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A dimensão econômica do meio ambiente

A riqueza dos recursos naturais como direito do homem


presente e futuro

Paulo José Leite Farias

Sumário
1. As dimensões (gerações) dos direitos
fundamentais e o fenômeno econômico. 1.1.
Dimensões dos direitos fundamentais. 1.2.
Direitos fundamentais de terceira dimensão.
2. Correlação entre os sistemas econômicos
e as dimensões de direitos fundamentais.
2.1. O liberalismo e os direitos de primeira
geração. 2.2. O intervencionismo e os direitos
de segunda geração. 2.3. O neoliberalismo, a
globalização e os direitos de terceira geração.
3. O meio ambiente e sua vinculação jurídica
aos sistemas econômicos. 3.1. O princípio da
defesa do meio ambiente como mecanismo
conformador da ordem econômica. 3.2. O
desenvolvimen to sustentável como ética de
desenvolvimento com a harmonização do
econômico e do ecológico. 4. Economia do
meio ambiente: busca da incorporação das
externalidades ambientais. 4.1. Crescimento
econômico e degradação ambiental: propostas
de conciliação. 4.2. Economia ambiental. 5. Uso
de instrumentos econômicos nas políticas am-
bientais: integração do jurídico e do econômico.
5.1. Instrumentos econômicos: introdução. 5.2.
Instrumentos econômicos na forma de incenti-
vos estatais. 5.3. Instrumentos econômicos na
forma de onerações estatais.

“Precisamos cuidar do mundo que não


Paulo José Leite Farias é Promotor de Justiça, veremos”
Mestre em Direito e Estado pela UnB, Doutor em Bertrand Russel
Direito pela UFPE, Pós-Doutor pela Universidade­ “Há boas razões para proteger a Terra. É o
de Boston (EUA). Engenheiro Civil pela UnB. modo mais seguro e correto de prolongar a
Analista de Sistemas pela UCB. Professor de lucratividade”
Direito Ambiental no IDP, IESB e POSEAD. Paul Allaire

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1. As dimensões (gerações) dos direitos Ressaltando o registro histórico na pró-
fundamentais e o fenômeno econômico pria conceituação dos direitos humanos,
Antônio Enrique Perez Luño (1990, p. 48)
1.1. Dimensões dos direitos fundamentais ensina que os direitos humanos são:
“Un conjunto de facultades e institu-
Conforme assinala Ingo Sarlet (2001, p. ciones que, en cada momento histórico,
48), desde que ocorreu a positivação dos concretan las exigencias de la dignidad, la
direitos humanos nas Constituições, estes liberdad y la igualdad humanas, las cua-
passaram por diversas transformações, les deben ser reconocidas positivamente
tanto no que se refere ao conteúdo, quanto por los ordenamientos jurídicos a nivel
no que concerne à sua titularidade, eficácia nacional e internacional.”
e efetivação.1 No mesmo diapasão, Bobbio (1992, p. 5)
Assim, os direitos fundamentais estão defende que os direitos fundamentais são
marcados por autêntico devir, não obstante direitos históricos, ao afirmar que:
se vinculem a núcleo unificador de proteção “Do ponto de vista teórico, sempre
da dignidade da pessoa humana. defendi – e continuo a defender,
A classificação dos direitos fundamen- fortalecido por novos argumentos –
tais, no âmbito da doutrina nacional, retrata que os direitos do homem, por mais
a noção de existência das novas facetas da fundamentais que sejam, são direitos
dignidade da pessoa humana, que preocu- históricos, ou seja, nascidos em certas
pa renomados autores, na busca de uma circunstâncias, caracterizadas por
classificação dos direitos fundamentais. lutas em defesa de novas liberdades
Assim, José Luiz Quadros de Magalhães contra velhos poderes, e nascidos de
(1992, p. 20-21) classifica os direitos funda- modo gradual, não todos de uma vez
mentais em: direitos individuais, sociais, e nem de uma vez por todas.”
econômicos e políticos. Segundo Jellinek, pelo fato de ser mem-
No contexto doutrinário relativo à bro do Estado, o indivíduo trava, ao longo
classificação dos direitos fundamentais, do tempo, com este, pluralidade de relações
destaca-se a teoria dos quatro status de denominadas “status”, razão pela qual
Georg Jellinek. Essa teoria, para Robert a teoria de Jellinek é, também, chamada
Alexy (1993, p. 261) constitui-se em “el “Teoria dos Quatro Status”.
ejemplo más grandioso de una teorización A primeira relação em que se encontra
analítica en el ámbito de los derechos fun- o indivíduo é a de subordinação ao Estado.
damentales”. Essa é a esfera dos deveres individuais e
Ademais, conforme anota Jorge Miran- corresponde ao status passivo.
da (1991, p. 85), a classificação de Jellinek A segunda relação, o status negativus,
corresponde aproximadamente ao processo corresponde à esfera de liberdade na qual
histórico de afirmação da pessoa humana e de os interesses essencialmente individuais
seus direitos. encontram sua satisfação. É, pois, esfera de
liberdade individual, cujas ações são livres
1
“Desde o seu reconhecimento nas primeiras porque não estão ordenadas ou proibidas,
Constituições, os direitos fundamentais passaram por
diversas transformações, tanto no que diz com o seu
vale dizer: tanto sua omissão como sua
conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, realização estão permitidas (ALEXY, 1993,
eficácia e efetivação. Costuma-se, neste contexto mar- p. 251).
cado pela autêntica mutação histórica experimentada A terceira relação resulta do fato de que
pelos direitos fundamentais, falar da existência de
três gerações de direitos, havendo, inclusive, quem
a atividade estatal é realizada no interesse
defenda a existência de uma quarta geração”. (SAR- dos cidadãos, status positivus. E, para o
LET, 2001, p. 48). cumprimento de suas tarefas, o Estado

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tem obrigação de exercer determinadas linear dos direitos civis do século XVIII
tarefas. No dizer de Paulo Bonavides (1996, (direitos de primeira geração, direitos de
p. 518), “dominam o século XX do mesmo liberdade), em um primeiro momento; aos
modo como os direitos da primeira geração direitos políticos do século XIX, em um
dominaram o século passado (...) Nasceram segundo momento; aos direitos sociais
abraçados ao princípio da igualdade, do (direitos de segunda geração) no século XX,
qual não se podem separar, pois fazê-lo em um terceiro momento (MARSHALL,
equivaleria a desmembrá-los da razão de 1967, p. 75).
ser que os ampara e estimula”.
A quarta e última relação decorre da 1.2. Direitos fundamentais de
circunstância de que a atividade estatal terceira dimensão
só se torna possível por meio da ação dos Os direitos fundamentais da terceira
cidadãos. dimensão centram-se no fato de os ho-
Assim, com base na exposição de Jelli- mens estarem ligados entre si. A figura do
nek, os direitos fundamentais classificam- homem–indivíduo fica em segundo plano
se em direitos de defesa, direitos a prestações ressaltando-se a humanidade (homens
e direitos de participação, correspondendo, vistos como um todo), razão por que são
respectivamente, aos status negativo, po- conhecidos como direitos de fraternidade,
sitivo e ativo. solidariedade ou direitos de titulariedade
Sob esse enfoque, mencionam-se a clas- difusa ou coletiva.3
sificação de Jellinek e a classificação das di- A doutrina qualifica-os como direitos dos
mensões ou gerações de direitos fundamen- povos. Essa classe de direitos tem por desti-
tais, o que ressalta uma certa congruência natário, mais do que o indivíduo, um grupo
no agrupamento dos direitos fundamentais ou determinado Estado, o gênero humano
ao longo do processo histórico.2 mesmo, engendrando o direito ao ambien-
Outro autor que tratou mais recen- te, o direito ao desenvolvimento, o direito à
temente das dimensões temporais da autodeterminação, o direito à participação
cidadania e dos direitos fundamentais foi no patrimônio da humanidade.4
o economista inglês T. H. Marshall, que Para Ingo Sarlet (2001, p. 53), verbis:
defende vinculação histórica racional e
3
“Os direitos fundamentais da terceira dimensão,
2
“Em que pese o dissídio na esfera terminológica, também denominados de direitos de fraternidade
verifica-se crescente convergência de opiniões no que ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o
concerne à idéia que norteia a concepção das três (ou fato de se desprenderem, em princípio, da figura do
quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à
fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua proteção de grupos humanos (família, povo, nação),
trajetória existencial inaugurada com o reconhecimen- e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos
to formal nas primeiras Constituições escritas dos clás- de titularidade coletiva ou difusa”. (SARLET, 2001,
sicos direitos de matriz liberal-burguesa, encontram-se p. 52).
em constante processo de transformação, culminando 4
“Em termos apertados, os direitos de primeira
com a recepção, nos catálogos constitucionais e na geração relacionam-se com o liberalismo e correspon-
seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferen- dem aos direitos de liberdade, aos direitos individuais,
ciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável aos direitos negativos; a segunda geração de direitos
quanto as transformações ocorridas na realidade social, relaciona-se com a social-democracia do fim do século
política, cultural e econômica no longo dos tempos. Assim XIX, correspondendo aos direitos sociais, econômicos
sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais e culturais; direitos a prestações do Estado, direitos à
não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do igualdade social e direitos positivos; a terceira geração
processo evolutivo e para a natureza complementar de de direitos surge a partir da consciência de um mundo
todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além partido entre nações desenvolvidas e subdesenvol-
disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do vidas, que exige a fraternidade, para a proteção do
direito constitucional interno e, de modo especial, na gênero humano, correspondendo ao meio ambiente,
esfera do moderno Direito Internacional dos Direitos ao desenvolvimento, à paz, ao patrimônio comum da
Humanos” (SARLET, 2001, p. 49 e 50, grifo nosso). humanidade”. (BONAVIDES, 1996, p. 516-524).

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“A nota distintiva destes direitos da Bobbio (1992, p. 6), por sua vez, evita
terceira dimensão reside basicamente definir o que seja “direito de 3a geração”, na
na sua titularidade coletiva, muitas falta de elementos conceituais seguros que
vezes indefinida e indeterminável, permitam formular uma teoria adequada
o que se revela, a título de exemplo, para sua compreensão:
especialmente no direito ao meio “Ao lado dos direitos sociais, que fo-
ambiente e qualidade de vida, o ram chamados de direitos de segunda
qual, em que pese ficar preservada geração, emergiram hoje os chama-
sua dimensão individual, reclama dos direitos de terceira geração, que
novas técnicas de garantia e prote- constituem uma categoria, para dizer
ção. A atribuição da titularidade de a verdade, ainda excessivamente he-
direitos fundamentais ao próprio terogênea e vaga, o que nos impede
Estado e à Nação (direitos à autode- de compreender do que efetivamente
terminação, paz e desenvolvimento) se trata. O mais importante deles é
tem suscitado sérias dúvidas no que o reivindicado pelos movimentos
concerne à própria qualificação de ecológicos: o direito de viver num
grande parte destas reivindicações ambiente não poluído.”
como autênticos direitos fundamen- Por outro lado, Celso Lafer (1988, p.
tais. Compreende-se, portanto, por 132) destaca a titularidade como principal
que os direitos da terceira dimensão elemento diferenciador dessa dimensão de
são denominados usualmente como direitos, verbis:
direitos de solidariedade ou frater- “Os direitos reconhecidos como do
nidade, de modo especial em face homem na sua singularidade – sejam
de sua implicação universal ou, no eles os de primeira ou de segunda
mínimo, transindividual, e por exi- geração – têm titularidade inequí-
girem esforços e responsabilidades voca: o indivíduo. Entretanto, na
em escala até mesmo mundial para passagem de uma titularidade indi-
sua efetivação.” vidual para uma coletiva, que carac-
Trata-se de direitos transindividuais, teriza os direitos de terceira e quarta
que não pertencem a uma pessoa determi- geração, podem surgir dilemas no
nada5 nem a um grupo claramente delimi- relacionamento entre o indivíduo e
tado, como ocorre, por exemplo, com os a coletividade que exacerbam a con-
trabalhadores que são titulares de direitos tradição, ao invés de afirmar a com-
coletivos, mas não direitos difundidos, es- plementaridade do todo e da parte.
parramados por toda a sociedade como o Estes dilemas provêm, em primeiro
direito ao ar puro. Direitos que, não sendo, lugar, da multiplicidade infinita dos
isoladamente, de um único indivíduo, são grupos que podem sobrepor-se uns
de todos, de uma pluralidade de sujeitos. aos outros, o que traz uma difusa e
Para Ricardo Lobo Torres (1999, p. 297), potencial imprecisão em matéria de
podem ser caracterizados, também, pelo titularidade coletiva – basta pensar
fato de possuírem tanto um status negativus na criança, na família, na mulher, nos
como um status positivus. trabalhadores, nas minorias étnicas,
religiosas, lingüísticas e sexuais.”
5
Como afirma Jorge Miranda (1993, p. 66): “Não Associam-se, também, a esses direitos
pode dizer-se que quem quer que seja possua um de terceira geração novas facetas da pro-
único, genérico e indiscriminado direito à proteção do
patrimônio monumental, ou ao controle da poluição
teção da vida, em um sentido amplo de
ou da erosão, ou à salubridade pública, ou a uma rede qualidade de vida, que se originam dos
de transportes, etc”. impactos da sociedade industrial e da tec-

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nologia do fim do século XX. Assim, Sarlet “Assim, o conteúdo dos direitos di-
(2001, p. 53) assinala: fusos são de duas ordens:
“Cuida-se, na verdade, do resultado I) o direito à vida no seu aspecto qua-
de novas reivindicações funda- litativo ou, sinteticamente, de um di-
mentais do ser humano, geradas, reito à qualidade de vida, expresso no
dentre outros fatores, pelo impacto sacrifício de vantagens econômicas
tecnológico, pelo estado crônico de imediatistas em nome da preservação
beligerância, bem como pelo pro- de determinados valores, tais como o
cesso de descolonização do segundo ambiente natural, espaços culturais
pós-guerra e suas contundentes (históricos, estéticos, etc.), disponí-
conseqüências, acarretando profun- veis para essas e futuras gerações, e
dos reflexos na esfera dos direitos II) o direito à integração social me-
fundamentais.” diante o devido reconhecimento
Mafra Leal (1998, p. 103) busca distin- jurídico e político, referindo-se a
guir os direitos de terceira geração por meio titularidade a grupos de indivíduos
do termo “qualidade de vida” (igualdade dispersos ou organizados, unidos por
vista como direito à integração e da inexis- alguma circunstância fática ou por
tência de um conteúdo patrimonial predo- afinidades étnicas, sociais, de gênero
minante em contraste com os de primeira e ou origem, entre outras, que reivin-
segunda geração): dicam tratamento digno por parte
“Os movimentos sociais da classe da lei, ainda que isso signifique a
trabalhadora visaram a garantir uma afirmação de uma identidade especial
maior igualdade econômica ou pelo não assimilável ao valor de igualdade
menos mitigar a desigualdade exis- universal.” (MAFRA LEAL, 1998, p.
tente entre o proletariado e os pro- 104-105)
prietários. Ou seja, também a questão Logo, fica bem caracterizada nesses
centra-se em aspectos econômicos direitos a presença marcante do elemento
(melhores salários, prestações gratui- econômico que deverá ser valorado com
tas do Estado nos campos da saúde outro elemento, como ocorre, por exemplo,
e educação, direito de aposentadoria, na preservação ambiental.
entre outros).” A característica de vinculação dos di-
“O conteúdo dos direitos difusos não reitos de solidariedade à tecnologia e ao
garantem propriedade ou liberdade processo de descolonização surgido após
econômica, nem implicam mitigação a segunda guerra mundial aproxima os
de desigualdades nesse campo. Os direitos de terceira geração do neolibera-
direitos difusos têm conteúdo não- lismo. Esse sistema econômico se desen-
patrimonial e tratam de dois aspectos volve graças aos avanços tecnológicos da
fundamentais: qualidade de vida e informática e das telecomunicações, bem
uma concepção de igualdade vista como em razão da ampliação de mercados
como direito à integração, baseada surgida após a segunda guerra mundial e
em aspectos participativos nas várias consolidada com o fim da guerra fria.
esferas da vida social.” Outro aspecto relevante desses direitos
Não obstante a colocação de que tais relaciona-se com a noção de solidariedade
direitos têm conteúdo não-patrimonial, o intergeracional. Direitos dos povos como o
próprio autor reconhece que há um envol- direito à paz e ao desenvolvimento afetam
vimento desses direitos com o elemento não só as gerações de pessoas presentes,
econômico na tentativa de sacrificar vanta- mas também as gerações futuras. Possuem,
gens econômicas imediatistas, verbis: pois, dimensão temporal que os torna ainda

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mais “anônimos”, no que se refere às suas homem–humanidade ressalta a solidariedade
titularidades. mundial dos direitos de terceira geração,
Preocupam-se tais direitos com os que destacando o “homem” como parte de
ainda não nasceram e cria-se liame entre um todo (a humanidade); a titularidade–
seres humanos que transcende o tempo anônima sublinha que “sendo de todos não
presente. Nesse conceito, encontra-se, por é de ninguém”; a existência–transgeracional
exemplo, a noção de desenvolvimento mostra-se revolucionária para a ciência
sustentável. jurídica ao permitir a titularidade de seres
Por fim, o subsídio legal corporificado ainda nem concebidos (que não são “pesso-
na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, alicerça as” juridicamente falando, numa dimensão
outros caracteres de cunho material com temporal-prospetiva); a qualidade-de-vida
reflexos processuais, bem resumidos na vislumbra aspirações humanas que trans-
visão de Benjamin (1996, p. 70-151): cendem a existência mínima de subsistência
“1. ‘a transindividualidade real ou e projetam o homem na infinita espiral de
essencial ampla’, quando o número melhoria de seu padrão de existência.
de pessoas ultrapassa a esfera de
atuação dos indivíduos isoladamen- 2. Correlação entre os sistemas econômicos
te considerados, para levá-la a uma e as dimensões de direitos fundamentais
dimensão coletiva. Outrossim, essa
transindividualidade real significa
2.1. O liberalismo e os direitos
dizer que a pluralidade de sujeitos
de primeira geração
chega ao ponto de se confundir, mui-
tas vezes, com a comunidade; As revoluções burguesas propiciaram
2. ‘a indeterminabilidade de seus a emergência do Estado Liberal, cuja
sujeitos’, isto é, as pessoas envolvidas preocupação maior era dar àqueles que
são substancialmente anônimas; controlavam a economia (os burgueses)
3. ‘a indivisibilidade ampla’, ou seja, ampla liberdade de exercerem suas atividades,
uma espécie de comunhão, tipificada sem estarem ameaçados por qualquer outro
pelo fato de que a satisfação de um só poder. Os liberais pregavam o respeito aos
implica a satisfação de todos; assim direitos individuais, mas, quanto ao mercado,
como a lesão da inteira coletividade; este deveria regular-se por si só.
4. ‘a indisponibilidade no campo re- Macridis (1982, p. 13)6, cientista político,
lacional jurídico’, por não dispor de ensina-nos, verbis:
titulares determináveis, apresenta di- “O indivíduo – suas experiências e
ficuldades em transigir de seu objeto seus interesses – é o conceito básico
no campo jurídico-relacional; associado à origem e crescimento do
5. ‘ressarcibilidade indireta’, quando liberalismo e das sociedades liberais.
não houver a reparabilidade direta O conhecimento e a verdade derivam
aos sujeitos individualmente consi- do raciocínio do indivíduo que, por
derados (levando em conta o caráter
‘anônimo’ dos sujeitos) e, sim, ao 6
No prefácio da obra Ideologias Políticas Contem-
porâneas, Macridis (1982) assinala que “as ideologias
fundo, para recuperação dos bens moldam as nossas motivações, as nossas atitudes e
lesados.” (Idem, p. 92-96) os regimes políticos sob os quais vivemos. Elas dão
Em resumo, os direitos fundamentais de formas a nossos valores”. Assim, esse autor ressalta
terceira geração podem ser caraterizados algo importantíssimo que se procura demonstrar neste
trabalho, qual seja a íntima relação entre “as ideologias”
por quatro palavras-chaves, a saber: homem– e os valores a serem por ela alcançados, seja na expres-
humanidade, titularidade–anônima, existência– são da forma de Estado (unitário e federado), seja na
transgeracional e qualidade-de-vida. O termo expressão de ideologias políticas como o liberalismo.

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sua vez, é formado pelas associações fundamentais no plano interno, com
que os seus sentidos fazem a respeito a globalização, querendo significar a
do mundo exterior, pela experiência livre circulação internacional de pro-
(...) dutos e fatores, a complementá-las no
O liberalismo é uma ética individu- plano internacional. (grifo nosso)”
alista pura e simples. Nas suas fases Evidencia-se, pois, que, no plano econô-
iniciais, o individualismo se expressa mico, podem-se visualizar, claramente, dois
em termos de direitos naturais – liber- sistemas econômicos que se contrapõem
dade e igualdade. Ele está embebido ao liberalismo com diferentes graus de
no pensamento moral e religioso, intervenção estatal: o intervencionismo em
mas já aparecem os primeiros sinais sentido estrito (economia de mercado com
de uma psicologia que considera os ajustes) e o socialismo (economia em que o
interesses materiais e a sua satisfação Estado é o proprietário exclusivo dos meios
como importantes na motivação do de produção).
indivíduo. Em sua segunda fase, o Assim, ao Estado Social, Estado pro-
liberalismo se baseia numa teoria psi- motor do bem-estar, já analisado ante-
cológica segundo a qual a realização riormente, correlacionam-se os sistemas
do interesse é a principal força que econômicos intervencionistas, enquanto
motiva os indivíduos (Idem, p. 37)”. ao Estado Liberal, Estado não intervencio-
Nesse sentido, os liberais exaltavam nista, correlaciona-se o sistema econômico
como valores básicos a serem defendidos: liberal.
o individualismo e as liberdades individuais Em resumo, nas duas formas, o Estado
como forma de desafio e limite ao poder intervém na economia, seja direta ou indi-
político do Estado. retamente.
Na época liberal, as poucas interven-
2.2. O intervencionismo e os ções diretas dos Estados na produção de
direitos de segunda geração bens e de serviços restringiam-se aos in-
Assim assinala Fábio Nusdeo (2000, p. vestimentos em infra-estrutura (SANTOS,
208-209), verbis: GONÇALVES, MARQUES, p. 165).
“Durante século e meio aproxima- Assim, as leis de mercado ocasionavam
damente, predominou a doutrina sérios efeitos negativos no campo social e
liberal-utilitarista, muito embora nos econômico. Não haveria forças automáticas
últimos 50 anos sob forte assédio do de mercado aptas para ajudar a economia a
socialismo coletivista. Entre os anos sair do subemprego e voltar a aproximar-se
20 e 30, ganha terreno a chamada do pleno emprego.
social-democracia ou intervencionismo, Ainda na década de 30, Keynes lança a
no mundo ocidental, enquanto na teoria revolucionária do déficit sistemático
Europa oriental e em algumas nações das contas públicas como mecanismo de
asiáticas ensaiava-se o regime de estímulo à atividade econômica em perío-
índole coletivista-estatal. Já a última dos recessivos.
década do século assiste a um refluir Conforme assinala Fábio Nusdeo (2000),
das soluções socializantes de diversas Keynes ilustrava a sua idéia com exemplo
vertentes, com o remontar da maré aparentemente estapafúrdio:
liberalista, voltada a conter o Estado “(...) se o governo numa época de
dentro de limites mais acanhados, depressão contratar duas equipes de
ao que se tem chamado de Estado operários, incumbindo a primeira de
mínimo. Privatização e desregulamen- abrir buracos e a segunda de fechá-los,
tação têm-se constituído em balizas isto parecerá inócuo e absurdo sob o

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ponto de vista físico, mas terá um sen- desse período, o crescimento do comércio
tido altamente salutar sob o ponto de mundial suplantou o crescimento da renda
vista econômico (macroeconômico). mundial, indicando que os países se estão,
Por quê? Pela simples razão de tanto crescentemente, especializando internacio-
os trabalhadores do primeiro grupo nalmente e utilizando o mercado mundial
quanto os do segundo passarem a para aumentar o nível de bem-estar e de cres-
receber algum salário a ser gasto em cimento econômico. Isso não significa que a
compras. Estas, por sua vez, estimula- ameaça protecionista tenha sido reduzida.
rão o comércio, que voltará a colocar Particularmente a partir dos anos 70, com
encomendas junto à indústria, a qual o aumento da participação dos países em
contratará empregados (ou deixará de desenvolvimento no comércio internacional,
despedi-los) para atendê-las e, ainda, os países ricos passaram a utilizar intensa-
comprará matérias-primas a serem mente as “restrições não tarifárias” para
transportadas e assim, sucessivamen- proteger suas indústrias da concorrência
te, as engrenagens da produção e do com os países emergentes. Intensificou-se a
emprego irão se reativando.” utilização das quotas de importação, de nor-
Keynes visualizou que o mercado de mas (técnicas, fitosanitárias, de qualidade,
forma pura pode ocasionar momentos meio ambiente e condições de trabalho), das
desconfortáveis para o sistema econômico restrições voluntárias à exportação e de leis
e social, na noção de “pleno emprego”, “su- comerciais para coibir a entrada de produtos
bemprego” e da necessidade de intervenção importados (SILVA, 2000, p. 11).
estatal, inclusive sem lastro econômico Além disso, a partir dos anos 70, houve
(“déficit sistemático das contas públicas). rápida transformação do mercado financeiro
A ação estatal de combate à recessão internacional, em função da desregulamen-
significou a intervenção do Estado na eco- tação das transações financeiras internacio-
nomia, com ênfase, em primeiro momento, nais e pelo aparecimento das tecnologias
na função de Estado-produtor e, também, de informação. À medida que o tempo foi
na de agente regulador (por exemplo: na passando, a legislação foi ficando cada vez
edição de legislação social garantidora dos mais liberal com relação à entrada e saída de
direitos trabalhistas e previdenciários). recursos financeiros, sendo que hoje prati-
Nesse contexto, os direitos de segunda camente não existem impedimentos legais à
geração podem ser vistos como reflexo da movimentação internacional de capitais nos
intervenção estatal na economia. principais mercados financeiros do mundo.
O desenvolvimento das tecnologias de infor-
2.3. O neoliberalismo, a globalização e os
direitos de terceira geração realizam a Conferência Monetária e Financeira In-
ternacional das Nações Unidas em Bretton Woods, no
O período pós-guerra presenciou con- Estado de New Hampshire, com a finalidade de estru-
tínua expansão dos mercados mundiais. O turar a ordem econômica internacional a vigorar no
comércio internacional, após longo período pós-guerra. Três entes foram criados, na ocasião, com
a finalidade de implantar a nova ordem econômica
de retração devido às duas guerras mundiais internacional e dar-lhe sustentação e viabilidade: o
e à grande crise de 1929, inicia fase de rápida Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Inter-
expansão, impulsionada pelo crescimento da nacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)
renda mundial e pela liberalização comercial e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).
Ao GATT foi atribuída a responsabilidade de estabe-
negociada no âmbito do GATT (Acordo lecer as normas de controle do comércio mundial de
Geral de Tarifas e Comércio).7 Ao longo mercadorias, com a função precípua de zelar pelo livre
comércio entre as nações. Depois de vários anos de
7
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Es- árduas negociações, chegou-se à decisão de extinguir
tados Unidos, consolidando sua liderança nos países o GATT e substituí-lo, a partir de 1o de Janeiro de 1995,
capitalistas, e os outros países vencedores do conflito pela Organização Mundial de Comércio (OMC).

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mação (telecomunicações e microeletrônica) cada vez mais importantes no cenário mun-
possibilitou rápida redução dos custos das dial. A internacionalização do comércio,
transações financeiras internacionais e esses das finanças e da produção é o fenômeno
elementos contribuíram decisivamente para que hoje se conhece como globalização9 da
transformar o mercado financeiro no prin- economia mundial.10
cipal mercado internacional. Estima-se que Outra tendência recente na economia
atualmente o volume de transações cambiais mundial é a da proliferação de acordos
se situe na marca de US$ 1.5 trilhão por dia, regionais de comércio. Existem atualmente
com parcela predominante de aplicações quase uma centena de tais acordos e, den-
financeiras (PINHO, 1998, p. 479). tre eles, destacam-se: a União Européia,
A diversificação das aplicações finan- o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da
ceiras em escala planetária mudou dras- América do Norte), o Bloco do Yen (Tigres
ticamente o regime cambial mundial. Até Asiáticos) e o Mercosul.11
1973, vigorava o regime “Padrão Dólar” (ou
regime de Bretton Woods8) de câmbio fixo, 3. O meio ambiente e sua vinculação
em que as principais moedas do mundo jurídica aos sistemas econômicos
conviviam em um regime de taxa de câmbio
nominal fixo. Com o aparecimento de uma
3.1. O princípio da defesa do meio
enorme mobilidade internacional, ficou cada
ambiente como mecanismo conformador
vez mais difícil manter o regime de câmbio
da ordem econômica
fixo e os principais países do mundo opta-
ram por regime de taxa de câmbio flutuante O princípio da propriedade privada
(em que a taxa de câmbio é determinada pelo assegurado como direito fundamental (art.
mercado, embora os bancos centrais também 5o, inciso XXIII da Constituição Federal)
intervenham nesse mercado). Dada a mobili-
dade de capital e a ausência de coordenação 9
Globalização não é um conceito unívoco. Para
José Eduardo Faria (1999, p. 59-60) é um conceito
macroeconômica entre os países desenvol-
plurívoco associado, geralmente, a uma nova econo-
vidos, tem sido grande a flutuação da taxa mia política das relações internacionais, caracterizada
de câmbio entre as principais moedas do pela autonomia adquirida pela economia em relação à
mundo (CÉSAR SILVA, 2000, p. 35). política; a emergência de novas estruturas decisórias
operando em tempo real e de alcance planetário, a
Outra mudança importante do mercado realocação geográfica dos investimentos especulati-
mundial é a representada pelo aumento da vos, dentre outros.
participação das multinacionais na produ- 10
Arnaud (1999, p. 13) afirma que com o fenômeno
ção e no comércio internacional. Estima-se da globalização está ocorrendo uma expansão cres-
cente das multinacionais. Tais empresas são capazes
que pelo menos um terço da produção de fazer explodir sua produção graças à existência do
mundial seja controlada pelas multina- fluxo livre de investimentos sem fronteiras e à mudan-
cionais e essas entidades têm transferido ça dos modelos de produção associada ao poder de
parcelas crescentes da produção para os transação e de barganha das empresas multinacionais
em uma economia planetária.
países emergentes. O baixo custo da mão- 11
Segundo César Silva (2000, p. 42-43): “Um
de-obra, as perspectivas de crescimento do dos resultados mais prementes da globalização do
mercado interno e o acesso a recursos naturais sistema capitalista mediante o capital financeiro foi
têm transformado esses países em atores a estruturação de blocos econômicos unificados, ou
seja, dos processos de integração econômica suprana-
cional em escala regional. Tal fato, longe de significar
8
“O Brasil, ao aderir aos termos do Acordo de uma harmonização de interesses dentro de mercados
Bretton Woods, optou por adotar restrições à con- abertos no plano mundial, representa precisamente
versibilidade de sua moeda corrente, possibilitando o contrário: a liberalização comercial entre os países
assim um controle efetivo sobre os fluxos de capitais integrantes de cada bloco é acompanhada pelo esta-
estrangeiros no País e de capitais brasileiros no exte- belecimento de um protecionismo ainda maior em
rior” (CADIER, 1999, p. 281). relação ao resto do mundo.”

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 123


deve ser interpretado em harmonia com o propriedades imobiliárias não impe-
princípio de que a propriedade atenderá a de que o dominus venha a promover,
sua função social no que tange à proteção dentro dos limites autorizados pelo
do meio ambiente ecologicamente em Código Florestal, o adequado e ra-
equilíbrio, pois, sendo bem de uso comum cional aproveitamento econômico
do povo (interesse público), há cristalina das árvores nelas existentes. A juris-
restrição à iniciativa privada por atos do prudência do Supremo Tribunal Fe-
Poder Público. deral e dos Tribunais em geral, tendo
Sob o prisma de ponderação de bens presente a garantia constitucional que
constitucionais, o Supremo Tribunal protege o direito de propriedade,
Federal já se pronunciou no sentido de firmou-se no sentido de proclamar
interpretar-se a norma inscrita no art. 225 a plena indenizabilidade das matas
da Constituição Federal de modo harmo- e revestimentos florestais que reco-
nioso com o sistema jurídico consagrado brem áreas dominiais privadas, obje-
pelo ordenamento fundamental, dando to de apossamento estatal ou sujeitas
relevo à interdependência das normas a restrições administrativas impostas
constitucionais protetivas com o direito de pelo Poder Público. Precedentes.
propriedade (art. 5o, XXII), verbis:12 – A circunstância de o Estado dispor
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO de competência para criar reservas
– ESTAÇÃO ECOLÓGICA – RESER- florestais não lhe confere, só por si,
VA FLORESTAL NA SERRA DO considerando-se os princípios que tu-
MAR – PATRIMÔNIO NACIONAL telam, em nosso sistema normativo, o
(C.F., ART. 225, § 4o) – LIMITAÇÃO direito de propriedade, a prerrogativa
ADMINISTRATIVA QUE AFETA de subtrair-se ao pagamento de inde-
O CONTEÚDO ECONÔMICO DO nização compensatória ao particular,
DIREITO DE PROPRIEDADE – quando a atividade pública, decor-
DIREITO DO PROPRIETÁRIO DE rente do exercício de atribuições em
INDENIZAÇÃO – DEVER ESTATAL tema de direito florestal, impedir ou
DE RESSARCIR OS PREJUÍZOS DE afetar a válida exploração econômica
ORDEM PATRIMONIAL SOFRIDOS do imóvel por seu proprietário.
PELO PARTICULAR – RE NÃO CO- – A norma inscrita no art. 225, § 4o,
NHECIDO. da Constituição deve ser interpretada
– Incumbe ao Poder Público o dever de modo harmonioso com o sistema
constitucional de proteger a flora e jurídico consagrado pelo ordenamen-
de adotar as necessárias medidas to fundamental, notadamente com a
que visem a coibir práticas lesivas cláusula que, proclamada pelo art.
ao equilíbrio ambiental. Esse encar- 5o, XXII, da Carta Política, garante
go, contudo, não exonera o Estado e assegura o direito de propriedade
da obrigação de indenizar os pro- em todas as suas projeções, inclusive
prietários cujos imóveis venham a aquela concernente à compensação
ser afetados, em sua potencialidade financeira devida pelo Poder Público
econômica, pelas limitações impostas ao proprietário atingido por atos
pela Administração Pública. imputáveis à atividade estatal.
– A proteção jurídica dispensada às – O preceito consubstanciado no art.
coberturas vegetais que revestem as 225, § 4o, da Carta da República, além
de não haver convertido em bens pú-
12
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP,
Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de blicos os imóveis particulares abrangi-
Justiça de 22/09/95. dos pelas florestas e pelas matas nele

124 Revista de Informação Legislativa


referidas (Mata Atlântica, Serra do art. 225, § 1o, inciso VII, e § 4o, da Carta
Mar, Floresta Amazônica brasileira), Política, que o novo ordenamento
também não impede a utilização, pe- constitucional promulgado em 1988
los próprios particulares, dos recursos introduziu profundas alterações no
naturais existentes naquelas áreas que sistema de direito positivo brasilei-
estejam sujeitas ao domínio privado, ro, consagrando a inexigibilidade de
desde que observadas as prescrições qualquer indenização pelos atos adminis-
legais e respeitadas as condições ne- trativos de intervenção estatal na esfera
cessárias à preservação ambiental. dominal privada, desde que, praticados
– A ordem constitucional dispensa tu- com finalidade de proteção ambien-
tela efetiva ao direito de propriedade tal, venham a incidir em imóveis
(C.F./88, art. 5o, XXII). Essa proteção situados na Serra do Mar (...).
outorgada pela Lei Fundamental da Não assiste, também neste ponto, qual-
República estende-se, na abrangência quer razão ao recorrente, eis que o
normativa de sua incidência tutelar, acolhimento da tese ora sustentada
ao reconhecimento, em favor do do- implicaria virtual nulificação do direito
minus, da garantia de compensação de propriedade, com todas as graves
financeira, sempre que o Estado, conseqüências jurídicas que desse
mediante atividade que lhe seja fato adiviriam.14” (grifo nosso)
juridicamente imputável, atingir o Por outro lado, assinalando a índole co-
direito de propriedade em seu conte- mum da proteção ambiental (ser assegurada
údo econômico, ainda que o imóvel não só pela sociedade, mas também pelo
particular afetado pela ação do Poder Estado), explica que seria inadequado impor
Público esteja localizado em qualquer somente ao particular tal ônus, verbis:
das áreas referidas no art. 225, § 4o, da “É de ter presente, neste ponto, que,
Constituição. sendo de índole comum o direito à pre-
– Direito ao meio ambiente ecologi- servação da integridade ambiental, não
camente equilibrado: a consagração se pode impor apenas aos proprietários
constitucional de um típico direito de áreas localizadas na Serra do
de terceira geração” (C.F., art. 225, Mar – que venham a sofrer as con-
caput). seqüências derivadas das limitações
No referido acórdão, o Rel. Min. Cel- administrativas incidentes sobre os
so de Mello ressalta a jurisprudência do seus imóveis – os ônus concernentes
Supremo Tribunal Federal, no sentido de à concretização, pelo Estado, de seu
garantir a plena ressarcibilidade dos pre- dever jurídico-social de velar pela
juízos materiais decorrentes das limitações conservação, em benefício de todos, de
administrativas ao direito de propriedade, um meio ambiente ecologicamente
ao referir-se ao direito do poder público equilibrado.
de constituir reservas florestais em seu Por tal razão, as normas inscritas no
território, desde que não as constitua gra- art. 225 da Constituição hão de ser
tuitamente.13 interpretadas de modo harmonioso
E continua, verbis: com o sistema jurídico consagrado
“(...) O Estado de São Paulo sustenta, pelo ordenamento fundamental, no-
ainda, a partir das regras inscritas no tadamente com a cláusula que, pro-
13
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, 14
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP,
Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justi- Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justi-
ça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da ça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da
cópia do texto integral do acórdão, p. 686 a 687. cópia do texto integral do acórdão, p. 688 a 689.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 125


clamada pelo art. 5o, XXII, da Carta lação de interdependência no ordenamento
Política, garante e assegura o direito jurídico. Subjaz a essa interdependência a
de propriedade em todas as suas pro- idéia de sistema formal que obriga a não
jeções, inclusive aquela concernente à compreender “em nenhum caso somente
compensação financeira devida pelo a norma isolada senão sempre no conjunto
Poder Público ao proprietário atin- em que deve ser situada: todas as normas
gido por atos imputáveis à atividade constitucionais têm de ser interpretadas
estatal.15” (grifo nosso) de tal maneira que se evitem contradições
Destacando a íntima relação entre a pro- com outras normas constitucionais (Idem,
teção ambiental e o direito de propriedade, p. 48).
Michael Pagano (1995, p. 8), professor da Deve, pois, haver ponderação entre o
Universidade de Miami, e Ann Bowaman desenvolvimento econômico e a proteção
(1995, p. 8), professora da Universidade da ambiental no contexto do ordenamento ju-
Carolina do Sul, ao tratarem do federalis- rídico como um todo, não comportando an-
mo americano e da proteção ambiental na tinomias entre normas definitivas. Assim,
década de noventa, ressaltam, também, a a contradição entre conteúdos de normas
ponderação entre as normas ambientais abertas, a valoração, não importa elimina-
restritivas e o uso da propriedade, desta- ção de uma delas do texto da Constituição,
cando a necessidade de os órgãos estatais mas apenas harmonização de interesses em
americanos compensarem financeiramente um determinado caso concreto.
os proprietários atingidos pelas normas
restritivas, verbis: 3.2. O desenvolvimento sustentável como
“(...) By July, 1995, several regulatory ética de desenvolvimento com a harmonização
reform bills were making their way do econômico e do ecológico
through the legislative thicket. The
primary proposal would require 3.2.1. Defesa do meio ambiente como
federal agencies to undertake a rigor- objetivo da ordem econômica
ous series of risk assesments and cost- Eros Roberto Grau (1990, p. 255) iden-
benefit analyses to justify new and extant tifica a defesa do ambiente como diretriz,
regulations. A related measure would norma-objetivo, dotável de caráter constitu-
require the federal government to com- cional conformador, ao indicar:
pensate a property owner if a federal “Princípio da ordem econômica
regulatory action caused even a modest constitui também a defesa do meio
diminution in the fair market value of the ambiente (art. 170, VI), trata-se de
property.” (grifo nosso) princípio constitucional impositivo
A análise das jurisprudências do Su- (Canotilho), que cumpre dupla fun-
premo Tribunal Federal e a análise da ção, qual os anteriormente referidos.
doutrina americana apresentadas trazem, à Assume também, assim, a feição de
colação, a unidade do texto constitucional. diretriz (Dworkin) – norma-objetivo
Segundo Konrad Hesse (1983, p. 18), “(...) a – dotada de caráter constitucional
Constituição somente pode ser compreen- conformador, justificando a reivin-
dida e interpretada corretamente quando é dicação pela realização de políticas
entendida, nesse sentido, como unidade”. públicas.”
Assim, as normas encontram-se em uma re- Identificando-se o princípio da defesa
do ambiente como expoente conformador
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP,
15

Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justi-


da ordem econômica (mundo do ser), por
ça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da ele são informados, conseqüentemente, os
cópia do texto integral do acórdão, p. 692 a 693. princípios da garantia do desenvolvimento

126 Revista de Informação Legislativa


nacional (art. 3o, II) e do pleno emprego.16 O Constituição, mas o núcleo se encontra no
desenvolvimento nacional não haverá mais caput do artigo 225: “Todos têm direito a um
de ser reduzido ao conceito de crescimento meio ambiente ecologicamente equilibrado,
econômico, mas deverá ser equilibrado,17 bem de uso comum do povo e essencial à
não só no sentido de atendimento do plano sadia qualidade de vida, impondo-se ao
nacional e do plano regional (procedimento Poder Público e à coletividade o dever de
necessário em face do princípio federativo), defendê-lo e preservá-lo para as presentes
mas para obediência do princípio da defesa e futuras gerações”. O capítulo da ordem
do meio ambiente, com o conteúdo deline- econômica também consagra o respeito ao
ado pelo artigo 225. meio ambiente como limitador da atividade
econômica (artigo 170, inciso IV), bem como
3.2.2. O conceito de desenvolvimento o artigo 186 que trata da função social da
sustentável e a ética do desenvolvimento propriedade dentro do Título da Ordem
Situamos o princípio de desenvolvi- Econômica e Financeira.19
mento sustentável18 em diversos artigos da O conceito de desenvolvimento sus-
tentável elaborado pelo relatório de Brun-
16
“O princípio da defesa do meio ambiente confor- dtland20 é o seguinte: “O desenvolvimento
ma a ordem econômica (mundo do ser), informando
substancialmente os princípios da garantia do desen-
sustentável seria aquele capaz de satisfazer
volvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, as necessidades sociais atuais sem compro-
em si, é instrumento necessário – e indispensável – à meter as necessidades futuras”.
realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos A conceituação desse desenvolvimento
existência digna. Nutre também, ademais, os ditames
da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente
engloba questões ideológicas, visto que a
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum própria noção de desenvolvimento sempre
do povo – diz o art. 225, caput. O desenvolvimento acompanhou disputa por diferentes formas
nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da de apropriação da riqueza e reprodução
República Federativa do Brasil, e o pleno emprego
que impende assegurar supõem economia autossus-
social.
tentada, suficientemente equilibrada para permitir Nesse aspecto, o saudoso Professor
ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser Josaphat Marinho (1995, p. 10) enfatizava
humano e não apenas como um dado ou índice econô- a diferença entre crescimento econômico e
mico. Por esta trilha segue a chamada ética ecológica
e é experimentada a perspectiva holística da análise
desenvolvimento:
ecológica, que, não obstante, permanece a reclamar
chave: a) o conceito de “necessidade”, sobretudo as
tratamento crítico científico da utilização econômica
necessidades essenciais dos pobres do mundo, que
do fator recursos naturais”. (GRAU, 1994, p. 249). devem receber a máxima prioridade; e b) a noção das
17
A Constituição Federal vigente em seu art. 174, limitações que o estágio da tecnologia e da organiza-
§ 1 , assinala: “Art. 174. Como agente normativo e
o
ção social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de
regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, atender às necessidades presentes e futuras.
na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo 19
Ao se decompor essa disposição constitucional,
e planejamento, sendo este determinante para o setor percebe-se que, entre esses aspectos, se encontra um
público e indicativo para o setor privado. § 1o A lei de feição eminentemente ecológica ou ambiental, qual
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do seja o item II (utilização adequada dos recursos naturais
desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorpo- disponíveis e preservação do meio ambiente), que, na
rará e compatibilizará os planos nacionais e regionais verdade, constitucionalizou e ampliou uma dispo-
de desenvolvimento”. (grifo nosso) sição infraconstitucional já presente na alínea “c” do
18
A “Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e parágrafo 1o do art. 2o da Lei no 4.504/64 (Estatuto da
Desenvolvimento” (Comissão Brundtland), criada em Terra), qual seja, a que “assegura a conservação dos
1983, trabalhou durante quatro anos para produzir recursos naturais”.
o documento “Nosso Futuro Comum”, em que foi 20
O Relatório Brundtland foi resultado da Confe-
consagrada a expressão “Desenvolvimento Sustentá- rência de Estocolmo (1972), a primeira reunião mun-
vel”, que foi ali conceituado como aquele que atende dial em que se tratou da questão ambiental, em que
às necessidades do presente sem comprometer a 114 países procuravam soluções para problemas que
possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas séculos de desenvolvimento irracional ocasionaram
próprias necessidades. Ele contém dois conceitos- para todo o planeta.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 127


“Se não é próprio estabelecer oposi- bem-estar (ramo do qual a economia am-
ção entre os termos, cabe assinalar biental constitui-se em parte) sob o enfoque
que, no juízo prevalecente, cresci- utilitarista social em contra ponto ao do
mento só se equipara a desenvolvimento auto-interesse:
quando une a ampliação das riquezas ao “O apoio que os crentes e defensores
robustecimento da personalidade huma- do comportamento auto-interessado
na, como força social apta a produzir num buscaram em Adam Smith é na ver-
ambiente adequado.” (grifo nosso) dade difícil de encontrar quando se
Da mesma forma, Denis A. Goulet (1966, faz uma leitura mais ampla e menos
p. 1) esclarece: “O desenvolvimento não é a tendenciosa da obra smithiana. Na
simples industrialização ou modernização, verdade, o professor de filosofia moral
nem o aumento da produtividade ou a re- e economista pioneiro não teve uma vida
forma das estruturas do mercado”. de impressionante esquizofrenia. De
Completando sua exposição e explican- fato, é precisamente o estreitamento,
do que o desenvolvimento deve ser um meio na economia moderna, da ampla
para conduzir os homens à sua dignificação, visão smithiana dos seres humanos
Goulet (1966, p. 38) defende uma ética do que pode ser apontado como uma
desenvolvimento como “um impulso não das principais deficiências da teoria
mecânico mas humano, uma criação da econômica contemporânea. Esse em-
inteligência e da vontade de homens cons- pobrecimento relaciona-se de perto
cientes e de ação, de homens que possuam com o distanciamento entre economia
uma visão dos fins que lhes permita escolher e ética (...)
racionalmente os meios. Em outras palavras, As proposições típicas da moderna
“homens que tenham uma ética (ciência e arte dos economia do bem-estar dependem
fins e dos meios) do desenvolvimento”. de combinar comportamento auto-
Analisando a obra de Goulet (1966), o interessado, de um lado, e julgar a
professor George Browne Rêgo (1995, p. realização social segundo algum critério
114) destaca que: fundamentado na utilidade, de outro
“(...) A proposta do Professor Denis (...).”(grifo nosso)
consiste em, superando o unilatera- Na sua defesa de uma convergência entre
lismo intransigente e evitando um a ética e a economia, Amartya Sen (1999, p.
ecletismo inconsistente, identificar 94-95) alinha-se a Denis Goulet (1966) na
em que medida os conflitos entre ciên- defesa de uma ética de desenvolvimento, que
cia e ética se processam, aonde estão não se restrinja a mera visão utilitária de
as suas causas e como elaborar uma progresso na sua dimensão estritamente
nova teoria do desenvolvimento da econômica. Nesse âmbito, afirma:
qual se possa derivar um plano de ação “Procurei mostrar que o fato de a
mais profundo e consistente que abrigue, economia ter se distanciado da ética
na justa medida, a interação entre homem empobreceu a economia do bem-estar e
e natureza, ao mesmo tempo em que possa também enfraqueceu a base de boa
promover as mudanças sociais requeridas, parte da economia descritiva e pre-
sem perder de vista os interesses mais ditiva (...)
gerais da pessoa humana, relativos à dig- O uso disseminado da extremamente
nidade do seu existir, quer material, quer restrita suposição do comportamento
espiritualmente.” (grifo nosso) auto-interessado tem limitado de forma
Como bem expressa, no mesmo sen- séria, como procurei demonstrar, o alcan-
tido, o nobel de economia Amartya Sen ce da economia preditiva e dificultado a
(1999, p. 44-46), tratando da economia do investigação de várias relações econômi-

128 Revista de Informação Legislativa


cas importantes que funcionam graças à explorado por ser gratuito, sem limitações
versatilidade dos comportamentos (...) quantitativas e qualitativas, mostra-se ex-
Por outro lado, ater-se inteiramente tremamente prejudicial.
à restrita e implausível suposição do Denis A. Goulet (1966, p. 95-96), por
comportamento puramente auto- outro lado, ressalta a relação entre desen-
interessado parece levar-nos por um volvimento e solidariedade na coabitação
pretenso ‘atalho’ que termina em do mesmo planeta:
um lugar diferente daquele aonde “(...) Nossa terra é única. Todos os
desejávamos.” (grifo nosso) homens ocupam-na e habitam-na. A
Logo, a ambição de ampliar a produti- simbiose entre a natureza e o homem
vidade não se coaduna com a diversidade decorre da natureza dêsse: os laços
da natureza e com seu processo de regene- que os ligam são permanentes. O ho-
ração, seja em uma visão ecocêntrica, seja mem, apesar de ser distinto da natu-
em uma visão antropocêntrica. reza, dela faz parte, de certa forma. A
A Constituição de 1988 adotou, dentro da ocupação da terra é destino de todos
perspectiva de uma ética do desenvolvimento, os homens e não privilégio de alguns.
como conceito de desenvolvimento sustentável Aliás, essa ocupação é ato não só do
aquele que não permite a privatização do meio indivíduo, mas também de grupos, de
ambiente, prioriza a democratização do controle organizações coletivas, de unidades
sobre o meio ambiente ao definir meio ambiente societárias. Uma terra para todos os
como “bem de uso comum do povo” e exige o homens e para tôdas as sociedades
controle do capital sobre o meio por intermédio humanas. O planeta cria laços que
de instrumentos como o Estudo de Impacto Am- ligam os homens a si e entre si.”
biental e muitos outros, que chamam a comuni- Com isso, a afronta aos recursos naturais
dade a decidir. Para uma aplicação eficiente do passou a ser uma afronta contra humani-
desenvolvimento sustentável, faz-se necessário dade. Assim, esses segmentos da socieda-
um levantamento da medida de suporte do de começaram a questionar o modelo de
ecossistema, ou seja, estuda-se a capacidade de desenvolvimento econômico, repudiando
regeneração e de absorção do ecossistema e se publicamente as suas conseqüências e rei-
estabelece limite para a atividade econômica. vindicando, junto a seus representantes,
Esse limite permite que as atividades econômicas mudanças nas políticas governamentais e
não esgotem o meio ambiente, mas que este seja no setor produtivo, como forma de mini-
protegido para o futuro. mizar e evitar que novos danos ambientais
ocorressem.
4. Economia do meio ambiente: busca da Para os economistas, por sua vez,
incorporação das externalidades ambientais grande parte desses problemas ambientais
deviam-se a uma ineficiência do mercado21 em
refletir esses efeitos negativos nos preços
4.1. Crescimento econômico e degradação
dos bens e serviços produzidos.
ambiental: propostas de conciliação
Passados quase trinta anos da publica-
Davis Pepper destaca a relação entre o ção de “Limites do Crescimento”, o pessi-
desenvolvimento econômico e a afronta ao 21
Ineficiência do mercado são todos os fenômenos
meio ambiente como uma preocupação cen- (p. ex. danos ambientais) que não são levados em
tral do ambientalismo moderno, por meio consideração num mercado perfeitamente competi-
da parábola do biólogo Garret Hardin em tivo; a ineficiência do mercado é também chamada
de externalidade. “Os mercados falham quando as
artigo publicado na Revista Science. Pepper transações num mercado produzem efeitos positivos
(2000, p. 82) afirma que a consideração de ou negativos a terceiros, ou seja, causam externalida-
que o bem ecológico pode por todos ser des” (MONTORO FILHO, 1998, p. 237).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 129


mismo mostra-se hoje bem menor. Todavia, recursos naturais são classificados de re-
ainda há questões e problemas que não se nováveis e não-renováveis. Os renováveis
podem ignorar. O crescimento econômico, são aqueles que podem ser recuperados
principalmente nos países de terceiro mun- ao longo do tempo, seja por processo na-
do, foi acompanhado de sérios problemas tural ou pela ação humana, tais como bens
de poluição da água e do ar. Diversas vivos (animais, plantas etc.) e a água que
espécies de animais e vegetais que podem se renova por seu ciclo hidrológico. Os
ser úteis para a humanidade num futuro não-renováveis ou recursos esgotáveis são
próximo estão ameaçadas de extinção. Isso aqueles impossíveis de o homem fazer vol-
seria indício de que estamos fazendo algo tar à situação anterior, ou seja, aqueles cujo
errado? E, se positiva a resposta, como se estoque se encontra na terra e sua formação
poderá modificar tal maneira de agir? só é possível de acontecer numa escala de
A teoria econômica (assim, como a fi- tempo geológica. São esses os recursos mi-
losofia, a ecologia e o direito) tenta obter nerais (ferro, petróleo etc.). Constituem-se
respostas para essas perguntas. O campo fatores de produção (PINHO, 1998, p. 631).
da economia (que aplica a teoria a questões – Efeitos externos ou externalidades22
ligadas ao manejo e preservação do meio – são os danos ou benefícios ecológicos
ambiente) é chamado de economia ambiental. resultantes da produção e consumo de
Assim, discutiremos alguns dos princí- bens e serviços, que são impostos a ter-
pios dessa disciplina no tópico seguinte. ceiros (indivíduo, empresa, coletividade)
sem nenhuma compensação, e que não
4.2. Economia ambiental são considerados na formação dos preços
desses bens e serviços para sua transação
4.2.1. Economia ambiental e a no mercado.
economia do bem-estar – Bens coletivos ou bens públicos – de-
A economia do meio ambiente e dos signam os bens para os quais o consumo
recursos naturais apóia-se nos fundamentos ou utilização não é exclusivo (recursos
da teoria econômica neoclássica, que tem naturais como a água e o ar), ou seja, di-
sua análise centrada na alocação ótima de versos agentes sociais podem consumir ou
recursos pelo mercado. Essa corrente da compartilhar dos mesmos benefícios sem
economia, segundo Godard (1997, p. 201- nenhum inconveniente.
202), é o resultado do desdobramento dos Para alguns desses bens, constata-se
conceitos de recursos naturais ou ativos uma impossibilidade, teórica ou contingen-
naturais, efeitos externos ou externalidades te, de definir os direitos de uso exclusivos
e bens coletivos, que servem de reserva (o titular dos direitos não pode garantir a
para unir ao núcleo teórico neoclássico os exclusividade do uso).
problemas levantados pela natureza, os
quais resultam, em primeiro lugar, da dupla
22
Os fundamentos da teoria padrão das externa-
lidades de Marshall foram desenvolvidos por Pigou,
confrontação do produzível e do não pro- em 1920, ao classificar os efeitos das externalidades em
duzível, do mercantil e do não mercantil. positivos e negativos. O efeito positivo Pigou chamou
Os conceitos de que fala Godard (1997, de economia externa e o negativo, de deseconomia
externa. Para as externalidades negativas ou deseco-
p. 203-209) tratam de particularidades in-
nomia externas, Pigou propôs que o Estado deveria
dividuais dos bens e serviços naturais que intervir no mercado cobrando uma taxa, cujo valor
ajudam a identificar as conseqüências de deveria ser igual ao valor monetário do custo externo,
sua apropriação pelo homem: que corresponde à diferença entre o custo privado
(inclui todos os custos de produção – capital, trabalho,
– Recursos naturais ou ativos natu- terra e capacidade empresarial) e o custo social (im-
rais – designam o conjunto de bens que pactos ambientais adversos, resultantes das atividades
não são produzíveis pelo homem. Esses econômicas). (DERANI, 1997, p. 108-109).

130 Revista de Informação Legislativa


A economia do meio ambiente ou eco- No contexto ora proposto, os recursos
nomia ambiental, por sua vez, continua ambientais desempenham funções econô-
trabalhando com os conceitos de recursos micas, entendidas essas como qualquer
naturais ou ativos naturais, efeitos externos serviço que contribua para a melhoria
ou externalidades, bens coletivos ou bens do bem-estar, do padrão de vida e para o
públicos, incluindo também os fundamentos desenvolvimento econômico e social. Fica,
da economia do bem-estar.23 então, implícita, nestas considerações, a ne-
A economia do bem-estar, segundo Bellia cessidade de valorar corretamente os bens
(1996, p. 77) é a “parte do estudo da econo- e serviços ambientais, entendidos esses no
mia que explica como identificar e alcançar desempenho das suas funções, seja de fator
alocações de recursos socialmente eficientes de produção do sistema produtivo, seja de
(...) ela somente se preocupa com o con- equilíbrio ecológico.
junto de opções aberto à sociedade, que A ênfase, entretanto, dada pela econo-
contém as ‘melhores’ soluções possíveis de mia ambiental relaciona-se ao primeiro
alocação de recursos”. Destaca, portanto, o aspecto (meio ambiente como fator de pro-
surgimento de uma economia interventiva, dução), não obstante procure, em segundo
que busca a alocação de recursos social- plano, garantir o equilíbrio ecológico.
mente eficientes, com compreensão das
deficiências do mercado clássico. 4.2.2. Os componentes da valoração
A economia do bem-estar e a economia do econômica ambiental
meio ambiente têm em comum a preocupa- Essa atribuição econômica de valores
ção com a sociedade, com destaque, respec- para o meio ambiente pode ser representa-
tivamente, para os direitos sociais (direitos da, segundo Pearce (1990, p. 21-22) e Bellia
de segunda dimensão) e para os direitos (1996, p. 92-93), pela seguinte fórmula:
ambientais (direitos de terceira geração).
Assim, a questão do meio ambiente, sob Valor econômico ambiental total =
a ótica da economia do meio ambiente, é valor de uso + valor de opção + valor
apreendida em termos de alocação de bens de existência
entre agentes em função das preferências
destes últimos. Onde, de forma sintética, podemos
afirmar que:
23
“Arthur Cecil Pigou, professor de Cambridge
no início deste século, desenvolveu o vasto edifício – valor de uso (use) – refere-se aos bens
da ‘Economia do Bem-Estar’ investigando os efeitos e serviços ambientais que são apropriados
de todo um elenco de políticas econômicas, sociais e para consumo imediato. Podem ser de uso
fiscais, numa sociedade que ainda não alcançou o total
planejamento sobre a renda social e sua distribuição a
direto, quando são resultados da explora-
curto, médio e longo prazos. Fez a importante desco- ção; ou de uso indireto, se esses bens e ser-
berta de que é incorreto calcular os custos de produção viços dependem de funções do ecossistema
apenas em termos dos custos que oneram exclusi- para serem gerados.
vamente o produtor privado. Há, freqüentemente,
outros custos de produção, como o desemprego, ou
– valor de opção (option) – refere-se ao
o dano à saúde dos trabalhadores, ou ruído e fumaça valor de uso direto e indireto dos bens e
que invadem as vizinhanças, que são suportados por serviços ambientais, cuja apropriação e
outras pessoas. Igualmente é incorreto calcular os consumo foram deixadas para o futuro
ganhos na produção exclusivamente em termos de
lucros privados: poderão haver lucros sociais que (“valor de uso para os indivíduos do futu-
não cabem ao produtor que dispendeu o capital ori- ro”), como opção de conservar ou preservar
ginal (...) Pigou, assim, provou definitivamente que esses bens e serviços ambientais.
o êxito de uma empresa, ou o resultado da concor-
– valor de existência (existence) – são va-
rência (mesmo “perfeita”, no sentido convencional),
não é necessariamente vantajoso para a sociedade” lores atribuídos para preservação do bem
(BELLIA, 1996, p. 77). ambiental por questões morais, religiosas,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 131


culturais, éticas etc. Independe de seu uso mais fidedigno, os outros dados, por serem
atual ou futuro, são valores não determi- externalidades negativas, não são conhe-
nados ou determináveis pela lógica do cidos ou ao menos avaliados espontanea-
mercado. mente pelo mercado. Por conseqüência, a
Destarte, a avaliação monetária dos ausência de uma avaliação monetária dos
danos ou benefícios constitui uma com- danos causados pela poluição dificulta a
ponente essencial da Economia do Meio determinação do Ótimo de Pareto.
Ambiente. Na ausência de tais avaliações, a Em economia, a noção de dano ou bene-
referência à eficiência econômica e ao ótimo fício repousa sobre a expressão das preferências
se tornam um ideal puramente teórico. Com dos indivíduos: preferência para evitar uma
efeito, pelo princípio geral da racionalidade perda (dano) ou para obter um benefício.
econômica, a economia, ciência da gestão Essas preferências se manifestam sobre o
dos recursos raros, tem por objetivo gerir mercado e se expressam sob a forma do
com o máximo de eficiência a fim de obter consentimento de pagar, transformando
um máximo de bem-estar que corresponda todos os valores em uma única forma de
a uma situação de “Ótimo de Pareto”.24 medi-lo: a preferência do indivíduo em pagar
Como bem expressa o nobel de econo- determinado preço no mercado.25
mia Amartya Sen (1999, p. 44-46), tratando A mensuração do valor de uso, primei-
da economia do bem-estar e do ótimo de ra parcela, do valor ambiental total não é,
Pareto: portanto, simples. Mostra-se complexa,
“A otimalidade de Pareto às vezes também mas não torna inviável a sua utilização de
é denominada ‘eficiência econômica’. Essa forma estimada, nem a possibilidade de
expressão é apropriada de um ponto avanços metodológicos nesse campo. As
de vista, pois a otimalidade de Pareto deficiências devem-se ao desconhecimento
concerne exclusivamente à eficiência da extensão e risco dos próprios impactos
no espaço das utilidades, deixando ambientais, que impede a identificação
de lado as considerações distributivas de todos os custos resultantes, e à desin-
relativas à utilidade. Porém, em outro formação dos indivíduos, o que reduz a
aspecto é inadequada, uma vez que percepção destes impactos.
todo o enfoque da análise neste caso Outro aspecto da mensuração de valores
continua sendo a utilidade (...) A oti- para bens ambientais envolve a segunda
malidade de Pareto capta os aspectos da parcela – os “valores de opção”. Esses
eficiência apenas do cálculo baseado na correspondem ao valor relacionado ao uso
utilidade.” (grifo nosso) potencial de um recurso, o qual não se utiliza
Na realidade, a determinação desse óti- de imediato, mas se deseja guardar para uma
mo exige o conhecimento de duas funções: eventual utilização posterior. Nele se encontra
a de custo total dos danos causados pela presente o elemento transgeracional do direi-
poluição e a de custo total da luta contra a to fundamental do desenvolvimento e do
poluição. Ora, se os custos da luta contra meio ambiente (direitos fundamentais de
a poluição podem ser calculados de modo terceira geração).
“A fim de remediar estas deficiências do mer-
24 25
“Economic assigned values are expressed in
cado, Pigou em 1920 preconizava a intervenção do terms of individual willingness to pay (WTP) and
estado sob a forma de taxação das externalidades nega- willingness to accept compensation (WTA)”. (PEAR-
tivas. No ponto correspondente ao ótimo de Pareto, a CE, 1990, p. 22). “De fato, na abordagem utilitarista,
taxa deve ser de um valor igual ao valor monetário do todos os diversos bens são reduzidos a uma magni-
custo externo, isto é, a diferença entre o custo privado tude descritiva homogênea (como se supõe que seja
e o custo social (...) o mercado deve presidir à alocação a utilidade), e então a avaliação ética simplesmente
dos custos, com a condição de ser corretamente ‘infor- assume a forma de uma transformação monotônica
mado’” (TOLMASQUIM, 1998, p. 326). dessa magnitude”. (SEN, 1999, p. 44 e 46).

132 Revista de Informação Legislativa


Ou seja, os indivíduos dão um valor à seu Professor Alfred Marshall), verificou a
preservação de uma floresta, de um mangue tendência no sentido da exploração preda-
ou qualquer outro patrimônio natural, a fim tória dos recursos naturais oriunda de uma
de manter aberta a opção de utilização desse “falta de desejo em relação ao futuro”.26
recurso, mesmo que essa hipótese seja pou- A internalização das externalidades
co provável ou sua execução esteja longe no consiste em fazer os seus responsáveis
tempo. A essa opção pode-se adicionar uma pagarem pelos custos coletivos ou sociais
opção pelos outros, com motivações altruís- que elas acarretam, corrigindo as diferenças
tas que fazem com que se confira um preço entre o ótimo privado e o ótimo social, cons-
à conservação de um patrimônio para as tituindo uma importante atividade estatal
gerações futuras (valores de legado) ou para a correção dessa diferença provocada pelo
os outros indivíduos (valores altruístas). mercado (Idem, p. 26-27).27
Por sua vez, os valores de existência O uso de Instrumentos Econômicos
(intrínsecos, por não estarem sujeitos ao (IE)28 na política ambiental vem ocorrendo
uso) não são ligados nem ao uso efetivo (pri- de forma crescente em muitos países como
meira parcela), nem à opção de uso (segunda mecanismo para: remediar as deficiências
parcela); dizem respeito ao valor conferido do mercado, no que se refere à internaliza-
à existência mesma de um patrimônio ção das externalidades negativas; melhoria
ou recurso, não levando em conta qual- do desempenho da gestão ambiental,29
quer possibilidade de usufruto direto ou complementação das estritas abordagens
indireto, presente ou futuro. Trata-se da
idéia de que certas coisas têm um valor, em 26
No original: “slackness of desire towards the
future”.
si, independente do uso efetivo (valor de uso) 27
A noção de um ótimo privado e de um ótimo pú-
ou potencial (valor de opção); mesmo que blico, bem como da distinção entre eles pode ser extraída
não se verifique nenhuma utilidade para de PIGOU, cético em relação aos benefícios sociais
determinado recurso ambiental, um valor do mercado ao demonstrar que os indivíduos tendem a
maximizar as suas satisfações presentes, na distinção feita
intrínseco lhe é conferido. Estar-se-á neste entre o produto marginal privado líquido e o produto mar-
ponto na fronteira entre a esfera econômica, que ginal social líquido: “The Marginal Social Net Product is
só conhece o “valor de troca e o valor de uso”, e the total net product of physical things or objective services
a esfera ecológica da conservação. due to the marginal increment of resources in any given use
or place, no matter to whom any part of this product will
O valor de existência representa, portanto, accrue ... It might happen ... that costs are thrown upon
um valor não determinado ou determinável pelo people not directly concerned ... The Marginal Private Net
mercado, mais que nele deve ser inserido para Product is that part of the total net product of physical
internação de um custo socialmente relevante. things or objective services due to the marginal increment
of resources in any given use or place which accrues in the
first instance – i.e. prior to sale – to the person responsible
5. Uso de instrumentos econômicos for investing resources there”.
28
Um instrumento seria tido como econômico uma
nas políticas ambientais: integração do vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do
jurídico e do econômico agente poluidor, influenciando, portanto, suas decisões,
com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade
ambiental (OECD, Economics, Paris, 1989, p. 12-14).
5.1. Instrumentos econômicos: introdução 29
“A noção de gestão assume na França diversas
significações. A mais antiga é técnica e se inscreve
Pigou (1946, p. 25) foi o autor pioneiro
no contexto dos procedimentos previstos para a
na aplicação dos conceitos da microeco- exploração das florestas submetidas a um regime
nomia neoclássica ao exame de questões jurídico particular, denominado ‘regime florestal’.
ambientais em sua clássica obra “The eco- Esta noção situa-se, portanto, na confluência da lógica
profissional dos encarregados da gestão florestal e de
nomics of welfare” publicada em 1920; ao
uma lógica administrativa estatal, que se exerce em
considerar o fenômeno das externalidades nome dos interesses superiores da nação”. (GODARD,
(já desenvolvido de forma incipiente por 1997, p. 204).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 133


dos instrumentos tradicionais (padrões – o sistema de multas busca coibir a
ambientais, licenciamento e sanções legais) prática de atos excepcionais, não deve ser
e aumento da receita para prover fundos aplicado, corriqueiramente, sob pena de
para atividades sustentáveis. Paul Klem- desestímulo ao seu aspecto preventivo e
mer (1992, p. 54) afirma: desgaste do seu aspecto punitivo;
“Os instrumentos resumidos sob este – a aplicação de penalidade é tarefa de
título se inscrevem na categoria dos grande dificuldade pois, se branda, esti-
instrumentos econômicos que assu- mula a reiterada prática de infrações, se
miram grande atualidade política e rigorosa pode inviabilizar a empresa.
que procuram ou bem uma melhor Depois de um longo período no qual os
atribuição das escassas margens controles diretos foram quase exclusivos,
de aproveitamento ambiental, ou surgem os instrumentos econômicos.
então reduzir a superexploração A utilização dos Instrumentos Econômi-
dos recursos ambientais através de cos (controle indireto do Estado) apresenta-
impulsos econômicos, isto é, através se como outra forma de trato da questão
de elementos seletivos de benefícios sob um enfoque econômico de incentivo
e perdas (com orientação ecológica). ou de oneração. O controle por meio das
Em outra ordem de coisas, quem finanças públicas consiste na imposição
advoga por este tipo de instrumento tributária sobre as unidades poluentes ou
econômico procura por ‘o carro da na concessão de incentivos fiscais aos que
ecologia diante dos poderosos bois da adotem medidas preventivas ou corretivas
economia’, para poder movê-lo me- da poluição. Aos agentes econômicos é
lhor e mais rapidamente (no sentido indicado o custo social pelo desgaste am-
de eficiência ecológica).” biental ocasionado por suas atividades.
Um exemplo de instrumento de controle Assim, a denominação de “instrumen-
é a previsão da legislação brasileira da tos econômicos” e sua intervenção no
necessidade de controle prévio do Poder mercado econômico da oferta e da procura
Público para a instalação de atividades não devem induzir ao erro de que não se
industriais, comerciais e agrícolas. As Leis trata de forma estatal interventiva no meio
Federais 6.830/80, 6.902/81 e 6.938/81, ambiente.30
que dispõem, respectivamente, sobre a im- 30
Instrumentos econômicos “(...) são prestações
plantação de indústrias em áreas críticas de monetárias obrigatórias do direito público que o
poluição, criação e instalação de atividades Estado cobra para poder cumprir seus objetivos em
em áreas de proteção ambiental e sobre a matéria de proteção ambiental. Com respeito ao
Política Nacional de Meio Ambiente, pre- objetivo perseguido por sua implementação, pode-se
distinguir, basicamente, entre funções extrafiscais e
vêem expressamente o licenciamento das funções fiscais. No caso das primeiras, os chamados
atividades como pré-requisito para que direitos de intervenção, trata-se fundamentalmente de
elas possam ocorrer. Há, pois, o controle de influir sobre condutas relevantes para o meio ambien-
te: procedimentos, redução das emissões, repressão de
atividades por comando legal que impede produtos contaminadores etc. Entretanto, os rótulos
simplesmente a realização desta, se não de ‘econômico’ ou de ‘mercado’ não devem induzir a
houver obediência a um procedimento erro, visto que se trata de uma forma de administração
administrativo (instrumento de comando estatal do meio ambiente”. (KLEMMER, 1992, p.55).
“In order to avoid the distortions in international trade whi-
e controle). ch might result from failure to harmonize the environment
Inquestionável a utilidade desse meca- policies pursued in Member countries and to facilitate co-
nismo repressivo. Contudo, possui defici- operation in this field (...) consists in analysing the economic
instruments with which the policies can be effectively ap-
ências marcantes como a de que:
plied. The problem of allocating environmental costs has thus
– o infrator pode contar com a possibi- come to be recognized as a key problem, bringing together the
lidade de escapar da punição; statement of objectives, the quest for efficiency, and in the

134 Revista de Informação Legislativa


Desse modo, os IE, instrumentos estatais O cuidado na aplicação desse tipo de IE
de intervenção econômica, estão divididos deve ser observado para que sua concessão
em dois grandes grupos: não desvie de seu objetivo, que é o de re-
– o primeiro, que atua em forma de in- duzir os níveis de poluição. Caso contrário,
centivos (subsídios, isenções de impostos e os governos podem terminar beneficiando
redução de carga tributária); e os poluidores e favorecendo a manutenção
– o segundo, que atua na forma de one- do status quo da poluição.
ração (tributos, taxas e tarifas, e licenças Interessante perceber a conexão desse
negociáveis ou direitos de propriedades). pensamento com o que na Economia foi
desenvolvido por Pigou, para quem, na
5.2. Instrumentos econômicos na falha do mercado, o Estado deveria in-
forma de incentivos estatais troduzir uma subvenção ou incentivo em
A implementação dos IE do primeiro caso de economia externa (efeitos sociais
grupo implica perdas de receitas ou com- positivos) e um sistema de tributação em
prometimento de recursos do governo. Sua caso de deseconomia externa (efeitos sociais
aplicação pode ser feita de várias formas, negativos).
como, por exemplo, se as empresas polui- A Constituição Federal de 1988, em seu
doras investirem em equipamentos de pre- art. 174, ao enumerar as formas de atuação
venção e controle da poluição, poderão ser do Estado, na condição de agente econô-
beneficiadas com deduções de impostos, mico, destacou a função de incentivo, nos
ou dedução do valor dos gastos na compra termos do art. 174, verbis:
desses equipamentos, ou com financiamen- “Art. 174. Como agente normativo e
tos subsidiados para sua aquisição, ou, regulador da atividade econômica, o
ainda, podem ser autorizadas a fazerem de- Estado exercerá, na forma da lei, as
preciação acelerada desses equipamentos. funções de fiscalização, incentivo e
As que investem em produção de energia planejamento, sendo este determinante
podem receber recursos monetários a fundo para o setor público e indicativo para o
perdido, ou serem isentas de imposto de setor privado.” (grifo nosso)
renda federal. Portanto, o objetivo do incentivo estatal
A OCDE constatou que esses tipos econômico é muito semelhante ao da one-
de IE estão sendo largamente utilizados ração estatal, sendo a outra “face da mesma
pelos países membros, o que levou aquela moeda” de orientar a atuação dos agentes
organização a alertar para o fato de nas econômicos para a proteção ambiental.
cláusulas do Princípio Poluidor Pagador
5.3. Instrumentos econômicos na
(PPP) estar previsto que os incentivos de
forma de onerações estatais
prêmios poderiam ser concedidos apenas
em dois casos: no primeiro caso, durante o Assim, constata-se que esses mecanismos
período de transição necessário para que os influenciadores do mercado permitem uma
agentes se adaptem à política nacional de integração da dimensão jurídica (dever ser) e
meio ambiente; e no segundo caso, quando econômica (ser) do meio ambiente.
a sua concessão objetiva redução dos níveis As onerações estatais consistem em me-
de poluição superior ao que é possível canismos de cobrança aplicados diretamen-
mediante regulação direta.31
limitando-se a esclarecer que as medidas decididas
international sphere, the harmonization project (...)”. (OR- pelas autoridades públicas para que o ambiente esteja
GANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION num estado aceitável não devem ser acompanhadas
AND DEVELOPMENT – OECD, 1975). de subsídios, que criariam distorções significativas ao
31
“A OCDE não vai muito longe na discrimina- comércio e investimento internacionais.” (ARAGÃO,
ção dos intrumentos adequados a executar o PPP, 1997, p. 168).

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 135


te sobre o nível de poluição que excede ao “Quando a poluição ocorra no de-
padrão estabelecido, ou também sobre o uso curso do processo produtivo de um
de um recurso natural acima do permitido. bem, e em consequência do proces-
Sua aplicação é viabilizada através de um so produtivo dele, o poluidor será
imposto, taxa, contribuição, multa ou tarifa certamente o produtor do bem, mas
previsto em lei, cujo valor pode ser calcula- se é o produto em si mesmo que é
do com base nos efeitos ecológicos de certos poluente (pela sua composição, pelo
usos de recursos naturais ou nas emissões tipo de utilização que normalmente
realizadas por processos industriais. lhe é dada, ou pela sua deterioração
No caso das emissões de poluentes hí- enquanto resíduo) ou ainda no caso
dricos, a aplicação de tributação: de tanto o processo produtivo como
“(...) tem sido usada em países como o produto ou processo consumptivo
Alemanha, França, Noruega, Suécia, serem simultaneamente poluentes.”
etc, onde cada indústria poluidora é O uso de taxas e tarifas, apesar das
taxada pela contaminação provocada dificuldades de sua implementação, pode
pelos efluentes líquidos industriais permitir que a cobrança venha a ter maior
que despeja nos rios. O controle é incidência sobre as classes de renda mais
rígido e o valor é considerável. Na alta, contribuindo, também, para evitar
França, a tributação é um desdobra- acentuar as distorções sociais. Um outro
mento natural da legislação que exis- ponto favorável à utilização desses IE é
te desde 1964, e as indústrias podem que a cobrança de taxas e de tarifas permite
optar entre pagar taxas equivalentes não só internalizar os custos ambientais nos
à poluição real que provocam, ou pa- custos privados de produção e consumo,
gar por estimativa. Normalmente os mas também viabilizar um controle am-
agentes preferem pagar exatamente o biental com custos mais baixos, com maior
equivalente à sua poluição, o que os eficiência, e, ainda, induzir a mudanças
leva a pagar também por seu controle. tecnológicas tanto no processo produtivo,
As cargas poluentes são classificadas quanto na redução do consumo de bens e
conforme sua toxidade numa medida serviços ambientais.
equivalente denominada equitox, que Como espécie sui generis de oneração
serve de base para o cálculo do valor estatal figuram as licenças negociáveis.
do imposto a ser pago pelo poluidor São cotas, permissões ou tetos de poluição
(BELLIA, 1996, p. 132).” estabelecidos pelo órgão ambiental para
Logo, as taxas e tarifas32 têm sido utili- uma determinada área ou região. A defini-
zadas principalmente como instrumentos ção de tipos de licenças negociáveis exige
complementares de gestão, visando imple- que o órgão ou instituição, responsável
mentar o princípio do poluidor pagador. pelo controle da qualidade ambiental, es-
Conforme enfatiza Maria Aragão (1997, tabeleça um nível de padrão de qualidade
p. 132), saber, em cada caso concreto, quem a ser alcançado, de acordo com o total de
é o poluidor nem sempre é tarefa fácil: emissão de poluentes a serem permitidos
para aquela área ou região. Posteriormente,
Taxas têm como fato gerador o exercício regular
32

do poder de polícia, serviço público específico e divisí-


o total dessas emissões é dividido e levado
vel, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. ao mercado para serem negociadas, ou são
Tarifa é utilizada quando o preço é apresentado em concedidas gratuitamente aos poluidores
forma de tábua, catálogo, pauta, lista, tabela, ou qual- localizados na área ou região pelas autori-
quer exposição em que se fixem quotas que originam
“preços públicos”. As taxas e tarifas teoricamente dife-
dades competentes.
rem uma da outra, no entanto, na economia ambiental De posse dessas licenças, os poluidores
são consideradas como palavras sinônimas. passam a ter o “direito”, reconhecido pelo

136 Revista de Informação Legislativa


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período aquela área que foi previamente global versus o processo civil clássico. In: ______. Textos:
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as regras pré-estabelecidas no período de
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São
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operacional para o governo, estabelecendo
um mercado de licenças de poluição. GODARD, Olivier. A gestão integrada dos recursos natu-
rais e do meio ambiente: conceitos, instituições e desafios
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de legitimação. In: VIEIRA, Paulo Freire; WEBER,
das, dentre outros países, nos Estados Uni- Jacques (Orgs). Gestão de recursos naturais renováveis
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fica evidente da experiência dos EUA é que ambiental. São Paulo: Cortez, 1997.
as licenças devem ser sempre introduzidas GOULET, Denis A. Ética do desenvolvimento. São Paulo:
como complemento às regulações diretas e Livraria Duas Cidades, 1996.
não como alternativas a esta” (ALMEIDA, GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição
1998, p. 11). de 1988: integração e crítica. São Paulo: Revista dos
No caso brasileiro, podia-se considerar, Tribunais, 1990.
ainda, pouco significativo o uso de instru- ______. Proteção do meio ambiente: caso do Parque do
mentos econômicos na política ambiental. Povo. In: Revista dos Tribunais. n.702. São Paulo:
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138 Revista de Informação Legislativa

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