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Leandro Duarte Rust

A Reforma Papal (1050-1150)


Trajetórias e críticas de uma história

Cuiabá
2013
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

As pegadas do sagrado:
o político como religiosidade

Coexistindo na historiogra a como adversários jurados, a Reforma


Gregoriana e a Revolução Papal mantiveram sempre algo comum: uma teoria
implícita do sagrado. Nas duas abordagens, o clero papal é caracterizado pela
mesma experiência acerca da essência da religião. Nos dois casos, os eclesiásticos
vinculados ao poder papal surgem descritos com base em uma postura
reincidente. A religião os teria dotado de um horizonte global de sentidos sobre
a sociedade a sua volta. Os historiadores quase se engal nhavam ao tentar
explicar o processo gerador das convicções reformadoras. Os pesquisadores
que as explicavam como o último estágio da evolução do pensamento religioso
sentiam-se afrontadas pelos autores que as de niam como repercussões políticas
de acontecimentos inesperados.
Porém, nisso todos concordavam: a partir de meados do século XI, ao
interpretar o sagrado, os homens da Igreja romana encontraram na religiosidade
a gramática cultural capaz de conjugar todas as relações sociais de seu tempo.
A fé então experimentada por eles reduzia a diversidade incomensurável do
mundo, fazendo-a caber no interior de uma poderosa síntese semântica. Os
clérigos romanos eram capazes de falar da totalidade social. A sacralidade
tornou-se sua esfera originária de vivências; nela, estavam gravados todos os
índices comportamentais de sua época, tanto os concretos quanto os possíveis
ou idealizados.
A religião dos reformadores possuía a realidade – sugere a historiogra a.
A nal, por meio dela eles modulavam o passado, o presente e o futuro dos
modos de vida cristãos, determinando todas as separações entre o aceitável e o
desviante, a regra e a exceção. Quer tenha sido gerada de maneira progressiva ou
revolucionária, com ou sem a esteira de uma crise, a espiritualidade reformadora
tornou-se um acervo completo de orientações sobre a sociedade. Por essa razão,
ao investigar os episódios que envolveram o Papado medieval, o historiador
deveria “focalizar o poder e o sagrado mais do que invocar a dicotomia mais
familiar de ‘igreja’ e ‘estado’” (MILLER, 2005, p. 5). A consciência acerca do
sagrado desdobrou-se em um vasto empreendimento de dominação político-
religiosa do mundo.
A ordem sagrada em que acreditavam os integrantes da Cúria romana
praticamente não era afrontada pelas forças desordenadoras que surgiram
dos contatos humanos ao longo do tempo. A combinação entre a percepção
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trágica do pecado e uma fé triunfante teria sido capaz de capturar tudo, dos
gestos às coisas, e integrá-los conforme uma ordem religiosa já conhecida.
Nessa espiritualidade superordenadora, nada teria havido de precário. Nenhum
desencontro duradouro ou desencaixe ruidoso teria persistido em seu interior.
Partilhada dentro do Papado medieval, ela simplesmente parece não ter cado
face a face com o risco da refutação empírica ou de cair em uma situação
marginal. Os historiadores discordavam sobre o processo que havia levado a sua
vitória sobre o mundo social, mas ninguém ousou duvidar de seu triunfo.
O sagrado teria proporcionado aos integrantes da Sé romana uma visão
estruturante sobre as identidades e as relações coletivas. Com olhos elevados
para as coisas santas, os partidários de Leão IX ou de Gregório VII teriam
pensado e agido sempre com a nalidade intrínseca de separar os vivos por
meio da oposição entre o profano e o sagrado. Eles teriam vivido a religião como
portadora de uma lógica separatista, orientada para distinguir os laicos, que se
dedicavam a atividades pecaminosas, manchadas pelo profano, dos clérigos, os
únicos verdadeiramente autorizados a manejar os rituais e as fórmulas capazes
de apagar aquelas máculas. A religião tornou-se o ltro do conjunto social.
Totalizar e separar para então mediar. Essa teria sido a lógica
fundamental para a união dos gregorianos. O que os levava a destacar pessoas,
lugares e objetos como sagrados não era uma intenção de isolá-los, como se os
desejassem inacessíveis, distantes do toque dos demais. A cúpula papal protegia o
sagrado para assegurar que ele chegasse ao profano sem ser corrompido. Somente
os sacerdotes, instruídos no domínio ritual e na exegese o cial da sacra escritura,
auxiliares escolhidos por Cristo, poderiam manejar aquela energia terrível e
avassaladora, dosando sua presença no interior das comunidades. Atentos à
vida secular, os reformadores teriam desejado santi car a existência comum
subordinando-a à liderança clerical. A insubstituível mediação sacramental
teria sido o fundamento da superioridade eclesiástica sobre os demais poderes e
instâncias sociais. Estaríamos diante, portanto, de uma tentativa de monopolizar
a gestão do sagrado.
Reformador ou revolucionário, o discurso do poder pontifício
teria sido constituído, a partir de 1050, por essas características essenciais: a
capacidade totalizadora de converter a sociedade em seu campo de atuação; a
e cácia simbólica para integrar as ocorrências do mundo aos preceitos religiosos;
a orientação para uma dicotomia mediada entre clérigos e laicos. Lancemos um
olhar um pouco mais detido sobre o tema.

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O labirinto do sagrado

Quase 20 anos passaram-se, mas o monge ainda recordava a sensação


de pânico. Era assombrado pela própria memória, que insistia em guardar a visão
do céu noturno colorido pela luz avermelhada que havia subido dos campos
em chamas. Era impossível esquecer aqueles dias intermináveis de orestas
arrasadas, searas incendiadas, aldeias destruídas. A desgraça fora trazida das
regiões do norte pelo rei germânico. Duas décadas haviam transcorrido desde a
terrível quaresma de 1083. Mas Bernoldo acalentava a lembrança das terras ao
redor de Roma ardendo sem trégua. Enternecido por relatos de sofrimento,21
recriava em sua mente as cenas do exército imperial tentando estrangular a
Cidade Eterna com um cinturão de destruição. O monarca pretendia sufocá-la
até ter seus habitantes de joelho, forçados a aceitar o julgamento do bispo que
reverenciavam como santo padre. Dentro das muralhas, porém, grande parte
da população seguia leal ao homem acusado de ser um “falso pontí ce”. Os
romanos escolheram resistir ao cerco, por isso sentiram o rei fustigar sua cidade
com tormentos.
Mas, à medida que escrevia suas recordações, Bernoldo parecia enxergar
algum sentido consolador nas calamidades. Ele empregava as palavras como se
visse nas a ições de Gregório VII as provações que selam o caminho dos eleitos –
como assegurava o Velho Testamento. Roma era a nova Jerusalém; o Império, um
novo Israel. A desolação sobreveio para ensinar aos homens o arrependimento
por tantas iniquidades cometidas. Acumulados, os pecados dos antepassados
zeram a ira de Deus trovejar sobre sua cidade-santuário. O pontí ce, como o
profeta Daniel, sabia que a passagem para a redenção era edi cada pela guerra e
pela desolação. Por isso, sofria, resignado (LERNER, 2011, p. 7-28; DEMPSEY,
2011, p. 217-252).
Por mais horrível que tivesse sido a perseguição, as atribulações
revelavam que os céus justi cavam a causa do pontí ce encurralado. Dizia-se,
lembrava Bernoldo, que após fecharem o cerco, soldados imperiais tentaram
abrir uma brecha na defesa romana: atearam fogo em alguns casebres próximos
à basílica de São Pedro, apostando que isso atrairia as guarnições, deixando

21 Além de ter frequentado Roma entre 1078 e 1085, Bernoldo conhecia o Liber Ad Amicum
escrito por Bonizo, bispo de Sutri que, meses antes do cerco aqui relatado, fora capturado pelas
tropas de Henrique IV, permanecendo em cativeiro por quatro anos, experiência que marcou
profundamente sua versão dos fatos. Sobre a prisão de Bonizo ver ainda: Benzo de Alba. Ad
Heinricum IV imperatorem libri VII. MGH SS 11: 664; Bernoldo de Constance. Chronicon. MGH
SS 5: 437. Conf. também: Robinson (2004a, p. 59), Weinfurter (1999, p. 131-158), Eads (2003,
p. 355-388).
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os muros desprotegidos. Em meio à correria e ao desespero, Gregório teria


caminhado até as chamas, tracejado no ar o sinal da cruz e miraculosamente
extinguido o incêndio.22 Os ataques não cessaram. A paz com o rei Henrique IV
seguiu improvável, os campos continuaram a ser tragados pelo fogo e a cidade,
consumida pelo anseio de rendição, que, poucos meses depois, prevaleceu.
Todavia, o milagre que teria frustrado a armadilha imperial era relatado como
indício de que a aliança entre o papa e Deus estava intacta.
O ponti cado de Gregório terminou em desastre, uma trágica e
prolongada derrota política. Quando morreu em Salerno, evocando aos céus
a justiça dos desterrados, deixou um testamento de amarguras. Os romanos
foram traumatizados pelo sangrento resgate que garantiu sua fuga. Para
salvá-lo das tropas imperiais, os normandos que cavalgaram até o Castelo de
Sant’Angelo saquearam todos os lugares por onde passaram e, em seguida,
atearam fogo. Quem permaneceu na cidade encontrou outro bispo sentado no
trono apostólico, coroado com o nome de Clemente III (1025?-1100). A maior
parte dos cardeais gregorianos debandou em busca de refúgio. Da Toscana a
Benevento, as facções pró-imperiais foram fortalecidas. O desastre cou visível
nos vários impedimentos encontrados pelos partidários de Gregório para eleger
seu sucessor. A demora arrastou-se por meses e, quando por m foi contornada,
resultou no tumultuado ponti cado de Vítor III entre 1086 e 1087. As áreas no
centro e no norte da península permaneceram hostis aos gregorianos durante
grande parte do governo de Urbano II (1042-1099), entre 1088 e 1099, papa
forçado a viajar constantemente para lugares como a Gália (ROSA, 2008;
SOMERVILLE, 2011; HAMILTON, 2003).
Mas, nas décadas seguintes, formou-se em torno do papa a memória
de um passado triunfal. Seu ponti cado passou a ser lembrado como a época
em que o sagrado, após uma longa ausência, havia retornado à causa da Igreja
de Roma, recompensando quem suportara anos de sofrimentos. Assim como na
memória de Bernoldo, essa certeza povoou a imaginação de Paulo de Bernried
(1082?-1145?), mais de 40 anos depois da morte de Gregório. Concluída por volta
de 1128, sua Vita Gregorii VII Papae narrou episódios em que forças espirituais
surgem testemunhando a favor das decisões do polêmico bispo romano. É o que
ilustra seu relato sobre o sínodo de Utrecht, reunido por Henrique IV em 27 de
março de 1076, no calor da famosa sentença de excomunhão lançada pelo papa
sobre seus ombros. Vejamos.

22 A narrativa do milagre encontra-se em Chronicon (BERNOLDO DE CONSTANCE, MGH SS


5, p. 437), ao passo que as passagens de Bonizo que aparentemente fundamentaram a memória
de Bernoldo estão em Liber ad Amicum (BONIZO DE SUTRI, MGH SS 9, p. 613, 635). Ver
ainda o estudo de Cowdrey (1998, p. 220).
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A excomunhão decretada pelo papa não intimidou o rei. Com a


notícia da sentença cruzando montanhas, Henrique dirigiu-se à igreja de
Utrecht. Surgiu majestático, à frente de um séquito vasto e esplêndido, reunido
para que o monarca comparecesse à celebração da Páscoa acompanhado da
pompa que anunciava o sucessor imperial. O destino escolhido era emblemático.
Relicário da memória de seu primeiro bispo, São Willibrod, missionário que
faleceu no século VIII e era lembrado como “apóstolo dos frísios”, a igreja de
Utrecht impressionava. Era uma imponente edi cação em estilo românico,
cravada no centro de um arrojado alinhamento arquitetônico com as igrejas
vizinhas que desenhava no espaço a forma de uma grande cruz. Lá estavam
enterrados o coração e os intestinos de Conrado II, avô de Henrique e fundador
da linhagem reinante. A guarda das entranhas multiplicava as doações e
transferências patrimoniais dirigidas ao bispado local pela Coroa. É provável
que o aparecimento dessa igreja, um símbolo dinástico, como o cenário para a
terrível história a ser contada, demonstrasse o empenho do biógrafo papal para
convencer seus leitores de que a perfídia não estava apenas nos atos de Henrique
IV, mas corria no sangue dos sálios.
Dentro do santuário, sob o impressionante domo que abrigava os
restos mortais de seu antepassado, o rei ordenou o início da celebração. Então,
“certo bispo – não é correto chamá-lo assim, pois, em verdade, é um herético
e simoníaco – se preparou para celebrar a missa”. Após a leitura do Evangelho,
o prelado subiu ao púlpito e começou seu sermão. “Cego em seu coração e
de mente doente, ele imediatamente irrompeu em blasfêmias contra o papa
Gregório, a respeito das quais, por seu carácter excessivamente horrível, é melhor
permanecer em silêncio.” Deus, todavia, não silenciou. A blasfêmia não escapou
à atenção divina, que a puniu imediatamente com um “temível milagre diante
dos olhos do rei e de todos”.
“Antes que o jubiloso dia da Páscoa terminasse, os céus ressoaram”,
continuou o biógrafo. Um trovão estalou pelo ar e as nuvens despejaram fogo
sobre a terra. A igreja e todas as casas preparadas para a recepção do monarca
foram rapidamente devoradas pelas chamas, “transformando a felicidade dos
homens ímpios em lamentações”. A fúria divina atingiu o bispo blasfemo no
altar, mas não o matou imediatamente. Gravemente queimado, ele agonizou por
semanas. No entanto, antes de seu último suspiro, desabafou para os auxiliares
que o acompanhavam no leito de morte:

[...] me vejo arrebatado desta vida, preso a amarras de fogo,


arrastado por hediondos fantasmas. Mas, vá e diga ao rei para
corrigir a vergonhosa ofensa que ele cometeu contra Deus, contra

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o bem-aventurado Pedro e seu vigário, para que ele não me siga


até os con ns do inferno.

Revelada a verdade, o bispo faleceu. O biógrafo, por sua vez, enfatizou


o caráter exemplar daquele m terrível: “todos os homens que leram estas
palavras, se preferem ter a companhia de Gregório na ressurreição, tomem
cuidado com as línguas dos detratores, que sofrerão os tormentos do inferno”. 23
A história desse milagre punitivo era antiga. Ela parece ter circulado
com o pontí ce ainda vivo. Assim sugere a leitura da crônica deixada por um
contemporâneo de Gregório, Bertholdo (1030-1088), monge na abadia de
Reichenau. Segundo ele, Henrique viajou até Utrecht para celebrar a Páscoa.
Não bastasse o fato de, mesmo excomungado, pôr os pés em uma igreja, o rei
cometeu a injúria de reunir em um santuário consagrado ao apóstolo Pedro os
“cúmplices vindos de todas as partes para sua rebelião e desobediência”. Sua
ousadia despertou “o desprezo de Deus e São Pedro”, provocando o fogo que
“miraculosamente” consumiu toda a igreja, “construída há muito tempo com
grandes custos e grande esforço”.24
A morte do bispo de Utrecht – cujo nome era Guilherme – seria

23 “Interea Dominus Magnum miraculum in Regis et omnium oculis fecit: quo cognito, multi eum
reliquerunt. Nam post excommunicationis diem, Paschalis dici solemnitate, cum regio apparatus
et comitatu pompaticae multitudinis, ad Ecclesiam, divinitus sibi clausam, venire nequaquam
abhorruit. Jussu itaque Regis quidam Episcopus si fas est, imo haereticus et Simoniacus, ad Missae
se praeparavit o cium. Tandem perlecto Evangelio ex more facturus popularem sermonem
Pontifex idem, pulpitum conscendit. Parum autem de tractatu locutus Evangelico, statim se ad
blasphemiam Papae Gregorii caeco corde menteque vesana prorupit, quae pro nimio sui horrore
silentio praeterire complacuit. Di cile est enim ut bene sibi conscientium probitatem, obtrectantium
lingua non mordeat, et iniquorum evadat opprobria, cui est amica justitia. Verumtamen eadem
blasphemia qualis in oculis Domini fuerit, continuo sequens ultio, si perpendatur, innotescit.
Nam Paschalis diei gaudio nondum nito, subito coelum fragore intonuit, in quo ignis descendere
coelitus visus est; qui omnem illam ecclesiam, omneque domos regali receptui praeparatas,
repente consumpsit, et laetitiam profanorum in moerorem commutavit: Episcopum vero illum
blasphemum, subito percussum, divina ultio interemit. Se aatequam vitam penitur exhaleret,
ministros suo exitio praeparatos, quales essent, compulsus est dicere: Video me, inquit, igneis
loris astrictum, tetris trahentibus imaginibus ex hac vita convelli: sed tamen ite, et dicite Regi ut
agitium, quod in Deum, et B. Petru, ejusdem Vicarium commisit, emendet; ne me praeeuntem ad
inferi loca sequatur; et haec dicens, exspiravit. Hoc exemplo commoniti, hortamur et obsecramos
omnem hominem linguis, si mavult consortium habere cum Gregorio in ressurrectione vitae, quam
cum detrahentibus supplicium subire.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL,
v. 148, col. 76B-77A).

24 “Apud Traiectum tex pascha egit, collectis undecumque illuc non parvis suae rebelionis et
inoboedientiae complicibus. Ibi tunc aecclesia, quam episcopus jam diu maximis inpensis et studii
construxerat, a Deo et Sanco Petro despecta, igne ultore mirabiliter con agravit.” (BERTHOLDO.
Annales. MGH SS 5, p. 283).
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lembrada como um aterrorizante ensinamento divino a respeito dos castigos


que aguardavam quem se opunha ao Papado. Ninguém devia deixar-se enganar
pelas aparências terrenas: as vitórias obtidas neste mundo não passavam de
miragens fugidias. A nal, como registrou Lamberto (1024?-1088), monge de
Hersfeld, a vida do bispo desfez-se em um piscar de olhos. A gura soberba
que, do púlpito, tomou a palavra e declarou o pontí ce “traidor e falso-apóstolo”
tornou-se, na manhã seguinte, um agonizante que urrava para ser reconhecido
inocente.25 Escrevendo pouco depois, nos anos 1090, outro religioso, Hugo de
Flavigny (1064?-?), descreveu a cena com linhas vivas: um mês após ter sido
“atingido pela punição divina”, o bispo espalhava o pavor entre os éis toda vez
que eram ouvidos seus terríveis gritos de “estou queimando, estou queimando!”.
Aquela apavorante agonia era o exemplo da morte abominável destinada aos
que tinham optado por viver deploravelmente, ou seja, injuriando a autoridade
apostólica.26
Os suplícios do corpo eram somente um lampejo dos agelos
reservados por Deus aos adversários do papa. É novamente Paulo de Bernried que
nos conta outro episódio, no qual as punições eternas eram reveladas aos santos
por meio de visões. Trata-se de uma história envolvendo Hérluca, asceta falecida
em 1127 ou 1128. Segundo o que lhe contou um monge, Paulo a rma que, certo
dia, a bem-aventurada mulher estava sentada com suas companheiras, virgens e
viúvas. Como de costume, elas reuniam-se para praticar algum trabalho manual
e, assim, disciplinar o espírito. Em certo momento, estando todas imersas nos
afazeres, Hérluca olha pela janela e cai em prantos, dizendo como se apontasse
para algo lá fora: “Ai, Ai! Teria sido melhor para aquele homem se não tivesse
nascido”. Repentina, a reação sobressaltou as outras mulheres. Uma delas, “certa
nobre chamada Hadewiga”, não conteve o susto e perguntou o que a santa havia
visto para comovê-la tanto. Com o rosto coberto de lágrimas, Hérluca respondeu
que havia visto a alma do padre de Rott sendo levada por demônios. Enquanto
arrastavam o sacerdote para o inferno, as criaturas de Satã zombavam dele.

25 “Studio partim regis multa in iniuriam Romani ponti cis omnibus pene diebus solemnibus
inter missarum solemnia rabido ore declarabat [...] adulterum et pseudoapostolum appelans
[...] sanctissimo et apostolicarum virtutum viro, graves contumelias, sciens et prudens innocenti,
irrogasset.” (LAMBERTO DE HERSFELD. Annales. MGH SS 5, p. 244).

26 “Percursus est enim a Deo plaga insanabili, ita ut cum horrore et stupore mirabili clamaret: ardeo,
ardeo quia corpus vivi cat, incendium illi poenamque pariebat, quo exarserat in eo sicut ignis in
spinis, ut manifesta in eo eret ultio Domini [...]. Miseram vitam miserabili morte nivit.” (HUGO
DE FLAVIGNY. Chronicon. MGH SS 8, p. 458-459). Hugo de Flavigny data o sínodo de Utrecht
em 1080.
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O padre – esclarece Paulo de Bernried – tinha sido notoriamente


desobediente aos decretos de Gregório, pois era um “nicolaíta que, escravizado
pelos desejos carnais, contaminou a igreja daquele lugar chamado Rott”.
Entretanto, prossegue o autor do relato, ao ouvir o relato da visão de Hérluca,
a nobre foi tomada por misericórdia e desejou que aquilo não fosse verdade.
Com a rmeza da revelação, a santa rebateu, sugerindo: “envie alguém para
inquirir sobre a verdade da questão”. O mensageiro então enviado encontrou a
criadagem clerical em luto e regressou dizendo que o sacerdote havia falecido no
exato momento em que a bem-aventurada virgem olhou pela janela e viu a alma
ser carregada por espíritos malignos.27
A época de Gregório VII – que pode ser recortada de 1050 a 1085, se
aí incluirmos o período de sua atuação como diácono e legado papal – provocou
o orescimento de uma intensa atividade literária. A maior parte dela de
caráter polemista, ou seja, empenhada em justi car ou inculpar seu ponti cado
(ROBINSON, 1978a; STOCK, 1983). Um dos efeitos mais visíveis da “guerra
de propaganda” de agrada entre os aliados papais e os partidários imperiais foi
promover a relação pessoal com o sagrado atribuída ao bispo de Roma para
o primeiro plano das polêmicas. As estórias de milagres e eventos prodigiosos
envolvendo o velho bispo multiplicaram-se. O contraste com épocas anteriores
é sensível, sobretudo na primeira metade do século XI, quando a Sé de Roma,
controlada pelas poderosas famílias da aristocracia local, teria cado em poder
de “mercenários, não pastores” (JL 4333).
Distinguido de seus predecessores, Gregório VII tornou-se tema de
uma memória duradoura, que o implicava no íntimo convívio com as forças

27 “Illa quoque visio non indigna commemoratione videtur, qua dilectus Deo et hominis, benedictae
memoriae Adalbertus monachus, et ipse contumelias et terrores ab adversariis Gregorii nostri
propter obedientiam decretorum ejus passus, eamdem Herlucam vidisse referebat de quodam
Nicolaita, qui carnalibus desideriis inserviens ecclesiam illam contaminaverat, quae est in loco
qui dicitur Rota. In illa namque con nia, hoc est in con nio Noricorum et Alamannorum quos
Lycus uvius disterminat, non procul destinabat mansiones ejusdem venerandi senis et beatae
Virginis, multumque se invicem in Christo diligebant, quia excellentem Dei gratiam in se mutuo
recognoscebant. Ita ergo dilectus dedilecta narrabat. Beata Herluca inter socias virgines et viduas
quadam die ex more sedebat, et operi manuum juxta consuetudinem suam diligenter incumbebat;
cum ecce subito per fenestram prospiciens, miserabiliter lamentari coepit et vociferari dicens: Vae,
vae! Melius homini illi erat, si natus non fuisset. Cumque nimis attonita quaedam illustris femina,
nomine Hadewiga, interrogasset eam quidam vidisset, unde tantum commota fuisset? Mortuus
est, inquit, infelix Presbyter illud de Rota, et anima ejus ab angelis Sathanae sublata portatur ad
inferna: vidi enim eos praetereuntes cum insultatione, et animam comitantem cum ejulatione. Illa
optante hoc verum non esse, Mittatur, inquit, qui veritatem inquirat. Missus nuntius familiam
lugentem invenit; et eadem hora comperit mortuum, qua beata Virgo spiritum ejus viderat a
malignis spiritibus asportatum.” (PAULO DE BERNRIED. S. Gregorii VII papae vita. PL, v. 148,
col. 78B/C).
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espirituais – celestiais para uns, infernais para outros. Séculos depois, por
exemplo, nas distantes décadas de 1550 e 1560, protestantes como John Foxe
(1517-1587) e Matthias Flacius (1520-1575) redigiram relatos sobre como o
líder medieval era capaz de lançar labaredas pelas mangas das roupas e abrigar
uma hoste inteira de demônios na biblioteca. Por volta de “ ns do século
XVI, a imagem de Gregório como mago e necromante havia se tornado bem
estabelecida em histórias evangélicas sobre o Papado” (PARISH, 2005, p. 137).
Provavelmente, o “papa diabólico” imaginado pelos quinhentistas foi inspirado
em registros do século XI, uma vez que conhecemos as acusações de homicídio e
de necromancia disseminadas por Guido de Osnabrück, no Liber de Controversia
de Hildebrandi et Heinrici (1085), e pelo episcopado imperial reunido no sínodo
de Brixen, em junho de 1080.28
A Santa Sé não deixou por menos. Por decisão de Gregório XIII (1502-
1583), toda a cristandade deveria aceitar seu predecessor homônimo como
santo. Pois a santidade era a única explicação para o corpo do papa exilado
por Henrique IV continuar intacto. Era uma iniciativa marcante. O m de um
silêncio incomum para a Igreja católica: durante 65 anos, entre 1523 e 1588,
ninguém foi elevado à santidade pela Cúria. A declaração da santidade papal
faria parte da ofensiva romana pela reconquista do sagrado. Em 1588, Diego
de Alcalá foi proclamado santo; Jacinto de Odrovaz, em 1594; em 1606, foi a
vez de Raimundo de Peñaforte ser inscrito no rol celestial; em1606, Gregório.
Um século depois, a de nição do dia 25 de maio como data universal da “Festa
de São Gregório VII”, obra de Bento XIII em 1728, consagraria a identidade do
pontí ce medieval mais venerado entre os católicos (CHADWICK, 1981, p. 294).
A santi cação papal repercutiria na historiogra a moderna: as principais fontes
documentais empregadas pela Cúria para embasar o processo de canonização
seriam consagradas pelos historiadores como os registros escritos mais valiosos
da época, caso do Liber ad Amicum de Bonizo de Sutri (1045?-1091?).
Os apelos gregorianos ao sagrado formam um espectro de referências
documentais de notável complexidade. Outro bom exemplo pode ser encontrado
entre os registros do Concílio romano de 1078. Durante as deliberações, o papa
solicitou que fossem examinadas as notícias de milagres ocorridos nos túmulos
de Cêncio (?-1077?) e Erlembaldo (?-1075). Ambos eram laicos. Segundo muitos
historiadores, essa era uma condição social incomum para um santo no século

28 GUIDO DE OSNABRÜCK. Liber de Controversia de Hildebrandi et Heinrici. MGH Ldl 1, p.


462-470. Sobre o sínodo de Brixen, ver: Die Briefe Heinrichs IV. MGH DM, 1, p. 72; Decretum
Synodi. MGH LL 2, p. 51-52; Annales Augustani. MGH SS 3, p. 130 (HEFELE; LECLERCQ,
1912-1915, v. 4:2, p. 269-272)
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XI. Ser laico bloqueava o caminho que levava à santidade, pois assim eram
identi cados os supostos inimigos da liberdade da igreja (VAUCHEZ, 1991;
2009; STRICKLAND, 2007; WEINSTEIN; BELL, 1982).
O primeiro era um aristocrata local, quer havia herdado do pai,
João Tionísio, o disputado título de prefeito de Roma. Nos últimos dez anos, a
linhagem de Cêncio tinha se revelado uma aliada insubstituível da autoridade
romana. Não só pela lealdade, mas, principalmente, por manter o governo
citadino longe das mãos dos Stephani, proeminente família local declaradamente
hostil à Cúria. Em 1073, quando rumores espalharam pelas vielas de Roma que
o prefeito pensava em renunciar ao mundo e ingressar em um monastério,
Gregório reagiu com veemência: a vida contemplativa permaneceria um
propósito fora de lugar para Cêncio enquanto suas ações fossem necessárias no
comando da cidade (COWDREY, 1998, p. 326-328). Tendo desistido da ideia,
o aristocrata apoiou o papa incansavelmente, até o verão de 1077, quando seus
rivais emboscaram-no. O destino do Stephani que o matou foi trágico. Acabou
arrastado para fora da fortaleza da família e linchado pelos romanos. Cêncio,
por sua vez, foi sepultado em mármore no interior da basílica de São Pedro. Aos
prelados reunidos no concílio, Gregório a rmou que seu antigo prefeito havia
sido coroado com o martírio por Cristo, que “notabilizou seu sepulcro com vinte
milagres enumerados e aprovados” 29 pela assembleia clerical.
O segundo a ter sua santidade examinada era uma gura ainda mais
controversa. Erlembaldo era cavaleiro e herdou do irmão, Landulfo, a liderança
dos patarinos – grupo de milaneses condenados como hereges e excomungados
pelo episcopado da Lombardia em 1057.30 Desde então, muito havia acontecido.
Enquanto as relações entre o Papado e o bispo de Milão tinham se deteriorado
em compasso acelerado, Erlembaldo manteve a postura de advogado da
subordinação do clero ambrosiano ao primado apostólico. Na batalha travada
entre Roma e Milão pela sujeição hierárquica desta última, o cavaleiro milanês
declarou-se a favor da superioridade romana. As provas de lealdade renderam-
lhe a guarda do “estandarte de São de Pedro” e a honra de defensor de todo
o patrimônio papal, símbolos da estreita aliança mantida com Alexandre II
(1015?-1073).

29 “Dominus noster Jesus Christus martyrio coronavit, eiusque sepulchrum continuo viginti
miraculis, in Synodo numeratis et probatis, illustravit.” (PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii
VII papae. PL 148, p. 83B).

30 ARNULFO. Gesta Archiepiscoporum Mediolanensium. MGH SS 8, p. 18-22 (HEFELE ;


LECLERCQ, 1912, 4:2, p. 1126-1132; COWDREY, 1968, p. 25-48).
94
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Não obstante sua devoção política, Erlembaldo era um santo


improvável e, para muitos, inaceitável. Homem de armas, viveu à custa de muito
sangue derramado – uma boa parte dele de sacerdotes da Lombardia – e morreu
tratado pelos milaneses como traidor (PATSCHOVSKY, 2003, p. 31). Fim brutal,
que o papa converteu em martírio. Na versão de acontecimentos apresentada no
concílio de 1078, a multidão de milaneses furiosos é descrita como um “exército
de conspiradores” que, sem motivo algum, atacou Erlembaldo e assassinou-o
em plena rua: “desnudado, esquecidos seu nascimento e dignidade, [...] ele
foi deixado insepulto por um dia inteiro. Mas, à noite, ele foi honrosamente
sepultado por homens pios [...] e em seu sepulcro uma grande maravilha é
operada até hoje por Deus.” 31
Essa não foi a única vez em que a reivindicação gregoriana de
sacralidade cou a poucos passos da heresia. Em meados dos anos 1050, quando
era apenas um subdiácono na hierarquia romana, Hildebrando – futuro Gregório
– foi complacente com a compreensão de Eucaristia defendida por Berengário
de Tours (1000-1088?) nas páginas de De Sacra Coena. A obra justi cava que
Cristo não estava sicamente (substancialiter) presente na hóstia consagrada.
Combatido por homens da envergadura losó ca de um Lanfranco de Bec
(1005?-1089), Berengário acabou condenado como herege e reiteradamente
forçado à retratação em concílios pontifícios: nas assembleias de Roma e
Vercelli, ambas em 1050; e novamente em Roma, em 1059 e 1079.32 Ainda assim,
Hildebrando sustentou uma postura ambígua perante o caso.
O próprio sentenciado registrou a forma como o subdiácono mostrava-
se simpático, talvez o único homem da Cúria a tratá-lo com mansuetude
apostólica. É Berengário quem nos diz que o legado conteve-se por temor,
fazendo calar a aprovação dada por seu espírito em razão de receios. Ele não
parecia disposto a assumir publicamente o partido de alguém acusado pelo clero
papal de difundir uma doutrina errônea sobre o mistério da paixão de Cristo. Ao

31 “Post pascha vero derepente congregato exercitu et multitudine coniuratorum Herlimbaldum


nihil mali suspicantem invadunt eumque bellare temptatem in media platea inter ciunt aliosque
persecuntur et depredantur eumque ignominiose nudatum, obliti generis eius et dignitatis, ad
ignominiam totius christianitatis per totum diem relinquunt inhumatum. Nocte vero a religiosis
viris apud Sanctum Dionisium eum honore sepultus est; ad cuius sepulchrum magna mirabilia
usque hodie operatur Deus.” (BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 604-605).

32 Para as condenações de Berengário nos concílios de Roma (1050), Vercelli (1051) e novamente
Roma (1059 e 1079), consultar Vita Leonis IX Papae. PL 143, p. 490-495; Gregório vii. Das
Register. MGH Epp. Sel. 6, p. 425-429; Hugo de Flavigny. Chronico. MGH SS 8, p. 443; Mansi 19,
p. 759- 770, 773-774, 900; MANSI 20, p. 516-526.
95
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

escrever uma carta em nome de Godofredo Martel, conde de Anjou, o próprio


Berengário censuraria Hildebrando por agir como Pôncio Pilatos.33
A questão é escorregadia. Aparentemente, o homem que depois
tornou-se Gregório VII não deixou em lugar algum uma opinião doutrinária
sobre a Eucaristia. Por outro lado, não faltam historiadores (MONTCLOS,
1971) que acusem Berengário da presunção de supor que as guras mais
proeminentes de seu tempo concordavam instintivamente com ele. Contudo,
ca a certeza bem documentada acerca da benevolência gregoriana recebida por
um homem excomungado em razão da maneira como concebeu a presença do
Salvador entre os éis (RADDING; NEWTON, 2003, p. 1-32). Os adversários
do pontí ce jamais esqueceram. Muitos nunca o perdoaram por isso. Em
1080, dezenas de bispos imperiais repudiaram-no como o “antigo discípulo do
herético Berengário, pois colocou em dúvida a fé católica e apostólica sobre o
corpo e o sangue do Senhor”. 34 Em 1067, outro episódio recolocou o Papado
na encruzilhada entre o sagrado e a heresia. Naquele ano, um grupo de monges
vallombrosianos foi até Roma. Eles levaram consigo uma oferta espantosa. Para
provar que o bispo de sua diocese, Pedro Mezzabarba (?-1071?), era culpado de
simonia, um deles caminharia com pés nus sobre o fogo agarrado à certeza de
que a justiça divina protegeria a integridade de seu corpo.
Àquela altura dos acontecimentos, o con ito arrastava-se havia anos.
Os beneditinos acusavam o bispo de Florença de ter barganhado o cuidado das
almas com uma formidável soma de dinheiro fornecido pela câmara de Pavia.
As denúncias circulavam como parte de uma agressiva campanha iniciada para
convencer os orentinos a rejeitar os sacramentos ministrados pelo superior
eclesial. Mercados, ruas, praças, por todos os lados, era possível ouvir os
sermões dos vallombrosianos contra o poder episcopal, cada vez mais afamado
de submergir a igreja local em corrupção e ambições mundanas. Embora a
pregação fosse uma das mais altas prerrogativas clericais da época, a palavra
não bastou aos acusadores, que se lançaram a gestos extremos. Os monges
assumiram a administração dos sacramentos em três igrejas da cidade. Mas,

33 As referências de tolerância por parte de Hildebrando tratam, especialmente, do Concílio de


Tours, 1054 (BERENGÁRIO DE TOURS. De Sacra Coena adversus Lanfrancum, liber posterior.
Editores A. F. e F. TH. Vischer. Berlin: Haude et Spener, 1834, p. 49-50). A carta enviada por
Berengário em nome de G. Martel está em BERENGÁRIO DE TOURS. Briefe. MGH Brief. der
Zeit Heinrichs IV, p. 149-151.

34 “[...] catholicam atque apostolicam �dem de corpore et sanguine Domini in questionem


ponentem, heretici Berengarii antiquum discipulum.” (DECRETUM SYNODI. MGH Const.
1, p. 119).
96
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

para a consternação de todos, quem aí era batizado não recebia a bênção com
o crisma, pois o óleo da unção era impuro, já que havia sido consagrado por
Mezzabarba. Ao agir assim, os vallombrosianos demonstravam que a ordenação
do bispo era nula: ele era incapaz de transmitir a graça divina àquilo que
consagrava (D’ACUNTO, 1993, p. 290-301).
A questão passou a causar grande comoção nos citadinos. Os monges
evocavam os laicos, rogando-lhes que também vigiassem o cumprimento
sacerdotal dos preceitos de uma vida apostólica. Cada vez mais in amadas, as
pregações não cessavam. Nem mesmo quando chegou de Roma uma ordem
expressa que proibia os beneditinos de deixar a clausura para proclamar a palavra
em meio aos éis (JL 4552). A verve monástica não cedeu sequer com a chegada
do cardeal Pedro Damião (1007-1072?). Investido da missão de pôr um m à
luta, Damião acolheu as denúncias, porém com visível antipatia pela escolha
dos beneditinos de invocar o “povo orentino” (populus orentinus) como juiz
da moralidade clerical. Mezzabarba, por sua vez, retaliava. Enviou homens
armados à abadia para capturar João Gualberto, o fundador de Vallombrosa.
O rapto falhou. Apesar da destruição levada à casa dos religiosos, os cavaleiros
retornaram sem o líder monástico. O bispo, então, foi mais longe e empenhou
a própria fortuna para consolidar a fundação de um monastério que rivalizasse
com o prestígio espiritual de seus acusadores (DAMERON, 1991; JESTICE,
1997, p. 233-243; CORNELL; ZORZI, 2000).
Tendo obtido entre os laicos e uma boa parte do clero de Florença a
aprovação para que o impasse fosse julgado em Roma, os monges viajaram ao
Lácio, onde se ofereceram para provar a justiça de suas acusações por meio de um
ordálio do fogo. No entanto, não encontraram os aliados esperados. Alexandre
II proibiu a prova corporal.35 Diante do parecer desfavorável do pontí ce, a
situação dos monges complicou-se. A Cúria não via com bons olhos aquela
agrante desobediência hierárquica e considerava a conduta dos beneditinos
um exemplo inaceitável de desacato à autoridade episcopal. Além disso, era
impossível julgar a questão sem levar em conta o interesse demonstrado por duas
guras: Rainaldo (?-1075?), bispo de Como, e Godofredo (997?-1069), duque
da Lorena. O primeiro compareceu ao concílio e descarregou a indignação
do episcopado lombardo perante o extremismo daqueles monges. Quanto ao
segundo, basta isso: Godofredo sustentava o bispo orentino e Alexandre devia-
lhe seu ponti cado (D’ACUNTO, 1993, p. 288-303).
Os vallombrosianos chegaram às colinas romanas como defensores
da fé cristã e estavam prestes a deixá-las como transgressores da boa ordem da

35 ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107.


97
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Igreja. Seu temor deve ter crescido quando Pedro Damião tomou a palavra. O
cardeal foi implacável:
Agora me dirijo aos meus irmãos monges, com quem, acredito,
esta disputa começou. Eles dizem que bispos como estes são
incapazes de abençoar o crisma, dedicar igrejas, conferir ordens
clericais ou celebrar missas em qualquer momento. [...] É o bispo,
por suas palavras, que conclama o Senhor sobre um homem, mas
é o Senhor que realiza a e cácia da bênção. Portanto, o efeito da
bênção não depende dos méritos do bispo [...]. A Santidade é
odiosa se ela recai em heresia [...]. A pureza excessiva [...] arrasta
para a contaminação na imundície herética. [...] Pois declarar algo
como ilícito, quando ele é permitido, e, ao fazê-lo, vangloriar-se
de serem os defensores da justiça, os levará a serem julgados como
inimigos da Igreja. Podemos adequadamente comparar este tipo
de homem a sapos ou gafanhotos, pois ele agora devasta a Igreja
assim como anteriormente esses animais foram pragas no Egito.36

Contrariando suas expectativas, os religiosos viram-se acuados “como


ovelhas entre lobos”.37 As reprovações do cardeal – um eremita, como seu
líder! – eram duro golpe para aqueles homens, que envelheciam convictos de
viver a perfeição da pureza cristã. A relutância do papa soava como disparate:
como podia negar a súplica de quem tinha renunciado ao mundo para travar a
grande batalha pela salvação humana? Segundo a Vita Sancti lohannis Gualberti,
os ânimos fervilharam, e o alvoroço tomou conta da assembleia. Que só não
estourou em golpes sobre os monges porque foi contida por Hildebrando, que

36 “Hinc ad commonachos meos articulum transfero, a quibus profecto procedere totam


hanc iurgandi materiam non ignoro. Dicunt enim quia per huiusmodi sacerdotes nec
crisma con ci, nec aecclesia dedicari, nec clericalia iura conferri, nec missarum ullo
umquam tempore potuerunt solemnia celebrari. [...] Sacerdos quippe Dominum super
hominem verbis invocat, sed ipse supere um Dominus benedictionem e caciter format.
E ectus itaque benedictione non in merito sacerdotis constat [...]. Odiosa sanctitas
quae in heresim labitur [...]. Nimia certe mundicia in hereticae contagiones [...]. Qui
dum perhibent no licere quod licet, ac per hoc iactant se defensores esse iustitiae, hostes
adiudicantur aecclesiae [...]. Huiusmodi quippe genus hominum ranis sive locustis
merito comparatur, quia sicut Aegyptum illa tunc animalia percusserunt, ita per hos
nunc vastatur aecclesia.” (PEDRO DAMIÃO. Briefe 146. MGH Epp. 3, p. 533-542).
As palavras transcritas acima não foram proferidas por Damião no concílio de 1067,
mas, na realidade, enviadas ao populus de Florença na forma de epístola. Porém,
acreditamos ser historicamente plausível considerá-las um indicador dedigno da
posição defendida pelo cardeal na assembleia.

37 ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107.


98
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

ergueu a voz em defesa dos vallombrosianos.38


Uma vez mais, o arquidiácono surgia tomando o partido de um
controverso apelo ao sagrado. E o mais importante: sua posição parece ter
propiciado uma súbita reviravolta de papéis. Após carem a um passo da
condenação como inimigos da Igreja, os monges retornaram para Florença. Nos
meses seguintes, Mezzabarba apostou alto e perdeu: mais uma vez recorreu à
violência. Amparado nos recursos do marquês local, expulsou os cônegos que
haviam se abrigado de sua autoridade no oratório da igreja principal. Aquela
desastrosa medida arruinou a legitimidade do bispo e, somada à blindagem
oferecida por Hildebrando, encorajou os vallombrosianos a realizar o malvisto
ordálio.
Em 13 de fevereiro de 1068, um deles, chamado Pedro, jurou por sua
alma a culpa de Mezzabarba e, em seguida, andou “doze longos passos através
de brasa e chama”. Saiu ileso.39 Pressionado pela notícia daquele impressionante
“juízo de Deus”, Alexandre não teve escolha a não ser banir o bispo de
Florença.40 O que ocorreu no mês seguinte, durante o concílio quaresmal
romano. Destituído, Mezzabarba buscou refúgio em Lucca, acolhido pelo duque
Godofredo. Provavelmente, aguardava que ele o reconciliasse com o pontí ce
e revogasse a sentença. Empenhado em restabelecer o bispo sobre o qual havia
depositado parcelas importantes do controle sobre os territórios toscanos,
Godofredo refutou o valor da prova do fogo.41 Contudo, seus esforços foram
inúteis (CUSHING, 2005, p. 740-757; McCREADY, 2011; RANFT, 2012, p. 141-
184).
Projetado pela “e cácia propagandística da prova do fogo” (D’ACUNTO,
1993, p. 307), o monge Pedro – que a tradição católica moderna eternizaria como

38 “Cum itaque pene omnes furerent contra monachos et dignos morte iudicarent eos, qui temerarie
contra prelatos ecclesiae armari auderent [...]. Interea suxerrit in concilio quidam vir egregius ex
excellentissimus alter Gamaliel, scilicet Ildebrandus monachus et archidiaconus ecclesiae Romanae,
qui non pedetemptim ratiocinando, sede aperte atque fortissime defendit monachos contra omnium
opinionem.” (ANÔNIMO. Vita Sancti lohannis Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1107).

39 “Per ignem et ammam 12 pedum longam pertransiit.” (BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5, p.


306).

40 A epístola enviada pelos orentinos ao papa, bem como uma detalhada narrativa
de todo o con ito, pode ser encontrada em: André de Strumi. Vita sancti lohannis
Gualberti. MGH SS 30/2, p. 1096-1100. Ver ainda: Annales Altahensis Maiores. MGH
SS rer. Germ. 2, p. 74. Para referência geral ao concílio: HEFELE E LECLERCQ (1912,
4:2, p. 1266); CAPITANI 1966 ; MANN 1925, 6, P. 302 .

41 BERTHOLDO. Annales. MGH SS 5, p. 273-274.


99
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

“Pedro Ígneo” – conquistou a reputação de campeão da fé.42 Quatro anos depois,


vestiu o pomposo título de cardeal bispo de Albano (MICCOLI, 1960, X-178).
Por sua vez, Pedro Damião, apontado pelos historiadores como um “líder da
reforma papal” (FORNASARI, 1996; D’ACUNTO, 1999), amargou uma derrota
espinhosa. Revés que feriu gravemente sua identi cação com a política pontifícia,
como ele mesmo confessou ao papa:
Deixei o sínodo, que era presidido pela autoridade de vossa
santidade, tão desgastado e exaurido, com meu espírito tão
oprimido [...], que ele não poderia ser atenuado pelas chuvas
da contrição nem soerguido do desânimo pela graça da íntima
contemplação. [...] Por esta razão, estabeleci para mim o princípio
de que, enquanto viver, ausentar-me-ei completamente dos
sínodos romanos, exceto se uma necessidade inevitável me
compelir.43

Entre milagres punitivos e visões a respeito da danação clerical,


santos controversos e ordálios indesejados, a sacralidade associada a Gregório
VII por seus partidários surge na documentação atravessada por tensões. Ela
traz um inquietante sentido de equilibrar-se no limite do consenso, marcada
por lembranças de guinadas bruscas e direções contraditórias. Por vezes, temos
a impressão de que se retrata uma Igreja descentrada, repleta de con itos e
desencontros. Tais características são como traços que desenham uma imagem
diferente do Papado medieval, tradicionalmente visto como instituição
suprema e compacta. O que narramos até este ponto remete-nos a um círculo
institucional caracterizado por oscilações e fragilidades, um tanto incompatível
com a imagem de uma cúpula capaz de irradiar uma dominação religiosa bem
articulada sobre as consciências, como um núcleo originário do suposto “projeto
reformador” que abarcou o século XI. O sagrado vivido pelos gregorianos é um
desa o e tanto para o historiador: como explicá-lo?

42 Virum religiosissimum. BONIZO DE SUTRI. Liber Ad Amicum. MGH Ldl 1, p. 612; Referência
ainda em: PAULO DE BERNRIED. Vita Gregorii VII papae. PL 148, p. 58.

43 “Ita nimirum a synodo, cui vestrae sanctitatis auctoritas praefuit, contritus nuper et arefactus
abscessi, ut mens mea tot oppressa negociis, more silicis obdurata, nec per imbrem se cumpunctionis
emolliat, nec se quantumlibet super se gratia intimae contemplationis attollat. [...] Quapropter haec
apud me di nita sententia est, quia de caetero, nisi me necessitas inevitanda compellat, donec
advixero Romanis me conciliis funditus absentabo.” (PEDRO DAMIÃO. Briefe 164. MGH Epp.
4, p. 166-167). Para uma crítica da relação entre Pedro Damião e a Reforma Cristã, ver Bovo
(2012).
100
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Um pouco de teoria

Quando se trata de compreender o que chamamos de sagrado, é difícil


pensar em um ponto de partida para o pensamento que não as ideias de Émile
Durkheim. Há um século, o grande nome da sociologia francesa propôs uma
conceituação sistemática do sagrado, cujo rigor alcançou rápida notoriedade
entre as chamadas Humanidades. E não era para menos. Quando publicou
Les formes élémentaires de la vie religieuse: le système totémique en Australie, no
distante ano de 1912, Durkheim trouxe ao público uma síntese exaustiva das
contribuições mais inovadoras de seu tempo. Nessa obra, “a teoria do sagrado
e da religião atinge uma amplitude e uma sistematização que encontram pouco
equivalente na literatura sociológica” (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p.
180).
In uenciado pela leitura das conferências sobre a religião dos semitas
elaboradas por William Robertson Smith, teólogo e orientalista escocês falecido
em 1894, o autor de O suicídio ressaltou a ambiguidade como traço essencial
da vivência do sagrado. Segundo ele, as forças religiosas são de duas espécies
e encontram-se universalmente repartidas entre dois domínios opostos.
Algumas são sublimes, benfazejas, cultuadas como “guardiãs da ordem física e
moral, dispensadoras da vida, da saúde, de todas as qualidades que os homens
prezam”. Outras desassossegam o convívio coletivo com a certeza de que viver é
ser rodeado por potências sombrias, “más e impuras, produtoras de desordens,
causas de morte, de doenças, instigadoras de sacrilégios” (DURKHEIM, 1989,
p. 485).
Desde os tempos primitivos, as sociedades conferem inteligibilidade
aos fenômenos do mundo e aos movimentos da interação humana classi cando-
os nessas duas categorias de forças e de seres. A existência social é repartida em
dois domínios, entre os quais reina um contraste tão completo quanto os homens
podem suportar, mesmo que em alguns casos eles terminem por transformá-lo
em um antagonismo radical. O sagrado é o nome que cabe a esse conjunto de
experiências extraordinárias que se complementam pela dissociação. Designa,
portanto, um universo incomum sempre duplo, no qual o impuro contrasta e
realça o valor único da pureza, ao passo que a sensação de tornar-se puro, por
sua vez, ensina o temor da impureza. A sacralidade pressupõe uma variedade
elementar, o fasto e o nefasto.
A vida religiosa é composta por esses dois polos porque a vida social
divide-se em dois estados: “entre o sagrado fasto e o sagrado nefasto há o mesmo
contraste que entre os estados da euforia e de disforia coletivas. [...] A unidade
101
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e a diversidade da vida social é que constituem, ao mesmo tempo, a unidade e a


diversidade dos seres e das coisas sagradas.” (DURKHEIM, 1989, p. 490).
Ainda que a síntese durkheiminiana seja apresentada assim, de
maneira generalista e simplória, é possível divisar os contornos de suas
contribuições decisivas. A de nição aí estampada distanciava-se das perspectivas
que concebiam o sagrado como força imanente ao espírito, que misteriosamente
eclodia e impressionava consciências séculos afora. Desde então, mais do que as
formas, era possível investigar os conteúdos propriamente sociais do sagrado.
Durkheim apontava uma direção para sondar como as ideias religiosas emergiam
das relações que envolviam indivíduos e sociedade. Em sua teoria, o sagrado é
uma razão social, dotada de dinâmica e de diferentes estágios de realização.
Leituras posteriormente propostas, como a conhecida abordagem
de Mircea Eliade, não alcançaram a mesma profundidade e estacionaram
em uma hermenêutica muito atenta às especi cidades e descontinuidades
das experiências religiosas, mas que reiteradamente resultou em abordagens
descritivas. A famosa conceituação do sagrado como hierofania, proposta pelo
autor romeno, por pouco não se tornou uma forma retórica pouco propícia à
análise:
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do
profano. A m de indicarmos o ato da manifestação do sagrado,
propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não
implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que
está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de
sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões
– desde a mais primitiva às mais elaboradas – é constituída por
um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das
realidades sagradas. (ELIADE, 2001, p. 17).

Eliade a rma que não é preciso saber o que é o sagrado. Basta-nos


a consciência de sua revelação. Não precisamos de ni-lo para identi car suas
manifestações na história: a capacidade de reconhecê-lo assemelha-se a uma
faculdade universal, uma fenomenologia cuja inteligibilidade é inata tanto ao
praticante quanto ao observador (DUDLEY, 1977; RENNIE, 1996).
Voltemos a Durkheim. Por outro lado, sua teoria parece presa a um
cipoal de laços funcionalistas. Sua teoria da religião é um sistema bem articulado,
no qual as crenças e os comportamentos encaixam-se para gerar alguma utilidade
social ou não fazem sentido. As experiências simbólicas surgem determinadas
por nalidades sociais. Tal característica fez da síntese durkheiminiana alvo de

102
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

severas críticas, que a desquali cavam como um rígido esquema intelectual que
simpli cava a complexidade dos seres humanos ao ceifar qualquer margem de
autonomia para a dimensão cultural implicada em sua coexistência.
Não foram poucos os críticos que enxergaram na sacralidade elementar
apresentada por Durkheim uma maneira de reduzir a imprevisibilidade da
interação humana a grandes movimentos impessoais, excessivamente genéricos.
Desse ponto de vista, o sociólogo teria formulado uma teoria abstrata demais,
que perdia de vista as instabilidades e tensões das experiências sociais, bem
como suas rupturas e sua adaptabilidade (MOL, 1979; LEHMANN, 1995;
PICKERING, 2001, v. 3; FISH, 2005). A mesma característica louvada por
muitos como mérito insuperável foi desaprovada por inúmeros outros como
excesso abusivo: “o vigoroso espírito de sistema traz às elaborações teóricas um
quadro tão exigente, do qual podemos, conforme o humor do dia, admirar a
lógica ou lamentar as exigências” (ISAMBERT, 1976, p. 39).
Porém, diante dos dilemas que cercam essa complexa teoria geral da
religião, um princípio parece-nos imprescindível, ao menos para a compreensão
dos relatos gregorianos: o sagrado provém da interação social. É um modo
singular de edi car posicionamentos em meio ao inesgotável uxo de desa os
produzidos pelas relações coletivas. O essencial da de nição reside no signi cado
do adjetivo “singular”. A atenção deve convergir para ele. A nal, ele marca a
ideia de que lidamos com uma modalidade especí ca de mobilização humana:
o sagrado emerge da busca ou expectativa pela resposta social e caz. Essa é a
premissa, por exemplo, que funda o conceito de “mana”, emprestado de Hubert
e Mauss por Durkheim e inscrito no cerne da natureza atribuída ao sagrado: “o
mana é a força por excelência, a e cácia verdadeira das coisas, que corrobora sua
ação mecânica sem aniquilá-la. É ele que faz com que a rede apanhe, que a casa
seja sólida [...]. No campo, ele é a fertilidade; nos remédios, ele é a virtude salutar
ou mortal.” (HUBERT; MAUSS, 1902-1903, p. 111).
À primeira vista, essa de nição que fala em “mana” pode soar
esotérica ou até de ordem emocional, como advertiram Lévi-Strauss (2002, p.
11-45) e Smith (2002, p. 188-211). Mas não nos acomodemos à superfície do
pensamento. Pois, em seu núcleo, a de nição contém uma valiosa proposição:
o sagrado é a participação simbólica exigente, aquela movida para encontrar
a prática mais forte, capaz de restaurar a unidade que se vive como perdida,
ameaçada ou cindida. Essa participação pode ser exclusivamente simbólica,
mas a e cácia almejada deve produzir resultados necessariamente sociais. O
sagrado não é estático, inato ou de nitivo, uma vez que deriva da busca por
referenciais simbólicos plenos, que proporcionem experiências de segurança em

103
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

face das tensões e dos riscos impostos pela vida em sociedade. O raciocínio que
se desenha é este: existindo no tempo, a realidade social muda sem cessar; as
mudanças trazem novos riscos e tensões; inéditas, as instabilidades exigem do
sagrado outras respostas.
O acionamento do sagrado é um fenômeno histórico, pois decorre de
combinações mutáveis – porque nitas – entre pressões sociais e possibilidades
simbólicas. Ele é, como frisou Roger Caillois, a resposta e caz que o devir social
torna reversível, movente. Como propriedade de objetos, seres, lugares ou
períodos, alcança a estabilidade sem escapar à exigência de transformação: “nada
há que não possa tornar-se sua sede e revestir-se assim aos olhos do indivíduo
ou da coletividade de um prestígio sem igual. Nada há, igualmente, que não
possa ver-se desapossado dele. É uma qualidade que as coisas não possuem por
si mesmas.” (CAILLOIS, 1988, p. 20).
Insistamos no argumento: aquilo que é vivido como consagrado
estimula a conduta humana de maneira drástica, como se a eletri casse. Por meio
da busca ou do temor da e cácia última, o sagrado é experimentado como força
decisiva, uma descarga de pavor e veneração: “é do sagrado, com efeito, que o
crente espera todo o socorro e todo o êxito. Sob a sua forma elementar, o sagrado
representa, acima de tudo, uma energia perigosa, incompreensível, arduamente
manejável, eminentemente e caz.” (CAILLOIS, 1988, p. 23). Se buscarmos
outra via de conceituação, como a que foi delineada por Rudolf Otto (2007),
reencontraremos o aspecto essencial: o sagrado – que o autor preferiu designar
de numinoso – é o despertar do estado psíquico para a presença da ação e caz.
A formação luterana levou Otto a ver nessa experiência a origem do sentimento
de criatura. Isto é, a nascente desse assombro que é para o homem a sensação de
estar cercado por uma realidade misteriosa e absoluta. O numinoso repercute a
emoção implacável de perceber-se inferior por inteiro, dependente até a medula
de algo maior, supremo, majestático. Porém, Otto (2007, p. 55) também ressalta
que consagrar é sentir o contato com uma “energia, simbolicamente expressada
na vivacidade, paixão, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana.
Trata-se daquele aspecto que, ao ser experimentado, aciona a psique da pessoa,
nela desperta o zelo”. Parece razoável dizer que o teólogo luterano descreveu
um estado psicológico provocado pela experiência de travar contato com algo
capaz de cortar e separar a linha da vida de uma vez por todas: uma ação que os
homens acreditam – e vivem como – e caz em termos de vida e morte.
Sacralizar não pressupõe, obrigatoriamente, crer em uma divindade
ou na alma. É um processo que pode ocorrer em desacordo com os limites do
religioso – conforme sustentou Franco Ferrarotti (1983) no instigante Il paradosso

104
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

del sacro.44 Sua demarcação depende de outro fator, incomensuravelmente


mais amplo: o engajamento dos homens no empirismo social, entendido
simplesmente como a busca por respostas práticas – ainda que enunciadas pelo
simbolismo de origens fabulosas e misteriosamente inacessíveis. A eclosão do
sagrado aparentemente pressupõe o impulso para – ou tão só a acolhida de – um
desejo de chegar a resultados efetivos para a vida social em meio às pressões e
ambivalências da realidade (GIRARD, 1990, p. 45-47).
O sagrado é a trans guração simbólica da ação socialmente e caz. Eis
tudo o que pretendemos reter da teoria de Durkheim. Requisitamos para nossa
tentativa de explicação apenas esse axioma sociológico elementar, deixando
de fora aspectos mais complexos e, ao mesmo tempo, mais representativos do
pensamento formulado por um dos fundadores da sociologia atual. O caráter
totalizante do conceito de religião; a imagem das crenças como categorias
coletivas dotadas de uma obrigatoriedade inerente que arrebata as consciências
individuais como uma força externa; a dicotomia entre sagrado e profano
e – princípio do qual mantemos maior distância – o primado das formas de
solidariedade na constituição dos grupos sociais: todos esses princípios teóricos
são deixados de lado em nossa análise. Retendo apenas o postulado elementar,
voltemos nossas atenções para o Papado medieval.

O sagrado gregoriano

Entre as décadas 1050 e 1080, oriundos de paisagens variadas, forçados


ao contato com diversas outras regiões, os dirigentes eclesiásticos chamados
gregorianos partilhavam a realidade de uma política problemática, angustiante.
Lidando com a divergência de suas próprias opiniões, pelejando com o consenso
quebradiço que nascia em meio à variedade de suas trajetórias de vida, todos
enfrentavam a difícil situação de defender uma Igreja divorciada de suas antigas
bases materiais. Pois o Papado era uma instituição capaz de exercer uma
dominação social severamente limitada, em razão da hostilidade declarada nos
círculos aristocráticos vizinhos.
Desde 1046, quando o bispado romano passou a ser ocupado por
uma sucessão de líderes estranhos às forças senhoriais do Lácio, a Sé apostólica
tornou-se alvo de intensa oposição local. Valendo-se do terror das espadas e da
in uência da parentela, numerosas linhagens peninsulares investiram contra o
patrimônio episcopal: assumiram o controle de terras, estradas, pontes e igrejas;
retiveram rendas vitais como os dízimos; sustentaram a obstinação de bispos

44 Ver também: Melotti e Solivetti (2009).


105
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

e abades; sgaram o exercício de magistraturas urbanas; fomentaram levantes,


emboscadas, sequestros contra os papas e seus séquitos.
O tempo agravou o con ito. À medida que outros grupos políticos
envolveram-se, as disputas alastraram-se pela península até transpor os Alpes. O
Papado, é bem verdade, conquistava outros aliados; mas multiplicava as leiras
de seus adversários – quando não produzia antagonistas numa velocidade
ainda maior. Em diversos momentos, como em 1061-1063 e 1081-1085 – ou
depois, em 1111-1117 –, os con itos alcançaram a dimensão de catástrofes,
com as rivalidades aristocráticas dividindo a unidade eclesiástica em partidos
inconciliáveis: os “cismas” motivados pelo controle da autoridade pontifícia
tornaram-se não apenas frequentes, mas penosamente demorados. As disputas
arrastavam-se por anos, o que signi cava um alto dispêndio aos patrimônios das
famílias envolvidas. Muitas delas foram à bancarrota. Durante a segunda metade
do século XI, os papas administraram a fragilidade material (RUST, 2011a).
Essa dura realidade selou o modo como os eclesiásticos vinculados
ao ponti cado de Gregório VII concebiam e relembravam o lugar do sagrado
em suas vidas. Trata-se de um conjunto de experiências religiosas, especí cas e
recorrentes. Eis alguns aspectos que a distinguiram.
Em primeiro lugar, a combatividade. As relações gregorianas com a
sacralidade eram experiências de busca por soluções e cazes para os con itos
protagonizados pelo bispo de Roma, especialmente os enfretamentos com o
Império. Em muitos casos, tratava-se de um engajamento literário. Ao relatar
as punições enviadas pelos céus contra os adversários do Papado, autores como
Bernoldo e Paulo de Bernried buscavam na memória escrita a arma capaz de
conquistar a adesão de seus contemporâneos. O sagrado gregoriano é uma
arena de con itos, onde vemos um espetáculo narrativo de punições, golpes,
retaliações, dor e, com alguma frequência, sofrimento e morte.
Todavia, o tom aguerrido que caracteriza seus relatos sobre milagres
punitivos ou visões sobre a danação clerical não deve ser confundido com
algum belicismo genérico de uma suposta “psicologia coletiva da Idade Média”
(FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 221-244; ASTON, 1993; LE GOFF, 1994, p. 101-
104). O sentido prioritário daqueles textos não era o de a rmar o poder dos
homens da Igreja sobre o restante da sociedade – como insiste a perspectiva
atrelada à ideia do belicismo como “mentalidade”. O plano narrativo pouco
assemelha-se à fala de uma identidade clerical de grande envergadura coletiva,
supostamente empenhada em ensinar aos laicos e heréticos a superioridade “da
cultura clerical” por meio de exemplos terrivelmente moralizantes.
É preciso cuidado com o tom triunfal daquelas histórias. Ele não parece

106
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

ressoar uma hegemonia social. Brilha na escrita para ofuscar as marcas da derrota:
sua função é a de reluzir para negar o fracasso. A combatividade gregoriana surge
dominada por um cenário mais fragmentado que o de uma “ideologia da ordem
clerical”, perpassada de ponta a ponta por enfrentamentos imediatos: as batalhas
que a constituem possuem um feitio de rivalidades internas às elites. Sua lógica
está repleta de tensões internobiliárquicas, talvez mesmo intranobiliárquicas, e
apenas secundariamente interclassistas. As histórias que lhe dão vida dramatizam
o universo de uma elite eclesiástica dividida por antagonismos: tal é o caso da
visão atribuída à santa Hérluca, cujo tema é a desobediência do clero diocesano às
decisões do papa. Quando alargamos o escopo de observação, constatamos que
os registros documentais vão além e apresentam cisões em âmbito ainda menor,
a própria cúpula papal. As divergências entre Pedro Damião e Hildebrando a
respeito dos vallombrosianos retratam uma esfera eclesial em que a produção do
consenso esbarrava em graves di culdades.
Antes de delinear um empenho coletivo para defender a unidade
da Igreja contra as pressões de grupos externos, as narrativas do sagrado
gregoriano testemunham a duradoura realidade de um bispado trespassado por
muitas rivalidades domésticas e pressionado pela concorrência entre facções.
A combatividade resultava de uma política descentrada, em que o poder de
decisão era orientado para interesses locais. As punições divinas relatadas na
documentação expressam o desejo dos gregorianos de encontrar uma solução
e caz para as desgastantes divergências e hostilidades presentes no interior da
própria elite clerical. Lembrar que a justiça divina nunca falhou em redimir os
homens leais a Gregório e em corrigir seus opositores, por vezes cobrando-lhes
a própria vida, signi cava preservar uma memória capaz de orientar a adesão
política. As narrativas demonstravam que Deus recompensava quem lutava e
resistia pelo papa.
Esses registros não eram únicos, tampouco excepcionais. Vários
aspectos narrativos que os compunham vinham de séculos antes e podem ser
encontrados numa constelação de relatos espalhados pela imensa geogra a do
Ocidente cristão. Não se trata, portanto, de insinuar uma ruptura histórica como
o “nascimento” de uma nova espécie de sensibilidade religiosa. O que propomos
é outra ideia. Os gregorianos distinguiram seu olhar a respeito do sagrado porque
a fragilizada posição da Igreja romana pesou sobre suas experiências, refratando
o modo como vivenciavam as tradições cristãs. Os milagres punitivos, como o
relatado a respeito do bispo de Utrecht, não eram uma novidade do século XI.
Porém, o sentido que lhes foi atribuído era singular: relembrar desfechos que
dessem por encerradas as disputas aristocráticas provocadas pelo poder papal.

107
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

O argumento talvez ganhe força se relembrarmos as santidades


laicas de Cêncio e Erlembaldo. Os milagres relatados neutralizavam a ameaça
que pairava sobre duas alianças vitais para o Papado. As mortes do prefeito
romano e do cavaleiro milanês abalavam a já frágil estabilidade política das
ações pontifícias. A interrupção violenta de duas vidas sobre as quais a palavra
papal estava diretamente empenhada ameaçava-a de dissolução. Não se tratava
apenas de aliados, mas do signi cado maior que encarnavam. Destacados como
os sustentáculos da autoridade apostólica em cidades que conviviam com cismas
- isto é, com uma ordem eclesiástica cindida -, aqueles homens deveriam ser
lembrados como garantias vivas de que a verdade e a justiça estavam do lado
de Gregório VII. Suas mortes, porém, eram episódios desgastantes, capazes de
perturbar a segurança e a con ança no interior da cúpula romana. O sagrado
revertia este signi cado. Sacralizado, o desaparecimento brutal daqueles homens
foi recolocado como exemplo sublime de martírio, da entrega total que se faz
pela causa verdadeira. A sacralização de suas mortes era uma resposta simbólica
capaz de esconjurar o fantasma da derrota e tranquilizar as consciências como
prova de o papa agia segundo a vontade dos céus.
O risco de dispersão política que rondava os gregorianos forçou uma
abertura de fronteiras da santidade. Eles moveram o sagrado para incluir aí
leais combatentes da causa papal: laicos envolvidos em conturbados con itos
contra outros grupos clericais. A energia empenhada para celebrar o martírio
e os milagres de Cêncio e de Erlembaldo apresenta um Papado diferente
daquele que, “no século XI, teria rebaixado a condição de laico, [...] sob uma
rígida regulamentação de esferas de atividades na sociedade cristã. Segundo
esta lógica, restaria, fundamentalmente, uma única ordem, a dos clérigos e
sua exclusiva posse do sagrado” (IOGNA-PRATT, 2002, p. 17-18). Aquela
santidade não retratava uma sólida hegemonia cultural. Era mais uma tentativa
de salvar uma instituição da ruína política. A combatividade que os gregorianos
expressaram no sagrado – com seus diversos episódios simbólicos de coerção,
castigos e vinganças – exigia exibilidade para negociar a inclusão dos aliados
que surgiam no caminho de suas lutas senhoriais, por mais inesperado que fosse
seu per l. A santidade cultuada pelos gregorianos desa a a lógica separatista
atribuída à reforma pelos historiadores: onde está a rigidez do protagonismo
religioso exclusivamente clerical? O que nos leva à próxima característica.
Em segundo lugar, um sentido político prepondera sobre esses
relatos, sobretudo os dedicados à memória de milagres papais. A lembrança
de acontecimentos prodigiosos era um acerto de contas com as derrotas
institucionais. O sagrado foi uma resposta à perda dos meios políticos e materiais

108
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

necessários para ser reconhecido como autoridade. Vejamos.


O caso da milagrosa intervenção de Gregório VII no incêndio provocado
pelas tropas de Henrique IV ilustra o argumento de maneira sintomática. Na
trama do relato, o recuo das chamas perante o gesto do sinal da cruz provava
que Deus permanecia do lado do papa. Todavia, a prova veio no limiar do
aniquilamento. Quando ela ocorreu, na própria história, a resistência romana
era dada como perdida, prestes a cair na armadilha imperial. A permanência dos
citadinos na defesa do papa estava por um o. A exaltação espiritual do pontí ce
ocupa um lugar secundário, ou melhor, a narrativa coloca-a a serviço de outro
propósito: é a salvação da obediência dos romanos que justi ca a interferência
divina. Crer no milagre supostamente ocorrido na Quaresma de 1083 era uma
forma de declarar o apoio ao papa na disputa travada com o imperador pela
adesão do “clero e povo romano” (cleros et populus romanus).
Luta longa, sinuosa, repleta de retrocessos para ambos os lados.
Engana-se quem suspeita que essa imagem derive de alguma fonte imperial,
como se tal caracterização fosse mais prejudicial a Gregório que a Henrique
IV. Na realidade, ela pode ser encontrada em um documento como o Liber ad
Amicum, composto por Bonizo de Sutri, cujo fervor pela defesa de Gregório
transformou-o em “um escritor sem escrúpulos para falsi car fatos que não
serviam à sua opinião” (POOLE, 1917, p. 12). Por um lado, o imperador pelejava
com o fracasso. Como quando tentou “ganhar o favor do povo” ao jurar que
aceitava receber a coroa das mãos de Gregório. Embora não tenha resultado
em uma posição mais favorável, a promessa levou “clérigos e laicos a implorar
ao papa, em meio a um dilúvio de lágrimas, que tivesse piedade de sua terra
nativa, quase em ruínas”.45 Por outro lado, o desgaste do pontí ce não era menor.
Quando lançou mão das rendas destinadas aos altares e aos pobres para custear
a defesa urbana contra o cerco imperial, Gregório encontrou viva indignação
entre os cardeais. Alguns deles, entre os quais aliados proeminentes, foram até
o campo inimigo e protestaram junto ao rei (ZAFARANA, 1966, p. 399-403;
COWDREY, 1996, p. 153).
A história do milagroso combate ao incêndio está carregada deste
aspecto: mantida a duras penas, equilibrada no limite entre a adesão e a sedição,
a legitimidade oferecida pelos romanos era preservada graças a esforços
excepcionais, extraordinários. Ali estava uma obediência que balançava, quase
além do alcance humano.

45 BONIZO DE SUTRI. Liber ad Amicum, MGH SS 9, p. 630- 638. No verão de 1083, Henrique
IV rmou o pacto secreto com uma expressiva parcela da aristocracia romana pelo qual se
comprometia a ser coroado por Gregório ou por outro papa escolhido com seu conselho.
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A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

São políticos os referenciais históricos que de nem o sentido


predominante daquela história, o qual di cilmente será compreendido em sua
especi cidade se for tratado como um produto de redes e interações inteiramente
simbólicas. Perderíamos de vista características importantes do sagrado
reverenciado pelos gregorianos se o concebêssemos, por exemplo, segundo a
de nição de religião proposta pelo célebre antropólogo Cli ord Geertz (1989,
p. 104-105): “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas [...]
disposições e motivações nos homens [...], vestindo essas concepções com tal aura
de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”.
Nos casos aqui debatidos, as crenças na sacralidade eram impulsionadas por
fatos políticos, por dilemas envolvendo a legitimidade do poder papal. Nelas, os
sujeitos históricos encontravam possibilidades para posicionar-se a respeito de
acontecimentos impostos por relações de poder que abrangiam a obediência e a
resistência, o consenso e o dissenso.
A produção da crença – e das tais “disposições e motivações” de que fala
Geertz – não deve ser reduzida a induções simbólicas. O comportamento religioso
não cabe dentro da imagem de experiências estruturadas por símbolos, como se
as nalidades implicadas no envolvimento social resultassem de signi cados que,
por um movimento autônomo, condensam-se e ativam o engajamento (ASAD,
1993; SCHILBRACK, 2005). Como “modelo interpretativo” da existência
coletiva, o sagrado gregoriano não era capaz de totalizar as relações cotidianas, já
que era constantemente sacudido pelas guinadas e rupturas das relações de poder.
No caso da memória criada em redor da gura de Gregório VII, essa produção
decorria, em primeiro lugar, de disposições políticas que atingiam os sujeitos
sociais como restrições ou vantagens concretas, pressionando a inteligibilidade
do mundo. A fragilidade política do Papado cultivava a intensidade do apelo ao
sagrado.
Para o estudo do poder papal do século XI, a fórmula que vê a “esfera
política como província do religioso” (LE GOFF, 1990, p. 220) mostra-se
reducionista. Ela encoraja uma visão da história como movimento pelo qual as
ações simbólicas capturam e domesticam as ocorrências factuais, incluindo-as
em um horizonte global de sentidos pré-con gurados. O mundo dos símbolos,
neste caso, não tem apenas uma relativa autonomia sociológica – premissa
com a qual concordamos, diga-se logo. Ele ganha uma expressiva preexistência
aos eventos em si. Sob tal perspectiva, deixaríamos escapar aquele que talvez
seja o mais importante aspecto dos casos analisados: as clivagens políticas
engendravam dimensões simbólicas próprias, que alteraram os “modelos
culturais” recebidos da tradição. A política pontifícia movia os referenciais então
existentes de sacralidade.
110
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

Por m, esse sagrado gregoriano era utópico. Seus relatos projetavam


inversões de estados de força desfavoráveis ao exercício do poder pontifício.
As histórias prodigiosas contadas por Bernoldo de Constance e por Paulo de
Bernried combinavam as duas atitudes de uma razão utópica: a negação do
momento vivido e a promessa de sua superação. Não se tratava de mera fantasia,
de imaginar uma situação irrealizável, a respeito da qual só se poderia especular.
Utópico, aqui, não signi ca escapismo ou evasão do real. Utilizamos o termo para
dizer precisamente o contrário: a formulação de um desejo aplicado de mudar
as relações coletivas. As narrativas recorriam ao passado para reposicionar
simbolicamente o presente vivenciado pelos autores. Uma vez assegurada a
memória de que as derrotas não foram de nitivas, o envolvimento político dos
contemporâneos poderia ser resgatado para novos rumos.
Insistamos: o adjetivo “utópico” não deve remeter, aqui, a uma leitura
presa a sua raiz etimológica, a ideia grega de “não lugar”. Pois designa, acima
de tudo, o empenho simbólico de escritos para reinstalar a Igreja de Roma em
um novo lugar político, no qual a certeza de que as decisões e ações do papa
haviam sido e cazes encorajaria a aceitação e a obediência. Sacamos essa palavra
para destacar como os relatos apresentavam um Papado capaz de ultrapassar
sua condição material: a escassez de recursos, a sufocante resistência senhorial,
os trágicos desastres militares. O profundo sentido existencial que carregava
as histórias de visões e milagres era capaz de persuadir leitores e ouvintes,
convencendo-os a vislumbrar uma realidade vitoriosa por trás da fragilidade
política. Assim, os gregorianos encontraram no sagrado um poderoso estímulo
de mobilização, um recurso privilegiado para angariar o apoio de um bispado
continuamente encurralado por severas restrições de meios de ação. Por meio
daquelas histórias, era possível contestar com e cácia as amargas derrotas
sofridas pela cúpula eclesiástica que defendiam, pois, a seus olhos, a realidade
era outra.
O discurso gregoriano não era soberano. Repleto de apelos por
uma certeza maior que o declínio, quase se pode ouvi-lo ressoar como toque
de recolher para recompor. Sua narrativa é atravessada pela tensão da espera.
Espera pela superação daqueles desfechos trágicos. Espera alimentada pela
certeza dos autores de que a justa autoridade – a pontifícia –, redimida pelos céus,
ressurgiria içada muito acima das pretensões de seus inimigos. As narrativas
visam reverter certas posições, mais que reforçá-las. Desse modo, é preciso
redobrar os cuidados quando se pretende ler esses registros documentais como
uma “ideologia religiosa”. Tal seria o caso, por exemplo, se conduzíssemos seu
exame segundo as coordenadas teóricas de um autor como Maurice Godelier.

111
A Reforma Papal (1050-1150) . Trajetórias e críticas de uma história

Vejamos.
Segundo o antropólogo francês, “o sagrado é certo tipo de relação
dos homens com a origem das coisas tal que, nessa relação, os homens reais
desaparecem e em seu lugar aparecem seus duplos, os homens imaginários”
(GODELIER, 2001, p. 259). Com base nesse enunciado, o pensamento de
Godelier rami ca-se em muitas direções, gerando uma grande variedade de
desdobramentos e implicações. Porém, tudo depende desta ideia fundamental:
o sagrado é um mecanismo cultural de inversão das relações dos homens com
o mundo. Ao consagrar objetos, seres ou lugares, os sujeitos sociais encobrem o
funcionamento real do que passam a venerar. A produção da crença envolve as
relações sociais de opacidade.
Admirando ou temendo, os homens convertem-se em estrangeiros
da própria humanidade. Pois separam-se de sua própria participação no
aparecimento das coisas e dos fenômenos que consideram divinos, especiais ou
só incomumente poderosos. Do ponto de vista do autor d’O enigma do dom,
sacralizar é recalcar para além da consciência o papel ativo dos homens nas
origens da sociedade: “o sagrado rouba à consciência coletiva e individual algo
do conteúdo das relações sociais.” (GODELIER, 2001, p. 261). O homem deixa
de reconhecer-se como coautor da vida coletiva.
A fórmula é requintada, mas não é nova. O sagrado aliena aquele que
crê ao apagar a presença humana na origem das transformações sociais. Aplicada
às relações de poder, a conclusão remete aos argumentos de Marx e Engels em A
ideologia alemã (2007): como repertório de “falsas impressões” sobre o mundo,
o sagrado desmobiliza, imobiliza. Sua nalidade, por conseguinte, é conservar as
posições sociais, mantendo a desigualdade existente entre elas. Já que “deixa nas
sombras, recalcada em pontos cegos toda uma parte da realidade” (GODELIER,
2001, p. 268-269), o sagrado legitima correlações de forças já estabelecidas.
Assegura o consentimento de quem sofre, mas não desvenda a realidade.
É aí que a conceituação parece não calhar. Os relatos prodigiosos dos
gregorianos não parecem “roubar algo do conteúdo da sociedade”: eles acentuam-
no, potencializam-no precisamente por reabrir as disputas pela legitimidade,
pelo consenso e pela persuasão. O seu caso não era o de homens que “podiam se
reencontrar no sagrado, mas não podiam mais nele reconhecer-se, reconhecer-
se como autor, fabricante, em suma, origem” (GODELIER, 2001, p. 269).46 Sem
dúvida, em suas narrativas, as origens da mudança passavam a ser de outra
ordem, divina ou infernal. Mas o desaparecimento do elemento humano dessa
origem não signi cava, necessariamente, a diminuição de sua presença ativa no

46 Ver igualmente Godelier (2007).


112
As pegadas do sagrado: o político como religiosidade

curso dos acontecimentos – como quis o antropólogo francês. A trans guração


da origem das coisas não é uma sentença de imobilização política dos sujeitos
sociais, como se ela congelasse sua capacidade de apropriação simbólica e, em
especial, imobilizasse seu engajamento social. Godelier percebeu no sagrado
crenças que reforçam superioridades sociais ao camu á-las. Ao crer no sagrado,
os partidários de Gregório VII encontraram uma plataforma de resistência e,
nela, novas possibilidades de engajamento contra a derrocada política. No
sagrado estava a crítica ao estado de coisas circundante e a promessa de sua
superação.
A expressão “sagrado gregoriano” faz sentido na medida em que realça
uma Igreja descentrada, tomada por particularidades, fragilizada por tensões
internas à elite, propensa a negociar a separação entre clérigos e laicos e dirigida,
em momentos decisivos, para uma ortodoxia repleta de riscos e desacordos. Essa
incursão conceitual expõe as incongruências de de nições generalistas, como as
que insistem em colocar o poder dos papas como uma instância capaz de de nir
os horizontes globais dos signi cados religiosos vivenciados na sociedade
medieval. Essa expressão empresta um tom de ironia a essa conclusão. A nal, o
“sagrado gregoriano”, cuja aparência é a de um nome que reforça a unidade da
política papal – como se nos levasse a ver “a” unidade religiosa da Cúria romana
–, age em sentido oposto. Desmisti ca elementos das leituras canonizadas
por certas fórmulas historiográ cas, que vão da antiga “Reforma Gregoriana”
e chegam à recente “Revolução Papal”, caracterizando o Papado como eixo de
uma centralização não só da vida institucional das igrejas cristãs, mas da própria
cultura ocidental no século XI.

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