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Ministro da Cultura
Francisco Weffort
José Reginaldo Santos Gonçalves
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ IPHAN
Presidente
Glauco Campello
Vice-reitor
José Henrique Vilhena de Paiva
Editora UFRJ
Diretora
Heloisa Buarque de Holanda
Editora Assistente
Lucia Canedo
Coordenadóra de Produção
Ana Carreiro
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(,
"patrimônio histórico e artístico" bras.ileiro são justificados por se refere a escultura, pintura e outras artes?" ([1936] 1987:26-27).
Rodrigo por esta situação de perda. O objetivo principal do Vinte anos mais tarde, em artigo publicado n' O Jornal, em 16 de
governo federal ao criar o SPHAN foi, segundo ele: " ... poupar à junho de 1956, Rodrigo vê-se obrigado, ainda, a comentar o
Nação o prejuízo irreparáve l do perecimento e da evasão do que mesmo processo de "dispersão" e "evasão" de relíquias históricas
há de mais prec ioso no seu patrimônio" ([1936] 1987:48). A e obras de arte: Ele descreve, como exernplo, a situação do
principal missão do SPHAN é identificada por Rodrigo como a de patrimônio histórico e artístico em Minas Gerai~: ."De fato, a
proteger "o que ainda resta" do patrimônio artístico e dos evasão de obras de valor artístico do território · do estado,
monumentos his_
t óricos da nação brasileira. facilitada durante tão longos anos, pelo desinteresse local, foi
As palavras "destruição", "evasão", "ruína","dispersão", impressionante e funesta . O mobiliário antigo, excepcionalmente
"desaparecimento", "deformação" e "substituição" são usadas ern característico, que enriquecia as hàbitações civis das e.i dades e
seu discurso para descrever a perda dos monumentos e objetos povoações de Minas, de origem colonial, desapareceu quase
históricos e artísticos. As pai avras "evasão", "dispersão"·, totalmente, subtraído pelos comerciantes de antiguidades. As
"desaparecimento" e "substituição" são usadas para referir-se a próprias igrejas e capelas foram também despoj adas muitas vezes
relíquias históricas e obras de arte. Por outro lado, " _
d estruição", de grande parte de suas velhas e preciosas alfaias, de suas
"ruína" e "deformação" são usadas, no mais das vez.es, para pinturas e esculturas· de sabor regional"([1956] 1987:154). Ele
referir-se a cidades e sítios históricos, casas, igrejas, prédios aponta que " ... esses b e ns passaram aos colecionadores do Rio e
públicos e monumentos. de São Paulo, rnas sobretudo aos negociantes de antiguidades, que
as venderam muitas vezes a interessados estrangeiros, fazendo com
Valiosos objetos históricos e artísticos são desc ritos, na
que saíssem do Brasil" ([1956] 1987:155).
narrativa de Rodrigo, em processo de deslocamento de seus
contextos originais e mesmo do território nacional e de Esse processo é classificado como "fatal" e "funesto"
transferência para países estrangeiros. O papel negativo porque leva, necessariamente, à morte da nação. Essas relíquias
desempenhado pelo comércio clandestino de relíquias históricas e históricas e obras de arte são fundamentalmente definidas, para
objetos de arte no Brasil é denunciado por Rodrigo de modo Rodrigo, pela sua "singularidade", a qual, uma vez perdida, jamais
constante. Esta é, na realidade, uma denúncia recorrente, poderá ser substituída. O dano que esses bens venham a sofrer é
formulada por diversos intelectuais e políticos, desde o começo pensado como irreparável: " ... [o que é] próprio de cada autêntica
deste século (Rodrigo 1952: 11-60). Os comerciantes de obra de arte e d e cada monumento histórico v e rdadeiro é sua
antiguidades são apontados como os principais responsáveis pela singularidade. Daí o caráte r irreparável dos atentados que venham
remoção dessas relíquias e objetos de seus contextos originais e a sofrer. Reproduzí-los, por mais minuciosamente perfeito que seja
pela sua venda a colecionadores brasileiros e estrangeiro"s. Em o trabalho executado nesse sentido, equivalerá sempre a substituir
1936, numa entrevista concedida a um jornal, ele denuncia é a jóia verdadeira pela falsa. Restaurá-los, quando os danos que
lamenta a perda de relíquias históricas e obras de arte . dos lhes causarem tiverem sido apenas parciais, só será poss'ivel em
períodos colonial e imperia l brasileiros. "Têm saído assim do circunstâncias particularmente favoráveis. Ainda assiri1, os
Brasil relíquias históricas da maior preciosidade. Objetos que nos monumentos estarão desvalorizados na medida em que forem
recordariam passagens magníficas da vida brasileira na colônia e recompostos com artifício. Por conseguinte, há necessidade
no império já agora não os possuímos mais. E foram adquiridos a imperiosa de evitar-lhes a destruição total ou parcial e de impedir
troco de alguns mil réis. Quanto também não já perdemos no que que sejam desfigurados. Foi essa necessidade que no Brasil, como
comerciantes de antiguidades, Rodrigo identifica ainda a pela renovação urbana. O quadro apresentado se caracteriza por
"indiferença da população local" como fator responsável pela uma verdadeira devastação do patrimônio histórico e arquitetônico,
situação que descreve. Refere-se especificamente à "indiferença" pela qual ele responsabiliza diretamente a administração pública e
suas relíquias e obras de arte. Isto é o que, para ele, facilita o Na última década de sua gestão à frente do SPI--IAN, o
comércio clandestino. No entanto, não considera que este seja discurso de Rodrigo torna-se bastante pessimista. Em 1969, ano de
apenas um problema local, mas nacional, e resultante da sua morte, ele resume, num tom sombrio, as principais razões da
"ignorância" da população brasileira quanto ao valor desses situação de decadência em que se encontrava o patrimônio
objetos como parte do patrimônio nacional. nacional: "Assim, cada dia mais - no senti_do literal da ~xpressão -
Em seu discurso Rodrigo denuncia também o processo o espólio cultural recebido de nossos antepassados fica sob
de destruição de monumentos e "aspectos característicos" das ameaça maior. Contra ele se conjugam-se diversos fatores: a
cidades brasileiras. Um processo, segundo ele, que não é recente, carência de meios financeiros bastantes para conservá-lo,
mas antigo e persistente, além de desnecessário e sem propósito, empreendimentos da administração pública com objetivo
apesar da tentativa de alguns no sentido de justificá-lo, em nomê· · progressista errôneo ou mal entendido, a pressão generalizada da
Escola Nacional de Engenharia, em 1939, Rodrigo afi rrna : "No antiguidades -·-- estendendo-se das grandes cidades até os mais
passado, infelizmente, muitas vezes os monumentos e aspectos remotos lugarejos de formação colonial - a indiferença, quando
característicos das nossas cidades foram sacrificados sem que daí não a ação adversa, das autoridades eclesiásticas, responsáveis
resultasse nenhum benefício urbano. Foram sacrificados apenas por pela parcela mais valiosa do acervo da arte antiga brasileira ... "
não ter havido, por parte dos técnicos direta mente responsáveis ([1969] 1987:182).
pelas iniciativas, nenhum movimento de respeito pelos .Éle crê, no entanto, que o íator principal no processo
m o numentos, nenhum interesse real em preservá-los"([l 939] de desaparecime nto do patrimônio histórico e artístico nacional é
1987:54). Ao longo do tempo em que esteve à frente da agência a "indiferença da população" em relação à importância da defesa
federa l de preservação, a denúncia de urbanizac;ão d esco ntrolada e preservação desse patrimônio. Indiferença, segundo ele,
foi um tópico recorrente em seu discurso. Segundo Rodrigo, a partilhada não apenas " ... pelas massas pouco esclarecidas da
intensificação da urbanização e da industrialização do Brasil nos pbpulação brasileira ... ", mas, igualmente, pelas " ... classes mais
anos cinquenta agrava, na década seguinte, os problemas do favorecidas e que se presume m cultas"([l 9691 1987:182).
patrimônio. Em 1961, numa conferência proferida em São Paulo, Associada a esse diagnóstico está, evidentemente, a ênfase
ele menciona uma série de casos de destruição de monumentos presente no discurso de Rodrigo na tarefa de "educar" a
históricos e arquitetônicos - casas, igrejas, prédios públicos - e população a respeito dos valores representados p e lo patrimônio
nacional.
aurático da autenticidade. Pard. uma discussão semiótica interessante sobre originais e
Nesse mesmo período, Rodrigo avalia que as
cópias na cultura popular norte-americana, ver Eco (1986). Para urna discussão sobre
realizações do SPHAN ficaram certamente aquém das necessidades
"autenticidade" no contexto dos discursos dos "estudos de folclore" no Brasil, ver
do país ([1968] 1987:70-73). O enredo trágico por meio do qual
(Vilhena 1992); e, para uma discussão semelhante no âmbito da "memória coletiva",
ele narra o processo de desaparecimento e destruição do
ver (Abreu 1994).
serão condenados não somente pelas futuras gerações, mas esquecidos no " ... processo de desenvolvimento, na dinâmica da
também pela " ... opinião do mundo civilizado ... " em razão dessa trajetória natural de qualquer nação, sobretudo no mundo
" ... dissídia criminosa ... " ([1939] 1987:48). Pois Rodrigo concebe o contemporâneo ... " ([1979] 1984:3 9). E, uma vez que assume que
"patrimônio histórico e artístico" brasileiro como parte do são tais componentes os responsáveis por urna autêntica
patrimônio cultural da humanidade. Em suas própria palavras, ··· · "integração" e "continuidade" das culturas nacionais, sua perda
" ... os patrimônios históricos e artísticos transcendem e são de traria, irreversivelmente, desordem e inautenticidade.
interesse da comunidade universal" ([1936] 1987:25). É assim que A perda desses "componentes fundamentais" constitui a
a perda do patrimônio brasileiro de história e arte afeta não " ... face negativa do acelera_do processo universal de integração
somente a sobrevivência do Brasil enquanto um projeto de "nação determinado pelo avanço tecnológico ... " ([1979) 1984:47). Esse
civilizada", mas a própria "civilização", no sentido universalista processo de integração propaga -se " ... através de duas vertentes
do termo. principais: a tecnologia do produto industrial e a tecnologia da
O discurso de Rodrigo pressupõe urna situação original comunicação audiovisual. A primeira, por sua escala de produção
ou primordial! quando esses bens que integram o património erarn massificada, atua por intermédio dos grandes complexos
parte de urna totalidade supostamente integrada, coerente e industriais, hoje eminentemente multinacionais, induzindo ao
contínua. Essa totalidade aparece implicitamente no modo corno é consumo de produtos padronizados, nem sempre assimiláveis p elas
apresentada a situação presente, fortemente marcada pela diversas culturas que . os recebem. A segunda, que em seu modo
desintegração, fragmentação e descontinuidade. Esse processo, de operar está íntimamente associada à primeira, permite
segundo Rodrigo, é, por um lado, o resultado inevitável da acompanhar, vendo-se e ouvindo-se, às vezes até
história; por outro, Rodrigo acredita que ele pode e deve ser instantaneamente, o que ocorre em qualquer ponto do mosaico
control ado racionalmente em seus aspectos mais negativos, por internadonal"([l 979] 1984:40). É precisamente o perigo da
meio de políticas de preservaç-ão. No entanto, ambos os aspectos homogeneização cultural que é trazido por esse processo de
discursivo, cada um del.e s pressupondo o outro. Essa homogeneização afeta tanto as nações de
"primeiro mundo" quanto as do chamado "terceiro mundo": "O
fenômeno da perda de identidade pode variar de intensidade com
que se manifesta, mas sua disseminação é universal. Faz-se sentir
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nos países importadores de tecnologia e também em países qualquer cultura nacional. Em países como o Brasil, onde uma
geradores dessa tecnologia. Assinala-se para os primeiros o risco cultura nacional não é ainda fortemente estabelecida, a
suplementar dessa absorção se converter em dependência importação descontrolada de valores estrangeiros é, para Aloísio,
econômica" ([1979] 1984:48). No contexto dos países do "terceiro extn~mamente perigosa para a sobrevivência e o desenvolvimento
mundo" esse processo assume, evidentemente, consequências mais de uma identidade cultural autônoma.
graves: "na maioria das vezes, o binômio comunicação A tecnologia importada e os produtos massificados, no
massificada/produto massificado gera apenas uma falsa integração, entanto, não são identificados por Aloísio como os únicos ·
observável geralmente nas mudanças de comportamento refletidas elementos responsáveis pela perda de identidade. Ele atribuí essa
no aparecimento de necessidades injustificadas e expectativas responsabilidade também a uma certa modalidade de política
inatingíveis" ((1979] 1984:48). Importar esses elementos de modo cultural que enfatiza a "herança cultural européia" no Brasil, em
indiscriminado seria desastroso ao processo de defesa e contraste com uma "autêntica" cultura brasileira. Ele compara essa
preservação daqueles "componentes fundamentais" que definem o herança a um "velho tapete", que inibe a expressão de uma
"caráter" d e uma nação. Numa entrevista, ele adverte: " ... eu acho "autêntica" identidade cultural brasileira. Em uma intervenção,
que no momento nós devemos estar mais alertas para as num debate durante a Semana de Arte e Ensino, em São Paulo,
alterações que nos são impostas de fora, devido ao um período de em 1 7 de novembro de 1980, ele afirma: "É corno se o Brasil
desenvolvimento totalmente novo" (1985:68). Do seu ponto de fosse um espaço imenso, muito rico, e um tapete velho, roçado,
vista, a tecnologia importada e os produtos industrializados que um tapete europeu cheio de bolor e poeira tentasse cobri r e
nos chegam dos países mais desenvolvidos_ não constituem em si, abafar esse espaço. É preciso levantar esse tapete, tentar entender
necessariamente, um problema; no entanto, insiste em que eles o que se passa por baixo. É dessa realidade que nós devemos nos
devam ser rigorosamente controlados e selecionados, de modo que aprox imar, ente ndendo, tendo sobre e la uma certa noção" ([1980]
não venham ~ afetar negativamente a identidade cultural da nação. 1985 :42). Ao nível internacional, ele critica a mesma modal idade
O processo de homoge neização cultural e de perda da de política cultural sustentada por instituições culturais
identidade afetam igualmente tanto a "cultura popular" quanto a internacionais - espec ificamente aquelas que assumem como seu
"cu ltura acadêmica" no Brasil. Acredita Aloísio que ambas vêem- principal objetivo manter a "continuidade" da "herança latina". E
se ameaçadas pela perda do ?entido de "processo" e de questiona as consequências dessas políticas para os países do
"continuidade". Numa comu ni cação ao Conselho Federal de chamado terceiro mundo. Em 11 de junho de 1 982 (data de sua
Cultura, no Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 1977, ele morte), na Reunião de Ministros da Cu ltura de Países de Língua
afirma que se observa um " ... alto índice de absorção de valores Latina, em Veneza, e le dizia: "Não creio que a permanência do
estranhos à nossa identidade cultural, atingindo de maneira espírito humanista que herdamos - nós das Américas, sobretudo,
avassa ladora os meios de comunicação de massa e até mes,no, o e vós da Europa -- possa manter-se de maneira condigna e
que me parece mais grave, segmentos de nosso pensamento enriquecedora, quando nós, a maioria dos países das Américas,
intelectual. Às grandes interpretações da evolução do pensamento lutamos pela sobrevivência de parte dos habitantes. Esse caráter
brasileiro procura-se por noções de descontinuidade, abandonando- humanista, enriq uecedor e profundamente caro a todos nós, não
se o sentido de processo e de continuidade cultural" sobreviverá debaixo de fome e ignorância" ([1982) 1985:93). Sua
([1977]1985:45). Esse "sentido de processo e continuidade cu l- proposta é no sentido de que as políticas culturais, em geral, e as
tural" é, para Aloísio, um sintoma fundamental de maturidade em políticas de preservação histórica, em particular, sobretudo nos
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A questão mais importante não é, obviamente, se os As narrativas sobre patrimônio cultural implicam o
patrimônios culturais estão realmente se perdendo ou não nas impulso de preservar e colecionar os diversos bens culturais que
sociedades nacionais. Se _ace itamos responder a essa questão, estariam sob ameaça de destruição. Esses bens, no entanto, têm de
negativa ou afirmativamente, estamos dando nosso aval ao ser destruídos para que possam ser desejados, preservados e
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colecionados. Nos discursos de Rodrigo e de Aloísio, a nação pluralísta da tradição. O que é fundamental na concepção de
brasileira é representada ante diferentes situações de perda. No Aloísio é aquele conjunto de bens culturais que I é parte integrante
primeiro, objetos artísticos e históricos, relíquias, prédios, cidades do cotidiano de diversos segmentos da sociedade brasileira e por
e monumentos são descritos sob o impacto de um vasto processo meio dos quais expressam suas memórias e identidades. Se tais
de dispersão e destruição. Esse conjunto de bens culturais é componentes se perdem, diz. ele, a nação pode até desenvolver-se
concebido como a herança de urn passado histórico, de gerações em termos tecnológicos e econômicos, mas será; por certo, uma
passadas. Enquanto fragmentos ou ruínas de t.im processo histórico nação "sem caráter" 4 •
destrutivo, eles representam a totalidade imaginária constituída Uma vez que não estamos considerando a perda corno
pelo passado histórico brasileiro: esses bens são fragmentos de um fato histórico, preexistindo a toda e qualque'r classificação,
uma distante e, de certo modo, irrecuperável "tradição". Uma vez cabe perguntar: perda para quem? o patrimônio estaria
que a nação brasileira, em seu discurso, é concebida a partir
dessa "tradição", é fundamental que sejam mantidos vivos os
4 É possível afirrnar que, no discurso de Aloísio, verifica-se o mesmo cornprornisso
vínculos com esta dimensão essencial'.
entre "tradição" e "'modernidade" já assinalado no discurso de Rodrigo e do gn1po
No discurso de Aloísio, a "identidade cultural" da modernista mineiro. Embora valorize a singularidade da identi?ade brasileira frente a
nação deve ser representada sob a ameaça de homogeneização outras culturas nacionais, isso não significa absolutamente uma desvalorização da
para que possa ser recuperada e desenvolvida ern sua modernidade e do universalismo. O que distingue o d _iscurso de Aloísio em relação ao
singu laridade. Os diversos "bens culturais" que compõem o de Rodrigo é a ênfase numa representação pluralista do patrimônio cultural, é uma
patrimônio cultural brasileiro são também concebidos como os concepção de cultura nacional onde são valorizadas as diferenças, em detrimento de
fragmentos de um processo histórico destrutivo. Em sua urna representação globalizante expressa pela noção de "civilização".
individualidade e concretude eles representam uma outra Esse perfil do discurso de Aloísio repercute, até certo ponto, correntes
totalidade imaginária: a identidade cultural brasileira fundada na ideológicas na área de política cultural no contexto internacional, particularmente
heterogeneidade. Segundo Aloísio, a situação histórica de perda, aquelas articuladas por organismos internacionais de cultura, como a UNESCO e suas
diante da qual se encontra a nação brasileira, consiste na perda diversasagé>JKias. É possível dizerquci, a partir dos anos sessenta, verifíca--se urna forte
dos "seus componentes fundamentais" por meio dos quais é tendência no sentido de uma representação pluralista da cultura, valorizando-se os
definida a sua singularidade. Esses componentes é que possibilitam chamados "patrimônios étnicos", "patrimônios locais", "regionais". Dessa valorização
à nação desenvolver urna identidade autêntica. Diferentemente de das diferenças decorre uma orientação polític.a de cunho democratizante, enfatizando-
Rodrigo, Aloísio vê a fonte dessa autenticidade não numa se a necessidade de que os diversos gn1pos e categorias sociais que compõem as
"tradição" concebida de maneira globalizante, mas na sociedades nacionais sejam representados nas políticas oficiai~de cultura.
"heterogeneidade cultural", o que equivale a uma concepção
No campo específico da museologia, essas mudanças se fazem sentir no
movimento da chamada "nova museologia" 1 a partir dos anos setenta, assim como na
3
A valorização da "tradição" no discurso de Rodrigo não exclui o seu compromisso
orientação política do ICOM (lntemational Council of Museums), no mesmo período.
com uma visão racionalista e moderna da nação, a qual é concebida como parte da
"civilização" no sentido universalista do termo. Esse compromisso entre "tradiç.ão" e Não por acaso é a partir dos anos seté'llta que ganha espaço a política de
"rmxJemidade", entre "universalismo" e "relativismo", entre "iluminismo racionalista" cultura articulada e implementada por Aloísio com a criação do CNRC (Centro
e "romantismo" é um traço fundamental do pensamento do grupo modernista mineiro, Nacional de Referência Cultural) e, posteriormente, da Pró-Memória. São desse mesmo
do qual Rodrigo é um dos representantes. Esse traço é analisado de modo preciso por período mudanças significativas na área da museologia no B~sil, destacando-se as
Bomeny (1994). preocupações dos profissionais dessa área com as funções sociais dos museus.
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uma interminável atividade de colecionamento, restauração e pela "ignorância" e "indiferença" da população, seja pelo processo
preservação, constituindo-se nos objetos de um desejo jamais de "homogeneização" desencadeado pela indústria cultural, é
satisfeito. Imaginariamente, os discursos de patrimônio cultural possível verificar a instrumentalização dessas dimensões essenciais
buscam superar a intransponível distância entre linguagem e a serviço de 'projetos políticos de construção d~ nação.
experiência, entre a representação simbólica da nação e a sua A concepção de nação que inspira o discurso de
realidade cotidiana. Rodrigo está evidentemente articulada àquela expressa pelo
Desse modo, o chamado patrimônio cultural jamais é pensamento· do grupo modernista mineiro e ao projeto autoritário
resgatado em sua totalidade e integridade, mas sempre por do Estado Novo e, particularmente, ao projeto educacional e
intermédio dos seus fragmentos, que exigem ser cuidadosamente cultural articulado por aquele grupo nesse contexto histórico
resgatados, restaurados e preservados. Nesse sentido, o patrimônio (Schwartzman; Bomeny; Costa 1 984; Bomeny 1994). Nessa
é uma vasta coleção de fragmentos, na medida em que seus concepção incide o compromisso entre aquelas matrizes de
componentes são descontextualiz.ados, retirados dos seus contextos pensamento já assinaladas, onde a nação será representada
originais, no passado ou no presente, e reclassificados nas simultaneamente por uma dimensão universalista e racional-
categoria das ideologias culturais que informam as políticas burocrática e por sua dimensão singular e tradi,cional. A ênfase, no
oficiais de patrimônio. Sua integridade não é presente e posítiva, ,- entanto, estará numa concepção globalizante da cultura brasileira, a
mas uma integridade necessariamente perdida, situada numa qual é pensada a partir de sua articulação universalista corn a
dimensão distante no tempo ou no espaço. Os fragmentos que o civilização ocidental. A nação é pensada como urna totalidade onde
compõem são metonímias de uma totalidade temporal ou carecem de valorização as suas vastas diferenças.
espaclalmente longfnqua: o passado, o futuro, a cultura brasileira, Já o discurso de Aloísio expressa uma concepção de
a identidade brasileira, a civilização, a trad_
i ção, a diversidade nação que evidencia esse mesmo compromisso entre matrizes
cultural, etc. Eles representam, ao mesmo tempo, continuidade e intelectuais diversas. A ênfase, no entanto, estará numa
descontinuidade. Os ideólogos do patrimônio buscam resgatar essa representação da cultura nacional onde se valorizam as diferenças.
continuidade por meio dos seus empreendimentos de identificação, Não por acaso, Aloísio, com frequência, faz uso das teses de
colecionamento, restauração e preservação do patrimônio. Mas não Má.rio de Andrade para legitimar a sua própria concepção de
obtêm senão fragmentos. Sua tarefa é interminável, pois o patrimônio, uma concepção onde está presente urna leitura
patrimônio, como toda coleção, jamais se completará. etnográfica e pluralista da cultura brasileira (Moraes 1983). Ern
É possível dizer que o dí_scurso de Rodrigo, assim consequência, a nação será representada a partir de um quadro na
como o de Aloísio, tem como matriz intelectual um compromisso · qual é desenhada não de forma globalizante e homogeneizadora,
entre o "iluminismo racional ista 11 e o "pensamento românticó", mas destacando-se a heterogeneidade que a caracteriza. O
entre o "universalismo" e o "relativismo", entre a 1'civilização" e. discurso de Aloísio floresce, articula--se e inspira a implementação
a "cultura" (Elias 1990). Esse compromisso traz como de uma política cultural para o país, a partir de meados dos anos
consequência o fato de que, em ambos os discursos, a perda setenta, em pleno processo de abertura democrática, após mais de
jamais aparece sob o registro exclusivo de uma nostalgia urna década do regime político autoritário, em um contexto
rornlntíca pela "tradição" ou pelas "culturas populares". Assí1n, ao histórico, portanto, em que~ discurso democrático e uma
lado da valorização da "tradição" ou da "cultura popular", representação pluralista da nação começam a ganhar espaço na
concomitantemente à denúncía da "perda" dessas dimensões, seja sociedade e nas políticas governamentais.
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