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Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso

GEGe/UFSCar

PALAVRAS E CONTRAPALAVRAS
Entendendo o cotejo como proposta metodológica

Cadernos de Estudos IX
Para iniciantes

N
Pedrosjoão
suliinees

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O Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGe-UFSCar

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser


reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os
direitos dos autores.

Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGe-UFSCar

Palavras e contrapalavras: entendendo o cotejo como


,
proposta metodológica. São Carlos: Pedro & João Editores
2017. 235p.

ISBN 978-85-7993-451-3

5. Vida. I.
1. Cotejo. 2. Bakhtin. 3. Trabalho com Textos. 4. Arte.
Título.
CDD - 410

s (pixabay.com))
Capa: Hélio Márcio Pajeú (CCO Creative Common
igo de Moura
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodr
Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/ltália); João Wanderley Geraldi
);
(Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil
Maria Isabel de Moura (UFSCary/Brasil); Maria da Piedade
Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello
(UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos — SP
2017
k.

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SUMÁRIO

Apresentação ”

Cotejo e Confroencontro (1)


Adriana Maria Andreis

O cotejo como marca de um estilo 17


Fabiana Giovani

Matéria outra 25
Cotejamento entre o humano e a natureza
Daniel Stoziek

O discurso publicitário em cotejo: 35


evidenciando a Propaganda Social
Caroline Janjácomo

De Platão a Lacan: 42
a construção amorosa entre professores e alunos
o que há entre o amante e o amado?
Kátia Vanessa Tarantini Silvestri

O confronto cotidiano do andar centro- 61


americano:
o cotejo das vozes
Efraín Bámaca-López

A cultura popular como mirante 66


do trabalho ideológico
Nathan Bastos de Souza

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Cotejo em Bakhtin: bs
o nascimento do sentido no abraço humano |
Marisol Barenco de Mello
Patrícia do Amaral Borde

O cotejo como compreensão e avaliação do lugar

S
único do pesquisador
Alline Duarte Rufo
Ana Carolina Siani

O cotejo se dá na unidade da resposta

O
Valdemir Miotello

O pesquisador como cotejador

O
Aline Maria Pacífico Manfrim

Explorando a startização

O
em análise de discursos
Ana Beatriz Ferreira Dias
Patrícia Zaczuk Bassinello

O protagonismo da linguagem esuas 118


abordagens nas obras de Werner Herzog e
George Orwell
Tábita Santos

O cotejo em torno do sagrado: sentidose 12


interpretações em contextos espiritualistas e
espírita
Maria Sueli Ribeiro da Silva

Um olhar de cotejo para experiências com leitura 130


e artes plásticas na primeira infância
Poliana Bruno Zuin

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Para aquém e para além do cotejo dos textos 136
José Kuiava

Cotejo como proposta metodológica parao 148


trabalho com o texto na sala de aula
José Cezinaldo Rocha Bessa
Franciclébia Nicolau da Silva
Nara Karolina de Oliveira Silva
Wanderleya Magna Alves

Vozes e cotejos nos estudos de caso:


encontros e afastamentos
Luís Fernando Soares Zuin
Poliana Bruno Zuin

O cotejo a partir da categoria personagem | 173


Flávio Henrique Morais

A palavra, o conceito e a ideia de cotejo


na obra de Bakhtin
Ivo Di Camargo Jr.

Cotejando texto e discurso: contribuições da 185


linguística materialista na aula de língua
portuguesa
Alexandre Reis

A insondabiliade e o cotejamento como 198


caminhos metodológicos e de compreensão
Camila Caracelli Scherma

Um enunciado e suas reminiscências 212


Nanci Moreira Branco

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Sul metodo, genere e modo per parlare di ciô che 219
si ama - per Roland Barthes
Augusto Ponzio

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Cotejo e Confroencontro

Adriana Maria Andreis

O Sol está o tempo todo nascendo em algum lugar.


Sempre para alguém é amanhecer, é o morrer de uma noite, outro dia,
único.
O Sol está o tempo todo se pondo em algum lugar.
Sempre para alguém é entardecer, o morrer de um dia, outra noite,
diferente.
Tudo ao mesmo tempo, agora. Término e começo, vida e morte, inerente
ao viver.!

Bifro

O cotejamento é dialógico. Nega a monofonia, o


tratamento comparativo e peremptório da realidade,
por isso compõe elo constitutivo com a noção

1 Elaboração própria, 2012 (ANDREIS, 2014).


2 Fonte: Busto de Janus, Museu do Vaticano, Roma, Itália. Disponível
em: < http://tierray pueblo.blogspot.com.br/2012/06/jano-bifronte-
el-dios-romano-de-las.html>. Acesso em: 22 ago. 2017.

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confroencontro*. Nesse abraço, a negação e a aceitação,
concomitantes e contraditórias, entrecruzam-se,
alimentando a vida na natureza heterogênea do
enunciado. Uma proximidade que auxilia para pensar
o processo metodológico, a pesquisa e a mediação
pedagógica, por envolver vinculações de valorização
das relações entre as singularidades de natureza social,
habitat da perspectiva criadora e emancipadora na
academia e na escola.
Trata-se do enfrentamento da comparação que
enfraquece a heterogeneidade. Ao colocar a realidade
que
recipiente
é viva num fechado, imprime uma ação
que violenta e exclui pois esmaece a espaço-
temporalidade singular em cada enunciado. Assim, mata
possibilidades criadoras, porque o desconsidera em sua
profundidade histórica. Assumir essa modalidade de
percurso investigativo — partindo de uma base linear,
prosseguindo sobre uma linha reta e lisa, olhando apenas
numa direção, tendo como meta um pequeno ponto fixo
num horizonte (que é sempre imaginário) — desconsidera
as entranhas nas quais o enunciado permanentemente se
faz, e coloca em patamares de valoração hierárquica
aquilo que não se enquadra no formato utilizado como
ferramenta comparativa.
Massey (2008, p. 64) refere essa morte,
exemplificando-a com o tratamento dos dados
estatísticos na produção e no uso dos mapas. A
pesquisadora assevera que esse tipo de materialização

* Neologismo (ANDREIS, 2014).

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se apresenta como superficialidade que mantém “o
mundo parado”, como se fosse possível “observá-lo
em um corte transversal”, o que resulta na morte do
espaço e, consequentemente, na morte do tempo. Uma
espécie de objetivação cortada no formato de
superfície-plana-horizontal-acabada.
Encarando esse limite, cotejo pode ser pensado
como relações de confroencontro, que valorizam todas
as palavras como fortes. Nunca as aceitando para
servir a comparativos hierárquicos com outras; sempre
acolhendo cada uma como necessária à continuidade
da vida de si mesma e da outra. Poe força na relação
entre os diferentes, assumindo que cada palavra supõe
contrapalavra (BAKHTIN (VOLOCHINOV), 2004), e
que nessa relação tensa o diálogo se dá no e como
confroencontro, pois todos os processos (de pesquisa e
de aula) são, sempre, aprendizagem./Portanto, vivos,
inaçabados, em permanente construção.
da envolve o esforço para ouvir e respeitar as
vozes que constituem o signo ideológico. E sua
rigorosidade na pesquisa reside exatamente no.
Teconhecimento das diferenças. fPor isso a tensão é.
bem-vinda, ocupando lugar cemtral na reflexão, pois
aceita o pensar como exercício criativo, cuja
prospecção gera sempre mais libertação.
Um diálogo que “cresce da dialética e vai além dela,
ainda que sem exauri-la” (BULAVKA; BUZGALIN, 2005,
p. 8), porque tem um ingrediente diferente: uma espécie
de dispositivo à liberdade, ao pluralismo, à crítica, ao
antitotalitarismo, à abertura ao pensar.

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A relação ( aproxima forças contrárias
criando uma nove-fórça ou de dominação de uma
sobre a outra. Não impede a existência do outro;
envolve relação entre ideias, na qual todas as forças
convivem, interagem, de uma forma tensa e
contraditória. A luta ideológica que se trava nessa
perspectiva metodológica não tem vencedores e
perdedores, pois ambos ganham e perdem ao mesmo
tempo, transformando-se de alguma maneira, de
forma dissensual. E não há como prever o futuro desse
tipo de relação (GEGe, 2010, p. 18-19).
Desconflitualizar é apostar no “ou”, o que
desintegra o diálogo (BAJTIN, 1997). Nesse processo
de confroencontro, afirmação e negação estão sempre
presentes, pois se assume que “[...] horizontes
concretos efetivamente vivenciáveis não coicindem”
(BAKHTIN, 2010, p. 21). A subjetividade se constitui
intersubjetivamente, toda voz é única, mas sempre
dialogicamente composta de vozes outras; o enunciado
é singular, mas de natureza social.
Trata-se de uma dialética que nasce “do diálogo
para retornar ao diálogo em um nível superior”
(BAKHTIN, 2010) p. 401). Sim e não são acolhidos
como necessários na latente participação na construção
do arranjo componente da compreensão provisória
que o sujeito elabora numa ação que contém confronto e
encontro com o outro. Não apenas considera o não e O
sim ao mesmo tempo, mas deles vive. O não e o sim
são forças inerentes. O talvez é o inescapável e
inacabável caminho entre o não e o sim.

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Pretender apenas o sim é deixar morrer o
enunciado por não sujeitá-lo ao não, que é parte do
processo dialógico. E, mesmo no caso de uma
afirmação como confirmação, ela é realizada em
perspectiva própria. Assim, sempre é dotada de
confrontação.
Quer dizer, assim como noite é condição para dia e
dia o é para noite, também caras diferentes são
indissociáveis, como Jano, noções destacadas no
introito dessa negação da comparação.
” Cotejar compreende colocar no centro das reflexões
a oposição e a contradição. Por isso, na realização de
pesquisas ou na utilização de seus dados, como estudo

- método de estudoCompreende desancorar e


Be” sim-eTtão, para caminhar, e provisoriamente
chegar, abraçado nas incertezas, pela aposta no “e”, Msn

não no “ou”. Coteja aquele que assume as


historicidades e geograficidades exclusivas e
irrepetíveis dos sujeitos como inerentes ao diálogo, à
vida, porque, quando termina o diálogo, tudo termina
(BAKHTIN, 2005).

Referências

ANDREIS, A. M. Cotidiano: uma categoria geográfica para


ensinar e aprender geografia. Tese, UNJUÍ/RS, Ijuí, 2014.

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o
aaa
BAJTIN, Mijail M. Hacia una filosofia del acto ético. Delos
borradores y otros escritos. Barcelona: Anthropos, 1997.
a

a
PRE

BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da


a

linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.


BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
. Estética da criação verbal. São Paulo: Martin Fontes,
2010.
BULAVKA, L.; BUZGALIN, A. Os próximos cem anos de
Mikhail Bakhtin: a dialética do diálogo versus a metafísica
do pós-modernismo. Revista Novos Rumos, Marilia/SP, ano
20, n. 44, p. 4-14, 2005. eo
GEGe - GRUPO DE ESTUDOS DE GÊNEROS DO
DISCURSO. Palavras e contrapalavras (II). São Carlos: Pedro &
João, 2010.
MASSEY, D. Pelo espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

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O cotejo como compreensão e avaliação do lugar
único do pesquisador

Alline Duarte Rufo


Ana Carolina Siani

A compreensão da vida se dá na relação com o


outro e com o mundo. Não nos compreenderíamos
enquanto sujeitos se vivêssemos isolados. Assim
também ocorre com a linguagem, essa só é possível de
existência na relação com o outro que me constitui, e
pensando na compreensão de um dado texto,
podemos dizer que a mesma só se dá na relação desta
materialidade com outros textos. Ferdinand Saussure
(2006), pai da linguística, em seu “Curso de Linguística
Geral” define signo como “aquilo que o outro não é”,
estabelecendo como possibilidade de caracterização e
como modo de reconhecimento de um signo a sua
posição em contato e comparação com outro signo,
para dizer o que um é e o outro não. Essa relação de
comparação e de constituição a partir da negação da
diferença de outro grupo ocorre há muito na história
da sociedade. Os grupos considerados bárbaros e
monstruosos são aqueles vistos como diferentes por
uma determinada sociedade e época. Construía-se a
definição de um grupo pelas características que faziam
com que sujeitos pertencessem a ele, em comparação
com características que faziam parte do outro grupo.
Durante a Idade Média, a Inglaterra, denominava
como Bárbaros os povos Nórdicos que atacavam a

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região, construindo em seu imaginário popular visões
grotescas, e monstruosas das características desses
homens/No entanto, compreender o cotejo como mera
comparação é limitador e nos leva a um pensamento e
construção de um julgamento apenas do diferente.O
cotejo enquanto caminho metodológico é um processo
enriquecedor, a partir do momento que nos traz à luz
da compreensão os diferentes sentidos de um texto nã
sua relação com outros. /
ea

“” Para compreendermos o cotejamento como


caminho metodológico proposto no interior nos
estudos do Círculo de Bakhtin, convém primeiramente
nos atentarmos para o caráter dialógico da enunciação.
Bakhtin (2011) compreende o enunciado como real
unidade da comunicação verbal, e aponta que o
mesmo comporta em si:

[...] ecos e ressonâncias de outros enunciados com os


quais está ligado pela identidade da esfera de
comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto
antes de tudo como uma resposta aos enunciados
precedentes de um determinado campo (aqui
concebemos a palavra “resposta” no séntido mais
amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles,
subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva
em conta (BAKHTIN, 2011, p. 297, grifo do autor).

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outros sujeitos a partir de suas posições ideológicas e
lugares sociais, apresentando diferentes graus da
heterogeneidade constitutiva do processo complexo e
ativo da comunicação discursiva (BARFITIN, 2011).
”Levando em conta o caráter dialógico do
enunciado, é possível pensarmos que o próprio sujeito
produtor de um texto é antes de tudo um ouvinte, e
como falante é em certa medida um “respondente”. E
como um interlocutor é igualmente ativo, pois ocupa
uma posição responsiva em relação ao enunciado: “[...]
concorda ou discorda dele (total ou parcialmente),
completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.”
(BAKHTIN, 2011, p. 271). Sendo assim, a compreensão
por parte do interlocutor como procura pelo sentido
do enunciado também envolve uma posição
questionadora e é igualmente valorativa pois
compreende uma atribuição de juízos de valor.
É nesta continuidade que podemos dizer que os
sentidos de um texto não estão prontos nem acabados,
ou seja, não são os primeiros ou últimos, mas em -vez
disso, fazem parte de uma infinita - rede de
possibilidades, bem como um determinado enunciado
é um elo na cadeia comunicativa. feio a
Compreensão profunda de um dado texto Se dá no seu
contato com outros textos, sendo o cotejamento um
encontro dialógico do enunciado primeiro com outros
enunciados, “buscando fá reconstituição da cadeia
Sl) / a e
Tendo?em vista a incompletude dos sentidos e as
relações dialógicas que o texto estabelece com outros, é

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preciso considerar que o próprio texto enquanto
enunciado aponta para fora de seus limites. Neste
sentido, é que Volochinov (2013) chama atenção para o
fato de que o enunciado estabelece uma relação com a
situação extra-verbal que o engendra, instância na qual
se emprenha de apreciação e valor, necessitando da
vida para fazer sentido: “surge da situação extra-
verbal da vida e conserva com ela o vínculo mais
estreito. E mais, a vida completa diretamente a
palavra, que não pode ser separada da vida sem que
perca seu sentido” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 77).
Portanto, é na vida que se encontra o peso axiológico
da palavra, construído conjuntamente com a sua parte
verbal, isto é, seu significado linguístico.
Desta maneira o cotejo como caminho
metodológico no interior dos estudos bakhtinianos
considera a compreensão de um texto, incluindo por
parte do sujeito pesquisador, como ativa e criadora,
pois trata-se de um processo que dá sequência à
criação do autor, vai além, atualizando os sentidos de
um texto e dando-lhe novos contextos. Assim,
podemos pensar na situação extra-verbal mais ampla
ou mais restrita como parte constitutiva do enunciado,
como instância dos não-ditos, uma vez que o mesmo
passa a ser pensado a partir de um contexto novo (o
meu atual) (BAKHTIN, 2011).
Nessa perspectiva, podemos pensar o cotejo não
apenas como a relação entre textos, mas também a
relação do sujeito pesquisador com o objeto da sua
pesquisa. A partir do momento em que eu enquanto

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pesquisador foco meu olhar para compreender um
objeto que faz parte da minha pesquisa, esse olhar esta
carregado com a carga sócio-cultural que trago comigo
constituída conjuntamente na relação o tempo do qual
faço parte, é meu lugar único enquanto pesquisador e
sujeito. Olhar para um texto da Idade Média, por
exemplo, desconsiderando esse lugar como
pesquisador e olhar contemporâneo, é uma tentativa
falha de matar os sentidos e as atualizações possíveis
deste. Por isso, podemos compreender que o próprio
cotejo é uma chave de leitura, tendo em conta o
momento no qual o pesquisador faz as escolhas dos
textos que farão parte da sua pesquisa e a perspectiva
metodológica com a qual compreenderá esses textos,
pois essa compreensão também é a uma avaliação por
parte do pesquisador.
Em “A História da Beleza” de Umberto Eco, o
autor desenvolve um caminho para compreensão das
diferentes perspectivas em épocas diversas a respeito
do que se considerava como belo. Em um dos
capítulos “Da pastorinha à mulher angelical” a
perspectiva da época era uma contradição entre uma
mulher recatada e o desejo de possuí-la sexualmente, e
para exemplificar tal contradição, o autor traz como
exemplo um texto anônimo em que ocorre uma cena
de estupro explícito

Encho-me de audácia e uso a força. Ela me arranha com


as unhas, arranca-me os Cabelos, empurra-me com
todas as energias, encolhe-se e aperta os joelhos para
não abrir as portas do pudor.

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Luto cada vez mais, até obter o meu triunfo. Abraça-o
1 forte, imobilizo seus membros, aperto-lhe os pulsos e a
| beijo com paixão, assim o reino de Vênus se abre
(Anônimo in ECO, 2010, p. 158)
acima, é
/

agi No texto teórico, anterior ao excerto

mencionado que há uma franca “sensualidade”, no


entanto, a leitura do texto nos leva à percepção de que
trata-se de uma cena forçada, na qual o narrador-
personagem do texto, segura com força os membros da
moça para poder forçar uma penetração.

Assim era a Idade Média, que celebrava publicamente a


mansuetude, ao mesmo tempo que aceitava abertas
manifestações de ferocidade e que, ao lado de páginas de
extremado rigor moralista, oferece momentos de franca
sensualidade, e não apenas nas novelas de Boccaccio
(ECO, 2010, p. 158, grifo do autor)

Enquanto pesquisadores, somos responsáveis


pelas escolhas e compreensão que teremos sobre os
textos escolhidos, assim como pela construção de
sentidos que podemos fazer sobre estes. É um lugar
único e singular que ocupamos e, enquanto
pesquisadores, nosso cotejo ocorre a partir deste lugar
é em que estamos inseridos, com a nossa vivência e a da
) / época em que fazemos parte. Doravante o meu olhar
fh, | | contemporâneo sobre um texto da Idade Média que
/) estabelece a construção de um sentido de contradição
/) entre a beleza recatada e o desejo sexual por esta, do
1 meu lugar enquanto pesquisador e sujeito, a relação

HH 92
ss”
|

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construída dentro desse texto é a de um estupro, negar
esse olhar contemporâneo em que a moral e a ética
constroem que forçar sexo em uma mulher se
estabelece como estupro é uma tentativa frustrada de
construir uma falsa neutralidade.
É possível pensarmos ainda que mesmo em nosso
contexto atual, uma época de avanço e discussão sobre
os direitos das mulheres, essa luta por respeito e em
favor de autonomia sobre o próprio corpo ainda é
constituída por embates públicos em que pela
perspectiva de quem comete o ato, que se encontra
socialmente em uma posição de poder, a violação
sexual não é significada enquanto violência como
podemos compreender a partir da posição do
narrador-personagem no texto analisado por Eco
(2008). Na contemporaneidade, a própria escolha
lexical de determinadas palavras para a nomeação de
atos violentos como o estupro pelos sujeitos, por
exemplo, reflete um determinado lugar social do
locutor, sobretudo, em uma estrutura social em que
homens ainda detêm a cidadania plena.
Portanto, o cotejo como gesto metodológico
também é um modo de olhar para a materialidade
textual como multiplicidade, como enunciado
constituído pelas lutas e disputas pelo sentido, e que
por isso envolve sempre pelo menos dois eixos de
sentidos. Assim, é nesse sentido que podemos pensar a
compreensão atrelada com a avaliação, pois a
interpretação ocorre a partir da posição dos sujeitos. O
leitor enquanto mulher, localizado em uma

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determinada época e lugar social lê o texto de um
modo e não de outro, diverso do olhar do pesquisador,
enquanto homem, também localizado em uma
determinada época e lugar social.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, MM. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Editora


Martins Fontes, 6º ed., 2011.
ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record,
2010.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Editora
Cultrix, 272 edição, [1916] 2006.
VOLOCHÍNOV, V. N. 4 palavra na vida e a palavra na poesia:
introdução ao problema da poética sociológica. Im:
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros
ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, p. 71-100.

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O cotejo se dá na unidade da resposta

Valdemir Miotello

1. Cotejar não é colocar um texto ao lado do outro.


Textos não falam por si mesmos. Eles são
mediações; são portadores de possibilidades... Eles
possi ft-a-Co Buintigão eo span rr de

interação. O lugar da interação se dá nessa


mediação;
2. Cotejar não é apresentar apenas o estado da arte da
questão. Buscar o que está dito é uma parte... ficar
travado na palavra outra é metade do caminho. O
que já foi dito tem que ser dito de novo... e de
novo... numa corrente sem fim de enunciações.
Então é preciso que apalavra outra se torne-palavra
própria, | palavra minha, numa afirmação
responsável. É absolutamente necessário que eu
diga minha palavra. Não há cotejo sem a minha
palavra... enunciar, falar, repassar a palavra adiante
é empoderar-se. Assim, cotejar não é ecoar as
palavras dos outros. Isso é blábláblá, é papagaiar, é
repetir sem sentido. A escuta cobra que se oponha
palavras próprias às palavras outras. É esse o ato
mais humano: pronunciar a palavra própria no
encontro com a palavra outra. Não engolir a
palavra outra, não se deixar dominar pela palavra
outra, mas opor uma palavra própria, produzir

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uma afirmação responsável, dizer seu olhar único,
contar aos outros e a si mesmo seu modo único de
viver, de pensar, de sentir, de se emocionar, de
amortizar. Os outros precisam saber o que você é.
Pois somente você é desse jeito.
3. Cotejar é a unidade que se dá na interação de dois
sujeitos e de seus projetos de dizer. Penso que aqui
está a compreensão mais afinada de cotejo. É
sempre preciso dois sujeitos ou mais pra que a
enunciação se constitua. Falar sempre é falar com
outro. A palavra vai sempre na direção de outro. É
dele a palavra enunciada, pois foi enunciada pra
ele. Somente no encontro com ele e com a palavra
dele é que os sentidos podem se constituir,
constituindo, dessa forma, alterações nos sujeitos
que se falam. Que falam juntos. Cujas palavras se
amam, se comungam, se mantem e modificam ao
mesmo tempo. Nesse sentido é que é preciso haver
uma unidade. São dois projetos de dizer se
realizando em um único momento, um único
evento, numa unidade indissolúvel, e que se
dissolve na sequência, pra se constituir em novas
unidades.
4. Cotejar é produzir uma unidade de duas vidas
diferentes, no ato responsável. Reside aqui o eixo
fundamental da possibilidade do cotejo. Ser uma
existência única, diferente, mas não-indiferente. A
existência única não é construção própria, mas é
concessão do outro. Ela é doação. Minha vida é
minha porque me foi doada pelo outro. “A vida é
f

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dialógica por natureza” afirma Bakhtin. Esse é o
fundamento. Aqui está a raiz fundamental. Sem a
relação, sem a dialogia, sem o cotejo que se dá na
unidade do ato responsável não há vida, não há
“vivência, não há existência. Qualquer sentido tem
nessa interação sua origem. O sentido não vem de
uma descoberta, de uma heurística, de uma visão
pessoal, de um desejo meu. O sentido vem da
resposta à pergunta, vem da afirmação responsável,
vem do encontro de palavras e de vidas. Cotejar se
dá nesse meio, entre duas existências que não são
indiferentes, mesmo diferentes. E ainda bem que
diferentes. A diferença é necessária. “A diferença
identifica”. A indiferença é seu mal. A unidade que
se dá no ato responsável é criador de vida. Viva o
Cotejo! Viva o Encontro! Viva a Vida!

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O pesquisador como cotejador

Aline Maria Pacífico Manfrim

Introdução

No capítulo Metodologia das Ciências Humanas,


Bakhtin (2003, p. 400) aponta que “toda interpretação
é um correlacionamento de dado texto com outros
textos”. Então, o pesquisador, ao planejar, realizar e
divulgar seu trabalho, também passa por um processo
interpretativo da realidade sobre a qual se debruça.
Sendo a interpretação uma atividade de
correlacionar textos, o processo de cotejamento ocorre
justamente nesta atividade, evidenciando, assim, o
processo dialógico não só na forma de analisar os
dados, mas também no processo de concepção da
própria pesquisa.
Ainda neste capítulo, Bakhtin aponta as etapas do
movimento dialógico da interpretação que são 1. o
ponto de partida, isto é, um corpus, um enunciado, 2.
o movimento retrospectivo, ou seja, a realização do
diálogo com o passado e 3. o movimento prospectivo
que diz respeito às respostas produzidas a partir de
um projeto de dizer, iniciando, assim, um futuro
contexto.
Nessa perspectiva, a relação entre dado e novo na
pesquisa acontece a partir dos cotejamentos realizados
pelo pesquisador, convergindo, assim, com o próprio

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objetivo de se fazer pesquisas em ciências humanas:
produzir uma compreensão, e não uma verdade.
A partir destas considerações, são mostrados, a
seguir, alguns cotejamentos realizados pelo
pesquisador sobre um trabalho interpretativo de
observação em um estudo de caso realizado em uma
escola pública da cidade de São Paulo.
Em um primeiro momento, houve a necessidade de
compreender as formas de construção da
singularidade da escola por ela mesma. Em termos de
cotejamento, nos discursos produzidos pela escola em
seus documentos oficiais (projeto pedagógico, textos
de divulgação no site, conversas com os membros da
escola), o pesquisador identificou dois pontos a serem
destacados: 1. a aproximação de discursos que
enfatizam os problemas das escolas tradicionais (livros
do Rubem Alves, textos da Escola da Ponte) para a
construção de uma identidade como escola diferente;
2. o incentivo à liberdade dos alunos e do treino da
autonomia de construção do conhecimento por parte
dos mesmos.
Posteriormente, as ações da escola identificadas
pelo pesquisador para a manutenção da dinâmica da
escola são:
1. Quando a escola responde discursivamente ao
institucional — evidenciando a ação de CUMPRIR,
mostrando que, apesar de se configurar como
diferente, cumpre as exigências enquanto instituição.
Para este processo, as estratégias identificadas são:

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a. Utilização do livro didático fornecido pela
prefeitura (é o material base de relação com a
herança cultural para os alunos) articulado com os
Roteiros de Estudos (totalmente influenciados pelos
estudos do letramento que tratam da elaboração de
sequências didáticas);
b. Estabelecimento de uma rede de autonomia (via
documento oficial) com outras escolas;
c. Projeto pedagógico que ressalta a elevação
cultural, autonomia moral e intelectual por meio da
pesquisa (neste caso seria consultar o livro didático
por meio dos roteiros sem o auxílio direto do
professor);
d. Princípios de convivência destacados na parede
da parte interna da escola.
2. Quando a escola responde discursivamente ao
público — ação de JUSTIFICAR, por meio das seguintes
estratégias:
a. Facilitação do acesso das informações sobre a
escola (facebook, site, notícias de jornal);
b. Disponibilização do Projeto Pedagógico,
Regimento interno, Rede de autonomia, calendário
letivo, parcerias.
3. Quando a escola concilia a questão do público e
“privado a favor de uma representação
/representatividade de si para os outros. Neste aspecto,
as estratégias identificadas pelo pesquisador foram:
a. Consolidação dos espaços democráricos de
tomadas de decisão sobre a escola;

100

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b. Organização de eventos culturais (capoeira,
visita de indígenas, shows, palestras, bazares etc);
c. Realização periódica de assembleias gerais.
Tanto a ação de cumprir como a de justificar
influenciaram na escolha das práticas de letramento
vivenciadas dentro das escolas, evidenciadas pelos
seguintes aspectos:

Gêneros por meio dos quais os alunos são avaliados:

- Cademo (onde respondem às questões dos


roteiros de estudos);
- Ficha de finalização (uma espécie de prova sobre
os conteúdos estudados);
- Relatório quinzenal.

Atuação do professor:

- São chamados de tutores (cada um acompanha


periodicamente um grupo de alunos para conferir se
realizaram o roteiro escolhido conforme programado);
- Elaboram oficinas de estudo geralmente na sala de
informática para ensinar a pesquisar,
- Preparam as fichas de finalização para serem
aplicadas aos alunos;
- Verificam o caderno (não necessariamente
corrigindo as atividades dos roteiros, somente
verificando se todas as perguntas do roteiro foram
respondidas).

101

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Todo este quadro foi realizado para demonstrar
que esta é uma possibilidade de compreensão das
-| relações existentes na sala de aula. Elas se tornam
válidas na medida em que significam um caminho
percorrido pelo pesquisador no | processo
interpretativo possibilitado pelas suas investigações.
Ainda em termos de cotejamento, este panorama
foi possível a partir da abertura para o cotejamento
com textos que discutem o campo educacional a partir
perspectiva bakhtiniana (GERALDI, 1996, 2012, 2013)
os quais apontam para a preocupação desta área de
estudos de se voltar para as práticas sociais de leitura e
escrita e quais relações elas estabelecem entre si no
processo comunicativo com sujeitos falantes.
Em vista disso, o movimento de compreender por
meio das interações vivenciadas nesta escola teve
como ponto de partida uma instituição escolar
composta por sujeitos com traços culturais diversos,
assim como as outras, mas que tenta levar em conta
estas diferenças de alguma maneira. O pesquisador, no
processo de cotejamento de práticas e textos que
vivenciou e selecionou como pertinentes, realizou um
movimento retrospectivo de contato com discursos
que permeiam e legitimam a escola e ao mesmo
tempo, faz um movimento prospectivo cujo “passo
além” tenta se cotejar com discursos que apontam para
a necessidade de se enxergar a língua materna como

102

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Referências:

BAKHTIN, M. M. Metodologia das ciências humanas. In:


secando Estética da criação verbal. 2º ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
GERALDI, J. W. Linguagem e Ensino - exercícios de
militância e divulgação. Campinas, SP: Mercado de Letras -—
ALB, 1996.
. Heterocientificidade nos estudos linguísticos. In:
GEGE. Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da
metodologia bakhtiniana. Caderno de estudos IV para
iniciantes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012
. Leitura e mediação. In: BARBOSA, J.B., BARBOSA,
M.V. (orgs.). Leitura e mediação: reflexões sobre a formação
do professor. 1 ed. Campinas-SP: Mercado das Letras, 2013.

103

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Explorando a startização
em análise de discursos

Ana Beatriz Ferreira Dias


Patrícia Zaczuk Bassinello

1. "Um bom companheiro encurta o caminho”!

Em nossos caminhares na estrada das pesquisas em


linguagem ancoradas na perspectiva bakhtiniana, há
um trecho cujo olhar pode ficar um tanto inebriado,
talvez receoso e até mesmo cego quanto aos próximos
passos a serem dados. Sem dúvidas, este momento
pode ser muito bem aquele no qual nos deparamos
com as questões metodológicas de análise de
discursos, entendida aqui como compreensão ativa e
responsiva de textos.
Este caminho por onde andamos não está pronto e
acabado. É um fazer-se contínuo. Não é, porém, uma
trilha desabitada. Se podemos falar em caminho e
trilha é porque alguém por ali anda, movimenta-se.
Andam por ele vários pesquisadores que vêm abrindo
caminhos para uma (hetero)cienticidade em várias
áreas do saber, como na Educação e na Linguística,
renovando-as, inclusive, para abraçar novos elementos
da comunicação humana.

Para intitular as partes deste trabalho, usamos dize


1 . ,
Í
res, em sua
maioria, provérbios populares.

104
«dá

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Nesse contexto, contamos com os escritos de João
Wanderley Geraldi, que contribuem, de maneira
expressiva, para dar existência aos estudos
bakhtinianos no campo da pesquisa em linguagem,
especialmente quando esta é atinente à dimensão
filosófica do existir.
Dentre as contribuições desse pensador para a
Linguística, encontramos o cotejo como caminho
metodológico para realização de análise de discursos.
Diante disso, o cotejo como tema deste livro é também
uma resposta ao discurso de Geraldi que, em 2012,
insere sistematicamente o cotejo na metodologia para
compreensão de textos. Em sua leitura indiciária,
Geraldi retoma o cotejo de escritos de Bakhtin, que até
então não figurava no cerne das (releituras da obra do
Círculo, coloca-o em destaque e o desenvolve em sua
abordagem sobre a metodologia para análise.
Sua compreensão em tomo do cotejo é como À
Ponte de Heráclito. Com os estudos precursores de
Geraldi, a tendência é enxergarmos com mais nitidez o
caminho a ser percorrido para melhor
compreendermos os textos que selecionamos para
análises/compreensões.

105

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A Ponte de Heráclito (René Magritte, 1935)

Devido às nuvens, não sabemos se a travessia é


viável, pois a ponte pode estar ou não inacabada. O
reflexo na água indica, contudo, que a ponte existe,
não está interrompida, e que um caminho pode ser
percorrido de uma margem à outra. Mesmo sem
garantias para atravessá-la, é possível arriscar o
deslocamento. Assim como o reflexo na água, a leitura
que Geraldi oferece acerca do cotejo como caminho
metodológico para análise de discurso é um índice
para seguir o trabalho, mesmo sem corrimãos ou
guias, mas certos que de que a trilha continua. Trata-se
de orientações metodológicas que renovam O
caminhar.

2. “Onde há fumaça, há fogo”

O presente texto, como uma travessia nesta ponte,


tem como objetivo explorar, no âmbito do cotejo, O

106

«dá

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processo de “startização” no que diz respeito às
peculiaridades de um determinado discurso que, no
encontro com outros dizeres, tornou-se determinante
para a emergência de novos dizeres, repletos de
compreensões que levaram a construção de novas
memórias de futuro. Mais especificamente, analisamos
trechos do livro Viajar: eu preciso!, de Mayke Moraes
(2017) para compreender como o discurso sobre a
morte é por ele construído, pois notamos que o
discurso em torno da morte foi o protagonista para
uma reviravolta em sua vida, sendo fundamental para
que ele ressignificasse suas verdades, elegendo
discursos outros como centrais para conduzir sua
caminhada.
Quando a morte se apresentou, ele a revestiu de
tonalidades emotivas e volitivas intensas que fizeram
com que o acontecimento da morte de sua mãe fosse
um porto de passagem decisivo para eleição de novos
discursos. Vamos explorar as características desses
dizeres em torno da morte tamanha a sua importância
na decisão de Mayke Moraes em se tornar um
mochileiro, quando passou a conhecer dezenas de
países, arriscando o seu deslocar. Além disso,
precisamos considerar que, a partir disso, Moraes
passou a participar da construção de dizeres em prol
de concepções que entendem a prática do turismo
como encontro com a alteridade e como caminho de
vivências.
Partimos do pressuposto que nem todos os signos
ressoam da mesma forma para o eu, alterando-o

107

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| hi | igualmente e com a mesma intensidade. Assim como
| em cada etapa do desenvolvimento da sociedade
existem determinados “grupos de objetos particulares
RE É " e limitados” que adquirem um valor particular para o
corpo social, sendo um “grupo de objetos valorizados”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 46), podemos
supor do, do ponto de vista do eu, nem todos os signos
dialogam da mesma maneira com suas contrapalavras,
experiências e vivências.
Moura & Miotello (2016, p. 130) chamam a atenção
para esse movimento dialógico que acontece entre os
sujeitos, dando vida e luz ao encontro de palavras.
Considerando a importância do nascimento social do
sujeito para o mundo, para a alteridade, os autores
afirmam que o outro, ao se dirigir a nós,

vai nos emprenhando com seus sons, suas linguagens,


suas palavras, suas cantorias, suas risadas, seus
olhares, seus gestos... e em algum momento esse
movimento constante, intencional, linguajeiro provoca
em nós uma resposta. Isso se dá porque nossa
consciência foi acesa, foi constituída, polos opostos se
ligaram, interesses contraditórios apareceram, e as
palavras alheias vieram ao encontro das nossas
(Moura & Miotello, 2016, p. 130)

Pensando também no encontro de palavras, entre


palavra outra e palavra “própria”, Geraldi (2002) usa o
termo MA
“startização” para se referir ao despertar de
e md

contrapalavras do leitor:

108

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Como a palavra lida é sempre o momento e lugar da
“startização” de muitas outras palavras do leitor, suas
contrapalavras, a compreensão resulta não do
reconhecimento da palavra aí impressa, aí ouvida, mas
do encontro entre a palavra e suas contrapalavras (na
metáfora bakhtiniana, na faísca produzida por este
encontro) (GERALDI, 2002, p. 05).

Em vista dessas problemáticas, retomamos o termo


“startização” e ampliamos seu sentido, como um
convite para darmos continuidade à compreensão
desse processo comunicativo. Com isso, propomos que
o estudo focado nas características do enunciado
impulsionador de dizeres outros pode muito
contribuir para a compreensão do funcionamento de
encontros de palavras — singulares, concretos e sociais,
não esqueçamos.
Assim, ressaltamos que, neste trabalho, não
buscaremos encontrar exatamente aquela faísca,
aquele “passe de mágica”, que foi responsável pela
eclosão de um novo dizer (seria isso possível?). Tendo
em vista as palavras do próprio autor Mayke Moraes
sinalizadoras da relação entre a morte e a viagem,
nosso objetivo aqui é analisar como a morte é por ele
concebida para, então, escutar a voz do medo ecoando
em suas próprias palavras e, como tal, sendo
determinante para escolha de novos horizontes.
O terreno onde este trabalho se desenvolve é no
cotejo como metodologia para análise de discursos,
que tem no texto seu objeto de estudo.
Compartilhamos da ideia de que o cotejo é capaz de

109

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levar a construção de hipóteses e interpretações, as
quais, focadas na dimensão dialógica da linguagem,
permitem a escuta de várias vozes compondo sentidos
em um dado texto (BAKHTIN, 2006; GERALDI, 2012).
No presente trabalho, o texto é tomado como objeto de
estudo, de modo que os recursos expressivos nele
mobilizados assumem um lugar privilegiado na
análise, pois são entendidos como pistas que apontam
para um possível caminho interpretativo.

3. “Quem não anda, desanda”

Considerando as reflexões de Bakhtin em Problemas


da poética de Dostoiévski (2015), podemos afirmar que
dois acontecimentos foram decisivos e adquiram uma
valoração de “últimas questões” para o enunciador do
referido livro de viagens. A descoberta de que sua mãe
estava com câncer e o dia da morte dela foram uma
espécie de limiar para o filho. Vê-la viva, sabendo de
sua morte iminente, bem como vê-la morta e desejar
tê-la viva foram acontecimentos que penetraram na
unidade do ser de Mayke. Para Bakhtin (2015), o limiar
é a conjunção de um tempo e espaço no qual ocorrem
conflitos e tensões que levam a reviravoltas e
catástrofes. É um ponto de crise e de mudança.
Essa situação extraverbal penetra no enunciado e
pode ser escutada por meio da leitura dos recursos
expressivos:

110

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Trecho 1: Meu fuso horário começou a mudar antes
mesmo de eu pensar em ser mochileiro. Esse dia chegou
alguns anos depois da perda da minha mãe.
Foi um câncer. E um câncer não é um daqueles assuntos
mais fáceis para se começar um livro sobre viagens [...).
(MORAES, p. 13, grifo nosso).

Trecho 2: num determinado momento, notamos que


minha mãe tinha uma pinta que crescia em sua perna.
Quando o diagnóstico foi passado, não tive tempo de
assimilar a gravidade do caso. Após biopsia, descobrimos
uma nova palavra: melanoma (MORAES, p. 13, grifo
nosso).

Nesses dois segmentos, a mudança no ritmo do


enunciado, devido ao emprego de frases curtas, muda
claramente o tom das construções discursivas,
sugerindo essa intensa modificação da rota dos
acontecimentos.
O momento em que a vê sem vida pode ser
entendido de maneira muito próxima a estes da
descoberta da doença, pois remete a essa reviravolta
de passar da vida para a morte efetivamente:

Trecho 3:
Lá estava ela. Imóvel. Fria. Sem vida.
Era minha bússula. Minha referência.
(MORAES, p. 253)

Nesse trecho, a pontuação toma as sequencias


discursivas curtas, apontando para o impacto e à
brutalidade dessa dimensão da vida que carrega à

111

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morte. O paralelismo semântico e sintático reitera essa
tensão que choca, de modo que, do ponto de vista do
enunciador, isso tudo parece dispensar explicações
quanto aos tópicos trazidos por ele, tanto que não há
desenvolvimento das frases que são apenas
justapostas por coordenação.
Fatos passados são reportados no presente da
enunciação e, desse modo, recebem tonalidades
emotivo-volitivas. Em relação aos momentos relativos
à descoberta da doença e ao instante em que se
prostrava diante do corpo da mãe, o autor tem na
doença uma alteridade aterrorizante, que poderia
muito bem ser representada aqui pela figura mítica de
Górgona, pois a doença resultou na morte de sua mãe.
Sobre Górgona como a representação da alteridade
absoluta na Grécia antiga, Amorim (2004, p. 51)
explica:

A máscara monstruosa de Górgona traduz a alteridade


extrema. É o horror daquilo que é absolutamente outro, O
indizível, o impensável, o puro caos: o confronto com a
morte, imposto pelo olhar de Górgona. Todo aquele que
cruza seu olhar, todo ser vivo, que se move e que vê a luz
do sol, transforma-se em pedra, congelada, cega e escura.
Do ponto de vista do homem, a morte encarnada por
Górgona seria, pela própria oposição ao mundo dos
vivos, o Outro absoluto. Olhar Górgona nos olhos seria
encontrar a dimensão do terror (AMORIM, 2004, p. 51).

Podemos notar o poder e a força da morte por meio


da observação da seleção lexical empregada pelo

112

«dá

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enunciador em seu livro, quando ele narra como a
doença se relacionou com sua mãe:

Trecho 4: O câncer de pele foi vencido dois anos depois.


Porém, ele voltou no intestino. Dessa vez também houve
tempo. Mas, da terceira vez, ele foi implacável (p. 13)

Aqui, notamos que a doença é personificada. Ela é


uma forte e insistente adversária que se desloca,
ausenta-se e volta, mas é algo com quem se trava uma
verdadeira luta.
Essa é sua resposta do sujeito enunciador frente a
discursos que circulam sobre a morte em nossa
sociedade. Como observa Bakhtin (2006, p. 379),
porque vivemos um mundo já habitado por outras
vozes, outros discursos, “toda minha vida é uma
orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro
(uma reação infinitamente diversificada)”.
Se entendemos a morte como Górgona, uma
alteridade absoluta e totalitária, precisamos considerar
que ela é capaz de aniquilar quem lhe fixa em demasia
o olhar, como explica metaforicamente Amorim ao
tratar das relações com a alteridade, em trecho citado
acima. Essa voz da morte como algo capaz de paralisar
e estagnar o curso da vida pode ser escutada no
discurso de Mayke Moraes também quando ele afirma
que o peso da morte em dado momento de sua vida
suscitou-lhe outros medos ligados a vários campos da
atividade humana, como ao âmbito profissional. Aqui,
podemos supor, é possível descobrir “o homem no
“homem” (BAKHTIN, 2015) e/ou sua “palavra outra”

113

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(PONZIO, 2010). O medo em sua dimensão de
fragilidade do humano. Como algo normalmente negado
e tornado invisível em nossa sociedade, que valoriza o
forte.
Como resposta ao discurso do medo, que sentiu como
uma verdade singular no seu ser, podemos afirmar que
Moraes ofereceu, em dado momento, um outro dizer,
pois ele, em determinada circunstâncias, entendeu que:
“E eu precisava me livrar desse peso. De todo o peso” (p.
253).
A morte de alguém próximo, de uma pessoa querida,
de alguém se tornou único para o eu pode, de acordo
com Bauman (2008, p. 61), abrir caminhos para “uma
experiência filosófica privilegiada”, pois este tipo de
morte oferece uma pista “daquela terminalidade e
irrevogabilidade” de que consiste a morte. Tanto é assim
que à morte “se atribui grande autoridade, talvez a maior
quando quer que se precise fazer uma escolha” em
mundo cheio de possibilidades, afirma o pensador (Ibid.,
p.59).
O caminho que Moraes escolheu para isso foi se
tornar mochileiro. Em seu livro, ele atribui valor à
viagem, que se torna, do ponto de vista do eu-para-mim,
necessária e imprescindível em sua vida, tal como sugere
o próprio título de sua obra. Dentre as respostas que O
livro pode provocar, talvez esteja o entendimento de que
a viagem é capaz de contribuir significativamente para
possíveis transformações e mudanças de vida.
No livro, o passado, ressignificado a partir de novas
memórias de futuro relativas à brevidade da vida e ao

114

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ímpeto de viver intensamente, recebeu novas tonalidades
valorativas na medida em que o impulsionou a novas
aventuras. Nelas, também aparecem a instabilidade, o
medo, a desventuras, como fica evidente ao longo da
narração sobre suas viagens realizadas. As concepções
sobre elas, porém, não são construídas discursivamente
como Górgona, talvez sim como Dionísio...
Essas são algumas das relações dialógicas que pode
podemos escutar em seu discurso.

4,”A passo e passo, anda-se por dia um bom pedaço”

Para dar um certo fechamento, provisório, a este


exercício de análise de textos, vamos destacar um ponto
que, a nosso ver, merece destaque, pois o cotejo nele se
assenta. Trata-se de nosso reconhecimento, para nós uma
verdade-pravda, de que a leitura envolve e requer o olhar
fixo na página que acompanha o movimento do texto.
Mas, vai muito além dele, pois é preciso olhar para o
mundo e, com isso, fazer emergir, no encontro com o
texto lido, palavras outras que não se mostram tão
facilmente.
Ponzio (2010) destaca a importância de um tipo
especial de leitura tradicionalmente rechaçado em
escolas: a leitura que leva o sujeito a pensar em suas
“próprias coisas”. Quando acontece esse tipo de diálogo,
fica evidente que se pensamentos foram produzidos a
partir daquela leitura, isso ocorreu porque texto lido
comunicou algo, esclarece o pensador italiano. E preciso
uma leitura que se permite levantar o olhar das páginas.

115

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O cotejo envolve, mas transcende a leitura linear e fixa na
página, pois joga sempre o sujeito para outras realidades
do mundo.
Por meio disso, podemos também conhecer melhor a
nós mesmos, incluindo em nossas atividades, por
exemplo: a reflexão sobre a constituição de nossa
atividade mental, as relações com as alteridades, as
respostas que oferecemos aos discursos de outrem, as
relações de poder que se estabelecem na jogo discursivo,
etc. Tudo isso passa pela linguagem, acontece por meio
dela e pode ser nela escutado”. Apesar de parecer
simples, a prática cotidiana, sobretudo em instituições de
educação, mostra-nos a complexidade da questão desse
tipo de leitura.

Referências

AMORIM, M. (2004). O pesquisador e seu outro: Bakhtin


nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. 2a.
tiragem. Tradução de Paulo Bezerra São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
- Problemas da poética de Dostoiéski. Tradução de
Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BAKHTIN, M.M.; VOLOSHINOV, V.N. 2009. Marxismo e
filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método

? Como tal, a leitura tem relação direta com a escrita, que pode ser
entendida como prática que materializa leituras de mundo do autor,
; “A que leva à reflexão sobre as vozes sociais que encontram espaço para
TR 4 . . . . Le
E À ali inter-agirem, que ressignifica posições sociais, entre outras
. ma
E

e 2

Rh
pmru | possibilidades.
A a
ig |
mt À
i Pça 116
1

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sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel
Lahud e Marina Yaguello. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAUMAN, Z. O medo líquido. Carlos Alberto Medeiros. Rio
de Janeiro: Zahar, 2008.
GERALDI, J. W. Leitura: uma oferta de contrapalavras,
Educar, Curitiba, n. 20, p. 77-85. 2002. Disponível em: <
http://www-.scielo.br/pdf/er/n20/n20a08.pdf>. Acesso em 29
out. 2017.
. Ancoragens — Estudos bakhtinianos. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2010.
. Heterocientificidade nos estudos linguísticos. In:
GEGe. Palavras e contrapalavras: enfrentando questões da
metodologia bakhtiniana. Caderno de Estudos IV Para
Iniciantes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. p. 19-39.
MAGRITTE, R. A Ponte de Heráclito, 1935, óleo sobre tela.
Coleção particular. Imagem disponível | em:
<https://theartstack.com/artist/rene-magritte/heraclitus-
bridge>. Acesso em 23 set. 2017.
MORAES, M. Viajar: eu preciso! São Paulo: Buzz Editora,
2017.
MOURA, M. I de.; MIOTELLO, V. A escuta da palavra
alheia. In: RODRIGUES, R. H.; PEREIRA, R. A. Estudos
dialógicos da linguagem e pesquisas em linguística
aplicada. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016, p. 129-140.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. Tradução aos
cuidados de Valdemir Miotello et al. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.

117

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Vozes e cotejos nos estudos de caso:
encontros e afastamentos

Luís Fernando Soares Zuin


Poliana Bruno Zuin

De acordo com Bakhtin (2017, p.59), “o objeto das


ciências humanas é o ser expressivo e falante”. Na teoria
bakhtiniana o Ser é um sujeito constituído nas
interações sociais e por relações de alteridade, por isso
suas experiências e vivências com outros seres imprimi
em cada ser inúmeros sentidos. Esse ser que se
transforma, é um ser inacabado e plástico, devido às
relações dialógicas que estabelece nas interações e a
sua capacidade de criação, capacidades essas que
somente os seres humanos possuem. Dessa forma, O
Ser somente pode se apresentar finalizado no
momento em que morre, pois até o instante anterior,
em vida, suas interações o torna inesgotável no que
concerne à produção de sentidos. Pensando no que a
academia estabelece como Metodologia da Pesquisa
em Ciências Humanas o Ser enquanto objeto de
conhecimento se revela nos diálogos que ocorrem nas
interações investigativas, no encontro das falas entre
entrevistador e entrevistado. Diante do exposto, busca-
se nesse texto dialogar sobre o contexto da
investigação científica, por meio do método de coleta
de dados e informações, denominado “Estudo de
Caso” (AMORIM, 2002).

164

>,
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Bakhtin (2017) ao dissertar sobre uma possível
metodologia das ciências humanas desconstrói o
pensamento da maioria dos pesquisadores que estão
na academia. Pesquisadores esses, cujos olhares estão
ancorados em uma abordagem positivista-mecanicista
de se olhar para o mundo e para as relações e
interações que temos com ele. Para esses
pesquisadores as coisas (objetos humanizados),
quando estudadas, apresentam a construção de um
limite, a busca de uma exatidão, o que implica em um
ato investigativo determinado por um afastamento
metodológico do pesquisador e seu objeto
humanizado. Nessa forma de se fazer pesquisa,
podemos afirmar que essa é uma forma monológica de
produção de conhecimento.
Ao propor uma metodologia para as ciências
humanas, Bakhtin (2017) enfatiza que o estudo do
homem só é possível cognitivamente por meio da
interpretação dos sentidos, ou seja, o olhar sobre o
mundo ocorre de forma inversa às práticas
interpretativas científicas denominadas positivistas
que ocorre com os objetos humanizados. Nas ciências
sociais aplicadas a interpretação de um texto
necessariamente necessita de outro texto, ou seja, um
texto somente se revela no mundo concreto por meio
de outro texto. Há um contato entre textos, não
necessariamente físico, pois esta interação ocorre entre
pessoas e não entre os objetos humanizados.
Na literatura essa forma de coleta de enunciados
apresenta algumas conduções e abordagens distintas,

165

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RA :' havendo um entendimento em alguns pontos. Para
fr 51 Robert Yin (2001), autor de viés predominantemente
ww | -positivista-mecanicista, a maneira de se fazer pesquisa,
por meio do estudo de caso, é uma das formas mais
desafiadoras que podem ser empregadas nas
investigações nas ciências sociais aplicadas. Para o
autor ao projetar uma coleta de dados de um estudo
de caso, o principal objetivo do pesquisador seria o de
coletar e analisar de forma “imparcial” os conjuntos de
enunciados dos entrevistados. Conforme o autor, O
estudo de caso seria uma forma de pesquisar buscando
preservar as características dos fenômenos os quais se
manifestam no mundo concreto. Para isso é
fundamental a separação dos discursos provenientes
do entrevistado e pesquisador. Neste caso a
formulação de um roteiro de pesquisa com perguntas
detalhadas se faz necessária. A interação e condução
da entrevista é realizada seguindo um roteiro,
engessando as possibilidades de novos conteúdos
expostos na interação entrevistado e pesquisador.
Para Robert Yin (2001) o estudo de caso é ainda
considerado por boa parte da literatura especializada
como sendo a primeira abordagem investigatória e
descritiva de uma pesquisa, que depois pode ser
desdobrada em outras metodologias de coletas de
enunciados quantitativos e qualitativos. Essa visão
hierárquica de metodologias de pesquisa implica que a
abordagem de coleta de enunciados empregada pelo
estudo de caso não seria a mais indicada para
descrever e testar um tema de uma pesquisa. O estudo

166

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de caso pode possuir várias abordagens, como: a
descritiva, exploratória e explanatória. Neste caso o
estudo de caso pode ser definido como sendo uma
investigação empírica de um fenômeno
contemporâneo inserido no mundo concreto. Para o
autor através dessa abordagem positivista o contexto e
o fenômeno não se apresentam para o pesquisador de
forma clara e definida, pois quando o pesquisador
realiza o recorte da pesquisa no mundo concreto este
se torna impreciso.
Independente da sua abordagem metodológica o
estudo de caso é uma forma dialógica de coleta de
enunciados a campo, nesse momento ocorre por meio
de um encontro as falas tanto do pesquisador como do
entrevistado. Esses conjuntos de falas interagem além
do momento da entrevista em um constante processo
de reelaboração de sentidos e significados, destacados
de um espaço-tempo determinados. Os conteúdos dos
falantes percorrem esse caminho único de forma
plástica e são constantemente mesclados até se
tornarem parte de um único texto, elaborado por
várias vozes, durante a condição do texto de caráter
acadêmico. Vozes que possuem conjuntos de
enunciados, os quais compõem as vivências e
experiências desses dois sujeitos, sobre o tema
pesquisado (AMORIM, 2004; BAKHTIN, 2010ac). A
junção desses textos ocorre por meio de um trabalho
de cotejamento do investigador. Amorim (2002)
observa em seus estudos que o texto científico
finalizado em um livro, tese ou artigo, nada mais é que

167

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a junção das vivências e experiências dos

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interlocutores, das vozes presentes entre entrevistado e
pesquisador. Dessa forma, o texto científico possui
dois olhares, dos sujeitos que interagem ou que vão
interagir.
Neste caso a questão da interpretação dos
enunciados não pode ser determinada pelo momento
em um espaço-tempo que este foi coletado. O
pesquisador observa, que ao escrever o resultado da
interação com outro, na elaboração de seu texto
científico, observa que os sentidos das palavras dele e
do outro ainda continuam vivos e plásticos, sendo
constantemente cotejados. A interpretação do texto
seria para Bakhtin (2017) determinado pelo encontro
das duas consciências, que no estudo de caso seria as
consciências do entrevistado e pesquisador. Para o
autor, a compreensão do texto pelo pesquisador pode
ser atingida por meio de quatro elementos,
constituintes do diálogo com o outro, sendo: o
entendimento do signo (palavra, colorações e formas
físicas) pelos falantes a identificação por um
reconhecimento ou desconhecimento dos significados
historicamente construídos; a compreensão dos
falantes do significado da palavra no contexto da fala;
e a busca por uma compreensão ativa e também
dialógica (concordando ou não) com o que está sendo
dito, por meio da inserção dos sujeitos no contexto do
Ea diálogo, da visualização do ato valorativo em toda a
ne À sua amplitude e profundidade.
| 168
Por meio destes constituintes podemos observar o
quanto são distintas as posturas e abordagens

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dialógicas-bakhtinianas das positivistas-mecanicistas.
A primeira forma de pensar uma pesquisa científica
busca uma interação próxima entre os falantes, pois o
investigador com a postura dialógica sabe que os
sentidos e significados das palavras do investigado
encontram-se também fora do texto verbalizado por
ele no mundo concreto, no momento da entrevista.
Portanto, o olhar desse pesquisador é aberto e amplo,
ao contrário do investigador positivista que reduz o
seu olhar ao objeto estudado. Do ponto de vista
pragmático, no decorrer da entrevista o pesquisador
positivista geralmente se encontra mais preocupado
com questões procedimentais do ato investigativo,
como o preenchimento correto do roteiro de pesquisa.
Em alguns casos, há um claro desconhecimento dos
significados das palavras empregadas na construção
do roteiro de pesquisa, sendo identificado este
desconhecimento de forma imediata pelo sujeito
investigado. Neste momento este tipo de pesquisador
se preocupa com o correto preenchimento das
questões fechadas e abertas, levando pouco em
consideração outros aspectos dos constituintes do
diálogo, tais como: entonações das vozes, gestos e
mímicas. O entrevistador pode neste momento não
visualizar a intensidade do ato valorativo do
entrevistado perante a formulação de seu
questionamento, tendendo esta interação a uma
possível neutralidade científica, desejada pelo
169
pensamento positivista-mecanicista. Logo, o seu olhar

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é centrípeto, o inverso do olhar dialógico que é
centrífugo, pois este busca no limite dos significados
novos sentidos para os signos presentes nos diálogos
das entrevistas para uma investigação (ZUIN et al,
2015a; ZUIN et al., 2015b; ZUIN; ZUIN, 2015; ZUIN et
al., 2016; BAKHTIN, 2017).
A esta interação entre os textos provenientes das
falas dos entrevistados, recolhidas durante a etapa da
coleta de dados, faz com que o pesquisador dialógico
bakhtiniano empregue durante a análise desses
conjuntos de falas o ato de cotejar. Para Bakhtin (2003),
o ato de cotejar textos vai além de uma simples ação de
comparação simplista de conteúdos, como a-busca de
antagonismos e assertivas dos sentidos das palavras. O
ato de cotejar no estudo de caso pode ser caracterizado
por uma ação investigativa onde se busca uma
dialogicidade entre os conteúdos das enunciações
coletadas pelos sujeitos pesquisados. Essa
dialogicidade compreende um conjunto de olhares e
posturas realizados pelo pesquisador na compreensão
dos enunciados dos sujeitos investigados. O ato de
cotejar não é uma ação excludente dos sentidos dos
textos, mas sim uma atividade que procura o diálogo
entre os conteúdos que foram ditos. Este diálogo é um
encaixe, onde um conteúdo completa o outro, não de
forma passiva, mas confrontando os sentidos que
foram ditos, sem excluí-los, uma vez que toda a
produção de novos sentidos ocorre por meio do
embate de conteúdos ideológicos presentes nos signos
170
(ZUIN et al, 2015a; ZUIN et al, 2015b; ZUIN; ZUIN,
2015; ZUIN et al. 2016; BAKHTIN, 20104).

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O cotejamento empregado na metodologia do
estudo de caso proporciona uma aproximação ativa na
vida de novos sentidos e significados, gerando novos
olhares e posturas sobre o assunto pesquisado.
Proporciona o ato de cotejar textos o desenvolvimento
de uma postura dialógica que visualize a polifonia e
equipotência das vozes nas interações dos seus
investigados (BAKHTIN, 2010bc).
Referencial
AMORIM, M. O pesquisador e seu Outro. Bakhtin nas Ciências
Humanas. 1. ed. São Paulo: Musa, 2004.
AMORIM, M. Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências
humanas. Cadernos de Pesquisa. n.116, p.7-19, 2002.
BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências
humanas. São Paulo: Editora 34, 2017.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Editora Hucitec, 2010a.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010b.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do
romance. São Paulo: Editora Hucitec, 2010c.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
YIN, R. K. Estudo de caso — planejamento e métodos. 2.ed. Porto
Alegre: Bookman, 2001.
ZUIN, L.F.S.; ZUIN, P.B.; COSTA, MJ.P. Operacionalização
dos processos formativos nas práticas de bem-estar animal
171
Para Vaqueiros em fazendas de gado de corte
. In: ZUIN, P.B,;
GIROTII; MT; ROMUALDO, C. (Orgs). Diálogos em

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didática: tecendo histórias sobre o ensinar e aprender.
Aparecida: Idéias & Letras, 2016.
ZUIN, L.F.S.; ZUIN, P.B.; QUEIROZ, T.R. Gestão, inovação e
sustentabilidade nos agronegócios. In: ZUIN, LES;
QUEIROZ, T.R. (Orgs.). Agronegócios: gestão, inovação e
sustentabilidade. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015a.
ZUIN, LF.S.; ZUIN, P.B.; COSTA, J.R.P. Comunicação
organizacional na dialogia contemporânea dos agronegócios.
In: ZUIN, L.F.S; QUEIROZ, T.R. (Orgs). Agronegócios: gestão,
inovação e sustentabilidade. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015b.
ZUIN, L.FS.; ZUIN, P.B. Metodologia de diagnóstico
dialógico dos aspectos sócioeconômicos e ambientais nos
territórios rurais. In: ZUIN, L.F.S.; QUEIROZ, TR. (Orgs.)
Agronegócios: gestão, inovação e sustentabilidade. São Paulo:
Ed. Saraiva, 2015.
172
A palavra, o conceito e a ideia de cotejo

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na obra de Bakhtin
Ivo Di Camargo Jr.
Para que se determine como funciona o cotejo na
teoria bakhtiniana é necessário desenvolver diálogos.
Para este intento estabeleceremos um diálogo com
Mikhail Bakhtin. Para que se visualize de maneira
mais clara, demonstraremos aqui escritos do autor que
dialogam conosco e que darão uma visão mais
abrangente de como o cotejo participa das teorias deste
intelectual. Enfim, nossa busca é fazer algumas
considerações acerca de como o cotejo pode auxiliar no
entendimento de ideias de alteridade e do social como
forma de melhor entendimento humano.
Busquemos inicialmente uma definição a partir de
nossa produção de comunicação. Todo enunciado traz
em si um leque de possibilidades de discursos que
eleva assim a noção de totalidade sem com isso ter de
se abstrair de uma realidade concreta. Dessa maneira,
se praticarmos uma abstração no discurso apenas em
sua parte estrutural, este sempre ficará limitado no que
pretende comunicar. Porém, se quisermos entender as
motivações do por que se diz algo, para que e como se
diz, teremos claramente a significação do enunciado
em seus dizeres claros ou ditos e nos seus
silenciamentos, ou os não-ditos. Ou seja, quando nos
propomos a dialogar sobre determinado tema, falando
sobre ele, devemos ter em mente que aquilo que foi
180
dito pode não ser compreendido com clareza e que

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pode ficar obscuro aquilo que não foi dito. Isso vai
ocorrer quando não se questiona o que foi dito. Dessa
forma, não vão ser percebidas as implicações
ideológicas contidas no que foi dito em seus
silenciamentos. Para que isso ocorra nesta tarefa é
imprescindível buscar a compreensão do discurso por
meio de apreender as relações dialógicas, ou seja, O
diálogo estabelecido entre os enunciados. Bakhtin vai
chamar a isso de COTEJO ou nas palavras do mestre
russo “cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos
seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de
dado texto com outros textos. O comentário. A índole
dialógica desse correlacionamento” (Bakhtin!, 2003:400.
Negrito nosso).
Na tradução direta do russo que o iminente Prof.
Paulo Bezerra produziu da obra de Bakhtin, percebe-se
a palavra correlacionamento no lugar de cotejo.
Contudo isso não muda a sua significação e fiquemos
no cotejo como palavra-chave. O cotejo então será a
correção de enunciados cuja orientação metodológica
vai se originar da valorização do outro, do
entendimento com ele, com a busca da alteridade que
passará a caracterizar-se como uma construção, uma
refração e reflexo da produção intelectual realizada
pelos seres humanos e não apenas uma simples
reprodução que não refrata a realidade que envolve eu
'BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Introdução e tradução do
russo por Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa por Tzvetan
Todorov. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
181

Fa
e o outro, ou seja, nossas condições de produção que

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vão nos remeter a conceitos históricos, ideológicos,
sociais, heterogeneidade de discursos,
interdiscursividade, alteridade plena, etc. Cotejo é
relacionar o que um humano produz para o outro
humano buscar compreender.
De acordo com Bakhtin (2003:401) para que se
possa compreender um fato devemos ver “A
interpretação como correlacionamento com outros textos e
reapreciação em um novo contexto (no meu, no atual, no
futuro). Assim, entende-se que essa é a dialética que
vai se configurar no diálogo e retornar ao que se foi
dito de uma forma mais aprofundada e compreendida
de contextualização, pois ainda com Bakhtin (idem), “
o texto só tem vida contatando com outro texto (contexto).
Só no ponto de contato de textos eclode a luz que ilumina
retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no
diálogo”.
Assim compreendendo, o cotejo é essa luz que vai
clarear para os participantes do diálogo entenderem e
serem compreendidos. Bakhtin (ibidem) vai esclarecer
isso e deixar translúcida a importância do cotejo
quando afirma que
“Salientemos que esse contato é um contato dialógico
entre textos (enunciados) e não um contato mecânico de
“oposição”, só possível no âmbito de um texto (mas não
do texto e dos contextos) entre os elementos abstratos (os
signos no interior do texto) e necessário apenas na
primeira etapa da interpretação (da interpretação do
significado e não do sentido). Por trás desse contato está
182
o contato entre indivíduos e não entre coisas (no limite)
.
Se transformarmos o diálogo em um texto contínuo, isto

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é, se apagarmos as divisões de vozes ( a alternância dos
sujeitos falantes), o que é, extremamente possível (a
dialética monológica de Hegel), o sentido mais profundo
(infinito) desaparecerá (bateremos contra o fundo, num
ponto morto).
É neste momento que tanto o leitor voraz quanto o
estudioso de Bakhtin que principia leituras devem
contemplar o que foi dito sem fugir das palavras do
mestre russo, compreendendo seu intento. Em um
texto deve-se buscar o que ele diz pelas suas marcas
enunciativas, suas pistas. Tal como já desenvolvemos
em um artigo?, para citar o historiador italiano Carlo
Ginzburg, é preciso entender o paradigma indiciário
que está presente como pistas no texto. Isso tudo vai
ser evidenciado por meio do cotejo que permite a visão
dos possíveis silenciamentos que podem ou não estar
perceptíveis, mas como afirmou Bakhtin, com a luz
que clareou dessa correlação, vai ser possível enxergar
o que está entre o dito e o não-dito no enunciado
dialógico.
Bakhtin (2003:383) mesmo afirmara que “o eu se
esconde no outro e nos outros, quer ser apenas outro para os
outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro,
livrar-se do fardo do eu único (eu-para-si) no mundo”. Isso
Come
? DI CAMARGO, 1. Propondo a teoria da convivência nas relações entre
Bakhtin, Ginzburg e eu. In: MIOTELLO, V. (org.) Lago dos Signos E
identidade, discurso, memória. São Carlos: Pedro & João Editores,
2007. Pág. 83-88.
183.
somente se torna possível pelo cotejo ou

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correlacionamento que se estabelece com o outro.
Assim, podemos finalizar dispondo de uma noção de
cotejo que é uma maneira de poder compreender o que
não está sendo dito, ao se interpretar as ideias e
ideologias num dado enunciado porque eu mergulhei
no mundo do outro. Ao se analisar o que um texto ou
alguém diz e o que não diz facilita a compreensão das
significações do que se diz, sempre levando em conta
que o que se afirma pode ser interpretado e analisado
das mais variadas formas e depende somente do lugar
social de quem afirma, interpreta e compreende.
184
Cotejando texto e discurso: contribuições da

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linguística materialista na aula de língua portuguesa
Alexandre Reis
Onde não há texto não há objeto de pesquisa e
pensamento (BAKHTIN, 2011, p. 307).
Procuraremos neste capítulo apontar contribuições
que correntes materialistas da linguística fornecem ao
ensino de língua portuguesa. Entendemos como
pertencentes a essa categoria as correntes que, das
mais diversas formas, procuraram estudar a língua em
seu uso real.
Para tanto, cotejaremos três textos onde seus seus
autores tratam, direta ou indiretamente das
implicações do materialismo no ensino. Queremos
com isso, além de dar coerência para o que exporemos,
mostrar como o materialismo também motiva as
evidentes relações dialógicas dos mesmos. Falaremos
agora rapidamente desses textos que serão nosso
norte.
Escrita em 1930, a obra Imaginação e Criatividade na
Infância de Lev S. Vigotski se propõe a estudar o
desenvolvimento psíquico da criatividade humana
focando, para tanto, o âmbito escolar. Após definir as
relações da imaginação com a realidade, o mecanismo
de funcionamento da criação e como essa capacidade
se desenvolve na criança e no adolescente, o psicólogo
Tusso analisa três aplicações dessa capacidade: na
criação literária, na criatividade teatral e no desenhar.
185
/ Por sua vez, o texto Questões de estilística no ensino da
74h íngua, escrito em 1940, de Mikhail Bakhtin trata da

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tic | importância da estilística no ensino de língua. Nele, o
linguista russo critica o ensino “apenas gramatical”
onde as formas são dadas, mas não compreendidas em
seu verdadeiro estilístico sentido pelo aluno. Seus
exemplos de atividades em classe revelam uma
pedagogia dialógica e rica em exercícios indutivos. Por
fim, o livro Materialismo Racional de Bachelard, escrito
em 1952, procura definir as bases de um “materialismo
científico” usando exemplos das descobertas da
Química de sua época que surpreenderam a todos e
redefiniram paradigmas dessa área. O livro, como os
outros dois textos, também é rico em exemplos de
ensino.
Por que o materialismo?
O que podemos perguntar agora é: por que o
materialismo? Se olharmos para a Linguística veremos
que correntes materialistas se opuseram a correntes:
estabelecidas, como a gramática gerativa, a semântica
formal e a linguística estrutural saussuriana.
Acreditamos que essa pergunta começa a ser
respondida, portanto, quando olhamos para o que elas
deixam de lado, respectivamente: a [língua: EJ]!,
valores que não o valor de verdade, como o valor
estilístico, e a fala como fenômeno social, isto é o
“A 1 RAPOSO, 1999, p. 18
ses
al 7 186
ari
discurso. Desse modo, tais modelos idealistas, por
exemplo, não dão conta de fenômenos como:

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A aprendizagem da língua pela criança, as categorias
lógicas que esta elabora ao longo de seu crescimento para
apreender o mundo, todas estas investigações estão
constantemente orientadas para a linguag em e
proporcionam um conhecimento sobre seu
funcionamento que a linguística formal seria incapaz de
dar (KRISTEVA, 1969, p. 305).
Os avanços que o estudo formal da língua
proporcionou são inquestionáveis. Ocorre que, dado o
idealismo que apregoam, sua metodologia deve fazer
um recorte quando, nas palavras de Pêcheux, “há um
retorno do saber no pensamento”? que sempre afasta o
objeto de estudo do objeto real, istoé, a língua como
prática, como discurso.
Texto e discurso como materialidades
Se olharmos para a história do que costumamos
chamar de Linguística Textual, intuitivamente a área
do objeto em questão, o texto, esse “retorno do saber
no pensamento” é evidente quando percebemos que o
abandono do projeto de uma “gramática textual”
coincidiu com uma “discursivização” de seu objeto do
conhecimento:
2 PÊCHEUX, 2016, p. 114
187
O facto é que qualquer parcela da linguagem da vida real

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é mais do que um texto organizado de acordo com as
convenções fundamentais (...) — trata-se de um discurso
muito mais rico do que aqueles de que até agora tratámos
(FOWLER, 1986, p-121).
Para resumir, podemos dizer, agora com Bakhtin?,
que um texto é qualquer conjunto coerente de signos
que possui uma configuração específica, a que nos
interessa, chamada texto verbal. Nessa forma ele
sempre pressupõe um autor, que marca na superfície
textual um conjunto de aspectos e subaspectos não
redutíveis em sua totalidade à Linguística, e um
sujeito, que pode fazer do texto verbal um enunciado
pelo estabelecimento e a execução de um projeto. Esse
processo será entendido nos estudos bakhtinianos
como o ciclo que vai do projeto de dizer ao discurso. Um
exemplo de sala de aula é quando o professor (sujeito)
decide ler um texto e as consequências desse processo
não estão totalmente a seu controle pois implica a
participação do sujeito-outro, ou seja, o texto se torna
discurso pois no projeto de dizer do professor não se
pode, por exemplo, antecipar uma intervenção do
aluno num trecho que o emocionou. Veremos abaixo
que essa combinação entre texto e discurso só é
possível por conta da imaginação criativa.
O que é importante lembrar aqui é que texto e
discurso são materialidades que podem se relacionar
das mais diversas maneiras. Um cantor repentista que
| 3 BAKHTIN (2011, p.
307-335)
188
procura palavras que rimam e tenham uma certa
coerência no seu produto final, isto é, a letra da

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música, praticamente oblitera a divisão entre texto e
discurso, mas ambos continuam sendo objetos
diferentes. O que muda aqui, segundo Bachelard, é a
mistura dessas duas matérias que se diferenciam,
inclusive, por sua resistência material. Mesmo falando
de compostos químicos, o epistemólogo e filósofo
francês, por partir de premissas do materialismo,
acaba por tratar de problemas igualmente implicados
ao trato do texto e do discurso como materialidades:
“Mais que outra filosofia, o materialismo, se parte
verdadeiramente das experiências em torno da matéria,
oferece-nos um verdadeiro campo de obstáculos. A noção de
campo de obstáculos deve então dominar a noção de situação. O
obstáculo suscita o trabalho, a situação não pode ser senão a
topologia dos obstáculos, os projectos vão contra os
obstáculos. Assim começa o materialismo activo e toda
filosofia que trabalha encontrará, pelo menos, as suas
metáforas, a própria força das suas expressões, em resumo,
toda a sua linguagem na resistência da matéria”.
No decorrer dessa reflexão Bachelard chega mesmo
a falar de um “materialismo discursivo”! e se
aprofunda na relação entre linguagem e matéria
questionando, por exemplo, professores que usam
metáforas como “a palha seca, desejando beber, se
dirigiu para a fonte” que, segundo ele, infantiliza e
atrasa a cultura. Mais adiante ele critica a comparação
como método explivativo e chega a dizer que ela não
tara
4 BACHELARD, 1990, p. 24
189
deve fazer parte do escopo linguístico de um

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materialista pois ela “é germe de mitologia” e tende “a
explicar, por falsas luzes do conhecimento comum, o
que deveria ser discursivamente esclarecido”*.
Portanto, tratar o texto e o discurso como
materialidades implica uma consciência de que a
multiplicidade de relações, digamos, de gradações
dessa mistura, que não se reduzem em sua totalidade
aos objetos científicos das disciplinas, demanda um
cuidado na forma de expressar tais relações. Por isso
que cotejar textos não é comparar. Dois textos
guardam entre si não somente diferenças e
semelhanças pois a relação viva entre eles pode até
criar algo de novo que se perderia ao colocar nessa
chave comparativa que o filósofo francês corretamente
viu o perigo. No decorrer dessa reflexão, ele trata
desse problema de falar de um fenômeno novo com
palavras e expressões antigas como consequência da
divisão do materialismo entre experiência e imaginação”.
Iremos agora a Vigotski para tentar elucidar esse
ponto.
Texto como atividade imaginativa
Entender o texto como uma atividade imaginativa
demanda, primeiro, entender esse tipo de atividade
como oposta a outra atividade necessária para
5 Ibid, p. 40
6 Ibid, p.27
190
qualquer ser humano, a reprodutiva. Segundo

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Vigostki”, enquanto a ação reprodutora é dependente da
memória, da repetição e não consegue lidar com o
novo, o inesperado, etc., a ação criativa, por outro lado,
se caracteriza pelo fato de combinar, criar e, por isso
mesmo, consegue lidar com o inesperado. Em segundo
lugar, devemos questionar um senso comum que
coloca o real como oposto à fantasia. Atento a isso,
Vigotskiê estabelece quatro pontos onde imaginação e
realidade se relacionam:
a) Qualquer criação da imaginação éZ elaborada com
elementos tomados da realidade pela experiência
anterior do sujeito
b) O produto final dessa criação configura, por si mesmo,
novas combinações desses elementos tomados da
experiência.
c) Qualquer criação da imaginação surge de uma certa
conjunção emocional.
d) O produto final dessa criação pode, por si mesmo, ser
um objeto novo.
Desses quatros pontos podemos dizer que um texto
é constituído por elementos da realidade anteriores ao
processo de escrita e leitura. Tanto ler quanto escrever
um texto dependerá desses elementos anteriores a esse
mesmo texto. Por sua vez, o produto final desse
processo será outro texto que, mesmo se for composto
7 Vigostski, 2012, p.22-28
8 Ibid, p. 29-46
191
somente por elementos fantásticos, sua configuração

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pode se referir a algo da realidade. Dessas novas
relações, é evidente que haverá as que dependem de
um estado emocional de seu autor. Por fim, o produto
final dele será outro texto que agora faz parte da
realidade material, ou seja, cria por isso mesmo
mesmo novas possibilidades de relações.
Percebemos então que esses quatro pontos da
atividade imaginativa, quando aplicados ao texto,
mostram a importância do cotejar. Um texto sempre
partirá de outros textos e os limites materiais dele é o
mesmo dos de outros textos. Ademais, ver o processo
de escrita como dependente dessa relação complexa
entre imaginação e experiência implica, por parte do
professor, uma atenção para com os limites e
potenciais de cada aluno:
“No artigo que escreveu «Quem deve aprender a
escrever a partir de quem?», este grande escritor [Tolstói]
chegou à conclusão à primeira vista paradoxal,
particularmente, de que somos nós, os adultos, e mesmo
para o grande escritor como ele era, quem deve aprender a
escrever com as crianças camponesas e não o contrário”
(Vigostski, 2012, p. 81)
Ou seja, toda a complexidade do texto como
realidade material é fruto de uma ação criativa que
implica uma mudança de postura do professor de
língua portuguesa. Não é ensinar a escrever, mas sim
aprender a escrever com os alunos, conhecer como a
experiência material de cada um cria obstáculos a esse
produto, ou seja, resiste, e pelo mesmo motivo tem o
potencial para criar novas relações, novos textos.
192
Portanto, pensar o texto nessa complexidade material

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implica repensar todo o contexto que ele se insere,
como o contexto de uma aula de língua portuguesa.
Texto como parte de um gênero discursivo, a aula
No texto “Questões de estilística no ensino da língua,
Bakhtin coloca como essencial para o professor de
língua abordar o significado estilístico das
transformações gramaticais. Segundo ele focar
somente no aspecto gramatical empobrece e torna
superficial o ensino de língua materna. Ao longo da
reflexão o linguista russo elenca uma série de métodos
de aprendizagem, como o uso de uma abordagem
indutiva, que nos permite entender a aula como um
gênero discursivo.
Se, como aponta Bakhtin e Volochínov em 1929,
qualquer aspecto da expressão-enunciação é
í
determinado pela situação social mais imediata”, é
evidente que o texto na sala de aula participa de um
gênero discursivo, ou seja, esse campo de obstáculos,
para usarmos o termo de Bachelard, elabora seus
“tipos relativamente estáveis de enunciados”1º. Assim
sendo, segundo o linguista russo, para esse gênero
discursivo é imprescindível a abordagem estilística:
Sem a abordagem estilística, o estudo da sintaxe não
enriquece a linguagem dos alunos e, privado de qualquer
tipo de significado criativo, não lhes ajuda a criar uma
* BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116
10 BAKHTIN, 2011, p. 262
193
linguagem própria, ele os ensina apenas analisar a
linguagem alheia já criada e pronta (BAKHTIN, 2013, p.

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28).
Ou seja, como Vigotski e Bachelard, Bakhtin aqui
ressalta o papel da imaginação no trato do real, no
caso, o texto. O ensino de língua que se atente a isso
procurará estimular no aluno o uso criativo de
recursos estilísticos da gramática. Os exemplos do
texto podem nos incitar à seguinte dúvida: se o trato
da complexidade do real pede um uso crítico da
imaginação atento ao que é deixado de lado, ao
singular, ao irrepetível, etc., por que então Bakhtin
trabalhou nesse texto com frases? Já é até senso
comum para qualquer professor de língua portuguesa
falar que “o sentido de uma frase depende de seu
contexto”, então seria correto o uso de frases soltas,
como Bakhtin fez?
Um olhar mais atento para a metodologia
materialista de Bakhtin nesse texto mostra que só
aparentemente essas frases estão “soltas”. Em cada
exemplo, o linguista russo faz questão de partir da
frase escrita para o discurso: em cada mudança de
vírgula, por exemplo, vemos ele ponderar aspectos
enunciativos e estilísticos:
Por meio da correta entonação dessa frase, mostramos
aos alunos que as palavras “ouvida por mim hoje” são
pronunciadas de forma mais rápida e quase sem
nenhuma ênfase. (...) Os alunos compreenderão o sentido
estilístico da colocação do particípio diante do referido
194
substantivo, um sentido que seria completame
nte oculto
para eles em uma abordagem formal e gramatical sobre
o

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uso das vírgulas. A propósito, o uso das vírgulas
ganharia um novo significado (BAKHTIN, 2013, p. 27).
Lembrando dos perigos das metáforas simplórias que
Bachelard notou, podemos dizer que o ensino do uso da
vírgula por uma perspectiva materialista se afasta
enormemente de explicações como “a vírgula é para
marcar a respiração” e se aproximam de uma explicação
da vírgula pelo estilo, isto é, a vírgula serve para guiar
uma leitura que preze por uma entonação específica.
Portanto, Bakhtin não fez uso neste texto de “frases
soltas”, mas sim de frases no processo discursivo real.
Essa “discursivização” da frase é o que também
explica o método pedagógico bakhtiniano claramente
devedor do método de cotejamento de textos.
Conclusão
Fica evidente, então, como esses três textos dialogam
entre si e permitem fazer surgir do cotejamento deles
algo novo e real, o presente capítulo. Para concluir
podemos, primeiramente, dizer que uma linguística
materialista contribui para o ensino de língua portuguesa
fornecendo categorias, métodos e conceitos que tentam
dar conta da multiplicidade de valores inerentes a
qualquer prática linguageira. Multiplicidade essa que um
ensino puramente gramatical, por exemplo, ignora, como
o valor estilístico. Por esta perspectiva, outro exemplo, o
desvio da norma padrão por uma inovação gramatical
195
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1h deixa de ser simplesmente um “erro” e pode até ser uma

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impossibilidade de sistematizar tais inovações estilísticas
numa gramática, o professor ou professora de língua
portuguesa pode se sentir perdido por não poder definir
tal desvio por “certo/errado”, o que nos remete ao que
Bachelard falou da necessidade de um fenômeno ser
“discursivamente esclarecido”. Ou seja, o professor ou
professora de língua quando está numa situação dessa
deve tentar explorar o que a dicotomia “certo/errado”
deixa de lado, como a mudança entonacional implicado
pelo uso ou não de uma vírgula. Por fim, como o
exemplo de Tostói trazido por Vigotski ou pelo próprio
Bakhtin, uma aula de língua portuguesa pode ser
pensada como um gênero discursivo onde o professor
busca aprender a escrever com seus alunos e não o
contrário que está estabelecido em nosso senso comum: O
professor ensinando os alunos a escreverem.
Referências
BACHELARD, G. O Materialismo Racional. Lisboa: Ed. 70,
1990.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
- Questões de Estilística no Ensino da Língua. São
Paulo: Ed. 34, 2013.
BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e Filosofia da
Linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec, 2009
KRISTEVA, J. História da Linguagem. Lisboa: Ed. 70, 1969.
196
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. São Paulo: Ed. Unicamp,

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2016.
RAPOSO, E. P. Da teoria de Princípios e Parâmetros ao Programa
Minimalista: algumas ideias chave. In: CHOMSKY, Noam. O
Programa Minimalista. Lisboa: Ed. Caminho, 1999.
VYGOTSKY, L. S. Imaginação e Criatividade na Infância.
Lisboa: Ed. Dinalivro, 2012.
197

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