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História Da Igreja I
História Da Igreja I
IGREJA I
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
Impresso por:
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Pró-Reitor de
Ensino de EAD
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria de Graduação
e Pós-graduação este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de
Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista
às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis-
so, lembre-se que existe uma equipe de professores
e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
segurança sua trajetória acadêmica.
AUTOR(ES)
HISTÓRIA DA IGREJA I
SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá, futuros teólogos e teólogas, sejam bem-vindos à disciplina de História da Igreja I.
Vocês iniciarão a jornada do conhecimento aprofundado sobre os trajetos e percursos
que deram origem ao que chamamos de cristianismo moderno. Nosso compromisso é
oferecer um conteúdo em que a ciência histórica seja apresentada para além do óbvio.
Aqui, as histórias bíblicas serão contempladas, mas procuraremos compreender as nu-
ances políticas, econômicas e sociais que, muitas vezes, não foram narradas nos relatos
contidos na Bíblia e na tradição cristã.
Desde já, cabe um importante esclarecimento: somos historiadores cristãos, com uma
cosmovisão de mundo pautada na ética cristã; então, não é nossa intenção a descons-
trução de conceitos pré-estabelecidos no que tange às questões relacionadas à fé. Não
conseguimos exaurir todas as questões relacionadas à História da Igreja, para isso seria
necessária uma coleção de obras sobre a temática, mas, aqui, serão lançadas as semen-
tes que te possibilitarão futuras pesquisas em nível de especialização, mestrado e até
mesmo doutorado.
Este primeiro volume de História da Igreja que você tem em mãos, conta com um vasto
período histórico que contempla quase três mil anos, por isso, é inevitável que algumas
questões não sejam aprofundadas em sua totalidade. Nele, o período histórico contem-
plado é do Chamado de Abraão, há mais de um milênio antes de Cristo, até a Reforma
Calvinista, que se dá em meados do século XVI.
Na unidade I, tentamos dar ênfase aos acontecimentos que envolvem o Antigo Testa-
mento, ou Tanakh, como os judeus chamam esta compilação de livros. Dessa forma,
trabalhamos o período patriarcal, dos juízes e dos reis, além do cisma que dividiu Israel
em dois reinos e as investidas dos primeiros impérios expansionistas do Oriente Médio
sobre a região.
Também tratamos de apresentar as tentativas de revoltas populares contra os governos
estabelecidos pela força, como foi o caso da Revolta dos Macabeus, que alcançou mui-
tos dos objetivos iniciais, mas, quando enfim se colocaram no poder, agiram de maneira
tão ou mais cruel com seus conterrâneos, que os próprios estrangeiros na região.
Apresentaremos as intrigas entre as famílias, disputas de poder entre irmãos e a ascen-
são de um novo Império, agora europeu sobre a região, o Império Romano. Mostrare-
mos a ascensão de Herodes, um Idumeu ou edomita que, convertido ao judaísmo, foi o
braço direito dos romanos na região. Apesar de braço direito, Herodes, o Grande, como
ficou conhecido, trouxe de volta o brilho e o esplendor do grandioso Templo de Salo-
mão, lugar sagrado de adoração ao Deus de Israel.
Na Unidade II, fazemos uma radiografia das principais correntes políticas e religiosas
da região, à pompa dos sacerdotes e grandiosidade do Templo, além do que também
apresentamos o início do ministério de Jesus Cristo, os primeiros apóstolos e o preço
que pagaram por propagar as Boas Novas do Reino. Neste capítulo, também nos pre-
ocupamos em tratar da destruição do Templo Sagrado e da dispersão dos judeus pelo
mundo, conhecida como diáspora.
APRESENTAÇÃO
Ainda com relação à Unidade II, foi possível uma breve apresentação sobre as in-
fluências culturais de outros povos, como os gregos, em um primeiro momento, e,
na sequência, os romanos que não foram poucas, diga-se de passagem, e influen-
ciaram significativamente o olhar desses cristãos para a sua própria religião. Seja
para incorporar ou repelir, as culturas clássicas grega e romana tiveram um papel
imprescindível nesses tempos.
Para Unidade III, selecionamos a discussão pertinente ao conhecimento da Idade
Média e, consequentemente, a relação desse saber com a Igreja. Buscamos, para
um compreendimento mais profundo, fazer uma seleção de temáticas e autores.
Na medida do possível, podemos dizer que foram as mais importantes. Embora o
grau de importância seja um conceito bem relativo, afirmamos essa seleção com
base na literatura presente em programas de graduação e pós-graduação do país.
Esta escolha nos levou, então, a fazer um panorama geral da Igreja na História, que,
diga-se de passagem, é o tema central da nossa disciplina. Com os devidos recortes
para o contexto medieval, pudemos selecionar a Patrística num primeiro momen-
to, e a Escolástica, num segundo. Paralelamente, buscamos trabalhar os expoentes
destas duas concepções que mais se destacaram, a saber, respectivamente, Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino.
Adentrando a Unidade IV, a discussão toma uma nova forma. Ainda situados no pla-
no de fundo da História da Igreja, apresentamos o período da Idade Média (período
de maior participação da Igreja na história) questionando a antiga expressão de que
essa era uma idade das trevas. A seguir, ainda dentro da unidade, mostramos as rela-
ções que essa instituição criou para se proteger. Destarte, vemos tanto as Cruzadas
quanto a Inquisição como mecanismos de proteção da Igreja diante das ameaças
externas e internas à fixação da fé no contexto do medievo.
Na Unidade V, apresentamos o cenário e os eventos que possibilitaram o advento
do movimento reformista, bem como os abusos da Igreja Católica e as transforma-
ções vivenciados na Europa do século XVI, deixando claro que o triunfo do movi-
mento protestante estava intimamente ligado a questões que vão além da religiosa,
pois são de ordem econômica, política e social.
Esperamos que este livro possa contribuir na sua formação. Boa leitura!
09
SUMÁRIO
UNIDADE I
15 Introdução
16 O Cenário
19 Abraão e Isaac
44 Período Helenístico
54 Considerações Finais
59 Referências
60 Gabarito
10
SUMÁRIO
UNIDADE II
63 Introdução
64 O Cenário Político
80 A Queda de Jerusalém
92 Considerações Finais
98 Referências
99 Gabarito
UNIDADE III
103 Introdução
141 Referências
142 Gabarito
UNIDADE IV
145 Introdução
184 Referências
188 Gabarito
12
SUMÁRIO
UNIDADE V
191 Introdução
195 Economia
233 Referências
235 Gabarito
236 CONCLUSÃO
Professor Me. Saulo Henrique Justiniano Silva
I
UNIDADE
DO PATRIARCA ABRAÃO A
HERODES, O GRANDE
Objetivos de Aprendizagem
■■ Visualizar o cenário em que ocorreram os acontecimentos contidos
no período estudado.
■■ Compreender o chamado de Abraão e o início da história hebraica.
■■ Estudar como se estruturou o período dos juízes.
■■ Compreender os acontecimentos que tornaram Israel uma
monarquia e os desdobramentos deste período.
■■ Mapear os motivos que levaram à divisão do reino em dois.
■■ Entender os motivos das invasões das potências regionais sobre a
região.
■■ Mostrar a volta dos hebreus para Jerusalém, depois de um longo
período de exílio.
■■ Apresentar a dominação de Alexandre e seus reflexos sobre a região.
■■ Compreender como se estruturou a dominação selêucida sobre a
região.
■■ Entender a Revolta dos Macabeus e a tentativa de seus ancestrais de
retornar ao centro da vontade de Deus.
■■ Estudar a dominação romana sobre a região e a política
desenvolvimentista de Herodes, o Grande.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O Cenário
■■ Abraão e Isaac
■■ No Tempo dos Juízes
■■ O Período dos Reis
■■ Roboão e a Divisão do Reino
■■ Dominação Assíria, Dominação Babilônica e Exílio
■■ Retorno a Sião: sob domínio Persa
■■ Período Helenístico
■■ Sob domínio Selêucida
■■ Revolta dos Macabeus e a Dinastia dos Asmoneus
■■ A dominação Romana e o Reinado de Herodes, o Grande
15
INTRODUÇÃO
Introdução
16 UNIDADE I
O CENÁRIO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Pouco sabemos sobre a história dos hebreus anterior a dos patriarcas, as escritu-
ras não nos dão detalhes pormenorizados deste período. Da criação do mundo,
passando pela queda do homem, dilúvio, até chegar a Abraão são apenas onze
capítulos que representam mais de 4.000 anos de história (GUSSO, 2003). O lei-
tor desatento pode até cometer erros graves ao afirmar certa proximidade entre
o período patriarcal e a fundação do mundo, por isso, é importante esclarecer
que nos pautamos em referenciais bíblicos, e não em perspectivas arqueoló-
gicas, pois, baseados nelas, do surgimento australopithecus afarensis, um dos
primeiros hominídeos, até o período patriarcal, seriam calculados, pelo menos,
3 milhões de anos.
Para situarmos o período em que os patriarcas viveram, vale uma breve
contextualização da região por onde passaram. A narrativa bíblica do Antigo
Testamento, ou da Tanakh, como é conhecida pelos judeus, passa-se, eminen-
temente, na região chamada de crescente fértil, uma vasta área que engloba o
nordeste da África, passando pela Turquia, Palestina, Jordânia, Líbano, Síria e
Iraque, e é marcada, sobretudo, pela pequena fertilidade em meio a regiões desér-
ticas, proporcionada pelas cheias de rios, como o Nilo, na África, o Jordão, na
Palestina e Jordânia e o Tigre e Eufrates, no atual Iraque, antiga Mesopotâmia.
Na região do crescente fértil, estabeleceram-se grandes civilizações, entre
as quais podemos citar a egípcia e a mesopotâmica. A egípcia, estruturada no
V milênio a.C., cerca de dois mil anos antes de Abraão, e a mesopotâmica, mais
antiga, estruturada no VII milênio a.C. Ambas organizaram-se produtivamente
a partir das cheias e secas de rios. Já do ponto de vista político, essas sociedades
estruturaram-se de modos diferentes. No Egito, por exemplo, o Faraó foi a figura
podemos citar a dos sumérios, dos acádios, dos caldeus, dos amoritas e dos assí-
rios. Cada povo tinha sua língua, sua cultura, suas leis, seus deuses e suas cidades
que funcionavam, antes do estabelecimento de grandes impérios na região, como
unidades político-administrativas autônomas.
Cada povo tinha características próprias, como os sumérios, que ficaram
conhecidos pela invenção da escrita cuneiforme, os amoritas, que organizaram
o primeiro código de leis escritas: o famoso código de Hamurabi, ou mesmo
os assírios, que ficaram conhecidos pela crueldade empregada contra seus ini-
migos. As cidades mesopotâmicas também se destacavam pela suntuosidade,
como Nínive, a principal cidade assíria, ou mesmo Babilônia, que fora centro
de disputas de diversos impérios, como o dos acádios, dos amoritas, dos assí-
rios, dos caldeus e, posteriormente, dos medo-persas. Aqui também vale uma
menção especial à cidade de Ur, no sul da região, que fora fundada pelos sumé-
rios, possivelmente no IV milênio a.C., mas que ficou imortalizada como umas
das principais cidades caldeias, como mostrado na narrativa bíblica de Gênesis.
É em Ur dos Caldeus que inicia a história bíblica dos patriarcas. Na cidade, vivia
Terá, um escultor de ídolos, descendente de Sem, filho de Noé e pai de Abrão,
Naor e Harã. Ainda em Ur, vivenciou o falecimento de seu filho Harã e, depois
deste episódio, parte com seu filho Abraão, sua nora Sarai e seu neto Ló, filho
de Harã, para Canaã.
O Cenário
18 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O capítulo doze do livro de Gênesis, ou Bereshit, como é conhecido na tradição
judaica, inaugura o período patriarcal, que é descrito do décimo segundo capí-
tulo de Gênesis ao primeiro capítulo do Êxodo, ou Shemot, na Torá, algo que,
cronologicamente, abrange cerca de 700 anos (SCHEINDLIN, 2003).
O que marca significativamente o período patriarcal é a tentativa de con-
solidação dos hebreus em Canaã e a luta pela unidade religiosa monoteísta de
seus descendentes. Economicamente, esse período caracteriza-se pela criação
de pequenos rebanhos e pela agricultura de subsistência.
ABRAÃO E ISAAC
Abraão E Isaac
20 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Milá, que acontece como observância da lei no oitavo dia do nascimento de um
menino. A criança tem, nesse ritual, o prepúcio cortado como marca da aliança
entre o Eterno e seus descendentes. Os primeiros a cumprirem o Pacto foi o pró-
prio Abraão, que na ocasião tinha 99 anos, e seu filho primogênito Ismael, que
tinha 13 anos. A tradição cristã não incorporou tal ritual por entender que esta
aliança foi feita com os filhos de Abraão, e Jesus Cristo representa a Nova Aliança.
O próprio apóstolo Paulo, um dos fundadores da Igreja, admoesta da necessi-
dade de circuncidar a alma, e não mais o corpo (Rm 2, 25 - 29; Fl 3,3; Cl 2, 11).
Como prometido, o Senhor visitou Sara, e ela deu à luz Isaac, que fora cir-
cuncidado com oito dias, como ordenado no Pacto. Ele era o filho da promessa,
e, neste contexto, Agar e Ismael foram postos para fora de Canaã, em um pri-
meiro momento por determinação de Sara e depois por permissão divina. Agar
e seu filho habitaram no deserto da Arábia, tendo o menino se tornado flecheiro,
e ela agricultora. Segundo a tradição islâmica, Ismael foi o filho da promessa, não
Isaac, e o pai da nação árabe, sendo reconhecido como um dos vinte e seis profetas
do Islã, o derradeiro e mais importante para a religião Muhammad, ou Maomé.
Outro episódio importante foi narrado no capítulo vinte e dois do Gênesis,
quando Deus pede para que Abraão sacrifique seu filho Isaac como holocausto,
na terra de Moriá. O patriarca, prontamente, ouviu os desígnios divinos e, logo
pela manhã, como narra o capítulo: “Abraão se levantou cedo, selou seu jumento
e tomou consigo dois de seus servos e seu filho Isaac. Ele rachou a lenha do holo-
causto e pôs a caminho para o lugar que Deus lhe havia indicado” (BÍBLIA DE
JERUSALÉM, Gênesis 22,3). Abraão seguiu exatamente o mandamento de Deus,
por mais que isso pudesse representar o “ato mais hediondo imaginável por um
ser humano” (AMÂNCIO, 2010, p. 14). Quando estava a chegar nas vias de fato,
o patriarca ouve a voz de Deus por meio de um anjo, que lhe diz:
Não estendas a tua mão contra o rapaz!” − ordenou o Anjo “Não lhe
faças nada! Agora bem sei que temes a Deus, porquanto não me negaste
teu amado filho, teu único filho!” Em seguida, tendo Abraão erguido os
olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos;
tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu
filho ( BÍBLIA KING JAMES, Gênesis 22,12-13,[2017], on-line)1.
Abraão E Isaac
22 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Figura 1- Machpelá
Fonte: O bible.org ([2017], on-line)2.
Isaac herdou tudo quanto pertencia a seu pai, inclusive as promessas de Deus.
Fora casado com Rebeca, que gerou seus dois filhos, os gêmeos bivitelinos Esaú
e Jacó. Durante seu patriarcado, aumentou sua riqueza pessoal e “chegou a agir
como uma espécie de chefe de Estado ao fazer aliança com os filisteus” (GUSSO,
2003, p. 11). Levando em consideração os feitos de seu pai, Isaac por si só não
representou uma figura de destaque no panorama bíblico do antigo testamento,
no entanto de Esaú e Jacó, seus filhos, não posso dizer a mesma coisa.
O nascimento de Esaú e Jacó ficou marcado na tradição bíblica por uma
peculiaridade; Esaú, o primogênito, saiu do ventre com seu irmão segurando seu
calcanhar, daí o nome do seu irmão, Jacó, que se traduz por “aquele que segura
o calcanhar”, que também pode se referir a “enganador”. Este episódio foi ape-
nas uma prévia do que Jacó faria.
JACÓ
Jacó, o preterido de seu pai e o preferido de sua mãe, envolveu-se em um dos epi-
sódios mais constrangedores da narrativa bíblica. Na cerimônia preparada para
a investidura da bênção ancestral a seu irmão, que pela tradição receberia toda
a herança por ser primogênito, Jacó enganou seu pai, que estava velho e debili-
tado, e se passou por seu irmão, isso com a benção de sua mãe, que manipulou a
situação. Esse episódio pode ser lido no capítulo vinte e sete do livro de Gênesis.
Jacó, o terceiro patriarca, jurado de morte por seu irmão e “devidamente”
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
abençoado por seu pai, partiu para Harã, onde se refugiou na casa de Labão, seu
tio. Foi na cidade onde morrera Terá que o enganador foi enganado. A narrativa
bíblica mostra-nos que Jacó propôs a Labão o trabalho de sete anos em troca
da mão de sua filha Raquel, e seu tio prontamente aceitou a proposta. Passados
sete anos, Labão ofereceu a mão de Lia, sua filha mais velha, quebrando, assim,
o contrato com o sobrinho. Para consolidar a união com a amada Raquel, foi
obrigado a trabalhar mais sete anos.
Com Lia, Jacó teve seis filhos: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Isaacar e Zebulom,
com Zilpa, concubina de Lia, Gade e Aser, com Bila concubina de Raquel, Dan
e Naftali e com Raquel, José e Benjamim, filho este que não conhecera sua mãe,
pois morrera em seu parto.
Sem dúvida, um momento marcante para o desenvolvimento desta histó-
ria foi o episódio do vau de Jaboque, quando, após uma luta com “um homem”
(Gn 32,24), Jacó teve seu nome trocado para Israel, que significa “aquele que
lutou com Deus e com os homens e prevaleceu”. Do núcleo familiar de Israel,
teremos o surgimento das doze tribos, sendo seus descendentes também conhe-
cidos como israelitas, traduzidos por filhos de Israel.
É importante termos claro que a promessa da posse da terra, feita ao patriarca
Abraão, não se cumpriu nele, mas em sua descendência. Gusso (2003) esclarece
que para os antigos hebreus, diferente dos cristãos, não existiam expectativas para
o que aconteceria depois da morte, “a não ser a continuidade da vida em seus
descendentes. Sendo assim, na mentalidade deles, quando o descendente rece-
besse o cumprimento da promessa, também o seu ascendente a receberia” (p. 12).
É bem sabido que a presença hebreia na Palestina inicia-se com a chegada
Abraão E Isaac
24 UNIDADE I
do patriarca Abraão, mas vale ressaltar que a região não era um vazio demográ-
fico e que outros povos já haviam se estabelecido ali. Os chamados cananeus, que
podem representar genericamente diversos povos, desde os hititas, como citado
no episódio da compra da Machpelá, passando pelos amoritas e jebuseus, com-
partilharam a região nesse mesmo período, de modo que a hegemonia israelita
na região deu-se durante um período pequeno da História, que vai aproximada-
mente de 1020 a.C. a 922 a.C., durante a época do reino unificado. Os compêndios
historiográficos, ao citarem a região, não falam em Canaã, mas Palestina, que
significa terra dos Filisteus.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
De maneira geral, em Canaã, a geografia do estabelecimento dos patriar-
cas antes do exílio egípcio era desta maneira: “Abraão viveu em Manre, que é
Hebrom, ao sul de Jerusalém (Gn 23: 18); Isaac, perto de Bersabéia (Gn 26:23)
e Jacó, depois que voltou de Harã, perto de Salém e Betel (Gn 23:18; 25, 1)”
(BEEK, 1967, p. 21).
A HISTÓRIA DE JOSÉ
Como não há referência a José e seus familiares, também não há sobre Moisés,
o libertador e criador da religião. Entenda-se aqui como fundador da religião
hebreia enquanto um corpo de regras pré-estabelecidas, apesar da revelação do
Criador ao Patriarca Abraão, o período anterior a Moisés, caracteriza a religião
como tradições de povos seminômades do Oriente Médio que se diferenciava
dos demais por conta de suas crenças monoteístas em um mar de paganismo.
Abraão E Isaac
26 UNIDADE I
MOISÉS: O LIBERTADOR
Conta-se na narrativa bíblica que Moisés era um hebreu da tribo de Levi nascido
no Egito durante o período de opressão. No capítulo primeiro de Êxodo a Bíblia
apresenta-nos que de hóspedes o povo de Israel havia se tornado escravo, neste
contexto o bebê Moisés fora colocado no Nilo por sua mãe Joquebede que temia
sua morte, pois, concomitante a seu nascimento, foi decretado uma lei faraônica
para que todo filho recém-nascido de hebreu fosse morto.
Moisés foi retirado do rio pela filha do Faraó e amamentado por sua mãe que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
era serva da mulher. Moisés viveu como um príncipe do Egito até o momento
em que mata um oficial que atentou contra a vida de um hebreu, fato este que o
fez fugir do Egito para o deserto de Midiã, onde se casou com Zípora, filha do
sacerdote Reuel.
Cuidando das ovelhas de seu sogro no deserto Moisés tem o decisivo encon-
tro com o Deus de seus ancestrais:
[...]e apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em
Midiã; e levou o rebanho atrás do deserto, e chegou ao monte de Deus,
a Horebe. E apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo
do meio duma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça
não se consumia. E Moisés disse: Agora me virarei para lá, e verei esta
grande visão, porque a sarça não se queima. E vendo o Senhor que se
virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça, e disse: Moisés,
Moisés. Respondeu ele: Eis-me aqui. E disse: Não te chegues para cá;
tire os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa.
Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque, e o Deus de Jacó. E Moisés encobriu o seu rosto, porque temeu
olhar para Deus. E disse o Senhor: Tenho visto atentamente a aflição do
meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa
dos seus exatores, porque conheci as suas dores ( BÍBLIA SAGRADA,
Êxodo 3,1-7,[2017], on-line)4.
pois, segundo a tradição hebraica, Moisés era gago, parte para o Egito a fim de
cumprir as ordens divinas.
A Bíblia não designa qual Faraó receberá Moisés, mas existe uma indicação
para Ramsés II. Segundo Beek (1967), a suposição baseia-se no capítulo 1, 11:
[...] que menciona as cidades do tesouro faraônico, Fitom e Ramsés.
Esta foi fundada pelo Faraó Ramsés II (1290 – 1224 a.C.). Com tais
referências, muitos estudiosos concluíram que Ramsés II deve ter sido
o Faraó que oprimiu os israelitas (p. 27).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Moisés encontrou dificuldades diante do Faraó, de certa forma, isso já era previsto,
pois o próprio Deus, no episódio da sarça ardente, havia falado do endure-
cimento do coração do líder egípcio. Foi necessário algum tempo para que o
monarca egípcio liberasse a saída dos hebreus, tempo esse marcado por suces-
sivas audiências e por uma série de pragas enviadas por Deus, que foram: (1)
Transformação de água em sangue; (2) Reprodução de rãs em abundância; (3)
Infestação de piolhos em homens e gado; (4) Enxame de moscas; (5) Animais
tomados por pragas; (6) Úlceras e tumores em homens e animais; (7) Chuvas de
pedras; (8) Infestação de gafanhotos; (9) Trevas sobre todo o Egito e (10) morte
Abraão E Isaac
28 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
preceitos que norteiam a fé judaica até nossos dias. É natural pensarmos nos 10
Mandamentos, escritos pelo próprio Deus no Sinai, como a base ética e moral
dos descendentes de Abraão. De fato, não há leviandade neste pensamento, mas
para além do decálogo, o Pentateuco/Torá apresenta 613 mitzvot (mandamen-
tos), 603 mandamentos incluem normas de restrição alimentar, ritos fúnebres e
relacionamentos social e conjugal, mas os famosos Mandamentos do Sinai, que
se tratam de um “conjunto de obras cosmogônicas, histórias, de sabedoria, pro-
fecia e poesia místicas” (PONDÉ, 2015, p. 14).
Para grande parte dos estudiosos que se ocupam da temática a saída do Egito
e a formação de um corpo, normas e regras formaram, definitivamente, a ideia
de uma nação de Israel. Beek (1967, p. 26) afirma que:
[...] a única menção egípcia a respeito de Israel é a inscrição em um
marco comemorativo da vitória do Faraó Menefta sobre os líbios, cerca
de 1220 a. C. Esta inscrição liga Israel a Canaã, Gezer e Yenoam, mas
enquanto estas regiões são descritas por um hieróglifo significando
“país”, Israel é representado pelo símbolo de “povo”. Daí podemos con-
cluir que, cerca de 1220 a. C., Israel tornou-se uma nação.
Moisés, o libertador, não liderou o povo na conquista de Canaã, tarefa que ficou
a cargo de Josué que juntamente com Calebe foram os únicos hebreus nascidos
no Egito que herdaram a Terra Santa, os outros morreram, ou nasceram durante
o período do deserto.
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Dessa forma, tornam-se mais claras algumas referências bíblicas, como no caso
de Gideão: “Eu peço, meu Senhor!” respondeu Gideão, “como posso salvar
Israel? Meu clã é o mais fraco em Manassés, e eu sou o último na casa de meu
pai” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Juízes 6, 15).
A necessidade de ocupação de um vasto território e a formação de uma nova
ordem caracterizada pelo sedentarismo, visto que ficaram 40 anos no deserto, fez
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com que os israelitas desenvolvessem um sistema político administrativo pecu-
liar, caracterizado pelo governo dos juízes.
Diferente dos povos vizinhos, os filhos de Israel não adotaram a monarquia
como forma de governo, e as lideranças locais e tribais eram ocupadas pelos anci-
ãos, no entanto, em momentos de grande instabilidade e perigo externo, dentre
as tribos erguia-se uma personalidade reconhecida como uma liderança unifi-
cadora, que possuía o direito de julgar e governar, que recebia o nome de juízes.
Foram doze juízes, seis maiores e seis menores. Segundo a historiadora Ruth
Leftel (2010, p. 22):
Os seis juízes do relato bíblico que provavelmente “governaram” são de-
nominados “juízes menores”, pois pouco é conhecido sobre sua vida e
nada sobre atos militares e heroicos de “salvação”. Foram, possivelmen-
te, lideranças que surgiram em tempos de paz. Os outros seis juízes,
“salvadores”, são denominados “juízes maiores”, pois foram líderes mili-
tares carismáticos, acompanhados, segundo relato bíblico, pelo Espírito
Divino que os guiava num momento de tragédia nacional e impotência
das tribos diante dos já organizados povos vizinhos que os atacavam.
Ser juiz não era um cargo permanente, nem hereditário. A personalidade assu-
mia a função por um determinado período de tempo e não transferia o cargo
para membros de sua família. O único caso em que o filho de um juiz tentou
assumir as funções de seu pai foi no episódio de Abimelec, filho de Gideão, um
dos seis maiores. Segundo a narrativa bíblica, Abimelec matou seus irmãos e se
autoproclamou rei de Israel, contudo seu “poder” de dominação não fora para
além da tribo de Manassés, o filho de Gideão foi deposto pelos anciãos que não
aceitavam perder seus poderes.
A fragmentação das tribos começou a ruir por volta do século XII a.C.,
quando os Filisteus vindos das ilhas do mar Egeu estabeleceram-se na Palestina.
Dominadores de técnicas de “fundição do ferro e, com ele, a confecção de espadas,
pontas de lanças, flechas e outros artefatos” (LEFTEL, 2010, p. 23), tornaram-
-se grandes ameaças.
É importante esclarecer que Canaã, ou Palestina, apesar de ser uma região
pouco fértil era um entreposto comercial entre a Europa, África e Ásia, além
de ser banhada pelo Mar Mediterrâneo, que possibilitava o escoamento de pro-
dutos para o extremo oeste europeu e para o norte do continente africano. Por
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isso, essa região foi palco de lutas encarniçadas de sucessivos reinos e impérios.
A pressão dos Filisteus intensificou-se nos dias do profeta Samuel. A frag-
mentação das tribos em um vasto território era presa fácil a uma monarquia
sólida, como era a dos invasores. Diante disso, a solução foi a unificação e con-
solidação de um Estado com regime monárquico forte, capaz de mobilizar as
tribos contra um inimigo comum.
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SAUL
Por volta do ano 1000 a.C., os Filisteus impetram uma terrível derrota aos isra-
elitas, no monte de Gilboa, em que os três filhos de Saul morreram e o próprio
rei se matou, sobrando apenas um herdeiro do trono, o jovem Ishbaal, que assu-
miu o poder em Guilead e reinou durante um curto período de tempo sobre
Efraim e Benjamim, mas teve uma morte misteriosa, após a traição de Abner.
Davi assumiu o trono após a morte de Ishbaal, ainda que já tivesse poder
sobre as demais tribos após a morte de Saul, a totalidade só fora alcançada após
a morte do filho desse.
Para um bom estudante da Bíblia, fica claro que Davi assumiu o trono por
promessa divina, no momento em que Samuel o unge, mas é importante escla-
recer que, segundo as tradições políticas do Oriente Antigo, Davi era herdeiro
natural do trono, pois havia se casado com Mical, filha de Saul. As tradições
recaem na ideia de que se o rei não possuía herdeiros, o trono deveria ser pas-
sado para seu genro, portanto, após a morte do último herdeiro de Saul, Davi
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DAVI E SALOMÃO
a ajuda de seus Valentes, um exército que estava a seu dispor desde os tempos em
que era perseguido por Saul, e por sua tribo, Judá, a quem sempre favoreceu. É
importante deixar marcado a ideia de “quase”, pois apesar do desenvolvimento
econômico e a consolidação da monarquia, o rei não conseguiu construir um
templo de adoração a Deus, mantendo o centro das práticas da religião israelita
na figura do tabernáculo, um santuário sagrado que continha a Arca da Aliança,
símbolo da presença de Deus.
A figura do tabernáculo fazia sentido em um momento em que a consolidação
do povo não tinha se efetivado e as ameaças externas se espreitavam cotidiana-
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mente, mas a monarquia davídica tinha posto, mesmo que temporariamente,
como veremos na história, um ponto final nestas imprecisões, por isso, era o
momento de fixar um local definitivo de consagração ao Deus de seus ancestrais.
A construção do templo sagrado foi iniciada e concretizada no reinado de
Salomão, filho e sucessor de Davi ao trono de Israel. O rei, reconhecido por sua
sabedoria, governou por aproximadamente 39 anos também, entre 961 a. C. e
922 a.C. e herdou a estabilidade política e econômica de seu pai.
Salomão dominou as vias de comércio do crescente fértil e fez de Israel um
dos principais reinos do comércio internacional da época. Em grande medida, o
monarca não encontrou os problemas externos que assolaram as monarquias ante-
riores, isso porque fizeram alianças, marcadas pelo matrimônio, com os antigos
inimigos, entretanto o problema encontrado por Salomão foi de ordem interna.
O reinado de Salomão foi marcado pelos altos impostos e a realização de
trabalhos compulsórios, conhecidos como corveia, em grande medida para ‘dar
conta’ de construir o Templo Sagrado ao Deus de Israel, que ficou conhecido
por Templo de Salomão.
Assim como no reinado de seu pai, Salomão manteve a tribo de Judá como base
política de seu mandato, desse modo, a tribo em questão não sofria com a alta
tributação e a corveia. Estes fatores trouxeram grandes descontentamentos entre
as tribos que não se beneficiavam, dentre elas, Efraim, que tinha em Jeroboão a
principal voz contrária à política centralizadora real.
Salomão edificou um exército forte e submisso às suas ordens e erigiu for-
talezas em pontos estratégicos do reino (LEFTEL, 2010), no entanto, no final de
seu reinado, viu seu poderoso domínio imergir em crises econômicas e insa-
tisfação popular. Apesar dos problemas, Salomão conseguiu manter o reino
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unificado até sua morte.
Roboão, herdeiro do trono, não tinha o mesmo pulso que seu pai e avô tiveram.
Diante das fortes hostilidades e do desejo de secessão das tribos do norte, lidera-
das por Efraim, em 922 a.C. imediatamente após a morte de Salomão, aconteceu
a definitiva divisão do reino, dando origem ao reino do Norte, formado por dez
tribos e sob o comando de Jeroboão, enquanto restaram as tribos do Sul, formada
por Judá e Benjamim. Etimologicamente, as tribos do norte ficaram conhecidas
como Israel e, a partir desse momento, seus habitantes receberiam o nome isra-
elitas, já as tribos do sul, apesar de Benjamim, ficaram conhecidas como Judá e
seus habitantes judeus.
O reino do Norte sofreu sucessivas mudanças de dinastias, enquanto Judá
manteve até seu fim a dinastia davídica. Quanto às capitais, Israel teve Siquém,
depois Tersa e, por fim, Samaria, já Judá manteve Jerusalém. Do ponto de vista
religioso, também houve grandes mudanças. Jeroboão “estabeleceu seu próprio
culto oficial, construindo templos em Dã e Betel, para que seus súditos não olhas-
sem mais para o Templo de Jerusalém” (SCHEINDLIN, 2003, p. 42), os judeus
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herdeiro do trono de Israel que casou com Jezabel, filha do rei de Tiro, e a neta
de Amri, Atalia, que casou com Jorão, filho do rei de Judá.
Jezabel divulgou sua religião e perseguia os não pagãos, mas é importante
esclarecer que, mesmo no reino do Norte, existiam profetas que se ergueram
contra a idolatria, como Elias e seu discípulo Eliseu, que se mantiveram fiéis ao
Deus de Abraão, Isaac e Jacó e não se curvaram diante de deuses estrangeiros.
No sul, durante o reinado de Jorão, por influência de sua esposa Atalia, estabe-
leceu-se o culto a Baal, uma entidade fenícia. Em ambos os casos, as esposas dos
reis, responsáveis por cultos estrangeiros, foram executadas.
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O reino de Judá não ficou totalmente ileso aos ataques assírios na região,
em 703 a.C., após uma rebelião na Babilônia, possessão importante do Império,
formou-se uma coalizão antiassíria, na Palestina, que contou com Tiro, cidades
filisteias e Judá, que nesse momento era governado por Ezequias. Scheindlin
(2003 p. 47) aborda esse momento da História:
[...]preparando-se para a retaliação assíria, Ezequias reforçou as fortifica-
ções de Jerusalém e cavou o famoso túnel de Siloé – que ainda pode ser
visitado – para garantir o abastecimento de água da cidade. Quando o rei
assírio Senaquerib entrou marchando pela região em 701 a. C., seguiu-se
uma terrível carnificina e extensas expatriações, e Ezequias teve de ceder
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alguns de seus territórios e aumentar seu tributo. Mas Senaquerib partiu
abruptamente da cena sem tomar Jerusalém, o que, de acordo com o nar-
rado na Bíblia, foi resultado da milagrosa morte súbita de suas tropas”.
De fato, no reinado de Josias, a aliança com Deus de seus ancestrais foi restau-
rada.Triste foi o fim de Josias, que, ao tentar impedir as tropas egípcias de se
unirem aos assírios em uma ofensiva ao crescente império babilônico, fora bru-
talmente assassinado.
Apesar da ajuda egípcia aos assírios, os babilônios tornaram-se a grande
potência na região. O grande general Nabucodonosor – que logo se tornou rei
– derrotou os egípcios na Síria e transformou o rei de Judá, na época, Joaquim,
em seu vassalo (SCHEINDLIN, 2003).
Joaquim não se submeteu ao domínio babilônico e liderou um levante con-
tra o império mesopotâmico. Nessa rebelião, o rei foi morto e sucedido por
Jeconias, seu filho de 18 anos, que resistiu durante três meses, quando se rendeu.
Foram, ao todo, 70 anos até que os judeus (que voltaram, mas muitos ficaram por
lá) deixassem o exílio babilônico. No início, sob dominação do próprio Império
Babilônico e depois sob dominação do Império Persa, que sob liderança de Ciro,
conquista a Babilônia em 539 a.C. Já em 538 a.C., os primeiros exilados retor-
naram a Judá, agora uma província Persa.
Sobre o exílio babilônico, é importante esclarecer algumas questões: ape-
nas cerca de 10% dos judeus tornaram-se cativos em Babilônia; muitos exilados
enraizaram- se na Mesopotâmia, alcançando estabilidade econômica e não esta-
vam dispostos a se mudarem para uma província pobre; os tempos áureos da
dominação judaica, na Palestina, era lembrança de alguns idosos (SCHEINDLIN,
2003; TASSIN, 1988) e mais, “reconstruir o Templo se apresentava como empresa
perigosa e esgotante” (TASSIN, 1988, p. 17).
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RETORNO A SIÃO: SOB DOMÍNIO PERSA
As reformas de Esdras são consideradas, até hoje, como essenciais para a existência
do judaísmo, tanto que a tradição considera, assim como Moisés, o reforma-
dor como um Legislador, diga-se de passagem, apenas as duas personagens tem
este título.
Mais do que um reformador da tradição, Neemias também foi um reforma-
dor de fato, pois foi em seu governo que a cidade de Jerusalém e suas fortificações
foram reconstruídas:
[...]então eu lhes disse: Vede a deplorável e humilhante situação em que
nos encontramos, como toda a cidade de Jerusalém está em ruínas e
suas portas devastadas pelo fogo. Vinde! Vamos reconstruir os muros
de Jerusalém, para que não passemos mais vergonha (BÍBLIA KING
JAMES, Neemias 2:17,[ 2017],on-line)1.
Aos poucos, Judá foi alcançando certa autonomia e Jerusalém tornou-se o cen-
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tro de um pequeno Estado governado por um Sumo Sacerdote, que fazia da Torá
regras de conduta religiosa e ética.
PERÍODO HELENÍSTICO
Período Helenístico
46 UNIDADE I
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SOB DOMÍNIO SELÊUCIDA
A Palestina, uma macro região em que dentre outras províncias estava a Judéia,
ficou sob domínio do reino de Ptolomeu, sediado no Egito. Durante todo o século
III a.C., a possessão asiática de Ptolomeu foi zona de litígio, sendo palco de con-
flitos contra o nascente Império Selêucida.
Em 198 a.C., os Selêucidas expulsaram os ptolomaicos da Ásia e tomaram
a Palestina. Antíoco III, imperador selêucida na época, “permitiu que a judéia
continuasse como um Estado semi-autônomo” (SCHEINDLIN, 2003, p. 65), seu
sucessor Antíoco IV – 175 a.C. a 163 a.C. – estabeleceu uma relação diferente com
a região, o que determinou decisivamente o poder estrangeiro sobre essa região.
O governo de Antíoco IV, autodenominado Epífanes (encarnação de Deus),
foi marcado pelo conflito de interesses entre ele e a, também, expansionista
República Romana que, desde a época de seu pai, já infligira derrotas humilhan-
tes ao Império Selêucida. Diante da necessidade de proteção, Antíoco IV adotou
a pilhagem de templos dos povos súditos.
[...] os templos sempre eram boas fontes de dinheiro, devido aos me-
tais preciosos, usados em seus equipamentos de rituais e decorações, e
porque, sendo considerados invioláveis, serviam com frequência de de-
positários para fundos públicos e até mesmo particulares. Desta forma,
o templo judeu chamou a atenção dos selêucidas como uma possível
fonte de tesouros” (SCHEINDLIN, 2003, p. 66).
Antíoco IV era senhor de uma vasta área que incluía a Mesopotâmia, a Síria e a
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Depois destes episódios, Antíoco IV, chamado Epífanes (encarnação de Deus),
passou a ser popularmente conhecido como Epímanes (lunático) (SCHAMA,
2015; SCHEINDLIN, 2003).
durante o período conhecido como Guerra dos Macabeus, impôs sucessivas vitó-
rias aos judeus e, em dezembro de 164 a.C., entrou em Jerusalém, restaurou o
Templo profanado e restabeleceu o culto a Deus (BEEK, 1967; SCHAMA, 2015;
SCHEINDLIN, 2003).
Em 163 a.C., Menelau foi executado, e Alcimo, da casa de Arão, portanto,
um Levita, foi proclamado Sumo Sacerdote. Apesar da vitória dos Macabeus,
a Judéia continuou a ser uma província do Império Selêucida, mas agora, com
certa autonomia. Nesse momento, os “soldados selêucidas supervisionavam a
observância da lei mosaica” (BEEK, 1967, p. 150).
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Judas Macabeu morreu em 160 a.C. e foi sucedido, como líder dos revoltosos,
por seu irmão Jônatas, que oito anos depois de assumir a liderança da provín-
cia da Judéia foi consagrado pelo sucessor de Antíoco IV como Sumo Sacerdote
dos judeus, tendo sob sua jurisdição o poder político herdado da revolta dos
Macabeus e o poder religioso que, desde Esdras, era o “Poder de fato”. Jônatas,
diferente de seu irmão, “comportava-se como qualquer outro déspota helenís-
tico, lutando de acordo com seus próprios interesses políticos” (SCHEINDLIN,
2003, p. 70).
Após a morte de Jônatas, seu outro irmão, Simão assumiu o poder como
líder da família dos Macabeus, fora eleito Sumo Sacerdote por uma Assembleia
Nacional e conquistou o título de etnarca, ou líder de uma etnia, dando origem,
em 140 a.C., à dinastia dos Asmoneus. Em 104 a.C., Judá Aristóbulo, um dos
descendentes da casa dos Asmoneus, autoproclamou-se rei, título que até então
era restrito aos descendentes de Davi.
Apesar de contar com o apoio dos sacerdotes do Templo, a dinastia asmo-
néia enfrentou forte oposição popular. Desse período, temos a formação de
dois partidos religiosos: o primeiro ligado à aristocracia, à posse de significati-
vas quantidades de terra e ao clero, chamado de Saduceus; o segundo, baseado
na classe média e baixa descontentes com a centralização do poder, chamado de
Fariseus, do hebraico perushim, dissidentes.
Os Fariseus estavam mais próximos das camadas populares e era dividida
entre duas escolas rivais: a de Shamai e a de Hilel. “A primeira apegada à letra
da Lei, correspondia à atual imagem desfavorável; os ensinamentos liberais da
segunda tinham pontos e semelhança com os de Jesus” (SCLIAR, 2001, p. 38). De
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de rabi (meu mestre). No momento em que a religião oficial deixava de ser a
única legítima, e a religiosidade assumiu contornos autônomos, estamos diante
de um problema político e social de grandes proporções, pois a autoridade real
que também era a religiosa viu-se desconfortável, pois seus ordenamentos, por
vezes, eram suplantados.
Sucessivas guerras estenderam-se ao longo do século I a. C., conflitos mar-
cados por disputas sucessórias ao trono e intrigas religiosas. Um exemplo dessas
lutas foi quando o asmoneu Alexandre Janeu contraiu o ódio dos fariseus por
acumular a função de rei e Sumo-Sacerdote. Os fariseus aliaram-se ao rei da
Síria Demétrio III, que ajudou o partido, pois tinha interesses econômicos na
região. Demétrio III destituiu Janeu dos cargos que acumulava e retomou o
domínio efetivo dos selêucidas sobre Jerusalém, no entanto a população, can-
sada do domínio estrangeiro sobre a região, elevou Janeu novamente ao trono,
e ele iniciou uma caça às bruxas, matando mais de seis mil pessoas apenas na
capital (GUSSO, 2003).
Após a morte de Janeu, sua esposa Salomé assumiu o trono, mas não pôde evitar
que seus filhos lutassem pelo poder. Os irmãos Aristóbulo II e Hircano II foram
protagonistas de lutas encarniçadas pelo poder após a morte de sua mãe Salomé.
Aristóbulo tornou-se rei com o apoio dos saduceus e Hircano Sumo Sacerdote
com o apoio dos fariseus. Aristóbulo, que desejava para si o poder sacerdotal,
e Hircano, o real, pediram auxílio ao general Romano e um dos líderes do 1°
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Triuviratum Pompeu que, apesar de ter recebido mimos dos dois lados, optou
por ajudar Hircano, que agregou o poder civil e o poder religioso.
Roma, que nesse momento não era um Império, e sim uma República gover-
nada por senadores, não intervinha sem que não achasse interesse e logo passou
a cobrar tributos da Judéia em troca de seu apoio ao rei. Nesse momento, 63 a.C.,
iniciou a dominação romana sobre a região.
Pompeu entrou em Jerusalém e, segundo a tradição descrita pelo historia-
dor judeu-latino Flávio Josefo e apresentado por Simon Schama (2015, p. 158):
[...]pondo de lado os tabus contra estrangeiros, o general invade o Tem-
plo, rasgando o véu da cortina penetrando no Santo dos Santos, a que
só o sumo sacerdote tinha acesso. Nesse momento, porém, Pompeu se
mostra tão deslumbrado com o altar de ouro, com a mesa da proposi-
ção e com a menorá (segunda a tradição, ele teria chegado a se prostrar)
que, contra seus hábitos, abstém-se do saque. No dia seguinte, ele or-
dena uma purificação dos pátios do Templo e o reinício dos sacrifícios.
Para além do etnarca e o Sumo Sacerdote, Roma estabeleceu uma nova figura para
validar seu poder na região, o procurador. O primeiro procurador da Judéia sob
dominação romana foi Antípatro, que havia sido comandante militar do último
rei asmoneu, e sua função era supervisionar a coleta de impostos e assegurar o
envio a Roma (BEEK, 1967). Antípatro, era idumeu, povo palestino que havia se
convertido ao judaísmo na época da expansão territorial asmonéia.
Hircano II governou entre 63 a.C. e 40 a.C., sendo sucedido por seu filho
Antígono, que fora alvo de um conluio entre os romanos e o filho de Antípatro
Herodes. Foi assinado em 37 a.C., colocando fim definitivo à dinastia dos
asmoneus.
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[...] não vamos interferir em seus costumes curiosos: essas manias de
vocês em relação à carne de porco e ao prepúcio, a pausa maçante no
trabalho a cada fim de semana, esse monte de carcaças queimadas de
animais e os mil problemas, que vocês mesmo inventaram, de controle
das multidões de peregrinos nas festas religiosas. Tudo isso é problema
de vocês. Só não percam o controle sobre eles.
Como hábil estrategista, Herodes fez prosperar a região com grandiosas obras e
desenvolvimento econômico, foi em seu reinado que
ampliou bastante a área em torno do Templo, extraindo lajes imensas
de pedra calcária lavradas e transportadas ao monte para criar o grande
muro externo do perímetro do recinto [...] A imensidão do Templo, no
alto de sua montanha urbana, visível a muitos quilômetros de distância
em qualquer direção, anunciava aos viajantes a escala imperial do que
avistavam. Além das obras do santuário, o modesto palácio residencial
edificado pelos asmoneus tornou-se um edifício muito mais grandioso,
um misto de fortaleza e local de lazer. Havia agora ali jardins, pisci-
nas, ruas, calçadas com elegância, mercados e pontes em arco que liga-
vam ao monte do Templo, ao monte Sião. Os aquedutos e as cisternas
do tempo de Ezequias foram reformados e ampliados, e outro grande
aqueduto foi construído do zero para atender às necessidades de Cesá-
rea (SCHAMA, 2015, p. 162-163).
Herodes foi mantido no poder, apesar das transformações institucionais que ocor-
reram em Roma, como a mudança de República para Império. Otavio, sobrinho
do grande general Júlio César, tornou-se o primeiro Imperador romano depois
de derrotar os exércitos do conspirador Marco Antônio, na famosa batalha do
Áccio (31 a.C.). O tetrarca apoiava as pretensões do general Marco Antônio, mas,
após a derrota de seu partidário, teve a coragem de se apresentar diante do ven-
cedor e dizer: “Julgue-me por minha lealdade, não pela pessoa a quem sou leal”
(SCHAMA, 2015, p. 160).
Herodes reinou com mão de ferro, obstinação e pragmatismo, destruindo
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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História que envolveram este povo. Desde a saída de Abraão de Ur, podemos
ver que a vida do povo de Deus não foi nada fácil. De uma família, Israel tor-
nou-se uma grande nação, encontrou dificuldades para se estabelecer em uma
região marcada pelo clima deserto e pela ascensão de grandes impérios, alcançou
notoriedade regional durante a dinastia de Davi e seu filho Salomão e padeceu
diante de poderosos invasores.
Vimos que a instabilidade política, ocasionada durante o reinado de Roboão,
possibilitou a divisão do reino que, por sua vez, por conta da região estratégica
em que estava, foi alvo dos interesses das grandes potências bélicas, como os
Babilônios, os Persas, os Macedônios e os Romanos.
Uma característica desta unidade foi o movimento de distanciamento e de
arrependimento dos hebreus que, por vezes, deixaram de adorar ao Deus de seus
antepassados para se renderem aos deuses pagãos. Vimos que, ocasionalmente,
o tratamento divino foi sofrido e pedagógico.
Ao final da unidade, mostramos a ascensão da dinastia iduméia e o reinado
de Herodes, o Grande, sua ligação com os romanos e as principais obras empre-
endidas por ele, também começamos a delinear o cenário em que foi possível
o nascimento do Messias Salvador, mas isso é assunto para a próxima unidade.
Até logo!
REFERÊNCIAS ON-LINE
2
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Em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf>. Acesso em: 10 mai. 2017.
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Em: <http://lh6.ggpht.com/-5rtDJYkjFSA/UPmfwHNEgcI/AAAAAAAAEaM/ZI-
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6
Em: <http://blog.cancaonova.com/hpv/files/2012/04/div.jpg>. Acesso em: 10 mai.
2017.
GABARITO
1. C.
2. D.
3. A.
4. C.
5. E.
Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira
Professor Me. Saulo Henrique Justiniano da Silva
II
O INÍCIO DO CRISTIANISMO
NO MUNDO ANTIGO E AS
UNIDADE
SUAS ORIGENS JUDAICAS E
GRECO-ROMANAS
Objetivos de Aprendizagem
■■ Apresentar o cenário político da Palestina no primeiro século da Era
Cristã.
■■ Estudar os impactos do nascimento e do pensamento de Jesus na
Palestina do primeiro século.
■■ Analisar a instabilidade entre romanos e judeus e suas consequências
na destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C.
■■ Conhecer as estruturas do pensamento grego presente na “Boa Nova”
cristã.
■■ Apresentar os pontos comuns e antagônicos da formação da religião
cristã dentro da cultura romana.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O cenário político
■■ O nascimento de Cristo e do cristianismo
■■ A queda de Jerusalém
■■ As influências gregas no pensamento cristão dos primeiros séculos
■■ O cristianismo no mundo romano: convergências e divergências para
a fundamentação da nova fé
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INTRODUÇÃO
Introdução
64 UNIDADE II
O CENÁRIO POLÍTICO
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volta de 130 a.C. O mais famoso deles foi Herodes, o Grande, que governou, no
princípio, a Judéia, e depois da elevação de Roma de República a Império, toda
a Palestina, e seu reinado, ao todo, durou 33 anos (37 a.C. a 4 a.C.). O grandioso
rei dos judeus, como ficou conhecido, isso em grande medida por ter constru-
ído grandes complexos arquitetônicos durante seu reinado, sofreu uma morte
cruel, que foi festejada por muitos de seus inimigos e súditos que viram seus
entes queridos padecer nas mãos do tirano.
Herodes contraiu uma longa série de infecções abdominais, inclusive
tumores de cólon, uma “insuportável comichão nos intestinos” e uma
horrível supuração no pênis, onde assembleias de vermes se reuniam
em locais que surpreendiam até seus médicos, sempre compreensivel-
mente nervosos (SCHAMA, 2015, p. 168).
com a mesma truculência de seu pai, foi deposto do cargo após uma comitiva
de prestigiados líderes judeus terem pedido sua deposição para o próprio impe-
rado, que não tardou em ouvi-los.
Após a destituição de Arquelau, a região passou a ser governada por pre-
feitos romanos que eram colocados no cargo pelo próprio imperador. Neste
contexto, Judéia e Samaria passaram a ser províncias subordinadas diretamente
ao Império. O primeiro prefeito da Judéia foi Copônio, mas sua fama é ofus-
cada pelo quarto que reinou por 10 anos entre 26 e 36, seu nome: Pôncio Pilatos
(SCHEINDLIN, 2003).
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O Cenário Político
66 UNIDADE II
AS SEITAS
O leitor desatento pode ler a palavra seita e, imediatamente, fazer uma ligação
não positiva do termo, atribuindo sentidos que ofuscam a ideia original. Seita,
tem o significado de divisão, no sentido de seccionar, ou seja, variadas tendên-
cias religiosas dentro do judaísmo.
As instituições políticas e religiosas da Palestina, na época da dominação
romana, não eram uniformes, por isso, não existia um judaísmo, mas judaísmos.
As seitas judaicas eram, nesse período, cada vez mais segmentarizadas, existiam
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os que não viam problemas na dominação romana, os que lutavam ideologica-
mente contra Roma, os que acreditavam que os dias do Messias estava perto, os
que planejavam revoltas armadas contra a dominação estrangeira e ainda aqueles
que optaram pela vida ascética, vivendo longe dos núcleos urbanos e sobrevi-
vendo daquilo que a natureza dava.
No topo da pirâmide, existia a seita dos Saduceus, a elite judaica, apoiadores do
domínio romano, ocupavam cargos no alto clero e, por vezes, se tornavam sumo
sacerdotes, como no caso de José Caifás, nomeado pelos romanos, no ano 18. Talvez
o termo correto seria comprado dos romanos, e não nomeado (ASLAN, 2013).
Pouco abaixo dos Saduceus estavam os Fariseus, grupo formado pelas clas-
ses média e baixa da Palestina e, de maneira geral, acreditavam na Lei Oral, na
Tradição Judaica, no paraíso reservado àqueles que guardaram a Fé inabalá-
vel, na imortalidade da alma e na ressurreição dos mortos. Os fariseus ficaram
conhecidos como principais opositores dos cristãos, no entanto se pode perce-
ber mais similaridades entre eles do que grandes diferenças, talvez quanto aos
Saduceus, essas diferenças fiquem mais nítidas. Entre os Fariseus existiam duas
escolas rivais, a dos seguidores de Shamai, que era mais apegada à letra da lei, e
a dos seguidores de Hilel, apegada à tradição judaica. Sobre a diferença das duas,
segue uma pequena historieta da tradição judaica:
[...]um gentio apresentou-se a Shamai, dizendo: “Eu me converterei ao
judaísmo, desde que me ensines toda a lei no tempo em que puder me
aguentar sobre um pé só”. Shamai achou um desaforo, pegou uma vara
e escorraçou o homem, que foi a Hilel, e fez o mesmo pedido. Hilel
disse: “Não faças a teu próximo o que não queres que te façam: eis toda
a lei. O resto é interpretação. Vai e estuda” (SCLIAR, 2001, p. 39).
Existiam os Zelotes, que recebiam esse nome pelo zelo que tinham com a lei.
Iniciaram suas atividades na Galiléia, no tempo de Herodes Antípas, logo após
a morte de seu pai em 4 a.C. (ASLAN, 2013). Liderados por Judas, o Galileu,
“cujo pai havia sido executado por Herodes” (SCLIAR, 2001, p. 43), acreditavam
que práticas extremistas e terroristas poderiam combater o domínio romano na
região. Para eles, apoiadores de Roma eram inimigos do povo e deveriam ser
assassinados (SCHEINDLIN, 2003; SCLIAR, 2001). Entre os Zelotes, haviam os
Sicarii, “assim chamados devido às adagas curvas que escondiam na camiseta e
metiam no ventre das vítimas em meio às multidões que abarrotavam Jerusalém
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68 UNIDADE II
O TEMPLO DE JERUSALÉM
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Não há possibilidade de se falar sobre a Palestina nas primeiras décadas do século
I d.C., sem levar em consideração o Templo erigido ao Deus de Israel, na cidade
santa de Jerusalém. Era o centro do mundo judaico, do ponto de vista religioso,
social e econômico, era o lugar mais sagrado do mundo antigo, levando em con-
sideração o monoteísmo judaico, pois nas outras religiões politeístas existiam
diversos templos. Em suma, sua importância residia na ideia de que represen-
tava a presença de Deus.
Para os romanos, que dominavam a região, o Templo não representava muita
coisa. O estadista Cícero classificou a cidade de Jerusalém como um “buraco no
canto” e seus ritos religiosos como “bárbaras superstições” (ASLAN, 2013), mas
não menosprezavam o que ele representava para o povo invadido. Como gran-
des estrategistas, os invasores sabiam que a ordem e a fluidez dependiam, de
maneira geral, do que o Templo representava.
O Templo construído no reinado de Salomão, destruído pelos exércitos
O Cenário Político
70 UNIDADE II
Nicanor e chegar ao Pátio dos Israelitas. Isso é o mais próximo que você
poderá chegar da presença de Deus. O cheiro de carnificina é impossível
de se ignorar. Ele se agarra à pele, ao cabelo, tornando-se um fardo desa-
gradável do qual você não vai se livrar tão cedo. Os sacerdotes queimam
incenso para afastar o fedor e a doença, mas a mistura de mirra e canela,
açafrão e olíbano não conseguem mascarar o insuportável mal cheiro de
matança. Ainda assim, é importante manter-se onde você está e testemu-
nhar seu sacrifício acontecer no próximo pátio, o Pátio dos Sacerdotes.
A entrada nesse pátio é permitida unicamente aos sacerdotes e funcioná-
rios do Templo, pois é onde fica o altar do Templo: um pedestal de qua-
tro chifres feito de bronze e madeira – de cinco côvado de comprimento,
cinco côvados de largura – arrotando grossas nuvens pretas de fumaça
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no ar. O sacerdote leva o seu sacrifício para um canto e se purifica numa
bacia próxima. Então, com uma simples oração, ele rasga a garganta do
animal. Um assistente coleta o sangue em uma tigela para espargir sobre
os quatro cantos cornudos do altar, enquanto o sacerdote cuidadosa-
mente estripa e desmembra a carcaça. A pele do animal é para ele; ela al-
cançará um bom preço no mercado. As entranhas e o tecido adiposo são
arrancados do cadáver, levados por uma rampa para o altar e colocados
diretamente sobre o fogo eterno. A carne do animal é cuidadosamente
retirada e colocada de lado para os sacerdotes se banquetearem após a
cerimônia. Toda a liturgia é realizada diante do pátio mais interior do
Templo, o Santo dos Santos – um santuário com colunas, banhado a
ouro, no coração do complexo do Templo. O Santo dos Santos é o mais
alto ponto de toda Jerusalém. Suas portas são cobertas de tapeçaria de
cor roxa e escarlate bordadas com uma roda do zodíaco e um panorama
dos céus. Este é o lugar onde a glória de Deus habita fisicamente. É o
ponto de encontro entre os reinos terreno e celestial, o centro de toda
a criação. A Arca da Aliança, contendo os mandamentos de Deus, uma
vez esteve aqui, mas ela foi perdida há muito tempo. Nada existe agora
dentro do santuário. É um vasto espaço vazio, que serve como um con-
duto para a presença de Deus, canalizando seu espírito divino dos céus,
fazendo-o fluir para fora em ondas concêntricas, por todas as câmaras
do Templo (p. 31 e 32 - grifo nosso).
A entrada no Santo dos Santos é restrita ao Sumo Sacerdote que, por sua vez,
só pode entrar no local uma vez por ano, no Yom Kippur, o Dia da Expiação.
Nesse dia sagrado, o Sumo Sacerdote apresenta-se diante de Deus e pede per-
dão pelos pecados de Israel.
O mais alto cargo que um judeu podia almejar na hierarquia da Judéia em
tempos de dominação romana era o de Sumo Sacerdote, que para se diferenciar
dos demais usavam um
[...] longo manto sem mangas tingido de púrpura (a cor dos reis) e bor-
dejado por franjas delicadas e pequenos sinos dourados na orla, um
pesado peitoral salpicado com doze pedras preciosas para cada umas
das tribos de Israel; um turbante imaculado sobre a cabeça, com uma
tiara, encimado por uma placa de ouro em que está gravado o nome
indizível de Deus; o Urim e o Tumim, uma espécie de dados sagrados
feitos de madeira e osso que [...] carrega em uma bolsa perto do peito e
através dos quais revela a vontade de Deus tirando a sorte [...] (ASLAN,
2013, p. 34).
Para os romanos, a religião judaica era um tanto quanto estranha. Tácito escre-
veu que “os judeus consideram profano tudo o que para nós é sagrado, enquanto
permitem tudo o que abominamos” (ASLAN, 2013, p. 40), mas era uma crença
tolerável dentro de um império marcado pela multiplicidade religiosa. Os inva-
sores queriam a paz com o Deus dos judeus, de modo que era obrigação do
sacerdócio sacrificar dois cordeiros e um touro duas vezes por dia pela saúde de
César e do povo romano (ASLAN, 2013; SCHAMA, 2015).
O Cenário Político
72 UNIDADE II
Quando pensamos em Cristo, logo nos vem à mente amor, compaixão e hu-
mildade, afinal, o próprio Deus encarnado esbanjou estas qualidades. Mas
quando se trata dos sacerdotes do Templo, o que pensamos?
Fonte: os autores.
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de Cristo, é provável que ele tenha nascido entre 6 a.C. e 4 a.C. (BLAINEY, 2012),
pois a narrativa bíblica, no livro de Mateus, no capítulo 2, apresenta que Jesus
nasceu nos dias do rei Herodes, e como já apresentado, Herodes, o Grande mor-
reu em 4 a.C. Segundo, é pouco provável que o menino tenha nascido em 25
de dezembro, pois nesta época é inverno no hemisfério norte e na região neva,
e não existe nenhum relato bíblico sobre este fenômeno que seria tão decisivo
para a narrativa, e Terceiro, não há registro de três reis magos, mas apenas de
sábios, e a suposição de três se dá pelos três presentes dados ao bebê extraordi-
nário, ouro, incenso e mirra.
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Essa história ou alegoria fascinante foi mais tarde registrada por escri-
to, e contada e recontada, século após século. Com a repetição, alte-
rou-se um pouco: a criança nascida era importante demais, e achou-se
que os personagens mereciam maior prestígio. Assim, os três sábios se
transformaram em três reis. Somente cerca de quinhentos anos mais
tarde, receberam nomes (BLAINEY, 2012, p. 20).
Egito e voltaram após a morte do temível rei. A Bíblia apresenta a ideia de que
José pensou em voltar para a cidade de Belém, mas temeram a Arquelau, que
passou a governar a região, por isso, voltaram a fixar residência em Nazaré, na
Galileia governada por Antípas:
[...]mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judéia, em lugar de
seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Contudo, tendo sido avisa-
do em sonho por divina revelação, seguiu para as regiões da Galiléia.
Ao chegar, foi viver numa cidade chamada Nazaré. Cumpriu-se assim
o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno” (BÍBLIA
KING JAMES, Mateus 2, 22. 23, [2017], on-line)1.
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Não existe um versículo específico no Antigo Testamento que diz que Jesus seria
chamado Nazareno, mas existem vários afirmando que ele seria desprezado,
como escrito pelo profeta Isaías:
[...]pelo contrário, foi desprezado e rejeitado pelos homens, viveu como
homem de dores, experienciou todo o sofrimento. Caminhou como al-
guém de quem os seus semelhantes escondem o rosto, foi menospreza-
do, e nós não demos à sua pessoa importância alguma (BÍBLIA KING
JAMES, Isaías 53, 3, [2017], on-line)1.
E na época de Jesus, ser de Nazaré era um grande desprezo para os judeus, tanto
que Natanael afirma: “Pode alguma coisa boa vir de Nazaré? Filipe respondeu-
-lhe: Vem e vê” (BÍBLIA KING JAMES, João 1, 46, [2017], on-line)1.
O ministério de Jesus iniciou quando ele tinha 30 anos de Idade, antes disso,
poucas são as informações sobre sua vida, nos evangelhos. Jesus sempre se apre-
sentou como o Messias, no entanto sua postura e forma de ser não era compatível
com o salvador que os judeus esperavam. O Messias era um guerreiro, um líder
político, um libertador, pouco parecia com a pregação mansa do Nazareno que,
dentre outras coisas, afirmava que seu reino não era deste mundo, por isso, foi
desprezado e juntou para si uma parcela significativa de inimigos, que ia desde
os saduceus, passando pelos fariseus e os romanos.
Para os saduceus, representados na figura de José Caifás, Sumo Sacerdote da
época, e alguns fariseus, Jesus era um blasfemador, seus sermões era uma afronta
à religião tradicional, pregava o amor em vez da lei, a humildade e expulsava os
vendedores do templo, afirmava ser o filho de Deus, e o Deus encarnado, con-
trariava a pregação de uma divindade distante, intocável cujo nome era indizível.
Pode-se fazer uma análise também da percepção dos saduceus: caso Jesus fosse
o Messias realmente, tudo o que tinham conquistado com o poderio romano
iria por água abaixo.
Para os romanos, Jesus era um perigoso agitador que reunia, em seus ser-
mões, centenas de seguidores, assim, se um dia iniciasse uma revolta, seria difícil
contê-los. Também há a ideia de que os romanos conheciam a agenda do Messias,
e isso representava sérios problemas.
Jesus foi preso na temporada das festividades da Páscoa Judaica, possivel-
mente entre os anos 27 e 30, mas não existia uma acusação formal direcionada
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a ele, as acusações feitas por Caifás eram de ordem religiosa, por isso, Pôncio
Pilatos, o prefeito da Judéia, não tinha interesse em sua morte. É importante
destacar que também temia uma revolta de seus seguidores. Pilatos conseguiu,
mesmo que temporariamente, tirar o fardo de julgar o inocente, afinal, tratando
de um Nazareno, Jesus deveria ser julgado por Antípas, que estava em Jerusalém
por ocasião das festividades pascais.
Diante de Antípas, também chamado Herodes Antípas, Jesus não respon-
deu às perguntas feitas por ele e foi desprezado pelo tetrarca, vestido com roupas
finas e enviado novamente a Pilatos.
Pilatos, por ocasião da festividade, tinha a tradição de soltar um preso, colo-
cando diante do povo a escolha de Jesus ou Barrabás. Como sabem, a população
optou por Barrabás. Desse momento em diante, Cristo foi torturado por solda-
dos romanos e levado à crucificação. Jesus não foi o primeiro e muito menos o
último a ser crucificado no Império Romano, tal pena era normalmente aplicada
a criminosos políticos, revoltosos e transgressores da lei romana.
A tradição cristã afirma que Jesus foi morto numa sexta-feira e ressuscitou
no domingo de Páscoa. Ressurreto, passou quarenta dias entre os discípulos e
foi visto por muitos até que se ascendeu aos céus, prometendo voltar em poder
e glória.
A REPERCUSSÃO
Jesus não criou uma religião, era judeu, agia segundo a tradição judaica e chegou
afirmar que não tinha vindo para revogar a lei, mas para cumpri-la. O termo
cristão é pouquíssimas vezes empregado na Bíblia aos seguidores das ideias de
Cristo, há apenas três menções, duas vezes em Atos dos Apóstolos: “[...] Em
Antioquia, os discípulos foram pela primeira vez chamados cristãos” (BÍBLIA
KING JAMES, Atos dos Apóstolos 11, 26, [2017], on-line)1 e “Então, o rei Agripa
ponderou: “Crês tu que em tão pouco tempo podes persuadir-me a converter-
-me em um cristão?” (BÍBLIA KING JAMES, Atos dos Apóstolos 26, 28, [2017],
on-line)1 e uma vez na primeira carta de Pedro: “Entretanto, se sofrer como cris-
tão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus por meio desse nome”
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(BÍBLIA KING JAMES, 1ª Pedro 4, 16, [2017], on-line)1. A transformação do
cristianismo em uma religião para além da segmentação foi feita pelos Apóstolos,
e não pelo próprio Cristo.
Simão Pedro, um dos doze apóstolos que andaram com Cristo, foi o princi-
pal desenvolvedor da religião cristã. Responsável por pregar na cidade de Roma,
o coração do império tornou o cristianismo “democrático”, demonstrando que a
salvação messiânica era para todos a quem nele crê, no entanto, como um judeu
que era, acreditava que a aceitação do senhorio do Deus filho dependia da con-
versão ao judaísmo por meio da circuncisão. Saulo de Tarso, também chamado
Paulo, correspondente romano para o nome hebraico, discordava do grande
apóstolo, para ele, a conversão de todo o coração não presumia o ritual. O após-
tolo dos gentios, como ficou conhecido, defendia a ideia da circuncisão da alma,
e não do corpo, isso já bastava.
Paulo era um dos milhares de judeus que viviam fora da Palestina, foi fariseu
da cidade de Tarso, na atual Turquia, era um cidadão romano, criado em todas
as tradições clássicas da filosofia grega e latina, como judeu foi para Jerusalém
ser discípulo do grande rabino Gamaliel. Era um feroz perseguidor da igreja pri-
mitiva, até que em uma viagem para Damasco é encontrado por Jesus:
[...]entrementes, Saulo ainda respirava ameaças de morte contra os dis-
cípulos do Senhor. Dirigindo-se ao sumo sacerdote, pediu-lhe cartas
para as sinagogas de Damasco, de maneira que, eventualmente encon-
trando ali, homens ou mulheres que pertencessem ao Caminho, esti-
vesse autorizado a conduzi-los presos a Jerusalém. Entretanto, duran-
te sua viagem, quando se aproximava de Damasco, subitamente uma
intensa luz, vinda do céu, resplandeceu ao seu redor. Então, ele caiu
por terra e ouviu uma voz que lhe afirmava: “Saul, Saul, por que me
persegues?” Ao que ele inquiriu: “Quem és, Senhor?” E Ele disse: “Eu
Sou Jesus, a quem tu persegues; contudo, levanta-te e entra na cidade,
pois lá alguém te revelará o que deves realizar. Os homens que acom-
panhavam Saulo na viagem caíram emudecidos; podiam ouvir a voz,
mas a ninguém viam. Saulo ergueu-se do chão e, abrindo os olhos, não
conseguia ver coisa alguma; então, guiado pela mão, foi conduzido até
Damasco. Por três dias esteve cego, durante os quais não comeu, nem
mesmo bebeu. O Senhor envia Ananias a Saulo [...] Então, Ananias
foi e, entrando na casa, impôs sobre ele as mãos, declarando: “Irmão
Saulo, o Senhor Jesus que lhe apareceu no caminho por onde vinhas,
enviou-me a ti para que tornes a ver e fiques pleno do Espírito Santo!”
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Imediatamente lhe caíram dos olhos algo parecido com umas escamas,
e ele passou a ver de novo. Em seguida, levantando-se, foi batizado. E,
depois de alimentar-se, ganhou novas forças e passou vários dias na
companhia dos discípulos em Damasco. Saulo começa a evangelizar
(BÍBLIA KING JAMES, Atos dos Apóstolos 9,1-19, [2017], on-line)1.
Foram as ideias de Paulo que forjaram o cânon do Novo Testamento, mais do que
as cartas por ele escritas, foi ele o líder espiritual de João Marcos, o autor do pri-
meiro Evangelho, em ordem cronológica, e também do médico Lucas, autor do
terceiro Evangelho, na ordem disposta na Bíblia. Encarnou o “ide” de Jesus, como
não mostrado por nenhum outro apóstolo e, sendo o mais prolífero missionário
da história do cristianismo, admoestou as igrejas espalhadas pelo mar mediterrâ-
neo, desde Tessalônica, na Grécia, passando por Éfeso na atual Turquia até Roma:
[...]muitos teólogos – em especial protestantes alemães – afirmam que,
em toda a história da igreja, Paulo foi a segunda pessoa mais importan-
te, atrás apenas do Cristo. A respeito da forma de escrever de Paulo, um
crítico literário inglês comentou que se tratava “do primeiro poeta ro-
mântico da História”. Com a ajuda de tradutores fluentes, seus escritos
permanecem atuais em muitas línguas. Uma frase sua em particular,
tornou-se uma espécie de grito de guerra cristão: “Se Deus é por nós,
quem será contra nós” (BLAINEY, 2012, p. 17).
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res de Cristo cada vez mais sem medo das penas impostas pelos romanos. O
lema de Paulo: “Porque para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro!” (BÍBLIA
KING JAMES, Filipenses 1,21, [2017], on-line)1 era verdadeiramente seguido
pelos membros da igreja primitiva.
Para os judeus, uma seita religiosa, como o cristianismo era visto, represen-
tava muitos problemas para a dominação ideológica do Sumo Sacerdote, além
disso, era visto como uma heresia à crença de que o Messias já tinha vindo e não
tinha cumprido o que muitos na religião esperava: o fim da dominação estran-
geira sobre a região.
Para os primeiros cristãos, o poderio de Jesus Cristo estava acima da auto-
ridade judaica institucionalizada que, na época da grande perseguição, estava
nas mãos de Herodes Agripa, neto de Herodes, o Grande e filho de Aristóbulo,
que, segundo relatos bíblicos, perseguiu a Igreja e mandou matar a Tiago, irmão
de Jesus:
[...]naquela mesma ocasião, o rei Herodes mandou prender alguns que
pertenciam à igreja, com o objetivo de maltratá-los, e matou a Tiago,
irmão de João, por execução ao fio da espada. Observando que essa ati-
tude agradava aos judeus, prosseguiu, ordenando também a prisão de
Pedro, durante a festa dos pães sem fermento (BÍBLIA KING JAMES,
Atos dos Apóstolos 12,1-3, [2017], on-line)1.
A Queda de Jerusalém
80 UNIDADE II
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A QUEDA DE JERUSALÉM
No nono dia do mês judaico de Av, do ano 70, o Templo de Jerusalém, a casa do
altíssimo para os judeus, foi quase completamente destruída, sobrando apenas
o muro ocidental, que, hoje, é conhecido como muro das lamentações. Alguns
sicarii resistiram às tropas de Tito na cidade de Massada, mas “preferiram o sui-
cídio, em 73 e 74, a caírem nas mãos dos romanos” (SCHEINDLIN, 2003, p. 80).
A vitória sobre os rebeldes em Jerusalém foi celebrada como o primeiro
grande triunfo militar de Vespasiano, que coroou o feito com moedas comemo-
rativas. Exibiu os objetos rituais do Templo pelas ruas de Roma como troféu e
erigiu um arco da vitória no fórum romano, onde retrata a tomada da cidade
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e a destruição do Templo. O arco pode ser visto até hoje nas ruínas do fórum
romano, na cidade de Roma, na Itália.
Com a destruição do Templo, não fazia mais sentido a vida em Jerusalém,
isto é, como todas as instituições políticas, econômicas e religiosas dependiam
da Casa do Altíssimo, nesse momento tem-se início da segunda diáspora judaica
pelo mundo, ou seja, a dispersão dos judeus que se fixaram em variados luga-
res do planeta, desde o Oriente Médio, China, Península Ibérica e centro-leste
europeu. Ainda hoje, mesmo depois da fundação do Estado de Israel, em 1947,
podemos ver judeus espalhados pelo mundo. Para muitos, quando o Messias, que
ainda esperam, vier, reunirá o povo escolhido e reconstruirá o Templo Sagrado.
Os judeus foram completamente expulsos de Jerusalém, depois da revolta
de Bar Kochba, entre 132 e 135, revolta que foi duramente reprimida pelo impe-
rador Adriano, que, além de destruir toda a cidade, construiu, no mesmo local
onde era o Templo sagrado, um templo dedicado ao deus romano Júpiter e reba-
tizou a cidade conquistada por Davi com o nome latino de Élia Captolina.
A Queda de Jerusalém
82 UNIDADE II
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AS INFLUÊNCIAS GREGAS NO PENSAMENTO
CRISTÃO DOS PRIMEIROS SÉCULOS
Assim, de acordo com Justino Romano, há uma continuidade, e não uma a ruptura
Aqui, é preciso esclarecer que, embora partilhem do mesmo Logos, não estamos
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nismo, Justino elabora a sua doutrina da participação dos gregos no
Verbo, ou Cristo, tornando-se assim o fundador do humanismo cristão
(BOEHNER; GILSON, 2000, p. 29).
Para o pensador, é impossível não reconhecer uma importância (de peso) que a
filosofia grega possui na doutrina do Verbo, tanto que dedicará grande parte de
sua vida a comprovar este fato. De acordo com a historiografia, Justino afirma
que, embora não seja a verdade absoluta, ou para usar seus termos, o Logos total,
os gregos, principalmente Platão, flertaram diretamente com essa verdade. De
acordo com Boehner e Gilson:
[...]justino sentiu-se como que compelido a tal doutrina. Era-lhe im-
possível negar que na filosofia grega não só se conhecerá, mas também
se praticara a verdade. Ora, toda a verdade está no Logos, que ‘ilumina
todo o homem que vem a este mundo’; esse texto escriturístico certa-
mente era conhecido de Justino. Logo, toda verdade deve ser relacio-
nada ao Logos. De outro lado, porém, Justino não pode deixar de re-
conhecer que a verdade dos gregos era ainda imperfeita e fragmentária
(BOEHNER; GILSON, 2000, p. 29).
Esta talvez seja a passagem mais emblemática para a nossa tese. Uma vez que,
diferentemente de Justino (que embora de extrema importância), não é tão
reconhecido historicamente quando se faz uma História da Igreja. Já a figura
de autoridade de Agostinho é incontestável. Vocês terão um tópico especial-
mente sobre ele na próxima unidade, devido a sua importância com relação ao
conhecimento e à fixação do cristianismo nos seus primeiros tempos. Aqui, na
passagem supracitada, ele diz que, embora não tenha sido com as mesmas pala-
vras, ainda assim é possível, claramente, fazer uma analogia entre a cultura grega
e a cultura cristã. Ao expressar, por exemplo, que “ao princípio era o Verbo e o
Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo: e este, no princípio, existia em Deus.
Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado”, Agostinho des-
crevia a teoria platônica do mundo das ideias e do mundo sensível. Teoria esta
que não abordaremos aqui, mas que em uma pesquisa rápida na internet, caso
você ainda a desconheça, poderá compreender esta similaridade.
Os exemplos não são isolados na literatura sobre a história do dogma, poderí-
amos citar, inclusive, os contidos na ética aristotélica que, de certa forma, também
se fazem presentes na história do cristianismo. A própria concepção de mundo,
adotada durante a medievalidade é uma concepção aristotélica-ptolomaica, o que
reforça a leitura e a criação de textos com base nesta linearidade. Tanto o sistema
de Ptolomeu, quanto a física aristotélica concebiam um mundo no qual a Terra
fazia-se estática no centro do universo. Esse foi um dos pensamentos que a socie-
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dade levou com ela e, a partir dele, fixou a concepção geocêntrica de mundo.
Entendido assim, podemos afirmar que nossa civilização ocidental cristã
sempre flertou com a cultura grega, ora mais, ora menos, e este tipo de racionali-
dade expressa na filosofia e na cultura da Grécia antiga foram fundamentais para
a fixação da cultura cristã. Em nível de aprofundamento, podemos citar como
autores para uma pesquisa o teólogo e historiador da corrente da Teologia Liberal
Adolf von Harnack, que em sua obra intitulada a História do Dogma apresenta,
de maneira negativa, a influência grega na teologia cristã. Outros autores, como
o teólogo e historiador Paul Tillich, na obra História da Teologia protestante nos
séculos XIX e XX, compreendem o fato de a teologia cristã expressar-se por meio
da cultura grega não era algo tão negativo assim, uma vez que a cultura predo-
minante no início do cristianismo primitivo era a helênica. Consequentemente,
caso quisesse passar alguma mensagem a esses povos, a linguagem e as analogias
deveriam partir do comum e conhecido, nesse caso, da cultura grega.
era a deusa virgem protetora dos laços familiares. Para saber mais, acesse o
link disponível em: https://airtonbc.wordpress.com/2011/06/27/a-influen-
cia-paga-no-cristianismo/>.
Fonte: adaptado de Viagem Cultural (2011, on-line)2.
Assim como o pensamento grego possui fortes traços de sua cultura integrados
com o cristianismo, a cultura romana também se fará presente na fundamentação
OCristianismonoMundoRomano:ConvergênciaseDivergênciasParaaFundamentaçãodaNovaFé
88 UNIDADE II
dessa nova religião. Uma vez lembrada a tese de que o pensamento cristão não é
algo exclusivo, pretendemos mostrar neste ponto algumas das influências do pen-
samento filosófico e da cultura geral da Roma Antiga na formação do cristianismo.
Esta é uma visão que também está presente em alguns autores. Por exemplo,
a professora e historiadora Renata Lopes Biazotto Venturini (1996), em seu artigo
Visão pagã e a visão cristã no Baixo Império Romano, apresenta que, embora as
propostas que principiam ambas as visões sejam diferentes, ainda assim, pos-
suem traços de similitude. Nas palavras da autora:
[...]a cristandade não é algo único, sui generis, que não deriva de outras
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práticas e sofre as mesmas influências, muito embora os seus princípios
sejam distintos. No mundo pagão, orar não é pedir a intervenção de
Deus, enquanto que a oração cristã é a expressão da fé da mensagem
transmitida e recebida por Deus (VENTURINI, 1996, p. 230, [2017],
on-line)3.
não foi uma doutrina unitária, principalmente nos primeiros séculos de sua for-
mação. Há, nesse momento, um entrave entre grupos que pretendem que essa
doutrina tome rumos de acordo com suas visões. É o caso, por exemplo, dos
orientais que, dentro de uma visão monista, buscam que a nova fé tenha apenas
uma vertente teórica, advindos de sua cultura semita. Contudo, paralelamente
a este grupo, existiam outros com visões completamente divergentes, pois pen-
savam mais na divulgação do que na coerência lógica interna, portanto, tinham
interesses que a linguagem cristã pudesse receber influências greco-romanas.
Sabe-se que há uma luta entre aqueles que pretendem mantê-lo vincu-
lado à tradição oriental, não dualista, mas monista, como era a cultura
semita - e os fundadores da Escola do Pórtico, Zenão e Crisipo, têm
formação semita - e os que procuram, talvez com o objetivo de divul-
gar mais rápida e eficazmente a religião”encarná-la”, revesti-la com a
linguagem greco-romana. Assim, mesmo nos escritos vétero - e neo-
testanrientários - observam-se maneiras de ver diversas, e neste caso
são decisivas, por exemplo, as distinções entre os quatro evangelhos
ou entre os escritos do apóstolo, filo-grego e semita, Paulo de Tarso
(ASSMANN, (1994), p. 25)
De acordo com Assmann (1994), é como Paulo de Tarso que veremos um pro-
cesso de helenização do cristianismo. Com o apóstolo, há uma necessidade de
transmitir o cristianismo para a sociedade helênica, dessa forma, ele realiza uma
ocidentalização do cristianismo orientalizado, ou melhor dizendo, uma heleni-
zação, muitas vezes, áspera, como o próprio Paulo narra em suas cartas, mas que
se tornou possível devido à insistência do pregado, tornando-se modelo para
toda a posteridade. Portanto, um marco na história do cristianismo primitivo.
Nas palavras de Assmann:
OCristianismonoMundoRomano:ConvergênciaseDivergênciasParaaFundamentaçãodaNovaFé
90 UNIDADE II
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sentado como o “deus desconhecido” cujo único templo é o univer-
so, da mesma forma como, para os estóicos, o logos habita o universo.
Contudo, o intento de convencer os atenienses redunda em fracasso.
Por isso, a seguir, Paulo muda radicalmente de discurso: “Destruirei a
sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes... Por-
ventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?... os judeus
pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria. Mas nós pregamos a Cristo
crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1
Cor. 1,19-23). Pode-se verificar, portanto, que há, nos textos de Paulo,
duas atitudes, mas sempre tendo em conta a cultura vigente em Atenas,
assim como, depois, haverá quem lute para implantar o cristianismo
apoiando-se na tradição estóica (e não naquela epicurista ou cética),
ou rejeitando totalmente qualquer elemento da cultura greco-romana
(ASSMANN, (1994), p. 26)
É com Tarso, na Grécia, que a cultura cristã vai mesclar os elementos romanos
e gregos na sua pregação. Ainda mais explícito, por exemplo, nos textos estó-
icos de Marco Aurélio e Sêneca. De acordo com Assmann (1994), se de fato
ainda quisermos observar a convergência entre os estóicos e os cristãos, pode-
mos também comparar os escritos do imperador Marco Aurélio e os do apóstolo
Paulo, em que o primeiro escreve que: “um é o mundo que todas as coisas com-
põem, una a lei, una a razão comum a todos os seres inteligentes, una a verdade
(VII, IX, 2)”, o que em Paulo de Tarso encontramos da seguinte maneira: “um
só corpo, um só espírito, … uma só esperança…, um só senhor, uma só fé, um
só batismo, um só Deus e pai de todos, que está acima de tudo, por todos e em
todos. (Ef. 4, 4-6)”. Assim, podemos perceber que aqui também há, em vez de
pensar como ruptura, uma continuidade entre os textos e a cultura helenística
e cristã dos primeiros séculos do cristianismo.
OCristianismonoMundoRomano:ConvergênciaseDivergênciasParaaFundamentaçãodaNovaFé
92 UNIDADE II
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esperamos que esta unidade tenha sido proveitosa no sentido de trazer novos
conhecimentos à luz da história. Como sabemos, muitas vezes, somos perme-
ados pelo pensamento do senso comum em que adquirimos verdades que nem
sempre, quando confrontadas com o pensamento histórico, se sustentam. Ao
propormos a unidade a partir de um resgate histórico, nosso objetivo foi justa-
mente trazer novos argumentos que sustentam algumas das principais teses que
um bacharel em teologia precisará conhecer. Isso com relação ao mundo antigo
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
do judaísmo, bem apresentado desde o seu cenário político, as seitas religio-
sas, perpassando os acontecimentos do Templo de Jerusalém até o nascimento
de Cristo e do cristianismo. Vimos o nascimento do cristianismo e suas princi-
pais doutrinas, o evangelismo e o aumento substancial dos seguidores de Cristo.
Optamos, aqui, por apresentar a queda de Jerusalém e a expulsão dos judeus da
Palestina, fatos que contribuíram para a diáspora, a dispersão de judeus por todas
as partes do mundo. Ao abordarmos tal temáticas, muitos de vocês devem ter
pensado que este capítulo se fez mais como um livro de história do que de apo-
logética ao cristianismo. De fato, mesmo que seja o nome de nossa disciplina,
a História da Igreja I, sendo assimilada a importância da história na formação
da Igreja, frisamos de maneira acentuada a importância dela como um instru-
mental do teólogo. Tanto que a breve passagem apresentada sobre as influências
gregas e romanas no pensamento cristão também teve a conotação de apanhado
histórico. Esperamos que esta unidade tenha contribuído na sua formação, tra-
zendo fatos e argumentos que poderão fundamentar ainda mais a proposta do
curso. Bons estudos e até a próxima unidade, em que veremos a importância do
ensino e da forma de conhecer na constituição da Igreja.
e um grupo de escravos lustrosos, em uma casa preciosa até mesmo nos pisos, tendo-se
dissipado fortunas por todos os cantos, inclusive no teto cintilante, e uma multidão em
busca e em companhia desse esbanjar de patrimônio. Que dizer das águas transparen-
tes até o fundo e que fluem ao redor dos convivas, que dizer dos jantares dignos de um
cenário desse?
9
Ao retornar de uma longa pausa de frugalidade, envolveu-me o luxo com seu intenso
esplendor e ecoou ao meu redor. Titubeia um pouco meu olhar. Minha alma resiste ao
luxo com mais facilidade que meus olhos. Recuo, assim, não pior, porém mais triste. Não
avanço tão altivo em meio às minhas fraquezas; ataca-me uma mordida secreta e me
pergunto se não seria melhor tudo aquilo. Nenhuma dessas coisas muda meu estado;
nenhuma, porém, deixa de me abalar.
10
Gosto de seguir o que mandam os preceitos e de inserir-me na vida pública, gosto
dos cargos e das prerrogativas, não, evidentemente, da púrpura ou de assumir função
com direito a lictores, mas para estar mais apto a servir e ser útil para amigos e parentes,
para todos os cidadãos e, por fim, para todos os homens. Resoluto, sigo Zenão, Cleanto,
Crisipo, dos quais, porém, nenhum se ocupou da política, mas nenhuma deixou de lado.
[...]
17
Peço, então, se tens algum remédio com que possas pôr fim a essa minha flutuação,
que me consideres digno de dever-te minha serenidade. Sei que não são perigosas essas
oscilações da alma, nem acarretam nada de alarmante. Para expressar-te por uma exata
comparação aquilo de que me queixo, não me sinto atormentado pela tempestade, mas
pela náusea. Portanto, elimina esse meu mal, qualquer que seja ele, e socorre quem pa-
dece mesmo a avistar terra.
Fonte: Issuv ([2017], on-line)4.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Alexandria
a obra dirigida pelo vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
(Mar Adentro, 2004), Alejandro Amenábar, mostra a vida no Antigo
Egito diante da dominação romana. Movida por ideais religiosos
divergentes, a cidade de Alexandria assiste ao progresso do
cristianismo e ao seu choque com o politeísmo greco-romano.
Inclusa no gênero drama/romance, a obra apresenta um panorama
interessante sobre os conflitos religiosos no mundo antigo.
Material Complementar
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
ASLAN, R. Zelota: A Vida e A Época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BOEHNER, P.; GILSON, E. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau
de Cusa. Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier. 7. ed. Petrópolis-RJ: Vozes,
2000.
BLAINEY, G. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Editora Fundamento
Educacional Ltda, 2012.
RUSSELL, B. A História da Filosofia Ocidental: A Filosofia Católica. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2015.
SCHAMA, S. A História dos judeus: À procura das palavras: 1000 a. C. - 1492 d. C.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SCHEINDLIN, R. História Ilustrada do Povo Judeu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
SCLIAR, M. Judaísmo: Dispersão e unidade. São Paulo: Ática, 2001.
WERBLOWSKY, Z. O Messianismo na História Judaica. In: UNESCO (org). Vida e valo-
res do povo judeu. São Paulo: Perspectiva, 1972.
REFERÊNCIAS ON-LINE
1
Em: <http://bibliaportugues.com/kja/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
Em: <https://airtonbc.wordpress.com/2011/06/27/a-influencia-paga-no-cristianis-
2
1. A.
2. C.
3. B.
4. Espera-se que o aluno perpasse o caminho do pensamento cristão, mostrando
as influências da cultura grega de acordo com o pensamento agostiniano, em
que é proposto que há uma forma, ainda que elementar, de se pensar o cristia-
nismo entre os gregos.
5. O cristianismo, na antiguidade romana, deve ser pensado dentro de um arca-
bouço cultural muito maior do que a sua própria expressão em si, uma vez que
ele não se constitui fato isolado. Assim, o aluno deve apresentar a relação entre
o estoicismo e o cristianismo apresentados, por exemplo, por Paulo de Tarso e
os estóicos, como Marco Aurélio.
Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira
III
A IGREJA E OS SEUS
INTELECTUAIS: ANÁLISE
UNIDADE
HISTÓRICA DOS PENSADORES
CRISTÃOS
Objetivos de Aprendizagem
■■ Elaborar um panorama sobre o conhecimento no medievo,
apresentando as características do intelectual cristão.
■■ Traçar um plano de estudo sobre o pensamento patrístico.
■■ Apresentar os principais pontos do pensamento cristão de Santo
Agostinho e Tomás de Aquino.
■■ Apresentar as principais ideias e pensadores que adentram o
pensamento escolástico.
■■ Elaborar um panorama geral sobre o legado do pensamento de
Tomás de Aquino para a consolidação do cristianismo.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O intelectual e a Igreja
■■ Notas sobre a Patrística
■■ Santo Agostinho: a Fé e a Razão
■■ Notas sobre a Escolástica
■■ Tomás de Aquino: a Fé e a Razão
103
INTRODUÇÃO
Introdução
104 UNIDADE III
O INTELECTUAL E A IGREJA
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)1.
A verdade seja dita. A Igreja não inicia o seu processo de fixação durante o perí-
odo de sua história, denominado cristianismo primitivo, com a intencionalidade
de ser uma instituição de saber. De fato não. Nos primeiros momentos da sua
fixação, essa instituição tinha um caráter diretamente relacionado aos indivíduos
mais comuns, seus diálogos eram diretamente com pobres, mulheres e grupos
sociais dos mais comuns. Não havia necessidade de uma catequização profunda,
tendo em vista que, nesse momento, o homem comum já possuía uma noção,
ainda que vaga, de Cristo. A noção cristã, nos primeiros séculos de fixação da
nova religião no mundo pagão, era oralizada e sem muitos recursos em relação
às fontes de aperfeiçoamentos.
De acordo com Pierre Pierrard, em sua obra História da Igreja (1982), ao que
se refere a realidade histórica da pessoa de Cristo, à origem de sua mensagem,
Esta marca do contexto supracitado pelos autores estará mais bem explícita na
trajetória de Paulo, tanto nos seus êxitos quanto nos seus fracassos. Notaremos
que os principais seguidores terão traços econômicos e sociais bem específicos,
o que acarreta um tipo de linguagem também específica. Assim, podemos afir-
mar que, se o cristianismo não se tornou mais erudito nos primeiros anos, dá-se
ao processo dialógico, uma vez que se necessitava de uma linguagem mais clara
e simples, para o público do qual Paulo de Tarso falava, ao mesmo tempo, não
se procurava aperfeiçoá-la a ponto de tornar-se mais erudita.
Está acompanhando? Aqui, pretendemos que você tenha uma noção de que
não é menos ou mais a linguagem adquirida por Paulo nos primeiros anos do
cristianismo, ela é histórica e responde a um grupo histórico, e entender isso é
fundamental para o nosso processo de aprendizagem.
De acordo com Pierrard (1982), no ano de 44, Paulo encontra-se em Antioquia,
onde, pela primeira vez, recebe de Barnabé, chefe de uma comunidade cristã do
O Intelectual e a Igreja
106 UNIDADE III
local; o nome de Tarso, difundindo-se, a partir dali, o nome Paulo de Tarso como
o pregador da mensagem de Cristo. Durante aquele ano, ambos trabalharam jun-
tos, até que em 45, os dois embarcam para Chipre e depois vão para a Panfília.
Nesse ano, Paulo fica responsável por chefiar a missão, percorrendo Perge, Icônio,
Listra e Derbe. Aonde ia, realizava sempre os mesmos passos, que consistiam,
de maneira geral, em demonstrar que Cristo é o Messias esperado por Israel.
Embora as dificuldades fossem muitas, sejam elas vindas dos judeus que inci-
tavam a apedrejá-lo, seja em compará-lo a Hermes, seja imaginar que se falava
de Júpiter, Paulo não desistiu. Quando, do seu retorno à Antioquia, ele se choca
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com os judeus-cristãos, que pretendiam ligar a salvação ao rito de circuncisão.
De acordo com Paulo, mesmo sendo parte da lei judaica, tal ato não é imprescin-
dível para a iniciação na fé da Igreja. Pierrard dá mais detalhes desse momento:
[...]retornando a Antioquia, Paulo choca-se com os judeus-cristãos,
que pretendem ligar a salvação ao rito da circuncisão. Mesmo se do-
brando às prescrições judaicas - “Para os que estão sujeitos à Lei, fiz-me
como se estivesse sujeito à Lei, se bem que não esteja sujeito à Lei, para
ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei -, Paulo não compreender por
que impor a circuncisão aos gentios desejosos de ingressar na Igreja.
A controvérsia é levada a Jerusalém, diante dos chefes da comunidade
cristã, Pedro e João. Eles dão seu aval aos métodos paulinos, malgrado
a resistência de muitos irmãos (PIERRARD, 1982, p. 21).
Ainda a respeito de Paulo, o autor menciona o ano de 49, quando esse parte
para a Antioquia, faz mais uma grande peregrinação, agora com a companhia
de Silas e Timóteo, passando por Listra (onde Timóteo os acompanha), Frígia,
Galácia, Macedônia até Filipo, onde são presos. Após este contratempo, retor-
nam à evangelização, sendo ora ouvidos devido à boa nova, ora criticados por
apresentarem Jesus como rei, contrapondo o poder do Imperador.
Em Atenas, a missão de Paulo também encontra percalços, pois enfrenta os
gregos que, devido aos seus direcionamentos filosóficos, tornaram a jornada de
Paulo um pouco difícil nos primeiros tempos. De acordo com Pierrard (1982),
todos os dias Paulo de Tarso dialoga na Ágora com os gregos sutis e cultos, levia-
nos e céticos que, com zombarias e risos, pedem que o orador afaste-se com seus
miraculosos sonhos.
Será, pois, misturados aos pobres e marinheiros de Corinto que Paulo terá
mais êxito, o que confirma ainda mais a nossa tese inicial de que o Cristianismo,
nesse momento, possuía uma linguagem voltada para a população comum, pois
as escrituras eram seus únicos instrumentais. Corinto trás uma dupla felicidade
a Paulo. Primeiro porque, aqui, ele adquire mais segurança com a palavra a ser
evangelizada, e segundo porque, aqui, ele consegue organizar uma importante
comunidade cristã. Nas palavras de Pierrard:
[...]o pequeno judeu desce a Corinto, o porto cosmopolita onde, en-
tre duzentos mil homens livres servidos por quatrocentos mil escra-
vos, trabalham numerosos orientais, mais bem preparados do que os
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Nessas poucas linhas que se seguiram nas citações supracitadas, pudemos perce-
ber o caráter mais popular do cristianismo nos primeiros séculos. Não podemos
dizer que não houve documentação, afinal, as Cartas de Paulo, bem como o Antigo
Testamento são testemunhas que nos desmentiriam, caso fizéssemos uma afir-
mação como essa. Mas podemos afirmar que, embora exista essa documentação,
ela procura muito mais catequizar do que instruir. Pelo menos até fins do século
I d.C. Esse foi o perfil que a religião cristã tomou com o ensino.
Nessa mesma linha de pensamento, o autor Luigi Padovese, em sua obra
Introdução à teologia Patrística (1999), dá-nos um panorama dessa sociedade
em quel os ensinamentos de Paulo de Tarso são proferidos. De acordo com o
autor, o cenário é de pessoas comuns, ou seja, não há uma formação de um
grupo intelectual para fazer apropriação das escrituras de maneira crítica. Nas
palavras de Padovese:
[...]em 1 Cor 1,26 Paulo nos oferece um “perfil” social da comunidade
cristã primitiva, na qual “não há muitos sábios segundo a carne, nem
muitos poderosos, nem muitos nobres”. Essa constatação não deixou
O Intelectual e a Igreja
108 UNIDADE III
É preciso ressaltar que este caráter evangelizador popular não é menos impor-
tante. Pelo contrário, é essencial, principalmente nos primeiros tempos de Igreja,
quando ela se forma a partir desses grupos sociais. Podemos dizer que esse foi o
perfil da Igreja com o conhecimento até a primeira década depois da era cristã.
Por isso não teremos uma fundamentação vinda dos livros, mas sim, do povo.
Será o povo que dará vida a esta fé a ponto de se tornar hegemônica, séculos
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depois. Ainda a respeito da carta de 1 Coríntios., de Paulo, Padovese afirma que:
[...]com efeito, “não foi o público do rolo e das bibliotecas que deu vida
às primeiras comunidades cristãs, mas, sabemos, foi a gente simples,
sem nenhum papel político, de poucos recursos econômicos e de mo-
desta formação intelectual (PADOVESE, 1999, p. 24).
Por isso, quando dizemos que o cristianismo, nos seus primeiros séculos, teve
um caráter mais popular, diretamente voltado para a evangelização, e não pre-
ocupado, em um primeiro momento, com a formação erudita e cultural de
um povo, temos em mente esse panorama descrito por Paulo, anteriormente.
Primeiro era preciso formar uma população que olhasse com bons olhos esta
nova proposta de fé.
Era o momento da formação de uma nova religião dentro do território
romano. De acordo com o historiador francês Jacques Le Goff, em sua obra As
raízes medievais da Europa (2010), a herança bíblica é inquestionável para a for-
mação do homem medieval. Para o pensador, dentre as outras tantas heranças
que o mundo medieval recebeu, essa também é de extrema importância, pois, a
partir do medievo, se formara um grupo de intelectuais que se debruçarão sobre
essa herança, a fim de produzir um conhecimento intelectivo formal. A Bíblia,
a partir de então, ganha, na mão desses teóricos, teor argumentativo, deixando
de funcionar como meio de propagação de fé. Para Le Goff:
[...]enfim, uma última herança, que tem importância capital, é a he-
rança bíblica. Este patrimônio é transmitido aos medievais não pelos
judeus, dos quais os cristãos se afastam cada vez mais depressa, mas
pelos cristãos dos primeiros séculos, e a herança do Antigo Testamento,
apesar do reforço dos sentimentos anti judeus, permanece até o fim da
Idade Média como um dos elementos mais fortes e ricos não somente
da religião, mas do conjunto da cultura medieval. Foram escritos livros
sobre a Idade Média e a Bíblia, e eu me contentarei a lembrar aqui que
o Antigo Testamento é, antes de tudo, a proclamação do monoteísmo
(LE GOFF, 2010, p. 27).
Somente após certo destaque social a Igreja sente a necessidade de criar uma cul-
tura erudita, na Idade Média. De acordo com o autor, esta carência aparecerá no
período que denominou de Antiguidade Tardia. Ainda, segundo ele, o apareci-
mento de uma cultura mais erudita por meio de uma cristianização acontecerá
no meio de um processo de cristianização do Império Romano, entre o reco-
nhecimento da religião cristã pelo Imperador Constantino, o chamado edito de
Milão de 313 e a adoção, pelo Imperador Teosódio I, do cristianismo como reli-
gião oficial do Estado Romano. A partir daqui, se seguira uma linha que contará
com a Bíblia e o Novo Testamento para a fundamentação de uma cultura cristã.
Para saber mais sobre essa nomenclatura ler: LE GOFF, Jacques. As raízes
medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. 3. ed. Petrópolis: Rio de
Janeiro, 2010.
Fonte: o autor.
O Intelectual e a Igreja
110 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
NOTAS SOBRE A PATRÍSTICA
O fato de não termos muitos cristãos cultos, nos primeiros anos do cristianismo,
já não é mais verdade quando se inicia a sua era áurea. De acordo com Philotheus
Boehner e Etienne Gilson em sua obra História da Filosofia Cristã (2000), pouco
a pouco esse panorama, em que o cristianismo recrutava seus ouvintes apenas
entre os mais humildes, começara a se alterar, já configurando, ainda que inci-
pientemente, um grupo mais erudito dentro dos pilares na nova fé. Com eles,
surge a necessidade de novas linguagens, bem como novos pensadores. Neste
contexto, se abrirá espaço para o estudo das escrituras com o objetivo de dar
suporte à conciliação entre fé e razão.
Para Boehner e Gilson, será proposta uma nova maneira de pensar. Sem abrir
mão da racionalidade e das propostas filosóficas greco-romana, buscará se con-
ciliar às escrituras. Oferecia, a partir desta proposta, a razão, tão cara para esses
novos adeptos. Nas palavras dos autores:
[...] é um fato histórico que a “Boa Nova” recrutou seus primeiros ou-
vintes e adeptos principalmente entre as classes humildes. [...] é igual-
mente um fato histórico que dentro em pouco, e em número sempre
crescente, muitos homens cultos encontraram na sabedoria da cruz a
plena satisfação da sua sede de verdade, dos seus anseios espirituais, e
até das suas exigências científicas (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 25).
Dessa maneira, o cristianismo contará agora com novos integrantes, que não
veem contradição nenhuma entre um conhecimento mais científico e o da fé.
Ainda no pensamento dos autores, a conversão não implicava de modo algum
renúncia da cultura intelectual. Agora, o imperativo cristão submeteria a razão
aos serviços da cruz. Desde que esse conhecimento projetasse mais fé nos cami-
nhos do cristianismo, era totalmente permissível e estimulado.
Embora a sua consolidação tenha se dado posteriormente, os primeiros apo-
logetas que se rendem a esse serviço têm início já nas primeiras décadas da nossa
era. De acordo com a história, a filosofia patrística data a década de quarenta do
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
século um. Foi no contexto francês que o pensamento religioso, voltado para os
antigos escritores cristãos, ganhou corpo e aprofundamento teórico. Tais pen-
sadores são denominados como ‘Padres da Igreja’. Ao trazermos luzes para tal
pensamento, acreditamos estar oferecendo uma das maiores correntes de pen-
samento cristão formado pela cristandade.
Outras concepções, como a própria de Boehner e Gilson (2000), datam esta
formação intelectual um pouco mais para frente. Conforme os autores, o sur-
gimento do pensamento crítico-racional datará os séculos II e III de nossa era.
Contudo, independentemente de qual seja o seu marco histórico, o fato é que
esses autores trouxeram um novo olhar para a teologia cristã, marcando um
momento que poderíamos considerar ser de ruptura no pensamento do cristia-
nismo primitivo e o patrístico. Sobre os primeiros apologetas, Boehner e Gilson
sugerem que:
[...]coube-lhes a tarefa de mostrar que a mensagem de Cristo, além de
representar o cumprimento das profecias do Antigo Testamento, ofere-
cia à razão soluções mais profundas do que as de qualquer filosofia. A
seus olhos, o cristianismo constitui a verdadeira filosofia, e tudo quanto
os gregos haviam logrado elucubrar em matéria de verdade passa a ser
uma herança legítima dos cristãos (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 25).
aos nossos olhos, o principal ponto de se fazer filosofia cristã nos primeiros perí-
odos da Idade Média.
Porém antes de apresentarmos alguns pensadores desse movimento, fare-
mos uma explanação geral do que foi a patrística, seguindo o prefácio da obra
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, da Paulus Editora. É preciso defi-
nir algumas terminologias comuns aos estudos dessa temática, como os termos,
patrologia, patrística e Padres ou Pais da Igreja. De acordo com o prefácio da edi-
tora, quando nos referimos ao termo ‘patrologia’, estamos buscando realizar um
estudo sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. A patrologia, inte-
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ressa-se mais pela História Antiga, em que podem ser incluídas também obras
de autores que não necessariamente estejam vinculados a um pensamento reli-
gioso. Mais detidamente, a patrologia pode englobar tanto autores leigos como
autores de cunho religioso, com a finalidade de realizar um estudo sobre obras,
vidas e doutrinas eclesiásticas dos seus pais.
Já quando nos referimos ao termo ‘patrística’, a referência diz respeito ao
estudo da doutrina, das origens dela, suas dependências e empréstimos do meio
cultural, filosófico e da evolução do pensamento teológico dos pais da Igreja.
Desta maneira, podemos dizer, de um outro modo, que a patrística está direta-
mente relacionada ao clássico greco-romano que permanece nos estudos desses
pais da Igreja. Notar os traços desses pensamentos clássicos nas doutrinas cristãs
e elaborar o estudo sobre elas a partir desses vieses constitui-se objeto da patrís-
tica. Conforme Eusábio de Cesaréia, “foi no século XVII que se criou a expressão
‘teologia patrística’ para indicar as doutrinas dos Padres da Igreja distinguindo-a
da ‘teologia bíblica’, da ‘teologia escolástica’, da ‘teologia simbólica’ e da ‘teologia
especulativa’ (CESARÉIA, 2003, p. 7).
Por fim, ao referir-se a “Padre ou Pai da Igreja” estamos inferindo a escri-
tor leigo, sacerdote ou bispo, da Antiguidade Cristã, considerado pela tradição
posterior como um testemunho particularmente autorizado pela fé (CESARÉIA,
2003, p. 7). Em outras palavras, são aqueles autores que a Igreja reconhece como
contribuintes para a profusão da fé e que, segundo a tradição, conciliaram a filo-
sofia greco-romana aos intentos da Igreja. Todavia esta classificação ainda trazia
certo problema de entendimento, sendo preciso uma definição ainda mais clara.
A definição, portanto, de Pais da Igreja, fazia jus à sua importância real. Foram
eles que conciliaram os cânones das sagradas escrituras aos textos greco-roma-
nos, dando coesão e coerência a um corpo comum que resultava na profissão de
fé. Esta ampla discussão feita por esses pensadores fez com que os seus escritos
extrapolassem a esfera do religioso, tendo lugar proeminente também na litera-
tura greco-romana. São, como afirmam os estudiosos desta temática, os arautos
da doutrina e moral cristã, e, por meio deles, o cristianismo universaliza-se ainda
mais. Agora não mais restrito ao âmbito popular comum, o cristianismo ganha
caráter de pensamento intelectual próprio aos dos gregos e romanos clássicos.
Além de sua importância no ambiente eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam
lugar proeminente na literatura e, particularmente, na literatura greco-romana.
São eles os últimos representantes da Antiguidade cuja arte literária, não raras
vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas
posteriores. Formados pelos melhores mestres da Antiguidade clássica, põem
suas palavras e seus escritos a serviço do pensamento cristão. Se excetuarmos
algumas obras retóricas de caráter apologético, oratório ou apuradamente epis-
tolar, os Padres, por certo, não queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim
arautos da doutrina e moral cristãs. A arte adquirida, não obstante, vem a ser
para eles meio para alcançar este fim. “[…] Há de se lhes aproximar o leitor com
o coração aberto, cheio de boa vontade e bem-disposto à verdade cristã. As obras
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dos Padres se lhe reverterão, assim, em fonte de luz, alegria e edificação espiri-
tual” (ALTANER; STUIBER, 1988, p. 21-22).
Foram esses homens, dos primeiros séculos da era cristã, os principais defen-
sores da fé, da liturgia, da disciplina, à medida em que criaram costumes e
decidiram, por meio dos seus escritos, quais seriam os próximos passos dados
pela Igreja rumo aos séculos que viriam de sociedade cristã. Entender o pen-
samento religioso, durante os primeiros anos de fixação do cristianismo na
sociedade, é compreender, paralelamente, o papel desses pensadores nesta tra-
jetória. A fim de se defenderem dos ataques, que outrora fizeram parte da vida
de Paulo de Tarso, os patrísticos interessaram-se em fortalecer o pensamento
religioso, dando ainda mais motivos para a submissão a Cristo. Se muitos gre-
gos duvidaram das palavras de Paulo no germe do cristianismo primitivo, agora
se dava uma base sólida para se crer.
A importância de se fazer um estudo mais aprofundado sobre todos os teó-
ricos da Igreja aparecerá ao longo do curso. Para este momento, selecionamos,
com relação a essa proposta teológica, o filósofo e teórico Santo Agostinho.
Nossa escolha se dá no peso que esse tem junto a Paulo como um dos pilares
do cristianismo.
te, pelos primeiros grandes nomes da filosofia cristã, a saber, Santo Agos-
tinho, Clemente Alexandrino etc.; 3º período: estende-se até o século VIII,
também conhecido como período pós-niceno, com a reelaboração de dou-
trinas já formuladas durante os dois períodos anteriores, como as de Boécio.
Fonte: o autor.
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Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)2.
Nem todos esses fiéis eram necessariamente santos. Com o seu cres-
cimento numérico, a Igreja sentia pesar sobre si o ministério de sua
existência, o ministério de Cristo unidos a um corpo ao mesmo tempo
místico e social, coberto de pecados e fraquezas. As pequenas comuni-
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foi senão uma renascença semelhante àquela que o século XVI conhe-
ceria mais tarde, porém mais efêmera - e cujo elemento principal era a
admiração pela filosofia, as artes e as letras antigas. Filósofos, retores,
gramáticos e sofistas ainda por muito tempo tornariam dura a vida do
cristianismo: a escola filosófica de Atenas só fecharia suas portas em
529. O neoplatonismo ficaria como o adversário por eleição da religião
do Galileu (PIERRARD, 1982, p. 46-47).
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mas como já dissemos outrora, o cristianismo não possuía uma linguagem muito
rebuscada ou erudita nos seus primeiros tempos e foi essencial para a assimilação
e fixação pelos grupos mais humildes. O que transformou-se, em contrapartida,
em uma repulsa por parte dos letrados. É nesse contexto que Santo Agostinho
insere o seu pensamento, e o século IV foi extremamente profícuo para o desen-
volvimento das ideias dos Padres da Igreja.
De acordo com Le Goff (2010), Santo Agostinho faz parte dos cofundadores do
pensamento cristão. Os resultados de seus escritos foram imprescindíveis para a
elaboração da doutrina cristã baseada na linha da Bíblia e do Novo Testamento
paralelo aos textos greco-romanos, legado que não se fixa no seu tempo, mas o
coloca no grupo dos autores clássicos da humanidade. Ao fazer uma breve apre-
sentação do pensamento agostiniano, Le Goff apresenta sua justificativa sobre
o porquê de tal pensador ser tão importante para o legado dos pais da Igreja.
Farei das palavras dele as minhas no que diz respeito à figura de Agostinho.
Conforme Le Goff:
[...]o outro Padre da Igreja essencial é Santo Agostinho (354-430). De-
pois de São Paulo, Santo Agostinho é o personagem mais importan-
te para a instalação e o desenvolvimento do cristianismo. É o grande
professor da Idade Média. Aqui citarei apenas duas obras suas que são
fundamentais para a história europeia [Confissões, Cidade de Deus] (LE
GOFF, 2010, p. 31).
bastante interessante. Vale a pena discorrer um pouco mais sobre a história deste
ilustre pensador, e perceberemos que, de boêmio e até mesmo maníaco sexual,
ele passa a ser um dos principais teóricos do cristianismo e a ter uma das prin-
cipais obras da história da civilização europeia.
Gosto de pensar Agostinho a partir de extremos. Pense comigo: o mais
homem dos homens tornou-se o mais Santo dos Santos. Para quem já conhece
um pouco da história desse pensador, pode ou não concordar com a minha tese,
o fato é que Santo Agostinho teve uma vida regrada de prazeres e de ascetismo
de maneira gritante, a ponto de quem ouvisse falar de um em frente ao outro,
ou vice-versa, não imaginasse tratar-se da mesma pessoa.
O pesquisador Paul Strathern, em sua obra Santo Agostinho em 90 minutos,
apresenta-nos um pouco sobre essas imagens que podemos formar do pensa-
dor. Na verdade, ele retira da própria obra, As Confissões, o teólogo que tinha por
objetivo narrar sua trajetória ao encontro com Deus. De caráter extremamente
subjetivo, Agostinho relata um pouco da sua trajetória antes dos 30 (trinta) anos
de idade. Strathern inicia a sua obra com uma passagem d’As Confissões que ire-
mos transcrever aqui também:
[...]“fui até Catargo, onde me encontrei no meio de um sibilante caldei-
rão de lascívia. Enlouqueci de luxúria, as coisas abomináveis que fiz:
depravação grosseira, um excesso de prazeres do inferno. Desejo carnal
como pântano borbulhante e sexo viril brotavam em mim, exsudando
névoas…” Santo Agostinho era um maníaco sexual. Ou assim nos faria
acreditar. Suas famosas Confissões contém páginas e páginas de auto
penitência, por ele ser o “mais vil escravo das paixões perniciosas” epor
se entregar à imundície da libertinagem (STRATHERN, 1999, p. 11).
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salvação é possível. Tudo isso por meio de sua história.
Santo Agostinho é natural de Tagaste, norte da África. Seu nascimento é
datado no dia 13 de novembro de 354. Assim como os demais padres da Igreja,
Agostinho descendia de família nobre. Pierrard (1982) nos fala um pouco sobre
esta linhagem nobre contida nos primeiros Padres da Igreja. Conforme o his-
toriador: “Quase todos os Padres pertencem à elite da sociedade. É notável a
semelhança de sua formação e de sua trajetória dentro da Igreja: estudos literários
que fazem deles escritores de classe, promissora carreira profana interrompida
pela ‘conversão’, período passado em fortificadora solidão, intensa atividade pas-
toral acompanhada de forte influência doutrinal. Atanásio de Alexandria, Basílio
de Cesaréia, Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Cassiano, Dâmaso de Roma,
Hilário de Poitiers - a Igreja jamais contará com tantos doutores, ainda mais que
desta lista fazem parte também as três colunas do humanismo cristão do século
IV: o milanês Ambrósio, Agostinho, o africano, e Jerônimo, o mestre de Belém.
Esses homens viram um mundo inteiro desabar, mas sabiam que a frágil cris-
tandade podia contar com suas palavras e seus atos para se manter de pé. Deste
modo, Agostinho, filho de Patrício e Mônica, teve grande influência em sua for-
mação devido à instrução de seus pais, quando educado, durante os primeiros
anos. O primeiro, pagão, a segunda, cristã.
Aos 17 anos, Agostinho vai para Cartago a fim de se dedicar aos estudos,
durante três anos. Após esse período retorna à cidade dos pais como professor,
casado e com filho. Porém, a partir daí, não fixa uma residência. Foi professor
novamente em Cartago, Roma e Milão. Nesta última, adquire, devido aos seus
conhecimentos ímpares, a cátedra de retórica. Entretanto, como ele bem narra
em suas confissões, tais prazeres mundanos não eram o suficiente para apazi-
guar o seu vazio interior, e isso, segundo ele, não foi fácil. Durante muito tempo,
procurou encontrar o preenchimento para esse vazio em lugares mundanos, na
vida boêmia, sem o menor zelo pelo corpo. Até que um dia, (talvez devido às
orações de Mônica, sua mãe ou às pregações de Ambrósio), Agostinho encon-
tra em Deus a paz que preencheria o seu vazio, algo que tanto procurava. Em
seus relatos, ele apresenta a dificuldade inicial de se entregar a Cristo, até que,
em agosto de 386, meditando no jardim, ouve uma voz de criança que diz “Tolle
et lege” (Toma e lê) e tomando as Cartas de São Paulo lê: “Não é nos prazeres da
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vida, mas em seguir a Cristo que se encontra a felicidade”. A partir daqui, tere-
mos uma cisão entre o Agostinho até então conhecido e o Agostinho cristão,
que, futuramente, será canonizado.
A seguir, um quadro apresentando as obras com as quais Agostinho presen-
teou a humanidade.
Quadro 01 - Obras Agostinianas
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396-426 De doctrina christiana A doutrina cristã
396-420 Enarrationes in Psalmos Comentários sobre os salmos
397-401 Confessiones Confissões
397-398 Contra Faustum Manichaeum Contra Fausto, o maniqueu
399 De natura boni Sobre a natureza do bem
399 Contra Secundinum Mani- Contra Secundino, o maniqueu
chaeum
99-419 De trinitate A Trindade
400 De fide rerum quae non viden- A fé nas coisas invisíveis
tur
400 De consensu evangelistarum O consenso dos Evangelistas
400 De opere monachorum O trabalho dos monges
400 De catechizandis rudibus Instrução dos catecúmenos
400/401 De baptismo contra partem Sobre o Batismo, contra os dona-
Donati tistas
400 De opere monachorum O trabalho dos monges
401 De bono coniugale O bem do casamento
401 De sancta virginate A santa virgindade
401-415 De Genesi ad litteram Sobre a interpretação literal do
Gênesis
406-430 In evangelium Ioannis tractatus Tratado do evangelho de João
410 De urbis Romae excidio A destruição da cidade de Roma
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Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)4.
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Franco Cambi (1999), por sua vez, diz que a primeira universidade nasce
por volta do ano de 1150. Sintetizando as palavras do autor:
[...]em Paris, o studium generale nasce ao redor da escola episcopal ilu-
minada pelo prestígio de Abelardo, por volta de 1150, instituindo um
curso referente ao trivium (artes liberais), depois à teologia, ao direito,
à medicina, que vinham construir o nível superior de ensino (CAMBI,
1999).
É preciso dizer a você que não se preocupe com qual foi a primeira universidade.
Esta discussão não é nossa. O que precisamos retirar dessa discussão sobre as
universidades, neste primeiro momento, é que, embora não saibamos qual de
fato foi a primeira, um ponto é fato, todos eles concordam com que ela tenha
surgido a partir do desenvolvimento das escolas catedrais. Ainda que poste-
riormente assumam uma autonomia jamais vista nessas escolas, foi delas que
germinaram como instituições de saber.
Passaram a representar, portanto, um modelo totalmente novo e extrema-
mente original de ensino que buscava atender uma sociedade cada vez mais
preocupada com instruções mais complexas. Foi aí que certos mestres, em geral
clérigos não-ordenados, instalaram-se nas escolas existentes, ou viajavam de ins-
tituição para instituição, transmitindo um conhecimento mais refinado.
É nesse seio de pensamento que a escolástica se difundirá com autonomia o
suficiente para elaborar suas próprias diretrizes, ou seja, a sua maneira de fazer
filosofia. Esses professores teóricos utilizaram esse conhecimento para imprimir
sua forma de pensar. De acordo com a historiadora Terezinha Oliveira (2002), a
escolástica foi a filosofia que deu a forma de pensar dos homens medievais e, por
Porém, de maneira geral, podemos dizer que a escolástica não ficou só dentro dos
muros universitários, na verdade, é possível afirmar que esse tipo de pensamento
ganhou contornos bem maiores, sendo reconhecida como a filosofia elaborada
pelos medievos, de maneira geral, com o objetivo de responder às exigências da
fé ensinadas pela Igreja. Entre as várias maneiras de se pensar, filosofar, estudar,
a escolástica ocupa o primeiro lugar. Um dos objetivos principais dessa maneira
de pensar era a conciliação da fé e da razão, no intuito de dirimir as controvér-
sias sobre a existência de Deus. Novamente, é preciso reforçar que, assim como
a patrística, esse pensamento tem como objetivo a utilização da racionalidade
para a fundamentação da fé.
ela seja a maneira de pensar do homem medieval dos séculos XIII em diante, é
preciso esclarecer que a escolástica aparece bem antes no cotidiano intelectual
medieval. O próprio termo explicita esta origem anterior às cátedras universi-
tárias. De acordo com o termo, “escolástica” deriva do latim Scholasticus, que
remete à escola, ou a instruído. Seu modo de pensar propagou-se pelo mundo
medieval, tornando-se um movimento filosófico ensinado nas escolas. De acordo
com a historiografia, o escolástico era o professor das artes liberais, da filosofia e
da teologia que, por meio de um método, buscava filosofar a respeito da fé cristã.
Esse método escolástico tornou-se o ponto comum da formação dos discur-
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sos teológicos e se divide em 4 partes:
1. Leitura (lectio).
2. Comentário (glosa).
3. Questões (quaestio).
4. Discussão (disputatio).
Vemos essas estruturas de maneira clara em toda a obra Suma Teológica de Tomás
de Aquino, o que reforça ainda mais a importância e o uso desse modelo para o
conhecimento científico do medievo. É por isso que o historiador Rui Afonso da
Costa Nunes afirmou que a escolástica mostra-se de maneira máxima dentro da
obra em questão de Tomás de Aquino, não se restringindo apenas ao aspecto filo-
sófico, mas também presente em outras áreas do conhecimento. Para o historiador:
[...]a escolástica foi um método de pensamento e de ensino que surgiu e
se formou nas escolas medievais e se plasmou de modo inexcedível nas
universidades do século XIII, máxime através do magistério e das obras
de Santo Tomás de Aquino. O termo escolástica, porém, significa ainda
o conjunto das doutrinas literárias, filosóficas, jurídicas, médicas e teo-
lógicas, e mais outras científicas, que se elaboraram e corporificam no
ensino das escolas universitárias do século XII ao século XV, pois não
nos cabe considerar a Segunda Escolástica que floresceu na Há época
do Renascimento (NUNES, 1979, p. 244).
saber, uma que iria até o século XIII, tendo seu auge no pensamento tomista, e
outra que se restringiria aos séculos XIV e XV. Contudo, para além desta divi-
são clássica, existem autores que vão ainda mais longe, chegando a sugerir mais
uma divisão que se denominaria como escolástica tardia. Como nosso objetivo
fecha-se para o período medieval e a influência do pensamento eclesiástico, este
aprofundamento não será requerido.
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e vida do pensamento de Tomás, ou seja, dentro de seu período histórico. Nas
palavras dos autores:
[...]numa exposição histórica da filosofia medieval, a obra e a impor-
tância de S. Tomás devem ser encaradas, não a luz do triunfo posterior
do tomismo, e sim, exclusivamente, no ambiente histórico do século
XIII (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 447).
É a partir desta perspectiva que o veremos, aqui, como um homem do seu tempo,
produzindo e se relacionando com o seu tempo. Tomá-lo a partir do que o seu
pensamento tornou-se é não enxergá-lo como de fato foi. Por isso, a nossa aná-
lise, neste tópico, focará mais em sua vida e obras do que na explanação de toda
a sua filosofia tomista. Após estas breves considerações, podemos iniciar esta
unidade falando sobre os primeiros anos dele até seu ingresso na Ordem dos
Dominicanos e a sua carreira como pensador dentro da Igreja.
Tomás de Aquino nasceu em Rocca Secca, região do atual Lácio na Itália,
mas no período pertencente ao Reino de Nápoles, entre os anos de 1224 e 1225,
filho do conde Landolfo e Teodora. De acordo com Boehner e Gilson (2000),
o menino foi educado, num primeiro momento, no mosteiro de Montecassino
pelo abade Sinibaldo, que era seu tio paterno. Após essa educação com o tio, ini-
cia-se nas artes liberais, agora em Nápoles.
Data o ano de 1244 o início de uma discussão familiar séria. Esse é o ano em
que Tomás decide se juntar aos dominicanos pelo sacerdócio, o que não deixa sua
família nada contente. Na verdade, narram-se algumas histórias que, a pedido
da mãe, os irmãos de Aquino o capturam e o encarceram, durante um ano, a
fim de que este mude de ideia. Porém, ao perceberem que não houve êxito na
tentativa de dissuasão das ideias do irmão, a irmã e mãe dele armam uma fuga
para que ele siga o seu intento.
Assim, em novo itinerário para Paris, Tomás de Aquino encontra-se com S.
Alberto Magno, estando com ele nos anos de 1245 a 1248. Quando este último
decide por uma viagem para Colônia, Tomás o acompanha até o ano de 1252,
quando retorna à Paris. De acordo com Boehner e Gilson (2000), o novo domi-
nicano continua em contato com o ensino, agora com S. Boaventura, durante
o ano de 1257, ano em que recebe o título de mestre, podendo, assim, ensinar
teologia publicamente. No ano de 1259, Tomás participa do capítulo geral da
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cido como um homem de índole serena e concentrada, que é uma marca das
suas obras também.
A lista completa de obras de Tomás de Aquino (ou atribuídas a ele) é a
seguinte:
Opera maiora (“Obras maiores”)
■■ Scriptum super sententiis;
■■ Summa contra gentiles;
■■ Summa theologiae.
Quaestiones (“Questões”)
■■ Quaestiones disputatae;
■■ Quaestiones de quolibet.
Commentaria (“Comentários”)
■■ In Aristotelem;
■■ In neoplatonicos;
■■ In Boethium.
■■ Commentaria cursoria;
■■ In Novum Testamentum;
■■ Catena aurea;
■■ In epistolas S. Pauli.
Documenta (“Documentos”)
■■ Acta;
■■ Opera collectiva;
■■ Reportationes Alberti Magni super Dionysium.
■■ Quaestiones;
■■ Opuscula philosophica;
■■ Rescripta;
■■ Opera liturgica;
■■ Sermones;
■■ Preces;
■■ Opera collectiva;
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
■■ Reportationes.
Sem dúvida, uma contribuição muito vasta de uma produção com uma profunda
dedicação à ciência e à Igreja. Como afirma Boehner e Gilson (2000), sempre
aberto a tudo o que é nobre, bom e verdadeiro, esse pensador deixa um legado
de conhecimento para os seus seguidores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
que pretendia apresentar o conhecimento e a sua relação com a Igreja foi tra-
çado. Notamos, e o texto apresenta esses períodos de maneira marcante, como a
Igreja torna-se intelectual e, não como muitos pensaram, é intelectual desde seus
tempos iniciais. É importante também, a partir dessas considerações, entender
até mesmo o movimento histórico desta instituição. Ora, a partir dos discursos
e os seus tempos históricos, vemos que houve uma necessidade, por parte da
cristandade, de se adaptar ao contexto que estava sendo vivido e de criar meca-
nismos para fomentar o discurso religioso daquele momento. Assim, se em um
primeiro olhar essa instituição se faz por discursos mais simples e sem muita
prolixidade, já, no século IV da nossa era, vemos esse retrato sofrendo alterações
e uma necessidade de diálogo com os textos greco-romanos, principalmente os
textos platônicos. À medida em que avançamos no tempo, também percebere-
mos outros retratos, uma vez que, já no século XIII, o diálogo com a filosofia
dá-se, principalmente, por meio de aristóteles, já num âmbito restrito de saber,
a Universidade. Encerramos a unidade esperando que os estudos de vocês sobre
patrística e/ou escolástica não se restrinjam aos autores apresentados, mas que
possam usá-los como escadas (tal qual a que encontramos nas bibliotecas, com
alguns poucos degraus) para outros conhecimentos. Bom curso!
Considerações Finais
136
3. De acordo com o capítulo A Igreja e os seus intelectuais: uma análise histórica dos
pensadores cristãos, assinale Verdadeiro (V) ou Falso (F):
( ) O cristianismo é uma religião essencialmente universal. Destina-se, indistin-
tamente, aos homens de todas as raças, de todas as nações e de todas as ca-
madas sociais. Entretanto é um fato histórico que a “Boa Nova” recrutou seus
primeiros ouvintes e adeptos, principalmente, entre as classes humildes.
( ) Durante a sua passagem pela Grécia, Paulo de Tarso dialoga na Ágora com os
gregos sutis e cultos, levianos e céticos, e, a partir dos seus discursos, tomam
o cristianismo como religião oficial e Deus como o único salvador possível.
( ) Será, pois, misturado aos pobres e marinheiros de Corinto que Paulo terá mais
êxito, o que confirma ainda mais a nossa tese inicial de que o Cristianismo,
nesse momento, possui uma linguagem voltada para a população comum,
pois as escrituras eram seus únicos instrumentais. Corinto traz uma dupla fe-
licidade a Paulo. Primeiro porque, aqui, ele adquire mais segurança com a pa-
lavra a ser evangelizada e segundo porque, aqui, ele consegue organizar uma
importante comunidade cristã.
4. Discorra sobre a distinção entre os termos:
a) Patrologia:
b) Patrística:
c) Pais ou Padres da Igreja:
5. Quais são as 4 divisões do método escolástico?
138
Suma teológica
Tomás de Aquino
Editora: Edições Loyola
Sinopse: Santo Tomás de Aquino escreveu sua Suma Teológica entre
1265 e 1273, com o modesto propósito de fazer uma apresentação
sucinta da doutrina sagrada aos iniciantes em Teologia. Quase oito séculos depois, “A Suma” tornou-se
referência indispensável não só aos principiantes em Teologia e Filosofia, como também aos mais
exímios filósofos e doutores da Igreja.
O nome da rosa
dirigido por Jean-Jacques Annaud, o filme do gênero mistério, tem
como enredo principal um monge franciscano que investiga uma
série de assassinatos em um remoto mosteiro italiano. Isso provoca
uma guerra ideológica entre os franciscanos e os dominicanos,
enquanto o monge lentamente soluciona os misteriosos assassinatos.
REFERÊNCIAS ON-LINE
1
Em: <http://art.thewalters.org/detail/35697/angel/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
2
Em: <http://art.thewalters.org/detail/24647/bowl-with-judah-and-lion-surrounde-
d-by-scened-from-the-book-of-esther/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
Em: <http://www.agostinianos.org.br/santo-agostinho>. Acesso em: 11 mai. 2017.
3
mai. 2017.
5
Em: <http://art.thewalters.org/detail/34852/exterior-of-a-triptych-with-saints-
-lawrence-and-leonard/>. Acesso em: 11 mai. 2017.
6
Em: <https://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_
confissoes.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2017.
GABARITO
1. E.
2. B.
3. V-F-V
4.
a. A patrologia, interessa-se mais pela História Antiga, em que podem ser inclu-
ídas também obras de autores que não necessariamente estejam vinculados
a um pensamento religioso. Mais detidamente, a patrologia pode englobar,
tanto autores leigos, como autores de cunho religioso com a finalidade de
realizar um estudo sobre obras, vidas e doutrinas eclesiásticas dos seus pais.
b. O termo patrística, diz respeito ao estudo da doutrina, das origens dela, suas
dependências e empréstimos do meio cultural, filosófico e da evolução do
pensamento teológico dos pais da Igreja. Desta maneira, podemos dizer, de
um outro modo, que a patrística está diretamente relacionada ao clássico gre-
co-romano que permanece nos estudos desses pais da Igreja. Notar os traços
desses pensamentos clássicos nas doutrinas cristãs e elaborar o estudo sobre
elas a partir desses vieses constitui-se objeto da patrística.
c. Por Padres ou Pais da Igreja refere-se tanto ao escritor leigo, sacerdote ou bis-
po, da Antiguidade Cristã, considerado pela tradição posterior como um tes-
temunho particularmente autorizado pela fé. Em outras palavras, são aque-
les autores que a Igreja reconhece como contribuintes para a profusão da fé.
Aqueles autores que, segundo a tradição, conciliaram a filosofia greco-roma-
na aos intentos da Igreja.
5. O método escolástico se divide em 4 partes:
a. Leitura (lectio).
b. Comentário (glosa).
c. Questões (quaestio).
d. Discussão (disputatio).
Professor Me. Flávio Rodrigues de Oliveira
IV
AS RELAÇÕES CRISTÃS NA
IDADE MÉDIA: UM ESTUDO
UNIDADE
SOBRE AS CRUZADAS E A
INQUISIÇÃO
Objetivos de Aprendizagem
■■ Apresentar um panorama do cristianismo no contexto do medievo.
■■ Abordar as fases/divisões históricas da Idade Média.
■■ Desmistificar o conceito de Idade das Trevas para o período medieval.
■■ Realizar um estudo sobre as relações cristãs com a Inquisição.
■■ Compreender as inter-relações entre o cristianismo e as Cruzadas.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Notas sobre a Idade Média
■■ Idade Média, idade das trevas?
■■ A Igreja do período medievo
■■ A Igreja e as Cruzadas
■■ A Igreja e o Tribunal da Santa Inquisição
145
INTRODUÇÃO
Olá, antes de dar início, precisamos elencar algumas ideias que são importantes
para você, estudante, entender e desmistificar a visão de que a Idade Média foi
um período de barbárie. O primeiro passo é aprendermos a não julgar o passado.
É muito comum que nós olhemos para ele e pensemos que aqueles acontecimen-
tos poderiam tomar outra forma se fizessem de outro modo. Porém a história
não é assim. Julgar o que poderia ser diferente, ou criticar a forma com que
os homens viveram o seu presente, é denominado anacronismo, do grego ana
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Introdução
146 UNIDADE IV
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a segunda, da Queda do Império Romano do
Oriente. Geograficamente, delimitou-se em
torno do Mediterrâneo, como já dizia Platão,
quando se referia aos contornos das civili-
zações antigas: da Terra habitamos apenas
esta parte que se estende desde o Faço até às
Colunas de Hércules, espalhadas em volta do
mar como formigas ou rãs em redor de um
charco. Temos visto, desde a Antiguidade, as
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line)1 .
múltiplas configurações que formaram neste
espaço, bem como os diversos interesses que fizeram ora avançar, ora retrair, toda-
via sempre apresentando uma espacialidade muito parecida como a descrita por
Platão, já no século IV a.C. O historiador medievalista Marc Bloch também já
havia seguido essa espacialidade, quando delimitou a sua história sobre A socie-
dade feudal em que a justificou apresentando que:
[...]apesar das conquistas, estas mesmas águas, decorridos muitos sécu-
los, permaneciam o eixo da Romania. Um senador da Aquitânia podia
fazer a sua carreira junto do Bósforo e possuir vastos domínios na Ma-
cedónia. As grandes oscilações dos preços agitavam a economia desde
o Eufrates até à Gália. Sem os trigos da África, a existência da Roma
imperial não poderia conceber-se, tal como, sem o africano Agostinho,
a teologia católica não existiria. Em contrapartida, transposto o Reno,
começava o imenso país dos Bárbaros, estranho e hostil (BLOCH,
2009, p. 13).
Assim, o que queremos dizer é que, certamente, a Igreja esteve presente em outros
tempos e outras regiões que não a da Europa medieval, contudo, ao fazermos o
nosso contorno didático, estamos nos referindo às delimitações que estabelece-
mos no presente texto. Mesmo o livro como um todo, dará apenas as dimensões
possíveis de serem elencadas dentro de uma delimitação histórico-geográfica
pensadas dentro da abordagem preterida a vocês.
Outra configuração que se deve ter em mente, ao trabalhar com a história
medieval, é a sua própria periodização. De acordo com Reis (2010), embora deli-
mitemos o período medieval entre o fim do Mundo Antigo e Renascimento, essa
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periodização não é isenta de conflitos. De acordo com o autor, datas de 313, 378,
392, 410 e 698 poderiam também marcar o início desta nova Idade de acordo
com o critério historiográfico adotado, conforme os acontecimentos ocorridos
nos determinados anos. Para o seu término, também teríamos as datas de 1492
e 1517. Por isso, Reis argumenta que: “Apesar da importância desses aconteci-
mentos, todas as datas são aleatórias, uma vez que, sendo a História um processo,
deve-se renunciar à busca de um fato específico que teria inaugurado ou posto
fim à Idade Média” (REIS, 2010, p. 19). Mais detidamente, é a divisão que ocorre
dentro da divisão maior do período que se estende da Queda do Império Romano
do Ocidente (476) à Queda do Império Romano do Oriente (1453). Estes mil
anos de história medieval também recebem uma subdivisão, a saber, Alta Idade
Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média. Cada um desses períodos tam-
bém possuem suas características definidoras. Veremos algumas delas depois.
Quer você fosse rico, quer fosse pobre, sua família seria muito importante
para você. Ela lhe daria alimento, trabalho e abrigo e também determinaria
sua classe social. Se seus pais fossem nobres, você seria nobre; se fossem
camponeses, você seria camponês. Era muito raro alguém mudar de classe
social. Como a família era muito importante para a sua sobrevivência, espe-
rava-se que você fosse leal. Algumas vezes, isso significava esconder seus
reais sentimentos e fazer o que sua família queria. Por exemplo, as crianças
eram dadas aos mosteiros como “presente” das famílias a Deus. Esperava-se
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que passassem a vida lá. Os adultos tentavam obter riquezas e vantagens
políticas para os seus parentes. A menos que você fosse um membro da
Igreja, não casar era considerado uma desgraça, na Idade Média.
Fonte: adaptado de Fiona Macdonald (1996).
Assim, para Baixa Idade Média ficam configurados os séculos XIV e XV,
considerado um período de dificuldades, pois, com o advento da Peste Negra,
chega-se a estimar que um terço da população europeia foi ceifada. São também
períodos em que a Igreja toma uma postura mais acentuada diante dos here-
ges, principalmente, porque é um período de perdas significativas para o poder
religioso. No âmbito político, devido ao fortalecimento do poder real e, no inte-
lectual, a Igreja perde paulatinamente o seu monopólio sobre o conhecimento.
Após esta breve apresentação sobre as subdivisões do medievo, bem como
a sua espacialidade geográfica, podemos compreender com maior clareza os
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dição necessária para a vida naquele período. Após a desagregação do Império
romano, a Igreja não era apenas uma contingência na vida desses homens, mas
sim condição necessária para a sua sobrevivência.
.
Embora este relato tenha quase 40 (quarenta) anos e possa parecer um pouco
cômico aos seus olhos, devemos frisar que é muito comum os indivíduos terem
pensamentos generalizados sobre o passado, fazendo com que diálogos como
esses, que deveriam trazer uma série de conhecimentos sobre esse rico período,
tornem-se triviais e generalizantes. Aliás, algo parecido aconteceu comigo recen-
temente. Estávamos eu e um amigo, em uma cafeteria, conversando com o dono
(aparentemente instruído) e, quando menos percebemos, estávamos falando sobre
a Idade Média. Aquele sujeito, mesmo tendo sido letrado em um país europeu,
demonstrou bastante preconceito com o período em questão.
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Embora, na academia, saibamos que olhar sobre a Idade Média como um
período das trevas é um olhar grosseiro, parece que estas ideias ainda permeiam
o senso comum. Estamos usando estes exemplos sobre a Idade Média porque o
tema desta unidade está totalmente inserido no contexto medieval. Desse modo,
ao iniciarmos esse estudo sobre as instituições da Inquisição e da Cruzada e suas
relações com o cristianismo no mundo medieval, devemos tomar muito cui-
dado para não fazermos juízos de valores, ideias e até mesmo instituições que
não fazem parte desse período para não cometermos anacronismos. Veremos,
nesta unidade, alguns desses preconceitos e como a historiografia hoje trabalha
com o período medieval.
Um dos preconceitos da modernidade contra o período medieval está justa-
mente na sua forma de organização política. Imagine um período de mil anos em
que não houve nem nações, nem Estados. Para a modernidade que, durante muito
tempo, o objetivo foi a centralização política, esse era um dos últimos modelos
de sociedade que se poderia imaginar. Não é para menos que, no início do século
XVI, uma das maiores preocupações do filósofo Maquiavel era a unificação do
que, posteriormente, conheceríamos por Itália. Até porque, naquele momento,
Portugal e Espanha já eram unificadas e sinônimos de progresso. Unificações,
expansões territoriais, navegações faziam parte do imaginário progressista do
homem do período moderno. Nada a ver com o período medieval, segundo eles.
Esse pensamento da Idade Média como um período de pouco progresso tam-
bém possui suas justificativas. Não podemos nos esquecer de que os modernos
eram homens de seu tempo, portanto, críticos a um período que nada significava
quanto ao que buscavam alcançar. Imagine, você, leitor, tendo um produto para
o carro dela. Não é mais apenas o seu carro, agora são dois carros para vender.
Pessoas continuam vindo até você para saber sobre as qualidades do seu
carro, contudo com uma exceção da situação anterior. Agora, elas querem saber
por que devem comprar o seu carro, e não o do outro vendedor? Bem, você,
provavelmente, listará inúmeros benefícios que o seu automóvel possui em detri-
mento do outro carro. Sem muitos moralismos, você pode (não estou dizendo
que vá) até mesmo apontar alguns defeitinhos no carro do outro. Isso, com cer-
teza, valorizará mais o seu carro e você terá maiores chances de ser sucedido.
Bem, você pode até não apontar os defeitos do carro do outro vendedor. Porém
os modernos não foram assim com o período medieval. Todos os problemas que,
de acordo com eles, poderiam ser listados para apontar aquele período de mil
anos apenas como um ínterim entre a Antiguidade Clássica e a Modernidade,
eles o fizeram. Então, precisamos condenar os modernos? Não. Absolutamente
não. Assim como você estava vendendo o seu carro e apontando o que de melhor
havia nele, os modernos estavam vendendo uma nova ideia e, consequentemente,
buscaram o que de melhor havia nela.
Você consegue imaginar agora o porquê de a Idade Média ter sido, por muito
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tempo, estigmatizada? Na verdade, já conseguimos perceber, nesta breve intro-
dução deste tópico, que não foi um preconceito contra um período, mas sim
contra os modelos por ele adotado. Mais detidamente, o preconceito contra a
Idade Média não é contra uma época, mas sim contra uma instituição, a Igreja e
o pensamento por ela propagado. Por isso, entender o preconceito com a Idade
Média é entendê-lo contra a própria a Igreja.
Esse preconceito, no entanto, tem origem; na verdade, ele nasceu um pouqui-
nho antes do relato mencionado anteriormente, já no espírito da modernidade,
ou seja, na busca de ruptura em relação ao medievo. De acordo com Reis (2010),
foram os renascentistas os primeiros a esboçarem uma sentença negativa para
os seus antecessores. De acordo com o autor, já durante o século XIV, o poeta
Francesco Petrarca (1304-1374) lançou os primeiros olhares negativos ao medievo.
Nas palavras do historiador:
[...]o humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374), admirador da
Antiguidade Clássica, referia-se ao período transcorrido entre o fim
do Império Romano e a sua época como tenebrae. Petrarca manifes-
tava certo desprezo inclusive pela cultura de seu tempo. Recusou um
exemplar da Divina Comédia, de Dante Alighieri, enviada a ele por
Boccaccio (1313-1375). Admirava especialmente os escritores latinos,
como Cícero, Virgílio, Tito Lívio, Sêneca e Horácio. Quanto mais se
aprofundava na cultura clássica, maior era o inconformismo com o sa-
ber de seu tempo (REIS, 2010, p. 12).
Clássica e a Idade Moderna com um intervalo (de mil anos, diga-se de passagem),
época, como afirmava Petrarca, entre a queda do Império Romano do Ocidente
e o período do renascer. Como vimos, a Idade Média durou até o ano de 1453,
anos que, como afirma o poeta, foram denominados tenebrosos.
Poderíamos citar inúmeros exemplos, mas, a partir desse, conseguimos
compreender a dimensão do preconceito que se instaurou contra o medievo.
Quanto à sua arte, referia-na como ‘gótica’, termo que, na época, também pos-
suía uma significação pejorativa, pois remetia a “bárbaros”. Ao renascer como
fênix, no século XVI, os renascentistas precisaram das cinzas. De acordo com a
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Locke vai, assim, pouco a pouco, conferindo igualdade a todos os sujeitos. Quando
o filósofo menciona que todos os indivíduos devem se sujeitar somente a Deus,
ele está dizendo que não há hierarquia terrena entre os homens, e se um pos-
suir algum direito a algo, esse deve se estender a todos os outros. Algo que não
existia num período em que nobreza e clero assumiram uma categorização mais
elevada na ordem social.
Assim, política ou religiosamente, o século XVII não conferiu bom status ao
período medieval. Aliás, grande parte de suas teorias buscavam romper drasti-
camente com esse período. De acordo com Franco Júnior (2001):
[...]os homens ligados às poderosas monarquias absolutistas lamen-
tavam aquele período de reis fracos, de fragmentação política. Os
burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada atividade
comercial. Os intelectuais racionalistas de deploravam aquela cultura
muito ligada a valores espirituais (FRANCO, 2001, p. 12).
Dito de outra forma, a Idade Média era estigmatizada em todas as esferas em que
os intelectuais, pessoas de Estado, empreendedores etc. não se sentiam repre-
sentados no sistema por ela apresentado. Portanto, a ânsia em romper com esse
período era clara em todas as falas da modernidade. Os iluministas do século
XVIII também adotaram uma postura crítica em relação ao medievo.
De acordo com o historiador Hilário Franco Júnior, em sua obra A Idade
Média: nascimento do Ocidente, o século XVIII foi antiaristocrático e anticleri-
cal, acentuando ainda mais o menosprezo ao período medieval. Como ilustra o
autor, a filosofia do Iluminismo, ao buscar como guia a luz advinda da raciona-
lidade, contrapunha-se diretamente aos ditames da religião. A máxima kantiana
sapere aude pode ser bem expressiva para emblematizar esse período, pois tudo
o que retomasse uma tradição, ou um conhecimento já fixado, deveria ser ques-
tionado. Ousar conhecer era, acima de tudo, não seguir o instituído, o inexorável.
Ousar conhecer era, para os filósofos iluministas, a possibilidade de mudança,
de pensar por si próprio. Nas palavras de Franco Júnior (2001):
[...]a filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da
Razão, censurava, sobretudo, a forte religiosidade medieval, o pouco
apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de
que a Igreja então desfrutava. Sintetizando tais críticas, Denis Diderot
(1713-1784) afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais feli-
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tica e, com ela, um novo olhar sobre a Idade Média. O romantismo, ao empregar o
lema do fugere urbem, encontrava todo o respaldo no mundo medieval. Ao buscar
as bases para o nacionalismo, próprio das produções desse momento, lançava olha-
res sobre as suas origens medievais. De estigmatizada e desprezada, agora a Idade
Média é extremamente valorizada e exaltada. Para Franco Júnior (2001), o ponto de
partida pode ser definido a partir da questão da identidade nacional, que ganhou
seus adeptos durante o contexto da Revolução Francesa. Nas palavras do autor:
[...]as conquistas de Napoleão tinham alimentado o fenômeno, pois
a pretensão do imperador francês de reunir a Europa sob uma única
direção despertou em cada região dominada ou ameaçada uma valo-
rização de suas especificidades, de sua personalidade nacional, de sua
história, enfim. Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade
do racionalismo, tão exaltado pela centúria anterior, e que levara a Eu-
ropa àquele contexto de conturbações, revoluções e guerras. A nostal-
gia romântica pela Idade Média fazia com que ela fosse considerada o
momento de origem das nacionalidades, satisfazendo, assim, os novos
sentimentos do século XIX (FRANCO, 2001, p. 12).
E é esta a visão que deve chegar a nós, hoje, do século XXI, uma visão de diálogos
entre os vários campos do saber, de menos julgamento e mais análises. Devemos
analisar a história da Igreja, das Cruzadas e da Inquisição de maneira crítica, sem
pré-julgamentos, respeitando os seus progressos e suas contradições, entendendo
que fazem parte de um outro contexto histórico, diferente do nosso, com valores
e atitudes também destoantes das nossas. Portanto, nem demônios nem anjos,
apenas humanos vivendo e enxergando o mundo como lhes cabia o momento.
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a minha proposta de que a Igreja assume,
durante alguns momentos, um meca-
nismo de proteção que desencadeará
as Cruzadas e a Inquisição, tópicos que
ainda estão por vir.
Quando nos referimos à Igreja
medieval, estamos nos remetendo
estritamente à instituição de viés cató-
lico. Não é para menos, uma vez que a
nossa delimitação histórica trabalha o
Fonte: The Walters Art Museum ([2017], on-line) .
5
mais tardar até o século XV e as primei-
ras Reformas que dão início a outra vertente eclesiástica e ganha corpo a partir
do XVI. Discorremos também sobre quando nos remetemos à Igreja e a todas as
outras instituições religiosas que a compunham. Mais detidamente, no conceito
de Igreja, por nós aqui empregado, estão contidas também as ordens religiosas, os
clérigos, o Tribunal da Inquisição e mesmo os seus fiéis, estes últimos dos quais
não podemos nos esquecer, instituições que possuíam em seu corpo fundante
os mesmos princípios basilares e doutrinários e fiéis que seguiam estes cânones.
Tal discussão é interessante porque a historiografia contemporânea passou
a contemplar outras categorias que, no pensamento tradicional, não se enqua-
draram na análise a respeito dessa instituição, restringindo-se apenas às elites
clericais. Em Franco Júnior (2001), vemos que a Igreja ganhou o palco para apre-
sentações mais elaboradas sobre a sua outra face, a desconhecida que se remete
à sua origem de comunidade de fiéis. De acordo com o autor:
Tal como o autor, é neste sentido que pretendemos tratar a Igreja medieval, uma
Instituição que se alterou de acordo com os objetivos que lhe eram lançados. Se
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durante o primeiro momento a Igreja precisou canalizar esforços para a sua con-
solidação após a recente vitória do cristianismo diante das religiões politeístas,
a seguir, como explica o autor, ela garante mais possibilidade de atuação polí-
tica diante da sua aproximação com esses poderes e, por fim, até a sua separação
total entre a esfera religiosa e a civil. Todas estas “fases” da Igreja foram acom-
panhadas por seus fiéis e suas outras instituições religiosas que a compunham.
De acordo com o pensador Franco Cambi (1999), em sua obra História da
pedagogia, quando pensamos o nível cultural e espiritual da medievalidade,
precisamos elencar a consciência cristã como a principal fonte, ou seja, a Igreja
como principal difusora desse conhecimento. Era ela que organizava, sancio-
nava e legitimava o que era aprendido. Nas palavras do autor:
[...]no nível espiritual/cultural, foi a consciência cristã que alimentou a
identidade da Europa, nutrindo seus ideais políticos, seus critérios eco-
nômicos, suas normas éticas e estruturando aquele imaginário social
que os pregadores e os artistas evocavam, sancionavam, difundiam e
que a instituição-chave dessa sociedade (a Igreja) reelaborava constan-
temente por meio de dogmas e ritos, organizações sociais e culturais,
figuras carismáticas e obras de propaganda (CAMBI, 1999, p. 145).
A Igreja foi o motor de movimento que esteve por trás de toda a história do
medievo. Por isso, reforçamos a impossibilidade de um estudo sobre esse perí-
odo sem lançar olhos sobre o que foi essa Instituição. Para tanto, é preciso que o
nosso estudo se configure didaticamente em três períodos, pois, a nosso ver, esses
três momentos definiram rumos diferentes para a história da Igreja, a saber, o de
sua formação, o da submissão ao Estado e o da sua crise e desagregação com o
poder político. Ao fazermos um estudo sobre esses três pontos, conseguiremos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Consequentemente, se nos lembrarmos daquela visão que esteve presente
nos modernos, quando se remetiam ao período medieval de maneira preconcei-
tuosa, perceberemos que, historicamente, a Igreja também tomou uma postura
muito similar. De acordo com Franco Júnior (2001), a Igreja, nesse período de
consolidação, começa a negar vários aspectos que estavam presentes na cultura
romana, criando, paralelamente, uma aproximação com os germânicos. Porém
por agora ser uma religião do Império, também precisava traçar um elo entre seus
dogmas e os vinculantes na sociedade. Por isso, o autor menciona que a Igreja já
nascia se envolvendo em uma contradição, mas de peso indiscutível para a sua
consolidação no mundo medieval. De acordo com o historiador:
[...]nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa contra-
dição, que no entanto se revelaria a base de seu poder na Idade Média.
Ao negar diversos aspectos da civilização romana, ela criava condições
de aproximação com os germanos. Ao preservar vários outros elemen-
tos da romanidade, consolidava seu papel no seio da massa popula-
cional do Império. Desta maneira, a Igreja pôde vir a ser o ponto de
encontro entre aqueles povos. Da articulação que ela realizou entre ro-
manos e germanos é que sairia a Idade Média (FRANCO, 2001, p. 67).
Para ganhar esta dimensão, a Igreja teve de criar sua própria hierarquia. Por isso,
o primeiro período é denominado período da consolidação. Foi nesse momento
que ela começou a instituir seus cargos, realizando supervisões, executando ativi-
dades de cunho social e orientando quanto às questões do dogma. Era necessário
fixar todos os preceitos da nova fé, lutando e sendo contra o paganismo de ori-
gem romana. Chegou, até mesmo, a forjar um documento com a finalidade de
obter o poder político acima dos demais ‘inimigos’ seculares.
O segundo momento que podemos elencar em nossa análise é exatamente
este cenário político em que a Igreja vai adentrando. Por ser muito feliz durante
a sua consolidação em todo o Ocidente nas questões administrativas e religio-
sas, a Igreja transforma-se, com o passar do tempo, em um arcabouço natural do
Império Carolíngio e se torna, definitivamente, o elo unificador de um mundo
fragmentado em feudos. De acordo com o historiador Jérôme Baschet (2006),
em sua obra A civilização feudal: do ano mil à colonização da América, a Igreja
foi fundamental para a consolidação do poder da dinastia carolíngia. A partir
da ‘Carta de doação de Constantino’ essa instituição foi capaz de transformar
um rei germânico em um imperador do mundo romano.
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Para Franco Júnior (2001), ao se unirem contra um inimigo comum, a saber,
os lombardos, Igreja e dinastia carolíngia traçaram os novos rumos da sociedade
medieval. Nas palavras do autor:
[...]estreitavam-se, portanto, as relações Estado-Igreja, com predomí-
nio do primeiro na época de Carlos Magno. Os clérigos participavam
então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, os cânones ga-
nhavam força de lei. O monarca presidia os sínodos, punia os bispos,
regulamentava com eles a disciplina eclesiástica e a liturgia, intervinha
mesmo em questões doutrinais. Os bispos eram nomeados pelo sobe-
rano, contrariamente à tradição canônica, mas o fato não era conside-
rado uma usurpação, e sim um serviço prestado pelo monarca à Igreja,
quase um dever do cargo. Suas conquistas territoriais abriram caminho
para a cristianização dos saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e bo-
êmios. Em virtude da crescente extensão do Império, ele instituiu mui-
tas paróquias, criou novas dioceses e arquidioceses (FRANCO, 2001,
p. 71).
Passou a ser importante esta aliança entre o papado e o poder real dos francos,
embora, ao coroá-los, o papa ainda deixasse claro que este tem sua autoridade e
dignidade a partir da Igreja, e também, para o papado, trata-se de romper defi-
nitivamente com o Império Bizantino, com o Imperador de Constantinopla, que
deixa de encarnar a universalidade do poder imperial. Agora, o poder encon-
tra-se ao lado e sob a tutela da Igreja Católica Romana, contudo a Instituição
eclesiástica ainda tentaria ir mais longe.
Durante a conhecida Idade Média Central, a Igreja tentou criar uma teo-
cracia papal, buscando alcançar mais autonomia e dirigir a sociedade como um
todo, principalmente, com a fragmentação do Império Carolíngio, pois começou
a abalar também o poder monástico, uma vez que estavam interligados. Assim,
ao criarem suas regras, suas abadias, seus mosteiros, buscaram a maior auto-
nomia possível em relação aos poderes seculares. Foi nesse ínterim que a Igreja
passou a criar seus mecanismos de defesa, diante dos abusos por parte dos cava-
leiros e/ou senhores laicos.
Aqui, precisamos dar uma atenção redobrada para o desencadeamento dos
acontecimentos que virão, pois nesse momento ocorrerá uma inversão nos valo-
res cristãos. A Igreja, até o século VIII, seguia os valores da tolerância, na paz, da
não violência. Desse modo, até a fragmentação do Império Carolíngio, a Igreja
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não tinha necessidade de ser militarizada. Por sempre estar dentro de um sistema
político e militar, como o Império Romano, num primeiro momento; alguns rei-
nos germânicos, na sequência; e, por fim, o Império Carolíngio, a Igreja não tinha
necessidade de autodefesa, uma vez que estas potências militares faziam tal tra-
balho por ela. Todavia, com a queda do Império de Carlos Magno (742-814), a
Igreja vê a necessidade de criar mecanismos de proteção contra as intempéries
do contexto e tomar as rédeas da sociedade de forma religiosa e militar, como
podemos notar com a Reforma Gregoriana.
É nesse momento, que acreditamos que a Igreja cria o que chamaremos de
mecanismos de defesa, em que estão inseridas as cruzadas e a inquisição. A Igreja,
aos poucos, ia deixando a proteção dada ao longo dos séculos por terceiros e, paula-
tinamente, vai se tornando autônoma e cria seus próprios mecanismos de proteção.
Outra medida que visava assegurar autonomia religiosa diante da fragmenta-
ção do Império de Carlos Magno foi instituir uma cúria que fosse capaz de eleger o
novo pontífice, pois, até então, houvera muita interferência de nobres e imperado-
res. Porém a reforma que teve mais peso datou do século XI, chamada de Reforma
Gregoriana, que levou o nome do seu criador, papa Gregório VII. Dentre os inúme-
ros benefícios indicados pelo papa para o fortalecimento do poder real, estavam a
superioridade do poder papal (significava que o papa não poderia ser julgado por
ninguém), a infalibilidade das decisões papais (afirmava que a fé romana nunca
errou e nunca errará), dentre outras medidas extremamente radicais, quando se
pensava no conflito que estas decisões geravam entre a Igreja e os grandes nobres
do período. Tanto é verdade, que Gregório VII, no fim de sua vida, vê-se obrigado
ao exílio, devido ao desentendimento com um imperador do período.
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“Em relação aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fis-
caliza universidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções,
reconhece novas ordens religiosas. Já em relação aos leigos, julga em
vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casamento,
abstinências), regulamenta a atividade profissional (trabalhos lícitos e
ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas, palavras, atitu-
des), estipula os valores culturais” (FRANCO, 2001, p. 77).
Como afirma Franco Júnior (2001), a Igreja torna-se cada vez mais sacerdotal e
monárquica. Esse é, paralelamente, o momento em que vemos toda a sua força,
como também todo o seu enfraquecimento. Aos poucos, dentro da própria ins-
tituição começaram a surgir grupos que eram contra essa forma de organização
da Igreja. Segundo eles, ao criar força como organização secular, ela se afastou
do verdadeiro sentido religioso, preocupando-se com coisas que não eram da
sua real importância, como a administração de bens.
Assim, com o passar do tempo, surgiram ordens que, junto ao enfraque-
cimento que já vinha ocorrendo por parte de grupos de nobres, ajudaram a
balançar a hegemonia do poder eclesiástico. Contudo, o grande xeque-mate para
a intencionalidade da Igreja criar uma teocracia papal durante a Idade Média
veio da França dos fins dos século XIII. O rei Filipe IV e o Papa Bonifácio VIII
enfrentaram-se em um disputa que acabaria com qualquer tentativa de se criar
um sistema teocrático governado por um papa na Terra.
Segundo nos narra a história, em fins do século XIII, o papa em questão
proibiu que os eclesiásticos fizessem doações sem que a Sé Apostólica desse o
aval. Também vetou qualquer tentativa de taxação a partir dos poderes laicos
em relação à Igreja. Em contrapartida, o rei Filipe IV, que já se afirmava como
A IGREJA E AS CRUZADAS
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Após a Reforma Gregoriana e a crescente tomada de poder político, vinculado
ao eclesiástico, a Igreja se viu obrigada a se militarizar. As cruzadas são um bom
exemplo do processo bélico em que a Igreja adentrou. No ano de 1095, o papa
Urbano II convocou os nobres europeus a pegarem em armas e partirem em
direção ao Oriente para a retomada de Jerusalém, a Terra Santa. A partir desse
momento, apresenta-se uma mudança drástica na diplomacia europeia. A procla-
mação da Primeira Cruzada pela Igreja demonstra que a instituição conquistou
um grande poder que, anteriormente, somente os chefes de Estados possuíam,
a saber, declarar uma guerra. É importante ressaltar que as Cruzadas adquirem
um caráter extremamente religioso e, dessa forma, tornam-se guerras santas.
Neste momento, é importante explicarmos, ainda que de forma breve, o pro-
cesso de santificação das atividades militares pela Igreja Cristã, na Idade Média.
Assim, após a morte de Jesus Cristo, o cristianismo adquiriu um caráter
extremamente pacífico. Várias são as passagens da nova fé do ocidente em que
os relatos de pacifismo são preferíveis em detrimento da força e da violência. A
passagem do livro bíblico de Mateus pode demonstrar um pouco do que estamos
tentando mostrar. Aqui, é explicitado o caráter que a religião pretendia passar
aos seus seguidores. Em Mateus 5,38-40, é dito, desse modo, que:
[...]ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém,
vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face
direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear contigo,
e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa(BÍBLIA DE JERUSALÉM,
Mateus 5,39-40).
A Igreja e as Cruzadas
170 UNIDADE IV
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ser considerada Santa (MORETTI, 2015, p. 29).
Tendo em vista esses esclarecimentos, podemos reforçar a ideia de que as
Cruzadas tenham sido mecanismos de proteção da Igreja quando, em 1095 um
papa ordena que seus fiéis adentrem o mundo muçulmano e reconquistem a
Terra Santa que, segundo o cristianismo, deveria estar em suas mãos. Claro que
não é a única motivação das incursões bélicas, contudo, como a nossa intenção
concentra-se em apresentar a relação da Igreja com as cruzadas, traremos infor-
mações que contribuam para a nossa visão.
A Primeira Cruzada, como dissemos, foi proclamada pelo Papa Urbano II,
em 1095, contudo é preciso ressaltar que a ideia de luta não começa, necessaria-
mente, com Urbano II, uma vez que já havia outras atividades bélicas travadas
anteriormente contra os islâmicos para reconquistar a terra perdida no território
europeu. A inovação do papa Urbano foi a transição de uma finalidade explici-
tamente política, como a realizada pelos reinos de Castela e Aragão para uma
finalidade religiosa. É o que afirma o historiador René Grousset. Nas palavras dele:
[…]até então as expedições contra os muçulmanos tinham tido, como
era o caso daquelas enviadas à Sicília ou aos portos da África do Norte,
um caráter puramente político. Mesmo na Espanha, onde, como vimos,
a reconquista não deixou de se apresentar como uma prefiguração da
cruzada, não se tratava, ainda, senão de um empreendimento restrito
à península, tendo em vista os interesses de Castela e Aragão. A idéia
de Urbano II, idéia-fôrça, ideia em movimento destinada a comover o
mundo, distinguiu-se dos empreendimentos anteriores por seu caráter
puramente religioso, originàriamente desinteressado, inteiramente in-
ternacional. Na luta contra o Islã,o Papa convocou tôda a cristandade
(GROUSSET, 1965, p. 22).
Aqui, vemos outra estrutura organizacional, pois a Igreja está em pleno processo
de militarização. Com Urbano II, a cristandade responde ao Islã com uma guerra
santa geral, propagando-se com muita rapidez. Claro que o ideal utilizado para a
sua militarização é, sem dúvida, um dos motivos da rápida resposta cristã. Ainda,
de acordo com o autor, tal fato ocorria por se tratar de uma ideia apaixonante,
capaz de suscitar uma mística coletiva. Nas palavras do autor:
[…]foram a ideologia e a mística criadas em Clermont por Urbano II
que agiram, em tôda sua plenitude, sôbre a psicologia das multidões e
provocaram êste extraordinário vigor espiritual de 1095. De início, vi-
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O fato de redimir os pecados daqueles que se propuseram a lutar pelo ideal cristão
foi um ponto decisivo nesta empreitada pelos fiéis. Imagine, você, uma socie-
dade em que o ideal de vida é o ascetismo religioso, existe uma oportunidade
de pureza. Com certeza, é um ponto de muito atrativo para aqueles que viam
no futuro uma morada no céu, e nada disso fica nas entrelinhas. O simbolismo
dessa relação com o divino dá-se desde a doutrina expressada por Urbano II até
a indumentária. Um símbolo muito comum entre os cruzados foi a cruz. Ela era
costurada nas roupas dos homens, ou sobre o ombro direito, ou sobre o peito.
Pode parecer pouco para um homem de nossa época, mas esse simbolismo, em
um período em que se vivia intensamente as relações cristãs, tais customizações
eram um sinal claro do engajamento dos homens.
De acordo com José Roberto Mello (1989), a assunção da cruz não foi um
gesto gratuito de inspiração súbita, mas tinha suas raízes no próprio Evangelho,
em que Cristo pede para que os seus seguidores renunciem-se a si mesmo e
tomem cada um a sua cruz e passem a segui-Lo. A indumentária é tão signifi-
cativa, que se torna o sinal mais característico do movimento bélico-religioso.
A Igreja e as Cruzadas
172 UNIDADE IV
Por isso, mesmo que pareça algo sem sentido para nós da contemporaneidade, a
indumentária representava um contrato direto entre os cruzados e Deus, e aquela
era a forma mais explícita que encontravam para mostrar para todos esse acordo.
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Foi assim que o emprego da cruz se difundiu por todas as peregrinações dando
origem ao próprio nome de Cruzada.
Outra expressão da vinculação entre o religioso e o bélico, promovido pela
Igreja, é o “voto de cruzada”. Dava-se por uma promessa individual do futuro
cruzado na participação da peregrinação. De acordo com a historiografia, esses
votos continham o ideal de pobreza, de sofrimento e de um possível martírio
na mão dos infiéis. Tratava-se de uma solenidade pública na qual o indivíduo,
ao lado de outros, jurava lutar pelos ideais cristãos.
É importante frisar que a Cruzada esteve vinculada à Igreja desde a sua pri-
meira peregrinação até a sua última, totalizando oito grandes cruzadas. Contudo,
a partir da Quarta Cruzada, a religião torna-se mais uma justificativa para as moti-
vações materiais do que o seu principal objetivo. O fato é que, mais ou menos, a
Igreja utilizou-se da militarização para poder continuar defendendo a sua fé. E
concordemos, ou não, com esse processo, é importante perceber que os meca-
nismos de defesa foram fundamentais dentro da política religiosa tomada pela
cristandade, durante o medievo para a sua longevidade.
Imagine uma visita que chega em sua casa e queira ensinar ao seu filho, ou
filha, que as regras de instrução que você deu até agora não são as melhores para
a formação dele. Provavelmente, isso lhe traria transtornos e, muito mais ainda,
você faria algo a respeito. Era mais ou menos esse o cenário que existia durante
os séculos que precederam os fins da Baixa Idade Média. O establishment que a
Igreja havia conseguido durante incansáveis esforços, ao longo de décadas esta-
vam sendo abalados. Essa Instituição precisava fazer algo a respeito.
É preciso ressaltar que os fatores que levaram a esses movimentos heréticos
nem sempre se restringiam à esfera religiosa. Todavia, como todas as relações
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tinham a Igreja como reguladora, é possível inferir como os acontecimentos inci-
diram diretamente na relação dos sujeitos com a ortodoxia cristã. Considerado
como crise do feudalismo, os séculos que decorreram da criação do Tribunal
Inquisitório trouxeram uma série de mudanças ao mundo europeu. Desse modo,
o renascimento do comércio, o crescimento urbano e as transformações cultu-
rais levaram aqueles sujeitos a refletirem sobre o seu próprio espaço no mundo
e, consequentemente, sobre a ação da Igreja em suas vidas.
Tais reflexões, paralelamente, trouxeram aos indivíduos novas interpreta-
ções, próprias dos choques de ideias e da capacidade reflexiva. Isso não agradou
em nada à Igreja que viu, assim como você, caso visse, o seu poder e autoridade
confrontados. Digo dessa forma, porque somos muito críticos com a Igreja desse
período. Porém, como já disse outrora, precisamos compreendê-la dentro do
seu contexto histórico, com as suas possibilidades e forma de imaginar as suas
relações. Assim, podemos perceber que a Igreja não foi má, nem boa, mas ape-
nas Igreja, constituída por homens com interesses. Desse modo, foi buscando
responder as críticas aos seus dogmas que a Igreja Romana pensou métodos de
investigação para poder romper esse mal e continuar levando a palavra de Cristo
a todos os homens. Só ela tinha esse direito, só ela e os seus representantes dire-
tos tinham este poder.
A heresia é tomada, aqui, como a ruptura com o dominante. Crítico e, muitas
vezes, mais racional do que espiritual, o herege foi o grande calcanhar de Aquiles
do medievo. De acordo com a historiadora Anita Novinsky (1982), a heresia é
uma ação contra a ordem estabelecida pela Igreja, que se preocupava em pre-
servar a estrutura social tradicional. Nas palavras da autora:
[...] a Igreja Romana sentiu-se ameaçada por uma série de críticas que
estavam sendo feitas aos dogmas sobre os quais se apoiava a doutrina
cristã. Essas críticas e dúvidas sobre a verdade absoluta da mensagem
da Igreja aumentaram gradativamente, e os indivíduos que partilhavam
dessas idéias contestadoras da doutrina oficial do catolicismo eram
chamados hereges (NOVINSKY, 1985, p. 1982).
podemos dizer que, apesar do forte controle que a Igreja exercia naquele período,
as heresias escapavam-nas pelas mãos e infectavam o medievo. De acordo com
Novinsky (1982, p. 16), não foi possível conter a difusão das heresias, principal-
mente, dos cátaros ou albigenses, contestadores dos dogmas da Igreja e que, no
sul da França, constituíram-se numa espécie de Igreja contra a Igreja de Roma.
Infectos, assim chamados os lugares onde a doutrina ortodoxa da Igreja Católica
de Roma não galgava hegemonia, passaram a ser fiscalizados com mais intensi-
dade, constituindo-se num espaço que precisava de mais atenção das autoridades
eclesiásticas, aparecia, desse modo, a Inquisição delegada. A esse respeito, a pas-
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sagem a seguir de Novinsky é bem esclarecedora:
[…]medidas severíssimas foram tomadas pela Santa Sé, e os eclesiás-
ticos especialmente enviados aos lugares chamados “infectos” cons-
tituíam a chamada “Inquisição delegada”. A “Inquisição delegada” foi
criada pelo papa Gregório IX, que se tornou o coordenador e dirigente
principal da luta contra os apóstatas. Domingos de Gusmão, criador da
ordem dos dominicanos, organizou em 1219 uma confraria chamada
“milícia de Jesus Cristo”, e seus membros eram doutrinados e prepara-
dos para se lançarem à frente da batalha pela preservação da pureza do
catolicismo, o catolicismo sem crítica e sem dúvidas, e ainda a tomar
armas para lutar contra os hereges. Esses milicianos de São Domingos
foram os primeiros a utilizar e aplicar técnicas de crueldade e violência,
que foram copiadas nos séculos XVI, XVII e XVIII pela Inquisição mo-
derna (NOVINSKY, 1982, p. 18).
Com o excerto supracitado, podemos perceber que a Igreja passa a delegar uma
“comissão” encarregada de encontrar, julgar e condenar os hereges. Assim, com
base em denúncias, estava preparado o terreno para a perseguição e, quiçá, eli-
minação dos desvios contra a fé. Reparem que a Igreja utiliza-se de um artifício
muito interessante: a delação. Ora, cabe a todos os indivíduos ajudar a Instituição
de Cristo na luta pela purificação terrena. Ver e omitir era considerado pecado
contra Deus, portanto, a não omissão fazia-se necessária para que o intento
tivesse resultados positivos. Como um traidor de Deus, também era visto quem
ocultasse a heresia.
Como o autor bem constata, é um erro absurdo concluir que esse período é um
momento de obscurantismo cultural. Já mencionamos essa discussão no tópico
Idade Média: idade das trevas? Contudo há, ainda, quem, tentando enxergar o
passado sem os olhos do passado, cometa tais conclusões equivocadas. O fato
a ser destacado é que a Inquisição estava por todos os lados, fazendo parte do
cotidiano medieval a partir da sua institucionalização, e nem sempre era um
peso para a comunidade geral denunciar e ver alguém sendo punido por seus
crimes de heresia.
Assim, precisamos imaginar que, de fato, a Igreja não teria conseguido ir
tão longe nas perseguições se não fossem os inúmeros beatos que a auxiliaram
nesse processo. Aliás, é preciso constar que, durante muito tempo, a condena-
ção em praça pública era um evento imperdível. De acordo com o historiador
Johan Huizinga, em sua obra O outono da Idade Média, as execuções realizadas
pelo Tribunal Eclesiástico consistiam numa festividade pública, consideradas,
por ele, como um espetáculo pensado e repensado para que nada faltasse.
Foi assim que o Ocidente conheceu a Inquisição, como um mecanismo que
buscou limpar a Igreja novamente. Precisamos notar, é claro, que o Tribunal da
Santa Sé não foi desmedido, havia técnicas específicas para que tudo ocorresse de
acordo com os princípios sagrados. Os historiadores Michael Baigent e Richard
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Leigh (2001) descrevem as técnicas do processo inquisitório de maneira extre-
mamente organizada. Nas palavras dos autores:
[…]às vezes, um Inquisidor e seu séquito baixavam sem aviso numa
cidade, aldeia, universidade, ou, como em O Nome da Rosa, numa
abadia. O mais comum era que sua chegada fosse prodigamente pre-
parada de antemão. Era proclamada em ofícios nas igrejas, anunciada
em elaboradas proclamações nas portas das igrejas e quadros de avi-
sos públicos; e os que sabiam ler logo informavam os que não sabiam.
Quando o Inquisidor chegava, era em solene procissão, acompanhado
por sua equipe de escrivães, secretários, consultores, auxiliares, médi-
cos e criados - além, muitas vezes, de uma escolta armada. Depois de
assim orquestrar seu aparecimento, ele convocava todos os moradores
e eclesiásticos locais, aos quais pregava um solene sermão sobre sua
missão e o objetivo de sua visita. Convidava - então - como se fizesse
magnânimos convites para um banquete - todas as pessoas que qui-
sessem confessar-se culpadas de heresia a apresentar-se (BAIGENT;
LEIGH, 2001, p. 47).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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quebra alianças de acordo com os seus interesses, busca ajuda do poder secular
dos grandes monarcas bem como quebra os acordos a partir do momento em
que não mais favorecem-na. Mais que isso, busca apoio do seus próprios segui-
dores para travar uma guerra santa em que, segundo o Papa e outros membros
do eclesiástico, assegurava o reino de Deus a partir da morte de outros, a saber,
os infiéis. Também forma o seu próprio séquito para defender a pureza da sua
instituição, evitando que os seus dogmas se corrompam.
Foi o que possibilitou instituições como as Cruzadas e a Inquisição a ganha-
rem espaço social. No meio de uma guerra contra hereges e opositores à fé cristã,
a Igreja conseguiu, por meio desses mecanismos de defesa, manter o status quo
durante muitos séculos.
Vemos, portanto, que longe de ser uma Idade das Trevas, como outrora a
historiografia nos fez pensar, ou até mesmo uma época áurea, como outros his-
toriadores discorreram sobre a Idade Média, não é, e nunca será, nem pior nem
melhor do que outro período, vai valorá-la e não compreenderá o passado pelo
passado. Dito isso, encerramos a unidade, levando-os a mais uma reflexão. Essa
não possui resposta simples, mas imagine-se por um minuto dentro de cada um
desses períodos históricos pelos quais perpassam a Igreja, na Idade Média. Tenha
empatia por essa instituição a ponto de conseguir olhá-la com olhos menos puni-
tivos e mais interpretativos.
1. A unidade IV procura seguir uma linha em que a criação tanto a Inquisição, como
as Cruzadas, são vistas como:
a) Regimentos internos da Igreja.
b) Propostas bíblicas de respostas aos contrários à cristianização.
c) Pautas do movimento dominicano.
d) Bulas Franciscanas que visavam combater a heresia.
e) Mecanismos de defesa da Igreja.
2. Analise as sentenças a seguir:
I. De acordo com o pensador Franco Cambi (1999), em sua obra História da pe-
dagogia, quando pensamos no nível cultural e espiritual da medievalidade,
precisamos elencar a consciência cristã como a principal fonte, ou seja, a Igre-
ja como melhor difusora desse conhecimento.
II. Quando nos referimos à Igreja medieval, estamos nos remetendo estritamen-
te à instituição de viés católico. Não é para menos, uma vez que a nossa deli-
mitação histórica trabalha, o mais tardar até o século XV e as primeiras Refor-
mas que dão início a outra vertente eclesiástica, ganha corpo a partir do XVI.
III. Conceitualmente, divide-se a Idade Média em 15 micro períodos que expli-
cam toda as estruturas dos feudos, bem como da vassalagem e do senhorio.
IV. A Igreja, até o século VIII, seguia os valores da tolerância, na paz da não violên-
cia. Desse modo, até a fragmentação do Império Carolíngio, a Igreja não tinha
necessidade de ser militarizada.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.
182
bo), sangrias e orações. A ciência média é rejeitada, e os conceitos, oriundos dos gregos,
não identificam que enfermidades típicas do período - disenteria, ergotismo (envenena-
mento por cereal contaminado), peste bubônica - resultam das más condições de higie-
ne e saneamento. O camponês medieval toma banhos semanais (mais do que muitos
europeus do século 19), mas dorme com animais dentro de casa e faz suas necessidades
ao relento. Mesmo os castelos só têm uma privada; não há tratamento de dejetos.
Os religiosos trabalham em suas próprias plantações. Mas nem o serviço braçal muda
certos hábitos. São Jerônimo (347-420) dizia que quem aceitou a fé e se lavou no sangue
de Cristo não precisava mais aguar o corpo. Por isso os monges fugiam à regra e não
tomavam banho mais do que cinco vezes… por ano. Em dias comuns, consomem 1,5
quilos de pão (muitos usam grandes fatias no lugar de pratos), com 200 gramas de car-
ne e queijo, e 1,5 litro de vinho ou cerveja. Essa dieta de 6 mil calorias, sem saladas, não
ajuda muito a melhorar a média de vida da época: 35 anos. Nada disso quer dizer que
alguém que estivesse livre das crises de fome, provocadas principalmente por variações
climáticas inesperadas. Um período de aquecimento global atingiu o planeta entre 800
a 1300, o que, no geral favoreceu a produção de alimentos. Mas o desabastecimento
existia e atingia até os abastados. O camponês era mais vulnerável, comia menos. “Por
incrível que pareça, entretanto, os pobres comiam muito melhor do ponto de vista nutri-
cional, com maior variedade”, diz Ricardo da Costa, medievalista da Universidade Federal
do Espírito Santo.
Exceção feita a poucos personagens, como Carlos Magno (747-814) e Luís IX (1214-
1270), os reis têm pouquíssimo poder para além dos muros de suas propriedades. Entre
os séculos 9 a 12, a Europa se divide em cerca de 60 feudos. São os senhores feudais que
controlam a vida dos arredores. A partir de suas casas fortificadas, que evoluem até se
tornar castelos no século 10, eles vivem cercados por empregados. O camponês passa a
metade de seu tempo útil trabalhando no chamado manso senhorial, a área de plantio
do latifúndio. Ele mesmo vive e cultiva seu alimento nos arredores. Tudo o que planta
ali é seu, mas não tem direito a manter em casa fornos ou moinhos. Para usá-los, paga
aluguel na forma de produtos que colheu nas terras sob seu controle, patrimônio do
senhor.
Fonte: adaptado de Cordeiro ([2017], on-line)7.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Material Complementar
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS ON-LINE
1
Em: <http://art.thewalters.org/detail/32623/allegory-of-the-papacy-of-clement-
-xi/>. Acesso em: 12 2017.
2
Em: <http://art.thewalters.org/detail/3026/baptism-of-christ-2/>. Acesso em: 12
2017.
3
Em: <http://art.thewalters.org/detail/29332/book-of-hours-4/>. Acesso em: 12
2017.
4
Em: <http://art.thewalters.org/detail/37175/christ-before-pontius-pilate/>. Acesso
em: 15 2017.
5
Em: <http://art.thewalters.org/detail/4059/a-funeral-service-2/ >. Acesso em: 15
2017.
Em: <http://art.thewalters.org/detail/38242/a-cavalcade/>. Acesso em: 15 2017.
6
7
Em: <http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/idade-media/a-vida-na-ida-
de-media.phtml#.WVqGvoTyvIV>. Acesso em: 15 mai. 2017.
GABARITO
1. E.
2. D.
3. V - F - V.
4. Espera-se que o aluno/a discorra de forma panorâmica sobre os principais pon-
tos em que a Igreja e as Cruzadas mantiveram uma estreita relação, partindo
desde as suas origens até os acontecimentos em que as Cruzadas passam a
representar outros objetivos para além do religioso. Também, espera-se que o
aluno/a comente sobre como esse movimento belicista tinha o caráter protetor
da Igreja, ou seja, um mecanismo de defesa, tese central adotada pelo capítulo.
5. Perceber que a Inquisição também faz parte dos mecanismos de defesa da Igre-
ja Católica e que é essencial para o status quo da ordem social medieval. Traçar
os principais acontecimentos que levaram a instituição de um poder jurídico
dentro dos muros da Igreja.
Professor Me. Saulo Henrique Justiniano Silva
V
UM MUNDO EM
UNIDADE
TRANSFORMAÇÃO: A CRISE
INSTITUCIONAL DO CATOLICISMO
E A REFORMA PROTESTANTE
Objetivos de Aprendizagem
■■ Estudar a religiosidade europeia, em finais do século XV e início do
século XVI.
■■ Compreender a estruturação econômica na Europa, pós Peste Negra.
■■ Entender as disputas monárquicas na Europa Moderna.
■■ Observar a expansão turca no século XV e XVI, e o que isso
representou na mentalidade dos homens modernos.
■■ Analisar as transformações religiosas na Europa do século XVI e as
contribuições deste período para a eclosão da Reforma Protestante.
■■ Explorar os usos políticos da Reforma Protestante.
■■ Estudar os motivos que levaram Henrique VIII a se desvencilhar da
Igreja Romana.
■■ Entender a motivação e as principais ideias presentes no pensamento
calvinista.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Angústia Escatológica
■■ Economia
■■ Absolutismo Monárquico: Habsburgos e Valois
■■ Turcos Otomanos
■■ As Transformações Religiosas na Europa e a Reforma Protestante
■■ Situação Política na Europa Pós-Reforma
■■ A “Reforma” Inglesa
■■ A Reforma Calvinista
191
INTRODUÇÃO
Introdução
192 UNIDADE V
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ANGÚSTIA ESCATOLÓGICA
Os anos que sucederam a grande peste foram marcados por um sentimento des-
crito por Jean Delumeau (2009) como “angústia escatológica”. As transformações,
que vão além das mazelas proporcionadas pelas epidemias, deram vazão a suces-
sivas interpretações dos acontecimentos reais como predecessores dos últimos
tempos. A crença largamente difundida pela Igreja Católica sobre os temores
do ano mil, pautada nos textos bíblicos, foi excessivamente repetida no início
da modernidade. A pergunta a ser feita é: Por que no início da modernidade?
Não seriam mais oportunas tais pregações no século X ou XI, por razão da pas-
sagem do milênio?
Para Delumeau (2009, p. 303) a resposta a essas perguntas é que em “todo
decorrer da Idade Média, a Igreja meditou sobre o fim da história humana”, no
entanto, apesar de a Europa, no período que vai do fim do império Carolíngio
ao início do renascimento comercial, ter sofrido grandes mazelas, não existiam
meios de difusão em massa que pudessem alcançar os mais diversos estra-
tos da sociedade, visto também que o ocidente medieval era “demasiadamente
fragmentado, demasiadamente pouco instruído para ser permeável a intensas
correntes de propaganda” (p. 319). Trezentos anos depois, já existia uma ampla
elite letrada e urbana que, facilitada pela imprensa de Gutemberg, ampliou a cir-
culação de ideias.
UMMUNDOEMTRANSFORMAÇÃO:ACRISEINSTITUCIONALDOCATOLICISMOEAREFORMAPROTESTANTE
193
Angústia Escatológica
194 UNIDADE V
Em grande medida, é natural pensar que esses medos tiveram íntima relação com
a crescente perda de poder por que a Igreja estava passando, além dos confli-
tos no interior da cristandade, ocasionados pelas lutas por tronos dos monarcas
que, no momento em questão, asseguravam uma autonomia em relação ao poder
papal, proporcionado pela centralização de poder, que a historiografia conven-
cionou chamar de Estado Absolutista, pela Reforma Protestante liderada pelo
monge agostiniano Martinho Lutero e, principalmente, pelo avanço dos otoma-
nos, que, em 1453, já tinham tomado um dos maiores símbolos da cristandade,
a cidade de Constantinopla, a capital do império Bizantino.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Entre os cristãos, muitos acreditavam no fim dos tempos e na instauração
do juízo final e na vinda do anticristo, que viria para confundir os fiéis e os leva-
rem para o engano eterno. Em finais do século XV, frei Francesco Meleto escreve
que “os judeus converter-se-ão em 1517” (MELETO apud DELUMEAU, 2009,
p. 327) e ainda assegura que:
[…]três sinais anunciarão a próxima vinda do anticristo: a queda do
rei da França, a de Frederico de Aragão e um novo cisma na Igreja com
a instalação de um antipapa pelo imperador. Roma sofrerá os piores
tormentos (MELETO apud DELUMEAU, 2009, p. 328).
O pensamento de frei Meleto encontrou ecos no século XVI, mas vale levar em
consideração que os textos religiosos são polissêmicos, ou seja, neles cabem
diversas interpretações. A leitura de Meleto fez sentido quando, na Península
Ibérica, os judeus viram-se obrigados a se converterem para evitar a persegui-
ção imposta pelos tribunais inquisitoriais em Aragão e Castela, ou ainda, quando
foram forçados a se batizarem no catolicismo, em 1497, na corte do monarca D.
Manuel I, o venturoso, ou ainda, o movimento, que não deixa de ser cismático,
liderado por Martinho Lutero. Nesse sentido, muitos passaram a compreender
aquele momento como os derradeiros dias.
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ECONOMIA
Economia
196 UNIDADE V
De fato, o apogeu dessa nova realidade que se descortinava diante dos euro-
peus encontrou seu auge no século XIV. As estruturas sociais que engatinhavam,
no início da Baixa Idade Média, encontraram maturidade no século XIV, que
já contava com uma burguesia que se aliava à nobreza em suas pretensões mer-
cantis, possibilitadas pelo comércio de longa distância que desenvolveu rotas
de navegação entre o mediterrâneo e o mar negro, chegando a Constantinopla,
principal acesso às especiarias do Oriente.
Além destes pujantes desenvolvimento comercial e crescimento demográfico,
o início do século XIV foi marcado pelas chuvas intensas, as quais ocasionaram
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perda significativa na produção alimentícia. Tais fatores elevaram, consideravel-
mente, o preço dos alimentos básicos da dieta do homem medieval, como o trigo
utilizado na fabricação de pães. Não havia oferta para suprir a imensa demanda
de citadinos e camponeses famintos, por isso, os anos de 1315 a 1317 são, his-
toricamente, lembrados como os anos da grande fome, que conferiu, aos que
sobreviveram, enfraquecimento e baixa imunidade contra toda sorte de molés-
tias que pudessem vir a atacar.
A principal moléstia desse tempo, sem dúvida, foi a Peste Negra, que dizi-
mou parte da população europeia daquele tempo.
O comércio com o Oriente, marcado, principalmente, pelas rotas que liga-
vam o Mediterrâneo ao Mar Negro, possivelmente, tenha sido o propulsor deste
evento. Acredita-se que “embarcações originárias de entrepostos comerciais
genoveses no mar negro tenham trazido o mal para a Europa” (VAINFAS, 2010,
p. 143). A única certeza é que a Peste seguia as rotas comerciais europeias, che-
gando a se alastrar por todo continente ainda na primeira metade do século XIV.
A contabilidade convencional sobre a Peste Negra aponta para a perda de um
terço da população europeia. A população inglesa, por exemplo, estimada em
3,7 milhões de habitantes, em 1348, caiu de forma drástica para 2,25 milhões
trinta anos depois (VAINFAS, 2010, p. 164). A Peste, atenuada por curtos inter-
valos, prosseguiu implacável adentrando o século XV.
O crescimento demográfico foi retomado em meados do século XV, no
entanto, ainda se viram os ecos da Peste por muito tempo, o que obrigou a
monarquia portuguesa, por exemplo, a mudar a sede de sua corte de Lisboa
para Almerim (KAYSERLING, 2009). A explicação adotada pela Igreja foi a de
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197
que Deus estava punindo a população pelas seus excessivos pecados e elegeram
os judeus como grandes culpados. Esses eram acusados de envenenar os poços,
terem parte com satã e de terem crucificado Jesus Cristo.
A vida, na Europa, voltou a se recuperar a partir da segunda metade do
século XV, como nos mostra Tom Scott (2009, p. 18), na unidade dedicada à
Economia, na obra O Século XVI:
[…]até 1470, a vida econômica da Europa Ocidental tenha sido domi-
nada por fatores que determinavam uma contração, tendo como aspec-
to principal o catastrófico declínio demográfico da segunda metade do
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Como atestado por Scott (2009), a população europeia voltou a crescer durante
os períodos de calmaria da Peste, assim chamados porque ainda era possível ver
alguns surtos da moléstia até meados do XVI.
A volta do crescimento populacional, ocorrida na segunda metade do XV,
trouxe um saldo impressionante, segundo Jan de Vries, de “60,9 milhões de
habitantes na Europa em 1500” (VRIES apud SCOTT, 2009, p. 36), no entanto,
este rápido crescimento populacional gerou outro grande problema, a chamada
Revolução dos Preços (CAMERON, 2009).
Os anos finais do século XV foram marcados pela escassez das terras
produtivas e, consequentemente, pelo abastecimento de alimentos que não
acompanharam, com a mesma agilidade, as transformações demográficas do
continente. Com isso, houve um desequilíbrio entre população e recursos, o que
trouxe um aumento considerável no preço dos mais diversos gêneros alimen-
tícios, gerando uma grande segregação e desigualdade, dando origem a uma
massa de esfomeados que, muitas vezes, mesmo trabalhando, não conseguiam
fazer com que os seus salários acompanhassem a alta dos preços (SCOTT, 2009).
O que se podia observar era um crescente número de indigentes nas cidades,
que se viam apegados à religiosidade como única forma de salvação, esperando
dos céus a ajuda que os tiraria daquele sofrimento.
Economia
198 UNIDADE V
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ABSOLUTISMO MONÁRQUICO: HABSBURGOS E
VALOIS
Sem dúvida, do ponto de vista político, existe uma necessidade de se destacar que
o século XVI marcou, em alguns países da Europa ocidental, o estabelecimento
dos estados nacionais modernos. Esse processo, iniciado em meados do século
XIV, pôs fim definitivo ao sistema feudal. Um caso de grande significância nesse
período, que mexeu com a geografia política europeia, e muito importante para
compreendermos o desenvolvimento deste trabalho, foi o espanhol.
O ano de 1469 marcou a união matrimonial entre Fernando, herdeiro do
trono ibérico de Aragão e Isabel de Castela. Esse foi o pressuposto para a união
dos reinos, que se efetivou após a expulsão dos muçulmanos de Granada, em
1492, possibilitando, assim, o nascimento do reino da Espanha. Do casamento
de Fernando e Isabel nasceram cinco filhos, sendo João, príncipe das Astúrias, o
único rebento masculino, segundo filho e herdeiro do trono de Castela e Aragão.
Porém ele morreu por consequência de tuberculose, em 1497, deixando o trono
para sua irmã mais velha, Isabel, que morreu um ano depois. Após a morte da
matriarca Isabel de Castela, a terceira filha e herdeira imediata, Joana assumiu o
trono de Castela, em 1504, e o de Aragão, após a morte de seu pai, em 1516, tor-
nando-se a primeira rainha do recém unificado reino da Espanha.
Joana de Aragão e Castela, também conhecida como Joana, a louca, foi pro-
metida em casamento a Felipe da Áustria, filho do Imperador romano-germânico
Maximiliano I e da duquesa Maria de Borgonha. Felipe morreu precocemente, em
1506, com apenas vinte e oito anos, deixando seis filhos, dentre os quais Carlos,
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deixou evidente quem seria seu herdeiro, obrigando, após sua morte, a decisão
por meio de uma eleição:
[…]os Príncipes Eleitores tinham uma tarefa difícil: escolher para as-
sumir a coroa Imperial entre Carlos da Borgonha e Francisco de Va-
lois. Se votassem no primeiro, reforçariam seu poder constitucional,
o que os enfraqueceria em seus próprios territórios. Se escolhessem
Francisco, reforçariam suas pretensões territoriais sobre a Toscana e
sobre Nápoles. Ambas as decisões ocasionaram inevitáveis conflitos”
(MAINKA, 2009, p. 17).
TURCOS OTOMANOS
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As conquistas do Império Otomano, ao longo do século XV, não podem ser encara-
das como acontecimentos perdidos na imensidão historiográfica. Mais do que uma
simples data que, muitas vezes, é apenas lembrada para apontar o fechamento do
Mediterrâneo e a busca de novas rotas marítimas para as índias ou ainda a passagem
da Idade Média para a Moderna, os turcos representaram, talvez, uma das maiores
potências militares e expansionistas dos tempos modernos. O medo Otomano era
real, tanto que sob o comando do sultão Suleyman I, conhecido como o Magnífico,
entre os europeus e kanuni (legislador) e entre seus súditos, chegaram às portas da
Península Itálica. Na primeira metade do século XVI, tornou-se uma grande força
diplomática, forçando as principais potências do mundo moderno a negociar.
Desde Mehmet II (1451-1481), sultão responsável pela derrubada de
Constantinopla, o império otomano assumiu, como José Henrique Rollo
Gonçalves alega, um perfil definitivamente imperial, pois a cidade representava
o principal eixo de ligação entre a Europa e o Oriente das especiarias. Isso bene-
ficiou, e muito, o Império Otomano, que passou a tributar as relações comerciais
nestas rotas (GONÇALVES, 2009). Mais do que uma conquista dentre várias ao
longo de sua história, a ascensão sobre Constantinopla representou um senso de
legitimidade entre a cristandade, como relata Gonçalves:
[…]a posse de um dos mais caros símbolos da cristandade agregou no-
vos sentidos à titularidade do sultanato. A notícia da conquista, que não
tardou a se espalhar por todos os quadrantes, foi recebida com euforia
pelo mundo muçulmano. Afinal, estava realizado um dos objetivos lon-
gamente profetizados do Islã. O império otomano se tornará um dos ato-
res principais no palco do Mediterrâneo (GONÇALVES, 2009, p. 132).
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Mehmet II, que já tinha estendido sua jurisdição da Anatólia ao Eufrates, a leste
de Constantinopla, e se consolidado como dominante das rotas de navegação
que ligavam os mares Egeu, Negro e parcela significativa do mar mediterrâneo,
estendeu seus domínios rumo ao oeste, saqueando a cidade de Otranto, no “cal-
canhar da Itália, em 1480” (GONÇALVES, 2009, p. 132), no entanto, a “máquina
de guerra” otomana estacionou no ano seguinte com a sua morte. Seu sucessor,
Bayezit II (1481-1512), preocupou-se com a consolidação interna do império,
mas, ainda assim, ampliou suas jurisdições, tomando a Moldávia (1484-1498),
reduzindo drasticamente as frotas mercantes venezianas que tinham pretensões
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Turcos Otomanos
202 UNIDADE V
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AS TRANSFORMAÇÕES RELIGIOSAS NA EUROPA E A
REFORMA PROTESTANTE
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com as cortesãs” (BOWN, 2013, p. 136).
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agia mais como um chefe político e militar do que como um líder religioso. Sob
seu comando, a Igreja aumentou os territórios dos estados pontifícios, ou seja,
estados que estavam sob controle da Igreja, destruiu a Basílica de São Pedro e
iniciou a construção da atual.
Júlio II morreu em 1513, passando o cetro de Roma para o cardeal Giovanni
de Medicis, que se tornou Papa, assumindo o título de Leão X, que, diferente de
seus antecessores, foi um papa ligado às questões intelectuais que circundavam
a Península Itálica de seu tempo, era um defensor do Humanismo, altamente
letrado e comprometido com o desenvolvimento da cultura renascentista. Depois
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de coerção, Tetzel usava peças teatrais cujos personagens eram consumidos pelo
fogo do inferno, ou mesmo agonizavam no purgatório. Sabe-se, hoje, que homens,
como o dominicano em questão, trabalhavam para ricas famílias alemãs, que
ficavam com parte dos ganhos e mandavam outra para Roma (BLAINEY, 2012).
Foi a teologia do medo, pregada por Tetzel, que desencadeou em um jovem
padre e professor de Teologia da Universidade Wittenberg, na Saxônia, um sen-
timento de revolta sem precedentes. Esse padre, chamado Martinho Lutero,
escreveu, em fevereiro de 1517: “Ah, os perigos do nosso tempo! Ah, os padres
sonolentos!” e, em outubro do mesmo ano, apontou ser um “absurdo que o tilin-
tar de uma moeda na caixa de coleta liberar uma alma do doloroso purgatório”
(BLAINEY, 2012, p. 174). No último dia deste mês, dia de Todos os Santos, Lutero
pregou 95 Teses, um documento de argumentação geral com parágrafos enu-
merados, na Igreja do castelo de Wittenberg. O documento continha objeções
contra a cobrança de indulgência, simonia e preceitos seguidos pela Igreja oficial.
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Tese 86: Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos Cras-
sos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta, uma Basílica de
São Pedro, em vez de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
Fonte: Boulos (2012).
MARTINHO LUTERO
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enquanto monge, Lutero ficou famoso por estudos bíblicos relativos às ques-
tões vinculadas ao pecado e ao perdão. Como inveterado estudante da Bíblia, o
monge chegou à conclusão de que o perdão dos pecados e a salvação da alma
estavam no relacionamento sincero entre o crente e Deus, baseado na verdadeira
fé, independentemente das obras. Esta teologia luterana ficou conhecida como
Justificação pela Fé, uma das primeiras bandeiras levantadas pelo então vigário
agostiniano e que desencadeou uma série de críticas à instituição milenar católica.
Se para Lutero a salvação vinha pela fé em Deus, não havia sentido algum
o pagamento pela indulgência. Nesse contexto de extrema consonância com os
preceitos bíblicos, chegaram à Saxônia Tetzel, sua oratória, seu teatro e, prin-
cipalmente, seu poder de persuasão. Para conter os ânimos da pobre multidão
que se viu obrigada a dar o que não tinha, Lutero fixou as famosas 95 teses, na
Igreja de Wittenburg.
Lutero já era um famoso orador, excelente professor e um intelectual de rele-
vância, na Europa do século XVI, e, depois do episódio das 95 teses, sua fama
alcançou patamares ainda maiores, chegando seus escritos a serem impressos
em regiões fora da Alemanha, como a Basiléia, na atual Suíça, e Estrasburgo, na
atual França.
As pregações de Martinho Lutero, cada vez mais inflamadas contra a Igreja
e o clero, trouxeram algumas consequências, como prisões e disciplinas eclesi-
ásticas, mas, ao mesmo tempo, angariava uma imensa quantidade de seguidores,
que ia das classes baixas à nobreza, que via, no discurso do monge, uma possibili-
dade de se libertar dos pagamentos de dízimo à Roma, ou mesmo de se apoderar
dos grandes latifúndios que estavam sob jurisdição da Santa Sé.
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Carlos V, da casa de Habsburgo.
Em Worms, Lutero reafirmou seus posicionamentos, fez sua autodefesa em
latim e terminou com as seguintes palavras, ditas em alemão: “Que Deus me
ajude. Amém” (BLAINEY, 2012, p. 176). O reformador orientado por Frederico
III, não esperou a reunião acabar e se retirou para o palácio de Wartburg, onde
passou algum tempo, ao que parece até a poeira baixar, a questão é que não bai-
xou, e a cada dia aumentava os seguidores da causa luterana.
Protegida por Frederico III, o sábio, e de forte conotação nacionalista, a
reforma empreendida por Lutero floresceu, igrejas luteranas se disseminaram na
Europa, ao ponto de, em menos de 30 anos, monarcas de reinos, como Dinamarca,
Suécia, Noruega e Transilvânia, já terem aderido à causa. Lutero se casou com
a ex-freira Catarina Von Bora e teve uma vida marcada por uma produção lite-
rária de grandes proporções. Entre seus escritos importantes, está o ataque aos
judeus europeus, em sua obra “Sobre os judeus e suas mentiras”, de 1543, defen-
deu a autoridade política dos reis e príncipes em sua obra “Sobre a autoridade
secular”, de 1523, e traduziu o novo testamento bíblico para o Alemão, em 1534,
um fato inédito que possibilitou leigos desconhecedores do latim terem acesso
às escrituras sagradas. Até o fim de sua vida, defendeu a justificação pela fé (sal-
vação pela fé), o sacerdócio universal de todos os crentes (livre interpretação das
escrituras) e a famoso slogan: solus Christus, sola Gratia, sola Fides, sola Scriptura
(só o Cristo, só a Graça, só a Fé e só a Escritura). Lutero morreu em Eisleben, a
mesma cidade onde nasceu, em fevereiro de 1546.
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Segundo Lutero, Deus não é um juiz inflexível. Ele doa aos pecadores a sal-
vação pela graça, baseada na fé e por mérito exclusivo de Cristo. Isso exige a
substituição da ritualidade descaradamente exterior pela íntima edificação
pessoal.
(Domenico De Masi)
OS INTERLOCUTORES DE LUTERO
Ao longo de sua carreira, Lutero, teve alguns interlocutores com os quais compar-
tilhava ideias, outros que discordavam de muitos pontos, outros que se rebelaram
contra sua submissão aos príncipes, e outros ainda que, apesar de concordarem
com alguns pontos, nunca aderiram formalmente à causa. Deste último ponto,
começamos a falar de um de seus primeiros grandes interlocutores, Desidério
Erasmo, nascido perto de Roterdã, na atual Holanda.
ERASMO DE ROTERDÃ
Filho do padre Roger Geertz com Margaretha Rogers, Erasmo de Roterdã, como
ficou conhecido, nasceu na década de 60, do século XV. Apesar de ser filho ile-
gítimo, visto que seu pai era um sacerdote, ingressou na carreira eclesiástica, o
que também era proibido a filhos ilegítimos. Em 1475, ingressou na Escola dos
Irmãos da Vida Comum, em 1488, no convento Canônico Regulares de Santo
Agostinho e, em 1492, foi ordenado sacerdote agostiniano, em Utrecht, nos Países
Baixos (ARNAUT DE TOLEDO, 2007). Entre 1494 e 1499, alcançou o grau de
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bacharel em Teologia, residiu em Paris e em Oxford, onde iniciou seus conta-
tos com os humanistas ingleses, entre eles Thomas More, autor da famosa obra
“A Utopia”. Depois de passagens pela Itália e sucessivas voltas para a Holanda,
fixou-se na Basiléia, atual Suíça.
Erasmo escreveu diversas obras, sendo o “Elogio da Loucura” a mais famosa
de nossos tempos. Mas, para melhor entender suas pretensões e sua ligação com
Lutero, faz-se necessário compreender a versão e a tradução que o autor fez do
Novo Testamento, em 1516. Nela, afirma que “Cristo vive, respira e fala conosco”
e ainda lamenta que “a maioria dos cristãos conhecidos estão ‘infelizmente, escra-
vizados pela cegueira e ignorância’” (BLAINEY, 2012, p. 170). Além dos ataques à
maneira como os fiéis viviam, atacou, veementemente, algumas práticas da Igreja:
[…]concluiu que a frequência regular à igreja não era absolutamente
essencial, e que o dinheiro doado a mosteiros ou santuários seria mais
bem empregado se entregue diretamente ao “templo vivo de Cristo” –
os pobres. Ele concluiu também que certos dogmas cristãos, como a
existência de um lugar chamado purgatório, tinha pouca justificativa
bíblica (BLAINEY, 2012, p. 170).
Era fato que existia uma similaridade entre os escritos de Erasmo e as manifes-
tações de Lutero, tanto que, em 1519, a Universidade de Louvain condenou as
95 luteranas, fato que fez com que o holandês se “manifestasse contra a conde-
nação, apelando à concórdia e à paz. Sua oposição, que parecia neutra, valeu-lhe
críticas de ambos os lados” (ARNAUT DE TOLEDO, 2007, p. 110).
A princípio, Erasmo era simpático à causa de Lutero, no entanto discor-
davam de pontos como o livre arbítrio e a maneira radical como o reformador
passou a exercer sua liderança. Na verdade, o holandês era um apaziguador e
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Hyperaspistes I, cuja tradução seria “O Defensor I”, no ano de 1526, que foi como
uma réplica às questões contidas em “Da vontade coletiva”, muito mal recebida
nos núcleos reformados da Europa, causando algumas reações violentas. Em
1527, Lutero lançou Hyperaspistes II, que pôs um ponto final na discussão, afas-
tando definitivamente os dois (ARNAUT DE TOLEDO, 2007).
Em 1536, Erasmo morreu, na Basiléia, não tendo abandonado antes a fé católica,
está enterrado na catedral da cidade, e em sua lápide pode se ler “em letras doura-
das [...] um servo de Cristo e o mais culto dos estudiosos” (BLAINEY, 2012, p. 171).
ULRICO ZUÍNGLIO
Outro grande interlocutor de Lutero foi padre e teólogo suíço Ulrico Zuínglio,
na tradução portuguesa para seu nome, ou Huldrych Zwingli, na grafia origi-
nal. Zuínglio nasceu em 1484, na cidade de Wildhaus, na fronteira suíça com
a atual Alemanha e a Áustria. Estudou teologia e foi ordenado padre em 1506,
assumindo a paróquia de Glarus (BLAINEY, 2012).
Em 1516, depois de ler a tradução do Novo Testamento, viajou para Basiléia,
onde se encontrou com Erasmo de Roterdã. Segundo biógrafos, depois do encon-
tro o padre suíço não foi a mesma pessoa: “Nunca mais subi ao púlpito sem ter
estudado atentamente o evangelho do dia e buscado explicações nas escrituras”
(BLAINEY, 2012, p. 182). Um ano depois, teve contato com as ideias de Lutero,
expressas nas 95 teses.
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conselho da cidade, tinha certa liberdade nas ações religiosas, como a condena-
ção do celibato clerical e, por não encontrar, nas escrituras, o que o justificasse,
contraiu casamento com uma jovem viúva da cidade, em 1524, antes mesmo de
Lutero casar-se com Catherine Von Bora.
Ulrico Zuínglio era um atento leitor dos escritos de Lutero, mas seu ímpeto
superava o do reformador alemão, isso, em grande medida, era favorecido pelas
questões políticas que envolviam ambos, pois, enquanto o suíço tinha certa
liberdade, Lutero estava envolto a um Sacro Império Romano Germânico com-
pletamente dividido, e sua reforma ainda não triunfará.
Zuínglio foi pioneiro em algumas questões que mais tarde serão creditadas
à Reforma de maneira geral, como o fim do Celibato Clerical, que já foi posto, a
condenação do uso de imagens e a obrigatoriedade da língua nacional nas cele-
brações cúlticas:
[…]como a Bíblia condenava a adoração de ídolos e de estátuas, Zuín-
glio e seus colaboradores mais próximos ordenaram, em 1524, que as
pinturas e imagens de Cristo, de Nossa Senhora e dos santos fossem
retiradas das igrejas de Zurique [...] Em Zurique, a partir de 1525, o
idioma alemão passou a ser adotado para os sermões. Naquele mesmo
ano cresceu o clamor pelo fechamento de mosteiros e conventos, e eles
foram realmente fechados (BLAINEY, 2012, p. 183).
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o fiel deve estar em paz, ter seus pecados confessados e estar arrependido, visto
que existe uma questão que não é meramente simbólica, mas espiritual.
Lutero e Zuínglio encontraram-se, pela primeira vez, em 02 de outubro de
1529, em Marburg, na atual Alemanha (BLAINEY, 2012), e a reunião teve como
pauta a questão da Eucaristia. Irredutíveis e de pulsos firmes em suas opiniões,
é sabido que não chegaram a nenhum acordo sobre a questão. É importante
esclarecer que os primeiros reformadores não tinham claro, como temos hoje,
esta diferenciação com os católicos romanos. Zuínglio era um líder reformado,
mas usava a estrutura da Igreja romana e, diferente de Lutero, o suíço não foi
formalmente excomungado, isso pode ter se devido à proteção que recebia dos
governantes de Zurique, ou mesmo porque o papa estava preocupado com outras
questões, como a paz entre Valois e Habsburgo e a expansão turca. Os católicos
que mantiveram devoção à igreja romana revoltavam-se com as pregações infla-
madas contra o papado e a estrutura tradicional eclesiástica, com isso, cidades
vizinhas formaram exércitos católicos para calar o inflamado Zuínglio.
Zuínglio morreu em 1531, possivelmente em batalha contra os exércitos
católicos suíços.
THOMAS MÜNTZER
ser ordenado sacerdote entre 1513 e 1514 e, em 1516, foi ordenado prepósito,
um cargo de chefia, de um convento feminino, “onde em 1517 e 1518 entrou em
contato com a discussão que ascendia em torno do professor da Universidade
de Wittenberg, Martinho Lutero” (DREHER, 2007, p. 197). Entre 1517 e 1520,
tornou-se um devoto adepto da causa luterana e pregador do evangelho, por
indicação do próprio Lutero, em Zwickau (DREHER, 2007).
Martin Norberto Dreher (2007, p. 197 e 198) explica que, assim como Lutero,
Müntzer entrou em contato com a obra dos místicos alemães, o que o marcou
profundamente, pois, nessas obras, encontrou um alento para suas aflições:
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[…]nas obras desses místicos encontrou a afirmação, que o tornou ex-
tremamente feliz, de que Deus primeiro lança a todos os seus amigos
na noite do desespero – assim como ele, Müntzer, o havia experimen-
tado – antes de permitir que o sol brilhe sobre eles. Nesses místicos,
Müntzer encontrou, ainda, a afirmação – que ainda mais felicidade lhe
trouxe – de que o eterno Deus, sem meios exteriores, revela-se, palpa-
velmente, aos seus no mais profundo da alma.
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Essas ideias de Müntzer não estavam em consonância com as de seu líder Lutero,
que, ao contrário, como não podia deixar de ser, visto que tinha o apoio de prín-
cipes e líderes estatais, defendia a existência de um poder que regulasse a vida
para além da Eclésia, um líder político, por isso, o reformador defende a obe-
diência ao Estado.
A Igreja segundo Lutero, não surge nem é mantida nem é mantida a
partir dos indivíduos, mas a partir de algo objetivo que está fora deles e
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sobre eles: a Palavra. Para que essa Palavra seja corretamente ensinada
e pregada surge novamente uma instituição exterior, visível, no seio do
qual existe a verdadeira Igreja, a Igreja invisível. Ao lado do culto de
pregação da Igreja visível, existe apenas uma única forma de culto: o
serviço e o trabalho nas ordenações da vida normal: na profissão e no
Estado, no matrimônio e na família (DREHER, 2007, p. 198).
Apesar das diferenças teológicas com Lutero, Müntzer continuou luterano, assu-
mindo a Igreja em Allstedt, em 1523. Lá introduziu o culto em língua alemã e se
casou como a ex-freira Ottilie von Gersen, pouco antes de Lutero fazer o mesmo,
em 1525, casando com Catherine Von Bora.
Eloquente, com um discurso interessante às camadas populares que se viam
obrigadas a pagar impostos para os grandes senhores de terras, Müntzer atraía
multidões aos seus sermões, em Allstedt, o que passou a incomodar os gover-
nantes luteranos alemães, visto que a obediência civil não era pressuposto para
a salvação.
Por volta de 1524, Müntzer dissociou-se de Lutero, que, segundo ele, tinha
abdicado da verdadeira reforma em favor do poder da nobreza alemã. Por isso
teceu diversos escárnios contra o reformador alemão, os quais, pelo baixíssimo
nível, não me é permitido reproduzir aqui, mas seguem alguns:
Doutor mentira [...] Doutor Escárnio [...] Doutor Boa-Vida [...] a carne
ímpia de Wittenberg [...] Corvo do Mal [...] puxa-saco [...] herege [...]
canalha [...] traquinas [...] novo papa [...] Condenado dos infernos [...]
cobra [...] raposa fingida [...] pagão do mal [...] velhaco dos infernos
[...] escroque [...] raposa raivosa [...] embaixador do Inferno [...] (EIRE,
2013, p. 167).
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facões, não eram páreos para a nobreza cavalheiresca europeia, e Thomas Müntzer
foi executado junto com outras lideranças, ao fim dos conflitos, em 1525.
O contexto europeu, nos anos que marcaram a expansão da Reforma, foi defini-
tivamente notado pelas lutas políticas entre as poderosas famílias de Habsburgo
e Valois, pela real ameaça Otomana no oriente, pela volta do crescimento popu-
lacional após o decréscimo do século XIV e pelos medos escatológicos que
pairavam sobre as classes menos favorecidas da Europa.
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219
DE TOLEDO, 2007, p. 112). Pode-se, então, imaginar o quão trágico foi tal epi-
sódio no seio da cristandade, um monarca católico decreta a invasão ao centro
do papado.
O Sagrado Império Romano Germânico, governado por Carlos V, era um
conglomerado de principados com algumas características feudais cujo impe-
rador era a autoridade máxima dentro do território, mas cada príncipe legislava
sobre questões locais, e o poder imperial era requerido em momentos singulares,
quando se tratava de questões gerais. Explicado isso, é importante esclarecer que
o imperador era católico, mas muitos príncipes tinham aderido à causa luterana.
Em 1526, foi realizada a Primeira Dieta de Espira, quando se decidiu que cada
monarca local poderia escolher a religião que seria praticada em seus territórios.
Tal decisão revogou a Dieta de Worms, de 1521, que obrigava a expulsão de Lutero
e dos luteranos dos territórios do Império, fato que nunca foi totalmente conclu-
ído. Mas, em 1529, uma nova Dieta foi convocada em Espira, essa, no entanto,
revogava o acordo de 1526 e recolocava em vigor o acordo de 1521. Com esta
nova resolução, alguns príncipes e governantes de cidades independentes que já
tinham assumido a posição luterana, deixam a reunião, como forma de protesto,
não aderindo à nova determinação. Desse momento em diante, as comunida-
des cristãs não católicas da Europa receberam o nome de Protestantes, derivado
da postura assumida pelos príncipes, em Espira (ARNAUT DE TOLEDO, 2007;
DREHER, 2007; MAINKA, 2007).
Em 1530, líderes protestantes apresentaram, na Dieta de Augsburgo, um
documento redigido por Filipe Melanchton, uma espécie de braço direito de
Lutero, a confissão Augustana, ou confissão de Augsburgo, na qual apresentava,
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uma rebelião interna e, ao mesmo tempo, impedir os avanços turcos que, neste
momento era um importante aliado de Francisco I de Valois, rei da França.
Devido a essas questões, em 1532, Carlos V propõe a Paz de Nuremberg, que fir-
mava um acordo entre protestantes e católicos e possibilitava o “livre exercício
da fé, até ‘a realização de um concílio’” (ARNAUT DE TOLEDO, 2007, p. 113).
A reforma religiosa atingiu grandes patamares na Europa e, diferente do que
seus detratores pensaram, seus efeitos foram irreversíveis. Já na década de 50, do
século XVI, muitos reinos europeus já tinham aderido à causa protestante, dentre
eles Suécia, Noruega, Dinamarca, principados alemães, Transilvânia, cidades-es-
tados suíços, países baixos (posteriormente Holanda) e a Inglaterra, sem contar
os conglomerados protestantes, no sul da França, e a burguesia calvinista, nos
mais diversos estados católicos.
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221
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A “REFORMA” INGLESA
A “Reforma” Inglesa
222 UNIDADE V
contra futuros inimigos, por isso, casou sua filha Margarida com o rei da Escócia
Jaime IV, e Arthur, herdeiro do trono inglês, com Catarina, filha do rei Fernando,
da Espanha. O casamento de Arthur com Catarina, no final de 1501, foi rece-
bido com grandes honras e expectativas, tanto que o “dote espanhol atingiu a
soma enorme de 200 mil coroas” (MAINKA, 2007, p. 131).
Apesar da grande expectativa, o casamento do herdeiro do trono inglês
durou apenas cinco meses. Arthur morreu de repente, em abril de 1502, com
apenas 15 anos de idade. Para não perder o acordo com o monarca espanhol,
Henrique VII tratou de buscar a anulação do casamento de Arthur e formali-
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zar uma união com seu filho mais novo Henrique que, na época, tinha apenas
11 anos. O casamento de Henrique e Catarina foi formalizado apenas em 1509,
ano em que se tornou rei da Inglaterra, após a morte do pai, quando se conso-
lidou como Henrique VIII.
Muitas foram as tentativas de Henrique e Catarina para garantir um herdeiro
que pudesse assumir o trono inglês após sua morte. No entanto, dos cinco partos-
todos de meninas, apenas um bebê vingou, fato que preocupava Henrique, que,
como sinal de virilidade, esperava um herdeiro masculino. Ele, como convencio-
nalmente se pensava no século XVI, acreditava que o “problema” do nascimento
só de meninas estava na mulher. Hoje, a ciência moderna avalia que a definição
do sexo do bebê é, e muito, influenciada pelo gene masculino.
Outra questão que assombrava Henrique VIII em relação ao casamento
era o fato de estar casado com a esposa de seu irmão. Como citado por Michael
Maurer (MAINKA, 2007, p. 134): “Para um contemporâneo teologicamente for-
mado, como Henrique, era quase inevitável atribuir o trecho da Bíblia (Lev 20) a
si mesmo, no qual é ameaçado ficar sem filhos quem casa com a mulher do seu
irmão”. Henrique VIII acreditava que a única forma de dar conta do “problema”
era a anulação do casamento, assim, iniciou uma série de pedidos para a anula-
ção da união junto à Santa Sé. O papa não pensava na possibilidade da suspensão
do matrimônio por motivos óbvios, não queria problemas com a Espanha nem
maiores discórdias com o Imperador Carlos V, que era sobrinho de Catarina.
Enquanto o matrimônio não foi suspenso, setores da burguesia e da nobreza
inglesa tomaram contato com a Reforma de Lutero e imaginavam a possibili-
dade de desvincular-se da Igreja Romana, que detinha parte dos impostos pagos
UMMUNDOEMTRANSFORMAÇÃO:ACRISEINSTITUCIONALDOCATOLICISMOEAREFORMAPROTESTANTE
223
abolir as anatas, uma taxa de um terço pago à Roma pela receita anual. Em janeiro
de 1533, Thomas Cranmer foi nomeado arcebispo de Canterbury, o principal
da Inglaterra. Nesse mesmo mês, fez o casamento de Henrique VIII e a jovem
dama de honra Ana Bolena, que já se encontrava grávida.
Em março de 1533, uma lei:
[…]proibiu, em questões referentes aos matrimônios ou aos testamen-
tos, recursos dos tribunais arcebispais aos tribunais em Roma. Com
essa lei, o Direito Canônico ficava subordinado à coroa inglesa. O Ar-
cebispo de Canterbury foi nomeado à instância mais alta para todo o
reino da Inglaterra (MAINKA, 2007, p. 137).
Com essa lei, chamada Act of Restraint of Appeals, em tradução livre “Ato de res-
trição de apelações”, os direitos da Igreja Romana foram totalmente abolidos do
território inglês. Em 23 de maio de 1533, o casamento de Henrique VIII com
Catarina de Aragão foi declarado ilegítimo e perdeu validade, em contrapartida
o casamento com Ana Bolena fora considerado legítimo, e o futuro herdeiro
como detentor do direito de privilégio na sucessão do trono.
Em setembro de 1534, Henrique VIII foi excomungado da Igreja Católica
pelo papa Clemente VII e, em 30 de agosto de 1535, o papa Paulo III reforçou a
excomunhão anterior, que foi definitivamente publicada em 1538.
Ana Bolena deu à luz outra menina, batizada como Elizabeth, que, poste-
riormente, reinou por 45 anos. Agora, Henrique tinha duas filhas, Maria, do
casamento com Catarina e Elizabeth, não alcançando seu objetivo primeiro.
Henrique viria a casar mais quatro vezes e, com a terceira esposa, Jane Seymour,
teve um herdeiro varão, Eduardo.
A “Reforma” Inglesa
224 UNIDADE V
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calvinistas, mas, de forma geral, os anglicanos ainda se assemelham aos católicos
romanos. Ainda hoje, a autoridade máxima da Igreja é a rainha da Inglaterra, e os
preceitos religiosos são ordenados segundo a visão do arcebispo de Canterbury.
A REFORMA CALVINISTA
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225
A Reforma Calvinista
226 UNIDADE V
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Ele. O próprio Deus sabe se os homens foram predestinados à vida eterna ou
à condenação. Não há possibilidade de saber se somos salvos, ou condenados,
mas a justeza e a integridade com a qual levamos a vida dão-nos pistas sobre o
futuro que nos espera.
Muitos burgueses aderiram à causa calvinista, pois, diferente do que era
pregado pela igreja romana, que condenava o lucro, para Calvino, as aquisições
financeiras, ou não, advêm de Deus, é Ele quem proporciona, por meio do empe-
nho do exercício de suas funções.
Max Weber, sociólogo do século XIX e início do XX, em sua obra “A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo”, atribui ao ideal protestante de traba-
lho e riqueza a importância para o desenvolvimento do capitalismo. Tanto que
os países que adotaram o protestantismo, baseados em na “ética” religiosa calvi-
nista, obtiveram sucesso econômico, sendo, hoje, as maiores potências mundiais.
Calvino tornou-se, depois da morte de Lutero, o principal líder protestante
da Europa. Faleceu em Genebra, em 1564, e foi enterrado sem “pompa” e majes-
tade, num túmulo simples em que havia as iniciais de seu nome.
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227
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos ao fim de mais uma unidade. Aqui, percebemos que a Reforma envol-
veu parte significativa da Europa em um curto período de tempo. Vimos que a
ascensão protestante estava intimamente ligada ao momento histórico pelo qual a
Europa passava. A expansão turca, as disputas por poder no seio da cristandade,
caracterizada pelas celeumas entre Habsburgos e Valois, o crescente empodera-
mento dos monarcas nacionais e os problemas econômicos proporcionados pela
crise de abastecimento, no início do século XVI, foram cruciais para o sucesso
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Considerações Finais
228
1. A Reforma Protestante triunfou em meados do século XVI por conta de uma série de
acontecimentos que possibilitaram o “desvio de foco” da autoridade romana para
assuntos de ordem econômica e política. Assinale a alternativa que apresenta os
principais fatos que contribuíram para o sucesso do movimento iniciado por
Lutero.
a) Os conflitos entre as famílias nobres de Navarra e Aragão pelo controle de Flan-
dres; a expansão turca no leste europeu e Oriente Médio; a instabilidade econô-
mica.
b) As disputas por poder entre as famílias Habsburgo e Valois; a expansão turca no
leste europeu e Oriente Médio; a instabilidade econômica.
c) A morte do Imperador Maximiliano I; as disputas de poder entre as famílias Habs-
burgo e Valois; as 95 teses de Lutero.
d) A vitória dos franceses contra a família Habsburgo; a ascensão ao trono imperial
de Carlos V; a expansão turca no leste europeu e Oriente Médio.
e) As 95 teses de Calvino; as disputas de poder entre o Império Turco-Otomano e
o reino da saxônia pelo poder da Áustria; a doutrina de predestinação de João
Calvino.
2. Calvino foi um dos grandes nomes do protestantismo europeu. Seu pensamento,
rico e elaborado, foi expresso em uma obra dividida em alguns volumes. Qual o
nome da obra que contém as principais doutrinas calvinistas?
a) Sobre a autoridade secular.
b) O Leviatã.
c) Instituição da Igreja Cristã.
d) O elogia da loucura.
e) Calvinismo hoje.
3. Um dos interlocutores de Lutero liderou alguns levantes populares, que receberam
o nome de revoluções camponesas na década de 20, do século XVI. Qual o nome do
líder rebelde?
a) Ulrico Zuínglio.
b) Tomás Müntzer.
c) Erasmo de Roterdã.
d) João Calvino.
e) Miguel Serveto.
229
4. Henrique VIII, monarca e fundador da Igreja Nacional Inglesa, conhecida como An-
glicana, foi motivado por questões de ordem política para se desvencilhar da Igreja
Romana. Qual a principal motivação para a cisão entre o reino da Inglaterra e o
papado, no século XVI?
a) A não aceitação romana do pedido de anulação do casamento com a princesa
espanhola Catarina de Aragão.
b) O desejo de criar uma Igreja independente, onde só a fé em Cristo levaria à salva-
ção.
c) A necessidade de criar uma igreja piedosa e homogênea cujo interesse principal
era a salvação dos menos favorecidos.
d) A influência do pensamento calvinista na criação da Igreja Católica.
e) A não aceitação romana do pedido de casamento com a princesa espanhola Ca-
tarina de Aragão.
5. O teólogo suíço Ulrico Zuínglio, foi um dos primeiros seguidores de Martinho Lutero
e, assim como Lutero, fora sacerdote católico. Em muitos pontos, os pensamentos do
alemão e do suíço convergiam, mas em uma questão discordavam profundamente.
Qual questão incompatível entre esses teólogos reformados?
a) A questão do batismo. Zuínglio acreditava que só poderia ser efetivado após de-
terminada idade, já Lutero acreditava no batismo infantil.
b) A questão da Eucaristia. Para Zuínglio a ceia era meramente simbólica e memorial,
negando qualquer caráter sagrado ao evento, já Lutero não via como um mero
simbolismo, defendendo a presença real de Cristo no pão e no vinho.
c) A questão do sacerdócio feminino. Zuínglio defendia a não ordenação de mulhe-
res, fato que para Lutero era irrelevante.
d) A questão do poder papal. Zuínglio era um árduo defensor da Igreja Católica, já
Lutero não acreditava na Igreja Romana.
e) A questão do batismo com o Espírito Santo. Para Zuínglio, após o batismo, o cren-
te já recebia o Espírito Santo, já para Lutero, isso poderia acontecer antes ou de-
pois, pois dependia do coração arrependido do pecador.
230
nova terra e, como veremos adiante, são frequentes as referências ao “pacto” entre Deus
e os colonos puritanos. A ideia de povo eleito e especial diante do mundo é uma das
marcas mais fortes na constituição da cultura dos Estados Unidos.
Diante de uma desgraça, como a seca de 1662 na Nova Inglaterra, os puritanos ainda en-
contravam novos paralelos com a Bíblia: Deus também castigara os judeus quando eles
foram infiéis ao pacto. Deus salva a poucos, como os pregadores puritanos costumavam
afirmar. Fiéis à tradição dos reformistas Lutero e Calvino, a predestinação era uma ideia
forte entre eles.
Para manter sua identidade e a coesão do grupo, os puritanos exerceram um controle
excessivo sobre todas as atividades dos indivíduos. A ideia de uma moral coletiva cujo
erro de um indivíduo pode comprometer o grupo é também um diálogo com a concep-
ção da moral hebraica no deserto. O pacto Deus-povo é com todos os eleitos.
A população das colônias crescia rápido, passando de 2.500 pessoas (sem contar índios),
em 1620, para três milhões um século depois. Nesse grande contingente, embrião do
que seriam os Estados Unidos, misturam-se inúmeros tipos de colonos: aventureiros,
órfãos, membros de seitas religiosas, mulheres sem posses, crianças raptadas, negros e
africanos, degredados, comerciantes e nobres. Tomar, assim, os peregrinos protestantes
como padrão é reforçar uma parte do processo e ignorar outras.
Fonte: KARNAL (2007, p.46-47).
MATERIAL COMPLEMENTAR
Lutero
após quase ser atingido por um raio, Martim Lutero (Joseph Fiennes)
acredita ter recebido um chamado. Ele se junta ao monastério, mas
logo fica atormentado com as práticas adotadas pela Igreja Católica
na época. Após pregar em uma igreja suas 95 teses, Lutero passa
a ser perseguido. Pressionado para que se redima publicamente,
Lutero se recusa a negar suas teses e desafia a Igreja Católica a
provar que elas estejam erradas e contradigam o que prega a Bíblia.
Excomungado, Lutero foge e inicia sua batalha para mostrar que
seus ideais estão corretos e que eles permitem o acesso de todas as
pessoas a Deus.
Disponível em <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-42733/>. Acesso em 26/01/2017.
233
REFERÊNCIAS
______. A Inglaterra na virada para os tempos modernos. In: MAINKA, Peter. Johann
(org.). A Caminho do Mundo Moderno: Concepções clássicas da filosofia políti-
ca no século XVI e o seu contexto histórico. Maringá: Eduem, 2009.
SCOTT, T. Economia. In: CAMERON, E. História da Europa Oxford: O Século XVI. Por-
to: Fio da Palavra Editores, 2009.
VAINFAS, R. História: das sociedades sem Estado às monarquias absolutistas. São
Paulo: Editora Saraiva, 2010.
GABARITO
1. B.
2. C.
3. B.
4. A.
5. B.
CONCLUSÃO
Olá, chegamos ao fim de mais uma disciplina em que estudamos as origens do cris-
tianismo e as bases filosóficas e teológicas do mundo ocidental. Na primeira unida-
de, pincelamos os principais aspectos políticos, sociais e militares da vida palestina
nos séculos que antecederam a era comum. Apresentamos, a partir de um viés his-
tórico, fatores importantes sobre a vida dos patriarcas, dos juízes e dos reis. A divisão
do reino e a invasão da região por impérios expansionistas também foi tema desta
unidade, bem como a ascensão decisiva dos romanos na região.
Já na segunda unidade, apresentamos um panorama histórico sobre a Palestina do
primeiro século: as principais vertentes judaicas, o nascimento do cristianismo e a
destruição do templo de Jerusalém. Também pudemos apresentar a relação que o
mundo antigo greco-romano estabeleceu com essa nova fé. Ao contrário do que é
comum pensar, a relação entre os textos sagrados e os textos pagãos de pensadores
gregos e romanos estabeleceram, muitas vezes, processos de fusão.
A terceira unidade disponibilizou uma literatura que pode discutir o processo de
ensino referente à Igreja medieval. Foi uma oportunidade riquíssima para termos
contato com as formas peculiares de pensar a relação entre fé e conhecimento, ela-
borada, nesse contexto, a saber, a Patrística e a Escolástica.
Já com a quarta unidade dispomo-nos a discutir as tomadas de decisões da Igreja
dentro de um embate contra as heresias. Foi um processo muito delicado para a
Igreja Cristã, tendo que optar por criar mecanismos de defesa para a manutenção
da sua organização.
Na quinta unidade, foram apresentados fatos que tiveram por objetivo demonstrar
os motivos pelos quais foi possível a ascensão do protestantismo. Apresentamos
Lutero e suas ideias, a maneira como o protestantismo foi usado politicamente por
príncipes alemães e pelo rei Henrique VIII, na Inglaterra. Por fim, tivemos a oportu-
nidade de conhecer um pouco mais sobre a maneira singular de João Calvino inter-
pretar as escrituras, além de refletir sobre suas contribuições para a ética ocidental.