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TÓPICOS DE MECÃNICA DOS FLUIDOS

CAP. 3: ONDAS DE GRAVIDADE NA SUPERFÍCIE DO MAR

J. A. P. Aranha
ÍNDICE

1. FUNDAMENTOS E EQUAÇÕES DE NAVIER-STOKES pág.005

1.1: Teorema de Green pág.006


1.2: Divergência de um Campo Vetorial e Teorema da Divergência pág.009
1.3: Rotacional de um Campo Vetorial e Teorema de Stokes pág.012
1.4: Equações de Navier-Stokes e Fórmula do Arrasto pág.018
1.5: Escoamento Irrotacional e Equação de Bernoulli pág.036
1.6: Arrasto de Fricção e Arrasto de Forma pág.063
1.7: Influência da Turbulência na Força de Arrasto pág.076
1.8: Apêndice 1: Força de Arrasto e Vorticidade pág.090
1.9: Apêndice 2: Teorema do Transporte pág.094
1.10: Apêndice 3: “Vortex Stretching” pág.101
1.11: Exercícios pág.117000

2. TEORIA DE ASAS pág.167

2.1: Equações de Lagrange e Momento de Munk pág.168


2.2: Teoria de Fólios pág.184
2.3: Teoria da Linha de Sustentação (A >> 1) pág.194
2.4: Teoria de Jones (A << 1) pág.209
2.5: Razão de Aspecto Arbitrária – Aproximação Uniforme pág.212
2.6: Apêndice 1: Variáveis Complexas pág.221
2.7: Apêndice 2: Aproximação Assintótica para Corpos Esbeltos pág.241
2.8: Exercícios pág.235

3. ONDAS DE GRAVIDADE NA SUPERFÍCIE DO MAR pág.273-423

3.1: Relação de Dispersão e Velocidade de Gupo pág.274


3.2: Pressão de Radiação e Força de Deriva pág.294
3.3: Teoria da Refração - Aproximação da Ótica Geométrica pág.304
3.4: Ondas de Matéria: Equação de Schrödinger pág.319
3.5: Efeito Doppler e Relatividade Restrita pág.367
3.6: Resistência de Onda em Embarcações de Superfície pág.389
3.7: Apêndice 1:Equação da Onda na Corda e Série de Fourier pág.xxx
3.8: Apêndice 2: Transformadas de Fourier pág.397
3.9: Apêndice 3: Compressibilidade e Resistência de Onda pág.411
3.10: Apêndice 4: Resistência de Onda em Mar Raso pág.xxx
3.11: Exercícios pág.423

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3. ONDAS DE GRAVIDADE NA SUPERFÍCIE DO MAR

O arrasto viscoso é, em geral, somente uma das parcelas que contribuem para a
força total de arrasto em um corpo se movimentando em um meio fluido; é certamente o
mais estudado, posto que onipresente, mas nem sempre o mais importante. A resistência
ao avanço que aparece pela formação de ondas – quer de compressão no volume fluido,
quer de gravidade na interface ar-água – em alguns casos predomina sobre o arrasto
viscoso e necessita ser considerada no cômputo da resistência total oferecida pelo fluido.
As ondas de compressão, importantes no estudo dos vôos supersônicos, são brevemente
analisadas no Apêndice 2; as de gravidade, relevantes na determinação da resistência ao
avanço de embarcações, é um dos objetos de estudo neste capítulo, mas não o único.
A Teoria Ondulatória é dos tópicos mais importantes da Física-Matemática
bastando citar, como ilustração, os dois pilares fundamentais da Física do século XX: a
Mecânica Quântica, iniciada por Planck em 1900 e que encontra na equação de
Schrödinger das ondas de matéria seu clímax conceitual, e a Teoria da Relatividade de
Einstein (1905), que surge para contornar algumas aberrações teóricas introduzidas no
corpo da Física Clássica pelas ondas eletromagnéticas de Maxwell. O radicalismo de
ambas é em parte atenuado por um olhar clássico quando se observa, por exemplo, a
relação fundamental entre as ondas de matéria de Schrödinger e a teoria da refração de
ondas, utilizada tanto na ótica geométrica como no estudo do comportamento das ondas
de mar em mar raso, ou então quando se introduz a gênese da Relatividade via efeito
Doppler, o mesmo que explica por que a onda observada no navio em movimento tem
freqüência diferente da observada em terra firme. O enfoque clássico atenua o
radicalismo, mas não elude o “mistério” de ambas, centrado tanto na relação quântica
E   como na “ação à distância” dos campos gravitacional e elétrico, onde um corpo
age sobre outro corpo sem que meio algum intervenha; não elude o mistério, mas torna-o
mais tátil, menos mágico, mais humano e por isso, para que se aprecie a construção de
um pensamento magistral mas humanamente humano, os fundamentos desses dois pilares
são sucintamente descritos em duas seções deste capítulo.
Além da relevância intrínseca dos tópicos citados, há uma outra motivação, de
ordem metodológica, que merece ser enfatizada: como no capítulo precedente, os
principais resultados serão aqui obtidos através de argumentos de escalas e ordens de
magnitude, relegando-se a um segundo plano o desenvolvimento matemático mais
elaborado. A questão das “escalas” e das “ordens de magnitudes” é orgânica na Física,
mas isso “não se aprende no colégio”, não há um arquétipo teórico que a axiomatize: nos
acercamos dos fenômenos por aproximações, em uma espiral difusa que negaceia por

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caminhos hesitantes, muitas vezes se distanciando do foco e “atravessando inclusive ao
oposto do que se pretende aproximar” para eventualmente coalescer em uma
“compreensão” que, quando ocorre, ocorre quase sempre em um nível abstrato e se
materializa somente nos resultados por ela predita. Além do fenômeno em si e das leis
básicas da Física, o que nos guia nesse estágio ainda indeciso e confuso são as “escalas” e
as “ordens de magnitude”: apresentá-las aqui, no contexto mais tangível do pensamento
clássico, pode ter a virtude adicional – essa é a esperança – de incomodar o leitor, de
deslocá-lo das certezas operacionais que cercam e cerceiam todo estudante de engenharia,
obrigando-o a tangenciar o universo das dúvidas e hesitações, das incertezas, o palco
legítimo e único de qualquer pensamento criativo. Embora se reconheça a priori que não
se atinge esse “deslocamento” com um passo tímido e delimitado como o aqui proposto,
deve-se conceder ao menos que ele jamais será atingido se um primeiro passo não for
dado: é essa esquiva e frágil motivação que ancora a presente tentativa.

3.1: RELAÇÃO DE DIPERSÃO E VELOCIDADE DE GRUPO

Consideremos um oscilador, com massa m e coeficiente de restauração R. O


oscilador é caracterizado por sua freqüência natural   essa é, por assim dizer, sua
“impressão digital” – e ela pode ser determinada a partir de um argumento muito simples.
De fato, o movimento oscilatório se estabelece por um equilíbrio entre inércia e
restauração, entre a energia cinética e a energia de restauração do sistema. Assim, se a for
a amplitude da oscilação,  a energia cinética média em um ciclo e  a energia de
restauração média, também em um ciclo, o equilíbrio entre inércia e restauração exige

   ¼ m2 a 2  R
       , (3.1)
   ¼ Ra 2  m

supondo uma oscilação harmônica descrita pela função (t) = acos(t).


Em um sistema ondulatório algo semelhante ocorre, embora a “impressão digital”
de uma onda não seja mais uma freqüência específica: várias freqüências – a escala
musical, no caso das ondas acústicas, as diferentes cores, no caso das ondas
eletromagnéticas – coexistem em uma perturbação ondulatória. A “impressão digital” de
uma onda, que é uma oscilação que se propaga no espaço, é essencialmente sua
velocidade de propagação: por exemplo, a velocidade do som no ar é 340m/s, a
velocidade da luz é 300000km/s. Se  for o comprimento de onda, k = 2/ o número de

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onda, T o período e (k) = 2/T a freqüência, a velocidade de fase da onda é definida
pelo quociente c(k) = (k)/k e uma perturbação harmônica de amplitude a pode ser
expressa na forma

(x, t)  a  cos  kx  (k)t   a  cos  k  x  c(k)t   . (3.2a)

No caso particular quando a função (k) for linear em k – isso é, quando (k) =
ck – a velocidade de fase não dependerá de k e é a mesma para todos os comprimentos
de onda. Nos exemplos acima citados – das ondas acústicas e eletromagnéticas – essa
condição, embora não seja a mais usual, é satisfeita em primeira aproximação; no caso
geral, quando c = c(k), a onda é dita dispersiva e a relação  = (k) é denominada
“relação de dispersão”. A razão para esse nome pode ser compreendida se
considerarmos um “pacote de ondas”, definido, por exemplo, pela superposição de ondas
harmônicas,

(x, t)   a  cos  k   x  c(k  )t     , (3.2b)


com  sendo a fase de cada componente. Como cada componente harmônica tem sua
velocidade própria de propagação c(k), as componentes se dispersam ao longo do tempo
e o pacote tende a se desintegrar. No caso das ondas do mar, por exemplo, as ondas mais
longas (menores k) são mais velozes e se destacam, com o tempo, das mais curtas; é por
isso que um mar gerado por tempestade, que tem uma forma semelhante a (3.2b) na zona
de geração, é percebido como um “mar quase harmônico” em uma região suficientemente
distante da zona de geração: é essa onda quase regular, gerada em pontos remotos do
oceano (“swell”), que percebemos na praia em dias calmos, sem vento.
A relação de dispersão das ondas do mar será estudada no item 3.1.1 e a seguinte
observação merece destaque aqui: a intensidade da perturbação (3.2a) pode ser aferida
pela declividade  da onda, definida pela expressão

    k 1 : escala de 
     ka ,   (3.2c)
 x  max  comprimento 

que fornece uma relação entre a amplitude a da onda e seu comprimento de onda.
Observando que /x deve ser da ordem de a/l onde l é o comprimento característico da

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onda, a relação (3.2c) nos informa que l = k1 = /2: como a perturbação ondulatória é
expressa em termos das funções circulares {cos(); sin()} é mais conveniente que se tome
k1 ao invés de  para representar a escala de comprimento no movimento oscilatório.
Analisaremos aqui, como um primeiro exemplo, as ondas acústicas, que
descrevem como pequenas variações na densidade se propagam pelo meio. Dado um gás
em equilíbrio com pressão e densidade (p;), respectivamente, suponhamos uma
perturbação  na densidade em uma região delimitada do fluido, como indicado
esquematicamente na Fig.(3.1a). O mecanismo que tende a restaurar a situação de
equilíbrio original pode ser assim explicado: como o gás é compressível, um aumento 
na densidade implica em um aumento na pressão dado, em primeira aproximação, por
uma relação linear p =  que faz o gás fluir da região perturbada para o restante do
fluido, expulsando massa dessa região e fazendo assim a densidade retornar ao valor
original de equilíbrio.

FIG.(3.1): Ondas Acústicas: a) Esquema representativo da restauração devida à


compressibilidade; b) Coeficiente de restauração do êmbolo: R = S/l.

Para estimarmos a energia média de restauração por unidade de volume podemos


considerar um êmbolo, como indicado na Fig.(3.1b), e determinar a força F que deve ser
aplicada para que o êmbolo se desloque de um comprimento a muito menor que l. Como
F = pS, com S sendo a área do êmbolo, temos F = S; conservação de massa
implica em Sl = ( + )S(l  a) e assim, desprezando a parcela de segunda ordem
a, chegamos a l = a e portanto F = Ra com R = S/l. A energia média de
restauração por unidade de volume é assim dada por ¼ Ra2/Sl = ¼a2/l2 e relembrando
que a escala de comprimento é k1 (l = k1) tem-se  = ¼(ka)2; a energia cinética
média em um ciclo por unidade de volume é igual a ¼(a)2 e portanto

   ¼ 2 a 2 ;  
2 
   c  . (3.3a)
   ¼ (ka ) ; k

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Da mesma forma que a freqüência natural de um oscilador é proporcional à raiz
quadrada da restauração R, a velocidade de fase da onda acústica, /k, é também
proporcional à raiz quadrada do coeficiente de restauração volumétrico  = p/:
portanto c   , a “velocidade do som no meio”, é a velocidade com que pequenas
variações na densidade são propagadas pelo fluido e a onda acústica é não dispersiva.
Antes de encerrarmos essa análise é útil que se observe uma forma alternativa de
se estimar a energia média de restauração por unidade de volume, posto que ela explicita
a declividade  = ka como uma medida adimensional da intensidade da perturbação. O
argumento aqui é o seguinte: assim como a energia de restauração de um oscilador pode
ser escrita na forma ½ F(t)(t), com F(t) = R(t), a energia de restauração por unidade
de volume de um fluido compressível pode também ser expressa na forma ½p(/) =
½(/)2, com  = ocos(kx  (k)t); a energia média em um ciclo é portanto
igual a  = ¼(o/)2. Mas (o/) é uma medida da intensidade da perturbação na
densidade do fluido e como essa intensidade é da ordem de  = ka tem-se

o
  ka  , (3.3b)

que colocada em  = ¼(o/)2 recupera exatamente a estimativa apresentada em


(3.3a).

3.1.1: Ondas na Interface Ar-Água: Relação de Dispersão

Ondas de superfície na interface de dois fluidos são comuns na natureza, o


exemplo mais notável sendo as ondas que se propagam na superfície livre do mar, isso é,
na superfície horizontal que define a interface ar-água. A “superfície livre” define o
estado de equilíbrio do conjunto ar-água e pretende-se estudar como perturbações nessa
superfície, causadas ou pelo vento (“ondas de vento”) ou pelo deslocamento de um corpo
(“ondas de navio”), se propagam. Ao afirmarmos que essa superfície é “horizontal” já
estamos implicitamente identificando o mecanismo restaurador fundamental: ele é a
gravidade, que define a vertical local e portanto o plano horizontal. Ondas na interface
ar-água são denominadas “ondas de gravidade” quando o mecanismo restaurador
preponderante é a gravidade, e tanto as “ondas de vento” como as “ondas de navio” são
“ondas de gravidade”. Um segundo efeito restaurador, dominante quando o comprimento
de onda for muito curto, é a tensão superficial na interface ar-água e as ondas são então
ditas “ondas capilares”.

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FIG.(3.1a): Onda na interface ar-água e restauração devida à
gravidade e à tensão superficial . S: elemento de área.

A energia de restauração gravitacional gS da onda de gravidade é dada, como


sugerido na Fig.(3.1a), pela soma das energias potenciais mgz das massas m = Sz
distantes z da superfície livre; portanto

g   g  zdz  ½ g2 (x, t) .


0

FIG.(3.1b): Restauração Capilar: Resultante fz proporcional


à curvatura da membrana ( f z(  )   y  x (x  ½x, t) )

A tensão superficial  é uma força por unidade de comprimento e tem o mesmo


efeito restaurador da tensão em uma membrana. No caso da onda plana da Fig.(3.1a),
infinitamente longa na direção y, consideremos uma fatia de espessura y: a restauração é
devida à componente vertical fz = y/x que, como indicado na Fig.(3.1b), tem
resultante em um elemento x dada por fz = y2/x2x, proporcional à curvatura
da membrana; seja  a energia da restauração capilar por unidade de área da superfície
livre: como no problema do oscilador, onde  = ½F(t)(t), tem-se xy = ½ fz,
pois fz é a força restauradora mobilizada pelo deslocamento ; dessa maneira

f z  2 
   2    k 2 ;
x  y x  xx
    ½ k   (x, t) com k  
2 2 2
.
f z  
   ½  ;
x  y 

300
Para a onda harmônica (x,t) = acos(kx(k)t) a energia de restauração média
em um ciclo por unidade de área da superfície livre é assim dada pela soma

 g  ¼ ga 2 ;   k 2 
    g    ¼ ga 2 1  . (3.4a)
   ¼  k 2 a 2 ;  g 

O fator k2/g mede a influência relativa entre as restaurações capilar e


gravitacional; definindo ko como o número de onda para o qual esse fator é unitário e
observando que a tensão superficial na interface ar-água é   0.07N/m obtém-se

k o2 2 
 1  o   2  1.7cm . (3.4b)
g ko g

Para  >> o a restauração gravitacional é dominante e as ondas de “vento” e de


“navio” são certamente “ondas de gravidade”; apesar disso, continuaremos a análise das
“ondas capilares” pois elas introduzem alguns aspectos interessantes do ponto de vista
teórico, como discutido mais adiante e também no próximo item.
A estimativa da energia cinética do fluido mobilizado pela onda começa pela
seguinte observação: o deslocamento vertical da partícula fluida na superfície livre
acompanha, em primeira ordem, o deslocamento (x,t) da interface ar-água e portanto a
velocidade vertical w(x,t) da partícula fluida no plano z = 0 é dada por


w(x, t) z 0  (x, t)  a  sin  kx  (k)t  . (3.5)
t

Em águas profundas (kh >> 1) a profundidade do mar pode ser considerada


infinita e a única escala de comprimento é k1: as escalas de comprimento horizontal e
vertical são iguais nesse caso, a velocidade horizontal u(x,t) sendo assim da mesma
ordem a da vertical e u(x,t) = u(x,t)i + w(x,t)k  (a) em águas profundas. A agitação
provocada pela onda na superfície livre é sentida somente em uma camada de fluido nas
vizinhanças do plano z = 0 e como k1 é a única escala de comprimento essa camada de
fluido deve ter uma espessura da ordem k1: se  for a energia cinética por unidade de
área da superfície livre, S  ½ (Sk1)(a)2 e a energia cinética média  em um
ciclo por unidade de área da superfície livre pode ser estimada pela expressão

(a ) 2  águas profundas 


  ¼   . (3.6a)
k  kh  1 

301
De (3.4a) e (3.6a) segue, portanto, em “águas profundas”

 g
   g : (k)  gk; c(k)  (dispersão normal );
 k
    (3.6b)
    : (k)    k 3/ 2 ; c(k)    k (dispersão anômala ),
 
 

indicando que no caso das “ondas de gravidade” a velocidade de fase será tanto maior
quanto mais longa a onda for (quanto menor for k), ao passo que nas “ondas capilares” a
velocidade de fase será tanto maior quanto mais curta a onda for (quanto maior for k): o
primeiro caso, mais usual, é denominado “dispersão normal” na literatura e o segundo
“dispersão anômala”.
Em águas rasas (kh << 1) a escala de comprimento horizontal continua sendo k1,
mas a escala de comprimento vertical passa a ser a profundidade h << k1: essa
discrepância de escalas implica em uma discrepância entre as velocidades horizontal
u(x,t) e vertical w(x,t) pois, por conservação de massa, obtém-se com o auxílio de (3.5)

u w a
  0  u(x, t)  h  w(x, t)  k 1  u(x, t)   w(x, t) . (3.7a)
x
 z
 kh
 (u / k 1 )  (w / h)

A partícula fluida movimenta-se essencialmente na horizontal em “águas rasas” e


como a profundidade h define agora a espessura da camada fluida, a energia cinética
média por unidade de área da superfície livre do mar toma aqui a forma

 a   águas rasas 
2

  ¼    h  kh  1  . (3.7b)
 kh   

O problema em “águas rasas” só tem relevância física para as “ondas de


gravidade”, pois a condição kh << 1 para a onda capilar implica em uma “profundidade”
mínima, da ordem de 1mm, ver (3.4b). Dessa maneira, com o auxílio de (3.7b) segue

  g  (k)  gh  k; c  gh . (3.7c)

As relações de dispersão (3.6b) e (3.7c) são exatas e um argumento simples


possibilita a verificação desses resultados e também a extensão para um h arbitrário. De
fato, (3.5) sugere a expressão geral w(x,t) = af(z) sin(kx-(k)t), com f(0) = 1, e assim

302
 f (z)
u w  u  a  cos  kx  (k)t  ;
div u  0   0   k (3.8a)
x z  w  a  f (z) sin  kx  (k)t  .

Impondo a condição de irrotacionalidade do escoamento ondulatório – e essa


hipótese adicional será comentada mais adiante – e utilizando a condição de
impermeabilidade w(x,t)|z = h = 0 na superfície do fundo do mar obtém-se

u w  f (0)  1;
rot u  0    f   k 2 f  0 com  (3.8b)
z x  f ( h)  0,

de onde segue que

 cosh k(z  h)
  u  a   cos  kx  (k)t  ;
sinh k(z  h)  sinh kh
f (z)    (3.8c)
sinh kh  w  a  sinh k(z  h)  sin  kx  (k)t  .
 sinh kh

É imediato verificar agora que (  representa “média em um ciclo”)

(a) 2 (a) 2 sinh 2kh


0 0
  ½  u 2 dz  ¼
sinh 2 kh h
cosh 2k(z  h)dz  ¼ , (3.8d)
h
sinh 2 kh 2k

recuperando as expressões (3.6a) e (3.7b) nos limites kh   e kh  0, respectivamente,


e permitindo também, a partir da igualdade   g , que se derive a relação de dispersão

2
 k  tanh kh , (3.9)
g

que coincide com (3.6b) e (3.7c) nos limites acima definidos.


A expressão geral (3.9) foi obtida invocando-se a hipótese adicional de
irrotacionalidade do escoamento e é instrutivo que se discuta aqui a pertinência ou não
dessa condição subsidiária. Pode-se invocar, como usual, que são os experimentos que
decidem se uma hipótese é consistente ou não e, nesse sentido, (3.9) justifica a hipótese
de irrotacionalidade, posto que essa relação de dispersão é verificada experimentalmente.
O ponto que se pretende enfatizar, no entanto, é que o argumento do “balanço de
energia” aqui utilizado já supõe, implicitamente, a condição rot u = 0: ao impormos aqui,

303
como antes no caso do oscilador, a igualdade    estamos a ignorar efeitos
dissipativos, descritos em fluidos incompressíveis pela parcela 2u que só se anula em
um escoamento no plano (x,z) se o rotacional for constante, o valor nulo sendo aí o mais
natural; ou, em outras palavras, o “balanço de energia”    só se justifica em um
fluido incompressível se o escoamento for irrotacional no caso geral.
A energia média E das ondas por unidade de área da superfície livre é definida
pela soma E      2  , pois    , e as expressões

 (k)  gk  tanh kh;


 onda de  
    g com E  ½ ga 2 , (3.10a)
 gravidade   c   tanh kh;
 k

 (k)  k 3 /  ;
 onda capilar  
    k com E  ½ k 2 a 2 , (3.10b)
 kh >> 1   c  ;
 

sintetizam os principais resultados desse item e permitem também a verificação de uma


fórmula geral da quantidade de movimento média carregada por uma onda plana

harmônica: se f (t) representar o operador média no tempo e eo for a direção de
propagação, no caso particular das ondas de gravidade e capilar essa quantidade de

movimento média na direção eo é definida pela expressão

 (x,t) 0 (x,t )
   
p 
h
  u(x, z, t) eo     u(x, z, t) 
h

0
  u(x, z, t) eo    u(x, 0, t)  (x, t eo ,

pois a média no tempo da integral da função harmônica u(x, z, t) no intervalo [-h;0] é


nula; portanto (ver (3.8c) com (x,t) = acos(kx  (k)t))

 onda de  a 2 E 
  :   u(x, 0, t)  (x, t  ½  ;
 gravidade  tanh kh c   E 
  p  eo , (3.10c)
 onda capilar  E  c
 :   u(x, 0, t)  (x, t  ½a  ; 
2

 kh >> 1  c 

uma fórmula geral para a quantidade de movimento média de uma onda que, como será
visto, determina não só a força de deriva em um sistema oceânico, como também explica
a orientação da cauda de um cometa em relação ao sol e origina a relação de de Broglie
 
p  k  eo das ondas de matéria da Mecânica Quântica, posto que E   e c = /k.

304
3.1.2: Velocidade de Grupo

A onda harmônica utilizada no desenvolvimento teórico e, em particular, na


derivação da relação de dispersão, é uma abstração, pois exige um sinal com duração
infinita se estendendo por todo espaço e todo tempo: qualquer “onda harmônica” no
mundo real, como a senoide da Fig.(3.2), tem extensão finita e é representada por um
grupo de ondas com números de onda próximos do número de onda ko = 2/o da
senoide. É instrutivo elaborarmos com algum detalhe esse exemplo, explicitando não só o
significado do grupo de ondas que representa a função f(x) da Fig.(3.2), mas também
derivando algumas de suas características relevantes.

FIG.(3.2): “Senoide finita” no intervalo |x|  qo, com q  1/1/2 >> 1, e grupo de ondas
com amplitudes Fodk e números de onda |k  ko|  ko recuperando a “senoide finita”.

Uma função “arbitrária” f(x), definida na reta real e quadrado integrável, pode ser
escrita como uma integral em   < k <  da função F(k)  e ikx , com F(k) definindo a
Transformada de Fourier de f(x). Essa extensão das séries de Fourier é analisada no
Apêndice 1 onde se estabelece a relação fundamental

 
1 1
f (x)   F(k)  e ikx dk  F(k)   f (x)  e dx .
ikx
(3.11a)
2  2 

Supondo, como indicado na Fig.(3.2), que F(k) = Fo na faixa |k  ko|   ko e nula


no restante do domínio infinito, obtém-se

k o (1 )
Fo 2  ao
 f (x)  
2 k o (1 )
e  ikx dk  a (x)  e iko x , Fo 
2  k o
;

k o
(3.11b)
Fo sin k o x
 a (x)   e  ikx dk  ao   ao  1   ()  se |k o x |  1/ 1/ 2 ,
2 ko k o x

305
a indicar como a “senoide finita” pode ser recuperada em uma larga faixa do eixo x:
quanto mais “espalhada” for a senoide no espaço físico  quanto maior for q =
1/(21/2) , tanto menor será  e mais “concentrada” será sua transformada de Fourier
F(k) no espaço dos números de onda, um resultado geral que é diretamente responsável
pelo Princípio da Incerteza de Heisenberg analisado no item (3.4.5) deste capítulo.
O termo “grupo de ondas” designa a superposição de ondas harmônicas com
números de onda e freqüências no entorno de valores centrais {ko;(ko)} e pode também
ser definido por uma série finita de Fourier, uma representação geralmente utilizada na
análise de dados de campo ou experimentais; nesse contexto

 
 k  ko  k,   0; 1;;  n;  n


n
a  e  
i k x (k  )t 
  (x, t)  Real , (3.12a)
k 
    1;  n
ko 

e com erro da ordem 2 a seguinte aproximação

(k  )  (k o )  (k o )   k   k o      2  (3.12b)


 
|k   k o |k k o

pode ser utilizada, permitindo expressar (3.12a), no longo intervalo de tempo 0 < (ko)t
< (1/)79, na forma

n
 (x, t)  Real a(x, t)  ei k o x (k o )t   a(x, t)  a
 n
  ei[(k  ko )x ( (k ) (ko ))t] ;
n
(3.12c)
 a(x, t)  | a(x, t) | e i (x,t)
 a
 n
 e
i(k   k o ) x  (k o )t 
na faixa (k o )  t  1.

Como mostra a expressão de (x,t), a onda é “quase harmônica” com um número


de onda ko e uma amplitude a(x,t) lentamente variável no tempo e espaço: de fato, de
(3.12c) segue (notar que (k o ) / c(k o )   (1) , isso é, independe de )

a n
 i  (k o )   (k   k o )  a  e  o 
i(k  k ) x  (k o )t 
      (k o )a  ;
t  n

  
|k   k o | k k o
(3.13a)
a n
 i   (k   k o )  a  e  o 
i(k  k ) x  (k o )t 
     koa  ,
x  n

79
Para (ko)t > (1/) efeitos secundários, que implicam em uma dispersão do “grupo de ondas”, têm que
ser incorporados, ver exercício (3.1).

306
a indicar que nas escalas naturais {(ko)1; ko1} de tempo e espaço da “onda harmônica”
a amplitude a(x,t) pode ser considerada constante em primeira aproximação e portanto

 (x, t)  a (x, t)  e 
i k o x (k o )t 
;
(3.13b)
 E(x, t)  ½g | a (x, t) |2 ,

com E(x,t) definindo, no caso em pauta, a energia média em um ciclo da onda de


gravidade por unidade de área da superfície livre do mar.
A expressão (3.12c) mostra claramente que a amplitude a(x,t) é invariante para
um observador que se desloca com a velocidade (k o ) , denominada “velocidade de
grupo” da onda e designada por cg(k) na literatura; ela é igual à velocidade de fase c(k)
quando a onda é não dispersiva, mas é menor que c(k) (maior que c(k)) quando a
dispersão é normal (dispersão é anômala), como exemplifica o cálculo de cg(k) para a
onda de gravidade e capilar em águas profundas,

 cg (k)  0.5 c(k), (onda de gravidade - kh >> 1);


cg (k)  (k)   (3.14a)
 cg (k)  1.5 c(k), (onda capilar - kh >> 1),

ver (3.10). Derivando em relação ao tempo e espaço a função a(x,t) definida em (3.12c)
obtém-se a equação de onda (ver (3.13a))

  | a|  | a|
  c (k )  0;
 
g o
a a  t x
 cg (k o )  0     (3.14b)
t x   cg (k o )  0  (x,t)  cg (k o )  k(x, t),
   t 
 x
 (x,t) k (x,t )

com (x,t) = (xo,to)  (xo,to)(t  to) + k(xo,to)(x  xo) nas vizinhanças de (xo;to).
A onda “quase harmônica” (3.13b) detectada em uma “antena” no ponto xo se
diferencia de uma onda harmônica por uma modulação |a(xo,t)| na amplitude (“amplitude
modulation”-AM) e uma modulação (xo,t) na freqüência (“frequency modulation”-
FM): se é verdade que a “onda harmônica” ideal não transmite informação alguma, posto
que “informação” exige sempre alguma variação do sinal no tempo e espaço, a onda
“quase harmônica” a transmite ou pela modulação da amplitude, ou pela modulação da
freqüência ou por ambas. A “informação”, no entanto, é propagada com a velocidade de
grupo cg(o) da onda-guia harmônica, que identifica a “rádio” pela frequência o em
kHz: de (3.13b) e (3.14b) segue

307
E E
 cg (k o ) 0, (3.14c)
t x

a indicar que a velocidade de grupo é a velocidade de propagação da energia: a solução


de (3.14c) é da forma E(x,t) = Eo(x  cg(ko)t) e a energia inicial Eo(x*) em x* permanece
invariante nos pontos x(t) = x* + cg(ko)t.

3.1.3: Mar Real e Grupo de Ondas: Transformadas de Hilbert

Em um “grupo de ondas” a modulação da amplitude |a(x,t)|, a modulação da fase


(x,t) e a energia E(x,t)  |a(x,t)|2 variam lentamente no tempo e espaço – “lentamente”
em relação às escalas naturais {(ko)1; ko1} da “onda harmônica” – e escrevendo
a(x, t)  (x, t)  i   (x, t) de (3.12c) segue, com a  | a | ei ,

n

 (x, t)   |a
 n
 |  cos  (k   k o )x  (  o )t    ;  | a(x, t) |  2 (x, t)   2 (x, t);
 
   (x, t) (3.15a)
n
  tan (x, t) 

,
  (x, t)  | a |  sin  (k   k o )x  (  o )t    ;   (x, t)
 n 

e, em particular, se (x,t) for o “registro da onda”, conforme definido em (3.12a), a


modulação na amplitude – a envoltória do sinal  pode ser obtida através da expressão


 (x, t)  | a

 |  cos  k  x   t    ;

  | a(x, t) |   (x, t)   (x, t) ,
2 2
(3.15b)
  (x, t)   | a |  sin  k  x   t    ; 
 

a função (x,t) sendo a Transformada de Hilbert do registro (x,t).


A Fig.(3.3) mostra, no gráfico de baixo, o registro (t) medido por um ondógrafo
em um ponto do mar do Norte. É evidente o caráter aleatório80 da onda do mar, pois não
há regra alguma que permita estendê-la para fora do intervalo registrado: essa “extensão”
não pode ser predita, é imprevisível. A questão da “aleatoriedade” não será aqui abordada
e, apesar dela, é claro que algum “padrão” persiste: não é difícil estimar um “período
médio” pelo intervalo entre as cristas de (t) que apresenta, ao longo do registro, uma
tênue flutuação em torno de um “intervalo médio”; já a flutuação da “amplitude” é muito
80
Aleatório do latim alea = dado de jogar: o espírito do “jogo” é que o resultado não pode ser predito, ele é
imprevisível.

308
maior, mas a razão aqui é outra: ela ocorre pelas interferências “construtiva” e
“destrutiva” entre as componentes harmônicas do “grupo de ondas”.

envoltória  |a(xo,t)|
da amplitude
(t)

FIG.(3.3): Registro de onda (t) no Mar do Norte e envoltória |a(xo,t)|.


(Fonte: Longuet-Higgins (1977))

Considerando, por exemplo, um “grupo de ondas” determinístico – um batimento


formado pela superposição de duas ondas harmônicas com mesma amplitude e números
de onda kok e frequências o muito próximas – tem-se

(x, t)  ao ei[  k o k  x  o  t ]  ei[  k o k  x  o  t ]   2ao  cos  k  x   t   ei ko x o t  , (3.15c)
  
a (x,t )

e em x = 0 a envoltória |a(0,t)| localiza os instantes onde a interferência é construtiva


(cristas e cavas; t = n) ou destrutiva (nós; t = (2n+1)/2), claramente
identificados na Fig.(3.4) e também no registro da Fig.(3.3), onde a presença de nós e
“quase nós” é evidente: a grande flutuação de amplitude observada no registro do mar do
Norte não é devida à aleatoriedade das ondas, mas sim às interferências “destrutiva” e
“construtiva” presentes em qualquer “grupo de ondas”, seja ele “aleatório”, como o da
Fig.(3.3), ou “determinístico”, como o da Fig.(3.4).

FIG.(3.4): (Batimento): Registro (0,t) da onda (3.15c) com regiões


de interferências construtiva (a(t) = 2ao) e destrutiva (a(t) = 0) que
se deslocam no espaço com a velocidade de grupo cg = /k.

309
Qualquer registro representativo de um “grupo de ondas” tem uma duração Tr
muito maior que o período típico 2/o, como na Fig.(3.3); definindo a frequência básica
 = 2/Tr << o e os harmônicos { = ;  = 1,2, }, as componentes de Fourier
do registro (t) podem ser determinadas pelas expressões

 2 r
T


 c   (t)  cos  t dt;
 Tr 0
(t)    c  cos  t  s   sin  t    T
1  2 r
  T  (t)  sin  t dt,
 s 
 r 0

o coeficiente c0 sendo nulo pois, pela definição da elevação (t) da superfície livre, o
valor médio de (t) é nulo. Introduzindo os coeficientes {|a| = (c2 + s2)1/2; tan  = s/
c}, a “onda” (t) é representada na forma canônica

 
2   (t)  | a |  cos   t    : Registro de Onda;
   ;   1
Tr   
(3.16)

     ;   1,;    (t)  | a |  sin   t    : Transformada de Hilbert ,
 1

a modulação |a(x,t))| podendo ser então calculada a partir de (3.15b): a parte de cima da
Fig.(3.3) apresenta o gráfico de  |a(x,t)|, superposto no gráfico de baixo ao registro (t),
e é clara a aderência da envoltória  |a(x,t)| ao perfil da onda.
A frequência típica do mar – isso é, a frequência central o do “grupo de ondas”
(3.16) – pode ser definida segundo um critério simples: expressando (3.16) na forma

 (t)  Real a(t)  e  it ;


 a(t)  | a(t) | ei(t)  | a | e i[    t  ] ,

a escala de tempo 1() da amplitude a(t) é identificada pelo quociente () =


||ta||/||a||, ver (3.13a), e a frequência central o é definida pelo valor  = o que
minimiza () ou

    | a |2
2

||  t a ||   (o )  0;
()    
|| a ||
| a

 |2  (o )  0,

310
levando a um valor máximo da escala de tempo 1() da amplitude; ou, em outras
palavras, a frequência central o é definida de tal maneira que a variação no tempo de
a(t) seja a mais lenta possível. Portanto




   o   | a |2
 (o )(o )  

 0;
 
| a |2
 
 
  (o )(o )    (o )   (o )(o )  (o )(o )  1,
2

de onde segue

 | a   |2
 frequência central do 
o  
 , (3.17a)
| a |


2
 "grupo de ondas" 

que pode ser determinada diretamente a partir do registro de onda escrito na forma (3.16);
conhecida o, as expressões



 (t)  | a |  cos  (  o )t      | a(t) |  2 (t)   2 (t);
1  
    (t) (3.17b)
 tan (t) 
  (t)  | a |  sin  (  o )t     
,
 (t)
1 

determinam a fase (t) e a modulação (t)  (t) na frequência, permitindo a


descrição sintética do registro de um mar real pela expressão,


(t)  | a |  cos   t     | a(t) |  cos  o t  (t)  , (3.17c)
1

a lei de propagação desse registro a ser obtida, em primeira ordem, a partir da expressão
(3.14b). Tipicamente  = (o)/o  0.2 para as ondas de mar e o parâmetro  é
denominado “largura de banda da modulação” ou simplesmente “largura de banda”: o
mar real é, em geral, de “banda estreita” ( << 1).
Completando essa análise introdutória dos “grupos de ondas”, analisaremos a
seguir, no contexto de ondas na interface ar-água, alguns fenômenos onde a diferença
c(ko)  cg(ko) entre as velocidades de fase e grupo desempenha papel fundamental.

311
3.1.4: Velocidade de Grupo e Resistência de Onda

Como uma primeira introdução à “resistência de onda” de uma embarcação, o


seguinte problema será aqui considerado: um corpo cilíndrico com seção transversal no
plano (y,z) deslocando-se na “superfície livre” com uma velocidade U constante,
conforme representado na Fig.(3.5). O movimento do corpo perturba a superfície livre e
deixa em seu rastro um sistema ondulatório: a onda formada pelo “navio” é de gravidade
e os “nós” da onda acompanham o deslocamento do corpo com a velocidade de fase c =
U, como indicado esquematicamente na Fig.(3.5a).

FIG.(3.5): Ondas geradas por corpo em movimento e Resistência de Onda.


(a) Onda de Gravidade: cg = 1 2 U; (b) Onda Capilar: cg = 3 2 U .

Se a for a amplitude da onda gerada, a energia por unidade de área é E = ½ ga2 e


consideremos a região fixa no espaço à direita da vertical V. No intervalo de tempo t a
energia da onda nessa região, por unidade de comprimento na direção x, é acrescida de
E = EUt = Ect: no sistema de referências que se desloca com o corpo a vertical V
passa da posição (t) para a posição (t+t) da figura, a área perturbada pela onda à direita
de V tendo um acréscimo igual a Ut por unidade de comprimento na direção x. Esse
aumento na energia tem duas origens: uma, o fluxo de energia Ecgt através de V, pois
energia é propagada com a velocidade de grupo cg; outra, o trabalho realizado DUt =
Dct pela força de arrasto. Conservação de energia implica em

E  ct  E  cg t  D  ct

e portanto a seguinte expressão é obtida em águas profundas,

 cg 
D  1  E ,  kh  1  D  ¼ ga 2  (3.18a)
 c 

a indicar que a resistência de onda só existe, no caso de uma onda na interface ar-água,
porque as velocidades de grupo e de fase são distintas (cg  c).

312
Suponhamos que a velocidade U do corpo seja tão pequena que o efeito
restaurador dominante seja a capilaridade: agora cg/c = 3/2, ver (3.14a), e o resultado
(3.18a) é certamente errôneo: ele sugere um “moto perpétuo”, pois o corpo extrairia
energia do movimento ondulatório por ele causado. Esse paradoxo é resolvido
observando que no “regime capilar” o corpo não deixa rastro atrás de si: ao deslizar
lentamente o dedo em uma bacia d’água a superfície enruga-se na frente do dedo, não
atrás, um comportamento de resto típico das ondas em membranas: quando se desliza o
dedo na superfície de uma bexiga inflada ela também se enruga à frente.
A onda capilar, ao se formar na frente do corpo, exige que se considere a
conservação de energia na região entre a vertical V na Fig.(3.5b) e o corpo: no lapso de
tempo t a área perturbada diminui em Ut e a região à esquerda da vertical V perde a
energia E =  EUt =  Ect, perda essa causada pelos efeitos agora opostos do fluxo
de energia  Ecgt para fora de V e do trabalho efetuado DUt = Dct pela resistência
de onda. Conservação de energia fornece portanto

 E  ct   E  cg t  D  ct
ou
 cg 
D    1 E  ½E ,  E  ½ k a 
2 2
(3.18b)
 c 

uma expressão formalmente coincidente com (3.18a), ambas retratando um resultado


físico óbvio: a resistência de onda D é proporcional à energia E da onda formada pelo
deslocamento do corpo. De outro lado, a relação cg  c das ondas de superfície na
interface ar-água explica não só a resistência de onda, como a posição da onda gerada: ela
ocorre atrás do corpo no caso de dispersão normal (cg < c) e na frente quando a dispersão
é anômala (cg > c). Finalmente, a resistência de onda em águas rasas (c = cg) é de fato
nula quando U < c = (gh)1/2, mas aparece uma resistência de onda quando U > c, análoga
à observada no regime supersônico M = U/c > 1 de um fluido compressível, conforme
discutido no Apêndice 2 deste capítulo.

3.1.5: Velocidade de Grupo e Geometria da Esteira de um Navio

Ainda com a intenção de ilustrar o papel desempenhado pelas velocidades de fase


e grupo analisaremos, a seguir, um fenômeno observado no movimento de um navio em
águas profundas: a esteira ondulatória deixada pelo corpo em seu rastro fica circunscrita
a uma cunha angular com ângulo interno igual a 3856”, ver Fig.(3.6a).

313
B

FIG.(3.6a): Esteira ondulatória deixada por navio em águas profundas.


(2 = AOBˆ = 3856”)

Suponhamos que o navio seja identificado com um ponto de pressão que se


desloca com velocidade U na superfície do mar e seja O a posição desse ponto no tempo t
= 0, ver Fig.(3.6b); em um certo tempo t o navio está distante Ut de O e a perturbação
gerada em O no tempo t = 0 concentra-se em um círculo de raio cgt = ½ ct com centro em
O (x = 0): a perturbação causada pelo navio propaga-se com a velocidade de grupo.

FIG.(3.6b): Condição para interferência construtiva das ondas geradas pelo navio:
crista A + crista B  percurso AB percorrido com a velocidade de fase c.

No instante t = t o navio (o ponto de pressão) encontra-se em x = Ut e gera


uma onda idêntica à gerada em O no instante t = 0; a condição para que a onda gerada em

314
x = 0 no tempo t = 0 interfira construtivamente com a onda gerada em x = Ut é que a
distância AB, indicada na Fig. (3.6b), seja percorrida com a velocidade de fase:
interferência construtiva implica que a crista de uma onda encontre-se com a crista da
outra e como as duas ondas são idênticas a distância AB tem que ser percorrida com a
velocidade de fase. Seja  o ângulo formado pelo segmento OAB e o eixo x; da
geometria da Fig. (3.6b) segue, no limite t  0,

c  U  cos  , (3.19a)

e essa é a condição para a interferência construtiva: o ponto A da Fig.(3.6b), com


coordenadas polares (,), pertence ao lugar geométrico das interferências construtivas
no tempo t se { = ;  = ½ct = ½ Ut cos}. Em coordenadas cartesianas tem-se

x A (t)  ½Ut cos 2 ; 


 x A (t)  ¼Ut   y A2 (t)  ¼Ut  .
2 2
  (3.19b)
y A (t)  ½Ut cos  sin .

FIG.(3.6c): Envoltória do lugar geométrico das interferências construtivas


(2 = 3856”)

O lugar geométrico (3.19b) é um círculo com centro distante ¼Ut do ponto O – ou


¾Ut da posição do navio no tempo t – e de raio igual a ¼Ut, ver Fig.(3.6c). No sistema de
referências que se move com o navio esse lugar geométrico corresponde às ondas geradas
pelo “ponto de pressão” quando o navio encontrava-se a uma distância Ut da posição
atual; fazendo t variar no intervalo 0 < t <  a união de todos esses círculos define o setor
angular 2 indicado na Fig.(3.6c), com sin  = 1/3; portanto  = 1928” ou 2 = 3856”,
de acordo com o mostrado na Fig.(3.6a).
Conforme discutido no exercício (3.4), a geometria da esteira modifica-se com a
relação de dispersão e portanto com a profundidade h: o ângulo 2 vai se abrindo à
medida que h diminui e tende a  no limite h  0.

315
3.2: PRESSÃO DE RADIAÇÃO E FORÇA DE DERIVA

Um dos objetivos desta seção é apresentar os principais resultados relacionados à


determinação das forças de deriva em sistemas flutuantes. Essas forças, como se sabe,
são uma ordem de magnitude menores que as forças oscilatórias na freqüência da onda,
mas, por serem estacionárias, empurram os sistemas oceânicos na direção de propagação:
as linhas de amarração de um sistema de produção de petróleo são projetadas para
contrabalançarem o efeito das forças de deriva (e também as do vento e das correntes
marítimas).
Sob o ponto de vista mais conceitual, as forças de deriva são exatamente análogas
à pressão de radiação descoberta por Maxwell no Eletromagnetismo, também um efeito
de “segunda ordem” extremamente tênue: “A primeira verificação experimental do efeito
da pressão de radiação foi realizada em 1899 pelo físico russo P.N.Lebedev. Estes
efeitos podem ser observados nos cometas, cujas caudas são sempre direcionadas na
direção oposta à do sol, em virtude da radiação solar”81. De fato, imaginando o núcleo do
cometa “preso” ao centro do Sol pela gravitação, se a cauda não estiver alinhada com a
linha que une o núcleo ao centro do Sol ela estará sujeita a um momento, devido à
pressão de radiação, que só se anulará quando houver alinhamento. Esse é o mesmo
mecanismo dos sistemas “turret” de produção de petróleo: nesses sistemas o navio pode
girar em torno de um “carretel”, colocado na proa e ancorado no fundo do mar e, pelo
efeito das forças de deriva, o navio tende a se alinhar com a direção de propagação das
ondas (ver Fig.(3.7)), minimizando assim as forças reativas no sistema de amarração.

(i) (ii)

FIG.(3.7): Pressão de Radiação: (i) Navio com “turret” alinhado com direção da onda
do mar; (ii) Cauda do cometa alinhada com a direção da radiação solar.

81
Ver J. Frenkel, “Princípios de Eletrodinâmica Clássica”, EDUSP; ver também A. Sommerfeld,
“Electrodynamics” e Morse & Ingard, “Theoretical Acoustics”.

316
No item (3.2.2) desta seção o problema da pressão de radiação será analisado de
um ponto de vista global, “termodinâmico”, a intenção sendo obter, com um argumento82
bastante simples, uma fórmula universal para essa pressão e para a quantidade de
movimento média transportada pela onda, válida para as ondas eletromagnéticas, para as
ondas acústicas, para as ondas do mar, em resumo, para qualquer sistema ondulatório;
essa fórmula é posteriormente verificada, no item (3.2.3), no caso das ondas do mar e a
expressão da força de deriva é deduzida para o problema bi-dimensional. O item (3.2.1)
introduz o “invariante adiabático” da Mecânica Clássica: esse resultado fundamental
serve não só para apresentar o “argumento termodinâmico” em um contexto mecânico
como também o próprio “invariante adiabático”, que é utilizado no item (3.2.2) para
deduzir a expressão geral da “pressão de radiação”.

3.2.1: Invariante Adiabático e “Wave Action”

Seja um gás ideal encerrado em um cilindro com um êmbolo em sua extremidade.


O estado macroscópico do gás é caracterizado pelo valor das variáveis macroscópicas p
(pressão), v (volume) e T (temperatura). As variáveis macroscópicas p e T correspondem,
grosso modo, a valores médios das variáveis microscópicas, relacionadas às posições e
velocidades das 1023 moléculas de um mol de gás; a variável v corresponde a um vínculo
externo, macroscópico, imposto ao sistema. Se Q representar o calor fornecido ao
sistema, E a variação da energia interna, essencialmente a energia cinética total das
moléculas, e U = pv for o trabalho realizado contra as forças de vínculo, a Primeira
Lei da Termodinâmica estipula que Q = E + U.
A Termodinâmica é, em essência, a disciplina que estuda a transição entre
distintos estados do gás causada por mudanças das variáveis macroscópicas do sistema,
supondo que elas ocorram em uma escala de tempo muito mais lenta que a escala de
tempo interna, microscópica, do sistema. É essa discrepância de escalas que permite
estipular, em cada estágio, o gás como se estivesse sempre em uma condição de
equilíbrio estatístico local, justificando a utilização das equações de estado do gás ao
longo de toda transição termodinâmica.
Em um processo adiabático (Q = 0) reversível pode-se demonstrar que

p  v   cte.;
(3.20a)
  cp / cv ,

82
O argumento termodinâmico é inspirado, em parte ao menos, pela leitura de L.Brillouin, “Les Tenseurs
en Mécanique et en Élasticité”; ver também M.Born, “Atomic Physics”.

317
com cp e cv sendo, respectivamente, os calores específicos a pressão e volume constantes.
A Teoria Cinética dos Gases, desenvolvida sob a hipótese que o gás seja tão diluído (gás
ideal) que o campo de forças intermoleculares possa ser desprezado, prediz a seguinte
expressão para ,

  1  2 / fm , (3.20b)

onde fm é o número de graus de liberdade das moléculas do gás83: para um gás


monoatômico, por exemplo, fm = 3 e  = 1.66; para um gás diatômico fm = 5 e  = 1.40 e
para um gás poliatômico fm = 6 e  = 1.33.
Consideremos agora um pêndulo simples de massa m e comprimento l oscilando
harmonicamente no campo gravitacional, como indicado na Fig.(3.8), e seja (t) =
ocost o deslocamento angular do pêndulo com o – e portanto (t) – suposto pequeno
(o << 1). A energia cinética média em um ciclo é   ½m(l  ) 2  = ¼ m2l2o2, a
energia de restauração média é   mgl (1  cos (t))  = ¼ mglo2 e da igualdade  =
 exigida pelo movimento oscilatório obtém-se a freqüência natural  (tempo interno);
assim

E      ½mgl  o2 ;
(3.21a)
  g/l .

FIG.(3.8): Invariante Adiabático: Pêndulo com comprimento l(t) variável.

A força estática no cabo é o peso mg e a força dinâmica total, FD(t), é igual à força
de vínculo total, FV(t), subtraída da parcela estática; o valor médio F da força dinâmica
de vínculo é portanto dado pela expressão (cos (t)  1  ½ 2 (t))

83
O valor de  deve ser corrigido por efeitos quânticos para gases poliatômicos: nesse caso os valores
observados de  se agrupam em torno de um valor médio 1.33 mas não são estritamente iguais a 1.33. Não
se observa na Natureza o valor  = 3/2 (fm = 4), dissociado de qualquer modelo plausível sobre vínculos
impostos ao movimento molecular. Ver A.Sommerfeld, “Thermodynamics and Statistical Mechanics”.

318
FD (t)  FV (t)  mg  ml  2 (t)  mg  cos (t)  mg  ml  2 (t)  ½mg2 (t);
2 / 
 (3.21b)
F
2 
0
FD (t)dt  ¼mg  o2 .

De (3.21a,b) segue que

F  E / 2l , (3.21c)

e a questão que se coloca é a seguinte: o que ocorre com a oscilação do pêndulo quando
seu comprimento l varia lentamente (comparada com a escala interna -1) no tempo84?
Este problema é essencialmente “termodinâmico”, pois envolve uma mudança
introduzida no sistema por uma variação lenta do vínculo macroscópico (o comprimento
l do pêndulo). Se S for a área seccional do fio, identificamos aqui as seguintes variáveis
macroscópicas

 Vínculo Geométrico: comprimento l (ou v = lS);


 Variável Conjugada: força média F (ou p = F/S);
 Energia Interna: energia média E.

No “equilíbrio termodinâmico” – isso é, quando l permanece constante e a


“variável microscópica” (t) oscila harmonicamente – as variáveis macroscópicas não
variam no tempo e a seguinte equação de estado pode ser obtida (ver (3.21c)):

F  F(l , E)  E / 2l ,
ou (3.22a)
p  p(v, E)  E / 2v .

A idéia básica, tanto aqui como na termodinâmica, é que a mudança das variáveis
macroscópicas se dá em uma escala de tempo tão lenta comparada com a escala de tempo
microscópica (-1 no caso em questão) que o “equilíbrio estatístico” é localmente
sempre satisfeito, ou, em uma linguagem mais apropriada ao presente problema: a
variação de l é tão lenta que a oscilação harmônica da “variável microscópica” (t) pode
ser sempre reconhecida. Nessas situações de “quase-equilíbrio local” a equação de
estado, estritamente correta na condição de “equilíbrio termodinâmico”, pode sempre ser
utilizada em qualquer estágio da “transição termodinâmica”, associada à lenta variação

84
O estudo do pêndulo com comprimento variável é clássico na literatura; ver M. Born, “Atomic Physics”.
Se o comprimento l varia no tempo energia deve ser fornecida ou retirada do sistema e a energia E não
pode permanecer constante: o que permanece constante é o “invariante adiabático”.

319
dos vínculos macroscópicos. Como não existe troca de calor (processo adiabático, Q =
0), a Primeira Lei da Termodinâmica fornece

E  U  0 ,  U  p  v  (3.22b)

com U = Fl = pv sendo o trabalho realizado contra as forças de vínculo. Utilizando
esta expressão e a equação de estado E = 2pv (ver (3.22a)) em (3.22b), obtém-se

dp dv  3
2p  v  3 p  v  0     0   
p v  2

ou (ver (3.20a))

p  v   cte.;
(3.22c)
  3/ 2.

É curioso observar que o invariante adiabático tem aqui o expoente  = 3/2,


justamente o valor nunca observado na Natureza no caso dos gases. Utilizando, outra vez,
a equação de estado E = 2pv e a definição v = lS, (3.22c) reduz-se a El1/2 = cte. ou
então, com o auxílio de (3.21a), a

E /   cte. ;  E /  : "invariante adiabático"  . (3.23)

A invariância de E/ é confirmada no exercício (3.6), onde o problema do


pêndulo é analisado de forma tradicional, e o argumento aqui exposto se apóia na
discrepância de escalas dos movimentos “microscópico” e “macroscópico”, um
procedimento central na Termodinâmica e na Física em geral: a transição entre estados é
tão lenta em relação à escala de tempo “microscópica” que o filme da transição é, como
em um filme de celulose, uma seqüência de fotografias dos estados de equilíbrio.
O resultado acima pode ser estendido para um sistema ondulatório, a freqüência 
definida então pela freqüência intrínseca da onda, isso é, a freqüência medida no sistema
de referência em relação ao qual o “meio” por onde a onda se propaga é estacionário: o
quociente E/ é denominado “wave action”, pois tem dimensão de “ação” (energia vezes
tempo). O fóton é uma “partícula” de massa nula e energia E   associada à “energia
quantizada” de uma radiação eletromagnética de freqüência : conservação da “wave
action” reduz-se aí à invariância relativística da constante de Planck  , um resultado que
será revisitado na seção (3.5).

320
3.2.2: Pressão de Radiação e Quantidade de Movimento Média

O argumento “termodinâmico” utilizado no item precedente é atraente por sua


generalidade embora, quase como um correlato, possa causar certo desconforto pelo nível
de abstração que essa generalidade exige; mas, por isso mesmo, ele é útil na derivação de
uma fórmula universal da pressão de radiação em sistemas ondulatórios e será utilizado
nesse item com esse propósito. Genericamente designaremos, a seguir, por volume a
dimensão do espaço onde a onda se propaga: ela é volumétrica, efetivamente, no caso das
ondas eletromagnéticas ou acústicas, por exemplo, mas é uma superfície no caso das
ondas do mar, que se propagam na interface ar-água.

FIG.(3.9): Pressão de Radiação pr : Absorção da energia radiativa da onda plana


por “corpo negro” (“absorvedor de onda”) ideal (S: “área” no plano ortogonal).

Como representado esquematicamente na Fig.(3.9), supor-se-á aqui uma onda


plana propagando-se com celeridade c = /k em uma região cilíndrica infinitamente
longa de um lado, mas limitada por um “êmbolo” de área S do outro; a força de vínculo
causada pela pressão de radiação existe somente no “êmbolo”85, que absorve por
hipótese toda a radiação incidente. A “unidade de volume” é definida pela expressão v =
k-1S, pois S é a área no plano ortogonal à direção da onda e k-1 é a escala de comprimento
na direção da onda, e seja E a energia da radiação por “unidade de volume”: o trabalho
realizado contra a força de vínculo (pressão de radiação) é igual a prv e U = prv/v é
esse trabalho por unidade de volume. Da primeira Lei da Termodinâmica segue

E  U  0;
(3.24a)
U  pr  v / v,

a equação (3.24a) indicando, como (3.22b), que a energia não se mantém invariante: o
que deve se manter invariante é a “wave action” E/, como discutido a seguir.

85
O “êmbolo” é um corpo negro ideal na linguagem do eletromagnetismo ou um absorvedor de onda ideal
em um tanque de ondas; neste contexto, a força que controla o absorvedor tem, além da parcela oscilatória,
uma parcela estacionária devida à pressão de radiação.

321
O problema aqui é em parte análogo ao do pêndulo: lá a variação do comprimento
l induz uma variação na freqüência  ao passo que aqui a variação no comprimento k1
induz uma variação  na freqüência, pois  = cg(k)k; mas há uma distinção de
essência que deve ser enfatizada: no problema do pêndulo partimos de uma situação
concreta para deduzirmos a equação de estado e derivarmos então uma relação geral, a
invariância de E/; aqui postularemos a conservação da “wave action” E/, um
resultado que pode ser demonstrado a partir de um princípio geral da Mecânica
Analítica86, para obter a fórmula universal da pressão de radiação em sistemas
ondulatórios. A álgebra é simples: da conservação da “wave action” segue

E E E  E   
   0   2 k  0  E  cg (k)  k  0 ,  cg (k)   (3.24b)
    k   k 

e da definição S = kv tem-se que S = 0 = kv + kv; portanto

v 
 k  k  ;
v   cg (k) 
  E   E   v / v  0 , (3.24c)
(k)   c(k) 
 c(k)  ;
k 

e comparando (3.24a) e (3.24c) concluí-se que a pressão de radiação pr é dada por

cg (k)
pr  E , (3.25)
c(k)

uma expressão válida em tese para todo sistema ondulatório.


A existência de uma força estacionária no “êmbolo” – isso é, em uma seção
arbitrária do duto – deve estar associada à variação da quantidade de movimento média
transportada pela onda. Seja assim p a quantidade de movimento média por unidade de
volume carregada pela onda; o vetor p tem a mesma direção eo da onda e a variação da
quantidade de movimento no intervalo de tempo t é igual a

P  p  cg t  S ,

pois a energia, e portanto a quantidade de movimento, propaga-se com a velocidade de


grupo cg. Dessa forma, a força média de vínculo F fica dada por

86
O Princípio da Mínima Ação Média de Hamilton, ver Whitham (1975).

322
P
F  p  cgS ,
t

e como, por definição, F = prSeo, pois pr é a pressão de radiação no “êmbolo”, de (3.25)


segue que

E
p eo . (3.26)
c

A relação (3.26), obtida aqui a partir de um argumento geral, é universal e


expressa a quantidade de movimento média por unidade de “volume” carregada por uma
onda plana em termos da energia média da onda e de sua velocidade de fase. Em
particular, ela é válida para as ondas de matéria da Mecânica Quântica: nesse caso E =
 e como c = /k de (3.26) segue a relação de de Broglie p =  keo = k, onde k = keo é
o vetor número de onda da onda de matéria.
A fórmula universal (3.26) pode também ser derivada caso a caso, como
elaborado por Frenkel (1996) para as ondas eletromagnéticas e no próximo item para as
ondas na interface ar-água.

3.2.3: Força de Deriva Bi-Dimensional em Corpos Flutuantes

Seja a onda plana harmônica na interface ar-água representada na Fig.(3.10a),


(x,t) sendo a elevação da superfície livre devida à passagem da onda: a quantidade de
movimento horizontal, na direção de propagação da onda, por unidade de área da
superfície livre é definida pela integral

 (x,t ) 
p(x, t)     u(x, z, t) dz  i .
 
 h 

FIG.(3.10a): Onda plana harmônica na interface ar-água.

323
Se p for a quantidade de movimento média em um ciclo por unidade de área da
superfície livre, por definição

2 / 

 f (t) 
2 
0
f (x, t) dt;

 (x,t ) 
 p  p(x, t)     ui dz  ,
 
 h 

e como o campo u(x,z,t) é periódico, ver (3.8c), segue a identidade87

 (x,t )  0   (x,t)  E
   ui dz      ui dz      ui dz   u(x, 0, t)  (x, t)  ,
 h    h
   0  c
0

a última expressão sendo exata para toda onda na interface ar-água, independente da
profundidade da lâmina d´água e do fator restaurador ser a gravidade ou a capilaridade,
ver (3.10c): a expressão geral (3.26) está assim verificada para essa classe de ondas.

FIG.(3.10b): Corpo flutuante 2D oscilando na superfície do mar:


a: amplitude; {T;R}: coeficientes de transmissão e reflexão.

Consideremos agora um corpo flutuante bi-dimensional exposto à ação de uma


onda incidente de amplitude a: o corpo difrata a onda incidente e oscila, mandando para o
infinito uma onda transmitida com amplitude |T|a e refletindo uma onda com amplitude
|R|a, {T;R} sendo respectivamente os coeficientes de transmissão e reflexão. Se a onda
for muito longa em relação às dimensões do corpo ela o enxerga como se fosse um “fio
de arame”: toda a energia é transmitida e a reflexão é nula; de outro lado, se a onda for
muito curta ela enxerga o corpo como uma parede vertical: toda energia é então refletida
e a transmissão é nula. Portanto

87
A aproximação da integral no intervalo 0  z   é consistente com o erro da teoria linear utilizada em
todo esse capítulo; na teoria não-linear mudam a aproximação da integral e a expressão da energia.

324
| R(k) |  0;
 lim 
k 0
| T(k) |  1;
(3.27a)
| R(k) |  1;
 lim 
k 
| T(k) |  0.

Como o sistema é conservativo, a potência da onda incidente, ½ ga2cg(k), é


igual à potência da onda espalhada, ½ ga2[|R(k)|2 + |T(k)|2]cg(k), e portanto

 conservação de 
| R(k) |2  | T(k) |2  1 ,   (3.27b)
 energia 

uma relação satisfeita por (3.27a). As ondas incidente, refletida e transmitida transportam
as quantidades de movimento médias {Ei/c ei; Er/c er; Et/c et} nas respectivas direções
{ei;er;et}; conservação de quantidade de movimento implica em

p ½ga 2 | T(k) | e t  | R(k) | e r   ei   cg (k)t


2 2

D   ,
t c(k) t

com D sendo a força média aplicada pelo fluido no corpo; observando que {ei = i; er = 
i; et = i} obtém-se, com o auxílio de (3.27b),

cg (k)  D  ½ga 2  | R(k) |2 i  kh  1 ;


D ga  | R(k) | i  
2 2
(3.28)
 D  ga  | R(k) | i  kh  1 .
2 2
c(k)

A força estacionária D, denominada força de deriva, é tanto maior quanto maior


for o coeficiente de reflexão: a força para impedir que um “fio de arame” derive em
ondas é minúscula, mas a necessária para impedir a deriva de um “quebra ondas” ideal é
grande, da ordem de 1 tonf/m para uma onda de amplitude a = 1m em mar raso: o sistema
de amarração desse quebra ondas deve suportar uma força da ordem de 100 tonf para um
quebra ondas de 100m de comprimento, um valor que sobe para 400 tonf se a amplitude
dobrar.
A expressão da força de deriva em três dimensões é conceitualmente similar, mas
tecnicamente mais complicada: a onda espalhada se propaga radialmente e o modelo de
onda plana aqui utilizado, embora ainda pertinente no campo distante, precisa ser
adequado à variação azimutal do coeficiente de espalhamento.

325
3.3: TEORIA DA REFRAÇÃO - APROXIMAÇÃO DA ÓTICA GEOMÉTRICA

O comprimento de onda da luz (ondas eletromagnéticas na faixa visível) é muito


pequeno (10-5cm) comparado com as dimensões macroscópicas dos objetos usuais e a
interação da luz com esses objetos define o campo de estudo denominado “ótica
geométrica”, ver Born & Wolf (1975). Esse nome é utilizado, por razões históricas, para
designar genericamente a interação de qualquer onda com um “meio variável”, cujas
propriedades variam “lentamente” no tempo e espaço em relação às escalas de tempo e
espaço típicas da onda: o período (ou 1) e comprimento de onda ( ou k1).
Uma outra designação utilizada, Teoria da Refração, traz em sua etimologia uma
visibilidade mais clara do fenômeno envolvido: refração vem do latim refringere,
“quebrar” (a direção), e é exatamente isso que percebemos nos fenômenos usuais da
Ótica Geométrica. Seja, por exemplo, uma onda em alto mar que se aproxima de uma
praia, identificada pela profundidade h = 0 na Fig.(3.11). À medida que a onda progride
com uma incidência oblíqua arbitrária, pontos da crista mais próximos da praia
propagam-se com a velocidade local cg,r = (ghr)1/2 menor que a velocidade local cg,f =
(ghf)1/2 de pontos mais distantes, o efeito geométrico global sendo fácil de prever: a crista
da onda vai lentamente se fletindo até se tornar paralela às curvas de nível da
profundidade. Ou, em outras palavras, a onda em alto-mar vai mudando (“quebrando”)
sua direção de propagação, tendendo no final a se propagar na direção normal à praia.

FIG.(3.11):Ótica Geométrica:Refração de trem de ondas harmônicas pela topografia


do fundo do mar: cg(s) = (gh(s))1/2er(s); er(s): tangente ao raio; cos (s) = ere2 > 0.

Para fixar idéias, seja h(x2) =  (x2/l)h para x2   l e h(x2) = h para x2 <  l,
como indicado na Fig.(3.11): a escala de comprimento da variação da profundidade h(x2)
é l – ou l  h/h de uma forma mais genérica – e se  for o comprimento de onda na
região h = h dizemos que a variação da profundidade é “lenta” quando  << l ou kl >>

326
1, com k = 2/: nesse caso podemos ignorar, na escala do comprimento de onda, a
variação da profundidade e supor, portanto, que o mar tenha nas vizinhanças de um ponto
x arbitrário uma profundidade “uniforme” igual a h(x). O número de onda k(x) deve estar
assim relacionado à freqüência (x) pela relação de dispersão

(x)  W(x, k )  gh(x)  k , (3.29a)

a “onda (quase) harmônica” se ajustando ponto a ponto a (3.29a); isso é,

 (x, t)  a(x)  ei( x ,t ) ;


 (x, t)  k (x)  x  (x)t; k  k12  k 22  (3.29b)
 (x)  gh(x)  k(x).

A cinemática da refração resume-se, no caso, a determinar o raio x(t) e como


{(x); k(x)} variam ao longo de x(t), ao passo que a dinâmica preocupa-se com a
variação da amplitude a(x). No item (3.3.1) a “cinemática” é analisada, a amplitude a(x)
sendo obtida pela lei de conservação da “wave action” no item (3.3.2): como será visto, a
Teoria da Refração tem uma estrutura universal, a especificidade do particular sistema
ondulatório sendo determinada pela função de dispersão W().
A análise nesses dois itens completa o estudo teórico da refração, mas não esgota
sua importância conceitual: a percepção vigente, de que o comportamento dos raios de
luz no domínio da ótica geométrica é semelhante à das trajetórias de corpúsculos em um
campo potencial, foi formalizada por Hamilton por volta de 1830, reconciliando, no
domínio da ótica geométrica, as visões corpuscular (Newton – 1642-1727) e ondulatória
(Huygens – 1629-1695) da luz. A bem da verdade, desde o começo do século XIX a
teoria ondulatória da luz já se impunha como a mais adequada, embora somente em 1850
um experimento de Foucault & Fizeau tenha demonstrado a incorreção da teoria
corpuscular: ela conseguia explicar a refração na interface ar-água supondo que a
velocidade da luz na água fosse maior que no ar, ao passo que a teoria ondulatória exigia
uma condição oposta, como verificado no experimento de Foucault & Fizeau.
A equivalência estabelecida por Hamilton entre a ótica geométrica e a dinâmica
de corpúsculos em um campo potencial é analisada no item (3.3.4) e ela permaneceu ali,
no horizonte remoto da Física-Matemática, mais por sua elegância intrínseca que por sua
utilidade extrínseca; cem anos depois, em 1926, ela foi a chave utilizada por Schrödinger
para “resolver” o dualismo onda-partícula da Mecânica Quântica, conforme discutido na
próxima seção.

327
3.3.1: A Cinemática da Refração

A cinemática da refração é definida, como indicado em (3.29a), pela função de


dispersão W() que depende da coordenada x, do vetor número de onda k e, no caso
geral, também do tempo t: a relação de dispersão em águas rasas na presença de uma
corrente marítima U(t) variável com o tempo  a corrente de maré, por exemplo, embora
ela varie em uma escala de tempo muito dilatada  é dada pela expressão,

2
W k
cg   ei  gh(x)   U(t)  W(x,k ,t)  gh(x)  k  U(t)  k , (3.30a)
i 1 k i k

pois a velocidade de grupo em águas rasas é igual à soma de (gh(x))1/2 na direção do


versor k/k, que aponta a velocidade da onda em relação ao meio, com a velocidade U(t)
do meio. Em geral, portanto, a velocidade de grupo cg não é colinear com o vetor número
de onda k e a relação de dispersão é dita então “anisotrópica”, pois ela varia de acordo
com a direção considerada no espaço; quando cg e k são colineares a dispersão é dita
“isotrópica”.
Seja assim uma onda em um espaço n-dimensional definida pela relação de
dispersão

 (x, t)  W  x, k , t  ;
 n n

 cg (x, t)  
n
W
ei ,


x  
i 1
x e
i i ; k  
i 1
k i ei 

(3.30b)
i 1 k i

com cg(x,t) sendo, como em (3.30a), a velocidade de grupo. Senso estrito, a relação de
dispersão é válida para uma onda plana harmônica: fixando um ponto xo no espaço e
congelando o tempo em to – por exemplo, supondo em (3.30a) que tanto a profundidade
do mar como a corrente marítima sejam constantes e respectivamente iguais a h(xo) e a
U(to) – a fase da onda plana harmônica é definida pela função

 k  ;
n

(x, t)  k  x  t   k i x i  t      W  x , k, t  , (3.30c)
    ,
o o
i 1
 t

o vetor k =  sendo ortogonal às curvas de nível  = cte. e, em particular, às cristas da


onda definidas pelas relações (x,t) = 2n.

328
Se W() não variar com (x,t) – se, no exemplo citado, a profundidade do mar e a
intensidade da corrente marítima não variarem no espaço e tempo – a onda plana
harmônica permanece plana e harmônica para sempre; se, no entanto, W() variar
“lentamente” no tempo e espaço – tão lentamente que essas variações passem
despercebidas nas escalas do comprimento de onda e período típicos da onda –
observaremos localmente uma onda plana harmônica que paulatinamente vai ajustando a
direção de propagação, o comprimento de onda e a freqüência aos valores correntes
propostos pela função de dispersão: são como quadros fotográficos, “instantâneos” que se
desenrolam como um filme somente na escala muito mais lenta da variação de W().
O “filme da refração” exige duas condições: a primeira, que W() varie com (x,t),
pois é essa variação que permite a mudança de cenários e portanto a própria percepção do
filme; a segunda, que ela seja tão lenta que possamos montar o filme justapondo
fotografias onde se reconhece, em cada uma delas, uma função de fase (x,t) localmente
análoga a (3.30c): é natural, portanto, que se defina a onda pela expressão

 
i ( x ,t )  (x, t)   ;
(x, t)  a (x, t)  e   t (3.31a)
 k (x, t)   ,

com {(x,t); k(x,t)} lentamente variáveis no tempo e espaço; de (3.31a) segue

 k
  j;
x j t
(3.31b)
k j
k
  i,
x i x j

a primeira equação, de “conservação de cristas”, sendo discutida no exercício (3.7).

FIG.(3.12): Ótica Geométrica: Onda localmente harmônica e plana


(cristas ((x,t) = 2n) e raios x(t;xo) (tangentes a cg) identificáveis)

329
A Fig.(3.12) representa, de forma esquemática, o cenário da refração para uma
dispersão anisotrópica: da crista  = 0 da onda plana harmônica, com comprimento de
onda o, partem raios que se distorcem na escala longa de comprimento l >> o do
gráfico; localmente, no entanto, na escala de comprimento o, invisível na escala l do
gráfico, as ondas são vistas como se fossem “planas e harmônicas”. As cristas estão bem
separadas na figura porque se supôs no  l ou n >> 1: o desenho de todas cristas no
intervalo [0;8n] mostraria “um quase continuum” de linhas tracejadas, pois, como dito, a
separação o entre as cristas não aparece na escala do gráfico.
Os raios da onda – os raios de luz na ótica geométrica – são as direções de
propagação da energia: eles definem curvas {x(t;xa); x(t;xb); x(t;xc); } que partem de
pontos {A  xa; B  xb; C  xc; } ao longo de uma crista e são sempre tangentes ao
vetor velocidade de grupo cg(x,t); portanto88

dx i W  W 
 cg,i  ;  cg   ei  . (3.32a)
dt k i  i k i 

A função de dispersão W(x,k,t) depende do vetor número de onda k(x,t) e a


variação de ki(x,t) ao longo do raio x(t) é dada por (ver (3.31b))

dk i k i k dx j  W k j
  i   .
dt t j x j 
dt x i j k j x i
cg ,j

cg ,j

A freqüência89 (x,t) = W(x,k,t) é função de x e t e ao tomarmos a derivada


parcial em relação a xi devemos manter t = cte.; essa derivada parcial, expressa em
termos de W(), envolve também a variação de k com x e dessa forma

 W W k j
  .
x i x i j k j x i

Colocando essa expressão na equação acima, que define dki/dt, obtém-se

dk i W
 , (3.32b)
dt x i

88
Ver Whitham,G.B. (1974): “Linear and Nonlinear Waves”.
89
É neste ponto que a “discrepância de escalas” da ótica geométrica entra na análise: é porque (x,t) e
k(x,t) variam lentamente no tempo e espaço que, localmente, a onda aparece como se fosse harmônica e a
relação de dispersão (x,t) = W(x,k,t) pode ser utilizada.

330
a variação da freqüência ao longo do raio sendo dada por

d  W dx i W dk i  W
   
dt i  x i dt k i dt  t

que, com o auxílio de (3.32a,b), leva à expressão

d W
 . (3.32c)
dt t

Definida a função de dispersão W(x,k,t), a curva x(t) do raio e os número de onda


k(t) e freqüência (t) ao longo do raio são descritas pela solução do sistema dinâmico

dx i W
  ;
dt k i
dk i W
  ;  i  1, 2,, n  (3.33)
dt x i
d W
  ,
dt t

sujeito às condições iniciais{xi(0) = xi,o; ki(0) = ki,o; (0) = o}: a solução do sistema
(3.33), com condições iniciais definidas nos pontos de origem {A;B;C; } da Fig.(3.12),
permite determinar não só a trajetória dos raios, mostrando como a onda vai pouco a
pouco mudando sua direção de propagação (vai “quebrando” a direção) no processo de
refração, como também os valores das entidades cinemáticas {(x,t); k(x,t); cg(x,t)} que
a caracterizam.
Deslizando um dos raios – por exemplo, o raio x(t;xa) da Fig.(3.12) – pela crista 
= 0 que lhe dá suporte, um continuum de soluções é obtido: as funções {(x,t); k(x,t)}
ficam então definidas em todos os pontos do espaço e devem ser, por isso, descritas por
uma equação em derivadas parciais em (x,t), denominada equação da eiconal90 na ótica
geométrica (e, por extensão, na Teoria da Refração). Essa equação é trivialmente obtida a
partir da função de fase (x,t) e da relação de dispersão, de onde segue a identidade

90
Eiconal, do grego eikón = imagem, retrato: a ótica geométrica estuda a formação de imagens nas lentes,
espelhos e demais objetos óticos. O nome foi introduzido somente em 1895, mas a equação da eiconal em
sua forma mais simples é conhecida desde 1657, quando Fermat (1601-1665) enunciou o Princípio do
Tempo Mínimo para o raio de luz, ver exercício (3.5).

331
 
 (x, t)   ; 
t    W  x, , t   0 .  Equação da Eiconal  (3.34a)
 t
 k (x, t)  ; 

A equação da eiconal (3.34a) é uma equação em derivadas parciais de primeira


ordem e o objetivo a seguir é mostrar que sua solução coincide com a solução de (3.33)
quando se desliza o raio pela crista que lhe dá suporte. Equações dessa classe são, em
geral, transformadas em equações diferenciais ordinárias ao longo das características,
definidas como uma família particular de curvas do sistema; no caso em pauta, as
características são os raios da onda, definidos pelas equações

dx i W
 cg,i   x  x(t) . (3.34b)
dt k i

Tomando a derivada parcial de (3.34a) em relação à coordenada xi e observando


que W(x,,t) depende duplamente de xi  diretamente através de x e indiretamente
através de  , a seguinte expressão é obtida,

 2  W W  2    
   0;  k j  
tx i x i j k j x i x j  x 
 j
cg ,j

de outro lado, a derivada total de uma função f(x,t) em relação ao tempo ao longo da
curva x(t) é definida por

df f
  x f ,
dt x  x (t ) t

e dessas duas relações chega-se a

 2  W W  2  
    0; 
tx i x i j k j x i x j 

 d    W
  
cg ,j
  ,
 dt  x i  x  x (t ) x i
d           
        cg, j   ;
dt  x i  x  x (t ) t  x i  j x j  x i  
dx j / dt 

ou, observando que por definição k = ,

332
dk i W
 ; (3.34c)
dt x i

finalmente, da definição  = /t = W(x,k,t) segue, com o auxílio de (3.34b,c),

d W  W W   W
    x i   ki   , (3.34d)
dt t i  x i k i  t

mostrando a equivalência entre (3.33) e (3.34a) ou, em outras palavras: que o sistema
(3.33) fornece a solução da equação da eiconal pelo método das características. A
equação da eiconal, além de preceder historicamente (3.33), tem alguma importância
conceitual na Mecânica Hamiltoniana, como mencionado mais adiante; a forma (3.3), no
entanto, é muito mais simples e direta e será, por isso, utilizada no estudo da
“cinemática” da Teoria da Refração.

3.3.2: A Dinâmica da Refração

O sistema de equações diferenciais ordinárias (3.3) permite que se determine as


propriedades cinemáticas da onda refratada: a geometria da curva que define o raio e os
valores de {, k, cg} ao longo dele. Ela nada diz, no entanto, sobre a amplitude da onda
e, para determiná-la, necessitamos de um resultado suplementar, a lei de conservação da
“wave action”. Introduzindo a notação

E   E /  : wave action , (3.35a)

onde E é a energia por unidade de “volume” da onda, e observando que o fluxo da “wave
action” é definido pelo vetor


  E    E  cg ,

pois a energia é propagada com a velocidade de grupo, a conservação da “wave action”


impõe que sua variação no tempo, em uma região V do espaço, somada ao fluxo de
“wave action” através de V deve ser nula: se a variação no tempo do valor integral de E
for positiva, por exemplo, é porque houve um fluxo da “wave action” para dentro de V
(cgn < 0) na mesma intensidade do acréscimo observado. Portanto

d
dt V
E dV   E cg  n dV  0 ,
V

333
de onde se obtém, com o auxílio do Teorema da Divergência, a equação de conservação
da “wave action”

E 
  div  E cg   0 ou
t  conservação da 
  (3.35b)
E  "wave action" E  
  cg E   E  div cg  0,
t

que reduz-se, ao longo do raio, à forma diferencial

dx 
  cg (x, t); 
dt   dE 
     E   div cg   0. (3.35c)
 dE   E   dt 
     cg E  ;  x  x (t )
 dt  x  x (t ) t 

FIG.(3.14): Topografia do fundo: Focalização e desfocalização da energia das ondas.


(elevação submarina  lente convergente; depressão submarina  lente divergente)

A lei de conservação da “wave action” – ou da energia quando  for constante –


indica que a “energia da onda” não pode ser determinada a partir da geometria de um raio
isolado: como mostra (3.35c), a “wave action” diminui quando os raios divergem (div cg
> 0) e aumenta quando eles convergem (div cg < 0), um resultado certamente intuitivo. A
Fig.(3.14) apresenta, de forma esquemática, as trajetórias dos raios nas vizinhanças de um
elevação e de uma depressão submarina: um raciocínio semelhante ao utilizado na
Fig.(3.11) indica que a elevação submarina é equivalente a uma lente convergente,
focando energia no centro da elevação, ao passo que a depressão submarina desfoca essa
energia. Utilizando (3.35b) no tubo definido pelos raios A e B, e observando que E/t =
0 e cgn = 0 nas paredes laterais do tubo (raios), do Teorema da Divergência segue

334
 lo  A o Bo  E o cg, l
   E o  cg,olo  E   cg, l   ,
 l  A  B  E  cg,olo

os quocientes {cg,/cg,o; l/lo} sendo maiores que 1 (menores que 1) no caso da elevação
(depressão) do fundo do mar; o quociente cg,/cg,o depende da profundidade local, mas
l/lo depende da topologia do conjunto de raios gerados. O exercício (3.8) elabora o
problema da dinâmica da refração em um contexto bem definido.

3.3.3: Refração em Águas Rasas

Como um exemplo simples de aplicação da Teoria da Refração, retomamos aqui o


problema da Fig.(3.11). Neste caso tem-se

W  x, k , t   gh(x 2 )  k com k  k12  k 22 (3.36)

e a equação (3.3) reduz-se a

dx1 k dk1
  gh(x 2 )  1 ;   0;
dt k dt d
  0. (3.37)
dx 2 k dk 2 h(x 2 ) dt
  gh(x 2 )  2 ;   ½k gh(x 2 )  ;
dt k dt h(x 2 )

Se s for a coordenada curvilínea ao longo do raio e (s), indicado na Fig.(3.11),


for o ângulo entre o vetor número de onda k(s), paralelo aqui ao vetor cg(s) pois a
dispersão é isotrópica, e o eixo x2, de (3.37) {k1 = cte.;  = cte.} e como ao longo do raio
cg(s) = ds/dt então

 k(s)  k12 (s)  k 22 (s);  k(s)


   sin (s)  cte.
 k1 (s)  k(s)  sin (s)  cte.; 

e portanto

sin (s)
 cte.  lei de Snell  (3.38a)
c(s)

335
que é a clássica lei de Snell da ótica geométrica, proposta em 1621 por Snell (1580-
1626); de (3.38a) obtém-se

h(x 2 )
sin ( x)   sin   lim ( x)  0 , (3.38b)
h x 2 0

mostrando que o raio da onda termina ortogonal à linha da praia, como esperado.
A amplitude a(s) é determinada pela lei de conservação da “wave action” (3.35c)
e no exercício (3.10) o problema aqui proposto é elaborado de forma mais completa.

3.3.4: Mecânica Hamiltoniana e Ótica Geométrica

Seja um sistema dinâmico de massas pontuais sob ação de um campo de forças


conservativo91 descrito pela Lagrangeana () e pelas equações de Lagrange associadas
ou

 (q i , q i , t)  ½  m  q
i
2
i   (q i , t);

i d    
      0; i  1, 2, , n . (3.39a)
 pi   mi  q i ;  dt  q i  q i
q i 

A Hamiltoniana é definida pela expressão

(q i , pi , t)   pi  q i  (q i , q i , t) (3.40)


i

e das definições da quantidade de movimento generalizada pi e da Hamiltoniana segue


  0;
q i
(3.41a)
dq i 
  q i  ,
dt pi

indicando que () não depende de dq/dt: (q,p,t) é uma função definida no espaço 2n-
dimensional (q,p) denominado espaço de fases na literatura, a trajetória do sistema
mecânico sendo representada por uma curva nesse espaço.
91
O campo de forças é dito conservativo se puder ser expresso como o gradiente de uma função potencial
(qi,t); a energia desse sistema nem sempre se conserva, no entanto, como visto a seguir.

336
No exemplo analisado (3.40) toma a forma

pi2
 (q i , pi , t)  ½ m   (q, t);  (q(t), p(t)) : órbita do sistema 
i i   (3.41b)
 dinâmico no espaço de fases 
 E(t)  (q(t), p(t), t) : energia do sistema,

o valor da Hamiltoniana sobre uma órbita (q(t),p(t)) do sistema dinâmico – isso é, sobre a
curva (q(t),p(t)) no espaço de fases que define uma solução do sistema  é a energia92
E(t) da órbita: no caso em questão, por exemplo, ela é dada pela soma da energia cinética
(p(t)) = ½  (pi2 (t) / mi ) com a energia potencial (q(t),t). Da equação de Lagrange
segue também que

dpi  
 p i   (3.41c)
dt q i q i
com

dE d 
  (q(t), p(t), t)   , (3.41d)
dt dt t

as equações de Hamilton para um sistema de n “partículas” sendo definidas pelo sistema


de 2n equações diferenciais ordinárias


 q i  ;
pi

 p i   ;  i  1, 2,, n  (3.42)
q i
dE 
  .
dt t (q (t ),p (t ))

Ao passar do espaço das configurações n-dimensional do formalismo


Lagrangeano para o espaço de fases 2n-dimensional do formalismo Hamiltoniano, uma
simplificação topológica notável ocorre: ao contrário do espaço de configurações, as
órbitas do sistema dinâmico não se cruzam no espaço de fases, pois por cada ponto (q,p)
passa uma e somente uma solução de (3.42).

92
Como discutido no exercício (3.5), o valor da Hamiltoniana sobre uma órbita não é sempre igual à energia
da órbita embora, quando isso ocorre, ela continue relacionada a alguma forma de energia.

337
FIG.(3.15): Diagrama das órbitas no espaço de fases
((q,p) = ½ p2/m + (¼ q4  ½ qe2q2))

Essa simplicidade topológica facilita não só a “visualização geométrica” das


órbitas, definidas pelas equações E = (q,p) = cte. na Fig.(3.15), como também permite
associar o continuum de trajetórias “que não se cruzam” ao escoamento de um fluido no
espaço de fases; em particular, o campo de velocidade desse escoamento pode ser
definido na forma u(x,y,t) =  [ui(x,y,t) eq,i + vi(x,y,t) ep,i] com

 
 ui  ;
 q i  x i ; q i  u i  yi  n
 u i vi 
     div u     0,
 pi  yi ; p i  vi   vi  
 
; i 1  x i yi 
x i 

a identidade div u = 0 indicando que o fluido no espaço de fases é incompressível: este é


o celebrado Teorema de Liouville, de importância fundamental na Física Estatística.
O objetivo dessa análise, no entanto, é observar a relação formal entre o conjunto
de equações que rege a ótica geométrica e as equações de Hamilton da Mecânica; de fato,
comparando (3.33) com (3.42) tem-se

dx i W dq i H
  ; W  H   ;
dt k i   dt pi
dk i W  E  dpi H
  ;   x i  qi     ; (3.43)
dt x i   dt q i
d W  k i  pi  dE H
  .     ,
dt t   dt t

a identidade formal sendo evidente: a troca xi  qi envolve somente uma questão de


notação e as equivalências   E (ou W  H) e ki  pi surgem quase naturalmente na

338
Mecânica Quântica, como será visto na próxima seção, e poderiam ser induzidas a partir
das relações pi/ki = E/ válidas em um sistema ondulatório, pois a quantidade de
movimento média transportada por uma onda é definida pela expressão p = E/c = kE/.
Como já comentado anteriormente, a equivalência entre a ótica geométrica e a
dinâmica das partículas foi estabelecida por volta de 1830 por Hamilton, que tentava
assim explicar porque os fenômenos óticos apareciam, no domínio macroscópico, como
se fossem trajetórias de corpúsculos em um campo potencial. Na realidade ele mostrou
que a equação da eiconal, que descreve o fenômeno ótico no domínio da ótica
geométrica, é idêntica à Equação de Hamilton-Jacobi da mecânica, pois

   S
  ;  S  E   ;
t    W  x, , t   0     q, S, t   0   t
 t
   t
   
 k  ;  equação da eiconal equação de Hamilton- Jacobi  p  S.

A função S(q,t), equivalente à função de fase (x,t) na ótica geométrica, é a


“função principal de Hamilton” e não tem, no presente contexto, um significado mais
nítido: foi Jacobi em seu estudo das “transformações canônicas de coordenadas”, isso é,
das transformações de coordenadas que mantêm a estrutura Hamiltoniana do sistema, que
identificou a “função principal de Hamilton” como a geradora de uma transformação
canônica que levava a zero a Hamiltoniana do sistema transformado: esse resultado está
no cerne da Teoria de Perturbações, que procura descrever como pequenas perturbações
introduzidas em um sistema Hamiltoniano com solução conhecida afetam a solução
conhecida.
Podemos dizer, possivelmente com algum excesso de linguagem, que a
formulação Lagrangeana da Mecânica é útil para resolver problemas práticos ao passo
que a vantagem da formulação Hamiltoniana reside na facilidade teórica que introduz,
não só por simplificar a topologia das órbitas no espaço de fases (q,p), como também
pela “estrutura simplética” dos operadores {H/p;  H/q}. A derivação da equação de
Schrödinger das “ondas de matéria”, calcada na relação (3.43), talvez seja o exemplo
mais importante nesse contexto e será apresentada a seguir, após um sucinto intróito das
principais evidências experimentais que exigiram uma modificação essencial da
Mecânica Clássica.

339
3.4: ONDAS DE MATÉRIA: EQUAÇÃO DE SCHRÖDINGER

Em 1900 Planck (1858-1947), no estudo da radiação de um corpo negro,


“explicou” alguns resultados experimentais que contrariavam a teoria vigente
introduzindo uma hipótese radical, qual seja: a energia emitida por uma radiação de
freqüência  = 2 não era contínua, mas sim discreta, um número inteiro de uma
energia fundamental E definida pela expressão E = h =  com h = 6.63x1034 joule-s.

FIG.(3.16): Esquema representando a energia contínua no nível


macroscópico e descontínua (discreta) no nível microscópico.

O “quantum” de energia  é tão pequeno que a “função escada” de energia, com


degraus , aparece como se fosse uma curva contínua em uma escala macroscópica,
como esquematicamente indicado na Fig.(3.16). Apesar dessa observação, que procura
reconciliar o pensamento clássico com essa proposta perturbadora de Planck, a hipótese
dos “quanta de energia” foi aceita no máximo como uma hipótese ad-hoc, introduzida
para explicar somente o problema de radiação do corpo negro, e assim permaneceu por
algum tempo até 1905, quando Einstein a utilizou para explicar o fenômeno fotoelétrico.
O propósito dessa seção é descrever, em largas pinceladas, o
desenvolvimento da Mecânica Quântica no primeiro quarto do século passado,
culminando com a equação de Schrödinger das “ondas de matéria”, desenvolvida em
quatro trabalhos publicados no primeiro semestre de 1926 e completados em Julho do
mesmo ano com a interpretação estatística de Max Born, de onde flui naturalmente o
Princípio da Incerteza de Heisenberg, o resultado talvez mais impactante, e mais aberto a
controvérsias filosóficas, da Física Moderna.
A equação de Schrödinger foi derivada a partir de conceitos clássicos da teoria
ondulatória – os mesmos introduzidos e discutidos neste capítulo –, mas vistos em
conjunto com uma série de experimentos e fenômenos notáveis, que pouco a pouco foram
sendo decifrados em um movimento aparentemente ambíguo, onde os estranhos “fatos
novos” conviviam com uma estrutura de pensamento de natureza ainda clássica. Os
físicos jamais aceitaram a “destruição criadora” na Física e colocaram um limite

340
consensual, uma regra não-escrita que servia de freio a qualquer especulação, qual seja,
que toda inovação só seria permitida se nos limites macroscópicos os resultados da Física
Clássica pudessem ser recuperados e, mesmo assim, que ela só seria aceita se referendada
no final por experimentos: a Natureza pode admitir uma descrição “abstrata”, posto que
esta é uma construção humana e “human kind cannot bear very much reality”, mas ela
deve ser sempre ouvida para que a “inovação” possa ser incorporada ao acervo já
conquistado. Esse freio à livre especulação ao invés de limitar o pensamento ofereceu um
norte, um ponto fixo, de referência: o pensamento na Física tornou-se tão fértil porque
assim se circunscreveu, incorporando o novo sem destruir a essência do já estabelecido.
A intenção aqui, repetimos, não é apresentar esse resumido conjunto de resultados
da Física Atômica pela importância intrínseca que possuem – e eles a possuem de forma
evidente, como atestado pelo próprio desenvolvimento científico e tecnológico do século
XX –, mas sim tentar mostrar como essa construção foi pouco a pouco engendrada, como
esse rendado teórico foi cerzido, alinhavando com a linha do “pensamento clássico” as
evidências experimentais tão distantes da “concepção clássica”. A Física Atômica pode
ser prescindível para um estudante de Engenharia, mas a compreensão de uma construção
magistral da mente humana é fundamental na formação de uma “cultura genuína”, que é
aquela que fica depois que a informação se perde no esquecimento: é por essa mesma
razão, não para formar agrimensores, que se ensina o Teorema de Pitágoras no ciclo
fundamental e é para ela, não para adestrar os alunos para o mercado de trabalho, que a
sociedade paga o que paga pela universidade pública de pesquisa.
Isso posto, e antes de descrevermos alguns fenômenos e experimentos notáveis,
listamos valores de constantes e unidades utilizadas ao longo da presente seção:

Potencial Elétrico:
1 q1q 2
 o  8.85x1012 coul2 / Nm 2  V(r)  ; (3.44a)
4o r
Elétron:
 m e  9.1x1031 kg;
 o 10 
 e  1.6021x1019 coul; 1A  1A  10 m  (3.44b)
 
 1 eV  1.6021x1012 erg  1.6021x1019 joules;
Constante de Planck:
 E  h   
(3.44c)
 h  2  6.626x1034 joules.sec.

341
3.4.1: Fenômenos e Experiências Notáveis

O presente item apresenta e discute dois fenômenos descobertos no final do século


XIX – o fenômeno fotoelétrico, descoberto por Hertz em 1887 e explicado por Einstein
em 1905 quando, pela primeira vez, a constante de Planck aparece não mais como uma
hipótese ad-hoc, mas como uma entidade intrínseca da constituição da matéria, e a série
de Balmer do hidrogênio (1885), utilizada por Bohr em 1913 na definição do primeiro
modelo, com alguma capacidade preditiva, do átomo de hidrogênio – e dois experimentos
dirigidos – o experimento de espalhamento de partículas- na primeira década do século
passado, que não só deu origem ao modelo de Rutherford do átomo como foi
posteriormente utilizado por Max Born para referendar sua interpretação probabilística da
equação de Schrödinger, e o experimento do efeito Compton (1923), que confirmou o
comportamento “corpuscular” da luz. O próximo item é reservado ao experimento de
difração de elétrons, que explicita o comportamento “ondulatório” (difração) da
“matéria” (elétron): ao contrário dos quatro fenômenos-experimentos discutidos no
presente item, a difração de elétrons mais confirma, que provoca, uma inovação teórica93.

3.4.1.1: Efeito Fotoelétrico e o Fóton94 de Einstein (1905)

O efeito foto-elétrico foi descoberto experimentalmente por Hertz em 1887 e ele


pode ser assim descrito (ver esquema na Fig.(3.17)): quando ondas curtas de luz, na faixa
do ultra-violeta, incidem sobre uma superfície metálica alcalina (sódio) observa-se que a
superfície metálica fica carregada positivamente, liberando portanto uma carga negativa
na forma de corrente elétrica; ou, em uma linguagem mais precisa, elétrons, identificados
por Thompson somente em 1897, são emitidos pela superfície metálica. Lenard,
companheiro de Hertz, verificou experimentalmente que a quantidade de elétrons
emitidos (intensidade da corrente) é tanto maior quanto maior for a intensidade da
radiação incidente, mas a energia de cada elétron independe dessa intensidade: ela é
função somente da freqüência da luz incidente.
Esse último resultado é surpreendente, pois a energia de uma onda
eletromagnética depende da intensidade dos campos envolvidos e não da freqüência da
onda irradiada, mas ele foi explicado por Einstein (1879-1955) radicalizando a hipótese

93
A bem da verdade, a experiência de Compton (1923) também foi imaginada para “confirmar” uma
especulação teórica, mas ela surge em um estágio ainda tão embrionário da teoria e é arquitetada de forma
tão inovadora e brilhante que é difícil distingui-la de uma “inovação teórica”, isso é, de uma “concepção”
do fenômeno atômico.
94
O nome “fóton” foi cunhado somente em 1926; Einstein utilizava o termo “quantum de energia”.

342
radical de Planck: a expressão E =  é universal, ela reflete uma propriedade intrínseca
da matéria – das ondas eletromagnéticas, ao menos, no presente contexto.
O esquema à esquerda na Fig.(3.17) indica o aparato experimental utilizado por
Lenard e outros: a luz incidente na faixa ultra-violeta desloca elétrons do cátodo (sódio)
que se movimentam então na direção do coletor com energia ½meve2; aumentando o
potencial da placa coletora a energia dos elétrons diminui e para um valor Vo ela se anula.
O gráfico de Vo em função da freqüência da luz incidente tem sempre o aspecto indicado
na Fig.(3.17): elétrons só são observados no coletor para freqüências  maiores que um
valor crítico cr e o potencial de parada Vo cresce, a partir desse valor, linearmente com
(  cr). Utilizando uma linguagem mais atual, Einstein imaginou que a luz de
freqüência  seja constituída por fótons de energia  e argumentou que os elétrons do
cátodo absorvem esse quantum de energia, gastando a parcela W = cr para se
desprenderem do metal, a diferença   W sendo suas energias cinéticas: portanto eVo=
½meve2 =   W = (  cr), com W sendo uma propriedade do metal do cátodo.

3eV

FIG.(3.17): Efeito Fotoelétrico:Energia cinética do elétron deslocado do cátodo em eV


em função da freqüência  = /2 da luz incidente (Experiência de Millikan (1916))

A explicação oferecida por Einstein foi aceita, não sem algum desconforto pelos
mais ortodoxos, e só foi confirmada com precisão por um deles, Millikan, onze anos
depois, em 1916: o gráfico da Fig.(3.17) apresenta o resultado por ele obtido e se
(Vo;) for a diferença de potencial e de freqüência entre os ponto indicados (flechas)
na figura, o quociente eVo/ é dado por (ver (3.44b))

Vo  e 3eV
 1
 4.124x1015 eV  sec  6.61x1034 joule.sec ,
 (121  48.25) 10 sec
13

que coincide, como predito por Einstein, com a constante de Planck, ver (3.44c).

343
3.4.1.2: Espalhamento de Partículas- (Rutherford (1911))

Thompson, que havia identificado o eletrón em 1897, propôs em 1903 um modelo


para o átomo que veio a ser designado “pudim de passas”: ele o imaginou como uma
esfera com carga positiva uniformemente distribuída e elétrons (as passas) grudados no
interior dessa esfera em um número suficiente para contrabalançar a carga positiva.
Rutherford, originalmente um assistente de Thompson, descobriu que substâncias
radioativas (Polônio, por exemplo) emitem naturalmente o que ele designou de
partículas- e que foram identificadas, posteriormente, como o núcleo do Hélio: elas têm
carga positiva de +2e e massa m = 6.644x10-27kg, cerca de 7000 vezes maior que a
massa do elétron; ele, e um seu assistente, Geiger, observaram que quando a partícula-
encontrava uma tela de sulfeto de zinco provocava uma cintilação, o número de
cintilações podendo ser contado por um aparato precursor do “contador Geiger” de
radiação.
Rutherford visualizou que poderia confirmar (ou não) o modelo “pudim de
passas” de Thompson bombardeando os átomos com partículas-: como a massa delas é
muito maior que as dos elétrons e as velocidades são altas – cerca de 0.5% da velocidade
da luz – suas trajetórias não seriam afetadas pela nuvem de elétrons, mas deveriam ser
defletidas, ou mesmo refletidas, pelas “esferas positivamente carregadas” dos átomos
“pudim de passas” com carga +Ze, tanto mais quanto maior fosse o número atômico Z. O
chumbo (Z = 82; wa = 0.207kg/mol;  = 1.14x104 kg/m3) tem o número atômico mais
elevado entre todos os elementos estáveis e chapas grossas de chumbo são utilizadas para
blindar radiações; se a chapa for fina, no entanto, alguma radiação deve escapar e as
partículas-, encontrando poucos átomos em seu percurso, atravessariam assim a placa,
mas teriam suas trajetórias desviadas pela repulsão da esfera carregada com carga +Ze.
Para construir essa placa delgada de metal com número atômico alto é necessário um
material bastante maleável, como o ouro, por exemplo (Z = 79; wa = 0.197kg/mol;  =
1.93x104 kg/m3), e placas desse material, com espessuras da ordem de 3x105 cm, foram
manufaturadas e bombardeadas por partículas- com esse propósito.
O aparato experimental está esquematizado na Fig.(3.18a): o feixe de partículas-
emitidas pelo material radiativo é colimado por uma grossa chapa de chumbo para um
pequeno orifício de área Ac, o feixe resultante incidindo perpendicularmente a uma
delgada folha de ouro; as partículas- espalhadas pelos átomos do ouro são capturadas
em uma superfície esférica recoberta com uma tela de sulfeto de zinco e as cintilações são
contadas por um “contador Geiger” que desliza sobre a superfície.

344
FIG.(3.18a): Espalhamento de partículas- : Esquema do aparato experimental.
(“contador Geiger” desliza sobre a esfera e conta as “cintilações” na direção ).

O resultado do experimento de Rutherford & Geiger foi frustrante para o modelo


“pudim de passas”. O percentual de partículas- defletido é mínimo, cerca de 99% delas
não são defletidas (  0.2): a conclusão óbvia é que o interior do átomo não é
preenchido uniformemente por uma matéria positiva e a maior parte de seu volume é oco,
a carga positiva e a massa do átomo estando concentradas em um núcleo diminuto no
centro do átomo.
Observando que cerca de 99% das 1% de partículas- defletidas devem ser
defletidas por um único átomo, pois somente cerca de 1% delas são defletidas outra vez,
o experimento de Rutherford pode ser analisado considerando a interação de uma
partícula- com um único núcleo. Mais ainda, como a massa do núcleo, que coincide
com a massa do átomo, é muito maior que a da partícula-, a posição do núcleo pode ser
considerada fixa e a trajetória da partícula-, com massa m e velocidade v, pode ser
estudada em função da distância FB  b entre a trajetória inicial da partícula- e o núcleo
do átomo, conforme esquema da Fig.(3.18b).

FIG.(3.18b): Órbita hiperbólica da partícula- nas vizinhanças do núcleo atômico.


(os pontos F são os focos da hipérbole e  é o ângulo de deflexão)

345
Com o objetivo de determinar teoricamente o número Ng() de partículas-
capturadas pelo “contador Geiger” na direção  e compará-lo com as medidas
experimentais, Rutherford analisou esse problema clássico da Mecânica e a intenção a
seguir é elaborar esse desenvolvimento analítico, entre outras razões porque o resultado
final será, mais adiante, confrontado com a interpretação estatística de Max Born da
equação de Schrödinger; o desenvolvimento matemático é simples, como veremos, mas a
construção do modelo tem algum interesse.
A trajetória de uma partícula sob a ação de um campo de força central repulsivo
2
k/r , como o campo Coulombiano induzido pelos prótons do núcleo, é uma hipérbole com
um dos focos F coincidente com o “centro” da força (no caso o núcleo do átomo); esse
resultado clássico, incluindo as equações de conservação de energia e de momentum
angular em relação ao foco F e também a definição paramétrica das cônicas (círculo,
elipse, parábola e hipérbole), é discutido no exercício (3.8). Supondo que os dois focos da
hipérbole estejam localizados em y =  df, como indicado na Fig.(3.18b), a equação da
hipérbole é dada por (ver exercício (3.8))

 y / a  2 2

  x / b  1   x 2   y  d f   x 2   y  d f   2a
2 2

e dessas expressões seguem as relações geométricas

y  a 
  tan  ;  a  d  sin   OB;
| x | 2 b     : ângulo de 
f 2

   1  sin 
  (3.45a)
 2a;   d A  FA  d f  a  a sin  .  espalhamento 
2y  d f 2

x 2  y2   2

As equações de conservação de energia e de momentum angular são dadas por

1 2Ze 2 
 ½ m v  ½ m v 
2

2
; 2Ze 2 
4o d A   b()   cot ,
A
(3.45b)
  4o  m v
2
2
 m v b  m v A d A ; 

a informação básica de (3.45b) sendo assim sintetizada: a partícula- que atravessa o


disco centrado no átomo do espalhador e de raio b() é defletida por um ângulo maior ou
igual a . De outro lado, a partícula- irradiada sai por algum ponto do orifício de área Ac
do colimador e perfura em seu trajeto horizontal o plano do espalhador em algum ponto

346
do círculo de área Ac, projeção do orifício do colimador no espalhador95: a probabilidade
que essa partícula atravesse o plano do espalhador em algum ponto no interior do círculo
de raio b() e centro no átomo é assim igual a b2()/Ac e essa é portanto a probabilidade
que a partícula- seja defletida por um ângulo igual a  ou maior; portanto

 probabilidade que a partícula - 


  b ()
2
P()   seja defletida por um átomo por   , (3.46a)
 um ângulo igual a  ou maior  Ac
 

de onde segue que

 probabilidade que a partícula- se - 


  2b()b()
 ja defletida por um átomo por um ân -   P(  ½)  P(  ½)   Ac
 .
 gulo no intervalo [  ½;   ½] 
 

Essa partícula- assim defletida é capturada pelo detector, uma tela de sulfeto de
zinco ajustado à esfera centrada no espalhador e de raio ls, como indicado na Fig.(3.18a),
e atinge a tela em algum ponto dos semi-anéis  de raios lssin  e espessuras ls, ver
Fig.(3.18a): a probabilidade por unidade de área96 da tela receptora é dada por

1 2b( )b( )
p( ) 
A c 2ls2  sin 
,  S  2x (  ls sin   ls ) 

ou, utilizando a expressão b(), ver (3.45b),

 probabilidade, por unidade de área  2


  1  Ze 2 / ls  1
p( )   da tela , da partícula - ser defletida    2 
. (3.46b)
 por um átomo por um ângulo   A c  (8o )  ½m  v   sin 2
4 

 

Como discutido no item (3.4.4), a expressão (3.46b) foi utilizada por Max Born
em Julho de 1926 para validar a interpretação estatística da função de onda da equação de
Schrödinger; no presente contexto, entretanto, ela necessita ainda contabilizar o efeito de
todos os átomos do espalhador na área Ac que participam do espalhamento. Se  for a

95
A hipótese aqui é que as partículas sejam tão velozes e a distância entre o colimador e o espalhador seja
tão curta que a difusão lateral do feixe de cargas positivas seja desprezível. Essa hipótese é, na realidade,
dispensável, mas facilita o argumento.
96
O “elemento de área” dS na extremidade do vetor de comprimento ls e direção  define o “ângulo
sólido” d = dS/ls2 ; se p() = ls2p() tem-se p()d = p()dS.

347
densidade do metal, No = 6.02x1023 o número de átomos por mol (número de Avogadro),
wa a massa atômica (massa de um mol) e mol o volume de um mol, então

  N o  6.02x1023 átomos / mol; 


N   número de átomos na lâmina   
na  o    ;     densidade; ,
wa  por unidade de volume   

  w a  massa de um mol. 

pois na = No/mol e wa = mol. O número de átomos do espalhador envolvido no


experimento é assim igual a natAc, t sendo a espessura da lâmina, e como cerca de 99%
das partículas- espalhadas interagem somente com um átomo, a probabilidade, por
unidade de área da superfície coletora, da partícula- ser defletida por um ângulo  é
dada por

2
 Ze 2 / ls  1
pe ( )  n a tA c  p( )  n a t  2 
,
 (8o )  ½m  v   sin 2
4 

ver (3.46b); se agora Ni for o número total de partículas- que atingem o detector ao
longo da experiência e Ng() for o número de partículas detectadas no ângulo , então
pe()Sg = Ng()/Ni, com Sg sendo a área exposta do “contador Geiger”; portanto

 número de partículas de -  2
   Ze 2 / ls  1
N g ( )   tectadas pelo contador   N i  n a tSg  2  4
.
 Geiger na direção    (8o )  ½m  v   sin 2
 

Esta expressão foi verificada experimentalmente por Geiger & Marsden (1911), a
dependência em relação à energia E = ½ mv2 das partículas- e ao ângulo de
espalhamento  sendo confirmadas com uma precisão muito boa; em particular, ela
permite também verificar que o número atômico Z, definido através da Tabela Periódica,
coincide, como inferido na própria construção da Tabela, com o número de prótons (ou
elétrons) do elemento; essa identificação de Z com o número de prótons está implícita na
expressão acima e dela segue que

1/ 2
1  1 N g () 

(8o )  ½m  v 2
Z  2 d 
4 
 sin ,
  n a tSg 0
Ni 
 e 2 / ls

348
o que permite estimar Z a partir da determinação do quociente Ng()/Ni. A Tabela (3.1)
apresenta os resultados experimentais de Chadwick (descobridor do nêutron em 1932)
para diferentes metais e é evidente a concordância entre os valores experimentais (Zmed) e
os valores da Tabela Periódica (Zref).

Platina Prata Cobre


Zref 78 47 29
Zmed 77.4 46.3 29.3
TABELA (3.1): Número Atômico de Metais
(Zref: Tabela Periódica; Zmed: Espalhamento)

A experiência do espalhamento confirma que o átomo é um “vazio”, com um


caroço mínimo (núcleo) em seu “centro”, e Rutherford sugeriu assim o “modelo
planetário” do átomo, os elétrons girando como planetas ao redor do núcleo. Esse modelo
não se sustenta, entretanto, porque o movimento de uma carga induz um campo
eletromagnético e uma conseqüente perda de energia de rotação do elétron, mas ele
persiste até hoje como a imagem popular do átomo.
Finalmente, para a maior parte das partículas- tem-se (r)/E << 1, com E = ½
mv2: de fato, como (ver (3.45b))

2Ze 2  v 2A  
 max   E 1  2  ;
(4o )d A  v   max 2sin  2
   , (3.47)
v A b( ) sin  2 E 1  sin 
cot  2 ; 

 
2

v dA 1  sin  2 

e a Tabela (3.2) fornece valores de max/E para alguns valores de . A condição (r)/E
<< 1 será utilizada no item (3.4.4).

 Pe[] max/E
22,5 0.03% 0.33
11,25 0.12% 0.18
5,625 0.5% 0.09
TABELA (3.2): Relação entre máxima energia potencial e energia
da partícula- para diferentes valores do ângulo de espalhamento
(Pe[] = natAcP(), ver (3.46a))

349
3.4.1.3: Espectro do Átomo de Hidrogênio e Modelo de Niels Bohr (1913)

A espectrografia, um ramo da Física experimental iniciado por Kirchhoff &


Bunsen em meados do século XIX, apresentou um resultado instigante: se um gás é
excitado por uma descarga elétrica, por exemplo, ele emite radiações em freqüências
discretas que o caracterizam como se fossem sua impressão digital. O negativo do
espectro de emissão é o espectro de absorção, observado quando uma luz branca
atravessa o gás e seu espectro é então determinado: constata-se que exatamente as
mesmas freqüências presentes no espectro de emissão estão agora em falta no espectro da
luz transmitida. Por exemplo, na faixa de freqüências da luz visível os comprimentos de
onda do espectro do hidrogênio seguem a lei empírica

1  1 1 
 R  2  2  ; n  3, 4,5, ;   3  6563A 
n 2 n 
10
1A  10 m e   (3.48a)
1     3646A 
R  1.097x10 m : constante de Rydberg ,
7

conhecida como a série de Balmer (1885); a mesma constante R aparece nas séries de
Lyman, Paschen, Brackett e Pfund do hidrogênio,

1 1 1 
  R  2  2  n  2,3, 4 (série de Lyman);
n 1 n 
1 1 1 
  R  2  2  n  4,5, 6 (série de Paschen);
n 3 n 
(3.48b)
1  1 1 
  R  2  2  n  5, 6, 7(série de Brackett );
n 4 n 
1 1 1 
  R  2  2  n  6, 7,8 (série de Pfund ).
n 5 n 

FIG.(3.19): Linhas espectrais do hidrogênio na faixa visível


(Série de Balmer)

350
As séries do hidrogênio (3.48a,b) podem ser reapresentadas em função da
freqüência  da radiação utilizando a relação  = c, com c sendo a velocidade da luz (da
radiação); compactando-as em uma única expressão obtém-se

1 1 
 ;m  cR  2  2  ; m    1;   2; . (3.48c)
 m 

Há um acordo tácito na Física Teórica que pode ser assim explicitado: a


percepção de uma ordem em um fenômeno natural pede, quase exige, uma teoria que a
“justifique”. No caso em pauta, a existência de freqüências discretas aparecendo em uma
ordem bem definida foi utilizada por Bohr (1885-1962) no desenvolvimento do primeiro
modelo quântico do átomo, o “átomo de Bohr” de 1913, e seu argumento se apoiou em
três idéias já aceitas por parte da comunidade científica: a quantização da energia,
introduzida por Planck em 1900, a concepção da luz como fótons de energia h, proposta
por Einstein em 1905, e o modelo planetário97 sugerido por Rutherford em 1911.
A concepção de Bohr pode ser assim descrita: os fótons absorvidos ou emitidos
pelo hidrogênio, com energia E;m = h;m, ocorrem pelo deslocamento do elétron do
hidrogênio de uma “órbita estável” para outra e o resultado experimental (3.48c) sugere
que essas “órbitas estáveis” sejam discretas (“quantizáveis”), com energias dadas por

E1
En   ; n  1, 2, , (3.49a)
n2

de tal forma que

E1 
 E   ;
 2   1 1 
  E ;m  E m  E   h ;m  hcR  2  2  ,
E  m 
 E m   12 ;
m 

levando à relação

E1
R . (3.49b)
hc
97
O modelo planetário, embora até hoje utilizado para representar o átomo, foi desde o início, como já dito,
considerado impróprio: um elétron girando em torno do núcleo emite ondas eletromagnéticas e perde
continuamente energia, obrigando que a órbita decaia para o núcleo no correr do tempo. Mesmo sabendo
disso, Bohr o utilizou em seu estudo indicando, mais uma vez ainda, a importância das imagens nas
construções teóricas e também que o pensamento em construção “atravessa inclusive o oposto do que quer
se aproximar”, se esquivando das dificuldades conceituais e quase propositadamente errando para poder
acertar: é só depois de pronta e axiomatizada que a teoria apresenta sua face mágica e inescrutável.

351
A concepção é certamente atraente e afinada com as idéias de Planck e Einstein,
mas necessita de alguma confirmação empírica e a chave aí reside em (3.49b): um
modelo teórico deve ser construído de forma que o valor da constante de Rydberg – isso
é, do nível E1 de energia – possa ser predito e comparado com o valor empírico R =
1.097x107m1.
A idéia-guia de Bohr foi sugerida pela própria forma de (3.49a): quando n >> 1, a
separação entre os níveis de energia vai tendendo a um continuum, pois

E1 E1 2E
E n;n     31     n; (n )
n (n  )
2 2
n

e, dado que n; varia linearmente com , o fator multiplicador 2E1/n3 deve ser
associado a uma freqüência n do nível de energia E1/n2 ou

2E1 1 E1
n   . (n ) (3.50a)
 n3 n2

Bohr argumenta então que no limite de “números quânticos” n muito grandes,


quando o espectro discreto de energia tende a um continuum, o modelo quântico deve
coalescer com o da Física Clássica98 e, em que pese as restrições teóricas já apontadas, o
modelo clássico à mão era o modelo planetário de Rutherford de 1911: nesse modelo o
elétron é imaginado girando com uma velocidade angular n em torno do núcleo, a força
centrífuga equilibrando a atração coulombiana e estabelecendo uma relação bem definida
entre a freqüência angular n e a energia En do elétron, como sintetizado na representação
esquemática da Fig.(3.19b).

FIG.(3.19b): Modelo Planetário do Átomo de Hidrogênio:


Equilíbrio de força e energia.

98
A coalescência entre as mecânicas quântica e clássica no limite n   foi batizada por Bohr em 1923 de
Princípio da Correspondência e, de certa forma, ele nada mais faz que afirmar aquilo que já foi aqui
colocado: é porque se exige que o acervo clássico da Física não possa ser destruído por qualquer nova
teoria, que no limite clássico (macroscópico) a mecânica quântica deve recair na mecânica clássica.

352
A partir desse ponto o procedimento é trivial: do equilíbrio de forças no “modelo
planetário” obtém-se a freqüência n em função de rn e das duas expressões para a
energia En – a “quântica” ( E1/n2) e a “clássica” ( (e 2 / 8o ) / rn )  a relação entre rn e
E1 pode ser estabelecida; dessa forma

 e2 1 
1/ 2
1 
 n    ; 
 4   m  r 3/ 2
 1/ 2
o e n
  2E13  8o 1
e2 1 E1 e 2 n 2   n   m   e 2 n 3 , (3.50b)
    2  rn  ;  e 
8o rn n 8o E1 

En 

que comparada com (3.50a),


1/ 2
2E 1  2E 3  8o 1
n  1 3   1   ,
 n  me  e2 n 3

leva ao resultado (ver (3.44) observando que c = 3x108 m/s)

mee4 
 E1  2 2 ; 
8h o  E1 m e e 4
  R   3 2  1.090x107 m 1 , (3.50c)
h 2
hc 8h o c
 rB  r1  o 2 (raio de Bohr );
m e e 

o valor calculado de R coincidindo com o empírico com um erro menor que 0.7%.
O raio de Bohr do átomo de hidrogênio é definido como o raio da primeira órbita
e a concordância observada entre (3.50c) e (3.48a) indica que o modelo de Bohr descreve
adequadamente99 os parâmetros principais do átomo do hidrogênio, definidos pela
expressões

mee4 1
 En   ; n  1, 2,3, ;
8o2 h 2 n 2
me e4
 E1   13, 6 eV (1eV  1.602x1019 joules); (3.51)
8o2 h 2
o h 2
 rB   0.5x1010 m  0.5A.  raio de Bohr 
m e e 2

99
Apesar de terem sido derivadas com o auxílio do “modelo planetário”, reconhecidamente equivocado
pela razão já apontada.

353
O abandono do modelo planetário clássico, com suas órbitas circulares “não
observáveis”, e a predição teórica da existência dos “bound states” (“estados ligados”)
com energias En, exigem ambos um formalismo mais abstrato, só derivado em 1926 com
a Mecânica Ondulatória de Schrödinger discutida mais adiante.

3.4.1.4: O “Fóton” como Partícula: Efeito Compton (1923)

O caráter “corpuscular” da luz, sintetizado no fóton com energia h e quantidade


de movimento p = E/c = h/c, ver (3.26), foi confirmado por Compton em 1923 de forma
brilhante, em um experimento denominado Efeito Compton. A idéia básica pode ser
assim descrita: suponhamos que uma radiação, com energia bem definida h e quantidade
de movimento p = h/c, incida em um sólido e seja capaz de arrancar um elétron do
material. O elétron é ejetado com certa quantidade de movimento p em uma direção ,
como esquematicamente indicado na Fig.(3.20a), e deve vir acompanhado de uma
radiação espalhada com energia h  ' e quantidade de movimento h  ' /c propagada na
direção . Utilizando as leis de conservação de energia e da quantidade de movimento é
possível expressar a diferença    ' (ou  '  , onde  = c/ é o comprimento de onda)
em função do ângulo  e medindo o comprimento da onda espalhada nessa direção
confirmar a predição teórica.

FIG.(3.20a): Espalhamento de Raio-X com freqüência bem definida por sólido (grafite):
“fóton” da radiação espalhado na direção  e elétron do sólido ejetado na direção .

De fato, da conservação da quantidade de movimento segue

h h ' 
 p  cos    cos ;

   pc   h     '  2h  ' 1  cos   ,
c c 2 2 2 2

h ' 
 p  sin   sin ;
c 

354
enquanto da conservação de energia h = h  ' + p2/2m tem-se

 pc   2mhc 2     ' ,
2

e dessas duas igualdades chega-se a (c =  =  '  ' )

h   '    
2

 '   1  cos    ½ .


mc   ' 

O comprimento de onda de Compton h/mc é igual a 0.024A e como  '   é dessa


ordem de magnitude, o efeito Compton pode ser observado somente quando a radiação
incidente tiver um comprimento de onda  pequeno o suficiente para que a diferença  ' 
, embora bem menor que , seja ainda detectável na “escala ”; isso ocorre, por
exemplo, quando a radiação incidente for um Raio-X “duro”100, com comprimento de
onda da ordem de 1A. Nesse caso a parcela proporcional a (  '  )2 pode ser desprezada
com erro da ordem 0.1% para  = 0.7A e obtemos assim a fórmula geral101

1  cos   .   c   0.024A 
h h
 '   (3.52)
mc  mc 

Conforme indicado na Fig. (3.20b) para os ângulos  = 90 e  = 135, o próprio


Compton aferiu em 1923 a validade de (3.52). O aparato experimental utilizado é simples
de ser descrito: coloca-se um coletor de radiação alinhado a uma direção  e varia-se essa
direção; para um dado  o coletor coleta não só a radiação incidente, com mesma
freqüência e comprimento de onda  do Raio-X (pico à esquerda), como também a
radiação espalhada com comprimento de onda  '    associada ao fóton espalhado (pico
à direita). A distância entre picos na Fig.(3.20b) pode ser medida e comparada com
(3.52), a concordância observada entre essa predição teórica e os resultados
experimentais sendo muito boa, como pode ser visualmente verificado. A experiência de
Compton confirma também para o fóton (para a luz) que a quantidade de movimento
média carregada por uma onda é igual a E/c, conforme a expressão geral (3.26).

Raios-X são ondas eletromagnéticas com comprimentos de onda no intervalo 0.1A <  < 100A.
100
101
A expressão (3.52) é exata se efeitos relativísticos forem computados. Nesse sentido, o “erro” da ordem
de 0.1%, quando se despreza a parcela proporcional a (’)2, mede de fato o erro cometido quando as
correções relativísticas são desprezadas. Ver seção (3.5) para uma breve introdução à Relatividade Restrita
com um foco um pouco distinto dos apresentados nos livros textos tradicionais.

355
FIG.(3.20b): Comprimento de onda do raio-X incidente e da onda espalhada:
( = 90: X = c = 0.024A;  = 135: X 1.7c- Compton (1923))

Os quatro fenômenos-experimentos notáveis descritos no presente item permitem


as conclusões sintetizadas a seguir,

i) O efeito Compton (1923) reforça a idéia já sugerida pelo efeito foto-elétrico de


que a luz (radiação eletromagnética) se comporta como uma partícula (fóton)
com massa nula, energia E   e quantidade de movimento p  k , com k
sendo o vetor número de onda;
ii) O espectro discreto de um átomo ou molécula é uma evidência da quantização
da energia desse elemento; para o átomo de hidrogênio, em particular, a
expressão (3.51) fornece os níveis discretos de energia, os “bound states” ou
“estados ligados” na terminologia clássica;
iii) Nesse resultado, derivado por Bohr em 1913, introduz-se o Princípio da
Correspondência, formalizado pelo próprio Bohr em 1923 da seguinte forma:
para números quânticos altos – isso é, no limite n   ou r >> rB  a
distribuição discreta de energia se aproxima de um continuum e a descrição
quântica recai na descrição clássica,

e anunciam os quatro anos seguintes como o ritual de passagem para a Física Moderna:
em 1924 de Broglie propõe as “ondas de matéria”, em 1925 Heisenberg, Born e Jordan
elaboram a Mecânica Matricial, em 1926 a equação de Schrödinger é proposta e
interpretada estatisticamente e em 1927 os experimentos de difração de elétrons
confirmam o caráter ondulatório da matéria e o Princípio da Incerteza de Heisenberg é
formulado. Os tópicos em itálico serão discutidos a seguir.

356
3.4.2: Ondas de Matéria e Relação de de Broglie (1924)

Em 1924 de Broglie (1892-1987), um nobre por herança e historiador por


formação, aventa uma hipótese arrojada e, no entanto, quase natural no conturbado
ambiente da Física de então: já que a radiação (luz) tem um comportamento de partícula
(fóton) é razoável esperar que no domínio microscópico uma partícula (matéria) tenha
comportamento ondulatório. Se assim for, a partícula com energia E e quantidade de
movimento p deve estar associada a uma onda com freqüência  = E/ e número de onda
k = p/, pois as relações {E = ; p = E/cf = (E/)k = k} se mostraram corretas no
domínio ondulatório, com cf sendo a velocidade de fase dessa onda de matéria.
Observando que a velocidade das partículas atômicas chega, algumas vezes, perto da
velocidade da luz c = 3x108m/s – no caso do elétron, por exemplo, tem-se

2
v 
½ m e v  2.5keV  2500eV   e   0.01
2
e (3.53a)
 c 

e uma energia de 100keV não é inusitada –, expressões relativísticas para a energia e


quantidade de movimento devem ser utilizadas; assim102

mo c2 
 E     mo c2  ½ mo v 2 ; 2
1  (v / c) 2  mo c2 1 mo c2  k 
  1   , (3.53b)
E E mo v   1  (v / c) 2   mo c 
 p   k  k   m o v;
c  1  (v / c) 2 

e portanto

E 
  ;
   c (k)  d  v ,
 g (3.53c)
p dk
 k ;
 

a indicar não só que a onda de matéria deve ser dispersiva, mas também que sua
velocidade de grupo é igual à velocidade da partícula associada, um resultado de resto
esperado: como visto na seção (3.1) deste capítulo, a velocidade de grupo é a velocidade
com que a energia (a “informação”) é propagada.

102
Como já citado, na próxima seção uma breve revisão da Teoria Restrita da Relatividade é elaborada e as
expressões da energia e quantidade de movimento de uma partícula são derivadas.

357
Uma “onda de matéria” pode ser detectada em um experimento de difração
quando seu comprimento de onda  = h/mv (ver (3.54) supondo v/c << 1) for da ordem
de magnitude da dimensão característica do “corpo difrator”; como  é um comprimento
“microscópico” o “corpo difrator” também deve ser, uma condição naturalmente
satisfeita pela rede cristalina de metais (níquel, prata, estanho etc.), com dimensão
característica da ordem de 1A. No caso do elétron, por exemplo, tem-se

h h 150.4
e    A, (3.54a)
me v 2m e E E(eV)

indicando que a energia do elétron deve ser da ordem de 100eV para e  1A.

FIG.(3.21a): Experimento de Davisson & Germer (1927): Esquema do aparato experi-


mental e condição de interferência construtiva (sin = n/d) – Fonte:Wichimann (1971).

O primeiro experimento conclusivo sobre a difração de elétrons foi realizado por


Davisson & Germer em 1927 utilizando a rede cristalina do níquel, onde a distância entre
átomos, medida através de difração com Raio-X, é igual a d = 2.15A. O esquema
experimental está apresentado na Fig.(3.21a): um feixe de elétrons pouco energético (E =
54eV) incide sobre o cristal e não tendo energia para penetrá-lo é refletido em um leque
de direções. Um coletor, postado a uma distância muito maior que a dimensão
característica d da rede, recolhe os elétrons refletidos em uma certa direção  e variando a
posição do coletor é possível traçar o gráfico do número de incidências (probabilidade
p()) em função do ângulo  e duas visões distintas são aqui possíveis: uma, considera os
elétrons como minúsculas partículas incidindo sobre um arranjo de massivas esferas
eqüidistantes (átomos do cristal); outra, os considera como ondas incidindo sobre um
arranjo de espalhadores eqüidistantes.
Na primeira hipótese (partícula) se espera uma função p() que decresça
monotonicamente com ||, como indicado na Fig.(3.21b), com um máximo global em  =

358
0; na segunda hipótese (onda), as reflexões por átomos vizinhos interferem de forma
construtiva quando a diferença entre as distâncias percorridas pelos raios até o receptor,
igual a dsin , ver Fig.(3.21a), for um múltiplo inteiro do comprimento de onda, ou

n
sin   ,  n  1, 2, (3.54b)
d

garantindo que as duas ondas refletidas cheguem em fase no coletor: nesse caso há uma
seleção de valores particulares de , definidos por (3.54b), que maximizam localmente a
função p(), como também esboçado na Fig.(3.21b).

FIG.(3.21b): Esquema representando p() no espalhamento de “partícula” e “onda”.


(o padrão “onda” é típico na difração da luz por pequena abertura, ver Born & Wolf)

O experimento de Davisson & Germer indica uma distribuição de p() consistente


com a formulação ondulatória; mais que isso, no experimento original foi detectado um
único ponto de “interferência” em 1 = 50, e tomando n = 1 em (3.54b) conclui-se que

 d  2.15x108 cm  2.15 A;



    d  sin   1.65 A ,
   50 (valor observado); 

enquanto, de outro lado, da relação de de Broglie (3.54a) segue que

150.4
e  A  1.67A ,  E  54eV 
E(eV)

a concordância entre os dois valores do comprimento de onda a indicar que as expressões


propostas por de Broglie são corretas: a “onda de matéria” associada a um elétron com
energia 54eV tem exatamente o mesmo comprimento da onda que satisfaz, no ângulo 
observado, a condição de interferência construtiva. Em 1929 Estermann & Stern
verificaram experimentalmente que o átomo de hélio e a molécula de hidrogênio são
também difratadas de acordo com o proposto por de Broglie.

359
“anéis de difração” são pontos
que se adensam nos círculos

(a) (b)
FIG.(3.21c): Difração de Elétrons por Rede Cristalina: (a) Lâmina de prata,
(E = 36keV; e  0.0645A); (b) Estanho branco, (E = 100keV; e  0.04A).

No mesmo ano de 1927 Thompson confirmou os resultados de Davisson &


Germer com uma técnica distinta: elétrons muito mais energéticos são difratados por
delgadas lâminas de metal (rede cristalina) enquanto as atravessam e um padrão de
círculos concêntricos é observado em um anteparo colocado atrás do metal. A Fig.(3.21c)
apresenta fotografias típicas dessa classe de experimentos, os círculos concêntricos
aparecendo ora eqüidistantes, como na Fig.(3.21c) à direita, ora apresentando círculos
intermediários, oriundos de uma certa “obliqüidade” entre o feixe de elétrons e a
orientação do cristal. As relações de de Broglie podem ser também verificadas nesse caso
e um aspecto merece destaque aqui: um cuidadoso exame das fotografias, em particular
da fotografia à direita, mostra que os círculos de interferência construtiva são formados
por pontos que se adensam, identificados com os impactos dos elétrons no filme coletor:
mesmo aí, portanto, mesmo quando mais nítido se apresenta o comportamento
ondulatório, o elétron não perde seu “aspecto corpuscular”, uma observação utilizada
por Max Born em sua interpretação estatística da função de onda de Schrödinger.
Finalmente, como enfatizado por Wichmann (1971), as experiências de difração
de elétrons, átomos e moléculas, ao confirmarem as relações de de Broglie confirmam
também que a constante de Planck é uma constante universal, uma propriedade da
matéria e não somente das ondas eletromagnéticas. Mas estamos aqui a atropelar a
história, pois nenhuma dessas evidências experimentais eram conhecidas em 1926,
quando Schrödinger utilizou as relações de de Broglie e, recuperando o desenvolvimento
de Hamilton de 1830 já exposto neste capítulo, deduziu a equação que leva seu nome e
verificou-a, recuperando com ela a série de Balmer do hidrogênio.

360
3.4.3: Equação de Schrödinger e Átomo de Hidrogênio (1926)

A história conta que em um seminário organizado por Debye em Zurique, em


Janeiro de 1926, versando sobre as “ondas de matéria” de de Broglie, o organizador do
evento teria declarado “não acreditar em ondas de matéria até que lhe apresentassem uma
equação de onda associada”. Schrödinger (1887-1961), que assistia ao seminário, um
mês depois apresentou essa equação que leva hoje seu nome e em um conjunto de quatro
trabalhos publicados no primeiro semestre de 1926 deu um fecho inspirado e elegante à
Física Atômica do começo do século XX.
Duas idéias foram centrais no desenvolvimento proposto por Schrödinger. A
primeira delas, o Princípio da Correspondência de Bohr e a necessidade subjacente que a
equação da “onda de matéria” confluísse, no domínio macroscópico, para as equações
dinâmicas de uma partícula; a segunda, a análise de Hamilton da ótica geométrica,
estabelecendo uma equivalência entre o comportamento ondulatório e o corpuscular, na
medida que a equação da onda no domínio da ótica geométrica é idêntica às equações de
Hamilton da Mecânica. A junção dessas duas idéias se dá pela observação que a “onda
de matéria” tem certamente um comprimento de onda muito curto na “escala
macroscópica” (r >> rB, o raio de Bohr) e pode aí ser representada pela ótica geométrica,
descrita por um sistema Hamiltoniano. Na realidade, se as equivalências {WH; E;
kipi} estipuladas em (3.43) forem estabelecidas pelas relações de de Broglie

H  W; E  ; p  k ,

as equações da “onda de matéria” coincidem, no domínio “macroscópico” da ótica


geométrica, com as equações de uma partícula com Hamiltoniana H, de acordo com o
esquema abaixo (ver (3.43))

dx i W dx i H
  ;   ;
dt k i dt pi
 H  W 
dk i W   dpi H
  ;   E       ; (3.55)
dt x i  p  k  dt x i
 i i 
d W dE H
  ;   .
dt t dt t

O Princípio da Correspondência de Bohr estará satisfeito, portanto, se e somente


se a relação de dispersão  = W(x,k,t) da “onda de matéria” for definida pela função de
dispersão

361
1
W(x, k , t)  H(x, p, t) . (3.56a)
 p  k

Suponhamos agora uma partícula de massa m em um campo potencial (x,t); sua


Hamiltoniana é definida pela expressão103

p2
H(x, p, t)    (x, t)
2m

e portanto

1   2k 2 
W(x,k ,t)     (x, t)  . (3.56b)
  2m 

No caso do átomo de hidrogênio, por exemplo, a energia potencial é dada por

1 e2 2E  r 
 (r)    1   (r  r)   (r)  1     (ver (3.51))
4o r r / rB  r 

com rB sendo o “raio de Bohr” do átomo de hidrogênio, e no domínio macroscópico da


ótica geométrica (r >> rB) o potencial (r) é praticamente constante104 na escala r do
comprimento de onda, da ordem rB do átomo (r/r  rB/r << 1); (3.56b) reduz-se assim a

2 2
  k .    cte.; r >> rB  (3.56c)
2m

A relação de dispersão é definida para uma onda harmônica e estipula a relação


entre a freqüência  e o vetor número de onda k dessa onda; observando as relações
gerais

  h
i  k x t    i h ;
 h (x, t)  e   t
  2   k 2  ,
 h h

103
É evidente, portanto, que estamos tratando das “ondas de matéria” no domínio “não relativista”; a
generalização para a situação relativista, que exige a Hamiltoniana nessa forma, não será tratada aqui.
104
Assim como no estudo da refração das ondas do mar podemos supor que a profundidade do mar é
“constante” na escala do comprimento de onda, podemos aqui também supor que no domínio macroscópico
(r >> rB) a variação do potencial é desprezível na escala rB do comprimento das ondas de matéria.

362
para uma onda harmônica e utilizando-as em (3.56c) concluímos que a equação da onda
de matéria é definida por

  2 2
i      (x, t)    0 , (3.57)
t 2m

pois, supondo  = cte., a função harmônica  (x, t)  ei k x t  será solução de (3.57) se e
somente se (3.56c) for satisfeita: por construção, portanto, a equação de onda (3.57)
reduz-se, no domínio da ótica geométrica, à equação de uma partícula de massa m no
campo potencial (x,t).
Esta é a Equação de Schrödinger da Mecânica Quântica. O significado físico da
função de onda (x,t) não está claro ainda, como na realidade não estava para o próprio
Schrödinger quando a propôs, e a crença que (3.57) deva descrever o fenômeno atômico
se localiza, até aqui pelo menos, no nível abstrato da consistência interna da teoria: essa é
equação de onda que no domínio macroscópico (ótica geométrica) coincide com a
equação que rege o movimento de uma partícula de massa m imersa em um campo de
forças descrito pelo potencial (x,t). Mas o ambiente da época era de tal sorte que
Schrödinger seguiu adiante, mesmo não sabendo o que era (x,t), e nesse movimento
sempre para frente, apoiado somente em conjecturas abstratas, ele obteve resultados
alentadores, como veremos a seguir.

3.4.3.1: Velocidade de Grupo e Onda Livre

Supondo um sistema conservativo – isso é, que (x) não dependa explicitamente


do tempo – da equação da energia da partícula segue

2  E o   ( x) 
½ mv 2   (x)  E o  cte.  v  , (3.58a)
m

e da relação de dispersão da onda de matéria tem-se

2k 2 k 2  E o   ( x) 
    (x)  E o =cte.   v (3.58b)
2m m m

e portanto

d k
cg   v, (3.58c)
dk m

363
chega-se à seguinte conclusão: a velocidade de grupo da “onda de matéria” é igual à
velocidade da partícula de massa m no campo potencial (x).
Uma partícula livre ((x) = 0) descreve uma trajetória reta com velocidade v
uniforme; a onda que a representa propaga-se, portanto, ao longo de uma reta, mantendo
constantes não só a freqüência, mas também o vetor número de onda, ver (3.58b);
supondo que a partícula desloca-se ao longo do eixo coordenado x, a equação (3.57) toma
aí a forma
1/ 2 1/ 2
 2m   2m 
 i t d 2  2m 
i  x

 i  x
 (x, t)   (x)  e     0   (x)  A  e   
 A e   
,
dx 2 

o sinal (+) a indicar que a partícula desloca-se no sentido de x crescente e o sinal () no
sentido de x decrescente; observando que k = (2m/)1/2, a “partícula livre” é
representada pela “onda plana”

 partícula 
  (x, t)  A   ei  kx t  ,   (3.59)
 livre 

a constante A sendo arbitrária, como arbitrária é a amplitude de uma onda plana: uma
partícula livre é representada por uma onda plana nas equações de Schrödinger.

3.4.3.2: Estados Ligados (“Bound States”) do Átomo de Hidrogênio

A equação (3.57) é homogênea em (x,t) e admite, óbvio, a solução trivial (x,t)


= 0. Sistemas lineares como esse possuem, em geral, um número discreto de soluções
harmônicas não-triviais com um comportamento apropriado no infinito: esses problemas
são estudados em um capítulo da Matemática conhecido como “problemas de valor
característico”105. No caso em questão, as freqüências discretas dessas soluções
harmônicas podem ser identificadas, via a relação de Planck, com os níveis discretos de
energia introduzidos por Bohr em seu modelo atômico: a equação (3.57) tem assim uma
estrutura matemática que permite, em tese ao menos, recuperar a hipótese introduzida por
Bohr em seu estudo, porém não mais como hipótese e sim como conseqüência.
Para tornar mais específica a análise de (3.57) consideremos, como Schrödinger, o
movimento do elétron no átomo do hidrogênio; neste caso

105
Uma sub-classe deles, os chamados “problemas de Sturm-Liouville (1838)”, são fundamentais em
diferentes ramos da Física-Matemática, ver Coddington & Levinson (1955) e Courant & Hilbert (1953).

364
1 e2
 (r)   ,
4o r

e a dependência radial de (r) sugere uma solução da forma

  (x, t)   n (r)  e in t ;


(3.60a)
 lim  n (r)  0,
r 

que colocada em (3.57) fornece,

 2  d 2  n 2 d n   1 e 2 
 2    En   n  0 ;  E n  n  ,
2m e  dr r dr   4o r 

onde En é o nível discreto de energia associado à freqüência n e me é a massa do elétron.


É sempre conveniente trabalhar com uma equação na forma adimensional e nesse
contexto é natural utilizar os valores de {E1; rB}, definidos em (3.51), para introduzir as
variáveis adimensionais

me e 4
 E n  E1   2n    2n ;
2  4o  
2 2

(3.60b)
4o  2
 r  rB  rˆ  ˆ
r.
me e2

Dessa maneira obtém-se

2  1 2  d n
n  n  2   n   n  0; n  ˆ , (3.60c)
rˆ  rˆ 2  dr

e é imediato observar que (3.60c), no limite r  , pode ser aproximada por

n   2n  n  0   n (r)
ˆ  A  e n rˆ  B  e n rˆ .

A condição (3.60a) no infinito exige uma solução exponencialmente decrescente


com r e expressando-a na forma

ˆ  e n r̂  Pn (r)
 n (r) ˆ (3.61a)

não é difícil verificar que

365
rˆ  Pn   2  2  n rˆ   Pn  2 1   n   Pn  0 . (3.61b)

A equação (3.61b) admite soluções polinomiais

ˆ  1  c1  rˆ    c n 1  rˆ n 1 ; n = 1,2, ,
Pn (r) (3.61c)

o fator exponencial em (3.61a) garantindo que n satisfaça no infinito a condição imposta


em (3.61a). É evidente que se (3.61c) for uma solução de (3.61b) então Pn também será
e o coeficiente c0 = 1 foi assim imposto para fixar essa liberdade.
Colocando (3.61c) em (3.61b) e igualando a zero os fatores que multiplicam as
potências de r, obtemos n equações para determinar os (n  1) coeficientes {c1;;cn-1}; a
equação sobressalente determina o valor característico n como a raiz de

 2  n  1   n  2 1   n   cn 1rˆ n 1  0

de onde segue

1
 n  ;
n
(3.62)
me e4 1
 E n   E1     2 2 2 ,
2
n  h  2 
o h n

recuperando o resultado de Bohr e portanto a série de Balmer do átomo do hidrogênio.


Apesar do significado da “função de onda” (x,t) permanecer ainda obscuro, a
equação (3.57) deixa agora de satisfazer somente um critério de consistência interna da
teoria: ela é capaz também de predizer o resultado de um experimento fundamental. O
significado da “função de onda” (x,t) será discutido no próximo item e concluímos a
presente análise com algumas considerações de ordem técnica. Para n  1/n a equação
não admite solução polinomial, mas sim solução em série de potências – a “confluent
hypergeometric series” no jargão especializado – e nesse caso a solução final cresce
exponencialmente quando r   (  er), não podendo portanto representar um “bound
state” (“estado ligado”) do átomo de hidrogênio. No caso geral tem-se  = (r,,), onde
     é o ângulo do meridiano e ½    ½ é o ângulo do paralelo. A
dependência de  e  introduz a quantização da quantidade de movimento angular, mas
não interfere com a quantização da energia; ver Messiah (1958), “Quantum Mechanics”,
Vol. I.

366
A equação de Schrödinger é assim capaz de predizer a série de Balmer do átomo
de hidrogênio e ela foi aplicada, com um sucesso extraordinário, a vários problemas da
física atômica e molecular. Ela também recupera, como será visto no próximo item, um
dos conceitos mais importantes da Mecânica Quântica, o Princípio da Incerteza de
Heisenberg. Esses resultados derivados a partir da equação de Schrödinger, todos eles
marcantes, não podem ofuscar um outro, de diferente textura: a possibilidade de explicar
a dualidade onda-partícula da Mecânica Quântica como uma decorrência natural da
Ótica Geométrica. Nesse contexto, a “dualidade onda-partícula” retoma a antiga disputa
entre as teorias “corpuscular” (Newton) e “ondulatória” (Huygens) da luz,
reapresentando-a agora não de forma excludente, mas “complementar”: isoladamente, os
conceitos de “partícula” e “onda” são incapazes de descrever o mundo atômico. A
dificuldade conceitual da Mecânica Quântica deve-se, em parte ao menos, a essa
inadequação da terminologia usual, à semântica cotidiana impregnada pelos significados
“positivos” do mundo visível: a teoria subjacente é assim abstrata por natureza, porque
abstrata deve ser a “visibilidade” do mundo invisível.

3.4.4: Interpretação Estatística da Função de Onda (1926)

A equação de Schrödinger (3.57), apesar de estar baseada no Princípio da


Correspondência de Bohr e de reconstruir o espectro (os “bound states”) de átomos e
moléculas, introduz uma variável – a “função de onda” (x,t) – com significado físico
obscuro e esclarecer esse ponto é certamente uma tarefa fundamental; além disso, a
equação (3.57) foi até aqui verificada em um aspecto – a capacidade de predizer os
“bound states”, equivalentes às freqüências naturais de uma cavidade acústica, por
exemplo –, mas um outro aspecto fundamental na teoria de ondas, a difração
(espalhamento) de uma onda livre causada por perturbações (“corpos”) encontradas em
seu percurso, não foi ainda verificado, em que pese o fato do caráter “ondulatório” da
matéria exigir algum fenômeno de “difração” para ser aceito: como discutido no item
(3.4.2), as “ondas de matéria” só foram confirmadas através de experimentos de “difração
de elétrons” e é necessário mostrar que (3.57) pode reproduzi-los. Evidências
experimentais da difração de elétrons já eram conhecidas em 1926, mas não com a
precisão e o detalhe que servissem para alguma comparação teórica, e no final do
primeiro semestre de 1926 a situação formal da equação de Schrödinger poderia ser
assim sintetizada: ela era consistente, não só por ser a equação de onda que satisfaz o
Princípio da Correspondência, mas também porque Schrödinger havia mostrado que
(3.57) era equivalente à Mecânica Matricial, introduzida por Heisenberg, Jordan e Born

367
no ano anterior, e recuperava a série de Balmer do hidrogênio; entretanto, não havia sido
ainda testada em problemas de difração e o significado de (x,t) continuava obscuro.
Em Julho de 1926, quando o quarto artigo de Schrödinger estava no prelo, Max
Born submeteu um trabalho que resolvia as duas questões ao mesmo tempo: ele
apresentou uma interpretação estatística para a função de onda e a confirmou através de
um problema de difração, versão “ondulatória” do problema de espalhamento das
partículas- analisado por Rutherford e verificado experimentalmente por Geiger &
Marsden. O propósito deste item é apresentar com algum detalhe esse trabalho de Born,
não só para que se perceba como experimento e teoria trabalharam em conjunto para
formalizar a concepção estatística, mas também para indicar como a necessidade de
confirmar experimentalmente essa concepção exigiu uma arguta elaboração matemática,
conhecida hoje por “aproximação de Born”, e pela representação da solução do
problema de difração através da função de Green, um procedimento clássico discutido no
exercício (1.19) no contexto da solução do escoamento potencial. Este item reproduz, de
forma mais didática e comentada, o Apêndice XVIII do livro Atomic Physics escrito por
Max Born em 1935.

3.4.4.1: Motivação Teórica-Experimental

Na obtenção de sua equação, Schrödinger imaginou que qualquer manifestação do


mundo físico seria sempre na forma de “radiação”, que o caráter corpuscular dos objetos
que nos cercam seria somente o “aspecto” dessa radiação no domínio da ótica
geométrica. Essa concepção encontra tanto um obstáculo conceitual, relacionado à
dispersão da equação de onda (3.57), como factual: nos experimentos de difração, onde
as partículas (elétrons) apresentam de forma mais nítida um comportamento ondulatório,
mesmo aí o caráter corpuscular se mostra ainda inteiro, pois os anéis de interferência
construtiva podem ser vistos como lugares do plano onde as partículas (os pontos no
filme) se adensam, ver Fig.(3.21c). Nas palavras de Max Born (1882-1970) em sua
palestra após receber o prêmio Nobel em 1954106:

“On this point I could not follow him (Schrödinger). This was connected with the fact that my
Institute and that of James Franck were housed in the same building of the Göttingen University. Every
experiment by Franck and his assistants on electron collision (of the first and second kind) appeared to me
as a new proof of the corpuscular nature of the electron”.

106
Apud Jammer, M. (1974): “The Phylosophy of Quantum Mechanics”, John Wiley & Sons. A frase inicial
“I could not follow him” refere-se à concepção de Schrödinger de que tudo seria radiação, de que a matéria
seria somente a “ótica geométrica” dessa radiação. As colisões de “first and second kind” designam os
experimentos de reflexão de Davidson & Germer e de difração de Thompson, ver item (3.4.2).

368
Do ponto de vista ondulatório, os “anéis de difração” devem estar associados aos
pontos de “máximo local” da função de onda (x,t) e do ponto de vista experimental era
visível que esses anéis eram regiões de “adensamento” da nuvem de elétrons incidente: a
conclusão óbvia é que a função de onda deve ser uma medida da probabilidade de se
encontrar elétrons em uma região do espaço. Mas que medida seria essa?
Born utilizou então uma identidade matemática já derivada por Schrödinger em
um de seus três primeiros artigos para concluir que |(x,t)|2 deveria ser a função
densidade de probabilidade de se encontrar a partícula no ponto x no instante t. A
identidade matemática é a seguinte (ver (3.57) e utilizar ||2t = *t + *t )

  2 2 
 i      (x, t)    0; 
 i
 
t 2m d
    *  * n dV ,
2
 | | dV (3.63a)
 *
 2 dt 2m
  i   2 *   ( x, t)   *  0; V V
t 2m 

e ela impõe uma restrição matemática, qual seja, que em qualquer tempo finito a função
de onda (x,t) seja quadrado integrável no espaço de configurações n-dimensional V.
Uma condição suficiente para a integrabilidade de |(x,t)|2 é que (x,t)  1/r(+n)/2, com
 > 0, quando r = |x|   pois

 dV  r n 1dr; 
 dr
  || dV  1
2
1
  (  n) / 2
com   0; r
r 

e dr/r+1 é integrável; dessa condição obtém-se

 dV  r n 1 ; 
 i
1   lim
     n 1 ; r  
2m V
  *   *  n dV  0 ,
r 

e portanto de (3.63a) segue que para qualquer (x,t) solução da equação de Schrödinger
a integral de |(x,t)|2 em todo espaço de configurações é constante, ela não varia com o
tempo. Observando agora que se (x,t) for solução de (3.57) então (x,t) também será,
pois a equação é linear em (x,t), a constante multiplicativa  pode ser escolhida para
normalizar a função de onda, de tal forma que

 |  (x, t) | dV  1 .
2
(3.63b)
V

369
Se, nos ensaios de difração, a concentração ou rarefação de elétrons nos anéis
podem ser descritas por uma função densidade de probabilidade p(x,t) e se o lócus dessas
regiões de interferências construtiva e destrutiva são descritos pela função de onda (x,t),
deve-se ter p(x,t)  |(x,t)|; como a integral de p(x,t) em todo espaço é, por definição,
unitária, de (3.63b) segue que a escolha óbvia parece ser

p(x, t)  |  (x, t) |2 . (3.63c)

Essa proposta, por mais atraente e razoável que pareça, necessita de algum
respaldo empírico e exige, por essa razão, uma releitura de (3.63a) que possibilite uma
interpretação física mais clara da integral sobre a superfície de contorno V: nos ensaios
usuais, a energia, e portanto a freqüência , permanece constante e a função de onda
toma a forma harmônica (x,t) = (x)e-it, reduzindo (3.63a) à integral sobre V. Com
esse propósito, introduzindo o vetor j( ) ,

i
j( ) 
2m
  *   *  
d

dt V
|  |2 dV   j( )  n dV  0 , (3.64)
V

a identidade à direita pode ser interpretada como uma “lei de conservação” da


quantidade |(x,t)|2, o vetor j( ) a representar o fluxo de |(x,t)|2 através da superfície
de contorno V: se |(x,t)|2 for a densidade de probabilidade da partícula estar em x no
tempo t, a integral de |(x,t)|2 na região V representa o número de partículas em V e
j( ) o fluxo de partículas através de V.
Max Born utilizou o espalhamento (a “difração” na linguagem ondulatória) de
partículas- por uma delgada lâmina de ouro para verificar a interpretação estatística por
ele proposta: aí, não só a densidade de probabilidade p() da partícula- ser espalhada
por um ângulo  está bem determinada, ver (3.46b), como também essa expressão foi
confirmada experimentalmente por Geiger & Marsden; além disso, o problema de
difração é, nesse caso, relativamente simples e sua solução pode ser determinada
analiticamente, como discutido a seguir.

3.4.4.2: Problema de Difração:Espalhamento de Patículas- e Aproximação de Born

Seja uma partícula-, com carga elétrica 2e, massa m e velocidade v, espalhada
por uma delgada lâmina de metal com número atômico Z; a energia E da partícula livre
e a energia (x) da perturbação introduzida por um átomo do metal são definidas pelas
expressões

370
 E   ½ m  v 2  ;
2Ze 2 1 (3.65a)
  (x)  ,
4o r

onde r é a distância entre a partícula- e o núcleo do átomo, suposto coincidente com a


origem O do sistema de coordenadas definido na Fig.(3.22).

FIG.(3.22): Espalhamento de partículas-: sistema coordenado, ver Fig.(3.18a).


(esboço fora de escala: Ac = rc2; rc << r)

A equação de Schrödinger da partícula- espalhada (“difratada”107) pelo núcleo


do átomo de metal toma a forma (ver (3.65a))

 2 2 
 i      (x)    0; 2 2
t 2m       E      ( x)   ,
 2m 
  (x, t)   (x)  e it ; 

e observando a relação

 p  2m  E  ; 2m  E 
k 
2
, (3.65b)
 p  k;  2

a equação clássica de ondas,

 (x)
 2  k 2    k 2  ;
E (3.65c)
  (x)  eikz quando r  |x|  ,

107
Difração vem do latim diffingere = quebrar, espedaçar, fazer em pedaços. O nome foi introduzido por
Grimaldi (1613-1663), um dos primeiros físicos a sugerir a natureza ondulatória da luz.

371
pode ser derivada. A condição no infinito é que diferencia o problema de “difração” do
problema dos “boud states” analisado no item (3.4.3): aqui o problema é determinar a
perturbação na trajetória da partícula- causada pela presença do átomo e a condição de
contorno no infinito simplesmente estipula que, longe da superfície difratora, o que se
observa é uma partícula livre deslocando-se na direção do eixo z, conforme discutido no
sub-item (3.4.3.1) e representado na Fig.(3.22). O problema (3.65c) é clássico na teoria
de ondas; por exemplo, como analisado no exercício (3.7), um problema formalmente
análogo ocorre na difração de ondas em mar raso causada por uma variação local da
profundidade do mar, definida pela expressão h(x)/h = 1  (x)/E, com h sendo a
profundidade do mar no “infinito”.
A solução analítica de (3.65c) é facilitada pela seguinte observação: como visto no
final do sub-item (3.4.3.2), que trata do espalhamento de Rutherford, a condição (x) =
(x)/E << 1 é satisfeita para a maioria das partículas-; escrevendo o potencial (x) na
forma da série assintótica,

 (x)  1 (x)   2 (x)   ,


 
 (1)  ()

e separando termos de mesma ordem em (x) obtém-se

  2 1  k 2  1  0  1  eikz ;   ( x ) 
   k    k  ( x)    
2 2 2
  ( x)  
   2  k   2  k  (x)  1  k  (x)  e ,  E 
2 2 2 2 ikz

ou, de uma forma mais sintética,

  2  s  k 2   s  k 2  (x)  eikz ;
  aproximação 
 (x)  e ikz
  s (x) com   () ikr   (3.66a)
  s  e quando r  ,  de Born 
 r

onde s(x) é a onda espalhada que satisfaz no infinito a condição de radiação: como
s(x,t) = s(x)e-it e a onda espalhada se propaga do ponto O para o infinito, deve-se
escolher o fator eikr, e não e-ikr, pois ei(kr-t) se propaga radialmente para o infinito. A
“amplitude” ()/r depende do ângulo de espalhamento  através da “função de
espalhamento” (), ver Fig.(3.22), e é inversamente proporcional ao raio r: a energia da
onda espalhada é proporcional à amplitude as(r) ao quadrado e sua integral na esfera
permanecerá invariante, como requer a conservação de energia, somente se as  1/r. O

372
comportamento de s(r,) no infinito, aqui antecipado, será formalmente derivado mais
adiante. Observando a relação

 1 1  ()   () ikr


 s   ik   e r  e    s  ik e er ,
 r r  ()  r  r

de (3.64) segue que (ver também (3.58c))

i
 jo    o*o  *o o  ikz  v e z ;
o e
 
2m  k
 cg   v  (3.66b)
i |  () |
2

  s*s  *s  s   v er ,  
m
 js (r, )  2
2m  r

com jo sendo o fluxo de partículas que “entram” na zona de difração pelo orifício de área
Ac, ver Fig.(3.22), e js (r, ) o fluxo de partículas espalhadas na direção  na esfera de raio
r  : esse fluxo é definido pelo produto da velocidade v da partícula pela amplitude ao
quadrado da onda – unitária na “entrada” (a = 1 para jo ) e igual a ()/r na direção  da
“saída” – a velocidade da partícula na “saída” sendo igual ao valor de “entrada” v
quando r  , um resultado consistente com o derivado no problema de espalhamento de
partículas-, ver Fig.(3.18a,b).
O número total de partículas que entram na região de difração pela abertura de
área Ac no intervalo de tempo t é assim igual a a2(vt)Ac = a2Ac|jo|t , onde a é a
amplitude da onda eikz e a2 é a densidade de partículas por unidade de volume; o número
de partículas que saem pela área S no entorno da direção  nesse intervalo de tempo é
igual a a2S|js(r,)|t, pois as é a onda espalhada: se p() for a probabilidade, por
unidade de área da esfera de raio r, da partícula ser espalhada na direção , é evidente a
relação

| j (r, ) | S 1 |  () |2


p()  S  s  p()  , (3.66c)
| jo | A c Ac r2

e o objetivo é comparar a expressão de p() assim obtida com a expressão clássica


(3.46b), derivada por Rutherford e avalizada pelos experimentos de Geiger & Marsden.
O problema original reduz-se, portanto, a um problema clássico de difração: obter
a solução da equação de Helmholtz “forçada” (3.66a) e derivar seu comportamento
quando r  , determinando assim a função de espalhamento (). Como mostrado a

373
seguir, essa solução pode ser representada com o auxílio da função de Green da equação
de Helmholtz e o comportamento quando r   calculado analiticamente.

3.4.4.3: Equação de Helmholtz e Função de Green

O objetivo aqui é verificar que a solução da equação de Helmholtz é dada por

   (x) 
  2   k 2    F(x);
  x ) G(x; x)  F( x) dV( x);
1 e ikR ( x , x )
   V( (3.67)
 G(x; x )   ;  R(x, x )  (x  x) 2  (y  y) 2  (z  z) 2 ,
4 R(x, x )  

onde G(x; x ) , a função de Green108 do operador de Helmholtz, é singular quando x  x .


O procedimento é análogo ao utilizado no exercício (1.19): considerando, sem perda de
generalidade o ponto x = 0 e observando a identidade 2G + k2G = 0 se x  x , pois

1 eikr 
 x  0; R(x; x )  r ; G   ;  G 1 eikr ik eikr
4 r     ;
    r 4 r 4 r
2
1   2 G     2 G  k 2 G,
 2G  2 r ; 
r r  r  

seja V(x) uma pequena esfera de centro em x e raio  << 1; de (3.67) segue

 2  k 2    
V ( 0 )
[ 2 G(x; x )  k 2 G(x; x )]  F( x ) dV( x ) 

 F(0) 
V ( 0 )
[ 2 G(x; x )  k 2 G(x; x )]dV( x )   () 

 G 
 F(0)   dV ( x )  k 2  G(x; x )dV( x )    ()
 V ( 0)  r V ( 0 ) 
e portanto

G
 2   k 2   F(0)  
V ( 0 )
r
dV ( x )   () 

F(0)  eik  1 ik 
4   2   V ( 0 )
    dV ( x )   ()  F(0)   (),
 
4  2

que levada ao limite 0 demonstra (3.67).


108
Observar que a função de Green satisfaz a condição de radiação com o fator tempo e-it.

374
3.4.4.4: Função de Espalhamento ()

No problema sob análise F(x)  k 2   (x)eikz : assim

k2 eikR ( x , x )
4 V(x ) R(x, x )
  (x)  eikz    ( x )eikz dV( x );  2m  
 k   ( x )  2  ( r ) 
2
(3.68a)
  
 R(x, x )  (x  x) 2  (y  y) 2  (z  z) 2 ,

e o objetivo é determinar a função de espalhamento () associada ao comportamento


assintótico de (3.68a) quando r  . Definindo r = |x| = (x2 + y2 + z2)1/2, seja n a normal
à esfera de raio r, ver Fig.(3.22); portanto x = r n e observando que

| x |  | x |  R(x;x )  r  x  n   | x 2 | / r 2  ,

e também que z  x  e z , o comportamento de (x) na região | x |  | x | é dado pela


integral

eikr 1
  (x)  eikz   eikxez n   k 2  ( r )dV( x );
r 4 V( x )
r   (3.68b)
  e z  n   |  e z  n  | e z,o  n 2x  n 2y  1  n z  e z,o ,
2

com ez,o sendo o vetor unitário na direção (ez  n). Da Fig.(3.22), nz = cos  e da
identidade

n z  cos   |  e z  n  |  n 2x  n 2y  1  n z   2 1  cos    2sin  2


2

segue, conforme antecipado, que

 ()  2k sin  2 ;
 () ikr 
  eikz  e   2m  1 i (  ) x e z ,o  (3.68c)
r   ()    2 4  e   ( r )dV( x ).
 V( x )

Seja agora o triedro ortogonal (ex,o; ey,o; ez,o), com ez,o sendo, como já
mencionado, o vetor unitário na direção (ez  n); definindo coordenadas esféricas
baseadas no eixos (xo,yo,zo), sejam (;) os ângulos análogos aos ângulos (;) da
Fig.(3.22) e introduzindo o elemento de volume em coordenadas esféricas,

375
  ;  dV( x )  r 2 sin  dddr ;
  
  ;   x  e z,o  cos ,

obtém-se

 2 
2m 1
 4 0
 ()   2  sin d  d  r 2 ei (  ) r cos   ( r )dr ,
0 0

as integrais em  e  podendo ser integradas diretamente e assim

2m 

sin () r 
  ()   r dr ;
2
 ( r ) 
2 () r  2m  2Ze 2 1
2
2Ze 1
0


  ( )   
 2  4o  () 0
sin () r dr . (3.68d)
  ( r )  ; 
 4o  r 

A integral em r não é convergente no senso estrito do termo e necessita de um


“argumento físico” para que seu valor possa ser calculado; de fato, da igualdade,

 
 2m 2Ze2 1 ro   2m 2Ze2 1 
 ()  lim  2 
sin () r dr   lim  2 1  cos  ( ) r  ,
   o    4o   2 ()
4 () 0
o
ro 
 ro      
  ( ) 

e observando que (o) é a medida de uma densidade no entorno de o, a seguinte


expressão pode ser utilizada para definir essa função,

2m  2Ze 2 1 Ze 2 1
 ()   , (ver (3.65b));
  4o   ()  8o  ½m  v sin 2  2
2 2 2

 1 o  / 2

  (o )  lim   lim  () 1  cos () ro  d ,
 0  ro 
 o  / 2 

que reduz-se, em essência, ao valor médio de () no entorno de o: a idéia básica é que
a parcela “não convergente” cos  () ro  na integral que define (o) é “infinitamente
oscilatória”, pois ro   , e tem contribuição nula para o valor médio; formalmente,
excluindo a “fase estacionária” o quando a integral I abaixo definida é da ordem
1/(kro )1/ 2 , tem-se

376
o  o 
()
()  cos  kro  2sin   krlim   sin(kro  2sin  2 )  d 
d
I  lim
kro  
o 

2
o  
o 
kro  cos 2 d

 
 ( o ) o

 sin(kro  2sin  2 )  d  0,
d
 lim
kro  kr  cos o
o

 
2 o  d

e portanto

 ()  Ze 2 / r  1
   2  , (3.69a)
  8o  ½m  v
2
r  sin 2

que utilizada em (3.66c) fornece

 probabilidade de espalhamento na  2
  1  Ze 2 / r  1
p()   direção  por unidade de área da   A   8  ½m v 2  4 
, (3.69b)
 superfície da esfera de raio r.  c  o    sin 2
 

a expressão (3.69b) coincidindo exatamente com a fórmula de Rutherford (3.46b): esse


resultado, confirmado experimentalmente por Geiger & Marsden, verifica não só a
equação de Schrödinger em um problema de difração, como também abona a
interpretação estatística para a função de onda proposta por Max Born.
Finalizando, um comentário sobre o “valor” da integral “não convergente”.
Começamos observando que a função ()  cos () ro é bem definida para ro finito,
mas ela perde o sentido de “função” no limite ro   , na medida que para um dado  o
valor de () pode ser qualquer coisa no intervalo [-1;1]. Born contorna esse problema
substituindo o integrando em (3.68d) por e r sin () r , e-r(r) sendo a correção no
potencial (r) do núcleo devido ao “screening effect” dos elétrons do átomo, e obtém o
resultado final (3.69a) tomando o limite   0: embora esse “screening effect” seja
utilizado para corrigir alguns resultados de difração de elétrons, não há dúvida que foi
aqui empregado para fazer convergir a “integral não convergente”. O argumento utilizado
no texto, como também por Born, embora de forma implícita, se apóia em conceitos da
Teoria das Distribuições109 que, grosso modo, considera as “funções generalizadas” ()
(por exemplo, a “função” -Dirac) pelo efeito que causam em funções bem comportadas
g(), esse “efeito” sendo expresso na forma de uma integral I[g] = ()g()d;
curiosamente, a Teoria de Distribuições se origina na “função” -Dirac, introduzida por
Dirac na sua formalização da Mecânica Quântica.

109
Ver Liggthill (1958) “Fourier Analysis and Generalized Functions” e Cordaro & Kawano (2002) “ O
Delta de Dirac”; ver também discussão no item 3.7.3 da seção 3.7 (Apêndice 1).

377
3.4.5: Princípio da Incerteza de Heisenberg (1927)

A interpretação estatística para a função de onda introduz uma “incerteza” na


determinação das variáveis do problema atômico que, de alguma forma, já havia sido
tratada por Rutherford no problema do espalhamento: lá a origem da “incerteza” estava
associada ao desconhecimento a priori da posição exata da partícula- quando ela
atravessava o orifício do colimador de área Ac, ver Fig.(3.18a). Essa “incerteza” da
posição é intrínseca nos experimentos de difração de partículas atômicas e a Fig.(3.24)
apresenta um caso típico: o fluxo de elétrons incidente é difratado por uma pequena
abertura x representando, esquematicamente, o espaçamento da rede cristalina difratora;
a posição média da partícula quando atravessa a abertura é x = 0 e a “incerteza” nesse
valor, medida pelo o desvio padrão (x), é da ordem da abertura x ou (x)  x.

FIG.(3.24): Esquema da difração de elétrons por uma rede cristalina: espaça-


mento da rede: x << l; interferência construtiva em C: e = BD  xsin 1.

O estado de uma partícula é caracterizado, na formulação Hamiltoniana, por sua


posição e quantidade de movimento e assim como se estima a “incerteza” x na posição
da partícula é fundamental que se estime também a “incerteza” p na quantidade de
movimento. O argumento clássico110 se apóia no esquema da Fig.(3.24): conservação de
energia implica que a velocidade do elétron capturado na placa coletora seja
essencialmente ve, pois o potencial Coulombiano devido ao átomo difrator é “nulo” na
distância macroscópica l e portanto o módulo da quantidade de movimento é dado por pe
= meve. O que é “incerto” aí é a direção do vetor p, com suas duas componentes {px = pe
sin ; pz = pecos }, o ângulo  podendo tomar qualquer valor no intervalo  /2 <  <
/2. Por simetria, o valor médio de px é nulo e seu desvio padrão px é da ordem de pesin
1 da componente px no ponto C, onde ocorre a primeira interferência construtiva: a

110
Ver, por exemplo, Born (1935), “Atomic Physics”.

378
condição para que essa interferência ocorra é que as ondas emitidas a partir de B
cheguem em C em fase com as ondas emitidas a partir de A ou que a distância BD = BC
 AC na Fig.(3.24) seja igual ao comprimento de onda e da “onda de matéria”; da
geometria segue, com erro da ordem (x/l)2, que BÂD  1 e BD  xsin 1; portanto

 p x  pe  sin 1  k e  sin 1 ;
 2  2 
e   p x  ,  ke   (3.70a)
 sin 1  ;  x  e 
x 

o que leva à seguinte relação:

 x : incerteza na posição;


x  p x     (3.70b)
 p x : incerteza na quantidade de movimento.

O fundamental aqui é observar que se a imprecisão x na medida da posição


diminuir a imprecisão px na medida da quantidade de movimento aumenta na mesma
proporção: a imprecisão mínima na posição é da ordem do comprimento de onda e da
onda de matéria associada ao elétron e como, por construção, a imprecisão na posição é
igual a x tem-se nesse caso sin 1  1, a implicar na imprecisão máxima na quantidade
de movimento, pois então px  pe. Esse é o espírito do Princípio da Incerteza de
Heisenberg e dois aspectos serão abordados a seguir: um, técnico, demonstrando a partir
da função de onda da equação de Schrödinger a desigualdade básica qipi  /2 para
qualquer par de variáveis conjugadas; outro, conceitual, discutindo o significado do
Princípio da Incerteza no contexto da representação de um fenômeno físico.
O primeiro passo para demonstrar qipi  /2 é definir uma função densidade
de probabilidade para o momentum p = (p1;;pn) relacionada, óbvio, com a função
densidade de probabilidade |(q,t)|2, onde q = (q1;;qn) define a posição do sistema e
(q,t) é a solução da equação de Schrödinger no espaço de configurações n-dimensional.
O ponto de partida é observar a definição p = k e que a imagem de (q,t) no espaço dos
números de onda k é a Transformada de Fourier, definida pela expressão

 
1 1
 (q, t)  e dq  (q, t)   2  
i( k q )  i( k q )

ˆ (k , t)  ˆ (k , t)  e dk ;
 2 
n/2 n/2
 
(3.71a)
 
  | (q, t) | dq   | ˆ (k , t) |
2 2
dk : Identidade de Parseval ,
 

379
com {dq = dq1dq2dqn; dk = dk1dk2dkn}. A Transformada de Fourier é, como se
sabe, a extensão da série de Fourier,

l
1 1

ˆ (k  , t)   (q, t)  e
i(k  q)
dq   (q, t)   ˆ (k  , t)  e i(k q) ;
2 
2l l 2l  
  k  
 l 
  | (q, t) |
2
dq   | ˆ (k  , t) |2 : Identidade de Parseval ,
 

para domínio infinito e, no caso em questão, para variáveis definidas em um espaço n-


dimensional. A seção (3.7) deste capítulo fornece uma rápida introdução às
Transformadas de Fourier, com a dedução de alguns resultados fundamentais, inclusive a
Identidade de Parseval; dessa identidade e de (3.63b) segue que

 | ˆ (k , t) | dk  1 ,
2



a indicar que | 
ˆ (k , t) |2 é a função densidade de probabilidade no espaço n-dimensional
dos números de onda k = (k1;;kn). Os valores médios {qc(t); kc(t)} e os desvios padrões
{q(t); k(t)} são calculados pelas expressões usuais,

 
 q c (t)   q |  (q, t) | dq;  k c (t)   k | ˆ (k , t) |
2 2
dk ;
 
 
(3.71b)
 q (t)    q  q (t)   |  (q, t) | dq;  k (t)   k  k (t)   | 
2 2
2 2 2 ˆ (k , t) | dk ,
2
c c
 

o valor médio e desvio padrão da quantidade de movimento definidos por

 p c (t)    k c (t);
(3.71c)
 p(t)    k (t).

A existência das integrais que definem {q;k} exige uma restrição mais forte
sobre {  (q, t); 
ˆ (k , t) } que a imposta na definição de (3.63b); por exemplo, que

1
 { (q, t); 
ˆ (k , t)}  quando r  ;
(  2  n) / 2
r (3.72a)
 {|  (q, t) |2 ;| 
ˆ (k , t) |2 } integráveis em V ,

380
e observando de (3.71a) que ik j ˆ (k , t) é a Transformada de Fourier de /qj, da

identidade de Parseval aplicada ao par ik  ˆ (k , t)  /qj segue que


j

 

|

q j
(q, t) |2 dq   k 2j | 

ˆ (k , t) |2 dk , (3.72b)

uma expressão que será utilizada logo adiante. Imaginando, por instantes, que |(q)|2 seja
uma “distribuição de massa” no espaço n-dimensional da variável q, o ponto qc é o
“centro de massa” dessa distribuição e ||q|| = (q2)1/2 = (qj2)1/2 é o “raio de giração”
em relação ao “centro de massa”; o “raio de giração” em torno da origem O do sistema
coordenado é definido pela expressão

q   q  |  (q, t) | dq  q 2  q c2 ,
2 2 2
o


e o valor mínimo desse raio ocorre quando o pólo é o “centro de massa” e qc = 0; de outro
lado, definindo

 q  q  q c ;    c (q, t)   (q  q c , t)  e½i(k c qc ) ei(k c q ) ;


 ˆ
 k  k  k c ;   c (k , t)   (k  k c , t)  e
ˆ ½i(k c qc )  i( k q c )
e ,

é trivial verificar que  c (q, t)  


ˆ (k , t) definem um par de Transformadas de Fourier,
c

com “centros de massa” em q  k  0 e “desvios padrões” (“raios de giração”) em


relação à origem idênticos aos definidos em (3.71b). Sem perda de generalidade,
portanto, podemos deslocar a origem para (qc;kc) e assim

1/ 2 1/ 2
   ˆ (k , t) |2 dk 
q j    q 2j  |  (q, t) |2 dq  ; k j    k 2j  |  (3.72c)
     

definem os “desvios padrões” (“raios de giração”) das variáveis conjugadas (qj;kj). A


demonstração do Princípio da Incerteza é agora trivial; seguindo Papoulis (1967), da
relação
 
q j
1  |  (q, t) | dq    (q, t) (q, t) q
2 *
dq ,
 
 j
1

segue, integrando por partes,

381
     *  
1    q j |  (q, t) |   q j 
2
(q, t) (q, t) 
*
(q, t) (q, t)   dq ,
  q j  q j q j  

e observando que qj|(q,t)|2  0 no infinito, ver (3.72a), obtém-se


   *  

1    qj  (q, t) * (q, t)  (q, t) (q, t)  dq  2  | q j |  |  (q, t) |  | (q, t) | dq ,
 
 q j q j 
 
q j

ou


1 
  | q j |  |  (q, t) |  | (q, t) | dq . (3.73a)
2  q j

Dadas duas funções {f(q);g(q)} quadrado integráveis no domínio infinito, a


desigualdade de Schwarz,

1/ 2 1/ 2

   
|  f (q)  g(q)dq |    | f (q) |2 dq     | g(q) |2 dq  , (3.73b)
      

estende para o par de funções a desigualdade clássica de vetores |fg|  (ff)1/2 (gg)1/2, ver
exercício (3.11); utilizando (3.73b) em (3.73a) obtém-se, com o auxílio de (3.72b),

1/ 2 1/ 2 1/ 2 1/ 2
1          


  q 2j  |  (q, t) |2 dq 
2   


 |
 q j
 
(q, t) |2 dq 


 
  q 2j  |  (q, t) |2 dq 
 



 

  k 2j  | 
ˆ (k , t) |2 dk 

e portanto (ver (3.72c))

q j  k j  ½ , (3.73c)

uma desigualdade que tem relevância no estudo das Transformadas de Fourier: se a


função f(x) se concentra no entorno de um ponto xo – isso é, se o “raio de giração” xf de
|f(x)|2 for muito pequeno – sua Transformada de Fourier se espalha, pois o “raio de
giração” kf dessa transformada é tal que kf  1/(2xf). No contexto em pauta,
observando que pj = kj chega-se a


q j  p j  (3.74a)
2

382
e assim

n
n
q  p   q j  p j  . (3.74b)
j1 2

O Princípio da Incerteza de Heisenberg é, portanto, uma conseqüência natural da


interpretação estatística da função de onda da equação de Schrödinger. Aceitando essa
interpretação como válida, (3.74) segue “trivialmente” e introduz um fato perturbador no
contexto clássico: quanto mais precisa for a determinação da posição de uma partícula,
tanto menor será o “desvio padrão” q e mais incerto será o valor do momentum
conjugado (maior será seu “desvio padrão” p).
A impossibilidade de se medir precisamente a posição e velocidade de uma
partícula sugere um limite teórico na “possibilidade de conhecimento”, uma forma de
limitação até então desconhecida no campo da Ciência e a exigir, por isso, alguma
explicação que extrapola o contexto da Física: esse é um problema epistemológico, o
ramo da Filosofia que estuda a natureza do “conhecimento humano”. É relevante finalizar
esta seção, que afinal trata dos fundamentos da Mecânica Quântica, apresentando alguns
aspectos dessa discussão, pois ela ilustra as dificuldades de significado e semântica que
surgem quando se pretende dar alguma “visibilidade” àquilo que por natureza é
“invisível” (“microscópico”).
Ignorando diferenças menores, existem em essência três “interpretações” da
Mecânica Quântica: a da “escola de Copenhagem”, liderada por Bohr, a “estatística”,
em confronto com a de Bohr, proposta por Einstein e elaborada por Popper, e a
“operacional”, em larga medida adotada pelos físicos mais interessados nos resultados
que nas discussões filosóficas.
Todas essas diferentes interpretações duelam, de uma forma ou de outra, com o
Princípio da Incerteza de Heisenberg e é importante, por isso, entender como
Heisenberg, ele mesmo, “explicou” (3.74); em suas palavras

“At the moment of the position determination, that is, when the quantum of light is being diffracted
by the electron, the latter changes its momentum discontinuously” (on account of Compton effect)111

e esta frase é o mote da “interpretação operacional”: o ato de “medir” (no caso, a


posição) introduz alguma energia (fóton) e modifica o estado original, ou seja, o próprio
ato de medir introduz uma imprecisão nas medidas obtidas; que a incerteza final seja da

111
Apud Jammer, M. (1974): “The Phylosophy of Quantum Mechanics”; frase retirada do artigo de
Heisenberg de 1927 e traduzida do alemão por Jammer; a referência ao “efeito Compton”, feita tanto por
Heisenberg como por Jammer, coloca em contexto o termo “descontinuidade”.

383
ordem de  é consistente com o fato da energia do fóton ser . Na realidade, ela vai um
passo além e coloca o Princípio da Incerteza como a base axiomática da Mecânica
Quântica, certamente não porque assim seja112, mas pela importância conceitual que ela
subentende; essa “interpretação”, como todo corte “pragmático”, deixa ao largo a questão
de essência  seria essa incerteza intrínseca à natureza ou ela apareceria somente na
descrição da natureza  para poder prosseguir com a “rotina” da Física.
No outro extremo, sem que haja qualquer modificação “prática”, mas
introduzindo uma visão radical e de alguma sutil maneira essencial, localiza-se a
“interpretação de Copenhagem” devida a Niels Bohr, baseada no Princípio da
Complementaridade: de forma resumida (e incompleta), ele afirma que os fenômenos
atômicos só podem ser descritos pelos conceitos simultâneos de “onda” e “matéria”,
vistos não de maneira excludentes mas complementares. O fenômeno atômico é “onda” e
“matéria” ao mesmo tempo, e ora uma descrição “ondulatória”, ora uma descrição
“corpuscular”, se mostra mais adequada; nas palavras de Bohr113

“The essence [of the quantum theory] may be expressed in the so-called quantum postulate, which
attributes to any atomic process an essential discontinuity, or rather individuality, completely
foreign to the classical theories and symbolized by Planck’s quantum of action”
“The two views of the nature of light [“wave” and “photon”] are to be considered as different
attempts at an interpretation of experimental evidence in which the limitation of the classical
concepts is expressed in complementary ways”.

Na visão de Bohr, portanto, o Princípio da Incerteza reflete, em sua essência, não


uma impossibilidade técnica de medida (“descrição do fenômeno”), mas uma propriedade
intrínseca da matéria com seus “saltos quânticos” (“descontinuidades”), que remontam a
Planck em seu trabalho sobre a radiação do corpo negro. Essa visão está em fase com o
desenvolvimento da Mecânica Quântica nos 30 primeiros anos do século XX, quando
paulatinamente evidências foram indicando o “comportamento corpuscular da luz”, do
efeito fotoelétrico ao efeito Compton, até que em um rasgo de ousadia de Broglie propôs,
apoiado em uma idéia de “simetria”, o “comportamento ondulatório da matéria”,
posteriormente verificado experimentalmente.
É evidente, também, que a “interpretação operacional” acomoda o pensamento
clássico, pois com uma imagem plausível joga a “incerteza” para uma questão de medida

112
Popper argumenta com propriedade que o Princípio da Incerteza não pode ser, do ponto de vista lógico,
definido como a base da Mecânica Quântica, pois ele pode ser deduzido a partir da equação de Schrödinger
com a interpretação estatística de Born, mas a equação de Schrödinger não pode ser deduzida a partir do
Princípio da Incerteza; ver K. Popper (1974), “A Lógica da Pesquisa Científica”, Editora Cultrix &
EDUSP, tradução baseada na versão do original revisto em 1973.
113
Apud Jammer (1974), em trabalho apresentado por Bohr no Congresso Internazionale dei Fisici, Como,
11-20 Settembre 1927.

384
argumentando, não sem razão, que a Física trabalha com as medidas das coisas e não com
as coisas em si; de outro lado, a “interpretação de Copenhagem” incomoda o pensamento
clássico, pois introduz a “incerteza” no âmago mesmo das coisas, como uma
impossibilidade teórica insuperável que continuaria a aparecer mesmo considerando
“medidas ideais”. É contra a “interpretação de Copenhagem” que Einstein levanta-se para
dizer que “Deus não joga dados” e propõe, como contraponto, uma “interpretação
estatística”, argumentando que em todo experimento de “difração da matéria” – de
elétrons, das partículas-, etc. – se trabalha com um número imenso de partículas e que
os “anéis de difração” nada dizem sobre uma partícula isolada, mas sim sobre a estatística
de um conjunto (“ensemble”) de partículas.
Antes de apresentar a elaboração de Popper sobre a “interpretação estatística” de
Einstein, é importante já aqui trazer à luz algumas diferenças de enfoque entre essas
distintas interpretações. As interpretações “operacional” e “estatística” estão centradas no
Princípio da Incerteza e nas “ondas de matéria” e, ao contrário da escola de Copenhagem,
são omissas, nada dizem sobre o “quantum de energia” da radiação eletromagnética,
como se fosse possível aceitar o “salto quântico” em um continuum de energia (radiação),
mas duvidoso aceitá-lo em um “elemento discreto” da matéria. Isso posto, há uma
segunda diferença de enfoque: as interpretações “operacional” e de “Copenhagem”
referem-se a uma partícula isolada, enquanto a “estatística” trata um conjunto
(“ensemble”) de partículas e é aí, é nesse ponto que Popper entra.
Popper foi um filósofo, não por formação acadêmica mas por atuação, com uma
acentuada preocupação epistemológica e, em particular, com a estrutura lógica das
ciências ditas empíricas. O problema central da teoria do conhecimento, como
reconhecido por Kant segundo Popper, é o problema de demarcação, assim entendido no
contexto em pauta: é o “problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir
entre as ciências empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os
sistemas “metafísicos”, de outra”.
Da centralidade do “problema de demarcação” Popper parte para definir um
critério de demarcação, assim colocado por ele:

“Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprova-
ção pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarca-
ção não a vericabilidade, mas a falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que
um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido po-
sitivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recur-
so a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema

385
científico empírico”.114

É evidente, portanto, que a única interpretação possível para Popper das “ondas de
matéria” e do Princípio da Incerteza é a “interpretação estatística”, pois é a única que tem
uma “forma lógica” possível de ser validada: as interpretações “operacional” e de
“Copenhagem”, ao tratarem do comportamento de uma partícula isolada, exigiriam em
tese um experimento com uma partícula isolada. Entretanto, uma revisão atenta da análise
clássica de Rutherford e da análise quântica de Born indica que o que se prevê é a
densidade de probabilidade de uma partícula e essa previsão só pode ser falseada se se
considerar um número imenso de partículas, que traga ao experimento a estabilidade
estatística que a teoria demanda; ou, em outras palavras, a “interpretação estatística” é a
que se impõe, pois o que é previsto pela teoria é uma função densidade de probabilidade.
A questão de fundo é outra, no entanto. O campo “estatístico” é, por definição,
“indeterminado”, pois só poderia ser determinado, no contexto da Física Clássica, se se
soubesse as posições e momentum de todas as partículas no instante inicial; o que Bohr
coloca, e é sobre esse ponto que Einstein e Popper, cada um com seu argumento, reagem,
é que existe uma impossibilidade teórica, e não só prática, de se conhecer esse estado
inicial precisamente. Einstein ao proclamar que “Deus não joga dados” e ao propor sua
“interpretação estatística” está reagindo contra o indeterminismo de essência colocado
por Bohr, um espécie de “livre arbítrio” da natureza, e não contra o “indeterminismo”
observado nos experimentos; Popper, ao rejeitar a “interpretação de Copenhagem”, a
rejeita por não considerá-la “científica” e a coloca na prateleira dos problemas
metafísicos: ela não é suscetível de ser refutada por nenhum experimento e, portanto,
pertence à categoria metafísica e não à da ciência.
A “interpretação operacional” tenta mitigar esse conflito oferecendo uma solução
de compromisso, usual nos enfoques pragmáticos: mesmo se se aceitar que “Deus não
joga dados” a Física, que não é a descrição da coisa em si, mas sim das medidas dos
fenômenos que explicitam a coisa, é indeterminada por natureza pois, repetindo
Heisenberg, o próprio ato de medir modifica a coisa medida. O pragmatismo tem a
virtude de acomodar as questões filosóficas ou de princípios para poder seguir adiante

114
Ver Popper (1974), ob.cit. Quase implícito nesse enunciado é a habilidade de um sistema científico
prever resultados que possam ser “falseados” por experimentos e é evidente que o “universo científico”
delimitado por Popper exclui muita coisa. Por exemplo, a teoria de Darwin, a leitura mais brilhante sobre a
evolução das espécies, encontra dificuldades óbvias em prever, na quantidade que a teoria necessita,
resultados que possam ser “falseados” pela realidade, mas parece difícil negar a essa “leitura” o status de
ciência. O paradigma de Popper em seu “critério de demarcação” é a Física e, nesse contexto, ele parece
apropriado; dizer, no entanto, que tudo aquilo que ele (critério) exclui é “metafísico”, isso é, “não
científico”, parece ser dogmático demais lá mesmo, na seara “não dogmática” da ciência.

386
com os procedimentos mais prementes; como usual, no entanto, em sua virtude reside sua
fraqueza: porque acomoda não radicaliza, e por não radicalizar evita uma discussão que
poderia (nem sempre, é verdade) descortinar um panorama novo, de uma fertilidade
insuspeita.
Na visão de Bohr as imagens que temos, e as palavras que as descrevem, foram
construídas no mundo clássico das “coisas visíveis” (“macroscópicas”) e são, por isso,
adequadas para descreverem os fenômenos aí observados; quando adentramos um
universo distinto, naturalmente o olhamos com o olhar impregnado pelo nosso mundo
original e descrevemos o que detectamos nesse novo universo com as imagens e palavras
herdadas do “mundo clássico” e que são, por isso também, intrinsicamente inadequadas
para descreverem um universo que lhes é estranho. Parte da dificuldade da Mecânica
Quântica reside aí, na inadequação da linguagem habitual e no abandono das imagens do
“mundo tátil”, que se incrustaram na percepção como um segundo ser e comandam, a
partir daí, nosso olhar e nossa compreensão: o ritual de passagem do “clássico” para o
“moderno” exige uma linguagem que misture os conceitos antes nela demarcados e
imagens que se desgrudem do “mundo tátil” e se coloquem como desenhos, por
necessidade abstratos, de um mundo novo que não se mostra ao visível. Já foi dito que a
interpretação de Bohr foi construída em fase com o desenvolvimento teórico-
experimental da Mecânica Quântica nos primeiro trinta anos do século XX; mas ela está
em fase também com todas as rupturas na cultura estabelecida no começo do século XX
que apontavam, todas elas, na literatura, na música e na pintura, para um esgotamento das
imagens e palavras do mundo clássico, incapazes que eram de traduzir as mesmas sempre
tensões com o vigor que só o novo possui e que encontraram, todas elas, na “linguagem
abstrata” uma rota de escape possível: não há acaso ou coincidência aqui, mas
simplesmente o esgotamento, simultâneo em todas as áreas do conhecimento, de um
pensamento clássico ainda com um forte resíduo escolástico115 e o deslocamento das
imagens do habitado e amigável concreto para o rarefeito e cerebral abstrato. O legado de
Bohr não deve ser medido por uma métrica operacional, tão pouco epistemológica: ele
deve ser reconhecido pela fertilidade conceitual que permite engendrar e pela sintonia
com uma nova cultura que então se estabelecia.
***

115
Identificado, na Física Clássica, pelos “arquétipos mecanicistas” que “explicam” os fenômenos
tornando-os “compreensíveis”, isso é, “assimiláveis” pelo senso macroscópico comum. Ao contrário do
coração, “que só entende o que é cruel e o que é paixão”, a razão só entende “o que é ordem e o que é
proporção”: embora isso exclua “quase tudo” de seu campo de ação, ela abarca ainda muito mais que só
“mecanismos”, essa espécie de “maneirismo” da razão utilizado, às vezes com alguma vantagem, para criar
imagens, sempre imperfeitas, do invisível.

387
3.5: EFEITO DOPPLER E RELATIVIDADE RESTRITA

Quando uma onda interage com um corpo em movimento – com um navio, por
exemplo – a freqüência observada no corpo é diferente da freqüência original da onda, a
diferença dependendo da velocidade relativa entre onda e corpo. Essa mudança de
freqüência é conhecida na literatura pelo nome Efeito Doppler e o estudo desse fenômeno
revela a importância do meio através do qual a onda se propaga no estudo de sistemas
mecânicos usuais; como será visto no item (3.5.1) desta seção, ele mostra também, por
contraste, a necessidade de correções profundas no formalismo da Mecânica Clássica no
caso de uma onda prescindir de um meio para se propagar, como ocorre em fenômenos
onde a interação entre corpos se dá à distância, no vácuo, sem que meio algum
intervenha.
Exemplos clássicos de “ação à distância” são a lei de gravitação de Newton,
onde massa atrai massa na razão direta das massas e inversa do quadrado da distância, e a
lei de Coulomb da Eletricidade, onde carga elétrica atrai (ou repele) carga elétrica na
razão direta das cargas e inversa do quadrado da distância: nesses dois casos meio algum
intervém entre os corpos e as forças que aparecem devem-se a uma “ação à distância”.
Se agora uma das massas, por exemplo, for deslocada essa informação é propagada para a
outra massa como uma onda do campo gravitacional, da mesma forma que o movimento
de uma carga origina uma onda do campo eletromagnético, e essas duas ondas
propagam-se no vácuo, isso é, na ausência de qualquer meio.
Na realidade a “ausência de um meio” nunca foi completamente aceita na Física
Clássica e a procura desse meio – o éter em relação ao qual a luz se propagaria –
consumiu mais de 200 anos e não chegou a lugar algum; o abandono do éter exigiu
modificações profundas na Mecânica que se consubstanciaram na Teoria da Relatividade
Restrita, como desenvolvida por Lorentz, Poincaré e Einstein no início do século XX.
Esse foi um dos primeiros marcos da Física Moderna, uma das últimas rupturas com a
escolástica, onde a preocupação residia menos na descrição do fenômeno em si e mais na
tentativa de explicar sua gênese ou, na versão mais moderna, na tentativa de descrevê-lo
em termos de “mecanismos” que tornassem “visível” sua compreensão. A Física
Moderna evita visibilidades herdadas de outros ramos do conhecimento e da própria
Física Clássica, pois o domínio onde atua é inacessível ao visível, aos sentidos, ao senso
comum. Por isso ela é abstrata por natureza e sua linguagem própria é a Matemática; por
isso a dificuldade de traduzi-la na linguagem usual, na semântica do senso comum.
O objetivo neste capítulo é obter os principais resultados da Relatividade Restrita
começando, justamente, com o estudo do Efeito Doppler. Nesse contexto a invariância

388
da velocidade da luz (ou da onda gravitacional) aparece como uma conseqüência da
teoria e não mais como um postulado; o postulado que substitui essa invariância é
justamente aceitar a existência de ondas que prescindam de meio para se propagarem.

3.5.1: Efeito Doppler na Acústica

Doppler propôs em 1842 uma expressão simples que permitia corrigir a


freqüência de uma radiação em função da velocidade relativa entre o emissor dessa
radiação (fonte F) e o receptor R. Considere-se, para fixar idéias, os seguintes problemas
acústicos: no primeiro, indicado por (a) na Fig.(3.24), uma fonte F emite som que é
recebido pelo receptor R que se desloca com velocidade U; no segundo, indicado por (b)
nessa figura, é a fonte que se desloca em relação ao receptor com a mesma velocidade U.

FIG.(3.24): Movimento relativo entre fonte F e receptor R.

Sejam TF o período com que apitos são emitidos pela fonte F e TR(a,b) os períodos
dos apitos percebidos em R nas situações (a) e (b) definidas na Fig.(3.24). No instante t =
0 pode-se considerar que fonte e receptor estejam coincidentes e o primeiro apito é
emitido; portanto tF,1 = tR,1 = 0 é esse tempo. O segundo apito é emitido no tempo tF,2 = TF
e é recebido no receptor no tempo tR,2 = TR(a) no caso do problema (a). Se c for a
velocidade do sinal (isso é, da onda acústica no caso), a distância percorrida pelo sinal do
segundo apito, c(tR,2  tF,2), deve ser igual à distância percorrida pelo receptor R, U(tR,2 
tR,1). Portanto c(TR(a)  TF) = UTR(a) ou

TR(a ) 1
 . (3.75a)
TF 1  U / c

No problema indicado na Fig.(3.23b) a fonte, quando emite o segundo sinal em tF,2


= TF, está distante UTF de R; esse sinal demora o tempo UTF/c para chegar em R e
portanto o segundo apito será recebido no tempo tR,2 = TR(b) = TF + UTF/c ou

389
TR(b)
 1 U / c . (3.75b)
TF

As expressões (3.75a) e (3.75b) são coincidentes em primeira ordem em U/c e


começam a diferir a partir de termos da ordem (U/c)2. Quando U = c o período TR em
(7.1a) é infinito pois o segundo sinal acústico não é recebido em R nessa situação116.
O Princípio da Relatividade de Galileu afirma que as leis da Física, e portanto
medidas realizadas sobre sistemas físicos, serão sempre as mesmas se sistemas de
referências que se movem com velocidades uniformes uns em relações aos outros forem
utilizados. No caso sob consideração, por exemplo, o quociente TR/TF em qualquer um
dos casos analisados será sempre o mesmo, quer se utilize o sistema de referências
indicado ou qualquer outro que se mova em relação a ele com velocidade uniforme.
Isso posto, considere-se o problema (b) no sistema de referências que se move
com a fonte F. De um lado, deve-se obter, segundo o Princípio da Relatividade, o mesmo
valor TR/TF calculado anteriormente e dado por (3.75b); de outro lado, ao se mudar de
sistema de referências recaí-se, aparentemente, no problema (a) da Fig. (3.23), onde o
quociente TR/TF é dado por (3.75a) e é diferente de (3.75b).

FIG.(3.25): Problema (b) visto no sistema de referências que se


move com F(também indicada a velocidade U do meio (vento)).

Essa aparente contradição pode ser removida quando se observa que o problema
(b), visto no sistema de referências onde a fonte F está fixa, exige a presença de um vento
U, como indicado na Fig.(3.25). Ora, c é a velocidade da onda acústica em relação ao
meio (ar) e como o meio se desloca com U, a velocidade da onda acústica em relação ao
“sistema fixo” F é cF = c + U. Utilizando este valor no lugar de c na expressão (3.75a)
obtém-se

116
Na realidade, no caso de ondas acústicas a velocidade da onda c varia com a densidade do fluido e não
pode ser considerada constante quando U  c. Essa variação com uma propriedade do meio é típica nos
sistemas mecânicos usuais, onde as ondas se propagam através de um meio.

390
TR 1 cF
   1 U / c ,
TF 1  U / cF c F  U

que recupera o valor dado em (3.75b).


É evidente, a partir desses cálculos, que as relações (3.75a) e (3.75b), baseadas
nas Transformações de Galileu, só puderam ser reconciliadas com o Princípio da
Relatividade porque a onda sob consideração se propaga através de um meio, cujo
movimento pode ser detectado e deve ser incluído na análise (vento). Como corolário, um
problema de essência aparece se a onda prescindir de um meio para se propagar pois,
nesse caso, não há como reconciliar (3.75a) e (3.75b) com o Princípio da Relatividade.
A análise de ondas que “prescindam de um meio” para se propagarem será
devidamente elaborada no item (3.5.4) desta seção, onde se mostra que a ambigüidade
citada só poderá ser removida quando se considera uma ruptura com os cânones
estabelecidos da Mecânica Clássica. Antes, porém, parece útil que se faça dois parêntesis
nessa exposição, buscando com eles colocar o problema aqui tratado em uma perspectiva
mais clara: no primeiro, explicita-se que cânones são esses da Mecânica Clássica que
serão rompidos mais adiante; no segundo, faz-se um breve histórico da procura incessante
de um meio – o éter – no qual a luz deveria se propagar e a frustração dessa busca.

3.5.2: Princípio da Relatividade e Transformações de Galileu

Galileu (1564-1642) concluiu, a partir de uma série de experimentos sobre o


movimento de corpos, que era impossível se afirmar, de uma forma inequívoca e
absoluta, qual corpo estaria “parado” e qual “andando” quando se observa o movimento
relativo de dois corpos com velocidade uniforme. Essa observação foi incorporada por
Newton na formulação da Mecânica Clássica e veio, posteriormente, a ser denominada de
Princípio da Relatividade de Galileu e Newton. Formalmente ele afirma:

Princípio da Relatividade: As leis da Física devem ser as mesmas, tanto para um


observador fixo como para um observador que tenha uma velocidade uniforme em
relação a ele; portanto não temos, e sequer poderemos ter, qualquer maneira de discernir
se estamos ou não sendo arrastados em tal movimento.

Esse enunciado é devido a Poincaré (1854-1912), um dos mais brilhantes


matemáticos do final do século XIX, e foi apresentado em um trabalho de 1904, ver
Whittaker (1958); ele possui uma importância em si, na medida que estende o Princípio

391
de Galileu e Newton para todas províncias da Física, e uma importância histórica que será
comentada no item final desta seção.

FIG.(3.26): Sistema de Referências F e Sistema de Referências R


movendo-se com velocidade U em relação a F.

Se um sistema R movimenta-se com velocidade U em relação a um sistema F,


como indicado na Fig. (3.25), as transformações de coordenadas, consistentes com as
equações da Mecânica Clássica (Newtoniana), são dadas pelas expressões

tR  tF;
xR  xF  U  tF; (3.76)
v R  v F  U,

e são denominadas Transformações de Galileu. Elas afirmam que o tempo no sistema R


é o mesmo que no sistema F e que as velocidades somam-se vetorialmente.
É trivial verificar que os resultados derivados no item (3.5.1) estão
exclusivamente baseados no Princípio da Relatividade e nas Transformações de Galileu
(3.76)117. Como corolário, pode-se afirmar que qualquer contradição lá observada –
como, por exemplo, no problema do Efeito Doppler para um sistema ondulatório que
prescinda de um meio – ou reside na impossibilidade física do problema proposto (por
exemplo, na impossibilidade física de existir uma onda que prescinda de um meio) ou na
ruptura do Princípio da Relatividade ou na inadequação das Transformações de Galileu.
Na maior parte dos sistemas ondulatórios conhecidos – como no caso das ondas do mar,
das ondas acústicas e das ondas elásticas em sólidos – o meio é dado a priori e não
necessita ser discutido. O sistema ondulatório “imaterial” na Física Clássica, onde meio
algum está definido, é a luz118 e a busca desse meio através do qual a luz deveria se
propagar é um capítulo longo e frustrante da Física, como descrito a seguir.

117
Por exemplo, quando se afirma no problema (a) que a distância percorrida pelo segundo sinal é igual a
c(tR,2  tF,2) a relação tR = tF está sendo (implicitamente) utilizada.
118
Em fins do século XVII a luz já era proposta como um fenômeno ondulatório (Huygens (1629-1695)),
embora não fosse ainda identificada com uma onda eletromagnética; essa identificação só ocorreu cerca de
duzentos anos após com Maxwell (1831-1879).

392
3.5.3: A História do “Éter” na História da Física

Como visto no item (3.5.1), um resultado paradoxal é obtido quando uma onda
“prescinde de um meio” para se propagar. Nos casos usuais da Mecânica, as ondas se
propagam ou em sólidos ou em fluidos e o meio se explicita naturalmente; no caso das
ondas eletromagnéticas – a luz, em particular – não existe evidência material de um meio
através do qual essas ondas se propagam e um esforço considerável foi despendido em
sua busca; quando ela se mostrou infrutífera não restou aos físicos outra opção que
abandonar aquilo que parecia óbvio e tentar o improvável119: essa é a gênese da Teoria da
Relatividade Restrita.
É instrutivo que se faça aqui um breve relato histórico sobre a busca desse meio
pois isso pode colocar, no devido contexto, a situação da Física no início do século XX; o
relato é baseado nos livros de Whittaker (1958) e Abro (1951).
Desde os tempos da Grécia Antiga acreditava-se que a interação entre corpos
ocorria por “contigüidade”, que forças não poderiam existir exceto pela ação direta da
pressão ou impacto. A “ação à distância”, como a observada entre imãs ou entre a Lua e
a maré, não era compreensível para o modo de pensar então vigente. Descartes (1598-
1650) propôs, por isso, que o espaço deveria ser ocupado por um meio que, embora
imperceptível ao sentido, fosse capaz de transmitir forças em corpos nele imersos120.
Esse meio foi denominado “éter”, uma palavra de origem grega significando o “azul do
céu” que passou para as línguas modernas via o latim. A história do “éter” coincide,
segundo Whittaker, com a própria história da Física.
A geração que sucedeu Descartes testemunhou um dos mais retumbantes sucessos
de um tipo de “ação à distância”: a Lei da Gravitação, proposta em 1687 por Newton
(1642-1727). Embora Newton mesmo não aceitasse a noção de “ação à distância” e a
considerasse um absurdo, procurou evitar discussões mais aprofundadas sobre como essa
atração entre corpos poderia ser exercida, sobre um “mecanismo” que a tornasse
compreensível. Sua frase “hypotheses non fingo” (hipóteses não faço) é uma desculpa
para se esquivar desses problemas especulativos e é citada na Literatura como
demonstrativa de sabedoria. Interrompendo, por instantes, a ordem cronológica, é
importante relembrar que Coulomb (1736-1806) propôs, em 1788, uma lei análoga para a

119
“It is an old maxim of mine that when you have excluded the impossible, whatever remains, however
improbable, must be the truth”, Sherlock Holmes apud Bender & Orszag (1978).
120
É importante observar que na proposta de Descartes define-se o “éter” como um atributo do “espaço”: já
lá na sua origem, portanto, “gravidade” e “eletricidade” estavam de certa forma ligadas, pois se reconhecia
a existência de interações que se estabeleciam através de um “espaço vazio” provido, no entanto, de um
“meio etéreo”.

393
atração (ou repulsão) de cargas elétricas. A semelhança entre essas duas leis, aprofundada
pelo fato que ambas referem-se a “ações à distância”, é responsável, sem dúvida, por uma
certa similaridade entre as Teorias da Gravitação e do Eletromagnetismo, como será visto
mais adiante neste capítulo; a diferença que mais intriga, a ausência de massas com
“sinais diferentes”, tem sido objeto de estudo em tempos recentes.
A propagação da luz sempre teve uma posição de destaque no estudo da Física e
duas Teorias competiram, ao longo do tempo, para explicá-la: a primeira, a Teoria
Corpuscular, atribuída em parte a Newton, identificava a luz como uma corrente de
corpúsculos emitidos pelos corpos luminosos; a segunda, a Teoria Ondulatória, é devida
a Huygens (1629-1695). A Teoria Corpuscular explicava qualitativamente bem os
fenômenos da Ótica Geométrica e era capaz de predizer a Lei de Snell da refração
supondo, no entanto, que a velocidade da luz, como a velocidade do som, fosse maior na
água que no ar. A teoria Ondulatória se adequava melhor a uma série de outros
fenômenos óticos e também predizia a Lei de Snell afirmando, no entanto, que a
velocidade da luz no ar deveria ser maior que na água. Somente em 1850 um experimento
clássico de Foucault & Fizeau mostrou que a velocidade na água era menor que no ar e
que portanto a Teoria Ondulatória era correta. No restante deste capítulo nos referiremos
exclusivamente a essa Teoria mas é importante relembrar, como visto na seção (3.4), que
na Mecânica Quântica o dualismo onda-partícula reaparece, não sob forma de confronto,
mas como conceitos complementares.
Na história do “éter” pinçaremos, aqui e ali, nomes de relevância na Física que
contribuíram para formar esse conceito. Euler (1707-1783), por exemplo, insistia com
vigor que o “éter está para a luz como o ar está para o som” e, antecipando Maxwell, já
propunha então que “eletricidade” e “luz” eram fenômenos com uma mesma origem;
essa relação foi formalmente proposta por Maxwell (1831-1879) em seu estudo sobre o
Eletromagnetismo, publicado em 1864, e verificada experimentalmente por Kerr em 1875
e, de uma maneira mais abrangente, por Hertz em 1888.
Young (1773-1829) e Fresnel (1788-1827), os principais responsáveis pelo
desenvolvimento da Teoria Ondulatória da luz, postulavam que o “éter” era um meio
elástico, com deformações controladas pelas leis da Mecânica e onde as ondas de luz
eram propagadas. Maxwell também imaginava o “éter” como um sólido elástico, onde a
energia magnética seria a energia cinética do meio e a energia elétrica sua energia de
deformação; muitos resultados da Teoria Eletromagnética por ele proposta foram obtidos
a partir dessa analogia e o sucesso inequívoco de seu trabalho ajudou, certamente, a
reforçar ainda mais a importância do “éter” na Física. Quase simultaneamente, no
entanto, o próprio esforço de dar substância ao “éter”, de provê-lo com propriedades

394
mecânicas que ele, enquanto meio, deveria possuir, começou a miná-lo como um
conceito relevante para a Física.
Pois, acima de tudo, o “éter” é intangível e sua substância foi construída a partir
de exercícios especulativos, onde propriedades desse meio eram propostas para que se
alcançasse os resultados desejados. Nesse contexto, por si só, o “éter” já perde quase toda
sua importância, pois funciona mais como um amuleto apaziguador do espírito que como
uma força viva do desenvolvimento teórico; ele torna-se quase uma reminiscência da
escolástica, onde os conceitos existem mais para acomodar os fatos da Natureza a uma
pré-concepção metafísica (no caso, o inconformismo com a “ação à distância”) que para
ordenar as idéias e promover a descrição do fenômeno. À parte isso – e esse foi um
comentário pessoal – é certo que uma série de diferenças, algumas delas irreconciliáveis,
existiram entre as distintas concepções de “éter” concebidas pelos cientistas.
Não entraremos aqui na discussão dos vários modelos propostos – existe um
capítulo inteiro de Whittaker dedicado a esse tema – mas centraremos a atenção em um
aspecto que parece da maior relevância: ele diz respeito ao movimento relativo entre o
“éter” e os corpos em geral. Embora alguns físicos, Hertz e Stokes entre eles,
defendessem a idéia que o “éter”, como um fluido, deveria ser arrastado pelo corpo em
movimento, essa é uma idéia estranha para algo que se pretenda como “meio” e parece
não ter contado com muitos adeptos na comunidade científica; a maioria entendia que
algum movimento relativo entre o corpo e o “éter” deveria existir e poderia ser detectado
pelo Efeito Doppler, de maneira similar ao estudado no item (3.5.1).
Michelson & Morley (1887) montaram um aparato ótico com a finalidade de
medir os padrões de interferência (freqüência) quando raios de luz propagam-se na
direção do movimento de translação da Terra e na direção perpendicular a ela; pois se a
Terra se movimentar através do “éter” um “vento”, como o observado na Fig. (3.24),
deve existir e modificar o padrão de interferência. O experimento forneceu um resultado
totalmente negativo: nenhuma diferença foi observada.
Michelson & Morley concluíram pela inexistência do movimento relativo entre o
“éter” e a Terra, mas poderiam ter concluído também pela simples inexistência do próprio
“éter”. No final do século XIX a comunidade científica concebia essa entidade em uma
forma próxima da definida por Lamor em 1900: como sendo um “meio imaterial”, suis
generis, não composto de elementos identificáveis e não possuindo uma localização
definida no espaço.
De uma certa maneira essa é uma forma eufêmica de se dizer que o “éter” é nada,
que não existe meio através do qual as ondas eletromagnéticas se propagam. Essa idéia
será alçada à condição de Postulado na próxima seção.

395
3.5.4: Efeito Doppler Revisitado: Transformação de Lorentz

Abandonada a idéia do “éter” e aceita, portanto, a noção que corpos podem exercer
forças sobre corpos sem a intermediação de meio algum, três conceitos coexistiam no
início do século XX, incompatíveis entre si; eles são:

i) O Princípio da Relatividade;
ii) As Transformações de Galileu (3.76);
iii) A existência de ondas que prescindam de um meio para se propagarem.

Desses três conceitos o mais intuitivo e direto é o relacionado às Transformações de


Galileu – ele pertence, de certa forma, à nossa experiência cotidiana –, mas é justamente
ele que tem que ser modificado: a procura inútil de um “éter” mostrou que temos de
aceitar a existência de ondas que prescindam de um meio para se propagarem e o
Princípio da Relatividade é um alicerce fundamental de toda Física. De outro lado, as
Transformações de Galileu já indicam que a coordenada xR do “sistema móvel” R
depende tanto da coordenada xF do “sistema fixo” como do seu tempo tF e um argumento
simples sugere que o mesmo deve ocorrer para o tempo tR: se R e F coincidirem em um
certo tempo tR = tF = 0 e um cronômetro for acionado em R e parado 10s. após (medido
em R) essa informação chegará em F depois, pois o sinal tem uma velocidade finita de
propagação e deve percorrer a distância xF que separa R e F no momento em que o
cronômetro é parado. A duração do evento em R aparece em F como se fosse mais longa
e o tempo tR deve ser, portanto, função não só do tempo tF como também da coordenada
xF. Genericamente deve-se ter

t R  (t F , x F );
(3.77a)
x R  (t F , x F ),

onde {(,);(,)} são funções arbitrárias por ora.


O Princípio da Relatividade impõe, no entanto, restrições severas sobre essas
funções. De fato, se vF = dxF/dtF for a velocidade no “sistema fixo” F e vR = dxR/dtR for a
velocidade no “sistema móvel” R, de (3.77a) segue que

vR 
  / t F   vF   / x F  . (3.77b)
  / t F   vF   / x F 

396
Se uma partícula em F estiver se deslocando com velocidade uniforme – isso é, se
vF = cte. e a aceleração da partícula for nula – o Princípio da Relatividade obriga que a
aceleração em R seja também nula, ou vR = cte. e portanto independente de xF e tF. Isso
exige que as derivadas parciais (/tF), (/xF), (/tF), (/xF) sejam constantes ou,
dito de outra forma, que

xR    xF    tF;
(3.78a)
tR    xF    tF.

Invertendo esse sistema tem-se também que

 
xF  xR  tR ;
     
(3.78b)
 
tF   xR  tR ,
     

e alguns argumentos simples podem ser utilizados para determinar relações entre os
coeficientes , ,  e . De fato, a origem xR = 0 do “sistema móvel” R desloca-se com
velocidade + U em relação ao “sistema fixo” F e assim, de (3.78a), segue que U = xF/tF =
 / (xR = 0); de outro lado, a origem xF = 0 do “sistema fixo” F desloca-se com
velocidade  U em relação ao “sistema móvel” R e assim, de (3.78b), segue que U = 
xR/tR =  / (xF = 0); portanto  =  > 0, pois xR/xF >0. A escolha do sistema F como
“fixo” e do sistema R como “móvel” é arbitrária, posto que o Princípio da Relatividade
estipula a perfeita equivalência entre ambos: no sistema de referências R este sistema é
“fixo” e o sistema F translada-se para a esquerda com a velocidade  U; efetuando a troca
{tF  tR; xF   xR} o sistema móvel e fixo invertem posições e de (3.78b) obtém-se

 
x R   xF  tF;
     
    (3.78c)
 
tR  xF  tF ,
     

e como  = , (3.78c) coincide com (3.78a) se e somente se    = 1; as seguintes


relações devem portanto ser satisfeitas entre os coeficientes , ,  e :

397
U   / ;
    0; (3.78d)
    1.

Expressando todos coeficientes em função de U e  conclui-se que o Princípio da


Relatividade restringe (3.78a) à seguinte família uni-paramétrica de transformações
lineares (o coeficiente  > 0 desempenha o papel de parâmetro)

 x R    x F  Ut F  ;  x F    x R  Ut R  ;
 2  1 x F    2  1 x R  (3.79a)
 t R    2  tF  ;  tF    2  tR  ,
  U    U 

de onde se obtém a seguinte lei de transformação das velocidades:

vF  U
vR  . (3.79b)
2  1 vF
1
2 U

O valor  = 1 corresponde justamente às Transformações de Galileu e não há


nada, até esse momento ao menos, que privilegie essa escolha em detrimento de outras. É
óbvio que deve ser explicado, no final, por que essas transformações aparecem de forma
tão natural na Mecânica Clássica, mas, no presente estágio, a questão posta é a seguinte:
na medida que se postula a existência de ondas que se propagam na ausência de um
meio, o parâmetro  deve ser escolhido de forma a remover a ambigüidade observada
entre (3.75a) e (3.75b).
O procedimento a ser seguido é simples de ser exposto: utilizando (3.79a)
podemos calcular o período TR(a) observado no referencial R no problema da Fig. (3.24a)
e o período TR(b) observado nesse mesmo referencial no problema da Fig.(3.24b), supondo
que o sinal se propague com a velocidade c dessa onda que prescinde de meio; como a
onda com celeridade c se propaga na ausência de um meio, o Princípio da Relatividade
impõe a igualdade TR(a) = TR(b) e dessa relação devemos extrair o valor de .
Reconhecemos aqui três eventos distintos, a saber,

i) Emissão do primeiro sinal em F (xF(1) = xR(1) = 0; tF(1) = tR(1) = 0);


ii) Emissão do segundo sinal em F (xF(2) = 0; tF(2) = TF);
iii) Recepção do segundo sinal em R (xR(3) = 0; tR(3) = TR),

398
e, para evitar ambigüidades, suporemos, como no problema acústico ( = 1), que a
celeridade c da onda é aquela que se observa no sistema fixo em relação ao chão, ver
Fig.(3.25).
No problema (a) o “sistema fixo” é a fonte F e o “sistema móvel” é o receptor R
que se desloca para a direita com velocidade + U. O evento (iii) é caracterizado, no
sistema F, pelas coordenadas {xF(3) = UtR(3) = UTR; tF(3) = TR}, ver (3.79a): o
sinal percorre a distância xF = xF(3)  xF(2) = UTR no interval de tempo tF = tF(3) 
tF(2) = TR  TF e portanto ctF = xF, de onde segue

TR(a ) 1
 . (3.80a)
TF (1  U / c)

No problema (b) o “sistema fixo” é o receptor R e o evento (ii) é caracterizado


neste sistema pelas coordenadas {xR(2) =  UtF(2) =  UTF; tR(2) = TF}, ver
(3.379a): o sinal percorre a distância xR = xR(3)  xR(2) = UTF no interval de tempo
tR = tR(3)  tR(2) = TR  TF e portanto ctR = xR ou

TR( b)
  1  U / c  . (3.80b)
TF

Os resultados (3.80a,b) recuperam, como esperado, as “expressões acústicas”


(3.75a,b) quando  = 1 (Transformações de Galileu) e impondo a igualdade TR(a) = TR(b)
obtém-se

1
  0. (3.81a)
1  (U / c) 2

Esse é o único valor de  capaz de reconciliar o Efeito Doppler com a existência


de ondas que prescindam de meio para se propagarem. Utilizando (3.81a) em (3.79a,b)
chega-se a

 x 
t R    t F  (U / c) 2 F  ;
 U
x R    x F  U  t F ; (3.81b)
vF  U
vR  ,
1   U / c   vF / U
2

399
que são as Transformações de Lorentz obtidas em 1903 por Lorentz.
Relembrando que c é a velocidade da onda que prescinde de um meio para se
propagar, se vF = c em (3.81b) então vR = c: a velocidade dessa classe de ondas é
invariante, isso é, é sempre a mesma em qualquer sistema inercial deslocando-se
uniformemente em relação a outro sistema inercial. De (3.81a) segue também que U  c e
portanto a celeridade c dessas ondas é a máxima velocidade possível. Em outras palavras:
toda onda que prescinde de um meio propaga-se com a mesma velocidade c, o máximo
valor possível da velocidade. Portanto c é a velocidade da luz no vácuo, pois a luz é uma
onda que prescinde de meio (do “éter”); as ondas gravitacionais, que também prescindem
de um meio, propagam-se com a mesma velocidade c da luz e ela é a maior velocidade
possível.
Se a velocidade da luz c fosse infinita as Transformações de Lorentz (3.81b) se
reduziriam às Transformações de Galileu ou, em outras palavras, a Mecânica Clássica é o
limite da Mecânica Relativística quando U/c  0; usualmente U/c << 1 e as
Transformações de Galileu (U/c = 0) podem ser, por isso, utilizadas em primeira
aproximação.
Veremos, a seguir, como certas relações conhecidas da Teoria Restrita da
Relatividade podem ser recuperadas a partir de (3.81) e do uso, ainda que informal, da
idéia de invariância, que já marcara presença na Mecânica Lagrangeana e é elevada ao
status de princípio na formulação de Minkowski da Relatividade.

3.5.5: Dilatação do Tempo e Contração do Comprimento

Com o intuito de tornar mais direta a exposição diremos, a seguir, que o sistema F
é “estacionário” e o sistema R, que se desloca em relação a F com velocidade U, é
“móvel”; queremos determinar como um intervalo de tempo T = TR e um
comprimento l = lR medidos no sistema “móvel” R aparecem no sistema
“estacionário” F.
Um intervalo de tempo T = TR, associado à duração de um evento em R, deve
ser medido em um ponto fixo do sistema “móvel”; sem perda de generalidade suporemos
que esse ponto coincida com a origem xR = 0. Utilizando as Transformações de Lorentz
(3.81b) concluímos que xF = UtF e assim tR = [1  (U/c)2]tF = tF/. Portanto TF =
TR = T e como  > 1 diz-se que “o tempo se dilata quando medido no sistema
estacionário”.
O comprimento de uma régua fixa no “sistema móvel” R é dado pela diferença de
coordenadas de suas extremidades: l = lR = xR,2  xR,1; o comprimento dessa mesma

400
régua, medido no sistema “estacionário” em um certo instante tF, é também dado pela
diferença de coordenadas de suas extremidades: lF = xF,2  xF,1. De (3.81b) tem-se xR,j =
[ xF,j  UtF] e portanto lR = lF ou lF = l/; como  > 1 diz-se que “o
comprimento se contrai quando medido no sistema estacionário”.
É claro que nem a contração do comprimento nem a dilatação do tempo têm
caráter absoluto: um intervalo de tempo medido na origem do sistema “estacionário” será
visto dilatado no sistema “móvel”, por exemplo.

3.5.6: Energia e Quantidade de Movimento de uma Partícula

Consideremos aqui, para início de discussão, uma partícula de massa mo


deslocando-se com velocidade U em relação a um sistema (F) fixo no espaço. Se (R) for
o sistema de referências fixo na partícula, sejam ER a energia da partícula observada no
sistema (R) e EF a energia observada em (F), ver Fig.(3.27). Pretende-se estabelecer uma
relação entre EF e ER compatível com os princípios da Relatividade.

FIG.(3.27): Partícula de massa mo deslocando-se com velocidade U.


(ER: energia no sistema da partícula; EF: energia no sistema espacial).

A energia em si tem pouco significado físico – é a diferença de energias que


importa – e podemos introduzir aqui um “piso de energia” correspondente a uma
partícula parada com massa mo: se c for a velocidade da luz definimos o “piso de
energia” por121 ER = moc2. No sistema de referências fixo no espaço, em relação ao qual a
partícula se desloca com velocidade U, definimos a energia EF por uma expressão
formalmente idêntica a ER, ou seja: EF = mc2, com m sendo interpretada como a inércia
da partícula observada no sistema (F). Esta definição preserva a forma da expressão da
energia e traduz uma idéia de invariância: as equações da física devem ter a mesma

121
Essa definição é inspirada na fórmula clássica de Einstein E = mc2 mas não tem, nesse argumento,
significado físico algum: ela serve somente como um valor de referência. A relação E = mc2, esta sim,
tem um significado físico profundo, como discutido no item (3.5.8) desta seção.

401
forma quando expressas em sistemas de referências que se movimentam com velocidade
uniforme uns em relação aos outros.
A relação entre EF e ER deve ser função do “parâmetro relativista”  introduzido
em (3.81a) e assim

 E F  mc2 ;  m 1
2 
 E F  f ( )  E R  f ( )  com    1 . (3.82a)
 E R  m oc ;  mo 1   U / c
2

Para identificar a função f() precisamos, agora sim, introduzir um pouco de


Física. O raciocínio pode ser guiado aqui por um princípio que perpassa toda Física e é
designado, pelo menos no contexto da Mecânica Quântica, de Princípio da
Correspondência: nos limites da Física Clássica – isso é, no limite U/c  0 no presente
caso – a relação clássica entre EF e ER deve ser recuperada. Na Física Clássica a energia
cinética T da partícula é definida pela diferença entre EF e ER e portanto

m
T  E F  E R  ½ mo U 2   f ()  1  ½  U / c    quando U / c  1 (3.82b)
2

mo

e assim f() =  é uma escolha consistente para a função f(). Concluindo

 mo c2

 F E  mc 2
 ;
1  U / c
2
mo 
m   (3.82c)
1  U / c  p  mU 
2 mo U
,
 F
  
2
 1 U / c

que são as expressões relativistas da energia e quantidade de movimento de uma partícula


livre com massa em repouso mo e velocidade U.

3.5.7: Constante de Planck e “Invariante Adiabático”

Seja uma onda plana que se propaga no espaço caracterizada, como indicado na
Fig.(3.28), pela energia por unidade de “volume” E, pelo número de onda k, freqüência 
e direção  em relação ao eixo x. Pretende-se definir as relações cinemáticas entre os
valores {F; kF; F} observados no sistema F e os valores {R; kR; R} observados no

402
sistema R, que se desloca com velocidade Ui em relação a F, e também a relação
dinâmica entre as energias EF e ER.

FIG.(3.28): Onda nos sistemas F e R, que se desloca com velocidade Ui.

Para as relações cinemáticas basta impor a invariância da fase

  k R  x R  cos R  y R  sin R   R t R ; c R  R / k R ,

pois cristas e cavas devem ser observadas como cristas e cavas em F e R; como xR =
[xF  UtR]; yR = yF; tR = [tF  (U/c)2xF/U] tem-se

  c U   U
  k R    cos R  R   x F  sin R  y F   R  1  cos R   t F 
  c c   cR 
 k F  cos F  x F  sin F  y F   F t F ,

com

F  U 
     1  cos R  ;
R  cR 
1/ 2
  (3.83a)
  2
 
 cR U    cr 
2
kF (U / c) 
     1  cos R     1  sin R      1 
2
,
 c c   c    2
kR
   1  cos  r  
c U
 
 c c  
R

sin R
tan F  . (3.83b)
 c U
   cos R  R 
 c c

403
A mudança na direção de propagação é denominada fenômeno da aberração122 e
para R = F = 0 tem-se

F c U
cF   R
k F 1  cR U
,   0 
(3.83c)

c c

de acordo com (3.81b); também, como RTR = FTF = 2, de (3.80b) obtém-se F/R =
TR/TF = (1+U/c), que coincide com (3.83a) quando R = 0.
Para estabelecer a regra de transformação da energia irradiada pela onda
precisamos definir o invariante que caracteriza esta entidade e podemos aqui ir direto ao
ponto: o fóton, a “partícula” de luz, tem energia E   , uma relação universal a obrigar
a invariância da constante de Planck  ; portanto E/, o “invariante adiabático” do item
(3.2.1), é aqui também invariante e EF = ER(F/R) , de onde segue, para qualquer onda,

E F   1  (U / c R ) cos R   E R , (3.84c)

pois Ucos R é a velocidade de R na direção de propagação da onda, ver Fig.(3.28).


Finalizando, o uso de argumentos informais123, como os aqui em parte utilizados,
pode se tornar embaraçoso em algumas circunstâncias. Minkowski (1864-1909) em 1908
apresentou um trabalho seminal sobre o espaço-tempo que é a base formal de toda a
Relatividade e onde a questão de invariância e regras de transformação é tratada
rigorosamente, ver Lorentz et al. (1952).

122
De ab-errare: afastar na direção errada, desviar. Bradley verificou em 1728, um ano após a morte de
Newton, que o desvio angular observado ao longo do ano na posição de estrelas distantes era devido à
variação do sentido da velocidade do ponto de observação, isso é, da velocidade da Terra em torno do Sol.
Esse desvio angular, da ordem de 2”, permitiu mostrar que a velocidade da luz é 104 vezes maior que a
velocidade da Terra e observando que a distância do Sol à Terra é da ordem de 150x106 km, Bradley
concluiu que a velocidade da luz é da ordem de 300.000 km/s, um valor muito próximo do correto. O
desvio angular pode ser obtido de (3.83b) – por exemplo, se F = /2 então R = /2   com   tan  =
U/c –, mas é curioso observar que Bradley, contemporâneo de Newton, entendia a luz como “corpúsculos
luminosos” emitidos pela fonte (estrela), a relação tan  = U/c sendo então obtida pela soma vetorial da
velocidade desses corpúsculos com a velocidade da Terra; ou seja, uma concepção incorreta, mas plausível,
pode às vezes nos levar mais facilmente à uma conclusão correta. Nesse relato do fenômeno da aberração
impressiona, também, a precisão experimental de 2”, reafirmando como o desenvolvimento teórico apóia-
se, em parte ao menos, no desenvolvimento tecnológico.
123
A “informalidade” do argumento pode ser reconhecida na identificação f() =  em (3.82) ou mesmo na
“invariância” de E/, invocando-se tanto a invariância da constante de Planck como do invariante
adiabático da Mecânica Ondulatória. Mas ele tem a virtude de explorar, mais uma vez, uma rota mais
intuitiva quando o argumento formal não se apresenta ainda de forma nítida.

404
3.5.8: Relação Entre Inércia e Energia124: E = mc2

Um dos resultados mais marcantes da Teoria da Relatividade é a conversão entre


energia e massa expressa pela famosa relação E = mc2. Como será visto nesta seção, esse
resultado pode ser obtido através de um argumento singelo, mas certamente não ingênuo,
utilizado por Einstein em 1905 na discussão de como a energia irradiada (onda) pode ser
relacionada quando vista em dois sistemas inerciais distintos.
Consideremos, primeiro, o problema indicado na Fig.(3.29), e seja ER,0 a energia
do corpo de massa mo no sistema “móvel” (R) que se desloca com velocidade U; a
energia no sistema “estacionário” (F) é EF,0 e a diferença EF,0  ER,0 entre as energias dos
sistemas “estacionário” e “móvel” é justamente a energia cinética T0 da massa mo: T0 =
EF,0  ER,0  ½ moU2 se supusermos U/c << 1.

FIG.(3.29): Partícula de massa mo deslocando-se com velocidade


U e irradiando energia ½ E nas direções  e  + .

Suponhamos agora que em um certo instante o corpo emita uma radiação


na direção  com energia ½ E e outra na direção  +  com a mesma energia ½ E, ver
esquema apresentado na Fig.(3.29), emulando uma radiação de energia simétrica em
todas as direções. Se ER,1 for a energia do corpo observada em (R) depois da emissão,
conservação de energia implica em

E R ,1  E R ,0  E . (3.85a)

No sistema “estacionário” (F) a variação de energia pode ser calculada com o


auxílio de (3.84c); de fato

 U   U 
E F,1  E F,0  ½  1  cos    E  ½  1  cos    E
 c   c 

e portanto

124
O argumento nessa seção segue, em linhas gerais, o trabalho original de Einstein “Does the inertia of a
body depend upon its energy-content?” publicado em 1905; ver Lorentz et al. (1952), Dover.

405
E F,1  E F,0    E . (3.85b)

A energia cinética T1 = EF,1  ER,1 é assim dada por (T0 = EF,0  ER,0)

T1  E F,1  E R ,1  T0     1  E ,

a perda T de energia cinética do corpo podendo ser expressa na forma

 E 
T  T0  T1     1  E  ½  2  U 2 para U/c << 1. (3.85c)
c 

Quando o corpo com massa mo e velocidade U emite uma radiação com energia
E sua energia cinética passa de ½ moU2 para ½ (mo  E/c2)U2 ou, em outras palavras: a
emissão de energia E implica em um decréscimo da massa por um valor m definido
pela expressão

E  m  c 2 . (3.86)

Essa é uma das mais famosas relações da Física Moderna e mostra que a um
pequeno decréscimo na massa está associada uma brutal liberação de energia, pois c =
300000km/s. Em reações nucleares, por exemplo, elementos pesados são bombardeados
com partículas (nêutrons) e desintegram-se, transformando-se em elementos com menor
massa atômica; a diferença de massa é em parte compensada pela emissão de partículas e
em parte por uma tremenda liberação de energia, com conseqüência conhecida e
devastadora.

3.5.9: Comentários Finais

Ao longo da exposição da Teoria da Relatividade Restrita feita neste capítulo o


nome de Einstein foi propositadamente omitido, a menos do item (3.5.8), para que sua
menção não ofuscasse a contribuição notável de Poincaré no desenvolvimento dessa
Teoria.
Já em 1899 esse matemático francês antevia que os problemas postos pelo
Eletromagnetismo não seriam provavelmente elucidados por qualquer idéia relacionada
com o “éter”; ele dizia então que “considerava bastante provável que os fenômenos óticos
dependessem somente do movimento relativo entre os corpos, das fontes de luz e dos
aparatos óticos utilizados”. Em 1900 Poincaré afirmava: “Nosso éter, ele existe

406
realmente? Eu não acredito que observações mais precisas possam revelar algo mais que
deslocamentos relativos”; no mesmo ano ele também sugeria que a energia
eletromagnética deveria produzir uma densidade de massa igual a 1/c2 ou E = mc2. Em
1903 Lorentz derivou as equações de transformação (3.81b) e em 1904 Poincaré
enunciava o Princípio da Relatividade e terminava sua exposição afirmando: “de todos
esses resultados deve surgir uma nova espécie de dinâmica que será caracterizada, acima
de tudo, pela regra que nenhuma velocidade pode exceder a velocidade da luz”
Somente em 1905 Einstein publicava seus trabalhos acerca da Relatividade, no
mesmo número da Revista onde dois outros trabalhos seus eram publicados: um sobre o
movimento Browniano e outro sobre o efeito foto-elétrico, que viria a lhe dar o Prêmio
Nobel em 1921. Em seu trabalho sobre a Relatividade, Einstein não faz referência ao
trabalho de Poincaré, embora aparentemente o conhecesse, e essa omissão, se não lhe tira
os méritos, tisnou sua reputação para pelo menos parte da comunidade acadêmica.
A precedência de Poincaré e Lorentz na antevisão dos resultados mais importantes
da Teoria da Relatividade Restrita – e, certamente, as comentadas omissões de Einstein –
levaram Whittaker a praticamente ignorar Einstein como um dos mentores dessa Teoria.
Embora os nomes de Poincaré e Lorentz não devam ser omitidos, a posição de Whittaker
parece ser exagerada no sentido oposto. Pois se Poincaré anteviu os resultados ele não os
apresentou de uma maneira formal e se Lorentz derivou formalmente as expressões
(3.81b) seu raciocínio físico foi frágil em demasia para que pudesse ser considerado a
origem de uma nova Teoria. Somente Einstein foi capaz de unir o arquétipo teórico de
Poincaré com uma derivação formal dos resultados, dando substância à Teoria que então
se iniciava; mais que isso, ele foi o primeiro a reconhecer que a idéia intuitiva de
“simultaneidade” de eventos em sistemas de referências com movimentos relativos
necessitava de uma definição mais precisa, posto que o sinal tem uma velocidade finita de
propagação. Por isso talvez os créditos hoje pertençam exclusivamente a ele, o que
também não faz justiça a Poincaré.
Alguns trabalhos importantes sobre a origem da Relatividade, incluindo todos de
Einstein, encontram-se condensados em um livro editado por A. Sommerfeld (ver
Lorentz et al. (1952)); o item (3.5.8) deste capítulo segue, com alguma fidelidade, o
trabalho de Einstein relacionado ao tema.
Além de mostrar a importância do “meio” na propagação de ondas dos sistemas
mecânicos usuais, o propósito desta seção, como da anterior, foi também o de tentar
fornecer um certo panorama sobre o início da Física Moderna enfatizando,
principalmente, a mudança de postura inevitável que esse desenvolvimento impôs.

407
Como regra geral a Física Clássica, de Descartes até o final do século XIX,
compreendia os fenômenos não como coisas em si, mas sim através de “modelos
mecânicos” que os “visualizavam”, que os tornavam inteligíveis; só o “visível” – isso é, o
“compreensível” em um arquétipo pré-estabelecido – era aceitável no imaginário
invisível da tradição e o “visível” era o universo da Mecânica. De uma certa forma, o
“mecanicismo” continha ainda um resíduo do pensamento escolástico125, preso que estava
a uma certa estética e semântica do “cotidiano deificado”, isso é, a uma percepção quase
sensorial induzida por uma certa pré-concepção do real. Se, entre outros pecados, Galileu
havia sido criticado por observar, com um telescópio, as crateras da Lua e conspurcar
assim a forma esférica perfeita, pois a perfeição é um atributo da divindade126, a
“inquisição do mecanicismo”, embora mais sutil e menos violenta, foi também
persistente: 300 anos, por exemplo, foram necessários para acomodar o pensamento a
uma realidade que os olhos não vê e os demais sentidos não sentem, a “ação à
distância”.
Os primeiros 30 anos do século XX testemunharam uma ruptura global com o
pensamento clássico na Filosofia, Arte e Ciência. O movimento impresso pela
relatividade na Física se aprofundou e se completou com a Mecânica Quântica, onde a
própria questão da observabilidade teve que ser redefinida: segundo Einstein é a teoria
que diz o que pode ou não ser observado por que a teoria é o olho do cientista. A
abstração na Física Moderna torna a semântica do senso comum quase incapaz de
descrever os fenômenos e força o aparecimento de expressões híbridas, como o dualismo
onda-partícula da Mecânica Quântica, por exemplo. Essa mesma abstração reaparece na
pintura da época de forma evidente, na música de Debussy e Stravinsky na forma de uma
certa dissonância que quebrava a harmonia clássica, na literatura de Joyce e Eliot na
forma de ruptura cronológica, de labirintos e despistes que enovelam e confundem a
narrativa habitual para reapresentar as mesmas sempre tensões com uma nova feição, e
em uma corrente filosófica, talvez a mais característica desse começo de século, a

125
Escolástica: pensamento cristão da Idade Média, baseado na tentativa de conciliação entre um ideal de
racionalidade, corporificado esp. na tradição grega do platonismo e aristotelismo, e a experiência de
contato direto com a verdade revelada, tal como a concebe a fé cristã (Houaiss).
126
O “inquisidor”, contestando Galileu, afirmou que aquelas crateras que Galileu havia visto estavam, na
realidade, cobertas por “matéria invisível” que reconstituíam a esfericidade perfeita que a Lua, a fortiori,
deveria possuir. Galileu retrucou então, com seu humor cauteloso mas obstinado, que concordava com o
“inquisidor” mas que pressentia também a existência de montanhas imensas feitas daquele mesmo
“material invisível”, ver A.Berry (1898) “A Short History of Astronomy”.

408
Fenomenologia de Husserl, que buscava justamente situar o “fenômeno em si” abstraído
de seu contexto usual, “entre parêntesis”127.
Os primeiros 30 anos desse século presenciaram, também, o primeiro conflito
mundial, contemplaram as promessas da Revolução de 1917 e incubaram o “ovo da
serpente”, a gestação do nazismo após a hiper-inflação de 1923 na Alemanha; esses anos
atestam, mais uma vez ainda, o tortuoso e ambíguo caminho da humanidade, com seu
“prodigioso e frágil destino”.
***

127
Ortega y Gasset, discípulo de Husserl, escreveu em 1914 em Meditações do Quixote: “O martelo é a
abstração de cada uma de suas marteladas. Não existem mais que partes da realidade; o todo é a abstração
das partes e delas necessita.  Todo o genérico, todo o apreendido, todo o alcançado na cultura é só a volta
tática que temos de tomar para nos dirigirmos ao imediato”. “Eu sou eu e minhas circunstâncias” dizia esse
autor e, no entanto, a teoria é a abstração dos detalhes, dessas circunstâncias. Se para o filósofo a fuga dos
arquétipos clássicos representava, no nível do indivíduo (da “existência”), o distanciamento do
conhecimento genérico e abstrato, originalmente proposto pela escolástica, e a volta à apreensão do
“imediato”, já a Ciência (e, em larga medida, também a Arte) buscava sua “essência” nessa distância, na
distância do “mecanicismo” no caso da Ciência, fugindo das imagens e da linguagem genérica do senso
comum, impregnadas que estavam pela cultura então vigente: pois se “é a teoria (cultura) que diz o que é
observável ou não” é porque ela marca com sua cor as coisas do mundo imediato tornando-as “visíveis” e
só uma nova “cultura” seria capaz de colorir aquilo que antes era opaco, invisível, ignorado. De certa
forma, portanto, mesmo tendo em conta os movimentos aparentemente opostos, a Filosofia, a Arte e a
Ciência buscavam, todas elas, a formatação de uma nova cultura que passava, necessariamente, pela ruptura
com a tradição escolástica; porque, se “Deus não existe tudo é licito”, até o Princípio da Incerteza; ou, em
outras palavras, somente nesse ambiente cultural, somente nele poderia germinar um conceito tão estranho
como esse que propunha, de certa forma, uma espécie de “livre arbítrio” da Natureza e que só poderia se
explicitar em uma linguagem mais abstrata, mais distanciada da “semântica cotidiana”. E é nesse ponto, na
distância e na crítica da linguagem habitual e da estrutura de pensamento – da cultura – que lhe dava
suporte, é aí que a Filosofia, a Arte e a Ciência do primeiro terço do século XX confluem de forma tão
igual, na forma às vezes tão diversa.

409
3.6: RESISTÊNCIA DE ONDA EM EMBARCAÇÕES DE SUPERFÍCIE

O assunto que abre o presente capítulo – a resistência de onda em embarcações –


será discutido nesta seção. O navio é um corpo esbelto identificado por suas dimensões
principais – comprimento l, boca b << l, calado t << l –, por seu deslocamento (volume
submerso)  e sua superfície molhada S. Para fixar idéias, suporemos nessa análise que a
geometria do navio coincida com um “prisma elíptico”, como indicado na Fig.(3.29a),
onde  = ¼blt, S  2lt + ¼bl e {b/l; t/l} << 1; U é a velocidade de avanço do navio.

FIG. (3.29): (a): Prisma elíptico (“navio”) com comprimento l, boca b e calado t,
indicando sentido de u nas vizinhanças do corpo de “entrada” (+) e “saída” ().
(b): Esteira em forma de cunha deixada pelo navio e “amplitude típica” aT da onda.

A superfície molhada S é usualmente expressa na forma,


 S  2tl  bl  l bt  CS ;
4
(3.87a)
t  b
 CS (b / t )  2  ,
b 4 t

o valor de CS variando fracamente com b/t para valores usuais desse parâmetro
geométrico: o mínimo de CS ocorre para b/t = 8/  2.546 (CS(8/)  2.51) e dado que
usualmente b/t  3 (CS(3)  2.52) pode-se supor CS  2.52 em uma primeira aproximação.
Na esteira deixada pelo corpo duas escalas de comprimento devem ser
reconhecidas: uma geométrica, o próprio comprimento l do navio; outra ondulatória, k1
= U2/g, relacionada ao comprimento da onda deixada na esteira com velocidade de fase
igual à velocidade U do navio. A raiz quadrada do quociente entre essas duas escalas
define o número de Froude,
U 1
Fl   , (3.87b)
gl kl

410
e desempenha, como será visto, papel fundamental na resistência de onda.
Como l é a escala geométrica de comprimento na esteira, seja a seção de largura l
na cunha formada pela perturbação, ver Fig.(3.29b): se aT for a amplitude típica nessa
seção, o arrasto pode ser estimado, com o auxílio de (3.18a), pela expressão
D W  ¼ gaT 2  l

e portanto a estimativa do coeficiente de resistência de onda fica dada por (ver (3.87a))

DW 1 1 aT2
CW   ½ . (3.87c)
½U 2S CS Fl2 l bt

No sistema de referências fixo no navio observa-se uma corrente uniforme U, da


direita para a esquerda, e a “amplitude típica” aT da onda gerada na esteira resulta da
perturbação causada pelo navio na corrente uniforme. Portanto aT deve estar, de alguma
forma, relacionada à geometria do corpo e o propósito a seguir é explicitar essa
dependência a partir de uma análise baseada em princípios físicos básicos e em
argumentos de escala.
Quando o navio avança em águas calmas seu “corpo de entrada” (proa) funciona
como uma cunha, “expulsando” o fluido para o lado, enquanto seu “corpo de saída”
(popa) deixa um vazio que “suga” o fluido na parte de ré da embarcação, como
esquematicamente indicado na Fig.(3.29a). A mesma quantidade de fluido “expelida” na
região de proa tem que ser “reabsorvida” na região de popa, posto que massa se conserva,
e o navio, assim como qualquer corpo fechado, comporta-se como um dipolo: no “corpo
de entrada” localiza-se a fonte (+) e no “corpo de saída” o sorvedouro () e grosso modo
pode-se imaginar o navio como um par fonte-sorvedouro de mesma intensidade e
distantes entre si de um comprimento da ordem de l/2, ver Fig.(3.29). Fonte e sorvedouro
geram perturbações – ondas – de mesma intensidade, embora com sinais distintos, a partir
dos pontos x =  l/4, respectivamente, e designando por proa(x) a onda gerada a partir da
proa e popa(x) a gerada a partir da popa, a onda T(x) observada na esteira é dada pela
superposição dessas duas ondas ou

  proa (x)  ae  eik (x l / 4) 


ik (x  l / 4) 
T (x)   proa (x)   popa (x)   2sin(kl / 4)  ae   ei(kx  / 2) ,
  popa (x)  ae  e  
aT

onde aT  2sin(kl / 4)  ae e ae é a amplitude típica da onda gerada pela proa (ou popa);
observando que kl = 1/Fl2 tem-se:

411
2 1 ae2  1 
CW  2
sin 2  2  . (3.87d)
CS Fl l bt  4Fl 

A intensidade da perturbação causada pelo “corpo de entrada” pode ser aferida


pelo quociente ||u  Ui||/U entre a perturbação u  Ui na velocidade e a velocidade U do
corpo. Tipicamente deve-se ter ||u  Ui||/U  (b/l)(t/l)1  com 0 <  < 1: ignorando a
influência da viscosidade, essa perturbação anula-se quando o corpo colapsa em uma
placa plana vertical (b = 0) ou em uma placa plana horizontal (t = 0). De outro lado, a
intensidade da perturbação em um sistema ondulatório é aferida pelo adimensional  =
kae, ver (3.3b), e assim
 1
|| u  Ui || b t 
 kae       ;
U  l  l 
    (1),

com  sendo um coeficiente de ajuste; portanto ae  Fl2  b t1 e de (3.87d) segue


2(1 ) ½
2 2 b  t   1 
 C W (Fl )     Fl2 sin 2  2  ;
CS l  b   4Fl 
   (3.88a)
( forma )

 ¼    ¾,

a restrição no parâmetro  obedecendo um requisito óbvio: CW não pode tender ao


infinito quando b  0 ou t  0. Os parâmetros {; ; CS; b/l; t/l} são “parâmetros de
forma” do navio e para navios geometricamente semelhantes o coeficiente CW de
resistência de onda torna-se uma função exclusiva do número de Froude Fl. Para uma
dada família de navios – para uma “série sistemática” no jargão especializado – o valor
l/b é fixado e o quociente t/b define a condição de calado: se “calado cheio” (t/b
“grande”), de “operação” (t/b “intermediário”) ou “vazio” (t/b “pequeno”). Os
“coeficientes de forma” {; } variam, em tese, de série para série assim como o
“coeficiente de superfície molhada” CS; a expectativa, no entanto, é que essa variação não
seja muito acentuada – já se antecipou, aliás, que o valor CS  2.52 deve ser bastante
razoável para uma ampla gama de séries sistemáticas – e mais adiante as estimativas de
{; } serão discutidas.
O coeficiente CW(Fl) se anula nos limites { Fl  0; Fl  } e atinge um máximo
global em Fl  0.463 (l/(U)  0.74), um resultado que tem, como discutido a seguir,
uma aderência muito boa com a solução numérica do sistema de equações que rege o

412
fenômeno; a aderência com resultados experimentais desses resultados teóricos é um
pouco pior mas ainda bastante razoável e esse ponto será comentado mais adiante.

FIG.(3.30): Destróier da Série de Taylor – l/ b = 10.08. Coeficiente de Resistência


Residual em função do número de Froude (U/gl)1/2; adaptado de Newman (1977).
(Parâmetros em (3.88a):  = 0.93;  = ¼; CS = 2.52)

A Fig.(3.30) apresenta os resultados numéricos e experimentais devidos a Graff &


Kratch & Weimblum (1964) para um destróier da série de Taylor com l/b = 10.08 em três
diferentes calados e a Tabela (3.3) sintetiza alguns desses valores.

b/t 3(t/b) (CS)(3.87a) CW,máx CSCW,máx/


3
2.679 1.12 2.507 4.67x10 1.13
3
3.000 1.00 2.515 4.12x10 1.00
3.420 0.88 2.533 3.59x103 0.88
TAB.(3.3): Destróier da série de Taylor – l/b = 10.08
(CW,max: numérico, Fig.(3.30);  = CSCW,max|b/t=3)

413
Comparando a segunda e a última coluna da Tabela (3.3) a seguinte conclusão é
inescapável: o produto CSCW,max varia linearmente com t/b nessa série e o valor  em
(3.40a) deve ser assim igual a ¼; ajustando o valor de  pelo CW,max do calado de
operação DWL (b/t = 3) obtém-se  = 0.93 e adotando CS  2.52 de (3.88a) segue

t  1 
C W (Fr)  0.686   Fl2 sin 2  2  . (3.88b)
l  4Fl 

Os valores do coeficiente de resistência de onda dados por (3.88b) foram também


plotados no gráfico de Graff & Kratch & Weimblum (1964) e a aderência entre essa
expressão e os resultados numéricos é muito boa mesmo para os calados “cheio” (LD) e
“vazio” (SD), ver Fig.(3.30). Na região Fl < 0.3, quando o arrasto por fricção é cerca de
50% maior que o arrasto de onda (ver “linha de Schoenherr” na Fig.(3.31)), a solução
numérica começa a apresentar uma oscilação (ver detalhe na Fig.(3.30)) e a expressão
proposta (3.88b) radicaliza esse comportamento: no limite Fl  0 ela apresenta uma
variação de CW com Fr altamente oscilatória com uma amplitude que tende a zero com
Fl2.
Os resultados experimentais não apresentam esse comportamento oscilatório –
provavelmente porque varrido pela viscosidade do fluido real128 – e também não tendem
a zero quando Fl  0: como será visto no próximo item, o coeficiente de arrasto residual
CR, inferido a partir das medidas experimentais, não é exatamente igual ao coeficiente de
resistência de onda CW e a diferença que se observa na região Fl  0 é devida, em grande
parte, ao arrasto de forma de origem viscosa. De outro lado, na região Fl  0.5 a
diferença entre o valor inferido de CR e o valor teórico de CW – tanto o numérico como o
obtido a partir de (3.88b) – embora seja percentualmente pequena apresenta um desvio
sistemático: o pico experimental está um pouco deslocado para a direita e seu valor é um
pouco menor que o teórico. Como discutido ao longo deste item, a posição e a amplitude
do pico de CW dependem do padrão de interferência das ondas de proa e popa supondo
que o fluido seja ideal (não viscoso): é provável que a viscosidade do fluido, que
lentamente vai diminuindo a amplitude da onda gerada, também diminua seu número de
onda deslocando para a direita o ponto de máximo de CW, como observado
experimentalmente.

128
As ondas geradas pelo corpo são muito curtas no limite Fl  0 (kl  ) e a influência da dissipação
viscosa não é então desprezível, modificando o padrão de interferência das ondas de proa e popa e portanto
o comportamento altamente oscilatório do coeficiente CW.

414
A discussão apresentada nesse item, calcada em algumas idéias gerais sobre a
propagação de ondas e em argumentos de escala, não é só capaz de explicitar a Física
básica da resistência de onda: ela também oferece uma estimativa de CW muito precisa
justo na faixa de números de Froude (Fl > 0.3) onde o arrasto de onda é relevante.

3.5.5: Hipótese de Froude

A resistência ao avanço de um navio deslocando-se pela superfície livre do mar


depende de dois parâmetros adimensionais: o número de Froude Fl = U/(gl)1/2, que
controla a resistência de onda, e o número de Reynolds Re = Ul/, que controla a
resistência viscosa. Dois navios geometricamente semelhantes só terão comportamento
dinamicamente semelhantes se os números de Froude e Reynolds forem iguais em ambos.
Para efeito de ilustração, consideremos um navio de comprimento l = 100m
deslocando-se com velocidade U = 10m/s; os números de Froude e Reynolds desse navio
são, respectivamente, {Fl,N = 0.316; ReN = 109}. Um modelo em escala reduzida desse
navio, com um fator de escala 1:20, terá comprimento lm = 5m e é impossível que esse
modelo possua o mesmo Froude e Reynolds do navio: para a igualdade dos números de
Froude o modelo deveria se deslocar com a velocidade Um = 2.23m/s ao passo que para
manter o mesmo Reynolds sua velocidade deveria ser de 200m/s. Por razões técnicas o
que se faz, óbvio, é igualar os números de Froude do modelo e do navio (Um = 2.23m/s),
mas uma questão permanece: como extrapolar os resultados do modelo para a escala real
se os números de Reynolds são diferentes?
Para navios com “corpos de entrada” convenientemente carenados a formação de
ondas deve ser essencialmente independente da viscosidade do fluido – isso é, CW(Fl;Re)
 CW(Fl) – e o arrasto viscoso deve também depender fracamente do número de Froude
(CV(Re; Fl)  CV(Re)). Se CT(Re; Fl) for o coeficiente de arrasto total, essa expectativa
leva à expressão,

CT (Re; Fl )  CV (Re)  C W (Fl ) , (3.89)

que é a celebrada Hipótese de Froude129 no estudo da resistência ao avanço de


embarcações.

129
A Hipótese de Froude, no entanto, foi aventada por uma questão de necessidade, pois sem ela não seria
possível extrapolar os resultados do modelo reduzido para a escala real; a justificativa apresentada  da
irrelevância (em primeira aproximação) da viscosidade na formação de ondas  é a posteriori. O argumento
é plausível, tem algum suporte experimental, acomoda o pensamento teórico, mas não está na origem de
(3.89): a gênese dessa expressão está na necessidade de preencher um hiato teórico com uma hipótese.

415
É difícil checar a veracidade dessa hipótese, mas isso foi feito ao menos uma vez
por Troost & Zakay em 1950, apud Newton (1977): para um dado navio – o Lucy Ashton,
de comprimento l = 58m. – foram construídos 8 modelos reduzidos com diferentes
comprimentos e os coeficientes de resistência total desses oito modelos e do próprio
navio foram determinados experimentalmente para diferentes velocidades e plotados em
função do número de Reynolds (ver Fig. (3.31)). Unindo nesse gráfico os pontos dos
diferentes modelos e do navio ensaiados no mesmo número de Froude obtém-se uma
série de curvas (12 no caso) que satisfariam a seguinte propriedade se (3.89) fosse
correta: elas deveriam ser paralelas entre si. Como mostra a Fig.(3.31), a Hipótese de
Froude parece ser consistente para valores altos do número de Froude – justamente
quando a resistência de onda é relevante – embora perca acuidade na faixa de baixos
Froudes, quando CW( Fl ) é uma fração pequena do arrasto total.

FIG.(3.31): (Hipótese de Froude): Arrasto total em modelos reduzidos do Lucy Ashton


(M1 a M8) e no navio em escala real (l =58m). O quadro apresenta os fatores de escala
geométrica (1:47.5 no modelo M1); a coluna os Fl (adaptado de Newman (1977)).

Do ponto de vista prático, ao menos, a Hipótese de Froude se justifica, mas para


prosseguirmos no estudo devemos saber como calcular o arrasto viscoso CV(Re); esse
arrasto pode ser dividido, como discutido ao longo deste capítulo, em uma parcela de
fricção Cf(Re) e em um arrasto de forma CD(Re), isso é: CV(Re) = Cf(Re) + CD(Re). O
arrasto por fricção pode ser estimado a partir do arrasto em uma placa plana com a
mesma superfície molhada do modelo (ou navio) e está identificado na Fig.(3.31) pela
“linha de Schoenherr”, que fornece o arrasto de fricção na placa para escoamentos
turbulentos. Os pontos experimentais da Fig.(3.31) coalescem, no limite Fl  0, em uma
curva um pouco acima da “linha de Schoenherr”, a diferença entre ambas sendo devida

416
ao arrasto de forma CD(Re). Note que CD(Re)  0 à medida que Re cresce: o escoamento
vai ficando cada vez mais turbulento na camada limite e vai portanto resistindo cada vez
mais ao gradiente adverso de pressão, postergando a separação e diminuindo assim
CD(Re).
O coeficiente de resistência residual CR( Fl ) é definido, nos experimentos, pela
diferença entre o coeficiente de arrasto total (medido) e o arrasto de fricção; isso é, CR( Fl )
 CT(Re; Fl )  Cf(Re)  CW( Fl ) + CD(Re). No limite Fl  0 tem-se CW( Fl )  0 e
portanto CR( Fl )  CD(Re) > 0 nesse limite, como mostrado na Fig.(3.30); de outro lado,
CR( Fl )  CW( Fl ) para Fl > 0.3, pois CD(Re) << CW( Fl ) nessa faixa de números de Froude.
A Hipótese de Froude, a “linha de Schoenherr” – isso é, o arrasto de fricção de
uma placa plana medido experimentalmente – e as simples expressões (3.88a,b) são
suficientes para se obter uma estimativa bastante razoável da resistência total de uma
embarcação, um dos resultados hidrodinâmicos mais importantes no projeto de navios.
Finalizando, é importante observar que em geral o arrasto de fricção é sempre menor que
2x10-3 na escala do navio – ver “linha de Schoenherr” da Fig.(3.31) na faixa Re > 108  o
que permite concluir que na ampla faixa 0.38 < Fl < 0.8 a resistência de onda é o efeito
dominante, ver Fig.(3.30). Atuar sobre a geometria do corpo para tentar diminuir essa
parcela não é, nesse contexto, um esforço irrelevante e uma dessas modificações usuais é
a “jumborização” dos navios, isso é, o alongamento do corpo paralelo médio quando Fl 
0.4. Por exemplo, supondo Fl = 0.4 o coeficiente total de arrasto na configuração original
(área S) é da ordem CT  (4 + 2)x10-3; com o aumento de 20% do comprimento l (área
1.2S) o número de Froude diminui para 0.36, o coeficiente da resistência de onda para
1.5x10-3 e o coeficiente de resistência total para CT  (1.5 + 2)x10-3: a força de arrasto
diminui para 70% da força original, mesmo com um aumento de 20% do volume
deslocado. A bem da verdade, a “jumborização” é utilizada em navios que operam em
números de Froude menores, da ordem de 0.3 como o Lucy Ashton, e os resultados,
embora ainda relevantes, são aí menos dramáticos do que o obtido no exemplo analisado.
***

417
3.8: APÊNDICE 2: TRANSFORMADAS DE FOURIER

Seja uma função f(x) definida e quadrado integrável na reta real   < x < , isso
é, tal que


|| f (x) ||2  f (x)dx   ,
2
(A2.1)


a existência dessa integral em domínio infinito sendo garantida pela seguinte condição:
dado 0 <  << 1 arbitrário, existe um l() suficientemente grande tal que

l ( ) 

 f (x)dx  f (x)dx   2 ,
2 2

 l ()

ou, colocado de outra maneira, a função

  f (x) se | x |  l ();
f  (x)   || f (x)  f (x) ||    (A2.2)
  0 se |x| > l (),

está distante de f(x) na norma |||| por um valor menor que , como indicado em (A2.1b).

FIG.(A2.1): Função f(x) e sua extensão periódica f;p(x).

Seja também a função f;p(x), extensão periódica de f(x) na região |x| > l(): f;p(x)
é quadrado integrável no intervalo |x|  l() e, como visto no capítulo 1, pode ser
expandida na série de Fourier,


f ;p (x)  C(0)    C(k  )  cos k  x  S(k  )  sin k  x  , (A2.3a)
1

os coeficientes de Fourier {(C(k); S(k)); k = (/l());  = 0,1,2, } sendo definidos


pelas integrais

418
l ()
1
2l ()  l(  )
 C(0)  f ;p (x) dx;

l ()
 
1   
l () l(  )
 C(k  )  f ;p (x)  cos k  x dx;  k    ;   1, 2,  (A2.3b)
 l ( )
 
l ()  k 
1
l () l(  )
 S(k  )  f ;p (x)  sin k  x dx.

O fator 2 que aparece no coeficiente C(0) pode ser estendido aos coeficientes
{(C(k); S(k));   0} se os números de onda  k forem considerados; expressando
f;p(x) na forma

1 
f ;p (x)    C(k  )  cos k  x  S(k  )  sin k  x   k ,
2 
 k   / l ()  (A2.3c)

é imediato verificar que

l ()
2 1
 C(0) 
k
C(0)   f;p (x)dx;
2  l (  )
l ()
2 C(k  ) 1
2 l(  )
 C(k  )  C(k  )   f ;p (x)  cos k  x dx; (A2.3d)
k 2
l ()
2 S(k  ) 1
2 l(  )
 S(k  )  S(k  )   f ;p (x)  sin k  x dx.
k 2
Introduzindo a notação complexa

F(k  )  C(k  )  iS(k  ) ; F( k  )  F* (k  )

com F*(k) representando o complexo conjugado de F(k), obtém-se

l ()
1 1 
 F(k  )   ;p
2  l (  )
f (x)  e ik  x
dx  f  ;p (x)   F(k  )  eik x k;
2 

 k  ,
l ( )

pois

F(k  )  e  ik  x  F(k  )  e i(  k  )x  2  C(k  )  cos k  x  S(k  )  sin k  x  .


 0 

419
Finalmente, das identidades

k    i k  k  x
 | f ;p (x) |   2

2  
F(k  )  F* (k  )  e   k;

l ()

e     dx   2l ()    ,
i k k x
 
l (  )

as seguintes relações podem ser derivadas:

l ()
1 1 
 F(k  )  
2  l (  )
f  ;p (x)  e ik  x
dx  f  ;p (x)  
2 
F(k  )  e ik x k;
  
 k  
l () 
 l () 
  | f ;p (x) | dx   | F(k  ) | k.
2 2

l () 

Levando agora ao limite quando   0 e observando que l()   nesse limite,


ver (A2.2), e portanto k  0 chega-se a

 
1 1
 F(k)  
2 
f (x)  eikx dx  f (x)  
2 
F(k)  e ikx dk;

 
(A2.4)
  | f (x) | dx   | F(k) |
2 2
dk : identidade de Parseval ,
 

que definem as Transformadas de Fourier f(x)  F(k) para pares de funções quadrado
integráveis: a integrabilidade de |F(k)|2 segue da identidade de Parseval e da
integrabilidade de |f(x)|2.

A2.1: Transformada de Fourier em Espaço n-Dimensional

Seja uma função de duas variáveis f(x,y) (n = 2); considerando y como um


parâmetro, seja F̂(k x ; y)  f (x, y) e portanto, de (A2.4),
 
ˆ ; y)  1 1
 F(k x 
2 
f (x, y)  eik x x dx  f (x, y)  
2 
ˆ ; y)  e ik x x dk ;
F(k x x

 
(A2.5a)
  | f (x, y) | dx   | F(k
ˆ
2 2
x , y) | dk x .
 

Tomando agora a transformada de Fourier de F̂(k x ; y) em relação a y,

420
 
1 ˆ ; y)  1
 
 ik  y
 F(k x ; k y )  ˆ ; y)  eik y y dy  F(k
F(k F(k x ; k y )  e y dk y ;
2  2 
x x

 
(A2.5b)
  | F(k

ˆ
x ; y) |2 dy   | F(k

x , k y ) |2 dk y ,

e utilizando (A2.5a) em (A2.5b), as seguintes relações são obtidas

 
1 i k x  k y  1  i k x  k  y 
 F(k x ; k y )  
2 
f (x, y)  e x y dxdy  f (x, y)  
2 
F(k x ; k y )  e x y dk x dk y ;

 
  | f (x, y) | dxdy   | F(k
2
x , k y ) |2 dk x dk y ,
 

definindo o par f(x,y)  F(kx,ky) no espaço das funções quadrado integráveis em duas
dimensões. A extensão para um espaço n-dimensional é imediata; de fato, introduzindo a
notação

 x   x 1 , x 2 ,  , x n   k   k1 , k 2 ,  , k n  ;
(A2.6a)
 dx  dx1dx 2  dx n ; dk  dk1dk 2  dk n ,

obtém-se

 
1 1
f (x)  eik x  dx  f (x)   i  k x 

 2    2  
 F(k )  n/2
F(k )  e
n/2
dk ;
 
(A2.6b)
 
  | f ( x) | dx   | F(k ) |
2 2
dk : identidade de Parseval.
 

***

421
3.9: APÊNDICE 3: COMPRESSIBILIDADE E RESISTÊNCIA DE ONDA

Este Apêndice apresenta uma sucinta discussão sobre a influência da


compressibilidade do fluido no desempenho de um fólio, explicitando o fenômeno do
“boom sônico” na transição do regime subsônico para o supersônico e mostrando
também como aparece uma resistência de onda no regime supersônico, similar à
resistência de onda em embarcações.
Seja assim um escoamento com velocidade U, pressão p e densidade  de um
fluido compressível, caracterizado por um número de Mach M definido pela expressão

1/ 2
 dp 
c    : velocidade do som;
 d  (A3.1)
U
M   ,
c

e que esse escoamento incida sobre um fólio fino com espessura t << c, onde c é a corda
do fólio, e com um ângulo de ataque  << 1 em relação à direção do fluxo incidente, ver
Fig.(A3.1). Dessa forma, a perturbação causada pela presença do fólio pode ser
considerada “pequena” e o escoamento será suposto aqui irrotacional, descrito por um
potencial (x,z) definido por

 (x, z)  U   x  (x, z)  ;
(A3.2a)
   (; t / c)  1,

onde (x,z) representa a (pequena) perturbação causada pelo fólio.

FIG.(A3.1): Esquema representativo de fólio fino com corda c:


condição de contorno (A3.3) aplicada na linha (|x|  c/2; z =0).

Se 2Zf(x)  (t/c) for a distribuição de espessura ao longo da linha média do


fólio, as faces superior (+) e inferior () de um fólio simétrico podem ser descritas pelas
equações

 
z    Zf (x)  cos     x   Zf (x)    x    2  (t / c) , (A3.2b)

422
A normal n entrando no corpo é definida por

n    k   Zf (x)    i , (A3.2c)

e da condição n = 0 na superfície do fólio obtém-se, desprezando termos


quadráticos da ordem (2; t/c; (t/c)2), a igualdade

  
 U    U    Zf (x)     0 ,
 z z  z

de onde segue, desprezando termos quadráticos e transferindo para z = 0 a condição de


contorno acima


(x, 0)   Zf (x)  ; (|x|  c/2) . (A3.3)
z

Para um fluido compressível a equação da conservação de massa é dada por (ver


Apêndice 2 do capítulo 1)


 div u  0 ,
t

e assim, em um escoamento estacionário (/t = 0), tem-se

  u  div u  0 .

Mas {u = Ui + U;  =  + } e desprezando os produtos quadráticos


 a equação da continuidade reduz-se a


   2   0 ,
x

e observando que /x = /x = (1/c2) p/x = (1/c2) (p  p)/x, ver (A3.1), da
expressão acima segue que

1  (p  p )  p p  p 
   2   0 .    c2  (A3.4a)
2
c x    

423
Uma segunda relação entre pressão e velocidade é fornecida pela equação de
Bernoulli: se (s) for o volume da partícula fluida em um ponto s do percurso entre dois
pontos (1) e (2), conservação de energia fornece

2
½(11 )12   (s)p(s)  ds  ½(22 ) 22 ,
1

e como (11) = (22) = (s)(s), da igualdade acima segue (Equação de Bernoulli)

2
1 dp(s)
½   2
 ds  ½12 ,
(s) ds
2
1

e em particular, quando  =  +  com / << 1, a integral da pressão reduz-se a

p 2  p
 p 2  p1 p 2  p1
2 2 2
1 dp(s) 1 1 p2
1 (s) ds  ds 
 1
(1 

)dp 


2 c2 1
(p  p  )dp 

 ½
2 c2 p1  p

e fazendo (p2; 2) = (p; ) e (p1; 1) = (p; U) obtém-se

1
½      p  p   ½ 2 
p  p   ½ U 2 .
2 2
(A3.4b)
 c 

A parcela proporcional a (p  p)2 é justamente a energia de restauração  por


unidade de volume devida à compressibilidade do fluido (unidade de área no problema
bi-dimensional do fólio); de fato

1    
  ½  p  p         ½  p  p  1    ½  p  p   ,
    

pois  = , e assim (ver (A3.1))

1
2 
p  p  .
2
 ½ (A3.4c)
 c 

Utilizando (A3.2a) em (A3.4b) e desprezando, outra vez, termos quadráticos, a


seguinte expressão para o coeficiente de pressão pode ser derivada:

424
Cp 
 p  p   2  . (A3.5)
½ U 2 x

Da equação da continuidade (A3.4a) segue, com o auxílio de (A3.5), que o


potencial (x,z) satisfaz em primeira ordem, no caso de fluido compressível, a equação:

 2  2
1  M  2
  2  2  0.
x z
(A3.6)

A equação linear (A3.6), com condição de contorno (A3.3), será analisada a


seguir em função do número de Mach M.

A3.1: Solução Subsônica (M < 1)

Introduzindo no regime subsônico a transformação de Glauert-Prandtl

x
x ;
1  M 2
(A3.7a)
c
c ,
1  M 2

a equação (A3.6), com condição de contorno (A3.3), é transformada no sistema

 2  2
  0;
x 2 z 2 (A3.7b)

(x, 0)   Zf (x)  ; (|x|  c/2).
z

A equação (A3.7) corresponde exatamente ao caso de um fólio com corda c


exposto a um escoamento incompressível: o centro aerodinâmico está distante c/4 do
bordo de ataque e a força de sustentação é dada por L  U 2 c ; portanto

L 2
CL   . (A3.7c)
½U  c
2
1  M 2

O arrasto é nulo nesse escoamento irrotacional: ele só existe devido à dissipação


viscosa na camada limite, como discutido nos capítulos precedentes. De outro lado, CL 
 quando M  1, explicitando o “boom sônico”.

425
A3.2: Solução Supersônica (M > 1)

No regime supersônico (A3.6) pode ser escrita na forma

 2 1  2
   0;
x 2 
M 2  1 z
2
 (A3.8a)

 (x, 0)   Zf (x)  ; (|x|  c/2),
z

e definindo x = Ut obtém-se, quando (A3.8a) é multiplicada por U2,

 (x, z)  (U  t, z) 
  2 U 2  2
  x     0
    U  t 2 M 2  1 z
2

t x t x 

que é a equação clássica de uma onda com velocidade U/(M2  1)1/4. Indicando por
(x,z) a solução de (A3.8a) nas regiões z > 0 (+) e z < 0 (), respectivamente, a forma
geral dessa solução é dada por

(  ) (x, z)  F  x    z   G  x    z  ;
  M 2  1,

onde {F(); G()} são funções arbitrárias da variável  = x  z. No entanto, da condição
de contorno em z = 0 segue (ver (A3.8a))

  Zf (x)    x; | x | c / 2;
  F(x)    G(x)  
 0; | x | c / 2,

e como a perturbação causada pelo fólio não deve se propagar a montante (x  )
concluí-se que (ver Fig.(6.36))

1
 (x, z)    Zf (x    z)     x    z   ;


M 2  1
1
  M 2  1 (A3.8b)

 (x, z)    Zf (x    z)     x    z   .
M 2  1

426
FIG.(A3.2): Escoamento supersônico: Potencial perturbado
(x,z) ao longo das “características” x  z = xo.

O coeficiente de pressão é assim igual a

p  p  2Zf (x) 2


Cp (x, 0)   2 (x, 0)   (A3.8c)
½ U 
2
x M 2  1 M 2  1

com resultante de força dada por


½ c

 p n  p n   dx
 
Dw i  L k 
½ c

e portanto

L 4
CL   ;
½ U  c
2
M 2  1
(A3.9)
4 2
c/2
DW 4
  Z (x) 
2
CW   dx  ,
½ U  c
2 f
M 2  1 0 M 2  1

o centro aerodinâmico coincidindo aqui com o centro da placa no caso Zf = 0 (xCA = 0).
No regime supersônico aparece, portanto, uma força de arrasto mesmo quando o
escoamento é irrotacional (efeito nulo da viscosidade) e é importante, do ponto de vista
conceitual, certificar a origem ondulatória desse arrasto. Sem perda de generalidade, seja
a placa plana (Zf(x) = 0) com arrasto dado por (A3.9): observando que
2
   2
   ;
 x  M 2  1
2
 2
 M 2  1 
   2 2
    2 ,
 z  M  1
2

427
e designando por a energia cinética (por unidade de área da região fluida
bidimensional), por  a energia de restauração devido à compressibilidade (ver (A3.4c)
e (A3.5)) e por  a energia total, tem-se

   2    2  M 2
  ½  U  
2
      ½  U
 
2
2 ;
 x   z   M  1
2

M2
  ½ U 2 2   2 ; (A3.10)
M  1
M 2
       U 2
 2 .
M  1
2

FIG.(A3.3): Resistência de Onda em escoamento supersônico:


fluxo F de energia ao longo da vertical V-V fixa no espaço.

A igualdade entre  e  não é fortuita: o movimento ondulatório em sistemas


mecânicos se estabelece pelo balanço entre a inércia e a restauração, ou = , uma
identidade sempre útil no estudo de ondas, como visto no capítulo 3.
Seja agora Eo a energia total à esquerda da linha vertical V-V fixa no espaço e
indicada na Fig.(A3.3); no intervalo de tempo t essa energia é acrescida pela parcela

E    lU  t ,

pois  é a energia por unidade de área e a área da região perturbada é acrescida por
lUt no tempo t; esse acréscimo é em parte devido ao trabalho efetuado pela força de
arrasto,

428
 = DwUt ,

e em parte devido ao fluxo  de energia pela “janela” l: dado que em uma característica
x  (M 2  1)1/ 2  z  cte. , acréscimos {x; z} ao longo da característica são tais que
tan   z / x  1/(M 2  1)1/ 2 e portanto sin   c / U  ; a geometria no detalhe da
Fig.(A3.3) indica que as características deslocam-se nas direções ortogonais a elas com a
velocidade c e assim c sin  define a velocidade do fluxo de energia ao longo da
vertical VV; portanto

    lc sin   t .

Conservação de energía implica em E =  +  e dessa igualdade obtém-se


D W   U 2 l   2 ; como l/2c = tan  = (M2  1)  1/2, ver Fig.(A3.3), a seguinte expressão
pode ser derivada para CW (ver (A3.9)):

DW 4 2
CW   .
½ U 2 c M 2  1

FIG.(A3.4): Coeficiente de Pressão: comparação entre experimento e teoria (A3.8c).


M = 2.13; Re = 6.4x105  perfil circular bi-convexo z =  t[1  (2x/c)2].
(Fonte: Jones (1960), High Speed Wing Theory)

Como citado no início desse Apêndice, o argumento aqui apresentado é o mesmo


utilizado na estimativa da resistência de ondas130 de navios: o arrasto no escoamento
supersônico, assim como a “resistência de ondas” em navios, é devido à potência que

130
Isso é, a parcela da resistência ao avanço (força de arrasto) devida à formação de ondas no trajeto de um
navio; ver seção (3.6) .

429
deve ser fornecida para manter o “padrão ondulatório” do escoamento que segue o corpo
em seu translado através do fluido. A Fig.(A3.4) apresenta uma comparação entre os
valores de Cp calculados por essa teoria linear e os medidos em experimentos: a solução
teórica fornece um resultado bastante razoável embora seja evidente que ela se deteriora
nas vizinhanças do bordo de fuga.

A3.3: Regime Transônico131 (M  1)

A Fig.(A3.5) apresenta, de forma esquemática, a variação de CL em função do


número de Mach e é clara a semelhança dessa curva com a curvas de resposta em
frequência de um oscilador forçado harmonicamente. No caso em pauta, a velocidade U
do escoamento desempenha o papel da “frequência da excitação” no oscilador (U  )
e a velocidade c do som o papel da “frequência natural” do oscilador (c  n). Essa
semelhança não é acidental: a “impressão digital” de um oscilador é sua frequência
natural ao passo que a “impressão digital” de um sistema ondulatório é sua velocidade
de propagação.

FIG.(A3.5): Comportamento de CL com M.


( ): Regime Transônico.

Nesse sentido, o “boom sônico” pode ser compreendido como uma


“ressonância” que produz, como regra geral no caso dos sistemas ideais (“lineares e
conservativos”), uma resposta infinita: a resposta ressonante dos “sistemas reais” é
limitada pela ação simultânea da dissipação e não-linearidade, fenômenos ignorados
nessa primeira abordagem “idealizada”. No caso do escoamento de um fluido
compressível esses efeitos – dissipativos e não-lineares – desempenham papel essencial
na região transônica, onde M  1, e são acima de tudo responsáveis por um dos
fenômenos mais marcantes do escoamento compressível, que é a existência das “ondas
de choque”.

131
O prefixo trans- indica “movimento além de” ou “através de”. É com esse último significado que
transônico deve ser interpretado em aerodinâmica (cf. inclusive a literatura inglesa): é um escoamento com
velocidade próxima da velocidade do som (M  1), que “atravessa” a velocidade do som. Na língua
portuguesa parece ser mais usual empregar-se trans- no sentido de “além de”.

430
choque

(a) (b)
FIG.(A3.6): Escoamento Transônico: (a) Camada limite laminar (M = 0.90; R = 8.74x
105) e (b) turbulenta (M = 0.85; R = 1.69x106) com e sem separação à frente da seção
de máxima espessura. Fonte: Schlichting (1968), “Boundary Layer Theory”.

A Fig.(A3.6) mostra a visualização de escoamentos transônicos em torno de fólios


com espessuras equivalentes (t(b)  t(a)) mas com cordas distintas (c(b)  2c(a)), de tal
maneira que no fólio (a) o escoamento é laminar e se separa nas vizinhanças do bordo de
fuga e no fólio (b) o escoamento é turbulento e não separado: nos dois casos “choques”
podem ser detectados como “linhas de descontinuidade” na densidade, visíveis nas
fotografias132. Centrando a atenção no caso (b), onde o fenômeno é mais claro, no ponto
de espessura máxima do fólio a velocidade fora da camada limite é máxima e ela
decresce na direção do bordo de fuga: o fluido é comprimido nessa região e como o
número de Mach local é muito próximo de 1, a velocidade do escoamento é próxima da
velocidade da onda (da informação) e a densidade deve aumentar atrás da “frente de
onda” (compressão) recuperando logo adiante da frente o valor no equilíbrio, definindo
um “salto” na densidade.
Sem a intenção de aprofundar nesse texto o estudo das “ondas de choque”133, um
resultado simples, que não obstante têm importância na descrição qualitativa de aspectos
do fenômeno descrito, será aqui discutido. A forma talvez mais direta para introduzir as
“ondas de choque” é através do problema de um pistão que se desloca em um meio
gasoso aberto à direita, como esquematicamente indicado na Fig.(A3.6); o pistão pode se
deslocar para a esquerda, expandindo o gás no interior do duto, ou para a direita,
comprimindo-o e sejam o e 1 respectivamente as densidades do gás no equilíbrio inicial
e a “densidade média” da zona afetada pelo movimento do pistão.
132
Na realidade essas “linhas” representam uma mudança apreciável da densidade do fluido em uma
região muito estreita, com espessura definida pela viscosidade do fluido.
133
Dois textos, ainda introdutórios, são recomendados. O primeiro é o livro de Zel’dovich & Raizer (1968),
“Elements of Gasdynamics and the Classical Theory of Shock Waves”; o segundo é o de Liepmann &
Roshko (1957), “Elements of Gasdynamics”.

431
FIG.(A3.7): Onda de expansão (a) e de compressão (b) em um pistão.
((a) 1 = o/(1+Mo); (b) 1 = o/(1Mo); Mo = U/co).

Supondo “pequenas perturbações”, isso é, 1/o  (1), e ignorando, por ora, a


variação da velocidade da onda com a densidade, a informação134 que o pistão
movimentou-se alcança, no intervalo de tempo t do movimento, a distância cot, onde
co é a velocidade do som na densidade de equilíbrio o; à direita da linha x = cot tem-se,
necessariamente,  = o e por conservação de massa segue que
1 1
 expansão : o  co t  1  co  U  t   ;
o 1  M o
(A3.11)
 1
 compressão : o  co t  1  co  U  t  1  ,
o 1  M o

onde U é a velocidade do pistão e Mo = U/co é o número de Mach.


A expressão (A3.11) sugere, de forma clara, que o choque deve ocorrer somente
no caso de ondas de compressão, quando 1/o   no limite Mo  1, e “nunca”135 no
caso das ondas de expansão, posto que aí 0 < 1/o < 1 e a densidade permanece limitada
e da ordem 1 independente do valor de Mo. Para fluidos usuais a “resistência à
compressão” do fluido – isso é, a própria velocidade do som – aumenta com o aumento
da densidade, ou (ver (A3.1))

 dc   d2p 
   0   2   0, (A3.12a)
 d   d 
e a “velocidade média” c1 da onda na região onde  = 1 pode ser, grosso modo,
aproximada pela expressão

134
A “velocidade do som” é a velocidade com que pequenas perturbações na densidade são propagadas
através do meio fluido, ela é a velocidade da “informação”; em fluido “incompressível” co =  e Mo = 0.
135
“Nunca” para os fluidos usuais, onde a condição (A3.11b) é satisfeita; ela pode ocorrer para fluidos com
propriedades termodinâmicas anômalas, como a que ocorre nas vizinhanças do ponto crítico gás-líquido.
Na realidade uma condição mais fraca que (A3.11b) já garante a impossibilidade de choque nas ondas de
expansão, ver Zel’dovich & Raizer (1968), op.cit.

432
dc
co  (o )  0  c1  co  co  (1  o ) . (A3.12b)
d

FIG.(A3.8): Frente de onda deslocando-se com a velocidade


c1 = c(1) compatível com a densidade média 1.

Ao se considerar a variação da velocidade da onda com a densidade introduz-se


uma não-linearidade no sistema que é capaz de contornar a singularidade em Mo = 1 da
onda de compressão em (A3.11); de fato, seguindo o esquema da Fig.(A3.8), conservação
de massa implica em
1  c1  U   o c1 (A3.12c)

e utilizando (A3.12b) em (A3.12c) obtém-se uma equação quadrática em 1  o com raiz


positiva (pois 1  o )

1  o 1 co 1 co  c Mo
 (1  M o )  |1  M o | 1  4 o o (A3.13a)
o 2 o co 2 o co co (1  M o ) 2

e portanto
1  o Mo
(a) : M o  1:  ;
o 1  Mo
1  o co  Mo 1 
(b) : M o  1:  ;  M1 Mo 1   1  (A3.13b)
o o co  1  Mo Mo 
1  o c
(c) : M o  1:  o  Mo ,
o o co

que recupera (A3.11) quando Mo << 1, deixa finito o valor da densidade em Mo = 1 e


mostra que no limite Mo >> 1 o número de Mach efetivo M1 = U/c1 é marginalmente
inferior a 1.
***

433
3.10: APÊNDICE 4: RESISTÊNCIA DE ONDA EM ÁGUA RASA

(3.18a)

FIG.(A4.1): Corpo cilíndrico com seção transversal afilada (t/l << 1) e calado h.
(Águas Rasas: h/l << 1)

Parâmetros geométricos:

Escalas:

U 
 Fl   0.463; 
gl  l
  0.74
2 g   (U)
 k(U)   ;
 (U) U 2 

 k 1  l : escala de comprimento no plano (x, y);


 
 : Águas Rasas : kh  1
 h : escala de comprimento na direção z; 

 y   Yf (x);  
 (x)      1
t
 Y
 n   Yf (x) i  j; 
f
l 

A4.1: Condição de Contorno na Superfície Livre


 xx iy j ; 
  
    (x, z)  U  x  (x, z) ,
 p    ½ ( )  gz;
2

t 

434
   
 p |z   0     g    0;
 t  z 0     1   2 

      
      z  z 0 g  t 2 z 0
 w |z 0     ;
 z  z 0 t 

|  | 
    lt   1; 
U 
  p  U  gz
 x
  ½ ( ) 2  ½ U 2  U    lt  ;
2

x 

  (x, y, z)   (x1  U  t, y, z);



x1  x  U  t     x 
   U ,
 t x t x

 
 p    gz  U  gz;
t x
   U  
2 2
      ,
 z  z 0 g  x 2  z 0

A4.2: Equação em Água Rasa (kh << 1)

 
 i j ;
x y
  2   (k 2 )

   n  Y (x )  y 0 ;  
  U  nx  nx  ny  0
f

   U i  ;  x
 y
  lt 
2


U  Yf (x, 0, z)  (x, 0, z)  0
y

435
    U 2   2 
      ;
 2   z z 0 g  x 2  z 0
   2  0 com 
2

z    
    0.
  z z  h


 (x, 0, z)  U  Yf (x) .
y

0
 2  2 
0
  
0
U 2   2 
               0
2 2
 dz dz   dz 
h 
z 2  h  z  z 0  h g  x 2  z 0

    U2 
 (x, z)  (x, 0)  z (x, 0)  z    (x, 0)  xx (x, 0)  z   ;
g
2 U  
0 0
 2
  h      h       xx (x, 0)   h2 ,
2 2 2
dz dz h ( x , 0) ½  
 (k 2 )  
g

e assim, com erro da forma 1    kh 2 ;(t / l ) 2   ,

  2  2
U   (1  Fr 2 ) 2  2  0;
 Fr  ;   x y
gh 
 
 (x)  (x, y, 0);    U  Yf (x).
 y

A4.3: Solução “subsônica” (Fr < 1) e “supersônica” (Fr > 1)

 2  2 
 (Fr  1) 2  2  0;   (x, y)   U  Y ( );
2

x y   f
  Fr 2  1

  (x, 0)  U  Yf (x);     (x, y)  x  Fr 2  1  y.
y 

436
FIG.(A4.2): Fr > 1: Região perturbada no plano (x,y)

A4.4: Resistência de Onda

0 l/2 l/2
 C W (Fr) 
1
 
½U (2lh)  h l / 2
2  p   n x  p   n x  dxdz 
1

U l  l / 2
2  p   n x  p   n x  dx;

 U 2

 p(x, 0 )  U   Yf (x);
x Fr 2  1
 n x  Yf (x);

l/2
1 2
C W (Fr)  
  Yf (x)  dx
2

Fr 2  1 l l / 2

FIG.(A4.3): Resistência de onda em função de Fr.

Singularidade em x =  l/2 (elipse)

437
438
3.11: EXERCÍCIOS

(3.1): (Relação de Dispersão)

a) (Ondas em Vigas Tracionadas): Seja a equação da viga tracionada,

2v 4v 2v


m 2  EJ 4   2  0 ,
t x x

com m a massa por unidade de comprimento, EJ a rigidez flexional e  a tração; mostrar


que a relação de dispersão é dada pela expressão,

  EJ 2 
1/ 2

(k)   k 1  k  ,
m   

e determinar as velocidades de fase e de grupo, identificando se a dispersão é normal ou


anômala. O que ocorre com a viga comprimida?

b) (Dispersão de Grupo de Ondas): Dado o grupo de ondas

k o (1 )

(x, t)   A(k)  ei kx (k)t  dk


k o (1 )

e observando as expansões

1 1
0  t  t1   (k)  (k o )  (k o )   k  k o  ;
 cg (k o )k o
(b1)
1 1
0  t  t2  2  (k)  (k o )  (k o )   k  k o   ½(k o )   k  k o  ,
2

 ½(k o )k o
2

mostrar que

 (x, t)  a(x, t)  ei k o x (ko )t  ;


  1 
   t    2
k o (1 )
i  k  k o x  cg (k o )(k  k o ) ½ (k o ) k  k o  t 
2
  (b2)
 
   (k o )  

 a(x, t)  A(k)  e dk, 
k o (1 )

com a amplitude a(x,t) a satisfazer a equação

439
 a a  2a
i   cg (k o )   ½(k o )  2  0 ,
 t x  x

ou, no sistema de referências que se desloca com a velocidade de grupo,

a 2a
x  x  cg (k o )  t  i  ½(k o )  2  0 . (b3)
t x

Determinar a relação de dispersão dessa equação e interpretar o comportamento do


grupo de ondas nas escalas longas de tempo {t1  (1/); t2  (1/2)}. Nota: A
equação (b3) corresponde à equação de Schrödinger de uma partícula livre.

***

(3.2): (Geometria da Esteira com Profundidade)

Utilizando um argumento semelhante ao utilizado no texto para águas profundas


(ver Fig.(3.6)), mostrar como a geometria da esteira deixada por um navio varia com a
profundidade do mar. Qual é o limite teórico quando h  0?

***

(3.3): (Equações de Hamilton – Invariante adiabático) Seja, como na Fig.(3.8), um


pêndulo de comprimento l(t) lentamente variável no tempo; restringindo a atenção ao
movimento transversal ao cabo, a Lagrangeana do sistema fica dada por

(,  , t)  ½ ml 2 (t)   2 (t)  ½ mgl (t)  2 (t) ,

com a função l(t) conhecida; a quantidade de movimento angular é dada por


p   ml 2 (t)   (t)


e a frequência  da oscilação é definida pela expressão (t) =  /  ; portanto

   (t)  ;  g  dl 
  (t)  ,   (t)l (t) 
 ½ ml (t)   (t)  ½ mgl (t)   (t);
2 2 2
l (t)  dt 

440
a última linha, que determina a freqüência (t), estabelecendo o balanço entre a energia
cinética da oscilação e a energia de restauração. Recuperar esse resultado a partir das
equações de Lagrange supondo dl/dt << (t)l(t) e mostrar que

p2 
 (, p  , t)  ½  ½ mgl (t)  2 ;
 dE 
2
ml (t) E dl
     .
p2
 dt t 2l dt
 E(t)  2  mgl (t)   ;
2

ml (t) 

Utilizar esse resultado para verificar que E/ é o “invariante adiabático” ou

d E
   0.
dt   
***

(3.4): (Conservação de Cristas) Seja um grupo de ondas com número de onda k(x,t) e
freqüência (x,t). Se n(t) for o número de cristas em [x1;x2], justificar a definição
x
1 2
2 x1
n(t)  k(x, t)dx ,

e mostrar que a lei de conservação de cristas exige a igualdade


x
d 1 2 1 1

dt 2 x1
k(x, t)dx 
2
(x1 , t) 
2
(x 2 , t)

e portanto k/t + /x = 0, ver (3.31b).


***

(3.5): (Princípio do Tempo Mínimo – Fermat (1657): “A trajetória seguida pela luz de
um ponto a outro é tal que o tempo de viagem é o mínimo possível”)

Seja uma partícula deslocando-se no plano (x,y) com duas velocidades distintas:
c1 na região y < 0 e c2 na região y > 0. A partícula sai de um ponto A fixo na região y < 0
e chega em um ponto B fixo na região y > 0 e pretende-se determinar o caminho que ela
deve seguir para que o percurso entre A e B se dê em um tempo mínimo. Uma imagem
simples proposta por Feynman ajuda a visualizar o problema: suponha que a região y > 0
da figura seja um lago e que um transeunte A em terra (y < 0) veja um indivíduo que não

441
saiba nadar em um ponto B do lago (y > 0) e se predisponha a salvá-lo. O transeunte se
desloca na terra com uma velocidade c1 relativamente maior que sua velocidade c2 com
que nada no lago e para chegar em B no mínimo tempo ele deve percorrer em terra uma
distância maior que a percorrida se seguisse o segmento reto que une A a B para que
possa percorrer no lago uma distância menor que a do segmento reto AB. Quanto maior
deve ser o percurso em terra e menor no lago é definido pelo tempo mínimo de percurso.

Diferentes trajetos são definidos deslizando a origem O sobre o eixo x. Definindo


os parâmetros geométricos {(RB ; 1 );(R A ; 2 )} indicados na figura, mostrar que para
qualquer posição de O os valores {RB  cos 2 ; R A  cos 1 ; RB  sin 2  R A  sin 1}
permanecem invariantes. Considerando variações {(RB ; 1 );(R A ; 2 )} nos parâ-
metros geométricos, mostrar que a condição de tempo mínimo reduz-se à lei de Snell ou

RB R A 
  geometria  :   0; 
sin 2 sin 1  sin 2 sin 1
   lei de Snell - 1621 .
RB R A  c2 c1
  tempo mínimo  :   0;
c2 c1 

(“A Natureza sempre escolhe os menores caminhos”; Fermat)


***

(3.6): (Campo de Força Central e Cônicas136) Pretende-se estudar neste exercício um


problema clássico de Mecânica: a trajetória de um corpo sob ação de um campo de força
central descrito por um potencial (r), r = 0 a definir o “foco” F do campo, o ponto a
partir do qual sua influência é irradiada para o espaço. Supondo uma partícula com massa
puntiforme m, seja P o ponto do espaço ocupado por ela em certo instante to e v o vetor
velocidade em to: a força aplicada pelo campo na partícula age na direção do segmento

136
Curvas descritas por equações de segundo grau: círculo, elipse, hipérbole e parábola.

442
PF indicado na figura e seu movimento fica assim restrito ao plano (x,y) definido por
esse segmento e a velocidade v  da partícula em um tempo t   .

O resultado fundamental que se pretende verificar é o seguinte: se (r) = k/r – isso é, se a


força exercida pelo “foco” for inversamente proporcional ao quadrado da distância PF 
a trajetória da partícula é uma cônica, ou seja, ou é um círculo, ou uma elipse, ou uma
parábola, ou o ramo de uma hipérbole. O campo é dito “repulsivo” se afasta a massa do
foco F e nesse caso k > 0; ele é dito “atrativo” se atrai a massa e aí k < 0. Pede-se:

a) (Campo Central) Verificar que a Lagrangeana da massa m é dada por

 
 pr   m  r;

 
(x, x )  ½ m   
r  (r)   (r)  
2 2 
r
 p    m r 2  ,
   

e a Hamiltoniana por

1  2 p 2 
 ( x, p )   p r  2    (r) .
2m   r 

Utilizando as equações de Hamilton mostrar que

 
 ½ m  r 2  (r ) 2   (r)  o ;  conservação de energia 
(a)
 m  r 2   l ,  conservação do momentum angular 

443
onde {o ; l } são constantes do movimento. Verificar que as leis de conservação
explicitadas em (a) implicam nas equações de Lagrange do movimento se r  0 . O que
ocorre quando se impõe r  0 ?

Nota: Observar que se r  0 então     cte. e o movimento circular uniforme se


estabelece para qualquer campo central (r); como será visto, se r  0 o movimento da
partícula descreverá uma cônica se e somente se (r) = k/r.

b) (Cônicas) Pretende-se verificar aqui que uma cônica é descrita pela equação

p
r 0, (b)
1  q  cos 

com (r,) sendo coordenadas polares com origem no “foco”; obviamente, como r > 0
deve-se ter p  0 e também q > 1 se p < 0. Observando a equação da cônica em
coordenadas cartesianas,

y 2  p 2  2pq  x   q 2  1 x 2 ,
e definindo
p2 
 a2  2 
;
(q  1) 
2
pq
 com x o   2 ,  q  1
2
q 1
; 
p
 b2  2
| q  1| 

mostrar que

 x  xo 
2 2
y
    sinal (q  1)      1  q  1
 a  b

ou
2 2
 x  xo   y 
  p  0  
  q  1 : 
 a  b
   1  hipérbole  ;
 2
 x  xo   y 
2
  q  1 :       1  elipse  ;
  a  b

 (p  0)    q  1 : 2px  y 2  p 2  parábola  ;
 2 2
  x  xo   y 
 
 q  1 
:     1  hipérbole  .

  a  b

444
Seja (r  x o  a;   0) o ponto de intersecção da hipérbole com o eixo x: utilizar
(b) para mostrar que {p =  |p| < 0; q > 1} no sistema de coordenadas com origem em F;
observando que este ponto tem coordenadas (rˆ  x o  a; ˆ  ) no sistema com origem
em F̂ , mostrar que então {p = |p| > 0; q > 1} nessa representação. Utilizar (b) e a relação
geométrica r  cos   rˆ  cos(   ˆ )  2x o para mostrar que r  rˆ  2a . No caso da elipse,
{p > 0; q < 1} e verificar que r  rˆ  2a . Nota: Definir ̂ compatível com (b).

c) (Trajetória na Cônica): Seja uma partícula de massa m  deslizando na cônica;


verificar as expressões

1 p1 
 cos    ;
q q r 
  v  n  0 (c)
2 p r 
 r  ,
q sin  

e mostrar que a equação que relaciona  e r traduz o vínculo cinemático v  n  0 , com v


sendo a velocidade da partícula e n a normal à cônica. O movimento sobre a cônica é de
resto arbitrário e a questão que se coloca é a seguinte: pode um desses possíveis
movimentos ser causado por uma força central derivada de um potencial (r)? Justificar
por que a condição necessária e suficiente para que isso ocorra é que as duas equações de
conservação – de energia e momentum angular – derivadas no item (a) sejam satisfeitas.
Supondo um campo central (r) – e, portanto, conservação de momentum – e observando
as relações (ver equações (a) e (c))

  l
 r 2  l /m  (dinâmica )   r  m r ;
 p r l 
  r   

2 p r
2
   
 r  (cônica )  q sin  m   r   ql sin ,
q sin    mp

445

utilizar essas expressões em ½m  r 2  (r ) 2  para mostrar que o movimento sobre a
cônica satisfaz a equação de conservação de energia,

  l 
2

2 2  o  ½  q  1 m  
2
 ;
 l   l  p   mp 

½m  r 2  (r ) 2   ½  q  1 m  
2
  m   
 mp   mp  r
2
  l  p
  (r)   m   m p  r ,
   

se e somente se (r) = k/r. Nota: Dados { m  ; l ; o ; k}, os parâmetros {p;q} da cônica


podem ser calculados. Se ds for o elemento de arco ao longo da cônica e t(s) o versor
tangente, v(s) = ds/dt é a velocidade da partícula ( v(s)  v(s)  t (s) ) e portanto

l  d 
v(s)  .  (s)  
m  r (s)(s) 
2
ds 

No movimento circular uniforme q = 0 e p = ro, raio do círculo: verificar a expressão


acima nesse caso particular;

d) Justificar a classificação abaixo

 p  0 : campo repulsivo   q  1: órbita hiperbólica;


 q  1: órbita elíptica;
 p  0 : campo atrativo    q  1: parabólica 
 q  1: órbita hiperbólica;

e identificar o parâmetro geométrico b na hipérbole da figura do item (b).


Nota: Como indicado na primeira figura deste exercício, o parâmetro geométrico b no
caso da hipérbole define o momentum angular l = mvb.
***

(3.7): (Aproximação de Born – Águas Rasas) Seja uma onda plana harmônica
propagando-se em mar raso de profundidade h: pretende-se estudar neste exercício a
difração dessa onda provocada pela variação da profundidade em uma região limitada |x|
 l, como esquematizado na figura abaixo. A profundidade local é dada por

446
 f (x)  0 se | x |  l ;

h(x)  h  [1    f (x)] com  f (x)   (1) se | x |  l ;  f(  l )  0 

 l  h,

a condição l >> h é não só natural em águas (kh << 1), como também permite que kl >>
1, onde k é o número de onda da onda incidente de amplitude a. Pede-se:

a) (Equação em Águas Rasas) O escoamento associado à propagação de onda é


irrotacional, em primeira aproximação; se (x,z,t) for o potencial de velocidade, as
relações cinemática e dinâmica na superfície livre e a condição de impermeabilidade do
fundo do mar são descritas na aproximação linear (ka << 1; a/h << 1) pelas expressões

 
 p    g  0;
t 
 e    n z  h(x)  0 ,
 
 w ;
t z 0

com w sendo a velocidade vertical e (x,t) a elevação da superfície livre. Mostrar que

   1   2 
     2  ;
 z  z 0 g  t  z 0
        
     h(x)     h  f (x)    ,
 z  z  h (x)  x  z  h(x)  x  z  h(x)

e portanto, integrando verticalmente a equação de conservação de massa 2 = 0, obtém-


se
0
1 1

h  h (x)
xx dz  tt (x, 0, t)  f (x)  x (x, h(x), t)  0 .
gh
(a1)

Da expansão em série de Taylor na vizinhança de z = 0,

1
(x, z, t)  (x, 0, t)  z (x, 0, t)  z    (x, 0, t)  tt (x, 0, t)  z   , (h  z  0)
g

e relembrando que k1 é a escala de comprimento da onda na direção do eixo x e que


f (x)h   (h / l )  1 , verificar a partir de (a1) a equação que segue com as respectivas
ordens de grandeza,

447
 
 2 
h(x) 1  h (x)
xx (x, 0, t)  tt (x, 0, t)  ttxx (x, 0, t)   f (x)h  ttx (x, 0, t)  h(x)   f (x)  x (x, 0, t)  0 ,
h gh   2  
  h 
  (kh)tt  
 (kh)2 tt 
  l  

e que portanto, com erro da forma 1    (kh) 2 ;   (h / l )  kh   , a equação reduz-se a

1
xx (x, 0, t)  tt (x, 0, t)    f (x)  x (x, 0, t)  f (x)  xx (x, 0, t)  . (a2)
gh

Supondo solução harmônica da forma

(x, 0, t)  (x)  e it , (a3)

mostrar que a equação de conservação de massa integrada verticalmente fica dada, com
erro da forma 1    (kh) 2 ;   (h / l )  kh   , pela equação

d
  k 2     f (x)  (x)  f (x)  (x)     f  . (a4)
dx

b) (Função de Green) Seja a função

eik|x |
G(x; )  .
2ik

Mostrar que

 G x  ik  G; G   ik  G;
 x     
 G xx  G   k G;
2

 x   (b1)
 G x  ik  G; G   ik  G;
 x     
 G xx  G    k G,
2

e utilizar essas relações para verificar a identidade:

l
 (x)   G(x; )  p()d    k 2   p(x) .
l

Nota: Utilizar (b1) para mostrar que

448
x 
  k 2   p(x) 
x 
G  (x; )d   ()  p(x)  G  (x; x  )  G  (x; x  )    () .

G(x;) é a função de Green da equação   k 2   0 : G(x; )  k 2 G(x; )  (x  ) ,


com (x), a função -Dirac, derivada da função “degrau unitário”, definida pelo limite

  



(x)  p(x)dx  

S(x)  p(x)dx  lim
 0  S(x)  p(x)dx  lim  p(0)   ()   S()  S(   p(0) .

 0

c) (Aproximação de Born) De (a4) segue, portanto, que

 (x)  i (x)  s (x) com i (x)  eikx ;


l
d (c1)
 s (x)    G(x; )   f ()  ()  d,
l
d

onde i(x) = eikx, a onda incidente, é a solução da equação homogênea i  k 2 i  0 e


s (x) , a onda espalhada, é a perturbação na onda incidente devida à elevação no fundo
do mar. Como s (x)   () , ver (c1), desprezando termos da ordem 2 tem-se
l l

 f ()  i ()  d  ik  G(x; )   f ()  eik  d


d d
s (x)    G(x; ) 
l
d l
d

e portanto

l
(x)  e ikx
½ 
d
d
 f ()eik   eik|x |d   ( 2 ) .
l

Mostrar que

 T(k)  eikx quando x  ;


(x)   ikx  ikx
 e  R(k)  e quando x  ,
com

449
l
 T(k)  1  ½ ik  f ()d   ( 2 );

l
l
 f ( l )  0 
 R(k)  ½ ik  f ()e 2ik
d   ( ).
2

l

e) Supondo, por exemplo, f(x) = 1  (x/l)2, mostrar que

 2
 T(k)  1  i 3  kl    ( );
2
2
x 
f (x)  1     
l  R(k)  i    sin 2kl  cos 2kl    ( 2 )
  (2kl ) 2 2kl 

e verificar os limites:

 2
 T(k)  1  i 3 kl ;  2 
 kl  1    |x|lim s (x)  i kl  eik|x| 
2 
 R(k)  i kl ;   3 
 3
(c2)
 2 i 2
 T(k)  1  i 3 kl  e com   3 kl << 1;  lim (x)  e i (kx  )
; 
  x  

1  kl  1/    
  i     lim (x)   (x)  eikx . 
 refração   R(k)   .cos 2kl    2 
 .  x  i

 2kl  (kl ) 

Nota: Na faixa kl << 1 o potencial espalhado é simétrico (s(x) = s(x)), um resultado


consistente com a simetria da perturbação e com o fato da excitação i(x) = eikx ser
essencialmente constante no intervalo |x|  l no regime de “ondas longas” (kl << 1); no
regime de “ondas curtas” – no regime da refração – a reflexão é desprezível e pode ser
ignorada: o que se observa então é uma lenta variação da fase da onda, que passa do valor
nulo na região x    para o valor  na região x  .

f) É ilustrativo nesse ponto obter diretamente a partir da Teoria da Ótica Geométrica


(Teoria da Refração) o resultado acima derivado na faixa 1  kl  1/  . Pede-se,
primeiro, mostrar que no caso em pauta as equações dessa teoria são dadas por

dx W
   gh(x);
dt k
dk W k g
    h(x); (f1)
dt x 2 h(x)
d W
   0.
dt t

450
De (f1) segue que  = cte. Utilizando a primeira equação na segunda, mostrar que

dk k h
  k(x)  h1/2 (x)  cte. (f2)
dx 2 h

e obtendo a cte. pelo valor da relação de dispersão no infinito, verificar que

  1   
k(x)    k  1   f (x)    ( 2 ) , (f3)
 1    f (x) 
 2 
1/ 2
gh(x) gh
k

ou seja: no caso em pauta o número de onda é definido diretamente a partir da relação de


dispersão. Da primeira equação, que define o raio da onda, obtém-se

dx   
 gh(x)  gh  1  f (x)   gh   1  f (x) 
1/ 2

dt  2 

desprezando, como no restante do exercício, termos de ordem 2. Mostrar que da


expressão acima segue

  
1  f (x)  dx  gh dt
 2 

e integrando no intervalo [ l;x] e no tempo correspondente [t(l);t] obtém-se, com uma


escolha conveniente de t( l),


x

 x l   f ()d  gh   t  t(l )  ;
2 l   
x

  k  x   f ()d   t  0 . (f4)
 t(  l )  
l
;   2 l 

gh 

Introduzindo a função

 
x

 (x, t)  k  x   f ()d   t (f5)
 2 l 

mostrar que (x,t) é a “função de fase” na Teoria da Refração, pois

451
 
    t ;
(x, t)  | a (x) | ei (x,t )   (f6)
 k(x)   .
 x

Tomando f(x) = 1  (x/l)2 e escrevendo (x,t) na forma (x,t) = kx + (x)  t,


determinar as funções {a(x); (x)} e comparar o resultado obtido com (c2), onde se supôs
a(x) = 1 quando x   .
***

(3.8): (Dinâmica da Refração) Seja, como no exercício anterior, a propagação de uma


onda em mar raso que atravessa um degrau na profundidade, igual a h1 na região y < 0 e a
h2 < h1 na região y > 0. A cinemática da refração resume-se a

   cte.; 
 sin (x, y)
 k(x, y) 
 
;
 cte.  Lei de Snell 
gh(x, y)
gh(x, y) 

Pretende-se estudar aqui a dinâmica da refração, isso é, como a amplitude da onda


comporta-se na transição h1  h2. Traçando dois raios paralelos distantes do ao longo do
eixo x pede-se:

a) Se {a1; a2} forem as amplitudes nas regiões y < 0 e y > 0, justificar por que os fluxos
de energia através dos raios AOB e A*O*B* são nulos e mostrar que

| a1 |2 h1/1 2  cos 1  | a2 |2 h1/2 2  cos 2 ;

452
b) Utilizar a Lei de Snell para verificar a equivalência entre a expressão acima e

| a1 |2  sin 21  | a2 |2  sin 22 ;

c) Seja agora o caso geral em que a profundidade h(s) varia continuamente ao longo da
coordenada s do raio e que o eixo y esteja na direção de h: considerando um “degrau
infinitesimal” {h1 = h(s – ½ s); h2 = h(s + ½ s)} e que os dois raios AOB e A*O*B*
estejam distantes do  (s), mostrar que

| a( s  s ) |2  sin 2( s  s )  | a ( s  s ) |2  sin 2( s  s )


0
2s
e portanto

| a( s ) |2  sin 2( s )  cte.

ao longo do raio.

Se a profundidade variar somente com a coordenada y, verificar que a solução geral fica
dada por
y( s ) 
 h( s )   h   ;  | a( s ) |
l sin 2
   0    90 
| a | sin 2( s )
 sin  ;
y( s )
 sin ( s)  
l 

e, em particular, se essa variação for linear, como indicado na figura, desenhar o gráfico
da função |a(y)|/|a| nos casos { = 75; 45; 15}. Discutir o resultado obtido.
***

453
Wichmann, E.H.(1971): “Quantum Physics”, Berkeley Phy. Course,Vol.4, McGraw Hill;
Beiser,A. (1969): “Conceitos de Física Moderna”, Edusp & Polígono;
Born,M. & Wolf,E. (1975): “Principles of Optics”, Pergamon Press;
Born,M.(1965): “Atomic Physics”, Blackie & Son
Papoulis
Feynman

454

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