlate ora, âmbar. Ele
mirou o fundo dos olhos púrpuros do garnaziano, como se penetrasse sua alma
e enxergasse toda sua vida, seus pecados, seus erros... Por fim, indagou em uma
voz rouca e carregada de esperança:
— Haemï...
O caçador arrepiou, esbugalhando os quatro olhos.
— O que você sabe sobre ela? — indagou, entredentes, enquanto a
surpresa de seu rosto sumia e era transformada em ódio. — Você?! Foi você?
— Sua voz começara a se elevar.
— O que houve com ela, garoto?
Antes que o c’leckapureano desse mais um passo, a mão direita de
Krëff estava circundada por um espectro purpúreo. Chamuc levantou as mãos
devagar, paralisando como uma estátua.
— Eu a conhecia... — começou, com um tom de voz tão alto quanto o
dele. — Haemï Ap, uma das poucas fêmeas guerreiras de sua raça. Lutava
melhor que qualquer um que já conheci. Fizemos amizade em uma de suas
primeiras... como ela chamava? Expedições? Isso! Me visitava em minha
antiga loja e, de repente, parou.
— E por que eu deveria acreditar? Como você soube que eu sou um
Ap?
— De todas as qualidades de sua irmã, os olhos eram as que mais me
chamavam a atenção. Purpurinos. Lindos como as auroras gêmeas para além
das montanhas. Rapaz, responda-me, o que aconteceu com ela? — A voz de
Chamuc estava taciturna, como se já soubesse a resposta que o caçador daria.
— Acredite em mim, não fiz nada com ela. Não teria capacidade para tal, e
nem motivos.
— Sumiu no meio de uma expedição... — O garnaziano respondeu,
cabisbaixo.
— Certeza que foi capturada pelos caras-de-coruja — comentou
Kōoja, resoluto, andando até a porta de pano.
— Bem possível... — Chamuc complementou. — Malditos. Há ciclos
essas corujas desgraçadas andam pelas cidades sequestrando pessoas. Seja lá o
que querem, não parece ser boa coisa.

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— Aparentemente, eu sou o próximo — disse o caçador, guarnecido
pela raiva.
— Gente… — Kōoja chamou. — Eles estão vindo!
Dandellion e o caçador se entreolharam. O c'leckapureano procurou
desajeitadamente algo em sua cintura. Retirando uma faca de duas lâminas e
segurando-a fortemente pelo punhal, ele se apressou e se jogou de costas na
parede ao lado da entrada do cômodo, se preparando para pegá-los de surpresa.
— Como eles descobriram que estávamos aqui? — indagou.
— Não sei, ora! — Kōoja ironizou, chacoalhando exageradamente seus
bracinhos. — Talvez a gritaria de vocês atraiu eles, quem sabe?
O caçador ergueu a lâmina púrpura e, se dirigindo para o nirnäp,
perguntou:
— Estão armados?
— As armas parecem estar guardadas.
O Ap se ajoelhou. Olhando compenetrado a porta de pano, ordenou
para ambos:
— Quando eles estiverem a pelo menos cinco metros, me avisem!
O pequeno Kōoja olhou de soslaio para Chamuc, o c'leckapureano
estava prestes a chorar. Bufando, ele voltou seu olhar para o picadeiro e
concentrou-se em sua tarefa. Conforme os ornteffs desciam pela arquibancada
e se aproximavam, Kōoja atualizava suas posições, informando a distância
restante com exatidão. O pequeno semicerrou os olhos, calculou e alertou:
— Doze metros e meio!
— O que estão fazendo? — indagou o caçador.
— Eles pararam… — Chamuc se intrometeu.
— …e estão conversando — completou Kōoja. — Preparando algo, eu
acho.
O nirnäp e o c'leckapureano avisaram quando um dos ornteffs
desembainhou uma espada, atrás desse, outros dois empunharam armas de
longo alcance e miraram para o cômodo improvisado, fazendo Dandellion
retirar o rosto e se esconder atrás das paredes; Kōoja, tremendo, manteve-se
em vigilância.
A espadachim respirou fundo e subitamente se pôs a correr na direção
deles, arranhando as garras nos pedregulhos irregulares do pavimento. Rápida
como uma bala, quase não deu tempo de Kōoja berrar para o garnaziano:
— AGORA!! — O nirnäp jogou-se para o lado e deitou-se no chão.

- 36 -
O caçador saltou na direção da porta, empurrando o pano vermelho da
entrada com o braço esquerdo e golpeando horizontalmente com o direito,
mirando o pescoço da ornteff fêmea. Ela arregalou os olhos negros,
semelhantes a pintas; que agora, sobressaltados, olhavam para a pessoa que
cortaria sua cabeça fora.
Morta!
A cara-de-coruja jogou todo seu corpo para trás. Escorregando por
baixo do caçador, rolou pelo chão até parar com um forte impacto na parede
do fundo do cômodo.
Após passar por cima da ornteff, o Ap pousou com cuidado e olhou
para os outros dois, que o tinham em mira.
Sem saída…
Ele procurou uma. À sua direita, visualizou um toldo que tapava a
visão do exterior e, pensou, daria para sair com facilidade. O caçador mais uma
vez correu, passando por trás da arquibancada em direção a uma possível saída.
Detrás ouvia os fragores da pistola e da balestra, projetando tiros imprecisos
que somente serviram para assustar a plateia. Pouco antes de sair do circo, ele
olhou para trás: o líder havia entrado no cômodo, mas um ornteff ainda o
perseguia.
— Temos olhos em todos os lugares, garnaziano. — Aquela voz
penetrante novamente o desencorajou.
Krëff rapidamente passou pelo toldo, se encontrando, agora, em uma
parte externa delimitada com cercas baixas; e nelas, amarrados, haviam cinco
cavalos. Correndo de encontro a um deles, ele retirou a corda que o mantinha
preso e montou no animal. O Ap se distanciou da cerca, buscando impulso o
suficiente para saltá-la, e assim que coagiu a montaria a correr, o ornteff saiu
do circo, mirando-o a balestra.
Mas ele não atirou. Desistindo da ideia, o besteiro avançou até um
outro cavalo e fez o mesmo que o caçador — que já havia saltado o cercado
com facilidade e estava dez metros adiante.
O Ap cavalgava em ondulações, esquivando por pouco das setas fatais
que o ornteff lançava. Conforme seguiam, a pavimentação era substituída por
terra batida; as casas davam lugar a um enorme vale; e o horizonte tornava-se
visível, exibindo, a quilômetros, a sinalização que alertava sobre o cânion. O
Arco!, pensou esperançoso.

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O caçador chicoteou o corcel, aumentando consideravelmente sua
velocidade. Seguindo pela via mais grossa, desviava dos transeuntes que
vagavam pelos diversos caminhos que ladeavam a Estrada do Ancestral; se
dividindo e se interligando como artérias, guiando carruagens e andarilhos para
as cidades e vilas vizinhas. Ao longe, seres entravam e saiam do grande Arco
que dividia os reinos de Zelth e G'uew, construído nas beiradas de uma grande
ruptura no solo.
Atento, o Ap mantinha a fronteira à vista, onde meia dúzia de
sentinelas guardavam a construção, analisando, compenetrados, aqueles que
passavam pela imensa construção arqueada. O caçador se aproximava com uma
boa vantagem em relação ao seu perseguidor, que ficou para trás devido a
multidão. O galopar das dezenas de montarias alugava a audição de todos, mas,
dentre os barulhos, o rapaz conseguiu discernir, vindo daquela maldita voz:
— Peguem ele! — bradou o besteiro. — Esse garnaziano me roubou!
O quê?!
Dois dos guardiões sobressaltaram e fitaram o caçador, enquanto os
outros continuaram seu rotineiro trabalho. O guarda humano mirou-lhe um
grande rifle, e a sirnanniana acendera uma de suas doze marcas, ordenando para
que o garnaziano parasse, mas Krëff desobedeceu a ordem. E a caminho do
grande Arco, o caçador notou algo estranho.
A sentinela sirnanniana apontava para ele. O dorso de sua mão erguida
luzia em laranja, enquanto os outros cinco braços caiam como asas por detrás
de seu corpo pálido. Os olhos verticais, com pupilas também marcadas,
estavam abertos em uma expressão serena, mirando o cavalo do garnaziano.
Krëff sentiu seu corcel vacilar e gradativamente diminuir a velocidade.
Não!
O caçador, desesperado, tentou manter a montaria em linha reta, mas
sem sucesso. O ser equino desviou, entre tombos, da estrada central, partindo
rumo à grande queda que a Divisão iria proporcionar para os dois. Enquanto
sua montaria titubeava, Krëff puxou as rédeas com a maior força que
conseguira, mas de nada adiantou. Paralisado, somente sentiu seu cavalo ceder
e, em poucos segundos, estavam em queda.

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☽ Capítulo IV ☾
O Príncipe

“...Não chore, minha pequena. Quer que eu cante uma canção para
você? É sobre um homem que enxergou beleza onde o mundo não
enxergou.”

Vuvue para Trisa.

O
SINO DO CASULO DE PRATA SOOU.
Krëff abriu os olhos e vislumbrou um alto telhado circular
feito em vidro, com adornos lavrados como grandes pétalas
esbranquiçadas na superfície. O céu era de uma manhã linda
e ensolarada, e pouquíssimas nuvens passavam e lhe davam bom dia. O sol
luzia na parte esquerda do salão, refletindo no rosto do garnaziano. Havia
acordado, mas por quanto tempo dormira? O que aconteceu para ele estar no
Casulo e não em casa? Sentou-se na lateral da cama, tocando com cuidado as
flores pálidas que repousaram seu corpo inerte por todo esse tempo; elas
perdiam o brilho aos poucos, e Krëff as agradeceu. Lá fora, alguém se
aproximava.
O jovem franzia a testa, buscando as memórias do dia que fora
derrotado por... por alguém. Ou teria ele só caído da Grande Árvore e batido a
cabeça? Ainda sentado, conferiu alguns ferimentos de seu tronco nu,
encontrando somente cicatrizes anciãs. Girou sobre seu traseiro repousado, os
ossos do seu corpo estavam intactos. Esticou os braços, nada.
Realmente impressionante, pensou, olhando para a cama de flores
pálidas.

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Os pássaros piavam, pousavam e voavam acima do teto de vidro. O
som da manhã estava quase começando a acalmá-lo..., mas, no momento em
que tentou mover a cauda, notou que ela não estava mais lá.
Krëff esbugalhou os quatro olhos, perplexo. Em sua mente, um
gargalhar ecoou; o gargalhar ensandecido de um ornteff. Sentiu que podia
enxergar construções destruídas, chamas e... olhos? Seu coração tornou-se
irrequieto, com batimentos que faziam tremer o corpo a cada pulso. Arquejou
quando tentou se levantar da cama, e se viu de joelhos no momento em que
fez forças para se manter de pé; o desespero tomou-lhe por completo.
Os passos se tornavam mais altos conforme as perguntas iam e vinham
sem resposta alguma. O canto dos pássaros parecia se mesclar com o agudo
som da risada. Sua mente ardia numa tentativa de se lembrar, mas era só aquele
maldito gargalhar que escutava, de novo, e de novo, e de novo... A essa altura,
lembrava-se de tudo como se fosse no dia anterior. Havia lutado. Havia lutado
e perdido como sempre. Perdido a luta, perdido sua cauda, perdido... a família.
Mortos, pensou, estão todos mortos.
— MORTOS! — berrou, se assustando com a grossura de sua atual
voz; e se assustando de novo ao escutar a porta levadiça subir com um estrondo,
abrindo palco para um velho garnaziano.
— Garoto? — Naohu Kihr, patriarca dos Kihr, entrou na sala, fazendo
oscilar seu manto de cetim preto. — Você finalmente acor...
— O que aconteceu? — indagou um Krëff aturdido, interrompendo o
idoso.
Naohu não se surpreendeu com a pergunta. Ele caminhou a passos
lentos até o garnaziano ajoelhado, afagando sua barbicha pontiaguda como
sempre. O sol brilhava fracamente em sua careca listrada. O velho inclinou-se
um pouco e estendeu uma das mãos para o Ap.
— Levante-se! Venha, eu te ajudo — sibilou o patriarca, dando
respaldo para Krëff se pôr de pé. — Pelos Seis, por que você estava caído?!
Espero que não seja drama. Não és o primeiro garnaziano que perde a cauda
em combate, tampouco será o último.
— Como eles estão? — O jovem parecia ter as orelhas entupidas.
Precisava de respostas. Ele olhava o patriarca com olhos apreensivos,
carregados de medo.
Naohu manteve-se em silêncio, mirando o garoto com um rosto severo.
A íris prateada estudou Krëff de cima a baixo. Dos olhos até o pescoço, depois

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até o tronco... Por fim, o velho deu alguns passos para trás, com sua mão direita
flutuando novamente até a barbicha.
— Eles estão bem, sim, seus pais — respondeu com uma voz rouca. —
Não posso dizer o mesmo de todos. — Naohu se virou, cabisbaixo, para a porta,
e seguiu até ela. Assim que a alcançou, deu uma olhadela para trás, esperando
o outro garnaziano.
Krëff estava paralisado. Sentia-se ao mesmo tempo estupefato, triste e
aliviado. Esperava uma resposta pior, de fato; entretanto, não sentia que essa
era a resposta que gostaria. Não pode dizer o mesmo de todos?
— Vamos! — ordenou Naohu. — Myimora está te esperando.
— Para onde vamos?
— Onde acha, Krëff? Para a região dos Ap!
Krëff partiu em passos miúdos até a porta. Naohu o olhava de fora do
Casulo, brilhando com o sol matinal em sua carcaça frágil. Quando o Ap se
aproximou, o senhor deu um passo para o lado.
— Chegaremos lá em um pulo — disse, sorridente, enquanto Krëff
cruzava a porta, que imediatamente se fechou atrás dele. — Durante o caminho,
prometo sanar todas as dúvidas que tens. Bem, quase todas...
Do lado de fora do Casulo, de cima da escadaria, podia enxergar a
beleza da manhã em sua plenitude.
Um céu sem nuvens contrastava a copa verde musgo do grande bosque
circular, de horizonte quase infinito. A Lua observava como sempre, mas agora
pouco nítida e em uma leve transparência; por outro lado, o Sol tocava tudo e
todos em seu ápice. Lá embaixo, uma rua horizontal comportava diversos
garnazianos que iam de um lado para o outro; trocavam mercadorias, armas,
pedras riscadas com runas simples... Tudo parecia comum. Os casebres
estavam todos de pé, sem sinal de recente destruição. As casas tinham as
paredes adornadas com singelas ramificações cinza-escuras, e os telhados eram
guarnecidos com grossas ameias pontiagudas.
Começou a descer as escadas junto do patriarca, que mantinha um rosto
enrugado e torcido em um sorriso de canto de boca. Pé ante pé, seguiram,
silenciosos, até alcançarem o último degrau. Krëff começava a se irritar com o
silêncio do idoso.
Ao chegarem na rua, garnazianos os olharam; a maioria dos olhos eram
prateados. Eles encaravam Krëff, surpreendidos e alegres. O patriarca se pôs
adiante, de postura confiante e ereta, entrelaçando as mãos por detrás do corpo.

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— Mais um foi curado! — bradou, fazendo passear os olhos por cada
vivalma no local. — Por Garnaz! — Sua voz soava adversa à fragilidade de
seu corpo ancião; era firme e grossa, como também devia ter sido em sua
juventude.
— Por Garnaz! — Os civis o acompanharam. — Por Garnaz! Por
Garnaz!
Krëff manteve-se quieto. O patriarca tocou-lhe o ombro e fez um gesto
com a cabeça, chamando-o para a encruzilhada ao fim da rua; de imediato, o
jovem o seguiu. Em mesuras, os outros garnazianos se despediram deles e
voltaram à rotina.
O patriarca mantinha o mistério por detrás de um rosto sorridente e
pensativo, que despertava em Krëff sucintos salpicos de impaciência em seu
humor duvidoso. O jovem achegou-se de Naohu, com os olhos irrequietos
mirando o senhor, e depois a rua, e o senhor de novo; rápidos e proporcionais
à sua ansiedade... Tinha uma pergunta entalada à garganta, mas a resposta era
incerta e assustadora demais para que ele estivesse confortável para fazê-la.
Mas fê-la mesmo assim.
— P-por quanto tempo... — O jovem forçou uma tosse, como que para
tardar uma resposta desoladora. — Por quanto tempo eu... estive lá?
— Três ciclos — suspirou secamente Naohu.
As palavras acertaram Krëff como um aríete. Três ciclos? Pelos Seis...
O jovem baixou a cabeça, tristonho como um animal maltratado.
— E Lerluh? Como ele está?
Naohu aspirou todo o ar que seu pulmão conseguia armazenar, e depois
soltou, fraco e lentamente, pela boca.
— Lerluh está... desaparecido — murmurou, soturno, retardando o
ritmo dos passos. — Pouco depois de você ter entrado em coma, Krëff, seu
irmão começou a ficar estranho. Cada ação que tomava, e cada coisa que falava,
soava como uma despedida. Chegava nos amigos, na família, agradecia e tudo
mais... Ninguém entendia ao certo o porquê, mas retribuíam. Myimora e Osarii
foram os últimos com quem ele falou; quinze luas após a invasão dos ornteffs.
Ele chegou de uma expedição, foi até eles e deu Canis, a máscara, dizendo que
não precisava mais dela. No dia seguinte, ele havia sumido sem deixar rastros.
Até hoje não sabemos seu paradeiro. Agora que acordou, Krëff, a máscara deve
ser sua; mas imagino que ela tenha perdido todo o poder acumulado, visto que
caiu em desuso por tanto tempo...

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Poder?
Krëff nunca havia entendido o porquê da máscara. Sempre tratava seu
uso com descomedida ignorância. Somente sabia que era uma espécie de
presente de cerimônia dado ao primeiro filho de cada família de garnazianos,
que, a cada geração, passava para o filho mais forte e mais honrado dessas
famílias; algo sem muita importância, ou pelo menos era o que Krëff achava.
No mais, a notícia de que Canis seria dele não o entusiasmou tanto quanto
Naohu achava que iria. O patriarca mirou o garoto, que estava cabisbaixo
olhando para a estrada de terra batida que serpenteava adiante. O senhor não
disse nada, entretanto.
Sem desviar o olhar do solo, Krëff, com pesar, indagou:
— Acha que Lerluh está morto?
Naohu elevou as pálpebras, abrindo diversos sulcos em sua testa. Ele
tornou a focar o caminho, escolhendo cuidadosamente as palavras para
responder.
— Olha, garoto, gostaria de ser otimista quanto a isso, mas... é
complicado. Um garnaziano viver durante três ciclos inteiros fora do Círculo é
algo demasiadamente improvável... Por aqui, Krëff, à direita. — O patriarca
curvou a rua. Krëff seguiu-o de pouca vontade.
Por onde passavam, garnazianos os encaravam; mas Krëff não se
importava com isso. Ignorava os cumprimentos, as condolências... Sua mente
estava em outro lugar. Naquele momento, só queria pôr os pensamentos em
ordem, mesmo que não estivesse conseguindo.
Seguiram por mais uns metros sem falar nada. E foi Naohu quem
quebrou o monótono silêncio do tal passeio deprimente.
— Você foi bem naquele dia, rapaz — disse o patriarca, olhando para
o jovem. — Mostrou-se um Ap de verdade.
— Eu não fiz nada — retrucou Krëff, com o rosto inexpressivo. —
Acertei só uma galhada na cara daquela... coisa. O resto da batalha eu estava
no chão, incapacitado. Sempre derrotado. Sempre inútil. — Sua voz aumentava
a cada frase. — Se ser um Ap significa salvar a todos, lutar e ganhar, e receber
aplausos depois de uma batalha ou um treino, eu nunca fui um Ap. Nunca soube
lutar. Nunca tive força ou coragem o suficiente, e todo mundo sabe disso...
— A galhada que destes salvou a vida de sua mãe e de seu irmão! —
interrompeu-o Naohu, com um grito que fez o garoto acanhar-se. A gritaria
atraiu mais olhares ainda, e Naohu olhou ao redor antes de, em sussurros,

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continuar: — Entenda, Krëff, você não ganhar não significa que não és um Ap
de verdade. Ap são aqueles que lutam mesmo que já saibam que sua derrota
seja certa. Garnazianos de verdade, se for preciso, morrem pelo Círculo; e foi
exatamente o que você fez. Se dizes não ter coragem, o que foi aquilo então?
— Naohu suspirou, fazendo uma breve pausa. — Quando retirei os escombros
de cima de Myimora, ele me contou o que fizeste. Poucas vezes o vi tão
orgulhoso.
O garoto ficou quieto, indiferente à última informação.
— Eram muitos — continuou o patriarca —, e você deu o azar de dar
de frente com o mais forte deles... Vieram de todos os lados, atacando todas as
famílias quase que ao mesmo tempo. Fomos derrotando-os aos poucos, e nos
juntamos o mais rápido que conseguimos. Por sorte chegamos a tempo de
salvar os que sobraram. Perdemos muitos, Krëff, muitos; mas saímos
vitoriosos, na medida do possível.
— Como eles souberam como entrar aqui?
— Bem que eu gostaria de ser adivinho, mas não sou — O patriarca
curvou à direita mais uma vez. — Venha! Por aqui, venha! Estamos quase
chegando.
A rua era consideravelmente mais povoada e mais larga que as outras.
Estendia-se como um longo tapete bege, margeado pelas cercas que cingiam as
lojas e as casas, que eram maiores e diferentes em decoração que na região
anterior. Os adornos das construções, conforme seguiam, passavam de um
prateado puro para tons arroxeados, e as ameias eram grifadas com símbolos
de proteção — Krëff não se recordava de estarem lá antes do seu coma. Placas
de cedro acimavam os cercados das lojas, entalhadas com o nome do
estabelecimento no qual, à grama, era fincada.
A dupla de garnazianos foi recebida por olhos púrpuros que, animados,
aproximaram-se do rapaz recém-acordado. Krëff não deu satisfação a nenhum
deles; não era o momento para isso. Estava buscando o seu lar.
Inquieto, o jovem olhava os arredores, procurando a casa dos pais. A
princípio viu chalés, lojas e uma praça ao fim de uma outra rua. Seguiu para
um lado, depois para o outro, confuso por não se lembrar de onde estava.
Vivera toda sua vida por essas ruas e vielas púrpuras e mesmo assim tudo
parecia tão incomum... Por fim, manteram-se na rua principal, seguindo por
uma grande curva enquanto desviavam de perguntas e conversas idiotas. E foi
nesta mesma rua, ao fim da extensa curva, que ele pôde ver sua casa.

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Estava maior. Maior e mais bela. Parecia brotar de um oceano de
densas folhas. Raízes se trançavam às paredes e ancoravam no gramado que
rodeava a construção, cingida por flores arroxeadas que pulsavam em ritmo
constante, brilhando e se apagando; projetando, mesmo de dia, fracos fulgores
roxos na grama verde viva. As paredes eram brancas e sem glifos, e o cercado,
também branco, tinha, em seus mourões, um mesmo símbolo desenhado
diversas vezes.
Krëff paralisou ao ver a casa e ficou boquiaberto. Cinco passos adiante,
Naohu estava parado, olhando impacientemente para o garoto.
— Vamos, rapaz, venha logo! O que há de tão impressionante? —
perguntou o patriarca, esperando Krëff tornar a andar. Quando o rapaz chegou
ao seu lado, voltaram a caminhar, e Naohu indagou: — Como está esse teu
coração? — Ele deu a Krëff uma olhadela e um sorriso misterioso. — Deve ser
estranha a sensação de voltar para casa depois de tanto tempo, não?
— Estou... feliz. — O jovem respondeu. — Um tanto amedrontado
com tudo que aconteceu, bastante confuso, mas feliz. É bem vivido, Naohu.
Vai me dizer que nunca teve uma experiência parecida?
— Na verdade, sim..., mas, como pode ver, não perdi a cauda. E
também não entrei em um coma repentino, não. Foi por escolha.
— Escolha?
— Minha pior escolha...
Infelizmente, a conversa teria que esperar.
Krëff sentiu a espinha arrepiar ao cruzarem a margem do cercado,
entrando no quintal da opulenta casa. Em passos miúdos, finalmente chegaram
à porta da construção. Naohu e Krëff se entreolharam; o velho tinha um sorriso
carinhoso estampado no rosto. A mão flácida de Naohu colidiu ruidosamente
na porta, soltando dois breves sonidos amadeirados. E com isso, alguém
começou a se aproximar. A maçaneta girou e, detrás da porta, saiu uma
garnaziana.
Usava um longo vestido acinzentado com um leve degradê para
branco; decorado com desenhos semelhantes a losangos verticais, ondulados e
em alto-relevo. Sua testa era abraçada por uma fina tira dourado-escura, que
reluzia com o brilho do sol. Usava um xale marrom com detalhes em amarelo
preso ao ombro por um broche circular, e longas mechas de um lindo cabelo
branco repousavam sobre a veste.

- 45 -
Ela os encarou, levemente confusa. Vislumbrou um Naohu alegre, com
seu costumeiro sorriso de canto de boca. Depois, estudou o garnaziano ao lado
dele, franzindo o cenho visivelmente. De súbito, os quatro olhos arregalaram,
e Krëff pôde notar que eles começaram a lacrimejar.
— V-você... acordou... — Osarii disse, arfando. — Você...
Sem pensar muito, Krëff puxou-a para um abraço, e, naquele momento,
se esqueceu de tudo. Esqueceu-se de como era fraco. Esqueceu-se do súbito
sumiço do irmão. Tudo... O momento pareceu durar uma eternidade, e Krëff
chegou a desejar que assim fosse. Quando desataram o abraço, Naohu já não
estava mais lá.
— Orii, quem é? — indagou uma voz grossa, vinda de trás de Osarii.
A garnaziana deu um passo para o lado, fornecendo à Krëff a visão de um
grande salão. No centro, Myimora olhava, confuso, para a entrada.
O pai de Krëff saltou sobre si assim que o viu, mas a expressão de
surpresa logo se tornou algo ilegível. Myimora aproximou-se lentamente e com
o rosto inexpressivo, parando frente a frente com o filho e olhando-o de cima
como se ele fosse um ser desprezível.
Krëff encarava-o nos olhos, apreensivo. Tomado por incertezas,
esperava inúmeras coisas. Talvez seria expulso. Talvez seu pai jogaria sobre
ele toda a culpa do desaparecimento do irmão — por mais que não fizesse
sentido. Myimora nunca fez sentido. Mas, de todas as coisas que ele esperava
que aconteceriam, o que, de fato, aconteceu, foi surpreendente até mesmo para
Osarii.
Krëff sentiu uma das mãos do pai tocar em seu ombro. Depois de tudo,
Myimora expressou um simulacro de sorriso, levando o filho para um
carinhoso abraço. Mas Krëff não o abraçou de volta. Somente manteve o corpo
inerte, com o rosto se dobrando em uma expressão confusa.

II

A tarde já estava chegando ao fim quando Myimora levou Krëff para


fora do Círculo de Garnaz. Deixaram para trás o bosque e a vila, para juntos,
“darem uma volta”, como propôs o pai do futuro caçador — não trocaram
sequer uma palavra além dessas.

- 46 -
Todo o caminho foi silencioso e entediante, mas Krëff gostava de ouvir
o relaxante farfalhar dos pinus e sentir o cheiro deles, mentir para si e fingir
estar sozinho... Ah! Como gostaria de estar. Mas, infelizmente, não estava.
Apressava os passos para chegar logo ao local que seu pai o queria levar,
demasiado e visivelmente incomodado.
Mais uma duzia de passadas e se encontravam em um enorme rio
circular margeado por altas colinas verdejantes. A água estava cristalina e
ondeava um pouco, enquanto um extenso feixe de luz cortava o rio e refletia
em âmbar nos olhos dos garnazianos.
— Está vendo, Krëff? — Myimora gritou, franzindo o cenho e mirando
com o indicador uma pequena ilha no centro do rio. — Como não poderia ver,
não é mesmo? Enfim, nadaremos até lá. — O pai de Krëff usava uma bolsa de
ombro elegantemente adornada, com o couro luzindo à luz do ocaso. Era a
única peça decente que tinha no corpo, visto que usava calças tão encardidas
que passaram de branco para bege, e, como de costume, o tronco estava
desnudo.
Krëff não entendia o que o pai queria, e demonstrava-se bastante
impaciente acerca do silêncio que o patriarca manteve durante todo o caminho.
Myimora pareceu notar sua impaciência e pulou no riacho, suspendendo a
bolsa no ar como se resgatasse uma criaturinha de um afogamento. O rapaz foi
logo depois, soltando uma longa bufada.
A água estava morna, acolhedora, deliciosa. Era um ótimo lugar para
relaxar. Mas Krëff não se sentia nem um pouco relaxado. Não com Myimora
ali.
Alcançou a ilhota antes do pai, que nadava com dificuldade enquanto
suspendia a bolsa para longe dos respingos.
— Ei! Segure isso! — bradou ele, preparando-se para lançá-la para
Krëff.
O rapaz saltou sobre si e se preparou para evitar que aquilo que estava
dentro dela caísse e possivelmente se quebrasse. O patriarca jogou a bolsa para
o alto com toda sua força. Ela traçou uma trajetória arqueada, sendo empurrada
para o lado pela fraca ventania como se nada estivesse dentro dela. Krëff
segurou-a pela alça, a fazendo parar a poucos centímetros de se chocar contra
o chão.
Myimora finalmente alcançava a ilha, arfando como se tivesse acabado
de correr de uma cidade até outra. Quando chegou à terra firme, permaneceu

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com um joelho no chão, enquanto olhava, com o rosto cansado dentre as
mechas encharcadas de seu cabelo prateado, o filho malquisto. Por fim,
levantou-se e foi até o jovem, estendendo uma das mãos para que ele lhe desse
a bolsa. Assim que a pegou de volta, subiu um pequeno morro, sumindo abaixo
de uma figueira farta de galhadas e folhagens outonais.
Krëff parou, ouviu, e observou o ambiente. Há tempos não via um lugar
tão bonito. O rio, que tremeluzia à luz do sol poente, soava ao longe conforme
recebia as águas que caíam de algumas das paredes naturais do planalto. O sol,
enfraquecido, bruxuleava por entre as irregularidades e fendas das colinas. As
folhas farfalhavam e se desprendiam da árvore sobre seu pai, caindo rumo à
água em uma queda lenta e hipnotizante. A figueira parecia assobiar e sussurrar
palavras que Krëff não era capaz de decifrar. Mas sentia que eram para ele.
Sentia que a árvore lhe dava boas-vindas, convidando-o a repousar sob seu mar
de folhas alaranjadas.
E ele aceitou o convite.
Subiu pelo morro sem pressa alguma, pé ante pé, até ver seu pai
sentado em uma pedra tão cinza quanto sua pele, olhando para o céu e
admirando a chegada da noite. Ali, parou e olhou mais adiante, vislumbrando
um grande monólito pouco encurvado para frente e com uma tríade de chifres
arcados no topo. Atrás do estranho monumento, ao longe, nas paredes das
colinas, três cascatas se projetavam como densas lágrimas — o monólito estava
alinhado à cachoeira central. Krëff se aproximou do pai e sentou atrás dele, no
gramado, apoiando as costas no grosso tronco da figueira e amassando as
folhagens que estavam aninhadas pelo chão como um pavimento.
Ao ouvir os estalos das folhas secas, Myimora virou-se e olhou para o
filho.
— Deve se perguntar o porquê eu te trouxe aqui...
Krëff assentiu, cabisbaixo. O vento lamuriava em seus ouvidos.
— Seu irmão... ele sumiu.
— É. Sei disso. — Krëff adotou uma expressão monótona.
— Canis é sua agora. Parabéns...
O jovem não demonstrou reação alguma.
— Não vai dizer nada? — indagou Myimora, após alguns segundos.
— Nenhum sorriso? Um simulacro de empolgação? Nada? — Girava os pulsos
a cada pergunta.
O jovem meneou a cabeça.

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— A minha empolgação — falou — é semelhante à sua, pai: nenhuma.
— Krëff coçou os olhos, bufou e continuou: — Você parece abatido... Acha
que não sou digno, não é mesmo?
Myimora suspirou e abaixou a cabeça.
— Olha, rapaz, eu sei que... que não te dei o devido valor. Geralmente
eu ajo assim quando tenho um... receio de que o Ap não está preparado para o
mundo fora do Círculo. Entendo que exagero às vezes, mas peço que leve meu
ponto em consideração...
Krëff pegou uma folha nas mãos e começou a quebrá-la, pedaço por
pedaço, jogando-os rumo ao vento para seguirem até um destino tão incerto
quanto a finalidade daquela conversa.
— ... Eu tive bastante tempo para pensar durante os três ciclos que você
esteve no Casulo — continuou Myimora. — O que você fez naquele dia me
orgulhou, rapaz...
— Quero saber que diferença isso faz — cuspiu Krëff, soturnamente,
enquanto despedaçava a tal folha morta.
— O quê?! — Franziu o cenho um Myimora incrédulo. Krëff jamais
falara dessa forma com ele.
— Não quero o seu orgulho — murmurou o jovem, ainda sem olhar
para o pai. A voz estava serena como o uivo do vento vespertino que os beijava
a pele. — Vivi toda a minha vida sem ele, não fará diferença alguma agora.
Quero o meu irmão de volta... Quero matar aquelas corujas desgraçadas... Se
me trouxe até aqui só para me “parabenizar”, Naohu já fez isso horas atrás...
Suas palavras não teriam nenhum valor, de qualquer maneira. — O rancor dava
agulhadas no coração de Krëff. O medo, por fim, havia se transformado em
ódio; um ódio acumulado. Intenso. Recíproco.
Porém, estranhamente, Myimora não rebateu, xingou ou avançou
para cima dele como Krëff achava que iria acontecer. Na verdade, o patriarca
recuou, manso como um garnaziano recém-nascido. Baqueado, meneou a
cabeça e olhou novamente para o céu.
Pequenas estrelas bruxuleantes já começavam a surgir. Conforme o
laranja era pintado de preto, Yirieda se fazia mais presente, com sua palidez
tornando a abraçar tudo por mais uma noite; ecoando esperança.
— Arre! — resmungou abatido o patriarca. — Entendo você não gostar
de mim, mas não está vendo o que eu estou tentando fazer aqui? — A cabeça

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suspensa em uma admiração inacabável ao céu. — Não é só te parabenizar,
garoto... Quero...
A noite havia, enfim, chegado.
Myimora baixou os olhos, direcionando-os para o filho, e retirou a
bolsa dos ombros, começando a rapidamente abri-la. Parecia tentar arrancar à
força uma frase entalada em sua garganta.
— Quero... — pigarreou — me desculpar.
Pela primeira vez, havia sinceridade na voz de Myimora. Krëff foi pego
de surpresa. O rapaz, visivelmente atônito, quase chegou a perdoá-lo ali mesmo
— as árvores até sussurraram para que assim fosse feito —, mas esse rancor ia
tardar a passar. Quem sabe esse “copo” não pudesse ser remontado, caco por
caco, com o passar dos anos...
— Perdi vocês dois por tempo demais, só assim eu percebi a falta que
me fazem... — cuspiu as frases de uma só vez, como se estivesse atrasado para
algo. — Desculpa, Krëff — resmungou, abriu a bolsa e, de seu interior,
arrancou uma máscara.
Admirável, esbelta, hipnotizante. Recebia a luz da Lua em sua testa
metálica, que a transformara de preta em alvinegra enquanto o reflexo pálido
era entrecortado por filetes cor de graúna em gravuras curvas, retas ou espirais,
que chegavam até a parecer com fios diminutos de um pelo escuro como a
noite. Era feita de um material que Krëff não conhecia. O formato de lobo,
mesmo simples, causava arrepios no garnaziano. O patriarca segurava Canis
em suas mãos, a máscara do Príncipe dos Ap.
Mas parecia oca...
Sem Alma...
Sem...
Myimora levantou-se abruptamente da pedra na qual sentava e desceu
dela.
— Para o monólito, Krëff! Rápido! — urrou.
— Ãhn?
— RÁPIDO!
Quando a Lua se alinhou ao monumento, e as sombras dos chifres dele
às cachoeiras, a máscara soube, e seu reflexo partiu na direção da construção.
Finalmente, depois de cinco ciclos, o monólito voltou a acender, e, junto de
Canis, luziram quase tão forte quanto Yirieda.

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— O que está acontecendo, Myimora? — indagou o rapaz, procurando
seu pai por entre a claridade abundante que emanava do monólito. Sentindo
seu braço ser segurado, começou a chamar pelo pai, gritando sem nem ao
menos saber o porquê.
O que aconteceu em seguida foi rápido e intenso.
Krëff foi levado à força, sem nada enxergar, até a fonte do clarão, e foi
posto de joelhos assim que parou de frente com o monólito. Depois,
desnorteado, sentiu a cabeça ser puxada para trás pelos cabelos, enquanto seus
gritos ecoavam pela noite. Pare! Agora! Ele não parou. O que você está
fazendo? Socorro! Nenhuma resposta chegou. Seu pai estava quieto, ou talvez
nem fosse seu pai que tivesse o agarrado. Krëff sentia medo, e dessa vez a
coragem não faria nenhuma diferença. As coisas só se acalmaram quando algo
foi posto em seu rosto.
Mas acalmaram até demais.
A claridade pareceu ser sugada, sobrando apenas a escuridão.
Entretanto, ele podia enxergar: estava ajoelhado sozinho em uma infinitude
negra, com os joelhos pouco afundados em uma água tão rasa quão uma poça
e tão fria quão o toque da morte. Gritou, chamou por alguém; as vozes ecoaram
pelas paredes do infinito, somente. A morte era assim? Seu pai havia o matado?
Mas... por quê? A sensação de vazio era imensa, atordoante. Ele chorou, mas
seu rosto não mudou de expressão. As lágrimas desciam, intensas... Sentia-se
vazio, não triste. Então, por que chorava?
Ao longe, algo começou a soar. Parecia água se chocando com água.
Girando sobre seus joelhos, Krëff olhou ao redor, facilmente encontrando a
origem do barulho.
Três cascatas saíam das negras paredes do infinito, como se
estivessem flutuando. Eram translúcidas como as lágrimas que pingavam do
queixo do garnaziano e transformavam em agridoce a água sobre a qual se
ajoelhava. Olhou confuso para elas, levantando-se lentamente. Quando se pôs
de pé, começou a andar na direção delas. Sua mente estava dormente e as
pernas pareciam ter vida própria. Os olhos estavam presos às cachoeiras
incessantes, com as pupilas irrequietas vibrando ao centro da imensidão clara
de seus olhos arregalados. Tomado pelo transe, quase não conseguiu perceber
quando algo se chocou contra seus pés.
Ele parou e balançou a cabeça. Olhando para baixo, notou que, boiando
e oscilando fracamente sobre seus dedos, estava ela, a máscara, encarando-o

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com os olhos vazios. Krëff abaixou e pegou-a em suas mãos tremulas,
admirando os sulcos de sua superfície metálica.
Mas algo o chamou mais a atenção.
Tão pequeno..., escutou. De súbito, as lágrimas involuntárias desceram
ainda mais intensas.
Krëff olhou ao redor, procurando a origem daquelas palavras, mesmo
tendo a certeza de que elas soaram no âmago de sua mente. A Voz era doce,
serena e feminina. Podia jurar que nunca havia a escutado antes, mas sentia
uma familiaridade intensa e inexplicável; maior do que com qualquer outro ser.
Tem sentimentos tão intensos, criatura. Posso senti-los... Todos.
O jovem quis chamar por essa Voz, mas sua língua não quis obedecê-
lo. Com a respiração ofegante, somente paralisou e escutou o que ela tinha a
dizer.
Posso supor o porquê vieste aqui..., sussurrou a Voz.
Quer que a Tríade desperte em ti...
Quer que Eu desperte..., a Voz ecoava, preenchendo todo o ambiente.
És o Príncipe, Krëff...
As cascatas passaram a emoldurar três grandes estátuas. Luzindo em
branco através das águas diáfanas, elas projetavam inúmeros glifos na língua
própria dos garnazianos, que sumiam pelo ar, sendo escritos, apagados e
reescritos infinitas vezes.
Mas sua Alma está fraca, e seu potencial, dissipado.
Arrancaram de você o seu vigor, seu futuro... Sobretudo, um pedaço de
sua Alma. Então, por não termos mais plena conexão, pouco posso fazer. Mas
creio poder te ajudar de alguma forma, criatura.
Krëff sentiu que finalmente conseguia falar.
— Q-q-quem... — gaguejou. — Quem é...? O-o quê...?
E a Voz declarou, como se soubesse todas as dúvidas que o rapaz tinha:
Sou Garnaz, a criadora de sua raça.
O choque foi inevitável.
— C-como...? V-v-você...? — Tentou falar um garnaziano boquiaberto.
Você está se conectando com a máscara.
A intensidade dos glifos que emanavam das estátuas diminuiu.
Ela comportará suas forças...

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A primeira, mais à esquerda, parou de projetar os inúmeros símbolos.
Agora, somente um se destacava, e este foi escrito no interior da máscara que
Krëff cingia em seus braços.
Suas lembranças...
A mesma situação com a estátua à direita.
E, mesmo em cacos, sua Alma...
Novamente, com a estátua central.
Krëff olhou para o interior de Canis. Dentro dela, viu os três símbolos
que flutuaram dos monumentos pulsando em uma pálida luz leitosa. Pareciam
complementar um ao outro e formar um só grifo maior, que Krëff tentou ler e...
conseguiu! Estava escrito: “Garnazianos”. Ele olhou ao redor e, sem vontade
própria, pôs a máscara. Tudo ficou preto.
Garnaz sabia que de nada Krëff iria lembrar quando voltasse ao plano
real. Mas sentia-se feliz. Após tanto ver sua raça sofrer... Após tanto perder,
finalmente ganhava. A Tríade voltou a acender... Os Ap tinham um novo
Príncipe...

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☽ Capítulo V ☾
Mentiras

“...Não há ninguém completamente honesto, minha amiga. Todos


nós contamos mentiras em algum momento, seja para esconder
quem realmente somos, mascarar nossas intenções ou conseguir
algo que não temos direito. As mentiras sempre coexistirão com a
verdade. Agora, cabe a você decidir: irá mentir para esse maldito e
nos tirar daqui, ou mentir para si mesma e acreditar que tudo está
bem?”

Digimor, o Ladrão de Estátuas, para Nilby.

G
ARNAZIANO !
Acorde, garnaziano!
Você ainda está vivo? Não consigo enxergar direito daqui
de cima.
Acorde!
A cabeça de Krëff doía.
Olha, se você estiver vivo, pelo menos dê algum sinal.
O rapaz, no limiar do despertar, julgou não reconhecer a voz que tanto
o azucrinava. Ele murmurou algo para ela, provavelmente um xingamento, que
soou mais como um gemido dissonante.
Está tão quente..., pensou, enquanto recobrava os sentidos e despertava
aos poucos. Que sensação... estranha.
Sentia-se uma casca oca.
A insistente voz era ocultada por um cântico interessante, que chamou
a atenção de Krëff e o fez abrir os olhos de uma só vez. Eles foram invadidos
por uma claridade intensa, que acabou cegando-o por uma dezena de segundos.

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Ao retomar a visão, desejou que não o tivesse feito, pois se lembrou da situação
que se encontrava.
Poucos metros adiante, enxergou as costas magras de uma mulher, cuja
voz ecoava com vigor pelas paredes cinzas e esburacadas de um imenso cânion.
Mais à direita, meia dúzia de seres coxeavam ao redor de um monte de órgãos,
carne e sangue, acompanhados pelas moscas atraídas até o tal fedor que
caminhava pelo desfiladeiro. O céu se mostrava mais distante que o comum,
emoldurando um sol ímpeto e cegante que castigava os olhos e a cabeça de um
Krëff ofegante e suado. Uma silhueta sinistra o observava de lá de cima. Ou
será que o calor estava começando a causar alucinações?
— Ah, porra! Você desafinou! — A mulher urrou, decepcionada,
parando com a cantaria. Krëff se assustou de leve e olhou para ela. A jovem
suspendeu um pequeno animal, um roedor esticado com cerca de trinta
centímetros, que se dobrou em arco quando ela o pegou pela barriga. — Você
é péssima nisso, Girvalla. Vocês são péssimos nisso! — disse, apontando para
os outros ratonges no chão. Sua voz era mais doce quando cantada... — Menos
você, Gabyinn, você é ótimo. Enfim, desisto...
Krëff se localizava sentado próximo à parede, com as mãos atadas para
trás ao redor de um tronco rígido fincado no chão de pedra. A perna estava
esticada para frente, servindo de almofada para outros três ratonges que
cochilavam em formato espiral. Ele tentou se soltar, mas de nada serviu além
de assustar os longos roedores.
A mulher se levantou, brandindo Girvalla como se ela fosse uma boneca
de pano.
— Esse sol todo me empolga — falou animada, olhando para cima. Os
cabelos ondulados desciam até o meio das costas como densas cascatas
alaranjadas. Era uma humana. — Girvalla, me dê um momento, por favor.
Preciso me preparar para a nossa visitinha. — Ela soltou a pequena, que chiou
e caminhou tranquilamente para um dos grandes buracos nas paredes.
Krëff tentou conjurar a lâmina púrpura para se soltar. Apenas sentiu
uma ardência no braço e nada mais. Achou estranho, mas não deu tanta
importância. Então, o garnaziano usou seus pés para cutucar um dos ratonges
que recostavam em sua perna, tentando chamá-lo para que ele roesse a corda
que o prendia àquele maldito tronco. O animal levantou e caminhou até as mãos
do rapaz. Ali parecia ser um lugar mais confortável para cochilar. E foi
exatamente o que o pequeno fez: deitou e ficou por ali mesmo.

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— Humpf! Sua merdinha nanica — murmurou o mais baixo que pôde.
A mulher paralisou completamente... Depois de um segundo, procurou
algo pelo chão.
— Você! — Ela se abaixou e pegou um dos ratonges, um caramelo
listrado. Pôs o roedor na frente do rosto, olhando-o no fundo dos olhos. —
Ouviu isso, não é? Hum?! Sei que ouviu... Droga! Nem tive tempo de colocar
uma roupa melhor. — Ela se virou lentamente para Krëff. O garnaziano
respirou fundo, tentando manter a calma.
Vestia uma larga calça preta adornada com botões e com tiras escuras
que decaíam sobre a coxa. Uma regata marrom contrastava com seus longos
cabelos ruivos, e faixas brancas remoinhavam por todo o braço, enrolando-se
pelos ombros e indo até os dedos; com partes avermelhadas aqui e ali.
Exibia uma postura áspera, mas com um toque doce. E quando os olhos
“doces” da jovem se encontraram com os de Krëff, ela sorriu. Ele, por outro
lado, se manteve sério.
— Oi! — disse a garota, com uma voz mais fina que a anterior. Ela
começou a caminhar na direção do rapaz.
— Por que está sorrindo? Afaste-se!
— Não é assim que se responde um “oi” de uma garota. — O sorriso
parecia ficar mais e mais macabro conforme ela se aproximava.
— Estou dizendo! Afaste-se, ou você vai se arrepender! — bradou o
garnaziano.
Ela continuou andando.
— Zan’mord... — Esperava arremessar a mulher para o outro lado do
cânion. Mas algo diferente aconteceu dessa vez, algo nunca antes visto por ele.
Krëff não conseguiu terminar o feitiço. Na verdade, foi impedido...
Impedido por uma dor insana, incapacitante. O garnaziano sentiu todo o seu
corpo arder em agonia, como se sua pele estivesse sendo arrancada por
completo. Ele urrou, e chorou, e acabou chamando a atenção do grupo que
rodeava a montanha de carne — mas eles somente olharam e voltaram a
atenção para a comida. Seu corpo brilhava em uma luz branca leitosa, que
ficava mais e mais forte à medida que seus berros retiniam pelo cânion. Ele
continuou em prantos até que, subitamente, a dor parou. Derrotado e babando,
ele baixou a cabeça.

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— O que você fez?! — murmurou, entredentes, olhando em fúria para
a mulher. Os caninos saltaram para fora. A listra em ípsilon em sua face
acendeu fraca e bruxuleou em uma cor roxa opaca.
— O que eu fiz?
— Vai se foder!
— Ei, calma aí! — exclamou a mulher, incrédula e visivelmente
ofendida. — Não tenho culpa se você não consegue usar magia.
— Do que você está falando? — A listra de seu rosto tornou a se apagar.
O garnaziano sentia-se bizarramente vazio desde que acordara, como se
algo estivesse faltando dentro dele. A presença que antes sentia no âmago de
seu ser, e que preenchia a maior parte de sua Alma, já não parecia estar mais
lá.
— Hum... Bem estranho um garnaziano não conseguir usar magia... —
comentou ela, ignorando o rapaz. A garota se aproximou e ajoelhou perto dele,
apoiando um dos braços sobre o joelho. Braço cuja mão segurava, de maneira
desleixada e ameaçadora, um pequeno punhal enferrujado. — Ainda mais
você..., Krëff.
O garnaziano franziu o cenho e a encarou. As perguntas eram tantas...
Por que o feitiço não funcionou? Ele perdeu a afinidade com Garnaz?
Quem era aquela mulher? E como ela sabia seu nome? Perguntas que vieram e
ficaram, e preencheram por completo a mente confusa de Krëff.
Uma casca oca..., pensou ele aflito, pouco se importando com a atitude
da jovem de levar a arma até seu pescoço. Não se importaria se sua garganta
fosse cortada por aquele maldito punhal. Estranhamente, já se sentia morto.
— Por que tentou me matar? — inquiriu a garota, deixando a lâmina a
poucos centímetros do pomo de adão de Krëff. O rosto “doce” havia ganhado
uma feição séria e intimidadora; tal qual a voz que, somada à condição de ter
uma arma branca junto ao pescoço, fez o garnaziano paralisar.
— Eu não tentei te matar... — respondeu ele, mantendo a cabeça e a
voz firmes.
— Não... — entoou sarcasticamente a jovem. — Só me lançar de cabeça
na parede.
— E como você sab...
— Da próxima vez que tentar matar uma antiga amiga — interrompeu-
o a mulher —, pelo menos tente dar para ela a chance de se defender.
— Amiga? — Confuso, o jovem indagou.

- 57 -
A garota deu um sorriso decepcionado.
— Além de ter mentido para mim, me abandonado, e me deixado para
morrer, você nem ao menos chegou a me considerar como “amiga”? — A
lâmina fria do punhal enferrujado beijou o pescoço de Krëff. — Diga meu
nome, príncipe... — A frase saiu em uma voz trêmula.
E quando Krëff julgou poder ver os olhos amendoados da humana
marejarem, ela deu dois passos para trás e se afastou dele, virando-se de costas.
— Vamos, príncipe — murmurou —, você consegue se lembrar...
Os olhos haviam contado a Krëff quem ela era.
— Trisa... — pensou alto o garnaziano, desapontado consigo mesmo.
A humana virou e olhou-o no fundo dos olhos. Primeiro, nos superiores,
e depois, nos inferiores. Por fim, ela inflou os pulmões, se preparando para
berrar:
— LEROLAC!!! — As lágrimas cederam à força do grito, que
preencheu o cânion em um tom cortante. Ela limpou o rosto úmido e esperou
algo.
Krëff viu grandes mãos saltarem para fora de um dos buracos na parede
oposta a ele e se agarrarem na beirada com firmeza. De dentro da fenda
disforme, um ser semelhante a um humano saiu, descendo para o solo do cânion
com um grande e ruidoso impacto proveniente da queda de aproximadamente
quatro metros. A pele escura possuía um aspecto rochoso e demonstrava-se
com inúmeros sulcos e rachaduras, das quais se projetaram fracos brilhos de
uma luz alaranjada quando a pele recebeu o toque escaldante do forte Sol do
meio-dia. Seus cabelos desciam em tranças para as costas, negros como a noite,
e com luzes laranjas e amarelas como o dia. Era alto e forte, e conforme se
aproximava parecia dobrar de tamanho. Krëff pôde sentir o calor que fluía do
garumniano quando ele parou frente a frente com o rapaz; e se sentiu indefeso.
O jovem viu Trisa olhar para Lerocac. Ela parecia menor do que já era.
— Ele... — A jovem olhou para Krëff com um rosto pensativo. — Ele
não nos oferece riscos.
— Bom. — O garumniano se aproximou a passos lentos do rapaz. —
Espero que sua estadia no Cânion seja... legal. — Se agachou e estudou Krëff
de perto. Por fim, murmurou: — Esse vai ser bom de bater... Trisa! Solte o
garoto. E apresente o Cânion para ele também.
— Certo...

- 58 -
Ambos observaram Lerolac se levantar e ir de encontro ao grupo que
rodeava a montanha de carne.
Trisa brandiu o punhal.
As poucas partes desenferrujadas da lâmina refletiam o Sol nos olhos
do garnaziano. Decidida, a jovem se sentou ao lado do rapaz, levou a arma até
as mãos dele e começou a cortar a corda que o prendia. Krëff, escondendo um
olhar monótono e infeliz por trás de um semblante franzido, sentiu que era um
bom momento para...
— Me desculpa...
— O jantar de hoje será o seu cavalo, se não se importa — ignorou-o a
mulher, tentando rasgar a corda com tanta força que mais parecia que estava
cortando uma lasca de pedra.
— Não, o... — Sem jeito, Krëff balbuciou. — O cavalo não era... meu.
— Ótimo.
Trisa continuou focada em cortar a corda, ou era isso que fingia.
— Então — começou o garnaziano —, aquele é o tal cavalo?
— É... Bem, costumava ser.
— E por que aquilo não aconteceu comigo?
— Esse lugar é como uma prisão, e os sirnannianos, ou sentinelas,
chame como quiser, não querem que todos que caiam aqui morram. Então,
ativam um daqueles... troços.
— As Marcas?
— Tanto faz. Enfim, você caiu como uma pena aqui embaixo. Triste o
cavalo não ter tido a mesma sorte. Pelo menos, não vamos comer carne de... —
Ela silenciou-se, jogou o punhal para o lado e levou as mãos até a corda.
— Não parece que minha estadia aqui vai ser tão “legal”, não.
— Na verdade, não é tão ruim — enfatizou, enquanto desatava um nó
cego. — Tem bastante espaço, e tem as lutas diárias também. — Dois ratonges
subiram pelas suas costas e repousaram em seus ombros. Ela sorriu. — Ah, e
tem os meus bichinhos!
Ela continuou a desatar as amarras de Krëff; agora com um sorriso no
rosto. O rapaz ficou em silêncio por um tempo, até um questionamento surgir
em sua mente e, então, ele o externalizar:
— Por que foi jogada aqui, afinal?
A pergunta foi o suficiente para fazer aquele sorriso genuíno
desaparecer por completo.

- 59 -
Krëff sentiu seu braço livre. Trisa se levantou, virou-se e chamou-o para
apresentá-lo ao famoso Cânion dos Decadentes. Ele a seguiu, desconcertado
com a situação.
Sentia-se vigiado enquanto caminhava atrás da jovem. Ele olhou
novamente para cima, procurando a silhueta que há pouco o parecia observar.
Mas não tinha nada lá. Parou e olhou os arredores, os buracos, sem esperança
de que visse algo de fato; mas viu, ou achou que viu.
De uma das fendas, quatro mãos magras e cinzentas se projetavam,
agarrando as bordas em cada extremidade com dedos longos e pontiagudos,
inquietos. A escuridão, que perdurava devido à fundura da abertura na parede,
emoldurava algo pouco visível àquela distância: o jovem julgou ser um olho
vertical, ou uma joia. A criatura, ao notar que estava sendo observada, guardou
as mãos de volta às trevas, de onde nunca deveria sair... Pelo menos, não de
dia.
Krëff, ligeiramente assustado, continuou a seguir a antiga amiga.

II

Não havia muito o que ser apresentado no Cânion dos Decadentes. Trisa
levou o garnaziano para o grupo faminto, que era barulhento e estranho demais
para o gosto dele. Todos haviam pegado grandes rochas e as posicionado de
forma a circundarem a fogueira improvisada que Lerolac montara, formando
um humilde acampamento. A chama ardia com vigor e queimava a carne
disforme do cavalo. Um zellyen de baixa estatura girava compenetrado a
manivela que atravessava o alimento. A humana se aproximou dele e encostou
a mão em seu ombro.
— Este aqui é Oman. — Ela disse.
— Temos que assar! — afirmou o zellyen, não parecendo se importar
com a presença dos dois. — Temos que assar cada pedaço se-pa-ra-da-men-te.
— Sua voz era estridente e insana.
Quem não ficaria louco preso num lugar desses? pensou Krëff.
Zellyens surgiram durante uma epidemia. A doença, de origem
associada a mitos e divindades, se espalhou por uma parte considerável de

- 60 -
Zath’oru, tomando cerca de um terço do centro-oeste do continente. Os
habitantes infectados morriam em pouco menos de uma semana, e mesmo
mortos, assumiam consciência depois de alguns dias, mas com uma
personalidade diferente da que tinham em vida. A epidemia durou um mês
inteiro, até acabar repentina e misteriosamente.
Oman era um esqueleto disforme e rachado de um meio-nirnäp. A
aparência do ser causou certa repulsa em Krëff, que nunca tinha visto um
zellyen antes. Dos olhos e rachaduras do já-morto, um estranho líquido marrom
escorria, projetando grossos pingos pelo chão. A roupa de origem chique tinha
um aspecto velho e desgastado, e manchas beges circulares adornavam-a por
completo: da jaqueta branca rasgada às calças cinzentas também em péssimo
estado.
— Se você pingar essa droga de cocô na nossa comida, eu juro que te
mato! — bradou um humano, sentado na outra extremidade da fogueira.
Lerolac estava ao seu lado.
— Não é cocô, Garanur — elucidou Oman, mantendo a concentração
na carne —, é meu caldo vital. — Ele riu debochadamente. Sua risada
assemelhava-se à de uma bruxa. — E já estou morto, caso não tenha percebido.
— Eu acho que não está forte o bastante — murmurou Lerolac, alheio
à conversa. Krëff jurou poder sentir o chão vibrar com sua voz.
O garumniano levantou da pedra na qual repousava e enfiou ambas as
mãos na chama da fogueira. As rachaduras de seu corpo rochoso se iluminaram
levemente. Todos o observaram quietos, menos Oman, que sobressaltou assim
que a chama cresceu a ponto de engolir a carne por completo.
— PARA!!! — bradou, correndo até Lerolac e começando a socá-lo.
— Para seu... BURRO! Brutamontes! Louco! PARA!
O garumniano não parecia sentir um golpe sequer.
Trisa, risonha, se virou para Krëff e o chamou. Ambos somente
observaram tudo em silêncio, enquanto a humana disfarçava risadinhas e o
garnaziano mostrava-se impaciente e mau-humorado como sempre. Ele
achegou-se dela mais uma vez e, juntos, se afastaram do grupo.
Krëff não parava de olhar as fendas nas paredes, procurando a criatura
que há pouco o observava.
Olhos. Não havia nada que o assustasse mais do que olhos. Ser
observado era algo que lhe causava extremo desconforto. E a lembrança
daquilo que o besteiro havia dito somente piorava as coisas:

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“Temos olhos em todos os lugares, garnaziano...”, a voz daquele
maldito parecia brotar de cada buraco naquelas paredes.
— O que são essas aberturas? — Quis saber o jovem — A gente está...
seguro?
— Normalmente alguns de nós dormimos nesses buracos. — Ela parou.
— Por quê? Não se sente seguro?
— Não, é que... eu acho que estou ficando louco.
— Olha, não vou mentir para você. Ninguém aqui está seguro. Um
cânion cheio de viciados, assassinos e ladrões não é um lugar seguro. Se
procurar direitinho, até monstros você encontra.
Krëff suspirou e disse:
— Acho que eles que me encontraram.
Trisa se virou e olhou para ele, indiferente.
— Ótimo! Então, mate eles. — A humana abriu os braços. — Quando
foi que ficou tão fracote?
— Quando eu parei de sentir Garnaz... — admitiu, não parecendo mais
se importar com a presença de Trisa.
Krëff sentia-se... perdido. A pergunta da humana atingiu-o lá no fundo,
o fazendo pensar a respeito. Sua mente voou para o passado, projetando
possibilidades e resoluções, consequências e ações...
Quando foi que... eu perdi... tudo? O sentimento de vazio só aumentou
desde que eu...
— Desde que eu perdi a máscara — constatou o garnaziano em voz alta.
E em um átimo, quando decidiu piscar os seus quatro olhos, notou que algo
estava diferente.
O dia havia se tornado escuro, cinza. Trisa não estava mais em frente a
ele, olhando-o com uma feição debochada. Ela havia desaparecido. Os gritos e
risadas do grupo barulhento simplesmente pararam e foram suprimidos por um
silêncio sufocante. O príncipe fechou os olhos. Estava completamente sozinho
no cânion.
Solidão. Não havia nada que o assustasse mais do que a solidão. Uma
voz invadiu-lhe a cabeça, dizendo com demasiado realismo as palavras que
marcaram a consciência de Krëff em sua infância:
“Estamos sozinhos, Krëff, todos nós.”, Lerluh disse, uma vez.
Duas vezes.
Três...

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Infinitas vezes.
A voz aumentava mais e mais, quebrando a barreira do aturável; e o
ouvido do garnaziano já apitava. Ora ela soava deprimida, ora feliz, radiante.
Quando Krëff abriu os olhos, no mesmo instante, a voz parou, e o cânion mais
uma vez foi amordaçado pelo silêncio. Pelo Vazio. O garnaziano olhou para
os arredores.
“Você está sozinho, Krëff.”, disse uma voz feminina. De súbito, ele se
virou para onde havia a escutado.
No momento que o príncipe enxergou a dona da voz, ele paralisou.
Uma garnaziana adulta estava parada, nua. Das margens de seu corpo, uma
espécie de chama negra se projetava, enrolando-se nele e balançando
incessantemente. Krëff já havia se surpreendido por ela ser uma garnaziana,
mas se surpreendeu ainda mais ao reconhecer os seus olhos. Eram púrpuras.
Ela era Haemï.
O príncipe tentou falar, mas sem sucesso.
Sua irmã também ficou em silêncio. Somente abriu os braços... E no
momento que ela fez isso, uma água preta começou a despejar dos buracos nas
paredes, formando uma miríade de cascatas negras. O líquido tocou os pés do
garnaziano, era frio. Sem ter para onde fugir, o caçador ajoelhou-se, deixando-
se banhar pelo Vazio.
— Krëff?!
Ele fechou os olhos.
— Krëff!
Sentiu vontade de chorar, e assim o fez. O líquido salgado pingava
para o mar negro que se formava, como se os últimos resquícios de esperança
do garnaziano estivessem sendo sugados por ele. Mas ainda não havia
acabado. Krëff sentiu algo tocar seu rosto que não as lágrimas: um toque suave
de pele com pele. Um toque que o despertou imensa nostalgia e saudade.
O toque de sua antiga amiga.
— Krëff!!! — Trisa o chamou.
E ele foi puxado de volta.
Ajoelhado, o rapaz arfava. Trisa, com seus dedos franzinos e
inquietos, secava o rosto de Krëff, úmido de tristeza. A garota que o príncipe
viu parecia diferente, mas só em sua imaginação. Julgou poder ver aquela
garotinha indefesa de novo, esfomeada, sozinha... Finalmente sentia o que era

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de fato estar completamente sozinho. Nunca a entendeu tão bem quanto
naquele momento.
— Você voltou?! O que aconteceu? — indagou a jovem, com a voz
trêmula.
— Eu disse que acho que estou ficando louco...
— Não tinha levado tão a sério — disse Trisa, ajudando o garnaziano
a se levantar. E quando o pôs de pé, ela ordenou: — Certo, agora me fala o
que aconteceu!

III

— Você sempre teve essas visões? — inquiriu Trisa, após o príncipe


ter contado tudo o que havia visto dentro de sua mente.
— Não. — Ele respondeu, incerto.
— Tem algum palpite do que sua irmã estava fazendo lá?
— Minha irmã está morta... — declarou um Krëff cabisbaixo. Ele
suspirou antes de continuar: — Triss, não acho que essa “visão” tenha algum
significado. Minha Alma está incompleta de novo, é só isso...
— E por que você parece tão calmo com isso? — indignou-se a jovem.
— Garnazianos não se dão bem com o Vazio. E se sua Alma está incompleta,
é só questão de tempo até...
— Eu estou bem..., Triss.
Se aproximavam de uma caverna localizada a centenas de metros do
acampamento. Saindo inclinado do solo do cânion, o covil assemelhava-se à
uma cabeça disforme de um tubarão, cuja boca era a entrada, e o interior, as
entranhas. A luz do Sol dispersava um filete luminoso mediante a escuridão
subterrânea. Lá embaixo, como era esperado, Krëff pôde enxergar somente um
chão cinzento salpicado de cascalho.
— É... Parece que vamos ter que arrumar um jeito de pegar a sua
máscara de volta.
— Você continua genial, Triss — brincou o príncipe.

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— E você, sarcástico, cinzinha. — Trisa pulou para dentro da caverna
e escorregou pela inclinação da entrada até cair de pé. Quando se recompôs da
queda, a garota se aprumou e caminhou sem medo para as trevas.
Cinzinha...
Krëff a seguiu.
Após cair com um estrondo, o rapaz esperou os quatro olhos se
acostumarem com a repentina escuridão. No momento que retomou a visão,
ele estudou o cenário, compenetrado.
A caverna era circular e bem espaçosa. O lado esquerdo era quase uma
cópia perfeita do direito. Oito pilares rochosos se mostravam espelhados,
quatro de cada lado, conectados às inúmeras estalactites que adornavam toda a
cobertura do local — o garnaziano torceu para que nenhuma daquelas formas
pontiagudas caíssem em sua cabeça.
— O que é... esse lugar? — Krëff, mesmerizado com a semelhança
bilateral da caverna, perguntou. Esperava uma resposta mística, empolgante...,
mas a voz distante e reverberada de Trisa dissipou seus pensamentos
fantasiosos.
— Esse é o banheiro — gritou ela, preenchendo o silêncio da caverna
com uma voz quase que cômica.
— E cadê você? Está... ocupada? — indagou um Krëff vagamente
envergonhado.
— Estou aqui.
O caçador sentiu um filete gelado no pescoço e uma respiração calorosa
na nuca. Seu ombro esquerdo era segurado pela mesma mão que limpara seu
rosto úmido há poucos minutos. Ele paralisou, bufou e, ressentido, murmurou:
— Triss...
— Não ache que eu te perdoei. Você só está vivo ainda porque...
— Porque você não consegue me matar... — interrompeu-a o
garnaziano, levando uma das mãos até o punhal que lhe tocava a garganta.
— Você mentiu para mim! — Trisa alterou-se. Ela agitou o braço
involuntariamente, e por um breve momento, acabou apertando a lâmina ainda
mais no pescoço de Krëff, que abaixou novamente o braço em impulso. —
Aquele papo de: “nunca vou te abandonar”, “estaremos sempre juntos”. Era
tudo mentira... Você me deixou para morrer!
— Eu não fiz isso...

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— Você era tudo que eu tinha... Achava que seria o único ser nessa
merda de mundo que me ajudaria.
— Você não precisa de ajuda, Trisa. Nunca precisou. Você é forte.
A jovem tirou o punhal do pescoço de Krëff. Afastando-se, atirou a
arma na parede com a maior força que pôde. A lâmina se quebrou, ecoando o
baque contra a rocha por toda a caverna. Trisa, desolada, sentou-se no chão e
abraçou os joelhos.
— No dia que você não voltou... — começou — eles me pegaram de
novo... Não consegui me defender... Não veio ninguém para me ajudar. Me
bateram tanto que só me lembro de andar pelas ruas, completamente
ensanguentada, e desmaiar na primeira viela que achei ter visto. — Ela olhou
para o garnaziano, que continuava parado no mesmo local. — Por que você
sumiu? Por que não estava lá como estava na primeira vez?
O jovem deixou o silêncio perdurar um tanto.
— Eu fui atrás do meu irmão — explicou, secamente.
— E já encontrou ele?
O príncipe meneou a cabeça e bufou.
— Você ainda acredita que ele está vivo? — Trisa quis saber.
— Eu sei que está! — disse Krëff, finalmente se virando e olhando-a
nos olhos. — Eu sei... Aquelas corujas não conseguiriam pegá-lo. E Lerluh não
seria burro de sair sem um Cristal de Garnaz... Ele sabe se virar.
O casal de amigos se encarou em silêncio por um tempo, até Krëff
desviar o olhar para o chão, evitando os olhos amendoados e ressentidos de sua
velha amiga.
— Poderia ter me levado! — repreendeu-o a mulher. — Ao menos, me
avisado! Droga!
— Eu não sabia o quão perigoso poderia ser... — Krëff tornou a olhar
para ela. — E não me arrependo de não ter trazido você comigo. Só na última
noite eu quase morri duas vezes.
— Não foi muito diferente comigo, na verdade — lamentou a garota.
— A diferença é que você tem um objetivo... Tem amigos, uma família, um
lugar para chamar de lar. Eu preferiria morrer com você a passar o que passei
sozinha. — A jovem se levantou lentamente e virou-se para a subida. — Peça
a minha opinião da próxima vez. — E então, partiu amargurada para a saída.
Desculpa...

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Krëff a observou subir devagar a inclinação. Enquanto escalava, a
jovem estacou abruptamente e olhou para trás:
— A luta é logo depois do almoço... — informou, fazendo força para
segurar seu peso na descida — Nermo vai acabar com você, príncipe. — Ela
tornou a subir.
Antes que Krëff desse a mínima para quem era Nermo, Trisa já estava
distante. O nome, cujo significado era “Guerreiro Alvinegro”, ecoou na mente
do garnaziano. O rapaz deu uma última olhada na caverna antes de se virar e
buscar a saída. Então, pensativo, rumou para a luz.
Ele deu dois longos passos, até que...
Garnaziano?!
Uma voz feminina reverberou dentro de sua mente.
— Mas o quê?! — Krëff saltou sobre si.
Pela Matriarca! Você finalmente respondeu!
— O que está acontecendo?
Eu preciso de ajuda! Garnaziano, por favor!
O rapaz, confuso, vasculhou os arredores, buscando a origem daquela
voz tão infeliz. Quando não obteve sucesso em encontrá-la, ele a questionou:
— Que tipo de ajuda você quer? Como se chama? E, principalmente,
como, pelos quatro Báratros de Pólvora, você entrou na minha maldita cabeça?
Não falarei nomes, mas você deve me conhecer como “a sentinela que
me derrubou no cânion”.
— Ãhn? Foi você? Sua...
Torço para que tenha um bom coração, garnaziano; um coração que
não guarde mágoas.
— Não guarde mágoas? Você poderia ter me matado!
Mas te salvei. E, como um sinal de gratidão, peço ajuda para que salve
minha filha.
— Não entendo como eu salvaria sua filha; também não sei o porquê
eu iria querer fazer isso...
Não seja tão grosso! Ela está doente, muito doente. Minha bebê... Há
tanto para ela viver... A vida foi dura com ela tão cedo... Você não iria querer
viver carregando o fardo de ter o sangue de uma criança em suas mãos, iria?
— E o que eu teria que fazer para salvá-la?
Todos os garnazianos carregam um objeto consigo, não? Um amuleto
com um cristal extremamente valioso e cobiçado. Peço que o dê para mim...

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Um pensamento atingiu a mente do jovem. Ele o repudiou, mas...
— Garnazianos morrem quando não o usam aqui fora — murmurou. —
E eu não... — Krëff parou de falar quando a outra o interrompeu, bradando em
desespero:
O dinheiro me ajudaria a cuidar dela! Por favor, eu imploro! Ela viveu
tão pouco...
Porém..., Krëff não usava um Cristal de Garnaz.
Como há ciclos sua Alma havia se tornado incompleta, ele deixara de
ser um garnaziano puro. Ou seja, sair do Círculo sem estar usando o tal amuleto
era possível, diferentemente de seus irmãos de raça. A criança, infelizmente,
não seria salva. Mas, e se... ele pudesse ser salvo. Aquele pensamento surgiu
mais uma vez, e ao invés de repudiá-lo e dizer a verdade, Krëff aproveitou.
O jovem não sorriu; não sentiu orgulho, felicidade ou alívio. Monótono,
entristecido e envergonhado, ele apenas disse:
— Certo... Eu te ajudo.
Oh! Graças à Matriarca! Muito, muito, muito obrigada, garnaziano!
O príncipe recebeu em silêncio os agradecimentos da sirnanniana, mas
não prestou atenção neles; sua mente estava ocupada demais enquanto remoía
o que ele havia acabado de fazer.
Eu vou precisar de três luas para conseguir tirar você do cânion.
Quando o dia chegar, fique atento, eu lhe passarei todas as informações. Aliás,
preciso avisar que só conseguiremos conversar se você estiver em um lugar
silencioso. Ou seja, daqui a três luas, vá para o lugar mais quieto que
encontrar, certo?
E antes que Krëff a respondesse, a voz já não mais falava. O ambiente
estava em completo silêncio mais uma vez.
O príncipe parou para degustar o péssimo sentimento que agora o
assolava. A criança iria morrer de qualquer forma, assim pensou, e isso quase
o fez sentir-se melhor. De cabeça baixa e pensativo, ele voltou a caminhar para
fora da caverna, recebendo socos de sua própria consciência.
Mas algo também lhe parecia socar fisicamente. O príncipe saltou para
o lado e se aprumou, preparando-se para lutar.
— Como ousa levantar suas patas nojentas para o grande Zankala?! —
bradou a figura que o agredia até então.
Zankala não era nada grande. O ser lembrava um humano com
aproximadamente noventa centímetros de altura. O enherun tinha seus punhos

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armados de maneira estranha, tentando evitar que as unhas afiadas cortassem a
palma da mão. Por todo o braço, faixas úmidas, maculadas de vermelho, eram
visíveis, remoinhando até os cotovelos, de onde grossos chifres pontiagudos se
projetavam por cerca de cinco centímetros.
Krëff notou que, mesmo de longe, o pequeno cheirava mal. Exalava
uma miscelânea de odores repugnantes, dos quais o garnaziano pode discenir
o de urina e o de cardureiras. Certamente o enherun estava alterado por aquela
maldita seiva.
— Por que estava me batendo? — indagou Krëff, encarando Zankala
com o rosto hostil.
O pequeno gargalhou.
— Porque você é louco! Estava falando sozinho e ynk — o ser soltou
um grunhido estranho, dissonante, semelhante a uma tosse fina — nada que
você falava fazia sentido. Sabe o-o que fazemos com esquisitões aqui no
cânion? Eu p-posso ynk te mostrar!
— Ou nós podemos calmamente sair dessa caverna e ir almoçar. Não
quero lutar com você.
— Aceito a sua proposta, quatro-olhos. Mas saiba que eu não ynk
amarelei. Quando eu estiver alimentado e descansado, eu vou te partir em dois;
ou três, ou quatro, quantos pedaços ynk me derem na telha!
— Que assim seja — murmurou Krëff, impaciente.
E ambos partiram rumo ao acampamento.

IV

As lutas já haviam começado.


Após o almoço e o breve descanso dos membros do acampamento de
Lerolac, os seis partiram para um lugar em específico no cânion, onde
encontraram-se com outros grupos. Multidões de decadentes se formaram,
delimitando os diversos ringues que dariam palco àquela plateia insaciável por
violência. Eles babavam, torciam, gritavam, xingavam; e no centro dos círculos
os quais cingiam, dois ou mais seres se engalfinhavam em uma briga
minimamente alucinante ou deveras ridícula.

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Krëff estava se divertindo mais do que achou que iria. Enquanto
testemunhava Zankala lutar ferozmente com um humano que tinha o dobro de
seu tamanho, ele esboçava um semblante sorridente, empolgando-se quando o
enherun feria o adversário. De um lado do ringue, o rapaz se mostrava com
dificuldades de se manter de pé: o pequeno rasgara seu tronco diversas vezes,
fazendo jorrar um estranho sangue rubro dos diversos ferimentos. Do outro
lado, Zankala pouco havia se ferido: expunha somente alguns hematomas aqui
e ali.
Com uma velocidade impressionante, o enherun partiu para cima do
outro e o escalou, cravando suas afiadas garras na pele dele e içando até chegar
em sua nuca. Ele envolveu as pernas ao redor do pescoço do rapaz. Sua mão
esquerda ergueu a cabeça do humano pela testa. Depois, Zankala preparou a
mão direita, pondo-a mais à frente, com as unhas direcionadas para o pescoço
desprotegido de sua presa.
Krëff não achou que o pequeno fosse de fato matar o adversário, e se
surpreendeu quando, decidido, Zankala enfiou as garras em sua garganta. Uma
cascata desceu do pescoço do outro, tingindo o solo cinzento de vermelho e
arrancando urros uníssonos da plateia, que assistiu o enherun despencar
lentamente junto do humano moribundo. Todos conclamavam o nome do
assassino:
— Zankala! Zankala! Zankala! — O gargarejo sangrento do humano
era silenciado pela empolgação da torcida.
O enherun descavalgou o jovem morto e limpou o sangue da mão em
sua blusa branca, matizando-a de escarlate. Ele cuspiu no cadáver e caminhou
até a plateia.
Ao lado de Lerolac, Oman o esperava, segurando uma extensa folha
em formato espiral. Zankala pegou a cardureira e suspendeu-a como um troféu,
sorrindo como uma criança que recém havia ganhado um brinquedo.
— Você foi bem, humano-nefasto. — Krëff pôde escutar Lerolac
parabenizar o enherun.
Zankala só parecia ter olhos para a folha, e não respondeu seu líder.
Ele galgou hipnotizado entre a plateia, esbarrando-se em todos que estavam à
sua frente, inclusive o garnaziano. Depois, sumiu na multidão como uma pulga
nos pelos de um lanúmeo.
Krëff tinha visão de quase todos os membros que já conhecera: Oman
entregava aos vitoriosos as cardureiras; Lerolac anunciava os próximos

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lutadores, preenchendo todo o cânion com sua voz imponente; Garanur assistia
entediado à todas as lutas; e Zankala havia acabado de tirar uma vida, saindo
vitorioso de uma batalha empolgante. Mas Trisa, que estava ao lado do príncipe
quando o humano-nefasto começou a lutar, havia sumido.
O garnaziano a procurou pela aglomeração, mas não obteve sucesso em
encontrá-la. Olhou para as paredes esburacadas, buscando sinal dela ou daquela
forma sinistra que vira há um tempo, mas também não encontrou nada. E no
instante em que iria se afastar para procurar a amiga, escutou a voz do
garumniano:
— Os próximos são Krëff e Nermo. Aproximem-se! — proclamou,
procurando o garnaziano no meio do aglomerado.
A plateia se animou, e o príncipe pôde escutar os murmúrios:
— Quem é esse cara?
— Não sei, mas ele está fodido — diziam.
— Um novato lutando contra Nermo?! Lerolac quer mesmo ver sangue
hoje!
O pulmão de Krëff ficou pequeno. Calafrios tomaram seu corpo por
completo. O medo havia voltado... Um medo que não sentia há tempos: o de
lutar. Ele não era nada sem a máscara. Não era nada sem Garnaz. Mas, sem ter
para onde correr, o garnaziano parou.
Enfretaria seu medo.
Enfrentaria o Guerreiro Alvinegro.
— Garnaziano! — chamou Lerolac, ainda buscando-o dentre a plateia.
— As runas! — Krëff murmurou.
O rapaz retirou das golas de seu quimono uma pequena bolsa que
dependurava como um colar sob seu tronco. Tateando o interior do saco, tocou
dezenas de pedras de tamanhos diversos, buscando uma delas em específico:
uma em formato pentagonal. Quando apalpou o objeto, retirou-o do interior da
bolsa e o contemplou por um tempo.
A rocha figurava em sua superfície um estranho símbolo fosforescente,
com formas triangulares e concêntricas e diversas marcas menores escritas em
uma língua morta.
Ele pressionou a runa pentagonal com força; sentia-se mais seguro
quando a tinha em mãos. Prendeu a bolsa novamente no pescoço e guardou-a
sob a roupa. Então, comprimindo a pedra entre seus dedos trêmulos, se virou e
caminhou para o ringue.

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— Aí está você! — Lerolac bradou.
Foi quando um corredor se abriu à sua frente.
De ambos os lados, todos o encaravam, gargalhavam e o
desmotivavam. O príncipe começou a andar rumo ao ringue, recebendo a
zombaria com uma expressão raivosa.
Conforme Krëff seguia, a plateia se fechava atrás dele, impossibilitando
uma possível fuga.
— Me pergunto se carne de garnaziano é gostosa... — ponderou um
pyinlon aos ouvidos do rapaz, assim que Krëff passou por ele.
Caminhando hesitante, recebia empurrões que o apressavam, junto de
mais xingamentos e escárnios incômodos. Aos solavancos, enfim, o príncipe
chegava ao ringue, sendo cingido por uma plateia que aumentava gradualmente
junto do pavor que lhe assolava.
Quando o garnaziano pisou no interior da arena cinzenta, um silêncio
tomou o ambiente por completo. Enquanto todas as lutas paravam e os
espectadores, aos poucos, corriam para assistir ao espetáculo de Krëff, atrás de
Lerolac, a plateia se desunia, abrindo mais um corredor para outra pessoa.
Pés descalços ecoavam um tinido agudo contra o silêncio; tinido este
que se avizinhava sem pressa do ringue. Passeava confiante o adversário do
príncipe, e a runa já deixara de acalmá-lo.
Lerolac se virou e, olhando para baixo, encarou a figura, cuja raça,
tamanho e aparência Krëff não pôde enxergar, pois eram obstruídos pelo
gigantesco corpo do garumniano. Voltando a visão de volta para o ringue, o
líder encarou Krëff, sem dizer nada, e saiu do caminho de Nermo a passos
lentos.
E, detrás daquele enorme ser, Krëff viu uma humana dirigir-se para
dentro da arena. A humana tinha a pele clara, olhos amendoados e cabelos
ruivos. A humana era Trisa, a Guerreira Alvinegra.
— O que está fazendo aqui, Triss? — indagou um garnaziano ingênuo.
A jovem não respondeu.
Desamarrando as ataduras de ambos os braços, ela encarava o amigo
de infância. As sobrancelhas arqueadas lhe forneciam uma feição intimidadora,
mas Krëff não se sentia intimidado pela amiga. O medo foi aliviado pela
amizade, pela descrença... Trisa não seria capaz de machucá-lo, não é?
As faixas despencaram para o chão cinzento, expondo a todos os
incontáveis cortes que revestiam todo o braço da Guerreira Alvinegra. Cortes

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pequenos, ou profundos... cicatrizados, ou recentes. Krëff se perguntou se Trisa
também havia ido pelo mesmo caminho de Zankala; se também era viciada em
cardureiras... Ela estava no Cânion dos Decadentes, afinal.
— Vai ficar só me olhando, príncipe? — falou Nermo, elevando os
punhos na altura do rosto. — Isso é ótimo! Preciso de tempo mesmo...
— Tempo? Para o quê?! — indagou Krëff, confuso.
Trisa fechou os olhos e respirou profundamente.
Encarando-a com mais atenção, o príncipe notou que algo começou a
mudar.
Das margens das cavidades oculares de sua amiga, espessas veias
negras saltaram. Do lado esquerdo, subiam até a testa, pulsando com
intensidade; do direito, as veias desciam até o queixo, desenhando em seu rosto
diversas ramificações negras.
Os ferimentos do braço esquerdo pareciam ser remoldados, mudando
de tamanho e forma, enquanto palpitavam e luziam em branco, cegando boa
parte da plateia. O outro era abraçado por um redemoinho de fogo negro, que
penetrava os rasgos não cicatrizados e se movia no interior do braço de Nermo.
Ela, por fim, abriu os olhos e encarou o príncipe, exibindo aquela
aparência desumana, que fez com que o antigo amigo paralisasse. Enquanto
um dos olhos brilhava, o outro parecia absorver a luz, refletindo somente o puro
Vazio... E garnazianos não se dão bem com o Vazio.
Aquele questionamento atingiu a mente de Krëff de novo, e ele já não
tinha mais certeza da resposta.
Trisa não seria capaz de me machucar..., não é?
A Guerreira Alvinegra partiu em disparada para o garnaziano.
Ela agiu rapidamente, chegando na frente do adversário em menos de
dois segundos. Sem hesitar, desferiu um soco diretamente na barriga do
garnaziano, que somente assistia, incrédulo, aos movimentos de sua amiga.
O príncipe recebeu o golpe em cheio. O ambiente pulsou em branco.
Das costas arqueadas do garnaziano, projetou-se uma explosão radiante, que
lentamente desvaneceu em um festival de pálidas luzes leitosas, que
despencaram para o solo como dezenas de flocos de neve. Trisa recuou alguns
passos e esperou. O chão amparou o corpo do caçador de recompensas.
De joelhos, Krëff quase chorava; sem saber exatamente se era de dor,
de decepção ou de ódio. Ela quer lutar, pensou... Quer mesmo lutar... Ele
apertou a runa com força, pondo toda sua miscelânea de sentimentos na palma

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da mão e fechando-a em um punho distorcido. Seus quatro olhos brilharam sob
os sobrecenhos arcados. Suas presas despertaram, perfurando de leve a parede
de seu beiço retraído. A marca cinza-escura do seu rosto matizou-se de púrpura,
fazendo com que a Guerreira Alvinegra recuasse ainda mais. E ele se levantou,
pondo-se em pé de igualdade. A plateia berrou de empolgação.
De onde estava, Krëff golpeou o chão com o punho que cingia a runa.
O solo se quebrou, explodindo em uma densa fumaça cinzenta que tomou todo
o ambiente. Com a poeira baixando, a silhueta de Trisa, imutada, deu lugar a
uma humana levemente ferida por conta dos cacos de pedra que se projetaram
do ataque. A mulher sorriu.
Partindo para cima da amiga, Krëff foi por trás e desferiu mais um
soco. Nermo contra-atacou com o braço que era tomado pelas chamas negras.
Punhos se encontraram.
Os arredores sofreram um solavanco com a vibração do impacto,
fazendo com que boa parte da turba caísse; outros se afastaram, acrescentando
à arena circular uma área maior e mais propícia para aquela batalha.
Ambos golpeavam ao mesmo tempo, com os punhos se chocando
repetidas vezes. O chão se avariava com o choque, figurando rachaduras
crescentes e afastando ainda mais a plateia, que tinha a empolgação
gradualmente tomada pelo temor.
Um espetáculo alvinegro se projetava dos socos de Trisa. Quando o
braço tomado pela palidez da Alma atingia o príncipe, o cânion brilhava como
a Lua; e quando era a vez do direito, cingido pela escuridão horrorizante do
Vazio, uma rajada de fogo negro surgia e abraçava o garnaziano, posicionando
chamas infinitas em seus ombros.
Krëff recuou, arfante, enquanto se dava tapas e apagava as labaredas
crepitantes de seu corpo. Trisa somente o observou.
— Desgraçada! — Ele rugiu.
A Guerreira Alvinegra parecia perdida entre suas emoções. Abaixando
levemente suas pálpebras, expôs um semblante confuso..., cansado. Ofegante,
a jovem meneou a cabeça e disse:
— Você está certo, príncipe... Eu não consigo te matar, apesar de tudo.
— Uma chama se projetou para fora de um dos cortes de seu braço, longa e
fina como um chicote. Trisa segurou a arma negra, preparando-se para atacar
com ela. — Depois dessa luta, vou esperar você no acampamento. — Ela

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balançou o chicote no ar e jogou-o contra o garnaziano, mirando o braço do
rapaz, cuja runa estava sendo mantida.
Krëff recolheu o membro e desviou. As longas chamas que Trisa havia
disparado acertaram o ar e caíram para o solo, sendo retraídas em sequência. O
rapaz aprumou-se.
— Espero que você fique viva até o final da batalha — proferiu o
caçador de recompensas, preparando-se para correr. — Eu não vou me segurar
só porque você disse isso. — Uma rajada de poeira se elevou do solo sob seus
pés velozes.
Hesitante, Trisa começou a desenhar algo no ar com seu braço
esquerdo. Da ponta de seus delicados dedos, um feixe de luz branco surgia,
tomando a forma de um extenso chicote luminoso. Mais à frente, seu adversário
se avizinhava, confiante, sem temer as armas bicolores que ela agora
empunhava.
Trisa oscilou ambos os chicotes no ar, atirando-os contra Krëff, um
após o outro. O príncipe saltava para os lados enquanto corria, evitando por
pouco que aqueles golpes lhe derrubassem. E, conforme se aproximava, o
garnaziano notava algo.
O rosto desumano de Nermo se contorcia a cada golpe. Sob os pés da
guerreira, uma poça de sangue rubro gradualmente aumentava com as cascatas
que desciam de seus braços alvinegros. Cortes se abriam à medida que suas
forças eram levadas ao limite. Trisa estava sobrecarregada. Esse era o motivo
dos tantos cortes em seu braço.
Krëff continuou correndo. Os golpes de sua adversária ficavam mais e
mais lentos. O chicote luminoso derretia, enquanto o outro aos poucos
desaparecia. O corpo de Nermo se arqueou e, de repente, os ataques pararam.
E tudo o que sobraram foram os dois duelistas frente a frente, amigos de
outrora, junto de incontáveis seres de diferentes raças caídos assustados pelo
chão; e de pé, somente Lerolac, esboçando um sorriso orgulhoso.
Expondo um semblante digno de pena, Nermo olhou nos quatro olhos
do garnaziano. O príncipe retribuíu o olhar cansado, e eles conversaram um
com o outro através de feições doloridas. E então, entressorriram um para o
outro.
Mas a luta ainda não havia acabado.

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Sem pensar muito, Krëff tentou socar a amiga com o braço que não
empunhava a runa. A jovem desviou com facilidade e o empurrou. Krëff ruiu,
e o chão novamente apoiou seu traseiro descaudado.
— Triss..., eu posso tirar a gente daqui. — Krëff tentou dizer somente
para a amiga, mas a tormenta de risadas que emanaram da plateia elucidou que
sua voz não havia sido baixa o suficiente. Ninguém acreditou nele.
— Hahaha! Agora que está prestes a perder, ele tenta um truque barato
desses... Garnazianos são nojentos mesmo! — escarneceu uma voz anônima
dentre os seres caídos no chão. A multidão tornou a xingar o príncipe.
Nermo tinha os olhos arregalados. Tomada por um estranho
sentimento, ela aproximou-se do garnaziano caído e se ajoelhou ao seu lado.
— Essa é mais uma de suas mentiras? — quis saber, pondo os dedos
negros sobre o rosto de Krëff. Chamas tornearam seu braço direito.
— Não... — sussurou um garnaziano sobressaltado. — Não é... Eu
juro!
— É claro que é! — bradou outra voz anônima. — Vai acreditar mesmo
nessa raça desprezível? Mate-o logo!
— Mate-o! Mate-o! MATE-O!
Não... Ainda não...
As labaredas se intensificaram, e os dedos queimaram o rosto de Krëff.
O príncipe escutou Lerolac urrar:
— TRISA! — A Guerreira Alvinegra hesitou e olhou para o lado.
Krëff pressionou a runa com a maior força que pôde reunir. Sua mão
traçou uma trajetória arqueada, com o destino sendo o rosto de Nermo. O golpe
acertou em cheio, arrancando suspiros da turba.
Sua amiga voou para longe, na direção da parede do cânion. Ela bateu
de costas com tudo e caiu no chão, longe da arena.
Krëff arfava com intensidade; de cansaço, alívio, e o que mais fosse.
Enquanto os outros membros do acampamento de Lerolac corriam para ajudar
Nermo, o príncipe se deitou. Lerolac caminhou para congratular o vencedor.

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As labaredas da fogueira crepitavam mediante o silêncio noturnal.
Acima, as estrelas piscavam agitadas, circundando as Luas, observando os
mortais pecadores.
Emudecido, Krëff admirava o bailar hipnotizante das chamas, perdido
em pensamentos. Trisa estava logo ao lado, deitada sobre uma elevação do solo
que se assemelhava a um extenso catre. O outro humano, Garanur, estava com
ela.
O rapaz passara toda a tarde curando os que haviam lutado, e agora,
finalizava os cuidados com a guerreira. A luz alaranjada da fogueira matizava
seu rosto monótono, mesclando-se com o brilho amarelo-claro que se projetava
dos seus braços.
— Você não fez nada de errado — disse o humano. — É assim que as
coisas funcionam aqui em baixo. Se não fosse ela, seria você. — Os braços do
jovem brilharam levemente mais forte quando resvalaram nas regiões que Trisa
havia se machucado. Braços, pernas, barriga e rosto; todos expunham cortes de
variadas gravidades.
— Ela está acordada? — quis saber o garnaziano. — Ao menos, viva?
— Trisa já aguentou coisas piores que um garnaziano com uma runa
de minsú — informou. — Sim, ela está viva... E sim, está acordada.
Ao escutar, o príncipe se encaminhou até a amiga.
— Já terminei por aqui. — Garanur avisou, levantando-se e enrolando
novamente a faixa que usava em seus braços. Em silêncio, o rapaz se afastou e
rumou para uma das fendas nas paredes.
A sós, os amigos se encararam. Trisa parabenizou o garnaziano, que se
ajoelhou e segurou sua mão.
— Eu não queria ter feito aquilo... — esclareceu o príncipe,
envergonhado. — Me desculpa, eu...
— Está tudo bem — interrompeu-o, sorridente, a guerreira. — Eu
também não sei o que aconteceu comigo... No momento que você disse aquilo,
algo despertou dentro de mim: um ódio que nunca havia sentido antes. Naquele
instante eu... eu não senti que era meu amigo que estava ali na minha frente.
Senti que era o causador de todo o meu sofrimento... de toda a minha dor. Ele
estava bem ali, com a vida na palma da minha mão... Se não me vencesse,
provavelmente eu teria te matado.
— Precisaria ser um pouquinho mais rápida.
— Vá à bosta! — A humana riu.

- 77 -
Krëff soltou a mão da amiga e se sentou no chão. Pegou a bolsa das
runas e segurou-a, olhando para ela com um ar pensativo.

— Runas de minsú... — murmurou a mulher. — Não sabia que usava


essas coisas.
— Passei a usar depois que comecei a sair do Círculo sozinho.
— É sempre bom ter uma carta na manga, não?
— Nunca achei que serviriam de fato para alguma coisa. Claro, além
de curar cortes leves e cozinhar ratonges de vez em quando — brincou Krëff.
— Não coma os meus bichinhos! — urrou a humana, sorridente.
— Vocês comeram meu cavalo — contrapôs, jovial, o garnaziano.
As chamas estalaram, atraindo e prendendo a atenção do príncipe por
um tempo. Por que ele começava a se sentir observado?
— Aquilo que você disse... é mesmo verdade? — indagou Trisa, se
sentando no catre rochoso.
— Sim.
— Mas como?
Krëff explicou a situação para a amiga. Trisa ouviu atentamente, em
uma mescla de confusão, felicidade e relutância em acreditar. Quando
terminou, a mulher levou os olhos até o céu negro pontilhado.
— Em três luas, então? — questionou, pensativa.
— Isso. — O rapaz sentiu um frio na espinha e olhou para trás em um
átimo. Não viu nada que lhe chamasse a atenção.
Não deve ser nada...
Trisa não pareceu ter notado o sobressalto do amigo.
— Bem — começou Krëff —, aquela “próxima vez” de que falou mais
cedo é agora... Vai vir comigo? — questionou-a o caçador de recompensas,
estendendo a mão para a amiga.
Ela suspirou e olhou para ele. Krëff, ao receber os olhos penetrantes e
desconfiados da amiga, falou:
— Juro pelos deuses maiores que estou dizendo a verdade.
Caminharemos, juntos. Encontraremos o meu irmão, juntos. Pararemos os
caras-de-coruja, juntos. E, na pior das hipóteses..., morreremos, juntos. Estou
pedindo a sua opinião dessa vez...
Trisa olhava para o céu, admirando as estrelas, ponderando infinitas
possibilidades e infinitos futuros. Seria mesmo verdade? Finalmente deixaria

- 78 -
aquele abismo? Ou seu amigo estaria mentindo outra vez? Segundas chances
sempre resultaram em decepções na sua vida, mas...
— Acho que... que consigo te dar mais uma chance... — disse,
segurando a mão do amigo.
E Krëff sentiu mais um arrepio na espinha.
Notou que o ambiente estava mais escuro.
Olhou para a fogueira: as chamas estavam diferentes.
Mas que merda...?!
Uma labareda azul meia-noite ondeava, desenhando formas peculiares
e indecifráveis sob os movimentos serenos de sua coreografia hipnotizante.
Trisa se levantou e se apoiou no ombro de Krëff. A chama tomou a
atenção de ambos.
— Hak’allaaa-a-a-a... — Ecoou pelo local uma voz rasgada, grossa e
assustadora. — Akkimoo-o-o...
O garnaziano olhou ao redor, temeroso.
— As chamas, Krëff! — Trisa chamou-o a atenção.
A labareda havia tomado a forma de um escrito, cujo significado era:
“Saudações.”
De repente, uma forma surgiu ao longe, parecendo ser uma extensão
da própria noite; a pele escura feito uma lasca de ônix. Caminhava com
tranquilidade até os dois, juntando os dedos longos e finos dos quatro braços
com uma elegância não condizente com sua aparência distorcida. Três olhos
verticais se abriam, dois nas bochechas e um na testa, este tendo, no lugar da
pupila, uma joia azul-escura, harmônica aos outros dois olhos. Os trapos
amarronzados e sujos que ele vestia sacudiam no ar, mesmo sem estar ventando
no local.
Os zurkrus normalmente não tinham uma aparência muito amigável.
Mas esse em específico tinha algo diferente: seu corpo estava mais distorcido,
alongado e inclinado... O garnaziano culpou a estranha rocha que o ser tinha
no lugar do olho central. Até que ponto vão os mortais em busca de poder ou
sabedoria?
O zurkrus deformado, mais próximo do que Krëff gostaria que ele
estivesse, apontou para a fogueira azul e murmurou:
— Akkimoooo... — A boca tinha a forma de um triângulo invertido,
quase semelhante a um bico.

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Sob a influência dos dedos do ser, as chamas se transformaram. E, da
mesma forma que elas saudaram o casal de amigos, disseram: “Garnaziano, ser
de pura-Alma, sua ajuda seria bem-vinda...”
— Ajuda?! — indagou o príncipe.
— Hak’allaaaaa... — Foi a resposta que obteve do vigilante-da-noite.

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☽ Capítulo VI ☾
O Príncipe e a Guerreira

“...São das pessoas que menos esperamos que vêm as maiores


decepções.”

Yse, o peregrino abissal.

A S ÁRVORES TREPIDAVAM COM O VENTO , fazendo


soar pela noite o som sereno das folhas se chocando. Silvos
contínuos ressoavam pela clareira, invadindo os ouvidos de
um príncipe assustado, que não merecia o cargo que havia recebido.
Eram quatro garnazianos ao todo. Myimora, mais à frente, observava
Zirgut entre as árvores, pensando em como fariam para vigiar a cidade sem
serem vistos. Logo atrás, Krëff e outros dois garnazianos franzinos sentavam,
amuados, esperando o momento em que partiriam para a tão falada
“expedição”. Era a primeira dos três.
— Quer dizer, então, que o sem-cauda vai vir com a gente? —
murmurou um deles, aos ouvidos do outro.
— Bem na nossa vez! — indignou-se o rapaz ao seu lado. — Eu vou
voltar...
— Óradon! — repreendeu-o Myimora, virando-se e dando alguns
passos até eles.
O jovem sobressaltou, impressionado com a audição do líder.
— Desculpe, senhor patriarca, senhor...
— Não te aconselho a falar como se você tivesse escolha, rapaz. Não,
você não vai voltar. — Ele olhou para o primeiro, da esquerda para a direita, e
continuou: — Yalut não vai voltar. Óradon não vai voltar... — Prendeu os
quatro olhos no filho. Se aproximou e ajoelhou na sua frente. — E você... não...
vai... voltar! Fui claro? — O príncipe olhou-o com desdém.

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— Sim, senhor patriarca, senh... — começou Óradon, sendo
interrompido por um forte tapa de Yalut, direcionado à sua nuca.
— Para de falar só a mesma coisa! — disse o jovem.
— Silêncio! — bradou Myimora, afastando-se e cruzando os braços. —
Peguem suas armas.
Os jovens buscaram nas bainhas, e cada um empunhou uma adaga de
lâmina reta. As três eram idênticas: haviam quatro brechas em um lado da
empunhadura, espaçadas de forma a envolver os dedos infirmes dos novatos; a
lâmina, com cerca de dezenove centímetros, expunha à superfície entalhes em
formas onduladas e floridas, cujo projetavam uma tênue luz esverdeada. Os
punhais vibravam, incessantes, enquanto segurados por aquelas mãos tão
inexperientes.
— Vigiaremos a cidade pelos telhados — começou o patriarca —,
evitando ruas movimentadas. Se vocês virem algum cara-de-coruja, me avisem
imediatamente. Esperem minhas ordens, sejam cautelosos e não se separem...
Entenderam?
O silêncio perdurou por um tempo.
— Sim! — disseram os três em uníssono.
Sem dizer nada, Myimora virou e seguiu para a cidade. Os novatos
foram logo atrás.
A primeira vez que Krëff sairia do Círculo e veria o mundo exterior...
Antigamente, imaginava que aquele seria um dia mágico; ficava ansioso por
sua chegada. Mas agora, percebera que não seria nada do que pensava. Estavam
em guerra, e elas não são nada mágicas. Aqueles que lhe deram tanta dor e
sofrimento estavam lá fora, caminhando pelas cidades, fazendo mais vítimas.
Krëff se perguntava o que eles queriam. Por que nutriam tanto ódio por sua
raça?
Dois sentimentos preenchiam seu cerne: confiança e vingança. O medo
já não estava mais presente como sempre esteve. Ele não mais se sentia fraco,
mesmo sem saber do que agora era capaz.
A farta folhagem das árvores englobou o grupo. A luz do luar foi
obstruída pela escuridão da floresta. Escondidos, galgavam dentre os arbustos
e troncos, alertas como nunca. Ninguém dizia uma só palavra. Por fim, a mata
acabou, e o brilho da cidade lhes invadiu os olhos.

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Os quatro garnazianos se esconderam no mesmo arbusto. Myimora,
antes de pular para fora do esconderijo, observou a rua horizontal que se
mostrava adiante.
— Não vejo ninguém — disse ele, olhando para os dois lados da rua.
— Quando eu correr, me sigam. — E se preparou.
Do outro lado, uma fileira de residências acompanhava a alameda. O
chão de terra batida contrastava com as calçadas de grama verde-vivo. As casas
tinham uma aparência mais rústica, feitas com longos troncos de madeira, e
suas mansardas davam para a floresta onde agora os Ap se escondiam; então,
Myimora verificou cada uma com demasiado cuidado. Quando, enfim, esteve
certo de que não teria ninguém ao redor, ele partiu em disparada para a casa
logo à frente.
Os pequenos sobressaltaram e, hesitantes, aceleraram até o encalço do
patriarca. E em poucos segundos, estavam os quatro no telhado do casebre.
Ninguém parecia tê-los visto.
Myimora, impaciente, continuou andando em completo silêncio,
saltando pelos telhados e observando as vielas e ruas vazias. Os novatos
acompanhavam os passos do patriarca. Mas, para a infelicidade do mesmo, não
a sua quietude.
— E aí? O que faremos agora? — indagou Óradon.
— O que exatamente você quer que a gente faça? — perguntou
polidamente o príncipe.
— Algo que não seja... oof — o rapaz gemeu com o impacto da queda
— ficar pulando de telhado em telhado, talvez?
— Eu prefiro isso do que dar de cara com uma das corujas — rebateu
Krëff.
— Uma, não! — intrometeu-se Yalut. — Tio Gerr me disse que quase
sempre elas estão em bando! É bom que... oof, fique assim. Não estou a fim de
morrer hoje.
— E você acha que morreríamos se encontrássemos uma? — começou
Óradon. — Ah, faça-me o favor!
Um grito agudo ecoou pela cidade. Dezenas de aves assustadas
bateram suas asas para longe, desprendendo penas e cantando noite adentro. O
ambiente foi tomado por um mau pressentimento quase palpável. E o primeiro
a demonstrar seu desespero foi o, até então invencível e confiante, Óradon:
— Droga! — O jovem arrepiou-se. — Droga, droga, droga, droga...

- 83 -
— Cala a porra da boca, moleque! — urrou o patriarca, soerguendo as
orelhas pontiagudas. O resto também manteve silêncio.
Enquanto Krëff e Myimora escutavam com zelo, os outros dois
entreolhavam-se, confusos. As orelhas do príncipe e do seu pai moviam-se com
uma velocidade impressionante, buscando pelo ar as ondas sonoras daquele
berro desesperado.
E então, algo soou ao longe. Pai e filho olharam para o mesmo lugar.
— Ali! — Ambos disseram, correndo até o local.
— Ei, esperem! — chamou Óradon, ficando para trás junto com o
outro.
— Você escutou alguma coisa? — quis saber Yalut.
Óradon meneou a cabeça.
Myimora sustou o passo assim que alcançou a beirada do telhado e
olhou para o chão. Quando Krëff o alcançou, fez o mesmo.
Abaixo havia um beco sem saída. Lixos dispersos adornavam o local,
fazendo a morada perfeita para os inúmeros ratos que se espalhavam e corriam
assustados para fora, fugindo de uma briga deveras injusta.
Dois humanos se engalfinhavam e se batiam sem descanso: uma
adolescente magricela e mal-vestida e um homem forte com vestes mais
apresentáveis. A jovem tentava desesperadamente soltar seus cabelos ruivos
das mãos grossas do indivíduo, mas não obtinha sucesso.
— Eu quero que diga... — murmurou o homem. — Diga que não vai
mais sujar meu estabelecimento com sua presença...
A jovem ficou quieta.
— DIGA! — berrou o humano, chacoalhando-a para frente e para trás,
puxando seus cabelos.
Ela gritou.
— Eu não... vou — disse, arfando. — Não vou, eu juro!
— Vai invadir meu albergue e poluir minha cama? Terei que comprar
uma nova por sua culpa, escória!
— Não... Me desculpa...
O hospedeiro soltou a jovem, que despencou de joelhos no chão. Por
fim, ele se virou e encaminhou para fora do beco.
O príncipe segurou a máscara.
Finalmente, os outros dois garnazianos chegaram. Ao ver a cena,
Óradon franziu o sobrolho, virou para o patriarca e fez um gesto com a cabeça

- 84 -
na direção do confronto. Myimora, resoluto, somente pôs a mão no ombro do
filho.
O príncipe vestiu a máscara.
Dos filetes enegrecidos que fendiam toda a superfície de Canis, uma
luz branca opaca se projetou. As poucas partes visíveis do rosto de Krëff se
moviam de uma forma fantasmagórica, transmutando-se em diversas feições
aleatoriamente, em uma transição suave e bizarra. Seus quatro olhos
destacavam-se na máscara, alternando sem parar entre roxo, dourado, cobalto,
verde-escuro e prateado.
A sensação era estranha... Era como se os sentimentos de todos os
garnazianos estivessem acumulados dentro dele... como se ele fosse todos,
mesmo sendo apenas um. Era assim que Garnaz se sentia? Era esse o poder que
uma simples fração da Alma de sua criadora lhe dava? Tomado por tal
sentimento indescritível, Krëff pulou, caindo bem na frente do albergueiro.
Ainda ajoelhado, pôde escutar o homem praguejar com o susto e
recuar alguns passos. Em silêncio, o príncipe se levantou e galgou até o
humano, com a mesma pressa de uma lesma-estival.
— Ei! — gritou o hospedeiro em tom ríspido. — Afaste-se!
O garnaziano nada disse. Aproximava-se aos poucos de sua presa.
— O que você quer, quatro olhos? Hã? Quer salvar a princesinha
indefesa?
Krëff parou em frente ao homem, quase colando nele. O albergueiro,
com um sorriso irônico no rosto, olhava para baixo, achando graça da altura do
garnaziano recém-adulto.
— Hm... — entoou, segurando o riso. — Você tem um par de bagos
pesados, não é mesmo, moleque? Ao menos tem ideia de...
O príncipe puxou a luxuosa gravata do albergueiro, levando seu rosto
junto ao dele. O homem arregalou os olhos e paralisou, encarando as centenas
de faces que o garnaziano expunha sob a máscara.
— Eu te dou dez segundos para sumir daqui — disse Krëff, ameaçador.
Sua voz soava duplicada e reverberada; e o humano retesou os músculos do
rosto quando a escutou.
Quando foi solto, o albergueiro, meio trôpego, partiu em disparada para
as ruas de Zirgut. Krëff observou-o fugir. Depois, se virou e foi até a humana,
retirando Canis de sua face.

- 85 -
A garota gritou novamente. Mas agora não era mais aquele berro
desesperado e dolorido — também não lembrava um grito de medo, vide à raça
incomum que havia lhe salvado... Era empolgação; uma centelha de felicidade
que parecia ser pouco comum em seu semblante desgastado.
O restante do grupo olhava de cima do telhado. Óradon e Yalut caíam
na gargalhada. Myimora, cruzando os braços, esboçava um sorriso orgulhoso.
— Você está bem? — questionou-a o príncipe ao se aproximar.
A jovem fez que sim rapidamente com a cabeça.
— Obrigada, hmm...? — Ela franziu o cenho e encarou o rapaz.
— Krëff! — respondeu o garnaziano, estendendo a mão para ajudá-la
a se levantar.
— Que nome estranho... — brincou, erguendo-se com o apoio do
príncipe. — Obrigada, Krëff!
— Por que ele te machucou? — quis saber o garnaziano. — Fez algo
contra ele?
— Eu... eu queria dormir em uma cama — respondeu a garota.
Abraçou os cotovelos, parecendo envergonhada, e disse: — Está frio.
— E então você invadiu o albergue daquele homem? — indagou em
um tom indulgente — E os seus pais?
— Faz tempo que não vejo minha mãe. E eu nunca vi meu pai.
Krëff olhou-a de cima a baixo.
A jovem aparentava ter por volta dos quatorze ciclos. Vestia trapos
mofados e malcheirosos. Exibia manchas e lanhos por toda a pele. Mas, ainda
assim, ela sorria para o príncipe, expondo os dentes incisivos espaçados; um
rosto estranhamente jovial.
— Ah! — exclamou ela, procurando algo no chão. — Me deixe pegar
algo para você, como agradecimento... Hmm... Opa, achei! — disse, sentando-
se, pegando uma grande mochila e pondo-a no colo. — Aliás, meu nome é
Trisa, Trisa Vrye. Mas pode me chamar de Triss, era assim que Vuvue me
chamava.
— Certo... — Krëff falou, se virando para o grupo de garnazianos que
olhava a situação. — Triss...
— O que você é exatamente? Nunca vi ninguém igual antes. E olha que
eu vejo muita gente. Você parece ser forte. — Ela o interrompeu, ainda
tateando a mochila. — Não. Isso também não. Isso! ...Não, não serve...

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— Espere aqui! — ordenou o garnaziano subitamente, virando-se e
subindo as paredes da casa.
E em poucos segundos havia chegado no telhado onde os outros se
encontravam. Krëff dirigiu-se até o pai e perguntou se a jovem poderia ir com
eles, recebendo olhares sérios e avaliadores.
— Está falando sério? Uma humana no Círculo? — perguntou
retóricamente o patriarca.
— Ela está ao relento, pai. Não tem nem onde dormir!
— E desde quando o nosso trabalho é levar os seres daqui para o
Círculo? Ainda mais uma humana!
— O nosso trabalho é ajudar os moradores de Zirgut! — retrucou o
príncipe.
— Nós não fazemos isso por eles! — bradou Myimora. — Sua primeira
lição, Krëff, é nunca confiar em ninguém do lado de fora. Humanos, enheruns,
c’leckapureanos, o que seja! Você está livre para sair do Círculo se quiser,
assim como o seu irmão o fez. Mas levar alguém para o nosso vilarejo é
estritamente proibido!
— Você não precisa do cristal, Krëff — disse Yalut. — Tio Gerr me
disse que um garnaziano sem cauda é um garnaziano sem valor... — Ele
recebeu um olhar intimidador do príncipe. — Digo, sem preço! Que não vale
dinheiro! Você me entendeu... — acrescentou rapidamente, calando-se em
seguida.
— Resumindo: você pode voltar e ficar com a sua namoradinha. —
Óradon intrometeu-se. — Agora a gente pode voltar a pular pelos telhados? Já
estou ficando entediado.

II

“De todas as Essências que moldam a realidade, a Alma é a que nós, os


garnazianos, somos estritamente ligados. Somos seres de pura-Alma.”
A chuva incidia sobre as folhas das árvores que margeavam a clareira.
Uma pequena pilha de tições queimava ao centro, aquecendo o casal de amigos
e tornando o clima mais ameno. A fraca luz da fogueira reluzia em ambos,
fornecendo o ambiente perfeito para que histórias fossem contadas. E era assim

- 87 -
que sempre terminavam o dia: trocando suas histórias. Agora, era a vez do
príncipe.
“Garnaz, a primeira de nossa raça, foi uma criação direta da Alma. E
todos os garnazianos que vieram depois herdaram essa mesma singularidade.
Então, ela criou os Círculos, para que os seus filhos pudessem viver juntos. Por
sermos uma raça originada de uma mesma Alma, a de Garnaz, somos
praticamente um só ser dividido em centenas. Se Garnaz sente medo, todos
sentimos. Se Ela se sente feliz, todos também nos sentimos...”
Krëff e Trisa se encontravam havia alguns meses, e já tinham formado
uma sólida amizade. Durante todo esse tempo, o garnaziano ajudou a jovem a
sobreviver, ensinando-a a caçar ao invés de roubar comida, e a fazer uma
fogueira para que não dormisse no frio; além de, é claro, contarem histórias de
suas vidas um para o outro.
— Vocês são obrigados a viver no Círculo? — indagou Trisa,
abraçando os joelhos ralados. — Não sei como é lá dentro, mas aqui fora não
é tããão ruim assim.
“O Círculo é como se fosse um domo; a única região que mantém a
Alma de Garnaz existindo. Ou seja, quando estamos dentro dele, nossa Alma é
preenchida. Mas quando saímos, aos poucos perdemos o vínculo com nossa
criadora. Resumindo: se sairmos, morremos. A não ser que tenhamos um
cristal de Garnaz ou uma das máscaras conosco. Ambos fornecem um pouco
da Alma da nossa criadora, por isso valem tanto dinheiro... Por isso nos caçam
quando estamos fora dele.”
— Então, só vocês podem entrar no Círculo? — quis saber a humana.
Coçou os olhos, deitou-se e bocejou em seguida.
— Basta seguir as chamas. Elas mostrarão o caminho — respondeu o
príncipe.
— Não foi exatamente o que eu perguntei, mas... perfeito! Agora sei
como invadir o Círculo e ficar rica! — brincou a garota ruiva.
— Os Werg te matariam antes mesmo de você entrar — comentou o
garnaziano em tom jovial.
Trisa deu uma risadinha.
— Não sei porque confia tanto em mim, Krëff. Você me disse que
humanos já mataram dezenas de garnazianos, não é? E que sempre te falam
que não se pode confiar em ninguém de fora do Círculo, lembra? Então, por
que confia em mim?

- 88 -
Krëff deu de ombros.
— Eu só... sinto que você não vai nos fazer mal. Acho que Garnaz vai
com a sua cara... Talvez Ela tenha finalmente encontrado alguém fora do
Círculo com um bom coração.
A jovem sorriu e ruborizou.
— E como as corujas entraram lá? — disse Trisa, mudando de assunto
repentinamente.
O garnaziano retirou Canis da lateral da cabeça e segurou-a, admirando
seu formato de lobo com quatro olhos. A imagem do irmão lhe veio à cabeça.
Taciturno, o rapaz bufou.
— Temo que o rei tenha contado a elas — respondeu, franzindo os
sobrolhos. — Não tem como terem descoberto como entrar. Não foi por sorte...
— O jovem espreguiçou-se. — O Círculo é rodeado por uma floresta de
ilusões, qualquer um que tenta entrar sem saber o caminho se perde.
Já estava ficando tarde, e os pássaros já haviam parado de cantar.
Somente o farfalhar dos morcegos ecoava pela clareira, soando como o alarme
perfeito para que Krëff fosse embora.
O garnaziano começou a se levantar.
— Acha que se tornaria o príncipe mesmo se Lerluh não tivesse
desaparecido? — quis saber a humana, fazendo com que seu amigo parasse e
sentasse novamente.
— Na verdade, não... — começou ele. — Meu irmão era o preferido.
Era mais forte, mais respeitado, e parecia ser um futuro patriarca mais bem
preparado. Não sinto que essa máscara pertence a mim. É uma lembrança de
que meu valor não foi conquistado, e sim ganhado.
— Mostre que você merece — falou Trisa, bocejando e, dessa vez,
cerrando os olhos. — Eu confio em você, príncipe.
E então, a jovem ficou quieta.
Krëff tornou a prender Canis na lateral da cabeça. Se levantou, olhou
para o céu e disse:
— Bem, acho que já vou.
— Uhum... — A humana gemeu em resposta.
Krëff foi até a mochila de Trisa, que estava jogada no chão próximo a
ela. Uma coberta atravessava as alças da bolsa. Ele pegou-a e levou até a amiga,
estendendo o cobertor pelo corpo que dormia no gramado.

- 89 -
— Até amanhã, Triss. — Foram as palavras de Krëff, antes de se virar
e partir para Zirgut.
Rapidamente, cruzou o matagal, alcançado a cidade em poucos
segundos.
Vazia, monótona e silênciosa, Zirgut se mostrou; um cenário perfeito
para um garnaziano circular como um cidadão normal. Caminhando, o jovem
passou por lojas fechadas, cruzou a modesta capela da cidade, que cultuava
Yirieda desde que os primeiros moradores chegaram às redondezas, e
comparou as casas da cidade com os formosos chalés do Círculo; em Zirgut,
eram maiores, de cores mais amarronzadas e com telhados de colmo.
Mais à frente, um grupo de pessoas olhou-o à distância, mas pouco se
importou com sua presença. Ao vê-los, o garnaziano entrou na primeira curva
que viu e percorreu a rua calmamente.
— EI! — Uma voz cortante chamou-o a atenção. Krëff rodou sobre os
calcanhares e encarou a figura.
Um c’leckapureano adulto estendia um dos quatro braços, segurando
um folheto âmbar. Esboçava um sorriso de canto de boca, como se houvesse
acabado de encontrar um tesouro. Ele iniciou uma caminhada orgulhosa na
direção do príncipe, que somente o encarou com um rosto confuso.
— Você é... Lerluh Ap? — perguntou alto o ser alaranjado, estalando
os dedos das outras três mãos.
— Hmm... O quê?
O estranho virou o folheto para si e estudou-o por um instante.
— É... — resmungou, franzindo o cenho. Alternava a visão entre o
papel e o garnaziano. — Pele cinza. Quatro olhos. Tem uma máscara... Devo
mesmo acreditar que não é você? Ha ha!
— O que você quer? E como sabe sobre... — Krëff parou de falar. O
nome do irmão ficou preso em sua garganta.
— Eu quero Lerluh Ap. E quero entregar ele. O rapaz vale bastante,
sabe? — O ser tinha um escárnio irritante na voz. — Pode me dizer onde posso
encontrá-lo? He he!
— Me dê o papel — ordenou o garnaziano.
— Você é astuto, jovem. Sabe mesmo como fugir. — O
c’leckapureano alcançou Krëff e estendeu-o a mão. — Pena que não é para
sempre... — O ser pôs uma outra mão no bolso e retirou uma runa de minsú.
Depois, murmurou com a voz séria: — Venha...

- 90 -
— Eu não sou Lerluh!
— Sim, sim. E eu durmo com a princesa de Zelth. Anda logo, moleque!
— O estranho segurou Krëff à força.
E então, o príncipe fez um sucinto movimento com o pulso. A lâmina
púrpura acendeu, cingindo o braço de Krëff com uma aura semitransparente. O
garnaziano golpeou para cima e, no instante seguinte, o mesmo braço que
pressionava seu ombro desprendeu-se do corpo do estranho, caindo para o chão
em meio à uma cascata roxa.
O c’leckapureano urrou de dor, segurando o ombro. Sua feição, antes
irônica, transformou-se em um esgar excruciante. Ele soltou o papel com o
desenho do irmão de Krëff, que voou e foi pego em pleno ar pelo príncipe.
— Seu desgraçado! — bradou o ser, enquanto o garnaziano corria de
volta para o Círculo. — Não ache que pode fugir de mim para sempre! EU
VOU TE MATAR!!!
O rapaz tentou ignorar os berros do c’leckapureano. Ele desfez a
lâmina púrpura e tentou ler o folheto, sendo parcialmente impedido pelo vento
que a sua correria proporcionava. Reduziu os passos e, com dificuldade,
conseguiu discernir uma figura desenhada, extremamente parecida com seu
irmão. O valor era alto, cerca de quinhentos erekhiuns. Na parte inferior do
folheto, estava escrito:
Perigoso.
Membro da Nebulosa.
Procura-se vivo ou morto.

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☽ Capítulo VII ☾
Liberdade

“...Vi muitos proclamando que os Seis seriam a chave para nossa


libertação... Eles acreditavam cegamente nessa crença ingênua, ao
contrário de mim. É uma pena que, no final, tenha sido eu quem
estava certo..."

Manuscrito de Armaziot, pág. 115.

A LABAREDA BRILHOU COM MAIS INTENSIDADE .


Todo o ambiente mergulhara em um azul-escuro
incompreensível, que exibia nos reflexos sombras de
coisas que nem ao menos estavam no local. Diversas figuras poligonais luziam
em pleno ar, formando pequenas ligações que, aos poucos, conectavam-se
umas às outras, tomando, por fim, o formato de uma grande espiral. O símbolo
esquisito que havia sido desenhado pelas chamas era uma frase, escrita em uma
língua antiga, comum por toda Zath’oru; nutarin era como os povos a
chamavam, a língua espiral.
O casal de amigos tinha a atenção capturada pelos escritos.
— “Pude escutar que sabes uma forma de sair do cânion, criatura.” —
Krëff e Trisa enunciaram em uníssono.
— Ele estava nos vigiando? — falou baixo a humana, se apoiando com
dificuldade nos ombros do amigo. Sua respiração parecia fraca e dolorosa. Sua
voz, empoeirada.
— E você quer que a gente te ajude a sair daqui — arriscou o
garnaziano, tornando a olhar para a figura misteriosa. — É isso?
As chamas absorveram as frases. Após alguns segundos, outras
apareceram. As ligações tinham um formato diferente; da mesma maneira, um
significado diferente.

- 92 -
— “Negativo. Não sou mais útil para realizar o meu objetivo. Por isso,
peço que saiam do cânion e o façam por mim. Evitem que o futuro acabe em
ruínas.”
— Do que você está falando, maluco? — perguntou Trisa, quase rindo,
mas tendo sua risada transformada em uma crise de tosse. Ela pôs a mão na
boca, retirando-a com as faixas ensanguentadas.
Krëff sentiu o apoio da amiga fraquejar e segurou-a. Pôs a jovem
sentada no chão e se ajoelhou ao seu lado.
— Descanse, Triss — murmurou, sentindo um aperto no peito. Aquilo
era culpa sua.
— Valeu, cin... — Tossiu novamente. — ...zinha.
O príncipe se levantou. Olhando sério para o zurkrus, inquiriu:
— E eu devo acreditar no que um decadente com uma joia esquisita na
cabeça me fala?
— Ao menos deve dar a ele uma chance. — As chamas escreveram.
E os quatro olhos do garnaziano se prenderam às labaredas inquietas.
Enquanto admirava a fogueira, Krëff travava uma batalha em sua
mente. Quem era aquele ser? O que ele queria? Aquelas chamas pareciam ter
tanto para contar. Perguntava-se se faria a escolha certa ao escutar o
desconhecido. Abriria mão dos seus ensinamentos outra vez? Confiaria em
mais alguém naquele mundo traiçoeiro?
O fogo lhe confortava.
A curiosidade lhe sufocava.
Ele tinha algo a perder?
E então, após pensar por alguns segundos, o príncipe concordou.
— Não! — sibilou a humana, incrédula. — Não está vendo que esse
cara é louco? Não se aceitam pedidos de loucos.
— Akkimooo — entoou o zurkrus, apontando para a jovem.
— Tome cuidado para onde aponta, seu feioso! — urrou Trisa,
tentando se levantar em impulso.
A fogueira brilhou, intensa como nunca. Dessa vez, não desenhou
palavras em nutarin pelo acampamento. Na verdade, as flamas se inclinaram
para frente, na direção da humana, como se um forte vento as empurrasse.
Então, de súbito, chamas enérgicas se projetaram na direção da jovem, se
prendendo no pescoço e na barriga. Trisa gritou.

- 93 -
O garnaziano, exaltado, saltou para o lado e tentou apagar as labaredas
que se prendiam à amiga. Os braços somente atravessavam as flâmulas; elas
não lhe queimavam, entretanto. Conforme as tentativas fracassavam, os berros
da humana diminuiam, partindo de um desespero tremendo para um silêncio
confuso.
— Não está... doendo... — cochichou a jovem, levando as mãos aos
locais atingidos pelo fogo azul.
As chamas se desprenderam e voltaram à fogueira, onde retomaram
sua monótona e incessante dança.
— Não está doendo! — Trisa falou alto, ainda tocando o pescoço e a
barriga.
— É, eu senti. O fogo não queima.
— Não, Krëff, não é isso. A dor parou!
— O quê?!
— A dor parou, cacete!
Mais uma vez, a língua espiral flutuou no ar, tingindo chão e paredes
com aquele encantador azul meia-noite.
— “As chamas levaram os ferimentos recentes dela para um passado
próximo, antes de eles existirem. Não tem de quê, humana.”
— Eu não te agradeci, convenci... Espera, o quê? — indagou a jovem,
se levantando. A confusão tomara seu rosto.
— “Não tenho tempo, jovem.”
— Tá, tá! Da próxima vez, pede para o seu fogo azul me avisar o que
vai fazer antes de se jogar em cima de mim — disse, alongando o corpo.
Depois, agradeceu com um gesto.
— Enfim — começou o garnaziano —, o que você quer que a gente
faça?
— “Preciso que vão para Aurissis.”
— A cidade despedaçada?
Krëff e Trisa entreolharam-se.
— Eu avisei que ele era maluco... — falou a humana em tom soberbo.
— Tá, mas... o que quer que façamos em uma cidade em ruínas?
O zurkrus levou as mãos franzinas até a testa e tocou a joia que tomava
o lugar de seu olho central.
— “Esse mundo esconde muitos mistérios.”

- 94 -
O estranho pressionou a joia e tentou puxá-la. Um grito reverberado
apossou-se do ambiente, agudo como o guinchar de um animal prestes a
morrer. Paralisado, o casal observava a cena.
— “E a resposta para muitos deles, vocês mesmos terão que descobrir.”
A joia se soltou com dificuldade. Lágrimas doloridas desceram dos
olhos inexpressivos do zurkrus. Mas, com uma expressão neutra, monótona,
ele caminhou até os dois. Atrás do vigilante-da-noite — nome popular para os
zurkrus — diversas espirais nutarin flutuavam.
— “Aurissis pode ser vista através dos reflexos da joia...” — Krëff leu,
levemente assustado. — “Somente peço que levem a pedra até a cidade. Os
moradores explicarão tudo a vocês.” — Engoliu em seco.
Defronte ao casal, o zurkrus esticou o braço, aguardando que alguém
fosse retirar a pedra de seus dedos deformados.
— Hak’allaaa... — Aquela palavra misteriosa foi dita mais uma vez.
A voz sofrida e poeirenta do vigilante-da-noite amedrontava o casal.
— Não sei o que isso quer dizer... — disse Trisa, pondo as mãos na
cintura. — Obrigada, mas não quero essa coisa esquisita.
O garnaziano, resoluto, deu um passo adiante. Seus olhos brilhavam de
curiosidade. Virou-se para as frases nutarin e enunciou:
— “A pedra é a ponte que liga o nosso continente ao lar de Agas, o
receptáculo do Tempo. Fui jogado no cânion há décadas com essa joia. Desde
então, o objetivo de Aurissis está em hiato.”
Sem pestanejar, o príncipe pegou o objeto.
— E qual é o objetivo da cidade despedaçada? — perguntou Trisa. A
voz soava como uma mescla de medo e descrença, e a garota tinha uma feição
impaciente; a única máscara que conseguiu vestir em meio à tamanha
miscelânea de sentimentos.
— “Levem a joia e descobrirão. As respostas vêm com o tempo.”
Krëff olhou para a pedra. Era linda. De cor índigo. Reluzia o luar pálido
nos olhos hipnotizados do garnaziano. Sua superfície diáfana emoldurava uma
realidade confusa, cuja mente mortal do rapaz só pôde lhe fornecer uma
percepção distorcida de uma cena passada que o mesmo — tinha certeza —
não havia vivido.
— Krëff...
Perguntou-se quando teria vontade de parar de olhar para a pedra... E
se ela fizesse parte do seu corpo?

- 95 -
— Psst, Krëff!
Teria alguma forma de controlá-la? De enxergar com maior clareza um
passado e um futuro ainda desconhecidos por ele?
— KRËFF!
O príncipe desviou o olhar da joia, levemente aturdido. Quando se
virou para a amiga, ela fez um gesto, chamando-o para perto. O garnaziano
olhou assustado para o zurkrus. Depois, caminhou sem pressa até Trisa.
— E aí? — começou a humana, enquanto o amigo se aproximava. —
Não vamos fazer o que esse doido está mandando, certo? — Ela elevou os
sobrolhos, aguardando uma resposta que lhe agradasse. — Vamos destruir esse
troço e encontrar o seu irmão, não é?
Krëff manteve silêncio.
— Não é?! — Trisa reforçou.
O príncipe olhou dela para o zurkrus e falou alto:
— Temos assuntos pendentes a tratar. — Guardou a joia em sua bolsa.
— Depois que terminarmos, vamos fazer o que pediu.
— “Excelente, garnaziano.” — A língua espiral tornou a se projetar
das chamas. — “Muito obrigado...”
A fogueira apagou abruptamente, fazendo com que o acampamento
fosse engolido pela escuridão.
Após alguns segundos, uma flâmula acendeu e começou a crescer no
centro do tição, alastrando-se até tomá-lo por completo; dessa vez, o fogo não
era azul. O vigilante-da-noite tinha desaparecido, possivelmente retornara às
sombras, e Krëff torceu para que nunca o visse novamente. Quando a guerreira
e o príncipe notaram que a noite havia voltado ao normal, olharam um para o
outro.
— Acho que vou passar uns bons dias tentando entender isso tudo... —
comentou a garota, sentando-se no chão. — Não acredito que você caiu na
ladainha desse cara... Uma joia que reconstrói uma cidade? Receptáculo do
Tempo? A mente daquele zurkrus deve ter virado papa de tanta cardureira.
— Não temos nada a perder.
— Tem certeza? Digo, você tem uma família. — Trisa deitou-se de
lado, olhando para o garnaziano. — Ir para o outro lado do continente a mando
de um lunático não vai terminar bem...

- 96 -
— Eu tenho certeza que vou deixar de ter uma família quando eu voltar
para o Círculo sem a máscara... Ou vão me matar, ou me expulsar — comentou,
cabisbaixo.
— Pretende nunca mais voltar lá, então?
— Eu vou voltar, só... só não agora... Temos que achar a máscara
primeiro, de algum jeito.
— Eles continuam não te respeitando?
— Respeitavam o mínimo quando ainda tinha um pedaço de Garnaz
em mim. Agora, como a Alma que me resta é somente minha, eu seria um
intruso no Círculo tanto quanto você seria. — O garnaziano também se deitou,
de costas para Trisa. — Eu só quero dormir até chegar o dia de cair fora daqui.
— Nem me fale...
Ambos se calaram. Apenas o farfalhar das chamas impedia o silêncio
de abranger inteiramente o acampamento. Quando o sono já dava seus
primeiros sinais, Krëff escutou algo vindo de suas costas. Era uma voz calma
e sonolenta.
— Por que você ficou estranho enquanto segurava a joia? — indagou
sua amiga, subitamente.
O príncipe pensou em ficar quieto, mas preferiu forçar um ronco e
fingir que já estava dormindo.
E em poucos minutos, o fingimento tornou-se realidade.

II

Estava escuro e silencioso, como a sirnanniana havia mandado.


Anda logo...
Krëff sentava ao fundo de uma das tocas que adornavam as paredes do
cânion. A única visão que tinha era a de um ponto luminoso, poucos metros
adiante: o sol de um ótimo dia; o dia que finalmente sairíam daquele lugar. O
rapaz fedia. Suas roupas já haviam encardido com a sujeira do local. Três luas
foram o suficiente para deixá-lo com a aparência de um verdadeiro decadente.

- 97 -
A silhueta de uma cabeça tornou-se visível em meio à luz. O
garnaziano nem tentou forçar a vista para reconhecer a figura. A voz elucidou
quem de fato era:
— E aí? Conseguiu? — perguntou Trisa, o mais baixo que pôde.
— Nada ainda.
— E se ela estava te enganando?
— Então, ficaremos aqui para sempre.
A garota bufou. Depois, foi para o lado, saindo do minúsculo campo
de visão que Krëff possuía do lado de fora da toca.
Cinco minutos se passaram.
Em meio à tanta quietude e solidão, pensamentos tomaram conta da
mente do príncipe. Pensou no irmão, no Círculo, em Trisa... Refletiu acerca
dos pesadelos que andou tendo durante essas três luas. Haemï estava em todos.
O Vazio estava em todos. Sem a máscara e sem Garnaz, Krëff sentia que pouco
tempo lhe restava. Se um ser não tem Alma, o que resta para ele é o Vazio, o
príncipe dos Ap havia deduzido no dia anterior.
Dez minutos se passaram.
Por favor, dê algum sinal, pensou. Seu peito ficava cada vez menor.
Ele pegou a bolsa e apalpou seu interior, retirando a joia azul meia-
noite com seus dedos trêmulos. Quando de fato notou o quão nervoso estava,
levou uma mão junto à outra, tentando conter sua tremedeira. A pedra envolvia-
se nas palmas cinza-claras do príncipe, inquieta. Emoldurava uma cena que,
estranhamente, Krëff pôde discernir. O rapaz semicerrou os olhos e aproximou
o objeto do rosto.
Parecia estar do ponto de vista de alguém muito baixo, caminhando e
olhando em constância para uma floresta escassa, de galhos expostos e
retorcidos. Passos chacoalhavam a visão.
Eu acho que estamos perto.
Krëff saltou sobre si quando escutou a frase ser dita no interior de sua
cabeça. Uma voz feminina reverberada, um tanto familiar, que fez com que
seus olhos curiosos retornassem para a joia. Infelizmente, nada compreensível
era mais visto. Então, frustrado, o garnaziano guardou o objeto e se deitou.
Quinze minutos se passaram.
O garnaziano ponderou consigo de quem era aquela voz. Não parecia
ser da sirnanniana.
Garnaz? Não, impossível.

- 98 -
Haemï? Ela estava morta...
Trisa...?
Ele olhou para a luz que vinha do lado de fora.
Não acho que seja..., pensou, repousando a cabeça nas rochas frias da
toca.
E sua mente foi invadida por uma outra voz.
Garnaziano!!!
De súbito, Krëff tentou se sentar. Foi rápido e imprudente demais, e
acabou por bater a cabeça com tudo no teto do buraco. Tomado por uma dor
tremenda, voltou a se deitar e massageou o local atingido.
— Estou aqui... — respondeu.
Perfeito! O-Onde está exatamente?
— Em um lugar silencioso, como pediu.
Pois faça o seguinte: saia, certifique-se de que eu saiba quem é você,
fique parado em frente a um dos buracos e espere.
Krëff assentiu para a voz em sua cabeça, mesmo sabendo que ela não o
podia ver. Sentou-se e engatinhou até a saída da toca, sentindo uma
empolgação que já lhe era atípica. Quando chegou ao fim, a claridade cegou-o
e fez com que ele passasse um tempo procurando a amiga. Assim que pôde
enxergar, deu uma última olhada no cânion, aliviando-se por nunca mais ter
que vê-lo novamente.
Não tinha cor, nem paisagens. Francamente, não havia nada além das
colossais paredes cinzentas, estentendo-se como extensas muralhas por sabe-
se lá quantos quilômetros a fio, com os buracos preenchendo-o quase por
inteiro. De modo excêntrico, o sol percorria todo o desfiladeiro, perfeitamente
centralizado na linha azul e cheia de nuvens acima; os decadentes costumavam
chamá-la de “céu distante” ou “céu traçado”. Mas Krëff não aderiu nenhuma
das duas alcunhas. Aquele não era o seu lugar.
O garnaziano respirou fundo e limpou o suor de sua testa. Viu Trisa
sentada na parede oposta, parecendo tensa.
— Vamos finalmente sair daqui! — falou, sorrindo para ela enquanto
se aproximava.
— Está falando sério?! — bradou a guerreira. — Espere, o que é isso
na sua cabeça?
O garnaziano olhou para cima mais uma vez, agora buscando a silhueta
da guarda sirnanniana pelas beiradas do cânion. Não encontrou nada.

- 99 -
— Preciso que se afaste! — pediu, tapando o galo que havia se formado
em sua testa.
— Como é que é? — Em um átimo, o rosto de Trisa mudou de
felicidade para desconfiança; de certeza para perplexidade.
— A proposta é para mim. Se a sentinela ver que estou levando outras
pessoas comigo, ela não vai nos ajudar — explicou o príncipe, olhando para
cima. — Preciso que disfar... — O surgimento de uma silhueta o calou.
Trisa virou-se e pulou na primeira toca que viu.
Krëff deu uns passos para trás, enquanto acenava e dava sucintas
olhadelas para o buraco de onde havia saído. A figura perscrutava todo o
cânion, mas o príncipe não sabia afirmar se ela já havia notado quem era ele.
Então, continuou a acenar. O garnaziano parou em frente à entrada da toca.
Após alguns segundos, a sirnanniana saiu.
— Triss! — Krëff chamou.
A garota deixou a toca, hesitante.
— E agora? — indagou, indo de encontro ao rapaz.
— Agora a gente espera.
Os dois se apoiaram de costas na parede, ansiosos. Durante alguns
segundos, mantiveram silêncio, deixando soar somente o falatório que vinha
do acampamento, a uma distância considerável dali. Recebiam ocasionais
espiadas dos membros.
— E se eles vierem perguntar o que estamos fazendo?
— A gente improvisa.
Trisa olhou para o “céu traçado” por um instante, parecendo refletir.
De repente, a humana saltou sobre si, como se acabasse de lembrar de algo.
— Os meus bichinhos! — disse ela, correndo para o acampamento.
— Trisa, não dá tempo! — sibilou o caçador de recompensas.
Uma forma circular começou a crescer no fundo da toca, girando sobre
si.
— TRISA! — gritou o garnaziano.
O portal se abria aos poucos.
— Não me deixa aqui, por favor... — falou a humana. A voz estava
trêmula, carregada de um medo descomunal. Ela confiava mesmo nele? Krëff
estava a poucos passos da fuga. O príncipe iria mesmo esperar por ela? Uma
decadente?

- 100 -
☽☾

Trisa disparou sem olhar para trás.


— Girvalla! Gabyinn! — chamou. — Cadê vocês?
Durante os dez anos que Trisa esteve no cânion, os ratonges foram sua
única e verdadeira companhia. Os ratos esticados divertiam a garota; distraiam
sua mente e afastavam os incontáveis pensamentos ruins... Ensinaram para ela
mais que qualquer membro daquele maldito acampamento. Eram mais...
verdadeiros, como ela gostava de dizer quando desabafava com eles.
Não posso deixá-los..., pensava, repetidas vezes.
Ela alcançou o acampamento e foi direto para sua toca. Os ratonges
não estavam lá. Virou-se e gritou mais uma vez, mas nenhum deles guinchou
em resposta. Alguns membros olhavam-na confusos, sentados ao redor da
usual fogueira; Zankala gargalhava, vertendo a sopa que as chamas aqueciam
em uma terrina disforme de pedra.
— Do que você está rindo, seu bosta? — perguntou Trisa, ficando
levemente vermelha.
— Se quer tanto os seus “bichinhos”, pegue uma tigela de ensopado —
caçoou Zankala, em meio a risadas e sorrisos debochados. — Está uma delícia.
Aproveite que o caldeirão ainda está cheio.
Trisa sentiu o sangue ferver. Seu coração passou a bater com
intensidade. Cerrou os dentes com força, respirando fundo.
— Se você cozinhou eles — começou. A voz tinha um tom assustador
—, seus olhos é que serão o jantar de hoje, amaldiçoado — ameaçou a humana,
caminhando a passos pesados até o enherun, que não movia um músculo sequer
— nem mesmo o sorriso irônico se desfez, o que irritou ainda mais a guerreira.
Sentia a pele borbulhar. Veias tomavam sua testa suada. Quando notou
que o foco estava somente em Zankala, ela parou de andar e observou os
arredores.
O que estou fazendo?
Trisa olhou para o local de onde havia corrido. Para o seu alívio, o
garnaziano ainda estava lá. Porém, caído no chão, engalfinhando-se com um
ser esquelético.
O tempo urge, criança, a habitual voz de Vuvue lhe invadiu os
pensamentos.

- 101 -
— Ele está mentindo, Trisa. — Garanur interveio. — Os ratonges estão
bem.
— E onde estão? — quis saber a jovem.
— Não sei — respondeu o humano, monótono. — Talvez estejam
copulando em algum buraco. Por que quer tanto encontrá-los?
— Por... nada — respondeu a jovem, olhando para as dezenas de tocas
que adornavam toda a extensão do acampamento.
Não daria tempo.
Ela tornou a correr. Dessa vez, de volta para o portal. Sentiu um aperto
no peito, uma culpa. Os bichinhos não sairiam com ela; ficariam no cânion para
sempre. Mas entre abandoná-los e estar na mesma situação que eles, preferiu a
primeira opção. O pesar fez-se ver fisicamente, com lágrimas que desciam
como uma cascata de seus olhos. Ela continuou a correr.
Quando se aproximou da briga, viu Oman caído no chão, recebendo
diversos golpes em seu rosto sem pele. Um líquido amarronzado escorria dos
olhos, respingando no chão a cada soco. A estrutura óssea do crânio estava
levemente rachada, mas o zellyen não demonstrava sinais de dor.
— Trisa! Trisa! — chamou Oman. — Esse cara é louco! Ele invadiu a
minha casa!
Krëff golpeou-o uma vez mais. Depois, olhou ofegante para a amiga.
— Vai! — bradou, buscando uma runa de minsú em sua bolsa. — Você
primeiro!
— O quê?
— VAI!!!
Trisa pulou para dentro da toca e rastejou o mais rápido que pôde.
Deixou para trás os gritos de Oman, as ofensas de Krëff e os seus animais de
estimação. O mundo lá fora a esperava. Depois de dez anos, finalmente seria
livre.
Sem hesitar, ela cruzou o portal.
A barulheira cessou, dando lugar a um silêncio incomum, quebrado
somente pelo cantarolar dos pássaros. A humana caiu de costas na grama, com
visão da copa de uma árvore oscilante, que desprendeu folhas e expulsou as
aves do conforto de seus galhos. O céu não era mais uma linha, e sim um azul
infinito lindo. Queria chorar de emoção.
Ainda não acabou.
Respirou fundo...

- 102 -
O próximo era Krëff.
— O quê? — Uma voz feminina se fez ouvir.
Trisa sentou-se em um instante e olhou para a figura ao centro da
clareira.
— Quem é você? — indagou a sentinela sirnanniana.
A figura tinha uma postura ereta, que junto de sua armadura suntuosa,
fornecia a ela uma aparência quase angelical. Encarava a guerreira com um
rosto sereno, que não expressava o mesmo descontentamento que a voz.
Diversos símbolos ornavam seu corpo: cada uma das seis mãos exibia um em
seu dorso; os olhos verticais também, em suas pupilas; na testa, entre os curtos
e encurvados chifres, um símbolo maior era visível. Uma aparência bela,
todavia, assustadora.
Poucas vezes Trisa vira alguém dessa raça. Eram raros. Fortes.
Imponentes. O segredo que escondiam por trás das doze Marcas era intrigante;
os doze talentos oriundos de sua Zô — Sirnannī, a primeira de sua raça.
A Marca da testa luziu em ciano, e a guarda sorriu de canto de boca.
— Por que foi você quem saiu e não o garnaziano? — indagou. — Seu
lugar é no cânion, decadente.
Trisa sentiu as pernas criarem vida própria.
— O que você está fazendo? — perguntou a humana, pondo-se de pé
contra sua vontade. — Ei! Pare!
— Devo ter me confundido — começou a guarda. — Era você quem
estava acenando, certo? Volte e chame o garnaziano, humana.
Trisa caminhou lentamente de volta para o portal. A entrada crescia
mais e mais conforme ela se aproximava, tomando-lhe a visão por completo.
Não...
De repente, braços cruzaram o portal, acabando por empurrar a mulher
para trás. Sem apoio, ela caiu sentada no chão, inerte, aguardando o amigo sair.
Com isso, a influência que a sentinela realizava nela foi cortada.
Os braços se esticaram até o solo e apoiaram o corpo surgente do
garnaziano. Quando saiu, admirou os arredores; enfim estava livre novamente.
Mas ainda tinham de fugir da guarda, e essa era a tarefa dele. Audacioso, se
levantou e deu alguns passos adiante.
— Aí está você — falou a sentinela. — Notei que trouxe uma amiga
junto. Em que momento do acordo eu permiti que isso fosse feito?

- 103 -
— Você está aqui pelo cristal, não é? — Krëff exibiu os punhos
cerrados, levando o braço para frente do seu corpo. — E ele está aqui... Deixe-
a ir.
— Perfeito. — A sirnanniana fez um gesto, apontando para o portal.
E Trisa olhou para ele. Notou que algo parecia atravessá-lo: o crânio
levemente rachado de Oman.
— Liberdade! — gritou o já-morto com sua usual voz rasgada.
O portal se fechou em um átimo.
Os olhos de Trisa saltaram ao ver o zellyen tendo sua cabeça decepada.
O crânio caiu com um baque e rolou para o lado, aproximando-se da humana
— o gramado era matizado de marrom com o líquido espesso que jorrava de
suas cavidades oculares.
— Planejou a fuga de mais quantos, garnaziano? —perguntou a guarda
com a voz séria.
— Somente a humana. — Krëff respondeu.
— Posso queimar esse outro, então?
— Faça o que quiser.
Trisa encarava assustada o crânio, mesmo sabendo que Oman não
estava morto. Um zellyen só morre de verdade quando tem o seu caldo vital
desintegrado. Aquela carcaça não era o velho Oman, e sim a doença que fluía
para fora de seu crânio, matando todo o gramado ao redor.
— Psst! Trisa! — chamou o já-morto. — Me pegue e vamos fugir
daqui. É a nossa chance. Estamos livres!
A mulher assentiu.
— No momento certo, velhote — cochichou.

☽☾

O garnaziano deu mais um passo adiante, apertando a runa de minsú


com força. Não sabia mais dizer se ainda estava confiante; um receio lhe
perfurava o coração, melindrando-o.
— Não quer se aproximar de mim? — perguntou polidamente a
sirnanniana. — Jogue o cristal, então. Não tem problema.
Krëff estendeu o braço, fazendo ainda mais força.
— Promete que não vai matar a humana? — disse.

- 104 -
— Prometo. — Ela respondeu. — Sabe, não achei que vocês,
garnazianos, se importassem com ninguém além de si mesmos. Fez duas boas
ações hoje, criatura: salvou minha filha e concedeu anistia para uma decadente.
Por mais que eu considere a segunda um tanto ilegal, você a salvou.
— É... — Sentia a pedra se rachar. — Salvei.
A runa se quebrou.
No mesmo instante, quatro grossas linhas negras e cinzas se projetaram
de sua mão, enrolando-se pelo braço estendido do rapaz. A pele ardia conforme
as linhas penetravam-na, subindo até os ombros e transformando o rosto do
príncipe em um esgar de dor. O local em que estavam foi cercado por diversos
símbolos. E o príncipe sabia o que tinha que fazer: manter a sirnanniana no
interior desse círculo. Ali era o seu ringue.
Olhou para trás, Trisa estava correndo com Oman em seus braços.
Krëff respirou fundo, aliviado, e virou-se para a adversária.
A sirnanniana lhe encarou por alguns segundos. Sorriu. Gargalhou.
Depois, fios dourados, semelhantes a faíscas, vazaram de uma de suas
manoplas encouraçadas, partindo para a palma da mão cujo fenômeno
acontecia. Os fios giravam rapidamente. Pareciam se mesclar aos poucos,
formando uma longa haste de luz dourada.
— Cinza e preto... — balbuciou a criatura. — Uma runa de anti-magia?
Mesmo...? — Os fios construíram uma lâmina. — Achei que fosse mais esperto
que isso.
A Marca da testa acendeu novamente, fazendo com que o garnaziano
se ajoelhasse contra sua vontade. O príncipe passou a olhá-la de um jeito
monótono.
A guarda começou a caminhar até ele, empunhando a lança áurea com
rispidez. A sentinela, frente a frente com aquela criatura insignificante, tomou
a bolsa que ela carregava nos ombros, vasculhando-a em seguida. Não
encontrou nada além de cinzas. Confusa, perguntou:
— Cinzas? Por que não está com um daqueles cristais, como todos os
outros?
Krëff ficou quieto.
— Responda, verme! — A sentinela acometeu contra o garnaziano,
rasgando sua bochecha com as garras. Estranhamente, ele continuou olhando
para o nada, taciturno. Ela encostou a lâmina da lança no peito do rapaz, mas,

- 105 -
ainda assim, não houve reação alguma. — Se você ficar quieto, eu vou te matar
e depois ir atrás daquela decadente!
Silêncio.
Na verdade, o local todo estava em completo silêncio. Sem animais.
Sem vozes ao longe. Só ela e o garnaziano. Só a presa e o predador.
Mas a sentinela não acreditou nisso.
— Entendo... — murmurou, forçando a lâmina contra o príncipe. —
Você não é tão burro assim, afinal. — Com um impulso, a lança atravessou-o.
Os símbolos sumiram. Os pássaros voltaram a piar. Com o garnaziano
empalado, a guarda olhou floresta adentro.
— Filho da puta... — Ela respirou profundamente, tentando manter a
calma.
Ventou forte. E o ser moribundo, de repente, começou a ser levado pela
brisa, perdendo pedaços e se desfazendo como cinzas. Somente o predador
sobrara.
A presa fugiu.

III

Uma lua antes da fuga, o príncipe e a guerreira sentavam pensativos ao


redor da usual fogueira do acampamento. Krëff vasculhava sua bolsa de runas,
enquanto Trisa olhava para o céu, acariciando Girvalla em seu colo.
Estava frio. A fogueira, que deveria tornar o clima um pouco mais
ameno, não parecia surtir efeito algum. Talvez os calafrios que sentiam viessem
de dentro para fora; do medo... da ansiedade.
— Mas nós nem sabemos o que ela planeja — murmurou Trisa,
percorrendo os dedos pela cabeça de Girvalla. O ratonge chiou e fechou os
olhos, deliciando-se com o cafuné.
— Tem razão — concordou o príncipe. — Sirnannianos são bastante
imprevisíveis. Pode ser tanto um portal, quanto um teletransporte.
— Ou uma corda — arriscou a humana, olhando para as imensas
paredes do cânion.
— Definitivamente, não vai ser uma corda.

- 106 -
Por fim, o garnaziano retirou uma runa de minsú de sua bolsa. Uma luz
azul-escura leitosa brilhava fraca através das fissuras da pedra, formando um
símbolo intrigante.
— Esta é uma runa de ilusão de alto vínculo — elucidou Krëff, olhando
para a amiga. — Com ela, acredito que consigo facilmente enganar a sentinela.
As runas de minsú são a conexão menos custosa entre a realidade e o
poder das Essências. Caso um ser não tenha vínculo com nenhuma Essência,
ele pode usar as runas, podendo, assim, manipular tais poderes. A maior
vantagem é que as runas não fornecem nenhum dano físico ou mental para seu
portador; a desvantagem é que só podem ser usadas uma vez. As runas de
minsú são caras, variando o preço de acordo com o vínculo que o símbolo tem
com a Essência da qual o poder é tirado; quanto maior o vínculo, mais forte é
o efeito proporcionado pela runa.
— Com essa belezinha — começou o príncipe —, posso até mudar a
cor da runa e fazer a sirnanniana achar que ela faz outra coisa.
— Então, partindo da ideia de que seja um portal, como faremos?
— Entramos nele o mais rápido possível. E quando nos encontrarmos
com a sentinela, finjo que a runa é o cristal de Garnaz. Assim que eu consumir
a runa, você foge. Eu te encontrarei depois de alguns segundos.
— E se não for um portal?
— Daí, provavelmente, será teletransporte. Eu voltaria para te buscar...
Daria um jeito.
— Entendi... — balbuciou a jovem, insegura. — E se for um portal e o
seu plano der errado?
O garnaziano bufou.
— Aí, pelo menos, você terá fugido — disse, cabisbaixo. Ele se apoiou
nos joelhos e abaixou a cabeça. — Não sinto que me resta muito tempo, Triss.
Não mais.
— Do que você está...
— Não se faça... — interrompeu-a o rapaz. — Você mesmo se mostrou
preocupada algumas luas atrás... Temos que achar a máscara o quanto antes.
Se um ser não tem Alma, o que resta para ele é o Vazio.
— Ainda anda tendo aquelas visões? — perguntou assutada a humana.
Ela olhou para as costas quando sentiu que algo começara a lhe escalar. Era
Gabyinn.

- 107 -
— Está pior — admitiu o príncipe dos Ap. E Krëff notou que Trisa
começara a lacrimejar.
A garota olhou para baixo, mirando Girvalla. Depois, para Gabyinn,
enrolado em seu pescoço como um cachecol. Por último, para o garnaziano,
que sentava do outro lado da fogueira, além das chamas; o calor distorcia sua
imagem.
— Vocês são tudo que eu tenho, sabia? — Trisa respirou fundo e
desviou os olhos do príncipe.
— E é por isso que eu ainda não desisti. — Krëff falou, levantando-se
e indo até a amiga. — Vamos sair desse cânion amanhã e partir em busca da
máscara. Tudo vai ficar bem, Triss. Eu sinto isso. — Ele se ajoelhou em frente
a ela e disse: — Você sabe como minhas intuições sempre estão certas, não é?
Trisa deu um soco na pedra em que sentava e respirou fundo mais uma
vez.
— Puta merda... — sibilou a humana com a voz trêmula.
— O que houve? — quis saber o príncipe.
— Quando foi que fiquei tão chorona?
— Está triste?
— Não, idiota. Estou feliz que vamos sair daqui... Nós quatro.
Krëff sorriu de canto de boca e se levantou. Olhou para o céu estrelado
de duas luas; Yirieda e sua irmã nefasta olhavam-no graciosamente. Amanhã
seria um dia incrível, se Yirieda permitisse.
— É... Acho que já está tarde. — O garnaziano espreguiçou-se. — Boa
noite, Triss.
— Espere, Krëff! — chamou a humana.
O príncipe virou-se e olhou para a amiga, confuso. A garota ficou
quieta, franzindo o cenho.
— Pode falar... — disse Krëff, após alguns segundos de silêncio.
— ...Deixe para lá, eu... esqueci o que ia dizer.
Krëff deu de ombros e partiu para sua toca.

IV

- 108 -
Trisa ofegava mais e mais conforme adentrava a floresta, torcendo para
que seu amigo escapasse com vida. As constantes irregularidades do terreno
complicavam sua fuga. Além disso, diversas raízes aéreas se metiam em seu
caminho, fazendo com que ela tropeçasse frequentemente.
Oman, que era carregado pela humana, não parava de gritar
“liberdade”. Estava deveras empolgado, mesmo que tivesse acabado de perder
o corpo.
A garota também tinha vontade de berrar de alegria, mas não conseguia.
Se o receio ou a culpa a impediam, não sabia dizer. Mas tinha certeza de uma
coisa: não estava assim tão feliz. Seus bichinhos corriam o risco de virarem
sopa agora que não poderia mais defendê-los. E ainda tinha a chance do seu
amigo não escapar com vida.
Ela bufou. E quando considerou que estavam longe o suficiente,
diminuiu a corrida e tomou fôlego.
— Tão nova e já está cansada, humana? — indagou Oman. — Vamos,
continue!
— Acha que consegue correr se eu te largar aqui? — retrucou a
guerreira, impaciente.
— Eu rolaria mais rápido do que essa sua caminhada, canela fina.
Trisa olhou para as pernas magrelas, ofendida. Largou o crânio do
zellyen, que caiu na grama e permaneceu inerte, de cara para o chão.
— Vá em frente, velhote. Role — ordenou a mulher.
E um galho seco quebrou nas redondezas.
Trisa sentiu um arrepio na espinha. Não se deu o luxo de verificar de
onde vinha o barulho, ou de quem eram os pés que haviam esmiuçado o galho.
Sem hesitar, correu para trás de uma das grossas árvores e se escondeu,
apoiando as costas franzinas nos musgos que ornavam o tronco e amaciavam
sua superfície.
Os passos se aproximavam com cuidado.
— Humana?! — chamou o já-morto, com a grama abafando sua voz
assustada. — Aonde você foi? Me tire daqui! Tem alguém cheg...
— Trisa? — Uma outra voz lhe chamou, interrompendo o apelo do
zellyen.
E ela a reconhecia. Era a voz do seu amigo.
Aliviada, a garota esvaziou os pulmões e deslizou as costas pelo musgo,
até deitar-se no chão.

- 109 -
— Aqui... — alertou com a voz fraca.
E o garnaziano foi até ela.
— Até que você se escondeu rápido — disse o rapaz, também apoiando-
se na árvore.
— Valeu...
Agora que Trisa sentia-se mais calma, conseguia escutar melhor os
arredores.
O vento penteava a floresta, fazendo soar um farfalhar reverberado em
meio ao silêncio do amontoado verdejante; silêncio este que era usualmente
quebrado pelos pássaros, que cantavam, parecendo comemorar a fuga do casal.
Krëff olhou mais ao lado, onde estava a cabeça do zellyen: era de lá que aquela
doce canção vinha.
As aves tentavam se aproximar para bicar Oman, mas fugiam quando o
líquido amarronzado os ameaçava tocar as patas, ou quando os xingamentos
abafados do já-morto os assustavam. Sorridente, o rapaz caminhou rápido até
o crânio imóvel.
O príncipe empurrou Oman com os pés, fazendo com que ele olhasse
para cima.
— Vamos levar isso aqui? — indagou, abaixando-se e pegando o já-
morto.
— ISSO? — gritou Oman, perplexo.
Trisa saiu lentamente de trás da árvore, atraindo a atenção do
garnaziano. A humana encarou os dois por alguns segundos. Depois, assentiu
e olhou ao redor, taciturna.
Krëff notou que seu rosto não era dos melhores, mas preferiu adiar as
perguntas. Entendia o que aqueles ratonges significavam para amiga, e havia
chegado na mesma conclusão que ela quanto ao destino deles. Portanto,
preferiu o silêncio.
— Inacreditável... — sussurou o zellyen, indignado. — “I-Isso”? Que
ultraje.
— Para onde vamos agora? — quis saber a humana. Tentava olhar
através das incontáveis árvores, mas uma bruma leve impedia uma visão mais
clara do que vinha adiante.
Krëff supôs que estavam no reino de Zelth, do outro lado da Divisão.
Ou seja, havia conseguido o que queria. Só demandara mais tempo, sangue e
suor do que achava que iria.

- 110 -
— Arrisco dizer que o portal nos deixou na alameda — respondeu o
garnaziano. — Na floresta à direita, para ser mais exato. Zirgut deve estar a
alguns quilômetros para... — Franziu o cenho, perscrutando todo o arvoredo.
— Não faço a menor ideia.
Trisa olhou para cima e bufou.
— Se lembra onde perdeu a máscara, pelo menos?
— Foi em Mez’da. — O garnaziano tardou a responder. Inseguro,
fechou os olhos e murmurou: — Do outro lado do cânion...
— Como é? — zangou-se a garota. — Do outro lado do cânion?
— Exato — confirmou o príncipe.
— E como pegaremos a máscara, Krëff? Somos procurados agora, não
é? Atravessar o Arco seria suicídio!
— Não é certo que estamos sendo procurados — intrometeu-se Oman.
— É uma suposição, canela fina.
— Uma suposição óbvia, cacete! — Trisa alterou-se. — Krëff mentiu
para uma sentinela sirnanniana... A filha dela vai morrer e você acha que ela
vai nos perdoar?
— Sejamos realistas, Triss. Já faz um tempo que eu perdi Canis. A essa
altura, já devem ter pego, vendido ou sei lá mais o quê...
— E o que planeja, hein?! Sair por Zath’oru procurando seu irmão até
você enlouquecer e virar um monstro?
— Vamos para o Círculo! — sibilou o garnaziano, com voz fria e
peremptória. — Um cristal de Garnaz deve ser o suficiente para impedir o
Vazio.
— Mas precisamos saber qual direção dá no Círculo — disse a garota,
voltando a analisar o bosque.
— Começar a andar é uma boa ideia, não acham? — perguntou Oman.
O príncipe encarou o já-morto em suas mãos e ficou quieto por um
tempo.
— Acho que... que tenho uma ideia melhor — disse ele, segurando o
crânio com ambas as mãos e olhando para cima.
Viu um extenso teto verde-musgo, repleto de buracos que davam visão
para o céu. Krëff calculou o tamanho das árvores: eram altas, mas não tanto.
Portanto, julgou que seu plano poderia dar certo.
O rapaz abaixou o corpo, segurando Oman com cuidado.

- 111 -
— O-O que pensa que está f-fazendo, quatro-olhos? — O zellyen
indagou, parecendo assustado.
— Você enxerga, não é? — perguntou retóricamente o garnaziano.
— N-n-nã...
Krëff lançou o crânio para o alto. Oman voou com velocidade para além
dos dosséis das árvores, gritando. Espero que consiga ver algo, pensou o
príncipe, encarando o já-morto enquanto ele subia.
Em poucos segundos, os berros do zellyen já se aproximavam, junto
com a sua carcaça. O garnaziano se preparou para pegá-lo no ar, e com um
salto ligeiro para o lado, agarrou-o cuidadosamente. Aquele estranho líquido
espesso respingou no roupão do rapaz, mas ele não deu importância. Levou o
crânio para a frente do rosto e perguntou:
— Viu algo?
Oman ria.
— Nossa! Haha! Isso foi... Ha! Foi doido.
— Responde! — Krëff chacoalhou o zellyen.
— Não! Digo, sim! — Ele respondeu. — Bem, eu acho que sim. A
neblina está muito forte.
— E o que você viu?
— Parecia ser... fumaça. Não muito longe daqui.
— Já é um começo... — balbuciou o príncipe, olhando para a amiga.
Trisa se aproximou do grupo.
— Qual é a direção, Oman? — Ela questionou.
— Você pergunta como se eu tivesse um braço, não é? — implicou o
velhote, ranzinza.
Krëff segurou o zellyen na altura do peito, com a vista para a floresta.
— Avise-nos quando eu estiver virado para a direção certa — disse,
girando devagar sobre os calcanhares.
— LÁ! — berrou o já-morto repentinamente. — É para lá...
— Ótimo. — O casal disse em uníssono, começando a andar para o
local indicado.

☽☾

Alguns minutos se passaram. A tarde já estava chegando ao fim.

- 112 -
A floresta parecia interminável e... estranhamente silenciosa. Somente
um vento fraco soava pelo arvoredo, varrendo para longe as folhas mortas que
decoravam o gramado, brincando com elas, fazendo-as girar pelo ambiente. Do
grupo, apenas Oman não se mantinha quieto: cantarolava, fingia tossir,
assobiava, e puxava assuntos que morriam junto com os estalos dos galhos
secos nos quais o casal pisava. Mas, conforme andavam, um som inesperado
se fazia mais presente.
Krëff parou quando escutou melhor. A princípio, parecia um ruído
agudo; poderia muito bem ser um pássaro chamando por uma parceira. Agora
que o som se tornava mais evidente, notou que, na verdade, era música. Uma
ocarina ressoava pela mata.
— Estão ouvindo isso? — quis saber o príncipe.
Os outros afirmaram.
— Façam silêncio — ordenou o rapaz, agachando-se e seguindo com
cautela.
Engatinhavam por um extenso buraco, ladeado por uma pequena
elevação no solo, ocupada por trepadeiras e raízes expostas. O doce som da
ocarina parecia vir da esquerda, e aumentava a cada passo.
O grupo parou ao se aproximar. Krëff se levantou lentamente e olhou
para o local de onde saía a música. Viu uma clareira. No centro dela, um
acampamento; somente um ser parecia ocupá-lo.
E ele estava sentado em um longo tronco, mantendo os olhos cerrados
e balançando a cabeça enquanto sentia a música ecoando pelo local. Ao seu
lado, um grande cajado preto pendurava um lampião aceso, que iluminava
pouco comparado à intensa claridade fornecida pela fogueira.
O ser tinha a pele âmbar. Grandes orelhas caíam sobre seus ombros; a
direita, inclusive, era usada como coberta por um animal semelhante a um
sagui. De sua cabeça, dois pequenos galhos se projetavam como chifres. Era
um osoren.
Krëff olhou para a amiga e fez um gesto com a cabeça, indicando o
acampamento.
— O quê? Está maluco? — sussurou a humana.
Foi quando viu as chamas que Krëff lembrou-se do frio que sentiriam
ao cair da noite. O acampamento lembrou-o da fome, sua e de Trisa. A música
lhe dominou a audição, enchendo-o de confiança.
E o principe subiu a elevação no solo.

- 113 -
O estranho rapidamente agitou as orelhas e levantou a cabeça, mirando
o príncipe com seus olhos amarelos; um “x” negro tomava o lugar das pupilas.
— Olá...? — saudou-o o garnaziano.
— Ãhn... Olá — empertigou-se o jovem osoren. O animal em seu
ombro, assustado, encolheu-se para dentro de sua orelha.
Krëff tossiu, pensando no que dizer.
— Bem, eu... me perdi — começou. — Estou procurando Zirgut, mas
não acho que chegarei lá sem antes descansar um pouco.
O estranho deixou a ocarina de lado e se levantou.
— Está sozinho? — Ele quis saber.
— Não. — Krëff virou-se e apontou para a parte mais baixa do solo. —
Minha amiga está ali. E este aqui é Oman — finalizou, erguendo o crânio.
— Fala comigo! — cumprimentou o já-morto com uma voz divertida.
— Acampamento legal, jovem!
— O-Obrigado — disse o osoren, envergonhado.
— Podemos passar a noite aqui? — pediu Krëff. — Prometo que não
vamos te incomodar. Também não comeremos a sua comida... Eu posso caçar,
sem problemas.
— Claro que podem — respondeu o estranho. — Estava me sentindo
meio solitário mesmo.
O animal assobiou baixo nos ouvidos do garoto e pôs a cabeça para fora
do esconderijo.
— Acalme-se, Chinti — murmurou o rapaz dos olhos amarelos. — Não
parece que eles vão nos fazer mal.
O príncipe chamou a amiga.
Trisa saiu do buraco e caminhou até o grupo, desconfiada. Foi
diretamente até o garnaziano e ficou ao seu lado.
— Me chamo Krëff — disse o príncipe, aproximando-se.
— Raashinari Gonkasier Meretro Sylf — falou de uma vez o jovem
osoren, parecendo feliz por ter alguma companhia.
— O quê? — perguntou Trisa em impulso, pondo uma feição confusa
no rosto.
— Podem me chamar só de Raashinari. — O garoto voltou a se sentar
no tronco. — Ou Raashi, caso prefiram...
— E eu achava que o seu nome que era esquisito — sussurou Trisa aos
ouvidos do amigo.

- 114 -
Krëff sorriu. Sentou-se logo ao lado, próximo à fogueira. A humana,
por outro lado, permaneceu de pé.
— Então — começou o garnaziano, dirigindo-se ao garoto —, o que
está fazendo aqui? No meio do nada.
— Meu pai estava criando um bestiário. — O osoren respondeu e ficou
quieto. Após alguns segundos, bufou e continuou, cabisbaixo: — Ele era
fascinado por criaturas. Viajava por toda Zath’oru, escrevendo sobre cada uma
que encontrava; pacíficas ou agressivas, pequeninas ou enormes. — Raashinari
levou a mão para trás do tronco e retirou-a com um grande livro. — Aqui. Este
é o bestiário.
Trisa foi até ele, curiosa. Analisou o livro.
Tinha uma formosa capa de couro, ornada por grossos filetes prateados
que percorriam todo o livro em ondulações. No centro do objeto, uma elegante
figura de um sol estava estampada, lavrada no couro, cingida por um círculo
de prata.
— Infelizmente, meu pai adoeceu. — O osoren entregou o bestiário nas
mãos da humana.
A garota julgou Raashinari como inocente. Contar coisas sobre sua vida
e entregar um livro de aparência tão luxuosa estavam fora de cogitação na visão
dela. Talvez ninguém havia tirado algo que importasse para ele ainda. Aquele
garoto parecia confiar tanto em estranhos, mesmo naquele mundo desprezível...
Lembrou-se de quanto também era assim.
— Ele... faleceu? — Trisa perguntou com voz cordial, folheando o
livro.
— Não... Bem, ainda não. Mas ficou doente antes de completar sua
obra. Então, decidi que eu mesmo devia terminá-la o quanto antes... É a obra
da vida dele, sabe? Não pode morrer antes de vê-la pronta.
Trisa parou de folhear quando encontrou uma página em específico; seu
título era: “ratonges”. Um desenho incrível se mostrava ao lado, moldando um
fofo animal, um rato esticado. A humana começou a ler as características dos
ratonges, fascinada.
— Então é isso que está fazendo aqui? — indagou o garnaziano para
Raashinari. — Caçando?
— Mais ou menos. Não chego a matar os animais. Só desenho e escrevo
suas características.
— E ainda faltam muitas criaturas?

- 115 -
— Na verdade, não — respondeu ele. — Apenas as mais difíceis de se
encontrar: as lendárias.
— Lendárias? — Trisa intrometeu-se.
— São criaturas de raças existentes, porém com peculiaridades. Umas
são grandes demais, outras fortes e resistentes demais, e outras só têm uma cor
diferente.
— Existe algum ratonge... lendário? — inquiriu a humana, empolgada.
— Página duzentos e cinco — respondeu, confiante, o osoren.
Trisa folheou o bestiário e parou na página que o rapaz havia dito.
Surpreendeu-se com as características do animal. Diferente dos ratonges
comuns, aquele tinha uma pelugem levemente avermelhada, e quase o dobro
do comprimento; cerca de cinquenta centímetros.
— Que bonitinho! — bradou a humana.
Raashinari gargalhou.
— Fique à vontade para procurar outros animais fofos — falou o osoren
em tom jovial. Virou-se para o garnaziano e continuou: — Vim até aqui por
causa de relatos que afirmaram ver um gorawe lendário por essa região.
— Um gorawe? — Krëff assustou-se.
— Exato! — confirmou o rapaz.
— E onde está sua arma?
O jovem osoren levou uma das mãos até a nuca, sem jeito.
— Meio que eu não trouxe uma — respondeu. — Digo, tem o meu
cajado, mas ele não é bem uma arma. — Ele riu de canto de boca.
Trisa folheou o bestiário até encontrar a página dos gorawes. Aturdida,
enunciou as características da besta:
— Carnívoros ariscos. São atraídos por sons altos. Pele extremamente
robusta, quase impenetrável por lâminas. Porém, ficam vulneráveis quando
estão... invisíveis? Cacete... — A garota olhou ao redor. A bruma espessava
com a chegada da noite; poucos palmos se mostravam diante o acampamento.
Ela voltou a ler: — Duas fendas no focinho, uma horizontal e uma vertical,
comprimem uma bocarra repleta de dentes... Possuem um par de longas caudas,
e ambas conseguem...
— Me pergunto o sabor desse bicho — interrompeu-a Oman, aéreo,
admirando as chamas.
— E ele deve se perguntar o nosso — sibilou a humana, com a voz
vacilante.

- 116 -
Quando ia voltar a ler, Trisa sentiu um calor à suas costas. Em um
instante, virou-se e deu passos ligeiros para trás.
Sons estranhos, semelhantes a estalos, pareciam sair em pleno ar. Olhou
para o chão; a grama estava amassada. Um bafo tremendo impregnou o
acampamento.
— Krëff! — Ela chamou, baixo.
— O que houve? — questionou-a o garnaziano.
— Não somos a única visita.
O príncipe levantou-se rapidamente, indo até a amiga. Vasculhava sua
bolsa de runas, desesperado.
A criatura tornou-se visível.
Exibia uma pelugem rala e esverdeada. Seis longos espinhos vermelhos
se projetavam das costas. O pescoço era encurvado para o chão, fazendo com
que sua cabeça ficasse mais baixa que o resto do corpo. Sua estatura era
semelhante à de um lobo magrelo, porém enorme; de garras afiadas e longas
patas, que forneciam uma aparência de uma incrível agilidade.
E a besta era realmente ágil.
No segundo seguinte, o gorawe lendário saltou para o lado e fincou as
garras em uma das árvores, desaparecendo na sequência. O tronco balançou,
fazendo desprender dezenas de folhas da copa. Mesmo invisível, a árvore
denunciava a posição do animal, inclinando-se com o seu peso.
— Ainda está ali — sussurrou Krëff. — Agora é o momento para o
acertarmos.
Trisa, em movimentos lentos, levou a mão até a bainha, buscando a
adaga enferrujada. Não confiava em sua mira, mas julgou que errar uma
criatura tão enorme a curta distância era um tanto impossível. Desembainhou
o punhal, respirando fundo, concentrando-se para atirá-lo.
Porém, no mesmo instante, uma secreção esbranquiçada se projetou do
gorawe. A humana recebeu a teia em cheio e voou para trás, caindo sentada,
com amparo do tronco da árvore ao lado oposto da que a criatura se pendurava.
— Trisa! — bradou o príncipe quando a jovem foi acertada. Olhou para
a jovem presa.
Tenso, Krëff se voltou para a besta. Todavia, a árvore não se inclinava
mais com o peso do gorawe. Ele já não estava lá.
Onde...?

- 117 -
A cauda do animal incidiu sobre o príncipe, derrubando-o no chão.
Krëff sentiu o calor da teia circundando o seu corpo, tomando-o por completo.
Sem outra opção, somente gritou:
— RAASHI, AJUDA!
— Eu estou tentando! — bradou Raashinari em resposta, murmurando
algo incrompeensível em seguida. O som do cajado se chocando contra o chão
ecoou pela clareira.
Trisa tentava cortar a teia com o punhal, mas tinha dificuldades. Poucos
metros adiante, a criatura tornou-se visível, frente a frente com sua presa.
O gorawe encarou a mulher, fazendo os usuais estalos soarem pelo
local, intimidando a todos. De repente, começou a correr na direção da humana,
espelindo um gêiser de saliva das fendas de sua boca. Quando sentiu que estava
perto o suficiente, a criatura saltou e abriu a bocarra, soltando um berro
ensurdecedor.
Trisa sentia a morte se aproximar.
Não podia morrer agora, não quando finalmente se tornara livre de
novo...
Em reflexo, a mulher fechou os olhos.
Queria apreciar as paisagens. Queria encontrar mais animais fofos
como os ratonges.
Ela continuava a tentar cortar a teia. A esperança diminuia aos poucos.
Será que é assim que vou morrer?
O baque do cajado ecoou mais uma vez pela clareira. No mesmo
instante, Trisa sentiu seu braço direito se libertar da teia.
Ela abriu os olhos. Porém, já era tarde, a boca da criatura se situava em
sua face, como uma máscara de incontáveis dentes afiados; quase todos
tocando de leve seu rosto assustado...
Mas o gorawe não mordia. Era como se estivesse completamente
paralisado no ar.
Enquanto ainda respirava, havia esperança... E a guerreira alvinegra
acordou.
O braço direito da mulher, agora livre, se tornou um enorme fogaréu
preto.
Dispondo todas suas forças em só uma parte do corpo, ela socou a
criatura, que voou como uma flecha até o outro lado da clareira e se chocou em

- 118 -
um tronco. A árvore que deteve o cadáver da criatura inclinou-se e foi
derrubada. Todo o ambiente escureceu.
Trisa ofegava. Havia no rosto babado dezenas de marcas das presas do
gorawe; algumas escorriam um pouco de sangue. A garota manteve os olhos
no corpo imóvel da besta, tomada por uma expressão de confusão, medo e
tristeza... E quando olhou para o braço e viu o seu estado, sentiu uma dor
tremenda. Não tinha forças para movê-lo. Estava escuro, sangrando. A faixa já
não estava mais lá; fora desintegrada pelas chamas do Vazio.
— O que f-foi isso? — indagou Raashinari, assustado.
— Essa é minha garota! — bradou Oman. — Mostra para eles, canela
fina! Haha!
— Bem — começou o osoren —, temos a janta, pelo menos. — O
garoto procurou o bestiário no chão. — Só me deixem desenhar a criatura antes.

- 119 -
☽ Capítulo VIII ☾
O Banho de Sangue Esmeralda

“...Esperto é aquele que em ninguém confia.”

Yse, o peregrino do abismo.

A ESCURIDÃO PERMEAVA AS PAREDES


CÂMARA DAS ALMAS . Em contraste, luzes roxas
percorriam as imensas raízes que ondulavam acima, nos vértices do imenso
salão, pulsando no mesmo ritmo que o coração de todos os garnazianos.
DA

Cinco pilares de cores distintas se espalhavam pela câmara, vertendo


um líquido que descia do teto até preencher o enorme símbolo lavrado no solo.
Com a mistura das cores das cinco famílias, o símbolo irradiava uma luz pálida
leitosa, iluminando de leve o local. No centro dele, dois garnazianos se
encontravam.
— Respire fundo, Okash — murmurou o patriarca dos Ap. —
Concentre-se.
— Estou t-tentando...
A criança pressionou os olhos, ofegante, murmurando dizeres com uma
voz trêmula. Chamava pelo panteão. Chamava por Garnaz. De repente, Okash
se calou, e uma aura branca pouco diáfana circulou todo o seu corpo.
Myimora sorriu enquanto olhava o pequeno, lembrando-se de quando
esteve em seu lugar. Imaginava a conversa que o garoto estaria tendo dentro de
seu cerne... Será que estava feliz por se encontrar com sua criadora? Estaria
feliz por se tornar um Ap?
O patriarca encarava o rapaz, pensativo. Quem ele enxergava no centro
daquele enorme símbolo não era Okash, e sim Krëff... Não fosse pelas corujas

- 120 -
e pelo sumiço de Lerluh, era assim que deveria ter sido há alguns ciclos.
Myimora respirou fundo e esperou.
Após alguns minutos, os olhos do garoto se abriram. Agora, brilhando
em roxo.
O patriarca riu e correu até ele, suspendendo-o no ar com facilidade.
Okash retribuiu a risada.
— E então? — indagou Myimora. — Como foi?
— Foi legal! — respondeu o rapaz, levantando as mãos. — Ela me
disse que... Ela... Nossa, eu não me lembro de nada. — Okash riu mais uma
vez. — Mas me sinto ótimo.
Myimora levou-o para o chão e se ajoelhou na sua frente. Tocou de
leve os cabelos brancos do rapaz e os dessarrumou.
— Agora, poderá treinar conosco — começou ele. — Porém, primeiro,
tem um desafio que eu quero te propor.
— Aceito! Aceito! — bradou o pequeno, jovial.
— Lembra daquele golpe que eu te ensinei mais cedo? Quero que tente
me acertar com ele de novo.
Okash hesitou.
— Mas eu... eu não quero te machucar, pai.
— Ah, está tudo bem! Eu sou duro na queda. Aliás, quando crescer,
enfrentará inimigos que também são. Por isso, quanto antes conseguir me
machucar, antes conseguirá feri-los também.
— Certo!
Okash cerrou os punhos e se concentrou. Uma aura roxa circundou sua
mão, meneando calmamente conforme o rapaz respirava. Olhou para o
patriarca logo adiante, esboçando um receio visível, e se preparou para socá-
lo.
O golpe acertou em cheio a barriga definida de Myimora. No mesmo
momento, Okash pôs a cauda entre as pernas, como se tivesse acabado de fazer
algo muito errado.
Myimora permaneceu estático. Definitivamente, o golpe foi mais forte
do que achava que seria, mas ainda não fora o suficiente para que ele esboçasse
uma reação dolorida. Entretanto, havia sentido, diferente da última vez; e isso
levou um sorriso orgulhoso ao rosto barbado do patriarca.

- 121 -
— Está ficando mais forte, jovem. — Ele admitiu, ajoelhando-se mais
uma vez. — Se as coisas continuarem desse jeito, se tornará o patriarca assim
que alcançar a maioridade.
O garoto riu.
Passos se aproximavam, descendo as escadas que levavam até a
Câmara das Almas. Pai e filho ficaram quietos, olhando curiosos para a
escadaria. Poucos segundos depois, Osarii apareceu, ao lado de uma Kihr.
Ambas demonstravam imensa tristeza. Osarii entrelaçava os dedos,
pensativa; por vezes, os levava até os olhos inferiores e limpava as lágrimas
que deles escorriam.
O patriarca sentiu um aperto no peito.
— Ele... — começou a Kihr. Parou de falar, como se algo estivesse
preso em sua garganta. Após um segundo, disse, com voz chorosa: — É sua
vez agora. Ele pediu para que fosse sozinho.
Myimora mirou os olhos prateados da garota; sentia uma tristeza quase
palpável emanando de suas palavras. Deprimido, bufou e se virou para o filho,
sem dizer nada. O rapaz entendeu e caminhou até a escadaria. Porém, antes que
ele de fato saísse da câmara, parou.
— Pai! — chamou ele.
Confuso, Myimora olhou para o rapaz.
— Posso ir brincar com a Nahla?
Myimora assentiu.
No mesmo instante, um sorriso tomou o rosto de Okash. Animado, o
jovem se virou e correu para a saída.
— Filho! — O patriarca chamou.
Okash sustou o passo e esperou.
— Eu te amo...
O garoto retribuiu o carinho e saiu, reverberando passos apressados
pelo salão.

☽☾

- 122 -
Myimora subia apreensivo as escadas do Casulo de Prata. Sua mente
estava inquieta, pensando em tudo, levando-lhe lembranças de um passado
fatídico sem que ele pedisse. Reprimia tais pensamentos, buscando manter o
foco apenas na paisagem interessante que o Casulo fornecia; aos poucos
ganhando forma a cada degrau, exibindo abaixo os casebres das ruas que ele
tanto conhecia, e acima, o contraste verde e azul que pintava o horizonte.
Os garnazianos sempre diziam que o Círculo era um lugar lindo, mas,
olhando de cima, Myimora se arriscava a discordar. Talvez, para os Ap, que
eram a única família que de fato saía de lá, fosse fácil opor essa ideia. Mesmo
com todos os poréns, Zath’oru conseguia ser mais bonito. Myimora desejou ser
livre, caminhar pelos reinos, ver outras espécies... Perguntou-se se um dia os
garnazianos iriam realmente conseguir fazer isso, como todos os outros.
O horizonte prendeu-lhe a atenção. Nele, era impossível não as
enxergar, as Irmãs. Myimora bufou, mirando com desânimo a Lua azul-anil.
Talvez fosse culpa dela, ponderou; perderiam mais um por culpa dela.
O patriarca finalmente alcançou o último degrau. A enorme porta do
Casulo refletiu seu rosto cansado e taciturno na superfície luxuosa. Guardava
atrás de si os doentes, moribundos, e até os defuntos... Esperava não encontrar
o velho na última situação. Myimora apoiou as mãos no portão e o empurrou
gentilmente.
Ele enxergou a usual sala do Casulo. Estava inteiramente iluminada
pelo sol, que trespassava o teto envidraçado e refletia nas folhas prateadas que
envolviam os leitos. Pelos cantos, estavam as camas de prata, postas em
formato circular, acompanhando a parede oval. Myimora sentiu um leve medo
quando as olhou; dezenas delas estavam ocupadas, muito mais que o habitual.
O silêncio comprimia todo o ambiente, como se transportasse seu
interior para outra dimensão. De fora, nem mesmo uma explosão poderia ser
escutada. Mas ali dentro, seus passos ecoavam como nunca.
Myimora caminhou, olhando para os garnazianos moribundos. Sustou
o passo assim que, à sua esquerda, escutou alguém murmurar:
— Olhe só quem finalmente chegou... — Era uma voz calma, frágil.
— Demorei, Naohu? — disse o patriarca dos Ap, virando-se para o
leito do amigo. — Como você está? — Aproximou-se com cuidado.
— Hm... — entoou Naohu Kihr, olhando para o céu além do teto de
vidro, pensando. — Reflexivo e morrendo. Muito reflexivo, por algum

- 123 -
motivo... — Forçou um sorriso. — Nada como passar os últimos... dias da sua
vida pensando nas coisas que você poderia ter feito diferente.
A idade deixara Naohu assaz magro, fraco. Seu corpo tremia. Sua
respiração pouco inflava os pulmões; era pesada, difícil, insuficiente... A morte
estava próxima.
Myimora assentiu em silêncio, olhando taciturno para o chão e
tamborilando a coxa.
— Me chamou para vir aqui sozinho — disse ele. — Porquê?
— Para refletirmos juntos — respondeu o patriarca dos Kihr.
— Entendo... — O Ap olhou para as paredes, inquieto.
— Por que não olha para mim? — indagou o velho, confuso.
O patriarca púrpuro continuou encarando a parede, quieto, deixando a
voz solitária do outro ressoar pelo Casulo.
— Myimora! — censurou Naohu, na tentativa de angariar atenção.
E conseguiu. O Ap fitou os olhos prateados do idoso.
— Porque não quero vê-lo desse jeito — admitiu.
Naohu reuniu as poucas forças que tinha para gargalhar. A risada sortia
com uma tosse entrecortada.
— A idade chega para todos, rapaz. E agora é a minha vez, só isso.
— Queria que o Casulo pudesse reverter a velhice... — comentou o
patriarca, deprimido.
— Jura? Eu não... Não julgo a imortalidade como uma benção, muito
pelo contrário. Ciclos se iniciam e se encerram no devido momento, sem a
necessidade de se prolongarem demais. — Respirou pesado, tardando para
voltar a falar novamente. — O essencial é aproveitar enquanto vivo, enquanto
temos o que temos. Afinal, todos os garnazianos que estão fora do Casulo
agora, um dia estarão aqui onde estou, refletindo se viveram como gostariam.
— Você viveu?
— Não — respondeu Naohu, meneando a cabeça e esboçando um
simulacro de sorriso.
— Também acho que eu não.
— Viverás muito ainda, Myimora. Sobra tempo para ti... — Naohu
reservou um momento para tossir. Após alguns segundos, perguntou: — O que
você realmente quer ser?
Myimora parou e respirou fundo.
— Um garnaziano melhor — disse.

- 124 -
— E está tentando?
O Ap assentiu. Naohu sorriu, orgulhoso.
— É isso que importa. — Ele falou, tocando a mão frágil no braço
musculoso de Myimora.
— Queria poder voltar no tempo e tentar mudar antes — lamentou-se
o patriarca dos Ap. — Pelo menos dizer a Lerluh que eu o amava, uma vez
sequer, antes de tudo aquilo ter acontecido.
Naohu suspirou, olhando para o céu. Após poucos segundos, indagou:
— Quanto tempo ainda acha que lhe resta?
— Creio que não muito... Eu sou um Ap. Dificilmente chegamos na
velhice.
— Você, patriarca... — tossiu —, por ser um Ap, quereria morrer como
um herói?
Myimora fez que sim com a cabeça, fitando Naohu em dúvida.
— Todos os garnazianos devem proteger uns aos outros — falou ele,
entoando a voz como se achasse estranho que Naohu não soubesse. — Por
heroísmo ou dever, é assim que eu quero morrer.
— E você acha que Lerluh, um Ap, nos abandonaria sem um motivo
maior? Não acha que ele está nos protegendo, de certa forma?
— Eu acho que ele está fugindo.
O velho suspendeu as sobrancelhas, surpreso.
— Não de nós, óbvio — reforçou Myimora ao notar a expressão do
amigo. — Eu sinto que ele está bem. Mas por quanto tempo?
— Confie nos seus filhos, patriarca.
O Ap ficou pensando em silêncio. Sorrindo, Naohu comentou:
— Sabe, Myimora, quando você foi escolhido para ser o patriarca dos
Ap, confesso que não me agradei tanto. Era muito infantil, estressado... Quem
diria que aquele pirralho se tornaria um dos meus maiores amigos.
— Ah, lá vai você... — murmurou o Ap em tom jovial, pondo um
sorriso bobo no rosto e virando-se para o velho.
— Não, não, falo sério! Haha! — Naohu respirou fundo. — Os Ap...
fizeram... a escolha certa...
Myimora encarou o amigo em silêncio; o sorriso sumindo aos poucos
conforme o suspiro de Naohu levava consigo sua vida.
O brilho nos olhos do Kihr sumia junto com a pupila, dando lugar a
uma esclera morta, sem Alma. A mão franzina, que tocava gentilmente o braço

- 125 -
do Ap, ficou gelada e caiu sem vida para o flanco da cama. O patriarca dos
Kihr estava morto.
Myimora ajeitou a mão do amigo, levando-a com gentileza até seu
peito imóvel, sem respiração. Depois, se levantou e caminhou até a saída do
Casulo, comedido, buscando as memórias que tinha junto de Naohu, deixando
para trás um oceano de melancolia. O silêncio dos mortos adoecia seu coração.
Mais uma vez, a porta do Casulo de Prata se pôs em seu caminho. Sem
olhar para trás, Myimora abriu e saiu da sala. Apoiou-se no balaústre,
permitindo-se uma última olhada na paisagem antes de ir embora. Pensativo,
conversou com a Lua pálida, expondo-se pouco visível ainda de dia; confessou
que estava triste, confessou que estava com medo.

☽☾

Já estava anoitecendo, mas a escuridão tinha dificuldades de tomar o


ambiente; a árvore dos Kihr emanava seu intenso brilho pálido pelo pátio.
Dezenas de garnazianos de todas as famílias se ajoelhavam em
silêncio, olhando o coveiro aos poucos cobrir o corpo de Naohu com terra. Os
patriarcas e as matriarcas situavam-se logo ao lado do buraco retangular, sérios,
taciturnos.
Cada monte de terra findava um pouco da história de Naohu Kihr. Para
trás, no plano que os participantes do funeral iriam permanecer, ficariam as
promessas, as saudades, e as palavras ditas por eles antes do verdadeiro adeus.
Segundo a tradição, o coveiro, ao notar que a próxima pá jogaria a terra
que iria cobrir o rosto do morto, deveria parar e se afastar. O rosto de um
garnaziano devia ser a última coisa a ser coberta em um funeral, para que
Garnaz se despedisse através dos olhos dos cinco patriarcas. Todos os
garnazianos sempre eram tomados por uma tristeza imensa em momentos
como esse.
E o coveiro se afastou. Os patriarcas, por outro lado, deram um passo
adiante, juntos com as matriarcas.

- 126 -
Myimora fitou o rosto sem vida do amigo ao fundo do buraco. Sentiu
Osarii apertar sua mão com mais força. Pelo pátio, o choro dos filhos de Garnaz
ecoaram, junto com o trissar dos morcegos.
Um barulho grave foi escutado ao fundo. Myimora suspendeu a cabeça
e olhou para a vila. Entretanto, somente ele pareceu ter notado aquele estranho
som. Ignorou-o.
Segundos se passaram. O coveiro, após uma ordem do patriarca dos
Werg, voltou a enterrar o corpo.
De repente, Kurig, o príncipe dos Kihr, caminhou até os patriarcas,
levando consigo uma série de artefatos. Passou por cada um dos cinco,
entregando um dos objetos e declamando em seguida:
— Seguindo os desejos do meu pai, que pedira aos Frull para forjar
cinco objetos e entregar a vocês no dia de sua morte, entrego-lhe esta relíquia.
Quando foi a vez de Myimora, Kurig estendeu os dois braços,
empunhando duas belas espadas curtas.
— As Gêmeas Cortantes. Forjadas especialmente para você, patriarca
dos Ap. — O rapaz abaixou a cabeça em mesura.
Myimora surpreendeu-se com a beleza das espadas. A esquerda tinha
um cabo branco, ornamentado com couro polido de cor marrom-escura. A
lâmina era reta e brilhante, e do guarda-mão saíam quatro filetes negros que
seguiam em espiral até a ponta, contrastando com sua superfície prateada.
A outra era mais escura e arroxeada, de tom semelhante a uma
tanzanita. A lâmina seguia reta até certo ponto, encurvando-se levemente
próximo à ponta. O gume, por vezes, se aflorava, como um dente pontiagudo.
O cabo era mais fino, tendo a aparência de um galho negro. Pelos sulcos,
passeavam uma luminescência púrpura, irradiando das duas pequenas luas que
emergiam das extremidades do guarda-mão.
Os pomos das duas eram idênticos: circulares e ocos, permitindo a
inserção de runas de minsú. E nos sulcos de ambas as lâminas, diversos escritos
nutarin eram visíveis, apagados. Pareciam ser nomes. A prateada se chamava
Syod, e a outra, Neirit.
Myimora hesitou em pegá-las.
— Acho que você se enganou, jovem — comentou, rindo. — Não sou
muito fã de espadas. Naohu sabia disso, não forjaria duas para mim.

- 127 -
— Tenho certeza que está certo, senhor — insistiu Kurig, oferecendo
as gêmeas novamente. — Por favor, aceite-as em nome do meu pai. Nem que
seja para usá-las como meras decorações; uma lembrança.
— São muito bonitas — disse Osarii.
— Ele me permitiu dar elas para alguém? — indagou Myimora.
— Sim. Desde que fosse um Ap.
Myimora assentiu e pegou as irmãs. Depois, fez um gesto com a
cabeça, indicando que Kurig podia ir embora.
— Por que, em nome dos Seis, ele me forjaria duas espadas?
Osarii riu.
— Naohu era complicado. Sabe-se lá o que estava pensando. — Ela
pegou Neirit das mãos do patriarca. — Mas são lindas e, definitivamente, úteis.
Mais uma vez, aquele barulho grave foi escutado por Myimora.
Suspendeu as orelhas, sentindo o som ecoando pela vila, contínuo como uma
trombeta.
— Está ouvindo isso? — questionou-a o patriarca.
— Não...?
Myimora notou que a luz roxa que percorria a lâmina de Neirit estava
mais forte.
— O que houve, myoru?
O patriarca entregou Syod nas mãos da esposa e correu. A mulher,
notando o seu rosto assustado, pôs as espadas no chão e foi atrás, perguntando
o que havia acontecido.
Myimora parou.
— Parece a trombeta dos Werg — disse, olhando novamente para a
vila.
Mas não conseguiu enxergar nada. Uma neblina espessa e incomum de
repente havia se espalhado pelo local, inibindo a visão dos que estavam nele.
Começou a ventar forte, de dentro para fora do Círculo, como se o lar dos
garnazianos estivesse tentando “soprar” algo para longe. Syod e Neirit estavam
em seu caminho, e acabaram sendo jogadas bosque adentro.
Myimora sentiu medo. Na verdade, todos os garnazianos sentiram.
Garnaz estava desesperada.
Os cinco patriarcas olharam ao redor, pouco enxergando uns aos
outros.
— SE ABAIXEM! — bradou um deles.

- 128 -
Myimora abraçou a esposa e se ajoelhou junto com ela, esperando a
ventania cessar. A trombeta, agora, era escutada por todos.
— Isso nunca aconteceu antes! — bradou o patriarca dos Frull. — O
que está havendo?
— Me abrace, Orii — murmurou Myimora. — Isso já vai passar...
Todos escutaram uma explosão ao longe, na direção do centro do
Círculo. O patriarca torceu para que fossem os Werg tentando impedir que os
invasores alcançassem a estátua. Sem hesitar, se levantou; se fosse para morrer,
que fosse como um verdadeiro Ap.
— Eu vou até o centro! — gritou ele, sendo empurrado de leve pelo
vento.
— Está maluco?! — berrou o patriarca dos Werg.
— Garnazianos morrem pelo Círculo. Se realmente forem ficar aí,
caídos no chão, desesperados, e deixar que o Círculo pereça, fiquem à vontade!
Mas eu não quero morrer sabendo que eu poderia ter ajudado. — O patriarca
dos Ap começou a andar para o interior da vila, sozinho. — Seus filhos estão
lutando, Werg. Vai mesmo deixar-los morrer?
Alosun Werg também se levantou.
— Ele está certo... — disse. — Não deixem que o medo os impeça!
Levantaram os Frull e os Tirhaô.
— Já defendemos o Círculo outras vezes! — declarou Kurig. — Não
será diferente agora!
Todos os garnazianos começaram a se levantar. Confiantes,
caminhavam em direção ao conflito. Myimora encheu-se de confiança ao
escutar o clamor de batalha dos de sua raça. Olhou para trás, enxergando-os
com dificuldade; marchavam rumo a um combate incerto, que poderia muito
bem lhes custar a própria vida.
O vento parou, tão de repende que derrubou alguns garnazianos que se
empurravam contra ele. A bruma afinava aos poucos, fornecendo uma visão
mais clara do ambiente. O patriarca dos Ap parou e olhou os arredores, confuso.
— Conseguimos? — perguntou Alosun, percorrendo os olhos pelo
local. — Garnaz expulsou os invasores?
A neblina mudava. Parecia se deslocar até dezenas de partes
específicas pelo átrio, adquirindo aos poucos uma forma palpável, adquirindo
cores. Uma das zonas de concentração era logo atrás de Kurig, que estava

- 129 -
imóvel, levantando as mãos em frente ao corpo e suspendendo a cabeça, como
se algo estivesse o fazendo como refém.
Myimora notou isso. Sério, respondeu o questionamento de Alosun:
— Ainda não. — Olhou para onde Osarii estava. Ela havia sumido.
Tomado por uma fúria tremenda, o patriarca dos Ap disse: — Eu diria que
apenas começou.
A neblina se transformou em inúmeros ornteffs. Os olhos das corujas
fitaram Myimora: de cima dos telhados, entre as folhas prateadas da árvore dos
Kihr, atrás de alguns garnazianos, ameaçando cortar suas gargantas...
O medo que o Ap sentia sumiu. As corujas não o assustavam, mas
despertavam dentro dele um ranço imensurável que chegava a machucar seu
peito.
Myimora caminhou até o ornteff que tinha Kurig como refém, mirando
com asco os olhos pretos da criatura.
— O que vocês querem...? — perguntou em tom odioso. Segurava-se
para não partir para cima dela.
— Não fique tão bravo — começou o cara-de-coruja. — Viemos fazer
um pedido simples.
— E se eu me recusar a atendê-lo? Irão embora tranquilamente?
— Nós sempre conseguimos o que queremos, garnaziano. Se você
recusar, vocês perdem.
— Como da última vez? — caçoou o patriarca. — Acha que a cena de
vocês correndo de medo não irá se repetir?
Os ornteffs gargalharam, levando ao rosto de Myimora um
involuntário esgar de repulsa.
— Vamos cortar esse papo furado... — Voltou a falar. — Queremos
seu filho mais velho, Lerluh Ap.
Myimora meneou a cabeça.
— Não vê nos folhetos? Ele não está aqui, está sendo procurado —
disse ele.
— Não me engane, garnaziano. Vocês só conseguem viver aqui dentro.
— O ornteff cuspiu sonoramente no chão. — Sinceramente, não me interessa
o motivo, mas vocês morrem quando estão lá fora por muito tempo. São uma
raça estranha, devo admitir; talvez seja por isso que Yirieda os odeie tanto. —
Virou-se para os outros ornteffs e gargalhou. Todos acompanharam sua risada
bizarra.

- 130 -
Myimora sentiu o sangue ferver.
— Lerluh não está aqui — repetiu, respirando fundo, concentrando-se.
— Consigo sentir o cheiro da sua mentira — insistiu o cara-de-coruja.
— Se importaria se eu e meus parceiros vasculhássemos a sua vila chinfrim?
— Sim. — A marca no rosto de Myimora acendeu. — Me importaria.
— Uma pena.
O ornteff segurou a cabeça de Kurig e rasgou seu pescoço com a
espada. O príncipe dos Kihr caiu de joelhos, expelindo um gêiser de sangue do
local cortado, que escorreu por toda a dianteira do seu corpo e manchou o solo
do Círculo de Garnaz.
A primeira gota de sangue esmeralda foi derramada.

II

O chão aos pés do patriarca dos Ap rachou. Seu corpo crescia conforme
a raiva o tomava por completo; os músculos enrijeciam; as listras em sua face
se acendiam e brilhavam em roxo; os caninos afloravam-se...
Os Ap eram a fúria do Círculo, a fúria de Garnaz. Naquele momento,
Myimora sentia que o ódio de todos os garnazianos fluía pelo seu sangue,
adormentando seus sentidos, acelerando seu coração.
O patriarca deu alguns passos adiante. Seu oponente, o ornteff que
havia matado o príncipe dos Kihr, fez o mesmo.
— Percebo que não mudou de ideia, garnaziano — disse o cara-de-
coruja, olhando para cima, para os quatro olhos de Myimora. De alguma forma,
não parecia sentir medo.
Em silêncio, Myimora desferiu um soco arqueado na direção do
ornteff, que desviou e retribuiu com um chute em seu flanco. Os olhos da coruja
saltaram ao notar que o garnaziano não havia sequer sentido o golpe. Myimora
agarrou a pata do oponente e o suspendeu.
— Não — murmurou o patriarca, brandindo a coruja no ar —, não
mudei. — Jogou a criatura no chão, ainda segurando sua pata. O som dos ossos
se quebrando ecoou pelo ambiente. O patriarca repetiu o movimento até
escutar:

- 131 -
— Kiphor!!! — berrou uma coruja em cima de um dos telhados. —
Seu desgraçado! — Saltou furioso e correu para Myimora, empunhando uma
longa espada.
O patriarca, sem esboçar reação alguma, esperou que o outro ornteff se
aproximasse. Quando julgou que o cara-de-coruja estava perto o suficiente,
Myimora girou e acertou o oponente com o corpo morto de Kiphor. O
espadachim caiu inconsciente no solo do átrio.
No mesmo instante, pescoços de garnazianos civis foram cortados.
Mais ornteffs desceram dos telhados e das árvores, majoritariamente se unindo
para enfrentar os patriarcas, que se armaram e começaram a contra-atacar; os
civis mais corajosos fizeram o mesmo.
O som de espadas se chocando ressoava pelo pátio, junto com os gritos
dos aliados e dos inimigos de Myimora. Adiante, estavam cinco ornteffs,
ensandecidos pela morte dos colegas. Dois tinham espadas em mãos, outros
dois tinham uma foice, e o último, mais atrás, um grande arco; se preparavam
para atacar juntos.
O Ap levantou os punhos, confiante.
— Vocês já perderam — gritou um dos caras-de-coruja. — Mesmo
que...
— Cala a boca — interrompeu-o o patriarca, com voz peremptória.
Os dois espadachins correram pela esquerda. Eram ágeis, mas Myimora
julgou que poderia matá-los com facilidade.
De repente, um dos ornteffs parou e se agachou. O outro pulou em suas
costas e pegou impulso, voando alto. O espadachim que ainda estava no chão
incidiu sobre o patriarca, empunhando a espada com as duas mãos e preparando
um golpe fatal.
Myimora ergueu o braço esquerdo em reflexo. O gume perfurou sua
pele, porém não penetrou fundo demais. Agarrou o pescoço do ornteff com a
mão livre e o quebrou. Enquanto a coruja desabava sem vida, retirou a espada
presa em seu braço e a empunhou; a ação levou-lhe uma feição dolorida ao
rosto.
Os dois olhos superiores fitavam o espadachim que descia, os
inferiores, por sua vez, buscavam os outros três ornteffs. Myimora dobrou a
atenção ao notar que não via mais os ceifadores, somente o arqueiro.
Mas, antes que conseguisse encontrá-los, recebeu duas foiçadas em seu
lado direito: uma na bochecha e outra no braço. Logo depois, uma flecha

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perfurou seu abdómen. Seguindo sua intuição, saltou para trás, desviando por
pouco do espadachim descente; sua espada acertou com tudo o pavimento de
pedra, reverberando o baque e levando ao patriarca a certeza de que sua cabeça
seria cortada com aquele golpe.
Sangrando, Myimora ergueu a espada.
— Podem vir, vermes — convidou, resoluto. E o chão rachou mais
uma vez com seu poder. Uma aura púrpura, proveniente de sua Alma, cingiu a
espada roubada.
Piando alto, os ornteffs ladearam Myimora, empunhando suas armas.
Demonstravam receio perante a presença do patriarca dos Ap; nenhum deles
de fato atacava.
Myimora pulou para mais perto e golpeou um dos ceifadores, traçando
uma diagonal com a espada.
O cara-de-coruja tentou defender com a foice, mas aquela estranha
lâmina púrpura perpassou tudo em sua frente: do gume de sua arma até seu
tronco armadurado. O ornteff foi repartido em dois, banhando o pavimento de
vermelho vinho e arrancando pios amedrontados dos aliados restantes.
— Querem mesmo continuar com isso? — perguntou o patriarca.
Desesperado, o arqueiro correu para a vila.
Myimora olhou-o com desdém. Tocou a ponta da espada no chão e
murmurou algo. Segundos bastaram para que um espectro púrpuro pontiagudo
emanasse do solo e empalasse o arqueiro em fuga. Seus oponentes paralisaram.
— Vou perguntar mais uma vez — avisou. — Querem... mesmo...
— Mexa com alguém do seu tamanho, garnaziano — murmurou uma
voz grave, atrás do patriarca.
Indiferente, Myimora se virou para olhar.
Um grande ornteff se mostrou, caminhando despreocupado para fora
do bosque. Tinha aproximadamente dois metros de altura. Seu corpo era
coberto por penas marrons e brancas, que se estendiam até suas asas longas e
imponentes. Usava um elmo com detalhes em prata e ouro, que acentuavam
sua presença intimidante. Sua armadura de couro reforçado com placas de
metal era decorada com símbolos tribais, evidenciando sua posição de
liderança em sua comunidade. Em suas enormes garras, empunhava uma lança
feita de madeira de carvalho maciço, com uma ponta afiada e adornada com
plumas brancas e negras.
Myimora arregalou os olhos ao reconhecer a figura.

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— Se lembra de mim? — Ele perguntou, rindo ao notar a reação do
garnaziano. — Parece que fiquei bem cravado em sua memória.
Era a coruja que havia derrotado Myimora e Lerluh juntos. Era a coruja
que havia arrancado a cauda de Krëff.
O patriarca dos Ap sentiu medo.
— O que houve, garnaziano? Parece que viu um fantasma. — O ornteff
pulou para frente e alcançou Myimora num segundo, golpeando-o de imediato.
O soco acertou em cheio, enterrando-se na barriga do Ap, que voou
para trás e caiu de costas no chão, a metros de onde estava antes. A dor superava
os cortes das lâminas; levou-o uma enorme dificuldade de respirar. Tentou se
levantar, mas caiu de joelhos, incapaz. A confiança que tinha se esvaiu por
completo ao olhar a guerra que o funeral de Naohu havia se tornado.
O átrio estava banhado de esmeralda e vermelho vinho. Corpos inertes
adornavam o pavimento, a maioria sendo de garnazianos. Myimora viu os
patriarcas lutando com tudo o que tinham, mas isso não foi o suficiente para
lhe restaurar a esperança.
Nós vamos perder...
Alosun Werg se pôs entre Myimora e o cara-de-coruja, brandindo seu
usual chicote cobalto.
— O que houve, Myimora? — Ele perguntou. — Vai deixar esse verme
te deixar no chão? Um soco bastou para derrotar o patriarca dos Ap?
Myimora bufou e tentou se levantar mais uma vez. Enquanto se erguia,
questionou para o ornteff:
— Por que não nos deixam... em paz? — Ofegante, conseguiu enfim
se sustentar sobre as pernas.
— Vamos deixar assim que nos entregar o seu filho — respondeu a
criatura.
— Ele não está aqui — disse Alosun.
O cara-de-coruja riu.
— Ótimo — murmurou, empunhando sua grande lança.
Myimora se abaixou e pegou a espada roubada, fortalecendo-a com sua
Alma novamente. Werg olhou para ele e disse, risonho:
— Achei que não gostava de espadas.
O Ap o ignorou. Elevou a arma para frente, desafiando a coruja.

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— Dois contra um? — sibilou o ornteff, mediante risadas. — Bem,
acho que será justo o suficiente. — Saltou para frente e tentou perfurar Alosun
com a lança.
O patriarca dos Werg desviou com tranquilidade, contra-atacando na
sequência. O adversário não conseguiu evitar a chicotada, e recebeu-a
diretamente no bico. Sem hesitar, Myimora aproximou-se correndo pelo flanco
do ornteff.
O cara-de-coruja se aprumou com rapidez, percebendo que o patriarca
dos Ap se preparava para acertá-lo. Previu o golpe do garnaziano, inclinando o
tronco para trás e desviando da lâmina em declive. Depois, intentou perfurar
Myimora, mas somente conseguiu cortar-lhe superficialmente a bochecha.
Tentou acertar outros golpes, mas o Ap irritantemente se esquivava de todos.
De repente, o chicote de Alosun enrolou-se em sua lança.
O patriarca dos Werg puxou com todas as forças. Porém, a coruja
retesou os músculos e conteve sua arma com facilidade. Na sequência, girou
sobre os calcanhares e chutou o rosto de Myimora, acertando-o em cheio.
— AJUDA! — berrou Alosun para os outros patriarcas, sentindo o
ornteff puxando o chicote com força; e em poucos segundos, ele foi arrancado
das mãos do dono.
O ornteff brandiu o chicote e foi até Myimora, que estava caído no
chão; o rosto sendo manchado de esmeralda pelo gêiser de sangue que emanava
de seu nariz. Olhando com desdém para o garnaziano, ele cuspiu.
O Ap olhava para o céu, monótono, aéreo. Havia mesmo desistido
assim tão facilmente?
Os outros patriarcas olharam a cena e cogitaram ajudar a dupla; porém,
tiveram de voltar a atenção para as suas próprias batalhas, para que não
morressem.
Alosun fitou assustado o seu oponente.
— Ah, que pena... — caçoou o ornteff — Está sem arma, não é?
— Vai se foder! — bradou o Werg.
— Quer de volta?
— Quero que você morra da forma mais lenta e dolorosa possível!
O ornteff gargalhou.
— Tão bonitinho...
Preparou para lançar o chicote, segurando firmemente sua alça com
uma mão enquanto girava o comprimento dele com a outra. Com um

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movimento rápido e preciso, arremessou o chicote em direção ao Werg; sua
ponta serpenteante se estendendo em um arco largo.
Alosun tentou se esquivar, mas foi tarde demais — o chicote se curvou
em volta de seu pescoço, laçando-o com um aperto firme e seguro. O cara-de-
coruja puxou com força, levando o garnaziano a cair de cara no pavimento.
O patriarca dos Werg se debateu, buscando se libertar, mas sem
sucesso. A coruja se aproximou, rindo, empunhando o chicote em uma mão e
a lança em outra.
— Foi contra mim que sua luta começou — disse o patriarca dos Ap,
ajoelhado, usando a espada como apoio. — E é contra mim que ela deve
terminar... Deixe-o em paz. — Sem que o ornteff percebesse, tentou fazer a
mesma coisa que havia feito com o arqueiro, mas estava fraco demais para
conseguir.
— Acho que se enganou, garnaziano — comentou a criatura, virando-
se para o Ap. — Não se ache tão especial assim. Minha luta é contra todos
vocês. — Começou a se virar para olhar Alosun. — Últimas pala...
O ornteff parou de falar ao reparar que o Werg estava tentando cortar
o chicote com um pequeno punhal. Sem pestanejar, perfurou sua cabeça com a
lança, fazendo o sangue esmeralda do patriarca respingar em sua armadura.
Myimora paralisou ao ver a cena.
— Agora eu vou terminar as coisas com você — disse a coruja,
correndo na direção do Ap.
O patriarca se levantou e gritou, deixando o ódio se espalhar por todo o
seu corpo. Preparou-se para desferir uma espadada horizontal. Estava tão
inseguro que nem ao menos conseguia manter os olhos abertos. A qualquer
momento, poderia simplesmente ser perfurado e morrer, mas, se fosse para
morrer, que fosse tentando proteger o Círculo.
Bradando, Myimora golpeou. Adiante, barulhos de terra e de pedra
foram escutados; o chão parecia se quebrar, como se algo estivesse tentando
sair. Uma sensação estranha preencheu seu cerne. Em um breve momento de
curiosidade, ou coragem, o patriarca abriu os olhos a tempo de ver o cara-de-
coruja ser empalado por um grosso tronco pontiagudo que se projetou do
subsolo. O tronco cresceu em instantes, e logo se transformou em uma enorme
árvore.
Myimora nunca havia visto uma árvore como essa antes.

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Seu tronco era esbranquiçado. Uma luminescência rosada corria por
entre os sulcos que lapidavam toda sua extensão. Pequenas folhas, também
rosas, formavam uma densa copa, que atraía o olhar de todos os que estavam
no pátio. Um ser estava sentado em um dos galhos sob a folhagem, olhando
para a guerra.
O coração de Garnaz acelerou, se acendendo de esperança.
Myimora sentiu lágrimas escorrerem para fora de seus olhos inferiores.
Da esquerda, onde patriarcas se engalfinhavam com alguns ornteffs, escutou:
— É ele! Peguem! É Lerluh Ap! — gritaram as corujas.
O patriarca olhou para o filho.
Lerluh fez um gesto com a mão direita. No mesmo instante, todos os
ornteffs que estavam no local foram cingidos por grossos troncos semelhantes
com a árvore em que ele estava sentado. Com outro gesto, os troncos se
apertaram, esmagando as corujas.
O rapaz desceu do galho e ficou frente a frente com o pai.
Myimora fitou Lerluh com estranheza. Estava muito diferente.
Diversas linhas percorriam todo o seu rosto, descendo pelo pescoço,
contrastando fortemente com a usual pele cinza de um garnaziano. Seus
cabelos brancos agora estavam longos e caíam em ondas delicadas sobre seus
ombros largos. Inúmeras cicatrizes se desenhavam pelo tronco desnudo de
Lerluh, musculoso como Myimora nunca antes havia visto. Na palma de sua
mão, estava cravado um estranho cristal em forma de elipse, que emoldurava
uma paisagem estranha, de árvores, gramas e montanhas rosas.
Lerluh olhou o pai em silêncio. Pelo átrio, ecoaram gritos de alegria por
parte dos garnazianos sobreviventes.
Myimora sorriu.
Lerluh Ap havia voltado.

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☽ Capítulo IX ☾
Reencontro

“...Me abrace, por favor. Só para eu me lembrar do porquê ainda


estou lutando...”

Chamuc Dandellion.

O SILÊNCIO INCIDIA SOBRE A FLORESTA , permitindo


que o farfalhar repetitivo dos passos pesando nas folhas e
galhos secos ecoasse a cada instante, em meio ao silêncio
ensurdecedor que o grupo sustentava.
Krëff caminhava pensativo, olhando para os dosséis das árvores e
admirando a luz suave do luar duplo que se filtrava entre as folhagens, lhe
fornecendo uma visão interessante; as Gêmeas pareciam andar lado a lado,
espectando-o em sua caminhada até o Círculo, prevendo seu destino funesto.
Oman roncava alto enquanto repousava nas mãos do garnaziano.
Nem dormindo esse velho fica quieto..., pensou o príncipe.
Trisa andava mais afastada, olhando para o chão com uma expressão
enigmática; parecia assustada, deprimida. Uma fraca luminescência amarelada
circulava por inteiro o seu braço machucado, como uma camada protetora que
impedia o sangue de jorrar feito uma cachoeira das feridas que haviam surgido
após o golpe. Sentia uma leve coceira na região conforme os ferimentos
lentamente se fechavam. No entanto, a cor acinzentada que tingira o seu braço
ainda não havia clareado.
O caminho adiante era iluminado pelo lampião que dependurava do
cajado de Raashinari. O osoren cantarolava baixo, seguindo os assobios do
sagui que levava em seu ombro.

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Chinti já estava mais familiarizado com os desconhecidos: passava
mais tempo fora das orelhas do seu parceiro e até havia quase criado coragem
para subir nos ombros de Trisa.
— Já estamos chegando — disse o osoren. Levantou suas enormes
orelhas e olhou para trás. — Zirgut fica a poucos metros.
— Obrigado por nos ajudar... — murmurou o garnaziano.
— Que nada! Vocês que me ajudaram com aquele gorawe... — disse o
rapaz, ainda olhando para trás. — Se não tivessem aparecido, na melhor das
hipóteses, eu teria perdido um membro. Aliás, sinto muito pelo braço da sua
amiga. — Tropeçou, mas se recompôs com rapidez. Risonho, continuou: —
Acho... acho melhor olhar para o caminho, não é? Haha!
Krëff contemplou os arredores, se permitindo admirar a floresta e sentir
o cheiro dos carvalhos. Recebeu no rosto o vento fraco e gelado que percorria
pela noite, chocando-se nas árvores e meneando seus dosséis, despenteando os
seus cabelos grisalhos. Estava próximo de casa mais uma vez. Sorridente, fitou
a amiga. Notou que ela não parecia estar tão feliz quanto ele. Na verdade, nem
ao menos parecia estar feliz. Aos poucos, se aproximou.
— Triss, o que houve? — sussurrou o rapaz, preocupado; o sorriso
sumindo da mesma forma que surgiu: de repente, sem que ele soubesse ou
sentisse.
— Huh?! — empertigou-se a mulher, olhando o amigo com os olhos
assustados. Não pareceu tê-lo notado até então.
— Por que está tão para baixo? — indagou o garnaziano. — Seu braço
ficará bom logo, logo.
— Não é isso, eu... — Trisa ficou quieta.
— Não precisa me contar caso não queira. Está tudo bem.
— Eu quero! — afirmou ela. — Só não sei como... Estou com medo,
confusa... — Bufou e voltou a olhar para o chão. — Ah, eu sei lá...
— Mas porquê?
Trisa meneou de leve a cabeça.
Krëff a encarou, cabisbaixo. O garnaziano pôs o braço sobre o ombro
dela e a abraçou, puxando-a para perto.
— Você vai melhorar, tá? — Ele falou. — Estamos juntos agora.
A humana sorriu para o amigo e apoiou a cabeça em seu ombro.
— Quase lá! — gritou Raashinari.

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O grupo olhou adiante e viu Zirgut. Oman acordou e gritou de alegria
ao enxergar os casebres amarronzados que se mostraram além do arvoredo.
— É a primeira cidade que vejo em ciclos! — disse ele, animado.
O grupo apertou o passo.
— Venha cá, garnaziano... Psst! — sussurrou o zellyen. Quando Krëff
aproximou o crânio do ouvido, Oman indagou, ansioso: — Tem algum... algum
bordel por ali?
— Não acho que conseguiria fazer muito no estado em que está, velhote
— respondeu o príncipe, jovial.
O já-morto permaneceu em silêncio.
Assim que alcançaram o limiar entre a floresta e a cidade, viram
multidões empolgadas e barulhentas caminhando em direção a um grande circo
montado na cidade, que se erguia no horizonte, além de algumas construções.
As pessoas se empurravam e se moviam em um fluxo constante; suas vozes
misturando-se em um burburinho alegre. Algumas seguravam pipocas ou doces
coloridos, enquanto outras carregavam em suas mãos pequenos dentes-de-leão.
Pelas esquinas, letreiros chamativos se faziam ver. Neles, estava escrito: “O
círco Dente-de-Leão chegou em Zirgut. Venha visitar!”.
Krëff não se importou muito. Deu alguns passos adiante e se virou para
o osoren.
— Obrigado, Raashi — disse o príncipe. — Agora, temos que seguir.
Foi um prazer.
— O prazer foi todo meu — Raashinari abaixou a cabeça em mesura.
— Quem sabe não nos encontramos por aí, não é? — finalizou com uma
tristeza no olhar.
— Eu espero que sim.
O grupo partiu, despedindo-se do osoren.
— Eu gostava daquele rapaz... — murmurou Oman, aéreo.
— Vamos pelos cantos, Triss. — Krëff falou, olhando precavido para a
multidão.
Eles partiram em direção ao Círculo, optando pelos becos e pelas ruas
menos movimentadas. Mesmo assim, ao longe, escutavam o som das músicas
e das risadas, e o ar parecia impregnado com o cheiro de comida frita e doce.
O circo havia mesmo trazido consigo um toque de magia e excitação à cidade.
Trisa seguia o garnaziano, escondendo o rosto, olhando para o chão,
buscando evitar os olhares dos seres que estranhavam sua aparência carcomida.

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Sentia-se péssima, como se não pertencesse àquele mundo. De fato, não havia
pertencido a ele nos últimos dez anos. Era uma decadente. Tinha a aparência
de uma decadente. Era assim que os seres tratavam os que julgavam que eram
diferentes...? Com olhares e murmúrios que denigrem?
Quando alcançaram a ponte que conectava os dois lados de Zirgut,
Krëff pulou para a beirada do riacho logo abaixo, que cruzava boa parte da
cidade e seguia até o bosque que circundava todo o Círculo de Garnaz. Trisa
foi logo atrás.
O garnaziano caminhou sem pressa pela margem do rio. Sua amiga, por
outro lado, preferiu ir pelo meio, banhando seus pés na gélida corrente d’água
que descia das colinas à distância. Era rasa, e peixes passavam rápido pelos
seus pés, escapulindo de seus dedos quando ela tentava pegá-los. A garota
sorriu de canto de boca, distraindo-se.
Porém, após caminharem por algum tempo, Trisa notou uma leve
mudança na cor da água. Em um só ponto, que seguia o fluxo e descia rumo
aos seus pés, um líquido esmeralda contrastava com a transparência do riacho.
A humana olhou para frente e, pouco distante, viu as árvores do bosque. O
sorriso se desfez.
— Por aqui! — O príncipe chamou, subindo uma das pequenas
elevações no solo que se erguiam em ambos os lados do riacho, estendendo-se
para fora das margens e se elevando gradualmente acima do nível da água.
— Krëff! — Trisa se apressou para seguí-lo.
O garnaziano andou até a fronteira do bosque e procurou algo nos
bolsos. Depois de poucos segundos, retirou deles uma runa de minsú.
— Vai demorar um pouco até eu encontrar o caminho — disse o
garnaziano, fitando a amiga enquanto ela subia e caminhava até ele. — Você
se importa de ficar aqui fora e me esperar?
O príncipe se virou e partiu para o Círculo.
— Krëff!!! — chamou Trisa, desesperada.
Krëff parou e rodou sobre os calcanhares.
— Tem algo muito errad... — A humana tentou dizer.
Porém, uma forte ventania surgiu repentinamente da floresta, rugindo
com uma força inesperada, como se intentasse expulsar algo de dentro dela.
Krëff e Trisa foram atingidos pela violenta rajada de vento, que os empurrou
com facilidade, fazendo com que eles mal conseguissem se manter de pé.

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As árvores ao redor balançavam com violência; seus galhos se agitando
e suas folhas se debatendo, desprendendo-se, voando em direção ao casal de
amigos. O vento parecia ter uma vida própria, como se fosse uma entidade viva
que lutava contra... algo.
Kreff e Trisa tentaram se proteger, agachando-se e segurando-se um no
outro, mas o vento era implacável e os derrubou. Eles rolaram pelo chão, foram
jogados para trás e deslizaram alguns metros até finalmente pararem.
O vento continuou a soprar com força, assobiando através dos galhos
das árvores e causando um ruído ensurdecedor, tão alto que chegava a atrair a
atenção de quase toda a cidade. Em pouco tempo, multidões se aglomeraram
nos arredores de onde o casal de amigos estava, trocando o foco do circo para
contemplar aquela inusitada cena. Curiosos e assutados, buscavam manter
distância o suficiente para não serem derrubados.
Alguns minutos se passaram. Todos em Zirgut pareciam ter se ajuntado
para admirar o estranho sopro do bosque. No entanto, tanto os civis quanto os
guardas apenas observavam, se ajoelhavam e rezavam desesperados para que
a Lua cinzenta os protegesse. Enquanto isso, Krëff e Trisa, que haviam deitado
no chão e se encolhido, não recebiam ajuda de nenhum ser que se arriscasse a
se aproximar.
Isso até...
— Ajudem! AJUDEM! — berrou uma voz conhecida em meio à
multidão.
O garnaziano se virou para olhar.
Com dificuldade, enxergou Raashinari correr para além do aglomerado,
tentando alcançá-los.
O osoren lutava contra a ventania, segurando Chinti contra o peito e
batendo com força o cajado no chão. Porém, seja lá o que ele estivesse tentando
fazer, não tinha sucesso; sua lamparina apenas tremulava com o vento, e a
chama em seu interior permanecia serena, sendo impedida de apagar devido ao
vidro que inteirava as laterais do objeto.
— Eles podem se machucar! — Ele gritou para a multidão mais uma
vez. — Vão ficar parados aí?
Krëff notou que a turba se espalhava, abria espaço para que alguém
passasse. Após algum tempo, dois seres apareceram: um c’leckapureano e um
nirnäp; Krëff os reconheceu com facilidade.

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Então, do mesmo modo que a ventania se iniciou, ela cessou: tão de
repente que Raashinari quase caiu no chão devido a força que fazia para se
manter de pé.
— O que é isso? — indagou Chamuc Dandellion, dando passos para
perto do osoren. Ao seu lado, o pequeno e destemido Kōoja caminhava
calmamente.
— Você está bem? — perguntou o nirnäp para Raashinari, cruzando
seus bracinhos de bebê humano.
— Começou uma v-ventania do nada! — explicou o osoren enquanto a
dupla se aproximava.
— Jura, garoto? — perguntou sarcasticamente Dandellion. Olhou para
o casal de amigos caído no chão.
— Saía de d-d-dentro da f-floresta, e... — O osoren gaguejou.
Chamuc correu para onde Trisa e Krëff se encontravam.
— Vocês estão bem? — Ele perguntou.
Ambos fizeram que sim com a cabeça.
— Ei! Eu me lembro de você! — exclamou Chamuc com voz animada,
olhando para o príncipe e ajudando os dois a se levantarem. — Haemï é sua
irmã, não é? Esse mundo é um ovo...
Krëff o ignorou. Chamou Raashinari, que estava adiante falando com o
nirnäp. O osoren se empertigou e chegou mais perto.
— Vou p-precisar da sua lamparina — gaguejou o garnaziano com um
tom de voz desesperado.
— Para o quê?!
— Isso... não importa agora. Só me dá a droga da lamparina!
— Sem chance.
— Por favor, Raashi. Eu preciso entrar agora!
— Sem problemas, eu entro com você.
— Sua casa é ali dentro, certo? — interveio o c’leckapureano, fitando
o príncipe com seus olhos avermelhados. — Eu te ajudo com essa... ventania.
Será um prazer ajudar o irmão da Haemï de novo.
— Não precisa — disse o garnaziano. — Volte para o seu circo.
— Pense, rapaz, olhe para essa multidão e me diga quantos deles irão
preferir um circo errante a um fenômeno natural inédito.
Chamuc sorriu e deu as costas, indo em direção ao bosque.

- 143 -
— Kōoja!!! — chamou, parando nos arredores do Círculo. — Você
também vem, certo?
O nirnäp caminhou tranquilamente até o parceiro, esboçando um sorriso
de canto de boca.
— Óbvio — disse assim que chegou ao lado do anfitrião do circo.
— Não vou recusar a ajuda — começou o príncipe —, mas... vocês têm
mesmo certeza?
O c’leckapureano se virou e o encarou com um rosto sério.
— Como que entra nesse negócio, rapaz?
— Chamas — respondeu o garnaziano, olhando para Raashinari. — As
chamas mostrarão o caminho.
O osoren foi hesitante até a dupla e respirou fundo. Deu alguns passos
para frente, erguendo o cajado com o lampião pendurado, permitindo que sua
luz tranpusesse a escuridão de metros adiante. De maneira inusitada, a chama
se inclinou de leve para a frente, como se um vento fraco soprasse no interior
do lampião.
— O fogo ficou esquisito! — gritou o osoren para Krëff.
— Perfeito! — respondeu o garnaziano.
Trisa começou a andar até onde o resto do grupo estava. Porém, no meio
do caminho, sentiu uma mão lhe agarrar, repousando com cuidado sobre o seu
ombro, fazendo com que ela sustasse o passo.
— Você não vai ficar? — questionou-a a voz de seu amigo.
A garota permaneceu quieta por algum tempo.
— Você é idiota por acaso? — retrucou. — Por que eu ficaria?
— Seu braço está muito machucado. Dependendo do que estiver
acontecendo lá dentro, você não conseguirá...
— “E, na pior das hipóteses..., morreremos, juntos.” — Trisa o
interrompeu. Virou-se para o amigo, esboçando seriedade em meio à tristeza.
— Se lembra de quando falou isso, Krëff?
— Sim... — murmurou o rapaz. — Me lembro...
— Prefiro morrer lá dentro do que... ficar sozinha de novo. — A
humana suspirou.
Trisa, resoluta, voltou a se virar para ir até as margens do bosque. No
mesmo instante, sentiu seu amigo lhe deter mais uma vez. Contudo, não tentava
impedi-la; apenas lhe dava um abraço apertado, pesado, carregado de tantas
emoções que, sem que notasse, uma lagrima escorreu dos seus olhos inferiores.

- 144 -
— Você não está sozinha...
Krëff não sabia dizer se Trisa tomaria o abraço por uma despedida; não
havia sido a intenção. Somente queria agradecê-la, dizer coisas que não sabia
como dizer. Julgou que, por algum motivo, um abraço fosse expressar tudo o
que ele sentia naquele momento. E, mesmo se fosse, sim, uma despedida, pelo
menos haviam dado um último abraço; passado os últimos poucos segundos
juntos um do outro.
Trisa retribuiu o afeto.
— Seja lá o que está acontecendo lá dentro, vamos sair vivos, certo? —
disse o garnaziano, fitando os olhos da amiga.
— Certo! — respondeu a humana, confiante. Um sorriso novamente
apareceu em seu rosto.
O casal de amigos desfez o abraço e, junto, foi até o restante do grupo.
Assim que alcançou os outros, Krëff ficou logo ao lado de Raashinari,
que ainda erguia o cajado e encarava a chama inclinada para a frente. Na
retaguarda, estavam Trisa, Kōoja e Chamuc. O garnaziano respirou fundo,
olhou para o osoren assustado e fez um gesto com a cabeça, ordenando que ele
andasse, que seguisse as ordens do fogo.
Seguiram adiante, para o interior do bosque de Garnaz.
Poucos passos para dentro, a chama ordenou que fossem para a
esquerda. E quando se viraram, todo o bosque pareceu ter mudado de repente;
as árvores que ali estavam simplesmente sumiram e deram lugar a uma cabana.
— Pelos Seis — assustou-se o nirnäp —, o que é esse lugar?
— Não se importe muito com isso — murmurou o príncipe dos Ap, sem
desviar os olhos do caminho à frente.
— É um bosque assustador, Kōoja, é isso que esse lugar é — admitiu
Chamuc, observando a escuridão mediante o arvoredo quase infinito. — Agora
entendo por que não costumam mexer com vocês, garnaziano.
— É mesmo? — indagou Krëff com voz sarcástica.
Poucos passos adiante, o príncipe já julgou poder escutar sons ecoando
através da floresta, rebatendo nos troncos e na folhagem, invadindo-lhe a
audição e o deixando amedrontado; eram gritos? Espadas se chocando? Carne
rasgando. Choro. Desespero. Eram todos.
Seu coração acelerou. Seu pulmão ficou minúsculo. A adrenalina
voltou a andarilhar pelas suas veias, fazendo com que a floresta escurecesse

- 145 -
ainda mais, sobrando em sua visão apenas a chama guia, inclinando, mostrando
o caminho para a guerra.
Por outro lado, o restante do grupo não pareceu ter escutado. Chamuc e
Kōoja conversavam distraídos. Trisa se concentrava em não surtar de medo.
Oman dormia nos braços do garnaziano. E Raashinari...
— Ande mais rápido, Raashi — pediu Krëff. — Estamos perto.
O osoren apertou o passo, seguindo a chama.
E em poucos segundos, ao fundo de um extenso corredor ladeado por
imensas árvores, uma luz alaranjada e cintilante se tornou pouco visível,
cruzando a folhagem de uma mata densa, que ocupava o limiar entre o bosque
e o Círculo. Esta luz, Krëff tinha certeza, era fogo; podia ouvir as labaredas
crepitarem conforme inflamavam os casebres de seu lar.
Krëff correu desesperadamente. O restante do grupo o acompanhou.
O príncipe largou Oman no chão do lado de fora do Círculo e abriu
caminho por entre os arbustos. Ao atravessá-los, enxergou uma cena peculiar
e assustadora.
As três ruas principais, tão conhecidas por Krëff, estavam adiante, uma
à esquerda, uma ao centro, e outra à direita, levando a todos os lugares dentro
do Círculo. Porém, as três estavam repletas de garnazianos enfrentando caras-
de-coruja, dando suas vidas. Ao fim da rua central, uma bela escultura de
mármore era visível: a estátua da Zô dos garnazianos, Garnaz. As casas, em
chamas, desmontavam-se em uma tormenta de fumaças negras, que tomavam
o ambiente por inteiro.
No entanto, o que de fato fez Krëff paralisar, estava poucos metros
adiante, admirando a tragédia, gargalhando.
Um ornteff de estatura mediana, vestindo um longo poncho marrom-
escuro, tinha uma corrente em mãos. Essa corrente levava até um ser bizarro,
desesperador, retorcido; uma massa disforme e pulsante de sombras escuras,
com olhos púrpuras salpicados por todo o seu corpo esquelético.
A criatura se movia com espasmos rápidos e inconsistentes. Estendia as
mãos até a estátua de Garnaz, desesperadamente lutando para se soltar das
correntes que a apresavam.
Movimentos tentaculósos eram incessantes por toda a superfície de sua
pele. Aquela besta emanava o puro Vazio.
E garnazianos não se davam bem com o Vazio.

- 146 -
Todo o grupo cruzou a moita e viu a cena. A movimentação atraiu os
olhares do ornteff e da criatura que o mesmo acorrentava. Foi nesse momento
que os olhos de Chamuc se encontraram com os da criatura. O c’leckapureano,
inconscientemente, deu alguns passos adiante.
— Haemï?! — Ele disse, amedrontado.

II

Chamuc lacrimejava enquanto galgava até a irmã de Krëff,


murmurando coisas para si mesmo, negando o que seus olhos desafortunados
enxergavam além da fumaça negra. Gritava para Haemï, chamava-a de volta.
Porém, a criatura adiante não parecia se importar com nada além da estátua;
não era mais a Haemï que ele havia conhecido, por quem havia se apaixonado...
Dandellion fechou os olhos, cerrou os punhos e respirou fundo. De
repente, uma aura fina e avermelhada começou a cobrir seu corpo por inteiro.
O ambiente ficou pesado, como se a gravidade estivesse conflitando com o
poder caótico do c’leckapureano.
— Creio que nunca cheguei a ver a cor do sangue de vocês... —
comentou Chamuc, fitando os olhos negros do cara-de-coruja. Sua voz estava
diferente: reverberava e se repetia diversas vezes, alternando a entonação
constantemente, se estendendo e se encurtando... — Confesso que agora fiquei
bem curioso.
Quatro ornteffs desceram das árvores e ficaram no caminho do
c’leckapureano. Uma cara-de-coruja que portava um luxuoso leque se
encontrava à frente dos outros. Em sua retaguarda, Krëff reconheceu, estavam
a espadachim, o besteiro e o pistoleiro que havia acertado um tiro nele há
poucas luas.
— Onde pensa que vai, grandão? — perguntou a ornteff com o leque
em um tom de voz sensual.
Krëff, Trisa e Kōoja foram ao encalço de Dandellion. Raashinari,
entretanto, manteve-se distante, tremendo de pavor.
O osoren desesperadamente retirou Chinti debaixo de sua orelha e o
posicionou no chão com cuidado.

- 147 -
— Corre, Chin! — Ele ordenou.
O sagui hesitou por um instante.
— Anda logo! Vai! Nos encontraremos mais tarde, eu prometo!
Chinti deu as costas e correu para o bosque.
Krëff buscou uma runa de minsú em sua bolsa. Nela, somente
encontrou a esquisita joia azul-escura que o zurkrus havia lhe entregado.
Desprovido de mais opções, o príncipe ergueu os punhos.
Trisa tentou acordar a Guerreira Alvinegra. No entanto, o lado esquerdo
foi o único a despertar, emanando a inquieta luz pálida como de costume.
Kōoja começou a flutuar poucos centímetros.
— Você, garnaziano! — começou a ornteff com o leque, apontando
para o príncipe. — Entregue-nos Lerluh Ap!
Chamuc correu para cima dos caras-de-coruja, furioso. Porém, no
instante que se sucedeu, o c’leckapureano pareceu não ter saído do lugar. Ao
mesmo tempo, havia se teletransportado para o lado oposto. Ou, talvez,
estivesse em vários lugares ao mesmo tempo.
A confusão no semblante das corujas era evidente. Elas recuaram
alguns passos e empunharam suas armas, tentando prever os movimentos do
Caos. Mas, era impossível.
— Tem algo interessante acontecendo... — murmurou a líder de
repente, ignorando as ameaças de Dandellion. Pareceu ter se animado.
A coruja abriu o leque, exibindo em meio às folhas um estranho símbolo
circular, que pulsava constantemente em marrom. Todos olharam para ele por
impulso.
Krëff sentiu sua consciência vacilar e seus olhos se fecharem. Perdeu o
equilíbrio, oscilando em um mundo que havia ficado completamente preto,
mesmo que apenas por um segundo. Retomando a consciência, olhou ao redor;
os outros pareceram ter sentido o mesmo efeito bizarro. E, ao olharem para
frente, notaram que a ornteff com o leque havia desaparecido.
Chamuc surgiu na frente do besteiro e o golpeou com tudo na barriga.
O soco foi forte o bastante para quebrar a armadura do ornteff e alcançar o seu
abdómen. O besteiro inclinou o corpo e puxou ar. Dandellion empurrou-o no
chão.
A coruja caiu de lado, respirando com dificuldade. Chamuc pôs o pé
em sua cabeça.

- 148 -
O c’leckapureano olhou para cima em reflexo; uma lâmina descia com
velocidade até seu rosto. Saltou para trás, entre idas, vindas e teleportes
caóticos que confundiam a mente de todos os que estavam no local.
— Acha que consegue me acertar? — zombou Dandellion. Sua voz
bizarra ecoou pelo ambiente mais uma vez.
A espadachim gargalhou e partiu para cima, sua lâmina cortando em
trajetórias aleatórias, como se estivesse apenas arriscando onde Chamuc
poderia aparecer. Ensandecida, babava e gargalhava, divertindo-se com a
situação.
A gravidade do ambiente se normalizou, arrancando um peso dos
ombros de todos ao redor.
No mesmo segundo, Chamuc apareceu pouco distante da ornteff com a
qual lutava. A aura avermelhada que circundava seu corpo havia sumido. Em
seu lugar, inúmeros cortes se faziam presentes, manando filetes de um espesso
sangue azulado. Somente um Chamuc situava-se adiante, e o mesmo estava
ofegante, fraco, ferido... Ele sabia que não havia sequer sido atingido pela
espadachim. Na verdade, já estava em seu limite. O pouco tempo que o Caos o
havia dado tinha enfim terminado. Fizera tão pouco...
A espadachim gritou, seus olhos fixos em Dandellion enquanto corria
em sua direção. A lâmina de sua espada cortava a fumaça, preparando-se para
arrancar fora a cabeça de mais um c’leckapureano. Seus olhos estavam
injetados em sangue e sua expressão era de pura loucura.
Kōoja surgiu como um especto flutuando lentamente para fora da
nuvem de fumaça negra, pondo-se entre a coruja e o seu alvo.
A espadachim sustou o passo, surpresa.
— Ah, baixinho! — exclamou ela com a voz trêmula de insanidade. —
Cometeu um grande err... — Sua fala foi interrompida por um som de um estalo
seco, brusco.
O pescoço da ornteff se quebrou.
O nirnäp estendia uma das mãos para a espadachim. Com uma
expressão concentrada no rosto, ele fez um gesto para o lado, como se estivesse
cortando o ar com uma lâmina invisível. O corpo da ornteff foi arremessado,
acompanhando a trajetória da pequena mão de Kōoja.
Um momento de silêncio se seguiu, com a poeira e as cinzas dos
casebres carbonizados flutuando no ar como uma cortina funesta. O corpo da
espadachim jazia inerte no chão, seus olhos vidrados encarando o nada.

- 149 -
Mas, o silêncio logo se quebrou. Uma risada amedrontadora começou
a reverberar ao redor, fazendo com que todo o grupo sentisse um calafrio
percorrer a espinha. O véu negro de cinzas começou a se dissipar, revelando
aos poucos a cena dantesca que se desenrolava mais à frente.
O ornteff que mantinha Haemï presa gargalhava alucinado. Com uma
expressão quase demoníaca no rosto, desprendia devagar as correntes atadas
ao pescoço daquela nefasta criatura. Cada elo parecia escorregar pelos braços
do ornteff como cobras, deslizantes enquanto desenrolavam-se em espiral e
retiravam o domínio da coruja sobre Haemï; libertavam o puro Vazio no
Círculo de Garnaz.
Todos haviam fixado seus olhos na cena diante deles, sentindo o peso
opressor da iminente tragédia. Uma paralisia momentânea os impediu de agir...
Exceto pelo príncipe dos Ap.
Krëff sentiu o corpo arrepiar por completo. Sem pensar em nada, correu
para tentar conter a criatura, impedi-la de alcançar a estátua. Estava ofegante,
sua respiração pesada cortando a fumaça tóxica enquanto corria por ela. Seu
coração batia com força, como se quisesse saltar para fora do peito. Sabia que
não podia parar. Não podia deixar que Haemï chegasse à estátua. Não podia...
Um som grave e alto pôde ser escutado logo atrás, rasgando o falso
silêncio que o desespero havia fornecido ao garnaziano. Inconscientemente,
sua mão voou para a barriga; estava quente, estava úmido... Krëff caiu de
joelhos, sentindo uma dor dilacerante se espalhar pelo seu corpo como uma
praga.
— KRËFF!!! — berrou Trisa, desesperada, correndo até seu amigo.
Acima, a luz das Gêmeas iluminava o cenário.
Krëff, respirando com dificuldade, tentou gritar:
— Parem... e-ela! — Entretanto, até mesmo o farfalhar das chamas era
mais alto que a sua voz.
Chamuc sibilou um nome:
— Kōoja! — Em seguida, fitou o companheiro com olhos pedintes.
O nirnäp olhou em direção ao c’leckapureano e assentiu com a cabeça,
sério. Em seguida, flutuou com velocidade para onde Haemï estava.
O c’leckapureano, incapaz de continuar, desmaiou.
Trisa caiu de joelhos ao lado de um Krëff moribundo e chamou por
Raashinari, segurando a cabeça do amigo em seu colo. Sentia o coração
batendo descontroladamente em seu peito; lágrimas corriam desenfreadas pelo

- 150 -
seu rosto. As memórias de tudo que passaram juntos — as alegrias e as dores
— inundavam sua mente. Olhava ao redor, buscando o paradeiro do osoren
além da cortina de fumaça.
De repente, a voz de Vuvue ecoou em sua mente. "O tempo urge,
criança", dizia o seu tutor. Trisa sabia o que fazer. Tremendo, colocou a mão
não machucada sobre o ferimento de Krëff e aplicou pressão, tentando estancar
o sangramento. Ela gritou pelo nome de Raashinari mais uma vez...
E então, num instante, tudo mudou. Um impacto violento atingiu seu
peito, como se fosse um soco, fazendo-a cambalear. Trisa olhou para baixo e
viu um virote atravessando seu tórax, o sangue jorrando de seu corpo.
Desesperadamente, ela tentou retirar o virote.
O semblante de Trisa se contraiu em agonia, seus olhos se fecharam
com força enquanto um grito estridente escapava de seus lábios. A dor parecia
percorrer cada centímetro do seu corpo, tornando sua respiração ofegante e
suas mãos trêmulas. O som de seus gritos ecoou pelo Círculo, reverberando
como um sinal de aflição. Finalmente, após um esforço sobre-humano, ela
conseguiu arrancar o virote, mas a dor ainda persistia, dilacerando sua
consciência.
Pouco adiante, enxergou Raashinari cruzar a fumaceira e saltar sobre
si assim que viu a cena. Mal conseguindo manter-se sentada, Trisa despencou
para o lado, seus olhos se prendendo no pavimento cinzento.
Raashinari se pôs a correr até o casal de amigos. Seus olhos pareciam
estar prestes a saltar para fora. Se ajoelhou e levou as mãos até os chifres.
— Pensa. Pensa, Raashinari, pensa... — repetia olhando do príncipe
para a decadente. Notou as lágrimas descendo dos olhos distantes de Trisa.
O osoren levou a mão até a cintura e pegou uma pequena bolsa. Desatou
as cordinhas que a fechavam, revelando um punhado de terra. Com cuidado,
ele passou suavemente os dedos abaixo dos olhos da humana, molhando-os
com suas lágrimas. E, em seguida, enfiou os dedos úmidos na bolsa e
murmurou:
— Ghatak nemorr... — A terra pareceu ganhar vida nas mãos do osoren,
brilhando em um tom dourado tão intenso que iluminou o rosto da humana. Ela
assistiu em silêncio, seus olhos se fechando lentamente, sua consciência se
esvaindo.
Uma espécie de filamento amarelo acompanhava os dedos de
Raashinari, traçando linhas em pleno ar. Com cuidado, o osoren pressionou-o

- 151 -
contra o tórax da humana. No mesmo instante, o fio dourado se contraiu e
cobriu o local ferido, fazendo com que o gêiser de sangue que jorrava do
machucado cessasse.
Raashinari girou rapidamente para encarar o garnaziano, que ainda
estava acordado, ofegante e chorando enquanto encarava as Gêmeas. O osoren
passou os dedos nas lágrimas de Krëff. Ergueu a mão, buscando mais um pouco
de terra na bolsa.
Mas antes que ele pudesse agir, o som aterrorizante da pistola
preencheu o ar, e a mão esquerda de Raashinari foi atingida em cheio. O ornteff
pistoleiro, flanqueado pelo besteiro, avançou devagar em direção ao osoren
caído.
Raashinari contorcia-se em agonia pelo chão, segurando o que havia
sobrado de sua mão desfigurada. Um sangue amarelado escorria pelo seu braço,
tingindo o pavimento, inundando os espaços dentre as pedras irregulares.
O pistoleiro soltou uma risada maldosa e debochada.
— Ora, ora, ora — entoou ele, mirando o osoren com um olhar cínico
—, temos um curandeiro por aqui...
Raashinari olhou desesperado para os dois.
— Que tal uma escolha, jovem? —propôs a coruja. — Prefere que eu
te mate agora mesmo, ou deixe-o sofrer enquanto assiste a morte dos seus
aliados e morre lentamente? — Engatilhou a pistola. — Ish! Essa é difícil...
Raashinari sentiu um frio na espinha e não conseguiu proferir uma
palavra sequer. A dor e o medo lhe impediam.
O ornteff apontou sua arma para o rapaz, resoluto em atirar.
— Deixe-os... — O besteiro sibilou com sua voz calma e aveludada.

☽☾

Kōoja enfrentou Haemï com confiança, posicionando-se em seu


caminho e encarando seus inúmeros olhos vibrantes.
— Você não me assusta — sibilou o pequeno, mas Haemï continuou
galgando sem se importar com suas palavras.
Kōoja ergueu as mãos, direcionando um poder tremendo sobre a
criatura; um campo de força semitransparente a cingiu, fazendo com que ela se
reclinasse sob a pressão, dificultando sua caminhada.

- 152 -
O nirnäp impôs mais e mais força. No entanto, mesmo aos solavancos,
a criatura continuava andando em sua direção, continuava se aproximando da
estátua.
Quanto maior era o poder que o nirnäp liberava, mais Haemï se
inclinava e se contorcia. Salpicos de um líquido negro passaram a tingir o solo,
pingando da superfície inquieta da pele de Haemï, que aos poucos vibrava com
mais intensidade.
— É uma pena você ter se tornado isso... — murmurou o nirnäp,
elevando seus poderes ao limite. — E é uma pena que o seu fim seja tão triste.
De repente, dois tentáculos saltaram da criatura, rasgando o ar em sua
direção. Kōoja tentou se esquivar, mas antes que pudesse reagir, foi capturado
por Haemï, suspenso no ar pelo pescoço. A influência de seus poderes sobre a
criatura cessou. Haemï ergueu-se novamente, aproximando-se de sua presa.
Um arrepio de terror percorreu o corpo de Kōoja quando percebeu que
era tarde demais para escapar. Seu coração palpitava com força, enquanto a
pressão ao redor de sua garganta aumentava. Em um instante terrível, ele sentiu
o estalo de seu pescoço se quebrando, a dor aguda explodindo em seu cérebro.
Tudo se tornou escuro enquanto a vida escapava de seu corpo, deixando-o à
mercê da criatura.
Haemï atirou o corpo inerte do nirnäp para o lado e continuou em frente.

☽☾

Krëff se virou de barriga para baixo e tentou rastejar desesperadamente


até a irmã. Sua esperança se esvaía aos poucos. Sentiu que a única opção que
lhe restava era gritar por socorro. No entanto, não importava o quão alto o
príncipe pedia por ajuda, ninguém aparecia. Através do véu esfumaçado, pôde
enxergar que as três ruas estavam cobertas de corpos e sangue, de garnazianos
ou de ornteffs. Seus aliados estavam mortos, desacordados ou sofrendo no
chão...
Ele estava sozinho. Até mesmo o pistoleiro, o besteiro e o ornteff que
liberou Haemï haviam desaparecido pelo Círculo.
Krëff olhou vidrado a rua central, seu pulmão encolhendo à medida que
o monstro se aproximava da estátua. A velocidade com a qual se rastejava

- 153 -
diminuía, como um sinal visível de sua desistência iminente, do desespero
superando a pouca esperança que lhe restava.
A criatura parou abruptamente no momento em que um brado ecoou
pela alameda de casebres. Um grito feminino e rígido... Um grito familiar.
Krëff paralisou.
Mãe?!, pensou ele, incrédulo.
Logo, Osarii, a matriarca dos Ap, apressou-se em direção à filha.
— Haemï! — Ela chamou, parando em frente a ela, encarando-a com
descrença. — O que eles fizeram com você, filha? — A voz trêmula, carregada
de tristeza.
A criatura soltou um gemido enigmático.
— Eu te senti, Haemï... Senti que me chamava. Senti que pedia ajuda.
A matriarca deu alguns passos adiante. Depois de alguns segundos,
continuou:
— Ainda é você, não é...? Esses olhos ainda são seus. Você ainda é a
minha Haemï, não é?
Osarii ficou frente a frente com a criatura, as lágrimas descendo
incessantes pelo seu rosto. Não obtinha respostas que não barulhos bizarros e
sem significado.
A matriarca abriu os braços e puxou Haemï para um abraço apertado,
emocionada. Por mais que não parecesse, Osarii sentiu que abraçava sua filha
de fato, aquela garnaziana divertida e firme com quem compartilhava tanto em
comum. Sua mente foi tomada por lembranças boas, saudades, nostalgia,
tristeza...
— Senti tanto a sua falta, Haemï... — murmurou Osarii, despencando
em lágrimas.
A criatura não correspondeu ao abraço da matriarca. Em vez disso,
ergueu lentamente suas mãos magras e contorcidas, com unhas pontiagudas e
arqueadas. Segurou a cabeça de Osarii, suspendendo-a e forçando-a a encarar
os olhos sinistros do Vazio, que pareciam olhar para dentro de sua Alma,
encontrar Garnaz e sussurrar: “Acabou”.
Osarii estava à mercê da criatura, que ergueu os polegares em direção
aos seus olhos. A matriarca os fechou, amedrontada.
As unhas tocaram suas pálpebras.
O chão tremeu violentamente ao redor deles, e o pavimento se partiu
em pedaços. De repente, quatro grandes troncos emergiram do solo, enrolando-

- 154 -
se em espiral em torno dos corpos de Haemï e Osarii. Os troncos eram de uma
cor clara e brilhavam com uma luminescência rosa em seus sulcos.
Krëff assistiu boquiaberto enquanto aquela estranha árvore crescia
diante de seus olhos. Mais à frente, na rua central, viu seu pai ao lado de um
outro garnaziano.
Myimora estava ferido. O sangue escorria de seu corpo enquanto ele
lutava para se manter de pé, segurando com firmeza as duas espadas que
tremiam em suas mãos.
— PAI! — O príncipe gritou em desespero.
O patriarca olhou através da fumaça. Sentiu seu coração se partir em
mil pedaços ao ver a dor no rosto de seu filho. Ele chegou até Krëff e o ajudou
a se levantar. Sentiu a umidade do sangue do príncipe em seu abdômen.
— Ah! Merda! — exclamou ele, olhando assustado para o ferimento.
O patriarca envolveu o filho em um abraço protetor, lutando para
conter as lágrimas que ameaçavam rolar pelo seu rosto.
— Eu estou bem... — disse Krëff, tomando folego com o amparo do
pai. Ele olhou para a figura adiante, sentindo-se confuso e perplexo. — Quem...
é aquele?
— Lerluh voltou — respondeu o patriarca.
— L-Lerluh? — gaguejou com os olhos arregalados, lacrimantes.
— Não é momento para isso, Krëff. Onde está sua máscara? — quis
saber Myimora.
Krëff sentiu um aperto no peito ao lembrar-se de Canis.
— Eu a perdi — respondeu, quase sem voz.
— Você o quê?!
Um estrondo aterrador irrompeu do âmago da árvore, estilhaçando seus
galhos em todas as direções. Uma chama sinistra, tão escura quanto a própria
noite, surgiu da madeira, consumindo-a desde dentro.
A Vida que pulsava em seus sulcos foi devorada vorazmente, num
frenesi maligno. Em segundos, a árvore que Lerluh havia erguido agora jazia
carbonizada e agonizante. O que restou dela eram apenas brasas ardentes que
voavam pelo ar em direção ao solo, onde a matriarca estava caída, já sem vida,
apossada pelas chamas.
Myimora soltou um grito de dor e desespero ao ver sua amada. A
tristeza e a raiva lapidavam suas feições, mas ele se obrigou a reprimi-las.
Encarando Krëff, perguntou com uma voz fria e trêmula:

- 155 -
— Acha que consegue nos ajudar? — Estendeu o punho de Neirit para
o filho. — Se sim, pegue.
Sem hesitar, Krëff pegou a espada, suas lágrimas cintilando no brilho
púrpura da lâmina.
Lerluh rapidamente bloqueou o caminho da irmã. Myimora correu e fez
o mesmo, apesar de seus ferimentos. Krëff avançou aos solavancos enquanto
pressionava o local baleado, decidido a enfrentar o monstro que Haemï havia
se tornado.
De repende, duas figuras surgiram dos telhados. O pistoleiro e o
besteiro miraram suas armas para os três.
E então, pai e filhos se prepararam para a batalha final, com o coração
pesado pela perda da matriarca e o desejo de vingança em seus corações.

- 156 -
☽ Capítulo X ☾
Ruínas

“Ao fim de tudo, restam apenas as ruínas, silenciosas testemunhas


do que já foi e do que poderia ter sido...”

Tábua Fygi encontrada num riacho em Kab’latul.

A S LUAS GÊMEAS BRILHAVAM INTENSAMENTE


SOBRE O CAMPO DE BATALHA , iluminando a
carnificina que o Círculo de Garnaz havia se tornado,
banhando a fumaça e a poeira em um branco-azulado quase sobrenatural.
Entre os corpos e o sangue espalhados pelo chão, os guerreiros restantes
se encaravam com as mãos trêmulas sobre suas armas, anestesiados pela
adrenalina que os mantinha em alerta. O silêncio tenso foi interrompido quando
Lerluh se virou para a estátua e fez um gesto, suspensando seus dedos. De
repente, aqueles troncos desconhecidos ergueram-se do solo, cingindo a estátua
com uma barreira impenetrável.
— Você não vai tocar nela — murmurou Lerluh com uma voz em
demasia calma.
Haemï se agitou e soltou estalos bizarros. Sua tez se aflorou com
tentáculos e formas pontiagudas.
De repente, algo refletiu na visão de Krëff. O rapaz olhou para a espada
que tinha em mãos: o brilho de Neirit havia ficado ainda mais intenso com a
enervação da irmã. Tomado por uma súbita confiança, ele golpeou na direção
da criatura.
Mas Haemï facilmente desviou do ataque e, em seguida, lançou um
longo espinho negro em direção ao rosto do garnaziano. No entanto, uma

- 157 -
parede de madeira natural surgiu e impediu que ele fosse atingido. O espinho
desmanchou-se, escorrendo pelos sulcos do tronco, manchando-o.
— Krëff. Myimora. Afastem-se — ordenou Lerluh com firmeza.
A criatura berrou detrás da parede, enfurecida. Em pouco tempo,
escalou a barreira e ficou de pé sobre ela. Encarou Lerluh com seus inúmeros
olhos, enquanto dezenas de tentáculos surgiam em sua pele, grandes e
pontiagudos como espadas e lanças. Sem hesitar, Haemï saltou para cima de
Lerluh, ensandecida.
No instante que a princesa dos Ap começou o embate com o irmão,
Myimora correu para cima dos ornteffs. Krëff, pego de surpresa, fez o mesmo
após um breve momento de hesitação.
O pistoleiro apontou sua arma na direção de Myimora e disparou, mas
a espessa fumaça obscureceu sua visão, fazendo com que a bala atingisse o
chão em vez do alvo.
Krëff avançou rapidamente, balançando Neirit em um arco mortal em
direção ao rosto do atirador, que conseguiu se desviar no último segundo e caiu
de bruços no chão. O metal da espada chocou-se violentamente contra as
pedras, gerando um estrondo agudo e um chuveiro de faíscas cintilantes.
Krëff olhou para o pai. Myimora retirava um virote do ombro e
caminhava raivoso para cima do besteiro. O patriarca estava maior e mais
musculoso do que jamais havia visto, suas marcas pelo corpo brilhavam em um
roxo intenso. O besteiro, em pânico, tentava recarregar sua arma, mas seus
dedos se embolavam nos mecanismos e seus pés trepidavam no chão irregular.
— Presta atenção, imbecil! — rugiu o pistoleiro, chutando o rosto do
príncipe com força.
Krëff cambaleou e caiu para o lado quando foi acertado. Enquanto
tentava se reerguer, o ornteff engatilhou a pistola. No entanto, antes que ele
conseguisse apertar o gatilho, o garnaziano chutou com força as pernas finas
da coruja, derrubando-a sem dificuldades. Quando o corpo dela desabou no
chão, a pistola disparou, acertando o solo com um estalo seco.
O príncipe pontapeou as mãos do atirador, tentando desarmá-lo. Quanto
maior era a força que fazia, mais sangue jorrava do ponto baleado. Para Krëff,
a dor era um alerta de que aquela coruja não podia sequer mirar a arma para ele
outra vez; seria fatal, não importasse o local que ele fosse atingido.

- 158 -
O ornteff tomou impulso para se sentar e tentou acertar Krëff com a
pistola. O cano da arma atingiu em cheio o rosto príncipe, que sentiu um filete
morno começar a escorrer do nariz para seus lábios.
Cego pela dor lancinante que o consumia, Krëff balançou Neirit para
frente. Infelizmente, não atingiu nada além da fumaça. Então, quando enfim
conseguiu abrir os olhos, seu coração gelou ao ver o ornteff recarregando a
arma letal.
Com um impulso quase sobrenatural, Krëff lançou-se para cima da
coruja e a agarrou. Ambos despencaram sobre as pedras irregulares. Fora de sí,
o príncipe encarou os olhos assustados do ornteff e agarrou sua cabeça.
Ofegava de medo, de ódio.
Krëff reuniu todos os seus sentimentos em um grito. Ele segurou a
cabeça do pistoleiro com as duas mãos e a ergueu. Sem hesitar, começou a
batê-la contra o pavimento com a maior força que pôde. De novo, e de novo, e
de novo, sem parar de gritar e de chorar; até o sangue roxo da coruja fluir com
abundância; até seus olhos se fecharem; até que ela parasse de se debater.
O pistoleiro morreu. E depois, Krëff largou seu corpo e se levantou,
ofegante, voltando a sentir a dor em seu abdómen. Mais sangue jorrava devido
à força que fizera.
Adiante, além do véu escuro, o príncipe viu a palidez da lâmina de Syod
cortar o ar de baixo para cima, lançando para o alto dezenas de gotas de sangue
púrpura. Krëff correu para ajudar o pai, mesmo que fosse evidente que
Myimora não precisava de ajuda. Ao se aproximar, avistou o patriarca chutar
o besteiro e o derrubar no chão. A coruja, atônita, olhou com temor para os
garnazianos, evidenciando um longo e recente corte horizontal em seu olho
esquerdo.
Myimora voltou-se para o filho.
— Você lidou com o outro, não foi?! Matou ele? — quis saber,
ofegante.
O príncipe assentiu com a cabeça, tentando conter a respiração e a dor
em seu abdômen. O pai sorriu e lhe bagunçou o cabelo, expressando seu
orgulho em silêncio.
— Sinto muito... — murmurou o cara-de-coruja caído, arfante.
Os Ap o encararam. Myimora deu alguns passos em sua direção.
— Como é...? — entoou, irritando-se. — Sente muito? — Em seguida,
ajoelhou-se ao lado da coruja. — Se eu achasse que vocês realmente sentem

- 159 -
algum remorso ou compaixão, até poderia acreditar. Mas vocês são monstros,
são repugnantes. O jeito mais cruel que eu pudesse matá-los ainda seria um ato
de bondade.
— Não, eu... falo a verdade — insistiu o ornteff. Deitou-se por
completo, ficando à mercê dos Ap. — Eu me arrependo...
Myimora ficou em silêncio por um tempo, olhando para ele com uma
expressão sombria e intolerante. Em seguida, se levantou e virou para Krëff.
— Mate-o — disse com uma voz séria e grave.
O príncipe deu alguns passos para frente.
No entanto, em um instante, a ornteff com o leque surgiu entre Krëff e
o besteiro, levantando o objeto ainda fechado em frente ao rosto.
A coruja encarou os garnazianos por alguns segundos. O ar encheu-se
de tensão em sua presença.
— Vamos embora, Drova — sussurou ela para o amigo moribundo,
ainda sem tirar os olhos dos Ap.
Krëff e Myimora estenderam as irmãs cortantes. A coruja riu baixo.
Ela abriu o leque e girou-o com destreza, expondo outro símbolo em
suas folhas. O desenho também pulsava em tons amarronzados, hipnotizando
os garnazianos diante dela.
Instantaneamente, pai e filho sentiram seus músculos retesarem com
violência, deixando-os incapazes de se mover. Tudo ao redor parecia estar
suspenso no tempo, enquanto a figura misteriosa se mantinha imóvel,
observando-os com um misto de malícia e prazer. O ambiente estava
mergulhado em uma escuridão que parecia absorver qualquer luz, tornando o
ar pesado e denso. A atmosfera parecia congelar, prenunciando um destino
incerto e perigoso.
A ornteff soltou um som estridente, que retumbou pelo átrio destruído
e tardou a sumir. De repente, pios pareceram se multiplicar além da fumaça,
anunciando a aproximação de algo. Em poucos instantes, uma nuvem de caras-
de-coruja cruzou a cortina de fumaça, se juntando à líder. As aves estavam
armadas com arcos, bestas, zarabatanas e espadas.
— Sim, senhora! — disseram quase em uníssono.
Um ar de tensão permeava o ambiente enquanto a coruja com o leque
dava ordens aos seus companheiros, indicando quem deveria ficar ou partir.
Ela apontou para três caras-de-coruja e ordenou que levassem Drova, enquanto
outras três foram instruídas a carregar Krëff e levá-lo com elas.

- 160 -
— E o maior? — perguntaram os subordinados. — Não o levaremos?
— Ele é muito pesado. E estamos sem tempo. — Enfim, olhou para
onde Lerluh e Haemï se enfrentavam e disse: — O resto! Vocês já sabem o que
fazer.
Os ornteffs assentiram prontamente e partiram na direção de Lerluh.
A coruja com o leque chegou mais perto de Myimora. O patriarca
tentava desesperadamente mover-se, mas sem sucesso. Seus olhos seguiram
cada passo da coruja conforme ela se aproximava num caminhar sensual e
descontraído.
— O que houve, grandão? Quer me xingar? Me bater? Não é nada
pessoal, um dia eu te pego também.
Ela se juntou aos ornteffs que levavam Krëff consigo e desapareceu
atrás das moitas, deixando Myimora para trás.
O patriarca permaneceu paralisado, sem conseguir mover um músculo
sequer. Seu peito parecia congelado, enquanto um misto de tristeza e raiva o
invadia. Lágrimas grossas e quentes escorriam pelo seu rosto, manchando-o
com marcas de sofrimento. A cada gota salgada que caía, Myimora sentia como
se uma parte de si estivesse se despedaçando, deixando um oco insuportável
em seu coração.

☽☾

Dezenas de tentáculos pontiagudos tentavam atingir Lerluh a todo


momento. O garnaziano se esquivava de um jeito ágil e habilidoso, saltando e
agachando, girando e, por vezes, criando galhos e árvores para se defender. O
chão se tingia de preto à medida que as tentativas de Haemï falhavam; seus
tentáculos se desmanchavam até virarem um espesso lodo negro, que
estranhamente se movia com sucintos espasmos, buscando perseguir seu alvo
ou retornar à criatura, como se houvessem uma vida própria.
Haemï parecia ficar ainda mais irritada conforme o irmão desviava dos
seus golpes. Os olhos por todo seu corpo deixaram de olhar para Lerluh e
passaram a se mover com velocidade em direções aleatórias. Aos poucos, sua
pele se aflorou na forma de infinitas agulhas negras.

- 161 -
Lerluh fez um gesto conciso com os dedos, criando uma espiral de
troncos ao redor da criatura.
— Gosta de espinhos, irmã? — perguntou ele, apontando com ambas
as mãos para a forma que havia criado. Então, lentamente cerrou os punhos.
A criatura berrou enquanto era perfurada pelos espinhos que Lerluh
criava. Mas, mesmo com o corpo sendo retalhado, a besta ainda lutava. Em um
movimento surpreendente, um tentáculo se contorceu para fora do tronco e
avançou com ferocidade na direção do garnaziano.
Lerluh rapidamente levantou a mão que continha o estranho cristal
cravado para se defender do ataque. O tentáculo, ao se chocar com ele, não
parou, tampouco o quebrou. Na verdade, entrou nele, como se o cristal fosse
uma miniatura bizarra de um portal.
Após algum tempo, Haemï recolheu o tentáculo e explodiu em uma
tormenta de chamas negras, que consumiram tudo ao seu redor. O tronco da
árvore que a circundava foi carbonizado em questão de segundos, enquanto as
chamas dançavam em torno de Haemï, dando-lhe um ar ainda mais ameaçador.
Lerluh ergueu uma das mãos com rapidez. E então, um enorme espinho
curvado surgiu onde Haemï estava, rasgando o ar esfumaçado e criando uma
breve chuva de pedras. No entanto, Lerluh escutou os murmúrios bizarros da
criatura à sua esquerda, e se virou para olhar.
Haemï havia escapado. Estava de pé, vibrando os olhos enquanto
preparava mais um golpe.
De repente, um grito agudo atroou pelo local, vindo de não muito
distante, mais à frente, onde seu irmão e seu pai lutavam. Em seguida, dezenas
de pios de corujas acompanharam, até que se tornaram quase um só.
Eles... estão em peri...!
Haemï se lançou ferozmente contra o irmão, suas unhas expostas como
lâminas mortais. Lerluh mal teve tempo de reagir; as garras de sua irmã
rasgaram seu peito com um golpe cruel. O sangue esmeralda jorrou, salpicando
o chão enquanto o choque da dor o deixava ofegante. Lerluh olhou para sua
irmã, agora com uma expressão de fúria em seu rosto.
— Chega... — murmurou com uma voz fria e dura.
O ar ficou tenso enquanto Lerluh encarava Haemï com olhos faiscantes.
Ele sentiu a fúria subir em seu peito. O garnaziano esticou o braço e tentou
agarrar a cabeça da criatura, mas ela saltou para trás com agilidade, tomando
poucos metros de distância. Determinado, Lerluh ergueu ambas as mãos,

- 162 -
fazendo surgir dois longos e retorcidos galhos dos flancos de Haemï. Com um
sucinto movimento circular, os galhos partiram em direção à criatura,
enrolando-se em seus braços e suspendendo-a com facilidade.
Lerluh encarou a irmã, que se debatia em frenesi, desesperada para
escapar dos galhos. Notou que mais formas pontiagudas se assomavam em sua
pele. Então, decidiu acabar logo com aquilo.
O garnaziano abriu os braços com elegância, deixando a essência de
Vida correr pelo seu corpo. Com um movimento fluido, as palmas das mãos se
voltaram para cima, e a tensão se concentrou em seus dedos. Em um instante,
dois troncos robustos e afiados se ergueram do solo, apontando diretamente
para o céu como lanças prestes a serem lançadas.
— Adeus, irmã... — murmurou, levando as mãos para frente do corpo
com rapidez.
No mesmo instante, os dois troncos se projetaram na direção da criatura
em sinuosidade, entrelaçando-se em espiral. Em poucos segundos, o tronco já
trespassava o abdômen de Haemï, fazendo a criatura berrar e se debater em
agonia.
Aos poucos, os gritos foram diminuindo, dando lugar à baixos e
bizarros roncos. A criatura passou a socar desesperadamente o tronco que a
atravessava, tentando se soltar. Os olhos incontáveis vidrados na estatua
protegida; pulsavam, tremiam, mas não piscavam sequer uma vez.
Segundos depois, um silêncio gélido inundou o átrio inteiro, sobrando
apenas o som persistente do pingar do líquido negro que envolvia o corpo de
Haemï, batendo no chão em um ritmo funesto. O barulho parecia ecoar mais
alto que o normal.
— Você é bem resistente, não é? — disse um Lerluh despreocupado,
preparando um último golpe. — Está sofrendo? Ainda sente algo, Haemï? —
indagou com curiosidade.
A criatura ignorava o irmão; soltava um som úmido, nojento.
— Entendo... — Bufou. — Espero que descanse.
Inesperadamente, as patas das corujas ecoaram contra o pavimento e os
telhados dos casebres circundantes. Eram dezenam delas, brandindo armas de
longo alcance apontadas resolutas para o ser pelo qual vieram. A lâmina de
suas flechas exalava um líquido escuro ou era envolta por uma fraca chama
negra.
— ATIREM!!! — bradaram os ornteffs uns para os outros.

- 163 -
E então, uma tormenta de flechas amaldiçoadas voou para cima de
Lerluh, delineando uma trajetória arqueada.
O garnaziano lutava para desviar das flechas que zuniam no ar, mas a
tempestade de projéteis era implacável. Era possível ouvir o som cortante que
os virotes, dardos e flechas produziam quando passavam próximos ao seu
ouvido, como se rasgassem o ar em duas partes. O barulho se multiplicou em
eco quando os projéteis atingiram o chão ou as paredes próximas, produzindo
um ruído metálico e seco.
Mas Lerluh não conseguiria desviar para sempre. Em pouco tempo, os
projéteis perfuraram sua carne; atingiram suas costas, seus braços e suas
pernas, com as maldições deles intensificando a dor e impossibilitando que
Lerluh contra-atacasse. A agonia era insuportável e, a cada novo impacto, um
gemido de agonia escapava dos lábios do garnaziano. Seus movimentos se
tornaram lentos e desajeitados, sua resistência diminuía a cada segundo.
Finalmente, ele caiu no chão, banhado em seu próprio sangue esmeralda,
incapaz de se levantar.
— AGORA! — gritaram os caras-de-coruja. — PEGUEM ELE!
Lerluh foi perdendo a consciência aos poucos. Os passos dos ornteffs
se aproximando retiniam dentro de sua mente.
E então, de súbito, uma voz feminina rompeu pelo pátio:
— Me entristece vê-lo ferido assim, Lerluh, minha criança...
— Que porra é essa? — alertaram-se as corujas. — Quem disse isso?!
O garnaziano tentou abrir os olhos, mas tudo que pôde ver eram os
borrões dos ornteffs assustados, manchas turvas e vultos sombrios. Com a
última força que conseguiu reunir, ele sussurrou com a voz trêmula:
— Marda...
Um estrondo ensurdecedor ecoou por toda a área, seguido por uma
erupção de espinhos afiados emergindo do solo e perfurando as corujas uma a
uma. A última coisa que Lerluh sentiu antes de desmaiar foram os respingos
da chuva de sangue das corujas.

☽☾

- 164 -
Uma nuvem de penas e sangue irrompeu em torno de Lerluh. Haemï,
impassível, olhou para a cena e viu a mulher que havia aparecido se
aproximando do círculo de espinhos que haviam empalado as corujas. Era uma
humana, com uma pele escura e cabelos castanhos cacheados que caíam
suavemente sobre seus ombros. Seus olhos pulsavam em um forte tom de rosa
enquanto ela fitava a antiga princesa com uma expressão calma e suave.
A mulher se agachou e segurou Lerluh em seus braços. Em seguida,
voltou a olhar para a criatura com um sorriso doce no rosto. No mesmo instante,
Haemï sentiu que os galhos começaram a desintegrar gradualmente, sumindo
em pleno ar e se transformando em uma infinidade de pontos brancos, que logo
se misturaram com a fumaça circundante. As corujas empaladas caíram inertes
no solo quando os espinhos também desvaneceram.
Então, a humana girou sobre os calcanhares e caminhou tranquilamente
com Lerluh para além das moitas. E assim que a mulher sumiu, Haemï voltou
os olhos para a estátua, que agora estava desprotegida.
E não havia mais ninguém em seu caminho.
Apesar da dor cruciante que a acometia, Haemï rastejou em frente,
cravando suas unhas nos espaços do pavimento e deixando para trás um rastro
daquele espesso líquido negro. Finalmente, chegou ao pé da estátua e fixou
seus incontáveis olhos obcecados na superfície de mármore.
— Não! MERDA! — Escutou gritarem.
Mas, sem hesitar, Haemï tocou a escultura.
No mesmo instante, a massa negra que envolvia seu corpo transferiu-se
para a estátua de Garnaz. Sua pele voltou a ser cinza, seu corpo, controlável.
Em um breve momento de lucidez, a antiga princesa dos Ap contemplou a dor
que emanava de sua barriga perfurada. Ela caiu para trás, observando aos
poucos o céu azul transformar-se em negro, o domo invisível que demarcava o
Círculo tingir-se de preto e o Vazio devorar pouco a pouco o que antes fora o
lar dos garnazianos. Antes de exalar seu último suspiro, restou a Haemï uma
última lágrima. Enquanto seus olhos se fechavam lentamente e o líquido
salgado escorria-lhe pelas bochechas, ela repetia em sua cabeça as palavras:
Me... desculpem...
Me... desculpem...
Me... desculpem...

- 165 -
II

Myimora sentiu que podia enfim mover-se.


Ao erguer os olhos, vislumbrou o Círculo de Garnaz sendo devorado
pelo próprio Vazio. Uma massa negra crescia e corroía um domo invisível,
expondo todos os garnazianos ao mundo exterior. Um arrepio gélido percorreu
a espinha do patriarca, enquanto uma tristeza avassaladora aos poucos invadia
o seu cerne, corrompendo sua existência. Era como se o próprio universo
estivesse se desfazendo diante de seus olhos, o seu universo, o seu lar,
deixando-o completamente impotente, à mercê.
No interior de sua Alma, agora exígua e fraca, algo despertou. Um nada
insuportável, que crescia a cada segundo; como um tumor, incomodando-o, lhe
fornecendo uma sensação de vazio crescente.
— PATRIARCA! — gritou alguém atrás dele.
Myimora se virou com dificuldade, tentando enxergar através da
espessa nuvem de fumaça que envolvia tudo ao redor. Gradualmente, uma
figura indistinta emergiu da escuridão: um civil desesperado, que segurava
diante do corpo um punhado de colares com uma miúda joia em seus pingentes.
O coração do patriarca se apertou ao reconhecer aqueles objetos;
continham a fonte vital de sua raça: a Alma de Garnaz. Em seguida, ele olhou
ao redor. Lutou para manter a voz firme enquanto repetia:
— Isso não é possível. Não está acontecendo. Não... — Sua voz falhou.
— Vamos, patriarca! — ofereceu o civil, interrompendo a negação do
outro. — Pegue. Rápido!
Myimora pegou o cristal, seus olhos fixos na estátua destruída. Sem
pestanegar, colocou-o em seu pescoço. Sentiu um calor reconfortante se
espalhar por todo o corpo, como se finalmente estivesse completo novamente.
A sensação de vazio cessou.
— Aqui! — continuou o garnaziano. — Leve mais um.
— Quantos cristais nós temos ao todo? — indagou rapidamente o Ap,
recolhendo o outro colar com as mãos trêmulas.
O civil respirou fundo, lutando para conter as lágrimas que ameaçavam
inundar seus olhos. Por fim, a voz saiu rouca:

- 166 -
— Apenas vinte... — Ele olhou em direção à estátua destruída e ficou
em silêncio.
O coração do patriarca pareceu parar por um momento, enquanto uma
onda de pânico e desespero o atingia em cheio. Ofegante, Myimora sentiu seus
ouvidos zumbindo, como se tudo ao seu redor tivesse se tornado distante e sem
sentido. Vinte cristais, pensou, desacreditado. Só restarão vinte...
Myimora foi trazido de volta à realidade quando o civil murmurou, com
a voz trêmula:
— Vimos quando aquela... coisa entrou. Foi desesperador. — Ele
balançou os braços. — Gritamos por ajuda e corremos direto para o depósito
de cristais, imaginando o pior. Temendo que, se a estátua realmente fosse
destruída, seríamos extintos!
— Vocês, quem?
O civil apontou para além da fumaça.
— Eu, dois Werg e três Tirhaô. — O rapaz disse, ofegante. Franziu o
cenho e tentou olhar além da fumaça. — Eles estavam muito pessimistas.
Diziam que não tinhamos chance contra... aquilo. Contra eles! — A voz do
civil tremia enquanto ele falava, seu tom aumentando de intensidade com cada
palavra proferida. O medo e a frustração eram palpáveis em sua expressão, seus
olhos implorando por uma resposta que talvez nunca chegasse.
— Entendo... — murmurou o Ap. — Só... tente se acalmar.
— Por que, patriarca? — Myimora podia sentir a angústia do jovem.
— Por que os ornteffs querem nos destruir? O que eles têm contra nós?!
O silêncio pesado envolvia Myimora enquanto ele encarava o chão com
um misto de raiva e decepção. Quieto, deu alguns passos adiante.
— Onde está Okash? — suspirou o patriarca após um tempo.
— Eu... não sei.
— Irão distribuir os cristais que pegaram?
— S-sim. Com certeza! Caso queira ajudar...
— Quero que pensem no que será melhor para os sobreviventes —
interrompeu-o o patriarca.
— O-O quê?!
— Entendo o quão difícil possa ser abandonar um parente, alguém
próximo; vê-lo morrer na sua frente por uma escolha sua. Mas peço que pensem
bem antes de entregar o cristal para qualquer um ou a alguém que seja
importante para você... Perguntem-se se aquele garnaziano será útil. Se não é

- 167 -
agora, perguntem-se se ele será um dia — continuou a andar. — Até se será
mais útil que algum de vocês — finalizou com voz peremptória.
Myimora partiu em disparada pela cidade em chamas, atravessando
ruelas estreitas ladeadas por casebres avariados, cujas chamas já cintilavam um
pouco mais fracas. O ar estava impregnado com o fedor da fumaça e do sangue
que escorria dos corpos que jaziam no chão. Os gemidos agonizantes de
garnazianos moribundos podiam ser ouvidos ao longo do caminho; estendiam
os braços suplicando por ajuda, pelo cristal vital ou até mesmo por um golpe
final misericordioso. Mas Myimora ignorava a todos, sua visão embaçada pela
raiva, pela tristeza e pelo desespero enquanto corria, fingindo não ver e não
ouvir, buscando desesperadamente por seu filho perdido.
Corria como um louco, desviando dos destroços e escombros que
bloqueavam o caminho, seus pés pisando no sangue e nos corpos sem vida. A
cada passo, sentia seu coração bater mais forte em seu peito. Enfim, chegou em
um cruzamento, e por um instante, parou.
Myimora inspirou profundamente, sentindo o ar inflar seus pulmões
enquanto se preparava para gritar com todas as suas forças. Sua voz rasgou a
noite, um chamado desesperado pelo nome do filho que restara. O gosto
metálico do sangue invadiu sua boca, escapando de sua garganta vibrante
juntamente com o grito agonizante. Ele cuspiu, mas não desistiu. Inspirou
novamente e soltou outro grito, mais alto e penetrante, retumbando pelas ruas
vazias da cidade em ruínas.
Passos apressados se aproximaram da direita, fazendo Myimora virar-
se bruscamente para encarar a recém-chegada. Era a matriarca dos Kihr, e ela
carregava Nahla, sua filha, nos braços. Ao lado delas, Myimora avistou Okash.
No instante que o rapaz viu o pai, ele correu.
Myimora abraçou Okash com força, sentindo o coração se acalmar ao
finalmente ter o filho em seus braços novamente. Lágrimas rolaram pelos olhos
do patriarca enquanto ele olhava para o rosto do rapaz.
— Pai, eu... estou me sentindo estranho... — admitiu Okash.
— Está tudo bem, filho. Vai ficar tudo bem. — Com cuidado, ele
colocou o cristal de Garnaz no pescoço do pequeno, sentindo a Alma de Garnaz
pulsar através do objeto e se espalhar pelo corpo de Okash, contendo o Vazio
surgente.
Reda Kihr aos poucos chegou mais perto, chorando e ofegando. Seu
semblante estava abatido e seu corpo trêmulo. Ela estendeu Nahla para

- 168 -
Myimora. Seus olhos, que logo se fixaram no cristal que o Ap dependurava
sobre o tronco, transbordavam um diminuto resquício de esperança.
— P-Por favor... M-Minha filha v-vai... — Reda gaguejou, mal
conseguindo falar.
— Vá até a estátua — sibilou o Ap, inflexível. — Se houver algum
cristal sobrando, com certeza lhe darão.
— Eu te trouxe seu filho... — sussurrou Reda, a voz carregada,
incrédula.
Myimora olhou nos olhos da outra, sentindo-se péssimo. Ficou quieto
por um tempo.
— Obrigado...
A matriarca derramou ainda mais lágrimas e correu para o centro.
Deixando os Ap para trás.
Okash viu a amiga desacordada sendo carregada pelos braços da mãe.
Olhou para seu pai, sem entender muito, e perguntou:
— Ela vai ficar bem, não é?
Sem dizer nada, o patriarca voltou a abraçar o filho.

☽ Cerca de uma hora depois ☾

Trisa despertou com uma leve dor de cabeça e abriu os olhos com
dificuldade. A fumaça negra havia se dissipado um pouco, revelando os
casebres carbonizados, tingidos de preto fosco. Ao seu lado, Raashinari
respirava ofegante e segurava sua mão desfigurada, cantarolando uma canção,
que era acompanhada por um choro afinado. Assim como o braço direito da
humana, o membro ferido do osoren estava envolto em uma fina aura
amarelada.
No mesmo instante que Trisa viu o ferimento do rapaz, ela
imediatamente verificou o próprio corpo. Embora o corte em seu tórax ainda
estivesse aberto, a humana não sentia nenhuma dor. Seu braço direito também
exibia várias lacerações e estava escurecido, mas não havia sangramento ou
desconforto. A cobertura amarela aparentava agir como um anestésico local.

- 169 -
— Raashi! — chamou a humana, finalmente se sentando.
— Ah, você acordou... — suspirou o osoren, aliviado. — Que bom.
Com um olhar apreensivo, Trisa vasculhou a área ao seu redor. Estava
tudo muito vazio. As ruas, mesmo com os matizes de esmeralda e roxo
fornecidos pelo sangue, não havia corpos caídos pelo chão. Entre os escombros
e as ruínas, somente o pó e as chamas brandas permaneciam. A fuligem
desenhava caminhos caóticos, levada pelo vento noturno. Nos pavimentos,
somente corpos de não-garnazianos jaziam.
— O que houve? — indagou a humana. — Por que está tão... deserto?
Raashinari tossiu devido à fumaça de outrora.
— Eu vi pouco... — começou o jovem. — Só ouvi gritos, sofrimento.
Depois, escutei passos e berros: “Juntem os corpos!”, diziam. “Juntem antes
que seja tarde demais.” — O rapaz se sentou. — E então, tudo ficou preto...
Trisa avistou Chamuc desmaiado mais adiante. Kōoja, retorcido,
repousava no mesmo lugar de antes. Ao longe, onde havia a estátua de Garnaz,
viu dezenas de buracos espalhados pelo solo de pedras irregulares. Ainda na
direção da rua central, mais à fundo no Círculo, notou uma densa fumaceira se
erguendo acima dos casebres destruídos, chegando ao céu estrelado.
— Onde está Krëff? — perguntou Trisa abruptamente.
— Eu não faço ideia.
A humana sentiu o peito se contrair de leve. Um pensamento sombrio
invadiu sua mente: Krëff estava morto. No entanto, ela o reprimiu e forçou um
otimismo que não lhe parecia verdadeiro.
De repente, as moitas logo ao lado se agitaram. Um sagui conhecido
saltou para fora, carregando um crânio nos braços.
— Chinti! — alegrou-se o jovem osoren.
Quando se aproximou, o sagui largou Oman e pulou para o colo do
amigo, abraçando-o com carinho. Ao notar o estado da mão de Raashinari,
Chinti ficou visivelmente preocupado e soltou um assobio aflito.
— Isso?! Ah, não é nada, Chin... — Raashinari tentou acalmá-lo.
O sagui entoou outro longo assobio.
— Péssimo está você! Eu estou ótimo!
Sem dizer nada, Trisa se virou e caminhou para a rua central.
— Ei! Gatinha! — chamou Oman. — Me tira daqui. Esses caras estão
me dando nos nervos.
A mulher o ignorou.

- 170 -
— Gatinha? — O velho tentou de novo.
Trisa continuou a andar, imaginando as cenas que haviam se
desenrolado naquelas ruínas enquanto ela estivera inconsciente. Refletia sobre
qual caminho seu amigo teria tomado. Havia fugido? Estaria morto? De
qualquer maneira, nenhuma das respostas que vinham à sua mente parecia ser
boa.
— Krëff! — chamou. Sua voz atroou pelo Círculo.
Poucos passos adiante, Trisa avistou uma pequena bolsa caída no chão.
Ela hesitou por um momento, analisando o objeto com cautela antes de se
aproximar e, finalmente, agachar-se para pegá-la. Quando a pegou, sentiu um
peso leve em sua mão, semelhante ao de uma pedra.
A bolsa de Krëff, refletiu. Seu coração novamente se apertando em
angústia. Mais uma vez, conteve o desespero. Ele estava bem. Sabia que estava.
Com a respiração um pouco mais acelerada, ergueu a bolsa próxima ao
rosto, mordeu e puxou sua amarra, facilmente desatando-a. Com um
movimento hesitante, ela virou a bolsa e deixou a gema cair no chão de pedra.
O som do impacto rompeu o silêncio das ruínas, enquanto a joia rolava alguns
centímetros, refletindo a luz das estrelas. A humana se agachou e pegou o
objeto.
Quando tocou a joia, Trisa percebeu que ela brilhou um pouco mais
forte, atraindo imediatamente seus olhos lacrimosos. Ao olhar para a superfície
cristalina, a mulher ficou um tanto confusa, tentando entender a cena que se
desenrolava ali.
A joia mostrava o ponto de vista de alguém baixo caminhando entre
árvores secas e retorcidas, e a cada passo dado, a imagem se agitava. Até então,
a única coisa que conseguia ouvir eram sons baixos vindos de sua mente, como
o vento soprando e o cascalho sendo pisado, originados pela pedra a qual
segurava. No entanto, de repente, uma voz feminina ecoou, sobressaindo-se a
todas as outras sonoridades.
“Eu acho que estamos perto.”
O coração da humana acelerou.
Era a voz dela. A voz de Trisa.
— Que porra é essa? — Deixou escapar.
Trisa se viu inundada de dúvidas. Seria possível que aquela fosse a sua
voz? O que isso significava? Não tirou os olhos da pedra, curiosa para ver o
quanto ela iria contá-la. Porém, de súbito, a cena desvaneceu, dando lugar à um

- 171 -
azul meia-noite inquietante e sombrio. A humana passou alguns segundos
olhando para o objeto, refletindo.
Desconcertada, a mulher levantou o rosto e observou a fumaça negra
que se erguia no horizonte, além dos casebres. Seus olhos acompanharam a
coluna de fumaça enquanto ela se dissipava pelo ar. Sem pensar duas vezes,
partiu em direção ao local.
Trisa caminhava em meio à destruição, sua mente ainda presa na cena
que a gema havia revelado. O silêncio pesado que pairava sobre os arredores
era quebrado de tempos em tempos pela voz trêmula da humana, que chamava
pelo amigo. Ela buscava pistas, qualquer sinal que pudesse indicar o paradeiro
do companheiro. Cada passo era dado com cuidado, evitando os escombros e
destroços que obstruíam seu caminho. As ruas vazias estavam agora imersas
em sombras e fumaça, como se a cidade tivesse sido engolida pela escuridão,
como se estivesse morta.
Ele deve estar lá, na fumaça..., pensou ela, tentando convencer a si
mesma de que tudo estava bem.
É uma fogueira, estão todos lá... E estão bem! acrescentou, sua mente
se esforçando para encontrar algum alento.
Ao dobrar a última rua, os olhos de Trisa se fixaram em um grupo de
garnazianos que se encontravam parados no local. Alguns estavam sentados no
chão, enquanto outros permaneciam de pé. No entanto, todos eles
compartilhavam um olhar em comum: direcionado para um enorme amontoado
de troncos e raízes, dos quais subia a densa fumaça e as chamas que tanto
haviam chamado sua atenção.
Enquanto se aproximava, os lamentos e murmúrios dos sobreviventes
se misturavam ao crepitar das chamas e ao estalar da madeira em combustão.
A humana se perguntava angustiada sobre o que estaria queimando dentro
daquele monte de troncos.
Trisa avistou Myimora, que estava ao lado de um humano alto e
elegante, com uma coroa de platina suntuosa e minimalista repousando na
cabeça. A pele negra do estranho realçava os filetes dourados em suas
bochechas, criando um contraste belíssimo. Os dois homens pareciam em plena
conversa quando a humana se aproximou sem hesitação. O silêncio pesado e
misterioso que se seguiu fez a jovem se sentir acanhada diante dos olhares fixos
e sérios. Foi então que Myimora, com uma expressão monótona, murmurou:

- 172 -
— Achei que tinha morrido, garota. — Seu tom não denotava
preocupação alguma.
— Krëff! Onde ele está?! — disse Trisa, sem rodeios.
O patriarca prendeu os olhos nela por um tempo. Fez um silêncio breve,
que para a humana durara uma eternidade.
— Bem — começou o rei de Zirgut, quebrando a quietude —, acho que
já vou indo. — O homem suspirou e deu dois tapas no ombro do garnaziano.
— Nos vemos em breve, Myimora... Sinto muito por... — O rei olhou para as
chamas, esboçando tristeza. — Por tudo isso... Lembre-se, ajudarei no que
precisar...
— ...se estiver ao seu alcance — interrompeu-o o patriarca. — Vou me
lembrar.
O rei comprimiu os lábios e, visivelmente abatido, deu as costas para
os dois. Em silêncio, ele seguiu em direção à rua, enquanto Trisa o acompanhou
sem expressar qualquer emoção em seu rosto, distante e impenetrável.
— O que você quer? — inquiriu o patriarca, chamando a atenção da
mulher.
— Só quero saber onde está o seu filho... Não sei se lembra de mim. Eu
sou amiga dele.
— Entendo... — Os quatro olhos do patriarca prenderam-se às
labaredas.
A resposta não veio, apenas um silêncio pesado pairava sobre o
ambiente. Trisa observava quieta o garnaziano, sem conseguir decifrar sua
expressão. As chamas crepitavam, dançando ao sabor do vento noturno. Era
como se o fogo estivesse consumindo as emoções dos sobreviventes, deixando
a eles saudades do passado e a mercê de futuro incerto e apavorante.
— Ele está vivo?! — Trisa tentou de novo, aumentando a voz.
— As corujas o levaram — respondeu Myimora, categórico.
Ao ouvir a notícia, Trisa sentiu a pressão em seu peito se intensificar.
Sua respiração tornou-se ofegante. Uma onda de tontura a invadiu, e as
lágrimas começaram a rolar por suas bochechas. Com dificuldade para se
manter de pé, ela acabou se sentando no chão, fechando os olhos e buscando
acalmar-se, levando as mãos trêmulas ao rosto. Em meio à delírios, sussurrava
sem respiro:
— O que eu faço? Estou sozinha. Eu estou com medo. Para onde vou?
Eu vou morrer!

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Myimora permaneceu imóvel, fixando o olhar nas chamas dançantes da
fogueira, ignorando a crise da humana. Os murmúrios repetitivos de Trisa se
transformaram em um lamento incontrolável, reverberando pelo ambiente,
misturando-se aos dos demais garnazianos. Myimora podia sentir a agonia e o
medo emanando dela, mas permaneceu impassível, alheio à situação.
Depois de alguns minutos de tormento, a mulher parecia finalmente ter
encontrado uma calma frágil. Seus sussurros desesperados se calaram,
deixando apenas o som soluçante de seu choro quebrando a calada opressiva.
A negação permanecia clara em seu olhar.
— No dia que te encontramos... — começou o patriarca, olhando-a de
soslaio —, Krëff me pediu para levá-la conosco.
Trisa ergueu a cabeça, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Depois daquele dia — continuou o garnaziano —, ele passou a sumir
durante um dia inteiro e só voltar à noite... Krëff estava contigo, certo?
A humana assentiu com a cabeça.
— Imagino o quanto ele gostava de você... — comentou Myimora.
O amontoado de troncos ardia em chamas, iluminando a noite escura
com uma luz macabra. O crepitar do fogo misturava-se aos estalos dos galhos
esbraseando. O cheiro de carne e madeira queimadas invadia o ar, tornando-o
quase insuportável.
— O que aconteceu com... os outros? — indagou Trisa, olhando ao
redor.
— Estão queimando lá dentro. — Myimora apontou para o fogo. —
Minha família. Meus amigos... Minha raça...
Trisa fungou, chorosa.
— Dependemos da Alma da nossa criadora para vivermos — explicou
o patriarca. — Quando a estátua foi destruída, o Círculo morreu, e a Alma que
alimentava nossa existência também. O que nos restou, foram estes cristais —
Myimora encostou no colar.
— Então Krëff já deve estar morto... — concluíu a humana com a voz
fraca.
— Ele ainda tem uma chance. — Myimora ajudou Trisa a se levantar.
— Como? — quis saber a mulher.
— Krëff não é um garnaziano. Bem, não como nós. Oremos para que
os ornteffs tenham piedade dele.
Trisa olhou confusa para o patriarca.

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Myimora bufou e começou a andar.
— Vamos! — gritou para os vinte últimos de sua raça. — É hora de ir
para o norte.
Os garnazianos levantaram-se, chorosos e determinados, seguindo o
patriarca em uma jornada incerta. Okash caminhou devagar, auxiliando Nahla
Kihr, que estava com uma das pernas feridas.
Myimora deixou que os garnazianos seguissem seu caminho, ficando
para trás. E entãio, após algum tempo, se aproximou da humana.
— Disse que estava sozinha, não é? — perguntou ele.
Trisa assentiu.
Myimora se virou a fez um gesto para que ela o seguisse. Hesitante, a
humana o fez.

III

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