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A Cavalaria
Cita- se frequentemente o
valaria pelo ritual religioso do adubamento. istianização
importante n a “cr
ritual de Cambrai (1093) como uma etapa
série de béngio s de armas,
da Cavalaria”. Mas por que ele é o fím de uma
que depois dele se interrompe?
erar no con-
Antes de examinar essa quest 30, vale a pena consid
orma gregoriana.
junto os objetivos, os métodos e o desenrol ar da ref
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Em direção a uma Cavalaria mais cristã?
! Ver André Vauchez, “Le christianisme...’, pp. 304-17, e Jérome Baschet,La Civilisation
feodale..., pp. 165-78 (versão em portugués: A civilizagdo feudal: do ano mil 4 coloni-
zação da América. São Paulo, Globo, 2006); igualmente o tomo V de Jean-Marie
Mayeur et al. (orgs.), Histoire du christianisme.
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..
A Cavalaria
paz, depois da trégua de Deus a partir de 1033, provam bem que eles levam
seu papel'a sério. O concubinato é um problema de paróquias rurais, e a
simonia do alto clero (bispos e abades) é bem real, sem dúvida, mas talvez
exagerada ao longo de polêmicas eleitorais, quando o tom aumenta entre
os candidatos e suas facções.
Os Cavaleiros do ano 1000 não são tanto paroquianos do clero
rural quanto dos bispos, e isso sem muita intermediação. Principalmente,
eles estão em relação com os monges, que rezam pelo “resgate” (redenção)
de seus pecados e garantem, como vimos, um culto vibrante aos santos
mortos com relíquias. Os reis, os príncipes, os grandes senhores têm, além
disso, seus clérigos de alguma forma “domésticos”, capelães que dizem os
ofícios em seus palácios e prestam, quando necessário, todos os tipos de
serviço — que estes grandes recompensam ajudando-os a tornarem-se
bispos ou abades. Eles assistem, com frequência, a querelas graves, de
propriedade ou de precedência, entre esses bispos e monges. Acontece-lhes
de ter que arbitrar, de ser parte envolvida... É o próprio poder, material e
moral, do cristianismo na França (e nos países vizinhos) que ocasiona
todas essas tensões e que provoca o recurso ao papa e a seus legados. Inau-
gurada em 1049 por uma viagem de Leão IX, e pelo concílio que ele preside
em Reims, a reforma gregoriana só decola verdadeiramente dez ou vinte
anos mais tarde, e ela começa, então, exacerbando os conflitos em uma fase
crítica (1075-1100), após a qual vem a hora do compromisso. Pode-se
considerar que ela se concretiza não exatamente quando o clero se tornou
absolutamente puro, e quando obteve o consentimento absoluto do laicato
a todas as suas diretivas, mas sim quando um novo sistema de resolução
de conflitos (portanto, de eleição dos bispos e de justiça eclesiástica) se
estabeleceu, na aurora do século XII.
Ao longo dessa reforma, na França, o conflito de autoridade é
frequentemente grave entre, de um lado, o papa e seus legados em pleno
esforço de supremacia e, de outro, os arcebispos como os de Narbona,
Reims e Tours, que os toleram mal. Em consequência disso, a polêmica
gregoriana atinge um grau extremo contra eles e contra os bispos “secula-
res” demais, que se agrupam em torno deles. Poucos são nicolaístas. Sua
simonia não é sempre evidente, ou fácil de detectar. Nessas condições, na
França feudal, recai frequentemente sobre os prelados antirromanos à
acusação de portarem as armas do “século”. Os bispos se entregando à
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Em direção a uma Cavalaria mais crista?
bela herdeira, ou substituir o irmão mais velho se algo de mal lhe aconte-
cer.Nessas condições, se a sorte os leva em direção à Igreja, eles só recebem
as ordens maiores no último momento, subindo de quatro em quatro,
em dias, os degraus da hierarquia eclesiástica. Tanto faz se eles conser-
vam cm scguida alguma nostalgia de sua Cavalaria, e mesmo se a praticam.
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Os gregorianos e o adubamento
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iritualmente o esforgo
fecundidade. Não poderia ela também nutrir esp e
os para se dedicarem a guerras justas no fundo
dos reis e dos Cavaleir
os e nas assembleias em
corretas na forma, nessas guerras ajudar seus brag
que realizam a justiga garantir seu discernimento?
ira ajud
Veremos que a Igreja lhes concede de alguma mane
a mas
bém não o
não sob a forma e a intensidade sacramentais, assim como tam
langou a
far4 mais do que o fizera no ano 1000. Leon Gautiet, em 1884,
que ele estivesse
bela férmula: adubamento, “oitavo sacramento”. Nao
século XIII que
enganado. Gautier encontrou rituais litúrgicos do final do
de
estipulavam o que deve dizer um bispo quando atua como adubador
s,
um Cavaleiro — salvo que os nobres que o assistem “lhe calgam as espora
lá onde este é o costume™, Isso produz uma justificativa da guerra pela
publico
Igreja e pelo rei, e da justiça coercitiva, bem acolhida por todo um
de 1884, mas não um sacramento reconhecido como tal. Além disso, o uso
mesmo desses rituais é tão difundido no final da Idade Média?
Assinalamos essas bênçãos de armas e de combatentes pelos bispos,
tal como havia nos séculos X e XI, bem agrupadas por Jean Flori”. Elas não
eram certamente todas feitas para os adubamentos conferindo o estatuto
de Cavaleiro. Eram, primeiramente, como sublinha bem Jean Flori, for-
mulas que retomavam aquelas de ceriménias reais destinadas às armas de
procuradores (advocatus) e outros “defensores” das igrejas. De fato, no
momento da coroagio, após a unção, o bispo entrega ao rei uma espada,
entre outras insignias, e a benze. Aos bons Cavaleiros do ano 1000, respei-
tosos e arrependidos (por um tempo), que solicitam ajuda, oferecendo
alianca e esmola, a Igreja não tem nenhuma razão para recusar sua bênção,
¢ frequentemente os estandartes de seus santos. Procura dessa forma ga-
rantir sua saúde temporal, sua integridade fisica ou 20 menos a sobrevi-
véncia, nos combates e nos perigos de sua “milicia’, e estimular seu ardor
de defensores.
Mas em dois rituais do século X1 trata-se expressamente de ben-
zer, entre outras, as armas de um “jovem’, no momento de sua primeira
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Depois disso, o bispo benze a espada com esta oração: “Nós te imploramos, Se-
nhor, escuta nossas preces, digne-se benzer com a majestade de tua mão direita
esta espada com a qual teu servidor, que está aqui, deseja ser cingido. Que ela
possa ser assim proteção e defesa das igrejas, das viúvas, dos órfãos, de todos
aqueles que servem a Deus, contra a dureza de seus inimigos. Que ela faça cair
sobre todos os adversários o pavor, o temor e o medo”.
Então, o bispo benze o Cavaleiro, com esta oração: “Nós te imploramos, Senhor,
que tua piedosa guarda proteja teu servidor que está aqui, a fim de que, com teu
auxílio, ele conserve intacta esta espada que ele deseja portar sob tua inspiração”.
> pirag
? Cuja interrupção é tanto mais importante porque poderia dizer respeito também a
outras regiões. Jean Flori encontra dois exemplos de adubamento litúrgico do século
XII, que não são inteiramente certos: o da Inglaterra (S. 28) diz respeito, de meu
ponto de vista, a um “homem que vai combater” em duelo judicidrio, e o da Itália do
Sul (S. 29) só data, talvez, do século XIII (L'Essor..., pp. 382-4).
? Ver, neste volume, p. 122.
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Então, o bispo o cinge, dizendo: “Recebe, portanto, esse gládio que te é entregue
com a bênção de Deus. Com ele, pela força (virtus) do Espírito Santo, poderás
enfrentar todos os teus inimigos, afastá-los, assim como a todos os adversários
da santa Igreja de Deus, com a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo”"º,
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retirar o estatuto de Cavaleiro que ela havia conferido. Apenas uma vez,
em 1115%, vemos a Igreja tentar sancionar um senhor dessa forma, Tomás
de Marle, que é seu opressor direto e veemente, cúmplice de assassinos de
um bispo — e o efeito disso é limitado. Normalmente, o controle dos
modos guerreiros opera-se através das cortes feudais e do próprio jogo
de interação entre eles. Quanto s prescrições cristas, ao cuidado que
têm os clérigos em impedir o homicídio e a pilhagem, eles contam com
o arsenal de sua função religiosa. É o mesmo que se dá com os demais
cristãos: o medo dos julgamentos de Deus precisa ser reforçado por uma
liturgia do adubamento?
A Igreja do ano 1100 tem suas regras de penitência que são de
tradição antiga ou reatualizada. Os pregadores colocam acento de inten-
sidade inédita sobre as penas do Além: é em 1091 que acontece a célebre
visão de Gaucelmo, relatada por Orderico Vidal's. Poderíamos dizer que
a Igreja “recolhe” os cavaleiros feridos ou em declínio de idade, mais in-
quietos com sua morte e o risco de danação que os jovens nobres em plena
afirmação de si mesmos, na idade em que uma e outra coisa preocupam
pouco. E por uma pressão mais terrestre e política, ela tem sua jurisdição,
a partir de então exclusiva, sobre as questões do casamento, com uma regra
tão exigente (até 1215) sobre o impedimento de consanguinidade que
haveria a possibilidade, caso fosse necessário, de desfazer a legitimidade de
todos os herdeiros de boa família declarando nula e inexistente a união
entre seus pais e mães! Por muito tempo, por causa disso, o duque Gui-
lherme VIII tremeu diante dos gregorianos: nascido de um casamento
contestável, seu filho, o futuro trovador, corria o risco de ser ilegítimo,
portanto deserdado.
Na segunda geração gregoriana, apesar da cruzada e das “hostes
de cristandade”, a bênção das armas de Cavaleiros não tem necessariamente
lugar, porque a cruzada, assim como essas hostes, está sob direção de prín-
cipes. É a hora do equilíbrio e do compartilhamento entre seu poder
temporal e o da Igreja, mais espiritual. Suger, nós o vimos, tende a distin-
guir radicalmente (na teoria) a “Cavalaria” (militia) sacra, conferida a Luís
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tes lhe calçam as esporas, onde isso é costume” — o que parece essencial,
e valorizado pela iconografia da época.
Em nenhum momento a Igreja investe solenemente os Cavaleiros
de uma missão inédita de ajuda aos fracos e de reforma social; ela faz ape-
nas variações sobre a ideologia carolíngia do gládio real, e a Cavalaria nunca
é uma verdadeira “instituição cristd”. Os Cavaleiros são simplesmente
cristãos entre outros, responsáveis por seus pecados (rapinas e torneios,
por exemplo) que os tornam vulneráveis às reprimendas dos clérigos e
devedores de penitências (tais como, entre outras, a cruzada). Sua conver-
são os faz sempre sair da condição Cavaleiresca comum. Tais conversões
se manifestam, inicialmente, por volta de 1100, por meio do recolhimento
ao claustro e da vocação eremítica. | *
Combates espirituais
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Segundo o feliz neologismo de Michel Lawers, La Mémoire des ancétres... (ver também
Dominique Iogna-Prat, Études clunisiennes...).
Ver meu estudo sobre La Mutation..., p. 264. E Charles de Miramon, “Embrasser létat
monastique...”.
Orderico Vidal, V, 19 (t. III, p. 194).
Ver Charles Miramon, “La guerre des récits...”.
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leiros do Antigo Testamento — que podem ser Josué, Jó, Judas Macabeu
(como Odon de Cluny, no início de sua Vida de São Geraldo) —, de santos
“militares” da Antiguidade tardia, entre os quais Jorge e Demétrio, Mau-
ricio, Eustdquio. Ele não mistura, assim, guerras justas e renuncias
20 gládio? Para terminar, ele menciona “o santo atleta Guilherme que,
após um longo servigo Cavaleiresco, renunciou ao século. Ele tornou-se,
com a regra mondstica, um glorioso Cavaleiro de Deus”*. Gragas a seu
exemplo, muitos préximos de Hugo de Avranches se converteram à vida
monástica.f | ó
O outro é um personagem que havíamos encontrado diante de
Barcelona em 800-801, estabelecido por Ermoldo, o Negro, como herói
de epopeia: Guilherme de Orange, duque sob Carlos Magno, valente,
certamente, mas não particularmente piedoso®. Sua gesta do século XII
em francés antigo ¢ muito mais ampla que a de Rolando, uma vez que
comporta várias cangdes e pode se encerrar com a histéria de seu fim
mondstico, a Moniage Guilherme, em duas versões compostas no século
XII. Mas seu fim piedoso faz dele também um santo que, morto, opera
milagres: uma lenda hagiografica, resumida por Orderico Vidal, faz dele
um modelo da boa conversio do Cavaleiro adulto, parauso do ano 1100.
Guilherme ¢ primeiramente um Cavaleiro de guerra santa, “que salvou
pela espada o povo de Deus, com o auxilio divino™?. Ele estende o impé-
rio cristão, funda e dota o mosteiro de Gellone, na diocese de Lodêve.
Mas mais tarde, em 806 segundo Orderico Vidal, ele surpreende em Aix-
la-Chapelle quando anuncia a Carlos Magno que quer se tornar monge.
Permite-se, com pena, que ele parta, e, com uma reliquia insigne da Ver-
dadeira Cruz, ele toma a rota do Sul. Em sua passagem por Brioude, ele
se despoja de suas armas: deixa no túmulo do mártir São Juliano as que
são defensivas (seu elmo e seu escudo) e do lado de fora sua espada, sua
langa e seu arco, armas ofensivas. Ele tem filhos já grandes, condes nio
longe dali, aos quais sua abdicação da Cavalaria deixa a heranca e o campo,
o senhorio, livres. Peregrino de Cristo, ele caminha agora de pés descalgos,
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que
conversão, tornou-se irreconhecível por sua postura simples, como
rebaixado às aparências de um camponês. No entanto, ele não persiste
eternamente nessa posição de inversão social, situada no extremo da vida
nobre. Em breve, ele entra em Marmoutier® e, então, toma lugar entre
os “senhores” em Cluny do Oeste, cujas dependências administra. Fre-
quentemente em deslocamento, ele evita ir a castelos sob sua própria
autoridade; permanece nele, entretanto, algo do esteta de antes, uma vez
que, no presente, tem “o hábito cortês” de fazer anotar em seu caderno
de autógrafos uma frase para cada letrado que encontra...”º Entre esses,
estaria o Cavaleiro, apaixonado pelas letras, cujo filho mais velho tem o
nome de Pedro Abelardo?*
Os convertidos dos tempos gregorianos são eremitas pela errância,
ou pelo silêncio, pela reclusão (como os cartuxos). Eles não procuram, por-
tanto, as proezas anteriores da ascese e da mortificação dos santos homens
do Oriente, ou mesmo dos monges da Irlanda. Eles têm muito mais uma
mensagem, um discurso comum. É-lhes suficiente, em certo sentido, bem
manifestar e viver uma ruptura, a errância ou o isolamento, o tempo que
for necessário para se despojarem claramente de seu antigo estatuto e se
agregarem a uma nova comunidade estatutária, na qual sua nobreza nativa
se confirma pela energia em outra Cavalaria, na milicia espiritual.
Na pessoa do conde Simão de Crépy-en-Valois, é um pouco de
Santo Aleixo que revive (mas um pouco apenas, sem a privação absoluta)”.
Como Santo Aleixo, na noite de suas núpcias ele deixa sua esposa intacta
€ se expatria. Mas ele não cruza o mar, e realiza no Jura seu tempo de ere-
mita; depois volta à Francia sem esconder quem é, o que, de forma inversa
ao que acontece com Santo Aleixo, apoia sua pregação. “O zelo desse
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% Guiberto de Nogent, Autobiografia, 1, 10 (p. 62). E Vida de Santo Arnaldo, 1, 25. Ver
Michel Lauwers, “Du pacte seigneurial à 'idée de conversion...”.
3 Vida de Santo Arnaldo, 1, 29. Ver meu Chevaliers et miracles..., pp. 188-224; e, neste
volume, p. 504.
3 Vida de Santo Arnaldo,1,21.
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*
| Assim, em uma sociedade de Cavaleiros herdeiros na qual não é suficiente
“ nascer — é preciso também trabalhar nos exercícios guerreiros e nos com-
bates e suspeitar da opinião e de traição —, a conversão aconteceria para
salvar as aparéncias. Sem dúvida, isso não é um problema próprio do século
XI, mas seria possível que a “mutação Cavaleiresca” evocada no capítulo
precedente tenha exacerbado o espírito de comperição, endurecido as
exigências em relação aos jovens e complicado seu destino. O acesso às
heranças e às herdeiras parece de fato bastante aferrolhado. Aos filhos mais
novos e aos colaterais maldotados, mas também aos mais velhos deficien-
tes ou azarados, o que resta se não o claustro, a reclusão ou a fuga para a
floresta sob as cores da piedade? E não é uma maneira de salvar as aparên-
cias conquistar proezas no combate espiritual?
Orderico Vidal apenas retoma lugares-comuns ao comparar avida
de um eremita a um “combate singular™, ou os mosteiros a castelos cujos
habitantes aprendem o combate contra os demônios e contra os vícios da
carne®, Esse tipo de combate é representado em muitos capitéis românicos
como uma série de duelos entre os vícios e as virtudes reempregando as
ideias da Psicomaquia de Prudêncio. Essas virtudes são frequentemente
personificadas por Cavaleiros nos quais se observa o gradual reforço do
elmo e da cota de malhas.
Mesmo assim, os assaltos e as armadilhas do demônio são temíveis
para os convertidos que vivem fora de uma regra precisa, segundo sua
própria inspiração ou a de um mestre que elegeram para si. Após 1100
acontece de eremitas errantes criticarem os maus padres com uma veemên-
cia que só era comum no tempo de Gregório VIL... É preciso, a partir de
então, que os acusados os contestem, por medo de cair em heresia. Mesmo
os eremitas situados à margem desse cenário destoam um pouco, e ninguém
sabe o que dizem aos fiéis que vêm visitá-los. O bispo da diocese se esforça
para controlá-los, direta ou indiretamente, tal como Ivo de Chartres tenta
fazer com os eremitas da floresta do Perche. Frequentemente, a regra im-
posta aos eremitas é a chamada regra “de Santo Agostinho”, o que faz deles
uma espécie de cônegos e lhes deixa certa liberdade de movimento. Mas
um procedimento formal ganha a preferência dos bispos e do papa, a
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brancos...
41 Ver Marcel Pacaut, Os monges
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A trégua de Deus e o
abrandamento dos Cavaleiros
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* Histórias, V, prólogo.
%49 Ver meu estudo sobre LAn mil et la paix de Dieu, pp. 499-521.
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5º Idem, p. 547.
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5! Idem, p. 507.
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Havia lá Cavaleiros cujas inimizades eram tais que nenhum mortal poderia
acertar a paz entre eles. Durante os anos precedentes, as dissensões excitadas pelo
diabo haviam feito pais perderem seus filhos, filhos seus pais, irmãos seus irmãos.
Quando o santo provocou um agrupamento, todos eles vieram também. Expu-
semos aqueles que as dissensões haviam poupado e nos pusemos a discutir sepa-
radªxnente com as Paftcs em Conflito. Seria necessario qU.C Cada um aprescntasse
a Deus e 20 santo sua querela, a fim de que o número de mortos cessasse de cres-
cer; alguns consentiram com isso, a contragosto, mas por medo de Deus e pelo
amor ao santosz.
5 Milagres de Santo Ursmer, p. 571. Ver meu estudo sobre Ldn mil e la paix de Dieu...,
Pp- 536-46.
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vivo Arnaldo de Pamela opera da mesma maneira, mas sem relíquias. Esse
eremita, do qual vimos há pouco a conversão, se tornara bispo gregoriano
de Soissons, fora expulso por seus adversários, e retorna a sua Flandres
natal como emissário de Gregório VII junto ao conde Roberto, o Frísio,
encarregado de realizar pacificações com o apoio desse conde”?. Em todos
OS casos, a técnica empregada se inspira na interação feudal: os assassinos
que suplicam a negociação aos próximos das vítimas transferem a respon-
sabilidade desse pedido ao santo, como se pode fazê-lo a um senhor, a um
conde. Depois disso, os monges em seu nome se prosternam diante dos
próximos da vítima, para os quais se torna mais difícil recusar o pedido:
isso provocaria um crime contra a paz, uma ofensa ao santo e a Deus...
Muitos aquiescem em face dessa situação que os ajuda a salvar as aparências.
Se as reticências persistem, como é várias vezes o caso diante de Santo
Arnaldo, estas são atribuídas aos demônios. É uma loucura furiosa que
tomou conta dos extremistas da vingança, rebeldes à paz: eles têm o diabo
no corpo, Deus os abandonou para puni-los, e cabe a Santo Arnaldo, fi-
nalmente, curá-los exorcizando-os, em troca do consentimento à paz.
Para terminar, o próprio princípio da vingança, que a pregação do
Evangelho reprova, não é abolido em si. Os próximos do morto renunciam
aqui gratuitamente a ela, muito mais por piedade — pelo menos em apa-
rência — que pelo desejo de receber uma compensação como aquela
prevista no decreto de Narbona de 1054. Isso é mais aprazível e honrável
que qualquer transação financeira acordada. Mas no limite, uma vez que
há em Flandres turnês regulares de reliquias e de pregadores, pode-se
sempre praticar a vendeta em um ritmo de cruzeiro, esperando a próxima
ocasião para impor a paz, sob orc[cm de um santo. A vingança recua nas
Gálias devido aos gregorianos? É toda a ambiguidade das penitências
cristas na sociedade medieval que se encontra por detrás desta questão.
As pregações gregorianas não impedem o espírito de vingança de
reinar nas canções de gesta do século XII, como Garin, o Loreno, Raul de
Cambrai, das quais falaremos mais adiante, e a Canção de Rolando. Elas
estão na origem de esforços de paz que esses belos textos colocam em cena
ao mesmo tempo em que exaltam a ligação dos Cavaleiros dignos desse
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ria mais cristã?
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alaria mais cristã?
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tomar dos pobres (deve-se entender aqui apenas os bens da Igreja?), dar os
dizimos (As igrejas), segundo os conselhos. Em seguida, ele lhe diz, “cultive
a terra e viva de suas colheitas e de rendas justas, e seja misericordioso em
relação a seus camponeses, conceda-lhes o desconto, do todo ou em parte,
daquilo que eles não podem pagar”, e, enfim, “seja leal e verdadeiro, do
fundo do coração, para com seu príncipe e seus pares”“. A partir de então,
Géry torna-se um justo, tem outros filhos e sua família prospera.
Esse sermão feito a Géry e, através dele, aos Cavaleiros da provin-
cia de Reims retoma elementos do modelo de Geraldo de Aurillac, ao
mesmo tempo em que comporta elementos novos, apropriados à “segun-
da idade feudal” que começa. Ele põe um pouco em surdina o tema da
defesa dos pobres e coloca um acento inédito sobre a propriedade feudal.
Os pobres ameaçados são a partir de então aqueles do próprio Cavaleiro,
devido a sua fiscalidade, muito mais do que os de seus adversários, devido
à vingança indireta. E pode-se dizer “Cultive a sua terra” a um Cavaleiro
sem fazê-lo se derrogar porque é a sua própria terra: isso não cria um tra-
balho alienado, isso não implica servir por meio do trabalho; é sempre por
meio das armas e pelo apoio moral e social nas assembleias que um vassa-
lo como Géry pode servir a seu príncipe. Ele cultiva sua terra como um
bispo constrói sua catedral, ou seja, ele dirige o trabalho dos outros. “Suas
colheitas” são as da reserva senhorial®, trabalhada pelos domésticos e as-
salariados; e as rendas vém de tenéncias cujos camponeses são considerados
“héspedes” de seu senhor, obrigados a entregar uma contribuição quando
ele estd em dificuldade, e felizes, portanto, que ele não guarde parasi todo
o produto da terra. Assim se desenvolvem ao longo do século XII os auxi-
lios ou talhas recebidas segundo as necessidades do senhor (sua partida
para a cruzada, o resgate consecutivo à sua captura, um castelo a ser cons-
truido, uma filha para casar, logo mais seu adubamento ou o de seu filho
mais velho), e ¢ bom, por consequéncia, levar uma vida de Cavaleiro, para
melhor taxar os camponeses.
Trata-se, em primeiro lugar, de rendas arbitririas (antes dos
cartuldrios de costumes que as abonam). Atengio para não colocar, en-
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A Cavalaria
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xam eles seus castelos, seus negócios, frequentemente suas mulheres, tudo
para seguir o Cristo à maneira do jovem homem rico do Evangelho?
Sem dúvida alguns reencontrarão seus bens no retorno — às vezes,
não sem dificuldade. Não se trata de uma partida forçosamente definitiva.
Alguns cruzados penhoram seus bens junto a mosteiros, em troca de somas
em dinheiro que lhes servem para se equiparem, com a possibilidade de
“resgatar” o penhor se voltarem um dia de Jerusalém. Mas o risco de deixar
avidalá não é mínimo: a Igreja não promete que retornarão todos indenes,
ela não benze suas armas segundo o ritual de Cambrai. Nenhuma fonte
pelo menos faz menção a essa ação que visaria à vitória e à salvaguarda. O
ambiente é mais sacrifical. O ganho esperado ¢ de ordem espiritual, mais
do que temporal. Tudo isso distingue claramente a cruzada, como guerra
santa, das guerras mais ou menos sacralizadas do ano 10007.
Ao apresentar o enlevo dos cristãos da França, Cavaleiros, sobre-
tudo como um traço de devoção, como uma ação espiritual, a crônica do
Anônimo normando começa na mesma linha do papa Urbano II. Seu
decreto em Clermont estipula: “Aquele que parte a Jerusalém por devoção
apenas — e não buscando honra ou dinheiro — para libertar a Igreja de
Deus, esta expedição será contada como peniténcia única”?. Uma peni-
tência, para dizer a verdade, nem sempre é sinal de conversão durável e de
verdadeira reforma dos costumes; ela se revela, às vezes, o melhor meio de
se dispensar desse alvo! De qualquer forma, trata-se realmente de uma ação
religiosa, e o decreto de Clermont exclui da cruzada, em princípio, qualquer
outro tipo de benefício. Mas para libertarem-se de seus erros, os Cavaleiros
não necessitam, em 1095, se despojar de suas armas, como precisou fazer
Luís, o Pio, em 833, ou como fazem aqueles que se tornam monges ou
eremitas. Se deixam por um momento atrás de si seus feudos da França,
em nenhum instante eles renunciam a seu estaturo de Cavaleiros. Dai,em
caso de vitória, rapidamente se apresenta a eventualidade de que, colhendo
honra ¢ dinheiro, se tornem um pouco menos puros.
É verdade que esses Cavaleiros se arriscam diante da morte muito
mais do que nas guerras interprovinciais da Franga. Nem o decreto de
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Em direção a uma Cavalaria
mais cristã?
Ele expôs, com lágrimas nos olhos, toda a sua dor sobre o estado ao qual
a cris-
tandade se encontrava reduzida no Oriente; fez conhecer as vexagd
es cruéis que
os sarracenos faziam sofrer os cristãos; orador patético, verteu lágrimas
abundan-
tes diante de todo mundo a respeito da profanação de Jerusalém e dos
lugares
sagrados onde o filho de Deus habitara corporalmente”.
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A Cavalaria
7 Naverdade, consideram-sc espoliados por um povo ou uma série de povos, muiro mais
do que por uma outra religião. O papa de 1095 nio declara guerra ao isla que ele co-
nhece pouco ¢ do qual os cruzados ignoram tudo. Ele se coloca como defensor dos
direitos dos cristãos, para melhor suplantar, se ainda é possivel, o patriarca de Cons-
tantinopla que acabara (1054) de se separar dele por um cisma. Por isso ele oferece
auxilio ocidental a0 imperador Alex Comeno.
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de la croisade..., p. 63.
78 Citado por Jean Richard, L'Esprit
7 Roberto, o Monge, p. 11-
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ele sabe tratar com os bizantinos, aproveitar-se das divisões entre os mu-
gulmanos, encontrar cumplicidades entre os cristãos orientais”.
Mesmo após o fracasso de Civetote, o elemento infante, e não
Cavaleiresco, é o tempo todo majoritário em número: Claude Gaier calcula
4 mil Cavaleiros e 20 mil infantes, ¢, no final, diante de Jerusalém, após as
baixas, as deserções, mas também os reforços, de 1.200 a 1.300 Cavaleiros
e 10 mil infantes®. Ainda há entre os Cavaleiros, segundo Fuche de Char-
tres, em momentos de exce¢do, homens que não tém o estatuto Cavalei-
resco. Temos assim uma infantaria importante, que possui o maior número
de mortos, tanto em batalha (por não poderem fugir rapidamente) quanto
devido a fomes e doengas (pela falta de recursos e de auxilio dos ricos),
cuja contribuição militar é, entretanto, essencial.
Folheemos a crénica do Anénimo normando. A hoste atravessa
a Asia Menor recentemente conquistada pelos turcos; ela deve se separar,
e Boemundo, que conhece o terreno e a tética turca, comanda uma van-
guarda composta de normandos da França e da Itália. Em Dorileia, em 1°
a,
dejulho de 1097, ele não se deixa cair na armadilha da cavalaria adversári
atrair o
mais leve, cuja tética vinda do mundo das estepes consiste em
com
inimigo em sua perseguição e prendé-lo em emboscada. Ele sustenta
lanças pesa-
os seus um choque frontal, tecnicamente vantajoso para suas
a chegada de
das, e, sem se aventurar temerariamente ao ataque, aguarda
os outros, ou seja, o
reforços. “O sábio Boemundo não tardou em chamar
], Hugo le Maine
conde de Saint-Gilles, o duque Godofredo [de Bouillon
o bispo de Puy e todos
[conde de Vermandois, irmão do rei excomungado],
sem em direção à bata-
os outros Cavaleiros de Cristo para que se apressas
luta, que eles venham valen-
lha. E diz que se hoje querem tomar parte da
de Rolando na
temente.” Fis um que não está intoxicado pelo exemplo
e o faz compartilhando
cangio de gesta 84, ele só pensa em obter a vitória,
o mérito com outros n obres. Ele lhes recomenda apenas “a unidade na fé
, a observação disciplinada de seu plano
de Cristo”, ou seja, inicialmente
a Deus, vocés se tor nario todos ricos™®.
de batalha, pois “hoje, se agrada
——
Flori, Pierre Ermite...
% Ver tudo isso em detalh e em Jean East...
taire... ” Ver também John France, Victory in the
83 Claude Gaier, “La valeur mili
$4 Ver, neste volume, p. 470.
% História anônima...,9, pp. 47 ¢ 4.
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* História anônima, 9.
%º A crônica, além disso, por um procedimento digno das epopeias, vai logo imaginar
um episédio junto ao inimigo: Corbaran de Alep, que vem em reforgo, certo de sua
Cavalaria invencivel. Ora, sua mãe tenta dissuadi-lo, não porque os francos sejam
capazes de resistir a cle, mas porque seu Deus combate a cada dia por eles (p. 121). Ela
profetiza, portanto, sua vitória: Boemundo ¢ Tancredo (seu sobrinho e brago direito)
são mortais como todo mundo, mas seu Deus os prefere aos demais, e lhes d4 a força
para combater melhor (p. 125).
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ção de terra cristã, Pedro, o Eremita, teria pcdido aos turcos que a evacu-
assem, a menos que tivessem o desejo de se converter ao cristianismo. O
turco Corbaran responde, em sentido inverso, que se os cristãos renegarem
seu Deus, eles poderiam ter a terra, as cidades e os castelos como uma
espécie de feudo, “e ninguém dos vossos permanecerá infante, mas todos
serão Cavaleiros como nós o somos, e teremos sempre uma grande ami-
zade™. Senão, será a morte ou a escravidão.
Mas uma hoste pós-carolíngia seguindo o itinerário que fora an-
teriormente o de Carlos Magno não saberia trocar de religião tão facil-
mente, como, por exemplo, os normandos em 911! Os Cavaleiros, de resto,
desejariam a promoção dos infantes?
Na verdade, eram palavras destinadas apenas a testar o adversário.
Pouco depois, a determinação dos cruzados é reforçada pela “descoberta”
da Santa Lança. O clima volta, então, à guerra santa, e a própria dificuldade
do momento galvaniza os cristãos. Eles se deslocam em retirada a 28 de
junho de 1098. Nesse dia, o turco comete o erro de enfrentar a cavalaria
franca, forte em seu golpe de lança, de maneira frontal, deixando-a mano-
brar. Enquanto os Cavaleiros ganham esse combate sem muitos mortos,
os infantes que cobrem suas retaguardas sofrem perdas pesadas. Fis uma
jornada socialmente mais tranquilizadora que a perspectiva há pouco
ofertada de conversão ao isli! Além disso, os cruzados tiram proveito de
algumas defecções no campo adversário. É preciso dizer que o islá médio-
oriental não lhes opõe todas as suas forças. Ele está dividido entre dois
califas, sendo o do Egito, fatímida, hostil ao de Bagdá, que apoia os turcos.
O exército fatímida, ao invés de vir reforçar estes últimos, toma-lhes Jeru-
eu
salém em 26 de agosto de 1098. Pode-se inclusive perguntar se não ocorr
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um acordo secreto com Boemundo!
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crueldade dos cruzados, mantendo as questões que nos coloca esse cristia-
seme-
nismo do ano 1100, que fala em seguir a Cristo, que não ir[xpedc
no
lhante massacre, e que não impõe penitência a seus autores. E preciso,
entanto, reconhecer que seu projeto jamais fora o de exterminar o isla'",
Os cruzados cometeram, portanto, crimes de guerra. De imedia-
to, entretanto, não h4 reagio uninime dos mugulmanos; inclusive, quan-
do, algum tempo depois, capturam Boemundo ou outros principes (tal
como Balduino do Burgo). Eles os guardam como reféns e jogam o jogo
do resgate. Seus emires dão prova do mesmo pragmatismo que esses prin-
cipes, e logo vem o momento de concluir com eles tratados. De alguma
maneira, a implantagio de certos senhores “francos” no Oriente Meédio se
parece com a dos normandos na Franga do ano 900. A diferenga é a difi-
culdade que têm em se converterem oficialmente; podemos apenas entre-
ver, um pouco, a existéncia de alguns renegados.
1º! Quando Suger (Vida de Luís V1,28, p. 223) atribui a certos barões franceses, em 1124,
o desejo de matar alemies “desumanamente, como se fez com os sarracenos’, ele de-
saprova seu projeto, € não aprova necessariamente, o que “se fez” aos sarracenos.
1 Ver Alain Demurger, Vie et mort... e Chevaliers du Christ...
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-
" Ver, neste volume, pp- 478-9.
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de uma escapatória: ele gostaria muito que seu filho aprendesse a Cavala-
ria na França, se isso dependesse apenas dele; mas eis que sua velha mãe (a
avó do jovem homem) teria desgosto demais. O francês compreende — tal-
vez ele não seja tão tolo —, aceita a desculpa e não insiste. Sua oferta seria
tão séria assim, no final das contas?
Do lado sarraceno, no espírito de Usama, as mulheres estão lá para
encarecer os valores da guerra e da vingança, encarnando sempre a linha-
dura. Elas não são associadas a toda manobra, como o são às vezes as damas
de França, pelo efeito do sistema cognático.
Assim, o Livro de Usama nos atesta que o encontro das duas Ca-
valarias às vezes acontece, e que ele foi o encontro de dois esnobismos,
suscetíveis de limitar a dureza dos enfrentamentos. Francos e sarracenos
se admiraram mutuamente, lisonjeados com a estima do outro, ao mesmo
tempo permanecendo cada qual na defensiva. Eles souberam que a Cava-
laria não estava ligada a uma das religiões do Livro e sentiram, intuitiva-
mente, que os inimigos que se parecem têm algum interesse em se enfren-
tar de maneira muito mais “Cavaleiresca” para melhor confortar seu lugar
dominante, cada um em sua sociedade, especialmente em relação aos
camponeses ¢ as mulheres.
Hé, portanto, um vertiginoso contrassenso em uma pagina do
capfrulo de Michelet sobre o “ano 1100”. A cruzada seria, segundo ele, o
grande movimento que abala a “feudalidade”. No deserto árido, ou nas
angústias de Antioquia, o servo teria ficado ao lado do Cavaleiro e ganhado
pode
um pouco de reconhecimento e consideração. “Mais de um servo
dizer ao barão: “Meu senhor, eu vos achei um copo de água no deserto; eu
vos cobri com meu corpo no cerco de Antioquia ou de Jerusalém””!8, Mas
de onde Michelet tira isso? Nenhum texto contemporâneo conta histórias
semelhantes de servos. Elas só aparecem nas legendas familiares muito
posteriores, quando linhage ns burguesas enobrecidas do século XV pro-
curam ancestrais valorosos na pr imeira cruzada, ou quando os privilégios
Felipe 1, de
do século XVII reclamam a libertagao para a faganha, pelo rei
seu cozinheiro servo que partira A cruzada.
Por outro lado, Michelet toma
os cruzados de 1095 pelos “voluntários” franceses de 1792 e, sobretudo,
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Muito mais que com seu proprio servo, eles preferiram se relacionar com
o Cavaleiro do outro lado, o sarraceno, cujo orgulho lhes agradava.
Não se pode dizer que eles se deixaram conduzir ou reformar pela
Igreja, de forma radical, no período gregoriano. A Igreja não fanatizou
Cavaleiros cruzados muito mais do que abrandou os Cavaleiros feudajs,
Todos mantiveram com ela, ou seja, com seus parentes que a dirigem, uma
relagio feita de algumas tensões e muitos arranjos. A reforma e a cruzada
reajustaram essa relagao, mas elas não tém nada a ver, praticamente, com
a “mutagio Cavaleiresca” que descrevemos no capitulo precedente. Essa
mutagio, de fato, não consiste nem em estabelecer a paz total nem em
produzir uma verdadeira milicia guerreira, mas muito mais em desenvol-
ver um jogo Cavaleiresco frivolo, pouco assassino, semiguerreiro. Ora, os
clérigos não têm todos o mesmo discurso sobre esse jogo.
A partir dos anos 1130, a Cavalaria cléssica se percebe reunida em
torno dos principes cuja prodigalidade financia as cortes, os adubamentos
e os torneios. Eles se vangloriam de tratar bem os Cavaleiros a0 mesmo
tempo em que aumentam pouco a pouco sua influéncia sobre eles.
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