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Seguindo as lições do mestre

Lima Barreto foi um escritor acima de tudo sincero. Sua atividade intelectual nunca
vacilou ante a necessidade de expor seus pensamentos. Levou o lema “doa a quem doer” ao
pé da letra, literal e literariamente, mesmo sendo ele próprio a ‘vítima’ de suas palavras
revoltosas.
Sabemos que um dos resultados de sua escrita sem papas na língua e meios termos
foi uma espécie de cancelamento, orquestrado por boa parte da grande imprensa da época.
E isso num tempo em que a imprensa consistia na principal porta de entrada, fonte de renda
e de visibilidade para os escritores. Depois de sua morte, ocorrida no dia 01 de novembro
de 1922, sua obra caiu num limbo de quase três décadas, com algumas raras tentativas de
reedição e reavivamento de seu nome. Isso não significa, no entanto, que Lima Barreto não
tenha sido reconhecido em vida, muito pelo contrário. Foi dos escritores mais admirados e
respeitados de seu tempo.
Um dos episódios marcantes, mas em hipótese alguma determinante para o
“cancelamento” de Lima Barreto e de sua obra, ocorreu em virtude das críticas pesadas que
o escritor carioca dirigiu aos modernistas de São Paulo. É um tema já bastante estudado
pela crítica especializada em Lima Barreto e que foi recentemente revisitado pelo escritor
Luiz Ruffato. Num artigo publicado no site rascunho.com.br, Ruffato apresenta uma
correção de data acerca de um dos dois textos que Lima Barreto escreveu contra os
“futuristas de São Paulo”, um mais dirigido, outro nem tanto. Eis o início do artigo:
“Lima Barreto, embora um dos nossos maiores autores, custou a entrar para o
cânone da literatura brasileira. Mas, de uns tempos para cá, graças aos esforços de
vários especialistas, com destaque para a excelente biografia de Lilia Moritz
Schwarcz (Lima Barreto: Triste visionário, 2017), à compilação da obra inédita
feita por Beatriz Resende (Toda crônica, 2004, com Rachel Valença) e à devoção
de Antonio Arnoni Prado (Lima Barreto: uma autobiografia literária, 2012), o
escritor carioca tem ganhado justo e merecido destaque. Um dos motivos pelos
quais Lima Barreto foi relegado ao limbo pela crítica deveu-se à sua aberta rejeição
aos “futuristas”. Neste artigo, tento lançar novas luzes sobre essa controvérsia”. 1
Antes de analisarmos o artigo em si precisamos fazer uma pequena digressão
sentimental, sobretudo em respeito à memória de nosso combatente Lima Barreto. Se
quisermos realmente manter viva a chama inconformista do autor, principalmente contra os
“mandarinatos literários” e as panelinhas de toda a espécie, temos que assumir os riscos por
dizer coisas não muito agradáveis como, por exemplo, pedir para as pessoas que forem
estudar o autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma” tomarem muito cuidado com o livro
“Lima Barreto: Triste visionário”, escrito pela pesquisadora Lilia Schwarcz. O que Ruffato
chama de “excelente biografia” na verdade é um livro extremamente problemático, pra
dizer o mínimo. Lima Barreto, com certeza, usaria adjetivos muito mais contundentes. Mas
estamos numa época por demais agudizada, então vamos de problemático mesmo.

1
Disponível em https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/lima-barreto-contra-os-futuristas/. Consulta feita
em 18 de dezembro de 2020.
O livro, em sua essência, é pobre, paupérrimo, apesar das suas mais de seiscentas
páginas. O tom apaixonado, emotivo, devotado até, com o qual a autora narra todo aquele
material; a quantidade enorme de informações históricas, notas de rodapé, referências
bibliográficas, a preeminência da questão racial, tudo isso pode escamotear a precariedade
do trabalho. Com exceção dos capítulos iniciais, sobretudo acerca das genealogias da mãe e
do pai do escritor, que ganharam mais elementos de valor histórico importante, o
biografado continua praticamente o mesmo que já conhecíamos do livro “A vida de Lima
Barreto”, escrito em 1952, por Francisco de Assis Barbosa. Tal precariedade fica apenas
latente, invisível, para a grande maioria das pessoas que leram o livro, ou que vierem a ler,
mas é algo gritante para quem estuda a obra de Lima Barreto há bastante tempo.
Logo após a publicação de “Lima Barreto: Triste Visionário”, que se deu não por
acaso no transcurso da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP 2017), cujo
homenageado era o próprio Lima, conversei com muitas pessoas que pesquisam a obra do
escritor há dez, quinze, vinte anos ou mais, e muitas delas se mostraram chocadas com as
barbaridades escritas pela pesquisadora. Na época de lançamento do livro, divulgado em
torrentes pela grande imprensa, houve algumas vozes tentando chamar atenção para alguns
problemas da obra.
Antônio Risério, em artigo para a “Folha de São Paulo”, além de demonstrar uma
ignorância absurda em relação a Machado de Assis – Machado foi romancista da classe
dirigente e de seus subúrbios ricos (...) sempre posou de branco, silenciando sua situação
racial2 – criticou Lilia Schwarcz pela importação arbitrária de categorias analíticas
estadunidenses para dar conta da situação racial brasileira do início do século XX – o livro
também se ressente de anacronismos e idealizações. E toma como definitivos o
politicamente correto e o jargão acadêmico-racialista hoje em voga. 3 E chama atenção
para o fato de a pesquisadora não ter resolvido aquela que talvez tenha sido a principal
intenção da biografia: apresentar Lima Barreto como um escritor que cultivou a “forma
literária afrodescendente”. Neste último ponto estamos de acordo com Risério, mas
devemos ir um pouco além e dar os créditos a Luiz Silva, mais conhecido por seu
pseudônimo, Cuti, que em sua tese de doutorado “A consciência do impacto nas obras de
Cruz e Souza e de Lima Barreto” aprofunda a questão em todas as suas complexidades e
contradições.
Na mesma “Folha de São Paulo”, Silvio Almeida escreveu uma réplica ao artigo de
Antonio Risério. Defendeu a biografia escrita por Lilia Schwarcz, mas principalmente
contestou os pontos de vista de Risério, sobretudo em relação a suposta branquitude de
Machado – Nenhum negro pode se passar por branco sem realmente sê-lo, salvo nas
fantásticas operações branqueadoras do racismo4 – e apontou para a importância das
conquistas recentes no campo da história e da cultura afrobrasileiras – A nova biografia de
Lima Barreto surge no momento em que movimentos negros e parte da academia
2
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/06/1895463-biografia-de-lima-barreto-se-
ressente-de-anacronismos.shtml. Acesso em 18 de dezembro de 2020.
3
Idem.
4
Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/07/1897409-biografia-de-lima-barreto-reforca-
ressignificacao-de-autores-negros.shtml. Acesso em 18 de dezembro de 2020.
esforçam-se para ressignificar a trajetória de brasileiros essenciais como André Rebouças,
Luiz Gama e Lima Barreto, unidos pelo “fio existencial” da negritude.5
Concordamos plenamente com Silvio Almeida quando aponta os esforços que estão
sendo feitos para ressignificar o nome de brasileiros essenciais como Luís Gama, Rebouças
e Lima. Mas o livro “Lima Barreto: Triste Visionário” não ressignificou nada em relação ao
autor de “Clara dos Anjos”, muito pelo contrário. Quem ressignificou Lima Barreto, nesses
últimos dez, quinze anos, é preciso dizer sempre, foi Luiz Silva, o Cuti.
Como vimos, a “nova” biografia de Lima Barreto levantou celeumas também num
contexto extraliterário, sobretudo pelo peso que a pesquisadora deu à questão racial. Sim,
esta é uma questão de primeira importância quando se pretende escrever sobre Lima
Barreto. O problema é como a coisa toda aparece. Dissemos que “Lima Barreto: Triste
Visionário” é um livro problemático, mas a intenção não é querer provocar, e menos ainda
atacar a pessoa que o escreveu. O livro foi escrito sob uma metodologia acadêmica, apesar
da emotividade em muitas passagens da narrativa, e é sob tal perspectiva que deve ser
criticado. A apreciação pelos pares é a regra que preside o julgamento de publicações dessa
estirpe. A quantidade de erros crassos que avulta ao longo do livro não condiz com a
estatura que ele ganhou no mercado editorial brasileiro, nem com a importância que a ele
vem sendo dada. E estamos falando de erros objetivos.
Por exemplo, logo no início (p. 10) a autora faz um arrazoado e uma mistureba entre
os pseudônimos que Lima Barreto utilizava na assinatura de seus textos na imprensa com
os “apedidos”. Esse era o nome das seções que os jornais destinavam à participação do
público, como hoje em dia o “painel do leitor”. Lima Barreto tinha enorme apreço pelos
“apedidos”, chegava a colecionar recortes de jornal e escreveu um artigo sublime a
respeito, denominado “Pela ‘Seção Livre’”, na Revista Contemporânea, em março de 1919.
Vejamos um trecho:
“Os ‘apedidos’ do Jornal do Comércio são uma das mais preciosas
instituições brasileiras. Genuinamente nacional, mais do que isso: genuinamente
carioca; mais do que isto: genuinamente Jornal do Comércio, eles não têm cousa
semelhante em nenhum jornal do mundo, do país e mesmo da cidade do Rio de
Janeiro”.6
Trata-se de uma das centenas de crônicas geniais do escritor e que fala de um gosto
pessoal que teve implicações profundas em sua escrita, sobretudo na feição democrático-
popular de sua literatura. Não podia ter passado batido e muito menos desinformadamente
como passou. Na mesma página 10 aparece uma informação acerca do conto “O moleque”,
que a pesquisadora apresenta como “datado do ano de 1920”, quando na realidade fora
publicado na edição de 15 de junho de 1918, no jornal A.B.C.7. O fato de o conto ter sido
5
Idem.
6
Presente na coletânea “Lima Barreto: Toda Crônica – Volume I”, organização de Beatriz Rezende e Rachel
Valença. Rio de Janeiro, editora Agir, 2004, p. 486.

7
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830267&pasta=ano%20191&pesq=
%22O%20moleque%22&pagfis=2601. Acesso em 18 de dezembro de 2020.
publicado na coletânea “Histórias e Sonhos”, de 1920, pode ter levado ao equívoco no
momento da datação do texto. Mas isso nos leva a um outro problema, o da página 12, onde
encontramos a afirmação segundo a qual Lima Barreto publicara seu último livro em vida,
“Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, em 1919. Não é muito difícil saber que o último
livro que Lima Barreto publicou em vida foi o “Histórias e Sonhos”, em 1920.
Infelizmente, não podemos confiar muito em “Lima Barreto: Triste Visionário” como fonte
de pesquisa, pois os erros ou “passagens problemáticas” seguem a narrativa
implacavelmente.
Até mesmo o mais famoso conto de Lima Barreto, e um dos maiores da literatura
brasileira, “O homem que sabia javanês”, na hora de ser apreciado, surge como uma
“história narrada em terceira pessoa” (p. 252). É no mínimo absurdo uma coisa dessa.
Trocar o foco narrativo de um texto tão conhecido como esse é como dizer que “Dom
Casmurro” é escrito em terceira pessoa, por um narrador onisciente e neutro. O mínimo que
deveria ser exigido diante de uma situação dessa é que o grupo Companhia das Letras
submetesse o livro “Lima Barreto: Triste Visionário” a um processo de recall, com a
devolução do dinheiro a quem comprou e um vale para a aquisição de uma segunda edição
revisada, pelo menos com a troca dos itens que vieram com defeito de fábrica.
Luiz Ruffato, que publica seus livros pela Companhia das Letras, talvez não se sinta
muito à vontade para desancar o livro que vem sendo um dos carros-chefes da firma. Mas o
proletariado artístico pode, até porque não estamos mais conseguindo suportar toda essa
pressão do que é superado e ajambrado; coisas que são validadas como “artigos de fé”. Não
conseguimos mais atravessar essas pontes de casca de ovo que nos levam a um mundo de
faz de contas. Agora somos seres radicalmente hostis a tudo isso, não queremos mais
mediar nada. Refratários a toda espécie de deleite up to date e principalmente à falsa
consciência de nossa intelligentsia. Querem nos persuadir a idolatrar tudo o que já não
acreditamos mais. Não sentimos mais medo de um intelecto superior e corremos de braços
abertos para o desterro.
Não somente os erros objetivos povoam a “nova” biografia de Lima Barreto. Em
muitas passagens observamos, com muito pesar, um certo desserviço à memória artística do
escritor. E este também é um fato gravíssimo. Ainda na época do lançamento da triste
biografia, a pesquisadora Carmem Negreiros, uma das maiores estudiosas de Lima Barreto,
senão a maior, publicou uma resenha no Suplemento Pernambuco, em que compara as
biografias escritas por Assis Barbosa, em 1952 e Lilia Schwarcz, em 2017. As duas obras,
segundo Carmem Negreiros, partem da premissa da vinculação das etapas da vida do
escritor (Lima Barreto) e suas obras8. A pesquisadora considera “Lima Barreto: Triste
Visionário” uma obra ambígua, com muitas incongruências; se por um lado – reforça as
lutas do escritor com as questões do seu tempo, por outro não deixa de empobrecer a
leitura de suas obras quando estas são reduzidas às oscilações temperamentais do escritor
ou às ambivalências de sua atuação intelectual e política.9

8
Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/72-
resenha/1906-tens%C3%B5es-entre-vida-e-obra-nas-biografias-de-lima-barreto.html. Acessado em 19 de
dezembro de 2020.
Na época da escrita de “A vida de Lima Barreto”, na década de 1950, o biografismo
dava o tom dos estudos sobre Lima Barreto. A maioria do que foi escrito sobre a obra
barretiana obedecia a este recorte, desde sua estreia com o Isaías Caminha, em 1909, até
pelo menos a década de 1970. As análises são sempre reticentes quanto à presença
ostensiva da biografia de Lima Barreto em sua produção artística. Muitos críticos literários
do primeiro escalão – José Veríssimo, Lúcia Miguel Pereira, Sergio Buarque de Holanda,
Antonio Candido, entre outros – condenaram boa parte da obra literária de Lima por suas
“deficiências artísticas”, sobretudo pela crueza do material narrado mais sociologicamente
que literariamente e mais ainda pelo excesso de personalismo do autor, que comprometeria
o desenvolvimento da obra de arte ficcional.
Se tinha uma coisa que deixava Lima Barreto fulo da vida era quando diziam que
seu livro de estreia não passava de um roman à clef, fruto de um escritor rancoroso. Lilia
Schwarcz compreendeu muito bem que o tema principal do livro de estreia de Lima Barreto
é a “forte denúncia racial, presente em diversos momentos da obra, ou mesmo na forma
original do personagem narrador”, mas logo na sequência cede o passo à crítica tradicional
a aceita que “o romance como um todo é autobiográfico” (daquele autobiografismo
condenável), além de endossar a ideia segundo a qual a ‘segunda parte’ do livro apresenta
um tom “rancoroso, um relato tão detalhado como impiedoso de várias publicações e
personagens que tomavam parte daquele mundo da belle époque brasileira” (p. 219). Não
há nenhuma inverdade ou absurdo nesta passagem, mas parece não muito significativo para
uma “nova” biografia referver assuntos de tão priscas eras, ainda mais quando o próprio
biografado se sentia magoado com tais “leituras” de sua obra.
Vista agora, a partir desse largo transcurso histórico de mais de um século e de
muitas pesquisas e livros novos que surgiram, a inserção da biografia na estrutura de um
texto ficcional revela a disposição de Lima Barreto em romper com os cânones
estabelecidos à época. Mas essa é apenas uma parte da questão. A outra, que raramente é
levada em consideração, aponta para a diferença radical entre uma literatura de
introspecção feita por um autor burguês, com seus dramas e contradições privadas, e a
inserção de quadros da vida psíquica de um escritor radicado na experiência do trauma
histórico da escravidão. É dizer, com Paul Gilroy: “Como devem ser pensadas as histórias
descontínuas da resistência da diáspora [...] Como essas histórias têm sido teorizadas por
aqueles que experimentaram as consequências da dominação racial?” 10. Mais uma vez
devemos recorrer a Luiz Silva, que compreendeu melhor do que ninguém o lugar da
biografia na obra de Lima Barreto, fruto do “embate com o racismo, que pressupõe um
profundo trauma interior que origina uma dinâmica de introversão” 11. O mesmo movimento
que Gilroy enxerga na obra de Frederick Douglass, cujos textos autobiográficos “expressam
9
Idem.
10
Conforme Paul Gilroy: “O Atlântico negro”. São Paulo, Editora 34, p. 83.
11
Luiz Silva (Cuti). A consciência do impacto nas obras de Crus e Souza e de Lima Barreto. Tese de
Doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas, 2005. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269993/1/Silva_Luiz_D.pdf, p. 79. Acessado em 18 de
dezembro de 2020.
da maneira mais poderosa uma tradição de escrita na qual a autobiografia se torna um ato
ou processo de simultânea autocriação e autoemancipação. A apresentação de uma persona
pública torna-se assim um motivo fundador dentro da cultura expressiva da diáspora
africana.”12
Daí a inviabilidade de se querer aproximar Lima Barreto, sem muitas mediações,
dos quadros teóricos de uma crítica literária de matriz euro-burguesa, como, por exemplo, o
“romance de introspecção”, o Bildungsroman ou o Pacto Autobiográfico, muito menos
insistir na tese do alter ego do escritor, para dar conta de personagens como Isaías
Caminha, Augusto Machado, Vicente Mascarenhas etc.
Por fim, mas não menos importante, é preciso dizer que o livro “Lima Barreto:
Triste Visionário” pode ser visto como um decalque ampliado da obra “A vida de Lima
Barreto”, de Francisco de Assis Barbosa. Talvez prevendo represálias posteriores, quem
sabe? Lila Schwarcz tascou lá no finalzinho do livro uma parte dedicada ao grande biografo
de Lima Barreto, que serviu de “guia” para a “nova” biografia. O pesquisador Marcos
Scheffel, também longevo nos estudos sobre Lima Barreto, comentou em resenha escrita
para o site skoob.com.br os problemas decorrentes da “nova” biografia:
Triste Visionário, lançado em 2017, se limita a seguir o mesmo roteiro
proposto por Francisco de Assis Barbosa, nos anos 50, e a mesma fórmula: Lima
Barreto é um autor que confessa demais em sua obra, logo podemos usar passagens
ficcionais para recompor a vida do autor. Ora, isso está claro no livro de Francisco
de Assis Barbosa. Ele diz que se apropria da ficção para narrar a vida de Lima
Barreto, mas ele modaliza a todo momento tais comparações entre autor e seus
personagens. Já no livro assinado por Lilia M. Schwarcz esse uso da ficção
enquanto confissão, enquanto documento, não está esclarecido para o leitor. 13
Bom, depois dessa digressão que saiu um pouco longa demais vamos voltar ao
artigo de Luiz Ruffato. Como dissemos, trata-se de reavivar a questão Lima Barreto versus
os modernistas de São Paulo. O escritor mineiro narrou as escaramuças que se sucederam
após Lima escrever um artigo intitulado “O Futurismo” na edição de 22 de julho de 1922 da
revista Careta. O autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma” era muito admirado pelos
escritores de São Paulo, principalmente por Antônio de Alcantara Machado, autor do
clássico “Brás, Bexiga e Barra Funda”. Os modernistas quiseram mostrar para Lima
Barreto o que andavam aprontando aqui na República do Kaphet e enviaram para ele um
exemplar da revista Klaxon. O escritor carioca primeiro achou que se tratava de alguma
espécie de catálogo de propaganda de automóveis americanos, mas depois descobriu se
tratar de uma revista literária. Então escreveu o artigo descendo o porrete no Futurismo, no
Marinetti e de quebra nos modernistas. A coisa não pegou bem e os paulistas responderam
a Lima Barreto, com artigo bastante azedo e de cunho acentuadamente racista.
O inédito no artigo de Ruffato se deve a um segundo texto que Lima Barreto teria
escrito, agora contra o escritor português António Ferro, também da lavra modernista e que
teve seu manifesto publicado pela mesma revista Klaxon. Embora não fosse inédito, o texto
12
O Atlântico negro, p. 151, grifo nosso.
13
Disponível em: https://www.skoob.com.br/lima-barreto-679400ed681671.html. Acessado em 19 de
dezembro de 2020.
de Lima Barreto ainda não fazia parte desse conjunto probatório da treta entre o carioca e
os modernistas de São Paulo. Intitulado Esthetica do “Ferro”, esse pequeno texto de Lima
Barreto foi publicado em coletâneas dedicadas às suas crônicas, mas datado do ano de
1907. Luiz Ruffato descobriu que a publicação original se deu na edição de 5 de agosto de
1922, ou seja, pouco tempo após o ataque aos modernistas de São Paulo. Faz parte, então,
do mesmo movimento de repulsa que Lima sentia pelas escolas literárias que faziam
apologia à violência, à guerra etc. Em Esthetica do “Ferro”, Lima Barreto não faz alusão
aos modernistas de São Paulo, mas como bem observou Luiz Ruffato, a coisa toda se
encontra no mesmo episódio.
Agora, o que realmente parece importante nesse artigo de Ruffato, foi a descoberta
da participação de Lima Barreto na revista Brazílea. Embora tênue, com três publicações
apenas, como mostra o artigo, é muito significativo o fato de o escritor carioca ter
participado de uma revista “nacionalista”, justo ele que sempre se posicionou radicalmente
contra qualquer tido de mistificação da pátria. Ruffato aventa a hipótese de ter sido em
virtude da aproximação de Lima com Jackson Figueiredo e Andrade Muricy, amigos de
Lima Barreto, que na época estavam à frente da revista Brazílea. Eis uma nova senda para
as pesquisas dedicadas ao nosso querido Lima Barreto.
Ainda no site racunho.com.br saiu um segundo artigo, agora comentando as
reverberações que o texto de Luiz Ruffato causou entre os especialistas em Lima Barreto.
Escrito pelo jornalista Luiz Rebinski, o texto intitulado “A batalha de Lima Barreto” traz
em seu subtítulo uma forçada de barra bastante infeliz, pois considera que a treta entre
Lima Barreto e os modernistas de São Paulo teria sido – determinante para o
“cancelamento” de sua obra14. E o rapaz não hesitou em continuar pisando no tomate, ao
afirmar que – Conforme aponta o texto de Ruffato, a data agora correta ajuda a entender
como esse segundo texto foi determinante para o apagamento de Lima Barreto por parte
dos Modernistas — e consequentemente para a demora do reconhecimento do autor
carioca no cânone da literatura nacional.15
Não foram as escaramuças entre Lima Barreto e os modernistas de São Paulo o
motivo “determinante” que levou a obra e o nome de Lima Barreto a caírem num limbo de
três décadas. Afirmar uma coisa dessas é continuar vestindo a ideologia que confere
preeminência ao modernismo paulista, para o bem e para o mal. É dar os créditos a quem
não os merece. Se quisermos começar a entender esse limbo precisamos primeiramente
procurar por suas fontes no próprio Rio de Janeiro, sobretudo após o golpe de 1930 e a
subsequente ideologia que encampou aquele projeto, o antiestadunidismo de Lima Barreto,
a sanha em apagar da memória coletiva boa parte do que existiu na “República Velha”, pois
o Brasil teria sigo reinaugurado a partir do golpe e da quartelada safada que nossa
historiografia quase unanimemente insiste em chamar de “Revolução de 1930”. Tudo bem
que a crítica literária de São Paulo criou o neologismo “pré-modernismo” e jogou pra baixo

14
Disponível em: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/a-batalha-de-lima-barreto/. Acesso em 20 de
dezembro de 2020.
15
Idem.
desse tapete tudo aquilo que não tivesse correspondência direta ou indireta com a “invenção
da roda literária moderna” que se deu na República do Kaphet.
Como miséria pouco é bobagem, o “artigo” de Luiz Rebinski, que usa como
imagem ilustrativa de seu texto justamente a capa do livro “Lima Barreto: Triste
Visionário”, apresenta uma estultice dessa:
“Nascido em 13 de maio de 1881, Afonso Henriques de Lima Barreto era
filho de ex-escravos. Logo cedo, perdeu a mãe, Amália, que morreu de pneumonia.
Pouco depois, morreu o pai, João Henriques, que ficou louco. Antes disso, porém,
Henriques se esforçou para dar ao filho uma educação de qualidade — o que foi
decisivo para o nascimento do tom ácido e crítico adotado pelo escritor”. 16
Lima Barreto não era filho e sim neto de mulheres que foram escravizadas-libertas.
Seu pai, Afonso Henriques de Lima Barreto, não morreu “pouco depois” de Amália e sim
quase 35 anos depois. A não ser que computemos trinta e cinco anos a parir do ponto de
vista da história do Universo. Mais exatamente, o pai falecera 48 horas após a morte do
escritor, tamanho foi o baque que sentiu pela partida do filho tão querido.

16
Idem

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