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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Marcos Aurélio Fernandes
UnB – 2017_2
Aqui, logo de cara, torna-se necessária uma advertência: não se pode introduzir
na filosofia, portanto, em sua temporaneidade e historicidade, logo, em sua
contemporaneidade, a não ser no próprio movimento do filosofar. É em filosofando que,
sempre de novo, nos introduzimos na historicidade da filosofia. “Só a filosofia é começo
dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela própria; por fim, só ela
pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela pretender introduzir, ou
1
Cf. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 9.
1
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
explicá-la, ou justificá-la”2. Deste modo, não há uma passagem que permita que sejamos
introduzidos na filosofia e em sua contemporaneidade a partir da cotidianidade
mediana e de sua autoconsciência pública (aberta a todos), atual, hodierna. Ao
contrário, uma introdução na filosofia e em sua contemporaneidade requer, antes, uma
ruptura com esta autoconsciência atual, hodierna, e, a partir do pensamento, uma
transformação no nosso relacionamento com ela. Não é a autoconsciência da atualidade
que nos permite uma introdução na contemporaneidade da filosofia; ao contrário, é a
nossa introdução na contemporaneidade da filosofia que nos permite um
relacionamento livre com a autoconsciência atual, hodierna. Na verdade, não há
passagem que nos conduza, desde a publicidade do mundo atual para a
contemporaneidade da filosofia. Aliás, nenhuma passagem nos introduz na filosofia,
quer esta passagem parta da cotidianidade, quer ela parta da ciência, quer parta da
visão de mundo, quer parta da arte ou da religião, etc. Não há nenhuma passagem que
nos conduz para dentro da filosofia e da sua contemporaneidade. Só nos resta um salto.
O salto para dentro da dimensão da filosofia. Salto que se realiza, que se consuma e se
cumpre, com o próprio filosofar. Isto quer dizer: com a ação de aprender a pensar – e
isso significa, antes de tudo: aprender a questionar. Questionar, no entanto, não quer
dizer um mero duvidar a esmo, disperso e vazio; quer, antes, dizer: buscar, interrogar,
investigar com todo o cuidado.
2
Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 53-54.
2
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
...
3
Kaì de kaì tò pálai te kaì nyn kai aeì zetoúmenon kaì aeì aporoumenon, tí tò ón? (Metafísica, Z, 1, 1028 b
2 ss).
3
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4
Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar (2ª edição). Petrópolis: Vozes, 1989, p. 107-108.
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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
5
Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF,
2009, p. 78-80.
5
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
6
Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF,
2009, p. 91-94.
7
Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora
Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 39. Cf. também Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der
Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des
philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber,
1988, p. 25-26.
6
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Tendo em mente o que acabamos de refletir, podemos, agora, tentar pensar algo
sobre a contemporaneidade da filosofia.
8
Esta versão do diálogo foi construída tendo como referência a sua menção em: HEIDEGGER, Martin.
Feldweg-Gespräche (1944/45) – Gesamtausgabe Band 77. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995,
p. 239. Também foram cotejados os textos: Chuang-tzu, traducción de Carmelo Elorduy (s.l.): Monte Avila
Editores (s.d.), p. 199 (cap. 26, 7); e MERTON, Thomas. A via de Chuang-tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p.
225-226.
9
Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 33.
10
Cf. Idem, p. 37-44.
7
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
11
Cf. a indicação programática de Kant expressa: “nicht Gedanken, sondern denken, nicht Philosophie,
sondern philosophieren lernen” (aprender não pensamentos, mas a pensar, não filosofia, mas a filosofar)
(AA II, 306 e AA, IX, 25ss).
12
Cf. Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 58.
13
“Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben” (Da utilidade e dano da história para a vida) - Este
texto foi escrito em 1873 e publicado em 1874.
8
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
O filosofar é, pois, neste sentido, sempre inatual. Isso quer dizer: sua atuação e
atualidade se separa, se cinde, da atuação e atualidade do mundo da cotidianidade
mediana pública (aberta para todos), do “saeculum”, o tempo histórico coletivo tal
como se manifesta na abertura deste mundo cotidiano, mediano, acessível e patente a
todos15. Sem uma ruptura com e um distanciamento do próprio “saeculum” não há
como nos deixar introduzir na contemporaneidade da filosofia.
Sem tal ruptura e tal distanciamento, o homem não se põe à altura da exigência
desta contemporaneidade e, ao mesmo tempo, não se torna capaz de um
relacionamento livre – e isso quer dizer, responsável – com o seu próprio “saeculum”.
Trata-se, pois, aqui, de viver filosoficamente a cotidianidade e cotidianamente a
filosofia. Bem o compreendeu Nietzsche. Em “Origem da tragédia” ele escreve: “todo
homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás
da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente e que, por
consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda”. Viver filosoficamente
a cotidianidade significa: entrever no ordinário o extraordinário. Viver cotidianamente
a filosofia quer dizer: deixar que o relacionamento de ser e pensar com o mistério de ser
– o extraordinário - perpasse todos os demais relacionamentos ordinários. Esta atitude
parece ser própria do “homem filósofo” (anér philósophos), que é, certamente, algo
diverso de um “homem filosófico”16. De Heráclito, que era um homem filósofo,
Aristóteles conta uma história que diz bem o sentido desta atitude:
14
Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 58-59.
15
Cf. idem, p. 60-61.
16
Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora
Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 31.
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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
17
Aristóteles, De partibus animalibus A5 645 a 17ss. Apud Heidegger, Martin. Heráclito: a origem do
pensamento ocidental; lógica: a doutrina heraclítico do lógos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p.
22.
18
Em seu comentário à metafísica (I,3) Tomás de Aquino anota: “o filósofo se parece com o poeta porque
ambos se ocupam do que é admirável, do que suscita pasmo e estupor”.
10
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19
Cf. Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e conferências.
Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2001, p. 45-46. Heidegger, neste texto, propõe duas
compreensões de “theoria”, em sentido grego. 1) Numa primeira compreensão, que se afina mais com a
compreensão filosófica platônica (metafísica), o verbo grego (theoreín) é elucidado a partir da
composição de (théa) e (horáo). (théa) é, em latim, aspectus, e em alemão “Anblick”, isto
é, a “vista”, a “visão”, tanto no sentido do que se deixa ver quanto no sentido do ato mesmo de ver, o
olhar (anblicken – aspicere, intueri). (théa) tem assim, também, o sentido de aparência, semblante,
fisionomia, perfil. (théa) é também o espetáculo teatral, ou, ainda, o lugar para ver o espetáculo no
(théatron: teatro). (théa), portanto, quer dizer aquilo em que algo se mostra, a vista ou
visão que algo oferece de si. Platão chama este aspecto, em que o vigente mostra o que ele é de
(eidos). Na compreensão grega, saber, (eidénai) é ter visto o aspecto em que o ente mostra
o seu ser, no sentido de aquilo que ele é. Já o verbo (horáo) quer dizer olhar alguma coisa (aspicere),
mirá-la, fitá-la, encará-la, perceber a sua presença, sua autodoação (intueri – intuir). (horáo) quer
dizer, pois, estar ao conspecto (conspectus) de algum ente, em face dele, tê-lo como uma “res praesens”
(coisa presente), auto-vista, auto-apreendida (cf. a expressão grega - autopsia – ver com os
próprios olhos, observar diretamente alguma coisa). (horáo) é, portanto, conspicere, olhar, ver, no
sentido de avistar, divisar, enxergar; e, noutro sentido, considerar, pensar, compreender alguma coisa.
(theoreín) quer dizer, pois, (théan horan), aspectum conspicere: divisar a vista,
enxergar o aspecto, em que o vigente ou presente aparece e brilha, e, através de tal aspecto, demorar no
ver, observar, considerar, contemplar.2) Numa segunda compreensão, (theoreín) escuta-se a
composição de (theá) e (ora). (theá) é a deusa. É como deusa, o extraordinário do
espetáculo da revelação do mistério de ser, que a (alétheia) aparece para Parmênides, no seu
poema. Já (ora), que também remete a (horáo), olhar, ver, enxergar, em latim deixa-se traduzir
por cura, que quer dizer cuidado, diligência, solicitude, atenção. Trata-se de um olhar cuidadoso e de um
cuidado atento, que se dá na forma de um respeito, de uma consideração, por aquilo a que se dirige e
com o que se relaciona; um cuidado, portanto, que honra aquilo a que se volta. (theoria) é, neste
sentido, a consideração respeitosa da revelação, do desocultamento (Un-verborgenheit), do vigente em
sua vigência, é a visão protetora da verdade. Enquanto a raiz (id-) indica um ver momentâneo,
instantâneo, a raiz (hora-), porém, indica um ver que se demora, que se dedica longamente a cuidar
daquilo para se dirige e para o que se relaciona, diz um ter os olhos fitos sobre alguma coisa, demorada e
cuidadosamente. É uma percepção que se realiza no modo de um cuidado respeitoso para com aquilo
que se dá a ver, para o que se apresenta em sua presença, em sua vigência. Aquele que olha, neste caso,
vela sobre aquilo que se confia ao seu olhar. Ele se torna um guardião, um protetor do vigente em sua
vigência (do ente em seu ser). Algo desta raiz (hora-), que, inicialmente, deveria ter um digama
(Ϝaparece na língua latina como em vereor (vereris, vereri, veritus sum) que quer dizer respeitar,
no sentido de ter um receio, um medo religioso, frente ao mistério. Também aparece no latim no verbo
servo (servas, servare, servavi, servatum) que quer dizer preservar, guardar, assegurar a salvação ou a
conservação de alguma coisa e, daí, também, o sentido de não tirar os olhos de, observar, vigiar; e, por
conseguinte, o sentido de não sair de perto de, não largar, permanecer, ficar junto de, habitar. Talvez
devêssemos entender a palavra latina veritas (verdade) a partir daí. No antigo alto-alemão temos a
palavra wâra como correspondente de veritas. No antigo alto-alemão temos também o adjetivo wâr para
verdadeiro. No alemão moderno temos, assim, o adjetivo wahr (verdadeiro), o qual, segundo o dicionário
Grimm, remonta a uma formação intensiva reduplicadora de warôn, que quer dizer, em latim, custodire
(custodiar), tegere (cobrir, vestir, revestir; garantir, proteger, ocultar, esconder, abrigar) [a partir daqui
temos, em latim, as palavras tegula (telha), tegumentum (cobertura, vestido, proteção)], protegere (cobrir
pela frente, abrigar, garantir, proteger), conservare (conservar, defender, salvar, respeitar, guardar,
observar fielmente), cavere (tomar cuidado, precaver-se, acautelar-se; e, daí, velar por, cuidar de, olhar
pelos interesses de, tomar providências para), tueri (ver, olhar, observar; guardar, proteger, defender,
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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
velar). De modo semelhante, temos no alemão moderno o verbo wahren que quer dizer cuidar de,
defender (por exemplo, os direitos de), salvar, guardar (a dignidade de algo ou alguém). É partir daqui,
pois, que se há de entender a palavra alemã Wahrheit (verdade). Na segunda compreensão, mais
originária do que a primeira, e talvez esquecida e encoberta pelo entendimento metafísico predominante,
(theoria) é a (ora) – a cura (cuidado), a diligência, a solicitude, a consideração protetora,
vigilante, da (theá), ou seja, da deusa, a saber, do extraordinário da revelação do mistério de ser no
ente, da verdade no verdadeiro. Em consonância com isso, em grego temos a palavra (theorós)
para designar aquele que se relaciona com o mistério, seja pela consulta de um oráculo, pela assistência
de uma festa dedicada a um deus, seja pelo assistir de um espetáculo teatral. (Theários) era,
assim, um dos epítetos de Apolo, deus dos oráculos. Antes de Platão, deste modo, (theoria)
significava o envio de embaixador para assistir uma festa dedicada a uma divindade. É partir de Platão
que aparece o sentido de consideração, contemplação; e só no grego helenístico é que a palavra toma o
sentido de especulação.
20
Heidegger, Martin. Em: “Por que ficamos na província? ” (1934). In: Revista Vozes, ano 7, n. 4, Maio de
1977, p. 45.
12
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América do Sul. Cartas, cada vez mais raras. E ainda não sou
velho! Somente filósofo! Somente à margem, à parte!
Somente comprometidamente à parte! ” 21
21
Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009,
p. 26.
22
Discurso do método, parte 3.
23
Gasset, O. Sobre la razón histórica. Madri: Alianza Editorial, 1983, p. 31.
24
Cf. Hanna Arendt. Martin Heidegger faz oitenta anos.
25
Fogel, Gilvan. Idem, p. 25.
13
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
26
Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 69.
14
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
Esse pensamento preparatório está, pois, voltado para o porvir, para o futuro.
Ele se mantém na finitude. Não deixa de ser, porém, espera do inesperado, ainda que
na situação desoladora do momento histórico de hoje.
27
Heidegger, M. Caminhos de floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 244-245.
15
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
28
Cf. Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 13.
29
Era este fenômeno do permanecer (verweilen) que veio à palavra grega (ousía). O ser do ente
fora compreendido, assim, como o vir à presença, no sentido de vir a estar numa estabilidade, como o
que subjaz aí. Daí pode-se entender a tradução de (ousía) para substantia, isto é, a estância do que
prejaz ou subjaz. No latim, stantia é o lugar, o recinto, onde alguém se detém e se recolhe (daí, no italiano,
Stanza, para quarto). O stare (sto, stas, stare, steti, statum) tem o sentido de estar ereto, mas também o
sentido de estar imóvel, de ficar firme, e, por conseguinte, de estacionar, parar, morar, persistir. Na língua
portuguesa, estância é o lugar onde se está ou se permanece por algum tempo; daí, significa parada,
paragem, estação. No Rio Grande do Sul chama-se de estância a fazenda. Estância é o paradeiro, a
morada. Verweilen remete a Weile, que é a permanência, no sentido do quietar da quietude. Weile, seria,
em latim, quies, quiescere, quietus. O parar, porém, entendido como o quietar e a sua quietude, não é
entendido como uma carência do movimento, mas, antes o contrário, como sua plenitude. Por isso,
Aristóteles, por exemplo, entendeu a (ousía) no sentido da (enérgeia): a realidade dando-
se como plena realização do real, mais precisamente, deste real que é cada vez – o (tóde ti).
30
Heidegger, idem, ibidem.
16
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interpretamos31. Hoje quer dizer: a facticidade que nos concerne, que nos toca, a cada
vez. O hoje é uma determinação do nosso ser-aí-a-cada-vez – é o a cada vez estar,
permanecer (Je-verweilen), na atualidade (Gegenwart), naquela que é a cada vez a
nossa, atualidade que é sempre historial, que se realiza sempre como um modo de ser-
no-mundo (In der Welt sein)32.
31
Cf. Heidegger, idem, ibidem.
32
Cf. Heidegger, idem, p. 37-38.
33
Cf. Heidegger, Martin. Feldweg-Gespräche (1944-1945) (GA Band 77). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995, p. 227.
34
“Ean mê élpêtai, anélpiston ouk exeurêsei, anexereúnêton eòn kaì áporon”. Fragmento 18.
35
Cf. Heidegger, Martin. Idem, p. 228.
36
Cf. Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 37-41.
17
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
Tentemos começar isso com duas perguntas: como o pensamento se mede com
o hoje? E: O que há com o pensamento hoje?
37
Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009,
p. 59.
38
Idem, ibidem.
39
Idem, ibidem.
18
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
contemporâneo, não é nada fácil. De fato, ser contemporâneo de si é muito mais do que
ser coetâneo do próprio mundo em que se vive, ou melhor, em que se é vivido.
O hoje em que vivemos somos nós. Ele vive em nós e nós vivemos imersos nele.
Por isso, a conquista da lucidez do pensamento é sempre uma agonia, isto é, um
combate (agón) consigo mesmo. Vencer-se a si mesmo é o desafio da maior luta que
cabe a um homem. Para pensar, e para ser contemporâneo, o pensador precisa vencer-
se a si mesmo. Precisa pensar contra si mesmo, contra a consciência hodierna, sim,
precisa pensar mesmo contra a filosofia. Só assim o pensador põe-se à altura do hoje do
pensamento, do “kairós” do ser e do tempo, e se torna contemporâneo de si mesmo.
40
Idem, p. 60.
19
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
Hoje vivemos uma época de crise, por conseguinte, uma época de decisão, entre
riscos e oportunidades. A história parece ter mergulhado profundamente naquilo que o
poeta Hölderlin denominou de “noite do mundo” (Heidegger, 1946/1994a, p. 269).
Nesta noite, poetas e pensadores se tornam sentinelas. A sentinela é alguém que vigia,
ou seja, que se mantém desperto e vigilante, à espera do dia. Esta noite já fora
pressentida no fim do século XIX por Nietzsche. Este, no contexto da crise epocal, que
se instalava sub-repticiamente enquanto a civilização europeia celebrava as glórias do
progresso, viu a grandeza do humano em ser uma passagem e um ocaso. “O que é
grande no homem é isto, que ele é uma ponte e não um fim; o que pode ser amado no
41
Idem, p. 11-12.
42
Idem, p. 28.
20
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
homem é isto, que ele é uma passagem e um ocaso”43. A tarefa que incumbe o homem,
em meio a esta crise epocal, é de se ultrapassar a si mesmo, de ir além do homem que
existiu até agora. Por isso, para Nietzsche, o homem de hoje, em sua essência de futuro,
é o homem da passagem (Übergang). Mas esse homem da passagem, de uma passagem
que conduz para além do homem que existiu até agora, é também o homem do ocaso
(Untergang): o homem que declina. Entretanto, essa vicissitude do declínio é,
justamente, o que nos incumbe de cumprir uma passagem, de ir além do homem que
existiu até agora.
A crise é risco, mas é também oportunidade. Novo kairós, novo tempo oportuno.
Tempo, segundo Nietzsche, de o “espírito leão”, que diz “não” e que quer ser senhor e
deus de tudo, característico do homem moderno, se transformar em “espírito criança”.
43
Nietzsche, F. (1883-1885/1994). Also Sprach Zarathustra: ein Buch für Alle und Keinen. Stuttgart:
Reclam, p. 12.
44
Idem, p. 26.
21
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
ser humano, que já não seja mais o homem da objetividade e da funcionalidade e nem
o seu correlato, o homem da subjetividade moderna.
Desde o tempo das duas guerras mundiais do século passado, a exigência dessa
ultrapassagem foi se fazendo sentir cada vez mais como uma insistência do apelo de ser
que nos vem do porvir, como palavra do tempo, do “kairós”. Demos apenas dois
exemplos de pensadores em que esta palavra se faz sentir: Simone Weil e Martin
Heidegger. A situação do homem desse século chegava a Simone Weil sob o nome de
“desenraizamento” e a Martin Heidegger sob o nome de “apatridade”. O
desenraizamento foi percebido e meditado pela Weil que lhe dedicou um escrito de
1943, quando a segunda guerra mundial se alongava. Ela escreve:
45
Weil, Simone. O Enraizamento (1943). In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 411.
22
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
46
Weil, Simone. O Enraizamento (1943). In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 412.
47
Idem, p. 413.
48
Idem, ibidem.
49
Heidegger, M. O discurso dos oitenta anos (1969). ). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, vol. 71, 1977,
p. 52.
23
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
“construir o mundo sem Terra da técnica total”50. O poeta Hölderlin advertiu este
destino de apatridade do homem contemporâneo com as seguintes palavras que soam
como um vaticínio:
50
Leão, E. C. A técnica e o mundo no pensamento da terra. In: Aprendendo a pensar II. Teresópolis:
Daimon, 2010, p. 101.
51
Apud Leão, E. C. Op. Cit., p. 102.
24
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
qualquer caso, como quer que seja ou aconteça: nós não nos
devemos queixar, temos é de nos questionar!52
52
Heidegger, M. O discurso dos oitenta anos (1969). ). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, vol. 71, 1977,
p. 53.
53
Leão, Emmanuel Carneiro. Apresentação. Em: Quintão, Denise. Seguindo o Todo por toda a Terra: uma
fenomenologia do arcaico nos gregos. Teresópolis: Daimon, 2007, p. 17.
54
Leão, E. C. Idem, ibidem.
55
Idem, p. 18.
56
Idem, ibidem.
25
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
como vocação”. Weber saúda o novo espírito da modernidade, mas alude ao risco que
ele trazia. Com o crescente predomínio da razão científico-tecnológica, o mundo se
expunha ao perigo de cair no desencanto e os filhos da nova modernidade arriscavam
se tornar especialistas sem espírito e hedonistas sem coração. É significativo que Weber
termine a sua conferência com uma “bela canção da sentinela edomita, da época do
exílio, recolhida nas profecias de Isaías”. Esta canção diz:
Ainda não está decidido se este declínio se dará como um mero decaimento ou
se se dará como a passagem para outro princípio.
57
Cf. Weber, M. A ciência como vocação. Em: www.lusosofia.net, p. 33.
26
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
O declínio, o ocaso, porém, pode se dar também como uma passagem para outro
princípio. Neste caso, o declinar tem um sentido trágico. Trágico, não no sentido usual
da palavra, de desgraça e infortúnio trazido por uma fatalidade. Trágico, no sentido
poético de um combate entre os opostos, luz e escuridão, liberdade e destino, em que
aquele que combate só vence à medida que declina. Declinar é, aqui, ir para o fundo,
afundar, no sentido de retornar ao encoberto, ao velado. Neste caso, justamente o
encontro com a escuridão é o que ilumina. Como Édipo que passou a ter um olho a mais
e se tornou um vidente, como Tirésias, depois que ficou cego. Um vidente é um homem
que vê não só o patente, mas também o latente. Não só o presente, mas o ausente; um
homem que vê a cada presente a vigência do passado e do futuro.
27
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
trazendo de volta os que se foram / à luz do claro dia nascente, / ovelha e cabra nos
trazes de volta; / trazes de volta, à mãe, o seu filho”58.
58
Safo de Lesbos. Poemas e fragmentos. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2003, p. 131.
59
Grande Sertão, p. 7.
28
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
coruja da filosofia voltar a se encontrar com a força geradora, nativa, do caos. E, a partir
daí, pensar a partir do porvir, na vigília e na espera de um outro dia histórico, que talvez
irrompa silencioso por entre as confusões, a penúria, e os estremecimentos de nosso
tempo.
29
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
2 A CONSUMAÇÃO DA METAFÍSICA
30
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
Para o pensamento que hoje se faz porvindouro, isto é, que pensa a partir do
futuro, o fim da filosofia no sentido da metafísica não é um mero decaimento. É uma
passagem que traz consigo o convite para outro princípio: “em seu Fim, a Filosofia não
finda na decadência de uma decrepitude, mas se instala na jovialidade de uma nova
plenitude”61. Este outro princípio, na verdade, só se inaugura a partir do diálogo com o
princípio originário esquecido pelo próprio pensamento grego, a saber, a
(alétheia = revelação do mistério de ser). Neste esquecimento é que se deu a
história da filosofia enquanto metafísica, isto é, a história do ocidente:
60
Leão, Emmanuel Carneiro. A morte do pensador. In: Aprendendo a Pensar. Petrópolis: Vozes, 1989, p.
145-146.
61
Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n.
4, vol. 71, p. 9.
31
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
62
Idem, p. 10.
63
Heidegger, Martin. Der Spruch des Anaximander. In: Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1994, p. 323. Trad.: Caminhos de Floresta, p. 374.
64
Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,
1996, p. 428. Trad.: Marcas do Caminho, p. 437.
65
Idem, ibidem.
32
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
66
Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia? In: Conferências e Escritos Filosóficos (Os pensadores). São
Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 29.
33
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
67
Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,
1996, p. 428-429. Trad.: Marcas do Caminho, p. 437-438.
34
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
68
Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n.
4, vol. 71, p. 10.
69
Rombach, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit.
Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 9.
70
Idem, p. 7.
35
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
por ela, o homem sobrepuja o ente na direção do ser. É enquanto espírito que o homem
é capaz de reflexão, isto é, de retorno sobre si mesmo e para dentro de si mesmo (reditio
in se ipsum – na expressão de Tomás de Aquino). A reflexão do homem sobre si mesmo,
a autoconsciência e a configuração da subjetividade, é a base da filosofia moderna.
Hegel procura superar a dicotomia moderna de corpo e espírito, mundo e consciência,
objeto e sujeito. Procura integrar estes opostos num todo uno. Na sua filosofia, o
pensamento moderno é instado a passar do terreno do entendimento (Verstand) e da
finitude para o terreno da razão (Vernunft) e da infinitude. Trata-se da passagem da
consciência para a autoconsciência e a razão. A noção de consciência deve ser superada
naquela de autoconsciência. É que consciência supõe sempre o ser sujeito em sua
relação com o objeto e concebe este como fora de si, outro de si, independente de si. A
autoconsciência, porém, é justamente a supressão desta alteridade e exterioridade. “A
verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento daquela; de tal modo
que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o objeto
como meu (este é minha representação), por isso, neste [objeto] eu sei a mim
mesmo”71. Essa passagem da consciência para a autoconsciência e a razão é, para Hegel,
um passo importante, antes, decisivo, no avanço do espírito em direção a si mesmo.
Essa passagem começa, justamente, com Descartes:
71
G. W. F. Hegel, Enzykopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (par. 344), 251.
36
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
Este deixa de ser (kósmos) ou ordo (ordem) para ser sistema. Sistema
quer dizer: um todo, em que cada momento apenas é enquanto é para outro momento,
numa relação funcional. Por si, cada momento não tem nenhuma significância. A
significância de cada momento só se dá na sua relação com outro momento. Sua
significância, por sua vez, é dada pela sua atuação, na execução de uma função, naquilo
72
Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,
1996, p. 429-430. Trad.: Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 439.Trad.:
Marcas do Caminho, p. 438-439.
73
Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 73.
37
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
que ele elabora, apronta, realiza, em relação a outro momento (configere). Isto é, a
significância de um momento só é dada naquilo que ele leva a cabo, traz ao acabamento
(efficere). O que está em jogo é, a cada vez, um perfazer (perficere) funcional, em relação
a outro momento. O ser de cada momento é um “esse in alio” (ser-em-outro), não um
“esse in se” (ser-em-si)74. A substância cede lugar ao sistema, isto é, para a relação
funcional75.
74
A experiência e a compreensão do todo da realidade na época antiga podia ser resumida na categoria
de “substância”. Substância significa ser de modo independente, “ser em si” e “existir por si”. De início, é
ente aquilo que se determina em si mesmo: a substância. À substância do ente pertencem as suas
determinações essenciais, invariáveis. Em seguida vem aquilo que é concomitante à substância, como
suas propriedades e manifestações variáveis, acidentais. Já na modernidade, o todo da realidade é
experimentado como sistema. Tudo o que existe é um momento dependente, pois, está posto e subsiste
somente enquanto está posto em relações funcionais com todos os outros momentos do todo e com o
todo como tal. Cada momento do todo só é enquanto está posto em relação funcional com outro
momento. Nenhum momento do todo tem um significado independente. Todo momento recebe o seu
significado a partir de uma dependência funcional. Em vez do “esse in se” (ser em si) ou “per se” (por si),
entra, agora, o “esse in alio” (ser em outro). Cada momento tem o seu ser em outro; só é o que ele
consegue atuar, efetivar. Só é apreendido a partir de sua atuação funcional.
75
A ontologia funcional começa a emergir com Nicolau de Cusa (c. 1430). Depois, irrompe propriamente
com Copérnico (c. 1490). Kepler e Galilei seguiram por esta esteira no modo de compreender a natureza.
As constelações dos corpos celestes passam a ser compreendidos sistematicamente. Newton entende o
todo da natureza como sistema. Descartes, Leibniz e Spinoza, apesar de falarem de substância, já não
têm em vista o todo do ente como um todo substancial, como um ordo (ordem), ao modo medieval. Suas
ontologias já são relacionais-funcionais, isto é, sistemáticas.
76
Este passo decisivo é dado por René Descartes (1596-1650). Os principais precursores são: Nicolau de
Cusa (1401-1464), Leonardo da Vinci (1452-1519), Nicolau Copérnico (1473-1543), Giordano Bruno (1548-
1600), Galileo Galilei (1564-1642), Johannes Kleper (1571-1630). O arranque deste movimento do
pensamento a filosofia de Nicolau de Cusa (1401-1464), que, por volta de 1430, apreendeu o pensamento
de uma organização sistemática do mundo. Entretanto, pensou esta organização sistemática a modo de
um organismo vivente. O pensamento do Cusano atuou, por sua vez, na astronomia do começo da
modernidade, de uma maneira “desvitalizada”. Copérnico (1473-1543) realiza, assim, por volta de 1490,
uma revolução que introduziu a imagem do mundo da modernidade. Ele reconheceu o caráter sistemático
das estrelas móveis e da terra. Concebeu que os planetas se movem realizando uma circulação exata e
regular, quer em torno do sol (revolução), quer em torno de si mesmos (rotação). Johannes Kepler (1571-
1630), por sua vez, tornou mais refinada a representação sistemática do mundo de Copérnico. Kepler
concebeu a órbita elíptica dos astros. Um passo ulterior foi dado por Galileu Galilei (1564-1642). Galilei
trouxe o pensamento do sistema do céu para a terra, da astronomia para a física. Por meio do telescópio,
ele descobriu que os corpos celestes não eram entidades espirituais com matéria incorruptível (a quinta
essência), mas eram corpos como a terra. Com Galileu céu e terra se tornam homogêneos. Os astros se
tornam terrestres e a terra se torna um astro. A mecânica do céu é transferida para os movimentos dos
corpos terrestres, assim como as leis físicas da terra, na astrofísica, é transferida para os astros. Assim, no
céu e na terra, tudo passa a ser reduzido a leis unitárias, de caráter funcionalístico, sistemático. Forma-
se, assim, um sistema do mundo.
38
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
77
“O matemático” nos remete de volta ao pensamento grego. Em grego, “mathematikós” significa
“dedicado à aprendizagem”, “estudioso no aprender”. “Tó máthema” significa “o que se há de aprender”;
no plural, “tà mathémata”, “as coisas que hão de ser aprendidas”. “Máthesis” é a própria aprendizagem.
“Mantháno” é, por sua vez, “aprender”, mas também, “habituar-se”, “vir a conhecer ou a saber”, “captar
com a visão”, “ver”, “apreender”, “reconhecer”, “dar-se conta de”, “compreender”.
78
Daí o papel que têm os números, as grandezas, as relações, as proporções.
79
O conhecimento do mundo, sempre experimental e, ao mesmo tempo, hipotético, se dá, como dizia
Galileu Galilei, por um “mente concipere” (um conceber com a mente). Conceber com a mente significa
lançar um projeto de intelecção que se estende por sobre as coisas, abrindo os espaços de jogo, onde as
coisas se mostram, onde os fatos de deixam inteligir desde princípios (conhecimento dedutivo) ou em
vista de princípios (conhecimento indutivo). Assim, por exemplo, na moderna ciência matemática da
natureza, o projeto abre de antemão o espaço de manifestação dos entes naturais desde algumas
determinações fundamentais tidas em alta conta (axiomas), como: espaço homogêneo, tempo
homogêneo, corpos homogêneos, movimentos homogeneamente mensuráveis como deslocamentos de
pontos de massa, etc. Isso quer dizer: o projeto matematizante da natureza é axiomático; o lance
conceptual prévio constitui o esboço fundamental do quadro em que cada coisa e cada estado-de-coisa
ou conjuntura há de se manifestar.
80
Atribui-se a Descartes uma sugestiva parábola a respeito da decifração do mundo. Ele tenta ilustrar o
modo de ser do conhecimento denominado interpretação mais ou menos assim: Uma pessoa recebe de
um desconhecido uma carta cifrada, cujo código de decifração ela desconhece. Depois de várias
tentativas, consegue descobrir uma regra, cuja aplicação lhe permite montar um código que lhe possibilita
ler a carta, de tal modo que ela traz à luz uma mensagem com sentido plenamente compreensível e até
incontestável na sua coerência. Descartes, porém, especula: Poderia acontecer que, por ser um homem
de grande habilidade, o autor da carta a tenha redigido de tal modo que, sob outro código de decifração,
a mesma carta contivesse outra mensagem, inteiramente diferente da anterior. Com isso, em nada é
alterada a primeira leitura da carta. Que alguém seja capaz de descobrir outro código de decifração é
admirável. Mas a pessoa que fez a primeira leitura pode, tranquilamente, deixar aberta essa questão da
existência de outro código de decifração. A ela basta que, no seu modo de ler, a carta lhe dê sentido
39
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
coerente de início até o fim. Mas a segunda leitura não lhe poderia dar um sentido melhor, mais próximo
ao da intenção do autor? Sim, se o autor tivesse fixado como válido e melhor um dos códigos de
decifração. Mas suponhamos que esse autor da carta é o próprio Criador, de quem se origina o universo
e tudo o que ele contém, seja atual ou possível. Suponhamos que esse Criador cifrou a carta segundo um
número interminável, infinito, de diferentes códigos. Segundo Descartes, essa parábola mostraria o
relacionamento e a postura própria do pesquisador nas ciências naturais exatas para com o universo. Um
cientista da natureza absoluto, congenial ao Criador, poderia, assim, desenvolver inúmeras astronomias,
mecânicas, ópticas, medicinas, etc, sem que uma tivesse em linha de princípio a primazia sobre a outra.
Cf. Harada, Hermógenes. Em Comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança
Paulista: Edusf, 2003, p. 30. Rombach, Heinrich. Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit.
Freiburg / München: Alber, 1988, p. 139.
81
Heidegger, M. O que é uma coisa? A doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Lisboa, 1992, p.
95.
40
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
82
Idem, p. 96.
83
Idem, p. 97.
41
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
84
No horizonte da experiência e da compreensão moderna do ser, a mente é a realidade verdadeira e
primordial, mas, na mente, se sobressai tanto o pensar (repraesentatio) quanto o querer ou apetecer
(appetitio), sendo que, por fim, o querer se afirma como cada vez mais decisivo, à medida que a realidade
se torna funcionalidade. É a partir do horizonte da funcionalidade como operacionalidade, eficiência e
eficácia, que se impõe também a correspondência entre as funções da subjetividade e as funções da
objetividade.
85
Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 87-90.
42
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
A questão da finitude, deixado não aprofundado por Leibniz, é central para Kant.
O todo do ente aparece como sistema justamente para um conhecedor finito (Intellectus
ektypus)87. O conhecer, em sua finitude, precisa receber algo de outro, de fora. Ele tem
que se deixar “dar” seu conteúdo. Isso que é recebido como conteúdo é acolhido numa
86
Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 91-94.
87
Kant fez a descoberta de que o conhecimento propriamente científico está baseado sobre juízos que
não são nem analíticos (quando o predicado está já contido no sujeito), nem sintéticos a posteriori(
quando o predicado acrescenta algo que não estava já contido no sujeito e quando os mesmos,
simultaneamente, provêm da experiência), mas sim juízos sintéticos a priori ( que expressam conteúdos
que são o resultado de uma síntese ou reunião e que, no entanto, têm o caráter de universalidade e
necessidade, não podendo ser provenientes da experiência, já que os dados da experiência são sempre
particulares e contingentes). Todos as proposições fundamentais da matemática, da geometria e da física
são sintéticos a priori (axiomas, teoremas, leis). Também o são as proposições metafísicas. Perguntando
pela condição da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, Kant foi conduzido à descoberta da função
fundamental que, no conhecimento, exerce o sujeito, isto é, a razão (tomada aqui em sentido lato, isto é,
como faculdade gnoseológica em geral e não como a faculdade que se refere às idéias tal como as
entendia Kant). O fundamento dos juízos sintéticos a priori é o sujeito que sente e que pensa, ou melhor,
não este ou aquele sujeito empírico, mas a subjetividade estrutural humana com as suas leis que regulam
seja a sensibilidade seja o intelecto. Trata-se da subjetividade transcendental, não da empírica.
43
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
88
Transcendental é aquilo que o sujeito previamente lança e põe no projeto do conhecimento dos
objetos, no ato mesmo de conhecê-los. Quando se trata da sensação, isto é, do conhecimento sensível,
transcendentais são as formas prévias segundo as quais são ordenados todos os dados da experiência, ou
seja, as formas puras da intuição: o espaço e o tempo. Quando se trata do pensamento, ou seja, do
conhecimento inteligível, transcendentais são as categorias, conceitos puros do intelecto, verdadeiras
leges mentes, que regulam o uso da faculdade intelectiva. Fundamento do objeto é, portanto, o sujeito.
O objeto só pode se contrapor ao sujeito porque, no fundo, o supõe. O objeto não se constitui como tal a
não ser mediante a representação do sujeito. Mas o sujeito permanece sempre idêntico a si mesmo em
toda a mudança e variação das representações. O “eu penso” (Ich denke) acompanha, imutável, ou seja,
sempre idêntico a si mesmo, todas as representações. O “eu penso” é o ponto focal onde reúne-se a
multiplicidade de tudo aquilo que é percebido e concebido. Tal ponto focal que se constitui na instância
estrutural do sujeito, a qual apresenta as características de ser unitária e originária, transcendental e
sempre idêntica a si mesma é chamada de consciência. O “eu penso” é ele mesmo representação, mas
representação originária, pois não pode ser objeto de uma intuição, no sentido de uma percepção
empírica. O “eu penso” é, pois, uma representação que não provém de uma receptividade ou passividade,
mas sim de uma espontaneidade. O “eu penso” é dado de modo imediato como apercepção originária ou
pura. Tal apercepção é o que caracteriza a consciência como autoconsciência. A unidade subjetiva da
multiplicidade objetiva que se dá na autoconsciência é chamada por Kant de unidade transcendental da
autoconsciência. O nosso pensamento é, no fundo, uma atividade unificadora, sintetizadora. A forma do
intelecto é a apercepção originária. À capacidade de produzir e de configurar, sintetizando,
representações que são intermediárias entre o sensível e o inteligível Kant chamou de imaginação
transcendental. Esta produz “esquemas” transcendentais que possibilitam aplicar as categorias aos
objetos. Kant percebeu que todas as categorias são determinações do tempo. Recuou, no entanto, no
esclarecimento deste nexo entre o esquematismo das categorias e o tempo.
89
Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 107- 110.
44
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
45
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
90
M. Heidegger, Zur Bestimmung der Philosophie, p. 134.
46
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
91
Cfr. J. G. Fichte, Dottrina della Scienza, 75-102.
92
Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 111-112.
47
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
93
F. W. J. Shelling, Sistema dell’idealismo trascendentale (cap. III, avvertenza), 145.
94
F. W. J. Shelling, Sistema dell’idealismo trascendentale (cap. III, avvertenza), 145.
95
Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen
Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete
Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 112-113.
48
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
96
G. W. F. Hegel, Enzykopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (par. 344), 251.
97
A noção de ciência universal, porém, remonta a Aristóteles. Na Metafísica ele diz: “Há uma ciência que
considera o ente enquanto ente e aquelas propriedades que lhe competem enquanto tal. Esta ciência não
se identifica com nenhuma das ciências particulares: de fato, nenhuma das outras ciências considera o
ente enquanto ente de modo universal, mas, depois de ter delimitado uma parte do ente, cada uma
estuda o que é concomitante a esta parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas” (Metafísica Gama
1003 a 20 – 26).
98
Wissenschaft vem wissen: saber.
49
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
“cogito ergo sum” como sendo o que há de mais sabível em toda a sabença e na sabença
de tudo, o primado da “mens sive animus”, o primado da “ratio” ou “Vernunft”, o
primado do “Geist” (Espírito). Em lições sobre a história da filosofia, Hegel, depois de
falar de Bacon e de Jakob Böhme, ao falar de Descartes diz:
50
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
Na consciência vige, isto é, vigora e reina, ser (sein). Este ser se caracteriza como
auto-presença e auto-sabença. A verdade da consciência se dá como autoconsciência. A
autoconsciência, porém, é movimento, encaminhamento. É todo um dinamismo de
realização da identidade humana. No idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel)
aparece claro que a identidade não é mera igualdade (A = A). A identidade inclui, em sua
realização, autoposição e heteroposição. A realização concreta da identidade não deixa
de fora, antes, inclui, a mediação dialética da diferença. Identidade inclui a relação
consigo mesmo e a relação com o outro. No diálogo “Sofista” (254 d), Platão, falando de
(stásis), repouso, e(kínesis), movimento, põe na boca do estrangeiro,
a seguinte indicação:
(oukoun auton
hékaston toin men dyoin hetón estin, autò d’heautõ tautón): “entretanto, cada um deles
é um outro, ele mesmo, contudo, para si mesmo o mesmo”. Platão não diz
simplesmente: cada um deles é ele mesmo o mesmo, mas diz, antes: cada um deles é
ele mesmo para si mesmo o mesmo. Isto é, cada um é dado a si mesmo como o mesmo.
Na identidade vige, pois, não meramente um ser si mesmo, mas vigora e reina um
relacionamento de si consigo mesmo. O “com” pertence, pois, à identidade. Este “com”
significa uma mediação. Embora isso já apareça em Platão, é somente no idealismo
99
Leão, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia do Espírito de Hegel. Aprendendo a Pensar I: O pensamento
na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 141-142.
51
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
especulativo (preparado por Leibniz e Kant e posto em obra por Fichte, Schelling e
Hegel) que essa mediação vem à tona com toda a clareza. A vigência da identidade é,
pois, sintética, isto é, se dá como uma com-posição. A com-posição está tanto na
autoposição como na heteroposição. A unidade da identidade não é uniforme,
monótona. Ademais, a identidade não exclui a diferença. Em sua realização está em
jogo, sempre de novo, o relacionamento com a diferença100. Ela se dá como uma
abertura e um acolhimento da totalidade.
100
Cf. Heidegger, Martin. O princípio da identidade. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo:
Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 173-174.
101
Leão, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia do Espírito de Hegel. Aprendendo a Pensar I: O
pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 142.
102
Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 439.
52
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
103
Idem, p. 440.
53
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
104
Mente ou ânimo/espírito. Cfr. Descartes.
54
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
105
Razão. Cfr. Descartes, Leibniz, Espinosa, o “racionalismo”, como também o “empirismo”: Locke, Hume,
Berkeley.
106
Em alemão, Vernunft é razão. Conceito fundamental em Kant. “Vernunft” vem de “vernehmen”:
perceber. Em „vernehmen“, porém, temos a intensificação do verbo „nehmen“, que é receber, tomar.
107
Em alemão, “Geist” é espírito. Conceito fundamental em Hegel.
108
Cf. Heidegger, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e Escritos
Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 96.
109
Representar é “Vor-stellen”: pôr diante de si mesmo, como presente para si mesmo.
55
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
110
As anotações que aqui são expostas sobre Hegel provêm de uma leitura de Heidegger: “Die Metaphysik
des deutschen Idealismus” GA 49 (1941): p. 174-186.
111
Assensus: assenso, assentimento – adesão mental a uma proposição, isto é, aceitação da verdade desta
proposição.
112
Sub-stantia no sentido de sub-sto: estou por debaixo, como fundamento de, neste caso, como
representador do representado.
56
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
57
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
58
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
113
Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 440.
59
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
114
Leão, Emmanuel Carneiro. O silogismo especulativo em Hegel. In: Aprendendo a Pensar I: O
pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 112.
60
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
115
Cf. Idem, p. 112-117.
116
Cf. Idem, p. 121.
61
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
O fim, porém, não precisa ser o término, a cessação. O fim também não precisa
ser uma decrepitude. Pode ser uma plenitude. O fim pode continuar findando em
variadas formas.
117
Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 440-441.
62
DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA
118
Idem, p. 441.
63