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“[Eu] edificarei a minha igreja”, declarou Jesus (Mateus 16.18).

E que
magnífico e agonizante processo foi esse, que vem se desenvolvendo
por dois milênios. É essencial para essa obra a formação de pedras
vivas: homens e mulheres libertos das presas do pecado, cujas vidas
agora testificam da graça evangélica.

Mas como Cristo constrói a sua igreja? Uma resposta é proposta dentro
da cúpula da Basílica de S. Pedro em Roma, em letras de um metro e
oitenta, onde a promessa de Cristo está escrita em latim: “E tu és Pedro,
e sobre esta pedra edificarei a minha igreja …” Iluminadas pelas janelas
circundantes, essas palavras parecem uma coroa em cima da cripta do
próprio apóstolo, que está escondido bem abaixo do altar principal, um
lembrete da autoridade dada ao herdeiro de Pedro que se assenta sobre
o trono papal.

Martinho Lutero não foi o primeiro a questionar a autoridade papal, mas o


seu argumento foi especialmente incisivo. Quando as ideias de Lutero
começaram a se solidificar em 1520, ele articulou as suas preocupações
numa obra seminal: À Nobreza Cristã da Nação Alemã. Esse tratado foi
ocasionado pelos ataques provindos do teólogo do papa, Silvestre
Prierias, que afirmou o absolutismo papal com tanta veemência que
Lutero o chamou de um “manifesto infernal”. Convencido da autoridade
suprema da Escritura, e crendo que a nobreza alemã seria simpática a
sua posição, Lutero, à luz de precedentes históricos, exortou os nobres a
abraçarem a responsabilidade por uma reforma eclesiástica.

O tratado de Lutero desafiou a instituição romana: as convenções


sociais, políticas, jurídicas e religiosas que baseavam a cristandade
ocidental. A preocupação central era a reivindicação papal (propagada
por Prierias) de que somente o papa poderia interpretar confiavelmente a
Escritura e se manifestar sem erro. Lutero via tais tradições como
acréscimos religiosos que ameaçavam a integridade da igreja, caso não
fossem erradicados.

Olhando para trás, às vezes nos perguntamos como a acumulação da


tradição romana se desenvolveu do barco de pesca galileu até os dias de
Lutero, isto é, do dia do Pentecostes até o século XVI. Embora a história
seja longa e complexa, o panorama a seguir vai tentar dar certos
esclarecimentos, dando uma atenção especial para o desenvolvimento
da autoridade eclesiástica no ofício papal.

O Primeiro Papa
A nossa história começa com um lembrete do Lord Acton, que sugeriu
que a melhor maneira de assegurar a solidez de certa posição era fazer
o melhor argumento possível em prol dos que se acredita estar errado.
Embora a narrativa a seguir não seja um argumento por si só, ela
pretende demonstrar que a trajetória equivocada da autoridade papal se
desenvolveu de uma forma até natural no escopo e no decorrer da
história ocidental, um desenvolvimento que serve de advertência aos
seguidores de Cristo de cada época.

Os historiadores católicos tipicamente reconhecem que não há uma linha


reta entre o papa atual e o apóstolo Pedro. Nas palavras de Eamon
Duffy, “não há nada, portanto, que se aproxime diretamente a uma teoria
papal nas páginas do Novo Testamento” e, considerando todas as
evidências, “não havia um bispo de Roma único por quase um século
após as mortes dos apóstolos”.

Foi por volta de 150 d.C. que o padrão mais solto da autoridade
presbiterial começou a dar lugar a um bispado romano único, um ofício
que eventualmente se desenvolveu numa posição monárquica sob o
Bispo Victor (189-198) e em maior medida sob o Bispo Estevão I (254-
257). A invocação de Mateus 16 por Estevão foi o primeiro exemplo de
um bispo de Roma tentando se elevar sobre outros bispos com uma
autoridade que era qualitativamente superior.

A conversão de Constantino, e seu subsequente investimento em


instituições eclesiásticas, colocou os bispos romanos no centro da vida
imperial. Eles logo se tornaram potentados prósperos e engajados
politicamente, adquirindo os trejeitos urbanos da aristocracia. A influência
política do bispo aumentou quando Constantino transferiu a capital do
império para Constantinopla em 330, uma mudança que tornou o bispo
de Roma o indivíduo mais importante na cidade. Mas qual desses bispos
deve ser considerado o primeiro papa?

A maioria dos historiadores apontam para Leão I, que ocupou o trono


episcopal em Roma de 440 a 461. Um líder espiritual e um gestor hábil,
Leão celebremente persuadiu Átila, o Huno, a deixar a cidade de Roma
em paz, um dos muitos atos que lhe garantiram o título de “Grande”. Ele
gostava de ser chamado de “Papa” (pai), de onde a palavra papa é
derivada, um título que era comumente usado para bispos, mas que se
tornou restrito ao bispo de Roma por volta do século VI. Leão, que se
entendia como um canal da autoridade apostólica de Pedro, insistia que
os apelos aos tribunais eclesiásticos fossem trazidos a ele. Como
“pontifex maximus” (o principal sacerdote de uma cidade), as suas
decisões precisavam ser ouvidas como definitivas.
Desenvolvimento do Ofício Papal

Com o colapso do governo romano no Ocidente, e o influxo de tribos


germânicas durante o século V, era natural que o papa servisse como o
principal governante de Roma. Ele era cada vez mais chamado a
promover a justiça, a defesa e as provisões durante a fome, funções que
podem ser chamadas de “seculares”. Enquanto isso, governantes
cristãos continuaram a conceder terras e construir grandes igrejas. A
acumulação desses bens pela igreja foi um resultado natural do vácuo de
poder deixado pelo Império Romano, mas exigia que os líderes
eclesiásticos administrassem grandes quantidades de terra e riqueza, e
praticassem o insalubre poder de barganha que vinha junto.

Foi nessa época que a consciência teológica do papado deu outro passo
significativo. Gelásio I (492-496) foi além da reivindicação de Leão à
jurisdição sobre os outros bispos ao afirmar que o poder do papa era
superior aos reis. Essa distinção entre o poder papal e a autoridade
temporal se mostraria relevante nos séculos seguintes quando papas e
imperadores se digladiariam sobre a questão de quem era o líder
legítimo da cristandade. Segundo Gelásio, já que os papas prestariam a
contas a Deus pelos reis, o seu poder sagrado superava a autoridade
imperial de qualquer imperador ou governante temporal.

Uma série de pessoas e eventos significativos aconteceriam nos anos


seguintes: o legado de Gregório I (540-604), especialmente com a sua
teoria missiológica; a doação de Pepino, o Breve, do território ao redor de
Roma no que se tornariam os Estados Papais (756); a suposta Doação
de Constantino; a coroação icônica de Carlos Magno por Leão III no
Natal (800); a intervenção de Henrique III quando houve três candidatos
diferentes ao trono papal (1046); as reformas do Papa Leão IX (1049-
1054), que proibia os sacerdotes de se casarem e a sua mobilização do
Colégio de Cardeais; oposição à “investidura leiga”, a prática de
governantes seculares escolherem bispos e os investir com os símbolos
de sua autoridade; as Cruzadas (começando em 1095); e a compilação
de Graciano de direito canônico (c. 1140). Por mais que essa breve
amostra seja bem diversificada, cada evento de alguma forma contribuiu
para o poder consolidado do papado medieval e seu relacionamento
complexo com os Estados-nação emergentes.

O pontificado de Inocêncio III (1198-1216) é corretamente visto como o


ápice do poder e prerrogativas papais. Foi Inocêncio que se via como
operando acima do homem e abaixo de Deus, e especificamente “cria
que Deus tinha dado ao sucessor de Pedro a tarefa de ‘dominar sobre o
mundo todo’, bem como sobre a igreja”. Identificando-se como o “Vigário
de Cristo”, ele reivindicou ter poder supremo sobre a terra e considerou a
sua autoridade sobre os Estados-nação como derivando da sua própria.

Em 1215, ele convocou o Quarto Concílio de Latrão, que estabeleceu o


dogma da transubstanciação, dentre outras reformas doutrinárias e
pastorais.

Enquanto o poder papal alcançava o seu zênite sob Inocêncio III, ele
logo começaria o seu declínio. Uma tensão crescente entre o papado e
os Estados-nação eventualmente levou a um conflito entre Bonifácio VIII
(1294-1303) e o governante da França, Filipe, o Belo. Em uma disputa de
poderes que lembra a estátua do Manneken Pis em Bruxelas, Filipe
eventualmente emergiu vitorioso. Tendo sido vencido, Bonifácio então
emitiu a bula papal conhecida como Unam Sanctam, onde ele reivindicou
que “é completamente necessário à salvação que toda criatura humana
se sujeite ao Pontífice Romano”. Bonifácio, contudo, não podia apoiar
suas reivindicações com poderio militar. Filipe, portanto, o prendeu, uma
antecipação do que o papado se tornaria em alguns poucos anos.

A Igreja no Cativeiro

Quando o novo papa eleito, Clemente V, não pôde voltar a Roma pelo rei
da França em 1305, ele eventualmente mudou a sua corte papal para
Avignon. Isso começou o chamado Cativeiro Babilônico do Papado, um
período entre 1309 e 1376 em que sete papas seguidos viveram em
exílio de Roma, a poucos metros de distância da fronteira francesa.
Quando o papa Gregório XI finalmente retornou a Roma em 1377 e
morreu ali, o colégio de cardeais de maioria francesa se reuniu num
conclave em meio a multidões enraivecidas que demandavam um papa
italiano. As massas tiveram o que queriam com Urbano VI, mas os
cardeais rapidamente tiveram remorso da sua escolha e elegeram um
papa francês no lugar disso (alegando ter feito sua decisão inicial sob
coação). Havia agora dois reclamantes ao trono papal.

O Grande Cisma Ocidental durou quarenta anos. As nações se reuniram


em apoio a um papa ou outro, mais ou menos com base nas suas
relações com a França. O Concílio de Pisa foi convocado em 1408 e
tentou resolver a questão elegendo um novo papa, que foi João XIII.
Isso, todavia, apenas aumentou o problema, pois agora havia três
reclamantes papais. Foi necessário o Concílio de Constança em 1414
para resolver o imbróglio, depondo todos os três papas antes de eleger
um novo em 1417, Martinho V. Como uma forma de controlar o poder
papal, Constança também decretou manter um concílio geral como o
principal órgão governante da igreja. Mas os papas subsequentes
reverteram essa resolução e retornaram o ofício papal à posição de
supremacia.

A nossa história acaba logo antes do alvorecer da Reforma, com o


Quinto Concílio de Latrão (1512-1517), onde o Papa Júlio II se vestiu
como um imperador romano, portando uma espada e uma capa amarela
e ab-rogou a superioridade dos concílios em favor do poder papal. Mas,
ironicamente, foi nesse contexto que Egídio de Viterbo afirmou: “Os
homens precisam ser mudados pela religião, não a religião pelos
homens”.

O Poder Absoluto Corrompe Absolutamente

Tendo começado com Lord Acton, vamos concluir com as suas palavras
mais famosas: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe
absolutamente”. O que frequentemente se esquece, contudo, é que
Acton estava falando, na verdade, sobre o absolutismo papal, uma
preocupação que tem motivado reformadores cristãos ao longo dos
séculos.

Mas esse perigo não é exclusivo aos que portam o anel papal ou se
inclinam para beijá-lo. Lá no fundo, a trajetória de todo coração
pecaminoso é ser igual ao Papa Júlio II, esbanjando as nossas
esplêndidas capas amarelas e procurando por um trono para se
assentar. Mas há um só Senhor que se assenta sobre o trono: o
Cordeiro, a quem damos louvor e honra e glória para todo o sempre.

Fonte original: How the Catholic Church Became Roman

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