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Lopes, Dawisson Belém

Reseña de "Neoliberalism as exception: mutations in citizenship and sovereignty" de


Aihwa ONG
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 24, núm. 69, febrero, 2009, pp. 186-190
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
Brasil

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Neoliberalismo como exceção ou exceções (de base econômica) transformado em “técnica de


ao neoliberalismo? governo” – ganhou contornos peculiares. Daí a pri-
meira distinção conceitual relevante para o texto de
Aihwa ONG. Neoliberalism as exception: mutations in citi- Ong: o (a) neoliberalismo como exceção não se confunde
zenship and sovereignty. Durham/Londres, Duke Uni- com as (b) exceções ao neoliberalismo. A primeira noção
versity Press, 2006. 294 páginas. faz referência àqueles Estados (ou frações territoriais
de Estado) em cujos limites o neoliberalismo não é
Dawisson Belém Lopes* a “técnica de governo” dominante, por assim dizer.
Neles, o neoliberalismo infiltra-se pontualmente, ar-
Neoliberalism as exception contempla um farto con- ticulando-se com uma cadeia de instituições tradici-
junto de temas pertinentes às modernas teorias do onais, modernas e pré-modernas; a segunda reme-
Estado e das relações internacionais. A autora, Aihwa te aos Estados (ou unidades políticas outras) em
Ong, mostra-se capaz de apreender algumas das prin- que o grau de assimilação das idéias e práticas
cipais mudanças em curso no campo das idéias e prá- neoliberais foi tamanho, que constituiu a regra.
ticas políticas. Se Ong não está exatamente a anunciar Donde falar, quando muito, na possibilidade de al-
a chegada da pós-modernidade, também não deixa gumas exceções ao neoliberalismo.
de notar as fraturas e desarticulações que acometem Na concepção da autora, as inter-relações de
os velhos conceitos, legatários de concepções moder- política, exceção e cidadania determinam o grande
nas da política. E é justamente a partir de uma dessas problema da vida contemporânea. Por um lado, os
fendas conceituais que a autora introduz a tese do elementos constituintes da cidadania – direitos, prer-
“neoliberalismo como exceção”. rogativas, territorialidade, nação – desarticulam-se
Trata-se, em linhas gerais, de um texto em aberto, e rearticulam-se sob o efeito das forças de merca-
mais exploratório que conclusivo sobre o tema. A do. Isso acarreta novos critérios (neoliberais) para
técnica autoral é a da descrição etnográfica, que busca incluir ou excluir indivíduos no universo dos “cida-
na mescla de caracteres particulares e de generalidades dãos de facto”; por outro lado, o conceito (antes ab-
teóricas o caminho para a compreensão dos fenôme- soluto) de soberania flexibiliza-se, ao que passam a
nos sociais – em escala local e global. O texto está ser admitidas certas zonas cinzentas de “soberania
disposto em cinco partes: uma introdução ao argumen- sobreposta”, em que Estado, mercado e terceiro
to e outras quatro seções tematicamente organizadas. setor dividem espaço e competências. É quando se
Nada que acarrete perda de coesão. Antes, o con- estabelecem, na expressão de Ong, novos “ecossis-
trário: um dos aspectos a que dar relevo na obra de temas” sociais/territoriais. Compete ainda notar que
Ong é a capacidade de tratar de um mesmo (e am- os mecanismos de mercado ensejam novas
plo) feixe de questões sem, no entanto, parecer re- territorializações do capital – ou seja: novos rincões
dundante. Além disso, o grande número de autores do globo rapidamente passam a (ou deixam de)
contemporâneos e de títulos recentes citados trans- compor a rede da geografia econômica internacio-
forma a produção em espécie de inventário biblio- nal; para além, esses mesmos mecanismos mercado-
gráfico do estado das artes sobre o Estado e seus lógicos incumbem-se de disseminar a “ética da auto-
elementos circunstantes (cidadania e soberania, em responsabilização”, segundo a qual qualquer indiví-
especial). duo está habilitado, sob a égide da corrente
A Introdução desempenha papel fundamental na globalização, a construir o seu caminho até o topo
narrativa. As idéias basilares estão ali lançadas. A auto- (isto é, a renovação do mito do self-made man).
ra principia por explorar as diferentes acepções de Se o neoliberalismo for concebido como uma
que está investida a expressão “neoliberalismo” no “tecnologia de governo”, cabe especificar-lhe os tra-
mundo de hoje. Muito embora seja notável a sua pe- ços. Parece apropriado frisar que a intenção da au-
netração global, ela nem sempre carrega consigo os tora não é estudar o neoliberalismo como “cultu-
mesmos significados e potenciais de absorção. Nos ra” ou “estrutura”, e sim “como técnicas de governo
mais variados contextos em que se corporificou, o baseadas no cálculo, que podem ser descontextua-
neoliberalismo – entendido como o conjunto de idéias lizadas de suas fontes originais e recontextualizadas
nas constelações de relacionamentos contingentes e
* Agradeço a leitura e os comentários feitos ao texto original
pelo professor Frédéric Vandenberghe. mutuamente constitutivos” (p. 13). A “governamen-

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talidade” neoliberal é, então, associada ao conceito gue países muito diferentes entre si (pós-coloniais,
de “biopolítica”, de Michel Foucault. Trata-se da pós-comunistas, ditatoriais etc.), consegue delinear
idéia de que a política contemporânea envolve uma um padrão: o de Estados geralmente “robustos e
série de mecanismos de controle e regulação, os quais centralizadores”. A lógica schmittiana de que “o
são exercidos sobre a população, fazendo enfra- soberano é quem dita a exceção” aplica-se muito
quecer ou cessar as forças vitais dos indivíduos. Pa- mais claramente à Ásia que à África ou à América
radoxo à vista: ao mesmo tempo em que se lhes Latina. Indício consistente é a reemergência da Chi-
tolhe a força, deles exige-se capacidade empreen- na como potência mundial, a despeito de os seus
dedora. O melhor cidadão é quem mais se adapta governantes não aderirem a boa parte dos man-
às circunstâncias neoliberais e consegue ser “empre- damentos neoliberais. Como sugere Ong, “a lógica
endedor de si mesmo”. Emergem desses cruzamen- da exceção fragmenta a territorialidade humana para
tos de práticas e pensamentos determinadas com- estabelecer conexões específicas, variáveis e con-
posições singulares. Vide a disseminação das tingentes aos circuitos globais. O padrão resultante
comunidades de cidadãos (se cidadãos, logo partícu- de soberania ‘graduada’ ou ‘variada’ garante que o
las políticas da cidade, ou seja, da coletividade politi- Estado possa ao mesmo tempo enfrentar os de-
camente organizada) que são devotos ferrenhos da safios globais e assegurar a ordem e o crescimento”
ética da responsabilização individual. (p. 19).
Porém, em vez de considerar essas novas con- Os processos de desterritorialização da cida-
jugações da política global como contraditórias ou dania e de flexibilização da soberania estatal trazem
dilemáticas, Ong prefere enxergar nelas o embrião consigo alguns conflitos inescapáveis. O primeiro
de uma tendência. Essa tendência traduz-se como a deles, entre o utilitarismo neoliberal e o nativismo.
resultante das desarticulações da cidadania (a esta Isso porque, via de regra, empregados com alta
altura, um conceito fragmentário, não íntegro) e da qualificação técnica são recrutados, mundo afora,
série de restrições impostas à soberania territorial pelas grandes empresas, em detrimento do público
do Estado moderno. A autora percebe a existência local, para quem estão reservados os piores em-
de um novo discurso que consagra a concepção de pregos, quando não o desemprego. Tornam-se eles,
“cidadania global”, para além do Estado-nação. por tudo isso, “uns desterrados na própria terra”.
Faltam, contudo, os meios para assegurá-la. Os ve- Da dialética inclusão-exclusão, resulta o que o filó-
lhos componentes atados à noção de cidadania (di- sofo Giorgio Agamben chamou de “vida nua”: a
reitos, prerrogativas, nação, territorialidade) desar- condição da existência humana em que o Estado (a
ticulam-se, rearticulando-se com as técnicas de estrutura político-administrativa) não desempenha
governabilidade mais recentes. No âmbito interna- as suas funções, deixando o “cidadão excluído”
cional, começamos a ver práticas políticas que ex- entregue à própria sorte – desprovido que este é,
trapolam a noção de cidadania territorial (as inter- em termos práticos (embora não jurídicos), de di-
venções humanitárias da ONU, por exemplo). O reitos, e isento de obrigações. Agamben tacha tal
novo sistema de justiça distributiva neoliberal igno- condição de “desumana”, ao passo que Ong, em
ra constrangimentos institucionais nacionais, como discordância, argumenta que o autor italiano parece
se o mundo se tivesse transformado em um gran- ignorar a possibilidade de haver proteção moral, e
de espaço jurisdicionalmente homogêneo. Em suma, mesmo legitimidade, à revelia de uma cartilha esta-
os encontros e desencontros contemporâneos en- tal de direitos e obrigações. Demanda-se um racio-
tre geopolítica, lógica de mercado, exceções e dis- cínio mais elaborado: a “vida nua” não é, política
cursos éticos levam a um quadro que requer do ou antropologicamente, uma zona de indistinção,
analista a abertura conceitual às contingências, am- um limbo existencial, na medida em que passam a
bivalências e incertezas. Do contrário, as dificulda- intervir no processo organizações não-governamen-
des analíticas serão incontornáveis. tais, empresas e comunidades locais. Há, como re-
Interessa a Ong o emprego seletivo que Esta- sultado dessas intervenções, a criação de novas ca-
dos/governos fazem das exceções neoliberais. Por tegorias moralmente dignas, apesar da omissão
isso, todos os casos estudados em Neoliberalism vêm estatal. Ou seja: a contrapolítica da resistência está
da Ásia. Justifica a sua opção metodológica a cons- cristalizada nas inter-relações de biopolítica, merca-
tatação de que o continente asiático, embora abri- dos de trabalho e (novos) sistemas de virtude. É

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isso que os estudos de caso da autora tentarão, em o “Estado-empresário”, fruto de uma apropriação
dez breves ensaios, demonstrar. do schumpeterianismo econômico), mas da habili-
Ao longo da primeira Parte, Ong estuda dois dade demonstrada em criar condições favoráveis
casos: o das mulheres sob o “Islã Moderado” e o para a atividade econômica dentro de seus limites
dos públicos cibernéticos mobilizados a partir da territoriais. Isso implica cultivar boas relações com
diáspora chinesa. Emprega-se a “lógica das exce- os agentes do mercado – uma vez que a lógica dos
ções” para explicar os relacionamentos ético-políti- investidores internacionais pode chocar-se e con-
cos estabelecidos em tais contextos. No primeiro correr com a vontade política do soberano. A solu-
deles, a autora nota a emergência de um modelo ção empírica que se tem encontrado para o proble-
feminista de cidadania, dinâmico e resiliente, como ma exposto é a delimitação de certas “zonas de
antídoto ao tradicionalismo islâmico – responsável soberania e de cidadania graduadas”. Nestas, veri-
por guindar os homens às posições mais elevadas fica-se o tratamento diferenciado dos indivíduos, a
do jogo político institucional. Muito embora corra depender da forma como eles estão inseridos na
o risco de perda de coesão identitária, o feminismo cadeia de produção capitalista. O Estado poderá
islâmico integra-se a outras correntes feministas oci- abrir mão de prerrogativas de controle sobre o seu
dentais para reivindicar maior participação nos as- território (e sobre os seus cidadãos) quando julgar
suntos públicos, contrapondo-se ao regime de pa- que a omissão possa ser-lhe recompensadora (ao
triarcado. Ao defenderem a idéia das “tradições em menos, na economia). Essa prática leva ao estabele-
aberto” e de um “Islã Moderado”, essas mulheres cimento do que Ong chamou de “áreas marrons”,
substituem a solidariedade feminista “romântica” regiões submetidas (em termos práticos, mas não
por outra mais “estratégica”, fazendo constituir-se jurídicos) às “quase-autoridades” não estatais (em-
uma irmandade feminista transnacional – em que presas transnacionais, no mais das vezes), em que a
pesem todas as diferenças culturais, religiosas, étni- cidadania se torna aquilo que o mercado, e não o
cas – como mecanismo efetivo de resistência de Estado, determine que seja.
minorias políticas. No tocante aos públicos ciber- Seria um equívoco, no entanto, supor a irrele-
néticos, nota-se a formação de comunidades que vância política do Estado em todo o processo. Há
se organizam com base na defesa de uma concep- claras e repetidas sobreposições das lógicas do
ção de “etnia chinesa além-fronteiras”. O movimen- mercado e do Estado no continente asiático – e a
to é catalisado pelos atos de exclusão de que são “graduação da soberania” não passa de estratégia
vítimas os cidadãos emigrados da China continen- adaptativa dos governantes, uma adequação dos
tal – geralmente, em direção a Cingapura, Indoné- meios de governo (recorrentemente autoritários) a
sia ou Malásia. Esse deslocamento maciço de chineses fins economicamente ótimos. Apesar da fragmen-
para fora da “terra-mãe” costuma ser denominado tação da cidadania dos indivíduos, a “graduação da
“diáspora chinesa”. Conflitos aparecem quando se soberania” é percebida como bom negócio para
confrontam as noções de “cidadania inserida” (de- os políticos, pois os credencia a levar até o fim os
pendente da jurisdição territorial do Estado onde seus mandatos, sem sobressaltos, ou a reeleger-se,
se encontra o indivíduo) e de “raça [chinesa] no ci- quando for o caso; e também para os cidadãos,
berespaço” (por definição, a desterritorialização de que irão, tendencialmente, desfrutar de melhores con-
um conceito político). Constitui-se, em decorrên- dições materiais de vida, à proporção que se incre-
cia, uma forma de cidadania descolada dos refe- mentar a inserção do seu Estado na economia in-
rentes políticos tradicionais, outrora constituintes do ternacional. A China pós-Mao dá um rico estudo
Estado-nação. de caso desse repensar da soberania e das práticas
Se os dois casos estudados na Parte 1 ilustram de zoneamento de produção econômica decorren-
as alterações sofridas pelo conceito de cidadania na tes [cf. Capítulo 4]. Trata-se, por que não dizer, de
contemporaneidade, a Parte 2 concentra-se na dis- uma tentativa de desatrelamento dos conceitos de
cussão acerca da soberania. O Capítulo 3 enfoca o soberania e território.
fenômeno da flexibilização da soberania. O argu- São abordados, na Parte 3, exemplos de como
mento apresentado é de que, na era “pós-desen- os critérios neoliberais da eficiência e do incremen-
volvimentista”, o Estado passa a extrair a sua legiti- to de valor de mercado podem rearticular todo o
midade não da sua capacidade empresarial (como circuito da produção, tanto em termos temporais

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quanto – e aqui reside a novidade desta fase da glo- em vez dos bem-remunerados – e igualmente
balização que ora vivenciamos – em termos espaci- competentes – trabalhadores europeus ou ameri-
ais. O Capítulo 5 coloca em discussão os temas do canos, seguindo lógica análoga à da arbitragem
pós-fordismo, da normatização das relações traba- cambial.
lhistas pelo mercado (com o assentimento do Esta- Na Parte 4, analisam-se as conexões entre meio
do) e da resultante “cidadania latitudinal” (ou seja, ambiente tecnologicamente adaptado, arquitetura da
baseada em referenciais étnico-geográficos). O prin- globalização e ética das relações humanas sob o neo-
cipal argumento é de que o mercado vem exercen- liberalismo como exceção. No bojo dessas relações,
do governamentalidade – o que envolve, segundo Fou- a tecnicalização neoliberal da política vem conju-
cault, o controle sobre os corpos dos indivíduos – gar-se com o autoritarismo governamental – a par-
por meio de uma mescla de práticas etnicamente tir do momento em que se sustenta a tese da técnica
orientadas, do incentivo ao deslocamento tem- como esfera apolítica, não-ideológica. A tecnocra-
porário de mão-de-obra, e de um arcabouço nor- cia engendra uma nova ética cidadã, afastada dos
mativo estatal (estrategicamente empregado). Isso velhos referenciais físicos e simbólicos. A retórica
dá sustentação à emergência de uma era pós-for- da “cidade global” passa a presidir o quadro men-
dista/neotaylorista, com enorme segmentação e tal dos indivíduos, os quais desenvolvem habilida-
isolamento dos trabalhadores (vide as migrações des digitais de “tecnoempreendedores”, com o in-
temporárias de trabalhadores chineses para o Vale tuito de se adequarem ao ditame mercadológico. É
do Silício). Outro fenômeno problematizado por a reinvenção do cidadão, nos termos de sua nova
Ong é a difusão dos padrões educacionais anglo- funcionalidade na civitas globalizada. Ong emprega
saxões pelo continente asiático. No afã de competir a expressão “ecologia barroca (ou complexa)” para
pelos melhores postos de trabalho no mercado designar as formações espaciais que transformam
global, talentosos jovens asiáticos migram para os a cidade-Estado em conectora dos diversos elemen-
Estados Unidos, a fim de completar/aperfeiçoar a tos globais – conhecimentos, práticas, atores – que
sua educação formal. O “pacote de virtudes” va- interagem num nível de alto desempenho [cf. Capí-
lorizado pelo mercado internacional (que tem no tulo 8]. O Capítulo 9 enfoca o emergente regime
estereótipo do profissional com credenciais world- de (neo)escravidão a que se submetem as emprega-
class o seu ponto de condensação) começa a balizar das domésticas no sul e sudeste asiático, em pleno
os comportamentos éticos dos indivíduos, levando século XXI, e a maneira como organizações não-
a choques normativos entre a elite cultural asiática e governamentais vêm tratar do problema. Chama a
os egressos do circuito de ensino superior ameri- atenção, nesse caso, não a advocacia das ONGs em
cano. A autora adverte que mesmo as tradiciona- favor das trabalhadoras, e sim como essas organi-
líssimas instituições universitárias de Harvard, Ber- zações buscam representar as trabalhadoras sem
keley, Oxford, Cambridge e Toronto, entre outras, interpelar frontalmente o aparelho de Estado.
parecem curvar-se a demandas mercadológicas [cf. ONGs reforçam a ética da “vida nua”, porquanto
Capítulo 6]. Por fim, cabe explicar os deslocamen- não demandam dos governos (muitas vezes, os seus
tos maciços de linhas de produção das grandes próprios patrocinadores) a cidadania (direitos civis,
empresas multinacionais ora para longínquos rin- políticos e sociais) para as empregadas domésticas,
cões da Índia, ora para não menos distantes pro- limitando-se a pleitear garantias de bem-estar bio-
víncias chinesas. As razões para isso são puramente lógico (os proverbiais direitos à vida, à integridade
econômicas: perceptivos de que existe maior faci- física e mental, à liberdade de locomoção etc.). Por
lidade de deslocamento dos fatores de produção seu turno, as trabalhadoras, que não querem retor-
na atualidade, os agentes de mercado elegem como nar ao país de onde emigraram, preferem sujeitar-
sede de seus negócios os territórios que melhores se ao estatuto de não-cidadãs a correr o risco da
condições empresariais ofereçam. Na era pós-for- deportação ou da expulsão. Faz-se, então, um acor-
dista, o conhecimento, um recurso de alta mobi- do tácito, silencioso. Donde a autora deriva todo o
lidade e volatilidade, torna-se o principal ativo a seu ceticismo a respeito do papel que as organiza-
comercializar. Por isso, os empregadores do Vale ções não-governamentais podem desempenhar
do Silício consideram as vantagens de migrar a como promotoras de uma “esfera pública global”.
produção e contratar técnicos indianos ou chineses, Encerrando a seleção de ensaios, Ong recupera o

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tema do desconforto existencial que acomete o tamanha distância entre os Estados de Ásia e Amé-
homem chinês, dividido entre referenciais axiológi- rica Latina, no referente à governamentalidade? Mais
cos milenares e a nova ética neoliberal da globaliza- estudos comparativos viriam a calhar.
ção econômica [cf. Capítulo 10]. Trata-se de justa-
por uma etnocêntrica “racionalidade” ocidental à DAWISSON BELÉM LOPES
alegada “irracionalidade” chinesa – haja vista os é professor de Relações Internacionais da
manuais que têm de ler os profissionais de recursos Pontifícia Universidade Católica de Minas
humanos das grandes empresas multinacionais de Gerais – PUC-Minas e do Centro
origem americana ou européia para “aprender a li- Universitário de Belo Horizonte – Uni-BH.
dar com a mentalidade oriental”. Esses manuais cul- E-mail: dawisson@gmail.com.
turalistas nada mais pretendem que disciplinar o
pensar do trabalhador nativo, nele inoculando os
valores afeitos ao mercado. Tudo isso, repita-se, com
o aceite do Estado, monitor passivo do processo.
Resultado: Confúcio encontra Ronald McDonald.
A dúvida que acompanha o leitor desde o iní-
cio da narrativa é: o que autoriza Aihwa Ong a apos-
tar na tese de que, na Ásia (considerados os casos
em tela), diferentemente da América Latina ou da
África, o neoliberalismo apresenta-se não como a
regra, e sim como a exceção? Qual seria, por assim
dizer, o limiar da regularidade? Ou o limiar da ex-
cepcionalidade? A provocação, que pode afigurar-
se como uma versão renovada do conflito entre o
pessimista (do “meio copo vazio”) e o otimista (do
“meio copo cheio”), é menos retórica do que apa-
renta. Isso porque, se considerarmos o(s) caso(s)
asiático(s) como a representação da exceção, perde
fôlego a idéia de que estaria em marcha, no mundo
atual, um processo de transnacionalização do Estado. A
admissão de que há unidades territoriais capazes de
resistir às forças mercadológicas, ou de ajustar as
noções de soberania e de cidadania à própria con-
veniência governativa, acarreta dar por implicação
que o neoliberalismo como “técnica de governo”
não é o fado universal com o qual os povos do
mundo terão inelutavelmente de se haver – como
se podia, há algum tempo, ouvir/ler nos discursos
de líderes políticos e até no meio acadêmico. O ar-
gumento do “neoliberalismo como exceção” joga
água fria no “Consenso de Washington” e em ou-
tros consensos assemelhados. Não obstante, se co-
locarmos em suspenso, pelo menos momentanea-
mente, o argumento do “neoliberalismo como
exceção”, substituindo-o pelo entendimento de que
o máximo a que o Estado contemporâneo pode
aspirar são as “exceções ao neoliberalismo”, justifi-
ca-se a crença em que o exemplo asiático simboliza
apenas uma graduação diferenciada no continuum
neoliberal. Em suma, o meu ponto é: há, de fato,

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