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Ministro da Cultura
Francisco Weffort
José Reginaldo Santos Gonçalves
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ IPHAN
Presidente
Glauco Campello

Departamento <:1e Promoção/ Deprom


Diretora
A RETÓRICA DA PERDA
Jurema Kopke Eis Arnaut
i
Coordenador de Editoração
Sebastião Uchoa Leite - os discursos do patrimônio cultural no Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Reitor
Paulo Alcântara Gomes

Vice-reitor
José Henrique Vilhena de Paiva

Coordenadora do Fo,rum de Ciência e Cultura


Myriarn Dauelsberg

Editora UFRJ
Diretora
Heloisa Buarque de Holanda

Editora Assistente
Lucia Canedo

Coordenadóra de Produção
Ana Carreiro

Editora UFRJ / MinC - IPHAN


\
Capítulo Quatro
As práticas de preservação histórica nas modernas
sociedades nacionais estão associadas a narrativas ·que se
configuram como respostas a uma situação social e histórica na
qual valores culturais são apresentados sob um risco iminente de
desaparecimento. Os intelectuais que se dedicam a pensar esse
Ili A RETÓRICA DA PERDA tema assumem tal situação corno um dado, e vê~m a perda do
chamado "patrimônio cultural" como um processo histórico
objetivo, desdobrando-se no tempo e no espaço. Em suas
'"O que o projeto governamental tem em vista é
narrativas, a perda pressupõe uma situação original ou primordial
poupar à Nação o prejufzo irreparável do perecimento de integridade e continuidade, enquanto a história é concebida
e da evasão do que há de mais precioso no seu como um processo contínuo de destruição daquela situação. Sua
missão é, consequentemente, definida como a de proteger aqueles
patrimônio. Grande parte das obras de arte mais .
valores ameaçados e redimi -los em urna dimensão de
valiosas e dos bens de m aior interesse híst6rico, permanência e transcendência.
d e que a colelividade brasileira era depositária, têm No entanto, o processo de perda e desintegração desse
d esaparecido ou se arruinado irremediavelmente, em patrimônio é, de certo modo, propiciado pelas próprias narrativas
partilhadas por esses inte lectuais. Na medida e m que, em nome
conseqüência da inércia dos poderes públicos e
da nação, de um grupo étnico ou de qualquer categoria coletiva,
da ignorância, da negligê ncia e da cobiça dos esses intelectuais, por meio de políticas de Estado, reapropriam-se
particulares. A subsistê ncia dessas mesmas de múltiplos e heterogê neos objetos e os recontextualizam sob os
rótulos de patrimônio cultural, civilização, tradição, identidade e
circunstâncias ameaça, p ois, gravemente o que ainda
outros, eles . produzem os valores que, supostamente, estão em
resta das nossas riqueza s artfsticas e históricas". processo de declínio e desaparec imento. A despeito de sua
Rcx:lrígo Melo Franco de Andrade condição fragmentária, esses valores expressariam uma condição \
de totalidade, integridade e continuidade - atributos que I
caracterizariam uma "autêntica" identidade nacional.
\
Em outras palavras, a perda não é algo exterior, mas
,,Um dos problemas com que se defrontam os
parte das próprias estratégias discursivas de a propriação de urna
países no mundo mcx:Jerno é a perda da identidade cultura nacional. É tão somente na medida em que existe um
c ultural, isto é, a progressiva redução dos valores patrimônio cultural objetificado e apropriado em nome da nação,
ou de qualquer outra categoria sócio-política, que se pode
que lhes são próprios, de peculiaridades que lhes
experimentar o medo de que ele possa ser perdido para sempre. A
diferencíam as culturas" .
apropriação de uma cultura t raz, assim, como conseqüência, ao
Aloísio Magalhães mesmo tempo que pressupõe, a possibilidade mesma de sua perda.
Nas narrativas de prese rvação histórica, a image m da perda é
usada como uma estratégia discursiva por meio da qual a cultura

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nacional é apresentada como uma realidade objetiva, ainda que
O mesmo sentido de perda, assim como a urgência do
em processo de desaparecimento.
resgate do patrimônio de arte e história do país estão entre os
No Brasil, os intelectuais que pensaram a questão do mais fortes rnotivos que justificaram a criação do SPHAN em
patrimônio cultural situam o início de suas narrativas en'I uma 1936. Na primeira página do jornal O Globo, .de 22 de outubro de
situação histórica presente, caracterizada pelo desaparecimento de 1936, lê-se: "Estavam roubando o patrimônio artístico do Brasil!
valores culturais nacionais. Em conseqüência, a nação é Vai ser organizada a defesa a nossas relíquias históricas" (Rodrigo
apresentada sob o efeito de um perigoso processo de perda da [1936] 1987:25). A matéria do jornal consiste numa entrevista com
memória e, consequentemente, da identidade. Se perg.untados Rodrigo sobre o projeto de criação do SPHAN e seu título nos
sobre o que representam suas ações preservacionistas, eles sugere o clima nacionalista em que se inser_
i a o sentido de
responderão que a alternativa será tão somente a destruição dos urgência de defesa do patrimônio brasileiro de história _e arte. Em
valores nacionais. Nesse contexto, à identidade nacional existe umà exposição de motivos submetida por GL1stavo Capanema ao
~nquanto uma resposta positiva a possibilidade de sua irreparável então Presidente Getúlio Vargas, em novembro. de 1937, diz ele:
perda. "A proteção do patrimônio histórico e artístico nacional é assunto
Neste capítulo, descrevo os usos da ;'perda" nas que de longa data vem preocupando os homens de cultura de
narrativas de patrimônio cultural de Rodrigo e Alofsio. Em cada nosso país. Nada, pelo menos nada de orgânico e sistemático se
uma delas, a nação é apresentada sob a ameaça de perder sua havia feito, porém, até 1936, quando foi por Vossa Excelência
"tradição" ou sua "diversidade cultural". Mais que isto, essa criado o Serviço do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional.
ameaça é concebida como um risco para o próprio processo de Trabalhava-se aqui e ali, com pequenos recursos para evitar um
"civilização" ou para o "desenvolvimento autônomo" do Brasil ou outro desastre irreparável. O grande acervo de preciosidades de
como uma nação moderna. valor histórico ou artístico ia-se perdendo, dispersando, arruinando,
alterando. Proprietários sem escrúpulos ou ignorantes deixavam
que bens_os mais preciosos se acabassem ou se evadissem, ante o
■ O desaparecimento, a dispersão e a destruição do "patrimônio
histórico e artístico" brasileiro
descaso ou a inércia dos poderes públicos (MEC/SPHAN/Pró-
Memória [1936] 1980:109). Algumas décadas mais tarde, num
Desde os começos da preservação histórica, na primeira texto em que relembra Rodrigo e a criação do SPHAN, Capanema
metade deste século no Brasil, a proteção do patrimônio histórico refere-se à necessidade, então reconhecida por muitos intelectuais,
e artístico nacional tem sido justificada pela identificação de uma de um serviço nacional para organizar " ... a defesa de nosso
situação de desaparecimento e destruição de monumentos extenso e vai ioso património artístico, então em perigo não só de
históricos e obras de arte em território brasileiro. Nos anos vinte , danificação ou arruinamento mas ainda, em grande número de
antes da criação do SPHAN, algumas iniciativas foram tomadas, casos, de dispersão para fora do país"(Capanema 1 969:41 ).
aos níveis federal e estaduais de governo, no sentido de preservar Um sentido de perda progressiva do patrimônio
o patrimônio histórico e artístico nacional. A maioria dessas nacional move a narrativa de Rodrigo. Apesar de, ou mesmo por
iniciativas, assumida por membros da elite intelectual brasileira . sua importância para a vida da nação brasileira, objc~tos e
foi justificada por uma retórica da perda. o patrimônio da naç~o monumentos concebidos como "património" são apresentados
era apresentado sob os efeitos de um processo de como num processo de desaparecimento, dispersão e sujeitos à
desaparecimento, dispersão e destruíção (Rodrigo 1952:11-60). destruição. Os esforços no sentido de defender e preservar o

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(,

"patrimônio histórico e artístico" bras.ileiro são justificados por se refere a escultura, pintura e outras artes?" ([1936] 1987:26-27).
Rodrigo por esta situação de perda. O objetivo principal do Vinte anos mais tarde, em artigo publicado n' O Jornal, em 16 de
governo federal ao criar o SPHAN foi, segundo ele: " ... poupar à junho de 1956, Rodrigo vê-se obrigado, ainda, a comentar o
Nação o prejuízo irreparáve l do perecimento e da evasão do que mesmo processo de "dispersão" e "evasão" de relíquias históricas
há de mais prec ioso no seu patrimônio" ([1936] 1987:48). A e obras de arte: Ele descreve, como exernplo, a situação do
principal missão do SPHAN é identificada por Rodrigo como a de patrimônio histórico e artístico em Minas Gerai~: ."De fato, a
proteger "o que ainda resta" do patrimônio artístico e dos evasão de obras de valor artístico do território · do estado,
monumentos his_
t óricos da nação brasileira. facilitada durante tão longos anos, pelo desinteresse local, foi
As palavras "destruição", "evasão", "ruína","dispersão", impressionante e funesta . O mobiliário antigo, excepcionalmente
"desaparecimento", "deformação" e "substituição" são usadas ern característico, que enriquecia as hàbitações civis das e.i dades e
seu discurso para descrever a perda dos monumentos e objetos povoações de Minas, de origem colonial, desapareceu quase
históricos e artísticos. As pai avras "evasão", "dispersão"·, totalmente, subtraído pelos comerciantes de antiguidades. As
"desaparecimento" e "substituição" são usadas para referir-se a próprias igrejas e capelas foram também despoj adas muitas vezes
relíquias históricas e obras de arte. Por outro lado, " _
d estruição", de grande parte de suas velhas e preciosas alfaias, de suas
"ruína" e "deformação" são usadas, no mais das vez.es, para pinturas e esculturas· de sabor regional"([1956] 1987:154). Ele
referir-se a cidades e sítios históricos, casas, igrejas, prédios aponta que " ... esses b e ns passaram aos colecionadores do Rio e
públicos e monumentos. de São Paulo, rnas sobretudo aos negociantes de antiguidades, que
as venderam muitas vezes a interessados estrangeiros, fazendo com
Valiosos objetos históricos e artísticos são desc ritos, na
que saíssem do Brasil" ([1956] 1987:155).
narrativa de Rodrigo, em processo de deslocamento de seus
contextos originais e mesmo do território nacional e de Esse processo é classificado como "fatal" e "funesto"
transferência para países estrangeiros. O papel negativo porque leva, necessariamente, à morte da nação. Essas relíquias
desempenhado pelo comércio clandestino de relíquias históricas e históricas e obras de arte são fundamentalmente definidas, para
objetos de arte no Brasil é denunciado por Rodrigo de modo Rodrigo, pela sua "singularidade", a qual, uma vez perdida, jamais
constante. Esta é, na realidade, uma denúncia recorrente, poderá ser substituída. O dano que esses bens venham a sofrer é
formulada por diversos intelectuais e políticos, desde o começo pensado como irreparável: " ... [o que é] próprio de cada autêntica
deste século (Rodrigo 1952: 11-60). Os comerciantes de obra de arte e d e cada monumento histórico v e rdadeiro é sua
antiguidades são apontados como os principais responsáveis pela singularidade. Daí o caráte r irreparável dos atentados que venham
remoção dessas relíquias e objetos de seus contextos originais e a sofrer. Reproduzí-los, por mais minuciosamente perfeito que seja
pela sua venda a colecionadores brasileiros e estrangeiro"s. Em o trabalho executado nesse sentido, equivalerá sempre a substituir
1936, numa entrevista concedida a um jornal, ele denuncia é a jóia verdadeira pela falsa. Restaurá-los, quando os danos que
lamenta a perda de relíquias históricas e obras de arte . dos lhes causarem tiverem sido apenas parciais, só será poss'ivel em
períodos colonial e imperia l brasileiros. "Têm saído assim do circunstâncias particularmente favoráveis. Ainda assiri1, os
Brasil relíquias históricas da maior preciosidade. Objetos que nos monumentos estarão desvalorizados na medida em que forem
recordariam passagens magníficas da vida brasileira na colônia e recompostos com artifício. Por conseguinte, há necessidade
no império já agora não os possuímos mais. E foram adquiridos a imperiosa de evitar-lhes a destruição total ou parcial e de impedir
troco de alguns mil réis. Quanto também não já perdemos no que que sejam desfigurados. Foi essa necessidade que no Brasil, como

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anteriormente em quase todos os países civilizados, impôs a
Em contraste com Ruskin, o ideal de Viol let-Le-Duc era o de que urn prédio
criação de um serviço público com a finalidade .de assegurar a
histórico deveria ser plenamente reconstruído de aco.rdo com sua forma "original",
proteção do patrimônio histórico e artfstico nacional" ([1939)
eliminando todos os .;ilementos que vieram a ser acrescentados ao longo dos anos de
1987:50). 1
sua existência. O objetivo principal era o de fazer lima apresentação objetiva e precisa
de um prédio tal como ele supostamente teria sido ao tempo de sua construção. Nesse
1
Em sua narrativa, Rodrigo busca a singularidade, ou a "aura" (Benjanin 1969:217- caso, o "espaço" era enfatizado em detrimento do "tempo", e a "aura" era considerada
252) dos objetos e monumentos patrimoniais. O mesmo pode ser dito em relação a corno urn valor menos importante do que a fidelidade da reconstrução.
Aloísio, apesar das diferenças entre as duas narrativas. ·
O paradigma seguido por muitos preseNacionistas nos Estados Unidos, e
\¼lter Benjamin associa o declínio da "aura" ao desenvolvimento de técnicas particulannente aqueles associados a uma das rnais famosas experiências norte-
de reprodução mecânica de objetos culturais. Assim, a "aura" de um objeto -ou de um americanas de preservação histórica - Colonial Will iamsburg - deve muito às propostas
ser humano - está associada a sua "singularidade" e sua "pennanência". No caso dos clássicas do arquiteto francês (Hosmer 1981 ).
objetos cuja aura desapareceeu, "reprodutibilidade" e "transitoriedade" tomaram-se
Por outro lado, os paradigmas de preseNação histórica usac;los no Brasil -
seus principais atributos (1969:223).
pressupostos nas narrativas de Rodrigo e Aloísio - definem-se por uma radica I oposição
Por certo, Benjamin não está se referindo a "tipos" de objetos, mas a diferentefr• ··, a experiências sernelhantes a Colonial Williamsburg. Numa entrevista radiofônica, em
fonnas de percepção: uma associada a singularidade e permanência; a outra associada 1987, no contexto das comemordções pelos cinquenta anos do SPHAN, o seu então
a reprodutibi Iidade mecânica e transitoriedade (1969: 1 87-1 88). A partir de uma certa secretário comparava os patrimônios brasileiro e americano destacando que o Brasi 1,
leitura, é possível dizer que, para Benjamin, uma forma de percepção tende a ser em contraste com os EUA, possuía um patrimônio "autêntico", isto é, um patrimônio
historicamente substituída pela outra. No entanto, a sugestão mais precisa ap::>nta para oposto ao paradigma da reconstrução tal como aquele realizado em Colonial
a necessária inter-relação entre as duas formas. Nesse sentido, os objetos "auráticos" VVi lliamsburg.
somente existem por contraste àqueles mecanicamente reprcxluzidos; formas aurátícas
A partir das noções de autenticidades "aurática" e "não-aurática", apontei, num
de percepção, apenas em contraste com formas não-auráticas.
artigo já publicado, alguns contrastes estruturais entre as ideologias de preservação
Podemos fazer uso dessa distinção para identificarmos distintos usos da histórica no Brasi I e nos Estados Unidos (Gonçalves 1989). Esses contrastes, no ent;mto,
autenticidade. Por um lado, existem objetos cuja autenticidade é percebida e avaliada não são usados com quaisquer finalidades tipológicas, corno a que implicaria em
na base de sua singularidade e permanência; por outro lado, há objetos ~uja afi~ar que a "autenticidade aurática" seria peculiarmente brasileira, enquanto a "não-
autenticidade é percebida e avaliada em termos de sua nan1r<>..za reproduzida e aurática" seria peculiarmente nortk.'-americana. Na verdade, ambas estão presentes em
transitória. cada um dos,dois contextos nacionais. Elas são formas de percepção encontradas em
quaisquer contextos sócio-culturais modernos. No entanto, os atributos "não-auráticos"
É provável que essa distinção fique mais clara ao fazermos uso de~ um exemplo
parecem ser desenvolvidos ao extremo no caso de Colonial Will iamsburg. Experiências
retirado da história dos paradigmas de preseNação histórica da Europa do século XIX.
como essa podem ser descritas como próximas ao que.alguns autores chamam de
Os nomes do arquiteto francês Eugene Viollet-Le-Duc na França, e o do escritor e
"simulacrum"- "the identical copy for which no original has ever existed" 0ameson
preservacionista britânico John Ruskin estão associados a dois distintos paradigmas de
·1984:64). ·Minha sugestão é a de que em Colonial Williamsburg, pela ênfase colocada
preservação histórica. O último propunha que nenhum prédio ou objeto histórico
na reconstrução, os aspectos auráticos tendem a ser substituídos pelos não-auráticos,
deveria ser restaurado ou rec<:>nstruído segundo suà forma supostamente original. Do
de tal modo que a cópia tende a ser considerada melhor que o original.
seu ponto de vista, isto seria impossível. Um prédio ou 1.1m objeto deveria ser
simplesmente preservado, de tal modo que pudessem guardar as marcas de sua idade. Uma questão similar é apresentada porHandlerand Saxton (1988:242-260)
O conceito de tempo era valorizado em detrimento do conceito de espaço. Em outras para o contexto da 'Living l··fü1:ory' nos Estados Unidos. A distinção que fazem entre
palavras, a "aura" do objeto ou do prédio deveria ser preseNada. "mcxlemo" e "pós-moderno" é paralela à que faço entre os usos aurático e não-

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Além do comércio clandestino realizado por a desc'aracterização de áreas urbanas supostamente justificadas

comerciantes de antiguidades, Rodrigo identifica ainda a pela renovação urbana. O quadro apresentado se caracteriza por

"indiferença da população local" como fator responsável pela uma verdadeira devastação do patrimônio histórico e arquitetônico,
situação que descreve. Refere-se especificamente à "indiferença" pela qual ele responsabiliza diretamente a administração pública e

da população local das cidades históricas de Minas em relação a a indústria imobiliária.

suas relíquias e obras de arte. Isto é o que, para ele, facilita o Na última década de sua gestão à frente do SPI--IAN, o
comércio clandestino. No entanto, não considera que este seja discurso de Rodrigo torna-se bastante pessimista. Em 1969, ano de
apenas um problema local, mas nacional, e resultante da sua morte, ele resume, num tom sombrio, as principais razões da
"ignorância" da população brasileira quanto ao valor desses situação de decadência em que se encontrava o patrimônio
objetos como parte do patrimônio nacional. nacional: "Assim, cada dia mais - no senti_do literal da ~xpressão -

Em seu discurso Rodrigo denuncia também o processo o espólio cultural recebido de nossos antepassados fica sob

de destruição de monumentos e "aspectos característicos" das ameaça maior. Contra ele se conjugam-se diversos fatores: a

cidades brasileiras. Um processo, segundo ele, que não é recente, carência de meios financeiros bastantes para conservá-lo,

mas antigo e persistente, além de desnecessário e sem propósito, empreendimentos da administração pública com objetivo

apesar da tentativa de alguns no sentido de justificá-lo, em nomê· · progressista errôneo ou mal entendido, a pressão generalizada da

do progresso e do desenvolvimento urbano. Numa conferência na especulação imobiliária, a multiplicação do comércio de

Escola Nacional de Engenharia, em 1939, Rodrigo afi rrna : "No antiguidades -·-- estendendo-se das grandes cidades até os mais

passado, infelizmente, muitas vezes os monumentos e aspectos remotos lugarejos de formação colonial - a indiferença, quando

característicos das nossas cidades foram sacrificados sem que daí não a ação adversa, das autoridades eclesiásticas, responsáveis

resultasse nenhum benefício urbano. Foram sacrificados apenas por pela parcela mais valiosa do acervo da arte antiga brasileira ... "

não ter havido, por parte dos técnicos direta mente responsáveis ([1969] 1987:182).

pelas iniciativas, nenhum movimento de respeito pelos .Éle crê, no entanto, que o íator principal no processo
m o numentos, nenhum interesse real em preservá-los"([l 939] de desaparecime nto do patrimônio histórico e artístico nacional é
1987:54). Ao longo do tempo em que esteve à frente da agência a "indiferença da população" em relação à importância da defesa
federa l de preservação, a denúncia de urbanizac;ão d esco ntrolada e preservação desse patrimônio. Indiferença, segundo ele,
foi um tópico recorrente em seu discurso. Segundo Rodrigo, a partilhada não apenas " ... pelas massas pouco esclarecidas da
intensificação da urbanização e da industrialização do Brasil nos pbpulação brasileira ... ", mas, igualmente, pelas " ... classes mais
anos cinquenta agrava, na década seguinte, os problemas do favorecidas e que se presume m cultas"([l 9691 1987:182).
patrimônio. Em 1961, numa conferência proferida em São Paulo, Associada a esse diagnóstico está, evidentemente, a ênfase
ele menciona uma série de casos de destruição de monumentos presente no discurso de Rodrigo na tarefa de "educar" a
históricos e arquitetônicos - casas, igrejas, prédios públicos - e população a respeito dos valores representados p e lo patrimônio
nacional.
aurático da autenticidade. Pard. uma discussão semiótica interessante sobre originais e
Nesse mesmo período, Rodrigo avalia que as
cópias na cultura popular norte-americana, ver Eco (1986). Para urna discussão sobre
realizações do SPHAN ficaram certamente aquém das necessidades
"autenticidade" no contexto dos discursos dos "estudos de folclore" no Brasil, ver
do país ([1968] 1987:70-73). O enredo trágico por meio do qual
(Vilhena 1992); e, para uma discussão semelhante no âmbito da "memória coletiva",
ele narra o processo de desaparecimento e destruição do
ver (Abreu 1994).

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patrimônio brasileiro implica e pressupõe que veja a si mesmo e ■ Homogeneização cultural e a perda da identidade nacional
ao SPHAN como desprovidos do poder necessário para sustar ou, brasileira
ao menos, contrai ar o processo de destruição.
No discurso de Aloísio, o principal problema enfrentado
Esse processo, segundo Rodrigo, ameaça a própria
pelas modernas nações em geral e, particularmente, pelas do
sobrevivência da nação brasileira enquanto portadora de urna
"terceiro mundo", é a "perda" dos seus "componentes
"tradição" e partfcipe de uma "civilização". Uma vez que o pafs
fundamentais", a perda de tudo aqui lo que permanece e é estável
venha a perder essa "tradição", ou o patrimônio que a corporifica,
numa cultura, daqueles elementos por meio dos quais as nações
o processo mesmo de "civilização" estará em perigo. Assim, ele
distinguem-se e afirmam sua "personalidade". Esses componentes
alerta para o fato de que, caso sejam os brasileiros incapazes de
defender e preservar o seu patrimônio de arte e de história, eles fundamentais, para Aloísio, tendem a se perder, a serem

serão condenados não somente pelas futuras gerações, mas esquecidos no " ... processo de desenvolvimento, na dinâmica da

também pela " ... opinião do mundo civilizado ... " em razão dessa trajetória natural de qualquer nação, sobretudo no mundo

" ... dissídia criminosa ... " ([1939] 1987:48). Pois Rodrigo concebe o contemporâneo ... " ([1979] 1984:3 9). E, uma vez que assume que

"patrimônio histórico e artístico" brasileiro como parte do são tais componentes os responsáveis por urna autêntica

patrimônio cultural da humanidade. Em suas própria palavras, ··· · "integração" e "continuidade" das culturas nacionais, sua perda

" ... os patrimônios históricos e artísticos transcendem e são de traria, irreversivelmente, desordem e inautenticidade.

interesse da comunidade universal" ([1936] 1987:25). É assim que A perda desses "componentes fundamentais" constitui a
a perda do patrimônio brasileiro de história e arte afeta não " ... face negativa do acelera_do processo universal de integração
somente a sobrevivência do Brasil enquanto um projeto de "nação determinado pelo avanço tecnológico ... " ([1979) 1984:47). Esse
civilizada", mas a própria "civilização", no sentido universalista processo de integração propaga -se " ... através de duas vertentes
do termo. principais: a tecnologia do produto industrial e a tecnologia da

O discurso de Rodrigo pressupõe urna situação original comunicação audiovisual. A primeira, por sua escala de produção

ou primordial! quando esses bens que integram o património erarn massificada, atua por intermédio dos grandes complexos

parte de urna totalidade supostamente integrada, coerente e industriais, hoje eminentemente multinacionais, induzindo ao

contínua. Essa totalidade aparece implicitamente no modo corno é consumo de produtos padronizados, nem sempre assimiláveis p elas

apresentada a situação presente, fortemente marcada pela diversas culturas que . os recebem. A segunda, que em seu modo

desintegração, fragmentação e descontinuidade. Esse processo, de operar está íntimamente associada à primeira, permite
segundo Rodrigo, é, por um lado, o resultado inevitável da acompanhar, vendo-se e ouvindo-se, às vezes até

história; por outro, Rodrigo acredita que ele pode e deve ser instantaneamente, o que ocorre em qualquer ponto do mosaico

control ado racionalmente em seus aspectos mais negativos, por internadonal"([l 979] 1984:40). É precisamente o perigo da

meio de políticas de preservaç-ão. No entanto, ambos os aspectos homogeneização cultural que é trazido por esse processo de

são segrnentos necessariamente interrelacionados do mesmo padrão integração universal.

discursivo, cada um del.e s pressupondo o outro. Essa homogeneização afeta tanto as nações de
"primeiro mundo" quanto as do chamado "terceiro mundo": "O
fenômeno da perda de identidade pode variar de intensidade com
que se manifesta, mas sua disseminação é universal. Faz-se sentir

98 A REiÓRIC~ DA PERDA
99 A RETÓRICA DA PERDA
nos países importadores de tecnologia e também em países qualquer cultura nacional. Em países como o Brasil, onde uma
geradores dessa tecnologia. Assinala-se para os primeiros o risco cultura nacional não é ainda fortemente estabelecida, a
suplementar dessa absorção se converter em dependência importação descontrolada de valores estrangeiros é, para Aloísio,
econômica" ([1979] 1984:48). No contexto dos países do "terceiro extn~mamente perigosa para a sobrevivência e o desenvolvimento
mundo" esse processo assume, evidentemente, consequências mais de uma identidade cultural autônoma.
graves: "na maioria das vezes, o binômio comunicação A tecnologia importada e os produtos massificados, no
massificada/produto massificado gera apenas uma falsa integração, entanto, não são identificados por Aloísio como os únicos ·
observável geralmente nas mudanças de comportamento refletidas elementos responsáveis pela perda de identidade. Ele atribuí essa
no aparecimento de necessidades injustificadas e expectativas responsabilidade também a uma certa modalidade de política
inatingíveis" ((1979] 1984:48). Importar esses elementos de modo cultural que enfatiza a "herança cultural européia" no Brasil, em
indiscriminado seria desastroso ao processo de defesa e contraste com uma "autêntica" cultura brasileira. Ele compara essa
preservação daqueles "componentes fundamentais" que definem o herança a um "velho tapete", que inibe a expressão de uma
"caráter" d e uma nação. Numa entrevista, ele adverte: " ... eu acho "autêntica" identidade cultural brasileira. Em uma intervenção,
que no momento nós devemos estar mais alertas para as num debate durante a Semana de Arte e Ensino, em São Paulo,
alterações que nos são impostas de fora, devido ao um período de em 1 7 de novembro de 1980, ele afirma: "É corno se o Brasil
desenvolvimento totalmente novo" (1985:68). Do seu ponto de fosse um espaço imenso, muito rico, e um tapete velho, roçado,
vista, a tecnologia importada e os produtos industrializados que um tapete europeu cheio de bolor e poeira tentasse cobri r e
nos chegam dos países mais desenvolvidos_ não constituem em si, abafar esse espaço. É preciso levantar esse tapete, tentar entender
necessariamente, um problema; no entanto, insiste em que eles o que se passa por baixo. É dessa realidade que nós devemos nos
devam ser rigorosamente controlados e selecionados, de modo que aprox imar, ente ndendo, tendo sobre e la uma certa noção" ([1980]
não venham ~ afetar negativamente a identidade cultural da nação. 1985 :42). Ao nível internacional, ele critica a mesma modal idade
O processo de homoge neização cultural e de perda da de política cultural sustentada por instituições culturais
identidade afetam igualmente tanto a "cultura popular" quanto a internacionais - espec ificamente aquelas que assumem como seu
"cu ltura acadêmica" no Brasil. Acredita Aloísio que ambas vêem- principal objetivo manter a "continuidade" da "herança latina". E
se ameaçadas pela perda do ?entido de "processo" e de questiona as consequências dessas políticas para os países do
"continuidade". Numa comu ni cação ao Conselho Federal de chamado terceiro mundo. Em 11 de junho de 1 982 (data de sua
Cultura, no Rio de Janeiro, em 8 de novembro de 1977, ele morte), na Reunião de Ministros da Cu ltura de Países de Língua
afirma que se observa um " ... alto índice de absorção de valores Latina, em Veneza, e le dizia: "Não creio que a permanência do
estranhos à nossa identidade cultural, atingindo de maneira espírito humanista que herdamos - nós das Américas, sobretudo,
avassa ladora os meios de comunicação de massa e até mes,no, o e vós da Europa -- possa manter-se de maneira condigna e
que me parece mais grave, segmentos de nosso pensamento enriquecedora, quando nós, a maioria dos países das Américas,
intelectual. Às grandes interpretações da evolução do pensamento lutamos pela sobrevivência de parte dos habitantes. Esse caráter
brasileiro procura-se por noções de descontinuidade, abandonando- humanista, enriq uecedor e profundamente caro a todos nós, não
se o sentido de processo e de continuidade cultural" sobreviverá debaixo de fome e ignorância" ([1982) 1985:93). Sua
([1977]1985:45). Esse "sentido de processo e continuidade cu l- proposta é no sentido de que as políticas culturais, em geral, e as
tural" é, para Aloísio, um sintoma fundamental de maturidade em políticas de preservação histórica, em particular, sobretudo nos

1 00 A RETÓRICA DA PEROA. 1 01 A RETÓRICA DA PERDA


países do terceiro mundo, levem em consideração as condições
na "indiferença" da população. Essa suposta indiferença, para
econômicas da população de modo que não venham a se
Aloísio, é nada mais que o efeito de políticas culturais que
constituir em meros instrumentos de reprodução de desigualdade
ignoram a complexidade e a diversidade da sociedade e da
sócio-econômica e colonialismo cultural. Segundo ele, " ... a
c'ultúra brasileira. El.-:is seriam mais uma fonte de perda do que urn
permanência que queremos, que exigimos, que lutaremos por
esforço conseqüente no sentido de defender e preservar uma
manter, do espfrito humanista herdado do ocidente europeu, e
autêntica identidade cultural brasileira.
sobretudo dos países de origem latina, requer que ·e ssa
O principal objetivo de urna política cultural deveria
sobrevivência seja objetiva, seja mantida, seja enriquecida sem
ser, s~gundo ·Aloísio, a identificação e a defesa do que ele chama
que o espfrito elitista de um grupo de privilegiados --- que nós
de "componentes fundarnentais" da cultura brasileira, os elementos
todos somos privilegiados -- prevaleça sobre a maioria dos
permanentes por meio dos quais a singularidade do "caráter"
habitantes de nossos países" ([1982] 1985:93). E conclui em tom
nacional brasii'eiro vem a ser definida. Aqueles que pensam o
de apelo aos países de origem latina da Europa: " ... vejam bem
desenvolvimento brasileiro em termos exclusivamente econ6rnicos
que o problema do mundo novo de origem latina é bem diverso
e tecnológicos r1egligenciam, segundo Aloísio, o uso da "cultura"
do problema da manutenção simples da herança latina que vivem
como um dos "indicadores" das políticas de desenvolvimento. Essa
os países da Europa. E há nisso até um perigo. Porque, na medida
atitude também contribuiria perigosamente para a intensificação do
em que a Europa Latina não entenda, não perceba essa
processo de "perda" da "identidade cultural''. Assim, diz ele,
peculiaridade da nossa herança do outro fado do mundo, haverá
" ... não haverá desenvolvimento harrnonioso se na elaboração de
sempre o risco terrível de uma suspeita de que a ênfase européia
políticas econômicas não forem levadas ern consideração a~
dos nossos irmãos latinos seja, ainda, uma ênfase colonialista,
peculiaridades de cada cultura" (Magalhães 1985:49}. Ou amda:
dado que procuram ver em nós o que eles já são. E nem sempre
isso é verdade" ([1982] 1 985:94). Em outras palavras, as "Não existe desenvolvimento econôrnico que não seja autêntico.
Não existe verdadeiramente urna nação que se forme, que
identídades culturais dos países desse "novo mundo de origem
latina" têm de ser defendidas contra a possibilídade de uma progrida, que se enriqueça, a não ser à base dos compone~te~ ~e
sua verdade, de sua identidade autêntica, dentro de sua traJetona
"ênfase colonialista", descrita como uma das fontes de ameaça à
enquanto nação" ([1981] 1985:83). Essa afirmativa seria
busca, descoberta, preservação e desenvolvimento de um autêntico
"caráter nacional". especialmente válida para as nações do chamado terceiro mundo,
nas quais o desenvolvimento econômico e tecnológico por s'.
Essa ênfase numa "herança cultural europeia" é
mesmo, embora possível, traria, no entanto, resultados negativos:
partilhada, segundo Aloísio, pela até então hegemónica política de
" ... a nação torna-se rica, mas sem caráter, para não dizer rica e
preservação histórica implementada no Brasil, a partir dos anos
completamente dependente de outras nações"([l 981] 1985:83).
trinta. Essa polftica segue lado a lado com uma exclusiva
Embora enfatize a existência de um "caráter nacional
valorização dos bens culturais das elites. Como alternativa, Aloísio
brasileiro", 0 terna da autonomia cultural do Brasil em relação aos
sugere uma concepção pluralista de patrimônio cultural, que fosse
países d o " pnme,ro
· · mundo" está intimamente associado, no
capaz de le·var ern consideração a diversidade cultural, religiosa e
discurso de Aloísio, ao tema da diversidade cultural da sociedade
étnica da sociedade brasileira. Ele não partílha, desse modo, da
visão de Rodrigo, para quem a principal causa do brasileira. De certo modo, é a diversidade cultural brasileira que
define a sua singularidade no plano internacional. O processo
desaparecimento e da destruição do "patrimônio cultura!" consiste
global de homogeneização cultural também afeta essa diversidade

·a 02 A RETÓRICA DA f-'ERDA
103 A RETÓRICA DA PERDA
. '
' •• 11

cultural interna da sociedade brasileira. Essa é a razão pela qual


Até certo ponto, é possível aproximar o discurso de
ele valoriza as diferentes formas de "cultura popular", e que
Aloísio, com sua valorização de situações "autênticas" como as de
estariam sob a constante ameaça de serem destrufdas e
Triunfo, de uma tendência ideológica manifesta em parte da
substituídas por uma civilização moderna, urbana e tecnológica.
literatura etnográfica do século vinte, onde ganha destaque uma
Essas formas de "cu ltura popular" são concebidas por visão. das chamadas "culturas prirnitivas", ou das "culturas
Aloísio como ilhas de coerência e harmonia, resistindo a um vasto populares", que aparecem sob o impacto irrevE;rsível de um
processo de destruição e homogeneização cultural. Em uma processo global de homogeneização, descaracterização e perda 2 •
intervenção num debate ocorrido na Semana de Arte e Ensino, em Vale assinalar, no entanto, que, no discurso de Aloísio, essa
São Paulo, em 1980, Aloísio narra uma visita que fez a uma estrutura narrativa é usada não com propósitos científicos de
pequena e distante cidade no interior do nordeste: " ... uma descrição e análise de culturas, mas com objetivos políticos e
pequena cidade, no topo da Serra do Araripe !no sertão de ideológicos, visando a mobilizar a população para a dimensão
Pernambuco], harmoniosa, uma cidade antiga, com as ruas, "cultural" do processo de construção da nação.
praças, os prédios de dois andares. Urna escala humana
perfeitamente mantida, urna densidade. correta. E eu entrei na
■ Tradição e modernidade sob a égide da perda
cidade, parei numa praça, saltei do carro e, como todos nós, __ .. ,,
tentei fotografar Triunfo, absorver Triunfo, chupar Triunfo pela Alguns autores já têm assinalado a relevância do tema
tecnologia· da máquina. E, quando estava fotografando a cidade, "perda" no discurso da preservação histórica, em diferentes
eu ouvi, vi um sinal, que era uma voz que fazia 'psiu, psiu'. contextos nacionais. Num ensaio comparativo sobre as ideologias
O lhei, vinha de um sobrado que tinha na praça. Tinha uns que norteiam as políticas de preservação histórica na Inglaterra, na
galpões, uma varanda no sobrado e tinha uma moça sentada no França e nos Estados Unidos, Maria Alice Gouveia afirma: "No
chão, lendo um livro, e ela virou-se para mim e disse: 'A vista Brasil, assim como em vários outros países da América Latina, um
aqui em cima é mais bonita'. E me convidou para subir e eu subi argumento muito difundido é o de que a 'identidade cultura l da
para fotografar Triunfo_ E dali eu saí com essa moça para ver nação' se encontra arr1eaçada. Vive-se este conceito no registro de
Triunfo, o colégio das freiras belgas, o convento dos franciscanos, uma perda. O nosso mundo subdesenvolvido estaria sendo
o lugar onde as mulheres lavam roupas, que tem uma fonte para ameaçado pela alienação cultural que consiste na homogeneização
lavar a roupa. Enfim, todo um processo de harmonia entre de todos os países por via dos meios de comunicação de massa,
ecologia e necessidades técnicas, toda uma forma de vida que, a articulados através de urna indústria cultural operando em escala
meu ver, tem uma representatividade imensa e que nada tinha a mundial, pelos padrões importados dos Estados Unidos, os grandes
ver com a escala da discussão em que nós estavámos" ([1980] produtores da sociedade de consumo.
1985:43). "E quantos Triunfos existem por aí?", continua ele, "E "Diante desse presente 'contaminado' ou 'poluído', o
que é que nós estamos fazendo senão justamente ( ... ) destruindo, passado seria o autêntico, porque seria o produto de um
criando situações que nada têm a ver com aquela harmonia? .sincretismo cultural definitivamente incorporado ao quadro social,
Criando situações de desespero e angústía nos grandes centros enquanto o moderno seria o empréstimo, o modismo alienígena,
urbanos e que vão afetar Triunfo se nós não nos apercebermos de
que é preciso proteger, é preciso estimular situações corno a de
Triunfo?" (1985:43 - 44). 2
O terna do ''vanishing prirnitive" e sua manifestação na literatura etnográfica é
analisado por James Clifford (Clifford and Marcus 1986:98-121 ).
104 A R~TÓRICA DA PERDA
1 os A RETÓR:fCA DA PERDA
derivado do comando das multinacionais sobre nossa economia. o pressuposto da existência de um patrimônio substantivo, integrado
próprio termo "preservar" tem, na língua portuguesa, 0 significado e dotado de fronteiras bem delimitadas e, assim, legitimando as
registrado por Aurélio Buarque de Holanda de 'manter livre da . estratégias de objetificação assumidas pelos ideológos dos
corrupç ;fo e do mal' 11
• (Gouveia 1985:39). patrimônios culturais. Uma questão mais útil talvez fosse nos
Essa preocupação com a possibilidade de uma perda perguntar pelas consequências dessas estratégias, interpretando a
da identidade cultural aparece, segundo Gouveia, também nos perda não como anterior, mas sim como posterior a elas, como
países-metrópole: "nos Estados Unidos, por exemplo, documentos um dos seus efeitos mais notáveis.
recentes consignam essa mesma preocupação. Apenas, nesse caso, A análise desenvolvida por Susan Stewart (1984) sobre
a ameaça não vem de fora, mas reside no desenvolvimento de o significado das coleções nas modernas culturas ocidentais pode
grupos corn interesses espec iais ou de minorias étnicas que, no afã nos sugerir um caminho alternativo, embora não necessariamente
de descobrirem suas raízes, começam a rejeitar a noção de uma excludente, em relaçâo à análise de Gouveia. O foco da análise
herança comum a todos os americanos, substituindo-a pelo cultivo . de Stewart está na experiência expressa pela palavra ingl esa
das diferenças e pelo reexame dos conflitos sociais" (Gouveia longing, que pode ser traduzida aproximadamente como "um forte
1985:39). _e persistente desejo que não pode ser satisfeito'' (1984). Essa
Um aspecto importante do discurso preservacionista experiência está presente, segundo Stewart, no ato de co lecionar
presente nas sociedades do primeiro assim como do terceiro relíquias, souvenirs, miniaturas, objetos etnográficos, objetos
mundo é assinalado por Gouveia. No entanto, mais que apenas históricos, obras de arte, etc. Baseando-se na teoria lacaniana do
uma "justificativa" ou que urn "argumento" de natureza ideo lógica símbolo, ela descreve uma "estrutura do desejo" cuja função seria
a caracterizar as diferenças entre os discursos da preservação a de desempenhar a impossível tarefa de transcender a distância
histórica em diferentes sociedades, é provável que a imagem da entre linguagem e experiência. Objetos de coleção são "objetos de
" perca
l " d esempen he um papel mais importante, enquanto um desejo" na medida em que eles desempenham a função de
princípio articulador desses discursos. Enquanto uma justificativa superar, em termos imaginários, a distância entre uma certa
ideológica para o projeto preservacionista, a perda é pensada realidade ou experiência - por exemplo, o passado histórico, o
corno um fato histórico exterior aos discursos preservacionistas, rnundo primit ivo, o exótico, etc. - e a "representação" dessa
embora por estes representada de modos diversos e com maior ou "realidade" ou "experiência" . No e ntanto, para que essa
menor ênfase. Essa linha de análise partilha com o discurso "realidade" seja despertada, ela tem que, primeiro, ser destruída.,
preservacionista o reconhecimento da perda como um fato Urna identifi cação ilusória ef)tre significado e significante é
histórico que lhe seria exterior, ao mesrno tempo que O não- produzida. Assim, um objeto etnográfico disposto na vitrine de um
reconhecimento de sua função enquanto um princípio estruturador museu passa a representar uma inalcançável totalidade: a
interno ao próprio discurso preservacionista. E é precisamente esse re alidade etnográfica de onde ele foi retirado. Uma igreja barroca
não-reconhecimento que garante a eficácia simbólica e social do século XVIII passa a representar a totalidade imaginária
desse discurso. constituída por aquele período histórico.

A questão mais importante não é, obviamente, se os As narrativas sobre patrimônio cultural implicam o
patrimônios culturais estão realmente se perdendo ou não nas impulso de preservar e colecionar os diversos bens culturais que
sociedades nacionais. Se _ace itamos responder a essa questão, estariam sob ameaça de destruição. Esses bens, no entanto, têm de
negativa ou afirmativamente, estamos dando nosso aval ao ser destruídos para que possam ser desejados, preservados e

1 06 A RETÓRICA DA PERDA
107 A RETÓRICA DA P~RDA
colecionados. Nos discursos de Rodrigo e de Aloísio, a nação pluralísta da tradição. O que é fundamental na concepção de
brasileira é representada ante diferentes situações de perda. No Aloísio é aquele conjunto de bens culturais que I é parte integrante
primeiro, objetos artísticos e históricos, relíquias, prédios, cidades do cotidiano de diversos segmentos da sociedade brasileira e por
e monumentos são descritos sob o impacto de um vasto processo meio dos quais expressam suas memórias e identidades. Se tais
de dispersão e destruição. Esse conjunto de bens culturais é componentes se perdem, diz. ele, a nação pode até desenvolver-se
concebido como a herança de urn passado histórico, de gerações em termos tecnológicos e econômicos, mas será; por certo, uma
passadas. Enquanto fragmentos ou ruínas de t.im processo histórico nação "sem caráter" 4 •
destrutivo, eles representam a totalidade imaginária constituída Uma vez que não estamos considerando a perda corno
pelo passado histórico brasileiro: esses bens são fragmentos de um fato histórico, preexistindo a toda e qualque'r classificação,
uma distante e, de certo modo, irrecuperável "tradição". Uma vez cabe perguntar: perda para quem? o patrimônio estaria
que a nação brasileira, em seu discurso, é concebida a partir
dessa "tradição", é fundamental que sejam mantidos vivos os
4 É possível afirrnar que, no discurso de Aloísio, verifica-se o mesmo cornprornisso
vínculos com esta dimensão essencial'.
entre "tradição" e "'modernidade" já assinalado no discurso de Rodrigo e do gn1po
No discurso de Aloísio, a "identidade cultural" da modernista mineiro. Embora valorize a singularidade da identi?ade brasileira frente a
nação deve ser representada sob a ameaça de homogeneização outras culturas nacionais, isso não significa absolutamente uma desvalorização da
para que possa ser recuperada e desenvolvida ern sua modernidade e do universalismo. O que distingue o d _iscurso de Aloísio em relação ao
singu laridade. Os diversos "bens culturais" que compõem o de Rodrigo é a ênfase numa representação pluralista do patrimônio cultural, é uma
patrimônio cultural brasileiro são também concebidos como os concepção de cultura nacional onde são valorizadas as diferenças, em detrimento de
fragmentos de um processo histórico destrutivo. Em sua urna representação globalizante expressa pela noção de "civilização".
individualidade e concretude eles representam uma outra Esse perfil do discurso de Aloísio repercute, até certo ponto, correntes
totalidade imaginária: a identidade cultural brasileira fundada na ideológicas na área de política cultural no contexto internacional, particularmente
heterogeneidade. Segundo Aloísio, a situação histórica de perda, aquelas articuladas por organismos internacionais de cultura, como a UNESCO e suas
diante da qual se encontra a nação brasileira, consiste na perda diversasagé>JKias. É possível dizerquci, a partir dos anos sessenta, verifíca--se urna forte
dos "seus componentes fundamentais" por meio dos quais é tendência no sentido de uma representação pluralista da cultura, valorizando-se os
definida a sua singularidade. Esses componentes é que possibilitam chamados "patrimônios étnicos", "patrimônios locais", "regionais". Dessa valorização
à nação desenvolver urna identidade autêntica. Diferentemente de das diferenças decorre uma orientação polític.a de cunho democratizante, enfatizando-
Rodrigo, Aloísio vê a fonte dessa autenticidade não numa se a necessidade de que os diversos gn1pos e categorias sociais que compõem as
"tradição" concebida de maneira globalizante, mas na sociedades nacionais sejam representados nas políticas oficiai~de cultura.
"heterogeneidade cultural", o que equivale a uma concepção
No campo específico da museologia, essas mudanças se fazem sentir no
movimento da chamada "nova museologia" 1 a partir dos anos setenta, assim como na
3
A valorização da "tradição" no discurso de Rodrigo não exclui o seu compromisso
orientação política do ICOM (lntemational Council of Museums), no mesmo período.
com uma visão racionalista e moderna da nação, a qual é concebida como parte da
"civilização" no sentido universalista do termo. Esse compromisso entre "tradiç.ão" e Não por acaso é a partir dos anos seté'llta que ganha espaço a política de
"rmxJemidade", entre "universalismo" e "relativismo", entre "iluminismo racionalista" cultura articulada e implementada por Aloísio com a criação do CNRC (Centro
e "romantismo" é um traço fundamental do pensamento do grupo modernista mineiro, Nacional de Referência Cultural) e, posteriormente, da Pró-Memória. São desse mesmo
do qual Rodrigo é um dos representantes. Esse traço é analisado de modo preciso por período mudanças significativas na área da museologia no B~sil, destacando-se as
Bomeny (1994). preocupações dos profissionais dessa área com as funções sociais dos museus.

1 08 A RETÓRICA OA PERDA 109 A RETÓRICA DA PER.DA


do mesmo modo por aqueles que a experimentam efetivamente,
supostamente sob o risco de perda? Certamente essas questões •
no cotidiano. A integridade e a continuidade que caracterizam,
admitem diferentes respostas. Seguramente, muitos segmentos da
segundo Aloísio, as diversas formas do "fazer popular" não são
sociedade brasileira - aqueles acusados por Rodrigo de ignorarem
necessariamente os atributos por meio dos quais os diversos
ou serem indiferentes ao patrimônio histórico e artístico nacional
segmentos da população identificam suas práticas cotidianas.
- não concordariam com a tese de que a "dispersão" e a
Assim, um centro religioso - uma igreja católica ou um terreiro de
"destruição" do patrimônio constituem realmente um problema.
Umbanda - que venha a ser "tombado" pelo Estado corno um
Ou, se concordam, por certo o fazem por razões diversas daquelas
"monumento nacional" em razão de seu significado "histórico" e
enunciadas pelos ideólogos do patrimônio. A,;;sim, a população
"cultural" é reapropriado por grupos e categorias sociais corn
católica de uma paróquia numa pequena cidade ou num bairro de
finalidades práticas, cotidianas, religiosas ou sociais, muitas vezes
um grande centro metropolitan'c) não tomará necessariamente como
e1T1 contradição com · os propósitos expressos pelas ideologias
uma "perda" a alteração ou a substituição de um detalhe ou
oficiais de patrimônio cultural (Arantes 1984:149-174).
mesmo de todo o conjunto arquitetônico de uma igreja que
freqüentam com propósitos religiosos. Do ponto de vista dessa Seria fácil argumentar, com um relativismo de bolso,
população é prov_
á vel que o estilo arquitetônico ou as associações que O chamado patrimônio cultural de uma sociedade nacional
históricas nacionais desse prédio não sejam tão importantes quanto pode ser representado a partir de vários "pontos de vista". Afinal,
o são efetivamente para os a_g entes sociais engajados numa essa tese já é largamente assumida pelas modernas ideologias
política oficial de preservação histórica (Arantes 1984:149-1 74). culturais e informam diversas políticas oficiais de cultura no plano
Sua atitude não precisa ser necessariamente classificada corno nacional e internacional, desde os anos sessenta e setenta.
"ignorante" ou "indiferente", a menos que as situemos no quadro Evidentemente, não existe patrimônio cultural independente de
das modernas ideologias culturais expressas pelas políticas oficiais alguma classificação linguística. Assim, os ideólogos do patrimônio
de patrimônio cultural. Antiquários e c olecionadores particulares cultural, ao denunciarem o risco da "perda", não estão apenas
não partilham, na maioria das vezes, os propósitos e os interesses registrando . urn fato histórico, mas discursivamente constituindo
expressos pelas políticas oficiais de patrimônio. Do seu ponto de esse fato com o propósito de implern<➔ ntar um determinado projeto
vista o comércio de relíquias históricas e de obras de arte não de construção nacional.
representa necessariamente uma "perda", com o mesmo significado É o distanciamento mesmo desses bens culturais no
que essa categoria assume nas ideologias oficiais de patrimônio tempo e no espaço, através da retórica da perda, que os
cultu_ral. O proprietário de uma casa construída no século XVIII transforma em "objetos de desejo", objetos "autênticos" a
certamente a considera mais um patrimônio pessoal ou familiar do mobilizar empreendimentos ·n o sentido de buscá-los ou recuperá-
que um patrimônio "nacional" e sua venda para uma empresa los como parte de urn patrimônio nacional. O "patrimônio
imobiliária visando à construção de um conjunto de modernos histórico e artístico" nacional no discurso de Rodrigo, ou os "bens
edifícios não serâ, , necessariamente, sentida como uma "perda" . A culturais" no discurso de Aloísio, ja,nais poderiam ser concebidos
criminalização dessas práticas é um dos efeitos de um contexto como fragmentos se não fossem classificados previamente como
discursivo no qual esses bens são classificados corno portadores de parte de uma totalidade distante no espaço ou no tempo. Essa
importantes significados "históricos" e "artísticos" nacionais. totalidade, no entanto, somente existe enquanto uma promessa
Diferentes modalidades de "cultura popular" sempre adiada e jamais cumprida. Enquanto fragmentos ou ruínas,
representadas no discurso de Aloísio podem não ser identificadas eles sempre convidam a um incessante processo de reconstrução,

1 1 0 A RETÓRICA DA PERDA
11 1 A RETÓRICA OA Pt'RDA
uma interminável atividade de colecionamento, restauração e pela "ignorância" e "indiferença" da população, seja pelo processo
preservação, constituindo-se nos objetos de um desejo jamais de "homogeneização" desencadeado pela indústria cultural, é
satisfeito. Imaginariamente, os discursos de patrimônio cultural possível verificar a instrumentalização dessas dimensões essenciais
buscam superar a intransponível distância entre linguagem e a serviço de 'projetos políticos de construção d~ nação.
experiência, entre a representação simbólica da nação e a sua A concepção de nação que inspira o discurso de
realidade cotidiana. Rodrigo está evidentemente articulada àquela expressa pelo
Desse modo, o chamado patrimônio cultural jamais é pensamento· do grupo modernista mineiro e ao projeto autoritário
resgatado em sua totalidade e integridade, mas sempre por do Estado Novo e, particularmente, ao projeto educacional e
intermédio dos seus fragmentos, que exigem ser cuidadosamente cultural articulado por aquele grupo nesse contexto histórico
resgatados, restaurados e preservados. Nesse sentido, o patrimônio (Schwartzman; Bomeny; Costa 1 984; Bomeny 1994). Nessa
é uma vasta coleção de fragmentos, na medida em que seus concepção incide o compromisso entre aquelas matrizes de
componentes são descontextualiz.ados, retirados dos seus contextos pensamento já assinaladas, onde a nação será representada
originais, no passado ou no presente, e reclassificados nas simultaneamente por uma dimensão universalista e racional-
categoria das ideologias culturais que informam as políticas burocrática e por sua dimensão singular e tradi,cional. A ênfase, no
oficiais de patrimônio. Sua integridade não é presente e posítiva, ,- entanto, estará numa concepção globalizante da cultura brasileira, a
mas uma integridade necessariamente perdida, situada numa qual é pensada a partir de sua articulação universalista corn a
dimensão distante no tempo ou no espaço. Os fragmentos que o civilização ocidental. A nação é pensada como urna totalidade onde
compõem são metonímias de uma totalidade temporal ou carecem de valorização as suas vastas diferenças.
espaclalmente longfnqua: o passado, o futuro, a cultura brasileira, Já o discurso de Aloísio expressa uma concepção de
a identidade brasileira, a civilização, a trad_
i ção, a diversidade nação que evidencia esse mesmo compromisso entre matrizes
cultural, etc. Eles representam, ao mesmo tempo, continuidade e intelectuais diversas. A ênfase, no entanto, estará numa
descontinuidade. Os ideólogos do patrimônio buscam resgatar essa representação da cultura nacional onde se valorizam as diferenças.
continuidade por meio dos seus empreendimentos de identificação, Não por acaso, Aloísio, com frequência, faz uso das teses de
colecionamento, restauração e preservação do patrimônio. Mas não Má.rio de Andrade para legitimar a sua própria concepção de
obtêm senão fragmentos. Sua tarefa é interminável, pois o patrimônio, uma concepção onde está presente urna leitura
patrimônio, como toda coleção, jamais se completará. etnográfica e pluralista da cultura brasileira (Moraes 1983). Ern
É possível dizer que o dí_scurso de Rodrigo, assim consequência, a nação será representada a partir de um quadro na
como o de Aloísio, tem como matriz intelectual um compromisso · qual é desenhada não de forma globalizante e homogeneizadora,
entre o "iluminismo racional ista 11 e o "pensamento românticó", mas destacando-se a heterogeneidade que a caracteriza. O
entre o "universalismo" e o "relativismo", entre a 1'civilização" e. discurso de Aloísio floresce, articula--se e inspira a implementação
a "cultura" (Elias 1990). Esse compromisso traz como de uma política cultural para o país, a partir de meados dos anos
consequência o fato de que, em ambos os discursos, a perda setenta, em pleno processo de abertura democrática, após mais de
jamais aparece sob o registro exclusivo de uma nostalgia urna década do regime político autoritário, em um contexto
rornlntíca pela "tradição" ou pelas "culturas populares". Assí1n, ao histórico, portanto, em que~ discurso democrático e uma
lado da valorização da "tradição" ou da "cultura popular", representação pluralista da nação começam a ganhar espaço na
concomitantemente à denúncía da "perda" dessas dimensões, seja sociedade e nas políticas governamentais.

11 2 A RETÓRICA DA PERDA 1 1 :J A RETÓRfCA DA PERDA


Cada um dos contextos histórico-políticos em que se
· inserem os discursos de Rodrigo e de Aloísio sobre _o patrimônio
cultural, em função mesmo daquele compromisso entre diferentes
matrizes intelectuais, faz com que a retórica da perda seja
instrumentalizada em função de distintos projetos políticos de
construção nacional, o que torna possível transformar a
fragmentação em reconstrução, e o sentimento de nostalgia em
esperança.
No capítulo cinco, eu descrevo como a nação
brasileira é redimida da história e da contingência e objetificada
como uma permanente busca pela identidade cultural. Em termos
mais específicos, analiso de que modo o "patrimônio hist6ri"co e
artístico" de Rodrigo, assim como os "bens culturais" de Aloísio
são discursivamente usados não apenas como entidades
evanescentes, mas como entidades culturais emergentes, partes
integrantes de projetos de construção nacional. Em ambos, os
objetos e monumentos que compõem o patrimônio representam
não apenas uma "tradição" evanescente ou uma "diversidade
cu ltural" amea<;ada pela homogeneização promovida pela indústria
cultural, mas, fundamentalmente, recursos simbólicos a sustentar as
possibilidades e a esperança de afirmação histórica do Brasil
enquanto nação "c ivilizada" e "desenvolvida".

11 4 A RETÓIIICA DA PERDA
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