APRESENTO-ME - Ursula K Le Guin

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APRESENTO-ME (1992) – URSULA K.

Le GUIN

Eu sou um homem. Pensas agora que cometi algum erro tonto de


género ou talvez que tento enganar-te porque o meu primeiro nome acaba
num A e tenho três sutiãs e estive grávida cinco vezes e outras coisas como
essas que podes ter notado, pequenos detalhes. Mas detalhes não contam. Se
há alguma coisa a aprender com os políticos é que detalhes não importam. Eu
sou um homem e quero que tu acredites e aceites isso como um facto, tal
como eu fiz durante muitos anos. Sabes, quando eu estava a crescer, na altura
da guerra do Império do Medo contra os Persas e quando fui para a escola
logo depois da Guerra dos Cem Anos e quando estava a criar os meus filhos
durante as guerras da Coreia, Fria e do Vietname, não havia mulheres. As
mulheres são uma invenção muito recente. Situo a invenção das mulheres há
apenas umas décadas. Bem, se insistes no rigor pedante, as mulheres foram
inventadas várias vezes, em localidades muito diferentes, mas os inventores
não sabiam como vender o produto. Tinham técnicas de distribuição
rudimentares e não faziam pesquisa de mercado e então, claro, o conceito
não vingou. Mesmo quando há génio por detrás de uma invenção, ela tem que
encontrar o seu mercado e parece que, durante um longo período, a ideia de
mulheres não atingia a fasquia mínima. Modelos como os de Austen ou das
Brontë eram demasiado complicados, e as pessoas riam-se das sufragistas, e
o de Woolf estava muito à frente do seu tempo.

Então, quando nasci, só havia mesmo homens. As pessoas eram


homens. Todos tinham um pronome, o pronome dele; então, isso é o que eu
sou. Eu sou o masculino universal. Como por exemplo: "Se um indivíduo
precisa de um aborto, ele vai ter que ir a outro Estado" ou "um escritor sabe
de que lado do pão se põe manteiga". Sou eu o escritor, ele. Eu sou um
homem.

Talvez não um homem de primeira categoria. Estou perfeitamente


disponível para admitir que talvez seja uma espécie de homem de segunda
categoria, um homem de imitação, um finge-a-ele. Enquanto ele, estou para
um genuíno ele masculino como um douradinho preparado no micro-ondas
está para um salmão chinook grelhado inteiro. Isto é: posso eu inseminar,
afinal de contas? Posso pertencer ao Bohemian Club? Posso dirigir a General
Motors? Teoricamente posso, mas já sabes onde a teoria nos leva. Não é para
o topo da General Motors, e no dia em que uma mulher de Radcliffe for
presidente da Universidade de Harvard, acordas-me e me contas-me,
combinado? Não terás que fazê-lo, porque já não há mulheres de Radcliffe;
foram consideradas desnecessárias e abolidas. E depois, não posso escrever o
meu nome com chichi na neve, ou seria muito trabalhoso se o fizesse. Não
posso disparar sobre a minha esposa, filhos, alguns vizinhos e depois sobre
mim mesmo. Ah, na verdade eu nem sei conduzir. Nunca tirei a carta.
Acagacei-me. Apanho o autocarro. É terrível. Admito-o, na verdade sou uma
imitação ou um homem substituto muito fraco, e isso ficou comprovado
quando tentei usar aquelas sobras de roupa do exército com bolsos para
munições que estavam na moda e parecia uma galinha numa fronha. Tenho a
forma errada. É suposto as pessoas serem magras. Não podem ser magras
demais, toda a gente o diz, especialmente as pessoas anoréxicas. As pessoas
deveriam ser magras e esticadas, porque é assim que os homens geralmente
são, esguios e esticados, ou pelo menos é assim que muitos homens
começam e alguns até se mantêm assim. E os homens são pessoas, as pessoas
são homens, isso já ficou bem estabelecido e, portanto, as pessoas, pessoas
reais, pessoas do tipo certo, são magras. Mas sou péssimo a ser pessoa,
porque não sou nada magro, mas um pouco rechonchudo, com partes mesmo
gordas. Sou atarracado. Além disso, as pessoas devem ser duras. Duro é bom.
Mas nunca fui duro. Eu sou meio mole e, na verdade, meio tenro. Como um
bom bife. Ou como o salmão chinook, que não é magro nem duro, mas muito
rico e tenro. Mas o salmão não é uma pessoa, ou pelo menos assim nos têm
dito nos últimos anos. Foi-nos dito que só existe um tipo de pessoa, que são
homens. E acho muito importante que todos acreditemos nisso. Certamente
é importante para os homens.

Na verdade, acho que simplesmente não sou máscula. Como Ernest


Hemingway era másculo. A barba e as armas e as mulheres e as pequenas
frases curtas. Eu tento. Eu tenho essa espécie de barbicha que teima em
crescer, nove ou dez pelos no queixo, às vezes até mais; mas o que faço com
esses pelos? Arranco-os. Um homem faria isso? Os homens não arrancam
pelos. Os homens barbeiam-se. Em suma, os homens brancos, sendo peludos,
barbeiam-se e eu tenho ainda menos escolha sobre ser branco ou não do que
tenho sobre ser homem ou não. Eu sou branco, goste ou não de ser branco.
Os médicos não podem fazer nada por mim. Mas, nestas circunstâncias, faço
o possível por não ser branco, suponho eu, uma vez que não me barbeio.
Arranco. Mas isso não significa nada porque realmente não tenho barba que
se apresente. E não tenho uma arma e não tenho sequer uma mulher e as
minhas frases tendem a prolongar-se indefinidamente, com toda esta sintaxe
nelas. Ernest Hemingway preferia morrer a ter sintaxe. Ou ponto e vírgula. Eu
uso montes de descuidados pontos e vírgulas; olha este aqui agora; foi um
ponto e vírgula depois de “pontos e vírgulas” e outro depois de “agora”.

E outra coisa. Ernest Hemingway preferia morrer a envelhecer. E assim


fez. Matou-se. Uma frase curta. Tudo menos uma frase longa, uma sentença
perpétua. Sentenças de morte são curtas e muito, muito másculas. Sentenças
para toda a vida não o são. As frases lá continuam, cheias de sintaxe e
cláusulas qualificativas e referências confusas, e envelhecendo. E isso é a
prova final da confusão que armei ao ser homem: nem sequer sou jovem. Mais
ou menos pela altura em que finalmente começaram a inventar as mulheres,
comecei a envelhecer. E assim continuei. Descaradamente. Permiti-me
envelhecer e não fiz nada quanto a isso, com uma arma ou alguma coisa.

Isto é: se eu tivesse algum amor-próprio a sério, não teria feito pelo


menos um lifting facial ou alguma lipoaspiração? Embora a lipoaspiração me
pareça o que eles fazem muito na TV quando são jovens ou de estilo jovem,
mas não quando são velhos, e quando um deles é homem e o outro é mulher,
mas em nenhuma outra circunstância. O que eles fazem é que esse homem e
mulher jovens ou juvenilizados abraçam-se e deslizam as mãos um no outro e
depois fazem lipoaspiração. É suposto que os observes enquanto o fazem.
Eles movem a cabeça e esmagam a boca e o nariz na boca e no nariz da outra
pessoa e abrem a boca de maneiras diferentes, e tu deves sentir-te meio
quente ou molhado ou algo enquanto assistes. O que eu sinto é que estou a
ver duas pessoas a fazer lipoaspiração, e é por isso que finalmente
inventaram a mulher? Decerto que não.

Na verdade, acho que o sexo como um desporto para espectadores é


ainda mais chato do que todos os outros desportos para espectadores, até o
basebol. Se for obrigado a assistir a um desporto em vez de praticá-lo,
escolho o hipismo. Os cavalos têm mesmo bom aspeto. As pessoas que os
montam são na maioria aquele tipo de nazis, mas, como todos os nazis, eles
só são tão potentes e bem-sucedidos quanto o cavalo que estão a montar e,
afinal, é o cavalo que decide se salta aquele obstáculo de cinco barras ou se
estaca antes e deixa o nazi cair sobre o pescoço. Só que habitualmente o
cavalo não se lembra de que pode optar. Os cavalos não são muito espertos.
Mas, de qualquer forma, saltos de obstáculos e sexo têm muito em comum,
embora normalmente só consigas ver saltos de obstáculos na televisão
norte-americana se conseguires apanhar um canal canadiano, o que não é
verdade para o sexo. Dada a opção, embora muitas vezes eu esqueça que
tenho uma opção, certamente assistiria a saltos e faria sexo. Nunca a inversa.
Mas estou velho demais para saltos de obstáculos e, quanto ao sexo, quem
sabe? Eu sei; tu não.

É claro que um velho gaiteiro de hoje em dia deve saltar de cama em


cama, como os cavalos saltam os obstáculos de cinco barras, salta, salta, salta,
mas boa parte dessa história de super sexo aos setenta anos parece ser teoria
novamente, como a da mulher CEO da General Motors e a da presidente de
Harvard. A teoria é inventada principalmente para tranquilizar as pessoas na
casa dos quarenta, ou seja, os homens que estão preocupados. É por isso que
tivemos Karl Marx e ainda temos economistas, embora pareça que perdemos
Karl Marx. Como tal, a teoria é elegante. Quanto à prática, ou práxis, como os
marxistas costumavam chamá-la, aparentemente porque gostavam de usar o
xis, esperas até aos sessenta ou setenta anos e vem então contar-me a tua
prática sexual, ou práxis, se quiseres, embora eu não prometa que vou ouvir
e, se ouvir, provavelmente ficarei extremamente entediado e começarei à
procura de algum programa de hipismo na televisão. Em qualquer caso, não
te darei a ouvir nada sobre a minha prática ou práxis sexual, nem nessa
altura, nem agora, nem nunca.

Mas, à parte tudo isso, aqui estou eu, velho, quando escrevi isto tinha
sessenta anos, “um homem público sorridente de sessenta anos”, como disse
Yeats, mas, no caso, ele era um homem. E agora tenho mais de setenta. E é
tudo culpa minha. Nasço antes de inventarem as mulheres e vivo todas essas
décadas a tentar tão arduamente ser um bom homem que esqueço tudo
sobre ficar jovem, e então não fico. E as minhas conjugações temporais
misturam-se todas. Eu sou apenas um jovem e de repente tinha sessenta e
talvez oitenta, e a seguir?

Nada de especial.
Fico a pensar que devia haver alguma coisa que um homem de verdade
poderia ter feito sobre isto. Algo menos do que armas, mas mais eficaz do que
creme de rosto. Mas eu falhei. Não fiz nada. Falhei completamente em
continuar jovem. E então olho para trás para todos os extenuantes esforços
que fiz, porque eu tentei mesmo, tentei muito ser um homem, ser um bom
homem, e vejo como falhei nisso. Na melhor das hipóteses, sou um homem
mau. Um ele de imitação de segunda com uma barba de dez pelos e pontos e
vírgulas. E pergunto-me para quê. Às vezes penso que também poderia
desistir desta coisa toda. Às vezes acho que poderia muito bem exercer a
minha opção, estacar mesmo em frente ao obstáculo de cinco barras e deixar
o nazi espetar-se de cabeça. Se não valho nada a fingir ser homem e não sou
bom a ser jovem, poderia também começar a fingir que sou uma mulher
velha. Não tenho a certeza se alguém já inventou as mulheres velhas; mas
talvez valesse a pena tentar.

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