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HISTÓRIA DA

IGREJA I

Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira


Professor Me. Saulo Henrique Justiniano Silva

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
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Direção de Mercado
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Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli
Gerência de Produção de Conteúdos
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Supervisão do Núcleo de Produção de
Materiais
Nádila de Almeida Toledo
Supervisão de Projetos Especiais
Daniel F. Hey
Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a
Distância; OLIVEIRA, Flávio Rodrigues de; SILVA, Saulo Amanda Peçanha Dos Santos
Henrique Justiniano. Iconografia
Isabela Soares Silva
História da Igreja I. Flávio Rodrigues de Oliveira; Saulo
Henrique Justiniano Silva. Projeto Gráfico
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. Reimpresso em 2021. Jaime de Marchi Junior
236 p. José Jhonny Coelho
“Graduação - EaD”. Arte Capa
Arthur Cantareli Silva
1. História 2. Igreja . 3. Teologia 4. EaD. I. Título.
ISBN: 978-85-459-0884-5 CDD - 22 ed. CDD 270
Editoração
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Fernando Henrique Mendes
Qualidade Textual
Meyre Barbosa da Silva
Helen Braga do Prado
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828

Impresso por:
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Pró-Reitor de
Ensino de EAD
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria de Graduação
e Pós-graduação este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de
Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista
às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis-
so, lembre-se que existe uma equipe de professores
e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR(ES)

Professor Me. Saulo Henrique Justiniano Silva


Saulo Henrique Justiniano Silva é mestre em História (2012 - 2014) especialista
em História das Religiões (2010 - 2012), licenciado em História (2006 - 2009)
e é doutorando em História (2015 - atual). Todas as titulações obtidas
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Trabalha como Professor
concursado na SEED/PR, no Colégio Mater Dei, no Departamento de História
da Faculdade Alvorada de Maringá e no curso de Teologia EaD da UniCesumar
Tem realizado pesquisas na área de História dos Judeus Ibéricos, História
das Mentalidades, Escatologia, Messianismo e Milenarismo em Portugal. É
membro do Laboratório de Estudos do Império Português (LEIP/UEM).

Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas


e publicações, acesse seu currículo, disponível no endereço a seguir: <http://
lattes.cnpq.br/1524388304369248>.

Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira


Flávio Rodrigues de Oliveira é mestre em Filosofia e em Educação, graduado
em Filosofia e História. Todas as titulações obtidas pela Universidade Estadual
de Maringá. Trabalha como professor no Departamento de História da
Faculdade Alvorada de Maringá, no Colégio Magnus Domini e no curso de
Teologia EaD da UniCesumar. Também é tutor modalidade EaD do curso de
História da Universidade Estadual de Maringá e professor de pós-graduação
do Instituto Dimensão - Maringá. Atualmente, suas linhas de pesquisas
englobam pesquisas na área de História Antiga e Medieval e Filosofia Política
Contemporânea.

Para informações mais detalhadas sobre sua atuação profissional, pesquisas


e publicações, acesse seu currículo, disponível no endereço a seguir: <http://
lattes.cnpq.br/7747220332204645>.
APRESENTAÇÃO

HISTÓRIA DA IGREJA I

SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá, futuros teólogos e teólogas, sejam bem-vindos à disciplina de História da Igreja I.
Vocês iniciarão a jornada do conhecimento aprofundado sobre os trajetos e percursos
que deram origem ao que chamamos de cristianismo moderno. Nosso compromisso é
oferecer um conteúdo em que a ciência histórica seja apresentada para além do óbvio.
Aqui, as histórias bíblicas serão contempladas, mas procuraremos compreender as nu-
ances políticas, econômicas e sociais que, muitas vezes, não foram narradas nos relatos
contidos na Bíblia e na tradição cristã.
Desde já, cabe um importante esclarecimento: somos historiadores cristãos, com uma
cosmovisão de mundo pautada na ética cristã; então, não é nossa intenção a descons-
trução de conceitos pré-estabelecidos no que tange às questões relacionadas à fé. Não
conseguimos exaurir todas as questões relacionadas à História da Igreja, para isso seria
necessária uma coleção de obras sobre a temática, mas, aqui, serão lançadas as semen-
tes que te possibilitarão futuras pesquisas em nível de especialização, mestrado e até
mesmo doutorado.
Este primeiro volume de História da Igreja que você tem em mãos, conta com um vasto
período histórico que contempla quase três mil anos, por isso, é inevitável que algumas
questões não sejam aprofundadas em sua totalidade. Nele, o período histórico contem-
plado é do Chamado de Abraão, há mais de um milênio antes de Cristo, até a Reforma
Calvinista, que se dá em meados do século XVI.
Na unidade I, tentamos dar ênfase aos acontecimentos que envolvem o Antigo Testa-
mento, ou Tanakh, como os judeus chamam esta compilação de livros. Dessa forma,
trabalhamos o período patriarcal, dos juízes e dos reis, além do cisma que dividiu Israel
em dois reinos e as investidas dos primeiros impérios expansionistas do Oriente Médio
sobre a região.
Também tratamos de apresentar as tentativas de revoltas populares contra os governos
estabelecidos pela força, como foi o caso da Revolta dos Macabeus, que alcançou mui-
tos dos objetivos iniciais, mas, quando enfim se colocaram no poder, agiram de maneira
tão ou mais cruel com seus conterrâneos, que os próprios estrangeiros na região.
Apresentaremos as intrigas entre as famílias, disputas de poder entre irmãos e a ascen-
são de um novo Império, agora europeu sobre a região, o Império Romano. Mostrare-
mos a ascensão de Herodes, um Idumeu ou edomita que, convertido ao judaísmo, foi o
braço direito dos romanos na região. Apesar de braço direito, Herodes, o Grande, como
ficou conhecido, trouxe de volta o brilho e o esplendor do grandioso Templo de Salo-
mão, lugar sagrado de adoração ao Deus de Israel.
Na Unidade II, fazemos uma radiografia das principais correntes políticas e religiosas
da região, à pompa dos sacerdotes e grandiosidade do Templo, além do que também
apresentamos o início do ministério de Jesus Cristo, os primeiros apóstolos e o preço
que pagaram por propagar as Boas Novas do Reino. Neste capítulo, também nos pre-
ocupamos em tratar da destruição do Templo Sagrado e da dispersão dos judeus pelo
mundo, conhecida como diáspora.
APRESENTAÇÃO

Ainda com relação à Unidade II, foi possível uma breve apresentação sobre as in-
fluências culturais de outros povos, como os gregos, em um primeiro momento, e,
na sequência, os romanos que não foram poucas, diga-se de passagem, e influen-
ciaram significativamente o olhar desses cristãos para a sua própria religião. Seja
para incorporar ou repelir, as culturas clássicas grega e romana tiveram um papel
imprescindível nesses tempos.
Para Unidade III, selecionamos a discussão pertinente ao conhecimento da Idade
Média e, consequentemente, a relação desse saber com a Igreja. Buscamos, para
um compreendimento mais profundo, fazer uma seleção de temáticas e autores.
Na medida do possível, podemos dizer que foram as mais importantes. Embora o
grau de importância seja um conceito bem relativo, afirmamos essa seleção com
base na literatura presente em programas de graduação e pós-graduação do país.
Esta escolha nos levou, então, a fazer um panorama geral da Igreja na História, que,
diga-se de passagem, é o tema central da nossa disciplina. Com os devidos recortes
para o contexto medieval, pudemos selecionar a Patrística num primeiro momen-
to, e a Escolástica, num segundo. Paralelamente, buscamos trabalhar os expoentes
destas duas concepções que mais se destacaram, a saber, respectivamente, Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino.
Adentrando a Unidade IV, a discussão toma uma nova forma. Ainda situados no pla-
no de fundo da História da Igreja, apresentamos o período da Idade Média (período
de maior participação da Igreja na história) questionando a antiga expressão de que
essa era uma idade das trevas. A seguir, ainda dentro da unidade, mostramos as rela-
ções que essa instituição criou para se proteger. Destarte, vemos tanto as Cruzadas
quanto a Inquisição como mecanismos de proteção da Igreja diante das ameaças
externas e internas à fixação da fé no contexto do medievo.
Na Unidade V, apresentamos o cenário e os eventos que possibilitaram o advento
do movimento reformista, bem como os abusos da Igreja Católica e as transforma-
ções vivenciados na Europa do século XVI, deixando claro que o triunfo do movi-
mento protestante estava intimamente ligado a questões que vão além da religiosa,
pois são de ordem econômica, política e social.
Esperamos que este livro possa contribuir na sua formação. Boa leitura!
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O


GRANDE

15 Introdução

16 O Cenário

19 Abraão e Isaac

29 No Tempo dos Juízes

32 O Período dos Reis

36 Roboão e a Divisão do Reino

39 Dominação Assíria, Dominação Babilônica e Exílio

42 Retorno a Sião: Sob Domínio Persa 

44 Período Helenístico

46 Sob Domínio Selêucida

48 Revolta dos Macabeus e a Dinastia dos Asmoneus

51 A Dominação Romana e o Reinado de Herodes, o Grande

54 Considerações Finais

59 Referências

60 Gabarito
10
SUMÁRIO

UNIDADE II

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS


JUDAICAS E GRECO-ROMANAS

63 Introdução

64 O Cenário Político

72 O Nascimento de Cristo e do Cristianismo 

80 A Queda de Jerusalém

82 As Influências Gregas no Pensamento Cristão dos Primeiros Séculos

87 O Cristianismo no Mundo Romano: Convergências e Divergências para a


Fundamentação da Nova Fé

92 Considerações Finais

98 Referências

99 Gabarito

UNIDADE III

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS


PENSADORES CRISTÃOS

103 Introdução

104 O Intelectual e a Igreja

110 Notas Sobre a Patrística

116 Santo Agostinho: a Fé e a Razão

124 Notas Sobre a Escolástica

129 Tomás de Aquino: a Fé e a Razão


11
SUMÁRIO

135 Considerações Finais

141 Referências

142 Gabarito

UNIDADE IV

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS


CRUZADAS E A INQUISIÇÃO

145 Introdução

146 Notas Sobre a Idade Média

151 Idade Média: Idade das Trevas?

160 A Igreja do Período do Medievo

168 A Igreja e as Cruzadas

173 A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição

180 Considerações Finais

184 Referências

188 Gabarito
12
SUMÁRIO

UNIDADE V

UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO: A CRISE INSTITUCIONAL DO


CATOLICISMO E A REFORMA PROTESTANTE

191 Introdução

192 Angústia Escatológica

195 Economia

198 Absolutismo Monárquico: Habsburgos e Valois

200 Turcos Otomanos

202 As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante

218 Situação Política na Europa Pós-Reforma

221 A “Reforma” Inglesa

224 A Reforma Calvinista

227 Considerações Finais

233 Referências

235 Gabarito

236 CONCLUSÃO
Professor Me. Saulo Henrique Justiniano Silva

A HISTÓRIA DOS HEBREUS:

I
UNIDADE
DO PATRIARCA ABRAÃO A
HERODES, O GRANDE

Objetivos de Aprendizagem
■■ Visualizar o cenário em que ocorreram os acontecimentos contidos
no período estudado.
■■ Compreender o chamado de Abraão e o início da história hebraica.
■■ Estudar como se estruturou o período dos juízes.
■■ Compreender os acontecimentos que tornaram Israel uma
monarquia e os desdobramentos deste período.
■■ Mapear os motivos que levaram à divisão do reino em dois.
■■ Entender os motivos das invasões das potências regionais sobre a
região.
■■ Mostrar a volta dos hebreus para Jerusalém, depois de um longo
período de exílio.
■■ Apresentar a dominação de Alexandre e seus reflexos sobre a região.
■■ Compreender como se estruturou a dominação selêucida sobre a
região.
■■ Entender a Revolta dos Macabeus e a tentativa de seus ancestrais de
retornar ao centro da vontade de Deus.
■■ Estudar a dominação romana sobre a região e a política
desenvolvimentista de Herodes, o Grande.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O Cenário
■■ Abraão e Isaac
■■ No Tempo dos Juízes
■■ O Período dos Reis
■■ Roboão e a Divisão do Reino
■■ Dominação Assíria, Dominação Babilônica e Exílio
■■ Retorno a Sião: sob domínio Persa
■■ Período Helenístico
■■ Sob domínio Selêucida
■■ Revolta dos Macabeus e a Dinastia dos Asmoneus
■■ A dominação Romana e o Reinado de Herodes, o Grande
15

INTRODUÇÃO

Olá, bem-vindo(a) à Unidade I do livro de História da Igreja I. Esta unidade


é crucial para a compreensão dos desdobramentos que se darão ao longo da
disciplina. Nela, estudaremos a História de Israel no período bíblico, desde a for-
mação da nação, passando pelas divisões e invasões estrangeiras, até chegar no
governo de Herodes, o Grande. É importante esclarecer que esta unidade não
é sobre o Antigo Testamento, mas sobre a História de Israel, de maneira que,
neste momento, não entrarei em particularidades teológicas, apenas apresenta-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

rei um relato geral sobre os passos que levaram ao surgimento do cristianismo.


Aqui, dentre outros assuntos, você aprenderá as diferenças entre hebreus e
judeus, porque os samaritanos não eram bem recebidos pelos judeus, quem cons-
truiu o Templo em Jerusalém, a mando de quem foi destruído, quem reconstruiu
e quem o embelezou, quem eram os idumeus, os fariseus, os saduceus, dentre
tantas outras questões.
A bibliografia utilizada nesta unidade foi bem diversificada, contando com
historiadores, teólogos, literatos, um filósofo e um rabino. Entre os historiado-
res, estão Simon Schama, Ruth Leftel, Zwi Werblowsky e Martinus Beck, entre os
teólogos estão Claude Tassin e Antônio Renato Gusso, os literatos Moacyr Scliar
e Moacir Amâncio, o filósofo Luiz Felipe Pondé e o rabino Raymond Scheindlin.
Também foram usadas três versões distintas da Bíblia: a de Jerusalém, a King
James e a Almeida. As versões foram escolhidas para melhor compreensão, de
modo que tentei expor a melhor versão em momentos específicos.
Outro assunto de extrema importância foi a tentativa de expressar cientifi-
cidade ao longo da unidade, de forma que algumas temáticas tratadas nela não
estão contidas de forma explícita na Bíblia, mas são frutos de estudos arqueo-
lógicos e etnológicos sobre os povos do crescente fértil e, principalmente, sobre
os antigos hebreus. Bons estudos!

Introdução
16 UNIDADE I

O CENÁRIO

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Pouco sabemos sobre a história dos hebreus anterior a dos patriarcas, as escritu-
ras não nos dão detalhes pormenorizados deste período. Da criação do mundo,
passando pela queda do homem, dilúvio, até chegar a Abraão são apenas onze
capítulos que representam mais de 4.000 anos de história (GUSSO, 2003). O lei-
tor desatento pode até cometer erros graves ao afirmar certa proximidade entre
o período patriarcal e a fundação do mundo, por isso, é importante esclarecer
que nos pautamos em referenciais bíblicos, e não em perspectivas arqueoló-
gicas, pois, baseados nelas, do surgimento australopithecus afarensis, um dos
primeiros hominídeos, até o período patriarcal, seriam calculados, pelo menos,
3 milhões de anos.
Para situarmos o período em que os patriarcas viveram, vale uma breve
contextualização da região por onde passaram. A narrativa bíblica do Antigo
Testamento, ou da Tanakh, como é conhecida pelos judeus, passa-se, eminen-
temente, na região chamada de crescente fértil, uma vasta área que engloba o
nordeste da África, passando pela Turquia, Palestina, Jordânia, Líbano, Síria e
Iraque, e é marcada, sobretudo, pela pequena fertilidade em meio a regiões desér-
ticas, proporcionada pelas cheias de rios, como o Nilo, na África, o Jordão, na
Palestina e Jordânia e o Tigre e Eufrates, no atual Iraque, antiga Mesopotâmia.
Na região do crescente fértil, estabeleceram-se grandes civilizações, entre
as quais podemos citar a egípcia e a mesopotâmica. A egípcia, estruturada no
V milênio a.C., cerca de dois mil anos antes de Abraão, e a mesopotâmica, mais
antiga, estruturada no VII milênio a.C. Ambas organizaram-se produtivamente
a partir das cheias e secas de rios. Já do ponto de vista político, essas sociedades
estruturaram-se de modos diferentes. No Egito, por exemplo, o Faraó foi a figura

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


17

que centralizou todo o poder e era considerado um deus; já na Mesopotâmia,


pela multiplicidade de povos e línguas, não houve uma figura centralizadora,
existiam reis que governavam cidades-estados e eram, por sua vez, representan-
tes dos deuses, não a encarnação de um.
Para compreensão do período patriarcal, vale explanação um pouco mais
aprofundada sobre a Mesopotâmia.
A palavra Mesopotâmia vem do grego “entre rios”, uma vez que as civiliza-
ções desta região estabeleceram-se entre os rios Tigre, na parte ocidental, e o
Eufrates, na oriental. Ali, estabeleceram-se diversas civilizações, dentre as quais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

podemos citar a dos sumérios, dos acádios, dos caldeus, dos amoritas e dos assí-
rios. Cada povo tinha sua língua, sua cultura, suas leis, seus deuses e suas cidades
que funcionavam, antes do estabelecimento de grandes impérios na região, como
unidades político-administrativas autônomas.
Cada povo tinha características próprias, como os sumérios, que ficaram
conhecidos pela invenção da escrita cuneiforme, os amoritas, que organizaram
o primeiro código de leis escritas: o famoso código de Hamurabi, ou mesmo
os assírios, que ficaram conhecidos pela crueldade empregada contra seus ini-
migos. As cidades mesopotâmicas também se destacavam pela suntuosidade,
como Nínive, a principal cidade assíria, ou mesmo Babilônia, que fora centro
de disputas de diversos impérios, como o dos acádios, dos amoritas, dos assí-
rios, dos caldeus e, posteriormente, dos medo-persas. Aqui também vale uma
menção especial à cidade de Ur, no sul da região, que fora fundada pelos sumé-
rios, possivelmente no IV milênio a.C., mas que ficou imortalizada como umas
das principais cidades caldeias, como mostrado na narrativa bíblica de Gênesis.

NO TEMPO DOS PATRIARCAS

É em Ur dos Caldeus que inicia a história bíblica dos patriarcas. Na cidade, vivia
Terá, um escultor de ídolos, descendente de Sem, filho de Noé e pai de Abrão,
Naor e Harã. Ainda em Ur, vivenciou o falecimento de seu filho Harã e, depois
deste episódio, parte com seu filho Abraão, sua nora Sarai e seu neto Ló, filho
de Harã, para Canaã.

O Cenário
18 UNIDADE I

Terá não chegou à terra de Canaã, tendo falecido no caminho, na cidade de


Harã, no sul da atual Turquia. Possivelmente, a cidade tenha recebido este nome
em homenagem ao filho falecido em Ur.
Foi em Harã que Deus fez o pacto com Abrão, o primogênito de Terá.
Ora, o SENHOR disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da
casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti um gran-
de povo, eu te abençoarei e engrandecerei o teu nome; sê uma bênção!
Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoa-
rem. Por ti serão benditos todos os clãs da terra (BÍBLIA DE JERUSA-
LÉM, Gênesis 12, 1-3).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O capítulo doze do livro de Gênesis, ou Bereshit, como é conhecido na tradição
judaica, inaugura o período patriarcal, que é descrito do décimo segundo capí-
tulo de Gênesis ao primeiro capítulo do Êxodo, ou Shemot, na Torá, algo que,
cronologicamente, abrange cerca de 700 anos (SCHEINDLIN, 2003).
O que marca significativamente o período patriarcal é a tentativa de con-
solidação dos hebreus em Canaã e a luta pela unidade religiosa monoteísta de
seus descendentes. Economicamente, esse período caracteriza-se pela criação
de pequenos rebanhos e pela agricultura de subsistência.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


19

ABRAÃO E ISAAC

O primeiro patriarca foi Abrão,


cujo nome significa “Pai nas
alturas”. Casado com Sarai, foi
escolhido por Deus para pos-
suir Canaã. Historicamente, ele
é conhecido como o primeiro
Hebreu. A palavra Hebreu assume
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

diversos significados, que podem


ser desde habitante de Hebron,
cidade Palestina, ou mesmo
peregrinos, fazendo alusão ao
caminho que o patriarca percor-
reu até chegar à Terra Santa.
Abrão recebeu de Deus a ordem, como narrado no versículo anteriormente
apresentado, mas como ser pai de uma grande nação quando sua esposa é estéril?
Para validar a ordem divina, o patriarca, a mando de sua esposa Sarai, deita-se
com a concubina egípcia Agar e desta relação nasce Ismael, que pode ser tradu-
zido como “Deus escutou”. Porém os planos do Criador em fazer de Abrão pai
de uma grande nação, não contava um filho bastardo.
No capítulo dezessete de Gênesis, Deus muda o nome do patriarca de Abrão,
que significa “pai nas alturas”, para Abraão, que se traduz como “pai das nações”,
e ainda, neste mesmo contexto, muda o nome de sua esposa Sarai, que em tra-
dução livre pode ser “minha princesa”, para Sara, “princesa”. Esta mudança de
nome teve por objetivo marcar uma transformação na vida da matriarca, que
passou de estéril à fértil.
O capítulo dezessete também marca o chamado Pacto Abraâmico, uma
aliança eterna entre o Criador e seus descendentes:
[...] a ti, e à tua raça depois de ti, darei a terra em que habitas, toda a ter-
ra de Canaã, em possessão perpétua, e serei o vosso Deus. Deus disse a
Abraão: Quanto a ti, observarás a minha Aliança, tu e tua raça depois
de ti, de geração em geração. E eis a minha Aliança, que será observada
entre mim e vós, isto é, tua raça depois de ti: Todos os vossos machos

Abraão E Isaac
20 UNIDADE I

sejam circuncidados. Fareis circuncidar a carne de vosso prepúcio, e


esta será o sinal da Aliança entre mim e vós. Quando completarem
oito dias, todos os vossos machos serão circuncidados, de geração em
geração. Tanto o nascido em casa quanto o comprado por dinheiro a
algum estrangeiro que não é de tua raça, deverá ser circuncidado o nas-
cido em casa e o que for comprado por dinheiro. Minha Aliança, estará
marcada na vossa carne como uma Aliança perpétua. O incircunciso,
o macho cuja carne do prepúcio não tiver sido cortada, esta vida será
eliminada de sua parentela: ele violou minha aliança (BÍBLIA DE JE-
RUSALÉM, Gênesis 17, 8 -14).

Ainda em nossos dias, o Pacto é celebrado entre os judeus na cerimônia da Brit

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Milá, que acontece como observância da lei no oitavo dia do nascimento de um
menino. A criança tem, nesse ritual, o prepúcio cortado como marca da aliança
entre o Eterno e seus descendentes. Os primeiros a cumprirem o Pacto foi o pró-
prio Abraão, que na ocasião tinha 99 anos, e seu filho primogênito Ismael, que
tinha 13 anos. A tradição cristã não incorporou tal ritual por entender que esta
aliança foi feita com os filhos de Abraão, e Jesus Cristo representa a Nova Aliança.
O próprio apóstolo Paulo, um dos fundadores da Igreja, admoesta da necessi-
dade de circuncidar a alma, e não mais o corpo (Rm 2, 25 - 29; Fl 3,3; Cl 2, 11).
Como prometido, o Senhor visitou Sara, e ela deu à luz Isaac, que fora cir-
cuncidado com oito dias, como ordenado no Pacto. Ele era o filho da promessa,
e, neste contexto, Agar e Ismael foram postos para fora de Canaã, em um pri-
meiro momento por determinação de Sara e depois por permissão divina. Agar
e seu filho habitaram no deserto da Arábia, tendo o menino se tornado flecheiro,
e ela agricultora. Segundo a tradição islâmica, Ismael foi o filho da promessa, não
Isaac, e o pai da nação árabe, sendo reconhecido como um dos vinte e seis profetas
do Islã, o derradeiro e mais importante para a religião Muhammad, ou Maomé.
Outro episódio importante foi narrado no capítulo vinte e dois do Gênesis,
quando Deus pede para que Abraão sacrifique seu filho Isaac como holocausto,
na terra de Moriá. O patriarca, prontamente, ouviu os desígnios divinos e, logo
pela manhã, como narra o capítulo: “Abraão se levantou cedo, selou seu jumento
e tomou consigo dois de seus servos e seu filho Isaac. Ele rachou a lenha do holo-
causto e pôs a caminho para o lugar que Deus lhe havia indicado” (BÍBLIA DE
JERUSALÉM, Gênesis 22,3). Abraão seguiu exatamente o mandamento de Deus,
por mais que isso pudesse representar o “ato mais hediondo imaginável por um

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


21

ser humano” (AMÂNCIO, 2010, p. 14). Quando estava a chegar nas vias de fato,
o patriarca ouve a voz de Deus por meio de um anjo, que lhe diz:
Não estendas a tua mão contra o rapaz!” − ordenou o Anjo “Não lhe
faças nada! Agora bem sei que temes a Deus, porquanto não me negaste
teu amado filho, teu único filho!” Em seguida, tendo Abraão erguido os
olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos;
tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu
filho ( BÍBLIA KING JAMES, Gênesis 22,12-13,[2017], on-line)1.

Este episódio tornou-se um dos mais icônicos da Bíblia e da literatura extra


bíblica, por exemplo, no livro de Hebreus, no capítulo onze, na galeria dos heróis
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da Fé, o autor escreve:


[...]foi pela fé que Abraão, tendo sido provado, ofereceu Isaac; ofereceu
o filho único, ele que recebera as promessas, ele, a quem fora dito: É por
Isaac que uma descendência te será assegurada. Mas ele dizia: Deus é
capaz também de ressuscitar os mortos. Por isso, recuperou seu filho,
como um símbolo (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Hebreus 11, 18 – 19).

A fé de Abraão nesse episódio também foi tema do livro Temor e Tremor do


existencialista dinamarquês Søren Kierkegaard, que se dedica “exclusivamente
a examinar o episódio e designa Abraão, pela sua dedicação incondicional a
Deus, comprovada no caso do sacrifício, como o cavaleiro da Fé por excelência”
(AMÂNCIO, 2010, p. 15).
Abraão habitou a terra de Canaã até o fim de sua vida. O capítulo vinte e
três do livro de Gênesis mostra-nos a morte de Sara e a compra de um campo
para sepultá-la. Esse campo, hoje, é chamado de Machpelá, ou apenas Túmulo
do Patriarcas, localizado na região de Hebrom, na atual Cisjordânia, onde tam-
bém estão sepultados o próprio Abraão e seus descendentes, Isaac e sua esposa
Rebeca e Jacó e sua primeira esposa Lia. Por ter sido comprado, ainda hoje,
judeus justificam a expulsão de árabes, que há séculos vivem na região, por esta
perícope da Bíblia.

Abraão E Isaac
22 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Figura 1- Machpelá
Fonte: O bible.org ([2017], on-line)2.

Isaac herdou tudo quanto pertencia a seu pai, inclusive as promessas de Deus.
Fora casado com Rebeca, que gerou seus dois filhos, os gêmeos bivitelinos Esaú
e Jacó. Durante seu patriarcado, aumentou sua riqueza pessoal e “chegou a agir
como uma espécie de chefe de Estado ao fazer aliança com os filisteus” (GUSSO,
2003, p. 11). Levando em consideração os feitos de seu pai, Isaac por si só não
representou uma figura de destaque no panorama bíblico do antigo testamento,
no entanto de Esaú e Jacó, seus filhos, não posso dizer a mesma coisa.
O nascimento de Esaú e Jacó ficou marcado na tradição bíblica por uma
peculiaridade; Esaú, o primogênito, saiu do ventre com seu irmão segurando seu
calcanhar, daí o nome do seu irmão, Jacó, que se traduz por “aquele que segura
o calcanhar”, que também pode se referir a “enganador”. Este episódio foi ape-
nas uma prévia do que Jacó faria.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


23

JACÓ

Jacó, o preterido de seu pai e o preferido de sua mãe, envolveu-se em um dos epi-
sódios mais constrangedores da narrativa bíblica. Na cerimônia preparada para
a investidura da bênção ancestral a seu irmão, que pela tradição receberia toda
a herança por ser primogênito, Jacó enganou seu pai, que estava velho e debili-
tado, e se passou por seu irmão, isso com a benção de sua mãe, que manipulou a
situação. Esse episódio pode ser lido no capítulo vinte e sete do livro de Gênesis.
Jacó, o terceiro patriarca, jurado de morte por seu irmão e “devidamente”
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abençoado por seu pai, partiu para Harã, onde se refugiou na casa de Labão, seu
tio. Foi na cidade onde morrera Terá que o enganador foi enganado. A narrativa
bíblica mostra-nos que Jacó propôs a Labão o trabalho de sete anos em troca
da mão de sua filha Raquel, e seu tio prontamente aceitou a proposta. Passados
sete anos, Labão ofereceu a mão de Lia, sua filha mais velha, quebrando, assim,
o contrato com o sobrinho. Para consolidar a união com a amada Raquel, foi
obrigado a trabalhar mais sete anos.
Com Lia, Jacó teve seis filhos: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Isaacar e Zebulom,
com Zilpa, concubina de Lia, Gade e Aser, com Bila concubina de Raquel, Dan
e Naftali e com Raquel, José e Benjamim, filho este que não conhecera sua mãe,
pois morrera em seu parto.
Sem dúvida, um momento marcante para o desenvolvimento desta histó-
ria foi o episódio do vau de Jaboque, quando, após uma luta com “um homem”
(Gn 32,24), Jacó teve seu nome trocado para Israel, que significa “aquele que
lutou com Deus e com os homens e prevaleceu”. Do núcleo familiar de Israel,
teremos o surgimento das doze tribos, sendo seus descendentes também conhe-
cidos como israelitas, traduzidos por filhos de Israel.
É importante termos claro que a promessa da posse da terra, feita ao patriarca
Abraão, não se cumpriu nele, mas em sua descendência. Gusso (2003) esclarece
que para os antigos hebreus, diferente dos cristãos, não existiam expectativas para
o que aconteceria depois da morte, “a não ser a continuidade da vida em seus
descendentes. Sendo assim, na mentalidade deles, quando o descendente rece-
besse o cumprimento da promessa, também o seu ascendente a receberia” (p. 12).
É bem sabido que a presença hebreia na Palestina inicia-se com a chegada

Abraão E Isaac
24 UNIDADE I

do patriarca Abraão, mas vale ressaltar que a região não era um vazio demográ-
fico e que outros povos já haviam se estabelecido ali. Os chamados cananeus, que
podem representar genericamente diversos povos, desde os hititas, como citado
no episódio da compra da Machpelá, passando pelos amoritas e jebuseus, com-
partilharam a região nesse mesmo período, de modo que a hegemonia israelita
na região deu-se durante um período pequeno da História, que vai aproximada-
mente de 1020 a.C. a 922 a.C., durante a época do reino unificado. Os compêndios
historiográficos, ao citarem a região, não falam em Canaã, mas Palestina, que
significa terra dos Filisteus.

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De maneira geral, em Canaã, a geografia do estabelecimento dos patriar-
cas antes do exílio egípcio era desta maneira: “Abraão viveu em Manre, que é
Hebrom, ao sul de Jerusalém (Gn 23: 18); Isaac, perto de Bersabéia (Gn 26:23)
e Jacó, depois que voltou de Harã, perto de Salém e Betel (Gn 23:18; 25, 1)”
(BEEK, 1967, p. 21).

Figura 2 - As viagens dos patriarcas


Fonte: wol ([2017], on-line)3.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


25

A HISTÓRIA DE JOSÉ

O fechamento da história dos Patriarcas em Canaã se deu no episódio da vida


do décimo primeiro filho de Jacó, José. José, um dos filhos de Raquel e muito
querido por seu pai (aqui vale um adendo, pois parece que a predileção aberta
era uma característica dos patriarcas, Abraão preferiu Isaac a Ismael, Isaac pre-
feriu Esaú e Rebeca Jacó e Jacó a José) suscitou o ódio de seus irmãos ao tornar
público seus sonhos, por conta disso fora vendido como escravo para o Egito e
dado por devorado por uma fera para seu pai, que não sabia do ocorrido.
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No Egito, de escravo, José foi transformado em governador, lá reencontra


sua família, perdoa-os e convida-os para deixar Canaã e viver no Egito. Aqui
tem início o período do exílio egípcio na História de Israel.
Não há registros históricos sobre a figura de José e sua família no Egito para
além da narrativa bíblica. As suposições levantas é que “por algum tempo, o Egito
esteve sob o jugo dos hicsos (que provavelmente vieram da Mesopotâmia) e que
os egípcios preferiram silenciar sobre este período de dominação estrangeira”
(BEEK, 1967, p. 23). O frutífero teólogo estadunidense John Bright em sua obra
“História de Israel” também afirma que:
[...]os patriarcas entraram no Egito na época em que que este era do-
minado pelos hicsos. Isto explicaria, em parte, a benevolência demons-
trada para com Jacó e seus filhos, pois existe a possibilidade destes con-
quistadores, semelhante aos antepassados do povo de Israel serem de
origem semítica (apud GUSSO, 2003, p. 13).

Como não há referência a José e seus familiares, também não há sobre Moisés,
o libertador e criador da religião. Entenda-se aqui como fundador da religião
hebreia enquanto um corpo de regras pré-estabelecidas, apesar da revelação do
Criador ao Patriarca Abraão, o período anterior a Moisés, caracteriza a religião
como tradições de povos seminômades do Oriente Médio que se diferenciava
dos demais por conta de suas crenças monoteístas em um mar de paganismo.

Abraão E Isaac
26 UNIDADE I

MOISÉS: O LIBERTADOR

Conta-se na narrativa bíblica que Moisés era um hebreu da tribo de Levi nascido
no Egito durante o período de opressão. No capítulo primeiro de Êxodo a Bíblia
apresenta-nos que de hóspedes o povo de Israel havia se tornado escravo, neste
contexto o bebê Moisés fora colocado no Nilo por sua mãe Joquebede que temia
sua morte, pois, concomitante a seu nascimento, foi decretado uma lei faraônica
para que todo filho recém-nascido de hebreu fosse morto.
Moisés foi retirado do rio pela filha do Faraó e amamentado por sua mãe que

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era serva da mulher. Moisés viveu como um príncipe do Egito até o momento
em que mata um oficial que atentou contra a vida de um hebreu, fato este que o
fez fugir do Egito para o deserto de Midiã, onde se casou com Zípora, filha do
sacerdote Reuel.
Cuidando das ovelhas de seu sogro no deserto Moisés tem o decisivo encon-
tro com o Deus de seus ancestrais:
[...]e apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em
Midiã; e levou o rebanho atrás do deserto, e chegou ao monte de Deus,
a Horebe. E apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo
do meio duma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça
não se consumia. E Moisés disse: Agora me virarei para lá, e verei esta
grande visão, porque a sarça não se queima. E vendo o Senhor que se
virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça, e disse: Moisés,
Moisés. Respondeu ele: Eis-me aqui. E disse: Não te chegues para cá;
tire os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa.
Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque, e o Deus de Jacó. E Moisés encobriu o seu rosto, porque temeu
olhar para Deus. E disse o Senhor: Tenho visto atentamente a aflição do
meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa
dos seus exatores, porque conheci as suas dores ( BÍBLIA SAGRADA,
Êxodo 3,1-7,[2017], on-line)4.

Aqui vemos a renovação da aliança com seus ancestrais, Abraão, Isaac e


Jacó,“demonstrando assim que ela continuava válida para a sua posteridade, já
se referiu a eles como povo” (GUSSO, 2003, p. 21). Moisés foi levantado para
tirar os hebreus do cativeiro egípcio: “Vem agora, pois, e eu te enviarei a Faraó
para que tires o meu povo (os filhos de Israel) do Egito” (BÍBLIA SAGRADA,
Êxodo 3,10,[2017], on-line)4, apesar da relutância e ajudado por seu irmão Arão,

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


27

pois, segundo a tradição hebraica, Moisés era gago, parte para o Egito a fim de
cumprir as ordens divinas.
A Bíblia não designa qual Faraó receberá Moisés, mas existe uma indicação
para Ramsés II. Segundo Beek (1967), a suposição baseia-se no capítulo 1, 11:
[...] que menciona as cidades do tesouro faraônico, Fitom e Ramsés.
Esta foi fundada pelo Faraó Ramsés II (1290 – 1224 a.C.). Com tais
referências, muitos estudiosos concluíram que Ramsés II deve ter sido
o Faraó que oprimiu os israelitas (p. 27).
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O Talmud (texto importante do judaísmo, junto com os Midrashim) diz que


Moisés ficou gago porque, quando jovem, no Egito, teria colocado na boca
uma brasa, que deixou sua língua pesada. Conta-se que alguns do palácio
do Faraó julgavam Moisés uma ameaça (lembramos que ele cresceu no pa-
lácio do faraó) e o acusavam diante do soberano. O faraó, então, disse: Faça-
mos uma prova. Vamos dar a ele uma pepita de ouro e uma brasa para que
ele a coloque na boca. Se ele pegar o ouro significa que é uma ameaça, e
se pegar a brasa, quer dizer que é inofensivo. Iluminado por Deus, pegou a
brasa, queimando a língua e enganando o Faraó”.
Para saber mais, acesse o link disponível em: <http://www.abiblia.org/ver.
php?id=7320>.
Fonte: o autor.

Moisés encontrou dificuldades diante do Faraó, de certa forma, isso já era previsto,
pois o próprio Deus, no episódio da sarça ardente, havia falado do endure-
cimento do coração do líder egípcio. Foi necessário algum tempo para que o
monarca egípcio liberasse a saída dos hebreus, tempo esse marcado por suces-
sivas audiências e por uma série de pragas enviadas por Deus, que foram: (1)
Transformação de água em sangue; (2) Reprodução de rãs em abundância; (3)
Infestação de piolhos em homens e gado; (4) Enxame de moscas; (5) Animais
tomados por pragas; (6) Úlceras e tumores em homens e animais; (7) Chuvas de
pedras; (8) Infestação de gafanhotos; (9) Trevas sobre todo o Egito e (10) morte

Abraão E Isaac
28 UNIDADE I

de todos os primogênitos entre pessoas e animais. Apenas após a morte de seu


filho, no último episódio, Faraó libertou o povo.
Não há relatos fidedignos de quantos hebreus saíram do Egito. A narra-
tiva bíblica estima cerca de 600 mil homens (Êxodo 12,37), somando crianças e
mulheres, este número poderia triplicar e ficar em torno de 1 a 3 milhões almas.
A figura de Moisés é de extrema importância para se compreender a história
da nação israelita, sua cultura, seus costumes nutricionais e, principalmente, suas
leis. O levita nascido no Egito foi o autor dos cinco primeiros livros do Antigo
Testamento (Pentateuco), ou Torá (lei) na tradição hebraica, textos que contêm

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preceitos que norteiam a fé judaica até nossos dias. É natural pensarmos nos 10
Mandamentos, escritos pelo próprio Deus no Sinai, como a base ética e moral
dos descendentes de Abraão. De fato, não há leviandade neste pensamento, mas
para além do decálogo, o Pentateuco/Torá apresenta 613 mitzvot (mandamen-
tos), 603 mandamentos incluem normas de restrição alimentar, ritos fúnebres e
relacionamentos social e conjugal, mas os famosos Mandamentos do Sinai, que
se tratam de um “conjunto de obras cosmogônicas, histórias, de sabedoria, pro-
fecia e poesia místicas” (PONDÉ, 2015, p. 14).
Para grande parte dos estudiosos que se ocupam da temática a saída do Egito
e a formação de um corpo, normas e regras formaram, definitivamente, a ideia
de uma nação de Israel. Beek (1967, p. 26) afirma que:
[...] a única menção egípcia a respeito de Israel é a inscrição em um
marco comemorativo da vitória do Faraó Menefta sobre os líbios, cerca
de 1220 a. C. Esta inscrição liga Israel a Canaã, Gezer e Yenoam, mas
enquanto estas regiões são descritas por um hieróglifo significando
“país”, Israel é representado pelo símbolo de “povo”. Daí podemos con-
cluir que, cerca de 1220 a. C., Israel tornou-se uma nação.

Foram 40 anos no deserto até alcançarem definitivamente a Terra Santa, anos


marcados pelo juízo de Deus, que utilizou das intempéries geológicas e da seca
como utensílios de conserto de um povo marcado por mais de 400 anos de cati-
veiro egípcio. Simon Schama (2015, p. 26) em sua História dos Judeus, à procura
das palavras 1000 a.C. – 1492 d. C. afirma que:
[...]Os autores bíblicos apresentaram o êxodo do vale do Nilo, o fim da
escravidão no estrangeiro, como o processo no qual os judeus se torna-
ram plenamente israelitas. Viram a jornada como uma ascensão, tanto

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


29

topográfica quanto moral. Foi em cumes altos e pedregosos, paradas no


caminho para o céu, que YHWH[1] – como grafavam Iahweh – havia
Se mostrado (ou pelo menos mostrara Suas costas), fazendo o rosto de
Moisés queimar e resplandecer com a radiação refletida.

Moisés, o libertador, não liderou o povo na conquista de Canaã, tarefa que ficou
a cargo de Josué que juntamente com Calebe foram os únicos hebreus nascidos
no Egito que herdaram a Terra Santa, os outros morreram, ou nasceram durante
o período do deserto.
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NO TEMPO DOS JUÍZES

Israel, no tempo do estabelecimento em Canaã, estava organizado em tribos,


como já citado e essas representavam os filhos de Jacó. No entanto, vale ressal-
tar que a tribo de José deu origem a duas tribos que representavam seus filhos,
Efraim e Manassés, e a tribo de Levi não recebeu terras, pois a narrativa bíblica,
em Josué 13,33, apresenta que “à tribo de Levi, Moisés não deu herança; o Senhor
Deus de Israel é a sua herança, como já lhe tinha falado”. Dentro das tribos exis-
tia a subdivisão dos clãs,

No Tempo dos Juízes


30 UNIDADE I

[...] formados por famílias estendidas (bet’ab, “casa paterna”). A família


(bet’ab) era a “família grande” ou família estendida, formada pela des-
cendência de um ancestral comum ao longo de três ou quatro gerações
(PETERLEVITZ, 2005, p. 11).

Dessa forma, tornam-se mais claras algumas referências bíblicas, como no caso
de Gideão: “Eu peço, meu Senhor!” respondeu Gideão, “como posso salvar
Israel? Meu clã é o mais fraco em Manassés, e eu sou o último na casa de meu
pai” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Juízes 6, 15).
A necessidade de ocupação de um vasto território e a formação de uma nova
ordem caracterizada pelo sedentarismo, visto que ficaram 40 anos no deserto, fez

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com que os israelitas desenvolvessem um sistema político administrativo pecu-
liar, caracterizado pelo governo dos juízes.
Diferente dos povos vizinhos, os filhos de Israel não adotaram a monarquia
como forma de governo, e as lideranças locais e tribais eram ocupadas pelos anci-
ãos, no entanto, em momentos de grande instabilidade e perigo externo, dentre
as tribos erguia-se uma personalidade reconhecida como uma liderança unifi-
cadora, que possuía o direito de julgar e governar, que recebia o nome de juízes.
Foram doze juízes, seis maiores e seis menores. Segundo a historiadora Ruth
Leftel (2010, p. 22):
Os seis juízes do relato bíblico que provavelmente “governaram” são de-
nominados “juízes menores”, pois pouco é conhecido sobre sua vida e
nada sobre atos militares e heroicos de “salvação”. Foram, possivelmen-
te, lideranças que surgiram em tempos de paz. Os outros seis juízes,
“salvadores”, são denominados “juízes maiores”, pois foram líderes mili-
tares carismáticos, acompanhados, segundo relato bíblico, pelo Espírito
Divino que os guiava num momento de tragédia nacional e impotência
das tribos diante dos já organizados povos vizinhos que os atacavam.

Ser juiz não era um cargo permanente, nem hereditário. A personalidade assu-
mia a função por um determinado período de tempo e não transferia o cargo
para membros de sua família. O único caso em que o filho de um juiz tentou
assumir as funções de seu pai foi no episódio de Abimelec, filho de Gideão, um
dos seis maiores. Segundo a narrativa bíblica, Abimelec matou seus irmãos e se
autoproclamou rei de Israel, contudo seu “poder” de dominação não fora para
além da tribo de Manassés, o filho de Gideão foi deposto pelos anciãos que não
aceitavam perder seus poderes.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


31

A fragmentação das tribos começou a ruir por volta do século XII a.C.,
quando os Filisteus vindos das ilhas do mar Egeu estabeleceram-se na Palestina.
Dominadores de técnicas de “fundição do ferro e, com ele, a confecção de espadas,
pontas de lanças, flechas e outros artefatos” (LEFTEL, 2010, p. 23), tornaram-
-se grandes ameaças.
É importante esclarecer que Canaã, ou Palestina, apesar de ser uma região
pouco fértil era um entreposto comercial entre a Europa, África e Ásia, além
de ser banhada pelo Mar Mediterrâneo, que possibilitava o escoamento de pro-
dutos para o extremo oeste europeu e para o norte do continente africano. Por
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isso, essa região foi palco de lutas encarniçadas de sucessivos reinos e impérios.
A pressão dos Filisteus intensificou-se nos dias do profeta Samuel. A frag-
mentação das tribos em um vasto território era presa fácil a uma monarquia
sólida, como era a dos invasores. Diante disso, a solução foi a unificação e con-
solidação de um Estado com regime monárquico forte, capaz de mobilizar as
tribos contra um inimigo comum.

No Tempo dos Juízes


32 UNIDADE I

O PERÍODO DOS REIS

O período dos reis foi o mais intenso


da história hebraica. Nele veremos a
ascensão de Israel como uma potência
regional e a decadência do reino, seguida
por invasões estrangeiras.

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SAUL

O beijamita Saul tornou-se o primeiro


rei de Israel por volta do ano 1020 a. C.,
com apoio de Samuel que, a princípio,
rejeitou a ideia de uma monarquia, seu governo foi marcado por uma unidade
nacional entre as tribos, separadas por regiões não israelitas e também por suces-
sivas vitórias contra os Filisteus.
Saul organizou um exército permanente e estabeleceu um corpo adminis-
trativo rudimentar, ambos formados por membros de sua família, como Kish
seu pai que tinha cargos administrativos, seu primo Abner, chefe do exército, e
seu filho Jônatas, que possuía alta patente militar.
Sobre o governo de Saul, o rabino Raymond Scheindlin (2003, p. 34) traz a
seguinte explanação:
[...] embora no início fosse ele eficaz no combate aos filisteus, revelou-
-se instável, sujeito a ataques de depressão e raiva, assim como a lapsos
de raciocínio. Samuel mudou seu apoio para Davi, um oficial jovem de
Saul que se distinguirá num único combate contra Golias, um herói
filisteu famoso. A popularidade de Davi como guerreiro eclipsou a de
Saul[...].

Por volta do ano 1000 a.C., os Filisteus impetram uma terrível derrota aos isra-
elitas, no monte de Gilboa, em que os três filhos de Saul morreram e o próprio
rei se matou, sobrando apenas um herdeiro do trono, o jovem Ishbaal, que assu-
miu o poder em Guilead e reinou durante um curto período de tempo sobre
Efraim e Benjamim, mas teve uma morte misteriosa, após a traição de Abner.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


33

Davi assumiu o trono após a morte de Ishbaal, ainda que já tivesse poder
sobre as demais tribos após a morte de Saul, a totalidade só fora alcançada após
a morte do filho desse.
Para um bom estudante da Bíblia, fica claro que Davi assumiu o trono por
promessa divina, no momento em que Samuel o unge, mas é importante escla-
recer que, segundo as tradições políticas do Oriente Antigo, Davi era herdeiro
natural do trono, pois havia se casado com Mical, filha de Saul. As tradições
recaem na ideia de que se o rei não possuía herdeiros, o trono deveria ser pas-
sado para seu genro, portanto, após a morte do último herdeiro de Saul, Davi
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deveria assumir o trono, o que aconteceu.

DAVI E SALOMÃO

O reinado de Davi marca o início da hegemonia de Judá sobre a região. No iní-


cio de seu governo, Davi conquista Jerusalém dos Jebuseus, cidade que “separava
as montanhas de Efraim da região de Judá” (LEFTEL, 2010, p. 26), no centro da
Palestina. Jerusalém era o principal interesse dos hebreus desde a conquista de
Canaã, Davi materializou essa conquista tornando a cidade o centro da monar-
quia e do culto para todos os israelitas.
O reinado de Davi foi marcado pelo apogeu da monarquia israelita, talvez
de todo o período hebreu na região, desde os patriarcas até os tempos da destrui-
ção do segundo templo. Segundo a tradição judaica, o Messias salvador, aquele
que restauraria a sorte de Israel, deveria vir de origem davídica, pois o próprio
Deus garantiu vitória a seus descendentes.
Nem tudo foram flores no reinado Davi que, para colocar em prática seus
planos ambiciosos de conquistas, iniciou uma política de recrutamento obri-
gatório entre as tribos e aumentou significativamente a cobrança de impostos.
Nesse contexto, seu filho Absalão organizou uma rebelião, apoiada pelos exér-
citos e lideranças das tribos, que foi contida pela resistência de setores da tribo
de Judá que defenderam os interesses do rei (LEFTEL, 2010).
O reinado de Davi durou aproximadamente 39 anos, entre 1000 a.C a 961
a.C., período em que conseguiu concretizar quase todos os planos, contando com

O Período dos Reis


34 UNIDADE I

a ajuda de seus Valentes, um exército que estava a seu dispor desde os tempos em
que era perseguido por Saul, e por sua tribo, Judá, a quem sempre favoreceu. É
importante deixar marcado a ideia de “quase”, pois apesar do desenvolvimento
econômico e a consolidação da monarquia, o rei não conseguiu construir um
templo de adoração a Deus, mantendo o centro das práticas da religião israelita
na figura do tabernáculo, um santuário sagrado que continha a Arca da Aliança,
símbolo da presença de Deus.
A figura do tabernáculo fazia sentido em um momento em que a consolidação
do povo não tinha se efetivado e as ameaças externas se espreitavam cotidiana-

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mente, mas a monarquia davídica tinha posto, mesmo que temporariamente,
como veremos na história, um ponto final nestas imprecisões, por isso, era o
momento de fixar um local definitivo de consagração ao Deus de seus ancestrais.
A construção do templo sagrado foi iniciada e concretizada no reinado de
Salomão, filho e sucessor de Davi ao trono de Israel. O rei, reconhecido por sua
sabedoria, governou por aproximadamente 39 anos também, entre 961 a. C. e
922 a.C. e herdou a estabilidade política e econômica de seu pai.
Salomão dominou as vias de comércio do crescente fértil e fez de Israel um
dos principais reinos do comércio internacional da época. Em grande medida, o
monarca não encontrou os problemas externos que assolaram as monarquias ante-
riores, isso porque fizeram alianças, marcadas pelo matrimônio, com os antigos
inimigos, entretanto o problema encontrado por Salomão foi de ordem interna.
O reinado de Salomão foi marcado pelos altos impostos e a realização de
trabalhos compulsórios, conhecidos como corveia, em grande medida para ‘dar
conta’ de construir o Templo Sagrado ao Deus de Israel, que ficou conhecido
por Templo de Salomão.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


35
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Figura 3 - Reino Unido de Israel nos tempos de Saul, Davi e Salomão


Fonte: lh6 ([2017], on-line)5.

O Período dos Reis


36 UNIDADE I

Assim como no reinado de seu pai, Salomão manteve a tribo de Judá como base
política de seu mandato, desse modo, a tribo em questão não sofria com a alta
tributação e a corveia. Estes fatores trouxeram grandes descontentamentos entre
as tribos que não se beneficiavam, dentre elas, Efraim, que tinha em Jeroboão a
principal voz contrária à política centralizadora real.
Salomão edificou um exército forte e submisso às suas ordens e erigiu for-
talezas em pontos estratégicos do reino (LEFTEL, 2010), no entanto, no final de
seu reinado, viu seu poderoso domínio imergir em crises econômicas e insa-
tisfação popular. Apesar dos problemas, Salomão conseguiu manter o reino

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unificado até sua morte.

ROBOÃO E A DIVISÃO DO REINO

Roboão, herdeiro do trono, não tinha o mesmo pulso que seu pai e avô tiveram.
Diante das fortes hostilidades e do desejo de secessão das tribos do norte, lidera-
das por Efraim, em 922 a.C. imediatamente após a morte de Salomão, aconteceu
a definitiva divisão do reino, dando origem ao reino do Norte, formado por dez
tribos e sob o comando de Jeroboão, enquanto restaram as tribos do Sul, formada
por Judá e Benjamim. Etimologicamente, as tribos do norte ficaram conhecidas

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


37

como Israel e, a partir desse momento, seus habitantes receberiam o nome isra-
elitas, já as tribos do sul, apesar de Benjamim, ficaram conhecidas como Judá e
seus habitantes judeus.
O reino do Norte sofreu sucessivas mudanças de dinastias, enquanto Judá
manteve até seu fim a dinastia davídica. Quanto às capitais, Israel teve Siquém,
depois Tersa e, por fim, Samaria, já Judá manteve Jerusalém. Do ponto de vista
religioso, também houve grandes mudanças. Jeroboão “estabeleceu seu próprio
culto oficial, construindo templos em Dã e Betel, para que seus súditos não olhas-
sem mais para o Templo de Jerusalém” (SCHEINDLIN, 2003, p. 42), os judeus
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mantiveram relativa devoção ao Deus de seus ancestrais, digo relativa, pois, em


alguns momentos da história, reis do Sul estabeleceram cultos a ídolos.

Quando os judeus retornaram para a Jerusalém, após o exílio babilônico, a


Samaria, antigo vestígio do reino do norte, já era uma província bem estru-
turada. Jerusalém, por sua vez, não passava de ruínas e destruição, herança
do ocorrido 70 anos antes. Esdras e Neemias foram os responsáveis pelo
restabelecimento de Jerusalém. Os judeus viam Samaria como concorrência
política às pretensões de poderio sobre a região. A ortodoxia judaica via os
samaritanos como idólatras e miscigenados. De fato, os samaritanos eram
miscigenados e isso decorria das invasões assírias e alguns idólatras, o que
não era tão diferente dos judeus, mas enquanto o templo de Jerusalém esta-
va destruído, os samaritanos ergueram no Monte Garizim, seu próprio tem-
plo em louvor ao Deus de seus ancestrais e tinham seu próprio pentateuco.
Com a dominação de Alexandre sobre a região, Samaria foi rapidamente
helenizada e, durante o período dos Macabeus, foi considerada inimiga dos
judeus. Assim, sucedeu até o primeiro século da era comum.
Fonte: o autor.

De maneira geral, os reinos do Norte e do Sul divididos não representavam gran-


des ameaças aos Impérios que emergiam no crescente fértil. Por vezes, Israel e
Judá aliaram-se entre si, ou com outros reinos, contra inimigos comuns, casando
seus herdeiros com filhas de outros reis, como o caso de Acabe, filho de Amri,

Roboão e a Divisão do Reino


38 UNIDADE I

herdeiro do trono de Israel que casou com Jezabel, filha do rei de Tiro, e a neta
de Amri, Atalia, que casou com Jorão, filho do rei de Judá.
Jezabel divulgou sua religião e perseguia os não pagãos, mas é importante
esclarecer que, mesmo no reino do Norte, existiam profetas que se ergueram
contra a idolatria, como Elias e seu discípulo Eliseu, que se mantiveram fiéis ao
Deus de Abraão, Isaac e Jacó e não se curvaram diante de deuses estrangeiros.
No sul, durante o reinado de Jorão, por influência de sua esposa Atalia, estabe-
leceu-se o culto a Baal, uma entidade fenícia. Em ambos os casos, as esposas dos
reis, responsáveis por cultos estrangeiros, foram executadas.

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Figura 4 - Reino dividido de Israel e Judá


Fonte: cancao nova ([2012], on-line)6.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


39

DOMINAÇÃO ASSÍRIA, DOMINAÇÃO BABILÔNICA E


EXÍLIO

Entre 744 a.C e 727 a.C., a Assíria


ressurge como grande império
expansionista, sob liderança de
Tiglath-Pileser III, que, após
subjugar a Babilônia, voltou suas
atenções para o ocidente. Em 738
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a.C., o imperador assírio passa


a cobrar impostos do Reino do
Norte e dos Estados ao norte de
Canaã. Nesse momento, Israel
e Damasco, um dos Estados ao
norte de Canaã, juntam-se em
uma coalizão regional contra o
poderoso Império. Judá, que nessa época tinha Acaz como rei, não se prontifi-
cou a participar da coalizão, o que causou a ira dos membros que “invadiram
Judá com a intenção de substituí-lo por um governante mais cooperativo. Frente
a essa invasão e aos ataques de diversas outras partes, Acaz apelou para Tiglath-
Pileser III, pedindo ajuda” (SCHEINDLIN, 2003, p. 45-46). Após o pedido de
ajuda, os assírios mobilizaram-se em uma campanha para efetivamente acaba-
rem com a coalizão e dominarem a região. Assim, invadiram Israel, deportaram
parte de sua população e colocaram um rei fantoche no poder, Oséias.
Apesar de ter sido colocado no poder por decreto Assírio, Oséias recusou-
-se a pagar tributos ao poderoso império e pediu ajuda ao, já não tão poderoso,
Egito, o que de fato não adiantou. Em 721 a.C., Sargão II invadiu Samaria, pondo
fim definitivo na História do Reino do Norte.
Os assírios tinham como prática, no momento da ocupação, a troca da popu-
lação nativa por de outras regiões, desse modo, deportaram os israelitas para a
região da alta mesopotâmia, e o território do Reino do Norte foi colonizado por
sírios e babilônios, formando, assim, um dos estereótipos carregado pela popu-
lação samaritana, o de povo miscigenado e pagão (SCHEINDLIN, 2003).

Dominação Assíria, Dominação Babilônica e Exílio


40 UNIDADE I

O reino de Judá não ficou totalmente ileso aos ataques assírios na região,
em 703 a.C., após uma rebelião na Babilônia, possessão importante do Império,
formou-se uma coalizão antiassíria, na Palestina, que contou com Tiro, cidades
filisteias e Judá, que nesse momento era governado por Ezequias. Scheindlin
(2003 p. 47) aborda esse momento da História:
[...]preparando-se para a retaliação assíria, Ezequias reforçou as fortifica-
ções de Jerusalém e cavou o famoso túnel de Siloé – que ainda pode ser
visitado – para garantir o abastecimento de água da cidade. Quando o rei
assírio Senaquerib entrou marchando pela região em 701 a. C., seguiu-se
uma terrível carnificina e extensas expatriações, e Ezequias teve de ceder

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alguns de seus territórios e aumentar seu tributo. Mas Senaquerib partiu
abruptamente da cena sem tomar Jerusalém, o que, de acordo com o nar-
rado na Bíblia, foi resultado da milagrosa morte súbita de suas tropas”.

Mesmo não efetuando dominação total da região, os judeus foram obrigados


a pagar tributos aos assírios, fato que se estendeu até o reinado de Josias, que
governou entre 640 a.C. e 609 a.C., o último rei judeu que governou com certa
autonomia, seu reinado foi marcado pela purificação do estado judeu, eliminou
os cultos estrangeiros, restabeleceu a celebração da páscoa, que há muito não se
observava, restringiu o holocausto à cidade de Jerusalém,
a Bíblia descreve este evento como sendo resultado da descoberta de
um rolo de pergaminho antigo no Templo – presumivelmente, o Livro
de Deuteronômio -, estabelecendo que os sacrifícios não poderiam ser
oferecidos em qualquer outro lugar (SCHEINDLIN, 2003, p. 48).

De fato, no reinado de Josias, a aliança com Deus de seus ancestrais foi restau-
rada.Triste foi o fim de Josias, que, ao tentar impedir as tropas egípcias de se
unirem aos assírios em uma ofensiva ao crescente império babilônico, fora bru-
talmente assassinado.
Apesar da ajuda egípcia aos assírios, os babilônios tornaram-se a grande
potência na região. O grande general Nabucodonosor – que logo se tornou rei
– derrotou os egípcios na Síria e transformou o rei de Judá, na época, Joaquim,
em seu vassalo (SCHEINDLIN, 2003).
Joaquim não se submeteu ao domínio babilônico e liderou um levante con-
tra o império mesopotâmico. Nessa rebelião, o rei foi morto e sucedido por
Jeconias, seu filho de 18 anos, que resistiu durante três meses, quando se rendeu.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


41

Sedecias tornou-se rei após a deposição de Jeconias, no entanto, apesar de


ter sido colocado como rei fantoche dos interesses babilônicos, o rei foi líder
de uma nova rebelião. Em 587 a.C., as tropas de Nabucodonosor destruíram as
muralhas de Jerusalém e o Templo de Salomão, centro das celebrações religiosas
do povo judeu, renderam os oficiais e os nobres e parte da população e os leva-
ram cativos para a Babilônia, tinha, assim, o fim do Reino de Judá.
O exílio babilônico fortaleceu as instituições religiosas do povo judeu. As
reminiscências dos tempos gloriosos de Davi e Salomão tornaram-se ideais no
inconsciente coletivo dos exilados, neste contexto as esperanças do sonho do
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Messias restaurador, aquele que restauraria a sorte de Sião, foram revividas.


O redentor ideal seria um rei – o ungido do Senhor – da linhagem de
Davi ou um Ser celestial referido como “Filho do Homem”. A Redenção
poderia pois significar um mundo melhor e mais pacífico ou o fim e
aniquilação total “desta época” e o prenúncio de uma nova era e de “um
novo céu e uma nova Terra” entre a catástrofe e o julgamento (WER-
BLOWSKY, 1972, p. 23).

Foram, ao todo, 70 anos até que os judeus (que voltaram, mas muitos ficaram por
lá) deixassem o exílio babilônico. No início, sob dominação do próprio Império
Babilônico e depois sob dominação do Império Persa, que sob liderança de Ciro,
conquista a Babilônia em 539 a.C. Já em 538 a.C., os primeiros exilados retor-
naram a Judá, agora uma província Persa.
Sobre o exílio babilônico, é importante esclarecer algumas questões: ape-
nas cerca de 10% dos judeus tornaram-se cativos em Babilônia; muitos exilados
enraizaram- se na Mesopotâmia, alcançando estabilidade econômica e não esta-
vam dispostos a se mudarem para uma província pobre; os tempos áureos da
dominação judaica, na Palestina, era lembrança de alguns idosos (SCHEINDLIN,
2003; TASSIN, 1988) e mais, “reconstruir o Templo se apresentava como empresa
perigosa e esgotante” (TASSIN, 1988, p. 17).

Dominação Assíria, Dominação Babilônica e Exílio


42 UNIDADE I

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RETORNO A SIÃO: SOB DOMÍNIO PERSA

Em 538 a.C., sob proteção do Império Persa, retorna o primeiro governador da


província da Judéia, Sasabassar, um membro da Casa Real judaica, trouxe consigo
os objetos sagrados do Templo, que haviam sido roubados por Nabucodonosor,
e também restabeleceu o altar do holocausto.
Em 522 a.C., outro descendente da casa davídica assume o posto de gover-
nador da província da Judéia, Zorobabel. Sob a liderança de Zorobabel tem-se
a reconstrução do Segundo Templo, que ficou pronto em 515 a.C., longe de ter
a suntuosidade do Primeiro Templo, como alguns poucos idosos podiam lem-
brar (SCHEINDLIN, 2003).
Apesar da reconstrução do Templo Sagrado, a cidade de Jerusalém continu-
ava em ruínas, as muralhas que protegiam a cidade sagrada estavam destruídas,
sendo passível de invasões estrangeiras. Além disso, o pouco da religião ances-
tral que havia sobrevivido era marcado pelo sincretismo, pois, em Babilônia, os
exilados tiveram contato com outras religiões, e muitos dos que haviam ficado
também sofreram com a perda das referências religiosas, visto que poucos pro-
fetas e sacerdotes resistiram ao exílio. Nesse contexto, surgiu Esdras e Neemias.
Os contemporâneos Esdras e Neemias foram os grandes reformadores das ins-
tituições judaicas pós-exílio e, para alguns, os fundadores do judaísmo enquanto
religião. Esdras, um descendente de Arão, portanto, um levita, foi um escriba
da casa real persa que fora enviado pelo próprio imperador, em 458 a.C., com o

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


43

objetivo de colocar a Lei de Moisés como referência de identidade. Lutou con-


tra os matrimônios mistos e estabeleceu o conceito de raça santa, que já existia
entre os hebreus, mas que fora empregada com maior intensidade a partir do
século V a.C.
Porque a fidelidade à Lei (escrita) de Deus e o conceito de “raça santa”,
dois princípios inseparáveis, mostravam que a pertença ao Povo elei-
to não provinha de certidão de nascimento porém de opção de vida,
cujo termo-chave era separar-se, para participar da santidade do Deus
Totalmente-Outro, segundo a ideologia presente em Lv 20, 25-26 e Lv
26, 33 personificava o País que, graças ao sábado forçado do exílio, re-
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cuperaria a santidade de que fora despojado pela infidelidade à Aliança


(TASSIN, 1988, p. 21-23).

As reformas de Esdras são consideradas, até hoje, como essenciais para a existência
do judaísmo, tanto que a tradição considera, assim como Moisés, o reforma-
dor como um Legislador, diga-se de passagem, apenas as duas personagens tem
este título.
Mais do que um reformador da tradição, Neemias também foi um reforma-
dor de fato, pois foi em seu governo que a cidade de Jerusalém e suas fortificações
foram reconstruídas:
[...]então eu lhes disse: Vede a deplorável e humilhante situação em que
nos encontramos, como toda a cidade de Jerusalém está em ruínas e
suas portas devastadas pelo fogo. Vinde! Vamos reconstruir os muros
de Jerusalém, para que não passemos mais vergonha (BÍBLIA KING
JAMES, Neemias 2:17,[ 2017],on-line)1.

Neemias era o “enóforo – o encarregado dos vinhos – do rei persa Artaxerxes,


no palácio de Susa, seu homem de confiança” (SCHAMA, 2015, p. 52) que havia
se tornado governador da Judéia em 445 a.C. por nomeação. Apesar de não ser
da Casa de Davi, foi recebido como um enviado de Deus. Seu livro mostra as
dificuldades que teve diante das autoridades regionais, “Sambalate, o Horonita,
Tobias, o oficial Amonita e Gesém, o Árabe” (BÍBLIA KING JAMES, Neemias
2, 19,[2017], on-line)1, para assegurar a posse da Terra Santa, ao povo eleito.
É incrível a riqueza de detalhes contidas no livro de Neemias, o historiador
Simon Schama (2015, p. 53-54) elucida que:

Retorno a Sião: Sob Domínio Persa


44 UNIDADE I

[...]mesmo os acadêmicos mais moderados chamam o Livro de Nee-


mias, breve, mas de excepcional vividez, de memórias. Ao contrário de
outros livros da Bíblia Hebraica (mas da mesma forma que o Livro de
Esdras, com o qual sempre faz par, a ponto de serem lidos juntos, como
uma única narrativa), foi escrito quase com certeza perto da época dos
fatos que descreve. As longas citações de decretos reais e alvarás persas
em Esdras correspondem ao estilo cortesão e legal persa de meados do
século V a. C. São, na verdade, transições diretas. A impressão domi-
nante é de imediatismo documental, um livro que, em sua carga mate-
rial de ferro, pedra e madeira, recorda fisicamente seu momento.

Aos poucos, Judá foi alcançando certa autonomia e Jerusalém tornou-se o cen-

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tro de um pequeno Estado governado por um Sumo Sacerdote, que fazia da Torá
regras de conduta religiosa e ética.

PERÍODO HELENÍSTICO

O Império Persa foi, durante dois


séculos, o grande senhor do oriente
próximo, no entanto, em 333 a.C.,
esta condição mudou quando
Alexandre, o Grande, destronou
Dário III e passou a ter os persas e
os povos sob sua tutela em súditos
do Império Macedônio. O grande
Império liderado por Alexandre
englobava um vasto território que
ia da Península Balcânica ao rio
Indo, no subcontinente indiano.
Historicamente, o período de
dominação macedônio é conhecido como Helenista. A palavra Helenista, vem
de Hélade, que pode ser traduzido do grego como Grécia. Neste período, a

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


45

cultura, a religião e os costumes gregos foram difundidos pelos lugares em que


Alexandre dominou.
O rei macedônio Filipe II, cognominado Caolho, pai de Alexandre, invadiu
e dominou a Grécia em 346 a.C. e legou aos cuidados da alta intelectualidade
grega a educação do filho. Alexandre teve como preceptor ninguém menos que o
filósofo Aristóteles. Apesar de ter assumido o trono da Macedônia após a morte
de seu pai, Alexandre estava imerso na cultura helênica.
Como outrora citado, o Império Persa caiu sob dominação de Alexandre
em 333 a.C. e isso fez com que todos os domínios do império invadido passas-
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sem para os macedônios, inclusive a Judéia.


Beek (1967, p. 130-131) nos orienta ao fato de que:
[...]não há razão para acreditar que a vitória de Alexandre em Isso (333
a. C.) tenha afetado a situação de Jerusalém em qualquer aspecto fun-
damental. Tudo se resumiu na mudança do nome dos senhores – os
impostos e soldados tinham, agora, de ser fornecidos aos gregos e não
aos persas. Daí o silêncio das fontes judaicas sobre os momentosos
acontecimentos históricos que, na época, abalaram o Oriente Próximo.

A população judaica passou por uma paulatina helenização, entretanto a cul-


tura grega não era novidade entre os povos do Oriente Médio, tanto que, antes
mesmo da dominação persa, “mercadores gregos tinham viajado pelo Egito e
Ásia ocidental, espalhando ideias e produtos gregos onde iam” (BEEK, 1967, p.
131), a própria língua grega fora usada como língua franca durante O reinado
do persa Dario I.
Após a morte de Alexandre, em 323 a.C., teve início uma série de conflitos
pelo domínio de seu vasto território. Como O Grande não havia deixado her-
deiros, seus generais foram os protagonistas de 22 anos de guerras intermitentes.
Em 301 a.C., após a batalha de Ipsus, o Império Macedônio foi dividido em qua-
tro partes: o reino de Cassandro, composto pela Macedônia, parte da Grécia e
parte da Trácia; o reino de Lisímaco, composto pela Lídia, Frígia e partes da
Turquia; o reino de Seleuco com parte da Pérsia, da Mesopotâmia, da Síria e da
Ásia Central e, por fim, o reino de Ptolomeu, com o Egito e Palestina.

Período Helenístico
46 UNIDADE I

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SOB DOMÍNIO SELÊUCIDA

A Palestina, uma macro região em que dentre outras províncias estava a Judéia,
ficou sob domínio do reino de Ptolomeu, sediado no Egito. Durante todo o século
III a.C., a possessão asiática de Ptolomeu foi zona de litígio, sendo palco de con-
flitos contra o nascente Império Selêucida.
Em 198 a.C., os Selêucidas expulsaram os ptolomaicos da Ásia e tomaram
a Palestina. Antíoco III, imperador selêucida na época, “permitiu que a judéia
continuasse como um Estado semi-autônomo” (SCHEINDLIN, 2003, p. 65), seu
sucessor Antíoco IV – 175 a.C. a 163 a.C. – estabeleceu uma relação diferente com
a região, o que determinou decisivamente o poder estrangeiro sobre essa região.
O governo de Antíoco IV, autodenominado Epífanes (encarnação de Deus),
foi marcado pelo conflito de interesses entre ele e a, também, expansionista
República Romana que, desde a época de seu pai, já infligira derrotas humilhan-
tes ao Império Selêucida. Diante da necessidade de proteção, Antíoco IV adotou
a pilhagem de templos dos povos súditos.
[...] os templos sempre eram boas fontes de dinheiro, devido aos me-
tais preciosos, usados em seus equipamentos de rituais e decorações, e
porque, sendo considerados invioláveis, serviam com frequência de de-
positários para fundos públicos e até mesmo particulares. Desta forma,
o templo judeu chamou a atenção dos selêucidas como uma possível
fonte de tesouros” (SCHEINDLIN, 2003, p. 66).

Antíoco IV era senhor de uma vasta área que incluía a Mesopotâmia, a Síria e a

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


47

Palestina. Diante da multiplicidade de tradições e culturas dos povos invadidos,


o imperador deu início à unificação Cultural do Império, impondo o helenismo
como cultura oficial da região. Este novo modelo consistia na oficialização do
idioma grego, na moda, na filosofia e no treinamento físico.
De fato, a cultura grega já estava difundida na região, desde o período Persa,
como já discutido anteriormente, por isso, muitos judeus achavam que as orde-
nações do líder Selêucida poderiam modernizar o judaísmo, que para muitos,
influenciados pelo helenismo, não passava de um sistema religioso rudimen-
tar e primitivo. Até mesmo os sacerdotes, que haviam se tornado a autoridade
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máxima político-religiosa, aderiram à cultura clássica.


Para os judeus citadinos do século II a.C., não havia reais diferenças entre
o helenismo e o judaísmo:
[...]na mente de seus escritores e filósofos, o judaísmo era a raiz antiga,
e o helenismo, a árvore jovem. Zeus era apenas uma versão paganiza-
da do Todo-Poderoso YHWH, e Moisés, o legislador moral de quem
se originavam todas as legislações éticas. Escrevendo em meados do
século II a.C., o judeu Aristóbolo de Panias queria que seus leitores
acreditassem que Platão tinha estudado a Torá de forma meticulosa e
que Pitágoras devia seu teorema à antiga ciência judaica. Diante des-
se tronco comum de sabedoria, devia parecer bastante possível que os
dois mundos se compreendessem (SCHAMA, 2015, p. 119).

O período de dominação selêucida também marcou as sucessivas compras de


sacerdócio por famílias de classe alta de Jerusalém, como quando, no início do
século II, Josué, ou Jasão, seu nome helenizado, subornou o Imperador e conse-
guiu o título de Sumo Sacerdote (SCHEINDLIN, 2003).
Jasão inaugurou a Escola de Ginástica, em Jerusalém. No Ginásio, como era
chamado, praticavam-se jogos em honra e louvor às entidades do panteão grego,
além disso, os participantes deveriam praticar os esportes nus, o que soava como
ofensa para a mentalidade religiosa do judaísmo tradicional. Scheindlin (2003,
p. 67) chama a atenção para a questão de que:
[...] a nudez da escola de ginástica chamava a atenção para a prática
tradicional da circuncisão. Para evitar parecerem provincianos ou re-
trógrados, muitos judeus desistiram da prática, ou, às custas de uma
cirurgia dolorosa, desfaziam suas próprias circuncisões”.

Sob Domínio Selêucida


48 UNIDADE I

O sucessor de Jasão foi o Sumo Sacerdote Menelau, que superou o anteces-


sor em maldade, vendendo os recipientes do Templo e ajudando o imperador
selêucida a pilhá-lo, em 169 a.C. Em seu governo, a Torá foi revogada enquanto
lei dos judeus, a circuncisão, o Shabat e as festas da tradição foram consideradas
ilegais, foram erigidos altares pagãos em Jerusalém, e a população foi obrigada
a comer porco como forma de obediência. Em 167 a.C., o Templo Sagrado dos
judeus foi convertido em santuário pagão, com “estátuas, [...] sacrifício de por-
cos num novo altar, cultos dionisíacos, com prostitutas e pessoas cobertas de
hera em honra a Baco” (SCHAMA, 2015, p. 141).

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Depois destes episódios, Antíoco IV, chamado Epífanes (encarnação de Deus),
passou a ser popularmente conhecido como Epímanes (lunático) (SCHAMA,
2015; SCHEINDLIN, 2003).

REVOLTA DOS MACABEUS E A DINASTIA DOS


ASMONEUS

As atitudes de Menelau, articuladas


pelo Imperador, causaram revoltas
entre muitos judeus que ainda obser-
vavam a Lei, especialmente entre
aqueles que viviam na zona rural,
entre eles um sacerdote de Modíin,
chamado Matatias e seus cinco filhos.
Matatias iniciou uma revolta
contra o poderoso Império Selêucida,
mas logo foi morto, sendo sucedido
por seu terceiro filho, Judas, cha-
mado de Macabeu (o Martelo). Judas
Macabeu foi o líder mais proeminente

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


49

durante o período conhecido como Guerra dos Macabeus, impôs sucessivas vitó-
rias aos judeus e, em dezembro de 164 a.C., entrou em Jerusalém, restaurou o
Templo profanado e restabeleceu o culto a Deus (BEEK, 1967; SCHAMA, 2015;
SCHEINDLIN, 2003).
Em 163 a.C., Menelau foi executado, e Alcimo, da casa de Arão, portanto,
um Levita, foi proclamado Sumo Sacerdote. Apesar da vitória dos Macabeus,
a Judéia continuou a ser uma província do Império Selêucida, mas agora, com
certa autonomia. Nesse momento, os “soldados selêucidas supervisionavam a
observância da lei mosaica” (BEEK, 1967, p. 150).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Judas Macabeu morreu em 160 a.C. e foi sucedido, como líder dos revoltosos,
por seu irmão Jônatas, que oito anos depois de assumir a liderança da provín-
cia da Judéia foi consagrado pelo sucessor de Antíoco IV como Sumo Sacerdote
dos judeus, tendo sob sua jurisdição o poder político herdado da revolta dos
Macabeus e o poder religioso que, desde Esdras, era o “Poder de fato”. Jônatas,
diferente de seu irmão, “comportava-se como qualquer outro déspota helenís-
tico, lutando de acordo com seus próprios interesses políticos” (SCHEINDLIN,
2003, p. 70).
Após a morte de Jônatas, seu outro irmão, Simão assumiu o poder como
líder da família dos Macabeus, fora eleito Sumo Sacerdote por uma Assembleia
Nacional e conquistou o título de etnarca, ou líder de uma etnia, dando origem,
em 140 a.C., à dinastia dos Asmoneus. Em 104 a.C., Judá Aristóbulo, um dos
descendentes da casa dos Asmoneus, autoproclamou-se rei, título que até então
era restrito aos descendentes de Davi.
Apesar de contar com o apoio dos sacerdotes do Templo, a dinastia asmo-
néia enfrentou forte oposição popular. Desse período, temos a formação de
dois partidos religiosos: o primeiro ligado à aristocracia, à posse de significati-
vas quantidades de terra e ao clero, chamado de Saduceus; o segundo, baseado
na classe média e baixa descontentes com a centralização do poder, chamado de
Fariseus, do hebraico perushim, dissidentes.
Os Fariseus estavam mais próximos das camadas populares e era dividida
entre duas escolas rivais: a de Shamai e a de Hilel. “A primeira apegada à letra
da Lei, correspondia à atual imagem desfavorável; os ensinamentos liberais da
segunda tinham pontos e semelhança com os de Jesus” (SCLIAR, 2001, p. 38). De

Revolta dos Macabeus e a Dinastia dos Asmoneus


50 UNIDADE I

maneira geral, os fariseus acreditavam em interpretações da Lei feita por sábios


e na imortalidade da alma, “na ressurreição dos mortos, no paraíso para os jus-
tos e no inferno para os pecadores” (SCLIAR, 2001, p. 38).
O partido dos Saduceus, baseava-se exclusivamente na lei de Moisés, de
maneira que não encontravam fundamentos em outras interpretações que não
fosse a letra da lei, isso fazia deles extremamente conservadores.
No século I a. C., a religião não estava ligada única e exclusivamente ao
Templo, ou mesmo aos sacerdotes. A leitura da Torá era difundida desde a capi-
tal Jerusalém até as pequenas aldeias, onde intérpretes da lei recebiam o título

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de rabi (meu mestre). No momento em que a religião oficial deixava de ser a
única legítima, e a religiosidade assumiu contornos autônomos, estamos diante
de um problema político e social de grandes proporções, pois a autoridade real
que também era a religiosa viu-se desconfortável, pois seus ordenamentos, por
vezes, eram suplantados.
Sucessivas guerras estenderam-se ao longo do século I a. C., conflitos mar-
cados por disputas sucessórias ao trono e intrigas religiosas. Um exemplo dessas
lutas foi quando o asmoneu Alexandre Janeu contraiu o ódio dos fariseus por
acumular a função de rei e Sumo-Sacerdote. Os fariseus aliaram-se ao rei da
Síria Demétrio III, que ajudou o partido, pois tinha interesses econômicos na
região. Demétrio III destituiu Janeu dos cargos que acumulava e retomou o
domínio efetivo dos selêucidas sobre Jerusalém, no entanto a população, can-
sada do domínio estrangeiro sobre a região, elevou Janeu novamente ao trono,
e ele iniciou uma caça às bruxas, matando mais de seis mil pessoas apenas na
capital (GUSSO, 2003).

Se juntarmos todos exílios ao longo da História Hebraica, perceberemos que


os mesmos viveram mais tempo fora do que dentro da Terra, foram quase
2000 anos. Nesse ínterim, árabes muçulmanos estabeleceram-se na região e
fizeram da cidade a terceira mais importante de sua religião.

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


51

A DOMINAÇÃO ROMANA E O REINADO DE


HERODES, O GRANDE

Após a morte de Janeu, sua esposa Salomé assumiu o trono, mas não pôde evitar
que seus filhos lutassem pelo poder. Os irmãos Aristóbulo II e Hircano II foram
protagonistas de lutas encarniçadas pelo poder após a morte de sua mãe Salomé.
Aristóbulo tornou-se rei com o apoio dos saduceus e Hircano Sumo Sacerdote
com o apoio dos fariseus. Aristóbulo, que desejava para si o poder sacerdotal,
e Hircano, o real, pediram auxílio ao general Romano e um dos líderes do 1°
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Triuviratum Pompeu que, apesar de ter recebido mimos dos dois lados, optou
por ajudar Hircano, que agregou o poder civil e o poder religioso.
Roma, que nesse momento não era um Império, e sim uma República gover-
nada por senadores, não intervinha sem que não achasse interesse e logo passou
a cobrar tributos da Judéia em troca de seu apoio ao rei. Nesse momento, 63 a.C.,
iniciou a dominação romana sobre a região.
Pompeu entrou em Jerusalém e, segundo a tradição descrita pelo historia-
dor judeu-latino Flávio Josefo e apresentado por Simon Schama (2015, p. 158):
[...]pondo de lado os tabus contra estrangeiros, o general invade o Tem-
plo, rasgando o véu da cortina penetrando no Santo dos Santos, a que
só o sumo sacerdote tinha acesso. Nesse momento, porém, Pompeu se
mostra tão deslumbrado com o altar de ouro, com a mesa da proposi-
ção e com a menorá (segunda a tradição, ele teria chegado a se prostrar)
que, contra seus hábitos, abstém-se do saque. No dia seguinte, ele or-
dena uma purificação dos pátios do Templo e o reinício dos sacrifícios.

Para além do etnarca e o Sumo Sacerdote, Roma estabeleceu uma nova figura para
validar seu poder na região, o procurador. O primeiro procurador da Judéia sob
dominação romana foi Antípatro, que havia sido comandante militar do último
rei asmoneu, e sua função era supervisionar a coleta de impostos e assegurar o
envio a Roma (BEEK, 1967). Antípatro, era idumeu, povo palestino que havia se
convertido ao judaísmo na época da expansão territorial asmonéia.
Hircano II governou entre 63 a.C. e 40 a.C., sendo sucedido por seu filho
Antígono, que fora alvo de um conluio entre os romanos e o filho de Antípatro
Herodes. Foi assinado em 37 a.C., colocando fim definitivo à dinastia dos
asmoneus.

A Dominação Romana e o Reinado de Herodes, o Grande


52 UNIDADE I

Após a morte do último monarca asmoneu, Herodes assumiu o governo


da Judéia sob total dominação romana. Casou-se com a herdeira da Casa dos
Macabeus para validar o poder sobre as classes mais conservadoras da região
e dissociou o poder religioso do político, algo que não acontecia efetivamente
desde o retorno da Babilônia, mas tinha o poder de nomear o Sumo Sacerdote,
no entanto nunca fora reconhecido como rei legítimo pelos fariseus.
Herodes, o Grande, como ficou conhecido, apesar de ter o respaldo romano,
não era um rei fantoche, tinha certa liberdade de ação, como mostra-nos Schama
(2015, p. 159) em um acordo feito pelos romanos:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
[...] não vamos interferir em seus costumes curiosos: essas manias de
vocês em relação à carne de porco e ao prepúcio, a pausa maçante no
trabalho a cada fim de semana, esse monte de carcaças queimadas de
animais e os mil problemas, que vocês mesmo inventaram, de controle
das multidões de peregrinos nas festas religiosas. Tudo isso é problema
de vocês. Só não percam o controle sobre eles.

Como hábil estrategista, Herodes fez prosperar a região com grandiosas obras e
desenvolvimento econômico, foi em seu reinado que
ampliou bastante a área em torno do Templo, extraindo lajes imensas
de pedra calcária lavradas e transportadas ao monte para criar o grande
muro externo do perímetro do recinto [...] A imensidão do Templo, no
alto de sua montanha urbana, visível a muitos quilômetros de distância
em qualquer direção, anunciava aos viajantes a escala imperial do que
avistavam. Além das obras do santuário, o modesto palácio residencial
edificado pelos asmoneus tornou-se um edifício muito mais grandioso,
um misto de fortaleza e local de lazer. Havia agora ali jardins, pisci-
nas, ruas, calçadas com elegância, mercados e pontes em arco que liga-
vam ao monte do Templo, ao monte Sião. Os aquedutos e as cisternas
do tempo de Ezequias foram reformados e ampliados, e outro grande
aqueduto foi construído do zero para atender às necessidades de Cesá-
rea (SCHAMA, 2015, p. 162-163).

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


53

Herodes foi mantido no poder, apesar das transformações institucionais que ocor-
reram em Roma, como a mudança de República para Império. Otavio, sobrinho
do grande general Júlio César, tornou-se o primeiro Imperador romano depois
de derrotar os exércitos do conspirador Marco Antônio, na famosa batalha do
Áccio (31 a.C.). O tetrarca apoiava as pretensões do general Marco Antônio, mas,
após a derrota de seu partidário, teve a coragem de se apresentar diante do ven-
cedor e dizer: “Julgue-me por minha lealdade, não pela pessoa a quem sou leal”
(SCHAMA, 2015, p. 160).
Herodes reinou com mão de ferro, obstinação e pragmatismo, destruindo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

prontamente seus adversários e desarticulando revoltas nos territórios sob sua


jurisdição. Era este o cenário político na região, quando uma certa virgem de
Nazaré recebeu a visita de um anjo.








A Dominação Romana e o Reinado de Herodes, o Grande


54 UNIDADE I

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao fim da nossa primeira unidade. Aqui, desenvolvemos algumas


importantes ideias para a compreensão da História dos Hebreus. É válido lem-
brar que um longo período da história dificilmente seria totalmente contemplado
nas páginas deste capítulo. Se fôssemos nos deter a todas as nuances que envol-
vem os israelitas no Antigo Testamento, seria necessário alguns volumes apenas
com esta temática.
Aprendemos, ao longo desta unidade, que foram vários os movimentos da

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
História que envolveram este povo. Desde a saída de Abraão de Ur, podemos
ver que a vida do povo de Deus não foi nada fácil. De uma família, Israel tor-
nou-se uma grande nação, encontrou dificuldades para se estabelecer em uma
região marcada pelo clima deserto e pela ascensão de grandes impérios, alcançou
notoriedade regional durante a dinastia de Davi e seu filho Salomão e padeceu
diante de poderosos invasores.
Vimos que a instabilidade política, ocasionada durante o reinado de Roboão,
possibilitou a divisão do reino que, por sua vez, por conta da região estratégica
em que estava, foi alvo dos interesses das grandes potências bélicas, como os
Babilônios, os Persas, os Macedônios e os Romanos.
Uma característica desta unidade foi o movimento de distanciamento e de
arrependimento dos hebreus que, por vezes, deixaram de adorar ao Deus de seus
antepassados para se renderem aos deuses pagãos. Vimos que, ocasionalmente,
o tratamento divino foi sofrido e pedagógico.
Ao final da unidade, mostramos a ascensão da dinastia iduméia e o reinado
de Herodes, o Grande, sua ligação com os romanos e as principais obras empre-
endidas por ele, também começamos a delinear o cenário em que foi possível
o nascimento do Messias Salvador, mas isso é assunto para a próxima unidade.
Até logo!

A HISTÓRIA DOS HEBREUS: DO PATRIARCA ABRAÃO A HERODES, O GRANDE


55

1. A consequência da dominação helenística na Palestina no século IV foi:


a) A dominação romana sobre sobre a região.
b) Nabucodonosor vence a Batalha de Jerusalém.
c) Estabelecimento da dominação selêucida sobre a região.
d) Estabelecimento da dominação assíria sobre a região.
e) Ciro, o Persa, liberta os judeus da Babilônia.
2. Segundo relatos bíblicos presentes no livro de Gênesis, o patriarca Abraão ad-
quiriu por determinada quantia um território para enterrar sua esposa. Neste es-
paço também foram enterrados seus descendentes.Também conhecido como
túmulo dos patriarcas, o espaço recebeu o nome de:
a) Mezuzá.
b) Menorá.
c) Diáspora.
d) Machpelá.
e) Chanucá.
3. No século I a.C., uma dinastia de judeus conversos assumiu o governo da região
da Palestina, durante a dominação romana. A dinastia em questão era:
a) Iduméia.
b) Janéia.
c) Asmonéia.
d) Farisaica.
e) Saduceia.
4. A história hebréia de Abraão até o exílio babilônico é comumente dividida em
três períodos, respectivamente, conhecidos como:
a) Patriarcal, Reis e Juízes.
b) Juízes, Reis e Patriarcal.
c) Patriarcal, Juízes e Reis.
d) Patriarcal, Davídico e Messiânico.
e) Salomão, Roboão e Juízes.
56

5. Após o reinado de Salomão, durante o período em que os hebreus eram lidera-


dos por Roboão, uma divisão liderada pelo efraimita Jeroboão marcou definiti-
vamente a história de Israel. Deste cisma surgiram dois segmentos Hebreus, na
região da Palestina: o reino do Norte e o reino do Sul. Baseado em seus conhe-
cimentos sobre a temática, a alternativa que apresenta sequencialmente as
capitais do reino do Sul e do reino do Norte está em:
a) Samaria e Judá.
b) Jerusalém e Judá.
c) Judá e Belém.
d) Jerusalém e Nazaré.
e) Jerusalém e Samaria.
57

OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO


Começando em 1947, um grande número de manuscritos – e fragmentos – foi descober-
to na região erma à noroeste do Mar Morto. Alguns desses consistem de partes de livros
da Bíblia e de outros livros antigos conhecidos; outros contêm trabalhos anteriormente
conhecidos. A maior parte dos fragmentos está escrita em hebraico, em pergaminho
ou papiro, e uns poucos estão em aramaico ou grego. A maioria deles parece ter sido
escrita antes da guerra contra Roma – 66 a 70 d.C. Como não existem outros manuscritos
hebraicos com tal antiguidade, e como parte do material que eles contêm era desconhe-
cida até agora, os Manuscritos do Mar Morto provaram ser de enorme importância para
a compreensão do judaísmo, no período mais tardio do Segundo Templo.
O maior número de Manuscritos do Mar Morto foi encontrado num grupo de cavernas
em Qumran, no canto noroeste do Mar Morto. Embora alguns estudiosos discordem, a
maioria concorda com que os manuscritos de Qumran foram colocados lá por membros
de uma comunidade religiosa que habitava a região, um ou dois séculos antes da queda
da Judéia, como um arquivo, ou para mantê-los a salvo, durante a guerra contra Roma.
Muitos acreditam ser essa comunidade um assentamento essênio. Os regulamentos e as
crenças da comunidade são expostos em tais documentos, como o Manual de Discipli-
na, o Documento de Damasco, os Salmos de Ação de Graças e o Manuscrito de Guerra.
Por esses trabalhos, é visto que os membros dessa comunidade consideravam os líde-
res sacerdotais de Jerusalém como usurpadores e que insultavam os reis asmoneus da
Judéia, reverenciando, em seu lugar, uma família de altos sacerdotes mais antiga, espe-
cialmente o misterioso, martirizado Mestre da Justiça. Eles afirmavam ter suas próprias
revelações, informando-as da verdadeira interpretação da Torá e do próprio calendário
religioso. Acreditavam estar vivendo à beira de uma guerra cataclísmica entre eles pró-
prios, os Filhos da Luz, e seus oponentes, os Filhos das Trevas, uma guerra que levaria ao
Fim dos Dias e à sua própria restauração ao poder.
Se eles de fato provinham de essênios, viviam numa comunidade fechada aos forastei-
ros, mantinham as propriedades em comum e se punham tão rígidos em relação às leis
de pureza que consideravam os forasteiros como impuros. Algumas de suas doutrinas
parecem estar relacionadas àquelas do início do cristianismo.
A natureza fragmentada das Escrituras do mar Morto combina com os problemas de
competição profissional entre os estudiosos envolvidos e tem tornado suas publicações
e interpretação tarefas muito difíceis e prolongadas. A recente controvérsia sobre esta
demora ocultou o fato de que uma boa parte das escrituras foi publicada e traduzida
para o inglês e está amplamente disponível, desde a década de 1950. A maioria das
escrituras remanescentes foi agora publicada de um modo provisório.
Fonte: Scheindlin (2003, p. 73-74).
MATERIAL COMPLEMENTAR

A história dos judeus


Simon Schama
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: nesta impressionante jornada através dos tempos, Simon
Schama detalha a história da experiência judaica, das suas origens
como povo tribal à descoberta do Novo Mundo, em 1492. É uma
história como nenhuma outra: um épico de resistência contra a
destruição, de criatividade e alegria, de afirmação da vida mesmo diante dos obstáculos mais
intransponíveis. A trama cruza os continentes da Índia à Andaluzia, dos bazares do Cairo às ruas de
Oxford e leva o leitor a lugares inimagináveis: um reino judeu nas montanhas ao sul da Arábia, uma
sinagoga, na Síria, com pinturas brilhantes nas paredes, palmeiras pintadas em catacumbas judaicas,
durante o Império Romano.
São diversas vozes em uníssono: da severidade e êxtase dos autores da Bíblia aos versos de amor de
poetas inebriados num jardim da Espanha muçulmana. Neste livro, o Talmude é queimado nas ruas
de Paris, corpos de centenas de judeus pendem em cadafalsos espalhados pela Londres medieval, um
iluminador de Palma de Maiorca redesenha o mundo, velas são acesas, cantos são entoados, navios
carregados de especiarias e pedras preciosas naufragam no oceano. E assim uma história excepcional
desenrola-se diante do leitor. Não de uma cultura à parte – como em geral se imagina – mas de um
mundo imerso e influenciado pelos povos com quem habitou, dos egípcios aos gregos, dos árabes
aos cristãos, o que faz da história dos judeus a história de todo o mundo.
“A história que Schama conta neste livro é abrangente, bem documentada, encantadora,
impressionante, pessoal e inspiradora...” - New York Review of Books.

A ESTRELA OCULTA DO SERTÃO


Este sensacional documentário trata da saga de um médico paraibano em busca de sua
origem judaica. Neste processo de busca, reúne-se com diversas autoridades israelitas
brasileiras e se descobrem os resquícios da cultura hebraica, na fundação da nação brasileira.
Confira o documentário completo no link, disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=gM53ECPiMkg>.
59
REFERÊNCIAS

AMÂNCIO, M. O Pacto de Abraão: In. PILAGALLO, O. O sagrado na história: judaís-


mo. São Paulo: Duetto, 2010.
BEEK, M. A. História de Israel. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 6 ed. rev. e amp. São Paulo: Paulus, 2010.
GUSSO, A. R. História de Israel para estudantes da Bíblia. Curitiba: A. D. Santos,
2003.
LEFTEL, R. Os juízes e os reis: In. PILAGALLO, O. O sagrado na história: judaísmo. São
Paulo: Duetto, 2010.
PETERLEVITZ, L. O Período Tribal em Israel: Tribos, Juízes e Estruturas. Revista Théos
Campinas, v. 1, p. 1-11, 2005.
PONDÉ, L. F. Os dez mandamentos (+ um): aforismos teológicos de um homem
sem fé. São Paulo: Três Estrelas, 2015.
SCHAMA, S. A História dos judeus: à procura das palavras: 1000 a. C. - 1492 d. C.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SCHEINDLIN, R. História Ilustrada do Povo Judeu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
SCLIAR, M. Judaísmo: Dispersão e unidade. São Paulo: Ática, 2001.
TASSIN, C. O Judaísmo: do exílio ao tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1988.
WERBLOWSKY, Z. O Messianismo na História Judaica. In: UNESCO (org). Vida e valo-
res do povo judeu. São Paulo: Perspectiva, 1972.
WROBEL, R. Nossas Festas: celebrações judaicas. São Paulo: Francis, 2007.

REFERÊNCIAS ON-LINE

Em: <http://bibliaportugues.com/kja/>. Acesso em: 10 mai. 2017.


1

2
Em: <https://bible.org/seriespage/4-hebron-cave-machpelah-stands-testimony-
-faith >. Acesso em: 10 mai. 2017.
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Em: <http://wol.jw.org/pt/wol/ml/r5/lp-t/31>. Acesso em: 10 mai. 2017.
4
Em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf>. Acesso em: 10 mai. 2017.
5
Em: <http://lh6.ggpht.com/-5rtDJYkjFSA/UPmfwHNEgcI/AAAAAAAAEaM/ZI-
P1IaZszkQ/1%252520%25252817%252529_thumb%25255B3%25255D.jpg?img-
max=800>. Acesso em: 10 mai. 2017.
6
Em: <http://blog.cancaonova.com/hpv/files/2012/04/div.jpg>. Acesso em: 10 mai.
2017.
GABARITO

1. C.
2. D.
3. A.
4. C.
5. E.
Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira
Professor Me. Saulo Henrique Justiniano da Silva

II
O INÍCIO DO CRISTIANISMO
NO MUNDO ANTIGO E AS

UNIDADE
SUAS ORIGENS JUDAICAS E
GRECO-ROMANAS

Objetivos de Aprendizagem
■■ Apresentar o cenário político da Palestina no primeiro século da Era
Cristã.
■■ Estudar os impactos do nascimento e do pensamento de Jesus na
Palestina do primeiro século.
■■ Analisar a instabilidade entre romanos e judeus e suas consequências
na destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C.
■■ Conhecer as estruturas do pensamento grego presente na “Boa Nova”
cristã.
■■ Apresentar os pontos comuns e antagônicos da formação da religião
cristã dentro da cultura romana.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O cenário político
■■ O nascimento de Cristo e do cristianismo
■■ A queda de Jerusalém
■■ As influências gregas no pensamento cristão dos primeiros séculos
■■ O cristianismo no mundo romano: convergências e divergências para
a fundamentação da nova fé
63

INTRODUÇÃO

Olá, bem-vindo(a) à segunda unidade do livro História da Igreja I. Ao iniciar-


mos esta Unidade do nosso curso de História da Igreja I, precisamos fazer uma
breve retomada do que já vimos, o que será ação disparadora para o conteúdo
que virá. Destarte, até aqui, vimos um pouco sobre os acontecimentos que esti-
veram presentes no período do Antigo Testamento. É interessante notar que
esses acontecimentos não devem ser vistos apenas pelo enfoque do religioso,
mas também do político e social.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nesta Unidade, você compreenderá qual era o cenário em que a Palestina


estava imersa nos anos que antecederam ao nascimento de Cristo, como fun-
cionava a religião ao redor do Templo, a confusa divisão política da região e o
quão multifacetado eram os judaísmos, no século I a.C. Veremos também o nas-
cimento do cristianismo e suas principais doutrinas. Optamos por apresentar
a queda de Jerusalém e a expulsão dos judeus da Palestina, fato que contribuiu
para a diáspora, a dispersão de judeus por todas as partes do mundo.
Apresentaremos também um estudo sobre as influências culturais gregas e
romanas no cristianismo. Uma vez que tal religião funda-se dentro de um mundo
culturalmente helênico, essas influências estarão presentes em seu desenvol-
vimento. Isso é importante de se notar, pois, seja para incorporar, ou repelir a
cultura clássica grega e romana teve um papel imprescindível nesses tempos de
formação e fixação do cristianismo, no mundo ocidental. Dito de outra forma, em
vez de vermos apenas uma ruptura, muitas vezes, pensada de maneira abrupta,
podemos e devemos, como pesquisadores, também visualizar uma continui-
dade entre essas culturas.
É uma viagem incrível no passado que busca, além de mostrar os aspectos
religiosos, inseri-lo(a) nas discussões que giram em torno da História Antiga,
ou seja, um prato cheio para quem quer conhecer mais sobre a nossa civiliza-
ção, não é mesmo? Vamos lá?

Introdução
64 UNIDADE II

O CENÁRIO POLÍTICO

Como no capítulo anterior, vale uma pequena contextualização da região da


Palestina, nos primeiros anos do século I, antes de começar a detalhar o surgi-
mento do cristianismo de fato.
Do ponto de vista político, a região tinha governos um tanto quanto confu-
sos para nossos modelos atuais. Desde a decadência do reino dos asmoneus, a
região passou a ser governada por idumeus, também chamados edomitas, povo
semita convertido ao judaísmo, durante o reinado do macabeu João Hircano por

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
volta de 130 a.C. O mais famoso deles foi Herodes, o Grande, que governou, no
princípio, a Judéia, e depois da elevação de Roma de República a Império, toda
a Palestina, e seu reinado, ao todo, durou 33 anos (37 a.C. a 4 a.C.). O grandioso
rei dos judeus, como ficou conhecido, isso em grande medida por ter constru-
ído grandes complexos arquitetônicos durante seu reinado, sofreu uma morte
cruel, que foi festejada por muitos de seus inimigos e súditos que viram seus
entes queridos padecer nas mãos do tirano.
Herodes contraiu uma longa série de infecções abdominais, inclusive
tumores de cólon, uma “insuportável comichão nos intestinos” e uma
horrível supuração no pênis, onde assembleias de vermes se reuniam
em locais que surpreendiam até seus médicos, sempre compreensivel-
mente nervosos (SCHAMA, 2015, p. 168).

Uma carta-testamento do próprio Herodes, o Grande, dividiu seu vasto território


em tetrarquias, que significa governo de uma quarta parte, entre três de seus filhos,
Herodes Antipas, também conhecido como Herodes, o Tetrarca, que governou
a Galiléia e parte da Transjordânia (SCHEINDLIN, 2003), Arquelau, que ficou
responsável pelo governo da Judéia e Samaria (Mt. 2,22) e Felipe, o Tetrarca, que
reinou sobre a Ituréia e Traconítide (Lc 3,1), além destes três, Herodes, o Grande,
foi pai de Herodes Felipe, que foi casado com Herodias (Mc 6, 17), e Aristóbulo,
pai de Herodes Agripa, e ambos viveram em Roma.
Arquelau, também chamado na historiografia de Herodes Arquelau, ficou
com o coração do reino de seu pai, e sob sua jurisdição estava o imponente
Templo de Salomão, o lugar mais sagrado do judaísmo, no entanto governou
por um curto período de tempo, cerca de 10 anos, entre 4 a.C. a 6 d.C. Agindo

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


65

com a mesma truculência de seu pai, foi deposto do cargo após uma comitiva
de prestigiados líderes judeus terem pedido sua deposição para o próprio impe-
rado, que não tardou em ouvi-los.
Após a destituição de Arquelau, a região passou a ser governada por pre-
feitos romanos que eram colocados no cargo pelo próprio imperador. Neste
contexto, Judéia e Samaria passaram a ser províncias subordinadas diretamente
ao Império. O primeiro prefeito da Judéia foi Copônio, mas sua fama é ofus-
cada pelo quarto que reinou por 10 anos entre 26 e 36, seu nome: Pôncio Pilatos
(SCHEINDLIN, 2003).
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O governo de Pilatos intensificou o poder romano na região e foi marcado


pelas pesadas cargas tributárias e aumento de contingentes de soldados hostis e
com suas práticas rituais pagãs, o que descontentava, de sobremodo, os judeus
legalistas da região. O clima, na região, já não era o mesmo da Pax Herodiana,
ou paz de Herodes, o Grande, que trouxe certa estabilidade econômica, impe-
dindo revoltas populares que, por sua vez, quando aconteciam, eram duramente
reprimida pelo monarca.
Herodes, o Grande, foi responsável por grandes construções na Palestina.
Durante seu reinado, o Templo foi reformado, cidades e ginásios foram constru-
ídos, e isso fez com que grande parte da mão de obra excedente tivesse trabalho.
Essa mão de obra era, outrora, utilizada na agricultura, mas como a Palestina
passou a pertencer a um grande império, não havia possibilidade dos produtos
produzidos nas pequenas áreas cultivadas da região concorrer com os latifún-
dios de outras províncias do império (SCHAMA, 2015; SCLIAR, 2001). Quando
as construções cessaram, milhares de pessoas ficaram sem emprego e sem renda,
além disso, ainda eram obrigados a pagar impostos aos dominadores romanos.
Neste clima de instabilidade econômica, muitos judeus passaram a exigir
o fim da dominação estrangeira na região, sonegavam impostos e tinham nos
publicanos, judeus que trabalhavam para a autoridade imperial, os cobradores
de impostos, como traidores. Acreditavam que a terra era herança dada pelo
próprio Deus ao patriarca Abraão e seus descendentes. Esse clima aumentou as
esperanças em um Messias, o salvador, que lideraria os judeus em uma ofensiva
para expulsar os dominadores da região, aquele que restabeleceria a paz dos tem-
pos do rei Davi (WERBLOWSKY, 1972).

O Cenário Político
66 UNIDADE II

AS SEITAS

O leitor desatento pode ler a palavra seita e, imediatamente, fazer uma ligação
não positiva do termo, atribuindo sentidos que ofuscam a ideia original. Seita,
tem o significado de divisão, no sentido de seccionar, ou seja, variadas tendên-
cias religiosas dentro do judaísmo.
As instituições políticas e religiosas da Palestina, na época da dominação
romana, não eram uniformes, por isso, não existia um judaísmo, mas judaísmos.
As seitas judaicas eram, nesse período, cada vez mais segmentarizadas, existiam

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os que não viam problemas na dominação romana, os que lutavam ideologica-
mente contra Roma, os que acreditavam que os dias do Messias estava perto, os
que planejavam revoltas armadas contra a dominação estrangeira e ainda aqueles
que optaram pela vida ascética, vivendo longe dos núcleos urbanos e sobrevi-
vendo daquilo que a natureza dava.
No topo da pirâmide, existia a seita dos Saduceus, a elite judaica, apoiadores do
domínio romano, ocupavam cargos no alto clero e, por vezes, se tornavam sumo
sacerdotes, como no caso de José Caifás, nomeado pelos romanos, no ano 18. Talvez
o termo correto seria comprado dos romanos, e não nomeado (ASLAN, 2013).
Pouco abaixo dos Saduceus estavam os Fariseus, grupo formado pelas clas-
ses média e baixa da Palestina e, de maneira geral, acreditavam na Lei Oral, na
Tradição Judaica, no paraíso reservado àqueles que guardaram a Fé inabalá-
vel, na imortalidade da alma e na ressurreição dos mortos. Os fariseus ficaram
conhecidos como principais opositores dos cristãos, no entanto se pode perce-
ber mais similaridades entre eles do que grandes diferenças, talvez quanto aos
Saduceus, essas diferenças fiquem mais nítidas. Entre os Fariseus existiam duas
escolas rivais, a dos seguidores de Shamai, que era mais apegada à letra da lei, e
a dos seguidores de Hilel, apegada à tradição judaica. Sobre a diferença das duas,
segue uma pequena historieta da tradição judaica:
[...]um gentio apresentou-se a Shamai, dizendo: “Eu me converterei ao
judaísmo, desde que me ensines toda a lei no tempo em que puder me
aguentar sobre um pé só”. Shamai achou um desaforo, pegou uma vara
e escorraçou o homem, que foi a Hilel, e fez o mesmo pedido. Hilel
disse: “Não faças a teu próximo o que não queres que te façam: eis toda
a lei. O resto é interpretação. Vai e estuda” (SCLIAR, 2001, p. 39).

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


67

Existiam os Zelotes, que recebiam esse nome pelo zelo que tinham com a lei.
Iniciaram suas atividades na Galiléia, no tempo de Herodes Antípas, logo após
a morte de seu pai em 4 a.C. (ASLAN, 2013). Liderados por Judas, o Galileu,
“cujo pai havia sido executado por Herodes” (SCLIAR, 2001, p. 43), acreditavam
que práticas extremistas e terroristas poderiam combater o domínio romano na
região. Para eles, apoiadores de Roma eram inimigos do povo e deveriam ser
assassinados (SCHEINDLIN, 2003; SCLIAR, 2001). Entre os Zelotes, haviam os
Sicarii, “assim chamados devido às adagas curvas que escondiam na camiseta e
metiam no ventre das vítimas em meio às multidões que abarrotavam Jerusalém
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em dias de festas religiosas”(SCHAMA, 2015, p. 168).


Algumas vertentes historiográficas afirmam que Judas Iscariotes, o apóstolo
que traiu a Jesus, seja um Sicarii, daí a ideia de Judas ishsicari, traduzido como
Homem do Punhal, mas outras vertentes apontam para Judas ishqeryoth, tradu-
zido como Homem de Queriote, cidade da província da Judeia.
Em Qumran, na costa noroeste do Mar Morto, viviam os Essênios, que
acreditavam na purificação proporcionada pela vida no deserto. Longe dos títu-
los e da soberba da religião urbana, viviam em comunidade, que em hebraico
recebia o nome de Yachad, que pode se traduzir por “juntos” e dirigida por um
Mestre de Justiça, que era considerado um intérprete dos profetas (SCLIAR,
2001; SCHAMA, 2015).
O que se sabe sobre a forma de viver dos Essênios está contido nos cha-
mados Manuscritos do Mar Morto, uma série de pergaminhos datados entre o
século II a.C. a 70 d.C., encontrados entre 1947 e 1960, em sete regiões diferentes,
às margens do Mar Morto. Entretanto os mais importantes manuscritos foram
encontrados em onze cavernas, na região de Qumran, a maioria em aramaico e
hebraico, com exceção da caverna sete com manuscritos em grego (SCHEINDLIN,
2003). Graças aos Manuscritos, ainda não totalmente decifrados, sabemos sobre
as regras de conduta das comunidades essênias de Qumran, como a “obsessão
compulsiva por abluções (antes e depois das refeições em comum) e extrema
severidade na punição dos apóstatas” (SCHAMA, 2015, p. 166).
Existem algumas relações ainda não totalmente comprovada de que João
Batista era um essênio, isso, em grande medida, se justifica por algumas infor-
mações bíblicas, como o fato de que vivia no deserto, alimentava-se de gafanhoto

O Cenário Político
68 UNIDADE II

e mel silvestre, acreditava em perspectivas escatológicas e usava expressões pare-


cidas com as do grupo asceta, como ‘raça de víboras’, “que seria o equivalente a
‘criaturas da serpente’ (seres demoníacos) dos essênios” (SCLIAR, 2001, p. 44).

O TEMPLO DE JERUSALÉM

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Não há possibilidade de se falar sobre a Palestina nas primeiras décadas do século
I d.C., sem levar em consideração o Templo erigido ao Deus de Israel, na cidade
santa de Jerusalém. Era o centro do mundo judaico, do ponto de vista religioso,
social e econômico, era o lugar mais sagrado do mundo antigo, levando em con-
sideração o monoteísmo judaico, pois nas outras religiões politeístas existiam
diversos templos. Em suma, sua importância residia na ideia de que represen-
tava a presença de Deus.
Para os romanos, que dominavam a região, o Templo não representava muita
coisa. O estadista Cícero classificou a cidade de Jerusalém como um “buraco no
canto” e seus ritos religiosos como “bárbaras superstições” (ASLAN, 2013), mas
não menosprezavam o que ele representava para o povo invadido. Como gran-
des estrategistas, os invasores sabiam que a ordem e a fluidez dependiam, de
maneira geral, do que o Templo representava.
O Templo construído no reinado de Salomão, destruído pelos exércitos

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


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babilônicos no século VI a.C., reconstruído no século V a.C. e reformado no


século I a.C. por Herodes, o Grande, ainda que não tenha terminado comple-
tamente por ocasião de sua morte no ano 4 a.C., era uma edificação “em forma
de quadrado, com 250 metros de lado, ocupava uma área equivalente à de um
estádio olímpico” (BLAINEY, 2012, p. 30). Era composto por diversos pátios
que, sucessivamente, ficavam menor, mais elevados e restritos que o anterior
(ASLAN, 2013).
O judaísmo do século I d.C. não estava restrito à Palestina, existiam judeus
espalhados pela extensão do Mar Mediterrâneo, na Mesopotâmia, na Ásia Menor,
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no Egito, na Arábia e em tantos outros lugares. Mesmo para esses, Jerusalém,


mais precisamente o Templo, era objeto de peregrinação nas festividades sagra-
das ao longo do ano, no pessach, a Páscoa Judaica, quando a cidade que tinha
uma população de 100 mil pessoas (BLAINEY, 2012) recebia cerca de 1 milhão
(ASLAN, 2013) de visitantes.
Como parte da tradição religiosa, todo judeu deveria, quando se apresen-
tasse no Templo; fazer sacrifício de um animal em honra e louvor a Deus. Como
muitos vinham de fora, optavam por uma prática comum e legalizada, compra-
vam animais vivos de vendedores que se instalavam no Pátio dos Gentios. Tais
vendedores, conhecidos na tradição cristã como “vendilhões do Templo”, eram
obrigados a pagar ao Sumo Sacerdote uma percentagem da arrecadação com
as vendas.
Para melhor visualização do Templo no século I d.C., vale a transliteração
da narrativa do historiador Reza Aslan (2013), que ilustra de maneira porme-
norizada as particularidades desta majestosa construção:
[...]o pátio mais externo, o Pátio dos Gentios, onde você comprou sua
oferenda, é uma ampla praça aberta a todos, independentemente de sua
raça ou religião. Se você é judeu – um judeu sem qualquer problema físi-
co (sem ferida, sem paralisias) e devidamente purificado por um banho
ritual -, pode seguir o sacerdote com sua oferenda através de uma espécie
de grade de pedra e avançar para o próximo pátio, o Pátio das Mulheres
(a placa em cima do muro avisa todos os demais para não irem além do
átrio exterior sob pena de morte). Aqui é onde o óleo e a madeira para o
sacrifício são armazenados. É também o ponto mais interno do Templo
onde qualquer mulher judia pode chegar; homens judeus podem con-
tinuar até um pequeno lance semicircular de escadas através do Portão

O Cenário Político
70 UNIDADE II

Nicanor e chegar ao Pátio dos Israelitas. Isso é o mais próximo que você
poderá chegar da presença de Deus. O cheiro de carnificina é impossível
de se ignorar. Ele se agarra à pele, ao cabelo, tornando-se um fardo desa-
gradável do qual você não vai se livrar tão cedo. Os sacerdotes queimam
incenso para afastar o fedor e a doença, mas a mistura de mirra e canela,
açafrão e olíbano não conseguem mascarar o insuportável mal cheiro de
matança. Ainda assim, é importante manter-se onde você está e testemu-
nhar seu sacrifício acontecer no próximo pátio, o Pátio dos Sacerdotes.
A entrada nesse pátio é permitida unicamente aos sacerdotes e funcioná-
rios do Templo, pois é onde fica o altar do Templo: um pedestal de qua-
tro chifres feito de bronze e madeira – de cinco côvado de comprimento,
cinco côvados de largura – arrotando grossas nuvens pretas de fumaça

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no ar. O sacerdote leva o seu sacrifício para um canto e se purifica numa
bacia próxima. Então, com uma simples oração, ele rasga a garganta do
animal. Um assistente coleta o sangue em uma tigela para espargir sobre
os quatro cantos cornudos do altar, enquanto o sacerdote cuidadosa-
mente estripa e desmembra a carcaça. A pele do animal é para ele; ela al-
cançará um bom preço no mercado. As entranhas e o tecido adiposo são
arrancados do cadáver, levados por uma rampa para o altar e colocados
diretamente sobre o fogo eterno. A carne do animal é cuidadosamente
retirada e colocada de lado para os sacerdotes se banquetearem após a
cerimônia. Toda a liturgia é realizada diante do pátio mais interior do
Templo, o Santo dos Santos – um santuário com colunas, banhado a
ouro, no coração do complexo do Templo. O Santo dos Santos é o mais
alto ponto de toda Jerusalém. Suas portas são cobertas de tapeçaria de
cor roxa e escarlate bordadas com uma roda do zodíaco e um panorama
dos céus. Este é o lugar onde a glória de Deus habita fisicamente. É o
ponto de encontro entre os reinos terreno e celestial, o centro de toda
a criação. A Arca da Aliança, contendo os mandamentos de Deus, uma
vez esteve aqui, mas ela foi perdida há muito tempo. Nada existe agora
dentro do santuário. É um vasto espaço vazio, que serve como um con-
duto para a presença de Deus, canalizando seu espírito divino dos céus,
fazendo-o fluir para fora em ondas concêntricas, por todas as câmaras
do Templo (p. 31 e 32 - grifo nosso).

A entrada no Santo dos Santos é restrita ao Sumo Sacerdote que, por sua vez,
só pode entrar no local uma vez por ano, no Yom Kippur, o Dia da Expiação.
Nesse dia sagrado, o Sumo Sacerdote apresenta-se diante de Deus e pede per-
dão pelos pecados de Israel.
O mais alto cargo que um judeu podia almejar na hierarquia da Judéia em
tempos de dominação romana era o de Sumo Sacerdote, que para se diferenciar
dos demais usavam um

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


71

[...] longo manto sem mangas tingido de púrpura (a cor dos reis) e bor-
dejado por franjas delicadas e pequenos sinos dourados na orla, um
pesado peitoral salpicado com doze pedras preciosas para cada umas
das tribos de Israel; um turbante imaculado sobre a cabeça, com uma
tiara, encimado por uma placa de ouro em que está gravado o nome
indizível de Deus; o Urim e o Tumim, uma espécie de dados sagrados
feitos de madeira e osso que [...] carrega em uma bolsa perto do peito e
através dos quais revela a vontade de Deus tirando a sorte [...] (ASLAN,
2013, p. 34).

Para saber se o Sumo Sacerdote estava presente nos momentos de festividade,


não era necessário enxergá-lo, sua presença era percebida pelo som dos sinos na
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orla de seu manto. No Yom Kippur, quando se apresentava diante de Deus no


Santo dos Santos era amarrado por uma corda que podia ser puxada, caso fosse
consumido pela Glória de Deus (ASLAN, 2013).
O Sumo Sacerdote era um aliado indispensável às pretensões romanas sobre
a região, era o líder do sinédrio, “o mais alto conselho deliberativo dos judeus”
(SCHEINDLIN, 2003, p. 75) que atendia prontamente aos interesses imperiais
de impedir possíveis revoltas e badernas na região.
Se os romanos queriam controlar os judeus, tinham que controlar o
Templo. E se queriam controlar o Templo, tinham que controlar o
Sumo Sacerdote, sendo por isso que, logo depois de tomar o controle
da Judéia, Roma tomou para si a responsabilidade de nomear e des-
tituir (de forma direta ou indireta) o ocupante deste cargo, transfor-
mando-o essencialmente em um funcionário romano. Roma mantinha
até mesmo a custódia das vestes sagradas, entregando-as somente nas
festas sagradas e confiscando-as imediatamente após o término das ce-
rimônias (ASLAN, 2013, p. 39).

Para os romanos, a religião judaica era um tanto quanto estranha. Tácito escre-
veu que “os judeus consideram profano tudo o que para nós é sagrado, enquanto
permitem tudo o que abominamos” (ASLAN, 2013, p. 40), mas era uma crença
tolerável dentro de um império marcado pela multiplicidade religiosa. Os inva-
sores queriam a paz com o Deus dos judeus, de modo que era obrigação do
sacerdócio sacrificar dois cordeiros e um touro duas vezes por dia pela saúde de
César e do povo romano (ASLAN, 2013; SCHAMA, 2015).

O Cenário Político
72 UNIDADE II

Quando pensamos em Cristo, logo nos vem à mente amor, compaixão e hu-
mildade, afinal, o próprio Deus encarnado esbanjou estas qualidades. Mas
quando se trata dos sacerdotes do Templo, o que pensamos?
Fonte: os autores.

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O NASCIMENTO DE CRISTO E DO CRISTIANISMO

No contexto de um cenário político instável, diversas ramificações do judaísmo


convencional e marcado por um sacerdócio corrupto, que pouco tinha a ver
com as manifestações do Deus que se apresentou a Abraão, Isaac e Jacó, é que o
Messias Salvador, o menino Deus vem ao mundo.
Antes de iniciar a explanação sobre o nascimento do Cristo, palavra grega
que tem o mesmo sentido de Messias, que é Salvador, é necessário fazer algumas
ressalvas. Primeiro, apesar de ser um marco divisor da história: Antes e Depois

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


73

de Cristo, é provável que ele tenha nascido entre 6 a.C. e 4 a.C. (BLAINEY, 2012),
pois a narrativa bíblica, no livro de Mateus, no capítulo 2, apresenta que Jesus
nasceu nos dias do rei Herodes, e como já apresentado, Herodes, o Grande mor-
reu em 4 a.C. Segundo, é pouco provável que o menino tenha nascido em 25
de dezembro, pois nesta época é inverno no hemisfério norte e na região neva,
e não existe nenhum relato bíblico sobre este fenômeno que seria tão decisivo
para a narrativa, e Terceiro, não há registro de três reis magos, mas apenas de
sábios, e a suposição de três se dá pelos três presentes dados ao bebê extraordi-
nário, ouro, incenso e mirra.
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Essa história ou alegoria fascinante foi mais tarde registrada por escri-
to, e contada e recontada, século após século. Com a repetição, alte-
rou-se um pouco: a criança nascida era importante demais, e achou-se
que os personagens mereciam maior prestígio. Assim, os três sábios se
transformaram em três reis. Somente cerca de quinhentos anos mais
tarde, receberam nomes (BLAINEY, 2012, p. 20).

O primeiro Evangelho escrito em ordem cronológica foi Marcos, entre os anos


70 e 71, e nele não há registro do local de nascimento do Messias, já os evange-
lhos de Mateus e Lucas, escritos entre os anos 90 e 100, atestam para a cidade de
Belém. Lucas é mais específico ao afirmar que os pais de Jesus viviam em Nazaré,
na Galileia e, por conta de um censo organizado pelo imperador, deveriam estar
na cidade de seus ancestrais, que era Belém. José, o pai de Jesus, era descendente
da casa de Davi e Belém era a cidade do rei de Davi.
Assim foi necessário para validar a profecia de Miquéias:
[...]no entanto tu, Bete-Lechem, Belém, Casa do Pão; Ephrathah, Efratá,
Frutífera, embora pequena demais para figurar entre os milhares de
Judá, sairá de ti para mim aquele que será o governante sobre todo
Israel, cujas origens são desde os dias da eternidade! (BÍBLIA KING
JAMES, Miquéias 5, 2, [2017], on-line)1.

Apesar da narrativa bíblica nos evangelhos em questão, não há registros de um


recenseamento naquele período, e “se tivesse havido, as autoridades não obri-
gariam os habitantes a empreender longas jornadas, simplesmente para serem
contados no local de origem de suas famílias” (BLAINEY, 2012, p. 21).
Após o nascimento e temendo ameaças de morte, visto que Herodes ansiava
matar aquele que poderia “roubar” o seu trono, José e Maria se refugiaram no

O Nascimento de Cristo e do Cristianismo


74 UNIDADE II

Egito e voltaram após a morte do temível rei. A Bíblia apresenta a ideia de que
José pensou em voltar para a cidade de Belém, mas temeram a Arquelau, que
passou a governar a região, por isso, voltaram a fixar residência em Nazaré, na
Galileia governada por Antípas:
[...]mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judéia, em lugar de
seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Contudo, tendo sido avisa-
do em sonho por divina revelação, seguiu para as regiões da Galiléia.
Ao chegar, foi viver numa cidade chamada Nazaré. Cumpriu-se assim
o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno” (BÍBLIA
KING JAMES, Mateus 2, 22. 23, [2017], on-line)1.

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Não existe um versículo específico no Antigo Testamento que diz que Jesus seria
chamado Nazareno, mas existem vários afirmando que ele seria desprezado,
como escrito pelo profeta Isaías:
[...]pelo contrário, foi desprezado e rejeitado pelos homens, viveu como
homem de dores, experienciou todo o sofrimento. Caminhou como al-
guém de quem os seus semelhantes escondem o rosto, foi menospreza-
do, e nós não demos à sua pessoa importância alguma (BÍBLIA KING
JAMES, Isaías 53, 3, [2017], on-line)1.

E na época de Jesus, ser de Nazaré era um grande desprezo para os judeus, tanto
que Natanael afirma: “Pode alguma coisa boa vir de Nazaré? Filipe respondeu-
-lhe: Vem e vê” (BÍBLIA KING JAMES, João 1, 46, [2017], on-line)1.
O ministério de Jesus iniciou quando ele tinha 30 anos de Idade, antes disso,
poucas são as informações sobre sua vida, nos evangelhos. Jesus sempre se apre-
sentou como o Messias, no entanto sua postura e forma de ser não era compatível
com o salvador que os judeus esperavam. O Messias era um guerreiro, um líder
político, um libertador, pouco parecia com a pregação mansa do Nazareno que,
dentre outras coisas, afirmava que seu reino não era deste mundo, por isso, foi
desprezado e juntou para si uma parcela significativa de inimigos, que ia desde
os saduceus, passando pelos fariseus e os romanos.
Para os saduceus, representados na figura de José Caifás, Sumo Sacerdote da
época, e alguns fariseus, Jesus era um blasfemador, seus sermões era uma afronta
à religião tradicional, pregava o amor em vez da lei, a humildade e expulsava os
vendedores do templo, afirmava ser o filho de Deus, e o Deus encarnado, con-
trariava a pregação de uma divindade distante, intocável cujo nome era indizível.

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


75

Pode-se fazer uma análise também da percepção dos saduceus: caso Jesus fosse
o Messias realmente, tudo o que tinham conquistado com o poderio romano
iria por água abaixo.
Para os romanos, Jesus era um perigoso agitador que reunia, em seus ser-
mões, centenas de seguidores, assim, se um dia iniciasse uma revolta, seria difícil
contê-los. Também há a ideia de que os romanos conheciam a agenda do Messias,
e isso representava sérios problemas.
Jesus foi preso na temporada das festividades da Páscoa Judaica, possivel-
mente entre os anos 27 e 30, mas não existia uma acusação formal direcionada
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a ele, as acusações feitas por Caifás eram de ordem religiosa, por isso, Pôncio
Pilatos, o prefeito da Judéia, não tinha interesse em sua morte. É importante
destacar que também temia uma revolta de seus seguidores. Pilatos conseguiu,
mesmo que temporariamente, tirar o fardo de julgar o inocente, afinal, tratando
de um Nazareno, Jesus deveria ser julgado por Antípas, que estava em Jerusalém
por ocasião das festividades pascais.
Diante de Antípas, também chamado Herodes Antípas, Jesus não respon-
deu às perguntas feitas por ele e foi desprezado pelo tetrarca, vestido com roupas
finas e enviado novamente a Pilatos.
Pilatos, por ocasião da festividade, tinha a tradição de soltar um preso, colo-
cando diante do povo a escolha de Jesus ou Barrabás. Como sabem, a população
optou por Barrabás. Desse momento em diante, Cristo foi torturado por solda-
dos romanos e levado à crucificação. Jesus não foi o primeiro e muito menos o
último a ser crucificado no Império Romano, tal pena era normalmente aplicada
a criminosos políticos, revoltosos e transgressores da lei romana.
A tradição cristã afirma que Jesus foi morto numa sexta-feira e ressuscitou
no domingo de Páscoa. Ressurreto, passou quarenta dias entre os discípulos e
foi visto por muitos até que se ascendeu aos céus, prometendo voltar em poder
e glória.

A REPERCUSSÃO

Jesus não criou uma religião, era judeu, agia segundo a tradição judaica e chegou

O Nascimento de Cristo e do Cristianismo


76 UNIDADE II

afirmar que não tinha vindo para revogar a lei, mas para cumpri-la. O termo
cristão é pouquíssimas vezes empregado na Bíblia aos seguidores das ideias de
Cristo, há apenas três menções, duas vezes em Atos dos Apóstolos: “[...] Em
Antioquia, os discípulos foram pela primeira vez chamados cristãos” (BÍBLIA
KING JAMES, Atos dos Apóstolos 11, 26, [2017], on-line)1 e “Então, o rei Agripa
ponderou: “Crês tu que em tão pouco tempo podes persuadir-me a converter-
-me em um cristão?” (BÍBLIA KING JAMES, Atos dos Apóstolos 26, 28, [2017],
on-line)1 e uma vez na primeira carta de Pedro: “Entretanto, se sofrer como cris-
tão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus por meio desse nome”

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(BÍBLIA KING JAMES, 1ª Pedro 4, 16, [2017], on-line)1. A transformação do
cristianismo em uma religião para além da segmentação foi feita pelos Apóstolos,
e não pelo próprio Cristo.
Simão Pedro, um dos doze apóstolos que andaram com Cristo, foi o princi-
pal desenvolvedor da religião cristã. Responsável por pregar na cidade de Roma,
o coração do império tornou o cristianismo “democrático”, demonstrando que a
salvação messiânica era para todos a quem nele crê, no entanto, como um judeu
que era, acreditava que a aceitação do senhorio do Deus filho dependia da con-
versão ao judaísmo por meio da circuncisão. Saulo de Tarso, também chamado
Paulo, correspondente romano para o nome hebraico, discordava do grande
apóstolo, para ele, a conversão de todo o coração não presumia o ritual. O após-
tolo dos gentios, como ficou conhecido, defendia a ideia da circuncisão da alma,
e não do corpo, isso já bastava.
Paulo era um dos milhares de judeus que viviam fora da Palestina, foi fariseu
da cidade de Tarso, na atual Turquia, era um cidadão romano, criado em todas
as tradições clássicas da filosofia grega e latina, como judeu foi para Jerusalém
ser discípulo do grande rabino Gamaliel. Era um feroz perseguidor da igreja pri-
mitiva, até que em uma viagem para Damasco é encontrado por Jesus:
[...]entrementes, Saulo ainda respirava ameaças de morte contra os dis-
cípulos do Senhor. Dirigindo-se ao sumo sacerdote, pediu-lhe cartas
para as sinagogas de Damasco, de maneira que, eventualmente encon-
trando ali, homens ou mulheres que pertencessem ao Caminho, esti-
vesse autorizado a conduzi-los presos a Jerusalém. Entretanto, duran-
te sua viagem, quando se aproximava de Damasco, subitamente uma
intensa luz, vinda do céu, resplandeceu ao seu redor. Então, ele caiu

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


77

por terra e ouviu uma voz que lhe afirmava: “Saul, Saul, por que me
persegues?” Ao que ele inquiriu: “Quem és, Senhor?” E Ele disse: “Eu
Sou Jesus, a quem tu persegues; contudo, levanta-te e entra na cidade,
pois lá alguém te revelará o que deves realizar. Os homens que acom-
panhavam Saulo na viagem caíram emudecidos; podiam ouvir a voz,
mas a ninguém viam. Saulo ergueu-se do chão e, abrindo os olhos, não
conseguia ver coisa alguma; então, guiado pela mão, foi conduzido até
Damasco. Por três dias esteve cego, durante os quais não comeu, nem
mesmo bebeu. O Senhor envia Ananias a Saulo [...] Então, Ananias
foi e, entrando na casa, impôs sobre ele as mãos, declarando: “Irmão
Saulo, o Senhor Jesus que lhe apareceu no caminho por onde vinhas,
enviou-me a ti para que tornes a ver e fiques pleno do Espírito Santo!”
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Imediatamente lhe caíram dos olhos algo parecido com umas escamas,
e ele passou a ver de novo. Em seguida, levantando-se, foi batizado. E,
depois de alimentar-se, ganhou novas forças e passou vários dias na
companhia dos discípulos em Damasco. Saulo começa a evangelizar
(BÍBLIA KING JAMES, Atos dos Apóstolos 9,1-19, [2017], on-line)1.

Paulo de Tarso, foi o responsável por transformar o cristianismo em uma reli-


gião baseada:
[...]primeiro, em certas crenças filosóficas derivadas sobretudo de Platão
e do neoplatonismo, mas também, em parte, do estoicismo; segundo,
numa concepção de moral e história derivada do judaísmo; e, terceiro,
em certas teorias – de modo especial a da salvação – que eram em geral
novidades do cristianismo, embora remontasse, em parte, ao orfismo e a
cultos semelhantes do Oriente Próximo (RUSSELL, 2015, p. 19).

Foram as ideias de Paulo que forjaram o cânon do Novo Testamento, mais do que
as cartas por ele escritas, foi ele o líder espiritual de João Marcos, o autor do pri-
meiro Evangelho, em ordem cronológica, e também do médico Lucas, autor do
terceiro Evangelho, na ordem disposta na Bíblia. Encarnou o “ide” de Jesus, como
não mostrado por nenhum outro apóstolo e, sendo o mais prolífero missionário
da história do cristianismo, admoestou as igrejas espalhadas pelo mar mediterrâ-
neo, desde Tessalônica, na Grécia, passando por Éfeso na atual Turquia até Roma:
[...]muitos teólogos – em especial protestantes alemães – afirmam que,
em toda a história da igreja, Paulo foi a segunda pessoa mais importan-
te, atrás apenas do Cristo. A respeito da forma de escrever de Paulo, um
crítico literário inglês comentou que se tratava “do primeiro poeta ro-
mântico da História”. Com a ajuda de tradutores fluentes, seus escritos
permanecem atuais em muitas línguas. Uma frase sua em particular,
tornou-se uma espécie de grito de guerra cristão: “Se Deus é por nós,
quem será contra nós” (BLAINEY, 2012, p. 17).

O Nascimento de Cristo e do Cristianismo


78 UNIDADE II

Apesar de ter sido um grande homem na história do cristianismo, padeceu


sucessivas prisões e morreu decapitado no ano 66, quando, segundo a tradição,
também teria morrido Pedro em uma cruz invertida, ambos em Roma sob domí-
nio do imperador Nero (ASLAN, 2013).
Desde seu surgimento, o cristianismo representou problemas, não só para
o Império Romano, mas também para as lideranças judaicas da Palestina. Para
os romanos, a figura de um Deus que se fez homem e ressuscitou obscurecia o
culto ao imperador. É importante esclarecer que os cristãos não se curvavam
diante de César, ademais a crença genuína na vida eterna tornava os seguido-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
res de Cristo cada vez mais sem medo das penas impostas pelos romanos. O
lema de Paulo: “Porque para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro!” (BÍBLIA
KING JAMES, Filipenses 1,21, [2017], on-line)1 era verdadeiramente seguido
pelos membros da igreja primitiva.
Para os judeus, uma seita religiosa, como o cristianismo era visto, represen-
tava muitos problemas para a dominação ideológica do Sumo Sacerdote, além
disso, era visto como uma heresia à crença de que o Messias já tinha vindo e não
tinha cumprido o que muitos na religião esperava: o fim da dominação estran-
geira sobre a região.
Para os primeiros cristãos, o poderio de Jesus Cristo estava acima da auto-
ridade judaica institucionalizada que, na época da grande perseguição, estava
nas mãos de Herodes Agripa, neto de Herodes, o Grande e filho de Aristóbulo,
que, segundo relatos bíblicos, perseguiu a Igreja e mandou matar a Tiago, irmão
de Jesus:
[...]naquela mesma ocasião, o rei Herodes mandou prender alguns que
pertenciam à igreja, com o objetivo de maltratá-los, e matou a Tiago,
irmão de João, por execução ao fio da espada. Observando que essa ati-
tude agradava aos judeus, prosseguiu, ordenando também a prisão de
Pedro, durante a festa dos pães sem fermento (BÍBLIA KING JAMES,
Atos dos Apóstolos 12,1-3, [2017], on-line)1.

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


79

Como morreram os apóstolos? Sabemos que os primeiros cristãos não tive-


ram vida fácil, foram perseguidos, jogados na arena do coliseu, devorados
por leões e muito mais. Ao que parece, a Bíblia apresenta apenas a morte de
Tiago, irmão de João (At.12: 1-2), morto à espada, e Judas Iscariotes (Mt. 27,
5), que se enforcou. Apenas João, segundo a tradição, morreu naturalmente.
As outras mortes têm seus relatos ligados à tradição cristã dos primeiros
séculos.
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Pedro: Teria sido crucificado de cabeça para baixo em Roma.


André: Teria sido crucificado em uma cruz em forma de X.
Felipe: Teria morrido enforcado em Hierápolis.
Bartolomeu: Teria tido sua pele arrancada na Síria.
Tomás: Teria sido martirizado na Índia, tendo seu corpo atravessado por
uma lança.
Tiago, filho de Alfeu (Tiago Menor): Teria sido lançado do pináculo do
Templo e depois apedrejado.
Judas Tadeu: Teria morrido a flechadas.
Mateus: Morto à espada, na Etiópia.
Simão: Teria sido cortado ao meio.
Fonte: os autores.

A Queda de Jerusalém
80 UNIDADE II

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A QUEDA DE JERUSALÉM

Enquanto o cristianismo crescia em meio às perseguições em todo o império,


na Palestina e, especialmente, em Jerusalém, aumentavam gradativamente os
levantes populares contra a dominação estrangeira, revoltas que “nem os cola-
boracionistas saduceus, nem os conciliadores fariseus” (SCLIAR, 2001, p. 49)
conseguiam abafar.
Nos anos finais da década de 60 do século I, os zelotes passaram a assumir
o comando das ações violentas contra a dominação romana, “atacavam a aris-
tocracia e outros grupos que consideravam insuficientemente comprometidos
com a guerra” (SCHEINDLIN, 2003, p. 79). Iniciaram, baseados na revolta dos
Macabeus, uma guerra de guerrilha liderada por João de Gishala e Simão Bar-
Giora (SCLIAR, 2001).
A Guerra dos Judeus, como foi chamada pelo grande historiador Flávio Josefo,
representava um grande perigo ao poderio do recém empossado imperador,
Vespasiano, que assumiu o trono de Roma após a morte de Nero em 68. Diante
da revolta que se alastrou por Jerusalém, o imperador, que precisava mostrar sua
força em meio às suspeitas que pairavam sobre ele perante as elites romanas, agiu
de maneira enérgica, nomeando seu filho, o general Tito, para sitiar Jerusalém.
Tito forçava as muralhas com aríetes e recorria a outras táticas; todos
os dias crucificava dezenas ou centenas de rebeldes, ou então cortava as
mãos de prisioneiros que eram arremessados aos sitiados. Finalmente, os
romanos conseguiram entrar no recinto e, depois de uma feroz luta corpo
a corpo, tomaram o Templo que foi incendiado (SCLIAR, 2001, p. 50).

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


81

No nono dia do mês judaico de Av, do ano 70, o Templo de Jerusalém, a casa do
altíssimo para os judeus, foi quase completamente destruída, sobrando apenas
o muro ocidental, que, hoje, é conhecido como muro das lamentações. Alguns
sicarii resistiram às tropas de Tito na cidade de Massada, mas “preferiram o sui-
cídio, em 73 e 74, a caírem nas mãos dos romanos” (SCHEINDLIN, 2003, p. 80).
A vitória sobre os rebeldes em Jerusalém foi celebrada como o primeiro
grande triunfo militar de Vespasiano, que coroou o feito com moedas comemo-
rativas. Exibiu os objetos rituais do Templo pelas ruas de Roma como troféu e
erigiu um arco da vitória no fórum romano, onde retrata a tomada da cidade
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e a destruição do Templo. O arco pode ser visto até hoje nas ruínas do fórum
romano, na cidade de Roma, na Itália.
Com a destruição do Templo, não fazia mais sentido a vida em Jerusalém,
isto é, como todas as instituições políticas, econômicas e religiosas dependiam
da Casa do Altíssimo, nesse momento tem-se início da segunda diáspora judaica
pelo mundo, ou seja, a dispersão dos judeus que se fixaram em variados luga-
res do planeta, desde o Oriente Médio, China, Península Ibérica e centro-leste
europeu. Ainda hoje, mesmo depois da fundação do Estado de Israel, em 1947,
podemos ver judeus espalhados pelo mundo. Para muitos, quando o Messias, que
ainda esperam, vier, reunirá o povo escolhido e reconstruirá o Templo Sagrado.
Os judeus foram completamente expulsos de Jerusalém, depois da revolta
de Bar Kochba, entre 132 e 135, revolta que foi duramente reprimida pelo impe-
rador Adriano, que, além de destruir toda a cidade, construiu, no mesmo local
onde era o Templo sagrado, um templo dedicado ao deus romano Júpiter e reba-
tizou a cidade conquistada por Davi com o nome latino de Élia Captolina.

A Queda de Jerusalém
82 UNIDADE II

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AS INFLUÊNCIAS GREGAS NO PENSAMENTO
CRISTÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS

Pensar sobre as influências do pensamento grego na religião cristã é, ao mesmo


tempo, reconhecer que o cristianismo possui uma história, ou seja, não surge do
nada. A princípio, os mais dogmáticos olharam com certo ceticismo para esta afir-
mação, mas nós, pesquisadores e futuros teólogos, precisamos fiar nossas ideias
para além das crenças, buscando, sempre que possível, compartilhá-las com o
pensamento científico. Tendo em vista estes pressupostos, veremos que os pró-
prios contemporâneos da época viam claramente essas influências.
É o caso do pensador Justino Romano, que, ao propor uma doutrina sobre
o Logos, possui claro reconhecimento da influência do pensamento dos filóso-
fos antigos (no caso gregos) no pensamento cristão. De acordo com o pensador,
se pudéssemos reconhecer pensadores cristãos antes de Cristo, esses seriam os
filósofos antigos com as suas elucubrações sobre o Logos. Segundo ele, tantos
os cristãos quanto os filósofos antigos partilham o mesmo Logos e, consequen-
temente, o mesmo destino doloroso dos cristãos de sua época. Nas palavras do
pensador:
[...]sendo que antigos filósofos, além de participarem do mesmo Logos,
compartilham também o destino doloroso dos cristãos, podemos com
razão denominá-los cristãos antes de Cristo (ROMANO, apud BO-
EHNER; GILSON, 2000, p. 30).

Assim, de acordo com Justino Romano, há uma continuidade, e não uma a ruptura

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


83

como comumente estamos sujeitos a pensar. Para o teórico, o cristianismo cons-


titui-se como a verdadeira filosofia, e tudo o que os gregos haviam construído em
caráter de estudo e reflexão torna-se, com esse pensador, uma herança legítima
dos cristãos. De acordo com Boehner e Gilson (2000), “Aos seus olhos (Justino),
o cristianismo constitui a verdadeira filosofia, e tudo quanto os gregos haviam
logrado elucubrar em matéria de verdade passa a ser uma herança legítima dos
cristãos. Por ter sido pagão e, posteriormente, ter se convertido ao cristianismo,
Justino teve uma bagagem intelectual muito consolidada na filosofia grega, por-
tanto, as reflexões sobre a filosofia pagã vão direcioná-lo diretamente a Deus”.
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Segundo ele, a filosofia é e só poderia ser aquilo que conduziria os homens a


Deus e a ele os unisse.
Para algumas interpretações do pensamento cristão, o Logos ao qual Justino
remete-se também é considerado o mesmo Logos dos gregos. Aliás, é numa pas-
sagem bíblica que está explícita a ideia de que Cristo é o logos que se fez carne.
Segundo o Evangelho de João, Cristo é o Logos feito carne. Conforme o evangelho
de João 1,14: “(...) E o Logos (Cristo) se fez carne e habitou entre nós (...)” (parên-
teses é nosso). Logos que Platão já procurara nas suas elucubrações filosóficas.
Portanto, faz-se mister perceber que existe uma continuidade entre esses dois
pensamentos. Para Justino, aquele germe desenvolvido pelas filosofias clássicas
foi o que o possibilitou encontrar a verdadeira filosofia. Ali, encontrava-se o que
era necessário para que suas reflexões o levassem ao verdadeiro conhecimento.
Tal percepção é importante, pois corrobora com a tese de que não houve neces-
sariamente, como busca se afirmar, uma ruptura, mas sim um aproveitamento
da filosofia grega para a construção do pensamento cristão.
É o que afirmam Boehner e Gilson (2000) ao estudarem a vida de Justino.
Segundo eles, da mão dos gregos, a filosofia passa para a mão dos cristãos. E não
vai como simples cartas de pensamentos neutros, mas, ao mesmo tempo, incu-
tem uma forma de pensar e refletir própria dos gregos. Nas palavras dos autores:
[...]justino está ciente de que os problemas ventilados pela sabedoria
grega são idênticos àqueles que são levantados e solucionados pelo
cristianismo; tanto os filósofos como os cristãos buscam a Deus e as-
piram à união da alma com Deus (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 28).

Aqui, é preciso esclarecer que, embora partilhem do mesmo Logos, não estamos

As Influências Gregas no Pensamento Cristão dos Primeiros Séculos


84 UNIDADE II

afirmando que é a mesma filosofia. Claramente, o cristianismo apresenta conside-


rações sobre a natureza que são diferentes do que os filósofos gregos propuseram.
O que queremos afirmar com as propostas de reflexão é que houve um diálogo
entre os dois modos de pensar, o que levou a, muitas vezes, comparar momen-
tos muito símiles em ambos os momentos. O que Justino apresenta é que foram
esses, os gregos, mestres intelectuais do cristianismo:
[...]os mestres gregos o haviam conduzido ao limiar do cristianismo;
por isso não pode animar-se a condená-los ou a preteri-los, pura e sim-
plesmente. No intuito de assegurar-lhes um lugar no seio do cristia-

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nismo, Justino elabora a sua doutrina da participação dos gregos no
Verbo, ou Cristo, tornando-se assim o fundador do humanismo cristão
(BOEHNER; GILSON, 2000, p. 29).

Para o pensador, é impossível não reconhecer uma importância (de peso) que a
filosofia grega possui na doutrina do Verbo, tanto que dedicará grande parte de
sua vida a comprovar este fato. De acordo com a historiografia, Justino afirma
que, embora não seja a verdade absoluta, ou para usar seus termos, o Logos total,
os gregos, principalmente Platão, flertaram diretamente com essa verdade. De
acordo com Boehner e Gilson:
[...]justino sentiu-se como que compelido a tal doutrina. Era-lhe im-
possível negar que na filosofia grega não só se conhecerá, mas também
se praticara a verdade. Ora, toda a verdade está no Logos, que ‘ilumina
todo o homem que vem a este mundo’; esse texto escriturístico certa-
mente era conhecido de Justino. Logo, toda verdade deve ser relacio-
nada ao Logos. De outro lado, porém, Justino não pode deixar de re-
conhecer que a verdade dos gregos era ainda imperfeita e fragmentária
(BOEHNER; GILSON, 2000, p. 29).

Assim, mesmo ele reconhecendo imperfeição nessas ideias em detrimento do


ideal cristal do seu século, há de se perceber que ele as reconhece, mesmo que
seja como uma visão que ainda precisava ser melhorada, portanto, que se dedi-
caram a estudá-la mais a fundo, e não a abandoná-la e começar outra teoria
religiosa do zero. Novamente a tese de que haveria, portanto, uma continuidade
baseada nas influências gregas para a formação do dogma cristão está sendo
reforçada pelo filósofo.
Com passos no futuro não muito distante dali, chegamos a Agostinho, no
século IV, que também defenderá a tese de que há muito de cristão na filosofia

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


85

grega, especialmente com relação ao platonismo (Agostinho terá contato com


o platonismo por meio de um filósofo e tradutor dos textos gregos de Platão do
século III de nossa era, a saber Plotino), ou, como afirmamos até aqui, muito de
grego na filosofia cristã. Em sua obra As Confissões o filósofo teólogo explicita
com mais atenção tal ideia:
[...] alguns livros platônicos, traduzidos do grego em latim. Neles li,
não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e numerosos
argumentos, que ao princípio era o Verbo e o Verbo existia em Deus e
Deus era o Verbo: e este, no princípio, existia em Deus. Todas as coisas
foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é
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vida, e a vida era a luz dos homens e as trevas não a compreenderam


[...] Do mesmo modo, li neste lugar, que o Verbo de Deus não nasceu
da carne e do sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus [...]
Descobri naqueles escritos, expresso de muitos e variados modos, que
o Filho, ‘existindo com a forma do Pai, não considerou como usurpa-
ção ser igual a Deus’, porque o é por natureza [...] Lá encontrei ‘que o
vosso filho Unigênito, eterno como Vós, permanece imutável antes de
todos os séculos e sobre todos os séculos, que, para serem bem-aven-
turadas, todas as almas recebem da sua plenitude, e que, para serem
sábias, são renovadas pela participação da Sabedoria que permanece
em si mesma’ [...] Por isso lia também aí que transformaram a imutável
glória da vossa incorruptibilidade em ídolos e estátuas de toda espécie,
à semelhança de imagem do homem corruptível, das aves, dos animais
e das serpentes, ou seja, o alimento dos egípcios, pelo qual Esaú perdeu
o direito de primogenitura (AGOSTINHO, 1980, p. 13 -15).

Esta talvez seja a passagem mais emblemática para a nossa tese. Uma vez que,
diferentemente de Justino (que embora de extrema importância), não é tão
reconhecido historicamente quando se faz uma História da Igreja. Já a figura
de autoridade de Agostinho é incontestável. Vocês terão um tópico especial-
mente sobre ele na próxima unidade, devido a sua importância com relação ao
conhecimento e à fixação do cristianismo nos seus primeiros tempos. Aqui, na
passagem supracitada, ele diz que, embora não tenha sido com as mesmas pala-
vras, ainda assim é possível, claramente, fazer uma analogia entre a cultura grega
e a cultura cristã. Ao expressar, por exemplo, que “ao princípio era o Verbo e o
Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo: e este, no princípio, existia em Deus.
Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado”, Agostinho des-
crevia a teoria platônica do mundo das ideias e do mundo sensível. Teoria esta

As Influências Gregas no Pensamento Cristão dos Primeiros Séculos


86 UNIDADE II

que não abordaremos aqui, mas que em uma pesquisa rápida na internet, caso
você ainda a desconheça, poderá compreender esta similaridade.
Os exemplos não são isolados na literatura sobre a história do dogma, poderí-
amos citar, inclusive, os contidos na ética aristotélica que, de certa forma, também
se fazem presentes na história do cristianismo. A própria concepção de mundo,
adotada durante a medievalidade é uma concepção aristotélica-ptolomaica, o que
reforça a leitura e a criação de textos com base nesta linearidade. Tanto o sistema
de Ptolomeu, quanto a física aristotélica concebiam um mundo no qual a Terra
fazia-se estática no centro do universo. Esse foi um dos pensamentos que a socie-

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dade levou com ela e, a partir dele, fixou a concepção geocêntrica de mundo.
Entendido assim, podemos afirmar que nossa civilização ocidental cristã
sempre flertou com a cultura grega, ora mais, ora menos, e este tipo de racionali-
dade expressa na filosofia e na cultura da Grécia antiga foram fundamentais para
a fixação da cultura cristã. Em nível de aprofundamento, podemos citar como
autores para uma pesquisa o teólogo e historiador da corrente da Teologia Liberal
Adolf von Harnack, que em sua obra intitulada a História do Dogma apresenta,
de maneira negativa, a influência grega na teologia cristã. Outros autores, como
o teólogo e historiador Paul Tillich, na obra História da Teologia protestante nos
séculos XIX e XX, compreendem o fato de a teologia cristã expressar-se por meio
da cultura grega não era algo tão negativo assim, uma vez que a cultura predo-
minante no início do cristianismo primitivo era a helênica. Consequentemente,
caso quisesse passar alguma mensagem a esses povos, a linguagem e as analogias
deveriam partir do comum e conhecido, nesse caso, da cultura grega.

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


87

Apesar de consideradas religiões conflitantes, o politeísmo greco-romano


se relaciona de algumas formas com o cristianismo: O desenho dos templos
católicos, no formato de “basílica”, é original da cultura grega em que o espa-
ço era usado para a realização de grandes assembleias. Outra prática que foi
levada para a Igreja pelo imperador romano Constantino foi o uso de velas e
queima de incenso. Era típico aos imperadores serem recebidos por luzes e
ervas aromáticas. Finalmente, o uso do véu de noiva no casamento em uma
igreja é uma referência à deusa romana Vesta (ou Héstia dos gregos). Vesta
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era a deusa virgem protetora dos laços familiares. Para saber mais, acesse o
link disponível em: https://airtonbc.wordpress.com/2011/06/27/a-influen-
cia-paga-no-cristianismo/>.
Fonte: adaptado de Viagem Cultural (2011, on-line)2.

O CRISTIANISMO NO MUNDO ROMANO:


CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS PARA A
FUNDAMENTAÇÃO DA NOVA FÉ

Assim como o pensamento grego possui fortes traços de sua cultura integrados
com o cristianismo, a cultura romana também se fará presente na fundamentação

OCristianismonoMundoRomano:ConvergênciaseDivergênciasParaaFundamentaçãodaNovaFé
88 UNIDADE II

dessa nova religião. Uma vez lembrada a tese de que o pensamento cristão não é
algo exclusivo, pretendemos mostrar neste ponto algumas das influências do pen-
samento filosófico e da cultura geral da Roma Antiga na formação do cristianismo.
Esta é uma visão que também está presente em alguns autores. Por exemplo,
a professora e historiadora Renata Lopes Biazotto Venturini (1996), em seu artigo
Visão pagã e a visão cristã no Baixo Império Romano, apresenta que, embora as
propostas que principiam ambas as visões sejam diferentes, ainda assim, pos-
suem traços de similitude. Nas palavras da autora:
[...]a cristandade não é algo único, sui generis, que não deriva de outras

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
práticas e sofre as mesmas influências, muito embora os seus princípios
sejam distintos. No mundo pagão, orar não é pedir a intervenção de
Deus, enquanto que a oração cristã é a expressão da fé da mensagem
transmitida e recebida por Deus (VENTURINI, 1996, p. 230, [2017],
on-line)3.

A autora propõe, desse modo, que pensar o cristianismo na antiguidade romana


é pensá-lo inserido dentro de um arcabouço cultural muito maior do que a sua
própria expressão em si, uma vez que ele não se constitui fato isolado. Muito
embora seja possível ela perceber algumas disparidades entre um pensamento e
outro, como no exemplo supracitado, em que ela atribui a significação ou o fim
da oração como algo que diverge em ambas as culturas.
O fato é que o cristianismo, neste momento, não é uma religião bem vista
na sociedade romana, sofrendo várias interdições por parte dos governadores.
Portanto, uma forma até mesmo de mascarar esta divergência entre os primei-
ros e a religião dos últimos é, por exemplo, agregando alguma coisa que possa
ser cultuada em ambas as culturas sem demonstrar afrontamento com a cul-
tura dominante.
Destarte, será no estoicismo, pensamento filosófico clássico, que se inicia
com Zenão, no século IV a.C, que o cristianismo encontrará o seu maior inter-
locutor. Como afirma o pensador Severino José Assman (1994), em seu artigo
intitulado Estoicismo e helenização do cristianismo. Segundo o autor, seria impos-
sível não comparar as semelhanças entre ambas as propostas. Nas palavras dele:
[...]de qualquer forma que se vejam o estoicismo e a doutrina religiosa
do cristianismo nascente, é impossível silenciar acerca das semelhanças
entre eles. E isso é útil não só para entendermos melhor o importante

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


89

fenômeno da expansão do cristianismo, e não de outras religiões orien-


tais, mas também para percebermos que o cristianismo que conhece-
mos deve ser analisado também como forma de pensar e viver oriental
que se expandiu mediante a adoção de elementos da cultura clássica
antiga (ASSMANN, (1994), p. 25)

É neste ponto que podemos dizer que o estoicismo e o cristianismo terão um


maior diálogo na Roma Antiga. Mas para que consigamos perceber isso, precisa-
mos relembrar da advertência dada no tópico anterior. É preciso que estejamos
abertos para analisar o cristianismo não somente a partir dos dogmas religio-
sos, mas também a partir da ciência histórica que nos mostra que o cristianismo
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não foi uma doutrina unitária, principalmente nos primeiros séculos de sua for-
mação. Há, nesse momento, um entrave entre grupos que pretendem que essa
doutrina tome rumos de acordo com suas visões. É o caso, por exemplo, dos
orientais que, dentro de uma visão monista, buscam que a nova fé tenha apenas
uma vertente teórica, advindos de sua cultura semita. Contudo, paralelamente
a este grupo, existiam outros com visões completamente divergentes, pois pen-
savam mais na divulgação do que na coerência lógica interna, portanto, tinham
interesses que a linguagem cristã pudesse receber influências greco-romanas.
Sabe-se que há uma luta entre aqueles que pretendem mantê-lo vincu-
lado à tradição oriental, não dualista, mas monista, como era a cultura
semita - e os fundadores da Escola do Pórtico, Zenão e Crisipo, têm
formação semita - e os que procuram, talvez com o objetivo de divul-
gar mais rápida e eficazmente a religião”encarná-la”, revesti-la com a
linguagem greco-romana. Assim, mesmo nos escritos vétero - e neo-
testanrientários - observam-se maneiras de ver diversas, e neste caso
são decisivas, por exemplo, as distinções entre os quatro evangelhos
ou entre os escritos do apóstolo, filo-grego e semita, Paulo de Tarso
(ASSMANN, (1994), p. 25)

De acordo com Assmann (1994), é como Paulo de Tarso que veremos um pro-
cesso de helenização do cristianismo. Com o apóstolo, há uma necessidade de
transmitir o cristianismo para a sociedade helênica, dessa forma, ele realiza uma
ocidentalização do cristianismo orientalizado, ou melhor dizendo, uma heleni-
zação, muitas vezes, áspera, como o próprio Paulo narra em suas cartas, mas que
se tornou possível devido à insistência do pregado, tornando-se modelo para
toda a posteridade. Portanto, um marco na história do cristianismo primitivo.
Nas palavras de Assmann:

OCristianismonoMundoRomano:ConvergênciaseDivergênciasParaaFundamentaçãodaNovaFé
90 UNIDADE II

[...]a obra de Paulo de Tarso serve de paradigma para toda a tradição


posterior. Nela verificamos o conflito entre os cristãos que buscam mu-
nir uma doutrina da salvação de um equipamento especulativo, a fim
de construir uma teologia dogmática, sem recear recorrer ao pensa-
mento de Platão e, mais tarde, ao de Aristóteles, e os que desconfiam
de qualquer elemento da filosofia “pagã”.E conhecido o discurso do
apóstolo aos atenienses no Areópago, hoje inscrito em pedra ao sopé
do Partenon, e que nos remete diretamente a conceitos estóicos. Nele -
os Atos dos Apóstolos referem-se explicitamente a discussão de Paulo
com “filósofos epicureus e estóicos” - para apresentar a nova religião,
o pregador usa de todos os recursos para mostrá-la não como ruptura,
mas como complemento e acabamento da teologia grega: Deus é apre-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sentado como o “deus desconhecido” cujo único templo é o univer-
so, da mesma forma como, para os estóicos, o logos habita o universo.
Contudo, o intento de convencer os atenienses redunda em fracasso.
Por isso, a seguir, Paulo muda radicalmente de discurso: “Destruirei a
sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes... Por-
ventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?... os judeus
pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria. Mas nós pregamos a Cristo
crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1
Cor. 1,19-23). Pode-se verificar, portanto, que há, nos textos de Paulo,
duas atitudes, mas sempre tendo em conta a cultura vigente em Atenas,
assim como, depois, haverá quem lute para implantar o cristianismo
apoiando-se na tradição estóica (e não naquela epicurista ou cética),
ou rejeitando totalmente qualquer elemento da cultura greco-romana
(ASSMANN, (1994), p. 26)

É com Tarso, na Grécia, que a cultura cristã vai mesclar os elementos romanos
e gregos na sua pregação. Ainda mais explícito, por exemplo, nos textos estó-
icos de Marco Aurélio e Sêneca. De acordo com Assmann (1994), se de fato
ainda quisermos observar a convergência entre os estóicos e os cristãos, pode-
mos também comparar os escritos do imperador Marco Aurélio e os do apóstolo
Paulo, em que o primeiro escreve que: “um é o mundo que todas as coisas com-
põem, una a lei, una a razão comum a todos os seres inteligentes, una a verdade
(VII, IX, 2)”, o que em Paulo de Tarso encontramos da seguinte maneira: “um
só corpo, um só espírito, … uma só esperança…, um só senhor, uma só fé, um
só batismo, um só Deus e pai de todos, que está acima de tudo, por todos e em
todos. (Ef. 4, 4-6)”. Assim, podemos perceber que aqui também há, em vez de
pensar como ruptura, uma continuidade entre os textos e a cultura helenística
e cristã dos primeiros séculos do cristianismo.

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


91

Caro(a) aluno(a) do curso de Teologia, esperamos que esta unidade tenha


contribuído de maneira a trazer mais subsídios referentes ao conhecimento his-
tórico do que chamamos de cristianismo primitivo. É com grande prazer que
apresentamos esta unidade de estudo, sempre lembrando que ela não pretende
ser a história final sobre as questões que aqui foram trabalhadas, mas apenas
aquela escadinha de três degraus que você provavelmente já viu em uma biblio-
teca e que o levará a novos conhecimentos. É célebre o pensamento em que o
físico Isaac Newton propusera que só conseguira ver mais longe porque estava
em ombros de gigantes, referindo-se a Galileu Galilei. Buscamos apresentar o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que melhor conhecíamos em relação às referências desta temática, muitas vezes


com muitas lacunas, até mesmo devido à falta de estudos sobre a Antiguidade.
Contudo a partir deles queremos que vocês também possam enxergar mais
longe. Até a próxima!








OCristianismonoMundoRomano:ConvergênciaseDivergênciasParaaFundamentaçãodaNovaFé
92 UNIDADE II

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos que esta unidade tenha sido proveitosa no sentido de trazer novos
conhecimentos à luz da história. Como sabemos, muitas vezes, somos perme-
ados pelo pensamento do senso comum em que adquirimos verdades que nem
sempre, quando confrontadas com o pensamento histórico, se sustentam. Ao
propormos a unidade a partir de um resgate histórico, nosso objetivo foi justa-
mente trazer novos argumentos que sustentam algumas das principais teses que
um bacharel em teologia precisará conhecer. Isso com relação ao mundo antigo

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
do judaísmo, bem apresentado desde o seu cenário político, as seitas religio-
sas, perpassando os acontecimentos do Templo de Jerusalém até o nascimento
de Cristo e do cristianismo. Vimos o nascimento do cristianismo e suas princi-
pais doutrinas, o evangelismo e o aumento substancial dos seguidores de Cristo.
Optamos, aqui, por apresentar a queda de Jerusalém e a expulsão dos judeus da
Palestina, fatos que contribuíram para a diáspora, a dispersão de judeus por todas
as partes do mundo. Ao abordarmos tal temáticas, muitos de vocês devem ter
pensado que este capítulo se fez mais como um livro de história do que de apo-
logética ao cristianismo. De fato, mesmo que seja o nome de nossa disciplina,
a História da Igreja I, sendo assimilada a importância da história na formação
da Igreja, frisamos de maneira acentuada a importância dela como um instru-
mental do teólogo. Tanto que a breve passagem apresentada sobre as influências
gregas e romanas no pensamento cristão também teve a conotação de apanhado
histórico. Esperamos que esta unidade tenha contribuído na sua formação, tra-
zendo fatos e argumentos que poderão fundamentar ainda mais a proposta do
curso. Bons estudos e até a próxima unidade, em que veremos a importância do
ensino e da forma de conhecer na constituição da Igreja.

O INÍCIO DO CRISTIANISMO NO MUNDO ANTIGO E AS SUAS ORIGENS JUDAICAS E GRECO-ROMANAS


93

1. Relacionando os relatos bíblicos do nascimento de Cristo e a política na região,


chegamos a algumas conclusões como, o ano 1 d.C. a quando é atribuído o nas-
cimento de Cristo não pode ser, de fato, o ano em que Jesus nasceu. Esta con-
clusão deve-se ao fato de Herodes, muitas vezes citado no relato, ter morrido
antes do primeiro ano da Era cristã. Levando em consideração estas questões
e baseado na Unidade II, assinale a alternativa correta:
a) Jesus Cristo, provavelmente, nasceu entre o ano 6 a.C. e 4 a.C., pois a historio-
grafia convencional atribui o ano 4 a.C., para a morte de Herodes, o Grande.
b) Jesus Cristo era um discípulo de Gamaliel e nasceu 30 anos depois do ano 1
d.C.
c) Jesus Cristo nasceu e morreu antes do ano 1 d.C.
d) Jesus, realmente, nasceu no ano 1 d.C., e d.C. significa depois de Cristo, por-
tanto, não haveria a possibilidade lógica de ele ter nascido antes.
e) O mundo foi criado no ano 1 d.C.
2. Sobre a presença judaica na Palestina, assinale a alternativa correta:
a) Os judeus nunca deixaram a Palestina, tendo vivido naquela região desde os
tempos do patriarca Abraão até os nossos dias.
b) Os judeus são os descendentes da tribo de Judá, por isso, sempre viveram na
região da Judéia, e não na Palestina.
c) Os judeus passaram por algumas dispersões, como no caso do exílio babilô-
nico e da diáspora, após a queda de Jerusalém, no ano 70 d.C., tendo recon-
quistado o total direito de viver na região, em 1948, após a criação do Estado
de Israel.
d) Os judeus passaram por algumas dispersões, como no caso do exílio babilô-
nico e da diáspora, após a queda de Jerusalém, em 1947. Após isso, em 2005,
obtiveram novamente o direito de viver na Ucrânia.
e) Os judeus alcançaram o apogeu econômico e social na época da dominação
romana que, dentre outras coisas, possibilitou a reconstrução do Templo des-
truído pelos Selêucidas.
94

3. Sobre o nascimento do Cristianismo e a ação dos apóstolos no século I, assinale


a alternativa correta:
a) Não houve participação efetiva dos apóstolos, pois o cristianismo foi desen-
volvido com bases gregas e romanas.
b) Paulo de Tarso, apesar de não ser um dos doze apóstolos, teve papel funda-
mental no desenvolvimento do cristianismo e na pregação do Evangelho
para os gentios, os não judeus.
c) O apóstolo Pedro foi o mais importante na história da Igreja primitiva, e sua
pregação na Índia e na China contribuiu para a conversão dos povos do ex-
tremo oriente.
d) Os apóstolos não encontraram nenhum problema com a pregação do Evan-
gelho.
e) Os apóstolos Antônio e José foram os mais frutíferos apóstolos de Cristo e
pregaram em Roma e em Corinto.
4. Discorra sobre a influência da cultura grega no cristianismo, segundo Santo
Agostinho.
5. Faça uma breve relação entre a filosofia estóica e o pensamento cristão.
95

SOBRE A TRANQUILIDADE DA ALMA


Livro I
1
I SENERO: Quando me examino, Sêneca, alguns vícios se mostram tão aparentes que
eu poderia tocá-los, outros ficam mais obscuros e ocultos, alguns não são contínuos,
mas retornam em intervalos, os quais eu diria que são os mais molestos, como inimigos
que vagueiam e atacam de improviso, não nos permitindo ficar de prontidão, como na
guerra, nem em descanso, como na paz.
2
Sobretudo, percebo em mim o seguinte hábito – e porque não confessaria a verdade,
como a um médico? –: nem estou de todo liberado dos males que temia e detestava,
nem, por outro lado, estou entregue a ele. Encontro-me num estado tal que, apesar de
não ser o pior, é igualmente lastimável e penoso: não estou doente nem saudável.
3
Não é o caso de me dizer que todas as virtudes são tênues no início e com o tempo ga-
nham consistência e robustez; não ignoro também que as que se esforçam pela imagem
exterior se fortalecem com o passar do tempo; refiro-me ao prestígio e à fama decorren-
tes da eloquência e a tudo que nos advém da aprovação alheia. Tanto as que nos dotam
de méritos verdadeiros quanto as que são adornadas de algum artifício para agradar
esperam anos até que pouco a pouco o decorrer do tempo lhes traga colorido. Mas eu
temo que o hábito, que confere permanência às coisas, crave mais fundo em mim esse
vício. O longo trato nos leva a amar tanto o que é mau quanto o que é bom.
4
Que enfermidade é essa, de uma alma que hesita entre duas vias, sem inclinar-se com
força nem para o bem, nem para o mal, não posso explicar-te de uma vez, mas por par-
tes. Direi o que acontece comigo — tu encontrarás o nome da doença.
5
Sinto um extremo apreço pelo comedimento, reconheço: não me agrada um aposento
decorado com luxo, nem a vestimenta tirada de um baú, alisada por pesos e mil tor-
mentos que a forcem a ter brilho, mas aquela simples e de uso doméstico, que não é
guardada nem trajada com cuidados.
6
Agrada-me não a comida que um grupo de servos prepara e depois assiste-me a co-
mer, nem a que é pedida muitos dias antes ou servida por muitas mãos, mas a que é
acessível e fácil, que não tem nada de exótico ou refinado, aquela que em lugar nenhum
vai faltar, não é pesada para o bolso ou para o corpo, e que não sairá por onde entrou.
7
Agrada-me um criado sem refinamentos e um doméstico simples, a prata grosseira de
um pai de vida agreste, sem o nome de um artesão, e não a mesa vistosa pelo mármore
variegado, ou renomada na cidade pela extensa sucessão de donos elegantes, mas a
que é de uso comum, a qual não retenha de prazer os olhos de nenhum conviva nem o
inflame de inveja.
8
Bem, eu me contentava com tudo isso, quando me fere a alma um aparato de criados
treinados, domésticos vestidos com mais esmero do que num desfile, ornados de ouro,
96

e um grupo de escravos lustrosos, em uma casa preciosa até mesmo nos pisos, tendo-se
dissipado fortunas por todos os cantos, inclusive no teto cintilante, e uma multidão em
busca e em companhia desse esbanjar de patrimônio. Que dizer das águas transparen-
tes até o fundo e que fluem ao redor dos convivas, que dizer dos jantares dignos de um
cenário desse?
9
Ao retornar de uma longa pausa de frugalidade, envolveu-me o luxo com seu intenso
esplendor e ecoou ao meu redor. Titubeia um pouco meu olhar. Minha alma resiste ao
luxo com mais facilidade que meus olhos. Recuo, assim, não pior, porém mais triste. Não
avanço tão altivo em meio às minhas fraquezas; ataca-me uma mordida secreta e me
pergunto se não seria melhor tudo aquilo. Nenhuma dessas coisas muda meu estado;
nenhuma, porém, deixa de me abalar.
10
Gosto de seguir o que mandam os preceitos e de inserir-me na vida pública, gosto
dos cargos e das prerrogativas, não, evidentemente, da púrpura ou de assumir função
com direito a lictores, mas para estar mais apto a servir e ser útil para amigos e parentes,
para todos os cidadãos e, por fim, para todos os homens. Resoluto, sigo Zenão, Cleanto,
Crisipo, dos quais, porém, nenhum se ocupou da política, mas nenhuma deixou de lado.
[...]
17
Peço, então, se tens algum remédio com que possas pôr fim a essa minha flutuação,
que me consideres digno de dever-te minha serenidade. Sei que não são perigosas essas
oscilações da alma, nem acarretam nada de alarmante. Para expressar-te por uma exata
comparação aquilo de que me queixo, não me sinto atormentado pela tempestade, mas
pela náusea. Portanto, elimina esse meu mal, qualquer que seja ele, e socorre quem pa-
dece mesmo a avistar terra.
Fonte: Issuv ([2017], on-line)4.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Os cristãos e a queda de Roma


Edward Gibbon
Editora: Penguin; Companhia das Letras
Sinopse: em estudo pioneiro, um dos pais da historiografia moderna
traça com minúcia os passos da ascensão do cristianismo e sua relação
com a irreversível decadência do Império Romano.

Alexandria
a obra dirigida pelo vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
(Mar Adentro, 2004), Alejandro Amenábar, mostra a vida no Antigo
Egito diante da dominação romana. Movida por ideais religiosos
divergentes, a cidade de Alexandria assiste ao progresso do
cristianismo e ao seu choque com o politeísmo greco-romano.
Inclusa no gênero drama/romance, a obra apresenta um panorama
interessante sobre os conflitos religiosos no mundo antigo.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
ASLAN, R. Zelota: A Vida e A Época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BOEHNER, P.; GILSON, E. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau
de Cusa. Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier. 7. ed. Petrópolis-RJ: Vozes,
2000.
BLAINEY, G. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Editora Fundamento
Educacional Ltda, 2012.
RUSSELL, B. A História da Filosofia Ocidental: A Filosofia Católica. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2015.
SCHAMA, S. A História dos judeus: À procura das palavras: 1000 a. C. - 1492 d. C.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SCHEINDLIN, R. História Ilustrada do Povo Judeu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
SCLIAR, M. Judaísmo: Dispersão e unidade. São Paulo: Ática, 2001.
WERBLOWSKY, Z. O Messianismo na História Judaica. In: UNESCO (org). Vida e valo-
res do povo judeu. São Paulo: Perspectiva, 1972.

REFERÊNCIAS ON-LINE

1
Em: <http://bibliaportugues.com/kja/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
Em: <https://airtonbc.wordpress.com/2011/06/27/a-influencia-paga-no-cristianis-
2

mo/. >. Acesso em: 11 maio. 2017.


3
Em: <http://phoinix.historia.ufrj.br/media/uploads/artigos/1996_artigo022_rena-
ta_lopes.pdf>. Acesso em: 11 maio. 2017.
Em: < https://issuu.com/reacionariocarioca/docs/sobre_a_tranquilidade_da_al-
4

ma_-_s__>. Acesso em: 11 maio. 2017.


GABARITO

1. A.
2. C.
3. B.
4. Espera-se que o aluno perpasse o caminho do pensamento cristão, mostrando
as influências da cultura grega de acordo com o pensamento agostiniano, em
que é proposto que há uma forma, ainda que elementar, de se pensar o cristia-
nismo entre os gregos.
5. O cristianismo, na antiguidade romana, deve ser pensado dentro de um arca-
bouço cultural muito maior do que a sua própria expressão em si, uma vez que
ele não se constitui fato isolado. Assim, o aluno deve apresentar a relação entre
o estoicismo e o cristianismo apresentados, por exemplo, por Paulo de Tarso e
os estóicos, como Marco Aurélio.
Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira

III
A IGREJA E OS SEUS
INTELECTUAIS: ANÁLISE

UNIDADE
HISTÓRICA DOS PENSADORES
CRISTÃOS

Objetivos de Aprendizagem
■■ Elaborar um panorama sobre o conhecimento no medievo,
apresentando as características do intelectual cristão.
■■ Traçar um plano de estudo sobre o pensamento patrístico.
■■ Apresentar os principais pontos do pensamento cristão de Santo
Agostinho e Tomás de Aquino.
■■ Apresentar as principais ideias e pensadores que adentram o
pensamento escolástico.
■■ Elaborar um panorama geral sobre o legado do pensamento de
Tomás de Aquino para a consolidação do cristianismo.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O intelectual e a Igreja
■■ Notas sobre a Patrística
■■ Santo Agostinho: a Fé e a Razão
■■ Notas sobre a Escolástica
■■ Tomás de Aquino: a Fé e a Razão
103

INTRODUÇÃO

Olá, sejam bem-vindos(a) à mais uma unidade do nosso curso de História da


Igreja I. Nesta unidade, veremos que o conhecimento medieval cristão teve uma
especificidade, a saber, esteve direcionado para a Igreja, assim como todas as
outras relações travadas nesse contexto. Em uma sociedade cujo theus (deus) é
o centro, a compreensão deste direcionamento fica mais clara.
Para pensarmos a intelectualidade cristã no medievo, precisamos ter em
mente uma série de pressupostos que nos ajudarão a compreender este pano-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

rama de desenvolvimento intelectual. E sim, ao contrário do que muitos dizem,


a medievalidade concentra um alto e amplo arsenal de conhecimento cientí-
fico, e veremos que a Igreja é a maior responsável pela fomentação deste saber.
Pensar o intelectual é, paralelamente, conceber o seu lócus de produção, uma
outra organização social, contrária à do feudo. Esse é um grande momento para
a Igreja Cristã, pois é quando deixamos de fato de visualizá-la apenas como um
barqueiro da Antiguidade (imagem difundida na renascença), como um perí-
odo sem conhecimentos, e passamos a enxergá-la a partir de uma perspectiva
mais positiva.
Veremos, ao longo da unidade, que os pensamentos patrísticos e escolásticos
deram o tom do conhecimento que a Idade Média vai explorar, seja de maneira
a aprofundá-lo, seja de maneira a criticá-lo, quando já se está indo para os fins
do pensamento medieval. Reconhecer que esse pensamento esteve direcionado
à Igreja não é tornar menor e nem menos importante este tipo de saber, mas
sim compreender os homens em seu tempo. Em uma sociedade em que a Igreja
assume o papel de organizadora das relações sociais, preserva o conhecimento,
o ensino estará diretamente vinculado a ela.
Convidamos você a adentrar, mais uma vez, neste mundo da história da
Igreja, agora com o olhar direcionado para o ensino. Só assim poderemos des-
mistificar uma história irreal que tomou conta do imaginário atual sobre a Igreja
desse período. Vamos lá?

Introdução
104 UNIDADE III

O INTELECTUAL E A IGREJA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)1.

A verdade seja dita. A Igreja não inicia o seu processo de fixação durante o perí-
odo de sua história, denominado cristianismo primitivo, com a intencionalidade
de ser uma instituição de saber. De fato não. Nos primeiros momentos da sua
fixação, essa instituição tinha um caráter diretamente relacionado aos indivíduos
mais comuns, seus diálogos eram diretamente com pobres, mulheres e grupos
sociais dos mais comuns. Não havia necessidade de uma catequização profunda,
tendo em vista que, nesse momento, o homem comum já possuía uma noção,
ainda que vaga, de Cristo. A noção cristã, nos primeiros séculos de fixação da
nova religião no mundo pagão, era oralizada e sem muitos recursos em relação
às fontes de aperfeiçoamentos.
De acordo com Pierre Pierrard, em sua obra História da Igreja (1982), ao que
se refere a realidade histórica da pessoa de Cristo, à origem de sua mensagem,

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


105

há divergências entre os sábios, justamente porque, nesse primeiro momento,


ele não foi catequizado em profundidade. Então, torna-se extremamente difí-
cil precisar algo, de maneira científica, quando nos remetemos a esse contexto.
Porém será com Paulo, durante o primeiro século da era cristã, que teremos os
intentos iniciais de uma profusão da fé cristã, ainda de maneira não sistemati-
zada, por meio de livros ou de profusão do saber erudito, mas visando atingir a
população comum.
De acordo com Philotheus Boehner e Etienne Gilson, em sua obra História
da Filosofia Cristã (2000), embora o cristianismo propunha-se ao grande público
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

como uma religião universal, ou seja, para todos os indivíduos, independen-


temente de classes sociais, etnias e/ou gêneros, o público do cristianismo, nos
seus primeiros anos, estava restrito à camada mais humilde da população, o que,
paralelamente, a nosso ver, não cria a necessidade de um saber mais erudito. Nas
palavras dos autores:
[...]o cristianismo é uma religião essencialmente universal. Destina-se
indistintamente aos homens de todas as raças, de todas as nações e de
todas as camadas sociais. Entretanto, é um fato histórico que a “Boa
Nova” recrutou seus primeiros ouvintes e adeptos principalmente entre
as classes humildes (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 25).

Esta marca do contexto supracitado pelos autores estará mais bem explícita na
trajetória de Paulo, tanto nos seus êxitos quanto nos seus fracassos. Notaremos
que os principais seguidores terão traços econômicos e sociais bem específicos,
o que acarreta um tipo de linguagem também específica. Assim, podemos afir-
mar que, se o cristianismo não se tornou mais erudito nos primeiros anos, dá-se
ao processo dialógico, uma vez que se necessitava de uma linguagem mais clara
e simples, para o público do qual Paulo de Tarso falava, ao mesmo tempo, não
se procurava aperfeiçoá-la a ponto de tornar-se mais erudita.
Está acompanhando? Aqui, pretendemos que você tenha uma noção de que
não é menos ou mais a linguagem adquirida por Paulo nos primeiros anos do
cristianismo, ela é histórica e responde a um grupo histórico, e entender isso é
fundamental para o nosso processo de aprendizagem.
De acordo com Pierrard (1982), no ano de 44, Paulo encontra-se em Antioquia,
onde, pela primeira vez, recebe de Barnabé, chefe de uma comunidade cristã do

O Intelectual e a Igreja
106 UNIDADE III

local; o nome de Tarso, difundindo-se, a partir dali, o nome Paulo de Tarso como
o pregador da mensagem de Cristo. Durante aquele ano, ambos trabalharam jun-
tos, até que em 45, os dois embarcam para Chipre e depois vão para a Panfília.
Nesse ano, Paulo fica responsável por chefiar a missão, percorrendo Perge, Icônio,
Listra e Derbe. Aonde ia, realizava sempre os mesmos passos, que consistiam,
de maneira geral, em demonstrar que Cristo é o Messias esperado por Israel.
Embora as dificuldades fossem muitas, sejam elas vindas dos judeus que inci-
tavam a apedrejá-lo, seja em compará-lo a Hermes, seja imaginar que se falava
de Júpiter, Paulo não desistiu. Quando, do seu retorno à Antioquia, ele se choca

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com os judeus-cristãos, que pretendiam ligar a salvação ao rito de circuncisão.
De acordo com Paulo, mesmo sendo parte da lei judaica, tal ato não é imprescin-
dível para a iniciação na fé da Igreja. Pierrard dá mais detalhes desse momento:
[...]retornando a Antioquia, Paulo choca-se com os judeus-cristãos,
que pretendem ligar a salvação ao rito da circuncisão. Mesmo se do-
brando às prescrições judaicas - “Para os que estão sujeitos à Lei, fiz-me
como se estivesse sujeito à Lei, se bem que não esteja sujeito à Lei, para
ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei -, Paulo não compreender por
que impor a circuncisão aos gentios desejosos de ingressar na Igreja.
A controvérsia é levada a Jerusalém, diante dos chefes da comunidade
cristã, Pedro e João. Eles dão seu aval aos métodos paulinos, malgrado
a resistência de muitos irmãos (PIERRARD, 1982, p. 21).

Ainda a respeito de Paulo, o autor menciona o ano de 49, quando esse parte
para a Antioquia, faz mais uma grande peregrinação, agora com a companhia
de Silas e Timóteo, passando por Listra (onde Timóteo os acompanha), Frígia,
Galácia, Macedônia até Filipo, onde são presos. Após este contratempo, retor-
nam à evangelização, sendo ora ouvidos devido à boa nova, ora criticados por
apresentarem Jesus como rei, contrapondo o poder do Imperador.
Em Atenas, a missão de Paulo também encontra percalços, pois enfrenta os
gregos que, devido aos seus direcionamentos filosóficos, tornaram a jornada de
Paulo um pouco difícil nos primeiros tempos. De acordo com Pierrard (1982),
todos os dias Paulo de Tarso dialoga na Ágora com os gregos sutis e cultos, levia-
nos e céticos que, com zombarias e risos, pedem que o orador afaste-se com seus
miraculosos sonhos.
Será, pois, misturados aos pobres e marinheiros de Corinto que Paulo terá

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


107

mais êxito, o que confirma ainda mais a nossa tese inicial de que o Cristianismo,
nesse momento, possuía uma linguagem voltada para a população comum, pois
as escrituras eram seus únicos instrumentais. Corinto trás uma dupla felicidade
a Paulo. Primeiro porque, aqui, ele adquire mais segurança com a palavra a ser
evangelizada, e segundo porque, aqui, ele consegue organizar uma importante
comunidade cristã. Nas palavras de Pierrard:
[...]o pequeno judeu desce a Corinto, o porto cosmopolita onde, en-
tre duzentos mil homens livres servidos por quatrocentos mil escra-
vos, trabalham numerosos orientais, mais bem preparados do que os
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

gregos para receber a mensagem evangélica. Misturados aos pobres e


marinheiros - ele próprio se faz fabricante de tendas -, Paulo perma-
nece dezoito meses em Corinto;E, depois de seu ministério ter sido
inaugurado “na fraqueza, no temor e em grandes atribulações”. Paulo
adquire segurança. Fala da Cruz sem receio de chocar o orgulho judeu
ou escandalizar a razão grega. É de Corinto - onde se organiza uma im-
portante comunidade cristã - que Paulo remete suas duas epístolas aos
tessalonicenses, que ele quer fortalecer na fé mantendo-os na esperança
do retorno do Senhor. Depois de uma curta escala em Éfeso, Paulo re-
torna à Síria por mar (PIERRARD, 1982, p. 21-22).

Nessas poucas linhas que se seguiram nas citações supracitadas, pudemos perce-
ber o caráter mais popular do cristianismo nos primeiros séculos. Não podemos
dizer que não houve documentação, afinal, as Cartas de Paulo, bem como o Antigo
Testamento são testemunhas que nos desmentiriam, caso fizéssemos uma afir-
mação como essa. Mas podemos afirmar que, embora exista essa documentação,
ela procura muito mais catequizar do que instruir. Pelo menos até fins do século
I d.C. Esse foi o perfil que a religião cristã tomou com o ensino.
Nessa mesma linha de pensamento, o autor Luigi Padovese, em sua obra
Introdução à teologia Patrística (1999), dá-nos um panorama dessa sociedade
em quel os ensinamentos de Paulo de Tarso são proferidos. De acordo com o
autor, o cenário é de pessoas comuns, ou seja, não há uma formação de um
grupo intelectual para fazer apropriação das escrituras de maneira crítica. Nas
palavras de Padovese:
[...]em 1 Cor 1,26 Paulo nos oferece um “perfil” social da comunidade
cristã primitiva, na qual “não há muitos sábios segundo a carne, nem
muitos poderosos, nem muitos nobres”. Essa constatação não deixou

O Intelectual e a Igreja
108 UNIDADE III

de ter reflexos concretos na vida dos primeiros núcleos cristãos e até


encontra confirmação na própria escolha do material de escrita com
o qual são fixadas e transmitidas as primeiras expressões escritas da
“nova” mensagem cristã (PADOVESE, 1999, p. 24).

É preciso ressaltar que este caráter evangelizador popular não é menos impor-
tante. Pelo contrário, é essencial, principalmente nos primeiros tempos de Igreja,
quando ela se forma a partir desses grupos sociais. Podemos dizer que esse foi o
perfil da Igreja com o conhecimento até a primeira década depois da era cristã.
Por isso não teremos uma fundamentação vinda dos livros, mas sim, do povo.
Será o povo que dará vida a esta fé a ponto de se tornar hegemônica, séculos

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depois. Ainda a respeito da carta de 1 Coríntios., de Paulo, Padovese afirma que:
[...]com efeito, “não foi o público do rolo e das bibliotecas que deu vida
às primeiras comunidades cristãs, mas, sabemos, foi a gente simples,
sem nenhum papel político, de poucos recursos econômicos e de mo-
desta formação intelectual (PADOVESE, 1999, p. 24).

Por isso, quando dizemos que o cristianismo, nos seus primeiros séculos, teve
um caráter mais popular, diretamente voltado para a evangelização, e não pre-
ocupado, em um primeiro momento, com a formação erudita e cultural de
um povo, temos em mente esse panorama descrito por Paulo, anteriormente.
Primeiro era preciso formar uma população que olhasse com bons olhos esta
nova proposta de fé.
Era o momento da formação de uma nova religião dentro do território
romano. De acordo com o historiador francês Jacques Le Goff, em sua obra As
raízes medievais da Europa (2010), a herança bíblica é inquestionável para a for-
mação do homem medieval. Para o pensador, dentre as outras tantas heranças
que o mundo medieval recebeu, essa também é de extrema importância, pois, a
partir do medievo, se formara um grupo de intelectuais que se debruçarão sobre
essa herança, a fim de produzir um conhecimento intelectivo formal. A Bíblia,
a partir de então, ganha, na mão desses teóricos, teor argumentativo, deixando
de funcionar como meio de propagação de fé. Para Le Goff:
[...]enfim, uma última herança, que tem importância capital, é a he-
rança bíblica. Este patrimônio é transmitido aos medievais não pelos
judeus, dos quais os cristãos se afastam cada vez mais depressa, mas
pelos cristãos dos primeiros séculos, e a herança do Antigo Testamento,
apesar do reforço dos sentimentos anti judeus, permanece até o fim da

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


109

Idade Média como um dos elementos mais fortes e ricos não somente
da religião, mas do conjunto da cultura medieval. Foram escritos livros
sobre a Idade Média e a Bíblia, e eu me contentarei a lembrar aqui que
o Antigo Testamento é, antes de tudo, a proclamação do monoteísmo
(LE GOFF, 2010, p. 27).

Quando ressaltamos esse aspecto do conhecimento, a saber, o bíblico, como


mostra anteriormente o autor, temos em mente a intenção de apresentar como
os conhecimentos do evangelho são imprescindíveis para a fundamentação da
nova fé. A partir do século I, Deus adentra o pensamento e a história ociden-
tal de maneira nunca antes imaginada, e a Bíblia, que antes era utilizada para
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converter os pagãos e gentios com Paulo, agora é utilizada como símbolo do


conhecimento. Ainda é de Le Goff a afirmação que:
[...]na Idade Média, a Bíblia é considerada e utilizada como um enci-
clopédia que contém todo o saber que Deus transmitiu ao homem. É
também um manual fundamental de história que, depois dos patriarcas
e dos profetas, faz desenrolar o sentido da história desde o aconteci-
mento da realeza com Saul e Davi (LE GOFF, 2010, p. 27).

Somente após certo destaque social a Igreja sente a necessidade de criar uma cul-
tura erudita, na Idade Média. De acordo com o autor, esta carência aparecerá no
período que denominou de Antiguidade Tardia. Ainda, segundo ele, o apareci-
mento de uma cultura mais erudita por meio de uma cristianização acontecerá
no meio de um processo de cristianização do Império Romano, entre o reco-
nhecimento da religião cristã pelo Imperador Constantino, o chamado edito de
Milão de 313 e a adoção, pelo Imperador Teosódio I, do cristianismo como reli-
gião oficial do Estado Romano. A partir daqui, se seguira uma linha que contará
com a Bíblia e o Novo Testamento para a fundamentação de uma cultura cristã.

Para saber mais sobre essa nomenclatura ler: LE GOFF, Jacques. As raízes
medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. 3. ed. Petrópolis: Rio de
Janeiro, 2010.
Fonte: o autor.

O Intelectual e a Igreja
110 UNIDADE III

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NOTAS SOBRE A PATRÍSTICA

O fato de não termos muitos cristãos cultos, nos primeiros anos do cristianismo,
já não é mais verdade quando se inicia a sua era áurea. De acordo com Philotheus
Boehner e Etienne Gilson em sua obra História da Filosofia Cristã (2000), pouco
a pouco esse panorama, em que o cristianismo recrutava seus ouvintes apenas
entre os mais humildes, começara a se alterar, já configurando, ainda que inci-
pientemente, um grupo mais erudito dentro dos pilares na nova fé. Com eles,
surge a necessidade de novas linguagens, bem como novos pensadores. Neste
contexto, se abrirá espaço para o estudo das escrituras com o objetivo de dar
suporte à conciliação entre fé e razão.
Para Boehner e Gilson, será proposta uma nova maneira de pensar. Sem abrir
mão da racionalidade e das propostas filosóficas greco-romana, buscará se con-
ciliar às escrituras. Oferecia, a partir desta proposta, a razão, tão cara para esses
novos adeptos. Nas palavras dos autores:
[...] é um fato histórico que a “Boa Nova” recrutou seus primeiros ou-
vintes e adeptos principalmente entre as classes humildes. [...] é igual-
mente um fato histórico que dentro em pouco, e em número sempre
crescente, muitos homens cultos encontraram na sabedoria da cruz a
plena satisfação da sua sede de verdade, dos seus anseios espirituais, e
até das suas exigências científicas (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 25).

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


111

Dessa maneira, o cristianismo contará agora com novos integrantes, que não
veem contradição nenhuma entre um conhecimento mais científico e o da fé.
Ainda no pensamento dos autores, a conversão não implicava de modo algum
renúncia da cultura intelectual. Agora, o imperativo cristão submeteria a razão
aos serviços da cruz. Desde que esse conhecimento projetasse mais fé nos cami-
nhos do cristianismo, era totalmente permissível e estimulado.
Embora a sua consolidação tenha se dado posteriormente, os primeiros apo-
logetas que se rendem a esse serviço têm início já nas primeiras décadas da nossa
era. De acordo com a história, a filosofia patrística data a década de quarenta do
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século um. Foi no contexto francês que o pensamento religioso, voltado para os
antigos escritores cristãos, ganhou corpo e aprofundamento teórico. Tais pen-
sadores são denominados como ‘Padres da Igreja’. Ao trazermos luzes para tal
pensamento, acreditamos estar oferecendo uma das maiores correntes de pen-
samento cristão formado pela cristandade.
Outras concepções, como a própria de Boehner e Gilson (2000), datam esta
formação intelectual um pouco mais para frente. Conforme os autores, o sur-
gimento do pensamento crítico-racional datará os séculos II e III de nossa era.
Contudo, independentemente de qual seja o seu marco histórico, o fato é que
esses autores trouxeram um novo olhar para a teologia cristã, marcando um
momento que poderíamos considerar ser de ruptura no pensamento do cristia-
nismo primitivo e o patrístico. Sobre os primeiros apologetas, Boehner e Gilson
sugerem que:
[...]coube-lhes a tarefa de mostrar que a mensagem de Cristo, além de
representar o cumprimento das profecias do Antigo Testamento, ofere-
cia à razão soluções mais profundas do que as de qualquer filosofia. A
seus olhos, o cristianismo constitui a verdadeira filosofia, e tudo quanto
os gregos haviam logrado elucubrar em matéria de verdade passa a ser
uma herança legítima dos cristãos (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 25).

Assim, a patrística surge como movimento de pensar que engloba o pensamento


grego-romano ao pensamento cristão. Agora, diferente de outrora, díspares,
esses pensamentos, antigo pagão e cristão passam por uma fusão e se comple-
mentam para fortalecer os pilares da fé. É preciso notar que esse pensamento
científico religioso, nesse primeiro momento, tem por finalidade explícita essa
fusão entre o pensamento grego-romano e o pensamento cristão. Notar isso, é,

Notas Sobre a Patrística


112 UNIDADE III

aos nossos olhos, o principal ponto de se fazer filosofia cristã nos primeiros perí-
odos da Idade Média.
Porém antes de apresentarmos alguns pensadores desse movimento, fare-
mos uma explanação geral do que foi a patrística, seguindo o prefácio da obra
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, da Paulus Editora. É preciso defi-
nir algumas terminologias comuns aos estudos dessa temática, como os termos,
patrologia, patrística e Padres ou Pais da Igreja. De acordo com o prefácio da edi-
tora, quando nos referimos ao termo ‘patrologia’, estamos buscando realizar um
estudo sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. A patrologia, inte-

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ressa-se mais pela História Antiga, em que podem ser incluídas também obras
de autores que não necessariamente estejam vinculados a um pensamento reli-
gioso. Mais detidamente, a patrologia pode englobar tanto autores leigos como
autores de cunho religioso, com a finalidade de realizar um estudo sobre obras,
vidas e doutrinas eclesiásticas dos seus pais.
Já quando nos referimos ao termo ‘patrística’, a referência diz respeito ao
estudo da doutrina, das origens dela, suas dependências e empréstimos do meio
cultural, filosófico e da evolução do pensamento teológico dos pais da Igreja.
Desta maneira, podemos dizer, de um outro modo, que a patrística está direta-
mente relacionada ao clássico greco-romano que permanece nos estudos desses
pais da Igreja. Notar os traços desses pensamentos clássicos nas doutrinas cristãs
e elaborar o estudo sobre elas a partir desses vieses constitui-se objeto da patrís-
tica. Conforme Eusábio de Cesaréia, “foi no século XVII que se criou a expressão
‘teologia patrística’ para indicar as doutrinas dos Padres da Igreja distinguindo-a
da ‘teologia bíblica’, da ‘teologia escolástica’, da ‘teologia simbólica’ e da ‘teologia
especulativa’ (CESARÉIA, 2003, p. 7).
Por fim, ao referir-se a “Padre ou Pai da Igreja” estamos inferindo a escri-
tor leigo, sacerdote ou bispo, da Antiguidade Cristã, considerado pela tradição
posterior como um testemunho particularmente autorizado pela fé (CESARÉIA,
2003, p. 7). Em outras palavras, são aqueles autores que a Igreja reconhece como
contribuintes para a profusão da fé e que, segundo a tradição, conciliaram a filo-
sofia greco-romana aos intentos da Igreja. Todavia esta classificação ainda trazia
certo problema de entendimento, sendo preciso uma definição ainda mais clara.

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


113

A partir da tentativa de definir claramente quem eram os “Pais ou Padres da


Igreja”, os estudiosos buscaram a definição que se segue:
[...]Na tentativa de eliminar as ambiguidades em torno desta expressão,
os estudiosos convencionaram em receber como “Pai da Igreja” quem
tivesse estas qualificações: ortodoxia de doutrina, santidade de vida,
aprovação eclesiástica e antiguidade (CESARÉIA, 2000, p. 7).

Porém, como há de se imaginar, conceitos trazem em si algumas definições vagas.


O mesmo acontece com os conceitos de ortodoxia, santidade e antiguidade.
Ainda nas palavras do autor, o conceito de ortodoxia é extremamente amplo, e
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o mesmo se deve pensar sobre a santidade. “Qual é o referencial” é sempre uma


boa pergunta a se fazer neste caso. Com relação ao conceito de antiguidade,
discorre-se que podemos admitir, sem prejuízos para a nossa compreensão, a
opinião de vários dos especialistas que estabelecem, a partir da geração apos-
tólica e se estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Já quando se quer remeter
ao Oriente, a antiguidade tende a especificar o seu fim até a morte de São João
Damasceno (675-749). (CESARÉIA, 2000, p. 7). A partir daí, então, definiu-se
como Pai da Igreja:
[...]os “Pais da Igreja” são, portanto, aqueles que, ao longo dos sete pri-
meiros séculos, foram forjando, construindo e defendendo a fé, a litur-
gia, a disciplina, os costumes e os dogmas cristãos, decidindo, assim, os
rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussões, de inspi-
rações, de referências obrigatórias ao longo de toda a tradição posterior
(CESARÉIA, 2000, p. 7).

A definição, portanto, de Pais da Igreja, fazia jus à sua importância real. Foram
eles que conciliaram os cânones das sagradas escrituras aos textos greco-roma-
nos, dando coesão e coerência a um corpo comum que resultava na profissão de
fé. Esta ampla discussão feita por esses pensadores fez com que os seus escritos
extrapolassem a esfera do religioso, tendo lugar proeminente também na litera-
tura greco-romana. São, como afirmam os estudiosos desta temática, os arautos
da doutrina e moral cristã, e, por meio deles, o cristianismo universaliza-se ainda
mais. Agora não mais restrito ao âmbito popular comum, o cristianismo ganha
caráter de pensamento intelectual próprio aos dos gregos e romanos clássicos.
Além de sua importância no ambiente eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam
lugar proeminente na literatura e, particularmente, na literatura greco-romana.

Notas Sobre a Patrística


114 UNIDADE III

São eles os últimos representantes da Antiguidade cuja arte literária, não raras
vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas
posteriores. Formados pelos melhores mestres da Antiguidade clássica, põem
suas palavras e seus escritos a serviço do pensamento cristão. Se excetuarmos
algumas obras retóricas de caráter apologético, oratório ou apuradamente epis-
tolar, os Padres, por certo, não queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim
arautos da doutrina e moral cristãs. A arte adquirida, não obstante, vem a ser
para eles meio para alcançar este fim. “[…] Há de se lhes aproximar o leitor com
o coração aberto, cheio de boa vontade e bem-disposto à verdade cristã. As obras

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dos Padres se lhe reverterão, assim, em fonte de luz, alegria e edificação espiri-
tual” (ALTANER; STUIBER, 1988, p. 21-22).
Foram esses homens, dos primeiros séculos da era cristã, os principais defen-
sores da fé, da liturgia, da disciplina, à medida em que criaram costumes e
decidiram, por meio dos seus escritos, quais seriam os próximos passos dados
pela Igreja rumo aos séculos que viriam de sociedade cristã. Entender o pen-
samento religioso, durante os primeiros anos de fixação do cristianismo na
sociedade, é compreender, paralelamente, o papel desses pensadores nesta tra-
jetória. A fim de se defenderem dos ataques, que outrora fizeram parte da vida
de Paulo de Tarso, os patrísticos interessaram-se em fortalecer o pensamento
religioso, dando ainda mais motivos para a submissão a Cristo. Se muitos gre-
gos duvidaram das palavras de Paulo no germe do cristianismo primitivo, agora
se dava uma base sólida para se crer.
A importância de se fazer um estudo mais aprofundado sobre todos os teó-
ricos da Igreja aparecerá ao longo do curso. Para este momento, selecionamos,
com relação a essa proposta teológica, o filósofo e teórico Santo Agostinho.
Nossa escolha se dá no peso que esse tem junto a Paulo como um dos pilares
do cristianismo.

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


115

O período denominado Patrística possui alguns questionamentos quanto à


sua data de início e/ou término. Contudo, de maneira geral, podemos dividi-
-la em três grandes momentos, que podem nos ajudar a trazer luz sobre os
acontecimentos que mais marcaram esse movimento intelectual da Igreja.
1º período: vai de 40 até o ano 200 da Era Cristã; a marca que destaca esse
momento é a defesa da teologia cristã frente aos padres apologistas, como
São Justino Mártir; 2º período: vai até o ano de 450, marcado, principalmen-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

te, pelos primeiros grandes nomes da filosofia cristã, a saber, Santo Agos-
tinho, Clemente Alexandrino etc.; 3º período: estende-se até o século VIII,
também conhecido como período pós-niceno, com a reelaboração de dou-
trinas já formuladas durante os dois períodos anteriores, como as de Boécio.
Fonte: o autor.








Santo Agostinho: A Fé e a Razão


116 UNIDADE III

SANTO AGOSTINHO: A FÉ E A RAZÃO

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)2.

Santo Agostinho constitui um dos maiores pensadores da Igreja. A comprovação


se dá por meio de seus escritos que sobrepuseram o tempo e são estudados até
hoje em cursos, como Teologia, História, Filosofia e Educação. Contudo, antes
de adentramos o pensamento especificamente agostiniano e sua vida, precisamos
traçar um breve panorama a respeito do seu período, uma vez que considera-
mos todos os sujeitos como sujeitos históricos, isto é, inseridos no tempo e que
dialogam com esse tempo.
Na época de Agostinho, podemos dizer que a Europa Medieval passa por
uma intelectualização do pensamento cristão. Como já dissemos nos tópicos
anteriores desta unidade, o cristianismo inicia-se como uma religião popular e,
dentro do eruditismo, vai ganhando espaços e adeptos até a criação de um pensa-
mento que congregue tanto o pensamento erudito quanto o pensamento cristão
em uma única fusão. Pois bem, estamos falando desse contexto. Nesta época,

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


117

a ideologia cristã é uma religião de cidades e povoados, como afirma Pierrard


(1982). Nas palavras do autor:
[...]nesta época, o cristianismo é essencialmente uma religião de cida-
des e povoados. Em torno do bispo, movimenta-se um numeroso clero;
e, em torno dos padres e diáconos, formigam os clérigos menores, que
canalizam as marés de fiéis para as basílicas.

Nem todos esses fiéis eram necessariamente santos. Com o seu cres-
cimento numérico, a Igreja sentia pesar sobre si o ministério de sua
existência, o ministério de Cristo unidos a um corpo ao mesmo tempo
místico e social, coberto de pecados e fraquezas. As pequenas comuni-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dades primitivas se haviam ampliado em favor da “massa”, essa massa


cristã de que tanto se fala e que tanto escandaliza, por seu peso e sua
falta de fervor, aqueles que sonham com uma Igreja despojada, jovem,
viva e totalmente generosa. “A massa”, escreve Duchesne, falando do sé-
culo IV, “era cristã como podia sê-lo uma massa superficial e formal: a
água do batismo a tinha tocado, mas o espírito do Evangelho não havia
penetrado nela”. Os teatros e circos não haviam perdido sua clientela;
em torno do imperador - que frequentemente era um cristão medíocre
-, fervilhava um bando de funcionários, cortesãos e cortesãs cuja reli-
gião acomodava-se aos costumes decadentes (PIERRARD, 1982, p. 46).

Embora por demais extensa, a citação supracitada é importante na medida em


que nos dá um panorama do contexto do século IV. Uma Igreja formada por
homens, que havia crescido vertiginosamente, mas ainda possuía alguns costu-
mes que precisavam se alterar, pois colocavam a instituição em plena decadência.
Como o autor bem menciona, aos que buscavam uma Igreja despojada, jovem e
viva, totalmente generosa, havia de fazer algo com relação às massas, essas que,
devido aos seus costumes medíocres (teatros e circos, por exemplo), estavam
continuamente se afastando de Deus.
Para além desse panorama traçado, com relação aos menos letrados, cida-
dãos do dia a dia que haviam sido tocados pela água do batismo, mas que não
a deixara penetrar em seus corpos, existiam também os mais letrados, denomi-
nados aristocráticos. Quanto a esses, Pierrard, explicita que:
[...]ademais, certos meios letrados e aristocráticos - notadamente as
famílias senatoriais - permaneceram por muito tempo hostis ao cris-
tianismo, que era considerado como uma religião bárbara, igualitária,
sem poesia. A apostasia do imperador Juliano, educado no culto das
tradições pagãs e da filosofia neoplatônica (361-363), outra coisa não

Santo Agostinho: A Fé e a Razão


118 UNIDADE III

foi senão uma renascença semelhante àquela que o século XVI conhe-
ceria mais tarde, porém mais efêmera - e cujo elemento principal era a
admiração pela filosofia, as artes e as letras antigas. Filósofos, retores,
gramáticos e sofistas ainda por muito tempo tornariam dura a vida do
cristianismo: a escola filosófica de Atenas só fecharia suas portas em
529. O neoplatonismo ficaria como o adversário por eleição da religião
do Galileu (PIERRARD, 1982, p. 46-47).

Assim, em contrapartida, encontravam-se esses grupos que eram resistentes à


filosofia cristã, devido ao seu “caráter” bárbaro. Imaginemos que tal caracterís-
tica de fato existiu, não com a adjetivação bárbara, que é um termo pejorativo,

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mas como já dissemos outrora, o cristianismo não possuía uma linguagem muito
rebuscada ou erudita nos seus primeiros tempos e foi essencial para a assimilação
e fixação pelos grupos mais humildes. O que transformou-se, em contrapartida,
em uma repulsa por parte dos letrados. É nesse contexto que Santo Agostinho
insere o seu pensamento, e o século IV foi extremamente profícuo para o desen-
volvimento das ideias dos Padres da Igreja.

Imagine o século IV na sociedade europeia medieval para um intelectual


cristão. De um lado, os grupos sociais que pouco compreendiam os obje-
tivos da fé cristã, do outro lado da régua social, os letrados e aristocráticos.
Você tem duas opções: achar que está tudo perdido, ou achar que ali se
encontram férteis campos para semeadura da “Boa Nova”. Qual seria a sua
primeira reação?

De acordo com Le Goff (2010), Santo Agostinho faz parte dos cofundadores do
pensamento cristão. Os resultados de seus escritos foram imprescindíveis para a
elaboração da doutrina cristã baseada na linha da Bíblia e do Novo Testamento
paralelo aos textos greco-romanos, legado que não se fixa no seu tempo, mas o
coloca no grupo dos autores clássicos da humanidade. Ao fazer uma breve apre-
sentação do pensamento agostiniano, Le Goff apresenta sua justificativa sobre

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


119

o porquê de tal pensador ser tão importante para o legado dos pais da Igreja.
Farei das palavras dele as minhas no que diz respeito à figura de Agostinho.
Conforme Le Goff:
[...]o outro Padre da Igreja essencial é Santo Agostinho (354-430). De-
pois de São Paulo, Santo Agostinho é o personagem mais importan-
te para a instalação e o desenvolvimento do cristianismo. É o grande
professor da Idade Média. Aqui citarei apenas duas obras suas que são
fundamentais para a história europeia [Confissões, Cidade de Deus] (LE
GOFF, 2010, p. 31).

Santo Agostinho, ou Agostinho de Hipona, tem uma história com o cristianismo


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bastante interessante. Vale a pena discorrer um pouco mais sobre a história deste
ilustre pensador, e perceberemos que, de boêmio e até mesmo maníaco sexual,
ele passa a ser um dos principais teóricos do cristianismo e a ter uma das prin-
cipais obras da história da civilização europeia.
Gosto de pensar Agostinho a partir de extremos. Pense comigo: o mais
homem dos homens tornou-se o mais Santo dos Santos. Para quem já conhece
um pouco da história desse pensador, pode ou não concordar com a minha tese,
o fato é que Santo Agostinho teve uma vida regrada de prazeres e de ascetismo
de maneira gritante, a ponto de quem ouvisse falar de um em frente ao outro,
ou vice-versa, não imaginasse tratar-se da mesma pessoa.
O pesquisador Paul Strathern, em sua obra Santo Agostinho em 90 minutos,
apresenta-nos um pouco sobre essas imagens que podemos formar do pensa-
dor. Na verdade, ele retira da própria obra, As Confissões, o teólogo que tinha por
objetivo narrar sua trajetória ao encontro com Deus. De caráter extremamente
subjetivo, Agostinho relata um pouco da sua trajetória antes dos 30 (trinta) anos
de idade. Strathern inicia a sua obra com uma passagem d’As Confissões que ire-
mos transcrever aqui também:
[...]“fui até Catargo, onde me encontrei no meio de um sibilante caldei-
rão de lascívia. Enlouqueci de luxúria, as coisas abomináveis que fiz:
depravação grosseira, um excesso de prazeres do inferno. Desejo carnal
como pântano borbulhante e sexo viril brotavam em mim, exsudando
névoas…” Santo Agostinho era um maníaco sexual. Ou assim nos faria
acreditar. Suas famosas Confissões contém páginas e páginas de auto
penitência, por ele ser o “mais vil escravo das paixões perniciosas” epor
se entregar à imundície da libertinagem (STRATHERN, 1999, p. 11).

Santo Agostinho: A Fé e a Razão


120 UNIDADE III

Desse mundo de devassidão e libertinagem, de tudo o que seria contrário às


Escrituras, surge um novo homem, arrependido e agraciado por Deus. As
Confissões, de Santo Agostinho, não é só um espelho de sua vida, mostrando
o antes e o depois, mas um esteriótipo cristão que acalenta o coração do peca-
dor. De um mundo em que não havia luz, Agostinho a encontra; de um mundo
em que a palavra divina encontrava-se distante, ela se faz no coração do pensa-
dor; de um mundo em que não havia salvação, ele é salvo. A subjetividade que
Agostinho traz n’As Confissões faz com que, ao compartilhar a sua experiência
pessoal, outras pessoas também se vejam representadas ali, e acreditem que a

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salvação é possível. Tudo isso por meio de sua história.
Santo Agostinho é natural de Tagaste, norte da África. Seu nascimento é
datado no dia 13 de novembro de 354. Assim como os demais padres da Igreja,
Agostinho descendia de família nobre. Pierrard (1982) nos fala um pouco sobre
esta linhagem nobre contida nos primeiros Padres da Igreja. Conforme o his-
toriador: “Quase todos os Padres pertencem à elite da sociedade. É notável a
semelhança de sua formação e de sua trajetória dentro da Igreja: estudos literários
que fazem deles escritores de classe, promissora carreira profana interrompida
pela ‘conversão’, período passado em fortificadora solidão, intensa atividade pas-
toral acompanhada de forte influência doutrinal. Atanásio de Alexandria, Basílio
de Cesaréia, Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Cassiano, Dâmaso de Roma,
Hilário de Poitiers - a Igreja jamais contará com tantos doutores, ainda mais que
desta lista fazem parte também as três colunas do humanismo cristão do século
IV: o milanês Ambrósio, Agostinho, o africano, e Jerônimo, o mestre de Belém.
Esses homens viram um mundo inteiro desabar, mas sabiam que a frágil cris-
tandade podia contar com suas palavras e seus atos para se manter de pé. Deste
modo, Agostinho, filho de Patrício e Mônica, teve grande influência em sua for-
mação devido à instrução de seus pais, quando educado, durante os primeiros
anos. O primeiro, pagão, a segunda, cristã.
Aos 17 anos, Agostinho vai para Cartago a fim de se dedicar aos estudos,
durante três anos. Após esse período retorna à cidade dos pais como professor,
casado e com filho. Porém, a partir daí, não fixa uma residência. Foi professor
novamente em Cartago, Roma e Milão. Nesta última, adquire, devido aos seus
conhecimentos ímpares, a cátedra de retórica. Entretanto, como ele bem narra

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


121

em suas confissões, tais prazeres mundanos não eram o suficiente para apazi-
guar o seu vazio interior, e isso, segundo ele, não foi fácil. Durante muito tempo,
procurou encontrar o preenchimento para esse vazio em lugares mundanos, na
vida boêmia, sem o menor zelo pelo corpo. Até que um dia, (talvez devido às
orações de Mônica, sua mãe ou às pregações de Ambrósio), Agostinho encon-
tra em Deus a paz que preencheria o seu vazio, algo que tanto procurava. Em
seus relatos, ele apresenta a dificuldade inicial de se entregar a Cristo, até que,
em agosto de 386, meditando no jardim, ouve uma voz de criança que diz “Tolle
et lege” (Toma e lê) e tomando as Cartas de São Paulo lê: “Não é nos prazeres da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

vida, mas em seguir a Cristo que se encontra a felicidade”. A partir daqui, tere-
mos uma cisão entre o Agostinho até então conhecido e o Agostinho cristão,
que, futuramente, será canonizado.
A seguir, um quadro apresentando as obras com as quais Agostinho presen-
teou a humanidade.
Quadro 01 - Obras Agostinianas

DATAS TÍTULO ORIGINAL (EM LATIM) ASSUNTO DA OBRA

386 Contra academicos Contra os céticos


386 De beata vita A vida feliz
386 De ordine A ordem
386/387 Soliloquia Solilóquios
386/387 De immortalitate animae A imortalidade da alma
387/391 De immortalitate animae A imortalidade da alma
387/391 De musica A música
387/389 De moribus ecclesiae catholi- Costumes da Igreja católica e dos
cae et de moribus Manichae- maniqueus
orum
387/388 De quantitate animae A grandeza da alma
388-395 De libero arbitrio O livre arbítrio
389 De magistro O mestre (O professor)
389/391 De vera religione A verdadeira religião
391 De utilitate credendi Utilidade de crer

Santo Agostinho: A Fé e a Razão


122 UNIDADE III

DATAS TÍTULO ORIGINAL (EM LATIM) ASSUNTO DA OBRA

392/393 De duabus animabus contra Sobre as duas almas (contra os


Manichaeos maniqueus)
393 De fide et symbolo A fé e o símbolo
393/394 De sermone Domini in monte O sermão da montanha
395 De continentia Sobre a continência
395 De mendacio Sobre a mentira
396 De agone christiano A luta (esforço, empenho) do
cristão

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
396-426 De doctrina christiana A doutrina cristã
396-420 Enarrationes in Psalmos Comentários sobre os salmos
397-401 Confessiones Confissões
397-398 Contra Faustum Manichaeum Contra Fausto, o maniqueu
399 De natura boni Sobre a natureza do bem
399 Contra Secundinum Mani- Contra Secundino, o maniqueu
chaeum
99-419 De trinitate A Trindade
400 De fide rerum quae non viden- A fé nas coisas invisíveis
tur
400 De consensu evangelistarum O consenso dos Evangelistas
400 De opere monachorum O trabalho dos monges
400 De catechizandis rudibus Instrução dos catecúmenos
400/401 De baptismo contra partem Sobre o Batismo, contra os dona-
Donati tistas
400 De opere monachorum O trabalho dos monges
401 De bono coniugale O bem do casamento
401 De sancta virginate A santa virgindade
401-415 De Genesi ad litteram Sobre a interpretação literal do
Gênesis
406-430 In evangelium Ioannis tractatus Tratado do evangelho de João
410 De urbis Romae excidio A destruição da cidade de Roma

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


123

DATAS TÍTULO ORIGINAL (EM LATIM) ASSUNTO DA OBRA

412 De peccatorum meritis et O merecimento e perdão dos pe-


remissione et de baptismo cadores e o batismo das crianças
parvulorum
412/413 De fide et operibus A fé e as obras
412 De spiritu et littera O espírito e a letra
413-427 De civitate Dei A cidade de Deus
414/415 De natura et gratia A natureza e a graça
415/416 De perfectione iustitiae A perfeição da justiça
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

417 De gestis Pelagii Os procedimentos de Pelágio


418 De gratia Christi et de peccato A graça de Cristo e o pecado
originali original
418 De patientia A paciência
419-421 De anima et eius origine A alma e suas origens
420 Contra mendacium Contra a mentira
420-422 De cura pro mortuis gerenda Os cuidados para com os mortos
421 Contra Iulianum Contra Juliano
426/427 Retractationes Retratações
428 Contra Maximinum Contra Maximino
428/429 De praedestinatione sanctorum A predestinação dos santos
428/429 De dono perseverantia O dom da perseverança
386-429 Epistulae Cartas (270 cartas)
393-430 Sermones Sermões (390 sermões)
Fonte: Ordem de Santo Agostinho ([2017], on-line) .
3

Santo Agostinho: A Fé e a Razão


124 UNIDADE III

NOTAS SOBRE A ESCOLÁSTICA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)4.

Assim como a Patrística, a Escolástica também ganhou destaque no mundo medie-


val. Discorreremos um pouco sobre esta forma de pensar do homem medieval
que buscou fazer do conhecimento científico-filosófico um instrumento de fé.
Contudo uma compreensão mais ampla da escolástica requer também um conhe-
cimento de uma instituição extremamente medieval, a saber, a Universidade.
Você deve estar se perguntando: Mas a Universidade surgiu na Idade Média?
Se você, de fato, fez essa pergunta, a resposta é sim. As universidades são cria-
ções dos homens do medievo. A esse respeito, podemos dizer, concordando com
Jacques Verger (1999, p. 81), que dentre as instituições educativas do período
medieval, as universidades são as que de longe deixaram os arquivos mais ricos.
O saber, a partir do século XIII, passa a moldar e sistematizar o ensino.
Imagine o grupo de matérias que você estuda hoje para se formar em Teologia,
esta concepção de matriz disciplinar, entre indas e vindas, segue o modelo clássico
da universidade medieval. Aliás, poderíamos dizer, sem medo de errar, que essas
instituições possuíam até mais autonomia para elaborar o seu quadro disciplinas

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


125

do que as nossas universidades atuais. Para Verger (1999), derivadas de escolas


preexistentes (mas não necessariamente de escolas catedrais), as primeiras uni-
versidades, para além da diversidade das instituições, tinham em comum o fato
de serem organismos autônomos de natureza corporativa. Ser autônomo signi-
ficava ser mestre de seu recrutamento, poder doar-se de estatuto, poder impor
a seus membros o respeito a certa disciplina coletiva e regras de cooperação
mútua, ser reconhecido como uma pessoa de moral pelas autoridades exterio-
res, tanto eclesiásticas quanto laicas, poder, enfim, organizar livremente aquilo
que era a própria razão de ser da cooperação universitária, quer dizer, o ensino,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

os programas, a duração dos estudos, as modalidades de exames que sanciona-


vam esses estudos e a colação dos graus que coroavam o êxito nos ditos exames.
(VERGER, 1999, p. 81-82). De acordo com autor, a instituição universitária
modelou os contornos e a composição da consciência do grupo de pessoas de
saber daquele momento.
Aqui, peço a sua atenção especial de maneira reflexiva. É interessante que você,
estudante, pare um pouco e refaça o seu percurso por esta unidade. Lembre-se
em que patamar o cristianismo primitivo encontrava-se em relação ao saber. Se
retomarmos o início da unidade, lembraremos qual linguagem Paulo de Tarso
buscava utilizar e quais eram os seus adeptos, para que, num momento poste-
rior, a erudição tenha ganhado espaço dentro dos muros da Igreja. Foram esses
processos, lentos, porém essenciais, que formaram o pensamento religioso-fi-
losófico da cristandade. Estes modos de pensar, aos poucos, possibilitaram que
o século XIII pudesse criar uma instituição que se preocupasse com a formação
erudita de seus quadros. Veja as mudanças ao longo do tempo e acompanhe o
quão distinto dos anos iniciais se tornou o conhecimento cristão. Muito inte-
ressante não é mesmo?
Ainda hoje, várias são as tentativas de buscar qual foi a primeira instituição
universitária do mundo ocidental. Três ou mais autores tenderão a discordar sobre
quem veio primeiro. Por exemplo, de acordo com Verger (1999), as primeiras
universidades apareceram em Bolonha, em Paris, em Montpellier, em Oxford,
nos primeiros anos do século XIII. Suas origens remetem às escolas já existen-
tes. Já para a pesquisadora Maria Lúcia de Arruda Aranha (2006), a instituição
mais antiga encontra-se em Salerno, na Itália, nos fins do século X.

Notas Sobre a Escolástica


126 UNIDADE III

Conforme Maria Lúcia de Arruda Aranha (2006), a universidade mais antiga


de que se tem notícia talvez seja a de Salerno, na Itália, que oferecia o curso de
medicina, desde o século X. No final do século XI (em 1088), foram criadas a
Universidade de Bolonha, na Itália, especializada em Direito, e, no século seguinte,
a de Teologia, em Paris. Na Inglaterra, destacam-se a de Cambridge e a de Oxford,
com predominante interesse pelos estudos científicos, como Matemática,Física e
Astronomia. Outras foram criadas em Montpellier, Salamanca, Roma e Nápoles.
Nos territórios germânicos, as universidades de Praga, Viena, Heidelberg e
Colônia só aparecem no final do século XVI.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Franco Cambi (1999), por sua vez, diz que a primeira universidade nasce
por volta do ano de 1150. Sintetizando as palavras do autor:
[...]em Paris, o studium generale nasce ao redor da escola episcopal ilu-
minada pelo prestígio de Abelardo, por volta de 1150, instituindo um
curso referente ao trivium (artes liberais), depois à teologia, ao direito,
à medicina, que vinham construir o nível superior de ensino (CAMBI,
1999).

É preciso dizer a você que não se preocupe com qual foi a primeira universidade.
Esta discussão não é nossa. O que precisamos retirar dessa discussão sobre as
universidades, neste primeiro momento, é que, embora não saibamos qual de
fato foi a primeira, um ponto é fato, todos eles concordam com que ela tenha
surgido a partir do desenvolvimento das escolas catedrais. Ainda que poste-
riormente assumam uma autonomia jamais vista nessas escolas, foi delas que
germinaram como instituições de saber.
Passaram a representar, portanto, um modelo totalmente novo e extrema-
mente original de ensino que buscava atender uma sociedade cada vez mais
preocupada com instruções mais complexas. Foi aí que certos mestres, em geral
clérigos não-ordenados, instalaram-se nas escolas existentes, ou viajavam de ins-
tituição para instituição, transmitindo um conhecimento mais refinado.
É nesse seio de pensamento que a escolástica se difundirá com autonomia o
suficiente para elaborar suas próprias diretrizes, ou seja, a sua maneira de fazer
filosofia. Esses professores teóricos utilizaram esse conhecimento para imprimir
sua forma de pensar. De acordo com a historiadora Terezinha Oliveira (2002), a
escolástica foi a filosofia que deu a forma de pensar dos homens medievais e, por

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


127

isso, a sua compreensão deve configurar como parte essencial do pensamento da


civilização medieval. Dito de outra maneira, a escolástica foi o elemento funda-
mental das relações sociais dos homens medievais.
Nesta mesma linha de raciocínio, Aranha (2006), esclarece que o desenvolvi-
mento da escolástica se deu em seio universitário. Segundo a autora, essa forma
de pensar a sociedade era a própria forma de se pensar dentro do ensino uni-
versitário. Nas palavras da autora:
[...]a atividade docente na universidade desenvolvia conforme o mé-
todo da Escolástica, baseado na lectio (leitura), e na disputatio (discus-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

são), pelas quais os estudantes exercitavam as artes da dialética, dis-


cutindo as proposições controvertidas (ARANHA, 2006, p. 110 -111).

Porém, de maneira geral, podemos dizer que a escolástica não ficou só dentro dos
muros universitários, na verdade, é possível afirmar que esse tipo de pensamento
ganhou contornos bem maiores, sendo reconhecida como a filosofia elaborada
pelos medievos, de maneira geral, com o objetivo de responder às exigências da
fé ensinadas pela Igreja. Entre as várias maneiras de se pensar, filosofar, estudar,
a escolástica ocupa o primeiro lugar. Um dos objetivos principais dessa maneira
de pensar era a conciliação da fé e da razão, no intuito de dirimir as controvér-
sias sobre a existência de Deus. Novamente, é preciso reforçar que, assim como
a patrística, esse pensamento tem como objetivo a utilização da racionalidade
para a fundamentação da fé.

A palavra universidade (universitas) não significava, inicialmente, um esta-


belecimento de ensino, mas designava qualquer assembleia corporativa,
seja de marceneiros, seja de curtidores, seja de sapateiros.
Fonte: Aranha (2006).

Destarte, a escolástica contava com uma organização metódica que se unia à


crença na fé cristã (Teologia) e à lógica racional (Filosofia). Contudo, embora

Notas Sobre a Escolástica


128 UNIDADE III

ela seja a maneira de pensar do homem medieval dos séculos XIII em diante, é
preciso esclarecer que a escolástica aparece bem antes no cotidiano intelectual
medieval. O próprio termo explicita esta origem anterior às cátedras universi-
tárias. De acordo com o termo, “escolástica” deriva do latim Scholasticus, que
remete à escola, ou a instruído. Seu modo de pensar propagou-se pelo mundo
medieval, tornando-se um movimento filosófico ensinado nas escolas. De acordo
com a historiografia, o escolástico era o professor das artes liberais, da filosofia e
da teologia que, por meio de um método, buscava filosofar a respeito da fé cristã.
Esse método escolástico tornou-se o ponto comum da formação dos discur-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sos teológicos e se divide em 4 partes:
1. Leitura (lectio).
2. Comentário (glosa).
3. Questões (quaestio).
4. Discussão (disputatio).

Vemos essas estruturas de maneira clara em toda a obra Suma Teológica de Tomás
de Aquino, o que reforça ainda mais a importância e o uso desse modelo para o
conhecimento científico do medievo. É por isso que o historiador Rui Afonso da
Costa Nunes afirmou que a escolástica mostra-se de maneira máxima dentro da
obra em questão de Tomás de Aquino, não se restringindo apenas ao aspecto filo-
sófico, mas também presente em outras áreas do conhecimento. Para o historiador:
[...]a escolástica foi um método de pensamento e de ensino que surgiu e
se formou nas escolas medievais e se plasmou de modo inexcedível nas
universidades do século XIII, máxime através do magistério e das obras
de Santo Tomás de Aquino. O termo escolástica, porém, significa ainda
o conjunto das doutrinas literárias, filosóficas, jurídicas, médicas e teo-
lógicas, e mais outras científicas, que se elaboraram e corporificam no
ensino das escolas universitárias do século XII ao século XV, pois não
nos cabe considerar a Segunda Escolástica que floresceu na Há época
do Renascimento (NUNES, 1979, p. 244).

Neste momento, podemos perceber que o pensamento escolástico pode ser


subdividido também de acordo com uma periodização histórica, como a cita-
ção anteriormente citada, em que teríamos dois momentos para se pensá-la, a

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


129

saber, uma que iria até o século XIII, tendo seu auge no pensamento tomista, e
outra que se restringiria aos séculos XIV e XV. Contudo, para além desta divi-
são clássica, existem autores que vão ainda mais longe, chegando a sugerir mais
uma divisão que se denominaria como escolástica tardia. Como nosso objetivo
fecha-se para o período medieval e a influência do pensamento eclesiástico, este
aprofundamento não será requerido.
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TOMÁS DE AQUINO: A FÉ E A RAZÃO

Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)5.

Tomás, além de ser um grande difusor do pensamento escolástico, foi um dos


maiores filósofos e teólogos que a humanidade já conheceu. Sobre esse pensador,
a importância se afirma na forma com que a Igreja denomina-o, a saber, como

Tomás de Aquino: a Fé e a Razão


130 UNIDADE III

Doctus Communis, Doctus Angelicus e Doctus Universalis. Tomás, futuramente,


conhecido como Tomás de Aquino, devido a uma residência familiar no condado
de Aquino até o ano 1137 é um autor que, numa exposição histórica da filosofia
eclesiástica medieval, deve ser reconhecido dentro do seu próprio contexto his-
tórico e não a sombra do que a sua filosofia tomista se tornou posteriormente.
Dito de outra forma, Tomás de Aquino deve ser estudo simplesmente pela sua
grandeza histórica dentro do seu período de vida e não devido à importância
do seu pensamento para os seguidores posteriores.
É essa a perspectiva que tomam os autores Boehner e Gilson (2000) à obra

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e vida do pensamento de Tomás, ou seja, dentro de seu período histórico. Nas
palavras dos autores:
[...]numa exposição histórica da filosofia medieval, a obra e a impor-
tância de S. Tomás devem ser encaradas, não a luz do triunfo posterior
do tomismo, e sim, exclusivamente, no ambiente histórico do século
XIII (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 447).

É a partir desta perspectiva que o veremos, aqui, como um homem do seu tempo,
produzindo e se relacionando com o seu tempo. Tomá-lo a partir do que o seu
pensamento tornou-se é não enxergá-lo como de fato foi. Por isso, a nossa aná-
lise, neste tópico, focará mais em sua vida e obras do que na explanação de toda
a sua filosofia tomista. Após estas breves considerações, podemos iniciar esta
unidade falando sobre os primeiros anos dele até seu ingresso na Ordem dos
Dominicanos e a sua carreira como pensador dentro da Igreja.
Tomás de Aquino nasceu em Rocca Secca, região do atual Lácio na Itália,
mas no período pertencente ao Reino de Nápoles, entre os anos de 1224 e 1225,
filho do conde Landolfo e Teodora. De acordo com Boehner e Gilson (2000),
o menino foi educado, num primeiro momento, no mosteiro de Montecassino
pelo abade Sinibaldo, que era seu tio paterno. Após essa educação com o tio, ini-
cia-se nas artes liberais, agora em Nápoles.
Data o ano de 1244 o início de uma discussão familiar séria. Esse é o ano em
que Tomás decide se juntar aos dominicanos pelo sacerdócio, o que não deixa sua
família nada contente. Na verdade, narram-se algumas histórias que, a pedido
da mãe, os irmãos de Aquino o capturam e o encarceram, durante um ano, a
fim de que este mude de ideia. Porém, ao perceberem que não houve êxito na

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


131

tentativa de dissuasão das ideias do irmão, a irmã e mãe dele armam uma fuga
para que ele siga o seu intento.
Assim, em novo itinerário para Paris, Tomás de Aquino encontra-se com S.
Alberto Magno, estando com ele nos anos de 1245 a 1248. Quando este último
decide por uma viagem para Colônia, Tomás o acompanha até o ano de 1252,
quando retorna à Paris. De acordo com Boehner e Gilson (2000), o novo domi-
nicano continua em contato com o ensino, agora com S. Boaventura, durante
o ano de 1257, ano em que recebe o título de mestre, podendo, assim, ensinar
teologia publicamente. No ano de 1259, Tomás participa do capítulo geral da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ordem em Valenciennes, sendo enviado em seguida para a Itália, onde lecionou


teologia na corte de Urbano IV e Clemente IV. Foi nesse tempo que compôs a
sua Summa contra Gentiles (BOEHNER; GILSON, 2000).
Nesse período de estadia na Itália que Tomás de Aquino tem um dos encon-
tros mais promissores de sua vida. Ao ter conhecimento de que Guilherme
de Moerbecke era um exímio estudioso e tradutor das obras de Aristóteles,
Aquino aproxima-se dele. Guilherme era quem melhor disponibilizava as tra-
duções fidedignas do grego para o latim, tanto do grande Aristóteles quanto de
outros filósofos helênicos. Este contato com as obras de Aristóteles marcaram,
de maneira profunda, todo o pensamento do Aquinate, sendo esse considerado
um dos maiores comentadores da filosofia aristotélica.
De acordo com Boehner e Gilson (2000), após breve estadia em Roma, durante
o ano de 1265, encontraremos Tomás de Aquino em Viterbo. Esse foi um período
muito importante para o teólogo, pois foi quando ele iniciou a escrita de uma das
maiores obras da humanidade, a saber, Summa theologica. Ao voltar para Paris,
entre os anos de 1269 e 1270, Tomás de Aquino trava uma discussão contra os
seguidores de Averróis que faziam uma interpretação, segundo Aquinate, equi-
vocada, do pensamento de Aristóteles. Esse é um momento muito profícuo na
vida de Aquino, uma vez que ele demonstra todos os seus conhecimentos sobre
o filósofo estagirita grego.
No ano de 1273, Aquino assiste ao Capítulo da Ordem em Florença, sendo
encarregado de instalar um Studium Generale, em Nápoles, e assume o posto
de regente mestre (BOEHNER; GILSON, 2000). Por fim, sua vida encerra-se no
ano de 1274. Em 7 de março daquele ano, viaja para Lyon a pedido de Gregório

Tomás de Aquino: a Fé e a Razão


132 UNIDADE III

X para um concílio que acontece naquela cidade. Em parada no Convento dos


Cistercienses, Tomás de Aquino deixa de fazer parte da história na terra para
entrar para o grupo dos maiores teólogos e filósofos que já pensaram a socie-
dade em toda a existência humana. Tanto que qualquer estudo sobre o período
medieval ou sobre a Igreja na História, certamente o Aquinate será uma refe-
rência imprescindível.
De acordo com Boehner e Gilson (2000), ainda nessa viagem sob o desíg-
nio de Gregório XX, que seria a última de sua vida, Aquino consegue expor,
agora já no leito, o Cântico dos Cânticos. Encerra sua jornada terrena conhe-

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cido como um homem de índole serena e concentrada, que é uma marca das
suas obras também.
A lista completa de obras de Tomás de Aquino (ou atribuídas a ele) é a
seguinte:
Opera maiora (“Obras maiores”)
■■ Scriptum super sententiis;
■■ Summa contra gentiles;
■■ Summa theologiae.

Quaestiones (“Questões”)
■■ Quaestiones disputatae;
■■ Quaestiones de quolibet.

Opuscula (“Obras menores”)


■■ Opuscula philosophica;
■■ Opuscula theologica;
■■ Opuscula polêmica pro mendicantibus;
■■ Censurae;
■■ Rescripta;
■■ Responsiones.

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


133

Commentaria (“Comentários”)
■■ In Aristotelem;
■■ In neoplatonicos;
■■ In Boethium.

Commentaria biblica (“Comentários bíblicos”)


■■ In Vetus Testamentum;
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■■ Commentaria cursoria;
■■ In Novum Testamentum;
■■ Catena aurea;
■■ In epistolas S. Pauli.

Collationes et sermones (“Coleções e sermões”)


■■ Collationes;
■■ Sermones.

Documenta (“Documentos”)
■■ Acta;
■■ Opera collectiva;
■■ Reportationes Alberti Magni super Dionysium.

Opera probabilia authenticitate (“Autoria provável”)


■■ Lectura romana in primum Sententiarum Petri Lombardi;
■■ Quaestiones;
■■ Opera liturgica;
■■ Sermones;
■■ Preces.

Opera dubia authenticitate (“Autoria duvidosa”)

Tomás de Aquino: a Fé e a Razão


134 UNIDADE III

■■ Quaestiones;
■■ Opuscula philosophica;
■■ Rescripta;
■■ Opera liturgica;
■■ Sermones;
■■ Preces;
■■ Opera collectiva;

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■■ Reportationes.

Opera aliqua false adscripta (“Falsa autoria” - atribuídas no passado)


■■ Quaestiones disputatae;
■■ Opuscula philosophica;
■■ Opuscula theologica;
■■ Rescripta;
■■ Concordantiae;
■■ Commentaria philosophica;
■■ Commentaria theologica;
■■ Commentaria biblica;
■■ Sermones;
■■ Opera liturgica;
■■ Preces;
■■ Carmina.

Sem dúvida, uma contribuição muito vasta de uma produção com uma profunda
dedicação à ciência e à Igreja. Como afirma Boehner e Gilson (2000), sempre
aberto a tudo o que é nobre, bom e verdadeiro, esse pensador deixa um legado
de conhecimento para os seus seguidores.

A IGREJA E OS SEUS INTELECTUAIS: ANÁLISE HISTÓRICA DOS PENSADORES CRISTÃOS


135

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O encerramento desta unidade deve ser reflexivo. Ao encerrarmos esta unidade,


esperamos que vocês tenham tido contato com uma fração sobre a intelectu-
alidade cristã durante um pouco mais de um milênio da História da Igreja. É
preciso frisar que o assunto não se encerra com estes poucos autores apresenta-
dos, aliás, ele é muito mais amplo e requereria, quiçá, uma vida para estudá-lo
com profundidade. E sempre a seleção de uns autores exclui, paralelamente,
outros. Depois de feitas todas as ressalvas, podemos perceber que o panorama
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que pretendia apresentar o conhecimento e a sua relação com a Igreja foi tra-
çado. Notamos, e o texto apresenta esses períodos de maneira marcante, como a
Igreja torna-se intelectual e, não como muitos pensaram, é intelectual desde seus
tempos iniciais. É importante também, a partir dessas considerações, entender
até mesmo o movimento histórico desta instituição. Ora, a partir dos discursos
e os seus tempos históricos, vemos que houve uma necessidade, por parte da
cristandade, de se adaptar ao contexto que estava sendo vivido e de criar meca-
nismos para fomentar o discurso religioso daquele momento. Assim, se em um
primeiro olhar essa instituição se faz por discursos mais simples e sem muita
prolixidade, já, no século IV da nossa era, vemos esse retrato sofrendo alterações
e uma necessidade de diálogo com os textos greco-romanos, principalmente os
textos platônicos. À medida em que avançamos no tempo, também percebere-
mos outros retratos, uma vez que, já no século XIII, o diálogo com a filosofia
dá-se, principalmente, por meio de aristóteles, já num âmbito restrito de saber,
a Universidade. Encerramos a unidade esperando que os estudos de vocês sobre
patrística e/ou escolástica não se restrinjam aos autores apresentados, mas que
possam usá-los como escadas (tal qual a que encontramos nas bibliotecas, com
alguns poucos degraus) para outros conhecimentos. Bom curso!

Considerações Finais
136

1. A Escolástica, forma de pensar de grande parte do medievo, esteve presente de


maneira exímia, principalmente, com o surgimento das Universidades. Dentre
os principais teóricos deste pensamento, destaca-se o filósofo-teólogo:
a) Aristóteles.
b) Santo Agostinho.
c) Paulo de Tarso.
d) Plotino.
e) São Tomás de Aquino.
2. A respeito do pensamento Patrístico, é correto afirmar que:
I. Surge durante o século XIII, com o advento das Universidades e tem como
principal fundamento a junção do pensamento filosófico ao pensamento te-
ológico, buscando a afirmação da existência de Deus, por exemplo.
II. Surge pela necessidade de novas linguagens, bem como novos pensadores.
Será neste contexto que se abrirá espaço para o estudo das escrituras, com o
objetivo de dar suporte à conciliação entre fé e razão.
III. A Patrística propunha que a conversão ao cristianismo não implicava, de
modo algum, renúncia da cultura intelectual. Desde que o conhecimento
projetasse mais fé nos caminhos do cristianismo, era totalmente permissível
e estimulado.
IV. Tomás de Aquino é o principal representante da filosofia patrística, devido à
sua exímia capacidade intelectiva em tratar os assuntos da cristandade, esse
filósofo-teólogo foi considerado um dos pais da Igreja.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
137

3. De acordo com o capítulo A Igreja e os seus intelectuais: uma análise histórica dos
pensadores cristãos, assinale Verdadeiro (V) ou Falso (F):
( ) O cristianismo é uma religião essencialmente universal. Destina-se, indistin-
tamente, aos homens de todas as raças, de todas as nações e de todas as ca-
madas sociais. Entretanto é um fato histórico que a “Boa Nova” recrutou seus
primeiros ouvintes e adeptos, principalmente, entre as classes humildes.
( ) Durante a sua passagem pela Grécia, Paulo de Tarso dialoga na Ágora com os
gregos sutis e cultos, levianos e céticos, e, a partir dos seus discursos, tomam
o cristianismo como religião oficial e Deus como o único salvador possível.
( ) Será, pois, misturado aos pobres e marinheiros de Corinto que Paulo terá mais
êxito, o que confirma ainda mais a nossa tese inicial de que o Cristianismo,
nesse momento, possui uma linguagem voltada para a população comum,
pois as escrituras eram seus únicos instrumentais. Corinto traz uma dupla fe-
licidade a Paulo. Primeiro porque, aqui, ele adquire mais segurança com a pa-
lavra a ser evangelizada e segundo porque, aqui, ele consegue organizar uma
importante comunidade cristã.
4. Discorra sobre a distinção entre os termos:
a) Patrologia:
b) Patrística:
c) Pais ou Padres da Igreja:
5. Quais são as 4 divisões do método escolástico?
138

CAPÍTULO V - A origem do mal


Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em meu
modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação, tanto o que
podemos ver – como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os animais – como o que
não podemos ver – como o firmamento, e todos os anjos e seres espirituais. Estes, porém,
como se também fossem corpóreos, colocados em minha imaginação em seus respec-
tivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de massa imensa, diferenciada em diversos
gêneros de corpos; uns, corpos verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos.
E eu a imaginava não tão imensa quanto ela era realmente – o que seria impossível –
mas quanto me agradava, embora limitada por todos os lados. E a ti, Senhor, como a um
ser que a rodeava e penetrava por todas as partes, infinito em todas as direções, como se
fosses um mar incomensurável, que tivesse dentro de si uma esponja tão grande quanto
possível, limitada e toda embebida, em todas as suas partes, desse imenso mar. Assim
é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis
aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que
suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra!
Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar no mundo? Qual é a sua
raiz e sua semente? E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um mal que
atormenta e espicaça sem motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que
não há razão para temer. Portanto, ou o mal que tememos existe, ou o próprio temor é
o mal. De onde, pois, procede o mal, se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas? Bem
superior a todos os bens, o Bem supremo, criou, sem dúvida, bens menores do que ele.
De onde, pois, vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para a criação era corrom-
pida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não converteu em bem?
E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para
que não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para
criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir contra sua
vontade? E, se é eterna, por que a deixou existir por tanto tempo no infinito do passa-
do, resolvendo tão tarde servisse dela para fazer alguma coisa? Ou, já que quis fazer de
súbito alguma coisa, sendo onipotente, não poderia suprimir a matéria, ficando ele só,
bem total verdadeiro, sumo e infinito? E, se não era conveniente que, sendo bom, não
criasse nem produzisse bem algum, por que não destruiu e aniquilou essa matéria má,
criando outra que fosse boa e com a qual plasmar toda a criação? Porque ele não seria
onipotente, se não pudesse criar algum bem sem a ajuda dessa matéria que não havia
criado.” Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentes
temores da morte, e sem ter encontrado a verdade. Contudo, arraigava sempre mais em
meu coração a fé de teu Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pela Igreja Católica;
fé ainda incerta, certamente, em muitos pontos, e como que flutuando fora das normas
da doutrina. Minha alma, porém, não a abandonava, e cada dia mais se abraçava a ela.
[...]
139

CAPÍTULO VII - Ainda a origem do mal


Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo eu bus-
cava ainda a origem do mal, e não encontrava solução. Mas não permitias que as vagas
de meu pensamento me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tua substância imu-
tável, na tua providência para os homens, e na tua justiça que os julgará. Já acreditava
que traçaste o caminho da salvação dos homens, rumo à vida que sobrevém depois da
morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas Sagradas Escrituras, recomendadas
pela autoridade de tua Igreja Católica. Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em
meu espírito, buscava eu, ansiosamente, a origem do mal. E que tormentos, como que
de parto, eram aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ou-
vidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas,
altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de minha
alma. Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era
o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava, porventura,
a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para
declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em meu coração rugiam,
e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos não estava contigo, porque
ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não ocupava espaço algum, e eu só pensava
nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me acolhiam
de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” – Nem me permitiam que eu fosse
para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a
ti. Serias minha verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo
o que criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha sal-
vação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo. Mas,
como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor coberto com
o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a
mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso. Quando as
olhava, elas me vinham ao encontro atabalhoadamente de todos os lados; mas, quando
nelas me concentrava, tais imagens corporais me barravam para que me retirasse, como
se me dissessem: “Para onde vais, indigno e impuro?” E estas recobravam forças com a
minha chaga, porque humilhaste o soberbo como a um homem ferido. Minha presun-
ção me separava de ti, e meu rosto de tão inchado, fechava meus olhos.
Fonte: Santo Agostinho (2017, on-line)6.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Suma teológica
Tomás de Aquino
Editora: Edições Loyola
Sinopse: Santo Tomás de Aquino escreveu sua Suma Teológica entre
1265 e 1273, com o modesto propósito de fazer uma apresentação
sucinta da doutrina sagrada aos iniciantes em Teologia. Quase oito séculos depois, “A Suma” tornou-se
referência indispensável não só aos principiantes em Teologia e Filosofia, como também aos mais
exímios filósofos e doutores da Igreja.

O nome da rosa
dirigido por Jean-Jacques Annaud, o filme do gênero mistério, tem
como enredo principal um monge franciscano que investiga uma
série de assassinatos em um remoto mosteiro italiano. Isso provoca
uma guerra ideológica entre os franciscanos e os dominicanos,
enquanto o monge lentamente soluciona os misteriosos assassinatos.

A importância dos pós-escolásticos para a Escola Austríaca


Há uma discussão que insere mais um momento histórico dentro do pensamento escolástico,
a saber, o da Escolástica Tardia. Segundo a historiografia, a pré-história da escola austríaca de
economia pode ser encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis, mais especificamente em
seus escritos, no período conhecido como o “Século de Ouro espanhol”, que decorreu de meados
do século XVI até o século XVII. Não é objetivo do capítulo fazer uma distinção detalhada sobre
esses pontos. Para um estudo mais aprofundado sobre esta questão, acesse A importância dos
pós-escolásticos para a Escola Austríaca em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1694>.
141
REFERÊNCIAS

ALTANER, B.; STUIBER, A. Patrologia. São Paulo: Paulus, 1988.


ARANHA, M. L. de A. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3. ed. São
Paulo: Moderna, 2006.
BOEHNER, P.; GILSON, E. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau
de Cusa. Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier. 7. ed. Petrópolis-RJ: Vozes,
2000.
CAMBI, F. História da Pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Funda-
ção Editora da UNESP, 1999.
CESARÉIA. E. História Eclesiástica Escolástica. São Paulo: Paulus, 2003.
LE GOFF, J. As raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. 3. ed. Pe-
trópolis-RJ: Vozes, 2010.
NUNES, R. Capítulo IX A escolástica. In: ________. História da Educação na Idade
Média. São Paulo: Edusp, 1979.
OLIVEIRA, T. Considerações sobre o caráter histórico da escolástica. In:_____ (org.).
Luzes sobre a Idade Média. Maringá: EDUEM, 2002. p. 47-64.
PADOVESE, L. Introdução à Teologia Patrística. Tradução de Orlando Soares Mo-
reira. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. Tradução de Álvaro Cunha. 2. ed. São Paulo:
Edições Paulinas, 1982.
STRATHERN, P. Santo Agostinho (354-430) em 90 minutos. Tradução de Maria He-
lena Gordane. Rio de Janeiro: Jorge Jahar, 1999.
VERGER, J. Homens e Saber na Idade Média. Tradução Carlota Boto. Bauru-SP:
EDUSC, 1999.

REFERÊNCIAS ON-LINE
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Em: <http://art.thewalters.org/detail/35697/angel/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
2
Em: <http://art.thewalters.org/detail/24647/bowl-with-judah-and-lion-surrounde-
d-by-scened-from-the-book-of-esther/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
Em: <http://www.agostinianos.org.br/santo-agostinho>. Acesso em: 11 mai. 2017.
3

Em: <http://art.thewalters.org/detail/40130/christ-pantokrator-2/>. Acesso em: 11


4

mai. 2017.
5
Em:   <http://art.thewalters.org/detail/34852/exterior-of-a-triptych-with-saints-
-lawrence-and-leonard/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
6
Em:   <https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_
confissoes.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2017.
GABARITO

1. E.
2. B.
3. V-F-V
4.
a. A patrologia, interessa-se mais pela História Antiga, em que podem ser inclu-
ídas também obras de autores que não necessariamente estejam vinculados
a um pensamento religioso. Mais detidamente, a patrologia pode englobar,
tanto autores leigos, como autores de cunho religioso com a finalidade de
realizar um estudo sobre obras, vidas e doutrinas eclesiásticas dos seus pais.
b. O termo patrística, diz respeito ao estudo da doutrina, das origens dela, suas
dependências e empréstimos do meio cultural, filosófico e da evolução do
pensamento teológico dos pais da Igreja. Desta maneira, podemos dizer, de
um outro modo, que a patrística está diretamente relacionada ao clássico gre-
co-romano que permanece nos estudos desses pais da Igreja. Notar os traços
desses pensamentos clássicos nas doutrinas cristãs e elaborar o estudo sobre
elas a partir desses vieses constitui-se objeto da patrística.
c. Por Padres ou Pais da Igreja refere-se tanto ao escritor leigo, sacerdote ou bis-
po, da Antiguidade Cristã, considerado pela tradição posterior como um tes-
temunho particularmente autorizado pela fé. Em outras palavras, são aque-
les autores que a Igreja reconhece como contribuintes para a profusão da fé.
Aqueles autores que, segundo a tradição, conciliaram a filosofia greco-roma-
na aos intentos da Igreja.
5. O método escolástico se divide em 4 partes:
a. Leitura (lectio).
b. Comentário (glosa).
c. Questões (quaestio).
d. Discussão (disputatio).
Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira

IV
AS RELAÇÕES CRISTÃS NA
IDADE MÉDIA: UM ESTUDO

UNIDADE
SOBRE AS CRUZADAS E A
INQUISIÇÃO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Apresentar um panorama do cristianismo no contexto do medievo.
■■ Abordar as fases/divisões históricas da Idade Média.
■■ Desmistificar o conceito de Idade das Trevas para o período medieval.
■■ Realizar um estudo sobre as relações cristãs com a Inquisição.
■■ Compreender as inter-relações entre o cristianismo e as Cruzadas.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Notas sobre a Idade Média
■■ Idade Média, idade das trevas?
■■ A Igreja do período medievo
■■ A Igreja e as Cruzadas
■■ A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição
145

INTRODUÇÃO

Olá, antes de dar início, precisamos elencar algumas ideias que são importantes
para você, estudante, entender e desmistificar a visão de que a Idade Média foi
um período de barbárie. O primeiro passo é aprendermos a não julgar o passado.
É muito comum que nós olhemos para ele e pensemos que aqueles acontecimen-
tos poderiam tomar outra forma se fizessem de outro modo. Porém a história
não é assim. Julgar o que poderia ser diferente, ou criticar a forma com que
os homens viveram o seu presente, é denominado anacronismo, do grego ana
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(contra) e chronos (tempo). É um equívoco comum, por exemplo, quando se diz


que a Idade Média foi a Idade das Trevas (você já deve ter ouvido, ou lido algo
a respeito) está se incorrendo em anacronismo, ou seja, valorando um período
histórico anterior da forma como se vê a realidade atual.
Ao aprendermos a não julgar o passado, teremos um olhar diferente para
os processos de Inquisição e Cruzadas que, por muitas vezes, são valorados
negativamente. É preciso, a partir de agora, compreender que eles surgem num
momento bem delicado da história da humanidade e da própria Igreja Católica
como um todo e, antes de ser um sistema de punição como simploriamente são
descritos em muitas literaturas sobre a temática, são, acima de tudo, mecanis-
mos de proteção.
Pense a Igreja do medievo, dentro do seu contexto histórico, buscando uma
hegemonia definitiva para a sua fé e, ao mesmo tempo, vendo surgir um secta-
rismo religioso dentro da sua própria casa e uma horda islâmica no horizonte.
Ora, veremos, a partir daqui, quais foram as soluções encontradas pela Igreja
para barrar os avanços de ambos os lados, ou seja, a criação de uma instituição
jurídica dentro da Igreja com a finalidade de barrar os sectarismos religiosos, e
o processo de justificação para um movimento militar contra outros povos tam-
bém com a finalidade de ora expandir, ora reconquistar territórios para a Igreja
ocidental e, principalmente, manter a hegemonia cristã.

Introdução
146 UNIDADE IV

NOTAS SOBRE A IDADE MÉDIA

As delimitações geográficas e temporais são


essenciais, quando se busca escrever a história
de uma instituição tão antiga e basilar como a
Igreja. No caso da unidade em questão, a his-
tória da Igreja à qual nos referimos aconteceu
entre 476 d.C. a 1453. A primeira data quando
da Queda do Império Romano do Ocidente,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a segunda, da Queda do Império Romano do
Oriente. Geograficamente, delimitou-se em
torno do Mediterrâneo, como já dizia Platão,
quando se referia aos contornos das civili-
zações antigas: da Terra habitamos apenas
esta parte que se estende desde o Faço até às
Colunas de Hércules, espalhadas em volta do
mar como formigas ou rãs em redor de um
charco. Temos visto, desde a Antiguidade, as
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)1 .
múltiplas configurações que formaram neste
espaço, bem como os diversos interesses que fizeram ora avançar, ora retrair, toda-
via sempre apresentando uma espacialidade muito parecida como a descrita por
Platão, já no século IV a.C. O historiador medievalista Marc Bloch também já
havia seguido essa espacialidade, quando delimitou a sua história sobre A socie-
dade feudal em que a justificou apresentando que:
[...]apesar das conquistas, estas mesmas águas, decorridos muitos sécu-
los, permaneciam o eixo da Romania. Um senador da Aquitânia podia
fazer a sua carreira junto do Bósforo e possuir vastos domínios na Ma-
cedónia. As grandes oscilações dos preços agitavam a economia desde
o Eufrates até à Gália. Sem os trigos da África, a existência da Roma
imperial não poderia conceber-se, tal como, sem o africano Agostinho,
a teologia católica não existiria. Em contrapartida, transposto o Reno,
começava o imenso país dos Bárbaros, estranho e hostil (BLOCH,
2009, p. 13).

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


147

Assim, o que queremos dizer é que, certamente, a Igreja esteve presente em outros
tempos e outras regiões que não a da Europa medieval, contudo, ao fazermos o
nosso contorno didático, estamos nos referindo às delimitações que estabelece-
mos no presente texto. Mesmo o livro como um todo, dará apenas as dimensões
possíveis de serem elencadas dentro de uma delimitação histórico-geográfica
pensadas dentro da abordagem preterida a vocês.
Outra configuração que se deve ter em mente, ao trabalhar com a história
medieval, é a sua própria periodização. De acordo com Reis (2010), embora deli-
mitemos o período medieval entre o fim do Mundo Antigo e Renascimento, essa
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

periodização não é isenta de conflitos. De acordo com o autor, datas de 313, 378,
392, 410 e 698 poderiam também marcar o início desta nova Idade de acordo
com o critério historiográfico adotado, conforme os acontecimentos ocorridos
nos determinados anos. Para o seu término, também teríamos as datas de 1492
e 1517. Por isso, Reis argumenta que: “Apesar da importância desses aconteci-
mentos, todas as datas são aleatórias, uma vez que, sendo a História um processo,
deve-se renunciar à busca de um fato específico que teria inaugurado ou posto
fim à Idade Média” (REIS, 2010, p. 19). Mais detidamente, é a divisão que ocorre
dentro da divisão maior do período que se estende da Queda do Império Romano
do Ocidente (476) à Queda do Império Romano do Oriente (1453). Estes mil
anos de história medieval também recebem uma subdivisão, a saber, Alta Idade
Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média. Cada um desses períodos tam-
bém possuem suas características definidoras. Veremos algumas delas depois.

Notas Sobre a Idade Média


148 UNIDADE IV

Quer você fosse rico, quer fosse pobre, sua família seria muito importante
para você. Ela lhe daria alimento, trabalho e abrigo e também determinaria
sua classe social. Se seus pais fossem nobres, você seria nobre; se fossem
camponeses, você seria camponês. Era muito raro alguém mudar de classe
social. Como a família era muito importante para a sua sobrevivência, espe-
rava-se que você fosse leal. Algumas vezes, isso significava esconder seus
reais sentimentos e fazer o que sua família queria. Por exemplo, as crianças
eram dadas aos mosteiros como “presente” das famílias a Deus. Esperava-se

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
que passassem a vida lá. Os adultos tentavam obter riquezas e vantagens
políticas para os seus parentes. A menos que você fosse um membro da
Igreja, não casar era considerado uma desgraça, na Idade Média.
Fonte: adaptado de Fiona Macdonald (1996).

Alta Idade Média: configura-se quase a totalidade do período medieval, esten-


dendo-se do século V ao século X. Todavia alguns historiadores fazem dela outra
divisão em que podemos encontrar os termos Antiguidade Tardia ou Primeira
Idade Média, e, Alta Idade Média. Não nos cabe aqui uma explicação detalhada
sobre a preferência terminológica entre Antiguidade Tardia ou Primeira Idade
Média, contudo precisamos saber que esse período diz respeito propriamente ao
período de transição do Mundo Antigo para o Mundo Medieval, que é comu-
mente referido como o período que vai dos anos do século IV ao século VIII.
Aqui, temos a gênese do mundo feudal que teria se formado a partir da diluição
do Império Romano. Desse modo, restaria para a Alta Idade Média o período
do século VIII ao século X, classificada, assim, devido à consolidação e à desa-
gregação do Império Carolíngio.
Já a Idade Média Central abrange os períodos do século XI ao XIII, sendo
considerada a época do feudalismo e da fragmentação do poder próprio desse
sistema sócio-político e econômico. É um período com desenvolvimento demo-
gráfico acentuado, causado, principalmente, pela melhoria de técnicas de plantio
e pelo clima um pouco mais ameno em relação ao que esses indivíduos estavam
acostumados. Período importante também para nós, universitários, pois o primeiro
modelo de Universidade que temos em mente surge nesse período do medievo.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


149

Assim, para Baixa Idade Média ficam configurados os séculos XIV e XV,
considerado um período de dificuldades, pois, com o advento da Peste Negra,
chega-se a estimar que um terço da população europeia foi ceifada. São também
períodos em que a Igreja toma uma postura mais acentuada diante dos here-
ges, principalmente, porque é um período de perdas significativas para o poder
religioso. No âmbito político, devido ao fortalecimento do poder real e, no inte-
lectual, a Igreja perde paulatinamente o seu monopólio sobre o conhecimento.
Após esta breve apresentação sobre as subdivisões do medievo, bem como
a sua espacialidade geográfica, podemos compreender com maior clareza os
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

momentos da Igreja, que se configurou no espaço e no tempo, de acordo com


o contexto em que estava inserida. Nos casos da patrística e da escolástica, por
exemplo, abordados na unidade anterior, vimos que a configuração fé e razão
assume uma postura diferente quando comparadas, pois buscavam responder
questões contemporâneas àquela do contexto histórico em que estavam inseridas.
O mesmo acontece com as delimitações geográficas e, de acordo com uma
espacialidade, podem se configurar em projetos diferentes. Não precisamos ir
muito longe se lembrarmos que a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa
tomaram rumos distintos, mesmo possuindo uma origem comum. Elas assumi-
ram propostas diferentes com o passar do tempo, muitas vezes, correlacionadas às
questões pertinentes àquelas sociedades. Tal proposta de análise fica mais clara,
se, por alguns segundos, deixarmos de ver a Igreja especificamente como uma
instituição religiosa e enxergamos nela um lado político também.
Com a desagregação do Império Romano, em 476 d.C., é a Igreja que assume
o papel de organizadora daquela sociedade. Em outras palavras, mesmo a socie-
dade tendo-se tornado fragmentada em vários reinos e micro-espaços, a Igreja
se desenvolve independentemente de um poder centralizado. Na verdade, pode-
ríamos afirmar, sem muitos problemas, que a Igreja, nesse período, assume as
responsabilidades que outrora estavam ligadas ao Estado, ela regula as várias ações
que dizem respeito à ordem social, exerce o poder coercitivo fundamental, tem
uma ampla participação econômica, e, futuramente (século IX), a Igreja assume
até a formação de um poder belicista, que luta em nome de seus ideais cristãos.
Desse modo, ser excomungado pela Igreja era um problema gravíssimo
para o homem do medievo, pois era como se ele não fizesse mais parte daquela

Notas Sobre a Idade Média


150 UNIDADE IV

comunidade. Assim, entender essa relação da Igreja com o homem medieval é


compreender a própria sociedade como um todo, à medida que notamos que a
influência exercida por ela se encontrava para além do âmbito religioso. O indi-
víduo do medievo era, acima de tudo, um ser cristão, independentemente da
esfera social ocupada, e a Igreja interligava todos os indivíduos em uma mesma
teia. Fosse senhor feudal, vassalo, servo e/ou eclesiástico, todos encontravam na
Igreja a significação para o que eram.
Por isso, estudar a história da Igreja constitui-se no estudo do próprio sujeito
do contexto do medievo, uma vez que a inter-relação entre ambos era a con-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dição necessária para a vida naquele período. Após a desagregação do Império
romano, a Igreja não era apenas uma contingência na vida desses homens, mas
sim condição necessária para a sua sobrevivência.
.

Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)2.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


151
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)3.

IDADE MÉDIA: IDADE DAS TREVAS?

A historiadora francesa Regine Pernoud, em sua obra O mito da Idade Média,


faz um relato sobre uma aula de História do seu sobrinho. Segundo ela, conceito
de que a Idade Média é a Idade das Trevas ainda é bem difundido. De acordo
com a autora:
Professora: Como se chamavam os camponeses, na Idade Média?

Classe (em coro): chamavam-se servos.

Professora: E como é que eles faziam? Que é que eles tinham?

Classe: Tinham doenças.

Professora: Que doenças, Jerônimo?

Jerônimo (sério): Peste.

Professora: Que mais, Emanuel?

Emanuel (entusiasmado): Cólera.

Professora: Vocês sabem muito bem a lição de História. Passemos à


Geografia (PERNOUD, 1978, p. 6).

Idade Média: Idade das Trevas?


152 UNIDADE IV

Embora este relato tenha quase 40 (quarenta) anos e possa parecer um pouco
cômico aos seus olhos, devemos frisar que é muito comum os indivíduos terem
pensamentos generalizados sobre o passado, fazendo com que diálogos como
esses, que deveriam trazer uma série de conhecimentos sobre esse rico período,
tornem-se triviais e generalizantes. Aliás, algo parecido aconteceu comigo recen-
temente. Estávamos eu e um amigo, em uma cafeteria, conversando com o dono
(aparentemente instruído) e, quando menos percebemos, estávamos falando sobre
a Idade Média. Aquele sujeito, mesmo tendo sido letrado em um país europeu,
demonstrou bastante preconceito com o período em questão.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Embora, na academia, saibamos que olhar sobre a Idade Média como um
período das trevas é um olhar grosseiro, parece que estas ideias ainda permeiam
o senso comum. Estamos usando estes exemplos sobre a Idade Média porque o
tema desta unidade está totalmente inserido no contexto medieval. Desse modo,
ao iniciarmos esse estudo sobre as instituições da Inquisição e da Cruzada e suas
relações com o cristianismo no mundo medieval, devemos tomar muito cui-
dado para não fazermos juízos de valores, ideias e até mesmo instituições que
não fazem parte desse período para não cometermos anacronismos. Veremos,
nesta unidade, alguns desses preconceitos e como a historiografia hoje trabalha
com o período medieval.
Um dos preconceitos da modernidade contra o período medieval está justa-
mente na sua forma de organização política. Imagine um período de mil anos em
que não houve nem nações, nem Estados. Para a modernidade que, durante muito
tempo, o objetivo foi a centralização política, esse era um dos últimos modelos
de sociedade que se poderia imaginar. Não é para menos que, no início do século
XVI, uma das maiores preocupações do filósofo Maquiavel era a unificação do
que, posteriormente, conheceríamos por Itália. Até porque, naquele momento,
Portugal e Espanha já eram unificadas e sinônimos de progresso. Unificações,
expansões territoriais, navegações faziam parte do imaginário progressista do
homem do período moderno. Nada a ver com o período medieval, segundo eles.
Esse pensamento da Idade Média como um período de pouco progresso tam-
bém possui suas justificativas. Não podemos nos esquecer de que os modernos
eram homens de seu tempo, portanto, críticos a um período que nada significava
quanto ao que buscavam alcançar. Imagine, você, leitor, tendo um produto para

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


153

vender, suponhamos que seja um carro e você precisa, urgentemente, vendê-lo,


pois quer comprar um novo, um mais moderno, ou até mesmo utilizar o dinheiro
para pagar suas contas. Independentemente do uso final do dinheiro, você pre-
cisa vender esse carro. Agora, imagine duas situações diferentes. Imagine que só
você tem esse carro na sua vizinhança, coloca a placa de venda, e as pessoas vão
ao seu encontro querer saber mais sobre ele. Você, provavelmente, falará sobre
todas as qualidades do carro, que ele tem airbag, câmbio automático etc., enfim,
ele está cheio de qualidades que você poderia enumerá-las. Essa foi a primeira
situação. Agora, imagine a segunda: como você, outra pessoa pretende vender
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o carro dela. Não é mais apenas o seu carro, agora são dois carros para vender.
Pessoas continuam vindo até você para saber sobre as qualidades do seu
carro, contudo com uma exceção da situação anterior. Agora, elas querem saber
por que devem comprar o seu carro, e não o do outro vendedor? Bem, você,
provavelmente, listará inúmeros benefícios que o seu automóvel possui em detri-
mento do outro carro. Sem muitos moralismos, você pode (não estou dizendo
que vá) até mesmo apontar alguns defeitinhos no carro do outro. Isso, com cer-
teza, valorizará mais o seu carro e você terá maiores chances de ser sucedido.

Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)4.

Idade Média: Idade das Trevas?


154 UNIDADE IV

Bem, você pode até não apontar os defeitos do carro do outro vendedor. Porém
os modernos não foram assim com o período medieval. Todos os problemas que,
de acordo com eles, poderiam ser listados para apontar aquele período de mil
anos apenas como um ínterim entre a Antiguidade Clássica e a Modernidade,
eles o fizeram. Então, precisamos condenar os modernos? Não. Absolutamente
não. Assim como você estava vendendo o seu carro e apontando o que de melhor
havia nele, os modernos estavam vendendo uma nova ideia e, consequentemente,
buscaram o que de melhor havia nela.
Você consegue imaginar agora o porquê de a Idade Média ter sido, por muito

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tempo, estigmatizada? Na verdade, já conseguimos perceber, nesta breve intro-
dução deste tópico, que não foi um preconceito contra um período, mas sim
contra os modelos por ele adotado. Mais detidamente, o preconceito contra a
Idade Média não é contra uma época, mas sim contra uma instituição, a Igreja e
o pensamento por ela propagado. Por isso, entender o preconceito com a Idade
Média é entendê-lo contra a própria a Igreja.
Esse preconceito, no entanto, tem origem; na verdade, ele nasceu um pouqui-
nho antes do relato mencionado anteriormente, já no espírito da modernidade,
ou seja, na busca de ruptura em relação ao medievo. De acordo com Reis (2010),
foram os renascentistas os primeiros a esboçarem uma sentença negativa para
os seus antecessores. De acordo com o autor, já durante o século XIV, o poeta
Francesco Petrarca (1304-1374) lançou os primeiros olhares negativos ao medievo.
Nas palavras do historiador:
[...]o humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374), admirador da
Antiguidade Clássica, referia-se ao período transcorrido entre o fim
do Império Romano e a sua época como tenebrae. Petrarca manifes-
tava certo desprezo inclusive pela cultura de seu tempo. Recusou um
exemplar da Divina Comédia, de Dante Alighieri, enviada a ele por
Boccaccio (1313-1375). Admirava especialmente os escritores latinos,
como Cícero, Virgílio, Tito Lívio, Sêneca e Horácio. Quanto mais se
aprofundava na cultura clássica, maior era o inconformismo com o sa-
ber de seu tempo (REIS, 2010, p. 12).

Ao reverenciar a Antiguidade Clássica, Petrarca deixa claro o seu desprezo com o


período medieval. Aliás, o próprio conceito Idade Média já retoma esse precon-
ceito. O que é a Idade Média senão o período do meio? Meio entre a Antiguidade

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


155

Clássica e a Idade Moderna com um intervalo (de mil anos, diga-se de passagem),
época, como afirmava Petrarca, entre a queda do Império Romano do Ocidente
e o período do renascer. Como vimos, a Idade Média durou até o ano de 1453,
anos que, como afirma o poeta, foram denominados tenebrosos.
Poderíamos citar inúmeros exemplos, mas, a partir desse, conseguimos
compreender a dimensão do preconceito que se instaurou contra o medievo.
Quanto à sua arte, referia-na como ‘gótica’, termo que, na época, também pos-
suía uma significação pejorativa, pois remetia a “bárbaros”. Ao renascer como
fênix, no século XVI, os renascentistas precisaram das cinzas. De acordo com a
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mitologia grega, a Fênix é um pássaro que, ao morrer, entra em autocombustão


e renasce a partir de suas cinzas. Desse modo, da Idade Média, não foram, toda-
via, só os renascentistas, como bem mencionamos anteriormente, que buscaram
descrever esse período de maneira negativa. Se lembrarmos da questão política,
mencionada no início do tópico, lembraremo-nos de que a Igreja Católica pos-
suía uma influência gigantesca durante o medievo. Basta lembrar que ela assume
algumas das funções que outrora eram consideradas do Estado Romano e, pos-
teriormente, estará a cargo do Estado Moderno. Ao ser vista como o momento
áureo da nobreza e do clero, os modernos do esclarecimento censuravam, sobre-
tudo, a sociedade hierarquizada. Tomamos por exemplo os escritos de Locke que,
embora não faça menção diretamente ao sistema religioso tripartite, a ideia que
passa fica mais clara a seguir.
O filósofo John Locke (1632-1704) foi quem mais exprimiu esses ideais por
meio da publicação de seus escritos. Em sua obra Segundo tratado sobre o governo,
o pensador exprimiu algumas das ideias do que viriam a ser, posteriormente,
um dos grandes pontos em defesa até do conceito de cidadania, extremamente
caro para os indivíduos do período. Ao defender que todos os indivíduos pos-
suem propriedade sobre o seu próprio corpo, Locke exprime uma das partes
mais importantes do conceito de igualdade, diferente do que era promulgado
durante o medievo, uma sociedade hierarquizada, em que cada indivíduo pos-
suía o seu local social bem definido, do nascimento à morte, com pouca ou quase
nenhuma mobilidade social.
De acordo com Locke (1999), por todos os homens nascerem no mesmo
estado de natureza, todos são iguais, não há grau de hierarquia ou superioridade

Idade Média: Idade das Trevas?


156 UNIDADE IV

entre os indivíduos. Nas palavras do filósofo:


[...]um estado, também de igualdade, onde a reciprocidade determina
todo o poder e toda a competência, ninguém tento mais que os outros;
evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição,
que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens co-
muns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser
iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e
amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade tivesse
destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco,
por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um
soberano (LOCKE, 1999, Cap. II, § 4).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Locke vai, assim, pouco a pouco, conferindo igualdade a todos os sujeitos. Quando
o filósofo menciona que todos os indivíduos devem se sujeitar somente a Deus,
ele está dizendo que não há hierarquia terrena entre os homens, e se um pos-
suir algum direito a algo, esse deve se estender a todos os outros. Algo que não
existia num período em que nobreza e clero assumiram uma categorização mais
elevada na ordem social.
Assim, política ou religiosamente, o século XVII não conferiu bom status ao
período medieval. Aliás, grande parte de suas teorias buscavam romper drasti-
camente com esse período. De acordo com Franco Júnior (2001):
[...]os homens ligados às poderosas monarquias absolutistas lamen-
tavam aquele período de reis fracos, de fragmentação política. Os
burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada atividade
comercial. Os intelectuais racionalistas de deploravam aquela cultura
muito ligada a valores espirituais (FRANCO, 2001, p. 12).

Dito de outra forma, a Idade Média era estigmatizada em todas as esferas em que
os intelectuais, pessoas de Estado, empreendedores etc. não se sentiam repre-
sentados no sistema por ela apresentado. Portanto, a ânsia em romper com esse
período era clara em todas as falas da modernidade. Os iluministas do século
XVIII também adotaram uma postura crítica em relação ao medievo.
De acordo com o historiador Hilário Franco Júnior, em sua obra A Idade
Média: nascimento do Ocidente, o século XVIII foi antiaristocrático e anticleri-
cal, acentuando ainda mais o menosprezo ao período medieval. Como ilustra o
autor, a filosofia do Iluminismo, ao buscar como guia a luz advinda da raciona-
lidade, contrapunha-se diretamente aos ditames da religião. A máxima kantiana

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


157

sapere aude pode ser bem expressiva para emblematizar esse período, pois tudo
o que retomasse uma tradição, ou um conhecimento já fixado, deveria ser ques-
tionado. Ousar conhecer era, acima de tudo, não seguir o instituído, o inexorável.
Ousar conhecer era, para os filósofos iluministas, a possibilidade de mudança,
de pensar por si próprio. Nas palavras de Franco Júnior (2001):
[...]a filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da
Razão, censurava, sobretudo, a forte religiosidade medieval, o pouco
apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de
que a Igreja então desfrutava. Sintetizando tais críticas, Denis Diderot
(1713-1784) afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais feli-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

zes”. Para o marquês de Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre


marchou em direção ao progresso, com exceção do período no qual
predominou o cristianismo, isto é, a Idade Média. Para Voltaire (1694-
1778), os papas eram símbolos do fanatismo e do atraso daquela fase
histórica, por isso, afirmava, irônico, que “é uma prova da divindade
de seus caracteres terem subsistido a tantos crimes”. A posição daquele
pensador sobre a Idade Média poderia ser sintetizada pelo tratamento
que dispensava à Igreja: “a Infame” (FRANCO, 2001, p. 12).

Todos esses pensadores iluministas, adeptos da filosofia da razão, atribuíram


à Igreja, portanto, à religião uma influência negativa ao desenvolvimento da
humanidade. O próprio conceito de luzes, proposto pela filosofia da época,
tinha exatamente a finalidade de clarear a obscuridade em que os indivíduos
se encontravam no passado. Voltaire, por exemplo, que faz um tratado sobre a
tolerância, é quem, acidamente, torna-se um dos teóricos mais intolerantes em
relação ao período medieval.
Precisamos, no entanto, retomar a ideia inicial: há uma intencionalidade
por trás desse pensamento conflitivo em relação à Igreja. Esquecer isso é olhar
para a modernidade assim como os modernos olhavam para a Idade Média, é
julgar quem julgou, e esse não é o nosso objetivo. Portanto, precisamos compre-
ender essas críticas, historicamente, para não caímos em anacronismos. Se para
Petrarca, Voltaire e outros tantos o período medieval era símbolo do fanatismo
religioso, é porque nesse outro momento, eles, os períodos, possuem outros
símbolos. Para o primeiro, a ideia de renascer, para o segundo, a ideia de luzes.
De acordo com as historiadoras Inês C. Inácio e Tania Regina de Luca (1994),
na obra O pensamento medieval, nenhum período na História foi vítima de

Idade Média: Idade das Trevas?


158 UNIDADE IV

preconceitos tanto quanto os que ocorreram durante o medievo. Certos de terem


renegado o período, absolveram-no em decadência e desprestígio. De acordo
com as autoras, as principais instituições medievais, bem como os princípios
políticos, éticos e/ou filosóficos do medievo foram, na verdade, usados contra o
período, servindo de contraponto para realçar ainda mais a excelência dos novos
valores então afirmados no Renascimento e no Iluminismo.
Nem sempre, porém, a Idade Média foi tratada com tanto desprezo. Houve outros
períodos em que a visão sobre o medievo sobre as catedrais, os castelos, os cavaleiros,
os servos e os senhores etc. inverteu-se totalmente. Inicia-se, então, a era român-

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tica e, com ela, um novo olhar sobre a Idade Média. O romantismo, ao empregar o
lema do fugere urbem, encontrava todo o respaldo no mundo medieval. Ao buscar
as bases para o nacionalismo, próprio das produções desse momento, lançava olha-
res sobre as suas origens medievais. De estigmatizada e desprezada, agora a Idade
Média é extremamente valorizada e exaltada. Para Franco Júnior (2001), o ponto de
partida pode ser definido a partir da questão da identidade nacional, que ganhou
seus adeptos durante o contexto da Revolução Francesa. Nas palavras do autor:
[...]as conquistas de Napoleão tinham alimentado o fenômeno, pois
a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma única
direção despertou em cada região dominada ou ameaçada uma valo-
rização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua
história, enfim. Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade
do racionalismo, tão exaltado pela centúria anterior, e que levara a Eu-
ropa àquele contexto de conturbações, revoluções e guerras. A nostal-
gia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o
momento de origem das nacionalidades, satisfazendo, assim, os novos
sentimentos do século XIX (FRANCO, 2001, p. 12).

Nesse ar de romantismo, a Idade Média ressurgiu. Agora, existia um mundo


desconhecido a ser descoberto, bem ali embaixo dos narizes de todo mundo.
Em 1818, por exemplo, o historiador Johann Friedrich Bohmer (1795-1863),
após contemplar toda a arquitetura da cidade de Estrasburgo, afirma que Jamais
alguém o convenceria de que a Idade Média, que criou todas essas obras, foi uma
época de barbárie. Ainda, nesse sentido Reis (2010), afirma que a imagem que
tal período difundiu contrastava totalmente com a que os iluministas haviam
escrito. Tanto Franco Júnior (2001) quanto Reis (2010) viram, na literatura, a
maior contribuição para esta nova visão.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


159

Se refletirmos, contudo, um pouco mais sobre essa romantização do medievo,


perceberemos que o preconceito ainda tão gritante quanto o de outrora. Embora
carregada de esplendor, essa não era a Idade Média que os historiadores bus-
cavam. Portanto, entender a Idade Média é compreender até mesmo os elogios
excessivos a respeito desse momento histórico, é entender, por exemplo, que estes
homens não foram nem piores, como outrora os pintavam, nem melhores, como
agora buscam apresentar, mas é compreendê-los como sujeitos do seu tempo,
com questões e respostas para estas indagações de acordo com o momento em
que viviam. Assim, tantos excessos ora para estigmatizar, ora para exaltar, fize-
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ram com que período continuasse incompreendido.


A tentativa de compreender o medievo pelo medievo partiu da historiografia
do século XX. Os estudiosos passaram a compreender que não cabe ao historia-
dor definir se um período histórico foi bom ou ruim, mas sim analisá-lo como
fruto do seu tempo. Foi assim que os estudos sobre a Idade Média começaram a
ser mais bem elaborados e, consequentemente, com qualidade historiográfica.
Nas palavras de Franco Júnior (2001):
[...]finalmente, passou-se a tentar ver a Idade Média como olhos dela
própria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momen-
to. Entendeu-se que a função do historiador é compreender, não a de
julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a Idade
Média é a própria Idade Média. Com base nessa postura, e elaborando,
para concretizá-la, inúmeras novas metodologias e técnicas, a histo-
riografia medievalística deu um enorme salto qualitativo. Sem risco de
exagerar, pode-se dizer que o medievalismo se tornou uma espécie de
carro-chefe da historiografia contemporânea, ao propor temas, expe-
rimentar métodos, rever conceitos, dialogar intimamente, ao propor
temas, experimentar métodos, rever conceitos, dialogar intimamente
com outras ciências humanas (FRANCO, 2001, p. 13 -14).

E é esta a visão que deve chegar a nós, hoje, do século XXI, uma visão de diálogos
entre os vários campos do saber, de menos julgamento e mais análises. Devemos
analisar a história da Igreja, das Cruzadas e da Inquisição de maneira crítica, sem
pré-julgamentos, respeitando os seus progressos e suas contradições, entendendo
que fazem parte de um outro contexto histórico, diferente do nosso, com valores
e atitudes também destoantes das nossas. Portanto, nem demônios nem anjos,
apenas humanos vivendo e enxergando o mundo como lhes cabia o momento.

Idade Média: Idade das Trevas?


160 UNIDADE IV

A IGREJA DO PERÍODO MEDIEVO

Num primeiro momento, cabe explicitar


o que entendemos por Igreja. Acredito
que será muito mais fácil para você ter
este conceito na cabeça, primeiro porque
é o conceito da maioria da historiogra-
fia que trabalha a temática, segundo que
você ficará ainda mais familiarizado com

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a minha proposta de que a Igreja assume,
durante alguns momentos, um meca-
nismo de proteção que desencadeará
as Cruzadas e a Inquisição, tópicos que
ainda estão por vir.
Quando nos referimos à Igreja
medieval, estamos nos remetendo
estritamente à instituição de viés cató-
lico. Não é para menos, uma vez que a
nossa delimitação histórica trabalha o
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line) .
5
mais tardar até o século XV e as primei-
ras Reformas que dão início a outra vertente eclesiástica e ganha corpo a partir
do XVI. Discorremos também sobre quando nos remetemos à Igreja e a todas as
outras instituições religiosas que a compunham. Mais detidamente, no conceito
de Igreja, por nós aqui empregado, estão contidas também as ordens religiosas, os
clérigos, o Tribunal da Inquisição e mesmo os seus fiéis, estes últimos dos quais
não podemos nos esquecer, instituições que possuíam em seu corpo fundante
os mesmos princípios basilares e doutrinários e fiéis que seguiam estes cânones.
Tal discussão é interessante porque a historiografia contemporânea passou
a contemplar outras categorias que, no pensamento tradicional, não se enqua-
draram na análise a respeito dessa instituição, restringindo-se apenas às elites
clericais. Em Franco Júnior (2001), vemos que a Igreja ganhou o palco para apre-
sentações mais elaboradas sobre a sua outra face, a desconhecida que se remete
à sua origem de comunidade de fiéis. De acordo com o autor:

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


161

[...]até há relativamente pouco tempo, a história da Igreja era identifi-


cada com a das elites eclesiásticas. A preocupação central era com as
instituições clericais, com o pensamento oficial da Igreja e com seus
altos dirigentes. A espiritualidade dos fiéis quase sempre ficava à mar-
gem, vista como grosseira e cheia de superstições, oposta à dos clérigos.
Mais recentemente, porém, recuperou-se o sentido original de ‘igreja’
(do grego ecclesia, ‘comunidade de cidadãos’, no caso cristão ‘comuni-
dade de fiéis’) englobando portanto, a hierarquia eclesiástica e a massa
de leigos (FRANCO, 2001, p. 67).

Tal como o autor, é neste sentido que pretendemos tratar a Igreja medieval, uma
Instituição que se alterou de acordo com os objetivos que lhe eram lançados. Se
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

durante o primeiro momento a Igreja precisou canalizar esforços para a sua con-
solidação após a recente vitória do cristianismo diante das religiões politeístas,
a seguir, como explica o autor, ela garante mais possibilidade de atuação polí-
tica diante da sua aproximação com esses poderes e, por fim, até a sua separação
total entre a esfera religiosa e a civil. Todas estas “fases” da Igreja foram acom-
panhadas por seus fiéis e suas outras instituições religiosas que a compunham.
De acordo com o pensador Franco Cambi (1999), em sua obra História da
pedagogia, quando pensamos o nível cultural e espiritual da medievalidade,
precisamos elencar a consciência cristã como a principal fonte, ou seja, a Igreja
como principal difusora desse conhecimento. Era ela que organizava, sancio-
nava e legitimava o que era aprendido. Nas palavras do autor:
[...]no nível espiritual/cultural, foi a consciência cristã que alimentou a
identidade da Europa, nutrindo seus ideais políticos, seus critérios eco-
nômicos, suas normas éticas e estruturando aquele imaginário social
que os pregadores e os artistas evocavam, sancionavam, difundiam e
que a instituição-chave dessa sociedade (a Igreja) reelaborava constan-
temente por meio de dogmas e ritos, organizações sociais e culturais,
figuras carismáticas e obras de propaganda (CAMBI, 1999, p. 145).

A Igreja foi o motor de movimento que esteve por trás de toda a história do
medievo. Por isso, reforçamos a impossibilidade de um estudo sobre esse perí-
odo sem lançar olhos sobre o que foi essa Instituição. Para tanto, é preciso que o
nosso estudo se configure didaticamente em três períodos, pois, a nosso ver, esses
três momentos definiram rumos diferentes para a história da Igreja, a saber, o de
sua formação, o da submissão ao Estado e o da sua crise e desagregação com o
poder político. Ao fazermos um estudo sobre esses três pontos, conseguiremos

A Igreja do Período Medievo


162 UNIDADE IV

ter um panorama geral do que foi a Igreja no mundo medieval.


No período de sua consolidação a Igreja conta, na verdade, com o próprio
Estado Romano, pois foi por meio do imperador Teodósio I que ela adentra os
muros do Império e, ao mesmo tempo, faz um contraponto à cultura romana
existente ali. De acordo com a obra Religión y propaganda política en el mundo
romano (2002), o Édito de Tessalónica de 27 de fevereiro de 380 d.C. (também
conhecido como Cunctos Populos ou De Fide Catolica) alterou toda a estrutura
religiosa e cultural do Império Romano. Estavam estabelecidas as novas bases,
o cristianismo passa de perseguido à religião oficial.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Consequentemente, se nos lembrarmos daquela visão que esteve presente
nos modernos, quando se remetiam ao período medieval de maneira preconcei-
tuosa, perceberemos que, historicamente, a Igreja também tomou uma postura
muito similar. De acordo com Franco Júnior (2001), a Igreja, nesse período de
consolidação, começa a negar vários aspectos que estavam presentes na cultura
romana, criando, paralelamente, uma aproximação com os germânicos. Porém
por agora ser uma religião do Império, também precisava traçar um elo entre seus
dogmas e os vinculantes na sociedade. Por isso, o autor menciona que a Igreja já
nascia se envolvendo em uma contradição, mas de peso indiscutível para a sua
consolidação no mundo medieval. De acordo com o historiador:
[...]nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa contra-
dição, que no entanto se revelaria a base de seu poder na Idade Média.
Ao negar diversos aspectos da civilização romana, ela criava condições
de aproximação com os germanos. Ao preservar vários outros elemen-
tos da romanidade, consolidava seu papel no seio da massa popula-
cional do Império. Desta maneira, a Igreja pôde vir a ser o ponto de
encontro entre aqueles povos. Da articulação que ela realizou entre ro-
manos e germanos é que sairia a Idade Média (FRANCO, 2001, p. 67).

Assim, o primeiro momento da história da Igreja como instituição oficial se faz


de modo transitório, de fora para dentro do Império, até a sua queda em 476.
Durante os anos que decorreram da sua entrada no mundo romano, essa insti-
tuição buscou fortalecer os seus laços e, ao mesmo tempo, eliminar antigos ritos
e costumes que pudessem prejudicá-la futuramente. Uma das missões principais
era estabelecer as bases do monoteísmo em contraponto à cultura ‘pagã’, poli-
teísta. Por isso, o seu caráter contraditório, como explicita o autor do excerto

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


163

citado. Precisa do Império no seu sentido político para defender o cristianismo,


isso desde Constantino. Contudo, paralelamente, busca desvincular algumas
práticas que são explicitamente aspectos da civilização romana para agregar
também os povos germânicos.
Aos poucos, a Igreja vai se introduzindo nos quadros políticos do Império
e preenchendo as lacunas deixadas por esse e se torna a Instituição, que está
preparada para assumir o ordenamento social do período e que protagoniza a
relação entre romanos e germânicos. Enfim, realiza as articulações necessárias
para a formação do medievo. De acordo com Cambi (1999), é a Igreja que move
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o medievo, ela é o agente principal, a personagem de maior destaque dos acon-


tecimentos que definem esse período. Nas palavras do autor:
[...]a Igreja foi o “palco-fixo” por trás do que se moveu toda a história
da Idade Média e um dos motores do seu inquieto desenvolvimento
(ao lado do Império e das cidades), talvez o motor por excelência. A
Europa, de fato, nasceu cristã e foi nutrida de espírito cristão, de modo
a colocá-lo no centro de todas as suas manifestações, sobretudo no âm-
bito cultural (CAMBI, 1999, p. 145).

Para ganhar esta dimensão, a Igreja teve de criar sua própria hierarquia. Por isso,
o primeiro período é denominado período da consolidação. Foi nesse momento
que ela começou a instituir seus cargos, realizando supervisões, executando ativi-
dades de cunho social e orientando quanto às questões do dogma. Era necessário
fixar todos os preceitos da nova fé, lutando e sendo contra o paganismo de ori-
gem romana. Chegou, até mesmo, a forjar um documento com a finalidade de
obter o poder político acima dos demais ‘inimigos’ seculares.
O segundo momento que podemos elencar em nossa análise é exatamente
este cenário político em que a Igreja vai adentrando. Por ser muito feliz durante
a sua consolidação em todo o Ocidente nas questões administrativas e religio-
sas, a Igreja transforma-se, com o passar do tempo, em um arcabouço natural do
Império Carolíngio e se torna, definitivamente, o elo unificador de um mundo
fragmentado em feudos. De acordo com o historiador Jérôme Baschet (2006),
em sua obra A civilização feudal: do ano mil à colonização da América, a Igreja
foi fundamental para a consolidação do poder da dinastia carolíngia. A partir
da ‘Carta de doação de Constantino’ essa instituição foi capaz de transformar
um rei germânico em um imperador do mundo romano.

A Igreja do Período Medievo


164 UNIDADE IV

Segundo Baschet (2006, p. 69), a história dos carolíngios é, de início, a da


ascensão militar de uma família aristocrática franca. Ao mesmo tempo, podemos
afirmar que é uma história do elo político entre o papado e um poder secular. Foi
durante os acontecimentos da dinastia carolíngia, por exemplo, que se fundou,
durante meados do século VIII, o que viria a ser chamado de Estado Pontifício.
Passam, a partir daí, a estabelecer um forte elo entre a esfera religiosa e o poder
real, introduzindo os clérigos ao conselho real e aos cânones força de lei. As
expansões territoriais do Império Carolíngio passaram a ser, paralelamente, as
expansões religiosas do cristianismo.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Para Franco Júnior (2001), ao se unirem contra um inimigo comum, a saber,
os lombardos, Igreja e dinastia carolíngia traçaram os novos rumos da sociedade
medieval. Nas palavras do autor:
[...]estreitavam-se, portanto, as relações Estado-Igreja, com predomí-
nio do primeiro na época de Carlos Magno. Os clérigos participavam
então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, os cânones ga-
nhavam força de lei. O monarca presidia os sínodos, punia os bispos,
regulamentava com eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, intervinha
mesmo em questões doutrinais. Os bispos eram nomeados pelo sobe-
rano, contrariamente à tradição canônica, mas o fato não era conside-
rado uma usurpação, e sim um serviço prestado pelo monarca à Igreja,
quase um dever do cargo. Suas conquistas territoriais abriram caminho
para a cristianização dos saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e bo-
êmios. Em virtude da crescente extensão do Império, ele instituiu mui-
tas paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses (FRANCO, 2001,
p. 71).

Passou a ser importante esta aliança entre o papado e o poder real dos francos,
embora, ao coroá-los, o papa ainda deixasse claro que este tem sua autoridade e
dignidade a partir da Igreja, e também, para o papado, trata-se de romper defi-
nitivamente com o Império Bizantino, com o Imperador de Constantinopla, que
deixa de encarnar a universalidade do poder imperial. Agora, o poder encon-
tra-se ao lado e sob a tutela da Igreja Católica Romana, contudo a Instituição
eclesiástica ainda tentaria ir mais longe.
Durante a conhecida Idade Média Central, a Igreja tentou criar uma teo-
cracia papal, buscando alcançar mais autonomia e dirigir a sociedade como um
todo, principalmente, com a fragmentação do Império Carolíngio, pois começou

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


165

a abalar também o poder monástico, uma vez que estavam interligados. Assim,
ao criarem suas regras, suas abadias, seus mosteiros, buscaram a maior auto-
nomia possível em relação aos poderes seculares. Foi nesse ínterim que a Igreja
passou a criar seus mecanismos de defesa, diante dos abusos por parte dos cava-
leiros e/ou senhores laicos.
Aqui, precisamos dar uma atenção redobrada para o desencadeamento dos
acontecimentos que virão, pois nesse momento ocorrerá uma inversão nos valo-
res cristãos. A Igreja, até o século VIII, seguia os valores da tolerância, na paz, da
não violência. Desse modo, até a fragmentação do Império Carolíngio, a Igreja
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

não tinha necessidade de ser militarizada. Por sempre estar dentro de um sistema
político e militar, como o Império Romano, num primeiro momento; alguns rei-
nos germânicos, na sequência; e, por fim, o Império Carolíngio, a Igreja não tinha
necessidade de autodefesa, uma vez que estas potências militares faziam tal tra-
balho por ela. Todavia, com a queda do Império de Carlos Magno (742-814), a
Igreja vê a necessidade de criar mecanismos de proteção contra as intempéries
do contexto e tomar as rédeas da sociedade de forma religiosa e militar, como
podemos notar com a Reforma Gregoriana.
É nesse momento, que acreditamos que a Igreja cria o que chamaremos de
mecanismos de defesa, em que estão inseridas as cruzadas e a inquisição. A Igreja,
aos poucos, ia deixando a proteção dada ao longo dos séculos por terceiros e, paula-
tinamente, vai se tornando autônoma e cria seus próprios mecanismos de proteção.
Outra medida que visava assegurar autonomia religiosa diante da fragmenta-
ção do Império de Carlos Magno foi instituir uma cúria que fosse capaz de eleger o
novo pontífice, pois, até então, houvera muita interferência de nobres e imperado-
res. Porém a reforma que teve mais peso datou do século XI, chamada de Reforma
Gregoriana, que levou o nome do seu criador, papa Gregório VII. Dentre os inúme-
ros benefícios indicados pelo papa para o fortalecimento do poder real, estavam a
superioridade do poder papal (significava que o papa não poderia ser julgado por
ninguém), a infalibilidade das decisões papais (afirmava que a fé romana nunca
errou e nunca errará), dentre outras medidas extremamente radicais, quando se
pensava no conflito que estas decisões geravam entre a Igreja e os grandes nobres
do período. Tanto é verdade, que Gregório VII, no fim de sua vida, vê-se obrigado
ao exílio, devido ao desentendimento com um imperador do período.

A Igreja do Período Medievo


166 UNIDADE IV

Mais conflitos entre o poder laico e o poder eclesiástico continuou existindo


durante muito tempo. Ora mais intensas, ora mais pacíficas, as disputas fizeram
parte das relações da Igreja com o poder secular. Tal fato demonstra claramente
que os poderes não mais compactuavam em todas as instâncias. Outra observação
é que, a partir do momento em que a Igreja passa a conflitar com esses pode-
res seculares, podemos perceber a força que ela adquiriu ao longo dos tempos.
De acordo com Franco Júnior (2001), no século XIII, encontravam-se reu-
nidas todas as condições para o exercício do poder papal sobre a comunidade
cristã. Nas palavras do historiador:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
“Em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fis-
caliza universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções,
reconhece novas ordens religiosas. Já em relação aos leigos, julga em
vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento,
abstinências), regulamenta a atividade profissional (trabalhos lícitos e
ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitu-
des), estipula os valores culturais” (FRANCO, 2001, p. 77).

Como afirma Franco Júnior (2001), a Igreja torna-se cada vez mais sacerdotal e
monárquica. Esse é, paralelamente, o momento em que vemos toda a sua força,
como também todo o seu enfraquecimento. Aos poucos, dentro da própria ins-
tituição começaram a surgir grupos que eram contra essa forma de organização
da Igreja. Segundo eles, ao criar força como organização secular, ela se afastou
do verdadeiro sentido religioso, preocupando-se com coisas que não eram da
sua real importância, como a administração de bens.
Assim, com o passar do tempo, surgiram ordens que, junto ao enfraque-
cimento que já vinha ocorrendo por parte de grupos de nobres, ajudaram a
balançar a hegemonia do poder eclesiástico. Contudo, o grande xeque-mate para
a intencionalidade da Igreja criar uma teocracia papal durante a Idade Média
veio da França dos fins dos século XIII. O rei Filipe IV e o Papa Bonifácio VIII
enfrentaram-se em um disputa que acabaria com qualquer tentativa de se criar
um sistema teocrático governado por um papa na Terra.
Segundo nos narra a história, em fins do século XIII, o papa em questão
proibiu que os eclesiásticos fizessem doações sem que a Sé Apostólica desse o
aval. Também vetou qualquer tentativa de taxação a partir dos poderes laicos
em relação à Igreja. Em contrapartida, o rei Filipe IV, que já se afirmava como

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


167

monarca no território francês, respondeu às medidas proibindo qualquer saída


de metais preciosos do país, principalmente aqueles direcionados à Santa Sé, e
também proibiu e baniu coletores de impostos da Igreja em seu território. Ainda
em meio aos protestos de ambos os lados, o rei prende um bispo e, posterior-
mente, em acusação de poder ilegítimo, encarcera o papa Bonifácio, em inícios
do século XIV. Embora solto posteriormente, Bonifácio VIII já não tinha mais
força para levar seus intentos adiante.
Tudo isso culminaria, em 1378-1417, no grande Cisma do Ocidente, na sepa-
ração dentro da própria Igreja, o que enfraqueceria ainda mais a sua posição.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

De acordo com Franco Júnior (2001), o envolvimento da França na Guerra dos


Cem anos tornava Avignon (a sede da Igreja) pouco confiável. Assim, dentro
do desencadeamento dos acontecimentos, o papa Gregório XI decide retornar à
Roma, porém, em resposta a tal atitude, instituiu-se um novo papa em Avignon.
Estavam declaradas as bases do Cisma do Ocidente, um papa em Roma, e outro
em Avignon. De acordo com as fontes históricas, durante esse período, até um
terceiro papado surgiu, sendo sediado em Pisa.
Veremos, agora, dois grandes mecanismos de defesa criados pela Igreja para
tentar manter o controle sobre os seus fiéis e seus territórios. Em busca de asse-
gurar o poder diante das intempéries vindas de fora e de dentro da Igreja, as
Cruzadas e a Inquisição assumiram papel fundamental na manutenção da ordem
eclesiástica do período medieval. Por isso, pedimos que você se atente às leituras
que virão, não de maneira a valorizar o período atual, mas buscando compreen-
der as relações da Igreja com o seu tempo. Vamos lá?

A Igreja do Período Medievo


168 UNIDADE IV

A IGREJA E AS CRUZADAS

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Após a Reforma Gregoriana e a crescente tomada de poder político, vinculado
ao eclesiástico, a Igreja se viu obrigada a se militarizar. As cruzadas são um bom
exemplo do processo bélico em que a Igreja adentrou. No ano de 1095, o papa
Urbano II convocou os nobres europeus a pegarem em armas e partirem em
direção ao Oriente para a retomada de Jerusalém, a Terra Santa. A partir desse
momento, apresenta-se uma mudança drástica na diplomacia europeia. A procla-
mação da Primeira Cruzada pela Igreja demonstra que a instituição conquistou
um grande poder que, anteriormente, somente os chefes de Estados possuíam,
a saber, declarar uma guerra. É importante ressaltar que as Cruzadas adquirem
um caráter extremamente religioso e, dessa forma, tornam-se guerras santas.
Neste momento, é importante explicarmos, ainda que de forma breve, o pro-
cesso de santificação das atividades militares pela Igreja Cristã, na Idade Média.
Assim, após a morte de Jesus Cristo, o cristianismo adquiriu um caráter
extremamente pacífico. Várias são as passagens da nova fé do ocidente em que
os relatos de pacifismo são preferíveis em detrimento da força e da violência. A
passagem do livro bíblico de Mateus pode demonstrar um pouco do que estamos
tentando mostrar. Aqui, é explicitado o caráter que a religião pretendia passar
aos seus seguidores. Em Mateus 5,38-40, é dito, desse modo, que:
[...]ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém,
vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face
direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo,
e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa(BÍBLIA DE JERUSALÉM,
Mateus 5,39-40).

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


169

Dessa forma, o cristianismo primitivo, ainda na Antiguidade extremamente


belicista, continua a ser uma religião do Novo Testamento: pacífica. Todavia, a
partir do momento em que o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império
Romano, com Teodósio e seu Édito de Tessalônica, em 380, essa religião, agora
institucionalizada, foi obrigada a alterar as suas bases teóricas em relação à
guerra, afinal, o cristianismo tornou-se a religião de um grande Império, e a
manutenção do Estado Romano fazia-se, como em todo grande império, por
meio da força, da guerra. Assim, a nova religião romana foi obrigada, em um
lento e inconsciente processo, a alterar os seus ideais sobre a guerra. De acordo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

com Moretti Junior (2015):


[…]o primeiro grande teólogo cristão que procurou defender a neces-
sidade da guerra, abandonando o total pacifismo defendido por escri-
tores como Eusébio de Cesaréia e Justino Martir, foi Santo Agostinho.
Diante das novas situações impostas à Igreja Cristã, Santo Agostinho
utilizou-se de seus conhecimentos acerca da filosofia antiga e das Sa-
gradas Escrituras para fundamentar um conceito de guerra justa ( MO-
RETTI, 2015, p. 23).

Esse conceito de “guerra justa” foi a base para o desenvolvimento do pensamento


de guerra cristão, durante toda a Idade Média. Após Santo Agostinho, a Igreja,
como forma de legitimar os atos bélicos, continuou a expandir tal pensamento.
Veremos, em Isidoro de Sevilha, na obra Etimologias, um desenvolvimento do
conceito de guerra justa bem similar ao que fora proposto por Santo Agostinho
de Hipona.
A participação militar da Igreja, na sociedade medieval, desenvolveu-se a
partir das justificações teológicas, do ato de fazer a guerra. Aqui, é importante
ressaltar que, com o desenvolvimento do conceito de guerra justa e o engaja-
mento da Igreja com os Reinos Germânicos, na Alta Idade Média, houve um
processo de cristianização dos povos bárbaros, paralelo ao processo que García
Fitz (2010) denominou militarização da Igreja. Com o passar da Alta Idade
Média, esse processo intensificou-se e, a partir do século IX, houve uma santifi-
cação do ato de fazer a guerra que, somado ao fortalecimento político da Igreja
com a Reforma Gregoriana, culminou nas Cruzadas. Dessa forma, é importante
reconhecer as Cruzadas como uma guerra santa, fruto de um longo processo de
militarização da Igreja Cristã.

A Igreja e as Cruzadas
170 UNIDADE IV

Neste momento, você deve estar se perguntando qual a diferença entre


guerra justa e guerra santa. Para o seu esclarecimento, faremos uma breve defi-
nição. Quando Santo Agostinho desenvolveu o conceito de guerra justa, a Igreja
passou a justificar o ato bélico, todavia, a guerra, apesar de justa, continuava a
ser algo pecaminoso e que deveria ser evitada pelos homens, sendo realizada
somente em casos muito bem delimitados. Com o desenvolvimento do con-
ceito de guerra santa, o pensamento e a posição da Igreja em relação à guerra
invertem-se completamente. Como explica Moretti Junior: “O que era passível
de penitência tornou-se motivo de salvação. E a guerra, além de justa, passou a

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ser considerada Santa (MORETTI, 2015, p. 29).
Tendo em vista esses esclarecimentos, podemos reforçar a ideia de que as
Cruzadas tenham sido mecanismos de proteção da Igreja quando, em 1095 um
papa ordena que seus fiéis adentrem o mundo muçulmano e reconquistem a
Terra Santa que, segundo o cristianismo, deveria estar em suas mãos. Claro que
não é a única motivação das incursões bélicas, contudo, como a nossa intenção
concentra-se em apresentar a relação da Igreja com as cruzadas, traremos infor-
mações que contribuam para a nossa visão.
A Primeira Cruzada, como dissemos, foi proclamada pelo Papa Urbano II,
em 1095, contudo é preciso ressaltar que a ideia de luta não começa, necessaria-
mente, com Urbano II, uma vez que já havia outras atividades bélicas travadas
anteriormente contra os islâmicos para reconquistar a terra perdida no território
europeu. A inovação do papa Urbano foi a transição de uma finalidade explici-
tamente política, como a realizada pelos reinos de Castela e Aragão para uma
finalidade religiosa. É o que afirma o historiador René Grousset. Nas palavras dele:
[…]até então as expedições contra os muçulmanos tinham tido, como
era o caso daquelas enviadas à Sicília ou aos portos da África do Norte,
um caráter puramente político. Mesmo na Espanha, onde, como vimos,
a reconquista não deixou de se apresentar como uma prefiguração da
cruzada, não se tratava, ainda, senão de um empreendimento restrito
à península, tendo em vista os interesses de Castela e Aragão. A idéia
de Urbano II, idéia-fôrça, ideia em movimento destinada a comover o
mundo, distinguiu-se dos empreendimentos anteriores por seu caráter
puramente religioso, originàriamente desinteressado, inteiramente in-
ternacional. Na luta contra o Islã,o Papa convocou tôda a cristandade
(GROUSSET, 1965, p. 22).

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


171

Aqui, vemos outra estrutura organizacional, pois a Igreja está em pleno processo
de militarização. Com Urbano II, a cristandade responde ao Islã com uma guerra
santa geral, propagando-se com muita rapidez. Claro que o ideal utilizado para a
sua militarização é, sem dúvida, um dos motivos da rápida resposta cristã. Ainda,
de acordo com o autor, tal fato ocorria por se tratar de uma ideia apaixonante,
capaz de suscitar uma mística coletiva. Nas palavras do autor:
[…]foram a ideologia e a mística criadas em Clermont por Urbano II
que agiram, em tôda sua plenitude, sôbre a psicologia das multidões e
provocaram êste extraordinário vigor espiritual de 1095. De início, vi-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

gor popular. À voz do Papa, respondeu o grito de “Deus o quer” (Deus


lo volt) que atravessou os séculos. Aquêles que o ouviram se “cruzaram”
(cosia-se uma cruz de tecido sôbre a roupa como sinal do voto presta-
do”. O impulso inicial tinha partido das massas: a pregação e o êxito de
um Pedro, o Eremita (aliás um pobre-diabo que os acontecimentos não
tardariam em reduzir a suas devidas proporções) são prova disso. Êste
impulso ganhou progressivamente a cavalaria e depois o mundo dos
barões, sem conseguir, desta vez, (o fato é significativo) atrair nenhum
dos príncipes reinantes: a razão de Estado permanecia, ainda, refratária
a êste grande movimento ideológico internacional (GROUSSET, 1965,
p. 23).

O fato de redimir os pecados daqueles que se propuseram a lutar pelo ideal cristão
foi um ponto decisivo nesta empreitada pelos fiéis. Imagine, você, uma socie-
dade em que o ideal de vida é o ascetismo religioso, existe uma oportunidade
de pureza. Com certeza, é um ponto de muito atrativo para aqueles que viam
no futuro uma morada no céu, e nada disso fica nas entrelinhas. O simbolismo
dessa relação com o divino dá-se desde a doutrina expressada por Urbano II até
a indumentária. Um símbolo muito comum entre os cruzados foi a cruz. Ela era
costurada nas roupas dos homens, ou sobre o ombro direito, ou sobre o peito.
Pode parecer pouco para um homem de nossa época, mas esse simbolismo, em
um período em que se vivia intensamente as relações cristãs, tais customizações
eram um sinal claro do engajamento dos homens.
De acordo com José Roberto Mello (1989), a assunção da cruz não foi um
gesto gratuito de inspiração súbita, mas tinha suas raízes no próprio Evangelho,
em que Cristo pede para que os seus seguidores renunciem-se a si mesmo e
tomem cada um a sua cruz e passem a segui-Lo. A indumentária é tão signifi-
cativa, que se torna o sinal mais característico do movimento bélico-religioso.

A Igreja e as Cruzadas
172 UNIDADE IV

Nas palavras do autor:


[…]numa civilização onde os gestos e figurações visíveis eram dotados de
profundo sentido simbólico, o ato de revestir-se com a insígnia da cruz
equivalia a uma garantia do cumprimento da missão, como se fora uma
assinatura no contrato feito entre o indivíduo e Deus. (MELLO, 1989, p.
7).

Por isso, mesmo que pareça algo sem sentido para nós da contemporaneidade, a
indumentária representava um contrato direto entre os cruzados e Deus, e aquela
era a forma mais explícita que encontravam para mostrar para todos esse acordo.

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Foi assim que o emprego da cruz se difundiu por todas as peregrinações dando
origem ao próprio nome de Cruzada.
Outra expressão da vinculação entre o religioso e o bélico, promovido pela
Igreja, é o “voto de cruzada”. Dava-se por uma promessa individual do futuro
cruzado na participação da peregrinação. De acordo com a historiografia, esses
votos continham o ideal de pobreza, de sofrimento e de um possível martírio
na mão dos infiéis. Tratava-se de uma solenidade pública na qual o indivíduo,
ao lado de outros, jurava lutar pelos ideais cristãos.
É importante frisar que a Cruzada esteve vinculada à Igreja desde a sua pri-
meira peregrinação até a sua última, totalizando oito grandes cruzadas. Contudo,
a partir da Quarta Cruzada, a religião torna-se mais uma justificativa para as moti-
vações materiais do que o seu principal objetivo. O fato é que, mais ou menos, a
Igreja utilizou-se da militarização para poder continuar defendendo a sua fé. E
concordemos, ou não, com esse processo, é importante perceber que os meca-
nismos de defesa foram fundamentais dentro da política religiosa tomada pela
cristandade, durante o medievo para a sua longevidade.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


173

A IGREJA E O TRIBUNAL DA SANTA INQUISIÇÃO

Como vimos, no tópico anterior a


Igreja já não era mais tida como a
única instituição da Europa medie-
val, sofrendo constantes incursões
do islamismo vindo do Oriente
Médio e do Norte da África.
Contudo, além desse inimigo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

externo explícito, a Igreja começou


a perceber que os ataques contra
os hereges já no começo da cris-
tandade não estava surtindo muito
efeito e que havia crescente perigo
dentro de suas paredes, que cada
vez tomava proporções maiores.
Assim, em 1231, o papa Gregório
IX, regulamenta o documento que
dá origem a um tribunal jurídico
por meio de uma instituição reli-
giosa. Os operadores da justiça, os
próprios membros do corpo eclesi- Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)6.
ástico. O possíveis infratores, qualquer
indivíduo minimamente suspeito de ir contra os dogmas estabelecidos pela Igreja.
A Inquisição funcionou tanto na Idade Média quanto na Modernidade
como um mecanismo de defesa da Igreja. Sua principal função era conter as
heresias e manter a ortodoxia religiosa, contudo, para compreender de fato a
institucionalização do poder jurídico vinculado à esfera religiosa, precisamos,
antes de tudo, analisar que tais mecanismos eram vistos pelos próprios medie-
vos como de fundamental importância para a ordem regular da sociedade. Era
uma maneira de fazer com que os desvios frequentes do caminho da verdadeira
fé fossem eliminados.

A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição


174 UNIDADE IV

Imagine uma visita que chega em sua casa e queira ensinar ao seu filho, ou
filha, que as regras de instrução que você deu até agora não são as melhores para
a formação dele. Provavelmente, isso lhe traria transtornos e, muito mais ainda,
você faria algo a respeito. Era mais ou menos esse o cenário que existia durante
os séculos que precederam os fins da Baixa Idade Média. O establishment que a
Igreja havia conseguido durante incansáveis esforços, ao longo de décadas esta-
vam sendo abalados. Essa Instituição precisava fazer algo a respeito.
É preciso ressaltar que os fatores que levaram a esses movimentos heréticos
nem sempre se restringiam à esfera religiosa. Todavia, como todas as relações

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tinham a Igreja como reguladora, é possível inferir como os acontecimentos inci-
diram diretamente na relação dos sujeitos com a ortodoxia cristã. Considerado
como crise do feudalismo, os séculos que decorreram da criação do Tribunal
Inquisitório trouxeram uma série de mudanças ao mundo europeu. Desse modo,
o renascimento do comércio, o crescimento urbano e as transformações cultu-
rais levaram aqueles sujeitos a refletirem sobre o seu próprio espaço no mundo
e, consequentemente, sobre a ação da Igreja em suas vidas.
Tais reflexões, paralelamente, trouxeram aos indivíduos novas interpreta-
ções, próprias dos choques de ideias e da capacidade reflexiva. Isso não agradou
em nada à Igreja que viu, assim como você, caso visse, o seu poder e autoridade
confrontados. Digo dessa forma, porque somos muito críticos com a Igreja desse
período. Porém, como já disse outrora, precisamos compreendê-la dentro do
seu contexto histórico, com as suas possibilidades e forma de imaginar as suas
relações. Assim, podemos perceber que a Igreja não foi má, nem boa, mas ape-
nas Igreja, constituída por homens com interesses. Desse modo, foi buscando
responder as críticas aos seus dogmas que a Igreja Romana pensou métodos de
investigação para poder romper esse mal e continuar levando a palavra de Cristo
a todos os homens. Só ela tinha esse direito, só ela e os seus representantes dire-
tos tinham este poder.
A heresia é tomada, aqui, como a ruptura com o dominante. Crítico e, muitas
vezes, mais racional do que espiritual, o herege foi o grande calcanhar de Aquiles
do medievo. De acordo com a historiadora Anita Novinsky (1982), a heresia é
uma ação contra a ordem estabelecida pela Igreja, que se preocupava em pre-
servar a estrutura social tradicional. Nas palavras da autora:

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


175

[...] a Igreja Romana sentiu-se ameaçada por uma série de críticas que
estavam sendo feitas aos dogmas sobre os quais se apoiava a doutrina
cristã. Essas críticas e dúvidas sobre a verdade absoluta da mensagem
da Igreja aumentaram gradativamente, e os indivíduos que partilhavam
dessas idéias contestadoras da doutrina oficial do catolicismo eram
chamados hereges (NOVINSKY, 1985, p. 1982).

Segundo a autora, foi buscando responder as ameaças à fé e à tradição já consoli-


dadas que a Igreja busca meios de combater esses hereges. Vamos, rapidamente,
passar pela história dos mecanismos que a Igreja utiliza para descobrir quem é
o/a praticante de heresia e a partir daí, quais os meios que o Tribunal Inquisitório
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

encontra para punir os seus desviantes.


Sabemos, de acordo com a historiografia, que a Alta Idade Média e a Baixa
Idade Média foram períodos de muitas divergências teórico-religiosas a respeito
da ortodoxia da Igreja. Um primeiro meio que essa instituição encontrou para
fiscalizar mais de perto as questões foi nomear bispos responsáveis por visitarem
algumas paróquias que pudessem estar propagando uma doutrina divergente da
oficial. Assim, em 1184, criou-se no Concílio de Verona, o regimento que dava
direito e o norte para que, pelo menos a duas vezes por ano, se fizesse o proto-
colo de inspeção.
Para que esta linearidade seja séria, é preciso dizer que não existe uma data
“x” a definir o exato momento em que a Inquisição foi estabelecida. Claro, temos
algumas datas como as que apareceram nesse tópico e aparecerão adiante, con-
tudo nenhuma delas é esse nosso momento “x”. São apenas marcas de alguns
ordenamentos eclesiásticos que definem estratégias para a sua consolidação.
Desse modo, assim como Novinsky (1982), podemos afirmar que a Inquisição,
no medievo, deu-se por um longo processo em que a Igreja e o Papado buscavam
responder às ameaças ao seu dogma. Para Novinsky, “Não podemos determinar
o momento exato em que a Inquisição medieval foi estabelecida. Foi produto de
uma longa evolução durante a qual a Igreja e o Papado sentiam-se ameaçados
em seu poder” (NOVINSKY, 1982, p. 15).
Aqui, é de se pensar a Igreja como uma espada de dois gumes, e forte poder
que a Instituição propõe exercer nesse momento constata exatamente o grau
de enfraquecimento pelo qual ela está passando. Só se coloca em prática políti-
cas de mecanismo de defesa, quando o seu poder está sendo abalado. Por isso,

A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição


176 UNIDADE IV

podemos dizer que, apesar do forte controle que a Igreja exercia naquele período,
as heresias escapavam-nas pelas mãos e infectavam o medievo. De acordo com
Novinsky (1982, p. 16), não foi possível conter a difusão das heresias, principal-
mente, dos cátaros ou albigenses, contestadores dos dogmas da Igreja e que, no
sul da França, constituíram-se numa espécie de Igreja contra a Igreja de Roma.
Infectos, assim chamados os lugares onde a doutrina ortodoxa da Igreja Católica
de Roma não galgava hegemonia, passaram a ser fiscalizados com mais intensi-
dade, constituindo-se num espaço que precisava de mais atenção das autoridades
eclesiásticas, aparecia, desse modo, a Inquisição delegada. A esse respeito, a pas-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sagem a seguir de Novinsky é bem esclarecedora:
[…]medidas severíssimas foram tomadas pela Santa Sé, e os eclesiás-
ticos especialmente enviados aos lugares chamados “infectos” cons-
tituíam a chamada “Inquisição delegada”. A “Inquisição delegada” foi
criada pelo papa Gregório IX, que se tornou o coordenador e dirigente
principal da luta contra os apóstatas. Domingos de Gusmão, criador da
ordem dos dominicanos, organizou em 1219 uma confraria chamada
“milícia de Jesus Cristo”, e seus membros eram doutrinados e prepara-
dos para se lançarem à frente da batalha pela preservação da pureza do
catolicismo, o catolicismo sem crítica e sem dúvidas, e ainda a tomar
armas para lutar contra os hereges. Esses milicianos de São Domingos
foram os primeiros a utilizar e aplicar técnicas de crueldade e violência,
que foram copiadas nos séculos XVI, XVII e XVIII pela Inquisição mo-
derna (NOVINSKY, 1982, p. 18).

Com o excerto supracitado, podemos perceber que a Igreja passa a delegar uma
“comissão” encarregada de encontrar, julgar e condenar os hereges. Assim, com
base em denúncias, estava preparado o terreno para a perseguição e, quiçá, eli-
minação dos desvios contra a fé. Reparem que a Igreja utiliza-se de um artifício
muito interessante: a delação. Ora, cabe a todos os indivíduos ajudar a Instituição
de Cristo na luta pela purificação terrena. Ver e omitir era considerado pecado
contra Deus, portanto, a não omissão fazia-se necessária para que o intento
tivesse resultados positivos. Como um traidor de Deus, também era visto quem
ocultasse a heresia.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


177

Malleus Maleficarum, o conhecido Martelo das Bruxas é o famoso livro do


monge alemão Heinrich Kramer, considerado um manual de caça às bruxas,
que continha instruções divididas em três partes, a saber, explicava como se
identificar uma bruxa, quais os seus poderes compunha a segunda parte e,
por fim, quais eram os processos cabíveis a essas mulheres com pacto com
o demônio.
Fonte: o autor.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Para o historiador João Bernardino Gonzaga (1994), o papel do Santo Ofício,


durante os anos que se seguiram a Inquisição, foram de intensa perseguição con-
tra os infiéis e, assim como defendemos, a inter-relação entre o Tribunal e os fiéis
foi fundamental para o seu êxito. Nas palavras do autor:
[…]Inútil tentar alguém escapar-lhe. Dotado de natureza tentacular, o
Santo Ofício via tudo, se infiltrava por toda a parte, até no recesso dos
lares, onde as paredes tinham ouvidos. Obrigava os fiéis a se tornarem
espiões e delatores, dessa maneira montando densa rede de informan-
tes ocultos. Graças a isso, manteve perfeito controle social, exigiu mo-
delos de comportamentos, impediu o livre debate e o livre arbítrio, su-
focou dissidências, exerceu a censura e assim - eis a absurda conclusão
que nos impingem - a Igreja teria conseguido entravar por longo tempo
o desenvolvimento cultural da humanidade (GONZAGA, 1994, p. 17).

Como o autor bem constata, é um erro absurdo concluir que esse período é um
momento de obscurantismo cultural. Já mencionamos essa discussão no tópico
Idade Média: idade das trevas? Contudo há, ainda, quem, tentando enxergar o
passado sem os olhos do passado, cometa tais conclusões equivocadas. O fato
a ser destacado é que a Inquisição estava por todos os lados, fazendo parte do
cotidiano medieval a partir da sua institucionalização, e nem sempre era um
peso para a comunidade geral denunciar e ver alguém sendo punido por seus
crimes de heresia.
Assim, precisamos imaginar que, de fato, a Igreja não teria conseguido ir
tão longe nas perseguições se não fossem os inúmeros beatos que a auxiliaram

A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição


178 UNIDADE IV

nesse processo. Aliás, é preciso constar que, durante muito tempo, a condena-
ção em praça pública era um evento imperdível. De acordo com o historiador
Johan Huizinga, em sua obra O outono da Idade Média, as execuções realizadas
pelo Tribunal Eclesiástico consistiam numa festividade pública, consideradas,
por ele, como um espetáculo pensado e repensado para que nada faltasse.
Foi assim que o Ocidente conheceu a Inquisição, como um mecanismo que
buscou limpar a Igreja novamente. Precisamos notar, é claro, que o Tribunal da
Santa Sé não foi desmedido, havia técnicas específicas para que tudo ocorresse de
acordo com os princípios sagrados. Os historiadores Michael Baigent e Richard

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Leigh (2001) descrevem as técnicas do processo inquisitório de maneira extre-
mamente organizada. Nas palavras dos autores:
[…]às vezes, um Inquisidor e seu séquito baixavam sem aviso numa
cidade, aldeia, universidade, ou, como em O Nome da Rosa, numa
abadia. O mais comum era que sua chegada fosse prodigamente pre-
parada de antemão. Era proclamada em ofícios nas igrejas, anunciada
em elaboradas proclamações nas portas das igrejas e quadros de avi-
sos públicos; e os que sabiam ler logo informavam os que não sabiam.
Quando o Inquisidor chegava, era em solene procissão, acompanhado
por sua equipe de escrivães, secretários, consultores, auxiliares, médi-
cos e criados - além, muitas vezes, de uma escolta armada. Depois de
assim orquestrar seu aparecimento, ele convocava todos os moradores
e eclesiásticos locais, aos quais pregava um solene sermão sobre sua
missão e o objetivo de sua visita. Convidava - então - como se fizesse
magnânimos convites para um banquete - todas as pessoas que qui-
sessem confessar-se culpadas de heresia a apresentar-se (BAIGENT;
LEIGH, 2001, p. 47).

Imaginemos que as pessoas não se sentiam tão animadas a confessarem. Aliás,


muitas vezes, elas mesmas desconheciam a intensidade que os seus atos poderiam
ter diante daquele tribunal. Com exceção dos mais letrados, que não concor-
davam com alguma doutrina eclesiástica, a maioria da população era muito
simples durante esse período, com a preocupação máxima de sobrevivência e
glorificação à Deus.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


179

Imagine o contexto medieval em que a mulher dificilmente conseguiria ou-


tro marido, caso o seu atual viesse a falecer por causas naturais ou guerras.
Ela, provavelmente, buscaria em suas possibilidades a sua sobrevivência.
Imagine-se no lugar dessa mulher, correndo o risco de ser morta pela Inqui-
sição. Qual atitude você tomaria?
Fonte: o autor.
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De acordo com a literatura, depois do anúncio de entrada de confissão, aqueles


que estavam na lista como possíveis hereges recebiam mais um prazo para se
denunciarem e retornarem à Igreja sem muitas punições. Em troca de uma peni-
tência mais amena, a Igreja esperava que eles entregassem outros. Imagine-se
num cenário de delação premiada em que acontecia mais ou menos esta pro-
posta, durante o processo inquisitório medieval. Ao delatar um companheiro que
praticava as mesmas heresias, o delator amenizava sua pena, passava-a adiante
e, assim, sucessivamente. A Igreja tinha o interesse último na quantidade. Dessa
forma, transformava todos os membros da comunidade visitada, de livre e espon-
tânea vontade, ou por pressão, em espiões do Santo Ofício.
Espero que tenham aproveitado esta unidade, principalmente, para compre-
ender que a Igreja, na Idade Média, não foi nem melhor nem pior como muitos
pintam, mas uma instituição formada por homens com interesses que ora con-
vergem para os da maioria da população, ora divergem deles. Bons estudos e
até a próxima.

A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição


180 UNIDADE IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao encerrarmos esta unidade, esperamos que você, estudante, tenha compre-


endido a importância da instituição Igreja no medievo. Ela, como mostramos,
era a responsável pela regulação de várias relações sociais. Assim, também é
preciso dizer que, a partir das periodizações da Idade Média, pudemos perce-
ber que a Igreja não era uma instituição estática. Longe disso. Ela fez tudo o que
foi possível para se alterar ao longo dos anos que se sucederam os mil anos do
período medieval. A Igreja transforma-se, em vários momentos, estabelece e

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quebra alianças de acordo com os seus interesses, busca ajuda do poder secular
dos grandes monarcas bem como quebra os acordos a partir do momento em
que não mais favorecem-na. Mais que isso, busca apoio do seus próprios segui-
dores para travar uma guerra santa em que, segundo o Papa e outros membros
do eclesiástico, assegurava o reino de Deus a partir da morte de outros, a saber,
os infiéis. Também forma o seu próprio séquito para defender a pureza da sua
instituição, evitando que os seus dogmas se corrompam.
Foi o que possibilitou instituições como as Cruzadas e a Inquisição a ganha-
rem espaço social. No meio de uma guerra contra hereges e opositores à fé cristã,
a Igreja conseguiu, por meio desses mecanismos de defesa, manter o status quo
durante muitos séculos.
Vemos, portanto, que longe de ser uma Idade das Trevas, como outrora a
historiografia nos fez pensar, ou até mesmo uma época áurea, como outros his-
toriadores discorreram sobre a Idade Média, não é, e nunca será, nem pior nem
melhor do que outro período, vai valorá-la e não compreenderá o passado pelo
passado. Dito isso, encerramos a unidade, levando-os a mais uma reflexão. Essa
não possui resposta simples, mas imagine-se por um minuto dentro de cada um
desses períodos históricos pelos quais perpassam a Igreja, na Idade Média. Tenha
empatia por essa instituição a ponto de conseguir olhá-la com olhos menos puni-
tivos e mais interpretativos.

AS RELAÇÕES CRISTÃS NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE AS CRUZADAS E A INQUISIÇÃO


181

1. A unidade IV procura seguir uma linha em que a criação tanto a Inquisição, como
as Cruzadas, são vistas como:
a) Regimentos internos da Igreja.
b) Propostas bíblicas de respostas aos contrários à cristianização.
c) Pautas do movimento dominicano.
d) Bulas Franciscanas que visavam combater a heresia.
e) Mecanismos de defesa da Igreja.
2. Analise as sentenças a seguir:
I. De acordo com o pensador Franco Cambi (1999), em sua obra História da pe-
dagogia, quando pensamos no nível cultural e espiritual da medievalidade,
precisamos elencar a consciência cristã como a principal fonte, ou seja, a Igre-
ja como melhor difusora desse conhecimento.
II. Quando nos referimos à Igreja medieval, estamos nos remetendo estritamen-
te à instituição de viés católico. Não é para menos, uma vez que a nossa deli-
mitação histórica trabalha, o mais tardar até o século XV e as primeiras Refor-
mas que dão início a outra vertente eclesiástica, ganha corpo a partir do XVI.
III. Conceitualmente, divide-se a Idade Média em 15 micro períodos que expli-
cam toda as estruturas dos feudos, bem como da vassalagem e do senhorio.
IV. A Igreja, até o século VIII, seguia os valores da tolerância, na paz da não violên-
cia. Desse modo, até a fragmentação do Império Carolíngio, a Igreja não tinha
necessidade de ser militarizada.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
182

3. Assinale Verdadeiro (V) ou Falso (F):


( ) O envolvimento da França na Guerra dos Cem anos tornava Avignon (a sede
da Igreja) pouco confiável. Assim, dentro do desencadeamento dos aconte-
cimentos, o papa Gregório XI decide retornar à Roma, porém em resposta a
essa atitude, instituiu-se um novo papa em Avignon. Estavam declaradas as
bases do Cisma do Ocidente: um papa em Roma, e outro em Avignon.
( ) A Primeira Cruzada foi proclamada pelo Papa Bento XVI, em 1095, contudo, é
preciso ressaltar que a ideia de luta não começa, necessariamente, com Bento
XVI, tendo em vista que já havia outras atividades bélicas travadas anterior-
mente contra os islâmicos para reconquistar a terra perdida no território eu-
ropeu.
( ) A Inquisição funcionou tanto na Idade Média quanto na Modernidade como
um mecanismo de defesa da Igreja. Sua principal função era conter as here-
sias e manter a ortodoxia religiosa.
4. Descreva a participação da Igreja nas Cruzadas.
5. Descreva a participação da Igreja na formação do Tribunal Inquisitório.
183

O sábado de um típico camponês na França do século 10 começa às 5 da manhã. Ele, a


esposa e os quatro filhos acordam em sua casa de um único cômodo, comem mingau de
pão e dão início à labuta. O pai e os mais velhos, de 12 e 14 anos, vão para o campo - a
colheita de trigo e cevada está atrasada. A família passou os dois dias anteriores cum-
prindo o trabalho obrigatório nas terras do senhor feudal. Há muito o que fazer. a mãe e
os mais novos, de 6 e 8 anos, vão lidar com a horta e as galinhas. Todos fazem uma rápida
pausa para comer (sempre que possível, peixe). O batente só termina quando já está
escuro. Eles dormem juntos, sobre um amontoado de palha, iluminados por velas de
sebo e aquecidos por uma pequena fogueira no centro do cômodo. Descansam felizes.
O dia seguinte é o único dia da semana em que a rotina árdua muda um pouco: seguem
o comando dos sinos e vão à missa. Rezam por suas almas e são orientados mais a temer
o diabo que a adorar a Deus.
Assim viveram, durante dez séculos, 90% dos habitantes do Velho Continente. Do ponto
de vista deles, a Idade Média foi uma época de contrastes sociais profundos, violência,
doenças (a metade dos bebês não chegava aos 2 anos) e tímido avanço tecnológico,
à mercê das intempéries da natureza. Nessa era de preces, pão e fuligem, as pessoas
mais simples morriam cedo, comiam quando dava e se submetiam às determinações
dos senhores e dos padres. Já a nobreza construía castelos, cobrava impostos pesados e
devorava até 9 mil calorias diárias. Um singelo botão de ouro no vestido de uma dama
equivaleria a 140 dias de trabalho de um camponês.
A Idade Média é delineada pouco antes da data oficial de origem: 4 de setembro de
476, quando o imperador Rômulo Augusto é destronado. Desde os anos 300, a falta de
controle de Roma sobre as províncias dava margem para as constantes invasões dos
bárbaros - os estranhos povos do norte que não falavam latim. Moradores de áreas iso-
ladas estavam sujeitos a ondas de saque permanentes. Na falta de um governo central
forte, o jeito foi pedir ajuda aos ricos mais próximos. “No século 4, começa a surgir uma
relação de dependência. Os camponeses oferecem tudo o que têm: a força de trabalho.
Em troca, conseguem viver com o mínimo de paz”, diz Paul E. Szarmach, diretor da Me-
dieval Academy of America. Essas relações são mediadas por códigos de honra, obriga-
ções claras, e acabam disseminadas. Normas de conduta são herdadas da seita judaica
que havia se desenvolvido e ocupado corações e mentes do império. Entre os legados
romanos incorporados pela Idade Média, o cristianismo é o mais marcante. De reis a
agricultores, é mandatório seguir os ditames da Igreja.
Mosteiros se espalham pelo continente e logo se configuram como o grande (e único)
centro de saber. “Em tempos sem imprensa e de ampla maioria de analfabetos, as biblio-
tecas dos mosteiros são um instrumento de controle. Mesmo nobres ricos só têm acesso
a obras consideradas aceitáveis”, afirma Patrick Geary, historiador da Universidade da
Califórnia. Rica, aliás, também é a Igreja. Prospera com o dízimo e doações de terra, o
que permite a proliferação das construções. As abadias funcionam como abrigo para os
desvalidos. E para os enfermos, claro. As doenças são vistas como manifestação do mal.
Os tratamentos consistem em emplastos (o mais comum é feito de mel e cocô de pom-
184

bo), sangrias e orações. A ciência média é rejeitada, e os conceitos, oriundos dos gregos,
não identificam que enfermidades típicas do período - disenteria, ergotismo (envenena-
mento por cereal contaminado), peste bubônica - resultam das más condições de higie-
ne e saneamento. O camponês medieval toma banhos semanais (mais do que muitos
europeus do século 19), mas dorme com animais dentro de casa e faz suas necessidades
ao relento. Mesmo os castelos só têm uma privada; não há tratamento de dejetos.
Os religiosos trabalham em suas próprias plantações. Mas nem o serviço braçal muda
certos hábitos. São Jerônimo (347-420) dizia que quem aceitou a fé e se lavou no sangue
de Cristo não precisava mais aguar o corpo. Por isso os monges fugiam à regra e não
tomavam banho mais do que cinco vezes… por ano. Em dias comuns, consomem 1,5
quilos de pão (muitos usam grandes fatias no lugar de pratos), com 200 gramas de car-
ne e queijo, e 1,5 litro de vinho ou cerveja. Essa dieta de 6 mil calorias, sem saladas, não
ajuda muito a melhorar a média de vida da época: 35 anos. Nada disso quer dizer que
alguém que estivesse livre das crises de fome, provocadas principalmente por variações
climáticas inesperadas. Um período de aquecimento global atingiu o planeta entre 800
a 1300, o que, no geral favoreceu a produção de alimentos. Mas o desabastecimento
existia e atingia até os abastados. O camponês era mais vulnerável, comia menos. “Por
incrível que pareça, entretanto, os pobres comiam muito melhor do ponto de vista nutri-
cional, com maior variedade”, diz Ricardo da Costa, medievalista da Universidade Federal
do Espírito Santo.
Exceção feita a poucos personagens, como Carlos Magno (747-814) e Luís IX (1214-
1270), os reis têm pouquíssimo poder para além dos muros de suas propriedades. Entre
os séculos 9 a 12, a Europa se divide em cerca de 60 feudos. São os senhores feudais que
controlam a vida dos arredores. A partir de suas casas fortificadas, que evoluem até se
tornar castelos no século 10, eles vivem cercados por empregados. O camponês passa a
metade de seu tempo útil trabalhando no chamado manso senhorial, a área de plantio
do latifúndio. Ele mesmo vive e cultiva seu alimento nos arredores. Tudo o que planta
ali é seu, mas não tem direito a manter em casa fornos ou moinhos. Para usá-los, paga
aluguel na forma de produtos que colheu nas terras sob seu controle, patrimônio do
senhor.
Fonte: adaptado de Cordeiro ([2017], on-line)7.
MATERIAL COMPLEMENTAR

O OUTONO DA IDADE MÉDIA


Johan Huizinga
Editora: Cosacnaify
Sinopse: o historiador holandês Johan Huizinga busca, por meio
desta obra, apresentar um panorama dos anos finais da Idade Média,
categorizada pela historiografia como Baixa Idade Média. Repleto
de exemplos sobre a mentalidade e o cotidiano medieval, a obra
apresenta uma infinidade de contrastes presentes na vida dos sujeitos. Temas, como cavalaria, amor,
heroísmo, vida e morte, têm espaço cativo na análise narrativa desse historiador.
Comentário: embora o tamanho assuste um pouco o leitor não muito assíduo, a obra O outono da
Idade Média é muito prazerosa de se ler, trazendo uma análise acurada do que foram, segundo sua
interpretação, os últimos suspiros do mundo medieval. É também, para os mais familiarizados com a
discussão historiográfica sobre a Idade Média, uma obra que debate a visão de que a modernidade
geminava-se nesses tempos. Segundo o historiador, precisamos deixar de enxergar contornos
modernos nesse momento e ver a Baixa Idade Média em todo o seu esplendor e decadência.

O sétimo Selo (Det sjunde inseglet)


após dez anos, um cavaleiro (Max Von Sydow) retorna das Cruzadas
e encontra o país devastado pela Peste Negra. Sua fé em Deus é
sensivelmente abalada e, enquanto reflete sobre o significado da
vida, a Morte (Bengt Ekerot) surge à sua frente querendo levá-lo,
pois chegou sua hora. Objetivando ganhar tempo, convida-a para
um jogo de xadrez que decidirá se ele parte com a Morte, ou não.
Tudo dependerá da sua vitória no jogo, e a Morte concorda com o
desafio, já que não perde nunca.
Comentário: Ao inserir temáticas, como morte, cruzadas, fé e
religião o filme torna-se fundamental do ponto de vista reflexivo.
Todas temáticas são importantes para se ter uma amplitude do que se pretende descrever
quando se fala do homem medieval. A relação do cavaleiro com a morte em sua odisseia
particular nos releva os entraves dos quais estavam sujeitos os cavaleiros medievais no seu
retorno ao lar.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BASCHET, J. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de


Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006.
BIAGENT, M.; LEIGH R. A Inquisição. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro:
Imago, 2001.
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ção Editora da UNESP (FEU), 1999.
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1252). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá, Ma-
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Em: <http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/idade-media/a-vida-na-ida-
de-media.phtml#.WVqGvoTyvIV>. Acesso em: 15 mai. 2017.
GABARITO

1. E.
2. D.
3. V - F - V.
4. Espera-se que o aluno/a discorra de forma panorâmica sobre os principais pon-
tos em que a Igreja e as Cruzadas mantiveram uma estreita relação, partindo
desde as suas origens até os acontecimentos em que as Cruzadas passam a
representar outros objetivos para além do religioso. Também, espera-se que o
aluno/a comente sobre como esse movimento belicista tinha o caráter protetor
da Igreja, ou seja, um mecanismo de defesa, tese central adotada pelo capítulo.
5. Perceber que a Inquisição também faz parte dos mecanismos de defesa da Igre-
ja Católica e que é essencial para o status quo da ordem social medieval. Traçar
os principais acontecimentos que levaram a instituição de um poder jurídico
dentro dos muros da Igreja.
Professor Me. Saulo Henrique Justiniano Silva

V
UM MUNDO EM

UNIDADE
TRANSFORMAÇÃO: A CRISE
INSTITUCIONAL DO CATOLICISMO
E A REFORMA PROTESTANTE

Objetivos de Aprendizagem
■■ Estudar a religiosidade europeia, em finais do século XV e início do
século XVI.
■■ Compreender a estruturação econômica na Europa, pós Peste Negra.
■■ Entender as disputas monárquicas na Europa Moderna.
■■ Observar a expansão turca no século XV e XVI, e o que isso
representou na mentalidade dos homens modernos.
■■ Analisar as transformações religiosas na Europa do século XVI e as
contribuições deste período para a eclosão da Reforma Protestante.
■■ Explorar os usos políticos da Reforma Protestante.
■■ Estudar os motivos que levaram Henrique VIII a se desvencilhar da
Igreja Romana.
■■ Entender a motivação e as principais ideias presentes no pensamento
calvinista.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Angústia Escatológica
■■ Economia
■■ Absolutismo Monárquico: Habsburgos e Valois
■■ Turcos Otomanos
■■ As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante
■■ Situação Política na Europa Pós-Reforma
■■ A “Reforma” Inglesa
■■ A Reforma Calvinista
191

INTRODUÇÃO

Enfim, chegamos à última unidade desta disciplina. Você já aprendeu sobre a


História dos Hebreus, sobre o nascimento do cristianismo, sobre os pais da Igreja,
sobre as peculiaridades adotadas pela igreja católica para se consolidar como
a detentora da verdadeira fé cristã, entre outros assuntos. Agora, estudaremos
as transformações que ocorreram no campo religioso europeu, no século XVI.
Antes de entrar propriamente no assunto, como bons estudantes de História,
compreenderemos o cenário que possibilitou tais transformações e veremos o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que estava acontecendo, na Europa, do ponto de vista econômico, social, polí-


tico e, é claro, religioso.
Optei por iniciar essa unidade com os temores que existia entre algumas par-
celas do ocidente europeu sobre o fim do mundo. Não foi à toa que dei o título
de Angústia Escatológica. Nesse momento, acreditou-se, segundo alguns auto-
res, como Jean Delumeau, que o mundo acabaria. Para alguns era a iminente
volta de Jesus, já para os judeus, a vinda do Messias.
Também trataremos sobre a crise de abastecimento que assolou a Europa na
virada do século XV para o XVI, o empoderamento real frente ao poder papal
e a luta das famílias, Valois, representando a França, e os Habsburgos represen-
tando a Espanha e o Sagrado, ou Sacro, Império Romano Germânico. Veremos
a ascensão dos turcos e o medo que eles causaram na Europa.
A temática central desta unidade é como um movimento que se iniciou no
interior da saxônia pôde triunfar sobre a força milenar da Igreja Católica e quais
os principais passos adotados pelos reformadores para consolidar a segunda
maior vertente cristã do mundo.
Antes de iniciarmos nossa jornada, é importante esclarecer que, apesar de
algumas vezes usarmos o termo Alemanha, o país não existia propriamente
naquele momento histórico, o que havia era um conglomerado de estados, gover-
nados por príncipes e autoridades locais, como condes e barões, que se uniam
no chamado Sagrado Império Romano Germânico, por sua vez, governado por
um Imperador, que, na época dos principais acontecimentos citados nesta uni-
dade, era Carlos V.
Bons estudos.

Introdução
192 UNIDADE V

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ANGÚSTIA ESCATOLÓGICA

Os anos que sucederam a grande peste foram marcados por um sentimento des-
crito por Jean Delumeau (2009) como “angústia escatológica”. As transformações,
que vão além das mazelas proporcionadas pelas epidemias, deram vazão a suces-
sivas interpretações dos acontecimentos reais como predecessores dos últimos
tempos. A crença largamente difundida pela Igreja Católica sobre os temores
do ano mil, pautada nos textos bíblicos, foi excessivamente repetida no início
da modernidade. A pergunta a ser feita é: Por que no início da modernidade?
Não seriam mais oportunas tais pregações no século X ou XI, por razão da pas-
sagem do milênio?
Para Delumeau (2009, p. 303) a resposta a essas perguntas é que em “todo
decorrer da Idade Média, a Igreja meditou sobre o fim da história humana”, no
entanto, apesar de a Europa, no período que vai do fim do império Carolíngio
ao início do renascimento comercial, ter sofrido grandes mazelas, não existiam
meios de difusão em massa que pudessem alcançar os mais diversos estra-
tos da sociedade, visto também que o ocidente medieval era “demasiadamente
fragmentado, demasiadamente pouco instruído para ser permeável a intensas
correntes de propaganda” (p. 319). Trezentos anos depois, já existia uma ampla
elite letrada e urbana que, facilitada pela imprensa de Gutemberg, ampliou a cir-
culação de ideias.

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As sociedades europeias dos séculos que marcam o início da modernidade


tinham uma religiosidade exacerbada, digo religiosidade, entendendo-a como
formas e práticas para além do limite institucional, vivenciados nas mais diversas
configurações. No entanto, o discurso dos religiosos, como padres, bispos, arce-
bispos e freis, sempre teve grande recepção e repercussão no ocidente europeu.
Trabalhar com o medo sempre foi, desde os tempos imemoriais, uma exce-
lente tática de se fazer ouvir, um trunfo. Neste aspecto, as mazelas pelas quais
a sociedade passava serviu de munição para Igreja, que intensificou a ideia de:
Arrependei-vos, pois o fim está próximo.
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Na segunda metade do século XIV, a ascensão do forte medo escatológico


estava ligada à difusão da Peste Negra e também dos problemas relacionados ao
grande cisma que dividiu a cristandade ocidental entre Avignon e Roma, colo-
cando em xeque a legitimidade entre as massas de excomungados de ambos os
lados. Nesses tempos, estoura a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra,
no início, impulsionada por disputas sucessórias ao trono francês, depois acen-
tuada pela dominação da rica região de flandres. São desse período as revoltas
populares, ocasionadas nas regiões onde se instalaram os conflitos da guerra em
questão, ocasionados pelos altos impostos cobrados para a manutenção do conflito.
A arte contribuiu, em grande medida, para o reforço da ideia do medo esca-
tológico, como observou Galienne Francastel, citado por Jean Delumeau (2009,
p. 323) em sua História do Medo no Ocidente:
[…]em toda a Europa do século XIV, a ilustração do Apocalipse é um
grande tema em moda. Começando como tantos outros, na escultura
monumental francesa (...), estende-se progressivamente à miniatura,
ao retábulo e ao afresco. Atinge seu apogeu de difusão no século XIV.

O cenário em prol do medo, no ocidente europeu, estendeu-se para além do


século XIV, adentrou o XV e chegou ao ápice no início do século XVI, isso gra-
ças aos novos rumos que a história europeia tomou. Ernest Mâle, também citado
por Delumeau (2009, p. 304), exprime a ideia de que:
[…]as ameaças do Apocalipse nunca preocuparam tanto as almas (...).
Os últimos anos do século XV e os primeiros anos do XVI indicam
um dos momentos da história em que o Apocalipse apoderou-se mais
fortemente da imaginação dos homens.

Angústia Escatológica
194 UNIDADE V

Em grande medida, é natural pensar que esses medos tiveram íntima relação com
a crescente perda de poder por que a Igreja estava passando, além dos confli-
tos no interior da cristandade, ocasionados pelas lutas por tronos dos monarcas
que, no momento em questão, asseguravam uma autonomia em relação ao poder
papal, proporcionado pela centralização de poder, que a historiografia conven-
cionou chamar de Estado Absolutista, pela Reforma Protestante liderada pelo
monge agostiniano Martinho Lutero e, principalmente, pelo avanço dos otoma-
nos, que, em 1453, já tinham tomado um dos maiores símbolos da cristandade,
a cidade de Constantinopla, a capital do império Bizantino.

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Entre os cristãos, muitos acreditavam no fim dos tempos e na instauração
do juízo final e na vinda do anticristo, que viria para confundir os fiéis e os leva-
rem para o engano eterno. Em finais do século XV, frei Francesco Meleto escreve
que “os judeus converter-se-ão em 1517” (MELETO apud DELUMEAU, 2009,
p. 327) e ainda assegura que:
[…]três sinais anunciarão a próxima vinda do anticristo: a queda do
rei da França, a de Frederico de Aragão e um novo cisma na Igreja com
a instalação de um antipapa pelo imperador. Roma sofrerá os piores
tormentos (MELETO apud DELUMEAU, 2009, p. 328).

O pensamento de frei Meleto encontrou ecos no século XVI, mas vale levar em
consideração que os textos religiosos são polissêmicos, ou seja, neles cabem
diversas interpretações. A leitura de Meleto fez sentido quando, na Península
Ibérica, os judeus viram-se obrigados a se converterem para evitar a persegui-
ção imposta pelos tribunais inquisitoriais em Aragão e Castela, ou ainda, quando
foram forçados a se batizarem no catolicismo, em 1497, na corte do monarca D.
Manuel I, o venturoso, ou ainda, o movimento, que não deixa de ser cismático,
liderado por Martinho Lutero. Nesse sentido, muitos passaram a compreender
aquele momento como os derradeiros dias.

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ECONOMIA

Os séculos que sucederam o XI foram, historicamente, conhecidos como Baixa


Idade Média, pois, diferente do momento anterior, esse se destacou, em grande
medida, pelas intensas atividades comerciais urbanas e pelo surgimento de um
novo segmento social: a burguesia. É nesse período que as antigas relações de
servidão no interior do feudo, pautadas no ideal de suserania e vassalagem, dão
lugar a uma vida mercantil e pujante, marcada pela possibilidade de ascensão,
mesmo que, em um primeiro momento, apenas econômico.
Os centros urbanos tornaram-se a encarnação destas transformações históri-
cas, impulsionando o renascimento comercial possibilitado pelo desenvolvimento
de técnicas produtivas fortemente marcadas pelo uso do arado de rodas e da
difusão de moinhos de vento e hidráulicos (VAINFAS, 2010). As cidades eram
verdadeiros centros mercantis, era o abrigo de marcadores, artesãos e toda espé-
cie de gente que buscava ascensão social, impossibilitados pela antiga vida feudal.
De fato, o ar da cidade libertava.
Os anos que se seguiram contaram com um impressionante aumento demo-
gráfico. A população europeia ocidental que, no início do século XI, contabilizava
cerca de 22,1 milhões de habitantes, saltou para 25,8 milhões (FRANCO JR.;
ANDRADE FILHO, 1993, p. 23), um crescimento significativo que não parou,
chegando a 50% entre os anos de 1200 a 1300. Os medievalistas: Hilário Franco
Júnior e Ruy de Oliveira Andrade Filho mostram-nos um crescimento popu-
lacional de 34,65 milhões de habitantes, no início do XIII, para 50,33 milhões,
cem anos depois (FRANCO JR.; ANDRADE FILHO, 1993, p. 23).

Economia
196 UNIDADE V

De fato, o apogeu dessa nova realidade que se descortinava diante dos euro-
peus encontrou seu auge no século XIV. As estruturas sociais que engatinhavam,
no início da Baixa Idade Média, encontraram maturidade no século XIV, que
já contava com uma burguesia que se aliava à nobreza em suas pretensões mer-
cantis, possibilitadas pelo comércio de longa distância que desenvolveu rotas
de navegação entre o mediterrâneo e o mar negro, chegando a Constantinopla,
principal acesso às especiarias do Oriente.
Além destes pujantes desenvolvimento comercial e crescimento demográfico,
o início do século XIV foi marcado pelas chuvas intensas, as quais ocasionaram

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perda significativa na produção alimentícia. Tais fatores elevaram, consideravel-
mente, o preço dos alimentos básicos da dieta do homem medieval, como o trigo
utilizado na fabricação de pães. Não havia oferta para suprir a imensa demanda
de citadinos e camponeses famintos, por isso, os anos de 1315 a 1317 são, his-
toricamente, lembrados como os anos da grande fome, que conferiu, aos que
sobreviveram, enfraquecimento e baixa imunidade contra toda sorte de molés-
tias que pudessem vir a atacar.
A principal moléstia desse tempo, sem dúvida, foi a Peste Negra, que dizi-
mou parte da população europeia daquele tempo.
O comércio com o Oriente, marcado, principalmente, pelas rotas que liga-
vam o Mediterrâneo ao Mar Negro, possivelmente, tenha sido o propulsor deste
evento. Acredita-se que “embarcações originárias de entrepostos comerciais
genoveses no mar negro tenham trazido o mal para a Europa” (VAINFAS, 2010,
p. 143). A única certeza é que a Peste seguia as rotas comerciais europeias, che-
gando a se alastrar por todo continente ainda na primeira metade do século XIV.
A contabilidade convencional sobre a Peste Negra aponta para a perda de um
terço da população europeia. A população inglesa, por exemplo, estimada em
3,7 milhões de habitantes, em 1348, caiu de forma drástica para 2,25 milhões
trinta anos depois (VAINFAS, 2010, p. 164). A Peste, atenuada por curtos inter-
valos, prosseguiu implacável adentrando o século XV.
O crescimento demográfico foi retomado em meados do século XV, no
entanto, ainda se viram os ecos da Peste por muito tempo, o que obrigou a
monarquia portuguesa, por exemplo, a mudar a sede de sua corte de Lisboa
para Almerim (KAYSERLING, 2009). A explicação adotada pela Igreja foi a de

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que Deus estava punindo a população pelas seus excessivos pecados e elegeram
os judeus como grandes culpados. Esses eram acusados de envenenar os poços,
terem parte com satã e de terem crucificado Jesus Cristo.
A vida, na Europa, voltou a se recuperar a partir da segunda metade do
século XV, como nos mostra Tom Scott (2009, p. 18), na unidade dedicada à
Economia, na obra O Século XVI:
[…]até 1470, a vida econômica da Europa Ocidental tenha sido domi-
nada por fatores que determinavam uma contração, tendo como aspec-
to principal o catastrófico declínio demográfico da segunda metade do
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século XIV, cuja recuperação não começou antes da segunda metade


do século XV, na melhor das hipóteses.

Como atestado por Scott (2009), a população europeia voltou a crescer durante
os períodos de calmaria da Peste, assim chamados porque ainda era possível ver
alguns surtos da moléstia até meados do XVI.
A volta do crescimento populacional, ocorrida na segunda metade do XV,
trouxe um saldo impressionante, segundo Jan de Vries, de “60,9 milhões de
habitantes na Europa em 1500” (VRIES apud SCOTT, 2009, p. 36), no entanto,
este rápido crescimento populacional gerou outro grande problema, a chamada
Revolução dos Preços (CAMERON, 2009).
Os anos finais do século XV foram marcados pela escassez das terras
produtivas e, consequentemente, pelo abastecimento de alimentos que não
acompanharam, com a mesma agilidade, as transformações demográficas do
continente. Com isso, houve um desequilíbrio entre população e recursos, o que
trouxe um aumento considerável no preço dos mais diversos gêneros alimen-
tícios, gerando uma grande segregação e desigualdade, dando origem a uma
massa de esfomeados que, muitas vezes, mesmo trabalhando, não conseguiam
fazer com que os seus salários acompanhassem a alta dos preços (SCOTT, 2009).
O que se podia observar era um crescente número de indigentes nas cidades,
que se viam apegados à religiosidade como única forma de salvação, esperando
dos céus a ajuda que os tiraria daquele sofrimento.

Economia
198 UNIDADE V

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ABSOLUTISMO MONÁRQUICO: HABSBURGOS E
VALOIS

Sem dúvida, do ponto de vista político, existe uma necessidade de se destacar que
o século XVI marcou, em alguns países da Europa ocidental, o estabelecimento
dos estados nacionais modernos. Esse processo, iniciado em meados do século
XIV, pôs fim definitivo ao sistema feudal. Um caso de grande significância nesse
período, que mexeu com a geografia política europeia, e muito importante para
compreendermos o desenvolvimento deste trabalho, foi o espanhol.
O ano de 1469 marcou a união matrimonial entre Fernando, herdeiro do
trono ibérico de Aragão e Isabel de Castela. Esse foi o pressuposto para a união
dos reinos, que se efetivou após a expulsão dos muçulmanos de Granada, em
1492, possibilitando, assim, o nascimento do reino da Espanha. Do casamento
de Fernando e Isabel nasceram cinco filhos, sendo João, príncipe das Astúrias, o
único rebento masculino, segundo filho e herdeiro do trono de Castela e Aragão.
Porém ele morreu por consequência de tuberculose, em 1497, deixando o trono
para sua irmã mais velha, Isabel, que morreu um ano depois. Após a morte da
matriarca Isabel de Castela, a terceira filha e herdeira imediata, Joana assumiu o
trono de Castela, em 1504, e o de Aragão, após a morte de seu pai, em 1516, tor-
nando-se a primeira rainha do recém unificado reino da Espanha.
Joana de Aragão e Castela, também conhecida como Joana, a louca, foi pro-
metida em casamento a Felipe da Áustria, filho do Imperador romano-germânico
Maximiliano I e da duquesa Maria de Borgonha. Felipe morreu precocemente, em
1506, com apenas vinte e oito anos, deixando seis filhos, dentre os quais Carlos,

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seu primogênito, que herdou o trono da Espanha, Borgonha e Nápoles e, em


1519, tornou-se imperador do Sagrado Império Romano-Germânico.
Na primeira metade do século XVI, Carlos V, do império romano-germânico,
I da Espanha e IV de Nápoles, foi, sem dúvida, uma das figuras mais importantes
e poderosas da Europa, o que lhe rendeu grandes inimizades, sendo a mais notó-
ria as disputas com Francisco I, da França, outro monarca de grande relevância
na constelação política do século XVI. A causa principal das desavenças entre
Carlos de Habsburgo e Francisco de Valois foi a sucessão ao trono do Sagrado
Império Romano-Germânico. Maximiliano I, imperador entre 1493 e 1519, não
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deixou evidente quem seria seu herdeiro, obrigando, após sua morte, a decisão
por meio de uma eleição:
[…]os Príncipes Eleitores tinham uma tarefa difícil: escolher para as-
sumir a coroa Imperial entre Carlos da Borgonha e Francisco de Va-
lois. Se votassem no primeiro, reforçariam seu poder constitucional,
o que os enfraqueceria em seus próprios territórios. Se escolhessem
Francisco, reforçariam suas pretensões territoriais sobre a Toscana e
sobre Nápoles. Ambas as decisões ocasionaram inevitáveis conflitos”
(MAINKA, 2009, p. 17).

Por fim, os príncipes eleitores escolheram Carlos em detrimento de Francisco, o


que reavivou os conflitos entre Habsburgos e Valois, que ocorriam, pelo menos,
desde 1477, principalmente, pela herança de Flandres, na Borgonha, região dis-
putada durante a Guerra dos Cem Anos. Tamanha era a animosidade entre Valois
e Habsburgo, que fez Francisco da França, um rei católico cujo discurso era dizi-
mar os muçulmanos e acabar com o perigo turco (MAINKA, 2009) – discurso
que também foi utilizado por Carlos para a ascensão ao trono imperial – unir
forças com os otomanos, força política e expansionista europeia, desde mea-
dos do século XV. Tal aliança marcou uma ruptura no ideal medieval que unia
a cristandade contra os infiéis. A união francesa com os turcos pautava-se na
defesa contra um inimigo comum. Sem dúvida, mais do que meros atores polí-
ticos, os turcos representavam um dos maiores temores dos tempos modernos.
Tão importante quanto Carlos V e Francisco I, faz-se necessário lembrarmo-
-nos da política imperial do sultanato otomano, da tomada de Constantinopla
ao governo de Suleyman I (1522-1566).

Absolutismo Monárquico: Habsburgos e Valois


200 UNIDADE V

TURCOS OTOMANOS

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As conquistas do Império Otomano, ao longo do século XV, não podem ser encara-
das como acontecimentos perdidos na imensidão historiográfica. Mais do que uma
simples data que, muitas vezes, é apenas lembrada para apontar o fechamento do
Mediterrâneo e a busca de novas rotas marítimas para as índias ou ainda a passagem
da Idade Média para a Moderna, os turcos representaram, talvez, uma das maiores
potências militares e expansionistas dos tempos modernos. O medo Otomano era
real, tanto que sob o comando do sultão Suleyman I, conhecido como o Magnífico,
entre os europeus e kanuni (legislador) e entre seus súditos, chegaram às portas da
Península Itálica. Na primeira metade do século XVI, tornou-se uma grande força
diplomática, forçando as principais potências do mundo moderno a negociar.
Desde Mehmet II (1451-1481), sultão responsável pela derrubada de
Constantinopla, o império otomano assumiu, como José Henrique Rollo
Gonçalves alega, um perfil definitivamente imperial, pois a cidade representava
o principal eixo de ligação entre a Europa e o Oriente das especiarias. Isso bene-
ficiou, e muito, o Império Otomano, que passou a tributar as relações comerciais
nestas rotas (GONÇALVES, 2009). Mais do que uma conquista dentre várias ao
longo de sua história, a ascensão sobre Constantinopla representou um senso de
legitimidade entre a cristandade, como relata Gonçalves:
[…]a posse de um dos mais caros símbolos da cristandade agregou no-
vos sentidos à titularidade do sultanato. A notícia da conquista, que não
tardou a se espalhar por todos os quadrantes, foi recebida com euforia
pelo mundo muçulmano. Afinal, estava realizado um dos objetivos lon-
gamente profetizados do Islã. O império otomano se tornará um dos ato-
res principais no palco do Mediterrâneo (GONÇALVES, 2009, p. 132).

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Mehmet II, que já tinha estendido sua jurisdição da Anatólia ao Eufrates, a leste
de Constantinopla, e se consolidado como dominante das rotas de navegação
que ligavam os mares Egeu, Negro e parcela significativa do mar mediterrâneo,
estendeu seus domínios rumo ao oeste, saqueando a cidade de Otranto, no “cal-
canhar da Itália, em 1480” (GONÇALVES, 2009, p. 132), no entanto, a “máquina
de guerra” otomana estacionou no ano seguinte com a sua morte. Seu sucessor,
Bayezit II (1481-1512), preocupou-se com a consolidação interna do império,
mas, ainda assim, ampliou suas jurisdições, tomando a Moldávia (1484-1498),
reduzindo drasticamente as frotas mercantes venezianas que tinham pretensões
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sobre o mar Egeu (GONÇALVES, 2009).


Selim I (1512-1522), sucessor de Bayezit II, teve uma tarefa árdua, já nos
primeiros anos de seu sultanato, quando se viu em meio à guerra contra os safá-
vidas, grupo islâmico xiita persa, que ameaçavam seus domínios. Entre 1501
e 1514, os safávidas, sob a liderança de Ismail, que se declarava a encarnação
do 12º Imã, já tinha tomado o Azerbaijão e a Armênia. Em 1514, a Batalha de
Chaldiran marcou a vitória do novo sultão contra as pretensões xiitas e deu iní-
cio a um conflito que se estendeu até o século XVIII.
O governo de Selim I também foi marcado pela expansão. Voltando sua
atenção para o Oriente Médio, conquistou, em 1516, Alepo, Damasco, Beirute,
Jerusalém e, em 1517, o Egito e o oeste da península arábica, legando para si o
poder sobre as principais cidades islâmicas, Meca e Medina.
Com Suleyman I, sucessor de Selim, o sultanato otomano alcançou seu apo-
geu ao conquistar territórios que se estendiam do Magreb até o oceano índico e
tornar Argel e Túnis os principais núcleos de dominação no mar mediterrâneo,
angariando, para si, importantes rivais pelo controle desse território tão rele-
vante aos interesses comerciais entre a África, Ásia e Europa.
O Sultão Suleyman tomou Belgrado, em 1521, e planejava ampliar seus domí-
nios rumo ao ocidente, mas foi detido por Carlos V, na sua tentativa de tomar
uma das principais cidades da dinastia Habsburgo, Viena, em 1529. De fato,
pode-se dizer que, “ao longo do século XVI, o prestígio do sultanato atingiu as
alturas. Sua força parecia sem limites e alimentava as mais diversas crenças entre
seus aliados e seus adversários” (GONÇALVES, 2009, p. 133).

Turcos Otomanos
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AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS NA EUROPA E A
REFORMA PROTESTANTE

Todos os fatos e acontecimentos, econômicos, políticos e territoriais, fizeram


com que o início da Idade Moderna fosse um período marcado também por
agitações, no campo religioso. Enquanto a Idade Média foi marcada, em grande
medida, pelo poder centralizador da Igreja, detentora oficial da religiosidade
cristã, a modernidade trouxe uma crise de valores. Se, no início do século XVI,
todos, ou grande parte, dos europeus sentiam-se participantes de uma única
igreja que era universal (CAMERON, 2009), na segunda metade desse mesmo
século, pelo menos, três ramos a mais de pretensos cristianismos estabeleceram-
-se no cenário europeu.
A reforma protestante, empreendida por Lutero e seus seguidores, coroou um
período de intensas transformações, na cristandade ocidental, visto que a Igreja
Católica dos tempos modernos não tinha mais o mesmo vigor que a marcou
durante a Idade Média, quando fora conhecida como a grande senhora feudal.
O mundo em transformação era, com certeza, consequência das alianças entre
monarcas e burgueses, o que possibilitou o surgimento de uma nova política
pouco dependente dos interesses da Igreja, e a historiografia convencionou cha-
má-los Estados Nacionais Modernos cujo monarca era o próprio representante de
Deus na Terra, como afirmara o padre Jacques Bossuet, na França do século XVI,
minimizando o poder da Igreja e separando a Monarquia da Instituição Igreja
Católica, mas não do cristianismo, que dava legitimidade às suas ações.

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203

Podemos apontar outras questões que contribuíram para a crise da cristan-


dade, como o cenário de profunda desesperança, marcado ainda pelos estragos
ocasionados pela moléstia da Peste Negra e a maneira como parte dos religiosos
viviam naquele contexto. Destacarei, brevemente, três papas que viveram entre
o final do século XV e início do século XVI. O primeiro a ser retratado é o ara-
gonês Rodrigo Bórgia, arcebispo de Valência, que se tornou Papa em 1492, com
o nome de Alexandre VI, ou Papa Bórgia, como foi chamado por seus contem-
porâneos. Os Bórgias eram uma família nobre e rica do meio rural, na Espanha
medieval, que teve seu apogeu marcado pela eleição de Alonso Bórgia, tio materno
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de Rodrigo, ao papado em 1455, com o nome de Papa Calisto III.


A carreira eclesiástica de Rodrigo teve início em 1456, quando seu tio o tor-
nou cardeal. Estudou Direito na faculdade de Bolonha, terminou o curso em
apenas um ano, diferente dos cinco convencionais, sendo acusado de ter com-
prado o diploma (BOWN, 2013). Por ser um exímio político e muito competente
nos negócios, fez aumentar, ano após ano, sua fortuna, como nos relata Stephen
Bown (2013, p. 135): “Em 1490, dizia-se que Bórgia tinha mais ouro que todos
os demais cardeais somados”. Suas habilidades fizeram com que Pio II, o orde-
nasse vice-chanceler, cargo de importância que só estava abaixo do Papa. Do
casamento dos herdeiros de Aragão e Castela, Fernando e Isabel, nasceu o reino
unificado da Espanha.
Bórgia, apesar de homem da Igreja, teve, ao menos, quatro filhos e usava os
recursos da Igreja para sustentá-los. Os mais famosos foram César e Lucrécia. O
primeiro tem papel importante na história da filosofia-política moderna, pois a
famosa obra “O Príncipe”, escrita por Nicolau Maquiavel foi baseada em sua pos-
tura “violenta e inescrupulosa” (BOWN, 2013, p. 136). No famoso Palazzo Bórgia,
como ficou conhecida sua mansão, eram realizadas festas suntuosas, famosas por
banquetes, bailes, jantares marcados pelo uso de talheres de ouro, de iguarias e
pela presença dançarinas exóticas (BOWN, 2013). Apesar de uma amante ofi-
cial, digo amante porque já era vedado o direito de um clérigo se casar, Rodrigo
mantinha outras tantas, com os mesmos luxos que rodeava seu palácio em Roma.
Em 1492, após a morte de Inocêncio VIII, Rodrigo, por ter muito ouro,
que possibilitou infindáveis compras de votos, elegeu-se Papa cujo nome, como
já citado, Alexandre VI. Uma das suas primeiras ações foi a nomeação de seu

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


204 UNIDADE V

filho César, apesar das suas características já destacadas, a Cardeal Arcebispo de


Valência, posto que ficara vago após sua eleição ao papado. Ser Papa não fez mudar
a postura de Rodrigo, que levou para o Vaticano suas famosas festas e orgias.
Um mestre de cerimônia escreveu em seu diário em 30 de outubro de 1501, que:
[...] cinquenta prostitutas divertiram Alexandre, César, Lucrécia e seu
séquito. “As mulheres depois do banquete, dançaram nuas. Em uma
dança, elas tinham de correr nuas entre as velas acesas e apanhar nozes
no chão”. Alexandre e Lucrécia, depois de assistir à dança das partici-
pantes nuas, “distribuíram prêmios de roupas de seda aos servidores
do Vaticano que tivessem mantido o maior número de relações carnais

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com as cortesãs” (BOWN, 2013, p. 136).

Ainda como Papa, leiloou diversos cargos da administração eclesiástica entre


as grandes famílias burguesas da Itália e deixava aos cuidados de Lucrécia, sua
filha, “com quem se diz que Alexandre teve ligações incestuosas” (BOWN, 2013,
p. 136), os negócios da Igreja, quando estava fora de Roma. Conta-se, ainda, que
o Papa Bórgia “mandou prender, executar e envenenar vários de seus colegas, ou
subornou ou pilhou as propriedades de outros” (BOWN, 2013, p. 137).
Alexandre VI morreu em 1503, aos 72 anos de idade. Não se sabe exatamente
o motivo de sua morte, para alguns foi por conta da malária (BOWN, 2013),
doença comum em Roma, nessa época; para outros, por acidente, pois tomou
o veneno que era destinado a outra pessoa (DREHER, 2007). Após a morte de
Alexandre, assumiu o papado Francesco Todeschini-Piccolomini como Pio III,
que não permitiu “a tradicional missa no funeral do antecessor, alegando: ‘É blas-
fêmia rezar pelos condenados’” (BOWN, 2013, p. 148). Rodrigo tinha muitos
inimigos dentro e fora da Igreja, o mais famoso foi Giuliano della Rovere, car-
deal arcebispo de Avinhão, no entanto, é importante esclarecer que sua oposição
a Bórgia não se fazia pelos métodos empregados pelo Papa, mas pela ambição
que tinha de assumir o cargo.
O pontificado de Pio III foi brevíssimo, tendo durado apenas 27 dias, e no
mesmo ano foi eleito, pelo colégio dos cardeais, Giuliano della Rovere como
Papa Júlio II. Assim como Alexandre VI, seu cargo foi comprado com muito
ouro. A Igreja, sob liderança de Júlio II, assumiu características bélicas, pois,
para ele, “a salvação da Igreja estava na política e na guerra” (DREHER, 2007,
p. 187). Ficou marcado também nos anais da História como O Terrível, porque

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205

agia mais como um chefe político e militar do que como um líder religioso. Sob
seu comando, a Igreja aumentou os territórios dos estados pontifícios, ou seja,
estados que estavam sob controle da Igreja, destruiu a Basílica de São Pedro e
iniciou a construção da atual.
Júlio II morreu em 1513, passando o cetro de Roma para o cardeal Giovanni
de Medicis, que se tornou Papa, assumindo o título de Leão X, que, diferente de
seus antecessores, foi um papa ligado às questões intelectuais que circundavam
a Península Itálica de seu tempo, era um defensor do Humanismo, altamente
letrado e comprometido com o desenvolvimento da cultura renascentista. Depois
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da eleição, quando foi assumir definitivamente o pontificado, fez uma grande


procissão pelas ruas de Roma e estendeu uma grande faixa, em que se podia ser
lido: “Outrora governou Vênus, depois Marte; agora Palas Atenas detém o cetro”
(apud DREHER, 2007, p. 187). Explicando a faixa, Martin Norberto Dreher
(2007, p. 187), escreveu:
[…]com Vênus fazia-se referência a Alexandre VI, com Marte a Júlio
II, com Palas Atenas saudava-se Leão X como mecenas e benfeitor de
humanistas e artistas. A frase também descreve o caráter mundano e a
frivolidade do pontificado de Leão X, durante o qual Lutero iniciou seu
movimento.

As analogias aos deuses da mitologia grega eram uma característica marcante


do renascimento cultural, que tem este nome, pois se pretendia fazer renascer a
cultura clássica, grega e romana, que, segundo seus defensores, havia desapare-
cido durante a Idade das Trevas, como chamavam a Idade Média.
O pontificado de Leão X, não foi marcado pelos banquetes e orgias de
Alexandre VI, muito menos pelas intensas atividades bélicas de Júlio II, mas
pela “leviandade e esbanjamento em busca de hedonismo” (DREHER, 2007, p.
187). Sua história papal ficou marcada pela construção da nova Basílica de São
Pedro, que, por mais que não tivesse começado em seu turno, recaiu sobre si o
encargo, para o qual seria necessária uma quantia significativa a fim de se ter-
minar tão grande e audaciosa obra, e, para tanto, iniciou uma, sem precedente,
venda de indulgências.
Foi em 1515, que Leão X lançou a bula papal para a construção da Basílica,
em Roma, mandando grandes persuasores às mais longínquas regiões da Europa

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


206 UNIDADE V

para a coleta das ofertas. A liberação de Indulgência, ou seja, perdão de pecados,


foi uma prática comum ao longo da Idade Média, essa que, geralmente, eram
dadas a pessoas que por algum motivo, seja por lutas contra os infiéis e em favor
da fé, seja mesmo benfeitorias à Igreja de Cristo, ou ao povo de Deus, passou a
ser vendidas, sem a menor restrição, bastava pagar para tirar algum ancestral do
purgatório, ou se livrar dos mais inescrupulosos pecados.
O mais famoso coletor de dinheiro em prol da indulgência foi João Tetzel,“um
frade dominicano que chegava às cidades alemãs saudado pelo som dos sinos
das igrejas e fazia sermões convincentes” (BLAINEY, 2012, p. 174). Como forma

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de coerção, Tetzel usava peças teatrais cujos personagens eram consumidos pelo
fogo do inferno, ou mesmo agonizavam no purgatório. Sabe-se, hoje, que homens,
como o dominicano em questão, trabalhavam para ricas famílias alemãs, que
ficavam com parte dos ganhos e mandavam outra para Roma (BLAINEY, 2012).
Foi a teologia do medo, pregada por Tetzel, que desencadeou em um jovem
padre e professor de Teologia da Universidade Wittenberg, na Saxônia, um sen-
timento de revolta sem precedentes. Esse padre, chamado Martinho Lutero,
escreveu, em fevereiro de 1517: “Ah, os perigos do nosso tempo! Ah, os padres
sonolentos!” e, em outubro do mesmo ano, apontou ser um “absurdo que o tilin-
tar de uma moeda na caixa de coleta liberar uma alma do doloroso purgatório”
(BLAINEY, 2012, p. 174). No último dia deste mês, dia de Todos os Santos, Lutero
pregou 95 Teses, um documento de argumentação geral com parágrafos enu-
merados, na Igreja do castelo de Wittenberg. O documento continha objeções
contra a cobrança de indulgência, simonia e preceitos seguidos pela Igreja oficial.

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207

Em 1517, as 95 teses pregadas na Igreja do castelo de Wittenberg faziam


duras críticas às práticas do catolicismo dominante. Seguem algumas teses
de Martinho Lutero:
Tese 24: [...] a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada
por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena;
Tese 32: Serão condenados [...], juntamente com seus mestres, aqueles que
se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência;
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Tese 86: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos Cras-
sos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta, uma Basílica de
São Pedro, em vez de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
Fonte: Boulos (2012).

MARTINHO LUTERO

Martinho Lutero nasceu em 1483, descendia de uma família modesta de Eisleben,


na região da Saxônia, na atual Alemanha. Seu pai, um administrador de minas,
alcançou certa prosperidade em seus negócios, fato que o fez, em um momento
quando a vida acadêmica era reservada à nobreza, ou à alta burguesia, enviar seu
filho para a Universidade Erfurt. Iniciou seus estudos aos 17 anos e, aos 21, já era
Mestre em Teologia. Em 1505, iniciou a curso de Direito na mesma Universidade,
mas não o concluiu, optando, nesse mesmo ano, pela vida monástica na Ordem
dos Agostinianos. Foi ordenado sacerdote em 1507 e, um ano depois, passou a
lecionar Teologia, na Universidade de Wittenberg, onde obteve, em 1512, o título
de Doutor em Bíblia. Dois anos após, exerceu a função de vigário agostiniano,
sendo autoridade maior sobre alguns monastérios, na Saxônia.
Conta-se na história, que deve ser analisada com cuidado pelos leitores, visto
que a maioria das biografias são organizadas com certa passionalidade, que, em
1510, Lutero foi, pela primeira vez, à Roma, a sede da cristandade. Diz-se que
ficou maravilhado com a formosura da cidade, seguindo todos os scripts de uma
romaria à cidade papal, visitou os lugares sagrados, pagou penitência e rezou

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


208 UNIDADE V

pelas almas de seus ancestrais no purgatório. Conta-se, também, que a viagem


o deixou perturbado, pois os vícios e a ostentação de Roma nada tinham a ver
com a devoção modesta das Igrejas que conhecia no Norte da Alemanha, apesar
de viver em um contexto em que os mosteiros “abrigavam um bocado de luxú-
ria e excessos de comida e bebida. Em um mosteiro visitado por ele, cada monge
consumia duas canecas de cerveja e um litro de vinho às refeições” (BLAINEY,
2012, p. 172). Definitivamente, este episódio não pode ser ignorado na biogra-
fia do reformador.
Para além de uma vida religiosa pura e simples com seus afazeres diários

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enquanto monge, Lutero ficou famoso por estudos bíblicos relativos às ques-
tões vinculadas ao pecado e ao perdão. Como inveterado estudante da Bíblia, o
monge chegou à conclusão de que o perdão dos pecados e a salvação da alma
estavam no relacionamento sincero entre o crente e Deus, baseado na verdadeira
fé, independentemente das obras. Esta teologia luterana ficou conhecida como
Justificação pela Fé, uma das primeiras bandeiras levantadas pelo então vigário
agostiniano e que desencadeou uma série de críticas à instituição milenar católica.
Se para Lutero a salvação vinha pela fé em Deus, não havia sentido algum
o pagamento pela indulgência. Nesse contexto de extrema consonância com os
preceitos bíblicos, chegaram à Saxônia Tetzel, sua oratória, seu teatro e, prin-
cipalmente, seu poder de persuasão. Para conter os ânimos da pobre multidão
que se viu obrigada a dar o que não tinha, Lutero fixou as famosas 95 teses, na
Igreja de Wittenburg.
Lutero já era um famoso orador, excelente professor e um intelectual de rele-
vância, na Europa do século XVI, e, depois do episódio das 95 teses, sua fama
alcançou patamares ainda maiores, chegando seus escritos a serem impressos
em regiões fora da Alemanha, como a Basiléia, na atual Suíça, e Estrasburgo, na
atual França.
As pregações de Martinho Lutero, cada vez mais inflamadas contra a Igreja
e o clero, trouxeram algumas consequências, como prisões e disciplinas eclesi-
ásticas, mas, ao mesmo tempo, angariava uma imensa quantidade de seguidores,
que ia das classes baixas à nobreza, que via, no discurso do monge, uma possibili-
dade de se libertar dos pagamentos de dízimo à Roma, ou mesmo de se apoderar
dos grandes latifúndios que estavam sob jurisdição da Santa Sé.

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209

Era claro, no discurso de Lutero, o caráter nacionalista, como em escritos


em que bradara: “Pobre de nós, alemães. Fomos enganados! [...] o glorioso povo
teutônico deve deixar de ser fantoche do pontífice romano” (BLAINEY, 2012, p.
175), ou ainda colocar em xeque a autoridade papal, alegando não ter o pontífice
“poder sobre o céu, o inferno e o purgatório, ou sobre a eliminação do pecado”
(BLAINEY, 2012, p. 175).
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Lutero, de lobo solitário do interior da Europa, torna-se, em 1520, uma força


difícil de se ignorar. Mas como a Igreja poderia ser tão desatenta ao avanço da
pregação luterana? A resposta talvez seria porque a Igreja vivenciava uma crise
político-institucional sem precedentes, a Santa Sé estava preocupada com o
avanço turco-otomano no oriente-médio e leste europeu, com as disputas de
poder entre as famílias Valois, da França e Habsburgo, que tinha sob seu controle
grande parte da Europa e a perda significativa de poder do papa nas decisões
políticas, passando, paulatinamente, para os reis e os príncipes. Com estas ques-
tões globais, fica fácil entender a morosidade papal frente ao “problema” luterano
(DREHER, 2007).

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


210 UNIDADE V

Enfim, Lutero foi formalmente excomungado da Igreja em 03 de janeiro de


1521, pela bula Decet Romanum Pontificem, expedida por Leão X. Depois da exco-
munhão oficial, Lutero foi convocado a comparecer em Roma para ser julgado,
o que nunca aconteceu, pois seu fiel defensor Frederico III, o sábio, príncipe da
Saxônia, impediu que lá fosse julgado (BLAINEY, 2012). Foram instauradas reu-
niões, que recebiam o nome de Dieta, na cidade de Worms, em território alemão,
para seu julgamento. Elas aconteciam esporadicamente, contavam com represen-
tantes do clero, da nobreza da região que envolvia o Sagrado Império Romano
Germânico e era sempre presidida pelo Sagrado Imperador que, na época, era

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Carlos V, da casa de Habsburgo.
Em Worms, Lutero reafirmou seus posicionamentos, fez sua autodefesa em
latim e terminou com as seguintes palavras, ditas em alemão: “Que Deus me
ajude. Amém” (BLAINEY, 2012, p. 176). O reformador orientado por Frederico
III, não esperou a reunião acabar e se retirou para o palácio de Wartburg, onde
passou algum tempo, ao que parece até a poeira baixar, a questão é que não bai-
xou, e a cada dia aumentava os seguidores da causa luterana.
Protegida por Frederico III, o sábio, e de forte conotação nacionalista, a
reforma empreendida por Lutero floresceu, igrejas luteranas se disseminaram na
Europa, ao ponto de, em menos de 30 anos, monarcas de reinos, como Dinamarca,
Suécia, Noruega e Transilvânia, já terem aderido à causa. Lutero se casou com
a ex-freira Catarina Von Bora e teve uma vida marcada por uma produção lite-
rária de grandes proporções. Entre seus escritos importantes, está o ataque aos
judeus europeus, em sua obra “Sobre os judeus e suas mentiras”, de 1543, defen-
deu a autoridade política dos reis e príncipes em sua obra “Sobre a autoridade
secular”, de 1523, e traduziu o novo testamento bíblico para o Alemão, em 1534,
um fato inédito que possibilitou leigos desconhecedores do latim terem acesso
às escrituras sagradas. Até o fim de sua vida, defendeu a justificação pela fé (sal-
vação pela fé), o sacerdócio universal de todos os crentes (livre interpretação das
escrituras) e a famoso slogan: solus Christus, sola Gratia, sola Fides, sola Scriptura
(só o Cristo, só a Graça, só a Fé e só a Escritura). Lutero morreu em Eisleben, a
mesma cidade onde nasceu, em fevereiro de 1546.

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211

A Reforma não pode ser explicada a partir de um único acontecimento, ou


a partir da ação de uma única pessoa..[...] Muito antes de Lutero [...]haviam
sido difundidas ideias que provocaram e possibilitaram o conflito com a
Igreja de então. Podemos até dizer que tais sentimentos estavam a exigir o
que acabou acontecendo no século XVI. [...]. Na Idade Média, surgiu o mo-
vimento designado devotio moderna. Seus principais difusores foram os Ir-
mãos da Vida Comum, pessoas que queriam viver a fé cristã sem se aliarem
a Ocamismo, ou a Tomismo, ou à mística. Queriam ser cristãos na vida co-
mum, simples. Um dos mais conhecidos é Thomas Kempis (1379/80 - 1471),
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autor de Imitação de Cristo.[...]. Entre os alunos dos Irmãos da Vida Comum


encontramos Erasmo de Roterdã, Adriano de Utrecht (1459 - 1522),[...] Nico-
lau Copérnico (1473 - 1543) [...]. Inácio de Loyola foi profundamente influen-
ciado por Tomas Kempis, e muitos dos primeiros inacianos foram Irmãos da
Vida Comum. São muitos os antecedentes da Reforma.
Fonte: Dreher (2007).

Segundo Lutero, Deus não é um juiz inflexível. Ele doa aos pecadores a sal-
vação pela graça, baseada na fé e por mérito exclusivo de Cristo. Isso exige a
substituição da ritualidade descaradamente exterior pela íntima edificação
pessoal.
(Domenico De Masi)

OS INTERLOCUTORES DE LUTERO

Ao longo de sua carreira, Lutero, teve alguns interlocutores com os quais compar-
tilhava ideias, outros que discordavam de muitos pontos, outros que se rebelaram
contra sua submissão aos príncipes, e outros ainda que, apesar de concordarem
com alguns pontos, nunca aderiram formalmente à causa. Deste último ponto,
começamos a falar de um de seus primeiros grandes interlocutores, Desidério
Erasmo, nascido perto de Roterdã, na atual Holanda.

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


212 UNIDADE V

ERASMO DE ROTERDÃ

Filho do padre Roger Geertz com Margaretha Rogers, Erasmo de Roterdã, como
ficou conhecido, nasceu na década de 60, do século XV. Apesar de ser filho ile-
gítimo, visto que seu pai era um sacerdote, ingressou na carreira eclesiástica, o
que também era proibido a filhos ilegítimos. Em 1475, ingressou na Escola dos
Irmãos da Vida Comum, em 1488, no convento Canônico Regulares de Santo
Agostinho e, em 1492, foi ordenado sacerdote agostiniano, em Utrecht, nos Países
Baixos (ARNAUT DE TOLEDO, 2007). Entre 1494 e 1499, alcançou o grau de

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bacharel em Teologia, residiu em Paris e em Oxford, onde iniciou seus conta-
tos com os humanistas ingleses, entre eles Thomas More, autor da famosa obra
“A Utopia”. Depois de passagens pela Itália e sucessivas voltas para a Holanda,
fixou-se na Basiléia, atual Suíça.
Erasmo escreveu diversas obras, sendo o “Elogio da Loucura” a mais famosa
de nossos tempos. Mas, para melhor entender suas pretensões e sua ligação com
Lutero, faz-se necessário compreender a versão e a tradução que o autor fez do
Novo Testamento, em 1516. Nela, afirma que “Cristo vive, respira e fala conosco”
e ainda lamenta que “a maioria dos cristãos conhecidos estão ‘infelizmente, escra-
vizados pela cegueira e ignorância’” (BLAINEY, 2012, p. 170). Além dos ataques à
maneira como os fiéis viviam, atacou, veementemente, algumas práticas da Igreja:
[…]concluiu que a frequência regular à igreja não era absolutamente
essencial, e que o dinheiro doado a mosteiros ou santuários seria mais
bem empregado se entregue diretamente ao “templo vivo de Cristo” –
os pobres. Ele concluiu também que certos dogmas cristãos, como a
existência de um lugar chamado purgatório, tinha pouca justificativa
bíblica (BLAINEY, 2012, p. 170).

Era fato que existia uma similaridade entre os escritos de Erasmo e as manifes-
tações de Lutero, tanto que, em 1519, a Universidade de Louvain condenou as
95 luteranas, fato que fez com que o holandês se “manifestasse contra a conde-
nação, apelando à concórdia e à paz. Sua oposição, que parecia neutra, valeu-lhe
críticas de ambos os lados” (ARNAUT DE TOLEDO, 2007, p. 110).
A princípio, Erasmo era simpático à causa de Lutero, no entanto discor-
davam de pontos como o livre arbítrio e a maneira radical como o reformador
passou a exercer sua liderança. Na verdade, o holandês era um apaziguador e

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213

não tinha a “coragem e ousadia características do verdadeiro reformador reli-


gioso” (BLAINEY, 2012, p. 171).
A relação dos dois foi marcada por aproximações, antagonismos e duros
debates intelectuais, como quando, em 1524, Erasmo lançou a obra “Sobre o
livre-arbítrio”, em que defendia a tradicional teologia católica sobre o tema e,
em 1525, Lutero publicou “Da vontade coletiva” – como ficou conhecido na
tradução brasileira – “em que fazia uma releitura da doutrina, afirmando que a
liberdade do homem é ilusória e nada pode. A graça de Deus realiza tudo, inclu-
sive, no homem” (ARNAUT DE TOLEDO, 2007, p. 110). Erasmo ainda publicou
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Hyperaspistes I, cuja tradução seria “O Defensor I”, no ano de 1526, que foi como
uma réplica às questões contidas em “Da vontade coletiva”, muito mal recebida
nos núcleos reformados da Europa, causando algumas reações violentas. Em
1527, Lutero lançou Hyperaspistes II, que pôs um ponto final na discussão, afas-
tando definitivamente os dois (ARNAUT DE TOLEDO, 2007).
Em 1536, Erasmo morreu, na Basiléia, não tendo abandonado antes a fé católica,
está enterrado na catedral da cidade, e em sua lápide pode se ler “em letras doura-
das [...] um servo de Cristo e o mais culto dos estudiosos” (BLAINEY, 2012, p. 171).

ULRICO ZUÍNGLIO

Outro grande interlocutor de Lutero foi padre e teólogo suíço Ulrico Zuínglio,
na tradução portuguesa para seu nome, ou Huldrych Zwingli, na grafia origi-
nal. Zuínglio nasceu em 1484, na cidade de Wildhaus, na fronteira suíça com
a atual Alemanha e a Áustria. Estudou teologia e foi ordenado padre em 1506,
assumindo a paróquia de Glarus (BLAINEY, 2012).
Em 1516, depois de ler a tradução do Novo Testamento, viajou para Basiléia,
onde se encontrou com Erasmo de Roterdã. Segundo biógrafos, depois do encon-
tro o padre suíço não foi a mesma pessoa: “Nunca mais subi ao púlpito sem ter
estudado atentamente o evangelho do dia e buscado explicações nas escrituras”
(BLAINEY, 2012, p. 182). Um ano depois, teve contato com as ideias de Lutero,
expressas nas 95 teses.

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


214 UNIDADE V

Erasmo e Lutero eram as bases filosófica, teológica e ideológica do pensa-


mento de Zuínglio, que de Glarus mudou para Einsiedeln e de lá para a rica
cidade de Zurique, uma república com governo independente, onde, além de
pregador da grandiosa catedral de Grossmünster, fazia parte do conselho da
cidade, o que lhe rendeu grande respeito e influência. Segundo Geoffrey Blainey
(2012, p. 183), em 1520, Zurique era “o centro da reforma religiosa na Europa
e se mostrava mais radical do que Wittenberg e Estrasburgo” e Zuínglio era o
principal expoente desse momento.
Como Zurique era uma república independente, e Zuínglio era parte do

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conselho da cidade, tinha certa liberdade nas ações religiosas, como a condena-
ção do celibato clerical e, por não encontrar, nas escrituras, o que o justificasse,
contraiu casamento com uma jovem viúva da cidade, em 1524, antes mesmo de
Lutero casar-se com Catherine Von Bora.
Ulrico Zuínglio era um atento leitor dos escritos de Lutero, mas seu ímpeto
superava o do reformador alemão, isso, em grande medida, era favorecido pelas
questões políticas que envolviam ambos, pois, enquanto o suíço tinha certa
liberdade, Lutero estava envolto a um Sacro Império Romano Germânico com-
pletamente dividido, e sua reforma ainda não triunfará.
Zuínglio foi pioneiro em algumas questões que mais tarde serão creditadas
à Reforma de maneira geral, como o fim do Celibato Clerical, que já foi posto, a
condenação do uso de imagens e a obrigatoriedade da língua nacional nas cele-
brações cúlticas:
[…]como a Bíblia condenava a adoração de ídolos e de estátuas, Zuín-
glio e seus colaboradores mais próximos ordenaram, em 1524, que as
pinturas e imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos fossem
retiradas das igrejas de Zurique [...] Em Zurique, a partir de 1525, o
idioma alemão passou a ser adotado para os sermões. Naquele mesmo
ano cresceu o clamor pelo fechamento de mosteiros e conventos, e eles
foram realmente fechados (BLAINEY, 2012, p. 183).

Apesar da proximidade ideológica e da inspiração no autor das 95 teses, Zuínglio


divergia ferrenhamente de Lutero em uma questão, a Eucaristia (Ceia de Cristo,
ou Santa Ceia). Nos círculos reformados, a Eucaristia manteve-se presente como
parte da doutrina cristã. O catolicismo formal entendia, e entende ainda, que,
no momento da consagração dos elementos, ocorria uma transubstanciação dos

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215

elementos, ou seja, o vinho tornava-se, materialmente, no sangue de Cristo, e o


pão no corpo. Tal caráter transubstancial dos elementos da ceia foi negado pelos
reformadores logo de início, mas a divergência entre o suíço e alemão estava na
seguinte questão: para Zuínglio, a ceia era meramente simbólica e memorial,
negando qualquer caráter sagrado ao evento, já Lutero não via como um mero
simbolismo, defendendo a presença real de Cristo no pão e no vinho, e para ele,
apesar de não acreditar na transubstanciação, tinha caráter espiritual (ARNAUT
DE TOLEDO, 2007). O que vemos hoje, no mundo cristão reformado, é que o
modelo luterano sobressaiu-se ao de Zuínglio, pois, ao participar da Eucaristia,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o fiel deve estar em paz, ter seus pecados confessados e estar arrependido, visto
que existe uma questão que não é meramente simbólica, mas espiritual.
Lutero e Zuínglio encontraram-se, pela primeira vez, em 02 de outubro de
1529, em Marburg, na atual Alemanha (BLAINEY, 2012), e a reunião teve como
pauta a questão da Eucaristia. Irredutíveis e de pulsos firmes em suas opiniões,
é sabido que não chegaram a nenhum acordo sobre a questão. É importante
esclarecer que os primeiros reformadores não tinham claro, como temos hoje,
esta diferenciação com os católicos romanos. Zuínglio era um líder reformado,
mas usava a estrutura da Igreja romana e, diferente de Lutero, o suíço não foi
formalmente excomungado, isso pode ter se devido à proteção que recebia dos
governantes de Zurique, ou mesmo porque o papa estava preocupado com outras
questões, como a paz entre Valois e Habsburgo e a expansão turca. Os católicos
que mantiveram devoção à igreja romana revoltavam-se com as pregações infla-
madas contra o papado e a estrutura tradicional eclesiástica, com isso, cidades
vizinhas formaram exércitos católicos para calar o inflamado Zuínglio.
Zuínglio morreu em 1531, possivelmente em batalha contra os exércitos
católicos suíços.

THOMAS MÜNTZER

Talvez um dos expoentes mais controversos, conhecido pela relação de amor


e ódio a Lutero e sua teologia, tenha sido o também alemão Tomas Müntzer.
Nascido em Stolberg, em 1490, pouco se sabe sobre o caminho percorrido até

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


216 UNIDADE V

ser ordenado sacerdote entre 1513 e 1514 e, em 1516, foi ordenado prepósito,
um cargo de chefia, de um convento feminino, “onde em 1517 e 1518 entrou em
contato com a discussão que ascendia em torno do professor da Universidade
de Wittenberg, Martinho Lutero” (DREHER, 2007, p. 197). Entre 1517 e 1520,
tornou-se um devoto adepto da causa luterana e pregador do evangelho, por
indicação do próprio Lutero, em Zwickau (DREHER, 2007).
Martin Norberto Dreher (2007, p. 197 e 198) explica que, assim como Lutero,
Müntzer entrou em contato com a obra dos místicos alemães, o que o marcou
profundamente, pois, nessas obras, encontrou um alento para suas aflições:

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[…]nas obras desses místicos encontrou a afirmação, que o tornou ex-
tremamente feliz, de que Deus primeiro lança a todos os seus amigos
na noite do desespero – assim como ele, Müntzer, o havia experimen-
tado – antes de permitir que o sol brilhe sobre eles. Nesses místicos,
Müntzer encontrou, ainda, a afirmação – que ainda mais felicidade lhe
trouxe – de que o eterno Deus, sem meios exteriores, revela-se, palpa-
velmente, aos seus no mais profundo da alma.

Influenciado pelo misticismo e pela procura de uma experiência com Deus, em


Zwickau, teve contato com Nicolau Storch, um tecelão que liderava um grupo
de cristão leigos, que diziam ter “feito experiência com o Espírito Santo. Falavam
também que os demais deveriam estar em condições de prestar contas de sua
fé pessoal e de ser possuidores do Espírito” (DREHER, 2007, p. 198). Também
contraiu desse grupo a ideia de que era tarefa dos crentes erigir o reino de Deus
na Terra, eliminando aqueles que discordassem de sua doutrina, os não-crentes.
Baseado nessas ideias que a historiografia chamou de espirituais, Müntzer
acreditava que para a concretização do Reino de Deus na Terra seria necessária
uma Nova Igreja Apostólica, cuja liderança seria exercida por Deus, sem as ins-
tituições hierárquicas e clericais que marcavam a Igreja. Para além dos limites
eclesiais, o alemão acreditava em uma sociedade governada pelo Espírito Santo,
jogando por terra a autoridade política dos reis e príncipes, portanto, Igreja, em
Müntzer, era o todo da comunidade, nos seus diversos setores, o político, o eco-
nômico, ou mesmo, o social, como mostrado por Carl Hinrichs (1952), citado
por Dreher (2007, p. 199):
[…]“igreja” é para ele a união dos eleitos, mediante da experiência di-
reta do Espírito e da Vontade de Deus; é o estado final perfeito da hu-

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217

manidade, sem instituição estatal, sem propriedade, realizado aqui na


terra e que conclui ou encerra a história que até aqui ocorreu.

Essas ideias de Müntzer não estavam em consonância com as de seu líder Lutero,
que, ao contrário, como não podia deixar de ser, visto que tinha o apoio de prín-
cipes e líderes estatais, defendia a existência de um poder que regulasse a vida
para além da Eclésia, um líder político, por isso, o reformador defende a obe-
diência ao Estado.
A Igreja segundo Lutero, não surge nem é mantida nem é mantida a
partir dos indivíduos, mas a partir de algo objetivo que está fora deles e
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sobre eles: a Palavra. Para que essa Palavra seja corretamente ensinada
e pregada surge novamente uma instituição exterior, visível, no seio do
qual existe a verdadeira Igreja, a Igreja invisível. Ao lado do culto de
pregação da Igreja visível, existe apenas uma única forma de culto: o
serviço e o trabalho nas ordenações da vida normal: na profissão e no
Estado, no matrimônio e na família (DREHER, 2007, p. 198).

Apesar das diferenças teológicas com Lutero, Müntzer continuou luterano, assu-
mindo a Igreja em Allstedt, em 1523. Lá introduziu o culto em língua alemã e se
casou como a ex-freira Ottilie von Gersen, pouco antes de Lutero fazer o mesmo,
em 1525, casando com Catherine Von Bora.
Eloquente, com um discurso interessante às camadas populares que se viam
obrigadas a pagar impostos para os grandes senhores de terras, Müntzer atraía
multidões aos seus sermões, em Allstedt, o que passou a incomodar os gover-
nantes luteranos alemães, visto que a obediência civil não era pressuposto para
a salvação.
Por volta de 1524, Müntzer dissociou-se de Lutero, que, segundo ele, tinha
abdicado da verdadeira reforma em favor do poder da nobreza alemã. Por isso
teceu diversos escárnios contra o reformador alemão, os quais, pelo baixíssimo
nível, não me é permitido reproduzir aqui, mas seguem alguns:
Doutor mentira [...] Doutor Escárnio [...] Doutor Boa-Vida [...] a carne
ímpia de Wittenberg [...] Corvo do Mal [...] puxa-saco [...] herege [...]
canalha [...] traquinas [...] novo papa [...] Condenado dos infernos [...]
cobra [...] raposa fingida [...] pagão do mal [...] velhaco dos infernos
[...] escroque [...] raposa raivosa [...] embaixador do Inferno [...] (EIRE,
2013, p. 167).

Em 1524, influenciado diretamente por Müntzer, explodem revoltas camponesas

As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante


218 UNIDADE V

em toda as regiões da Alemanha, que se iniciam contra a servidão feudal ainda


existente em diversas partes da Europa e contra os pesados impostos dos cam-
poneses, que só faziam aumentar o luxo e os privilégios dos poderosos. Müntzer,
logo assumiu a frente das revoltas, unificando o movimento que, no princípio, não
era organizado, mas espaçado nas diversas regiões do Sagrado Império Romano
Germânico. O reformador revolucionário, como podemos chamá-lo, via nessa
revolta o combustível propulsor da consolidação do Reino de Deus na Terra.
As revoltas, que duraram entre 1524 e 1525, terminaram sem nenhuma con-
quista expressiva por parte dos camponeses que, armados com enxadas, foices e

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facões, não eram páreos para a nobreza cavalheiresca europeia, e Thomas Müntzer
foi executado junto com outras lideranças, ao fim dos conflitos, em 1525.

SITUAÇÃO POLÍTICA NA EUROPA PÓS-REFORMA

O contexto europeu, nos anos que marcaram a expansão da Reforma, foi defini-
tivamente notado pelas lutas políticas entre as poderosas famílias de Habsburgo
e Valois, pela real ameaça Otomana no oriente, pela volta do crescimento popu-
lacional após o decréscimo do século XIV e pelos medos escatológicos que
pairavam sobre as classes menos favorecidas da Europa.

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219

Como já posto, o sucesso da Reforma talvez estivesse nestas questões apre-


sentadas. Enquanto o papa mediava as políticas de grandes proporções, Lutero e
seus séquitos floresciam na pregação de uma nova modalidade de fé cristã que,
de forma geral, era mais simples e compreensível às classes populares, diferente
de toda pompa católica e de intermináveis homilias em latim.
As disputas entre Valois e Habsburgo chegaram a momentos bem delica-
dos, quando, em 1527, o imperador Carlos V decretou o famoso Sacco di Roma
(Saque de Roma), uma retaliação contra o apoio do papa ao monarca francês. A
cidade foi invadida por soldados que “estavam sem soldo e com fome” (ARNAUT
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DE TOLEDO, 2007, p. 112). Pode-se, então, imaginar o quão trágico foi tal epi-
sódio no seio da cristandade, um monarca católico decreta a invasão ao centro
do papado.
O Sagrado Império Romano Germânico, governado por Carlos V, era um
conglomerado de principados com algumas características feudais cujo impe-
rador era a autoridade máxima dentro do território, mas cada príncipe legislava
sobre questões locais, e o poder imperial era requerido em momentos singulares,
quando se tratava de questões gerais. Explicado isso, é importante esclarecer que
o imperador era católico, mas muitos príncipes tinham aderido à causa luterana.
Em 1526, foi realizada a Primeira Dieta de Espira, quando se decidiu que cada
monarca local poderia escolher a religião que seria praticada em seus territórios.
Tal decisão revogou a Dieta de Worms, de 1521, que obrigava a expulsão de Lutero
e dos luteranos dos territórios do Império, fato que nunca foi totalmente conclu-
ído. Mas, em 1529, uma nova Dieta foi convocada em Espira, essa, no entanto,
revogava o acordo de 1526 e recolocava em vigor o acordo de 1521. Com esta
nova resolução, alguns príncipes e governantes de cidades independentes que já
tinham assumido a posição luterana, deixam a reunião, como forma de protesto,
não aderindo à nova determinação. Desse momento em diante, as comunida-
des cristãs não católicas da Europa receberam o nome de Protestantes, derivado
da postura assumida pelos príncipes, em Espira (ARNAUT DE TOLEDO, 2007;
DREHER, 2007; MAINKA, 2007).
Em 1530, líderes protestantes apresentaram, na Dieta de Augsburgo, um
documento redigido por Filipe Melanchton, uma espécie de braço direito de
Lutero, a confissão Augustana, ou confissão de Augsburgo, na qual apresentava,

Situação Política na Europa Pós-Reforma


220 UNIDADE V

de forma clara, os preceitos da fé reformada, tornando-se o primeiro credo evan-


gélico. Cézar de Alencar Arnaut de Toledo (2007, p. 113) escreve que: “Apesar da
proibição de divulgação pelo próprio Imperador Carlos V, o texto da Confessio
augustana, como ficou conhecido, foi assumido pelas comunidades que aderi-
ram à nova fé nos territórios da Alemanha”.
Em 1531, príncipes protestantes unem-se, na chamada Liga de Escalmada,
colocam-se contrários aos desígnios imperiais e selam uma forte oposição à uni-
dade do Sagrado Império, formando um governo autônomo. Isso foi recebido
com grande preocupação entre as autoridades. Carlos V não podia controlar

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uma rebelião interna e, ao mesmo tempo, impedir os avanços turcos que, neste
momento era um importante aliado de Francisco I de Valois, rei da França.
Devido a essas questões, em 1532, Carlos V propõe a Paz de Nuremberg, que fir-
mava um acordo entre protestantes e católicos e possibilitava o “livre exercício
da fé, até ‘a realização de um concílio’” (ARNAUT DE TOLEDO, 2007, p. 113).
A reforma religiosa atingiu grandes patamares na Europa e, diferente do que
seus detratores pensaram, seus efeitos foram irreversíveis. Já na década de 50, do
século XVI, muitos reinos europeus já tinham aderido à causa protestante, dentre
eles Suécia, Noruega, Dinamarca, principados alemães, Transilvânia, cidades-es-
tados suíços, países baixos (posteriormente Holanda) e a Inglaterra, sem contar
os conglomerados protestantes, no sul da França, e a burguesia calvinista, nos
mais diversos estados católicos.

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221
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A “REFORMA” INGLESA

Para compreender as transformações religiosas na Inglaterra, no século XVI, é


de extrema importância compreender a política real britânica na passagem do
século XV para o século XVI.
Ao longo e após um conflito encarniçado entre França e Inglaterra, conhe-
cido como Guerra dos Cem Anos (1337-1453, apesar do nome a Guerra durou
116 anos), as sucessões dinásticas ao trono inglês estavam restritas a duas famílias
reais, Lancaster e York, que se alternavam no trono. Enquanto uma reclamava o
direito ao trono, a outra exercia o poder tentando eliminar seus adversários. Esse
período da história inglesa ficou conhecido como Guerra das Rosas (1455-1485).
Enquanto os conflitos internos ocorriam, uma terceira via foi apresentada
no seio da família Lancaster, representada por Henrique, que, em 1485, derro-
tou o rei Ricardo III, da dinastia de York, na batalha de Market Bosworth e, no
mesmo ano, casou-se com Elisabeth de York, sobrinha de Ricardo. A partir disso,
consolidou-se rei da Inglaterra, inaugurando uma vertente dinástica conhecida
como Família Tudor.
Henrique VII, como ficou conhecido, entendia claramente que as uniões
matrimoniais poderiam ser instrumentos diplomáticos, de expansão e coalizão

A “Reforma” Inglesa
222 UNIDADE V

contra futuros inimigos, por isso, casou sua filha Margarida com o rei da Escócia
Jaime IV, e Arthur, herdeiro do trono inglês, com Catarina, filha do rei Fernando,
da Espanha. O casamento de Arthur com Catarina, no final de 1501, foi rece-
bido com grandes honras e expectativas, tanto que o “dote espanhol atingiu a
soma enorme de 200 mil coroas” (MAINKA, 2007, p. 131).
Apesar da grande expectativa, o casamento do herdeiro do trono inglês
durou apenas cinco meses. Arthur morreu de repente, em abril de 1502, com
apenas 15 anos de idade. Para não perder o acordo com o monarca espanhol,
Henrique VII tratou de buscar a anulação do casamento de Arthur e formali-

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zar uma união com seu filho mais novo Henrique que, na época, tinha apenas
11 anos. O casamento de Henrique e Catarina foi formalizado apenas em 1509,
ano em que se tornou rei da Inglaterra, após a morte do pai, quando se conso-
lidou como Henrique VIII.
Muitas foram as tentativas de Henrique e Catarina para garantir um herdeiro
que pudesse assumir o trono inglês após sua morte. No entanto, dos cinco partos-
todos de meninas, apenas um bebê vingou, fato que preocupava Henrique, que,
como sinal de virilidade, esperava um herdeiro masculino. Ele, como convencio-
nalmente se pensava no século XVI, acreditava que o “problema” do nascimento
só de meninas estava na mulher. Hoje, a ciência moderna avalia que a definição
do sexo do bebê é, e muito, influenciada pelo gene masculino.
Outra questão que assombrava Henrique VIII em relação ao casamento
era o fato de estar casado com a esposa de seu irmão. Como citado por Michael
Maurer (MAINKA, 2007, p. 134): “Para um contemporâneo teologicamente for-
mado, como Henrique, era quase inevitável atribuir o trecho da Bíblia (Lev 20) a
si mesmo, no qual é ameaçado ficar sem filhos quem casa com a mulher do seu
irmão”. Henrique VIII acreditava que a única forma de dar conta do “problema”
era a anulação do casamento, assim, iniciou uma série de pedidos para a anula-
ção da união junto à Santa Sé. O papa não pensava na possibilidade da suspensão
do matrimônio por motivos óbvios, não queria problemas com a Espanha nem
maiores discórdias com o Imperador Carlos V, que era sobrinho de Catarina.
Enquanto o matrimônio não foi suspenso, setores da burguesia e da nobreza
inglesa tomaram contato com a Reforma de Lutero e imaginavam a possibili-
dade de desvincular-se da Igreja Romana, que detinha parte dos impostos pagos

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223

(no caso da burguesia e do campesinato) e vastas extensões territoriais no reino.


Em 1529, o parlamento, reunido em Westminster, decretou a subordinação
da Igreja ao Estado inglês. A partir de 1530, fez com que o clero jurasse fideli-
dade ao rei acima dos interesses de Roma, e quem não jurasse seria condenado à
morte. Esses juramentos tornaram-se obrigatórios depois de Thomas Cromwell,
conselheiro de Henrique VIII, informar à câmara baixa que “havia descoberto
que os clérigos eram apenas ‘meio’ súditos, devido ao fato de eles prestarem jura-
mento de obediência ao papado” (MAINKA, 2007, p. 136).
O parlamento que ficou reunido em Westminster até 1534 ainda conseguiu
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abolir as anatas, uma taxa de um terço pago à Roma pela receita anual. Em janeiro
de 1533, Thomas Cranmer foi nomeado arcebispo de Canterbury, o principal
da Inglaterra. Nesse mesmo mês, fez o casamento de Henrique VIII e a jovem
dama de honra Ana Bolena, que já se encontrava grávida.
Em março de 1533, uma lei:
[…]proibiu, em questões referentes aos matrimônios ou aos testamen-
tos, recursos dos tribunais arcebispais aos tribunais em Roma. Com
essa lei, o Direito Canônico ficava subordinado à coroa inglesa. O Ar-
cebispo de Canterbury foi nomeado à instância mais alta para todo o
reino da Inglaterra (MAINKA, 2007, p. 137).

Com essa lei, chamada Act of Restraint of Appeals, em tradução livre “Ato de res-
trição de apelações”, os direitos da Igreja Romana foram totalmente abolidos do
território inglês. Em 23 de maio de 1533, o casamento de Henrique VIII com
Catarina de Aragão foi declarado ilegítimo e perdeu validade, em contrapartida
o casamento com Ana Bolena fora considerado legítimo, e o futuro herdeiro
como detentor do direito de privilégio na sucessão do trono.
Em setembro de 1534, Henrique VIII foi excomungado da Igreja Católica
pelo papa Clemente VII e, em 30 de agosto de 1535, o papa Paulo III reforçou a
excomunhão anterior, que foi definitivamente publicada em 1538.
Ana Bolena deu à luz outra menina, batizada como Elizabeth, que, poste-
riormente, reinou por 45 anos. Agora, Henrique tinha duas filhas, Maria, do
casamento com Catarina e Elizabeth, não alcançando seu objetivo primeiro.
Henrique viria a casar mais quatro vezes e, com a terceira esposa, Jane Seymour,
teve um herdeiro varão, Eduardo.

A “Reforma” Inglesa
224 UNIDADE V

Em 1534, Henrique VIII publicou o Ato de Supremacia, inaugurando defini-


tivamente a Igreja Nacional Inglesa, conhecida como Igreja Anglicana. A Igreja
que nascia era, na prática, “um catolicismo sem papa” (MAINKA, 2007, p. 140).
Henrique e seus seguidores mantiveram, em primeiro momento, os mesmos
princípios católicos, no entanto a historiografia tradicional trata o movimento
inglês como reformista, pois aconteceu como consequência da reforma iniciada
nos principados alemães.
A Igreja Anglicana ainda sofreu algumas transformações importantes, durante
o reinado da filha de Henrique VIII, Elizabeth I, aproximando-se às perspectivas

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calvinistas, mas, de forma geral, os anglicanos ainda se assemelham aos católicos
romanos. Ainda hoje, a autoridade máxima da Igreja é a rainha da Inglaterra, e os
preceitos religiosos são ordenados segundo a visão do arcebispo de Canterbury.

A REFORMA CALVINISTA

A reforma iniciada por João Calvino, em Genebra,


foi tão importante quanto a de Lutero, mas o protes-
tantismo calvinista imprimiu o que o sociólogo Max
Weber chamou de “Ética Protestante”, que contribuiu
para o desenvolvimento do que o autor chamou de
“Espírito do Capitalismo”. Também esta modalidade
teológica protestante foi majoritária entre os coloni-
zadores dos Estados Unidos da América. De forma
geral, não existe uma Igreja com o nome calvinista
tal como há a luterana, o próprio João Calvino não
era simpático a este termo. Nos diversos países onde
se estabeleceram, receberam nomes distintos, como
huguenotes, na França, Presbiterianos, na Escócia, e
Puritanos, na Inglaterra.

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225

João Calvino nasceu em Noyon, cidade do norte da França, em 1509, filho


de um importante promotor da igreja local e de uma burguesa enriquecida. Em
1521, passou a receber uma pensão da diocese local que lhe beneficiou pelos 13
anos seguintes. Em 1523, foi para Paris estudar Latim e Teologia e, em 1528, pas-
sou a estudar leis, na Universidade de Orleans. Dali, seguiu para Bourges, onde
também estudou grego e, em 1531, ano da morte de seu pai (sua mãe já havia
quando tinha apenas 5 anos), regressou a Paris.
Seus biógrafos atribuem sua conversão à fé protestante, em 1533, ano em
que foi acusado de coautor do discurso proferido por Nicholas Cop, reitor da
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Universidade de Paris em favor da fé reformada. Devido ao clima criado entre


seus colegas, fugiu para Angoulême e, no ano seguinte, regressou a Noyon, onde
abdicou do benefício eclesiástico. Em 1536, Calvino terminou e publicou sua
obra-prima Instituição da Religião Cristã. Conhecida como Institutas, foi escrita
primeiro em latim e, depois, ganhou uma versão em francês, e foi a principal
obra da teologia calvinista, em que se encontra parte significativa de suas ten-
dências religiosas.
Entre 1536 e 1537, foi convidado por um amigo, Guillaume Farel, a assumir a
reforma na cidade-estado de Genebra, na atual suíça. Atuaram como pregadores
durante dois anos na cidade, no entanto entre 1538 e 1541, para alguns, porque
foi expulso da cidade (BLAINEY, 2012; BARSA, 1995), para outros, porém, por-
que foi convidado por outro amigo, mudou-se para Estrasburgo, onde foi pastor
de uma pequena igreja de refugiados franceses. Retornou a Genebra em 1541
e, ao longo dos anos seguintes, tornou-se o homem mais importante da cidade.
O temperamento de Calvino era calculista e reservado, em contraste
com o de Lutero, ardente e emotivo. Firmemente convencido de que
deveria pôr em prática sua religião, tentou transformar Genebra num
Estado onde o governo teria a exclusiva finalidade de fazê-la observar.
Os cidadãos deveriam fazer uma profissão de fé e viver de acordo com
a mesma (BARSA, 1995, p. 508).

É interessante perceber que, apesar de a Reforma do século XVI ter se iniciado


com Lutero, Calvino foi mais influenciado por Zuínglio. Isso pode ser visto em
questões, como a reverência nas celebrações e a total não devoção a imagens e
aos santos. Mais ainda é característica da Igreja do reformador francês a abdica-
ção das bebidas e dos jogos, a valorização da assistência aos pobres, a proibição

A Reforma Calvinista
226 UNIDADE V

das danças e as trocas públicas de carícias e o não uso de instrumentos musi-


cais nas celebrações. Sobre este último ponto, Blainey (2012, p. 198) explica que:
“A ideia parece severa demais, mas os visitantes estrangeiros que entravam na
ampla igreja de Genebra e ouviam centenas de pessoas cantando juntas ficavam
pasmos, ao perceber tanta força e sinceridade”.
Sem dúvida, a principal marca da doutrina calvinista foi a teologia da pre-
destinação, pela qual atribui as ações da vida no mundo em total e absoluta
vontade do criador. Desse modo, Deus, em seu infinito poder, já predestinou o
futuro da humanidade, sendo a vida uma corrida cujo fim já foi decidido por

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Ele. O próprio Deus sabe se os homens foram predestinados à vida eterna ou
à condenação. Não há possibilidade de saber se somos salvos, ou condenados,
mas a justeza e a integridade com a qual levamos a vida dão-nos pistas sobre o
futuro que nos espera.
Muitos burgueses aderiram à causa calvinista, pois, diferente do que era
pregado pela igreja romana, que condenava o lucro, para Calvino, as aquisições
financeiras, ou não, advêm de Deus, é Ele quem proporciona, por meio do empe-
nho do exercício de suas funções.
Max Weber, sociólogo do século XIX e início do XX, em sua obra “A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo”, atribui ao ideal protestante de traba-
lho e riqueza a importância para o desenvolvimento do capitalismo. Tanto que
os países que adotaram o protestantismo, baseados em na “ética” religiosa calvi-
nista, obtiveram sucesso econômico, sendo, hoje, as maiores potências mundiais.
Calvino tornou-se, depois da morte de Lutero, o principal líder protestante
da Europa. Faleceu em Genebra, em 1564, e foi enterrado sem “pompa” e majes-
tade, num túmulo simples em que havia as iniciais de seu nome.

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227

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao fim de mais uma unidade. Aqui, percebemos que a Reforma envol-
veu parte significativa da Europa em um curto período de tempo. Vimos que a
ascensão protestante estava intimamente ligada ao momento histórico pelo qual a
Europa passava. A expansão turca, as disputas por poder no seio da cristandade,
caracterizada pelas celeumas entre Habsburgos e Valois, o crescente empodera-
mento dos monarcas nacionais e os problemas econômicos proporcionados pela
crise de abastecimento, no início do século XVI, foram cruciais para o sucesso
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do movimento iniciado pelo ex-monge agostiniano, Martinho Lutero.


Mostramos que, no início do movimento, Lutero sofreu com críticas de
outros teólogos, os quais, no princípio, aderiram ao ideal protestante, mas, ao
longo do tempo, se depararam com divergências conceituais, bíblicas e espiri-
tuais. Falamos que a Reforma também foi utilizada como instrumento político
ligado às pretensões de reis e príncipes e sobre Frederico II, que defendeu Lutero.
Mas, inevitavelmente, a figura que mais teve impacto neste aspecto foi Henrique
VIII, que fundou sua própria Igreja apenas para validar suas intenções de poder.
Também apresentamos, nesta unidade, a reforma iniciada por João Calvino,
que marcou profundamente o protestantismo. Suas ideias foram responsáveis
pelo nascimento de uma ética que ultrapassou as barreiras confessionais e mol-
dou o pensamento ocidental.
Se, no início do século XVI, o papa era uma figura acima de qualquer sus-
peita, imerso em luxo e poder, nos próximos séculos a Igreja Católica via-se diante
da expansão protestante e da perda significativa de seu rebanho. Assim, o cato-
licismo viu-se obrigado a se reformar para conter os avanços da reforma, mas
isso é assunto para História da Igreja II, o próximo volume de nossa disciplina.
Até logo.

Considerações Finais
228

1. A Reforma Protestante triunfou em meados do século XVI por conta de uma série de
acontecimentos que possibilitaram o “desvio de foco” da autoridade romana para
assuntos de ordem econômica e política. Assinale a alternativa que apresenta os
principais fatos que contribuíram para o sucesso do movimento iniciado por
Lutero.
a) Os conflitos entre as famílias nobres de Navarra e Aragão pelo controle de Flan-
dres; a expansão turca no leste europeu e Oriente Médio; a instabilidade econô-
mica.
b) As disputas por poder entre as famílias Habsburgo e Valois; a expansão turca no
leste europeu e Oriente Médio; a instabilidade econômica.
c) A morte do Imperador Maximiliano I; as disputas de poder entre as famílias Habs-
burgo e Valois; as 95 teses de Lutero.
d) A vitória dos franceses contra a família Habsburgo; a ascensão ao trono imperial
de Carlos V; a expansão turca no leste europeu e Oriente Médio.
e) As 95 teses de Calvino; as disputas de poder entre o Império Turco-Otomano e
o reino da saxônia pelo poder da Áustria; a doutrina de predestinação de João
Calvino.
2. Calvino foi um dos grandes nomes do protestantismo europeu. Seu pensamento,
rico e elaborado, foi expresso em uma obra dividida em alguns volumes. Qual o
nome da obra que contém as principais doutrinas calvinistas?
a) Sobre a autoridade secular.
b) O Leviatã.
c) Instituição da Igreja Cristã.
d) O elogia da loucura.
e) Calvinismo hoje.
3. Um dos interlocutores de Lutero liderou alguns levantes populares, que receberam
o nome de revoluções camponesas na década de 20, do século XVI. Qual o nome do
líder rebelde?
a) Ulrico Zuínglio.
b) Tomás Müntzer.
c) Erasmo de Roterdã.
d) João Calvino.
e) Miguel Serveto.
229

4. Henrique VIII, monarca e fundador da Igreja Nacional Inglesa, conhecida como An-
glicana, foi motivado por questões de ordem política para se desvencilhar da Igreja
Romana. Qual a principal motivação para a cisão entre o reino da Inglaterra e o
papado, no século XVI?
a) A não aceitação romana do pedido de anulação do casamento com a princesa
espanhola Catarina de Aragão.
b) O desejo de criar uma Igreja independente, onde só a fé em Cristo levaria à salva-
ção.
c) A necessidade de criar uma igreja piedosa e homogênea cujo interesse principal
era a salvação dos menos favorecidos.
d) A influência do pensamento calvinista na criação da Igreja Católica.
e) A não aceitação romana do pedido de casamento com a princesa espanhola Ca-
tarina de Aragão.
5. O teólogo suíço Ulrico Zuínglio, foi um dos primeiros seguidores de Martinho Lutero
e, assim como Lutero, fora sacerdote católico. Em muitos pontos, os pensamentos do
alemão e do suíço convergiam, mas em uma questão discordavam profundamente.
Qual questão incompatível entre esses teólogos reformados?
a) A questão do batismo. Zuínglio acreditava que só poderia ser efetivado após de-
terminada idade, já Lutero acreditava no batismo infantil.
b) A questão da Eucaristia. Para Zuínglio a ceia era meramente simbólica e memorial,
negando qualquer caráter sagrado ao evento, já Lutero não via como um mero
simbolismo, defendendo a presença real de Cristo no pão e no vinho.
c) A questão do sacerdócio feminino. Zuínglio defendia a não ordenação de mulhe-
res, fato que para Lutero era irrelevante.
d) A questão do poder papal. Zuínglio era um árduo defensor da Igreja Católica, já
Lutero não acreditava na Igreja Romana.
e) A questão do batismo com o Espírito Santo. Para Zuínglio, após o batismo, o cren-
te já recebia o Espírito Santo, já para Lutero, isso poderia acontecer antes ou de-
pois, pois dependia do coração arrependido do pecador.
230

OS PEREGRINOS E A NOVA INGLATERRA


Nem só de órfãos, mulheres sem outro futuro e pobres constituiu-se o fluxo de imigran-
tes para as colônias. Há, minoritariamente, um grupo que a História consagraria como
“peregrinos”. A perseguição religiosa era uma constante na Inglaterra dos séculos XVI e
XVII. A América seria um refúgio também para esses grupos religiosos perseguidos. Um
dos grupos que chegou a Massachusetts, em 1620, tinha como líderes John Robinson,
William Brewster e William Bradfort, indivíduos religiosos e de formação escolar desen-
volvida.
Ainda a bordo do navio que os trazia, o Mayflower, os peregrinos firmaram um pacto,
estabelecendo que seguiriam leis justas e iguais. O documento é chamado “Mayflower
Compact” e sempre é lembrado pela historiografia norte-americana como um marco
fundador da ideia de liberdade, ainda que o documento dedique longos trechos à glória
do rei James da Inglaterra.
A chegada ao território, que hoje é Massachusetts, não foi fácil. O navio aportou mais ao
norte do que se imaginava. O clima era frio, e o mar congelava. O inverno na região era
mais rigoroso do que o inverno inglês. O primeiro ano dos colonos na terra prometida
custou a vida de quase a metade dos peregrinos.
Pouco antes de a nova estação fria chegar, em 1621, os sobreviventes decidiram fazer
uma festa de Ação de Graças (Thanksgiving). Os colonos utilizaram sua primeira colheita
de milho, já que a plantação de trigo europeu tinha falhado, e convidaram para a festa
o chefe Massasoit, da tribo wampanoag, que os havia auxiliado desde a sua chegada. O
cardápio foi reforçado com uma ave nativa, o peru, e tortas de abóbora. Desde então, os
norte-americanos repetem, no mês de novembro, a festa de Ação de Graças, reiterando
a ideia de que eles querem ter os “pais peregrinos” de Massachusetts como modelo de
fundação.
Os “pais peregrinos” (pilgrim fathers) são tomados como fundadores dos Estados Uni-
dos. Não são os pais de toda a nação, são os pais da parte “WASP” (em inglês, white
anglo-saxon protestant, ou seja, branco, anglo-saxão e protestante) dos EUA. Em geral,
a historiografia costuma consagrá-los como os modelos de colonos. Construiu-se uma
memória que identificava os peregrinos, o Mayflower e o Dia de Ação de Graças como
as bases sobre as quais a nação tinha sido edificada. Como toda memória, ela precisa
obscurecer alguns pontos e destacar outros.
Os “puritanos” (protestantes calvinistas) tinham em altíssima conta a ideia de que cons-
tituíam uma “nova Canaã”, um novo “povo de Israel”: um grupo escolhido por Deus para
criar uma sociedade de “eleitos”. Em toda a Bíblia, procuravam as afirmativas de Deus
sobre a maneira como Ele escolhia os seus e as repetiam com frequência. Tal como os
hebreus no Egito, também eles foram perseguidos na Inglaterra. Tal como os hebreus,
eles atravessaram o longo e tenebroso oceano, muito semelhante à travessia do deserto
do Sinai. Tal como os hebreus, os puritanos receberam as indicações divinas de uma
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nova terra e, como veremos adiante, são frequentes as referências ao “pacto” entre Deus
e os colonos puritanos. A ideia de povo eleito e especial diante do mundo é uma das
marcas mais fortes na constituição da cultura dos Estados Unidos.
Diante de uma desgraça, como a seca de 1662 na Nova Inglaterra, os puritanos ainda en-
contravam novos paralelos com a Bíblia: Deus também castigara os judeus quando eles
foram infiéis ao pacto. Deus salva a poucos, como os pregadores puritanos costumavam
afirmar. Fiéis à tradição dos reformistas Lutero e Calvino, a predestinação era uma ideia
forte entre eles.
Para manter sua identidade e a coesão do grupo, os puritanos exerceram um controle
excessivo sobre todas as atividades dos indivíduos. A ideia de uma moral coletiva cujo
erro de um indivíduo pode comprometer o grupo é também um diálogo com a concep-
ção da moral hebraica no deserto. O pacto Deus-povo é com todos os eleitos.
A população das colônias crescia rápido, passando de 2.500 pessoas (sem contar índios),
em 1620, para três milhões um século depois. Nesse grande contingente, embrião do
que seriam os Estados Unidos, misturam-se inúmeros tipos de colonos: aventureiros,
órfãos, membros de seitas religiosas, mulheres sem posses, crianças raptadas, negros e
africanos, degredados, comerciantes e nobres. Tomar, assim, os peregrinos protestantes
como padrão é reforçar uma parte do processo e ignorar outras.
Fonte: KARNAL (2007, p.46-47).
MATERIAL COMPLEMENTAR

A Ética Protestante e “Espírito” do Capitalismo


Max Weber
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: a ética protestante e o “espírito” do capitalismo, ensaio
clássico de Max Weber (1864-1920) sobre a ética puritana e a cultura
capitalista moderna, foi publicado nos anos de 1904 e 1905, na revista
alemã Archiv für Sozialwissenschaft. Uma segunda versão apareceria
em 1920, ampliada e revista pelo próprio autor, que adicionou passagens ao ensaio, aprimorou
conceitos e formulou outros - como os de desencantamento do mundo e ação racional - fez ajustes
terminológicos e incluiu numerosas notas de rodapé.
Esta edição reúne, num só texto, as duas versões do livro de Weber: o ensaio original de 1904 e os
acréscimos de 1920. A identidade dos dois textos é preservada: as passagens da segunda versão
são destacadas entre colchetes, permitindo uma nova leitura àqueles que já conhecem o estudo e
uma leitura completa aos que têm o primeiro contato com ele. A nova tradução (feita do alemão),
promove, assim, a retomada crítica da versão original ao aliá-la à versão definitiva, feita na plena
maturidade intelectual e pessoal do autor.
O estudo analisa a gênese da cultura capitalista moderna e sua relação com a religiosidade puritana,
adotada por igrejas e seitas protestantes dos séculos XVI e XVII. A partir de observações estatísticas,
Weber constatou que os protestantes de sua época eram, de um modo geral, mais bem-sucedidos
nos negócios do que os católicos. Os últimos ajustes ao estudo foram feitos no ano da morte do autor,
quando o texto passou a fazer parte dos Ensaios reunidos de sociologia da religião.
Disponível em: <http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=11668>. Acesso em
26/01/2017.

Lutero
após quase ser atingido por um raio, Martim Lutero (Joseph Fiennes)
acredita ter recebido um chamado. Ele se junta ao monastério, mas
logo fica atormentado com as práticas adotadas pela Igreja Católica
na época. Após pregar em uma igreja suas 95 teses, Lutero passa
a ser perseguido. Pressionado para que se redima publicamente,
Lutero se recusa a negar suas teses e desafia a Igreja Católica a
provar que elas estejam erradas e contradigam o que prega a Bíblia.
Excomungado, Lutero foge e inicia sua batalha para mostrar que
seus ideais estão corretos e que eles permitem o acesso de todas as
pessoas a Deus.
Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-42733/>. Acesso em 26/01/2017.
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REFERÊNCIAS

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GABARITO

1. B.
2. C.
3. B.
4. A.
5. B.
CONCLUSÃO

Olá, chegamos ao fim de mais uma disciplina em que estudamos as origens do cris-
tianismo e as bases filosóficas e teológicas do mundo ocidental. Na primeira unida-
de, pincelamos os principais aspectos políticos, sociais e militares da vida palestina
nos séculos que antecederam a era comum. Apresentamos, a partir de um viés his-
tórico, fatores importantes sobre a vida dos patriarcas, dos juízes e dos reis. A divisão
do reino e a invasão da região por impérios expansionistas também foi tema desta
unidade, bem como a ascensão decisiva dos romanos na região.
Já na segunda unidade, apresentamos um panorama histórico sobre a Palestina do
primeiro século: as principais vertentes judaicas, o nascimento do cristianismo e a
destruição do templo de Jerusalém. Também pudemos apresentar a relação que o
mundo antigo greco-romano estabeleceu com essa nova fé. Ao contrário do que é
comum pensar, a relação entre os textos sagrados e os textos pagãos de pensadores
gregos e romanos estabeleceram, muitas vezes, processos de fusão.
A terceira unidade disponibilizou uma literatura que pode discutir o processo de
ensino referente à Igreja medieval. Foi uma oportunidade riquíssima para termos
contato com as formas peculiares de pensar a relação entre fé e conhecimento, ela-
borada, nesse contexto, a saber, a Patrística e a Escolástica.
Já com a quarta unidade dispomo-nos a discutir as tomadas de decisões da Igreja
dentro de um embate contra as heresias. Foi um processo muito delicado para a
Igreja Cristã, tendo que optar por criar mecanismos de defesa para a manutenção
da sua organização.
Na quinta unidade, foram apresentados fatos que tiveram por objetivo demonstrar
os motivos pelos quais foi possível a ascensão do protestantismo. Apresentamos
Lutero e suas ideias, a maneira como o protestantismo foi usado politicamente por
príncipes alemães e pelo rei Henrique VIII, na Inglaterra. Por fim, tivemos a oportu-
nidade de conhecer um pouco mais sobre a maneira singular de João Calvino inter-
pretar as escrituras, além de refletir sobre suas contribuições para a ética ocidental.

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