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EM DIREGAO A UMA CAVALARIA MAIS CRISTA?

Dois problemas se colocam a propésito do impacto da Igreja sobre


a Cavalaria, como classe ou como modelo de comportamento. Seria ne-
cessdrio poder medir esse impacto — que a reforma gregoriana (1049-1119)
certamente quis aumentar. E seria necessario poder caracterizé-lo: a pre-
gagao dos clérigos e dos monges eremitas visa amansar, apaziguar os con-
flitos entre cristãos, mas quando eles os chamam para a cruzada, não en-
corajam uma violéncia expandida, uma perseguição sem precedentes
contra os “infiéis”, judeus ou sarracenos? A cruzada não poderia passar «
priori por um progresso da civilizagao. Se estendemos a anélise a morais
além daquela da guerra e das armas, podemos nos perguntar se a Igreja
gregoriana deseja absoluramente melhorar os laicos, tendo os Cavaleiros
à frente: nio sio seus pecados que os colocam na dependéncia e em nivel
inferior ao dos clérigos? No minimo, a cruzada conduziria Cavaleiros
demais a0 martirio e à santidade... Uma confraria de Cavaleiros muito
cristaos, que não fossem nem monges nem clérigos, não faria sombra aos
monges € aos clérigos?
É uma questio simples, e coloci-la serve a0 menos para não crer
de cara que a Igreja, ou seja, o clero, procura cristianizar a entrada na Ca-

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A Cavalaria

Cita- se frequentemente o
valaria pelo ritual religioso do adubamento. istianização
importante n a “cr
ritual de Cambrai (1093) como uma etapa
série de béngio s de armas,
da Cavalaria”. Mas por que ele é o fím de uma
que depois dele se interrompe?
erar no con-
Antes de examinar essa quest 30, vale a pena consid
orma gregoriana.
junto os objetivos, os métodos e o desenrol ar da ref

As etapas da reforma gregoriana

O sentimento cristio pode ter-se tornado mais vivo e mais


exigente, em toda a sociedade, devido à reforma — dita gregoriana em
homenagem ao papa Gregério VII (1073-1085) — que se desenrola na
Europa ocidental entre 1049 e 1122 (encerrando-se em 1119 para “as
Gálias”) /Ela consiste em submeter mais o clero ao papado e os laicos
a0 clero, em vista de um aperfeioamento, de uma purificagio dos
costumes. Ela põe em alerta todos os cristãos a propésito de sua vida
futura, de sua salvagio eterna, por meio de uma pregagio que evoca
muito as penas do Além. Felizmente bispos ¢ padres ministram uma
série de sacramentos, especialmente a peniténcia e a eucaristia, que
podem reaproximar da salvagao.
A preocupagio de reformar os mosteiros e a Igreja secular, desde
o bispo com seus conegos até o padre da par6quia rural, era já bastante
viva nos tempos carolingios. Muitas coisas foram iniciadas ou esbogadas,
notadamente, no inicio do reino de Luis, o Pio, como a reforma dos mon-
ges, de Bento de Aniane (816) que triunfa com Cluny por volta do ano
1000, ou a luta contra a simonia (corrupgio, venalidade) de bispos e cô-
negos, que é a ponta de lança da reforma gregoriana. Essa “simonia” diz
respeito, sobretudo, à compra de altos cargos por grandes famílias, para
alguns de seus filhos. Um bom exemplo, confessado mais tarde em público
pelo visconde de Narbona, é a maneira pela qual, em 1019, a família dos
condes de Cerdagne comprara dele o arcebispado de Narbona para o jovem
Guifredo (1019-1079).
Nossos velhos manuais frequentemente informam que no ano
1000 (980-1060), enquanto a regra e a pureza se impunham nos mosteiros,

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Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

a corrupção simoniaca, assim como outros vícios (notadamente o “nico-


laísmo”, ou concubinato de padres), devastava o clero secular. Eles citam
os traços dos costumes de alguns desses bispos indignos. Depois disso,
faz-se realmente necessária a intervenção dos papas e de seus legados (a
partir de 1049) para tornar melhor o clero das Gélias e, através disso, melhor
cristianizar os Cavaleiros sob o cajado de pastores mais puros. A história
da reforma gregoriana volta-se frequentemente para a apologia da autori-
dade dos papas: as Gálias teriam muito a ganhar com seus arcebispos e
bispos sendo postos na linha por Roma. Antes de 1049, os bispos designa-
dos localmente e engajados na clientela dos príncipes teriam sido frequen-
temente indignos. Em seguida, a autoridade do papa teria mudado tudo.
Há algo de verdadeiro nessa narrativa, na medida em que, efeti-
vamente, é lutando pela reforma e pela “liberdade” do clero que Gregório
VII (1073-1085), Urbano II (1089-1099) e outros papas até Calisto II (1119-
1124) uniram em torno deles um tipo de partido reformador — chama-
remos de “gregorianos” — e garantiram seu controle sobre a Igreja das
Gálias e de toda a Europa ocidental. Ao mesmo tempo, reforçaram dura-
velmente o poder e o prestígio social de todo o clero, especialmente dos
padres dispensadores de sacramentos. Os laicos devem obedecer-lhes: nesse
tempo, o papa chega a mobilizar a primeira cruzada (1095-1099), colocada
sob sua égide, e os gregorianos asseguram para a Igreja, por séculos, a ju-
risdição sobre os casamentos. A reforma gregoriana é um grande momento
do cristianismo medieval'.
Ela é, no entanto, uma mudança tão radical? Pode-se mostrar que
muitos de seus grandes temas, aparecidos sob os Carolíngios, haviam sido
retomados desde o ano 1000, ou seja, antes da intervenção dos papas.
Assim, os concílios de paz, na Aquitânia, obra de colégios de bispos, se
ocupavam desde 1018 com a heresia simonfaca e, antes de 1038, com o
concubinato dos padres. Então, os bispos das Gélias não são, na maioria,
“indignos”: nenhum é casado e muito poucos tém uma vida escandalosa,
a maioria é letrada e as iniciativas de seus concilios em favor dos pactos de

! Ver André Vauchez, “Le christianisme...’, pp. 304-17, e Jérome Baschet,La Civilisation
feodale..., pp. 165-78 (versão em portugués: A civilizagdo feudal: do ano mil 4 coloni-
zação da América. São Paulo, Globo, 2006); igualmente o tomo V de Jean-Marie
Mayeur et al. (orgs.), Histoire du christianisme.

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..
A Cavalaria

paz, depois da trégua de Deus a partir de 1033, provam bem que eles levam
seu papel'a sério. O concubinato é um problema de paróquias rurais, e a
simonia do alto clero (bispos e abades) é bem real, sem dúvida, mas talvez
exagerada ao longo de polêmicas eleitorais, quando o tom aumenta entre
os candidatos e suas facções.
Os Cavaleiros do ano 1000 não são tanto paroquianos do clero
rural quanto dos bispos, e isso sem muita intermediação. Principalmente,
eles estão em relação com os monges, que rezam pelo “resgate” (redenção)
de seus pecados e garantem, como vimos, um culto vibrante aos santos
mortos com relíquias. Os reis, os príncipes, os grandes senhores têm, além
disso, seus clérigos de alguma forma “domésticos”, capelães que dizem os
ofícios em seus palácios e prestam, quando necessário, todos os tipos de
serviço — que estes grandes recompensam ajudando-os a tornarem-se
bispos ou abades. Eles assistem, com frequência, a querelas graves, de
propriedade ou de precedência, entre esses bispos e monges. Acontece-lhes
de ter que arbitrar, de ser parte envolvida... É o próprio poder, material e
moral, do cristianismo na França (e nos países vizinhos) que ocasiona
todas essas tensões e que provoca o recurso ao papa e a seus legados. Inau-
gurada em 1049 por uma viagem de Leão IX, e pelo concílio que ele preside
em Reims, a reforma gregoriana só decola verdadeiramente dez ou vinte
anos mais tarde, e ela começa, então, exacerbando os conflitos em uma fase
crítica (1075-1100), após a qual vem a hora do compromisso. Pode-se
considerar que ela se concretiza não exatamente quando o clero se tornou
absolutamente puro, e quando obteve o consentimento absoluto do laicato
a todas as suas diretivas, mas sim quando um novo sistema de resolução
de conflitos (portanto, de eleição dos bispos e de justiça eclesiástica) se
estabeleceu, na aurora do século XII.
Ao longo dessa reforma, na França, o conflito de autoridade é
frequentemente grave entre, de um lado, o papa e seus legados em pleno
esforço de supremacia e, de outro, os arcebispos como os de Narbona,
Reims e Tours, que os toleram mal. Em consequência disso, a polêmica
gregoriana atinge um grau extremo contra eles e contra os bispos “secula-
res” demais, que se agrupam em torno deles. Poucos são nicolaístas. Sua
simonia não é sempre evidente, ou fácil de detectar. Nessas condições, na
França feudal, recai frequentemente sobre os prelados antirromanos à
acusação de portarem as armas do “século”. Os bispos se entregando à

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Em direção a uma Cavalaria mais crista?

Cavalaria são um pouco uma especificidade francesa, uma vez que, em


outros reinos, uma autoridade real mais forte deixa menos espago aos
poderes locais. Portar armas ¢, de fato, o que vérios bispos fazem quando
sdo verdadeiros senhores regionais e vão à guerra contra os senhores vizi-
nhos, cercados por seus vassalos. E ainda, nés o vimos, é a isso que os
conduzem os pactos e os juramentos de paz, “pela boa causa”. Nos anos
1030, o arcebispo Aimon de Bourges, a0 mesmo tempo, reformou seu clero
e langou contra os castelos uma hoste animada pelos padres. Mesmo pro-
blema na diocese de Narbona, onde o arcebispo Guifredo, que langa a
trégua de Deus nos anos 1040, aduba-se pouco depois como Cavaleiro
paraa “defesa” do senhorio da Igreja®. Os bispos da Franca real nio deixam
de fazer homenagem ao rei capetingio. Em 1049, eles integram sua hoste
contra o conde de Anjou — faltando por isso ao concilio realizado em
Reims pelo papa. Em 1119 ainda, encontram-se aí trés deles para excitar
as hostes de cristandade à pilhagem da Normandia por vingança após
Brémule, o mesmo ano em que um outro concilio de Reims, realizado por
Calisto I1, consolida a reforma do clero, favorece a ordem dos monges
eremitas de Cister ¢ proclama solenemente a trégua de Deus.
' Esses habitos franceses de Cavalaria de bispos, às vezes preservados
nas cruzadas, só sio desenraizados progressivamente. Para dizer averdade,
eles dizem respeito apenas a uma parte do episcopado. Muitos dos futuros
bispos foram criados para se tornarem clérigos e monges, tendo a milicia
espiritual como única perspectiva. Mas para alguns filhos mais novos de
familia, frequentemente, da alta nobreza, deseja-se manter um horizonte
com o maximo de oportunidades. Ensina-se a eles, portanto, um pouco
de letras, a0 mesmo tempo em que muito de Cavalaria. As primeiras, para
quc CJCS POSSQ.m govcrnar a Igreja; aoutra, para que pOSSam Conseguir uma

bela herdeira, ou substituir o irmão mais velho se algo de mal lhe aconte-
cer.Nessas condições, se a sorte os leva em direção à Igreja, eles só recebem
as ordens maiores no último momento, subindo de quatro em quatro,
em dias, os degraus da hierarquia eclesiástica. Tanto faz se eles conser-
vam cm scguida alguma nostalgia de sua Cavalaria, e mesmo se a praticam.
-

Isso escandaliza os gregorianos puros ¢ intransigentes, mas, no fim das


contas, um pequeno ar de firmeza Cavaleiresca não cai mal a um bispo,

2 Ver meu estudo, LAn mil... pp- 404-16 c 515-6.

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A Cavalaria

aos membros importantes


em meio a seus vassalos, seus servos, e mesmo
jovens
de seu clero!? Se, ao contrdrio, esses meninos que receberam muito
heranga
as ordens menores tornam-se condes ou senhores de castelos, por
dando-os de
ou por casamento, entio se zomba um pouco deles, apeli
Henri-
manclérigo (mau clérigo) ou macoroa (má tonsura). O duque e rei
co
que Beauclerc (Bomelérigo) é um deles, embora esse sobrenome ir6ni
não lhe tenha sido aplicado enquanto vivo — a não ser, talvez, nas canções
perdidas do infeliz Lucas de la Barre, que o envergonharam tanto.
Em 1078, o jovem Silvestre de la Guerche, tornando-se bispo de
Reims, é o tipo de homem pouco apreciado pelo partido gregoriano. Ele
se converteu, no entanto, pouco a pouco, às normas de seu novo estado,
assim como seu acólito, o padre casado Roberto de Arbrissel, que se faz
eremita, pregador e fundador de Fontevraud*.
Nesse momento, reina uma tensão muito viva entre os gregorianos
e seus adversários. O papa Gregório VII, em plcno conflito com o impe-
rador Henrique IV (mas também com o rei Felipe I), tem ideias muito
teocráticas. É necessário não apenas reformar o clero. A luta contra a si-
monia passa também pela recusa de toda ingerência, de toda investidura
laica na Igreja, e mesmo por um verdadeiro primado do papa sobre o século.
Ele poderia assim depor os maus reis. Ele também sonha tomar ele próprio
a frente de um exército cristão que iria libertar Jerusalém e conquistar a
Terra Santa. Retomando uma diatribe de Santo Agostinho (Cidade de
Deus, XIX, 12) contra bandos de pilhadores (povos bárbaros de então)
que fundam reinos e se fazem passar equivocadamente por legítimos, ele
tendia a uma critica estrutural a toda Cavalaria ou “milícia” do século.
Assim, existiria apenas uma milícia verdadeira: aquela à qual o papa co-
manda e impõe a disciplina do combate espiritual. ) *
De 1075 a 1100, a luta é assim, localmente, regionalmente, muito
tumultuada entre certos clérigos e eremitas reformadores e aqueles que
eles denunciam como “maus padres”, indignos de dispensar os sacramentos,
pressionando-os a submeter seus cargos mal adquiridos e a fazer penitên-

? VerGauderico de Laon, em Guiberto de Nogent, Autobiographie..., 111, 4, 8,9, mesmo


se a narrativa termina mal para cle.
4 Jacques Dalarun, Robert dArbrissel...

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Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

cia. Não é raro que os pregadores, especialmente eremitas errantes, suble-


vem os fiéis contra certos bispos ou clérigos, “simonfacos” e indignos, sob
o risco inclusive de propagar a suspeita contra todos. A pressão social força,
então, o rei ou os príncipes a abandonar alguns de seus protegidos por
demais desacreditados. Outras vezes, é a própria consciência do simoníaco
que se assusta. No entanto, a resistência 4 reforma às vezes é forte, os an-
tirromanos se recusam a obedecer, apelam a reis e príncipes, a Felipe I, a
Guilherme IX da Aquitinia, recorrem ao testemunho de seus colegas
moderados contra aquilo de que são mais duramente criticados.
Nesse momento, a reforma se volta também para os laicos “opres-
sores da Igreja”. É a querela das investiduras, especialmente dura entre
papas e imperadores, acesa desigualmente entre os diversos principes
franceses, complicada com o rei Felipe I por causa de sua união com Ber-
trade de Montfort, mas finalmente suplantada gragas a ela, uma vez que o
rei se distancia de maus bispos para manter sua rainha. Os gregorianos
exigem também aos laicos, frequentemente Cavaleiros, que “restituam” à
Igreja os bens de cardter sagrado dos quais se diziam proprietdrios: igrejas
e taxas paroquiais, dizimos. Ora, isso é ameagar seriamente a riqueza feu-
dal, portanto o modo de vida, o estatuto Cavaleiresco das familias de
pequena e média nobreza. Um século mais tarde, a canção de gesta de Ga-
rin, o Loreno ainda poderá falar, em seu prologo, da infelicidade de
uma Franga invadida pelos sarracenos, porque as igrejas empobreceram
demais os Cavaleiros. Ela situa isso no tempo de Carlos Martel, mas se
endereça a um publico do século XII.J *x
Como essa Igreja exigente não abateu finalmente o poder dos reis
e dos príncipes, nem arruinou todos os Cavaleiros? É que ela aceita com-
e
promissos, sobretudo a partir de 1100, em um momento em que freia
estabiliza sua própria reforma. Para os bispados e abadias, o bispo Ivo de
Chartres (1090-1116) impõe a distinção entre dois tipos de investiduras:
uma espiritual, pelo papa ou pelos bispos; outra temporal, pelo rei ou
pelos príncipes importantes. Para estes últimos, finalmente, essa “decisão
chartriana” consolida os direitos mais do que os compromete. Através dela,
de fato, prevalece a ideia de uma distinção ampliada entre as atribuições
da Igreja e do Estado — a primeira tendendo a buscar uma certa tranqui-
lidade através da força do segundo (apesar das tensões ocasionais). Devido
a isso, a terrível crítica de Gregório VII é rapidamente esquecida: com

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A Cavalaria

Calisto II (1119-1124), já está bem longe a invectiva contra os reis pilha-


dores... Sobre as “restituições” de igrejas paroquiais e de dízimos, os car-
tulários de mosteiros nos mostram que compromissos foram estabelecidos
na prática. Em vez de simplesmente suportarem essas perdas, os pequenos
e médios feudais conseguiram dos bispos que essas “restituições” de bens
indevidamente possuídos beneficiassem mosteiros amigos, onde em retri-
buição se reza por suas almas, onde se lhes permite a associação formal as
benfeitorias que o santuário pode distribuir. E isso se refere tanto a rezas
como a auxilios financeiros em caso de necessidade, a pequenos presentes
a jovens adubados dos quais falamos anteriormente® etc. A “restituição”
vale, portanto, como esmola piedosa e gesto de amizade desde que o gesto
seja retribuido. Permanece muito dificil para nés fazermos o balango
econémico das relações da classe Cavaleiresca com a Igreja. A multiplica-
ção dos Cavaleiros pobres, a longo prazo, a partir do ano 1200, tem relagio
com essas esmolas obrigatérias? Dificil dizer, na medida em que essa mul-
tiplicagio também se explica, em primeiro lugar, como veremos, por toda
uma mutagio econdmica e social do mundo medieval. Ela chega a inter-
romper a reforma moral e disciplinar do clero. A partir de 1100, a exigén-
cia de reforma cede lugar pouco a pouco a uma outra palavra de ordem: é
preciso que os laicos respeitem seus padres, uma vez que estes sio, desde
então, puros, ¢ mesmo quando alguns forem pecadores, a fungio trans-
cende a pessoa. Não ¢ mais hora de criticas, de destituições, na medida em
que é o tempo de um novo modo de eleição de bispos (pelo c[cro\dc sua
catedral) que passa por ser melhor do que o antigo (menos codificado)
[Se quiser ser imparcial, o historiador é obrigado a colocar o con-
dicional e a fazer reservas a toda avaliação do “nivel moral” do clero e dos
laicos, como em outros momentos deve fazer em relagio 4 violéncia e à
crueldade dos guerreiros. O clero haviasido tão corrompido antes de 10492
O problema está completamente sanado em 1119? Essa não é a opinião
dos “heréticos” do século XII. Com certeza, no entanto, o clero de depois
de 1100 está submetido a exigências, intelectuais e morais, mais estritas,
que lhe valem um estatuto mais forte. Ele deve renunciar efetivamente às
armas e às mulheres. Mesmo que, por vezes através de conflitos, se estabe-

3 Ver, neste volume, p. 211.

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Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

leça pouco a pouco uma verdadeira complementaridade entre uma Igreja


responsável antes de tudo pelas almas, e um Estado real e principesco e
também uma Cavalaria, que são responsáveis pela segurança das pessoas,
dos bens e das pátrias. | É
Ora, essa distinção, sem colocar em questão todos os fundamentos
religiosos do Estado, nem a coroação dos reis, comporta, mesmo assim,
um início de dessacralização do Estado. A teologia escolástica, aquela que
se desenvolve no século XII, especialmente em Paris, na esteira da reforma
gregoriana, deseja precisar que a coroação não é um sacramento — mas
somente um sacramental. Ela nega também que o rei seja um padre, evi-
tando jogar-lhe na cara que ele nada mais é que um laico!
Como, em tal ambiente, poderíamos identificar uma maior cris-
tianização das cerimônias de adubamento?

Os gregorianos e o adubamento

T É Verdªde que a Igreja gregoria.na estªbCICCC nesse momento o

ritual do casamento, que ela transforma em um dos sete sacramentos, e


sobre o qual assegura, a partir de então, uma jurisdição exclusiva. Com isso
ela coroa um longo esforço, iniciado nos tempos carolíngios, de torná-lo
indissolúvel e exogâmico. A ordem social, segundo os gregorianos, junta
um clero estritamente celibatário e um laicato destinado a seguir no casa-
mento, portanto na sexualidade, normas exigentes muito precisas. E, de-
vido a essa moral sexual, os especialistas de almas, que são os clérigos,
engajam-se em um terreno que não é inteiramente espiritual. Um casa-
mento cristão só é válido se consumado e, portanto, a dita consumação
representa, no minimo, um anexo ao sacramento, ) *
Portanto, após scis primeiros sacramentos cujo cardter rcligioso
nio deixa qualquer dúvida, a Igreja se aventurou um pouco além com o
sétimo, Por que cla não faria do adubamento dos Cavaleiros cristaos um
oitavo sacramento, em tempos em que prega a cruzada, ou seja, a guerra
justa? Ou o seu nono, s¢ cla integrasse primeiramente a coroação dos reis?
Pelo sacramento do casamento, ela infunde a graga necessária aos dois
esposos para ajudd-los a respeitar a moral sexual, e mesmo estimular sua

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A Cavalaria

iritualmente o esforgo
fecundidade. Não poderia ela também nutrir esp e
os para se dedicarem a guerras justas no fundo
dos reis e dos Cavaleir
os e nas assembleias em
corretas na forma, nessas guerras ajudar seus brag
que realizam a justiga garantir seu discernimento?
ira ajud
Veremos que a Igreja lhes concede de alguma mane
a mas

bém não o
não sob a forma e a intensidade sacramentais, assim como tam
langou a
far4 mais do que o fizera no ano 1000. Leon Gautiet, em 1884,
que ele estivesse
bela férmula: adubamento, “oitavo sacramento”. Nao
século XIII que
enganado. Gautier encontrou rituais litúrgicos do final do
de
estipulavam o que deve dizer um bispo quando atua como adubador
s,
um Cavaleiro — salvo que os nobres que o assistem “lhe calgam as espora
lá onde este é o costume™, Isso produz uma justificativa da guerra pela
publico
Igreja e pelo rei, e da justiça coercitiva, bem acolhida por todo um
de 1884, mas não um sacramento reconhecido como tal. Além disso, o uso
mesmo desses rituais é tão difundido no final da Idade Média?
Assinalamos essas bênçãos de armas e de combatentes pelos bispos,
tal como havia nos séculos X e XI, bem agrupadas por Jean Flori”. Elas não
eram certamente todas feitas para os adubamentos conferindo o estatuto
de Cavaleiro. Eram, primeiramente, como sublinha bem Jean Flori, for-
mulas que retomavam aquelas de ceriménias reais destinadas às armas de
procuradores (advocatus) e outros “defensores” das igrejas. De fato, no
momento da coroagio, após a unção, o bispo entrega ao rei uma espada,
entre outras insignias, e a benze. Aos bons Cavaleiros do ano 1000, respei-
tosos e arrependidos (por um tempo), que solicitam ajuda, oferecendo
alianca e esmola, a Igreja não tem nenhuma razão para recusar sua bênção,
¢ frequentemente os estandartes de seus santos. Procura dessa forma ga-
rantir sua saúde temporal, sua integridade fisica ou 20 menos a sobrevi-
véncia, nos combates e nos perigos de sua “milicia’, e estimular seu ardor
de defensores.
Mas em dois rituais do século X1 trata-se expressamente de ben-
zer, entre outras, as armas de um “jovem’, no momento de sua primeira

¢ Citado por Jean Flori, L'Essor..., p. 386 (S. 31, 12).


7 Jean Flori, “Chevalerie et liturgie...”.

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Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

Cavalaria. O segundo em data, mas também o último de toda a série”, é


o ritual de Cambrai (1093) “para o armamento de um defensor da Igreja,
ou de um outro Cavaleiro”. De fato — traduzo as rubricas —, “eis primei-
ramente como o bispo benze o estandarte... em seguida a lança... e depois
disso fixa-se o estandarte na lança; enquanto o Cavaleiro [ou vassalo da
igreja da qual é defensor] a tem na mão, o bispo a asperge com água ben-
ta”. Isso é tornar certa a vitória do guerreiro sobre as “nações rebeldes”,
como se dera com Gideão ou Davi, em termos retomados ao Antigo
Testamento, a que se junta o auxílio do arcanjo São Miguel e a força
(virtus) da Cruz. De passagem, o ritual evoca a lança do soldado (ou
“Cavaleiro”, chamado em outros lugares de Longino, segundo um evan-
gelho apócrifo) ao qual Deus permitiu perfurar o flanco do Cristo mor-
to para fazer correr sangue e água.

Depois disso, o bispo benze a espada com esta oração: “Nós te imploramos, Se-
nhor, escuta nossas preces, digne-se benzer com a majestade de tua mão direita
esta espada com a qual teu servidor, que está aqui, deseja ser cingido. Que ela
possa ser assim proteção e defesa das igrejas, das viúvas, dos órfãos, de todos
aqueles que servem a Deus, contra a dureza de seus inimigos. Que ela faça cair
sobre todos os adversários o pavor, o temor e o medo”.

ª«:Deus é ele próprio a defesa dos fracos, da viúva e do órfão em


vários salmos bíblicos. É, portanto, natural que o Cavaleiro consagrado o
seja também. Essa missão lhe vem ainda, historicamente, de uma ética ou
“ideologia do gládio”, presente na Gália desde o século VII e muito forte-
mente acentuada no tempo de Luís, o Pio?. | *

Então, o bispo benze o Cavaleiro, com esta oração: “Nós te imploramos, Senhor,
que tua piedosa guarda proteja teu servidor que está aqui, a fim de que, com teu
auxílio, ele conserve intacta esta espada que ele deseja portar sob tua inspiração”.
> pirag

? Cuja interrupção é tanto mais importante porque poderia dizer respeito também a
outras regiões. Jean Flori encontra dois exemplos de adubamento litúrgico do século
XII, que não são inteiramente certos: o da Inglaterra (S. 28) diz respeito, de meu
ponto de vista, a um “homem que vai combater” em duelo judicidrio, e o da Itália do
Sul (S. 29) só data, talvez, do século XIII (L'Essor..., pp. 382-4).
? Ver, neste volume, p. 122.

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A Cavalaria

Então, o bispo o cinge, dizendo: “Recebe, portanto, esse gládio que te é entregue
com a bênção de Deus. Com ele, pela força (virtus) do Espírito Santo, poderás
enfrentar todos os teus inimigos, afastá-los, assim como a todos os adversários
da santa Igreja de Deus, com a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo”"º,

Seguem várias orações, antes da bênção do escudo, “a fim de que


aquele que cobrirá os flancos para sua defesa tenha a ti mesmo, Senhor
Deus, como escudo e defesa contra os inimigos da alma e do corpo...”. Eis
aí o escudo de uma militia salutar, que o levará até o reino dos céus. As
preces que seguem requerem o auxílio “dos santos mártires e Cavaleiros
Maurício, Sebastião, Jorge”, a im de que tenha vitória e salvaguarda.
Os historiadores frequentemente ligaram esse ritual à primeira
cruzada: ele atestaria um fortalecimento da ideia de guerra santa. E as
daras quase coincidem, de fato, mas não completamente. Essa liturgia
precede em dois anos o chamado do papa à cruzada (1095), e é, além do
mais, marcante que nenhum ritual específico tenha sido elaborado para a
tomada de armas pelos cruzados. | X
Por ocasião dos combates do ano 1000 contra os mouros, atri-
bufam-se 4 proteção dos santos a conquista e a impunidade dos Cavaleiros
cristãos. A bênção de armas devia muito mais à “superstição” do que à
moral: tratava-se de garantir sorte aos guerreiros nobres. Ora, esse é um
tipo de atitude que a Igreja gregoriana tendia muito mais a proibir, em
proveito de injunções morais sustentadas pela perspectiva do Além.
Quando Urbano II prega a primeira cruzada (em 1095), ele não promete
a salvaguarda física dos combatentes dessa guerra perigosa. Ele fala de
salvação e de remissão dos pecados. Essa é uma atitude toda espiritual, cuja
repercussão tentaremos perceber.
A bênção de armas, a oferenda e a entrega da espada sobre o altar
de uma igreja não são gestos pertinentes, antes de tudo, a momentos de
guerras internas que impressionam o adversário e unem sufrágios? Um
ritual como o de Cambrai (1093) não informa muito, em si mesmo, sobre
o uso que ¢ feito dele, mas eu o reputo como bastante útil no momento
das lutas da reforma gregoriana, faccionais, com dimensões frequentemen-
te locais. Sem dúvida a Igreja também quis benzer as armas de Cavaleiros

1 Jean Flori, L'Essor... (S. 26, pp. 379-82).

300
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

engajados nas hostes de cristandade, ao apelo dos concílios de paz — ou


em alguma ocasião pontual que nos escapa. É possível, enfim, que ela tenha
desejado concorrer através de suas bênçãos com as práticas declaradas
“supersticiosas”, como aquela atestada na família de Santo Arnaldo de
Pamela e criticada por ele!!.
A Igreja sempre é constrangida à circunspecção. O próprio caráter
da “guerra civil”, da inimizade de vizinhança, não tem um curso intermi-
tente, marcado por todos os tipos de reversão de situação? Não é raro que os
próprios defensores de um mosteiro, seus advocati, tornem-se feras contra
os monges, que os denunciam como espoliadores e interpretam seus reveses
ou seus acidentes como o efeito de uma santa e justa vingança.
- O grande momento da ascensão dos adubamentos feudais — a
partir de 1050 aproximadamente — não nos parece ligado a uma política
da Igreja, mas dos senhores, reis e condes. Quando depois disso, na segunda
idade feudal, um toque de cristianismo aparece, é frequentemente de forma
anexa; antes ou depois da entrega da espada e de outras peças da panóplia,
passa-se pela igreja. Os dossiês não nos permitem a menor medida estatís-
tica da frequência e da importância dessas passagens. Tal fonte as sublinhará
mais do que outra, e as interpretará 4 sua maneira. | *
O adubamento constitui uma sequência ritual de geometria va-
riável, mesmo no século XII. Alguns de seus elementos são facultativos,
ou reiteráveis. Os testemunhos podem divergir sobre o que é essencial.
Por exemplo, no que diz respeito a sabermos se Henrique Beauclerc foi
adubado por seu pai, Guilherme, o Conquistador, ou pelo arcebispo Lan-
franco de Canterbury'2 E se, depois de toda especulação, ele tivesse sido
adubado por um e pelo outro? Lamberto de Ardres, por volta de 1200, não
dá um lugar de destaque ao arcebispo Tomás Becket, anfitrião de passagem
no adubamento de Balduíno de Guines em 11702'3
Investir o adubamento feudal e cortês da mesma forma que o
casamento seria para a Igreja, nesse momento, caucionar a vingança dura
¢ a temeridade galopante dos jovens. E, além disso, mesmo se a Igreja o
quisesse, ela poderia fazê-lo? Ser-lhe-ia sem dúvida negado o direito de

1 Ver, neste volume, p. 311.


12 Ver, neste volume, pp. 256-7.
13 Ver, neste volume, p. 557.

301
A Cavalaria

retirar o estatuto de Cavaleiro que ela havia conferido. Apenas uma vez,
em 1115%, vemos a Igreja tentar sancionar um senhor dessa forma, Tomás
de Marle, que é seu opressor direto e veemente, cúmplice de assassinos de
um bispo — e o efeito disso é limitado. Normalmente, o controle dos
modos guerreiros opera-se através das cortes feudais e do próprio jogo
de interação entre eles. Quanto s prescrições cristas, ao cuidado que
têm os clérigos em impedir o homicídio e a pilhagem, eles contam com
o arsenal de sua função religiosa. É o mesmo que se dá com os demais
cristãos: o medo dos julgamentos de Deus precisa ser reforçado por uma
liturgia do adubamento?
A Igreja do ano 1100 tem suas regras de penitência que são de
tradição antiga ou reatualizada. Os pregadores colocam acento de inten-
sidade inédita sobre as penas do Além: é em 1091 que acontece a célebre
visão de Gaucelmo, relatada por Orderico Vidal's. Poderíamos dizer que
a Igreja “recolhe” os cavaleiros feridos ou em declínio de idade, mais in-
quietos com sua morte e o risco de danação que os jovens nobres em plena
afirmação de si mesmos, na idade em que uma e outra coisa preocupam
pouco. E por uma pressão mais terrestre e política, ela tem sua jurisdição,
a partir de então exclusiva, sobre as questões do casamento, com uma regra
tão exigente (até 1215) sobre o impedimento de consanguinidade que
haveria a possibilidade, caso fosse necessário, de desfazer a legitimidade de
todos os herdeiros de boa família declarando nula e inexistente a união
entre seus pais e mães! Por muito tempo, por causa disso, o duque Gui-
lherme VIII tremeu diante dos gregorianos: nascido de um casamento
contestável, seu filho, o futuro trovador, corria o risco de ser ilegítimo,
portanto deserdado.
Na segunda geração gregoriana, apesar da cruzada e das “hostes
de cristandade”, a bênção das armas de Cavaleiros não tem necessariamente
lugar, porque a cruzada, assim como essas hostes, está sob direção de prín-
cipes. É a hora do equilíbrio e do compartilhamento entre seu poder
temporal e o da Igreja, mais espiritual. Suger, nós o vimos, tende a distin-
guir radicalmente (na teoria) a “Cavalaria” (militia) sacra, conferida a Luís

14 Ver, neste volume, p. 275.


* Orderico Vidal, VIII, 17. Ver Jean-Claude Schmitt, Les Revenants..., pp. 115-22.

302
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

VI pela sagração, da Cavalaria do século. Ele não reprova sempre a segunda,


mas ela permanece para ele profana. Uma sacralização do adubamento
seria como uma confusão de géneros. A Igreja não tem mais tanta neces-
sidade de recrutar defensores e de benzê-los: a ascensão do governo dos
principes tende a tornar isso dispensável.
O que mostra, todavia, a história do século XII, a partir do com-
promisso chartriano e do término da reforma gregoriana na França (1119),
é uma tendência da Igreja a intervir frequentemente nos adubamentos.
Muitos prelados permanecem orgulhosos de serem grandes senhores do
século, cercados quando necessário por vassalos. Por ocasião de sua entro-
nização, quatro Cavaleiros os carregam solenemente sobre uma cadeira.
Eles têm palácios e nem sempre desdenham da caça. Sua própria renúncia
às armas permanece às vezes incompleta. Mesmo quando isso ocorre — e
€0 caso mais frequente —, eles têm seu lugar natural, eminente, nas cortes
principescas e senhoriais de Natal, Páscoa e Pentecostes. Eles figuram,
portanto, no programa dos grandes adubamentos de gala. Os novos adu-
bados vão à missa, como toda a corte, antes do festim e das justas...
Por volta do ano 1200, enfim, vemos mais floreados cristãos nos
adubamentos. A acolada, por exemplo, parece muito mais de caráter ecle-
siástico, ou romanizante, contrariamente à lenda moderna de sua origem
“germânica”: ela não lembra os tapas de confirmação e de libertação? A
vigília de rezas precede primeiramente os duelos judiciários, mas depois
os próprios adubamentos"”. Mas bispos como seus principais oficiantes,
adubadores exclusivos, como no caso de Amauri de Montfort em 1213,
parece ser então uma “nova moda”. A seu respeito Philippe Contamine
afirma que “nio deve ter-se espalhado’, pois “no fim da Idade Média, parece
que o papel dos prelados e dos clérigos estava limitado a dizer a missa e a
dar sua bênção”!7. Além disso, o papel do bispo “para benzer o novo Ca-
valeiro”, no Pontifical de Guilherme Durand'?, surgido entre 1293 e 1295,
é apenas dar (ou dar novamente ?) aespada previamente colocada sobre o
altar, segundo um procedimento tradicional, enquanto “os nobres presen-

1 Ver, nesre—íolumc, pp- 368, 498, 556.


17 Philippe Contamine, “Points de vuc...’, p. 275, nota 81.
13 Retomado por Jean Flori, L'Essor de la chevalerie..., pp. 384-6 (S. 31),

303
A Cavalaria

tes lhe calçam as esporas, onde isso é costume” — o que parece essencial,
e valorizado pela iconografia da época.
Em nenhum momento a Igreja investe solenemente os Cavaleiros
de uma missão inédita de ajuda aos fracos e de reforma social; ela faz ape-
nas variações sobre a ideologia carolíngia do gládio real, e a Cavalaria nunca
é uma verdadeira “instituição cristd”. Os Cavaleiros são simplesmente
cristãos entre outros, responsáveis por seus pecados (rapinas e torneios,
por exemplo) que os tornam vulneráveis às reprimendas dos clérigos e
devedores de penitências (tais como, entre outras, a cruzada). Sua conver-
são os faz sempre sair da condição Cavaleiresca comum. Tais conversões
se manifestam, inicialmente, por volta de 1100, por meio do recolhimento
ao claustro e da vocação eremítica. | *

Combates espirituais

TEstá na lógica da reforma gregoriana reafirmar e acentuar o pri-


mado do combate espiritual, portanto do clero, e valorizar a conversão dos
Cavaleiros à vida religiosa. A ideia das duas milícias está, portanto, mais
presente do que nunca; ela se alimenta do ambiente conflituoso da reforma
e da cruzada, assim como da presença imaginada de demônios, para se
tornar verdadeiramente uma teoria dos dois combates. | *
No ano 1000, os príncipes da Cavalaria manifestavam sua piedade
sobretudo através de doações e peregrinações. É o caso desses dois cristãos
exemplares — ainda que inferiores a Geraldo de Aurillac, uma vez que não
se tornam santos — que foram o conde Buchardo, o Venerável (morto em
1005, cuja história é narrada em 1058 por Eudes, monge de Saint-Maur),
e o rei Roberto, o Pio, justificado por Helgaudo de Fleury por meio de
seus dons e da peregrinação que fizera, tendo em vista sua propensão, com
o avançar dos anos, a expiar as faltas da juventude, e também uma certa
inclinação ao perdão para com nobres caluniadores e à generosidade para
com os pobres, mesmo os ladrões (ele era, portanto, quase santo).
Nos tempos carolíngios e por volta do ano 1000, era sempre pos-
sível a passagem da “milícia do século” à de Cristo. Mas isso não parece ter
sido frequente quando se tratava de Cavaleiros fisicamente aptos para o

304
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

“serviço” militar e na flor da idade: o exemplo de Datus é muito espccíficolº.


O monge típico é a criança saída de uma família nobre, oferecida muito
jovem ao mosteiro, através de um rito especial e sob o preço de um dom,
ou entrando na adolescência por volta de 15 ou 16 anos, por falta de pos-
sibilidade ou de vontade de ser Cavaleiro, tal como Santo Odon. O próprio
Guiberto de Nogent, nascido nos anos 1050, relata em sua Autobiografia
as etapas de sua “vocação”. Seu pai havia feito voto de dá-lo a um mosteiro,
mas não o fez. Como este morre, é diante da mãe que o adolescente se
encontra para decidir seu destino. A mãe chora vendo os golpes que o
preceptor infligia a Guiberto. Reclama que não quer mais que lhe ensinem
o latim; promete lhe fornecer, “quando chegasse à idade exigida, o equi-
pamento e as armas da Cavalaria”. Esse certamente não era o melhor meio
de nunca mais ser ferido... Mas o adolescente recusa as armas, prefere as
letras, e decide-se por sua entrada em um mosteiro®. A ordem senhorial
do ano 1000 quer que, uma vez adulto, não se mude de lugar. Os monges
rezam pelos pecados que asseguram aos Cavaleiros a dominação social, e
estes últimos doam aos mosteiros suas terras e seus servos, muito mais do
que sua própria pessoa.
Esses dons, no entanto, criam laços de familiaridade, em nome
dos quais os monges asseguram aos seus doadores todos os tipos de apoio
em vida, funerais nobres seguidos de uma comemoração na qual se mis-
turam orações permanentes pelos seus erros e a celebração social de sua
família, que valoriza seus descendentes. E se podemos dizer que as “bran-
cas igrejas” do ano 1000 manifestam as desculpas dos Cavaleiros violentos
à sociedade, elas purificam muito mais os senhores impuros e dispensam
os Cavaleiros da reforma de seus costumes... Fulques Nerra, fundador de
abadia e peregrino em Jerusalém, expia suas faltas e, isso feito, retorna à
sua “Cavalaria” de conde.
Não é raro que um velho senhor ou um Cavaleiro gravemente
doente ou ferido se faça monge à aproximação da morte. Ele consegue,
por meio de doação, revestir-se, na última hora, do hábito negro de monge,

* Ver, neste volume, p. 114.


2º Guiberto de Nogent, Autobiografia, 1, 6 (p. 40). Deveriamos chamar esse livro muito
mais de Monodias.

305
A Cavalaria

a fim de se beneficiar da mesma “comemorrazão”?), das mesmas chances


de salvação, ou quase, que teria se tivesse passado sua vida no mosteiro.
Um Cavaleiro bretão, Morvano, apresenta-se, assim, em 1066, ao abade
de Redon. Ele “teme a morte” e aspira a Deus. Apoiado pelo monge Jar-
negom, seu amigo de infância, ele é rapidamente aceito como monge.
“Então, ele foi todo armado ao altar santo, deixou lá suas armas de Cava-
laria, se desfazendo do velho homem, revestindo-se do homem novo. Em
seguida, entregou seu cavalo, que valia dez libras, com seu alódio próprio
de Trefhidic” Descrito em um latim deliciosamente rústico, temos aqui
um rito pelo qual alguém se faz monge (moniage) atestado em Cluny no
século X*, Trata-se de uma relação tradicional, tal como fora estabelecida
desde o século VII: um dom pelo remédio (resgate) da alma.
Pode-se fazer uma narração edificante dessas vocações tardias,
como a de Orderico Vidal sobre Anso de Maule?; isso não impede que,
no fundo, se trate de homens que renunciam aos pecados da Cavalaria
quando não têm mais meios para cometê-los, ao sentir chegar a morte. A
menos que escapem dela, e ei-los presos, privados dos prazeres dos quais
contavam desfrutar o máximo de tempo possível! Assim, alguns voltam
para o séculoz *
Pode-se virar monge, quando se provou o áspero sabor da vida
Cavaleiresca, quando se comprouve com ela? A esse respeito, uma espécie
de “guerra entre lendas” opõe, a propósito de Guilherme de Gellone, uma
hagiografia e uma epopeia*.
[ Orderico Vidal nos introduz à hagiografia evocando Hugo de
Avranches, um companheiro de Guilherme, o Conquistador. Esse homem
pródigo tem gosto pelo jogo, pelo luxo, assim como pelos menestréis,
cavalos e cachorros. Ele tem uma escolta de Cavaleiros, mas também uma
capela e clérigos, dos quais um, Geraldo, censura essa bela sociedade em
festa. Aos barões, aos Cavaleiros modestos e às crianças, ele fala de Cava-

Segundo o feliz neologismo de Michel Lawers, La Mémoire des ancétres... (ver também
Dominique Iogna-Prat, Études clunisiennes...).
Ver meu estudo sobre La Mutation..., p. 264. E Charles de Miramon, “Embrasser létat
monastique...”.
Orderico Vidal, V, 19 (t. III, p. 194).
Ver Charles Miramon, “La guerre des récits...”.

306
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

leiros do Antigo Testamento — que podem ser Josué, Jó, Judas Macabeu
(como Odon de Cluny, no início de sua Vida de São Geraldo) —, de santos
“militares” da Antiguidade tardia, entre os quais Jorge e Demétrio, Mau-
ricio, Eustdquio. Ele não mistura, assim, guerras justas e renuncias
20 gládio? Para terminar, ele menciona “o santo atleta Guilherme que,
após um longo servigo Cavaleiresco, renunciou ao século. Ele tornou-se,
com a regra mondstica, um glorioso Cavaleiro de Deus”*. Gragas a seu
exemplo, muitos préximos de Hugo de Avranches se converteram à vida
monástica.f | ó
O outro é um personagem que havíamos encontrado diante de
Barcelona em 800-801, estabelecido por Ermoldo, o Negro, como herói
de epopeia: Guilherme de Orange, duque sob Carlos Magno, valente,
certamente, mas não particularmente piedoso®. Sua gesta do século XII
em francés antigo ¢ muito mais ampla que a de Rolando, uma vez que
comporta várias cangdes e pode se encerrar com a histéria de seu fim
mondstico, a Moniage Guilherme, em duas versões compostas no século
XII. Mas seu fim piedoso faz dele também um santo que, morto, opera
milagres: uma lenda hagiografica, resumida por Orderico Vidal, faz dele
um modelo da boa conversio do Cavaleiro adulto, parauso do ano 1100.
Guilherme ¢ primeiramente um Cavaleiro de guerra santa, “que salvou
pela espada o povo de Deus, com o auxilio divino™?. Ele estende o impé-
rio cristão, funda e dota o mosteiro de Gellone, na diocese de Lodêve.
Mas mais tarde, em 806 segundo Orderico Vidal, ele surpreende em Aix-
la-Chapelle quando anuncia a Carlos Magno que quer se tornar monge.
Permite-se, com pena, que ele parta, e, com uma reliquia insigne da Ver-
dadeira Cruz, ele toma a rota do Sul. Em sua passagem por Brioude, ele
se despoja de suas armas: deixa no túmulo do mártir São Juliano as que
são defensivas (seu elmo e seu escudo) e do lado de fora sua espada, sua
langa e seu arco, armas ofensivas. Ele tem filhos já grandes, condes nio
longe dali, aos quais sua abdicação da Cavalaria deixa a heranca e o campo,
o senhorio, livres. Peregrino de Cristo, ele caminha agora de pés descalgos,

25 Orderico Vidal, V1, 2 (t. III, p. 216).


% Ver, neste volume, pp. 111-3.
27 Orderico Vidal, V1, 2 (t. I1L, p. 216).

307
A Cavalaria

usa o cilício, e é com esse aparato de penitente que alcança a abadia de


Gellone, fundada por ele.
Seu caráter mudou; ele se deixa corrigir e instruir. Ele, que fora
imperioso, no presente não pede nada mais do que servir e obedecer. Batem
nele, insultam-no, e ele não replica de forma alguma. Ele trabalha, com
suas próprias mãos, plantando árvores frutíferas, pede e obtém o direito
de fazer o serviço mais vil, na cozinha e no forno. É conde tornado cozi-
nheiro pela humildade, mas que também, com o auxílio de Deus e para
apressar sua obra, entra no forno aceso e sai dele indene, como o justo sai
de um ordálio de fogo. Tudo isso é bastante edificante.
No entanto, trata-se apenas de um período probatório, um novi-
ciado, quase um trote. Mas, enfim, há um limite para tudo, e logo o abade
lhe proíbe os trabalhos servis. Guilherme sobe rapidamente os escalões de
sua nova comunidade, passa da vida ativa à contemplação, por uma escalada
estatutária certamente normal para todo Cavaleiro destacado que, depois
dele, se converteria ao monaquismo. Uma cela lhe é preparada, na qual ele
reza e medita; ele profetiza sua morte como o fazem os monges mais puros
depois de uma vida inteira na milícia do claustro... e a história não diz a
quem, a partir de então, ele incumbe de podar as oliveiras, fazer cozer o
pão e servir à mesa. São humilhações que honram àqueles que as autoin-
fligem e os impulsionam em direção a uma vida mais elevada.
Guilherme de Orange tem filhos adultos, aos quais entrega seus
condados. Para ele, como para outros, o mosteiro é uma casa de repouso.
A cultura crista e a contemplação são o que resta quando não se pode mais
montar a cavalo — ou para aqueles que nunca puderam. Tal é, ao menos,
o ponto de vista das canções de gesta.
As versões épicas da Moniage Guilherme que talvez confinem com
o burlesco se tornam francamente sarcásticas: nelas o herói é um viúvo
retirado, mas o elemento desencadeador da intriga é sua perfeita inadap-
tação. Ele guarda seus hábitos de Cavaleiro, faz-se odiar pelos outros
monges a ponto de conspirarem sua morte e obrigarem-no a viver como
eremita em um lugar retirado onde tem de enfrentar um gigante e um
diabo: Saint-Guilhem-le-Désert. Dessa forma, os textos não deixam de
evocar, de alguma maneira, as graves tensões internas que podem dividir
contra si mesmos os mosteiros do ano 1100, criando dissidências eremíti-

308
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

cas. De outra parte, as duas Moniage Guilherme épicas” o fazem retomar


a luta como Cavaleiro de epopeia, cada vez que a pátria francesa e cristã
está em perigo e cada vez que ela precisa dele como salvador. Isso também
não é pura ficção, quando se imagina a desistência de certos monges tardios
que creem estar morrendo e que escapam A morte anunciada. Isso conforta
o público de duas maneiras. Em primeiro lugar, através da ideia de que a
única milícia que conta no momento da invasão sarracena é a do século.
Em segundo lugar, advertindo contra os mosteiros que acolhem Cavalei-
ros que estão envelhecendo captando uma boa parte de seus senhorios.
Mas temos aqui conversões de um tipo novo, mais espctaculares
e sem dúvida mais puras, características dos tempos gregorianos. E encer-
ram a carreira de Cavaleiros adubados, ativos, nem um pouco grisalhos, e
os dirigem tanto ou mais à vida de eremita que aos mosteiros clássicos”.
Esses cavaleiros experimentam um movimento do coração, ou se sentem
movidos por um impulso espiritual. Sua decisão, talvez devéssemos dizer
sua crise®, provoca uma verdadeira ruptura: eles deixam secretamente sua
região e realizam gestos espetaculares de inversão de seu estatuto, especial-
mente no sentido da humildade.
(@] primeiro axemplo, na França no século XI, presente em Gui-
berto de Nogent, é dado por São Teobaldo, um filho mais novo dos condes
de Champanhe. “Nos tempos de sua aprendizagem da Cavalaria, ele re-
nuncia às armas e foge de sua casa com pés descalços”, torna-se carvoeiro,
tem as mãos e o rosto enegrecidos pela turfa, se expatria na Itália?!. Seu
exemplo impressiona, e um conde da Francia, Everardo de Breteuil, tam-
bém acaba se tornando carvoeiro. Sendo seu primo distante, Guiberto o
conhece bastante para precisar seu caráter. Everardo era muito preso às
mais belas vestimentas nobres, e inclinado demais à cólera; entre os peca-
dos da Cavalaria, a brutalidade guerreira não ocupa aqui o primeiro lugar,
que é deixado à festa, ao adorno e à fatuidade. Nosso Everardo, após sua

28 W Coletta, Les Deux Rédactions...


29 Esse movimento, essa tendência, é difícil de numerar, Mesmo que não seja em
si mes-
mo totalmente inédito, ele tem ressonância e um papel sem precedentes.
3º Indisposição na interação? Marca de uma sociedade em mutação, desestabilizada?
3! Guiberto de Nogent, Autobiografia, 1, 9 (p. 55). Ver Dominique Iogna-Prat, “Évrard
de Breteuil et son doublé...”.

309
A Cavalaria

que
conversão, tornou-se irreconhecível por sua postura simples, como
rebaixado às aparências de um camponês. No entanto, ele não persiste
eternamente nessa posição de inversão social, situada no extremo da vida
nobre. Em breve, ele entra em Marmoutier® e, então, toma lugar entre
os “senhores” em Cluny do Oeste, cujas dependências administra. Fre-
quentemente em deslocamento, ele evita ir a castelos sob sua própria
autoridade; permanece nele, entretanto, algo do esteta de antes, uma vez
que, no presente, tem “o hábito cortês” de fazer anotar em seu caderno
de autógrafos uma frase para cada letrado que encontra...”º Entre esses,
estaria o Cavaleiro, apaixonado pelas letras, cujo filho mais velho tem o
nome de Pedro Abelardo?*
Os convertidos dos tempos gregorianos são eremitas pela errância,
ou pelo silêncio, pela reclusão (como os cartuxos). Eles não procuram, por-
tanto, as proezas anteriores da ascese e da mortificação dos santos homens
do Oriente, ou mesmo dos monges da Irlanda. Eles têm muito mais uma
mensagem, um discurso comum. É-lhes suficiente, em certo sentido, bem
manifestar e viver uma ruptura, a errância ou o isolamento, o tempo que
for necessário para se despojarem claramente de seu antigo estatuto e se
agregarem a uma nova comunidade estatutária, na qual sua nobreza nativa
se confirma pela energia em outra Cavalaria, na milicia espiritual.
Na pessoa do conde Simão de Crépy-en-Valois, é um pouco de
Santo Aleixo que revive (mas um pouco apenas, sem a privação absoluta)”.
Como Santo Aleixo, na noite de suas núpcias ele deixa sua esposa intacta
€ se expatria. Mas ele não cruza o mar, e realiza no Jura seu tempo de ere-
mita; depois volta à Francia sem esconder quem é, o que, de forma inversa
ao que acontece com Santo Aleixo, apoia sua pregação. “O zelo desse

32 Em seguida, segundo Guiberto, a um incidente estranho: ele cruza num canto de


um bosque com um impostor com belas vestimentas, que se faz passar por ele,
pelo penitente que ele se tornou, “portanto por sua própria vontade a pena de
seus pecados”.
?*? Guiberto de Nogent, Autobiografia, 1, 10 (pp. 57-9).
* Abelardo e Heloísa, Correspondência..., p. 42.
?* Um dos textos mais antigos conservados em francês é uma canção de Santo Aleixo,
do século XI; ela relata, demarcando uma Vida de origem oriental, como esse nobre
romano abandona sua fortuna, sua família e sua Cavalaria para seguir a Cristo, se
expatriar, se perder e voltar desconhecido, pobre, viver e morrer debaixo das escadas
de sua casa. Christopher Storey (ed.), La vie de Saint Alexis, Genebra, 1968.

310
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

homem atraiu muitos Cavaleiros”*”, O exemplo e a persuasão para levar


batalhões ao combate espiritual!
Eis três conversões de impacto, ao menos no mundo de Guiberto
de Nogent, um mundo de boas famílias da zona real, que ele conhece bem.
Mas o movimento de fuga do século tem realmente a amplitude que Gui-
berto lhe atribui? Não muito longe, Guiberto tinha outros exemplos como
o do nobre flamengo, mais inculto e bastante vigoroso, Arnaldo de Pamela.
Ele vai para a corte do rei Felipe I, mas, por volta de 1060, para em Saint-
Médard de Soissons e se faz monge. Arnaldo sofre para se integrar e prefere
tornar-se eremita recluso. Ele luta desde então em combate singular contra
o diabo e torna-se um poderoso exorcista. De sua cela de recluso ele atua
como conselheiro espiritual, e, sobretudo, social, das boas famílias (entre
as quais a sua própria). Ele pode, assim, verter conselhos de bom senso, na
forma de oráculos proféticos, e ajudar na resolução de problemas que se
colocam a senhores e damas nobres, a jovens Cavaleiros e a jovens como
a moça apaixonada por um Cavaleiro de nível inferior”. Segundo seu
hagiógrafo, ele concerta tudo com a ajuda do Céu. Ele tem, talvez, a van-
tagem de ser informado por aqueles que o visitam e lhe tém confiança. Isso
lhe permite colocar de sobreaviso, em vão, um senhor de Coucy contra a
armadilha tramada por sua mulher. Ele combate igualmente, sem muita
compaixão, as superstições de Cavaleiros como quando interpreta a morte
acidental de seu jovem sobrinho. Sua irmã havia, de fato, confiado o ado-
lescente a um senhor poderoso, primo deles, “até que fosse feito Cavaleiro”,
mas, ao mesmo tempo, inquieta sobre ele, praticou um “mau sortilégio”
lançando seu calção por cima de uma viga. Infelizmente esse gesto teve o
efeito inverso, trazendo infelicidade ao escudeiro, além de pecado sobre
sua mãe...”* Deus pune também as rapinas, segundo Santo Arnaldo, atra-
vés de mortes nas famílias daqueles que as realizam.
Diz-se que algumas conversões podem ser resultantes de difi-
culdades da pessoa em satisfazer as exigências de seu ambiente social.

% Guiberto de Nogent, Autobiografia, 1, 10 (p. 62). E Vida de Santo Arnaldo, 1, 25. Ver
Michel Lauwers, “Du pacte seigneurial à 'idée de conversion...”.
3 Vida de Santo Arnaldo, 1, 29. Ver meu Chevaliers et miracles..., pp. 188-224; e, neste
volume, p. 504.
3 Vida de Santo Arnaldo,1,21.

311
A Cavalaria

*
| Assim, em uma sociedade de Cavaleiros herdeiros na qual não é suficiente
“ nascer — é preciso também trabalhar nos exercícios guerreiros e nos com-
bates e suspeitar da opinião e de traição —, a conversão aconteceria para
salvar as aparéncias. Sem dúvida, isso não é um problema próprio do século
XI, mas seria possível que a “mutação Cavaleiresca” evocada no capítulo
precedente tenha exacerbado o espírito de comperição, endurecido as
exigências em relação aos jovens e complicado seu destino. O acesso às
heranças e às herdeiras parece de fato bastante aferrolhado. Aos filhos mais
novos e aos colaterais maldotados, mas também aos mais velhos deficien-
tes ou azarados, o que resta se não o claustro, a reclusão ou a fuga para a
floresta sob as cores da piedade? E não é uma maneira de salvar as aparên-
cias conquistar proezas no combate espiritual?
Orderico Vidal apenas retoma lugares-comuns ao comparar avida
de um eremita a um “combate singular™, ou os mosteiros a castelos cujos
habitantes aprendem o combate contra os demônios e contra os vícios da
carne®, Esse tipo de combate é representado em muitos capitéis românicos
como uma série de duelos entre os vícios e as virtudes reempregando as
ideias da Psicomaquia de Prudêncio. Essas virtudes são frequentemente
personificadas por Cavaleiros nos quais se observa o gradual reforço do
elmo e da cota de malhas.
Mesmo assim, os assaltos e as armadilhas do demônio são temíveis
para os convertidos que vivem fora de uma regra precisa, segundo sua
própria inspiração ou a de um mestre que elegeram para si. Após 1100
acontece de eremitas errantes criticarem os maus padres com uma veemên-
cia que só era comum no tempo de Gregório VIL... É preciso, a partir de
então, que os acusados os contestem, por medo de cair em heresia. Mesmo
os eremitas situados à margem desse cenário destoam um pouco, e ninguém
sabe o que dizem aos fiéis que vêm visitá-los. O bispo da diocese se esforça
para controlá-los, direta ou indiretamente, tal como Ivo de Chartres tenta
fazer com os eremitas da floresta do Perche. Frequentemente, a regra im-
posta aos eremitas é a chamada regra “de Santo Agostinho”, o que faz deles
uma espécie de cônegos e lhes deixa certa liberdade de movimento. Mas
um procedimento formal ganha a preferência dos bispos e do papa, a

* Orderico Vidal, 1V, 15 (t. II, p. 326).


* Idem, V, 14 (t. 111, p. 144).

312
Em direção a uma Cavalaria mais crista?

partir de 1119: a ligação dos eremitas à ordem de Cister. Em 1098, um


pequeno grupo de dissidentes da abadia de Molesme, na Borgonha, seguiu
seu abade Roberto e seu prior Auberico aos pântanos cobertos de canas
(citelles, Cister), entre Dijon e Cluny. Os primórdios desse grupo de ere-
mitas foram trabalhosos, incertos e duros. Depois, com o abade Estêvão
Harding, a abadia começa a se desenvolver, e a conversão em 1110 de
Bernardo, um dos filhos mais novos do senhor de Fontaine-les-Dijon, lhe
dá um impulso decisivo. Então com 20 anos de idade, Bernardo é um
recruta excepcionalmente talentoso e dinâmico. A partir de 1112, ele se
torna o primeiro abade de Claraval, filha de Cister. Ele converte um a um
todos os seus irmãos Cavaleiros, inclusive sua irmã, que deixam suas fami-
lias... Essa linhagem de Cavaleiros parece envolta em uma ordem na qual
seu fervor e sua austeridade, mas também suas relações de alto nivel e sua
docilidade aos bispos garantem um grande sucesso®.
Os cistercienses resolveram abrir mão de reliquias e se retirar para
mais longe da sociedade feudal do que o haviam feito os monges negros
do ano 1000. Diferentemente destes, vestem-se de branco, com habitos de
13 crua por zelo pela simplicidade. Eles não possuem tenéncias, nem servos,
nem igrejas paroquiais com dizimos aferentes. Eles não sobrecarregam suas
jornadas de missas e de preces pelos mortos das duas elites. Eles se ocupam
do oficio, e o resto do tempo ¢ dedicado ao trabalho manual. Eles encon-
tram, portanto, o equilibrio entre a reza e o trabalho expressamente dese-
jado pela regra de São Bento. Eles evitam acolher hóspedes da boa socie-
dade, ou ainda peregrinos, escolares, doentes, que os distrairiam. Eles dizem
que sua ordem é cimentada pelo laço da caridade. Têm um governo cole-
gial, enquanto Cluny desempenha papel de senhor autoritário sobre seus
priorados, exigindo deles um verdadeiro tributo. Mesmo a primazia do
sexo masculino é um pouco atenuada, uma vez que a ordem recebe também
religiosas, e integra abadias de mulheres.
É, portanto, em Cister que Cavaleiros, clérigos, monges de outras
comunidades, já adultos, engajam-se com propósito deliberado. Agem
como se sua classe de origem fosse, por meio deles ao menos, desprendida
de todos os seus valores, como se os orgulhosos Cavaleiros aqui curvassem
a cabeça, e as costas, para trabalhar à maneira da terceira ordem.

brancos...
41 Ver Marcel Pacaut, Os monges

313
A Cavalaria

Entretanto, no tempo de São Bernardo, quando a ordem obtém


sucesso e suplanta Cluny em favor junto ao papa, a marca eremítica de
origem se atenua. As obrigações litúrgicas dos monges permanecem fortes;
elas os constrangem a não se distanciarem do abaciado, e a recrutar cam-
poneses como “domésticos” ou “conversos”. São “irmãos” eles também, mas
seu estatuto é particular: não sendo letrados, eles têm menos obrigações
litúrgicas, sendo-lhes suficiente recitar uma prece no local em que traba-
lham quando é a hora de um ofício. Eles podem, portanto, entregar-se
verdadeiramente ao trabalho, que era sua condição nativa, e têm seu dor-
mitório particular — mesmo seus funerais sendo, no final das contas, os
mesmos. Uma vez que a regra também prescreve que se leia, clérigos le-
trados e Cavaleiros banhados de latim consagram igualmente tempo
aos estudos e à meditação no claustro. São Bernardo é ele próprio autor
latino de cartas e de sermões, e suas exegeses (notadamente aquela sobre
o “Cântico dos cânticos”) introduzem a uma vida contemplativa, quase
mistica, mais do que ativa. Finalmente, os cistercienses agradam aos
reis, aos príncipes e 4 elite do Ocidente no século XII porque eles lhes
aparecem como os melhores monges, aqueles cuja reza, cuja intercessão
pelo povo cristão — tendo a Cavalaria à frente — parecem as mais eficazes.
Luís VII obtém sua sepultura na abadia cisterciense de Barbeaux, que
ele “fundara”. Muito rapidamente e por todos os lados, os cistercienses
aceitam o dom dos dízimos, rendas senhoriais, sepulturas com a respon-
sabilidade de rezar, e empregam assalariados para ajudar ou auxiliar seus
conversos. Não se trata mais de eremitismo, mas de uma nova reforma
do monaquismo “de alto nível”: retirados a distância, os monges brancos
não contam menos aos olhos dos príncipes que querem ter consigo tanto
os melhores Cavaleiros, para suas guerras e seus torneios, quanto os me-
lhores intercessores, para sua salvação. Para Cluny, o desafio cisterciense é
muito evidente.
Notou-se com frequéncia que os escritos de Sio Bernardo sio
abundantes em alusdes a0 combate espiritual. As falanges de lutadores do
claustro constituem os bastides opostos aos deménios... Eis um autor que
sabe falar a antigos Cavaleiros! Mas ele não faz brilhar perigosamente
diante de seus olhos a explosio persistente de elmos e de espadas aos quais
eles renunciaram? Sem falar da linguagem amorosa e erdtica na qual ele
transcreve as relagoes da alma com Deus. Tudo isso lembra um trovador

314
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

mal desintoxicado, e sobretudo com uma retórica explosiva e sutil, na qual


transparece ainda algum desejo de brilhar.
Em sua obra, a prece (ora4ison) é um Cavaleiro que ajuda na defesa
de um castelo, cujo nome é Justiça, que se encontra cercado pelos desejos
terrestres. Esse Cavaleiro é enviado sobre o cavalo da fé, para buscar re-
forgo™. Ornando suas parábolas com versículos bíblicos, ¢ manejando
alegremente a alegoria, São Bernardo tece a met4fora dos dois exércitos
opostos — de Jerusalém e da Babilônia —, com seus chefes Davi e Nabu-
codonosor: é preciso entender, respectivamente, o exército das virtudes e
dos vícios. Ora, eis que,

[..] do campo de Davi, avança um jovem recruta. Recentemente jurado na mili-


cia do rei, das próprias mãos de Davi, cinge “o gládio do verbo de Deus”ÊÉ. Pro-
vido de armas espirituais, ele toma grandes ares. Ao encontro do édito do rei, ele
estd muito impaciente, mais para construir seu nome do que para vencer o ini-
migo. Ele tem um cavalo fogoso, seu préprio corpo. Ainda inflado pela seiva do
século, elegante e brincalhio, com espirito de harmonia, ele tem aparéncia orgu-
lhosa na cela. Desdenhando a disciplina de seu campo, desprezando seus com-
panheiros, ele avanga em uma solidao temeriria, longe dos outros, aspirando
ardentemente a erigir um nome para sit,

Reconhecemos aqui o comportamento de Cavaleiros nas justas,


diante de Mouliherne ou Breteuil, como relatam Guilherme de Poitiers e
Orderico Vidal. Antes que a batalha acontega, ou mesmo de medo que ela
não acontega, os mais ardentes se aproximam para se oporem em comba-
tes singulares a seus homologos do outro lado. Esses jovens correm riscos,
¢ sua vangléria os expde a armadilhas. São Bernardo trama, entio, uma
bela intriga, com sedução, aventura e conquista: Nabucodonosor encar-
rega, de fato, duas irmãs, chamadas Soberba e Vi Gléria, de irem aplaudir
o novo Cavaleiro e de levé-lo consigo à cidade de Babilénia, cujas portas
são fechadas atras dele. Ei-lo, portanto, cativo, zombado nas cozinhas,
precipitado na prisão da Desesperanga. Felizmente o rei Davi
encarrega
um grupo de vassalos eficazes, Temor ¢ Obediéncia, de libertar o temerá-

* Bernardo de Claraval, Os combates de Deus, p. 125 (parábola I).


%3 São Paulo, Carta aos Efésios, 6, 17.
* Bernardo de Claraval, Os combates de Deus, pp. 135-6.

315
A Cavalaria

rio — e é assim que “o Cavaleiro de Cristo chega à sabedoria”*. Isso ter-


mina melhor para ele do que para Ebles de Comborn”*.
[Essa parábola de uma desventura Cavaleiresca valoriza o combate
coletivo e disciplinado de uma comunidade, o mosteiro cisterciense, em
relação aos riscos que comporta o combate espiritual dos eremitas, solitá-
rio demais, incontrolado demais, imprudente demais. Ao mesmo tempo,
seu sentido literal não é anódino: temos aqui a primeira apologia, parece-
me, de uma guerra mais justa e mais intensa do que a guerra feudal, e da
obediência miliciana ao rei. É preciso, ele nos diz, renunciar aos floreios
da Cavalaria individual em nome da eficácia, da coesão e — ousemos a
palavra — do realismo de uma milícia verdadeira, de uma coorte discipli-
nada com a qual não se deseja evitar as batalhas, mas sim ganhá-las. | *
Ora, a passagem da metáfora ao combate verdadeiro se faz muito
rapidamente, em relação com a cruzada. O mesmo São Bernardo, desde
1128-1130, faz o elogio dos Cavaleiros templários. O abade de Claraval
lhe atribui um ideal de coragem na obediência, sem va glória nem temeri-
dade (que eles nem sempre colocarão em prática); e arrisca por um instante
a ideia, latente nas pregações da cruzada, de que, em certos combartes,
matar o inimigo “não é um homicidio, mas um malicídio””.

A trégua de Deus e o
abrandamento dos Cavaleiros

Os historiadores modernos acham bastante natural e lógico que,


de um esforço para limitar as guerras civis e proibir aos cristãos o ho-
micídio entre si por meio da trégua de Deus, a Igreja do século XI venha
a promover ¢ a exaltar uma guerra de Deus, a cruzada, na qual eles se
unem contra o Infiel e são autorizados a matar. O mesmo concilio de Cler-
mont na Auvérnia, em novembro de 1095, prescreve a trégua de Deus e
a cruzada. Não há aí um eco das preocupagdes de Gregério de Tours no

% Idem, pp. 137-8.


46 Ver, neste volume, pp. 210-1.
4” Ver, neste volume, p. 343.

316
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

século VI a propósito dos francos: evitar se autodestruir, exterminar as


nações exteriores 4
Todavia, quando os decretos da trégua e da cruzada sio obser-
vados de maneira contextualizada, percebe-se que sua ligação ndo ¢ ab-
solutamente evidente./A trégua de Deus interrompe uma guerra feudal
já moderada, no espirito de um esforgo de abrandamento dos Cavaleiros,
a0 passo que a cruzada lhes propõe tornarem-se mais duros, em um tipo
novo de guerral} É
A trégua de Deus nasceu na Catalunha, ou seja, no Extremo Sul
do reino, j4 mais espanhol que francés. O primeiro decreto, seja conside-
rando-se o de Elne de 1027, ou o de Vic d’Ausone de 1033, é um desenvol-
vimento original de pactos cristios, concluidos em presenca de reliquias
de santos, que chamamos um pouco incxatamente de “paz de Deus™. Os
bispos dessa região retomam artigos aquitanos, como os do concilio de
Charroux sobre a imunidade (salveter) das igrejas, a salvaguarda de pessoas
desarmadas, e contra a vinganga indireta entre Cavaleiros, que incide sobre
os camponeses. Nessa Gotia mediterrinea, definem-se claramente juris-
dições. Esses artigos resultam de uma paz que sancionam juntos o conde
de Barcelona (ou, mais a0 Norte, o visconde de Narbona) e o bispo com
seus conegos. Eles juntam a isso medidas novas que constituem a trégua
propriamente dita, sob a jurisdição exclusiva dos homens de Deus, bispos
e cônegos, que recorrem, além disso, a0 julgamento de Deus (ordlios) a
titulo de prova ou sanção./A trégua de Deus consiste em interditar todo
ato de guerra e mesmo todo constrangimento judicidrio, durante as épocas
mais importantes do ano cristio — que são o Advento, a Quaresma e
Pentecostes —, e também durante quatro dias de cada semana, de quinta
a domingo, 0s mesmos em que se derama Paixão e a Ressurreiçâo de Cris-
to. Naturalmente, um príncipe forte e a pressão social devem prestar seu
apoio à Igreja. |
Essa fórmula catalã se desloca em direção ao Norte, e cada pro-
víncia eclesiástica ou principado faz alguns ajustes a ela. Assim, encon-
tramo-la, entre 1040 e 1042, em Narbona, em Arles e também na Borgonha,

* Histórias, V, prólogo.
%49 Ver meu estudo sobre LAn mil et la paix de Dieu, pp. 499-521.

317
A Cavalaria

onde Raul Glaber pôde celebrá-la, um pouco antes de morrer, no livro V


de suas Histórias. Raul indica que a difusão da trégua de Deus na região
parisiense (que ele chama de “Nêustria”) é interrompida por um instante
devido à guerra entre o rei Henrique I ¢ os condes de Blois. Ela se espalha,
mesmo assim, a partir de 1060. Em Narbona, ela foi decretada pelo arce-
bispo Guifredo, adversário da autoridade do papa; no momento, ela é
encampada preferencialmente pelos bispos reformadores, sem dúvida com
o aval do papa Alexandre II (1061-1073), mas aparentemente sem o de
Gregório VII (1073-1085). Lê-se assim, em uma fórmula de Reims (reto-
mada em Flandres e na Normandia), entre 1060 e 1100, que, de quinta a
domingo inclusive, durante esses quatro dias e essas cinco noites, não se
devem produzir “nem ferida, nem morte, nenhum ataque nem mesmo
contra castelo, burgo ou vila, nada de rapina, de captura nem de incêndio,
nada de maquinação, de violação, nem de estratagema”. É o mesmo que
dizer nada de Cavalaria belicosa, com uma exceção apenas: “Durante essa
paz, somente o rei ou o conde do país poderão fazer uma cavalgada ou
uma hoste, e aqueles que estarão com eles não deverão requisitar à diocese
mais do que o necessário para alimentar seus cavalos™.
Os historiadores modernos, imaginando uma violência feudal
desencadeada, de castelo em castelo, creram ver uma pequena revolução
nessa trégua de Deus, após as audácias da “paz de Deus” do ano 1000. É
preciso certamente rebater isso. A alternativa não é entre a trégua de Deus
€ 0 caos, uma vez que a guerra feudal não é nem o caos nem a violéncia
onipresente. A observação do domingo, da Quaresma, do Advento parece
já estar bem enraizada então. O aumento dos dias de trégua talvez seja
desejado no século XI, antes de tudo, para aumentar mais o respeito devido
a Deus — e, portanto, à Igreja. Por outro lado, a trégua de Deus, que pre-
cisa do apoio do rei e dos condes, não impede suas guerras públicas, que
são já, talvez, a principal fonte da violência entre cristãos. A expedição de
Guilherme, o Conquistador, em 1066, feita com o estandarte de São Pedro,
comete muitos homicídios, mesmo que depois se faça penitência.
Na prática, qual é o efeito dessa trégua? Não se tem uma ilustração
precisa disso através de crônicas e outras narrativas. É, mesmo assim, uma

5º Idem, p. 547.

318
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

pena que nenhuma página de um autor tão eloquente quanto Orderico


Vidal a mostre sendo aplicada; ele só menciona sua promulgação sob Gui-
lherme, o Conquistador. Apenas algumas linhas de cartulários meridionais
€ cartas de Ivo de Chartres deixam adivinhar que a lei da trégua de Deus
é mesmo assim regularmente invocada nos conflitos e nos processos.
Quebrar essa trégua pode levar a pagar uma multa, e pode agravar o caso
de um homem acusado de violência, Cavaleiro ou não.
A trégua de Deus tem seu lugar no pensamento de Urbano II: ele
a faz figurar entre os decretos do concílio de Clermont (novembro de 1095)
com todos os artigos da reforma gregoriana (entre os quais o desarmamento
dos bispos) e a cruzada. Um dos temas de sua pregação, ou da dos clérigos
que o substituem para difundir por toda a França o apelo à cruzada, é a
lamentação da violência entre cristãos. Portanto, a relação com a cruzada
existe, sobretudo, na medida em que uma sanção frequente contra aqueles
que quebram a trégua é o exílio, a peregrinação penitencial.
O fato é que caminha, bem perto da trégua de Deus, a reprovação
ao homicídio entre cristãos. Guifredo de Narbona, quando da segunda
promulgação da trégua em sua diocese em 1054, adiciona uma nova cláu-
sula: “Que nenhum cristão mate um outro cristão; pois aquele que mata
um cristão derrama o sangue do Cristo; se, no entanto, mata-se um homem
injustamente, o que nós não queremos, será necessirio pagar por isso uma
retratagio segundo a lei”*!. Essa cldusula se junta à trégua de Deus na
diocese de Narbona. A evocagio do sangue de Cristo traz uma imagem
forte, mas o dispositivo que segue permanece bastante pragmético: havera
mesmo assim assassinatos; nesse caso, dever-se-d entio pagar uma retrata-
ção, parente proxima da composição judicidria “bérbara”
Não sabemos nada da ação do préprio Guifredo contra o homi-
cidio. Sem dúvida ele est4, após 1054, ocupado demais em sua luta contra
os “romanos” que posam de reformadores e diante dos quais é acusado de
simonia. Mas vérias Vidas e Milagres de santos mortos ou vivos evocam,
na época mesma da trégua de Deus da Franga do Norte (1060-1120),
campanhas de pacificagio conduzidas por bispos e abades contra as ven-
detas que opõem frequentemente entre si (mas não exclusivamente) fa-

5! Idem, p. 507.

319
A Cavalaria

mílias de Cavaleiros em que a honra é provocada. Essas narrativas des-


crevem uma situação inicialmente dramática, para melhor valorizar o
milagre que restabelece a paz e a pregação que muda os corações. Reco-
lhem-se aí, todavia, indícios que permitem uma leitura crítica, em “segundo
grau”: os bispos e abades que fazem sermão à nobreza nessa ocasião não
encontram nela alguma predisposição à paz, tal como Tácito a discernia,
mil anos antes, entre os germanos, em princípio vingativos mas benevo-
lentes de fato?
Eis, como exemplo, as relíquias de Santo Ursmer de Lobbes, des-
filadas por Flandres no ano de 1060, para atender às terras da região com
a benevolente atenção do conde, então Balduino V, fundador de Lille.
Caminhando de um castelo a outro, por pequenas cidades e seus mercados
e praças onde são feitos todos os tipos de “prestação de contas”, elas chegam
um belo dia a Strazeele.

Havia lá Cavaleiros cujas inimizades eram tais que nenhum mortal poderia
acertar a paz entre eles. Durante os anos precedentes, as dissensões excitadas pelo
diabo haviam feito pais perderem seus filhos, filhos seus pais, irmãos seus irmãos.
Quando o santo provocou um agrupamento, todos eles vieram também. Expu-
semos aqueles que as dissensões haviam poupado e nos pusemos a discutir sepa-
radªxnente com as Paftcs em Conflito. Seria necessario qU.C Cada um aprescntasse

a Deus e 20 santo sua querela, a fim de que o número de mortos cessasse de cres-
cer; alguns consentiram com isso, a contragosto, mas por medo de Deus e pelo
amor ao santosz.

Nenhum mortal havia normatizado a situagio, mas percebe-se


nessa pagina, escrita praticamente a0 mesmo tempo em que se deram os
acontecimentos, que os monges de Lobbes encontram as partes em pre-
senga prontas para discutir, e se asseguram da cooperagao de “neutros” que
haviam ficado até ali fora das querelas. Se as reliquias levam sem dificul-
dade a calma sobre esse mercado de Flandres, é porque o medo de Deus e
o amor para com o santo são bons pretextos oficiais para renunciar a uma
vinganga de honra, evitando parecer covarde ou fraco. Em 1083, o santo

5 Milagres de Santo Ursmer, p. 571. Ver meu estudo sobre Ldn mil e la paix de Dieu...,
Pp- 536-46.

320
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

vivo Arnaldo de Pamela opera da mesma maneira, mas sem relíquias. Esse
eremita, do qual vimos há pouco a conversão, se tornara bispo gregoriano
de Soissons, fora expulso por seus adversários, e retorna a sua Flandres
natal como emissário de Gregório VII junto ao conde Roberto, o Frísio,
encarregado de realizar pacificações com o apoio desse conde”?. Em todos
OS casos, a técnica empregada se inspira na interação feudal: os assassinos
que suplicam a negociação aos próximos das vítimas transferem a respon-
sabilidade desse pedido ao santo, como se pode fazê-lo a um senhor, a um
conde. Depois disso, os monges em seu nome se prosternam diante dos
próximos da vítima, para os quais se torna mais difícil recusar o pedido:
isso provocaria um crime contra a paz, uma ofensa ao santo e a Deus...
Muitos aquiescem em face dessa situação que os ajuda a salvar as aparências.
Se as reticências persistem, como é várias vezes o caso diante de Santo
Arnaldo, estas são atribuídas aos demônios. É uma loucura furiosa que
tomou conta dos extremistas da vingança, rebeldes à paz: eles têm o diabo
no corpo, Deus os abandonou para puni-los, e cabe a Santo Arnaldo, fi-
nalmente, curá-los exorcizando-os, em troca do consentimento à paz.
Para terminar, o próprio princípio da vingança, que a pregação do
Evangelho reprova, não é abolido em si. Os próximos do morto renunciam
aqui gratuitamente a ela, muito mais por piedade — pelo menos em apa-
rência — que pelo desejo de receber uma compensação como aquela
prevista no decreto de Narbona de 1054. Isso é mais aprazível e honrável
que qualquer transação financeira acordada. Mas no limite, uma vez que
há em Flandres turnês regulares de reliquias e de pregadores, pode-se
sempre praticar a vendeta em um ritmo de cruzeiro, esperando a próxima
ocasião para impor a paz, sob orc[cm de um santo. A vingança recua nas
Gálias devido aos gregorianos? É toda a ambiguidade das penitências
cristas na sociedade medieval que se encontra por detrás desta questão.
As pregações gregorianas não impedem o espírito de vingança de
reinar nas canções de gesta do século XII, como Garin, o Loreno, Raul de
Cambrai, das quais falaremos mais adiante, e a Canção de Rolando. Elas
estão na origem de esforços de paz que esses belos textos colocam em cena
ao mesmo tempo em que exaltam a ligação dos Cavaleiros dignos desse

53 Ver meu Chevaliers et miracles..., pp. 205-22.

321
A Cavalaria

os são OS sinais de que as


nome à vinganga? Eu não tenho certeza, tant
verdadeiro desenca-
sociedades de vinganga nio são atravessadas por um
o mortal’, ou
deamento de violéncia. Seria necessário saber o que o “6di
seja, a vinganga de sangue, socialmente necessaria, produziu nos assuntos
encampados pelos gregorianos.
Desde 1060, pouco depois da jornada de pacificação de Strazeele,
e isso. A
os Milagres de Santo Ursmer dão uma visão interessante sobr
presenca dos monges e de suas reliquias é solicitada em Blaringhem. Nes-
or
se castelo, algumas semanas antes, dois Cavaleiros vassalos de seu senh
“trocaram palavras muito duras porque eram jovens”. O senhor, em nome
de seu direito de justiga, forgou-os a se reconciliarem por meio de um
beijo de paz. Mas um dos dois permanece ulcerado, certamente pelo fato
de que “sua familia era inferior à do outro, mesmo se ele o superasse por
seu renome na Cavalaria”. Sua ferida narcisica é tão insuperdvel que um
dia, por meio de um ardil*, ele perfura o outro com sua langa e o mata.
De imediato se refugia na igreja, mas acontece um grande tumulto e,
apesar do direito de asilo, deseja-se mat4-lo. Liderando os vingadores está
o senhor do castelo a cuja justica ele acabara de ultrajar. Mas o Cavaleiro
acossado tem um outro senhor, e este último se interpde a tempo conse-
guindo que o entreguem em troca de garantias. Depois disso, temos uma
trégua feudal de dez dias, até a Ascensão, data na qual ele deve levar seu
Cavaleiro 2 igreja de Blaringhem, com seu equipamento. Tempo suficien-
te para chamar Santo Ursmer em socorro e — provavelmente — negociar
secretamente. Os monges chegam a Blaringhem no auge da tensio — ou,
deve-se dizer, de uma tensão mantida artificialmente ainda mais porque
se sabe contar com a certeza da chegada dos monges para diminui-la sem
desonra? “Todo o recinto da igreja rugia devido aos escudos, as armas
refletiam o sol da manh e os cavalos tremiam, relinchando de excitagio.
Os paladinos de Hugo cercavam a igreja, a espada fora da bainha, todos
sedentos do sangue desse pecador” Mesmo assim eles deixam os monges
abrirem uma passagem, dizerem a missa, pedirem a paz. Eles ficam nessa
posigao até o momento em que, furtivamente, sem o conbecimento de
Hugo
e dos seus — segundo o hagiégrafo —, os monges passam a carre
gar as

54 O autor dos Milagres,


j :
nesse ponto, parece aceitar a versão da acusação. Não é raro que golpes
acidentais sejam, por malevolência, apresentados como resultado de engod
o ou traição.

322
Em direção a uma Cavala
ria mais cristã?

relíquias no meio deles. Aqueles que até então cercavam


a igreja ficam
como que irradiados de cristianismo. “As lágrimas correm
dos olhos de
todos, nos corações a piedade enfrenta a cólera. E, por fim, ela
triunfa
também em Hugo.” Ele pode, então, tratar Cavaleirescamente seu Cava-
leiro: ele lhe concede a graca da vida, e dos membros, apena
s o afasta, fa-
zendo-lhe dom do que mereceu por seu servigo de vassalo®. Nessa
reso-
lução de conflito, o controle dos dois senhores tamb
ém operou, cada um
desempenhando o seu papel antes e depois da grand
e cena do recinto
cruento. Assim, o agraciado pelo milagre de Santo
Ursmer obtém quasea
impunidade. É muito provavel que ele tenha ido reforgar
o grupo de Ca-
valeiros errantes, daqueles que asseguram seu renome
em justas, que
agradam às jovens mogas nobres* e vivem da generosidade dos princ
ipes.
Pode-se inclusive imaginar que o fugitivo de Blaringhem se ilustra em
Hastings, 20 lado do duque Guilherme ou do conde Eustáquio.
A Vida de Santo Arnaldo também evoca, como causa possível
de uma vingança, a morte de um parente em um combate no qual ele era
claramente agressivo: ele atacava uma fortificação florestal no Saissonais
quando um defensor, com um golpe de lança, abriu-lhe o ventres”. É pre-
ciso uma verdadeira cooperação de demônios e do homem de Deus para
parar o braço de seu primo Cavaleiro®. São, sobretudo, os cartulários
dos paises do Loire, pelo menos um de Vendéme e varios de Noyers, que
evocam a vinganga de Cavaleiros entre 1040 e 1120 (momento em que o
conteúdo dessa documentagio é mais amplo). Quando um deles é morto
malfadadamente em um episédio de guerra feudal, o autor do golpe ¢
descoberto e perseguido, a despeito de que cumpria uma obrigagio com-
batendo por dever em relação a seu senhor legitimo. Um jovem da região
de Touraine era provido de parentes nobres que não podiam deixar sua
morte sem reação: sua honra — portanto, seu estatuto — dependia disso.
O conde de Anjou Godofredo Martel se mostra moderado nas batalhas
até que um primo seu é morto “em combate” por Hamelino de Langeais.
É preciso, portanto, que os “assassinos” ou seus próximos implorem a paz,

5 Milagres de Santo Ursmer, C. 6 (pp. 571-2).


% Vida de Santo Arnaldo, 1, 29.
3 Idem,1,23. :
58 Sim, de demônios: ver meu Chevaliers et miracles..., pp. 201-3.

323
A Cavalaria

com a ajuda de mediadores — senhores e monges. Isso não parece se fazer


sempre em pleno mercado, como acontece em Flandres, mas o processo
¢ o mesmo. O abade de Noyers em Touraine colhe claramente o fruto de
suas intervenções, mesmo que ele não tenha sido o único artifice da paz,
como observa Stephen White”. As familias entram em acordo, para que
a familia do “assassino” faga uma esmola. Esta obriga os monges a rezarem
pela alma do morto cuja familia ¢ dispensada de fazer qualquer tipo de
doação, recebendo, dessa forma, uma compensagio indireta e escapando
de parecer “vender o sangue” de um dos seus. Em um outro caso, o dom
de uma terra financia a manutenção de mais um monge no mosteiro. Este
é como que um substituto do morto, vivendo um combate mais espiritual.
Esse monge reza pelo “assassino” do morto, bem como por ele.
"O namero devendetas que precisam ser detidas resulta, portanto,
menos da violéncia descontrolada do que de uma sensibilidade de certa
forma exacerbada diante da guerra homicida, na sociedade feudal: uma
sensibilidade que o Estado moderno nos fez perder. Seria possivel que as
cruzadas fossem um preltidio dessa evolugio? | *
Paz entre cristaos, unido sagrada contra o Inficl, esta é a palavra de
ordem da cruzada, mas nio é a exata realidade dos anos 1095-1099. Os
cruzados tém entre si discordias e divergéncias de atitude, que evocaremos.
E, durante sua auséncia, a Igreja ndo está em condições de garantir uma
paz completa na Europa ocidental. Ela toma sob sua salvaguarda os bens
e as familias dos cruzados, mas isso não ¢ inteiramente eficaz. Nés vimos
Helio do Maine tentar obter de Guilherme, o Ruivo, garantia para suas
terras a fim de partir em cruzada, e o vimos, diante da recusa, permanecer
para defender aquilo que pensava ser seu direito“.@‘romu.lgada no conci-
lio de Clermont (1095), a trégua de Deus não interrompe as guerras de
reis e condes; ela as coloca formalmente à parte e, dessa forma, o mesmo
Guilherme, o Ruivo, pode continuar a guerrear nos confins do Maine e
do Vexin, contra Hélio e contra Luís — é verdade que sem cometer ho-
micidios demais ¢ mostrando respeito pelos Cavaleiros, Mesmo assim,
enquanto o conde Godofredo de Namur est4 na primeira cruzada, sua
esposa Sibila, herdeira do condado de Porcien, escolhe um raptor e novo

% Stephen White, “Feuding and peace-making in the Touraine...”


& Ver, neste volume, pp. 262-3.

324
Em direção a uma Cav
alaria mais cristã?

.maudo: Enguerrano de Boves.


No retorno da cruzada, a gue
irrompe, cada um rra feudal
pilhando a terra e os homens do out
Nogeg nt não per
ro® , Guiberto de
perdde ocasiaia o de estigm
i atizar
i essa mulher lasciviva, a, ins
institigadora
dª/ ngerras CIVis no tempo da grande guerra de Deus, que faz revive
r a
glória dos francos.
Uma vez terminada a cruzada, os antigos com
batentes de Jerusa-
lém não se constituem em uma confraria encarregada de
defender a Igreja
e os fracos; eles inclusive sequer fazem voto solene de respeitá-los, de não
atacá-los. Ao contrário, os cruzados voltam conforta
dos no orgulho de
Cavaleiros valorosos, e ciosos de seus direitos{ Em outros termos, a cruz
ada
não produz a instituição de uma Cavalaria cristá como o espírito modern
o
frequentemente sonha; não há templários jurados 4 ordem pública interna.
Os senhores feudais j4 imaginam contribuir com essa ordem pública:
herdeiros da ideologia carolíngia, eles se colocam como defensores e pro-
tetores do país... uns contra os outros! E mesmo quando a crítica da Igreja
os arranha e desmascara em parte os mecanismos da guerra feudal, ela não
se estende aos príncipes e reis que são os seus maiores praticantes, mas é a
eles que a Igreja se remete para endireitar os erros da Europa. Ela vai mais
sugerir do que impor a suas hostes uma disciplina miliciana comparável à
dos cistercienses no combate espiritual, ou à dos antigos romanos.| *
As únicas propostas um pouco vivas em favor de uma reforma
Cavaleiresca que conheço no tempo da cruzada são feitas próximo ao
concílio de Beauvais (1115) que ousa privar Tomás de Marle de sua Ca-
valaria. Santo Arnaldo morre entre 1083 e 1085, mas sua Vida edificante
é escrita nos anos 1110, e apresentada em Soissons aos bispos da região.
Criado como Cavaleiro, Arnaldo havia conservado laços de afeição com
um de seus companh eiros, chamado Géry. Ele o pressiona, inicialmente
em vão, a renunciar a fazer ra pinas. Mas eis que Géry perde seus filhos
e
está ele próprio em agonia. Sua mulher Judite se vê
já viúva e espoliada de
lhe arranca a promessa de
tudo por seus sobrinhos. É então que Arnaldo
A
reformar seu s modos ¢ o admoesta sobre ‘ o procedimento a ser adotado.
nada
partir de entdo, para andar na via dajustiga, cle deverd honrar o clero,

—_— iografia, 111, 3 (p. 279); Guiberto declara que o primeiro


Nogens,
¢ Guiberto deiovem /mmbwgmjdadc
e belo, e que a i e a obesidade do segundo fazem com que Si-
i
367).
:Érld ºheíª;;:ntes s 0 que causa sempre guerras: 111, 5 (p. 297) e IIL, 11 (p.
la tenha

325
A Cavalaria

tomar dos pobres (deve-se entender aqui apenas os bens da Igreja?), dar os
dizimos (As igrejas), segundo os conselhos. Em seguida, ele lhe diz, “cultive
a terra e viva de suas colheitas e de rendas justas, e seja misericordioso em
relação a seus camponeses, conceda-lhes o desconto, do todo ou em parte,
daquilo que eles não podem pagar”, e, enfim, “seja leal e verdadeiro, do
fundo do coração, para com seu príncipe e seus pares”“. A partir de então,
Géry torna-se um justo, tem outros filhos e sua família prospera.
Esse sermão feito a Géry e, através dele, aos Cavaleiros da provin-
cia de Reims retoma elementos do modelo de Geraldo de Aurillac, ao
mesmo tempo em que comporta elementos novos, apropriados à “segun-
da idade feudal” que começa. Ele põe um pouco em surdina o tema da
defesa dos pobres e coloca um acento inédito sobre a propriedade feudal.
Os pobres ameaçados são a partir de então aqueles do próprio Cavaleiro,
devido a sua fiscalidade, muito mais do que os de seus adversários, devido
à vingança indireta. E pode-se dizer “Cultive a sua terra” a um Cavaleiro
sem fazê-lo se derrogar porque é a sua própria terra: isso não cria um tra-
balho alienado, isso não implica servir por meio do trabalho; é sempre por
meio das armas e pelo apoio moral e social nas assembleias que um vassa-
lo como Géry pode servir a seu príncipe. Ele cultiva sua terra como um
bispo constrói sua catedral, ou seja, ele dirige o trabalho dos outros. “Suas
colheitas” são as da reserva senhorial®, trabalhada pelos domésticos e as-
salariados; e as rendas vém de tenéncias cujos camponeses são considerados
“héspedes” de seu senhor, obrigados a entregar uma contribuição quando
ele estd em dificuldade, e felizes, portanto, que ele não guarde parasi todo
o produto da terra. Assim se desenvolvem ao longo do século XII os auxi-
lios ou talhas recebidas segundo as necessidades do senhor (sua partida
para a cruzada, o resgate consecutivo à sua captura, um castelo a ser cons-
truido, uma filha para casar, logo mais seu adubamento ou o de seu filho
mais velho), e ¢ bom, por consequéncia, levar uma vida de Cavaleiro, para
melhor taxar os camponeses.
Trata-se, em primeiro lugar, de rendas arbitririas (antes dos
cartuldrios de costumes que as abonam). Atengio para não colocar, en-

* Vida de Santo Arnaldo, 1, 32.


@ Fala-se ainda de “manso dominial”, maneira carolingia, em alguns cartuldrios dessa
região no século XII.

326
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

tretanto, uma conotação moderna negativa demais nessa palavra: a ideia


medieval aqui não é tanto que o senhor tem o direito de abusar, quanto
que ele é chamado a consentir abatimentos, indulgências, e aqui Santo
Arnaldo o exprime efetivamente. A palavra de ordem é que Géry se
mostre Cavaleiresco com seus súditos. De fato, a história do século XII
nessas regiões traz as marcas de um tipo de diálogo social (ou de uma
relação de forças equilibrada) entre os senhores e os camponeses, com
conflitos sobre taxas (ou retratações), depois compromisso, belas palavras
e ardis ousados. Nos momentos de enfrentamento, fala-se de servos re-
beldes e Cavaleiros tirânicos; e nos dias de reconciliação, há apenas
Cavaleiros generosos e cristãos...
A evolução geral nessas regiões, na segunda idade feudal (séculos
XII-XIII), não é nem a abolição da servidão (uma nova servidão aparece)
nem o abrandamento da cobrança senhorial sobre as massas camponesas.
As franquias favorecem, sobretudo, a elite urbana e alguns camponeses
ricos. Se, por outro lado, Géry e seus sucessores fazem menos guerras
feudais, como eles se comportarão na hoste pública do príncipe ao qual
devem lealdade segundo a ordem do homem de Deus? Eles saberão se
singularizar tanto quanto o Geraldo de Aurillac de Santo Odon, e não
pilhar de forma alguma?
A lealdade para com os pares, prescrita por Santo Arnaldo, vem
no momento certo para sacramentar a consciência de classe dos Cavaleiros,
mesmo se ela já fosse recomendada no século IX no Manual de Duoda“.
De forma que, refletindo bem, um certo conformismo sociopolítico ema-
na dessa página sobre a reforma dos costumes Cavaleirescos. Reforçando
alealdade em relação ao príncipe, ela é bem característica da última etapa
da reforma gregoriana. No concílio de Reims, em 1119, o papa Calisto II,
ele mesmo originário das Gélias®, pode bem decretar de novo a trégua de
Deus que, inclusive, recomenda para toda a cristandade latina. Mas ela não
tem mais futuro. A partir de 1124, essa lei cristd, particular às Gálias,
não se prende mais ao coração dos papas, frequentemente italianos. À

% Ver, neste volume, p. 103.


% Eleédaregião de Vienne (próxima a Lyon), situada dentro do Império, mas francó-
fona e contida com a França capetíngia na expressão “as Gálias”, da qual os gregorianos
se servem mui[o ffequentemen[e.

327
A Cavalaria

trégua de Deus encontra-se rapidamente obsoleta, assim como a fórmula


das hostes de cristandade e das mobilizações de relíquias (que nós chama-
mos de “paz de Deus”). Uma e outra se apagam inclusive nas províncias
francesas, com algumas exceções que perduram até por volta de 1200
(trégua de Deus na Normandia — mesmo assim, discreta — ou paz de
Deus na Auvérnia e suas margens). É aos reis, aos príncipes, aos grandes
barões senhores de vários grandes castelos que a Igreja confia a guarda de
seus senhorios, ao mesmo tempo em que ela perde um pouco o hábito de
desacreditar os senhores e Cavaleiros por sua tirania. Salvo quando nasce
nas escolas, no final do século XII, uma nova corrente crítica”º — e, então,
percebe-se que nem todos os Cavaleiros, frequentando as cortes e os claus-
tros, desaprenderam a brutalidade.
(A cruzada poderia inclusive tê-los tornado mais duros, a menos
que se conduzissem mais em função das circunstâncias do que dos princi-
pios abstratos e radicais da Igreja — cujo alcance ela mesma sabe atenuar
quando necessário. Talvez eles não sejam nunca nem fundamentalmente
mansos nem fundamentalmente duros, mas sempre pragmáticos. | *

A cruzada e o endurecimento dos Cavaleiros

Escrevendo sua Vida de Luís VI nos anos 1140, o abade Suger de


Saint-Denis não evoca os antigos cruzados apenas como Cavaleiros pie-
dosos de Cristo, mas também como homens que se cobriram de glória
secular. A tal ponto que forçaram a estima do próprio adversário. “Até
entre os sarracenos celebrava-se uma nobre proeza” de Boemundo de
Antioquia, que, no entanto, “jamais teria sido possível sem a intervenção
da mão divina”º. O conde Roberto I de Flandres, dito “de Jerusalém”, era
“um homem realmente notável, famoso entre cristãos e sarracenos desde
os primeiros tempos das expedições a Jerusalém por sua habilidade com
as armas”®. Talvez uns o amassem mais, enquanto outros, antes de tudo,
o temessem, mas nós iremos ver logo os sentimentos nuançados que os

6 Ver, neste volume, pp. 559-63 e 574-5.


& Vida de Luís VI,9, p. 44.
º Tdem, 19, p. 142.

328
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

Cavaleiros da França inspiram em um emir sírio do século XII. Os fran-


ceses fazem o mesmo aos turcos e, em várias canções de gesta, ao conjunto
dos sarracenos. Não se trata de reduzir aqui as cruzadas a um jogo ami-
gável Oriente-Ocidente: a primeira cometeu dois verdadeiros massacres.
Mas elas não são o conflito de civilizações que nossa época por vezes viu
nelas. E um livro sobre a Cavalaria que quer caçar por todos os lados as
conivências entre adversários nobres pode considerá-las também por
esse ângulo.
A Igreja quer em princípio que a cruzada marque a conversão do
Cavaleiro. Ele se despoja de seus bens para “seguir a Cristo”; ele renuncia
expressamente ao apetite pelo lucro que normalmente o caracteriza e,
implicitamente, ao cuidado que tem em proteger sua vida: ele está prestes
a morrer. Fazer o voto de peregrinação armada a Jerusalém, endossar para
tanto o emblema da cruz e renunciar aos cabelos longos é tornar-se um
guerreiro puro e duro, oposto aos hábitos Cavaleirescos então em plena
ascensão nas “guerras” entre gente de boa companhia. | *
Uma das crônicas de cruzada mais sugestivas é a de um autor
anônimo que parece representar a “classe média de Cavaleiros cruzados™®.
Ele se destaca ao mesmo tempo dos pobres e dos clérigos, e sente-se fran-
co mesmo vindo da Itália do Sul atrás do normando Boemundo de Ta-
ranto, que ele valoriza como um bom vassalo deveria fazer em relação a
seu senhor.
Ele sabe que Urbano II pregou nas Gálias, em novembro de 1095,
a fim de que se tome “humildemente a via do Senhor”, que é o Cristo, para
a salvação da alma. O papa acrescentava: “Irmãos, vos é necessário sofrer
muito em nome de Cristo: miséria, pobreza, nudez...”, todas as formas de
sofrimento e perdas que Cristo anunciara a seus discípulos e das quais ele
0s recompensaria. O tom inicial não é, portanto, tão marcial; um Fverardo
de Breteuil nio teria descrito de outra forma sua vocagio a ser carvoeiro
de Deus. Dir-se-ia com dificuldade que vão para a guerra esses francos
que, “escutando essas palavras, se puseram muito rapídamente a cozer
cruzes sobre o ombro direito, e disseram que queriam seguir juntos os
traços do Cristo que os havia resgatado do poder do Tártaro””º, Não dei-

% Louis Bréhier, p. IV de sua edição de História anônima,...


™ História anônima..., 1, p.5-

329
A Cavalaria

xam eles seus castelos, seus negócios, frequentemente suas mulheres, tudo
para seguir o Cristo à maneira do jovem homem rico do Evangelho?
Sem dúvida alguns reencontrarão seus bens no retorno — às vezes,
não sem dificuldade. Não se trata de uma partida forçosamente definitiva.
Alguns cruzados penhoram seus bens junto a mosteiros, em troca de somas
em dinheiro que lhes servem para se equiparem, com a possibilidade de
“resgatar” o penhor se voltarem um dia de Jerusalém. Mas o risco de deixar
avidalá não é mínimo: a Igreja não promete que retornarão todos indenes,
ela não benze suas armas segundo o ritual de Cambrai. Nenhuma fonte
pelo menos faz menção a essa ação que visaria à vitória e à salvaguarda. O
ambiente é mais sacrifical. O ganho esperado ¢ de ordem espiritual, mais
do que temporal. Tudo isso distingue claramente a cruzada, como guerra
santa, das guerras mais ou menos sacralizadas do ano 10007.
Ao apresentar o enlevo dos cristãos da França, Cavaleiros, sobre-
tudo como um traço de devoção, como uma ação espiritual, a crônica do
Anônimo normando começa na mesma linha do papa Urbano II. Seu
decreto em Clermont estipula: “Aquele que parte a Jerusalém por devoção
apenas — e não buscando honra ou dinheiro — para libertar a Igreja de
Deus, esta expedição será contada como peniténcia única”?. Uma peni-
tência, para dizer a verdade, nem sempre é sinal de conversão durável e de
verdadeira reforma dos costumes; ela se revela, às vezes, o melhor meio de
se dispensar desse alvo! De qualquer forma, trata-se realmente de uma ação
religiosa, e o decreto de Clermont exclui da cruzada, em princípio, qualquer
outro tipo de benefício. Mas para libertarem-se de seus erros, os Cavaleiros
não necessitam, em 1095, se despojar de suas armas, como precisou fazer
Luís, o Pio, em 833, ou como fazem aqueles que se tornam monges ou
eremitas. Se deixam por um momento atrás de si seus feudos da França,
em nenhum instante eles renunciam a seu estaturo de Cavaleiros. Dai,em
caso de vitória, rapidamente se apresenta a eventualidade de que, colhendo
honra ¢ dinheiro, se tornem um pouco menos puros.
É verdade que esses Cavaleiros se arriscam diante da morte muito
mais do que nas guerras interprovinciais da Franga. Nem o decreto de

7! Eu sugiro essa distingio, a0 mesmo tempo permanecendo na linha de Carl Erdmann,


Die Entstehung..., ¢ de Jean Flori, La guerre sainte...
72 Citado por Jean Richard, LEsprit de la croisade..., p. 64, nota s.

330
Em direção a uma Cavalaria
mais cristã?

Clermont nem o prólogo da História anônima fazem uma alusão direta a


isso; mas o principio de uma luta até a morte está implícito. Se o Cavalei-
ro oferece ao Infiel um combate sem misericérdia
e sem medo, ¢ preciso
esperar receber o mesmo. O Anônimo normando vai um pouco
mais além:
ele representa o califa de Bagdá como o papa (o
apostólico) dos muçulma-
nos, e crê que ele Ihes deu expressamente permissio para matar os cristã
os”?.
O que é isso se não uma projeção? O Anônimo atribui ao campo adver
sá-
rio uma disposição que se encontra de fato do lado cristão. É isso
que se
compreendeu: o Papaautorizou os cristãos
a matar, e prometeu a salvação
eterna aqueles que forem mortos. E quando,
efetivamente, há mortos
diante de Niceia, então a crônica toma acentos vingadores
: “Os mártires,
subindo triunfalmente ao Céu, dizem de uma só
voz: “Vinga, Senhor,
nosso sangue derramado por ti!"””,
Mas até aqui, nem essa crônica nem outr
as continham um apelo
vibrante ao derramamento de sangue. O papa Urbano
II conclama a defesa
dos cristãos do Oriente contra a opressão dos
sarracenos, a socorrer os
fracos Cavaleirescamente.

Ele expôs, com lágrimas nos olhos, toda a sua dor sobre o estado ao qual
a cris-
tandade se encontrava reduzida no Oriente; fez conhecer as vexagd
es cruéis que
os sarracenos faziam sofrer os cristãos; orador patético, verteu lágrimas
abundan-
tes diante de todo mundo a respeito da profanação de Jerusalém e dos
lugares
sagrados onde o filho de Deus habitara corporalmente”.

A cruzada ¢, portanto, uma defesa das igrejas e dos pobres contra


atirania sarracena descrita nos mesmos termos que a dos maus Cavaleiros,
senhores tiranos como Roberto de Belléme e Tomés de Marle. Como no
caso deles, as malfeitorias do adversario, sem serem totalmente imagindrias,
são exageradas por um tipo de cdlculo’™. Lembremo-nos de que, em geral,
o pathos inicial do instigador de guerra não implica necessariamente que
a “defesa” da Igreja e dos fracos serd conduzida em seguida de maneira
implacével e desinteressada pelos “bons” Cavaleiros. Desconfiemos, por-

B Histdria andnima, 21, p. 110.


7 Idem, 8, p. 43.
75 Orderico Vidal, IX, 2 (tomo 5, p. 16). | :
76 Sobre a política de Urbano II, ver Claude Cahen, Orient et Occident..., Pp. 53-9.

331
A Cavalaria

tanto, na menção A cruzada assim como em outros lugares, daquilo que a


palavra “vinganga” evoca a priori de bérbaro e assassino para nés; na so-
ciedade medieval ela ¢ muito mais uma justificativa que serve para reivin-
dicar também a Terra Santa como uma heranga prépria aos cristãos, da
qual foram espoliados”.
Todos esses discursos utilizam temas familiares aos Cavaleiros
franceses do século XT e não são forcosamente compreendidos como cha-
mados a0 exterminio puro e simples do adversario, uma vez que, no mundo
da vinganga, primeiramente se inflama com grandes palavras, comega-se
com atos de inimizade, mas logo se passa à arte da negociagio e da transa-
ção. Vimos apenas isso desde a época de Técito! Fala-se de vinganga a
propésito de guerras de todos os tipos, conduzidas com dureza desigual,
mas sempre marcadas a0 mesmo tempo pelas inimizades e pelos tratados.
Quando Urbano II sugere aos cristios contra-atacar 0s avangos sarracenos,
ele se apoia no registro dos Anais reais, justificando as guerras de Carlos
Magno no século VIII, e vimos nelas, 20 mesmo tempo, dureza e acordos
com os inimigos.
A novidade ¢ que dessa vez o instigador é um papa da reforma,
Urbano IT (1089-1099) — quase tão puro e duro ainda quanto seu prede-
cessor Gregdrio VII — e que o alvo da guerra é constituido pelos lugares
santos por exceléncia do cristianismo. Por outro lado, a pregagio de Urbano
I e de seus apoiadores, entre os quais eremitas veementes e nem sempre
controldveis, acontece em meio a lutas gregorianas e comunais muito vivas.
Enfim, a recompensa prometida ¢ de ordem espiritual, e isso produz uma
guerra santa propriamente falando, parente préximo inegavel do jibad dos
préprios mugulmanos.
Essa guerra santa não é inteiramente sacralizada. O papa não
toma o seu comando direto, ainda que Gregério VII o tivesse desejado
por volta de 1075. Urbano IT designa um legado para a hoste de Jerusalém:

7 Naverdade, consideram-sc espoliados por um povo ou uma série de povos, muiro mais
do que por uma outra religião. O papa de 1095 nio declara guerra ao isla que ele co-
nhece pouco ¢ do qual os cruzados ignoram tudo. Ele se coloca como defensor dos
direitos dos cristãos, para melhor suplantar, se ainda é possivel, o patriarca de Cons-
tantinopla que acabara (1054) de se separar dele por um cisma. Por isso ele oferece
auxilio ocidental a0 imperador Alex Comeno.

332
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

será o bispo de Puy-en-Velay, Ademar de Monteil. Este participa do con-


selho de príncipes ou “barões”, tem voz em seu capítulo, mas não pre-
domina aí; ele é pastor da cruzada, ao mesmo tempo garantindo com o
conde de Toulouse Raimundo de Saint-Gilles (que ele auxilia um mo-
mento) a codiregio do contingente da Occitinia. Assim como a expedi-
ção inglesa de 1066, essa de 1096-1099 em direção à Siria e 2 Palestina
nada mais ¢, no fundo, que uma hoste muito ampliada, que se agrupa
como na vida social e na guerra feudal ordindria, ou seja, atrds dos prin-
cipes. Os cruzados fizeram voto de peregrinagao, mas não de obediéncia
a um comando unificado, ¢ ndo faltaram, ao longo do caminho, querelas
entre eles. Nenhum contingente recebe soldo do papa ou de Cluny, nem
é submetido a uma disciplina especial — a ordem do Templo só aparecerd
30 anos mais tarde.
Por outro lado, a hoste da cruzada é ampliada socialmente de
maneira quase revoluciondria, como o romantismo moderno às vezes
acreditou?
Segundo Fuche de Chartres, o papa realmente ordenou aos bis-
pos: “persuadir todos, não importando a classe da sociedade a que perten-
cam, Cavaleiros ou infantes, ricos ou pobres, por vossas frequentes prega-
çÕES, a se entregarem a tempo a0 socorro dos cristãos e a repelirem esse
povo nefasto para longe de nossos territórios””, Mesmo assim, Roberto,
o Monge, faz o papa excluir as pessoas impréprias às armas, e pedir apenas
que os ricos ajudem os pobres e que tudo se faça sob o controle do clero.
Para esse autor, o alvo do papa é um público claramente constituido de
Cavaleiros, uma vez que faz dizer a eles: “Que vossos coragdes se movam
e que vossas almas se excitem à coragem pelos feitos de vossos ancestrais,
pelavi rtude e grandeza do rei Carlos Magno e de seu filho Luis!””. Trata-
se de retoma ra eterna injungao aos herdeiros nobres para que estejam, por
seus atos de Cavalaria, 3 altura de seus ancestrais. Na cruzada seguinte (a
mo tempo precisando a
segunda, em 1146), o papa Eugênio III, ao mes
também um discurso
doutrina da indulgência aos combatentes, inicia
ira-
bastante feudal: “Que todos aqueles que pertencem a Deus, e prime

de la croisade..., p. 63.
78 Citado por Jean Richard, L'Esprit
7 Roberto, o Monge, p. 11-

333
A Cavalaria

mente os maig poderosos e os mais nobres, se armem corajosamente!”. Ele


exorta, por sua vez, os filhos a mostrar a mesma bravura que os pais, a re-
bater o orgulho inimigo (portanto, a estender o seu) e a exaltar o nome
cristão: “Essa serd a melhor prova de vossa nobreza e de vossa bravura”*,
Tudo se passa como se vissemos neles o público da Canção de Rolando,
cujo manuscrito mais antigo data dos anos 1130, e cuja ética deve muito à
cruzada. Mas, em 1095, a pregação da cruzada toma também acentos
pauperistas; ela mobiliza muita gente a pé, mais do que na média das
proprias hostes principescas. Emocionada pelas lagrimas de Urbano II, ela
é uma hoste de cristandade que pode se tornar tão cruel quanto aquela que
em 1038 perpetrou o massacre de Beneciacum. Pedro, o Eremita, reúne as
gentes em tropas contra os judeus, esses inimigos de Deus presentes no
coragio das cidades da Franca (em Rouen, notadamente), e sobre os quais
se pode e se deve vingar sem demora a Paixão de Cristo, ou a0 menos
“cobrar” o necessario para se equiparem para a cruzada. Disso resultam
pogroms ou extorsoes.
A primeira cruzada ndo é vista nem vivida por todos da mesma
forma. As vezes ela é justificada de maneira muito feudal, às vezes com
palavras de verdadeiro fanatismo. Os préprios principes, ao que parece,
tém pensamentos diversos: Godofredo de Bouillon, Raimundo de Saint-
Gilles são mais religiosos que Boemundo de Taranto e seu sobrinho Tan-
credo, ou mesmo que Balduino de Boulogne (o préprio irmão de Godo-
fredo) e seu primo Balduino do Burgo. No conjunto, os velhos manuais
de histéria não erraram sem dúvida em opor a “cruzada dos pobres” à dos
bardes, mas nenhuma crénica o faz tão claramente e em termos exatos. Os
“pobres” são, muito mais, pequenos Cavaleiros, bandos de jovens, e os
“bardes” são principes com seus Cavaleiros e seus infantes organizados
como de hábito. A primeira cruzada, em 1096, mata judeus e se lança ra-
pidamente em direção ao Oriente, pilhando as regiões que atravessa, antes
de se fazer destrogar no primeiro contato com os turcos em Civetote!!.
Depois disso, seus restos (entre os quais Pedro, o Eremita) juntam-se no-
vamente hoste dos barões, que é dirigida com maestria e muito politica-
mente, até a Antioquia (1098), pelo normando Boemundo de Taranto:

%º Citado por Jean Richard, LEsprit de la croisade..., p. 67.


8 Helendpolis, a Oeste de Niceia. (N. da R.)

334
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

ele sabe tratar com os bizantinos, aproveitar-se das divisões entre os mu-
gulmanos, encontrar cumplicidades entre os cristãos orientais”.
Mesmo após o fracasso de Civetote, o elemento infante, e não
Cavaleiresco, é o tempo todo majoritário em número: Claude Gaier calcula
4 mil Cavaleiros e 20 mil infantes, ¢, no final, diante de Jerusalém, após as
baixas, as deserções, mas também os reforços, de 1.200 a 1.300 Cavaleiros
e 10 mil infantes®. Ainda há entre os Cavaleiros, segundo Fuche de Char-
tres, em momentos de exce¢do, homens que não tém o estatuto Cavalei-
resco. Temos assim uma infantaria importante, que possui o maior número
de mortos, tanto em batalha (por não poderem fugir rapidamente) quanto
devido a fomes e doengas (pela falta de recursos e de auxilio dos ricos),
cuja contribuição militar é, entretanto, essencial.
Folheemos a crénica do Anénimo normando. A hoste atravessa
a Asia Menor recentemente conquistada pelos turcos; ela deve se separar,
e Boemundo, que conhece o terreno e a tética turca, comanda uma van-
guarda composta de normandos da França e da Itália. Em Dorileia, em 1°
a,
dejulho de 1097, ele não se deixa cair na armadilha da cavalaria adversári
atrair o
mais leve, cuja tética vinda do mundo das estepes consiste em
com
inimigo em sua perseguição e prendé-lo em emboscada. Ele sustenta
lanças pesa-
os seus um choque frontal, tecnicamente vantajoso para suas
a chegada de
das, e, sem se aventurar temerariamente ao ataque, aguarda
os outros, ou seja, o
reforços. “O sábio Boemundo não tardou em chamar
], Hugo le Maine
conde de Saint-Gilles, o duque Godofredo [de Bouillon
o bispo de Puy e todos
[conde de Vermandois, irmão do rei excomungado],
sem em direção à bata-
os outros Cavaleiros de Cristo para que se apressas
luta, que eles venham valen-
lha. E diz que se hoje querem tomar parte da
de Rolando na
temente.” Fis um que não está intoxicado pelo exemplo
e o faz compartilhando
cangio de gesta 84, ele só pensa em obter a vitória,
o mérito com outros n obres. Ele lhes recomenda apenas “a unidade na fé
, a observação disciplinada de seu plano
de Cristo”, ou seja, inicialmente
a Deus, vocés se tor nario todos ricos™®.
de batalha, pois “hoje, se agrada

——
Flori, Pierre Ermite...
% Ver tudo isso em detalh e em Jean East...
taire... ” Ver também John France, Victory in the
83 Claude Gaier, “La valeur mili
$4 Ver, neste volume, p. 470.
% História anônima...,9, pp. 47 ¢ 4.

335
A Cavalaria

E, de fato, os cruzados vencedores fazem um grande butim. Não vem ao


espírito do cronista que, se considerasse literalmente o concílio de Cler-
monr, eles perderiam o beneficio da penitência. Mesmo Ademar de Puy,
que se encontra af, aparentemente não protesta. Para dizer a verdade, a
cruzada necessita muito de butins em viveres e montarias para continuar
seu caminho.
Como a cruzada vé seu adversdrio? Inicialmente, os cruzados estão
estupefatos com a “multidão de turcos, 4rabes, sarracenos” e outros, essa
“raga excomungada” que lhes parece entoar gritos diabélicos. As obras
recentes sublinham de forma justa® que, a0 longo das crénicas de cruzada,
os sarracenos sio frequentemente descritos como diabélicos (devido a seus
gritos) e insultados (enquanto pagãos), mas o fazem sem nuancas ou rela-
tivizagbes suficientes. Isso prova primeiramente que os cruzados nio co-
nheciam nada do islã. É surpreendente que uma expedicio longa e dificil,
custosa em homens e em penas, não passe sem exasperagio xenéfoba?
Odiar-se-ia não importa qual povo que se colocasse no meio do caminho.
O espantoso é muito mais que o ódio nio se imponha sem divisão, e que
a crénica do Andnimo comporte um belo elogio do valor guerreiro dos
turcos. Elogio, alis, muito adequado a colocar em destaque o valor dos
próprios cruzados que, com a ajuda de Deus (alids, mais discreta do que a
dos santos do ano 1000), por fim os superam.
“Quem ser4 bastante sábio, bastante conhecedor’, pergunta-se o
Anénimo normando, “para ousar descrever a sagacidade, os dons guerrei-
ros e a valentia dos turcos? Eles acreditavam apavorar a nagio dos francos
com a ameaga de suas flechas, como eles apavoraram os 4rabes, os sarrace-
nos, os arménios, os sirios, os gregos”. Todos povos efeminados, segundo
outros cronistas, todos comegando aaprender a histéria recente do efémero
“império” seljucida. Francos contra turcos: estamos diante de verdadeiros
homens! Além disso, a hoste de Jerusalém engaja muito cedo mercendrios
“turcopoles™, a exemplo dos bizantinos.
E se estivéssemos diante não de verdadeiros estrangeiros, mas de
parentes distantes, primos 4 moda da Bretanha? “Certamente, [os turcos]

86 Notadamente John Tolan, Les Sarrasins.


& Tovpkdmoudot ou “filhos de turcos’, designagio dada aos mercendrios recrutados lo-
calmente pelas expedições cruzadas. (N. da R.)

336
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

se dizem aparentados aos francos, e afirmam que ninguém tem vocação


para Cavaleiro, excetuando os francos e eles préprios.” O cronista os vê
aqui como renegados. Eles erraram ao se afastarem do Deus cristão em três
pessoas, pois “se tivessem acreditado sinceramente que Ele reina no céu e
sobre a terra, não se encontraria ninguém que os superasse em poder, em
coragem ¢ em talento guerreiro. É pela graça de Deus que eles foram ven-
cidos pelos nossos, nessa batalha que aconteceu em 1º de julho”*. São os
leitores da História de Aimon de Fleury, tributário de Fredegário, que
podem conhecer — entendam, imaginar — esse parentesco com os fran-
cos. Há na mitologia das origens troianas dos francos um momento de
separação entre dois irmãos, Francio e Torquato: o primeiro parte para as
regiões danubianas e, de lá, em direção à Germânia e à Gália; o segundo
permanece na Ásia Menor, e seu nome se empresta a uma etimologia falsa
do nome dos turcos. Sendo assim, mesmo na falta de um parentesco pró-
ximo real, pode haver uma certa comunidade de valores nobres e uma
analogia no comportamento social, à qual os cruzados são rapidamente
sensíveis*”. Em sua maneira de colocar em cena os sarracenos, a Canção de
Rolando e várias outras têm a mesma ótica: o valor reconhecido ao inimigo
aumenta o mérito dos Cavaleiros franceses.
A crônica mistura orgulho guerreiro e fé religiosa, e os cruzados
deverão ser, de fato, ao mesmo tempo corajosos e crentes (mas também
vaidosos, calculistas e cruéis). Como, no entanto, após a vitória, dar aos
francos aquilo que é dos francos e a Deus aquilo que é de Deus? A crônica
dá a Deus um destaque importante, afirmando que, por meios humanos,
os turcos deveriam vencer.
O mais difícil permanece por fazer diante de Antioquia através
de um longo cerco (inverno de 1097-1098) marcado pela fome e por con-
tra-ataques. Os cruzados querem aterrorizar a cidade exibindo as cabeças

* História anônima, 9.
%º A crônica, além disso, por um procedimento digno das epopeias, vai logo imaginar
um episédio junto ao inimigo: Corbaran de Alep, que vem em reforgo, certo de sua
Cavalaria invencivel. Ora, sua mãe tenta dissuadi-lo, não porque os francos sejam
capazes de resistir a cle, mas porque seu Deus combate a cada dia por eles (p. 121). Ela
profetiza, portanto, sua vitória: Boemundo ¢ Tancredo (seu sobrinho e brago direito)
são mortais como todo mundo, mas seu Deus os prefere aos demais, e lhes d4 a força
para combater melhor (p. 125).

337
A Cavalaria

dos prisioneiros decapitados, à mancira dos normandos de 885 diante dos


muros de Paris. Durante o cerco, entre eles, infantes morrem de fome
sem que os Cavaleiros lhes venham suficientemente em auxílio, apesar
das injunções do bispo de Puy®. Certos príncipes e senhores que têm os
meios para tal fogem, como o visconde de Melun, Guilherme, le Charpen-
tier, e com ele — sim! — Pedro, o Eremita. Mas Tancredo, sobrinho de
Boemundo, os detém e os traz de volta vergonhosamente. Eles comparecem
diante dos “senhores”, e não do clero. Ao amanhecer, Boemundo invectiva
contra o visconde desonrado. Ele não mede suas palavras: “Miserável!
Vergonha da França!”. Ele o cobre de reprimendas: “Por que fugistes tão
ignobilmente? Talvez quisestes trair esses Cavaleiros e a hoste de Cristo,
como traístes outros na Espanha?”?!. Guilherme, le Charpentier, de fato,
é sabido, já recuara na Espanha. Ora, passa-se rapidamente — certamente
rapidamente demais — da reprovação da covardia à da traição. Mas,
mesmo assim, Boemundo não tem desastre preciso a imputar-lhe. Os
franceses (gente da zona real) se interpõem e lhe oferecem graça de toda
pena, sob a condição de que, a partir de então, ele siga fielmente a hoste.
No entanto, Guilherme, le Charpentier, perdera demais o prestígio. De-
vorado pela vergonha, ele escapa de novo, mas não é recapturado, tampou-
co é incomodado na França, degradado da Cavalaria ou excomungado.
É apenas exposto, como outros franceses — entre os quais o conde de
Blois —, à crítica das famílias rivais.
Os cruzados entraram em 3 de junho de 1098 em Antioquia;
resta-lhes tomar a cidadela, enfrentar um exército de socorro turco con-
duzido por Kerbuga (“Corbaran”) a partir de 5 de junho, e resistir à fome!
Eles tentam mesmo discutir. Segundo Foucher de Chartres, vem-lhes
então uma ideia digna do mordomo de palácio Bertoaldo, ou de Guilher-
me, o Conquistador: eles enviam Pedro, o Eremita, para explicar aos
turcos sua reivindicação por terra cristá e lhes propor um combate judi-
ciário de Cavaleiros dos dois campos, que seriam de número igual (cinco,
dez, vinte ou cem). Os turcos, claro, recusam, uma vez que parecem ter a
vantagem. Segundo o Anônimo normando, de fato é estabelecido, nesse
momento, um tratado, mas ele o relata de outra forma. Alegando espolia-

” História anônima, 30, p. 167.


? Idem, 15, p. 79.

338
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

ção de terra cristã, Pedro, o Eremita, teria pcdido aos turcos que a evacu-
assem, a menos que tivessem o desejo de se converter ao cristianismo. O
turco Corbaran responde, em sentido inverso, que se os cristãos renegarem
seu Deus, eles poderiam ter a terra, as cidades e os castelos como uma
espécie de feudo, “e ninguém dos vossos permanecerá infante, mas todos
serão Cavaleiros como nós o somos, e teremos sempre uma grande ami-
zade™. Senão, será a morte ou a escravidão.
Mas uma hoste pós-carolíngia seguindo o itinerário que fora an-
teriormente o de Carlos Magno não saberia trocar de religião tão facil-
mente, como, por exemplo, os normandos em 911! Os Cavaleiros, de resto,
desejariam a promoção dos infantes?
Na verdade, eram palavras destinadas apenas a testar o adversário.
Pouco depois, a determinação dos cruzados é reforçada pela “descoberta”
da Santa Lança. O clima volta, então, à guerra santa, e a própria dificuldade
do momento galvaniza os cristãos. Eles se deslocam em retirada a 28 de
junho de 1098. Nesse dia, o turco comete o erro de enfrentar a cavalaria
franca, forte em seu golpe de lança, de maneira frontal, deixando-a mano-
brar. Enquanto os Cavaleiros ganham esse combate sem muitos mortos,
os infantes que cobrem suas retaguardas sofrem perdas pesadas. Fis uma
jornada socialmente mais tranquilizadora que a perspectiva há pouco
ofertada de conversão ao isli! Além disso, os cruzados tiram proveito de
algumas defecções no campo adversário. É preciso dizer que o islá médio-
oriental não lhes opõe todas as suas forças. Ele está dividido entre dois
califas, sendo o do Egito, fatímida, hostil ao de Bagdá, que apoia os turcos.
O exército fatímida, ao invés de vir reforçar estes últimos, toma-lhes Jeru-
eu
salém em 26 de agosto de 1098. Pode-se inclusive perguntar se não ocorr
93
um acordo secreto com Boemundo!

As batalhas diante de Antioquia tomam um sentido ardente,


muito religioso, com o episédio da Santa Langa ¢ a liturgia de guerra
santa que as cercam ( jejuns e procissdes, reforma moral da hoste™). A
partir de fevereiro e margo de 1098, 0 Andnimo passa do tema do martirio

% Idem, 28, p. 150. i


musulmanes...
9 Carole Hillenbrandr, Les croisades. Perspectives
punições de Deus a Seu
% Ditada pela ideia veterotestamentária de tribulações que são
povo eleito, avisos...

339
A Cavalaria

de cristãos ao da danação dos turcos mortos, e menciona a exibição de suas


cabeças cortadas aos sitiados — um pouco depois elas são catapultadas
para dentro da cidade para acabar de minar sua moral. A guerra endurece.
Todavia, há poucos momentos em que um homem como Tancredo, ou
seu grande rival Balduíno de Boulogne, irmão de Godofredo de Bouillon,
esquecem o lucro. Entre si, é frequentemente sem abnegação que os cru-
zados disputam o papel de lançar assalto a um castelo, a uma cidade, pois
quem o conquista plantando seu estandarte pode pretender o senhorio,
ou cativos por meio dos quais obter resgate... Mas a valentia de Golfiero
de Lastours, Cavaleiro da região de Limoges de família de condição ele-
vada, parece bem notada por si mesma”.
É na última parte da expedição, de Antioquia a Jerusalém, que os
cruzados perpetram massacres, um em Marra, outro em Jerusalém. Ei-los
de fato fora da órbita bizantina, em terra sarracena, tentando abrir de
forma duradoura a rota santa da peregrinação. Diversas vezes eles exigem
a conversão ou a morte, como se d4 no final da Canção de Rolando, exas-
perando-se com a resistência que lhes fazem em Marra, ¢, 20 tomá-la, em
11 de dezembro de 1098, matam muita gente. Depois disso, as outras ci-
dades aterrorizadas capitulam e prometem lealdade e tributo. Mas a to-
mada de Jerusalém, em 15 de julho de 1099, paga-se com a “maior carni-
ficina da gente pagá que já se viu™, Dir-se-ia bem que o fanatismo venceu
o comportamento e o cálculo Cavaleirescos, nessa fase final em que a
presença de padres é mais insistente, em que suas rezas exaltam o povo
enquanto o legado Ademar, morto no verão de 1098, não está mais lá para
temperar seu zelo, e em que faltam à expedição seus chefes mais pragmá-
ticos, ocupados em estabelecer seus senhorios na Síria. As crônicas mugul-
manas um pouco ulteriores, notadamente a de Ibn al-Athir, falam da
crueldade dos cruzados e trazem poemas conclamandoa vingar a desonra”.
Mesmo os cronistas cristãos não escondem esses homicídios, mas apenas
Alberto de Aix os reprova expressamente — como já fizera com os pogroms
de judeus, à partida dos “pobres” em 1096.

* História anônima, 33, p. 175.


% Idem, 39, p.207.
* Ibnal-Athir citado em Crônicas drabes..., pp. 35-7.

340
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

Os crimes de Marra e de Jerusalém deveriam ter ímprcssionadº


mais os historiadores franceses da época colonial, e tê-los dissuadido de
reclamar para os cruzados a condição de precursores da “obra civilizadora”
da França moderna, ou seja, de seu imperialismo. Sob a condição de nada
mais reclamar para eles de qualquer maneira, de renunciar à celebração
indecente de Pedro, o Eremita, e de Godofredo de Bouillon, é, no entanto,
permitido (e até mesmo um dever) procurar caracterizar a relação entre
cruzados e muçulmanos o mais exatamente possível, segundo as situações.
As duas cidades resistiram aos cruzados, obrigando-os a um assalto difícil,
do tipo que uma guerra feudal jamais comportaria. Nos dois casos, em
Marra assim como em Jerusalém, a intenção inicial não fora matar todo
mundo. Em Marra, Boemundo forneceu primeiramente um refúgio e
prometeu vida salva aos ricos, aos notáveis da cidade, contando tirar deles
resgates. Entretanto, ele não manteve sua palavra inteiramente: “Capturou
aqueles aos quais havia dado ordem de entrar em um palácio, tomou-lhes
tudo o que possuíam, ouro, prata e outros paramentos, fez matar uns e
conduzir outros a Antioquia para serem vendidos [resgatados?] ", A des-
crição do saque da cidade, pelo An6nimo, coloca ainda acento sobre o
desejo de butim, e mesmo de alimento pelos vencedores famintos. Em
Jerusalém, cidade mais importante, ¢, sobretudo, cidade santa, objetivo
último da peregrinagio, o massacre de judeus e de mugulmanos é grande,
todas as crénicas evocam rios de sangue”. Não ¢, entretanto, absolutamen-
te geral. A resisténcia mugulmana foi muito viva no “templo de Salomão”
(mesquita al-Aksa), ¢, no fim, “os nossos tomaram um grande número de
homens e de mulheres, e mataram ou deixaram vivo quem bem lhes con-
vinha”'%, Como em Marra, sente-se uma confusio em relagio aqueles,
refugiados no telhado, aos quais Tancredo havia garantido a vida, anteci-
pando resgate. Certos historiadores recentes invocam a dificuldade mate-
rial para manter uma grande quantidade de prisioneiros, ou o risco de
aceitar rendições enquanto um exéreito mugulmano de socorro se aproxi-
ma (e serd batido em Ascalon em 12 de agosto de 1099, segundo os docu-
mentos, sobretudo pela “forga divina”). Tudo isso não diminui em nada a

% História andnima, 38, p. 205.


% Idem, 38, p. 203.
1% Tdem, 38, p. 205.

341
A Cavalaria

crueldade dos cruzados, mantendo as questões que nos coloca esse cristia-
seme-
nismo do ano 1100, que fala em seguir a Cristo, que não ir[xpedc
no
lhante massacre, e que não impõe penitência a seus autores. E preciso,
entanto, reconhecer que seu projeto jamais fora o de exterminar o isla'",
Os cruzados cometeram, portanto, crimes de guerra. De imedia-
to, entretanto, não h4 reagio uninime dos mugulmanos; inclusive, quan-
do, algum tempo depois, capturam Boemundo ou outros principes (tal
como Balduino do Burgo). Eles os guardam como reféns e jogam o jogo
do resgate. Seus emires dão prova do mesmo pragmatismo que esses prin-
cipes, e logo vem o momento de concluir com eles tratados. De alguma
maneira, a implantagio de certos senhores “francos” no Oriente Meédio se
parece com a dos normandos na Franga do ano 900. A diferenga é a difi-
culdade que têm em se converterem oficialmente; podemos apenas entre-
ver, um pouco, a existéncia de alguns renegados.

Um elogio dos templarios

Desde 1118 ou 1119 alguns “pobres Cavaleiros de Cristo”, vindos


de Franga, escoltam os peregrinos s proximidades de Jerusalém. Eles têm
seu quartel-general no antigo templo de Salomão. Inicialmente servidores
dos conegos estabelecidos lá, esses guerreiros aspiram logo a uma vida mais
elevada, a um estatuto religioso. Seu mestre Hugo de Payns, sem deixar de
exorté-los a um pouco de humildade, obtém para eles uma regra proxima
daquela de São Bento, exceto pelo fato de que o combate efetivo acon-
tece!'” Não há aí, mesmo assim, uma confusio entre as duas milicias? Não
se transgride um interdito fundamental, mesmo que desde o ano 1000 os
monges, na urgéncia, tenham-se armado contra os sarracenos?
— Os templdrios na Terra Santa são por sua vez Cavaleiros-monges,
com escudeiros de extração mais humilde que desempenham um pouco o
papel dos conversos cistercienses. Eles suscitam reservas e criticas. São

1º! Quando Suger (Vida de Luís V1,28, p. 223) atribui a certos barões franceses, em 1124,
o desejo de matar alemies “desumanamente, como se fez com os sarracenos’, ele de-
saprova seu projeto, € não aprova necessariamente, o que “se fez” aos sarracenos.
1 Ver Alain Demurger, Vie et mort... e Chevaliers du Christ...

342
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

Bernardo, que é aparentado de Hugo de Payns, redige em 1130 um vibrante


Elogio da nova Cavalaria dos templários. Ele aprova seu “duplo combate”,
moral e material. Ele admira sua VOCagio ao martirio ao mesmo tempo em
que garante que eles não arriscam, na causa a que servem, cometer homi-
cídio propriamente dito: na guerra santa há apenas malicídio. O templário
é o próprio tipo defensor de igrejas, Cavaleiro de uma justa causa: ele “vinga
Cristo e defende os cristãos”!, Logo depois, São Bernardo introduz uma
nuanga, como se esperasse que sua demonstração suscitasse reservas: mais
vale não matar os pagãos 1%4 se podemos encontrar um outro meio de im-
pedi-los de atormentar ou oprimir os fiéis”"*. Mas enfim os lugares santos
estão maculados, e o Evangelho não proíbe completamente o serviço ar-
mado (Lucas, III, 12).
O Elogio é, propriamente dito, o de uma nova Cavalaria, ou o de
uma nova milicia? Como traduzir aqui a palavra latina militia? Pode-se
hesitar quando se vê a que ponto e de que maneira, em princípio, o “Ca-
valeiro de Cristo” se singulariza por sua disciplina, sua austeridade e final-
mente um tipo de profissionalismo. Isso faz um belo contraste com as
falhas de uma “Cavalaria do século”, uma malícia mais do que uma milícia,
uma vez que ela se suja com assassinatos, bate-se movida pela cólera e se
paramenta com um luxo supérfluo. Aos Cavaleiros do século, São Bernardo
lança uma invectiva bem sentida: “cobris vossos cavalos de sedas; endossais
por cima de vossas couraças'não sei que drapejados que pendem. Decorais
com pinturas vossas lanças, vossos escudos, vossas selas; ornais de ouro, de
prata e de pedras preciosas vossos freios e vossos estnbos 196, Voltamos
aqui à crítica de Orderico Vidal, preenchida por uma constataçao prática.
“Esses longos cabelos, que deixais crescer como as mulheres, vos escondem
o rosto; e embaraçais vossa caminhada nessas longas camisas flutuantes.”
O que seria necessário é uma vestimenta mais apropriada à verdadeira
guerra e um treinamento eficaz pard se proteger, com velocidade, ferir;
desejar a vitória mais que o butim!”. Em consequência disso, o abade de

193 Jean Richard, L'Esprit de la croisade, p. 141.


104 Assim se considera os muçulmanos.
195 Jean Richard, L'Esprit de la croisade, p. 141.
16 Tdem, p. 141.
197 Problema que se coloca também nos torneios: ver, neste volume, pp. 427-8.

343
A Cavalaria

Claraval, São Bernardo, deixa-nos entrever que a Cavalaria adornada pode


ser na guerra bastante inofensiva, muito pouco exposta ao pecado do
homicídio; a crítica de sua frivolidade contradiz a da agressividade, feita
por outros monges. Uma guerra em sedas, um combate rapidamente in-
terrompido pelo desejo de tomar o butim não fazem potencialmente
menos mortes que uma guerra santa?
A Cavalaria de Cristo, em seu combate material, parece mais com
uma milícia, com um exército, do que tudo que vimos desde o declínio do
Império romano no ocidente (século V). E em circunstâncias em que se
concebe a justiça com menos nuanças, de maneira mais univoca, isso con-
vém a uma guerra justa implacável. O retrato-falado do templário, tal como
o descreve São Bernardo, pode então fazer tremer. Ele valoriza, como há
pouco no combate espiritual, a obediéncia e a solidariedade de batalhão.
Nessa milícia escapa-se às relações sociais rotineiras submetendo-se ao
melhor e não ao mais nobre. Não se ri mais, tem-se horror aos jogos de
xadrez e de dados, à caça e à falcoaria, às mímicas. Tem-se um penteado
que choca, aquele que convém aos cruzados: “Eles cortam curto seus ca-
belos. Nunca ornados, jamais banhados, mais frequentemente desalinha-
dos c sujos de pocira, cles são queimados pela couraça e pelo ardor do
sol™%. Fazem tudo para inspirar no inimigo “o pavor muito mais que a
cupidez”. Na batalha, enfim, enfileiram-se em ordem e têm fé em Deus
tanto quanto os Macabeus. Os templários são assim capazes de proezas
coletivas. Um tipo de ideal germânico revive neles, ao mesmo tempo em
que um pouco de disciplina romana, mesmo se em princípio também eles
juntem a doçura do monge à bravura do Cavaleiro!®.
Por pouco não tiveram seu lugar no Antigo Testamento. Formam
uma instituição grande e terrivel; são “como um rio impetuoso irrigando
a cidade de Deus. E o que parece ainda mais agradável e útil ¢ que alguns
no grande número daqueles que afluem eram antes viloes, impios, raptores,
sacrilegos, assassinos, perjuros, adlteros™™. E, de fato, o papel dos tem-
plários, Cavaleiros endurecidos, na defesa da Terra Santa é constante e
decisivo no século XII. Eles constroem e defendem grandes castelos, arre-

198 Jean Richard, L'Esprit de la croisade, p. 146.


19 Idem, p. 147.
119 Tdem, p. 149.

344
Em direção a uma Cavalaria mais crist
ã?

cadam fundos necessários na Europa, por meio de boa habilidade finan-


ceira, não deixando, por consequência, nenhum tesouro escondido no
solo da doce França.
Eles têm ódio ao islá, com uma mentalidade de “cruzada” ideoló-
gica, no sentido (anacrônico) que nossa época emprega a essa palavra?
Não se deve generalizar a partir de um único testemunho, mas o emir
Usama, um diplomata árabe que frequenta Jerusalém e seu rei nos anos
1130, nota que seus amigos templários lhe permitem rezar em um orató-
rio anexado à grande mesquita e defendem-no contra um franco que
queria impedi-lo""!,
Usama, no conjunto, é representativo da possibilidade e dos limi-
tes de um tipo de “encontro” social e moral com os cruzados. O livro de
suas lembranças, de “ensinamentos” que ele tira da vida, vem confirmar o
que nota Suger sobre a estima de certos sarracenos em relação a Boemundo
de Taranto, depois de Antioquia, ou de Roberto “de Jerusalém”, conde de
Flandres.

Encontro com uma outra Cavalaria

Falta gravemente às narrativas de cruzadas, assim como ao elogio


dos templários por São Bernardo, o verdadeiro eco das lágrimas derrama-
das em Clermont por Urbano II sobre a sorte dos cristãos oprimidos do
Oriente. Nesses documentos trata-se apenas de defender os lugares santos
€ os peregrinos ocidentais que aí vão. Nos textos, a estima dos sarracenos,
da qual se gabam os cruzados, ocupa espetacularmente o lugar da gratidão
dos cristãos do Oriente. O valor guerreiro dos turcos fez esquecer que eles
os oprimem. E se essa defesa de cristandades orientais tivesse sido apenas
um pretexto? Pelo menos alguns cruzados se relacionaram com os senhores
armênios, esposando suas filhas herdeiras: tal como Balduíno de Boulogne,
irmão de Godofredo de Bouillon, e seu primo Balduíno do Burgo!
A sorte dos irmãos cristãos do Oriente expostos aos turcos foi,
portanto, , um pouco esquecida, e em consequência disso não se encontra

1 Usama, Os ensinamentos..., ¥, p. 297-

345
A Cavalaria

ninguém na França para felicitar os cruzados por terem defendido esses


oprimidos. Alguns, pura e simplesmente, se tornaram seus senhores. Quer
dizer que eles defenderam, sobretudo, os armênios ricos...
Isso, no entanto, inicia a integração deles ao Oriente Médio, da
mesma forma que a imposição de tributos aos emires no caminho de An-
tioquia a Jerusalém. Após 1099, nessas regiões, a confrontação guerreira e
diplomática transforma-se às vezes em uma espécie de sociabilidade mun-
dana, não sem reservas nem segundas intenções que muitos incidentes
tornam perceptíveis. As relações de senhores cruzados com seus vizinhos
muçulmanos começam a parecer com a interação feudal francesa, com
alguns floreiros Cavaleirescos. Afinal de contas, na França também há
muitos cálculos e muitos incidentes.
Em 1099, Jerusalém em geral não era tida como uma cidade santa
pelos muçulmanos. Sua queda é ressentida, compreende-se, como um
ferimento e como uma desonra, mas ela não anuncia um perigo mortal
para eles. A voz de al-Sulami pedindo, em 1105, a união contra os cristãos
permanece inicialmente sem grande eco. A maior parte dos cruzados
partira; restam apenas muito poucos senhores e colonos “francos”, apoia-
dos no Império bizantino e sustentados pelos armênios. Fora isso, os
“francos” não ameagam nem um pouco os centros vitais do islã. Será um
erro capital da segunda cruzada, em 1147, perturbar Damasco.
O sucesso da primeira cruzada, tido pelos cronistas como provi-
dencial, está ligado amplamente às fraquezas do mundo muçulmano: este
conhece então um processo de dispersão da autoridade de tipo, em suma,
um pouco feudal. Os próprios “francos” estão divididos. Homens como
Boemundo e Balduíno se olham com os olhos de Rolando para Ganelon
e, desde então, cada um se dá a conviver um pouco com os Marcílio de
Maghzen. Temos assim uma situação que não deixa de lembrar a França,
durante algumas décadas, e mais ainda a Espanha do ano 1000.
Esses senhores vizinhos, inicialmente em confronto, passam da
ameaça ao tributo, e dele ao pacto jurado. Eles aprendem a se conhecer. À
partir daí não entraria em jogo no confronto com o infiel algo de faida
Cavaleiresca? Os “belos gestos” aparecem desde o início, quando Balduíno
de Jerusalém, em luta com os beduínos, surpreende um campo pondo em
fuga alguns guerreiros e se apossando de mulheres e crianças. Ele distingue,
no entanto, a mais nobre cativa, que está dando à luz, e a faz cercar
pelos

346
Em direção a uma Cavalaria
mais cristã?

seus; o emir seu marido fica sabendo e, segundo Guilherme de Tiro!"”?, se


torna seu amigo e lhe permite em 1101 escapar,
furtivamente, de Ramla,
onde se encontrava em grande perigo.
Sobretudo, acontece, nesse início do século XII, de os príncipes
francos serem capturados, em combates leais. Eles são então levados a
pagar resgates que os tributos camponeses e urbanos financiam. Os senho
-
res muçulmanos e cristãos negociam trocas de prisioneiros!”3, ¢, na necessi-
dade, tornam-se amigos. O emir turco Java
li, por exemplo, faz acordo com
seu prisioneiro, o senhor Balduíno de Edessa (sobrinho de
Balduino I),
em 1108:

Ele havia permanecido cativo até então oferecendo


grandes somas sem poder
obter sua liberdade. Após cinco anos de prisão Javali fez-lhe presente
de vesti-
mentas de honra e concluiu com ele um acordo: ele compraria seu resga
te em
dinheiro, libertaria os prisioneiros muçulmanos que estavam sob sua auto
ridade
e o ajudaria pessoalmente com suas tropas e seu dinheiro em caso de pedido de
ajuda"é,

Isso se parece muito com a guerra feudal, com seus tratados de


todos os tipos, atos de pilhagem de “aldeias”, combates onde acontecem
e são organizadas, com frequéncia, mudangas de alianca. Uma inimizade
opõe Javali ao emir de Alepo Ridwén, e uma outra, o principe de Antio-
quia, Tancredo, ao senhor de Edessa Balduino II. Assim, em outubro de
1108, no combate de Tell Bashir (Turbessel), acontece o enfrentamento
de duas coalizoes franco-sarracenas. Ibn al-Athir estima 1.500 cavalei-
ros de Antioquia, acrescidos de mais 600 enviados por Ridwan. Mas é
preciso não confiar excessivamente nesses numeros. Logicamente, sio
os contingentes francos, Cavaleiros de Antioquia e seus oponentes, os
Cavaleiros de Balduino e de seu vassalo Jocelino de Turbessel, que ocu-
pam o centro da trama. Tancredo leva vantagem, enquanto a cavalaria
de Javali ataca e massacra a infantaria de Antioquia. Em seguida a caya-
laria de Javali se volta contra a Cavalaria franca de Edessa, que era em

"2 Guilherme de Tiro, X, 10 (em Croisades et pélerinages..., p. 529).


' Crônicas drabes, p. 38; essas cronicas mencionam também os tributos da populagio e
as pilhagens.
" Ibn al-Athir, X, 321 (citado em Crénicas drabes ..., p. 44).

347
A Cavalaria

principio sua aliada, para tomar cavalos e partir, abandonando os infan-


tes muçulmanos... Finalmente, nota Ibn al-Athir, muitos muçulmanos
são mortos, mas outros são salvos graças aos Cavaleiros de Edessa que se
recolhem ao castelo de Turbessel e lhes dão refúgio.
Temos outra narrativa, atribuída a um cronista sírio mais con-
temporâneo, identificada e traduzida por Claude Cahen, que a priori a
julgou “mais bem colocada em uma canção de gesta qualquer”. Ela começa
sua versão da história contada acima assinalando que os aliados de
Balduíno, Jocelino e Javali, pilham aldeias de Tancredo. Este sai de Antio-
quia e recebe reforço de Alepo. A batalha se anuncia, mas antes acontece
uma entrevista entre Tancredo e Jocelino, que deixa Javali desconfiado.
Ele aparentemente não exagera, uma vez que Tancredo “temia os muçul-
manos das duas hostes”, como afirma o cronista muçulmano e, sem dúvida,
trama uma reconciliação cristã. Mas o historiador das batalhas da França
sabe que Jocelino está falando a verdade quando garante a seu aliado Javali
que “tal era o costume franco”. Dessa forma, negocia-se entre inimigos
“sem ter erro algum a temer” do outro nesse instante: fixa-se um lugar e
um momento e fazem-se ofertas. Se, por consequência, Javali permanece
pessoalmente à parte, isso também acontece em contexto feudal — de
Fontenoy-en-Puisaye (842) a Tinchebray (1106). Depois disso, o cronista
sirio menciona que a cavalaria muçulmana avança na direção de ambos,
mas se concentra sobre Tancredo e Jocelino''®. Encabegando cada um sua
tropa, eles se preparam para atacarem-se mutuamente trés vezes, o que
supde uma convengio. Na segunda vez, procuram literalmente um pelo
outro: “Jocelino só procurava Tancredo e Tancredo só procurava Jocelino.
Desferem golpes de langa e de espada, e cada um prova ao outro sua valen-
tia. Depois as tropas de novo retomaram seu campo, e Tancredo diz: ‘Ainda
falta um ataque, é preciso que ele me mate ou que eu o mate™, Sim, é isso
que ele diz — isso não impede que a sequéncia seja um pouco confusa, e
menos sangrenta. Finalmente, “nenhum franco matou outro franco, mas
os mugulmanos, ao intervirem, mataram francos™!é. A guerra intercon-
fessional se torna, portanto, mais dura.

115 Com Balduino não há preocupagio.


16 Claude Cahen, “Un épisode épico-féodal’, p. 132. Essa página nos é conhecida por
sua citação em Ibn al-Furâr.

348
Em direção a uma Cavalaria mais crista?

Para terminar, o cronista sírio relata o recuo de Jocelino a


seu
castelo, onde sua mãe parece inicialmente lhe recusar entrada. “Quisera
Deus que eu não te tivesse provido de nada!”, lança-lhe ela essas palavras
como contra a um homem efeminado demais, covarde e fujão. Ele protesta
por sua valentia: cle verdadeiramente enfrentara Tancredo. Mas essa mae
exigente não quer acreditar em nada antes de ter ouvido a confirmagio da
prépria boca de Tancredo e de vérios Cavaleiros. A cena tem algo do re-
torno de Guilherme a Orange, diante de sua mulher Guiburca, que ini-
cialmente nio o quer reconhecer porque ele está
só e vencido!”. Isso
lembra também a grande cena da exibição dos ferimentos diante das mu-
lheres no combate da Germánia de Tácito. Nada, no entanto, obriga a ver
aí um atavismo de “raga” ou de nascimento. De fato,
se fizermos a compa-
ração desses episédios com aquilo que se conta das mães
instigadoras da
Cavalaria 4rabe, no Livro de Usama e em muitos outros,
podemos encon-
trar uma semelhanca ainda maior ai.
As duas Cavalarias têm mais de um valor em comum. Dos
dois
lados, a sociedade exige de seus machos dominantes que afrontem a
morte,
¢ a guerra santa se junta ao sentido de honra da sociedade faida
l para
prescrevé-lo. Nem uns nem outros se profbem toda a estima pela
Cavalaria
do outro lado, e isso lhes assegura o reconhecimento como forma
de pa-
gamento. De um lado a outro há, entre esses Cavaleiros, inim
izades e
amizades de homem a homem. Tudo isso modera a dureza da conf
ronta-
640, salva vidas nobres e deixa lugar para manobras. O mais belo
exemplo
disso está no Livro de ensinamentos da vida (Kitab al-Itibar) de um filho
do emir de Shayzar, sobre o Oronte: Usama ibn Mungqidh. Nascido
em
1095, esse “Cavaleiro”, como o chamam, enfrentou os “francos” em sua
juventude; esteve junto a eles, tendo sido — entre 1140 e 1143 — embai-
xador do emir de Damasco na Jerusalém do rei Fulques “de Anjou”, Seu
livro os evoca varias vezes e, sobre eles, seu discurso tem certo duplo senti
do.
Esse filho do emir de Shayzar nio fala nem de seus camponeses
nem de
sua mulher, mas de sua mãe ¢ de seus adversdrios cruzados. Ele apreciou
OS encontros gucrrciros com eles quase tanto quanto a caga ao leão nos
montes do Líbano. Isso já estabelece um primeiro ponto em comum entre

-
" Ver, neste volume, pp- 478-9.

349
A Cavalaria

eles, , uma vez que muitos cruzados nobres se vangloriam de façanhas


como
matadores de leões.
Usama tem reflexões fortes e uma verdadeira bravura moral
quando fala da morte. Um guerreiro não sabe de
qualquer forma quando
ela virá, isso dependerd de Deus; ele só deve, portanto
, manter uma bela
conduta. Usama se pergunta, com uma perspicé
cia que não tém os autores
cristãos da época, como ¢ possivel que se anime no
momento da baralha.
Os cruzados sio menos refinados
queele, e corajosos sem intros-
pecção.Já de início, Usama se refere a eles
com uma expressão de sentido
contraditório: “Os francos (Deus lhes recu
se S€U socorro) não têm ne-
nhum dos méritos da espécie humana
a não ser a bravura”!8, Usama
frequentaos cruzados, ou melhor, seus filhos
nascidos na Terra Santa, que
são denominados, a partir de então,
de “potros”, mas não tem nada de um
renegado. Sua imprecação parece difi
cilmente evitável, e devemos drama-
tizá-la mais do que as maldições de mong
es contras os “maus” Cavaleiros
cristãos? Ele afirma em seguida uma
superioridade religiosa e cultural,
mas, no final das contas, não desqualifica
tanto assim os “francos”, uma
vez que a bravura é, para ele, precisamente
uma das mais belas virtudes
que se pode ter! Ele mesmo não carece de
bravura diante do destino e do
risco da morte.
A morte, entretanto, nem sempre está à espre
ita. Os enfrentamen-
tos do ano 1100 sobre o Oronte não deixam de se pare
cer com justas; eles
são proveitosos aos muçulmanos, uma vez que os vemos
— no mais tardar
em 1119 — dominar o golpe de lança à francesa. De amba
s as partes são
feitos cativos, que às vezes são maltratados!!? (como no ano 1000,
em torno
de Conques), mas laços de sociabilidade e de amizade pod
em também se
formar. Os guerreiros mais renomados, como o franco Pedrovanto e o
árabe Jum'a, procuram se encontrar para ganhar o prêmio de melhor. Sã?,
então, duelos ou combates entre pequenos grupos, que esquadras mais
importantes podem observar de longe, contando e julgando os golpes.
Uma guerra de espetáculo, quase um jogo. Vale a honra de cadaAurn, em
uma confrontação entre homens que se conhecem e que mantêm algo
como uma relação de adversidade, um pouco como nas guerras internas.

118 Usama, II, p. 185.


19 Idem, V, p. 269.

350
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

O próprio Usama despreza os infantes, e admira o cavaleiro adversário.


Ele não gosta de dizer que o rei Fulques de Jerusalém um dia falou dele
como de um Cavaleiro muito bom? Fato que se torna francamente in-
quietante quando lembramos que o bispo Guilherme de Tiro, esse his-
toriador latino da cruzada e do reino de Jerusalém, nos ensina que Ful-
ques, príncipe expatriado em sua idade madura, não conseguia reconhe-
ceragente da Terra Santa!!?º Mas ele tinha provavelmente “conselheiros”
(os romanos teriam dito os “nomencladores”"?!), e estes poderiam co-
nhecer as qualidades de Usama, ou compreender o interesse de arranjar
por meio dele uma aliança com Damasco.
O que agrada a Usama é que os francos apreciam, acima de
tudo, os Cavaleiros — em detrimento, por exemplo, dos ricos merca-
dores de suas cidades. E esses Cavaleiros francos, ele nota, têm um
louvável senso de justiça e muita lealdade. Assim, o beduíno cujo gado
fora objeto de pilhagem, a despeito de acordos que garantiam sua
proteção, pode vir se queixar e obrer justiça em suas cortes. Apesar
mesmo do mal ocorrido a Has'anun, aparentemente contra a fé jurada,
Usama não submete os francos 4 acusação de felonia. Ele não lhes
atribui devastações excepcionais de seu país, nem crueldades excessivas.
Lendo-o, não se tem muito a impressão de que a primeira cruzada
traumatizou o mundo muçulmano, e nos perguntamos se não teria
acontecido neste sentido uma propaganda ulterior exagerada no tempo
de Saladino. Usama apenas considera alguns usos francos bem tolos,
como o julgamento da água fria ou o duelo judiciário de bastões. Es-
tranha, também; que permitam a suas mulheres e a suas filhas falarem
com outros homens, ou que eles as levem consigo ao banho — mesmo
que isso só tenha inconveniente, pois assim elas são vistas nuas.
Ele conta que, em Jerusalém, os templários o protegeram contra
um peregrino recém-desembarcado. E Usama não ignora que a medicina
“franca” (ou italiana?) introduziu no Oriente alguns remédios inéditos,
que aliviam os sofrimentos. Ele não prega, entretanto, uma verdadeira

1 Guilherme de Tiro, XIV, 1 (em Croisades et pélerinages..., p. 582).


2! Nomenclator cra o escravo antigo incumbido de designar aos pretendentes a cargos
públicos os nomes dos clientes presentes em eventos sociais durante os quais estes
deviam ser apresentados por seus protetores. (N.da R.)

351
A Cavalaria

“colaboração” com os francos, e escreve várias paginas glorificando a in-


transigéncia das mulheres mugulmanas: uma se suicidou para escapar a
um violador franco, outra matou o marido franco'?, outra ainda estigma-
tizou e matou um mugulmano servidor dos francos'?. Tantas ardentes
instigadoras. Ele préprio nio está, portanto, de forma alguma disposto a
deixar os cruzados cativos seduzirem e converterem a filha de seu vencedor,
a maneira cortés, com a qual muitos sonham'?. Ele não aprovaria, certa-
mente, a conduta de uma Branimunda no final da Canção de Rolando™.
Além disso, ele j4 não marcou bem, uma vez, os limites de sua
relagio com os francos? Ele era ligado a um deles, vindo em peregrinagio
com Fulques de Anjou, por amizade. “Ele se tornou meu familiar e se ligou
a mim, me chamando de irmão”!?, Ora, no momento de partir, esse franco
lhe propõe levar seu filho de 14 anos consigo, como se faz com o filho
de um senhor amigo ou de um vassalo que se toma como escudeiro. “Em
meu pafs, ele observaria os Cavaleiros, aprenderia a Cavalaria e, quando
voltasse, teria os ares de um homem sensato.” Trata-se menos, notemos
bem, de aprender as armas do que todo um comportamento. Sorri-se, no
entanto, da pretensio já toda francesa desse homem mais do que bem-
intencionado: ele vai ensinar ao filho de Usama a respeito de “nossos an-
cestrais troianos” ou de “nossos avds, os companheiros de Rolando e de
Carlos Magno”? Mas a propria férmula do Livro de ensinamentos da vida
carrega um efeito cômico, uma vez que o franco se atribui sabedoria
contra toda evidéncia. A diferenca de religido não lhe coloca, aparente-
mente, um problema, como se fosse possivel na Franga aprender a Cava-
laria sem se fazer cristdo, trés séculos depois das festas de Ingelheim e do
batismo de Heroldo! Ou essa Cavalaria não seria apenas um aparato para
conduzir o sarraceno a Jesus Cristo?'” Ou o franco é apenas um tolo, do
qual devem rir os espectadores sarracenos ? Usama, por seu lado, langa mão

122 Usama, V1, p. 303


123 Idem, V, pp. 283-5.
124 CF. a narrativa do cativeiro de Boemundo por Orderico Vidal, X, 24 (t. V, pp. 354-60)-
125 Ver, neste volume, p. 476
126 Usama, VI, p. 291.
127 Seria, em um sentido, leva-lo de volta a Deus, pois os emires de Shayzar são mugul-
manos de terceira e quarta geragio, uma vez que descendem de um soldado do impe-
rador grego João Tzimiskes.

352
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

de uma escapatória: ele gostaria muito que seu filho aprendesse a Cavala-
ria na França, se isso dependesse apenas dele; mas eis que sua velha mãe (a
avó do jovem homem) teria desgosto demais. O francês compreende — tal-
vez ele não seja tão tolo —, aceita a desculpa e não insiste. Sua oferta seria
tão séria assim, no final das contas?
Do lado sarraceno, no espírito de Usama, as mulheres estão lá para
encarecer os valores da guerra e da vingança, encarnando sempre a linha-
dura. Elas não são associadas a toda manobra, como o são às vezes as damas
de França, pelo efeito do sistema cognático.
Assim, o Livro de Usama nos atesta que o encontro das duas Ca-
valarias às vezes acontece, e que ele foi o encontro de dois esnobismos,
suscetíveis de limitar a dureza dos enfrentamentos. Francos e sarracenos
se admiraram mutuamente, lisonjeados com a estima do outro, ao mesmo
tempo permanecendo cada qual na defensiva. Eles souberam que a Cava-
laria não estava ligada a uma das religiões do Livro e sentiram, intuitiva-
mente, que os inimigos que se parecem têm algum interesse em se enfren-
tar de maneira muito mais “Cavaleiresca” para melhor confortar seu lugar
dominante, cada um em sua sociedade, especialmente em relação aos
camponeses ¢ as mulheres.
Hé, portanto, um vertiginoso contrassenso em uma pagina do
capfrulo de Michelet sobre o “ano 1100”. A cruzada seria, segundo ele, o
grande movimento que abala a “feudalidade”. No deserto árido, ou nas
angústias de Antioquia, o servo teria ficado ao lado do Cavaleiro e ganhado
pode
um pouco de reconhecimento e consideração. “Mais de um servo
dizer ao barão: “Meu senhor, eu vos achei um copo de água no deserto; eu
vos cobri com meu corpo no cerco de Antioquia ou de Jerusalém””!8, Mas
de onde Michelet tira isso? Nenhum texto contemporâneo conta histórias
semelhantes de servos. Elas só aparecem nas legendas familiares muito
posteriores, quando linhage ns burguesas enobrecidas do século XV pro-
curam ancestrais valorosos na pr imeira cruzada, ou quando os privilégios
Felipe 1, de
do século XVII reclamam a libertagao para a faganha, pelo rei
seu cozinheiro servo que partira A cruzada.
Por outro lado, Michelet toma
os cruzados de 1095 pelos “voluntários” franceses de 1792 e, sobretudo,

28 [ Moyen Age (1833), reed. Paris, 1981, p. 272.

353
A Cavalaria

alemães de 1813, que creram poder se aproximar de seus oficiais nobres


em favor de uma guerra ideológica ou xenófoba.
No entanto, pelo que foi demonstrado acima, observamos muito
mais que os nobres, mais bem providos, não compartilharam seu copo
d'água, que eles combateram menos perigosamente que os infantes
e con-
fiscaram, como de costume — como se deu após Hastings —, o mérito da
primeira cruzada. De volta à Franga, eles não dão um tipo novo de atenção
aseus súditos em relação àquele que lhes davam antes de sua partida. Tomás
de Marle, senhor de Coucy, é um desses opressores dos fracos e, sobretudo,
cúmplices da comuna de Laon, que os bispos tomam como marginais
nos
anos 1100 e querem rebaixar de sua Cavalaria. E, no entanto, seus desce
n-
dentes escutarão os menestréis celebrarem-no entre outros cruzados
na
Canção de Antioquia. É. sem dúvida, dando belos hábitos
de pele aos ditos
menestréis que se conseguirá conferir a Tomás de Marle um lugar
privile-
giado na Conquista de Jerusalém, que dá continuidade à Cançã
o de Antio-
quia, exibindo, porém, relações ainda mais tênues com a história.
Pois a Canção de Antioquia, cuja redação data apenas dos anos
1170, permanece bastante próxima da crônica do Anônimo. Seria “Rica
rdo,
o Peregrino”, que ela confessa ser sua fonte, o Anônimo? Certamente
,
Ántioquia floreia um pouquinho o quadro, inserindo notadamente faça-
nhas de guerra: “Que espetáculo ofereceu Guilherme!”, adubado havia
pouco"?”, O escudeiro Gautier de Aire, outro “intruso” em relação à crônic
a,
torna-se maravilhosamente ilustre aos olhos do conde de Flandres — seus
descendentes são senescais desse principe. Quanta nobreza na manei
ra
como declina da honra de ser adubado enquanto não chegue o fim da
cruzada e possa entrar na Jerusalém reconquistada! Os franc
os são, por-
tanto, aí mais idealizados do que na crônica, à exceção do conde
Estêvão
de Blois, tão doente de medo que é preciso carregá-lo em uma liteir
a”.
No seio da cruzada, o contraste entre Cavaleiros irreprováveis e o grupo
de selvagens tafurs — entre os quais temos Pedro, o Eremita — , vindo
s
talvez do folclore, é evidenciado. Em contrapartida, o ódio contra o isla
parece se instilar verdadeiramente na Canção de Antioquia: deseja-se
vin-
gar sobre os sarracenos o suplício de Jesus Cristo, Eles são repro
vados por

'3 Canção de Antioquia, 111, 7-9.


1% Idem, VI, 9.

354
Em direção a uma Cavalaria mais cristã?

torturar um prisioneiro nobre e são descritos adorando e depois insultando


em Meca um ídolo de Maomé, o que certamente constitui uma enorme
fabulação. Como há, na retaguarda das cruzadas, santuários cristãos com
estátuas, esse quadro se deve muito mais a uma representação do outro
como espelho de si. E diríamos mesmo que há quase um desafio esportivo
entre as duas Cavalarias, em torno do objetivo de “atingir” o ídolo adver-
sário como se faz a um manequim no jogo da guintana!™'
Em todo caso, o acordo entre os “potros” estabelecidos na Terra
Santa e os sarracenos de Damasco é várias vezes atestado, os primeiros
fazendo notadamente fracassar o cerco dessa grande cidade (enorme erro
estratégico) por Luis VIL Por outro lado, a dimensão “Cavaleiresca” das
lutas com os sarracenos reaparece muitas vezes na história das cruzadas,
notadamente quando da terceira (1190-1193), no tempo de Saladino e
Ricardo Coração de Leão. Um Saladino no qual os franceses do século
XIII, pelo menos em sua literatura, não viram forçosamente aquele que
havia vingado o islã retomando Jerusalém (1188) — é melhor esquecer
uma derrota de Cavaleiros! Eles não ressaltaram muito, inclusive, a ausên-
cia de massacre de cristãos nessa ocasião. Se ele causou uma boa impressão
foi mostrando-lhes alguma estima. E, finalmente, o século XIII francês
quer inclusive imaginar sua conversão ao cristianismo e à Cavalaria. Ele
adora ouvir a seu respeito segundo o livro da Ordem da Cavalaria””. Ser
um admirador da nobreza francesa, eis o que resgata amplamente a tomada
de uma cidade santa!
Não se deve certamente deixar passar, na história da Europa cristá
na
no século XTI, essa escalada da perseguição do outro, que se exprime
muitos
cruzada assim como no tratamento aos judeus, aos heréticos e a
mas-
outros. A guerra justa é uma guerra dura, e os cruzados cometeram
sacres. Entretanto, a cruzada não foi apenas isso — digamos
que, se dirigida
tempo
por principes feudais, el a só poderia ser isso. Eles eram ao mesmo
s de sua classe.
realistas demais na prética e presos demais aos interesse

em fazer atingir por um cavaleiro,


131 A guintana era um exercicio militar que consistia
não, a titulo de alvo. (N. da T.)
uma estaca, revestida como um mancquim, mével ou
Dissertagdes..., pp. 217-34. Mas mui-
132 Esse livro do meio do século XIII foi editado em
torn'cio ou a guerra entre gente
to mais do que um conjunto de regras para a corte, o armas do Cavaleiro
de boa companhia, ele desenvolve todo um sentido alegérico das
(como no Lancelote- Graal).

355
A Cavalaria

Muito mais que com seu proprio servo, eles preferiram se relacionar com
o Cavaleiro do outro lado, o sarraceno, cujo orgulho lhes agradava.
Não se pode dizer que eles se deixaram conduzir ou reformar pela
Igreja, de forma radical, no período gregoriano. A Igreja não fanatizou
Cavaleiros cruzados muito mais do que abrandou os Cavaleiros feudajs,
Todos mantiveram com ela, ou seja, com seus parentes que a dirigem, uma
relagio feita de algumas tensões e muitos arranjos. A reforma e a cruzada
reajustaram essa relagao, mas elas não tém nada a ver, praticamente, com
a “mutagio Cavaleiresca” que descrevemos no capitulo precedente. Essa
mutagio, de fato, não consiste nem em estabelecer a paz total nem em
produzir uma verdadeira milicia guerreira, mas muito mais em desenvol-
ver um jogo Cavaleiresco frivolo, pouco assassino, semiguerreiro. Ora, os
clérigos não têm todos o mesmo discurso sobre esse jogo.
A partir dos anos 1130, a Cavalaria cléssica se percebe reunida em
torno dos principes cuja prodigalidade financia as cortes, os adubamentos
e os torneios. Eles se vangloriam de tratar bem os Cavaleiros a0 mesmo
tempo em que aumentam pouco a pouco sua influéncia sobre eles.

356

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