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Cuiabá
2013
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
As pegadas do sagrado:
o político como religiosidade
trágica do pecado e uma fé triunfante teria sido capaz de capturar tudo, dos
gestos às coisas, e integrá-los conforme uma ordem religiosa já conhecida.
Nessa espiritualidade superordenadora, nada teria havido de precário. Nenhum
desencontro duradouro ou desencaixe ruidoso teria persistido em seu interior.
Partilhada dentro do Papado medieval, ela simplesmente parece não ter cado
face a face com o risco da refutação empírica ou de cair em uma situação
marginal. Os historiadores discordavam sobre o processo que havia levado a sua
vitória sobre o mundo social, mas ninguém ousou duvidar de seu triunfo.
O sagrado teria proporcionado aos integrantes da Sé romana uma visão
estruturante sobre as identidades e as relações coletivas. Com olhos elevados
para as coisas santas, os partidários de Leão IX ou de Gregório VII teriam
pensado e agido sempre com a nalidade intrínseca de separar os vivos por
meio da oposição entre o profano e o sagrado. Eles teriam vivido a religião como
portadora de uma lógica separatista, orientada para distinguir os laicos, que se
dedicavam a atividades pecaminosas, manchadas pelo profano, dos clérigos, os
únicos verdadeiramente autorizados a manejar os rituais e as fórmulas capazes
de apagar aquelas máculas. A religião tornou-se o ltro do conjunto social.
Totalizar e separar para então mediar. Essa teria sido a lógica
fundamental para a união dos gregorianos. O que os levava a destacar pessoas,
lugares e objetos como sagrados não era uma intenção de isolá-los, como se os
desejassem inacessíveis, distantes do toque dos demais. A cúpula papal protegia o
sagrado para assegurar que ele chegasse ao profano sem ser corrompido. Somente
os sacerdotes, instruídos no domínio ritual e na exegese o cial da sacra escritura,
auxiliares escolhidos por Cristo, poderiam manejar aquela energia terrível e
avassaladora, dosando sua presença no interior das comunidades. Atentos à
vida secular, os reformadores teriam desejado santi car a existência comum
subordinando-a à liderança clerical. A insubstituível mediação sacramental
teria sido o fundamento da superioridade eclesiástica sobre os demais poderes e
instâncias sociais. Estaríamos diante, portanto, de uma tentativa de monopolizar
a gestão do sagrado.
Reformador ou revolucionário, o discurso do poder pontifício
teria sido constituído, a partir de 1050, por essas características essenciais: a
capacidade totalizadora de converter a sociedade em seu campo de atuação; a
e cácia simbólica para integrar as ocorrências do mundo aos preceitos religiosos;
a orientação para uma dicotomia mediada entre clérigos e laicos. Lancemos um
olhar um pouco mais detido sobre o tema.
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
O labirinto do sagrado
21 Além de ter frequentado Roma entre 1078 e 1085, Bernoldo conhecia o Liber Ad Amicum
escrito por Bonizo, bispo de Sutri que, meses antes do cerco aqui relatado, fora capturado pelas
tropas de Henrique IV, permanecendo em cativeiro por quatro anos, experiência que marcou
profundamente sua versão dos fatos. Sobre a prisão de Bonizo ver ainda: Benzo de Alba. Ad
Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 11: 664; Bernoldo de Constance. Chronicon. MGH
SS 5: 437. Conf. também: Robinson (2004a, p. 59), Weinfurter (1999, p. 131-158), Eads (2003,
p. 355-388).
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
23 “Interea Dominus Magnum miraculum in Regis et omnium oculis fecit: quo cognito, multi eum
reliquerunt. Nam post excommunicationis diem, Paschalis dici solemnitate, cum regio apparatus
et comitatu pompaticae multitudinis, ad Ecclesiam, divinitus sibi clausam, venire nequaquam
abhorruit. Jussu itaque Regis quidam Episcopus si fas est, imo haereticus et Simoniacus, ad Missae
se praeparavit o cium. Tandem perlecto Evangelio ex more facturus popularem sermonem
Pontifex idem, pulpitum conscendit. Parum autem de tractatu locutus Evangelico, statim se ad
blasphemiam Papae Gregorii caeco corde menteque vesana prorupit, quae pro nimio sui horrore
silentio praeterire complacuit. Di cile est enim ut bene sibi conscientium probitatem, obtrectantium
lingua non mordeat, et iniquorum evadat opprobria, cui est amica justitia. Verumtamen eadem
blasphemia qualis in oculis Domini fuerit, continuo sequens ultio, si perpendatur, innotescit.
Nam Paschalis diei gaudio nondum nito, subito coelum fragore intonuit, in quo ignis descendere
coelitus visus est; qui omnem illam ecclesiam, omneque domos regali receptui praeparatas,
repente consumpsit, et laetitiam profanorum in moerorem commutavit: Episcopum vero illum
blasphemum, subito percussum, divina ultio interemit. Se aatequam vitam penitur exhaleret,
ministros suo exitio praeparatos, quales essent, compulsus est dicere: Video me, inquit, igneis
loris astrictum, tetris trahentibus imaginibus ex hac vita convelli: sed tamen ite, et dicite Regi ut
agitium, quod in Deum, et B. Petru, ejusdem Vicarium commisit, emendet; ne me praeeuntem ad
inferi loca sequatur; et haec dicens, exspiravit. Hoc exemplo commoniti, hortamur et obsecramos
omnem hominem linguis, si mavult consortium habere cum Gregorio in ressurrectione vitae, quam
cum detrahentibus supplicium subire.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL,
v. 148, col. 76B-77A).
24 “Apud Traiectum tex pascha egit, collectis undecumque illuc non parvis suae rebelionis et
inoboedientiae complicibus. Ibi tunc aecclesia, quam episcopus jam diu maximis inpensis et studii
construxerat, a Deo et Sanco Petro despecta, igne ultore mirabiliter con agravit.” (BERTHOLDO.
Annales. MGH SS 5, p. 283).
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25 “Studio partim regis multa in iniuriam Romani ponti cis omnibus pene diebus solemnibus
inter missarum solemnia rabido ore declarabat [...] adulterum et pseudoapostolum appelans
[...] sanctissimo et apostolicarum virtutum viro, graves contumelias, sciens et prudens innocenti,
irrogasset.” (LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 244).
26 “Percursus est enim a Deo plaga insanabili, ita ut cum horrore et stupore mirabili clamaret: ardeo,
ardeo quia corpus vivi cat, incendium illi poenamque pariebat, quo exarserat in eo sicut ignis in
spinis, ut manifesta in eo eret ultio Domini [...]. Miseram vitam miserabili morte nivit.” (HUGO
DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8, p. 458-459). Hugo de Flavigny data o sínodo de Utrecht
em 1080.
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27 “Illa quoque visio non indigna commemoratione videtur, qua dilectus Deo et hominis, benedictae
memoriae Adalbertus monachus, et ipse contumelias et terrores ab adversariis Gregorii nostri
propter obedientiam decretorum ejus passus, eamdem Herlucam vidisse referebat de quodam
Nicolaita, qui carnalibus desideriis inserviens ecclesiam illam contaminaverat, quae est in loco
qui dicitur Rota. In illa namque con nia, hoc est in con nio Noricorum et Alamannorum quos
Lycus uvius disterminat, non procul destinabat mansiones ejusdem venerandi senis et beatae
Virginis, multumque se invicem in Christo diligebant, quia excellentem Dei gratiam in se mutuo
recognoscebant. Ita ergo dilectus dedilecta narrabat. Beata Herluca inter socias virgines et viduas
quadam die ex more sedebat, et operi manuum juxta consuetudinem suam diligenter incumbebat;
cum ecce subito per fenestram prospiciens, miserabiliter lamentari coepit et vociferari dicens: Vae,
vae! Melius homini illi erat, si natus non fuisset. Cumque nimis attonita quaedam illustris femina,
nomine Hadewiga, interrogasset eam quidam vidisset, unde tantum commota fuisset? Mortuus
est, inquit, infelix Presbyter illud de Rota, et anima ejus ab angelis Sathanae sublata portatur ad
inferna: vidi enim eos praetereuntes cum insultatione, et animam comitantem cum ejulatione. Illa
optante hoc verum non esse, Mittatur, inquit, qui veritatem inquirat. Missus nuntius familiam
lugentem invenit; et eadem hora comperit mortuum, qua beata Virgo spiritum ejus viderat a
malignis spiritibus asportatum.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL, v. 148,
col. 78B/C).
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
espirituais – celestiais para uns, infernais para outros. Séculos depois, por
exemplo, nas distantes décadas de 1550 e 1560, protestantes como John Foxe
(1517-1587) e Matthias Flacius (1520-1575) redigiram relatos sobre como o
líder medieval era capaz de lançar labaredas pelas mangas das roupas e abrigar
uma hoste inteira de demônios na biblioteca. Por volta de “ ns do século
XVI, a imagem de Gregório como mago e necromante havia se tornado bem
estabelecida em histórias evangélicas sobre o Papado” (PARISH, 2005, p. 137).
Provavelmente, o “papa diabólico” imaginado pelos quinhentistas foi inspirado
em registros do século XI, uma vez que conhecemos as acusações de homicídio e
de necromancia disseminadas por Guido de Osnabrück, no Liber de Controversia
de Hildebrandi et Heinrici (1085), e pelo episcopado imperial reunido no sínodo
de Brixen, em junho de 1080.28
A Santa Sé não deixou por menos. Por decisão de Gregório XIII (1502-
1583), toda a cristandade deveria aceitar seu predecessor homônimo como
santo. Pois a santidade era a única explicação para o corpo do papa exilado
por Henrique IV continuar intacto. Era uma iniciativa marcante. O m de um
silêncio incomum para a Igreja católica: durante 65 anos, entre 1523 e 1588,
ninguém foi elevado à santidade pela Cúria. A declaração da santidade papal
faria parte da ofensiva romana pela reconquista do sagrado. Em 1588, Diego
de Alcalá foi proclamado santo; Jacinto de Odrovaz, em 1594; em 1606, foi a
vez de Raimundo de Peñaforte ser inscrito no rol celestial; em1606, Gregório.
Um século depois, a de nição do dia 25 de maio como data universal da “Festa
de São Gregório VII”, obra de Bento XIII em 1728, consagraria a identidade do
pontí ce medieval mais venerado entre os católicos (CHADWICK, 1981, p. 294).
A santi cação papal repercutiria na historiogra a moderna: as principais fontes
documentais empregadas pela Cúria para embasar o processo de canonização
seriam consagradas pelos historiadores como os registros escritos mais valiosos
da época, caso do Liber ad Amicum de Bonizo de Sutri (1045?-1091?).
Os apelos gregorianos ao sagrado formam um espectro de referências
documentais de notável complexidade. Outro bom exemplo pode ser encontrado
entre os registros do Concílio romano de 1078. Durante as deliberações, o papa
solicitou que fossem examinadas as notícias de milagres ocorridos nos túmulos
de Cêncio (?-1077?) e Erlembaldo (?-1075). Ambos eram laicos. Segundo muitos
historiadores, essa era uma condição social incomum para um santo no século
XI. Ser laico bloqueava o caminho que levava à santidade, pois assim eram
identi cados os supostos inimigos da liberdade da igreja (VAUCHEZ, 1991;
2009; STRICKLAND, 2007; WEINSTEIN; BELL, 1982).
O primeiro era um aristocrata local, quer havia herdado do pai,
João Tionísio, o disputado título de prefeito de Roma. Nos últimos dez anos, a
linhagem de Cêncio tinha se revelado uma aliada insubstituível da autoridade
romana. Não só pela lealdade, mas, principalmente, por manter o governo
citadino longe das mãos dos Stephani, proeminente família local declaradamente
hostil à Cúria. Em 1073, quando rumores espalharam pelas vielas de Roma que
o prefeito pensava em renunciar ao mundo e ingressar em um monastério,
Gregório reagiu com veemência: a vida contemplativa permaneceria um
propósito fora de lugar para Cêncio enquanto suas ações fossem necessárias no
comando da cidade (COWDREY, 1998, p. 326-328). Tendo desistido da ideia,
o aristocrata apoiou o papa incansavelmente, até o verão de 1077, quando seus
rivais emboscaram-no. O destino do Stephani que o matou foi trágico. Acabou
arrastado para fora da fortaleza da família e linchado pelos romanos. Cêncio,
por sua vez, foi sepultado em mármore no interior da basílica de São Pedro. Aos
prelados reunidos no concílio, Gregório a rmou que seu antigo prefeito havia
sido coroado com o martírio por Cristo, que “notabilizou seu sepulcro com vinte
milagres enumerados e aprovados” 29 pela assembleia clerical.
O segundo a ter sua santidade examinada era uma gura ainda mais
controversa. Erlembaldo era cavaleiro e herdou do irmão, Landulfo, a liderança
dos patarinos – grupo de milaneses condenados como hereges e excomungados
pelo episcopado da Lombardia em 1057.30 Desde então, muito havia acontecido.
Enquanto as relações entre o Papado e o bispo de Milão tinham se deteriorado
em compasso acelerado, Erlembaldo manteve a postura de advogado da
subordinação do clero ambrosiano ao primado apostólico. Na batalha travada
entre Roma e Milão pela sujeição hierárquica desta última, o cavaleiro milanês
declarou-se a favor da superioridade romana. As provas de lealdade renderam-
lhe a guarda do “estandarte de São de Pedro” e a honra de defensor de todo
o patrimônio papal, símbolos da estreita aliança mantida com Alexandre II
(1015?-1073).
29 “Dominus noster Jesus Christus martyrio coronavit, eiusque sepulchrum continuo viginti
miraculis, in Synodo numeratis et probatis, illustravit.” (PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii
VII papae. PL 148, p. 83B).
32 Para as condenações de Berengário nos concílios de Roma (1050), Vercelli (1051) e novamente
Roma (1059 e 1079), consultar Vita Leonis IX Papae. PL 143, p. 490-495; Gregório vii. Das
Register. MGH Epp. Sel. 6, p. 425-429; Hugo de Flavigny. Chronico. MGH SS 8, p. 443; Mansi 19,
p. 759- 770, 773-774, 900; MANSI 20, p. 516-526.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
para a consternação de todos, quem aí era batizado não recebia a bênção com
o crisma, pois o óleo da unção era impuro, já que havia sido consagrado por
Mezzabarba. Ao agir assim, os vallombrosianos demonstravam que a ordenação
do bispo era nula: ele era incapaz de transmitir a graça divina àquilo que
consagrava (D’ACUNTO, 1993, p. 290-301).
A questão passou a causar grande comoção nos citadinos. Os monges
evocavam os laicos, rogando-lhes que também vigiassem o cumprimento
sacerdotal dos preceitos de uma vida apostólica. Cada vez mais in amadas, as
pregações não cessavam. Nem mesmo quando chegou de Roma uma ordem
expressa que proibia os beneditinos de deixar a clausura para proclamar a palavra
em meio aos éis (JL 4552). A verve monástica não cedeu sequer com a chegada
do cardeal Pedro Damião (1007-1072?). Investido da missão de pôr um m à
luta, Damião acolheu as denúncias, porém com visível antipatia pela escolha
dos beneditinos de invocar o “povo orentino” (populus orentinus) como juiz
da moralidade clerical. Mezzabarba, por sua vez, retaliava. Enviou homens
armados à abadia para capturar João Gualberto, o fundador de Vallombrosa.
O rapto falhou. Apesar da destruição levada à casa dos religiosos, os cavaleiros
retornaram sem o líder monástico. O bispo, então, foi mais longe e empenhou
a própria fortuna para consolidar a fundação de um monastério que rivalizasse
com o prestígio espiritual de seus acusadores (DAMERON, 1991; JESTICE,
1997, p. 233-243; CORNELL; ZORZI, 2000).
Tendo obtido entre os laicos e uma boa parte do clero de Florença a
aprovação para que o impasse fosse julgado em Roma, os monges viajaram ao
Lácio, onde se ofereceram para provar a justiça de suas acusações por meio de um
ordálio do fogo. No entanto, não encontraram os aliados esperados. Alexandre
II proibiu a prova corporal.35 Diante do parecer desfavorável do pontí ce, a
situação dos monges complicou-se. A Cúria não via com bons olhos aquela
agrante desobediência hierárquica e considerava a conduta dos beneditinos
um exemplo inaceitável de desacato à autoridade episcopal. Além disso, era
impossível julgar a questão sem levar em conta o interesse demonstrado por duas
guras: Rainaldo (?-1075?), bispo de Como, e Godofredo (997?-1069), duque
da Lorena. O primeiro compareceu ao concílio e descarregou a indignação
do episcopado lombardo perante o extremismo daqueles monges. Quanto ao
segundo, basta isso: Godofredo sustentava o bispo orentino e Alexandre devia-
lhe seu ponti cado (D’ACUNTO, 1993, p. 288-303).
Os vallombrosianos chegaram às colinas romanas como defensores
da fé cristã e estavam prestes a deixá-las como transgressores da boa ordem da
Igreja. Seu temor deve ter crescido quando Pedro Damião tomou a palavra. O
cardeal foi implacável:
Agora me dirijo aos meus irmãos monges, com quem, acredito,
esta disputa começou. Eles dizem que bispos como estes são
incapazes de abençoar o crisma, dedicar igrejas, conferir ordens
clericais ou celebrar missas em qualquer momento. [...] É o bispo,
por suas palavras, que conclama o Senhor sobre um homem, mas
é o Senhor que realiza a e cácia da bênção. Portanto, o efeito da
bênção não depende dos méritos do bispo [...]. A Santidade é
odiosa se ela recai em heresia [...]. A pureza excessiva [...] arrasta
para a contaminação na imundície herética. [...] Pois declarar algo
como ilícito, quando ele é permitido, e, ao fazê-lo, vangloriar-se
de serem os defensores da justiça, os levará a serem julgados como
inimigos da Igreja. Podemos adequadamente comparar este tipo
de homem a sapos ou gafanhotos, pois ele agora devasta a Igreja
assim como anteriormente esses animais foram pragas no Egito.36
38 “Cum itaque pene omnes furerent contra monachos et dignos morte iudicarent eos, qui temerarie
contra prelatos ecclesiae armari auderent [...]. Interea suxerrit in concilio quidam vir egregius ex
excellentissimus alter Gamaliel, scilicet Ildebrandus monachus et archidiaconus ecclesiae Romanae,
qui non pedetemptim ratiocinando, sede aperte atque fortissime defendit monachos contra omnium
opinionem.” (ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107).
40 A epístola enviada pelos orentinos ao papa, bem como uma detalhada narrativa
de todo o con ito, pode ser encontrada em: André de Strumi. Vita sancti lohannis
Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1096-1100. Ver ainda: Annales Altahensis Maiores. MGH
SS rer. Germ. 2, p. 74. Para referência geral ao concílio: HEFELE E LECLERCQ (1912,
4:2, p. 1266); CAPITANI 1966 ; MANN 1925, 6, P. 302 .
42 Virum religiosissimum. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 612; Referência
ainda em: PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL 148, p. 58.
43 “Ita nimirum a synodo, cui vestrae sanctitatis auctoritas praefuit, contritus nuper et arefactus
abscessi, ut mens mea tot oppressa negociis, more silicis obdurata, nec per imbrem se cumpunctionis
emolliat, nec se quantumlibet super se gratia intimae contemplationis attollat. [...] Quapropter haec
apud me di nita sententia est, quia de caetero, nisi me necessitas inevitanda compellat, donec
advixero Romanis me conciliis funditus absentabo.” (PEDRO DAMIÃO. Briefe 164. MGH Epp.
4, p. 166-167). Para uma crítica da relação entre Pedro Damião e a Reforma Cristã, ver Bovo
(2012).
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
Um pouco de teoria
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
severas críticas, que a desquali cavam como um rígido esquema intelectual que
simpli cava a complexidade dos seres humanos ao ceifar qualquer margem de
autonomia para a dimensão cultural implicada em sua coexistência.
Não foram poucos os críticos que enxergaram na sacralidade elementar
apresentada por Durkheim uma maneira de reduzir a imprevisibilidade da
interação humana a grandes movimentos impessoais, excessivamente genéricos.
Desse ponto de vista, o sociólogo teria formulado uma teoria abstrata demais,
que perdia de vista as instabilidades e tensões das experiências sociais, bem
como suas rupturas e sua adaptabilidade (MOL, 1979; LEHMANN, 1995;
PICKERING, 2001, v. 3; FISH, 2005). A mesma característica louvada por
muitos como mérito insuperável foi desaprovada por inúmeros outros como
excesso abusivo: “o vigoroso espírito de sistema traz às elaborações teóricas um
quadro tão exigente, do qual podemos, conforme o humor do dia, admirar a
lógica ou lamentar as exigências” (ISAMBERT, 1976, p. 39).
Porém, diante dos dilemas que cercam essa complexa teoria geral da
religião, um princípio parece-nos imprescindível, ao menos para a compreensão
dos relatos gregorianos: o sagrado provém da interação social. É um modo
singular de edi car posicionamentos em meio ao inesgotável uxo de desa os
produzidos pelas relações coletivas. O essencial da de nição reside no signi cado
do adjetivo “singular”. A atenção deve convergir para ele. A nal, ele marca a
ideia de que lidamos com uma modalidade especí ca de mobilização humana:
o sagrado emerge da busca ou expectativa pela resposta social e caz. Essa é a
premissa, por exemplo, que funda o conceito de “mana”, emprestado de Hubert
e Mauss por Durkheim e inscrito no cerne da natureza atribuída ao sagrado: “o
mana é a força por excelência, a e cácia verdadeira das coisas, que corrobora sua
ação mecânica sem aniquilá-la. É ele que faz com que a rede apanhe, que a casa
seja sólida [...]. No campo, ele é a fertilidade; nos remédios, ele é a virtude salutar
ou mortal.” (HUBERT; MAUSS, 1902-1903, p. 111).
À primeira vista, essa de nição que fala em “mana” pode soar
esotérica ou até de ordem emocional, como advertiram Lévi-Strauss (2002, p.
11-45) e Smith (2002, p. 188-211). Mas não nos acomodemos à superfície do
pensamento. Pois, em seu núcleo, a de nição contém uma valiosa proposição:
o sagrado é a participação simbólica exigente, aquela movida para encontrar
a prática mais forte, capaz de restaurar a unidade que se vive como perdida,
ameaçada ou cindida. Essa participação pode ser exclusivamente simbólica,
mas a e cácia almejada deve produzir resultados necessariamente sociais. O
sagrado não é estático, inato ou de nitivo, uma vez que deriva da busca por
referenciais simbólicos plenos, que proporcionem experiências de segurança em
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
face das tensões e dos riscos impostos pela vida em sociedade. O raciocínio que
se desenha é este: existindo no tempo, a realidade social muda sem cessar; as
mudanças trazem novos riscos e tensões; inéditas, as instabilidades exigem do
sagrado outras respostas.
O acionamento do sagrado é um fenômeno histórico, pois decorre de
combinações mutáveis – porque nitas – entre pressões sociais e possibilidades
simbólicas. Ele é, como frisou Roger Caillois, a resposta e caz que o devir social
torna reversível, movente. Como propriedade de objetos, seres, lugares ou
períodos, alcança a estabilidade sem escapar à exigência de transformação: “nada
há que não possa tornar-se sua sede e revestir-se assim aos olhos do indivíduo
ou da coletividade de um prestígio sem igual. Nada há, igualmente, que não
possa ver-se desapossado dele. É uma qualidade que as coisas não possuem por
si mesmas.” (CAILLOIS, 1988, p. 20).
Insistamos no argumento: aquilo que é vivido como consagrado
estimula a conduta humana de maneira drástica, como se a eletri casse. Por meio
da busca ou do temor da e cácia última, o sagrado é experimentado como força
decisiva, uma descarga de pavor e veneração: “é do sagrado, com efeito, que o
crente espera todo o socorro e todo o êxito. Sob a sua forma elementar, o sagrado
representa, acima de tudo, uma energia perigosa, incompreensível, arduamente
manejável, eminentemente e caz.” (CAILLOIS, 1988, p. 23). Se buscarmos
outra via de conceituação, como a que foi delineada por Rudolf Otto (2007),
reencontraremos o aspecto essencial: o sagrado – que o autor preferiu designar
de numinoso – é o despertar do estado psíquico para a presença da ação e caz.
A formação luterana levou Otto a ver nessa experiência a origem do sentimento
de criatura. Isto é, a nascente desse assombro que é para o homem a sensação de
estar cercado por uma realidade misteriosa e absoluta. O numinoso repercute a
emoção implacável de perceber-se inferior por inteiro, dependente até a medula
de algo maior, supremo, majestático. Porém, Otto (2007, p. 55) também ressalta
que consagrar é sentir o contato com uma “energia, simbolicamente expressada
na vivacidade, paixão, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana.
Trata-se daquele aspecto que, ao ser experimentado, aciona a psique da pessoa,
nela desperta o zelo”. Parece razoável dizer que o teólogo luterano descreveu
um estado psicológico provocado pela experiência de travar contato com algo
capaz de cortar e separar a linha da vida de uma vez por todas: uma ação que os
homens acreditam – e vivem como – e caz em termos de vida e morte.
Sacralizar não pressupõe, obrigatoriamente, crer em uma divindade
ou na alma. É um processo que pode ocorrer em desacordo com os limites do
religioso – conforme sustentou Franco Ferrarotti (1983) no instigante Il paradosso
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
O sagrado gregoriano
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
ressoar uma hegemonia social. Brilha na escrita para ofuscar as marcas da derrota:
sua função é a de reluzir para negar o fracasso. A combatividade gregoriana surge
dominada por um cenário mais fragmentado que o de uma “ideologia da ordem
clerical”, perpassada de ponta a ponta por enfrentamentos imediatos: as batalhas
que a constituem possuem um feitio de rivalidades internas às elites. Sua lógica
está repleta de tensões internobiliárquicas, talvez mesmo intranobiliárquicas, e
apenas secundariamente interclassistas. As histórias que lhe dão vida dramatizam
o universo de uma elite eclesiástica dividida por antagonismos: tal é o caso da
visão atribuída à santa Hérluca, cujo tema é a desobediência do clero diocesano às
decisões do papa. Quando alargamos o escopo de observação, constatamos que
os registros documentais vão além e apresentam cisões em âmbito ainda menor,
a própria cúpula papal. As divergências entre Pedro Damião e Hildebrando a
respeito dos vallombrosianos retratam uma esfera eclesial em que a produção do
consenso esbarrava em graves di culdades.
Antes de delinear um empenho coletivo para defender a unidade
da Igreja contra as pressões de grupos externos, as narrativas do sagrado
gregoriano testemunham a duradoura realidade de um bispado trespassado por
muitas rivalidades domésticas e pressionado pela concorrência entre facções.
A combatividade resultava de uma política descentrada, em que o poder de
decisão era orientado para interesses locais. As punições divinas relatadas na
documentação expressam o desejo dos gregorianos de encontrar uma solução
e caz para as desgastantes divergências e hostilidades presentes no interior da
própria elite clerical. Lembrar que a justiça divina nunca falhou em redimir os
homens leais a Gregório e em corrigir seus opositores, por vezes cobrando-lhes
a própria vida, signi cava preservar uma memória capaz de orientar a adesão
política. As narrativas demonstravam que Deus recompensava quem lutava e
resistia pelo papa.
Esses registros não eram únicos, tampouco excepcionais. Vários
aspectos narrativos que os compunham vinham de séculos antes e podem ser
encontrados numa constelação de relatos espalhados pela imensa geogra a do
Ocidente cristão. Não se trata, portanto, de insinuar uma ruptura histórica como
o “nascimento” de uma nova espécie de sensibilidade religiosa. O que propomos
é outra ideia. Os gregorianos distinguiram seu olhar a respeito do sagrado porque
a fragilizada posição da Igreja romana pesou sobre suas experiências, refratando
o modo como vivenciavam as tradições cristãs. Os milagres punitivos, como o
relatado a respeito do bispo de Utrecht, não eram uma novidade do século XI.
Porém, o sentido que lhes foi atribuído era singular: relembrar desfechos que
dessem por encerradas as disputas aristocráticas provocadas pelo poder papal.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história
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As pegadas do sagrado: o político como religiosidade
45 BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum, MGH SS 9, p. 630- 638. No verão de 1083, Henrique
IV rmou o pacto secreto com uma expressiva parcela da aristocracia romana pelo qual se
comprometia a ser coroado por Gregório ou por outro papa escolhido com seu conselho.
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Vejamos.
Segundo o antropólogo francês, “o sagrado é certo tipo de relação
dos homens com a origem das coisas tal que, nessa relação, os homens reais
desaparecem e em seu lugar aparecem seus duplos, os homens imaginários”
(GODELIER, 2001, p. 259). Com base nesse enunciado, o pensamento de
Godelier rami ca-se em muitas direções, gerando uma grande variedade de
desdobramentos e implicações. Porém, tudo depende desta ideia fundamental:
o sagrado é um mecanismo cultural de inversão das relações dos homens com
o mundo. Ao consagrar objetos, seres ou lugares, os sujeitos sociais encobrem o
funcionamento real do que passam a venerar. A produção da crença envolve as
relações sociais de opacidade.
Admirando ou temendo, os homens convertem-se em estrangeiros
da própria humanidade. Pois separam-se de sua própria participação no
aparecimento das coisas e dos fenômenos que consideram divinos, especiais ou
só incomumente poderosos. Do ponto de vista do autor d’O enigma do dom,
sacralizar é recalcar para além da consciência o papel ativo dos homens nas
origens da sociedade: “o sagrado rouba à consciência coletiva e individual algo
do conteúdo das relações sociais.” (GODELIER, 2001, p. 261). O homem deixa
de reconhecer-se como coautor da vida coletiva.
A fórmula é requintada, mas não é nova. O sagrado aliena aquele que
crê ao apagar a presença humana na origem das transformações sociais. Aplicada
às relações de poder, a conclusão remete aos argumentos de Marx e Engels em A
ideologia alemã (2007): como repertório de “falsas impressões” sobre o mundo,
o sagrado desmobiliza, imobiliza. Sua nalidade, por conseguinte, é conservar as
posições sociais, mantendo a desigualdade existente entre elas. Já que “deixa nas
sombras, recalcada em pontos cegos toda uma parte da realidade” (GODELIER,
2001, p. 268-269), o sagrado legitima correlações de forças já estabelecidas.
Assegura o consentimento de quem sofre, mas não desvenda a realidade.
É aí que a conceituação parece não calhar. Os relatos prodigiosos dos
gregorianos não parecem “roubar algo do conteúdo da sociedade”: eles acentuam-
no, potencializam-no precisamente por reabrir as disputas pela legitimidade,
pelo consenso e pela persuasão. O seu caso não era o de homens que “podiam se
reencontrar no sagrado, mas não podiam mais nele reconhecer-se, reconhecer-
se como autor, fabricante, em suma, origem” (GODELIER, 2001, p. 269).46 Sem
dúvida, em suas narrativas, as origens da mudança passavam a ser de outra
ordem, divina ou infernal. Mas o desaparecimento do elemento humano dessa
origem não signi cava, necessariamente, a diminuição de sua presença ativa no
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