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O Cristo como arquétipo: uma leitura de Igor Caruso por Mário Ferreira dos

Santos

Transcrição de uma leitura de Igor Caruso por Mário Ferreira dos Santos
disponibilizada em áudio no Youtube sob o título de “Psicologia”

Os senhores que me acompanham sabem que eu, há muito tempo, tenho defendido a
ideia de Cristo como um arquétipo. Psicologicamente, basta a aceitação de Cristo
arquetipicamente para justificar o verdadeiro sentido da religião.
Eu já disse também, e antes de mim outros já disseram, que à medida que a ciência vai
penetrando no conhecimento, ela vai se aproximando dos fundamentos das religiões. E
agora nos encontramos em face de um dos mais perfeitos trabalhos modernos sobre o
assunto, dentro, sobretudo, da psicanálise, escrito por um que é considerado como um
dos mais completos e perfeitos discípulos de Freud, Igor Caruso.
Eu lerei este trabalho do Igor Caruso para que os senhores vejam até onde os
psicanalistas alcançaram, levando adiante aquilo que Freud chegou a pressentir na sua
última obra, mas não teve mais possibilidades de desenvolver, e foi quando ele percebeu
que tinha tomado o caminho errado.
Eu lerei:
'Freud sentiu retamente que o núcleo da tragédia humana está no coração da pessoa.
Naquilo que ele classificou sob o termo eu ou ego. Naquilo que o Jung considerava,
ainda imanente, sob a denominação de si mesmo. Este coração da pessoa humana é o
portador ao mesmo tempo da imanência e da transcendência humanas. Assim a
consideração psicológica nos proporciona uma notável imagem desta pessoa parecida
ao duplo rosto do deus Jano. Uma cara em nós se sente sempre inimiga da outra. Nosso
órgão, aplicado à transcendência, encontra as fronteiras na imanência como privação
de liberdade, como uma prisão, muitas vezes como uma carga insuportável, e sempre
encontra o homem as dificuldades do seu desenvolvimento como uma prisão no erro e
no pecado.
É pensável que a liberdade desta prisão se consiga somente se o homem luta numa
progressiva relação com o transcendente. Aqui, que é a análise do complexo humano,
sempre nos dá o mesmo mito, a saber: o mito da união pessoal a uma natureza pessoal
que exerce o papel de salvador.
Assinalamos em outro lugar que a libertação da prisão narcisista só pode ser
completada por meio do tu. Este fato aponta claramente, assim como também a
cuidadosa análise da criação de imagens mitológicas do inconsciente, à eficácia de uma
potência psíquica essencial que nós primeiramente chamamos de arquétipo de Cristo.
Poderíamos, num sucessivo, para evitar equívocos, chamar a tal potência arquétipo
salvador. Salvador e ungido são os termos que se dão na linguagem corrente ao Messias
histórico.
Poder-se-ia concluir, sem razão, que nós quisemos dizer com o termo anterior que a
participação na salvação por meio de Cristo seja não um dom indevido para o homem,
mas uma função natural da alma arquetipicamente disposta. Então, a singularidade da
salvação como facto histórico seria mitologicizada. Mas psicologicamente pode-se
comprovar a esperança de um salvador no mito coletivo e individual. Embora desta
esperança não se possa deduzir sua consumação por um salvador histórico, mas a
disposição para uma possível revelação. Há em nós sempre a espera do salvador.
Pode-se afirmar, ademais, que também a psicologia profunda alcança um máximo de
clareza por meio de uma antropologia que deixa espaço para uma doutrina de salvação
pessoal. Sem soteriologia, a meta, inclusive no estado da psicologia profunda,
permanece cheia em si mesma de contradições e necessitada de aclaração. Como podia
ser de outro modo em teoria, quando na prática da própria vida humana a progressiva
personalização sem relação com um salvador permanece incompleta e obscura? O
completo desenvolvimento da vida humana marcha na direção da libertação que se
consegue quando se renuncia aos direitos do ego por amor a alguém. Capacidade de
amor, significa, sempre, vencimento do ego. De forma que a própria realização e o
próprio enriquecimento marcham no caminho do vencimento do eu. Por outra parte,
tampouco, deve entrar em função demasiadamente próxima, as limitações da
superação do eu. Não podemos educar o lactante para ser altruísta por meio de normas
éticas. Devemos fortalecer, em primeiro lugar, o eu que vai crescendo, mas devemos
também aprender a superar o ego, e isto sucede unicamente quando se encontra uma
unidade cada vez maior como o tu.
Todas as grandes religiões sabem que se é mais pessoa quanto mais se está unido com
uma força transubjetiva. A mera técnica da própria realização sem que se aspire à união
com uma essência transubjetiva, conduz ao fortalecimento do ego que leva em si
mesmo cada vez mais sinais narcisistas. Não se estudam talvez suficientemente as
modernas correntes gnosiológicas de cujos equívocos e êxitos deviam aprender muito
alguns psicólogos. Considere-se, por exemplo, que resultados nos mostrou os métodos
de Gurdjieff. Para chegar seus discípulos à sua auto-realização, usou Gurdjieff as mais
antigas técnicas do monaquismo oriental, tanto do budista quanto do cristão, isto é, o
saber ter à mão a máxima concentração, o exercício contínuo e as forças do seu eu, o
retraimento dos interesses superficiais. Mas o experimento de Gurdjieff conduziu a
catástrofes. De certo modo, há uma demonização do homem, pois a técnica isolada
certamente ativa mas não garante a direção do processo para a personalização
progressiva. Assim conseguiu em certos casos, Gurdjieff, elevar as forças psíquicas do
homem a alturas não acostumadas, mas as técnicas que ele havia tomado emprestadas
da mística oriental serviram, primitivamente, para a progressiva união do homem com
o Todo divino dos budistas, que, por outra parte, é idêntico ao Nada divino. Ou, no
monaquismo cristão do oriente, para a iluminação do coração por energias incriadas
das três divinas pessoas. Diz-se, talvez, de passagem, que esta mística oriental cristã
supõe uma ascese do coração que serve para a exercitação da serena sobriedade do
coração. Esta mística responde a uma antropologia teológica que, no Ocidente, apesar
dos estudos isolados, não foi ainda apreciada. Esta ascese serve-se de uma técnica
precisa que, dito de uma forma muito reduzida, culmina na invocação constante do
nome de Jesus Cristo. E os mestres monásticos nunca omitem a séria advertência de
que se faltarem a esta prática os componentes que se referem a um salvador, poderia o
asceta em determinadas condições, pelo mero uso da técnica, conseguir o aumento do
seu próprio eu situado em si mesmo, isto é, em última instância, a volta a um narcisismo
ilimitado, que é prejudicial.
Também a moderna psicanálise é uma simples técnica da auto-busca do homem. Pode
conduzir a catástrofes se não abrir a porta para a superação do ego. Creio que os
inventores racionalistas da técnica psicanalítica não souberam que esta técnica era
inerente uma decisão, a de que também na psicanálise se atrofia quem não está
disposto a dar-se. A técnica da psicanálise tem uma regra inevitável: não quer mudar a
vida, isto é, a forma de vida desde fora. Mas quer conseguir a penetração no interior do
homem, e isto alcança por meio da utilização de um determinado método. Psicanálise
é ascese. Não é puramente uma arte médica. A que metas deve servir esta ascese? E a
quais serve de fato em certas mãos é outro problema, e bastante doloroso. Se entendeu
este caráter ascético da psicanálise e se colocou esta decisiva questão em seus fins.
Pode-se sob determinadas condições chegar a uma solução parecida como a que
ocorreu a Gaston Barbé quando descobriu na psicanálise um arremedo da mística cristã
inspirado por Satanás. Em todo caso é seguro que o problema do ego como destino do
encontro de si mesmo e da superação do ego se deslizou num curso de um largo
processo de secularização histórico-cultural, desde o âmbito sacro-ritual ao ético-moral.
Certos sinais mostram que talvez este movimento se inverterá. De toda psicanálise
também se poderia dizer mutatis mutandis o que o Papa Pio XII manifestou sobre os
métodos psicoterapêuticos preventivos da dor no parto; os ensinamentos sobre a
atuação da natureza no parto; a correção da interpretação falsa das sensações orgânicas
e o convite a corrigi-las; a influência exercida para fazer desaparecer a angústia e o
temor infundados; a ajuda concedida para que a futura mãe colabore oportunamente
com a natureza, conserve sua calma e o domínio de si mesma; uma crescente
consciência da grandeza da maternidade em geral, e, em particular, da hora em que a
mãe dá à luz o filho; todos estes são valores positivos aos quais nada há que lamentar.
São vantagens para a futura mãe plenamente conformes com a vontade do Criador.
Visto e entendido desta maneira o método é uma ascese natural que protege a mãe
contra a superficialidade e leviandade, exerce um influxo positivo sobre a personalidade
para que ela num momento importante do parto manifeste a firmeza e solidez de seu
caráter.
Está claro, pois, que esta bela descrição de uma ascese natural, depois de mudar as
palavras que se relacionam com a mãe ou o filho, e substituí-las por outras que se
referem ao homem e à sua ação, pode ser ampliada a cada ascese ortobiótica, pois cada
ascese conduz a energia da vida a uma meta. Porque se não se buscasse essa meta na
transubjetividade, a meta para uma técnica psicanalítica lograda seguiria sendo uma
meta narcisista.
O nosso problema está nesses dois extremos que Freud encontrou um, e o outro eu
proponho: 1) o narcisismo, o excesso de admiração de si mesmo, o excesso de
valorização de si mesmo e do seu próprio eu; 2) o que eu vou chamar de complexo de
Quasimodo, que é uma excesso de desvalorização de si mesmo, de horror a si mesmo,
de pavor de si mesmo. O nosso problema é este. Porque o verdadeiro cristianismo
consiste nisto. Nós não podemos é permanecer como Narciso, contemplando a nossa
imagem e nos satisfazendo da nossa beleza que nós julgamos nos super-valorizando.
Nós precisamos ser humildes ante nós mesmos e procurarmos uma superação de nós.
E temos que nos entregar, temos que dar uma entrega de nós para algo de superior,
amar alguma coisa acima de nós, porque do contrário seremos inevitavelmente vítimas
das angústias e das perturbações neuróticas da modernidade. Porque só aqueles que
são capazes dos grandes atos de amor fora de si a algo de superior é que podem vencer
os estados de insegurança e de angústia em que vivem. E por isso este caminho é o que
significa para nós verdadeiramente o Cristo'”.

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