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A Paisagem em Portugal Continental

Do passado para o Futuro

Alexandre d’Orey Cancela d’Abreu


(Universidade de Évora)
Texto e apresentação baseados nos pontos 1.4.2 e 1.4.3 do estudo
“Contributos para a Identificação e Caracterização da Paisagem em
Portugal Continental”1.

1. DIVERSIDADE E DINÂMICA

2. AS MUDANÇAS MAIS RECENTES

3. PRINCIPAIS PROBLEMAS E AMEAÇAS

4. OPORTUNIDADES

5. DESAFIOS PARA O FUTURO

1
Cancela d’Abreu, A., Pinto Correia, T. e Oliveira, R. (coord.) et al., 2004. Contributos
para a Identificação e Caracterização da Paisagem em Portugal Continental. Colecção
Estudos 10, DGOTDU, Lisboa.
2
1. DIVERSIDADE E DINÂMICA DA PAISAGEM PORTUGUESA

Uma primeira e importante constatação relativa a este tema é a


diversidade das paisagens presentes no território continental
português, tendo em conta a sua superfície relativamente reduzida. De
facto, é notável a diferenciação das nossas paisagens, fruto de um
conjunto de factores naturais e culturais, de que se poderá destacar,
muito resumidamente:

Uma posição geográfica e uma conformação que envolvem três


influências climáticas - Atlânticas, Mediterrâneas e Continentais;
Um relevo no geral bastante vigoroso e com fortes contrastes
(entre o norte e o sul, entre o litoral e o interior);
Uma constituição litológica muito diversificada;
Uma costa extensa, variada e com ocorrências marcantes (cabos,
estuários e rias, serras próximas, entre outros);
Uma ocupação humana antiga, influenciada pelo exterior e
condicionada por uma sucessão de acontecimentos com fortes
repercussões sobre a paisagem, nomeadamente:
Processo de afirmação e manutenção da nacionalidade ao
longo dos tempos;
Introdução de espécies vegetais com interesse agrícola,
florestal e ornamental;
Emigrações e imigrações;
Relações políticas culturais e comerciais privilegiadas com
uma grande diversidade de povos de todo o mundo;
Intensos intercâmbios culturais através do
desenvolvimento do turismo.

Da conjugação destes factores (bem como de outros com menor


significado), resultam situações claramente diferenciadas, o que está bem
expresso nas cerca de cento e trinta unidades de paisagem identificadas
no trabalho “Contributos para a Identificação e Caracterização das
Paisagens de Portugal Continental” (cada uma destas unidades muito

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longe da homogeneidade interna), associadas em vinte e dois grupos de
unidades com relativa afinidade.

Esta diversidade, expressa num mosaico de paisagens com uma malha


apertada, constitui em si mesma um valor a ter em atenção no
ordenamento do território nacional, justificando um esforço no sentido
de salientar as especificidades presentes, uma vez que a identidade das
paisagens passa pela manutenção das diferenças.

Outra questão que merece ser referida desde já, tem a ver com a ideia
errada, largamente difundida, de que a paisagem portuguesa se manteve
quase imutável ao longo dos séculos, sofrendo grandes alterações só nos
últimos trinta ou quarenta anos. Efectivamente, os registos históricos
demonstram uma enorme dinâmica da paisagem portuguesa ao
longo do tempo, passando por intensas transformações, embora
recentemente estas se tenham sucedido a um ritmo mais acelerado. São
exemplos claros daquelas transformações:

as provocadas pelos colonizadores romanos a partir do sec. V a.c.;


as induzidas pela “revolução” do milho iniciada no sec. XVI;
as decorrentes da Revolução Liberal do sec. XVIII;
as que resultaram da ocorrência de diversas pragas e doenças
(filoxera na videira ou tinta no castanheiro);
as provocadas pelas campanhas do trigo ou pelo Plano de Povoamento
Florestal (finais do sec. XIX e primeira metade do século passado);
as decorrentes do processo de industrialização e de concentração
urbana a partir da segunda metade do séc. XX, em simultâneo com a
emigração maciça para a Europa;
generalização das férias pagas, novos hábitos no âmbito do turismo e
do lazer;
as que resultaram da nossa adesão à CEE / UE, nomeadamente no
que diz respeito à aplicação das várias versões da Política Agrícola
Comum e à construção de grandes infra-estruturas;

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crédito barato que levou a um consumismo exagerado, aquisição de
habitação própria (e também segundas habitações), crescimento
drástico do número de automóveis.

Para além deste reconhecimento da dinâmica das paisagens ao longo


dos tempos (em muitos casos com efeitos bem negativos), há mais duas
razões para não termos uma atitude nostálgica relativamente às
“paisagens tradicionais” que dominavam no país até há cerca de 50
anos:

Por um lado, tais paisagens correspondiam a situações dramáticas


quanto ao nível e à qualidade de vida de grande parte da
população;
Por outro lado, também nelas estavam presentes problemas e
desequilíbrios, que não são exclusivos da época contemporânea. De
facto, há registos com centenas de anos que confirmam a existência
de processos de degradação importantes como é o caso da erosão do
solo, destruição maciça de matas e matos, sobre-exploração dos
recursos cinegéticos, entre outros. Também estão bem documentados
casos antigos de deficiente localização de vilas e aldeias, fábricas e
assentos de lavoura, habitações isoladas, de que resultaram situações
graves para a segurança de pessoas e bens ou desrespeito por valores
culturais e naturais preexistentes.

No entanto, tal como em todo o mundo, nas últimas décadas verificou-


se em Portugal uma aceleração e intensificação drástica dos
processos de transformação da paisagem. É possível afirmar que os
problemas e desequilíbrios da paisagem portuguesa adquiriram maior
gravidade por:

se terem generalizado a quase todo o espaço nacional (deixaram de


ser pontuais);
por corresponderem a processos muito mais rápidos;
por serem mais drásticos (maior dimensão espacial das alterações,
meios de intervenção muito mais potentes).
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2. AS MUDANÇAS MAIS RECENTES

Consideram-se como mudanças mais recentes na paisagem


portuguesa as ocorridas nos últimos trinta a quarenta anos,
correspondendo a um conjunto de alterações muito significativas e, como
já referido, verificadas a um ritmo muito mais rápido do que em períodos
anteriores.
Muito resumidamente, os traços fundamentais das alterações ocorridas
na paisagem portuguesa durante os últimos decénios do século XX
passaram:

Pela concentração urbana nas áreas metropolitanas de Lisboa e


Porto, com prolongamentos importantes ao longo de quase toda a
faixa litoral entre Setúbal e Viana do Castelo. Também no litoral
Algarvio, aqui por influência determinante do turismo, se verificou um
crescimento substancial dos centros urbanos tradicionais e o
surgimento de novos centros (ou de simples aglomerados de
construções). Um pouco desfasado no tempo, assistiu-se a uma
relativa concentração da população nas cidades médias e grandes
vilas do interior.
Com origem neste fenómeno, que chegou tardiamente ao país
(comparativamente ao que se passou no resto da Europa e América do
Norte), foram afectadas directamente as paisagens destas faixas
litorais, em termos gerais no sentido negativo já que o crescimento
urbano se processou com um enorme déficit de planeamento e foi em
grande parte comandado pela especulação imobiliária.
Indirectamente, este processo de concentração urbana teve
repercussões sensíveis sobre as paisagens do interior do país, que
tem vindo a registar uma perda contínua de população, o abandono de
muitos lugares e aldeias, bem como a drástica alteração dos sistemas
de exploração da terra.

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Pela construção dispersa em áreas rurais e em alargadas
periferias urbanas. Para além das áreas de tradicional dispersão da
construção (nomeadamente no Noroeste, parte da Bairrada e
Estremadura, do Barrocal Algarvio, foros no Ribatejo), tal dispersão
alargou-se a outras regiões, conduzindo a uma evidente alteração do
carácter da paisagem e a elevadíssimos custos sociais, principalmente
os relativos à extensão de infra-estruturas, à prestação de serviços
públicos e à degradação de recursos afectados pela edificação.
Este processo de dispersão passou por diversas fases e tipologias,
nomeadamente:
o pelo surto de construção dos emigrantes no centro e norte do
país rural (anos 60-70 do século passado);
o pela explosão dos bairros “clandestinos” nos arredores de Lisboa
e Porto (anos 70-90 do século passado);
o pelo alastrar de segundas habitações, primeiro junto ao mar e,
mais recentemente, em zonas rurais;
o pela construção ao longo das estradas e auto-estradas.

Aos efeitos directos de toda esta dispersão desordenada da


construção, juntam-se os efeitos indirectos provocados pelas infra-
estruturas que a acompanham (sobretudo vias automóveis e linhas
aéreas).

Pela construção de grandes infra-estruturas, com destaque


para as estradas e auto-estradas mas, também, linhas de alta tensão,
parques eólicos, portos e barragens.
Trata-se de realizações que pela sua dimensão e, por vezes, também
pela sua continuidade, têm efeitos muito fortes sobre a paisagem,
alterando drasticamente o seu carácter.
Verifica-se que, apesar das normas em vigor, a grande escala deste
tipo de intervenções e o pressuposto de que são de interesse público,
conduziu normalmente a um relativo menosprezo por recursos e
valores locais, o que em termos de paisagem tem sempre
consequências marcantes.

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Outra transformação importante na paisagem portuguesa passou
pela alteração significativa dos sistemas de utilização da terra
resultantes de profundas mudanças socioeconómicas e das políticas
agrícolas, embora com efeitos muito diferenciados em termos
regionais. Assim, vem-se assistindo:
o Ao abandono de áreas antes exploradas agricolamente, por
exemplo ao longo dos estreitos vales do interior das Beiras, da
charneca ribatejana ou da serra do Algarve e, ainda, de muitas
outras áreas e parcelas consideradas como “marginais” para a
produção agrícola.
Em simultâneo, verifica-se a extensificação de alguns
agrossistemas do sul (caso da substituição de sistemas
arvenses cerealíferos por sistemas pastoris no Alentejo) e a
redução da pressão sobre pastagens naturais no norte do país;
o À intensificação agrícola, normalmente com recurso ao
regadio, principalmente no Ribatejo, Algarve e também Alentejo.
Os novos regadios têm vindo a ser implantados com uma
enorme artificialização (veja-se o exemplo do Baixo Mondego
ou, mais recentemente, do Alqueva), exigindo medidas
compensatórias que deveriam passar pela criação de estruturas
de protecção e valorização ambiental. As novas técnicas de
regadio “libertam” estes sistemas agrícolas das tradicionais
condicionantes fisiográficas e pedológicas, surgindo por vezes
em situações até há bem pouco tempo totalmente inadequadas,
o que realça ainda mais as mudanças na paisagem (caso da
água de aquíferos distribuída por “pivots” no meio da charneca
do Ribatejo e no Alentejo, por exemplo);
o À expansão de alguns sistemas agrícolas permanentes,
nomeadamente vinhas e olivais, em parte com técnicas culturais
inovadoras que se reflectem na sua expressão paisagística
(vinhas “ao alto” no Douro, olivais intensivos de regadio em
Trás-os-Montes, Ribatejo e Alentejo, pomares de citrinos no
Algarve, renovação e expansão da vinha um pouco por todo o
país mas com significado especial no Alentejo);

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o A uma florestação que passou por diversas fases – primeiro
dos baldios e terras altas do centro e norte do país, recorrendo
quase exclusivamente ao pinheiro bravo; depois, com o
eucalipto, completando ou ocupando as áreas de pinhal nas
mesmas situações e alargando-se para sul (algumas zonas do
Alentejo) e para áreas mais planas do litoral centro;
ultimamente, recorrendo também a espécies autóctones –
sobreiros, castanheiros, pinheiro manso, etc., por vezes na
florestação de terras agrícolas.
Apesar das campanhas oficiais e dos incentivos disponibilizados
para a plantação de novos povoamentos florestais terem
alterado profundamente algumas zonas do continente português
(caso de grande parte das serras do norte e centro do país, de
extensas áreas da Beira litoral e interior, da zona do “Pinhal do
Centro”, da Serra de Ossa ou de Odemira, entre outros), os
resultados esperados no que diz respeito ao total de área
florestal estão longe da realidade, em grande parte devido ao
flagelo dos incêndios que sistematicamente ocorrem um pouco
por todo o país durante a época seca e quente.

Por uma exploração dos recursos geológicos com fortíssimos


impactes negativos sobre o ambiente e a paisagem provocados por
pedreiras e areeiros, assim como pela extracção de areias de rios, de
praias e dunas.

Pela proliferação de elementos que, sem serem edifícios, têm


também grande visibilidade na paisagem, como por exemplo
linhas aéreas de transporte de energia, antenas de redes de
telecomunicações (telemóveis), centrais eólicas, painéis publicitários
de grandes dimensões.
Sendo certo que desde há muito a humanização da paisagem
portuguesa tem expressões que a marcaram e transformaram
fortemente – basta lembrar os castelos ou os moinhos de vento em
sítios altos, os faróis bem destacados ao longo da costa, os silos de
cereais, as igrejas e catedrais normalmente localizadas em pontos
9
altos-, existe uma diferença substancial relativamente à maioria
destes novos elementos: pouco ou nada acrescentam de positivo à
paisagem preexistente, raramente são interessantes em termos
estéticos, não passam de elementos estranhos ao sítio. Se alguns
deles são inevitáveis (o que não é o caso dos painéis publicitários,
condicionados por legislação em vigor junto às principais vias de
comunicação), os outros poderiam ser objecto de algumas medidas
disciplinadoras (caso das antenas das redes de telemóveis, em que
um acordo obrigatório entre redes de operadores permitiria reduzir
substancialmente o número de antenas espalhadas por todo o país).

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3. PRINCIPAIS PROBLEMAS E AMEAÇAS

Como principais problemas e ameaças que actualmente incidem


sobre a paisagem de Portugal continental, em grande parte ligados às
alterações recentes referidas, são de assinalar como mais importantes e
com inter-relações mútuas, os seguintes:

Uma crescente “litoralização” do país, com os consequentes efeitos


de congestionamento da faixa litoral e de abandono de grande
parte do interior.
Ou seja, às tendências para a continuação da expansão de áreas
construídas e respectivas redes de infra-estruturas numa relativamente
estreita faixa litoral, corresponderá, em termos de paisagem, uma
perda de diversidade (e de identidade) devido ao modo não
integrado, uniformizador, seguindo padrões de muito baixa qualidade
que têm dominado tal processo de expansão. Este empobrecimento
paisagístico é ainda agravado pelo abandono de vastíssimas
superfícies (principalmente nas áreas metropolitanas, mas não só)
que permanecem expectantes em relação às possibilidades de passar
do uso rural para urbano.
Por outro lado, do despovoamento de extensas zonas do interior,
(não só das mais agrestes e/ou de mais difícil acessibilidade), também
resultará numa desvalorização da diversidade inerente a paisagens
humanizadas, onde as comunidades residentes desenvolviam
actividades agrícolas e pecuárias, mantendo um conjunto equilibrado de
usos que tiravam partido de um mosaico apertado de condições
naturais ou alteradas ao longo de muitas gerações (sistema de
caminhos, socalcos, muros e sebes de compartimentação dos campos,
sistemas armazenamento e de condução de água, entre outras). O
desaparecimento acelerado de uma população já muito envelhecida
que, até recentemente, ia mantendo este tipo de paisagens, dará lugar
a um simples abandono ou a sistemas florestais ocupando
uniformemente extensas áreas quase despovoadas, com os problemas
correspondentes a uma exagerada simplificação da paisagem, à
degradação de identidades locais e redução das suas potencialidades
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turísticas e recreativas, a uma baixa biodiversidade e a elevados riscos
de incêndio.

Expansão urbano-industrial que se vem verificando tanto na faixa


litoral como em áreas interiores desrespeitando quase sempre as
aptidões e os valores presentes no território, de que resultam
áreas metropolitanas e outras áreas urbanas desqualificadas e
disfuncionais. De facto, não se alterando as actuais tendências,
continuará a reflectir-se negativamente sobre a paisagem a desordem
da maioria das expansões urbanas, em resultado da falta de critérios
para a escolha das áreas a construir relativamente à morfologia, aos
climas locais, à fertilidade do solo, ao sistema de drenagem natural, à
flora e vegetação, à presença de recursos geológicos, aos valores
patrimoniais, etc.. Prova o passado recente que, enquanto os
processos de expansão forem essencialmente determinados pela
promoção privada, será difícil integrar os centros urbanos em
paisagens equilibradas e multifuncionais, reduzindo-se aqueles a
conjuntos edificados que não garantem condições de vida aceitáveis
e que são factores de degradação e de instabilidade de extensas
áreas envolventes.

A continuação da dispersão de segundas habitações, com


particular incidência no litoral, em algumas áreas protegidas junto às
grandes concentrações urbanas (Parque da Arrábida e de Sintra –
Cascais, por exemplo) ou em certas zonas do Ribatejo, Alentejo e
Algarve, conduzirá inevitavelmente à desqualificação das paisagens
afectadas. Tal deve-se à alteração do seu carácter (frequentemente
reconhecido como de especial valor a nível nacional), bem como à
consequente redução da capacidade dessas paisagens para proteger,
valorizar e permitir a fruição de recursos e de situações especialmente
interessantes;

A generalizada falta de qualidade do edificado e dos espaços


públicos agrava ainda as já referidas deficiências quanto à sua
inserção paisagística. Ao ter-se permitido que os projectos de

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arquitectura fossem elaborados por não arquitectos - situação que foi
finalmente alterada pela revisão da lei mas que tarda a ser
concretizada - também a paisagem fica a perder por nela se
implantarem objectos desinteressantes ou mesmo disformes,
desintegrados do contexto e dando origem a espaços públicos que
pouco mais são do que “vazios”, espaços sobrantes da edificação, das
vias e estacionamentos automóveis;

Progressivo desordenamento dos sistemas de exploração da


terra, incluindo não só a sua inadequação às aptidões (naturais e
transformadas) como, também, devido às ultrapassadas técnicas de
produção aplicadas e ao desequilíbrio entre sistemas agrícolas,
florestais e pastoris que deveriam ser complementares entre si.
No caso de não se avançar com medidas de ordenamento das
paisagens rurais, não só permanecerão como efeitos mais directos as
baixíssimas produções e a falta de qualidade de alimentos e fibras,
como se agravarão os seus efeitos indirectos como sejam os graves
problemas de erosão e poluição do solo, aumento dos riscos de
incêndio, desequilíbrios crescentes do ciclo hidrológico e degradação
da qualidade das águas superficiais e subterrâneas, redução da
diversidade biológica, entre outros;

Permanecem os riscos de degradação significativa de recursos e


paisagens se nada se alterar no país quanto à exploração de
pedreiras, quanto à disseminação de parques de sucata, quanto ao
controlo de lixeiras / aterros sanitários, de entulheiras e de resíduos
tóxicos.

Como resultado de grande parte dos problemas e ameaças


anteriormente referidas, continuará a ter efeitos dramáticos sobre as
paisagens portuguesas a degradação cumulativa dos recursos
naturais, com destaque para a água e solo. De facto, sem estes
recursos não há vida sustentável o que é comprovado em zonas do
país em que tais recursos se encontram em limiares críticos – caso de
algumas zonas das serras do Algarve e de Odemira, bem como do
Baixo Alentejo junto ao Guadiana.
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O desrespeito pelo património natural e construído do país terá
obviamente fortes consequências sobre o carácter e a identidade das
paisagens portuguesas. Apesar da legislação aplicável a estes valores,
reconhecidos pela administração pública ao classificá-los como
monumentos nacionais, como imóveis de interesse público, como
parques ou reservas, como zonas de protecção especial, etc., continua
a verificar-se a sua degradação devido à falta de regulamentação, a
uma interpretação restritiva do conceito de protecção e,
frequentemente, ao incumprimento das normas legais.

A confirmarem-se as previsões de subida do nível dos oceanos, as já


problemáticas situações de instabilidade da costa portuguesa
agravar-se-ão, com repercussões significativas sobre as paisagens
litorais e estuarinas. Aplicando o mais elementar princípio de
precaução, o ordenamento e a gestão destas áreas terá que incluir
medidas cautelares, sob pena de mais tarde se terem que fazer
investimentos públicos em obras de defesa exigidas por ocupações
inadequadas, o que já se verifica em inúmeras situações do nosso
litoral.

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4. OPORTUNIDADES

No meio de tantos aspectos negativos, há que reconhecer que existem


actualmente alguns indícios encorajadores relativos ao futuro da paisagem
em Portugal continental. Entre eles destacam-se:

Uma atitude mais atenta dos meios de comunicação social e de


parte da população relativamente a questões relacionadas com a
paisagem (também com o ambiente e ordenamento do território). É
representativa desta evolução o espaço dedicado pelos “media” a
estas questões, bem como utilização de imagens e argumentos
relativos à paisagem na publicidade do sector imobiliário, do sector
turístico e até de campanhas eleitorais para as autarquias.

Existência de normas legais e de documentos que enquadram


políticas globais e sectoriais relevantes para a paisagem que,
pelo menos a nível político, revelam consensos acerca de objectivos
importantes para a conservação e valorização da paisagem. É o
caso da Lei de Bases da Política do Ordenamento do Território e do
Urbanismo, do Programa Nacional de Política de Ordenamento do
Território, Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da
Biodiversidade, Plano de Desenvolvimento Sustentável da Floresta
Portuguesa, Estratégia para o Desenvolvimento Sustentável, Plano
Nacional da Água, Convenção Europeia da Paisagem, entre muitos
outros (no entanto com uma fraca concretização no território).

A relativamente recente classificação de Sintra, Vale do Douro e


Vinhas do Pico como Paisagens Culturais Património da
Humanidade; na mesma linha, há que destacar o esforço de
recuperação e/ou valorização de sítios emblemáticos,
importantes por poderem vir a ser utilizados como exemplos e
referências para o futuro, como é o caso, entre outros, de
intervenções no litoral, de Mértola, Dunas de S. Jacinto e Foz Côa.

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A crescente importância que vem sendo conferida às questões
ambientais e ao conjunto do mundo rural (em que se inclui também
a paisagem) no quadro da Política Agrícola Comum. Sendo esta
política determinante para o futuro de grande parte do território
português, é positivo o aumento dos incentivos que permitirão
intervir no sentido da protecção / construção de paisagens
multifuncionais, ambientalmente equilibradas e sustentáveis.
Valores de há alguns anos relativos ao muito baixo peso do sector
agrícola no Produto Interno Bruto e no emprego dos países da
União Europeia2, revelam que a importância dada à Política Agrícola
Comum não tem correspondência com o peso económico do sector,
sendo justificada pelas funções ambientais, sociais e culturais que a
agricultura desempenha na Europa.

As mudanças das preferências e exigências do público em


geral e dos consumidores em particular têm levado a um mercado
de produtos em parte validados pela qualidade da paisagem – não
só o turismo de interior (em oposição ao balnear, apesar deste
também ter alguma dependência da paisagem) como, também
produtos alimentares (vinhos, frutas, carnes, mel, etc.) e
artesanato.

A resolução das necessidades consideradas mais básicas ao nível do


país e o aumento do seu nível de vida levou tanto os particulares
como as entidades públicas, nos últimos anos, a uma maior atenção
à qualidade e gestão dos espaços públicos urbanos. Embora grande
parte destas intervenções decorram a escalas reduzidas, trata-se de
uma mudança de atitudes relativamente aos espaços vividos
que terá sobre as paisagens consequências positivas, por efeito
cumulativo.

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O peso da Agricultura no PIB é em Portugal 3,3% (0,7% na Suécia, 0,9% na Alemanha e Reino
Unido, 2% na Dinamarca, 2,4% em França e na Holanda, 2,6% em Itália, 2,9% na Irlanda, 4,1% em
Espanha e 7% na Grécia). Quanto ao emprego, o peso da Agricultura e Pescas é de 12,7% em
Portugal (1,6% no Reino Unido, 2,9% na Alemanha, 3,3% na Dinamarca, 4,3% em França, 5,4% em
Itália, 7,4% em Espanha, 8,6% na Irlanda, e 17% na Grécia) (Jornal “Público” de 11 Julho 2002).
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5. DESAFIOS PARA O FUTURO

Em síntese, pode afirmar-se que, tal como em muitos outros


países, também em Portugal e nos últimos decénios se vem assistindo à
perda de sustentabilidade das “paisagens tradicionais”,
essencialmente por razões de ordem socioeconómica e cultural.

Embora se oiçam no dia-a-dia referências constantes à paisagem, é


bem patente a falta de sensibilidade e de cultura neste âmbito. É também
evidente a fraca ligação de grande parte dos portugueses com as
paisagens que os rodeiam, de que fazem parte e que transformam – não
as conhecem, não as entendem, não as respeitam.

Por esta razão, entre nós,


por muito aprofundados que sejam os conhecimentos sobre
as paisagens,
por muito correctas que sejam em termos técnicos e políticos
as propostas para a sua transformação,
são escassas ou nulas as concretizações destas transformações no terreno
como reflexo da actuação dos cidadãos que, de forma mais ou menos
directa, são os verdadeiros construtores das novas paisagens.

Esta generalizada falta de conhecimentos e de sensibilidade faz com


que em Portugal se continue a desprezar conceitos, estudos e
normativas já antigas, que se têm vindo a revelar como plenas de
sentido e que poderiam ter evitado grandes custos ao país – refira-se a
título de exemplo:
O conceito de sustentabilidade aplicado às paisagens,
equacionado há mais de 50 anos pelo Prof. F. Caldeira
Cabral;
Os planos de ordenamento dos anos sessenta e setenta do
século passado (Região de Lisboa, Península de Setúbal,
Grande Porto, Algarve, entre outros);
Os alertas acerca de fenómenos recorrentes como é o caso
dos incêndios florestais, das secas, e das inundações e
erosão costeira.

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Este estado de coisas reflecte-se obviamente sobre a paisagem,
porque esta é o repositório de actuações de muitos intervenientes
que abarcam todos os espaços e todos os sectores de actividade,
segundo uma dinâmica extraordinariamente complexa nos dias de
hoje.

Verifica-se actualmente que quase ninguém cuida


verdadeiramente da paisagem como um todo – ela não é o produto
da actuação de comunidades cultas e que praticam uma cidadania
consciente e responsável, mas resulta quase sempre da competição
entre interesses individuais e sectoriais, em que fica frequentemente
lesado o interesse público.

Nos casos em que este interesse público é salvaguardado através


de normas e regulamentos (o que se passa designadamente nas rede de
áreas protegidas ou relativamente ao património classificado), verifica-se
frequentemente que quem cria, cuida ou conserva os valores da
paisagem, não só não se vê recompensado por isso como, no
essencial e de acordo com os padrões dominantes, se sente gravemente
prejudicado porque fica afastado do “desenvolvimento”, entendido este
como sinónimo de mais betão, mais automóveis, acesso a alguns
equipamentos, oportunidades de emprego com elevado estatuto social,
etc..
Pelo contrário, quem aposta na obtenção de lucro rápido e fácil,
muitas vezes à custa de futuros problemas para toda a sociedade, tem
quase sempre a possibilidade de desaparecer rapidamente com os seus
ganhos, ficando depois a cargo da administração pública a
responsabilidade de corrigir os erros cometidos.

Reconhecendo que não há soluções mágicas para resolver as


múltiplas questões relativas à paisagem, devemos perguntar quais são as
possibilidades de actuação e que desafios se colocam aos técnicos
que, como é o caso dos Arquitectos Paisagistas, devem intervir nos
processos de ordenamento e de projecto de paisagem, tanto na fase
conceptual, como na de concretização.
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Sendo óbvio que os tempos são outros, também as soluções de
ordenamento e de projecto serão diferentes das do passado -
surgiram ou desenvolveram-se novas actividades e “utilidades”; os
tempos, espaços e escalas de intervenção são bem diferenciados; os
meios materiais e humanos envolvidos pouco têm a ver com os do
passado.

No entanto, julgo que continuam como válidos grande parte dos


pressupostos que presidiram à construção das “paisagens
tradicionais”, mantendo-se um sentido ético em grande parte
fundamentado na utilidade para as comunidades humanas e
balizado pelo interesse público, nomeadamente quanto:

À sobrevivência, segurança e bem-estar das pessoas;


À protecção, valorização e sustentabilidade dos recursos e
dos sistemas ecológicos;
A balanços de custos-benefícios, integrando
equilibradamente componentes ambientais, económicos,
socioculturais e energéticos;
Ao respeito relativamente ao passado, designadamente
quanto à conservação de elementos naturais e culturais com
valor patrimonial;
Às questões imateriais, como sejam as de natureza
estética, religiosa ou lúdica, bem como à sua conjugação com
outras características, de que resulta o carácter e a
identidade das paisagens;
À participação tão alargada quanto possível nas decisões;
A previsões quanto ao futuro.

Estes são, afinal, os critérios para se chegar à definição de


Aptidões e de Potencialidades, conceitos fundamentais à actuação dos
arquitectos paisagistas no ordenamento da paisagem.

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Concluindo, e no sentido de responder aos desafios para o
futuro, é fundamental que os Arquitectos Paisagistas, bem como
outros técnicos que intervêm no ordenamento e projecto de paisagem,
contribuam para mudar a situação actual, para o que devem ser capazes
de:

Desenvolver a sensibilidade e o conhecimento acerca da


complexidade e dos valores presentes nas paisagens;
Elaborar propostas de ordenamento da paisagem com a
consciência de que estão a interferir simultaneamente em
dimensões ecológicas, culturais, socioeconómicas e
sensoriais, com consequências imediatas e a longo prazo
sobre a qualidade de vida das comunidades humanas;
Transmitir à sociedade o conhecimento acerca do modo
como as paisagens interferem com a nossa qualidade
de vida, de forma a induzir nos cidadãos comportamentos
mais exigentes e responsáveis. Esta é uma componente que
em Portugal não tem sido suficientemente valorizada,
impedindo uma participação activa dos cidadãos em matérias
que lhes dizem respeito.

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